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m
SEMANÁRIO
VOL.IME IX
PltlilFJRO nA TERCJCIRit f^ERIE.
(PUBLICADO DE f> DE SETEMBRO DE 1846 A 2íi DE DEZEMBRO DE 18S2.)
LISBOA
TrpottftAPUiA UE A. J. 1'. Eoi'Es. — Ria Amiea N'.* 67.
I«d9«
IMDICC: AliPUABETICO
DOS
ARTIGOS CONTIDOS
NO
y&LVME NOXO — PRIMEIRO DA TERCEIRA SERIE.
(0« a«leri«vor( (lenolam aw urraviirns.
Áhíí75í22
'IO
Abelhas (as) e as colmeias . . 399
Acto do lealdade portugueza. 232
Aduarcs dos Mouros . . . • . 216
Agiotaçoni d(! Lavv 190
Agua doce 110 fundo do mar, 232
— para dar nas obras follioa-
das, antes de as passar ape-
dra pomes S
Álbum Italo-Portuguez. . . . 403
Alguns alienados 29tí
Algumas providencias repres-
sivas nosEstados-Unidos. . 240
Anão (o) e o Bobo * 181
Annuncios dos partos emHaar-
lem 208
Antigos officiaes militares . . 40
Antiguidades egypcias «... 341
Aperfeiçoamento nos mate-
riaes que se empregam pa-
ra conservar os navios . . . 308
Apontamentos de viagem —
uma historia no Bussaco. . 363
Architecto da Batalha * . . . 189
Armadura no XIV século * . 268
Arte antiga 81, 90
Assassínio d'Henrique III de
França pelo frade Jac<]ucs
Clemente * 204
Augnienlo gradual de calor
nas entranhas da terra. . . 103
Avarento (o) * Im
Avinhão * j93
Barcas japonczas * 60
Barcelona (thcatro do Lyceu
em) * 333
Barcos de salvação * 369
Hencvenulo Ceílini * 132
Bonzcduras na Prússia .... 103
Bernadottc, rei de Suécia 199, 211
Bey (o) o o louco 376
Bibliugraphia — sobre alçiimas
obras do padre Francisco Jo-
sé Freire 38 i.
— sobre a publicação de clás-
sicos porlugiiezcs 413
— Traducção de Lucrécio pe-
lo Dr. liima Leilão. . . . 360
Bilbau (hospital civil) » . . . 377
Itiographia do bispo resiijna-
(ariodeCabo \ erde (.Spon-
tamentos para a) 373
Bocage (M. M. Barbos;! dn) « 100
Bom (o) amigo é preferível ás
riquezas • 383
Bo^iptioro (o) * 121
Bosque petrificado de l'or-
tland 213
Buchas de espingardas inin-
flammaveis 48
Cacilhas, vista do Tejo ». . . 137
Campina (a) de Roma. . 62, 68
Cão (o) do norte da Sibéria. 111
Cardeal de Richelieu (o) 122, »129
Caricatura hollandeza * . . . 277
Carlos VI eos seus cortezãos. 113
Cartas inéditas de Alexandre
de Gusmão 271, 278
— Inéditas de D. João de
Castro 71, 77
Carregação singular » . . . . 236
Casa nobre de Gand em 1 300 * 81
Castello de Heidelberg ». . . 124
Castello de Santa Olaia, len-
da do Século XII (frag-
mento) 3, 10, 18
Castello (o) de Bouchout 217, 227
Cavallos (os) de Venoza . . . 208
Ceremonias da cOrte bizanti-
na 191
Chailes (os)de Cachemira21 4, 226
Chalons sobre o Saònc «... 249
Cholera (a) grupo em mármo-
re por Mr. Etex • 321
Colochos (os) 286, 293
Colomba. 138, 130, 163, 186,
19 í, 203, 219, 226.
Commoda (uma) do século
XVI « 281
Combustão espontânea do car-
vão de pedra — meio de a
atalhar 80
Companhia do commercio das
pelles lo>
Congelações nas grutas. ... 216
Coopor (Fenninore) » 307
Conservação do leite 136
Consolação para quem morre
de morte violenta 297
Convento de Nossa Senhora
de Jesus • 17
Convite de Richelieu (um). . 183
Corridas .sobre o gelo 176
Costumes da Lusacia ». . . . 221
Critica (a) 236
Cultura e semeuteira das ba-
tatas 233
Curso da língua italiana, pelo
cavallieiro .\. Galleano Ua-
vara 416
Cyprestc gigante (o) 160
Daniel O' Rourke ou o sonho
de um beberrão 60
David vencedor • 209
Demónio (o) do Jogo ». . . . 297
Derkeaub, seita argelina. . . 82
Descida ao volcão de Kirauea. 237
Descoberta 236
Descobrimento' (o) da Ame-
rica • 257
Diana caçadora * 164
Dobrar (o) dos sinos 283
Duas palavras sobre Hospitaes. 310
313, 323, 333, 3lO.
Duello — Vid. (Proscripção
do).
Eleições em Inglaterra (as). . 301
Elephante (o) de Sião «... 149
Emigrado (o) rico e o emigra-
do pobre 235
Episodio da vida de Aleixo
Orlof 33
Ercillae Camões, julgados por
A. dellumboldtcomo pin-
tores da natureza 269
Eremitério do Vesúvio (o) •. 133
Eschola de gravura para me-
ninas em Londres 192
Essência de rosas 288
Escolha das encadernações. —
conservação dos livros ... 30 i
Estatua de Mithra « 68
— de Mozart • 241
Expedições de três potencias
ao polo austral .... 158, 165
Extractos d'auclores portu-
guezes :
P. António Vieira. . . lO,
200, 208, 328. 336,3 U,
332, 360.
Bocage 4í>. 280
Euzebio de Mattos 232
A. Herculano 320, 336
Fabrico de espelhos 56
Fausto da mesa dos rom.^nos. 263
Feitor (11) de Cantão, novella
73, 86. 91, 98, 106, 119.
123, 131.
Fest.i (a) de IVterhoff .... 112
— do Corpo de Deus em ^"a-
loucia • 53
Gcnio (o) do bom • 253
— dos liulaudetcs 115
Gossior inorlo por Tcll «... 183
Gomes Freire dWndr.nde». . 6
13. 21. 30.
DO VOLUME PRIMEIRO DA SERIE TERCEIRA.
Gratificação (a) 288
Grude de arroz, ou cimento
do Japão 360
Guadalajara » 337
Guarda Escocez dos teia de
França • 76
Guernica « 348
Habitantes das landes de lior-
deus 22, 32, 36
Fíadjeb (o) de Kordova . 26,
33, 42, SI, 66.
Havana — passeio publico . . 393
Historia dos Telegraphos ». . 61
74, 83.
Honras (as) devem ser confe-
ridas a quem as merecer. . 408
Hospitaes — Vid. Duas pala-
vras sobre —
igreja da Bôa Nova — Vid.
Villa de Terena.
DhaCelebes — Macassar. 84, 96
101.
I iidios (os) de Surinam . »« 8o , 93
fnflainmação da pólvora pelo
choque , 128
Iniluencia nociva da nogueira. 80
Instituição da Ordem da Ro-
sa »* 36
Instrucção primaria em Ingla-
terra 383, 394
— popular 407
— publica. — Illustração do
exercito 262, 386
liistrucções dadas ao coadjutor
de liergamo núncio cm l'or-
lugal no tempo de D. João
IH.. 306, 314, 322, 33'f,
342, 330, ,334.
Instrumentos de musica —
Trombetas ». . . 317 **«« 397
Introducção 1
Inundação na Itália « . . . . 303
Isabel 11 * 113
Jantar (o) d'ossos 120
J<)l;os e festas anti;;as (frag-
mento do unia liibloriu ver-
dadeira) 37
Jornada nas pruvincias da
Suécia 43
Juízo (o) final 232
Jussieii (ISernardo) • 23.1
Justiça (a) 211
licitura (a) 319
Lenda» biíjloricas — O ]3emu-
niudo liago. 319, 327, 331, 373
lii)Mgevi(l,ul<' dos saliios. . . . 224
.Macliiiia infernal dirigida con-
tra Saiiil-Muló 247
MaeUrom (o) 206, 210
Mahomel ou Wafoni.i. . 147,
134, 166.
Maneira deliiar ás vasilhas o
cheiro do bol.ir 368
Maria de Medíeis eseus vali-
dos L'89
IMasaiiiclld. — Vid 'riioniaz
Aniiiello.
Mediciw [,)») Kíilimikos. . . . 303
Meio dl' afugenlar as liirniigas. 64
— lie remediar as eolíeas dir
ehuiiilHi dciH l<'eelòes em
learcí a Jac([uai'(l 61
Meiosque os homens têem jul-
gado próprios para se livra-
rem dos raios 193, 203
Melhor (a) trapaça 208
Mercês deíhonrosas 208
Methodo para dissolver a gom-
ma-laca:, sua applicação aos
tecidos impermeáveis, . . .
Miguel Contreiras (Fr.)» 337,
— Paleologo
Ministério de instrucção pu-
blica no Cairo *
!Modo de desenferrujar e con-
servar as ferramentas dos
marceneiros etc
— de destruir as traças. . . .
Mónaco »
Monumento na Sé de Lis-
boa (um) »
Morlacos (um anno entre os).
197.
Muitos soes e muitas luas, . .
Naiades (as)
Nápoles e o Vezuvio *, 158,
174, 181.
Nobreza de Portugal em 1736.
Ódio velho nãocança. . 234,
2Í.2, 249, 258, 266, 274,
284, 291, 298, 389, 399,
403, 411.
l'aço imperial de Pekin . . .
— de Villa Viçosa »
1'aizagem da Nova Caledó-
nia *
Pandanus (o) na Ilha do Prín-
cipe *
Panorama (o)
Partida do infante D. Ma-
noel
Passeios de Lisboa e seu ter-
mo em 1608
Pastor peruviano »
Pelourinho de Aljubarrota *.
Pelolíqueiro (o) íiieonibustivcl
Penas dos empregados venaes
em Portugal ena China. .
Perij. — Praça maior de Li-
ma * 361
IMiarol (o) de Bréhat », . . . 273
Pia dollaplisino de S. Luiz» 213
1'íeada da Vespa (da) 40
Pímpinella como pasto (da), 263
Pio IX (o Pontifico) «. . 49, 38
Poetas da Arcádia — Pedro
António Corroa Garção . . 330
338, 317, 353.
Punia (,i) do Caju * 89
Ponl(! de Ceret * 223
l'»reelana de SiHres * 380
l'orlo (a cidade do) w 345
Praia do Uota-Fugo * 9
Precauções para niécliar os To-
neis 88
Presbitério dcBolleviile ». . 292
Presença de espirito de um
árabe 312
Preservativos contra os la-
drões 88
Processo facílimo paru gravar
em aço e<uu uma peniia. . 352
l'iiiMitp(;rio do diullo 413
Prova <iú bordão em IMan-
248
379
294
289
240
192
260
29
189
160
280
406
176
57
105
409
311
370
142
365
169
103
104
deuvre 108
Provas judiciarias na Geór-
gia. 112
Províncias (as) vasoongadas »* 324
333, 343.
Pyroxylina, pólvora azotica,
ou algodão-polvora, . 179,
272, 280.
Gluadro (um) das misérias da
vida humana 110
Gluem compra carece de cem
olhos e quem vende basta-
Ihe um 128
Raça (uma) de homens ». . . 44
Rainha (a) Nomahanna ... 16
Reis de Inglaterra que foram
auctores 190
Relógio astronómico deStras-
burgo 70
Remédio para o morrão das
searas 328
— para destruir a traça. . . . 400
Residência imperial em S.
Christovão » 33
Roberto Southey * 12
Rocha (a) do Dragão — lenda
rhenana 281
Romances.
Vid. Apontamentos de Via-
gem.
Castello de S. Olaia
(fragmento) .
Coíomba.
Feitor de Cantão.
Hadjeb de Kordova,
Lendas históricas.
Maelstrom.
Ódio velho nãocança.
Rocha do Dragão.
Roussillon « 143
Sacavém « 329
Salva-vidas »»»« 373
Santa Isabel — rainha de Por-
tugal * 404, 410
Santo Est^ líta (o) e o medico
Sanclorío *
— Ignacio de Loyola *. . . .
S. Boaventura — quadro de
Muríllo «
— Vicente de Fora «
— " de Paulo ». 141,
Seitas religiosas nos Estados-
Unidos
Sequeira (Domingos Ant.") »
Sementeiras (das) ralas ou bas-
tas
196
389
Silencio (poesia)
Sobre o tialialho
Soldado de cavallo prussiano *
Sorte dos meninos nas minas
de Inglaterra 39,
Superstições dos Árabes antes
de Mafoma 78,
Taílí em 1842
Templários (os) ». 109, 117,
^ 127, 134, m, 131, 139.
Theoiloroíl' Almeida (1'adre)»
Tllerniopylas (íis) eml8il. .
Tiiesoin-os dos antigos reis de
Portugal '
Tholnaz Aiiiello (Musauíello)
367, 381, 395.
2
143
239
153
295
319
246
301
4S
94
277
28
120
136
339
índice alphabetico
Tomada de Alcácer. . . 170, 178
Trabalhos geológicos (dos) . . 294
Três enterros (os) de um con-
quistador 2G1
Tribu (a) dos Guarayos na
America meridional . , 54, 63
Trovão (o) — poesia 381
Tumulo de Bartholomeu Jo-
hannes * 41
— do Richelieu * 23
Turkestan (o) cbina » . . . . 248
Tymbaleiro (o) » 284
Usos mexicanos • 97 j
Vae muito do vivo ao pintado. 271 I
Vasco (D.) da Gama ♦. . . . 201 j
Velocidade da luz 200 i
— (da) do som * 228 i
Vendedor de melancias (o) * 21
Viagem ú lua fí6
— ás minas do Peril. . 184, 187
— á Palestina por Mr. Saul-
cy 318, 327
Viagens — Passeio á Norwe-
ga. . 391, 397
Vida (a) humana por Eich-
thal * 313
Vingança (a) do homem bran-
co 223, 229
^ isita (a) de mau agouro. . . 264
Vista de Capri, do lado de
Nápoles » 266
— interior da prisão de Tole-:
do • 401
Villa de Terena — Igreja da
Boa Nova • 177
Viuvo (o) e o Medico .... 24
FIM.
o PANORAMA
SEMANÁRIO DE LlTTEMTlll E I.\STRLCCÃO.
-=s.€?í3í®e=-
II%XKOJDUCÇlO.
UANDo oPaiiorama, n« liin de seteaitnos, ;
L^jr^v- 3 interrompeu a íiia [)Mlilica(,ão, a falta da!
kK ^^ uiiica fullia verdadeirarneiite popular, que i
S^SÁír possuianios, foi lastimada pelos amigos das :
letras, e scnliila por tuilus os seus nume- j
rusos leitores. O oHicio, que acceitára, e continuou j
com traballio e constância, tinha realisadu o objecto j
principal, que se propuzera. Na hora mesmo, em que I
te retirava da imprensa, o gosto da leitura estava 1
creado, e a saudade, com que geralmente o viram 1
desapparecer, era a prova mais lisonjeira d'isso. 1
t) resultado obtido em sete annos de duracjão cor- i
tou-llie verde a palma, que pedira ao começar aohra.
Km quanto a admiração repetia os nomes mais famo-
sos da epocha, sepultados na obscuridade de áridas e
assíduas fadigas, iriineiros da civilisação nacional, os
escriptores votailos a este lavor humilde, nas entra-
nhas da terra, que revolviam, encontraram de certo
o ouro, e 09 diamantes, do que enfeita o seu diade-
ma a moderna poesia das nações; mas tiveram o va-
lor de resistir á tentação, e virando-lhe o rosto pas-
saram adiunte. A sua empreza não era pôr a cupola,
mas crescer com o alicerce d» edilicio. Ao tocar o ul-
timo instante da sua carreira, estavam cimentadas
todas as pedras da consfrncção. A outros mais felizes
o cinzel <]iie tira do mármore as graças da arte gre-
ga, ou levanta a estalu.i de Moiros no templo da
inspiração cliristà !
t> jornal [)opular, creailo pelo modelo dos mais
acreditados nos reinos aonde llíjreci: a cultura inlel-
lectual, loi de certo o l'anoi'ama. Se o não dourou a
gloria das follias sclentilicas, que estendem o sceptro
•obre a lilteralura activa; se não caminhou, como
ellas, na vanguarda da civilisação militante, é por-
que em l'ortugal, aonde tudo principiava, o ruidu
das grandes luctas, e o eblron<lo da» armas, apenas
»e ouviam como echo de batalha hinginijiia em casal
p(f(|Ui'no e solitário. I'',ra preciso ensina-lo primeiro
a andar por aijuelle terreno, para depois o Introdu-
zir, sem sobresalto, no ajuntamenio dos |iovos euro-
peu» confundidos na hora <la fadiga. O erro dos que
precederam « l'anuraina consistiu cm julgar, que a
medicina das nações fortes não repugnava á débil
compleição de uma terra, (lue mal se podia dizer en-
trada na virilulade.
A imprensa instructiva, <■ accessivcl a lod.is as lor-
tiinas e a lodos os enirndimenlos, é um iiistrumenlo
próprio para eslimiilar os progressos em um paiz. (.)
r.iiiorama, distinguindo a iliflirençii (|ue ha enire
as piiblic.icõei purami.Mile lillerarias, e o jornal dNís-
(a espécie, eonsagroii-»e ao trabalho, não estéril, de
esi:ri'ver para d grande numero. Não foi o seu fim
• •iilão, nem é hoje ainda, fazi^r a liisloria iloesttiilo;
cumpre-lhe só apresentar o seu resiillado, resumido
iin bteve ipiadro e popnlanneiile. As altas questões
•uciaes, as |inli'inicas de ipiahpier natureza, e o exa-
me scieiíliliro das matérias irinleresve politiiui ou
mali'ri.il, (|ne oeruiiain a', rnliimiiiis das grandes He
vistas, ou dos periódicos scientilicos, não entram na
sua csphera. O logar mais humilde, e a tarefa menos
elevada, que acceitou, reduzem-no unicamente a pre-
parar a estrada a estudos mais profundos.
Sete annos foi este o pensamento do Panorama.
Fez intimo e familiar o tracto da sciencia, facilitan-
do a todos o prazer mais barato e innocente de quan-
tos ha. i) agricultor, o homem publico, o artista e
o commerciante, nas curtas horas de repouso de uma
vida laboriosa, sempre o receberam como bemvindo.
No continente e nas províncias do Archipelago da
Madeira e dos Açores a acceitação, que o acolheu
provou-lhe, que tinha seguido, sem se afifastar, a ve-
reda, que marcara.
A Inglaterra, a França, aAllenianha, e a Hespa-
nba tão nossa visinha, e desgraçadamente tão pouco
conhecida aqui, exercem com proveito o sacerdócio
de instruir com leituras aprazíveis evariadas milhões
d'homens, que furtam aos breves momentos de des-
canço o tempo necessário para refrigerar o espirito.
N'aquelles paizes já se queixam de que as folhas e
impressos, crescendo como as aguas d\iina alluviãu,
ameaçam invadir até os domínios da rigorosa sciencia.
Entre nós, |>or infelicidade, a escacez sécca muita for-
ça latente, que se perde á falta de cultura. O maior
serviço que se pode prestar ao paiz é alimentar o fo-
go sagrado da instrueção ; educar um povo dos mais
aptos para aprender; fallar-lhe á alma e ao coração,
leval-o pelos inslinctos nobres. (|ue adormecem, mas
não morrcHi , dispertal-o da somiiolemia pela memo-
ria das tradições passadas, e pela promessa do melho-
ramento, que o porvir prometie á constância e ao
trabalho, (-luem tomar sobre si esta obra acceitou
uma grande missão, e pode contar <|ue se não ha de
vèr só no meio da estrada.
<J Panorama, quando se apresentou na imprensa,
não leveoulii) fim, e agora irá prender de novo aon-
de <pi('brou o laço que o unia a esl.i modesta mas
fecunda tarefa. Accoinmodado ao gosto de todos, o
successu, que o multiplicim por um numero d'exeni-
plares, de que não ha notícia em Portugal, abona a
sua im()arcialiilade. A religião e a pliilosophia, os
sábios e os indoutos viram n'elle o amigo da civilisa-
ção, e saiidarani-nn como auxiliar do progresso in-
tcllectual. Osespiritos sérios o profundos, debaixoda
ligeira forma ipie vestia, apreciaram a iniençào mo-
ral , os preguiçosos c li;ves, a princi[)io, receberam-no
coino recreio, depois acceitaram-no como lição amena.
«Tornai de todas as classes e de tt)dos os partidos
nenhuma porta se lhe fechou. Iloje a sua divisa e n
mesma. O (jue nos ri'inos estrangeiros se alcança pe-
lo amor da associação ja educada, polo progresso nas-
cido e creiíilo em muitas giTações, pelo impulso dn
aucloriílade, e pur hábitos lia tempo arraigados,
creoii-se aqui espiuitaneo, (piasi pela diligencia indi-
vidual, eamiiiluui tniiitii em poucos annos, alVagado
pelo giMieroso instinclo do povo, e pelo sincero luu-
vor dos doutos. Deveu tudo 110 povo i- a >i.
o PANORAMA.
o Panorama espera ser amado de todas ascathego-
lias dequc ee compõe ;i sociedade, porque, como disse
em um dos aniius na aliertura, a cada uma ha de ir
l>uscar o que tiver de hom, honesto e proveitoso.
Ao IJra/.ii deveu sempre amizade e estima. A do-
íuuião poliliea não diminuiu o interesse, que a lín-
gua e as crenças estreitaram entre o vasto império
além do Atlântico e o velho Portugal. Irmãos pela
inlellií;oncia. amiiços por antii;as ligações, e alliados
pelo commiim desejo de plantar a eivilisajão, o r"-
eiproco interesse, que os enlaça, revela-se na soUi-
eitude com que si- amam, e se eomprehendem para
«uxiliar a renovação social. Como sempre costumou,
n Panorama nlliani para tudo o que pode ser agra-
dável ou conveiiicnle ao Urasil, como para cousa
sua, dividindo entrf: os diius irmãos- eom imparciali-
dade o ()ue a cada um d^elles eal)e no glorioso testa-
mento (la njonareliia que formaram.
Esto jornal compor se-ha, como d^inles, d(ítndoo
ipie se julgar <le préstimo em descubrimentos scienti-
í"iC(]S, em aperfeiçoamentos di- industria, e nos inven-
tos em artes, apar tias novidades notáveis. Sem ser
rlgorosan\ente noliciador acompanhará o andamento
do século en[ lodos os seus aspectos. — A gravura em
madeira, introduzida por elle, e tão adiantada hoje,
continuará í; adquirir maior perfeição ainda em mãos
[)ortu"uezas. Na lin:ruai'eni ha lie observarse desve-
•
lo constante para que saia limpa de locuções estran-
geiras, refoignantes á sua Índole vernácula, e igual-
mente purificada dos requebros aniiíjuadas de pala-
vras e plirases exóticas, ede períodos alatinados, que
a desítiam. soando mal na dicção corrente e clara,
que líies libras re(|u(rein. Kão (.squecerão ])or ullimo
as noções de scic^cias naturaes, e as das sciencias
inoraes, opportunamente disseminadas aqui e atém,
atjm d'o vulgo dos leitores poder tomar d"ellas a n«-
cessaria tintura.
Seguiudo este sistema é que o Panorama arraigou
a sua reputação, e proi.-iettcndo persistir nVUenada
mais faz do que continuar na profissão litterariaem
que sempre viveu. l'ara penetrar nas cidades e vil-
las, alegrar a solidão dos campos, e chegar até os
remotos cazaes das províncias, recTeando as longas
horas do invernoso serão, não aprendeu nunca outro
segredo. Para se tornar o hospede certo das diversas
classes limitou-se a contar-lhes o que tinham sido seus
pães ; a mostrarUies, além do estreito recanto em
que existem, o vasto espectáculo do mundo, as gen-
tes e os costumes difierentes, os povos longínquos, eos
' lisos estranhos; e a represenlar-lhes os séculos distan-
' te» e tão contrários iiocaracler, ora fugindo naCgura
collossal de um homem notável, ora revendo as fei-
! ções ii'um grande acontecimento, ou no drama de
um facto interessante. O romance, a lenda, c achro-
nicu retratarão com as cores da poesia nacional as
maiores façanhas dos axós, de que descendemos.
A isto se reduzem as promessas, e para tão honro-
; sa tarefa convergirão os esforços do Panorama. O
I benévolo acolhimento, que o distinguiu sempre, a
I espera merecer novamente, sú lhe impõe de ni.iis
I que na prinieira vez a responsabilidade de não des-
dizer do passado, nem enganar o presente. Km bre\«
o juízo publico dirá se o nome do jornal popular foi
; invocado cm vão, ou se satisfez aos votos, que, tão li-
j sonjeiramente para elle, o chamaram ao seu antigo
[)oslo na imprensa.
S. VICENTE DE FOBA.
o PANORAMA.
3
A KbligiXo de nossos aTÓs foisincera como oscuro- \ dava ao monge a brevidade da vida, apontando-lhe
busto curação nos tempos da lucta, em que o sangue ' para além do tumulo, — tal devia ser o monumento
do rei se misturava com o do ultimo cavalleiro, tin- 1 de Aflonso Henriques. Um antiquíssimo quadro da
irindo cada palmo de terra arrancado ao domínio ara- j Senhora dos Martvres, edificada no mesmo tempo.
\jc. Vencidos, uniam ao peito a cruz da espada, pa- abona a conjectura. K que Lisboa ainda não era a
ra morrer no kíto dVspinhos do martírio ; vencedo-j orgulhosa oídade que, rompendo duas vezes o cincto
res, os cânticos, trasbordando pelas abobadas dos tem- de muralhas, cresceu pelo arrabalde, obrigando o Te.
• A cathe-
plos, iam exaltar o Senhor dos exércitos
dral e o mosteiro, levantados nologar aonde a vícto-
ria pousara sobre as armas chrístãs, ou no sitio aon-
de os fortes dormiam o somno derradeiro, traduziam
para o monumento a historia das monarchias, que te
erguiam do sepulcliro, e guiadas pelo enthusiasmo
começavam a caminhar para a nova epocha social.
O dedo do conquistador que a construía, gravava
na fronte dacathedral, d'e5se livro de pedra, a breve
inscripção de uma batalha, e de novo partia aembria-
gar-se no revolver das pelejas. A igreja, esposa alílíc-
ta, arrastara no desterro os pulsos roxos dos grilhões,
até, como a clirisal^da, romper o cárcere, e abraçar
entre as rosas da esperança a primeira liberdade. <J
templo ii'estesdias de combate era o hymno dochris-
tianismo tríumphante. O sacerdole, depondo a cer-
vilheira e a iança, muitas vezes architeclo, vestia de
mármore as aspirações que a alma elevava aothrono
do Eterno. N'esle período a arte da meia idade, fiel
á inspiração, sentia profundamente, antes de lavrar
a cinzel na pedra, o sacrário do seu culto. Áspera e
incorrecta nos primeiros passos, respira, comtudo, o
mais puro sentimento religioso. Obra demonges-mi-
litares, ede soldados-mongcs não trahiu nunca a sua
origem. Em toda ella vive oespirito dos séculos guer-
reiros.
S. Vicente de Lisboa, de que hoje damos a estam-
pa, nasceu d'esta intima aliiança da idéa religiosa
com o ardor militar, caracter distincto da artechris-
tã em três séculos da nossa liistoria.
Debruçado nas ameias de Santarém, rendida por
lurpreza, Alfonso Henriques alargou os olhos para o
horisonte, curado do sol nascente. Além estava Lis-
boa, sonho de sete ânuos, ardente voto de toda a sua
vida de soldado. Tomada Santarém, tinha á cinta as
chaves, que podiam abrir as portas á conquista •, po-
rém a sultana dos califas, reclinada á sombra dos
frescos laranjaes, com o porto aberto ás armadas de
Ceuta e a testa coroada de torres, não écaptivaque
ceda no conflicto de uma só noite, Desde essa ma-
drugada o tempo que decorreu não fez senão amadu-
recer o plano. Deus marcou a ultima hora da filha
dt) árabe, escrevendo no peito de D. Alfonso a im-
mntavel residiição d<.' a engastar, como a mais rica
jóia, no diadema da nascente nionarchia.
Ninguém ignora de(|ue modo estreitada pelos ho-
mens do norte, e pelos antigos lidadores de Portugal,
Lisboa, estorcendo-se nas anciãs da lume, succumbiu
mais a cilas do <|ue á lança dos seus inimigos. Dois
monumentos perpetuaram o terror da queda em lodo
o Islam , — a igreja dos Martyres e a de S. Vicente
de fora ; a primeira, mais visinha da cídaile, no ee-
niiterío dos ingleziís e Irancos :, a segunda, alem dos
muros, no cemitério dos leulonicos, futura urna r\-
neraríu i|e reis n prineipis. J''iii o respeito ehristão
pelos ijui: tinham caído antes do dia da victoria <|nem
eollouoii, nos dois recostos á direita eeííiuerda da brl-
licosa Lisboa, essas povoações de iniutos, em testemu-
nho de le n ai|U(dli- (po; na sua justiça mede a gran-
deza (! a dicadiiiKÍa ilos niaiorcH iuiprrios.
A prímítivii eonstruecão lei nutnralnirnle tão sim-
ples como lis mãos (pie «levantaram. Ermida islrei-
ta, em íiírma rotunda, reehando o telhado em eiipii'
lu i paredes de barro vermelho sobre escuro ^ cellade
píiiiteiicia, «onde o cilicio, pungindo n cariie, rccor-
jo a recuar diante de palácios de mármore. Ainda
não descera, como a Koma imperial, do cume dos
montes a assentar-se em alcatifas de uma quasi eter-
na primavera no regaço do pátrio rio.
Correram os annos, e os séculos comelles. A coroa
de AíVonso Henriques da cabeça de D. Fernando as-
sentou no elmo de D. João I, e retemperada no san-
gue mais nobre, no duelo entre o íilho de Aflonso \
e a fidalguia portijgueza, ornouse com as espheras de
D. Manuel, e fundiu-se na dissolução dos últimos tem-
pos de D. João III. Lisboa, que no principio seani-
nhava aos pés do seu alcácer, alargouse para lodos
os lados, tornando-se a Cleópatra dooccidente :, pros-
titiiiii-se iiob braços do deleite, desfazendo na taça
dos banquetes as pérolas de Ceilão, e cozendo era ou-
ro a sua boa espada, sceptro da antiga monarchia.
Lisboa, a namorada da briza (|ue ihe ondèa o véu
d^escuma e tlores, Lisboa, que o velho oceano adorme-
ce einlialando-a cora o bramido das suas vagas, abriu
as portas ao estrangeiro, e viu as suas bandeiras su-
jeitas aos leões de Castella, que afinal ousaram cra-
var as garras nas quinas de D. Alfonso.
Foi então que a sombria piedade de Filippe II se
lembrou de erguer das ruínas a igreja deS. Vicente.
Em logar da estreita casa aonde primeiro se murmu-
rou a oração dos mortos pela pátria livre, levantou-
se o pomposo ediCcio, construído no estylo romano,
que tinha substituído já o gosto imaginoso dosarchi-
teclos da liatallia, e a arte da renascença manuelina,
não menos rica e phantastica. Os cónegos regrantes
deS, Agostinho, que desde a fundação da monarchia
allí tinham visto ílorecer emsauctidade muitos varões
insignes, nos espaçosos claustros da nova fabrica con-
tíiuiaram a cultivar as leltras e as virtudes, uuioo
allivio dos tempos revoltos. A construcção moderna
levou uns poucos de reinados para se concluir, e os
copiosos documentos do archivo dos \ icfiiles abriga-
ramse alli das repetidas convulsões por que atraves-
sou o reino. Ultimamente passaram para a Torre do
TiMiibo, aonde o investigador os poderá exaniinar, e
restituir aqui e além algum dos factos da nossa his-
toria, para a qual oxalá que se voltasse tanto talen-
to consumido em menos úteis esforços.
O Castello de Sant.v Olaia.
Lenda do seeií/o XI.
(Fragmento.)
(■luANDo na Incta com Os árabes, alta noite, se ras-
gava o véu d.is trevas, e faise.mdo pelo negrume do
céu, resplandecia no cimo da» serras o logo dasalme-
nar.is (1) ; quando na torre d\italaia, ao serpear do
sulco luminoso, a sineta do vigia aionlava osechos^
«inanias vezes, <lcspertado pelo embale das armas, não
sahisle do ri'pouso, antigo castello de Santa Olaia,
com o alfange do infiel quasi sobre o peito f
Então a trompa christã retumbava mais alto >pi*
os anafis mouriscos, coroando se repenlinameote o
adarvi' (-J) de cervillieir.is (It) brunidilS, d<' iiKilh.is lii
(O Alnifiiiiiias eram .siitiiap.s qiie se failam com fogueiras
nos lo^jaios altos, il.iiido rebate ile iiilmlKOs.
(J) Ciirreilor l:u';;o, ipie circulava |K>r ilelra?. das ameias.
(li) Armadura dcIViisIva da laheça « lados do rosto, q»«
desvia como loallia a ativelnr-se no lioiubro.
o PANORAMA
lente». — Com o arco retezado, como os frecheiros es-
preiliiin iinmoveis ás seleiras a lioste tios filhos <lo
propliola, ijiK! desenrolada encoita abaixo se curva e
se oorla para trepar a hideira aprumada 1
tAuantas vezes não deixaste crescer em meia lua o
exerciti) inusulmauo, e avi»inhar-se, lento, silencio-
so, pela calada da noite «té em nó robusto te enla-
çar as torr(.'s, cuidando estoural-as no possante aper-
tar dos collos ? Era assim que folgavas com os dias
perigosos. O raio dos cngenlios partia, a lan<;a dos
fortes erguia-se, e, como a cholera de Deus, fulmina-
vam o orgiiUio do agareno, desfeita a esperança de
VPT tremular nas ameias o estandarte de Córdova.
E hoje nefn unia pedra para lembrar que exististe !
Largo tempo a hera e os abrolhos se enrolaram pe-
los fustes parliiios das coluninas, e do seio rolo das
abobadas penderam em festões as plantas musgosas.
As quadrellas gigantes rangeram ao golpe einbarado
do alvião, e as pedras aqui e além tombadas na en-
costa, ou espalhadas no valle, alvejaram de longe, se-
melhantes ás ossadas dos Til.ães vencidos.
Os séculos carcuniir.ini o cimento dos muro*, em
pé desde que a águia de César, voando do 'l'ibre,
pousou ás frescas margens do Mondego. Os homens,
olhando com desprezo para o alcácer desmoronado,
apressaram mais os estragos dos annos ; aténatradi-
<;ão popular, p(jr costume tão fiel ú gloria, se lhe per-
deu a lembrança. Nem então nem depois o alaúde
mouro ou a liarpa cliristã recordaram ao\i.ijante os
(Mjrcos e batalhas que o combateram, os festejos que
o alegraram, os amores e pezares que alli choraram.
Antes das scenas, que n'elle se vão passar, o cas-
tello de S.inta Olaia, levantado do chão pelo primei-
ro rei portuguez, cresceu novas forres e ameias em
alicerce robusto, e no alfo da penha escalvada cam-
peou ainda baslanles ânuos o pendão real, terror e
castigo do árabe.
A historia da repeiiliua destruição, recordada ao
eistercieiíse por D. Marfim, já n'aqiielli^ epoclia era
a lenda marjvilhosa da credulidade popular. O fe-
mor, que incutia a narração d'esle successo trágico,
apertava o coração dos fracos e até o dos animosos.
W-iial dos cavalleiros de Allonso Henriques, sem a
pallidez do susto, atravessaria, depois do pòr do sol,
as ruinas do velho alcácer.' Assim mesmo bem pou-
cos, a horas criticas, iriam arrostar as almas pena-
das, as visões diabólicas, que o vexavam.
Apenas se acabou de reedificar, os espectros — tão
corleies furam 1 — c<ilcram aos vivos o passo novo,
tomando só posse do <|ue se ficou cliamando a » torre
nuildiel.i. !• Da primitiva construcção era auniiaaiii-
da inteira econservada. As .abobadas subiam em fres
espaçosos andares, rasgados de esguias frestas. Os lan-
ços de ameias lodeavain-nos até fecharem noseirados
aonde morriam as escadas espiracs, que se tori:iam pe-
lo interior. Do nada se linliani esquecido os funda-
dores para tornar iiiaccessivcl .los homens e ao tem-
po o Seu ninlio d^igiiias, sobranceiro na coroa do mon-
te aos cabeços pitlorescos dos liorisonles que o emol-
duravam.
Wue singulares historias não contava o [lovo sobre
.iquella torre maWicta ! Eóra de horas, clizia-se, na
ermida levuut.imse .as campas, os ossos desfeitos CTn
po vestem passadas formas, p todos os a n nos. ve«pera
de S. João á miáanoiíe, na sala velha, espiimaovi-
nlio nas taça», langein.se harpas, e, nn clarão de mui-
tas luzes, conviva-, mortos depois d"um século, \em
assentar-se á mesa do baiupiefe infernal
Entretanto, no anno de 1211, e na tarde em que
estamos a i> torre mal.licta" perdeu os privilégios.
Os espíritos s.ilanicos foram perturbados pela repen-
tina enlr.ida ile hospedes mortaps no seu asvio. Nos
eirados, no mais alto, appareceram dois cavalleiro
e um monge de Cister, fallaram momentos apontan-
do para o lado de Coimbra, e desceram logj á sala
d'armas, aonde aqui e acolá se viam dependuradas
grevas, cervilheiras, e arnezes de malha já sem bri-
lho. •
A conversação que iam continuando aiiirnou-se en-
tre elles mal chegaram lá. Os homens darmas, que
passeavam perto, com as ascumas ao hombro, ouri-
rain distinclamente palavras inteiras, que vibradas
no calor d'altercação retiniam longe.
— u Não o digo (lor mim, reverendo nono; escre-
veram-no nossos avós no Furo Velho de Castella —
no livro da nobreza goda. Este, ao menos, é tão nos-
so como é de seu iillio, e está na cabeça de seu oeto
a corAa d'AfTonso Henriques . . . E mais compramos-
lli'a nós; aqui, ás lançadas com os mouros ,' além, na
fronteira, a golpes d^acha com o rei de Leão — pa-
gou-a o corpo de meu pai, e o de todos os cavallei-
ros, que lh'a cingimos. Custou cara esta coroa de Por-
tugal ; e Deus sabe o que ainda custará! Mas apon-
ta das lanças também firmámos nos pannos dos mu-
ros os privilégios de ricos-homeii'. Não lhe toquem
se não (pierem partir o briíço ao rei ' Não se façam
esquecidos com elles, olhem que os lembram demais I »
— «A ermida está armada?» perguntava no pro-
fundo vão de uma fresta o outro cavalleiro a um ho-
mem d^armas, cuberto da loriga de couro cr".í.
— » (^oino vót dissestes.»
— II A tumba .' "
— 41 Aonde mandastes — no meio. •<
— «E na casa por cima.'"
— uTudo prompto. Só falta. . .»
— " Não falta, ha de vir. Três repiques na sineta ;
ao terceiro" — f.dlou-llie ao ouvido — uao terceiro,
entendeste '. m
— 11 Ficai descançado" — replicou o outro com ar
firoz.
— II liem -, volta agora. Espera ! . . . mas não, não ;
eu pouco tardarei. "
— «A justiça quem a nega? — dizi.i entretanto o
monge depois de algum silencio ao primeiro cavallei-
ro— nem elrei nem a sua cúria siibem aindu. . .
— u Não querem, que é o peior de tudo. •• — Ata-
lhou o cavalleiro que tinha falladn com o homem d"ar-
nias. — "Contem isso a outros, não a .Marlim l'aes !
Ah, elles não sabem I A c.ibeça dos traidores os avi-
sará do alto das nossas torres. Não »epni? (Ane lhes
abra os olhos o fogo dos castellos. Não ouvem? Tam-
bém não importa I Aecorda-los-hu o ctitellu, cahiiido
no cepo cubiTfo de lucto. . . Os ricos-homcns de Por-
tugal não são manadas de \illõa8 que se levem as va-
ras. . . "
— " Hein se vê que morreu Sancho I '. n replicou o
frade amargamente. — uO leão velho esta na cov»,
por isso todos faliam. As garras do moço ainda não
mettem medo; tempo virá I . . ."
— "Que venha. .Amole as unhas o leão novo n.i
armadura dos cavalleiros da sua casa. . ."
— ..Cuidado! primeiro não as experimente elle
na orgulhosa serpe de Laidiov»! ..."
— "A urgiilhos.t serpe de ].ianhoso, padre, está
muito alta para lhe chegar assim. .Meu pai deixou
no armatem setas e azevnns para os solarengos, nina
Linça e uma espada na sala d*armas. Não se entra
lá senão quando o senhor ijiier, e porque elle qilpr. . .
.Aquillo não são «s cubas que S. incho 1 nrrelwntoii
ao saneio homem de Lourenço Fernandes. "
— .€ D. Marfim, não vos fiei» Ha soberb.i I \ ondo
adormecer os reis de Israel dilxiixnda purpura quem
havia de dizer que o «ol seguinte allumiiiri.i o jeu
caminho para o e.iptiveirof n
o FAINORAIVIA.
— tt Uma cova, sete palmos de terra benta, eque-
brou-8e o captiveiro mais rigoroso ...»
— " E o inferno ? "
— u Não ha peior inferno, padre, qne a infâmia 1
todas as aguas do mar não a lavam ; a morte, nem
«siía a desvanece. O cnrpo coine-o a terra, os osius
faiem-se em pó, e a infâmia dura eterna sobre a se-
pultura I ... a quem a solirer callado, com a espada
i)iiiela, ainda em cima :u-outum-lhe a cara com a
liainha, e lião de rir-te d'<lie como d'nm pi>bre de
Ctiristo. . . por Deus! Não se hão de rir de mim.
Aqui licou um punhal, que é bastante para Martim
l'ae« não servir crescarneo ao vulgo ..."
— II Escuta. Já te não lembram o cuidado com que
te criei, o amor com que te estremeci desde peque-
no? Amou-te ninguém, ia a dizer — maisl ... tanto
como eu ? "
— li quando me esqueci ?"
— Bem sei ; vê lá : — não me doera como minha
própria a tua aíTronta ? "
— it E fallais de perdão, reverendo noiíii I . . . "
— i' E fallo, e peço-t^o etn nome de Deus, pela
ahna dos (lareules a que mais qui/este, por !na ir-
mã, o doce prazer do teu cor3<;ão ! . . . Eillio, acima
da aflroiita ha outra cousa maior — a honra, a fede
cavalleiro. Se fosse vivo teu pai. fallava te pela mi-
nha bocca i dizia-le : Martim l'aes, é uma ac(;ão vil :,
é o despique traiçoeiro da mulher fraca . . . depois de
feita, o nome de ii Ribeira >' liça um nome deshonra-
do, e teus avós deixaram-to limpo e puro I Como el-
les corariam na sepultura, se podessem vêr, se podes-
tem ouvir o mundo, apontar-te ao dedo, e dizer:
.itJIlia Martim Paes, quem o diria, o filho d'aquel-
le pai ! Como se não achou com valor de morrer com
uma lani,'aila : de cavalleiro feZKC carrasco'." \ ôs
que vergonha, que desprezo, D. Martim ! "
— " Erade, não tentes a paciência do homem" —
exclamou o mancebo, <|ue de uni lado para outro cor>
ria a sala, accessas no rosto as rrtxas cores da raiva.
— nNão me peças impossíveis,"
— "Equem t\js pede.' Não te estou dizendo que
depois te ha de amargar? Eu mesmo, juro-te piílo
cordeiro divino, que desce imuiaculado a estas mãos
indignas, o mais pequeno dos villõcs que fosse, por
todos os thesourosdo mundo nãoquereria viver n'esta
terra, e Deus sabe se a amo I com a allroiita do no-
me de Martim l'acs. "
— "Frade, pede que te não ouça isto duas vezes. "
— u Podes também matar-me a mim, filhodel'aio
Moniz de Jierredo ', não te prenda». — Um anuo mais
cedo? A viagem sempre se ha ile fazer por fim ! Mas
iJha que te hão de chamar na caravillão e covarde,
e tu ouvil-cs callado! tiue remédio! Não foi para
isto que eu criei de menino o filho (ra({uelle pai!
— .1 Erad<!, deixa-te lie vaid.ules mundanas, tiue
falias alii de brios de cavalleiro, tu, (pie não levan-
tavas iiiiiit haste doestas, jior ahi eniostadas aos lan-
ceiro» ? "
Nos olhos do niongií um iiisl.intc acccndtMi o orgu-
lho o fogo de nina indignação severa.
— ..Maiicí^bo, !■ cuspir iiris faces do liomini morto,
ilue vilania, dizer a qui'm falleceu e se amortalhou :
lOrgiiete. JCs um covarde ! 'l'«inpo h(uive i'm que
•6 dois pulsos feriam mais rijo:, o (riii{uell(! rei que
Deus levou, e o d(! Ijonrenço Vi<'gas, o espadeiro. —
1'uraçào nenhum tiiihu (pie invejar ao outro. I'ira is-
to ha muitos aniios, !■ verdnile — loucuras de velhos !
O <|oe sou:os nós ao pi;il'esteH ravalleiriis moços, (pic
ajoelhiim diante <los inimigos, e os matam pelascos-
tas? "
E peganilo na niuis grossa lança o monge mciieou-a
iigeiru como um \im«. Depois, retrahindo u corpo,
sacudiu-a de arremesso contra um escudo d'aço, aon-
de, gemendo som cavo, vibrou cravado o ferro maii
de duas pollegadas.
I — u Este braço, sequiiesse, D. Martim, ainda po-
dia jogar duas lançadas . . . aos mouros : accrescentuii
; serenamente.
1 — " Por minha alma ! . . . valente golpe ; "acudiu
o cavalleiro idoso.
— «Não é nada já ; lembranças de velho que ain-
da se quer fazer rapaz?" retrucou sorrindo com iro-
nia.
A côr do pejo subiu ás faces de D. .^lartim. A li-
ção involuntariamente o obrigou a pòr os olhos tio
chão. Seguiu-^íO longa pausa. Os lábios, brancos de
raiva, do mancebo, repuxados o'um rir convulso, tre-
miam como as urzes no monte bravo diante das ra-
jadas do norte. E que lá dentro ia uma tempestade,
que reluzia na vista, e no fogo das faces.
O frade, poiísando-lhe a ;não no hombro, cortou-
Ihe as reflexões em que estava abysmado, faltando em
tom insinuante :
— -.í ÍJra vamos, Martim Paes — é ser homem I . . .
Ouve o meu conselho, deixa-te dVssa má tenção.
Vai deitar-te aos pésd"elrei, pedirlhe justiça — ha-
de fazer-l'a ; diz-me o coração que t'afará como ain-
da se não viu em Portugal."
— 11 Justiça dVlrei ! " — acudiu o mancebo com
ira, e cerrando o punho; — «esperem por ella, que
morrem de velhos ! E ce^a e coxa. A nossa anda me-
lhor : — Sangue por vilta ! Pode-nos depoisquebrara
espada pela empunhadiira, ou queimar-nos, como fe-
ras, nos castellos — ficamos pagos! Não é assim D.
Nuno 1 1'
— «E o que sempre disse. Alli, a duas passadas,
temos Castella. (lucm não couber aqui . . . aindaum
caviíllo me pode levar lá. Estou velho i será a minha
ultima corrida. "
D. Martim apertou-llie a mão, exclamando :
— " Até que ciu fim encontrei um homem, D. Nu-
no ! "
— «Um louco" murmurou o monge.
O niiiiicebo, olhamlo liopois para as paredes nuas
da sala, meditou Iristemenle alguns momentos. la-
se-lhe carregando o semblante. — « Como estes muros
estão negros, e ainda tintos <io sangue da orgulho-
sa família do Douro. Alegra-fe, D. Ini^o. Antes de
romper o sol dormirá o mais novo da sua raça ao la-
do dos (|iie além descançam í — e apontando para a
porta da ermida: — « CíLuaiido entrares por alli, Go-
mes Lourenço, não te dirá o coração que esta noite
será a ultima ?"
— «Não blasphemes " — atalhou o frade com im-
pério.— «Não auordcs á vingança os mortos que re-
pousam. "
— «Vingança de <|ue, e por quem .' "
— « Ctiamaste ]tor Inigo Lopes, e não saiws (pie
nas veias de Ciomes lioiirenço corre o sangue d Vdle .'
N'estas pedras ha oscilo deC.iim. Cavalleiro de La-
nhoso, estas ruinas contam uma historia, capai de fa-
zer tremer o priqirio inr(;riio."
— « Sabeis então .' . . . "
— 1. As desgraça» ipic vieram d'uma só vingança?
Si^i domais. Ocastello t^n (|ue estamos era de paren-
tes vossos. () iillinio senhor foi o coiule Ordoiiho, des-
iciidcnle trelrci Kainiro. Esse D. Inigo (pie acabas
de convidar, era lio do mori> Ansur, viuvo aos de-
zoito annos:, do uiiico filho doesse vem a raça detio-
nics liOiírcnço . . . Desaliaslt! o inlerno: giiarde-te
Deus (pie ello te levanli; a luva. "
— «Vivo ou morto pódc vir (juando (|uir.er. Um
anuo >: um dia com braçaes (< cotia, a peou a cavai-
lo, juro delciider o que hoje faço, "
6
O PANORAMA.
— II Jesus!" íxclainou o frade, mais branco que o
pilar <ie pecira a que st; encostava.
Ou fosíP acaso ou mvslpriu, o guante ferrado d'u-
ma armadura negra desprendcuse e bateu nas lageas
aos pés de D. Martiin. Ocavalleiro enfiou ^ mas eu-
cubrindo ergueu do ilião a manopla. No canhão em
lettras douradas lia-se o terrível nome de Inigo Lopes !
Um instante ficou contrafeito e pallido ; depois com
apparencia traiiquilla, virando-se para o frade,, dis-
se-lhe :
— II Em quanto esperamos, f)or que no» não coii -
taes a historia d"este castello.'"
— " (Jxalá que aproveite! >■
— "Como este ódio nasceu velho 1 " murmurai»
comsigo D. Martim.
O monge assentou-se então :, D. Nuno á sua esquer-
da, e D. Martim á direita ouviam em silencio. Pos-
ta na linguagem de h<ije a historia dizia assim —
(Continua.)
Uma das mais interessantes biographias, até agora
por escrever, é a de Gomes Freire de Andrade, sol-
dado e escriptor distincto, tão celebre pelos seus fei-
tos gloriosos, quão digno de lastima pelo seu fim de-
sastroso, lia quasi trinta annos que o vento lhe dis-
persou as cinias: hoje que o ódio dos partidos d"en-
lão devi! de estar adormecido, é um acto de justiça
perpetuar a memoria do guerreiro a quem até foi
negada humilde sepultura na terra de seus avós. Es-
te esbo(,'o biographico não lein por liin decifrar as
causa» mysteriosas da cat.islrophe, mas a imparcial
exposição de factos. l'óde-sc honrar o morto sem of-
feiísa «tos vivo».
Nasceu (lonies Ereire de Andrade em '2~ de ja-
neiro de ITói), curte de \ ienna d".\ustria, onde
•leu pai Ambrósio Freire de Andrade e Castro era
embaixador de 1'ortugal. Desceiulia d'um» familia
entroncada na antiquíssima casa dos condes da Tra-
va, e na dos 1'creiras, Forjaies, e Holiadfllas. e con-
tava entre os seus antcpnssadoj muito varões illus-
tres, dos quaes bastará citar, peio que Iik!\ aos mai»
modernos, Jncintho Freire de Andrade, penejvrista
de D. João de Castro, e (iiiines Freire de .Andrade,
que nas guerras da restauração, depoi> de sacudido o
jugo hespanhol, obrou prodígios de valor, epatifiron
os tumultos do Mar.inhão com prudência rara e ad-
mirável politica, temporada pelos diclame>da huma-
nidade.
Três carreiras havia em Portugal p.ira nobres : a
das armas, a da iiiagisiraturu, e a eccle»iasliea. (ío-
mes Freire elegeu a das armas, sentou praça no re-
gimento d'infaiiteria de Peniche, e e>n t7S2 foi prt>-
movido a alferes. O mancebo brioso e valente, exci-
tado pela memoria de seus maiores, almejav.i .1 ix-
easião de provar o para «lue era. Em breie so ib>
proporcionou. Carlos III. rci d'Hcsp;inh,"i. querendo
tirar vingança da insolência dos argeliiu», restd«eii
o bombardeamento do refugio d'estes piratas infe^tc>» á
christandadc, a ijuem potencias poderos.is não ^c peja-
vam de pagar infame tributo pela alta merci!'delhe»njo
o PAJNORAMA.
captivaram os seus súbditos o tempo que fosse do agra- | armada raal, ou porque a vida maritima lhe desa-
do dosde^sd'Argel. Sob o mando supremo do teneu- i gradasse, quando desacumpaiibadadu» pe^igo^ da guer-
le general da armada liespanhola, D. António Bar- | ra, ou porque servindo no exercito de terra belhean-
celó, já experimentado em tats einprezas, sejunctou i tolliaase augniento mais rápido, voltou para^ o regi-
no porto de Carlliagena uma armada composta de niento de Peniche, em 30 d'abril de 17SS, com o pos-
vasos hcspanhoes, napolitanos e maltezas, fazendo ao i lo de sargento-múr
todo cento e vinte e três embarcações, em queentra-
vara sele naus de linha u nove fragatas, afora asnáiis
Sancto António e Uom Successo, e as fragatas Golfi-
nho e Tritão, com que 1'ortugal contribuiu. A nos-
ia frota, em que Gomes Freire foi servindo como of-
ticial de marinha, commandada pelo coroutl do mar
Jiernardo Kamires Esquivei, largou do Tejo aos 11)
de junho de 178Í-, e na tarde de 22 ancorou na ba-
ilia de Cadiz. Na maiiliã seguinte, feudo niellido pra-
clico a burdo, tornou a fazcr-se á vela. Na noite de
23 cinbocou o Kstrcilo, passou por Gibialtar ás do-
te horas, e seguiu o rumo de Carthagena. Acalma-
ria que lhe sobreveio, e a inconstância e variedade
do vento l!ie atrazaram a viagem até o principio de
julho, de modo que, tendo já sabido a armada com-
binada para Argel, a fiossa dirigiu a derrota para es-
te porto, omle chegou no dia i'2 jielas seis bofas da
tarde. Pv'tste dia dera U. António Barceló o primei-
ineiro ataque, o qual durou de«de as oifo até ái dez
horas e vinte iniiiulos da niatibã, ulcaiidu em parte
da cidade um incêndio que não piulcram apagar até
as quatro horas da tarde, e fazendo voar quatro lan-
chas inimigas. O vento, empolando us mares, suspen-
deu as hostilidades até o dia IS, e n'este meio tem-
po repararam os argelinos as ruiiias do forte de 15a-
Ijiísao, resultantes do alacjue do dia 1'2. No segundo
fttaijiie r(>iii|jeram cllcs, ás seis horas e sete luiiuitos,
II fugi) de sessenta e nove latiihaf, ([ue, adastadas meio
tiro de canlião das suas fortificai ões, occwparam o es-
jiaijo entre o forte di.' li.ibasan o o de Betei. Aslan-
clias aililhadas da armada saliiram-llie ao encontro
e sustentaram o logo sem interrupção, até que, con-
sumidas as munierjes, se retiraram apoiadas pelo dos
navios. O vento do levante, dissipando o fumo, dei-
xou vir deimilidus os ineilões da bateria do iiscollui,
A» i'iobarcai;õis portuguezas, favorecidas da aragem,
com presteza se inetteram em linha a leste da esqua-
dra, para reeha<;arem as lanchas argelinas, toda a vez
que chegassem ao alcance da sua artillieria, acossan-
do as nossas na retirada. Oito vezes se repetiram os
ntaques, em que Gomes Freire deu decisivas provas
de v.dor expundci-se a pi'ito descoberto á chuva de
bailas disparadas pelas fortalezas, e embarcações luiu-
ilas ili! Argel. No ipiarfo aceoin mel li mento haviam si-
do niellidas a pique as faluas dos dois geiíeraes ini-
migos ;, tão renhido foi elle.
Ivslavani já destruídas a maior pai te das lanchas
argelina», havia ardido a bateria do Escolho, e o fo-
go reduzira a cinzas muitas casas da cidade;, e por
iseo 1). António JJarceló convocou os geneiaese com-
inanilantes dos navios a conselho no ília '2i de julho
lie 17Sl para delibitrar se era conveniente continuar
ns hosliliila<lei, apesar do risco iin mine nie de saltar um
vento contrario, ijue pinia a i-squadra em giaiule aper-
Ib-eiíliram iinaiiinie» que a empreza se devia dar
iluiila, e a esquadra parllu da bahia de Ar-
gel no dia 'J3, e no liia 27 entrou em Carlhagt'iia,
líepois de ler dado uma boa lieão nos argelinos, con-
tra os (|iiae» gastou sele mil e Iniit.is bombas e gra-
nudac, e mais de doze mil bailas, nlém da metralha.
A nossa esquadra saiu di> (-'artliagena a'.) tragoslo,
niidoii a corso pm- hI:;iiiis diassobre a- cosias d' Afi i-
ea para li'ste de Argel, ie|i»ssiiu o l'Atieito na noile
de ;i(i, apurloii eni(.'adizno dia Beguinte, eiecullieu-
ke a Ijisboa aos 1'J de seleiíibto. Gomes l'Veire, <iuu
em S de iiiarei) de 17íi7 |iussára a tenente duniarda
lo.
liiil eiiliel
Catharina II, imperatriz da Rússia, havia tentado
sublevar varias províncias do império ottomano, e
com especialidade a Grécia, em nome da indepen-
dência e da liberdade, a que se mostrava aifeigoada
nas cartas a Voltaire, mas que proscrevia nos seus
estados. A' guerra que por este motivo accendèra pu-
zera termo, em 1774, o tractadoassigiiado eniKust-
cbouc-Kainardgy, depois de larga contenda termina-
da com immensa vantagem dos russos, que haviam
queimado a esquadra turca no porto deThechesme; e
pur meio de novas acquisii;ões de portos de mar e da
indepeiidcncia dos khans daCrimca, reconhecida iio
mesmo traetado com o Ijin occulto de os sujeitar
á Vontade do gabinete de S. l'etersburgo, ficavam
abertas as portas a futuras invasões no território tur-
co. A czarina, com osolhos sempre fitos em Constan-
tinopola, pretendia encetar a conquista de todo o im-
pério oltomauo, apoderando-se da Criméa. N'uma
conferencia que teve cm 1780 com José II, impera-
dor d'Allemanba, ajustaram que elle o ajudaria a
assenhorear-se da Baviera, sob a condiij'ão de ser au-
xiliada pelo imperador na guerra contra os turcos,
ficando ella com o melhor quinhão dos seus despojos,
e de restituirem ambos de commum accordo a inde-
pendência ás republicas gregas. Reduzida esta con-
veiieão a traetado no anuo seguinte, tractou Catha-
rina de coiisuinmar a usurpação da Criméa. Dewlet
Gherai, khan dos tártaros, era muito allecto á Bor-
la : a ambiciosa e astuta Calharina, recorrendo a pei-
tas, enredos, e violência, obrigou-o a fugir, e, invo-
cada a independência dos tártaros, fez que elegessem
para seu klian a Sabim Gherai, cuja servil obediên-
cia ao governo russo excitou contra elle o desprezo e
até a raiva dos seus súbditos, os quaes, morta a guai-
da russiana, que o escoltava, elegeram Selim Gherai.
Calharina appioveiloii logo o pretexto, invadiu a (Cri-
méa, venceu os tártaros, restabeleceu Sahim, e extor-
quiu á i'orta iini traetado addiccional ao de Kaiiiar-
dgy com o recunljecíinenlo formal do khan seu patro-
cinado. Sahim, despresivel aos olhos do seu povo pe-
las distincçòes e honras que a Rússia lhe concedera,
tornou-se-lhe cada vez mais iiisupporlavel. Acabavam
08 russos de o ajadar a comprimir a revolta de Bat-
ti-Glierai, um dos seus irmiios : suggeriam-lhe quo
exigisse da i'orta a cessão deOczakol, iniportantissi-
ma praça de guerra situada na Bessarabia, onde con-
fluem os rios Bog e Dnieper, antes de desaguarem
no Mar Negro, e por isso disputada, com grande mor-
tandade, pelo» russos e turcos, desde i|ue os tártaros a
perderam. O incauto Sahini-Gherai obedeceu, e pa-
ra desaggravar-se d'uiii acto de crueldade cominet-
tido contra um dos sens emissários pelo pachadailha
de 'lamaii, abriu passagem pelos seus estados aos pro-
tectores russos, que, depois de o violentarem ajur.ir
hdelidade á czarina, eaceder-llle a soberania em tro-
ca iriiina pensão de oitocentos mil rublos, que lhe
não pagaram, o mandaram desterrado para Kaluga,
e pur tini enlrei;araiii-no «ou turcos, pelos quaes foi
decapitado em Uliodes, sem lhe vnlerini os esforço»
do cônsul dl* França par.i o salvar. Trinta mil tárta-
ros, suspeitos de eonspirareni para dar a liberdade .i
sua pátria, ri'eeberain a morte por ordem de l*aulo
l'oleinkili, sem commiseração para com » sexo ou
Idade, As tropas de Calharina devastaram a Tarla-
riii, u como e natural herdaram os verdugos os des-
pojos dus Mij>pliciados. A c/aniia, proclamando que
o PANORAMA.
estes puvo*. não ineniB ingratos que os poUcm. ba-
liam trabalha'lo por aluir o edifício erecto pelo» seus
benéficos cuiòados para íclicila-los, declarou que, em
virtude do ultimo tractado, reunia á Roíssia a penio-
9ula da Criniéa. com a ilha de Taman, e todo oKu-
ban, afim de pòr termo a tantoi de>asfrí». e como
ju*ta iiidemnisação de perdas e despelas.
A Porta ahaixou-!e a sancciouar taml^-ni estas
usurpações: porém Calharina aspirava a iiaiia menoi
que a erguer uiD throno sobre as ruinas do iiuperio
turco. Na famosa jurnada que fizera á Tauride em
1787, a instancias de Poleinkin, teve outtu encon-
tro, emK.ersun. com o imperador José II, e. rasgan-
do a mascara, fez com que por entre as nuvens de in-
censo que a lisonja lhe queimava, se lesse esta ins-
cripção. escripta em caracieres eregos sobre a porta
oriental: Por a«vi se ma de passar i-aba ibter
A ISVZASCIO. Então o çrão senhor, cançado de tra-
gar o fel da afiVonta. detiarou zuerra á Kussia ; e a
Bulgakow, seu en\ iado, encerruu-o nas Sefe-Torres.
onde jazeu mui I.irco tempo.
Catbarina esperava impaciente este rompimento.
A um seu aceno partiu uma frota numerosa para o
Mar Negro, duas esquadras respeitaveb occuparam
Cronstadt, e os exércitos de terra sob o commandu
supremo dePotemkin recomeçaram uma guerra mais
feroz que nunca, auxiliados pur oitenta mil austría-
cos. A Porta. desampHrada dos seus alliados, menos
da Suécia, a mais fraca e a mais exposta de todas a:
potencias, nem por isso de-esperou do triumpho.
Promettia esta formidável lunta hasta me^se de lou-
ros. Gomes Freire, desdenhando o ócio. oble\e licen-
ça em 17 de Maio de 1788 para ir militar nos exér-
citos da Rússia, sem perder o direito aus seus soldos
durante a guc/ra contra os furcos, e em quantu iilli
se demorasse. A gloria convidava-o a illustrar-se dian-
le dos muros deOczakof: obedeceu ao chamamento.
Continuava esta praça a zombar d'iim assedio p"r-
linaz, posto a cercasse por terra o exercito de l*o-
temkin, e por mar uma e-quadr.T ás ordens do con-
tra almirante Paulo Jonnes, um d<is mais audazes ma-
rítimos, tão bem descripto ii*um romance d' Alexandre
Dumas, o qual corre trasladado era \ulcar com o ti-
tulo de Ca^fuo /'ou/o. Ocapitãobaxa que ha\ia ten-
tado fazer uma diversão, atacmdo uu seu ancoradou-
ro a oquadra rus^a á frente de outra de oitenta e
seisvellas, fora desbaratado por Paulo Jonnes. quelhe
tomou duasnáut de linha, queimou-lheseis, incluin-
do a capitania e a vice-capitania e aprisinnou-lhe
quatro mil homens. O almirante turco tinha saído
determinado a vencer ou a morrer, e por isso se des-
pedira da espo«a como «e nunca mais hou\r«e de a
lurnar a vêr, edera a liberdade a todos iis seus escra-
v<is; mas alguaas das embarcações da sua enquadra
começaram a fu;ir vilmente, depois de quatro horas
de CDOibate, ape>ar de sobre elias fazer fogn u baxá,
que se viu constrangida a refugiar-se com o resto de-
Iwixii das baterias de Oczakof.
Ii>tes e outros revezes não queirnrani o animo de
Hadgi-Kniael. governador da praça, o qotl, a des-
peito do mau resultado das sortida», e dos incêndios
repelidoi que as bomKis e bailas ar^leiiles cansavam
nas casai, não cessou de fulminar ossitiaiites purlre-
seiítas e dez l«)ccas de fujo, até que, chegado o dia
Io d outubro, em raião da perda d.«s ubras exterio-
res, e do fogo mortífero das mais protiina* baterias,
sú p(K|e troar a arlilhcria dos lialuartes interiores.
U> frios incomportáveis do mez de der^mbro iam
ctlando a desesperação nos coraçiTe» do* onpugnado-
res. Não podendo antever quando leri.ini fim estes
duri>s trabalhos d'unia guerra sem frurt», começaram
a murmurar conlrj a inTT.lo onc o» cuiidí nin,i\a a
'morrer gelados nas barracas, quando podiam nacon-
I quista d'aquella fortaleza achar ampla retribuição da
j aturada fadiga, por haver alli grandes riquezas de
I alfaias, armas, prata, ouro, pérolas e dinheiro. O ve-
nerai em chefe approveitou afavoravel disposiçãodas
tropas ; fez reduplicar o fogo da artilheria na Doite
de 16 para 17, e tendo conseguido desmontar a qae
os cercado* tiubaro n«s redejites da trincheira, no
bastião da fortaleza, e na cortina do flanco do lado
esquerdo, e visto voar, coai medonho estampido, o
armazém da pólvora do inimigo, que uma bumba in-
' cendiara, ordenou o assalto geral no dia 17. As sete
i horas da manhã, sob ama abobada de fogo e por ci-
ma a'um pavimento degeloresvaladiço, quatorzemil
homens, repartidos em seis cul um nas, investem a pra-
' ça pur todus os lados ; rompem os machados as portas
du forte de Hassan 13axá; correm rios de sangue; e
' Gomes Freire, á frente do seu batalhão, atira seábre-
. cha, eedos priíneirus que entram na praça, onde, aba-
tido o estandarte do crescente, faz tremular as águias
mo'CijVÍtas soltas ao vento da victoria.
Oczakof, a tão cubicada praça de Cruoéa, Ocia-
; kuf, ao pé de Cujos soberbos muros tinham vindocair
' vinte mil russos, é tomada a ponta da bavoneta em
menos de duas horas, sem lhe valer a resistência de-
se-perada de doze mil musulmanos. a maior parte dos
quaes acabaram com as armas na mão ou foram bar-
iiaramente mortos a sangue frio nas casas e nas cbo-
iças; e, se não ha exageração n'um dos maismoder-
nos emais minuciosos bisluriadores da Rússia, a mor-
tanda<ie dos soldados, homens do povo, mulheres -e
crianç.<s subiu a v/ute e ciuou mil pesso.-is.
,' Continua.)
.AgCA PAKV dar >AS obras rOlBCADAS, ARTES DE
AS 1-ASSAB A PtOKA-rOMBS.
Toi>os os marceneiros c amadores d 'este género de
trabalho sabem que o óleo, dado nas obras f^tlheadas,
j escurece as vezes muito a madeira : o que se evita
usando-seda a^uj seguinte. — Tome-se : Goniniaara-
j bica em pó duas e meia onças . Cremor t.írl.iro uma
onça ; Sal commum uma onça. ^- Desfaça-s> tudo em
meia canada d'a;ua. — ^.Dá-se uma demãu d*esta asna
com um trapo jior cima du folheado, deixa-seseccar,
e depois passa-se a obra com esta »gua a peóra-po-
mes, ou usa-se do óleo, sem o perijo d'elle entrar
muito pela madeira.
Subscreve-se para este Jorncd na Typoyrapkia
oníle é impresso ; na luja da Viuva Henriques,
Hua A>igiista n." 1 ; ena de Zeferino, fíua dns
Capellisias n." 32 It. — A mesma Typographia
se poderão dirigir, parle franco, ussadwres que
residirem nas Prorincia<, remellendo em caute-
la do segttro a imp'irlancia de sttis auignntu-
ras, em quanto se niio annunciain os ntmus <
moradas dos Corrc/pondeules nas lernu prinei-
paes. Da mestna maneira serec^ a correspon-
dência jiura:nen!e litleraria, que será restituida
quani) não sejíi adaptada a itiiole da Jorna!.
Preço da assignatura annuni ou 52 X."" IJíOO
Dito por seme>lre ou 26 .N." <504O
N." avulso OÍ030
Ao fm do anno se publicara um iudice ai-
pha''eiico. cvn o rosto i^ara o i"'u-ne.
o PANORAMA.
PBAIA DE BOTA-FOGO.
A BAHIA ilu Mio (l<! Janeiro ó iiin cIiik m:\U riiriiio-
to» poilíi» (|ue SC ciiiilieecin, (leveniio li ii,iliir( ia to-
(!at lis sua» vantagiMis e prjiici|iiies allr.-iclivys ', a cii-
Iraiia, l)iirra iiiiil estreita, dá-liie o caracter de iiiiin
aiii[)li«siiiia liaeia. ca|iaí de leceljer com |n'rfi'ita se-
(;<iraii(,'a iiilinilo niiiiiero deiiavíoa: iki seu maior
('oiii|iriiiii'iil<> 1<'iá beih le;;ii(in, ípiasi na direii,'ão nor-
ti'iiul :, II maior iar;;4ira coin|iiila-i-<i em rjualro leguaí.
A» iiiar(;ciis recortadas em re<'oneavo» e jjoiítaes, a
iiiullidão deiiliju, povoadas algumas, desertasoulrat,
mas l(j(las aprazivcis á vÍ6la, variam o i|iiadro d'eslu
vasliasiiiio recinto, realçado pulo aspecto da pop\dosa
capital lirasiliensi; qiiu se estende do lado doeiciden-
te, (içando liii' fronteira a nova cidade de Nillieroy,
(jue avulta enlre o» amenos silios rpic a circiillidam.
A entrada manifestu-se ao» na\ej;aiile» como iini cór-
lo leito cm cosia alcantilada, mas snliretiido serve de
imircu o cerro de {granito denominado l'ão de A*sn-
tar, em rasão da sna lóriíia Ijciii dislincla. A Irarra
diviílese em duas, di^ 1)0 liraeas de lar|,-o cada uma ;
entre ella» aclia-se o forle da Lii^e, filo no illieu do
iiiitsiiio mimo;, amUas são dcsemliaraçaihis de cacho-
|)0» erecilcs. A' direita aforlaleza de Santa Cruz co-
roa um promontório (pieacalia de circoiiiMrever a lia-
hiii, liem defi iidida alem iPisso por outros pontoB
forlilicailos, como V illa(.;allião, illu: das Colirns eon-
tros iiiuilos. Na retin;uarila dns lialerias de S. Jo-
«é e K. 'riicodosio esta a enseada a <pie eliamam lia-
ília e praia de Itotafuí^o, linda perspectiva, paÍ7.a-
Reiíl das mai»ai,'radiiveisc|uearormoscam as visinliail-
VoL. I. — SiiTEMiiuu li!, lylO.
cas da capital. Para se fa/er alguma ideia d cslabel-
la posiijào veja se u precedente {gravura.
A regularidade do» ventos facilita o o ini;rcs?o e a
saída dos navios; á noite e pela iiianlià o terral traí
para o mar os lialsamicos perfumes d,i costa, e pelas
oníe horas, (juando o calor se torna intenso, a brisa
do mar, chamada viração, veiii' refrescar suaiemeiite
a temperatura. Os navios que chegam appro\eitani
esla occasião mais favorável para a entrada.
O panorama de Constanlinopola ou de Nápoles não
se avantaja ao do llio de Janeiro; o viajante vêcoiii
admiração desenvidveremstt successivameiíteo» varia-
dos e cncaiitadorts oontoriins dVsla iinmensa hahia :
e iiVsle ponto o Novo-Mumlo disputa a Europa a pri-
mazia dosquadros naturans. A terra perinanenleiíien-
le se enf;rinalda com a espleiidiíla vos;elaçào dojtro-
piíos ; dilata se a cidade ao lon{;o da praia, cerca a
liase di; ipiatro ou cinco eminências, e allea-se pela»
encostas, em cima das ipiaes tem assento editu ios reli-
gioMi» t) a cidadellrt, produzindo mui picloresco ctlei-
lo ; nui aqueduclo ile duas ordens de arcadas li;.;a iluas
d'aqurllas eollinas, e eonilui! a a;.;ua potável aos cha-
farizes principaes, servindo «o mesmo lem|io deorna-
nieiilo accessorio da paita;;eiii ; esla construcção data
do meado d<i sciMilo passado. O horisonie e limitado
por altas montanhas, curoadaii de aUaiilis e Hj;ulhas
de tàii singular forma, ()ue fizeram dar a esla conli-
llieira o nomo de strm Jos ori/õos, por semelharem,
na sua remota disluncia, os tiiho» d'estes inslrumcii.
tes-
10
o PANORA3IA.
Parece que a circumstanciada noticia, dada por um
antigo collaborador nosso, tão liahil como bem infor-
mado, em três artigos impressos no volume de 1840
i!o Panorama, nos dispensava da rápida descripção,
<|iie inserimos agora ■, sendo porém esta escripta pos-
teriormente pelo auctor de um livro sobre as reldções
commerciaes entre a França e o Brazil, Mr. Horácio
Say, qtiizemos confirmar com volo estranho as não
encarecidas expressões da admiração que excita a vis-
ta geral da bahia e porto, onde nossos antepassados
lançaram com feliz escolha os fundamentos de uma
grande metrópole.
Do orçamento da receita para o anno de 183Í a
1835 exlrahiuse a seguinte tabeliã, que mostra em
números redondos a distribuição da população livre
nas dezoito províncias do Brazil e as quotas com que
cada uma d'ellas contribuía para a renda nacional.
o vi
1
'i '<^ =
Quotas. j Total. i
Provincias.
2 t ^
;
1=1
Réis.
Réis. 1
Norte.
Pernambuco. .
400:000
1.490:000;^
Paraíba . . . .
100:00tj
137:000;?»
Rio Grande do
Norte
30:000
29:000;Si
Ceará
150:000
122:000íi
Maranhão . . .
120:000
585:000^
Pará
110:000
262:000;^
2.623 :000"^
CenUo.
Goyazcs ....
S0:00t
29:000,<í
Matto-Grosso .
30:000
37:000;^
Bahia
400:000
2.396:000;^S
Sergipe
50:000
196:000,<í
Alagoas ....
100.000
1.39.000;ÇÍ
Piauhi
70:000
100:000,^
2.887:000^
Sul.
Rio de Janeiro
320:00e
5.43a:000,,«Í
Espirito Santo
40:000
79:000,i^
S. Paulo. . . .
270:000
2GI:00U;?Í
S. Catharina .
40:000
57:000;Si
Rio Grande do
Sul
160:000
G00:000i^
Minas Geraes.
(i00:000
746:000;S
7.178:000#
3.040:000
1 2.090 :000,S
O Ca
STBLLO SE SaKCTA OlÀlA.
Lenda do teculo XI.
Fragmento.
(CoDiiDuado depag. 3.)
0
CaSTELLO aVEIMADO.
I
l>om timúo le/as um máu christão.
Como de um
lIocvK, ha mu
ito tempo, grandes guerras entre duas
poderosas fami
las das terras do Rloiidcgo, onconle-
ceu matarem u
m fidalgo moço, de sangue godo. Ma-
taram-o .i fals
a fó, uma véspera de S. João, não o
deixando, sequ
cr, despedir do único filho que tinha,
ainda pequeno.
Por ler ^
alído do rei, c
muito queri- |
do das damas, o enganaram com traição. Foi ura
grande dezar para oj cavalleiros. As duas famílias
nunca mais se puderam vêr, e entre ellas taes motioi
se alevantaram que chegou elrei a ter cuidado.
Assim entraram, sahiram annos; as rixas não aca-
baram. O que vencia n'uma era na outra vencido;
os moços faziam-se homens, i.im para velhos os ho-
mens, e os ódios Sempre constantes 1
Succedeu que o filho do cavalleiro morto vieste a
namorar-se da neta do teu inimigo. Cumo foi nunca
se soube ; só contam qiie nenhuma historia falia de
amores tão vivos, nem de promessas tão bem guarda-
das. No Cm de muitos mezes deram o sim o» paren-
tes d'ella ; como logo o acceilou D. Moço Antures!
A justou -se o noivado para outra véspera de S. Juão.
N'es3a noite fiiíia qiiatorze aiinos que se enterrarão
bom cavalleiro. Q.ue alegrias por Coimbra ! Uiiindu
o amor o sangue inimigo, das raiies do ódio floria a
doce paz.
O homem põe e Deus dispõe! O cavalleiro morta
tinha um irmão da mesma idade. Amigos como fo-
ram aquelles dois não (orna nunca a haver. Inigo Lo-
pes queria tanto a seu irmão, que não estimava maif
a luz dos olhos. Nasceram gémeos dia de S. Pedro,
por isso nos dous peitos escusado era procurar mai»
que uma só alma.
GLuando se espalhou a noticia do desastre do S.
João quem não havia de chorar.' — D. Inigo, o ir-
mão orphão. — Sele dias com sete noites levou-as de
bruços na sepultura. Rompia a manhã do oitavo quan-
do se levantou. Cinto e espada deixou-os ; ia a rezar,
suspendeu-se. Ao entrar ainda fez o signal da crui ;
mas ao sahir... Jesus! por que voltaria as costas ao
altar? Os anjos o defendam I
O que faria sete dias com sete noites D. Inigo, na
capelia, só? Não o disse a nenhum vivente; se o sa-
be alguém é a cova fria. Fallava-se que um monge
vira tombar-se a pedra, crescer da sepultura um cor-
po, e na mão do vivo tocar a mão do morto. Visões
do medo! Corpo que vai á terra não torna.
Somente com a aurora do oitavo dia uma roseira i»
abrir de dentro da cova mesmo. Que frescas rosas,
que ricos botões nos ramos ! Mvsterio I Se lhe pu-
nham dedo, murchavam logo; uma tlur cortada, e o
sangue cm fio a correr do pc. Sele rosas eram bran-
cas c sete vermelhas, todas abertas áquella hora. Ha
já também sele nuiles que debaixo da terra, com ou-
tras tantas feridas, não descança, bradando vingança,
o corpo do leal cavalleiro.
Não se fallou mais cm D. Inigo. Um anno, depois
outro, e sele com mais cinco correu peregrino os
desertos qne D>'us pisara, comendo das ervasdo mon-
te, bebendo da agua dos rios, e dormindo as incle-
mências do eéu.
xVida penitente a d^aquelle sancto !n palavras do
mundo. Deu-, que U' no fundo doscorações, aíTtsIa-
va os olhos d"elio. Cedo u velhice do espirito, não a
do corpo, lhe cavou de ruga» a testa. Por cedo que
viesse, primeiro lavrou ainda a semente do peccado.
Com ser chri-tão nascido, nunca mais se encoraraen-
dou á \ irgem, nem ajoelhou a Ccur.
Uma vez, no fim do lonjo desterro, anoiteceu-lhe
no deserto da "yVníoião. Subitamente brilharam as
areias como chrislal ; n;.s pontas das rochas dançaram
milhares de luzeiros phantasticos. FalU-lbe uma voi,
elle responde, e por sangue vendeu a salvação, .aca-
bava o pacto de se assign.nr, quando o chão, como es-
pelho, lhe representou a fealdade do crime, pintada
no rosto. Tirou os olho< com horror de >i , niasaima-
gem pcrseguia-o por Ioda a parte, como a sombr»
atrat do corpo.
Na lolidão dobravam sinos iavisiveis ; três veies o
o PANORAMA.
11
cantar do gallo acordou os cchos ^ e d'alli muito lon-
ge risadas soltas nas profundezas do Mar Morto che-
gavam aos ouvidos do renegado. A» cidades maldictas
sacudiam alegremente a mortalha d^agua, festejando
o rei das trevas.
i) chão furtava-se debaixo dos passos. O temporal
rebentava com as ondas na costa, com o raio no céu,
cora os furacões na terra. Cedrosantigos, comoo Lí-
bano, estalavam que nem vimes; as feras, tímidas co-
mo crianças, acoutavamse aos povoados. Gluando tu-
do supplicava, por que estaria íurdo o corai;ão do ré-
probo '
Não passou um dia d'alii em diante em que não
corresse atraz da perdição. ll;iiava a manhã ; ornai-
díclo curvado na margem enchia um cântaro na ri-
beira do Jordão. Kamos enfezados torciamse em ra-
ro toldo sobre as ervas que a frescura mal amparava
do sol abrazador. A duas passadas desfallecia um ve-
lho prostrado da sede e de cançaço Uma gota, uma
»ó, d'a(|uella agua era bastante para o salvar.
D. Inigo negou-lh.i. Com o cântaro entornado dian-
te dos olhos, que tragam sôfregos até a ultima lagrima
d'agua escarnece da anciã doafílicto, dizendo; uVai
pedir ao teu Deus outra nascente no deserto. " — Mas
o Senhor não acudiu com prodígios ao seu servo, pa-
ra que elle abraçado com a resignação expirasse ven-
cendo o inferno.
Desde essa hora nunca mais Inígo estancou a sede
que lhe ardia nos lábios e no coração. Kios e fontes
cu se furtavam para lhe enganar os beiços, ou mu-
davam em lume a fresquidão mal os tocava. A gota
d'agua negada no deserto, na balança do Senhor, pe-
lou um século de peccados.
Cumpridos quatorze annos voltou, nunca se soube
como, á terrado nascimento. Contavam que um ca-
vallo cijr da noite, olhos todos chammas,rião corren-
do mas voando, o trouxera da Judéa a Portugal. A
rauda varria o pó, era fogo o respirar, as crinas fu-
giam soltas. Diante os montes suiniam-se ; os abys-
nios fapavamse; e ao passar do galope infernal os
carvalhos tremendo varriam o pó, arvores de séculos
j^emiam como juncos, curvado o tronco. Correram,
voaram I Debaixo da ferradura magica os mares coa-
lhados eram diamantes. As faíscas, lambendo alava,
ialtavam da bocca dos volcões a coroar o rei do fogo.
Ao juiir d'alva o corsel leviínloii as mãos, refugiu, e
parou. A luz apontava no topo da cruz d'uma ermi-
da. A' medida qne aclarava o dia adelgaçou o cavai-
lo, ao primeiro raio di- s(j1 desfiz se em fumo.
I). Inigo ouviu tanger ao pé um sino; e conheceu
o sitio; — u mesma igreja aonde seu irmão jazia se-
pultado; o demónio não lhe mentiu. Au primeiro
passo abriu-se o portal de si nicsnui ; deu segundo, e
a capidla ílluinínuu-se ; diu li'rceiro, e seccarain as
rosas vermelhas, (loríndo as branca» De dentro, em
cântico suave, entoavam o.i/ict t/iaiis itctla.o Esta-
va emlim applacada a vingança do morto.
A fú a chamar I). Inigo, e elle sem a ouvir. A voz
do céu a ofl'eruc(;r-lhe o perdão, e i-lle surdo á miso-
ricordia !
N'aquelle instante, muito longe iralll, orava a Deus
um suncto pelo maior peixNidor da terra. Arrebatado
»m visão descubriu um homem <u»pindo, por escar-
neo, na cruz de Christo, A porta da capella. O anjo
da guarda, ajoelhado no cro/.eiro, banhava delagri-
inaii ns viisles luminosas. Mas o desacato gelou-lhe o
pranto, e cnliriíulo de repente o ronlo h\d>iu iiaara-
gvm, até SI! perder nu» raios do sol nas( tii.
— iiA tua clemenclii é in»(uidavel, Si^nlior ! excla-
mou o justo. — u Haverá liunbem perdão c esperan-
ça |)ara o qui; te renega.'"
A viiuupaiiuu ; as portas da cruiidu fvvharaiii-iecoiii
grande estrondo — e uma voz, semelhante á dotem'
poral rugindo nas selvas, bradou ao longe: — uMe-
■menlo, homo, yuia pitluit es ! . .»
lí
J\«o ha gosto sem jtezar.
j\'aquelle tempo, em terras do Mondego, que rico-
homem havia mais nobre e mais poderoso queD.Or-
donho conde? Do alto do seu castello, até onde es-
tendia a vista, vallcs e campos eram todos seus. Um
aceno de lança, «; trinta cavalleiros partiam a bom
galopar. Uma setta do arco, e centos d'homenbd'ar-
inas em volta do seu pendão.
Aquella raça vinha dos primeiros lidadores das .As-
túrias; e foi sempre raça de ferro para os combates,
insaciável na vingança. Mouro ou christão, cavallei-
ro ou monge, se lhe desse uma vez o nome d'inimi-
go, podia desde logo abrir a cova.
A idade tudo gasta. Açor \elho não vòa ás águias.
Quando deluixo da touca bordada, nocorrer do mur-
zello, o vento lhe açoutava as madeixas brancas, D.
Ordonho bem sentia que se o espirito não envelhece-
ra, o corpo já não tinha nem a metade d'antiga for-
ça. Os annos quebraram o conde, que andava sem-
pre triste. Só a neta, Auzenda linda, sabia o segre-
do de o espairecer. Aquella, mais que filha, encerra-
va o seu único amor, duas vezes o sangue da sua alma.
Na torre de menagem vigiavam os atalaias. Cru-
zando de um para outro lado, não faziam senão esprei-
tar se rompia de longe a lustrosa cavalgada que ee
esperava en\ Santa Olaia. Escondeu-se o sol detraz
do ultimo outeiro, o clarão da tarde desmaiou no to-
po da cruz, apparcceu em fim a lua, sem nas campi-
nas ao redor se avistar um só vivente.
Era no castello véspera de noivado; Auzenda, a
bella Auzenda, casava com D. Moço Ansures. Estava
por horas o S. João, e cumpriam-sejiístamente qua-
torze annos <]ue os monges negros rezaram em volta
da tumba dVim cavalleiro assassinado.
Pensativa ao seu balcão, por que estará Auzenda
mirando a coroa do fronteiro monte ? Córdova e Gra-
nada, entre mil, não contam uma pérola d'igual va-
lia. A ilor do Mondego não tem par. Sorrilhe o céu
nos lábios; c.diellos louros são laços d'oiro que o ven-
to ondêa ; olhos azues, onde o amorsuspira languido,
oh! quem pudera vence-los como d'elltís foi vencido 1
O delgado cinto aperta no talhe csbillo roupas li-
geiras, alvas lie neve; no rosto rosas que desmaiam em
lírios, no bocca um riso sua\e, furtivo. Oveudetis-
so bordado, ora solto folga á brtza, ora em pregas des-
ce ao seio, palpitando. Eil-a sao com o luzir d*alva,
ferindo os pés de IVaga em fraga pela Íngreme aspe-
reza da serra. IJoninas e cecéns ticem-llu- a coroa svl-
vestre, pelos hombros em anneis l\igen\ livres as ma-
deixas. Ajoelhou-se á cruz solitária, mãos erguidas,
olhos meigos. E n oração matutina, que na fragrân-
cia d'aurora sobe, como perfume, ao throiio do Senhor.
O vestido branco, deseidiando ns formas graciosas,
visto de longe (liieluii na vaporosa madrugada como
visão, (|ue voou do céu nos raios da primeira liu.
Ella a chegar, um cavalleiro que sae do lado op-
[losto. Trazia brancas nriiuis; no capello o açor do
Douro, e na coita a cruz azul e branc.i. E D. Moço
Ansinis. Aos (lés da cruz oraram juntos — olVerecen-
ilo a Deus «quelle anior. Elle deu-lh>^ um aniicl de
prata singilla, ella um laço cortado da» tranças d'ouro
— ..Voltas.'..
— ..Dia de S. João.»
— ..'rào tarde '. >»
— t.Uuurcs luait vvJú.' uu véspera a meia uuulo.»
12
O PA1NORA31A
«Oh! Juras .'n Voltearam as danças, corriam at taças, e pelas por-
i. Se jurarei! — á meia noule, ou morto ou vivo. >' tas palenle% do alcácer, uns e depois outros, entra-
Seijararam se. D('spediu o cavallo pelas -çiirjraiilas ! vani monges, donas, e cavalieiros. D. Ordonho poi-
rlo Mionie até te perder detrazdo ulliinu outeiro. lil- se' de pé: — u A' paz das Hcspanhas 1 n jçritoucoma
Ja ficou-o oliiando ate lliefuj;ir da \isla na distancia. 1 líira erguida. A longa acdamação dos convivas aco-
J'or que tliorani os lindos olhos se elle lia de volta.' ' Iheu a saúde do guerreiro velho.
(lueni sabe! Deullie o coração nnia pancada. } — u l'oí!-am como esta findaras rixasenire irmãos! "
No balcão o aue tcisinará sósinlia Auzenda .' Serão j Ainda não pnnlia oxa^o na mesa quando um gri-
receios de noiva, ou saudades de namorada.' | to llie escapou, 'iodos oiliaram attonitos. etodosfica-
Ao cair da noule retiniu a sineta ir^talaia. Do- | rani com as taças suspensa?, imnioveis como estatuas,
nas, cavalieiros e pagens approxiniavanise docastel-' IWo lo^ar vasio do pai de Moço Ansurcs derepen-
lo ; é a suspirada coinitiia. As armas reluzentes, as', te apparecia um homem sentado. \ estia armas pre-
plunias que o \cnlo (ieiíruça para orosto, os ricoí ta- I tas, antigas; viseira callada ; por cima cot ta nejra,
l'ardo5 de nializ scinliliauí ai> fulgor dos fachos. O som ( e n'ella liordado o açor do llnuro.
das tropas, o latir d^itrelladas matilhas, o relinchar i Descalçou o -ruanle direito, e tomando a primeirj
dos cavallus fu';osi>s, « o voicar de cavalieiros e peões laça levanlou a lentamente:
animavam o quadro mais bello. I — "D. Ordonho, conde Ordonho, disseste bem ^
Pela estatura de gigante o conde Ordonho sobre- i á par, do S. João!
báe. lí o carvalho velho que abriga osarbustos ásom-| Não bebeu. Derramando todo o vinho nas toalhas
bra. O seu brado vence o ruido da confusão geral.- i escorria sangue vivo. Aonde pousou o pratu da laça
■ II l'agens, escudeiros, fazei honra 1 "
A's lestas só um lioinem falia — com elle tudo fal-
licou o signal de ferro em brazii. Alçou então a vi-
seira. Ollios, feições e nuidos todos eram docavallei-
ta. As frescas horas de junho deviam traze-lo aos pés j ro morto fazia quatorze annos aquella noite. As fa-
(PAuzeiula — a escuridão cerrada, e elle nãoappare- j i-es, as barbas brancas como o sudário em que o en-
ce ! Do lado de Coimbra não ha rebate de mouros, terrarani, lembravam qiie [lor cima lhe tinha passado
as almenaias visiiihas dormem em silencio;, qual se- o frio da sepultura.
rá o motivo d.i tardança de moço Ansurrs.'
Aiiles irunir á sua a mão de Aiizenda o mancebo
quiz justificar o teu perdão aos olhos da Ilespanha
clirislã. — A alliatiça unia o sangue dos duas casas
inimigas; mas alli[ierto (podia-o elle esquecer ?) não
jaziam os ossos de seu pai inquietos jior vingança !
Aão ha nome mais feio que o nome de covarde, e
talvez dissessem : u I\loço Ansures, o fraco 1 vendeu
por uns olhos azues o sangue de seu pai. » Foi |)or is-
so que não quiz deixar envergonhada a boa espada.
Saiu occullainentc quinze diasanlcs doS. João. Gal-
gou os montes, Iranspoz os rios, e nas ricas terras j
d'An<!aluzia, na lide dos pelejadores de Leão Ires ve- ;
7.e5 jilanlou a cruz dcCIíristo nusaniei.!S mouras. As- i
sim ó que D. IMoço respondeu aos que fingiam cho- j
rar jiela lança de teu tio. viandou logo adiante o liei I
escudeiro ao conde Ordonho, e o seu pagem repeliu
u Auzenda o juraincnlo feito na cruz do monte.
— II A' meia noile, véspera de S. João, ou morto
ou vivo ! »
Na sala lie Sania Olaia resoaiii mil grilos d'ale-
gria. (iiic luz que faiscain ai malhas polidas, quere-
lle.\o que cega nos dourados c:ipellosI Cavalieiros
moços faliam d'aniorcs. ajoelhi dos ás donze las ipie
os esculam noestiado. Violasedoçaiuasacoiiipaiihain
as eiuleixas novas do ubiino tro\aJi>r. .Mais longe, no
turbilhão de cem cores, no laço de mil lórmas gentis,
vollcam as danças, e o furtivo olhar de galantes pa-
res pronulle dias paiecidos com este a mais de um
solar deserto.
Na vasta (juadra do festim, em quanto não chegam
os convivas, geme o vento nos frizus chuçarias dusco-
Inmiielus delgados. A lua, alia no céu, deita pelos
vidros corados unia ;;olpliiida de luz mortal, que tre-
ine na ponia dos ferros encostados ú sala. — De re-
pente as tr<iin|ias quebram o silencio. O clarão dos
fachos retleele, avisinhase, e alarga o circulo orlado
Todos quizeram fugir, e ninguém se poude mover.
O cavalleiro era Inigo Lopes, o irmão gémeo de D.
Anaur. (Continua.)
n.0BKCTO SOCTHSy.
A IxoLATKmiA, entre ouhas \irlui!es pmpri.i» d.il
grandes nações, «prescnta a de um orgulho legitimo
de sombras, (|iie se estira no pavimento. Escanções | pelo ein;i-iiho dos poetas, ou inventores, que » lUus-
cnclKUi taças, circulando-as em redor. Saúdes, dic- Iram Kol erloSoulhcy meric-u aos jeuseoiilerraneo»
los, risadas trocam se, baralham se, c confundidas vão | a honra de um monninenlo, cuj.i estampa InjedAnios
de um «o outro e.\lremo''da mesa. ! no Panorama. nin'_'"ein ignora que apreço acollnu a
Knire os da sua raça 1). Ordonho é o mais confen- ! carreira de WallerSctt, econi que vener.içâo ainda
lo. A' esquerda tem Auzènda ; á direita umescanho hoje m; pronuncia o nome la.vfi mais cilebre «-iilre
vago espera Moço Ansures. Defronte, n'oulru tam- os insignes escriplorcs modernos — o nome de lord
bem vasio, estaria o pai do noivo, se podesse deixar l?vroii. ao mesmo tempo famoso pelos infortúnios e
u sepultura. Cobre-o um grande >cu de lucto. pela gloria. Iau uma terra que os sabe agasalhar, as
o PANORAMA.
13
lettras cullivam-se, vivem, e ennobrecem a reputa-
ção dos povos. Athenas eRoina, d» diias maiores glo-
rias (ia aiilij;uidade, reinaram nos século» pela civi-
lisa^-ão intellecliiai, ainda mais do que pelas luctas
(juasi civis da primeira, ou pela amlji(,ão conquista-
dora da sef^und.i.
Roberto Sontliey escreveu diversos poemas, no que
á força querem ainda hoje chamar uogoslo romanli-
co. >' Joauna (V Are foi o primeiro, e 7'Aa/i(6a o se-
gundo poema da sua pcnna. A' critica dos estran-
};eiros não cabe apreciar as qualidades da sua me-
trificação, nem os dotes do seu estalo. Esses pon-
tos são do domínio exclusivo dos censores nacio-
iiaes, familiarisa<lo8 com os segredos o as bellezas da
língua natal. Mas pôde se assegurar qut; a satyrade
lord l$vron, Ião celrbre ainda, aos bardos da Escó-
cia, a respeilo dVlbí <ití certo foi mais que satura, e
€!slá muito longe d<' satisfazer as condições da im-
parcialidade lilteraria. O nobre poeta corrigiu depois
o acerbo das primeiras iras, e mais de uma vez se
Hrrcpondcu do impelo <lo cbolera (|ue o arrastou a es-
folliar os louros de bomcns, que o tracto litterario fez
depois seus iniimos amigos.
iMas é doloroso que, em quanto a Inglaterra ins-
creve em jaspe, como paginas do brazão bcreditario,
n gloria dos mais illusires dos seus íillios, núsospor-
tuguezes ainda não achassiinos nas ric.is pedreiras
d'este -solo um só mármore para lavrar o nome dus
engenhos escolhidos, a quem devemos tanto. Negá-
mos até agora a Camões uma pedra, uma data, e
lima saudade. Esse está vingado^ o mundo é o seu
monumento \ — em toda a parle, aonde se entenderem
os magoados cantos da sua Ijra, tem um padrão. Gas-
támos fcm dòr em assara pintar de ocre e vermelhão
a architectura dos templos gotliicoa, cotno vulgarmen-
te se diz, e cisámos com avaraza algumas moedas, que
tirariam de cima dVste reino a Te|>relR'nsão de in-
grato que o envergoiilia ilesde séculos !
lia dias que se ajiagou o maior sábio dos nossos
dias, o Sr. Silvestre 1'inlieiro; caiiçado de uma lon-
ga existência de estudo o meditarão desceu ao tumu-
lo, e n'elle esfiiou em iini o pensamento <[ue tanto
«mon o berço natal, e que nem uma hora tiquer <!ei-
xou de lhe consagrar as suas vigílias. Diante da cos-
tumada iiidillereiíça, a amisade dosseusdiseípulos po-
de ser que não consiga erguer o nioileslo monumento,
que li'inlire o pensador — o publicista, diante doqual
a Europa se inclinou i om resju-íto, e cujas lições
(quem sabe!) o fnl.iro nos lançará, talvez, em rosto
Mão ter subido approveítar. Ciue bello dia aquelle
oin (|iie a protecção ao estiido, a veneração ao génio,
<! o respeito á gliTÍa linidineole se naturalizarem em
J'orlugal. N'e^se dia esta nação lormiu na realidade
a ser o reino de !). iM.inuel e deí^nnõis
Vossiim estas palavras ingénuas ser ouvidas — pos-
sam estas breves linhas ac-ordiír no coração dos qua as
lerem o allecto pelas nossas cousas e o iiinor pela ei-
vilisação, (|U(! ha instantis de desespero moral, em
que parece que estão mortos e si.'pultados para sem-
pre. Desgraçado do povo que passa frio e irreverente
pcdas memorias da sua antiga gloria — i; um cadáver
de que fugiu a nobre alma que o animiiva — a na-
ei<inaliibule. Não esperem d'elle nada — era pedir a
lloma im|ierial a espada de itoma consular, a Tibé-
rio as virtiidi's au^l(■ras do primeiro censor.
(JOMUS í''iii'.iuif. nu Animivdi:.
((ajiilinniniiid ilr \\[\'^. (i.)
A IMPK iiATuiz premiou C(Mii mercrs honorificas e
pecuniárias os generaej u oíficiacs que mul-> se dis-
tinguiram na (ornada de Oczakof. Potemkin, afora
um presente de cem mil rublos (8õ:.30O,^00O réis),
alcançou a grão-croz da ordem deS. Jorge, para ob-
ter a qoal, segundo se disse, havia aconselhado esta
guerra cruenta, obra da emulação de potencias euro-
peas, que levou iminensidade de victimas ao mata-
douro. Durou a campanha cinco annos, e ireste pe-
ríodo morreram o sultão Abdul-llamet e o impera-
dor José 11^ aquelle, se a fama não mente, de mor-
te violenta, porque se inclinava á paz. Selim III,
exacerbado por uma serie de revezes, e pela perda
da praça do Ismail, cuja numerosa guarnição foi pas-
sada á espada, empenhou na desforra todas as forças
do império turco, sem o demoverem de seu propósi-
to a fome e a peste que assolavam Constantinopola,
o temor de cair traspassado pelo punhal dos ulemas,
que, por vezes, viu bem perto do peito, e o geste
ameaçador com que um povo, pailído como um ca-
dáver, faminto qual fera no deserto, exigia, ao cla-
rão lúgubre do incêndio, que a paz viesseacabar-lhe
os tormentos da fome. Exhaustos os thesouros, de-
cretou (|ue todos os seus súbditos levassem a cunhar
os moveis ile ouro e prata para serevn pagos os exér-
citos, e, cuinopara sedesallrontar das\lerrolas, man-
dou cortar as cabeças d'uni grão-vísif e de outro»
grandes personagens, ou pela culpa de covardia e des-
lealdade, ou pela de temerários. O visir Gazi-IIas-
san-Ha\á, um dos mais fieis e destimidos servidores
dal'orta, (|ue exercera os principaes cargos sob ornan-
do de três sultões, poz termo á vidaenvenenando-se a
si ou envenenado por outrem, logo depois de contra-
hida entre a l'russia e a Turquia uma alliança, a
que este velho venerando sempre se op[)uzera, bem
como se havia oppostodebalde á continuação daguer-
ra, que de dia para dia causava novos estragos. Com-
ludo, resta beleci<la a paz entre a Rússia e a Suécia
ao» 3 de agosto de ITDO, e entre a Áustria ea Tur-
quia em 4 de agosto do anno seguinte, os gabinetes
de Londres e de líerliii trabalharam eflicazmente
paru coiigraçar a Turijuía com a Rússia, e vencidas
algumas dillieuldades quanto a ficar a ultima com a
praça edistrícto de Oczakof, renasceram a» esperan-
ças d'uma [)roxinia [lacificação. Apressaram-na porém
a declaração formal (|Ue fez a 1'olonia de que nunca
entraria em liga ollensíva com a l'orta, a continua-
ção dos incêndios que em quatro me/es tinham devo-
rado trint.i e (luas mil casas, e uma nova conspiração
contra S.dini, cerc.nlo pelos descontentes dentro da
mesquita de Achmct, (ronde escapou acusto. Tudo
isto obrí;;iiu o governo turco a annuncíar a paz, <|ue
se concluiu cimi clleito em Jassv aos 1\) dedezembrn
de 17"J1.
Gomes Krciíe, (|ue, estando aind.i n i lluisía, fora
promovido a tenente corcuiel du 1.'' l'lanu da C(jrte
em 8 de outubro de 17U0, e a coronel do regimento
du marquez dus Minas em IS dej, melro do anno im-
medíato, voltou a l'ortugal em setembro do 17UJ, con-
decorado com o habito da ordem de S. Jorge, com ()Ub
a imperatriz (.'atliariíia o recompensara pela ncçãode
Oczakof, alem di! lhe dar uma espad.i de honra e o
posto dl- uoToiíid dos exi^rcitos moscovitas.
.\ (-'onvençào Nacional, em sessão de 7 do marçu
du l7'Jo, declarou guerrit ú lli-spanh.i em niuneda re-
publica IV.ineeza, e votou (jueo exercito dos 1'vrínéus
se compo/esse de cem mil homens. Carlos l\ , n'uiii
manifesto di^ i\\ do mesmo ine<, rceapítulaudoos es-
forços (]ne fi/,eiii pura salvar IjuÍz W I, einc|ueixas
i|Ue tinha d.i re|Hiblii'a, levantou a luva ^ e 1'urtugal
acudiu á sua vi>lnha e alliail.» com o cuntingontede
seis regimentos de inianieria e um de arlillieriíi, (pie.
com o título de exercítu auxiliar do ilespanha sob >■
cominando do leneiile general João Foibcs dctskil-
14
O PANORAMA.
later, saiu do porto de Lisboa na tarde de 20 deic-
tembro, em quiilorze iiavius de transporte, comboia-
dos pelas iiáiib iMuduza, lioni Succcsso eS. Sebastião,
e pela fragata Veiius. u N"este exercito, dizia a Ga-
«eta de Lisboa II." 40, do 1 ." de outubro, « vâoconio
voluntários o iiiarqiiez de Niza, João Gomes da Silva
Telles, o dutjue de Northumbcrland, e opriiici(iede
Moiitnioreiíc^' ; o conde deCbaloiis se elTcreceu i^tial-
niente, mas licou detido por moléstia, e intenta ir
por terra : o mesmo se propõe fazer Gom^s Freire
de Andrade, o qual depois de se ter dutinijitido glo-
riusaviíule no serviço da Rússia e l'tnssio, voltou
«qui nas vésperas da partida do soiíredito exercito, a
qne de\e unir-se para pôr-se atesta do regimento de
que é coronel. »
Ksla pequena porção de tropa sustentou em toda
a cainpaiiba do llossillioa a honra do nome portu-
guez, e lez-se credora das disli noções com que a so-
l)erana a galardoou. A granada ou a [JCÇa <l"artilhe-
ria bordada no braço direito do veterano (I) deviam
encbel-o de ufania, recordando que fora elle um dos
que primeiro se oppuzeram á fúria dos francezes.
A priiiifira acção para cujo feliz resuliado os nos-
sos muito concorreram foi a de Ceret, dada aos 26
de iioveml)ro de 17'Jt). Ricardos, general emcliefedo
exercito liespaiihol, já não tinha coinmunieaçõescom
a Hespanba senão pela villa de Ceret, e para o privar
d esta, Turreau, general em chefe do exercito fran-
cez, apreseuta-se de súbito diante d.i villa, e inves-
te-a com Ímpeto. O 2." regimento do Porto, l."de
Olivença, e os Freire de Andrade e de Cascaes, mal
acabavam de alli chegar : cançadosd'uma penosa mar-
cha, e repassados da chuva, tomam parte noconllic-
to. O incessante fogo daartilhcria republicana lança
o terror entre os defensores da villa e ponto de Ce-
ret; mas o conde da União faz retroceder os fugiti-
vos, voa em soccorro da praça, desaloja o inimigo
d'um reducto que tomara, persegue-o até os seus en-
trincheiraincntos, á frente dos hespanhoes e dos por-
tuguezes, toma-Uie Ires baterias á bavoneta calada, e
recupera as antigas conimiiiiicações. Gomes Freire
estava servindo de brigadeiro de dia, e oseudistinc-
to valor foi elogiado nos oflicios e participações do
general Forbes.
Consecutivamente ganhou o exercito combinado as
acções de \ iHalonga, e apoderou-se das praças de
S. Telmo, l'ort-Vendre e Collioure. As portas da
primeira abriu-as a traição <loseo <;overnador, depois
de derrotadas as tropas de Ooppet, successor de Tur-
reau, ede terem desamparado os entrincheiramentos
de llan^uls-les-Aspres ; Í'ort- Vendre defendeu se, mal
a sua guarnição, privada do soccorro do exercito, quei-
mou as munições, encravou a artillieria, eretirou-se
para Collioure. O general Cuesta, para a tomar, pro-
curou incutir o maior terror. Ftz avançar demiitea
.irlillicria contra esta praça, laiiçou-lhe algumas bom-
bas e granadas, e intimou a guarnição para depor
as armas, a querer salvar as vidas. () espectáculo pa-
voioso de três batalhões descendo do forte deS. Tel-
mo com archotes accesos para queimarem a cidade
acabou de resolver a guiirniçào a render-se. ^o dia
■2i de dezembro de 1793, depois de deienoxe horas
de combate, licaraiu os alliados senhores de Colliou-
re e dos seus fortes com 88 peças d'artilheria, d'um
arsenal bem provido, e do melhor porto daco-ta. K
tão deplorável foi o desbarato dos fraiiccií-s, qoe Fa-
bre, commissariu da Convenção, não podendo recon-
(1) Por (locroto de i 7 de dezembro de 1705 se lhes con-
cedeu este «tisliiiclivo, sendo de ouro .i dos generaes, de
prat.i .1 dos uniciaes, e de lã braQca * iloi «nicUei iDr*riu-
rcs c soldadui.
duzír os fugitivos á refrega, diligenciou e conseguiu
morrer no campo da honra. Com esta acção geral
terminou a campanha de 1793.
A Doppet succedéra Dagobert, e por morte deste
tomara o commando em chefe o general Dugom-
mier, famoso pelas suas viclorias nos Alpes, e por ha-
ver arrancado Toulon das garras dosinglezes. O con-
de da União, general eui chefe, di^no de competir
com elle, tinha reunido o grosso do exercito no cam-
po de Boulú, dentro de linhas fortiticadas e guarne-
cidas de artilheria, as quaes os francezes forçaram to-
davia apesar d'uma desesperada resistência ; e como
todas as estradas estivessem cortadas, foram muitos
os mortos, e passaram de dois mil os prisioneiros. A
retirada fcz-se com incrivel celeridade, por espaçode
dez léguas, atravessando montanhas, pt-la beira de
precipícios, e debaixo do fogo dos republicanos.
Ao primeiro tiro de canhão, precursor do combate,
pula o coração do homem mais intrépido : desperfa-se
então com toda a força cin^tincto da vida. e o valor
verdadeiro consiste em saber domal-o, conhecer o pe-
rigo, e ir-lhe ao encontro : mas passado este breve
instante da lucta entre o dever da honra e a natu-
reza que repugna á própria destruição, o que pôde
na peleja trocar tiro por tiro, cruzar ferro com ferro,
logo perdeu, com raras excepções, o ap>ego á vida.
N'este eslad<i de exaltação todos são destemido». Não
assim o que, medindo os perigos, está condemnadoa
pensar na conservação commum : n'esse requer-se
uma abnegação quasi incompatível com as forças hu-
manas. Gomes Freire linha esta qualidade. Gluando
nas balas inimigas ou nas lascas despegadas das pe-
nedias voavam mortes, quando os soldados caiam d»
cançidos ou rolavam nos abysmos, era espectáculo
magesloso vêl-o, impassível, cobrindo a retaguarda e
velando na salvação de todos ; nem causava menoi
maravilha, quando os mais dos soldados tinham lar-
gado as próprias bagagens, ver um punhado de arti-
lheiros portugiiezes levando cm braços as peças pelo»
alcantis dos Pyrinéus.
Depois da retirada do \P de maio de 1794 recu-
peraram os francezes S. Telmo, l'ort- Vendre e Col-
lioure, e a praça de Bellegarde, e em 20 de novem-
bro deu-se a terrível batalha da Montanha Negra,
disputada dois dias, com outro de intervallo, e em
que morreram dois generaes em chefe : Dugommier
no dia 18 de uma granada que lhe rebentou na ca-
beça, estando, entre os seus dois filhos e outros ofíi-
ciaes, a dirigir, docume de Montanha Negra, os mo-
vimentos do exercito; e o conde da União no dia 20,
no momento de montar a cnvallo na bateria de Rou-
re para dar no iniiuiío a frente dos seus. Pelejou-»»
todo o dia 18 até anoitecer, e grande parte do dia
20 : ficaram mortos perto de dei mil homens, e pri-
sioneiros oito mil, contando-se n'esle numero o 1.
regimento do l'()rto. que, sendo atacado por tret for-
tes columnas, não poude de modo algum resislir-lhe».
l)'aqiii em diante cuntinuou a guerra com incerta
fortuna, porque se o exercito alliado obtinha de
quando em quando alguma vantagem, oshespanhoe»
foram perdendo as suas melhores praças. K de Fi-
gueiras rendeu-se covardemente cm 27 de novembro,
e a de Rosas foi desamparada pela sua briosa guarni-
ção na noite de 2 para 3 de janeiro de 1795, depoii
de setenta dias de cerco apertadíssimo c mortífero,
que immortalisou a perícia do general Perignon e a
constância sublime do governador D. Domingo» Ii-
(|uicrdo. F.ntretanto D. Jv»c de Urrutia, successor
do conde da União, bateu os francezes em Baseara e
em Calabuix, manteve a reputação d.is armas he»-
paoholas no ataque do Fluvia e outros recontros, »
por ultimo na tomada do posto de Puig-Ccrda •
o PANORAMA.
15
■itio de Belver, em que muito se distinguiram oa
portuguczes.
£m virtude do tractado de paz entre a Hespanha
e a Kraiiya, assignado aos 2'2 de jullio de 1795, se
embarcaram as nossas tropas, cobertas dos elogios
dos alliados, e tendo arribado a Málaga, só puderam
entrar no Tejo nos dias 10 e 11 de setembro. O l'ri-
cipe Regente foi \él as a bordo, e fez muitas mercês
a militares Ião beneméritos.
Gomes Kreire, por decreto de 17 de dezembro, su-
biu a marechal de campo graduado, e por outro de
20 do novembro de 1706 passou a eflectivo. Doisan-
nos depois deu-se-lbe a commenda de Sancta Maria
de Midõct, tendo já desde 1781 a das Herdades de
Mendo Marcjucs, despojo ensanguentado do duque de
Aveiro.
Em 1801 foi nomeado quartel mestre general do
exercito d'enlre IJouro e Minho, e em 180G publi-
cou o seu liiisaio sobre o mclhodo de ovQainsar em
Portugal o cjercito, com o Cmd'applicar o systema
da urganisação mililar da Suis?a, combinando os car-
gos dos dillerentes ramos de administração publica,
por tal modo que a deluza do estado fosse incumbida
a todos aquelles cidadãos próprios pela idade e pela
constituição ph\".ica para o serviço de inilicia n^um
determinado periudo, findo o qual, voltariam, como
licenciados, a occupar-se em seus antigos misteres,
renovando-se assim o exercito com pouca despeza, e
liabilitando-se todos os mancebos para pegarem em
armas sempre que a pátria reclamasse os seus braços.
Os crentes em agouros não terão deixado de notar
que a epigraphe dVste livro é o seguinte verso de
Uoracio :
Dulce ei decorum e». ~ro pátria rnorí.
Seria vaticínio?
(Coniinúa.)
A COMPAKUIA DO CoiUMERCIO UAJ PeLLCS. (1).
A CoMi-AMriiA ingleza da bahia de Iludson alarga a
»ua dominação não són)cnle por Iodas as possessões
britannicaa n'aquella baliia ; mas também pelo tão
contestado teírilorio do Oregon, e até n uma parle
da Califórnia : em relação ã America está qiiasi no
mesmo caso da Companhia da índia a respeito da
Ásia \ para a aristocracia financeira e mercantil da
Grã-líretauha é um meio de estender o monopólio,
e para ogoverno o instriiniento de adquirir território.
A companhia da balii.i d'lludson dispõe irum ca-
pital mui considerável, dividido cm acções ; e a maior
jjarle dos accionista» é residente na America, e vi-
giam pessoalmente os negócios da companhia. Os cu-
bo» ou leitores tem o titulo de sócios, dirigem as lei-
toria», o tem direito a um vencimcnlo eipiivaleiíle a
um oitavo de acção, islo é, :25:000 fr. (I-.UOO^OOO
réis);, aos agente» subalternos só pode con)p(>tir anie-
tade «resta «juaiilia, o decimo sexto de uma acção,
Annualinenie o» principaí!» agentes reúnem seemas-
sendiléu geral em York (alio Canadá), onde «e exa-
iiiinam o» relatório» dosagcMilessi^cundarios, seliqui
dam a» coiila» da sua gi'reiicia, se discutem e resol-
vem o» proji'cloH do operações paru o seguinte anuo,
e «» novas orden» ipie «<! hão <le expedir uo» caçado-
res de conlraclo; em «umma, é esta a direcção ge.ai
para tractar do migmi^nto dt; fazendas para acompa-
■ diia , vigiando iiiniliido, nos ilistrlilos <|ue perten-
cem ú mesma privai ivamente, a conservação dos caa-
(I) Extracto de uniu ohra mullo recente do iníijor (í. J.
1'oussiu íocrca dus lislaiioí-Uuidus, u rcaiòcii adjacouies.
teres. Todos estes relatórios são depois enviados á di-
recção de Londres para um exame individual.
Km virtude da sua organitação, oii faculdade cons-
titutiva, a companhia exercita sobre todos os seussu-
bordinados completo despolismo, direito absoluto de
liberdade, vida e morte sobre toilos os que andam ao
serviço dVlla, quer sub-agentes e empregados, quer
contractados eetcravos, porque a escravidãoque exis-
te nas tribus Índias é admittida igualmente em toda
a circumscripção do dumiiiio da Companhia de No-
roeste.
Os cabos ou feitores tem direito de vida e morte
sobre o individuo inferior que se não submelter aos
regulainenlus da Companhia. Estipulam, alteram,
ou suppriuiem á sua inteira disposição os salários doi
agentes ou empregados; e lixam como querem o pre-
ço de lodos os géneros ou objectos de consumo, bem
como das pelles de castor vendidas pelos indígenas.
D este modo realisam, tanto em compras como em
vendas, lucros que não são inferiores a 300 porcento.
Os contractados, em geral naturaes da Escócia ou
do Canada, alistani-se ao serviço da companhia por
cinco annos, pelo preço de 37o a 42o francosannuaes
pouco mais ou menos (liO^UOO aUS.5(000 réis) : mai>
recebem os caixeiros das postas. — Todo aquelle pes-
soal é armado e submettido á mais severa disciplina
como tro|)a regular: qualquer acto de insubordina-
ção é immediatameute punido de morte.
Cadaum caçador anda acompanhado de dois ou três
escravos. O [ireço de um escravo indio é de dez até
vinte cobertores; é mais subido sendo escrava. Se al-
gum morre dentro do semestre immediato á compra,
o vendedor é obrigado a restituir metade do preço.
O engodo da retribuição pela venda de um indígena
tem tal força entre os Índios que são frequentes os
exemplos do pai vender os filhos.
A companhia cobriu o território do Oregon de fei-
torias e de postos militares, que servem de depósitos
e de pontos de reunião para os seus agentes e para
os Índios. Fundou a feitoria ou deposito central em
Vaiicoiiivr, na margem septentrional e quasi a 36
léguas da embocadura do Colômbia, aonde chega a
navegação avela; eao sul do mesmo rio o forte Vino-
qua, próximo á foz do (|ue tem este nome; invadiu
parte da Califórnia, e occupa uma importante posi-
ção na enseada de S. Francisco, que ó das maisbel-
las de todo o litloral noroeste do Mar 1'acilico, e on-
de podem entrar navios de todas as lotações. E se-
nhora <le in.ii» de 500;0f)0 milhas quadradas, ealéin
d^issu de Í2.o00;000 milhas para leste das montanhas
ditas Ilocheuscs. Finalmente, como se não bastara o
território do Oregon á ambição da Inglaterra, que
a»[iira ao senhorio absoluto no Pacilico, embora ilis-
piitado; e ])ara não ter que recear aconcurrencia da
lliissia nos mercados da China, a companhia da ba-
hia de Iludson tomou <le arrendamento em lt!o"J, por
dez annos, lodosos estabelecimentos russianos na Ame-
rica dol\'(irte, in<'(liaiite o redito aniiual delJOilLiOO
mil fraiKiis ; coniludo esta convenção «'xcluiii oposto
da ilha de SitUa, em a nova Arkangel, onde allut-
sia tem um i'stabil('ciineiito mui vasto. — Como ul-
timo indício demonstrador das intenções ila Iiiílater-
ra i|uanlo a rsla parte da America, e deque osame-
ricanos da l'nião se receiaram, appareceu o pl.mo
daoccupação permanente do território do Oregim pe-
la fundação de estalHlcciínentos agrícolas oindustríaes
» par da creação de escholas piactieas.
A companhia, para segurança do seu cominiTcio,
dispõe dii uma pcípiena força naval, composta doqua-
tni navios do alto mar, duasgoh-las destinadas .i cos-
tear a Califórnia até os pontos russianoii, o um barco
do vupur, todos armados uiiit;ucrra. Kuiiduu iiiaii im»
16
O PANORAMA.
ilhas de Sandwich uma estação onde as suas embar-
cações vão tomar refresco e provimentos, e ao mesmo
tempo frfzer negocio. — N'esfas mesma» ilhas m nu-
meroso; baleeiros americanos estabeleceram também,
com o consentimento das auctoridades locaes, nma
estação de arribada. K com efleilo estas illias niui
importantes da Oceania são as únicas que appresen-
tam todas as vantagens de porto de abastecimento,
favorável aos interesses commerciacs que attralieni
áquelles mares todas as nações niaritiroas.
As ilhas de Sandwich estão reservadas para um
brilhante futuro de jirosperidade comniercial, pe-
la sua particular sitnação geographica na Oceania,
equidistantes da America e da China, e são a linha
obrigada do trajecto dos navios europeus que vão as
Índias ou ás pescarias. Os habitantes indígenas cora-
prehcnderam as vantagens de tão exceiiente situação,
p. por isso tem procurado que a sua independência e
neutralidade sijam reconhecidas, e m.andaram com-
niissarios a AVa^hington, a Londres e 1'arís, para
traclarem de seus interesses, como nação livre.
A Rainba NoMAHA^■^*.
Jixirahido das viagens do capitão }Usso Oilo de Kotz-
bue — A new voyage round the world. —
O CAPITÃO Kotzbue (filho do celebre escrijilor alie-
mão, a quem o nosso (1) tlieatro deve algumas obras
applaudidas, imitadas da lingua original pilos frau-
cezes, c da franceza pelos nossos arranjadores no prin-
cipio d'esle século efins do passado), tendo apporta-
do em Woaboa, a mais formosa das ilhas de Sand-
wich, depois de descrever o estado da illia — que já
então revelava (1823 a 2tí) um certo progresso de ci-
vilisação — e a falta do rei^ Tamahamaha, que mor-
rera deixando herdeiras do reino e do mando as suas
duas viuvas — couta do seguinte modo a visita que
fez á segunda d^ellas, rainha Nomahanna :
"A rainha Nomahanna, a outra viuva — diz elle
r—é de uma corpulência enorme : parece ser o mais
ardente apoio da propagação das sciencias na sua ter-
ra. A lilteratura, isto é, o saber ler e escrever, de-
clarou ellaser cousa indispensável para alcançar seja
que ofliciu f(ir na sua corte, e envia os mais caducos
a eschola. São tão moda as orações como a leitura, e
a rainha vai duas vezes por dia á igreja n^uma espé-
cie de carreta de quatro rodas, onde não cabe exac-
tamente senão a sua volumosa pessoa. »
"A residência da rainha fica juncto ao forte, abei-
ra do mar. K unia linda casa de madeira, de dois
andares, edificada noestvlo enrojieu, ciun j;iiellas
rasgadas, e nma sacada aceiadameiíle pintada. Fomos
lecebidos na escada jior Chinau, governadordo ^^'oa-
tioa. l'odia apenas andar, pelo aperto dos s.ipalos:, e
loino a sua veste vermelha não tivessesido feita para
iiin bu^to Ião ciilossal, não alcançava abotoa-la. C!um-
primcntou-ine repelindo a palavra ^archas^, rcon-
«luziu-inc ao segundo andar, onde tudo apprescntava
um agradável aspecto. Desde a base das escadas até
a porta dos quartos da rainha todos os degraus esta-
vam cobertos de crianças, de adultos, cate devclhos
de ambos os sexos, que, superintendidos por sua ma-
gestado, soletravam » abcedario ou escreviam cm
pranchas delgadas. U próprio governador traiia um
(1) Eolzbue foi o primeiro que introduziu oqueosfrance-
lescbanuni dramc larmoijaut, peyas familiares, que iam
buscar lodosos spu.seUVilos n uma sensibilidaile nuiilas ve-
zes exaí,'geradacafri'ct.iila. Este penero de com posivões leve
grande íok,i, e o poeta allenião iraeiou-as com unij supe-
rior!'ladeiucouiesiavol.
livro n''uma das mãos e na outra um pequeno instru-
mento de osso, que lhe servia para indicar e 6«guir
as lettras. DVsles numerosos adeptos os mais adian-
tados em idade estavam alli mais para dar exemplo
do que para utilidade pessoal : porque, na máxima
parle, estudavam, com grande adectação de applica-
ção e diligencia, segurando o livro ás avessas."
«A vista d 'estes estudantes, dosteusestranhos tra-
jos, insufficientes e espedaçados, tinha-me feito per-
der quasi toda a gravidade de que me havia provido
para a minha apresentação, quando, abrindo-se as
portas de par empar, fui introduiido como comman-
dante da fragata russa. O quartoestava guarnecidoao
uso da Kiirojia com mesas, cadeiras e espelhos. L m
dos lados era occupado por um leito desmesuradamen-
te largo, ornado de cortinas deseda : nomeio, sobre
finas esteiras, estava estendida a rainha Nomahanna,
deitada de bruços, lom a c.ibeça voltada para a por-
ta, e o cotovello encostado a uma almofada deseda.
Duas raparigas, ligeiramente vestidas e encruzadas
no chão, aos lados da rainha, lhe enxotavam as mo»-
case os insectos com uns ramos de|>ennas. Nomahan-
na, que parecia não ter mais de htí aiinos, eia uma
mulher de seis pés e duas pollegadas de altura, e de
pouco mais de sete pés e seis pollegadas decircumfe-
rencia ^ trajava um vestido de seda azul, á moda an-
tiga \ os cabcllos, prelos de azeviche, tinha-os escru-
pulosamente penteados e puxados para o alto da ca-
beça, redonda como uma bolla : o nariz achatado, e
os beiços grossos e salientes não afaziam fejuramen-
tciuma formosura, mas no todo não tinha desagradá-
vel apparencia. Ao ver-me pousou no chão o livro
de psalnios que estava soletrando, e conseguiu assen-
tar-se, auxiliada por todos os que a rodeavam ; daii-
do-me então a mão com um gesto infinitamente ami-
gável, e pronunciando muita vez a palavra ^laro-
has^n, convidou-me a sentar-roe n''uma cadeira «o
pé de si. >'
Cl Disse-me que era christã. A razão que tinha ti-
do para adoptar esta crença era haver-lh'a dado pe-
la melhor de todas o mis>ionario Bengharo, que lia
e escrevia perfeitamente bem. Depois, não via ella
que os americanos e europeus, ío</o$ chi-islãos, leva-
vam muito a palma aos seus compatriotas? Concluia
d^isto por lanto que a sua religião devia ser mais
razoável. "
— u No fim de contas — accrescentava ella — se es-
ta nova fé não convier ao nosso povo . . . está acaba-
do.. . mudamo-la T «
Na segunda visita, Kotzbue foi dar com a rainb.i
a jantar. Estava lambem de bruços sobre esteiras
liiias defronte d"uni grande espellio ; tinha diante
de si um semicirculo de pratos de porcelana, que ci
circumstantes Uie iam successivamente apprescnlando,
e cujo conteúdo engolia voraimenie, em quanto uns
rapazinhos lhe enxotavam os mosquitos com umas
vassouras de pennas. 1£ inaccredilavel o que cila co-
mia : era bastante para fartar si-is homens, seis rus-
sos, diz ingenuamente o capitão.
(rluando acalniu, aspirou duas ou trcs veies com
evidente difliculdade, e exclamou :
— II Comi bem I "
Depois vollou-scdecostas, ajudada pelot queeram
presentes, e acenou a um latajãocomo um Hercules,
que parecia estar alli para algum lim. Olatagãodei-
toií-se immedialamente a ella de pese mãos, e poi-sc
a calca-la e recalca-la como se amassasse pão era pa-
ra facilitar a digestão, diria aquella genle.
Teodo gemido o seu pedaço com esta rude opera-
ção, descançou alguns rftonu-nlos. Mandou depois que
a tornassem a voltar, c começou novamente a comer
como d'aotc>.
:\
o PANORAMA,
17
CONVENTO z>£: :ac3SA SEJNHonA SE jrssus.
o eciNv KKTn (li! N(ií'.a H<MiIiiira de Jcmis c' um t;i]i(i-
i.iii ri'íailiiriii('iil() coiistriiiilo iid psI^Io inoiltTiio ; u
iircliiliíclo Jo<i<|iiiiii (lu Ollv«ir>i ftií i|tií'in licii o iju-
iii.iiiio <la failitidri, i! «lo si!U <'N|)a(j«si> adro. (.'iiiiio íi;
fjódu viT lia <?sliiui[i.[, ijuR dV^lli' daiixi», é liiToradii
de pilhiitrail do iirdciu jniiiia boliri; outras do ordoiii
dórica; f a líiiijjcna ou IVoíilão a|iarl,isf tia usual lor-
lua triaiu',ular. (,'olloi'ailo riu um logur iMiiiiifule,
com u !Jll^o diautt* dcbciMido t-m rampa para o i>ul,
o(U;ri;fc a ap|)art!ucia ilc flegaiite iiia^i hlailf, por que
■ iilre muil4in si: rculca
A luiidaç,'ãoil'<!hl« c:ma rfli;;iima úaiili(^a. Km K<8J
vioriiiii d<! b. bimão d'Almada o» padr<;H que o po-
vouraiii ; a ohra principiou rom liteiini <loHi'iiailo da
cuinuru, o por proiiiiã» do iirteliiiipo I). .I(irj:;o dt> Al-
llieidii ^ por «IcíimUi iiiiuoh ni- viu <d>ri^ada a luiHar
riiiitra o udiu do» íriíili'» iiuuoriH, ipie M-llie oppiíxo-
i'am, não poupando ihloiro» iirm ruriilos pura aata-
lliUr ou impedir. O cdilirio levaiilou-ho imii um iiilio
dtiiumiiiado o Valle ila Kspi-raur», aomlc IjuÍi Ho
dii^uvt de i'i'druy.a i< Hua mullier (iuliaiu uii>a rruji-
Voi,. 1. — ^íkiicmiiho 11», JS40.
<la e iini cardai, de que fr/.eraiii dipuijâo ao< relifiio-
sos i e estes muito depois, para alar!;arcm n edifício
e a cerca, e para romperem a rua nova de Jesus,
disde (1 larj^o da if^reja até a eal(;ada do Combro,
com[iraram diversas propriedaile» e terras confi-jua»
HO seu mosteiro, com auctorisa<;ão re^ia, concedida lio
ah ara de Ui2;t.
t:oiii o terremoto de 1753 desalíOii a maior p»rt«
do edifício, e á pressa si: armaram liirracas na cere*
para o» padres »e reeolherem no meio ilas riiinas da
passada li»liita(,ào. l).'eorriilos ali;iiiiH aiiiios, o pro-
vincial Kr. José debanda llosa Teixeira applicou »
maior «elo á ree(liliea<;ão ; mandou colirir a aluibada
do templo e ndoriiar a igreja; preparou o» dormitó-
rios, e erip;iii ilesdo oalieerco todo o cunhal datroii-
t.iria, e a escada principal. Ao dontofr. Manuel d. i
Cenáculo, eleito em ITCiS, é devido o actual frontu-
piíio , eno seu triínnio si- conipl<'taram muilasobn,»
imperleila». A exeelleiile casa da livraria, do que nu
altiiliui-m a» pintura» ilo teclo a ('yrillo Rluchiido,
lui cinprvzuMtu. O pudrt Sarmento, traductor da Hi-
18
O PAJNORA31A.
blia, e o padre Mayne, confessor de D. Pedro 3.",
também acoreiceiítarain varids inelliorairioiitos, tanto
ao corpo da igreja, como ás diversas oiticinas. E do
padre Mayne a instituição do gabinete de historia
natural, hoje reunido ao museu que veio da Ajuda ^
a dotação da cadeira de zoologia, ainda conservada
pela Academia das Sciencias i o gabinete de meda-
Ihas^ e a galeria de pintura.
Neste edilkio existem algumas obras de inncga-
vel merecimenlo, e á sombra das suas paredes flure-
ceram os mais sábios e virtuosos varões, entre os fjuaes,
pela cliaridaili' evangélica, sobresaíu o verdadeiro
apostolo!). l'"r Caetano Brandão. Depois da extinc-
ção das ordens religiosas estalieleceuse no Convento
de Jesus a Academia Real das Sciencias, e tomou
posse das preciosas collucçõis de que os frades tiravam
gloria, e ainda boje, com motivo, as lembram como
prova do seu amor ás lettras e ás artes.
O Castello de Sanota Olaia.
hcnda do século XI.
Fragmentos.
(Continuado de png. 3.)
Ill
Como do noivado saiu o cnici ro.
Era meia noite em ponto. A sineta da ermida toca-
va três dobres compassados.
Ao primeiro, suspenso na c.irreira estacou o turbi-
lhão das daiijas. Homens e damas, immovi'is, com
os esbeltos grupos, ainda pareciam querer voar.
Ao segundo, o somcalou-se nas violas e alaúdes. A
ultima noia tremeu solitária nas prolundas arcarias.
Eram mudas as chonias, e surdo fugia o sopro nas
trompas. A cantiga dos jograes, sem elles saberem,
levantou de rejjcnte o tremendo dica Íiíc, rctumb.m-
do em longo ecbo.
Errijavau! se os cabellos de terror.
Ao terceiro dobre gemiMi o castello nos aliceries,
como se ababis»!; C"m o furacão. Jogavam oseir.idos,
as torres vaclllavam ; mas o encantamento desfe?,-se
pelo condão de um saiictu eremita. Tudo isto levou
um abrir e f<-cliar d'olhiis.
E o cavalleiro iiegni .' A inua dubrava o sinoquan-
ílo dusapp.ireceu.
Que susto, que pavor não bouve ? L ny. a correr,
outros gritando, e todos que não se entendiam! (iui-
zeram fugir, aculher-se ao terreiro ; atrai dVdles fe-
chavam as portas sem ninguém as mover ; diantecer-
roH-se o portal sem ninguém llie locar, e » ranger
nas cornnles alavam aslevadiças mãos inviíivels.
Ai, noili:deS. João, noite aziaga '. Os lindos ollios,
que por ti choraram, valiam reinos:, a alcachofra, ar-
dendo ein esperaiiça, não arrebentou llòr ao orvalho
lieiilu ^ e o teu palmito, negra sin.i ! não desfolhou
cm ve7. de ros.is mais qller.lmo^ de cvprcste em leito
de noivado.
Nos paços do conde quem atinava se o poder dos
inlernos eslava sobre elles.' O suor frio corria das la-
ces aos eavalleiros^ o tremor do corpo tinia a espa-
da contra a espora, A pouco e pouco raiou uma plu-
ma de fogo na escuridão ; crescfii. alargou, e em nu-
vens de fumo sobem das tones cardumes de eham-
mas. Jesus! acudi-llie ! Todo o castello e^tá a arder.
E as portas cerradas, e os eira<los altíssimos, e o
fosso tão fundo !
A lua tornou a romper, espelhando o clarão no ro
chedo talhado a pique um tiro de setta do alcácer.
Rebentadas alli, a sombra do choupo antigo, ferviam
as aguas nas fragas, despenhando em cachão na ri-
beira, que lá em baixo, a muitas braças funda e ar-
remessada, bramia entre penedos broncos.
Aonde estará D. Ordonho, conde.' — aonde estaria
senão aos pés d^Auzenda. Com ella desmaiada nos
braços, aschammas aroutando-lhe o rosto, voou, não
correu, de andar em andar até o terreiro. Olhou,
viu tudo cerrado, as lavaredas crescendo, e pedra por
pedra u castello que ia desabar. Os cavalieiros sem
falia escondiam as envergonhadas lagrimas que a dór
arranca ao coração.
— i« Erusigis, escudeiro, a minha acha adamasca-
da, clama o senhor de Sancta Olaia. Este pulso ainda
pode com ella. Houve tempo que nem diamante o
quebrantava. "
— "Aqui, tudo aqui»^ grilou depois em grande
brado.
Outra vez palpitou a esmorecida esperança.
Levantam as achas. Golpe de cem machados, vi-
gor de tamanhos braços, anciã de desesperação mor-
tal quebraram juiictos na mas>iça porta. Genieu o ro-
ble no monte, feriu lume o ferro, e os gonzos nãoce-
deram ! No castanho chaieado nem signal dos finos
gumes! Os machados, partindo em rachas, lascaram
até o cabo.
Por cima do alarido ou\iram-se estalar risadas rou-
cas. Deitou D. Ordonlio osollios áquella parte, eviu
surgir na coroa das rochas o cavalleiro negro. Espu-
mava a cascata aos pes docavallo. A direita brandia
um tacho, e na esquerda a rédea mal continha o cor-
sel, mãos no ar sobre o abvsino.
— "Conde Ordonho, a fogueira do S. João falta-
va á tua festa. Ahi a tens di"na d'um rei. ]*a<ro a^-
sim as arrhas do noivado. »
— " Cão nialdictu ! n
— " Liembre te Ansur, morto faz hoje quatorze a;.-
nos e um dia. O sangue da lua raça nem chega pa-
ra vingar o sangue d'elle. Cumpra-se o voto delni-
go Lopes.
E como se o inferno o assoprasse, atea-se o fogo
aonde não ardia, e mais lavra ainda nas outras par-
tes. D. Ordonho ajoelhou. Nohombro reclina-se des-
fallecido o bello corpo dAuzenda ; as faces d'alvura
do lírio encostadas a tez queimada du velho ; as tran-
ças folgando entre as madeixas brancas, e nos olhos
languidos, meios fechados, qunsi expirando aducelui
da vida.
— " Casligai-nie, Senhor, dizia o conde i mas r«la
innocente que lo^jre os verdes annos. Não fei crime
para acabar tão ceiio, e de tal morte. ... ca a iin ca-
lieça lio peecador a espada da justiça — pouco tenho
já a viver •, e do mundo, ai 1 não levo mais que esta
saudade ! «*
E apertando ao coraç.~io a neta, duas a duas lhe
saltavam !is lagrimas como punhos. O que n.ío daria
o senhor de tantos eastrllos evassallns por alguns pal-
mos de terra, por uma rcspir.ição a fresca liriza da
noite, que refrigera o escravo nas pedras do» serros
visinhos !
O conde ergueu se 1oí;o. Tinha lido nm instante
de fraipieta. Alma de soldado verja, mas nãoqiieiírn.
A maior diir calou-se diatile da sua dòr ; opranio
deixou de manar diante it\iquelles ulhus enxulus ; e
o muís animoso eslremt'c>-u. vendo, muda e»«, passar
u Vln;;ança. Ei lo vai o velho fronteiro; nem capei-
lo nem ariiez lhe cobre a fronte, ou veste o corpo. No
rosto leva a morte e>cripla. A orbita ensniiguenlada
reluz chninma tcrrivel — os lábios brancos, convulso»,
Isuflbcam o extremo suspiro Dei\ai-o ir, é o castigo
Ide Deus-, — ineliiiai-vos, c o soneto amor de pail-
o PANORAMA.
19
A águia real ferida não cedeu. Ainda sobe a ulti- ;
ma vei com a flecha varando o peilo. Cine fogo na
vista iinmovel, cjiie fria raiva no vôu lento ! oh '. guar- !
de-se o falcão — primeiro mcjrrerá que o rei dosares I
Toldou-se o céu, a lua escondeuse, e nas alturas
o vento bramiu profundo. Até ao longe nos plainos j
e nos outeiros o clarão do incêndio tingia campinas i
e casaes. No castello o fumo, ora fechando em corti-
na espessa, ora rasgado dos furacões, rompendo em '
rolos, entre faíscas como espadas:, as aguas espada-
nando nas tragas; o relâmpago liimbcndo a coroa dos
montes; o trovão estourando em estampidos medo-
nhos; qnc especlacnio de terror para todos, deadmi-
ra^-ào sublime para tão poucos !
A aza da tempestade varria a face da terra ; quem
V o vulto, encostado ao arco, no alto da torre albar-
ran ? Tremem-lhe aos pés as lageas abrazadas, e não
assiMite. Sobre a cabeça, cruzando os dardos, fogem ;
amiúdam mil scentellias. e não as vê. Ao lado o fra-
gor dos madeiros estalando, o gemer das paredes que
abatem, e nãi) acorda. Pas^a, rugindo, o temporal
pelos Cfdros e fstronca-os ; o raio fuzila, lascando a
montanha; as torrentes são rios caudaes : — qual é
o escudo do filho do homem que não vacilla ?
A desesperação', (lue lhe importara ao desgraçado
as ameaça» do céu ou as ruinas da terra? Nas mãos
<|UPÍnia-lhe a taça do fel — no coração tem a peinr
morte — a morte d^alnia. Chorem por elle os que po-
dem chorar ainda — ha poucas dores como foia'|uel-
1.1 dor.
U. Ordoiiho, o conde, o senhor de sele castellos, a
lança de vinte cavalleiros, o pendão das terras de
Coimbra morreu cm vida. A torre de seus avós foi
" ji"'o" aonde se enterrou com as suas armas o ulti-
mo fillio de uma grande raça.
Saiu-lhe emfim do peito um rugido semelhante ao
furacão, abjsniando-se nas cavernas da terra. l'elas
faces correu a livida cór da ira. Encurvou-se o arco,
vibrou a corda, e a vista accesa mediu a distancia.
Ai do que receber o tiro! A sefta escrava espera um
aceno para se despedir livre, sibilando ao alvo.
De repente três vezes estoura o trovão, e três vezes
o logo do céu ilbnnina os valles e os campos. Sôa o
galope d'uni cavallo; e raspando as fragas do monte
a lerradura d^aço retine ao longe. Armas brancas,
capello sem viseira, no peilo o açor do Douro, na cot-
ia a cruz azul? Será D. Moço Ansures ? A' claridade
do relâmpago, á luz do facho do cavalleiro negro vi-
ram o corsel enuovelar-se estacado na aresta do pre-
cipício ; os pé» já descaem pelo declive aprumado. Ca-
vallo e cavallifiro banhados cm suor, suspenso» por um
lio, arquejam tremendo a sezão do perigo.
O que D. Inigo lhe <liz, o que elle responde, nin-
guém o ouve — o vento bramia, e f.diavam manso.
l'ouco depois, com o ginete empinado meio corpo na
voragem, D. Moço exclama :
— i.Koge, mais as tua» vinganças; nnildicto o no-
me que lo deram no baptismo. Renegado ! troca» pe-
lo inferno o paiaizol . — Anlc» a morte que ter san-
gue do teu sangue ! n
O renegado não replica. Atira o f.icho ás aguas.
Ja tinha a espada sobre D. Moço, já o golpe d(!scia,
luzilauflo na» treva», e... asnoMou nnni setl.i ; expi-
ra a bbisphemia na bocca do mahlicto : e o mancebo
mal percebe rolar o lionwm au» pe» do ginete, torcer
Os dedos no» raino» do clioupo, e resvalando o corpo,
didmdo ii(js are», liatendo nas rocha», cnlerrar-se nos
cachões da cascata, iPonib- espirra a gr.inile aliura
esciMini e sangui-.
Nu torre do alcácer ri'»oam no largo brados de triíim-
pln>. Por inslanten. soltos ao temporal que os esfia-
lha, (hicl am os cabelloí do conde Drdonho. A cslii-
tura gigante avulta, cosida nas cbamraas, immovel,
n-.agestosa. Depois, com grande fragor, abateuse a
torre, as quadrellas voaram soltas, as traves accesas
girando remoinham sobre si, e d'entre os estroços,
como em leito Iranquillo, o velho guerreiro, sacudin-
do o pendão no braço, parecia desafiar ainda cora os
leões victoriosos. Honra ao que morre sem virar o
rosto, amortalhado nas suas armas, envolto no seu
pendão ! Ao cabo d'oitenla annos de pelejas o fron-
teiro de Coimbra desceu armado a sepultar comsigo
a raça orgulhosa de rio d'Ave. Do alcácer ficou soa
torre que além vemos, e aquella ermida aonde jazo
pó dos ossos de D. Ansnr.
— "E D. Moço?» perguntou Martim Paes. nE
Auzenda ?
D. Moço, continuou o monge, véspera de S.João,
como prometléra, corria já de noitecaminhode Sanc-
ta Olaia. Ainda longe do alcácer deu-lhe nos olhos
o resplendor do incêndio. Teve um presentiraento.
Crava esporas no cavallo, despede a carreira por tor-
rentes, p.)r cabeços, por fragas alcantiladas. A tem-
pestade a rebentar, e o ginete sem se deter. Maisao
perlo viu distinctamente o castello arder. Novo esti-
mulo, e corrida mais veloz. Já, sem saber por onde,
na escuridão sentiu o cavallo parar e tremer, o lu-
zeiro d^um facho cegar-lhe a vista, c lá em baixo, mui-
to lundo, quebrarem as aguas com grande motim.
O que enlão succedeu já eu contei.
.Mal expirou D. Inigo desbz se o encanto; e D.
Moço procurou Auzenda. Quando chegava quizbei-
jar-lbe as mão.» ; a bocca recuou <lcis dedos frios de
neve. O seio já não arfava, os olhos não viam. Le-
varam-na a ermida; piizeram-lhe a coroa de rosas \ir-
ginaes, e a terra comeu de quinze annos aquella for-
mosura, inveja das Hc-panhas.
Uma hora só nunca mais deixou de travar a D.
Moço a amargura da separação. A saudade matou-
Ihe os prazeres. Arrumada a lança, encostada a espa-
da, nunca mais os seus joelhos apertaram o fiel ca-
vallo das batalhas. O que iria fazer agora aos com-
bates? Se a gloria não tinha já a quem a dar; se a
pátria... oh 1 talvez essa!... nem já por essa aque-
cia o gelo d\iijuelle coração. Sombra do que fora, o
que lazia o desterrado n'este valle de lagrimas ? Amor,
ambição, esperança vira as morrer jiinclaniente com
a flor dos seus annos na cruz em que penava.
Conjo o carvalho, que as aguas minaram, debruça-
va os ramos nós sobre o oceano da vida; e vendo fu-
gir outras arvores com as ondas, e vendo as rosas pal-
pitar arrebatadas na corrente — perguntava: Oh!
(juando será lambem para mim a hora desejada ?
Na anciã das veladas noite», ao amortecerda lâm-
pada sentia a dõr mais vi\a recordar-lho o que per-
dura, (iue espinho cruel é a memoria ! Sobre a ma-
drugada (seria mvsterio?) o somno pous.iva-lhe de le-
ve nas pálpebras molhadas de lagrimas. .Vcordavu so-
bresallado, nem dormira instantes. O delirio dos sen-
tidos inoslravalhe então ao pé do leito a imagem que
traziii no coração — era cila; via a como nos diasd.i
sua lielleza ; a mesma grinalda ile lU^res do campo
sustenilo os cabello» louros; as inesoia» roupas alva»
diseidiando formas clivinas. í>s olhos, brincaiulo-lhe
o raio do vivo amor; o» lábio» a sorrir, abrindo co-
mo rosas, fallavam, mas não se ouviam. No dedo o
annel dos cponsae» — aquelle que, havia um anuo,
ambos trocaram no cruzeiro ila serrii. a despedida.
1). Moço, corri-ndo, <|in'ria estreitar ii visão ao pei-
lo, e ao aperla-la apertava »ó o nr. N'estes tormen-
tos eidczou, ijue não vivou, inejc» sobre iiioius, ate
ijwe liou.» annos. contados líti noite 1'alul, morreu no
pobre mosteiro «onde ^e retirara.
Ao umorlalha.Jo, iicliaraiulhc u» mungos um laço
20
O PA1VORA3IA.
He cal)ello sobre o coração, seguro nos Aedm liirlo».
l'or iiiaii que fizessem não lh'o puderam tirar. Pelo
niiarto tfiiiva, os que velivam ;mj lado da tuiiilNi ador-
iiiffHraiu, o um (jue y.i\:i em ora<;ão eoiítou di-pois
que vira appareccr uma dama, formosa como os an-
jos, e ajoelliar-se cliorando sobre a cova ; de dfiitro
»aír um liraço ■, e cila, com a mão apertada na do
morto, cingir llie na testa a sua coroa de cecéns. Um
guerreiro de armas negras, rodeando, sem o romper,
o circulo luminoso que a cercava. Ires vezes tentou
quebra-lo. e outras tantas, retirando o pé, vergarso-
bre o joelho, arrastada a face no pó do templo. Era
o noivado dos mortos entre Auzenda e D. MoçoAn-
.sures, — e a sombra de Inigo Lopes, que ainda per-
seguia implacável o sangue do conde Ordonho.
VPl ^OXVVIENTO I^A SB SE I.I3BOA.
l'Al>aÃ<> de diversas idades, a Sé d^ Lisboa, sem ca-
ractcrlsar absolutamente neuluima. tem herdado de
todas. Vê-se que a mão dos séculos llie deixou p;rava-
do osello particular de cada um ; mas debalde se pro-
curará encontrar no seu todo aquella perfeita revcla-
<;rio que denuncia para logo aos oUios do observador
o génio de uma epoclia.
Todavia no interior do templo da Sé parece revoar,
na solemnidade dos seus magcslosos destino», o espi-
rito da religião. N'aquellas fei(;õe5 beterojjeneas ha
o que quer que seja que infunde respeito — n'aquel-
las relíquias augustas, legadas pelas gerações ás gera-
ções, como que se cstamiiou o n>vstorio de uma cren-
ça divina.
Será porque n^essas paginas de m.Trmore, apesar de
desordenadas, vive, se não uma historia completa, ao
menos a memoria ile muito feitoglorioso .' — será por-
que a V07. dos nossos maiores nos esteja alli fullali-
do de cada pedra, posta pelo b.aço das eras succes-
sivas ?
INão sabemos. Sabemos só que otcmploé dos raros
que ainda boje fazem impressão no espirito dos que o
visitam. Assombra ainda o seu aspecto grave e seve-
ro — reputamo-iios pcrqueno» aili porque nos achamos,
não entre homens, mas entre sanctus ^ não entre as tur-
i)as de hoje, mas entre as raÇdS desapparec-idas.
Pois as lendas e a» tradições que la vivem airídal
A poesia solemiie do pa»-ac;o escreveu também n'a-
quellas paredes os seus dislicos mvsteriusus, a pardos
emblemas svmbolicos da areliitcclura.
li quantas tesmunb;is do que é ido avultam .-íili-
da alli, despresaiias e ignoradas, no sanctn recinto'.
Não terão ellas nina »!gni!Ícarão, não representarão
uma iiiéa, não se iiivolverãu n^um pensamentucomo
u um veti preservador?
Infinitos objectos d'es!>es podíamos appresenlar : en-
tre elles indicareinoa agora um só — a eaoeira de pe-
dra, que se pude ver nu claustro das capellas chama-
das alI'oiisiii,is, á direita do ailar niór, equehojeda-
mos copiada na nossa estampa.
Tem a data de lti:2!). A sua historia está reduzida
somente a conjecturas. Corre que um rei í). AfTonso
alli vinha assentar-se para dar sua audiência, c ad-
ministrar justiça. Ha também quem pretenda que fo-
ra mandada pór n'aquelle siliu por elrei D. AQun-
so VI.
A dala que se lhe lê oppõe-se evidentemente a se-
gunda opinião, iim 1629 ainda D. Aflonso VI não
eia nasciio. U mais próximo rei d"este nome é por
tanto D. Allonso V. — Aflonso V porém viveu muito
antes de llji29, e ainda «'este ponto a data vem ine-
xoravelmente repellir a tradição: no século W nãc
era já uso administrar justiça senão nos paços e tri-
bunacs.
Kesta por tanto, na nossa humilde opinião, uma
só probalillidade.
O costume de irem os reis, ou chefes do estado, ou-
vir os povos nascatliedraes, ou as portas d"elU9, é ante-
rior e, só por algum tempo, conteinporaneodamonar-
chia. Quem nos aiQança que este pequeno monumen-
to não seja obra dos primeiros soberanos.' A data
que se intenta dar como prova da sua origem não pi>-
ilera por\eiitura ler sido aili posta como indicadora
do seu reparo !
U I ste, cremo-lo, o único modo de harmonisar as
provas da historia com aijuella demonstriíção ; tanto
mais quanto outras ruzôcs vem ainda reforçar esta
opinião.
A capella mór da Sé, como lodus sabem, eraanti-
gniiiente rota para todos os lados. Não se tinham
construido os claustros actiiaes, c o altar niór vinha
por tanto a ficar erguido e »olit»rio no meio d'um.t
ampla quaora. Combina por tantoestacircumstancia
I com a tradição:, eéprovavel quejan'essa epnrha alli
estivesse aquella cadeira. A sua posição a direita do al-
tar, no centro d"um grande espaço, parece justificar
I o uso patriarchal que lhe é atlribiiidu.
.Memoria mvsleriosa à'outro tempo, talvei relí-
quia veneranda da robusta adolescência de um povo,
nas suas pr.ícticas iiniis respeila\eis — o antigo mo-
I iiiimentinhu lá está ainda a segredar-nos ao ouvido o
que quer que seja daquella grande viila dos antepas-
sados, tão cheia, tão activa, vivida tanto asclaras...
Tão diversa da nossa vida de hoje — recatada, dis-
farçada ; gangrenada por dentro, (Milida por fura ,' uo
intimo tempestuosa, uniforme nu exterior!
Lu está : escapou a invasão do camartello devasta-
dor. ISão se lembraram ainda d'aquella pedra pa-
ra... para approvcila-la n'uma tarada de agua fur-
tada, como aconteceu á lousa do conde Andeiro em
S. Marliiibo; ou em supporle de carniça, comosuc-
! cedeu ao templo de Diana em livora, converti<ioen»
aç<ms;uc. por graça de um muito proveitoso eappro-
veitado barbarismo.
Lá está cora eíTcito. Valcu-lhe talvct a sua peque-
o PANORAI>IA.
21
iiez para evitar a í^uiilia dos nivelladures, e o desti-
no de iiiaÍ!> de iiiii seu iruiâo e coevo no recinto do
templo.
Pois (jue ! haviam de consr-iitir el!es uma pedra
ctcura e leia — quer dizer, augusta e veneranda — a
macular aquelle rcgalhido alvejar da cal e do gesso.
Ijso sira, isso é que é formosura : que lhes vão lá dar
cousa niais para ver-se e aJmirar-se do que um mu-
ro l)ein liranci>' e bem liso 1 O aniarellejar liumido
das arcadas, o aspicto mclancholico e grave das fron-
tarias, aquelle respeitável e augusto testemunho dos
aeculos, que parecem assenlarse nas cornijas vestidas
de heras, como no seu throno natural, e vão acordar
no fundo d'alnia tanta memoria, tanta impressão,
tanta idéa — isso que importa? — Càue o ardente res-
pirar d^unias e outras e outras gerações, que vie-
ram ajoelhar ante aquelles monumentos e passaram
e caíram, tenha colorido pouco a pouco essas pedras
— vale isso porventura alguma cousa? ííão anligua-
Ihas, são velhices, são ninharias. De rebvs minimií
non cu7-al l'r(zlor. O nossu secnlo é essencialmente
alindador e económico. IClegante e confortável, com
uma das mãos estende caminhos de ferro e lavra ca-
deiras á Voltaire, com a outra varre do solo os mo-
numentos, que lá tinham deitado raizes, porque
porque lhe impedia as vistas. \'arre-os ^ e se os não
varre, caia-os, que é talvez peior ainda.
Não ralhamos dos caminhos de ferro c cadeiras á
\oltaire. Deus nos livre; mas não podemos deixar
de bradar alto contra o vandalismo e a barbaridade.
Tornando ao nosso monumentinho, pela terceira
ve7, repetimos cora o alvoroço do descostume:
Lá está.
Se figurasse em logar mais a|)parente ter-lbe-iajá
acontecido provavelmente como ás columnas do tem-
plo, suas irmãs talvez, de mármore antigo n precio-
so, e hoje c/«ya»iíf ccoii/oríauíVjntítíc cobertas d^lnla
camada de estuque — ter-lhe-ia acontecido comoaos
antigos capiteis, que a esculptura morta havia reca-
mado laboriosamente de finos lavores, e que a mão
dos restauradores esclarecidos e intelligentes, com o
íiui seguramente de faxer começar uma nova era pa-
ra as artes, escondeu, depois do terremoto, n'uma
económica e agradável capa... de gesso civilisador?
Muito e muito mais poderíamos aqui dizer. Tara-
remos por em quanto com uma só observação.
Tor que será que o século actual, desenvolvendo
e«pantosainente na sua rápida acção todas as cousas
que dizem respeito ao materialismo da vida, tende
constani ente a annnllar a iniluencia de todos os
objectos (jue podem favorecer as inspirações do espi-
rito .'
Uesolva rjuem qulzir o problema.
GuiUEs Fhkhik hk Andradf.
(Coulinuanifo de p.ig. l.t.)
Caiu.os VI, ou o seu ministro e valido T>. Manuel
(iodoi, iluque do A.lcuilia, agradeceu o auxilio prcs-
tailo, havia pouco, na campaidia do llossilhon, fazen-
do-sc iuslrunu-nlo da vingança de Kuonap.irtecontra
l'ortui;iil, a qinil este guardara para occasião oppor-
luna ilesibí o momento em <|ue, oppondoso uosseus
intentos a rsqinidra ilo nuir(|ui'/, de Niza, já em Mal-
ta, já diante lie Alexandria, lhe arrancou o despeito
estas pidavras, consignadiis n'uiiui oriliun do dia ao
exercito tio oriente : .iVirá tempo em ipie a nação
portugueza pague com lagrimas de sangue aaflVimta
feita á republica." Vendose Ibiíinaparle primi'iro con'
sul, começou u lançar os alicerces do sjsleina conti-
nental, e pouco depois do tractado de Luneville fez
um pacto secreto coma Hespanha, e instigou-a a met-
ter em Portugal um exercito cominandado pelo mes-
mo Godoi, mais conhecido pelo titulo de principeda
Paz, que a vaidade induzia a querer passar por babil
general. E de feito, n"esta campanha de 1801, que
achou Portugal desprevenido e privado dos soccorros
d^Inglaterra, custou a obstar aos progressos do inimi-
go com três pequenos exércitos, e só o marechal Go-
mes Freire, conimandante do de Traz-os-Montes, se
havia animado a fazer guerra offensiva enfreprenden-
do a praça de Montc-Rei ; plano que falhou por es-
tarem os hespanhots avisados, sem que estes, todavia,
nem mesmo depois da retirada que o marechal havia
feito para não ficar cortado, se aventurassem a poro
peno território portuguez por aquella banda. A pou-
ca probabilidade da defeza havia pois feito appellar
para as negociações diplomáticas, em que se gastaram
muitos milhões de cruzados até o annode 1807. Em
1804, novas ameaças por parte da Hespanha exigi-
ram novos sacrifícios; e assim continuou Carlos IV,
sempre em genuflexão diante do primeiro cônsul ou
do inijierador Napoleão, a inquietar o seu antigo al-
liado. Por ultimo houve-se com a maior deslealda-
de no tractado de Fontainebleau, pelo qual Napo-
leão repartiu, como cousa muito sua, o reino de Por-
tugal e os seus domínios, á excepção das províncias
da Ueira, Trazos-Montes, e Estremadura portugue-
za, que deviam íicar em sequestro até a paz geral,
porque o imperador e o rei de Hespanha as/!i/</ai'am
próprias para ser rcsliluiãas ú Casa tlc Braçjati^a,
em troca das colónias conquistadas pelos inglezes aos
hespanhoes e seus adiados. Por este tractado davam-
se a Gudoi o Além-Tejo e o Algarve, com o titulo de
príncipe dosAlgarves; ao rei da Etruria a Estrema-
dura, iM ilibo, e a cidade do Porto, com o titulo de
rei da Lusitânia septentrional, obrigando-se a ce-
der a Napoleão o reino da Etruria; e ao reíd'IIes-
panha o titulo sonoro e õco de imperador das duas
Américas. Um exercito de vinte c oito mil francezes,
reforçado por onze mil hespanhoes, havia de virapoiar
a es|)oliação occupando Lisboa, ao mesmo tempo que
duas divisões hi'spanbolas se apoderariam das provín-
cias d'Eiilre-Douro-Miiiho, ,\lém-Tejo, e Algarve.
Por conseguinte, um exercito de trinta mil homens,
capitaneado por Junof, entrou em Portugal, auxilia-
do pelas divisões dos generaes hespanlioesTaranco e
Solano, e a marchas forçadas veio bater ás portas de
Jjisboa na manhã de líO de novembro de 1S07, um
dia depois da salda da faniilia real para o Brasil. Es-
tava por esse tempo (imnes Freir»! {tenente general
desde 1:2 de setembro) commandando uma divisàoao
sul do Tejo, o no meio do geral dosalentoainda ten-
tou ver se obstava á invasão, cujo primeiro resultado
loi o dividir Juiiot o reino em trcs grandes ilistric-
tos militares, reservando para si o governo da Estre-
madura e lieira, e deixainlo a Solano o das provín-
cias ao sul do Tejo, e a Taranco odo Porto, .Minho,
e Traz os-IMontes. O marquez de Aloriia, e Gomes
l'reire conservaram o cominando das tro|)as portugue-
zas existentes nos districlos de .lunot e de Solano, e
luram encarregados de as reformar, e de reduzir a
seis os vinte e (piatro corpos do infanleria, o a tre»
os dozi! d<! cavallaria de que então se compunha o
exercito portuguej. Feita a reducção, marchou a íic-
gião Portugueia nos priiU'i|ilos irabril de ISDS em
direcção a Salamanca, levando por ciniimandanleein
chele o iimr(|uez d'Alornii, e por seu iimiu diatoo te-
iieiilo goneial (ionies Fndri'. Enlr<- os olTiciaes forniu
fidalgos da primeira nobreza, e Inunens de alto me-
rito, que chegaram a oecupar os priínipjteseargos na
[latria ; al^Mins^ talvez, porque n.io puderam eximir-
Ô9
O PAiNORAMA.
se; outros, <; licito crê-lo, deslumbrados pelo esplen-
dor diií victiiriíis do cDiiíjuistador da Itália.
A infidelidade de Carlos IV' já então estava puni-
da. Fernando VH, seu filho, nsurpou-lhc a coroa em
fevereiro d'tsse mesmo aiimi-, o rei deposto Imscou o
patroeinio de Napoleão, e Fernando, afim de tornar
este propicio á sua causa, pediu-lhe para casar uma
pritioeza do seu sangue; porém Napoleão, como fino
politico, attrahiu pai e fillio aterras de França, for-
eou-osa cederem-llie todos os direitos ao reino, e man-
dou Carlos desterrado para Compiej^ne, e Fernando
para Velençay ; procedimento ijue irritou os patrio-
tas liespaniioes, e llies inspirou ódio indomável aos
francezes, aos qnaes prineijiiaram If.^o atraclarcomo
iii;migos da sua liberdade e independência. Por esla
razão, Gomes Freire, qua fieára alguns diasatrazado
da Legião na manha para IJayonna, tomou em Lo-
grono, por ordem do marechal liessieres, ocnmman-
do lie uma forca portugiieza, áqual se reuniram tro-
pas fr.<iieezas, fjue elle igualmente fuou commandan-
(1(1 até o fim do primeiro cerco de Saragoça, levan-
tado aos lo d'ago>to de 1808, porque os franeezes,
apesar do entrarem a cidaclc, acharam uma resistên-
cia sem e.\emplo nos tempos antigos e m.idernos. Aca-
bado o cerco, vieram as tropas iTelle empregada": pa-
ra o Oilpliinado, e Gomes Freire foi porUa^oniuia
Taris, e cralii para Greuoble.
Nova guerra entre a .'Vustria e a França propor-
cionou a parle das tropas da Ijegião o asiignalarem-
se muito, debaixo das ordens de (Judinot, na véspe-
ra da bat.dha de Wagram, sustentando a pé firme
uma posição que os franeezes, rareados j)ela metralha
de duas baterias austríacas, haviam desamparadoem
vergoiiiiosa debandada, cobrindo lhes a covardia o véu
da noite, quasi a cerrar-se, engrossado pelos vapores
do Danul)io. O» dois batalhões que diram este irre-
fragavil documento do valor e disciplina combateram
eom muito brio no dia da batalha, e mereceram que
o próprio Napoleão, juiz o mais competente, dissesse
ao conde da liça : "tíenhor conde, estou muitosalis-
leitocom os portuguezes : sempre pelejaram com mui-
ta galhardia n^esla guerra, e. decerto, nào ha na Eu-
ropa melhores soldados do que elles. "
Gomes Fieiresó em fevereiro de 1809 teve ordem
de partir [lara a Allemaniia, onde permaneceu até
maio com as tropas pertencentes á Legião, as quaes,
n-stabeleeida a paz, acompanhou para os seus aloja-
mentos na ]5aviera ; e tendo Napoleão decretado a
reunião do cantão tie V'alais, também foi tomar pos-
se delle com três batalhões portuguezes, mas esqui-
vou-se do servir no exercito deMassena, empregado
contra l'orlugal (mii ISIO.
Alexandre, imperador da Uussia, que, ainda em
1809, aceitara das mãos de Napoleão uma boa por-
ção dos despojos da Áustria, colligou-se contra elle
em 1812, e o compelliu a emprehender, a frentede
quinhentos mi! homens, u fatal campanha da Rússia,
em que a Ijcgião portugueza acrisolou o seu denodo,
nomeadamente na tomada de Smolenko, c batalha
de Moslcowa ou lioiodino, mas d'oude veio reduzida a
setecentas e eincoenla praças, tendo levado de l'ortu-
gal nove mil homens, con> que se incorporaram qua-
lorze mil recrutas tiradas dos depósitos de prisionei-
ros lu'>panhoes 1
O tenente general Gomes l''reire havia iilo para a
Hu^sii. com o estado maior de Napoleão, e ficou na
Lilhuaiiia governando a província de Disiia até o
tempo ila retirada, em que voltou para França. Caí-
do •■ni terra o colosso, auto o qual os reis da Europa
queimaram incenso de joelhos, para que o inipern-
dor, hiimem do povo, ungido com osansuc davicto-
riíi, lhes não arriincassc as coroas da cabeça, tractoi:
I Gomes Freire de regressar a Portugal, e escreveu pa-
ra este Dm uma carta a seu primo António de Sousa
Falcão, a qual trasladamos por dar a conhecer o seu
estylo, e revelar um presenlimento da sorte cruel
que o esperava :
Paris 2 de fevereiro de 181o
"O teu sermão, bem longe de me adormecer, des-
pertou-me ! o que a estas horas Já terás visto pela mi-
nha carta de 20 dedezembro, n."8, em que te di^o
que estou resolvido a voltar quanto antes a Lisboa,
no caso que os senhores governadores queiram ter a
bondade de auctorisar algum negociante para accei-
tarme uma lettra de quatro mil cruzados, seguran-
do se-lhe que será paga lojo que se me entresue o
dinheiro, que se acha no erário, das rendas de mi-
nha casa; e por tanto se for deferida a minha sup-
plica. lá me tens por todo o mez de abril.»»
u Achei muita graça ao teu sonho, e feí-metanla
impressão que sonhei outro na mesma noite, que te
vou contar, e em que acharás talvezaiguma analogia
com o que tiveste. "
I II Sonhei que me achava na China, aonde uma gran-
de província tirdia sido invadida pelos inindgos; e
' achando-se esta desprovida de tropas, o imperador
chamou em seu soccorro os tártaros, seus alliados :
' estes vieram proniptamente, e deitaram Wjth os lae»
inimigos dos chins; e como o imperador tinha tido
j pouco cuidado no seu exercito, deram lhe um cabo
j iscolhido d"entre elles para lhe organisar e discipli-
nar as suas tropas: o imperador a^radouse tanto
1 d"esse tártaro, que, além de muitas honras e podere»
I que lhe concedeu, fe-lo mandarim, e escreveu-lhe
uma carta em que lhe di^se (juc ilbulrasse com os
seus conselhos os oiilrcs mandarins e os anin\assc\ e
por tanto po-lo acima d'elles, do que os mnndarins
chins não gostaram; e, para lhes fazer perraea,lem-
braram-se de mandar chamar á Pérsia um chim que
alli militava, e que elles tinham em conta de t."io
grande militar como era o tal tártaro: porem este,
que era muito vivo. fiado nos seus poderes, que eram
os mesmos que algum dia se concediam aos dictad»)-
res rimianos, armou trempe ao pobre chim, pren-
deu-o e polo em cooseilio de guerra ; e vendo os
mandarins que o tártaro puxava pela su.i auctorid.s-
de, calaram-se todos muito bem calados, e o pobre
chim foi fusilado sem que ninguém punisse por el-
le : e eu, acordado ao estrondo dos tiros, assentei de
nunca me lembrarde jogar ascristas com generaestir-
taros, massim de pendurar, logo que chegue a Lislwa,
a minha espada na parede, para se deixar enferru-
jar bem á sua vontade I . . . Que me diies ao sonho ' •<
ti \'euha dinheiro, e brevemente lerei o gosto de
' segurar-te que sou — Teu verdadeiro amigo e primo
, fiel — Gomes.
I Não em abril como promellia a cart.i, mas em ilG
de maio de 181o apresentou-se no quartel general d.t
corte e província da Estremadura, e por aviso de S
' de junho foi declaraoo ínnocente, não obstante ter
1 marchado com as trop.is porlugueins p.irn França;
e mandaram-se-lhe «bunar os soldos a que tive«edi-
' reilo. ((.oiiítniío.)
I lIvniTVNTKS 0*s IjVNDEs llt HoRPKrs (1 \
MiiTos dos estrangeiros, «ibservadores superficiaes.
' que apenas passam entre nos algumas semanas, assen-
I (I) l.andrs quer dizer o cliarnecas j ou lanihem « uiíl-
, lajíaes iiianinLus » « terr.is (ifaras e br.iMas. r Conserva-
mos porém o nnme francei, porque o consiiieranios aqui
• termo yeojírjpliico, como por exemplo diremos « »s Du-
uas r e outros seuiellriules.
o PANORAMA
23
taram julgar mal de tudo o que se diz e o que se faz
para cá dos Pirinéus; esta maledicência svstematita
(.' injusta produz unia alluvião di: liliellosinlainficon-
fra nós e a najão visinlja. Nju precisamos (joréni de
pagar embuste» com outros tnjljustps. ÍVos próprios
tscriptores nacionaes de l'"raii(;a e de Inglaterra en-
contramos quadros, ora de misérias, ora de crimes e
dissolu<,'ões, que não tem parceiros em a nossa terra.
Não é, por certo, em I*ortugal que existe em longo
tracto de território gente de tão nii'squinlia condição
p. minguados recursos, como aquepasiàmos a descre-
ver, trasladando as (iroprias palavras de Mr. Victor
Gaillard. —
Não procurcnios dissimular que as Laiiilps, esse
extenso deserto que, começando hs polias de Hordéus,
vai rematar na foz do Adour, nuda tem de agrada
veis, e mui [loiíco lisonjeiam « nosso amor [iro[iri()
nacional. Ksta comarca é sem c*.»ni pararão a parte
mais desagradável do liello reino de França, qualquer
que seja o lado jior onde a contemplem. Áreas ar-
dentes no verão, charcos e abismos no inverno, clima
doentio em todas asestaçõns, temerosas solidões onde
jiarece illimilado o horisonte ; eis-aqiii o aspecto das
Ijaiides, sobretudo do lado maritinio Se uma tem-
pestade, por exemplo, arroja alli um niiseio estran-
{jeiro, poderá por ventura capacitar-se, depois de ha-
ver galgado trahalhosamente os medões movediços do
litloral, que po?, o pé em França, tão celebre por ler-
lilidade do solo e pelos progtessos da civili-ação ? A'
vista de uma praia medonha em siiuuiio grau, de
planícies áridas, e de raros eagoientados habitantes,
que vagueam n'aquelle terreno devastado, cuidará lo-
go actiar-se á mercê de uma tribo selvagem, a mais
extravagiiiile em trajos, maneiras e postura Embora:,
II este solo ingrato, onde só crescem em pontos dis-
persos os abrolhos e tojos e alguns pinhais, mais ve-
getam do que vivem trinta vollos humanos porcada
légua quadrada, iiittii aiiuíilc fruiicczci cdiiio vús e
cu, com os (|uaes todavia, de nenhum modo <|uero
participação em liabitos ou gostos. Longe de poderem
articular, em sua barbaia algaravia, pens.inieiilns coui-
niuns, muito é se acham palavras para ex|iriinirem
algumas necessidades [ihysicas i acoslumaclos a ver
«einpre os mesmos objcvlos, anão passar desensações
unilormcs, copiam no sen caracter a monotonia sel-
vagem do di^triclo que habitam. Ignorância profun-
da, iiic!S(piiulia cubica, aliathia no maior auge, e um
lalexce^sode indillereiíça que iiléembola osentimen- ,
to da penúria, fa?.ein esta gi'iile ineapa?. de energia,
equasi que até de rellexãir. Habituados desde o ber-
ço a maia absurda su|)ersliçào accilhtiii aviílaiiienle os
contos e tradições de feiliceiroi e de almas em pena.
Debalde recebem de seus curas as noçõi s religiosa»,
porqui.', prroccupados de terrores pueris, a» desligu-
ram, ap|)lieando.as a ChcíMijuros e ridicuK:s exercícios
de mal enlindida devoçãu.
A raça /oík/cío, propri,iuii-iite ilida, vive no ter-
ritório mais vlsinho do oeeauo, desde a lorre de Cor-
douaii alé la Tesle, e d'alii ali' Kavoíiua. Ahi se de-
ve estudar esta variedade andróide, que em cada uma
das sua» leições ilá assUiU{ilo para observações etno-
graphleaii e a triste» meditações. — O habitunle das
liandes, baixo o miigro, lem còr macilenta, eabellus
prelos e corredios, idlios b.iços, e a plij sioiíoinia tris-
tonha , a» suas li'ições iinp.issi veis, que o riso anima
poucas veies, tem certa ex|iressào inedilaliva, iinalo-
ga á que se observa n'ulguus loaniacos. l'orem, ape-
sar da consliluição fraca e eoiisuiniibi pelas febres na
maior paili' do anuo, o h.ibilanle das liiindes desem-
penha os mais pezaclos trabalhos, o arrosla todas as
inteuipei leH almosphericiis. Aecresco a tudo isto que
os seus giosseiros trajos comliiem liiiil com a liinpe-
ratiira, porque o estafam no verão, sem o resguardar
do frio no inverno^ o mesmo se observará quanto á
sua pousada miserável e immunda, que o esquimau
e o hottentote despresariam, e na qua! se amontoam
ás vezes trinta a quarenta pessoas ; a peça principal
é uma grande coslnha, cuja lareira occupa todas as
noites um (aldtirão, onde a decana da familia mexe
o escuUm, em que se encerra todo o jubilo dolaiidez :
esta comida consiste n-umas papas de farinha de mi-
lho. Em quanto se prepara, as mulheres fiam, e os
homens entrelem-se invariavelmente acerca do lobis-
hoinein que anda mais em voga, ou da returreição
do feiticeiro que ultimamente se enterrou. Da cosi-
nha passase para alcovas escuras e sem ar, onde to-
dos de mistura se encovam, uns deitados nochãoso-
bre vellos de carneiro, outrosem ruins enxergas, snp-
pottando um calor capaz de coser ovos.
De quantas povoam ai Laiides a classe dos pasto-
res c a mais numerosa e lí!int'em a mais miserável,
(iuasi sempre alfastado das habitações, cada pegurei-
ro anda munido de nina saccola de farinha de milhn,
de toucinho excessivamente rançoso, e de uma panei-
la para lazer as papas em agua de Ião ruim qualida-
de que a corrigem com um pouco de vinagre e sal.
Muitas vezes correm semanas inteiras sem ver crea-
lura huniana. Empoleirado nas compridas andas de
pau, que o levantam á altura de seis pés, e com as
quaes parece ter nascido, galga mattagaes, atravessa
charcos, e liicla em velocidaih- com os cavallos bra-
vios da charneca, por onde discorre fiando a lã de
seus carneiros. De longe a longe, o encontro de outro
pastor interrompe as suas longas horas de solidão, e
lhe causa uma distracção; mas quanto é curta ! por-
que os rebanhos junclos em breve esgotariam o sus-
tento sulficienle iraquellas enfezadas pastagens. —
Mais raras vezes ainda, um boieiro se aparta da es-
trada para levar o gado a pascer no meio dos tojaes,
c enião couta a nova apparição de uma alma do ou-
tro mundo ijue fu2 anil.ir em bolandas a próxima al-
deã ; e conversam depois na boa criação dos seus ga-
dos, lioi» e carneiros eis toda a paixão da gente das
Landes, que ii'elles deposita toila a alVeição de que
é susciptivel, olhando com indilVerença para tudo o
que lhes não diz respeito. Perguntai-llie pela mulher
ou filha doente, responderá com lamurias pelo mal
que deu no vitello ou nos carneiros. Dizei-llie : — «Já
sei que vosso irmão tem iim grande catharro; mas
penso que vai melhor." — Não vai, não, senhor (vos
responderá) um dos bois Irasfulhou e não pôde comer ;
u meu irmão está por isso muito ma^uado.)'
A rouparia do pastor no inverno consta de vellos
com a lã para dentro; com elbs cobre ocorpolodo,
á excepção dos [les sempre descalços, e tia cabeça <]Ue
abriga com um barreie pardo-, vesle por cima uma
capa de burel branco com seu capuz anuilo, guarne
eido de bandas encariiailas e de clinas soltas ; chamam-
lhe caimtc ílt Carlos ilA/i/iio, e troei 111 no de verão
por outro mais leve depellede cordeiro, e por igiiiies
pelles largam os vellos ipie Irouxerain no tempo iVio ;
o resto do veslii.irio é roupa branca iiue, ciiiiio e de
sup|ior, nunca mais loi l.ivada.
A \elhice do zagal das LanilfS é «nlecipad.i ; de
maravilha alcança os sessciit» unnos. ("omludo, nii
sua vida vegetativa lá encontra att laclivos na verda
de inexplicáveis. Se e const rangiilo a pagar o tribiilo
de sangue á pnlria, desespiriido sae de seu deserto :
iliísde esse inomento couta os ineze» de serviço, e qual-
quer «pie «eJH n melhoria i|in' expofiinenle, ri'spoiulo-
ra sempre: — >• Eu em bem feliz ipiaudo me cliaiiia -
vum desgraçado." — Nada o póile reler sol» iis baii-
deiriis iihiii do priiso <bi lei, e bem ilepressa toma o
caminho ibis suas ih.nnecas soliliirias, Alii iccobra a
24
O PAINORA3IA.
liberdade e a melancholica ventura a «eu modo, que |
prefere a quanto se chama civilisaijão. Ao cabo de |
seis iiiczes está como te nunca fe auseiilúra ; tudoltie
tem esquecido. í
l)'este modo a soberania dos pântanos e mattos ,
das Landes pertence ao pastor ^ domina, do alto das
suas andas de páu, sem rivaes nem ministros, e a
sua autocracia não adia obstáculos nos \astos ermos
de I3orn e Maremmes. Porém no cantão de Maran- [
sin, onde crescem e abundam os pinhaes, a impor-
tância do pastor é secundaria, e cabe a supremacia
ao ganha-pão que apanha a resina. Ifiquem é este.'...
E um homem qne se ergue ao raiar d'alva, urma-se
de um machado afiado, carrega com uma longa >ara
talhada em degraus á feição de escada, e com um
bornal que leva a comida, encaminha-se logo para as
mattas de pinhal, onde consome a máxima parte da ',
sua vida. Apruma a sua vara a par do tronco recto ,
de um pinheiro, por ella sobe a muita altura, sem
mais apoio do que o entalho em qne estriba o pé es-
querdo, e com a perna direita, abarcarulo a ar\ore,
sugiga a vara e não a deixa vacillar. D'esle modo
suspenso, com mão certeira dá os golpes da machada i
e trará na superficie do tronco uni rego estreito, tal |
que qualquer juraria que por alli passou a plaina.
I)'esla incisão vertical, que vem dar ao pé da arvo-
re, manará a resina, que esse mesmo homem ha de
apanhar e transportar mais tarde ás fabricas onde é
dislillada.
Habituado desde muito moço a tão penoso traba-
lho vive, como o pastor, apartado da sociedade ; e to-
davia vive sem tédio, e não trocaria a sua condição
por uma existência mais commoda. Devorando á pres-
sa uma sardinha com um pedaço de pão de centeio,
mata a sede com a agua que se empoça na malta ;e
6Ó volta á choça solitária para tomar algumas horas
de descanço. Assim continua por nove niezes do an-
no, desde o principio de março até o principio de de-
zembro ^ os três restantes passa-os em casa da sua fa-
mília ou do proprietário da raatta. l'ara dar tréguas
a esta vida desacompanhada, ao domingo larga do pi-
nhal mui cedo e entia para a taberna ; é onde se es-
quece de Iodas as fadigas i as ruidosas explosões da
sua descommunal alegria cobrem apenas as vozes es-
ganiçadas das mulheres e os berreiros dos rapazes, ijue
»e apinham ao redor de mesas onde o vinho corre em
bica. As libações succedem-se sem descançar, e quan-
do a noite chega é completa a embriaguei ; então >ce-
nas inauditas se divisam ao clarão vermelho e «fuma-
do d'archotcs enresinados : a desordem vai em aug-
inento alé que uns caem por baixo das mesa"-, outros
forcejam por se rclirarem ás choupanas perÍL'osomen-
te cambaleando. No dia immodiuto o apanhador de
resina corre de tronco em trunco a rccollier o produc-
to de seu anterior trabalho, e tão lestes e diligente
como se o houvera refrescado a orgia da véspera. O
seu trajo é sempre o mesmo, alé que encebadoe po-
dre caiu aos farrapos ; consta de barrete ou chapéu de
palha, vé^tia de pano grosso, calça de linho crii ou
semelhante, c cinta encarnada : se clio\e, embuça-se
«"um capote que tem só as cavas das mangas, e de
nm talhe particular, privali\u do .Maransiii, e que
ainda não tem desmentido desde a idade media.
Antes de sair dos pinhacs, presentemente objecto
de avultada e llureceiite industria, o .upitalista vai
visitar um laboratório de resina-, porém o poeta eo
pintor encaminham-se para o oceano. — Não é andar,
V bordejar n'um chão que na mobilidade imila as on-
dulações do mar: agora se desce ao fundo de um bar-
ranco onde liu agua salobra e encharcada, logo mon-
ta-se a sumniidade de uma vaga de arê.i saibrenta :
acabam os pinhacs, c ai dunai ou roéduei i-omeçaiu.
Decorridos alguns minutos divisam-se muitas malhai
escuras que se movem lentamente nos ladosalvacen-
tosd'aquelles cabeços collocados em amphilheatro ;sii '
os paisanos das dunas, puxando trabalhosamente, por
ténue salário, as faxinas com que é necessarioc-obrir
o pinisco, de que hão de sair »s robustos pinheiros,
que d'ahi a cincoenia anuosdefendernoolerrenoeol-
tivado da irrunção das aréas le\aiiladas pelos ventos
d^oeste. Oulro^, mais ao longe, cccupam-se era forta-
lecer 09 tapumes de caniços, que em distancia se to-
mariam pelos traços divisórios de uma carta geogra-
phica. Chegai-\us de perto, e aebar-vos-heisá entra-
da de um labvrinlho, que em suas \ollas encerra in-
numeraveis videiras com as \aras verdejantes carre-
gadas da bella uva de qne se espreme o nomeado Bor-
déus. E elle o único produclo notável de todas as Lan-
des, e exige considerável co-trio de cultura : a boa
qualidade dovinho compensa bem a falta naquanti-
dade ; e admira como pôde adquirir tanta sevee vi-
gor n'um terreno formado, como o de CaboBretão,
pelos areaes acarretados pelo mar.
(Ccnlinúc.)
O V
II vo E o .Medico.
Um pobre operário de PIvmoutb, tendo a mulher
muito doente, foi pedir a um medico de fama que a
viesse traclar. O doulor, por ser o homem mal tra-
jado, prometteu-lhe que iria, mas não fi>i. Peiorou
a doente, e o marido voltou a casa do doulor a pe-
dir-lhe com lagrimas a soccorresse. Ainda d"esta vez
perdeu as passadas \ tornou terceira e disse-lhe ■ ». Dou-
tor, minha mulher eslá ás portas da morte, e tem fé
que só vós a podeis sal\ar. Eu, com ser um triste ope-
rário, tenho algum dinheiro de reserva, porque soo
forreta i promelto pagar-\os dez libras, quer a cureis,
quer a mateis." O doutor enlerneceu-se, e medicou
I a doente, que d"ahi a poucos dias estava na eterni-
I dade. Passados os da corleiía, mandou o esculápio a
I conta ao viuvo, e como elle não qnizcsse pagar-lhe,
citou-o para comparecer no jurv. Concluída a alle-
I gação por parte do auctor, o presidente perguntou ao
1 réu se tudo aquillu era verdade. E certo e mais que
; certo," disse este; "puréiii. se me derdes licença, fa-
rei uma breve pergunta alli ao amigo doutor." Foi-
Ihe concedida. — "Eu não vos promeiti dei libras,
quer curásseis quer matásseis minha mulher ? — " Não
ha duvida" respondeu o medico. — «.Basta. Ora res-
ponda-me o senhor doulor: curou minha mulher.'"
"Não, porque a moléstia i>ão tinha cura." — uEii-
tão matou-a ?" — «Deus me defenda', que testimu-
nho! 1 Morreu porque tinha de morrer." — «Logo,
se confessais que não a curastes nem a matastes, cas-
pite '. temos as contas sald.iòas. " O jurv . ciiigindo-se
á lettra da promessa, ab^Ueu o operário, e uescu-
lapio ficou sem a paga e pagou as custas.
Subscrei<e-se para este jornal na Tiipographioende
V impresso, e nas lojas Jc livros de / iufa Henriques,
c Bordalo, rim /íugusia — Ziferino, ttio <í<.i$ Copií-
lislas — e 'J'ori]Ualo, tua do Ouro.
fendi-se nos locaes aonde se subsireve, e naslojas
4c livros de Lemos, rua .-lugusia 11." 1-" — na rua
direita da lisperanra 11. ° 1:2o — e na loja de livros ui.
y. F. ela Silva, rua direita do Livramento n .'^ H ^ .
Assignatur.i p<ir anuo — b^N.*" 1 S20O
Dila por semestre — 26 N."* .5640
N." avulso .«030
A corrrspendeneia franca, <írre ser dirigida á Re-
dacção do Fanorama, Lar^ode Coniador-mórny l\.
o PANORAMA.
25
TUMULO D£ niCHELIEU.
O ifliuiu do cardi.'al do lUchelicii, que ainda hoje
iu conserva na Surtxinna, é reputado como o primor
do cintel do fainoso mestre dV'ículplura Franc'i>co
(iirardon, natural de Trojes, e nascido querem uii>
que no anuo de lb:i8, asie^tirani outros que no de
1G3U. Iluuve quem sustentasse (|ue os ricos desenhos
do hello inaubolcu, que damos n'este n.", eram to-
ilos do lápis de Lflirun :, mas Girardon, com uma al-
ma nohre como linha, he estivesse em dívida para
c-ofii elle, nàoahriria no inoiuimi-nto » /'V. O, iilftu-
luti c jcí" — ni-in Lehruii era homem pura »e calar
iliaiile de s>'iMt'lh.inle impostura,
A eselioia de (iirarduii não sr pautava pelo molde
da arte ^ree4> romana. O secidu «i as piopensões tio
artista at1asta\aiii-n\i da iniitat^ão rigorosa. Na sua
epocha olaiisto e o|;alanteio invadiam tudo, c passa-
vam dos costumes periumados da corte para o inar-
inoie, o bron?!', e o j^esso. l'ar» alcj^rar o» jardins,
«onde ja espaireciam a-, poc liças visTiescle maileimiiselle
de La Valliéri-. IjOU. \l V ordenava ;. o jaspe e á (leilra
que imitassem a ligeireza e o {gracioso sorrir daslicl-
leius mundanas. O (jranile rei não se arrehalava |)e-
la romposlnra da estatua [;riga, prehria-lhe o hraco
arredondado, <j i;estu inei^o, aquella posição toda pra-
<;us, tjue allíii^a o deleite, e arranca do fundo d\dina
um kU>piro laii'.;uÍdo.
tliiando (.'orneillu na tfní^edia fuudia ui teu( per-
Kiiiugen» ei>m a fori;a viril e ud paixões tevenit de
Uoma, l'uj;ct pela escuiptura tirava da pedra ok hus-
tuk de herue» a que n admiração >e inclinava, iinik
que erum frios, grandioso» de muia paru captivur u
Not. 1 — JkTíMituo ■-'(>, ItJi li.
svmpathia. Nenhum d'elles cahia nas proporçôe!. ver-
dadeiras, eamhosas excediam paraaltingir um ideal
maior <|ue n realidade, e |ior isso mesmo mais gi-
jjante do «juc terno. Uaciíie e Girardon peloconlra-
I rio dí-sluinbravam pela singela bellena, que toca no
coração: helleza humana, aliectuosa pela divina har-
monia. <|ue a espiritualisa, menos elevada que a ou-
tra, porém muilo mais natural e verdadeira. Asdua>
j escholas levantavainse até a altura do génio creailor
por di\eno caminho: a prini<'ira nas azas do pen«a-
meiíto rigido e do clássico austero : a segunda pelo
fogo ía^'rado do amor. CorneiUe e l'uget eram ro-
j manos em França ; ll.iciíie e Girardon eram Irance-
I zes em llunia ,' e d'esla ilivergcncia «••.*enci,d se resu-
miria a dinérenija dos dois sistemas. Us primeiros <les-
I liimhr.i^am, (dirigando a admir.t-los ; os srgundoi. '-■i-
hendo o se:;redii ilo peito humano, prendiam o e^prl ■
' 1aLh>r pelas eommo^>ões ila alma. LI por issii que (ti-
I rardon nunca foi IVomelhen, qu<' infundisie lla^
suas oliras o fogo do céu, possuindo como ninguein ■>
I suhliinc inslinclo de indicar n seií-ihilidude das car-
nes, (iuandoos didosapalp.iili os contornos Ião bran-
dos e suaves das buas estatuas, quasi que recei.im \c-
las estremecer de repente.
Duas palavra» mai» sobre o artista. — Giroidoii
seutiu desde o principio aquella vaga Irisleia, tignal
lie uma vocação que hesita e procura o seu dettino.
Levava horiís inteira» abvsmado a cí)iit<'inplar a n»-
ture/a , — depoi» ilcceiídia-iu o ardor, a fibredu ins-
piração, acalmando em etboçot interrompido», cinde
senhos truncadui . a fronte cursada a revelação do
26
O PANORA31A.
ideal, o peito comprimido pelo tamulto da duvida e
da esperança em lucta lá dentro ; e no meio d'e5ta
agonia, a historia do ine\itavel martjrio com que
a cegueira das familias attribulou sempre, consfran-
gendo-05, os primeiros ensaios do génio precoce. A
isto se reduziu a mocidade do celebre escuiptor.
A contar do dia cm que livremente lhe foi permit-
tido consagrar-se ao culto das artes, a sua carreira
foi grande pela gloria, mas pacifica e igual. Nem
revezes, nem rivalidades, nem perseguições. Entre o
amor ao berço natal e a devoção da escuiptura, atra-
vessou por todas as tempestades do mundo até ador-
mecer nos braços da nioite sem dòr nem afflicção.
Foi um lindo dia de in\erno, que a noite apagou
nas trevas ; dia raro, e minguado sobre tudo porque
íobresaíu na estação sombria, illuminado de um sol
vivo e creador.
N'outro artigo esboçaremos o caracter do cardeal
de Richelieu, a quem se levantou o soberbo mauso-
léu da Sorbonna. Era justo começar pelo artista — o
homem d"Eslado, posto que tão superior, pode mui-
to bem admittir qne elle o preceda: — felizes ainda
aquelles quo não vivem só do mármore em que se
mandaram retratar, ou do poema em que insinua-
ram allusões parciaes e lisonjeiras. Anda ainda na
historia e no mundo muito Aflbuso d'Este sem car-
deães llvoolilos.
O Hadjeb de Kokdova.
(972 a 992)
I
Os jardins (VAzahrai.
MoBBEBA o famoso kaiifa El-Hakem, levando ao apo-
geu da grandeza e prosperidade o império kordovei.
As luctas immensas da raça árabe e da raça goda na
l'eninsula tinham adormecido, ou pareciam adorme-
cer. Os filhos de l'elavo encostavam, momeutanea-
mente ao menos, ao canto do lar a pesada lança, qne
tantos annos lhes hav ia levaJo a temperar nas aguas do
Astura, a afiar nas rochas de Covadunga — e os her-
deiros de Tarik deixavam dcscançar ao lado a rude
cimitarra do Maghreh.
.\ El-}iakem succedêra, no nome, seu filho Ilecham
criança de dez annos, e. no mando, Mohammed-len-
Abdiíllab, nomeado hadjcb, e tutor do moço príncipe.
Mohammed dissipara o bando dos seus inimisosco-
nio u vento do céu varre as nuvens da tormenta. Guer-
reiro feliz, cortejuo prudente, dominador sem rival,
o hadjeb via elevar-sc progressivamente oedificioi^as
suas prosperidades sobre as ruinas dos seus adversá-
rios.
Não tinha o titulo, mas tinlia o poder de um so-
berano. Não se assentava no throno, mas f.iiia mais
— dominava omonarcba. Cercava o por Ioda aparte
a pax e a ventura. No meio porém d'esta atmusphe»
ra de felicidailes ouviase oquequt-r que fosse, como
um rumor de tormenta no horisimte. . .
O alcaçar de Arahrat, fundação do kilifa morto,
erguia-se nointio da sombra c dosilencio con.oo vul-
to immenso de um gigante a descar.çar estendido.
Nenhum rumor de dentro vinha quebrar a cilada da
noite ; earuidosa habiliiçãu do soberano knrduvei pa-
recia ler adormecido com todos os seus moradores.
Não dormiam todos porém. Cliieni penetrasse nns
j.irdins do alcaçar, e percorresse em Ind.i asuaexten-
»ão aquelles vastos niassiçns ebosqiledos. ouviria sus-
pirar baixo ao pé d'uma fonte de mármore, oude se
despenhava do alio uma veia d'agua cristalina.
I Mas que suspirar aquelle 1 Q.uasi que se não podia
bem distinguir se era afoute que se lastimava, se era
i a voz humana que murmurava.
I Só quem se approximasse veria uma alva figura de
] mulher, immovel, de pé, encostada ao alto parapei-
' to da bacia de pedra, como a estatua pendida na ur-
! na d^um monumento.
Era esta poética figura que soluçava — era ellaque
! misturava os seus queixumes com o gemebundo tu-
; surrar da agua.
! Quem a levara alli áqoella hora a prantear dârei
; ou a gemer saudades?
I A noite corria escura e voluptuosa. As estrellas ver-
tiam para a terra aquella tremula e indecisa clarida-
1 de que augnienta os mvsterio» e faz abrir as tlores do
i coração. O ar estava embalsamado de mil perfume*
■ diversos. Os jasmins de Toledo, as rosas d' Africa, e
j os loureiros da Grécia entrançavam-se na terra, e
I misturavam no espaço as suas exhalações odoríferas :
; era uma hora de amor emvstifa solidão, como a de-
■ viam deinvocar osguerreiros kordoveies nos seus dias
de pai c descanço.
I A pouca distancia da fonte ia uma rua tapada de
'. murtas, que se ia embrenhar no interior dos jardins .
um lanço de muro dos pateos interiores vinha quasi
morrer-lhe ao pé.
Dois vultos de homem surgiram ao mesmo passo
juncto da dolorida solitária. Um, trajado do escuro,
silencioso, sombrio, acautelado, saía d"entre as mur-
tas espreitando attentamente as trevas, parando a ca-
da passo, e como querendo adivinhar o que não po-
dia sentir — o outro, adiantí:ndo-se confiadamente,
coberto d^um amplo manto alvacento, eddxando on-
dear as prejas amplas em roda da nobre e mages-
tosa figura. Tão altivo e ousado era o porte d't'«-
te, como suspeilosos e prudentes eram os meneios do
outro.
Chegados a breve espaço da fonie, pararam am-
I bos. O que se escondia, como er» i^atural. presentiu
; primeiro oque se nãooccultava, e retrahindo-sed:an-
te d"elle com dobradas precauções, oppressa a respi-
ração, accesos osolhos, immergiu-se de novo na» som-
bras do arvoredo,
U vulto do manto branco adiantava-se noen'anto.
Ou fosse que, esperando já alguém, a figura da fon-
te não estranhasse o rumor daquelles passos que >e
approximavam, ou fosse que, toda em) ebida na sua
meditação, os n?o sentisse, é certo i)ue não pareceu
dar pela vinda d'elle senão quando este lhe era ja
i chegado ao pé.
Voltou-ve então subitamente, como qu> m de«perta
d'um longo lethargo, e exclaiuBu em ar-s de repre-
hensiva :
— .1 Aens I."i0. . . •»
Evidenlemente a pessoa que viu não rr« a qiiees-
■ perava, que as palavras sumiram-»e-llie nu^ lábios, e»
tremendo toda como um vime, poude apenas balbu-
ciar :
— u Vós ! . . . «qci ' ■•
. — >i.\qui — tornou uma vei sonora eehei.i — esu
aqui. A formosa Gelobtra l)emsal>cque n'outra par-
le. . ."
— uN^outra parte seria uma fraqueta dar ouvido»
I ao hadjeb de Kordova : aqui é um crime ••
! — u Porque ? "
— " 1'orque em quanto o poilerwii Mohammed des-
, ce escondido a perseguir na* trevas quem não pi'>de
ser sua, desespera-se talvez lá em cima quem elIe nà»
deve esquecer. "
; — «• Lemhr.is-m'o demais. ••
I — ■•i.EIla é uma princeia, »enbor : eu lou ama e>-
crava.
o PANORAMA.
27
— uDize lima palavra: será ella a escrava, tu a i sobre elle, e se retrahe sem o amollecer, deixando o
priíieeia." como o achara.
— "li o que vós llie devcisf» | — .iGeloliira, Sabes que te amo I >• — prorompeu
— iiNão lhe devo iiad.i.» ^ Mohaimiied com a voz alterada.
— "E o que ella pôde?» I A virgem goda só respondeu com um grilo de ler-
— uNão pôde iiada.'i | ror e angustia, que resoou no âmbito immenso dos
— "Não é a mim que me pertence acoiuelharvos, jardins como um brado de agonia. Uma espécie de
senhor i mas se a voz de uma escra\a pôde alguma ' rugido abafado respondeu-lhe ao longe, podendo to-
cousa no vo%so coração, recordai-vos que Shobeia..." j inar-se por um ecbo.
— "Nacillava no seu throno: foi este braço que a | Geloliira conhecia a implacável resolução que si-
seguruu nV^Ue. Não era amor, era ambição o que a gniljcava aquella súbita confi^são do hadjeb.
movia. Apertei a coroa na cabeça de seu íillio, con- , JNão siipplicou mais. Sabia perfeitamente que seria
lervei-llie 05 seus títulos, e sacrificando os meusdias tudo inútil.
e as minhas noites tomei n'estas mãos robustas as re- ' — 'Levanta-te, escrava" — continuou Moharomed,
deas do império, que estava em riscos de se despe- i sufiucado pela violência do que lhe fervia lá dentro,
nhar. Não lhe devo nada. Que me importam as suas Geluhira poz-se em pé de repente como se algum
lagrimas? que me faz a sua cholera .' Não a temo tam- j occulto macliinismo a tivesse feito mover. O rosto dis-
pcaico.» I putava pallidez com os mármores da fonte. Os olhos
— "I£u sei, senhor, eu sei que o vosso poder éim- j dilatados, qtiasi resplandeciam nas sombras, a curva
nunso, sei que as vossas iras são terríveis. Mas de 1 magestosa da fronte parecia rodeada d\ima aureola
certo não haieis de emprega-las contra..." deslumbrante. A altiveza do seu porte rivalisava com
— "Contra quem.'" — interrompeu em tom rude o do guerreiro.
e desabrido o hadjeb. Mohammed contemplou-a de novo como assombra-
— "Contra uma pobre mulher" — clamou a don- do, e, sem poder já conter-se, e.\clamou imperioso com
lella caindo a seus pés n'uma violenta explosão de-la- a voz estrangulada pela anciedade :
grimas! — i.Segue-me."
O guerreiro kordovez filou os olhos ardentes n'a- ^ — "Morta sim ; viva não."
quelld figura angelical, dobrada na terra, chorosa e , Bradou a virgem de .Amaja, e o lampejar d'u
prostrada ante elle, e por um momento as linhas
d"iiquelle rosto severo e tostado pareceram distcnder-
se n'um impulso de compaixão.
E que realmente nada se podia ver mais doloroso
e gentil do que o gesto e a altitude e o todo deGa-
luhira, de5espera<la e supplicante.
(ieloliira reunia a graça á magestade •, sorria-lhe
nu rosto a innucencia e a candura ; resplandeeia-lhe
110 aspecto a energia e a nobreza. Nascida nas mon-
tanhas, tinha no porte o que quer que Ibsse de força
varonil, temperada pela graça e pelo melindre, que
tão o poder do seu sexo. (Jra se erguia altiva como o
roble <la8 serras, ora se curvava timidamenle como o
lirio do valle : os olhos ncgroi e rasgados, semi-vela-
dos por uma longa franja de sobrancelhas asselina-
dus e recurvas, eram demasiadamente brilhantes pa-
ra encarar a terra, só se abriam em todo o seu régio
esplendor para conlemplar o céu '.
Gclohlra, liiha do paií de Amava, fora fiMta pri-
sioneira ii'uina correria, e conduzida a Kordova com
outros sen» companheiros do llo^ll■rro. Em Kordova o
extraordinário da sua formosura fe-la para logo ac-
ceita de Shobeia, inài do moço prineipe líecham,
n quem fora duita como ehcrava. Viu-a o impetuo-
so ha<lji-b, e o mesmo fui ve-la que ficar para lo-
go u arder por ella na mais violenta chamma que
nunca devorou um coração. Longo tempo sutloeara
M<ili«iilined o incêndio que lá deiit 10 lhe lavrava : fora
" amor de Sliob<'ia que o levara áquellc ponto de po-
der, receava ollendcla, e altrahir a sua cholera. A
final, porém, seguro do seu dominio, e não |K)dend>i
já conter o» ímpetos furiosos que o assaltavam, r^^ol-
>eu pôr lerino aqui'lla hornnda ínei^rteza, e abrir-ae
com a linda chrislã.
Vigiaiidoii de nnile e liia \ ira-a de*< er nos jardins,
e seguira 11 ediílendu ilinículto>ainenle no peito «ipul-
la lunenle de (haininas (|Me ameaçava de trasbor-
dar.
Geloliira eoiilii'<'ia o hiidjeli, e era por isso que se
lhe lançara aos pi'» ii'nqui'ile iinpuKo rnlranho de ter-
ror e de pranto.
i.) iiioMinentu de piediidi- (jiie parectVn apoderar se
do guerreiro fui loiíio a luida ijiii' escunile por insluii-
les u aspiro cabeço d'um rothvdu, mas i|n«iie quibra
ferro como que lhe alluniíou as mãos de alabastro.
— "Ti:'ha previsto já este momento" — accrescen-
tou fclla, e alçou o punhal sobre o peito.
O guerreiro porém foi mais prompto. Com um
simples movimento d"aquelle braço robusto fez cair
na terra o instrumento homicida, e travando irresís-
tivelmenteda mão á virgem, clamou em toui depun-
gente ironia :
— « O teu braço, Gelohira, não está afleito a estes
brincos. "
— " Mas está o meu 1 "
Trovejou n'este momento ao ouvido do hadjeb uma
voz medonha, e um como raio furioso desceu scintil-
lando ao peito do guerreiro que vacíllou.
— «Também eu estava prevenido — respondeu el-
le espumando — não se abre assim o aruez de 5Io-
bammed. "
E arremeçando-se como o tigre ao imprudente que
o a>salla\a, coineçim entre ambos uma d aquellas lue-
las silenciosas e desesperadas, que não acabam senão
com a morte.
Os dois vultos, do hadjeb e do descouliecido, tra-
vados arca por arca, luctaram longo tempo, aperta-
dos os peitos, entrançados os braços como dois athle-
las 110 circo; depois vieram ambos a terra como dois
carvalhos st;culares, que tlesal>assem al)^açado^, leri-
dos ao mesmo tempo do machado do lenhador. . .
E continuaram a biela como duas Ber|>cntes o»qu«
se haviam acommellido como dois leões.
No fim d'algum tempo um dos vultos fieon pro»-
trado no chão, o outro ergueu-se dilacerado. Tinha
uma tempestade norontu: o manto branco pendía-lhu
espcdaçado. Maculnvamnu toiiolargas nódoas xerine-
lhas.
Kr.i o bailjib.
Estendeu os olhos em rod.i. A vir:;eiii gudnjutin a
poucos passos prostrada : suctumbjra ao hotror d'a-
quelle espectáculo
O guerreiro kordovez arrojouse parn ella rugindo
de prazer, ergueu-a do chão manchando lhe asbr.nn-
cas vestes no sangue que o cobria, e, Muiudo com el-
la, dcíMpparcccu nas profundas arcada» do alcaçar.
(( iiil(iiii«u).
26
O PANORAiMA.
FAISRE THEOSCnO D'ACnXEl!lA.
DiFFiriLMENTE reuiiirá Tortiisial tão i:;raiule numero
(li! lioniens diítinctns por saher profundo e variado,
fervorosos na constante applicarão atraliallios liltera-
rios, como no memorando reinado d'elrei D. José:
niuitosd^ellcs doutrinaram e enobreceram a pátria até
o começo do presente século; do empenho e diligen-
cias de quasi todos nasceu a restaurarão dos estudos,
ecom cila a reforma da Universidade : porseu exem-
plo e magistério deixaram bons discipidos e imitado-
res.— E geralmente celebrada a memoria do bispo
conde reformador, do matheniatico Monteiro da Ilo-
<:hr, do eruditíssimo prelado Fr. Manuel do Cenácu-
lo, do sábio padre Pereira de Figueiredo, e de ou-
tros ; porém lia muitos nomes ignorados ou esqueci-
dos, que são dignos de menção por notáveis eslurços,
<]ue tinliam por movei o amor da sciencia escorado
na vastidão de conhecimentos. As recordações de Ião
'•■losos cullores da iiitelli^cncia ou ficaram quasi sot-
tcrradas na» ruínas lios claustros em que lloreceram,
ou jazem escondidas com o pó de livros que ninguém |
sacode i e comtudo foi a esses homens devido o mo- i
demo adiantamento ; kl saiu o progresso das aulas par- ;
ticulares que criaram ou regeram, quando no ensino :
publico campeava poderosa e fátua a pliilosopbia ai- '
cunhada de aristotélica, a par da sua companheira,
não menos arguciosa, u theologia scotisla; então os
estudos inferiores nãoeran\ por melhor melliodo trac-
tados. O indicado (-enaculo di/. a esle proposilo ( iiLm.
Htd. (los pioijrisso c rcstabcltcimtnlo Jas Ictlros):
" duando os estudos geraes teem degeneração ou se
reduiem áinlluencia do mero costume, fica reservada |
aos particulares a excepção «pie lhes fai glorin pelas
suas tentativas e exemploi emailiantar oparlidodas \
sciencias. " l'or isso bem merecem da posteridade os '
talentos sãos que .inimosos, a despeito de quaesquer
considerações e in(liii'ncins pessoaesou daepocha, pro-
pagaram a verdadeira doutrina, desempeçando o ca-
minho para os vindouros; mormente porque ointen- 1
taram n'um tempo ei» (jue (conforme escreveu o Sr. .;
Trigoso) u não poucos preferiam á verdadeira honra,
que dá a sabedoria, as honras e contemplações cxtcf
nas, dependentes do vicioso systema litterario que ço-
sava exclusivamente do favor publico; a maior parle
não estimava o que não sabia, e o que não queria
aprender; e se algum tinha a constância deafTrontar
descobertamente os antigos prejulios, ficava exposto
ao escurneo dos que presumiam desabios, eera desa-
nioravelmente atacado no seu saber, na sua moral, e
até na sua crença. " Todos sabem quantas tempesta-
des se excitaram entre nós por occasião do Verdadei-
ro melhíido de estudar de Verney, e das primeirai
obras que publicou o padre António Pereira de Fi-
gueiredo.— Na conta d'esse5 varões desconhecidos de-
ve entrar o padre João Baptista, da Congresação do
Oratório, de quem diz o abbade Barbosa : ualcançou
a gloria singular de ser o primeiro que n^esta còrle
dictasse a philosophia moderna, que totalmente se
ignorava em Portugal": deixou impresso um curso
em latim em doisvulumes de fulio, valioso para oseu
tempo; e entre os seus discipulos sobresairam o bis-
po Cenáculo, e o padre Theodoro d" Almeida, o qual
(na Cart. o'J.'' das Phyúcn Malhem.) o nomeia in-
rão d eterna saudade, aquém devo esse pouco que ui
do co7ihccimento da natureza.
Com aslições de seu mestre approveitou tanto o pa-
dre Theodoro, que se habilitou para continua-la",
aperfeiçoadas com as numerosas experiências e desco-
brimentos que diariamente se faziam nos amplos do-
minios das sciencias phvsicas. K lai foi o enthusias-
mo de que se possuiu por semelhante estudo, que to-
da a sua vida o professou, não só nas aulas, mas em
lições particulares, dentro e fora do reino, consagran-
do-lhe o tempo que lhe sobrava dasoccupações do seu
estado, em que não foi menos assiduo, como o pro-
vam o continuado exercício do ministério evangélico,
e muitas obras ascéticas que deu á estampa. .\ phi-
losophia experimental servia-lhe de recreio; folgav.-v
ue trabalhar com as machinas na presença de alum-
nos curiosos, (femonstrando practicamente as verda-
des então conhecidas nas sciencias naluraes; e tanto
se deixou levar dVste louvável impulso que, a benc-
iicio dos que não possuíam princípios elementares,
compoz os seis primeiros tomos da Ricrea^uo Philo-
sophica, em dialogo, nos quaes procurou ser claro, e
adoptou um metliodo fácil para as intellii^encias vul-
gares. .D"aqui nasceu que esta obra, deficiente já no
seu tempo, foi pouco estimada dos entendidos n.i*ma-
teria, ceusurando-se-lhe algumas opiniões siiiguLires,
por exemplo, a substituição da thcoria newtoniaria
da luz; taxaramn"a tanibem, quanto a forma dialo-
gislica, de pouco peso nas objecções do pliihisopho pc-
ripatetico, que facilmente o peilagogode^trui.i, incu-
tindo a opinião própria. Comiuilo é inneçavel que
esle escriplo, com todos os seus dffeilos. concor-
reu muito para excitar á leitura de obr.is mais cra-
ves, e para dílloiuiir notavelmente o go^to peloestu-
do das sciencias naturaes, então concciítr. idas nas aca-
demias e fora do alcance dos curiosos. Foi um servi-
ço do padre Almeida, que é hoje reconhecido; por
esta razão o appresenlànios como facto principal da
sua biographia littcraria. Dos quatro volumes que
completam as Jttcieai^òcs nada diremos, senão quea
apologia da Ileti:;ião, assumpto dos dois últimos, foi
dictada por Loas intenções. Seguir.im-se-lhcí, como
supplemento, os três volumes pseiidonvmos das Cnr-
las l'hiisico-Mathcmaticas, dcstinad.is prinLJpalmente
a tornar populares as noções de geometria c de nie-
chanica.
Se considerarmos a vida do padre Theodoro, indc-
peiídenle do car.icter e funcções do sacerdócio, acha-
remos que em grande parte a consiigrou ásuaappli-
cação prcdilect.i, as sciencias naturaes. — Aos \inf«
e quatro de idade tinha sido nomeado substituto dv
o PANORAMA
29
uma cadeira de philo«ophia na sua Cooíçregação, e
ao» vinte e nove já era mestre ^ mais tarde o vemos
ensinar com applausos fura do reino a mesma disci-
plina.
GUiando os padres nerys estiveram ameaçados de
nma proscripção quasi igual á dos jesuilas, a ponto
de serem obrigados a celebrar osofficios divinos apor- ,
ta fechada, parece que mais especialmente se declara- j
ra contra alguns a má vontade do poderoso ministro j
d"elrei D. José:, e do numero d"'esses foi sem duvida i
Theodoro d"Aln)eida, que se refugiou era França no
m&í de setembro de 1768. De passagem contaremos
uma anecdota desse tempo. — Buscando o marquez
de Pombal motivos para proceder contra a Congre-
gação, mandou, entre outras averiguações domicilia-
rias nas casas d'ella, indagar o estado dii prisão pri-
vada, suppondo que deveria have-la como em todas
a» ordens religiosas. O ministro visitador pediu as
chaves do cárcere ao prelado superior, mas este res-
porideu-lhe : — a porta do cárcere é aquelia — apon-
tando para a da ruH. Sabido é que os congregados
penduravam a roupeta e largavam a clausura quando
llies aprazia, sem que o prtiadu ou qualquer lh'oim-
pcdisse.
O padre Theodoro deu lições publicas, durante o
seu desferro, primeiro em Jjiiyonua, começaudo-as
pela geometria e álgebra ; e depois em Auch, onde
fez um cursodegeometria, geographia e phvsica ; ad-
quirindo tanta reputação que foi convidado para re-
ger em Brest uma cadeira depbysica, offerecimento
<|ue recusou, bem como rejeitara prebendas ecclesias-
tieas e a reitoria de um coUegio de Bayonna, man-
tendo sempre esperanças de tornará pátria, que nem
perseguido lhe esquecí-ra. Toude, com elleito, voltar
a Lisboa em março de 1778: e tendo-se acabado a
reedificHção da Casa da invocação do Espirito Sancto
ao Chiado, em outubro de 1792, para ahi se passou
a foniar conta da cadeira de pliilo-ophia, que leccio-
nou até o fim de sua vida, que leve o termo feliz do
homem justo, sábio e laborioso, a 18 de abril de 1804,
contaniio pouco mais de oitenta e dois annos, por ha-
ver nascido, ii'esla capital, em 7 de janeiro de 17:22.
Theodoro d'Almeida adquiriu os primeiros graus
da instrucção na casa, já niencimiada, do Espirito
Saneio, e distingiiiuse |jor boa educação, porte sisu-
do, e applicação eschobiít ica, de maneira que muito
novo mereceu ser admillido á corporação religiosa a
que pertenciam seus mestres. Hucr fosse por vocação
(iropria, quer por alheio conselho, em todo o caso foi
acerto que o futuro justificou. E porque aquelia cor-
poríição eeulesiastica, compreliendida na geral extinc-
ç-ãodas ordens religiosas, pude também ser confundi-
da ciiiii c.las na imaíiiiacão ila mocidadeque se cslá
criando, não obstante os assigiial.iilos serviços que pres-
tou a educação lilleruria da mocidade lisbonense, prin-
cipaliiienle na lleal Casa das Necessidades, traslada-
remos a sua mais exacta di-fmlção nas seguintes pou-
cas palavra» <lo bispo de \'i/.i'U, um dos clássicos es-
criplore» dos nossos dias. — u A Congregação do Ora-
tório lio S. Eilippe Nery não é dVstas corporações
ou institutos, em quo o encarecimento e estreiteza
dos volos, o profundo da solidão, as austeridades da
disciplina sirvam a mover o enthusiasino ou allrahi-
lo. 10 uma gravi! associação de ecclisiaslieos, que tem
por único vinculo o desejo unanime deiílciínçar a per-
feição do seu islailo, que não iviliini di> mundo senão
os embaraços á virtude e os riscos de a peidrr, (|oe
nu modo regular ilu viila se liinilaiii á siiii|iiii'idade
e friigiiliiladi' dochrislão, obrigado a ser em seus cos-
tuincii doutrina e eMinploaos homens dostculo. Não
!■ tolhiilo a c.ul.i iim i|ue «•.pire no seu [).irliciiiar á
praclicu Ião ulta dos cuiiiclhus evangélicos, mas em
commum restringem-se aos propósitos e funcções do
sacerdócio e ao serviço da Igreja, de que nunca se
pôde desunir o do Estado, pelos meios da rele;ião »
da litteratnra. " {1>. Franc.Alex. Lobo — Elo^iode
D. José Mtitia de Mello.)
A ideia fundamental do instituto, qne abraçara,
correspondeu a longa carreira de estudo constante e
de acções religiosas do padre Theodoro; ainda que a
maledicência quizesse increpa 1j de nimiamente bea-
to ou de fingido, reluzem osaSectos de crença e pie-
dade sinceras nos seus escriotos espiriíunes, que são
muitos, como as MtãHnrOes sobre os ailribvios divi-
no», as cartas, osopusculos; entre estes doi> intitula-
dos 1.1 Ávida, e amorle alegre dophilosopjiochrisliip. ■:•
D^isso mesmo dão tesi i m un ho contem porá neo os desin-
teressados e dignos de credito. O padre Theodoro foi
aí^siduo no púlpito até muito além dossetenla de ida-
de, e publicou uma collecção de sermões, e o Pastor
livangelico, deixando maniiscriptos dois \olumes de
Pracíicas. Dos seus trabalhos scientificossão também
documentos as Iiistituir^ões PAi/s/cos, publicadas em
latim em 178o, e o seu Flanctaiio que, datando de
179G, é por aiiclorid.ide competente reputado supe-
rior ao do celebre Desaguliers.
Cuidadoso da educação que promovia por conselhos
oraes e por obras dadas á estampa, como a Gtogra-
pliia breve para uso das educandas do recolhimento
da Fisitaçuo, igualmente se desvelava pela cultura
moral e religiosa do entendimento e do coração. Con-
tribuiu efficazmente para a fundação do seminário
dos orphãos, instituído pdo padre António Luiz de
Carvalho, e para a do convento da ^"isitação, para
onde vieram de Anecy as cinco primeiras fundado-
ras, que foram recebidas com grande solemn idade a 26
de janeiro de 178t. D'esta casa foi elle odirecicrao
mesmo tempo espiritual e litterurio.
Este homem, dotado de relevante merecimento, da-
do toda a vida ás sciencias, também inienlou colher
llòres nos campos amenos da litteralura, abalaiiçaii-
do-se a tentativas poéticas ; e não se limitou a peque-
nas composições, cominetteu a emprera de extensos
poemas. Foi porém infeliz, porque se algum dote lhe
laltava era por certo o dom da inspiração dos vales,
o nem sequer possuia a arte da simples metrificação :
não nos deixam mentirosos a Lisbua i/tsíi i/íi/u, e os
ensaios do Veliz iitdtj)endtntf. primeiro em rinia, de-
pors em verso solto. N'estaobra de>aiiiparou-o a final
a inania poética i chegou a conclui-l.i em prosa, eas-
sim conseguiu que por alguém fos^e lida : écomtudo
uma ficção moral, onde no maravilhoso figuram as
paixões personalisadas ; ó prolixa, fria eseiciínle, do
que proveio chamarem-lhe os facetos — o felix imper-
tinente.— Apesar d'isso, a novella do padre Theodo-
ro obteve oito edições na traducção he>panl>ola, o que
pode servir de allegação aos que ainda tiverem u pa-
ciência de a ler. — A concepção douuclor era nobre
e digna dos seus virtuosos senliinenlos, mas petcoii
nas formas e na geral conlexlura il.iobr.i, por(|uellie
faltava o gosto apurado, ijiiedeu u iminorlalidade nu
auctor do Telemaco.
l'oréiu, se os louros do Parnaso não vecejavnm pa-
ra coroa do no^so pliilo>opho, merecido galardão lli«
coul)e reci'beiulo-<) eiii seu grem.o com distincção al-
gumas celebres corporações se ienliticas, priíicipalineii-
le a Academia Ki'al das Sciencias de Lisboa, e a So-
ciedade lleal de Loiídrei. S.dúos cslrangeiros o hon
raram com sua correspundencia e elogios: enire oi
patrícios ainda hoje são populares seu nomee memoria .
O oovr.uNO absoluto em Portugal, diiin certo nobre,
sustiMilase riii três II : Ignorniicia, Incoiifidcncia, <•
ln'lui>ição. ,
30
o PAIS ORAM A
GoMb5 hlllilltK IIK A.NDIIAUE.
(Conlinuado de pag. 21 .)
I''.iiA "pral odcsconsolo dos portugiiezpspm 18(7, por
causa da triíiiifereiícia da corte, para o Rio de Janei-
ro. rt'onde níio voltavam despachados os requerimen-
tos sem grande accrescinio de despeza e irreparável
perda de tempo:, além de que, o fausto da corte, ab-
sorvendo a maior parte dos rendimentos de l'ortuj;al,
iiiuilo diminuídos pelos estragos d'nnia guerra diu-
turna, converlcra em outros tantos bandos de men-
liigós as classes, assas numerosas, dos que serviam o
estado. A dos militares deplorava, alóra os inales
communs a todos, a falta dos accessos, a que lhe fe-
chava a porta crescido numero de oITiriaes inglezes,
conservados nas fileiras do exercito depois da campa-
nha peninsular; linalmente o general Cabanas, vin-
do incógnito a Lisboa com a mira em promover uma
nnoluçiio de accordo com os liberaes de Ilespanha,
liíera lembrar a tiecessidade d'uma mudança politi-
ca, encaminhada a substituir a regência do reino por
um governo mais popular, e a privar o marechal ge-
neral lord Beresford, marquez de Campo Maior, do
inando absoluto que tinha nas tropas. Quizeramap-
proveilar este ensejo alguns homens faltos de repre-
sentaijão e dinheiro, e em nome d'um Conselho lie-
ijeiíerador, formado na sua imagina<;ão, começaram
a fazer proselvtos militares com preferencia, e a es-
palhar pasquins e proclamações, impressas por alguns
dos sócios contra o rei, e recheiadas de pretextos frí-
volos, como eram o ter vendido l'ortugal ora á In-
glaterra ora á Hespanha. Sobre tão fracos alicerces
se propuzeram elles a erguer um propusnaculo d'on-
de guerreassem a realeza de D. João Vi, aoqual ac-
ciisavam de ingrato e queriam derribar do throno,
exacerbados talvez pelo apoio que dava a lord líeres-
ford, a qiiem votavam ódio figadal. l'ara accreditar
este conselho frtbuli>so, que expedia ordens nos seus
reinos e aos seus crercilos, careciam de citar um no-
me respeitável, capaz de vencer a repugnância dos
convocados mais prudentes ou mais timoratos, fazen-
dollus conceber aesjirrança do bom e\itod'ui>ia em-
preza tão perigosa. Esle nome foi o de G(unes Frei-
re, o (]ual vinuis, pela carta inserta no artigo ante-
cedente, resolvido a viver retirado dos negócios, e
pareci' não se haver apartado d'esta salutar resolu-
ção, pois fugia até de frequentar os lugares públicos.
O leitor imparcial que meditar um pouco sobre it
doutrina e linguagem das proclamações, sobre a ne-
nhuma influencia dos conspiradores, solire asceremo-
nias pueris, interrogatórios e juramentos que prece
diam as admissões, ficará miio convencido de que
(iomes Kreire não podia implicar-se na conspiração,
<lo nu)d(> que se figurou, sem ter perdido ojiiizo. Na
da mais próprio para matar o euthusiasnio do adep-
to do que ver-se, ao tirarem-lhe a venda, n'\im con-
venticulo de três pessoai insi;;niflcantes, sentadas no
canto diurna easa ao pé d'unia mesa, sobre a qual
ardia uma vella com a sua bandeirola de papel par-
do para lhos asstunbrar as caras. l'or fatalidade, a
esta conjuração, que seria ephemera se logo se pro-
curasse alalh.i-la, deu-se Iodas as largas para que to-
masse corpo, despertasse horror, o arrastasse af> ca-
dafalso muita viclima, que ficara bem eastigad.i com
penas incomparavelmente mais leves. As niorlesdes-
necessarias d'aqucllcs mala\enturadiis confrangem os
corações, mas a de Cioines Kreire, não convencido do
crime de lesa niageslade, foi, cm rigor, mais um as-
sassínio politico.
Por indiscrição cVurn dos princlpaes conjurado»
■se descobriu u consnir»ção muito a tempo de u aba-
far. António Cabral Calheiroí, enconlrando-se n'um
botequim com um ajudante d'ordens docommandan-
te da o." brigada d'infanteria cm Trazos-Moutes, en-
trou a ralhar do governo em voz alta, e convidou o
ajudante, que o contradisse, a acompanha-lo a casa
para lhe If-r uma proclamação. No fim da leitura
pergunfou-lhe <|ue tal lhe parecia. "É quanto basti,
respondeu o ajudante, para o enforcarem e a fodoí
nós." O facto foi contado por este a outro ajudante
do governador do Além Tejo, e chegou aos ouvidos
de Beresford, que estava alerta com a vinda de Ca-
banas, e deu ordem positiva por escripfo, em nome
do rei, a estes dois militares, e a um bacharel da
mesma terra de Cabral, para lhe irem relatando o
andamento da conspiração, em que fez entrar o ba-
charel e o official que primeiro a descobriu no bole-
qnini. (Jbedeceram ambos, e posto que depois dead-
1 mittidos muitas vezes se lhes marcasse dia para se-
rem appresentados a Gomes Freire, nunca o viram
Por isso o ajudante, envolvido por mandado do ma-
rechal general no rol dos conjurados, não hesitou em
declarar, n'uma carta publicada em Londres cmn
anctorisação sua, i.que não tinha motivo al^um par.i
presumir que elle fosse um dos conspiradores, senão
o que tinha ouvido dizer a Cabral." Na verdade, as
vãs promessas ile que elle lhe appareceria, e o extra-
vagante aviso que por ultimo lhe fizeram para ir ás
pedreiras de Alcântara com phosphoro e duas vellai
de cera, para iruma caverna receber certos papeis
da mão do tenente general, deviam te-lo capacitado
de que ou abusavam da sua paciência, ou não o jul-
gavam fiel, ou era impossível a apparição de Gomes
Kreire. Excluída a idéa da zombaria e da descon-
fiança, por isso que lhe haviam revelado o mais se-
creto dos seus planos, estava provada a impossibili-
dade.
Lord Beresford remelteu em 22 de maiodel8íT
aos governadores do reino as provas do que se tra-
mava, e instou pela prisão dos implicados para evi-
tar que o negocio transpirasse.
Na tarde de "Jt para lio recebeu Gomes Freire car-
tas anonymas participando lhe que á meia noiíe ha-
via de ser preso, e pela bocca do padre Manuel d«
Mesquita, I). abliade do mosteiro de Belém, ouviu
igual aviso, sem que procuras«e evadir-sp. Aos con-
selhos prudentes do amigo oppot protestos de inno-
ccncia, e para melhor mostrar que de nada se recea-
va, tendo passado parte da tarde em casa do conde
de Kio Maior, onde disse o que eslava para lhe
acontecer, não obstante isso, recolheu-se essa noit»
muito mais cedo.
Alta noite cercam-lhe a casa de soldados da pnli-
eia, arrombani-llie a porta dama, e snccessivanienie
todas as outras interiores até entrarem no ^abiiiHie
onde estavi-., e o tenente coronel d"aquelle corpo, fa-
zendo apontar as espingarda» ao peito do tenente <;e-
neral, como te por ventura se tractasse da captur,t
d'algiim famigerado facinoroso, hradou-lhe por de-
Iraz dos soldados: uVossa excellencia está preso I-<
Klle, sem dar sighal de su-to, e sem resistir, expro-
bou lhe a villania da acção, e eslriínhou «er pre-o por
official de patente inferior, contra as usanças milil.i-
res. Adiantou-se então o .ijudintp do iniendenlc ge-
ral da policia, e appresenl.mdo lhe a ordem o gene-
ral se deu á prisãti. Depois de lhe apprthcnderem
todos os papeis, n»etteram-n*o n'iiina sege de aluguel
com o ajudanle ilo intendente, e, escoltado por uma
força de cavallrtria. eondnrirr.m-n'o para a torre d»
S. «Inltão unde chegou as seis horas da manhã.
Duurava o sol .is grimpas da altiva Lisbo.i ; om»l-
fadado preso olln^u s.iuiloso par.i a cidade, onde lhe
ficava quanto tinha de mais charo ; carrcram-lhc ra-
o PANORAMA.
31
pidoí pela mente os dias da passada gloria ; ao re-
manso da vida, ao suave tracto dos amigo» disse-llies
o adeus derradeiro, e transpnz o limiar du faial torre,
i)iie devia ser a sua ultima habitarão n'este muudo.
Dos outros accusados de tonspirareni mui poucos
escaparam. Em quanto se prendiam, conservou-se a
tropa em armas, com espingardas carregadas, mor-
rões a ccesos, e todo o mais apparato bellico que é do
estylo quando o inimigo está á \isla. Leresfurd vie-
ra estabelecer o seu quartel general em Alcântara,
no aquarlelamcnto de cavallaria n.° 1, e d''alli des-
tacara patrulhas pelas praias.
Apenas Gomes Freire entrou na torre foi lançado
ii'uni calabouço. Aquelles comniodos indispensáveis,
que não se negam aos maiores criminoso», não os te-
ve elje. Dormiu sobre as lageashumidas da masmor-
ra.. .
Nomeou o governo sir Archibald Campbell para
cornniandante da torre. Condoído do preso, a quem
não davam de comer, sustentou-o á sua custa, até
<jue, no íim de seis dias, a poder de soliicilações,
chegou ordem para se dar ao tenente general Gomes
í""reire a mesquinha pensão alimentaria de doze vin-
téns diários, no casu dVlle não ter diiilieiro ou outro
modo de se sustentar. Gomes Friire preferiu escrever
a algunm de sua familia, afim de obter dinheiro.
Uma cama que então llie concederam de pouco alli-
vio lhe servia, por estar sempre repassada de humi-
dade.
O marechal Campbi'!! não era um carcereiro des-
huuiano, era um homem de eharidade e militar iionra-
do : u preso inspirou-lhe ao principio dó, depois inte-
resse, e por ultimoamisade -, deu-líie pois Iodas as pro-
vas d'uni coração beinfaz^jo, compaliveiscom o rigor
das ordens superiores. 1'assadas algumas semanas co-
briu-sc a cara do preso de pústulas que lhe causavam
dores agudíssimas e tresvarios. A este tempo faziaiii-
«1*1 lie interrogatório».
O couimandante da torre requereu um inedico ^
foi lá o physico mor do exercito e certificou não ser
do perigo, fe bem que muito dolorosa, esta doença,
procedida de se não ler barbeado o preso havia mui-
to teinpo. Sir Archibald Campbell mandou comprar
naxalhas de seguranç/i, e pediu lÍLi'nça á intendência
geral da policia para se fazer a barba ao desgraçado
("omes J''reire, — fui-lhe negada-, instou mandando
njiliresentar as navalhas, — nova rejiulsa ", pediu ter
lendiílo, nào lh'o eoncedirain. 10 quasi a historiada
amputação da perna gangrenada de ftlaroncelli, de-
nicir.iila ali; vir ordem de Vieima.
1 inh.i (ioines Freire peiliilo licença para eiivi.irn
"Irci um riqiierimenlo |iila mão (hlord lleresford,o
qual rispoiídeu a (.'ampliell, em data de :2t d(.' ju-
nho, que o tenente general Gomes Freire podia cuin-
niunicar-lhe o (|ue desejava, escrevendo na piesença
dl) cominiinilaute da torre, e siMido os escriptos le\a-
dos pelo marechal general á presença do» goveriiado-
re» do reino. F iiccrescentava : "Fu não preciso dar-
vos outras instrucçries senão que vijaes e olheis bem
<|ue vo» pareie o estado da sua cabeça e do sen jui-
r.o, porfpie pela informação que me deu o tuiientu co-
ronel lladdock, quusi parece ijue esfá algumas vezes
ftjra de si.n
Gomes Freire remclteu-lhe um protesto om cuja
appresenlaeão tio soberano punha a ultima esperiinea,
e indagando o que era fidlocrelle, deilarou lord lie-
'resford a Campbidl, em carta de 7 ib; »i'lembro, ipie
transmlttira tudo ao presidente do govenni, sem dei-
xar copias do p.ipel dirigido ao lei, nem tampouco
que era eiidereçailo .-lo duque de Sussex . Ueinala-
.1.
va o marei hal general n sua caria, ilizi'udo : uSou
niuilo cxplioito n'esle ponto, porque a pobre crealu-
ra (poor fello-w) parece julgar que o conhecimento lic
deslino que tiveram estes papeis lhe pôde ser útil pa-
ra a sua defeza, para a qual nada que dependesse Oe
mim haveria certamente de ser omniittido ou recusa-
do. O <|ue os papeis diziam é, e será talvez para sem-
pre, um mvsterio -, mas é notório que Gomes Freire
respondeu a Campbell quando soube o deslino del-
les ; líSendo assim, vossa excellencia veiá que eu se-
rei enforcado como um cão nesta fortaleza.»
O processo tenebroso da conspiração fi>i progredin-
do; nem faltou quem culpasse Gomes Freire para
salvar-se á sombra do seu nome illustre (1); fecha-
ram-se os olhos aos depoimentos que o favoreciam,
esquadrinhuu-se e deu-se vulto a quanto o carregava,
trocaram-se datas, e conclusos os autos, sem que Go-
mes Freire, o único que permaneceu no segredo, fos-
se acariado com osaccusadores, subiram da intendên-
cia para o governo, que os remetteu as tribunal do
juizo da inconfidência, onde com incrível brevidada
foi proferida a sentença de lo de outubro de 1817,
cundemiiando-o a morte com mais onze viclimas, e a
outras quatro em degredo. Dos depoimentos de Go-
mes Freire, ein que a própria sentença nota muitas
contradições, efleitos do tresvario e da difficuldade
com que se explicava em portuguez, afiproveitaram-
se os dictos iendentes a aggravar a culpa. p;ra se lhe
impor as penas de garrote na torça, de llie cortarem
a cabeça, de ser queimada com o corpo, de lançarem
as cinzas ao venlo. A'cerca do protesto que ocondem-
nadi> tanto desejava submetter ao rei, nenhuma re-
flexão se fez, ; ou se desencamiidi.ira. ou não o(|uize-
ram ver: á coarctada de que elle prelendia, caso hou-
vesse uma súbita explosão, dirigi-la em ordem a con-
servar o reino ao soberano, evitar a anarchia, e sal-
var a pátria, nenhuma refutação convincente quize-
ram traçar ii'uma sentença que deu oepilhelo de sa-
oilcgas a certas expressões eseriptas contra lord 15e-
resford, e fez menção, como d'uii) crime, daanalvse
do regulamento do exercito
Dias antes de sentenceados os réus, linha ido para
a torre um desembargador a titulo de assistir ás per-
guntas, e regular as communicaeões. Moirer arcabu-
zado era o mais veliemente desejo de Gomes Freire :
fez a barba, \estiu-se e calçou-se, esperançado em
(jue, á semelhança do Ney, sem pe»tanejir, daria a
voz de fogo, e cairia crivado d(! baila», (-toando po-
rem soube <|ue, sobre embargos, llii; fòi a (omniotada
a pena na de morrer enforcado; qtianilo o dispirani
e lhe enfiaram a fatal alva, deu lhe nui desmaio. 'l'or-
nado rmsi, ouviu ler a sciileuça com animo tranquil-
lo , (piiz escrever aos seu» parentes e auii^ns, econio
liro não consentissem, lecidheu su ao silencio paru
morrer em paz com o muudo. Grato ás allenções de
Campbell, manilou IIk; rogar pelo len<'iite coronel
llaildock (|ue viej-se receber oadeus da despedida, e
assim que lladdock \ollou com iiscortezes ilesenlpiis
do coinmaiubinle, senlou-.e na cama em que estava
<leÍlado, estendeu lhe a mão, appertou lh'a, e escu-
touas com mostras de sati^l.içào.
A intiiniilade <|ue parecia reinar enire os dois fet
crer que elles se haviam feito signaes maçunieo«.
A^H cinco horus du manhã de 18de oulubroja eslava
u Iriq)!! em armas, e tudo dis|)oslo para a execução;
porém mal saiu o (>ad<'cenle d.i poria do enlabouço,
deitou a fugir o préstito dos ministros e ofliciaes «1»
(I) Kui siiii mãi a coiiiless;i ile SclialKoclie, llllio do coli-
de Wencesláii de .Selialuciclie, e da ccmmIcss;! ilo iiiesnio ti-
tulo, lia casa dos ciuides di^ Alllien ; aiiduis il;is mais anti-
gas o liliislres laiiidlas da liolieiniii. Nasceu no «mui ilu
n;i7, o não em )7,'iU. |ie|iiiis ile im|uissii o 1." arliiíoai-
caiieaiiius estes eschireciíiieiitos por iiilei veiiçiio ilii Sr. IV.
h. V. de LciicaMrc, a ipiciii iiniiiu os ni^rudeceniuii.
32
O PAINOKAMA
justiça, pretextando perigarem as suas vidas em ra-
■/fio de estar Hatidock de intelligencia coiu o réu, e
liaver manifestado altamente a sua indignarão ao ver
■ |ue o obrigavam a caminhar descalço para o patíbu-
lo • tormento ()iie Gomes Freire reputou o mais cruel
de quantos tinha soílrido.
A' vista dVsle pavor, real ou fingido, dis'e Gomes
Freire, sorrindo amargamente : nPois tem mcdode
mim no e'>tado em que me acho !"
Em baldadas diligencias para ser rendido Iladdock
do commando da guarda se consumiu n.ais de uma
hora, prolongando-se o martyrio ao infeliz Gomes
Freire. Desenganados, conduziram-no ao patíbulo fo-
ra da fortaleza de S. Julião, e requereram, sem fruc-
1o,' ao coronel de infanteria 19 que mandasse fazer
meia volta á direita, para que Gomes Freire não fi-
zesse algum signal que revoltasse os soldados.
Dado o da execução, subiu Gomes Freire com desem-
baraço e serenidade os degraus do patíbulo.... Dos
olhos de Iladdock rebentavam as lagrimas: osacrífl
cio eslava consnmmado. A^snove horas da manhã ti-
nha voado para Deus a alma de um dos maiores gc-
neraes portnguezes (1).
lléu ter-lhe-ia approveitado o perdão do soberano,
iiinoceiited(.fende-lo bia a sua justiça, se tivesíem que-
rido consultar a vontade d'elrei D. João VI, sempre
inclinado á clemência.
No mesmo dia eram executadas no Campo de Sanc-
ta Auna mais onze victímas, e as fogueiras, muito
tempo depois, aiuda enchiam de terror Oí consterna-
dos habitantes de Lisboa. Passados quasi três aniios
resoavam em todo o Portugal os vivas ao svstema
constitucional. Ignorando esta mudança voltava do
IJrasil o marquez de Campo Maior, revestido de po-
deres amplí^sinlos i mas o governo constitucional não
o deixou desembarcar, e o vento contrario deteve-o
no Tejo até 18 de outubro de 1820 ! Um anno de-
pois, no mesmo dia, á roda d'um cenotaphío levan-
tado na igreja de S. Domingos, assistia «juanto havia
de bom em Lisboa ás exéquias das victimas de 1817,
cuja memoria veio a ser rehabilitada por sentença de
20 de maio de 18:>-2.
Habitantes das Landes de Borpeus.
(Continuado de pag. 22.)
Of, cAMi'oi»KZES das dunas, por efTeito de antigas
preoccupações, ainda entre os estrangeiros tem fama
de pedirem cocn votos cobiçosos o naufrágio dos na-
vios que pass.im á vista da costa das Landes, chama-
da c<wn tanta raíão cos/a i/f /trio. Comtuiio ninguém
In-je é mais humano e compassivo do que elles ^ e nma
inlinidade de acções generosas altestam a sua cora-
gem e desinteresse. (• naufragante é alli socc<irrido
na suíi afilícção c traclado com mil cuídailnsi os ca-
dáveres das victimas das tormentas, por desgraça so-
bejamente numerosos, recebem religiosamente sepul-
tura; os salvados são respeitados.
Km quanto os homens guardam gado. ou colhem
resina, ou fazem carros, as mulheres das Landes em-
pregam-se no Irabalhi) caseiro, no amanho das ter-
ras, e em preparar carvão. A' parte, verdadeiramen-
te injusta c superior ás suas forças, do lavor cjuetem
« seu cargo, accre^ce a creação dos sirgos ou bichos
da seda, e das abelhas-, tarefas em que estas trist<s
(1^ Jul;;anio-lo auctor d'um folheto com oiilulode .V*-
moire raiioiiriit Ue In rtlraile de lorrnct coinbi'ire ispugno-
it tt porlugiiiae da HovsíiIí:; ParC . . . t . . cUicier au
uervice Je l'ortu3al.
creaturas se occupam com tamanha actividade qn>
antes de tempo se fazem velhas. Todas, saKo poucas
excepções, nascem bonitas, e o são até os vinte ân-
uos ; passado esle terrao realmente fatal, a olhos vis-
tos se definham.
Não acontece outro tanto ás mulheres das povoa-
ções grandes; sobre tudo as da pequena cidade de
Dax gozam da geral opinião de formosas e a<'radd-
veis na conversação e no mudo.
No districto de Born ha um costume tradicional,
quanto a ajustes de casamentos, escrupulosamente ob-
servado, em virtude doqual ao amante rejeitado cha-
mam namurwlo dasnozes: referi-lo-hemos porsin"u-
lar. — (Auando um paisano quer pedir uma raparij.i.
vai acompaidiado de dois amigos á noite bater á por-
ta da sua bella ; prevenidos da visita, os donos da ca-
sa franqueam-lhe a entrada, e cada um tomalo^ar a
mesa em que está posta acéa. Come-se bastante, 1m'-
be-se-lbe melhor, palra-se muito, mas nem palavrn
se diz sobre o objecto da visita. .Assim corre anoiti-.
e, ao alvorecer, a donzella levanta-se e vai buscar .i
sobremesa composta de dítierentes pratos; se n'uni
d'elles traz nozes, o pertendente deixa o logar, cor-
teja a toda a pressa, e abala com os seus dois ami-
gos, testimunhas dVsta despedida svmbolica e for-
mal. Poucas horas depois é publicc o caso, que im-
põe a desastrada alcunha de namorado das tiozes ao
noivo repudiado, até que s<^ lhe offereça outra sobre-
mesa mais felizmente combinada.
Arranjam-se os casamentos mais á cavalheira, e
quasi á moda primitiva, n'aquella parte das Landes
que pertence audcpariamciiiu doGironda. — Km dia
festivo depois da missa, os parochianos apartam-se a
um lado e as mulheres a outro, formando circulo de-
fronte da igreja ; no meio está um pastor trepado
n'uma pedra ad hoc, atraz do qual Ijca, repartida
em bandos, a nuicidade de um e outro sexo. .\o ca-
bo de dois ou três minutos u'espera e recolhimeui".
o pastor levanta ambos os braços, e entoa em alli'S
berros uma cantiga bem acceita, mas de tal incobe-
rencia euphonica que é dífficil imagina-la. O canlo
selvagem é signal de nma dança brutesca, pulando
cada homem to-camente diante do seu par, niuil»
atlento em imilar-lhe os movimentos, brevemente
se declaram na gente moça xelleidade, matrjnio-
níaes : um agarra a mão da sua querida a|>erlaiido-
lh'a por algumas veie»; se a estas provocações poui-ii
equivocas ella corresponde com um apertão de mão
significativo, o noivo a empurra para fora do circu-
lo; e ambos que, até então, conservavam os olho<
baixos, ja se contemplam, ditem mutuamente algu-
mas palavras seguidas de quatro ou cinco cach»çõ<-,
e torrem a procurar seus p.tis p;ira lhes declarar qun
estão njusiados. Tracla-se dos arranjos sem demor.i,
e é chamado o cura para marcar o dia dos desposo-
rios a que hão de a»si>tir os moradores da patochia.
.\ noiva apparecera com vestido de sergnilha lalh.i-
do sem graça, e um toucado feito de muitos lenço»,
ou uma coifa de grandes franjas còr dep.ipouU, tr.i-
zendo por cima como bonito enfeite, «m ch.ipeiriio
guarnecido de tilas pretas com um ramo de gnopha-
lio ou alecrim das arcas: em cada braçtv ha de tra-
zer uma c>'sliuha para recolher o» presentes que, por
uso imperioso, se devem oflerecer ao no»o par, pur.i
quem, no fiin de contas, o facho do 1m meneu lanoa
uma chiridade baça , porque a inÚ'ienci« que o.sn)or
tem no paisano da» L.indes é, quando muito, analo-
ja á que lenUm o castor e outros quadrúpedes am-
phibios. ; LVniinua.)
Este mundu é tomeJ ia pira quem »è. etrigedij pa-
ra ouem jentr. Cks»K Iami.
1^
o PANORA3IA.
33
RESIDÊNCIA IMPEBIAZ. EIS S. CHUISTOVAM.
í) PALÁCIO do S. Clirislovani, liahitu.il resiileiícia de
S. M. o iinpeiadur do Jirasil, antes do ser iiocupado
pelo Kr. 1). João Vf e real faniilia, era uma casa
particular e fazenda de recreio, a menos de le^ua da
('ajpital, sol>re nina enuneiicia, em situarão <le tal mo-
do amena o pictiiresca, ipií- se diainava a (juinla da
lioa-Visla ; noirie solu-jamente jnstiljeado pelo aspec-
to do bairro do i'"nj^enho-\'ellio e paiz adjacente, cu-
ja descriptj-ão pode ler-se no vuliiuie en> qnr; licou sus-
pensa a pul]|ica<;Sio do 1'jinorairia, o de 18ií, a pas;.
liUtJ. Saiu então unia vista do edifjcio, mas Ião aca-
nhada, » por isso ineunio pouco favorecida da impres-
lãu, que ohriv^ou o distíncto collaborudor, (|Uo escre-
veu a 8<!ri<! de artigos eitcel|(?ntes e notiiiosos sobre
o llio de Janeiro, a dizer n^aquelle lof;ar : — nDan-
du urna pef|uena estampa, sentimos (|ui.> não si''{aella
(copia de outra do Sr. >Stuiz) em verdade- a mais |iro-
pria para dar uma idea iniMios desfavorável e exacla
dVsta habitueão ical.'i Afrora (|ue obtivemos Irau-
luinptu muito mais desenvolvido e el<';;anli:, nãoln-
sitámos em o publicar, a imilaeão ilo que si; praeti-
cira na colleceão precedente', também a resp(dlo da
capitai brasilicH, repelindo visla», comiudoassaz nie-
Iboradas. Deixando porém a parle deseripliva, ja co-
nbecida, passaremos a bistoriar um sijccesso brllico
menos sabiilo.
Adverso foi o lado ãs nrnias francesas Iodas as ve-
ies <)ne intentaram eoiKpjislur e conservar o li lo de
Janeiro. Mm lliliti, mandados pelos esfor(,ailo cavallei-
ro de V illegaignon, foram rej)ellidi>s pela valentia e
piiticia do governador Rlendo de Sá, com vicloria»
VoL. I. — Oini/uito ;j, 1SÍ().
continuas até o anno de 1Ò57, não Uies valendoaal-
lianea que travaram com os bárbaros naluraesda ter-'
ra. Canta estes triumplios o padre Durão, no canto
S." (1) do seu Caramurií.
Corr(!iido o anno de 1710 bavia-te preparado cm
IJrest com grande segretlo uma esquadra decinco na-
vios de guerra e uma balandra, com loOO liomeni
de deseudiarque de tropas escolhidas, e numero de
voluntários, debaixo da segurani;a que dera 3Ir. du
Clerc, cabo da empreza, de que, com a partida da
frota do Brasil, u gente do Rio de Janeiro ia para
Minas, e seria fácil gaidiar a cidade, li»vando bom-
bas e os mais instrumenlosd'expugiiação ; lend)rou-se
do bom successo que tivera outro cabo francei em
Carthagena daslndias. ("hegou a «s(|iiadra as costas
do llio de Janeiro a li iPagosto ile 1710, e ainda na-
vegava quatorze léguas ao norte já tinha aviso dV-l-
la o governador l''rancisco de iMoracs, (|uc vigilante
re|)artiu mililarinenli; os postos eaugmentoua guar-
nição das lortalcza». A' barra seavistar.iin os seis na-
vios com bandeira ingleza : os tiros da fortaleza d<r
Saneia Cruz os obrigaram u nninter-se ao largo, e lo-
go iKi dia IH se ti/eram tio vela pnr.i o sul.Ogover-
nador mandou guarnecer as praias ipiu se denomina-
vam iX.i l'escaria e da i'fdra, avisando a Santos u a
Ilha (irando para (pie eslivessein prevenidos: juncto
a esta ultima ancoraram os contrários a -T, o alu
permaneceram ale 31 csaqucaram algumas fiuend.is,
(1) Vhiena edlvSo ele((aiiin, daila pelo Sr, Vurnh!i««'ii,
dub doispucmai hruiiiicus rcuiwUui, dii p;ii{. JOJoiu eliauie.
34
O PANORAMA.
que mui poucos moradores defenderam em quanto ti-
veram munições, mortos assim mesmo seis francezes
e feridos muitos. Mais algumas avarias fizeram pela
costa, até que, a 10 de setembro, dois navio* com
uma sumaca da liahia, que tinham apresado, haven-
do sondado as aguas da praia da Lagoa, intentaram
o desemiiarque a duas léguas da cidade;, havendo se
reunido, porém, a gente destinada á defensão, foram
rechaçados sé pelas ordenanças ; dois dettacainenlos
enviados a reforça-las acharam já os inimigos retira-
dos em virtude da opposição dos defensores e da as-
pereza do sitio. No seguinte dia chegaram á barra de
Guaraliba, que acharam desguarnecida, pela confian-
ça que se punha na altura dos cerros e impetuosida-
de dos mares ^ com efleilo nVsse districlo levaram a
cabo o desembarque. Precavido o governador, escien-
te de que não passava de mil e duzentos homens a
força que se dirigia á cidade, com o fito de acolher
de improviso, conhecedor do intractavel dos cami-
nhos contentou-se em mandar pequenas partidas,
com praclicos do terreno, a embaraçar-lhes o progres-
so, e a matar-lhes a gente que podessem no> passos
estreitos; ordenando junctamente ao tenente general
engenheiro, José \ieira, que com um corpo mais
grosso de tropa, reunindo as guarnições que o inimi-
go deixava nas costas, lhe picasse a retaguarda, elhe
cortasse a retirada. Continuaram os francezes a mar-
cha, vencendo as difúculdades do transito, até che-
garem ao engenho dos padres da Companhia, uma
légua da cidade. Com esta certeza o governador, dei-
xando nos quartéis a gente absolutamente precisa,
passou com o resto no dia 17 ao campo de Nossa Se-
nhora do Rosário, onde formou em batalha, e defen-
dendo a parte que os inimigos procuravam para ac-
commetter a cidade, plantou artilheria nos locaes con-
venientes, entrincheirou ot mais fracos, desfazendo tu-
do o que podia ser\ir aos atacantes para cobrir-se.
Em a noite de 18 acamparam os francezes na roça
dos padres da Companhia •, e antes que de bordo po-
dessera receber reforço e as embarciíçõcs simultanea-
mente se atrevessem com as fortalezas, o jovcrnader
assentou de tomar a olfensiva investindo-õs com um
corpo de mil homens ás ordens de seu irmão, ocoro-
nel Gregório de Castro de .Moraes-, porém Mr. du
Clerc achou mais prudente retirar-se, procurando ten-
tar a aggressão por outro lado, e fazendo nma diver-
são aos defensores. l'resumido este designio no cam-
po portuguez, um forte destacamento de 300 homens,
do regimento do coronel Crispim da Cunha, passou
a occupar o caminho do outeiro de Nossa Senhora do
Destetro, para entrar na cidade pelo sitio de Nossa
Senhora da Ajuda ; e como os inimigos talvez ousas-
sem atacar a fortaleza da l'raia-Vernielha, marchou
a disputar-ihe o passo a força do commando do coro-
nel Joãode l'aivaSouto-Maior. Oprinieiro encontro
foi reidiido de parle a parle, continuando por largo
tempo o logo, augmentado em nosso favor pelos tiros
de urlilheria miuda do forte deS. Sebastião, sobran:
ceiro ao logar do combate, e doqual era governador
José Correia de Castro, que o fora da ilha deS. Tho-
me, e que n'esta occasiãu se houve com animo e ca-
pacidade.
Os invasores, observando quão defcndidoseslavam j
todos .Tquelles pontos, e experimentando já notável
estrago, conheceram o arrojo da sua cmpreza, econ-
ceberam a estranha resolução de entrarem a cidade,
no presupposlo, aoque se julgou depois, decapitniar
dentro d"alguma igreja par.i salvarem .-is vidas. Con-
seguiram seu intento, apesar da resistência que lhe
oppoz o tenente general \icira, que se achava com
pouca gente do lado por onde elles romperam : for-
maram-seemfim juncto ao convento do Carmo, eiiuo
alcançando arrombar-lhe as portas, furam buscar a
casa dos governadores, ja com perda de muita gente
pelas riiase pela retaguarda. Defendeu-lbesa entradn,
obstinadamente e com muitas mortes, uma compa-
nhia de estudantes que na cidade se organisára.
Assim que chegou á noticia do sovernador este ac-
to desesperado, fiz marchar o coronel Gregório de
Castro com o seu regimento, e por outro lado um
troço ás ordens do sargento mor iVlartim Correia de
Sá. A pproximando-se estes corpos da rua direita, onde
ainda os estudantes detinham os inimizo;, atacaram
estes tao vigorosamente que os forçaram a retirar-se.
desamparando o corpo da guarda, em direitura a
praia, onde, apesar de porfiosa lucta, s» apuderaram
de um grande trapiche e de sei-) peças de urtilbería
que, para proteger a babia. ahi estavam cuUocadas ;
n esta refrega, pelejando valorosamente, morreu Ce
duas bailas o coronel Gregório de Castro de Moraes,
e foi ferido gravemente seu filho mais velho Francis-
co Xa»ier.
Lembrou ao governador lançar fo;o ao trapiche,
mas susteve o a consideração de que poderia alear-se
nas casas visiiihas, e porque alii se havia recolhido
quantidade de creanç.is e mulheres; ordenou então
que jogasse a artilheria da ilha das Cobras e de ou-
tras baterias, tendo já tomado com algumas peças as
boccas das ruas. O commandante da companhia de
cavallaria, António Dutra da Silva, morreu lastimo-
samente, á frente de uma carga, n"este conflicto.
JMr. Du Clerc, achando-se instantemente apertado,
quiz capitular : o governador concedeu só as vidas,
se no mesmo momento se rendessem. .Assim o fizeram ;
mas não tiveram igual fortuna os francezes do ultimo
troço, que havia marchado pordiOerentes ruas, por-
que quasi todos foram mortos: acharam-se os cadá-
veres de trezentos, e depois appareceram muitos pe-
los niattos e rios. Ficaram seiscentos prisioneiros,
mais de metade feridos; entre elles officiaes de dis-
tincção e alguns titulares. Dos nossos morreram cin-
coenla, e houve feridos oilenta. Passando de mil os
francezes que desembarcaram não escapou mais que
■im negro fugitivo que lhes havia servido de guia, o
qual levou a nova de sua má fortuna aos uaviusque
eslavain na Ilha Grande.
A vinte e um de setembro chegaram á barra dois
navios e a balandra, que tinham caiihuneado a po-
voação da ilha com pouco eflVito, recebendo sú algum
damnu osconventos do Carmo eSancto António. Go-
vernava e defendia a villa u capitão de infaiiteria
João Gonçalves \ ieira; e apesar de ser aberta e não
termais guarnição que asnrdenanças, despresou sem-
pre as propostas para renJer-se, rechaçando os inimi-
gos quando inientaram saltar em terra. As embar-
cações que primeiro se approximaram da barra des-
pediram inutilmente seis bombas, que bem se pode
dizer serviram de festejar a nossa victoria. Mr. Du
Clerc lhes fez saber, com perm»s«ão do governador,
o estado em que se achava. I^go o participaram pa-
ra os outros navios, que ainda de um ilhcu visinho
procuravam oflender a villa da Ilha Grande com ti-
ros e bombas. Reunida a esquadra lançou em terra
o fato e Irem dos prisioneiros, restituiu os vinte e
oito portugtieies que havia tomado na sumaca da
Rabia, e assai escarmentada deu a vela para a Mar-
tinica, possessão franceza no archipelago das Anti-
lhas.
Esta noticia Irouxe-a a Lisboa um patacho de avi-
so. No dia 14 de fevereiroSS. Magestades c Alteias
assistiram ao Te Dcum na capella real ; e foi com
salvas e luminárias festejado este felii tuccesso.
o PA>ORAMA.
35
o Hadjeb dk Kordova.
(972 a 992)
(ConiinuaUode pag. 26.)
II
O Moslaiabe.
As vicTORiAS de Moliamed promettjam-lhe um lon-
go dcscanço. Os succeisus dos jardins de Azbarat eram
desconhecidos de todos. Siioleia ostentava extremos
como sempre, e o liadjeh mais anibi<;ão do que nun-
ca. Vjhinlio do tlirono, e súbdito unicamente no no-
me, o sen [jodor não conhfcia limites. Curvavanise
na sua presença as duas raças que disputavam o do-
mínio das Hespanbasi tremiam d'elle vencedores e
vencidos. — tí-uem ousaria pois erguer-se contra o
irresistivel dominador de Kordova e do kalilado, se-
nhor em Africa e na l'eninsula — quem? . . .
Descia a tar<ie. As nuvens da tormenta acciímula-
vani-se rápidas no borisonte afogueado e carregado
de vapores. O sol tinha-se engolpliado havia pouco n'u-
ina lagoa sanguinea. Ao cair das primeiras sombras
um vento impetuoso curvou até o chão os sovereiros
e azinheiras : estremeceu atlonita a selva inteira, e
gemeram tristemente os seus echos mais profundos.
N'uma clareira do bosque sobresaía um grupo si-
lencioso d^homens: inclinavam uns o rosto para a
terra em atlitude de conimiseração ; estendiam ou-
tros os olhos ao largo n'um gesto instinctivo de pro-
YOca<;ão e rancor. Cubria-os uma espécie de albornoz
escuro, ondeando amplamente ao som do vento, e
abrigava-lhes a calieça o l(in5,o capuz dos sarracenos-
Ao primeiro aspecto seria dilíicultoso conhecer se per-
tenciam aos antigos senhores do Andaluz, se aos no-
vos conquistadores — tão equivoco era o seu traje. Se
bem se atlenlasse, porém, dir-se-hia logo que os vul-
tos reunidos na clareira sú podiam ser d'aquelles ha-
bitantes do pai/ invadido, que, tendo guardadoo cul-
to da bua religião, so haviam ccjmtudo sujeitado ao
governo dos invasores.
Era uma ra<;a inixta, digna de curiosidade e de
interesse. Ciirislãos e godos pehi tradição, o contacto
iuccssaniu com os inusulmanos dera-llies uni pouco
da ph^sionomia particular di>s últimos. Tinham her-
dado dos avós a» virtudes guerreiras, a tenacidade e
a firmeza: tinham adquirido no trado com osintru-
los os seus impetuo^ns moviíiieiilos e os seus briosci-
viiisado». (,'ullivavam no lar da familia o legado pre-
cioso lios antepassados : no C()mniercio da eivilisação
apossavam-se d%'lles insensivclnientí! as idéas d'uma
nação esplendida mente ca valle ira. Trabalhados si mui -
laneainenie por estas dua» acções encontradas, a al-
ma iPesles homens fiira ganhando pouco a pouco uma
viiorgia e uma tempera <|U<: os devia necessariamen-
te lurnar dislinclos dos outros eom quem viviam, A
eivilisnção africana era pura elles mais elTuait, por-
que cr» mais iinmediala : asmemorian da pátria de-
viam de ser lauto mais sagrailas (piantu se conserva-
ram nu familia com um deposito venerando. <>« re-
bellados do Asiura tínliani começado uma era nova
pura ni, surginilo armados do firro e da prevenção
contra o inimigo: estes não-, ciuiheciani do passado
o necessário para gnanlarein intactas as Iradiçúes de
•cu» pais. Tinham-se civilisadu sem deixar de ser
(,'odos.
l'al eru esta raç:i, conbeeida nas Hespanhas pelo
nome d(í M(jslarnbe. A sujeição havia a policio sem
a ter abastardado. As suas paixões eram porliniaes
e profunilas eiiino as inspirações do sangue que ha-
viam lieribido, ardentes e dcvorudurai cuniu ut «tuia-
ccD quu liaviam cunlruhidu.
D'estes eram pois os homens reunidos na clareira
da selva, abatidos nns, furiosos os outros.
Que motivo, porém, dobrava para o chão aquel-
les olhos e aquellas froutes? quem os reunira alli, a
taes horas, em despeito das ameaças da natureza .'
K o que nós saberemos se nos approximarmos du
grupo, e o examinarmos cuidadosamente.
Õs vultos que tentamos descrever formavam um
circulo em roda do outro estendido no chão húmido.
Envolvia-o um manto igual ao dos circumstantes. O
rosto, pallido e cavado, contrastava singularmente
eom o fulgor temeroso dos olhos, que pareciam dar-
dejar chammas. ISarbas e cabellos negro?, hirsutos e
desaiinliados, davamlhe uma apparencia selvática e
tremenda. Por bai.xo do manto entreaberto appare-
ciam-lhe sobre o peito, nos vestidos, algumas largas
nódoas de sangue fresco e vermelho.
— "As guardas do hadjeb perseguem-nos, irmãos,
— dizia elle em voz sumida mas firme — deixai-me
aqui morrer, e buscai salvar-vos."
— 11 Morreremos lodos! " — exclamaram os circum-
stantes brandindo as armas.
— «A vingança de Mohamed nãodescança — con-
tinuou o ferido, depois de breve pausa. — Não são
porém estas perseguições que me aggravam o meu
mal . . . são ...»
Não poude continuar. Unia lembrança, terrivel
sem duvida, veio sullbcar-lhe as palavras nos lábios.
Apertou convulso a espada que lhe descançava ao la-
do, vibraram-lhe dois raios nos olhos inllammados,
e, alçando meio corpo n^um esforço sobrenatural, co-
mo que pareceu procurar em torno de si algum ob-
jecto horroroso.
Assustava o seu aspecto.
N'isto um dos <]uo o rodeavam, destacando-se do
circulo, veio ajoelhar a seu lado. Saía-lhe de dentro
do escuro capuz nina barba branca de neve: era a
imagem dos antigos patriarchas.
— " Ilermengardo, meu lilho — prorompeu elle —
anima-te, vive, descança : has de ser vingado. Di-
zem-t"o aqui teus irmãos : digo-t"o eu : has de ser
vingado. "
Um frémito sonoro d armas percorreu o circulo.
Nenhuma resposta podia ser mais eloquentemente
affirmativa.
O ferido era o vulto dos jardins de Ailiaraf, que
havia Itictado e succumbido aos golpes do hadjeb. O
ancião era sen pai,- os circumstantes seus companhei-
ros d'armas.
Ilermengardo, mal ferido, tinha conseguido sair
des jardins n'aquella noite falai. Luctára dois meies
entre a morte e a vida. A íinal triuniphára a natu-
reza e a idade. Convalescente ainda, saíra erguendo
por Ioda a parte, entro seus irmãos, o grito de guer-
ra contra o hadjeb. (ieloliira era sua noiva ^ e o in-
feliz Ilermengardo nunca mais pudera ter alcançado
noticias da virgem de Amaja. Minava o surdamen-
te um ciúme implacável, as»altavHm-n'o ii cada pas-
so eslraiihos terrores, e a alicia horrenda de vingan-
ça, que parecia devora-lo, provinha toda de seus'ze-
los furiu^os. \agava em torno do aleaçar do kalifn
como um lobo em torno do reilil ; • dos que o viam
espreitar avsiiii, cuiii Iniiianha lenacidade e Ião [m)U-
co fruclo, a(|UclleB muro», diziam uns »ai dVlIel ••
diziam outros oai do» seus inimigos ! "
O hadjeb porém, po»lo julgar-»e deM-inlmrnçado
d'um rival, não descançava. SoubiTa que entre us
moslarabes, alguns maiui'bos, eoininandados por um
micião venerando e por um cabo tirrivel, trama-
vam contra o seu puder, e paru logo projectúru dis-
persa-los.
Kru d'e»ta (lerjeguição qiio fugia Honnenjjardo e
30
o PAN0RA3IA.
»s conjurados. Tiiihani-»e-Ibe aberto as feridas rec^n- : outro divertimento senão folgsr na taberna ', comlu-
tes o [.refundas; rra por isso que «lies ••.peravani alli i do os que habilam as margens do Adour aduptam
a cada passo a liora da salvarão uu do combate no ' algumas >e7.Fs uutiu recreio, não oíjotanle expressa
meio d'aquella teKa. | probibi^ão. Fazem corridas de louros, principalmen-
Ao lenilirar-se de que ia talvez acabar miserável- j le no festejo dos oragos das fregueiias. Maseslas chã-
mente, na incerteza e êem vingança, o infeliz man- ; niadas corridas não lêem semelbai.ça com as tardei
icbo sentiu atravetsar-llie o coração uma dor aguda [de touros na península, li uma brincadeira ridícula,
«í penetrante. I uma farça burlesca; porque a funcção faz-se na pra-
— "Meu pai — exclamou elle voltando-se para o | ça ou rocio da aidéa, onde nem soinbra detourosap-
.incião, e tomando lhe custosamente a mão — se eu I parece. .\ pleVie espectadora accomnioda-se pelas ja-
inorrer aqui aos golpes dos nossos inimigos, jurai-me nellas e telhados, i-m cima de carros ou de quatro
que buscareis salvar-vos
— Eu, ficando tu!;: — respondeu attonito o an-
cião.
— 11 Jurai-m'o" — accrescentou Ilermeneaido.
— " 1 ara que . v — redarguiu seu pai.
— II Para ... — acudiu o mancebo — para saberdes
o que é feito de Gelohira . . . e para me vingardes
«egundo a minha offen^a.n
— "A tua oITensa. Hermengardo — exclamou uma
voz, que parecia vir do mais tapado do arvoredo —
só pôde vingar-se d"um modo."
O mostarabe tremeu todo da cabega até os pés:
voltou rapidamente o rosto e viu . . .
Viu surgir d'entre as arvores um vulto de mulher
palanques mal armados; sáe a terreiro uma pobre
vacca mansa, que apesar d'Í5so ^em segura por uma
corda lançada ao pescoço ; capeam-na com lenços, e
tanto atiçam o anim.il que a íiiial arremette com al-
guns, c pára tudo em meia diuia de buléus não pe-
rigosos c iralgumas calças rasgadas, em meio dus apu-
pos dos circumstantes; os rapazes fazem sortes a um
iiotilho tonto; e assim termina a famosa corrida de
iouros.
Em todo este retrato do habitante das Landes, na-
da temoi dicto dos que moram nas cidades; porque
não teem vislumbre de analogia com o ente meio
selvagem que descrevemos segundo as suas principaea
variedades. O morador das cidades n'esta província
trajando de branco. Espantava o seu olhar. As faces 1 lé jornaes, frequenta botequins e theatros, questiona
estavam pallidas como o vestido, os cabellos oudea- ^'n politica, tracta negocio», em summa écomoqoal-
vam-lhe soltos, os pés, chagados pelas urzes do cami- quer outro dos oitenta e seis departamentos : entre
Jiho, escorriam sangue. >ião andava, era uma som- seus antepassados contam-se generaes distinctos por
bra a voar por entre os mysterios da selva. Arfava- valor e pericia, oradores d"ima5Ínação viva e origi-
nal, e alguns talentos consumraados nas artes e nas
Jhe o seio semi-nú em vagas tempestuosas: dosolhos
corriamlhe dois rios.
Atravessou^ gemendo, o espaço da dareira, e tan-
to que chegou ao lado domancebo. caindo de joelhos
defronte do ancião, alçou o punhal que trazia na
mão, e, appresentando-o ao mancebo, exclamou ;
— "Hermengardo, vinga a tua oflensa ! »
Era a virgem de Ainaya !
^ (Contínua.)
Haeitastks das Lakdes de BORDÍII-.
(Contiouado de pag. 32.)
O^ HABITASTE das Landes é bondoso e obsequiador,
não obstante a insensibilidade que deve ncceisaria-
menle resultar da sua idiosvncrasia ; ao mesmo tem-
po e dócil, e respeitador das aucíoridades, pouco in-
clinado ao roubo e á fraude; é pcrém constante que
instantaneamente se arrebata e coinniette assassinios
em certos acce«os de irritabilidade nervosa. Apezar
d isso. é religioso, e nada ha tão afiectuoso como os
lamentos e saudades que consagram á memoria dos
mortos. — Se os filhos teem que deplorar a morte de
sua mãi. durante todo o anno immediafo ao falleci-
mento os utensílios de cosinha então tapados, e alou
sciencias ; nomes que elle cila com justU vaidade, po-
rém nomeando-os, nunca lhes esquecerá aconselharão
viajante uma romaria á aldòa chamada Pouy, que
fica a uma légua de Dax. Ahi ainda está de pé um
carvalho mui velho, excavado pelo tempo e em par-
tes quebrado, de colossaes dimensões, e cercado de
unia estacada pintada de verde. Esta arvore vene-
randa é chamada n'aquelles silios a arvore que cu-
ra as maguas e dòrcs\ é um monumento consagrado
.1 memoria de um h<imilde pastor de Pouy, que a
vontade de Deus converteu em beroe de brandura e
charidade. e que fui o homem mais reverenciado em
França. O paisano do Maransin, qi;ando passa por
diante da aivoíe que cuia as aúrcjajoelha em silen-
cio, e não ha um só curioso viajante qne deixe de
saudar com respeito o antigo carvalho de S. ^ icente
de Paulo.
Institcição da Ordem da Rosa.
Quantas riquezas próprias alardca o vasto e fertilissi-
mo império doBratil, quantos mimus derrama na sna
nobre capital o coinmercio da Ásia e da Europa, es-
tavam de ba muito prevenidos para uma festa ma-
gnifica. O fundador do império esperava ancioso ver
<,a na ordem inversa d"í;qnella em que a tiiiba a de- I apontar a barra as embarcações que lhe trariam uma
luneta ; ed este modo a precisão da mais insijnitkan- I esposa na llõr dos annos, c ric.-» de virtudes e de b«l-
fe mobília faz lembrar o respeito devido á fallecida
e o luclo se renova a cada momento no coração d'a
quelles a quem amara. —Se morre qualquer habitan-
leia, e a filha querida em quem abdicara um throno,
e por quem depois veio expor a vida nos combates.
A esposa esperada era a neta dos reis da Baviera,
te das Landes, toda agente do logar assiste ao enter- a filha do principc Eugénio lieauharnais. a Sr.'"* D.
ro, e algumas mulheres com trajo lucluoso vão rcci- | Amélia Augusta Eugenia N.ipoleão. duqueta de Lea-
tar orações s<Jbre a sepultura. Frequentemente seen- | chtenberg, recebida por procuração comS. M. Irape-
contrani ranchos assim vestidos c de joelhov nas igre- 1 ''»' ° S""- D. Pedro I, em .Munich, aos Íd'açostode
jas do Maransin ; e o crepe fúnebre que occulta o IS-Í). .Ajustara este consorcio o marquei de Uarhace-
na, o qual. conforme as instrucções doimperadorseu
amo, o solemnisou de um modo mui grato a Deus
com actos de beneficência, comprando por quarenta
mil cruzados um capital^ de cujos rendimentos saem
todos os annos os dotes de quatro meninas pobres;
O povo roiudo das Landes quasi que não conhece 1 duas escolhidas pela casa de Leuchtenbcrg, eduasli-
semblante d"esfas pessoas, as tochas accesas a par d"el
las, sobre tudo a attitude melancholica e o profundo
recolhimento dVspirito, exaltam a imaginação, e
prestam a essas reuniões certo caracter magestoso e
solemne.
o PANORA3IA.
37
radas á sorte. N'esta occasião, por ordem de S. M.a
Imperatriz, se di^trihuirani de unia só vez em esmo-
las sessenta mil cruzados.
S. M. Imperial partiu a 4d'as;osto para Manlieim,
com o tilulo de dui^cieza d« Sancta Cruz, na compa-
nhia de seu irmão o príncipe Augusto. Em Porths-
mouth se reuniu com a rainha a Sr.*^ D. Maria II.
Aos 10 d'outubro de 1S:29 chegaram ao Kio de Ja-
Jieiro as fragatas brasileiras Imperatriz c Isahel. O
Imperador saiu imnifdiatamente n^im barco de va-
por ao encontro da lillia e da esposa, e áquelles olhos
radiantes, que liam nu intimo dos corações, assomaram
duas lagrimas — lagrimas de prazer ineílavel.
Rebocada por um barco de vapor entrou no porto
a fragata Imperatriz ao som das salvas de cento e um
tirot dos fortes e dos navios, adornados de bandeiras
multicores^ lançou ferro e respondeu ás salvas. Á noi-
te começaram as festas com a illuminação da cidade
e das euibarcações. No dia seguinte ao meio dia de-
sembarcou S. M. a Imperatriz no arsenal, e por bai-
xo de soberbos arcos de triumpho, saudada pelos vi-
vas do povo, que mal cobria o estrondo dos canhões.
se dirigiu á capella do paço, onde recebeu a benção
nupcial e assistiu a um Te Deiin\, cuja musica fòra
composta pelo próprio Imperador.
Teve logar no dia iininediato a entrada solemne
na capital, e a apresentação de todas os grandes e
fidalgos do império. S. M.a Imperatriz viu lançar
ao mar uma corveta baptisada com o seu augusto
nome, e o Imperador, afim de perpetuar a memoria
d'uma alliança tão fausta, instituiu a Ordem da Ro-
sa para prenliar serviços militares e civis.
A insígnia da ordem é uma estrella branca de seis
pontas com orlas c maçanetas de oiro, engrinaldada
de rosas, soljrepujaiidoa a coroa imperial do Brasil.
Tem no centro a cifra 1*. A. (l'edro e Amélia)
em letlras de oiro, cercada de um largo circulo, tam-
bém de oiro, com a iiiscripção: Amok k Fidelida-
j)E. No reverso a data da fundação em campo de oi-
ro, sobre um circulo azul com a legenda : Í'iíduo e
Amki.ia.
O imperador do Rrasil é o grão mestre doesta or-
dem, o príncipe imperial é grão cruz e dignatario, e
todos os princi()es de sangue são grão cruzes.
'IVm oito grão cruzes illeclivos e oito honorários,
ilezeseisi grandes dignalaiios, trinta dignalarios, enu-
mero illiniitado de commendadures, olliciaesucaval-
leiros,
A grã cruz .inda inhcn-nte o Iractanieiiti) de ex-
cellencia, assim <:omo ao dignatario, e ;'i commenila
I) de senhoria. K necessário ler a patente de coronel
l)ar« siT olfuial, c a du capitão para ser cavalleiro.
Os grão cruzes tcazcni a insígnia a tiracollo da di-
reita para a es(|u('rila : os di'^natarios em aspa, e os
commendadcui'», &e. sobre o peito isiiuerdo. I'cla
dillerenra na largura da iilii, <|iio r cAr de rosa orla-
da de branco, lanibeni se dislinguein os graus. Os
oito grão cruzes ellcctivos, nos dia» de; grande gala,
usam de um eollar de oiro com rosas csmultuilus.
A chapa que roprcsciitu u iJ." liguru preiíde-se no
lado esquerdo da cbsucu. O» gruo cruzo» o grandes
dignatarios Irazem-n^a com a coroa :, os digiiatarios.
commendadores e ofíiciaes sem ella.
Jogos k Festas antigas.
Pracjmcntu de tima historia vtnhiãeira .
Nos ciiuoNicÕEs velhos e pergaminhos, enterrados
nas bibliotliecas de Ilespanlia o nas nossas também,
está a parte mais curiosa <la historia da idade media
na l'eiiinsMla. Ouem (juizcr saber mais doqiicdatas
e nomes não tem remédio senão resignar-se a sole-
trar em latim bárbaro a ingénua narração dos es-
criptores monásticos, que não eram nem Ião rústicos
nem tão iiriílos como decretou o orgulho ila passud.i,
o ainda da presenti! epoeha.
S(! a poesia pudesse incarnar iriim cadáver, tinli.i
alimento ili' mais nos in-folios, honrados com o am-
bicioso tilulo do líiilorids (\imi<li:tat. Mas a poesia
é a vida, c por isso seria sacrilégio e delírio tent.ir
abraça-la com a morte i e, aos iillios da sci6ncia e d.i
philosophia, é nuirlo do passado tudo o que se n.u'
anima pela ;dina, l'é, c crença dos homens ed. is iiis
tíluíções, dos costumes e das ideas qne reinar.uu,
it sua hora, ou modíiicadas ou decaídas, passaram l>
thruiiu á urna ciucruriíi diij civilistieões t\ndas.
38
O PANORAMA.
Colher 'O espirito do passado, para o infundir no*
•(iiadros das grande» epuclias hibtoricas, é o seiçredo
dut me'ilres que fundaram u nova religião lideraria,
cliarnada romaulica impropriamenle •, porqiii; não é
outra cousa mais do que a nossa rcnascciíça, a' ver-
dadeira resiirrtiijão da arte cliristã, fillia das tradi-
;,'õe» nacionaes, que embalaram nos l)ra<;os a socieda-
de moderna.
Nós. por mais que <iif;am, fomos, e havemos ain-
da continuar a ter muito tempo, porttiyuizcscaslc-
Ihanos pelu nossa origem cúmmum. K não deve doer
ao orgulho pátrio. K o mesmo sangue, éa mesma al-
ma em dois irmãos gémeos, mal-havidos, e apartados
cedo um do outro pelo ciúme da respectiva naciona-
lidade^ mas no fim de tudo irmãos, e bons irmãos.
Physicamente não é possível reunirtm-se debaixo do
mesmo tecto — ambos querem ser morgados — porém
intellectualmenle devem viver em uma só commu-
nbão, e orar em uma só igreja. A parte melhor — a
mais feliz — da historia da família leram-na pelos
mesmos pergaminhos, nascidos da mei^ma mãi, ador-
mecidos no mesmo berço, e criados com o leite de
crcnjas e costumes semelhantes. Depois d"is{o pôde
lá deixar de haver allianja ainda que não haja^ustio.''
O quadro que se segue é a prova do que se diz n'es-
te artigo. A epocha corresponde em 1'ortugal ao rei-
nado de Aftonso Henriques. Os usos e costumes, ovi-
ver e crer, que o lapIs do chronista retrata com tan-
ta fidelidade era o mesmo em ambos os reinos. A phy-
slonomia social apparecla tão confundida, tão seme-
lhante nos dois povos, como incertas, vagas, e mal
distlnctas as fronteiras que os separavam.
O sábio Berganza, nos documentos de que illustrou
as suas famosas "Antiguidades de Ilespanlia » , In-
cluiu a clironica do imperador AíTonso Vil, conser-
vada no archivo da cathedral de Toledo. Foi o livro
d"ondc se tirou este painel de costumes de tão precio-
sa raridade ,■ a descripção do chronista é dVsses cla-
rões históricos, que alumiam até o fundo o modo
de ser de um período inteiro quanto ás relações so-
ciaes. O leitor ajuizará por si.
II
Guerra e casamento lia seie sectilos tia Hespanha.
A vida de AiTonso VII foi uma continuada lucta
com os árabes helhcosos das fronteiras, ou com os prín-
cipes chrlstãos seus visinhos — a guerra nacional c re-
ligiosa por um lado — a guerra civil pelo outro fize-
ram da sua corte um verdadeiro acampamento mili-
tar. O nionarcha castelhano, assim como onossoAf-
fonso Ilenriques, é das figuras históricas que, alon-
gando os olhos ao passado, nos parece vèr ainda de
pé sobre o scpulchro tom a acha d'armas no braço
esquerdo.
lira um coração de leão-, uma vontade indomável
— um esforço ct>go, tenaz, e Incessante. De um re-
contro de mouros voará refrega com Portugal , d'a-
hi tender a bandeira real, e despedir o galope dos
esquadrões frementes sobre o Aragão i> a Catalunha ;
— dormir no leito da terra dura: descançar d'uma
batalha nos braços d'outra batalha; nunca despir as
armas, nunca fechar osolhos — eis em resumo a exis-
tência dos soberanos, que no começo disputaram a
palmos o solo da i'enlnsula á conquista estrangeira,
c á ambição natural.
Depois lie uma vida d'eslas — quando ocoraçãofs-
fria, c 08 br.iços se cruzam no peito para se não abri-
rem mais, o somnu da morte deve ser bem piofundo
e tranquillo '.
Vejamos uin episodio do gigante ducllu. cm que
se consumiu inteira a trabalhosa carreira de Aflba-
so VII.
u Acabadas outras !;uerras, o rei mandou diíer um
dia aos condes de Castella : — enfreai os cavallos ;
amanhã partimos a pedir contas ao rei Garcia na sua
boa cidade de Pamplona. n
li Dias depois os almogavares voavam na testados
esquadrões de Castella, talando oscampo», tomando
os gados, e accendendo a fogueira do arraial com at
cepas das vinhas. "
" Por toda a Castella soava o pregão da guerra —
cm Leão e nasAstiirias o grito dos montanhezes suf-
locava oclamor dosexercitos, quedesfilavam nos val-
les, de lança erguida e bandeiras soltas. Todo o poder
do reino abalava para Pamplona. >'
u K o rei Garcia no seu alcaçar sentiu apertar-se-
I lhe o coração no peito, porque bem via que de Naja-
ra até as suas portas u inimigo não tinha mais do
que dizer aos castellos : entregal-vos 1 — ás cidades :
abri ! "
li Ia em meio o mez de maio. De uma para outra
hora D. AQonso podia chegar, ecomo haviam dere-
slslir ? Nas planícies de Pamplona ouvia se o choro
do povo, e descobria ao longe o fogo das cearas alheias
como descia rápida das alturas acholera do castelha-
no. )>
II E o circulo estreltava-se, estreltava-se I . . quasi
que já íuflocava o calor do incêndio na bella cidade. "
"iintão D. Garcia não teve animo dever e«i ruí-
nas os paços de seus pais e a terra do seu nascimen-
to. Não chorava, mas no coração era uma dôr de
cortar a alma. Fechou-se n'um aposento com us do
seu conselho: — Vem ahl, disse elle, os de Castella
tão numerosos como as areias do mar. A pat com
Portugal foi para nos destruir com certeza. Se pele-
jamos, a terra perdeu-se por cerco ou por batalha,
Glue hei de eu fazer.'"
" GLuem lh"o diria ? fallavam todos, e ninguém acer-
tava. "
II N 'este meio tempo sobreveio o conde Affonsode
Toloza. \ estia esclavina de romeiro, e no chapén
trazia asconchas de Sanctiago. .Asbarbas, queeram
brancas de neve, davam lhe pela cintura. O reieot
cavalleiros sentiram grande alegria, porque não tinha
Castella melhor conselho que o seu, nem braço mais
rijo na peleja. "
»E tiveram ratão de se alegrar. O conde foi escu-
tado— e dias depois estava concluída a pai entre o
rei de Castella e o rei Garcia. »
"O rei de Castella tinha uma filha —•» mais que-
rida do seu amor. O conde .^flbnsofallou-lhe assim :
— D. Garcia é moço e solteiro: dai-lhe, senhor, a
infante para cavar — eo inimigo far >e-ha lealami^.
Assim sedecidíu; e agora vereis as festas que te apre-
goaram em toda a Ilespanha. •>
II O noivado fez-se em Leão no mei de julho. Veio
o Imperador, e vieram os condes, us príncipes, e os
duques, com os cavalleiros d.i sua rasa e os homens
da sua mercê \ a todos se tinham mandado próprio*
a avisa-los que estivessem allí ii\iquelle dia, áquella
hora, com armas lutldas e esquadrões vistosos. Das
Astúrias, e de Castella chegaram á competência : qual
mais rico nos trajos, qual mais soberbo na comitiva.
Plumas ondeando, pendões quarteadis de cjrcs ; o sol
falseando no polido dos arn»jcs, nos lavores de ouro
c prata; os falcões no punho das damas; as matilhas
pela trclla dos montciros — trombetas, anafis, e do-
çainas — tudo istoscvía eouvia, e mal K pôde con-
tar, na corte de Leão. •'
II Chegou o imperador com a impcratrii Berengera
sua mulher, cercado de condes c cavalleiros; doou-
tro lado entrou U. Garcia, o noivo, vestido de pre-
o PANORAMA
39
cioaas galas, cavallos com redpas d*ouro, testeiras de
prata, e pedraria nas armas, (.'iitre fidalgos e senho-
res— que nenhum tinha inveja na riqueza ao mais
galhardo de Castella. "
«A infante D. Sancha entrou em Jjeão pela porta de
Toro, e com ella D. Urraca, a bella esposada de D.
Garcia. Os cavalleiros e barões que a rodeavam, as
damas e virgens que a acumpanliavani, os clérigos e
monges que a seguiam, eram tantos que não tinham
conto. Ijpvantou-se o thalamo nupcial nos paços reaes
de S. l'elaio — em volta dVlle a infante U. Sancha
mandou collocar os choros de bailarinse mulheres, que
teciam danças e cantavam li^ninos ao som de órgãos,
citharas, e psallerios. O imperador, entretanto, com
U.Garcia ao lado tinha-»e assentado cm um Ihrono
levantado no terreiro que se alargava diiinte do por-
tal dos paços. Em redor, em escanliiis baixos, assis-
tiam aos festejos, segundo suas dignidaiies, os bispos,
abbades, duques, e condes."
«A um signal principiaram os jo^os á antiga mo-
da de ]lesp.tnha. Abriranise pelo òiiforilio ou torneio
das cannas. (rJLuadrillias de cavalleiros terçavam na
arena hastes di-lgadas, que na veloz corrida despediam
iin» contra os outros, colhendo no ar o golpe, ou evi-
tando-o de um s^lto com pasinosa galhardia. Veio de-
pois o tiro do tablado. O alvo estava posto no meio
do circo, e ao uso pátrio os jusl.i dores deviam acertar
partindo a todo o galope. A destreza do cavalleiroe
o meneio doscorseisdistinguiamse pelo maior nume-
ro <le sortes felizes. Corrida esta scena, viram-se ma-
tilhas de cães açulados investir com os mais ferozes
touros de Andaluzia — desaliar-llie a ira, enraivecer-
Ihe o sangue, e quando escarvavam o chão, atroando
o campo de mugidos, e revolvendo os olhos afof^uea-
dos nas orbitas raiadas de sangue, saírem-lhe os ca-
valleiros ao encontro a esperar o Ímpeto, e a prostra-
los de um golpe de \enaV>ulo. Os pcqjulares também
tinham o seu quinhão na alegria geral. Um tropel
de cegos foi introduzido nu praça ; e apoz elles o ri-
dículo contendor i|iie lhes estava destinado. — Era es-
te o mais alentado porco dos montados de Castella.
Os cegos, animados pela esperança de se banquetea-
rem coní a victíma, premio prometlido.i destreza do
muis venturoso, corriam de um para outro lado; es-
te, apanhando a p.iuluila do visiidio; aqnelle afoci-
ohaiulo o chão, rola aos pés do terceiro; oquartose-
gue malhando sem dcscançar no raslo do pobre que
tenta atracar pela cauda o inin-.ígo, em (juanio em
rodeios e iugidas o porco ora se furta a um, ora es-
capa ao malho liiriosodooulro. Osesp<cla<lores riam,
batiam as palmas, e tripudiavam de prazer no meio
dos liruleseos episódios lio entremez."
"No dia seguinte os esposos foram abençoados, e
despedidos com ricos presentes."
Assim s(í feslejiiva um noiva<lo real no seiído XII.
tiuem não achará originalidade em divertimentos ru-
des e ásperos eofno os homens eas instituições da epo-
cliu ? Cegos atordoundose ás pancadas! cavalleirose
villõesmihtunidos a applaudir o jogo das escondidas,
de que é protagonista H escoria dos animaes — o por-
co! ■— (J li;ito da noiva cercado de palhaços, bailari-
no», e menestrcíis! dois reis um toil.i a piimpiídoseii
! estado presidindo á farça, e t.dvez ilcM;endodo thro-
lio a disputar um lanço uo tablado, ou a tirar nma
•orte no liafordio! — (pie espeiM.ieulo novo e variado
ln"io olVcreciin, de ipie naturaes cores n."io retratam a
I «ida <Pai|uellis s dos f — E um (piadro para di'«a-
liar a viMa di: VVidliír Scott, propor<ionando lhe
MS mais chistosas «cenas, tluem visse o bello painel
do torneio ile Anliourgbi /uche, no Ivanlioe, ilirá
«caso qu<', tirada d'esla deseripç'ão do (thrOnistji, a
•cenu íicuria menos piclurescu nus costumes, uu mais
I
fraca nos caracteres e pbysionomias? Esta acção por
si só colloca-nos na verdadeira idade media, e desen-
gana a muitos da diflerença que vai de contrafazer
as epochas a estudar-lhes a Índole, e desenhar-lhes os
usos e a existência.
Da sorte dos meninos nas mimas
DE InGLATERKA.
ÍSa parte occidental da Inglaterra ha camadas im-
mensas e profundas de carvão de pedra, tão ricas,
que os geólogos lêem chegado a asseverar não basta-
rem para o consumir vinte séculos de exploração.
r<5de-se dizer que a Inglaterra tira das suas minas
de carvão os elementos do poder industrial e mer-
cantil. O consumo domestico absorve poranno deze-
sete milhões de toneladas; as forjas produzem an-
nuabnente oitocentas mil toneladas de ferro, gastan-
do quatro milhões de toneladas de carvão; as fundi-
ções de cobre empregam quinhentas mil toneladas
de carvão em derreterem cento e oitenta e cinco mil
toneladas de metal; as fabricas de algodão oitocentas
mil; as de là, seda e linho seiscentas mil ; finalmen-
te, se a estas parcellas se accrescentar o contingente
das outras industrias, e dasexportações, queem 1837
eram de um milhão e cem mil toneladas, a quanti-
dade de carião que produz a Inglaterra orça por vin-
te e seis milhões de toneladas, o que, avaliando-sea
tonelada por 1 .JSOOO réis, preço médio, repntsenta a
somnia annual de quarenta e um mil e seiscentos
contos de réis.
Mas cumpre confessar que a extracção do carvão
de pedra, assim como é uma das maiores fontes da
riqueza da Inglaterra, tem exercido funesta influen-
cia não só na saúde, porém na moral das pessoas cu-
jos braços emprega.
A população das minas está dividida em quatro
calhegorias. Na mais alta acham-se os overmcn, eos
dejiulitiovcrvien, encarregados da policia da explo-
ração ; vigiam os trabalhos, e a segurança da mina.
Seguem se-lhes logo os mineiros que extrahem o car-
vão de pedra [huwers) Os mais dVlles são homens
feitos; descem para o trabalho ás duas horas da ma-
nhã, e recebem as ordens dos íUptitiíS ofírmen ,• lar-
gani-n^o ás djias horas da tardi?. O jornal que se lhes
paga nos gr.indes districtos d'estas ndnas anda por
1G;SOOO réis cada mez.
Nem apoz estes os fttUtcrs, que são rapazese ás ve-
zes creanças. liaixam á mina ás quatro horasdu ma-
nhã, e são os que, de duas em duas horas, levam em
carrinhos para as grandes galerias o carvão cxtrahido
pelos mineiro», iúiipnrram por defraz os carros, car-
regados com p('rto do oito quintaescada iim, dobran-
do-se muito, allm <le empregarem inaii>r força, enfio
partirem a cabeça no teclo dos corredores, que é ra-
ro passarem de cinco palmos dealtura. O puilernão
sáe da mina senão duas horas depois do hfwcr : o8e\i
jornal regula de quatro até seis mil c oitenta réis por
mez.
O carvão acarretado pelo piillcr ])assa para o poço
|)rineipal em wagons puxados por liesfas, servindo-
Ihes dl' ciMuliietores uns rapazitos de iliue atéquinzu
annos, a ipie chamam iliiveis. D^ahi o tiram por inu-
ihin.is d.- vapor, ou por engenhos ou rodas em <|ue
trab.ilham cavallos o iité mulheres. No lini do dia,
que é de iloze horas, tem o driver andado oito ou
nove léguas nas galerias.
A ultima e mais interessante classe ile operários ti
a dos pe(|Ui'ninus, de cuja vigiliincia depende a «egu-
rançii da mina, |ioÍn lêem a seu cargo o fechar as por-
tas l^trojiy) das galerias, de mudo que kC cunservtí a
40
O PANORAMA.
ventilação indispensável para impedir a formação de
gazes, u por conseguinte explosões porigosissimas.
Ao pequeno irappcr acorda-o a inãí ás duas lioras
da manhã ; levaiila-se c bota a correr para a mina,
levando comsigo para o sustento de todo o dia um
pedaço de pão, e unia guta de cafú dentro d'uma
garrafa de estanho. Mal chega ao fundo do poço to-
ma para o corredor estreito e baixo em <)ue faz sen-
tinella ; metfe-sc dentro d'um nielio excavado por
detraz da porta, que deve abrir apenas sinta rodar o
carro d'algum jntllcy, e fechar assim que elle passe;
o alli se conserva duas horas seguidas, súsiidio, sem
luz, desperto. Sú lá de quando cm quando vem adel-
gaçar-lhe as trevas a luz mortiça c tremula da alani-
pada que os carros dos putlers trazem na dianteira :
triste d'elle se, aborrecido, se deixa vencer do som-
iio, que a mão pesada do depuiy-uverman quQ anda
de ronda virá prestes lembrar-ltie o dever de velar
pela vida de todos. A's quatro horas, a palavra lilier-
dade I liberdade 1 parte do ponlo principal, e ii'um
instante é repetida nos mais reinofos recantos da
mina:, porém o irappcr ainda se não vê livre: não
larga o pusto em quanto não passa o ultimo /)ní/c»- ;
depois d'isso é que sobe para a choupana de seus
pais, onde engolido o jantar, que não enjoa de gor-
do, se vai logo deitar.
Não tem o trapper grande traballio, mas aiinnio-
bilidade e solidão a que eslas infelizes creancas estão
condcmnadas lhes tolhem o desenvolvimeuto do cor-
po e da inlelligencia. A pobreza ou a cubica dos pais
as encerra nas minas, ás vezes, de quatro a cinco an-
IIOS, mas, comniummente, em tendo seis para sete.
O trabalho em que se empregam mais meninos de
ambos os sexos é o ãoi jndlcrs. lia minas cm que
empurram os carros por cima de carris ■, porém na
maior parte puxam os piiticrs por clles como bestas
de carga. Nas galerias mais baixas, o putlcr, atado
ao carro por uma corrente de ferro, que lhe passa
por entre as pernas e vem prender n'uni cinturão de
coiro, arrasta, engatinhando, o instrumento do seu
martírio. Um velho mineiro, quando ointerroíraram
acerca d'este modo deconducção, muito seguido, ar-
rancou do seio d'alma a seguinte exclamação: "Se-
nhor, não posso senão repetir o que diíeiii as mais:
é uma barbaridade!" (C(»iii:iú(i .)
Da PICADá. DA VESPA.
Se a vespa, quando morde alguém, é logo enxotada,
parte-se-lhc o ferrão e iica na feiida ; se pelo con-
trario a deixam ir embora, desencra\a-o pouco a pou-
co cm zigzag.
No primeiro caso a pesso.i mordida está exposta ás
dores e perigosquo podem resultar d"uma feriíla com
um corpo estranho e irritante dentro; no se;;undo
não ha q\ie temer senão oselleilos d'uma picada sim-
ples, salvo se o insecto inoculou algum veneno.
(.'uinpre pois a quem fór picado yur alguma vespa
conservar presença d\'spirilo, e dar ao animal lodo o
tempo necessário [)ara tirar o ferrão sem oquehrar. A
primeira cousa que se deve fazer cm todos os casos
depois da picada é examinar se o ferrão se conserva
na ferida, c se assim fòr, extraiam-no logo com uma
pinça. Atalham-se depois «s inllammações consecuti-
vas, banhando a uiiudo ologar teridocon» agua mui-
to fria ou nevada, que tenha dissolviíla uma grande
porção de wl lominum. Se, apesar d'esle curativo
timples e ordinariamente eflicai, continuar a dòr e
progrediram a inchação e inllaiiimações ; se houver
razão para crer que o ferrão íicou na ferida ; ^e, so-
bretudo, a picada fòr na mão ou lui cara. c preciso
invocar sem demora os succorros da arte, porque a
ferida pode ler maus resultados. O doutor Cbaume-
ton narra o seguinte facto: — n Certo manceVjo. não
tendo reparado n'uma vespa que estava no fundo
d'um copo cheio de vinho doce, cnguliu o insecto,
que o picou na garganta. Oefieilo fui promptu e ter-
rível ; inllammou-tie-lhe a garganta no logar da pi-
cada, e toiheu-se-lhe de tal modo a respiração que o
mancebo morreu suOueadn, nem que nenhuma das
pessoas que o rodeavam lhe podes-em valer. Salva-
vam-no sem duvida se logo depois de picadu o obri-
gassem a engolir, com intervallos curiós, uma forte
solução de sal commum nevada, alé lhe passar a dòr
de garganta. Este traclamentu, pelo menos, dava
tempo a chamar um medico ou cirurgião. '-
II Um agrónomo inglez, accrescenta o doutor CLau-
meton, teve a satisfação de salvar a vida a um dos
seus amigos, picado noesophago pur uma vespa, que
não tinha visto n'um copo deccrveja. í'e-loenguiir,
por muitas vezes, sal commum desfeito nainruosagua
possível, de mudo (j'ie formava uma espécie de papas.
Ossymplomas ameaçadores, manifestados no instante
da picada, abraiidaram quasi de repente, e cederam
como por encanto. . . Já o ilbistre Dioscoridos, que
\ivia antes da era christã, recommendaia a solução
de sal ou a agua domar,* e desde e^tes tempos remo-
tos até os nossos dias a efúcacia d'um romediu tão
simples e económico não tein tido contras; cu mes-
mo tenho por muitas vezes sido testimuuha do seu
bom effeilo. "
Algumas vezes a dôr é agudissima e custosa de ce-
der. O doutor l'icarui, medico italiano, tendo-o pi-
cado uma vespa nas costas da mão, deram-lhe dures
insupporlaveis, que nenhum dos remédios usados em
taes casos puude mitigar. Já tinha a mão muito in-
chada quando lhe lembrou recorrer ao uso do unguen-
to napolitano. Não é para aqui tractar da applicação
d'este remédio, porque pede a prudência que s<» um
facultativo o receite, basta que se diga que o allivio
foi proniplo e grande, e que se deve applicar o n>e-
dicamento por espaço de seis ou oito horas e até mais.
A cura do doutor l'icardi foi breve e radical.
Este curati\o não isenta de ter virada para cima
a parte mordida, e ao ar fresco quanto seja pu:sivel.
Do EsTVlO.
Como hão de ser as palavras? Como as estreitas. At
eslrellas são muito distinelas e muito claras. E nem
por isso temais que pareça o esl vlo baixo: as estrel-
las são muito distinelas, e muito claras, e altis»inias.
O estvlo púJe ser muito claro e muito alto: tão cla-
ro que o eiilendam os que não sabem, c tão alto que
I tenham muito que entender n'ellc os que sabem. O
I rústico acha documento» nas estrcllas para a sUa la-
I voura, e o mareunle pura a sua navegação, e o nia-
I ihcmatico para as suas oliservações e jwra os seus jui-
] zos. De maneira que o rústico, e o mareante, que
I não sal)eiii liT nem escrever, entendem a» estrellas ;
I c o matheuiatico, que tem lido quantos escreveram,
não alcança o entender quanto irdlas ha.
Este desventurado eslvhi que hoje se usa, os que
o querem honrar chamam-lhe cullu ; <» que o con-
demnam chamainlhc escuro; mas ainda lUc faiem
muita honra. O estvlo culio não c escuro, é negro e
negro boçal, e muito i-crrado.
ViKuiA — Scrm. T. 1 .", po<í. 3'.-
Co'a matéria convém casar o estvlo:
Lcvante-se a exprtsjào se é grande a iJca,
Se a idéa e negra a locução ne;r«gc,
E lenue sendo se attenue a |)hrí«c.
l?oiAyK — íiií. ao laóic J. A. úc Mazcc^'
6
o PANORAMA.
41
TUMULO DE BAIVTHOLOni^U JOHANIES,
Na sé inetrupulitana lisbonense, nu eiifríir da porta
principal, lia uma capella antes tie clie^ar á porta
travessa <io norte, fecliada com seu canci-Uo; e den-
tro, taniliern do lado es(|uerdo, está nietlido n'iim
vão de ano o tumulo cuja lace apparontc se mostra
na gravura (|ue precede. Km volta da campa tem aber-
ta uma inscripção; e do cjue se pode decifrar na
parte maniirsta infere-se que diz o seguinte ; — Bar-
tliolumeu Juhanes cidadão que foi de I^iishoa a quem
Ileus perdoe passou trinta dias de novembro (uti
iLtfníbrof }. — Alguns caracteres acliam-se indistin-
«los. A eilalua jacente está de roupas lalares com
nUia espada larga, ou montante, sohre si ; os trcs
otcudos insculpidos no cofre teein por armas llôrcs
ili- liz francczas, divididas por uma lista lancjada obli-
quainiMite, ou banda. — Seierim de Karia, no Disc.
'i" das Not. de l'ortuf|;. , mencionando familiasque
nus escudos tra/.iam as Ihíres de liz, aponta algumas
raiõe», c em dois exemplos que traz, das casa» de
l-arias e Mirundas, marca u oripein Iranceza. —
\ eeni-se no tnmtdu (|Ui' copiáuM)s. lin documen-
to i|Uí vamos citar prova (|uequem para si o fez eri-
gir tinlui liens em Flandres eKranr.i. Sem indagar-
mos o sen grau de nolireza derivada (Peste idtimo rei-
no, liiisla ipie pi'!a razão de uns as adoptarem as po-
disM-iii esciillier outros. K mio temos visto lautas car-
ruagens que, [iila concorrência ile appulli<los encon-
trado», nos appresentaram por alii liriizõc< mestiços 1
A i>scul|)lnra do tumulo, piírecid.i. por exemplo.
.. <líis(]nee\isti-m «mu ( tdivcilas, indií-axa aniignula
rlc remota, e pari eia «nlirior áepoclia de 1), JoSo 1
pela circnmsl/incia ilos caliellos cri'S('i<liis cli cabeen e
Vol.. I - OUTIUIIO 10, 1«iO.
I barbas, que se observam na estatua deitada ; porque
é sabido (jue no tempo de João vencedor de João de
Caslella usaram os nossas cabello tosquiado, para se
dillerençaríMii dos cailelhanos, d'onde veio o chama-
rem-iMis vltumorros os adversários ; e n"esla confornii-
díide e bom uso nacional apparecem nos monuinentus
d^então as elTigies, como no tumulo do sabedor João
das llegras, muilo bem trosquiadas.
No real arcbivo, dicto a Torre do Tombo, arca
sancta, onde se leni salvado incólumes preciosos do-
cumentos no meio de naufrágios, existem na cbance-
laria lie 1). Diniz dois aforainentus (a f. "6 etc. do
L."2.", e f. ol V. doL." {."jcm queapparece o no-
me de Jiartliolomeii Jolianes ; mas não é isto motivo
bastante para se dizer que fossem feitos a uma ou a
duas diversas pessoas, e que alguma (Pellas fosse a
de que se Iracta. — Não ha porém duvida de que
d'esse tempo é o jazigo acima estampado, e que per-
tence a individuo iPaquelle nome, o qual «levia ter
sido lioinem de muita ri<|ueza c de valia, como piídw
ajuiiar-se pelas suas dis|>osi<;ões testamentárias, de
(|Me s<')iiii?iitn mencionaremos as notáveis; pelas cau-
telas queu\ilgumas se observam limpossivel que não
losse coinmerciante, pelo menos em seus princípios,
coiiheceilor, como parece, das tralicani ias <lo niuiidu,
que ja então se praclicavani como v provável que se
larão até á consumm.içào dos séculos. Talveí perten-
ceu « alguma corpor.ieão como, por exemplo, o gré-
mio dos mercad<ires; porquanto nu ii u testamento
falia moitas vezes em eciinpanln'iros, e llies conoede
entirrarem-se na capelbi i|Ue lunda . — l"'slf documen-
to, dal, ido de 'JS dr novembro de I J'2t (I ;ló'J). elinr.i-
42
O PANORAMA.
do pelo tabellião Domingos Martins, na cidade de
liisLioa, nas casas que chamam da Torre da Eslevay-
iilia, nas quaes morava o honrado barão (varão)
liariholnineu Jo/iano^ cidadão de L.ishoa, . . , o qual
jazia t7n iva cama com iodo o seu sizo ele. Declara- |
se que para rcmiriunio de seus pcccados este funda !
uma capcila e lioí^pital.
Ao diante se Ic a seguinte disposição: — Mando
deitar e sottcrrar o meu corpo na ii^reja calhedral de |
Lisljoa na capella que eu alii mando fazer no logar j
que me alii o cabido assignou á qual igreja deixo \
com o meu cnrpo duzentas livras. Os legados prin- ,
cipaes são: A" igreja de S. Mamede de Lisljoa loO '
livras. Para resgate de caplivos 2000 livras. 1000 |
livras para vestir pobres (jiic não vendessem osvesli-
dos. Para casar orpliãs donzellas, que sejam de boa
nomeada e boa vida, o taes que mereçam casamento,
loUO livras. liiO livras para fazer iinia ponte no rio
de Pontevel que c no caminho puLlieo que vai paia
Santarém enlre Aveyras e o Cartaxo: e n'esta dis-
posição ha uma plirase que denota profissão mercan-
til do doador — ali cusoyidar a venda. — 300 livras
para a obra do mosteiro da Trindade de Lisboa com
a condição dos frades não receberem senão empedra
e cal. 10 livras para criar um engeitado no hospital
dos meninos ; as quaes mando que os meus testamen-
teiros paguem a uma ama, de tjuiza que ocomenda-
dor do dito Inrjo não seja tcúdo de asrcceber. Para os
gafos (leprosos) de Lisboa 10 livras, com as mesmas pre-
cauções. A todas as emparedadas da villa da Azam-
buja 30 livras.
Funda um hospital para doze pobres. Inslifue a
capella para jazigo na sé:, determina que seja da in-
vocação de S. Eartholomeu, cm que canicmcadadia
para sempre 1 G capellães ,• a saber, doze cappellães
por Tninlia alma, c os deis dos oídros capcUães can-
iem por meu scniter elrei I). Diniz, c os oídros pela
rainha I). Isabel sua 7nulher (não podia adivinhar
que seria canonisada) c outro j^ch infante D. yjjfon-
so seu fillio e pelos filhos iVessc irfanic : esjunctaqiie
sob tal condirão que o senhor rei cm stta vida, e de-
pois o senhor infante na sua, e assim por diante os
seus filhos c nelos lidimos aletvi c façam alçar força
de qualquer pessoa ou pessoas que queiram usurpar
a capella que iiislitue, ou os bensd'elia ou do hospi-
tal que taml)cm funda.
Dotou a capella com bens que subissem arfíiícrc-
ecs 7)iii Heras; e mandou que senão lhe dessem logar
na sé fosse feita na freguezia de S. Mamede. Para
capellães manda preferir portnguezes.
ISomeia iestanienteiros Gonçalo Domingues, saca-
ilor das dividas de twsso senhor clrei meu compadre,
p l'ero Esteves, sobrinho de João Dias, reposteiro
d'elrei, e\priniindo-se dVsta forma u e os metto de
posse de todos os meus bens moveis e de raiz, cm
qualquer espécie, maneira c cousa que possa ser,
achados também em Portugal romo em França e
em Flandres. 1' E ailiaiitc diz : uE peço por mercèa
meu stnlior elrei, (|ue sempre manteve a mim e os
meus lieus, e n\e defendeu em minha vida sua mer-
co, por algum serviço (se lli^o eu fiz) depois do meu
passamento defenda os meus testamenteiros. "
Uma copia d'esfe tumulo, desenho em contorno
foito á penna, com as de outros dois igualmente
existentes na sé, foi appresentada na exposição da
Academia das Piellas-Artes em ISlO. E bem mere-
cia commemoração esta antigualha, que os cscriplo-
res deixaram no esquecimento, quando, pela cpocha
a que pertence, como spccinieii archeologico de mo-
numentos d'c5ta espécie, merecia particular uttcnção.
O IIadjeb de Kordova.
(972 a 992)
(Coniiauado de pag. 33.)
in.
Gclohira.
A TEMPESTADE rugia em toda a sua força. ^ iera to-
talmente a escuridão e a noite. A única luz, queal-
lumiava esta sccna, era a de um álamo gigante a
arder d'alto a baixo, incendiado pelo raio. Este fa-
cho tremendo fulgii lugubremenle nomeio da selva,
como a tocha funerária d'aquelle templo imiiiensu,
cujas naves e culumnas eram os renques profundo»
do» cedros e carvalhos.
A estranha apparição da virgem fez recuar os guer-
reiros. O circulo retrahiu-se e alargou-se. Uernien-
gardo, firmado sobre o punho, voltou-se para con-
templar a sua noiva, e cravou os olhos n'ella com
uma anci i que apenas pude comprehender-se. Gelo-
liira, por única resposta, fitou os «eus nos doniosta-
rabe cum desesperada resolução. O que aniLos sp dis-
seram n'aquclle longo e profundo olhar souberam-n"o
só elles c Deus. Devia de ser horrendo, porem : de
certo que o mancebo leu alli a certeza das suas hor-
rorosas suspeitas, porque, erguendo-se do repente eiu
pé, por um esforço que já nada tiiiba de humano,
alçando-se firme — elle que havia momentos lual po-
dia arquejar estendido — com o peito aberto a gote-
jar sangue vivo, exclamou brandindo furioso com uma
das mãos a sua larga espada, e com a outra apon-
tando para a virgem, prostrada ainda a seus pi-s-
— Vedes esta, irm.los? era vossa irmã também ;
era a jmmaculada recompensa que Deus me linhn
destinado ; era o anjo vtslido de purez;i a quero eu
tinha erguido aras no coraç.lo ; era a companheira que
havia de cingir-me asarn:as ápartidn, c à volta lini-
par-nie o pó e o suor da fronte ; minha consolação e
meu auxilio, meu desvelo e meu enlevo; era, era
esta meus irmãos. E sabeis hoje o que é .' quereis sa-
ber cm que m^u tornaram .' N'um opprobrio. n"uma
vergonha, n'unia infâmia, n''uma atVronta ! Tocarani-
Ihe, os Ímpios ! mancharam-n'a, os vis ! . . . "
Gclohira caiu com a face melindrosa iiocliãoala|;j
do elimuio, diante do guerreiro : Herniengardo viu-a
n''aquella postura c continuou :
— i. (iuebraram-me tudo n^alma, elles! O amor
cem que eu contava, aventura que esperava, a glo-
ria a que aspirava, tudo I Essa fronte, essas faces,
esses lábios que ou Tcceiava macular com o s<'> miu
balito, nem ousarei beija-lo» sequer; estão poli uidos '.
Não posso nunca mais cbegar-me a cila ; e f.Va era
omcucul'o: adorava-a ! Vt;de-a, meus irmãos. Ma-
tarum-na ; mataram-nie ! G.ue me resta pois no mun-
do .' "
— II A vingança ! "
Bradou o ancião, surgindo também de pé ao l.ido
do ni:>nccbo, transportado como elle, temeroso e furi-
bundo como elle.
Parecia, um, oarchanjoextcrminador ; assemelha-
va-sc o ouiro ao :ipustolo das dcslruiçues.
— .1 \ incança ! "
Exclamaram taml>cm os guerreiros inattaralH>s.
apertando de novo o circulo.
(iclohira soluçava contra a terra!
— •! Sim, meus irmãos, vingança I — proseguiu ller-
mengardo. — \"inguemo-nos , vingai-me I . . . (Que-
reis vós faicr-me um juramento.'»
— u (Queremos — bradaram a um tempo os seus
companheiros — qucremo-lú nós todos!-
o PANORAMA.
43
— u Jurai pois — continuou elle — de vigiar, de
seguir incessaiifemcnte o hadjeb Mohamed, a cada
hora, acada passo, nomeio dos seus guardas, dosseus
iílcaçares, das suas phalanges, dos seus exércitos, até
íicar remida a injuria d'esta, a minha injuria, a
injuria de nós todos, irmãos! Eu serei o primeiro,
eu darei o exemplo de força e de constância, eu o
espiarei de noite e de dia, eu lhe trarei o punhal
continuameute suspenso no coração. E omeulogar;
não quero que ningem m'o usurpe. Mas se eu cair
antes de vingado, se o poderoso esmagar o pequeno,
jurai-me, juriíi-me todos que mo substituirá outrode
entre vós, igualmente implacável, igualmente vigi-
lante na obra da vingança, eoutro apoz elle, eoutro
depois d''osse, e outro, e outro em iim, sem parar,
sem se repousar em quanto esse homem, esse tlagel-
lo, esse IjadjeI) não tiver expirado aos seus golpes, e
não só elle, mas os seus sectários maldictos, os que
lhe dão famaidio poder, os que o ajudam a erguer o
ediGciu das SU..S prosperidades. Se uma geração não
bastar para derril)ar ocollosso das TIespanhas, jurai-
ine que legareis a vossos fdhos esta missão, que a pro-
pagareis piir tilda a parte, que a contareis a quanto
ii'estas terras tiver um nome godo. Edilllcil e peri-
goso, «'■ tremendo o que vos peço; aquelle homem
guarda-o Deus como um signal da sua ira •, ha de
cair muito d'entre nós; mas o dia ha de raiar a fi-
nal; a cholera do céu não dura sempre! Jurais-me
pois de o cumprir como digo, sem fraquejar nma vez,
bem descanç.ir uni momento?»
— u Juramos, juramos ! »
Clamaram cm redor os guerreiros, tremendo de
indignação, de impaciência, e de enthusiasmo.
— Jurai-ni^u por vossas mães, por vossas filhas e
esposas ! n
— "Juramos ! >■>
— » Jurai-m'u pelo sangue de vossos irmãos derra-
mado; pela honra do vossas famílias maculada. "
— « Juramos, juramos ! "
— "Jiirai-m'o pela memoria dos avós quedormcm
o seu ultimo somiio nos leitos de pedra profanados
pelo pé dos Ímpios; jurai-in'o pelo nome dos ante-
passaílos qu<! erguem um canto dos seus sudários de
mármore para no-lo virem troar uos ouvidos, nomeio
d'esla vergonha.
— «Juramos, juramos! »
— uJurai-m'o líiialmente por esta. . . >'
— "Jurai-o por este sangue! >'
InterroiMpeii a virgem de Amaya, alçando o rosto
formosissimu, todo maculado, todo lastimado, lodo
golpeado do» tojos o abrolhos, o. erguendo sobre o
peito o ferro que i'inpuiihava. A Jjueri.cia goda que-
ria Baiicliliiar o jiirainenlo doa seus irmãos e viiiga-
<lores, ú semelhança da matrona romana.
Ilerinengardo viu-lliu o gesto o não se moveu. A
dilr, n desespcrueão e a vergonha tinhani-u'u torna-
do feroz.
I'"oi o niiciào que lho desviou o golpe. A velhice
ítnlii! muitas veies eiitcniler nndhor ua fraquejas, c
avuliur II iniioeeneiíi.
ICni um evipeelaeulo horrendo afjuelle. O bosque a
dobrar-se inteiro iilé a turra, a ciirvar-se humilde
para deixar passar a tormeiíla, todo cheio de frémi-
tos pungentes, tle gemidos doloroso», e desilvosagu-
dus— todo cortado de brados de agonia, de uivos e
rugidos — c iilli, no centro, aquelli^s roslos toslados,
uquelle» tilhos seiMilelhantes <i furibamlus; iu|iiell('
velho uugusio, eiiuiu presidindo á saturnal da viii-
guiiça ; H(|uel|(! hoineiu com o peito nbirlo, a toda-
via bobraniu'iro e ile pé; o finalmente a(|uella mu-
lher ajoelhada no meio de todos, iijoelhaiia no chão
lodoso, brainus o» vestidos como o rosto, todo man-
chado o rosto como os vestidos, os cabellos soltos ao
vento da tempestade, o olhar desvairado, meigo e
selvático a um tempo, enérgico e supplicante, lluc-
tuante entre o céu e a terra, curvo para esta pela
vergonha, atraindo para aquelle pela coiiícientia . . .
era horrendo e sublime!
Os homens d'hoje não comprehendem de certo a
energia primitiva das paixões virgens. A civilisa-
ção nivelou tudo ; incommodavam-n"a estas ingénuas
asperezas; afleiavam-n'a estas escabrosidades natu-
ra es : passou-lhe por cima a plaina omnipotente, e
deixou tudo liso . . . á superfície ! Lá por dentro . . .
Deus sabe o que vai lá por dentro! No nossoestado
actual, estas scenas, tão fora do commum, segun-
do por ahi dizem — do nosso commum, direi eu —
hão de parecer tllectivanietite um desvario d'ioia-
ginação ('scaldada. Ueixa-lo. CLuera está costumada
ao piso igual, commodamente fastidioso e nausea-
bundo das nossas modernas banquetas d'asphalto, por
força que estranha as fragosidades piclurescas d''um
trilho alpestre e inculto. E natural.
(^ue imporia lá ?
Se o mundo tivi^i-se sido sempre como agora !
Um toldo de nuvens còr de chumbo, franjadas de
horrendos claruci, cobria a almosphera d"um \éu mor-
tuário. O raio estalava em roda. Era uma tempesta-
de na natureza, semelhante á que sacudia aquelles
corações.
A arvoro inílammada, ardendo a poucos passos,
projectava cm cheio na branca figurado Gelohira os
seus rellexos vermelhos. l'oder-se-liia dizer que a co-
bria uma purpura transparente, ou ([ue a cingia uma
sanguínea mortalha. A sua altitude era ao mesmo
tempo resignada e altiva. A desesperação conlrahia-
Ihe os lábios esbranquiçados, como se lh'os houvera
tornado de mármore algum impuro contacto; mas a
chainma d'um saneio e fervoroso enthusiasmo aecen-
dia-llie um resplendor na fronte: ainda era bella as-
sim ; ora talvez mais bella do que nunca !
ih guerreiros abaixaram os olhos para a nobre
filha das montanhas, primeiramente para lhe admi-
rarem talvez a altitude de ins])irada ; depois para. . .
O ancião voltou a cabeça limpando uma lagrima
silenciosa : mais de um rosto fero e indomável o
imitou envcrgonhiulo.
Só Hermengardo não chorou. Olhou muito tempo
ííto, fito para (íelohira, s(ím dizerem palavra um
nem outro. O (|ue pensava lá conisigo não n"o soube
ninguém. A final, sem dar omiiiinio signal de com
miseraeão ou dó, estendeu a mão á infeliz ecun uni
gesto soberano.
(iclohira retirou a sua.
tJlharam-se di! novo e em novo silenein.
— "Tens razão ! — disse o mostarabeem voj baixa ,
depois continuou em voz alta ; — Jjcvanla-te d'ahi,
mulher ...»
E fomaiulo a sua espada pela ponta olVercceu-lh".!
pelas cruzes p.ira ella se ampar.ir e hivaiitarse.
(íelohira ergueu-se e appresentou-lhe lambem ca
lada o seu punhal. O guerreiro re|ielliu-o vivamen
te, e prosegniu :
— "Mulher, tu não tens culpa! Recaia a vergo-
nha o a infâmia na cabeça dos crimiuoios. Olhai
bem para ella, meus irmãos; olhai, iiieii pai. . . Era
a iiiiiiha noiva : ha de .ser minha miillier !...'•
Instas palavras feriram eoino o raio os cireumslau
l(!s. Ninguém a» esperava. O ancião curvou a cabe-
ça; (ieloliira cravou resoUilamente os iilhos no cini,
i|iie o raii) aliria a cada instante; oin murmúrio ile
np|irovação pi^rcorreu o eiriiilo dos guerreiros. .Acha
vaiii lodos sublimo o que fazia aijuellu homem !
l'oii o régio inudo eoni que elle di/ia ii<|iiillol
44
O PANORAMA.
— II Ua de, lia de eê-lo — continuou elle, lançan-
do os olhos em redor — aqui o juro também. Ha de
íê-lo ... se eu viver . . . quando já não existir um
homem que me possa dizer — «essa, ante» de ser tua,
foi . . . I'
Não poude acabar. SuiTocou-se, tremeu, vacillou. . .
— uGeluhira — accrescentou o triste ii'um penoso
esforço — esta mão . . . lia de tocar a tua . . . sobre o
cadáver do liadjeb '. >■
O sangue não Uit gottjava sónienle , corria-llie ja
cm fio das feridas rasgadas de novo. lira o mais que
podia fazer um homem.
Caiu .
Ninguém disse palavra. Asscntarani-se todos em
roda para soccorre-lo. Gelohira e o ancião estavam
a seu lado. Orava cada qual lá no seu iiiteriíir!
N'isto apagou-se o tronco incendiado. Tinha ar-
dido até á raiz. O silencio e as trevas ficaram pro-
fundas.
Gelohira rasgou os véus que lho cobriam o seio,
para unir e conchegar as feridas do mancebo. Q-ue
lhe importava a ella que a alagiisseui as torrentes do
céu, ou que a chagassem as urzes dos caminhos?
Os rumores temerosos da tenipesladocontinuavam.
Ao pé ouvia-se unicamente, por entre aquellessons
medonhos, o resfolegar oppresso do ferido-, ao longe
sentia-se um tropear pressuroso de ginetes.
Eram os cavalleiros do hadjeb, que perseguíamos
fugitivos !
Uma kaça D'no»iENS.
Kntiie as principaes variedades do género humano,
sempre se notou como assaz distincla, por caracteres
especiaes, a raça negra ; porém esta mesma é divi-
dida pelos modernos oljservadores em duas castas dif-
ferentes, cada unia de t^ po fanibcm especial. Cha-
mam raça propriíimeiite negra aos elhiopes eaoscaf-
fres ; os primeiros habitam o pait dos jalofos, o be-
negal, Serra Leoa, e finaliiienie toda a costa orien-
tal da mesma região, desde o rio do Kspirito Sancto
até o estreito de Hab-el-Mandel, e dislinguem-se dos
outros por maior habilidade, e caracter mais activo
e bellicoso, posto que traiçoeiro. — Deiiomina-se raça
morena ou lusca tanto a dos hottentoles como a dos
papuas, posto que unia seja continental e outra in-
sular, em regiões diversas. Us iKitlentotes habitam o
território circnmvisinho ao cabo da lioa Esperança.
H os outros povoam na Oceania a N< va lioUanda e
» Nova Guiné (1), assim appclluhida pila prelidão
dos naturaes. Conservam porém entre si a maior pa-
recença, salvas algiimasdiliereneas de Índole, porque
o» hottentoles são em geral brandos e pacilicos, ain-
da que proverbialmente aborrecidos por fealdade e
desaceio. .Ambos os povos constituem a mça acima
dieta, que dillere dos negroselhiopes eciilVies purl>r
uma espécie de focinho, parque nem e próprio cha-
ni.ir-llie tromba nem cara; e esse ainda inais prolon-
gado que od"estoutros, roatoquasi triangular que re-
mata em ponta, o angulo faci.il de 7a graus pouco
mais ou menos, pelle de eôr tirante a pard.T-escura,
narii tclaloiente esborrachado e muito largo, beiços
mais grossas que os dos negros legitimo^, eabellos
ijuc semelham iiovellus <le l.~i, as faces muito salien-
tes, £ a. testa de tal modo achatada que apenas se
descobre. Todos são de induie summnmente estúpi-
da, quasi incapaz de coiicepção; comtudu os papuas
são mais espertos e dextros, i^uaps porém na pr«!-
guiça e em medo, pelejando, não ol>stanlc Í4so. com
encarniçamento se uma vei se deliberam. Ninguém
os iguala em simplicidade de espirito \ teem de seu
natural bom coração; deixam-se opprimir por bran-
dura de car.icter ; porém não se pode fazer delle*
bons escravos, pois preferem a morte a todo otraba-
Ihu custoso e aturado. Tão apatbicos são para todos
os cuidados da vida domestica quanto dados a lodn^
os appetites sensuaes, como a dança, a gula, a em-
briaguez. Parece que são inteiramente corpo, ape-
nas teem alguma leve noção do ente Supremo ; uiu
podem chegar a conceber idéa alguma Oeque se lhes
não appresente aos sentidos oobjecto: emtim passam
vida totalmente animal. Parece que esta raça se en-
contra tão somente no hemispherio austral, compon-
do as duas espécies ou famílias principaes que temoi
indicado. — O tronco ou linha holtentote estende-se
por toda a extremidade do sul dAfrica desde o Ca-
bo Negro até o de Boa Esprrança. e d'ahi quasi até
o Muuomotapa. Ha uma tribu mui bravia e boçal,
que os colonos do Cabo chamam dos boihmans, eque
moram em cavernas e matlas ; fazendo correrias d"ira-
proviso, vivem de rapina, e de raizes agrestes, acdara
niís, e são tão ariscos como osanimaes do sertão. Os
outros huttentotes v ivem lambem sem leis nem regra
fixa-, porém como são mansos e socegados não faiem
mal ; e nos arredores do Cabo leni-se de algum mo-
do sujeitado algumas famílias a um pequeno grau de
civilisação. E um povo excessivamente feio. e para
que se aprecie isto devidamente, damos um speci-
men do que elles reputam formosura feminil, com
todos os atavios e arrebiques que usam para adornar
a cabeça.
U) Foi descoberta por D. Jorge ile Menezes. in(top.i-
ra as ilhas de Moluco, sogiindo iinrra Dioito do foiito na
Década i.*
Kcnresenta uma raparig.-j de vinte annos: tem um
rololo de marfim afr.iv<'«ado nacarlilngem dunarii.
duas argolas de cobre pi-ndentea Has orilh.iS. e presa
á carapinha a um lado, como aodesdeni. uma rosei»
de plumas misturadas com pontas de porro-cspinho.
Aoore>cPiile-se a i^fo uma c.ip.-i sórdida, uma tane»
ou avental guarnecido profus.imente de conlas e avi-
o PANORAMA.
45
Inrios, e o restante do corpo iiú, besuntado de cebo
de carneiro de mistura com ferrugem, nos braços e
peruas luanilliHS de metal ;, e ttr-se-ha )d(''a com-
pleta da gentileza bolteiitote.
Comem os bandullids dosauimaes sem os lavarem,
deitam o leite em odres de pelles imrnundasi nenhu-
ma porcaria os enoja ^ são a quinta essência dos stl-
vagens brutos e Çujos. A sua maior delicia é estira-
rem-se indolentemente pela areia de cachimbo na
bocca, porque o fumar é a sua maior paixão; quem
lhe dá tabaco, tem d'elle5 esse pouco que podem ou
sabem fazer. A sua linguagem é uma espécie de ca-
carejo de voz c|ue em nenhum idioma se pode expri-
mir; toda a sua religião consiste no culto ridículo
que prestam a alguns objectos, pedras, arvore», etc,
que cada um escolhe a seu talautc pura especial ve-
neração.
JoltNADA NAS I"KOVINCIAS UA SuEClA.
i) Sii. X. IMarmier, dotado das raras qualidades de
observador inlelligeute, visitou e examinou irestes
últimos aunos as regiões do norli; da Lutopa, e con-
signou o resultado das suas investigações n"algun»
volumes, que letm recebido do publico litterario o
acolhimento distincto que merecem. De uma das
suas ultimas obras tirámos o seguinte extracto. —
Aosiyde maioontravanios n"uma carruagem corm
o conde de Guldeiistope, que S. M. o rei da Suécia
se dignou nomear para acompanhar a nossa expedi-
ção, e servir-nos de guia nas provinci;is do reino. A
iiora da nossa partida ajunctaram-se o ministro aus-
triaiio e outros muitos amigos pura nsvislireni á des-
pedida. K assas agradável aos {|ue [lartimos para lon-
ga e arriscada viagem reci'ber ii'essa occasião as de-
monstrações da alTeição das pessoas que estimámos :
«' nina sancção solemne do tracto passado, e uma pro-
messa para o futuro. l'orc'm se o tempo (pie passou
lembra pebis didicias que se gosaram, amcdronla-nos
o futuro coberto deveu iinpenilravel : ijuem sabe se
tornaremos a vêr aquc-lles a quem tão tordealniinie
apertamos a mão, e de quem ouvimos com gratidão
protestos de sincero adecto ! A vida de viajante éa
niiii» fiel imagem da vida humana. Larga-sc a bar-
raca que se levantara iTum sitio escolhido, o quem
sabe se lá voltaremoH? Diz-se adeus por alguns dias
nu pessoas (jue pre/ámos, e esse adeus pode ser eter-
no ; caminha-se com impaciência para um ponto
remoto, o este objecto de vivos desejos talvez que
iiãii possa all:ançar-^e. Deus é quem mede (^limita os
t;raus dos nossos esforços ; a consolação do bomiMii,
ii'esta incerleza, é aireverse nobreincnle, <■ perseve-
rar na idea que concebera, e que pretende pôr em
practica.
Saindo de StocUolmo, passámos pelo edifício da
A<a(li'mia, ir o nosso derraileim adeus foi encainiidia-
ilo a residi iiciii do Sr. ]lcr/.i'lio, sábio qui?, por su-
bliini' plirane (^alVavel recepção, capti\a a um tempo
i> alma e o coração, deixanilo na reminiscência de
<|Ui'in o tracta inextinguível leinbranra.
Ainda bem não liuliaino^ saído d\iquidla espaçosa
e bonita rua ila Uainliii quevue dar aporta do nor-
te, conlrisloii-iKis avista diipaiz glacial, onde a na-
tureza parecia siidocada. Não era ojisjieclo gravedo
inverno envolto na capa de neve ipnrbiillia aos raios
do sol, dos lagos lap.idos de caraiiiello, das maltas di;
abetos parecidos a |>^rainidi!S dechristal, menos era
ti |>iiiiiavera amável que noselimas do norte remoça
e aviventa por alguns dias os [irados, aguas o selvas,
I- que dos poetas seandinavos é bem recebida, « fes-
tejada cm suas sirophes eiithiisiiislicas. Por tuda a
parte não viumos mins que a lerra núa e sccea j na-
da de ramagem, nem ílôres ; a raros espaços divisa-
vam-se algumas casas de madeira, onde o pisco, aman-
sado pela fome, vem procurar ávido algum bago de
trigo, caído das mãos <io casaleiro. Estas vivendas
campestres quasi Iodas são pelo mesmo molde . cons-
tam de um corpo quadrado, feito de barrotes assen-
tes uns em cima dos outros, calafetados com barro e
musgo, firmps nos quatro ângulos por via (feiítalhos,
onde encaixam fortemente uma peça na outra ; de
ordinário pintadas de encarnado em todas as lacei,
e cobertas de tecto de madeira, no qual espalham
uma camada de terra que, no verão se alcatifa de
verdura e flores. A' direita e á esquerda ha outros
dois corpos, de construcção egualniente simples, que
servem de celleiro e de estrcliaria ; em Irente teeni
um grande pateo; etudo é fechado com cerca de pa-
rede ou de cancellas de pinho. Eis-aqui o que cha-
mam jai ti, antiga palavra isíaiideza, que significa lit-
teralmente moiada, e nas sagas (cantigas velhas) se
acha muitas vezes applicada a cidades populosas.
Estas casas, em certos districtos, situadas a muitas
léguas de distancia umas das outras, compreheiídem
oiticinas completas de construcção de carros, demo-
veis, utensílios e ferragens, porque é mister que se
suppram a si mesmas durante grande parte do an-
no ; muitas ha onde se acharão em actividade todos
os oflicios fabris das nossas aldeias. A necessidade
cria a industria ; e o camponez do norte aprende, na
sua solidão, a ser tudo quanto lhe é preciso para sa-
tisfazer ao seu arranjo e da sua família ; é, por isso.
çapateiro, alfaiate, colxoeiro, e até .irchitecto ; ne-
nhum camponez do sul da Europa é comparável a
este, recolhido na sua propriedade, que ahi vive só
por muitos dias e mezes, cultivando as terras e tra-
ctaiido do tjado. Apenas algumas vezes aos domingos
vae com a (amilia á igreja, e la topa com amigos velhos
e parentes com quem passa o dia. Outras vezes vao
a cidade que lhe fica mais próxima para feirar no
mercado. De inverno é (|ue elle emprebende com-
mumniente as suas excursões, porque então não u
obriga, como de verão, o trabalho agrário; corre ve-
lozmente, em seu leve Iraió, pelos rios e lagos co-
bertos de gelo, e pelas planícies recamadas de neve.
E muito para vêr-se uma doestas habitações rústicas
quando chega asolemnidade do Natal, a maior festa
da Suécia. Então, parentes eamigos costumam reu-
nir-se, quaUpier que seja a distancia que os separa.
Muitos dias de antemão a dona da casa tem prepa-
rado a cerveja, especialmente destinada para essa oc-
casião, e amassado os bidos ile cevada e de trigo ;
tem mais que mostrar asna habilidade no tempero
dos leilões (pie, por uso tradicional devem vir a me-
za n"esse dia. liimpa-se a casa com lodo odesvelo, «
os Irastes apparecein no apuro do aceio : enfeila-se
tudo ciuii ramos verdes e llõrei artitudaes. Chega <•
dia da reunião, desde o alvor ista aberta a cancel-
la do ijíiid: a festa é completa.
A vida S(ditaria, a necessidaile de praticar a um
tempo muitos oITicios para satisfazer as precisões do-
mesliias, prestam a estes caiiiponezes um caracter
dihlinclo de altivez e independência: muito civis pa-
ra com o estrangeiro atteiicioso, eiierespani-sií prom-
(itamente contra (piem os menospreza. Não ha muitos
ânuos (pie uni iiiglez, indo de iMalmo paruStockol-
ino, injuriou nin cam|ionuz (pnt lhe sorvia do posti-
lhão, e o ameaçou de pancadas ; este saccoii tranquil-
lamenle da algibeira uma correia, ngarrim vigorosa-
mente ambau iis mãos do turbiiliuito \ iajante, umnr-
rouliras com segurança sobre o peito, e depois, som
di/er |ialavra, voltou a tiumir oseii assento, e si^guill
a jornada. Chegado á primeira estação da posta con-
tou o qiio 8u linha passado, o oinglel coutiiiuou so-
40
O PAKORA3IA.
girado como um animal bravio. A cada mudaopos-
tilbão tirava escrupulosamente da mala a importân-
cia do aluguel da jornada que acabava de fazer, pe-
dia outros cavallos, e assim andaram até (iothem-
burgo, onde o inglez quiz fazer alto, muito enjoado
(3'este modo de peregrinar, e provavelmente bem
emendado. Eu mesmo experimentei algumas vezes
quanto era imprudente irritar o amor próprio dos
camponezes suecos. Certo dia, achava-me a algumas
milhas de Gelfe, mui desejoso de chegar cedo a esta
cidade, ondeesperava acharcartas de Krança. O pos-
tilhão não se appressava á medida da minha impa-
ciência, eu quiz fustigar os cavallos : ao cabo de al-
gumas palavras ásperas de parte a parte, elleapeou-
se, poz-se em acrão de tirar as bestas, e deixar-me
só com a minha caleça no meio da estrada. I''oi-me
precibO accommodar-me, e esperar para ver a bonita
cidade de Gelfe á hora que o meu cunductor lá me
quizesse levar.
Não se viaja na Suécia como em França e Alle-
inanha. Não ha mais que duas diligencias, uma que
vai em sete dias de Helsingfors a Stockolmo, outra
que faz três vezes por semana a jornada da capital a
Upsal. Fora d'eblas duas estradas privilegiadas, é
mister cada um ter a sua carruagem, ou alugar de
posta em posta o bonJhárra, caleça pequena, desco-
berta e nada commoda. A distancias de cinco a seis
léguas, c á beira do caminho, lia uma casa feita de
vigas, como já disse, qile serve junclameute de esta-
ção e de estalagem : o dono 6 obrigado a ter prump-
tos na estrebaria três ou quatro cavallos disponiveis,
mais ou menos conforme a importância do log:\r, e
além d'estes um certo numero de reserva, que pelos
habitantes do município lhe são fornecidos, se assim
é preciso, por escala. Se os cavallos do homem da
posta já estão a caminho, quando se chega ao logar
da muda, é necessário expedir um rapaz á procura
dos cavallos de reserva, que ás vezes pastam a duas
ou três léguas d'alli : imagine-se que paciência é pre-
ciso ter com tal sjstema, por pouca pressa que haja
de chegar ao termo da jornada. Ha, é verdade, ura
meio de abbrcviar estas demoras; isto é, mandar
adiante um mensageiro, queencommende <is cavallos
para hora certa', mas note-se que os cavallos não es-
peram na estação mais de duas horas além d^aquella
que se fixou \ depois d'este prazo o homem da posta
pode manda-los outra vez para o campo, e o viajan-
te, que teve no seu transito alguma demora inespe-
rada, ha de pagar o recado, e uma indemnisação pe-
las duas horas que (« cavallos alli estiveram para-
dos, e, em cima de tudo isto, ha de esperar que tor-
nem a ir buscar-lhe os mesmos cavallos. Porém a ta-
xa da posta é tão módica, que em verdade não se pei-
de exigir portal preço ser» iço mais activo, c ao men-
sageiro dá-se uma bagatella •, é um rapaz ou ás vezes
niua rapariga, que parte com toda u gravidade levan-
do unia fatia de pão n^algiLelra, para cantinhar as
suas oito ou dez léguas, quer ã thnva, quer á neve,
de dia ou de noite; c que, se na estação lho retri-
buem com meia dúzia de soldos, se inclina até o
chão, e agradece do intimo d'ulma. Bem se vê c|ue
<i serviço da» postas não é, como em França, rendo-
so e invejável ; e uma espécie decontribuição de que
nenhum caníponez pode isentar-se, e fácil será com-
prehender que não se põe muita pressa e zelo em
praetica-lo. — Não devo passjir em silencio que na
Suécia os campunczes tomam parle directa na logis-
liição <lo estado; lia rústico, »|Ue se vos appresenta
tom sua calça de brim grosso e cru, c \ estia aiul,
conduziíidu os cavallos que vos hão de transportar
até a outra estação visinhn, que pôde muito bem ser
um honrado membro da ditla, um ropreícntantc da
classe doacamponezes, eleito unanimemente pormui-
tos concelhos; e que algumas vezes com seus discurso',
dictados pelo conhecimento practico das cousas, e pe-
la recta razão natural, vence as mais elegantes falias
dos deputados pela nobreza e pelo clero.
O povo sueco, com o orgulho hereditário, conser-
vou tatnbem as virtudes de seus antepassados : é va-
lente e leal, cumpridor da sua palavra, hospitaleiro,
e de austera probidade. Vivi mais de dois annos r;i
Suécia ; atravessei, só com o postilhão, llorestas d."
duzentas léguas, passei noites em casas remotíssimas
de povoado, e nunca fui victima da menor falsidad».
(riue differença da Rússia, onde mal entrava n'uma
hospedaria, o dono da casa vinha logoreccmmendar-
me que fechasse armário e commoda com volta do-
brada, e que não saísse do quarto sem deixar cadea-
do na fechadura, declarando que, mismo com todas
estas precauções, não estava inteiramente seguro de
não ser roubado !
Outra caracterisfica do povo sueco é o sentimento
poético, innato, e que se revela a todo o momento
nas suas festas e ajunctamentos, e até ás vezes nas
practicas quotidianas. Não ha uma só familia em
Suécia que não conserve, como preciosa herança, cau-
tos populares, tradições misteriosas, que patenteam
imaginação pura, e uma certa adoração dasbellezas.
harmonias, e phenomenos da natureza. E a tradição
dos génios que, á noite ao luar dançam nas campi-
nas, dos que cantam á tlôr d"agua. dos que fazem vi-
brar as chordas melodiosas de suas harpas argêntea»
nas cataractas e fontes; de uns que deitam sorte fu
nesta sobre homens e animaes, ou de outros que fol-
gam de estar juncto aos lares caseiros, e protegem a
casa onde buscam abrigo na estação invernosa.
Todos os camponezes da Suécia sabem pelo menos
ler, e quasi todos escrever: o ministro não admitti-
ria ao sacramento da chrisma os que não podessetn
dar prova d'estes conhecimentos elementares ; e uma
razão imperiosa a que todos se sujeitam. Nas habita-
ções solitárias, onde não pude haver professor ctun
eschola, os pais são os mestres dos filhos ; e o pastor
de tempo a tempo, vem ccrlificar-se se elles cura
prem o seu dever, auxilia-los com eshortações e con-
selhos, c averiguar os progressos dos discípulos. Não
creio que haja casa de lavrador, por mais pobre que
seja, onde se não achem alguns livros, ao menos uraa
Bíblia, o psalterio, e ás vezes obras d"historia. prin-
cipalmente u dopaiz, tão heróica chella, e que é re-
lida nos longos serões de cada inverno E fácil de
conceber a inlluencia que semelhantes leituras devem
ler no animo de um povo intelligeiite por natureza:
a Bíblia lhe dá elevação d'espirito; e as chronicas
nacionaes mantém o nobre sentimento de p.itriofi»-
mo. Qttanlos homens ha cm França, tjut ntmsff/uer
ptln nome conhecem os homens mais illtutris. oijíitvs
mais ijloriosos lie nossos annacs. ao passo que na Sué-
cia taltez não haja um rústico que ignore a vida
grandiosa de Gustavo Vasa, as emprezas de (íustavo
.-Vdolpho, e a coragem aventureira de Carlos 1;2 "
Ainda mais : — não é raro encontrar nos c,impt« tr.i
balhadores que, ouvindo pronunciar o nome do vii
cedor de Narva, tiram o barrete por impulso ii.-
tinctivo; tão fundas raízes temem seu cur«çãnor<'-
peito á gloria militar, que foi a primeira |;loria >■•.■
sua nação. —
A.NTIGOS omclAES MIlIT*BC^
o Mail.
Desde o principio da monarchia se encontr-i lif
qucnlemente citado, como importante no; excrciti
o PAJNORAMA.
o cargu de adaíl. Cliainavam-lhe zaga, e ainda em
1700 davam os venezianos esteiiome ao mesire de ce-
renionias que precede a todos. O foral de Tliomar,
(ielUb^, iallaniio das correrias da fronteira, diz : u Da
presa de fossado não sede ao zaga mais que duas par-
tes, licando aos moradores do conceliio as outras duas. "
O officio do adail era na realidade delicado e es-
pinhoso. D. Aflonso o Sábio, na lei das Sete Parti-
das, descreve com miudeza as suas obrigações, e in-
siste nas qualidades que os deviam rccommendar. Era
o zaga ou adail quenj governava os almocadens e os
alniogavares. (iuando pela calada da noite as caval-
j;adas se torciam pelas queliradas da montanha para
amanhecer sobre a coroa eminente do caslello roquei-
ro, um homem havia, em cujas mãos se pesava a sor-
tecommum. Lá ia na test.i dos almogavares, que ora
cornam á direita, ora exploravam á esquerda, ba-
tendo as encostas ebalseiras. Seelle se enganasse, se
trocasse os caminhos, um golpe d'ininiigos podia res-
ponder á surpresa pela surpresa. Se fosse mal infor-
mado dos movimentos dos árabes, em quanto silen-
cioso» te mettiam pela fronteira moura, podiam ou-
vir (ie longo e pelas costas o grito d'Allah ! mistu-
rar-se com os gemidos dos filhos e das esposas, o ver
o foa'!) do incêndio ateado nas casas c herdades d'on-
de tinham partido. E que diante do adail chrislão
estava sempre o adail dos árabes, velando nas trevas.
Na lealdade dos udaís repousava a segurança dos for-
tes— se o coração lhe desmaiava, ou a vista tremia
diante do perigo-, se a setla, voando do pinhal, lhe
varasse o peito, quem diria: — uaquella estrada leva
á mina ; «'esta está a salvação ? "
De origem sarracena, como o indica o próprio no-
me, o adail, nas guerras de recontros e emboscadas,
de surpresas e correrias, continuadas quasi sem tré-
gua da fronleira moura pari! o concelho chrislão, era,
jMir assim dizer, o homem do destino. Em quanto
tudo dormia ve-lo-hieis, disfarçado no albornoz mou-
risco, montado no lÍ!;<iro andaluz ccmi sella e estri-
bos á airicana, só, mudo, e firme, atravessar as vei-
f^aa onde susurra a aragem nocturna, ocorrer, e cor-
rer, aqui transpondo a ribeira que se arremessa do
alto, alli, furfande-se nas trevas ao encontro dos al-
mogavarcí árabes, cujo galopim sAa na solidão :, mais
longe, susiendo a rédea e repi iinindo o respir.ir junc-
to do tronco tio roble, em (|uanto a roída do mouro
segue lenta e pausada. Vo-lo-hieis solTrcndoa tormen-
ta giiianilo-se pelo clarão dos relâmpagos, padecendo
«frio V. a fome, estudar atalhos, medir veredas, com-
binar a marcha occulla por gargantas de serros bra-
vio», por cima das agulhas dos mais temerosos despe-
nhadeiros. E dias depois, á mcania hora, com o mes-
mo recato, voltar ao caslello de Coimbra ou deTlio-
inar, edizer aoalcaide: — u O mouro dorme sem re-
ceio : quereis acorda-lo? O caminho é perigoso mas
breve i amaidiã, se Deus no» ajudar, Jjeiria será d'el-
rei, e a cruz de Chrislo vencerá mais uma vez as luas
do pro|)hcta. >' — E vencia (piasi sempre!
Eis nipil o quo era o adail. Um instante de des-
cuido— um relancear da vista menos pcni^trante —
uma traição fácil — c o» cavalliMros esforçados, quasi
lios braços da vietoria, caíam ucni remédio diante da
lunça do surraceno.
Com o nomií ile adail ajipareeo já este officio no
tempo dei). João i, edin-ou aléau dei). Joãolll,
A» chronica» da guerra d' A bica, <> mais bello e ca-
valleiroso episodio ila nossa liialoria, em muitos lo-
cares encarecem a importância do cargo, e piíiUiiil o
caracter ilo alguns que o exerceram.
Vejamos ngora de (|iu! maneira nos exércitos se fa-
zia um adail. A nolicii das cereinonias é tirada di^
um livro lio século XIII, eachu-sc tunibcni quasi pe-
lo mesmo tbeor na segunda Partida de Aflonso o
Sábio.
Era costume antigo ser o adail levantado pelomo-
narcha, ou pelo rico homem que d"elle tinha ienen-
ciii da terra. Cbamavam-se doze adaís dos mais ex-
perimentados, e tomava-se-lhes juramento por Deus,
pelo rei, e pelas cruzes da espada, de só dizerem a
verdade cm consciência. Se não houvesse numero suf-
ficienle de adaís, convidavam-se tantos soldados ve-
lhos e sabedores, quantos fossem necessários para com-
pletar a numero dos doze.
E então em presença de todos era perguntado o
pretendente sobre os quatro pontos seguintes: nCo-
nheces u terra, os atalhos, as veredas, para guiar as
correrias, e as defenderes dos assaltos e surpresas .* Por
tal sitio, se te mandarem, aondecorre a fonte? aon-
de se corta a lenha para a fogueira do arraial ? Em
que logares porias asatalaias docampo? aonde farias
o assento d'plle ? por onde enviarás osesculcas ealmo-
gavares ? n
" Como proverias ao sustento do cavalleiros e peões ?
Glue vianda podem levar, e para quantos dias.''>
li Es esforçado de coração? Irás de noite vèr o ata-
lho, espreitar no meio do mouro que dorme, cruzar
por entre os atalaias ealmogavares que escutam? Se
te pozerem a lança no gorgel trahirás o segredo de
uma entrada? Se te encerrarem n^uma masmorra sem
luz, com agua pelos peitos, venderás a segurança de
teus irmãos? Se te atarem ao pescoço o nó da corda,
bradarás mercê descobrindo a cidade ? "
"Es leal? por peita de ouro, ou decavallo, de vac-
ca, ou de mulher entregarás ocastello ao infiel, a es-
pada ao cavalleiro, e a cavalgada ao alcaide delNIa-
foma ? "
Depois de ouvida a resposta, se o testimunho dos
antigos lhe era favorável, juravam sobre sua alma
"Seja este feito adail», e honravam-no do modo se-
guinte, t) que o devialevantar dava lhe vestido, es-
pada, cavallo, c armas de fuste e de ferro ao uso da
terra. Um rico homem cingia-lhe a adaga, mas sem
a peseoçada de prancha, que só competia aos caval-
leiros. Depois de cingida a espada punha-se no chão
um escudo chato, com as costas para fora, e alli se
eollocava de pé o novo adail. t) rei ou osenhorque
o investia no cargo desembainhava-lhe a espada, e
dava-lira nua pela ponta, para ello a ter direita co-
mo esto(|ue. Osduze, (jue juraram por ello, crguiam-
n'o então no escudo á maior altura dos braços i pri-
meiro voltado ao oriente, e ello com a espada fazia
uma cruz no ar, dizendo; " Em nome de Deus, d'el-
rci, edesta terra desafio a lodos os inimigos da fé!»
Depois iam-iro voltando ás outras trcs partes do mun-
do, e elle sempre repetindo o mesmo. Apenasdescia
do escudo embainhava a espada, e o rei ou o rico
homem punlui-lhc na mão um signal, dizendo: "Em
noiíKí do rei concedu-le de hoje rm diante o officio
de adail \ poderás ter cavallo u armas ^ nssenfar-leá
mesa dos cavalleiros ; e quem Ie olVonder será cas-
tigado por honra dV'lrci, como eo tivesses foro de
('.ivalleiro ! " Depois de feito adail, e honrado as-
sim podia governar os homens do concelho, o os eu-
v.illeiros, dando vozes de commando, e punir de va-
ras os almogavarcs opções, sogundo merecessem, mas
dl- lórimi (|ue os não tolhesse de algum membro.
Eiii siibsi'(|tienlea artigos se descreverão outras co-
remonias militares da meia idade, próprias paru se
conliCL-erani os uustumus dus séculos antip;o9.
t) siídiíuno é a alma das grandes nmprctas. Um un-
ligii escrevia na cinza u minuta dos seus projectos
supruvii, c dcsuppurcciu o luciiut ve^tigiu.
4f<
O PAIVORA3IA.
Da sobte dos SIBSISOS KAS M 15AS
DE laaLATZIÍfíA.
(Continuado de pag. 39.)
I tovello, havia muito tempo, segundo parecia. Q.aaD-
I do esle desgraçado pequeno foi á presença dosmagis-
I trados não podia ter-ie eoi pé nem estar sentado;
I não hou\e remédio senão deital-o no chão sobre uma
' espécie de berço. Provou-se na de%assa que lhe ti-
A HEaiiEN-i altura das camadas de carvão em mui- ; nham quebrado o braço com uma barra de ferro, e
tos logares, e por conseguinte a pouca elevação das ! que nunca Ih^o encanaram, antes por espaço de mui-
Calerias, é cauéa d'e5te abuso. Uma comiiiissão de tas semanas o forçaram a trabalhar com o braço par-
inquerilo verificou que em muitas minas teem as tido. Provou-se mais, por confissão do mestre, que
galerias dois e meio até três palmos e meio d^alfu- este cortumava dar-lhe com um pedaço de páu, que
ra, e que em certos logares não passam de dois pai- tinha na ponta um prego de muitas pollegadas de
mus. No Dcrbvsliire. om que a maior parte das comprimento. O raj)az pasmava fumes, como atlesta-
camadas não excedem a der, palmos de espessura, tem- , va a sua extrema magreta i o mestre empregava-o
>e empregado rapares em todos os trabalhos da lavra em puxar carros, e, depois de o inutilisar para o
das minas : os mais velhos exlrahem o ca r>ão deita- ' trabalho, mandou-o de presente á mãe. que era uma
«los de costas, iiasposluras mais penosa». Outro tan- pobre viuva."
to acontece om Halifax, onde as camadas não toem A condição das mulheres eraparigas ainda é mais
em muitos logares mais do que dois palmos e meio deplorável. As rapariguínhas são empreitadas nos
(termo médio), e n'oulras ainda menos de dois pai- mc-nios trabalhos que os rapazes: assim como elles.
mos. Na parte oriental d.i Escócia começam os me- empurram ou puxam carros; mas sujeitam-n as. e
iiinos aextr;;liir o carvão aosdoze aniios deidade, e ás mulheres também, a tarefas oue os operários do
no principado de Galles aos sete. De mais a mais, outro sexo em nenhuma edade acceitam. Km muitas
ii"algumas dVstasminas é muito imperfeita a \enti- minas da Escócia, que não teem machinas para tra-
lação, e olhe-ie tão pouco para oe«gotameiito, que os zer o carvão á superfície da terra, as mulheres eme-
inineiros trabalham todo o dia com os pés no lodoe ninas o carregam ás costas em cestos por toscas esca-
atc dentro d'agua. Accrescente-se a isto. que nos darias ouescadasde mão. Andam tão nuas, que não
logares mais doentios é que empregam meninos de seatreviam avir á presença dos coinmissarios encar-
mais tenros annos, preferindo as rapariguínhas. trepados pelo governo do inquérito. A decrepidez al-
A maior parte dos mineiros de ambos ossexosem- cança toda esta gente com espantosa velocidade. <J
pregados nas minas de carvão pertencem a famílias , mineiro aos quarenta ou cincoenta annos eita inça-
dos próprios mineiro», ou a gente pobre que mora pai de trabalhar, parecendo tão quebrado de for-
nas visinhanças. Estes, com o fructo do seu traba- ! ças que nem um vellio de oitenta annos. Os homens
lho, ajudam a viver seus pães, e sempre d'al)i Ihesre- I de setenta annos que se contam entre os operário» das
sulta proveito , mas ha districlosem que certo nume- i minas são menos de metade dos que pertencem á
ro d'estas desgraçadas creaturas consomem, sem lucro 1 classe dos lavradores; e nos seus costumes parece que
algum, a flor da mocidade namaisdura escravidão. !a dureza dos trabalhos imprime um caracter rude e
Tal é a sorte de muitos orphãos de queas parochias,
a cujo cargo os poz a indigência, se livram entre-
gando-os para aprendizes aos mestres mineiros, que,
c»mo nos trabalhos das minas não ha que aprender,
Ih-s \ão ficando comas ferias até elles chegarem á
edade de vinte e um annos, occurrendo apenas ás
módicas despezas de vestuário e sustento. Fora dif-
ticil imaginar o que os malaventurados padecem
Lm d"estes apreijdir.es narrava
a historia da sua negra vida
brutal, que chega muitas veies a ser feroi.
Os effeitos do trabalho excessivo e prematuro dos
meninos, em classe alguma são mais nocivos ao phy-
sico eao moral do que na que vive da lavra das mi-
nas de carvão de pedra. Os factos esta\am paten-
tes, e a Inglaterra não podia demorar a repressão
dos abu!o« e crueldades apontadas nos relatórios dos
commissarios, e por isso uma lei votada em 1642 pro-
iios seguintes lermos I hibiu o trabalho das mulheres nas minas ; determinou
ao commissario que o ' que os meninos d"alli em deaute entrassem para el-
iiiqiiirira : u Não sei a edade que tenho ; morreram- I las aos dei annos, e saíssem aos quinze, não podendo
me pae e mãe, ha quanto tempo não posso diielo. j trabalhar mais do que três dias por semana ; e sujei-
O meu mestre tinha-se obrigado adar-me de comer ! tou asexplorações subterrâneas eai todo oreino-uni-
e de vestir; duva-me uns farrapos comprados aos do á vigilância do» inspectores das manufacturas.
trapeiros, e a comida nãochegava para matar-me a 'criados por uma lei de lSo3.
í«me. Lar^uei-o pori|ue me maltratava ; bateu-me .
BmrUAS os esvingahda im.ml «mmav eis.
As DESGRAÇAS que acontecem muitas veies por ca.-
uma bucha sobre matérias combustíveis, fiíeram com
duas veies com uma picareta." ^Ao ouvir isto, dii
o conm.íssario, mamiei despir o rapar, e lhe >í no
peito uma larga cicatriz de ferida feita con> instru-
mentocortante ; tinha também pelo corpo todo mais
de \inle feridas, qne recebera aempurrar os carros pe-
las galerias baixas.) li O meu mestre t sp.incava-me que Mr. liassaigne applicasse o phospato de ammo
tantas veies, e dava-me tão máu tractamento, que '. nia á fabricação de buchas ininfl«mm.T\eís. O nie-
re-iil\í deixal-o, a vêr se melhorava de condição. 1 thotlo pelo qual transforma o papel de que se falem
Muito tempo dormi dentro de pt>ços abandonados, as buchas em papel inintlamniavel, e simples: cot:
tiu nas cabanas que estão ú beira dos poços expio- j siste em dissolver uma parte de ph>»phato de amm •
fados, sem comer mais do que os ioti's das vellas nia crislalisado em dei partes d'agna doJ^io, e em
de cebo que os operários |)or alli deixavam. " conservar mergulhado o papel n"este liquido tre» ou
Oseguinte facto, escolhido d'entre outro» muitos, ' quatro minuto». Tira-se depois, aperta-»e na» mãos. e
piiila mui bem a brutalidade e fereia dos mineiros. , fai-se seccar ao sol, nu em estufa. O p-ip^l. n"esta
i'Le\aram um rapai ao doutor Milner, medico em [operação, ganha mai» uma vigésima parte do seu pe.
Ri>c!.dale, no Iiancabhire. Exaniinaiiil.) o. achou-lhe to, porque absorve certa quantidade de phosphato de
no corpo vinte eseis ferid.is ; o lombo e a parte p<i5- leal. que o não deixa arder. Das experiências feitas
lerior docorpoera umachaja, na c.ibeç.i, despotoa- ^ com estas buchas n'uma espincard.i de caça resulta,
da decabelln». \iam-<p'lh<' O" «ignaes dx muita» feri- que ellas. ao «.tirem da «rmã. caem no chão »eni
d.is gra\eí, tinha uni hrcço partido nor baixo doco- se incndiTrem.
o PANORAMA.
49'.
o pontífice fio IX.
C-luANUi» a voz Hos sino», fçííinondo om lliiiiia, .iiiiuin-
ciou ú Itália a <jr|iliaii(l.iil(' <ia cidailc dos ccsaros t'
ii du iiiiirido Hirislão, |iiMii^lriiit ciii todos us uiiiinos
a mais prol'iiii<la iindanrliolia. O cortejo fuiioijre do
papa, ipic ia di'SiMii(;i'ii' ao lado de (Jrc;;()rio \'1I edo
lilliocrii<'io II], al^.lVl'^sallllo peio meio «las iiiultiducs,
avivou a iiifinoria das ililTn iildadcs (juc (inlia do su-
jeitar o siictcssor a (pii'm roulwsst- ri'<'clK'r as chaves
do Apostolo. Todos sciiliaiu (|1|ií oiii tacs circunislan-
fius o lioinciii d(slina<lo a oi'i'upar a radciía de S.
1'edro podia perder ou salvar a it;riju eiuii uma pa-
lavra.
No domiu;;ii de juulio, ipie preei^deu o eonelave, o
céu i.-slavu col)erl(P, easnuviMis, dcsenrolaudo-si! soui-
briuN, pareciam pesar siihre o cora(;ão da Ilalia. Ao
vutrurciii os cardeae» para a eh.deão relienloii o tcui-
porul, t! o» rouiani>s, ainda superslieiosos, tiraram do
acuso os mais Irisles agouros, (,'iueoenta eardeaesiauí
fucerrar-se para elej^er o calx-iju da if^reja, e o voto,
»^U(; llie devia firmar a tiara na fronte, por (oti^h ti-
iilm lie reunir duas leri;aH partes e mais mu ilos ns-
nutuiitcs. Os cardeacH nio(;os, tjuasi estruulios UIW «01
VoL. 1. — OuTUUitu 17, IU46,
outros, iieí^avam-se a aceeitar direcção ou conselho.
Apontavani-se nouies dilVerentes. re\olviam-sc aml)i-
(;òes incpiietas; a diplomacia hutava ás portas do sa-
cro colle^io, <lividido em IVaceòes, e entretanto as
conjecturas de lora aniniavam-se ou esmoreciam íe-
u,ui»lo se li;j;uravam nudlior ou peior as prol>,ibiLida-
des <los diversos concorrentes.
Numa a incerle/.a foi maior, nunca o interre2,uo
anuMçou de Ião proloni:;ada ai;onia os ijraudes inte-
resses penileutes da eleição do sunimo pontifica;. K
por isso (pie, no cíuicurso apiíduulo para assistir áso-
ieiune abertura do conclave, a tristeza carregava .!■•
sombras o rosto de todos. Vozes sullocadas repetiam
(pie a i^roja s(! conservaria lari^o temiio viu\a. Vi\*
lallavam da tempestade qiu" ia estalar no sacro ool-
lej^io ; outros, escutando ao loni;e, já presentiam as
passadas darebellião accesa em toda a Itália. \tv viíc.
em ipiando o galope dos cavidlos soava a distancia, «^
calavani-S(! as conversa(;('>es em lodos os sítios. O cit-
valleiro, passando rápido, deixava atra« de si loiígi»
e ciudVaniçido silencio. — Krani oscorreios (l'.\ustriu ;
crum oa avisos das cortes de Ituli.i \ crum cmtim os
50
O PANORAMA.
mensageiros das legações romanas, que se cruzavam
na estrada, e chegando a Roma vinham augmentar
a perplexidade da crise.
A Europa, vista pela superficie, parecia espectado-
ra pacilica do grande drama representado nas visi-
nhanças do OLuirinal. A guerra não troava — o laço
da concórdia unia a França á Inglaterra, e a insur-
reição como que adormecera. Mas um dia depois, se
o papa eleito trahisse as esperanças do maior nume-
ro, quem ignora (usando de uma imagem tirada do
antigo Lacio) que oTitão encadeado, exacerbadas as
dores, se havia de virar de lado, sacudindo com a
possante espádua ovolcão da Sicília? A Itália, reven-
do a desgraça actual no espelho de um passado glo-
rioso, allumiada pelo sol que infundiu o raio d^amor
na alma de Rafael, e acccndeu a faisca de Prome-
theu no peito de Miguel Angelo, não esqueceu ainda,
que também a representam encostada ás fasccs con-
sulares ou á lança de Attila. O céu meigo e as es-
trellas d'ouro, que ouviram suspirar o Tasso, os jar-
dins e .as rosas, entre as quaes sorriram os amores do
Ariosto, também virara arder as çarças, d'onde o
Dante se levantou, trazendo na mão, sacerdote epro-
pheta, a divina ctimeilin, tábua do ferro escripta com
sangue pelo dedo da discórdia civil.
A Itália é terna e suave, mas é perigosa, sobretu-
do nos instantes de cholera. Já se viu rainha, ha de
custar-lhe a ser escrava. Quando as mus;is desterra-
das da Grécia, tomando pela mão a lilicrdade d'A-
thenas, vieram naturalisar-se nos campos do Tibre,
acharam pais, irmãs, e família no solo fecundo aon-
de César caiu, e Virgílio cantou. A Itália, costuma-
da a ser a primeira nas idéas e no gosto, não podia
mais tempo resignar-se a vêr caminhar tixlos os po-
Tos, e ella permanecer atada á columna •, não queria
ouvir exclamar acivilis.ição "adiante ! ••> e como cap-
tiva ficar pisada pelas rodas do carro que cm melho-
res dias dirigira ! A intensidade dos seus infortúnios
podia te-ia quebrantado, mas o enthusiasmo não
morre senão com a nacionalidade ^ eosa, viva na al-
ma e no coração de todos, reina dos Alpes ao Aveu-
tino.
Por isso o silencio que, juncto ao leito de morte
de um papa, gelou a voz e o chOro da Roma, e
das legações, c aquella multidão apinhada ao limiar
do sacro collegio não indicavam aos olhos dos reflec-
tidos senão a pausa que precede ura instante as gran-
des batalhas. Se ao cair o muro erguido á pressa á
entrada do conclave, saísse coroado um papa que lhe
cortasse as derradeiras illusões, quem sabe se, levan-
tando o terrível brado de Mário, iriam ao capitólio
desprender a espada de Marcello, arremessando a
bainha para lon^e ?
Era isto o que sonliani reis e povos, uns distíncta.
inilros confusamente. Tixlo* avaliaxani que se estava
nas vésperas do acontecimento mais imp\.>rtante des-
te quarto do século. A cruz de Christo, nas mãos de
iim apostolo ptidia ser bandeira de esperança e civi-
lização, jiodia salvar .1 igreja ea sm-icdade — nos bra-
ços de um fanático con\ertia-so no cepo aomle o al-
•o« tont.irí,a deca]>itar o progresso, conseguindo só
cortar o pulso a si. Da varanda. d\)ndc o cardeal ha-
w,-» de nnnunciar o novo papa, podia partir ajKiz ou
a guerra — a es|K-rança ou a discórdia!
\ reforma era necessária, estava m.tdura no pcn-
«lunento c nos factos — devi.v operar-so de cima para
baixo, ou romper armada do seio das lucta5 civis. .A
aitiiação dos Esf.ados ]M>ntíficias não se exaggcra, di-
wkhIo ()ne era deplfirai-el . O poder absoluto, sem o
frei» d;is conveniências dvivisticas deixava as rédeas
(io governo soltas .aos caprichos das potencias ou das
iodividuos. Us abusos, incarnando em fúrmas cadu-
cas, corroiam o corpo social, sem nenhum dos vene-
raveis anciãos, que subiam á cadeira de S. Pedro, ter
tempo nem esforço para os cortar de um golpe. A
anarchia administrativa, confundindo todas as no-
ções, invadindo os direitos, c ameaçando os interes-
ses geraes e particulares. Legislação incerta emovd;
justiça coniiada ao arbítrio^ processos entregues í
preponderância local ; a fazenda sem fiscalísação ; as
economias feitas pelos que lucravam nos desperdícios;
um sistema inquisitoríal comproraettendo a religião
na cubica das cousas mundanas — eis em reaumo aa
maiores feridas de que se padecia.
Juncto das abundantes culturas devidas ao brajo
laborioso de alguns lav radores estendiam-se baldios e
desertos arruinados pelos vícios da má admiuistração.
Cidades activas e esclarecidas gemiam sob a vara fis-
cal com que a tvrannia de agentes irresponsaveii fe-
ria a industria. £ sobre toda a Itália a íniluencia de
uma grande potencia, eslendeudo-se n^umas parte»
benévola e económica, n'outras severa cquasi inexo-
rável.
N^estc estado de decadência a que chegara, a igre-
ja tinha de escolher o seu logar no século e na ciw-
lis;ição. F"ilha do amor edo sacrificio podia levantar-
se, como Christo, do sepulchro, e larg.indo o sudário
apixl recído vestir a túnica do Mestre, e fazer do Evan-
gelho o verbo da nova sociedade. O seu reino, que é
do futuro, perde-se na hora em que o esquecer pelo
passado. Levando alta c victoriosa a cruz, opera-se a
reforma mansa e suave ;, abatendo-a, para tirar a es-
pada, conipra-se apreço de lagrimas esangue. Entre
os dois caminhos era cliegado o momento de marcar
a preferencia.
Homa e a Itália tinham razão. O novo papa ia
receber as chaves de S. Pedro n^uma epoclta dlflicil,
i rodeada de escolhos. As qualidades que o deviam re-
( vestir, para desempenhar a sua grande nii>são, foram
sempre raras, e espinhosas de practicar. Intelligencia
elevada para abraçar as necessidades do estado tem-
poral; vista extensa para medir os verdadeiros pas-
sos <lo progresso humano; força e prudência para con-
ceder a paz oque cila deví.i podir", áesperança oque
se lhe podia prometter. Carecia de animo para não
desfallecer entre os excessos inveterados e o delírio
faccioso ; de coração robusto, que não quebrassem
ameaças, nem esmorejessem suspeitas ; finalmente re-
quería-se n''elle a virtude risonha do Apostolo, a hu-
mildade do Precursor, e a firmeza d'ura Innocencio
III. Todos conheciam isto, todos o diziam, mas ho-
mem tal aonde o havia, ca existir quem lhe abriria
caminho t
E entretanto as horas a succcder-se, os obstáculos
a cruscer, u a ctmfusão talvn que .assentada a mesa.
do escrutínio, acccinJvudo as maíure:í dissidências nu
sacro collegio.
Passaram vinte e qnatro horas n*esía ag<inia. Dv
rep/uto caiu a famosa muralha, e o carde.d Hiark»
Sforza, camarlengo. com voa sonora qnc rt"s<niii em
toda a praça, pronum-i.indo o - hahemut fonti/icetn-' ,
V proclamando papa o cardeal Mastei, cuDi o nome
de lho 1\, mudou em jubilo as mais sioistra ap-
pruhensòes I
As long.os accl.ima<H>es de Homa, correspondendo á
eleição, indic.anim que a ign>j.a !;.uihara uma grande
vicloria, constituindo a tiara em penhor das suspi-
radas reformas.
iiue m;igía tinh.a o nome dr um sacrrdot» para,
apenas lançatlo das varandas ao povo, o faier chorar
d"al«»:;ria, c abraçar nas ruas os dooonhecidi» comn
irmãos, á semelhança da aatiga Roma depois de du-
vidosa lutalha .'
K que^ o paps eleito sigoilicaTa a ide';» generiiif
o PANORAMA.
51
da em toda a Itaiia. A iRieja arvorava a cruz de i
Christo como symbolo d'esp<Taiiça para o futuro. A
rnli^çião, sorrindo consoladora ao prcsonte, promettia
guiar os lionieiis por entre os espinhos de uma civili-
sação trabalhosa, abrarada com a fé, e inspirada pe-
lo amor. (Cunlinúa.)
O IIadjeb o£ Kordova.
(972 a 992)
(Coolinuado de pag. 4i.)
IV
Calal-al-noior .
A» thombetas sarracenas soavam por todos os an<;u-
los do Andaluz. Os cavallciros berebéres e as hostes
»larabes passavam o mar, eviniiam reunir-se com os
«quadrOes kordovezes. Os kadis, os wasires e al-
kuids proclamavam por toda a parf e a gazwat, ou guer-
ra sancta, contra os christãos. D'um a outro extre-
mo das Ilospanhas não se ouvia senão o zunir das
forjas apparelhando as armas, cortado do grilo de
guerra chamando aos combates. As planícies arripia-
vam-se de lanças t.ão bastas como as espigas no pra-
do ; as fragas tremiam com o peso dos escpiadrões ■, e
no topo das serras o estandarti; dos cabos lluetuava,
•obranceiro ás selvas da encosta, desenrolando nos
ares as suas brilhantes insígnias e as suas cores es-
plendidas.
Deslumbrava o aspecto dos campos então. O solo
dcsapp.irecia debaixo dos pés das multidões. Todos os
dias riíbentavam dos caminhos cohortes sobre colior-
tes, todos os dias rolavam das montanhas torrentes
dehomens, impellindo-se, aperlando-se, agglomeran-
do-se nos plainos immensos, como os rios que descem
c desernlxiccam no oceano.
A linal chegou uma legião, mais numerosa, mais
rica, mais formosa e esplendida do fjuo todas as ou-
tras legiões, eno meio dV-Ila um cavalleiro, mais fe-
ro, mais altivo e magnifico do <|uc nenhum d'a(]U(íl-
lia cavallciros. Á sua chegada Iodas as signas e ban-
deiras se abateram nos nKJutes como os cedros dobra-
dos pela mão da lornKíula — todas as laiicjas e cimi-
tarras se prostraram nas planícies conm as cearas aca-
madas pi'lo vento. Por onil(; aípiclle capitão jiassava
liomiMis e armas caíam .i seus pés beijando a terra,
« elle, com afronto erguida, atravessava por entre as
Úleira.s, curvas na sua preseu<;a, dignando-se apenas
de olhar para os milhares e milhares di- guerreiros
alli HMinidos.
O .issiunbroso cabo, galgandii .lo pjncaro mais iillo,
deu osignal dap.irliija. Ao simples .iciMio do seu bra-
ço dobr.irani-se ;t um Icmpo as lendas e pavilhões —
abalaram-se simidlane.is as hostes variadas. Tresdias
com Ires noites levaram os desliladeims a sorver a
turba iníiiiila. Ao raiar do <|iiarto bradou lá (h- ci-
ma o capitão da montanha áijuellas lilás incommen-
luruveÍH :
— ..Tara Caslella. "
K deltanilo o gimlc a galope nos fragM<'dos da en-
ulMtii foi, com as idtinias phal.ingi's, ininiergir-3(! nas
liçarganlas iiroliuidas <los (mimímIios.
A(|uelli' hoiiieni era (Mohanied, o hadjeb :, JMoha-
med, o |iiilcntc :, íM<iliauied,o víctorioso : — el-Mansur,
UMiio oliuliam leito chamar vinliMinnos d(> viclorias !
Kra — era elle (pn; S(! abalava com todo o poder
do Andaluz. edoMaghreb a invadir o território eliris-
tão, Huceessivamiuili! mulil.ido, (junsi retrahido nos
•cus primeiros liuiiles, c agora umeaçadu ilu ultinui
ruinu. Eru oLle !
A mão de Deus parecia Laver-se interposto sobre
o ímpio contra o punhal dos vingadores. Vinte anno8
tinha estado sus|K'nso o ferro dos mostarabes jura-
mentados no peito do infiel — vinte vezes se lhe ap-
proximára a morte no gume afiado — outras tantas
um dedo invisível aflastára a pontj. homicida, e o*
inimigos do hadjeb haviam caído fulminados a seus
pés para nunca mais se levantarem.
Os al-kaids das fronteiras eos condes chrístãos ha-
viam-se successívamente erguido contra o hadjeb, ex-
citados por uma íniluencía desconhecida e misterio-
sa. Apoz um viera outro; das fileiras destrocadas
d'um capitão infeliz surgia um novo calio de guerra;
sarraceno ou goilo, penínsidar ou berebere, ao guer-
reiro prostrado succedêra um novo guerreiro, concita-
do pela mão occulta que não dava um momento de
repouso ao ministro kordovez — e todos, e cadaum,
igualmente infatigável, igualmente pertinaz, arre-
mettía com o mesmo cego esforço, caía com a mes-
ma intrépida consl.incía.
Aquella immensa lucta, depois do breve descanço
de umas tréguas, súbita e misteriosamente quebradas,
era realmente admirável. Da parte do hadjeb sem-
pre o mesmo irresistível ímpeto, e o mesmo glorioso
resultado: da parte dos seus c-ontrarios sempre o mes-
mo animo indomável, e a mesma invencível tenaci-
dade. Onde IMohamed se apresentava era certa avic-
toria; os seus inimigos porém pareciam renascer da»
próprias cinzas, e moltiplicar-se com os revezes.
Nos acasos das batalhas, na confusão dos campos,
no rumor das festas e no retiro (h)s paços a vida do
terrível capitão estivera muita vez pendente d um
fio. Mas a mão de D<'us, como dissemos, estendera
sobre elle uma dobra do manto da sua justiça, e, co-
brindo-o, prcservanilo-o, conser\ára para IlagcUo e
c.isligo das llespanhas chrístãs, dos seus príncipes cul-
pados, e dos seus cabos ambiciosos, o tremendo el-
Mansur !
N ígíavam por elh- os olhos da cholcra divina 1
Os chrístãos ])orém não dormiam. l)espertava-os a
notícia dos formidáveis aprestos. Os guerreiros àr
Leão, d(! Gallíza e de Caslella marchavam unidos;
ao seu encontro vinham os de Navarra : á frente d'a-
quelles os condes Menendo Gonçalves e Sancho Gar-
cez, em nome do moço rei .AflonsoV de Le.ío ; a tes-
ta doestes Sancho, o (piadrímano, chamado assim pe-
lo seu esforço o actividade incomparáveis.
Nos campos de Lorca foi que pela primeira vci se
abraçaram sincera e cordíalmcnt<; eslcs liomens, ir-
mãos pela crença, o separados |)elos odíos ruins d.i»
paixões e ambições politicas. Os condes (pie tanta vci
liavíani mutuamente aberto os eapellos e lascado as
achas nos recontros, estendiam a'i;(>ra a mão uns aos
outros — e, (Xpieera mais, estendíam-n'a docoraç.lo.
Muitos d'elles — qiiasí todos (*) — haviam inílítado
debaixo das bandeiras do hadji-b, excitados pelo ran-
cor que lá por dentro os remordia, ])ar.i melhor se
olVenderem e dcspedaiarem n-ií|irocanuMite ; e agora
esticíta\ani-se no abrai;o IVateriio, reconciliados con-
tra o antigo senhor qin' os [irolegèra ao modo leo-
nino.
(») N'!lo nilniiro o <]iie nVste lopnr se nlTiriiin. As itisseo-
«ilcs |iiililii'iii>, c ás H'i!rii luinlH'in iiikIímis ile |mrlioiiliii' into-
ri-ssi^ Ifviivaiii lie(|iii'iili'ini-iiti' os |>iiiii'l|>es ciiiihlcs l•llM^ll^u^
iiíío nó II ussiiciur-Kií cum im iloiiiiiimlniis iiii f;iicirii ipir fii-
zliuil 1'iim ii.s sciiH irmilos ilr fé v iiaMlinciilu, seiíilo luiiilicni
a g('i\iii'iii H» mias nnliMis, ca IjivtiTciii n gm-rra por .siia cuii-
In. Silo l'ir(|ii('iit('s este'» cM^iniilos, solirilmlo dn siriilii \ nt«i
ao »i'i'ul(i \ll. Sirvii di' prova, eiilii- miiiins, o iiifi'li« rriímil»
de Hcniindii II, eiii (Hle, por oiiusii ifislaa iiiorliririH disíciv
8<V'H, 11 Horle do ri'ilio Irollc» l'»li'Vr loilll llii.H ilosv iu8 sflvali-
cui dus Anturiua, cuuio iio coiiii'i;o du ri'í;i'iiuriii;ilu.
52
O PANORAMA.
âuem fizera porém aquellc milagre ? quem congra-
çára aqiielles tremendos ódios civis tão difficeis sem-
pro de conciliar c sempre tão cruei? o tenazes?
Maravilhavam-se todos; mas nãono-sahia ninguém.
Altribuiam-n^o alguns á eminência do perigo com-
mum. Os experimentados e prudentes não se enga-
navam. Sabiam que esse perigo appareceria muitas
vezes sem dar este resultado — conheciam sobre tudo
em d<'masia a implaeabilidade cegoismo das paixões
politicas, para lhe poderem julgar tamanha etão sú-
bita virtude.
Outra era de certo a origem e razão do acontcci-
cimenlo que espantava e regosijava as Hespanhas
christãs, porque, havia longo tempo, n^eslalucta con-
tinua, sanguinolenta, temerosa, das duas crenças ri-
vacís era esta a j)rimeira vez que a raça goda peleja-
va unida.
Q.uanto á suprema influencia que fizera o que ain-
da se não liavia feito nas Hespanhas, repetimo-lo,
ninguém sabia de quem era ella.
(.'orriam porém estranhas conjecturas acerca d'um
lavalleiro, moço ainda, de uns quarenta a cincoenta
annos quando muito, apesar das cans que lhe alveja-
vam numerosas, do qual se contavam maravilhas de
valor, de actividade e constância n'esta longa e por-
fiada hicta de vinte annos. Pelejara, diziam, em to-
das as batalhas contra o hadjeb, apparecêra em to-
das as cidades que se haviam rebellado, percorrera
todos os condados que se haviam armado. Contavam
mais que um anno inteiro andara atravessando as
Hííspanhas de Leão a Navarra e de Navarra a Gal-
liza, por (!ntre nuvens de corredores berebcres, que
o perseguiam sem fructo, levando e trazendo mensa-
gens, predispondo os ânimos, salvando as difliculda-
dos, e pregando por toJa aparte com palavras admi-
ravelmente enérgicas e eloquentes a necessidade da
completa liança e união da raça goda.
'J"odos estos dictos porém não passavam de simples
vozes. O qu(! d'elle unicamente se sal)ia ao certo era
que cluígára das fronteiras do paiz de Afranc, trazen-
do do meio-dia, um troço de cavalleiros escolhidos,
hoste temerosa, que passava pela Uiir do exercito
cnristão. Kra também fura de duvida que as suas pa-
lavras gozavam de um grande credito entre os cabos
godos, ilaros lhe tinham ouvido a voz : nenhum lhe
tinha ainda visto o rosto. O my,sterioso capitão en-
tra\ a a toda a hora na tenda real de Sancho, o qua-
drimano, e nos pavilhões dos condes deGalliza eC'as-
tella ; mas ninguém lograra ainda examinar-lhe de
perto as feições. Era um ihema inexgotavcl para to-
dos no exercito. Deus salx; que de boatos se espalha-
vam a seu respeito.
No entanto os campos de Lorca, imitando os de
Kordova, ouriçavam-se, como elles, de signas e bal-
sues tremulantes, de lanças e espadas fulgentes. Da
base até a coroa dos montes suliiam como serpes enor-
mes as fdas tortuosas dos serranus do.Vstura. As pon-
tas d aço das maças de roble scinliiiavam aosol, pen-
dentes no lado dos guerreiros navarros, e dos descen-
dentes dos fr.inkiis, ao passo que os seus brilhantes
rellexos, rcfraiigendo-se no ferro da secure goda, se-
gura na siílla dos cavalleiros de Leão, como que JH)-
voavam ile rápidas estrellas as planícies. Sc as hostes
musulmanas desenvolviam mais arte e perícia, se
brilhavam inaís pelo esiilendor das armas e pelo va-
riado das cõr(>s ; em compensação os capellos de ma-
lha, as grosseiras dalmaticas e as caniizas de ferro
dos eliristãos não cobriam corações menos ardentes e
impetuosos.
O exercito godo esperava a pé firme o tremendo
hadjeb: ia pel<jar-se a sorte futura das duas raçiis
que disputavam liavia scculus o dominio das Hespanhas.
A final, um dia, ao despontar da aurora, appar«-
ceram as margens do Douro c as alturas cobertas de
corredores africanos : era a vanguarda do hadjeb.
As hatalh:is christãs aguardavam-no já formadas e
ajjcrcebidas. Prevenira-os o infatigável desconhecido.
O» dois exércitos pararam em frente um do outro,
medindo-sc uma hora inteira, até romper osol, como
dois lucladores que se contemplam na arena.
Depois, dois homens, um na planície outro na mon-
tanha, á testa cada qual das turbas impacientes, es-
tenderam simultaneamente o braço direito contra os
adversários fronteiros, e clamaram unisonos com a
voz sonora e fn.-mente :
— u Avante ! j'
E no mesmo ponto os dois mares procellosos. rom-
pendo os diques, trasbordaram em duas ondas mons-
truosas na planície, até se embaterem e se confundi-
rem e tumultuarem n'uma vaga immensa que fez va-
cillar os rochedos na sua base, saindo subitamente do
seiod\'lla, horrendas, confusas, infernaes, mil Ímpias
blasphemias e mil gritos de agonia. Não se via. não se
percebia, não se distinguia nada n''aquella mole infi-
nita a revolver-se furiosa no meio d'uma nuvem es-
pessa de|)OCÍra. Atravez do horrendo véu trovejava o
combate como asurda explosão d'um terramoto, lam-
pejavam os ferros como outros tantos raios a atraves-
sar os ares carregados.
No pináculo d"uina serra o hadjeb vigiava o com-
bate, despedindo d'alli uns sobre outros os seus es-
quadrões de berebcres a apertar os christãos na pla-
nície. O terrível el-Mansur ardia lá por dentro, m.-is
continha-o a prudência. Não queria empenhar-se na
peleja senão para decidi-la como costumava. O logar
(jue occupava, comum pequeno troço dos seus melho-
res guerreiros, designam-o as historias árabes pelo
nome de Calat-al-nosor, isto é ; o pincaro dos abu-
tres : julgava-se seguro alli.
Jlohanied, anojado já de ver a firmeza e a contu-
mácia desesperada dos seus competidores, mandara
avançar os últimos esquadrões, e desembainhava já ii
irresistível cimitarra, para resolver a contenda, quan-
do uma hoste de cavalleiros. pequena como a sua.
SC arrojou com assombroso iinjjeto pela encosta aci-
ma íio seu encontro.
O hadjeb rugia de prazer: ia cmfim pelejar: es-
tava certo de si. Os seus cavalleiros. imperturbáveis,
não se moveram; esperavam tranquUlos o inimigo:
el-Mansur sorria de orgulho.
Os guerreiros contrários approximavan>-se no en-
tanto, impetuosos como o vento do deserto. Eram os
de Afranc. Apesar do impulso que triuiam. deix.-»-
ra-os longo espaço afraz o seu mvsferioso cabo. Se-
guia-o unicamente de perto uma figura melindrosa
de pagem, estranlio contraste no meio d^aquelles col-
lossos furibundos.
Ao hadj<'b não lhe soffreu o animo esperar assim
a pé lirme t.ão desesperado inimi^: yikiu ao seu en-
contro.
Toparam-se no alto, cm cheio, os dois feroies con-
tendores : nenhum d"elles vacillou. As duas hostes,
que se precipitavam tainlx-m ao enciinlro uma d.i
outra, pararam attonilas. olharam-se e rt>cuaram : a
horrenda |>orlia omtinuou entre os dois como os com-
bates dos herocs d"M(imero. Não tinha nome a fúria
i-om que os dois calnis se atacavam, se precipitavam,
e se ret rabiam p.ira s«> tornarem a atacar. .\ cimi-
tarra dl) hadjeb caiu de5[HHlaçada pela s«>eur<' do de*-
I conhecido, a arma do guerreiro de .\franc \ixni jwra
o ladi) cortada eercca pelo resto da folha de Moha-
med. \o fim d"unia hora o ginete andalui do cabo
kordovei caiu, alierto jxda testeira, ao j>é do negro
corsel do desconhecido, atravessado pelos peitos. Mas
o PANORAMA.
53
os cavalleiros já estavam a pé e continuavam o com-
bate, igualmente incansáveis, igualmente furiosos,
igualmente encarniçados ao lado dos dois nobres e
fieis animaes, que gemiam e agonisavam tristemen-
te voltando os oUios lagrimosos para seus donos.
O elmo d'um e o capollo d'outro saltaram parti-
dos por dois revezes assombrosos : o peito, os braços,
a cabeça de ambos estavam cobertos de feridas-, o
«angue corria-lhe em fio nos fraguedos do solo \ e os
dois combatiam como se n'aquelle momento se hou-
Tcsseni accomraettido. . .
Desceu o sol, veio o crepúsculo, seguiu-se-lhc a
noite, e os dois a combaterem ainda. . .
A final o Iiadjeb caiu ; — el-Mansur o glorioso, el-
Mansur o potente, el-Mansur o invencível — caiu na
montanha sem poder valer aos seus, que fugiam na
planície — caiu com os olhos voltados para elles, aos
pés do gu<'rrciro desconhecido.
Um longo gemido saiu então dVntre as fileiras
dos berebena. N'um Ímpeto espontâneo arrojaram-
se contra o vencedor ao passo que a lioste do Afranc
também pela sua parte voava com gritos de alvoroço
a soccorrer o seu cabo.
Mas este, indífferente a tudo, não via amigos nem
inimigos. Passou-lhe pelo rosto um como relâmpago
de barbara al<!gría, e, ciirvando-se para o hadjeb
prostrado, estrugíu-lli<.' ao ouvido com uma inflexão
que arrancou o liad jeb aos l)ra(;os da niorle :
— " lii'mbras-te dos jardins de Azahrat ?"
Molianied abriu os ollius e liloii-os no desconheci-
do. Aqiiclles dois lionicns, que assim tinliain comba-
tido por V(;ntura em mais de uma occasião, era a pri-
meira vez que se encaravam. O hadjeb nãopoudesup-
portar o aspecto do seu vencedor, ap('rtou o punhal
que não largara, o fechou de novo os oUios.
N'isto chegavam as duas liostes encontradas, eem-
batiam-se no escuro da noite.
A batalha recomeçou mais brava do que nunca em
torno do hadjeb.
Mas os sarracenos já não eomlialiaiii para vencer:
era somente para alcançar niorle hmirada.
listava em terra o collosso das Ilcspauhasl
(CvHcliiii -sc-ha.)
Festa de Conrus Curisti km ^'AI.ENCIA.
A pnocissjo dVste dia solcmne er.i anlcs das ulti-
mas revoluções famosa na llcspaiilia. INa ca[)ítal de
Valência celebrava se tio modo seguinte. — Dias an-
tes lançava-se um bando convidando os habilantos a
concorrerem á riiiicçào ea lraz<'rein vcllas de cera de
rai'ia libra. Na hora prclixa as coimniiíiidades reli-
giosas e o clero das [larochias entravam no choro da
ké entoando o I'mt<ji , lintjtia ; <• em seguida piiiiha-
íe a caminho ,i procissão, indo á freiíle as diversas
corporações de offKMos, como entre nós se usava, com
as bandi'iras de seus |)adro<'iros, e higo apoz, [lor ordem
d'anligiiitlade, os ecciesiaslico». ISi^islo não ha novi-
dade: |iorém o clero da sé dístiiigiiia-se d<? todos pe-
lo acompaiihamenlo rle ligurasallegorieas. Três águias
enormes traziam rolulos nos bicos, onde, em lettras
de ouro, KC lia clividída esta Jihrase u In principin
erat reihimt; Hl vi:rl>iiui tritl iipinl Dtinn ; et Dius
eral lerlum: alraj! seguiam-s<' lri's homens, um com
mascara ih; leão, oiilro de boi, e oufro sem mascara,
que jiinclamenl in as águias vinham alli para ihv
notar os (pialro KvangelislaH : logo ii|ipareriaiii mais
três, <(uii harpa, \ i<ihi e cithara, em nieniiiria (lo rei
David dianie <laarea daalliança. Vinte eseis v<'lhos,
vestidos de branco, traziam tochas di' (';raii(li- volume,
e precediam oito leviUis, lanibiím trajados de roíiiias
largas brancas, parecidas ás antigas dalmaticas, em-
punhando varinhas com que tocavam na cabeça dos
espectadores, a quem, ao passar a procissão, esquecia
decobrirem-se. Immediatamente app.irecía oSanctis-
simo, e a custodia, de altura fora do commura, era
magnifica obra de ourives no estjflo gothico.
Por todo o comprimento do préstito, de distancia
em distancia, iam repartidos, em bandos numerosos.
gigantes e anões, extravagantes, monstruosos, o
de
variegados vestuários. Carros triíimphantes, aque em
Valência chamam rocas, cheios di' liguras allegori-
cas, eram tira<los por machos ajaezados ricamente, e
junclo dVlles havia rodas infatigáveis de danças, que
muito faziam Iciiilirar certas festas pagãs, principal-
mente as de Ceres <í I$accho, por isso que os carros
eram enfeitados com espigas ecom festões de pâmpa-
nos. O mais nota\el era seni[U(' o (pie deniuiiinavam
la roca de la i'i<(issii)i(i, (pie transportava sobre ele-
vado throno a imagem da Sancta \ irgein, precedida
no jilano inferior pela figura symbolica da religião,
como se V(^ representado em o nosso desenho.
Episodio da vida d'Aleixo Ouloi'.
A iMi-EiiATiiiz Isaliel leve Ires lillias do seu consor-
cio elandestlno com o grão governador Aleixo (ire-
griovitcli Kazoiunovski, a mais moça das (piaes foi
crcada na Kiissia com o nome de priíiceza Tarraka-
nolV. <-liiaiido Catharina II começou a en>pregar, em
concurrencia com os enredos, a violência contra a IVi-
loiíia, o priíicipe Carlos Uadzxvil, por palriolismo, por
vingan(;a, ou por a(iibl<;ão talvez, roubou esta meni-
na, subornando as pi^ssoas encarregadas de a guarda-
rem, ea levou eonlsigo |iara a Il.ilia, onde por mui-
to leiii|io viveu do prodiicto de diamaiiles, (pie elle
salv.ira da destrui(;à(i de sua casa; mas, esgotado es-
le recurso, a precisão o obrigou a voltar á 1'olouia.
t) agasalho inesperado (pie achou na corte de S. IV
tersbiirgo, então emiieiihada i-iii oppo-lo a uma lac-
<;ão coiilruria, por la o foi detendo. Se iiào coiumel-
54
O PANORAMA.
♦«■ a baiseza de consentir na entrega da infeliz filha
de Isabel aCatharina, caiu na de prometter que nun-
ca mais íaria caso d'ella, c de a desamparar no re-
gaço da naiseria.
Aleixo Orlof, assassino de Paulo III, era homen>
de menos escrúpulos. Vira de bem lonçe o incêndio
das embarc2çc;jes turcas em Thchesmé, victoria insi-
gne aos olhos de Catharina, que lh'a attribuia toda,
ronbando-a aGreig eElphinston , desmaiara durante
o conflicto ; despertara do dormitar para insolente
cingir na fronte louros immerecidos \ era por tanto
o esforçado campeão digno de ir buscar a victima
para a sacrificar aos sustos da sua soberana. Um cer-
to Ribbas, que depois chegou a ser vice almirante
na Rússia, lhe descobriu o retiro onde a princeza vi-
via, cm Roma, na companhia de uma só criada, pa-
decendo privações. Alt-ixo foi procura-la, fallou-lhe
no ódio que todos os russos tinham á imperatriz, na
hydra das conspirações a que ella não podia cortar
as cabeças sem que as multiplicasse; engodou-a com
a esperança de subir a um throno que asseverou per-
tencer-lhe por direito de sangue \ e reforçando com
as seducções do amor as da ambição, por ventura in-
sufficieutes para deslumbrar uma menina habituada
á obscuridade da mediania, simulou um amor impla-
cável, como não era capaz de ter a ninguém; porque
os homens-srralhas adornados com aspcnnas do pavão,
que desfaçadamente roubam osfructos do trabalho ou
daintelligencia alheia, — submissas quando precisam,
altivos, ingratos, e talvez inimigos quando já não es-
peram; estes homens, que convertem quanto os cerca
em instrumentos com que se lavram o pedestal da sua
própria elevação, eque lançam para longe de si ape-
nas seg;istam oucsfjlam n'este lavor ingrato; amam
é verdade, e amam com excesso: amam-se a si. Para
si desejara e querem tudo — para os mais o resto.
Captivado o coração da princeza. viu Orlof apla-
nadas as barreiras que poderiam empecer os seus in-
tentos. A princeza consentiu em desjxisa-lo, e uns
perversos, disfarçados em padres, fingiram todas as
oereroonias do rito grego; crendo ser mulher de Or-
lof não hesitou cm segui-lo para Liorne, e ahi o snp-
posto marido, para lhe occultar a iufame cilada, lhe
prodigalisou adulaç<jes, festas c honras as mais pró-
prias para a cegar.
£stava fundeada no porto de Liorne uma esqua-
dra russa ás ordens do almirante Greiç; souberam
iDspirar á princeza o desejo de a ir vér, c levaram-
n*a a bordo ao sair d'um banquete. Os vivas d'um
povo immcnso, as vozes de toda a casta de instru-
mentos retumbavam na praia, e davam á visita a
apparcncia [>omposa e risonha d'ura dia de gala. O
escaler que a transportava, elegante e empavesado,
prendia os olhos dos espectadores, pela riqiiez.i e pri-
mor dos ornatos: içaram-n'a commodamente n'uma
cadeira de espaldas mui sumptuosa, para bordo da
náu almirante, onde entrou comoesposa de Orlof, ou
antes qual soberana que deve em breve reconquistar
um império opulento, herdado de seus pais. Apenas
porém pisou o convei, desappareceu o prestigio, os
^•eepcitos e attenções cessaram de repente, tractaram-
n'a como escrava, carregaram-n'a de ferros, eno dia
seguinte a nau fez-sc de vela para a Hussia.
O cônsul inglcx e o almirante Greig favoreceram
<^a trama infame, que deixou toda a cidade de
liiorne horrorisada e fremendo de indignação. Leo-
poldo, grão duque da Toscana, queixou-se altamen-
te d'esta violação de tv»do o direito hum.ano, com-
mcttida no seu território ; mas a inipuílcncia de Or-
lof arrostou as queixas do grão duque c a indign.-iç.ão
publica.
.\ victima, que então contava apenas dctcs.^is an-
no9, foi encerrada em S. Petersborgo, em estreita
prisão, aonde pereceu seis annos depois, no mez de
dezembro de 1777, em consequência d'uma inundaçãn
do Neva, ou ila;cllada. segundo dizem alguns, peUw
seus Ímpios carcereiros.
Aleixo Orlof causou espanto e escândalo na Itália
pelo seu luxo desmedido, pelo seu brutal orgulho, e
pela sua má educação ; mas cm Liorne lançou a tur-
ra até onde podia ser. Tinha-lhe dado ordem a im-
peratriz para mandar fazer por um hábil pintor da
eschola italiana um quadro de sua sonhada >'ictoria
de Thchesmé. O pintor disse-lhe que nunca tinha
tido occasião de ver ir pelos ares um navio : " Não
esteja n''isso a duvidai respondeu-lhe Orlof; e dcu-
Ihe este espectáculo a risco de incendiar o porto.
A TRIEU DOS KBABASOS HA AmXRICA
Mebioioxal.
O Sr. Alcides d'Orbieny tem adquirido celebridade
pelos seus importantes trabalhos sobre a America
Meridional ; intrépido e irifati»avel naturalista-via-
jante, percorreu por oito annos consecuti\os as costas
do Brasil, a republica do Uruguav, a repulJica Ai^
gentina desde as fronteiras do Parasruav até a Pata-
gonia, as republicas do Cliili, do Perij. de Boliria.
Sem mencionarmos outros escriptos. citaremos o se«
livro O homem americano, estudo ethno^raphico de
grande valia, a tímligia ila /Jmerica ^IniJionaL,
que lhe mereceu nota\el elogio votado pela academia
das sciencias de Paris ; e por fim a sua obra princi-
pal, com que tanto lucraram as sciencias e a ;eogr»-
phia, a / iagem n"aquella região, recem-pu blicada
em 7 vol. de 4.^ com atlas. — A. esta pertence o
fragmento que trasladámos, sobre uma tribu selva-
gem quasi desconhecida. —
Aos 19 de dezembro de 1831 deixei a ultima das
missões dos chiquitos para passar ao território dos
guaravos, q»e me disseram que ficava a 4tí ou 50
léguas ao nor-norde*le. A minha comitiva, constan-
te de meus ajudantes a cavalJo c de 60 Índios chi-
quitos a pé, que levavam ás costas a bagagem, tre-
pou em filas as l.ideiras Íngremes das alturas limi-
trophes dos chiquitos, em meio de paizes semeado*
de vallíís selvosos c de cabeços coberto» da sombra
das ele?antes palmeiras bocayas, e onde uma infini-
dade de figueiras p.irasitas, com as raixes enredadai
parece que procuram por toda a parte esconder aa
fracas esoahadas. Da cumiada da ultima cordilheira
appresentou-se-nie á vista o mais bello contraste; ao
nascente coUinas amontoadas em ampiíitheafro. aa
contrario, para o piHjnte a superticie azul e illiraitap
da d(^ mares, no horisonte as extcnsissimas floresta»
que se dilatara por niai» de 80 leíruas até os cxti^
mos pégiVs da curdiiheira de Santa Cruz. — Costeai
a falda d'es$as eminências por entre paii deshabita-
do mas WIlissimo, exposto frequentemente aos farta*
aguaceiras da estação, e alvo das ferroadas dos
quitos, e privado de todo o descanço ; porém á
dida que caminhava, a natureza se mostrava com
mais variciiadc : a pequenas pianicies vijoaaa, «it-
cumscript.is por mattas cerradas, succediam çropoa
de coqueiros de varias cast.ts. que contrastavam eoM
os oíitrvis vegelaes : havia biisques fechados, e com a
extens.~io de algumas léguas, de palmeiras rtincA. de
tronco recto, coroado na altura de nove braças pela
copa «-siiessa de foUias semelhantes a laminas d'espa-
da ; por outra parte alteav.i-se a graciosa palmeira
real de folh.%gem cm fiírraa de Icqoc. .\ masestanie éa
todo. a riqueza década objecto, tudo me inspirara: a
vida. a aitimação da campina revestiam este paiaal
o PANORAMA.
55
de um entanto irresistível, mormente para um na-
turalista. Nuvens de borboletas de azas matizadas le-
Tantavain-se adiante de nós ^ as folhas e troncos de
plantas e arvores enchiain-se de milheiros d'iuseetos
que, nos rellexos metallicos, rivalisani ou com o bu-
liçoso passarinho mosca, ou com as aves brilliantes
que, com suas melodias, aviventam a solidão d'aquel-
iu terra virgem.
Ijogo no primeiro dia me adiantei dos Índios; e
ao terc(;iro, depois do marcha forçada, contava che-
gar ainda com dia aos guarayos, mas enganei-me.
Não pude resistir á vontade de caçar bandos de ma-
cacos e cotias, sobre tudo um corpulento veado. Os
meus Índios não tinham outro mantimento senão
maçaroca assada: quiz que se approveitassem da mi-
nha caça, o que fez perder f<'mpo, ficando atrai!;ido o
guia, occupado em desniancliar o Veado, com a pre-
caução de pendurar os quarlos nas arvores por causa
do dente do jaguar, em quanto não chegava a comi-
tiva.
J'oT muito tempo segui a galope os inumeráveis
rod<!Íos de um trilho apenas traçado ora na matta
ora na campina; nias [jcla tarde os cavallos faliga-
dos adrouxaram. 'l"ornoii-se extrema a obscuridade;
nada se podia distinguir, e os ramos d'arvores, que
eu de dia evitava bem, de continuo me batiam na
cara : o meu cavallo, sem eu dar por isso, enterrou-
«e na espessura da ndva, onde fui asperamente mor-
dido por formigas ruivas, que teem um ferrão como
as vespas. Não tendo podido alcançar-me o guia, de-
pois da morte do veado, comecei a suppor-me extra-
viado: a[)e<'i-nie, acc('ndi luz, e por fim entrei de no-
vo no trilho. li preciso ler passado por crises iguais,
para dar valor ao prazer que causam os primeiros
raios da claridade que succedeni á escuridão; reani-
mam a coragem do viajante, que então se resigna
com a situação até alli insopportavel. J'elas onze ho-
ras ouvi gritar; era o guia (jue nos alc:inçava, e vi-
nha resgatar-nos da inquii'tação, aniiuncíaiido que
apenas distávamos duas léguas das primeiras habita-
ções dos Índios. Ksta nova deu-me alento, e deter-
minei-m(! a progredir : o guia acccndeu uma vella e
poz-se á Irente do rancho.
Pela uma hora da manhã topámos as cabanas dos
guara^os. lineaniinhei-me para a do maioral, onde
logo ine veio fallar um homiím coberto di! uma lon-
ga túnica, cujo tecido era de enlr(K'as(^o d'arvores.
Ignorava i!U completamente a que raça pertencia es-
ta tribu ; e por isso não pequena foi a minha admi-
ração ouvindo a saudação dos hniis dias em guarani,
dialecto de <pi<! eu tiidia aprendiílo uma porção de
(Kilavras nas fronteiras do l'araguay : res|)oiidi na
mesma linguagem, e o cabeça guará vo não ficou me-
nOH afbnirado, e logo um consagrou <>or<lial amisade;
.leompaiiliiiu-me jku' Ioda a parlei durante os quaren-
ta dias <puí iiu: denuwei entre esta gente hospitalei-
ra. 1'aieontrava eu com vivo |)razer, ni> seu <>stadii
priuiilivo, os restos de uma das antigas emigrações
lios gu.iranís ou citaíb.is, os coiupiisladores mais in-
trépidos da Aiui'iir.i nwíiiliiuial, ijue l(v;irain assuas
victxjrias de.sdí! as margens do rio da l'rata jt(; as
Antilhas.
JVIo território dos guar.iyos corre o rio de 8. Mi-
guiíl ; as eart.is geograpliic.is dão o curso d'este rio
pasa o rio (juapaix ou Hío (irandn, e d'ahi para o
IVlamore : se assim fosse, enibarcauilo-me nVdle iria
liar á missão de lioreto de iVloxos, (pi.iudo o meu in-
t«nilx) era encaminhar-me para a piird? oriental d'i'S-
tn província. lnt4Uroguei os guaraj-os, e irelle» sou-
lie <pie, em viiz de voltar pura oes-neiroeste, o rio S.
-Mi)»nel se dirige a nor-uoroeste, pansando perl») da
missão de Carnum de Mox.o.s, Sem íuber então su cl-
le ia ajunctar-se mais abaixo ao rio Branco ou botíA
Itonamas, afluentes communs do Guaporé. tomei e
resolução de .seguir este caminho, aíim de elucidar
esta questão importante em geographia. Porém o
meu plano não era de fácil execução : a ir por terra
oppunham-se a estação das chuvas, já muito adian-
tada, e a inundação dos campos, independente do*
estorvos inherentes á abertura de um caminho novo :
por outra parte, ascanoas dos gnaravos, feitas de um
só tronco e.xcavado a fogo, podiam levar só doas peí-
soas, e não tinha logar para as bagagens. Vali-me
das amigáveis disposições do caudilho guarayo, e ob-
tive d'elle expedir dois índios a Cármen com uma
carta em que pedi ao administrador me enviasse ca-
noas e remeiros d^aquella missão para me transpor-
tar a IMoxos.
Os guarayos, dispersos por um território de ciii-
coenta léguas dVxtensão, habitam os bosques som-
brios que separam as províncias de Chiquilos e Mo-
xos, não distante das margens do rio S. Miguel, pe-
los 17" de latit. sul e os (io'^ de long. occidenfal át
Paris. Em numero de mil, rep-irtem-se, fora algu-
mas famílias espalliadas no centro da llortsta, em
três aldeias, '1'rindade, Ascenção o Sancta Cruz, on-
de alguns religiosos trabalharam pelos chamar ao
christí;inismo. Uepois de as ter visitado, estacionei-
me em Trindade, onde não havia missionário, aíim
de estar menos constrangido no meu oftício de obser-
vador. Todos os dias o cacique, velho de aspecto pa-
triarchal, vinha otl'erecer-me o seu préstimo. Se cu
lhe p(?dia alguma cou,sa, voltava d'alií a pouco com
suas mulheres, que traziam excellentes fructas, legu-
mes ou aves caseiras : recebia também visitas de to-
dos os Índios, que me brindjivam com géneros daí
suas terras, ou com objectos d'historia natural. Pa-
g.ava eu tudo em agulhas grossas, facas, tesouras, c
outras bagatellas, porque o dinheiro, conui em Chi-
(piitos e Moxos, não era conhecido dos iiabitantes.
Por exemplo, um bom frango valia três agulhas de
coser, e o mais em proi)orção, sem tpie toilaxia m»
fixassem preço ou fizessem a mais leve observação a
respeito do <|ue eu olferccia ; dava-nie seus conselhos
o meu amigo, o maioral que encontrara em As-
cenção.
Altos, bem feitos, providos de longa barba, facto
excepcional nos americanos, os guurayos são de as-
pecto arrogante, mas teem feições regidares e expres-
são pacifica: oseu caracter corresponde pcrteitauien-
te a extiMÍoridade ; mostram o tvpo da franipieza.
hosiiitalid.ide, e denutis virtudes. São bons p;iis e
bons maridos, e graV('s |)or habito julg:im-se, na sua
isenção e liln^rdade no meio da abundância, os mais.
felizes dos humanos. Os velhos, verd.ideiros patriar-
chas e oráculos das famílias, ach.im nos tillios respei-
to e submissão. As suas cabiiruis, oitavadas e seme-
Ihnntes ás dos antigos caraíl);is das Antilhas, são es-
Jjíçosus e eol)ertas de folluis ele palmeira. — O gua-
rayo pnssa Ioda a su.i iidancia ao pe da nu"ie, que
lhe prodigalisu o mais teino desvelo. Chi'gando aos
oito ou d<-/. annos aitmipaidiíi seu pai aos campos ea
caça, oxercitando-se a atirar á trecha, e no fabrico
d.i» urmas : deixa (Uilão a com]>:niliia ihis mulheres,
1» só frequenta a sociedade do.s r;tpai!ea d.t sua nlade
« dos liiiinens. .'Vhsiiu que reunu á forca a destriv-ui
suflicieiíte para nu-near o arco, isto é, paru supprir-
se, traita <le eh>ger companluiira : frita a escollui »«•-
goeeia com os irmãoN da donr.ella, <pie são iks tpir
teem o direito oxelusivo de dispor da nuu) d<> sutis
irmãs; ascondiçõrs consistem i\'uni certo numero de
machados, de facas, ou de outros instrunu-ntos, ou
n um certo Ir.iballio, ctuuo por exemplo .t «ouslruc-
çãu du uma caba, oanotcamcutu do uuia terra. CVri-
56
O PANORAMA,
cedida a noiva, o pretendente, despido e pintado de
encarnado e preto desde a cabeça até os p«ís, armado
da sua maça, passeia por alguns dias em redor da ca-
bana da noiva ; findos estes, os pais d'ella preparam
a bebida de milho fermentado, e o casamento é cele-
brado no meio de ajunctamento numeroso, a que são
convidados todos os parentes e amigos — O par vive
algumas vezes com os pais, mas de ordinário edificam
casa própria juncto aos seus. Quanto mais um gua-
ra^o augmenta de familia, tanto maior consideração
adquire \ e c por isso que, sem despresar a primeira
mulher, que é sempre a mais estimada, toma succes-
sivamcnte outras muitas na carreira da sua existên-
cia. Os filhos de todas parecem ser de uma só mãi.
Ião unidos vivem : não ha desavenças ou altercações
da parte do marido, que respeita as suas mulheres,
não obstante considerar-se muito superior. Sendo ca-
Ijeça de numerosa familia, o scuaravo é um oráculo,
passa tranquillaniente os seus dias, sem cuidados nem
[>enas, pelo que chega, quasi sempre, a extrema ve-
lhice, isento de enfermidades e da perda dos sentidos.
No centro da abundância provê com pouquíssimo tra-
balho ás precisões da familia. A cultura dos campos
é feita em commum com os parentes e amigos ; as
mulheres fazem de antemão a cerveja de milho; con-
vidam-se aquelles, eao nascer o dia vão alegremente
para o campo •, todos os convidados trabalham com
infatigável ardor durante duas terças partes do dia,
em quanto que o proprietário está deitado na maca,
ou, quando muito, dirige os trabalhadores. ^ oltam
junctos á cabana, onde começara danças serias eliba-
oões por alguns dias, mas tudo se passa sem rix;is
nem contendas. Assim cada cabeça do casal reúne
huccessivamente seus amigos, quer para derribar ar-
vores e arrotear, quer para semear-, e todas estasope-
raoões dão logar a outras tantas festas.
(Continua.)
Viagens á. lia.
Km linda noite serena, quando só o disco da lua ful-
ge no firmamento, a qual de nós não tem transpotar-
do a imaginação a este astro silencioso ; qual de nós
não perguntou jamais a si mesmo se o fielsatellile da
terra não é povoado, como cila, de criaturas intelli-
gentes ; se não será possível travar relações com os
nossos visinhos mais próximos naimmensidade do es-
paço celeste ? O génio do homem ha feito tantas des-
cobertas imprevistas, tem ousado tanto, e tem tant;is
vezes triumphado pela audácia, que uma viagem de
sessenta e duas mil e quarenta e seis léguas, não é cousa
<|ue o aterre. Vencer esta distancia equivale a andar
dez vezes ároda do mundo, e muitos na\egantes teem
andado mais na sua vida. Examinemos comtudo as
probabilidades a favor ou contra esta \iagem. e em-
Inira destruamos alguns sonhos lisonjeiros ou incor-
ramos na accusação de coarctar o pixler do homem,
niostremos-lhc que esse poder, sem limites no cam-
po da intelligencia, embaça nos obstáculos materiacs.
o não alcança altea-lo da estreita habitação <|ue lhe
foi marcada. 1'oude sim o homem, á força de enge-
nho e tempo, supputar a distancia das cslrellas fixas,
<• calcular a reapparição dos cometiis ■, mas é-lhe ve-
ilado sair do pequeno planeta que o transporta {>elo
('.•(paço. Imagine-se um acrostato cortando os ares com
vento favorável que o impellisse sempre para a lua,
<!om a velix."idade de vinte e três palmos por segun-
do ; gastaria na viagem dois annos e cento e cin-
coenta e seis dias. E se preferis a vcUx?idade do va-
|X>r, lançae mão d'um hK-omotor que ande det léguas
por hora e caminhe sem parar, chegareis lá cm du-
'^cntos e sessenta e seis dias.
Dirão que o tempo nada faz ao caso. Sou d'essa opi-
nião; não se podiam dar por mais bem empregados
dois annos devida do que n 'esta ida e volta; mas en-
xergo outros estorvos muito mais assustadores. Sup-
ponho que a machina de vapor está prompta, que é
bem segura, que viajou pelo ar desde Paris ate ¥e-
kim ; tudo está prestes para a viagem lunar ; é
partir. Mas em direitura aonde? — Boa pergunta!
me direis vós : — Em direitura á lua. que brilha no
firmamento. — Sem duvida; mas a lua jvra á roda
da terra, e o aeronauta, seguindo sempre a direcção
primitiva, jamais a encontrará. Aocresce a isto que
também a terra gyra á roda do sol com uma veloci-
dade de quatrocentas e vinte e seis léguas, levando
apoz si a lua, e que em quanto a terra acaba em um
anno a sua revolução em torno do sol, g^ra alua do-
ze vezes á roda da terra. A estrada por onde ella cor-
re, desenhada n'uma carta, assemelha-se a um cordel
enroscado em doze ou treze voltas, e forma uma cur-
va muito complicada, \odecurso de muitos milhares
d'annos, talvez nunca se encontre a lua no logar que
occupava no espaço no momento da partida do aero-
nauta.
Mas ainda aqui não está tudo ; ninguém pôde ir
á lua sem csquivar-se á acção da gravidade exerci-
da pelo globo terrestre, o qual, desde que existe,
nunca deixou cair para fora do seu dominio a menor
parcella de matéria ponderosa. Em virtude doesta
acção é que os aerostatos se levantam da face da ter-
ra, sem que possam todavia tocar as raias da nossa
atmosphcra, quanto mais transcende-las. Dêmos por
vencida mais esta difficuldade ; admittamos que. pe-
lo acaso mais estupendo, o aeronauta, em vez de se
perder n.i immensidade, chega á esphera d*attracção
da lua. Desde que lá entrar, a força d'attracção tan-
to mais poderosa quanto elle mais se approxim.ir do
astro, com a velocidade da queda o fará em mil pe-
daços na superfície da lua.
De propósito não particularisamos as impossibili-
dades piívsicas da nossa organisação. Todos as conhe-
cem, todos ascit.im; são incontestáveis. O limite da
atmosphera não pode passar de sete Icíguas. e já na
altura de pouco mais d'uma légua é o ar tão rarefei-
to que chega quasi a não se poder respirar. Suppo-
nhamos igualmente que este obstáculo se remove, e
que o viajante leva comsigo uma provisão de ar para
dois annos, como os que descem ao mar debaixo de
certos sinos merçulhaaores levam para alguns minu-
tos ; figuremo-lo chegado felizmente ao termo da sua
viagem, poderá elle viver na superficie da lua f Não
é de presumir, porque tudo prova que este astro não
tem atmosphera, e não pôde por conseguinte ter agua ;
segue-se d"aqui que a nenhum ente, cuja organisação
plysica for semelhante á dos animaes terrestres, c da-
do viver na superficie da lua.
Fabrico dos espsluos.
Mk. Tourasse achou o meio de livrar os fabricantís
d"espclhos das emanações mcrcuriacs, sul>stituindo a
amalgama de estanho, vulgarmente chamada aço de
esf)clho, por uma solução de nitrato de prata, a que
junctaahiHil, carbonato d'ammonia, ammonia. eoleo
essencial de cássia. Derrama o litguido assim prepa-
rado sobre o vidri», accrcsccntando-lhe. no momento
da op»>ração, óleo essencial de cravo da índia. Passa-
das duas hor.is a com]Kisição cribre o vidrvi d'uma ca-
mada do prata amais pura. Comeste aperfeiç-oamcn-
to, que por ora gosa de um privilegio, nào saem o»
espelhos por maior preço.
o PANORAMA.
57
PAÇO DE VII.I.A-VIÇaSA.
/iLl-A-V iroHA, (lislMiitc iJo Iji^liD.i vinti! c oilo léguas,
.'Iil\;is quatro [lara o poiMilc, i; cIMOvora oito para
ri a ICC II ti', foi calicça de comarca e ouvidoria, i|m-,
?;;uiidii a fçcu^rapliia de I{cc;o, coiiiprclicndia doup
illas com (jiiar.Mila t* sele IVcguczias, dez mil foi;os,
trinta p duas mil aliiias(l): «fra defensável por •(i'ii>
luros antigos, e por um peipieno castello. licamli) o
rosso da povoai^ão para aparte do poente : a priíiiei-
a forliriraciío rejrolar foi olira di' D. Diniz, nu,'iiicii-
ada depois pi'lii inclil Jiidestavcd Nuno Alvares
Vreira.
Poucos nomes liaverá tilo adei|uailoa aos lo;;ares, co-
ió o d esta villa ,• por ipiaiilo vii;oso, a[>rasivel, fer-
il, saudável, fresco de aijuas e arvoredos é todo o
alie cm (pie tiMii assento. K geralmente liem edifi-
ada, com al;;iiiis edilícios iiolires, illustrando-a os
iiços mui amplos ouile tiveram sua côrti" sumptuosa
s sereníssimos iloipii'S de ltra'.;ani;a, já príncipes so-
eraniis «nies df!cio;;irem a coríVi de l'ortU'.,Ml. ("oii
ulti- se n este respeito o artijço de arclieolo;;ia portii-
juoia u pn<r. ,1:t8 do vid. do Panorama di! IStl. —
pamos o desenho d» froiitaria do palaiio, tal ipial
|»tava antes das modernas reparações. Adjacenli' lhe
[CU H celehre tapada, com tre» h-^iias de circuito, oii-
e é tanta n caça iniiida, e a de veados e (oitriis ani-
laes monteies, ipie (na expressrio do historiador da
?a«a Uragantina), aimla sendo o sitio fértil por na-
Jire/.a, ns siislenta por marivilhii.
(1) No niiip|i,i lia |jo|]ulai.;iio lio reino cm 1I1'J0, foiíiiailo
jiclo Sr. Kraimiii coiilia-sc a c(Uiiarca de VlIU-Vivosa
tom !)0 frexuczias, ÍIIOO Iokos, « .IIIH» .ilmas.
VoL. 1.— (Jiniiiiio 'ii, 1H4G.
A insif;ne collecjiada e real capell.i de Nossa Se-
nhora da Conceição i; tida pela mais antiga d'IIes.
panlia com esta invocação. O Sr. I). João I^ , em
<drti's dos trcs estados no aiino ile l()í'2. tiunoiíe ju-
rou a Senhora soU aqnelle tit iilo por l*adroeira do rei-
no, o \\\'o fei Irilmtario em ciucoenia cruzados ileou-
ro cada aiino, .ipplicados para a dicla ij^rcja de \ il-
la-\ içosa. — t) Sr. 1). João VI, por decreto de tí de
feiereiro de 1S18, instituiu a ordem de Nossa Se-
nhora da Conciução di; \ illa- Viçosa, com i;rão cruz.es
clleotivos, que são todas as pessoas rcaes ile ume ou-
tro sexo, doze gr.ãi) crnues honorários, qiiareiíta coili-
iiiendadores, o cem cavalleiros : foram d.ulos os esta-
liilos peloidvará de 10 ileselemliro de ISID. ( ) Dcãu
da capella era sempre hispo
Na irrupção dos arahcs padeceu esta povoação, qiio
é de aiiliqiiissima data, o c.iptiveiro !;eral da Hespa-
iiha, até que l<ii ciunpiistaila |ior elrei 1). .'MTonsoIl
pelos aiino^ de l'JI7. < "oiii .is continuas ■;uerras pos-
teriores chegou a total mina;, poriam O. .\lVonsolll"
a reedificou logo, i-oiicedcndo-lhe foral com mnitiw
privih-gios. I'',iii 1 no foi erecta em niari)ue/.ido por
elrii I). Allcuiso V a f.ivor dei). Kernando, filho se-
giiiido do iiui[iie lie Itriigauça. 'I\'ve a gloria de sep
o lierço do senhor rei 1). JoãoIV, n restiuirador, quo
era o oitavo na serie dos diiqiiesd.t mesma real casa.
I'',m Kiti,') II mari|uez de Caracena, que veio snhs-
titnir 1) •loão iTAustria no mando do evenito cas-
li lhano contra aprovincia do Alcmlejo, intentou por
primeira oper.ição tomar Villa \ içosa, eru entãoo
nosso gaiicrul o inarquer. de Marialva, que acudiu
58
O PAISORA31A
com todas at preven<;õe9 de que era capai a fortifica-
ção da terra, achando-ae lyue só ocadcito ednva suf
ficieiíle paia ilifendcr-sc, como escreve o uoiuie da Eri-
ceira, e luu tUhil THíplaculo que não ic podia cmisi-
firrar, ijuc a dtfema permanecesse niuiíos íii<is. A 9
de junlu) a vanguarda iiiiiuiga eslava em Bwrba, que
fica a meia le;;ua de distancia. O governador Chris-
tovam de Brito, e os mestres de c;.inpo Manuel Lo-
bato e Francisco de Moraes, guarneceram os postos,
que entenileram dever guardar, entre elles os que
pareceram necessários na VilU-Vellia para dilatari-m
o mais tempo possível o provimento da agua ', e as-
sim repelliram a primeira investida feita atrevida-
mente por a()uella força da vanguarda, que no acco-
iiieltimeiíto perdeu trezentos homenii. Omarquez de
Caracena alojou-se no paço; porem a artillieria do
oastello o ol)rigou a despejar: no dia seguinte man-
dou assaltar (.elo lado da porta da Senhora dos He
médios, mas foi rebatido; em seguida tracfnu do si-
tio formal da praça, jogando do outeiro da forca a
primeira bateria. Em 11 de junho começaram os
aproches ou trincheiras, e as levaram tão perto do
convento da Esperança e da camará, que chegariam
com os três ramaes á estrada coberta, se o talor dos
sitiados IWo não embaraçara : a 13 e 14 adianlaram-
se muito ostrabalhos; eámeia noite ordenou o mar-
quei um furioso assalto á estrada coberta ; treí veres
foi repetido; era nin exercito conlr.i um ponto mal
fortilicado, e defendido por diminuta guarnição , e
frcs ve/es foram rechaçados osexpugnadores com per-
da considerável. O governaiior e os dois mestres de
campo, assignajaiido se no conflicto, receberam feri-
das, e não se retiraram até o fwn da contenda ; po-
rem, sendo mais graves as do primeiro e de Manuel
liobato, recollieram-se ao castello, e ficou Francisco
de Moraes assistindo á estrada coberta. A lo de ju-
nho mandou o marquei de Caracena accommetter
novamente, e depois de porfiosa luct.i por muitas ho-
ras em dciis tremendos assaltos, ficaram os inimigos
de pos-e de dois alujamentos n'um angulo da estrada
■ oberta, e os sitiados n"uma corlaciura que haviam
fdbricadi.
Inteiraiio d'este apuro o marcjuei de Marialva re-
solveu soccorrer Villa-Viçosa a todo o risco com to-
das as tropas do keu cominando, porque, apesar do
não ser praça de grande importância, se o inimigo
a occopasse, estando situada a duas léguas do Estre-
moz, ficaria dVsta sorte arbitro das estradas d'Elvas
eCampo-Maior, eaehi;ria com modos alojamentos nas
\illas próximas, logares dos mais abundantes da pro-
víncia , n'este presupposto tez marchar o nosso exer-
cito; e o marquez de Caracena, resolvendo desbara-
ta-lo na marcha, levantou do sitio da villa, deixan-
do nos entrincheiramentos um corpo de mil e oito-
«;enlos inf.intes. O resultado do encontro foi a celebre
batalha de Mentes Claros, uma das mais notáveis que
ganhámos na guerra pela independeneia.
íío entanto os 'itiados não ficaram ociosoi ; faten-
do uma sortiria todos os que se achavam capazes de
pegar em armas, apesar de pertiníz resistência to-
maram as trincheiras com morte da maior parle dos
que as occiípavam, assenhorearam si- da artilheria
grossa, e coroaram lom esta acção todas as que valo-
rosameute tiuliuin practicado na defesa da praça.
O PoiiTiricz Vio I\.
(Continuado de pag. 49).
EsTB homem, para quem as esperanças do mundo
christão «orriem todas, e só com o seu nome docnina
a Ttalla, nasceu na Siiiigaglia, perto d'Ancor.a, e t
da antiga casa doscondes de MastaiFerreli. Foi pe-
lo ofCcio da guerra que principiou a carreira, q';<
havia de completar a máxima honra do pontificad'
No tempi) de Pio VII serviu como guarda nobre, e
distinguido pela estimação do Papa, despindo a cou-
raça, trocou um dia a alegre turbulência das armas
pela austeridade do estado sacerdotal.
De certo eslava bem longe de suppôr, quando fa-
zia o sacrifício de todas as illusões mundanas, que a
humildade daquella roupeta se mudaria brevemente
na purpura, e que a fronte se ergueria coroada de
tiara de (jregorio Vil. Q.uem sabei A vida de sol-
I dado, pouco apertada de escrúpulos, livre como océu
I que é o tecto dos arraiaes, e desafogada de preconcei-
I tos monásticos, preparou talvez afortuna deMastai-
j Ferreti, desenvolvendo qualidades latentes, que ou-
tra educação p<jde ser que annulasse. A oli-ervação
j continua, e a vista penetrante de um caracter con-
cenlrailo, como o seu, descendo ás entranhas dos er-
ros é de crer que de golpe abraçassem as causas e i
cura dVlles. No silencioso estudo do homem reflexi-
vo, ao pas«u que os vicios lhe appareciam descarna-
dos, a razão apontava o remédio, eopen-amento er.>-
vava indelével o principio das reformas. \ escnlha
do conclave, e o voto unanime com que a Itália a
confirmou, .ifliançam bem que nem taes ideias eram
um segredo, nem o propósito de as realisar deixa. :
de ser uma resulução inabalável.
.Mas qual loi o motivo porque, mudando devo
ção, .Maslai-Ferreli encostou a espada juncto d.i ■-
pada de seus avós, e sepultou nobreza, esperanças. •
os mais doces enganos d'uin curaçã<i tenro, iiatrist--
severidade da vida cleri-al.' Que olistaculo ignora !
se lhe ergueu diante, ou que ferida lhe cortaram i
alma, para «He, desesperando do mundo, ir ra»-af
os joelhos nos espinhos d.i penitenci.i .' Q.uasi sempre
é pelo desalento que se fecham para qualquer atpjir
tas do secult» — como f(»i este acolher se ao ptjrto ;,-.
tes desentir sobre a cabeça aamargosa onda das I •
mentas do mundo.' Foi toque doceu, ou fi>i dOrd".j
fccio illudido.' Esse mvslerio, se oéf dorme ci>m <1
le, sumido no seio do coração.
Logo nos exercícios escholares ecclesiaslicos revelou
talentos elevados eprefundos; c mal os acabava quan-
do já era enviado ao Chili para missionar. A rapa-
cidade e o zelo apostólico, que demonstrou entre pe-
rigos e difticuldades graves, confirmaram o concei!
que geraram as suas virtudes, e justificou sempr- ^
sua psphera superior. Os acontecimentos políticos d"a-
quclla terra, al>reviando-lhe a missão, restítuíram-
no a Koma, aonde, cm recompensa dos pideciínent'.-
eserviços, ^io^II orevestiu da purpura decardeal
Foi rápida, porem não excitou ciúmes, a cxalt .
ção de Mastai-Ferreti. Certos homens, depressa q...
sedislinguani, nunca espanta a sua grandeza. Aoons-
; ciência publica, concorde em que lhes pertence u:n
I logar eminente, acompanhaos com louvores até «i-
liirem o ultimo degrau. O que o maior numero al-
canç.i por empenhos, obtém esses raros p. la m;tis ri-
gorosa jiisliç.^. O novo cardeal, duladi" de "jenernM •
sentimentos e de engenho cultivado, ja provara r ■
ta>el aptidão; pouco tardou que, preenchendo fn:
ções não menos espinhosa», deinonslrasve sersuaei. -
tural a estrada que leva as primeiras dignidades.
li bispado dlniola, cm que o apresentou o papa.
depois de servir ni> de Spoleto, foi o ihcatro aonde J
larga e pr>>l'icuamenle poderam .if^parecer «s grande»!
qualidades, que o ilbistravam. Foi .ihi que ocara..'terl
frio e prudente, .i lirmeta de vontade, e a reclidã
djs decisões lhe grangcaram onome, que o tornou lã"!
querido da Itália. .\ administraçãu descuidada d<i^
o PANORAMA.
59
1 „ ,;nhA (leixdo lavrar abusos Mastai-Ferreli estremeceu, e inclinando a cabeça
Li,po, se., antecessor- fnb. d K^ ^^ ^^^^ ^,.^.,,,^^,,^ MIulade. m.u
euc.os q>-^ •"- 7i j TLle desde í,o Deus, e e„, <jue ,no,nento ! . Só .s.as pa b.vra. retra.
, [L "s 1 n<õe. de M.,stai.Ferreti ■, fam um grande homen.. Aquelle que, da n.:uor al-
contaram com as •>»" "^J'^ ^ ^1,^ ,„ra da grandeza humana, senão cega com oesplen-
„,a. o, mezes ^^f -" ; ;.;„^',;. ",^.,,„.,,„,.,; pa.i- dor da tiara, o sente vergar „s hombros deba.xo da
naodava ^'S"--''= -l-- '' ^^;' '';.; ^^„^, ,i,,. O, impa- peso da, funeções que Voe incumbem, deu a n.a.or
v„ dos male» que su^puavam ^ ^ ., ^V^ ^ P^^^^^ ^^ ^ _^ ^^^,^_^ ^ i,„portancia da 'ua missão e
• ^»„t rpvn'viam-«e; ot ^ensaio? tu..... j , - ,_„.„„, ,1^ (ornada a que se vai melter, verda-
r o -iíXes íevan.avam a-i-^-^Xt oiro' ,p^olo Írguendo ^ cru. de Christo no me.a
«Jo» « ".. - , _ .. ,,„ ,„„„„tP o simulado rep»u j jjj, j^, ^o scepticismo, e da confusão do se-
,.;.1„. NVs.e dia a igreja I'"'"!--';'"-.^'»""^ ^J^^
como arca da lat.,ra allianra. - Das rumas do mun-
do velho, do mesmo modo que na era dos césares,
sairi oe.iilioio da civilisaí,no moderna ; —guiada pe-
,, .„,,i,.i,o do evangelho ha de encontrar a colu.nna
..rd^:í^:-e;^n.^o;mu,ado...^
so. fugiu a inacção, e o_ novo ';^"'_F^,;;,;'\..„i,„,„., Ja
so. fugiu a maci-au, - ^ ■■■ ,,„„plelo da
v.-P-n>r^^'l-^;;^t:' :-X-•-•-'^"S-
r,.organlsa.;ao des-jada S ■ - , H„„„.„a, e a
binete, levou •-> /^ j' ^^, i^^^e „,,duras queas podiam
„.^r.ar aye^^ '^...icamente .. M-u systema, j -'j;;;-'-;;;:: í,;;;-;,;^,„o deserto, em que a.rans-
'' Z se sem s orv"^^., abençoado pelo ^"o «.pe- M qu^^ 1 ,^I,;_.„^.,, ,„„^,,, „ „deres huma-
Tvo e O auX, objecto da mais Mva ""';><;"'' v' I ". , ;.i''ados por terem perdido a fe e esquecido a
: ccer a -. diJcJ nos bra,os da pa. e do conten- -J^^^,;.^, /..<,edade ^,ova tornou o"tra vez .
1 „, I 1 ._......,... n..,., nHo terrível, ameaçador ecoroa
; rs;,bias e maduras queas podiam
rom-ertar as reformas sal.iase ma i
icatrisar. Estudado practicamente
ex
po
♦^■ír;;--t.nb.aoseu..c,er^
..orno .lissemos, o arcebispado d S^ ^ ^^^^ ,^^^
romanos, accendeu o laU.o "■' _^ j ___^ ^^_^_,,,
adorar o seu D.us, não terrível, ameaçador e coroa-
do de raio, como no Sinai, mas brando ^ "'h-'^"' '"
do piedade «esperança, como ajoelhou "" l'"^'" ,^ f";.
deceu no Calvário. l>o,sa o sangue de tantos n^ t>
res, descendo s.obrea cab-ga dos netos de nossos f.llus-
d-.r lhe, a felicidade porque lanio suspiramos, eque
: iVnu sempn.. fms.rando o preeo delagnmas por
— u [\a vernaue, ..."■- '■•■• . ,
licia importante. E os papeis aonde '•."'••'«"
Lulii-losaqui, respendeuocommissario „
.,K„tão espero que m'os entregueis -."
.Ma, devo remei te-lo. par. !tom
solemne |uiu,o..!-= que se pu-...- -^ „„trp id-
diversas .essoa, tinhan. ji ^'t'- "7""" i. F^rre
las o famoso ma.hema.ico Orioh, <>,-'"';'/;^7;'j'^
innão do cardeal, e outros mais, poren. -"= ;''^'° '^''
_.. Ma, devo reme.te-lo. para '^<""»; ; ; " _^^^ „ eonciliaçHo nr.opoude verifuar-se tao J'M'---;^ P '
_.. Dai n,\.s. Fu é que se, o que se deve la/,e . , J .„„ „,e nu.veram, e pela clássica
O o n nissario não insistiu, e entregou-U. os p - , o ^ - u ^^^^^J^^^.^ ^„„^,.,,,. Kntre tanto ., l'.u.-
«uadido de que o arcebispo os ia enviar —■"■■'"-, ^|'i,.^ ,dei,o, ''i^'-^— .'"^'^';,P;;;;:; ^
-rZ ;;;;:":;... n.i na reaUdade grande quamb, medidas «upp^miu .,s^ c.nrn.^^
. íu'|:v:n,ar-s,:, qu-brar o l^";;;;;, 3;;: ^^'''^^ r'd:^:uLncia puMiJ eu> cada semam. para .m-
„ viu levantar.se, quM,rar o lacr.., edcq,>u^ J^^
-e..^.-^M '"-'lí:,:,;;;':;;:!^;:;;^::
p^lj^s!. a estas tamil l lag, ima, c a magna de
*"i,^;;:';:.i,; fae„. ,.i premiad ou,, -.•;;';-„;^-
j,„rio .\VI soub,. d.slin.M,,.- o ,„.-l:,do que entendia,
M meio da, eo,ninov>es pobtoas, qu
governo do, pov.., se dirl-e pelo amor
'"'r"n:;an.e prae, iea d,, vn I odes religios.s, e o
dei o ;. eharidlh. para cou, as classe, ."''■---
naram-nopopular.n. Imola. <)s-l..O|neer.,o^^
rndo como svuibolo d'esperança e salvaço. Sup.mr
nu u u da,^.rincipae, ravõ„H da sua ele.çao fosso o
r. nar.iculareonhi.ei ,o da Uomagna, e a cer
a d , -a inlluencia moral sol,r.. a^u-H- "'..ao aon-
ne o verdadeir
(• se funda na
.ii<>(ltil\s c*uporioiui »'3 *-" . ,
r ,s nueiuliavam nas provindas •, estabeleceu um
d 'd'auLncia publica eu> cada semana para --
,;, „ ,.,dos-annunciou e -'-í-'." P"';^'' ,^7
e,„Korrencia para empreras de caminho, de r
n,.oois .l'estas não se demoraram as outras mais ur
„ente», que demandava o estado temporal.
' ,) rontiíice começou as '•■f"^'""V"",''7"'No diã
,„„nias na sua casa e na, despega, doestado ISodia
odejulhosaiudoUuirinal, ? --P-'-;' ^^ ;
gons prelado, dirigiu-se á igv.-,a <'- ^"l^^^;? '^^ ^
(Mcmente \lV<u,e não havia eKemph. de se v.r um
I , : :minhan.lo a pe. (iuando regressou, rom e-
Ln, grandes acclamaçòes de p,.vo, '-•';-••,;:
,;ão d .guinte s.òe, : - ( ouu, se e ■ Ir
.,„ pnqeeto d'amnis.ia por cousas H""'"; /'^
,„J, j hão .le reend...lçar os credores doestado, h.
,.„viria dar baixa ás. ,■opa,^es.r,u.ge,rrs-^P
'ir: i:;nuen;.i;i mora. sobre - dl:^ "'f 'i;':- Ti^' d oUbli .^la bd d'. Mi-, <.- •"•-'•;-
'l a elb.rvescencia poH.ba se não podia -'; -' „ M ^^ : .., ...dencead:,, politi.o,, --i^':-';';' ^ 1^,
-o pel lluxo de um g nu- pa.ernal, | ^^_.,., ,^ .. ^., ....dos. A r.-^ -T- < ^l;;
amargou «o cora(;ao do papa, ma, 1. \t
Itiio p
demasiado nvenlunir.
Xeleieão do novo papa desmentiu lodos ..sprogno
tico,, a' Providencia qni« mostrar e -''; f 'l^'' ^
osseu, decretos, e isoudavel, osseus n<. , erio,. N n
cu, «reuniu sacro eoUegu. '---»-""'."■,;;;;'
houve eleição ni.ii, breve e menos '■''-"•''''■•*; ^. ,„,,„ de proscriplo,
do .e leu no escrutínio o voto que o bi.iu i-ontiiiu, l l
""""•íí""' "" """^ ■ - ' . n.rlido estacionário,
nara amortecer a opposiçao do parli.l.i . su
■ „.á vontade da grande po. la. T'V''.|r. d.
,... ^ an.nis.ia da a Uberdade » •:""*•''•;;,. .
,..„,.„ individuo,, eresll.ue a pa.v.a um grand. nu
60
O PANORAMA.
o povo, meia hora depois d^affixada a lista dos | como nunca vi nenhuma, deix^-se cairão pede mim
amnistiados, correu massiço e cerrado ao palácio, fdic-ndo uma bulha que Odrecin um trovão Eh lá '
enchendo os ares com as repetidas acclamai,ões de Daniel! me disse ella, tncarando-me muito- como
" fiva u papa\ /'ira Pio IX\ " Aorchestra, que ás \ vai isso.' — Muito mal por em quanto, lhe respondi
dez da noute locava na funcjão da igreja da Magda- , eu apar»iilliado por ou\ir esta ave seVa^em Wlar
lena, toi levada no íropel das multid.je, ale o Uui- j cm bom irlaiidez; quem me dera pilhar-me no meu
rinal, e manifestou com unia serenata os sentimentos "•-■l ' ''- • ■ — ...
da cidade. Roma illuminou-se .muitas noites a tio ^ e
em toda a Itália crescem e amiuaJii-se as rumarias
a visitar a casa onde nasceu o cardeal .Mastai-Fer-
reti.
E' assim que se annuncia o reinado do pontífice.
.\ igreja encontrou a desejada coliimna e tão necessá-
ria para suster as contrariedades dos tempos ásperos.
A barca deS. IVdro, exposta ás luctas de um sécu-
lo atribulado pela du\ida, e devorado pela interior
agitação, concedeu Deus o piloto, cujo braço lirme
fMMfríít^A .. « 1 -. ; . 1 — I
egendo o leme, nomeio do e>pumar das to^n.entas' o n,eu''auxmo 'irão^Xri'''"^ "^^^
desviará do naufraíri,,. ft„.i ,pr/. .. I.„r.„ ,l„ |.; . i. : "° "-"^ '^" «^ esta ilb
a desviará do naufrágio. Q.uíiI será o logar de J'io
IX na historia e na civilisação moderna .' Ao tempo
cabe decidir. Mas a primeira hora descobriu a luz
de uma intellii;piicia, que promelte resplandecer so-
bre a igreja, solire os povos, e sobre os reis da terra,
como resplandeceu nas trevas dos subterrâneos sobre
os primeiros eliristãos, e sobre o cenáculo dos após-
tolos, o fogo da fortaleza que, insjiirando os, os levou
pela mão da esperança aos pés da cruz ás mais re-
motas e barbaras regiões.
casal . 1 ergunta-me |«jr que casualidade vim dar no
meio da noite a esta ilha deserta, e eu conto-lho co-
cair n'a::ua TouVrr' ^"''" '^'^ •""' "«« «l«i"i
que nã^rc"ousa " re',er "" 7"" ' '"'"*^' ^'"''-
mem dia da íestaTx ^^^"^ ''"''•""-har-se um ho-
boa alma, e l!^ nÍ ÍpXfjs ?"' "'"" '"""-^
nhos, quero expor a vid.n^ V" V" ""' ""^"' fi'^''
n.inhas costas, re/,lel?:i o ''"V" '"^'^ =*«
do que eu helu..: C^^^^^^^'^ ^^P^-^ -"-
centou, encolhendo «« n ?v P^'-"»' accreí-
. "..u'auxmo t. P ,'"" ^:^^'" «í" peito, seo.
so-ihe muito que :xt'.r'::::í°'^^"-''°'-
lucuiiias que eu sou lorna ' Xí^ . •
P"S dois homens'com espin 'a das' ' o ° ." ""' '■"""
chumbada para ler o goslo de iV r " '" """^
Daniel Q-Holkke of o sonho d'i.m iíbbeukÂo. I Cc" inuma w',^r'''''V'"'''"' '" ""'""" d" "osso vai!
,., ,,.,,,,.. . do sen dobo. ''"^•^''■'' "■'"»'■■' ^""'o, bem no meio
JN c.MA aldeia d:i Irlanda vivia antigamente um po-
bre camponez crédulo e simples, mas pessoa muito ca-
paz, sem outro defeito mais que uma inclinação for
tesita aos folguedos da taberna, e uni amor lirme á
cerveja e ao vviskv, duas bebidas (jue elle confundia
nos seus desejos quotidianos, e que muitas vezes lhe
r-.u..l..-U 1 :.: .l„l :):. .1 i ■ . .
do sen globo.
Deu
-Assentar me na lua ! que lembrança • \- IK
us : como ouer.,i« „... „.^..- """'^■"•S» - > alba -me
j - -í 1-1 — .K.3 "='■'=' '"e I ueus : como O iieriíis ,... ""i» . >dioa-me
perturbavani a cabeça já debilitada pela idade. Um sem cair.' «jueeu possa assenUr-me na lua.
dia voltou d\ima viagem comprida o moço senhor da Ora essa ' I -i I
terra; grande rumor »ai pela aldeia, grande festa no a esta fouce com as^n- '"'",." "■""'"i'^" i agarr.vle
castell., I f)l„.,„ n.,„;«l „.-.., r. 11,.. . „ii.. .;_ _..- . I . "^ •■"'" *'=' "'aos ambas, que ella le suste
— Nada : nada !
^« bato com':ima das ;L::rr,:x::p--
— lor quem sois! compadecei. vo, f». V i-j
mim ! I"»uecei-vo5, tende do de
— Leva de lamurias. Q.uer»« „
Wa^;meumii.slanle,esenU::;.':,Vi::.''"^'"^'^-
oMo.n»,. ...^ |i»ei sobre ogh.bo escorrecadiço,
■ -> r 5 Q.«..vj^ n;oia iiu a esi
castello ! O bom Daniel não falha; ellc sim, que tem tara.
a seu amo tanta amizade, logo vai que deixasse de
Ih a provar bebendo muitos e bons tragos. Ao anoi-
tecer cada qual dos convidailos foi se chcando para
o seu casal. Daniel, que ainda tem que ajustar con-
tas com iim respeitável frasco de aguardente, licou
sosiiilio. Levanlou-se a final, disse adeus a este dia
de felicidade, eencaminluiu sc^ paraovalle, onde sua
mulher o espera na choupana; ora pelo caminho suc-
cederam-lhe casos estupendos, que hão de amd.t ser
repetidos nor muito tempo nos serões da Irlanda. Mas
deixemos ao bom Daniel contar o conto das suas pe-
regrinações e agonias.
" lame por ahi fora, diz elle, com o sentido nas
bojudas garrafas que o nosso generoso patrão nos ti-
nha mandado dar, esenlindo soque o tempo passas
que aperte, entre os dois joelhos "^ ^'■■0"'Ç-»i.So,
.- firma.a com as nJ:22CZT°'""'r''"^
tinha tomado esta horrível „,, "' ^^"'^
airuia. olh.nH.. .......' P'"'""' 1"^ a maldicla
. ^' pusiura
agula, olhando para minicnm-.-.)
, _. „„ _.,„. ......j,„ passas I SC — .A .ura adeus , " "'"^ "'^í^esc-.rneo, medis-
se lao depressa vai senão quando chego á beira d'um Na primavera p-^s^.da r" í ^"""^ Q-Roorke.
no q.ie tinha de atravessar, e estaco. A n,„f„ „..,.... I 1 . : " P"'"»''-' roubaMe-
no que tinha de atravessar, e estaco. A noite estava
hnda, o céu carregado de estrellas. Lembra-me, que
este dia é um dos dias da festa de Nossa Senhora,
olho para o céu, benzo-me, e ao mesmo tempo escor-
rega-me um pé, e vou parar dentro d'.igu,i Ah!
pobre peccador, disse eu de num para'mim. estas
perdido. — Ainda assim, faço das fraquezas forças,
começo a nadar d"uma banda para a outra, e por fim'
deito a unha á praia d*uina ilhota deserta. Que se-
rá de mim.' Entro a correr a ilha, espantado da so-
ledade, tremendo de frio, sem saber onde me agasa-
lhasse, quando de repente vejo uma sombra muito
grande, que me tapa a claridade da lua. Duas azas de m,n. „ )
d'um tamanho enorme saccud.am o ar, , uma IgX | it;":;;^!:^':;:
quena v.ngar-me, e estou salif^ir" !?• "'*"' "'"*'"'
...eu Oanielzinho ;' estas coiut;' T'" ^'''^'^
da e sentado a tJu commodo ' ''-"-"""en-
...^-'u^h:;::^" pr ''"""•''- -í- - -'-
-a Sra..deia d-alma, a 57; „hre "T ' 'l""*'"'"' "
medo «'.uvens «chorar ca tremer do
■ ou : ts tu, n,,p, a>r
inenoj.
o PANORAMA.
61
liMe elle; porque in.lagre vieste ca fer ? Contei-Ihe , sejo de cornmQi,icar-,e com elles Ibe inspirara 3 ideia
oda> a» UM>,ha, dev^ra^a» desde o infante em que i do telegrapho de talniii.bas fal comoexinte hoje. Oa-
le escorregou o peno no. Ouviu-me calado, epare- \ tro» biograpl.os as.everani que foi em 1791 que elie
.a apieda lo de mim o meu conto. Ai '. quanto me j o imaginou para ,e corresponder com amigos, e qu«
iiganava . ,, , I '■aíndo bem das primeiras teulativas tractou de aper-
— liom, bom, dis.eme elle quando eu acabei; é | feijoar o seu descobrimenlo •, e que quando obteve de-
ma astima que te Casses n uma aguia vingativa ;, terminadamente o resultado, estando a lin-ua-cm da
iiinda teiií que viajar, porque não podes ficar aqui. j signaes e o in. ir, .«.»..»" ♦- 1-»— -..?_. f j;.
— Tomara cu ir-me embora:, mas como.'
Com isso nada tenho; o que quero, o que exijo
que te vá».
— Estais gracejando. E para me apurar a pacien-
a quefullais em dt-spedir-me. Se tendes algum sen-
menlo de humanidade dar-me-heis agasalho na vos-
vivenda, e em eu tendo occasião vou-me, á lé de
laiider. !
— Nada, nada, nHo estamos para te dar agasalho
r um dia, nem por uma hora. Na gente da lua não
l! mossa o teu palavreado. Has de partir, e já.
— Sim ! pois não vou .' bradei eu no tom de deses-
|ra(,ão.
— Al, ! tu re-.pingas! diz o feroz cidadão da lua,
I içando inir uns olhos de fogo; veremos.
Dizendo islo retirou se, e com um machado que foi
Iscar deu uma pancada tão forte na fouce que me
S tentava, que me b.ildeei com a cabeja para baixo.
— DVsta feila, disse eu comigo, lá me leva a bro-
\'lcus, (.asai da minha alma, minha boa Judllh,
■ 1^ queridos filbos.
ido afazer o acto de coiitriíjão, ás revira-voltas
■ sp.K^o, caio no meio d'um bando de patas bra-
\ cabeíjMda colnmiia conhecia-iiie, porque vinha
's viTÕes fazer o ninho nos arredores (bi minha
Oh! és tu, Dan.' gritou ella ; que exlrava-
' l'inbraii<,'a foi essa de viajares assiiii ? — Coii-
'11" Indo, e ella teve dó demim.— (Jlha ca, me
I 'lia, pendurate iruma dasmiiilias pern.is, que
'" 'Iwi. Obedeci, agarrcinie auina ilas suas per-
' ' Ml as m.Tos ambas, e a p.ita charitativa levou-
' ' 'oio um bezouro pendurado na ponta ti'iimcor-
'i'- iiionlanha em inontanlia, ile várzea ein var-
• '' a beirainar. — Aonde vamos nós? lhe di^se
III terror; eujá não dislingiio a minha bella Ir-
' ' Estou flor isso, respondeu a pata, se nós
" ' p-ira a Arabi.i. E foi seguindo viagem.
iw.i iiMiito tempo (jiie andávamos por cima do
■'<"•, quando de repente, oh felicidade! enxergo
iiibarcaeão, arrasada em panno, que me pare-
•gar p.ira a minha quirida terra Deixa-
I- Hl flobn.' esle navio, dissi; eu á pata niiscíricor-
" íioueo, me respondeu ella, não vês que te
r .IS a morrer afogado ! — Não, rogo te que me
Bilenhas ! Dizendoestas palavras larguei Iheaper-
. '■■'! no meio das ondas, (iuamlo ia aerguer-me
ledi, e a estender os bra(;os para me salvar a na-
, e,,rdo, eou<,o uma voz a berrar : — (luetii nuii-
H..IS de emendar, bêbado sem vergonha! Antes
• estirares nu chão como um bruto escolhesses ao
■fi um silio mais limpo. — Era miiih.i mulher u
fcr comigo com esta delicadeza, e a despejar- me
flrpo um balde d\.gua para me lavar da lama em
• mha chafurdado.
dos
I ser segundo a »ua concepcjão, dirigiu-se á assembit'a
j legislativa, no seguinte anno, enviando-lhe a machi-
I na, qne denominou Megrapho, de duas palavras .-re-
gas que dizem escreuer, /unye. O que então se passou
relataremos no devido logar. Chappe morreu em 180S.
Em razão da originalidade aqui estampamos o seu
monumento sepulchral, erecto 'no cen.iterio do padre
la Chaise, e coroado pelo símbolo da sua inveiifão.
IIlSTOniA no» TICLK0IIA1'|10«.
>l« riiappe, inventor do» lelegraphos, nasceu
00. De idade de 20 a s já (inlia publicado
■Ui memoria, „d,re a pbysiea, qne lhe fran.niea-
enlrada na soeieda.le phllo.nalica em I7'.I2
«equ.'e«ludand..noseminariod'Angers, eseu»
I II um collegio situado acerta distancia, o de-
Divulgado « descobrimento de Chappe. cftou-se um
sem numero de ancloridades para lhe disputarem .1
honra do invento, e pnblicou-se uma multidão de (o-
ll.etos, pela maior parte em alhunão, ,,ne serviram
"nicam.nle para provar a niili.ladr .• a novidade do
melbodo qne elle achara. l'or certo .pie a idéa de
communicar noticias a grandes distancias era conhe-
cida <■ practuada muito ante» de Chappe; comtudo,
compete lhe a construc.;ão de uir. instrumenio com-
inodo .pie serv.- para transmillir sulViciente numero
. .! signaen, e o u>o .r,.st es é tão simpl.^s qne, auxilia-
<los pela arithmelica binaria, pod-iii passar Iodas as
novav, to.las as palavra» e phrasesque se qui/er. I)e-
Ip.iis .le Chapp,. não cessou de ser empr.-gado o tele-
grapho e aperfenoado-, mas ante, «rdle os ensaio,
haviam sido mfrueluos..,. T.i.bivia .: conveniente hi,-
tori.ir esta, tentativas, e examinar a serie do pro-
gresso,, m.'.li«nte o, .,u«e, „ h..mem a fmal r.-ali,ou
um .le^c.brim.nto tã.. imporlanl,-, .,uer em laião do,
r.'Sulla.lo, ja c.msegui.l,,,, ,,,„.r ,r,„|,„.|l,., ,|,„, „i„j^
<• licito .■sp.rar. Ao .|i.m|„ ,.„„eluir.Mn..s ccmi o mo-
derníssimo achado <I,>H t.d.'grapho, .lertrico,.
(ir.isseira, cmo t.,da, .iii mmi principi,., a artete-
legruphlcu melhoiou se pra.lualmenlc. Tr.', periodo.
62
O PAIVORA.MA.
se podem assi^nalar na stm Iiistoria ; o primeiro, quan-
do SC empregavam sii;iiaes antecipadamente ajusta-
dos, cnja apparirão annuiiciiiva uni acontecinienio
previsli., mas (jiif era nece.sario fixara no secundo
perjotio usaram-so signaes alpiíahelicos :, e no tercei-
ro, por fim, os aignaes não representam leiras, po-
,A~ r«c ^..„ ,.„^ „.„„„^,„„ ,)., ;,rithmetica bi-
naria, como dissemos, em pequena quantidade, pres-
tam-se a todas as comltinarões da linguagem.
Km tempos mui remotos os signaes eram brados,
lume, ou fumoi é na Ásia que se acham os mais an-
tigos vestigios doeste» : com eITeilo c fácil de perce-
ber que, nas vastas regiõas d'esla parte do mundo, o
homem, tão desejoso de commnnicarão com os seus
similiiantes, procurasse meio de abreviar as distan-
cias, e imaginasse esía casta de escripta, para assim
dizer, aérea. Oscliinas serv<'ni-s(! lia muitodesignaes
telegrapliicns. Tamerlão fazia uso de alguns nas suas
gnerrHs ; quando assaltava qualquer pra(;a mandava
ariorar uma bandeira branca, que annunciava a sua
chegada e queria dizer: Jtcnjcix^os \ 'íaintrlão será
elerncnic \ se não lhe obedeciam, içava bandeira verme-
lha, que significava, que o f/oLcriiíjfZor seria moilo; e
nas ultimas a bandeira preta declarava aos infeliies
haViilaiites que tudo seria àcslrríijo. Em epocha ain-
da mais antiga os monarch.is da 1'ersia, segundo Dio-
doro (liv. 19.") tinhain estabelecido por todo ii im-
pério linhas da sentinellas que traniiiiittiam uns aos
outros, por meio da voz, as novidades ou as ordens
do príncipe. Na expedição dos persas á Grécia collo-
COU-se uma linha similhante desde .\fhenas até Su-
sa, e as noticias chegavam á residência do poderoso
iiionarcha dentro de quarenta e oito horas (vejam se
Heródoto e Cornelio IVcpotel.
Da Ásia se espalhou pela Europa a arte da com-
municação por signaes. O primeiro exemplo «.'O caso
das vellas brancas e pretas de Tlieseu, inrlicios gros-
seiros e incompletos. Eschvlo, na tragedia de Aga-
meninon, nos dá esclarecimento'» manifestos de uma
communicação entre a Ensopa e a Ásia por imia li-
nha de signaes por fogo. Um vigia, que por espaço
de dez aniios observava, se a fogueira estava accesa
sobre o monte Ida, e que repetida em outros muitos
logare» devia servir de aviso a Clvtemnestra da to-
mada de Tróia, brada: "Graças aos numes, o sigiial
feliz rompe n escuriíl.ide. Salve, f^clio da noite, pre-
cursor de um formoso dia. " ( Ivlenincslra depois an-
liuncia aochoro avicloria dos gregos; eeslelhe per
gunta quem lhe dera a noticia, u l''oí ^ olcann (res-
ponde ella) por seus fogos accesos no monte Ida ; de
facho em facho a tiamina mensageira voou alcaqui.'-
Kefere em seguimento que os postos estavam colloca
dos n'aqiiella montanha, no pr<imoiilorio iPIíerines,
na ilha de Lemiios, na serr.i d'Alliiis, em Macisfo,
em Messapc ás margens do Euripo, no monte Cvlhe-
ron, no» de Egiplaiieta. cm .^rachiie. o finalmente
em Argos. — Pouco provável é que se fizesse uma si-
milhante linha de signaes no XIII seeulo aiiles da
nessa era :, mas é certo, que desde o \' seeulo essa
communicação ••iilre a Europa e a Asi.i e»tav.i esta-
lielecida i é t.imbeni provável, que o desejo de haver
noticias dos movimentos inlliiares ilos persas decidis-
.se os gregos a servir.se (r.-iqnelles fogiis : Arislopha-
nc», nosecido seguinte, faliu do facho de licmnos, na
comedia de Lvsistralo.
.■\ i v viiiN * i)i; UoMA.
Detois de ter deveiíio os últimos encontros doCimi-
no, seguindo a antiga via oassiana. chega-se m llac-
cano, Ingar mesquinho, edificado n'uma collina ari-
I
da: d'alli vê-8e avultar no horúonte á direita umm
corda immensa, rematada por uma cruz scintillante :
e'j) zimbório de S. Pedro. Asondulações dosolo por
cinco léguas de extensão escondem ainda aos olho» a
cidade eterna; porem a cúpula da cathedral do orbe
catholico surge do meio da campina, onde parece,
coUocada como um sijnal de soberania esquecido no
deserto. — Odeserfo — esfranha-«e esta palavra, ap-
plicada á Campai/na di Roma, o agro romano, para
onde convergiam outrora as leis, artes, industrias e
crenças da Africa eda Ásia para se fundirem n'umi
grande unidade, e as»im transformadas se espalha-
rem pelo mundo. Embora, a campina de Koma tem
todo o aspecto de um vasto deserto. A sua superfície
comprehende, alem do território ou termo particular
de Roma fagcr romanus dos antigos), o Laciu, .
bina e a Maremma ; tem quani vinte léguas de
prido por nove a dez de largo : o mar Thvrrei. i ..
costeia pela parte do poente desde Montalto : t s
cidade de Terracina, onde findam os estado* ri
nos. Ao norte, la Fiora, ribeiro que separa a
remma toscana da romana, e as montanhas deC:
no demarcam a campina : os busques espessos d •■
ultimas, que, pelo terror supersticioso que in»;
vam, susliverain tanto tempo os romanos já sen:
do Lacio, desappareceram ; pelo menos vêem se a
nas aljuns restos no declive meridional: nãoobsl
te a aridez, as encostas macias dVsta cordilheira vi
canica e os topos ondulosos dão lhe nm aspecto oi
destituído de altractivo. Mais para alem. no an
formado pelo norte e levante, descobre se o mon'
Soracte, hoje Saneio Oreste : levaiila.se completa»
menie desacompanhado^ como se um abalo o tiverm
despegado da corda dos montes Sabinos, que corre a
leste, e o arrojara violentamente ao loiíje para apta»
nicie; a sua cumieira recortada eas formas abrup
debuxam se claramente, e por ângulos salientes,
azul do eeu, ao mesmo tempo que o jog>i da lui
suas ladeiras amassadas n asseiiielliain a opila de
fle.xos variáveis. Detraj d'elle, encerrando a cam
Ilha ao nascente, alteam-se as serranias d« S.ibina
calcareas como o Soracte, m.sis do rpie clle ^ão d(
pidas e escarnadas ; piredõcs enormes di- rochas pei
dentes do» seus declivs, osdcpenhailciros queoss
cam, os.pinearos agudo», bem separaiios uns dos
Iros, prestam a essas montanh.is certo caracter
niage^fade selvagem: lodaxi.i na raiz d'elbis p
deiii-se eminências vestidas dearvorcrín ■• ciillivíd
sobre as qnacs estão assentes a fresca Tivoli, Gi'
e Miinlieelli, que, por seus t»>lhados chntoseedi;
muito juuclos, cujos alinhamentos rectos se coiilu.i-
deiii, lie loiíufe dão visos de templos vastos, er< . '>>
no meio de florestas «agradas. .Ao sul fica o p
Albano, de formas brand.is que descem foaven-
p:ir:i a rampiíia ; ora col>ert» de mnllns, ora de •
gis. cercado com o alvo cinto de ciddde». Fra-
Mariano, Castello •• .Mbano, c de outras pnvo.-i
aqiieile iiuuite contrasta sincnlarmente com n i
reia bravia d. is montanhas Sabinas: com os ah
mais «:;udoi dos Lepiíios. que a muita distaiici
reoe que fogem para o reino de Najioles, termi-
Albano oarco decirculo, que abraça oojro romoiwi.
e que tem o mar por tangente.
E portanto a campina de Koma lodo o espaço
prehenilido dentro d'e>fes limites : o Tibre
de norílcste aoe-te, descJevendi> uma curva quej
bra.para o sul. Esle rio desce do .Apennii"> e
jise á planície pelo valle que separa o Ciniino '
inoiíles S.ibinos-, a areia e lodo que acarreta n«f
curso impetuoso f.izem-lhe as asnas turvas e »mi
lentas: as-im que deixa a visinhança das montar
por onde abre passagem airavct de liosqnes e ml
»>■
•dl
o PANORAMA.
63
das
i veíetação quasi inteiramente desapparece tias suas
margens:, ora corre »i)lilario entre ribanceiras nuas,
jra, rebaixando se oterreno, sederraina em iharcos
pelos campos: próximo á (oz reparle-se em dois bra-
dos, abi forma a ilba sacra, e vai suniir-se no mar,
'ujos limites annualmcnie ím recuar com a alluvião
le seus entulbos.
A uniformidade do grande deserto, por entre o
qual se escoa comi) uma cobra amarelbi, so é in-
terrompida pelos numerosos altil)aixos do terreno;
Mnteniplando se estas ondulações do solo, poderá
pensar-se, Cjiie esta campina não é mais <)Ue o an-
tigo leito de um golpbo, onde o mar retraliindo-
se deixou em descoberto as eleva^'ões dos sens baii
do paíi, que não parece cabeça de uma nação, eque
a sua existência é absorvente (1). {('ondnúa.)
A TRIlíl; DOS GlAUAVOS NA AmERIC4
Meriuional.
(ContJBuado de pag. oi )
SENDOa cultura o primeiro recurso dos giiaraN os, poii
que a caça si) a tomam por passatempo, ajiinctam-!he
muitas das suas ceremonias religiosas. A sua crença é
simples como os seus castumes. O Taiitoi igrão pai),
deus benéfico, aquém reverenceiam sem o temerem,
:os d^areia, os sulcos <las suas correntes, as profun- [ viveu entre ellcs, ensinou llics a agricnltnra. e pro-
iidades dos seus abvsmos. Longas fileiras daque- ' metfeulhes protecção, ao despedirse eloallo de uma
dnctos a partir da falda das serras, atravessam ou- .arvore sagrada lie llòres purpúreas, subindo aoorien-
sadamente esta superfície terrestre de ondas imn\o- ■ te para o céu. Invocam, este deus na epocba das se-
veis e vem rematar na cidade parecendo q\iea pren- : nienteiras, ou quando desejam que abundante chuva
riem aoclião. AiitigamiMile Uoma contava dez aque- i vivifique aterra sullocada com os ardores de um sol
dueto», alguns dos quaes tinham doze, e deteseis le- j abrazador. Uma singela cabana, de forma octogona,
íTuas de extensão : hoje só possue três: osoutros sele ' no meio da floresta, é o templo onde imploram Ta-
em ruínas ainda mostram os seus fragmentos, mas jnui : homens inteiramente nús assentamse á roda,
as suas fileiras estão quebradas; eaovér tantas «tão ^ tendo cada um na mão um troço de bambu. O mais
nia"esto»as arcadas poderiam rejiufar »e arcos trium- ancião, com os olhos fitos na terra, bate o compasso
pliaes de um povo de lieroes. f.ni raros sitios despon- com obambii, eiitoatwlo um hymno que todos oscir-
ta uma pequi-na matia de pinheiros ou de eypres- conistantes repetem, batendo também o chão com os
les i e de ordinário marca a [)aragem onde jaz ai- troços decana-, a bulha «Festcs, juncta as vozes varo-
guma eidaiie de antigas eras, ou alguma sumptuosa
h;<bitação romana, cujos resíduos estão sotterrailos.
Alí;uns ccnnli, casaos, sem verdura que oseirciiinde,
dcsliabitados uma parti! do .inno, inoslrani a iiiler-
nis, a postura grave dos cantores, me admiraram quan-
do fui festimiinha desta cereinonía; pediam a natu-
reza, em estalo figurado emui poético, que se reves-
tisse do seu mais grandioso adorno, ásflúrcs que de-
vallos os seus tectos solitários. K depois segiwm-se j sabrochassem, ás aves que se cobrissem da sua mais
túmulos, restos de templos, de circus, de torres feu- I brilhante plumagem e renovassem os seus alegres caii-
laes, lie pontes ameiadas, e tudo em minas, desa- lares, ás arvores que se enfeitassem com a verdura
ouça da primavera, afim de se lhes unirem para at-
handi), coberto de trepadeir:is que se enroscam ntc o
topo, eque com os radicnlosiis festões Iluetuanies oc
o, equi!
eupam os remates desmoron.idos dos edifii.ios : e não
lia ruido de homens, movimenlii algum de gente do
impo, salvo na estacão das sementeiriís ou das co-
leias : ha iiii-
com
<) mV) circular parece evocarem as sombiiis (Faquel-
les silios devastados; ha manadas de bois de pontas
desmesuradas, bandos de cavallos bravos que passam
rapidamenle na planura, búfalo» sumidos entre os
ip.
Iheilas, porque não lia higares nem alUeias :
lhanos e águias, que pairam sobre as ruínas
) circular parece evocarem
trahir a atlenção de Tamoi, que nunca invocanajil
debalde. — Crêem que por sua morto são por inter-
venção deTainoi arrebatados ao céu, para o lado do
oriente, do vértice da arvore saiicta ,• eque na outra
vida gosam de quanto possuiam n''esta :, por isso en-
terram os corpos ataviados de pinturas e eom a ca-
beça voltada ao nascente. — Hão pouca liberdade ás
mulheres, que em pequenas nunca largam as mães,
e che;;ando á idade núbil as subinettem -J. jejuns ri-
gorosos, e as incisões que lhes fazem no meio dopei-
paues, d'oiide alçam a cabeça negra c disforme, sir- J to demonstram que passaram da infância para a ida-
'fianilo trabalhosamente os poucos bateis ()ue sobem o j de, em que tomam o seu grau na sociedade. Nunca
Tlbre : v(''em-si- também f;raiides rebanhos com seus ;,s mulheres apparecem sós: ou os paia ou os irmão*
pastores, que ao decair da tarde procuram abrigo em
cavernas ou em túmulos antigos, cujas entradas figu-
ram de loM^e malhas escuras ; todo o terreno é de
'tinetura uniforme, requeimada, como m; por alli pas-
'sasse o fogo. Tal é o aspecto geral iTista lainpíiia | ri
'romana, que jiilo síleiíiío, solidão, destroços e ciV,
podeiia tomar se pelo valle deJosaphat <leum muu-
ilo antími extineto. — 10 bidh) jiara o contemplativo,
para o artista ou o poeta : — aquille caracter de as-
solação, a seviriilade dos contornos, a ausência de
particularidades prosaicas e ant í|)icturescas da vida e
lavor agrícola ;, todas aqiiellas ciriii insta mi as eom que
Ml asam as recordaçiiis heróicas d a anligiiidailn põem
o ispirilo em disposiçài) sulemne. Mas ipi iiidii se abate
o vòi) desde a altura da arte ou d<> philosophia, e se
iiivfstiga íi causa iPeste aspecto ermo, cessam as iiis
pii.iç-ões poéticas, e as substituem penosas ri-llexões :
' idia d» eivilisação e das <'oniniodiiladi'S concerla-
se iiouco com n davaslação de um pai/,. Observando
Itoinh CHI iindit da soledade, sem população rural,
«em eiil\i|ra permanente do titrrílurío, sem movi-
mento coiiimcrcial nus suas visinhanças, cnuiprcheu-
lie se logo que tsla cidudo não está libada ao reslo
as acompanham ; o seu trajo é mui simples; trazem
apenas um pedaço do tecido que colire das cadeiras
até os joelhos ; a cõr ebellas fiírmas lhes dão aappa-
rencia das nossas (estatuas delironze; iiosdia* Icstivos
scam o corpo com estreitas f.ichas pretas.
O caracter mais saliente dos goaravos e ii sua es-
crupulosa probidade, jamais se quereriam apossar de
cousa, que lhes não pertencesse : venceram sempre na«
provas a que subinetli a sua delicade/a ; ileixava de
propósito um lenço de cõr no mallo, ou machados fo-
ra da minha residência; sempre estes objectos me l'j-
ram tornados liclmcnte. Tal e o esboço do retrato do»
anlÍMis descendentes ilos c.iraibas, que eram homens
ferozes e anthrii|)ophagos, lonira os quaes não acha-
vam expressões assai enérgicas o» esi riptores ilos pri-
meiros séculos da con<|uistu. — .\ par de tantas vir-
luile» admira n repugnância dosguara_>os asprescrip-
ções da religião catholica. l'iii venerando iiiissíon.i-
rio, o padre liiieuevH, o iii.iisestimavcl religioso IrttU-
(1) ICsle i|u.idro foi tríçidoeni IHii por Mr. .St<h.islieu
Alliín. lia l)eiu lun.lailas esperaiiçis hoje ile que iSo ilesí-
iiiiinidOra situai,-'» piin;i'es(.n.iiueiilo incltioie.
6
L
O PArVOaAMA.
ciscano que eu conheci na America, hespanhol dena-
<;io, homem tão instruído qiianiu modesto, nada tem
obtido ha nove annos^ não porque os indígena» op-
punhani resistência aos seu» desígnios, ou tenham
aversão ao homem piedoso, a quem, pelo contrario,
reverenceiam ; mas os que recebiam o baptismo vi-
nham pouco á igreja, e não largavam os seus antigos
costumes. O padre disse-me, que as maiores difficul-
dades que tinha a vencer eram fazer largar aos ho-
mens o habito da polygamia, e alcançar que as mu-
lheres se cobrissem um tanto mais.
O padre Lacueva \ivia em Sancta Cruz, uma lé-
gua adastado de mim:, habitava uma choça humilde;
a sua Igreja era uma cabana coberta de folhas de pal-
ma, onde, n'um altar feito de barro amassado, eque
aos domingos revestia com um simples estofo d'alg()-
dãii. costumava celebrar missa. l'ara avisar os iieo-
phvto», o respeitável ancião só tinha um almofariz
velho de metal em que balia com uma pedra. Per-
teiicia a unia casa rica naHespanha, e tinha estuda-
do as nialhematicas ; piirém a voração o impellíu a
pregar o Evangelho-, melteu-se rranciscauo, edentro
em pouco, por virtudes e saber, mereceu o cargo de
preleito demissões, (jue poderia equivaler ao de pre-
lado superior. l'assou-se á America, eahi fugindo da
vida quieta dos conventos consagrou-se á conversão
dos iiidios, rrpellinuo todas as honras que pretendiam
coiiterir-lhe : viveu vinte annos com os selvagens vu-
rucares, ca final, cançado de não os reduzir áfc, Uei-
xou-os para habitar com os guarayos, entre osquaes
começava tambein a deseuganar-se de que terminaria
a sua nobre e ignorada carreira sem lograr vantajo-
sos resultados. Mal enroupado, subsistindo das esmo-
las das senhoras devotas deSancla Cruz delaSierra.
sustentava se de arroz cosido, iguaria que por suas
mãos preparava, vivendo solitário, e apartado das re-
lações do mundo. V ivamente me cominoveu a perse-
verança doeste religioso, de idade então de setenta
aiinos, e puz todos os meios de merecer a amisade
com que voluntariamente me honrou.
A 2o de janeiro alguns maioraes indígenas de Cár-
men de Moxos me trouxeram uma carta doadminis-
trador d'esta missão, pondo ao meu dispor quatro
grandes pirogas (canoas). Trcs <li.is depois «'u niedes-
pcdia d'aquella boa gente de Jiiaravos, e confessi»,
que não me esquecera o abulo, que me causou o mo-
mento da separação: o padre Ijacueva e todos os ín-
dios me acompanharam alé abeira do rio com todas
as mostras de amizade intima. Tudo »e embarcara,
e os remeiros só esperavam a ordem para sulcar a
corrente: deitei o ultimo olhar para a praia, e \i o
sanctu varão, de olhos lagrimosos, que de cima da
Tliíanccira medeitaxa a bençam, e Itidos os í;u;tra\t».
com seu caudilho á lesta, me diziam adeus nos ler-
mos mais signilicalivos e atlecluo^os.
O primeiro meandro do rio sinuoso me separou
Q esta scena terna, eenlregup atis mens pensamentos
procurei dislraliir-me cimlemplaiido lodos os objecto»
que 1110 rodeavam. Oito dias consecutivos naveguei o
no ^. .Miguel, admirando a variedatle da natureza
no estado bravia, e inarciíiidu com a bússola até «s
menores voltas do rio. Quem penetra por um puiz,
para assim dizer, virgem, experimenta prazeres real-
mente desconhecidos do viajante que nunca saiu dos
legares habitados. Osanimaes do mattu, ignaros dos
perigos que lhe» provem da frequência dos homens,
liao mostram receio; e eu tive occisião de \èr com
gosto que os bando» de macaca» se movi.im mais pa-
ra me observarem do que para foíirein.
Chegando a Cármen de ftloxos eu havia Iraçjido
um longo trilho n^uin csp.içu que nos m.ippas se acha-
va em vasio, c reconhecera que o rio S. Miguel, cm
vez de ser nm affluenfe do Mármore, ia pissar, com
o nome de rio Itonama, pela mi«são da Magdalena,
vindo a ser affluente doGuaporé ou Itenés ; junctára
portanto ás minhas precedentes investigações este no-
vo resultado geographieo, estudando uma porção do
continente americano, muito interessante, eque per-
manecia desconhecida. —
Méis df. remediar as cólicas de chcmbo dos tc-I
CELÕES EM TEARES a' jACaCABD.
Ha nos teares á Jacquard umas cordinhas cm qae pren-
dem uns cordéis, em cujas pontas estão pendurados
cylindros de chumbo, de perto de sete a oito poUe-
gadas de comprimento. O numero d'estes chumbos
anda por 1000 até SOOOO, conforme a largura das fa-
zendas, ^upponhamos uma casa de teares, de 150 pal-
mos, com 100 000 dVstes pesos de chumbo aroçar-se
uns pelos outros sem ce«sar, e faremos uma idéa do
pó venenoso que resiilla da fricção. Este pó não ■• •
faz que dê nos operários a chamada cólica saturnin .
mas pôde causar, e causa com effeilo, moléstias de
bofe nos indivíduos comdemnados a respirar esle ir
viciado, principalmente quando, no tempo dos calo-
res, o ar externo não basla para renovar e de den-
tro. Se por desgraçi, como em França, molham os
chumbos em vinagre com agua, tanto peior, porque,
depois de seccos, o pó que os cobre se converte em
acetato de chumbo, e augnicntaiido em quantidade
au;inenta o perigo.
.Mr. í)almencsche observou, que as moléstias eram
menos frequentes nos operários empregados em tecer
fazendas muito largas, como chalés de ^ e d" ^. por-
que, trabalhandti mais deva;;ar, ó muito menor a fric-
ção dos chiimb<is e a quantidade de pó que se levan-
ta. Também observa que o termo médio dos operá-
rios inferinos era um dos doze; e que quanto mais
pequenas são as oflicinas menos são as p<'»soas ataca-
das das cólicas de chumbo.
ttuanfo aos meios de remediar o« enellos nncifOS
de mecliaiiÍMno do tear a Jacquard, Mr. D.ilmenesche
adoptou a proposta do corníí^ d-» saúde de Ijeão, de
pór em hv.;ar dos chumbos cvlindros de vidro òoo,
que se ••ncham de chumbo derretido para lhes dar o
peso ncce»5arÍ9 : esta substituição cpreferivl aos c_v-
, lindros de ferro, que fazem muita bulha; inas aind*
não i<;uala a do estanho.
Todavia, coinooestanho cu«»a muito caro. pode->"
us.ir do chumbo, seguindo esta iudicaç.u' do mesf
Mr. D.tlmeiíesclie : meller os pesos metaliicos der.'
d"umii caixa de páu, prpporcion:ida á largura dote.ir,
e(juc alira, por meio de dobr:<diç:is. da baiid:i vol!.-
d.i para o tecelão, para que elle pii»»,-» concerta'-
<-bunibos, etc. ; cobrir a tampa da caixa com u.tia r
de de metal, de malha estreita. p.-»ra que. p.-««»ai
pila malha o cordel em que se penduram o» chun
bos, fique opó dentro da caixa, e ii.io se esptlhe I i -
' to pelo ar. Este meio niechanico (nidc ser m.idific.i-
I do; m:is o que se deve em todo o caso reconimeiídar
; ê um bom «vsteina de ventilação, que r«novf o ar
I viciado das ufficinas.
Meio de afcgístar as formiga». "5
Mr Henrique Koerster, cura d'Anheim (grã'>-<luc»-
do deBaden) achou este meio no sal ordinário esten-
jdido por cima do formigueiro, e regado depois, s< o
tempo estiver secco.
o PANORAMA.
65
BARCAS JA1'()NEZAS.
O J A l'ÃO.
1
A MTDAt^Ão (Io iiiificrio (loJapiio (.orroipoiKli; na la-
titude ás rfgiões do nosso liC'iiiis|>liori()<iij<í jaZLiii eiw
trc as províncias nieridionaes da Franra faparlede
miesli! do império d<í Marrocos : a longitude é cem
^ráu» a leste de S. l'etersl)urf;o, desorte i|ue nocen-
íro lio Japão nasce o sol sele horas mais cedodoijije
na capital da Itussia.
O Japiio é mil arehipelago, de (pie lí cal)e(;a a illia
(iu Niplion, (pie tem no seu maior comprimento tre-
zentas le);uas de 8iidoest(! a noroeste, c na maior lar-
;i;ura i|uasi seskcnta, de vinte ao i;ráu. São oito as
ilhas priíicipaes, e ha iim grande niimoro de outras
de menor importância, ('om|>ondo todas o mesmo es-
tado, cercadas do oceano oriental, defronte da Co-
réa, da ('hiiia e da Tartaria, e separadas do conti-
iioilte por um extenso lira(;o de mar, chamado o Mar
(In Japão, tomando na partia oiiiIim! mais apertadou
nume de eslreilo da (,'iir('a , entre esta peniiísiila ea
eoula meridional dií Niplion ha trinta <; cinco lé-
guas , a maior largura (• de dii/eiitas.
♦ 'omparando a sitiia(;ão geographiia do» domiiiios
japonizes com a dos estados ipje de ram sol) o mes-
mo grau de latituili; no humisplurio (icciíleiital, es-
perar-se-hia acluir ;;raiiile seuielliaiiija decliina •, mus
não é assim. A dillerença <pie (íxiste a este respeito
«Mitre as duas porcncs ciirrelatinis do gloho i; Ião ad-
mirável (pie iiierece particular explicação. I'oreXclll-
Voi,. J. — (Ji iitiio Jl, ISiO.
pio, a cidade de iMasImai, na ilha do mesmo nome,
: ao norte de Nipliou, está cm i2 de latitude no mes-
nio parallelo de liionie na Itália, do Kilbaii na llea-
panha, e de Toulon em Kran(;a ; n'estas três cidades
os lialiitantes sií conhecem a neve' nos altosdas iiK^n-
I lanhas:, e cm Mastmai os higos e pântanos estão íjela-
dos todo o inverno, osvalles, e planícies estão desde
iiovemhro ati; ahril coliertos d(í nevo, (]ue não cáe
iiieiios allululalltl'lllentt^ que em S. l'ctersl)urgo ; at
fortes geadas alli são na verdadi! [xiiico ordiíi.irias,
comtiido viuse ás vezes o therinometro de Ke.iiimur
descer ,1 \'ó gráiis abaixo de zero. No verão os paize»
da Kiiropa situados debaixo do mesmo parallelo em
I que eslá iMastmai sotVrein calores fortes eeontiniios ;
I poriMii n\iquella ilha caem aguaceiro» rijos, pelo
j menos duas vezes na semana, escurece a atiiiosphera
no extremo do liorisonti-, reinam ventos impetuosos.
e permanecein os nevoeiros. — • lím Jedo, capital de
I Niphuii e do império, nos .'!(> de latitude, neva por
' muitas vezes em as noites do inverno ; se rellectir-
I mus qiiir Jedo, c tão distante do polo como a cidade
iti! Málaga na llcspanh.i, (haveremos concluir ijiio o
clima do hemispbcrio oriental e mais rigoroso (pit* u
Ido heiíiisplierio opposto. -— Ksta enorine dillereni,"n
procede d.is localidades. O Japão esta lan(;aiio no
I oceano oriíMilal, iustanitiite chamado o mardasbru-
liijis (Ml ceirai;òi«. Não é raro aturarem os nevoeiro»
no verão três ou (piatro dias 11 tio ^ e piuicas lioras
p.issaiii no (lia sem iii|uclles ou scin chuva. O iiiúii
tempo lai o ar IVio (■ húmido, <■ os raio» do sol não
Icem .1 iiHsma actividade ipiedesiMivolvem ii'uiu c('ii
^&
o PANORAMA.
inais sereno; accresce que a parte septentrional das
lre'> ilhai iiiaioroí é de serrania? elevadas, <|iie per-
dem iKi meio das tiuvens os seus alcantis: o \eiito
uue parte das montanhas vem repassado de frio gla-
cial. Finalmente os japonezes ficam separados da
Ásia, fjue foi o seu ber<;o, por um brajo de mar;
teeni defronte o paiz dos mantcliú» ea Tartaria ; to-
da essa região é cortada de serras, de pântanos ex-
tensíssimos, e de incultos desertos, d'onde se deri-
vam, mesmo no estio, ventos excessivamente frios.
Taes são ns causas prodnctoras de uma dilVerenja
considerável de clima entre as regiões orientaes do
mundo antigo e o nosso hemisphero Occidental no
mesmo parallelo.
O povo japoTiez tem uma nacionalidade distincta
dos outros asiáticos, posto que a muitos res[)eitos pa-
reça approximar-se dos chinas até na ph^sionomia :
tem usos, costumes, e praticas peculiares; — e uma
cidade do seu archipelago appresenta muita varieda-
de em comparação com as de seus visinhos. As ca-
sas, á excepção dos alicerces, não são de alvenaria,
construem-nas de madeira e de um só andar, os ta-
biques que separam os quartos são moveis, de forma
que se pôde fazer de toda a casa uma só camará, co-
mo em algumas partes da Hespanha antiga. O uso
das chaminés é ignorado; e fazem a cosinha em fo-
«■ões também á semelhança dos brnseros dos hespa-
iihoes : os pobres teem lareiras de tijolos. A mobília
e quasi nenhuma ; cobrem o solho com esteiras mui
finas, conservadas com toda a limpeza, porque em
tudo são muito aceados ; para receber as visitas es-
tendem por cima alcatifas ou mantas, segundo suas
posses. — Armas de varia espécie, vasos de porcela-
na, e alguns objectos curiosos adornam as casas inte-
riores : as paredes são guarnecidas de papel dourado
ou de cores, forro a que os ricos accrescentam mol-
duras e outros ornatos de madeira lavrada com gos-
to, e envernizada ou dourada. — Os edificiossão ex-
teriormente de extrema simplicidade ; a diíTerença
entre a morada do abastado e a do pobre consiste
em ter a casa das pessoas illustres um pateo espaço-
so, fechado com altas estacadas ou muros de taipa,
de sorte que apenas se descobrem os telhados. Além
d^isso, os nobres e opulentos possuem jardins vastos
contio^uos ás casas, e muito se applicam a aformosea-
los, para o que não se poupam a gastos. No interior
das habitações observa-se aceio minucioso. Nota-se
porém a nimia estreiteza das ruas.
Os japonezes barbeamse e rapam o alto da cabe-
ça, deixando porém o cabello da nuca e umas gue-
delhas sobte as fontes, amarrando-as para traz com
uma íjta : é simples o riçado, mas ainda assim re-
quer seus desvelos ; é preciso conserva-los '■om certa
pomada que faz os cabellos lustrosos e os em pasta ;e
para que o nionete se arranje com a devida perfei-
ção, é mister que arremede um pedaço de pau en-
vernizado c quadrangidar, um tanto cavado pela par-
te superior e dos lados. Os seus cabelleireiros são
mui destros, mas consomem muito tempo n"esla ope-
raç.no.
O trajo commum é um chambre sem gola, e de
mangas largas que chegam só aos cotiivellos: a parte
inferior da manga arregaça se e faz uma espécie de
saco, que serve de algibeira, como usavam os fran-
ciscanos. Ou por fausto ou para resguardar do frio.
vestem cinco ou seis d'essas túnicas, umas por cima
d^outras, e sujeitam-n"a> com nm cinto em duas vol-
tas á roda do corpo. Todos, ainda os de menos pos-
ses, trajam vestidos de seda, sobre tudo nos dias fes-
tivos: o povo miúdo usa conimumente de tecidos
d^algodão; fato de brim é de indigentes, ou dos ope-
rários durante o trabalho.
O japonez, se estando em casa sente calma, despe
o vestido de cima e prende-o á cinta : se ainda acba
muito calor, desembaraça-se do segundo, e assim por
diante até ficar com um só. Se arrefece, vai enfian-
do successivamente as suas túnicas. As mulheres por
moda e luxo ainda se servem de maior quantidade^
chegam a trazer vinte, porém de seda muito leve e
subtil, quasi semelhante a gaze : usam cintos como
os homens, porém de muito maior largura, deixan-
do soltas e fluctuantes as pontas.
Ha outra casta de opa, do mesmo talhe da prece-
dente, mas muito mais ampla, que se trai sobre as
outras, e sem cinto. Paliando propriamente é o ves-
tuário de ceremonia ,' é indispensável para visitasde
gravidade ; e com o outro sáe-se a passeio, a negó-
cios, ou a procurar um amigo. Os nobres mandam
bordar sobre o peito e nas mangas os seusbrazões.——
O terceiro traste para vestir é nm fraque largo, que
se usa quando faz frio, e que se larga ao entrar em
qualquer casa.
Os japonezes não usam pantalonas ou calças, á ex-
cepção dos militares, e de quem vai de jornada ; po-
rém 03 empregados do estado as trazem no exercido
de seus cargos, nos dias solemnes, e quando vãofal-
lar a superiores.
O Hadjeb de Kobdova.
(972 a 992)
(CoDclasão.)
V
f-P'alcorari '.
O RECONTRO das duas hostes separou o terrível guer-
reiro do seu contrario, o el-Mansur. D'uma e outra
parte era a llòr dos dois exércitos: pelejou-se mais
bravamente do que nunca. O desconhecido, sem fa-
zer caso das feridas, que lhe sangravam por todo o
corpo, travou da massa ponteaguda d*uni cavalleíro
morto, e, a pé, de cabeça descoberta, como estava,
foi-se ao mais basto das fileiras sarracenas, dand»
fim a uma vida em cadaum dos seus golpes formi-
dáveis, lira incrível a energia d'aquelle homem .'Não
parecia mortal : podia julgar-se um d'aquelles semi-
deuses fabulados, que as divindades do Olympo gre-
go protegiam.
A guarda do hadjeb não fugiu como as hostes da
campina: acabou de pelejar quandoo ultimo homcn>
caiu.
Mohamed, porém, não appareceu no campo. Duas
horas inteiras levou o desconhecido n examinar os
r;.daveres um por um ; e era realmente um espectá-
culo assondiroso vèr aquelle homem curvado sobre os
mortos e moribundos, a apalp.ir-lhes o rosto, a ten-
tear-lhes as feridas, a contarlh"as, tremendo .incio-
so, e a espreita-los e a revolve-los, como se alli,
' n"um d"ellcç, tivera occulta a própria vida.
IVpois de ler corrido todos ergueu-se, rugindo
contra os seus pelo haverem sep-^vrado do hadjeb. Já
poucos d'elles restavam tnmbem. .\ cimit.-vrra dos
bereberes não havia ficado ociosa : os guerreiros d*
!M.ighred tinham caído vingados.
t> desconhecido não contou os combatentes que i>
cercavam. Cavalgou n'um ginete perdido, largou-n
pela enct><.ta abaixo, e. sem desviar o rosto, sem ver
se o seguiam os da sua hoste, foi direito a pl.inície,
perguntando rapidamente, a quantos encontrava, no-
ticias do hadjeb.
Eis-aqui o que elle soube :
o PANORAMA.
«9
Logo DO começo do recontro da montanha alguns
dos principaes africanos tinham levado Mohanied pa-
ra longe do combate. Os guerreiros de Navarra, dis-
persos na planície, viram fugir um tro(;o de cavallei-
ros levando nos braços um dos seus mal-ferido, c;;ini-
iiho de Medina-C(jL-li.
O guerreiro não perguntou mais : picou direito so-
bre Medina-Cdíli.
Acompanhavam-n'o os que tinham ficíido vivos da
refrega em Cai;it-al-nosor.
Sancho, o quadrimano, perseguia no entanto os
restos fugitivos das liosles de Mohamed.
O terrivel eal)o dos de Afraiic m."io paruii em ]Me-
dina-Ca^li. O badjeli estava em Walcorari com uma
parte dos seus.
K inútil di/cr se o temeroso desconhecido voari.i
im não sobre o castello.
Seguiain-n\i sempre (>s seus.
Tanto que chegou, o mesmo foi dar vista das mu-
ralhas que principiar o ataque. Os de dentro resis-
tiram como quem defende as vidas,' os de lora pre-
cipitaram-se como quem se esquece d^ellas. ICrain
poucos e cança<los', mas o exemplo do seu calio mul-
tiplicára-os : combalia á frente, elle. Os golpes da
sua massa eram como as pancadas deumariete. Cho-
viam sobre elle os arremesses , mas o broquel il.i pro-
Ircção divina parecia estar sobre a fronte mia d'ai)uelle
homem:, e elle continuava a marlellar na purtacha-
peada do castello ccuno se o seu braço não foise huma-
no. A porta vergou, lascou e cedeu.
Os de dentro, passados de medo, reviiUiam se.
O desconhecido não fez ciso: voou de (|iiadi.i em
•{oadra até dar com um leito ensanguentado, onde
jazia um m<iribunilu.
lOra o hadjcb.
O estranho pagem, que vimos acompanhando o
desconhecido desde o principio do cimíbate, era o só
que o seguia.
Ao vêr o corpo estendido nas roupas sanguent.;s,
o peito do guerreiro pareceu dilatar se : respirou á
\o.'itade. Cruí^ou os braços, manchando a cami/a de
ferro sobre o peito retalhado, e approximousi! len
lamente conn) saboreando o espiíctaculo do infeliz, al-
li firosirado, O pagem, do outro iadu, approximou-
se como elle, parandolhe jonclos á cabeceira.
Um archote de resina, prega<lo n'um espigão de
f<;rro (|ue saia da muralha, prujcciava sobr<! i;sle gru-
po uma Un vacill.uiti; e avirniclhada, <|ueo tornava
ainda mais terriíel (í phantastico. O venio da imite
••ngolfava-se e gemia nos corr(íilorcs. Lá fora nos pa-
lcos ouvia-se um embate soporo d'armas : eram os
cavalliuros do ,\franc a despojarem os prisioneiros.
O gu('rreiro descfuihecido, porém, não ouvia, não
sentia nada ^ Ioda a sua vida. Ioda a sua alma pare-
cia residir alli, n\'i<|uelh' leilii e n\i<|ui'll>' corpo.
Peinieu se para o moribundo, r, br.idando-llii' co-
mo Ihc! bradara no píncaro ihis abulrrs, riqii'1 lu-llie
ao ouvido :
— II llecordaw-li' dos jardins de A/ahrat ^'
Molnnned dctscerrou as pálpebras, cm ipi(! já car-
regava o <ied(i da morte, i^ voltou a cabeça inachi-
oalincntii d'nm ao outro lado. A vista do pagem |)a-
receu fa/i-r-lhe uma im|uessào proíiiiMl.i. O desconlic-
i'iilo no enlanlo snrría.
— " l'agi) li' cmrini a minha divida — clamou clh'
conm jdirindo os di(|uc8 ú Iorr<'nle qui" lá diuitro Hw
refervia — pago-lii omlim a minha divida, Rloha-
nn'd. l'otenle donunador das Ilrspanhas, que é feito
da tua força, (uide está ella i" Invencível liadjeb, on-
de tens essa In.unenda cimitarra, que vinte annos
vibrasle <'iinlra os du ('bilslu.' \{\h! l'ai^le a final:
ii tua hora clieL;nu te. \ iiile .iiinos lambem Ic segui
eu para alcançar a desaffronta, sem nunca desesperar
d'ella. Alcancei-a. Sabes quem é esse pagem que
ahi vês a teu lado? Conheces-lo? Foi outr'ora a mais
formos.i, a mais nobre, a mais pura das virgens go-
das, hcije. . . quem tal ha de dizer ? . . . nem eu íei -.
é uma sombra. . . é o teu remorso, é o teu castigo,
ií, é o leu remorso vivo, a minha viva injuria. Vin-
te annos m'a tom ell.i trazido fresca e viva ao lado
— n^aqnelles ollnis apagados, n'aquellas faces inco-
radas, n'aquelles beiços sem còr, n'aquellas rugas pro-
fundas. . . í> - i-ib
O pagion era efledivamenle a virgem de Amaya,'
e era também uma sombra como o dissera Hermen-
gardo, a quem todos lerão já recoidiecído na pessoa
do guerrreiro <io Afr:iTio: nunca tão escura sombra
se seguira a Ião viva bi/.. Sulcavam lhe o rosto lon-
gas cicatrizes, ganhas juncto do guerreiro.
O rno-ítarabe continuou:
1 Vinte annos, repito, me ardeu cá dentro a
indignação, a cada hora, a cada iti^taute, accendcn-
do-me a xergonha nasfacescada \et que me lembra-
va do que tu me fizeras a esta mulher, límbranque-
ceu-iiie a cabeça o receio de morrer sem vingar-me.
lioiívado «ejjís, Senhor, liu cheguei a duvidar da
vossa Justiça ; mas vós sois melhor do que os homens.
Cincoenta éramos nós — ouves, Mohamed ? — ein-
coenta éramos nós, que nos juramentamos para cum-
prir esta vingança. Do todos fujoei eu só ; os mais
caíram um depois do outro, debaixo do ferro dos
teus. Caíam un.s, mas não se cançavam os outros \
eu miMio-, lio que nenhum. 1'rolegeunie Deus como
(iirecia proteger te ; eu fui o só que fiquei de tantos.
Vè lá se elle é justo! Fui eu que ergui contra ti os
condes ehristãos e os .il-kaides do Andaluz^ fui eu
que uni e concordei os príncipes godos, fui eu que
vinte annos successivos provei couitigo o meu braço
cm todas as batalhas, até o tornar mais robusto do
que o teu j fui eu que sobre asplialanges prostrada»
liz surgir novas |)lialanges ; sou eu finalmente quele
tenho agora aqui <lcb:iixu do joelho, como tu me ti-
veste ha vinte aiiuov. Keeordas-te dos jardins de Aza-
hrat, rccord.is te ? Sabes o que eu prommetti a esta
mulher.' l'rometti restitui-la pura ás llespanhas, pu-
ra, purificada como meu nume, livre da macula com
que tu a maculaste. '1
O peito de llcrmengardo arquejava, a sua respi-
ração era profunda e sibilante:, as palavras rebenta-
vainlhtt dos lábios precipitadas e pressuros:is. Golfa-
valhc o sangue do peito.
(iiiantoa (íelohira, parecia insensível a tudo. Tinha
morto o coração como a formosura.
O hadjeb inurmiM:ivu limas palavr;is siimíd.is e in-
disliiulas, (jue ningiiiMii poderia saber se er.iin libis-
phemías de desesperado, se rogiis de arrependido : não
linliii mais que um sopro de NÍda.
O mostarabe contemplou longo tempo, inanimado
e exangue, o corpo tra(|iii'lli- homem, que tora por
vinie .innos o açoute dos godos e o terror da christan-
dade. Depois, arranciiido com a inãn esipierda o pu-
nhal que trazi.ino cinto, estendeu a diriúta ao siippos-
lo piigeni por cima do qiiasí cadáver.
— .. (ielohira — disve elle, já com esforço, tr>niu
li ,1 voz e vacíllanti' o corpo — (ielohira, .Kini tens
esta mão:, iicceila-a : e oeoinprimento da ininlia prt>
lliess.l. "
l'',slas ulliiiias pnhivras foram proniincíadns em yo>
terrível : dizendo as iie.ibár.i o desgraçado eriívaiido-
lhe no coriíção eslaiKMilo o ferro que j.i llie tremi.i n.l
mão I
Aqiielle assassínio inútil seria iini:i piedade «e fos-
se feito p.ira aeubiir os holrtl^llso^ toi ntunto-C nOr *|ne'
cslav.i paiisando u limljeb ; in.is na ilitetleliíi cviii que
68
O PANORAMA.
Herinen!;ardo o commctfêra era uraa atrociáade '.
(ielohira precipitou se sobre a outra mão que lhe
estendia o mostarabe, com um grito era que parecia
fu"-ir-lhe a alma ébria de reconhecimento. Curvado
um para o outro os dois noivos e terríveis esposos,
recebiam no rosto, por confirmação do horrendo con-
sorcio, o sangue que espadanava da nova e derradeira
ferida do ei-Mansur.
Mas a vida de Ilermeiígarda estava também por
iim fui. £ra já miraculoso como aquelle homem po-
dia susfer-se de pé, depois de tantas horas de fadigas
inauditas, con» o corpo todo retalhado de feridas pro-
fundas : resistir mais fora impossível.
Mal a victíma tinha cerrado os olhos, o vingador
caiu a seu lado.
Kra para nunca mais se levantar!
Gelohira encarou este espectáculo a olhos enxutos.
O que se passou n'aquella alma não n'o soube ninguém .
Foi-se ao mostarabe, e com o punhal ainda ensan-
guentado cortou-lhe um anel dos cabellos esbranqui-
çados .
Um mez depois, nos despenhadeiros das montaehas
de Amava foi achada um corpo de mulher por tal
forma desfigurado que nunca foi reconhecido. Fecha-
da no punho e chegada ao coração achou-se-lhe uma
pequena madeixa de cabellos. Espantaram-se todos :
«ram cans de um velho !
na mithologia grega, e por fim na dos romanos, que
adoptavam, como é sabido, as divindades dos poso»
que conquistavam. Foi durante a guerra doi pira-
tas, anno de Roma 687, que o numen Mitbra come-
çou a ser venerado na Itália : aão romanas todas i%
estatuas que d'elle permanecem. De ordinário é re-
presentado na figura de um mancebo bem apessoado,
coberta a cabeça com o barrete phrvgio, e com um
joelho firme sobre um touro derribado, enterrando a
faca na cerviz do ar.imal. — São muito mais raros os
simulacros iguaes aos da nossa estampa; e aos attri-
butos de que são revestidos dá-se aseguinte explica-
ção. — A cabeça com as feições leoninas allude ao po-
der que |o sol manifesta no signo de Leo ; as azas
indicara o movimento eterno e rápido d'e»se astro;
o corisco esculpido no peito recorda o fogo, as cha-
ves de dois feitios que tem seguras denotam as que
serviam, na crença dos persas, para abrir as sete por-
tas por onde passam as almas humanas ; a serpente
que o enlaça significa a prudência unida á força: o
grifo e o caduceu de Mercúrio postos ao lado são ac-
crescentamentos que lhe addiccionaram os romanos.
— Oflercciam a este nume, em virtude dos seus sym-
bolos de creador, as primícias dos fructos : na deca-
dência do império romano ainda tinha sectários.
ESTA Tl V ny. MiriiK v .
E.M nni.i das salas da bililiotheca do \ aticniio está
collocada a est;itua que a precedente gravura repro-
duz : é um Ídolo copiado da nijthologia oriental. —
Segundo a religião dos antigos persas o de'is Mithr.i
era symliulo do sol, do fogo e do amor: a f.il>u!;i o
faz nascer de uma pedra como .'i f.iisca sáe da peder-
neira percutida com o fuzil. Alguns o ciuifundíram
com Osíris.
Parece que o culto de Alithra passou da 1'ersia á
Cappadocia, onde no tempo do geographo Strabo ti-
nha avultado numero de adoradores. Entrou depois
A CAMPIHA DE RojIA.
(Cootiauado de pag. 62.)
Q.i/At será a causa a que devemos attribuir a despo-
voação da campina de Roma? — Escriptores de su-
bido merecimento, como Lícolai, Sísmondi, Muller,
de Tornou, nas suas dísquísições sobre o agro roma-
no, tractaram felizmente esta questão importante cm
relação á historia eá economia politica, e todos acha-
ram a caus:i na própria grandeza da fortuna ro-
mana. Assim que Roma se fez senhora das pro-
ducções do orbe, desprezou as do seu torrão próprio :
— as riquezas acarretaram o desgosto do tracto agrí-
cola. -Nos primeiros séculos da era romana, as famí-
lias patrícias cultivavam pessoalmente o seu quinhão
de terras, e essa porção era n'esse tempo mínima: a
principio foi só de dnas /ujera (geiras romanas) ; pa-
ra o diante, annoiíGS, lixou-se em sete geiras, proxi-
mamente 11,33 braças portuguezas quadradas, o pa-
trimónio de cada família: em oti'2. o senado pcrmit-
tíu a cada membro de família aquella porção ; d^aht
a vinte e seisannos concederam-se quinhentas geiras
a cada família ; e em breve deixaram de regular .i
extensão da propriedade, pelo que, apouco c pouco,
algumas casas patrícias acharam-se, por compras, ou
substituições, ou heranças, senhoras de toJa a cam-
pina : abandonaram então ás mãos de »eus escravos
esses vastos terrenos, e para tornan-m mais facíl o
amanho os reduziram a pestos. a quintas sumptuo-
sas, a lagos c viveiros: — a agricultura propriamen-
te dieta dcsappareceu. Então a« povoarães que não
haviam sido absorvidas pela cidade de Roma, que
tinham vivido dos fructos dos territórios circumvísi-
nhos, decresceram cm numiro de habitantes, e a
final desvanoceram-se, cuiram em ruínas. Já no co-
mero da era chrístã, os campos do Lacio. cm qup
haviam residido naçiles, tínham-se convertido n'um
ermo inculto. Plínio o naturalista assignala. no se-
gundo século, os IntifiirtiUa (grandes prtipriedades)
como causa primeira da ruína da Itália ; o o que cl-
le diiía da península em geral, applícava-se mais
particularmente á campina romana, porque n'elU a
despovoação deixava em pleno poder o inimigo tre-
mendo, que bavia cotnbatido a'outro tempo cgm fc-
o PANORAMA.
69
licidade — a insalubridade da atniosphera, Asseve-
Tou-se repetidas vezes que a terrível mal ária era
gerada da» exhalaçõcs deletérias próprias do terre-
no, em muita parte volcanico. Posto que amiudadas
analises feitas por cliimicos mestres, entre outros o
celebre Davy em 182i, iiuiica demonstrassem que o
ar da campina fosse naturalmente viciado, comtudo
reinam febres mortiferas no agro de Roma. (iue se-
jam a causa original doeste flagello os elementos cons-
titutivos do solo volcanico, não poderá lalveí contes-
tar-se ; mas o certo é (e a antitça populajãodo Lacio
tão numerosa bem o prova) que a ciillura e a iiabi-
tação d'homeii3 o tinham superado de algum modo :
— se fora perciso , poderia invocarse o testimunho
de Tito Livio.
Só quando as grandes propriíídades tiiibaii) sub-
vertido a cultura parcellar, e a populafjão lialillaute
dos campos fora absorvida pela capital do inundo ,
apparecem nos escriptos de Strabo c Cieero noiicins
das febre» que raream parte do agro de Roma, ({'an-
tes tão fecundo em gente : — á medida que se alar-
gou o deíerlo, dilatou-se a praga e augraeiítou d^in-
tensidade. Nem eram próprias para restabelecer a
povoa(;ão e a agricultura as circiimstanciai da queda
do império, as desor<lens subsequentes- , e a barbárie
da idade media. l'or isso S. i'eJro Damião, no un-
deciaii) século , dizia de Roma que abundava cm
fruclos de morte.
O estado ermo e de baldio em que se achava a
campina sempre foi Ião considerado causa da misé-
ria e de falta de gente, ipie os poulifices alternati-
vamente cuidaram do pAr termo a situação por tal
insdo triste. Em 1407, (liegorio VII ^ mais tarde
Sixto IV, Júlio II, Clemente VII, Pio V, perten-
deram obrigar os senhorios feudaes, que tinham suc-
cedido ás famílias patrícia» de Roma na posse dos
bens rústicos, a amanhar as suas terras, ou j)elo me-
nos a confia-las a cullivarlores, mediante aforamentos
que identificariam o lavrador com a projiriedade por
um contracto perpftluo e transmissível. Sixto IV até
chegou a permittír ao primeiro cjccupante semear a
terça parte de qualquer terreno inculto, e colher a
seara sem renda para o propriílarío ; porém seos poií-
tiCces tiveram boa vontade, fallava-llies poder para
isso-, as sua» determinações não produziram resulta-
do. Sixto V, com toda a sua energia, não pôde ven-
cer a obstinada resislencía dos senhorios. Km tempo
de Alexandre VII (1720) pralicaram-se alguns me-
lhoramento» na lavra da campina, mas depois d^elie
tudo caiu no estado antigo. Entretanto pelos fin» do
«eculo passado. Pio G." renovou com fervor os projec-
tos de arroteação, emprehendeu a obra admirável do
esgotamento das lagoas Pontinas, e em poucos annos
recuperou para a cultura nuii avultada poreãodeum
terreno grandemente feeuuilo. Infelizmente, ao seu
nuccessor, J'io VII, faltaram recursos pecuniários pa-
ra eontinuar o eiixuganuNitodos pântanos; comtudo
eneau\inhou a sua solliciludií para a campina propria-
mente dieta, eempriígou de novo os jno/it próprio pa-
ra obrigar os proprietário» á lavra das turras: tam-
bém imaginou o plano de colonisar i> <leserto, fazen-
do cultivar (irimuiro o» arreiiores d(r Roma o de ou-
tro» locais habitadvs, de tal férma que a cultura, di-
latando-se cada vez mais, irradiando de eeiilros dif-
ferente», acabaria porcobrir tudoo território. Porém
este projecto não foi posto i.in prai;liea, ou porcausa
da» inquiiítações da ipocha, ou porque, segumlooaij-
tigo e ex.ulo [M-overbio romano — em Roma todos
inaiul.im e ningucun oiiedece. —
O agro, isto é, a comarca de lloma avalia-so em
ÍÍ0!)()1H( hectares desuperfieie (o hectare corresponde
a 4l3ií brtijiis «juadradiv») ; 177 proprieturios, en-
trando 64 corporações religiosas ou de beneficência»
partilham entre si inalienavelmente toda aquella ex-
tensão ; inhabílitados de amanharem as propriedade»
á sua custa, arrendam-n'as a caseiros, que, substi-
tuindo temporariamente os donos (porque não exis-
tem aforamentos senão em as montanhas), não pro-
curam o melhoramento duradouro dos terrenos, mas
sim tirar o ganho mais pingue e mais fácil de apu-
rar. Note-se que o solo da campina produz excellen-
tes pastos : a brandura do clima permitte a pasta-
gem durante o inverno, ao passo que a temperatura
mais Iresea das montanhas e das mattas do littoral
no verão facilita aos gados retiro e sustento, que es-
capa aos raios abrasadores do sol : a carência de mu-
nicípios ruraes, a vastidão das propriedades cftere-
cem aos rebanhos dilatados espaços para vaguearem
livremente. Em tão favoráveis circumstanciasacrea-
ção do gado requer mui diminuto pessoal de pastore*
e guardas; é por tanto fácil conhecer que esta in-
dustria deve appresentar grandes vantagens ; ellas é
que decidiram a transformação da campina em pas-
cigos desde os laliftuutia de Rotna até os nossos dias ;
e é provável que assim continuem em quanto as pro-
priedades não forem repartidas, porque a agricultu-
ra está longe de appresentar quanto aos lucros os
mesmos satisfactorios resultados.
A talta de çente de trabalho constransre o cultor a
chacnar, na estação da» semeaduras e nas das colhei-
las , jornaleiros da Sabina, do reino de Nápoles, e
das Marcas; os preços dos jornaes sobem a uma taxa
mui alta ; as longas jornadas, o perigo imminente
que allVontam os trabalhadores por causa do clima
doentio no verão, justificam a alta dossalarios. São
por tanto consideráveis as despezas de costeio; ac-
crescentando-llie o preço das sementes, os gastos de
transporto ii'um dístricto sem vias navegáveis, che-
gar-se-ba a um total muito subido, que appresenta
lucros miiiimos nus annos fecundos, e perdas reae»
no» annos (estéreis. Em geral, a terra pouco cultiva-
da pelas dietas razões de carestia é mal amanhada, e
por isso não dá para pa^ar o emprego de capital que
exige a lavoura: de ordinário não rende mais de oi-
to a nove, ainda (lue n'algumas folhas de terra bem
situadas c bem tractadas por pequenos proprietários
dá ás vezes dezoito sementijs.
Por este modo, as despezas quasi que fornam im-
possível .1 cultura ; d.i falta d'esta procede a da po-
voação ; e a carência d'ambas deixa largas á índuen-
cia maligna do ar doentio. Tal é o circulo vicioso de
([ue era mister sair. O papa Leão XII, de illustrado
espírito, que, se tivera mais saúde e um pouco me-
nos de génio capriclioso, poderia fazer grandes cou-
sas, formou o desígnio de melhorar a campina roma-
na, para o que mandou «uganisar planos de lavras
de terras, o dv. canalisaeão do Tibre e alluentes. A
sua vontade, ás vezrs violenta, constrangeria !\ obc-
decercuii os grandes proprietários, rebeldes scmpro
(juaiulo se trácia de melhoramentos; porém falleceu
iiu^speiadanicute imu ukuo cresle» projectos e de ou-
tros que reanimariam os estados pontifícios. Porém
as suas disposiçòi!» foram coiihecid.is fóru dos domí-
nio» da saneia sé, e sem duvida liznram ellas nascer
outro projecto. Em 18l!"J appareceil uma socií-ilade
d.' capiliilisla» franceze», inglezes e hnllaiidezes para
arriMidar toda a campina de Roma. Propiinliam pa-
gar uma renda aniiual ao governo, a (|ual este fixaria,
e além d'isso dar uma grossa quaiilia. O contractode-
vi'ria durar cincoenta annos. Cada proprirlariodevia
receber, no dia do arrendamento, a renda que lhe
produziam as suas terras. A sociedade coulrahia «s
obrigiições de cultivar a campina, de esgotar a» U-
gOus Pontinus c as de Macarcsc c Dslii», focos de
70
O PANORAMA.
enfermidadeB, e de fazer navegáveis o Tibre e o Te- O capitulo soberano de Strasburgo queria ter uro
verone em todo o seu curso, o que facilitaria ás mon- relógio digno da cathedral magnifica, em que devia,
tanhas de Sabina a extracção de seus productos, que lembrando aos fieis a hora das oraçue;, recordar-lhes
se vendem com prejuízo ou se perdem por falta do ^ os factos mais importantes da fradi'jão christã e o»
meios de transporte. Deveriam edificar se nos Ioga- principios fundamentaes da moral evangélica. Para
res mais sadios, de distancia a distancia, aldeias com o conseguir não se forrava a despezas ; e por toda a
suas igrejas e escholas, e em algumas também alber- ^ Europa gyravam cartas convidando para emprehen-
irarias. Estradas e caminhos vicinaes cortariam a | der esta obra admirável os mechanicos mais distinc-
campina em todas as direcções. As aguas mineraese ' tos, os astrónomos mais sábios. Houve um homem que
sulpliureas, que abundam n'esta comarca, se appro- i respondeu ao convite i veio offerecer o seu préstimo ^
veitariam para banhos thermaes. (iranjas-modelos, i foi acceito, metteu mãos á obra, e em 1532 estava o
«■oUocadas nas roais adequadas situações, serviriam ; relógio acabado.
para natura lisar certos productos coloniaes, como o Foi convocado o capitulo para assistir aos primei-
anil, a canna do assucar, que em circumstanciasana- , ros movimentos da maravilhosa machina. Nada lhe
logas teein dado bons resultados. Finalmente, seriam faltava: alguns instantes antes de dar as horas, unk
leitos todos estes trabalhos pelos habitantes da cornar
ca, os serranos da Sabina e os camponezes das Mar-
ca» \ tomando se todas as precauções indicadas pela
experiência, taes como, agasalho para os operários
ate a construcção das aldeias, e abrigos provisórios
longe dos centros d'infecção, o impulso dados aos tra-
balhos pela agglomeração d^homens , e a suspensão
d^quelles durante as seis semanas mais perniciosas
do verão. Estas providencias hygienicas sem duvida
impediriam que a insalubridade se tornasse infensa,
ou fizesse paralysar a colonisação, O governo ponti-
fício conservava, bem entendido, plena auctoridade
na comarca por todo o tempo do contracto :, e a final,
«íxpirado o prazo dos cincoenfa annos do arrendamen-
to, as propriedades voltavam a seus donos, porém me-
Jhoradas e com o cêntuplo do valor. — Por viad'e5ta
empreza intelligentc era restituída á cultura vasta
porção de terreno:, e os recursos do solo, assim appro-
veitados, geravam a abundância e o commercioi a
receita do estado augmenlava pelo rendimento cres-
cente dos impostos ; este augmento punha termo ao
estado precário de Roma, que vive das províncias :, a
população miserável que superabundasse na capital,
no interior das montanhas, ou nas planícies mui po-
voadas da iMarca, poderia esperar obter conimodi
dades pelo seu trabalho. N^uina palavra, a civilísa-
ção iria penetrar n'uin território, que em relação a
outros se acha no atrazo de alguns séculos. Foi isto
exactamente o que fez abortar o projecto. O pontí-
fice Pio VIII desejava o bem, mas não se achava
munido de força bastante (lara fazer adoptar a pro-
posta t|ue tinha acolhido com boa vontade; parece
que foi reputada perigosa para o staiu quo político
<ia Itália central -, e as doenças e a .solidão ficaram
soberanas da cainpínn de Roma.
Relógio astronómico de Sthasburod.
gallo empoleirado na grimpa d'uma torre advertia
os fieis batendo as azas, e com a voi estrondosa, que
estivessem alerta e em guarda contra as suggestões
do demónio, a que o príncipe dos apóstolos não sou-
bera resistir. Vinha depois a morte dar tantas pan-
cadas n'uma campainha quantas eram as horaa ^ em
seguida um numero de apóstolos, igual ao das horas,
passava, inclinando se, por diante de Christo, que
lhes impunha as mãos. Finalmente o carro du sol,
discorrendo por um mostrador, indicava os mezes e
as estações', e os ponteiros marcavam as dífferentes
horas do dia, os dias da semana, os do mez, a idjde
do mundo, o anno de J. Christo ikc. Era mais di>
que os coni-gos. haviam esperado.
Retiraram-se para deliberar sobre a recompensa
que o artista havia de receber. Mas apenas se affas-
taram deliu assaltou-os o susto : o homem que lhes
fizera o relógio podia, amestrado pela experiência
que acabava de adquirir , fazer outro relógio ainda
mais portentoso para alguma outra cidade, e priva-
los a elles da gloria de possuírem uma singular ma-
ravilha. Um só meio havia de esquivar este dissal>ur ^
foi proposto, adoptado, e posto em pracliea no mes-
mo instante, e um horrível sacrilégio privuu da vis-
ta o infclíi artista. Infurinaram-n*o depois da caus.i
d"este trartamento bárbaro. >• Insensatos ! exclamou
elle, que fizestes? O relógio está por acabar, e pára
se lhe cu não pozer a peça que lhe f.dta, e deques<>
eu sei o liigar . >' Deram-se pressa em condutilopar.i
juncto d'aquella obra prima ; porém assim que lá
chegou, agarrando nVima roda de que dependia Ioda
o mechanismo, quebrou-a , c deixou parados para
sempre os movimentos engenhosos que haxiamdelhe
dar renome, e a cidade de Strasburgo. Nunca inai«
se poude achar um homem tão hábil que fizesse an-
dar de novo este relógio.
Tal é a lenda da primeira machina astronómica
de Strasburgo. Quem a quizer tomar a serio tem ou-
tras qo.isi semelhantes de mais dois relógio»; o pri-
meiro é o de Nurcmberg, concertadn em I H6 pelo
cekbre astrónomo Regiomontanus (João Muller), a
quem a tradição atlribue a feitura de dois autóma-
tos maravilhosos; uma mosca de ferro, que voava .V
roda da mesa c di)s convivas, c \olla\aá mãodoseii
Em 1321), segundo Baillv, foi construído o primeiro
relógio astronómico cuja data se conhece ao certo, t)
auctor dVUe chainava-se Ricardo ANalingfort, abba-
de de S." Alban na Inglaterra, e a sua obra, desti-
nada a ornar uma das principaes igrejas de Londres,
••ra, conforme a expressão d'um contemporâneo, liiii 1 dono ; e uma águia do mesmo metal, que saiu, voan-
DÚlaijre da aric, (jut: jttiitta icriíi iyiiaí Jia Kuropa. do, ao encontro do imperador Ottão II, eoacompa-
Ainda bem não tinham eointudo passado \intoe qua- ' nhou até as portas ila cidade. O outro relógio é o
tro annos, um artista italiano repetiu o milagre em ido laão, construído em 1j9S por Nicolau Lippius
Pádua. de Rasilea, e coiicert.ido cn> ItiGO por Guilherme
Eis aqui o que se sabe <restes dois relógios ; pou- > Nourríson. hábil relojoeiro Ivonei.
CO é, mas é mais do que se piíde dizer do primeiro
relógio astronómico de Strasburgo. Uma data, uma
tradição vaga, uma lenda l.islimosa. em que não en-
tram iiiuie,, são os únicos elementosda historia dV'S-
ta obra prima, que todavia gozava no XIV scculo
iTuma celebridade talvez maior ainda do que as pre-
cedentes.
Em I JòO tentaram cnccrtar o relógio de Slraj-
burgo, ou autos fazer outro novo, a conslrucçãodo
qual ha\iam de presidir os malhemalico» maíscele-
bres. .\ morte de alguns d'elles veio interromper o
trabalho, e deixou a obra incompleta. Finalmente
confiaram-na em lotíO a Conrado Rauchfuss, sábio
professor de mathcmalica na universidade de Strat-
o PANORAMA.
71
burgo, que analysando e traduzindo o seu nome em
grego "ostava de que lhe chamassem Dasypodiu» (pt-
cabelludo). Conrado junclou-se com o seu amigo Da-
Yid Wolkcnstein, astrónomo liamburguez, e encarre-
gou da coiistrucijão das dilTerentes partei do mocha-
nismo os irmãos Habrecht de SchalToose, e do ornato
Tobias Stimmer de Strasburgo: al;J;nlna^ pinturas e
pequenas estatuas devidas ar. talento d'este artista,
ornam ainda hoje o relógio, que foi acabado aos 2S
de Junho de lo74. ULuatro annos depois saiu á I117.
uma deseripção d\'lle n^jnia ol)ra em latim, cuji» ti-
tulo se pôde traduzir d'este modo: Dt^crijirrioilo re-
lógio astronnmko Strnsbitrguense , construido pelo
cuidado de Ctnirado Dasypodius, e cvUncndo no cimo
da cathcdrat. Hliash. 1578 in i."
A obra de Oapysodius fui restaurada em KiCiOpor
Miguel Habrecht, e em 17o:i pur JacquesStraubliar.
Cessou de trabalhar em 17S'J.
Aos 24 de junho de 1838 foi começado por IMr.
Schwilgué, hábil artista strasburgue?., o relógio ac-
tual, que se concluiu em "2 de outubro de iSÍ'2.
Um motor central, que é, por si só, um relógio
muitissimo exacto, serve para indicar iTiim mostra-
dor, collocado por fora da igreja, as horas e as suas
subdivisões, e o» dias da semana com os signaes lios
planetas que llies correspondem. Estas indica(;ões são
repetidas para a parte de dentro em duís mostrado-
res: o primeiro, mais pequeno, mostra as horas; o
outro, que não tem menos de 4ò palmos decircum-
ferencia, é exclusivamente consagrado ao kalendario,
e mostra os mezes, os dias, a letra dominical, o no-
me do sancto ou sanefa que se festeja, &.c.
Dois génios com azas estão sentados cadaum do
seu lado do mostrador pequeno. A cada quarto de
hora, o que está da banda direita bate na campai-
nha uma pancada, immediatamente repetida, por
cima de todos os mostradores, por um autómato que
representa uma das quatro idades da vida. A Infân-
cia dá o primeiro quarto, a Adolescência o segundo,
a Virilidade o terceiro, a Velhice o quarto. A Morte,
que se vê sobre um pedestal a par da Velhice que
se dispõe a tocar o ultimo quarto, tem .1 seu cargo
dar as horas-, e de cada vez que o faz, osegundodos
dois génios de que falíamos volta uma ampulheta,
cuja exacção appresentou mais difliculdadcs a Mr.
Schwilgué do que os problemas mais complicados.
Ao meio dia, ás badalailas das horas, succede uma
procissão de doze apóstolos, que inclinaiulo-se, cada-
um d"elles do seu modo particular, vem saudar o
Christo, que de cima d'nni pedestal estende sobre
clles as mãos como para os ab(!n(;oar. Ao mesmo
tempo o gallo, empoleirado na torre que se vê á es-
i|urrda, sacode as azas, e canta por três veies.
Uns carros em que vem lindas figurinhas, c que
saem alternativamente d'um grupo de nuvens que
está por baixo do mostrailor das horas, indicam os
dias d:i semana, representados, o domingo por A pol-
lo, u seguiulafeira por Diana, a tcrea-feira por Mar-
te. O retrato que «o vê no sopé da tcjrreda es(|uer(la
é o de Co|)ernieo ; homenagem d'um dos admirado-
res d'esfe astrónomo, (|up todavia não ponde obter
que o syslemu de seu mestre fosse pn Icrido ao de
l'lol<m)eu.
Kste relógio foi in;'Ugur,ido aos .'M de dezembro
de 1N4'J, ás seis horan da noite. Mr. Schu ilgué ti-
nha-o adiantailo (> horas para que os movimento»
lio Ualendiirio, do computo eivlesiaslico, iVc. , ipie
ri'gularnii'nte di'viMn ler logar todos os annos ameia
noite <le III de ilezenibro se fizess<'m na presença dos
espiícladores ((uivididos para a cerenioiiia. As cinco
horas e meia, estando já a calhedriil i-Inia de gente,
chegou o bispo com toda a cicresia, e proferiu a for-
mula da benção. E logo, ao darem as badaladas das
seis horas, pozeram-se em movimento as machinag
de todos os mostradores, e com maravilhosa exacti-
dão cada festa movei veio tomar o logar que havia
de occupar no anno de 1843,
C.VKT.VS I:«ED1TAS DE D. Jo.ío DE ClSTBO.
Pela seguinte, não incluída na copiosa coUeccão de
d«)cumeiitos com que o douto cardeal Saraiva, patriar-
clia de Lisboa, enriqueceu a edição feita em 183o da
vida d'este vice rei por Jacintho Freire de Andrade,
daremos começo á publicaçãod'al2uma das cartas iné-
ditas mais interessantes do grande D. Joãu de Cas-
tro. N'esta descreve elle a victoria de Diu com que
vingou a morte do filho. .Mterou-«e a ortboiTaphia
do urginal para biciiitar a leitura.
Carta do Viiorti I). João de Castro aos f^ereadores.
Juizes da cidade de Goa.
1347. lo de Noi\-mbro.
(iuAiiTA feria que foram vinte seis dias do metd*ou-
tubro parti da fortaleza de Baçaini, caminho de Diu, e
l'ui surgi na ilha das \ actas. O nutneroda minha ar-
mada eram sessenta fustas, doze naus e galeões onde po-
diam ir mil e quinhentos soldados ; e porque me era ne-
cessário ir tomar a ilha dos IVIortos para ahi fazer acua-
da e para ahi recolher todos os navios, que no atra-
vessar do golphão de necessidade se haviam de apar-
tar de mim como aconteceu, determinei de approvei-
tar o tempo, que nesta ilha havia de estar, com fa-
zer guerra pela costa de Cambaia i pelo que logo da
ilha das Vaccas mandei D. Manuel de Lima com
vinte fustas por capitão mor á enseada pêra queimar
e assoUar toda a costa do mar. O qual por seus me-
recimentos lhe deu Nosso Senhor tal ventura, que en»
breve tempo abrazou dezesete léguas de costa, sem
lhe ficar cidade, villa nem logar, que não fosse quei-
mada até os cimentos; nos quaes toda a gente foi
mettida á espada sem perdoar a nenhuma cousa vi-
va, e depois d'isto assi fazer se inetteu pola terra
adentro, queimando-lhe as sementeiras, pondo fogo
a todas as eiras, de madeira que receberam grandís-
sima perda nos rios e portos d'onde entrou, nos quaes
queimou vinte iiáus grandes e cento e vinte cotias;
que levavam niantimeiílo ao arraial dos mouros.
Isto assim feito veio ter comig(> á ilha dos Mortos,
onde o estava esperando por me não parecer ra/.ui ha-
ver de entrar em tão duvidosa batalha sem um tal
cavalleiro, e chegando cnni grande alvoroço de todo»
os capitais iUlalgos e lascarins parti e fui surgir a vis-
ta da fortaleza de Diu, e ao outro dia ti/, duas batalhas
de minha armada : os navios de remo onde eu ia na
dianteira e as naus e galeões um pouco ntraz. Com
esta ordem eaniinhei e vim surgir de fora da barra
de Diu, onde d'armada (|ue cá estava e o baluarte
do mar fui mui bem recebido com muitas festas e
grandes alegrias, e me salvaram com toda aartilhe-
ria e eu depois a elles, e tanto que surgi niaiuleiao
eapitão que tirasse as portas da fortaleza fora e o
fizesse a saber aos mouros. K poniuo o logar mais
ciuiveniente da minha desembarcação estava escuroe
em muitas opiniões, iior cansa de- todalas parles onde
podia deseinlianar estarem cercadas ile muros baluar-
tes, com (Ultras muitas Iraiuiueiras e defensas, ile tan-
tas maneiras ipie ijiiasi exeeili.iin a iuiliistria huma-
na, quiz. ccnn minha pi'ssoa ver e>te segredo com Lnu-
reiíçu I'ires, capitão iiiór d'arin.ida do reino, etí.ir-
72
O PANORAMA.
cia de Sá, e Manoel de Sousa, Francuco da Cunha '
«Diogo Álvares Telles, contras pessoas sufficientes, e
com elles fui vero baluarte de Diogo Lopes, Bem
embargo que nos defendessem u vista com muita arti-
Iheria :, mas no fim o houve de fazer, como ii?, muito á
minha vontade, c com parecer de todos assentei de niío
desembarcar por alli, poios grandes inconvenientes que
para isso havia, mas queiosse á fortaleza equed'ahi
saísse dar combate :, e como isto. tivesse assentado lan-
cei fama na minha armada e dentro na fortaleza que
havia de desembarcar pola banda do baluarte de Dio-
go Ijopes, e pêra fazer isto crer aos mouros mandei
ao outro dia trcs caravelas que os fossem combater,
das (|uaes eram capitães IíUÍí d'Almeida, António
Leme e Francisco Fernandes, a que chamam mori-
cale : os quaes ante manhã combateram este baluar-
te com tanto esforço, que foi muito para louvar, e
vrendo os mouros que esta obra era a fim de desem-
barcar por esta parte, trouxeram logo a maior parte
da artilheria do campo e a assentaram sobre a desem-
biircajão, fortihcando-se com muita induitria, trazen-
do para ahi grão numero de soldados. F.m quanto se
esta ol)ra fazia mandei mui secretamente desembar-
car toda a gente na fortaleza, e apartei cincoenfa fus-
tas desemmasloadas como que eu havia de ir ao ou-
tro dia desembarcar n'ellas polo logar que as caravelas
combatiam. EnVstas fustas não levavam outra gen-
te senão marinheiros, puz muitas trombetas eataba-
les e charamelas, pêra quando ouvissem a diversidade
dos instrumentos déíse fé de minha (armada) para ir
dentro.
E por Nicolau Gonçalves ser homem muito esper-
to e cavalleiro muito practico nas cousas do mar, o
1Í7. capitão mor d'esta fostalha , e concertei com elle
que ao tempo que lhe lançasse sete foguetes da forta-
leza remettesse á praia e disparasse toda aartilheria
das fustas, e que fazendo que queria desembarcar, se
detivese ali;un) espaço, porque dVsta maneira primeiro
que os mouros reconhecessem o ardil teria tempo de
passar as suas muralhas e dar lhe batalha. Isto assim
concertado me desembarquei duas ou f res horas da noi-
te, o ordenei de toda a gente duas batalhas s. s. o
capitão D. João Mascarenhas com toda a gente da
fortaleza fosse uma na dianteira, e eu com a gente
d^armada na outra. E em sendo a manhã clara saí-
mos ióra da fortaleza cou) nossos esquadrões cerra-
dos, e os mouros nos resistiram á saída muito forte-
mente, tirando muita artilhcria que estava assenta-
da na entrada da ponte, e disparando cm nós toda
a sua arcabuzaria, com a <|ual nos mataram muita
gente que poz logo grande espanto aos nossos, mas po-
ilendo mais a fúria portugueza que as armas dos ini-
migos, houveram de passara diante, posto que por ci-
ma de mortos: D. João Mascarenhas, capitão da for-
taleza, com seu es(]uadrão chegou por uma banda ao
pé das muralhas , com seu grande esforço edos fidalgos
e lascarins <)ne comsigo levava as liouvodesubir, scm
embargo iPellas serem valiMitrmente defendidas com
grande numero de Irechas, espingardas, bombas de fo-
go e paiicdhis de pólvora, e outros muitos e grandes ar-
tifícios de guerra ■, e passando além começou a pelejar.
Eu cheguei por outra parte com minha batalha .lo pe
das murallias, e as subi pi)sto que com grande dam-
no e perigo dos (|Ue comigo iam ; passando a outra
banda comecei a batalha. *• numero dos mouros se-
riam vinte mil homens m. rumes, abexins, arábios,
robustos-, porque a outra gente era infinita que se
não podia contar. E os mouros posto que receassem
pelejaram valentemente por espaço de duas horas j
mas Nosso Senhor, que era por nós, lembrandn-sc
que pelejávamos por sua fé e defensão de sua chris-
tandado, apttíuxc u tua misericórdia de nos Udr iu-
teira victoria. Com a qual os arrancámos do campo
e fomos apoz elles até a cidade e n*ella os entrámos
por força d^armas, e por mais resistência que nos
fizeram lh'a ganhámos toda, pondo-os cm fugida^ e
seguimos apoz elles o alcance espaço de meia legua :
e creio que se fora pola vontade dos fidalgos e lasca-
rins que não pararam menos do Madabá. Mas ven-
do eu minha gente cansada e o grande numero de
mouros, os fui recolher e trazer pêra a cidade. Fal-
tarmos particularmente em cada capitão, fidalgos, e
lascarins, seria nunca acabar polas muitas cavallarias
e sortes, que todos fizeram n'e5ta batalha ■, morreriam
homens português obra de trinta, em que entraram
a maior parte fidalgos e muito honrados, e ficaram
feridos duzentos e cincoenta. E dos mouros morre-
riam passante de três mil, e com elles o Rumecão
capitão geral d'elrei de Cambaia , e outros notáveis
homens, e foi captivo Juzarquão, capitão geral do»
abexins, que é um dos principaes senhores do reino
de Cambaia. E Mojatecão fugiu a unha de cavallo.
Tomei mais a bandeira real d'elrei de Cambaia e
quarenta peças d'artilheria, s. basiliscos, lionês, es-
peras, salvages, e alguns tiros de campo, e assim Io-
das as munições de seu arraial. NVsta batalha me
ajudou muito Lourenço Pire^, capitão mór da arma-
da do reino, pondo-se diante de mim a todalas af-
frontas, como se esperava de tão nobre e principal
fidalgo c Ião experimentado em batalhas de mou-
ros : o capitão D. João Mascarenhas fez lanlo e pe-
lejou tanto, que se não pôde louvar seu esforço eca-
vallaria tão famosa. Tal victoria como esta que me
Nosso Senhor deu, digna de ser celebrada em quanto
durar a memoria dos liomens, eu vos posso afúrinar
que se não podéra alcançar sem graça e ajuda divi-
na, que endereça minhas cousas de maneira, que por
ter confiança em Deus, que fora da opinião e espe-
rança dese poder acabar tamanho feito me deu ven-
cimento e inteira vingança da morte de meu filho.
Por Simão Alvares cidadão d'essa cidade vos man-
do a bandeira real d'elrei de Cambaia, para que lo-
dos laçaes uma soiemne procissão e \adcs a Nossa
Senhora da Luz, iia qual levareis a bandeira alevan-
lada c estendida para que o* mouros egentios vejam
as mescês e victorias que nos Nosso Senhor dá, por
sermos christãos u pelejarmos cm defensão de sua
sancta fé cafliolic.i.
Dos casados e moradores fui mui ajudado assim no
mar como na terra, os quaes se mostraram n"csta ba-
talha grandes, e notáveis cavalleiros : todos roeteem
tão bem ajudado e serviilo a elrei nosso senhor que
são merecedores de mui grandes prémios.
Havida esta victoria mandei que lodosos mestiços
que se n'ella acharam fossem assentados cm soUu e
mantimenlo, por honra d"csle grande feito como por
me parecer que n'isto comprazia a lodos os cidadãos,
e po\o d"essa mui nobre e sempre leal cidade de
Goa. A Simão .alvares vos encommcndu muito pêra
que de todos seja mui honrado e bem recebido, por-
que a sua vinda a esta fortaleia foi muita parte de-
pois de Ueus ás vidas de muitos fidalgos c lascarins
os quaes elle curou como grande phvsico que é, dan-
do geralmente Iodas las suai mezinhas de graç.i, fa-
zendo outras muitas boas obr.-.s d'csfoi^o, de manei-
ra que com verdade se |)óde dizer por elle doutor e
cavalleiro.
As novas de mim são ficar em boa disposição, Nos-
so Senhor seja louvado, e cm trabalho de fazer esta
fortaleza de novo, pêra que me faliam muitas cou-
sas;, mas se me Dous ajudar os montes se (ornarão
valles, e os barrancos estradas chãs.
Encommcndo-me scllhorc^ em vossas nicrcèí. De
Diu a lo de i.u\cmbro de JblT.
I
10
o PANORAMA.
73
S. IIOAVE.NI LRA aVADKO DK MCRIILO.
KtTF. quadro <• re[mliiili> nina il.ii ohrai |>^illla^ ilci
feciiiiilo pintor tiispaiiliiil Murilli) : rt- (iresfiita S. l!i)rt-
ventiira na occatião ••m 'lU'", scgiimln as lifmlas, re- ,
siisoildii depois de liaver siiJo enterrado, f veio aca-
bar ot sem íivroi de lomnientarioi i^ue deixara in-
«ompletoa. — O harãu Tavlor, u (|(iein a França lir- j
ve pranile numero de (ireeiosidaili^t arlisliiMS, Irou.ie
de Seviliia a 1'aríi esta liella pinlnia. I
Kfitevain Miirillo fui natural deSivillia e naseeu no
I," de janeiro de 1018: -icii» pai» eram pid)re» ; mas
teve a fortuna de <{ue mu dos seui pnrenleit era ar-
tiatn, «Inau dei Cntilln, o ijunl Itie deu as priíiiei-
rai iieôei du arte, lmoi (jne medrou o tiileulo do
«liinino lie sorte (|ue (louro depois mereceu ser a<lniil- j
lido discípulo do r.iinoso V'>'lasi|ni'7., (|ue Ciijura áfri'nj
te da eiilioU lo-sp.inliola. ■ — Munllo loi extreuiauieu- i
tu applieado, auianle il,i vida tranijiilila e duineslica , |
por forma <|iie a in/iior parle da sua \ida passou em j
Sevillia, sua pátria, luzindo o mais posiivel ile fre- ,
(juentar Madrid e a i òrte, p.ir.i mole o cliaiiiava a
nonieaila dos seus taleolos. Ki.i um jj;ran Ir pintor sem
ver a Itália, e pintou inlinitii ; as suas euiiipusi(^'õi-s
revelam a liraitdura do seu caracter; al;;uiiias são do
«libido merecimento. Na si- ile Sevillin liík um i|ua-
VuL. I. — NoVEMíiio 7. 18t(j.
dro seu, rpie representa o r.vl.ue de um salicto, que
é a tida de maiores diiiieii>õcs e uma <las mais aca-
badas oliras <jue saiu das suas mãos: o dnqiiede \\'e!-
lin);lon, i|iiereiido adquiri-lo pa'a a jj.ileria de Lon-
dres, idrereceii por elíe tantas uncas de ouro da moe-
da bespanliola quantas fosscni necessária» para cobrir
a superfície do quadro, o qiio devia montar a uma
quantia por extremo avultada: assim mesmo u cabi-
do sevilbaiio rejeitou di;;namente u pruposla da ven-
da. Muiillo fundou uma academia de piuliira na sua
cidade iiatalici:i, onde morreu (renferiiiidade no an-
uo lie lljtiO.
S. Uoaventura foi natural da Toscana, e iiasren em
1221 ;, entrando na ordem francisc.ina chegou a aer
geral. l'ur sua iiiiiita piedade, disliiictus estudos, r
servi(,'OS á ifjreja, (ircjçorio \ em l"J7o o iitiiiieou bis>
po de Albano, e u fel carde. d. O seu transito foi em
I27i em liVão de Krança. Sixto 1\' o canonisou em
I '»iSÍ ; Sixto V o proclamou donlor d.i i'.;reja. K co-
iiliecido pela antonomásia de doutor serapliico. As
suas obras iniportanlen são os Commentarios í Sa-
grada i'"scriplura, e o Mestre das Seiílenjai.
74
O PANORAMA.
" " HiSTUIlIA DOS TElECRAI'HOS.
(Continuado de pag. Cl.)
S(5 NA epoclia dePliilippe pai de 1'pri.eu (século III),
começou a fazer proj^ressos entre ot gre^DS a arte te-
lpera|iliica, porque aijuelle príncipe serviu-se niuito
lie >>i"iiai"i nas suas í^iierras. Pol^bio ela no seu livro
9." muitas iiiforina(;ões a este respeito, e nota cum
razão que é fácil prevenir al;;uein de uni aconteci-
mento esperado por meio de sifjnaes con\encionadoH.
l'orén), annunciar a reall8a(;ã<> de successos llll[lle^i^-
tos, de uma rebellião repentina, não pôde lazer se
sem croar processos próprios para indicar as circums-
tancias que menos se podem conjecturar. Eneas, auc-
tor de pscriptos sobre a arte militar, econtemporanco
de Alexandre, tinha alvitrado o estabelecimento de
postos a certos intervallos: t>s cstacÍDuniids deviam
ostar munidos cada uin com dois vasos iilenticameiíle
semelhantes em l.tri;ura (4 i pés) e em profundidade
(pé emeio), clieios d'agua e com torneira: sobre um
pau, que atravessava um pedaço de cortiça boiante
«'agua, escrevia-so a novidade que se queria commu-
nicar. Dispostos estes vasos por esta maneira, a pri-
meira vigia levanta um pharol (»), a immediata le-
vanta outro semelhantemente; assim advertidas de
<)ue estão alerta, as duas vigias abaixam os pharoes
c abrem as torneiras; a cortiça desce á medida que
o nivel d'agua se abaixa, o páu pregado na cortiça
abaixa-se também \ e quando a phrase que se quer an-
nunciar, e que está escripta no páu, tem chegado ao
nivel do vaso, para mostrar que está completa, a pri
meira vigia alça de novo o pharol, do mesmo modo
a segunda, e fecham-se as torneiras; assim por dian-
te em toda a linha. — Este melhodo era engenhoso;
mas era preciso que tudo o(|ue podesse acontecer fos-
se inscriplo no bordão indicador: ora, muitas vezes
não poderia isto ser, e a novidade sairia incompleta.
J'ara obviar a este inconveniente iinaginou-se pouco
depois um novo processo: — tomaram-se as vinte e
quatro híttras do alphabeto, divididas em cinco co-
lumnas. Por este melhodo o que dá o signal iça dois
pharoes:, a vigia immediata levanta dois também pa
ra mostrar oue está prompta : então a prinicira vigia
levanta o numero de pharoes estipulado á esquerda
para indicar a columna a que pertence a lettra que
vai designar, e outros tantos á direita para indicar
«•ssa letra •, por este sistema um pharol á esquerda e
dois á direita indicam a letra M. Este methodo é
um tanto mais demorado, porém mais seguro.
Entre os romanos foi a telegraphia empregada mui-
to mais tarde. Devia ser 1'ol^bio, commensal deSci-
))ião o magno, quem a vulgarisou em Rom.' : comtu-
(lo parece (|uo César (liv. á." de 15ell. Gall.) f(\ra o
primeiro do povo conquistador que se serviu de si-
gnaes de fogo par.i conhecer dos movimentos dos ini-
migos:, e pelo emprego d'estes meios se poderá talvez
ex|)licar a rapidez e certeza das suas operações mili-
tares. Os gallos também tinham noticia de alguns si-
gnaes', por isso, cpiando os carnuttis tom:iram Or-
Icans, esp,ilhou-se a novidade por todas as Ciallias
<> porijue (diz o próprio César liv. ".") quando acon-
tect! alguma cousa importante e de interesse, os gal-
los ailvertcmse reciprocamente por clamores que traus-
(1) Phaml vem da palavra Krega pharos, que exprime
tanto a torre onde se acceiiili.ini fachos, como esles mesmos,
«Ul grandes laiilernas e lampeõcs para si^naes ; e tanta era
a praclica d'csles entre os gregos antigos, ipie no sen liello
idioma adiamos muitas palavras para os exprimir eosloga-
res e modos onde e como eram feitos. Alem dVssas. sijmho-
la si^nilicava os signaes Iransmilti Jos pelo som, e tyntcmiia
os signaes invisíveis.
mittem atravez dos campos, e que tão repetidos de
perto em perto^ de sorte que o »ucce«»o de Oriéans,
passado ao nascer do sol, soube se na Alvernia antes
das nove da tarde, não obstante a distancia deuitea-
fa léguas." — Em epocha posterior cw romanos abri-
ram em todo o império admiráveis estradas, e dedit-
tancia a distancia erigiram torres, eoi que postaram
sentinellas para passarem ostigiiaes: ainda se divi-
sam em Uzcs, Belle-Garde, Aries, Nimes, Besançun,
etc , torres quedeviuin ter servido para aquella» par-
ticipações telegraphícas : a columna Trajana appre-
senfa nos seus portentosos baixos relevos uma torri-
nha, de uma fresta da qual sae um facho; o que no»
dá a entender a maneira por que eram feitos aqueU
les signaes.
Taes são as informações de mais vulto que n'esta
matéria nos fornece a antiguidade. Na idade media,
es«e inetliodo rápido de communicações foi usaiio em
Constaiitínopola, onde geralmente se conservaram o»
conhecinKMitos antigos durante aquelle longo período.
Para terem aví«o da chegada do» árabes, os impera-
dores grejos haviam estabelecido uma linha de si-
gnaes de Tarso a Ijy-aucío. — Os árabes da» H^spa-
nhas, e também os hesp;inhoes, serviram se igualmen-
te do fogo, de bandeiras, e de tiros, á maneira de si-
gnaes. l'or fim, no século XV, um monge chamado
Trithemio publicou um sy^fema de telegraphia (f/e-
noyiaphia iiithimiana) para fazer chegar as noticiai
a qualquer distancia : porém, excepto algumas noções
incompletas, nTio é conhecido o meio proposto p>r Tri-
themio. Apesar de todos osejforços não ponde a anti-
guidade conseguir un) sistema teiegraphico completo.
No século XVII, um francez, Amonlons, membro
da Academia das Scieucias, approveilando os traba-
lhos dOs antigos, e os descobrimentoi dos moderno*
em óptica, propoz um methodo novo de communica-
ções. Com effeito, para escrever de longe é precito
que se vuja de muito longe; e os progres-os moder-
nos são devidos á applicação dos telescópios á tele-
graphia ; o que permittiu poderem ser diminuídos
os postos para os signaes. Restava aiiida vencer uma
difliculdade : — deveriam empregar se os signaes al-
ph.ibeticos para compor as palavras e phrase».' . . \
esse melhodo demorado e dífiicil substituiu se outro
inteiramente novo; recorreu-se aos números. Redu-
zidos dVsta forma os signaes a pequena quantidade,
practicados por machinas mui simplices, e vistos pe-
lo telescópio, constituiu se a telegraphia moderna.
Seria difticil de comprehender porque ratão ,i ideia
de Amonlons, posto que imperfeita, não foi logo en-
saiada para se aperfeiçoar, como fei Chappe, se por-
ventura não l"sse cousa sabida que os povos não se
servem senão c.is objectos de que carecem. O» gover-
nos europeus dos séculos XVII e XVIII não experi-
mentavam a necessidade das communtcações iinl.in-
taneas; e o pensamento de Amontons foi jalijido e
admirado, mas cu no pura curiosidade. Coube á re-
volução francez, 1, que incutiu no mundo tão prodijioso
movimento, eqwe prin-lamoti a forte alliunça dos po-
vos, o pòr em exercício ivs primeiros 'elejraphos. —
Tinha ("happe (como ja díssemo») appresentado á .As-
semble.i legislativa asna niachina ; no nono se:;uinte.
\ d'abril de 1793 (\id. Monitor pa;. 4|7\ Romme,
por parte das duas commi-sõe» reunidas da inslruc<;.io
publica eda guerra, leu o relatório sobro nqurlle "ies-
cobrimento. «.Em todos ostemnos (disse) foi reconhe-
cida a necessidade de um meio ra()ído e sejuro de
correspondência a largas distancias. Sobretudo nas
guerras, quer por mar quer por terra. íinp<vrta dar a
saber instantaneamente os numerosos acontecimentos
) successivos. transmillir ordens, annunciar <» soccor-
' ros u uma praça ou a um corpo quo .itacassem etc.
o PANORAMA.
75
A historia conserva memorias de muitos roethodos
concebidos nVsta intenção-, porém a maior parte fo-
ram abandonados por incompletos e de practica dif-
ficultosa" Passando depois á appreciação do systema
de Chappe disse o orador- . . "que ofterecia um meio
engenhoso de escrever no ar, desenvolvendo caracte-
res pouco numerosos, simplices como a linlia recta de
que »e compõem, entr.; si mui distinctos, de execu-
ção veloi, e sensivel a grandes distancias. " O relator
observa mais que, não tendo conhecimento do valor
dos Mçnaes os agentes intermediários, não podem ser
violados os segredo». — A convenção votou a quantia
de seis mil francos para se estaljeLcer uma linha de
correspondência dVxten^âo tal que p.Tmittltse obter
resultados concludentes. — Em l'li de julho de 17y.}
(Monitor pa','. 894) Lakanal, em nome da comtnis-
aão, deu c<Mila das experiências f.Mtas s.-};iiiido o nie-
thodo lacliigrapliico propoito pelo cidadão ('liappe.
INo rel-itiirio descreve o niavhinÍMiio com individua-
ção ; declara que tiveram li.i;ar as experiências a 12
de julho n'uma linha d^- nove léguas; que o segredo
das participações não era sabido do» hoinens dos pos-
tos; e que a traiisinis-ão ile um aviso de Paris a Va-
lenciennes (•) poderia eflcciuar-se <in treze iiiiiuitos
« 40 scçíindiis :, que o preço necessário ()ara ciillocar
uma linha tele_s;raidiica entre as duas cida<ifs st-ria
àt 58000 francos. A a-senilil-a appriiviMi e dccretcui
unanimeiíiente a proposta da cuiiiinissão, isto é, «es-
tabelecimento dasobreilita linba, e concedeu a('hap-
pe o titulo de en!;enbeiro telegraphico, com n veiici-
iiieiilo de tenente dVineiilieiros. A Convenção se
apressara a lançar mão iPeste meio extraordinário de
commuiiicação : os seus ininiigos, que não estavam
preparados, a ca<la instante se (hrviain acli.ir emba-
raçados; porque a actividade inlaligavel d'esta as-
lemblea apparecia mu toda a parte, tinha modo de
«aber tudo e de fazer constar tudo com a rapidez da
«ua voz enérgica. — Algum tempo depois da adopção
da proposta, o presidente, na abertura da sessão, par-
ticipiMi á assemblea que o telegrapbo anunciara a
tomada lie Conde. A Convenção resolveu que o exer-
cito <io norte era benemérito da [latria, eque aridade
de Conde ficasse d'abi avante com o nome de Norle-
Ijivre. l*assados alguns iniiiulos o presidente di'cla-
roíi que o decreto havia chegado a Conde, que se im-
primia, e que o exercito applaudia a resolução ita
Mssemblea ; esta, comprebendendo todos os vantajosos
resultados que se podiam colher da invenção telei;r:i-
pbica, decretou a formação d.' muitas linli.is para li-
par as fronteiras, e toilas as parles da Kraiiça, a l'a-
rís, «fim depor este modo presidir aos exércitos qua-
si pessoalmente, econcentrar a acção peculiar dos de-
partamentos no centro s;eral do estailo, em virtuile
da presteza da» comniiinicações. Napoleão, nas suas
immeiísas campanhas, também tirou grandlssinin pro-
veito do telegrapho, sobretudo na de ISlIIJ , a respei-
to do que se podem consultar os escriptos do general
Jomini. Tinha feito estabeleier uma linha de IMu-
tiich «Strasburgo; eipiando os anstriacos, jul'.;aoilo-o
antrelido com o meditado desi-nibari|;;e na Iii'.;laler-
r«, avançaram «obre o Kbeno, sem esperar os seus
alliadiis russianos, Napoleão, informado diis primei-
ros movimentos, partiu pela posta, aiompaiiliado lo-
go de uma parle das suas tropas, m-guindo-o a outra
a marchas forçadas, e por meio de manobras ailmira-
veis, tiMiiando pe|,i ret.ii;uarda os aostri.icos em Ulm,
constrangeu 4()()0{> bnmeiís enierrailos irui^a praça
furte u deptV as armas sem disparar um tiro.
{('onliuiift.)
(1) Anilha Ciipilai du liainauí Trance/., a :>,> léguas traiic.
distante de ParU, no departainentu do Nurle.
O Feitor de CautIo.
Novella.
O isiMENso império da China, que comprehende
G88000 léguas quadradas (isto é a terça parte da
Ásia) e 3o0 milhões d'haV)itantes, por um só ponto
está aberto ao commercio da Europa, e mesmo assim
com reslricções que ate o novo tractado, a que a In-
glaterra oobrigou, pouco poude modificar. Ainda ho-
je é o Tigre o único rio do celeste império aberto á
navegação dos èaiíinios europeus; mas uma frota, que
está sempre na foz, vigia os navios que por elle aci-
ma vão ter a Cantão. Compoem-se de juncos de guer-
ra cujos mastros, curtos e massiços, todos carregado*
de bandeirolas de cores, teem nos topes o pavilhão
amarelU) com o dragão imperial (•) listes navios que
não passam <le grandes chalupas mal constriiidas, re-
beldes á manobra, por terem as popas elevadas cou-
sa detrinia palmos acima d'asua, raras vezes «e aven-
turam a sair ao mar. Toda a sua artilheria consiste
n'algumas peças pintadas de vermelho, assentadas no
meio da tolda.
Além d"isto ha pelas <liias margens do rio fortes
ouriçados de mastareos, no .-illo dns qoaes tluclnaiit
baluleiras de todas as cores. 0.uaodo alguma embar-
cação quer subir pelo rio sem licença deitam-se fogue-
tes em todos estes fortes para dar aviso, pendoram-se
lanternas nas canbon»ira«, e os artilheiros chins co-
meçam um fogo lento, ilesigual, e (piasi sempre inútil.
A'entrad.i doTi^re se acha a ilha de Ijin-tin, on-
de os navios ín^lezes trazem o opío, cuja ioiroducçãi»
é prohibida em tola a Cliina com pena de morte.
Abi o vem buscar as peejoenas barcas de contraban-
diiitas, armadas de quarenta remos, que o espalhan»
ilepois por toda a parte, De seis em seis mezes uir>
mandarim imperial desce pelo rio, n'um junco eiiver-
nisado edijurailo, que se conhece de longe pelos doi%
parasóes que traz na tolda, para verificar se as leis se
cumprem; porém, como os negociantes inglezes costu-
mam compra-lo, manda sempre aniuinciar em segredo
a sua vinda, e d'este modo quando che;;a a Tiin-tia
nunca encontra navios, nem contrabandistas, nem
ópio.
Mais acima, no Tigre, ha um porto chamado mam-
pnn onde os navios snríem para c«rrei;arem de chá,
algodão, seda. assuc;'r, ver"i.l'i";.>, eoibenilha, cam-
pbora, porcelana, alini«t-.(r e l.irtarog.i. Dl vide-se aqui
o rio em dois braços, cujas margens estão cheias de
baro.is velhas encalhadas, com seus toldos feitos de
bambus entrançados, as quaes servem <le cabanas.
(Isdois braços doTi;;re reunem-se em Cantão, <|ue
é uma cidade de perlo detresentas mil almas, defen-
diila por muralhas de cinco léguas de circuito, edifi-
cada em parte á beira do rio sobre estacas, e que se
compõem na realiilade de Ires cidades dislinctas: a
primeira assentada ao longo do Tigre comprehende
mais tle iiul c/inmpnus, que si»rvem ao mesmt> temp*»
de barcas de pas-ai;>'m e de liabitações ; a segunda ci-
<l.ide abrange as feitorias europeas e americanas; fi-
nalinenle a terceira, separada dVsla por muralbas,
e por uma p<»rta por <u»de aos europeus não e [>ermil-
lido pass.ir. forma a verdadeira cidade clilnn.
Ao pe d\'sla mesiiiA porta, mas tbi lailo em t|ue
mora a gente da Koropa, é que escolhemos o lognr
da nossa scena para a inlriulucçãi» ti*esta historia.
Diiis homens seguidos di- criados, «pie lhes vinb.iiix
fazendo sombra com amplos parasóes, se encaminha-
vam para h banda do rio, da vagar e conversando.
(I I I) :iiiKireMu é cor exclusiva do imporadur c da sua
família.
76
O PANORAIVIA.
o vestuário do mais idoso era uma sotaina de seda
lavradii, tal<;as largas de tafetá, e barrete acolchoado
debaixo do <|iial saia ui" luiigo ralnclio eiitrançiao
que lhe checava ás curvas das perna». Aiiula quan-
do a sua li;2 ciV de limão, a pequetiez dos olhoí, o
pintado das sobrancelhas, e a barbinha curta e bicu-
da, di'ixassom a mais pequena duvida a respeito da
sua raça os sij^naes de avareia, de velhacaria, e de
pusillanimidade, espalhados por todo elle, bastariam
para dar a conhecer que era chim. Ao seu compa-
nheiro, pelo contrario, que vestia de nankini. p.a«:'i
europea, lia-selhe no roíto o deseml)ara(;o, Iraiiqni;-
la, e audácia, filhas do habito de mandar e da natu-
ral valentia. Ambos conversavam em voz baixa e i.a
lingua china.
— 1< Torno a repelir, Ymi-hi, di?.ia o europeu, q<ie
acompaidiia americana não piJde sofirer taes ladroei-
ras:, osdireitos que Ihechuna o vosso hou-pou (1), em
dois annos, dão com ella em terra. Acha pouco mel-
ter a bordo dos nossos navios c;uardas d^alfandCjTa
que furtam até as cordas i e no invenl.irio da car^a
triplica o numero das varas da» peças de panno, re-
pete a contagem das caixas de ferragens, e vale-se
de quantas manhas pode para augmenlar os direitos.
Ainda ha pouco, verbi gralia, não poz a alcunha de
espelhos a uns vidros lisos de líoheinia, e de agalhas
a pederneiras dVspingarda ? E muito abusar. You-
hi, sabei que isto não dura."
O china fpz um gesto de afflicção.
— "Ah '. que posso eu faier ? disse elle ; o hou-pou
é um homem avarento; a companhia fez mal em lhe
apresentar a mão meia aberta quando era preciso
abri-la toda."
— uPelo céu! bradou o feitor americano, não te-
mos nós feito bastanln sacrifícios? não tem recebido
o vosso director da alfandega em pannos, em aço, em
vinhos de França, em obras de ourives, para cima de
cinco mil doUars? Não podemos dar mais, c a vós,
You-hi, compete desenganar o hou-pou.»
You-hi quiz escusar se.
— "Por força, replicou o americano com firmeza.
O imperador, quando concedeu o privilegio exclusi-
vo do commercio estrangeiro aos doze negociantes que
formam is^o a que chamais JC>ny-han, quiz que el-
les servissem de medianeiros obrigados e de procura-
dores dos harharos. Q-uando chega algum navio nos-
so sois vós que lhe forneceis os mantimentos, que pa-
gais os direitos da carga, que tirais o cliop da saí-
da (á). N^iima palavra, sois os nossos mandatários,
tendes obrigação de sollicifar que nos façam jnst ça.
— "Mas por que meio se hu de alcançar, uiister
KnVndon ? disse You-hi, com vozes magoadas. Não
sabeis que os desgr.-içados httiiislai (3) são o malhadei-
ro onde vem bater todos os pontapés, que não se atre-
vem a dar em \ósoulros por si-r<les estrangeiros .' Met-
tidos entre os nu«siis superiores e os europeus, como
o ferro entro o nurtello e a bigorna, aparamos toda
a pancadaria sem lhe podermos fugir com o corpo."
— "I'ela iniidia alma! Isso compete vos, Yon hi,
repliiiui Kílendon ; sois tão experto no nes^ocio que
liáveis lio achar remédio para amansar o hou loií. A
companhia, que vos enriquece, tem jus a que H o re-
tribuais com uma protecção real-, traetai de lh'adar,
quando não vae a cousa por mal, e deitam-se i.o Ti-
gre alii uns doze guardas da alfandega,"
— "diic dizfis ! exclamou o china, cxiyo^ olhinhos
exprimiam terror ; mister lidendon diz o que não
«ente ?"
(1) Director das alfandegas.
(2) Licença.
(3) Membros do Kong-han.
— uPelo contrario, estou persuadido que era uDlk
lição útil e capai de fater os empregados roais im-
parciaes."
— "K eu, mister Eflfendon, interrompeu o china
sobresaltado ; já vos não lembra que por ser haniila
respondo por tudo que fizerem as vossas tripulações'
Sejiiegam o pagamento d'iim direito pago-o eu; »e
fazem alguma desordem o mandarim mette-me na ca-
deia ; se afogarem os guardas a mim é que me cortam
a cabeça !"
— Bem sei, retorquiu o americano, sorrindo sem
mostrar abalo; r por isso assentei que vos devia avi-
sar antes de irás do cabo. Ide ter com o director da
alfandega, fazei o ajuste ; ijbri a mão, como ditieis
ba pouco, e deixai cair na bocca d'aquelle tubarão
um pouco do ouro que tendes ganho com a compa-
nhia. K preciso saber fazer um sacrifício a tempo."
You-hi suspirou, sem dizer palatra; conhecia o gé-
nio inilexivel de EfTendon. Seguiu-se uma grande
pausa, durante a qual chegaram ambos á frontaria
do palácio do hou-pou, fácil de differençar pelas ca-
beças de dragão, que lhe ornavam a portada, por ci-
ma das qiiaes estavam pendurados grilhões e chicotes,
symbolos do direito de julgír.
— "Estais á porta, disse KfTendon ao china, apon-
tando para o palácio; advogai bem a vossa causa : ha-
veis de vence-la SC quizerdes : com a vontade abalam-
se montanhas."
— "Sim, é o vosso estribilho; porém nói temos
um provérbio que diz que o rnaii hábil lettrado não
pôde obrigar a aranha a fiar seda ! Todavia eu hei
de me empenhar, e sabereis a resposta do hou-pou es-
ta tarde vindo jantar á minha casa de verão... pen-
so que recebestes o meu convite."
— "Em papel vermelho, escriptn com tincta d»
ouro! Lá vou sem falta."
O china fez-lhe com a mão um signal de despedi-
da, e separaram-se.
EITendon costumava cumprir o que dizia, e You-
hi julgava-o capaz de pór em practica, ao menos em
parte, a aineaç.i <jue lhe Ijzera, sem lhe importarem
as consequências nem os trabalhos em que podia met-
ter o hanista ou meltcr-se a si. Havia quasi dei an-
nos que elle dirigia a feitoria da sua companhia, e
sabia por experiência que o meio mais seguro de ob-
ter justiça era faze-la por suas próprias mãos, e que
da violência resultavAm menores perigos que do lon-
go soflVimento. Não se podendo resolver aentranhar-
se, como os chins, no labvrintho de trapaças e men-
tiras em que elles gvram tanto por inclinação como
por interesse, tinha-se costumado a caminhar direito
pelo meio de liid.K as suas alicantinas, exigindo re-
par.ição de cada offens.i. e toinando-a por suas mãos
quando lli"a negavam, lista espécie de inteireza rígi-
da c audaz tinha feito por fim que o Kotig-hang lhe
cobrasse medo, assim como os empregados imperiaes,
auctnrisados para commetterem injustiças e latrocí-
nios, mas não para provocarem um rompimento com-
pleto. [rori(ifnio)
GlAHDA ESCUCEZ DOS REIS DC FbA>'^«.
Caiilos ^ II, que reinou em França desde H'2'2 a
IIGI, c que pelas vicissitudes das armas esteve mui-
tas vezes a ponto de perder a liberdade e a coroa, foi
o primeiro que fez organisar uma companhia de guar-
das escocezes par» a pessoa do rei, quer na pai quer
na guerra, em conimemoração dos lerviçiis que rece-
bera, em sua varia fortuna, das tropas d'aquella na-
ção : denominou-a dos besteiros do rei, porque eram
nrjnados de arcos e frechas. — Luii XI engrossou con-
sideravelmente esta companhia, e lhe concedeu pri-
o PANORA3IA.
77
vilegios honrosos c boa paga, não se poupando aos
meios de grangear a affeição d\iquellrs »a!entes es-
trangeiros, (jue no ililatado peri.ido da durai-lo d es-
ta guarda sempre na verdade se dislingiiiraàu [i)rde-
senipenlio exacto das suas (ibrigações e escrujiulosa
fidelidade. Luiz XI, astuto, ciupI e di-.íiniulaHo, tú
nos etcocezcs piiniia inteira confiança, e coviuinava
dizer <|ue a companliia escoi-eía tinha nas suas inãos
a sorte da França, porque elle llie havia coiiCiado a
tua real pessoa. — N%sla companhia lez AVí.iter Scott
entrar o lieroe de unia das suas nielljores rovcUas —
GLuintino Ourward — e iihi sh acli.im enire.achadas
com os Incidentes da n.irração niuit.is parlicubirida-
des que pintam tiem a inihile e ^er^iço do corim es-
cocez, como [>od«' ver sf na traducijão fi>it i do origi-
nal iniílez pelo Sr Ramalho, publicada en í vol.
em 1838, e impressa na anti^-a tvpnijraphia do nos-
so jornal.
Esta guarda continuou nos suhs. quentes reinados,
porém çradualmenle se foi compondo de fraricezes a
dalar do reinado de Henrique 4."; de fornia r;ue em
tempo de Luiz XIV a compaidiia só era escoteia de
nome:, officiaes e simples praças eram todos france-
Zes. lintão a companhia constava de cem cavalheiros
ou guardas, dos cjuaes só vint<! e cinco recebiam sol-
do; formava na frente das nutras três coin|anhias da
guarda; na igreja postavase no choro; reciO.ia as
chaves da casa real ; e no préstito fúnebre dos ino-
liarclias competia-lhe levar o corpo do rei defunclo
para o jazigo de S. nyoni»io. Km siiinma, gozava
na corte de muitos privilégios, que seria longo enu-
inerar. — A estampa representa um guarda escocez,
cm tempo de Luiz W, com o firdamento dos dias
tolemnes, que na primitiva crearão do corpo, no rei-
nado tio Luiz X.I, e ainda muito tempo depois, ora
inteiramente diflerente, trajando os guardas á sua
moda nacional, e trazendo sem|>re por distinctivo a
gorra escoceta.
uuAitnA uscot:r.r noh iiicis iis iiianca.
Cartas inéditas de D. JoÃo de Castro.
Carla do fisorei D. João de Castro aot vereadores,
juizes, povo de Chaul.
Bem creio que a todos vos será notório quanta justi-
ça tenho feito a christãos, mouros e gentio», (Jcpois
que sou n'e»ta terra; e assim quão inleirainente te-
nho guardado as pazes e cumprido os contractos que
05 governadores passados fizeram com os reis e gran-
des senhores da índia, em nome d'elrei de Portugal
meu senhor, e quantas amizades todos tem achado em
mim, deixando navegar suas naus segurainenie pêra
todalas parles, e trazendo armados n'esta costa contra
corsário», que molestavam ris seus mares e portos, e
roubavam o^ mercadores, que de um logar para outro
trasfi'gavam em proveito de suai republicas. Dos quaes
benefícios mais que todos gozavam os guiarates e seu
rei. Ora estando eu seguro e descançado na amisade
antiga dos guzarates, por estas e outras muitas boas
obras, e assim mesmo o seu capitão Coje Çofar, pô-
las muitas umisades que cada dia de mim recebia,
agora como todos sabeis quebrantando a fé e contrac-
tos de pazes, que com elrei nosso senhor tinham fei-
to, jurado, e promettido. como desleaes e fementido»
vieram a pôr cerco sobre a forlaleia de Diu.
E posto que eu tenha muita experiência da lealda-
de mui antiga dos portuguezes, e grande confiança
em suas forças e valentia, e no viio e natural amor
que todos geralmente teein a seu rei ; e que a forta-
leza de Diu esteja tão forte, assim por sitio natura!
e industria dos homens, e que dentro esteja tal capi-
tão, fidalgos, e lascariíis, que seguramente possa es-
tar <lpscançado, com ajuda de Nosso Senhor, de po-
der acontecer desastre; todavia como pae que sou de
todos, e desejoso sobre todalas cousas de suas vidas,
honras, e proveitos, dão-me grande cuidado os seu»
trabalhos, em quanto eu pessoalmente os não posso
ir soccorrer, e vingar, das traições dos guzarates Por
tanto determinei de vos fazer a saber meu propósito,
e aperceber pêra a empreza que ora quero tomar de
Cambaia.
Eu tenho mandado recolher talacas, fustas, e ca-
tures, que se acharem ein toda a costa da índia, «fa-
ço huma armada, n'esta cidade de Goa, de cem fus-
tas e caturcs, na qual irá por capitão inór D. Alvuro
meu filho.
E eu (jueroinu ir assentar no logar de Baçaini,
com trezentos decavallo, pêra ir por terra, e elle por
mar irmos destruindo essa costa ; e espero cm Nosso
Senhor de ainottrar as armas dos portugueics ao pró-
prio rei de Cambaia, pêra se acabar de certificar
qnamanha diflirençi a ile nós aos mogores e patanes,
rumes, e toda a outra nação do universo; e dar es-
cala Iranca assim aos do mar como aos de terra. E
porcpie eu não saberia entr.ir em semelhantes einpre-
zas sem vossa ajoda e conselho, vos peço a todos em
geral e a cada um em especial iiinili) por mercê, <|ue
queirais estar prestes com vossas armas e cavallos,
peru com minha peisoa em comp.iidii.i do vosso capi-
tão passardes a Baçaim, e seriles presi^nte» a esta guer-
ra, a qual assim por cila ser justa, e feitii por tae»
tavalleiro», li'nho por certo alcançarmos grandts e
glorioso» triumphos, e verdadeiramiuite quB tixlalu»
vezes que me lembra como levo a esta gui'rrii tanto no-
bre eavalleiro de (loa, acoitumados sempre a vencer,
e como os lascarins derramndos pela índia se vein lo-
dos para mim, com grande e notável alvoroço de tri-
lharem tt passearem as terras de Ciimbaia, e como
Ivo» hei lie achar, oli ridail.'ios ile Chaul, aomeuUilo
co\u vossas armas i.i'eiiU'S, e ct)rações graiule» e for-
tes, que ussim entro a fmcr esta gucria como a mui-
78
O PANORAMA.
to certa e averiguada victoria, ouso de vos pedir isto
com fuo pequenas palavras, porque sei que pêra as
cousas semelhantes, e de tanto 5crvií;o d'elrei nosso
senhor, nunci houvestes mister esporas; e sendo es-
tas obras tão de vossas próprias naturezas, e exer-
citando-as em tempo de governadores da vossa mui
nobre cidade pouco amigos e favoráveis, que se po-
derá etperar agora que militais debaixo de minha
disciplina, que sempre vos fui tanto amigo e compa-
nheiro, assim no tempo que n'estas partes se serviu
elri'i nosso senhor de mim de soldado, como agora que
por sua grande e real cleniencia, e muita virtude,
me entregou a governani^a d"estab partes da índia, e
me fei capitão geral de toda ella.
Eu fico tão confiado em me todos ajudardes a fa-
zer esta guerra aos giizarates, que me parece ver-vos
já correr os seus campos, e entrardes suas cidades, e
saqueardes suas terras, de maneira que pêra todos
seja esempro, pêra que não ousem outra ve?. de ten-
tar estas e outras semelhantes novidades. Nosso Se-
nhor vos tenha a todos na sua guarda, e nos ajunte
e conserve n'este propósito. Escripta em Goa a 3 de
maio de t5í6.
Resposta doi vereadores de Chaul a D. João de Cas-
tro, tisorci da índia.
5 Notório éachristãos, mouros e gentios, que a maior
mercê que nos Deus eelrei nossosenhor fez, foi avin-
da de V. S. a estas partes; e bem su pôde crer que
n'elle anteveio iiiQuencia divina em S. A., porque
de quão arriscada e djmnificada estava ao tempo de
sua chegada, está agora no estado que deve; e isto
pelo muito cuidado e vigilância que elle tem, prin-
cipalmente no auto militar, em que claramente mos-
tra sua tenção ser segurar no-.sas pessoas, e fainilia,
e o estado de S. A. E posto que este beneficio fosse
rommum a todos os q-ie habitam n'estas partes da
índia, nós fomos os que em particular participámos
mais d'ene, polas muitas aventajadas mercês e hnn-
Tas, que temos recebidt> de \^. S. Polo (|ue nunca de-
sejamos outra cousa senão oITerecer-se alguma, por
que a experiência manifestasse nossas vontades, com
obras que mereçam tal beneficio, presup[>oudo «em-
pre que nossas palavras até o presente haveria por
•verdade nua, que (não) é duvidosa.
GLuí/ Nos-o Senhor chegar nos a tempo, que por
uma sua carta dada pelo capitão em camará, soube-
mos d'e5ta jornada, que quer fa/cr contra estes gu7a
rates e inimigos desagradecidos, dignos de sentirem
a ira de V. S. ; os qiiaes assim devem ser punidos
como escravos que tomam as armas contra seussenho
res, pois sendo a elhs notório quanto tod' a outr.i
<iai;"ro de todas as três partidas, de animo mais viril
<jueelles, no» tem aquelle acatamento, e ten\or, que
se nos deve ; e como a vencidos e privados de forças
lhes demo» paies e socego, mnis movidos de clemên-
cia que por outra necessidade, quizi'ram intentar es-
ta inalicia e rotura, não attenlando que por elles se
podia dizer que as cousas ?anclas se derauí aos cães, e
as pedras preciosas a porcos.
l*elo que lida a carta, vendo a tenção e propósito
<Ie V. S. querer-se ser\ir de nós n'este tempo, e
dar-nos tamanha honra, que é a m:iior mercê que
nunca recebemos, pelo desejo que já tinhamos e iui
menso amor interior, por isso sem mais silencio f.il-
larão as hoccis ofTerecon lo-nos to. los ao capitão, que
tão bem iiola encommendou. V. S. nos tem aqui
prestes com nossas pessoas, armas, cavallo», na^ios, e
f.ijeiída, por todo o tempo que qui:er, e qnanio pê-
ra isso não supprirem as farendas, nossas mulheres
nos oITerecein as jóias, como fiieram as romanas di-
gna» de grande louvor e memoria, no Capitólio; por.
que assim como Deus favoreceu e ajudou aos reis do Is-
rael, e aos Machabeus que velavam, ea nós, manifes-
tando suas maravilhosas obras nas muitas victorias, que
até aqui nos deu a tão poucos, se não fieis ainda que
peccadores contra tantos inimigos de sua sancta fé, que
muito melhoro fará agora comnosco, levando estas duas
cousas por nós, justa guerra, e grande esforço e magna-
nimidade de V. S. na guia. No qual temos por mui
certo que fallecendo-nos as forjas cobremos outras novas,
vendo seu constante animo e propósito ser convertido em
serviço de Deus ; e prazerá a elle que não menus será
temido n'esta passagem do que foi Annibal quando
passoti os Alpes, e por isto ser assim como e mesmo
Annibal dizia em sua oração: asprincipaes armas se-
ja conceliermos ira contra estes inimigos, que nos que-
rem desprezar, e teremos a victoria por mui certa.
De maneira com que a congregação dos fieis em sua
companhia, e esta nossa igreja militante venha al-
cançar a friumphante, c aquelle summo bem, e os
inimigos se não atrevam a outras taes malicias. Pêra
isto tu<io ratificar e concluir em poucas palavras, tor-
namos a dizer que estamos muito prestes, como leae»
portuguezes, com os pés nas estribeiras, como se o
já víssemos ir e muito alvoroçados, {)«ra os seguirmos
com as nossas pessoas, as quaes tivemos sempre e te-
mos a seu serviço, por respeito de lua pessoa, á qual
nunca recusaremos pormos as nossas, e as fazendas e
filhos, pela muita obrigação em que somos a V. S.
a que Nosso Senhor augmefite os dias da vida e es-
tado por muitos annos. Amen. Escripta em camará
dVsta cidade de Chaul a 2á dias de maio. Francis-
co da Veiga escrivão a fez. .\nno de 15^6.
SuPKHSTtÇÕES DOS AMAKES ÁISTES DE MaFOM*.
AiNOA agitava o Oriente a queda do império roma-
no e do polvlheismo, quando Mafoma n'elle veio
fundar um novo império e uma religião nova. Se
p.ira firmar o direito dos homens a fama se devesse
ter em conta o ponto d'onde partiram, as difficulda-
des das emprezas e dus successos mais prodigiosos,
nenhum homem tattez se poderia comparar com .Vla-
f<inia. Fora das circumstanciHS f.svoraveis que muitas
veies |ire|iaram ou trazem os acontecimentos; so p<)r
só n*uma epocha de pleno socego na terra natal, em
(|ue os aniimis não app-eseiitavam svmptoinas d"in-
uovaçã<i, .M.ifoma, ou Mohamed, como lhe chamam
os árabes, ousa de repente formar e levar ao cabo
um projecto cujo pensamento ba«tár.i para amedron»
far o mais atrevido novador ; projecto que consisti»
em lançar por terra as iiistiluiçues exi«tenteí, refor-
mar os costumes nacionaes, destruir tud.i, arrastar
tudo apoi si, e appareeer a final aos olhos do» «eus
compatrícios feito proplieta, legislador, e rei.
Viviam o« árabes na m.iis ridícula superstição, e
n'uma absoluta corrupção de costumes; comtudo er*
crime capital atacar lhes o culto, c censurarlhes at
leis e os u»os, mesmo na parte mais insignificante.
Nenhum rtMi de taes crimes escapava d» severidade
d. IS penas, e nem os intrenidiis apóstolos do chrulia-
nismo ousavam f.izer neophs tt>s na Meca; o que pro-
v.\ que n*esta epoch i não era fácil mudar a» ideas
religiosas. Mas quando uma iiitelligencia superior
rralis.i um vasto plano, logo o vulgo, que raras veies
mede os perigos das empreias. e se limita a avalia-
los pehi resultado, jviliX' esse plano fácil de lesar &
elTeilo. Nada era mais diffieil do que introduiir en-
tão mudanças na .\rabia. Parecia reservado par»
Mafoma vencer to los os obstáculos, lançar por terr«
os Ídolos, desarraigar as joper5tiç<"e5, promulgar no-
o PANORAMA.
79
\as lei», prescrever novos costumes, e crear, para as-
«iin <iÍ7.er, uma iiafjão nova. Cliejoil ao mais a que
podia cliegar, porque dentro da iua própria pátria
con>e"uiu ser reconliecido e acatado como se fôrii na
verdade enviado do Kterno.
Mai» para o diante «".bojaremos a vida de Mafo-
ma, e anaiysarcmos o Koran : por em quanto resu-
miremos a» fabulas que os orientaes recitam acerca
das personaf^ens anteriores ao propl)eta. Parte d'es-
ta» latiulas se acham noTalmud e nus livros dos rab
binos. Dir-se-liia que á cxcepi^.Tío do que us musulma-
lioí tiraram da Bíblia, se enipenhar.iin em reprodu-
íir as circumstancias mais extravagantes e allieias da
razão.
O» mnsulmano» reconhecem, como nús, anjos bons
e anjos niáus. Knlrií os bons distinguem os quatro
archanjos, Gabriel, Miguel, Azrael. o Azrafel, aos
quaes chamam os ap/noximados, por estarem sempre
estes anjos ao [lé <!o ihrono de Deus, promptos para
cumprir as suas ordens: (jabriel tem a sou cargo le-
var as mensagens celestes i Miguel preside ao» ele-
mentos e ecii particular á chuva ; Azrael recebe aí
blmas dos homens, e por isso lhe chajnani o anjo da
morte-, linalmente Azrafel é o guarda da trombeta
celeste, e quem a ha de tocar no fim do mundo. Os
miisulmanos [irezam Gabriel mais que os outros, por-
que dizem que este archanjo era amigo intimo da
sua na(;ão, e foi escolhido pelo Eterno para annun-
ciar a Mafoma a sua missão prophotica. Por isso o
nome de Gabriel se acha repelido nos monumentos ^
ora designando I) pilo numi! de Pavão do jardim do
Paraizu, em razão de Gabriel brilhar com luz pró-
pria entre os entes angélicos bem como o pavão bri-
lha entre a» ave»; ora dando lhe os titulus de Vitl
DepoiUaiio, e d'iO</;ntío SiDiclo, por ser o confiden-
te da» vontade» de Deus, e ter- lhe cabido a preroga-
tiva de communicar a Mafoma todos os preceito» do
islamismo. Mafoma diz no Koran: u Ciucm é ini-
migo de (iabriel seja confundido!" Para o archanjo
Miguel olham us musulmanos com alguma descon-
fiaiKja ^ na sua opinião, o arclianjo Miguel amava o»
judeus, e se Deus lhe desse ouvidos nunca u islamis-
mo ílorecêra sobre a rerra. Dos anjos maus, o de
mai» nomeada é Iblis, (jue se poz ú frente dos anjos
rebelde», e, ícgundo o Koran, foi precipitado do
céu mai» elles, á pedrada com pedras em braza : é o
Diabo dos chrislãos, e oSalanaz <lci» judeu». Em nie-
liioria da sua trágica aventura, não lhe chamam os
árabes senão o yljiednjado.
Depois do» anjos, aihnilliram os inusulmanos uma
raça intermédia, que é a dos gi'nios. Os génios, se-
gundo o Koran, avisiniiamsi! aos anjos em terem
(ido tirados como ellis da substancia do fogo, c avi-
BÍnham-íe á natureza do homi'ni em beberiam u co-
merem como elle :, uns eram machos e outros fêmea».
Distinguem-se muitas espécie» de génios: são a» fa-
das e os ilemonio» di> Oriente. Como, na opinião
dos árabes, a terra ou cousa semelhante existia un-
te» de Adão, suppozeram <|Ue a habitaram gi-nios
por muitos inilliares d'aniias, e rjue só depois de res
coidiecida a inipossibilidade de o» conservar nu vir-
tude, é (|ue Deu» tomou a re»olueão de creur o ho-
mem, (iuasi Ioda a r.iea de génio» foi então extinc-
ta : o peijoeno nuiniu» do» qui^ escaparam ao desas-
tre loi di^gradailo paru certo» logare» dintantes ila
terra. Ile/.a-»(! d'elle« outra vez na epoclia em que
viíalomão o» iMinsIr.ingeu a trabalhar no» imIíIÍ<'Ío» que
o tornaram celebre. Em tempo» mai» recentes abra
<;arain algun» génio» ,i religião de Mafcuna.
O» mijssulin.ino» rhegam-si! mai» ás nossas ereniM»
lio (pie diz Ic Ailãoe ICva. Ar<Te»eentam i| lie Adão,
di'poi» lie pec>'ar, foi lançailo pilo anjo do Senhor na
ilha de CeylSo, no sitio onde está a montanha cha-
mada ainda nos nossos dias Pico d''Adão, e que E\a
foi desferrada para as costas do mar Vermelho, e lo-
gar onde depois ie ediQcou Meca. Os dois esposos vi-
veram a^sim separados mai» de dois século» ; a final
o Eterno, compadecido das suas lagrima», os reuniu
nas visinhanijas de ?ileca. Ainda alli se mostram ho-
je os vestígios da sua morada. Depois de terem dado
o ser ao género humano veio o anjo da morte apre-
senlar-lhes d.i parte de Deus uma taja que lhes poz
termo á vida. Dizem os histcjriadorts arabt-s que es-
ta faya serviu successivamunte a todos os prophetas ^
d'aqui se derivou sem duvida a expressão tão com-
mum entre os orientaes, beber na ia<^a da morle, ou
simplesmente provar a morle, isto ó, morrer, (.'on-
sideram Adão como propheta, R estão capacilado» de
que elle tinha na fronte um raio de luz muilo pare-
cido com o que os pintores põem na cahcja de Moy-
sé». Accrescentam que Deus lhe mandara dez livros
de revelações, com o auxilio dos quaes deviam os
seus descendentes seguir a estrada recta ; mas estes
livros não iins chegaram.
O raio pri>|ihelico passou d' Adão a Sefh, de Selh
a Enodi, d'Eiioch a Noé, e de Noé a «eu filho Sem,
Os inusulmanos citam depois d'elle os dois propheta*
Iloiid e Saleb, de que a Bíblia não falia. A Iloud
vleterininou oSeidlor que fosse pregar a fé a algumas
Iribus d"arabes nómades, povo» notáveis pela sua es-
tatura desmarcada ; os mais pequenos tinham sessen-
ta cuvados, e com dilTiculdade achavam arvores com
a altura necessária para servirem d"esfeios as suas
barracas. Como padeciam desde muito tempo um»
seccura horrível, aj)pareceu lhes Iloud diiendo-lln-s :
"Oh, meus irmãos ! adorai o Deus verdadeiro, o Deus
único, eelle fará descer a chuva do céu sobre os vos-
sos campos rcqueimados. » Não quizeram os Ímpios
ouvir estas palavras:, accusaram n'o de louco, eamea-
çaram-n^o com a morte. O Senlu-r irritado suscitou
contra elles um vento espantoso ipie os exterminou,
sem poupar senão o pequeno numero dos que linhaui
dado credito a llouil. Narra este succe^so o Koran.
Saleh foi incumbido da reconducção de certos po-
vos chamados temuditas, os quaes, segundo a opíniãu
commuin, h.ibitavam um valle fértil da Arábia Pe-
fre.i, ao meio dia do mar Morto. C"ercados por to. loi
Os lado» de scrr.'iS empinadas, o» temuditas, das suas
habitações excavadas na penedia, se jactavam de »f-
frontar a vingança divin.i. Saleh veio proeural os d:i
parle <le Deus; ii Oli ! meu» irmãos! fizeí peniten-
cia, lhes disse elle, adorai o Deus veriladeiro ! " His-
ponileram os leniuditas que por bem nenhum terreno
largariam o culto de seus p;iis. Para os «'Uivcncer feK
Saleh sair, [>or>'Ui debalde, do seio tPuui ochedo uma
camélia milagrosa prestes a |)arir ; os ímpios cada ve£
mais se endureceram. Imputaram a SaK-h artes m.i-
gícas, e Nialaram a camélia com a sua cria. Eutão
enviou Deu» cvnira elle» um anjo, <|Ue os < ilheu de
salto uma manhã diuitro das suas civernas, e os ma-
tou a todos. Os mtisulmanoj conservam profunda re-
cordação da im|>íedade dos temuditas <■ da vingançit
que Deus tirou d^elles. Mostram ainila as moradn*
|)olliiidas pela presença d'e»tes homens criminosos :
até crei'm ouvir nas círcumvisinhanças ou grilos piin-
genle» da camelhi, e quanilo passam [)or este -itío ar-
redam-S(! do rochedo f.ilal. A cria da cninelli ficou
sendo eiilre elles o svmbiilo das maiores ealamidailes ",
ipinudo o» ameaça algum desantre, iliicin : .. E o gri-
li> lio camelinho de S.deli. "
Assim passaram os tempo» anlerlores a /MiralLÍo.
Ciuii este patríariha, a que os inusulmanos chamam
Ibrahim, começa, par:i a^sim diíer, um.t nova ira.
Ilipulam iTo o amigo predilcito de Deu» e o pwi do»
80
O PANORAMA.
crentes-, algumas tribus árabes se ufanam cie o ter
por avó, e não ha no Oriente nome maia venerado.
A vida de Abrahão, salvo o que tiraram da Í5ibli;i,
segundo o Koran, não c mais do que uma teia de fa-
bulas. As mais singulares são estas :
Abrahão era filho d^Azar, oflicial de Nembrod rei
de Babylonia. Tendo Nembrod visto de noite um as-
tro erguer-se no horisonte e desmaiar com seu brilho
as outras estrellas, cobrou medo e consultou o« adivi-
nhos; todos lhe responderam que este prodiçio un-
nunciava o nascimento d'um menino extraordinário,
que domaria os príncipes maií potentes. Assombrado
Nembrod, mandou apartar os liomens das mulheres;
mas ignorava a prenhez da companheira de Azar, a
qual se retirou da corte, e em breve deu á luz Abra-
hão. Tudo foi inaudito n'este meuino ; o próprio
Deus proveu na sua sustentarão: ministrava-ltie um
dos seus dedos leite delicioso, e outro ministrava-Uie
Diel. Ao cabo de quinze mezes estava tão forte como
um moço dr quiiiz; annos. Desde logo se poz a ca-
minho para Babilónia, deliberado a perfazer as gran-
des cousas a que era chamado. Todavia ainda não ti-
nha muitas luzes da verdadeira religião. Como o gé-
nero humano estava en'ão avassallado pela idolatria
e culto dos astros, e o próprio Nembrod se inculcava
por Deus, Abrahão não poude vér sem pasmo os glo-
bos magestosos que rodam sobre as notsas cabeças.
A accreditarmos o Koran, quando Ibrahim viu lu-
eir no horisonte a estrella Vénus, quii adora-la ; mas
reconheceu o seu erro quando ella desa|iparecea : vol-
veu então os olhos á lua, e fez o mesmo ao sol. Ven-
do que todos estes astros momentaneamente appare-
ciam na scena do mundo, caminhou con\ passo íirme
pela estrada de Deus. Só o estorvava o que ouvira
contar de Nembrod e do seu poderio', tmla grande-
za desluinbrou-o a principio', porém como Nembrod
era medonho de feio, compreliemleu que D-us não
hivia de mostrar se com uma cara tão deforme, e
não hesitou mais em tributar homenagem á verdade.
Abrahão pregou na cidade de Bal)ylonia ; poucas
pessoas o creram; Nembrod foi o mais rel)'dde ás
iuas exhortaçíjes, c como Abrahão recusou adora lo,
o mandou laiiçMr n'uMia fornalha ardente. Felizmen-
te, accrescenta Mafoma no ÍVorau , veio Deus em
soccorro do seu servo, e o fogo fez se frio; alguns
auctores asseveram que a fornalha se converteu em
jardim de rosas, (iuanto a Nembrod, crêem os mu-
sulmanos que mesmo n"este mundo foi castigada a
sua desmedida impiedade : Deus, para lhe confundir
a soberba, permittiu ejue um mosquito pequeno lhe
entrasse no cérebro. Nemlirol morri-u atormei\t,ido,
batendo com a caberá pelas pareiies do seu palácio,
e o seu nome ainda serve no Oriente para designar
os tyrannos e os (lagellos da espécie huntana.
Abrahão saiu todavia de líabvloiiia para visitar a
Syria e a Palestina. Os mosulmauos citam muitas
'particnlariíiades em que os nossos livros sagr.idos não
faliam. 1'or exemplo, qu.indo Sara e Agar deram
cadauma d'ellas um filho a Abrahão, e não puderam
continuar a viver em paz, este patriarcha pegou em
Agar e seu filho Ismael, e os levou para o logar on-
de se acha agora a Meca, terra então erma e mani-
nha. Não achando alli Abrahão nina fonte para lhe
matar a sede, ia a continuar na sua peregrinação,
<)uando um anjo fei brotar com <i pé uma fonte d a-
gua viva ; é o pooo que se acha agora ao pé da Caa-
ba, chamado o poço do Zeintcrn. Abrahão eiiificou n
Caaba , foi o pedreiro, e Ismael o servente. Mostra-
se a pedra en qup o povo suppõe que ellr pnnha os
pés. Kegulou as ceremonias <la pere^ri nação, e desde
então ficou sendo a Caaba o ponto de reunião de to-
do» os po\os da Arsbia. Kis as próprias p.ilavras de
Mafoina acerca d'este patriarcha : «Abrabão não er*
judeu iiein christão; era orthodoxo e musulmano. n
T«l 6 o artifício empregado pelo propheta para faxer
accreditar que a sna religião não era nova, e que te
differia da seguida n"aquc)Ie tempo, era porque os
Ímpios a tinham corrompido. [Cmitinúa )
CoMBDStSo ESP0.1TA5E.V DO CARVÃO DE l-EDRA.
Meio ue a atalhar.
Ha pouco temiio ardeu no Tejo uma embarcação
grande, que servia de deposito de carvão de pedra
para os paquetes inglezes, e muito custou a tira-la
il^entre os mais navios que podia incendiar caindo
sobre ellc» com a força da corrente. Terse-hia pou-
pado esta desgraça e a perd.i da galera S. Domingo»
Kneas, empre'.;andose o seguinte melhodo, achado
pelo capitão Carpenler.
E precii 1 ter muitos canudos de ferro batido,
cheios do buracos na extremidade que fica para a
parte d-? haixo. Ksles canudos enlerram-se no carvão
quasi até o fundo <lo barco, separados algumas pol-
le^adas da borda do navio, onde se atam bem, A par-
te superior dos cxnudos deve subir até a coberta do
barco, e estarão dispostos de modo que facilitem a
ventilação, sem que deixem entrar a hiimidade no
carvão. Cumpre ao mesmo tempo ler tudo prompto
para fazer entrar uma grande porção d'agua nos
barcos de c.ir^ão, com qtie vão a pique no caso d*ín-
cendio. A agua produz então dois effeito» ; apaga o
fogo no lo'.;.ir do periío, e, entr/iudo pelos canudos,
impede toda a ventilação, e concorre para extinguir
o incêndio.
E evidente que a causa das combustões espontâ-
neas é a acjumulação dos ^aies, provenientes da hu-
midade do carvão; nVsle estado o calor ou a fric-
ção produzem o fogo. Para o evitar c preciso deixar
circular livremente o ar atniospherico por entre o
carvão.
Influencia kociva da NontElRA.
\ GKNTK do campo nunca ileixa de avisar os sens co-
nhecidos que a vem vèr de que não de»em parar de-
baixo das nogueiras. Muitas pessoas dignas de fé se
queixam de ter sentido dòret de cabeça, deliquios, e
náuseas, por se terem demorado á sombra das noguei-
ras ; inooinmo losque lhes passaram tanto que se affas-
taram dV-Uas. Até ha queuí conte as mortes d'»líu-
mus pessoas que «ilormeceram ao pé d estas arvore.-.
Mr. d'lIumbrHs Kirmu», julgando que e»t;,8 asserções
obrigavam a um exame, fei .-xperiencia» endiometri-
c«s a diflerentes horas do dia, em tempo cdmoso,
com o céu sereno, e em lerapo de chuva, para inda-
, irar se o ar era menos puro a sombr.i das nogueiras
I do que á sombr» das outra» arvores, e no meio do»
campos. Não ll<e achou dillVrenç.i scnsivel , e pensa
I que os maus eiTeitos apontados >ó podem ser attribui-
dos ao cheiro soporiGcn que exhala a nogueira. Pro-
curou além di-so certificar se »e a xisinh.snça da na-
' "-ueira fiiiui mal ás pl.mtas. e cffecliNainente conhe-
ceu que os cereaes em pirlicular, estando ao pé da
nogueira, sofTriam uma perda proporcional á copa d.\
arvore.
4
ClfKM ama .? cio is. teme a infâmia, c não resiste
ao vicio, nssenielin -e «o que, tcmend ' a humid ide,
se aloja no meio d'uin piu'.
11
o PANORAMA.
81
/
CASA NOJÍIUi DE GAx\D EM IjOO.
^ViiTlGA Ciipital de lodii a Flaiules, a cidado d<! Gand
hoje- sóiniMileócabei;;! liu província denominada Flan-
dca Oriental 110 moderno reino da IJi.^ioa : i; sede
de arccliispado, e está nituada na jiincrãodo Escalda
cuni o I^i/., cjiio coui oiilrcis doisconlliicntcs itli^Mu toda
a povoação, rcpaitindo-a cm vinte i! seis purijões cer-
cadas d'a<;iia, ipic m' coiiiinnnicaiii por Ircsenia') pon-
tes dl! madeira lançadas solire os canacs, Tejn cida
delia nianilada edilicar por Carlos V,- uma excellcii
te catlicdral, onde ha um |>iiI)>ilo de niariiiore bran-
co de primoroso lavor: tn./.i: praças publicas, sendo
a» principacs mui es|)açosas ; cacs mHf;nií'icos ; (t em
ra<ão d\'«las oliras e da licll>.'Za de i;raude (|naiitida-
de de sins edifícios conl.ihe entre as mais formosas
do» l'ai/.es liaixos, passando pela maior de todas re-
Ialivam<'nte ásu|ierlicie ipie uccupa ; porém não cor-
reitpriii<l<! a tanwinlia (extensão o numero dos luiliilaji-
tes, fpie se avalia em poucl) mais ile S0;()0(). Já em
tempo do inipiTador Carlos V, (|iie nasciui n"elia, ira
vasta e populosa, e diziasi^ ipic> I ouiava mais campo
que a <(^rle d(! Erança n'ista epodui. A cidadella é
daH inelliores da Europji ;, e são tamliem noiíiveia »
UUHJI da camará, o pa<,'o da universidade, i; a casa ile
correcção com capacidade |)ara mais iK; 700 presos
uccupadosem Iralialhos ulidsás numulacluras. De ou-
tros estalielecimenlos importiiuli's meneiíuiarcmos só
a academia de Itellas Aries. A sua situação i! muito
adc(pnida ao cominercio ^ exporia prin> ipalnienle ren-
das tpie seinpri! foram .issaí estimada», o tecidos de
toda a caslii, liavendo nas suas immeilia(;ões, n'uni
iraiude (jualro le;iuaH proximameiíli?, alijumas peiítiu
VoL. I. — Nu\ HMllIU) 1 1, 1810,
nas cidades industriaes, entre outras Lokeren, de
10:000 almas, clicia de fabricas de estofos d^algodão.
Gand aU.ineou grandes privilégios e espociaes isen-
ções dos condes soberanos de Elaudes e seus succes-
sores, regcudo-se por maj,'ibtrados próprios. A paz fa-
uujsa, denominad.i de G.intl, tev(! lojjar ein 1367.
Luiz XI \ dl! Eranea a tomou em lli7S, porém res-
lituiua :'i Ifcspanba pelo traclado de Nimegue. O
du(|ue de !M.irlboroui;b a oecupou em 1700 e 170S,
1! os francezes em 17ío e em I7;(2. Foi eneorporada
na Er.uiça<!ni 171)2 apouco depois caiu em poder das
tropas colligailas, mas o» francez.es de novo se asse-
nluirearam (Pclla no anno seguinte, 17'JJ. Seri;i lon-
go seguira bisloria moderna da eiiiade nas vicissitu-
des das campanhas pela independência eiiropeaedas
guerras intestinas até a separai,'ão definitiva do rei-
no da Itelgiea.
Damos em estampa o exterior ile uma casa nobre
perteuconiu a um magistrado opulento da cidade no
século XV para o XVI, e não faremos obsorvaijues
sobre o esl^lo da architeclura, poripie um nosso dis-
liiicto collaborador se propõe traetar dos earaeterc»
capitães d,i arle da idade media.
\ u n: ANTIGA.
A-i iiKi.ns calliedraes, e os soiuptuosos nu)sloiros,
ipii' a pieibole, «braçada com as mlinias orrii<;as du>
séculos guerreiros, levantava parii monumentu das
viclorias, ou recordação ilo iuarlvrio,o ^xc eram so-
82
O PANORAaiA
não cânticos escripfos nos lavores da pedra pela mes-
ma mão qiic pouco antes brandia a espada on enris-
tava a laiii'a? F:llia do sentimento e do enthusiasmo,
partindo do coração, e inspirada por ellc, a arfe reli-
giosa da meia idade, sem desprezar os conselhos da
razão elcva-^e, e eleva a alma pela magestade e de-
voção das suas manifestações. Soldado ou monge,
quem quer que desbastava esses robles de mármore,
que os sujeitava ás caprichosas phantasias da verda-
deira poesia, tinha no peito um coração capaz de cho-
rar, de sentir, e de crer. Todas as obras dVsse tem-
po de fé viva orelevam. Ainda mais-,todas ellas tra
duzem o pensamento christão, ardente e forte, nos
membros içigantcs da cathedral, que vestem ornatos,
e embellczam figuras. Osjmbolo reina em todo o es-
plendor. Não ha acaso, não ha iniliUerença na esco-
lha, harmonia, o proporções do ediliciíi. Tudo está su-
ieito a regras; tudo explica o mysterio, que só po-
dem solettrar os olhos dos iniciados. São paginas do
mesmo livro, que se não interpolam sem truncar a
leitura e destruirá unidade.
N'este artigo damos noticia de alguns pontos mais
importantes da n/mboUca, que as conjecturas e inda-
gações dos estudiosos conseguiram decifrar \ em ou-
tros subsequi-ntes tractaremos da formação das socie-
dades de " Artistas livres", e dos signaes de que se
serviam, dos quaes muitos se encontram gravados nas
pedras das igrejas portuguezas. São pontos dignos de
ser examinadoscom cuidado, e próprios para esclare-
cer a historia das artes entre nós. O que vai seguir
é resumido dos largos tractados escriptos por diversos
auctores alemães e francezes.
lia quem pergunte ainda hoje se os templos da meia
idade nasceram unicamente da rigorosa formula geo-
métrica, ou se encerram na caprichosa bulleza o se-
gredo de symbolos, em parte esquecidos. A resposta
iiílirmaliva parece sustentada nas possíveis provas.
De certo 05 arcbitectos d'aquella epocha levaram ho-
ras inteiras a solettrar pela descripção bíblica a mis-
teriosa harmonia do templo de Salomão. Adivinhar
a sin-nilicação religiosa d'aquillasublin)c epopeia, em
que se resumiu a lei antiga, foi o objecto de longas
vio-ilias para os sábios do tempo. Um escriptor do sé-
culo VIII, líeda, na sua obra i< Uc Templo Salomo-
JUS "em diversas passagens se occupa dos segredos mys-
ticos d'elle,e aventura opiniões não pouco arrojadas.
D'ahi nasceu talvez o sentido figurado que se dá á
composição das cathedraes dos séculos XII e XIII.
51 A porta do templo do Senhor, diíii Keda, signifi-
ca, que ninguém chegará ao seio do Padre senão por
aquella entrada. Hu siui o caminho, escreveu elle. "
A signilieação svmbolica do portal pedia que se lhe
cravasse a historia de Jesus ('hristo referida ás pro-
phecias do Testamento antigo. Nas outras partes guar-
dava-se a inesma regra, como se vai vêr.
lixiciior. Os poriacs.
Nos monumentos da meia idade o que logo dá nos
olhos sobro tudo é o portal ea fachada do occidenle.
As três portas d'e:ilrada, e no meio dVUas o pottal
do centro, symliolos da nossa recepção na vida phvsi-
ca e espiritual, são traduzidos de modo simples e cla-
ro nas series de liguras entrelaçadas nas volla'> do re-
mate dos porlaes, que de ordinário nunca excedem a
três. Na primeira volta exterior está a historia da
criação do mundooado Testamento antigo; na vol-
ta central iavravam-se /)íjs.'ios tirados do Evangelho e
da l'aixão ; a terceira, a mais cavada de todas, con-
tinha (|uasi sempre allusões á vida futura, cxpre-sas
em scenasdo Apoealypse. Por baixo eaolado dastrcs
arcadas coUucavam as estatuas, gigantes na altura,
dos patriarchas, prophetas, e evangelistas, rodeadas
de um sem numero d'anjo5, uns com harpas, lyras,
e trompas; outros incensando com tliuribulos, como
para celebrar as maravilhas de Deus.
Ua arcada principal crescia magestoso o tympano
ou frontão agudo, symbolo da Trindade; no vértice
Deus Padre assentado em throno excelso, mandando
á terra o Espirito Sancto com seu Filho predilecto.
Em outros era Jesus coroando a Virgem rainha dos
céus. Acima do frontão da porta rasgava-se o óculo
ou espelho da igreja, de lavores arrendados, ornado
de ricas vidraças coradas. A figura circular, sem prin-
cipio nem tim, doesta janella immensa era a imagem
da providencia divina, de si mesma infinita, e da
luz, alma e calor de toda a*creação. Nos óculos dos
séculos XII e XIII as pinturas das vidraças repre-
sentam o sol, a lua, as estrellas, e tudo o que se re-
fere aos eíTeitos admiráveis da luz. Na cathedral d'A-
iniens o espelho principal representa a terra e o ar,
o do septentrião representa as aguas, e o do meio
dia representa o fogo, compondo junctos o quadro dos
quatro elementos. As portas lateraes ao lado do por-
tal, e nas igrejas do século XII as que se abrem de
uma e outra parte do choro, viradas ao levante, si-
gnificavam a entrada pira acommunhão christã, as-
sim como as quejse rasgavam para norte e sul, e as
coUateraes ao meio dia e septentrião indicavam a
conversão dos povos da terra, habitantes de todos os
reinos e climas.
Tones e campanários.
De ambos os lados da porta da cathedral subiam
ao céu duas torres descommunaes. A da esquerda era
o symbolo da jerarchia ecclesiastica ; a da direita si-
gnificava o estado civil e temporal. A união dos dois
poderes nos monumentos do culto era natural nos sé-
culos em que o sacerdote, como padre, ajoelhava á
hóstia nos altares, e ao mesmo tempo enlaçava o el-
mo de soldado, e exercia os direitos de senhor. Oque
ha de notável consiste, nas igrejas aonde estão aca-
badas as duas torres, ema da esquerda ser mais ele-
vada que a outra; e nas cathedraes em que só uma
se completou, em quasi sempre a da esquerda se er-
guer severa e magestosa, em Strasburgo, Anvers, To-
ledo e Bordéus.
Apenas nas igrejas metropolitanas, nascoUegiadas,
nas parochias, e raras veres nas conventuaes se notam
as duas torres subindo iguacs em altura. Em geral
dividiam-n"as em quatro andares. O primeiro, par-
tindo da base, representava symbolicamenfe o cura,
grau primórdio da jerarchia ecclesiastica. O segundo
reprosenfava o deão. O terceiro eraobispo, eoquar-
ta referiase ao arcebispo ; quando havia cinco oquin-
to marcava o primai. O coruchéu indicava os_\ml>o-
lo da auctoridade papal. Na jerarchia civil o primei-
ro andar representa o maire.. ou o official do muni-
cípio. O segundo é o conde. O terceiro o duque. O
quarto o rei, e o coruchéu o imperador.
.\ pesar de n.ío merecerem excessiv.-» fé taes conjec-
turas, pelo menos aventuradas, convém entretanto ad-
vertir que a uniformidade de todas as forres de ca-
thedraes, e o numero sempre certo e igual dos anda-
res provam que n'esf« construcção havia uma inten-
ção qne se ligava a fins c ideias regulares e univer-
saes. (Cunfífiód.)
Os PBnKAlIS, SKIT.< AROFLISA.
Entrk 05 marabutos da Argélia ha uma seita liga-
da por vincules dVissociação análogos aos da fraiic-
maçonaria, e os seus membros appeUidam-se der-
o PANORAMA.
83
kauts. O seu propósito é luctar contra todo o poder
temporal, que, segundo elles, só se serve da força
para opprimir a gente musulmana, e destruir os seus
primitivos costumes, privaiidoos de se governarem
conforme os preceitos do alcorão. — Os derkauis são
de todas as tribus, e reconhecem-se mutuamente por
meio de signaes em geral e de outros particulares.
Não cortam os cabellos ; só vestem farrapos, e ne-
nhum árabe rico se appresenta em suas assembléas
com albornoz novo sem o esburacar e fazer em fran-
galhos. Os mais fanáticos vesfem-se de esteiras, de
pedaços de tapetes, e de trapos de iiarracas velhas.
Porém, como por necessidade muitos dos árabes ião
teem outros trajos, os derkauis reconhecem-se de
mais a mais pelas inflexões da voz, e por aspirações
'|tje cortam as palavras com um rytlnoo como em ca-
dencia musica : completam o reoonhi'cim('Mto levan-
do a mão direita ao coração, e pronunciando, com
certo accento d'inspirados, o nome de .J//tiA (Deus).
I)'elles uns são pobrissimoí, e vivem á guisa de ere-
mitas e mendicantes, outros são ricos, e pertencem
ás casas principaes de suas terras. A despeito do
mvsterio (]iie esconde os seus regulamentos, alcan-
<,ou-se conliecimento do modo da admissão dos neo-
phytos, o da eleição dos cabeças da ordem. — Gtuem
quer ser derkaiii embrulha-se em an<lrajos, e vai
descalço aonde se congregam os membros da seita.
.Se obtém a permissão de assistir a um ajunclamen-
• ii, reza certas orações, passa pelas provas que são do
estylo. e os mestre» proclaniam a afliliação.
A eleição dos directores e cabeças principaes o por
concurso, e hão de ser escolhidos da cathegoria dos
laleis, (doutores). Aquelle que nas discussões religio-
sas e politicas alcançou por vezes o miiior numero de
snflragios, o que t(!in divulgado a melhor obra reli-
■iiisa ou especialmente relativa á seit.i, odVrece se
r.indidato ao logar vago d(! maioral: a umacommis
slojdos superiores, que o devem admittir no seu gre
mio ou rejeitar, é enearregíido o inquérito do proce-
der e acções do pretendente, e sobre o relatório does-
ta ha lie votar a assembléa geral convocaila. Ospar-
liJarios do candidato ordenam se juncto <lV>lle, e se
formam maioria fica eleito. Os maioraes nomeiam
íi'cntre si o mestre supremo, que deve presidir ás as-
sembléas, e que as convoca ou dissolve com assenti-
mento da maioria.
Oh derkauis ajunclam-se nas montanhas mais af-
fa-,tadas do povoado: a serra de Uenseris é o centro
lia sociedade. Alli discutem as suas (piesiões theolo-
gicas, <• pelas pregações chamam os liids da sua seita
ii. rigorosa observância das leis do propheta, edo mis-
tura com a integridade' do alcorão pregam também a
independência da nacionalidade árabe.
(Auando os derkauis se reúnem, vivem em com-
munidade, alinientando-se de uniiíspiípas de farinha
Jr cevada, que trazíMU dentro de folies de pelle de
cahru curtidos. Se lhes falta o provimento, expedem
alguns do ajunctamenlo, (pie vão de aduar em aduar
soccorrer-se á cari<lade ilos árabes, <! que trazem, co-
mo os frades da saeeolu, ;i colheita <lo pcídilorio.
Ksta seita é numerosa \ mas não <■ possível cifrar
u quantidade ilos prosidy tos :, ramiliea-se extensa-
mente entre as tribus independentes, sobre tudo nos
kiih^lus <! nos de Tafiiii ■, (• são inimigos acérrimos
«los francezes-, quasi todii a lamilia de Ab-el-Kader
llie pertence.
lllSTOHI/. nos TttKUnAI'llOS.
(ronllnuailuUe pa^. Cl.)
O TBl,Kuu\eii() <l(! ('happe, ainda bem não eslava di-
vulgado, apenai se apreciaram os ti'us ininiunsus re-
sultados, foi por toda a parte adoptado ; esfudaram-
n^o depois para o aperfeiçoarem i porém ainda ha que
fazer muitos melhoramentos : com eITeito, a noite, os
nevoeiros, a chuva, interrompem as noticias. Tentou-
se remediar, mas sem exilo, estes inconvenientes,
adaptando lanternas ásdiversas peças que constituem
o telegrapho. — Este modo de transmissão já é mui-
to lento ^ o espirito humano caminha tão veloz que
a rapidez telegraphica actual já não satisfaz. A ins-
tantaneidade, apesar das distancias, é só quem pode
sacia-lo ; e para corresponder a esta ardente activi-
dade, os- ph^sicos ensaiaram ha alguns annos o em-
prego da eleeíriciíiade para obter certos signaes.
Em 1747 alguns sábios inglezes, entre os quaesse
cita Cavendish, quizeram servirse da electricidade
para estabelecer conimunicações telegraphicas ; com
o auxilio de descargas de baterias eléctricas obtive-
ram communicar-se na distancia de duas milhas. Em
17'J0, Keveroni S.' C^ r propoz um telegrapho eléc-
trico para unnunciar o resultado da extracção da lo-
teria, afim de prevenir as trapaçarias de alguns in-
tiividuos especuladores; d'ahi a seis annos o doutor
Francisco Salva leu na Academia de Barcelona uma
mi nioria solire a applicação da electricidade á fele-
graphia ; [)orém todos estes primeiros esforços ficaram
infruefuosos. Recentemente a creação dos caminhos
do ferro é que ministrou meios de estabelecer as li-
nhas telegraphicas electric;is.
IjÔ-so no Morainíj 1'ud (1839) oseguinte: — «Ha
dois mezes o telegrapho electromagnético do cami-
nho de ferro Grand-Occidenlal está continuamente
em exercício cada vez que os trens fazem o transito
entre Dro^ton, ílewell, e Padington. Estando aca-
bada a linha o telegrapho servirá dfsde Padington
até Bristol : por elle se transmittirá qualquer noticia
a Bristol e se receberá a resposta dentro de vinte mi-
nutos. Os negociantes poderão approveit.irse lias van-
tagens d'esle modo expedito de conimunieaeão, devi-
do á sciencia dos inventores, !MM. Cook e Weat-
sonne. Dois rapazes surdos-mudossão os encarregado»
da transmissão dos siijnaes, tendo sido exercitados al-
i;um tempo ha n'este trabalho. Rir. Cook inventou
um mi'clianÍsmo muito simples que indica ao rapaz,
incapaz de ouvir o som da campainha em razão da
surdez, <|ne ha de transmittir pelo tele;;rapho tal ou
tal noticia. Nunca se ainolgam ou quebram os fios
(pie servem para a fr;insniissão. Pareceque seria mui
dillicil acertar exactanuMitc! com o logar onde acon-
teceria a ruptura n'uma extensão de 117 milhas, es-
tando os lios todos encerrados n'um tubo da capaci-
dade de uma pollegada de diâmetro : todavia Mr.
Cook achou meio de verificar precisamente o ponto
em que possa ter logar a solução de continuidade ; a
sua nnichina está encerrada n\ima peça de madeira
compacta de oito pollegadas quadradas."
Em iMunich ensaiou-se um telegrapho eléctrico pa-
ra communicações no interior da cida<le. l'o>to que
seja de recentíssima data este grande melhoramento
da arte lelegraphiea, eomtudo já se lem experimen-
tado ern grande escala, e quando chegar á sua per-
feição dará pasmosos resultados.
O telegrapho lem estado commuuunente ao servi-
ço dos g4ivernos,- eomtmio a seiencia e o (ommcrcio
ganham muito tenilo-o especialmente á sun disposi-
eào. I''m IS!17o governo sueco estabeleceu nma linha
lelegraphiea dií Storkolmo a Furnsnnil , e furam auc-
lorisados os partieiíhires a se aproveitarem d\'lhi pa-
ru a» suas eiii)i'ciaes parliiipações, niediante o paga-
mento de uma cpianii.i piir cail» aviso.
l'an a H(X'hUi l''.tt>iunuiva, impressa <'m Tjishou no
eoiriuile anno (17 d'abril) lese OM'guinte. — ..O le-
legrapiío elcetricti, quo deve cstabelecer-so em toda»
84
O PANORA3IA*
linha entre Francfort e Castel, está prompfo até
Haltersheim. Diz-se <jue o governo tenciona permit-
tir o uso do telegraplio á praça dos negociantes para
obter proniptamente, no interesse do commercio, com-
iniinieaçõe» e noticias mercantis de Mogiincia. "
Esta eunia das consequências mai^ directas da trle-
graphia. quer óptica, quer eléctrica Aniiuliar a dista--
cia por moio do pensa mento, como os caminhos de ferro
e o vapor a ahhreviam quanto aos corpos-, approximar
mais estreitamente os indivíduos e as tiaíjões :, prepa-
rar a unidade da confederaçãoeuropea, dando Iheos
necessários tneios de coininiinicação ; taes siío os re-
sultados da invenção do teli-grapbo, dos seus desen-
volvimentos, edas Suas indispensáveis applicações.
Voltaremos a este assumpto assim que tivermos col-
ligido os últimos factos mais interessantes.
A ILUA CeLEBES (») ACASSAR.
o SEGUINTE fragmento foi extrahido do memoria'
diário de Mr. Desgrai;, secretario do almirante d'Ur-
ville, na viagem á roda do mundo, eflectuada nas
corvetas L^ j4drolah e Ija ZcUc por este illustre of-
ficial marinheiro, que com sua mulher e filho pere-
ceu victima do desastre no caminho de ferro de l'a-
rís a Versailles, emSdemaio de lSt2. — Descreve-
se a arribada das corvetas á enseada ds Macassar na
grande ilha Celebes.
Aos áO de maio de 1S39 entrámos o estreito de
Salayer. Por esta parte é mui jucundo o aspecto das
praias da Celebes:, descobrc-se um terreno chão, e
pouco variado no primeiro plano, e pela terra den-
tro altas serras involtas em sombras azuladas, fingi-
das pela distancia e pela transparência da atmosphe-
ra. A' beiramar as aldeias malaias, os estabelecimen-
tos protegidos pela bandeira hollandeza, a cidade de
líonthain, <]ue faz lembrar o máu acolhimento feito
ao capitão ^Vallis, ora se mostram, ora se escondem
á medida que o navio passa singrando avante.
Vista da enseada a cidade de Macassar appresenta
uma longa fileira de construcções diversas, que se de-
senvolvem na extensão approxiuiativa de duas mi-
lhas, porém com pouca largura: tem seu assento nas
bordas de uma vasta e bella planície, que assim fica
occulta a quem a observa do mar : á direita do es-
pectador, isto é ao norte, as paredes brancas das ca-
sas hoUandezas estão sobranceiras a uma linha de ha-
bitaeõi's miseráveis, térreas, e feitas de baml)ijs del-
gados, juncto á praia. F,m frente do molhe dilala-se
uma veiga vecejante, e o forte Rotterdani-ostenta as
suas muralhas elevadas, pardas e massiças, guarneci-
das de canhoneiras: mais para a direita descortinam-
se varias obras de alvenaria, que parecem pertencen-
tes a nm bairro europeu \ e no composío do painel a
vegclacão lustrosa estremeia com a cagaria a rama-
gem \ir.'nte, e embelleza a ribeira serena e aprazí-
vel, junclo á qual apenas se enruga a superficie do
mar. E nnia scena toda de socego ; a povoação pare-
ce que dorme; a chegada de algum na\io não altra-
lie niultilões á margem da enseada. Ião somente se
aggregam alguns riinchos para examinar a inauohr.i
do adventício colhendo as velas.
A tropa pernianeiilc em div rsos pontos da Pele-
bes segura á Hollanda a prepí)nderancía sohi-r.ma
(«) Esla {jr.iniie íllia deninra enire n de Itnmeo e o.ir-
chlpejago d:is Mnlueas naOceania nu quínia |i;n'le ilo mun-
do. Os llos.so.s ii.ive).;:idi)rcs a (leseohriruni imn i'Ulras do<
incs luos mares pelnsannos de IMá : alii InaJamnsfeiloria
perto Ja ciJade |)rinci|i;il M.neassar, mnsos liollamlezes nos
expelliiamna ei>nclia(la noss.i ilecadcncia nianlima, resul-
tado da usurpação dos Philippes.
n'um território vasto que não pode ocoupar nem des-
fruutar inteiramente, e ao mesmo tempo refreia as
depredações dos indígenas, que melide são pescado-
res, e a outra metade piratas afamados n^aquellas pa-
ragens por audazes accornmettimentos contra os va-
sos de commercio europeus. Os buugais, que habitam
o litloral, teem a reputação de melh'jres marinheiros
entre todos os malaios:, aventuram-se asatr muitoao
alto em seus paráus, ou para pescar, ou para bascu-
Ihar os mares, e frequentemente as suas viagens le-
vam por fim esta dobrada especulação : se ao pescar
encontram um navio de pouca força, ou em calmaria
ou pouco veleiro, dão lhe abordagem, e de ordinário
degollam a gente para não haver noticia do atten-
tado.
O bairro europeu, Haarctigcn, tem a forma de am
parallologramo, e é fechado por um muro alto, onde
se abrem largas portas guardadas por destacamentos
da milícia ; consta de seis ou sete ruas principaes,
ípie te curtam em ângulos rectos, bordadas por am-
bos os lados de grandes e bellas casas de pedraecal,
branquejando e luzindo com aquelle admirável aceio
c)ue se encontra em todas as cidades hollandezas : se-
gando a practica geral das colónias das índias, não
passam de um andar as casas, mas as frentes são pa-
ra notar com seus peristylns ornados de columnas bo-
judas, produzindo agradável effeito : circula o ar fres-
co em grandes repartímentos, resguardados do calor
dl) dia, porém abertos á mais leve viração: á tardi-
nha o peri»tvlo é de preferencia o logar das compa-
nh as, e guarnece-se de cadeira» e de mcas, em que
abundam bebidas mais estimulantes do que para re-
frescar, Comtudo, a parte mais formosa d*este bairro
transpõe a barreira dos muros : ha n"ella a morada
do governador, o hospital, e o eudracht ou casa da
iocicílade tia harmonia, espécie de assembléa perma-
nente, que se acha em todos os estabelecimentos liol-
landezes, um como casino, logar obrigatório de reu-
nião, que constilue o núcleo da boa sociedade da ter-
ra, e que se abre com affabilídade e cortezia aos ra-
ros estrangeiros que visitam aquelles territórios.
Visto o pagode china, meia hora é b.istante para
correr o bairro de Haardígen, povoado por hollan-
dezes e chinas:, estes ullímos, preciosos pela indus-
tria, fazem tudo. mercadejam em tudo, seguem apoi
a mais pequena probabilidade de lucro por toda a
parte ; são de real utilidade nos estabelecimentos eo-
loniaes, e formam a maioria dos habitantes do bair-
ro, que chegarão a oito mil almas. As moradas dos
naturaes, arrimadas á praia, levantadas sobre esta-
caria, e ás veze< nos cães. estão um tanto espalhadas
por todas as banda», mas acham-se especialmente
.nnontoadas diante da ciilade hollandei», e em rela-
ção a si mesmas e á ribeira e<lão dispostas grndual-
niente, formando um verdadeiro bat.^r atulhado de
vendas e de mercad.ires, com uma portH que, fecha-
• 'a á noite, interrompe a communicação e\terior.
Casas de índigrnas taniliem .«e alar;sm para o norte
em meio da e»pes*ura de arvoreilo frondoso, produc-
ç.To c.iracieristica da vejelaç.To intertropical,
A maior parle do trafico de Macassar está concen-
trada na comnrida rua moro.inlil que chamamos ba-
zar, «mde chinas, malaios e europeus teem su.is lojas
ou armazéns. O maior numero compõe-se dos que
vendem armas, como crizes, lanç.is, facis de feitios
dilTiíreiítes, e arreios para cavallo-, «kc, — A cada
n.isM) se fopi com um d"esfe» homens. gr.'<\ementc
a^sentado juncto á grade de can.is onde alardeia a
-ua fazenda á espera do fregtiei. nunca fslh.indo em
pedir o dobro do valor do objecto que lhe apreçam.
M.icass.ir tem grande fama de f.ibricar os punhaes
chamados crites e os ferros de lanças : os primeiros
I
o PANORAMA.
85
são de dois feitios, a saber, rectos ou com uma leve
inflexão, ou colubriíios •, estes são mais procurados
lia Java, e aquelles os preferidos na Celebes. A fo-
lha d'estas armas é forjada de modo que descobre o
numero de chapas de ferro de que se compõem, e se-
gundo a quantidade doestas e o trabalho que deman-
dam é mais ou menos sul)ido o custo: os cabos e bai-
nhas também influem no valor i punhos de marfim la-
vrados ou dourados, e bainhas ou estojos de páu, ama-
Tello ou vermelho, bctn polido, dobram ás vezes o
preço a ponto de chegarem a 24;^000 reis. Os pu-
nhos são recurvados , de modelo uniforme , pouco
adherentes ao ferro ^ servem para encostar a palma
da mão, e o index e o pollegar de um c outro lado
dirigem o golpe. — O ferro das lanças não excede
seis a dez pollegadas, é chato e de dois gumes : seu
preço também dilTere na razão do esmero no fabrico,
porém sobre tudo na proporção da riqueza do cabo,
que é de cobre ou de prata lavrada, e haos também
de ouro : a haste é de lenho duro de certa palmeira,
e no comprimento varí-i de nove a doze palmos ^ por
elegância teein uma cauda de cavallo (n'alguinas
tincta de encarnado) enrolada com artificio no conto
da lança: os cavalleiros macassares trazem esta arma
com a ponta para baixo, mettida u'um estojo de páu
prezo ao estribo, a cauda Uuctua então no ar e faz
bonita vista.
A par d'estas armas vê-se grande quantidade de
podôas, de que os indígenas se servem para todos os
trabalhos. Porém, não obstante a fama, os instru-
mentos de ferro de Macassar teem mui fraca tempe-
ra ■, as facas de mesa inferiores fazem sem custo boc-
cas no corte mais vistoso. — A variedade de objectos
patentes nas outras tendas é grande, mas o seu valor
em geral miniino : ha tal que toda a sua fazenda são
alguns robles de cana d^assucar', muitas não teem a
importância de 100 francos (IGj^OOO réis) ■, e com-
tudo todos estos vendeiros vivem bem, graças ao bai-
xo preço dos géneros, e á fartura de arroz e de pei-
xe, bases do seu alimento. As lojas mais ricas são
inquestionavelmente as dos chinas que emprestam
sobre penhores; ahi se acham os mais curiosos tras-
tes e as armas melhor fabricadas; são numerosas,
porque esta industria (se tal nome lhe cabe) é exer-
citada por todos os traficantes chinas, que absorvem
d'e»se modo os haveres dos malaios, propensos em
geral á ociosidade: não somente emprestam sobre
inoveis, mas também sobre toda a casta de fazendas,
e até succeile frequentemente comprarem ile anteci-
pação a parl(! dos ganhos dos pescadiir(!s e dos culti-
Tfldorcs de arroz. [Conlinúa.)
O INUIOS DE SulllN.\M.
O iNnio é por sua iinlole timorato, (bsconfiado c ar-
diloso. Obrigado desde a invasão dos euriqieusu púr-
se em lautela e ;i manter-s(r na tbfiuisiva contra os
hospi'di's, (jue não cessavam de o in<|uii'lar hostiliuen-
to, e (pie ao isento iniligena das selvas traziam ou es-
cravidão (Ml morte, teve do oppc\r ii astmia á força,
nalgumas vezes a desesperação á violeiuia. Mas(|uan-
do não é conslrangido p,)r cin-uinstauciiis externas a
snír do seu primitivo caraetcr, inaiiircsta a sua bran-
dura <í boa fé ; é na realidade o filho da natiireíu.
Não piíile iiegar-si! ipn! em razãoda t\'raiiiiia dos seus
«ppressores perdeu um tanto da sua original siiigide-
ía : os europeus tiveram a culpa, liabiluaiiiio-o a no-
vas efaitieias preeisõrw. Hastava-lhe em seus mattos
o necessário, e a fartura do seu território o provia
abundantemente^ mas agora o supérfluo (renlAo Uir
desconhecia, sem os quaes tinha passado, e que lhes
ensinaram a appreeiar para sua desgraça. Aos ví-
cios das suas tribos os selvagens ajunctaram os das na-
ções civilisadas. Estes dois elementos diversos de des-
truição moral concorreram tanto como a oppressão
para bastardear a sua Índole ori<;inaria, franca ece-
nerosa. D'este modo os Índios, Ião numerosos e for-
midáveis' em outro tempo, desapparecerão Gradual-
mente, acabando pela mistura completa com os colo-
nos. Esta fusão será demorada, mas parece infallivel
porque é impellida pela natureza dos factos, isto é, por-
que pertence á industria, ao commereio, á civilisa-
ção. — Os Índios ou raça dos Caraíbas, que habitam
Surinam e seus contornos, são em geral bem feitos e
proporcionados, sadios, robustos, sem deformidades
corporaes, e a não ser por accidenie extraordinário
e raro encontrar alíum corcovado ou coxo. A tez é
morena tirando a c(ir de cobre- todavia saem bran-
cos á nascença, mas a alvura desapparece em poucos
dias, e ficam da ciir natural da sua casta. Entre as
diversas tribus nota-se geralmente grande conformi-
dade de feições. A sua maneira de vestir é mui sim-
ples, ou, para melhor dizer, quasi nenhum vestuário
trazem. Gluando lhes faliam da nudez com apparen-
cias de lli'a censurarem, dizem que vieram nús ao
mundo, e que é bnicura contrariar a vontade da na-
tureza, 8 cobrir o que ella deixara patente. Faz isto
lembrar a resposta de um maior.il índio, prisioneiro
dos,, hespanhoes, (|ue o tinh.im vestido á europea ^
quando o general lhe fez as primeiras perguntas in-
qoirindo-o sobre a sua j^^rarcliia, disse-lhe : — iiTíra-
me estes trajos para que cu me conheça."
As inulhereH sà.i ilr or liii.ino ilc mais baix.t rsla-
é hoje indispensável para trocar puc objcxtos que I tura do <pie os homens, mus de bo« ligur», sobre tu-
86
O PANORAMA.
<]o as raparigas, que peccam talvez por corpo muito
reforçado: feein seiíiblante redondo, porém acliatado,
os duiites alvos por extremo, bocca pequena e oltios
pretos, os cabellos são d'esta côr e caudalosos, eo^
levantam em (lírma de trança, prcndendo-os para traz
com um broche : ás vezes os tosquiam ao modo das
chinas, e rentes na testada. Trazem nas orelhas pin
gentes de prata •, atravessam o beiço iiifeUor, ou a
cartilagem do nariz com alfinetes ou arc;olas de me-
tal, e cingem o pescoço de collares de vidri IhosoiMle
coral, junctando-lhes dentes de animaes, e as casadas
os dos inimigos vencidos por seus maridos : nos bra-
ços, acima dos cotovelos, usam ás vezes faxas de al-
godão como braceletes. São galanteadoras, e gostam
de que lhes chamem bonitas, mas pena é que para
assim o parecerem pintem cara e corpo com tincta
de urucií, collando em cima da untura vermelha far-
ripas de algodão branco ou plumas de aves diversas.
A maior parlo só usam da tanga para se cobrirem,
porém as de algumas tribos visinhas á colónia hol-
íandeza e nas margens do Amazonas servem-se além
d^ibso de um pedaço de algodão ti neto de genipapo,
ajustado como se vê no desenho.
O Feitoií de Camão.
Novella.
(Coniinuado de pag. 7o.)
Vindo a pensar pelo caminho no resultado provável
da tentativa de You-hi, chegou o feitor americano a
sua casa, distincta pela bandeira eslrellada que s»
protegia. Atravessou o primeiro corpo do edifício, e
ia a entrar n'um pateo interior, no topo do qual es-
tava o pavilhão em (pie morava, quando lhe foz er-
guer a cabeça um sonido de voz sonora porém mal
articulada, semelhante ao dos surdos mudos. No pri-
meiro andar, por detraz d'um guardasol meio le-
Yantado, estava a sorrir para elle uma menina ves-
tida como se fosse para um baile.
EITendon soltou uma exclamação dVspanto, ace-
nou-lhe muito depressa para que se retirasse, olhou
á roda de si aterrado, e subiu n^uin pulo a escada.
A menina surda veio aiirir-lhe u porta.
— iiMaria, enlouqueceste ? exclamou, fechando a
porta por dentro. A janelia n'este trajo ! desgraçada
lilha ! Queres a nossa perdição?"
Maria, sem perceber as palavras, percebeu o enfa-
do de seu ]).ii, porque se lhe lançou logo nos braços,
tão arrependida. Ião luimilile, tão meiga, q.ieoseni-
blante do feitor asserenou de siibito, mesmo sem elle
querer.
Ainda accreseentou cm tom de mais despeito do
que na reíilidade sentia :
Tinha-l'o prohibido, Marias porque me des-
obedeceste ht
A resposta da muda foram redobradas meiguices.
Effeiidon (iniz resistir mais um momento, mas ce-
dendo por liiii á(iuellc assalto <le caricias, murmu-
rou :
.Coitada! esquecia-me que não tem outro di-
vertimento.;'
Jí apertou-a ao peito.
A pobre menina, vendo-se perdoada, soltou um
grito de alegria ; olhou depois para si cheia de com-
placência, deu três passos para Ira», enlcsou-se,e
ficou muito direita diante d'Eflendon com a gravi-
dade ingénua d'ufna creança que quer que lhe ad-
mirem as galas, listas eram com elleito singulares
na riqueza e elegância. O vestido, de crespão bran-
co guarnecido d'uma grinalda de jasmins de cheiro,
posto que artificiaes, apertava-o na cintura um cor-
dão de seda torcida com prata:, uma espécie delur-
bant^í de setim lavrado, enrolado nos cabellos, pen-
dia de ambos os lados acompanhando o rosto , e final-
mente tinha calçados uns borzeguins franjados de pé-
rolas. A belleza de -Maria enfeitiçava com este trajo
esplendido. Eífendon não poude reprimir uma de-
monstração de maravilha. Disséreis que era uma fa-
da do (oriente em todo o seu fulgor.
Contemploua um momento fascinado por aquelle
garbo desluiiibraiile ; depois fazendo uma espécie de
esforço, trouxe-a pela mão para um sophá de bam-
bus artificiosamente entrançado, fè-la sentar, e tra-
vou um dialogo por signaes, quasi tão rápidos para
quem está nu habito de os faier como a conversaçã»
fallada.
Lançou-lhe primeiramente em rosto a imprudên-
cia de apparecer á janelia assim vestida.
A surda e muda abaixou os olhos corando.
— ijgnoravas que não podem os estrangeiros tra-
zer mulheres das suas terras? Se sabem que estás co-
migo expulsam-nie e pagão a companhia."
Maria fez um jignal de pavor.
— iiílelhor fora não te trazer comigo ; mas não
tive animo para me separar de minha lilha, dos
meus únicos amores. Fizeram-me acceilar a direcção
doesta feitoria para te deixar rica ; quii conciliar a
afleição e o interesse, fiz-te passar por meu filho...»
— ti li ainda até hoje ninguém desconfiou de meu
disfarce, disse Maria inferrompendo-o com a sua lin-
guagem muda.
— «Porque nunca o larg;'iras, replicou EfTendou ;
porque te dei mais liberdade para arredar toda a
suspeita i porque assim mesmo transfigurada conser-
vaste o nome de ílaria, que aliás me escapara mil
vezes e nos trahira. Masque será de nós se te virem
em traios mulheris? Muito mal fiz eu em te mandar
buscar esses atavios! Manias de pai ; quiz ver-te qual
devias ser e qual serás um dia I... Mas estes vesti-
dos só eu, a furto, os podia \êr em ti, Maria."
— iiPerdoai, meu pai, disse cila; serei mais acau-
telada d'aqui em diante,- mas que temos que receiar
em nossa casa ?"
— "Não te lembras que estamos cercados d'es-
pias i que não se move uma palha sem que o saibam
os niandarius chinas?... Despe-le, Maria, despe-lc
immediatamente, se não queres que tenhamos algum
desgosto."
A menina surda fez signal de que ia vestir o fato
de homem, abraçou o pai com ternura, e siiu.
O feitiir ficou no mesmo logar, com os braços cru-
zados, engolfado em tristes pensamentos.
Era in:iis que certo o que elle acabaxa de diíer á
filha. .V menor imprudência podia revelar este se-
gredo, e roubarlhe infallivelmente a fortuna eo Sú-
cego. Sabia por experiência com que lelo e rigor
executavam os chinas a< leis cuiilra os estrangeiros,
quando o podiam fazer sem perigo; nem devi.i con-
fiar, em tal caso, no apoio da cumpanliia. que aos
seus agentes mandava respeitar escrupulosamente ai
ordens do imperador, toda a vei que a não lesassem
nos interesses.
Como dissera a Mnria, vi\ia sempre entresusios;
estava dentro da sua própria casa á mercê do gover-
no china ; os creados que o serviam hão os encolhia
elle, designava-lh'os o cmiiprailor (♦) a quem devia
saldar todos os meies a importância dos roís do» co.
mestiveis sem questionar sobre asparcell.is. Não obs.
(•) Nome.1-0 o mnnd.irim ou vice-rci de Cautão pjn
prover de maiulnienlos os esirangeiros.
1
o PANORAMA.
87
tante ter aprendido a língua da terra, obrigavamn^o
a sustentar e pagar a um lingu.i. N'uina [jalavra es-
tava em tudo sujeito a uma espécie de tutella rapa-
ce, minuciosa e infatigável, que o conservava em
perpetua inquietação.
A campainha d'um relógio, dando quatro horns.
veio arranca lo do seu devanear. Ilecordandose de
que devia ir jantar com You-hi, mandou apromptar
o seu palanquim, e poz-se a caminho para a casa de
campo áohanista.
Esta casa, situada da outra banda do Tigre, fica-
va no meio d^um j.irdim, celebrado em Cantão pela
sua vastidão c lindeza; porque apesar deYouOii nãu
se forrar com pessoa alguma no tracto do comsnercio,
nem por isso era mesquinlio. Lidava para saccar di-
nheiro por lodos os modos aos bárbaros estrangeiros,
mas gastava-o com o luxo da familia, e em alormo-
sear o seu retiro.
Effendon apeou-se do palanquim ao péd'uma por-
ta pequena, onde encontrou um creado china que lhe
deu entrada no jardim.
Tinha o hanista. como dissemos, esgotado aqui to-
dos os recursos da arte china- Ruasinhas areiadas,
cruzando. se c. voltando atraz de quando em quando;
fileiras d'espessuras d'arvores com seus claros; can-
teiros irregulares; grutas artiíiciacs cavadas em ro-
chedos alii enxertados ; pontesenvernizadas, por bai-
xo das quaes não se enxergava nem um regato ; kios-
ques ornados de vidros e de vasos cheios de agua. em
que boiavam lirios, revelavam a cada passo o go.to
extravagante e a predilecção dos chinas pelas rarida-
des monstruosas e pueris. Viam-seá(|uem, accommo-
dadas dentro de taças de pedra, mattas de carvalhos,
faias, ou olmeiros, que fizera anões a cultura; além
arvores verdes, arremedando no feitio aves eelephan-
tes ; e mais ao longe feras de porcelana com hervas a
aairemllies das orelhas. No meio porém (Peste dt?s-
concerto sistemático, zombando do porfiado empenlio
da arte desassizada, alardeava a niitureza, simples e
variada, a sua opulência ; cresciam eui toda a parte
a oliveira de cheir >, a figueira, o alues, a amor(!Íra,
a bananeira, e os frangimpaneiros recendentes. Moi-
tas de yu-lan (1), engastadas em amaranlhos verme-
lhos ou kelmias cambiantes, matizavam o verde das '
folhas, a gardénia, as roseiras da China, e os chu-
lan (lí) delineavam os mil toreicollos das veredas.
Finalmente, por um pomarzinho de laranjeiras, jam-
beiros e figueiras, cercados de ananazcs fragrantes, se
entrava para casa de You-hi-
Ksta, como todas as dos chins, não tinha senão iini
plano térreo para as visitas, e um primeiro andar
exclusivamente reservado para as mulheres o filhos
de Vou-hi, que a ninguém appareciam.
í) hnnisla estava esperando os hospedes na primei-
ra casa ou sala de visitas, ijue contém o altar domes-
tico onde BC queimam os perfumes. Kia-lhe « sem-
blanle.
— "Hcm vindo sija niisti-r Klléndon á ininh.i po-
bre choupana! disse ell<! assim (]ue viii o feitor. CÍie-
puiii agora de casa do hoii-pou, e esjicíro que cPaqui
em di,int<^ a companhia não tirá razão de (pieixa."
— i.rl isso cusloii-te muito caro, Vouhi?" per-
guntou l')n'eniloii rindo.
— i. J'ão earo <|ue, se eu fosse a hiiibiar-me, não
me faria proveito o melhor jantar. N'(nitru occasião
filiaremos.'!
— "I'ela iniiilia alma! se o hou-pou visse a lua
casa de verão pi^dia-te dobrado. Timis uma morada
«limia lio siibi-raiio ilii império do nieio (H)."
(I 1 lispecie lie iii:i){|1(jIiiis.
(í) Arbusto cujas liillias iní.sluram com tis do chi,
('<) Nume que dúo 6 Cliiiigt os seus naluruvs.
— "Mister Effendon vê tudo cora os olhos da in-
dulgência, respondeu You-hi, n'umtom de modéstia
vaidosa ; ainda não poude fazer idéa da casa ; se a
quer vêr...jj
EiTendon respondeu que sim, e o hanista o levou
a todos os quartos do pavimento baixo, explicando-
Ihe o seu destino.
Os moveis d'estes quartos eram só camapés e nie-
zas de pé de gallo ; mas dos tectos pendiam lanter-
nas de chavelho, gaze, ou papel, e as paredes, en-
vernizadas com primor, serviam de ornatos alguns
quadros e sentenças nioraes.
O feitor atravessou com bastante pressa as primei-
ras salas, mas deteve-se quando chegou á livraria.
— "Tu aqui não achas os trezentos mil volumes
da bibliotheea imperial de Pekin, advertiu "^ou-hi
sorrindo-se ,■ mas, além dos livros sagrados, tenho ahí
um cento de manuscriptos em meialingua (I), e o
dobro dos volumes impressos escolhidos das obras dos
quatro armazéns (á). O negocio, infelizmente, toma-
me quasi o tempo todo. E ha tanta cousa para ler!
Nenhum povo tem escrípto tanto como o nosso! ne-
nhum povo pode gabar-se de ter, como nós, uma lín-
gua sagrada, que é só para os livros e não se pode
lallar, a qual contém oitenta mil caracteres, que,
em vez de representarem sons ou palavras como os
vossos, exprimem idéas ! Mas vamo nos chegando pa-
ra a casa do jantar ; deve estar prompto, e os con-
vidados já hão de ter vindo."
Effendon já lá os encontrou. Os mais d''clleserain
lettrados amigos do hauisla, que os foi fazendo sen-
tar a umas mezas pequenas, cobertas de panno escar-
late ricamente bordado, e postas em triangulo. Ti-
nha cadaum diante de si um prato de prata, uma
faca, duas varinhas curtas de marfim para comer,
uma colher muito grossa de porcelana, e dois pires
um cheio de soya (3), e outro contendo, á maneira
de acipipe, peixe salgado, e couro do Japão curtido
em salmoura.
Começaram os creados a trazer para a meza as
viandas; serviram primeiro uma sopa de ninhos de
salangana ( f) em palanganas de porcelana ; depois
vieram fricassés de rãs, costeletas du cão, barbatanas
do tubarão, as hololhtirias ou bichos do mar, grossos,
negros, com seis pollegadas de comprimento, e ar-
mados d'um corno agudo em cada aniiel ; e iPalii o»
ovos, as carnes, as hortaliças, tudo temperado com
óleo de ricino, e adubado com lagartas salgadas, e
molho de bichos de conta, lliiando os convidados
queriam biber, os creados, que estavam de pé por
detraz das cadeiras, lhes deitavam, contorme o gosto
de cadaum, chá em cliavenas de porcelana, ou ca/n-
chou em taças de metal.
Tiraram depois os pratos, e trouxeram na segun-
da coberta massas, saladas irolhos de bambus, e gar-
rafas com uma certa agua fedorenta.
Veio a final o dessér, composto de conservas e fruc-
tas deliciosas.
Os lettrados, (|Uo o jantar aquecera, começaram a
desafiar se para um (Pestes certames poéticos em que
o vencido é condemnado a beber o numero de la绫
decn;)i <7/i>u marcado pelo seu adversário. .Mandou
\onhi buscar paus de tincta, o fiincel, e p.ifiel, e
saíu-«e cailaum i mu o seu improxiso.
O primeiro lettlado, que da janella via o campo
illuminudu pelu sol quasi nu uccusu, i>screveu :
(1) Ohrns iiijii esljlo é um meiu terinu entro u (|os li-
vros e a líiiKUaKeiii ipie se falia,
(-i) CiilliT^iioiroIn^iscliiii^is eni ISO-OOO volumes.
(;)) I.iqiiiilo lirailii (1'iiiiia fava,
(-1) lliruiulu escutcnia ou auduiíulia sahntfan*.
88
O PANORAaiA.
"Os dias que passaram, carrancudos e chuvosos,
avivam o lustre dos campos cultivados pelas mãos
dos homens.
"Os passares, semelhantes a ruViis e ameth^stas,
voam por entre as folhas «lo arvoredo.
iiAl"uma9 borholetas adejam ainda sobre as cristas
dos pecegueiros sacudidos [)elo vento.
iià relva parece esmaltada como um tapete borda-
do por mão hábil.
tilSanquete delicioso! risonho aspecto! suaves aro-
mas !
"E doce o viver entre amigos, quando o céu res-
plandece como um docel <Je seda."
Depois de liilos e apphiudidos estes versos, mostrou
os seus o segundo letlrado.
uTraiisjilaiita o lavrador o arroz ainda mui tenro
para terreno de no\o roteado.
"Vê em breve no campo vi<;oso e coberto d"agua
a imagem d'um lindo céu azulado.
"O nosso coração é o campo \ loução eriço quando
as paixões são puras e regradas.
"O único nieii) de chegar a este grau de perfeição
é não presumir muito de si "
Estes versos pareceram ainda melhores que os pri-
meiros, mas o terceiro letlrado, que, como ElVendon
soubera pelo jantar adiante, era viuvo de poucos
dias, leu o improviso seguinte:
"O famoso Ou, n'um transporte de ciúme, mata
a mulher: brutalidade.
"O iiiustre Sium quasi que morre de pena por llie
morrer a sua :. asneira;
jiO philosopho Tchouang diverte-se com a mali-
nada dos picheis e das taças ; abraça o partido da
liberdade e passa vida folgasã.
E o meu mestre. !\Iorreu-me minha mulher, pe-
guemos no leque para lhe seccar muito depressa o
jazigo.»
Foram recebidos estes versos com grandes garga-
lhadas e applaiisosi unanimcnionte se lhes adjudicou
o premio, e ca<laum dos outros <lois ieltrados foisen-
tenceado a bebpr dez chávenas de vinho quente
Cumprida a sentença, Yuu hi, que queria tractar
os seus convidados com toila a magnilicencia china,
levou-us a uma varanda que dava para o pateo prin-
cipal, illuminado por lanternas de papel de cores,
liogo, a um signal dado. rompeu um fogo de vistas
em tudo o nateo, figurando alternati"amente arvo-
res de cliainrna carrei;adas de IVuctos de todas as co-
res, canteiros esmaltados do ilòres, e cobras mui com-
pridas que saltavam até a cinialhu da casa.
Acabado o fogo de vistas vieram pelotiqueiros de
maravilhosa destreza, e por fim unscomediantes, que
representaram uma das peças mais celebres do seu
repertório improvisado. Como porém lhes faltassem
o espaço e as vistas, tinham o cuidado de annunciar
cada mutação, dizendo :
— Agora o thentru representa um bosque, ou um
palácio, ou um cárcere (»).
Guando algum actor tinha de ir vi.ijar, nem por
isso saía da seena. Montava a eavallo n'uma benga-
la, dava três voltas á roda d» Iheatro, parava, e di-
ziu : — Ciieguei ao firmo da minha jornaila. — E
continuava u representar como se na \erdade tivesse
feito a tal jornada.
Eflendiin gostava d"esla qualidade de espectaculcs
(») Na» fjraniies cidades dn Cliina clieg.i a baver seis
iheal rosem caila rua. Oses|icclailoresseiiinm-secm bancos,
e leeui dianlf de si innas |i<'i|iieiias mesas, niide luuianiclitl,
com \\m» In/, para os (|iii' luiuani. As ri'|iresenla\'ões sORUeni-
se desde pela in.iiili& ale a noile. Os papeis das niullieres são
feitos por bomeiís.
apesar de os ter visto muita vez. Ficou até acabar a
peça, e quando saiu de casa do hanista já a noite ia
muito adiantada.
[Continua.)
Precauções p.vra mÉchar os toseis.
Todos sabem como e para que fim se faz esta opera-
ção, muito fácil quando o tonel se despeja por uma
só vez, e no mesmo dia em que se lhe dá a mecha.
Mas quando se mécham toneis despejados por veies,
ou passada mais de uma semana, acontece que o ar
de fora entra no tonel, decompõe as borras e os restos
de vinho, produz absorpção do oxigénio, e enche a va-
silha de gaz acido carbónico: não porque os restos do
vinho tenham azedado, como se diz, mas porque o
gaz carbónico é impróprio para a combustão, a me-
cha apaga-se. Para vencer este obstáculo enxagua-se
a vasilha, e deixa-se a escorrer por doze ou vinte e
quatro horas, cora o batoque destapado e\jradopara
o chão. O gaz carbónico, por ser muito pesado, vai
saindo e cedendo o seu logar ao ar atmoçpherico. O
espaço de vinte e quatro horas é pouco ; é preciso ás
vezes deixar passar três dias antes de dar a mecha,
principalmente se as vasilhas tiveram vinho generoso.
Convém enxofra-las todos os annos; com muito mais
razão as que lião de ficar vasias.
Preservativos contra os ladroe*.
Um advogado, que depois foi deputado ás cortes na
França no tempo da restauração, quando era moço
foi chamado para defender rx cfficio três homens ae-
cusados de roubo; e de <al modo se buuve que conse-
guiu Salva-los.
Passado algum tempo, quando já senão lembrava
de tal, viu em casa os seus três cliente';, osquaeslhe
declararam que, por não terem dinheiro comque lhe
provassem o seu agradecimento, queriam dar-lheum
bom conselho; purque ouro é o que ouro vale.
"Senhor doutor, se quer afugentar os ladrões da
sua casa <le campo, duse em tom peiaroso o orador
da quadrilha, lenha um cãosinho e uma lamparina,
e esteja rlescançarii) que nenhum ladrão, que nãofòr
de portas a dentro, se atreve a pòr-lhe os pesem ca-
sa. Um quarto que tem lut de noite lança o ladrão
na Incerteza; a regra em tal caso é não irlá.Cluan-
to aos cãesinlios, mel tem mais medo aos ladroes do
que os cães grandes, porque ladram sem p.iusi, e por-
que se mettem por baixo dos trastes, e não se podem
agarrar. (1 cão jrande afira-se ao homem, e pôde ser
morto na lucta. Demais, o caniarrão do pateo fai-se
mais depressa á mão com um pedaço de carne ou al-
gum osso, do que o cãosito costumado a comer liem,
e a receber a r.íçãodasniãosd'«lguma pe»soadc casa,"
O advogado fic"ou muito obrigado aos seus pobres
clientes, que, para o obsequiarem, trahiam o segre-
do da honrada. aniigM, e niimrrosa corporação dos la-
drões. Ensinou a receita «os muilus amigos que ti-
nha ; usou dVlla toda a sua \iila, e deii-se bem, as-
sim como os amigos que a adoptaram, i-iuaiido che-
gou a ser ma!;istrado teve muitas occasiões de verifi-
car a eflicacia do remédio que lhe haviam ensinado
na sua mocidade.
NiMA escrevais po~<nido de eholf ra. Lm dicto fere
ás \c7es mais do que um punhal : como ferirão os bi-
cos d^umn pciinn .'
12
O PANORAMA.
89
A PONT.V
A 1'KoviNtiA lio llio de Janeiro é uma iliis iikiÍs im-
purtuiitcH do diUliid» iiii|ierio Liasíiiunse, não lauto
pur cuiiipreliuiidcr a capiUil, bella, ^opulo^a, e };raii-
deinenlc cuiiiiiiercial, coiiui pula sua vaatajusa^iiua-
{;ão ri-lativaiiiuulu ás uutras parte» do l'^«tado, o pe-
los heuH proprioii cabijndaiitc» recurtos. ilaz euU^* ^1
e 24" de latitude meridional, e enlre 43 (i4iS de lon-
gitude uecidental pelo nieiidiano de l'arii. Teu) por
limite!) du parte dii norte, a C(init'ç;ar da eosta muri-
tinia, o rio (.'aliapuana («) i|ue a separa da pruvin-
cia do Kspirilo Santo, o rio l'araliiba c seus ai-
tluenteíi^ e a si^rra da iManli(|ueira, uulro:i tantos
pontoa ijue lanibeia a separam da província de Mi-
iiat-Ueraea :, da parte d<r oesle u sudoeste confronta
com a província de S. l'aulo desde a dieta serra tia
Mantiijucira até a ponta <le Cairii<,'U, que finece no
Oceano, da banda do sul ^ do li-sle é cercada de mar
por e>pa(,'o de uman cento e vinte le);uai, contandu-
se trinta e cinco entre a costa e a pro\ incia de.Mi-
nas-UiTnP!!.
Avaliane a siiperlUie da província ilo llio de Ja-
neiro em sela mil e dcuenlas b-i:nas nuadradiis: em
e montnuni, exceptuando o terreno ijuedeuu»-
ru atr.ii do Cabo de: S. 'Tlionn', e «jul- na esla(;àoda»
cliuvas e alagado d<i» afluas reprizadas pilui inedõe»
dv areias ijue as ondas anuniltiam, e desra2eni iitves
te», iiendo poiíiu mistiT <|ne os liabitunli!« a* nniia
(•) Anula no anuo de IHKi iiileM.ivatnas margens d'es-
te rio <is iinluis liotocuilds, ipie ileuius nn c"<(;iui|ki mi t .* st>-
rie d'csl« Jurnal j porciu jll em lK;2Use polliiarain niaísp
£e luniaiunitriíciareis.
\'0L, l. I\o\t»IUKO il, 1810.
DO Caju.
(Fellas cortem vailas para o eícoomento'! ftffs lago:»!
d'estas torras brejosas l>a grandíssima copin de aves'
palustre* de mui diversas cores e de lodos os t ^n-ui-'
nlltis. Ni» estação chuvosa o viandante vf'-seatalliado,
o»rt pclti violência da corr«tito dos rios, ora pf la« aguaS'
eiielnirfadaj na estrada, e lein dnsesinir jornada em
canil»», levando arreatadas ns cavaleaduras, sis i''eze»
a nado. I'udera e\iliirse ef.to s;ravo iueon-ycnientese'
as auetorid.iiles lofaes, por via de derrama entra os
I povos^ ou por outro meio habilitadas, <-nrassem de
abrir valias, e eurninhos allos nos lugares alas;adii,o«,
com pontes nos sitios em que precisa» fossem, Irac-'
tanilo posteriormente da reparação econservíiçilo das
, estradas ^ assim alo.inc;ar-se-liia não só (;rande benefi-
cio para o transito como para a aiiricnlltira pela ac-
•|UÍsi(,'ão de óptimos terrenos, e lambem paru a saú-
de diis babitantes, (|ue pailecem nuiilo cuii) as lebres
periódicas.
Deixando as la^iVis visinluis aiv mar, é Ioda a pro-
víncia bcin cortada de a<;oas , ao norte a rega o l'a-
ralillja, para o (piai coMÍloein os rios Crande, líosa-
ralii, l'a(jue(|iierH, 1'iabanlia, e l'iralii, lodos parjt
além de» montes e serra dos Or;»fios ; ao sul d\'slii
serra u da dos .Vymorés teem seci eiirso os rios iM«ca-
lui, lie S. João, ÍNIaeabé, iMaeacn, I'.;oiii;ú, e (iuaiulil,
j (]ue somiem dilleriMiti-s rumo«, sem lidlar em oulrns
j muitos, imiios lopiosos, ipie toda\ia servem dentei»
vias lie C(unniiinieat,'ão para o Ir.insporte dos i;eiieri'«
do sei tão.
lis portos da cid.ide de l'abo l''rio, do Uio deju-
nciro, ed'An|jru doj lieis são os «pie toem capwcidu-
90
O PANORAMA.
de para grandes vasos de guerra^ nos outros da mias-
ma costa só entram barcos, e são os princip.ies Arma-
ção, Barra deS. João, Guaríitil)a, iMacaliée Parati.
A maior parte das illias das bahias e próximas á cos-
ia são povoadas e cultivadas.
Q,uanto á [larte mineralógica, é bem escaco o ou-
ro iiVsta província, [)orém ha minas de ferro c de
ciixolVe ainda por lavrar, e por toda a parte pedrei-
ras de granito', varias espécies de barros que te em-
pregam na feitura de louea ordinária, tijolos e te-
lhas ^ ii'algumas serras acha se também o kaotin de
que os chinas fabricam a sua meliior porcelana. Mal-
tas vastíssimas ministram cxcellcntes madeiras de car-
pintaria, a saber, cedro, caiiella, merindiba e caixe-
ta ; o jacarandá, vinliatico, arariba e outras sern-m
para moveis pela belleza da cír e facilidade cora que
tomam polimento: fa2em-.se canoas do lodosos tama-
nhos com o páu d'oleu, arvore que cresce extraordi-
nariamente. A ipecacuanha e a jalapa brotam espon-
tâneas na orla das maltas abundantes de lenhos, que
vertem gompias e baLsanios mui prestadios e procura-
dos. O páu-^>rasil ou ibirapitanga é inferior ao das
províncias do norte. Nas terras incultas visinhas ao
mar acham-se três espécies de aroeira, que servem
hos pescadores para tingir as redes, que assim se tor-
nam mais duradouras.
A província do llio de Janeiro é entre todas as do
Drasil a melhor cultivada. O3 plantios de café são
inuitos e grandes, e de boa qualidade o seu produe-
to, encontrando-se por toda a parte, bem como os ba-
iianaes e palmares, laranjaesc mangueiraes, eoutras
arvores que, trazidas das índias orientaes, se aclima-
taram, como aconteceu aos pecegueiros e marmelei-
ros da Europa. Das arvores fructiferas indígenas umas
requerem terreno forte, como asjabulicabeirus, gru-
niixameiras ,• outras, como os cajueiros, se dão mui-
to bem nos arneiros \ algumas em toda a parte me-
dram sem precisão de amanho, como os ararazei-
ros e goyabeii.li. Antes da chegada do Sr, D. João
VI ao Brasil não se cultivavam nas hortas senão fei-
jões, couves e nabos ; porém a afiluencia dos estran-
geiros introduziu o uso de todas as hortaliças de que
os ir.ercados se acham bem próvidos. Nas matlasdas
parles da província que se acham povoadas críam-se
cabritos niontenes, pacas e outra caça; nas do sertão
vagueam onças, jagtiaios, galos bravos, gambás ou
ssrihoés, tatus, e outros aliimaes próprios d.i Ameri-
ca. l>or toda a parte tem multiplicado prodigiosa-
mente o gado vaccum, cavallar e muar, originário
du Kuropa.
Segu.ndo o arrolainenio de 18-'f0a população da pro-
vjncia era de 430000 habitantes, contando 2á ÍSÕO
escravos de ambos os sexos; o total será (iOOOOO,
ajunclando-se-lhos 170000 almas da povoação da ci-
dade e arrabaldes, distribuída du soguintc maneira :
— brasileiros por nascimento ou adopção 6OO0O, es-
trangeiros dl! diversas nações 2Ò000, escravos de to-
da a còr e sexo -SoOOO.
No anno de IS 'ti exportou a praça do Uío de Ja-
neiro 10:i8 3()t> sacoas de café de cinco arrobas, lOilio
caixas de assucar, \~ i ti Í8 couros. — Noaniiolinan-
eeiro de )t>42a 1S'(3 saíram 4804813 arrobas de
café da colheita da província, e 10:29 732 arrobas
vindas das províncias de S. l'aulo o iMínas-Geraes,
que fazem a totalidade de 1 ItiG ilOi) saceas decafé de
cinco arrobas. Sigundo o^ documentos ofliciaes publi-
cados em 18i3 ha na cídadedo Uiu de Janeiro 4 734
casas de commercio de dilVerontes géneros; 7 Iwlgas,
95 inglezas, 328 fraucezas, o o restante pertencentes
a portuguezes, que especialmente se occupam do com-
luercio de ferragens, quinquclherias, mercearia, e ven-
dem juiictamente por miúdo aguardente, vinho, siei>
te, manteiga, especiarias, conservas, carne secca e
outros comestíveis.
Tirámos o presente artigo de uni.i bem redigida
obra recem-publicada em Paris (18io], compilada so-
bre 03 manuscríptos de Mr. Míllíet lie St. Adolpbe
pelo Sr. Dr. Ijopes de Moura : o auctor originário
residiu no Brasil vinte e seis annos, percorrendo-o
em variadas direcções.
A nossa estampa representa um sitiodas visinhan-
ças do llio de Janeiro — a ponta do Cajií. Este pon-
tal arenuso, e sobremaneira saliente na bakíaNítbe-
róhi, fica a uma légua ao noroeste da cidade. Ahise
vê um palácio imperial, notável pela simplicidade da
archilcctura e pelos soberbos jardins plantados em
chão árido. I)'este local se espraia a vista pelabahía
e montes circumdantes, e por muitas casas de recreio,
vivendas agradáveis na boa estaçiin por causa da vi-
ração do mar, que refresca a intensidade do calor
diurno, e da viração ou briía da tarde, que de ordi-
nário reina todas as noites.
AnTE ANTIGA.
(Continuado de pag. 81.)
Entuanoo no interior das igrejas é que se observa
na disposição particular, e em todo o plano d'ellas,
o symbolo a revclar-se em toda a sua magestade. Os
archiíeclos da meia idade imitavam a estructura das
primeiras basílicas, sem se deterem com a sua ori-
gem pagã. No século XIII, sobre tudo, exprimem
com individuação e clareza a historia e o fim do
christianísmo.
A figura em cruz de todos os monumentos religio-
sos é para recordar a morte do fundador da nova re-
ligião, que escreveu com o sangue do martyri •, DO
coração dos povos, a sua doutrina sublime. A entra-
da principal dos fieis na igreja fazia-se pelo grande
portal, pelo /it- </a cr»;. Nãosígníficará isto, que pe-
ias trabalhosas missões, pelo «elo incansável, se der-
ramou o Evangelho entre as nações? A nave repre-
senta a congregação dos fieis. A intersecção do choro
e da nave, aonde se ersiie o altar mor. é o logar
sanctissimo, em que o sacrificio se consumma. Ksfe
logar sagrado, aonde se deposita o que os christão»
adoram mais reverentemente, coros o um» cupola,
imagem do empvrco : umas vezes redonda, outra»
cortada em pannos. Debaixo á.i cupola está o púlpi-
to, d\)nde o sacerdote falia « palavra de Deus, c ex-
plica a lei moral. No da direita liam se ot Evange-
lhos, no da esquerda commrniavam-se as Epistolas.
O choro situado para o levante, no sitio mais emi-
nente da igreja, é o symbolo da sanctidade e da loi
do ENpirilo Sancto. Primitivamente só trcs jnnellas
se rascavam para o allumiar. Alii, nns cadeiras eí-
culpidas, assistiam ao5 oflicios os icclesiaslicos, con-
servadores das cousas sagradas, e os magistrados, re-
presentantes do estado cítíI. Tndo isto significava a.
união da vontade calholíca, uma c universal, e a
fortaleza do christi:inísmo.
As capellas collnteracs d.is naves, e as que se
abriam em volta do choro resplandeciam umn como
auréola sobre a cabeça de Christo, representando o
ciilto dos niartvres da fé. e o das communidades e
povos. As naves eram o logar de reunião assígnado
a todas as gentes da terra. Kstas divcrs.is partes, no
todo, significavam a igreja niililantc.
Por dcluii:(u d'ella cavavani-se tenebrosos subttr-
raneos -, existia uma segunda igreja abobadada ; etsa
compunha o symbolo da igreja aftlicta. Nas gallerias
superiores, nas tribunas do choro, e algumas veies
o PAiNORAMA.
§«
CIO capcilas feitas Mos campanários celebrava-se o cul-
to do« anjos. Era o symbolo tia igreja triumpbante.
Ornamenia^ão.
As (Iguras que se enlaçavam pliantasticas nas vol-
tas dos arcos, nos capiteis dus roluinnellos, e rio ar-
queamentn das portas, esja iiiiiuineravel serie dpgri-
pbus, arabescos e arcliaiijos, não er.im formas inven-
tadas ao acaso pelo capricho do artista. Ijigavam-se
ao pensamento da epucba, e á idéa de quem deli-
neada os admiráveis bymnos de pedra, chamados ca-
thedraes. Kin umas eram a traJncjão do mysterio
em allusões palpáveis j n'outras exprimiam a resis-
tência popular á violência civil, ou ao predomínio
sacerdotal, lim muitas os terrores da eternidade, e o
desespero moral vestiam as suas apprehenjõysde cor-
pos horríveis, truncados, e medonhos, como os criava
a imapina(,'ão atribulada das na^'ues. Olivrode már-
more dava a forn)ula — a sociedade, para a qual se
abria, possuía o segredo de a resolver.
As parochías, quasi nullas no século XII, apgiare-
cem rudes e singelas como os habilantes ruraes.que
o tino chamava á oraçfio. No século XIII a reacção
começa ; as ordens niendic iiites crescem, e levando
erguida a cru?, da penitencia, e trazendo sempre vi-
va em si a imagem da primitiva pobreia e humilda-
de do apostolado, disputam aos opulentos benediclí-
iios e bernardos o império, de qu<! já principiavam a
abusar, li, no tempo da epopéada Idade media que
O archileclo e o esculplor lavram lambem a sua epo-
péa na face das cathedraes; o cinzel responde ao tro-
vador. Cada andar de mármore encerra um canto-,
cada figura repete um verso. Nos porlaes lavrados,
que reíguarduni o sanctuarlo, os que passam, ao le-
vantar u4 olhos, encontram um episodio adiniravtl,
e param para o estud.ir. A poesia mund.ina rima
cm canções d'anior as bellezas d.i gaia-sciencia, os
soláus, as chácaras, as cantigas populares, que se di-
zem ao pé da lareira na inginua melopéa do povo.
O» niunumenlos escrevem com o escopro a epopéa
religiosa, a creação, o verbo dVspirraiiça, n alliança
antiga, renovada pelo saiig'ie do Justo nas raizesdo
Golgotha. São os prophelas, são os martyres, ca vir-
tude triíimphante, dobrando o vicio escravo aos pés
do arrependinicnlu e da fé.
O século XII cie e sente:, mas é uma crença aus-
tera— é um sentir áspero. ^ iu KarI o (irande e
Frederico Karbaròxa, heroes gigantes e autocratas,
como os reis de Judá, resplandecerem com severa e
lerri\tl magi.'slade. Deus era para clles oanIigoJe
hovah. assentado n\im llirono ilo nu\cns, fulgindo
lhe na fronte a corda de fogo dos relâmpagos, fulmi-
nando pela voi dos Iroviles os oriínesde uma geração
de poderosos oppres>ores e corrompidos. — l'or i^.«o
em toda a parle, nos poemas e n;if escnlptiiras, pre-
domina n copia das passagens do Testamento velho.
Depoiíi siiavisaram-se eslas id(-as lugolires. (^hrislo,
pela sua natureza, prometlia rccoiieiliar os homens
com <i céu. A misericórdia estendeu o braço para
consolar ns diires, com que a duvida e o temor pun-
giam o peito dos criMiles. A Virgem, ineiga eterna
como o amor, era a luz da esperança, cpie illumina-
va MS Ireia» de um futuro carregado, (iuaiulo o sé-
culo XIII rompia com a tremenda ameaça do fim
do miiiKlo, mÍ Klla, a INMi do Kilho de Deus, incx-
gotnvcl na bondade e na doçura, podia obstar ao
castigo, e deler a espada da justiça.
Então as artes esqueceram as figuras ineilonlins
apenas humanas, que o cérebro desregrado do artis-
ta evocava da imaginação delirante; figuras ile d(\r e
pcscspcração. As iiléas purificam se pela promessa do '
Evangelho, e a victoria da esperança grava-se na
architectura, reproduz-se nas bellas e animadas esta-
tuas dos sanctos e confessores, como nas calhedraes
de Paris e Strasburgo, e penetra pelos olhos e pelo
coração no aperfeiçoamento moral dos povos.
D'esta revolução nas crenças proveio a reacção nas
artes. Os sumptuosos e magníficos portaes de Reims
e de Amiens nasceram d'ella. A variedade, a rique-
' za, e o numero dos ornatos extasiam. ^ isfos de per-
to, percebe se que no seio do infinito, no meio da
cpulencia de milhares de formas, a ordem anima
desde o mais simples até o mais complicado orna-
mento. São palavras, são phrascs, «ão versos abertos
em mármore. Da sé de Lisboa á Batalha, e da Ba-
talha a ISelein que disl.mcia moral n.^io vai, que re-
volução no gosto, que progressiva tran5formação nas
idéas ?
lia nos monurhentos religiosos, que o passado nos
legou, a hiitoria de civilisações extinetas. Os inno-
vadores de camarlello, os cmplastrndores de gesso e
vermelhão, não sabem que esses relc\os partidos, es-'
sas columnas Ijrulolmente assarapinta-biç de cal, es-
ses capiteis variado», e os filetes bordados de figura?,
enriquecidos ile mil tarjas, de que fazem marcos e
calçadas, contém uuii parte dos pergaminhosda nos-
sa antiga nacionalidade. Fanáticos de uma cousa
que não percebem, invocam o progresso, cuspindo
nas cinzas de >evis avós. .\s artes, os b.omens, e a ci-
vilisiição devem perdoar aos pobres de espirito, por-
que na sua ignorância não entenderam o que fize-
ram. Mas quem nos re5tiliiir.i o que nos roubaram
no seu entbusiasmo municipal os Gracchns da picare-
ta, CS .atilas das sés e dos mosteiros? Pó nos resta
conservar o que nos deixaram, e defende-lo das es-
tações e dos vândalos. O mais perdeu-se irremedia-
velmente.
O Fkitok de Cant.vo.
.\nrc!!a.
(Continuado de pag. 86.)
M.\RiA, depois de vestir o fito ordinário, viora ter
com seu pai a sala ondo odeixára; e eomonãooen-
conlrasse, affigurou-s>-lhe que ainda estava .Tgastado
e saíra para não a vèr.
Arrazaramse-lhe os olhos de lagt-imas só de o ima-
ginar. Maria amava d'alma a seu p:ii, estremecia-o,
tinha-lhe nin alVocto implacável, como á única cria-
tura com quem podia commuiiicar pensamentos. Apar-
tada dos mais homens por causa da s>ia enfermid ide,
p.ira ella o inundo cifravuse em seu pai, em quem
coiicentr.ira toda a amizade qneuina menina reparte
com a mãi, irmãs ou compaidieira» ; não podia pois
supportar o mais levo enfido d'l''Hendon ; uma re-
prelicnsão sua, por niois branda que fosse^ cauíava-
Ihe uma espécie de desesperação.
Mas se ao principio a afiligíra a ausência do fei-
tor, em breve lhe despertou sorioi cuidado» a tardan-
ça depois da hora <lo costume; pori]ue, comoo feitor
se osqueo^ra de lhe dar parle do convite deYoii-hi,
parecia a demora inex()lu'avel. Chegou a hora lia
ceia, o Kflendoti semapparecer ! Mnria mandou pro-
cura-lo aos dilVerenlcs escriploriosoiide elle tinha ne-
gócios ; em parle iilguina o virilo !
A imuginação da infeliz ineninn, já nbn1ndn, co-
meçou a desvairar. Muilo conlribnia pura lh'a exal-
tar n impossibilidade de c;'inmunicar os seiu receios,
de os discutir, e de os ouvir emitrnrir.r. Desceu mui-
tas vetes ao porlo, e caminhava á l(^;l procurando avi-
92
O PANORAIVU.
da com os olhos por enfre as turbas o seu idolu, co-
mo se esperasse encontra-lo a cada volta. Sobreveio
a noite e seu pai tem chegar.
Recolheu-se a casa e sentou Se a uma janella so-
branceira á rua. Alli, delirnjada, com o coraç.loan-
<'usliado e a cabeça a abrazar-se lhe, se afanava por
distinguir do borborinlio a Ião conhecida voz pater-
na. Kntroii finalmente nm criado (]ue fora liuscar no-
ticias, e deu-lhe a entender que tinha visto ir <i pa-
lanquim do feitor [)ara os arralialdei chinas, onde es-
tava a casa de Yoa-hi.
Com esta noticia recresceram os sustos de Maria.
O exemplo recente d^um inglcz que tinlia sido apanha-
do n'um d'esses bairros escusos, e maltracladu pelos mo-
radores chinas, que não o largaram sem receberem
avultada sonima de dinlieiro, [irovava, com eff.;ito,
que taos excuríões não eram livres de perigo. lim
quanto luctava entre temores sem se deliberar, alon-
gou 05 olhos machinahnente para a margem opposla
do Ti''re, e deu um grito. Cresciam longas labare-
das por cima das casas do arraVjaide, espalhando uo
liorisonte um clarão aziago '.
A muda não pensou em mais nada senão cm que
tinha lá seu pai, exposto, além dos perigos já sabi-
dos, aos do incêndio! Este receio acabou de a desa-
tinar. Correu fora de si ao cães, voou ás barcas de
passagem, niaso povo pejava os embarcadouros, apon-
tando para as chammas a medrar na outra banda, e
bradando soccorro. Depois <ie haver tentado cm vão
abrir caminho até os campans, lembrou-se Maria
d'outro sitio, mais para baixo e menos frequentado,
onde estanceavam barcas. Livra-se do apertão c par-
te ás carreiras pela ribeira abaixo.
E a noite escura, e o vento a sibilar lúgubre, eo
Tigre a bramir ao longe. Na passagem só e->ta\ a atra-
cada uma /oicAa sem lanterna. IMaria divisou na proa
dois barqueiros tártaros mal encarados. Conversavam
em voz baixa. Uuins agouros! IMaria não repara-,
lança-se na barca, e desata a corda que a prendia á
praia, soltando o grito agudo com que ajudava a ex-
pressão dos gestos. Os tártaros ergueram-se, c cimio
que se interrogaram. iVlaria vendo-os irresobitos, pu-
xou depressa pela bolsa, tirou d'ella uma moeda de
curo, e lhes indicou a outra banda. (Js olhos dos bar-
queiros faiscaram ao vêr ouro-, correram ambos aos
remos, e o batel fez-se ao largo.
A menina muda, de impaciente, tinha ido para a
proa, e agujaxa a vista para distinguir, nas trevas
da noite, a outra margem do rio. E a barca tão va-
garosa, tão vagarosa! Até, por três vezes, lhe pare-
ceu parada, como se os couductores hesitassem em ir
Avante, e ao voltar-se os viu a conversar com grande
interesse em voz sumida. Chegara emfiui a meio-rio ;,
a outra banda começava a avultar no escuro, c cila.
para assim dizer, já a alVerrava com os olhos, quando
;i cingiram dois braços vigorosos I Voltou-se dando
uni grito-, mas quasi no mesmo instante sentiu feri-
rem-lhe o peito, e caiu sem sentidos.
Eflendon, como fica dicto, lá pelo meiodanoiteé
que veio para casa, e só quando, no outro dia, per-
guntou pc'la filha é que deu pela sua falta. Como os
criados não a tinham visto sair nenbuma informação
puderam dar. O feitor esi)uadriiibou tudos os recan-
tos, correu a casa dos seus amig>>s, interrogou os
\isiiilios, e espalhou a criadagem por toda a cidade
de Cantão. As primeiras pesqnijas foram inúteis ;
mas, porto da noite, trouxeram-lhe uns barqueiro»
tuna cravata com manchas de sangue achada no
Tigre.
Éffendon na cravata reconheceu a firma de Maria !
Esfe lúgubre indicio fulminou o malatcnturado pai !
Nem já podia duvidar , morrêrK-lhe a filha, c n>or-
rêra-Ilie assassinada ! . . . Mas aonde ? por quem ? com
que motivo? Enredava-selheamente em supposições
impossíveis. Eram baldadas as tregu,.-. "^.ue, para as-
sim dizer, dava á desesperação afim de imquirir re-
miniscência; não podia acertar com ■> rumo, e do
meio da cerração um só verdade surgia, innegavel
e terrível: assassinaram tua filha. ElVeiidon repetia
estas palavras como um louco, ou como um homem
que trabalha por despertar de sonho horrendo. Por
mais provas que desse a si mesmo da certeza da per-
da da filha, se o entendimento as admitt ia u coração
rejeitava-as. IVesta lucta perpetua de um com o ou-
tro, se elle ouvia fallar r.a cacada, se sentia abrir al-
guma porta com mais pressa, vultava-ce , tobresalta-
do, com a esperança de ver Maria '
l'a5saram se dias e dias, e ella sem appareeer. O
feitor, por fim, foi obrigado a crer. . . a crer que já
não era pai 1 Esta certeza matou-lliea energia. Rom-
peu de súbito todas as suas relações, abandonou a di-
recção da feitoria aos agentes ii:ferioreí, e escreveu
á companhia para o mandar substituir.
tiuizeram vêr os auiigoa se o confortavam, ma»
sem fructo, que ao feitor até aborrecia e-cuta-los. Dei-
tado n'uma marquuza diante do retrato de Maria
passava dias inteiras, immovel, olhando sem vêr, e
ouvindo sem responder. A*quella actividade enérgi-
ca e curiosa d'outrora succedèra o torpor daindiffe-
rença. Disséreis que a filha, ao desapparecer, Ibe le-
vara comsigo força e vontade; triste abatimento das
almas mais fortes, quando as preenche um só aCfecto
e a desgraça o corta pela raii.
Um dia que Eflendon tinha ido, como quem vai
de rastos, ajustar umas contas com o kong-hang, o
que só elle podia fazer, ao passar pela porta defeta
da cidade china, obrigou-oa parar uma longa cáfila
de camellos, que vinham carregados de sal e de car-
vão. Acabava o ultimo de entrar pela porta, e o fei-
tor, immovel qual estatua, ficara a olhsr material-
mente para as carroças de vela, equilibradas n uma
só roda, para as liteiras levadas a braços, e para os
grandes carros empurrados por um só homem, que
transportam os viajantes com assoas bagagens, quan-
do deu com os olhos n^uma sumptuosa carroça de
quatro rodas, com a caixa enverniiada, puxada por
cavallos ricamente ajaezados. Dirigia-a um cocheiro
natural da Coréa, como indicavam a largura da >ua
túnica, o ch.npéu cónico de bambií entrançado, e as
botas d"algodão acolchoado. Sobre as almofadas de
verniz preto avultava o bastão de mandarim em re-
levo dourado, coroado d\ima grinalda de jasmins de
prata.
A carroagem, que parara por achar a rua empa-
chada, tornou a rodar. Ao passar defronte de Eflen-
don . . . Buliram Je repente as cortinas de seda e soou
um grito ! . .
O feitor, que ia a partir, voltou-»e attonilo. Reco-
nhecera aqiiella \oi que se não confundia com ou-
tra I . N'esle mometilo corrcram-»e rapidamente as
cortinas agitadas, ouviu-se outro grito, eumrostode
mulher se inclinou para fora ! . . . Era Maria.
O americano estendeu os braços e qui» lançar se a
ella 1 . . . mas a carroagem passara a porta china, e
oí cavallos, achando-»e em campo largo, metleram
de trote. Eflendon, fiira de si. a seguiu noi brados;
alcançava-a scosguardas chinas da porta lhe n?o im-
pedissem a passagem.
— ..Ê minha filha, vil gente, é minha filha ! n ex-
clamou o feitor forcejando por soltar-sc.
— .Para as feitorias, para as feitorias, cão ! n re-
plicaram os soldados empurrando-o.
— a Não, disse EiTendon ali uci nado, largai-ine 1 . . .
minha filha . . . quero segui-la ! "
o PANORAMA.
93
— u K um doido , » repetiram algumas vezes.
— uE deitai» no Tigre.»
— 11 Agarrem-n'o bem."
Tinham comefleito agarrado o feitor, que deu um
tirro de raiva, e fez o supremo esforço ao vêr a car-
roai'em próxima aeiimir-se navoltad"uma rua. Mas
o official manfchdu que commaridava o poíto aciba-
va de clief;ar com um rcfi)r<j'0 de soldados, que se dei-
taram a elle, lançaram- ii'o por terra, e depois de o
terem atado de pi;s e mãos com as cordas dos seus
arcos, o puzeram ás costas d'um burro e o lrou.\eram
para as feitorias no meio dos insultos e apupos da
gentalba. (Continua.)
Oj índios de Suhinam.
CoNTiNUANDoa narração dos costumes dos índios de
Surinam ou C-ayonna liollandezu (vide a pag. 85),
tractari-mos de sexo masculino. — Os Índios são ge-
ralmente de caracter bondoso, e tudo se alcança d'cS-
les por via de brandura e af.igos, e principalmente
pela dadiva de bebidas espirituosas:, porém na em-
briaguez são tão formidáveis como na cholera, o tão
cruéis nas demasias da gula como na vingança. Teem
as feições do rosto assaz agradáveis, o que se observa
principalmente na gente moça, mas divisa-se-llies
certo fundamento de melancholia, que provém da
bruteza e do excesso das bebidas, a que se entregam
com furor quasi incrÍTel. — Teem a testa chata e re-
cuada, olhos pretos e de ordinário pequenos, dentes
mui bellos, que conservam até muito avançada ida-
de ■, nunca são atacados de escorbuto e outras enler-
midades da bocca, tão commun» na Kuropa : os ca-
belloB feem-n'os pretos como azeviche, e só se fazem
brancos na extrema velhice: serapintam a cara com
listas negras e encarnadas, as primeiras ieitas com
çumo de genipapo c as segundas com urucú : a sua
c<1r estimada, como entre todos os demíis povos sel-
vagens, é o vermellio, c dVdIa tingem cabellos, pes-
coço, espáduas, e ás vezes outras partes do corpo : a
quem os TÔ de certa distancia parece que estão cri-
vados de golpes ^ e alguns riscam também metade
das perna», o que faz o elTeito de borzeguiiis (•) : a
natureza lhes concedeu pouca barba, e assim que es-
sa pouca desponta é arrancada com pinças feitas de
cascas de marisco. — Assim como as mulheres furam
ai ventas e o beiço inferior, os homens fazem o
mesmo ás orelhas, trazendo n^ellas um como alfinete
de certo metal, que parece prata ou platina, )i (|ue
elles affirmam haver em abundância nas suas terras ;
comtudo os mais d^elles trazem bocados ilu páu ou
08SUS de inimigos. Uns cobrem-se com chapéus teci-
dos de pennas de aves diversas, ou simfdesmentecom
pennas de varias cAre», outros põem barreie, alguns
cingem H cabeça com uma tira de pelle de onça, e
os mais dV-lles andam de cabi-ça Ioda descoberta. Ao
redor da cilura amarram uma corda ou faxa de
cAr escura, as mais ilas vezes vermelha , que \\m
serve pura pendurar uma fa<'a sem bainha. l'assain
por entre pernas outra faxa de algodão azul ou en-
carnado, da largura di! meia vnra, e docomprimm-
to lie ipiatro a cinco: as duas pontas ou cahem sol-
tas posterior ou anteriormente, ou as arregaçam sd-
bre a» pernas ou sobre os hombros ^ haos que tra-
tem uma espi-cie de dalmalica ou capa, de <luas a
(») ICstii piíituri dos gelvaKcns 6 crnvrjaila ii.i pelle, co-
mo fazem os supeisllciosus da ICuropa, <pie se ferram ouni
signos salaniues, c oulrusi signatis sjnibulicos cyiiua bruxe-
dos e fcilivos.
três varas em quadro, que enrodilham á cinta uh
traçam por cima do hombro.
Nada ha tão cómico para quem não está habitua-
do como vêr um caudilho, ou capitão indio, vir ao
forte europeu, ou a ((uaiquer.iuclorijale da colónia,
com seu casacão vermelho agaloiuio, sem camiza nem
calções, de cha|)éu reilondo tanilicni agaloado, e em-
punhando um bastão como usan\ os tambores mores:
toda a tribu o segue a certa distancia, e as mulheres
e rapazes cerram a marcha. Coninuiuiente é um ve-
lho, e sempre o mais liabjl guerreiro da cabiida ^ faz
()ue lhe obedeçam ao primeiro aceno, e os seus mais
leves dictos são tidos como oráculos por lodosos seus.
Teem por armas arcos feitos il>! páu rijo, de ordi-
nário de cinco a seis pés di- comprido ^ e h-aos me-
nores : os rapazes os teem do junco para se exercita-
rem : as frechas são de Ire^ a Ires e meio pés, c tam-
beni são de junco ou de páu de palmeira ■, a seis pol-
legad.is da extreniiilade as eul'.'it«m de pennas dc-
papagaid ; as pontiis são de lerro ou de espinhas, ar-
liliciosamenle tr.dialliadiis : outr.is frechas lhe servem
para varar o peixe quando o descobrem a dois ou
Ires pés do fundura iTagu.! : us de que usam contra
os inimigos são hcrvadas ciim o sueco da arvore man-
cenilbeira. Também se armauí de lanças ou dardos,
(|Uo arremec\ini com grande dislret» ; farem r iralia-
lanas com juncos de nove a dez pé<, ca> frechas que
dispar.in» são pequena», mui delgadas, e involla» cuk
algodão, jogamn"as a cen\ e mais passo» ko tom o
impulso do siqiro, o com força bastante para matar
animaes pei|uenos, pássaros ou quadrupeile». Teen»
varias castas di- miisias de lenho duro e prelo, algum
com veios ou juspcado ; uma» boleadas c do cumpri-
^4
O PANORAMA.
mento de dois a três pés, outras chatas, <|iiasi da
forma de catana, e na ponta ornadas de plumas :
também as faliricam quadradas, e pouco mais ou
menos do dois palnms. — Todas estas armas, bem
como as fundas e as facas de matlo, tornam-se mui-
to sanguinárias nas suas niiios, sobre tudo em mo-
mento- do cholera ou quando acirrados na guerra.
Deade a chegada dos europeus é que conhecem o uso
da esp iigarda, do macliado e acha d'armas e da es-
psda: atiram com a primeira á moda dos negros,
ufoian lo a coronha no quadril direito.
Uma aldeia india é, [)i'lo comnium, habitada por
vinte a trinta pessoas entre homens e mulheres, sob
as ordens de um caudilho \ coiistrucn\ as suas casas,
ou ramadas, do modo mais económico, compondo as
de alguns troncos bifurcados e mettidos no chão : o
tecto é de serrafos de lenho de palmeira, recamados
de follias de bambu e de bananeira, tão Ijem concer-
tadas que não as penetra a agua : não teem [)ortas
nem frestas, e o tamanho é pioporcional ao numero
de indiviílnns que ha de occupa-las JOm geral, os ín-
dios não teem residências fixos: ora habitam 05 bos-
ques, ora á beira das calhetas ou dos rios-, umas ve-
zes se retiram para as soas roças, outras vezes aba-
lam para as praias maritimas. Quando intentam
mudar de morada, escolhem o logar, e o aplanam
para construir a choça. Feito isto, preparam em re-
dor o chão para a cultura da mandioca, domilbo, e
da bananeira; porém nunca para mais do que lhe e
absolutamente indispensável ao gasto.
A caça e a pesca são as occupações habitiiaes dos
Índios,- as mulheres são obrigadas a segui-los n'estes
exercícios, carrei^adas das necessárias provisões i e
além d'isso cumprelhes ir buscar a cai^a que os ma-
ridos derribam, e carrega-la paia a cabana. \i um
dia (diz Mr. litnoit) uma india moça e interessante
que voltava da caça com seu marido; este não trazia
mais que o arco e frechas, e aquella caminhava apoz
elleaccurvada ao pez-o de um grande molho de ba-
nanas, de uma creança de mama, de nma cabaça
cheia de chica (bebida fermentada) e ao mesmo tem-
po pendia-lhe de um braço um cabaz cheio de caça.
Quando os Índios vão á pesca empregam as suas
pirogas ou canoas, de nove a dez pés de comprimen-
to e de quatro de largura, inteiriças porque são fei-
tas de um só tronco de arvore excavado : as grandes
ou de guerra compoem-se ordinariamente de nove
aprnchas, junclas mui artificiosamente com cordoa-
lha : algumas teem viuie a trinta pés de compri-
mento, V as velas quadradas-, servem também para
as excursões pelo mar, ou á vila ou a remos : irelhis
conservam sempre lume prompto, que as mulheres
vigiam para não .se apagar. — 1'". do ordinário em
terra mesmo, sobre tudo nos bosques, as mulheres
hão de ter sempre fogueira, por duas razões ; ame-
drontar e fazer fuíir as feras, e dissipar as nuvens
<le mosquitos e outros insectos, nimiamente incom-
moilos n^estas paragens.
Em Surinam, da mesma maneira que entre todas
as tribus selvagens, as formalidailese ceremonias que
precedem e acompanham os ca>ainenlos são de uma
singeleza primitiva. Qiiaiulo o indio pretende tomar
mulher principia por presentear a sua noiva com n
«.-nllieita ilas suas caças e pescas, ou al.irdeia em sua
presenç.i os trophcus guerreiros, se teve occasião de
eonquistar os despojos ou o craneo de um inimigo.
Se a rapariga acccila as dailivas, é |)rova de que
consente em toma-lo por senhor e marido : equando
o seu noivo se recolhe das suas occupações, traz-lheá
cabana o mimoso molho de pei.xe ; e depois volla
para sua casa. lim breve se fixa o dia das núpcias;
e 110 entanto parentes e amigos ajunctam provimen-
to de comidag e bebidas para o fesliuisolemne. Che
gado II dia, o mancebo procura a rapariga na caba.
na da família, e diz lhe u eu te escuiht pur mulher. n
liastam estas simples palavras ; «lia o segue logo:
celebra-se o banquete, primeiro para os homens, por-
que só depois são admittidas as mulheres, uso de tal
sorte rigoroso, que nem mesmo a receu)-casada co-
me n''e9sa occasião com (ieu marido. D'ahi purdian-
te começa a vida áspera e ttabalhoia da ilidia cuin
seu senhor.
ScPBlISTKjÕES DOS .\KA11ES .\!<TES DE .^IAKO.Mâ.
(Continuado de pag. 78.)
Isaac e Ismael herdaram o raio prnphelico ; mas pa-
ra os musulmanos tem a primazia Ismael, porque o
consideram pai da tribu de Mafoma, e único filho le-
gitimo. Contam d'Ismael o que a Biblia dizd'Isaac.
Tractam pouco por miúdo de Jacob; mas Jusepb, ou
Jossoiif como pronunciam os musulmanos, gosa de
grande nomeada no Oriente. Mafoma cunsagrou-lhe
um capitulo inteiro do Koran, e o que d"elle di( é
tão fora do natural, que mesmo alguns dos seus dis-
cípulos o tem por embuste.
Sabese que Jo:eph fui vendido a um e:v plano
por nome 1'utiphar. Crêem os oriciitaes que l'uli-
pliar era primeiro ministro de l'haraó ; affirmam
que Josepli era formosíssimo, e que nenhuma mulher
o podia vêr sem que o amasse. Mal o avistou a de
1'utiphar ÍJcou louca de amor. Estava Josepliapoo-
to de cederlhe quando u sombra de seu pai o recon-
duziu á estrada do dever. Soou esta aventura, accres-
eenta o Koran, na capital do Egvplo, e todas as
damas se indignaram contra a fraqueza da compa-
nheira de Puliphar, levando lhe muito a mal a bai-
xeza de dar o coração a um escravo. A mulher da
rico egjptano, querendo vingar-ic, convidou algu-
mas d'ellas para virem comer romãs a sua casa. Es
tando todas á mesa fez apparccer de repente Juseph,
cuja belleza cegou as damas a tal ponto que, semat-
tentarem 110 que faziam, cortaram os dedos cm vex
de corlanni as romãs. Este caso, escreve ílr. Rei-
naud, aclia-se re|)resenladú n'um bellissimn manus-
cripto persa da bihliotheca real, o qual tracta da his-
toria dos patriarchas e dos propheta».
Decorreram muitos annos depois da morte de Jo-
scph sem apparccer nenhum personagem celebre.
Moisés ou Mus.sa, segundo a orlhographia oriental,
foi quem Deus elegeu para fazer lembrados os gran-
des nomes de Noé cd'Abrahão. Mafoma cita muitas
vezes .Movsés no Koran -, como elle se achou n'uma
situação quasi semelhante á d'cste patriarcha, cooio
também se viu obrigado asair da pátria, e esta emi-
gração lhe estendeu o poder, agradava-lhe pôr em
scena o legislador dos hebreus, e auclurisar-se comos
seus exemplos. Na opinião dos orientaes sabia alcbi-
mia e loiios os segredos da natureza ; obrou a maior
parte dos milagres com a mão, que elles figuram tão
alva como a neve, Ião brilhante como as eslrellasdo
firmaineiito. E por isso quando querem f.iUar d'uni
homem poderoso pelo dom da pala\ra,d um medico
que fai curas maravilhosas, dizem que tem a mão
branca de Moisés.
David ou D.ioud, como lhe cliainam os povos do
Oriente, não c menos illustre para oi musulmanos
do que |>ara nós ; por ter composto o< psalmus o pu-
zcram a par de Movscs, Jesus, e Mafoma. Livrosd"ou-
Iros qu.usqiier não 05 julgam inspiratloe. Os aralics
luzem uma idéa Ião cabiil da voz de David, que Ih»
atlribuem o condão de deleitar o« pnss.-iros, amollecer
o ferro, e aplanar montanhas, quando celebrava o«
I
I
o PANORAMA.
05
louvorns de Deus toda a natureza vinha a acompa-
iiliar-llie os cânticos. l'aru provar a conjpuiicrSo com
que IJavid cliorou o seu erro, escrmem otniusulma-
nos que, durante os quarenta dias da penitencia, as
plantas e as iiervas cresciam coím a abundância das
suas lagrimas. Além d^isno, querendo exallar-llie a
modéstia e lhaneza, faljularani quf elle escrupulisava
de gozar o fasto real ; e que não sú fazia timbre de
vestir uma túnica simples de lã branca nos dias so-
lemnes, como a» dos proplietas, mas, a exemplo d'el-
les trabalhava pelo officio de armeiro e fabricante de
totas de malha, c do seu produelo se mantinha. Cum-
pre saber que osorientaes, testemunhas diárias dos
abusos do despotismo, inclinam pouco a respeitar aS
grandezas mundanas: o .ifamado Areiíg-iíeb, que
reinou na índia ha mais (run\ século, comia e ves
tia do que lhe rendiam as co[)ias que tirava do Koran.
Succodeu a David no throno e na luz propliotica
seu filho Salomão, a quem os orientaes chamam So-
linião. Não lia casta de maravilhas qiiR lhe não at-
tribuani, e o snu nome ficuu sendo o emblema de
quaulí) ha grande soljre aterra. Dizem osaralies que
Salomão havia sujeitado ao seu poder não só os ho-
mens e os nnimaes, mas os j;eiiiose os elementos. ICra
pio por natureza, e assíduo no orar. Certo dia em
que eslava a ensinar os seus cavallos, chegada a ho-
ra da reza, largou tudo para cumprir esledever. En-
tretanto fugirainlhe os cavallos i [)nrcm Dmis lhe
resarciu a perda mandando aos ventos o levassem on-
de desejava. CAiiando tinha de fazer alguma viai^oni
sentava »(; ii'uma alcatifa, e a aragem brandamente
o transportava ás regiões mais longínquas. Doeste
modo, pelo que dizem os árabes, salvou Salomão 03
deserto» da Arábia, zombou das correi. tes mais im-
petuosas, discorreu todas as ilhas do occeano indico,
e obrigou o universo a recoiihecer a lei do Klerno.
AccrcAcenlam os orientaes que quando Salomão jul-
gava, assistiam ás suas sentemjas dois mil patriar-
clias c pruphetas, sentados n^outros tantos thronos de
ouro á direita \ e dois mil sábios e doutores da lei,
sentados em tlironos de prata á esquerda. As aves do
céu vinham fazer sombra ao riquíssimo sólio de Sa-
lomão, que sabiu a língua dos passarcjs, dos insectos,
e de quanto respira. Mafoma iiãu desdenhou inserir
n» Koran a» praticas de Salomão com uma formiga.
Tinha ensinado uma poupa a levar-llie as ordens a
todas as |iartea do mundo, e por ella é que soube a
existência da raính.i de Sabá :, o lambem era senhor
d^um escudo que o defendia do» <'ncanlos e dos en-
caiitador<!S, o <|ual «íseiulo, reveslíihxiecaraclrr mys-
tico, composto de sete pi-lli:s iliUerenlcs, e cercado de
sele círculos, fi^ra fabricado sob influxo celente. Salo-
mão possui. I igualmente uma espada chainmejante e
uma (ouraria imponelravi'1.
O Ihesoiiro mais precioso de Salomão era o nnnel
<jUe trazia no dedo, com (|Ue lia :io presentii e no fu-
turo, e com <jUC sujeitara a maior parle dos génios a
lhe obedecerem. Tão Nubníissos eram os génios á von-
tade de Siilomãu <|ue bastava mandar para seringo
servido. Por este meio fácil, segundo os ori('nlaes,
erigiu o filho de David o templo de Jeriisaleni, o pa-
lácio da rainha di; Sabá, e os outros inoniimenlos (pie
lhe illuslrarani o nomir. K^liindo um dia nu banho
caiu infelizini.-nle o nniiid em poder d'um gi'nío pér-
fido, que o laii(;oii no mar. Kste génio levou o alre-
vimenlo a ponto di! se intitular Salomão, (í o verda-
deiro Sahunão viu-s<.' obrigado ,1 vagar quarenta dias
pfílos Ni!u» estados, fiúlo alvo dos mais grosseiro» 111-
aullos. Uni |iuixe trouxe por fim o aniiel milagroso
n Salomão, «jiie prosegiiiii na (estrada dossiuis Irium-
pho». Osorientausultribiiiam n Salomão grande scieií-
cin magieii, o etta opinitlu romonta ans tcinpoi dii
maior antiguidade. Lê-se nohisloriador Josepho que
desde o tempo do rei Ezechias, isto é três séculos de-
pois de Sali;mão, j,í circulavam cnm o seu nome mui-
tos livros de magia e sortilégios :, Kzechias mandou-cs
queimar, mas escaparam muitas copias, e a supersti-
ção fui crescendo de dia para dia. Mafoma assegura
110 capitulo segundo do Koran que faes livros não os
escrevera Salomão, mas demónios lifleralos. Quando
S.domão exhalou o suspiro derradeiro fizeram os^e-
nios mil tentativas, baldadas todas ellas, para se apo-
derarem do aunei. Os musiilmanos estão persuadidos
de que Salomão se acha enterrado n"uina ilha do mar
do Sul, e que, senão f()ra uma serpente com azas que
lhe guarda o tumulo, já os génios so teriam apossado
do talism.in. Taes são as difierentes causas que con-
correram para prop.igar o nome de Salomão pe!r>
Oriente. ]juuvararii-lhe a sabedoria e conhecimentos
raros ; chamaraiiillie o ministro de Deus, e o seu
nome serviu para desig-!ar os grandes monarclias.
l)'aqui vem essa turba de Salomões que figuram iia
historia, ou antes na mylhologia oriental. Al"uiis auc-
tores ehegiram a contar sessenta, o foram buscar o
(jrintipio da serio ilos Salomões a tempos anteriores
a Adão. <|uando os génios habitavam a terra. A maior
parte iresles aiictores representaram todos os Salo-
mões como principcs igualmente ilutados de sabedo-
ria e poder, e altribiiiram-lbes o escudo mystico, a
espaila chainmejante e o annel maravilhoso.
Um personagem singular nas tradições do Oriento
é Klieder, <|ne alguns escriptores confundem com o
proplicta IClias, empregando indiflerelitemeiíte esíps
dois nomes. Os orientaes derivam o nome de Khe-
der d'oma palavra que significa eslar verde. Com
elTidlo elles teein lá para si que este personagem não
morreu, porque bebera as aguas d'uma fonte situada
na extrema do OriíMite nas regiões chamatlas os i'aí-
zts icncbrosos, as quaes aguas teem a virtinlo de per-
petuar a vida. Os que distinguem Kheder d'l'"lia»
concordam em lhes dar a mesma duração e emprego.
Ambos, dizem elles, andam agora acorrer mundo, e
velam na segurança dos viajantes :, su;>poem que Khe-
der serviu de guia aos israelitas quandoatravpssaram
os areaes do deserto. Portanto Kheder e Elias, a an-
daram sem descanço, trazem á memoria o Judeii-er-
rante. Alguns orientaes lhes attribuirain <ui> especial
a guarda das cartas missivas e dos correios-, os seus
nomes acham-se ás vezes nos sobrescriplos das cartas,
para com inliis certeza cilas chegarem aoseu destino.
tJs musiilmanos leein gr.inde di'Voção com o pro-
fiheta Z.icliarias, e com seu filho Yahia,ai|uem nós
chamamos S João Maptisla. No Koran o próprio
Deus dirige ,1 palavra ao precursor do .Messias : Oh
Yahia, |>ega all'outameiil<' no livro, lhe disse o Eter-
no! i« Nós lhe eonciMlemos a sabedoria desde a meni-
nice, einilinuou o .'Mtissimo .- repartimos com elle a
nossa charidade e misericórdia, e tez provaiiça de
piedade. Ilespi-ita muito seu pai e mãi, e é limpo
de soberba e iniquid.ule : a salvação seja com elle iu>
dia do seu n.isciíiwnto, no da sua morte, e 110 dia
em (|iie resuscitar 1 " Os orientaes ciuirordam com o
l''.v;ingelho na íiistcriíladi- da vida de S. .loão llap-
tista, <■ na morte cruel que lhe fei ilar uma mulher
por lhe elli- cjuerer reprimira devassiilão. Aecrcscen-
tani <pie, por iiieinoria de crime tão eiuirnie, nunca
ei'Ssou de ciurer o sangr.e deS. João Haptista. Esti»
morte, dizem elles, foi a causa primaria da minado
templo de tlerusalem e da ilispersào dos judeus pelrt
superlieii' da tirra. Ainila hoje vão os iniisulmano^
peregrinar a Daniiiseo, onde presumem (pit* estãi> os
ilespojos mortaes de S. .laào Haptista, porcjiie o seu
lim trágico recorda aos orientaes todas as cillamSdu-
dcs que ufllii^nm n espécie huiiiaiiti.
96
O PANORAMA.
Mas O nome de Jesus, ou Yssa, como lhe chamam
es rousulmanos occupa entre elles logar mais subli-
me. Lê se no Koran <jiie Jesus nascera sem pai, e
íòra creado só por virtude da palavra de Deus:, por
isso os orientaes lhe chamaram o Vcrho Divino, ou
simplesmente o \'erbo. l'oetn-n'o a par de Adão por
terem sido ambos creados d^um modo particular. Os
niusulmaiios reconhecem todos os milagres referidos
no Evangelho-, admitlem a faculdade que tinha o
Salvador de rcsuscilar 03 mortos, fazer que ouvissem
os surdos, dar vida aos enfermos, e fazer que andas-
sem os coxos. Até citam milagres em que a Biblia
não falia. Dizem qiic Jesus só esteve três horas no
herço, que fallcu ainda involto nas fachas, e que ani-
mava com o seu sopro pássaros de barro. O Kotan
cxprime-sc assim : " Dé.tios a Jesus, lilho de Maria,
o poder dos milagres, e a.-,5Í:timo-roe forlalecemo-l'o
com o Espirito Saneio. Alguns dos prodígios que os
livros sanclos não mencionam tirouos SIafoma dos
falsos evangelhos que, no seu tempo, geravam pela
Arábia. Os orientaes estão convencidos de que o Sal-
vador fazia a maior parte dos milagres com o seu so
pro i e na verdade, lêuios no Evangelho que elle lez
ouvir uni surdo sn|irando-llie n^unia orelha. Todos os
escriptores do oriente alludem frequentes vezes ao so-
pro do Messias. Em geral, nada é mais louvável do
que o respeito que os musulmanos lêem a Jesus. Ma-
toma, no Koran, faz assim fallar o Eterno : uOli Je-
sus! eu e.xallarei os que se te unirem, e humilharei
os que te não reconhecerem ! n Desgraçadamenie ne-
garam os árabes a divindade de Jesus Chrisío ; lêem-
se estas palavras no Koran: u São infiéis os que dizem
que o Messias é Deus. " Mafuma, na opinião d'el-
_les, occup.i logar mais alto^ chegou a dizer um dos
seus auctores que o patriarcha Abrahão não passara
«]e ser um ollicial do exercito do propTieta, e o Mes-
sias o mestre de ceremonias da sua corte. Negam
igualmente a paixão e niorle de Jesus Christo. Diz-
se no Koran, cap. 4."; uCreein os judeus ter dado a
itiorle ao Messias, enviado de Deus i não o fueram
tnorrer a elle, mas a algum outro com elle parecido. "
^ opinião dos orientaes é que Jesus ha de voltar no
fim dos séculos-, as religiões eliristã e musulmana re-
duzir-se-lião a uma só, e depois d"Í5SO acabarse-ha
o mundo,, p,, ,|
Por uma consequência natural da veneração que
os musulmanos teem a Nosso Senhor, professam admi-
rarão profunda á Virgem, a quem chamam Mariam ;
teem a convicção de que a ^'irgenl Slaria e o Mc-
iiino Jesus foram isentos das manchas do pcccadoori-
ginal. II Não lia homem nenhum, disse Mafoma, que
ao nascer não traga em si os signues das garras de
Salanaz; por ikso, quando nascemos, desatamos em
cliuro i Maria e seu íilho foram os únicos dispensados
d'esta prova." P^ínalmente os orientaes ropcitani os
doze a[)Ostolos e fodososquccontribuiram para a pro-
pagação do christianismo. Todavia, são algum tanto
desafleiçoados a S. Paulo; eaflirmam quese oschris-
tãos, em vez de considerarem o Messias como simples
propheta, lhe atlrihuiram a divindade, tem S. Pau-
lo Ioda a culpa d'isto. Depois de Jesus Christo os
«)rientdes não reconhecem nenhum propheta até Ma-
foma.
Taes são, segundo os musulmanos, os principaes
personagens que abriram a estrada ao seu propheta.
Muitos d'elles existiram realmente ; mas os orientaes
«."onverteram-nos em Iieroes de romance, afogandoa
Verdade em miudezas bem ridículas e disparatadas,
Seguiremos este trabalho de .Mr. de Courteua^-,
dando conta, para o diante, da vida de Mufonia, c
do Koran.
A ILHA CeLESES — MaCASSAR.
(Continuado de pag. 8i.)
A VEiuA, para além do bazar, c do arrabalde que o
continua ao cabo da cidade, é um continuação de
bonitos jardins antes de chegar á campina. Vè-se
depois o terreno plano sombreado por arvores formo-
sas, e que se prolonga a perder de vista : á» vezes ha
lagos próximos a pequeninos bosques deliciosos, por
entre os quaes volteia a estrada : os arrozaes mos-
tram por muitas partes as ondas das basleas tremu-
las ao sopro da briza do largo, ao passo que nos bal-
dios vagueam soltas manadas de búfalos e de cavai-
los. Casas malaias em quantidade, embutidas no ar-
voredo, com teniie cerca de estacada, e bellos jar-
dins, tanto mais bastas apparecem quanto menos dis-
tam da cidade, chegando a encostarein-se a esta da
banda do bazar.
A parada, amplo terreiro que medeia entre a ci-
dade e o forte, na extremidade é guarnecida de ala-
medas, que vão rematar na morada do governador
da colónia, a quem intitulam u residente -, « e em
contraposição, á beira-niar, vê-se o estaleiro, onde
são cunstruidos os paráus destinados á navegação da
ilha : não ha cousa que dê melhor idéa da arca de
Noé do que estas casas fluctuanles, governadas por
dois lemes postos de cada lado da popa, e com fortes
mastros, imitando um triangulocoroadode velasqua-
dradas feitas dV^teira. Estes barcos são tardos no an-
damento, demorados nas viagem, e denotam a bonan-
ça d\-iquelles mares : são destinados especialmente á
pesca, que vão fazer á costa do norte da Austrália,
ao estreito de Torres, e tan.liem a apanhar pérolas,
e ninhos de salangana (») : — estes objectos consti-
tuem grande parle do commercio de exportação de
Macassar, e expcdem-se para os mercados da China.
O ganho da pesca do peixe iripmig, que vai para
fora, é muito lucrativo na Celebes: os negociantes
hollandezes entram activamente n^esla especulação;
só um dVIles equipava annualmente para esla pes-
caria uma dúzia dos taes paráus.
A população hollandeza conta poucos brancos ;
compõe se em grande parte de homens decôr, mes-
tiços oriundos das allianças dos europeus com as ma-
laias, porém nunca de malaios com brancas: édifli-
cuitoso ao estrangeiro fixar o numero dos europeus,
mas talvez não passe de 500 pessoas -, igualmente o é
orçar, durante o pouco tempo de uma arribada, 3
população china, que de mais d'issoé fluctuante, va-
riando, em certas temporadas do anno, conforme a»
entradas e saídas de navios que transportam os via-
jantes. Vimos alli chinas que tinham habitado alter-
nativamente em Manilha, em Singapura, eem 11a-
tavia. Esta gente que, no grandearchipclagoasiali-
co, faz as vezes dos judeus levantiscos, deixa a pátria
pelo engodo do lucro, ou aguilhoada pela penúria.
Acodem a qualquer parte em que se fundar uma co-
lónia ; apossam-se do commercio 11 retalho, enrique-
cem pouco a pouco, e as tnais das veies voltam a
suas terras quando teem junclo cabedal, posto que
alguns se cstalieleçam de assentada onde teem feito
seu trafico. Ágeis, engenhosos, perseverantes, dão-se
a toda a casta de especulações; de tudo sabem tirar
proveito; e se fazem c«rpiiiteiros de carros, quinca-
Iheiro*, alfaiates, çapaleiros, \.c. , com a mesma fa-
cilidade. Porém ao mesmo tempo conservam escrú-
pulos.imenle os ct)stumps, h:\bitos, trajos, e crença d«
m.Ti pátria: nunca se perde a sua nacionalidade;
vangloriam se dVlla, e isso impede que se confun-
dam com os povos malaios, especulando com a negli-
gencia e preguiça dVstes. (Ci.iiftiiiio.')
(«) (Aue se comem e passam porsiagulariguatiana Ásia.
15
O PANORA^IA.
97
usos MEXICANOS.
A 1'iioviNCiA <1(! Oaxaca sempre fui a mais rica do
México, não pelas minas, mas pelas produceõts (lo
terrono, que valem muito mais. Só ai exportaeões
da cochoiiillia, secundo a ejtadistica de (Carlos .^[a■
ria Uustamante, calculada de 1757 a 1820, prolu-
iiiram, aiiiio ordinário, 1:12!) UOU piastras, ijuanlia
enorme, <jue pila maior parle passou ás mãos dos
Índios cultivadores docaclo codioniltieiro. listes, cu-
jas precisões são liem pouco dispendiosas, nãosaheií-
du que ru<,'ani rle tanto diiduiro, f> enterram n\imu
c n\iutra parte, nu campo ou doliaixo das penhas
dos outeiros. D'este modo a «vare/a restituo a terra
o que lhe roubara. Sú os proprietários conhecem os
escondrijos, e a nin'^iiem osdescohrcm ; morrem sem
dizer nada aos tillios, nem estes se dão ao cuidado de
indai;ar isso. Se por iienso algum índio acha um
iracpiplles thesouros, fica amedrontado, torna a ta-
par eserupulosauiente o deposito sem focar n'um cei-
til, persuadido de que morreria n'esso anuo te fizes-
se u mínimo latroeinio aos manes de quem enterrou
seu dinheiro. — 'l'od.ivi.i ha índios ricos (jue, sem
alteraren» na mais leve eovisa os seus cosi umes o mo-
do de viver, siurilieam ao luxo e á vaidade, o };«»-
tam avultadas (pianilas no traclamento de suas ca-
sas. ilanti'i ás ve/.es á mesa de muitos d'esses natu-
raes mexicanos, oníle vi liaixella de prata i; outros
moveis preciosos: tiidiam íjenerosos viidnis do Mala-
j;a, de \eri'Z, e lamlieiu de Hordéus, com ipie reija-
lavam á larica osseus hosjedes :, o as coherlas eram
atulhadas de i);uarias na maior aliuudancia c mui
heiíl preparadas ao^^osto da terra. l'orém niincu ol-
VoL I. NuVKMlIKO :iK, 18íti.
les comiam coninosoo europeus; recolliiam-se com a
família á cosinha, e alli, assentados n''uma csteiraj
tonuiN.im a sua l'ru|^al retei(;ão e bebiam agu:i pura.
Bella li(;ãu de temperança dada pelo homem semi-
civilisado aos tilhos das nações policiadas.
Afora aciuellas despezas de fausto, ha outras cir-
cumstancias que concorrem para diminuir, de tem-
[los a esta parte, a copia de thesouros escondidos;
tallo dús gastos que em cad.i um:i aldeia fasem osaí-
cíjA/ts e oi mordomos fabriqueíros das igrejas ijuando
são eleitos : n\"stas festanças banqueteam todos OS
moradores do seu logar, pag.im á própria custa a
lesta <ri;;reja, a musica, o fogo de vistas, t-Slc. iXc,
e enfeitam ai imagens dos sanctoj com aderecei, ha-
I bitos e mantos novos, conunummcnte de niuitopreço
i e esplendidos
l'osto que o valor da exportação dn cochonilha te-
nha l)ai\ado metade o mais, a província de Oaxaca
sempre continua rica ; apenas n capital e mui po-
bre : os índios tiram algum lucro do amanho dos
eaclo» próprios d^i<|uella droga \ porém os negocian-
tes nrriiinam-so, e o eonimereio vai de dia para dia
de mal a peior. Huando os rebidlados entraram em
1812 na cidade de Oaxaci, os eseriptorios dos hej-
paidioes e creoidos tr.isbordavam ile ouro e prata;
arrebalnram-se essas riquizas ás carradas; mas ja lá
I vai o tempo de tamanha prosperiíhule, e si! tem df
voltar n."io será tão cedo; te lo ha no entanto Oaxa-
j ca para chegar «o fundo do abvsmo para onde a mi-
séria a impelli-.
I O trajo das mulheres iiatur«es da terra tem suu
98
O PANORAMA.
especialidade ', é um enrollado, nome hespanliol, de
um corte de paiiiio, posto á roda do corpo desde a
cinta até os joelhos, tecido de lã preta raiada de ver-
melho ; e um hucpil, pedaço de panno, com abertura
110 meio para passar a cabeça, que cobre as- costas e
o peito, e é de estofo d'algodão branco tramado com
fio de còr : usam também uma espécie de meiocha
le, com que cobrem a nuca e os hombros, e alem
d'isso trazem, como lambem os homens, um letjço
encarnado, de seda ou de algodão, amarrado na ca-
beça, e sandalhas nos pés enfeitadas de lavores. Com
o nariz de bico de papagaio, queixo revirado, e còr
de cobre, raras d\'5tas mulheres são bonitas; nota-
se-lhes conitudo na physionomia um toque de astú-
cia, pouquíssimo vulgar nas outras Índias.
A còr geral dos naturaes é cobreada ; n'alguns
cantões do México tira para encarniçada, en'outros
para azul escura. lia muitos indivíduos que teem na
pelle nódoas de diversas cores ; porém esta particula-
ridade não é natural; deriva de uma lepra que vicia
a massa do sangue; incurável para os que atrouxe-
íam do ventre materno, e nos quaes se tornou orgâ-
nica, communica-se pelo contacto. O numero dVstes
enfermos, que os hespanhoes chamam /j/níos, é muito
grande em Teliuantepec, nas costas de Tabasco e na
de Acapulco: habitam de involta com os outros Ín-
dios, sem que estes tenham pensado em os affastar
da sua communidade e evitar um commercio fatal.
Demais, apesar dos incommodos inherentes á sua
doença, aquelles gafos vivem tanto como os sãos, e
podem dedicar-se aos mesmos trabalhos. E' uma en-
fermidade análoga á dos albinos ou pretos brancos.
Tehuantepec, de que acabo de fallar, é unia cidade
de 14 000 almas, creoulos e Índios, situada a 70 lé-
guas de Oaxaca. Cortez, nas suas cartas a Carlos o.",
e todos os geographos antigos a designam como porto
de mar; mas pelo retrahimento gradual das aguas
do oceano Pacificn ja?. ao presente a mais de quatro
Ic^uas da praia. A industria principal dos habitan-
tes consiste na cultura da planta do anil e na prepa-
ração da droga d'csta formosa tincta ; este trafico
excede alli ao da cochonilha. As colheitas que, ha
trinta annos, davam proximamente 3o 000 librasde
anil, anno ordinário, ainda hoje regulam pelo mes-
mo, e até ás vezes excedem aquelle algarismo. O
anil mais fino é feito da flor da planta, e só em
Guatemala se fabricam alguns quiiitaes d'elle.
O murice, concha que dá a còr purpurina, tão fa-
mosa na antiguidade que esgotou os bancos dVstc
niarisco nas praias de Chypre, acha-se em toda a
costa Occidental desde (íuayaquil até .\capulco : co-
Ihe-se principalmente nas lagoas de Teluiintepec,
onde existe em grande quantidade. As mulheres tra-
zem tiras de panno, ou maços d^algodão liado, repar-
tido em negaíhos, o á proporção que arrancam o ma-
risco da pedra espremem com os dedos o animal sobre
o panno que pretendem tingir; extraheni assim um
liquido esbranquiçado que seccando se fiz escarlate,
lista còr é indilovel, e até adquire lustro depois de
lavada a niiudo; nem todos os tecidos a tomam bem,
assenta melhor na l,"i c algodão do que na soda. As
mulheres de 'rehuantepec, de Chihuitan e dos arre-
dores fazem grande estimação d"ella para as guarni
ções das saias ; e pagam muito caro este enfeite, se
não vão pessoalmente tingir os seus vestidos.
As habitantes cie Teliuantepec usam de um ves-
tuário espCLUal, que sem cíuitradicção é dos mais ele-
gantes da America, sem exceptuar o trajo das scno-
ritas de Lima, o qual me parece mais extravagante
<jue original, mais ridiculo que engraçado, apesar de
todo o artificio que põem em pratica para o nfor-
mosearem. — As mulheres de Tehuantepec vestem
uma saia de cassa ou de gaze, guarmcida de grandes
folhos, e mesmo de franja de ouro, pieza acima dos
quadris por uma banda de seda : depois assenta o
huepil de mangas curtas, cerrado siure os rins, e
ageitado em ondas fluctuantes sobre ca peitos; é de
cassa bordada ou de tecido liso e de còr ; mas tra-
zem outro, sempre de cassa branca, sobre a cabeça,
de sorte que a guarnição que circula o pescoço serve
como de moldura ao rosto, e as duas mangas pen-
dem para diante até a cintura, e para traz até o
meio das costas; o complexo d'este vestuário, perfei-
tamente próprio para realçar os attractivos de uma
senhora juvenil, conserva ás mil maravilhas as for-
mas corpóreas, e ao mesmo tempo é rico e gracioso.
A primeira vez que eu ^i damas de 'l'ehuantepec
com este trajo pareceram-me extremamente agradá-
veis : além d^isso, no olhar c nos modos teem um
mimo que muito bem casa com a graça dos seus
adornos. — O viajante que chega áquella cidade em
dia festivo, e que vê as jovens ataviadas com tanta
elegância, pasma attrahido do espectáculo, como fica-
ria achando formosa e fresca verdura no meio dos
áridos areiaes da Lybia ; acaba de discorrer por um
território onde os habitantes, raros, são de fealdade e
sordidez repugnantes, e o contraste lhe causa todo o
prazer de uma inesperada e bella mutação descena.
O Feitor de Cast.ío.
JNoueí/a.
(Continuado de pagina 91.)
N.\ mesma noite do dia da prisão de ^^'alter Effen-
doii encerrou-se este com You-hi no quarto mais re-
tirado da casa do feitor americano. Ohanista, senta-
do n^uma cadeira de bambu, parecia assustado, e
olhava amiúdo para a porta como quem receiava ser
apanhado n^esta conferencia. EíTendon passeava in-
quieto com uns papeis na mão. Saíra solto havia pou-
cas horas, e mandara logo chamar o negociante chi-
na, a quem havia revelado tudo.
Grande foi a admiração de \ou-hi quando soube
do disfarce de Maria, que elle sempre cuidara ser
fillio do feitor; mas quando Eflendon chegou a con-
tarlhe o inaudito encontro que tivera de manhã, o
pasmo se lhe converteu em incredulidade. Comtudo
o americano sustentou o que afirmara. Eram de Ma-
ria aquelles dois gritos que ainda o faziam estreme-
cer: eram de Maria as feições que tinha entrev isto.
Não estava morta a sua filha, mas em puder d'um
roubador que elle queria descobrir a todo o custo.
Acabava por tanto de fazer um requerimento ao go-
vernador ou vice rei de Cantão, expondo concisamen*
te os factos, e pedindo que procurassem e lhe resti-
tuíssem Maria.
— >. Se não proraeltes algum premio, advertiu \ ou-
hi, o governador não da um passo. "
— .iTcnsraião, disse o feitor ; vou accrescentir que
pagarei pelas buscas quanto elle exigir. . . "
— II Não escrevas isso, atalhou o hanista ; pediam»
te quanto tens. OtVereoe uma quantia redonda. . .
Mil liangs talvez (1). "
— 14 ^'á ! Disse Eflendon, correndo para uma mesi,
afim de «ddicionar a promessa á sun petição. Mas co-
mo bei do fazer entregar este requerimento cm mão
própria ao vice rei .' •■
— "Não Isns senão um meio, disse ^ou-hi, e ain-
da que é contrario ás leis. . . "
(.11 Mil liangs andam |Kir um coDto e ceuto e quarenta
e tantos mil réis.
o PANORAMA.
9^
— Tem razão, interrompeu o americano, levan-
tando-se i corro á porta chineza.
— u Mas peço te encarecidatneiile, replicou Yoiilii
abaixando a voz, que não digas que fui eu que te
dei este conselho. Se desconfiassem que no» entende-
mos, ficava eu perdido.»
Effendou socegou o haiiista promettcndollie a maior
discrição, e apartou-se d'elie para ir n'um pulo ás
feitorias afim de reunir os seus amigos.
E bem o precisava para que scirtisse elTL-ilo o meio
porque elle queria que o requerimento fosse entregue.
Tendo mostrado a experiência que as petições entre-
gues por estrangeiros aos mandarins nunca cliegavain
ás mãos do vice rei, alguns pretendentes mais desle
midos haviam inventado um methodo, estranho (lo-
rém certo, de as fazer chegar ao seu destino. Juncta-
vam para este fim umas trinia ou qiiart^nta pessoas,
dispersavam á paulada a guarda da porta, e entra-
vam fie roíid.ío na ci<!ade china, com grande alarido,
furando os lampiões de papel dos logistas. Estes, as
saltados de terror pânico, deitavam logo a fugir i os
guardas das ruas fechavam as barreiras, e os clccit-
riucs (I) corriam em busca d'um mandarim que vi-
nha ínformar-se da causa da súbita irrupção. Então
os requerentes abaixavam os bordões, ap[>rcsentavam
a petição, e retiravam se com a certeza de que o vi-
ce rei, inteirado do motim, havia de querer vêr o
requerimento que o causara.
O resultado da empreza d'I'',lTendou excedeu as suas
esperanças, porque, no auge do tumulto, acertou de
passar por alli a liteira do vice rei. ElVendon entre-
gou-lhe o requerimento.
Passaram ilois dias sem chegar a resposta, e Eílen-
don já se estava preparando para repelir a supplica
fazendo outra invasão, quando llie entregaram um p.i-
pel fechado com sinete do mandarim de primeira or-
dem. Ahriu, ;i tremer, o leu o seguinte :
«Eu, Kiug-fo, munido cio diploma i\e Isinsse (2),
condecorado succcssivamenie com os dois botões azues,
e com obolão de coral, e hojoeom o botão de pedras
preciosas (.3), e recoiinnendado novo vozes no regis-
tro dos /;/íií/-;íoií {^) '^ governador da provinc-ia de
Cantão em nomo do lilho do céu, o grande e sobera-
no iiriperador.
«Ao chefe bárbaro da fi'itoria americana.
11 Lemos o memorial que tu nos dirigiste, suppli-
cando, e ao lô lo reconhecemos a verdade do prolo-
quio do sábio, quando disse que os corações dos ho-
(t) Ha nas ruas, de certa em certa distancia, portas ou
cancellos, «uanlndos porsoMadiis, as (|uaes se fecham as-
sim qin' prinei|iia alfíum lunnillo. I)c! ilezem dez casas ha um
rfffCKriV/n, (|iie (' um ('lied' de Caniilia, resp(}nsavcl|jclaina-
niílciição (lo snceKo em parle ila rua. O serviço dosdecu-
riOos corre, piu' escala, todos os cidiiilãos.
(1) lia II» diiiia dois «raus litlerarios : o hinJinQio-
meni rccomineinlado) o o de laiiissa (duiilor adiantado em
grau.)
(i) Todo.i 08 empregados do governo china, aquo os chi-
nas chamam í«tí«/i eus europeus jiiandariíis, esiàodiviíli-
dose ove ordens ou elasstis.suhdividida <':ida uma d'ellas
em principal e secundaria. A divisa da I.'' classe, a que ape-
nas porleineni mui raros personaKcns rios maiseniinenles
do império, é um lioirio de pedras preciosas qin- trazem im
K<*)rro ; a ila2.'' classe nm lioiào vernn-llio ou Je coial, do
feilln (l'uma Ih^r ; a da 3." nm liotão de peilra azul Icrrele ; a
da •!." aaul i'laro ; a da ."$.•' de ei isial liiauco ele.
(4) O p<í(y-;)(ii( i' o liiimnal ou ministério (la guerra. Os
Kovernadores das províncias mIo (^x-oltnio picsideutes
(Peste ministério. Os mandarins militares são repiiiados In-
l'erio^(^s aos mandarins civis da un^^nia classe, recelieni pe-
(|Uciios soldos e estão sujeitos á iiispecvâo d'a(Hi(dlcs. Os
chinas presanití nremeiaiu mais o laienlo llllcrarioe o de
bem governar do que o do destruir.
mens eram tão vários como os terrenosdoceleste im.
perio. Porque, do mesmo niodo que vemos rochedo»
eslereis, e terras nocivas que não produzem senão
plantas envenenadas, ha corações d'onde não pcide
sair cousa boa ^ taes são os dos bárbaros estrangeiros.
II Tu desobedeceste ás ordens do soberano impera-
dor, e agora queixas-tede te roubarem tua filha, que
em tua casa conservavas escondida \ pori-m sabe que
o homem prudente não crê na palavra do quebrauta-
dor das leis.
" E quanto ás mil liangs em que falias, é nossa
vontade contentarmo-nos com ellas por esta vez, pos-
to sija muleta insuffieiente para a falta que commet-
leste em não te sujeitares á vontade do filho dociíu.
II Seja isto unia lei a teus olhos "
Não tentaremos exprimir a dtjre indignação d'Ef-
femlon quando acabou de ler esta carta repassada d'o-
dio aos estrangeiros, d'injustiça, de hvpocrisia, e ue
cubica. No primeiro Ímpeto leinbrou-se de juiictar as
companhas de todos os navios americanos que esta-
vam no rio, arma-las, e ir á sua frente pedir justiça
ao vice rei. A rellexão abriu lhe osolhos; fazia unia
loucura. Correu a casa deYou hi, mostrou lhe a res-
posta qne acabava de receber, e pediu-lhe conselho,
O lianista deu lhe de parecer que requeresse de novo ^
e elle próprio, enternecido pelas supplicas do feitor
e pela olVerl.i de quinhentas liangs, prometteu dar
p.nsos n'este negocio. Mas a segunda tentativa não
foi mais bem succedida que a primeira. Oe nada va-
leu a Ellendon o afioio dos agentes das outras feito-
rias, nem a inlluenciu do IcuiKj-han : o[ vice rei sus-
tentou o despacho.
Esta inflexibilidade lançou o desgraçado pai na de-
nieiuia da desesperação.
Em quanto julgou a filha morta sollreu o golpe se
não resignado ao menos sem reluctar, como se solVre
uiii desastre irremediável. Semelli.inte a esses solda-
dos a (|uein o jugo d.H derrota quebr.i subitamente os
brios, haviase abraçado com uma iifllicção muda e
queda :, mas este vergar ao desalento, porque a espe-
rança o desamparara, desappareceu mal tornou a raiar
a esperança. Ao quebranto succedeu uma espécie de
alegria IVliril i)Ue as repulsas do vice rei trocaram
em raiva. Absorto na sua d('ir, e azedado ao \rrque
nada podia, Ellendon tomava mil resoluções que lo-
go abandonava, formava mil planos impossíveis, e a
todos pedia conselhos inúteis ou soccorros que lhe não
poiliam dar.
Comiudo, You-hi tinha continuado a tirar infor-
mações em segredo, sem poder achar rastos de Ma-
ria. Einalmente nm dia chegou a casa do feitor mui-
to esbalorido, e com carii alegre.
— «i Ergue nm altar nos teus génios domésticos,
exclamou elle-, tragote novas de tua filha ! "
EUcndoii den um grito.
— 4. ( Míde está ella .' " perguntou in.iravilhadu.
— u Em l'eking. n
— » (iue dizes tu ? Maria. . . »
— >t l<evarani-n'a de Cantão ha pertod'um niex. »
— >> Ma» como ! (-Inem .' i'or ondi- soubeste .'...>»
— .. l)i\agar, devagar, disse o china sentando-se
<• enxugando a testa. Três |ierguntas rr<iuerem tre»
respostas, i»
— 11 Mas i;slá» certo, bem certo, <jue é ella.'» re-
plicou KlVcndoii, quasi sem |ioder respirar.
— 11 Se e (|ue tu não te enganaste ()uando a viíto
na carroagem enverni/adu »
— 11 Não me enganei. Mas (jueni i' o dono dacur-
roagem .' »
— 11 E o (jiie eu lenho andado a indagar ha tros
semanas, » lhe lornun » china.
— 11 E soubestc-o por fim f , . . »
400
o PANORAMA.
— iiSube muitas cousas; mas, pelos céus azulados
que invoca o nosso soberano imperador, se queres que
t'as diga has de ouvir me. >i
— u Falia ! falia I » disse o feitor sutfocado de im-
paciência c alegria.
— 11 Tu sabes, conlinuou You-hi, que temos em l'e-
kiug um tribunal de censores encarregados de adver-
tir o filho do sol quando erra, e de discorrer as pro-
víncias para examinarem de que modo governam os
mandarins o reino do meio. "
— " Sei. "
— II Pois ha um mez que um d'e8tes censores se
achava em Cantão. Era d'elle a carroagem em que
viste tua filha. . . »
— .i Jlas como se acha Maria em seu poder .'
— II Ah! é a ponta por onde eu devia ter piinci-
piado a historia 1 retrucou You-hi ; e se tu não me
tivesses cortado o lio ao discurso. . .»
— "A final, que aconteceu?"
— n Aconteceu, mister Elfendon, que na noite em
que desappareceu tua filha foi com cfleito apunhalada
por assassinos, e depois lançada ao Tigre, como pro-
vava o lenço do pescoço que te trouxeram."
— 11 Ed'ahi ' " interrompeu ElVcndun arquejando.
— II E d^ahi a corrente levou a pelo pé d'um dos
nossos barcos do (lôres (1) d'onde foi vista.
— E salvaram-n'a .'
— Moribunda, seguiiJo parecia. Valeu-lheachar-
se alli o censor Fo-hu. Quiz que a transportassem pa-
ra sua casa, onde se curou, pois que a viste pouco
tempo depois. »
— u E tu descobriste estas particularidades.. ."
— No barco de flores, onde tudo isto aconteceu. «
EfTendpn saltou aos braços de \ou-hi.
— Es o meu salvador, You-hi ! exclamou elle fo-
ra de si ; dever-te-hei minha filha. Mas como a hei
de exigir de quem a agasalhou?"
O negociante cliiu.i abanou a cabeça.
— iiFohu ha Ue pôr muita difficuldadeemfd res-
tituir, disse elle, porque lhe morreram todos os seus
filhose tem uma avareza insaciável. Ha de casar tua
filha com algum mandarim da corte, mediante gran-
de somma.
— II Ciue dizes? Pedirei justiça ao imperador."
— «E como lhe has de fazer entregar a tua sup-
plica ? »
— a Tens razão, disse EfTendon ancioso •, se os man-
darins servem de medianeiros interceptam-n"a i mas
eu não po-.so fia-la de mãos seguras.' . , . Tu mesmo
You-hi, negar-te-hias a leva-la a Peking, se eu te
promeltesse. . . "
1 Não proinettas nada, acudiu logo o mercador :,
melter-me eu n'e6te negocio era deifar-me a perder."
— 11 (lue me dizes ? "
— Já le esqueceu que nos é vedado ter relações
com estrangeiros, fora as do nosso commercio ? Não
podia encarrogar-me da tua reclamação sem mostrar
que violara a lei imposta aos homens da dinastia de
Han. "
— 11 Não importa! eu acharei alguém."
— Ningurm, Ellondon, ninguém.
— «Mas que hei de eu então fazer?" exclamou o
americano desesperado.
You-hi encolheu os hombros.
— 11 Contcntar-te com saber que tuu filhu esl.'t sal-
va. . . >'
— 11 Nunca ! bradou EiTcndon. Uisse muitas vezes
que a vontade podia abalar montanhas i chegou o mo-
mento de o provar. A despeito de to los os obstácu-
los hei de vêr Maria ou encontrar a morte.
{Continua.)
M. .M. B. DU 150CAGE.
O i'i!iNcirio do presente século viu apagar-se um
brilhante meteoro que fulgurou entre oj astros da poe-
sia portugucza : no curto espaço da sua apparição der-
ramou maior copia de luz que outros em dilatado gy-
ro. Uma vida de trinta e noveannos, decorridos en-
tre 176G e 180o, assignalou-se por grande numero
de composições nos vários géneros da poesia lyrica,
recebidas avidamente do publico, e applaudidascom
tanto enthusiasmo que requintava em frenesi. Ne-
nhum dos nossos vates foi mais popular, nenhum en-
grinaldou a frente com m.iis vecojante e farta corOa
de louros, do que Manuel Maria líarbosa du Bocage.
.\ natureza o dot.ira de imaginação viva e de extre-
ma sensibilidade, que transparecem na maioria dos
^l ) Barcos ornados de Oores, onde ha Ioda a qualtd.idc
de divenimenios. Alli se reunem os chinas a noiío, como nós
nas assembléas philarmouicas,
seus versos, filhos d*aqnel!a facilidade e vchemencia
de estylo, que derivam da inspiração intima : nssci'-
ra poeta, como cllc próprio dii :
Das faixas infantis despido apenas
Sentia o sacro fogo arder na mente.
I
Assim como ha pintores que, ape$.ir de incorrec-
ções no desenho, caplivum pelas graças do colorido,
l^ocage encanta e arrebata pela vivet.i das expressões,
e pela harmonia do melro. Seja-nos licito diíer que
crooH uma linguagem sua enérgica c ao mesmo tem-
po flexivel n todos os assumptos, distinela não tanto
pela abundância como pela e«cp|h.t das palavras ; a
collocação d"cst.T?, raras veies de muitas syllabas, aju-
dando a cadencia do rythmo, a propriedade dos epi-
thclos, explicam a complacência coot que declainâ-
o PANORAMA.
Í0\
mos 05 versos d'este poeta i a dicção nas composições
eróticas corre íluente, é maviosa ^ nas satíricas ú for-
te, pungente e até acerba ^ porém sempre correcta e
harmónica a versificação. — Bocage sobrPsaíu princi-
palmente nos apologos, idílios, caiiçoneta?, sonetos e
outros epigramnias, e também com muito primor no
género eiegiaco. Como improvisador, iipuliiim tive-
mos de tanta nomeada, nem mais prompto e fecun-
do; causava assonil>ro aos que oouviampela aflluen-
cia e variedade das rimas, e pela presteza dos impro-
visos, que uns a outros se succediam sobre o mesmo
assumpto como um torrente copiosa : muitas doestas
composições instantâneas, que os curiosos seus con-
Houve tempo fatal em que arte infensa,
Guerra aos mais bcUos sitios declarando,
Enchendo os valles, arrazando os montes,
Formou do chão gentil planicie ingrata.
Hoje, rural tyraniio, outro artificio
Q.uer, por contrario abuso, erguer montanhas,
Valles quer profundar. Longe us excessos,
lionge as lidas e ardis ; tudo ó lialdado
Contra iutractaveis repugnantes serros-,
E> sobre terra igual montinho humilde
Cuida ser picturesco e move a riso.
em quadro estreito
Não vás aprisionar montanhas, bosques,
Nem lagos, nem ribeiras. E costume
iíombar dVsses jardins, parodia absurda
Dos rasgos que a atrevida natureza
No seu grande espectáculo derrama ^
Jardins em que a arte rude e inverosímil
Um paiz todo n^uma geira encerra.
Enumerar as composições do nosso vate fora ocioso
trabalho, por quanto geralmente siio conhecidas, ainda
dos indoutos, a ponto que ha muita gente que não sa-
be de mais de dois poetas, Camões e Bocage ; e na ver-
dade, depois do grande épico nacional, nenhum é mais
popular e estimado em a nossa terra.
Bocage nasceu em Setúbal, pátria do auclor do yí/-
fonto AJricanOf aos 17 de Setembro de 1700. Teve
por pai o bacharelem Uireitu, José Lui?. Soares Bar-
bosa, muito dado á poesia, qu<! versejava com bom
gosto, e que serviu com distincção alguns lugares da
magistratura. Sua mãi fui 1). Marianna Joaquina
Xavier du JSocage, íilha de Gil Tlluduisdu Bocage,
natural de Cherburgo, que serviu no exercito portu-
guez com a patente de coronel, e era sobrinho lic
M.°" du Bocage, auctorada Columbiada ^ d'(sto poe-
ma emprehendeu o nosso vate afraducção, cocome
ço du seu tralialhu anela na cullecção das suasrinjas.
A. educação litteraria de iJocage não foi Ião regu-
lar e seguida como podia esperar se da epochadosco
nascimento; com alguma» lii,'ui'H ila grainnialioa lati-
na, que llie ensinou um padre iicspanliol, o professor
1). João de Medina, e com as noções ilu idioma frau-
ccz, que aprendeu na casa paterna, subiu a altura
do seu génio á elevação a ijue não allingem quasi
todos os <|Ue ri'cr'lieni a pausad.i e s^sl<nialica ins
trucção das aula». Deveu luilo ao [iroprio engenho, ;i
natural perspicácia ; «prendeu sem mestre o it.ilia-
iio, e o soubi! como prova a tracbicção primorosa ilo
drama de Mi;t,ista»io — Atilio Uegolo. — Não sabe-
mos dizer «I! elle entendia lilleralinente us textos
qu(! punha em vulgar, parece que adivinhava por
inslinito us pi^nsanientos o a» i<li-as ; e se em maté-
ria <le bom gosto (|ui/erem averiguar n »uii escolha,
basla biu<|ar o» olhos para oa fragmentos i|Ue trasla-
dou de auctores selectos. — Não era por certo esln
natural tendência u mais propriu paru fuicr de um
temporaneos guardaram, farão desesperar os que mar-
tellam versos no silencio do gabinete.
Foi Iraductor elegantissimo, e tão conciso quanto
o permittiam a fidelidade ao texto e as leis do metro.
Sendo fácil citar muitos exemplos que mostram a sua
perícia nVste género, apontaremos um só que por
acaso temos á mão. E um pequeno trecho contra o
detestável gosto dos jardins ridículos, ou antes paisa-
gens de presépio e verdadeiros brincos de criança,
ainda muito em voga no presente século. Pomos em
frente o texto francez do poeta didáctico por excel-
lencia, Jacques Delille, para realç.ir o merecimento
da versão.
II fiit un femps funeste ou tourmentant la terre,
Aux sites les plus beaux Tart déclarait la guerre.
Et comblant les vallons, et rasant les coteaux,
D"un sol heureux formait d'iiisipides plateaux.
Par un contraire abus, Part, t^ran des campagnes,
Aujourd°hui vent créer des vallons, des montagnes^
Evitei cea excès : vos soins infructueux
Vainement comliattraient un terrain montueux,
Et daiis un sol égal un humhle monticule
Veul étre píttoresque, et n'cst que ridicule.
N'alle2 pas resserrer dans des cadres étroits
Des rivières, des lacs, des montagnes, des bois.
On rit de ces jardins, absurde parodie
Des traits cjue jette en grand l.i naturo hardie ^
Oíi Part, invraisemblable .i-la-fois et grossier.
Enferme en un arpent un pays tout entier.
engenho precoce um auctor original; massenosper-
mittirem a phrase u originalidade de expressões"
ninguém superior a Bocage na basta chusma dos
nossos versificadores ; porque poetas! '. ! llarissimos !
Mas Bocage tinha a alma d'um poeta , e ella ahi
está viva em versos que não saem do Parnaso lusita-
no, que não se riscarão da memoria dos amantes da
poesia. Edemais, é Bocage tão portuguez na lingua-
gem, (lue o numcrom lilianno, como o appellidou
Kilinto Elysio, ha de a par d"este conservar o seu
busto no Capitólio das musas portuguezas, posto que
para o conquistar seguisse cada um d'elles diversa
vereda. (Contimta.)
A ILHA CcLEItES I\I.»C.\S3AB.
(Continuado de pag. 90.)
E sAiiiuo que unia lei severíssima defende a salda
das nndheres do ciltsle fin/itíi') : penas nuii atrozes e
horríveis tractos a tornam de tal sorte formidável,
ijue nem sequer intentam iid'ringí-la ; por isso os
chinas (]ue se expatriam para as colónias hoUande-
zas não teem mais remédio senão desposarem-se con\
mnlhires malaias ; coinpram-n'as couu> escravas, o
inenlcam-llies as practicas e usos da mãi pátria, em
ijue são (rdncados os f\llios ; os quues, posto que to-
iiliam saíilo á luz mui arredados da China, são tão
allerrados á» ideas o religião em vigor n'aquclleim-
|ieiio como se n'elle himvessen» nascido; aonicadif-
lerene.i appnrente ó a cilr da pidle um pomo mais
escura. l'or isso <• de notar que o t_v|u> china, tão ca-
racterístico, acha-se assignabulo nos troncos d'esta
casta : embora mestiços, «luando mesmo ii geração,
|)or muitas allianças successivas, se cruza com san-
gue estrangeiro, rcconhece-su sempre a phjsiouomi.H
original.
\02
O PANORAMA.
A physionomia dos malaios é a mesma em toda a
parte-, só differe em graus miniraos. Aqui se acham
também os bellos cabellos pretos, os olhos contrahi-
dos, as maçãs do rosto largas mas salientes, o rosto
achatado, o nariz pequeno, a bocca mui rasgada, os
beiros grossos, constantemente semi-abeitos e corados
ptlo jumo do betele (1), deixando vêr uma deforme
enfiada de dentes denegridos. Os bougiiís teem, de-
mais que as outras raças, uma certa dureza no sem-
blante, mas não se diATerençam quanto a feições. O
corpo é geralmente bem conformado, mais ágil do
que robusto, gracioso posto que de altura meã, cheio
de carnes, o que parece bem á vista, mas denota
mais a nutrição do que a força muscular. O trajo
dos bouguís é uniforme, consta de ceroulas curtas,
de um lenço que cinge a cabeça, e do sarong, espé-
cie de sacco sem fundo que trazem a tiracoUo, eem
que se embrulham pela tarde, quando a fresquidão
da noite succede aos ardores do dia. Gluasi todos
trazem o cris á esquerda prezo a um cinturão i ás ve-
zes deixam cair a ponta da tal faxa a tiracollo sobre
o punho u'aquella arma, e cruzam as mãos seguran-
do-a com donaire: c-lhes natural esta postura em si-
tuação de repouso : é bastante engraçada e pictures
ca, como em geral todas as suas altitudes do corpo,
livre de toda a sujeição. — As mulheres trajam á
moda de todas as malaias, isto é, uma saia de mui-
to pouca roda, e uma camisola que tapa c tronco do
corpo; algumas ha que desprezam esta camisola, e
trazem simplesmente o saiong seguro com uma so
volta acima ou abaixo do seio. Exclusivamente con-
sagradas ao amanho caseiro, não apparecem a miú-
do em publico: a phvsionomia das mulheres de Ma-
cassar é em geral repugnante a olhos europeus : o
metal da voz, também dus homens, tem um tanto
de snave, encanta e attrahe a attenção,- se porém
olhardes para a bocca d'onde sáe a melodia, cessa lo-
go o prestigio. Um facto extraordinário entre um
povo que professa o mahometanismo, é a facilidade
dos costumes das mulheres a respeito dos estrangeiros.
O território hollandez de Macassarestá encravado
nos dominios do s\iltão de Goá, que reside juncto ao
rio do mesmo nome, a três léguas da cidade i a sua
morada nada olVereoe digno lie menção, a sua corte
é uma aldeia malaia, como todas as mais; e comtu-
do é supremo cabeça de uma população de cem mil
pessoas, que tantos são ca súbditos que lhe calculam.
Posto que independente, é um alliado fiel dogover-
no (l'lIollanda, e tem dado muitas pro\as de de-
voção aos interesses d'esta potencia. As suas tropas
sobem a dez mil homens, todos de cavallo ; alguns
trazem cotas de malha, elmos, e escudos; todos se
servem de lanças, e pouquíssimos de armas de fogo.
Abundam os cavallos na ilha, e, por sua boa quali-
dade, são apreciados cm todo o archipelago; a mar-
ca é pequena, mas são fogosos, e ainda nas longas
jornadas sustentam a celeridade do passo. j
Os naturaes de Macassar, propensos a uma indo- '
lencia ipie é [iroverbial, parece terem ganho pouco
no tracto da civilisação mais avantajada, ou só te-
rem adquirido os vicios d"esta. Oi chinas os presen-
tearam com as cartas de Jogar e o ópio, e os euro-
peus com o vinho. São desesperados jogadores; em
toda a parte se entregam os mslaios a esta paixão,
mas em nenhuma tanto como em Macassar : não
usam só do baralho, mas tair.bem dos dados. No ba-
zar ha barracas miseráveis, onde uma íurba ávida se
apinha, até fora de horas, de redor de um jogo de
três dados. 1'ara formar idén d''esta scena enojosa,
(1) Herva que de continuo mascam os povo»
d'esfa5 regiões.
era mister observar os rostos hediondos da plebe,
ainda mais desfeados pela expreisão da anciã e do
temor da perda, allumiadus pela claridade vacillan-
le de duas lanternas estropeadas: julgar-se-ba o ob-
servador transportado á região infernal, tão atrozes
são as physionumias d'aquelles homens, anciosos, ar-
quejantes, e de vez em quando levando a mão aos
punhaes, que nunca desamparam.
A embriaguez du ópio c do vinho concorre para a
bruteza da classe intima ; de raro comtudosuccedem
sccnas de assassínios por uso immoderado do ópio, co-
mo na Java acontece ; ou porque baja mais efljcat po-
licia, ou porque seja menos vulgar o abuso d'aqaella
droga. — E practica habitual do povo tomar a comi-
da á entrada da noite ,- e com effeito é hora bera et-
colhida n'uma clima tão cálido; até as nove boras
gyram entre a multidão oi vendedores de bolos de ar-
roz amassados, de ovos cosidos, e de bananas fritas,
oflerecendo os comestíveis por vil preço. A barateia
é tal, que uma dúzia de galinhas custa uma pezo du-
ro hespanhol, e pelo mesmo preço se alcançam até
dúzia e meia de patos; e assim mesmo dizia um em-
pregado da administração hollandeza que havia três
annos que tinha triplicado o custo dos provimentos
de bocca.
A ilha Celebes é farta de caça, e também possue
animaes corpulentos ; mas não ha que temer os es-
tragos das feras, porque não existem os tigres que
em tanta quantidade apparecem em Borneo, e na
Java e Sumatra : porém ha crocodilos como praga,
que por toda a banda saem ás praias regulando se á
soalheira ; para obter um d'elles basta dar algum di-
nheiro aos indígenas : alguns são monstruosos de ta-
manho, ha-os de trinta palmos de comprimento des-
de a ponta da cauda. — Contaram-n'us a respeito
d'elles o seguinte caso.
Os crocodilos frequentam a ribeira quasi até o
pé da cidade, e por vezes atrevem-se a chegar de
noite muito próximo dobaiar. N 'estas corridas noc-
turnas um pilhou a geito um menino china desgar-
rado, e tragou o de um sorvo. O pai do rapai advi-
nhou logo o roubador, e, não duvidando que estives-
se perto, iscou um forte anzol ou arpéuci>m um cão
vivo, cujos gritos, ao que dizem, attrahem aquelles
vorazes amphibios ; assim capturou o inimigo. Vio-
se então em toda a sua latitude o caracter china. O
pai, lodo embebido na vingança, amarrou segura-
mente u preza á praia, e por três dias contínuos não
a largou um instante; com infatigável perseverança
recreavase em alancear o animal captivo nas partes
vulneráveis porém menos perigosas; atormcntou-o
com tal refinação de crueldade, que a linal aborrecia
á gente da terra, porque tudo acudia a vêr o espec-
táculo. Quando o monstro acabou de lodo, abriu-o,
extrahiu a ossada do filho com minucioso cuidado,
enterrou-a, e, nodiaseguínte, continuou serenamen-
te a carreira habitual das suas occupações mercantis.
Ha veados em grande quantidade nns visinhanças
de .^Iacassar, e caçam-n'os d''ufn modo que merece
descrípto. — A caçada é feita a cavallo; ocavalleiro
arma-si> de um bambu de nove a doie palmos de
cumprido, que le\a n'uma ponta um ferro de lança,
e na outra extremidade un) laço corredio de couro.
O caçador persegue o veado nas vastas planícies in-
teriores até lhe poder lançar ao pescoço o laço, des-
embaraça e revira a lança, e o primor da desirna
é matar de um jacto. Não c isenta He perigo a caça
quando succede atacar o «eado oseu antagonista, ou
arrasta-lo na carreira para sítio onde n.^o podem se-
guir os cavallos. l'ara este exercício c preciso ser
bom cavalleiro. e o faiem com um.ts sellas muito ra-
sos, e sem estribos; o que parece impossível, posto
o PANORAMA.
Á05
que repetidas vezes no-lo affirmaram, é cjue a cor-
reia que prende o veado é amarrada ao freio e uão
á sella ; o iiomem de per si só não poderia resistir
aos esforços do animal perseguido, e parece queoca-
vallo, puxado d'aquelle modo, oppõe resistência que
embaraça a fuga da victima e llieaccelera a morte.
Outra maneira de apanljar os veados, original
também, porém menos arriscada, consiste em guar-
necer de anzoes os cacbos dos fructos de uma arvore
especial da illia mas alli muito comnuim, e de que
são muito gulosos aquelles animaes, que, erguendo-
86 sobre os jarretes para os abocarem, íicam prezos
pelo anzol : semelhantes ciladas lhes armam á beira
dos rios, onde costumam beber. Não concluiremos
sem fallar do famigerado óleo de Macassar : com ef-
feito existe, e scrvemse d'elli; os indígenas, princi-
palmente as mulheris-, vende-se por baixo preço,
uma rupia quatro frasquinhos :, mas não tem a trans-
parência, nem o perfume do que vendem os nossos
cabelleireiros : é ruivo, espesso, e deita um cheiro for-
tedecarvão de pedra que nada tem de agradável. Kx-
tralie se das amêndoas que produz uma arvore alta e
de folhas digitadas, que parecem de nogueira : pi-
zam-n'us em gral, e, depois de enxuta a massa, ob-
tem-se o óleo por meio da fervura em agua •, depois
o misturam com vários ingredientes que o tornam
completo. Aarvore chama-se íiat/ó em liugua malaia.
Em resumo, Macassar appresenta ao estrangeiro o
aspecto de uma colónia, mais importante pela sua si-
tuação do que pelas suas producções. Actualmente o
seu commercio todo consiste no que dá o terreno,
arroz, gados, e a pescaria que se exporta. A im-
portação esti reduzida a objectos miúdos de consu-
mo, chitas, ópio, e algumas fazendas de uso dos eu-
ropeus. Se uma administração mais activa tomasse a
direcção d'esta colónia, vêr-se-hia indubitavelmente,
dentro de poucos annos, cessar a pirataria de infes-
tar os mares circumdantes, adiantar-se a cultura
i)'um chão fecundo, desenvolver-se a industria e o
commercio, transformando a ilha inteira, e tornan-
do-a a mais llurecente possessão hollandeza das ín-
dias, assim como é, quanto á extensão, a mais im-
portante.
O l'ELOTiaVKIIlO INCOMllUSTIVEL.
Em 180!) appareceu cm l'arís, e depois na Inglater-
ra, Itália e na Allemanha, um hespanbol por nome
Ijionettu, que, pela sua insensibilidade, não só fez
pasmar o povo, mas também os physicos e os chy-
micMS. lirincava com o fogo sem se queimar, c pe-
gava impun(>meiite n'uma barra de ferro em braza e
cm chumbo derretido, bebia azeite a ferver, &c.
Gluando Lionetto esteve em Nápoles, chamou a
attenção do professor Semenlini, qui: se ap|ilicou a
estuda-lo. Viu, 1." <|ue o homem incombustível pu-
pila uma chapa de ferro em braza em cinui do» ca-
bellos, e ipie logo se levantava um va|>or espesso e
denso-, iJ." batia com outro lerro em braza no calca-
iiliur e no bico do pé, e levanlava-se irisle um va-
por espesso e Ião picante <|ue inciimmudava o ollaclo
e a visla :,.'}." feirava os dentes n'um firrii (|Uiisi em
braza sem sn <|ueimar; 4." brbi» quasi a l(M(;a parle
d'uma colher de uzeil(í a ferver; 'o." mergulíiava ra-
pidamenlí- m punias dos ileilos em chumbo derri-ti-
do, e punha iim piunu) cie einnnbo sobre a língua, e
depois um ferro em braza. Sementiní observou qn<!
a lingua ile liíoiiello eslava eobcria de uma eamaila
cinzeiíla. I'',ile chymíeo, desejoso de descobrir o se-
gredo dl! liionello, tentou diversas experiências em
8Í incarno, e conheceu :
t." (lue por meio das fricções com ucidos, espe-
cialmente com o acido sulphurico diluido se tornava
a pelle insensível ao calor do ferro em braza.
2." Uma Éolução de pedra hume evaporada ale
ficar esponjosa, e empregada em fricções, fazia ain-
da melhor effeito. Sementini, depois de haver esfre-
gado com sabão duro as partes do corpo tornadas in-
combustíveis ou antes insensíveis, e de as ter depois
lavado, reconheceu, pondo-lhe em cima uma chapa
de ferro em braza, que a insensibilidade auo-mentá-
ra. Decidiu-se então a esfregar de novo com sabão as
mesmas partes, e não só o ferro em braza lhe não
causou dòr, mas nem os eabellos se lhe queimaram.
3." Satisfeito com estas pesquizas, esfregou a lín-
gua com sabão duro, e lhe ficou insensível á acção
do ferro em braza.
i.° Pondo sobre a /íngua um emboço composto
de sabão e d'uma solução saturada de pedra bume,
a ferver, o ferro em braza não lhe causou sensação
alguma.
vi." O azeite a ferver espalhado pela língua assim
preparada não a queimou; ouvia-se um assobio pa-
recido com o do ferro quando se apaga n'dgua-, o
azeite ficava morno, e podia por conseguinte seren-
gulido sem perigo. '
Estes resultados, obtidos porSementini, tendem a
explicar as experiências de Lionef to. Éevidenleque
elle preparava a língua e a pelle por meios análogos.
Quanto á experiência dos eabellos, é certo que antes
dl! lhe passar por cima o ferro em braza os lavava
com uma solução análoga á da pedra home, ou com
acido sulphurico. Quanto ao azeite a ferver que en-
gulia, é este phenomeno menos pasmoso para quem
observar que, quando elle procurava demonstrar a
alia temperatura do azeite, lhe deitava dentro chum-
bo, que, derreleiído-se, absorvia por conseguinte par-
te do calórico do azeite, do qu.il derramava depois
com ligeireza a quarta parte d'uma colher sobre a
língua, onde esfriava a ponto de poder ser engolido
sem lhe fazer mal. A falta de acção do chumbo sobre
a língua assim forrada, resulta também do prompto
resfriamenlo. E'comtudo provável que, em vez de
chumbo, Lionetto empregasse alguma liga fusível,
tal como a de Darcet.
Não levaremos mais adiante este exame; muitos
pbvsicos repetiram com bom resultado estas expe-
riências. Parece, diz Mr. Julíon de l''ontenelle no
fim d'isle artigo, que o hespanbol Lionetto, quando
asemprehendeu, teve seu susto de vir algum dia parar
á inquisição.
AUOMENTO CnAllCAl DE C,\LOn NAS EKTRANII AS
DA TEUllA.
CoNCLiíE-SE das observações de Rir. Arago, repeti-
das em diversos paízes, que o calor da terra cresce
na razão da profundidade, o segue no seu aii^mento
uma marcha regul.ir e conslanie. Por cada quinze
braças de proliindídade marca o ihermomelro mais
um grau; e isto quer .te meça a temperatura dasnii-
nas mais profundas, quer se exiimíne, como fez aijuel-
h-distíncto pb.ysiro, a da» fontes situadas em profun-
didades conhecidas.
Uenzkuitkas na Hussia.
1'', uuANDu na Hussia, sobre tu.lo eni Moscow e ou-
tra» cidades interiores, a inIlueiK-ia do clero. Aí ce-
reinonias religiosa» do rílo grego, <|uo éo <la unção,
Icem certo cunho de singularidade, e n despeito de
eerlii apparencia do parentesco eoin o rilo romano,
não deixu de maravilhar o» calholioos. O Sr. Mur-
104
O PANORAMA.
tnier nas « Cartas sobre a Rússia " diz : — « Não ha
povo fjue receba mais bênçãos sacerdotaesque o povo
russiano : tenin'a9 para si e os seus alliados, para as
casas que habita e as terras que cultiva, para as sea-
ras e os gados, para tudo o que faz e tudo o que em-
preiíende. Todos os annos, a 6 d'agosto, estão as igre-
jas cheias de peras e maçãs para os padres as betiie-
rem i antes d'e5se dia nenhum verdadeiro fiel ousa-
ria comer um pomo. Apenas finda a ceremonia reli-
giosa, toda a gente se arremeça ás celtas rociadas de
agua benta : todos saem de algibeiras e mãos cheias,
saboreando e devorando os fructos consagrados. Nao
c a sensualidade grosseira que anima aquella multi-
dão, não é liojnenagem que tribute á divindade pa-
gã, Pomoiia •, é um sentimento de piedade e fé de
que está possuida. A (i de janeiro bcnzem-se os rios
e ribeiros: o padre encaminha se para as margens
com grande pompa, manda fazer um furo no gelo, e
por ahi mergulha três vezes uma cruz, rezando certas
orações: logo as mulheres acodem com vasos e baldes
para tomar d'aquella agua abençoada, os homens a
disputam entre si e bebem-n'aa grandes tragos : re-
cresce o tropel, dão-sc encontrões, e arrebatam uns
aos outros os copos e frascos.- é uma balbúrdia por al-
gumas horas, uma lucta entre a força e a destreza,
entre a audácia e a astúcia. Um artificial chafariz
de vinho a correr n'uma de nossas praças publicas,
cm dia de festa nacional, não causaria mais rumor.
— Esta mesma igreja, que abençoa tantas cousas,
também tem suas horas demaldicção. lia um dia do
anno, em o qual, na cathedral do S. Petersburgo c
em meio de numerosa assembléa, o cantor da seque
tem voz mais retumbante pronuncia alternadamente
o nome dos hereges mais celebres, e os nomes dos fio-
mens que lêem causado sedicções e desordens no im-
pério riissiano : por exemplo, de Boris GonodofT que
usurpou o throno dos czares, de Mazzeppa, intrépido
caudilho dos cossacos, de Pngatscheff quese inculcou
por Pedro III etc. , e a cada nome fulmina cjm o
brado nnnthema, que estruge as abobadas do templo.
N'esso dia a igreja está toda brilhante de lumes e
inundada de intenso, como era festa solemne, e o me-
tropolitano no altar, revestido como em ceremonias
augustas. Um coro de meninos repete em tom senti-
do e melodioso a palavra nnnlhema "
Penas dos empregados venaes bm Portugal
E NA China.
A NOSSA Ordenação no liv. o." tif. LXXI, ha mui-
to tempo em di'suso, prohibe aos desembargadores,
julgadores, ofiíeiaes de justiça e fazenda , e aos da
governança das cidades, villas e logares o receberem
dadivas ou presentes de pessoa alguma, ainda que
com clles não traga requerimento de despacho, sob
pena de perderem os oflicios e pagarem vinte por
um do que receberem ; e reputando mais criminosa
a acção de dar que a de receber, manda que quem
der perca toda a sua fazenda, qualquer ofticio ou
cargo que tiver, e o mantimento que receberd'elrei,
e seja degradado cinco annos para Africa.
"12 trazendo feitos perante os dictos julgadores e
desembargadores o mais officiaes acima dictos, ou
requerendo desembargo ou despacho, e recebendo
qualquer cous.t d'a(iuelle que assim trouxer ou re-
querer, ou de outros que lli'o der por elle, sendo ca-
daum de todos os sobredictos officiaes, ofllcial que
tenha ofllcio de juigar, perca para a nossa casa todos
os seus bens e o offitio que de nós tiver. K se a pei-
ta passar de cruzado ou sua valia, ali-m das sobre-
dictus penas será degradado para todo o sempre pa-
ra o Brasil. E sendo de cruzado, e d'aht para bai-
xo, será degradado cinco annos para Africa. E sen-
do a peita da valia de dois marcos de prata, ou
d'ahi para cima, além do perdimento da fazenda,
morrerá morte natural.»
" E sendo o que recebeu a peita official que não
tenha officio de julgar, e a receber trazendo perante
elle, ou requerendo qualquer despacho, além de per-
der o officio pagará trinta por um do que receber,
ametade para quem o accusar, e a outra para nossa
camará. 11
IVo império celeste os que se atrevem a conculcat
os mais Siigrados deveres, vendendo as vidas, honra,
e fazenda de seus concidadãos, são punidos por uraa
escala de muletas, bastonadas e degredo.
«Se o empregado civil, ou militar, no exercicio
do seu emprego, commetter delicto que mereça pena
corporal, diz o Sr. José Ignacio ile Andrade nas suas
inestimáveis Carias cia índia e China, será commu-
tada em diminuição nos graus da sua ordem, em
muleta ou degredo, segundo o numero das bastona-
das correspondentes ao delicto. Dez bastonadas equi-
valem ao salário de um mez \ vinte ao de dois me-
zes ; trinta ao de três ; quarenta ao de seis ; cincoen-
ta ao de nove ; sessenta ao salário de um anno ; se-
tenta á degradação de uma ordem ; oitenta á de
duas ; noventa á de três ; cem á de quatro ordens e
perdimento do emprego. Além das penas menciona-
das teem degredos relativos ao numero das bastona-
das, segundo a espeie e o grau do delicio, por um
mez, dois, três, etc. ; até por toda a vida, como ve-
rás na tabeliã seguinte."
II (iualquer funccionario publico, que receber pre-
sentes ou ajustar recebe-loi, para fazer um acto legal
ou illegal, será punido era virtude da lei applicada
a tacs crimes.
Tabeliã das punirões quando o aclo é legal.
Valor em onças de prata. Bastonadas. Degredos.
1 60
2 a 12 70
20 80
30 90
•iO 100
50 tiO . . . . 1 anno
60 70 .... 1 ; n
70 80 .... 2
80 90 .... 2 i "
90 100 .... 3
100 100 . por toda a vida.
" Sendo o acto illegal a pena é maior. "
'■Ha outra lei singular que inllije pena de morte
a qualquer individuo que requerer títulos honrosos
ao imperador, não sendo ja distincto por serviços
prestados á nação. "
Já que falíamos nas Cartas do Sr. José Ignacio de
Andrade, cumpre-nos declarar que são um thesouro
de noticias das cousas da (Niina : absorvem toda a
atlenção do leitor, recreando e instruindo ^ revindi-
cara a honra do nome porluguet, e desmentem as
calumnias profwgadas por escriptores estrangeiros in-
vejosos da nossa gloria. O auclur não se fat menos
digno de elogios pela sua vasta erudição, apurado
gosto, e recto juiio, do que pelo amor da pátria que
vivifica toda esta producção litlenria. Desejamos
que a nova edição que se prrfwra das Cartas do Sr.
-Vndrade vulgarise a sua leitura quanto cila» o mere-
cem , visto que a primeira, feita com e»mero que
honra a tvpographia portugucia, só chegou como do-
nativo aos amigos do seu desinteressado auctor.
14
O PA.NOllAMA.
105
1^ --"^Sm^MA
:^^^í:
■^h:â
f
if'
PAISAGEM DA NOVA-CALEDONIA.
Ah u.has Wallis são Je toda a Polyuesia as únicas
onde o christianismo derrubou complelainente a ido-
latria. A conversão dos inili^'i'ii is iTcsla [jcqucua
parle do mundo uiaiitimo tviu :ipcnas quatro annos
de data. Ciemos que será inlercssaute a narração das
fa<li|,'as que leve de supportar o padre Dataillou dis-
dc o anuo de 1^37, eui que pela primeira ver poz
pé n'cslas ilhas, alé o dia em que luram coroados
de exilo feliz os seus esforços, f^ogo ao principio foi
pelos naluraes reputado como tuji dos aventureiros
vagabunitos que o:i navios da |)csca da baleia deixam
ás ienes n'aquellas praias : sem praticarem conlra
clle acto algum do violência, eomludo oarrcdavam
do si, eliamando-liie nomes grosseiros. U religioso
ministro, resignado com sua sorte, supportava com
tranqnillidaile heróica os sens iiaileeimenlos, eonlian-
do meramenle no auxilio da l'roYÍdoiKÍa, celebrando
missa ora no meio de espessuras im|icnelraveis, ora
cercado de alguns ociosos allrahidos (!(• maligna cu-
riosidade : |iromplamenle se fauiili.nisou com as ex-
pressões prineipaes da linguagem nativa das ilhas, c
soube distinguir bem as imprecações, a (|ue somente
r('sp<jndia com um (dliar em i|ue se cleliuxava a sere-
niilaile da sua alma, v. a cmnpaixão (|ue lhe inspira-
vam a(|uelh!S miserareis idolatra.s. Kstc olhar c a
brantiura do seu caracter caplivaram, tendo decorri-
do alguns rue/.es. oilo ou dei naturaes da pequena
ilha de NnliUlea, onde reside o maior.il (festa gen-
te, o qual, sendo então muito moço, declaruu-so pro-
tector do |iadrc, e exhurtuu a sua triliu a ouvi-lo.
J'assaram-se dois annos, eo pequenino rebanho, cres-
cendo em numero, mostrara, perante as perseguições
dos seus patrícios pagãos, uma C(Mislanci,i v resigna-
ção verdadeiran;ente riuislãs. (ieilo dia, .ilgiimas
YoL. 1. — Dl^iímuiu) 1, 18ÍG.
íribus idolatras saquearam os campos d'inliamcs dos
catholicos ; esles, privados de alimentos, congrega-
ram-sc á voz do mancebo, seu principal, para se vin-
garem : mas o padre Halaillon, acalmando-lhes o fu-
ror, concebeu a iiléa de encaminhar esta eircumstan-
cia á gloria da religião, intentando por uma cruzada
pacilica a conversão simultânea de lodosos irjulanos
pagãos. Fez uma bandeira com a imagem da Sanc-
tissima Virgem ; e os christãos, alistados sob este
pendão sagrado, marcharam ao mando do missioná-
rio para trazer á fé seus irmãos transviados. Saido»
de Nuliutea tomaram terra na ilha princii)al do gru-
po das Wallis ou por outro nome l'\éj. O sacerdo-
te arengou á tropa e recommendou-lhe humanidade ;
ao mesmo lempo o mancebo govornanlc. I.uiigahala,
procurava chamar ascu partido os liabilanies da al-
deia onde havia desembarcado, e a força cncami-
nhon-se por terra denlro, entoando cânticos : pouco
a pouco se aiigmenlou, e a (inal contava em suas
lilciras a parle imporlanlo da população, excepto a
genteda aldeia, aclualmente dieta de S. João IJap-
lista, onde residia l.ufrliHi, rei do arclii|ielago, de
i(uem sobre tudo os calholicos tinham razão de quei-
xa : esta tribu, estreitada por loila aparte pelas íri-
bus convertidas que lhe inlerceplavam os viveres,
foi-se bandeando gradualmenle e reunindo ao eslan-
daite ehristão. O triumpho não podia ser mais com-
pleto ; porém o (|ue é para admirar, o mancebo maio-
ral, a cuja iniluencia se de»e em grande parle n con-
versão d'aquelles gentios, é o único que não ó ehris-
tão. Este homem, de inlelligencia miiilo superior á
de seus cinn[)atricios, parece haver considerado a mis-
são uma favorável circnmslancia para elevar-se e ga-
nhar ascendência sobre o |iovo. abal.indo o [loder di<
106
O PANORAMA.
Laveloa seu tio : é animoso, perspicaz e cheio de au-
dácia, o seu modo de dizer c vivo e seductor : pare-
ce ser o aferro á polygamia o motivo que o desvia
de converler-se á fé christã. j
Tivemos (diz o ofiicial de marinha escriplor d'esta i
narração) a opporlunidade de assistir á sagração do i
padre Balaillon , que por bulia pontiGcia , de que \
foi portador monsenhor Amalha, passageiro do nosso
navio, recebeu o titulo de bispo de Enos. A gente ^
das povoações afluiu a S. José , centro da missão , |
trazendo ofTcrtas de inhames, porcos, peixes, e fruc-
tas : todos vinham trajados com seus vestidos de fes-
ta ; as raparigas entoavam hymnos, e as creanças
corriam de uma banda e oulra dando grilos de con- \
tentamento : quando passávamos pelos seus ranchos, !
era a quem mais nos apertaria a mão com ar riso- |
nbo, e nos offereceria casa para descançar, ou nos |
iria buscar o refresco das fructas da terra. !
Á chegada dos missionários calholicos, oshabilan-'
tes das Wallis tinham feito bem fracos progressos
nas artes da industria, e acbavam-se bastante atra-
zados dos seus visinhos do archipelago de Louga-La-
bou, que lhes fica ao sul : porém actualmente já os
igualam, cm consequência das boas disposições que
desde aquella epocha manifestaram para receberem
o beneOcro dos conhecimentos úteis. A maioria já
sabe ler e escrever, e alguns tecm noções gcracs da
arithmetica e da geometria ; tudo aos faz prcíumir
que chegando ao seu alcance as nossas artes se des-
pirão do resto de apatbia que ainda os ataca. São de
boa apparencia e excellente conslituiçr.o phy=ica, seu :
caracter é affavel e generoso, presam os estrangeiros,
e principalmente gostam do génio jovial dos fran-
cezes.
A população de todo o archipelago é quando mui-
to de 2300 a 3000 habitantes ; o solo é produclivo
e favorável a todo o gensro de cultura ; o clima sa-
dio convém a todos os temperamentos, e se não fo-
ram os excessos do kouva, bebida fermentada, que
altera o sangue, os naturaes d'eslas ilhas bera depres-
sa se fariam notáveis entre os demais ua Polynesia,
sobretudo agora que mudaram de costumis.
A '20 de novembro de 1845 ferrámos panno na an-
gra de Balnde, que é o porto que fica mais ao norte
em a Xova Caledónia, na Occania : apenas ancora-
dos nos rodearam umis canoas muito mal -ifciçoadas
eom velas de esteira c remos apenas desbastados ; a
presença dos que n'cllas vinham nos di.sgoz pouco fa-
voravelmente acerca dos naturaes d'aquena região ;
os corpos frágeis c estilicos, cobertos de uma capa de
cebo preto, a estúpida admiração, que se manifestava
por sons gulturacs incomprehensivcis, nos compiLi\a-
ram a verdade da asserção dos vi.ijantes j.clo que to-
ca á raridade das communicaçõcs de navms com esta
ilha. Pareciam receosos e desconfiados, e os nossos
menores mo\imcnlos os atemorisavam ; com dilTicul-
dade consentiram em subir á coberta, e aoi olhavam
com pasmo misturado de estupefacção ; tudo os en-
leava ; u som da sineta, o toque do tambor, as canti-
gas dos marinheiros eram para ellcs um objecto de
admiração, que ás vezes denotavam por singulares es-
talos dados com a lingua.
Os caledonios de casta pura são em geral da cor
do chocolate ; dizemos deca<'ia piiva porque em mui-
tos pontos do littoral são mcstiçuo (.jci os das ilhas
Loyalty, oiuic a raça é de cór avermelhada. São al-
tos, descarn.idos, mal proporcionados, e á primeira
Tista mui dc.-.:iirosos ; tem nariz esborrachado, bocca
rasgada com os beiços grossos ; m.is os olhos pretos
são ás vezes expressivos : os lóbulos das .rolhas, fura-
dos de grandes buracos, pendem quasi até os hom-
bros pelo costume de trazerem iiolles objectos volu-
mosos. As suas armas ordinárias .«ão fundas, zagaias
que arremeçam com destreza a grinde distancia, e
massas mais notáveis pelo pezo que p'--la elegância.
Os caledonios nos pareceram inofr-^nsivos e hospita-
leiros ; a sua extrema indolência que os desvia das
mais simplices recreações é provavelmente a causa de
dizerem os viajantes que era uma gente sem uso de
razão. Examinando-os seriamente nos convencemos
de que junctavam a um vulgar entendimento algu-
mas boas qualidades. Nos primeiros dias noS incliná-
mos a crer que a pouca actividade no acolhimento
procedia da carência da virtude hospitaleira tão com-
mum nos povos selvagens ; mas em breve reconhece-
mos que o sen proceder nascia de temor e não de má
vontade.
Os indígenas da Nova-Caledonia sustentam-se qaa-
si exclusivameut-e de vegetaes que cultivam, como o
inhame, o tooco &c. , e de raízes mucilaginosas que
crescem espontâneas nos mattos. As habitações seme-
lham cortiços d'abelhas, e outras arremedam as arri-
banas e telheiros : damos amostra d'ambas na prece-
dente estampa. .As primeiras servem de refugio du-
rante a noite, e são perfeitamente fechadas com uma
entrada única ; as segundas, patentes por um dos la-
dos, são os logares para os ajunctameatos diurnos.
N'esta ilha encontram-se formosas planícies e ex-
tensos bosques, que em tempo breve offereceriam va-
liosos productos á exportação : e pôde segurar-se que
n'ella por certo medrariam todas as plantas exóticas
da zona tórrida, e grande parte das que se cultivam
nas zonas temperadas.
O Feitob de Castão.
Novella.
(Continuado de pag. 98.)
Dias depois d"esla conversação estava deshabitada a
casa d'EfTendon, • outro agente dirigia a feitoria
americana. O feitor antigo desapparecèra sem que
ninguém adivinhasse o que era feito d'elle. .Alguns
presumiam que embarrara ás escondidas para a .Ame-
rica ; mas a opinião geral era que, desanimado de
todo, puzera termo ao seu penar matando-se pelas
próprias mãos.
Ora, em quanto na feitoria discutiam esta ques-
tão, EiTendon. embrulhado n'um vestido talar de
daba (1), apertado por um cincto do qual pendiam
uma faca, um leque, c uma caixa de perfumes, cem
umas tandalbas de palha de arroz, e com um chapéu
afunilado de perto de dezoito pollegadas de abas, ia
já caminho da cidade de Peking.
A razão principal por que escolherão trajo de ho-
mem de negocio da Corça, que acabamos de descre-
. ver, foi para que ninguém, pelos seus modos e pro-
nuncia, reparasse n'elle, e visse que era estrangeiro ;
; mas a poucos passos se desenganou de que bem po-
I dia ter dispensado esta cautela, porque aos chinas
j não lhes passava pela imaginação uma «mpreza tão
I t«meraria. Costumados, além d'isso, ás variedades
de dialectos e physionomias das raças que povoam o
immenso território do império celeste, não descon-
fiavam d'elle. O que no princípio, «os próprios olhos
d'Effendon pareceu loucura, que só o amor de pai
' podia desculpar, agora já lhe parecia quasi uma via-
gem ordinária.
I ■
(I) Fazend» Je algodão de que soves lem ns Cores.
o PA NORA Al A.
107
Desejando comtudo não encontrar ninguém que o
conhecesse, resolvera ir a Peking embarcado. Por
mal de peccados, este modo de viajar era ainda me-
nos seguro que vagaroso ; porque apesar de terem os
chinas aberto no seu território trezentos e cincoenta
canaes por onde, quasi exclusivamente, se transpor-
iam os viajantes e as mercadorias, os seus engenhei-
ros ainda não inventaram as comportas, de sorte que
quando as barcas chegam a alguma portagem enca-
lhani-n'as, içaai-n'as por uma rampa, com a ajuda
d'uma machina que está no ali • d'ella, e depois ar-
reiam-n'as por outra rampa. Como esta manobra,
bastantes vezes repelida, muito retardava a viagem,
pudera o feitor fazer miiidas observações no paizqiie
atravessava, se a impaciência o não tornasse indiile-
rente n quanto tinha diante dos olhos.
E todavia o espetaciilo era Ião rico quanto curio-
so c variado. Milhares de barcas se cruzavam uo ca-
nal, carregadas de passageiros sentados em esteiras ,
os quaes, para lhes não parecer a viagem tão longa,
jogavam as cartas, os dados ou o Isoi-moi (1) ; trigo,
canas d'assucar, cearas de arroz ou algodoeiros rcves-
liam ambas as margens ; e pelas estradas vinham
cardumes de camponezes, de cujas cinctas pendiam a
bolsa do tabaco, a pederneira e o fuzil, ou de mu-
lheres que traziam as sua» creancinhas cm saccos pre-
zos aos hombros. Também passaram por defronte
d'alguns lagos cobertos de jangadas de pescadores que
faziam mergulhar os kii-tzes (2), aos quaes depois ti-
ravam a preza.
Quando EITendon chegou a Naiil<ing, achou um
grande ajunclamento de gente ordinária, entretida
em vèr uma briga dj gafanhotos (3), quedava occa-
sião <i muitas aposlas.
O arraes da barca tomou n'esta cidade outro pas-
sageiro que, assim como Elfendon, ia para Pel^ing.
Era o íílh» de um pobre surrador que, em voz de
seguir a profissão de seu pai, quiz correr a carreira
das IcUras. É sabido que na China todos os empre-
gos, lanlo na ordem civil como na militar, são da-
dos por concurso, sem se attcndcr á classe a que per-
tence o candidato. Os aspirantes que não ficam bem
no exame abrem commumciitc escholas nas cidades ou
tillas, c assim facilitam á gente moça os meios de se
apprescntarem na arena quando llics loca a sua vez.
Com um (restes mestres linha o filho do surrador
aprendido o que se exigia para o exame da ultima
classe. (Juanlo ao dinheiro preciso para este exame,
o surrador lh'o alcanrou vendcndu como escravo uui
dos seus irmãos, espécie de idiota aquém nunca ti-
nha podido ensinar o seu ollicio ; porque a lei china,
semelhante ;i lei romana, dá ao pai a plena proprie-
dade de seus (ilbos , c permitte-lhe que disponha
d'cllcs como de cousas. Com este auxilio conseguiu
Tchao (assim su chamava o moço china) entrar para
a corporação dos lettrados ; poréni ainda não linha
podido obter o logar para que este titulo o habilitava.
Tchao era um mancebo activo, fallador, serviçal,
e que não cessava de andar ao faro para abocar
qualquer posla.
l'ou<as horas depois de embarcado já tinha toda a
intimidaile com KlVeiidon, ao (jiial contara a historia
da sua \iila.
— ".Vtó agora ainda nada me deram ; porém, co-
mo diz o saijio, o homem é um céu pc(|ucno c uma
terra pequena, sujeitos a mil allcrniitivas ; dò ou o
primeiro passo, que o resto do caminho anda-se sem
ajuda. Tu és meu amigo, Kang-bo (era o nome que
EffcBdon adoptara); posso communicar-le o meu de-
sígnio. Tu sabes que o que está debaixo do céu (1)
se acha repartido em dezenove províncias, cadaama
das quaes tem muitas fou (departamentos) ; que ca-
da fou se divide em lacheous (districtos), e estes em
lians (canl<5es). Como letlrado estou apto para adaii-
nislrar um d'estes. Se der provas de capacidade será
o meu noiuí recommendado no livro do li-pou (2), e
adianlar-cie-hei rapidamente. Posso em poucos an-
nos subir do degrau em degrau as nove classes, e
obter o botão de pedras preciosas. Consiga eu com-
prar a algum governa<lor velho o direito <!e o sub-
stituir, que o mais é fácil. O peior é que preciso de
uma grande somma para fazer esta compra, e para
a ganíiar é que vou a Peking, onde ha mais meios
de enriquecer. »
— «E em que fazes tenção de te empregar?»
— «Em tildo que possa render-me liangs ; topo
tudo com tanto que as pilhe.»
A medida que so approximavam a Peking crescia
no canal o numero das barcas, e faziam mais demo-
rada a viagem. Elles avistavam de distancia a dis-
tancia grandes cidades quadradas cingidas de forti-
ficações, ás quaes sobrelevavam arcos triumphaes,
tas (3), e altas torres dos mosteiros de bonzos. X
pouca distancia d'es'as cidades havia cemitérios com
túmulos de diflerentes formas, ornados de pyiami-
des, de estatuas do homens, e de figuras de animaes,
e a maior parte d'elles cercados de ihuyas e cypres-
tes. Quando passou pela frente d'estes campos de
repouso foi Eirendou testimunha do muitas ccremo-
uias fúnebres que os chinas celebram com grande
pompa, por(iue a veneração aos mortos, c o respeito
aos pais, são as únicas virtudes religiosas que lhes
ensinam. N'estas coremonias vão os bonzos adiante
do féretro, levado por cousa de vinte homens debai-
xo d'um docci. Vem atraz d'elle uma liteira doura-
da, á roda da qual queimam aromas, e dentro da
liteira uma tabeliã com os nomes e titulos do finado,
taes quaes hão de sor gravados no tumulo. Scguem-
se meninos cobertos com um gorro particular, e com
uns balanilraus de paniio grosso por cima iii< seus
vestidos. Em chegando o corpo ao logar em que ha
de ser enterrado, depositam-iro n'uma co\a profun-
da, cobrem-n'o de terra misturada com cal, e depoi.'»
de haverem cravado em volta da sepultura bugias
perfumadas e bandeirolas de cores, começam a quei-
mar cm honra do dcfuncto, cavallos, vestidos ou bo-
necos de papel. Tudo acaba com um banquete com-
posto de iguarias postas com antecipação sobre a se-
pultura, e coiicluido isto voltam os parentes para
sua casa, levando a tabeliã em que falíamos, a quai
ahi guardam ao pé do altar consagrado aos génios
domésticos, o incensam duas vezes cada anno.
A algumas ti (í) de Peking os embaraços da na-
vegação cresceram lauto, que ws dois viajantes prefe-
riram saltar cm terra e andarem o resto do caminho
a pé pela estrada calçada do grai\ito (Jho vai ter á
capital do impviio cclest'
(I) Jo|,M (|iii! SC jii(ía ciiiii os iltíUos.
(i) H<|](H:ie lie coi vo-inai'iiilio.
(.'ij ICáles coiiiliales silo mui CDiuimuis na China, assim
como 09 lios ((lilos, codoriiizes, e de gallos.
(l) Nume que os chinas d&o ao seu império. Tliiau-Hia,
(I (|iii! esl.'! debaixo do ci'u, o mundo, correspondo ao orAi»
dos riMiiaiios.
[•2] lia sois (riliniiaos <iii ooiisollios siii)eiiiiros em 1't'kiiig,
u ipio sào vordaiioiros miiiisteiios. O lipoii corrospoiulo ao
nosso minisloiio ilii roíiio.
(.1) Oliiinnm^so las coitos oihlicios <lo cinco im seis «mia-
res, com oiiiios laiilos lolliailu» saiilos, ipio vonios em lod»s
as iiiiiliuas lia llliiiia. Ignora so para ipie .sorvem.
(i) Modula da (.1011:1. Dez lis l'a/.em unia hvua.
108
O PANOP.AMA
Novo obstáculo lhes alrazou a entrada na cidade ;
era dia de revista, e as tropas tomavam todas as pas-
sag'!ns. EITendon ainda tentou passar por entre os
batalhões ; mas trabalharam os hamhús dos homens
da policia encarregados de conter o povo, e fizeram
n'o tornar atraz. Não teve remédio senão moer a pa-
ciência á espera que a revista acabasse. Tchao, que
não deixava escapar pela /r.allia qualquer occasiío de
fallar e ostentar o seu sahsr, approveitou a demora
para explicar ao seu compmliriro da Coréa o sysle-
ma militar dos chinas. Dissc-lhe que o filho do céu
linha' as suas ordens mais de um milhão de solda-
dos, assim chinas como mongoes e raantchous. Estes
soldados, que se casavam, e cujos filhos vinham tam-
bém a ser soldados, estavam divididospelas duas mil
cidades fortificadas do império, onde recebiam do es-
tado um soUlo e certa porção de terra que fabricavam
por sua conta. No armamento tiniiam muita varie-
dade : havia cavalleiros que pelejavam com azorra-
gues armados de pontas de ferro ; outros corpos esta-
vam armados de espingardas- de murrão, outros de
lanças e dardos ; porém a maioria do exercito com-
punha-se de soldados semelhantes áquclles a que se
estava passando revista. Ora, o uniforme d'cstcs con-
sistia em duas túnicas, n'«ma cota de malha de gan-
ga chapeada de metal, n'iim capacete de ferro sobre-
pujado d'uma borla de crinas pintadas, n'um sabre,
arco, aljava, e n'uma pequena caixa om que guarda-
vam as cordas e dardos de reserva.
Tchao mostrou a EITendon alguns batalhões esco-
lhidos chamados tigres da guerra, por ser o seu far-
damento de "uma só peça, justo, mosqueado, e co-
roado por um capuz de orelhas que lhes dava algu-
mas parecenças com esta fera. .\s suas armas eram
a cimitarra c ura escudo de bambu.
Quando acabaram de desfilar as tropas puderam
cmfim os dois viajantes seguir o seu caminho, enão
tardou que avistnssom as muralhas de Peking, de
quarenta c cinco palmos de altura, cercadas de um
fosso, e defendidas de distancia cm distancia por
grandes torres.
Ao entrar na capital da China sentiu EITendon
pular-lhc o coração. Chegara ao termo da sua via-
gem ; respirava o mesmo arque sua filha respirava.
Por maiores que fossem as dilTiculdades que ain la
linha de vencer, este primeiro triumpho lhe prova-
va quanto pude a coragem. Começou a esperança a
entrar-lhe no coração, ecom uma espécie de alvoroço
se entranhou iiíis ruas da grande metrópole da China.
Estas ruas alinhadas, com vinte e sele braças de
largura, tão compridas que custava a vèr-sc-lhes o
lim, estavam obstruídas por tanta multidão de povo.
que assim que n'ellas se entrava era forçoso encur-
tar o passo. Havia n'ellas enxames de \cndedores
volantes de comestiveis, de bofarinhciros que tinham
a sua fazenda sobre as duas conchas d'uma espécie
de balança, cujo braço descançava sobro os seus hom-
bros, de Icireiros, de sapateiros que andavam d'uma
Landa para a outra com as suas laboletas portáteis,
de barbeiros que chamavam os freguczcs ao som de
uma Icnazinha de aço, ou que os barbeavam com um
instrumento triangular, lhes pinlavara as sobrance-
lhas, c lhes escovavam os liombros. T)'air.bos os lados
havia casas de madeira pintada com enfeites, nos
vértices, de boUas envernizadas, c em lodos os pri-
meiros andai. s varandas cobei las ; as lojas occupa-
vaui-n'as todas os homens de negocio, que chamavam
os compradorc; tangendo gonijs que atroavam. Lf-
fcndon observou que cada bairro tinha o seu com-
luercio especial, e cada loja seu mastro ornado de
bandeirolas, por baixo das quacs umas tabolctas ne-
gras ou vermelhas assoalhavam i-.n leltras de ouro os
nomes dos negociantes, suas gen'-ilogias, suas virtu-
des e as de suas mercadorias. Y,-.\ certos sítios se
viam paysangs {0) de páu com suas escuipturas, e
com Ires portas, erigidos á memorii de grandes soc-
cessos, columnas cm que se liam ir.jcrípçõcs em hon-
ra de homens celebres, finalmente corpos de guarda
fortificados e ornados de estandartes.
Apesar das turbas que pejaTam as ruas, viam-se
diante de quasí todas as portas mancebos diverlíndo-
se ao jogo do volante, que a maior parte d"elles reen-
viavam com summa destreza com a cabeça, com os
cotovellos ou com os joelhos. TcUao, que já linha
vindo a Pekíng, gozara do pasmo a que o seu com-
panheiro não pndia resistir.
— " Isto ainda não é nada, disse elle com aquella
vaidosa complacência com que enumeramos as ma-
ravilhas da terra que já conhecemos ao forasteiro
que n'ella entra pela primeira vez ; quizera que vís-
seis a morada do imperador, que contém o immenso
palácio cercado d'agua, no qual se entra por uma
ponte de jaspe do feilio d'um dragão: mais o tem-
plo do céu, cuja sala principal, sustentada por oi-
tenta e duas coluranas pintadas de ouro e azul, re-
presenta a abobada celeste ; õs templos consagrados
a Fou-hi e a Confulzec ; finalmente a grande im-
prensa imperial, a bibliotheca, o tribunal para os
médicos, a casa dos expostos, c a da inoculação e da
vaccina. Pekíng é um mundo que, para ser bem co-
nhecido, leva toda a vida d'um homem ; porque as
duas cidades, china e mantchou. de que se compõe.
com[)rehcndem perlo de dois milhões de habitantes.»
-No meio dVsía falia o moço lellrado se havia en-
caminhado para uma hospedaria onde já linha esta-
do, c Effendon o seguiu. .\hi começou a rcfiectir que
a actividade de Tchao, capaz de revolver tudo, e o
conhecimento que elle linha de Pekíng, Ibe podiam
ser úteis na indagação a que ia dar começo. Por con-
seguinte, n'essa mesma noite, revclou-lhe o fim da
sua viagem, e perguntou-lhe se, medianfe uma re-
compensa, quereria auxilia-lo n'csta tarefa.
O moço lellrado acccitou muito depressa, segundo
o seu louvável costume, c logo no dia seguinte saiu
a campo depois de ter recebido as instrucções do
feitor. (Continua.)
PliOV.l no DORD.VO EM M*>'DErTBE.
Slbsistia ainda no século passado cm Mandcuvre.
ao pé de Jlontbelliard (.Vlsacia) uma prova judicia-
ria bem extravagante. Quando se fazia algum roubo
na villa intimavam todos os habitantes para se junc-
tarem na praça da igreja, no domingo seguinte de-
pois de vésperas. Tm dos mrjírr.í mandava que o la-
drão restituísse o roubo, c por espaço de seis mezes
se abstivesse do contacto da gente honrada. Se o cul-
pado teimava em não se dar a conhecer appellavam
para a prova do bordão. Cadaum dos dois maires,
conj o braço levantado, segurava n'unia das pontas
d'um páu, por baixo do qual mandavam passar as
pessoas presentes. Tal era o terror supersticioso ins-
pirado por esta cercmonia que não havia exemplo de
réu que se sujeitasse a ella. Ficava só e ora assim
descoberto. Se acaso se atrevesse a passar por baixo
do bordão, e a lodo o lempo díscobrisscm ser elle o
criminoso, nunca mais ninguém coramuuicav.i com
elle, c era banido da sociedade dos seus compatrícios.
Aicos de liiuiuplio.
o PAXORAMA.
109
CAVALLEIRO TEMPLÁRIO ARMADO
EM GLERRA.
Havendo de tractar da celebre ordem dos templários
nenhum arligo poderiamos redigir mais imporlante
do que o nntavcl fragmciilo que ciicelnmos nn presen-
te N.", cxtraliiilo da llisloria de França, ohra com-
pleta, ha poucos annos publicada pelo Sr. Michclet,
mui distincto eiilru ns liisloriadorcs nossos contempo-
râneos.—
Os |)apas por acto próprio haviam preparado o seu
captivciro de Avinliãn, nomeando, por espaço de um
século, grande numero de cardcaes Irancezcs em con-
sequência de aversão ao Império. I)'cste modo os reis
de França acharam-se dominantes das eleições ponti-
fícias.— Em lliO/J l''ilippe o formoso vai a um bos-
que de Saintonge, próximo a S. João d'Angely : o
gascão IJerlrand de (iolt, arcebispo de Uordéus, alli
o esperava. I'actuou-se então um .ijuste diabólico ; o
monarclia promettcu a Rcrlrnnd di; (Iolt fazè-lo pa-
pa ; Bertrand promettcu quanto o rei quiz, pòr-sc á
sua discrição em Aviídião, condemnsr o pontificado
na pessoa de Honifacio VIII ; quanto á ullima coii-
diçiio era tal que l'"ilij(po exigiu que o arcebis|)o se
sujeitasse a cila sem a saber. lira nada menos que a
suppressão da ordem dos templários, a poidiçã > de
quinze mil cavalleiíos tluistãos. Rullrão jurou, c foi
papa sob o nome de Clemenle V.
O (|uct era enlão o 'IVinjilo? — I'.ui Paris o circui-
to do Templo abrangia todo o grande bairro, triste
c mal povoado, ([uí^ conservou esle nome: era a ter-
ça parle de ['aiís (Pessa cpoiba. \ sombra do 7Vm-
plo, e debaixo da sua poderMSa prolí'cção vivia uma
chusma de serventes, familiares, alliliaibis, e lambem
de gente criminosa, por quanlo as casas da ordi'iii go-
zavam o direito de asylo : o próprio hilippe o formo-
so d'elle se a[)proveitára quando IVira perseguido pelo
povo aiiiolinado. Ainda permanecia, no tempo da re-
volução, um monumento d'esla inj;ralidão, o massi-
ço torreão das (|ualro torrinhas, eonslruido em l:i2:i :
serviu de prisão a Luiz XVI. — Olemplode Paris
era o centro da ordem, o seu Ihesouio : ahi se con-
gregavam os eapilulos geraes : d'esla casa dependiam
todas as provincias di ordem, a saber, l'orlugal, Cas-
tella e Leão, Aragão, Malhorca, Alíemanha, Itália,
Apúlia e Sicilia, Inglaterra e Irlanda. Em o norte
da Europa a ordem tcutonica havia saído do Templo,
como nas Hespanhas outras ordens militares se for-
maram dos seus despojos. A immensa maioria dos
templários era de francezes, particularmente os grão-
mcslres.
O Templo, como todas as ordens militares, deriva-
va de Cister. O reformador eislerciense, S. Dernar-
do, com a penna com que commentava o Cântico dos
Cânticos lavrou para os cavallciros a sua regra enlfau-
siastíca c austera. Esta regra era a expatriaeão e a
guerra sancta até a morte. O^ templários deviam ac-
ccilar combate sempre, ainda que fosse de um contra
três, nunca pedir quartel, não dar resgate, nem mes-
mo um pedaço de parede, uma pollcgada de chão.
Não tinham que esperar descanço : não lhes era per-
mitiido passar a ordens menos austeras. ,,Ide felizes,
ide tranquillos (lhes diz S.Bernardo); repe.lli com
intrépido coração os inimigos da Cruz de Christo,
bem certos de que nem a vida nem a morte vos po-
derão pòr fora do amor de Deus que esta em Jesus.
Em qualquer perigo repeli a phrasc: — vivos cumor-
tos, somos do Sc;ihor. — Gloriosos os vencedores, bem-
aveiilurados os m.irlyres." Eis aqui o áspero bosque-
jo que clie nos ofterece do aspecto do um templário. —
« Cabellos tosquiados, peilo erriçado, sujo de pó, ne-
gro como ferro, crestado do rigor do tempo e do sol. . .
Gostam dos cavallos fogosos e ligeiros, mas não ade-
reçados, mosqueados, acubcrtados. O que pasma n'cs-
Ic tropel, n'csta torrente que corre para a Terra
Sancta ó que não vedes senão scelerados c Ímpios.
Christo de um inimigo fez um campeão, do perse-
guidor Saulo fez um S. Paulo." — Depois n'um elo-
quente itinerário guia os guerreiros penitentes de Be-
thlem ao Calvário, de Nazareth ao Saneio Sepulchro.
O soldado tem a gloria, o monge a Iranqnillidade :
o templário abjurava uma e outra cousa ; reunia po-
rém o que ha de mais duro n'essas duas vidas, os pe-
rigos o as abstinências. A imporlante Ijda da idade
media foi a guerra sancta, as cruzadas ; o ideal das
cruzadas parecia realisado na ordem do Templo. Era
a cruzada convertida era fixa c permanenle, a nobre
imagem da cruzada ispirittial, da guerra mystica que
o chrislão sustenta até a morte contra o inimigo in-
terior.
Associados aos de S. João do Hospital na defensão
dos logares sanclos, os cavallciros templários dilTeriam
d'aquelles por ser a guerra mais particularmente o
objecto de seu instituto : uns c outros prestavam os
mais relevantes serviços. Que felicidade não era pa-
ra o peregrino que viajava pela estrada puherulenla
de Jaila a Jerusalém, c que imaginava caírem sobre
elle a todo o momento os salteadores árabes, encon-
trar um ca\alleiro, reconhecer a valedora cruz verme-
lha na ca|)a branca da urdem do Tumpio ? Nas bata-
lhas as duas ordens forneciiim por turno a vanguar-
da e a relaguarila : no centro colloeavam-se es cruza-
dos recem-ehegados e pouco afeitos ás guerras da .Vsia :
us cavallciros os llaiiqucavam, c protegiam (diz alti-
vamente um d'ellrs) como a.i mãcsaseti.t fillnK:. Es-
tes passageiros auxiliares deurdinario retribuíam mal
lanlo ulTecIu ; mai.s embaraçavam do que serviam us
cavallciros. Arrogantes c fervorosos á chegada, findos
em (pie se faria logo a seu favor um milagre, não fal-
tavam a quebrar tréguas, nrraslavain os cavallriros
a riscos inúteis, procuravam ser combalidos, o despe-
diain-so deixandolhcs o pezo da guerra, queivando-
se tle iiãu serem bem soccorridos. t>i templários for-
uia\am a vanguarda em Mansourah, quando aquello
uianccbu louco, conde d'Arlois, apesar do consclha
110
o PANORAMA.
d'cUes, se obstinou a perseguir os inimigos arremel-
tendo á cidade ; seguiram-n'o por brio os cavalleiros
e foram todos mortos.
Com razão se juigára que nunca seria de mais o que
se Ozessc a favor de uma ordem de tanta dedicação
e utilidade. Coiicederam-se-llie grandiosos privilé-
gios : a principio não podiam ser julgados senão pelo
papa : mas perante um juiz tão supremo e Ião remo-
to ningHcm os requeria ; pelo que passaram os pró-
prios templários a ser juizes nas causas d'ellei : e tam-
bém podiam ser lestimunhas nas mesmas, tamanha
era a fé na sua lealdade ; Era-lhcs defczo p.igar tri-
buto a potencia alguma, e conceder qualquer de suas
commendas por sollicitação de poderosos ou de mo-
narchas. .Não podiam pagar nem direitos, nem feu-
do, nem portagem.
Qualquer desejara naturalmente participar de tão
altos privilégios. O próprio ínnoccncio III quiz ser
alliliado á ordem ; c Filippc debalde sollicitou o mes-
mo. — Jlas quando mesmo a ordem não tivesse Ião
grandes e magníficos privilégios, nem por isso deixa-
ria de se lhe appresentar immenso numero de pes-
soas. O Templo tinha para as imaginações um attrac-
tivo de mystcrio e de terror vago : as recepções cele-
bravam-sc nas igrejas da or<lem, de noite e á porta
fechada: os membros inferiores eram excluidos d'el-
las ; dizia-se que se o rei de França em pessoa lá pe-
netrasse por certo que não sairia. O formulário da
admissão era tomado de ritos dramáticos e singula-
res, dos myslerios de que a igreja antiga não receou
cercar as cousas sagradas. Primeiro o adepto era ap-
presentado como peccador, máu christão, renegado.
Negava a exemplo de S. Pedro; e a abjuração ex-
priraia-se por um acto, cuspia na cruz ; a ordem en-
carregava-sc de rehabilitar este renegado, e de o ele-
var tanto mais quanto mais profunda era a sua que-
da. Da mesma maneira na festa dos Inucos o homem
offcrccia o preito da sua imbecilidade, da sua infâ-
mia á igreja que o devia regenerar. Estas comedias
ao divino, tie dia para dia menos compreheudidas,
eram cada \ez mais perigosas, mais capazes de escan-
dalisar uma epocha prosaica, que só via a lettra e
perdia o sentido do symbolo.
IVeste caso tinham outro perigo. O orgulho do
Templo deixava n'cstas fMmulas um equivoco impio:
o adepto podia capacilar-se de que além do christia-
nismo vulgar a ordem ia revclar-lhc uma religião
mais sublime, abrir-lhc um sanctuario por dctraz do
sanctuario. Este nome do Templo não era sagrado só
para os christãos : se para estes designava osancto
sepulchro, aos judeus emulsumanns lembrava o tem-
plo de SalosMão. A idca do Templo, mais elevada c
mais geral do que mesmo a da Igreja, estará de al-
gum modo sobranceira a qualquer religião. A Igreja
tinha data e o Templo não a tinha ; contemporâneo
de todas as idades era como um symbolo da perpe-
tuidade religiosa. Ainda depois da ruina dos templá-
rios o Templo subsiste, pelo monos como tradição,
nas insinuações de grande numero de sociedades se-
cretas, até os rosa-cruzes, até os franc-maçons (1).
A Igreja é a casa do Cliristo, o Templo a do Es-
pirito. Os gnósticos tomavam para sua grande festa
não o Natal, ou a Pasclioa, mas o Pentecostes, dia
em que baixou o Espirito. .Vté que ponto subsistiram
(I) ii' possível que os templários que escaparam se coii-
vertesseiH nas socieUailes secretas. Na Escócia desupparecam
todos, ;i excepção de dois. Ora, teni-se observ.ido qneosmais
secretos mysieríos da Iranc-niavoíieria se reputai» emanados
da Escócia, e i|up os graus superiores são chamados escoce-
res. Vide Orouvelle e os escriptores a quem seguiu, Muaier^
Moldenbawer, Nicolai, etc.
estas seitas relhas na idade media ? . . . Foram a el-
lasaffiliados os templários? . . . Taes questões, a des-
peito das engenhosas conjecturas dos modernos, per-
manecerão sempre obscuras pela insuDBcienEia dos mo-
numentos.
Estas doutrinas internas do Templo parece que a
um tempo se querem manifestar e esconder. Julga-se
que SC reconhecem nos emblemas estranhos esculpi-
dos na portada de algumas igrejas, ou no ultimo cy-
clo épico da idade media, nos ; oemas em que a ca-
vallatia purificada não é mais que uma odyssea, uma
imagem heróica e pia em demanda do sancto graal.
como chamavam ao vaso que recolheu o sangue do
Salvador. A simples vista d'este vaso prolonga a vi-
da quinhentos annos : si) as creanças se podem chegar
a clle sem morrer. A roda do templo que o encerra
velam as armas os lemplislas on cavalleiros do Graal.
Esta cavallaria mais que ecclesiastica, este ideal
grave e sobejamente puro, que foi o remata da ida-
de media e o seu extremo sonho, achava-se, por sua
mesma elevação, estranho a toda a realidade, inac-
cessivel a toda a practica : o templisla ficou nos poe-
mas, figura nebulosa e scmi-divina ; o templário en-
tranhou-se na brutalidade. fContinúa.)
Um qcadro de miserus da vida iiimana.
Vem um negociante da praça, ou logrador ou logra-
do, jantar esplendidamente (depeis se farão os rateio;
aos credores^, e determina ir n'aqaella tarde para a
sua quinta ; o ar e-tá sereno, o sol claro e tépido, a
estação risonha ; ahi estão as seges, os boleeiros lêem
o porte c o cnapenado da Assembléa ; a família em-
barca, o troto começa, a voz gorgeta sóa repetidas
vezes desde a envernizada caixa até as orelhas do
desavergonhado carrasco dos cstiticos cavallinhos ;
mas alli a Sete-Rios, no meio da triumphal carrei-
ra, outro demónio peior que o boleeiro da .■V.ssem-
bléa, ou do Pilha-gatos, um carreiro, se atravessa
diante com um carro de feno, que vem para consu-
mo da cidade, c que \cm bem emparelhado em altu-
ra com os próprios arcos das Aguas Livres, metle-se a
sege, lá vão as senhoras com a sege lombada, amar-
rotam-se as plumas, rasgam-se os filós, pcrde-se um
indispensável, e era de França. . . primeira des
graça.
EmCm chega aquelle potentado ao seu palácio
campestre. Um horisonte enganador lhe promette o
mais agradável e salutar passeio. Vai passear em li-
berdade, diz elle, e consiste esta em andar de jaque-
ta ; porém os caminhos estão perdidos, os combros
com as invernadas são immcusos, as pedras soltas
são ás carradas, volla-se u discreto para fazer uma
rcQcxão em Botânica a uma das seuboras da parti-
da, dá uma formidável topada, c o pé, que lhe vai
estalando dentro da envernizada bota , sotTre uma
dór, que lhe faz acabar o discurso antes de o princi-
piar. E isto não presta ? Continua o passeio a coxear,
mas é preciso passar uma levada de agua, que vai im-
petuosa, e para a passar apenas ha no meio das aguas
umas pedras redondas ou agudas, postas em grandes
distancias. As senhoras tremem, guincham, e fa-
zem infernars caretas sobre esta perigosa ponte. Ei-
lende o negociante a mão. mas na ultima pedra es-
correga um pé á senhora, e dá comsigo n,i levada.
Nova desgraça : porém o sol c o vento reparam em
poucos instantes este funesto accidentc ; esquece esta
primeira tribulação e tudo vai bem : mas de repen-
te cobrc-sc o cóa de nuvens espessas, esconde-se o
sol, c começam de se ouvir ao longe os ccbos dos tro-
PANORAMA.
fíí
voes ; eis-aqui o nosso homem, tjue se linha adianta-
do no passeio, a correr para casa ; mas o vento cres-
ce em remoinhos, levanta nuvens de poeira, que de
tal sorte lhe enche os olhos, que não pódc dar um
passo ; caem golas d'8gua como castanhas, que lhe
alagam o chapéu mais a jaqueta, e que são annun-
cios de novas desgraças. O temporal cresce, os relâm-
pagos são tão bastos que o deslumbram, e com um
estrepitoso trovão, rasgando-se uma nuvem perpen-
dicular, cáe em cima d'elle um diluvio d'agua que
o submerge; foge, mas é preciso subir um outeiro
que não é de granito primitivo, como dizem os natu-
ralistas, é de barro, e tanta agua tem embebido, que
atasca até o joelho ; o homem mais rccúa que adian-
ta, e puxando um pé com força, lica-lhe lá uma bo-
ta ; mas á força de trabalho lira a bota, calça a Lo-
ta, e a chuva a cântaros em cima dVUc. E noite fe-
chada, e ellc ainda está a meio caminho da casa;
perdc-se no caminho, e querendo ir para Bemfica
vai para o Calhariz. S,ic da porta crum palheiro um
cão esfomeado, e tanto lhe ladra, e lanto o perse-
gue, que o homem, curvando-se para acliar uma pe-
dra com que lhe atire, escorrega, e dá uma formidá-
vel cambalhota no meio d'um lameiro, onde conti-
nua a chafurdar um quarto de hora.
Depois de muitas fadigas, chega emlim a casa mo-
lhado, enlameado, e morto de fome; mas os criados
c as criadas, que pilharam os senhores fora, cuidan-
do em divertir-se, descuidaram-se de fechar as janel-
las da sala e da alcova, e está tudo um lago de agua
que não ha onde pôr os pés: uns patos destinados
para a ceia apanharam agua, e ahalarani, de sorte
que não apparccem, nem apparecerão mais. Parece
que tudo se reunira para o contrariar, c para lhe
Consumir a paciencia.-
Isto ainda é pouco : a casa campestre do senhor
fica mui próxima á igreja ; ha um enterro de luxo
aquclla noite, c o estouvado do sachristão deixou ir
os rapazes para a torre, que se fazem a olho com os
sinos, desafinadissimos, e um d'cllc3 quebrado. Isto
é pouco. Tinham feito debaixo das jancllas um mon-
te de estrume da altura do monte Cáucaso ; o vento
que sopra, a chuva que caiu, fazendo fermentar
aquelle thesouro do deus StercuUnu, como lhe cha-
maram os romanos, o faz lambem exhalar um perfu-
me que empesta as casas Iodas ; e um forno de lou-
ça vidrada, que está na visinhança, as enche de um
fumo tão espesso, que se nãu pódc respirar : da par-
te de cima está uma eira de milho, c osladruesdos
saloios a Iraballiar incessantemente com os compas-
.sados manguacs. O estrondo c os assobios de um
moinho de vento no próximo outeiro, não cessam
nem de noiti; nem de dia, Uma ra(iosa, talvez que
de dois pés, veio n'essa mesma noite :io (]uintal, e
desiiovo(ju as capoeiras de tudo o que eslava esperan-
do o momento da morte no dia dos aiinos da senho-
ra ; e uns poucos de rapazes, sallando o muro da
quinta, varejaram, verdes c maduros, os peecgos lo-
dos, que se guardavam para a mesma funcção.
Fatigado o nosso homem de tantas contrariedades,
rcíolve-se a tornar para Lisboa ; mas lombando-se o
carro de matto, caiu na calçada de S. Sebastião um
caixote com ura apparclho de .Saxoiiia, que serua
na partida das quiiitas-feiras, (jue a senhora dava ;
tudo so fez em pedaços, quebrou-se um pé de um
piano do lírhard, e esmigalhou-se de todo a guitar-
ra das lições da menina.
Com estes ineommodos fhega a casa, e saindo lU)
outro (lia a d(!scontar uma íettra, virando alraz a
cabeça na rua do Lamliaz, um homem que vinha na
mesma dirceeã lhe deu tamanha marrada, que se
I ouviu no adro de St." Catharina : caiu no chão, «
I trazendo-lhe de uma casa um púcaro de agua, tod*
lh'a entornaram por cima. Ao virar da Cruz-de-paa
um cumprimenteiro seu conhecido lhe quer ceder o
j logar da parede, o homem toma outra direcção, eo
j outro a toma ao mesmo tempo, de sorte que* ambos
por meia hora balanceiam ao mesmo tempo ora á
direita ora á esquerda sem ninguém se decidir.
Vem como arribado á rua larga do Lorete, ama
rebanada de vento lhe leva o chapéu pela rua do
Alecrim abaixo ; corre, e no instante cm que lhe ia
a pegar, oulra rebanada de vento lh'o leva até o
cães do Sodré ; uma nuvem de rapazes lhe dá uma
apupada.
Recolhe-se o homem a casa, janta, e quer dormir
a sesta a ver se o fio das desgraças se rompe ou se
interrompe algum instante, mas dois cegos, um com
uma sanfona, outro com uma rabeca, e um rapaz
com um pandeiro, se põem a tocar e a cantar mes-
mo ao pé da janella do quarto debaixo, onde o ho-
mem tem o escriplorio, c onde queria soccgar no seu
camapé; e uns bárbaros que' moram no segundo an-
dar, a darem mais dinheiro aos cegos para se não
calarem.
Quer o homem dar um passeio de tarde para vèr
se, em ar livre, se lhe desempoeira a cabeça, e ape-
nas sáe de casa encontra o seu lettrado, equerendo
dar-lhe novas instrucções sobre um pleito que traz
pendente em matérias de câmbios, linguagem mais
inintelligivel que a dos cálculos, ura maldicto carro
de fanico, carregado com vergas da ferro da Suécia,
começa de fazer tal motinada atraz dos dois interlo-
cutores que vão passando, que não entende palavra
um ao outro, c o perlinacissimo carro tão obstinado
em os seguir, que por fim se apartaram deixando as
instrucções por fazer.
J. A. DK M.iCEDo. — O Desapprovador, n.» 3,
O CÃO DO NORTE DA SiBERU.
Na expedição ao norte da Sibéria, feita por ordem
do governo russiano, c dirigida por Mr. Wrangell,
hoje almirante, teve este ciliciai de attender a lon-
gos c dilliceis preparativos para a sua primeira ex-
cursão no mar tilacial, apenas chegou a Kolima, que
devia ser o centro das suas operações por espaço de
trcs annos. Era mister assegurar a subsistência' dos
membros da expedição por todo o tempo d'esla pri-
meira entreprcza : cincoenla uarlas ou carrinhos tre-
nós, puxados por seiscentos cães, eram necessários pa-
ra conduzir viajantes, guias c abastecimentos, e só «
sustento dessa legião canina era de per si gra<e. X
actividade do commandantc e de seus amigos superou
as dilliculdados ; provcu-sc de sulliciente peixe secco,
dos trenós e dos seisienlos cães.
O cão, fiel e ulil companheiro do homem nas di-
versas regiões, entre os povos remotos sei)tenlrionaes
suppre O cavallo ; équem accarreta seu dono por ci-
ma da neve gelada c entre serras lluctuantos que
atulham o littornl, e é quem o conduz á caça e á
pesca, e a qualquer parlo onde o chamam as neces-
sidades materiaes da existência. Conlenlaso com
um pouco de peixe secco, e mesmo nem tem preci-
são de satisfazer inteiramente o appotite («ara correr
a perda de fôlego até o ponlo que lhe manam. — O
cão cio iHii l' •!.' Sibéria parece-se singularmente com
o lobo ; o loeinho loiígoe (loniagudo, as orelhas sem-
pre lezas, o rabo lel|)U(lo, o pello iiii mor parle do tem-
po basto como o dos cães da 'IVrra-Nova, dão-lIuMini
aspecto scl>agoiii, o, forçoso é diío-lo, pouco ciipa/ e do
in!i|iirar alToutoza ao viajante que nãu sabo distin-
gui-lo ; uivu mais do que ladrit, mais outra semc-
ua
o PANORAMA.
Ihança com o lobo. Fica exposto constanlenenle ao
ar; é para rcsgaardar-sc das ferroadas dos mosquitos
no verão sabe ca\ar locas na terra, ou enlão iDer^'u-
Ihar-se na íigua, e assim passa tranquillo o dia todo :
de inverno, para prcservar-s(; do frio, agacha-se cm a
neve, ennoveiado e só com a ponta do focinlio des-
coberta, lendo a precaução de cobri-la com a cauda
espessa para a livrar da geada. A sua criação é tão
mal tractada como a dos filhos dos sibcrios. O cão
mais astuto e melhor ensinado põe-so na frente do
tiro, porque d'ellc dependem a celeridade, o bom
caminho, e não poucas vezes a segurança do viajan-
te. Porém occasiõcs ha em que o instinclo vence a
criação: se os cães topam com vesligios de animaes
bravios partem na direcção que lhes indica o olfacto,
puxando com assombrosa velocidade o trenó e seu
dono; nada os poderia cm tal caso trazer ao bom ca-
minho, sobre tudo se os estimulou a fome; comludo
o instinclo superior do que vai na dianteira, que
mostra entender o erro dos companheiros, c uivando
enlão com toda a força, tomando o lado opposto á
direcção que os outros seguem, como se descobrira
alguma preia digna da sua avidez, lhes troca assim
as voltas e consegue leva-los para o caminho recto.
Também ás vezes é cllc quem conhece, no meio dos
redemoinhos de neve que a tempestade levanta, o
abrigo que erguera no deserlo mão provida para o
viajante desgarrado. Tamanho é o apreço que os na-
luraes fazem d'csla raça de cães, que, reinando uma
epizoolia em que morreram milhares, a mulher de
um sibcrio, para salvar dois únicos cachorros que
lhe restavam de seus numerosos tiros, alimentou-os
com o próprio leite ; fazendo os coUaços de um filhi-
nho que a esse tempo desmamava.
A FESTA DE PeTERHOFF.
O Sr. marqucz de Custine teve a fortuna de se achar
em S. 1'clersburgo na opocha d'csla brilhante func-
ção, dia festivo assim para a córlc como lambem pa-
ra o povo, c cm que por \ontade do imperador Io-
das as jerarchias c classes se misturara e tomam par-
le nos regosijos públicos dcnlro dos doniinios particu-
lares do soberano, 1'elerholT é um caslello situado nos
subúrbios da capital, e a tapada magnifica que o cer-
ca c logar onde se ajunclam os curiosos, quer no-
bres e militares, quer burguczcs e paizanos. — O ci-
tado auclor descreve assim a illuminação da noite
d'esse dia :
« Dizem que no anniversario da imperatriz seis mil
carruagens, trinta mil peões, e innumcravel quanti-
dade de barcos saem de 1'etorsburgo para formar abar-
racamcntos ao redor de PelcrholT. Parle da guarda
imperial e o corpo dos cadetes tomam igualmente
acampamento em torno da residência do autocrala ;
e toda a gente, officiaes, sohiados, mercadores, ser-
vos, amos c senhores \aguoam peias maltas, onde du-
zentos c cincocnta mil lampeõcs expulsam assombras
da noite. Dizem lambem que dcnlro em Irinta e cin-
co minutos todos os lanipeões lio parque se accendem
cmpregando-se mil c oiloccnlos homens: a parte da
illuminação que faz frente ao caslello acccnde-sc em
cinco minutos ; entre outras porções abrange um ca-
nal que correspondo ã principal varanda do palácio c
SC embrenha cm liiilia recta a grande distancia por
enlre o parque, caminho ilo mar. Esta perspectiva c
de cifcilo magico; a esteira d'agua do canal é de tal
modo bordada de lumes e reflecte Ião viva claridade
que se poderia lomar por fogo. () Ariosto ó que le-
ria imaginação assaz cs|)lendida para descrever tan-
tas maravilhas na linguagem das fadas : reinam bom
gosto c phantasia no uso que alli fazem de Ião pro-
digiosa massa de luz. Deram a diversos grupos de
lampeões, engenhosamenlcdispostos, fórmasorigiaacs,
são fliJrcs da grandeza de arvores, soes, vasos, parrei-
ras de pâmpanos imitando as pérgolas italianas (IJ,
obeliscos, columnas, muralhas á mourisca ; emGm,
um mundo phantaslico vos passa diante dosolhossemL
repousardes a vista, porque as maravilhas succedcm-
se umas a outras com incrível rapiílez. Dislrahem-vos
de uma forlificação de fogo as roupagens e rendas que
fingem pedrarias finas ; tudo brilha, tudo arde ; é l
ciiamraa e o diamante : teme-sc que o magnifico es-
pectáculo remate u'um monte de cinzas como um in-
cêndio. Porém sempre o mais admirável, observado
do palácio, é o grande canal que semelha a lava im-
movel n'um bosque abrazado. Na extremidade do ca-
nal altca-sc sobre uma enorme pyramide de fogos ar-
tificiaes de cores (que tem, pelo meu calculo, 70 pés)
a firma da imperatriz, brilhando com alvura rclozea-
te em cima de todos os lumes vermelhos, verdes e
azues que a cercam ; dir-se-hia uma pluma de bri-
lhantes rodeada de finas pedras de varias cores. To-
do se mostra cm tão vasta escala que du\idareis do
que se vos palcntea. — Na festa cm si ha lambem
um não sei que prodigioso : fullo dos episódios a que
dá logar. Durante duas oji trcs njites toda a multi-
dão, que mencionei, acampa cm circuito da povoa-
ção, e espalha-sc a muito grande distsp.cia do caslel-
lo. Jluilas senhoras dormem nas carroagens, ecscam-
ponezes nas suas carreias : lodos os variados trens,
meltidos aos centos em cercados de tábuas, formam
arraiaes mui curiosos de ver, c que são dignos do pin-
cel apurado de algum artista engenhoso, u
Prtov.vs JUDici.VRi.vs >A Geurgica.
.V LEI admittia n'este paiz, hoje sujeito ao império
da Rússia, três qualidades dislinctas de provas para
se descobrir a verdade : o ferro era braza, a agua a
ferver , c o duelo.
Prova de ferro em hraza. Punha-se uma folha de
p.ipel cm cima da mão do accusado, e sobre o papel
o ferro em braza; se depois do ler dado Ires passos,
c de se ter tirado o ferro, a mão não apparcccsse
queimada, dcclaravam-n'o inoucente. D'esta prova
só se fazia uso em caso de traii>ão, roubo de igreja,
o adultério.
1'roca (laijua a ferrer. Deilava-sc dentro dum
vaso cheio d'agua c posto ao lume, a cruzinha que
de ordinário os georgianos trazem ao peito ; assim
que a agua começava a ferver tiravam a vasilha do
lume, c o accusado devia, em nome de Deus, tirar a
cruz ; depois d'isto mettiain-Ihc a mão n"um saqui-
nho muito bera atado, e lacrado ; se ao terceiro dia
! a mão não tivesse signal de queimadura davam por
innoccnte o accusado.
I'rora pelo duelo. — O dcnuncianle c o accusado
encommendavam-se a Deus por espaço de quaronU
j dias. Acabado o tempo ilas rezas pcnduravam-lhcs ao
pescoço c nas lanças liras de | apel em que estavam
escripias breves orações. Depois d'drmados entravam
i na liça la''eados dos padrinhos muniilos dVscudos e
chicotes. O combale a que o rei assistia continuava
alo um d'elles vir do cavallo abaixo. Então os pj(-
drinhos o traziam á presença do rei, como convenci-
i do da culpa, para fazer dcllc o que lhe approuvessc.
I -Vs armas do vencido ficavam pertencendo ao vence-
dor, e o seu cavallo aos padrinhos do ultimo.
(I) Parreiras sustidas por culurauas ou pilastras.
13
O PANORAMA.
lis
S. M. CATHOLICA, D. ISABEL II.
Os CASAMENTOS das augustas fílhas de Fernando VII
deram largo thema, antes de verificados, á imprensa
politica; e ainda tccm continuado a fornecer texto pa-
ra muitas columnas a narração das solemnidadcs e fes-
tejos que se llies seguiram. Algans jornaes francezos
lembraram-se (ie publicar por osta occasião as noticias
dos precedentes enlaces matrinjoniacs entre as casas
soberanas de llespaiiha e Franca. Uesiiniiremos a rc-
laçiio do ultimo, porque mostra a diplomacia e etique-
ta do século passado n'cstcs negócios. —
Luiz XV, que em 'i(i d'agosto de 173!) concedeu a
mão do sua lillia , Maria l.uiza Isabel de França,
ao príncipe das Astúrias, lierdeiro presumplivo da
coroa d'IIespanha, resolveu-se, pelo liin de 1741, a
estreitar por novo matriuionio os laços que; uniam as
duas reaes fauiilias. <^)m elíeilo, foi o bispo de Krn-
nes enviado oHicialmente i còrle de Madrid eoin o
caracter de embaixador extraordinário e a commis-
são de pedir para o delpliim de França a mão da
prinecza .Maria Ibereza Antónia. A (i ile dei^enibro
eliegou a Madrid, e a H o mordomo de seuiana de
Voi. 1. — Dexuuuuo 12, 1810.
Filippe V o conduziu com grande pompa a palácio
n'uma carroagem da corte. Abriam o préstito trinta
e seis lacaios com librés, vestidos com elegância c ri-
queza, em duas linlias c precedidos de dois suissos a
cavallo ; seguiam-se seis moços da camará, e o mor-
domo ia .1 sua frente, de faida escarlate bordada de
ouro. Vinbam depois o escudeiro do bispo, também
de farda escarlate agaloada em todas as costuras,
acompanbado de seis formosos pagens, vestidos de y%-
ludo carmezim, e a carroagem que trazia o embaixa-
dor e o mordomo de semana ; dois palafreneiro» tom
a libré da casa real marchavam conduzindo os cavai-
los de eslado ; seguiam quatro carroagens do embai-
xador tiradas cada uma por seis mulas ricamente ajae-
zadas : as duas primeiras iam vasias, na terceira ia
o esmoler do bispo de Kennes com mais quatro sacer-
doles, e occupavam a quarta quatro gcntisliomeus ves-
tidos de casacas de veludo pardo : a carroagem do
uiordoin(i, tirada a i|iiatro, e guiada por um cocheiro
e um postilhão cerrava i> préstito.
A comitiva, depois de haver «travessado a cidade,
entrou no paço do Kcliro pelo pateo das cosinhas, «
11 i
o PANORAMA.
alli foi recebida por uma companhia das guardas hes-
panholas c oulra de guardas valonas, formadas em
alas: desfilou depois no pateo principal afim de que
SS. MM. podessem vè-la das janeilas. O embaixador
e mordumu se apearam, atravessaram os corredores
onde estavam postados os alabardeiros, e subiram á
regia habitação pela escada principal. — O duque
Bousuonvillc, capitão das guardas de serviço, á fren-
te da ollicialidade do corpo saiu a receber o embaixa-
dor, o qual se adiantou entre alas das guardas até
a casa que comuninica com a sala de audiência, on-
de o esperava o secretaiio de gabinete. El-rei entrou
na sala pouco tempo depois, e se collocou no extre-
mo mais immediato ao seu aposento, e ainda que ti-
nha ao lado uma cadeira se conservou de pé e se co-
briu, assim como todos os grandes (i'Ilespanha que
estavam em fileira ao longo da parede : mais além,
em seguida, estavam os mordomos de semana, e de-
fronte ao lado direito OS gentishomens da camará que
não tinham litulos de grandeza ; tendo-se deixado um
espaço entre o rei e ellet para os embaixadores e mi-
nistros estrangeiros. O resto da sala estava occupado
por grande numero de pessoas de todas as classes, po-
rém bem trajadas. O secretario de gabinete disse era
alta voz que o embaixador extraordinário de S. M.
Christiauissima esperava licença para entrar ; el-rei
mandou que fosse introduzido á sua presença ; o bis-
po, que se revestira de roquete e pozera a mitra, en-
trou imuiediatamente, seguido do seu secretario, pe-
la porta que fazia frente ao logar onde se achava o
rei, e depois de haver feito as três reverencias do cs-
tylo fallou a S. M. em latim: concluído o discurso,
declarou o objecto da sua missão : o rei levou a mão
ao chapéu e o embaixador se retirou tendo feito as
cortezias do costume.
A saida da audiência real dirigiu-se o bispo aos
aposentos da rainha ; esta achava-sc á missa com as
princezas suas filhas. O embaixador, tendo esperado
um puULii, teve aviso de que a rainha, havendo-se
concluído o oflicio divino, o receberia, c foi introduzi-
do á sua presença por um mordomo, que repetiu em
voz alia o nome e dignidade do bispo. A sala appre-
sentava o seguinte aspecto: a rainha debaixo do do-
ccl, duas infantes a seus lados, as damas do seu ser-
viço por detraz ou na mesma linha das infantas, as
damas de honor e os grandes do reino em frente, e
ao lado destes os embaixadores e ministros estrangei-
ros. O bispo de Reúnes, depois de fazer três profun-
das reverencias á rainha c duas ,ís infantas, pronun-
ciou a sua arenga, mas em francez, c poz nas mãos
da camareira mór as cartas dirigidas á rainha e ás
infantas, depois do que se retirou descoberto como
tinha fallado, porquanto a corte de Hcspanha j;i ha-
via adoptado o uso da franceza, de fallar :is scnhorau
de qualcpier jerarchia com a cabeça descoberta. O em-
baixador teve de appresentar-sc lambem ao príncipe
das Astúrias ; porém do quarto d'esto já se havia des-
terrado parte da etiqueta, porque a prínceza das .\s-
turias, l.uiza Isabel, filha de Luiz \V, linlia mani-
festado a sua predilecção pelos usos da corte de Fran-
ça. Seui embargo d'isso, apparecendo n'cssa occasião
o infante cardeal, tiveram de gitardar-se as ceremo-
nias hespauholas, de que o mesmo infante era rigido
obscrvíidor.
No dia 13 ás sele horas da noite verificoH-se a cc-
remonia da assignatura do contracto na sala da au-
diência do rei. Estará esta sala magnificamente ador-
nada e illuminada. No extremo mais visinho do apo-
sento d'elrei estavam as cadeiras para este c a rainha,
e á esquerda d'esla havia outras seis collocadâs em fi-
leira para o priacipe c priuccza das Astúrias, o in-
fante cardeal e as infantas lliria Thereza e Maria
Antónia. Um poueo antes da cl:ej;ada de SS. MM.
sairam da sala os que por seus eM:prego3 não tinham
direito de assistir á ccremonia, e fi aram somente oí
principaes empregados da casa real, os grandes d'Hes-
panha, e os gentishomens da cauiara collocados em
duas fileiras á direita e á esquerda, os mordomos de
semana, olliciaes da guarda de Corpo, e alguns da
guarda d'infanteria, os dois secretários de estado, o
inquisidor geral, o presidente do conselho de Castel-
la, alguns bispos, e a final os confessores d« rei e da
rainha. Os ministros estrangeiros tinham logar por
detraz das cadeiras de SS. MM. Quando todas as pes-
soas da f^milia real tomaram assento, cada um dos
assistentes se collocou no posto que haria occupado
nas eeremonias anteriores, e os grandes d'Hespanha
de todas as classes ficaram defronte do rei e da rai-
nha : o embaixador de França assentou-se n'uma ca-
deira de respaldo ao lado esquerdo do monarcha. O
marqucz de Ussart, secretario d'estado e notário mór,
fez preparar uma mesa coberta com uma alcatifa, a
quiil com dois castiçaes massiços de prata mandou
pôr diante do rei. O mordomo mór deu uma panca-
da de bastão no pavimento, e o sobrediclo secretario
d'eslado, de pé e de cabeça descoberta, começou a
ler em voz alta o contracto de matrimonio. Concluída
a leitura, que durou Ires quartos de hora, o rei e a
rainha assignaram. A rainha mandou á infanta Maria
Thereza que se chegasse e assignasse na sua presença.
Depois foi collocada a mesa diante de cada pessoa da
família real, e todos foram assignando por seu turno.
Do contracto se fizeram dois exemplares, um para H«s-
panha em hcspanhol, outro para França em francez.
Deiiois assignou o bispo de Kennes como procurador
do rei e do delphim de França. O marquez de Villa-
rias, o almirante de Castella e o inquisidor geral ha-
viam assignado antes da ceremonia como commissa-
rios. Os officiacs mores da casa, os capitães das Ires
companhias das guardas de Corpo, um considerável
numero de grandes e gentishomens da camará, os dois
secretários de estado, alguns bispos c os dois confesso-
res, posto que designailos como testimunhas. não assig-
naram.
.\o dia 18 á noite o palriarcha das Índias celebrou
o matrimonio religioso. O príncipe das .\sturias, em
virtude de auctorisação expressa de Luiz XV, repre-
sentou a pessoa do delphim. À ceremonia foi mui sin-
gela, e só fi>ram presentes a real familía, alguns gran-
des d'Hespanha e seus primogénitos, e algumas da-
mas do paço.
A 20, depois de um grande banquete, celebrado
em |)ublioo segundo o costume, a delphina rereben a
benção de seus pais o rei ca rainha de Hespanha,
dcspediuse de seus irmãos, c deu beijanião aos con-
currentes. Depois, acompanhada somente do prinri-
|ic e prinreza das Astúrias, c seguida de toda a em-
baixada franceza, saiu de Madrid : a uma légua d'es-
ta corte subiu com uma só dama de honor á carroa-
gem que para esse eiTeito lhe linha enviado o rei de
França. O conde de Montijo, encarregado de condu-
zir a princeza até onde a esperavam o conde I.anra-
giiais e os commissiouados francezes, tooion ent.ío o
mando da escolta, c lodos se pozeram a caminho pa-
ra a fronteira de França. Chegados a Fiicnlcrrabia,
onde csperaTam já a delphina havia muitos dias os
criados de sua casa e os oOiciaci da cseolla franceta,
recebeu ella da parle do rei seu sogro, e por mão da
cavalheiro La Fare, seu cstribeiro o retraio do del-
phim c vários presentes da etiqueta O conde de Lau-
raciiiais por parle da França c o de Montijo pela de
Uespanha, assistidos dos respectivos secret.irio5, rega
o PANORAMA.
115
laram em breve todas as formalidades da entrega da
princeza. VcriQcou-se esta entrega na celebre ilha dos
Faisães, situada no meio do rio Bidassoa, sobre o qual
se lançou uma solida ponte de madeira. Depois na mes-
Oia ilha se levantou um pavilhão composto de dois apo-
sentos separados por uma grande sala, servindo esta,
de certo modo, de fronteira ;ís duas nações, cujos re-
presentantes rivalisaram cm gosto e magnificência pa-
ra adornar os seus respectivos departamentos. Do lado
dos francezes chegava-se ao pavilhão por uma rua de
arvores magnifica, chamada rua de Franca, formada
de 130 pinheiros assentados alli no dia antecedente, e
adornada com grinaldas de louro, murta e flores, com
divisas galantes em papeis de côr.
No dia í'i a delphina apeouse da carroagera ;í en-
trada da ponte da parte liespanhola, e passou a pé dan-
do-lhe a mão o conde de Montijo, seguida dos liespa-
nhoes que a tinham acompanhado na jornada. Logo
que chegou ao pavilhão descanrou um momento debai-
xo de um docel com as armas de Hcspanha, e depois
entrou no dcparlamcnlo da sua nação sem mais deten-
ça que atravfssa-lo, e por ultimo passou á grande sa-
la, onde se verificou a entrega de sua pessoa aos caval-
leiros francezes, os quaes assignaramde \ic o Icrmo de
recebimento. Terminadas estas formalidades, a prin-
ceza comprimcnteu o condede .Montijo, deu-Ihe a mão
a beijar assim como aos mais hespanlioes e os despe-
diu. Depois, datiiio-lhe a mão o conde de Lauraguais.
passou ao departamento fr.incez, onde recebeu as feli-
citações c homenagens dos genlishoracns e o juramen-
to dos criados de sua casa. A duqueza de Brancas, sua
dama de honor, e a marqueza de Uubempré, sua ca-
mareira, lhe appreserilaram o guarda-roupa que lhe
enviava o rei de França ; a princeza mudou logo de
vestidos, entrou para a carruagem, e deu ordem de
marcha para Paris.
As particularidades das festas que se fizeram cm
honra d'esla princeza nas cidades por onde passou, c
sobre tudo em Paris, não serviriam senão de tornar
mais triste a recordação de seu fim prematuro, pois
que morreu sobre parto a -26 de julho de 17Í-7, ain-
da não decorridos dois annos de casada : sou filho não
lho sobreviveu. O delpliim casou depois com a prin-
ceza de Saxonia, Maria Joselina, e teve d'clla Ires fi-
lhos c duas filhas, que foram, o desditoso Luiz XVI,
Luiz XVIII, Carlos X, c as princazas Clotilde c Isabel
de França.
Génio dos riNLANDEaE.s.
A rsTRAn* de Abo a Ilelsiugfors é conservada cuida-
dosamente em bom estado, mas c silenciosa e deser-
ta : no espaço de sessenta léguas não existe uma ci-
dade, uma aldeia. Km todo o tempo que gastei a
percorre-lo creio que não encontrei seis viajantes : o
seu aspecto, em summa, asseiaelha-se ao (|ue já eu
linha observado em muitos pontos da Suécia : ora se
passa por meio d<; um l)us<|ue de abetos c de bétulas,
ora se trepa um outeiro semeado de penedos, ora se
desce a uma planura de areal por onde corre mansa-
mente um ribeiro. A poucas milhas de Biesherg vi
uma cataracta e uma ferraria. i'ouco mais ao longe
dc3cortina-se algum lago cercado |)or uma ourela de
arvoredo ou por muralhas de idcliedos granitosos Os
mais formosos lagos da Finlândia aeliam-su nat pro-
víncias de Savolax e Careliii, (pie pela IVeseura dos
vallcs c as verdes laileiías das eiuineiu:ias (razem á
lembrança o paiz variailo e picluresco da l>al<'earlia.
— Westc solo pedregoso e areento. eubrrlo a(|ui de
musgo, c acolá erriçado de malto, nnde i|urr ([ue ha
uma cuurellu do terreno aruvel c cullivudu cuiii in-
telligencia e perseverança. Os finlandezes são muito
bons agrónomos; nem o trabalho da lavoura, nem a
intemperança das estações, nem a natureza rispida
que illude os seus esforços, os amedrontam : tem le-
vado a relha do arado além do circulo polar, e colhi-
do cevada nos confins da Laponia ; onde houver um
campo lavradio assentarão uma vivenda. De ordiná-
rio nãe é mais do que uma barraca mesquinha e de
madeira, de alguns pés d'alto, sóallumiada por uma
clarabóia, c mais parecendo um pombal do que hu-
mana habitação ; sem embargo, é bastante para ani-
nhar uma familia inteira ; d'ella saem homens robus-
tos, acostumados a todas as privações, rijos para to-
da a casta de fadigas, e mulheres que ostentam o ty-
po augusto da belleza sob os trajos da penúria. Dia
virá cm que a ninhada, mantida a batatas e leite aze-
do, largará o seu pouso ; assoldadam-se rapazes e ra-
p.irigas, e de seus salários levantam um piedoso dizi-
mo para seus pais já velhos, que com o auxilio d'es-
tc soccorro filial acabam com certa commodidade a
vida começada cm lidas e fraguas.
Os paisanos finlandezes estão capacitados de extra-
vagantes superstições. Esta gente simples e ignorant*
crê na existência de uma turba de espíritos mais ou
menos malfazejos que influem poderosamente nos des-
tinos dos homens. .\"algiins districtos imaginam que
os mortos podem, lá em certas epochas, visitar as suas
casas, e como os vivos não lêem a menor cubica de
os tornar a ver, por isso Icmbraram-se de usar de um
expediente singular. Põem o caixão dodefuncto, quan-
do o levam ao cemitério, que é sempre longe, em cima
do carro que no andar dá mais solavancos, e gniam-
n'os pelos carris e azinhagas mais ásperas e intracta-
vcis, afim de que o corpo vá bem balouçado e sacu-
dido ; isto (dizem tllesj para que os defunctos lá na
cova se lentbrem de tão ruim caminhada e lhes fuja a
tentação de voltar ao sitio d'onde foram transportados.
Carlos VI e os seus cortezãos.
E.M 1.'580 caiu a França nas desgraças de uma meno-
ridade : Carlos VI se achou de posse do throno na
idade de doze annos. A regência pertencia ao duque
d'Anjou, que ambicioso e avarento queria dinheiro
e [loderio ; o duque de Berry era cxcluidu dos negó-
cios ; a lulella estava confiada aos duques de Borgo-
nha c de Bourbon, igualmente tios do rei menor: es-
tes dois, invejosos c turbulentos, não contentes ila par-
le de auctoridade que lhes tocava, (lueriani coarctar
a do regente; e todos elles, desprezando os interesses
do povo, não curavam senão ilc segurar os seus pró-
prios. Os arredores de Paris foram desa|iiedajamen-
te devastados pelos partidários que estes sediciosos por
alli juiu:laram, na intenção de crearem um regime a
cujo abrigo o sen despotismo e rai)inas ficassem im-
punes : — foram tamaulias as desordens que se esta-
beleceram árbitros obrigados a intervir n'ellas. De-
cidiu-se (ine a coroação teria logar a % de novembro
seguinte ; que a regência cessaria então, que o rei go-
vernaria em seu nome, assistido comludo de um con-
selho de (jue seus tios firiam parte. O diniue d'An-
jiiu, certo da lran(|uilla posso do poder, ao nieuos por
alguns niezes, ijuiz aproveita-los ; nada iguala o des-
caramento de sa(iuear a que se entregou ; apossou-»e
até das jóias e baixella da coroa, e não se eiwergo-
nhou lie ameaçar de morte o confidente do defuncto
Carlos V, se lhe não descobrisse o lugar em que es-
lava o thesouro de dezesete milhões (jue aqurlle MO-
nanha culligira : o temor do supplicio quebr.intou IX
fidelidade, c loi satisfeita a avareza do rcfc'ente.
liG
O PANORAMA.
Sendo grave o peso dos impostos, e constando que
o rei fallecido recommcndára na soa hora derradeira
que fossem supprimidos todos os que se havi»m lan-
çado depois de rilippe o formoso ; como a corte não
tinha pressa de cumprir a ultima vontade de Carlos
V, o povo amotinou-se, e o conselho viu-se na preci-
são de convocar os Eslados-geracs ; mas esta asscm-
bléa foi frouxa e dividida entre si ; e tanto o conhe-
ceu o regente, que renovou, apenas dissohida, todos
os tributos cuja abolição cila havia sanccionadu. Foi
este acto o signal de um levantamento em Paris e
muitas cidades. Não dcscrevcrcmes scenas de exces- [
SOS, dclirios c horrores : a França eslava tão desgra-
çada quanto, alguns annos antes, havia sido podero-
sa. A expedição a favor do conde de Flandres, perse- i
guido pelos súbditos rebellados, veiu dar motivo a no-
vas calamidades, e peior aconteceu com outra, ar-
mada pela ambição do duque de Anjou : — foi um i
projecto de conquista na Itália.
Traclava-se do reino de Nápoles onde reinava a
posteridade de Carlos d'AnJ9u. A rainha Joanna, na
sua varia fortuna, achande-se sem descendência havia
escolhido por herdeiro Carlos Durazzo, descendente '
como ella do irmão de S. Luiz. Estava então no seu |
auge o grande scisma pontificio : Urbano VI em Ro-
ma, Clemente VII em Avinhão se excommungavam
reciprocamente. O primeiro depoz Joanna, porque se
declarara a pró do seu competidor, c foi tão immo-
ral que ordenou ao próprio Durazzo se armasse con-
tra a sua bemfeitora ; Durazzo foi tão vil que obede-
ceu ús vontades do papa. Então a rainha napolitana
retractou a sua doação, e nomeou para successor o
duque d'Anjou, irmão de Carlos V de França, a
quem a esperança de uma coroa conduziu á Itália. O
papa Clemente VII devia naturalmente proteger o
duque de Anjou; auctorisou-o para levantar dizimos
e excommungou a Durazzo e aos que o seguiam. O
duque passou os .\lpes com um exercito de srisenta
mil homt iis ; não duvidava do triumpho ; mas já o
seu rival se tinha assenhoreado de Nápoles e metti-
do cm prisão a rainha Joanna, a quem mandou es-
trangular á chegada do exercito franccz, assim como
ella em outro tempo fizera estrangular o seu primei-
ro marido. O duque procurava o inimigo para o com-
bater ; Durazro que conhecia as suas vantagens não
as quiz arriscar n'uma batalha ; limitou-se a inquie-
tar o contrario, que por deserções se ia enfraquecen-
do. Os thesouros de duque esgotavam-se ; sua mulher
lhe transniiltiu novos recursos pecuniários, e encar-
regou um confidente de os ir receber a Veneza, mas
o valido apossou-sc do dinheiro e o dissipou. O du-
que de .\njou, desesperado, devasta os territórios que
atravessa ; arremeçase furioso a uma partida d« ini-
migos que encontra, recebe uma ferida no conflicto,
enferma por algum tempo c morre. Os fragmentos
dispersos do seu exercito se recolheram para onlrisle-
cer a França cora o espectáculo do seu desbarate.
Pouco tempo depois d'aquella malograda eipedi-
cãe, Carlos VI tomou por mulher Isabel de Ba\icra,
que por seu caracter ambicioso, e alma dcshumana,
lanto mal foz a França. O conselho ilos príncipes go-
vernava sempre, apesar da maioridade do rei, que
contava dczcseis annos. Novas sedições na flandres,
sustentadas por tropas inglezas, assustaram o duque
de líorgcinha. O conselho assentou de mandar á In-
glaterra uma armada formidável , afim de castigar
por uma vez a insolência da nação rival. O miserá-
vel estado da fazenda publica, continuadamente sa-
queada desde a morte de Carlos V, era um piuieroso
obstáculo ao cumprimento d'eslc desígnio. Dobraram-
se todos os impostos, e alem d'isso estabclcceu-sc um
empréstimo forçado para acudir as enormes detpezas
que exigia aquelle armamento. A oppressão era tal
que o povo não ousou murmurar ; a própria nobreza
foi sujeita á derrama geral ; e o clero, oulr'ora tão
cioso das suas immunidades e arrogante, já não pos-
suindo mais que a sombra d'ellas, obteve por privi-
legio único o dar a titulo de donativo a collecta que
0 governo lhe podia extorquir á viva força.
Foi no porto de FEcIusl que se ajunctaram todo*
os navios para esta formidável empreza. Uma frota
de trezentas velas, que devia levar o rei, os prínci-
pes c um exercito de cem mil homens, se reuniu com
brevidade. Na Bretanha embarcou o madeirameato,
para assim dizer, de uma cidade inteira, que serviria
de alojamento c de trincheiras ás tropas depois do
desembarque. A Inglaterra, assombrada d'este im-
menso apparato, moveu-se em pezo ; ali o clero cor-
reu ds armas : parecia inevitável uma invasão terrí-
vel ; e todavia os colossaes projectos da França fica-
ram em nada. O duque de Berry devia trazer tropas da
Guyanna ; porém os inglezes oíTereceram-lhe dinheiro
e deu causa a falhar a expedição com delongas coati-
nuadas. A. esquadra que transportava a famosa cidade
de madeira, conduzida da Bretanha a Eclusc pelo con-
destavcl Clisson, foi accommettida de horrorosa tor-
menta que dispersou os navios, um dos quaes á dis-
crição das vagas foi dar ás praias d'Inglaterra, como
para informar aquella nação de que os elementos cons-
piravam para desconcertar os desígnios da sua adver-
saria. Uma parte do exercito que estava para o desem-
barque foi ás ordens do duque de Borgonha guerrear os
flamengos; ea Inglaterra ficou desaffrontada de sus-
tos.
Mas o rei não abandonara inteiramente o seu pla-
no da invasão. Equiparam-sc em segredo nos portos
de Treguier e de Ilarfleur navios e soldados : o con-
destavel passou á Brstanha para tomar o commando
da armada. O duque da Bretanha, cioso dos amores
que suspeitava entre sua mulher e Clisson, com ma-
nha attrahiu este a Vannes, fe-lo agarrar e metter
D'um calaboiíçi); fnra a sua Itnção mata-lo, mas o
criado de confiança, a quem dera ordem de o preci-
pitar durante a noite no mar que banha as muralhas
do torreão, horrorisou-se á idéa d'este crime, e não
teve forças para consumma-lo. O duque, arrependen-
do-se, renunciou os seus projectos de vingança : mas
não saltou o prisioneiro senão pelo preço de muitas
praças fortes c de una considíravel quantia. Clisson,
furioso, appresentou-se em Paris a pedir justiça ao
rei. O duque foi chamado, c pretendeu justificar-se ;
o rei exigiu a restituição das cidades e do preço do
resgate, e reconciliou os dois inimigos. Pela segunda
vez se renunciou a expedição contra Inglaterra.
Fatigado do jugo de seus lios, o rei d«clarou que
queria reinar independente ; escolheu ministros, re-
tirou do governo do Langucdoc o duque de Berry,
mandou queimar vivo Bctizac, confidente d°este prín-
cipe e agente de todas as dilapidações, constituiu per-
manente o parlamento, e excluiu d°elle os abbades e
priores como Philippe o longanimo já linha desvia-
do os bispos ; depois dou funcções esplendidas e tor-
neios, cm que o duque dOrleaus, seu irmão, c mes-
mo clle tomavam parte. A cõrlo mudara totalmente
de aspecto ; a rainha e a formosa Valenlina de Mi-
1 Ião, sua cunhada, ostentavam o brilho da mocidade
juncto á bellcza : mas a prodigalidade do monarcha
. contrastava com a penúria do povo. .Não se cuidava
'senão de divertimentos, qu.indo a tentativa de assas-
sínio na pessoa do oondestavel Clisssn por m.indado
j do duque de Bretanha veiu consternar os ânimos : «
perpelrador era Pedro de Craon, o infame que rou-
o PANORAMA.
117
bara o espolio do duque d'Anjou na Ilalia ; «vadiu-
se para a Bretanha. O rei exigiu que Monlfort ]h'o
entregasse; poréta o duque recusou. Então Carlos VI
resolveu fazer guerra á Bretanha, para vingar o con-
deslavel, que convalescido das feridas continuava a
gozar do favor da corte : os tios do rei, ciosos da as-
eendencia que grangcára Clisson, procuraram oppôr-
se áquelle projecto ; mas Carlos VI, impetuoso e ab-
soluto, quiz leva-lo a cabo. Poz-se á testa de ura exer-
cito, e atravessava o bosque de Mans quando ura ho-
mem vestido de branco, postado verosimilmente pe-
los príncipes, mas que a imaginação fraca e exaltada
do rei tomou jior espectro, saltou d'entre a malta
cortada, o agarrando-lhe no freio do cavallo bradou:
« /Iclrocede, ó rei; estás at'-aiçoado ! » O infeliz nio-
narclia ficou mudo de assombro ; comludo a marcha
progrediu ; de repente o casual embale de uma lan-
ça n'um capacete o transporta de furor e de espanto
a um tempo ; e declara-se violentamente n'esse mo-
mento a demência que tinha de durar toda a sua vi-
i da. Com trabalho o seguram e conduzem a Paris ; os
I duques de Berry e de Borgonha apossam-se da auc-
j toridade ; Clisson, a quem detestavam e queriam dei-
I lar a perder, viu-se obrigado a fugir; e foi despoja-
do da dignidade de condestavel. O rei, recobrado o
juízo ao lim de seis mezes, apenas teve tempo para
approvar tudo quanto se fizera durante a sua aliena-
ção : um accidcnte, succedido n'um baile, lhe moti-
vou novo accesso ; desesperaram de o curar : recahi-
das frequentes o determinaram a nomear um conse-
lho de regência, á tesia do qual collocou seu irmão :
aqui tem principio a sanguinolenta rivalidade das ca-
sas de Borgonha e de Orleans, fonte de tantas dis-
córdias que não particularisamos por não ser nosso
intento n.irrar os acontecimentos de uma época intei-
ra da historia da Franca.
Por este tempo appareceram pela primeira vez as
cartas de jogar, que foram inventadas (ignora-se dc-
rinitívamente por quem) para entreter os lúcidos in-
tervallos que a loucura deixava ao rei Carlos VI. —
Depois se propagou com furor pela França entre a
nobreza, e d'ahi pela Europa e enlre o povo o uso
de jogar as cartas, converlendo-se cm causa motora
da ruina de muitas famílias e da perda de muitas vi-
das c reputações o que fiira iraaginailo para instru-
mento de distracção. — As primeiras cartas eram pin-
tadas á mão, e por isso custava o baralho muito ca-
ro ; muito posteriormente se lembraram de as gravar
c ílluminar, • então desceu muílo o preço, (! a gen-
te Yulgar poude nervír-sc d'ellas.
Os Trmpi.arios.
(Conllnuidodcpas. 10!) )
Eu não quereria associar-me aos perseguidores il'esta
illustre ordem. O inimigo dos Icmplarios sem querer
os purificou : os trados, mcdiatile os «pues lhes ex-
tor(|uiu vergonhosas confissões, parecem urna presiimp-
rão de innoeencia. Move nos o animo a não acreditar
desgraçados (|ue se aeeusam no niarlyrio do potro .-se
tiveram maculas, iuclinamo-nos a não as divisar, apa-
gadas como foram pela chamnia das fogueiras. — .Sub-
sistem, cwmtudo, grav<^s testiuiunhos, obtidos fora da
polé c dos tractos. Até as arguições que não foram
comprovadas não sãu menos verosímeis para <|uem co-
nhece a natureza humana, para (|ucm considera so-
riancnte a situação da ordem nos seus últimos tempos.
Era natural que se introduzisse a relaxação entre
cenobitas guerreiros, filhos segundos da nobreza, que
corriam *m busca de aventuras longe da christanda-
de, muitas vezes longe da vista de seus capitães, en-
tre os perigos de uma guerra de morlc c as tentações
de um clima ardente, de uma região de escravos, da
luxuriosa Syria. O orgulho e o brio os sustentaram
cm quanto houve esperanças a pró da Terra Sancta.
.Vgradcçamos lhes terem resistido por tão dilatado tem-
po, quando em cada wnia cruzada a sua expectação
ficava tão tristeniítile abatida, quando toda a predic-
ção menlia, e os milagres promeltidos se dilTeriam
scm|)re : não ha\ia semana i\ne o sino de rebate de
Jerusalém não annuniiasse a apparição de árabes na
planicic assolada : tocava sempre aos templários, aos
hospitalarios, montar a cavallo, sair dos muros. A
final perderam Jerusalém, e depois S. João d'.Vcrc :
soldados aliaiidojiados, sentinellas penlidas, dexe por
>enlura admir.ir (|ue na tarde d'aquella batalha de
dois séculos se lhes prostrassem os braços? — f".
grave a queda depois dos esforços vehemonles : a al-
ma que tanto acima se elevara no heroísmo e sancti-
(lade bem pesada cáe por terra Enferma e cheí*
de azedume cngolphase no mal com uma sedo aspér-
rima, como para vingar-so de luver crido. Tal pare-
ce ter siilo a queda do Templo. (Juanto havia do sane-
lo na ordem se luriiou em preeado o mancha. l>cpui&
de SC ter oneaminliado do homem para Deus, vultuu
lie Deus para a bruteza. As piedosas ágapes, as fra-
ternidades heróicas encobriram paixões torpes do co-
118
O PANORAMA.
libalarios : occultavam a infâmia alolando-se mais
n'ella : o or;,'iilho lambem entrava n'islo ; esse povo
eterno, sem família nem geração carnal, recrutado pe-
la eleição e o espirito, ostentava desprezo á mulher,
crendo-se sufficicnte a si mesmo, e não amando nin-
guém á excepção de si mesmo. Como passavam sem
mulheres, passavam sem sacerdotes, peccando e absol-
yendo-se uns aos outros. E passaram lambem sem
Deus. Ensaiaram superstições oricntaes, a magia sar-
racena. A principio symbolica, a abjuração veiu a ser
real; renegaram de Deus que não lhe dava a victo-
ria ; tractaram-n'o como um alliado infiel que os Ira-
hia, ultrajaram-n'o, cuspiram na cruz. Parece que a sua
verdadeira divindade veiu a ser a sua própria ordem :
adoraram o Templo, e os templários seus cabeças co-
mo templos vivos ; symbolisaram por meio das mais
immundas e repugnantes cercmonias a devoção ce-
ga, o completo abandono da vontade. A ordem, con-
centrando-so assim, caiu n'uma feroz idolatria de si
mesma, num egoísmo satânico. O que ha de summa-
mente diabólico no diabo c o adorar-se.
Dir-se-ha : eis ahi conjecturas. — Porém cilas deri-
vam mui naturalmente do grande numero de confis-
sões alcançadas sem o recurso dos tractos, particular-
mente em Inglaterra. — Demais: que tal fosse o ca-
racter geral da ordem, que os estatutos se tornassem
expressamente infames e ímpios, estou bem longe de
o allirmar. Cousas taes não se escrevem : a corrupção
entra n'uma ordem por connívencía mutua c tacita ;
as formas subsistem, mudando de sentido, e perverti-
das por má interpretação que ninguém reconhece em
publico. — Porém, mesmo quando essas torpezas, es-
sas impiedadcs tivessem sido uuiversaes ua ordem,
não teriam bastado para acarretar a sua destruição :
o clero as teria vendado e abafado como outras mui-
tas depravações ecclesíasticas. A causa da .jina do
Templo foi o ser mui rico e mui poderoso: — houve
outra causa íntima, eu a direi logo.
Á medí'la que o fervor das guerras religiosas dimi-
nuía na Europa, á medida que era menor a concor-
rência ás cruzadas, da\a-se mais ao Templo, para se
isentarem d'aquellas ; os aíTiliados da ordem eram in-
nameraveis ; bastava pagar dois ou ires dinheiros por
anno. Muitas [lessoas oITereciam todos os seus bens e
a si mesmas ; dois condes da Provença se entregaram
assim • o rei do Aragão legou o seu reino, mas o rei-
no não consentiu. — Pude julgar-se do numero pro-
digioso das possessões dos templários pelo das terras,
casacs c fortalezas arruinadas, que em nossas cidades
e campos ainda conservam o nome do Templo. Pos
sas o soldão, permittido o culto mahometano, avisa-
do os infleis da chegada de Frederico II. Nas suas
furiosas rivalidades contra os bospitalarios até chega-
ram a arremeçar frechas ao Sant» Sepulchro. Af-
firmava-se que haviam merto um cabo musulmano
que se queria fazer christão para não lhes pagar mais
tributo.
A casa real de França, particularmente, assentara
ter razão de queixa dos templários : tinham morto
em Alhenas Roberto de Brienne ; tinham recusado
contribuir para o resgate de S. Luiz; e por ultimo
SC haviam declarado a pró da casa d'Aragão contra
a de Anjou.
Entretanto, a Terra Sancta fdra definitivamente
perdida em 1191 e a cruzada concluída. Os cavallei-
ros vinham a ser inúteis, formidáveis, odiosos í elles
traziam para o centro d'este reino exhansto (a Fran-
ça), e para debaixo dos olhos de un rei famélico, um
monstruoso Ihesouro de cento e cíncoenta mil Qorins
douro, e em prata a carga de dez muares. Que fa-
riam elles, em plena paz, de tanto poderio e rique-
za? Não lhes sobreviria a tentação de crearem para
si um estada soberano em o Occidente, como os ca-
valleiros icutonicos fizeram na Prússia, os da ordem
do Hoipítal nas ilhas do Mediterrâneo, cos jesuítas
no Paraguay ? Se elles se houvessem reunido aos bos-
pitalarios, nenhum rei do mundo lhes poderia resis-
tir. Não havia estado onde não tivessem fortalezas ;
pertenciam a todas as famílias nobres. Não eram, na
verdade, ao todo mais de quinze mil cavalleiros ; po-
rém eram homens exercitados nas armas no meio de
um povo que o não estava depois que tinham cessado
as guerras dos senhores. Eram exccUcnles cavallei-
ros, rivaes dos mamelucos, tão intcUigentes e ágeis
quanto era pesada e inerte a vagarosa cavallaria feu-
dal. Por toda a parte sa viam cavalgar nos seus admi-
ravei» ginetes árabes, e seguido cada um do seu es-
cudeiro, do pagem, e de um servente d'armas, sem
conlar os escravos prelos. Não podiam variar os ves-
tidos, mas tinham preciosas armas oricntaes, de aço
de fina tempera, soberbamente adamascadas. — Co-
nheciiim bem as suas forças: os templários d'lnglater-
ra linham-se atrevido a dizer ao rei Henrique II!:
«Sereis rei em quanto fordes justo» — e este diclo
na bocca d'ellcs era uma ameaça.
Tudo isto fazia scismar Filípi e o formoso. Os tem-
plários haviam recusado admitli-lo na ordem. Tinbam-
n'o rejeitado, e linham-n'o servido ; duplicada bumi-
liação. Elle lhes devia dinheiro : — o Templo era uma
espécie de banco, como o tinham sido muitas vezes
suiam, pelo quo dizem, mais do nove mil domicílios ' os templos da antiguidade. Quando em 130S achou
na christandado : só n'uma província de llcspanha
o reino de Valença , tinham de/.osetc praças fcrtes.
Compraram |)or dinheiro de contado o reino de Cliy-
pre, que não poderani, é verdade, conservar. Com
taes privilégios, taes riquezas, laes domínios, era bem
dilTicil ter luimiblade. lUcardo, o coração de leão,
dizia á hora da morte : k Deixo a minha avareza aos
monges de Cister, a minha incontinência aos monges
pardos, c a minha soberba aos templários. »
Á falta de musuluiauos, esta milícia turbulenta c
indomável guerreava os chrislãos : fizeram guerra ao
rei de Cliyprc eao príncipe do .Vnliocliia ; desenlhro-
nisaram o rei de Jerusalém, Ilonriquc II, c o duque
da Croácia ; devastaram a Thracia e a Grécia. Todos
os cruzados que voltavam djv Syria não fallavam se-
não das traições dos templários e do seu trado com
os infiéis. Estavam em notória correspondência com
entre elles asylo contra o povo levantado, leve sem
duvida occasião de admirar os Ihesouros da ordem,
sendo os cavalleiros tão presumpçosos de si e tão ar-
rogantes que nada lhe occultariam. — X tentação ert
forte para o rei. .\ vicloria de Mons o deitara a per-
der : constrangido a entregar a Guyanna, lambem o
fora a largar a Flandres Qamenga. .\ sua mingua pe-
cuniária era extrema, e não obstante isso foi-lhe mis-
ter supprimír um tributo contra o qual se amotina-
ra a -Normandia ; o povo andava já tão agitado que
foram prohibidos todos os ajunclamcnlos de mais de
cinco pessoas. O rei não podia sair d'csla situação
desesperada senão por algum grande confisco : ora,
tendo sido expulsos os judeus, o golpe havia de d«s-
fechar-se ou contra o clero ou contra os nol)rf5. ou
sobro uma ordem que pertencia a uns e outros, ma»
que por isso mesmo, não pertencendo exclusivamen-
os aisassinos da Syria, e o povo observava com terror \ te nem áquelle nem a estes, por ninguém seria defen-
a analogia de seus vestuários com o dos seguidores i dida. Longe do serem apadrinhados os templários, aa-
do velho da montanha. Tinham acolhido cm suas ca- i tcs foram acommeltidos pelos seus naluraes proieclo-
PANORAMA.
119
res : os frades os perseguiram, os fidalgos principaes
da França prestaram adhcsão por eseripto ao processo.
Filippe o formoso tinha sido educado por um do-
minico; e dominico era o seu confessor: — por longo
tempo esta ordem de frades tinha sido amiga dos tem-
plários, a ponto de se obrigarem aquelles a sollieitar
dos moribundos que confessassem algum legado para
o Templo ; mas gradualmente as duas ordens vieram
a ser rivaes. Os dominicanos tinham uma ordem mi-
litar própria, os cavalieri gaudenti , que não teve
grande impulso. A esta rivalidade accidcntal deve ac-
crescenlar-sc uma causa mais grare de rancor. Os
templários eram nobres ; os dominicos, mendicantes,
eram em grande parte mechanicos, posto que na sua
ordem terceira contassem seculares illustres c até mo-
narchas. Nas ordens mendicantes, como nos juriscon-
sultos conseliíeiros de Filippe o formoso, havia uma
dúse.>commum de má rontade, um fermento de ódio
BÍvellador, contra os nobres, os guerreiros, os caval-
leiros. Os legistas deviam aborrecer os templários co-
mo cenobitas; os dominicanos, por outro lado, os de-
testavam como guerreiros, como cenobitas mundanos,
que reuniam os proveitos da sanctidade e o orgulho
da vida militar. A ordem de S. Domingos, inquisi-
torial, podia julgar-ge obrigada em consciência a dei-
tar a perder, nas pessoas de seus rivaes, descrentes
perigosos p»r duas maneiras, pela importação das su-
perstições sarracenas e pelo seu tracto com os mysticos
do occidente que não queriam adorar senão o Espirito.
O golpe não foi im[)revisto, como se tem dicto : os
templários tiveram tempo de o ver impendente ; mas
a soberba os perdeu ; sempre julgaram que ninguém
se atreveria. — O rei, com effeilo, hesitava: primei-
ro tinha tentado meios indirectos ; por exemplo, pe-
dira ser admitlido na ordem ; se o tivesse consegui-
do, provavelmente se faria grão mestre, como practi-
coil Fernando o catliulico com as ordens militares de
Ilespanha : teria applicado a seu uso a fazenda do
Templo, e a ordem se teria conservado.
(Continua.)
O FEITOB DE CaNTXo.
ífovella.
(Continuado de pag. 106.)
TciiAO e EfTcndon empregaram muitos dias cm tirar
TIS informações de que o feitor caFceia ; mas a final
o moço lettrado, que tomara conhecimento com os
criados do censor Fo-hu, vuiu muito ufano dar parle
a lilTendon que o velho mandarim tinha com eifeito
cm sua casa uma menina muda, que trouxera cum-
sigo de Cantão na ultima viagem, e que fazia passar
por sua fílha.
Estas particularidades tiravam toda a duvida; mas,
ainda assim, o americano paru ter provas evidentes
ejcrevcu um bilheltí que Tchao se encarregou de fa-
zer que fuss» entregue a Maria. \'oltou na mesma tar-
de com algumas linhas, escriptas á pressa, eui que
Maria implorava o soccorro paterno. ■.
A vista d'cstc eseripto causou no feitor unia im-
pressão inexprimivi'1. Apesar do todos os indicios es-
tivera até então duvidoso da vida da lilha. Sem ani-
mo para S(j||ar-Hc dos braços da esperança, sem l'c ro-
busta para cr(T qtie ainda era pai, temia eonlunilir o
desejo com a realiilade ; masagora linha a jirova <liaii-
te dos olhos, via, palpava os caracteres (luoMtiria tra-
çara ; cobria-os de beijos e lagrimas.
— « Leva-me a casa d'esse homem, disse elle a
Tchao. depois de reler por duas ou três vezes a car-
ta. Quero que liojc mesmo mo entregue minha filha. »
— « Keceio que t'a negue u , ponderou o lettrado.
— « Porque ? «
— « Porque está a chegar o momento em que as
filhas e sobrinhas dos principaes mandarins vão á pre-
sença do imperador que desposa as mais formosas (1).
Se tua filha for escolhida medrará Fo-hu em riqueza
e poderio. »
— « Ah I corramos, exclamou EfTendon ; eu o obri-
garei a reconhecer os meus direitos. »
Mas quando chegou a casa do censor vedaram-Ihe
a entrada, e o mais que poude obter foi deixar ficar
uma carta em que reclamava sua filha. D'ahi a uma
hora vciu buscar a resposta, porém os servos de Fo-
hu o enxotaram como um mentiroso, declarando que,
se tivesse o atrevimento de alli tornar, tinham ordem
de o entregar á pslicia.
EfTendon não se expoz a uma resistência iuutil ; sem
perda de tempo fez que lhe ensinassem a morada do
juiz, e foi de corrida levar-lhe a sua queixa.
Pela magia de ricos presentes não sofTreu o negocio
demoras, e logo no dia seguinte foi citado o censor pa-
ra comparecer. O feitor esperou ao princi|iio escorar-
se no teslimunho de Tchao; mas este, assim que teve
noticia lio jílcito, safoií-se pelo sim pelo não, e por
mais diligencias que EITendon fez para o achar não
lhe poude pòr a vista em cima. Appresentou-se por
tanto sósinho perante o juiz, e achuu-se na presença
do raptor cie .Maria.
Era um velhito de barbas brancas que respirava
avareza e falsidade ; tinha na mão um bastão de ma-
deira preciosa cercado de lettras douradas, e vinha
com o trajo do seu cargo, composto d'um vestido ta-
lar de seda ornado de dois gryphos, botas de bico re-
virado, e chapéu de feltro vioicte, cam uma pedra pre-
ciosa por cima, dislinctivo da sua dignidade.
Effendon, sendo interrogado pelo juiz, repetiu a sua
historia tal qual a tinha estudadj, narrou miiuiamea-
te como soubera que sua lilha estava em casa do cen-
sor (sem comtudo fallar do bilhete que ella lhe man-
dara), e em conclusão peiiiu lh'a rcslituissem.
Fo-hu tomou a palavra quando lhe coube e come-
çou o seu discurso como assombrado pela audácia d'um
desconhecido que se atrevia aolTendcr um cios [irimci-
ros dignitários do império celeste. Declarou que o re-
querimento devia de ser marcado com o signal sie
(falso, ealumnioso), e foz que alli viessem muitos es-
cravos, os quaes, depois de tocarem o chão com as les-
tas, asseveraram que a menina que morava em casa
de seu senhor era com eITeito sua sobrinha, lilha d'um
irmão que elle tinha tido cm Cantão, e que acabava
de fallecer.
Mas estes depoimentos não descoroçoaram EiTcndon:
sustentou com tal intrepidez quanto alliruiara, que o
juiz pasmava; e requereu que anuída fosse trazida
ao tribunal e decidisse a contestação.
— c( Se é sobrinha de Fo-hu, disse elle, não me po-
de conhecer ; e posto que não possa fallar pro\ará com
gestos que vè cm miai um estranho ; se, polo contra-
rio, a \ irdes lançar nos iiious braços e arredar de si
este hoinein. não podereis duvidar da vonlado da mi-
nha reolainação.
Fo-hu com esta proposta enfiou. Coiilraricui-a com
o pretexto do que era uma indoooiíoia obrigar a ap-
parccer em publico uma mullior de f.imilia nobre.
— «Venha com um vc'u, replicou F.lVoíicIcui ; mas
voiilia, poniuo sc'i ell.i pcxie decidir por um de luis. i>
O juiz dofcriíi, o dou ordem a dois olliciaos do jus-
(I) Acn inipernciorcs da C.liíim alio cnHocdccIas por loi oenlo •
viiito u unia iiiuIIicmo:! ; a siilior 1 iiiciioratrit, ;l raiiilia!', 9
iciulliuro» clu i' unloiii, i7 tia 3.', o SI ila i."
120
O PANORAMA
tiça para que fossem a casa do censor e trouxessena
»ua sobrinha. Fo-hu mostrou a final annuir de bom
grado, e deu-lhes para guia um seu escravo, a quem
fez em toz muito baixa algumas recommendações.
Effendon, que estava entretido a fallar com o juiz,
não deu por isso.
Depois de longo esperar voltaram os homens man-
dados a casa do censor. O escraro e Fo-hu fóllaram-se
com os olh«s.
— « Achastes quem procuráveis ? » perguntou o juiz.
— « Está á porta do tiu tribunal » responderam os
officiaes.
— « Entre ! entre 1 » exclamou Effendon, sem po-
der reprimir a sua commoção.
Mas Fo-hu fez signa! para se deterem.
— B Antes que esta experiência le esclareça, tenho
que te fazer um requerimento. »
— « Falia. »
— « Se esta menina me reconhecer per seu lio, es-
te homem é um calumniador. »
— a >"ão ha duvida. »
— « Requeiro pois, n'e5te caso, que se lhe dè um
castige exemplar, para provar a todos, como diz o poe-
ta, que a acção má traz tio certo o castigo como o bo-
tão do pecegueiro produz a sua flor. »
— «É justo, respondeu o juiz, e será cumprido o
teu desejo ; vejamos antes o que faz essa menina. »
Os officiaes de justiça foram abrir a porta, e fize-
ram-n'a avisinhar.
Effendon ia a correr para ella ; mas estacou de re-
pente, fazendo um gesto de espanto. A estatura aca-
nhada, o andar mal Qrme, as mãos com as unhas com-
pridas, não eram nem at mãos, nem o andar, nem a
estatura de sua filha !
— <c Maria '. » exclamou elle a tremer, com os bra-
ços estendidos.
Então a menina o encarou como assustada, e pas-
sando-lhe veloz pelo lado foi lançar-se nos braços de
Fo-hu, á maneira de quem queria amparar-se com elle.
— « Vcs ? disse o censor, cantando a victoria, nãe
le conhece. »
— « É impossível '. bradou Effendon sem crer o que
eslava vendo. .Maria '. Maria ! »
E arremeçando-se á rapariga, arrancou-lhe o Teu
que lhe cobria o rosto ! Mas recuou de súbito dan-
do um ai sentido : aquelle rosto jamais o vira.
Seguiu-se um momento de desordem que interrom-
peu a sessão. .4. rapança, atemorisada e confundida,
tinha tapado a cara com as mãos ; Fo-hu instava pelo
castigo do insolente embusteiro, e o juiz gritava aos
esbirros que o prendessem. Effendon não se tirara do
seu logir, immovel, mudo, esmagado debaixs do pe-
zo de cruel desengano. Comtudo, quando sentiu que
o agarravam, levantou a cabeça e recobrou parte da
sua presença de espirito. Quiz suscitar duvidas sobre
o dolo com que o censor procedera ; pediu que se lhe
fizessem novas buscas em casa; mas o juiz o atalhou
declarando que a sua má fé estava demonstrada.
— « E como prometti um castigo exemplar, accres-
cenlou cUe, eu te condemno, a li Kang-ho, a andar
carregado com o Icha grande por dois annos, que pas-
sarás nas prisões do estado, .\ssim se execute. »
(Continua.)
As TIIERU«PVL1S KU 1841.
O Pisso das Thcrmopylas, desfiladeiro tão celebre na
historia da Grécia amiga por um assignalado feito de
valor c nobre devoção citica, acha-sc dcscripta na obra
de Mr. Bucbon pela maneira seguinte :
« Approximo-me, e torneio deliciosos valles, que
ora sobem por declives em relevo nos lados eppostos
de duas montanhas, ora se eslreitan um pouco e- se-
guem as ondulações da serrania, ofierecendo aos olhog
uma fileira de outeiros vtcejantes, que, como as on-
das do mar, se confundem contíguos uns aos outros.
A olaia espalha com profusão as suas Oores da tincta
do lilaz, e a verdura se esmalta de anemanes de to-
das as cores: prosigo á sombra de arvores as mais
formosas ; e o que eu esperava era achar uma gargan-
ta bem estreita e bem pedregosa, impendente a al-
gum charco profundo. A labrusca por cima da mi-
nha cabeça forma impenetráveis parreiras e me furta
á vista os troncos do arvoredo extremamente nodo-
sos; tudo é viçoso, e tudo florido, e centos de roaxi-
noes se desafiam em lucla d'harmonia debaixo d'a-
quellas copas amenas e frondentei. — Inquiro se na
verdade vou caminho das Thermopylas. — Estais n'el-
las — me respondem ; e olho os montes que se prelon-
gam para apertar o desfiladeiro ; e os brejos á flor do
chão estavam mascarados com os juncaes que os co-
briam. Chegado mesmo ao sitio onde a subida se acha
mais entalada, cnlre a serra e um pântano que se es-
tende até a beira da calça<ja, investiguei esta monta-
nha tão formosa de verdura para ver se era intransi-
tável ; o fade é que n'este passo, onde Leonidas pe-
lejou á frente dos seus trezentos espartanos, denoda-
da vanguarda dos cinco mil gregos, formados em es-
calões no valle immediato e em poste mui forte, não
ha outro meio de seguir avante senão passar pelo es-
treito caminho alto entre o charco e a montanha : pos-
te que viçosos e bellos estes cerros não podem absolu-
tamente ser atra>essados senão por esta parle.
t fácil ainda reconhecer o local marcado por He-
ródoto onde combateram e soccumbiram Leonidas e
os trezentos espartanos. N'esle ponto a serra, posto
que sempre verde, suspende-se abrupta, e vem fene-
cer, sem diminuir o declive, justamente ao pé da es-
trada, e pelo outro lado é rodeada por um paul que
se prolonga ale o mar e alravez do qual é impossí-
vel penetrar, .\lguns passos mais para além vèem-se
os restos de uma muralha de fortificação, com que o
imperador Justiniano, á falta de peitos valentes, pre-
tendera fechara passagem.
L'm pouco mais avante brotam muitos mananciaes
abundantes de aguas Ihermaes, que se derramam no
pântano e formão: uma crusta salina e branca de lon-
ga extensão. Perfeitamente se comprehendecomo n'ts-
te desfiladeiro trezentos homens decididos a morrer,
e servindo de vanguarda a cinco mil valorosos, pos-
tados entre a montanha e o charco, poderam tolber
o passo a numerosos exércitos. »
O JAMAB d'0SS0S.
Cbrto clérigo, amigo de bons beccados e de applicar
o sancto preceito do jejum aos seus servos, tinha por
cestume quando se ret:alava com alguma gallinba, per-
diz, ou cousa que o valha, chuthar-llie muito bem os
ossinhos, e da-los depois ao triste moço, dizendo-lhe
muito ufano : « Vai jantar. » — i. Jantar o que? lhe
disse um dia o transparente moço, se V. S.* ja roeu
05 ossos duas vezes. » — n Essa é boa '. lhe toruoa o
clérigo. Pois eu posso roer os ossos duas vetes, e v«-
cè, só biltre, não os pode roer uma? •
A Empkeh d fite Jornal Iti» remettido regularmente
aos Sti. A$signantrs das Províncias todos o> números
publieadoí.epede ai'S qut, por qualquer moliw, dei-
xattem de ot receber, hajam de faitr at tu(U declara-
fòe$, que promptamtnie serão allendidas.
16
o PANORAMA.
I2i
o BOSPHORO.
Damos á vola para a nitrada do Bosphoro costeando
a> iimralhas de Constantiiiopola «luc o iiiur vem ba-
nhar ; passa<la meia hora de navogaoão por entre a
multidão eh- navios ancorados cheti;àiTios aos muros do
serralho ijiie continuam os da cidade, e íbrniani na
extremidade do monte em <pie assenta Stanihul o an-
gulo que sitpara o mar de Marmara do canal do Bos-
phoro, e <]o Corno áureo ou í;rande enseada interior
rte Constantinopola : aili é (pie Deus e o homem, a
natureza e a arte collocaram ou crearani de concerto
o lanço de visla mais estupendo que podem olhos hu-
manos C(Uit(Mnplar na terra ^ dei um u;rilo involuntá-
rio, G esípieci |iara sempre o ^olpho de Nápoles e to-
dos os seus cMcaiilcis •, Comparar alf;iima <'ousa litpiel-
Ic coniposlo mauniljco e;j;raciosi) é injuriar acreacão.
O» paredões (pie siistenlam os terrados circulares
dos imiiiensds jardins do serralho grande, licavam a
nlguiis p.issds de liús para a nossa es(pierda, separa-
dos do mar pur um eslreito passeio de lagiMis (|ue as
ondas lavam de continuo, e ond(! acorrente perpetua
do lloNpliiiro lorma peipienas vagassiisurranles e azues
como as aguas do Ithodano em (ienclira. ICsle» terra-
dos (pie se alleain por declives impercepl ivi?is af(' os
iHlliicios (III sullTio, cujas douradas cúpulas »e desco-
iirem atravcz dds cimos gigantes dos plátanos e c\-
prestes, são tanilicm plnnliidds das mcMiias arvores,
enornii'S, di> trducos hdliriinceirds nus munis, com o»
rumos ipie Irasliiuiliim dos jardins e |i('iidcni para o
mar como esteiras di rdlliagini, daii<lo somlira ás lan-
etnis ; os remeiros de tcmpiw a Icnipos paravam de-
liaixo (Pesti< alirigo : de distancia u distancia cstcn
Voi. 1. — DuziiMBiio lU, lUiC.
grii|)os d'arvoredo são interrompidos por palácios, pa-
vilhões, mirantes, portas lavradas e douradas (|ue
abrem para o mar, ou baterias de pe(,as de Idrnias
singulares e antigas. As janellas engradadas d'estes
palacioli marítimos, quo são porí^ões dd serralho, dão
])ara o canal, e V(*-se atravcz das gelosias brilhar os
lustres e as douraduras dos tectos das camarás; tam-
bém a cada passo elegantes fontes mouriscas, inscrus-
tadas nas paredes do serralho, jirecipitam as aguas
desde a altura dos jardins e murmuram em conchas
de mármore para saciar os passageiros ; alguns solda-
dos turcos estão deitados juiiclo d\'stas fontes, e cães
vadios vagueiam pela extensão do cães: alguns estão
deitados em canhoneiras [)ara enormes calibres. A
proporção (pn- o escaler seguia ao longo das muralhas,
o horisonie se dilatava diante de nós, a costa d Asiji
se avisiiihava, e a entrada do Hosphoro conic(;ava a
deliiiear-se á vista entre colliiias de verde escuro e
outras fronteiras ipie pareciam pintadas de todos os
matizes do arco (deste; alli tornámos a dcscan(;ar.
A costa aprasivel da .\sia, distante de niis obra de
uma milha, dcbu\ava-se á direita, toda retalhada de
amplas e all.is eminências, ipie são coroadas ile ne-
gras si'l\as decopas ponteagiidas, eas beiras doscam-
pos franjadas de arvores, salpicadas ilecas.is encarna-
das, eas bordas dos barrancos a prumo alcalilailas de
verdura ede svcdiiuiros, cujos ramos beijam a agua.
Mais ao longe mais avulta\aiii as collinas edcpois se
ridiaixavam em ribeiras viçosas e formavam um es-
paiHiso pniinontorio (pie servia como de base a iiiiiii
grande ciilade ; era Sculari com os .seus va.stos qiiar-
o PAiNORAMA.
teis caiados, semoUiaiitcs a um caslello real, as suas
mesquitas ccTcadas de coruchéus refulgentes, os seus
cães e ansras guarnecidos de casaria, de bazares, de
lanchas, ásoinl)ra das parreiras ou dos plátanos ^ era
a nielaiicholica e prolongada niatta de ciprestes (|ue
cami)cia sobre a povoação, e por entre os seus ramos
alvejavam com lúgubre clariíladc os innumeraveis iiio-
nunientos dos cemitérios turcos: para lá do pontal
de Sculari, terminado por um ilhéu <|ue tem uma
capella turca, a que chamam «o tumulo da donzel-
la, » o bosphoro, como um rio encanado, soaliria-se e
mostrava escoar-se entre montanhas fuscas que irma-
navam em ambas as margens pelos lados dos roche-
dos, os ângulos salientes e reintrantes, os algari-s e
as maltas i na falda das quaes se divisava a perder
de vista a serie não quebrada de aldeias, de frotas
ancoradas ou avela, de portinhos sombreados d'arvo-
res, do casas espalhadas, de vastos palácios, com seus
jardins de rosas ;i beira-inar.
Pequeno impulso dos remos nos levou avante, ao
ponto exacto do Corno áureo onde se goza, ao mes-
mo tempo, da vista do Bosphoro, do mar de Mar-
mara, e emtini do conspecto iuteiro de porto, ou pa-
ra melhor dizer, do mar interior de Constantinopo-
la; alli nos esquecemos do Marinara, da costa d Ásia
e do Bosphoro, para contemplar d^um só relance
d'olhos a caldeira do Corno aurco e as sete cidades
penduradas nos sete outeiros de Conslantinopola,
convergindo todas para o braço de mar formado pela
cidade única, incomparável, cunjnnctauionte cidade,
campo, mar, porto, ribeira de rios, jardins, monla-
nhas arborisadas, valles fundos, oceano de casas, for-
migueiro de baixeis e de ruas, lagos serenos, o soli-
dões feiticeiras ^ vista que nenhum pincel pode re-
produzir senão por miúdo, e onde, a cada pancada
de remo, os olhos, a alma se encaminham a um as-
pecto, a uma impressão oppostas.
Damos á vela para as alturas do Gaiata e de Pe-
ia \ o serralho se arredava de nós, e avultava alTas-
tando-se á medida que a vista abrangia mais o vasto
recinto de suas muralhas, a multidão das rampas,
das arvores, dos mirantes e palácios : só á sua parle
tinha com que servir de sede a uma populosa cida-
de. O porto mais e mais se abria perante nós •, cir-
cula como um canal entre as curvas das encostas das
monianhas, e mais se patenteia quanto mais progre-
dimos. Este em nada se parece com um porto, can-
tes um largo rio como o Tamisa, cingido por ambos
os lados de outeiros carregados de cidades, e col)erto
sobre uma e outra praia de uma interminável frota
de embarcações aos monies e de ferro no fundo ao
longo da casaria. Passávamos por meio d'es5a innu-
meravel multidão de navios, ancorados uns, outros
já de vela singrando para o Bosphoro, para o Mar
Aeçro, ou para o de Marmarai navios de todas as
formas, de todos os lotes, de todas as bandeiras, des-
de a barca árabe com a proa alterosa e saída como o
be*jue das galeras antigas, até o baixel de três pon-
tes com suas paredes em que fulgura o bronze. iSu-
vens lie lanchas turcas, guiadas por um ou tiois re-
jueiros, com suas largas mangas de seda; barquinhas
que servem de transportes uas ruas marítimas dV-sla
cidade amphibia, gyravam entre a(|uell;i3 grandes
massas, cruzando-se, abalroando-se sem si>çobrar, co-
mo as turbas se acotovelam na praça publica; e ban-
dos de gaivotas, seinelhanUs a lindos jiombos bran-
cos, á chegada dos barcos se erguiam do mar, indo
pousar mais além para os balouçarem as ondas. Não
intentarei enumerar os vasos, os navios, os brigues,
as embarcações e botes que dormem ou vogam n;us
aguas do porto de Coustaiitinopola, desde a foi do
!Bo«i>lioro c o pontal do serralho até o arrabalde
d'Eyoub e os deliciosos Talles da? aguas doces : n
Tamisa em Londres nada tem que se lhe coroparp.
Basta dizer que, independente da armada turca e
dos vasos de guerra europeus, sobre fi?rro no meiu
do canal, as duas margens do Corno aurco estão co-
Ijertas a dois e a três navios de fundo, e na extensão
(|Udsi uma légua de cadauma das margens. Não ti-
vemos mais tempo do que divisar estas prolongadas
fileiras de proas apontadas ao mar, e a vista se no<
perdeu no cabo do golpho, que se estreitava entra-
nhando-se na terra, por entre uma verdadeira selva
de mastros.
O Cardeal se Rjchei.ikb.
As SITUAÇÕES é que fazem os homens grandes. A
Providencia parece crear o engenho, que os ha de
resoKer, pela medida dos acontecimentos. A revolu-
ção franceza é o exemplo d'esta verdade, exemplo
próximo e sublime, que di>pcnsa de recorrer á cru-
zada asiática de .\lexandre, ou aos últimos instantes
da republica de Koma, consuromada pela gloria do
primeiro César. Na hora em que a França arrasou
pelos fundamentos as instituições da nionarchia ve-
lha, a voz de Mirabeau, subjugando o estrondo das
ruiuius, um momento recebeu a força qnc destroe os
impérios, ttuando chegou a occasião de semear nos
sidcos ensanguentados dos antigas reinos da Kuropa
o gérmen da nova doutrina, Deus coroou do tríplice
diadema a fronte de Bonaparte, e do carro tríum-
phal enviou-o, Messias da revolução moderna, pro-
pagar pela victoria a religião politica vencedora nas
Uailias O poder constituiu-se, a ordem restituiu aos
seus eixos o Estado vaciUante, e as palavras absolu-
tas do «Homem dos Destinos:' jxir instantes usurpa-
ram a omnipotência. Depois, terminada a sua obra,
o gigante sentiu-se deslalíecer, firmou os pés nas ge-
leiras da Uiissia c as geleiras derreteram-?e ao in-
cêndio de ^loscow — quiz apertar u.i muralha de
aço dos seus batalhões a cabeça do leopardo do
Norte, e as muralhas deslizeram-sc sem vigor; e cj-
le, de pé na rocha baidiada das aguas amargosas,
Alexandre, César e .\nnibal, tudo no só Napoleão,
cruzando os braços no peito, assistiu vivo aos fune-
raes do seu império.
Diis glorias passadas restou-lhc a]>enas o nome pa-
ra encher os séculos, e a espada para depor ao lado
da de Karl o Griuide, de que foi irmã. .\ águia,
nunca mais voou !
Hichelieu, no seu século, foi a intclligoncia desi-
gnada para completar a idé.i de que elle devia vi-
ver, o principio d*oude havia de tirar a força, a uni-
dade, e o poder.
Essa idéa e esse principio era a unidade monar-
cliica, de <|ue Richclicu fui incançavel o architecto,
c o inexoraTel conlintiador, do svsteuia esboçado
(H-la mão cruel de Luix \I.
A emprez.i era gr.tnde, c a obra levou-lhe a vid.\
inteira; mas, quando o amortalharam na sua pur-
pura, a Europ;i estava preparada para o Iraclado de
XNcstphalia, e a Eraiiça para o reinado de Luíi
XIV. JMinciro ous,idu, desc»>u ás entranhas do in»-
|x»rio de Carlos N', e mais d'nma vez, piíssando .1
mão [K-la testa cavada de uma velhice pre<"Oco, es-
I tremeceu de sentir as raiies da casa d^.Vustria tanto
dentro do coração dos maiores Estados. Emtiiii, a
força de perseverança, de rigor, c de s^ij.icidade veio
o dia, em que, erguemlo-se da vigilia de n\uitos an-
nos, poude apoutar do leito da morte para a Frau-
o PANORAMA.
l2o
ca e para a Europa com ori;ulho. !N"etse dia, tam-
ijem o espirito fíitigado soparou-se para sempre das
dores da carne.
No reino de Luiz XIII o braro resoluto do minis-
tro apunhalara a aristocracia dos príncipes íeudaes,
como a revolução em I7!il) decepou a nobreza puri-
tana e cortezã. A realeza, aonde s<; infundiu a sua
alma dominadora e implacável, cresceu e vigorou,
occupando o espaço que <le um lado enciíia o leuda-
lismo, e do outro devorava a seita protestante cons-
tituída em facção politica. De um golpe robusto o
Sansão do poder real curvou diante da monarcliia
absoluta a sociedade, ([Ue lia pouco ainda oscdiava
retalhada de interesses oppostos, sacudida por forças
contrarias A lloilanda e lienebra assopravam as faís-
cas da reforma para fazer d'ella o facho de um fede-
ralismo republicano ein França. O goveiNio hespa-
nhol tentava accendir de novo as cinzas ainda quen-
tes da li^a contra Henrique IV. Kiclielieu, jiela
tempera e originalidade do seu geaio, pondo um pé
na frente á iniluencia do ICsciirial, c domando com
o outro ii audácia dos cal\ inistas, traçou, e levantou
o edifício da monarchia franc<!Za acima das fogueiras
da inquisição e do cadafalso puritano, que já se ar-
mava em VVhite-liall.
Armand-Jiião Duplesis de Iliclieliou nasceu em
15f!5 (ruma fainilia pobre iiias iilustre do Poitou. A
carreira que escolheu tinha sido a das armas, vindo
ii scuir o estado ecclesiastico, para evitar <)ue o bis-
pado de íjuçon, que andava na sua casa, não passas-
se a estranhos. AlVonso, seu irmão, tinha-se despoja-
do d'esta dignidade para se retirar á solidão d'um
claustro. Alguns estudos th(!ologicos prepararam pa-
ra o sacerdócio u o episcopado um mancebo bem nas-
cido, que se conformava ás idéas do tempo seguran-
do um benííficio lucrativo n'uma casa pobre e lidal-
jra. Antes dos vinte e <'inco ânuos João Diiiilessis foi
provido em lioma no bispado vago. JJizia-se i|ue ellc
soubera illiidir l'aulo V acerca da sua verdadeira
idade, e «jue o |)i)iiliriee, longe de se agastar, lou-
vando a(|uella destreza e talento lhe prophelisára a
sua futura eh.-vaçào.
A priini'ira epoclia da sua vida consuiiiiu-a em se
aperfeiçoar na sciencia llurojogica que fcsjjirain todas
as suas obr;is, rigorosas nas formas didácticas, e seve-
ras na argumentação lógica. Os aiirios (pie vivou no
seu bi-qiado foram (un pregados em polemicas com os
calvinislas, ou consagrados á eloquência do púlpito,
em que sobresaíu a ponto (Paltraliir a altenção da
côrle. Maria di: iMeclicis ouvio-o eom prazer, e n;-
commeiídoii-o ao iiuireclial d^Ancie, então no auge
da inlliieneia ('do poiler. Em I (i()4 conseguiu ser
eleito depu(ado aos Kstailos (ieraes por Koiitenay e
JVior), e n^estr- caiaeler ailvogou com ardor a causa
da rainha, inlluindo baslanie na r(.'dacção dos eipi-
lulos do clero.
Depois de encerrar os Estados, M.iria ih; INIedicis
não se esipieeeu d<! premiar os serviços do bispo <le
liUçon, conferi ndo-lhe o c.irgo de cismoler mór da
ruinlia reinanie Anua d'Auslria. O marechal d'An-
cre favoreeeií-o com igual extremo, apesar do que,
ou ]ior enredos, ou pelo achar nuMios dócil do (pie
desejava, para o lim começava a tiada-lo com algum
desapego. CoMcini, rodcailo de iiiimigos poderosos,
det<^rminou-s<' a feri-los iki (uração, prendendo o
príncipe di' < 'onde, cabeça das f.ieiiies do paço. Esli'
içolpe auilaz pi'ii\o<'ou um (uninllo popular, no meio
do qual os iiinolinados saquearam o si'ii palácio. E o
|>usso do goveri xigia um syslema mais eii<!rgic;o,
e homens no conselho dc^ reeonheeida aplidão e pro-
vada lealdaili'. A regente indicou lliiliiliiii pura se-
vruturio dV-nludu coDJuiicluiuenle com u murquci ve-
lho de \illero_v. Associado a crcaturas subalternas
do marechal d'Ancre, c dirigido por elle, o bispo de
Ijuçon, sem n'o estimar, obedecia-lhe, resignando-se
no gabinete ao secundário papel d'instrumento quasí
passivo.
A sua ambição entretanto não dormia ; mas com
a ordinária lucidez viu bem que o momento de se
oHeiecer em todo o vigor do seu génio não era o da
lenta mas inevitável agonia d'uma regência débil,
entregue aos caprichos d'uma mulher fraca, e perdi-
da peia cubica e incapacidade d'um italiano aventu-
reiro. Richeiieu esperava a sua hora, com aquella
rara presciência dos acontecimentos, que ainda não
faltou a nenhum homem verdadeiramente grande.
Nos últimos mezes, mesmo, da vida de Concini
houve mais d'uma dissidência seria entre elle e o
novo secretario d^^slado. O bispo de Luçon via emi-
nente a catastrophe, e por destras commiinicações
com os principas salvava a sua fortuna do naufrágio.
Uma noite o manjuez d'Ancre era assassinado por
Luines segundo expressa ordem do rei, e no dia se-
guinte Kichelicu, thamado ao Ijouvre, da bocca de
Ijuíz XIII ouvia a formal deirlaiação de que nunca
o confundira com os falsos conselheiros de sua mãi.
A situação appresentava-se arriscada para elle. De
um lado os vencedores chamavaiu-n'o para continuar
no ministério:, do outro a queda de Maria de Medí-
eis, profunda e lastimosa, iuipunha-lhe deveres res-
trictos. Renegar o nome da rainha era uma infâmia
ipie o maculava para sempreJ Ab^smar-se com ella,
era um acto que o perdia no presente, e parecia du-
vidoso que o exaltasse no futuro. O bispo de Luçon
tomou entre as duas alternativas o termo médio,
conciliando as conveniências com os seus interesses.
Sem faltar á antiga regente, sustentou no meio das
vicissitudes o apoio de Luines e o bom conceito do
rei, por um modo do certo hábil, mas pouco digno
do menor elogio.
Leonor Galligai, marqueza d'Ancre, c amiga da
regente, expiou no cadafalso, não crimes «pie a des-
hoiirassem, mas um talento e um espirito superior
dignos de melhor epocha ; e quasi no mcsino dia, ao
passo que os piincipes rebeldes faziam a sua entrada
triuniphal no Louvre, saía d'elle para IMois Maria
d(! Medíeis, acompariiiada de poucos criados lieis,
que a seguiam no desterro. O bispo de Luçon toi
um \ mas .sempre cauteloso, antes de partir obteve
liec^nça do rei ; temia <|iie na ausência o accusasseni
de obedecer aos impulsos do seu coração, em vez do
o julgarem o \igilaiilc observador das acções da in-
feliz princeza ; miiiislerlo que aeccítou, o, repetimos,
a ninguém podia excilar inveja. De 151ois, dirigindo
em tudo a rainha mãi, Kiclielieu entretinha com
liuines regular correspondência, instruindo-o ile to-
dos os passos dV-lla, e garantindo o seu proceder.
Apesar dV-sles serviços, a devoção verdadeira ou Im-
gída qui? era obrigado a ostentar para com Maria de
Medicis, esliiniilou a desconfiança dos vogaes do con-
selho, e sem difllculiiade arrancarauj ao nuMi.irchii
uma ordem ipie o deporl.iva para Avinhão. A ex-re-
giMile olhou esta proxa de desagrado conn> mais uma
p<'rseguição, redobrando na inteira e absoluta fé com
<pie se illudia ácerea da le.ildade do bispo Duplessis.
Esb' deslerro cPAvinlLui foi a causa d.i sua ra|>ida
e pasmosa eh'va(;ão.
Maria de iMedicis I ranspoz 01 muros de lUois, pro-
legi<la pel.i esiuiidão dir noil<" invernosa, «' foi reixs-
bida no seu governo pelo dinpie d'l''.spernon, lia\ iii
leinpos desrouli-nli' <la ciirl<' ('h.iiiKiudo em redvir
d, ts suas bandeiras os ambiciosos, brcMiniMile se achou
a lesta de um exercito sullicicnle paru assusl.ir Lui-
nc» e o!t «eu» purciucs. As desuveni,-as que já ardiHiil
124
O PANORAMA.
enfrp elle p 09 príncipes, o a tliscorflia acccsa entre
os Sí-iis melhores amigos, aiiiçmentavani o periço, e
expiíiiliam a realeza a um dezar provável. O valido
tentou sair da difliculdade, |)romovendo a reconcilia-
ção da rainlia mãi com Luiz XIII, e leinbrou-se de
Richolieu para guiar esta delicada negociação. O
bispo de Luwn aeceitou, e partiu sem demora para
o Angouleme, aonde então se achava Maria de Me-
dicis.
Apenas chegado apoderoii-se da vontade da prin-
ceza, e facilmente lhe suggeriu a idéa de se reconci-
liar com seu filho ^ mas os desejos da rainha eram
imp(]tentes diante da tenacidade dos nolires empe-
nhados no seu partido. Como elles se recusavam a
qualquer transacção, mais d^um anno decorreu sem
vencer um só dos ohstaculos levantados contra a al-
liança. jMaria de Medicis queria reassumir o poder;
e Luiz XIII, suspeitoso e ciumento, adivinhara em
sua mãi a ambieão violenta, que havia de ser o mar-
tírio de ambos.
Luines, para se vingar da ex-regente, soltou o
príncipe de Conde, prezo á ordem d'ella. Foi o sig-
nal da guerra civil. Kntretanto Vrastou um encontro
ás portas d'Angcrs para a tempestade asserenar, e
se concluir um pacto, em que só lucraram, como
acontece, os chefes das duas facções. Luines fez-se
condestarel, e llichclieu tirou da loteria o barrete
de cardeal. Seguiu-se a campanha do Languedoc
contra os calvinistas. Luiz XIII appareceu em pes-
soa, e distinguiu-se mais de uma vez como soldado.
Comludo, depois de leves suecessos, a fortuna virou-
Ihe o rosto ; em Montalbão, e era Monheur, peque-
na praça, o exercito real padeceu grandes revezes, e
ulcerado de desgostos, Luines, seu general, não re-
sistiu muito a este golpe, e dentro em poucos dias
desceu á sepultura.
A França, á niorle do valido, desfallecia esgota-
da pelas luctas e dissenções. Todos clamavam por
um governo forte, que trouxesse a paz, a segurança
e a ordem ao seio d'este cahos, aonde todas os inte-
resses transtornados se viam agoiiisar.
A nomeação de Hichelieu veio satisfazer o brado
geral. O livro .í." das suas "Memorias" expõe as
duvidas que elle oflereceu ao rei antes d'acceitar.
Proposto pela rainha mãi, e recebido sem desagrado
pelo monarcha, o cardeal já seguro da sua elevação
divertia-se em representar uma scena de hipocrisia.
Era a muleta de Xisto V. No dia immediato ao
da sua entrada, as enfermidade» allegadas tinham
desapparecido, e o ministro, com a pasta nas mãos,
fallava como senhor absoluto. De repente, este ho-
mem humilde no tempo do marechal d'.\ncrc, 8U-
geito no governo de Luines, erguia a cabeça, e no
orgulho do poder arrogou-se a presidência do conse-
lho, que ninguém ousou disputar-lhe, e estendia o
braço armado aos partidos inimigos. E que a tua
occasião tinha emfim chegado. Tudo era fraco para
luetar com elle. No horisonte não havia já um só
astro que podesse eclipsar o brilho da sua estrella,
levantada e radiosa sobre as glorias antigas da mo-
narchia.
O CASTELLO DE HeIOELBEKG.
Heideiberg, cidade d'.\llenianha, antiga capital do
Baixo-Palatin.ido, está situada na falda de uma ser-
ra, á beira do Neeker. O castello do mesmo nome,
eque llie liea sobranceiro, é famoso na historia; mui-
tas vezes arruinado contras tantas reconstruidoacha-
va-se no esplendor da sua magnificência, quando no
anno de 17()4 o incendiou novamente um raio. edes-
de então tem permanecido abandonado inteiramen-
te.— Ainda ha pouco alli existia um tonel enorme,
que pôde conter 528 barris. Em tempos da prosperi-
dade do castello, este colosso do seu género estava,
pelo que dizem, cheio sempre do melhor vinho do
Rheno. Damos o desenho d'este monumento extrava-
gante, curioso sobre tudo pela antiguidade o pelo»
ornatos de que está carregado. Porém, (>or descom-
passadas que sejam as suas dimensões, não pode cqui-
parar-se ás descommunaes vasilhas que existem em
Londres na imniensa f.ibrica de cerveja de Uarclay,
Pcrkins e C." — 1< Achando-me n'esta fabrica (escre-
via um observador francez) n'uni pavimento onde es-
tavam assentes, n'unia enfiada de armazéns, 99 to-
neis, alguns dos quaes tem a eap.icidadp de JlK)000
a (500 000 botelhas, lembrou-me o celebro tonel de
Heidelberg, que tinha visto anno» antes: 6 o único
olijeelo (|ue se conservou soflrivelmente do delicioso
castello dos condes ]>alatinos, c rect-be fielmente visi-
ta de todos os viajantes que vão admirar aijucUas
minas, talvez as mais bellas de tixlas as ruin.l^ feu-
daes. (iue diflercnça hoje entre o >elho castello de
o PANORAMA.
125
Heidflberg com a sua vasilha, e o colossal estabeleci-
mento do fabricante ingloz com o seu batalhão de to-
neis, n
«O castello antigo dcsmorona-se ; as magnificas
enculpturas gothicas se deterioram cada vez mais : de-
balde um desenhador fraiicez, f|uecom zelo digno dos
maiores elogios se constituo desde tempo indefinido
o guarda e o cicerune d'afjuelle formoso monumento,
soUicíta do governo de Baden, aquém o castello per-
tence, algumas providencias conservadoras. Cadaum
anno ha novos estragos pelo gelo na primavera, e pe-
las trovoadas no outono; virá dia em que o velho
castello será uma informe massa, de que talvez se ven-
derão em almoeila as cantarias, não ficando mais que
os desenlios, IVilizmente numerosos, de JMr. Carlos de
Graiml)('rt. A sala dos cavalleiros está sem tecto : as
abobadas que sustentam o soberbo eirado, d'onde se
alarga a vista pelo curso do Necker, e pelas bonitas
eminências que o bordam:, essas abobadas abaladas
pelos barris di? pólvora de Louvois desaliarão qualquer
dia. No (Mitretanto o estabelecimento do fabrican-
te de cerveja seaugmenlará, ora com mais um arma-
íem, ora com unia nova niachina de vapor: e se
acontecer algum sinistro, como o incêndio que re-
centemente devorou um corpo do edificio, o danino
será logo reparado; em vez da construcção que ar-
deu surgirá outra mais esplendida, em que o ferro
empregado com profusão impedirá no futuro os es-
tragos do fogo . »
«As estatuas dos eleitores palatinos estão derruba-
das de seus nichos: nenhum dos filhos dos seus vas-
sallos se dará ao trabullio de us pòr de pé. O antigo
tonel está vasio ha mais de século e meio : os curio-
sos podem dckcer ao fundo e medir-lhe o bojo. Uma
vez única Mr. Graiuibert viu jorrar d'elle o vinho,
«! foi cm 1813, cm honra do imparador Alexandre e
dos seus alliados os íoberanos da Auslria e l'russia ;
mas não passou isto de uma pia fraude, o velho to-
nel não estava cheio, o vinho que corria provinha
de uma mesijuiidia pipa que na precedente noite se
introduzira. Os 'jy toneis de Barclay, l'erkins e C.''
estão sempre atestados de cerveja que fermenta len-
tamente ; a bel)idii ipie despejam todos os dias, e que
ít: derrama pela Inglaterra e índias occidentaes, era
suffieieiílíí para encher o tonel do príncipe Casimiro
(aSOOOO lilrcjs ou 14 747 alnindes)..»
II O myst(-rio d'estes contrastes é que o volumoso
tonel feiíd.il não se enchia senão do producto dos di-
reitos seidioriaes, ao passo que os toneis da fabrica
atestam-se pelo livre concurso de trezentos homens,
que lêem a C(írleza do receber quotidianamente o
fructo do seu trabalho.
O Fkitou uk Cantão.
Novetla,
(Coiilinuadci ilr pii;;. ll'J.)
í)s NOSSOS leitores já roídicnrii o sMpplieio do (cha
ou canga. O instiuniunio de tortura a (jue S(! dá es-
te nouuí I' um niailriro composto de duas pi^i,'as, com
um i'li,iufni no meio por ondi' sií i'nlia o pesco(jo do
eondemiiado ; depois uueni-se as duas pecas, e o juiz
lhe põe o si'U sello com a senteuea para impedir (|ue
lu ubram. (I Uliít fornia assim uuui especii- de eollci-
ra, (pu! varia em pezo ih^sde sessenta al<' duzentas li-
bras, <• segue por toda a parli." o infeliz pailec<'nte.
Um carcereiro, arnuido d uni azorrague, o passeia
uiiiim todos OH dias pelas ruas, exposto ás .ipupaUus
du guntulha, e a uoile o rccondui paia a |uiaáu.
ElTendon, que acabava de soffrer um d'estes pas-
seios, tinha chegado mais o seu guarda á extremida-
de dos arrabaldes da cidade ao pé d'um dos canaes
que a abastecem de viveres vindos de todos os lega-
res do campo. AUi, exhausto de forças pelo muito
que padecera, agachou-se e perdeu os sentidos. O
carcereiro quiz debalde obriga-lo a levantar-se ás
chicotadas; Etfendoa não se movia.
— " Tinha-te em conta de mais valente, resmun-
gou o homem do chicote, olhando para elle. Que
hei de eu agora fazer com este trambolho sem movi-
mento ? "
Olhou á roda de si em busca d'alguem que o aju-
dasse a erguer o feitor, porém o sitio era ermo, e a
noite, que principiava a escurecer, não deixava vêr
senão a mui curta distancia. O carcereiro revestiu-
se de paciência, e sentou-se ao pé do prezo.
N'este momento sentiu-se rumor de remos e abi-
coii uma lancha.
Saíram d'ella dois homens, de camizas brancas,
calças largas, japonas abotoadas pelo lado, e chapéus
de palha pontagudos, trajo que indicava serem bar-
queiros. Traziam uma carga que pousaram alli perto.
O carcereiro, que levantara a cabeça, viu que era
o cadáver d'um homem afogado.
— II Pelos gcníos d'agua ! exclamou elle com um
sorriso grosseiro, pescastes um peixe grosso."
— II U.ue nos não faz ricos » retrucou um dos bar-
queiros.
— " Não achastes nada ao morto ? 5>
— "Nada mais que esta caixinha com um vidro
de remédios e uns papeis. »
— "li verdade que pelo fato mostra ser medico."
— "Que não cura mais ninguém, n
— "Pois aqui está um doente que bem precisão
tinha d'elle ; eu não sei como hei de leva-lo para a
cadeia. »
Os barqueiros voltaram as caras e viram então a
Edendoii.
Ah! tu teus rato na ratoeira?" disseram el-
les chega ndo-se.
— "K um rico negociante de Cantão " respondeu
o guarda com unia especii! de orgulho.
— "Bico! re|»liram os barqueiros. Ponjue não
comprou ([Ueiii ficasse jior elle ? "
Kllendon, aquém afrestpiidão da noife tinha rea-
nimado, estremeceu ao ouvir dizer isto.
— "Pode com efleito imtro homem ílcar em meu
logar.'" perguntou elle pasmado.
— "Conforme o [lartido que lho fizeres" replicou
o carcereiro.
— " Mas onde hei de acliar quem se sujeite ..."
— "Não falta por alii quem até deixe que lhe cor-
tem o gasiuite para obsequiar uni condemnado" ob-
servou o baripieiro.
liiizirain os olhos do feitor; fez um esforço, c le-
vaiilando-se apesar do pezo do tcha que o ilerrcava ;
— "lAual de viís quer solVrcr esta pena? pergun-
tou elle. l''aço-o rico para toda a sua vida. "
— "Poripianlo tempo lias di' tu andar ouu oíc/iii
grande ás costas.'" piTguntaraiii os barqueiros.
— " Por dois annos."
Aliaiiaraiii a cabi>ça.
— ..Não ha hoiiiem que liie resista. Mais vai mor-
rer eiii cima d'um ciqxi. "
— ..Salvo se houver quem ))eriiiitta, lá de vei em
(jiiando, ao priv.o largar o si-u coll.ir " ponderou o
gu.irda piscando um olho.
— • i. Kntão como, se a chave do /cAa pára nas mào'.
dos juizes .' "
— .. IMde haver (piem tenha outra."
— >. E o sello ,' "
126
O PANORAMA.
— «Tira-sn sem se quebrar."
— " Pódfs tu realmente fazer o que dizes ? n excla-
muu ElVendon.
— " l'or um taci!" (l)
O feitor procurou dinheiro nos seus vestidos, e ati-
rou com asomma pedida aos pés do guarda, que met-
teu logo mãos á obra. D'ahi a um instante estava
aberta a canga.
KITendon, assim que se sentiu solto, deu um grito
de alegria, e levantou-se d'um pulo.
— li Devagar, gritou o carcereiro agarrando-o por
um braço-, mostrei-te o que sal)ia fazer i agora é pre-
ciso qu(! tornes a metter o pescoço n'este collar. «
— « N.lo ! exclamou o feitor, que achei quem me
substitua. »
— « (iucm ? >>
— " Este cadáver. »
— tt ftue dizes ?>i
— "Digo que lhe enfies pelo pescoço o teu tcha
grande. Entrei hoje para a cadeia, ainda ninguém
ine conhece, ninguém dará pela troca. Veste o mor-
to com o meu fato, declara que succumbi, e ninguém
desconfiará da mudança. »
— «Não caio n'essa, disse o guarda, podem des-
cobrir ...»
— « Cem tacis se consentes. »
— " Cem taeis ! »
— «E outro tanto a estes dois amigos para se ca-
larem, n
— "Valeu !" exclamaram alegres os barqueiros.
O guarda ainda quiz púr-llic suas duvidas ; porém
elles tanto o apertaram para que não deixasse ir pe-
la agua a baixo esta occasiiío única de ficarem ricos,
que elle por fim chegou-se ao rego. Effendon entre-
gou-llie a quantia ajustada em bilhetes sobre o hmt-
pou, e sem perda de tempo tractaram da troca dos
vestidos. O leitor vestiu a túnica do afogado, pegou
na caixinha que os barqueiros lhe deram, e eseapu-
liu-se, eustando-lhe ainda a crer no seu milagroso li-
vramento.
Seguiu por algum tempo o arr.ibalde andando o
mais de pressa (|ne podia; mas, chegando á iKirta da
cidade mantcliou, faltarani-lhe as forças eviu-se obri-
gado a senlar-sc ao pé do lampião que alumia a en-
trada.
Depois d'alguns instantes de doscanço lembrou-se
da caixinha que trazia, eabriu-a. Como lhe haviam
diclo os barqueiros, não continha senão un» frasqui-
nho de bronze ciiidadosanientc fechado c alguns pa-
peis. Os que Ertendou passou primeiro pelos olhos
eram rcceilas de dilVerentcs venenos com a indicação
dos seus elleilos-, ouldmo, porém, era uma carta di-
rigida ao medico Wang-ti, na qual lhe faziam ins-
tancias para que viesse aPeking paia o graiule pio-
jeclo ()ne llie tinha sido coniuinnicado.
Estava Eflotulon a reler esta carta, e procurava
adiviíiliar que projecto seria este, quando, levantan-
do os olhos, viu dois homens que estavam alguns pas-
sos distantes d'elle com lanternas, e (|ue parc>ciam
«xamina-lo. Ellendon, tcmcndo-se da curiosidade
doesta gente, lêvantou-se para seguir avante o sou
caminho, e tornou a metter, á pressa, os papeis den-
tro da caixa, mas um dos homens das lanternas, que
chegara mais perto, viu o nome ([ue u'ella estava
gravado.
— "E elle," disso em voz baixa, fazendo um si-
gnal ao seu comjianheiro para que se approximasse.
— " (^luem és tu, e que me queres .'^i perguntou
Klfendon perturbado.
— "Não te chamas VVang-tif» rosnou o china.
(n O tael valia dei Xoílita em ISSO.
— uôue te importa ?n
— "Tu és medico. n
— "Serei. "
— u Chegaste de Pao ? »
— " Porque ? >■>
— " Fo-hu mandou-nos ao teu encontro, n
— " Fo-hu ! " repetiu EfTendon estremecendo.
— " \ em I está á tua espora."
O feitor hesitou. N 'este meio tempo chegaram uma
cadeirinha ; os dois chinas travaram d"elle, e depoLs
de o terem sentado deram o signal aos moços que
partiram a passo largo.
EfTendon <|U)Z ao principio saltar para fora, mas
co.Tlevc-o a lembrança de sua filha. De o tomarem
pelo medico rmultaria estar perto de Maria, e tal-
vez achar nieios de avêr! . . . Resolveu tirar partido
d'este succc-sso inesperado, representando o mais tem-
po quepodesse o pajiel d'aquelle cujos despojos trazia.
Deixemos pois leva-lo para casa de Fo-hu, e omit-
tlndo a conversação que teve com o censor, eque du-
rou parte da noite, transportemo-nos na manhã se-
guinte á habilaçrio imperial do jardim redondo, dis-
tante a algumas ii de Pcking (I). (Conlinúa.)
Os Templários.
(Continuado de pa». 117.)
Depois da perda da Terra Sancta, e mesmo anterior-
mente, havia-se dado a entender aos templários que
era urgente a sua reunião com os cavalleiros do hos-
pital: reunido a uma ordem mais dócil o Templo of-
fereceri.! pouca resistência aos reis. Mas os templá-
rios não quizeram estar por isso. O grão mestre, Jac-
ques Moiay, cavalleiro pobre da Borgonha, mas ve-
lho e valente soldado, que acabava de cobrir-se de
honra no Oriente pelos últimos combates que oschris-
tãos alli sustentaram, respondeu — "que 6. Luiz ti-
nha, em verdade, proposto n"outro tempo a juncção
das duas ordens, porém que o rei d'Hespanha não a
tinha consentido; (|ue para os templários se reunirem
aos cavalleiros de S. João era necessário que se aba-
tessem muito-, que a ordem dos templários tora uiais
exclusivamente creada para aguerra.n — Terminava
por estas palavras altivas: — "acha-se muita gente
que mais quereria tirar aos religiosos sua fazenda do
que accrescentar-lh'a . . . Não olfetantc, so se liíer es-
ta união das duas ordens, ficará uma religião tão for-
te e tão poderosíi que muito bem poderá detendcr
seus direitos contra toda c qualquer pessoa n^este mun-
do. "
Em quanto os templários rcsisti.im tão orgulhosa-
nu-nfe a qualquer conccs-são, iam ganhando vulto os
ruins boatos contra elles, que pur sua culpa para is-
so concorriam. Dizia um ca>alli iro a Kaoul de Pres-
les, homem dos mais sisudos c< seu temjK» — uque
no capitulo geral da ordem havia uma cousa tão se-
creta, que se alguém, por sua de^gr.^ça, a visse, fos-
se emlwra o rei de França, nenhum temor de tor-
mentos im|K>diria os do capitulo de o matan-m, logo
que pi)dessem." — Lm templário, rcceni-admiltido,
tinha protestado contra a formula da admissão peran-
te uma auctoridade de Paris; outro se havia confes-
s.-ido a um franciscano, que lhe deu ix>r penitencia
jejuar ttxlas as se\t;is feiras, um anno n fio, e sem
trazer cauiiza; outro, emfim, quecra da kis* do ptm-
(l) Pekinc ou Pc-kin;: niSo i o nota» especial d'um» ci-
(l.iili- ; silTnific.i rirtf rfo norlt-. e exprimindo * 9Íltiai;3o rel»-
li\« daci)rte. |iú<le ser dado «ciiloile mui ilirern dcquclU •
qiic os europeus eiclusii-amejile o >pplicar«iD.
o PANORAMA.
127
tificc — «lhe tinha ingenuamente confessado todo oj
mal que conhecôra na ordem, em presença de um I
cardeal, seu primo, tjuc escreveu no mesmo instante
este depoimento.!' — Kaziam-se circular ao mesmo [
tempo outros sinistros rumores acerca das prisões hor-
riveis, onde os cabeças sepultavam os membros da or-
dem recalcitrantes. Um dos cavalleiros declarou — j
«que um de seus tios havia entrado na ordem são e
contente, com cães ctilcões^ ao cabo de três dias es-
tava morto. ,
O povo acolhia avidamente estes boatos : achava
os templários sobejamente ricos, e pouco generosos.
Posto «pie o<;rão mestre, nosseus interrogatórios, ga-
}>c a niuniiiceneia da ordem, uma das arguições con-
tra esta opulenta corporação éque — « as esmolas não
se faziím como cumpria." —
As cousas estavam maduras : o rei chamou a Pa-
ris o grão mestre e os cabeças ; afagou-os, enclieu-os
de favores, adormcceu-os : vieram cair na rede, como
os protestantes na tnaiançn de H. BarUidlumcu. O
rei acabava de acerescentar-lhes os privilégios \ e ro-
gara ao grão mestre que fosse padrinho de um liliio
seu. — A 12 de outubro, Jacques Moiay, nomeado
expressamente com outros personagens, havia assisti-
do ao enterro da cunhada del''ilippe. No dia 13 Jac-
ques foi prezo com os cento e quarenta templários que
se achavam em Paris; no mesmo dia foram também
prezos sessenta em Beaucaire, e um grande numero
de outros por toila a França. Esla\a seguro o assen-
timento do povo e da unixcrsidade : no mesmo dia
da prisão foram osburguezcs chamados por parochias
e confrarias ao jardim do rei, na jiarlo de Paris do-
noininada especialmente a ciJade, e ahi pregaram
alguns fr.ides. Póilc jiilgar-se d.i violência doestas pre-
gações populares pela da carta regia que correu toda
a França. — "Cousa acerba, cousa deplorável, cousa
liorrivel ao pensar-s<!, terrível de dizer-se ! Cousa de
exeeravcl atrocidaile, de abominável infâmia ! Todo
o animo dotado d(^ razão se condoe c eonlundo-se no
seu dú, vendo que a natureza se allieia fora dos limi-
tes naturaes, que se deslendíra do seu principio, que
desconhece a sua dignidade, que jirodiga de si uies-
nia se assemelha aos brutos deaprox idos de sizo ; que
digo/. . . qu(! transcende a bruteza dos próprios bru-
tos! . . . )i — Julgue-se por isto do terror e sobresullo
com que (ai carta foi recebida por toda a alma ehris-
lã : era como o toipie da trombeta do juizo llnal. —
Seguia-se a indicação summaria das aeifusações, actos
de renegados, de traição contra a christandade a pró
dos inlii'is, iniciação torpe, e outros muitos horrores!
Tudo isto fora denunciailo por templários : dois ca-
valleiros, um gascão, outro italiano, prezos por mal-
feitorias, haviam r<;velado, segundo se dizia, lodos os
segredos da orilem ! Oque mais exaltava a imagina-
ção eram os dicto» extravagantes que se divulgavam
ii respíúto dl.' qual fosse o Ídolo que os templários
udor.ivam : variavam os pareceres : diziam lUis que
<!ra uma cai>ei;a barbuda, outros (jue uuja eaix-ça de
Ires faiM:s :, linha, accrescenlavam alguns, olhoscliam-
m<'janl<s. Havia (jueni dissirsse que era um craneo
d'liomeni :, outros «ubstiluiam-lhe um gato.
Fossem <|uai's fossem os lioatos, Filip|ie o formoso
não perilrra tempo. No mesmo dia da prisão pessoal-
m<;nte veio ao'1'i'mplo tomar assento com seu thesou-
l'o e sellos e um exercito' de genie forense para au-
tuar, inventariar. Ksta bella preza o eiiriípiícèra di;
um jaclii.
Oassondiro do pa|ia foi extremo ijuando soube (pie
o rei não fazia cabedal iPelli' na perseguição de uma
ordem (piesc) poília ser julgada pelasajii'ta sé: nelio-
li:ra llie fc/, i.'squi r a sua ordinária abjecção, a sua
jirccaria e depeudenle situação nu meio do» estudos
do monarcha : suspendeu os poderes dos juizes ordi-
nários, arcebispos e bispos, e mesmo dos inquisido-
res.— A resposta do rei é violenta : escreve ao papa
— "que Deus detesta os tibios ; que os vagares são
uma espécie de eonnivencia com os crimes dos accu-
sados ; que era melhor que o papa excitasse os bis-
pos. Seria uma grave injuria aos prelados tirar-lhes
o poder que lhes vem de Deus. ISão mereceram esse
ultraje ; não o supportarão ; o rei não poderia tolera-
lo sem violar oseu juramento. Saneio padre, quem ú
o sacrílego que ousa aconselhar-\os que menoscabeis
aquelles que Jesus Christo envia, ou, para melhor
dizer, o próprio Christo? ... Se os inquisidores são
suspensos, a causa nunca se concluirá ... O rei não
lançou mão dV-lla como aceusador, mas como cam-
peão da Fé e defensor da Igreja, do que deve dar
contas a Deus." — (l)
Filippe deixou o papa capacitar-se de que lhe en-
tregava nas mãos os prezos, e que se encarregava
d(? conservar os bens para os applicar ao serviço dii
Terra Sancta. Oseu intento era alcançar que o pon-
tífice restituísse aos bispos e inquisidores os poderes
de que os suspendera. Mandou-lhe Setcnia e dois tem-
plários para J'oiliers, e fez partir de l'arís os prinei-
paes da ordem-, ordenou porém que passassem além
de Chinon. O papa accoinmodou-sc ; c obte\e os de-
poimentos dos de Poitíers : ao mesmo tempo levan-
tou a suspensão dos juizes ordinários, só reservando
para si o julgamento dos cabeças da ordem. — Este
vagaroso processo não podia satisfazer o r<ú. Se o ne-
gocio assim fosse guiado com pouco' estrondo, e per-
doado como no confessionário, não havia meio de iicar
com os bens. Por isso, em quanto o papa imaginava
ter tudo na sua mão, o rei mandava autuar em Pa-
ris pelo. seu confessor, inquisidor geral de França. Ob-
tiveram-se logo cento e quarenta coiilissões pelos trac-
tos, em (|ue se empregaram ferro e fogo : uma vez
divulgadas estas conlissões não podia o papa aecom-
inodar o negocio. Ksle mandou a Chinon dois car-
deaes i)ergunlar aos cabeças e ao grão mestre se tudo
aquillo era verdade:, oscardeaes os persuadiram a di-
zer que sim, e elles se resignaram a ceder : o papa,
com eHcito, os reconciliou e os reeommcuduu ao rei ;
julgava tc-los salvado.
Phili]ipe não fazia caso e continuava seu caminho.
No principio de 1 ÍOII fez prender iH)r via de seu pri-
mo, o rei de Nápoles, todos os templários da Proven-
ça. Pela pasclioa junetaram-se em Tours os estados
do reino. O rei fez que por estes lhe fosse dirigido
um discurso singularmente violento contra o clero.
— 11 1) povo do reino de Fran(;a dirige ao monarchii
instiintcs suppilcas . . . Gue se lembre (|ue o principȒ
dos lillios «r Israel, Moisés, amigo de Deus, a ipiem
o Senhor faUava face a face, vendo a aiiostasja dos
adorailores do bezerro d'ouro, disse: Tonu? cadaum ii
espada e mate o seu próximo )i:irente ... F não foi
para isso pedir o consentimenio ile Aarão, couslitui-
do suiunio sacerdote por orilem ile Deus . . . Por t]UO
razão, pois, o rei clirislianis>inio não proceilería da
mesma maneira, mesmo contra todo o clero, se o cle-
ro errasse assim, ou apoiasse os que erram .'...»
Susti'ntaudo este discurso, vinli- e seis priiiciiR'S *•
lithilgos se constituíram aciusadores e ilerani procu-
ração paru se proceder contra os li-mplarios per.inte
o papa eo rei. — x.Xrmado orei com estas íuIIutcu-
cias (diz Diipuy), toi a 1'oiliei's, .iconip.inliado di>
gente, que vinham u»er acpn-Ues proiur.idiui's (pu- clle
retivera junctu á sua pessoa par.i loui.ir p.ircccr «i-
(I) l)ii|iny (ilr i/iiein a/!o oí oiihos rxirattes) min Imi
csla ruiiii ii.i iiili-f<ni : pioviivrliiiiMilo iii\o lui rciutlliilii mi
j)uulíUcu, uiut i-ii|iiiibiiila culiu u pvru.
128
O PANORAMA.
hre astlifficiilflados que ])or ventura sobreviessem. » —
Ao chegar, beijou huiiiildemente o pé ao papa ; mas
este viu que nada obteria. Filippe não dava ouvidos
a coinposi(;ão alguma ; era-lhe preciso haver-se seve-
ramente com os individues para lhes poder licar com
a fazenda. O papa, desatinado, queria sair da cida-
de e evadir-se ao seu t^ranno ; e mesmo quem sabe
se até iugiria da Fran(;a ? . . . Mas não era homem
que partisse sem o seu dinheiro ; e quando se appre-
scntou ás portas com as cavalgaduras e bagagens não
poude passar ^ viu que estava prisioneiro do rei, nem
mais nem menos como os templários : por muitas ve-
xes intentou a fuga, porém sempre inutilmente. Por
tanto Clemente deixou-se ficar e deu mostras de re-
signado. No primeiro de agosto de 1308 expediu uma
bulia dirigida aos arcebispos e bispos : este documen-
to é singularmente breve e compendioso contra o uso
da corte romana: vê-se claramente que opapa escre-
ve contrafeito eque lhe impellem a mão. Alguns bis-
pos (segundo esta bulia) tinham escripto que não sa-
biam como deveriam ser tractados os accusados que
se obstinassem a negar ou que retractassem as suas
confissões." — Estas cousas — diz o papa — não fica-
ram indecisas pelo direito escripto, (lo qual sabemos
que muitos d'entre vós tem pleno conhecimento : não
e nossa intenção ao presente estabelecer para esta cau-
sa novo direito, e queremos que procedais coutorme
ao que o direito requer.
Havia n'isto um perigoso equivoco. Jura scripta
entender-se-hia o direito romano, ou o canónico, ou
o regimento dos inquisidores?. . . O perigo era tan-
to mais efleetivo que o rei não largava mão dos ca-
valleiros prezos para ei\trega-los ao papa, como a es-
te dera esperanças i na conferencia ainda o entreteve
promettendo-lhe os bens para o consolar do não obter
os indivíduos:, e esses bens deveriam ser entregues
áquelles que o papa designasse : era ataca-lo pelo seu
fraco, e Clemente andava muito preoccupado a respei-
to do destino dos mesmos bens.
O papa tinha restituído (em 5 de julho de 1.303)
aos juizes ordinários, arcebispos e bispos os poderes
momentaneamente suspensos ; ainda no 1 ." de agos-
to escrevia que podia scguir-so o direito conimum, e
no dia 12 commettia a causa a uma commissão. Os
commissarios deviam instaurar o processo na provin-
da de Sens, em Paris, bispado sullraganeo de Sens.
Kram nomeados outros commissarios para fazerem
outro tanto nas demais partes da Europa: o julga-
Diento devia ser pronunciado d\dii adoisannos n^um
concilio geral, fora <la Krança, em Vienne no delphi-
nado, território do império.
A commissão, composta pela maior parti; de bis-
])0s, era presidida por Gilles de Aiscelin, arcebispo
de Narbona, homem brando etimido, de muitas let-
tras mas de pouco animo; tanto o rei como o papa
julgavam te-lo pela sua parte: o papa julgou que
mais seguramente apaziguava o descontentamento de
Filippe ajuntando á commiss.ão o confessor do mo-
narclia, acjuelle dominicano e inipiisidor geral de
França, que havia conieçado o processo com tanta
violência e audácia. — O rei nada reclamou : carecia
do papa. A morte do imperador Alberto d\\uslria,
no I ."' do maio de l.iOít, ollerecia á casa de França
uma perspectiva sublime. O irmão de Filippe, Car-
los di; N alois, cujo de^-tino era pretender tudo e fa-
Ihar-ihe tudo, appresentou-M- candidato ao império;
se elh' lograsse o intento, o ])apa vinlia a ser mais
que nunca criado e vassallo da casa de França. Cle-
mente escreveu ostensivamente a favor de Carlos, mas
em segredo contra elle. — l)'então i>or diante já não
havia segurança para o papa nos dominios do rei.
Conseguiu sair de Poiticrs, e foi metter-sc em Avi-
nhão em março de 1309 : linha dado palavra de não
sair de França, e d'este modo não vioia\a, illudia
sua promessa. Avinhão era enão era de França. Era
uma fronteira, uma posição mixta, uma espécie de
as^lo, como o foi Genebra para Cahino, Ferney pa-
ra Voltaire. Avinhão dependia de muitos e de nin-
guém : era território do império, um antigo municí-
pio, uma republica sob a protecção de dois reis. O
rei de Nápoles, como conde da Provença, o rei de
França, como conde deTolosa, tinha cada um meta-
de do senhorio de Avinhão ; míis o papa ia ser alli
mais rei do que elles, trazendo a sua residência mui-
to dinheiro áquella pequena cidade.
Clemente julgava-se livre, mas arrastava os seu»
grilhões : o rei o tinha sempre seguro pelo processo
de Bonifácio. Apenas de assento em Avinhão, sabe
que o rei Filippe manda conduzir á sua presença pe-
los Alpes um exercito de testimunhas, a cuja frente
marchava aquelle capitão italiano, Kaynaldo de Su-
pino, que fora na prisão de Bonifácio \I1I o braço
direito de Nogaret. A três léguas de Avinhão as tes-
timunhas caíram n'uma emboscada que lhes estava
preparada: Uaynaldo salvou-se cm Nimes a muito
custo, e fez pelas justiças do rei lavrar auto d'csta
cilada. — Opapa escreveu mui depressa ao pai do
rei para rogar-lhe apaziguasse Filippe o formoso : e
escrev(!u ao próprio rei, a 23 d agosto de 1309 —
"que se as testimunhas foram retardadas em seu ca-
minho, não era a culpa d'elle, mas sim dos ministros
do rei, que deviam ter prevenido a segurança d'a-
quellas. " — O rei havia denunciado ao papa certas
cartas injuriosas: opapa responde queellas são, mes-
mo vista aorthographia, indignas da corte de Koma ;
mandou-as queimar ; e quanto a perseguir os aucto-
res d'ellas disse que — .i uma experiência rc-cente pro-
vou que estes procedimentos accelerados contra per-
sonagens importantes teem triste e perigoso resulta-
do, n — Esta carta do papa era uma tímida e humil-
de protestação de independência, uma resistência sup-
plicanle : a allusão aos templários, com que conclue,
indicava bem a esperança que o jjontilice punha nos
embaraços que a Filippe o formoso devia suscitar
aquelle processo. (Conlinua.)
InFLAMMAçXo da pólvora pelo CHOaCE.
OíKio icm duvida é causa de muitas desgraças, prin-
cipalmente quando se lida com matérias intlamma-
veis. Antes das experiências feitas por Mr. .\uber,
coronel d'artilheria, na presença da commiiMo con-
sultira das pólvoras, fugia-se de empregar o ferro na
coustrucção das machinas, utensílios, e edilicios d.-is
fabricas da pólvora, por ser sujeito a faiscar com o
choque •, mas o latão era tido como um di» met,ie5
livres dVste perigo. Mr. .\ul)er provou tixiavia que
a pólvora se íntlamraa : t.*^ no choque do ferro com
ferro; 2.*^ do ferro com latão; 3." do latão com la-
tão; 4." do ferro com mármore; e 5." do chumbo
com cliumbo ou com pau, quando o choque prvivem
de baila de chumlxi despiilída por arma do fogo.
Não se conseguiu incvndiar a jxilvora jwr meio da
pancada de martcllo solire cIuiiiiIn.).
QfKtl compra carece de crm olhos, equem vende has-
ia-lhc um, éum dictado italiano. Uuando um alqui-
le vos ((uer impingir um cavallo, lusfra-o e onfeifa-o
para lho esoonder as mataduras ; quando um liomem
\os ipier enganar cobre o rosto oom uma mascara. Ex-
perimentai o cavallo cachareis um sendeiro; dosmat-
earaí o homem e achareis um malvado. Méht.
17
o PANORAMA.
129
o CABDEAI, DE HICHEXIEU.
O CaUDKAI, 1)H UlCIIIil.lKtl.
II
No REGIMEN anlif^o, cm (jin' ii aiictoridade real era
u único poder do lísiailo, era lu.-ccssario que o mi-
nistro, <iu<! 80ul)e suslcnlar-se e governar de7.oito au-
nou comi) verdadeiro »ol)erano, eonseí;uÍ!ise duas cou-
sas i;;iialhienle espinhosas e árduas : evitar a sorte
do niareclial d'Anere, eoiilcndo a noliii'za pido temor
do ininiedialo easl i(;o ■, caplivar a viiiilade e o alVecto
dl- Ijiiiz XIII, li;;aii(lc> á sua eousíírvaeão a seguran-
ea do prineipi-, e a existência da njonarcliia.
Kstu loi a politica do cardeal cm Iodas as epocluts
c no nwio das maior<'s dilTiculdadcs,
Luiz. XIII, o mais (M|>riclioso e mudável dos ho-
mens, Iraldu sempri' as amiza(h'S a «pie pari'cia mais
leal. O seu atlcclo não poupou a sua mài as iMin;;en-
te» dores do ch^slerro na terra estrani;eira, nem sid-
vou o mo(;o e destemido ('in<|-MarH do cailalaiso.
Com um amor ^ehuhi e <'adaverico, con>o a sua ul-
niu, tinha coulrahlihi iiicljnaeòc» ciim as inuis fur-
VOL. 1. DlSZKMUUU XOj lUlO.
nuisas e meigas donzelhis, e não sentindo o menor
vácuo no cora(;ão rompeu-as sem vioKmcia. Este era
o senhor a ipiem Kichelieu consagrara a sua vida, e
que até o uilinio suspiro não viu no governo senão
pelos seus olhos, não ohrou senão ])eh) seu bra(;o, co-
mo se o robusto espirito do seu ministro se houvesse
infundido no corpo frágil tio succossor de Henrique
IV. Como homiMU huiz al)orrccia Duplessis. Como
rei cs(tuiiou-o contra toilos os golpes — uma lei fatal
e misteriosa uniu a sua carreira a tio auila/. sacerdo-
te, e <pu', ao repousar emlim ile tantas fadigas, fe-
chando os oliios estendeu a mão fria do seio da eter-
nidaile i> arrastou atrar. de si para a urna cineraria
í\i' S. Diniít o suspeitoso e melaiicholico numarcha da
l''rauça.
O segredo d'esta situa<;ào eipiivoca i' conlradiclc-
ria estava nas cousas, ena Índole do priucipe. As rc-
l)i'lli(jes <pu' lhe sacudiram o Iii-r<;o, ascs[ierani;as ipie
a sua deliil saúde auiuuiva na lamilia real, o despre-
zo popular com ipie a nai;ão <i Iraclava, nem os igno-
rava, nem lhe escpieciam nunca. A sela lra/.ia-a sem-
pre cruvuda no pcilii. (.• inleli/. não accrcdita\a na
130
O PANORAMA.
aflieição da mãi, no amor da mulher, na fidelidade
do irmão, c na amizade dos grandes e dos povos.
Sentia-se só, rodeado de inimigos, exposto a vêr a
coroa voar-lhe da cabeea ao furacão das discórdias
civis. Fraco buscou o apoio do forte. Tiniido encos-
tou-se á energia e audácia de outrem. Ciumento e
desconfiado só se entregou a um homem, que poz a
cabeça sobre a pasta de ministro, certo de que a es-
iiada dos vassalíos poderosos a liavia de cortar apenas
a victoria lhe sorrisse. Luiz XIII e Riclielieu eram
essenciaes por tanto um ao outro. O príncipe signi-
ficava a realeza ; o cardeal o verbo, a força activa
d'esse grande principio. Em nome da unidade mo-
narchica a paz renasceu, e a decadência tornou-se
grandeza dentro e fora do bello reino da França.
Os meios por que se elevou ao apogeu da influen-
cia foram qiiasi sempre immoraes, ou subterrâneos.
Principiou piíla ingratidão secca e despegada, e aca-
bou pelas tlifses do culello e patíbulo, em que a ca-
beça de Clialais c Cinq-Mars, e depois o nobre san-
gue dos !Moiitniorencv lavraram o documento de um
triumpho iinpio, mas solido. A primeira victima foi
Maria de Medicis, a protectora da sua mocidade,
aquella a quem devia o ter subido os degraus mais
difíiceis do poder. Perseguições violentas forçaram a
ex-regente a expatriar-se, e a conslituir-se cúmplice
de todas as tentativas dirigidas contra seu lilho. Ri-
chelieu, pelo contrario firmando com isto o seu cre-
dito no animo do rei, fez-se indispensável, porque
representava a gloria, c o vigor da resistência mo-
narcliica nacional combatendo braço a braço com os
enredos e traições do estrangeiro.
Pelos principies de 162ó, poucos mezes depois da
entrada de Riclielieu no ministério rebentou uma
nova rebellião protestante. Desde esse dia fortificou-
se no seu espirito o profundo convencimento de que
não havia governo possível, em quanto aquella seita
armada e audaz estivesse revestida de prerogativas
anarchicas, e protegida por exércitos aguerridos. O
cardeal temporisou. Ainda não chegara a occasião
de ferir o golpe decisivo. A guerra da Itália corria
então duvidosa \ a Inglaterra vacillava na sua alliaii-
ça; ea casa d^Auslria não poupava esforços jiara
hostilisar a França. I'or meio de negociações hábeis
o ministro illudiíi a corte de I'"ilippe IV pcrsuadin-
do-a de que ia pactuar com os calvinistas para soc-
correr depois a Itália com todas as tropas. Os pro-
testantes, da sua parte, suppozeram que ellc accom-
modando sem demora a lucta além dos Alpes os vi-
ria esmagar com toda a segurança. Kste engano dos
dois lados fez mais dócil oduque d'01ivares, e muito
modestos os sublevados da llochella. K por tractados
sinuilt.meos Riclielieu concluiu a paz coni osllugiiiio-
tes por causa do pacto com allespanha, ecom aile»-
panlia por cansa da transacção com os llugunotes. Fo-
ram duas evoluções tão destras como bem succcdidas.
Seguiram-se dois annos de socego profundo. O car-
deal enipregou-os em cimentar os alicerces do seu
poder com uma actividade, e uma presciência raras.
A marinha de guerra, a industria e o commercio
receberam d'elle serio impulso, e tloreceram em pou-
cos tempos. A reforma dos impostos, objecto das suas
craves meditarões, teria sido consummada com idéas
progressivas para a cpocha, se a morte o nao cha-
masse tão cedo. Consulados em todos os portos dVs-
fala no Levante, e uma legação em Moscow, estal>e-
leciam-se a par das negociações militares de Hasilly
iiiiii costas do império de Marrocos. Creava-se uma
T<mipaiihia para colonisar o Canadá, outra para ex-
plorar S. Domingos, e a coroa animava os armado-
res, que eni[irehendiam as arriscadas viagens da ín-
dia. No interior emprezas paru seccar os pântanos,
arrotear os baldios afazer navegáveis os rios. attesta-
vam a boa \ontade do ministro, e o incremento gra-
dual da classe media, a quem elle no seu pensamen-
to politico desejava coUocar diante do poder tvran-
nico dos senhores das terras, dando-lhe a influencia
da riqueza para os abalar e abater.
O sangue dos Montmoreney, aristocrático por cx-
cellencia foi derramado sem piedade pelo cardeal,
que nunca recuou diante da violência dos meios com
tanto que obtivesse a utilidade dos fins. A auctori-
dade real era escarnecida e desac;itada pelos nobres,
que se vangloriavam de estar superiores a todas as
leis e ordens. Riclielieu publicou um decreto contra
os duelios. O conde Francisco de Montmorencv zom-
bou d'cUe, e exclamando, que os escribas podiam en-
cher de garatujas quantas resmas quizcssem de papel,
desembainhou a espada e na praça mais publica de
Paris atacou o marquez de Benorou com a elegância
de um cavalheiro, e o valor trantjuiUo de um solda-
do. O cadafalso ergueu-se silenciosamente no terrei-
ro da Greve, e o algoz decepando uma das mais no-
bres cabeças da Franca resolveu a questão, inopinad.i
e cruelmente, por este desfecho sanguento.
Tractava-se de decapitar, ou os duelios, ou os de-
cretos régios, como dizia Richelieu. Pela sua firme-
za os duelios é que sucumbiram. Desde então o ter-
ror da aucloridade monarehica fundou-se por toda a
vida do implacável ministro. A sociedade, que ha
pouco se agitava no calios da anarchia, organisou-sc
como por si mesma. O poder respeitado pela unida-
de dos planos, pela grandeza dos fins, e pela terrível
magestade diis suas vinganças, acbou-se com a força
e o necessário prestigio de tentar os vastos projecU»,
para os quaes se encaminhavam de longe todos os
passos do grande ministro.
A llochella, defendida por tropas consideráveis e
governada pela ambiciosa mãi do duque de Rohan,
era o baluarte da seita protestante, e do partido po-
deroso representado n"ella. A Inglaterra, ao crito le-
vantado pelos Hugunotes respondeu enviando Buckin-
gham, valido do rei, com uma forte armada em seu
soccorro. A incapacidade do duque frustrou a sua
tentativa sobre a ilha de Ré \ o cardeal acudiu-lhc
com pasmosa promptidão. ^las este successo acciden-
tal não destruía o immenso perigo da sublevação —
aggravado ainda pela má vontade, ou pela antipa-
thia das potencias visinhas. A Hollanda vacillava
por escrúpulo de seita. A Grã-Bretanha protegia os
calvinistas com o apoio da intervenção arm.ida. A
Áustria preparava-se a tomar Verdun •, e Veneza
parecia esperar o momento de s;itisfazer antigos
ódios. Finalmente a llespanha affectava uma neu-
tralidade fiJsa, aonde s? descobria secunda tenção.
No inferior os princi|>es parentes, o irmão do rei, e
o conde de Soissons, trainavaiu de concerto para se-
pultar nas ruinas d'esta guerra o ptxJer de Richelieu.
O cardeal a\aliava todos estes ol»tiiculos, capaxes
de atterrar um espirito robusto. Mas a sahação c o
futuro da França estavam irreme<iiavejmenle [>epdi-
dos se a Rocliella ficasse de {)é e victoriosa. Minis-
tro, general, intendente de transportes e engenheiro,
Richelieu accumulou todos os empregos, exerceu to-
dos os cargos para adiantar as ojwraçOes naxacs c
militares. Duas vezes a esquadra ingleza app.ireceu
1 .1 \ ista da cidade bloqueada e duas vexes se retirou
diante de exércitos e niariídia, quasi que improvisa-
1 tios de repente. A F.uropa, susjiensa um anuo. assi»-
: tiu diante d'aqucllas muralhas como esjxvladora á
gra\e questão que se discutia alli. Por lim \cnceu a
I fortuna da França, e a roale.».a entraiulo (wla brecha
da Roílu-Ua tomou nVsse dia ven.ladeira jiossc do
I seu reino.
o panorama:
13i
Depois d'este grande resultado, Luiz XIII á testa
de trinta mil homens ia soccorrer a praça de Cazal
na Itália, e conquistar pelas armas uma paz glorio-
sa. Riclielieii commandava todo o exercito. Esta
campanha heróica e brilhante correspondeu em tudo
ao plano do minÍ!>tro, e ao concluir-se como elle pro-
jectara a sua principal missão tinha acabado. As
luctas interiores, <}ue ainda sustentou, e as guerras
<iue depois dirigiu, foram consequências doeste deci-
iivo e assign alado successo.
Pouco tardou que esta cabeça tão odiada não ar-
refecesse, e que as mãos cruzando-se no peito deixas-
sem escapar o sceptro de ferro. O cardeal de Kiche-
lieu, como uni obreiro diligente, tinha sido enviado
(• despedido á sua hora pelo senhor dos reis e dos
imperioíi. A França, (jue elle erguera da decadência,
(pjc lizera temida e admirada, respirou ao vêr esca-
par dos seus dedos d'aço as rédeas do governo. Mas
alguns annos, bem poucos, bastaram para a obrigar
ao tributo de respeito devido ao grande homem que
cm vida tanto eatuniniaram. Sobre aquelle tumulo,
e antes dos seus ossos se carcuniireni, a consciência
dos próprios contemporâneos veio antecipar-lhe o vo-
to da posteridade.
O Feitor de Caxtão.
Novella.
(Conlinuado de pa». 125.)
YuEN-MiNG-YCF.N (l), oudc O fillio do céu costuma
))ass.ir os mais formosos dias do anno, é menos uma
vivenda própria para o verão que uma cidade de pa-
hicios, ])ois conterá um cento d'elles com columnas
d<- ci'dro, e as madeiras douradas, e as telhas pinta-
das de mil cores. Separam-n'os uns dos outros jardins
e pateos magnificos que o<cu|)am um espaço de perto
de cem mil geiras, eem que ha lagos artiliciaes atra-
vessados por pontes de porcelana, collinas com torres
anieadas no cimo, e rochedos cobertos de tantos mi-
rantes, pavilhões, e kiosques, que o som exquisito
<|ue vibram as suas campainhas de vidro quando o
vento as agila, ouve-se em toda a parte.
Ora n'este dia recebia o soberano imperador os
grandes do império no quarto particular em que es-
lava o seu throno, e que s(! chama a nioicula do ccti
sereno, Kslavam á porta da sala vinte edois lidalgos
moços com parasoes amarellos, outros com soes ou
meias-lu.is de ouro, e muitos com bastões ornados de
borlas variegada», band(!Íras com dragões, e outros
com machados, alabardas ou massas douradas. De-
fronto da poria da entrada se viam enlileiradas vin-
te pedras moldurando laminas de cobre em que se
neliava gravado o eeremonial a que se devia cingir
(juem fosse íi presença do imperador.
l\o topo da sala, sobre um estrado alto, erguia-se
o throno, para oipud se subia por uma escada de ala-
bastro primorosamente lavrada. O throno, lodo cosi-
do em pechas preciosas, re|)ousava em dois dragões
de ouro massi(;o.
Acabava o imperador de se sentar. Trazia vestida
uma lunica de/.i'l>i'liua, cobrindo uma compriíla saia
de si'(hi amai'<'lla com o dragão di' cinco garras bor-
iliido (h" rica pedraria, ena c.d)ei;a uma gorra de pel-
le d(! rapoza, i|ui' na parte de cima liulia uma péro-
la de grandiza di's('ommunal. l(o(h'avam-n^o os prín-
cipes de sangue emiiili>s govi'rnadori's de províncias,
pelos cpiaes auuhuva ili' ilislrilmir chá cm pequemis
taças de madeira. Elle porém, com os olhos pasma-
dos e o rosto carregado, bebia pequenos golos d^e-
mulsão de favas (l), n'um vaso de ouro que um es-
canção lhe appresentára de joelhos.
Com ser ainda moco, tinha as faces pisadas e o
corpo alquebrado como se velhice prematura ou se-
creto padecimento lhe seccasse a seiva da vida. Saiu
comtudo da espécie de distracção em que tinha caí-
do, ao ouvir o pregão do arauto, que dizia :
— "Ide, e apresentai-vos diante do throno."
Haviam com effeito entrado os principaes manda-
rins da corte, e começavam a prostrar-se diante do
estrado ; eis-que, arredando-se de repente a turba dos
cortezãos, passou pelo meio d'ella o censor Fo-hu,
dando a mão aEITendon vestido de novo e com mui-
ta magnificência.
Ajoiílharam ambos ante o throno, é tocaram com
a fronte o pó da terra ; mas o imperador, sobresalta-
do de alegria ao vêr o censor e o seu companheiro,
fez um signal e ambos foram conduzidos' para cima
do estrado e juncto d'elle.
— " É este o medico que me inculcaste ? » pergun-
tou depressa a Fo-hu.
— " Eelle, filho do céu ! « respondeu o mandarim.
— " Afiianças-me a sua sciencia?"
— «A província d''Ordos, de que meu irm.MO foi
por ti nomeado governador, está cheia de milagres
d'este homem. n
O imperador voltou-sc para o fingido medico.
— "Etu, lhe disse elle, esperas reslituir-me a saú-
de e as forças ? »
— "Espero, respondeu Effendon, com tanto que
tenhas confiança no teu escravo. "
— "Glue devo fazer? lhe tornou o doente com a
sujeiçjio projjria de quem vive atormentado ; estou
pronipto para tudo, obedecer-te-hei em tudo:, apaga-
me este fogo que me queima as entranhas, e far-te-
hei mais rico que todos os mandarins do império do
meio. Mas falia sem demora, que não acalmam es-
tas dores. »
— "Antes de applicar-te o lenitivo, respon<leu Ef-
fendon, releva que o teu escra< o te interrogue sem
testimunhas. "
A um signal do imperador todos os cortezãos que
estavam juncto d'elle desceram do estrado.
(iuando chegaram a distancia d'onde não podiam
ouvir, o feitor se inclinou para o imperador, e abai-
xando a voz disse-lhe ;
— "Enganam-tc, grande príncipe; enviou-me o
céu para te salvar ! Mas não uie interrompas, accres-
centou quando viu que o imperador se agitava; não
te perturbes, não soltes um grilo, não faças um so
gesto que possa inspirar suspeitas, que elles teem os
olhos filos em nós. "
— "Mas que sabes tu?» perguntou o príncipe in-
quieto.
— "Sei que querem matar-te,"
— " A mim ? "
— " l'arte dos mandarins da tua corte conspira pa-
ra exaltar ao Ihrono o teu suc<'cssor ; e d'.iqui pri>-
vém a pcnla repentina da lua s.iude."
— "Ah! razão tiidia «-u para me su|>pòr envene-
nado I " exclamou o imperador.
j — "Sim, continuou Kllendon, mas as tuas suspei-
i tas enelieram-n'os ilc Icrror, e tcn<lo noticia de ipio
o meiliii) W aiig-li sabia o segredo ile venenos mais
snbli>, (|iii'não diM\a\am vestígios, elevavam oiloen-
ti- á >('pullura coni tão peipicna agonia qne parecia
<-nlrado cm convalescença, foram li'r com elle. . . ••
(I) O jiuiliiil rciloiKlii u le^lllllluk■ccllll.•.
(1~) Prepnrnçito fuiln com iis scuiciitci do cyliio ou codí-
(;ii lia liului.
132
O PANORAMA.
— « Chamar.im-te pois para me dares o golpe mor-
tal! exclamou o imperador, a quem esta revelação
inesperada causara a ura tempo assombro, dòr, e in-
dignação.— li não sabes os nomes doestes infames?»
— "Fo-hu foi só fjuem mo fallou :, prometti-lhe a
elle dar-te lioje mesmo o remédio que devia coroar
a sua obra. »
Por um momento esteve o imperador mudo, cogi-
tando o que faria. Eis senão quando animou-se-lhe
de súbito o semblante, relampejou-lhe nos olhos a
victoria, e um vislumbre de alegria lhe subiu ás fa-
ces. Olhando para Ertendon disse-lhe:
— "Tens ahi esse remédio?»
O feitor mostrou-lhe o frasquinho de bronze conti-
do na caixa do medico.
— "Enche este vaso, " disse o imperador, esten-
dendo a taça em que bebera a emulsão de favas.
Elfendon obedeceu. Então o principe fez um signal,
e tendo-se chegado todos os mandarins proseguiu em
voz alta :
— "O céu protege o filho da dynastia de Han, e
um grande beneficio acaba de baixar sobre elic. »
— "Glue aconteceu?" perguntaram todos a uma
voz.
— " Olhai para este homem o adorai-o como um
deus tutelar; porque pela sua scienoia descobriu uma
bebida que não só abranda qualquer enfermidade,
porem restaura as forças vitaes do mesmo modo que
o verão faz brotar as arvores. »
Voltaram-se para EíTiíndon todos os olhos, e pro-
longado snsurro de espanto saiu da turba doscortezãos.
— "Podia reservar só para mim esta bebida: mas
esta escripto que o soberano deve ser qual o orvallio
bemfazejo para osseus súbditos. Gluero porlanto «pie
os meus fieis servos participem do thesouro da vida.»
E pegando na taça accrescentou :
— " Clieguem-se pois todos aquelles que, como eu,
quizerem beber n'esta taça a vida, o vigor, e a mo-
cidade. »
Estas palavras excitaram grande rumor. Todos os
que ignoravam a trama chegaram, a qual primeiro,
ao estrado; mas os cúmplices deixaram-se ficar eoiiia-
vain desconfiados uns para os outros. O imperador
contou-os com os olhos : eram os mais nobres officiaes
do império ! Chamou-as pt^los seus nomes.
— Por que motivo cedem os mais nobres a prece-
dência? perguntou elle, levantando a taça de ouro.
\em cá, vem cá, Fo-hu ! quero começar por ti . . ."
O censor, pallido e tremulo, deu alguns passos pa-
ra othrono; mas de repente ])arou, estendeu as mãos,
c caiu de joellios, exclamando cpie o medico era um
embusteiro. Os seus cúmplices iniitaram-n^o. Então
• o imperador ergueu-se temeroso e bradou com voz
terrivel :
— »' O céu imprimiu o si'.;nal iao na vossa fronte.
A mim, (jue sou o pai ea niãi do meu povo, tinheis-
mc envohido n'uma rede de enganos em que fostes
colhidos. iJemdietos sejam os céus azulados ! Solda-
dos ! prendei estes en\ enena(K)res, e arranque-lhes a
tortura a confissão dos seus crimes. »
A este chamamento acudiram os guardas das por-
tas da sala e levaram prezos Fo-hu c os seus compa-
nheiros.-
O terror e o espanto reinavam no resto da cilrte,
e houve um breve momento de confusão em que as
leis doceremonial for.im transgredidas. Os mais leaes
servos do imperador tinham cercailo o throno e inda-
gavam e ouviam horrorisados as |)articularidades da
conspiração. Socegado o tumulto, durante oqual fica-
ra ElVendon es([ueeido, todos os olhos se viraram pa-
ra elle. O imperador fez-lhe signal para que se lhe
approximasse :
— "Tu, que me salvaste, chega-te, lhe dl&se elle
com affabilidade; chega-te, fiel Wang-ti! e sejam
quaes forem os teus desejos, manifesta-os e terão cum-
pridos.
O feitor ajoelhou.
— "Seja o primeiro o perdão de te haver engana-
do ; porque não sou medico, nem me chamo \N ang-
ti. Vês na tua presença, filho do céu, ura bárbaro
estrangeiro, que affroutou todos os perigos para te
vir pedir justiça. »
Contou então miúda e fielmente a sua historia que
todos escutavam maravilhados. Gluando acabou fez-
lhe signal o imperador para que se erguesse, e olhan-
do para elle com bondade disse-lhe:
— "O sábio desculpa o tigre, que para salvar os
filhos rasga as entranhas ao caçador; por amor de tua
filha violaste as leis do que tilá debaixo do céu ; re-
levo-te este crime. Tamlxira está escripto que o so-
berano imperador deve ser ura manancial de delicias
para todos que a elle se chegara. Eia pois, levanta-te
e cobra esperança, porque se tua filha for viva ser-
te-ha restituída, n ••
A promessa foi cumprida, e um mez depois nave-
gava Effendon cora Maria para a America. A filha,
sabendo avaliar a grandeza do sacrifício, ainda ama-
va mais a seu pai depois que elle, para a libertar,
aplanara tantas barreiras, e quasi que vencera im-
possíveis. E quando fullavam diante d"ella era em-
preziís difficeis em cujo êxito o vulgo não crê, e que
Eífendon repelia, segundo o seu costume :
— " Com a vontade abalam-se montanhas, n
A muda nunca deixava de accrescentar um gesto
para significar :
— «E transportam-se com o amor."
Benevescto Ckliixi (I).
Benevencto Cellini, auctor da estatua de Perseu de
que hoje damos um desenho muito exacto, é um ho-
mem em que se resume, por sua vida c obras, todo
o século X\ I considerado em relação ás bellas artes.
Tendo diegado á idade de cincoenta e nove annos
começou a escrever a sua vida, que na verdade e
abundante de aventuras e de obnís primas. Seu pai
chamava-se André Cellini : nasceu em Florença, ci-
dade edificada á imitação da formosa cidade de Ro-
ma.— O primeiro objecto que deu mais na vista ao
jovpn Benevenuto foi uma salamandra no fogo. —
Logo que chegou a idade de poder tocar flauL-i, seu
pai o applicou a este instrumento e lhe ensinou mu-
sica : fez rápidos progressos ; porém pateuteando-se o
seu engenho, cdeixanilo a musica pelo cinzel, entrou
de aprendiz no lalwratorio de um mestre iPeílatua-
ria famoso n'aquelle tempo, lluando tixlo se empre-
gava em escuipturas e artefactos d"ourives, e n"aquel-
las admiráveis tentati\as do gosto eda arte italiana,
o eondestavel de Bourbon caiu d'improviso sobre a
cidade de Ilonia, a que ]>oi cerco: a cid.idc resistiu
como poude ; e o mancebo artista não foi dos últimos
a correr ás armas; metteu-se no castello de S. Ange-
lo onde estava o {>apa, e foi tão valente c afortunado
que matou de ura tiro de jHMj-a o principe de Oran-
ge, e de uma arcsvbuiada o eondestavel de Bourbon,
vendido aos hespanh<.>es, e traidor para cora scu rei,
que morreu como o cavalleiro Bayard não mcn-cen-
do tal honra. — .\cal>ada a guerra, o artista, aquém
o Ikuu successo fizera ambicioso, foi jH-dir ao papa
Paulo III a recompensa que assentava ser devida a
(1) Eile artigo é dcriílo :i penna do hábil efcriptor een-
Senhuso critico, o Sr. Júlio Jaaia.
o PANORAMA.
133
seus serviíjos, mas o pontífice, em vez de o agraciar,
o mandou metter n'uraa prisão d'e5tado : Celliiii era
accusado falsamiMite de ter dado descaminho ás jóias
da coroa pontifícia que llieliaviam sido confiadas du-
rante o sítio. Da prisão em rjue o sepultaram Cellí-
ni conseguiu escapar duas vezes atravcz das maiores
difficuldades e excessivos perigos; duas vezes tornou
a ser appreliendido, e estava aponto de padecer mor-
te, (juandu Francisco I, que ouvira nomea-lo como o
artista mais Iiabii da epoclia, sollicilou do papa que
Ih^o enviasse: os desejos do rei de Franca eram ti-
dos como ordens, e Benevenuto foi solto. Ei-Io nova-
mente lançado em mil aventuras de toda a casta :
que vida ! festas, duellos, amores, tralialhos, trium-
phos, jugo desenfreado, miséria, humilhação, tormen-
tos de todo o género; ora rico, ora pobre; hoje fidal-
go, ámanliã arti.'ita. Assim chegou á corte de Fran-
ça, e b(!ni é de siijjpor como o não maravilharia o es-
plendor iFcísta cidade: rec('l)(ni-o orei com toda a es-
pécie de honrarias; deu-lhc plena posse de um palá-
cio, o Ncsle pequeno, onde elle assentou os seus la-
boratórios. l'or esse tempo o rei andava todo preoc-
cupadoconi Fontainebleau ; esta localidade era o\er-
sailles de PVancisco I ; ahi reinava como soberana a
formosa duqueza d'iítanipes; era a rainha d'aquelles
jardins, d'aquelle palácio. Cellini descuidou-se de
Ule fazer corte: a dutjueza era inclinada ao 1'rimati-
ce, equiz deitar a perd<!r o artista romano; para is-
so imaginou uma astúcia que a final redundou em
vergonha sua.
Cellini acabava de dar o ultimo toque a uma avul-
tada (?sfatua de Júpiter para Fontainebleau ; a du-
queza para desacreditar esta obra a mandou pôr en-
tre as mais bellas estatuas anligas que vieram da Itá-
lia, afim de que o Jiipiler ficasse abatido em vista
da comparação com acjucllas obras excellentes : ainda
fez mais, a duqueza aguardou o decair do dia e pro-
puz a Francisco 1 e a toda a corte irem vêr á gale-
na a nova obra de Cellini. Outro que não fosse este
esculptor se aterraria (juanfo ao elleito que causaria
a estatua : ena v(?rdade i^tn: esperanças teria de que
ella gaidiasse a par dos ])ri mores da arte antiga da
Itália?. . . Mas o nosso artista não era lionníni que
ge desalentasse. A duqueza ficou bastante espantada
quando, ao entrar na galeria, achou tão admiravel-
mente alliimiada a estatua de «Júpiter <ju(! era esla
a qu(! supplantava as outras: a(|uelle vulto scdncfor
par(?cia animado. O rei, bi;ni como a ciirtc, não |)0-
deram reprimir a sua admiração; o Iriumpho do
Artista foi complico. — Ao mesmo tempo que Celli-
ni se occupava (Fessas obras em ponto grande, e do-
tava a França com nnja arte que lhe era descoidicci-
da, lidava land)i'iii fervorosamentu com artefactos de
ourives: nas sua» mãos o ouro e a prata centuplica-
ram no valor : fazia vasos tão bellos, de tal modo ro-
deados do figuras e tão ricos do ornatos, (|uc eram,
j/l n'e9SR tempo, de ini'stimavel valor; hoje os me-
nores trabalhos seus d'est(! género estão acima de to-
do o preço : fez annei» de prata cpu; são avaliados
em nniis (h) ijue os mais ricos guarnecidos de pedras
Jinas. Não ha muitos annos (pn'iim ciiriíiso inglcz que
viajava na Itália |)agon por 1100 Inizcs (.;;/i(iO ,^000)
unni taça singela e peipiena ile prata cinzelada piln
insigne lavranle llorentino. Cidade e còrti- davani-sc
prt!ssa em obter alguma das obras d'elle. Tudo o que
era formoso e perleilo, tudo o qui' era artístico, es-
culpturas, painéis, gravuras, architeclura, era a pai-
xão d ai|ui'lli> scciílii, chamado iiim ra/ão o sccnlo de
Francisco I.
'l"o(lavia, não obslanli^ o triumpho do seu .lupiter,
C(dlini viu-se obrigado aceder á má voutailc da dn-
rpiiv.a iri'llampcs, por outra parte a sua iningiiun-ão
] errante e animo inquieto pouco se accommodavam a
] permanecer muito tempo no mesmo logar ; precisava
de aventuras a todo o custo, duvidas e desafios, pe-
núria e vida vagabunda : a existência socegada, a
gloria de cidadão, a família, não se coadunavam com
o genío fervente d'este artista, celebre até a este res-
peito. Deixou por tanto Paris, disse adeus ao paço
real, ás suas obras começadas, aos seus próprios ini-
migos, de que linha tanta pena, por isso mesmo que
o inquietavam, como de tudo o mais; e tornou-se a
Itália, sua pátria, seu primeiro amor; mas ahi o es-
peravam a mesma gloria, a mesma inspiração para
obras excellentes, e iguaes pezares. Nas memorias de
sua vida qu<? escreveu com bastante estro, muito ta-
lento e viveza d'estylo, e que são clássicas em italia-
no, Cellini descreve maravilhosamente o como con-
seguiu fundir a sua estatua de Perseu, como esta
operação lhe ia saindo mal, e por momentos julgou
que a sua obra magistral estava perdida, e os seus
inimigos triumphavam com este desastre. A final,
fora de si, sem ter outra esperança senão no céu,
prostrou-se de joellios e dirigiu a Deus a deprecação
mais fervorosa que em sua vida jamais fizera. Finda
a prece ergueu-se, correu á estatua . . . milagrosa
cousa ! . . . estava perfeitamente fundida, e a sua
grande obra completada !
As memorias de Benevenuto Cellini são principal-
menti' procuradas ]iorqui! nos pocm ao facto de toda
a partií tcchnica das bellas artes : não se ap])rescnlii
alli SI) ci>mo artista, maslandicm como operário ; en-
tra ao mesmo ti'nipo nas |iarticnlaridadcs da suu vi-
da e nas miudezas da sua protissão. — l)<'pois de ha-
ver feito o INírseu de bronze, <'scidpin um C/irislo de
mármore jiara o palácio 1'itli, <pie não ha outro igual :
(í depois, como por passatempo, grav:i\a brazòes pa-
ra mrilaliias e moctlas, r cra\'ava ptnlras tinas,
(liiaiido Cellini, firlo de gloria i- de dinheiro, en-
fastiado como anmt<'i'i' a lodos os lionuMis de engenho
eminente, fatigado di' triiim|)hos c de trabalhos, sen-
tiu <hegar-s<! u velhice, 1iz-m' misanlhro[>o, mctteu-M-
134
O PANORAMA.
frade, corrigiu as suas memorias, e fallcceu a 25 de
fevereiro de 1570 na idade de setenta annos.
Os Templários.
(Continuado de pa^. 126.)
A coMMissÃo pontificia, reunida a 7 d'agosto de
1309 na camará do bispado de l^aris, tinha sido em-
baraçada por muito tempo: o rei tinha tanta vonta-
de de vêr os templários justificados como o papa de
condemnar o seu rival Bonifácio : as testimunhiis que
depunham contra Bonifácio eram maltractadas em
Avinhão, as tesliniunha^ favoráveis á causa dos
templários eram atormentadas em Paru. Os bispos
não obedeciam á commissão pontificia, e não lhe re- '
mettiam os templários. Todos os dias a commissão j
:issistia á missa, depois abria a sessão, e ura nieiri- ]
nho á porta da sala bradava : "Se alguém quer de-
fender a ordem da milicia do Templo, appresente-
sen mas ninguém apparecia : a commissão voltava
no dia seguinte, sempre inutilmente.
A final, lendo o papa instaurado, por buUa de 13
de setembro de 1309, o processo contra Bonifácio,
pcrmittiu o rei, era novembro, que o grão mestre do
Templo fosse levado á presença dos commissarios : o
cavalleiro ancião mostrou a principio muita firmeza :
disse que a ordem era privilegiada no foro da sancta
sé e que lhe parecia cousa assombrosa que a igreja
romana quizesse proceder subitamente á destruição
d'ella, quando tinha diferido a deposição do impe-
rador Frederico II por espaço de trinta e dois an-
nos : disse também que estava prompto a defender a
ordem, como em suas forças coubesse, e que se teria
em conta de um desprezível se não defendesse a cor-
poração de que recebera tanta honra e vantagens,
porém que temia não ter sufficiente prudência e re-
flexão ; que se achava prisioneiro do rei e do papa \
que não tinha quatro dinheiros para gastar na defe-
za, nem outro conselheiro mais que um irmão ser-
vente ; demais que a verdade se manifestaria não só
pelo testimunho dos templários, mas pelo dos reis,
príncipes, prelados, duques, condes e barões, em to-
das as partes do mundo. — Declarando-se o grão mes-
tre doesta maneira patrono da ordem, ia dar grande
vigor á defeza, e por em risco o projecto do rei : os
commissarios o induziram a deliberar com madureza,
e mandaram que lesse o seu depoimento na presença
dos cardeaes-, mas o depoimento não emanava d^elle
directamente ; por vergonha ou qualquer outro mo-
tivo encarregou o irmão servente de fallar por elle
ante os cardeaes : porém quando appareceu na pre-
sença da commissão, e os escrivães ecclesiasticos lhe
leram em alta voz aquelles miseráveis depoimentos,
o ancião cavalleiro não poude ouvir com presença
d'espirito semelhantes cousas dietas na sua . cara ;
persi^nou-se e disse que se os senhores commissarios
do pontífice fossem outras pessoas alguma cousa teria
a dizer-lhes : os commissarios responderam que não
era do seu caracter levantar a luva de um des.-ifio.
— nNão era esse o meu sentido (disse o grão mes-
tre) : aprouvesse a Deus que em casos taes se obser- 1
vasse contra os perversos a practica dos sarracenos;
cortam-lhcs a cabeça ou cerram-n'os ao meio. " Esta .
replica fez sair os commissarios da sua ordinária
brandura: resjwndcram com frieza e actiinonia: — |
i- aquelles que a igreja acha heréticos, julga-os como
heréticos, erelaxa osohctinados ao braço secular." —
Um dos principaes agentes de Kilippe o formoso, i
Plasian, assistiu á audiência sem ser convocado:
Jacques Molav. atemorisado {>ela impressão que as '
suas palavTas haviam feito n^aqnelles padres, assentou
que era mi'lbur confiar-se num cavalleiro; pediu
permissão de conferenciar com Plasian ; este o indu-
ziu, com simulação de amigo, a que se não deitasse
a perder, e o resolveu a pedir uma dilação até a
sexta feira seguinte : os bispos lh'a facultaram, e
mais longa lhe concederiam de boa vontade.
Na sexta feira Janjues Molav tornou a compare-
cer, mas de todo mudado : sem duvida Plasian o ti-
nha tentado na prisão. Q.uando lhe perguntaram de
novo se queria defender a ordem, respondeu humil-
demente que elle não era mais que am pobre caval-
leiro sem lettras ; que ouvira lêr uma bulia apostó-
lica em que o papa reservava para si o juljamento
dos cabeças da ordem ; e que por asrora nada mais
requereria. Inquiriram-n^o expressamente se queria
defender a ordem : respondeu que não, e só rogava
aos commissarios que escrevessem ao papa para que
mandasse que elle fosse á sua presença o mais breve
[XKsivel ; e accrescentou com a ingenuidade da im-
paciência e do temor: — "eu sou mortal. t>3 mais
também ; não temos de nosso senão o momento pre-
sente. )' —
O grão mestre abandonando assim a defeza, tira-
va-lhe a força e unidade que d'elle podia receber.
Pediu somente dizer três palavras a favor da ordem ;
primeiro, que não havia i^eja onde o culto divino
se celebrasse mais dignamente que nas dos templá-
rios ; segundo, que não havia reliuião que fizesse
mais esmolas que a do Templo, que três vezes por
semana se distribuíam a quem se appresentava ; e
por ultimo, que não havia (que elle o soubesse} casta
alguma de pessoas que tivessem derramado roais san-
gue pela fé christã do que os templários, nem que os
infiéis tanto teraesseni •, que em >Iansourah o conde
de Artois os puzera na vanguarda, e que se lhes ti-
vesse dado credito..." então ouviu-se uma voi:
asem fé tudo isso de nada vale para a salvação. r> —
O chanceller Nogaret tomou também a palavra : —
"Ouvi dizer que nas chronicas, que estão em S. Di-
niz, se achava escripto que no tempo do soldão de
Babylonia o grão mestre d'então e outros magnates
da ordem tinham rendido homenagem a Saladino ;
e que este mesmo, sabendo de um grande revez dos
templários, dissera publicamente que isto lhes acon-
tecera em castigo de um vicio infame, e da preva-
ricação contra a sua lei.n — O grão mestre respon-
deu que nunca tal ouvira ; que apenas sabia que o
o grão mestre d'essc tempo havia mantido as tré-
guas, porque de outra sorte não teria podido conser-
var tal ou tal castello. Jacques Molav concluiu pe-
dindo humildemente aos commissarios e a Nogaret
que lhe permittis>em ouvir missa e ter a sua capella
e capellães : assim lh"o prometterara, louvando a sua
devoção.
Por este modo se formavam simultaneamente os
dois processos, do Templo o de Bonifácio N III ; e
appresentavam o extraordinário espectáculo de uma
guerra entre o rei c o papa. Elsfe, constrangido polo
rei a perseguir Bonifácio, estava vingado pelas de-
clarações dos templários contra a barbaridade com
que os officiaes de justiça haviam encaminhado os
primeiros proctxlimcntos : o rei de>honrava o ponti-
ficado, c o pap;i deshonrava a realeza : mas o rei ti-
nha da sua parte a força ; impedia os bispi» de re-
mettcrem aos commissarios os templários pretos, <»
ao mesmo tempo imjx-llia para Axinbão nuvens de
tcstimunhas que se .ijuncfavam por sua conta na
Itália. O papa, de aljum modo assediado por estas,
\ia-se condemnado a ouvir os mais esp.into5os depoi-
mentos contra a honra do sólio pontifício.
O processo do Templo começara com grande es-
o PANORAMA,
135
trondo, apesar da deserção do grão mestre. A 28 de
marco de 1310 os coiiimissarios niandarain trazer ao
jardim do paço episcopal os cavalleiros <jue dcciara-
vain querer dcreiíder a ordem \ a sala não tiidia ca-
pacidade para recolher todos i eram quinhentos e
quarenta e seis. Lêram-liies era latim os artigos da
accusação ; queriam depois lèr-lh'os também em
iraneez; mas ellcs clamaram que era bastante tê-los
ouvido em latim, e que não desejavam que seme-
lhantes torpezas fossem trasladadas no idioma vulgar.
Como eram tão numerosos, disse-se-liies que, para
evitar tumulto, delegassem em procuradores, e d^en-
tre si nomeassem alguns que iallassem por todos.
tJluereriam todos elles ialiar, tanta era a coragem
que haviam recobrado. Delegaram, comtudo, em
dois, um cavalleiro, frei Ha^naldo do 1'ruin, e um
«aeerdote, Fr. Pedro de Bolonha, procurador da or-
dem juncto ao tribunal ponliíicio: ajunctaram-se-
Ihes mais alguns por auxiliares.
Os comniissarios fizeram depois tomar, por todos
os edifícios que serviam de cárceres aos templários,
os depoimentos dos que pretendessem defender a or-
dem : foi unia luz espantosa que entrou nas prisões
de I'"ilip[)e o formoso. Jl'ahi saíram extraordinários
(damores ; uns arrogantes e ásperos-, outros piedosos
<; exaltados ^ alguns ingenuanienle dolorosos. Uni
dos cavalleiros disse tão somente: — ueu não posso
pleitear sósinho contra o rei de Franca o contra o
papa." — Alguns limitaram todo o seu depoimento
a uma simples deprecação á Saneia Virgem — u Ma-
ria, estrella do mar, guiai-nos ao porto da salva-
ção."— l'orém o papel mais curioso é um protesto,
ein linguagem vulgar, no qual, depois de haverem
sustentado a innoccncia da ordem, os cavalleiros dão
a conhecer a sua humilhante miséria, o mesquinho
calculo da» suas despezas. Singulares jiartieularida-
des, e que appresentam cruel contraste com o orgu-
lho e riqueza tão celebres il'esta ordem ! Os desgra-
çados, do miserável subsidio de doze dinheiros por
dia, eram obrigados a pagar a passagem no rio para
irem comparecer nos interrogatórios, e ainda em ci-
ma tinham de dar dinheiro ao homem que lhes abria
e fechava os grilhões.
Afinal, os defensores apprescnlaram um memorial,
aulhenlico em nomo da ordem. N'esta jirotestacão,
singiilaniiente vigorosa e ousada, declaram não pode-
rem defend(!r-se sem o grão mestre, nem ])or outra
forma que não seja perantií uni conc-ilio geral. Sus-
tentam— iii|ue a religião do Templo é saneia, pura,
o iinmaeulada perante Chrislo cí o l'adre. O institu-
to regular, aoliservaii<'ia salutar, ahi cístiveram sem-
pre e estão ainda cm vigor. Todos os irmãos não teem
mais que unia |)r(iíissão de fé, que cm todo o univer-
so tem sido, e é scitiprc observada por imlos., desde u
fundação até o dia presente. K ipicm diz ou erè ou-
tra cousa erra iiilciranuMitc, pccea niortaliiienle. " —
Kra uma aflirmaliva bastante audaz su^lcntar (|ue
i<idi)s tiiiliani ])criiiaiieci(lo lieis ás regras do institu-
to primitivo^ ijue nenhuma <li>viação, nenhuma cor-
rupção houvera, (liiando ojusio pecca sete vezes por
dia, aijiiclla onlcm soliciba ai:liava-se pura esemjiec-
cndo. Tamanho orgulho fazia eslremeeer. Não fica-
ram n islo. 1'eiliam «pie os irniàos apóstatas fossem
postos a liom recado até (pie se mostrasse se ti-
nham dado Icslinainlio verdadeiro; (pieriaiii também
que iii'iiliuiii secular assistisse aos interrogatórios.
Minguem, com clleilo, duvi<la ipie a presença de um
l'lasian, de um Nogarel, intimidaria os iieeiísiidos e
o8 juizes. Aivibam dizendo ijue — i>ii eommissão poií-
tilicia não piídc proscgiiir^ porcpu', emlim, nós esta-
mos, e sempre t(.'mim estado em poder (rac|iiclles iiiu^
kuggerem cousas falsas uo senhor rei. Uuotidiana-
mente, por si ou por outros, de viva voz, por cartas
ou mensagens, nos avisam que não retractemos as fal-
sas declarações que forain extorquidas pelo temor :,
aliás seremos queimados. "
Passados alguns dias, saíram com outro protesto,
porem ainda mais forte, menos apologético do que
ameaçador eaccusador. — .í Este processo (dizem) foi
inesperado, iniquo, injusto; não é mais que uma vio-
lência atroz, um erro intolerável. >ias prisões e trac-
tos muitos e muitos teem morrido ; outros teem pelo
mesmo motivo ficado enfermos para toda ávida; ou-
tros foram constrangidos a mentir contra si e contra
a ordem. Estas violências e estes tormentos lhes ti-
raram totalmente o seu livre alvedrio, isto é, quan-
to o homem tem de bom : quem perde o livre arbí-
trio perde todo o bom, sciencia, memoria e entendi-
mento . . . l'ara os impellir á mentira, ao testimu-
nho falso, mostravam-lhes cartas com o sello real pen-
dente, e que lhes asseguravam a conservação da vida
e da liberdade ; prometliam-lhes prover cuidadosa-
mente em (jue tivessem bons rendimentos em quan-
to vivessem ; e por outro lado lhes afijrmavam que
a ordem seria irremediavelmente condemnada." —
1'or muito habituados que então estivessem á vio-
lência dos processos inqnisitoriaes, á immoralidade
dos meios commummente empregados para fazerem
fallar os aceusados, era impossível que semelhantes
palavras não sublevassem o coração : porém mais ex-
pressivo que todas as palavras era o lastimoso aspecto
dos prezijs, suas faces pallidas e encovadas, os vestí-
gios horríveis dos tormentos .. . um d'elles, Hum-
berto Dupuy, a decima quarta testimunha, foi posto
a tractos três vezes, e este^e retido trinta e seis se-
manas, a pão e agua, no fundo de uma torre ínfic-
cionada : o cavalleiro, Bernardo Dugué, a quem
metteram os pés n'um brazeiro, mostrava os dois os-
sos que lhe haviam caído dos calcanhares.
Eram bem cruéis espectáculos : até os juízes, le-
gistas como eram, e cobertos com o secco habito de
padres, se commoviam e lastimavam ; quanto mais o
povo que diariamente via aquelles infelizes passar
nas barcas para se transportarem á cidade, ao paço
episcopal, onde a commissão celebrava as sessões!
Augmentava a indignação contra os accusadores, con-
tra os templários apóstatas. N'um dia, quatro d'es-
tes comparecem perante a commissão, conservando
ainda as barbas, porém trazendo as capas no braço ;
arremeçam-n'as aos pés dos bisjios, e declaram que
renunciam o habito do Templo: os juizes os olharam
com desprezo, e lhes disseram que lá fora fizessem o
(juo bem lhes jiarecesse.
O processo tomava um andamento peri<;oso para
os que o haviam começado com lamanha ])recipita-
ção e violência : os accusadores decaíam a pouco o
pouco jiara a situação di; aceusados-, de dia pára dia,
os depoimentos ircstes revehivam as barbaridades, as
torpezas ilo |irimciro processo, cuja intenção se tor-
nava visível; tinham piistii a tormcnios um cavallei-
ro ]iara o obrigarem a dizer aipianto nuuilava o thc-
soiiro tnizido da Terr;i Saneia. l'or veiiliira um thc-
sonro era crime, e olijeclo d'accusação .' . . .
Kellcetindo-se no grandi' numero de afliliados que
os templários tinham no povo, nas relações ipie o»
cavalleiros tinham com u nobreza, da ipial eram to-
ilos oriundos, não pôde duvídar-se que o rei se as-
sustara de ter levado tanto avante este negocio: a
intenção era vergonhosa, os meios atroies; tudo es-
tava desinaseunido. l'or ventur;i não estava u poiítu
de Icvantar-so o povo, inipiii-t.ido na su:i crença iles-
ilc a tragedia de Jtonilacio \ III .' . . . tluando hou-
\c omolim por causa da niocibi, o Templo tiverii
força bastante paru protcjjcr Filii>pe o formoso ; c
136
O PANORAMA.
agora ? . . . Todos os amigos do Templo estavam con-
tra elle. . .
O que mais aggravava o perigo é que nas outras
regiões da Europa os concilios foram em geral favo-
ráveis aos templários; foram declarados innocentes a
17 de junlio de 1310 em Ravenna, no 1." dejulho
em Moguncia, a 21 de outubro em Salamanca. Des-
de o começo do anno que se podiam prever estas de-
cisões \ e seguir-se-hia a perigosa reacção em 1'arís.
Era necessário preveni-la, recorrer á audácia : era
necessário deitar mão ao processo, precipita-lo, aba-
fa-lo.
No mez de fevereiro de 1310 o rei se havia con-
certado com o papa ; e declarara reportar-se a este
quanto ao julgamento de Bonifácio i e em troco exi-
giu, em abril, que fosse nomeado arcebispo de Sens
o mancebo Marigni, irmão do famoso Euguerrando
de Marigni, verdadeiro rei de França no tempo de
Eilippe o formoso: a 10 de maio o arcebispo recem-
nomeado convoca um concilio provincial, onde faz
comparecer os templários. Temos dois tribunaes que
julgam ao mesmo tempo os mesmos accusados em
virtude de duas bulias do papa: a commissão allega-
va a bulia que Ibe commettia o julgamento ; o con-
cilio referia-se á bulia precedente que restituíra aos
juizes ordinários as suas attribuições a principio sus-
pensas.— Não subsiste acta dVste concilio ; nada
mais do que o nome dos que n'elle tiveram assento,
e o numero dos que mandou queimar.
A 10 de maio, um domingo, appresentaram-se os
defensores da ordem perante os conimissarios do pa-
pa para reclamarem contra o concilio : o presidente,
o arcebispo de Narbona, respondeu que nem a elle,
nem aos seus collegas competia conhecer de tal re-
clamação; que não deviam intrometter-se nMsso,
pois que não era do seu tribunal que se appellava :,
que se elles queriam fallar em defeza d.i ordem, de
boamente os ouviriam. — Os pobres cavallciros sup-
plicaram que, pelo menos, os conduzissem ante o
concilio para ahi levarem sua reclamação, conceden-
do-lhe ãoís notários que a reduzissem a forma au-
thentica. Na sua appellação, que em seguida leram,
coUocavara-se sob a protecção do papa nos termos
mais patheticos. — As infelizes victinuis parece que
já sentiam as chammas, e abraçavam-se com o altar,
que não podia protege-los. (Cvnlinua.)
Thesoduos dos antigos keis de Poktugal.
Os nEis antigos de Portugal, segundo refere Fernão
Lopes, faziam todo o possível por encurtar as despe-
zas suas e do reino, afim do junctarem thesouros :,
porque sendo o povo rico diziam elles que o rei era
rico, e o rei que thesouro tiidia sempre estava pres-
tes para defender o seu reino, e fazer guerra quando
lhe cumprisse, sem aggravo e damno do seu povo.
Todos os annos os vedores da fazenda lhes davam
contas de todas as despezas feitas, e das sobras dos
rendimentos e diriMtos, tanto em dinlieiro como em
géneros. DVilas sobras se mandava comprar certa
porção d(' moedas de prata e ouro, (jue eram arreca-
dadas no castello de Lisboa, li'uma torre diamada
albarrã, muito forte, que ficava por cima da porta
do mesmo castello, c de que tinham as chaves o
guardião do convento de S. Francisco, o prior do de
S. Domingos, e um beneficiado da sé. Este ouro e
prata os compravam certos camhaihics d'elrei nas
cidades e villas do reino, c por este trabalho perce-
biam um tanlo por cada peça de ouro que compra-
vam. No cast<'llo de Santarém também havia uma
torre onde accumuluram tanlo dinheiro, que foi pre-
ciso pôr-lhe espeques para não abater ; no Porto e
Coimbra havia igualmente thesouros reaes.
Elrei D. Pedro I achou que, pagas as despezas or-
dinárias, podia todos os annos metter na torre al-
barrã até quinze mil dobras, e só na torre do cas-
tello de Lisfxja deixou a seu filho D. Fernando oito-
centas mil peças de ouro, e quatrocentos mil marcos
de prata, além de outras cousas de grande valor que
alli estavam. Rendiam então os direitos reaes oito-
centas mil libras ou duzentas mil dobras, e a alfan-
dega de Lisboa, uns annos por outros, trinta e cinco
mil até quarenta mil dobras, afora algumas dizi-
mas; e só em um anno se exportaram doze mil to-
neis de vinho, sem fallar nos que levaram depois os
navios na segunda carregação de março. E ás vezes
estavam diante da cidade, entre portuguezas e es-
trangeiras, quatrocentas a quinhentas embarcações
de carga ; e no rio de Sacavém e ponta do Montijo
em cadaum logar sessenta a setenta navios carregan-
do de sal e de vinhos. Com estes rendimentos, ajuda-
dos de severa economia, poude elrei D. Pedro 1 dei-
xar muito rico o seu successor sem lançar novos tri-
butos sobre o povo.
De outra maneira se houve para enthesourar elrei
D. Pedro de Castella, a que se pode dar o epithelo
de Nero da Hespanha pela qualidade e quantidade
das mortes que mandou fazer. Estando um dia a jo-
gar os dados com alguns dos seus cavalleiros queixou-
se de que todo o seu thesouro andaria por vinte mil
moedas entre prata e dobras. D. Samuel Levi, seu
thesoureiro mór, a quem elle depois também man-
dou tirar a vida, deu-se por injuriado d'esfe dicto,
porque se podia inferir dV'lle que não cuidava na
arrecadação da fazenda, a qual na verdade estava
conimettida a recadadores que tinham abusado dos
seus cargos valendo-se ])ara isso dos motins que nos
últimos sete annos houvera no reino de Castella ; e
afiançou-lhe que se lhe desse dois castellos dentro em
pouco o faria senhor de grande thesouro. Deu-lhe
elrei o alcaçar de Torguillio o o de Fila, cm que
Samuel poz homens de sua confiança. Mandou o the-
soureiro que todos os que arrecadavam ou tinham
arrecadado rondas d'elrei desde o começo do seu rei-
nado viessem dar contas, e chamou ao mesmo tempo
todas aquellas pessoas a quem elles de\essem ter pa-
go alguma quantia secundo as ordens d'elrei, para
que debaixo de juramento declarassem o que haviam
recebido, e com quanto lhes ficaram os p;igadores
por lhes não retardarem os pagamentos. Cadaum de-
clarava que não recel)êra mais do que tanto, e que
o resto fora para a peita, por se lhe dar a entender
que sem ella não obtinha pagamento. Se o recada-
dor não mostrava ter pago tudo, mandava D. S;i-
nuiel que metade de quanto assim le\ára fosse para
o tliesouro do rei, e a outra metaile piíra o les;ido.
1. E todolos que taes livramentos liouverom. dli o
nosso ingénuo chronisfa, eram mui contentes de di-
zer a verdade, por cobrar o que tinham perdido: e
elle junctou por esta guiza antes d'um anno n'aquel-
les castellos tam grande thesouro que era estranha
cousa de vèr. »
Conservação do leite.
Ha um melhodo inventado jwr Mr. Appcrl para
conservar o leito, o (jual, pola sua simplicidade, me-
recia ser mais conhecido. Kiilui-se a encher do loile
fresco uma garrafa l>em rolhada, c tc-Pa moríulha-
da, cousa de um quarto de hora, em agua a ferver.
Asseguram que o loitc se conserva jHir muitos annos
cm óptimo estado doi>ois doesta preparação.
18
o PANORAMA.
137
CACILHAS; VISTA DO T£JO
LtsBOA é al);i.steci(la ile todos os geiínros, precisos pa-
ra as i)rinci|)ui'S noccssidaiJos f também para o rega-
lo <!Commoilos cia subsisteiieia da sua grande popida-
<;ão, não só pelo Icrtil território adjacente, ijue liea
ao norte do Tejo, como pelo da margem fronteira,
abundante em Irnetos do toda a casta, vinhos cxcel-
lentcs, lenlias, caças e outros muitos objectos que con-
correm ao consumo iinmenso da capital. A otilia-han-
da, como usualmente, nomeámos a parte ao sul do
Tejo mais directamente ojiposta á cidade, é uma das
vastíssimas «piintas de Lishioa, iim dos seus recreati-
vos passeios domingueiros, <pie ollerece a variedade
do transito pelo rio, e das excursões terra d(!ntro pelo
meio de fazi^ndas deleitosas ou pela crista das alturas
d'oiidn B(! destructam extensas e mui picturescas vis-
tas, já de pai/., já da cidade. Campeia sobre esta mar-
gem, atalaia da capital por este lado, a mui antiga
villa d(! Almada, cujo porto é ope(|ueno jogar de Ca-
cilhas. ICxtravagaules etimologias leeui alguns mar-
cado á(pu'lle nome-, o Cíirlo é ijue deriva de origem
radicaimenle arábica: ai miiiUn signilRa » niiiiu :
tal nouie proveio das minas d^oiiro <|ue iPesla banda
se expl(M'avam lUtsde tempos muito remotos, (mire
uutrus a da Adlea, lavrada já no ecuneeo da nionar-
clliu. Os árabes, grandes jirescrutadores das rii|uezas
mineralógicas, llu-deram esla denominação, <pu' com
mais icrieza procede d'a(piellas palavras do (pie da
causa (pie lhe assigna Kbu l'Mrisi, (pie escreveu pelos
annos de I Ui I ai iri.l, o (piai, lallando do eastello de
Almada, (pie sigiiilica caúrilo ilu iiiiiid, diz (pie as-
ilini se chama por causa do ouro (pie para alli acar-
reta o mar (piaiido anda l>ravo. I)\'sla asserção do
g(M)grapho árabe ornais (pie piiihi inlerirse (Mpien'!!-
(purlla praia se aili.iv^im pallielas dViiiro, como nas
VoL. 1, — Jankiiio ;í, 11I.17.
areias do Zêzere e do Alva, justificando de algum
modo a fama de aurífero, de (pie já em tempo dos
romanos gozava o Tejo: a verdadeira razão ex|)lica-a
o sábio naturalista Josí; Bonifácio de .Andrada e Sil-
va, na Memoria sobre a nova mina (Fouro da outra
banda do Tejo- — ".. . postí^riores emais miúdas ob-
s(?rvaç-(~)es me tem ('onvencido que este ouro não vem
de f(íra, mas S(> acha mais ou menos disseminado nas
formaçiles alluviaes d'a(pielle terreno, o (piai foi for-
mado das ruinas e detritos de montes e vieiros auri-
f(!ros, ou distantes ou visinhos, cpio as antigas iuun-
daçcles do oceano ou de s;raiides laiíos e rios internos
causaram em diversos tempos. K provável (pie i)elo
andar dos séculos as chuvas, peiuítraiido as camadas,
desmoronando as iiarreiras ealirindo canaesinhos, la-
vassem as lerras e ajunctass('m o ouro, eo fossem de-
pondo nos baixos e sítios mais azados da costa, onde
as ondas lavam e apuram as suas parlicnlas dissemi-
nadas, (-liierendo verilicar esta suspeita ipie tive lo-
go que pela primeira vez examinei o local e a natu-
reza da formação, mandei nu mez de abril passado
(11)15) trabalhar de novo em alguns silios Já lavr;'.-
dos no eslio aniecedente. Desde l(> de abril até (■ do
corrente mez de maio, o ouro (pie lemos recolhido
(Paípiella mina foi todo tirado das aniigas citas, (pie
o mar de novo enclic^ra revolvendo e lavando repeti-
das vezes as areias e as lerras desmortuiadas da-. I. li-
das (1.1 liarreira. Verd.ide (• (pie a camada aiirilera
cpie SC formou de novo não leni por ora mai> do (pie
uni palmo de grossura \ e o [lalino cubico so rende
um grão (Poiíro ', todavia, em Ires semanas em ipie
se não poude abrir em sitio virgem calas mais ren-
dosas, pela falia de agua e ouiros embara(;os locai"»
(pie já cslào vencido», deu esta scgund.i colheil.i 116
138
O PANORAMA.
oitavas, ou 6 marcos e4 onças deexcellente ouro em
pó o amalgamado. — Assim, se por um lado as ondas
do mar ombravecido sobre a immensa praia di^sabri-
gada contrariam muitas vezes nossos trabalhos miiie-
raes, por outro »' o oceano ao mesmo tempo um va-
lentissiino e excellente operário, que ajiineta edepo-
sita as fagulhas sem conto do ouro derramado, e as
lava e apura sobre as rampa» da praia, que lhe ser-
vem enfão de o])timo bolincte ou lavadouro de con-
centra(;ão, quando aelia base firme, ijual é o salão ou
greda já descri|)ta. » — Todo o contexto d'esta Me-
moria é d(! muita curiosidade e iiislrucrão.
Ocastello de Almada é, como vimos, do tempo do
dominio sarraceiu) •, contam porém os nossos historia-
dores que a villa foi povoada por cavalleiros iniçiezes
que vieram a este reino na armada do norte de Gui-
lherme da Longa-Espada, e auxiliaram eomseuseom-
panheiros o nosso primeiro rei na c(mquista de Lis-
l)0a. No tomo 3." da Monaichia Litúlana vê-se ap-
proveifada esta circuinstaneia para crear uma falsa
etjniologia do nome da villa. Teve seu primeiro fo-
ral d'elrei D. Sancho I, que d^ella fez doação aos ca-
valleiros da ordem de Santiago, pehis annos de l l!i7 :
elrci D. Diniz a incorporou na coroa, dando em tro-
ca áquella ordem as villas de Almodovar e Ourique
cin Alemtejo, com os castellos de Marachique e Al-
jezur. E do notar que, no regimen absoluto, era a
única villa que a coroa tinha no Ribatejo, pelo que
ainda nomeado do século passado constituiu eom seu
termo comarca de per si, separada das que então
eram confinantes, Azeitão e Setúbal (l). Segundo se
lê na Geographia de Kego, tom. 1.° pag. 176 ■, jkjs-
toriormente o provedor e ouvidor de Setúbal era con-
junctamcnfe corregedor d'Alniada, não entrando es-
ta villa na provedoria, que abrangia vinte villas: a
correição d' Almada comprehendia também as de Azei-
tão, Lavradio, Moita, Çamora Corrêa, S. Thiago de
Cacem, Cezimbra e Torrão. Oextincto logar de juiz
de fora foi ereado em 18ii6.
Na mui levantada eminência, fora da villa, d on-
de se avista um magestosfi ampliith('atro de edifícios
da capital, tendo na raiz o Tejo aninuulo pelo nujvi-
mcnto marítimo, está assentado o convento da invo-
cação de S. 1'aulo, que foi da ordem dominicana,
fundaç.ão do muito lettrailo padre Fr. Francisco Fo-
reiro, confessor dos reis D. Jo.ão III e U. Sebastião.
A distancia de uma légua da villa ficava também o
convento de religiosos de S. l'aulo eremita, com o
titulo d(! Nossa Senhora da liosa, e o mencionámos
porque diz o padre Carvalho em sua Corographia que
na cerca ha uma fonte de aguas salutiferas para cu-
rar a lepra, e assim o cita o doutor Fonseca Henri-
<pies no AquiUgio Medicinal. Ksfe ultimo auclor tam-
bém refere que a fonte do Alfeite, chamada a IJiqui-
nha, é excellente para os achaques ài: pedra c areias
da bexiga, e que por isso era de varias pessoas de fo-
ra procurada : já o mesmo se lia na Descripção de
Purtiignl de Nunes do Lião. A bem conhecida Fon-
te da Pipa, á beira do Tejo, é notável pela copia d^a-
gua, pcrenne em todos os tempos, fornecendo provi-
mento fácil d(!agu.adas aos numerosos navios que de-
mandam o porto de Lislíoa.
Foi n.ilural (PAlmada o nosso escriptor Diogo de
Paiva d',\ndradc sobrinho, distincto em poesia lati-
na, obras moraes, e critica histórica.
OtTereeemos uma vista da ]>equenina abra ou ca-
lheta do log.ir de Cacilhas, tomada do barco de vapor
ipie |)ara alli faz constante carreira diária. Seja-nos
permillida, poresta oocasi.ão, uma breve observação ;,
— toda:i as gravuras que temos estampado nVsta se-
gunda epoeha do Panorama são do buril do Sr. Bap-
tista Coelho sobre desenhos do Sr. Bordalo Pinheiro,
aosquaes o publico já tem feito em seus elogios a me-
recida justiça pelos bera acabados trabalhos que iUus-
traram muitas paginas das primeiras series do jor-
nal: repetimos, todas estas gravuras são devidas áqnel-
les senhores, posto que muitas sejam copias de desenho*
de jornaes, e outras obras estranseiras — nenhuma
procede de cliché vindo de fora, e os origioaes em
madeira podem vêr-se na typographia onde imprimi-
mos. Porém a que vai na frente d'este numero éobra
de uin jovcn, assaz digno de louvor pela sua appli-
cação ; revela porém certa falta de estalo de gravar
e de certa animação, se nos é licito cxprimir-nos as-
sim, que á primeira vista não apparece nas outras,
para asquaes pôde esta servir de termo de compara-
ção : também n'este ramo ha eschola, c eschola mo-
derna com seu estvio,- mimo e perfeição particulares;
ojoven artista dá esperanças de que poderá bem apro-
veitar-se d'ella.
COLOMBA.
Romance da Curseya.
(I) Dicc. (lo p.idrc Canloso verbo .\\mni\n.
Ma |>er far la lo ri^ndetli,
Puvcra, orfaiia. zitella,
Seoza cugini carnali ! —
Sta si|;iira, vasta aoche eita.
Lament. funei. de Xialo.
Nos princípios d'outubro de 181», o coronel irlan-
dez sir Thoinaz Nevil apeava-se á porta da hospeda-
ria Beauveau em Marselha, recolheiído-se algum tan-
to desgostoso da sua clássica peregrinação á Itália.
Acompanhava-o miss Lidia, lilha única, devorada da
romântica ambição dese distinguir pela mais pura e
requintada originalidade de opinião ede critica. Tiv
dos ajoelhavam ás maravilhas do jardim de N irgilio;
ella, para se singulariíar, adoptando adivisa doanii-
go velho Horácio, o rtií admirai i, passou a>m um sor-
riso sceptico, ou frio, pelos maiores monumentos, ou
pelas mais gabadas paizíigens. O quadro da Tranifi-
guração condemnado por medíocre, e as erupções do
Nesuvio assemelhadas aos crassos fogaréus das chami-
nés de Birmingham pintavam o dissabor com que a
bella viajante voltava da romaria ao Capitólio e ao
Campo sancto. u.\ Itália, coitada! dizia miss Lidia.
tinha o insanável defeito de ser desmaiada, uc lhe
faltar a còr local . . .n (Aue horror !
A formosa lad y saíra de lAindres ci>m a lirme ten-
ç.ão de descobrir além dos .\lpes antiguidades nov.as,
para Asna chegada alegrar os seus doutos compatrio-
f.^ís. Aquelles dedos atilados, mimosos, ciir de rosa,
]K>r força queriam tirar das cinr.is dosst>culos «ni ob-
jecto raro e admirável. \ ãos desejos ! Antes d'ella.
n.as suas excursuc-s scientilicos, os sábios tinham atti
pelado o pó das urnas cinerarias. Debalde procurou
os thcsouros desconhet-idos da p;itria de Ces.ir:, a in-
gratíi fortuna, voltando-lhe as costas, nem um des-
presivel púcaro de barro das olarias etruscas lhe con-
invlcu para se comwlar de tant.i f.idiga inútil- Real-
mente era atri«. Indigu.ula d'estes reveles a liella Li-
dia revoltou-sc contra a Itália c p;issou jiara a opiKv
sição.
Mas o peior de tndo foi vir desfeita na própria
hospedaria a única illus.ío da sua viagem. Lm deli-
cado eslxicefo da porta pelagici ou evdope de Segni,
tirado iK)r ella, ctraxido com todo o cuidado na per-
o PANORAMA.
139
suasão de <]Ue escapara ao olho voraz dos pintores,
a[)]iarccL-lli(,' de nqienle no álbum de ludy Francis
FeuwicU, L-nlre uui soneto coxo e uma flor sccca ; 11-
luniiuada, para maior opprobiio, a maldicta porta
cyclope, ooiu a mais barbara prodigalidade de ròxo-
terra ! . . . Miss Lídia deu o seu esboceto de presen-
te á criada grave, e jurou ódio eterno á Itália e a
todos os portaes pelágicos.
Com este ódio eonimuiigava sinceramente o coro-
nel, (jue depois da morte da esposa via só pelos olhos
<1(! miss Jiidia. A Itália tinha desgostado sua filha,
e este gravíssimo crime, na sua opinião, tornava-a
uma terra aborrecida. Dasestatuas efjuadros não di-
zia nada o bom do irlaudezi não eram do seu arado:,
ma» da caça sabia iallar, e por este lado o paiz esta-
va uma desgraça. Dez léguas á torreira do sol nos
cam|)Os de Uoma para matar só duas magras perdi-
zes !
No dia seguinte ao da sua chegada a Marselha
convidou para jantar o capitão EUis, seu antigo aju-
ilante. Ellis tinha ido passar seis semanas á Córsega,
e contou amissLidia com a verdadeira cur lovul uma
historia de salieadores, magnifica por desdizer de
«juautas ella ouvira da estrada de Koma a Napoies. A
sobremesa os dois militares, entretidos com as mo-
destas i;arral'as de liordéus, conversaram de caça, e
o coronel, como amador, enthusiasmou-sesaljendo que
a Córsega era o paraizo dos caçadores, ])ela .ibundan-
cia e variedade das peças. Ao chá o capilão tornou
a arrebatar Lid ia com a historia dasvendettas trans-
versais, e acabou de a endoudecer pela Córsega des-
crevendo o agreste e selvagem de uma terra, sem
igual pela natureza, caracter dos habitantes, e costu-
mes primitivos da sociedade. Finalm(!nte depirz-lhe
aos pés iiia eiliUte, punhal pouco notável pelalorma,
i/ias curioso pela origem. O capitão Jillis tinha com-
prado esta raridade a um salteador, e podia assegu-
rar <|ue varara o peito de (juatro homens. Abella la-
dy j)assou-o no cinto, pô-lo sobre o toucador, e antes
de se licitar examinou-o umas poucas de vezes. Oco-
ron<-l siadiava, eiitrelanio, que disparando sobre um
javali monstruoso voltava com três cargas de perdizes
o veados.
Ao almoço o pai ea filha estavam s<js. u EUis dis-
sc--me que ha excellenie car-a na Córsega — se fosse
mais |)rrto queria ir lá passar uns quinze dias. »
— i. E por que não ? respondeu ella. Em quanto
caçar, eu desenho. Sabe (jue estimava bem ter o gos-
to d(í ciq)iar no meu allnim a gruía aonde EUis no»
disse que IJuoiiaparle costumava aprender as lições
quando era criança?»'
\'r\n primeira vez approvava sua fdha sem diseufc-
)>ão um prciji'eto iPelle. O coronel, inliTiuruuíute li-
sonjeado, opp<iz algumas diividasconjtudo [)ara a con-
lirmar mais na primi.ira resolução:, encarecendo as
diliicuhhuUíH de viajar uma seidiora poi; aquella ilha
tão pouco hospitaleira. Ella, pelo contrario, tudo via
íiicii e risonho, N'aquellu instante linha animo para ir
nté áAhia Menor de romaria. ]\eidnima ingleza via-
jara ain<la na Córsega, e a formosa la<ly exaltava-»e
figur:indn-se a admiração de todo o Sainl-Janies^s-
l*lace quando ella mostrasse u seu álbum, tt Minha
querlila, qu<: pintura é essa tão bonita ? INão pusse a
folha, deixe vi^r ! n — "Isto não é na<la ; é só o esbo-
ço do famoso salteador corso, (|uir nos serviu dt» guia
quando lá tomos." — uAIi! enlào esleve na Córse-
ga .'..."
Não liavi.i ainda carreira de barcos de v:ipor da
Fr;inça para a ( 'orsega ; e o coronel tanto buscou até
H»!' desenbriíi um hiale com duas c:imaras soUriveis.
O meshe einbari'ou os viveres, jur:inilo pela sua ul-
m:i, ipie linha abordo \iiu marinheiro capaz de fazer
um timbale de rouxinoes digno de o comer o sultão
dos turcos. Deu certos o vento e o mar, e o inglez
para obsequiar sua filha estipulou que não queria
mais passageiros, e determinava costear a ilha de
lúrma que avista abraçasse as picturescas montanhas.
Assim arranjadas as cousas, os viajantes esjjeravani
com impaciência pelo dia da partida.
Luziu a final o dia da partida. Embarcaram de
manhã, porque o hiate havia de dar á vela sobre a
tarde. O coronel andava passeando c<jm sua filha no
convez quando o mestre veio pedir-llie licença para
receber a lx>rdo um parente seu, bisneto de um pri-
mo arredado. — .1 Bello rapaz, disse o capitão Mattei,
é ollicial de caçadores, e hoje estava brigadeiro se
aquelle que foi para a ilha não deixasse de ser im-
perador. "
— 11 Como é militar . , . " respondeu o coronel,' e
ia já conceder a licença accrescentando «pode vir
c-ouinosco, " se miss Lidia não interrompesse em in-
glez :
— "Um official d'infantcria . . . vai enjoar talvci,
e ahi fica perdido todo o divertimento da nossa tra-
vessia !
O mestre do hiate, ainda que entendesse raal o in-
glez, sempre percebeu que a senhora recusava ; enão
era precLso tanto para elle entoar a ladainha das vir-
tudes civis e militares do seu parente. Jurou que era
pessoa muito de bem, de uma antiga familia de ca-
hos cie ijuerra ; affirmando que o coronel podia estar
certo de que não o incomraodaria ; havia d'aboleta-
lo em sitio oiule nem sequer lhe pozessem os olhos cm
cima. "
O coronel e sua filha admiraram-s<! muito de que
na Córsega existisse de direito hereditário o posto de
cabo de guerra, que ambos traduziam ))or cabo d es-
(juadra ; mas como setractava d'um ollicial subalter-
no, perderam a repugnância de o adniittir; a quali-
dade não lhe dava largas a intrometter-se no seu
tracto, e por isso estavam dispensados de conviver.
— «O seu parente cnjAa?" perguntou miss Nevil.
— 41 Enjoar elle! Aquillo é de cal e areia."
— "Então deixe-o vir."
— " l*óde vir," repetiu o coronel continuando o
seu passeio com a lentidão solemne de um veterano.
As cinco horas da tarde, ao subir á tolda para vêr
largar oliiale já acharam de pé, á entrada da cama-
rá do capitão, um mancebo esbi^lto e elegante. \ es-
tia a sobrecasaca militar alK)toada ate acima i a côr
era moreiui, e olhos pretos, brilhantes, bem r:isgados
.•ininiavam-se de alegria natural, aimhi (jue um tan-
to irónica. Apenas o coronel se ap|)roxiinou, ojoxeii
militar, cortejando-o, agradeceu-lhe com polidez o
obsequio de (jue lhe estava credor.
— uNão vai nada, meu rapaz; o ipie estimei foi
ser-lhe útil ! " re|)licou o antigo ollicial.
— "O tal inglez é sem cerenionia, meu amigo,"
disse o mancrebo em italiano |)ara o mestre. Este poz
o dedo no olho esquerdo, e franziu os cantos da boc-
ea. Glueria dizer n'esla admirável mimica, que o in-
glez percebia o italiano, e tinha a cabeça um pouco
<lesconcert;ida. Entretanto o coronel convers:indo com
a filha iu>lava, ipie os soldados francezes tinham gar-
bo', ])or isso é Ião fácil lazer d'elles bons olficiaes.
Concluiu sorvendo o.seu rap'-. Depois \oltaiido-»e pii-
rii o objecto das suas observações pergnntou-Hie em
francei :
— "Em t|ue regimento .serviu .' ••
Comprimindo um sorriso irónico e IoimuiIo no co-
tovell(i ao bisneto do seu (piarlo primo, o mancebo
respondeu, ipie noseptimoile inl.mtiTia ligeira.
— .. Ah! eate\e então em V^ atrrloo f IMuito moço
havia de ser. 11
140
O PANORAMA.
— «Foi a minha primeira campanha."
— "Pois olhe rjiie valeu [)or duas."
O seu interlocutor mordeu os beiços sem replicar.
— "Meu pai, disse em inglez miss Lídia, pergun-
te-lhe se os corsos admiram muito Uuonaparle. "
Antes do coronel traduzir a pergunta, o mancebo
respondia em bom in;;l(z :
— "Minha senhora, sabe que é muito raro ser
quahjuer propheta na sua t(!rra. Os compatriotas de
Napoleão teem por elle menos enthusiasmo que os
francezes. Mas eu, apesar da rixa antiga das nossas
familias, é que o estimo e admiro como ao maior ca-
pitão do nosso tempo. "
— u Vem com licença de seis raezes ? >» atalhou lo-
go o in!;lez.
— "Não, coronel. Volto á pátria tão liçeiro de ba-
gagem como desoldo, assim reza uma cantiga corsa. «
E suspirou pondo a vista no céu.
O coronel melteu a mão no bolso; pegou em meia
peça, e preludiando por uma vagarosa pitada, em ar
de riso exclamou : "Sabe que mais? também a mim
me desligaram. Tome lá, cabo fraucez, é para com-
prar tabaco ..."
O mancebo endireitou-se de um repellão ao sentir
nos dedos o ouro. í>s olhos fuzilaram i ia rebentar to-
da a sua indignação ; mas de repente outra idéa, apla-
cando os Ímpetos da cholera, mostrou-lhe esta scena
por um lado tão cómico que, apertando as ilhargas,
desatou ás risadas.
O coronel com a meia peoa na mão estava diante
d'elle extático o boqui-aberlo.
— " O coronel ha de perdoar, advertiu emfim o
mancebo, quando o riso passou, se me atrevo a re-
commendar-lhe duas cousas-, a primeira é que não
ofteroça dinheiro a um corso : dos meus compatriotas
conheço oa algum capaz de Ih^o atirar á cara ; a se-
gunda que não honre ninguém de títulos que não são
seus. Vejo que teimou em me chamar cabo d^esqua-
dra, e eu servi no exercito como tenente de linha.
A diíferença é verdade que não 6 grande; porém o
amor que tenho á banda ..."
— "Tenente! exclamou sirThomaz Nevil ; tenen-
te! mas o mestre disse-me que o senhor era cabo d'es-
quadra, como seu pai, seu av6, eloda a sua familia;
não posso entender ..."
O tenente tornou a recair nas suas estrondosas ri-
sadas, econi tanta vontade ria, qued'esta vez os dois
marinheiros romperam era coro. Oinglez, espantado,
lazia caretas amargosas vendo este accesso de hilari-
dade.
— " Gk,ueira perdoar, coronel, se me rio assim d'uni
i.-quivoco verdadeiramente singular — só agora o per-
cebi. A minha íamilia ufanava-se decontur uma lon-
ga serie do cahas entre os seus p.issados, mas são ca-
bos sem divisas no braço. No aiino de 1 100 revolta-
ram-se muitas communas contra a tyrannia dos se-
nhores montaidiezi^, e escolheram capitães a ipie se
deu o nome de cahos. E uma honra na Córsega des-
cender d'esses antigos tribunos. "
— "Desculpe, exclamou o coronel ■, queira perdoar
o meu engano. Bem vê quo não tinha a menor ten-
ção de o ofli;ndi>r. "
E cslendia-lhe a m.ão.
— "Eu é (pie peçx) desculpa; mereci este equivo-
co por meu orgulho de rapaz, respondeu o moco ofli-
cial rindo e apertando a mão do inglez. O meu ami-
go Mattei não me soube appresentar, já vejo; c não
ha remédio sen.ão faze-lo eu. Sou Orso delia Rcbia,
tenente desligado do exercito francez ; cse estes caos
d(! boa raça não mentem, o coronel deve for o vicio
da caça : já d'a<|ui me oITeroço para lhe ensinar to-
dos os passos das nossas montanhas ... se me não es-
queceram já, também, a mim , " accrescentou suspi-
rando.
SirThomaz convidou-o para cear, repetindo as suas
desculpas. Miss Lidia não se oppoz, notando no seu
hospede um certo ar aristocrático. Só o que lhe des-
agradava n'elle eram maneiras rasgadas de mais, e
uma alegria imprópria do melancbolico t^-po dos he-
roes de romance.
A mesa o coronel, tocando o copo de vinho da Ma-
deira no vidro do do seu commen^al, exclamou : —
"Tenente delia Rebia, vi em Hespanha muitos cfim-
pafriotas seus . . . que excellente infanteria d'atira-
dores ! ",
— "E verdade, lá ficaram bastantes n replicou o
mancelx) com tristeza.
— "Nunca me esíiueceu o valor d'um batalhão
corso na batalha de \ ictoria ; esteve estendido em
atiradores nos jardins todo o dia ; quando tocou a
retirar cuidámos que, apanhando-o na planície, che-
gava emfim a nossa vez . . . qual desforra I Forma-
ram quadrado, e fosse lá ô diabo rompe-lo. No meio
d'elles andava um official montado n'ura cavallo pre-
to; firme no angulo do quadrado a fumar com tanto
socego como se estivtísse tomando café n'um bote-
quim. Deitei-lhe um, depois outro, três esquadrões;
e nada. Os meus dragões fizeram dois meia volta, e
a maldicta musica dos corsos a assoprar, âuando le-
vantou o fumo, vi no mesmo angulo o official do ca-
vallo preto chupando no eterno cigarro. Desesperei,
e puz-mc á frente da ultima carga. A pólvora tinha-
se-lhe acabado, m.as os soldados, sobre seis fihis, apon-
tavam-nos as baionetas. Era um muro de ferro. Gri-
tei, amaldiçoei, e choguei as esporas ao cavallo para
puxar os dragões ; tudo debalde. Então o official ti-
rou o cigarro da boeca, e mostrou-mc com o dedo a
um dos seus, dizendo: Al capello bianco. Eu trazia
penacho branco. Não ouvi mais nada. Zuz ! veio
uma baila, e varou-me o peito. Glue l)afalhão aquelle,
decimo oitavo de ligeiros corsos, Sr. delia Rebia ! -
— "Era firme, era; respondeu Orso, ao qual os
olhos brilharam com viveza. Sustentou a retirada e
salvou a águia. Mas quasi a metade lá dorme hoje
nos campos de ^ ictoria. "
— "Por acasj saberá o nome do coraraandante ? «
— " Pois não sei ! . . . era meu pai . . . Ganhou
n'esse dia as dragonos de coronel. "
— "Seu pai! . . . com mil demónios, juro-lhe que
não se pode ser mais valente. Ainda agora o conhe-
cia, se o visse . . . ??
— " As suas campanhas estão acabadas" retrucou
Orso fazendi>-se pallido.
— " Morreu em NNaterloo ? •••
— "Não, coronel, escapou de lá para ir . . . expi-
rar á Córsega . . . haxorá dois aimos . . . Ji-sus I que
lindo mar. Ha dez annos que n.ão via o Mixlitcrra-
neo. Não lhe parece mais bello do que o tíceano. mi-
nha senhora .' "
— "E muito azul . . . e domais as ond.is não tetuu
magestade. "
— " Como gosta do sitios alpestres, já lhe assegu-
ro que ha de gostar muito da Córsega."
Miss Lidia despodiu-sc do seu pai, cumprimentou
Orso com uma cortozia solemne o rofirou-s*-. Os dois
I ficaram conversando de caçadas e do guerras. Soube-
I ram que em \N atcrliKi estavam fronte a fronte. A
I harmonia ainda se augmontou mais entro cUos. Cri-
I licaram Napoleão, \N oUington o líluchor. traçaram
i o plano d'uma caç.nda de javalis, o tendo ach.ido o
j fundo ás corpolontas garrafas, separaram-*o mutua-
I monte satisfeitos d\iquella amiiado. encetada de '.iiu
mo<.lo tão ridículo.
o PANORAMA.
141
ESTATUA Di: S. VICENTE DE PAUIiO.
A PUECEDKNTK p;ravur;i <! um transuinpto da esta-
tua de S. Vi(,-i'iito (l<' l'iiiil(), foita por Mr. Rangi
para a igreja da lMap;(la!í'na oui l'aris. Alilíreviarc-
iiios aqui a r<!la(;ão da viila dc! mu varão saneio, bra-
são ('■> clirisliatiisnio c da iiunianidadí;.
Guillicriiio l'aulo <• sua mullicr I!i rlrauda habila-
vauí n'uiu logarcjo da fr<'L;iii.'ZÍa de l'ouy (1), diocese
de Acqs, para a ])arte do» JVreiíuéus : lodos os seus
heiís constavam de umas l)arraeas, <? tli; algumas
eouridas (|ii(? ellcs uiírsmos cullivavain. Tiveram seis
fdhos, d(jis d'elles rapazes : o terceiro na ordem do
iiascinuMito foi Vicí.-ute de l'aulo, ((iio nasceu a 24
«Paliril dl! 1.57(i. Até a idade de doze annos, Vicen-
1;e aeom[>anliou o tral>aliio da raniilia guardando o
gado: d'essa idade o mandou seu pai (estudar com os
Iraneiscanos de Acijs, e as lelizes disposiç^õcs que mos-
trou deram azo a ipie altendessem por elle. ]^ara o
diante um magistrado di> l'<iMy llur eonliou a (educa-
ção de seus lillios:, c o encargo de prec(.'ptor não ar-
redou o maji<'el>o da applicação ao esluilo. Tendo
aprendido dr- seus mestres (piauto lhe podiam ensi-
nar, loi prí)curar instru<(;ão maior á universidade de
Saragoç^a, e depois a Tolosa onde <'ur»ou sete annos
<1(! Iheologia e ali'aneou o grau de hadiarel, que en-
tão não era iacilmente <<Miec!di(lo. l'ara ol)ler o ca-
(Míllo d(! doutor (!ra tn-C{'ssario expli<'ar pulilieamente
as sagradas leltras ou o mestre das senliMiças ; não
está ÍKím averiguado seVicenli; teve maior grau que
o de liacíliarel •, mas, emlim, a pijuea and>i(;ào (pie a
este respeito mostraria nada prova contra o s(!u sa-
lier, «pie par(;ee ler sido solido e surii(i(nt(uuent(! di-
latado.
Aos art (i(! setendiro de ICdd reeelieu as idtimas
ordens:, e a idéa de dizer a missa nova Uw causou
um lenior (pie pareci.i .espanto:, não se aeluui com
animo de ('eii'l>rar em pulilieo uni aehi que liiilia por
(1) Vlil.
arli^i) «ulire iiH l.iiiiclrs iii linc |iiil;. .')().
tão serio: a tradição refere que buscou ura sitio apar-
tado e solitário, onde celebrou a primeira vez, seni
mais testimunhas que um sacerdote para lhe assistir
e ura sacristão para ajudar, n^uma ermida da ^ ir-
gem, no cimo d'um monte entre maltas.
Passado algum tempo Vicente de Paulo passou-se
a Marselha para receber uma quantia que lhe de-
viam. Chegada a occasião de voltar a Tolosa por ter-
ra como intentava, um lidalgo do Languedoc, com
quem morava, o resolveu a tomar a via niaritima
para Narbonna : era no mez de julho, boa a estação,
e contavam chegar n'essa mesma tarde:, mas não
aconUiceU' assim. Vicente de Paulo deixou uma rela-
ção dos accidentes verdadeiramente românticos d'es-
ta viagem, em uma carta que foi achada cincoenta
annos depois, e que elle tivera tenção de supprimir.
"Embarquei-me (diz) para Narbonna, afira de ir
mais depressa e poupar, ou, mais exactamente, para
não chegar lá e perder tudo. O vento era tão favo-
rável quanto bastava para nos levar a Narbonna no
mesmo dia (cincoenta léguas de caminho) se Deus
não tivesse permittido que três bergautins turcos que
costeavam o golpho de L\ ão para apanhar as barcas
que vinham de Beaucaire, onde se fazia uma feira
que se reputa das mais excellentes da christandade,
portassem sobre nós e nos atacassem tão vivamente
que, mortos dois ou três e feridos todos os mais o
lambem eu de uma frechada que me servirá de re-
pertório toda a vida, tivéssemos de nos render áquel-
les traidores. Os primeiros Ímpetos da sua raiva fo-
ram cortar o nosso piloto em mil boccados, por terem
perdido um dos seus principaes afora quatro ou cin-
co forçados que os nossos lhes malarani : feito isto
nos acorrentaram, e depois de nos terem curado tos-
camenlcy proseguiram na sua derrota, eommellendo
mil roubos, dando todavia liberdade aos (pie se ren-
diam sem coml)ate, mas depois de os lerem rouba-
do. A linal, carregados de fazendas, ao cabo de sete
ou oito dias tomaram o rumo de 15(!rberia, covil e
espelunca de ladr<ies sem auctoridade do grão turco •,
chegados alli, nos expozeram á venda, com um auto
da nossa captura, qui- diziam feita a bordo de um
navio hespanhol ■, porque, se não fira esta mentira,
seriamos libertados jielo cônsul (pie o rei tem n'aquel-
le logar para tornar livre o commercio dos francezes :
o seu proceder para a nossa venda foi, depois de nos
terem despojado, dar a cadaiim um par de ceroulas,
uma fardeta de linho com iim barrete, e passear-llos
pela cidade de Tunes, ond(! vieram de propósito pa-
ra nos vender. Tendo-nos feito dar cinco ou seis vol-
tas por Ioda a cidaih; em redondo, de corrente ao
pescoço, nos reconduziram á barca para que os mer-
cadores podessem vir alli presenciar (jual comia bem
e (piai não, e para lhes mostrar (pie os nossos feri-
nneiitos não eram mortaes. Acabado isto, nos torna-
ram a levar á praça onde os mercadores nos vieram
examinar inleiramente como se faz para a compra
de uni cavallo ou de um boi, fazendo-nos abrir a Ihh'-
ea ]>ara verem os dentes, apalpando as costellas, son-
dando as feridas, fazendo-nos caminhar a passo, tro-
tar (! correr, e depois hevantar pezos e luelar para
conhecer a força de eadauin ; (! outras mil castas di'
brutalidades. Ku fui vendido a um pescador, (pie
foi obrigado a dcsfazer-sc logo de mim, por(pie nada
me «! tão contrario como o mar; passou-me ii um
velho, iiK^dico espagirico, solierano manipulador dc
ipiiiilas essências, liomem muito hiiinaiio e Iracl.iM^I,
o ipiat, segundo elle próprio me dis^e, linha Iraba
Ihado o espaço de ciiicoeula annos em pesquiza da
pildra pbilosoplial : esliniava-nie miiilo, e gosta\a de
me ciinvi'i's;ir sobre a alchíniia, e ilrpois sobre a sua
lei, a qual miiilo diligenciava alliaiiir-me, proinel-
142
O PANORAMA.
fondo-me bastantes riquezas e toda a sua sciencia.
Deus mo inspirou sempre uma confiança de livra-
mento pelas assiduas ora(-ões f|iie lhe eu fazia, e á
Virgem Maria, só pela intercessão da fjual eu creio
ter sido lilwrtado. Estive, pois, com atjuelle velho
desde setembro de 1601 até agosto de IfiOU, em que
foi eml)art;ado e levado ao grão sultão para traba-
lhar com elle^ mas debalde, porque morreu de pena
MO caminho. Heixou-me a um sou s<jbrinho, verda-
deiro aiitroporaorphita, que me vendeu logo depois
tia morto de seu tio, [x)rque ouviu dizer o como M.
de Breves, embaixador do rei na Tur<juia, vinha
com válidas e expressas cartas do grão turco para
restaurar todos os escravos christãos; um arrenegado
de Nice na Sabóia, inimigo natural, me comprou e
levou para o seu temar, que assim se chama a pro-
priedade que qualquer tem como rendeiro do grão
senhor i porque alli o povo nada possue, tudo é do
sultão. O tomar d'aquelle era na serra, onde o paiz
é extremamente cálido e deserto. Uma das três mu-
lheres d'eHe era grega christã, mas scismatica ; ou-
tra era turca que serviu de instrumento á iminonsa
misericoriiia de Deus para tirar seu marido da apos-
tasia e torna-lo ao grémio da igreja, e a mira re-
mir-me da escravidão. Como era curiosa de saljer o
nosso modo de viver, vinha todos os dias aos campos
onde eu cavava, e n'um dia me ordenou que can-
tasse os louvores do meu Deus. A lembrança do —
"Como cantaremos nós elii terra estranha?.. .»:> —
dos liliios de Israel captivos em Uab^lonia, me fez
começar com as lagrimas nos olhos pelo psalnjo Su-
per Rumina liahyíonis, depois a Salve rainha, de-
pois outras muitas cousas; no que cila tomava tanto
recreio que era maravilha ; não deixou de dizer a
seu marido á tarde que não tivera razão em abando-
nar a sua religião, que ella julgava extremamente
boa, segundo uma informação que lhe eu dera do
nosso Deus, eos louvores que eu cantara na presença
d^ella •, no que dizia ter experimentado uma satisfa-
ção tal que o paraizo de seus pais, o que ella espera-
va, não julgava tão glorioso, nem acompanhado de
tanta alegria, como o contentamento que linha sen-
tido em ([uanto eu louvara o meu Deus; concluindo
que n'isto havia algum prodiuiio. Ksta mulher, co-
mo outro Caipiía, ou como a burra de Balaam, tan-
to fez com o sim discorrer que seu marido no seguin-
te dia me disse que só dependia de uma opportuni-
dade o escapar-nos para Kranç-a ; mas que elle daria
tal volta que dentro em bem pouco tempo bemdiria-
mos a Deus. Ksto Ikíiu jvjuco teuipo duro^i dez uie-
zes que me elle entreteve n^esta esperança, no termo
dos quacs uos escapámos com um pequeno batel, e
nos passámos a Aguas-mortas aos 2!l de junho e logo
depois a Avinhão, onde o senhor vice legado recebeu
publicamente o renegado com as lagrimas uos oibos
e suspiros do coração. «
\'ioenl:o de P.iuío foi levado a Roma pt'!o vice le-
gado, e d^alii voltou incumbido, pelos enilvjiixadores
de Denrique IV, de uma importante commi^!^ão pa-
ra este principo. Alojou-se com uni juiz d^um pe-
queno logar chamado Sore, situado nas Landes o no
districto do parlamento de Bordéus : N icente era do
mesmo cantão, e por economia haviam tomado um
quarto, despeza ao meio. O juiz de Sore, erguendo-
.se um dia de mailrugaila, foi á cidade tractar de aJ-
gitns negiwios, e esqueci»u-se de fechar um armariu,
onde mettêra o sou dinheiro: Vicente, que se acha-
\a um tanto incomniodado do saúdo, ficou de cama
ai;iiard«nd<> (x>r um ronicdio que deviam trazor-lhe.
Chegando o olticial do boticário, e procurando um
C(qK> no armário que via aborto, .vhou o dinheiro e [
o tomou, mostrando á saída appareucia de trauquil-
lidaue. A quantia era de 400 escudos: o juiz, á vol-
ta, espantou-se de não achar o seu pecúlio: pediu-o
masoado, e depois cora grande clioler.i, a \ icente
de Paulo, que respondeu que nem o tomara, oem
vira tomar. Foi bastante para redobrar o fogo do
juiz, que rebentou sem attenções ; as raiuzuadaa cir- ,
cumstancias de V icente de Paulo, o seu silencio e I
até a sua paciência, lhe serviram de provas : expul- *
sou-o da sua companhia, e deu ás suas suspeitas, ou
antes á sua convicção, a maior publicidade. Por seis
annos carregou sobre ^ icente o pezo dVsta accusa-
ção ; a final o verdadeiro ladrão foi descoberto em
Bordéus e confessou o delicto : admirou-se então a
paciência e resignação do sacerdote-, e quanto maior
fora a injustiça para com elle, tanto mais convidava
a que o respeitassem e amassem. — Em 1610 Mar-
garida de ^ aloJs o tomou por seu capellão ordiná-
rio: o palácio d'esta princeia não ora um logar de
edificação, \ iceute conheceu que alli a sua fe vacil-
lava ; parece que o terror que experimentou des-
cobrindo o que se passaxa na sua alma foi exacta-
mente o que o decidiu áquelle grande impulso de
charidade ao qual deve o viver eternamente na me-
moria dos homens. N'uni dia que se achava todo oc-
cupado da violência da sua pena e da maneira de
lho obstar para sempre, tomou a Arme e inviolável
reíolução de consagrar toda a sua vida a bom dos
pobres. Assim que formou este generoso di-i^nio, o
seu coração gozou serena c perfeita liberdade. E
pouco depois rocolbeu-se ao domicilio de Pedro do
Berulo, fundador da congregação do Oratório. Em
seguida foi successivamente cura da parochia de Cli-
chy •, preceptor dos três filhos de Manuel Gondi, con-
de dejoigny ; ecura deChàtillon. N'esta ultima pa- j
rochia é que fundou a confraria da Charidade, que '
foi o modelo de todas as que depois se estabeleceram
em França. Diremos a razão da origem doeste insti-
tuto. ( Cunctuir-te-ha.J
Passeios i>i: Lisboa e sed termo em 1603.
Os seguintes extractos s.ão pa-sajons litteralmentc
trasladadas dos Diálogos de Luiz Mondes de \ ascon-
cellos.
"Cobre Lisboa os outeiros evalles, que já dissemos,
com as fabricas das casas e templos, dando com isto
grande comniod idade dealegre vista aos mais dos seus
moradores; ]x>rque, das mais das cas.-is. estando edi-
ficadas nas ladeiras e cumes dos montes, se vô gran-
de parte da cidade, e do seu rio. e de outras juncta-
monte com algumas hortas; jwrquo está de tal sorte
assentada esta cidade que, saindo d''ella alguns lira- i
cos nobremente povoiídos, abraçam entre siamonissi-
nios vallos, plantados de hortas, que tixlo oanno .-ile-
gram a vista, variando cm diversos tem{tc» a \crdr
hortaliç.i com que os pr.icfieos ;igricultoros cobrem a
sua terra. E.issini damaiorparto d;iscas;is se\è uma
grande machin.i de unidos edilicios. ou juncto com
isft> o iiuir ou as venlos hortas ; o se estas \ istas sâ«
alogrk^s, jul^ue-o quem o goKi. E as casais que cstSo
chegadas ao mar, do ohmIu cjue d^ellas se vecm di»-
tinctamente as grandes o pe<)uon.isemlí;irc.ições, umas
.•«ncorad.is e outr-.is n.ivejando, que coliseu, que ciic»
o que theatro com novi»* espectacuK» se lho ptide c^'m-
par.ir? . . . Pois não só tom esta varia vista, mas es-
tondendo-a mais sobre .is esp;iç\isas aguas do rio, <■»-
f,"io-se vendo da outra parte resplandecer entre osbo-
risiintes da manhã e raios do sol á t.irde as branras
casas das quii)t.-is o loirares n'olla editicadi». E não
só^ozam d'osfa aloçre o f»rmos,i vista aquolles a quem
coube porsortc viver em casas d'onde atculiam. nu^
o PANORAMA.
143
tixloc os homens que vem a esta cidade podem goiar
d'elU. indo passear aos outeiros de Nossa Senhora da
Orara, di) Carmo, doCastello, deSancta Catharina,
e dasCha<;as . . . Eáquelles que se recrearem de pas-
sear em grandes e espa^-osus praças tem a do Rocio ,
que senão sabe, em outra cidade, deoutra tamanha,
cercaila de nobres casas c grandes templos, e o Ter-
reiro do Paço, que tenho por muior, medindo desde
os Paços até os Contici, o qual tendo pela parle da
terra estas illustres e reaes fabricas dos l'ai;os e Con-
tos, tem pela do mar ordinariamente tantos navios
postos com as proas em terra, e outros ancorados, que
os mastros e antenas parecem um grande bosque de
espessas arvores. Pois o passeio deS. Roque até des-
cobrir a Boa-Vista não pode ser cousa mais agradá-
vel, vendo, depois que s(> sáe dos Moinhos de Vento,
de uma parte o valle da Annunciada cheio de hor-
tas e illustres casas até Andaluzes, e da outra a Boa-
V iíta e todo o seu mar até fora da barra : e os pas-
seios dos caminhos de Belém e de Enxobregas, para
íjuem os quizer mais largos, que cidade tem outros
inais alegres nem com melhores lins, acabando um
no sumptuosíssimo e. real mosteiro de Belém, digno
enterro dos nossos reis, e o outro na devota e saucta
casa da Madre de Deus v no religioso convento deS.
Francisco. K o passeio do mar não é inferior a ne-
nhum dos referidos ; porque olhando para a terra se
vê, não sem admiração, a grande cidade que se le-
vanta sobre as ladeiras que olham para aquella par-
te, e para o mar innumeravel quantidade de navios
e barcos fazendo outra grandíssima cidade naval, li
para que tudo seja sempre ledo, depois cpie o sol a[j-
parece S(jbre o nosso horisonte, até que (como lingeni
os po<!tas) melte o seu carro nas aguas do Oceano, não
deixa de espalhar os seus raios por cima de tixla a ci-
dade, como que a faz muito mais aJogre e deleitosa
á vista. "
" O pescado d'este rio edo mar d'esta costa de Lis-
boa é tand) e tão bom que, como cousa tão manifes-
ta, não ha que dizer senão encoramendar a quem o
quizer sal)er que passeie a Ribeira onde se vende . . .
mas j)or(|ue não se creia que uso, como os poetas, de
encarecimentos, uma sóc(^usa direi que mostrará cla-
rissimaniente que são n'isto muito cúrias as minhas
palavras, e n'ella tanilicm vereis a grandeza d'este
p)Vo. E obrigada a camará d'esta cidadt a dar ces-
tos aos p<'scadores que chegam á Rilxúra para lavar
o pescado que trazem, o os pescadores em recompen-
sa dão, sem obrigação que a isso tenham, o peseado
que <jueri'm a quem lhes dá estes cestos : encommcn-
<la a caniura isto a certos homens, os quaes dão os
cestos aos pescadores e recolhem o peixe que elles li-
vremente liics (Ião, do qual o terço é <hi camará, e
nsoutras duas partes, dos homens que teem isto aseu
cargo. A cannira importa o terço UdO.^oiio réis em
que o traz arrendado, e com o ipie fica vivem onw^
homens, ipie tantos são os (jue dão estes ciístos. n
»(>(pie chama mo» Ti-rmo de Lisboa terá |h-Io mais
comprido, ipii- c- de Tornas até (.'intra eCascacs, dez
léguas, e pelo mais largo rinio. Este circuito de fer-
ra e Ião povoado, como ja disw, sendo m.h estradas
principae» <|u.isi unia «■oiitiiiiiada ciilade. K assim pa-
rece que, ijiraiiilo fiira inuilo fértil, não |Mnle-riii al-
cançar a mais cjui- Misteiitar a muita gfiite ipu! n'es-
le liiiilti- li.iliila ; e não só faz isto, mas é Ião grande
a quantidade de cargas que entra rada dia em Lis-
boa, só d'i'ste espaço, de toda a sorte di? mantimen-
tos (jiie nrio é jMisKivel dizer iiuniiTo certo^ porque
•endo quatro lis estrailas priiieipaei por onde vem,
«pie são Kiixoliregas, Airoioi, Andaluz <■ Abaulara,
eadanma d\-ll.is, priíi('i|>aliiieiile as Ires ultimas, a
qualquer hora do dia (|ue (lor ellas se cuminhe, su vô
aestrada continuamente acompanhada dascargasque
entram e das cavalgaduras que &áem descarregadas ;
e já vi tão espessas as que entravam e as que saiam
que comparava a estrada á das formigas, da eira pa-
ra o formigueiro, edo formigueiro para a eira, umas
carregadas e outras vazias ; e não trazem um só man-
timento, mas todos os que usámos para sustento e pa-
ra regalo, trazendo trigo, cevada, \inho, azeite, hor-
taliças, fructas de toiJas as sortes e de todos os tem-
pos, leite, nata e manteiga todo o anno, cabritos,
coelhos e perdizes ; e como um perenne rio está isto
continuadamente correndo, e todjLS estas cousas vem
com tanta abundância que não só se vendem nas pra-
ças, mas as mais dVUas pelas portas, o que não ha
em nenhuma outra cidade das que se tem por abun-
dantes \ e se esta cidade não fora mais provida qu«
todas, sabendo os que as vendem que de necessidade
as haviam de ir a comprar á praça, não tomaram o
trabalho de as trazer pelas portas, etoniando-o é cou-
sa clara que a muita abundância os desconfia da ven-
da i e tem razão, para o que só direi o exemplo da
fructa de CoUares, pequeno logar d'este districto, a
qual é tanta que rende a siza d'ella um conto de réis,
que são de principal vinte e cinco mil cruzados, cou-
sa que parece incrivel • e considerando a este respei-
to as outras, bem se vê a abundância que de todas
haverá, e pelo conseguinte que d'ella procede a dili-
gencia da venda. E quem vir só o que ha de Saca-
vém até Friellas ao longo do rio, conhecerá que em
tudo o que disse da fertilidade do Termo de Lisboa
fico curto ; pois. em só uma parte, tão pequeno dis-
tricto tem cousas tão esplendidas e que melhor pro-
vem a fertilidade ^ porque aqui se vê um deleitoso e
útil rio navegável em lodo este espaço, que regando
de uma parte ferieis vallcs, da outra faz copiosas raa-
riiilias i e pela terra da parte de Sacavém ha taiitos
logares, quintas, vinhas, pomares, e outras muitas
férteis e deleitosas propriedades que excedem não só
a capacidade dVsle pe<|ueno districto, mas á de ou-
tro muito maior •, e considerando isto, vejo que não
tem tanta o tempo nem a minha lingua que possa
explicar a largueza com que Deus beneficiou a todo
o Termo d'esla cidade de Lisboa, pelo que o deixo.
Mas também saindo fora d'elle <jue cousa ha que
se Compare com os logares de seus campos, que do
mesmo modo são povoados e ferieis, e tanto que de
Sacavém até a Castanheira, que sãoquatro léguas, se
veeni doze logares, postos no caminho ou juncto d"el-
le, e alguns grandes e lustrosos, e todos tão abunilan-
ti?s de tudo í|uo do mesmo inodo ])roveem pelo rio a
cidade detodus as cousas necessárias, tão copiosamen-
te, que entram todos os dias n'ella, só das embarca-
ções do rio, assim d'estes logares como dos mais que
juncto aelle estão assentados, S(Mn contar asque M'm
dl' fora da barra, a roda de cento e cincoeiíla carre-
gadas de mantimentos, s«'ndo e»te um manifesto si-
gna! da grandeza ii'esla cidade:, |)orque oque trazem
estas barcas e tudo o mais que cada dia entra n'ella
se gasta, tie sorl<; qu<! é necessário haver esta conti-
nuação para ser bein pro\ida. Pois que diremos tios
leililissiinos campos qui'rega oT<jo, creados por par-
ticular l'rovidiMieia ile Deus para a grandeza dVsl.i
eidiíile, pois fora im|)ossi\el sem elles susli-ntar >e . . .
Diz Diodiiro Siciilo que loila a abundância da Índia,
ijue ogramle, procede da inuiulaçào dos rios. Do mes-
mo modo i'sles lerlili^simos campos, recebendo em si
a agua das ciulieiite.s do Tejo, se l',izom tão fecundos
i|Ue em selo seniuiias se semeia e colhe, produxiiido
Ião copiosamente (pn- eu sim colher mu lavrador ile
um moio í\i) trigo cineoenta. «
•• ( > logar onde se vendem as cousas necessárias a \ id.i
(de que Aristutvles fiu muito cuiío) eiitú na uiuis com-
144
O PANORAMA.
moda parte que pode ser ; porque (diz elle) que deve
estar em parte accommodada para com facilidade vi-
rem a ella as cousas do mar e da terra : e assim ve-
mos n'esta cidade — aRil)eira que é a praça onde se
vendem todas as cousas do comer — a Rua Nova e
Telourinho Velho, onde se acham as de veslir e fa-
7£m as almoedas — assentadas de modo que da terra
edo mar se vem a ellas cora grandíssima facilidade;
porque os que vem do mar ahi desembarcara, cos da
terra, sem subir nem descer nenhuma hideira, por
caminho chão suavemente chegam a estas partes, e
não falta a estes logares a conimod idade que Vitru-
vio n'clles considera ; porque diz elle que as cidades
marítimas devem ter a praça juncto ao porto; — e
assim estão a Ribeira, Rua Nova e Pelourinlio \ e-
Iho — ese forem dentro da terra, e apartadas domar,
que a praça se porá no meio d'ellas, para que os mo-
radores com igual commodidade se possam prover d'el-
la ; — a qual não falta a estas praças deJ^isboa, por-
que como ella é quasi em dobro mais comprida do
que larga, ficando estas praças no meio do compri-
mento estão cora pouca differença em igual distancia
dos extremos, ij — .
Os Templários.
(Continuado de paj. 134.)
Todo o auxilio que lhes proporcionou o papa, com
c[uem contavam e a quem invocavara como a Deus,
foi uma tiiuida e frouxa consulta, cm que intentou
interpretar a palavra relapío, no caso que se quizes-
se applicar este nome áquellcs que se tivessem re-
tractado de suas confissões. — "Parece, de algum
modo, contrario á razão julgar tacs homens como re-
lapsos. Em cousas semelhantes duvidosas é necessário
restringir e moderar as penas." — Os commissarios
pontifícios não se atreveram a fazer que prevalecesse
<?sta consulta : responderam, no domingo pela tarde,
«pie sentiam grande compaixão para com os defenso-
res da ordem e os outros irmãos ; mas que o negocio
de que tractavain o arcebispo de Sens e seus suffra-
ganeos não era o que incumbia a elles commissarios ■,
que í'llfcs não sabiam o que se passava n'aquellc con-
cilio; que se a commissão estava auctorisada pela
sancta sé, também o arcebispo de Sens o estava ; que
ella não tinha poder sobre aquelle ; que não viam a
primeira fista de que fazer objecção ao dicto arce-
bispo; que comtudo pensariam. — Em quanto os
commissarios pensavam no caso, tiveram noticia de
que eincoenta e quatro templários iam ser queima-
<Íos : fúrá sufficiente um <lia para esclarecer o arce-
bispo de Sens e os seus sutlragancos Sigamos passo
a passo a narração dos notários da commissão ponti-
fícia na sua terrível simplicidade.
«Na segunda feira 12, durante o interrogatório
de Fr. João Bertaud, cheirou ao conhecimento dos
oommissanos (pie eincoenta e quatro templários iam
ser queimados. Encarregaram o prioste de 1'oitiers e
i> arcediago de Orléans de dizerem ao arcebis[K> de
Sens e a seus suffraganeos que deliberassem com ma-
dureza c deferissem a sentença, visto que os freires
mortos na prisão tinham affirin.ado, segundo se di-
zia, sobre a sua salvação, «jue eram accusados sendo
iiuiocentes : que se a execução tivesse logar, iin|x'<li-
ria os commissarios de fazerem o seu officio, estando
os accusados por tal modo horrorisados que pareciam
])erdiili)s (lo juizo. Além d'isso. um dos mesmos eoin-
iiiissarios incumbiu-os de signilicar ao arcebispo que
Fr. Rajuialdo de Pruin, Pedro de Boulogne, Gui-
lherme de Chamboonet e Eeltrão de Sartiges, caval*
leiros, tinham interposto certa appellação perante oS
commissarios. "
O caso era de grave questão de competência de
jurisdicção. Se o concilio e arcebispo de Sens reco-
nliecessem a validade de uma appellação dirigida á
commissão papal confessavam a superioridade d'este
tribunal ; e as iinmunidades da igreja gallicana fica-
vam lesadas. I'or outra parte, instavam sem duvida
as ordens do rei ; O mancebo Marigni, creado arce-
bispo expressamente, não tinha tempo para dispu-
tar : retirou-se para não receber os enviados da com-
missão ; depois alguém (ignora-se quem) poz duvida
que elles fallassem em nome da commissão; Marigni
duvidou também, e seguiu avante.
Os templários conduzidos no domingo ao concilio
foram julgados na segunda feira; os que confessaram
postos em lilwrdade ; os que sempre negaram encar-
cerados j)or toda a vida ; os que retractaram as con-
fissões declarados relapsos : estes últimos, em numero
de eincoenta e quatro, foram no mesmo dia exaucto-
rados pelo bisjx) de Paris e entregues ao braço secu-
lar : na terça feira foram queimados diante da porta
de St." Antão. Estes desgraçados tinham variado
nas prisões; mas não variaram oaschammas, protes-
taram até as ultimas a sua innocencia. A turba as-
sistente estava muda e como estúpida de assombro.
Quem accreditaria que a commissão poutificia te-
ria animo para reunir-se no dia seguinte, continuar
o inútil processo, e interrogar uns cm quanto quei-
mavam outros.' . . . — .iN"a terça feira, 13 de maio,
foi trazido perante os commissarios Fr. Avmerico de
Villars-le-duc, de barba rapada e lein capa nem ha-
bito do Templo, de idade, ao que dizia, de eincoen-
ta annos, tendo servido na ordem oito annos como
irmão servente e vinte como cavalleiro : os senhores
commissarios lhe explicaram os artigos sobre que de-
via ser interrogado. Mas a dieta testimunha, palli-
da e toda espantada, depondo debaixo do juramento
d'alma c dizendo que de súbito morresse elle se men-
tisse, e fosse, na presença mesmo da commissão, em
corpo e alma subvertido no inferno, ferindo o peito
com os punhos, prostrando-se de joelhos e erguendo
as mãos para o altar, declarou que todos os erros im-
putados á ordem eram de inteira falsidade, posto
que elle tivesse confessado alguns no meio dos trac-
tos a que o expozoram Guilherme de Marcillac e
Hugo de Celles, cavalleiros do rei. Accrescentava
que tendo visto levar em carroças, para serem quei-
mados, eincoenta e quatro freires da ordem, que não
tinham querido confessar os dictos erros; e tendo ou-
vido dizer que com ctVeito foram queimados, elle que
receava, se o mesmo lhe acontecesse, não ter Kistan-
te força e paciência, estava prompfo a confessar eju-
rar por temor, perante os commissarios ou qn.iesquer
outros, todos os erros assacados á ordem, e a dizer
até, se assim quizessem, <jue tinlia morto ^oao Se-
nhor Jetus Cfiriilo. . . Supplicava, e conjurava os dic-
tos commissarios, e nós notários presentes, que não
revelássemos ás justiças do rei o (|ue acabava de di-
zer, temendo, se o soulx^ssem, ser entregue ,io mes-
mo supplicio dos eincoenta e <piatro cavalleiros. Os
coinmissarios vendo o perigo que ameaçava os decla-
raiites, se elles continuassem a ouvi-los durante .nquel-
le tempo de terror, e levados também de outros mo-
tivos, restilveram sobre«star na causa ]x'r agora, t-
A commissão p.inx-e que se commovcra com est.-v
scena terrível : J>osto (pie enfraquecida p<-la deserção
do seu presidente, o aret^bispo de Narlx>nna. e do
bispo de Baveux, (]ue já não v inham .hs sessões, in-
tentou salvar, se ainda fosse tcm^Ki. os três princi-
paes defensores. { Coniinúa.)
19
O PANORAiMA.
U5
ROIISSILLON.
O ANTico condarlo do Roussillon era apenas uma
parte da exlensãi) de território que de[)ois teve esse
nome, c hoje ineorporada na Kraiira Oirnia o depar-
tamento dos Pyrennéds. Esta rej^ifio cliiimava-se em
lempos remotos reijio sardunum, verosimilmente por
causa de uma eolonia que os romanos para alii leva-
ram da Sardenlia. A cidade de itiisciíio, eolonia ro-
mana, foi a que deu nome á eomarea de que era ea-
pital, e foi n'ella ([ue os reis celtas teclosiii^os. no an-
uo íi'M> de Itoma, te ajuiii^laram para delilierar nos
meios ilc impeilir a Annilial atravessar os doininios
d'ellcs, por temor de que attenlasse contra suas liber-
dades. I'resume-se, porém, que esta cidade lòra des-
truída ou pelo n>enos assolada pelos vândalos ao en-
trarem na llespaniia. .M não é mencionada Uuscinu
na historia ila expedição do ri;i Vamlia contra o du-
(|ue Paulo, escripla no reinado d'a(|uelle prineipc
por Juliano, bispo de '1'oleilo, posto ((ue n'ella se falle
de EIneede todas as forl.ílczas da rejíião o mesmo si-
lencio se observa no jul;<a mento publicado então con-
tra os rchelladus, e que é uma ridaiao alihri'viada da
«xpe<lição : linda esta, ao voltara llespaiiha. Vamba
<lemorou-se dois <lias em lílue, que, sem duvida devia
ter a cidaile mais imporlanle : <!onstaiiliiio dcra-lhe
o nome ile Helena em honra da iinperatri/ sua mãi ;
não é pois para admirar (|ue ella iosse a capital do
Uoussillon depois da ruina di' Kuscino, de quo já
não ha memoria no doniinio dos visi^^odos.
O eastello do Koussillon está eililicado no assento
da antiga Kuscino a uma lef;ua de l>crpinhão. Vin-
da se encontram em excavações niedalbas romanas,
c alicerces d(^ edilicios (|ue mostram ler sido exten-
sos ; em )7(>Sse desciilerraram uunierosiis columnas,
capit(MS, cornijas e vaiios socos d<^ mariuore. Da
cidade não restam mais vesti^ios (|ue uma turre du-
VoL. I. - Janeiko !t, 1847.
lave) por antiguidade, fragmentos de banhos pnhlv
COS, e alguns pedaços de muralha : a torre é rcdondí
e em posição admirável, apparecc de longe denegri-
da pelos séculos. .Muitos pardieiros, obra de seis ou
sele casas coiistruiilas ao pé da torre, uma ermida ve-
lha que serve de venda, c quanto enfeita a antiga
colónia romana, cessas mesmas habitações arruina-
das não são mais do que restos do castro levantado
sobre os destroços da cidade. — Taléem Ioda a par-
te a acção do tempo e o andamento dos séculos !
BlOliRAPHIA DK S. VlCKNTE DB PaUI.O.
(Conlinuado de ])ag. IH.)
N'i'M dia de festa, estando \icenle de Paulo para
fazer uma exhortação aos lieis, .M."" de la Chassai-
gne o delcve por um instante e lhe rogou que en-
comrncndasse ã cliaridade dos seus compaiocliianos
uma familia exiremanieute pobre, da (|ual tinham
caído enfermos i|uasi todos os lillios e criados n'nm ca-
sal a meia légua do C.liàlillon. Conformou-se ello
com o pedido, e demonstrou com bastante energi.i
aos seus ouvintes a necessidade de soccorrer os pobres,
sobre tudo quando a doença se ajiincta á indigência
e não eslãu no caso de scalliviarem por seus recur-
sos, como succudia aos que alli lecommeudavu : foi
tão persuasivo que, depois da precação, muitos dos
que a ouviram foram visitar a(|uclla lamilia pobre,
e nenhum com as mãos vasias ; li'\.ir.im-llie alimen-
tos com profusão, \ iceiíle, leslimunlia desle /elo.
não o achou bem eiilendido. - l'lis ai)iii (disse) um
grande acto do cliaridadc, purem não c bciu regula-
ih
o PANORAMA.
1^ I
do. Aquelles pobres terão muito provimento ao mes- 1
mo tempo, porém parte se estragar.-» ep'>r'1'»rT, o rt"-
pois recairjo na primeira mingua. Esta reflexão mo-
veuVicenlc lic Paulo a examinar os meios pelos quaes '
se poderiam soccorrer com regularidade as famílias \
que SC achassem cm igual precisão. Confcrencic)u cum
algumas pessoas ricas e caridosas, e por fim organi-
sou a confraria. Vinte e quatro pessoas do sexo femi-
nino, de Chàtillon, foram as primeiras nomeadas pa-
ra assistir aos enfermos, sob a direcção de uma re-
gente que d'entre si escolheram. È notável n regula-
mento escripto por Vicente de Paulo : citámos o ar- i
tigo 10.°, como exemplo da singeleza c bondade que
por todo clle respiram. — « Para queumaassociarão,
que muitas vezes não é composta senão de pessoas i
obrigadas a viver do trabalho de suas mãos, não fa- t
ca prejuízo ao governo da casa das que forem dignas
de ser admittidas, as irraãs da confraria assistirão
por seu turno aos doentes por um dia somente. Pre - 1
pararão o alimento dos enfermos e lh'o servirão por j
suas próprias mãos ; procederão para com cHescomo |
a mãi cheia de ternura para com o próprio filho; e [
procurarão distrahi-los e alegra-los se parecerem '
muito succumbidos da moléstia. » — Os bons créditos 1
e resultados da confraria foram rápidos, e começaram ]
logo a imita-la eui todas as cidades circumvisinlias,
e depois cm toda a Lorena, na Sabóia e na Itália.
A familia do conde de Joigny. da qual Vicente fora
preceptor, não podia costumar-se a viver separada
do seu mestre; resolveu-o a recolhcr-seaoseu grémio,
conservando porém a liberdade de fazer missões. Ao
mesmo tempo visitava clle os hospitaes e as prisões.
Em 1618 viu em Paris os calabouços dos torçados das
galés, e commoveu-o por tal forma o horroroso esta-
do de desaceio, e padecimentos docorpoe alma, em
que se achavam, que rtsolveu occiípar-se do allivio
d'esta classe de miseráveis. Alugou uma casa no ar-
rabalde de Sancto Honorato, fè-la preparar com ex-
trema diligencia, e conseguiu transportar para alli
lodos os forçados que estavam dispersos pordifferen-
tes prisões de Paris. O conde de Joigny, que era o
general das galés, lhe concedeu a faculdade de dispor
daquellcs infelizes á sua vontade. Vicente de Paulo
«hegou a obler grande auctoridade na consciência
d'elles, e attrahiu grandemente para e.s-ta sua obra a
opinião publica. Luiz \I1I, sobre proposta docoD-
de, nomeou-o capellão geral das galés de França.
Seria por I()22 que Vicente, comiiadecido da deses-
peração que exprimia um condemnado com aidéa da
miséria em que a sua ausência sepultaria a sua fa-
milia, restituíra a esse homem a liberdade ficando
no seu logar com o consentimento doolllcial de ser-
viço ; mas este facto tem sido mui contestado.
Em 1623 estabeleceu em Al.icon duas confrarias i
da Charidade, uma de homens, outra de mulheres.
Dois annos depois recolheu-se ao collcgio denomina-
do dcs llons-Enfaiis, que fora fundado em 12i8, c
que pelo novo regulamento fora cspecialuicnte desti-
nado a mandar para toda a parte missionários —
«para instruir o povo dos cam(ios, e exercitar no sa-
grado ministério aquelles a quem a salvação d'esse
mesmo povo devia ser confiada de futuro. » — Vicen-
te eslava angustiado por causa da ignorância e cor- 1
rupçãodc grande parte do rlero. — .c llevemos ^dizia
elle) fazer algum esforço para acudir a esta urgcnle
necessidade da Igreja, que se deteriora cm muitas
parles pela má vida dos sacerdotes ; porque são cllcs '
que a arruinam c que a perdem ; c a inda mal que « '
muita verdade que a depravação d« estado ecdosias- |
tico é a causa principal de se desamparar a Igreja \
de Deus. » — D'eslc modo a sua actividade e zelo in- i
fatigáveis subiam ás origens d-j damno moral e do
physiro.
Instituiu cm 1623 a congregação das irmãs da
Charidade. É quasi o mesmo projecto que o das con-
frarias da Charidade; mas a expi;ri''ncia tinha mos-
trado que a dedicação dassenhor^ts ricas e nobres não
podia manter-se por muito tempo, e ser tão assídua
que fosse siifiicientc para os cuidados que exigiam o»
doentes: julgou-se que a melhor resolução era ter
serventes que se occupassem unicamente no tracta-
mento dos pobres enfermos. Vicente associou-se a
este plano, e o poz brevemente em practica. As pri-
meiras irmãs da Charidade rcuniram-se em 1633 sob
a direcção de uma pessoa de grande virtude, M.<^lle
Legras. A regra que Vicente formou para esta con-
gregação, que mais tarde se devia estender por toJa a
França, respira prudência « sabedoria : estabeleceu
a dilTerença que deve existir sempre entre as irmãs
da Charidade e as religiosas, recommendando ás pri-
meiras seguirem uma vida tão perfeita como se fos-
sem claustraes ; e accrescenta a este respeito : —
«Elias não teemurdinariamente pormosteirosscoãoat
casas dos doentes, por cclla um quarto de aluguer,
por capella a igreja da sua parochía, por claustro as
enfermarias dos hospitaes, por clausura a obediên-
cia, por grade o temor de Deus, c por véu uma saneia
e exacta modéstia. » —
\ compaixão de Vicente pelos engeitados era ha-
via muito tempo vigilante ; porém as circumslancias
favoráveis para acudira mais esta miséria não se lhe
oITcreceram senão correndo o anno de 1618. Antes
d'esta epocha os recem-nascidos, que se achavam ex-
postos ás portas das igrejas nu nas praças publicas,
eram levados pelos commissarios do Chãtelét para
casa de uma viuva na rua St. Landry. que com duas
criadas se encarregava de cuidar d'elle5. Como o nu-
mero das creanças era grande e as esmolas medíocres,
a viuva, por falta de suilícicnte rendimento, não po-
dia nem conservar amas bastantes, nem alimentaros
desmamados ; e assim a miir parte dos meninos mor-
riam de itebilidade, on ernm dados a quem os q«e-
ria, e até vendidos por vil preço, ás vezes por vinte
soldos. •— Vicente rogou a algumas senhoras nobres
que fossem áquella casa, e vissem se poderia evitar-
se ou [lelo menos diminuir-se tão grande mal. .asse-
nhoras horrorisaram-se do espectáculo que appre-
scnlava aquella multidão ilecreanças privadas de tu-
do ; não podendo tomar á sua conta todos ellcs, qui-
zeram eucarregar-se de salvar a vida de alguns ; ti-
raram doze á sorte, e, para os arcommodar, aluga-
ram era I63S, uma casa jiinclo á porta de S. Victor.
Ensaiaram primeiro crea-los a leite de cabra ou de
vacca ; mas depois deram-lhes amas. t^omludocsca-
ceavani recursos para ampliar este beneficio quanto
era para desejar. Em 16 U). \'icenle convocou uma
assembléa geral.e persuadiu ás senhoras, que se acha-
ram presentes, encarregarem se de maior numere de
ineninos. Para esta tdira alcançou de .\nuad'.Vuslria
edo rei doze mil libras de rendimento, porem as des-
pezas eram cada vez mais pczadas. Algumas vezes es-
tiveram a ponto de desanimar. Foi para reanimara
confiança e para fazer loniar um partido delinilivo
que Vicente reuniu, em 1618. uova assembléa geral,
recitando um discurso em quo se acham «ítss pala-
vras : — n Einfim, senhoras, a charidade vos friadcp-
tar estas creaturinhas como filhos vossos, lendessido
mães (Felles segundo a graça depois que os abandona-
ram suas mães segundo a natureza : vede se também
os quereis abandonar. Cessai agora de ser mães para
serdes osjuizesdos mesmos: asuavida ou mort* es-
tão nas vossas mãos : eu vou recolher os Totos e suf-
o PANORAMA.
447
íragios ; é lempo de pronunciar a sua sentença e de
saber se já não quereis ter misericórdia (l'elles. Vi-
verão se continuardes a tracta-ios com charitalivo
desvelo, ao contrario morrerão, perecerão infalli-
velmente se os abandonardes : a experiência não vos
permitteduvida. » — A asscmblca só respondeu com
lagrimas. Decidiu-se que, custasse o que custasse, se
continuaria o que fora tão Ijcm começado : as crean-
ras tiveram primeiramente por hospício o hospi-
tal de Uicótre ; mas era alli o ar muito agudo, e
traniportaram-n'as depois para o arrabalde de S.
Lazaro, para o arrabalde de S. Antão, eparajuncto
de Nòlrc-Dàme.
A vi'1a de S. Vicente de Paulo foi tão abundante
e tão fecunda de inspirações charitativas que seria
impossivel indicar todos os titulos por que elle me-
rece a gratidão e a admiração da posteridade. Não
fallaremos dos soccorros quecolligiu embeneDcio da
Lorena, quando esta provincia foi assolada pelos
suecos em 16.39, a favor da Picardia e da Champa-
gne nos alborotos da discórdia cognominada da Fron-
de, a pró dos pobres sacerdotes irlandezcs eescocezes
duranlca revolução ingieza. Passaremos em silencio
os seus csferços para desarreigar o costume dos desa-
fios, p os seus conselhos, muitas vetes aspt-ros, á co-
roa para evitar as funestas dissensões do reino. —
Era mister declarar também a parte que tomou nas
missões destinadas a confíjrtar, allumiar e civilisar
povos desgraçados, o zelo com que animou os padres
que por convite de Innocencio X enviou a Madagás-
car, (jista a comprehcnder o como um homem só,
sem outra força mais que a sua palavra, poude pres-
tar ;i lium.iniiiade tantos e tão dilTerentcs scr\iços, c
dilTuiidi-los em tanta latitude .durante a sua vida e
•lepois da sua morte. A charidade fez lodos esses mi-
lagres. O nome deS. Vicente d' Paulo é do peque-
no numero d'aquellesque as nações modernas podem
f^vanlajosamenlc equi()arar a quantas memorias illus-
treso bellas a antiguidade nos legou para honra-las.
As glorias mais estrondosas do paganismo perdem o
brilho em presença d'aquella virtude tão sincera, tão
liura, tão engenhosa.
liis-aqui o retraio que os historiadores nos dei.va-
ram cie tão sancto varão. — Era de estatura media-
na, tinlia a cabeça gratuleeum tanto calva, tcsla es-
paços.'), olhos vivos, olhar meigo, porte grave, e gran-
de aflahilidade de maneiras : nos seu- modos egcsto
reinava aquella singeleza que annuncia a serenidade
e rectidão docoraçno. Seu temperamento era bilioso
c sanguíneo, e rebu.st.i a eonipiciçãu :o captiveiroem
Tunes verosimilmente a alterou, (lorque depois de
restituído á Trança foi sempre mais sensível do que
poderia suppor-se ás impressões atiuospherioas, e por
consequência mui sujeito a ataques de lebre — Kra
dotado de espirito \aslo. cireumspeclo, e díllicil de
colher de iniproíiso : quando se applíia\a seriamen-
te a um negocio, descortinava Iodas as circumstan-
cias K'raiiil(s (■ pe(|uruas, e untcv ia ds íucon\ei)ienles
c resulladcis. Ouamiii nao poilia ilcclaiar logo o seu
[larecer, dílleria para da-lo até(|ue houvesse pezado
as raziies pró e contra : mas, se por um ludo não era
apressaclii iids nej^oiios, por outro nãii se a^solnh^av.^
com o numero d'etles, n>'iii com asdillículdades que
appresenlavaoi ; piiiseguíaos com um \ígor(r8nimo
su|)erior u todos os obstáculos, e applieava se a isto
com sagacidade bem ordenada elumiiiosa ; supporta-
va o pezo (Telles, as ludígiis c os \agares eoiii uma
serenidade c paz d'espirito duque só as almas gran-
<les são e.ipazes. (,)iiaiido se olVerecia Iraclar de al-
gum assumpto iuifiurlaute, escuilava eoni muita at-
tenção i|iietM r.ill,i\a, sem iiuih.i iiit('iTi>ui|ii'r ; se al-
guém lhe cortava o fio do discurso, parava logo, e
q«ando acabava o interlocutor, tomava o seguimento^
da oração com admirável presença d'espirilo. Posto
que houvesse inventado bastante, ou, para melhor
dizer, tivesse feito applicação da charidade sob mai-
las formas novas, eslava longe de innovações em to-
do o gen«ro ; dizia que — '< o espírito humano é ágil
e buliçoso ; que os talentos mais agudos e mais illus-
trados não são sempre os melhores não sendo refrea-
dos ; e que mais seguramente caminham os que »»
não affaslam da senda por onde pastou amaioria dos
sábios. » —
Crer-se-hia que em outra cousa não cuidava senão
nos pobres ; nada o aflligia tanto como vèr-se em cir-
cumslancias de não os poder confortar: a vista e até
só o nome dos infelizes lhe causava uma compuncção
que se manifestava na exterioridade : pronunciava
em tom repassado de ternura aquellas palavras das
ladainhas : Jesus, pai dos pobres » ; e apesar de ser
tão senhor de si, logo que lhe annoncíaram qualquer
grande necessidade de alguma família ou de algum
particular, divisavam-se-lhe no rosto todos ossignaes
de um houiem penetrado de alTlícção.
Boísnel, em uma carta a Clemente XI, explica-se
a respeito de S. Vicente de Paulo da maneira se-
guinte:— «Tivemos a fortuna de o conhecer logo
em nossos tenros annos. Assuas piedosas practicas e
prudentes conselhos não contribuíram pouco para
nos inspirar o gosto da verdadeira e solida piedade
e o amor á disciplina ecclesiastica. Na idade avan-
çada em que nos achámos não podemos recordar-nos
d'isto sem alegria extrema . . . Nunca faltava que ca-
da um de nós o não ouvisse com insaciável avidez, e
não sentisse em seu coração que Vicente era um d'esses
homens de quem o Apostolo diz : — Se algum fallar,
pareça que falia Deus pela sua bocca. — n
Vicente de Paulo passou á eterna vida a :27 de se-
tembro de l(it'0 : a noticia dVste acontecimento es-
palhou geral consternação na França. Foi recitada a
sua oração fúnebre por Henrique, bispo de Puy, n.i
igreja de St. (iermain-rAuxerrois. O breve da sua
beatificação é datado de 13 dagosto de 1729.
Mauomet ou M.tFCM.t.
(Vide pag. 9tí.)
A vini de Mahomet, Mafuma ou Mafamcde, como
lhe chamaram os nossos escriptores antigos, é um as-
sumpto grave e digno de attenção.
Pertenci 1 .Maloma á tribu dos coraichilas, a mais
antiga da Arábia, e os seus antepassados descemiiím
de Ismael lilho <le Abrahãii(l). Ksta\a n'este tem-
po sujeita a .Vrabia a estranho jugo ; os imperadores
de Constantinopola, os reis da l'ersia c da .Vbyssi-
nia nccu(iavaiu militarmente a maior parle das pro-
víncias da península. Só .Meca e as terras sertanejas
haviam conserva<lo a sua independência, sem que
lhes alterasse a tranquillídade senão a turbulência
iiiherente aos costumes dos povos nómades. .\lém
d'ísso, .Meca era citada eciuio a primeira cid.idi- da
Arábia ; a memoria d'Abrahão e de Ismael, a rau-
tageni de encerrar nos seu muros a Caaba ou casa
(I) Nasceu i'iii Meca na srguinlauiclaili'. In decimo Oi-
Klso século, (|iel(i anuo ile .^(i;l ilc J.C, ) Cunsdllao o excel-
lenle Iraliiilliode Mr. Itt-iniiud, assim enniu a Viilndf Mn-
Imiiut |iiir liagnier ; a (|ue Savaij |io/ na IVenie ila kiia iru-
ducvãoiKi Kiiian ; o a oliia de .Mi . (irassi, |iiililli'ada com
II mui > lie t':irla lurca, Cli'.
• f
^48
O PANORAMA.
quadrada, a tornavam um como sanctuario para os
árabes. Mas a dom iua<;ão de tantos povos dirersos
eiercí-ra poderosa influencia nos ânimos. As provín-
cias sujeitas aos romanos e abissyiiios quasi que não
eram |>i)voadas senão dcclirislãos e judeus, a religiiio
dos sabeusedos magos dominava nas províncias per-
sas, as outras seguiam o culto dos ídolos.
Os habitantes de Meca, principalmente, se tinham
dado a Iodas as practicas do paganism.). Viam-se den-
tro da Caaba as estatuas de Ahrah.^o e Ismael com
sete flechas na mrio, por meio lias quaes (is idolatras
suppunham adivinhar o futuro. Da parle de fora es-
tavam dispostas trezentas e sessenta estatuas, cada-
«ma das quaes presidia a um dos dias do anno. Umas
representavam anjos, outras planetas e estrellas ; to-
das ellas tinham o seu culto especial, os seus adora-
dores, as suas olTerendas, Invocavam-n'as para que
fizessem descer a chuva do céu e amadurecer as mes-
ses ; algumas, segundo diziam, davam thcsouros e fa-
voreciam o nascimento dos meninos, como o Plutoc
a Lucina dos antigos. Cada tribu, cada família, po-
dia escolher a divindadequelheconvinha; chegavam
a sacrificar victimas humanas a estes dsuses de p.íu,
de pedra, de cristal e de bronze.
Mafoma nasceu na idolatria ; os seus aM')S, por
muitasgerações, níio tinham seguido outro culto. Ce-
do perdeu seu pai.\bdala esuamãi Amina, dosquaes
herdou unicamente cinco camellos c uma escrava
cthíope. Mas seu avó, que era um magistrado vene-
rando na Meca, tomou conta na sua educação ; e por
morte freste parente, seu tio .\bou-Tlialed o recebeu
cm casa. Contava apenas Mahomet treze annos quan-
do emprebendeu com seu tio a primeira viagem á Sy-
rta. Usavam entiio os de .Meca, ainda os mais illus-
tres, dar-se ao commercío ; elles transportavam para
Damasco os aromas e perfumes da índia e da Ará-
bia, recebendo em troca trigo, e os pannos e produc-
tos do Occidente. Todavia a pobreza de Mafoma op-
punha-se á sua elevação ; Cadígia, rica viuvado Me-
ca, tomou a seu cargo remover este obstáculo, con-
fiando a direcção do sen commercío ao moço Maho-
met, com quem depois casou. Ihabarí, na sua cbro-
nica árabe, celebrou a niagnincencía das vodas e o
esplendor dos novos esposos. Cadígia estava a com-
pletar então os quarenta annos, em (juanlo que Ma-
liomet ainda não tinha vinte e cinco.
Mahonicl, desde o momento em que se viu senhor
d'uma fortuna immensa, premeditou, conforme tudo
induz a crer, a revolução que em breve haviadeef-
feiluar. As viajens linham-lhe esclarecido o entendi-
mento, e profunda impressão lhe devera lazer o culto
dos judeus c dos chrístãos. So elles, com elTeito, rc-
pclliam a idolatria ; só ellos reconheciam ura Deus
único, a quem tributavam adoração. .Miiiiouiel, que
tinha feito lhe lessem os livros do Velho c Novo Tcs-
tanunto, deu muitas demonstrações de respeito aos
christaos e aos judeus ; não contente com admittiros
livros sanctos como base da sua religião, adoptou ao
princí[)io muitas das suas reremonías. A historia na-
da diz acerca d'esla primeira parte da sua c.irreíra ;
sabe-se comtudo que se retirava todos osaniius para
uma caverna visiiiha a Meca para meditar solirc as
cousas celestes. Disse-se que Mabometnão sabia li'r
nem ecrcvcr, o que é pouco provável. Talvez qiicel-
le quizesse inculcar uma ignotancia completa para
prova de que as suas pregações futuras não podiam
ser filhas do raciocínio do um homem privado de to-
da a inslrucção, equc as suas palavras só deviam ser
consíderailas como inspirações do .Vllíssimo.
Divulgou-sc a final a sua falsa niísião. l'm dia que
I, W*Vi* encerrado na caverna, apparcccu-lhc, scgun-
j do clle mesmo contou, o anjo C ibríel, e moslrando-
Ihe as insliucçõcs qae irazia dus céus, saudou-o com
I o titulo de apostolo do Eterno. .Mahomet voltou lo-
go para casa e deu parte dasua avintura aCadi^ia,
a qual, sem hesitar, lhe deu credito. Este exemplo
I foi seguido por Ali, filho de Abou-ihaleb, e lambem
por Abou- Bekr, que succedeu a Mafoma. A nova re-
ligião contou em breve no numero dos seus discipa-
los Osman e outros personagens celebres. Todos ellftt
tiveram o nome de musutmanos, d'uma palavra ára-
be que significa « enlregar-sc nas mãos de Deus »
Firmava-os Mahomet na sua crença, e fortalecia-lhes
o zelo por meio de revelações, que dizia receber do
céu de tempos a tempos. Ao cabo de três annos de
occultas diligencias resolveu Mahomet apparccerao
dia claro ; convidou para um banqueteos seus tiose
outros parentes que tinham até alli persistido no cul-
to dos Ídolos, e expozaos convidados os vicios da id«-
latría ; provou-Uie que debalde esp-rariam bens de
imagens informes que não viam nem ouviam : <• Ha
ahi entre vós alguém que queira ser meu visir e meu
inimediato, exclamou elle, como Aarão o foi antiga-
mente de .Miiysés"? » Ao ouvir estas palavras o joven
Ali, que apenas tinha doze annos, respondeu : « Sim,
apostolo de Deus, serei teu visir, leu immediato. »
Fazia progressos a nova religião. Entre 03 prose-
lylos notava-se Ilamza, tio de Mafoma, e Ornar que
depois foi kalifa. O primeiro, com um génio fogoso
e irritável, foi attrahido pelas perseguições que co-
meçavam a suscitar contra sen sobrinho ; aa segundo
tucoii-lhe o coração a leitura d'uma passagem do
Koran. A medida que o poder do innovador crescia,
mais se irritaram os seus inimigos : e já as duas par-
cialidades se não encontravam sem travar brigas.
Mahomet resolveu dissimular, e esteve algum tempo
escondido, limitado ao tracto dos seus amigos. No
tempo das ceremonias da peregrinação, quando em
Meca SC reuniam todas as Iribus da .\rabia, appro-
veitou-se d'este immeuso concurso do povo para in-
sinuar a sua doutrina aos estrangeiros : lomava-os
de parte, e rccitando-lhes alguns capítulos do Ko-
ran, dizia-lhes : " Eu sou o apostolo de Deus : o livro
que vos anuncio prova a verdade da minha missão.
O senhor vos manda que rejeiteis o que é indigno
d'ella, e que o sirvaes a clle só ; quer também que
creaes em mim e que me obedeçaes. •>
Chegaram entretanto a .Meca alguns idolatras de
.Medina, idolatras e judeus da tribu de Levi occu-
pavam ao mesmo tempo esta cidade. .\"uma guerra
que se acccndèra entre as duas nações tinham osju-
deus sido vencidos e reduzidos a caplivciro : ora, no
excesso dos seus males, exclamavam algumas vezes :
<i Sc o Messias viesse, iriamos ler com clle, e nos 11-
' berlariamos da tyrannia destes. >'0s idol.ilrasdcMe-
I dina, quando chegaram a Meca, tendo ouvido fal-
' lar d'um novo prophela, disseram uns aos outros ;
! « Quem sabe se olle será o prophrla de que nos fal-
iam os judeus? \'amos ler com elle, e chamemo-lo
i ao nosso partido. <• .\ppresenlaram-se pois a Maho-
j met, que lhes pregou a unidade de Deus, e subita-
mente se pozeram ;i sua obediência. Tal era o ardor
' do zelo d'estes neophylos. que quando chegaram a
-Medina propagaram o novo culto, (irande numero
de habitantes se converteram ás suas pregações, c
dentro em pouco quasi que não havia casa em .Medi-
na que não tivesse alguns musulmanos.
I EslH vicioria inspirou desmedida confiança a Ma-
! Iiomcl. .\tê então linha contindo que lhe faltava o
I poder de faier milagres ; em vão lhe disseram um
dia os seus adversários : » Tu sempre nos estás a ci-
tar os exemplos de .Vbrahão, de ileyscs, cdeJcsut ;
o PANORAMA.
Á49
porque não fazes lu milagres, como elles fizeram, pa-
ra que passamos «rér em li ? » E depois aponlan^o
para um cômoro de lerra vermelha que está nas \\-
sinhanras de Meca, accrescentaram : « Eis alli eslá
um cômoro de lerra, muda-o em ouro, e nos dare-
mos por vencidos. » Mahomet conlentava-se com res-
ponder-! hes que ainda que houvessem Abra hão, Moy-
sés, e Jesus feito milagres, nem por isso tinham os
homens melliorado ; que, alem d'isso, quando o Eter-
no se decidia a derogar as leis que eslabelèra, não
deixava de punir com rigor os que recusavam crer
nos signacs do seu poder, c que elle não queria cha-
mar esta (.fesgraça sobre a sua infeliz pátria.
( Continua. )
O iii.i;i'iiANTE UE Sião.
Os POVOS de Sião e do Pegú consideram os elcphan-
tes brancos como os mais excellentes da espécie, quan-
[ do na realidade não são mais do que albinos, aberra-
' çccs da casta como os pretos branf-os : -xiuplh alvu'.!
deslavada da pelle, que entre aquella gente lhes dá
tanta honra, é o symptoma de uma frouxidão nasci-
' da de enfermidade, espalhada em toda a sua eeono-
' mia animal. Os homens, e certos mamães, princi-
palmente os ratos e coelhos, algumas aves, como os
corvos, gralhas e melros, e outros muitos animaes,
apprescntam esta alteração, ou temporária ou vita-
lícia.
Todavia, não ésóa raridade dos elephantes bran-
cos que lhes attrahiu a veneração dos siamezes e pe-
gús ; idéas symbolicas e tradições fabulosas explicam
9 culto d'estcs gentios. — A còr branca em todos os
' tempos e em todas as religiões foi symbolo da sabe-
i dória e da pureza. — A gravura curiosa, de que es-
I tampámos um fnc simile, foi aberta conforme um de-
senhodo padre Couplet, jesuita, procuradordas mis-
sões da China : na mesma se \v impresso na parle
inferi<ir um Icltreiro que diz assim : — « Xé-Kiam,
principe dos bonzos, é o xaca dos japõcs. Cnnta-se
que sua mãi, lendo visto um elepliantc branco, an-
dou gravida dezcnove annos e moiTLUi do parto : seu
filho ass<MitMU que devia rclirar-se do inundo para
fazer penitencia ; estuilou com ([uatro mestres, c en-
sinou [)or (luarenta e nove annos : entrou na China
sessenta e Ires annos depois do nascimento deC.liris-
lo. ') —
No diário da embaixada a Sião refere o padre
Choisy (jue viu no meio do segundo pateo do palá-
cio real um elep!iant<: branco, que custara a vida a
muitos mil homens nas guerras do l'egú. — " íi as-
saz corpulento, mui velho, lodo riigoso, e com os
olhos franzidos, listão sempre ao pé d'elle quatro
inaiKlarins (-om ventarolas para o refrescarem, com
cspanejadores [lara afugentar as moscas, e umbellas
para o resgiiarílarem do s<d (]U.in(|ii [lassciíi. /''. servido
cm baixella de ouro : a agua que lhe dao esl.i pr(nia-
menle depositada seis mezes. na persuasão de(|U('a
mais antiga em casa é a mais sadia. Di/cin, mas tião
o vi, (\uv ha um eleplianle bramo pccpKiiii, destina-
do para succedcr ao velho (|u.luiIii esle morier. h
N'oulra passagem couta o |ia<lre niislernios seguin-
tes as causas e conse(|uencias ilas guerras do l'egii.-
II Tendo sabido o rei do Pegú (|ue o rei de Sião ti-
nha sete elephantes brancos, mandou-llie pedir um ;
recu8arain-lh'o redondamente; tornou a repetir u pe-
dido ameaçando vir dcinanda-lo á testa do doismi-
ihões do eombalenles : zombaram das suas ameaças.
Veiu com effeito, assediou por muito tempo a cida-
de de Sião, levou-a á viva força; porém não entrou
no palácio do rei, e mandando levaiil;ir dois tablados
iguaes diante da porta, um para si, outro [lara o rei
de Sião, ahi com grande cereinonia renovou as suas
exigências, que n'aquellc caso eram ordens. Pediu
primeiramente seis elephantes brancos, que lhe foram
entregues : disse depois com muito alTeclo para o rei
de Sião que amava inlinito a seu lilho segundo, e
lhe rogava quizcsse commette-lo a seu «uidado para
o educar : d'estem()do, com muita cÍNÍlidadc, lomon
quanto qiiiz, e recolheu-scao Pegú com riquezas im-
iiiensas e grandíssimo numero de escravos. Não to-
cou nos pagodes, porque a relisião de ambos os rei-
nos é a mesma : apenas um ilos seus siddados, entran-
do n'um pugode re;il, eorlou a mão a uma estatua
d'ouro ; depois lhe pozer:im outra, e eu vi o signal
■ilo golpe. II
A veneração dos siamezes aos elephantes brancos
não parece ser hoje menor que no seculn WTI ; (ri-
biilnni lhes ainda as mesmas honras. — «Cadaum
d'eMii's elepÍMiiles (ili/. um \ iajanie moderiuií tem es-
treitaria separada, e dez guardas por ci ladus. As pre-
zas dos machos são guarnecidas de caiiipainh:is d'ou-
ro, uma rede de lio d'ouro lhes cobre o alto d:i ca-
beça, e tem segura nn lombo uma almofadinha de
veludo bordado: lêem otitulodc reis dos cleplianles.
J|50
O PANORAMA.
e dilTcreiu;:iHi-n'os [lor subrcnomcs liradys da sua bel-
leza tcjaii)'.iiali\a, lia estatura, ou de certas qualida-
des de instinclo. » —
i\a primeira serie d'este jornal acham-se, acerca
Uos tíleplianles, noticias mui curiosas extrahidas dos
nossos escriíitores antigos.
COLOHOA.
Romance da Córsega.
Sla per far Ia to rendelta,
Poderá, orfana, ziteila,
Senza cugini cartulil —
Sla siguru, \astaanchcclla.
Lamcnt. fiineb. de Xiolo.
II
QcE linda noite, c qne brando luar a fugir pelo dor-
so das ondas, era quanto a briza ligeira assopra nas
velas do bialc 1
.Miss Lidia nTio linha vonladedc dormir. Mal sup-
poz todos lieilailos, enrolou umclialeem \olta do pes-
coço, e acordando a sua aia, subiu á tolda, Xinguem
lá eslava, á exccprão do marinheiro do leme, entre-
tido a cantar uma espécie de xacara cm tom áspe-
ro e monótono. Os versos fallavam de assassinos, de
\inganras, c de uma viclima ; porém tudo vago e
conliíso. Alguns que lhe ficaram de memoria, tradu-
zid(js do dialelico corso, pouco mais ou menos diriam
« seguinte :
« No seio das batalhas, sereno como o céu do estio,
sem baler o corarão, nem desmaiarem as faces, af-
fríuila o estourar da metralha e o embater do ferro
contra o peilo. Libauso, como uma crcança para os
que amava, foi tcrrivel como o temporal dos mares
para os inimigos. Os covardes assaíSÍaaram-n'o pelas
costas ; que de rosto não ousavam 1 ... Lá está pen-
dente do seu leito a camiza tincla de sangue e a cruz
honrosa dos fortes, . . éa hcranra fegada a seu filho,
ausente em longes terras; por duas bailas que lhe
romperam o peito, outras duas o hão de vingar. Sec-
ca seja a mão que atirou — sem luz o olho que apon-
tava— e o coração que meditou o crime, oh ! tam-
bém esse ha de morrer. »
De repente o marujo calou-se. MissXevil pcrgun-
lava-Ihe por quenãoproseguia ; cjuando clle, abanan-
do a cabeça, llie mostrou uma ligura immuvel alguns
passos atraz. lira Orso, o tenente corso.
— « Por que não nos canta o mais? « insistiu cila.
— « Deus me livre de dar okirabécco a ninguém,»
respondeu o tritão em voz baixa.
— « Dar o que? ... o ? »
O marinheiro sem replicar assobiou uma ária sel-
vagem.
— n Tenho a satisfação, minha senhora, de a sur-
prehcnder admirando o nosso .Mediterrâneo, disse Or-
so adianland«-se ; espero que me ha de confessar que
o bello luar «reste céu não se vè senão aqui. »
— « Sim ? c eu que nem reparava n'clle '. . . . Es-
tava-me entretendo a estudar o corso, liste marinhei-
ro, no meio de uma xacara trágica, interrompc-sc
justamente no mais interessante o . . . »
O marujo puxou com força o chalé de Miss Ne-
vil, como para a advertir de que a sua xacara não
podia ser cantada diante do tenente Orso.
— «O que é que tu cantavas. Paolo France?Era
uma ballata? um rorero.' Esta senhora entende, c de-
sejava muito ouvir o fim. "
— « Não me lembra mais. Orso Anton'.» — E en-
toou logo um cântico á Virgem.
.Miss Lidia jurou que bavta de descobrir ced« ou
tarde a chave d'estc enigma : ma* a íiia, que nascera
I em Florença e não sabia o corso, era pelo menos tão
I curiosa como sua ama ; virando-se para Orso, per-
! guntou-lhe :
— "O que significa a palavra rimbéeeo ? »
— « Kinibécco '. redarguiu Orso ; é a maior inju-
ria que se pode dizer a um corso — é deiur-lh» em
rosto não se ter vingado. Quem fallou de kiiBbécco
aqui ? »
— « Ouv imo-lo hontem em Marselha ao mestre do
hiate,» atalhou immedialame-íle .Miss .\cvil.
— « E a quem alludia? >> insistiu Orsp com viva-
cidade.
— a A ninguém ; a n.ida. .\h '. era a antiga histo-
ria de Vanina d'Ornano. "
A conversação parou aqui. lliss Lidia retirou-se
passados instantes, c Orso pouco depois. )Ins apenas
elle desccia, a curiosa aia subia ile novo e fazia um
interrogatório formal ao maruja do leme; eo resul-
tado veiu cochicha-lo auouvidu desna amaassim que
o apurou. E.-a o caso: — que a ballata parou porque
fora feita á morte do coronel delia Rebia. paide Or-
so, assassinado ia já em dois aniios. O marinheiro
accrcscentúra mais que o mancebo vinha vingar-se
de tVcs pessoas accusadas ptlas suspeitas de terem
commettido o crime. — « .\a Córsega não ha justiça,
perorou o marujo, c vai mais uma boa espingarda do
que seisbéeas. Qiiando alguém tem um inimigo deve
escolher de Ires SS um — sc/tiupella, stiletlo, tirada —
clavina, punhal, ou fuga. »
Estes csclarecimenlos mudaram inteira mente o ani-
mo de miss ,\evil acerca do tenente delia Rebia. A
franqueza e indiifercnça, que no principio a desgos-
tavam d'ellc. agora attrihuia-as a romanesca ingleza
á dissimulaçã* profutida de uma alma cneigica, que
pôde e sabe domar os mais íntimos sentimentos. Or-
so alli^urou-se-lhe desde esie momento semelhante a
Fiesqui, cobrindo com apparentedeleixo vastos pro-
jectos. S<i então notou que os olhos do mancebo eram
vivos e rasgados ; os dentes d'alvura do marfim ; eo
talhe csbeli.o, realçando ludo pela polidez ilo trado.
[As conversações, cm que depoiso empenhou de pro-
I posito, acabaram de a convencer ainda mais da exac-
I lidão da sua hyp<jthcse ; decidindo sem appellarão
I que os inanes do coronel delia Rebii pouco tempo
mais bradariam debalde por viagnnça.
I No fim de ires dias de navegarão descnrolou-se
I diante da vista dos viajantes o admirável panorama
do gfilpho dWjaccio, cora razão comparado á formo-
sa bahia de Nápoles. .\o instante, mesmo, em que
o hiate entrava iio porto, uma (|ueimada, envolven-
do em fumoa/)i(n/a di Giralo. recordava o Vcsu\io.
' .\qui c além nos topes d.is montanhas em redor da
' cidade destacavam do azul do réu caías brancas e
, humildes, meias vestidas do niassiços de verdura.
São as capellas fúnebres, os carneiros das famílias.
N'esta paiiagem ns objectos rcvestcm-se lodos de
I uma belleza grave c triste.
.V vida dos viajantes na Córsega era monótona c
melancólica. M.iis de uma vez se arrependevi Lidia
do seu projecto ; porém já não tinha remédio. De
manhã, cm qu.iiilo cila desenhava ou escrevia, oco-
riuu'1 parli.l para a caç.i com o tenente Orso. Janta-
vam ás seis horas, e depois a bclla lady cantava ao
piano, sir Thomaz .Vov il resona\a, c o manc«bi> fica-
I va longas horas a conversar com sna filh.i.
Uma dVssas manhãs, ponco antes de voltarem os
caçadores, miss Nevíl. que S3t'ra a pjsseisr á beír.i-
I mar com a sua aia, já se retirava, qnando viu uma
mulher aind.i moça, vestida de preto, e monlaoa
o PANORAMA.
451
n'um cavallo pequeno, mas robusto. A formosura
jngeuua do seu roslo ; o gracioso véu de seda escura
chamado mezzaro, e as tranças de um louro cendra-
do enroscadas em forma de turbante no alto da ca-
beça provocaram a attenção de Lidia, que leu no
semblante da estrangeira a inquietação e a tristeza
luctando com o orgulho.
Miss Neril teve bastante tempo para a examinar;
porque depois de fazer algumas perguntas na rua
com muita viveza, a donzella tocou a vara no cavai-
lo e metteu a trote até lhe colher as rédeas á porta
da hospedaria do coronel ; e trocando poucas pala-
vras com o estalajadeiro, saltou da sella, e foiassen-
tar-se n'um poial de pedra ao lado da entrada prin-
cipal. D'ahi a breves instantes sir Thomaz e Orso
appareceram, e um homem velho lhe segredou um
momento ao ouvido, apontando com o dedo para
delia llcbia. Ella ergueu-se de repente, adiantou-se
uns passos, e estacando subitamente parou immovcl e
irresoluta.Orsocontemplava-a com interesse e pasmo.
— « È Orso delia Rebia com quem fallo? per-
guntou commovida. Um aceno de cabeça respondeu-
Ihc que não se enganava.
— « E cu sou Colomba. »
— « Colomba ! » bradou Orso. Edeilou-se-lhenos
braços, c beijou-a ternamente na face, com grande
assombro do coronel e de sua filha.
— <i Meu irmão, perdoa o ter vindo sem tua or-
dem— ditseram-me amigos meus que estavas aqui,
e era tanta a impaciência de te vêr. . . »
Orso tornou a beija-la, e virando-se para sirTho-
maz :
— « É minha irmã — que eu não conhecia se não
se nomeasse — Colomba, apresento-te o coronel sir
Thomaz Ncvil. Coronel, desculpe-me : hoje não pos-
so ter a honra de jantar na sua companhia. »
— B Qual ! Não consinto. Minha filha terá o maior
prazer com a companhia d'csta senhora. »
Fizcram-se na sala os cumprimentos do estylo, e
Colomba, depois de ir ao toucador de I.idia cuidar
da vestido, entrando no aposento delevc-se a admi-
rar as espingardas do coronel encostadas a um vão.
— « Boas armas — disse ella. — São tuas, meu ir-
mão? I)
— « São as espingardas inglczas do coronel — tão
perfeitas como certas. »
— « Muito bom era teres tu uma assim. »
— « E tem — acudiu o coronel — d'cstas trcsuma
é d'elle. »
Orso agradeceu, c sir Thomaz, dando-as a escolher
a Colomba, não ficou pouco adtiiir.ido de vrr.i don-
zella indicar a menos orn;id,i, e mais certa das es-
pinganl.is.
O tenenlí! soiiiii, <■ l.idiíi, \olt.iinli)-sc para Orso,
dissc-lhe ao oii\iilo — • « I!mi gueireiro iiTio ocolhia
melhor. »
— <i Na Corsego, seiíhiirn, é preriso que icidossc
familiarizem com asarnias. Niiisucm pôde dizer que
não precisará <lo as empregar. »
Miss Nevil altrihoiíi ao pensamento de vingança
estas palatras, e resp(iii(ii'ii só:
— :" t nina terra, cnlãn, omle a \iii;,'aiiçaíí uma
nccessidadi- ? n
— u ,Não, senhora, aliillioii Ciildiiilia com fiiriioza
— é uma lerni. oiiil(! o cuviíide ipie nau soiiliesse
vingar o sanií"" innoceiíte deir^iiiiailo, lallana no
mais sagiailo dever - r lei ia ^U•. se chcoiider da face
dos llOllK^IIS. »
K olhava eoiii anlor paia .seu irmão. Orso, arran-
cando iiiii siispiíi) pioliiiulo encostou o nisloaos |iu-
nlios e caiu n'uiiia sumliria meditação.
Era evidente. Uma tragedia ia succeder á chega-
da de delia Rebia á sua pátria.
í.idia suspirou lamuem. . .Porque?
Bem fácil de adivinhar seria para quem lesse nos
olhos azues e transparentes — o segredo que nem a si
mesma ella ainda ousava confessar.
Os Templabios.
(Continuado de pag. 144.)
«Na segunda feira, 18 de maio, os commissarios
' pontificius encarregaram o prioste da igreja de Poi-
tiers e o arcediago de Oricans de procurarem da sua
parte o venerável padre em Deus, arcebispo deSens,
e seus suflraganeos, para reclamarem os defensores
da ordem, Pedro de Boulogne, GuilhermedeCham-
bonnet, e Beltrão de Sartiges, de modo que podessem
ser conduzidos, debaixo de segura guarda, todas as
vezes que elles commissarios o requeressem, para a
defeza da ordem.» — E tiveram o cuidado de accres-
cenlar : « que não queriam de modo algum causar
impedimento ao arcebispo de Sens e ao concilio, mas
somente desencarregar a sua consciência. »
«Pela tarde, a commissão reuniu-se na igreja de
Saneia Genoveva, na capella de S. Eloy, e recebe-
ram os cónegos que vinham da parte do arcebispo :
este respondia que havia dois annos que se instaura-
ra processo contra os cavalleiros acima nomeadas co-
mo membros particulares da ordem ; quequeria ter-
mina-lo segundo a forma do mandato apostólico ;
que, quanto ao mais, não intentava de modo algum
perturbar os commissarios em seu officio.»— Horro-
rosa derisão ! —
« Tendo-se retirado os enviados do arcebispo de
Sens, conduziram perante os commissarios a Ray-
naldo de Pruin, Charabonnct, e Sartiges, os quaes
annunciaram que tinham separado d'elles Pedro de
Boulogne, sem que soubessem o porque ; accrescen-
tando que elles eram homens simples e sem expe-
riência, além d'isso estupefactos e perturbados, de
sorte que nada podiam dispor e dictar para defeza
da ordem, sem conselho do dicto Pedro. Por isso
tupplicavam aos dictos coraiiiissarios que o mandas-
sem comparecer c ouvir, e saber para que fora reti-
rado d'clles seus companheiros, e se queria persistir
na defeza ou abandona-la. Os commissarios ordena-
ram ao priDSlc de Poiliers e a João de Teinville
que no outro dia trouxessem á sua presença o dicto
freire. »
Não corista que no dia se;,Miiiilc eoniiinreeesse Pe-
dro de Itoulogiie ; piirerii iiiii.i iMiillid;iM de lempia-
rios vieiaiii declarar (|iic aliaii(li>iia>am a delez,!. No
.salibado, a coininissãi) (iesaiiiparada [lor mais uni dos
seus membros, addiou-se para 3 ile novembro próxi-
mo. — Nesta epocha, anula menos numerosos eram
os coinmisaarios ; estavam reduzidos a Ires : o arce-
bispo de Narbonna liiilia deixado Paris por servi{o
(lo rei ; o bispo de Bayeiix achava se jiinclo ao papa
ílii parle (lo rei ; <i arcediago de .Magiieloiio eslava
doeiíle ; o bisju) de l.im(if.;es pnzera se a caminho pa-
ra assistir á comiiiiss/io, miixo rei lhe iiidiidiitii ilizer
que iTa preciso proriifíar o caso até o pinxiiiin parla-
iiientii. Os meinliriis presentes iiiaiulai.im eomtodu
peif^iinlnr á poMa lia .sala se liavi.i alguma coiisa a
di/.ei' .1 piii da ordem do Tcinplo: - - niii^Miein appa-
rcutíu.
A M' de dezembro us commissarios proseguirnm
nos interrogatórios, o tornaram u rcclaiuur os dui&
Í52
O PANORAMA.
principacs defensores da ordem ; mas o cabeça de
todos, Pedro de Boulognc, linha desapparecido; eo
seu collega, Kaynaldo de Pruin, não podia já res-
ponder, segundo diziam, tendo sido exauetorado pe-
lo arcebispo de Sens : vinte c seis cavalleiros, quejá
tinham prestado juramento como tcslimunhas, foram
retidos pelas justiças do rei, e não podcram compa-
recer.
É cousa admirável que no meio de todas estas vio-
lências e n'um tal perigo se achasse certo numero de
cavalleiros para sustentar a innocencia da ordem ;
mas foi rara esta coragem : a pluralidade estava sub-
jugada pela impressão de profundo terror.
A perdição dos templários era por toda a parte
accelerada com encarniçamento nos concílios provin-
ciaes da França ; acabavam de ser queimados mais
nove cavalleiros em Senlis : os interrogatórios fize-
ram-se debaixo do terror das execuções : o processo
estava suffocado nas chammas. . . Acommissão pon-
tifícia continuou as suas sessões até 11 de junho de
1311 : o rcsuUa<lo dos seus trabalhos está consignado
n'um registo, que termina por estas palavras. —
)) Por accrescimo de precaução depositámos o dicto
processo, redigido pelos notariosemacta aulhenlica,
no thesouro de .\. Sr.° de Paris, para não ser exhi-
bido a ninguém senão por lettras especiaes de vossa
sanctidade. » —
Em todos os estados da christandade foi supprimi-
da a ordem, como inútil ou perigosa : os reis lhe to-
maram as propriedades, ou as deram a outras or-
dens; mas os indi\iduos foram poupados; o Iracta-
mento mais severo que soffreram foi serem prczos em
mosteiros, muitas vezes nos seus próprios conventos:
foi a única pena a que na Inglaterra condemnaram
os cabeças da ordem que se obstinaram a negar.
Os templários foram condemnados na Lombardia
e Toscana, e absolvidos em Uavena e Bolonha. Os
templários d'Allemanha justiíicaram-se á maneira
dos juizes-francos daWestphalia ; appresentaram-se
com armas perante os arcebispos de Moguncia e de
Treves, aíTirmaram a sua innocencia, voltaram as
costas ao tribunal, e retiraram-se pacificamente. Em
Caslella julgaram-n'os innocentes : no Aragão onde
tinham praças fortes metlcram-se n'ellas e resisti-
ram, principalmente na suacelebre fortaleza de .Mon-
çon : o rei d'Aragão ganhou estas praças ; c nem por
isso foram pcior tractados. Em Portugal deram fun-
damento ;i ordem de Christo. IS'ão era por cerlo na
Mespanha, á frente dos mouros, na terra clássica da
cruzada, que pensariam em proscre\er os antigos de-
fensores da christandade. O procedimcntodos outros
príncipes para com os templários era uma salyra
contri Filippc o formoso. O papa censurou esta
brandura; exprobrou aos reis dWnglaler^-a, deCas-
lella, do Aragão, ede Portugal o não lerem empre-
gado os tractos ; Filippe o fizera duro, quer ceilen-
do-lhe parle dos despojos, quer abandonando-lhe o
julgamento de Uonifacio : o rei de França se decidi-
ra a ceder algum lanlo nesle ullimo ponto ; porque
tudo eslava agitado ao redor de si : os estados a <jue
eslenilia a sua inlluencia parecia estarem dispostos a
cvadir-se-lhe. Os barões ingle/.es queriam dcrribaro
governo dos validos de Eduardo -2.°, que osabaléra
para com a França. Os gibelinos da llalia acclaraa-
vam o novo imperailor, Henrique de Luxemburgo,
para deporem o neto de Carlos d.Vnjou, o rei Ko-
berlo, grande letlrado c miserável rei. que so era
hábil na astrologia. A casa de França arriscava-se a
perder o seu ascendente sobre a christandade. O im-
pério, que haviam reputado morto, ameaçava tornar
i vida. Dominado por csles receios, Filippe permil-
tiu a Clemente declarar qae Bonifácio não era he-
rético (1), assegurando todavia qne orei linha obra-
do sem malignidade, e que antes, como outro Sem,
teria coberto o opprobrio, a nudez paterna. . .Noga-
ret lambem é absolvido com condição de que ha de
ir á cruzada (se houver cruzada} e servir toda a vida
na Terra Saneia ; no entanto fará lai e tal romaria.
O continuador de Nangis accrescenla maliciosamen-
te outra cendição, e vem a ser, que Nogarel deixará
por seu herdeiro o papa. — D'e5le modo houve com-
promissos : o rei cedeu a respeito de Bonifácio, e o
papa abandonou-Ihe os lenjplarios ; entregava os vi-
vos para salvar um morto ; porém este morto «ra
nada menos que o pontificado. — Feitos estes con-
certos familiarmente, restava faze-los approvar pela
igreja.
() concilio de Vienna abriu-se a 16 deouluhrode
1312, concilio ecuménico, em que tomaram assento
mais de trezentos bispes; porem foi ainda mais so-
lemne pela gravidade das matérias do que pelo nume-
ro dos assistentes. Primeiro devia tractar-se da re-
dempção dos sanctos logares ; todo o concilio faltava
n'isso, cadauni príncipe tomava a cruz, c lodos fica-
vam em casa : não passava de um meio de li rar di-
nheiro. O concilio tinha que regular dois grandes
negócios ; o de Bonifácio e o do Templo. Logo em
novembro se apresentaram aos prelados nove caval-
leiros olTerccendu-se animosamente a defender a or-
dem, e declarando que mil e quinhentos ou dois mil
dos seus estavam em Lyão ou nas montanhas visi-
nhas, promplosa sustenta-los. Eipantado com esta
derlaração, cu antes com o interesse que inspiravaa
dedicação dos nove, o papa os mandou prender. D'ahí
por diante não ousou reunir o concilio ; teve os bis-
pos inactivos lodo o inverno, n'aquella cidade es-
trangeira, longe das suas terras e dos seus negócios,
esperando sem duvida vencè-los pelo tédio, e convcr-
sando-os um por um. O negocio dos templários foi
' de novo começado na primavera : o rei apossou-se de
Lyão, que era oasylo d"clles. Os burguezeso tinham
chamado contra o s. u arcebispo ; aquella cidade im-
perial estava desamparada pelo império, e fazia mui-
ta conta ao rei, não só como o vincuU do Saone e
do Rhodano, e a ponta da França para leste, e c»-
mo cabeça da estrada para os .\lpes e a Provença ;
mas sobro tudo como asylo de descontentes, e ninho
dos heréticos. Filippe ahi convocou uma assembiéx
dos principacs da terra: depois vciu assistir ao con-
cilio com seus filhos, os seus magnates, e um grande
séquito de genlc armada: e tomou assento, um ,iou-
co mais baixo, ao lado do pap.i. Os bispos se mos-
traram pouco dóceis, obstinaado-se em querer ouvir
a defeza dos tem.larios. Os prelados dllalia, menos
um só, os de llespanha, dWllemanha e da Dina-
marca, os dlnglitcrra. Escócia e Irlanda, e ale os
francezes, súbditos de F'ilippe (,i excepção dos arce-
bispos de Rheims. Sens, e Uuão; declararam que
não podiam condemnar sem audiência. Foi forçoso,
por tanto, que depois de haver ajunctado oconcilio.
o papa se dispensasse d'clle : convocou alguns prela-
dos de mais conli.inça, alguns cardeaes; c n°e$le con-
sistório aboliu a ordem por auctoridade pontificia.
Foi promulgada dopois a abolição na presença do rei
e do concilio ; e nenhuma reclamação appareceu.
[Concluir-te-ha.)
(I) Esta tímida e iiu'oni|ile(a reparafão não parece .«uf-
fieieiíle ao escriplorVill.iiii; e acorescema, sem duvida pira
loriiar o assunipln in.iis dranialioo e mais verftonhoso para os
francetes, que <li>is cavalleiros calalies lançaram a luva e.<e
olfereceram para defender em coiuliale a innocencia de
Donifacio.
20
o PANORAMA.
15J
DorairuGOS antonio de sequeira.
Domingos António ue Shhueiha,
I
A riNTuiit niiiKM llorcciMi iiiiiiliioni l'orlii'i:;il. N^uinii
ou n\)iilr;i epocli.i iii.iis mimosa lin'aiil:ir,im-3o pro-
Ifclorcís intollif;ciilcs, e ('st(Mi(l(.'rum u iiião a atjçuin
laliMitii (jiio o.sriilciiiluu — mas <;ra osplcMidor inomeií-
laiioo — (li'|K)is rccaliia-Hu do novo na trislc o invete-
rada mediocridade, de<|u<? sempre adoeceu entre nós
íi liella arli! de llapliacd.
O niaMUHcri|ilo de Francisco de lliilhiuda, na sua
prosa eliã massenlida, nas aniarfçuradas rellexões ipu'
!«iila, eomo ^i'miilos de pi'ilo e:iii(;;id<> de si- eoni|>rÍ-
inir, uceiísa d''isl<i a eidpiida iiidilVerenea de ri>is tpu;
não estimam a art<; ou a não conliecem — de nobres
tpie só linj;i'm preza-la por vaidade — de ricos, ima-
ginando pa<;;ar com avarenlo salário o cpie a polida
(lalia recompensaria <'om liiiuras e lar<;os lliesouros.
N'iima (erra assim, n^im eslado d%'sles nriolia, não
podem nascer nem 'l'ici;inos, nem l'aulos llulx^ns.
Etpie para vencer adilr da indilTeren^'a, paru des-
VuL. 1. — Jankiiio 1(1, 1U47.
prezar o esquecimento e virar as cosias á ij;noraMt ■
prol,ec(j'ão (jue eslraí;a em m;z de eslinudar, o artista
lia de consumir mais danietadi? daslor<;as «pie neees-
sita consur\ar inteiras |)ara se formar — padecer si-
lencioso as inai;uas da miséria o as incertezas »la olvs-
curidade :, s(uitir-se maior do (pie mil <jue o |iizam e
cseanieeeni — e apesar irisso ter constância para não
deslalleeer, para bradar: — ..Mais um, niiiis (resaii-
nos de provanea, poripie no lim d'ellcs está o meu
dia e a minha viní;an(;a ! '<
l'ara odizer <> para ocumprir, Deus lhe lia de con-
ceder desde o lii^rço a voca(;ão, niãi do jjenio, com .•»
fortaleza tie vontade tpie, por cima dos i>spiuhos da
carri'ira solitária, caminha sem desalento :, ipie nos
lances da extriuna fadi;j;a, como ('hristo, cáe d<'l>aixo
da cruz, eri;ue-se iMisan^uentado, e não Ireiíie do s,i-
uriliiMo, (^ nào duvida uma hora de si e do liituro.
(■luaiitos morriram ja il\'sta hu'la horrivid, annil-
iliçoaiido na agonia ai-spi>iani;a <pii' oseui;anou, o la-
leiílo ipie os fez inleiizes, <• a art<' ile ipie toram ol»-
curos marl^res no meio do nmii<lo, <pie nem scipier
se voltou paru vôr apai;ar ii\iipiellc frio ciirai,ào o
164
O PA-\ORAMA.
ultimo raio de luz, que n'outro céu melhor seria um
astro !
Francisco de Hollanda chorou sobre o sepulchro,
onde a indifferença enterrava a pintura, pouco tem-
po antes de se ouvir na terra o grito com que a gran-
de alma de Camões se despedia da pátria, que lhe
pagava em afílicções a sua gloria. Singular di^lino '.
— que uniu a queixa ao exemplo — e quando uma
arte morre faz expirar com ella o primeiro e o ulti-
mo sacerdote da poesia, sua irmã ! Mas foram vin-
gadas ambas ; — os plainos d' Alcácer, também no se-
pulchro vasio do moço rei cavalleiro, sepultaram a na-
ção, a coroa e as glorias do reino de D. Manuel. —
Fizeram um deserto, quebraram todos os brios da na-
cionalidade, e por fim consummaram a sua obra pe-
la usurpação estrangeira — os traidores!
E assim succedeu sempre á pintura e á poesia —
uma definhou, a outra foi-se enfezando. Hospedas,
ignoradas e pobres, nenhum dos poderosos da terra
lhes faz bem senão por capricho, ou por acaso, até
D. João ^ .
Aquelle D. João V foi mais rei do que muitos a i
quem elogios comprados incensaram, mas não nobi-
litaram. Dizem d'elle que costava de compor as ac-
ções e o caracter á Luiz XIV; — a verdade é que as
suas aventuras freiraticas — os seus amores romanes-
cos, e os disfarces e surprezas das suas viagens noc-
turnas— cora que divertia a soníbria majestade da
etiqueta das audiências — o tornaram estimado e po-
pular— e também é verdade que todos alies acaba-
vam sempre "pelo rei saber ser rei.r'
A respeito das artes soube menos mal.
£ não soube só para as engomadas academias, que,
apesar de terem sido muito apupadas, deixaram, tra-
balhos como hoje não escrevem os seus críticos. — Era
rico, era munificente, e tinha verdadeira paixão pe-
las bellas artes. O " Salomão portuguez n como os seus
poetas lhe chamavam, fundou em Roma uma acade-
mia de pintura, e mandou instruir la os mancebos
em quem se divisavam indícios de sincera vocação.
D. João V, sem viver n'este século de tioradores
por vapor", tinha juizo claro, e gosto. Aprendera
d'intuição, ou d'exemplo.' Pouco imporia ; que para
ter artistas é necessário, antes de lhes fazer visitas re-
gias e de os condecorar, dar-lhcs recursos c educa-
ção— cria-los ao ptí dos modelos immortaes. Oh ! se
nós hoje voltássemos áquella cegueira anti-progressi\ a !
Sua neta a Sr.** D. Maria 1 também quiz ter pin-
tores, e fundou para isso cm 1781 a uaula regia de
desenho e figura •• — e á custa do " renl btilsinho >• en-
viou á sua academia de Roma, a completar os estu-
dos e aperfeiçoar o gosto, os alumnos mais distinctos
d'ella.
Ora, se não houvesse D. João V e a sua acade-
mia de Roma •, se não houvesse a Sr.** D. Maria I
com a sua aula de pintura; ese faltasse o " rra/ hol-
sinho " com as suas peças de 7 S .iOO réis. Portugal te-
ria tudo, menos Domingos António de Sequeira. Ed'a-
hi talvez haja quem diga : — i. Pois não era mais útil
empregar o dinheiro, que .njudou a croar um grande
artista, em repuxos municipaos ?•' O artista morro
e o repuxo fica; pi'ide empedr.ir o bordo de algum
poço artesiano «lepois de velho. E por que nãoí £
uma lógica como qualquer outra.
Domingos António de Sequeira, que nasceu em 1768,
desde a infância tinha manifestado decidida inclina-
ção para o des«>iiho ; e nos cinco annos que frequen-
tou a aula de pintura os prémios cos successos, rtid-
çando-o, mostraram bem que Portugal n'elle ia encon-
trar o talento mais distlncto em um ramo. no qual
tão poucos brilharam. Apenas acalxni oourst» foi cm-
]>regado em estudar com o engenhoso e extravagante
Francisco de Setúbal. ^ arios pannos, usados n'e3Se
tempo para forrar as paredes dos palácios, saíram do
pincel de Secjueira, e desde lozo fizeram presentir
qual seria o seu estylo em trabalhos mais elevados.
No anno de 1788, protectores illustrados alcançaram-
Ihe da rainha uma pensão do i^bobinho real -^ ; aju-
dado d'ella é que Setjueira pòdc emprehender a via-
gem de Roma e matricular-se na academia alli crea-
da, sendo dirigido em composição e desenho por Pi-
cola, em pintura por Cavalluci ; porém o seu verda-
deiro e grande mestre foi a rica e admirável collec-
ção de primores d'arte, da cidade de Leão X — esse
tliesouro que ainda hoje a consola do perdido impé-
rio e da eclipsada gloria militar.
Se<jueira, como Bocage, tinha a ardente imagina-
ção e a espontaneidade de creaçuo artística, que se
traduzia em obras acabadas, ou em improviioi rápi-
dos e fugiti\us. Nas suas mãos o lápis servia de ri-
val ápasmosa facilidade eá abundância do traductor
d'Ovidio e de Dellile. Um rolo de papel afumadoá
luz, ou simplesmente apenna bastavam ao pintor pa-
ra caprichosamente entreter a sociedade mais esco-
lhida nos longos serões d'inverno. Doestes csbocetos
ainda se conservam muitos, e todos elles provam até
que ponto, n'um trabalho descuidado e phantastico,
sabia unir a graça á correcção.
Em Roma as obras de Sequeira foram numerosas.
Entre ellaslouva-se pelaidéa edesempcnho a pintura
do tecto da casa de jantar na vtlha quinta C"mtUi,
representando ocarro dWpoUo, rodeado derefal.ulos
lateraes, em que se via toda a fabula de Narciso.
Na Academia de S. Lucas tambcni existem dois
quadros seus — o do milajre dos cinco pãtt e dou
peixei — e o da degolla^uo de S. João B.ipliila. Foi
a estes últimos que deveu o primeiro premio da clas-
se de pintura d'aquella academia, e o diploma de
seu professor e sócio de mérito. Depois de percorrer
parte da Itália, examinando, comparando, e copian-
do as maravilhas de todos os séculos, regressou Se-
queira á pátria no anno de 1796. Ahi o esperavam
os desgostos e os desenganos, que infelizmente nun-
ca deixam d''acoiher o merecimento superior n'esta
terra. (Continua.)
A substancia d'esta noticia sobre Sequeira é tira-
da do artigo biographico publicado pelo Sr. Silva
Leal em o segundo numero do jornal das Bellas .Ar-
tes de Lisboa ; e das reilexOos disseminadas no livro
do Sr. conde de Rackivnski, intitulado /is artes em
Portugal. Se mais alguma se podia adiantar, a falta
de espaço nos não consentiu averigua-la.
Mahomet oc Mafojia.
(Continuado dr pa;. 147.)
Mas quando Mahomct viu que tinha nm partido
formidável em Mfdina. n.ão rec»'iou p<ir-«e a j»ar dos
patriarch;is antigos e dos anfÍ!r<"is proplietas ; e até
quiz f;uer um milagre mais estupendo do qne todos
os que se atlribuiam aos perstMiagens a que elle cha-
mava seus predeccs5»>res, e cora este intento narroa
a su.T viagem nocturna ao setim» céu. Se Abraltfo
n-coliêra frequentes vi>it.is dos anjos, se MoT«es pas-
sara quarenta dias sobre o monte Sin:ii em culloquios
cx>m o Senhor, se Jesus alcançara de Deus f.ivopes
ainda mais assignalados, elle. Mafoma, apparecém
na presença do Eterno. Eis-aqui como narrou a sua
prodigiosa ascensão.
.. Estava deitado, dix elle, entre as coUinas de Sa-
o PANORAxMA.
155
la e Merva, quando Gabriel, chegando-se a mim, se
deu pressa em aeordar-me. Trazia Alborak, jumenta
de pello cinzento prateado, que tem cabeça de mu-
lher, cauda de pa\ão, eque anda tão veloz que abar-
ca tanto terreno quanto a vista mais aguda pode al-
cançar. Brilhavani-lhe os olhos como estrellas. Abriu
as suas duas azas de águia. Cheguei-me a ella. 1'ozr-
se a espinotear : «íEstá quieta, lhe disse Gabriel, e
obedece a Mahoniet.» A jumenta respondeu: "O
propheta Mahomet não me cavalgará sem que tu ha-
jas alcançado d^eile que me dè entrada no paraizo
no dia da rcsurreição. » Prometti-lh'o (l). Então
deixou-se montar, e^de repente nos achamos as jor-
tas de Jerusalém. A entrada do templo encontrei
Abralião, Moysés o Jesus; orei com elles, e acabada
a oração, desceu subitamente do céu uma escada de
luz, e corremos com a rapidez do relâmpago a im-
inensa extensão dos ares.
iiHuando ciiegámos ao primeiro paraizo, o anjo
bateu á porta: "(Auem está ahi?" perguntaram,
u Gabriel." "Quem é o teu companheiro ?" "Ma-
homet. " « Recebeu a missão ? » " Recebeu-a. " " Bcm-
vindo seja. r>- A estas palavras, a porta, maior que a
terra, gyrou nos quicios, e entrámos. Este primeiro
céu é de prata pura ; da sua abobada niagestosa es-
tão pendentes as estrellas por grossas cadeias de ou-
ro. A cadauma doestas estrellas está um anjo de sen-
tinella para evitar <jue os demónios assaltem o ceu.
Veio abraçar-me uiTi velho chamando-me o maior de
seus filhos. Era Adão. Não tive tempo de lhe lallar :
pri'iideu-me a altenção a turba de anjos de todas as
iornias e cores. Do meio dVstes anjos se levanta um
gallo d''unia alvura mais brilhante que a da neve, e
de grandeza tão mjriíica que roça com a cabeça no
segundo céu, distante do primeiro quinhentos annos
de caminho. Muito me confundira tudo isto se Ga-
briel me não dissera que estes anjos estão alli, sob iis
lormas de aniniaes, alim de intercederem para com
Deus por todas as creaturas da mesma forma, que
vivem na terra ; que este grande gallo é o anjo dos
gallos, e (pie a sua obrigação principal é recrear o
Eterno todas as manhãs com seus cantos e h^ninos.
" Deixámos o gallo e_ os anjos-animaes para subir-
mos ao segundo céu. E composto d'uma espécie de
ferro duro e jiolido. Achei alli Noé, que mo recebeu
nos braços. Jesus e João se chegaram depois, e me
cliamaram o maior dos homens. Subimos então ao
lerci:iro céu, mais distante do segundo do que este
dista do primeiro. E preciso, pelo menos, ser pro-
piícta para supportar o brillio deslumbrante d'este
léu, inteiramente formado de |)edras preciosas. En-
Ue os entes immortacrs <|Ue o habitam distingui um
anjo de altura incomparável; governava cem mil
anjos, cada (|ual, de per si, mais forte que cem mil
bataliiões ile guerreiros prestes a pelejar. Este gran-
de anjo ehama-se o coniidenie de Deus ; tão ])rodi-
giosa é a sua estatura que do seu olho direito ao
olho esquerdo vão setenta mil dias de caminho. Es-
t.iva adiante doeste anjo um imnieiiso liofete sobre o
<pial nTio parava du «.'serever. Gabriel me disse que o
conliilent(^ de Deus era ao mesmo tempo o anjo da
morte, emprigado viu escrever os nomes dos que lião
ili.' nascer, em calcular os dias dos vivos, e em risca-
(1) Sri;unilu iilviiliii iiii('tiiri'H innsiiliiiMiKis, u Juiiwnln Al-
))i)ralk iiinni nu |mrai/.t>, nit ruii)|taiiliiu ilo i'i\i> ilus ncIc Dur-
1111'nti'H, liTiila cii'11'iilnl, ilii ciiriiiirn ipie fui siiitIIIcikIu pur
AltritliTto, tia Imrni d'^ llalnatii, du raim-lln cm (|iii' Miiloiiui
fu:,'m ili' MiMM para MimIiiiu, iln liiirru iin ipic Nosso SiMilior
í^iilrnu cm .IcniHulcnt, tlti cavnlln ilc S. Jttrn'' c do lairrtt do
|ir<ipliclu I<!Hdras, l<!»la rttsii íU- bicftus ucciípu um tojfiir tliij-
íiikUí no ccu ilc Maluiiia.
los do livro á medida que chegam ao termo marcado
pelos seus cálculos.
"Urgia o tempo; attingimos oquarto céu. Enoch,
que alli se achava, ficou mui ledo de me vêr. Este
céu é de prata fina, transparente como vidro; po-
voam-n'o anjos dVlevada estatura ; um d^elles. mui-
to mais baixo que o anjo da morte, tem conitudo
quinhentos dias de altura. O emprego d'este anjo é
muito triste, ponjue tão somente se occupa em cho-
rar os peccados dos homens, e predizer os males que
elles a si se preparam. Por estas lamentações n.ão me
agradarem não estive para as ouvir por muito tem-
po. Traiisportámo-nos logo ao quinto céu. Aarão
veio receber-uos e appresentar-me a Moysés, que se
recommendou ás minhas orações. O quinto céu é de
ouro puro; os anjos que o habitam não riem muito,
e com razão, porque são os depositários d:is vingan-
ças divinas e dos fogos devoradores da cholera celes-
te. Também teem a seu cargo vigiar os supplicios
dos peccadores endurecidos, e preparar tormentos
horríveis para os árabes que recusarem adorar um
só Deus. Este espectáculo doloroso me f<« apressar a
jornada, e eu subi ao sexto céu com o meu guia.
Alli encontrei outra vez Moysés, que se poz a cho-
rar, porque, dizia elle, que eu havia de conduzir ao
paraizo mais árabes do que judeus elle tinha condu-
zido.
« Em quanto estava a consolar !Moysés, senti-me
arrebatar não sei como, e cheguei n'um vòo mais
rápido que o pensamento ao sétimo e ultimo ceu.
Não posso dar uma idéa da riqueza d'òste formoso
paraizo; contentem-se com saber que é formado de
luz divina. O primeiro dos seus habitadores ([ue me
deu na vista excede a terra em extensão; tem se-
tenta mil cabeças, cada cabeça tem setenta mil lx)C-
cas, cada bocca setenta mil linguas, que tallam de
continuo e todas ao mesmo tempo, setenta mil idii>-
inas dilíerentes em (|ue celebram os louvores de Deus.
Depois de ter considerado este ente celeste, fui arre-
batado de súbito por um sopro divino, e achei-me
sentado ao pé do limoeiro immortal, arvore niages-
tosa plantada á direita do throno invisível de Deus,
d'este throno ante o qual aniem sem cessar quatorze
cirios que teem de altura setenta annos de caminho ;
os ramos do limoeiro, mais extensos do que a distan-
cia que vai do sol á terra, dão sombra a uma multi-
dão d(! anjos muito mais numerosos que os grãos de
areia ile todos os desertos, de todos os mares, de to-
dos os rios e de todos os ribeiros. Sobre os ramos do
limoeiro pousam aves immortaes, empregadas em
considerar as passagens sublimes do Koran. As iV>-
Ihas d'esta arvore assemelham-se a orelhas de olc-
phante; os seus fruclos são mais doces que o li'itc ;
um só d'elles bastará para sustentar um dia todas as
creaturas de todos os mundos, (.'ada semente encerra
uma das houris, virgens divinas reservadas ]>iira os
prazeres eternos dos musulmanos. Jla quatro espécies
de houris : umas são brancas, outras còr de rosa, ou-
tras amarellas, e outras verdes) ; são os seus olhos tão
lindos, cpie se uma houris volvesse os olhos aterra em
a ijoite mais tenebrosa, dar-lhe-hia tanta luz como o
sol em todo o seu esplendor ; entregar-se-hão ás ca-
ricias dos lieis sem deixarem de ser virgens, tluatro
rios saem do pé do limoeiro, dois para o paruiío, e
dois para a terra; os dois ultinn>s são o Ai/o eo
liiiplirules, <le <|Ue ninguém aMt^■^ de mini iHinheeí-
ra a nascente.
i. (ial)riel dei\ou-me a<|ul, por<|iie llie não era |H'r-
mittido passar adi.inle. Kapliail Itcou em seu logar,
e le\(iu-me á casa ill\ina ila oração, ondi? si- junc-
tani cada ília, em romaria, setenta mil anjos da pri-
meira classe; os i|ue la \àii um.i vci não tornam a
156
O PANORAxMA.
ir. Esta casa, formada ile jacinthos ecercada dclanri-
padas (jiie ardem etcTiiamerito, assemflha-se ao tem-
plo de Meca ; e se caísse perpendicularmente do sé-
timo céu sobre a terra, como poderá succeder algum
dia, pousaria sobre a Caaba. E cousa estranha, mas
certa.
«Apenas puz o pé na casa da adoração um anjo
me appresentou três taças; a primeira estava cheia
de vinliu, a segunda de leite, e a terceira de mel
Ebcollii aquella em que estava o leite. Logo, uma
voz forte como dez trovões fez relximbar estas pala-
vras : i' Oh Mahomet ! bem fizeste cm pegar na taça
em que está o leite ; se houvesses bebiiío o vinho,
ficava atua naç-ão pervertida e desgraçada. " Mas
um novo espectáculo me veio turbar a vista. Fez-me
o anjo atravessar, tão depressa quanto a imaginação
pode conceber, dois mares de luz, e um terceiro ne-
gro como a noite : achei-me então na presença de
Deus. Apoderava-se o terror de todos os meus senti-
dos, quando uma voz mais estrondosa que a das va-
gas agitadas, me bradou: u Proseguc, oh Mahomet!
chega-te ao throno glorioso!" Obedeci, e li estas
palavras n'uni dos lados do throno: "Não ha outro
Deus senão Deus, e Mahomet é o seu propheta. "
Ao mesmo tempo poz Deus a mão direita no meu
peito e a mão esquerda no meu hombro ; senti um
frio agudo correr-me por todo o corpo e gelar-nic
ate a medula dos ossos. A este estado de padecimen-
to seguiram-se dentro em pouco doçuras inexprimí-
veis e desconhecidas dos filhos dos homens, doçuras
que me embriagaram a alma. Apoz e.^tes transportes
tive com Deus uma conversação familiar <)ue durou
muito tempo. Dictou-me Deus os preceitos que acha-
reis no Koran. e depois ordenou-me que vos exhor-
tasse a sustentar com as armas e o sangue a sancta
religião.
"Quando o Eterno acabou de fallar fui ter com
Gabriel. Abriu os seus cento e quarenta pares de
azas, e descemos os sete céus, onde muitas vezes nos
demoraram os coiiciTtos dos espíritos celestes, que
cantavam os nossos louvores. Mas Deus me tinha
determinado que fizesse orar cincoeuta vezes por dia.
Q.uando cheguei ao céu de iMoysés communiquei-lhe
a ordem que recebera. "Torna ao Senhor, disse-me
o eonduetor dos hebreus ; pede-llie que mitigue o pre-
ceito : o teu povo nunca poderá cumpri-lo." Subi
ate o Altíssimo e pedi-lhe cjue diminuisse o numero
das rezas. Ficou reduzido a quarenta. O saliío Mov-
ses me rogou fizesse novas instancias, c, depois de
reiteradas viagens, ficou determinado que as orações
fossem cinco. Cheguei a Jerusalém, e a escada de
luz tornou a descer da abobada celeste. Alborak me
esperava. Ainda era noite. Levou-me até onde me
tomara, agitando somente duas vezes as suas grandes
azas. Então disse eu a Gabriel: "Muito temo que o
meu povo não queira acreditar a narraç.ão d"esta
viagem." "Tranquillisa-te, me respondeu o anjo. o
liei Abou-l!(kr e o valente e sancto Ali sustentarão
a verdade d'estes prodígios." (Continua.)
O KitEMiTKiiio DO Vesúvio.
O Vesovio está situado entre o mar c os Apenni-
nos, a duas c meia léguas de Nápoles pouco mais ou
menos, e separado d'esta cidade |K'la curvatura do
golplio de que dista obra de uma légua na costa orien-
tal, ficando sobranceiro á Torre dei (ireco, e a l'or-
tici: n'e3ta ultima tem a corte na[K)litana um bollo
palácio para residência no verão. Esta montanha
volcanica, de fúnna |>vramidid, tem agora umas CUU
toeza» de elevação acima do nível do mar; são tan-
tas as variações por que tem passado na sua altura
e na forma da cratera, que é difficil dar uma exacta
idéa d'ella ■, o viajante conta o que viu, ma» não pô-
de prognosticar o que verão os que depois d^elle vie-
rem ; d'aquí as encontradas relações que se lêem,
posto que muitas escríptas no mesmo século. Amiu-
dadas teem sido as sua» erupções-, ao catalogo e cir-
cumstancías d^ellas, e á sua posição na Europa, de-
ve este volcão unicamente a sua celebridade-
O Vesúvio está apartado da grande cordilheira
dos .\pennínos, e é mister distingui-lo do monte da
Somma, com que muitos o confundem, dando-lhe es-
te nome, e do monte Ottaiano, and>os os quaes se
levantam a seus lados sobre raízes ou bases cummuns,
sendo muito de crer que também elles furam cm
tempo remoto volcões. Olhando-se do largo do paço
ou do molhe de Na[)oles, dir-soha que oSomma está
contíguo ao Vesúvio e com elle forma uma só mon-
tanha de cume bícipite ; ptpr detrar de ambos escon-
de-se á vista o pico de Ottaiano-
A bacia que se dilata nas faldas do \esuvio ap-
presenta o mais amplo e ma'.;nílico painel: — um
circulo de aprazíveis collínas ordenadas em amphí-
theatro, rebaixando-se insensivelmente para o lado
do mar; e no seu decli\e uma cidade afagada sem-
pre pelos raios os mais brandos, mais transparentes
e puros do formoso sol dMt.ilia; pouco mais alto, á
direita, avultando nos ares, o casfello Santelmo, as-
sente por cima da cidade para a defender ou, o que
mais parece, para aformosea-la, surge do meio da
verdura que cm todas as estações cinge a eminên-
cia; — mais em baixo, o golpho onde se reflecte ia
villa reale ; e o palácio da rainha Joanna, de mvste-
riosos subterrâneos, em cujos destroços se engolpham
e mugem as ondas Por outra parte a\ ísta-se o sup-
posto tumulo de Virgílio, e a gruta ou perforação
do 1'ausílíppo (l), beneficio que a tradição popular
remotíssima attríbue á arte magica do insigne poe-
ta, convertido ein feitii-eiro; porque o povo cn.thu-
siasta descobrira ii'aquelle grande génio um não sei
que extraordinário e sobrehumano. Os sítios delicio-
sos que os seus versos viilgarisaram, avistam-se mais
ao longe, Cumas, os Cam|)os EUsios. o antro da Si-
bvHa. — A esquerda o Selwto. e Hcrculanum, se-
pultada debaixo do chão, Porlici, Stabbia arruinada.
Pompeia em parte restituída á claridade do dia (2) :
— na extremidade do caU> o convento dos Camaldu-
lenses, e no horisonte Sorrento. illustrada por um
grande poeta desditoso (3). — Aquella cidade que
|)rimeíro enumerámos é Nápoles, cujas cercanias se
denominam terra afortunada. Cnmpagitn Felice ; e
essa iiaizagem immens;t é assoberbada pelo mais pic-
turesco dos montes, o A esuvio, cujas harmonias e li-
nhas esquivas não se acham dignamente representa-
das pelo pincel, |Kín|ue uma natureia tão ideal e
tão magica não pôde pintar-so.
Perguntam os habitantes do restante da Europa
de que procede o soccgo do napolitano, ameaçado de
(O .\ estrada qiic comniunica Nápoles com Poiíixolo
pnssa atravei do pequeno monto Pan5ilip|)0, cuja perforação
já existiu em lein|>o de Nero. I^noia-se |>or que mios foi ei-
caiadu.
(i) Hcrcul.iniiin, di-seolwrla cm 171.1, nunca potli-râ iln-
oiilulli.ir-se á superticie do solo por causa da n«:i-*sid»de ile
poupar os edifícios de 1'ortici, dctiaivo dos (piars «-stá silua-
da : quando, inuilas lens. <e acalwm »s c»ca>»ç<V-» n'um
lojar. é preciso tMiliipi-l» cmi l'rra cpie se cilralii- de altu-
ma valia proxiiua. Uuaiito a Ponipi-ia. como ja« dclaixo de
?inlias. nliiHiis dos s.iis princi|nc» olificio» e ru.i» cflâo já
dl- todo desentulhadas.
l^.i) O auclor da Ucrusalemme libcrata.
o PANORAMA.
157
continuo pelo Vesúvio \ este enigma dccifra-o quem
pisa o bello território de Nápoles, quem tem respi-
rado o ar puro d'aquella suave atmosphera. Debalde
cidades inteiras, ainda no século passado como na an-
tiguidade, foram si-pultadas pelos incêndios do vol-
cão^ as suas terríveis dcvastaç;ões debalde adquiri-
ram na historia fatal celebridade: tranquillisado pe-
lo habito, ou seduzido por vistas encantadoras, o na-
politano dorme socegadaniente ao pé da voragem ;
edilica os cminos e deliciosas casas de recreio no cs-
pati-o coniprebi-ndido entre a falda e o vértice da
montanha ignivoma, palácios talvez ephemeros, que
insultam com suas grimpas esbeltas as torrentes de
lava que os circumdam, e cujo inevitável destino e
desappareccrem ou cedo ou tarde n;is ondas d'aquel-
la inundai^ão temerosa.
Contaremos brevemente a ascensão de um viajan-
te verídico, não ha muitos annos. —
No principio de janeiro de 1330 partimos de Na-
poUrs ás sete horas e meia da manliã para ir visitar
o Vesúvio, volcão que os napolitanos no seu est^ lo
poctico chamam ta tnnntagna, como antonomásia;
posto que pelo vulto lhe não caiba, mas sim pelos
eOeitos. Fomos em caleças (l) a Késina, aldeola á
líeiramar pegada com Herculanuni, a mais perto do
Vesúvio, que já a tem alagado quatro vezes. Apenas
apeados no pequeno largo onde se acham os ciccrnni,
e os jumentos que transportam os viajantes, virao- j
nos cercados da turba. Kra a quem nos agarraria, a
quem mais alto gritaria para nos olferecerem seu i
préstimo ou ascavalgaduras. Dir-se-hia que era uma '
i>eíli(;ão. Impacientados mandámos ao demo homens
e burros; e como o ultimo dos Iloracios fugimos pa-
ra dispersar os nossos inimigos. Partimos sósinhos :
a alguma distancia de Késina é que adoptámos um !
guia que luimuu cm nos seguir. As nove horas co- I
meçamos a subida. Ainda bem não tínhamos passa-
do as ultimas casas de Resina, já pisávamos as lavas
que com a côr denegrida entristecem a vista. Pre-
cursoras das fadigas que nos aguardam, as pedras
volcanicas, as escorias nos rasgam os pés. Começa a
natureza uu>rta, o elemento de destruição, que de
súbito transforma um paia fecundo e ameno na soli-
dão da morte. Tudo mostra um não sei que espan-
toso e sinistro. Todavia a vista descança de tempo a
tempo n'algumas porções de terreno <jue ainda não
foram invadidas, ou que, tornadas á agricultura pe-
la successão das eras, se recamam de arvores e vi-
nhas, e parecem os oásis d'aquelle deserto. Aqui é
que se dá o tão afamado vinho laci ijiiia Vlirisli. A
cinza do volcão fortalece a cepa, e indcmnisa assim
de algum modo dos damiios que por vezes causa. —
Além de que (quem o acreditará.') nenhuma região
do globo possuo no mesmo espaço de território tanta
população como a que cerca o Vesúvio . é rodeado
de vivendas e quintas, propriedade de homens que
se deslembram do perigo, procurando tirar proveito
da fertilidade do torrão, e que, terminada a erup-
ção, tornam a levantar a casa no mesmo sitio, d on-
de a experiência funesta, mas inútil, os deveria en-
sinar a fugir.
Proseguimos . . . em breve tudo se vê coberto de
lavas; dislinguem-se as das diversas erupções pela
diflerença de côr. O nosso guia indica-nos a de 1822
que occupa immensa superfície. O caminho dirige-
se quaii em linha recta para o lado do cone da mon-
tanlia que ollia ao norte, até chegar ao piano deite
(jetitstre. Esta chan, outr'ora coberta de arbustos de
pcrenne viço, de moitas e de giestas, não e agora
senão um terreiro escalvado, onde não se vê mais
que as superfícies espumosas de vastas torrentes de
lava que se cruzaram umas com as outras.
•.-'V/w^.i.''^'^^^
As on/.i- horas menos um (|Uarlu ehcgánu)5 ao ere-
mitério de S. í^al\adol■, silo n'um piM|ueno plaino
li) I)u uiumnii inuilo que lu goiululus fl;;urum eiitrc an
< liriuKilliiilrs ili- Viiii/ii, o ciílcuziíio púili; loiílar-si- iimu Ohs
kiiiKiil.iiiilmli'H (ir* Niipulrs. S<; iiilu \ tstfii (ilu tiiilro viujaii-
Iff) o l>iiiiilii iloiiiliii ili' Ciiilus Vriinl, iiiiai;iri:ii nina fs|ic-
••ii! (li! lilliiuy i'iii Ilirnia ili' cniirlia, ilr a)i|iMri una lAii li'vc c
Iraífil <|"'' (larTn ili^vja iHiuiitar iMU llll^allMa aci |>rjiiirii'»
cuiliatc. t'!iila (:am\a roíluiitc <: lutln finlutiirraila tlt* duiira-
•lo» que Ihr prcxlaiii ciTla i'li';;aiii'ia ; o );aii/,iaiii> qiif a |iii.\a
If-ii» uncii» ludiis ciniailu» ili.' |iri7'uii aiiiarcUus u na cube^'a
na cxiremidaile o<cideMlal do culmu dei Limlnuii..
Até agora a sua elevada situação o tem ])ri's(Tvado
um pciMutclit) ilr jiluiiias i uu \rr u cuUu i-i>lilii'o tio cavalli-
iiliu lilu lii'iii jiiii^iilu á ('uli-(;a, Ciiiumniiii'iil>' tuiliiilailu com
a uiai.s cstricta iiarciuiDiiia, jnlj;»ri'is qiif o .sru tlcliratUi lii-«
ujjiila para rllr i' suliijaiiirnli' ptxailo. l'.irli', r im si» «r-
ilcir (livura u i>pai;<i; cusla a \i>la a .-r^ni-lii pilas larjii» U-
piis ilr la\a.s ili- ipif Napulrs v ('al>,'ailii. t) ronilmior, lr<'-
pailii ahaz ila ria;;il iiiai'liiiia, nm> imia ila.i iiiAus sri!Ur« uu
rrili «s piir i-liim ila caliiijii ili'S que i-nmlu» f ouui il oulia
a^'ila uiu ciiiiipriil» aruulu. A caivu Uo lultsíiiiu apcliu* rvii-
lúii (Jmus puiuuni.
1Õ8
O PANORAMA.
«las lavas, que sempre se teem dividido ao pé do ro-
chedo volcanico sobre que dcscança. O eremitério,
•jiie data de 1631, contt^m uma capella e alçuns
quartos. — Habita alli um ermitão (diz M.'"" de
Stael) MOS confins da vida e da morte. Diante da
sua iiorta estão algumas arvores, ultima despedida á
vegetação. Estes eremitas não são sempre religiosos ;
Iiaverá quarenta annos, um d'olles, que morreu n'u-
ma idade mui avançada, era um antigo criado da
(■amara de M.™« de 1'ompadour. (iue contraste!
Jíepois de haver servido as coUaoões de Luiz 15.",
preparar a refeição frugal do viajante, (iue combi-
nação! Trianon na falda do Vesúvio!
Conserva-se no eremitério um livro onde cadaum
viajante inscreve o seu nome e algumas vezes um
pensamento e uma máxima. Cousa singular 1 raras
vezes o Vesúvio tem inspirado alguma idéa digna
d'elle. Ao redor do eremitério ha capellinlias onde
vem gente em peregrinação fazer as estações <la Via-
Sacra. (iue logar mais próprio para inspirar os seu-
timentos que o homem deve ter em relação a Deus ?
O Vesúvio é o temor ^ Nápoles a gratidão !
(Cuntinúa.)
Expedições de três potencias ao poio
IÇ
AISTRAL.
Os a>-nos de 1R38, 1839, e 1840 farão epocha nos
fastos niaritimos ; assignalarani-n'os três exjiedições
scientific.is, saídas dos portos do França, d'lnglater-
ra e dos Estados-Unidos. — As três expedições, leva-
das de nobre emulação, acham-se nas mesmas para-
gens na estação do anno que parmitte accesso ás al-
tas latitudes austraes : teem por objecto os progressos
da seiencia, a determinação do polo magnético aus-
tral, o estado geológico egeographico do polo antárc-
tico, e verosimilmente todas três o desejo ambicioso
de tocar n'algura ponto do globo em que os homens
não tivessem ainda posto a vista, onde nenhum bai-
xel houvesse despregado as vehts.
A simultaneidade d'estas expedições, pertencentes
ás três maiores potencias marítimas, é uma eircuins-
tancia que provavelmente não tornará a dar-se ; e se
rellectirmos que não podiam effcituar as suas opera-
ções senão debaixo de uma temperatura que varia\a
de zero a 20 graus de frio, e incessantemente entre-
gues á iniluencia de todos os agentes destruidores, a
chuva, a saraiva, a neve, as tormentas, as trovoadas,
as serras degelo iluctuantes, osterremoti», osvolcões,
não poderemos deixar do admirar a resolução dos in-
trépidos navegantes chamados á honra de ascomman-
dar^ e esses comniandantes eram VitmoiU d^ Lh filie
pela França, Jioss pela Inglaterra, Jfilkes pelos Es-
tados-Unidos.
As três em prezas tiveram resultados differentes;
todavia nenhuma foi sem fructo, e seria temeridade
e injustiça avaliar o merecimento dos conimandantes
pelos resultados que se obtiveram. Amais ousada das
expedições podia ser vencida e excedida por outra ri-
val ; em tal caso, e em paragens taes, depende tudo
das eircumstancias i dois navios, navegando de con-
serva, ]Kidem no mesmo instante experimentar diver-
Ha fortuna, ainda que estejam separados distancia de
poucos centos de braças ; um passará livremente por
entre duas numtanlias de gelos Iluctuantes, outro se-
rá arrebataiiamcnte estorvado, envolvido e exposto
aos mais extri.Muos perigos. — Se a ex[K'dição ingleza
])enetr(iu até o 78" parallolo do polo austral, deve-o
unicamente ao acaso de uma boa fortuna, eesta \an-
tagem nada deve inlhiir na opinião que se formar
do mérito dos commandanies c offieiaes das outr.is.
Daremos uui extracto dos traUvllios de cadauma dVl-
las. Começaremos pela que appresenla menores resul-
tados, posto que se dessem pela sua parte muito mais
probabilidades do que pela da» suas rivaes. Com ef-
feito a expedição americana compunha-se de clncu
navios, eeada uma das outras só contava dois. N 'es-
te resumo das operações de cada uma pasmaremos em
silencio tudo o que não tiver directa relação com a
i exploração do pulo austral.
Expedição dos Jiríadot-Uéiidof.
O capitão VVilkes tinha ás suas ordens uma divi-
são de cinco navios e montava a fragata l ineennet.
Saindo do porto em 1333, tocou na Madeira, d'onde
largou a 28 de setembro, e seguiu para a 'l'erra do
Fogo, que deixou para tomar o rumo do polo antárc-
tico. Não foi Ijem favorecido na viagem ; violentas
tempestades dispersaram a sua esquadrilha, a qual
chegou comtudo á latitude austral de 70". Porém,
embaraçado sempre por montes degelo impenetráveis,
e estando já muito adiantada a estação, \iu-se cons-
trangido a abandonar paragens perigosas ; poz a pnJa
ao norte e ieio deitar ferro a Valparaizo aos 15 de
maio de 183». Largou depois esta arribada para ir
á Nova-Hollanda, ao porto de Sidney.
No seguinte anno, a 10 de janeiro de 1840, o ca-
pitão 'v\ ilkes parte novamente de Sidnev para nova
exploração do polo austral pelos 61" de latitude, ul-
trapassa as primeiras montanhas de gelo, mas em bre-
ve a sua derrota é suspendida por uma barreira in-
superável lia mesma espécie, que obriga a f incennei
a tomar para oeste ; a 1 9 de janeiro o ponto do ca-
pitão Wilkes era 66" 2o' de latitude e 154" 27 de 1
longitude ao oriente do meridiano de Paris; eé d'es- I
te ponto que o capitão \\ ilkes teve conhecimento da
terra Adélia. — E de muita importância notar que,
n'esse mesmo dia I!> de janeiro, a expedição france-
zaachava-se a6.í" 39' 3.V' delatitude e 139" õ 25"
de longitude oriental, isto é, quasi um grau mais ao
norte que a fUitcenncs, c 15" 2l' 35'' mais para
oeste.
Ora, se na verdade o capitão VVilkes houve vista de
uma terra, não é a terra Mtlia. a menos que esta se não
prolongue 15 a 30 graus na direcção oriental, como
acontece na parte occidentnl. segundo o verificou o
capitão Dumont d'L rville. Porém sigamos a derrota
da yincennes.
A 30 de janeiro acha-se n'uma bahia empachada j
de accumulações de polo e de rochas volcanicas, acos-
ta da qual parecia alargar-se para o sul •, o terreno
era montanhoso; asoudareza dava 34 braças de fun-
do.— Depois de longos e baldados esforços para sur-
gir, o capitão é novamente forçado a prolongar-se
com acosta, o que fez até os 97" de longitude; n'e*-
te ponto. achan(!t>-se ;ior 64" <le latitude, costeia do
novo a terra jxir espaço de 57" do oriente ao occi-
dcnte, quasi sobre o mesmo parallelo ; mas n.ão^u-
de alx>rda-la, e não oIToreeendo o adiantamento da
estação probabilidade ah^unia de exilo á empreza. o
capitão tomou a resolução de picar para o norte, dan-
do á torra, que julgou haver descoberto, o nome de
continente antárctico.
.•V gora estamos em ciroumstanrias de appreciar mili-
tei* factos im}H>rlantes, relativos á priori<lade do des-
cobrimento da terra Adélia. — Mr. le (iuillou, qiu'
embarcou com Dumont d'l rville, como cirurgião
niór da Xelrc. tr.iotamlo d'esta matéria na obra que
liou álui. adiaula f.iolos que carecem de precisão, do
concordância, e sobre tudo de justiça. — .\ pag. 108
dií positivamente ^a cx[H>diç."u> franceia te^e vista
da torra a <a de janeiro, mas não |>oude toma-la se-
não a 21, • A pai. 206 díi — •• a exj)edição ame-
o PANORAMA.
159
ricana teve indícios da terra a 1 9 de janeiro, p pa-
ra odiante este; indicio? reconverteram em certeza."
— Por esta simples exposição das datas é evidente
<iue o capitão Wilkcs não teve conheeiniento da ter-
ra senão a 19, quando o capitão d'Urville a tinha
avistado a 18. Como pode, por tanto, o auctor, a
pat;. 209, conceder l.ão liberalmente a prioridade do
descobrimento á expedi<;ão americana? ]Ia contra-
dicíjão evidente, e bastava tão somente o patriotis-
mo para Mr. le Guillou a evitar. Suum cui<iue. De-
mais, na discussão d'esta causa, existe uma circums-
tancia pouco favorável ao capitão Wilkes : annun-
ciou ol'licialmeiit(! <jue na manhã de 19 dejaneiro ti-
vera conhecimento da terra: então para quepocm os
jornaes em duvida a veracidade do capitão, e os seus
próprios tompaniieiros de viagem asseguram que em
19 dejaneiro ninguém a bordo da Fincenncs avista-
ra terra ! E esta circumstancia, per si só, não pode-
ria d(!cidir a questão de prioridade ? . . .
(Continua.)
Os Tempiaiiios.
(Continuado de pag. Í51.)
K NECESSAmo confessar que este processo não era
d^aquelle» que se podem julgar : abrangia a Europa
toda ■, os depoimentos eram aos milhares, os docu-
mentos innumeraveis : os processos tinham dilferido
nos diversos estados. A única cousa havida por certa
era que a ordem se tornara inútil para o futuro, e
demais a mais perigosa. O papa, por mui pouco hon-
rosos que fossem os seus particulares motivos, obrou
sensatamente. Declara na sua bulia explicativa que
as informa(;ões não são bastante seguras, que não
tem o direito de julgar, mas que a ordem era muito
suspeit.i : ortUnem valJe sufpecluni,
(Jlemeiíte V forcejou por acobertar a honra da
igreja. Kalsifieou secretamente os registos de Bonifá-
cio, mas não revogou perante o concilio senão uma
das liullas d'<'st.e (Ctciicis litivusj^ a que não ollendia
;i doutrina, mas que im|i('(lia o rei de tomar o di-
nlieiro do clero. l*or esta forma aqucUas grandes con-
tendas de idéas e princípios se fundiram outra vez
na quentão de dinheiro. Os ben» do Templo deviam
ser applicados á redempeão da Terra Sancta e dados
nos hospitalarios. Até houve quem accusasse esta or-
dem de ter comprado a alxilieão da ordem do Tem-
plo : se tal fez achou-se bem enganada: um historia-
dor alTirma que ao contrario be empobreceu. João
XXII se <pi<íixava, em 1310, de que o rei se paga-
v.i dl' guardar os templários, apossando-sc até da fa-
'/.end.i dos liospilid.irios. Em l.íI7 der;im-se por feli-
zes de p.issar i|UÍIai;rio linal aos administradores reaes
du ordiMu do 'i'enjplo.
Uislava uma triste parti' da hiTança do Templo, a
mais enibara(,'osa : lallo diis prezos qui; o ri^i conser-
vava em l'arí», parlieul.irmente o grão mestre. Ou-
ramos sobre este aconticiniento trágico a narra(,-ão
<lo historiador .iiion^ ni<i, euntinuailor de Uiiillierme
du J\angis.
>i O grão mestre da extiiicla ordem do 'J\"mplo e
outros Ires ti-mplarios, o visitador de Kraii(;a, os
mestres da Normandia e da Aqiiilaiiia, «-uja senten-
ça deliniliva o papa reservárii para si, i'iimp,ireee-
ram peranie o arci^bispo de Sens <■ uma assi inliléa
de oulros prelados e doutores em direito divino e ca-
nonii'o, convoíMila espeiialinenle para esle lim em
l'arÍH, por ordem do pap.i, pido bispo de Albano e
iiuIroN <li)is eaid<'aes legados. < 'omo os (piatro sobre-
diilos CDnfessav.im os erimes que liies eram iniputa-
dii-. publica e soliinnejucnle, c perseveraviim u'esta
confissão, e parecia quererem persistir n'ella até o
fim •, depois de madura deliberação do conselho, no
largo do adro de Nôtre-Dame, na segunda feira de-
pois do dia de S. Gregório, foram condenmados a
serem prezos por toda a vida emparedados. Porém,
quando os cardeaes julgavam ter levado a cabo todo
o negocio, eis que de súbito, sem que tal se podesso
esperar, dois dos condemnados, o mestre d'ultramar
e o mestre da Normandia, defendendo-se pertinaz-
mente contra o cardeal que acabava de fallar e con-
tra o arcebispo de Sens, voltaram-se abjurando a sua
confissão e todos os seus depoimentos anteriores, sem
guardar comedimento, com grande espanto de todos.
Os cardeaes os entregaram ao prevoste de Paris, que
se achava presente, para os guardar, até que delibe-
rassem com mais amplitude no seguinte dia. Mas
logo que esta novidade chegou aos ouvidos do rei,
que estava então no seu paço real, tendo praclicado
com os seus sem chamar os leltrados por opitiiuo pru-
dente, na tarde d'esse mesmo dia os mandou quei-
mar ambos na mesma fogueira, n'um ilhéu do Sena
entre o jardim real ea igreja dos eremitas de S.
Agostinho. ^Mostraram soflrer o fogo com tal firmeza
e resignação, que a constância na morte e as suas
denegações finaes encherai!i a multidão de pasmo e
espanto. Os outros dois foram encerrados, como de-
clarava a sentença. M
Esta execução, sem conhecimento dos juizes, foi
evidentemente um assassínio: o rei que em l.ílO
pelo menos fizera reunir um concilio para levar á
morte os cincoenla e quatro templários, n'aquella
desprezou toda a appareneia de direito, e só empre-
gou a força. Para isto nem sequer tiidia a desculpa
do perigo, a razão d'estado, a da saius popidi, que
fazia insculpir em suas moedas. Ao contrario, consi-
derou a negação do grão mestre como um ultraje
pessoal, insulto á realeza, t.ão involvida n'este nego-
cio. Fulminou-o como réu de lesa magestade.
Como explicaremos agora as \ariações, do grão
mestre e a sua negação final? Não parece que por
lealdade de cavalleiro, por capricho militar, cobriria
a todo o custo a honra da ordem ? . . . (Aue a suhirha
do Templo reverdeceria nos seus últimos momen-
tos ? . . . Glue o cavalleiro ancião, abandonado na
brecha como o derradeiro defensor, quereria, com ris-
co de sua alma, tornar impossível jjara sempre o jui-
zo dos vindouros sobre esta escura questão ? . . . Pôde
dizer-se também que os crimes imputados á ordem
eram privativos de tal província do Templo, de tal
casa, e que a ordem era iiinocenle; que Jacques ]Mo-
lay, depois de ter confessado como liomem e por hu-
mildade, poderia negar como grão mestre. — Porém
ha mais quedizer no caso. O principal capitulo <laac-
cusaçào, o acto do rírnegar, baseava-se n'um equivo-
co. EUes podiam confessar (jue tinham abjurado sem
na realidade serem apóstatas. Esta ubjurução (l) (e
(1) Kslii ulijuraçilo, oii iiPía(;ili), (ni rodcclir im pulatra
muiti seriu do ijiie |ijiii-i'i; : utlVlccci a Uciis a \oiísji iiirretlu.
liilaile. — Vcja-se iiu !í." vol. da infsuia tlislorla df Krançu
|n'Iti Sr. Mii-|ii'li't (dr cuja idtra t' tivadi), fenio di^^jrmus, le-
do csti! iirli^u), a \mg, (>:), 99, (i.)-!, du I.» cdií^-Ao, o ijiie
allí sr ili/. II ri'.s|ii'ito das (■■Tciuniiliis linite^cas da festa doi
idiulii», fiiluiirum. — .. O |ui\i> IcMiuIava a vez: ciiIrnMi,
liiiiuK'1'avi'l, tiiiiiiillimriíi, |ii>r ledoii ou iidit»ii da tiillinlrul,
ciim a mia iiiiiíiia voz oniilua», ;;i;,'uiilit iiilaiile, cuni.i o S.
CliristiniV» da lenda, rude, i;;iii>raiilc, (iiiiinado, iiia.s dtiríl,
ini|di>iiindii a iuicliiçàu, pidiíidu loiíiiir o ('I1111.I0 teliic >imi>í
liiiiiiltinK C(d()ii»Ai'H. Kiitravn, Iriixciíilo |)ara a igreja «i nie<lit'
idie ilia^Ao du pccrudu j arraslnvn-ii, liirlu de vicliialliii.«, noa
|i('k do SMlvmlor, iiiira n (;i>l|ir da iii»i;i\(i (|iit' devia iinimilu.
III. Al^iiin:!» vem'! Iiiinlieiíi, lei-onliireiídii i|ae eiii ni pi»|>ri<>
exliiliii a liriileKa, ('\|iiuiIih em ■'\liiivni;iinriiiii nyiiilielieio a
tiiia nilscria, a aua cnirrmídade. A i»to é í\»y »f cliani:iv.( u
160
O PANORAMA.
muitos o declararam) era symbolica : era uma imi-
tação da negativa de S. Pedro, um d'esses piedosos
dramas com que na igreja antiga cercavam os actos
mais sérios da religião, e cuja tradição começava a
perder-se no XIV século. Ser esta ceremonia algu-
mas vezes cumprida com leveza culpável, ou mesmo
com Ímpia derisão, era crime de alguns, mas não
regra da ordem. E comtudo esta accusação é que
deitou a perder o Templo. — Não foi a infâmia dos
costumes, ella não era geral ; aliás, como se podia
suppor que os templários fizessem entrar na ordem
os seus próximos parentes? Não façamos tal injuria
á natureza humana. — Não foi a heresia, as doutri-
nas gnósticas:, verosimilmente os cavalleiros tracta-
Tam pouco do dogma. — A verdadeira causa da sua
ruina, a que indispoz todo o povo contra elles, que
não lhe deixou um defensor entre tantas famílias a
que pertenciam, foi a monstruosa accusação de te-
rem renegado e cuspido na cruz. Ksla accusação e
justamente a que foi confessada pelo maior numero.
A simples enunciação do facto arredava dV'lles toda
a gente ; todos se persignavam e não queriam ouvir
mais.
Doeste modo a ordem, que havia representado no
mais subido grau o génio simbólico da idade media,
morreu por causa de um sjmbolo não comprehendi-
do. Este acontecimento não é mais que um episodio
da guerra eterna que tem entre si o espirito e a let-
tra, a poesia e a prosa. Nada tão ingrato e cruel co-
mo a prosa quando não reconhece as antigas e vene-
randas formas poéticas á sombra das quaes tomou
vulto. — O simbolismo occulto e suspeito do Templo
nada linha que esperar logo que o symbolismo pon-
tifical, até alli reverenciado do mundo inteiro, se
achava destituído do poder. A grandiosa poesia mys-
tica do Unam sanctam, que fizera tremer o século
XII, nada exprimia aos contemporâneos de Pedro
Flotte e Nogaret. O gladio espiritual estava embo-
tado. Começava uma idade fria e prosaica, que já
não sentia aquelle gume.
Porém o mais trágico d'este negocio é que a igre-
ja foi morta pela igreja: menos feriu a Bonifácio a
manopla de Colonna do que a adhesão dos prelados
e doutores gallicanos á apellação de Filíppe o formo-
so.— O Templo é perseguido pelos dominicanos, abo-
lido pelo pontífice ^ os mais graves depoimentos con-
tra os templários são de sacerdotes. Ninguém duvi-
da que a faculdade de absolver que usurpavam os ca-
beças da ordem lhes creára entre os ecclesiasticos ini-
migos irreconciliáveis.
(Auai foi nos homens d'esse tempo a impressão
d'este grande suicídio da igreja.'... As inconsolá-
veis trísturas do Dante bem claro o dizem. Tudo
quanto se havia crido ou reverenciado ; pontificado,
cavallarias, cruzadas, parecia que tudo acabava. A
idade media apparece como uma segunda antiguida-
de que com o Dante se ha de buscar entre os mor-
tos. O derradeiro poeta da idade symbolíca yíu bas-
tante para poder ler a prosaica allegoria do »-om(i(jec
da Rosa. A allegoria mata o symbolo, e a prosa a
poesia. —
Até aqui o capítulo do Sr. Michelet. Simplesmen-
festa dos idiotas, /aluornm. Esta imitaç?(o da orgia pa:;*!, tn-
lera<la pelo christianismo, cumo a despedida do tiofiiein á
sensualidade que alijurava, rcproduzia-se nx* frslividiides dii
infância de Clirislo, Circiimcisuo, Reis, cSaiiclos Innucenle.s.
Em Ioda a iniciaçiio, o adeplcj é appresentado cumo sendo
máu, alitn de que a iiiiciaçriu tenha a lionra da sua rejene-
raçào innral. — Veja-so a inirinçíio dos tannriros allftiiárs
em as notas da íntroducçtío á li/storia vnivrrstil (pelo mes-
mo sahio auctor da Historia tle França, já citada) pag. 10:<
da 1." ediçiio.
te accrescentaremos o seguinte. O grão mestre Mo-
lay foi queimado a 18 de março de 1314, e segundo
muitos historiadores, do meio da fogueira emprazou
o rei e o papa para dentro de um anno perante o
tribunal divino : Clemente V morreu ao cabo de um
niez, em abril do dícto anno de 1314; e Eilippe o
formoso morreu do resultado de uma queda a 29 de
novembro do mesmo anno. — Enguerrand de Mari-
gny, ministro do rei, acirrado inimigo dos templá-
rios, foi posteriormente accusado de feitiçaria e en-
forcado em Montfaucon, na forca que elle próprio
mandara levantar ; outros dos perseguidores da or-
dem tiveram fim deplorável.
O CY
PRESTE GIGANTE.
Sancta Maria dei Tule é a mais bonita das peque-
nas povoações do díslricto do Oaxaca no México : ahi
se vê o famoso cy preste que, em grossura de tronco,
somente cede ao castanheiro do Etna, venerável de-
cano da vegetação. — A seis pés a contar do chão, o
tronco tem 90 pés de amplitude ou de curva círcum-
scríptai e tem 141 medindo-o segundo as ondulações
dos ângulos que faz, salientes ereintrantes. Só aos 15
pés de altura começam os ramos, e os mais grossos
não teera menos de 37 pés de contorno; mas não tem
uma grande dilatação relativa : apenas chegará toda
a arvore a 90 pés d'alto, e a sua sombra, ao meio
dia, abrange pequena circumferencia : por isso não cau-
sa oeffeito que era de esperar, e ainda mesmo abem
pequena distancia não parece ser objecto notável. Vi-
mos na provinda de Vera-Cruz arvores que, sendo
muito menos grossas, infundiam mais admiração pe-
la altura e a immensa expansão dos ramos.
Este cypreste, todo elle viçoso, em nada offerece
apparencia de decrepitude ; não tem uma corrosão,
um só ramo secco ; a seve conserva o mesmo vigor até
a ponta : tudo inculca que ainda pôde ter muitos sé-
culos de duração. — Antigo habitante da terra, ve-
nerável testímunha das revoluções dos homens e das
cousas, a quem não teem podido destruir nem tem-
pestades, nem coriscos, nem a successão dos tempos,
esteve por pouco a ser víctiraa do capricho de um
rico negociante de Oaxaca. Este homem gabou-se-
nos de ter offerecido uma quantia avultada aos ín-
dios de Tule para lhes comprar a arvore e fazer d'el-
la vigas e pranchas! . . . Felizmente os índios rejei-
taram com desprezo a proposta do vândalo, e a arvo-
re ainda está de pé diífundíndo a frescura da sua
sombra balsâmica sobre os que vem admira-la.
Muitos soes e miitas luas.
A este phenomeno de dois soes que se veera no céu
dá-se o nome de parclias ou antelias ; os antigos o co-
nheceram. Em !l d^abril de 1666 foram vistos dois
cm t-hartres, que, com o verdadeiro sol, faziam a
conta de três.
Em 1629 víram-se cinco em Roma.
Ilelvetíus diz ter visto sete cm Dantzick.
A imagem do sol pôde multiplícar-se nas nuvens;
mas a verdadeira dístingue-se das outras pela forma.
As parelías não s.ão tão redondas como o sol.
Com a lua dá-se algumas vezes o mesmo phenome-
no, (pie se chama parateUncs, Apparecem de ordiná-
rio no inverno, como os falsos soes nas regiões frias e
temperadas. Também se dá a cetc phenomeno o nu-
me de corCa uu halos.
21
o PANORAMA.
161
o VXNDEDOH DE MELANCIAS.
NAPotES ■e, o Vesovio.
Napoies tom sido considerafla como a segunda ci-
dade da Itália em taiiiaiilio :, mas talvez <|ii(? se deva
reputar a primeira (|iianlo á belleza da situarão e bon-
dade do cliiiia. 10 notav('l por suas muitas e sump-
tuosas itçrejas, soberlios ])alacios, alguns ostabeleei-
montos públicos, a rua de Cbiaia, o tbeatro de S.
Carlos, c o museu Bourbon. Esta colleo(;ão magni-
fica de antiguidades está u'um vasto e sumptuoso
ediíicio come(;ado pelo viei'-rei l'edro de Tob^do, e
acabado nV'sle século pelo rei Fernando ; consta dos
infinitos e curiosissinios objectos acluulos em Hercu-
lanuiu, l'onipeia, l'ouzzolo, iStc. , e da famosa gale-
ria Karnesia, fpie tocou ao rei ])or s\icei'Ssão, e <|U(^
d'antcs era imia das preciosidades de lloma : divi-
do-se cm dez classes distinctas, c(uno por ('Xem|)lo ',
«estatuas;, antiguidades egípcias :, bnjnzis; ipiailros-,
bibliotbeea ; moveis antigos, «Síc. : — cail.iunia classe
occupa galerias ou salas dillertíntes : a universidade é
um edifício immensu : é bello o ai|uedueto <|uc da
falda (lo Vesúvio traz agua á cidade^ esta é prote-
VoL. I, — Janeiro 2.1, 1847.
gida pelas três fortalezas, denominadas de Santelmo,
castello Novo, castello do Ovo ^ — são em grande nu-
mero, e algumas sumptuosas, as fontes publicas ou
cliafarizcs; mas nem tem grandiosas pra^-as, nem
muitos dos atlributos de uma grande capital. As ruas
em geral são montuosas, estreitas, mal aliidiadas,
e pouco limpas ^ a este respeito observaremos o se-
guinte. Este clima, celebre pela [lureza do ar, é tal-
vez o da Europa cpie reeelx! mais agua pluvial : é
v<Tdade que isto só acontece n'uma esta<;ão, e pou-
cas vezes : na cidade e nos arredores nunca ha ne-
voeiros, nem céu brusco : ha mezea de calor, ou me-
zes de chuva, mas chuva dos trópicos, caindo s('mpre
u agua com grandes trovoadas, mais femiíros;is |)elo
prolongado rebombo «jue motiva a rarefac(;ão do ar o
ainda mais ,'i repercussão nas nxuitanhas visiuhas.
(-luauili) o réu abre as cataractas, parece ami'.i(;ar de
scguiulo diluvio universal: em l'aris era agua para
dois mezes a que em Na|ioles cáe em poucas hora».
Depois reuova-se alonga entiada de dias lK)nitos; do
que resulta que não se fazem obras para resguardar
do máu tempo, e não se vôen» carrungeus que não
E62
O PANORAMA.
sejam descobertas; por quanto o napolitano, habi-
tuado ao sol claro, encerra-se cautelosamente em ca-
sa nos dias chuvosos •, d'estes grandes af;uaceir<js re-
sulta, todavia, uin bem para a cidade, porijue a la-
vam ", e é pelo <]ue os habitantes esperam au que pa-
rece, visto que pelas ruas nunca passa a vassoura: e
comtudo ha um oflicial, il portuluno, incumbido da
policia e limpeza das ruas, cargo que desempenha
mal, por quanto apparecem immundas : apezar d'es-
ta falta d aceio, é tão benigno o clima que não ha
epidemias. Os montes que circumdam a cidade, nas
ladeiras dos quaes estão edificadas ruas declives, dão
causa a que as aguas correndo em cheias para a par-
le chã, arrebatam quanto encontram na passagem -,
d'isso procedem ás vezes graves accidentes, até de
perda devidas. — Os napolitanos, que faliam sem-
pre por figura, chamam a eslas cheias assim engros-
sadas, a lava, alludindo á do Vesúvio, tiuem dis-
se que no mercado de Paris se faziam n'um dia mais
figuras derethorica do que se acham no discurso mais
floreado, nunca esteve em Nápoles \ ahi é que acha-
ria verdadeiramente aterra das metaphoras-, nenhu-
ma cousa clianiam pelo nomo : os géneros são apre-
goados no mesmo estalo \ quem vende peras ou ina-
eãs cosidas grita : beato chi litne latossa : "bemaven-
turado o que tem tosse ; " tudo é hiperbólico, o ven-
dedor de melancias brada a esfalfar-se : che yatanic-
ria, vero snrbettoj "oh qiiebella cousa, é mesmo sor-
vete ! " levantando ambas as mãos acima da cabeça e
mostrando as duas metades da melancia que acabou
de partir : e com effeito merece este fructo ser gaba-
do e mostrado ; nós, os portuguezes, bem o sabemos
apreciar nos niezes calmosos. A tenda do homem que
o vende é simples (vede a estampa), nem os uteiisi-
lios são numerosos ; basta-lhe uma faca larga e com-
prida, que meneia com incrível presteza ; n'um mo-
mento é partido o fructo, mostrado ao publico, ta-
lhado, e consumido pelas mãos, ou mais correcto pe-
las boccas dos seus afleieoados, que fazem apertão e
se acotovellam ao redor do apparato da venda ; con-
siste esta n^ima longa mesa um tanto inclinada, na
qual laboram um ou dois homens, conforme o gasto
da fazenda : ao lado está um vasto armário em pra-
teleiras onde tem coUoc.idas as melancias, partidas
ou inteiras, que pelo tamanho enorme ou pela côr
viva altrahem a vista. IVa muralha, ou n'uma ban-
deira suspensa das ramagens que enfeitam um mas-
tro, ha uma pintura de l'oiichiuella trazendo ás cos-
tas um dos fructos com que parece gemer carregado,
ou outros que taes borrões : ás vezes são dois figurões
a serrar uma desmesurada melancia. Kste ttem de
ordinário é posto ao pé de uma barraca, chamada a
gruta, guarnecida de bancas e assentos onde tomam
logar os que não querem comer na rua.
6e a vida sedentária aperfeií^oa a ordem social, o
sol de Nápoles, que perniitte viver na rua, introduz
nos hábitos da plebe uma aspereza bruta. l'arís e
Londres são duas cidades sem duvida tumultuosas:
pois bem, são charnecas, ermos eni^ eompara(;ão com
aquella : quem não tiver visto Nápoles bradará que
isto é exaggerado, quem lá esteve achará diminuta
a comparai;ão. A bulha faz pasmar, e ensurdece até
a pessoa que pela primeira vez percorre a cidade,
fluo signilicam aquelles berreiros? Onde vai aquella
turba popular, que se encruza, se embate, e se pre-
cipita em todas as direcções .' . . . Estará o inimigo
ás portas de Nápoles? Faria S. Januário algum mi-
lagre iioxo ? . . . Amea;;a o \ esuvio •, ou tracta-se de
alguma grande festa ?•¥— Nada d'issoi esta bulha e
diária, e muilas causas a produzem.
Nápoles fica entalada entre unia cadeia do montes
que lho são iuteirumcnto sobranceiros ; as ruas, com-
pridas e estreitas, são calçadas de grandes lagens, c
ocas por baixo : as casas de cantaria não teem roeno^
de cinco andares. Ajunetai a isto mais de trezentas
igrejas e outros tantos palácios, que íazcm echo ; fa-
zei rodar ao mesmo tempo sobre essas lagens retum-
bantes dez mil carruagens e outros vehiculos de todo
o lote e de todas as formas, e carros puxados a bois,
<iue levam ao pescoço grandes campainhas-, junctai
a esta motinada o estrondo que fazem as diversas
profissões que todas teem seu exercício nas ruas. o
carrilhão de setecentos a oitocentos sinos, os gritos
de cento e cincoenta mil homens-, e talvez podereis
fazer idéa do tumulto d'esta cidade ruidosa. — Da
bailia e do vario destino de Nápoles falíamos a pag.
31 1 do 2." vol. da 1.^ serie. Deixemos, porém, ago-
ra a cidade, e prosigamos cora o A esuvio.
lirup^Ses do Veíuvio.
A primeira erupção do Vesúvio, de que a antigui-
dade nos deixou particularisada noticia, foi a que
succedeu no reinado de Tito, no anno 79 da era
christã : comtudo seria engano pensar que não fOra
precedida de outras (1). Dezeseis annos antes acon-
tecera, como presagio d^aqueUa, o destruidor terre-
moto, que Séneca philosopho relatou nVstas poucas
palavras. — «Pompeia, aquella cidade celebre da
Campania, próximo á qual a praia de Surrentum e
de Stabia por um lado e a de Ilerculanum pelo ou-
tro formava, pela juncção e retrahindo-se, um gol-
plio agradável, acaba de ser arruinada e os seus ar-
rabaldes mui damnificados por um terremoto no in-
verno, isto é, na estação que os nossos antepassados
julgavam isenta de perigos dVsta natureza. .\ Cam-
pania, que nunca estivera sem sustos, mas que pelo
menos escapara até então dos assaltos, foi em grande
parte assolada por estes violentos abalos do globo :
uma porção de Herculanum foi destruída ; a colónia
de Noceria estragada \, a cidade de Neapolis soffreu
mais perdas particulares do que publicas, sendo leve-
mente aecommetlida d'csse espantoso tlagello : mui-
tas casas de campo sitas nas coroas dos montes senti-
ram repellões sem resultado. Accresoentam que ficou
soterrado um rebanho de seiscentos carneiros; que
se fizeram em pedaços estatu;is ; e que depois do fu-
nesto acontecimento viu-se vaguearem nos campos
homens perdidos do sizo. " —
IMinio o moço narra c-oni circumst-incias miúdas e
sobremodo curiosas, nas suas cartas ^ep. 16.'' e 20."
do liv. 6."), a fatal eru|H;ão de 79 que deixou me-
morias indeléveis. Começa por contar a morte de
seu tio, Plínio o naturalista, que (H-Tct-eu n"ess.i
erupção, victinia da sua coragem e do amor á scicii-
cia. Achava-se este em Miseno commandando a fro-
ta romana; curioso de oliserxar de [ktIo tão esp;in-
loso plienomeno, e desejoso de prestar soccorro aos
dcsgraçadvis ameaçados da morto, niette-se em um
navio, atravessa o golplio. e passa a Stabia : reina
por totla a parte terror e confusão, jKjr toila a piirte
se foge. Comtudo Plínio, para sooegar seu amigo
Poin|Kiiiiaiio, ein casa ilo qual se alojara. p;issa p<-lo
sonuio ; porem, acordado pelo tumulto, vè-se cons-
trangido a fugir para a praia, onde, achando o mar
muito re\olto para|KKler einlvircar, para. jhhIo agua,
o faz estender uma ev>berta em que se deita ; d";dii a
[Kiiico, chammas que cada vex se nK>stra>am maiores
o o cheiro d'enxofro que annuuciava a apprí>\iin.i-
ção d*ellas, pozcram en> fuga quem o .-icompanhava.
L<evauta-se, encostado a dois servos que o não des-
ampararam, c uo mesmo instante cáe morto : possar-
(1) Cuatiouailo de p*s> 136*
o PANORAMA.
163
tios três dias. aehou-se no mesmo silio o corpo intei-
ro, com o vestido intacto, e na jwstura de homem
que repousa.
Decorrido um século, Plutarcho accrescenta muito
estas particularidades, e d'ahi a cincoenta annos
Dion Cassio de mais a mais as recheia de contos ma-
ravilhosos e de fabulas inventadas e propagadas pelo
povo : diz que se seguiu uma grande fome ; que aba-
laram todo o território tremores espantosos acompa-
nhados de estrondos fortíssimos e singulares ; que as
pedras e os rolos de fogo e fumo despedidos pelo vol-
cão eram taes e tantos que obscureciam os ares e o
sol parecia eclipsado. Verdade é que todos estes phe-
iiomenos tiveram lugar com grande intensidade, que
as torrentes de lava incendiada e montes de cinzas
alagaram e destruíram tudo, e sepultaram duas ci-
dades inteiras, Herculanura e Pompeia, na occasião
em que o povo estava no theatro ; o vento despargiu
as cinzas para sítios mui allastados, e em Roma cau-
saram grande terror. Gallieno e Eutropio escrevem
no mesmo sentido. (Cunliniia.)
COLOMBA.
Romance da Córsega.
Povera, orfaiia, zilella,
Seuza ctigíui caniali ! —
Ma per far la lo veiidetla,
Sla si^uru, vasta anche ella.
Lament. funeb. de Niolo.
III
CoNFonMANDO-Nos com O prcceito de Horácio — in
medias res, — em quanto dormem os nossos heroes
aproveitaremos a oj)portuna occasião d^entrar em al-
gumas explicações essenciaes para bem se colher o fio
d'estanuii verídica historia.
Já o leitor sabe que o pai de Orso, o coronel delia
Rebia morrera assassinado ; mas na Córsega não se
morre assassinado, como nos outros reinos, por um
fugidieo das galés, ou por um ladrão de casas. Mor-
re-se da mão dos inimigos; e a difficuldade toda es-
tá em conhecer o motivo por que ha esses inimigos.
Famílias inteiras aliiniMitam ódios encanecidos, e se
as interrogarem não acertam com a razão das suas
discórdias.
A famvlia do coronel delia Rebía, entre outras, de-
testava mais que ncnhiinia a casa dos Uarricini. I)í-
zia-se que aorigem da contenda subia ao século XV I •,
um delia llcbía sciliizíra unia Barrícini, e caíra apu-
nhalado pelos parentes dadonzella oiri'ndída. As mal-
querenças continuarani desde então — emais de uma
vez o cadáver dos miMobros de ambas a'j famílias go-
tejara sangue ao limiar das respectivas Casas.
Causas pequenas eqnasi vãs provocaram, ou, mais
exacto, exacerbaram a antiga aníinadversão dos del-
ia Kebia com os liarrieiní, pouco antes daepocha em
que principia a nossa acção. A politica veio ajunc-
lar-so ás questões particulares, e envenena-las mais.
Delia llebia servira lN.i|)olcão ; — o cabeça dos Uar-
ricini era pelos Hourbuns. A mulher do coronel, ao
expirar, pediu que a sepultassem no mi'ii) d'um bos-
que, (ju<> em vida a dístrahíra das graniles niáguas
lieía »ua grandiosa soliilãu. Harricini, niaire. ord(Miou
que a enterrassi 111 por lurça no riMiiilcrio piiblito. Os
dois partidos arniaram-si-, desaliaraiii-se, e juraram
o mutilo extermini». liiiareiíla aldeões cuin clavinas,
:i|>i)il(.'ran<lo-5e doçura, ao sair da mis^a, uliri'.;arani-
n o a aeoiiiiianliar o enterro da defiineta e a Ijcnzer
a terra do bosque onde se lhe tinha feito a cova. O
maire com os gendarmes (soldados municipaes) e mui-
tos dos seus clientes acudiram para atalhar este pla-
no. Apenas se avistaram, de parte a parte romperam
injurias, voaram maldicções, e tiniu o salto do ferro
das espingardas que se engatilhavam, Barricini viu
o ar tempestuoso, e naturalmente prudente deu or-
dem de retirada á sua gente, que deixou li^Te a es-
trada por onde os amigos do coronel delia Rebia se-
guiram triumphalraente a sua marcha victoriosa.
Como é de suppor, resultou d'este motim requin-
tarem os ódios, e repetirem-se os desgostos e conten-
das que maus visinhos tanta occasião teem sempre
de promover ou excitar.
Om processo intentado pelo advogado Barricini ao
coronel estava para se julgar, quando o inimigo de
delia Rebia appresentou ao procurador regío uma
carta escripta por um salteador afamado, em que o
ameaçava de lhe incendiar a casa e de lhe cozer o
peito de punhaladas, se insistisse na demanda. Na
Córsega é de uso erapre^ar este meio extra-juridico
nas causas, e o maire já se lisonjeava de cobrir o
seu adversário do odioso, quando Agustíni, como
salteador de brio. escreveu elle próprio ao procura-
dor re^io, queixando-se de que lhe falsificavam a le-
tra e denegriam o caracter, assacando-lhe semelhan-
te carta, e concluía — ose eu souber quem foi o cul-
pado, protesto puni-lo exemplarmente." — Asustini
era homem de palavra — o caso ia-se complicando
deveras.
Dois mezes depois d'este acontecimento, ao cair da
tarde, ouviu uma mulher de Pietri dois tiros, que
soavam d'um valle estreito, cavado cento e tantos
passos do sítio em que ella ia. Ao mesmo tempo viu
um homem fugir, curvo e rente com o chão, por en-
tre as vinhas, e tomar o caminho da aldeia. O ho-
mem parou instantes e virou-se como para observar,
mas a distancia não lhe permittiu conhece-lo : com a
mão elle acenava a um companheiro occulto, que a
testiniunha nunca apercebeu, ed'ahi a pouco sumiu-
se inteiramente.
A mulher de Pietri galgou a encosta a correr, e
descendo-a achou o coronel delia Rebia banhado em
sangue, ferido no peito de duas bailas, e suspirando
ainda. Tinha ao pé de si a clavina engatilhada, co-
mo quem se defendia de frente quando outros o ata-
caram pelas costas. As convulsões e o estertor não
lhe deixavam ])roferir palavra. Debalde a pobre ve-
lha tentou íiniiiia-lo, e fazer-lhe perguntas — via-o
abrir a bocca, mas inutilmente: não tinha força j a
para responder. Notando o gesto de levar a m.ão ao
peito, procurou cila no seio do coronel e tirou uma
carteira, que lhe ollereceu aberta. O ferido, com o
lápis traçou i'onfusainente muitas letras ipie, n.'io sa-
bendo ler, a testiniunha não ])odia juToelxT. Eiiilim,
desfalleeido (Peaste ultimo esforçM, delia Rebia deixou-
llie cair na m.ão a carteira, e eiuaraiido-a enm estra-
nha altenção mexeu os lábios — parecia dizer — .• E
o nome do meu assassino." —
Seguiu-se uin processo intent.ido aos Barricini —
as suspeitas eram contra elles, porém provas não as
havia. Foram absolvidos, e Cohimba, a |)<ilire orphã,
segundo o eostume nacional, recitou uma /)ii//<ií<i dian-
te do atauile de seu pai. E esta luillnta, piqiul.ir em
toda a Córsega, era u mesma (pu- o marinheiro do
lliate cantava amissLidia, quamlo a chegada de t)r-
so o fez emmmliTi-r. iMas Coiomba era \eriladeira fi-
lha iraquella ti-rra áspera c iiid.iinavel. .\ esperança
de vingar uni dia osangue do pai morou-lhe sempre
no eiiração, e incarnou em tinia a sua existência.
Vendo Orso, esta esperança, tantos annos secreta c
comprimida, lloriu — e n'.iqiirlla noite em que, pe-
164
O PANORAMA.
la primeira vez depois de largos annos, o mesmo tec-
to abrigava 03 dois orphãos, tanto tempo separados
— apertando contra o peito o calx) do punhal, que
escondia no seio, como a aliellia o seu ferrão — entre
as fervorosas orações de fillia e a innocencia pura de
virgem, não sentiu remorsos deoíTerecer a Deus tam-
bém entre o incenso das supplicas o pensamento cruel
de um crime projecta<lo. — 41 Ao menos, dizia conisi-
go, os Il.irriciui inorrcin da mão <!e um líonicm ! »
K que seOrso faltasse, ella, mulher fraca e desam-
parada, inspirada pelo fanatismo do amor fdlal e pe-
lo cnthusiasmo dos costumes populares, titdia animo
de emprehender, só, a obra devingaiií^a que na sua fé
ingénua e (juasi selvagem imaginava que Deus fada-
ra ao tenente Orso delia Uebia. (Conlinúa.)
Diana caçadora.
JoÃoGoujON, appellidado restaurador da esculptura
em França, nasceu em Paris no século XVI, quan-
do O poderoso impulso dado ás artes na Itália se com-
niunicava á França, e excitava aquella admiração in-
telligente da arte antiga, que produziu n'cste reino
tantas obras primorosas em tempo de Francisco I e
seus successores. — Da carreira da sua existência não
se referem incidentes notáveis ; a historia da vida de
grande parte dos homens de talento cifra-se no cata-
logo e exame de suas obras. Porém a morte d'este ar-
tista procedeu de uma circumstancia singular: estan-
do sobre um andaime a trabalhar nas decorações do
Louvre velho, foi ferido de um tiro d^arcabuz no ce-
leberrirao dia de S. Bartholomeu (1472); e assim
pereceu mais esta victima do fanatismo religioso; se
e que o não foi da ignóbil inveja ou da traiçoeira
Vingança; porque n^esses deploráveis tempos se apro-
veitavam, coniu sempre, mesquinhos oilios particula-
res, para, no tumulto das discórdias civis, saciarem-
se impunemente em meio da confusão e desordem.
Goujon é muito popular na sua pátria; e o cogno-
minam 1'hiduis IVancoz, Corregio daesculptura. Ain-
da se admira em Paris a bella /«/i/e dos imioceiíltt,
erigida em 15õO de encontro a uma casa da rua de
S. Diniz, e transferida em 1788 para o meio da pra-
ça que actualmente aformoseia : é obra de mazestosa
simplicidade, e os baixos relevos são tão salientes que
parecem despegados da mole de pedra em que foram
abertos. Outra composição sua n'outro jenero, colos-
sal e grandiosa, é a tribuna da tala dos cem íUÍísoi,
no Ijouvre.
Henrique II empregou este artista no aformosea-
mento do caslello d'Anet, que ficou Cíílebre por ter
sido residência da formosa Diana de Poitiers. Este
castello hoje só dura nos versos da Hcnriada e nas
relações dos chronbtas : posto em almocda e vendido
como pertencente aos bens nacionaes no tempo da re-
volução, foi comprado, segundo se diz, por particula-
res que pretendiam salvar da destruição as obras dos
maiores artistas francezes do século XVI, Felisberto
de Lorme e João Goujon : infelizmente os comprado-
res não podiam ter a casa sem a propriedade rústica,
e ficaram com as suas Ixjas intenções ; os materiaes
do edilicio venderam-se, eos baixos relevos serviram
para resgate de prados e mattas : á excep^-ão do per-
lai d^ entrada, de parte do corpo esquerdo do palá-
cio, e da capclla, tudo foi deitíido abaixo. Estava a
marreta dos demolidores a ponto de fazer de-^appare-
cer de todo a bella portada interior do primeiro átrio,
quando Mr. Lenoir, fundador do museu de moou-
mentos francezes, a salvou adquirindo-a para o esta-
belecimento que tinha acabado de crear. O formoso
grupo, dec|ue a nossa gravura dá ideia succinta, obra
do mesmo Goujon, foi também resgatado de .\net pe-
lo zelo de Mr. Lenoir ; e os entendidos o contem-
plam no dicto museu, na sala dos esculptores france-
zes. Esta preciosa esculptura havia sido arrancada da
base, levada a distancia de dez léguas, e partida pa-
ra extrahircm os tubos de cobre ou de chumbo que
serviam decanos aos repuxos; por quanto, depois de
haver ornado, na sua origem, o centro do átrio do
Ciístcllo, aquelle grupo fora transportado para o eira-
do do jardim, ao meio de um arco de architecfiira
rústica, onde servia de enfeite a uma fonte de repu-
xo. Os v.md dos ficaram com o chundx), e a pedra
j>erlencen a Mr. Lenoir, que ajunctando-a ecompon-
do-a a restituiu á França.
■|;]í:i:,:,m.!,. jii.il '1,1 !.ui;lj.
^:iÍM.i.!!iiMiii.iiiiiiiiíiiiii|i|iuiiiUiiuJi!:'!r,.ii[Hiii.'ini,i,iiii.irni!ii
O artista representou a caçadora Diana dos jre- [ indolência a um ve;ido niiinso, e acoMipiinham-n'a
goa, a robusta c casta lilha do Latona, cujotvpo d"es- seus cães PnK-von eSvrio: a caçadora intrépida, que
tjlo antigo apparcce cm jardins e museus a par do sempre ivrre por numti-s o solvas, jwnni a tomar al-
Ajwllo de lielvudere, A deusa eucostu-su coiu gentil I gum dcscoiiço : vc-sc cui todo aquelle corpo feminino,
o PANORAMA.
165
tão puramente desenhado, não sei que enjçraçado aba-
timento, era <)ue se reconhece toda a fadiga de uma
longa excursão. Comtudo o artista, que possuia era
grau subido o seiitimi;nlo da arte antiga e da idéa
religiosa de que ella é sempre representação simbóli-
ca, não deixou embrandecer o cinzel no contorno d'a-
quella postura negligente: acabeça da deusa, que os
antigos poetas figuraram avultando sobre as n)ni-
phas de sua companhia como a copa do carvalho aci-
ma dos arbustos da lloresta \ a garganta, a parte su-
perior do peito, manifi-slam certa robustez e energia:
não é uma parada de caçador exhausto por cansaço,
é um repouso de immortai, a trégua de momentos
concedida pela terrível caçadora aos habitantes dos
bosques; pensamento gracioso que parece ter decorri-
do ao esculptor pondo ao lado da deusa o corpulento
e bello veado, a quem ella com o braço direito abar-
ca o pescoço tão cheio de músculos e de vigor: este
formoso animal foi esculpido com infinito esmero.
Os contemporâneos de Goujon admiraram extrema-
mente n'este grupo magnifico o cc-rvo e os cães, pois
que o reprehendium de fraquejar n'e5to género, como
parece dos baixos relevos da capella d^Ecouen : o ar-
tista doeu-se da censura, e applicando-se fez inuilo
mais do que se esperava. Kste grande progresso é
mui digno de observação, por isso que nasceu de no-
bre emulação. 15enevflniito C<-llini, que passara al-
guns annos na corte de Francisco I (vid. a pag. 132
d'esto vol.), tinha feito para est(! monarcha um bai-
xo relevo representando unia nyinpha cercada deani-
maes montezes : esla [leça foi posta de banda n'al-
gum armazém, e depois da morte do ri'i deiain-lhe
outro destino; era vez de a assentarem no castello de
Fontainebleau, Síírviu para ornato dode Anet. \ iu-o
Goujon, econtemplanilo attonilo a perfeição com que
foram modelados os aniinaes alli esculpidos, formou
logo tenção de imita-la; e não querendo íicar atraz
d'esti,' modelo, o seu talento chegoij ao nivel da sua
vontade: conseguiu igualar, sen.ão exceder, o seu
emulo Existe no Louvre o grupo de Goujon, res-
taurado para as artes por Mr. Lenoir.
Expedições nu tues potencias ao polo
AUSTItAL.
(Conlinuado de pag. 159.)
Expedição franceza.
A nxPKniç^Xo franeeza constava de duas corvetas,
V Aaholahc t: la Xiflif ; a primeira conunandada pelo
capilão DuniDiil iC IJrville, a segunda pelo capitão
Jacipiimit. Ambos os navios apparclh.irani da ensea-
da de Toulon a 7 de setembro d<í 11137. 'JVanspor-
taremos a expedição á data de 27 de fevereiro de
103», aos oa" /■)()' de latltud<! sul, e lú)" 111', de lon-
gitude ao oeeidente do meridiano de 1'arís. lí d'e»te
ponto qu(; o capilão ilHJrville avislou a terra a que
poz noiíK! de liuiz li^ilijipe. N 'essas mesmas paragens
descobriu igualniciili' : 1." oulra terr.i ao oriente da
primeira, a <pie chamou Juiiirille : 2." outras muitas
illias (jiie nas suas cartas designa p(!los nomes de /li-
liíiliiliid, Itiiíiinii-l e Dtinsii: .1." o braço de mar imks
separ.i as terras da 'l'rlndiiile da terra Ijuiz Kilippe,
liquedeiiomlnou rtiital d'()rl('aii» : 4." Jio norle does-
te canal descobriu inals as ilhas Jurien <• Dumoiilin.
l)(!puis (Pestas operaçiies, o cajiitão irUrville já não
teve jiossibilidnde de levar por diante as suas iiives-
tigiições ; adiantaiido-se ameaç.idora a estação, diri-
giu a expiídição para a Terra de \aii-l)ieineii com
o intento de repetir no anno seguinte a exploração
do polo antárctico.
No I." de janeiro de 1840 larga de Hobard-town,
e encaminha-se ao polo austral; a I 8 do mesmo mez
acha-se em 64° de latitude sul e 139" de longitude
leste. D'este ponto descobre na parte sul, a grande
distancia, uma terra a que só ptjde arribar a 21.
Então expede uma lancha que não toma terra senão
depois de vencidas inauditas difficuldades : o capitão
dá a essa terra o nome de sua esposa, Adélia,
A terra Adélia, por 66" de latitude, estende-se
em longitude dos 134 aos 140" ao oriente do meri-
diano de Paris.
A 23 a expedição já tinha seguido por espaço de
vinte léguas a costa d'essa terra nova, não sem mui-
tos sotfrimentos por causa do estado do mar e das
rajadas intermittentes do vento, que precipitando os
navios, ora para montes de gelo ora ura para o ou-
tro, tinha-os incessantemente expostos aos maiores
perigos, porque em laes circumstancias unia simples
cinta de duas pollegadas separa o homem da eterni-
dade. Levantando-se um temporal, as corvetas se
d('sgarraram pela primeira vez; mas o vento acal-
mou, e se tornaram a encontrar sem padecerem ava-
ria grossa.
A Adélia cerrava á expedição o rumo do sul, po-
rém o capitão nem por isso deixou de proseguir em
sua navegação penosa á mercê dos ventos e das cir-
cumstancias, o que lhe trouxe, aos 30 de janeiro, o
conhecimento de; outra nova terra, a que chamou
C/íiriíi, nome da esposa do capitão Jacquinof, com-
niandante da Xi-léc. Acha-se esta terra pelos 6õ" de
latitude, e entre 132" o 139" de longitude ao orien-
te do meridiano de Paris.
O capilão d'Urville, depois de a costear obra de
cincoenla léguas, dirigiu-se novamente para o sul,
(uide se achou bem depressa involvido nos gelos, e
arrebaladamente retido por uma serra d^elles impe-
netrável. Teve ainda a felicidade de sair doesta posi-
ção perigosa, e livre em seus movimentos tomou ou-
tra vez a direcção do polo, luctaiido trabalhosamente
contra os obstáculos com uma eflicacia de que só elle
era capaz. Comtudo não poude alcançar a mais do
que os G(i" 35' de latitude sul, e 137" 48' de longi-
tude l('ste. ]\''esle ponto não se notava na agulha
ni.ignelica declinação, e obedecia ella a qualquer
aproar do navio; a agulha d^incllnação toinaxa a
vertical : alli é tpie ])riiicipalnientc foram feitas as
delicadas observações do capilão d'Urville; e d\'llas
resulta que o polo magnético austral .icha-se aos 7 1"
4.í' de latitude, e 133" 40' de longitude ao oriente
do meridiano de l'aris. — Segundo as cartas <la ex-
pedição é que o auctor d'este artigo lixou esta posi-
ção.—
Acaliada esta operação, talvez a mais importante
d.i empreza, e estando as e<|uipagens ha niuilo tem-
po cançadas de fadigas, e accominetlidas já de doen-
ças, o coinmandante, para não ser colhido nos ge-
los, deu-su pressa a largar paragens iiiliospilas, <■ di-
rigiu-sc para o norte.
R.ipediçuo inglesa,
A expedição ingleza compimha-so de dois navios,
o liieliio >' o Ttiiur: o primeiro eonimandailo jielo
capitão Ituss, e o segundo pelo capitão (\oxitr. Es-
tes ilois vasos, de 3.')0 tonelad.is e em tudo semelhan-
tes, são do constriicção particular e inteiramente
adaptada ao serviço di' exploração das regiões pola-
res ; são leitos em três divisões, de modo ipie so iimii
parte do navio experimenta grossa avaria, ou mesmo
se despega de todo, a equipagem não llca sem recur-
so, posto que cm grande perigo.
106
O PANORAMA.
Por occasião d'esta expedição, confiada aos capi-
tães lloss e Cro7.ier, fez-se a seguinte observação ; —
<iue estes dois officiaes desde a infância foram lií^ados
pela amizade mais intima ; ambos saíram aspirantes,
guarda marinhas, e officiaes ao mesmo tem])o ; nun-
ca serviu uni onde não estivesse o outro-, aniVjos fize-
ram parte da expedição do capitão 1'arry ao polo
lx)real ; cambos estiveram três annos retidos n^afjuel-
les gelos cio polo árctico.
A expedição ingleza larga da Europa a 15 de se-
tembro de 1!139, dirige-se para a terra de \an-Die-
racn, e no l ." de janeiro seguinte, o Erebro e o Ter-
ror apparelham do Hobard-lown ; tempo favorável
os leva aos círculos polares. A intenção do capitão
lloss era encainiiiliar-se para o polo pelo sudoeste. A
3 de janeiro ultrapassa uni monte de gelo e conliiiiia
a sua derrota sem experiniciitar grandes difficulda-
des i <!in a manhã de '.) a expíidição acha-se em mar
perfeitamente desembaraçado e segue na direcção do
sudoeste Aos l l do mesmo mez, de manhã, pelos
70" 41 ' de latitude sul e 172" 'Mi' de longitude les-
te, a expedição houve vista de uma terra na distan-
cia approximada de cem milhas e direcção sudoeste.
Com este descobrimento o capitão Koss sentiu algum
desgosto, porque arjuella terra lhe fechava o rumo ao
polo magnético, cuja fixação era o mais importante
alvo da sua commissão. Não obstante isso, tomou
posse d' cila no dia 12 e impoz-lhe o nome da sua so-
berana, a rainha Victoria, e estabeleceu (|ue as im-
mensas montanhas a pique e nevosas, de que é to-
talmente formada, estão situadas pelos 7l" 58' de
latitude, e 1159° 7' de longitude.
O capitão Ross calculou que, portando para o sul
o mais longe que lhe fosse possível, ultrapassaria o
polo magnético, que suppunha pelos 76", e que go-
vernando depois para oeste o circularia completamen-
te ; seguiu pois esta terra tão importante, e ciiegou
aos 21 de janeiro á latitude de 74", 45". A 27 do
diclo mez desembarcou em outra ilha por 76", 8' de
latitude:, a qual é toda composta, como a primeira,
de rochas volcanicas. A 28, ao despontar o dia, avis-
tou uma enorme montanha de quatro mil metros d^e-
levação, que vomitava desme<lidos rolos d(! fumaça e
labaredas: estevolcão, de grande actividade, recebeu
do capitão Ross o nome de monte Erebio ; 6 situado
a77°, 3á' de latitude, e 167" de longitude leste: na
parte oriental do volcão existe uma descompassada
cratera, mas extincto o fogo, e um pouco menos ele-
vada que o volcão i recebeu o nome de tnoute Ter-
ror.— Este continente conservava a sua direcção pa-
ra o sul; eo seguiram até onde, na tarde do mcsrao
dia 28, a expedição foi estorvada por uma barreira
de gelos que, partindo do cabo da costa, proseguia a
les-sucste. Esta barreira, de 50 a 60 metros d';Jtu-
ra, deixava vêr para detraz dV-lIa os picos nevados
de uma cordilheira que corria a susueste por 7!t" de
latitude. — O capitão seguiu a barreira a leste até U
de fevereiro, epoclia em que adipiiriu a certeza de
que ella se estendia por espaço de mais de cem lé-
guas. Emfim, a expcMliçào não parou senão diante
do uma serra de gelos insuperável, e comtudo estava
de volta com ella, ese não viera em seu auxilio uma
forte briza, achar-se-hia prisioneira nas regiões aus-
Iraes, como já tinha acontecido nas boreaes aos dois
commandantes :, n'a(|uclle momento os thermometros
estavam a 20" frio, e a sondart^za dava o08 braças
de fundo. — Tendo a ventura de sair de uma situa-
ção tão perigosa, o capitão Koss dirigiu-se i)ara oes-
le, c a 1.1 de fevereiro adiava-so pelos 75" sul, na
impossibilidade de se approximar do polo magnético
senão a distancia de cinciMMita léguas. — IMovas ten-
tativas de desembarque foram iufructuosas, c us tra-
balhos do capitão Ross tiveram de liraitar-se, n'a-
quellas paragens, a marcar o continente que acabava
de descobrir, que se estende em latitude dos 70" aos
79", ao qual vimos que denominou " \ ictoria. n — A
25 de fevereiro, ocapitão, tendo reconhecido também
que a parte boreal d'essa terra acabava abruptamen-
te nos 70" 40' de latitude e 165" de longitude leste,
tractou até 4 d'abril de completar as suas observa-
ções, e neste mesmo dia poz proa para Van-Diemen.
Resumindo os trabalhos das três cxpolições colhe-
se que revelaram ao mundo scientifico a existência
de muitas terras de que não havia suspeita na parte
austral do globo ; e a de montanhas volcanicas de
quatro a cinco mil metros de elevação nos 80" de la-
titude, dá motivo a que se admitta um continente
antárctico. Taml)em o capitão Ross diz que não será
por via terrestre que se poderá chegar ao polo aus-
tral.
D'este modo osphysicos de futuro poderão deixar-
se de estabelecer theorias sobre a possibilidade ou im-
possibilidade da formação do» gelos lluctuaiites sem
a concorrência de continentes, j)ois que não faltam
no polo austral.
Os geólogos devem também estar perfeitamente so-
cegados (juanto ao equilíbrio do nosso planeta, jkjÍs
que o pezo das terras árcticas é convenientemente ba-
lançado pelo das terras antárcticas, e a posição do ei-
xo da terra é estável e segura ainda por bastante
tempo.
Os engenheiros geographos em suas cartas substi-
tuirão d'ora avante os rabiscos que empregavam co-
mo designação dos gelos lluctuantes nas regiões pola-
res, por desenhos bem contornados das terras recem-
descobertas por nossos ousados navegadores; e quanto
á fixação do polo magnético austral os trabalhos de
d'Urvi!le nada deixam que desejar.
I\Iahomet ou Mafoma.
(Cunliouado ile pa'. 154.)
Com efleito, apesar das asserções verbaes de MaLo-
met, apesar dos protestos d'.\li e d'Abou-Bekr, os
próprios discípulos da religião nova ralharam da re-
lação da viagem aeria do apostolo de Deus, como
chamavam então ao seu propheta. Convém observar
que Mahomet, no Koran, n.ão se atreveu a explicar-
se claramente a respeito d'uma aventura tão inau-
dita. Kis-aqui o que elle à'a : '^ Louvores áquellc que
transportou o seu servo do templo de Meca ao tem-
plo do Jerusalém ! " Lê-se em outro logar : - Elle se
levantou ao alto dos ares, e chegou á distanci.-i de
dois arcos, e até mais perto, do throno de Deus ; e
Deus revelou ao seu servo o que lhe revelou, e o seu
coração não imaginou o que elle viu. Ireis vós pois
disputar com elle acerca do que viu .'•• Ainda que os
auctores mais graves consideram a viagem nocturna
como uma visão, e sustentam que Mahomet não foi
transportado ao céu senão cm espirito, a tradição
transmiltiu este facto como unia verdade que os mu-
sulnianos devem crOr sem exame. Nunci deixam de
celebrar o anniversario d'esla viagem.
Comtudo o islamismo se foi propagando pelo in-
terior da Arábia. Tendo vindo a Meca uma nova
caravana de gente de Medina, abjurou a idolatri.!
na presença de Mahomet. Então o propheta jxu ter-
mo ao constrangimento. Até este momento tinha re-
commendado a paciência aos seus adeptos ; .. Perdoai
aos vosaos iuimigos, llics repetia cUe, aguardando a
o PANORAMA.
167
vingança de Deus." Mas esta victoria lhe fez mudar
de lin''uaeein. "Os musulmanos podem combater
com aquelles que lhes fazem injurias, disse elle aos
seus partidários •, por certo que l)eus tem forças para
lhes mandar auxilio."
Fez depois prestarem-lhe juramento de fidelidade,
e os mahometanos juraram defende-lo como defende-
riam as suas mulheres, filhos e famílias, e para lhes
inflammar o animo prometteu a entrada no septimo
céu aos que por elle morressem. Tomados de susto os
magistrados de Meca, quando tiveram esta noticia,
resolveram dar morte aoinnovador. Mahomet previu
o perigo e es(iuivou-se aos golpes. Fez partir as es-
condidas para Medina os lieis sequazes, e passados
dias saiu alraz d'elles. A este successo se chama hetji-
ra, d^uina palavra árabe que signiíica fugida, e de-
pois serviu de epocha para todas as nações musulmu-
nas. Corria então oanno 622 da nossa era, Mahomet
tinha perto de cincoenta annos, e havia treze que
pregava a sua doutrina.
Mahomet, sendo recebido em triumpho em Medi-
na, lançou mão de toda a auctoridade espiritual e
temporal, e os seus discípulos o reverenciaram como
rei e poutilice. Tractou logo de fundar o seu poder
edar ao culto musulmano formas que bem pouca al-
teração tccm tido. A primeira cousa em que cui-
dou foi edificar uma mesquita onde fosse orar com o
povo; para dar O exemplo trabalhou n'esta obra com
as suas próprias mãos. "Qucniquer que trabaliiar
n'esta mesquita, disse elle, edificará para a vida eter-
na. " Também construiu unia casa para si, e outro
tanto fizeram os companheiros da sua fuga. Mahomet,
como o perseguiram violentamente, não curou senão
de estender as suas leis á força d'arnias. Vencedor
muitas vezes, vencido algumas, attribuia as victorias
ao Kterno, e as derrotas aos peccados dos seus solda-
dos. Durante o combate de Berd, contra os de Meca,
batia Malioniet no peito pronunciando esta oração:
"Oh meu Deus! deixas jjerecer os teus servos; fica-
rás sem adoradores sobre a terra ! » Estava tão per-
turbado que chegou a dar-liie um vagado. Cobrando
animo de repente, fingiu (|ue o anjo Gabriel lhe a[)-
jiarecèra, e exclamou : " Alegrai-vos : Deus nos man-
da soccorro ! >i Ao mesmo tempo monta a cavallo, e
tomando um punhado de areia, lança-a á cara dos
seus inimigos: níiue as suas faces sejam confundi-
das», bradou elle. Os seus guerreiros tentaram um
ultimo esforço, e ganharam a batalha. 1'assados al-
guns dias lançaram MalioiiKít do cavallo abaixo n'u-
ina escaramuça. Cheio de cíjiitusõcs no rosto e com
o corjK) crivado de feridas, porém traiii|uillo nomeio
do perigo, não «ressava de repelir; u Oh ! como piide-
rão jiro.ípcrar os homens que ensanguentam assim a
cara <lo m-u projiliela?"
Diqiois (Ic muito sangue derramado, (!<■ conquista-
das edestriiidas muitas cidades, ajustaram os de Me-
ra tréguas por nin anno, durante as quacs era o pro-
jilieta senhor de vir em roiiiai;('m á Caaba. l'or esse
tempo aconteceu aMalioinet um caso triste. I\a guer-
ra (pie susleiíluii contra os judeus de Khaibar, uma
rapariga que perdera o irmão e lhe ijueria vingar a
morte, envenenou um quarto de carneiro de que o
Í)ropheta havia de comer. Ao primeiro boccado que
^lalioinel enguliu conheceu (pie linha \eiioiio, e ali-
rundu com elle lóra, exclamou : t. Ksle carneiro me
advertem de- (juc! está envenenado ! h Os musulmanus
apregoaram i|ui' era milagre, e o (piarlo de carneiro
foi Jior muito liMiipo veiurado ((uno rc'lii|iiia. Mas o
veneno já tinha lavrado nas entraiilias do [iropheta,
(jue nunca mais ti^ve saúde.
Deii-ac depois a pAr em pracliea o piijiilo de su-
jeitar a Meca, sua palria ; ja tinha IVilo a priíiiciía
peregrinação esplendida, durante a qual uma multi-
dão de idolatras abraçara a sua causa. Apesar do tu-
multo das armas, a entrada de Mahomet em Meca
teve um caracter religioso ; elle se havia re\ estido
(Mm o habito dos peregrinos, e avançou recitando em
tom solerane estas palavras do Koran : « Na verda-
de te concedemos uma victoria insigne-. Deus te per-
d(X)u os teus peccados passados e futuros, afim de te
cumular de graça, de te encaminhar pela via recta,
e de te auxiliar com um poderoso soccorro. Foi elle
(lue fez baixar ao coração dos fieis o descanco e a
I _ o j
tranquillidade para lhes augmentar a fé com uma fé
nova. Deus é grande e misericordioso." i) primeiro
empenho de Mahomet foi visitar de novo a Caaba, e
orar a Deus nos logares sanctos •, depois, impaciente
por apagar até o ultimo vestígio do culto profano,
lançou por terra os Ídolos que cercavam a casa-<|ua-
drada. Mahomet chegou successivanieute ao pé deca-
dauma d'estas divindades, e locando-lhes com uma
varinha que trazia na mão, dizia: «A verdade é vin-
da, seja a mentira anniquilada. « Ao mesmo tempo
as faziam em pedaços, sem perdoarem se quer ás es-
tatuas de Abrahão e de Ismael. Feita esta execu(;ão
congregou Mahomet o povo e pronunciou o seguinte
discurso : "Não ha outro Deus senão Deus, que cum-
priu todas as promessas feitas ao seu servo, e poz em
fuga a seus inimigos. Não adorareis d'hoje em dian-
te vossos pais Abrahão e Ismael, que não eram mais
do que homens como vcís "(l).
O nono anno da hégira ficou sendo famoso pela af-
lluencia dos embaixadoresíjue vieram de todas as par-
tes da Arábia dar os parabéns a Mahomet das suas
victorias; por isto este anno foi chamado oanno das
embaixadas. Os auctores árabes comparam o seu nu-
mero com o das tâmaras que pelo outono caem. Ma-
homet recebeu os deputados com muita dignidade e
a Arábia quasi inteira se decidiu a considera-lo seu
senhor e soberano. N'unia guerra contra alguns po-
vos remotos, tinha o exercito do propheta de atraves-
sar as terras dos antigos temouditas : Mahomet apro-
veitou esta occasião para pintar aos seus soldados a
sorte de um povo incrédulo : nioslrou-lhes grutas aban-
donadas, moradas desertas, e ameacou-os com o mes-
mo destino se caíssem na mesma impiedade. CAuan-
do chegou ao meio do valle onde os temouditas cos-
tumavam vir buscar agua, vendo que os musulmanos
se preci|)ítavam na fonte para matar a sede que os
devorava, conteve-os dízendo-lhes : " Abstende-vos de
beber dV'sla agua ()ue serviu a povos injustos; fugi
d'este pouso de maldicção, chorai sobre os vossos pec-
cados, e tymei solTrer iiin castigo tão rigoroso!» K
logo cobrindo o rosto com o seu manto, esporeou a
mula, e não parou na corrida em ijuanlo se não viu
lóra do valle.
Os árabes de Taicf, únicos (jue tinham conservado
o culto dos ídolos, veiido-se a toda a hora alvo dos
ata(|ues dos inusulinanos, propuzeram que abraçariam
o islaiiiísino, com tanto (jiie lhes deixassem por um
anno o exercício do seu antigo culto ei|iie os dispen-
sassem da oração. Malioinet res|Hindeu «pie a verdad(>
não admittia dilação, r que não ha\ía religião sem
oraç(H!s. Subinetterain-se os idolulras, c na Arábia
(1) Kui eiililu i|ii« Miiliumct (|iiia Iriioliir rum o» iiinis
pniItToHOii reis conin sen i^iiitt ; c.irrcvtMi a tíxtoii í>í |>rliiri|ii's
rlinstàtiM, jiiili-ii.'< oii íttitlatiaA da Araltia c das ^l-l:ll^(■^l u»i-
iiliJiit, convhtaitilo-tiH li alirai;ar a sua rch^^iilit. A t\>iiiiiila itHai
cartau era : Alatitiiiirl, a|it>slulii i\r l)(-ii!t. a . . . .'i.iudr, \c.
Conrucs, rei ita Pfisiu, ilfii-s<' um l.^i» ulTriitliilo por \i'r ati-
tcpuslii nu .iLMi u liuiiii' ili- um liuiiiciii <pir cite cii||»iilt'ra\.i
«cii csirav», (|Uo sfui ler iiiais iiaila, riLiiiuii n cariu. Maliu-
iiict, iiu (iiivir isto, i-\olaiiu>u : u An.tiiii mjii rassado o neii
reino I >< O» miiauliiiiuius iiilu ilu\id»m ipie pur isau vieram
II aollier Coiíruoa c eu Deu» eiiladoa tuila m cabia de desiisítreit.
168
O PANORAMA.
não ficou povo algum aferrado ás practicas do paga-
nismo. Trabalhosa empreza seria a de seguir Maho-
met em todos estes passos que dava para que o seu
nome e principies religiosos triumphassem : com uma
actividade infatigável, com uma ambição sem limi-
tes, viam-n'o espalhar emissários peia Arabia-1'e-
trea, pelas costas do Golpho Pérsico, e até por entre
as tribus nómades da Mesopotâmia. Sendo outra vez
chegado o tempo da peregrinação quiz Mahomet tor-
nar a vér a cidade onde nascera ; esta romaria pa-
tenteou os immensos progressos que fizera o islamis-
mo. Cento e quatorze mil homens acompanharam o
propheta. Tendo chegado a Meca, beijou Mahomet
com respeito a pedra negra em que se suppõe estar
encerrado o pacto de alliança entre Deus e os ho-
mens ; depois deu as sete voltas do costume á roda da
Caaba correndo ligeiro; porque como os seus inimi-
gos mostravam acreditar que a idade e as fadigas o
haviam quebrantado, quiz ostentar \igor extraordi-
nário. Saindo depois da cidade, subiu á coUina de
Safa, e voltando-se para a Caaba proferiu estas pa-
lavras: "Deus é grande; não ha outro Deus senão
Deus; elle não tem companheiros. Pertence-lhe o po-
der. Louvores lhe sejam dados. Elle é poderoso em
todas as cousas ; uão ha outro Deus senão Deus. "
IVIahomet se dirigiu á collina de Merva, onde tam-
bém fez uma oração ; visitou todos os logares sagra-
dos, e, quando acalx)u, fez descer do céu estas pala-
vras : "Agora não ousarão nunca mais os descridos
atacar a vossa religião; não os temais. Deus é pode-
roso e sábio! « O propheta completou piamente o sa-
crificio, immolando pela sua própria mão sessenta e
três camelos, numero dos annos que tinha ; fez sacri-
ficar mais trinta e sete pela mão de Ali. Acabadas
todas as ceremonias, dispoz-se ^lahomet para tornar
a vêr Medina.
Achava-se então o reformador no mais alto grau
de poderio; nenhum homem, nenhum povo na Ará-
bia era capaz de luctar contra elle. Senhor absoluto
da península, tudo faz acreditar que não tardaria em
levar a guerra a paizes distantes, quando dolorosa
enfermidade o levou ao tumulo. Depois da traição
de Khaibar, o propheta não cessara de sentir os es-
tragos do veneno, (iuando voltou a Medina, cresce-
ram as dores, e, a 26 de maio de 632, recolheu-se á
cama em casa de Aicscha, sua mulher predilecta e a
c-onfidente dos seus pensamentos. Mahomet, para so-
cegar os seus partidários, mostrava a serenidade mais
perfeita ; fallava sem cessar de Deus e da vida futu-
ra. Um dia que o que os cercavam mostraram es-
panto do seu padecimento, disse-lbes : >• Nenhum
propheta antes de mim soiVreu o que eu solfro ; po-
rém quanto mais viva é a dôr maior será a recom-
pensa. " Depois accrescentou : " O Senhor costuma
dar aos seus servos a escolha d'este mundo ou do
outro; eu preferi o que está juncto de Deus." No
segundo dia da sua doença quiz assistir á oração com
o povo; levaram-n'o á mesquita. Depois de ter cele-
brado os louvores de Deus, fallou assim: "Oh ho-
mens I se eu fiz espancar injustamente algum de vós,
aqui estão as minhas costas, tracte-me conui o eu
tractei ; se dilacerei a reputaç.úo de alguém, dilacere
a minha; se injustamente exigi dinheiro, aqui está
a minha bolsa. " Depois deu a liberdade a todos os
seus escravos, e connnnnicou as ultimas vontades aos
seus comp;u>heiros. Deixou tros preceitos: o primei-
ro paYa que expulsassem da Arábia os idolatras e to-
dos os que não professassem o islamismo ; o segundo
para que receliessem todos os proselvtos, sem fazer
nenhuma differcnça dos musulmanos novos ou velhos;
<i torciiro recommend.mdo a oração. AcalKui anial-
dijoandu os judeus, cujas perlidius e ódio lhe caiua-
I vam a morte. Com tomar a doença um caracter mais
I grave enfraqueceu-se-lhe a cabeça. Contam que doi»
j dias antes de soltar o derradeiro suspiro pediu tinta
e papel para minutar um novo Koran ; o que prova
que Mahomet sabia lêr e escrever, pelo menos nos
últimos annos da sua vida. u (iuero deixar um livro,
disse elle, com o qual não se possa roais errar depois
da minha morte." Estas palavras levantaram gran-
de rumor ua sala : perguntaram uns aos outros se
não tinham já o Koran, e se este livro não bastava
para esta vida e para a outra ; chegou mesmo a ha-
ver disputas. Foi tal o motim que Mahonjet, tornan-
do em si, se deu pressa em despedir a companhia:
" Não é decente, exclamou elle, altercar assim na
presença do apostolo de Deus. «
Mahomet expirou a 8 de junho de 632, com ses-
senta e três annos de idade ; tinha começado a pre-
gar na de quarenta annos, e havia dez que habitava
em Medina. O propheta foi sepultado debaixo da
mesma cama em que morrera; mais pelo tempo
adiante levantaram-lhe n^este logar uma mesquita,
onde os musulmanos vêem perigrinar. "Sem razão
teem alguns escriptores affirmado, diz Mr. Keinaud,
que os restos de Mahomet tinham sido mettidos n^um
caixão de ferro, e que este caixão estava suspenso no
ar por um grande iman que pendia da abobada.
Em que Mahomet é na verdade único, é, d'um
lado, na prodigiosa habilidade com que preparou o
seu papel; do outro, na imperturbável firmeza com
que o desempenhou. Mahomet era chão, modesto, e
tão sóbrio, que, quando morreu, ouviram Aicica ex-
clamar : " Oh tu que nem pão de cevada comias a
fartar ! " Com effeito em sua casa, as mais das vezes
tâmaras e agua eram todo o alimento ; e passavam
ás vezes dois mezes sem aili se accender lume. O
propheta não se distinguia dos outros homens nem
pelos vestidos nem pelo modo de viver: ao principio
tinha tomado a liberdade de se vestir deali^odão;
mas achando que o algodão era rico de mais. pro-
hibiu a si mesmo o uso d'clle e vestiu-se de lã.
Aboul-feda conta que elle cosia o seu calçado, re-
mendava os seus vestidos, varria o seu aposento, e
servia-se a si mesmo. A maior parte da cevada e
das tâmaras que 31ahomet colhia deisava-as aos po-
bres ; sustentava constantemente quarenta pessoas á
sua custa. Mais de uma vez lhe aconteceu carecer do
necessário. Mahomet era mui zelador dos interesses
dos seus amigos e confidentes, folgava de os servir
com o mesmo ardor com que elles o serviam ; por-
que lhe parecia ser este o meio mais seguro de os
prender á sua causa; empregava a maior attcnção
í-m cercar de honras as pessoas em quem delegava
auctoridade. Um dia que um dos seus officiaes par-
tia para Meca para ir governar uma província, poi-
Ihe pt)r sua mão o turbante na cabeça, c, depois de
o ter ajudado a montar a cavallo. acompanhou-o por
algum tempo a j)e, dizendo: "Cumpre honrar .iquel-
le que está revestido de mando; não faço nada que
não seja conforme .ás ordens de Deus. •> M.\s t.ío dis-
posto estava sempre (wra favorecer os seus amigos,
quanto implacável era para cvun os inimigus: contra
os que lhe estorvavam os intentos não reprimia as
demasias da cholera. E n''isto quinhoava o humor
vingativo dos seus compatrícios; nem mostrou gran-
deza d'alma senão quando viu inabalável o seu {loder.
(Couiinua.)
OBfTACfLOS irrrmofiveis nuo cUixareim piiWíror etie
numero no iHa propi-io. A Socieiiaile do J'anorama
cmprtgara porém lodos os rtfiTfoi para qtit a publi-
cação continue com reguiaridade.
22
o PANORAMA.
169
PEZ.OUBINHO J>'AI.JUBABaOTA.
A MEMORÁVEL viftoria alcançada oiii 11 (1'agosto de
1 3116 |)(.'lo valor de nossos antepassados nos campos
d'Aljul)arrota immortalisou nos fastos portuf^uozcs o
nome d'esta villa :, alii nos legaram mais uni grande
exemplo do amor da independência nacional e das
liberdades pátrias n'uma iiorliada hatallia, ganlia
contra a superioridade numérica e a cul)i<ja espolia-
dora de inimigo» poderosos. Com tão glorioso feito
ficam (íSCur<H'idas i|Ua(rs<ju(^r memorias' illustres fjue
esta povoação |)oderia cNlralilr da aniiguidade, se
jiorvi iMura é eerlo estar fundada no assento d(í uma
<id:i(li? d(! largo aml)ilo, aArruncia dos romanos: es-
ta opinião produz em seu abono, entre outros tcsti-
inuuiios eeoujeelura», a inseripeão de uma [ledra C|ue
ae iiehou servimlo de mesa ao altar nuír <la antiijuis-
• ima igreja deSaueta Mariniia, templo de ipie ja no
meado do século passado existiam diminuías relirpiias.
Km 1'oros do Scjão, logar ilu seu termo, desenterra-
ram-se por v»'/.!'» em chão lavradio medalhas romanas.
Kntre os I)razões notáveis, dv (juc pôde jaelar-se
Aljultarrola, sctliresáe o iustrumenlo mí*elianico ipuí
a desleniida l!riles, padilra, converteu em l)ellico ;
tradição popidar, senàcj veriladeira eiu todas as suas
particularidades, |)el<i menos de espirito grandemen-
te nacional e até engraçada. INo ;i." vol. ilo l'anora-
nia (a pag. '113 e .111) sií indicou o grau de possihi-
lidarle (l(]faclo, <• se transeri'veram as recordações que
os liistoriadori'S colligiram. ■ — ■ Accresccularemos o (pie
ainda constava cpiaudo escreveu o padr<' Carilo/.o, em
17-17, o (pnil diz assim no tiimf^,|l •" : — •• Kntr<! »s
cousas memoráveis doesta villa tem o primeiro iogiir
Vol. 1. — Fuviciiiciito C, Ifl-n.
a pá da forncira ciiamada Brites ou Beatrii d'Almei-
da, com a qual matou sete castidhanos de iim impe-
lo, no tempo da batalha que elrei 1). João o I de
Portugal deu nos campos d'esta villa a D. João de
Castella ; et' crivei mataria mais atião desisliicm da
cmpreza. K de ferro, quadrada, e se conserx^a desde
aijuetle tempo sem/crrvgnn, com seu cabo de pau.
Está na casa da camará iPesta villa •, e quando por
ella havia de passar alguma pessoa real ou de gran-
de finalidade, era costume nuindar o senado da ca-
mará ex])i1r na praça, avista de todos, adicta ])a na
mão de unui mulher honesta, padeira, ben\ compos-
ta. Km seu elogio <oncluem uns distichos que na pa-
rede do nusmo paço se vêem escriptos e dizem assim:
observetur et illo
Castelhe slimulus, Ijusiaduiuque deciis. (l)
A dinerent<' pr(q)osilo ajuncta o mesmogcographo :
— i. ( ( grande sino do relógio d'esl<' povo, que se vA
|K>sto lia torre couligiia ao paço do coiieclho, foi da-
diva do Sr. rei I). Sebastião, eterna saudade d'este
riMiio, como consta da merci' porescriplo (pie se guar-
da no archivo da camará." — (.'om etVeito, alguns
monarehas couccderam graças a esta pe(jui'iia villa,
sendo o donutano d'ellu o mosteiro ile Alwilmyi, (x>-
(O O tom (loH tnn ilinlidun (' í«'ri(^ ; l(iniiiT(-nio9 Ilroinn,
()(ir('ni, (mm verter o rciniili- iis»iiii ; — Olli^o |uii;i cmc c»-
ciirmciilii (Ic cniilíllmmif, ntlculiii Ikiii ii'(i>ín luiiestni doi
(irloii |>(>ilu(;uci('9.
170
O PANORAMA.
i>io loi;() (1 iremos. — Klrei D. IV-dro II, passando á
j)ra(;a d'Aliiieida, mandava ir, não obstante a enor-
me distancia, a^na da fonte do Troilhe de Aljuljar-
rota, por ser r('pulada excellente e muito medicinal
para as enfermidades da bocca edos olhos; pelo bem
<jue com ella experimentava denominava-a saneia. A
villa é muito farta de aguas; além das fontes publi-
cas ha muitas particulares, etem poços a maior par-
te das casas.
Aljubarrota, fundada n^uma eminência, fica entre
as villas de Porto de .Moz e de Alcol)aç;a, a uma lé-
gua d'esta para. o nascente e a duas da Batalha pa-
ra o poente. E terra sadia e de torrão fecundo. —
Para que se faja idéa do vexame dos encargos que
pezavam sol)rc os coutos triliutarios ao famoso mos-
teiro, cabeça da ordeju cistíírciense em Portugal,
enumeraremos as contribuições dos povos de Alju-
barrota ; tão oníTosas, apesar de algumas isenções,
(|ne oescriptor acima allegado exprimia-se d'estc mo-
do.— "E o terreno (Pesla villa fertilissimo de todo
o género de fruetos, se bem que por ser pouco lavni-
dio não tem mais pão do que para o povo. Ue vi-
jiho, azeite e fructas de toda a casta é tão abundan-
te que seria sem controvérsia uma das mais ricas po-
voações da Estremadura, a não ser tão opprimida de
tributos. Das fruclas verdes os peros camoezes são os
melhores de todos os coutos •, e das seccas as ameixas
saragoçanas, a qu<í em outras partes chamam mosca-
téis, e as peras de almíscar aparadas são celebres cm
todo o n^ino. ^^ —
A villa e termo pertencia a dois districtos separa-
dos por demarcação \ ura dos coutos de Alcobaça, e
outro de Porlo de Moz, que depois se annexou aos
coutos. Tornaremos acoplar do padre Cardoso. —
« E seu donatário o I). abbade geral de Alcobaça, a
quem os moradores dos dictos districtos e seus coutos
pagam o quarto e dizimo do pão, e o quinto e dizi-
jno do vinho, excepto da uva preta ; porque d'esta,
por sentenças alcançadas contra o mosteiro, lhe não
pagam nem ainda o dizimo, salvo da qu(! lhe sobe-
jar do tempero dos seus vinhos. Das fructas lhe pa-
gam até lâ do mez d'agoslo o dizimo, c d'ahi para
diante o quinto e dizimo; de linho o quinto, de le-
gumes, cebolas e aboliaras o dizimo; e somente em
uma pequena parte doeste districto, para a parti? da
^illa de Coz, ao prior dVsta pertencem os dizimos
do azeite, legumes <; frucla. Pagam mais os morado-
res dVste districto ao mesmo mosteiro cincoenta al-
<]ueircs de trigo por fogaça, seiscentos vimes e unia
gallinha de casaria cada fogo. Do outro districto de
l*orto de jMoz se lhe paga somente o oitavo do p.lo,
vinho e linho <; do azeite da terra de lavradio, ex-
cepto os clérigos e homens nobres que por scMitença,
lia pouco temjio alcançada, não são obrigados a pa-
gar-lhe mais que ajugada na forma que em Porto de
Moz se paga, por cuja razão traz o mosteiro a mas^a
arrendada em quatro mil e tantos cruzados cada an-
uo, em que se não comprehende os cincoenta alquei-
res de trigo da fogaça e gallinhas da casaria. — Prc-
.side o 1). abbade sjeral ás eleições dos capitiics does-
ta villa como capitão mor que é dos seus coutos, c
das justiças que lambem por elle são confirmadas.»
TOMAUA DE AlCACKW.
A Historia de Portusal jx-lo Sr. Alexandre Hercu-
lano, d<' que está publicado o 1 ." volume, é um pa-
ilrão lilterario da nossa epoclia. O seu auctor, eiii-
|>unliando o facho da critica apurada e severa, pene-
tra afliiuto o labvrintho das passadas oras, e dissi|Ki
as trevas que ofl\i!ica\am a verdade. Era tciinH) de
m(jstrar que havia em Portugal quem soubesse des-
assombrar a historia de fabulas invorosimeis, inves-
tigar a origem dos factos, e ler coragem para er-
guer, entre o verdadeiro e o falso, alta muralha que
para sempre os separasse. Fê-lo o Sr. Herculano.
A obra do Sr. Herculano, fructo de aturadas vi-
gílias e investigações profundas, em que reluz uma
erudição vastíssima e bem trazida, dão realce as Ixjl-
lezas do estalo, portuguez estreme e sempre adapta-
do ao assumpto. Agradecemos ao Sr. Herculano, o
mais dístincto coUaburador do antigo Panorama, a
bondade com que nos facultou este trecho importan-
te do 2.° volume, que, posto se ache no prelo, ainda
lerá alguma demora na publicação.
A frota rlienana composta de mais de duzentos na-
vios, que em grande parte h.-iviam sido armados pe-
los habitantes de Colónia, era capitaneada por diver-
sos chefes, entre os quaes se distinguiam o conde de
VVithi', e sobre tudo o condestavel da gente de guer-
ra, Guilherme conde de Hollanda, alliado que fora
do infante Fernando de Portugal, e seu companhei-
ro de desventura na infeliz jornada de Bouvines.
Com viagem demorada, mas sem perigo, havendo-se
apenas perdido uni navio com gente de Manheim,
que tocara n^um baixo do canal d'Inglaterra, a fro-
ta chegou ao porto de Faro (Ferrol?) d^onde os cru-
zados se dirigiram por terra a visitar o templo de
Sanctiago. Embarcados de novo, levantaram ferro, e
seguindo ao longo da costa para o sul, uma furiosa
tempestade, que inesperadamente rebentou, fez espa-
lhar as naus. O condest;ivel com uma parte dVllas
entrou na foz do Douro, naufragando, porém, na bar-
ra duas ou três embarcações, em quanto o conde de
VVithe, correndo com a procella, vinha demandar a
mesma acolheita (l ). Finalmente, serenado o mar,
os cruzados velejaram até o Tejo, resolvidos a espe-
rar nV-ste porlo alguns navios que ainda faltavam,
descançando entretanto de uma viagem em que com-
mummente se gastavam quinze dias, e em que elles
haviam posto mez e meio, partindo de Wlaardingen
a 29 de maio, e chegando a Lisboa a 10 de julho de
1217 (2).
Dissemos no livro antecedente (jual fora o resulta-
do da invasão de lacub no Al-Gharb ix!eidental em
1 l!)l. Apesar de reconquistado todo o território aléiu
do Tojo, os sarracenos tinham-se contentado com for-
tificar e guarnecer a forte Al-kassr-Ibn-Al>u-Dancs
.ibandonando os desmantelados eastellos ao norte eno-
rueste do Chetawir. Os chrislãos tornaram enl.io a
oceupar successivaniente aqucUc districto, e a reparar
as fortalezas arruinadas. Provável é que o recu[»era-
las custasse mais de um recontro com uma ou outra
parlida de alniogaures musulmanos ; mas os monu-
mentos são mudos a tal respeito. Sabemos só que <»
liellicosos spatharios possuíam de novo P.-ilmella no
anno que precedeu a morte de Sancho I, c que ahi
(O Godcfr. Mon. I. cil. — Gosuini Cármen v. 33 — 54,
pin llr.mil.lo, Mon. I.iisil. P. 4Ap|i. !>, e mais corrcclamcn-
lo no livro ili- S. Boíivonlura: •■ Cumiuenlarla Of Alcobaç.
mss.lonim Bihliolhoca. A(i|ii'nii. p. I — VU. " O leito di*
lioilffroilo está n'esla ])arlo o» iilcntomonle corrupio, e |>»r
"isso oKsciiro. Ilhislr.im-n'o. ponm. ns versus ile tiosnino.
(í) O que ili«enio.< rrsnila >!a espécie <lc rolciro que » ■
lè Ra relaçilo de (íoilelredo. Na caria do» prelailos |wrliiEUe-
zes ao pa|>a (llaiuald. .td anu. ^ 3i) dii-><! que (vscrui.ijikc
,:,';u<lHrRni qualro inejos no caminho, lalvei rcíerindo-$e ao>
que decorreram desde a parlida dos primeiros navios de Co-
lónia pelo Ulieno ahaixo, ale que Ioda n frola se reuniu no
Tejo. Klles linhain interesse em exafivrar n'cfta parle a sua
narrativa para cap.icilíí' Honório III, de que a demora dos
cruiados em Lífboa fOra forçada.
o PANORAMA.
171
rosidia eiitiio o ca{)itulo <la Ordem. Era Palmella o
ponto mais avançado contra Alí-accr, e Alcácer o mais
terrível padrasto contra o projrcsbo das armas chris-
tãs por aquella parte. Govcrnava-o um capitão illus-
tre por tcloriosas façanhas, c encanecido no exerci-
cio da guerra, Abu-Abdallah-Ibn-Wasir-Ach-Chelbi,
aijuelle mesmo, segundo parece, que era li 89 susten-
tara o memorável assedio de Silves, e que ajudara
Jacub a reconquista-la, sendo depois escolhido porAn-
iiasir para o tão arriscado quanto importante cargo
de wali do districto deAl-kassr, cuja capital era co-
mo a chave dos territórios meridionaes do Al-Gharb,
o tjue por isso merecera o nome de K.assr-AI-Fetah
(castello da porta ou da entrada) ( l ). Tinham n'elle os
freires de Palmella, e os outros homens d'armas que
estanceavam entre Sado e 'l"ejo, um incommodo vi-
sinho, que não os deixava repousar. Eram contínuos
os combates, e tão rejjetidas as entradas para levar
gente captiva, que corria de plano ser pensão impos-
ta n'aquelle castello o enviar cada anno cem prisio-
neiros christãos ao im|)erador de Marrocos. N'eàta
situação violenta se achava a fronteira de sudoeste
quando a armada dos cruzados veio fundear no Te-
•Sueiro, o bispo de Lisboa, era nao só hábil nego-
ciador, como .is diligencias em Roma, a favor (VX-
fonso II e contra as infantas, o tinham provado, mas
lamljpm homem enérgico, e por ventura mais apto
para envergar a dura couraça de soldado, que para
tnijar as vestes do sacerdócio. Achav.im-se então com
elle o bispo d'Evora, oabbade d(! Alcobaça, e ocoiu-
mendador de Palmella, Martinho, além de muitos
cavalleiros illustres, e vários membros da ordem do
Templo e do Hospital, provavelmente porque a no-
ticia da chegada d^KiuclIa numerosa frota eo pensa-
mento commum de se valerem d'ella contra os sar-
racenos os altrahíra a Lisboa. Sueiro fez uma recep-
ção magnifica aos cruzados, que n'elle encontraram
franca hospitalida<le. Pintou-lhes depois a situação
em que se viam as fronteiras visinhas, e ponderou-
Ihes que, estando tão adiantado o estio para a longa
viagem que ainda lhes restava, ell(.'S poderiam evitar
um ócio vergonhoso para guerreiros da cruz, e ao
mesmo tempo cobrir-se de gloria, combatendo contra
os infiéis em proveito da lilH^rilade da Pi^ninsula. En-
tendiam os prelados e cavalháros portuguezes, que o
cerco d<! Alcácer seria empreza digna de tão nobres
soldados, |)or se ter aquella ]>raça na conta do chave
e anteinural de Ui(l;i a nioiirisnia de llcspanlia; que
parecia have-los Deus trazido errantes tanto Itíinpo
]>el()S inan'S sií para (|iie tivessem de invernar em Lis-
boa, e de contribuir |)ara o dcísaggravo (la fé; que,
linalinente, <; era talvez esle o melhor argumento, se
Alcácer lhes eaíssc! na» mãos, com os despojos não só
tibteriam vitualhas, mas tainbein com que remir as
<K'spezas da expedição. I''izeram abalo laes razões nos
nnimoH, sobre tudo nos dos condes d<; llollaiida i' de
Withe, ante cujos olhos se representava a dilTieulda-
de do trajecto, ea inutilidade da sua chegada á ter-
ra sancta n'a(pielle anno, si-ndo certo rpii! o impera-
dor e os outro» principe» de Alleinanha com aa tro-
pas germânicas e italianas não passariam ainda ao
(I) V. o T. 1 p. 398 nota ! — e T. S p. -15 nota 8.
(8) fiuiiH oiiiliiiiiaii triliiiliiliunL-K et aiiiro^liiiH i-x nimiu vi-
ciniii Hurrariiiiiriiiii .... <-v|>i>iii'liiuil .... Iiiiciualriiin iii piMi-
HÍunir (3. ('Iirisliiiiiiiriiiii sim r<'KÍ il>- Miirrocli iiíiii;uIIb nniiÍ!i
farr iibll;,'aliiiii : (jdilrlr. AIdii. p. IinS.
CHilrmii «iiper omniu cniitrn iiociviim
r'Miilri'iisi'Mipii- 811(1 ri';;i diiiil (IIKiIiIhI iiiiiin
Ceiíliiiii cliriHlIcoliiH : ikiIvíiikih i^lii ipiidcni.
Qoiuiiii funiKii V. (i3, CU, 7o.
oriente. Resolveram ficar. Havia, porém, muitosque
reluctavam, eadiscordia rebentou entre os cruzados.
Vinha a principal opposição dosfrisões, que insistiam
em seguir avante, e que, não pcxlendo resolver os
companheiros a continuar a viagem, pela maior par-
te saíram do Tejo com mais de oitenta navios. Das
duzentas e tantas vellas, reunidas em Wlaardingen,
algumas não chegaram a sair, ou logo retrocederam :
outras tinham ido a pique ou dado á costa no tem-
poral. Com a partida de mais de oitenta, a armada
surta no Tejo ficava reduzida a cem transportes. Era,
por tanto, com o auxilio d'estas forças que se podia
emprehender a arriscada tentativa de .\lcacer (l).
Os dois prelados começaram então a pregar a cru-
zada contra os infiéis, 'lodo Portugal se agitou a es-
te brado de guerra nacional, que parecia ter emmu-
d(!CÍdo para sempre, afogado debaixo das lousas que
cobriam o cadáver de Sancho I e o de seu pai. Os
mestres das ordens, o abbade de Alcobaça e outras
pessoas iniluontes (2) procuravam pelo reino, e ainda
fora dVlle, ajunctar homens (Parnias. Não eram vãos
esforços : muitos corriam a alistar-se tomando a cruz
vermiflha :, eos reis de Hí'spaiiha, aproveitando a fer-
mentação dos espíritos e o exenijilo de Portugal, pre-
paravam-«e para quebrar a um tempo as tréguas com
os sarracenos. Entretanto os condes deHoUanda e de
Withe, saindo da barra de Lisboa, penetravam na
foz do Sado. Desagua aquelle rio no oceano por uma
profunda bahia, que se em grandeza não iguala a do
Tejo, iguala-a por certo em bondade. As aguas do
mar rompendo pelo rio acima até além de Alcácer
formam, não diremos um porto continuado, mas um
canal ex(!ellente ede bastante extensão, por onde po-
dem subir navios de mediano porte, e que no século
XIII devia ser ainda mais facilmente navegável. Ca-
minhavam por terra ao mesmo tempo os bispos de
Lisboa e de Évora, o commendador de Palmella com
os seus freires, e vários fidalgos, formando uma lus-
trosa companhia de gente escolhida, posto que pou-
quíssimo numerosa (.'i). Chegados os estrangeiros as
immedíaç(l(>s de Alcácer (30 de julho), romperam as
hostilidades. Devastadas as vinhas que rodeavam a
povoação, c repellídos alguns almogaures, que pre-
tendiam escaramuçar, os cliristãos acamparam próxi-
mo dos muros, e alli (esperaram quatro dias que os
portuguezes chegassem. .\ 3 de agosto estavam junc-
tas todas as for(;as. Cuidou-se logo no assalto. A ar-
mada achava-se a colx-rlo dos tiros, e por isso a al-
guma distancia, mas os arraiaes tínhani-se assenta-
do tão perto, que os musulmanos não podiam sair,
sem grande risco, do âmbito d;is muralhas. Abrangia
elle duas ordens de f()rtirica(j("ies, ladeadas de muitas
torres, dilTiccis de commetler por cercarem a cortVi
de um monte despenhado, onde ainda hoje as ruínas
(pie d'ellas restam causam assombro e involuntário
temor a quem as contempla de f(íra. Marcharam os
sitiadores á escala ; os llgueíraes e olivcdos, (pie ro-
deavam a nobre ])ovoação e(uiio um cinto do verdura,
caíram aos «rolpes dos machado», econvertidos em ins-
trumento» de guerra serviram para entulhar o.s tos-
sos. Foi bravo o combate ; mas os sarnicenos incen-
(1) 300 niivcs pr^parnvil, qnariim yiincí/niii ríHi(iH»<TM»il .*
qiitiiilnm iii tcnip('»lal(! piriírioil ; scd major purs pcrvcnit
tllivlieiiain : Olivcrii, llisl. Damial. Inc. cil — Mnciin . . .
cnm riiiliim iiiivitiiis faccrciiuis ; l.illcr. Coinilis llulland.
Il"iiiir. Ill, ii|iiid llayinild. ad imri. ^. .'t:». — Jacidi, a Vi-
Iriacii, Ihsl. Oricnialia I.. 3 ((i.slii Dei piT Tram-os p.
ia;il),— (liidrlV. Mi.ii. l.cil. — (ioMiiiiiCariiii'», v. .'>:>— !M).
{1) (Ir niȒiinlilvns ic^Mionim piiiliicalciisia i-l lc;;ii>ii('iuis :
Lillcr. Piaclalor. Ilnii. Ill, apiid Hiiviiald. ad ami. ^. 33.
(31 on III nua de rcgiio Pmldgaliai' csKcmu» . . . pnucisíi-
mi : llúd.
172
O PANORAMA.
diaram as fuchinas, e aquella inútil tentativa só ser-
viu para \ã prova de esforço com mortes de parte a
parte. Então comejaram a trabalhar as macliinas de
guerra, ao mesmo tempo que os gastadores christãos
abriam iiiinus e os musulmanos as contrarainavani.
Alluida pelos tralialhos subterrâneos e pelos tiros dos
engenhos, uma das torres veio por fim ao chão : mas
liem por isso licou aberta passagem, porque a parede
interior d ella estava intacta, e o sangue continuou
a ser inutilmente derramado (I).
Apenas correra voz da vinda dos cruzados edaem-
preza que se delineava, Abu-Abdallah enviara men-
sageiros aos outros walis do Andaluz para que se
apressassem a soccorrer aquella praça, de cuja perda
ou conservação dependia em jiarte a sorte futura das
enfraquecidas e cada vez mais limitadas províncias
da Ilespanha musulmana. A defeza do império e a
própria segurança incitavam os chefes sarracenos a
darem attento ouvido ás supplicas do esforçado vvali,
e se acreditarmos um dos mais graves historiadores
árabes, o próprio El-Mostanser, a quem fora commu-
nicada a noticia da perigosa situação de Alcácer, deu
terminantes ordens aos seus walis echeiks na Penín-
sula para voarem em auxilio d' Abu-Abdallah (2).
De feito, não só o governador do districto de Bada-
joz marchou com as tropas do Al-Gharb, e o de Se-
vilha, Cid-Abu-Ali, com as da província que regia,
mas também os walis de Jaen e de Xerez com a ca-
vallaria de Córdova, e os cheiks de Sidónia, Ecija e
Carmona (3). Este numeroso exercito avançou ines-
peradamente até as immediações de Alcácer, fazendo
alto a uma légua de distancia dos sitiadores. Calcu-
lavam-se as tropas musulmanas em quinze mil ho-
mens de cavallaria e quarenta mil infantes, e o te-
mor de que se possuíram os cruzados ao receberem
•iquella nova augmentava a grandeza do perigo. Co-
meçaram, porém, n'esse dia a chegar soccorros, e
niais trinta e dois navios, ou portuguezes ou de al-
guns dos cruzados dispersos pelo temporal, entraram
no Sado. Redobrou-se de vigilância : guarneceu-sc a
armada, e construiram-se vallos e fossos em volta do
arraial. Todavia o susto fazia ahi seu oflicio, e mui-
tos propunham a retirada, com o pret<'Xto de que o
primitivo destino d'aquella expedição fora o libertar
o sepulchro do Uedempfor, e de que só na Palestina
30 podiam cumprir os votos que se tinham feito. Fe-
lizmente no meio da inquietação dos aiiimos o auxi-
lio seguiu de i)erto o perigo, e a contiança o temor.
Toda a cavallaria christã não passava de trezentos ho-
mens \ mas n'essa noite chegaram ao campo não só
cxcellente peonagem, forte ebem armada, mas tam-
Ix;m o mestre do Templo, Pedro Alvitiz, com os seus
freires, hospitalarios, e muitos fidalgos de Portugíd
e de Leão. Eram ao todo quinhentos cavalleiros, a
que se devem ajunctar os homens d^armas que cos-
tumava trazer eorasigo ás batalhas cada rico homem
ou infanção. Cobraram assim animo os cruzados pa-
ra proseguir no cerco, e os portuguezes prcpararam.
(1) Godefr. Mon. I. cit. — Gosiiini Cármen v. 91 — 112.
(2) Assaloli |>. 267.
(3) Conilu P. 3. c. ú6 Conde faz do caslollo do .al-
cácer e d.-i siiu tomada dois cnstellos e dois íiiclos diíTorcnlcs.
— Esta parlo du Historia tio Domínio Arabi , coordenada
depois dii morto do aiiclor, é aponas a serio dos apontamen-
tos coltiidos por 1'lle. A sua conrusrio nasceu provavolmoute
de tor foilo extractos de dons liistoriadores diversos, nm dos
qiiaes diMiominoii Alcncor hassr-.lliii-Dtmts, e outro hassr-
n/-/t7rt/i. ApprovoitAmus, lodiiiia, da sua narrativa ns cir-
cnmstancias que faltam um Assali'li, n'ostn parto demasiado
lacónico, c que oní geral concordam com a reiaçiSo iU mon-
ge Godefredo, c com a carta do» prelados porlujiieies no
l>a|ia.
se para combater os sarracenos, que pretendiam fa-
ze-lo acabar.
Havia quasi mez e meio que Alcácer estava sitia-
da. A vinda das tropas do .\ndaluz fora a 10 de se-
tembro, e os auxiliares christãos haviam chejado ao
campo, como dissemos, n'essa mesma noite. Na ma-
drugada do dia 1 1 os trezentos cavallos, que desde o
principio tinham assistido ao assedio, saíram como
exploradores, e approximaram-se dos arraiaes musul-
manos. Observaram tudo : por uma grande distancia
o solo desapparecéra coberto da multidão d'infieis.
Perceberam estes a cavallaria que os atalaiava, e le-
vantando o clamor de combate correram a persegui-
la. Esperaram-n'os a pé firme os valentes homens
d'arraas, e alli mesmo se travou uma brava escara-
muça. Não podia ser duvidoso o resultado : eram um
contra cem. Os cavalleiros portuguezes foram obriga-
dos a recuar. Lançando os escudos ás cosLas para se
ampararem dos golpes e tiros dos sarracenos, vieram
á rédea solta precipitar-se no acampamento, perse-
guidos pelo exercito inimigo, que immediatamente
marchara. Entre tanto os quinhentos cavalleiros, che-
gados n'essa noite, montavam a cavallo, e vendo aj>-
proximar os sarracenos prepararam-se para romper a
batalha. Deviam ser na maior parte templários, por-
que esta ordem era talvez a mais numerosa de todas,
e porque debaixo do mando do mestre dos três rei-
nos de Hespanha, Pedro .\lvitiz, ahi se achavam reu-
nidos aos freires de Portugal muitos de Leão e Cas-
tella(l). A severa disciplina da ordem, as solemni-
dades com que entravam nas batalhas produziam ne-
cessariamente o enthusiasmo n'esses ânimos em ge-
ral esforçados, e n'aquelles que os viam a seu lado.
Os esquadrões do Templo, ao formarem-se para a ba-
talha, guardavam profundo silencio, que só era cor-
tado polo ciciar do babão bicolor (negro e branco) que
os guiava despregado ao vento, e dos longos e alvos
mantos dos cavalleiros que se agitavam. A voz do
mestre ura trombeta dava o signal do combate, e o»
freires, erguendo os olhos ao céu, entoavam o hvm-
no de David : Aão a nós, Senhor, não a nós .' mat
dá gloria ao ttu nome! — Então, abaixando as lan-
ç;is e esporeando os ginetes, arrojavam-se ao inimi-
go, como a tempestade envoltos em turbilhões de pó.
Primeiros no ferir, eram os últimos cm retirar-se
quando assim lh'o ordenavam. Desprezando os com-
bates singulares, preferiam aceonimetter as columnas
cerradas, e p;ira elles não havia recuar : ou as dis-
persavam, ou morriam. .\ morte era, de feito, mais
bella para o templário, que a vida comprada com a
covardia. Bastava que não attingisse ao tvpo de va-
lor humano, como os velhos guerreiros da ordem o
concebiam, para ser punido por fraco. A cruz verme-
lha, distinctivo da corporação, com o manto branco
sobre que estava bordada, tirava-se-lhe ignominiosa-
mente, e clle ficava separado dos seus irmãos como
um empestado. Obrigavam-n'o a comer sobre o chão
nú : não lhe era licito o desforço das injuri.-is, e nem
sequer castigar nm cão que o maltract.asse. Si> depois
de um anno, se o capitulo julgava a cul))a expiada,
o desgraçado cingia de novo o cingulo militar, para
ir, talvea, na primeira batalha afogar no próprio san-
gue a memoria de um anno de alTroutas cde suppli-
cio (2).
Q.ual seria o estado intellectual de bomcus habi-
I
(11 e fueron alia do Porliiiral, c lo.» Frerres de lo» otrv>j
rcgnos ; Annal. Toloil. I xii «nn. p. 400.
(S> Voja-so a oloipionle doscripção doi TompLirioí poi
Jncot) do Vilriaco no li\. 3." d» Historia Orientsl, q»o os
m.iuriensos jnlr.im ser o irrnuinú, cm Martene, Theianr.
Anecdot. T. 3 p. 276 c 277, e nai obm de S. Bernardo .->
Erhortatio ad Mililtt Tenpli.
o PANORAMA.
173
tuados á exaigeração de tal disciplina, fácil é de
imaginar. As outras ordens imitavam mais ou me-
nos os templários \ dominavam-n'as as mesmas idéas,
o mesmo enthusiasmo ardente, e tanto mais arden-
te, quanto mais as instituições que as regiam recal-
cavam todas as tendências suaves do coração debaixo
de formulas severas e tristes. No acampamento junc-
to a Alcácer os freires das três ordens rivaes — Tem-
plo, Hospital, Sanctiago — achavam-se reunidos: ti-
nham de ser julgados uns pelos outros ^ tinham de
se julgar mutuamente; e nunca mais op|)urtuna oc-
casião se lhes oiferecèra de vencer com gloria ou de
perecer nobremente. Estavam, segundo parece, já
além do rio : a febre dos combates exaltava os âni-
mos até o delirio, e ao erguerem os olhos ao ceu pa-
ra a invocação da partida, aligurou-se-lhes vêr na
immensidão do espaço, a uns uma cruz brilhante, a
qual offuscava as estrellas que se immergiam no al-
vor da manhã, a outros um estandarte em que a
mesma cruz se desenhava. Não havia que duvidar
da victoria : era Deus que a annunciava (t).
(Cot^linúa.)
AVENTUn.£IR03 SABOIAIMOS.
A Saiioia, incorporaila no reino da Sardi-idiu é um
1)aÍ7, de aspc^ras nKiiilanljas, silij.ido eiilre a Suissn, a
''rança, eo 1'ienHiiite ; osscus habilaiilc» geralmente
são pobres, porém indnstrioHiw e tiabjMiadiires, de
condirão pacifica, Iractavcl e liiiniaiia, i' ilolados de
probidade. Aunimlniciiliísáeni ilo meio d'a(|ui'llas ser-
ras nuiitos dos seus nalura(!s, (jU(( não piMlcni alcan-
çar meios dl- subsisliMiciu, (! se derramam pelos pai-
(I) l)ii cnrln >l<is pn-lniloii edo iidiiim clcíiinuim) ilrdiii-
•1! (|uii iiu|i|iiirii;i1i> Tui ili' initilni|;mlii, piislii i|ui' n iiiiiii^'i'(i<i-
ili'fi'u(lo alliriiic liir sulu iia vcMpcra i'i iimli'. A>|iir'lla8 iiiiclo-
riiliiclc» HÍId preliTiiri», iUíÍ |iiiri|iie irc»ai! iiiuiiiimiIh ilf erisi;
!• lie exi-iliiçAii mor.il iTii iniii.'i lai'il a llliisiíu- O iiiiclnr ila
lllatonn Daniiulauii, liiiiilifiii ti'sliiiuiiiliii ocular, ^'iiiililu ti-
liriiciu iircTca <r<']ilr iiiiliaTc.
zes circumvisinhos, nomeadamente pela França, on-
de practicam toda a casta de misteres para ganhar a
vida; eesta emigração ou é periódica, voltando á pá-
tria de tempos a tempos a repartir com as familias
o fructo do trabalho, ou se demoram os mais afortu-
nados tempo bastante para ajuuctarem com que com-
prar algumas courelas na terra natal, quasi á manei-
ra dos gallegos, que teem em Portugal as suas minas
para accrescentar ou fazer seu património. O mais
singular, porém, dossaboianos é que asiamilias, não
tendo alimento nem occupação para os rapazes, põem
a correr mundo as creanças, á ventura, e sem mais
recursos que um pobre fatinho, uma broa para três
ou quatro dias, e ás vezes um pandeiro, ou tambori-
nho, uma marmota industriada a fazer macaquices,
pequeno quadrúpede dos Alpes, que se domestica
com facilidade \ e então começam a vagar pelos po-
vos das planícies, cantando suas trovas e recebendo
as mialhas dacharidade. Outros associam-se a algum
que teve a felicidade de alcançar um tablado porta-'
til com titeres ou bonecos dançantes, que embasba-
cam a gente das aldeias, á moda do polichinella, e
rendem para os aventureiros rapazes o suado pão
quotidiano; iim d'estes grupos representa-se na gra-
vura. Os limpa-ehaminés são rapazes saboianos ; ou-
tros limpam e engraxam botas em Paris nas praças
e encruzilhadas ; em summa, estas e diíferentes obras
servis são os seus empregos ; e como a Índole é boa,
e a criação familiar os fez cortezes e fieis, por toda a
parle são acolhidos e bem tractados : não poucas ve-
zes alguns teem chegado a adquirir, no decurso do
tempo, e passando a officios e prolissucs lucrativas,
as commodi<lades da vida abastada, e até riquezas.
— Além de recommendaveis, geralmente, por aquel-
las boas qualidades, a natural esperteza e agilidade
lhes grangeia a bemquerença das pessoas que ser-
vem. Voltam muitos, como dissemos, aos lares pa-
ternos, e alguns permanecem na pátria adoptiva.
Mahomet ou Mafoma.
(Couliiiiiado de pag. 160.")
Muitas pass.igcns ilo Koran provam que .Maliomet
tinha o dom da elo(|U<'ncia. .\s suas acções revelam
que elle olhava a religião como um meio politico de
lograr os seus intentos. Km cada ciicunistancia da
vida fazia baixar do céu máximas (|Uo attribuia a
Deus; o por isso se pôde formar, só com o auxilio
do Koran, uma iiléa das epochas mais imporlanii'»
da vida do |)rophefa. Os próprios doutores muçulma-
nos sanccionaram esta verdade, indicando por baixo
de cada versículo o successo em que se funda, l ii:a
cousa u que Mahomet nunca laltava era reve^tir lo-
dos os passos <l'um caracter religioso; comprazia-se
j)rineipalm('nte em piW em seena os prophetas, ile
quem se dizia successor. Durante uma trabalhosa
marcha, como os simis companheiros mostrassem can-
saço, fez-lhes repiitir uma oração, o depois aicreseen-
tou : iiOslilhos lie Israel padeceram no deserto as
mesmas fadigas (pie vos padeceis, e faUoii-llies o re-
frigc^rio <ruma oração como esta. " (Guando o seu ir-
mão eolhii;o llie veio pedir pi-rdão de se ter iiivlama-
do mais eloijuciite do (|U<! elle, Mahomet re^polldeu
pelas mesmas palavras que José disse a seus irmãos ;
udiie entre mim e vós não haja hoje (pieixas ; Deuv
vos perdoa, porque Deus é o mais misericordioso dov
miseiicordiosos. " Por fim conseguiu fascinar as tur-
bas a ponto (jiie chegaram a crè-lo isento de pcoi'a-
dos mesmo os mais leves, apesar d'i'lli> não se ler
dcMMildado de pedir a Deus, em diversos logarc». do
174
O PANORAMA.
Koran, lhe remittisse as suas faltas •, e, nos nossos
dias, a opinião da sua impoccabilidade quasi se con-
\<Tteu em doc;ma religioso. Maliomet, a exemplo dos
jud('us, serviu-sn primeiramente de uma trombeta ou
d'uma husina para chamar os seus discípulos á ora-
ção:, mas (it-pois usou d'uma matraca como os chris-
tãos. Achando que? nenhum d'estes meios correspon-
dia á magcstade do Allissimo, decidiu que só a voz
humana era digna d'('->te sancto ministério.
Mr. UíMnaud puljlicou a versão franceza da ins-
cripção árabe d'uma espécie de medalhão em que se
acham traçadas as formas corpóreas de !Mahomet.
"Em nome de Deus clemente e misericordioso;
li EUe era bem proporcionado ; a sua tez era mui
alva-, exhalava um cheiro agradável; tinha as so-
brancelhas bem divididas; os seus cabellos tiravam
para o branco.
"Tinha o fundo dos olhos azul, testa larga, orelhas
pequenas, nariz aquilino e dentes bem talhados.
nOseu rosto c barba eram redondos, as mãos com-
pridas, os dedos delgados, a cintura grossa, &c. Kn-
tre as duas espáduas tinha o sello da prophecia, em
que se liam estas palavras: "\ai onde quizeres, se-
rás V ictorioso )' ( I ) .
Os musulmanos estão persuadidos de que os que
trazem comsigo alguma descripção do corpo do pro-
pheta gosarão de notáveis privilégios ; citam as pa-
lavras seguintes de Mahomet : 4' Aquelle que, depois
de eu não viver, lêr a descripção do meu corpo, é
como se me visse a mim mesmo ; e a quem quer
<pje olhar para ella por amor de mim. Deus o livra-
rá do fogo do inferno ; até será livre da pena do se-
])ulchro, e, no dia da resurreição, não apparecera nu
cm pello. " O nome do fundador do islamismo é tão
venerando para os orienfaes, (jue era Constanlinopo-
la, quando o estado periga, escolhe o sultão noventa
e dois musulmanos, que tenham o nome de Moha-
nied, e os encarrega de recitar certos capítulos do
Koran, com a esperança de que as supplicas de ho-
mens que teem um nome tão sancto hão de preser-
var o império da sua ruina.
Resta considerar o propheta no seu procedimento
com os christãos. Na orig(!m do seu poder, Maho-
inet, quer por disposições verdadeiras de tolerância,
<|uer por uma hypocrisia fina e calculada, mostrou-
se favorável aos discipidos do christianisnio, e, para
garantir o exercício do seu culto na Arábia, con-
cluiu com ellcs um tractado. Este tractado, traduzi-
do em latim, foi impresso, o texto c traducção, em
1050, com este titulo: Tcstametitum et Pacfioncs
iiiitcv inter MithomeJJum et chtistiancc fidei cultores.
E principalmente digna de reparo a passa<;em se-
guinte: i. Prometto proteger os christãos, defeude-los
contra os seus inimigos, conservar as suas igrejas,
templos, oratórios, conventos, e logares onde fazem
as suas romarias, quer sejam situados nas montanhas
ou nos vallcs, nas cavernas ou nas casas, nos campos
ou nos desertos, na terra ou no mar, no oriente ou
occideute, da mesma maneira que me conservo a
mim, e que conservo os crentes lieis v [U). Ah! com
I) andar dos tempos mudou Jlaliomet inteiramente
de linguagem I Fez leis terríveis contra os christãos;
(! no Koran, no capítulo do Combate, escreveu estas
palavras, que os árabes sempre lêem antes de se ap-
(0 Vide a cxplicaçilu miiitla cresta inscripção no traba-
lho lie Mr. Rcinanil ácerci ilos Monumentos árabes, persas,
.Vc. tom. -.* pitg. 77 (• si';:iiiiiU's.
(S) Alfiiins cscri|ilorcs qiirn-m qnp este Inictado seja
:i|iucryplio, oiilros historiailoros refutaram e,<la opini.'to. Rei-
iiaud, i|Lie é do numero dos últimos, pnlilicoii o tractado,
acompanhado de multas rellexòes, nu sua Historia do Impe-
lio UttomiiJio, tuui. 1.° p.tg. 1U'J.
presentarem no campo da batalha. » Quando vos en-
contrardes com os infiéis cortai-llies a cabeça, ma-
tai-os, exterminai-os, e não cesseis de os perseguir
até que sejam dispersados e vencidos. «
N 'outros artigos se fará a analise succinta e o
exame do Koran.
O A ESCVIO.
(Continuado de pag. Iõ8.)
Deixando á esquerda o eremitério continuámos a
nossa digressão por um caminho assaz plano, ijne cos-
teia o morro de Somma ao norte do Vesúvio. Entre
os dois montes ha um pequeno valle que tem o nome
de átrio dei cavatlo. Este torrão criava outr'ora ar-
vores e plantas, e até oíTerecia pastagem ás cavalga-
duras dos viajantes, porque era alli que se apeavam :
depois da erujjção de I6.',0 toda a vegetação desap-
parcceu. A estrada, que seguimos, para assim dizer
não é senão um canal formado por duas correntes de
lava das etupçõcs de 1021 e 1322 : á es<)uerda estão
dois montículos cónicos, únicos que ficaram dos sei»
formados em 1020 (1). A final, em vinte minutos
chegámos á base do cabeço do volcão, parto a mais
difficil da nossa subida. ^lediudo com a vista a dis-
tancia que nos separa do cimo, parece que um quar-
to de hora bastará para lá chegarmos : por isso, ao
partir, nos apressurámos firmando os nossos liordões
em meio de cinzas. Subimos a correr os primeiros
dez passos, mas este fervor estancou-se logo : o morro
é qu.asi a pique; o chão é um cinzeiro fino e escor-
regadio que se escoa por debaixo dos pés, como para
nos im[)ellír longe de uma paragem inimiga de quan-
to tem vida: para avançar um passo é necessário dar
dois. — O guia recommeuda-nos procurar os sitios
onde são mais numerosas as escorias ; ahi encontra o
pé ura apoio mais solido ; mas tamisem algumas ve-
zes a pedra despega-se e roda aos saltos até a raiz do
monte : desgraçado do que encontrar na passagem !
— Em breve nos cáe da testa o suor, a respiração se
torna mais ciirta e rápida, c entra-nos pela garganta
uma cinza fina c sceca que no-la difticulta mais:
rasgam-nos os pés as escorias que entram nos sapa-
tos, que tivemos a feliz lembrança de amarrar cora
íitas ás pernas. Esfalfados nos assentámos u*um tn>-
ço de basalto que o volcão vomitara. Abaixando os
(1) Em 1820 alirlram-sc no toIc.Io oito boccos ao mes-
mo tempo, i|ue vieram a ser outras tantas crateras, duas no
interior do cone principal cseis no exterior: em \SiÍ abriu-
se nona e logo uma torrente dirigiu-se para Rcsin.i. pa.<san-
ilo por cima da lava de 1010. N'este anno houve duas erup-
çues. ou para melhor dizer a de janeiro niio foi m.iis do que
preludio lia outra em outtdiro: em 20 d'csle niri st*nliram-se
abalos de tremores; a St ferveu a lava c precipilou-se em
duas correntes sobre Résiaa ; á meia noite enormes jorros
de fogo repuxam nos ares a mais tle tiois mii |h''S d*aUura. A
a ao meio dia ele\a-$o uma columna de fumo a desmedida
alt\ira, dilatanúo-se em fúrma de cliapi'ii de sol; diversas
corrente» ile lava ameaçaram Porliei e Bosto-trt-case. A S7
torrentes d'a;ua carrearam as cinzas e alagaram o território
visinho. Parecia arder a natureza: caíram em Nápoles chu-
veiros de cinz.is duas veies no inter\allo de oito dias; da
primeira vez eram vermelhas, e da !ie;unda lirancas. Em
Torre delia .■inniiniinla os moradores tiveram o tralvilho de
^■arrtT d' hora em hora os eirados das casas; lao ttasta caia a
cinza. Comtudo nenhum terror se manifestou em Nápoles ;
não aconteceu porém nssim em Torre rfrí (Irrr» : n'esla des-
gra<;ada aldeia, mais ariiícaila qtie nenhuma, os habitantes
eslSo sempre alerta (wr.-v fugirem a cada enqiçjío um tanto
ciu)sidera\el : por isso n'aquella occasiíio emigraram A cra-
tera mudou de forma, e perdeu alguns ccolcnares de pés da
altura antiga.
o PANORAMA.
175
olhos descobrimos abaixo de n(>s um ranclio numero-
so de iiif^lezes trepando a pé, os quaes nós tínhamos
deixado na base do morro em disposições de se faze-
rem transportar em palanquim, isto é em cadeiri-
nhas com longos bancos : deviam trazer oito moços
para todas estas liteiras im[)rovisadas :, — mas ape-
nas p)stos a caminho o moço da dianteira escorre-
ga, recua c eáe de narizes bem como o viajante,
ponjue o que ia atraz não recuou \ mudam de posi-
ção, e eis que n'um instante o inglez se acha de per-
nas para o ar: não era possível andar assim; e por
isso não tiv(!ram remédio senão pagar aos homens e
renunciar a um modo de conducção que só era di-
vertido para os espectadores, e para os moços, que
ao fazer o seu ajuste sabiam muito bem que os po-
bres turistas seriam os primeiros a desistir i fui-lhcs
por tanto necessário, por vonlade ou sem ella, limi-
tarem-se a subir como nós pedestremente sem mais
auxilio que o bordão. — ftluitas pessoas adoptam
amarrareni-so á cinta do guia e irem como a rebo-
que ; mas sendo os movimenlos encontrados, este
modo é mais prejudicial do que vantajoso.
Emlim recobrámos alento, e tornámos a trepar
com fervor novo; outras difíiculdades nos esperavam.
(jLuanto mais nosapproximâmos do cume, mais aque-
ce a terra, e os pés escaldados não querem andar. —
Antlianio^ sigiwri, cotugijiii : l)rada o guia. Mais um
esforço . . . eis que chegámos. Gastámos duas horas a
trepar o cabeço, e fumos como a nado por cinzas, e
com os pés em sangue e calcinados: mas ijuanlu ficá-
mos pagos com o espectáculo admirável que se mos-
tra a nossa vista I Que logares poderiam m('liior es-
colher os poetas para assentar as forjas de Vulcano
ou a estancia dos demónios '.
Imagine-se um abysnio de í> fia-1 pés de eircumfe-
rencia com 1 340 de profundidade, com os lados (jua-
si a pique e em muita ()arte ])cr])en<liculares. 1)(! Io-
das as bandas sáe uma fumaça ardente ; no fundo da
cratera, no meio de uma caldeira de superfície des-
igual ecôr sombria, abre-se uma larga bocca de qua-
si 40 pé» de diâmetro (l). Vomita sem cessar rolos
de chammas que se levantam <|uasi á altura do vér-
tice da montanha, ao qual o fumo sobrepuja muito.
l-)c minuto a minuto sente-se tremer aterra; de-
{)ois, com a detonação sirnielhanle á descarga de uma
lateria, o volcão despede a prodigiosa altura pedras
avermelhadas f|iie tornam a ab^smar-se perpeudieu-
larm(Mit(! no fojo d'onde saíram, ou <iu<' caindo um
]ioui'0 para o lado uccrescentain o monticulu que ahi
se tem formado.
ICndirulhados nos capotes, que por cautela tínha-
mos entregue ao guia, pois (|ue o frio é penetrante
no alto (ia nu)ntanha, assenlailos n%im casc^ão de la-
va, eont:em])lando aíjueilc ipiadro infernal (■ magico,
cs(|ueciainos as nossas fa<ligas, saboreando algunii.s
botelhas do tticryina Cliinli. l'or um in<uni'nto ri^ti-
rámos a vista do ali^snio inllammado, i' a dilatámos
pela C'iiini>u(jtia Jelict:^ sobri' a (jual como ipie pairá-
irjos. Como faz o conlrasli- sobresair a forujosura do
delicioso golplio de Nápoles! ('orno é sublinu! e exac-
ta a expressão do auclor <los Híaityrcs: — K o parai-
zo vislo do inferno. —
\iWr ao oriente o promoiilcirio (Ir Sorrciilo, a pá-
tria (lo Tusso; Capri, o nppiíibrio ilr 'l'ilM'no e glo-
(I) ('cimo n prinrl|iiii dlsHc^imia, u impccto c a hMiiiii dn
cratera iniidaiii cm ciidii ciiiik;!!» : Íkijc cslá inlciíaiuciilc cii-
tlilliiiila, I' iiild NI' jiiídir lú dcKnT. Al);iim ti'm|iii dr|i(iis dn
tiucB i'riip(;ilii de llIU-t, i|iiiiiiilii u Vcmiviíi Ncarliiivii mi miiiiir
•occgci, siiliiil ald Cl Sr. visccindi' de Cliati-aidiníiiicl ; pclii r«-
zil» iKíiiim diclii (• Cl IraiDlcirmi rcfcridci cm a iinecdcMile mio
diiliin» a di'acrí)i(;ilo cpic' «c- Icl iiiih Viiii;cii» dci clrjjMiili' luiclor
do.1 Miirti/rfs u do Õtnio ilu Chrisliunisiiio.
ria das armas francezas ; Ischia, volcão extincto. ou-
tr'ora digno rival do Vesúvio ; Procida a grega, e
depois uma c-xtensa linha do mar azulado. Ao melo-
dia o ealx) Miseno, Pouzzolo, o Pausilippo com suas
niattinhas, igrejas e quintas ; na frente ISapoles es-
tendendo-se em amphitheatro ; depois aos nossos pés,
Herculanum, 1'ortici, Resina, as due Torre, Pom-
peia, e veigas esmaltadas de llôres . . . Flôtes próxi-
mas a um volcão ! Fazem lembrar a creação aprazível
do auctor do Alosteiro (VV. Scott) a delicada e mei-
ga Katty, ligada a Juliano d^Avenel, o bandido que
ella preza, e que a cada movimento parece lhe vai
despedaçar o frágil tecido da sua ephemera existência.
Krguemo-nos ; ainda temos que concluir penosa
tarefa. Não bastava haver contemplado do alto da
montanha o volcão bramindcj aos nossos pés, quería-
mos sondar-lhe a profundidade. Pelo lado a que tí-
nhamos chegado era impossível a descida ; foi-nos
preciso percorrer metade da eircumferencia da crate-
ra por um resalto estreito, desigual, n^algumas jiar-
tes não tendo mais de um pé de largura, caminhan-
do entre dois abismos, á esquerda uma voragem
abrazada, á direita a face externa do morro ; se nos
faltasse um pé, nenhuma probabilidade de salvar-
nos, nenhum meio havia de suster-nos. Chegámos a
final a um sitio, onde a face interior não é tão a
j)rumo, onde a descida é se não fácil pelo menos pos-
sível (l). Respirámos um momento. D'aqui avalia-
se muito bem a disposição de toda a montanha. A
de Somma, que vista de Nápoles se afigura tão alta
como o \ esuvio, não parece d'este ponto senão uma
cireumvallação á roda da pvraniide gigante levanta-
da 3 (iOO pés (como dissemos) acima do nível do mar.
Não pode haví^r cousa que ollercça um e peetaculo
mais selvático e terrível que o estreito valle que as
separa. Com ambas se agrupa a terceira, a de ()t-
taiano. Ha todo o fundamento para crêr-se que as
três, em tempos de (pu; não ha memoria, não foram
mais do (jik; uma só mcmtaidia; e que o valle é um
vasto barranco, formado por alguma erupçíio violenta.
Finalmente arrostámos á cratera ; a descida é por
extremo pnicipítada. Caminhámos em meio de fu-
mo por cinzas quentíssimas, em que enterrámos mais
de meia perna : ha logares, onde o calor é tão vio-
lento que não pôde alli parar-se. Um companheiro
nosso teve o infortúnio de metter os pés n'um sitio
d'esses, sentiu tamanha dòr (jue se deixou cair, e
não tendo a que se arrimar não conseguia ergucr-se ;
morreria sulllieado e (pieimado se não lhe valera o
guia, que o ouviu grilar o acudindo-lhc o ajudou a
galgar á inontaidia, onde esperou o termo da IUl^^a
perigosa excursão.
Kis-nos na baixa da cratera ; o fundo é tomado
por 'lava li(piida e no centro está a garganta de fogo,
que não eessa d(! vomitar cliamnias, pedras e fumo.
No p(ígo da lava sobrenada uma es|)uma densa, co-
nnj os earamellos que- os rios accarretam nos inver-
nos desabridos. Sobre os boccados d'essa espuma, um
tanto esfriados pelo contacto do .ir, escorias leves (pie
estalam e se fracturam, (> que (em de aventurar-so
(piem (juer chegar ao fundo da cratera, (.iuando se
ha galgado uma talisca, (piasi que sutloeam ;is e\li.i-
la(;c'ies sulphureas e os vapores ardentes. Km cad.i
lenda v('*-.s(' um fogo mil \(zes mais ateadc
1 (lue o (
los
tornos (los vidros: intr(iilij/.indo-se-lh(! a exlreinidade
do bcinlàd sobe a chamma (piasi ate o braço. Mas a
curiosidade (lisfar(;a tudo e vene(", esóipiando se tem
saído (Paípielle medonho si(ío, fora da cratera e pas-
sada u iiiipreaiiuu Jiiuiucitluiicu, ú 4UU su fuutemphi
(I) D'»M a Ivie nuiioa (IU.'t7) nlngiiciu ixidln ImUur ao
íiindu dn crnlciu.
17G
O PANORAMA.
com horror nos perigos que se acabam de correr. E
de tamanho risco que outra cousa se tira senão a es-
ti-ril basofia de poder dizer : — u eu desci á cratera,
apanhei estas lavas, estes mineraes, estas escorias co-
bertas d'enxofre ? . . . >i Nada se \ô lá que não se ve-
ja tão bem e talvez melhor da parte de cima.
Trepámos para fora com assaz de trabalho em meio
de cinzas ardentes ; percorremos de novo a semi-cir-
cumferencia do volcão ; e tornados ao nosso ponto de
partida, largámos de rota batida por aquella encos-
ta de cinzeiro: — em onze minutos descemos o mor-
ro, quando tínhamos gasto duas horas para trepa-lo.
— As cinco e meia estávamos em Resina :, e em Ná-
poles ás seis e um quarto. (Coniimia.J
COKKIDAS SOBRE O GELO.
No puiNcipio do inverno traça-se sobre o gelo o ca-
minho que conduz de S. Tetershurgo aKronstadt^
indica-se por um arruamento de altas balisas. De lé-
gua a légua acham-se guaritas bem quentes onde se
postam sentinellas que nos tempos nebulosos man-
téem fogos de distancia a distancia, e tocam sinos
cujo som alenta e guia os viajantes. Ha ao meio da
estrada uma casa de pasto. A innumeravel quanti-
dade do pessoas de toda a idade e sexo, embrulhadas
i,m amplas capas de pelles, que se deixam ir com in-
(liílbrença por cima de uma superfície frágil que as
separa do abysmo, otterece ao natural das regiões
nieridionaes um singular espectáculo, que lhe enche
a alma de um temor desconhecido aos povos do nor-
te. Porém, quando começam as corridas em houers é
que principalmente a enseada de Kronstadt appre-
senta a scena mais animada. Os bouers são botes
lixos a duas chapas de ferro como as dos chapins ou
patins de que usam os que folgam de resvalar pelo |
gelo ^ ha uma terceira adaptada por debaixo do le- I
me :, e n'esta embarcação que tom um ou dois, e ás !
>ezes três mastros, ha bancos collocados em redor pa-
ra os viajantes: impellidas pelo vento, que sopra com
\ iolencia n'esta estação, e governadas por um piloto
hábil, estas canoas ou botes, que se distinguem por
diflerentes apparelhos, e galhardetes de varias cores,
voam com rapidez incrível : o sol embaciado solta
raios sem calor ; despregam-se as velas, zune o vento
frio, despedem-se na carreira os barcos, as tripula-
jões por meio de manobras acertadas disputam a
dianteira, e em menos de uma hora galga-se o espa-
ço de quasi dez léguas. 1'edro I folgava muito d'es- ]
tas corridas sobre o gelo ^ o a sua previdência soulx'-
ra encaminha-las a um fim ulil ; proseguindo sem
.ifTrouxar no desígnio que concebôra do crear mari-
nheiros, e receando que durante a inacção de lohgos
invernos os homens que educara na manobra iiiari-
tima perdessem o fructo das lições, cxercitava-os
<1 aquella maneira, e sobre um oceano solido os pre-
parava com a experiência que tinham de desenvol-
ver depois em mares tempestuosos.
Paço imperial na cidade de Pekik.
O PAÇO imjwrial admira |)ola grandeza emagnil'icen-
cia :, todavia, a bomlade consiste menos no bello da
sua architectura, do que na imnionsidade dos odili-
cios, riqueza dos lagos, o variedade dos jardins. Tem
do oriente ao ocoidento três mil cento e cincoenta
palmos, e quatro mil (piarenta e quatro do norte ao
sul i isto é, tom do frente uma distancia igual á que
ha entre o largo de S. Paulo e o Terreiro do Paço ;
e dl- fundo a que Im entre o Rocio e o Cães das Co-
lumnas. Igual porção de terreno está cheia de pórti-
cos, galerias, peristj'los, torres e salas ; produzindo
tanto melhor effeito, quanto são mais variadas a«qu«
estão próximas á sala do throno.
Moram n'elle os empregados do serviço do paço, e
os eunuchos ; as mulheres habitam a parte mais Inte-
rior, com entrada particular. Difficil empreza seria
a de quem pretendesse descrever todas as partes com-
ponentes d'esta obra grandiosa. Tem casas destina-
das á imperatriz, ás três rainhas, e ás mulheres da
terceira e quarta ordem. GLuando o inif>crador Tai-
Tsong subiu ao throno, no anno 626 da era christã,
despediu do serviço do paço seis mil mulheres, por
inúteis. Taml>cm esse grande numero de criadas pro-
va a grandeza do paço imperial.
A sala do throno tem 130 pés de comprimento, c
outros tantos de largura : o tecto é de proporcionada
altura, e guarnecido de baixos relevos de còr verde,
onde sobresáem dragões dourados. As columnas que
lhe servem de apoio tem sete pés de circumferencia:
as paredes são alvíssimas, sem ornato algum. O thro-
no, collocado no meio da sala, é construído com a
mesma simplicidade.
Em torno do paço estão doze palácios assaz com-
modos, para a residência dos monarcbas. Além d'e9-
tes, ha outros destinados aos príncipes da família im-
perial; formando tudo um grande ajunctamento de
edifícios, guarnecidos com torres, zimbórios, pervsti-
los, balaustradas, escadarias de finíssimo mármore,
corredores calçados de rica porcelana, telhados en-
vernizados de amarello e verde, que, na presença do
sol, parecem compostos de ouro e esmeraldas. As
obras de ornato são ainda mais superiores. Esculp-
tura, pintura, charões, tapetes, vasos, tudo forma
tão sublime espectáculo, que muito custa a formar
d'elle ídéa approxiniada da realidade.
As casas em toda a cidade são commodas, aeeia-
das, e ornadas com simplicidade. Os palácios dos co-
láus e mandarins são mais c"onsíderaveis pela exten-
são do que pela riqueza. Provém esta honestidade
mais da pfjlitica do que da indiflerença que elles te-
nham poio luxo. Juígar-so-hia criminoso o funccio-
nario publico que pretendesse distínguír-se por ha-
bitar em rico palácio. Seria aecusado pelos censores,
e o menos que lhe poderia succeder era ter o desgos-
to de vôr o seu palácio arrasado ou perder o seu em-
prego.
Os subúrbios parecem treze cidades : ha n^elles
grande numero de thoatros, onde se representam far-
ças, comedias e tragedias. Tem hospedarias com ser-
viço de ouro e prata, cam;is com armações de bnxia-
do, &C. O luxo dVstas casas é mantido por socieda-
des poderosas.
Os que andam de sege ou a cavallo cedem alli o
passo aos que vão a pé. Não se vê em Pekiu o es-
pectáculo irrisório de grande fileira de seges, para-
das horas inteiras, e o imliecil que se fai arrastar,
esquecido de que tem pernas, lastimiUido-sc por não
poder avançar.
Em uma tapada, nos subúrbios de Pckin, onde
reside o imjK-rador tro* partes do anno, ha grandes
lagos, montanhas .irtificiaes, e sc»sonta palácios col-
locados de modo, que de um, qualquer, não se avis-
tam os outros : moram irellos as niuUierrs do imjxv
rador. Ainda assim não chegam |wra toilas viverem
separadas, visto cal>or-lhe por lei 121 ! O impemdor
ordena ao primeiro eunuco em qual d'elle5 pretende
cear, o ahi pernoita.
O que diriam os scepticos, se amagestadc d*aquel-
la grande estructura fosse dcscripta for Fernão Álen-
dcs Pinto?
Cari. sobre aind. eCh.peloSií.J. I. dk.\nokads.
23
o PANORAMA.
177
JGBEJA DA BOA NOVA.
A VILLA DK TjillKNA.
Na província do Alointcjo o distrioto aduiiiiistrativo
d'Evora, sele le;^uah a Ichte dV^sta cidade, o duas a
oosle da villa de lledoiido, c^stá situada, em lo^ar
elevado, a moderna villa de Tereiía, cujo termo, que
comprebendi-' seis léguas correndo de norte a sul, e
duas contadas do nnscente ao poente, abunda em
pão, gado c caça, e acal)a por um dos lados no pon-
to em que a ribeira d<! Ijucefece mistura as suas
aguas com as do Guadiana, (luando o padre Carva-
lho «acreveu a sua Ciyriujniyhiii era terra de 31)0 vl-
sinlios, e em lS.'i"J contava 700 habitantes.
Kxistiu irm (empos remotos no seu termo um tem-
plo consagrado, dizem ijue pelos carlhaginezes, a Kn-
dov<'lico, divindadi! a (pie <« cellibiTos reniliam cul-
to, o que parectí s('r o ('upidcj dos gregos e romanos.
IMuitas insiTÍp(;õ<s e()|)iad.is pelo chronisla l'"r. Antó-
nio da l'uriri(a<;.'io de lapidasiiue 1). 'riieodosio, ijuiu-
to duipie de Jiru;^anr.i, li/.cra trasladar para \ illa-\i-
eosa, ulleslani ipie não só I'aidc>\elico, mas lambem
l'roser[iina e Marle, alli reci-biam oniri'n<las em pa-
ga dos milagres (pie a ceg.i gentilidade lhes attri-
buiii, sem i|ue seja hoje |)ossivel saber se no mesmo
l<-m)>lo, S(> em templos distiiictos porém proviums,
i-m cjuanto o íacenjoli- da deusa do inlerno lhe »a-
erillcavu a be/err.i estéril, ou o du deu» do amor,
vmtido de alvas roupas talares, que lhe deixavam
comludo diseoljerlus a espádua o u braijO esijuerdo,
.diria o cordeiro com o direito, o com aquelle lhe
arrancava o coração c o lanceava no logo, o do cruen-
Aoi.. I. — Fkvi:iii:iiio 13, lS'f7.
to deus da guerra se aprestava lahez para derramar
ante as aras d^um nume dcteslaNel o sangue de guer-
reiros vencidos.
Terena antiga, povoada por D. (iil Martins, ([ue
lhe deu foral em lá()2, jazia n"uma baixa, entre i>
ribeiro do Alcaide e a riljeira de liuceicce. l'or mor-
te do conde D. Martim {iil, lilbo do fnnJador, va-
gou para a coroa, e elrei D IM.inuel lhe deu oufri>
foral em 10 de outubro de lolt. IJo seu eastello
eram alcaides mores os condes da 1'onfe. Os maus
ares que se respiravam no primitivo chão doesta vil-
la a. foram despovoando, e obrigaram os habitantes
a mudarem-n'a para o silio onde ora se acha.
Mas na igreja da primeira freguezia da invocação
de Nossa Senhora da 15oa Nova, situada n'uma des-
cida, ainda se conserva a l>i.i ilo baptismo, em reve-
rencia á sua grande antiguidade. LOste templo, como
mostra o desenho d"elle, asscmellm-se u umcaslello:
todo elle é nuarnecido de ameias eleito decantaria.
Os próprio-, telhados estão divididos em peipiena^
porções por uns carris, <|ue serviriam provavelmenle
de iacililar aos delinsores, no caso tleatac|ue, acudi
rcm aos sitios mais ameaçados e arrojarem du .dlo
iobre o iidmigo peiiras, traves, matérias iull.unu..i
da», e os imtros instrumentos usados na guerra ante-,
lia invenção da pólvora : a figurada igrcj.i, cuja plan-
ta é uma cruz jHTfcita, ao nu"smo tempo <pie devii
incitar os christào» a sacriliear as vidas «'Ui honr.i th'
»>nd'olo da redempç.lo do gcn<'ro humano, contri-
buía para ainda nndé fortalecer ei.te propugnacido.
Como quer que soju, o citado «uctor du Corogra-
178
O PAINORAMA.
phia dá por fundador dVste celebre monumento a . da cai
rainha D. Maria, mulher do D. Affonro II de Cas- j da mi
tella c filha do nosso rei D. Aflbnso IV, princeza de i te. O
que o inimitável Luiz de Camões immortalisou a for- '
mosura e descri (;âo no precioso quadro em que a re-
presentou, banhada em lagrimas, implorando o auxi-
lio paterno em prol do esposo prestes a perder a co-
roa, se, demorando-se-lhe o soccorro dos intrépidos
portuguezes, não se pozesse cobro á insolência dos mou-
ros, que vieram a ser desbaratados na famosa jorna-
da do Sulado em 1340.
Sem pretendermos invalidar o testimuuho do pa-
dre Carvalho, temos para nós que a fundajão do tem-
plo de Nossa Senhora da Boa Nova é de origem mui-
to mais remota. Como podia esta igreja, a primeira
parochia da villa de Terena, que já vimos ter sido
povoada em 1262, ser edificada tanto tempo depois?
Demais, no testamento da rainha D. Maria ne-
nhuma disposição ou legado se encontra a favor d'el-
la, quando, segundo o costume então geralmente se-
guido, não é de crer se deslembrasse doeste notável
logar sagrado, a ser feitura sua. Não será este tem-
plo uma dasantiquissimas parochias acastelladas que
a necessidade de obstar ás correrias, primeiro dos ára-
bes e depois dos castelhanos, obrigava a construir nas
terras da raia ? A seu tempo averiguaremos isto.
A igreja da Boa Nova, semelhante ao velho cente-
nário que, durante o largo periodo da sua existência,
viu morrerem em redor de si ou deixarem a terra natal
os companheiros da sua mocidade, acha-sc hojen'um
quasi ermo, onde o viajante, que se compraz de con-
templar as relíquias da piedade das passadas eras,
pára a medo, e, saudando-asá pressa, segue logo avan-
te, para não ser victima das exlialações malignas
<|Ue tornam o logar assaz perigoso.
Tomada de Alcácer.
(Continuado de pa». 170.)
A SITUAÇÃO do campo de batalha, a hora a que el-
la rompia, a marcha desordenaila do exercito sarra-
ceno, a crença dos cavallciros christãos no auxilio
celeste, sentimento assaz enérgico para lhes mostrar
110 espaço uma cruz resplandecente; tudo os favore-
cia. Defronte de Alcácer, transpondo o Sado para o
occidcnte, eslende-se uma vasta campina, campina
funesla, onde, conu) cm tantos outros logarcs, os vin-
douros terão de erguer um altar de expiação ao san-
gue portiiguez ahi vertido por mãos porluguezas,
quando o silencio da morlo tiver pousado sobre nós,
e Deus c a historia houverem pezado c condemn.-ido
os nossos deploráveis ódios civis (1). Foin'cssas pla-
nícies, segundo todas as probabilidades, que sarrace
da campina e os montes que, a bem curta distancia
margem esquerda do rio, se prolongam ao noroes-
reflexo metálico das armas e armaduras ia ba-
ter nos olhos dos infiéis, e dava ao pequeno exercito
portuguez uma apparencia que lhe accrescentava as
dimensões. Ou fosse effeito do mesmo reflexo dos fer-
ros polidos e dos dourados escudos, que multiplica-
vam a torrente da luz oriental, ou fosse oexcitamen-
to religioso, capaz de allucinar ainda outra vez os
espíritos, os combatentes, ao travarem-se com os mu-
sulmanos, creram vêr no ar um tropel de cavalleiros
vestidos como os templários, que também feriam nos
inimigos. Foi terrível o embate. O comraendador de
Palmella, Martinho, homem pequeno de corpo, mas
animoso como um leão (1), abaixando a cal)eça, com
o escudo erabraçado na esquerda e na direita o es-
tandarte da ordem, arroja-se ao meio dos esquadrões
sarracenos : Pedro Alvitiz, o mestre do templo, leva
a mesma dianteira ; eos respectivos freire* seguem o
exemplo de seus chefes. Os cavallos batem de peitos
uns nos outros, as espadas faiscam nas espadas, os es-
cudos retinem contra os escudos, e os elmos e cervi-
Iheiras rolam pelo chão rotos e abollados (2). Osmu-
sulmanos titubeam : por entre as nuvens de pó con-
fundem-se amigos e inimigos, e uma completa anar-
chia se derrama pelas fileiras sarracenas, já forçosa-
mente desordenadas pela rápida e dilatada marcha
que tinham trazido perseguindo os exploradores. No
meio da confusão aquella numerosa cavallaria che-
gou a combater uma contra a outra, em quanto os
cavalleiros chistãos, por isso mesmo que eram pou-
cos, estavam livres de cair em igual erro. Em breve
o desbarato das tropas andaluzes se tornou inevitá-
vel : possuídos de terror começaram a fujir, e parte
dos fugitivos foram precipitar-se no Sado. Al>afados
debaixo dos pés dos ginetes e até dos troços d'infan-
teria, muilos expiraram sem haver combatido (3).
Perseguidos por espaço de dez milhas pelos christSos,
três dias durou a carnificina, edois vvalis, o de Cór-
dova c o de Jaen, ficaram entre os mortos. O calcu-
lo que d"estes se fez, montava de quatorzc a quinze
mil, .ifora um sem numero de prisioneiros, osquaes,
ou para lisongcarcm seus senhores, ou para se des-
culparem perante a própria consciência de tão ver-
gonhosa rotji, ouvindo fallar do auxilio dado aos
christãos pelos cavalleiros aerios. asseveraram lo-lo»
igualmente visto, e experimentado a sua fúria, o
c]ue não podia deixar de fortalecer a (ò viva da sol-
dadesca na decisiva protecção <)iviiia. Entre tanto
uma armada de trinta galés, que os s;irracenos ti-
nham mandado para a foz do Sado. nci'ommeltida
por horrorosa Ixirrasca, luct.iva cinUildo com os ele-
mentos, eera deslniida sem combiite. Saindo ao en-
contro d'ella, a frota clirislã só achou ante si as so-
lidões do oceano: as galés inimigas tinham ido n pi-
que, ou dado áix>sla. Ainda em temiK»s de mais lui
nos c christãos se enco.^.traram. Os cruzados do norte
tinham ficado imncdiíido al"unia sortida dos sitia- i tanta fortuna le"-itiniaria a crença no favor celeste,
dos (2), e á multidão dos infiéis havia só a oppõr os
freires militares, os cavalleiros leonezcs »|Uo vieram
associar-se á gloria ou aos desastres d^aqucUa jorna-
da, e os homens d'armas c peões de Portugal. Mas
uma imprevista circumstancia favoreceu estes : o sol
nascia, e os christãos occupavam o lado septcntrional
(1) Comb.ilc civil do Alraror cm 18.1,3.
(2) íarraroiioriiiii iiKi\ii»n imillitudiíio nmtra qiiiini pii-
gliavcruiit tcinphirii ri s|iullwirli riuii iiiililia ro^iniio por-
tugalon^is : OIímt. Ilisl. Díimiat. I.cit. A nu>oiicia di>-
rruzadits do luirlc na haljilli.i, t[iic d*cxta passagem ic de-
duz, <■ ruiilirinadn julo siliiw io do nion^o liodolrrdo, r
polo do próprio c<iiuU' de llullaiida, i|uo narrando Oi suc-
rcsso* da sua armada m" uienciítiia o tcrro c tomada de
Alcácer: Ma\n. :id «mi. *. .15 cl 3i>.
quanto mais n'uma cjiocha em que a credulidade fa-
zia sempre intervir o Omniiiotente «"estes cruel'
dramas de matança c de estr.ngos (4),
O exercito victorioso voltou aos arraiaes, onde o
(I) commcndalor I'ahnclo, parvui corporo, corJc lc« :
(lodofr. Mou. I. cit.
{•] Hic cquiiN op|Hiuilur cqiiis, hic m<ilni« rii*is, hlc
cl\|>ciis rl\|»cis, lii»' olinita ca-íNidc ca^>ÍN : lil. il»id.
(;t) Slornilur liio ; illf |Ktlilius ralcatnr oinioriiiii ;
Hic hoiniiium ; c|uidoni pr.necipil.-inlur «<iiii> :
(io>uiiii i.'ariiicii v. l."*i — I.»8.
(4) AA. rit.; In co prarlio innlla niahoniclanoruiii
inili:i roridcrc; lomplnrcs elinin rapli, alií .ndiniMliiiii
pauci liirpitcr fiisali : Abti lUkr, \<-^ti- oricn, apudCa-
siri. Uibl. T. 2." iKig. .W.
o PANORA3IA.
J79
esperavam os cruzados. Aquella sanguinolenta bata-
lha, que produziu entro os habitantes do Andaluz
uma iniprossão quasi igual áda grande rota das Na-
vas de Tolosa (1), não poude abalar a constância de
Abu-Abdallah. Perdidas todas as esperanças de soc-
corro, o valente sarraceno preparou-so para conti-
nuar na enérgica resistência, que durante mez emeio
oppozera aos sitiadoros. Inflammadoá ainda com a
ebriedade do triumplio, estes avançaram ao assalto;
mas acharam na guarnição todo o esforço que falta-
ra ás tropas dos walis reunidos. Os que avançavam
aos muros baqueavam esmagados pelas traves e pe-
dras arrojadas dos adarves, ou retiravam-se queima-
dos pelas invenções do fogo, euma nuvem de frechas
e virotes obscurecia os ares. O sangue correu larga-
mente •, mas o combate cessou pela retirada doschris-
tãos. Vendo a inutilidade das suas diligencias para
levarem a praça á escala, estes voltaram ao anterior
systema das minas. Fora ocioso descrever miuda-
mente os vagarosos expedientes a que então se re-
corria para reduzir ([ualqucr fortaleza na falta de ar-
lillieria, ainda desconhecida, posto que já existisse
uma espécie de pólvora usada na guerra para vários
artificios de fogo, e até para impellir projcclís. O
que n'este logar poderíamos fazer seria repetir ades-
crij)ção da toina<la de Silves. Houve combates entre
os gastadores, ao toparem umas nas outras as minas
e eontraminas :, houve baluartes e «juadrellas arrui-
nadas ; construiram-se torres de madeira, d^onde a
morti! dcíscia inesperadarnente sobre os cercados, e
maeliinas de bater, que alluiam os muros : empri!ga-
ram-so, emfim, todos os recursos do commettiniento
«ida defoza, até que, desenganado de poder sustentar
aquelle montão de ruínas, Abu-Al)Jaílah foi obriga-
do a reniler-se. Mas ;iqui a discórdia não se espalha-
ra entr<í ossítiadores, como succedêra em Silves ; não
lhes fall.avam vitualhas, e o desl)aralo compleli) dos
vvulis andaluzes tirava-lhes todos os receios de pro-
longarem o assedio prolougando-so a resistência. A
guarnição d<! Alcácer ficou, por tanto, prisioneira
com o seu chele, e os habitantes caíram nos ferros
<la escravidão. Dois mil caplivos, os ricos despojos
do sacco, e a |)osse d'aquella chave do Al-Gharl) fo-
ram para Portugal os fruclos de tão gloriosa em-
preza (íí).
Os vários successos doesta canipaidi.i, desde a en-
trada dos cruzados na foz do Sa<lo até á tomada de
Ahracer, liavin consumido o espaço de dois m(!Z(!S e
nii-io (;í(( de julho n 18 de outubro). Os prelailos de
Ijisbo.i e dl' Kvora, o mestre do Tenijilo, o prior do
Ilospilid, e o cornnicMihidor de l'alnu'lla escreveram
logo .lopontilii.'!' relalan<lo as causas qu(' tlidiam mo-
vido os cruzado» a di'morar-se eiu Portugal, e ((uaes
linhaiii sido as felizes consec|u<!ncias (Tessa demora.
t'onoluiam pedindo queljuís fosse permitiido conser-
varem a aririada (un Jiisboa por mais um anuo, com
o que esperavauí pi)d(!r destruir inteiramente os sar-
racenos da Penínsul.i :, que tanto aos cruzados como
/Is trojias portuguezas, que entrassem no s('U em-
pefdio, se eouce<lessem as mesmas indulgências, que
obteriam se [)e»soalmelite fossem á Terra Sancta ;
que o vigessimo dos rendimentos do ch^ro em Ioda a
lli'spanha seapplíeasse para a contiiniação da guerra,
na fiírina do que se achava eslabclecído asiuuelhanle
respeito; ()ue, finalmente, aqueHes indivíduos ilaar-
mad.T, (|Ue, ou pela excessiva diunora, ou por polirezu
ou cMiIrruiidade, eslivesseui iuhiibililiidos para prose-
guir a efn])reza, fosseni mandados Miltar á pátria
loni pieu.-i renussão de seus peecados. Acompanhava
esta carta outra do conde dcHollanda, em que igual-
mente se expunham as vantagens obtidas e as que
resultariam da prosecução da guerra. Pedia elle ins-
trucções ao papa sobn; se devia acceder aos desejos
dos prelados portuguezes, se continuar viagem. A sua
opinião era que, na primeira hypothese, as esperan-
ças concebidas sobre o desfecho decisivo da guerra se
realisariam. Punha o conde a sua conljança cm Abu-
Abdallah, homem, dizia elle, illustre tanto entre
sarracenos como entre os christãos, e de cuja influen-
cia esperava tirar immensa vantagem. O motivo por
que o general dos cruzados se fiava tanto em Abu-
Abdallah, era o ter este, depois de prisioneiro, pe-
dido e acceitado o baptismo. Enganava-se, porém,
n'a(iuelles cálculos. As maravilhosas apparições, que
deram a victoria dos christãos, fraco efleito haviam
produzido no coração obdurado do serraceno, ou os
seus olhos profanos não tinham podido descortinar
das altas torres de Alcácer as legiões dos cavalleiros
aerios e a cruz brilliante estampada no fundo escuro
dos céus. A conversão do guerreiro wali não passara
de uma sacrílega astúcia paru obter os meios da fu-
ga, o ccmi a fuga a liberdade, desígnio que logo rca-
lisou, vindo a acabar, annos depois, de morte menos
gloriosa no ukmo das guerras civis (1).
No principio de novembro (2) a armada rhenana
voltou a Lisboa a esperar a resolução de Honório
IH, que recusou acceder aos desejos dos prelados,
dos chefes das ordens militares, e do proi)rio conde
de HoUanda, a quem o insolente gracejo de Abu-
Abilallali devia ter curado da sua demasiada boa-fé
nas conversões repentinas. Segundo o costume, es-
trangeiros c portuguezes disputaram acerca da <livi-
são dos despojos, eo bispo de Lisboa era o ([ue mais
se queixava de ter sido gravemente [jrejudicado. A
discordiii, porém, não chegou a ronipimeuto, eocas-
tello vasio e quasi cm ruinas foi entregue aos seus
antigos seidiores, os spnlharios, (pie outr'ora o ti-
nham perdido depois de conquistado j)or Alfonso I.
Foi, lalv(«, n'esla conjunctura que o domínio ehris-
tão se estendeu a .ilgunias outras oliscuras povoações
do Alemtejo, ao (|ue provavelmente allude um es-
cri|)lor coevo (3). Kntrados no rigor do inverno, os
guerreiros do norte, iniiibidos de proscgulr íuinie-
diatamento a sua viagem, ficaram em Lisboa repou-
sando lias passadas fadigas até a volta da j)rima\era,
em que abandonaram as praias hospitaleiras de Por-
tugal (;í1 de março d(; 121S) (4).
P
vnoxvi.iNA,
(I) Aisnicli pua
{■■!) A,V. dt.
a(i7.
IHILVOKA AZOTIC.\,
eOLVOUA.
ot ai.oodJo-
EuAM passados muitos séculos depois da «lescoberla
<la pólvora, sem que este composto, diguo dos tem-
pos bárbaros, fosse substituído. A cliimica, que em
tão pouco tempo tem feito progressos inesperados,
que, póde-se dizer sem emphasis, ha dado jjassus de
gigante, que resolveu a maior parle dos mcthodo»
da industria, nada achara até agora que fizesse as
vezes d'eslu míxto imperfeito para (pio dev<*ra olhar
com de3pr<.'Zo.
AlguuuiK |iesquÍ2us fuitus pur Mr. 1'eloutc, um dos
uuiis saliios chimicos frnnce«ea, vieram jiôr termo n
(1) l,ill. I'raclnliir. cl «'(iniit, Hullaiiil. , upiiil Ha.v
luilil. ml luui. ^. .'ia, .'lli — AInliilliili til li cl l'in;«
lilicrliUi tonitílcm, uíl suu> i-inIííI : Alm llrkrl. lit. — ^-l-
Malvkail, \ul. i i». :\H), ;ii7.
(V) l'"*l fciliiiiiiunuiuniMUii liirimi ; («tnlef. Mcii. p. íSf"
(3) Kdilci- 'l',.lcl, L. 7 .-. C.
(-1) l.illciii lliMiiuii III 1'i'iirlat., Uiivu. nilnnn. |. ^n.
— tJti^uiiiiriirui. \. i\)i,iH). — tíoiiefr.ílou. |» .■»«•>, Slili.
180
O PAIVORAMA.
esto estado de louías. Annuncia-se nVste momento
nina rovolujão completa nos meios d'acção que pos-
sue aarle militar, c um novo composto, que harmo-
iiisa mais com o eslado dos nossos conhecimentos,
acaba de desentlironisar a velha invenção dVsse fra-
de, espécie de mjlho obscuro que o admirável siso
do povo baptisára com o nome de Srhn-nrh, o Ne-
gro (1), como para dizer que só a uma potencia in-
fernal podia dever a origem.
A este composto se deu o nome de algodão-polvo-
ra, porque na sua priniitiva foi feito de algodão ;,
mas depois o fizeram de muitos outros corpos mui
difVerentes, e do muitos mais poderá fazer-se. Cha-
mou Mr. l'olouzc pyroxylina ao principio que pare-
ce sorvir-llic de base, do grego pyros, fogo, por cau-
sa dasua fácil inllammacão ^ porém como, por outro
lado, o azote so mostra aqui o que éoin todos os ful-
minantes, um elemento indispensável de formação,
poder-se-liia, no caso de sor algum tanto difficil de
decorar tal nomo, chamar á nova pólvora, pólvora
axoiica.
A ji^roxylina i'' mais um composto de azote, mas
d um género inleiramente distincto do chlorato de
potassa e do fubninato de mercúrio : obtem-sc de
matérias orgânicas, de matérias vegetaes.
A preparação da pyroxylina é simplicissinia : to-
ma-se algodão cardado, niergulha-se n^um liquido
formado de porções iguaes de acido nítrico de 1,5, e
tle acido sulphurico ; lava-se em agua ])nra, e secca-
se a um calor brando. Em o algodão estando bem
seceo, eslá promj>to para ser empregado. Póde-se, so
acaso se desejar dar-lhe um grau de força superior
ao que então tem, repetir a immersão e a lavagem
duas ou trcs vezes.
') algodão-polvora, depois de çecco, lem todas as
propriedades dos fulminantes; detona pelo calor, pe-
la poi-cussão, e pelo choque-, n'uma palavra, substi-
tuo perfeitamente a pólvora fulminante ordinária.
Mr. Pelouze, tendo introduzido uma quantidade suf-
ncionto d'esta nova pólvora n^uma pistola de algi-
beira, de rosca, poz-se a trezentos passos d'uma pa-
rede, e a baila iicou inteiramente amassada.
Na sessão da Academia das Sciencias, de 10 de
novembro, leu I\Ir. Tiobert uma noia contendo al-
gumas ad\ertencias para o fabrico da polvora-algo-
dão ; resulta d'esta communicação, que se deve soc-
cur o algodão a uma temperatura assaz baixa para
evitar dcí.-.drcs, isto é, nunca exceder 80".
Outro relatório UHu .,„ ..i^sma sessão mostra que
veio a tempo o de Mr. l'iobert. IMr. Lépine e dois
dos seus amigos, INlMr. Combes e Flandiin, prepa-
raram n^aquella semana certa (pianlidado de algo-
dão-polvora, para a e.\perinu'ntarem como pólvora
de mina n'uma pedreira de Ivry. Impregnado c la-
vado o algodão, faltava secca-!o ; accenderam lume
n um fogão, cslenderam o algodão ao pé d*elle, ctc-
tiraram-sc fechando aporta. Wuando \ieram de noi-
te vêr se o algodão eslava secco, entraram os três
amigos junclos no quarto, trKzendo um d">lles uma
luz na mão. Apenas entraram houve uma forte de-
tonaç.ão :, iluas ])('Ssoas foram lançadas por terra c
queimadas, a terceira sotlreu sé) uma forte commo-
ção. O algodão-polvora acal)ava de inllainmar-se, e,
alem dos damnos mencionados, abalou fortemente a
casa e rachou-lhe as paredes, l ;ii<i lihiti de algodão-
(1) Attribue-sc ii iiivciii;rio ila jiolvora n:i Kiiru|>.i ao
frade francÍMauo Bcrlliiililii S<li«.ii'lf, <li;imacli> taiiilicni
Coiislaiitiuu AinlckMii, iiiitinal <lo Kiiliourj; na .Mleiím-
"lia, cc|ue nasceu no \lll sr» iilii. (iiuroiii ijuc e»la <lcs-
cobcilu, iloviílu ao acaso, fosM' IVila <iii l.'il>0, o a jiolvora
uj>|<lii'a>la |iai.i dclniir nuu-allias cm IXiíS.
pólvora tinha produzido todos este? effeites. O» pre-
juízos que soflreram os amigos de Mr. Lépine Bão
tiveram, felizmente, consequências graves.
Vamos deixar agora faliar o próprio inventor (diz
Mr. O. Mac Carthy, auctor doeste artigo, que resu-
miremos, dando a equivalência dos pezos e moedas
de França aos de Portugal) vamos deixar faliar o
próprio inventor acerca do preço por que sáe o algo-
dão-polvora, admittido que sempre se faça de algo-
dão, e notar as vantagens que leva á pólvora antiga.
"Sirvo-me das contas que me ministraram, diz ti-
le, fabricantes, que, se fosse preciso, forneceriam ao
mercado ou ao governo os seus productos pelo mesmo
preço que eu indico, segundo o que elles me disse-
ram.
" O acido sulphurico que Mr. Knopps fez entrar,
com muita razão, na preparação da polvora-algodão,
e útil por duas maneiras, e convém emprega-lo sem-
pre. Concentra o acido nítrico obrando sobre a sua
agua de que se apodera ; de tal sorte que o acido ní-
trico que não fosse bastante concentrado para se unir
ao algodão, se combinaria com elle debaixo da in-
fluencia do sulphurico. Comtudo, por grande que se-
ja a porção d'acido sulphurico, al>aixo d'um certo
grau areometrico, ecom um acido nítrico fraco, não
se pode mais obter boa pólvora.
" Mais outra círcumstaucia pela qual se recom-
menda o emprego do acido sulphurico, é que, cm
relação ao acido nítrico, é mui pequeno o valor por
que se vende, e permitte diminuir muito a perda
do ultimo.
" Com efleito, n'estas sortes de impregnações uma
parte considerável do acido adhere á matéria ou vai-
se nas aguas da lavagem. Supponha-se uma mixtura
de volumes iguaes de cada ura d"estes dois ácidos, e
depois de ensopado o algodão, uma perda de 1 litro
(3 -j^ quartilhos) de mixtura, não se terá perdido
na realidade mais de meio litro de acido azolico. Fi-
nalinenle o acido sulphurico dá outra vantagem, a
qual consiste em reter as matérias nitrosíis que en-
cerra de ordinário o acido nítrico concentrado, e tor-
nar a operação menos desagradável.
"O acido nítrico de 1,5 de densidade, niixturado
com igual volume de acido sulphurico, constitue uma
mixtura própria para o falirico da polvora-algodão.
Estas proporções correspondem a porto de 10<l kilo-
grammas (G arrob. :2a ar. , iScc.) do primeiro acido
para 12o do segundo. •'
O auctor, appreseutando os preços por que se ven-
dem na França os dois ácidos supramencionados e o
algodão cardado, e lembrando que 100 partes d*esle
absorvem 70 partes de acido nítrico, faz ver que, mes-
mo dando-se a condição mais desfavorável, qual é a
de se perder no fabrico oO por cento d"cste acido c
a totalidade do acido sulphurico, s.iiriam as 170 ki-
lograinmas (10 arrob. 9 arr. <5ic.) por oOS7JO n-is,
não fallando na mão d"obra , e «pie sendo a jwlvora
fabricada com papel c principalmente com a pasta
í\c pnpol, que é mais barata, skiriam por 1o5j20 réis
cada 100 kílogrammas, posta do parto amâod"obra.
.1 Esta mjio d"obra, continua o inventor, a muito
pouco montaria, pois que os preços acima indicados
suppocui todas as matérias compradas no mercado, c
que cm delíniti\o o fabrico consiste n"uma simples
imniersíio, iruni.i lavagem facíl c numa desM>CJçào,
operaçM-ics cuja maior parte piltle si^r feita pflas ma-
chinas de cardar o algod."io e faicr o |>apcl.
"Sem pretender lixar preço, ixkIc-sc diicr que es-
ta nova pólvora, completamente fabricada, não cus-
taria mais de 2**000 réis cada 100 kilogr.nmmas.
Concordemontc a consideram toilos Ires vezes mais
forte que a jKihora boml>ardeira •, a de igual força
o PANORA3IA.
181
não custaria pois mais de 8;^000 réis cada 100 kilo-
gramnias.
ii Isto não passa d'um calculo approximado ; mas
é quanto basta para mostrar o que se pode esperar
da nova pólvora.
II Não sei se appresenta na practica inconvenientes
graves, como algumas pessoas parecem receiar ; mas
quantas vantagens já reconhecidas não leva ella á
pólvora ordinária !
u Uma pólvora branca, insolúvel c inalterável n'a-
gua, com propriedades c composição constantes, que
não suja as mãos nem o fato, nem as armas, três ve-
zes mais leve para se transportar que a antiga, por-
que é três vezes mais forte do que ella ; que é sus-
ceptível de soflrer sem a menor alleração as viagens
do mar ^ luna pólvora que se pode inundar n'um
paiol, no porão d'uni navio, que se transporta por
agua em bom estado ; reúne muitas qualidades boas
que llie dão a primazia sobre u pólvora negra, a qual
sempre suja, c se deve livrar do ar que a altera e
da agua que a destroc.
"Mas independentemente doestas considerações,
todas em vantagem da nova pólvora, lia outra que
eu tenho a peito appresenlar aqui.
" A pólvora de guerra é formada do 7o partes de
salitre e 23 partes de enxofre o carvão. Quando ar-
de deixa um resíduo lixo, ou em outros termos, inu-
lil ao ellcito dinâmico, c cujo pezo sobe a mais das
trcs quartas partes do seu. Os gazes que entram em
reacção não constituem por tanto senão ajienas um
quarto do pezo da pólvora.
" Na pólvora nova, pelo contrario, tudo é elaste-
no, tudo ou quasi tudo se reduz a (hiidos elásticos,
e ja por isto se explica a sua superioridade, em pezo
igual, a pólvora (|ue deixa, quando arde, unia por-
ção enorme de maioria inerte. "
tração sobejamente tola o que deu aio a esta protec-
ção e acolheita de indivíduos unicamente privilegia-
dos pela liberdade de fazerem momos, visagens e ar-
remedos, e de insultarem com dicterios mais os me-
nos agudos as pessoas que concorriam na c(^rte de
seus amos. Cremos que era um luxo da epocha sus-
tentar estes parasitas, que não poucas vezes prestaram
para secretas malfeitorias. — Ha luxo em príncipes
de engaiolarem animaes ferozes: que lh"o agradeçam
os naturalistas, mas os naturalistas que espreitam os
hábitos contrafeitos do animal captivo. — Houve prín-
cipes que, escolhendo entre as denegações raoraes
da espécie humana, tiveram a soldo, por alimento ou
paga, miseráveis tão despresiveis que se constituíram
alvo constante das suas zombarias, e instrumento in-
directo para escarneo de outros.
Ao bobo andava appenso o anão; eram dois appen-
diculos indispensáveis do senhorio feudal, que folga-
va com isso ; um representava o abandono das facul-
dades intellectuaes, outro a debilidade das forças phy-
sícas ; e com dois indivíduos degenerados o feudalis-
mo symbolisava o poder — e de certo, porque nem
era a compaixão que prestava nutriç.ão a uns, nem
apura generosidade que sustentava outros. Tudo era
fatuidade de poderosos. — Mas os parasitas transfor-
maram-se ; voltaram ao systema dos tempos corrom-
pidos do império romano ; e avultam por esse mundo.
(Auem ler o romance deW. Scott, intitulado Pe-
veril do Pie verá um typo dos anões, deíxem-nos di-
zer, heróicos ; quem lêr o romance do Sr. Herculano
no volume de 18t3 do Panorama achará uma fiel
pintura de costumes da epocha da acção, realçada pe-
la vijrdade e inimitável colorido do cstylo.
O ANTÃO E O BOBO.
Foi nnligo <()sliiiMc (111 |i,ini^ dl- sciibdMs feuilaos, c
lainbrin iiiisdc |)iin(ipi's, (|ii(! o» sii|i|il,iiilaraiii, acou-
lareiíi bobos c IniãcM que os <bvi'rl Ímnciii nas hiM^at de
<'iMiidiiiMi'nlo :, iniis sii|i|ioiiios (|ui' iiáo <'ra uma dis-
O \ KSL\IO.
(Coutiuiiadu do pag. 174.)
As ERUPÇÕES do Vesúvio lêem sido amiudadas, pos-
to (jue nem todas fossem espantosas por assolações e
estragos : no século passado contaram-se vinte e trcs
iiicluinilo ado fatal terremoto de 17oo. — Foi teme-
rosa a de 1707 ; o cavalheiro Haniiltou a descreveu
largamcnle •, e ])ara <|ue se possa formar idéa, pelos
estragos de umas, dos causados por outras igualmen-
te desvastadoras, compendiaremos em poucas palavras
a sua relação.
Km 17li7 havia s.iIm-o a nionlaiiha um acervo de
ISo pés de alto, que servia de principal respiradou-
ro ao volcão, (Ponde jorrava o fumo tão negro o tão
denso que parecia sair a custo. A todo o momento
eram arremoçadas pedras enormes a considerável al-
tura. Já tinha a lava chegado ao valle, quando a
noite com a escuridade veio augnientar esta scena
horrorosa. ()uviu-so violenta detonação, e ao romper
o dia descobriu-se que amonlaiiha se abrira desde o
cume ale orneio, e que d\'ssa nova brecha saía uma
torrente de lava incendiada. Tremia a tcrru •, caía
um eliuveiro de pedras pomes. Em menos de (\\\í\t
horas alava já linlia coburlo Ires milhas, eiomliulo
era da largura ili' <|uasi uma Icgua com 70 pés de
esjiessura. — Não piídc descrever-so a confusão tPessa
noite em Nápoles: a fuga luicipilada don-i, obriga-
do a largar 1'orlici, coiilriliuiu jiara augim-iitar o
terror ; as igrejas <-slavani iMiliilli.ulas de gente; pe-
las ruas não se encontravam senão pmcissòes. Vassn-
ram-se os dias de M a Úll em alleniativas (h> soeego
e de susto. Choveram cinzas cm Na|ioles com tanta
abiiiidanila que era preciso Ira/.er ehapius de sol. A
'2i lerniinou felizmente a erupção que foi il«.'> mais
violentas. —
182
O PANORA3IA.
A catastroplie de 1794 foi horrível. A 12 de ju-
nho sentiu-sc em Torre dei Greco uni tremor de ter-
ra intenso : passou-se a noite em continuos rebates,
e assim os dois dias seguintes : no domingo onyiu-se
um estrondo quo parecia descarga de artilheria : o
ruido veio ni5o do alto mas do bojo da montanha,
que rebentou do lado do poente •, fluxos de lava in-
ilammada rodaram em duas direcc;ões ; um com a
largura de quait milha, correndo sobre Resina, in-
cendiou o palácio Brancaccio, a igreja dos mareantes
<■ o convento franciscano •, o outro braço tomou para
Torro dei Greco, povoação de qiiasi 1,800 almas,
que foi preza da lava, sendo obrigados os habitantes
H refugiarem-se em Nápoles. A 8 de julho estava
tudo acabado.
As erupçõis são precedidas de certos annuncios, co-
mo abalos subterrâneos, rolos de fumo muito negro e
denso que saem da cratera e tomam a forma de um
pinheiro : além d*Í5So, os poços circumvisinhos scc-
cam-se, o mar rotrahe-se das praias. — As matt-rias
principaes que o Vesúvio vomita resumem-se na se-
guinte lista : — 1." fumo i 2." cinzas, areola negra e
fina; 3." pedrisco, areia mais grossa-, 4." pedras po-
mes, que são mais escuras e pezadas do que as pedras
pomes ordinárias ; 3." pedras naluraes, que saem um
tanto calcinadas no exterior-, 6." escorias: ha-as tão
leves que parecem espuma do assuear -, a grossa pa-
rece escumilha de ferro ; 7.° as pjrites octaedras, de
duas linhas de comprido com oito faces lisas e pre-
tas-, achain-se algumas apegadas-, 8." o enxofre es-
téril ; acha-se na pedra pomes c outras no plano in-
terior, é amarello e tem pouco cheiro; o plano exte-
rior ou ó amarello por esta causa, ou branco por via
da aluniina, ou verde pelo cobre c vitríolo, ou pardo
pelo ferro-, 9." o enxofre puro nativo; 10." o talco,
que se acha pegado ás pedras que lança o Vesúvio ;
é transparente como o vidro e tira-se em laminas;
11.'^ as marcassilas; n^cllas se distinguem todas as
castas do metaes ; o seu pezo é dcsproi)orcionado ao
volume; 12." as cristalisações que representam pe-
dras preciosas do todas os espécies; 13." asstalagmi-
tes nas grutas e produzidas pelas infiltrações das chu-
vas; lo." agua domar misturada com conchas; lo."
niinoraes do toda a casta, misturados, confundidos
n'aquello laboratório infernal; 10." seixos volcaiii-
'■03, de diversas ciíres c natureza ; 17.°, finalmente,
as lavns — A. lava é certa matéria abrazada e liqui-
da, da consision«In Jo vidro derretido; sáe de ordi-
nário dos lados da montanlia n»» ««..pçApe, p espa-
Iha-se como uma inundação pelos campos: variam as
suas còrcs alé o infinito, conforme a matéria de que
se compõem, porque todos os mineraes entram na
sua formação.
A erupção de agosto de 183'f pertence ao catalogo
das funestas. No dia 22 pelas dez horas da tarde co- '
meçaram asVjecções de pedras, escorias, e outros ma- :
leriaes inflammados, e assim continuaram toda a noi- i
te, sendo ainda visíveis nas primeira* horas do dia, i
nas quaes principiaram a formar uma po<|uena lava ;
depois do que saiu da falda do morro cónico uma
grande torrente d'ella que se encaminhou para a |
'ponta chamada dillc croccllc, a oeste ; seguiu l)or- 1
dando as alturas de Cantaroni, desceu rapidamente
sobre as terras adjacentes á dieta ponta, e incendiou '
u,ma pequenina matta de carvalhos do cromilerio.
As quatro da tarde, a lava um tanto se \ irou para
Kosso-Grande, accommelteu os terrenos mais baixos
que u matta, cobrindo-os cm larga extensão. — Es- ;
ta lava, e outra alluvião que costeava a ponta dol i
l*aIo, tendo saído Jior uma bocca recem-aherla na
montanho, cortaram, ajunclando-se, o caminho que
se tomuva para subir ao morro, of.de ja se não po- ■
dia então chegar a não ser voltando para a gargan-
ta dieta d'Avena. — A lava d'esta feita corria va-
garosa ; dir-se-hia querer saborear o bárbaro prazer
de destruir , passeava a passo e passo pelos seus es-
tragos, e não adiantava mais de seis a sete pés por
minuto: não cessou de correr durante o dia. Perto
das oito e meia, depois de mui fortes detonações,
abriu-se nova bocca a leste, na direcção de Mauro e
mesmo sitio d"onde rebentou a lava de 1817 ; e che-
gou ao pé da casa de campo do príncipe de Ottaia-
no : então ao impulso de multiplicados abalos viu-se
abater-se e desapparecer de todo o novo montículo
cónico, que era de recente formação no alto do mon-
te, companheiro de outros que successivamente ahi
se tinham formado, e ou existiam ou já estavam
subvertidos. Ao desabar d"aquelle fraquejaram as
correntes da parte do oeste. — No dia 2o de agosto,
ás seis horas, sob a iníluencía de unia terrível deto-
nação, rasgou-se outra abertura na raiz do morro
maior, partindo d''ahi uma alagação de lava que co-
briu a precedente.
No dia 2C uma columna ímmensa de fumocaliji-
noso precedeu a erupção de outra lava, que se mul-
tiplicou por outras muitas aljerturas contíguas, c se
resolveu iruina espantosa corrente que, precipitada
pei.is encostas d"aquella parte da montanha, chegou
promptainente a íJauro c cortou o caminho que de
Bosco-tre-case vai a Ottaiajio ; reforçada pelos bo-
queirões adjacentes que se abriram em 27, dividiu-
se em três alliientes ; o mais forte adiantando-se pa-
ra Mauro invadiu algumas parles do território na
direcção de Scafati ; outra accommcttcu o chão cul-
tivado.sobranceiro a Bosco lleale ; a terceira entrou
por algumas fazendas juncto da igreja dtlla -Vifíiao-
tclla em Bosco-tre-case. Houve quem observasse n"es-
tas scenas de assolação um phenomeno curioso : isto
é, que ás arvores antes de serem Siilteadas por a la-
va se arripiam as folhas com um pequeno estalido :
e os ramos se ateiam deitando uma chamma esbran-
quiçada logo que a lava chega ao tronco.
A 30 d'agosto a lava principal continuava a cor-
rer, e saía de muitas fendas que se abriram entre o
\ esuvio e Ottaiano, atravessou a estrada para o poen-
te, e continuando a adianiar-se destruiu totalmente
a aldeia de S. João, bem comoade Caposicco, abai-
xo de Torzigno ao sul. A largura da lava era de per-
to de meia légua, a grossura vinte c dois pes, c a
extensão do seu curso mais de duas léguas- Os pre-
juízos que causou foram ímmcnsos, <lotruiu mais de
quatrocentas geir.is de chão plantado de vinhas c ar-
vores, e sepultou mais de cem moradas de casas nas
duas aldeias incendiadas.
Durante esta erupção o mar esle\e por um dia in-
teiro ii'uma espantosa agilaç.ão na parte que borda
Uósiiia e Torre delia Annunziata. E toda\ía não es-
tava perturbada a serenidade da atmosphera ; havia
aquolle sol bello e temperatura macia, dote d'eíte
clima; só tumultuavam os dois terríveis elementos,
a agua e o fo^o. c jxireciam rivaes no furor.
A cratera continuou a \omítar cimeiro, a princí-
pio nc^ro e espesso, depois axermclh.ado. a final al-
vadio por um dia inteiro, no fim da fanle c que
apenas se divís.avam algumas fagulliES : o rolo de fo-
ío que se levantava no mais intenso da erupção ti-
nha a forma de um piídieíro gigante, cujo tronco pa-
recia de brome e as raiies de coral ; a lua, que en-
tão se .acha\a exactamente perp«>ndicular, augmen-
tava cora a sua claridade o sublime d"csla scena do
horror. Este phenomeno, que já se oWrvou na>
erupções mais fortes, appresentava uma vista pictu-
resca .
t> rei veio pessoalmente a estes logarcs Je a/llio-
o PANORA3IA.
183
cão. e não por vã curiosidade, mas pelo desejo de
acudir á miséria de muitos infelizes. E com effeito
foram salutares a sua preseuça e os soccorros que fez
distribuir aos necessitados. Na realidade o dia e noi-
te precedentes foram de grande consternação e hor-
ror em Nápoles, causando lastima as familias refu-
giadas, e terror o medonho aspecto do vulcão, que
ameaçava ainda maiores estragos : felizmente abran-
dou a intensidade da sua fúria, decaindo gradual-
mente para o usual adormecimento.
Um convite de Richeliev.
Todos, na fé dos historiadores, vêem, concordes, no
cardeal de Richelicu um grande ministro, merece-
dor doesta fama por alguns dos seus actos. Prestou
na verdade um assignalado serviço á monarchia fran-
ceza acabando de decepar as ultimas cabeças da hy-
dra feudal ; abriu ás lettras um sanctuario formando
a Academia franceza •, e se eram péssimos os versos
da sua lavra, pagava algumas vezes com generosida-
de os alheios. Era vingativo, mas nem sempre atira-
va a cabeças altas ; por desfastio divertia-se ás vezes
com gente baixa.
Um ifiidfiro por nome Dumont recebeu certo dia
uma caria datada de Uuellc, nos subúrbios de Paris,
onde o cardeal tinha uma casa de campo. Convida-
va-o S. Em." para jantar no dia seguinte com elle.
O convidado, não podendo dar credito ao que via,
rel6 duas ou Ires vezes a carta, arregala os olhos pa-
ra o sobrcscripto e convence-se de que é para elle.
Chama muito alvoraçado a mulher e duas fdhas pa-
ra lhes dar parte do tamanha honra. Façam idéa de
qual seria o contentamento e a vaidade doestas sacer-
dotisas da tenda. Safam-se muito depressa da mer-
cearia e vão apregoar pelo visinhança a honra insi-
gne que lhes faz o eminentissinio ministro; toda a
gente graúda da rua corre adar-llies os parabéns. O
futuro commcnsal de S. Em.", como ébeni de crer,
mal passou pelo sonino essa noite, gastou parle d'el-
la nos preparativos da jornada, e ás quatro horas da
madrugada poz-se a caminho para Ruelle, escarran-
chado na sua mulinha. Apenas passara as porias amon-
toam-»c grossas nuvens no Iiorisonle, <Mim Irovâo an-
nuiiciíi <|iio <stá a di'sal)ar unia carga d\igua. O no-
vo vali<lo de Uiehelicu, que iiSo levava capote, fez
dobrar o passo íi ejv.dgadura i mas a tempesljJc un
dava mais ligeira, os relâmpagos eram uns atraz dos
outros, — mediam nieih), — e a agua caía a cânta-
ros. Dumont, pilliado ])ela tempi'stadc, olirigou a ga-
lopar, pela priuwira vez, a triste alimária-, porém,
não podendo ir para diante, parou á poria da pri-
meira eslaliigcni dcí Nanterre. Apeon-se, mandou a
inula para a estrc^liuiia, e encaixoii-so n"uma sala
baixa, onde os moços da estalagem fizi-rani uma fo-
gueira de achas ile liiili.i para enxugar a roupa do
eneliarcado viajante.
ICni (planto estava entretido em en\ugar-se n"um
canto ao pi' do lume, outro viajante, Ião ensopado
como eUe, vciíi tnin.ir quarlc-is de inverno n'oulro
canto. Anilios cMliveram cal. idos uni bom pedaço, ali'
que Dumont cxciainou :
— uliiie tempo tão di'sal>rid() ! >'
— i. lOslá h'\a(h) da breca; mas isto (• chuva de
trovoada ; (bira jimico, si> não me eng.ino. >•
— .. l)i'sej(i-() eoui Im'111 anela, porcpie lenho ijiieir
'v Kucli(^ ])ara niígoeio (h' muita eonsiihraçái).
<J segundo viajante ealon-si'.
— "Ora esta! replicou Dumont, a borrasca, em
\ez de abrandar, crcscí- ; os trovões ubalani a casa',
a chuva redobra, e eu que não tenho outro remédio
senão pôr-me a caminho.
— "Para continuar uma jornada por baixo d'agua,
disse então o desconhecido, permitia que lhe diga,
que é preciso que haja razões bem fortes. "
— .1 .\s minhas são de tal lote . . . E para que hei
de eu estar com mysterios : estão á minha espera es-
ta tarde parajantar em casa do cardeal deRichelieu. "
— 11 Percebo •, convites d "estes não são para despre-
zar \ mas ainda tem muito que andar ; e como quer
appresentar-se era casa de S. Em." assim tão enla-
meado ? "
— ii Talvez S. Em ." me fique obrigado pela promp-
tidão. j!
— u Se não quizesse passar por intromettido, per-
guntar-lhe-hia se já tem tido contas cora o cardeal.
— i! Nenhuma. Para lhe fallar a verdade, confesso
que estava longe de me vir ao pensamento o favor
que recebi, m
— 4< O cardeal é muito cioso da sua auctoridade ;
não gosta que ninguém se metta com os actos do seu
ministério; basta ás vezes uma só palavra para o ter
pela proa. Ora pense bem ; nunca fez cousa que des-
gostasse o cardeal ? "
— 11 Não me lembra : tracto cá da minha vida. e
não me importa com o que por alii chamam politi-
ca. Comtudo cuido que, diante só de Ires ou quatro
pessoas, ralhei da morte do duque de Montmorency.
O senhor no meu logar faria o mesmo, porque meu
avô foi mordomo n"esla illuslre casa. "
— 11 O senhor Icm cara de pessoa capaz, inspira-
me interesso ; tome o meu conselho, não vá a Ruelle. "
— 11 Não ir eu a Ruelle! parto já, sem me impor-
tar com a cliuva. "
— "Mais uma palavra, que o caso é serio. Parece-
Ihe que o estão esperando em Ruelle parajantar com
S. Em."? Desengane-se ; estão com etteito á sua es-
pera, mas é para o enforcarem ! "
— «Ai! Deus meu! que me diz? não pode ser.;'
— "Repito, para o enforcarem."
Aqui Dumont, tremendo de medo, chegou-se ao
desconhecido.
— " Diga, em nome do céu, como sabe isso. »
— "Sei-o com toda a certeza."
— "Pois que liz eu para ir á dependura?"
— 11 É o que lhe acontece, e posso assegura-lo, por-
que sou ou que eslou encarregado da execufrio. "
Dumont perdeu a còr c deu Ir*-" j-assos para traz.
.. l: t[ut... c « senlior ? "
— "O carrasco de Paris! S. Em." mandou-me
chamar para o esganar : apanhou-me a trovoada no
caminho, reiolhi-me também u*esla estalagem ; en-
gracei com a sua cara ; o cardeal, lá de quando cm
quando, niette-nie em eniprezas d'eslas com que eu
embirro. Jk'm basta ter de purgar a sociedade dos
maHiíilorcs que a llagellani. Ííir-llie-hei mais, eslou
com minhas idéas ile largar esle cargo ; mas tome o
meu conselho, perca o mi'do á trovoada, e volte sem
piTda de tempo para Paris. Lembre-se que lhe faço
um grande serviço, eipie uma palavra que lhe esca-
pe ]ióiii' perder-me.
Dumont tornou a montar na mula m-iu d'esta vex
lazer caso da chuva iiue lhe cheg.iva até os ossos, c
entrou em Paris, mas, em logar de ir para sua casa,
loi pedir asvio a um amigo velho, a quem contou n
aventura sem expiNr a pessoa que o .s.dvara.
Conseguiram aleançar-lhe por dinheiro uni pas>a-
port.- faíso, o bem disfarçado partiu uin.i noili> par»
Cnlnis, (Ponde embarcou para Inglaterra, e la S(j con-
servou ale a morte do cardeal, (pie aucccdou dois »'>-
nos depois.
184
O PANORAMA.
'lAGEM AS MINAS DO
Pekú. I tonia do caminho. O campo é triste e ando ; só na
proximidade de Tulancigo se divisam algumas bellas
No MM de 1836 fiz segunda excursão pelos arredores fazendas. Esta cidade pequena, a mais antiga do Me-
da capital do México:, sendo minha tenção visitar as ^ xico, foi edificada pelos tolteques no melado dosecu-
pyramidfís de S. Juan, Regia, e as minas de Real i lo \ II : oclima não éagradavel^ aschuvas são mui-
del Monte, tomei o caminho do norte que vai parar , to aturadas e acompanhadas de ventos frios : porém
á povoação de Guadalupe, onde existe o sanctuario | todos os negociantes francezes quealli residem sepre-
da ^'irgem milagrosa, padroeira do México. Conta- i caucionaram contra o frio e a humidade, mandando
se que poucos annos depois da tomada da antiga ci- | fazer fogões, que são os primeiros que vi no México,
dade, cabeça doesta vasta região, um indio, cultivan- posto que na própria capital e nos sitios altos sente-
do a terra, achou aquella imagem pintada n'uma te- i se muitas vezes a necessidade do calor da lareira no
la de fio de inaguey •, foi esta circumstancia havida j mez frigido de janeiro. — Os meus compatriotas (Jal-
como prodígio, c signal da protecção que a ílãi de ' la ttm fi-ancez) quizeram dissuadir-rae de caminhar
Christo concedia a estes logarcs : edificaram, portan- para Regia, expondo-me que a jornada era attreita
to, á sancta imagem um templo bellissimo, que do- a salteadores e que, só com o meu criado, corria o
taram largamente, e creou-se uma coUegiada para risco de ser roubado e talvez maltractado. Com effci-
to, o tracto de terreno que eu tinha de atravessar
achava-se infestado de uma cabilda de bandoleiros,
que não só salteavam os viajantes, mas também ha-
viam audazmente accommettido os combois de car-
ros, que transportam as barras de prata a \'era-Cruz,
chegando uma vez a gozar da conquista. A tenacida-
de d"estes ladrões fortalecia-se com aafoutcza do seu
capitão, o famoso Andrade, que os dominava com
poder absoluto e os sujeitava no calor do combate,
posto que o sangue dos companheiros avermelhasse o
campo da peleja.
Todavia, passei sem risco : aquelle temeroso caht-
cilha tinha sido aprisionado hana pouco tempo e
mettido nas cadeias do México, e o seu bando disperso.
A fazenda (hacicnda de Hegla) acha-sc na mais
picluresca situação que eu conheci no México. Esta
situada n'um desfiladeiro apertado entre dois cerros
a prumo, escorados por eolumnas basallicas de gran-
de regularidade ; ovalle ougargant.1 vai-se estreitan-
do até que as duas columnadas seajunctem e formem
uma senii-ellipse : então aos olhos admirados se ap-
presenta novo espectáculo. Imagiue-se uma serie de
eolumnas prismáticas de 60 a 70 pvs de altura, todas
de grossura igual e perfeitamente ordenadas, forman-
do um amphitlicatro cortado no meio para dar pas-
receber as oflertas pias que de toda a parte do Jlexi
CO se dedicam a Nossa Senhora de Guadalupe. — Pa-
ra além d'esle povo começa o Salada, grande plani-
cie arenosa, que se dilata ao longo do lado do Tes-
cuco, etira seu nome do sal que n^ella depositam as
aguas. Alii, bem como na outra banda de Guadalu-
pe, encontrani-se aldeias de Índios, que >-e occupara
exclusivamente cm apanhar o dicto sal para o ven-
derem nos mercados ; nunca vi cousa tão miserável e
hedionda; os pardieiros, mal fabricados de taipa com
tectos rasos, apenas se distinguem dos montes de ter-
ra que os cercam ; de redor nenhuma verdura appa-
rece ; tudo é terra e de uma còr uniforme \, ainda
mais penosa se torna a triste impressão que este as-
pecto cau^a observando-se aespccie de tro2;lodytas (1)
que habitam aquellas tocas. — O Salado ainda se es-
tende seis a sete léguas mais para diante, depois do
que se entra n'um matto de arvores enfezadas que
vai dar a S.João de Teotihuacan, povo grande a dez
léguas da capital, celebre pelos tcocallis que se acham
nas suas visinhanças. Ostaes <(Oca//!s foram construí-
dos pelas toltcíjues no oitavo ou nono século da nos-
sa era : o vulgo chama-lhes ccrritos, pefjuenos cabe-
ços ; e com efieito, actualmente que o tempo gastou
as arestas d'cssas pvramides e as recamou de vegeta
ção ate o cimo, parccem-se com os montes volcanicos sagem a um ribeiro quedescáe em catadupa; as aguas
«fue se divisam nos locares transtornadas em remotos | por entre os toros meio despegados formam milhei-
tempos 'por fogos subterrâneos. Estes dois templos, j ros de repuxos em que se refrangem os raios do sol.
exactamente orientados, eram coiisaírrados um ao sol j — Este monumento de basalto é de certo um diK
e outro alua. Mr. de Humboldt, que os mediu, achou | mais elevados no mundo acima do nivcl domar. Ei-
n um 171 pés de altura, e 64.) de comprimento na tá na cadeia das Cordilheiras como documento vi»o
base-, o sogunrto lo.n menos 30 pés de elevação. O j das revoluç-õcs do globo. Não sei jx)r que se falia tão
interior é do argila misturada com j^.wj>a;>, o o i-o- pouco d"c5(e formoso producto geognoslico : pódc,
vestimento com reboco decai, como ainda n"algumas não obstante, competir com tudo o que ha de mai»
partes se conhece: as escadas que conduziam ao topo ' curioso n"este género. — Se a cakada dos gigauics na
estão inteiramente destruídas, apenas se percebe o j Europa apresenta moles de basalto, e grupos de co-
sitio e ha indícios de que foram de cantaria. Entre lumnas mais magC5to^os, a cataracta de Regia e' m-
os dois tcocallis ha grande numero de pyramides de • confcsta\elmeute de mais gracioso aspecto; semelha
1 o a 30 pés lie elevação, consagrados aos astros se- j um monumento arabo da idade media, arruinado ns
cundarios, ou destinadas para sepulturas dos summos | verdade, porem ainda cheio de recordaçvcs e i.te de
sacerdotes e dos cabeças das tribus. Estão coUocadas ' esplendor. — O valle se prolonga d"ahi a trcs léguas
por ordem, e no centro do grupo nota-se uma pedra ate a Sarranca grande, quediíoni ser também ador-
muito volumosa, coberta de hieroe;lypliicos. Em to- nada de grandes eolumnas de basalto. — Estas colum-
das, e no espaço circumdante vô-se grande copia de : nas são verdadeiramente cristalis;içC>es que oflercccm
íragmentos de Icuça de barro, de figurinhas da mes- formas de prismas, e que \<OT impulso próprio re-
ma matéria, e immensa quantidade de |M;daços de | lluem, mas per|>endicularmcute, sobre o seu eixo : o
obsidiana, talhado em bruto, mas pela maior parte da | exterior c alvacento, easuperficie de cada secção de
forma de ferros de tlechas. Estes monumentos são os | còrdeardesia com manih.ns aman-Uadas no centro. —
llacienda de la Regia ]>ertoni-e ao cx-conde do ni«-
mo titulo, que a tem arrendado com .ns principaos
mais antigos dos povos americanos, de que se conhe-
cem as emigrações ; mas são os menos interessantes
cm relação ás artes; não excitam admiração como os
de Xochicalco, de Papantla e de Mitla.
De S. João a Tulancigo a jornada é longa e fadi-
gosa ; não ha ccu.^a que distraia o viajante da mono-
(1) Duía a unti^iiijnilc que baviu poíos chuinados tro-
giudvtas, por murarem debaixo do chio.
minas de Real dei Monte a uma comjvinhia ingloza
por 16:000 pcios |x.>r anno. Não é uma fazenda des-
tinada á cultura ; dão al!i aquelle nome aos grande»
estabelecimentos para onde se condui o mineral pre-
cioso, sacado d;i5 minas, para extrahir-sc a prata.
(Continua.}
24
o PAiVORAMA.
185
tO ^
GESSIíER MORTO POR TELL.
A TKADirXo histórica, o romance e o theatro fizeram
de Guilherme Tell, o Iieroe suisso, um personagem
luuilissimo fullado. O grau de veracidade dos factos
ijue a respeito d'elle se coutam tem sido objecto de
disputas-, coiiitudo, o nome é venerando na sua i)a-
Iria, e vulgar hoje na Kuropa a famu de suas proe-
aas. A pag. loO do vol. 2." do Panorama, sobacpi-
graphe Oríyt nt da indiiiindincia da iShÍssíi, contou-se
quanto geralmente corre da vida <• feitos de Tell, e
alguniu cousa se accresctrntou a pag. 73 do vol. 3." —
Ociosa seria a repetir;,*»), quando appresenlítnios um
esboceto da antiga pintura, i|UO represenfa\a a ac^-ão
du morle ilo t^ranno (íessk-r, colhido di- improviso
pela lleclia que certeiramente despedira o hábil Tell
em sua cmlioseada iia passagem para o easlello de
Hussnach. Demais, como dissemos, asallusõesdoses-
eriptos inoderuos, a novella ile Fh)riaii, a opera de
Rossini, tem feito sobejamente popular a nomeada
de Tell. — Seguindo a narraeão de nnni \iagem re-
cente diremos onde se passou aijuelle assignalado acon-
tecimento.
11 Preparemo-nos agora para uma das mais perigo-
sos expedições da nos-ta viagem ^ traeta-se de escalar
o famoso Kiglii, ensa montanha tantas ve^es descrip-
ta, em todos <is ivlbnns desetdiaila, e nunca diMnasia-
damente gabada. Estrrii„-cei, compaidieiras novi<;ns
da jornada, que (íonfiais n'essiii«i,valgadurab muares,
tão eabe(,'udas e teimosas na a|>parencia ; rnlini ii«
olhos ao chegar aos precipieios •, temei que algum frag-
nuMito de r<H'li.i, iiiopinadamenleil<-s|H-nhado, vos ar-
roje com a aliniaria para o abismo. Porém, nada de
Voi,. 1. — KiiviiHitiHO 'iO, l«t7.
, sustos insensatos ■, capacitai-vos Ixiu de que os acasos
' espantosos contam-se mais por tradi<,-ão e nosroman-
j ces do que na realidade acontecem. Fiai-vos ccgamen-
1 te na voz dos guias, conselheiros tão expertos e expe-
rientes que não ha riscos que não prevejam edi-que
vos não preservem ; deixai ir á vontade as cavalga-
duras, boas e infalliveis, que toman» <ento bastante
em não se transviarem por lU^dladeiros pouco segu-
ros, pois ipie iii!,tin<tlvamente conhecem a salvação
própria, que é também a vossa. — Gozemos, portan-
to, sem preoccupação nem medo, das belleias com
que nos convida esta ascensão.
.Mas, primeiro (pie tudo, para nos desobrigarmos de
iim pacto de devoção histórica, faremos uma estação
de alguns minutos <lianle da capell i comiuenu>raliv;i
deGuilhermeTell, edificada, segundo se diz, no pró-
prio sitio onde o lil>ertadoi- da Suissii frechou o Iv-
ranno Gessler. t"ausa pena que se apagas,se a |)intu-
ra a fresco que figurava esle siicci-sso, e de cpie n\v-
nas se descobrem agora vestigios. Tmlavia, ainda que
o nome de Tell não estivesse grasado na historia loiu
indel('Veis caracteres, (|uando jiereceriu elle, de|H>is
qui- o sublime compositor nuHlerno prestou atpielle
personagem os acientos da hariiioiiia, mais formoso*
c mais pi-iielrantes quanto mais se escutam ' Huem
se lembrara de Tell sem riNordar-se tristemeiWe d<-
j ([lie Kossiui não inventará iiiai» cantos t . ■ ■
„ Vemos, /i proporção <|uc subimos, jifpresenlarem-
iC-no.s aos olhos novos lagos, uovan cidades, e no\.<*
colliiia», até que a vista não tenha [wr limites senão
«luasi u iinmenaidade, Uue espectáculo appreseiit.i ,\
186
O PAjVORAMA.
planície a quanto pode divisar-se com as grandes po-
voações confundidas em ondulações vaporosas, e os
quatorze extensos lagos, que alsjuem comparou exac-
tamente a fragmentos de caramella, orlados de relva !
lí Em breve a cordilheira dos Alpes, que nos tem
acompanhado constantemente em todos os pontos de
vista de nossa viagem, se offerece, e patenteia as es-
páduas resplandecentes de gelos, comparados ás arma-
duras de que Ossian reveste os seus heroes gigantes.
O monte Pilatos, com as assomadas Vjravias e descar-
nadas, forma com o Riglii um d'aquelles sublimes
contrastes que se topam a cada passo em meio das
perspectivas da Suissa. Admiram-se asaprasiveis co-
res doRighi ao mesmo tempo que o Pilatos, sombrio
e carrancudo, depende ás nuvens os flancos devasta-
dos, onde o raio deixa medonhos vestígios. — Cha-
mam n estas duas montanhas as sentinellas avança-
das dos Alpes superiores^ talvez fosse exacto compa-
rar uma á sereia ínnocente que oflerecesse aos viajan-
tes a imagem do repouso e quietação depois de lon-
go curso ; e a outra, pelo contrario, a uma d'' essas
indomáveis cliiraeras que os poetas situam nas aveni-
das dos palácios habitados por feiticeiras.
O Riglii é, bem se pôde dizer, a pátria das cabras,
das vaccas e dos clialtU ,• ha n"elle umas cento e cin-
coenta doestas bonitas casinholas de madeira, que ha
tanto tempo teem merecido por sua forma campestre
eaprasivel estructura figurar nas paisagens enas pc-
Çéis de theatro. Numeram em mais de três mil as
vaccas que pascem n"estas montanhas.
Certamente que não deixaremos de passar uma
noite no Righi, sob o tecto de um chalct, onde ad-
mira o achar todas as branduras e as elegâncias ex-
teriores da existência cidadã. E bello ouvir, ao de-
cair da tarde, o mugido das vaccas, sereno e melan-
cholico, que se perde nas profundezas das montanhas,
e adverte de que o dia vai sumir-se. — Do madruga-
da a mesma ária vos acordará, convidando a subir á
coroa das alturas a saudar o sol que nasce, espectácu-
lo que transcende a quantas descripções ha de poetas.
Então podem-se contemplar em toda a sua formosu-
ra o valle e o lago de Scmpach, aquellas aldeias tão
viçosas, semeadas na margem do lagode \\aldsteltes,
que parece se aprazem de refleclir-se d'aquelle espe-
lho admiravelmciile christallino ; c depois os Alpes
sempre, que semelham enormes colossos, meio tapa-
dos de véus de tintas rosáceas c violefes, vestidos de
iramensos n.antos de neves, cujas dobras se confun-
dem com as ondas d» ouro e azul que o sol desparge
por toda a extensão do horisouin.
COLO.MBA.
ítomanrc da Curscga.
Povcrn, orfaua, zilolln,
ScDZii ciijiui nirii.-ili I —
Ma |H'r far la to vciuictta.
SIa ^igu^tl, vasta anrhc cila.
Ijtinuiil. fiincb. de Miolo.
IV
Itois dias depois da scena que descrevemos cm um
dos capítulos precedentes, Orso e Colomba despediam-
se de slr Thomaz Nevil e sua filha. \a hora supre-
ma da sep.^ração, o niancelio não poudo reprimir de
todo a paixão ardente que Ião secreta chorava no pei-
to. Approximando-se rapidamente da bella inglcza,
em quanto o coronel discutia com a irmã aexcellen-
cia das espingardas britannicas, Orso ousou pcgar-lhe
na mão, e entre um suspiro diier :
— " Miss Lidia, partindo da Córsega, lembrar-se-
ha dos amigos que deixou aqui.'"
Ella fitou-o com um sorriso. Nos olhos azues, tão
meigos e transparentes, atreveu-se Orso a lér uma
esperança. Diziam tanto calados !
— » É se por uma fresca madrugada sir Thomai c
eu apparecessemos ás portas do Castello encantado do
tenente delia Rebia ? •■>
— "Euma crueldade gracejar assim, senhora, re-
plicou omancelx). Vou ficar só — entre minha irmã,
que tem o coração de um homem, eos inimigos que
a voz do povo cobre do sangue de meu pai — uma
hora, um instante podem perder-me . . . e o anjo, que
me havia de salvar tão longe ! . . . «
— "Na falta doesse anjo, Tenente Orso, acudiu
ella meia seria, ouvi a razão e a honra militar. . . —
e dando alguns passos cortou uma llòr, accrescentan-
do em voz mais baixa e breve — guardai esta ro«a
por amor de mim. E uma memoria . . . r>
— " Ah ! miss Nevil, se me atrevesse \ . . .n
— " Oh 1 tenente Orso, se nos calássemos '....•'
E já se retirava quando, virando o rosto, viu o
mancebo esconder as faces entre as mãos, e descair e
cabeça sodre o peito . . . Não teve animo de o deixar
assim. Voltou atraz, e pouzando-lhe os dedos, tão sub-
tis que mal tocavam, no hombro, em tom de terna
reprehensão só murmurou :
— " Orso ! . . . ij
Elle \irou-se sobresaltado, eraostrou-lho. de certo
sem querer, os olhos roxos e pisados. Depois, por um
impulso superior á vontade, arrojou-sc-lhe de joelhos
aos pés sem proferir palavra.
— "Louco! proseguiu miss Lidia no mesmo foni,
e dando-lhe a mão para o levantar, ajunctou com si-
mulada alegria : (iue vergonha para um militar ! . . .
erguer-se pelo braço d-unia mulher !...'•
A verdade é que, dos dois, miss Lidi.-i não era a
menos commovida, mas venceu primeiro a sua per-
turbação, e com firmeza repetiu :
— "Orso, isto não se faz. Se meu pai viesse, se
nos visse ? . . . E de criança ! ^"amos, já que não ha
remédio ; promctto uma visita ao castello delia Ro-
bia, se até eu ir houver . . . juizo ..."
— " Oh ! miss Nevil, só ouv i-lo ..."
— "Este annel foi de minha mãi. Fica em penhor
da promessa ... se a má tentação da vingança cor>a
vier, lembre-se de quem liro deu ..."
— >■ Juro que dia c noite me fará pensar ..."
i Em que é uma scmsaboria exp<Jr-sc a morrer
na forca I E sobre tudo, que aflVonta para os manes
dos respeitáveis cabos seos antepassados I . . . m
Dizendo isto, largou-o, c correndo para o sitio on-
de já soava a. voz do coronel, gritou de longe :
— "Então, meu pai, haverá hoje perdão geral pa-
ra as" pobres aves .'..."
Ao roniber d*alva do seguinte dia, os dois filhos
da Córsega entravam nas gargantas dos montes, epor
sendas ásperas, fatigados e tristes amlKis, chesraram
ao limiar da casa que os viu nascer. Os moradores
Siiiram a receI>c-los, mas os seus festejos não desvane-
ciam o> prcsentinientos stimbrios, que moravam n"al-
ma d*uui e d"outro desde a saida de Ajacio.
ColomKi anuna seu irmão mais do qiie a ppopri.i
vida; mas, eilucada nas crenças supersticiosas da ilha
natal, julgava-o fadado por 1V"< para pedir a rigoro-
sa conta do sangue de <«^>i J>i»i aos Barricine. Segun-
do asiHi'ac d'ella e do todo o povo, era um dever sa-
grado; se um instante só [KHJessc duvidar de o vèr
cumprido por Orso, mulher e fraca, para salvar a sua
raça da deshonra, senlia-se com animo de o tentar.
o PAPÍORA3IA.
187
A vingança, entrando-lhe no âmago do coração, em-
laudecia os brandos alíectos que são a mab linda flor
da immarcessivel coroa da belleza.
E entretanto era bolla e sublime aquella virgem,
d'alvura do lyrio, quando pelo clarão crepuscular,
com uma rosa branca nas madeixas pretas, e um véu
demagua nos olhos negros, passava recolhida e silen-
ciosa a espargir o incenso das orações filiaes aos pés
da cruz, no mesmo sitio onde seu pai expirara aos
tiros da traição.
O amor filial, tomando-a ao sair da infância para
a idade viril, exacerbado pela dôr da orphandade,
tinha devorado todos os outros, que nascem e flore-
cem no peito da mulher. A primeira e única paixão
que até alli conhecera, era o religioso e sancto culto
ás cinzas d'aquelle, cujo braço e ineiTavel afiFecto
guiaram na vida os seus primeiros passos.
Pobre orpiiã I . . .
Pouco depois da chegada de Orso, o prefeito ten-
tou reconciliar as duas famílias ; mas este passo, cm
vez de trazer a paz, acccndeu novos ódios. Colomba,
na sua fé selvagem, lançou em rosto ao velho Barri-
cini a morte do coronel, e seu irmão, que a princi-
pio o reputava innocente, á vista do terror e da pal-
lidcz de repente impressos no semblante dos seus con-
trários, contra os próprios desejos sentiu que as sus-
peitas tomavam corpo, e quasi se convertiam em cer-
teza. Seguiu-se uma conferencia vehemente, e d'ella
saiu a guerra, mais violenta do que nunca.
- Colomba vendo o fogo atear-se, parecia mais tran-
qullla. D'ahi em diante toda a sua vigilância se re-
sumiu em impedir (jue seu irmão, como o coronel,
não fosse morrer do gol|)e covarde di- uma cilada.
Estavam n^este estado, «juando se recebeu uina
carta de miss Lidia. Escrevia a Columlja, partici-
pando-llie ijue no seguinte dia vinha buscar a hospi-
talidade corsa ao seu castello. De dentro caiu um
bilhete, que Orso leu com sofreguidão. Trazia ape-
nas vagas palavras (Pamizade com o conselho de ou-
vir só a voz (lu razão o da consciência.
A manhã r(jnipia serena. O nevoeiro, ondeado pe-
la briza, movia-se como um véu scinlillante, corti-
nando aqui os lopes (los nionles, além as boecas dos
vallcs, que ])or jneio d^ellas se torciam. A aragem
aguda, endjalsamada nos perfunies de uma vegeta-
ção robusia, rotempciava os sentidos espertando-os.
Mal o sol nascia, Orso, no fogoso cavallo (|ue fl^ra
de seu pai, hívando a clavina de dois canos dada por
8Ír Tiioniaz Nevil, niellia a bom gallopar direilo ao
encontro dos seus aiiigos ingh:zi's sem se quer escu-
tar asadverlencias de sua irmã, nem acceitar a com-
panhia lie alguns cli<'ntcs.
O ar, o nuivimenlo c o prazer abriani-lhe a alma
a reflexões alegres. Viu na imaginação os mais pic-
lurcscos recantos da ilha. Pouco a pouco as medita-
ções aéreas concenlraram-se n'um ponio único. Jul-
gou-se d(! repente ú sombra dos soutos velhos de sé-
culos deOrezza. I'"lòr(-s azues de purpúreas marcheta-
vam o verde-esmeralda das finas relvas. O azul das
flores uvivou-lhe assaliras dos olhos denii»> Jjidia, e
logo a uniu aos outros phantasmas (jue lhe fugiam
nu mente, J'^slava assentada ao seu lado. Liires do
chapéu as tranças louras, assedadas e llexiveis, <íram
ouro refulginilo ao sol em caprichosos anneis. A face
mimosa pouzava no» dedos rosados, eabocca, entr'a-
bcrlii a sorrir convidava por um sileni'io riíUexivo os
votos d^amor, quo balbuciava tremulo. As mesmas
roupas brancas, com «ju.- „ vira em Ajacio a ultima
vez, desenhavam o talln.' esbelto r. uu iiirmas delica-
da» entre as niil jiregas i|Ucí faziam. O pi-, .irijuiMilo
o breve, apparecriido fora do v<.'Slido, nnctrava-se
d'uma indolência deliciosa. Urso ardia tun anciã do
o beijar, mas a mão direita de miss Lidia não tinha
luva, e segurava um l^rio. Elle pegava-lhe, cobria-a
de ósculos, e, oh fortuna ! . . . não o repeÚiam.
Até onde chegariam estes sonhos ? ninguém sabe ;
porém no melhor d'elles o cavallo, estacando por um
sobresalto, acordou o cavalleiro, chamando-o do in-
finito das visões para a prosa ruim das realidades.
Uma criança estava defronte d'elle.
Era a fdha de um dos mais famosos salteadores
corsos, protegida de Colomba, e quasi creada em sua
casa.
Era o principio da aventura, que cm poucos ins-
tantes ia decidir da sua vida.
\ lAGElI Ás MIXAS DO PerÚ.
(Continuado de pag. 184. )
Ha dois methodos de apurar a prata ; se o metal é
diminuto faz-se por meio do mercúrio, se abundante
pela fusão do metal.
A estrada de Regia a Real dei ]\Ionte é muito
boa, e custou avultadas quantias á companhia inglc-
za, que teve de vencer no espaço de cinco léguas os
obstáculos de um paiz montanhoso. A uma légua de
Real entra-se no que chamam canAaJa, valle por
onde gira um riacho. Na extrema dVsta, pouco an-
tes de Real dei Monte, está a mina de IMoran : di-
zem que é farta -, porém a inundação cada vez em
mais augmento, fez suspender o trabalho até se com-
pletar a nova galeria subterrânea, para onde devem
despejar as aguas todas as minas da companhia.
Poucas terras ha na republica mexicana tão des-
providas de recursos para os viajantes como Real dei
Monte. Achei n'uuia pousada, como alli chamam,
um quarto de todo desguarnecido, com uma janella
em franquia ao vento norte, cjue soprava como pelo
iValal em nossas províncias septentrionaes. — E uma
villa |iequena em meio de serras, que não vive senão
do [jroducto da miner.ição, e tudo lhe vem de fora.
Não .s(? divisa casta alguma de cidlura nos arredores;
mas alli ])roduz aterra o mcMal que nos faz gozar do
trabalho alheio. — \'endo-se os grupos de montanhas
amontoadas de entranhas de prata, caus.im assombro
as immensas riquezas ireste j)aiz tão privilegiado pe-
la natureza. Segundo os cálculos do sábio lluniboldl,
novt? décimos da ])rala que existo tem sido extrahi-
da das minas do México : e conituílo o que são as
paragens se])aradas que at"'> «gora se tem explorado
cm com|)araçào i-oii> lodo o México que se pode re-
putar uma vasta mina !
A massa de prata exlrahida ilas minas do Ouana-
juato, S. Luiz de Potosi, Zacatecas, Sondirerele,
Heal de Catorcc, &,c., é um átomo em relação á
(jue ainda está enterrada no seio das montanhas que
cercam estes logares, o aos iiK^xgotaveis thcsouros de
Sonora o (."inalva, (.'hihuahua, Novo-Mexico, &c. —
Alli não somente abundam prata e oiiro no interior
da» serras, mas até os rios e as torrentes rarreiani
grande quantidade; «restes nu-taes preciosos, que mes-
mo nas areias se encontram. O ouro em pó é objecto
lie trafico entre os selvagens eos mexicanos habitan-
tes da fronteir.i do deserto ■, uq\ielles o vcem trocar
por armas, nuiniçõi's, e aguardente.
.Itend>ra-nie qui; projeclaiulo a minha \iaguui ao
MexiiMi fa/.ia ás vezes castellos no ar, bascadiw \ut
descobrimento de uma nuna di- ouro ou prat.i. Ali-
gurnva-se-nie o (pie provavelmente se alíjura a uiui-
liv f;riit<-, <|ue a(> isso bastaria para ler unia ri>|ueita
estrondosa. Porém, pudein vir ;io México ciuii a C(!r-
teza duusttchur sem muito custo cm |>iocurul-as : Ito
188
O PANORAMA.
milhares abandonadas e que estão á disposiçSo de
ijuem quizer explora-las. E não porque o metal d'e&-
sas minas esttja esgotado •, talvez que três quartas
partes d 'ellas encerrem copiosas riquezas. Mas é pre-
ciso que o acaso descubra ricos veios metallicos : até
o ponto cm que se acham as despezas da mineração
lorani dobradas, triplicadas e ainda mais do que o
producto que se colheu. As especulações era minas
suo verdadeiros jogos de parar ; por mil dos minei-
ros ha um que enriquece.
A companhia inglcza de Real dei Monte empre-
gou em doze a treze annos oito milhões de pezos du-
ros para explorar as que lhe pertencem ; cinco mi-
lhões se consumiram em pô-las em estado de se fazer
a exploração, em mandar vir excellentes machinas de
vapor, na construcção da estrada de Regia, &c. : os
outros trcs milhões indicam o excedente das despe-
zas diárias sobre o valor do metal convertido em bar-
ra. Tem-se gasto 3o:0(IO pezos por mez para o costeio
da exploração, quando a praia extrahida não tem
dado, até setembro de 1836, senão dez a vinte mil
pezos no mesmo espaço de tempo. Os veios que se
descobriram no dicto mez eram magníficos, promet-
tendo grande indemnisação á companhia pelos em-
pates anteriores.
As principaes minas de Real dei Monte são as de
Terrcros, S. Caetano, Moran, Sancta Thereza, Gua-
dalupe, Dolores, Sancta Izabel, Sancta Barbara, &.C.
— Desci á de S. Caetano, ás dez horas da manhã
com um empregado da administração, que me tinha
enroupado do mesmo modo que elle ia, isto é, com
caniiza e ceroulas <le ílanella, calça e jaqueta de pan-
no de linho, barreio á feição de solideo, e um cha-
péu de abas largas de feltro mui compacto, cuja uti-
lidade tu logo conheci nas galerias baixas e tortuo-
sas, todas erriçadas de escabrosidades traidoras : o
chapéu também serve para levar a luz no acto desu-
nir i>\i descer as escadas. A forma dVstas offerece
grandes riscos, porque não são mais do que uma se-
rie d"enlalhos feitos u'um tronco de arvore de seis a
sete pollegadas de diâmetro, os quaos se empastam
apouco e pouco com um barro viscoso, que se apega
ao calçado dos mineiros e faz a escada escorregadia.
Desgraçado do que põe mal o pé c não pode evitar
a queda abraçaiido-se furlemente com o tronco •, so-
rae-se no abvsmo, o cm cada angulo saliente, em cada
ponta de rocha lhe fica um pedaço de carne palpi-
tante . Taes são as do uso do paiz ; porém nas esca-
das de verga tli- dírro, adoptadas pelos inglezcs, não
é perigosa a descida, iii,: „em é difficil, posto que a
posição seja vertical. Em doze mimilos tinhamos
vencido sem fadiga a altura <le perlo de mil e du-
zentos pés. — Póde-sc também subir e descer pelo
malacaic, mas é muito mais perigoso. Chamam os
mineiros malacaic a um apparclho coUocado cm ci-
ma do poço ou bocca da mina, por meio do qual
içam o mineral cm saccos de couro: se cair uma pe-
dra e tombar um dos saccos, se o cavallete em que
ides assentado não estiver solidamente fixo na extre-
midade do cabo, ou se baterdes com violência dVn-
coiitro aos saccos que vão em direcção contraria, cor-
reis o risco de pavlir a calieça ou dar uma camba-
lhota até o fundo do poço.
Chegado ás iralerias, achoi-me no caso de admirar
a riqueza da veia: trouxe mineral, cxtrahido na mi-
ídia prcícnça, que nfio conlém menos de GO a 70
marcos de prata por lidha de 30 quintaos ; econsta-
ine cjue ainda se aliança mais. E^n geral, é preciso
que o munle ou lulha |)roduza doz a quinze marcos
de prata para i-ibrir asdcspczas. — As bct.is ou vici-
ros, que cu examim-i, acham-v em planos inclina-
ílos, formados por bandas de melai, separadas por
camadas de quartzo : são mais ou menos abundantes
e cruzam-se em todas as direcções, de sorte que ha
minas, exploradas ha muitos annos, cujas galerias
formam verdadeiros labyrinthos : a de Fresnillo, ao
pé de Zacatecas, é no interior como ura cortiço de
abelhas.
As galerias inferiores estão sempre innundadas, não
obstante as bombas •, é para remediar este inc-onve-
niente que se abre o canal d'escoamento ao nivel da
base da montanha. Em alguns si tios dava-nos a
agua por meio da perna, encontros, ainda mais por
cima; porém esta agua não causa impressão desagra-
dável; é morna. A temperatura do fundo actual das
minas conserva-se constantemente a 28 graus centí-
grados : o calor é mais intenso na Valenciana (em
Guanajato), mina a mais profunda do México.
Depois de haver percorrido com o meu guia du-
rante mais de três horas as minas da companhia que
se communicara, dei-lhe pressa para subirmos. Ne-
nhum prazer me causava a luz das lanternas de que
usam os mineiros, que me infundiam saudades da
claridade do sol, que eu deixara tão resplandecente,
vendo pouco a pouco amortecerem -se os seus raios á
proporção que me internava nas entranhas da terra.
Subimos pela mina de Terrcros. Se nenhuma fa-
diga tinha soffrido ao descer, não foi assim ao subir:
comtudo, cheguei a galgar os dois terços primeiros
do espaço sem muita difliculdade ; mas d"ahi para
diante faltava-me o fôlego, suífocava-me, estava meio
morto. Tinha de algum modo cessado a acção dos
músculos ■, era tão somente por uma contracção ner-
vosa que eu trepava as escadas, e duas vezes senti
\\m abatimento sinistro. O abvsmo estava ao meu
lado ; roçava-me pelo hombro a Ixjraba, que produ-
zia um som rouco com o seu movimento compassado.
Comtudo, posto que de vagar, seguia por diante ; a
final divisei a claridade do dia penetrando pelas gre-
tas da porta superior : senti-me reanimado, e em
breve pude respirar á vontade o ar agudo e puro da
montanha, e gozar do esplendor do sol, de que havia
pouco tantas saudades tivera. —
U.M AHNO ENTRE OS MORLACOS.
Ao CHEGAR a Trieste, ha trcs mczes, tomei para o
meu serviço um morlaco ; quando digo que me ser-
via, não me exprimo bem, entendo que cUc era o
amo e ou o servo. Com eíTeito, nunca so viu mais
severo e inflexível pedagogo do que aquelle velho : re-
provava austeramente os meus caprichos artisliccs, in-
quictava-se, como se fora pai, recolhendo-me eu tarde ;
mas, cmfini, tornava-se desculpável á força de affeí-
ção por aquella auctoridade que arrogara. Convcni
dizer que este homem, antes de me servir, adoecera
gravemente na visinhança da casa que eu habitava.
Constou-me que ao pó de mim havia um xolho mo-
ribundo e desíimparado de lodos ; como lambem me
intrometto na medicina, fui faicr-lhe um.v v isita. L ma
sangria o algum auxilio pecuniário proniplamente o
pozcram em convalescença. Achando-se curado. Pedro
quiz a lodo o custo sor meu criado. centalx>lou-se cm
casa j>or minha vonl.ido ousem ella. — IVxlro ropre-
hendia mais que tudo, no meu proceder, as rcl.iç5es
com os mestres do navios das ilhas Jonias que vinham
mercadejar a Triesfo. . E^sa gente ldi"a-mc) o um
I bando de tratantes efaquisl.is. Nio colheis d'eÍlc5 se-
. não rasgões na Ik)1s;> o no corpo. ••
Não iardou a r<-.ills;»r-se a prcdicção donicuvrlho,
' >Miisinclo-mo vivo arropondimento de i>."io haver es-
J culado os seus consollios. ISào eram doc»írridos mui-
' los dias. Ires d"aquelles homens das Jonias nicindu-
o PA?<ORA3IA.
i89
firam, depois de ceia, a jogar com clles. A sorte obs-
tinou-se em me fazer perder por tal modo que me
vieram á memoria as suspeitas de Pedro : — quebrei
os dados ; eram chumbadd^. Indignado e furioso de
cholera, lancei em rosto áquellcs vis aladroice Dei-
taram-se a mim, porém, defendendo-me animosa-
mente, cheguei aferir um d'elles. Pude-me escapar,
e recoíhi-me a casa todo ensanguentado, porque ti-
nha recebido duas feridas leves na cabeça : não hou-
ve remédio senão contar ao velho morlaco o que se
passara. — "Pelo nome de Deus! (exclamou elle)saí
já, meu amo, saí já de Trieste : — não sabeis com
que perigosa canalha estais mettido. \ ão armar-vos
ciladas, cercar-vos de emboscadas : to<los os meios lhes
servirão para se vingarem. ;'
Ria-me eu d'estes dictos quando entrou a minha
patroa toda assustada : — u Senhor, os capitães jonios
acabam de denunciar- vos á justiça ; declararam que
fostes apanhado em trapaça no jogo, eque assassinas-
tes um de seus camaradas. "
Fiquei abysmado com tamanha audácia.
— "A minha justificação será fácil ; arrancarei a
mascara a esses embusteiros. ?'
— "Toda a equipagem jonia está amotinada, eat-
tentam contra a vossa vida:, eterno que a justiça il-
lyrica, e a intervenção do vosso cônsul não possam
proteger-vos efficazmente n^este apuro. Se escapardes
ao punhal, não escapareis áscolumnias. Não sois co-
nhecido em Trieste, onde chegastes sem cartas de re-
commendação. Trinta testinninhas compradas attes-
tarão que roubastes ao jogo e matastes o parceiro :
ninguém vos defenderá, nem provará o contrario.
Ainda mesmo que triumpheis doeste aboniina\el en-
redo, podeis incorrer em muitas desgraças e n"um
longo captiveiro. Crêde-me ^ fugi até que se dissipe
a tormenta. "
— " Mas para onde fugirei ? . . . »
— n Para a minha terra, para os morlacos, " acu-
diu Pedro.
Levado pelo voliio, assombrado das sinistras pro-
phecias da hospedeira, parti de noite como crimino-
so, e eis-me entre os morlacos.
Este povo illyrico não só habita um limitado espa-
ço na margem septenlrional dogolpho adriático, mas
também .se acha na alfa Dalmácia. A palavra morla-
co vem das duas esclavonias maré ou inur, que si-
gnifica mar, e vhtch, c|uc significa italiano, como
<|ucra diz "italianos marilinios. »
A casfi do meu patr-lo, filho do velho Pedro, é hor-
rendamente negra-, aluiuiain-ii'a cnm achas de pinho
e de outros lenhos resinosos que deitam espessa fuma-
rada. A beira-mar as cabanas são de pedras-, e nas
mont.-mhas são miseráveis choças feitas de madeiros,
repartidas ao meio ; metade ])ara a gente, e outra
mi-t.-idc |>;ira o gado. — Poucos progrtí»sos tem feito
a industria entre este povo. Nas montanhas levam
uma vida puramente pastoril-, a agricidtina é nuiito
de»prez,ida, não perniiltindo o rigor do clima espe-
rança de outras colheitas <[ue não sejam centeio c
aveia. A triaijão de ijitdo em '^eral éde ovi^lhas e ca-
bras-, os montes ciicareos produ/em plantas enxutas
e aromáticas, que fazi'ni ser a carne do giido mais sa-
borosa e nutritiva. Onde ha maltas, apromptam ta-
buado, curvas de cavername, e outras madeiras ne-
cessárias p:ira n construcção das barcas, e as reinet-
tem par.i os poijueiios portos lia costa. — Na parle
chã do paiz culti\ai,i.v. milhos eoutros grãos-, com-
tudo, o amanho das vinlias, .. depois a pesca são as
oceupaeões priíu-ipacs dos habiljintes.
Assisti a uma (H-scaria de atuns. l'ara attiahir a
um ponto graii(l<'(|iiaul idade (Pestes peixes, collocam
a Jiouca distancia da praia escadas <le seis t)raç«s e
mais, dispostas de tal modoqne se levantara obliqua-
mente acima da superficie da agua : em cada uma
d'e5tas escadas está um homem com um sacco cheio
de pedras grossas, espiando a passagem dos atuns :
quando descobre algum, atira uma pedra de maneira
que o peixe espantado foge para o lado das redes. A
situação dos pescadores é mui critica : se a escada se
parte, caem na agua :, na verdade que todos são bons
nadadores, mas a costa n'esta5 paragens é tão erriça-
da de penedia a^uda que lhos pide succeder muito
mal. (Continiia.J
_ i!ííi{íl.S^:.;.í:'-Í!lil\^^
o ARCBITECTO DA BATALHA.
A OBU.v. mais estupenda do sumptuoso convento da
Batalha é sem contradicção a casa do capitulo. Diz
o L-hronista : — i. Sendo quadrada e tendo 340 pal-
mos em âmbito, a 8o por cada lanço.. <i fechada de
abobada decantaria, sem coluiimn, nem esteio, neiu
cousa que a sustente, »cni mais repuxo da liaada do
fora que a companhia do edifício que lhe fiixi nos la-
dos."— Euí uni dos ângulos d'csta casa se vè obus-
to acima copiado, que a tradição affirma representar
oarchitecto da Batalha ; masi-onio esta tabrica gran-
diosa na successão dos trabalho» não teve um só, o
dilVieil averiguar de qual seria imagem: o douto car-
deal Saraiva, na Memoria sobro as obras d"oslc mos-
teiro, inserta no vol. 10." da collecção in/o/ío da
Academia, escreveu que uera manilosto que não po-
dia ser dcMalh<'US Fonianiles como se tem assevera-
do sem ex,iiiie o sem fundamento. " Segundo a or-
dem lios tempos c da obra não pôde ser (<liz elle) se-
não de Aflonso Domingues ou de mestre Ouguct (ou
lliiet), visto serem aquelles debaixo de cuja direção
julgamos haver corriílo tod.i a obra primitiva. •>
De todos estes mestres são esi-assissiiiias as inenui-
rias ^ comtudo é certo que o primi-iro ^wc dirigiu a
luaravilluisa fabrica ireste mosteiío loi AlV.mso Do-
mingues, lie quem diz o ehronista-mór, l'V. Manuel
lios Sanctos, ora natural ile liisbo.i, d.v IVegueiia di
Magdali'iia, accrescentando que ó — ». merecedor de
eterna memoria pela c»[>acissimi» idéii coiii que diU
190
O PAIVORAMA.
neou a fabrica. ;' — Aflfonso Domingues é a persona-
(;em importante do romance — a Abobada, — que
com outros saídos da mesma penna deu celebridade
ao antigo Panorama. — O remate da casa do capita-
lo é o assumpto principal d*aquella formosa compo-
sição litteraria.
Agiotagem de Law.
A CASA d'cste celebre ijnanceiro, na rua Q-uincam-
poix, foi o theatro d'unia agiotagem desenfreada.
Parece que todos tinham perdido o juizo : Law via-
se importunado diariamente por pessoas de todas as
classes e de todos os sexos, que recorriam a toda a
casta de extratagemas para que elle lhes desse um
momento de audiência- Um dia que tinha ido jan-
tar com madame de Simianc, madame de Bouchu,
que mandara espreitar a que hora jantavam, passou
na sua carruagem por diante da casa e mandou ao
boleeiro e aos lacaios que gritassem fogo ! fogo I Le-
vantaram-se logo todos da mesa para saberem onde
pegara o fogo, e n^esse numero entrou Law. Assim
que madame de Bouchu o viu saltou da carroagem
para lhe fallar \ porém Law, que adivinhou a as-
túcia, esqui vou-se-lhe. Outra senhora fez que a le-
vassem n'uma carrossa até defronte da casa de Law
e que ahi lh'a tombassem. Bradou ao boleeiro: —
■í Tomba a carrossa, mariola, tomba-a I " Law acu-
diu era seu soccorro, ecUa então confessou-lhe haver
feito isto de propósito para poder ter uma entrevista
com elle.
A agiotagem, que estava pouco á larga na rua de
tiuincanipoix, mudou-se para a praça Vendoma :, al-
11, diz Duelos, se junctavam os mais vis patifes, cos
mais nobres senhores, todos reunidos e nivelados pe-
la avareza. Apenas se citavam na curte os nomes do
chanceller, dos marechaes de Villeroy c do Villars,
dos duques de Saint-Simon e de la Rochefoucauld,
<iue tinham escapado ao contagio . . . Ao chanceller
incommodava-o o tumulto da agiotagem na praça
^ endonia, onde eslava a chancellaria ; então o prín-
cipe de Carignan, que era mais ávido de dinheiro
do que escrupuloso acerca dos meios por que lhe vi-
nha, oITereceu o seu jialacio de Soissons, em cujo jar-
dim mandou construir uma quantidade de barraqui-
nhas, que alugava por quinhentas libras cada uma ao
mez : rendia ui-lhe todas quinhentas mil libras por
anno. Iara obrigar os agiotas a servirem-so d^ellas,
alcançou uma ordem regia, (jne, com o pretexto de
estabelecer a policia na agiotagem e prevenir a per-
da das carteiras, prohibiu que se fizesse qualquer
transacção lura das taes barracas.
As circumstaneias deram logar a muitos dictos en-
graçados. Um dos melhores foi a resposta que um
certo Turmenios, guarda do thesouro real, deu ao
duque de Bourbon, neto do grande Conde. Louvan-
do-se um dia este príncipe de ter muitas acções : —
« Senhor, lhe disse Turmcnies, duas acções de vosso
avô valem mais que todas estas. ?' — O duque riu-se
para se não vêr obrigado a agastar-se.
As acções do banco estabelecido na França por
João Law no tempo da regência do duque de Or-
leans, e convertido cm banco real em 171S. cliega-
ram a correr por vinte veres mais do seu valor.
N'elle se recebiam os rendimentos do reino; addi-
cionou-se-lhe uma companhia do IMissisipi, c deu-se- I
lhe o comraorcio do Senegal com o pri\ilegio da!
companhia i\:vs índia». Em 171!) valiam os seus bi- I
Ihetes oitenta vtids todo o dinheiro que podia circu-
lar na França, c como o governo p.igava as dividas :
cum estes papeis, ficaram desbaratadas as mais soli- '
das fortunas, e \iu-3e obrigado o escocez Law a aba-
lar da França no anno seguinte. Ha porém quem
affirme que foi honrado, porque deixou deappro>'ei-
tar-se deiramensas riquez&s que podia levar comsigo.
Reis de Ihglatebba aue fobam ArcTOREs.
HoBAcio Walpole, conde de Oxford, publicou em
1761 um livro mui curioso, em que vem a lista de
todos os príncipes e nobres da Liglaterra que foram
auctores. Paliaremos só dos príncipes.
"Nãoquiz, diz Walpole, subir além daconqubta,
posto que o nome respeitável de Alfredo me convi-
dasse com instancia para com elle ornar a minha
collecção ; mas em tal caso não saberia em que epo-
cha devera parar; ealém disso receei ter de me ha-
ver com outro Alfredo, rei de Xorthumberland, com
um Arvigarus, com a famosa Boadicea, e com o rei
Bladud, que descobriu as aguas de Bath e a arte de
voar. "
Maravilha achar á frente dos reis auctores o feroz
Ricardo Coração-de-leão. No fim do reinado de seu
pai, que elle perturbou com as suas rebelliões, dií-se
que viveu muito na corte dos principes de Proven-
ça, que aprendeu a sua Ungua e cultivou a sua poe-
sia, chamada então gaya sciencia, que era o modelo
da cultura do século XI. Walpole traz uma cantiga
em lingua romã que attribue a Ricardo : esta canti-
ga f<ji achada em Florença na bibliotheca Laurenti-
na. — Attribueni a Eduardo II um poema latino in-
titulado : Lamentação do glorioso rei Eíhrard dt
Camavan. composia na sua prisão. — Sabe-se que o
rei Henrique VIII publicou em seu nome uma refu-
tação das doutrinas lutheranas, com o titulo de: De-
feza dos sacramenios contra Luthcro, e que deveu a
esta obra o titulo de defensor da fé, que legou aos
seus successores. Aljuns historiadores pretendem que
o pai de Henrique VlII o destiiurra ao principio pa-
ra bispo de Cantorbery, eque d"aqui vinham os seus
conhecimentos theologicos. Attribuem-se também a
este peincipe outros dois livros, intitulados um d'el-
les : liducaçuo do Chrisião •, e o outro : Educarão da
Mocidade.
Aos nomes d'estcs reis seguc-se o da rainha Ca-
tharina Parr, sexta mulher de Henrique VIII; esta
princeza não só era douta, também era protectora
das lettras ; intercedeu pela universidade de Cam-
bridge quando quizeram destruir todos os ciiUegios
como iscados de papismo. Rotam d"ella algumas
obras, sem duvida de mínima im[xjrtancia, porque
AN alpole nem se dá ao traKilho de as mencionar.
As obras de Eduardo IN' tecm sido citadas por
muitos escriptores ; díz-se que compoz uma comedia
elegantíssima, com um titulo que o não é : scorlum
líabylonls ; estacomedi.i perdeu-se descraçadamente,
como a maior parte das peças d"aquelle tempo. —
Restam alguns livros devotos da rainha Maria: Eras-
mo diz que ella escrevia mui liem cartas latinas: a>
suas cartas francezas são pciadissímas e pubrisÃima».
O bispo Tanner lhe attribue uma historia da sua vi-
da e da sua moríe com itulividxiai^iio dos marlyres do
seu rcincuh. Como poudc ella compor a historia da
sua morte .'
A rainha Isabel foi verdadeiramente douta; tinha
cor.íagrado ao estudo o tempo da advc^idadc. i>to c,
os aiinos que precodoram a sua exaltação ao fhrono.
Esta mulher cstraonlinari.i tnduiia Euripidcs, Ho-
rácio, líocratr-., e commrut.iva Platão: respondia
imniedíatamenle com muita facilidade em grego e
cm latim ; escrevia cm verso e prosa ; e, o que não
é menos singular, compunha com mui fclLi successo
I
o PAISORAMA.
191
logogryphos e enigmas. — Um grosso in folio tem o
nome de Jacques I, e ninguém contestou a este rei
uma só palavra da Denvonologia ou do seu tractado
contra a tabaco : Acottnicrblad to labacco. Citações,
subtilezas, passagens da Escripfura, erudi<;ão arras-
tada, superstifjOes, vaidade, pedantismo, taes são os
ingredientes de que se compõem todas as obras de
S. M. , e que lhe mereceram o incenso d^alguns
theologos contemporâneos.
As oVjras de Carlos I foram colligidas depois da
sua morte, e publicadas em Haya com este titulo :
Reliqui<E sacra Carolincz, ou obrai tanto civis como
sagradas do grande monarclia c glorioso martyr el-
rei Carlos I. Entre estas obras, de que algumas são
evidentemente apocryphas, acha-se uma traducção
das lições do bispo Saunderson sobre a Obrigarão do
juramento promissório. — Carlos II, o único homem
de talento da familia dos Stuarls, não foi auctor. —
Seu irmão Jacques escreveu memorias da sua fida e
das suas campanhas até a restaurarão. 'l'aiiibem lia
d^elle urna collecção de meditações, solilóquios, vo-
tos, &c. Um doestes volos é levantar-sc todos osdias
ás sete horas da manhã. Esta collecção, que dizem
ter sido composta por Jacques II em S. Germano, é
escripta cm máu inglez, foi publicada cm l'arís pe-
lo padre Bretonneau, jesuíta. O frontispício repre-
senta o rei sentado n'uma poltrona, com ar pensati-
vo e uma coroa de espinhos na cabeça.
Aqui acaba no livro de W alpole a lista dos reis
auctores.
Ceuemontal da cóhte bvzantina.
Ijuitpbando, bispo de Cremona, que nasceu no co-
meço do X scculo, dcixou-nos unia relação bem cu-
riosa de muitas embaixadas em <|ue elle foi á corte
dos imperadores gregos. As p.irticulMrid;i(les seguin-
tes, extrahidas da sua narração, j)odcrão dar uma
idéa do ceremonial seguido na corte byzaniina.
A primeira embaixada de Luil|)ran(lo foi em 948.
No dia em que se a|)resi'nlou ao inqx-rador Cons-
tantino VII levaram-no á sala da audiência ás cos-
ias de dois (íscravos. Otliroiio, rpie era muito largo,
tinha, á maneira de braços, dois Icõí^s de ouro, d(!
grandeza natural, cujosolhosse moviam. — Km fren-
te do Ihrono estava uma arvore d(! cobre dourado, e
nos seus rumos pousavam diversos pássaros do mesmo
metal, cantando cada um d'elles como os da sua es-
pécie, liiiando Luitprando se chegou ao throno em
que eslava sentado o imperador, vestido de galas ri-
quíssimas, começaram os leões a rugir e os pássaros
a <hili('ar. Obrigaram-n^o, caosofficiaes cpieoacom-
panhavam, a fazer uma zumbaia e a pr<;»lrar-so aos
pi-s do Ihrotioi por três vezes tocou com afronte no
ehão. (iual foi o seu espanto quando, ao erguer a ca-
beça, nada mais viu diante de si e enxergou o impe-
rador, cjue nuulára de trajo, içailo, mais o seu thro-
no, )ior meio d'uma3 molas escondidas, até o teclo
dn sala. N'esla distancia era inqxissivcl conversarem
osdois interlocutores ^ por issoo (■mi)ai.\ador teve lo-
go de Be retirar, tendo apenas diclo algumas pala-
vras uo cliaucellcr do impciio.
Dias depois d\sla prime^iia enirevisla nuida, cha-
mou o imp(!ra<lor a ljiul|iran(lo, eonviTsou com clh',
o o i)oz á sua mesa muitas vizes, i-nlre oulras dia de
Nalal. O bioi(|Ucle fui dado n'u]na sala espaçosa e
inagnifici, onde .irjuaram leitos; porque osconvida-
dos comiam deilacios, aovisii auligo, Aoíbsserl trou-
xeram fruelas em Ires grandes v.mns de ouro pesa-
ilissimos em cinui de padioliis, e pr(^ud(M'ani nas nzas
d'eslcs vasos uns ganchos, lamlieni de oui'o, jvlados em
cordas douradas que caíam daaliobada. l'or cima do
tecto do palácio havia uma machina que fez descer
devagarinho os vasos até pousarem na meza. Em
quanto durou o banquete fizeram os truães habilida-
des e exercícios de forças na presença dos convidados.
Houve um moço que conservou equilibrado na testa
um pique de vinte c quatro pés de comprimento, a-
travessado na extremidade por uma barra de dois co-
rados.
Luitprando assistiu, além d''isso, a uma distribui-
ção de presentes que se fez pelos ofliciaes da corte.
Cobriram uma larga e comprida meza de caixas cheias
de moedas de prata, com rótulos que indicavam as
sommas n'ellas contidas. O imperador tomou a ca-
beceira da meza, e um official foi chamando succes-
sivamente as pessoas para quem eram os presentes.
O primeiro que chamaram foi o grão mestre do pa-
lácio. l'ozeram-lhe não nas mãos mas aos hombros a
caixa que lhe eslava destinada, com quatro mantos
que cobriam o corpo todo, e de que os guerreiros usa-
vam então em tempo de chuva. Seguiram-se o grão
domestico, que comraandava as tropas de terra, e o
grão almirante. Receberam o mesmo presente por
serem lodos três iguaes em dignidade. Depois d"elle
entraram vinte e quatro mestres, que receberam ca-
da um dVdles vinte e quatro libras de ouro e dois
mantos. A estes succederam os patrícios, aos quaes
deram doze libras de ouro e um só manto. Seguiram-
n'os os escudeiros eofficíaes subalternos que marcha-
ram enfileirados e receberam um presente pro|)orcio-
nado ao seu grau. Esta extravagante eeremonia foi
abolida no século seguinte, no tempo de Constantino
Monomaco, que rciuou de 1002 a lOoG.
(Auem <juiz('r formar uma idéa da minuciosa e ri-
dícula etiqueta que reinava na còrlc byzantina tem
de vêr a obra escripta a respeito d'esta nação pelo
imperador Constantino 1'orpliyrogueneto, exaltado
ao throno em 911.
O imperador quasi que não saía a pul)lico senão
cm certas festas marcailas no kaleiídario grego : os
arautos annunciavam na véspera este granile succes-
so. Limpavam as ruas e as juncavam de llòres ; ex-
punham ás jaiiellas e varandas moveis preciosos, bai-
xellas de ouro e prata, e tapetes de seda-, poetas e
músicos assalariados cantavam por toda a cidade os
louvores do imperador :, e para recordar o quanto eram
extensos os seus domiiiios, havia mercenários que os
repeliam, segundo Codiuus, em latim e na língua
dos ^odos, dos persas, dos francos, e até dos inglezes.
So o imperador tinha o direito de usar de borze-
guins de purpura e da tiara, que os gregos tinham
tomado dos reis persas :, este diadema consistia n'um
gr.indc barrete piramidal de fazenda de lã ou seda,
quasi lodo elle escondido debaixo <rum montão de
pérolas e iliamantes-, um circulo horisontal e dois ar-
cos de ouro perpendiculari'S ao circulo formavam a
corrta, que rematava ii'um globo ou cruz com dois
cordões de pérolas <pie caíam sobre; as faces do prín-
cipe.
Século e meio depois da embaixada de Luitpran-
do, a arrogância e orgulho dos gregos soiVreu muito
i|uando os cruzados chegaram em chusma aos muros
de Conslantinopola para passarem á l'aleslina. A po-
der dl! astúcia e ardis souIm; o imperador Aleixo Com-
neno livrar os seus estados tios piMÍgos com «pie os
ameaçava a passagem di- exércitos Ião numerosos, e
até conseguir dos principacs clii'lés ilos líaiicos i|Ue
lhe rcn<lessem homenagiMU. Nem lodos, comlodo, se
Hiijcitaram a isso, e eia-ai|ui o qui' ri^fere a illh.i do
imperador, Aiuiii Coinnena, mi vida de ■'CU pai : —
..Como os francos eslavam lodos rcuniilos e acaba-
\ani de prestar o jurainenlo, houve uni conde que
levou u ousadia .ile sentar-se no throno: o iiin)erii-
192
O PAjNORA3IA.
dor, f(ue conhecia aaltivczu dos latino!, ficou calado,
quando Balduíno (conde de Flandres) se chegou, c
disse ao conde franco puxando-o pela mão : Não vos
convém sentar-vos n'este logar. O insolente conde
nada respondeu a Balduíno, porém disse em língua
barbara : Ora esteja só este villão ruim assentado
quando tantos grosseiros se acham de pé ! Aleixo rjue
lhe viu bolir os beiços, chamou o seu interprete pa-
ra lhe perguntar o que o franco dissera, e depois que
o soube não se queixou d'Í5S0. Não lhe esqueceu, to-
davia, e quando os condes se foram despedir do im-
perador, este fez demorar ao pé de si o orgulhoso ca-
valleiro, e pcrguntou-lhe quem era. Sou franco, res-
pondeu clle, <la mais alta e antiga nobreza ; só sei
uma cousa, éque na minha terra ha uma igreja edi-
ficada n^uma encruzilhada, onde vão os que desejam
assi"-nalar o seu valor na li;;a, e onde se encommen-
dam a Deus em quanto não apparece competidor ;
muito tempo me demorei aqui sem que ninguém se
atrevesse a combater comigo. — Aleixo não esteve
para acceitar esta espécie de desafio. "
Esto altivo conde acabou na batalha de Dorvlea ;
e segundo Ducange, era Roberto conde de Paris :
Walter Scott fez dVlle o heroe d' um dos seus ro-
mances.
ESCHOLA UE BRAVURA TARA MENINAS
EM Londres.
Auiiif-sE iia um anuo iio instituto de Sommer:!et-
House, em Londres, uma eschola de gravura em ma-
deira, para meninas. Esta fundação parece ligada a
um plano geral concebido para beneficiar as mulhe-
res sem bens da fortuna. Persuadidos de que a misé-
ria e a ociosidade, voluntária ou forçada, ainda acar-
retam apoz si mais padecimentos o perigos para as é
mulheres do que para os homens:, persuadidos de que
os vicios das mulheres são mais funestos á sociedade
que os dos homens; querem os fundadores proporcio-
nar ás mulheres o trabalho por niiMo de instituições
gratuitas, onde se lhes ensinarão certos misteres que
convém ao seu sexo.
E incontestável «jue as mulheres, entregues aos
próprios recursos, não podem competir no trabalho
com os homens. Con\iria reservar exclusivamente
para ellas certos ramos d^artc ou d'industria •, mas
os princípios de liberdade não o consentem, o só por
meios indirectos se pôde chegar a este resultado útil
e moral. O beneficio dos institutos análogos ao que
acaba de ser creado em Sonimerset-House consistirá
em igualar em aptidão, quanto for possível, os dois
sexos, tornando mais fácil e xnenos dispendioso o tv-
rocinio ás mulheres. Os homens, ainda assim, lhes
levarão muitas vantagens, em razão da superioridade
da sua força, e do maior numero de artes que podem
exercer.
Modo de destkiir as traças.
Atraca, íí»uií (em francez leigne) éum insecto da
ordem dos lepidopteros, família dos nocturnos, tribu
das tineitas. t>s .«cus caracteres são ; anteniias seta-
ceas, simples ou quando muito ciliadas, apartadas;
aias liniares enroladas á roda do corpo, tromba cur-
tíssima ou nulla ; dois palpos i-vlindricos, curtia, e
pelludok ■, um toi)ete de escamas na fronte. Bem sa-
bidos são os estragos que os insectos a que se dá este
nome fazem no seu primeiro est.ido, isto é no de la-
gartas, i.ão no inverno, porque se conservam na in-
Hc^Sq fechadas cn» seus casulos, «[uo muitas vetes
prendem pelas duas pontas nas fazendas que teem
roido, ou penduram nos cantos das paredes ou nos
tectos. No principio da primavera, porém, transfor-
mam-se em nymphas o assim se conservam perto de
vinte dias, ao cabo dos quaes sáe o insecto perfeito
do seu abrigo, e vôa para ter o coito. Depois da co-
pula, que dura sete ou oito horas, vai a fêmea em
busca de fazendas onde deposite os ovos, e morre aca-
bada a postura. As iagartinhas saem cousa de quinze
dias depois d'ella.
Réaumur buscou os meios de nos livrar d'e5tes in-
sectos damninhos^ e de evitar os seus estragos. No
fim de muitos ensaios baldados chegou a descobrir
que o óleo de therebentina, o espirito de vinho, e o
tabaco são outros tantos venenos para estas lagartas.
Como a primeira das drogas apontadas é a que obra
com mais promptidão e certeza, póde-se esfregar com
ella as fazendas que se querem livrar das traças sem
medo de as estragar, porque este óleo não põe nó-
doas, ou, quando não, ensopar no mesmo óleo pedaços
de j)aimo ou de papel, que se fecharão nos armários
em que se guardam os moveis ou os vestidos ; dentro
em pouco tempo morrerão as lagartas cm convulsões.
Mas como o cheiro d'este óleo é muito forte e repu-
gnante, e além disse as fazendas que teem ouro e
prata e as de cores mimosas poderiam soflrer avaria.
convirá, em tal caso, usar do fumo de tabaco. Para
defumar as fazendas encerram-se n"um lo;ar fecha-
do : se for n'um armário mette-se-lhe dentro um fo-
gareiro com brazas, deita-se-lhe o tabaco por cima e
fecha-se o armário; se for u"um quarto fechara-sc as
jancUas, arrumando-se as fazendas de modo que o
fumo lhes entre por todos os lados. O espirito de vi-
nho mata as lagartas com tanta promptidão como o
óleo de therebentina ; porém com se eva^ra facil-
mente, importa que as fazendas estejam encerradas
em arcas, &.c. , muito bem tapadas ; aliás faz pouco
efleito.
Réaumur indica um quarto meio, o qual consiste
em esfregar os moveis com uma pelle de carneiro
gordo, ou pò-la a ferver, molhar brochas na agua
em que ti\er fervido, e esfregar os moveis. Tendo o
nosso auctor encerrado lagartas de traças cora peda-
ços de pauno a que tinha feito esta operação, ellas
não lhe tocaram, cantes quizerani comer os seus ca-
sulos pela parte de fora. Por este mcfhodo se podem
matar as traças em todas as estações ; comtudo a
mais favorável é o fim do estio. jx)rque então já to-
das as lagartas teem nascido. Conheço uma planta
mui commum no mcío-dia. o rrigontim <;i-ni-fo/<-ns,
que poderia, talvez, por causa do seu cheiro summa-
mente desagradável, produzir boníssimo effeito nos
armários em que mettesscm um punhado d'olla. O
cebo parece que tamliem afujenta estes insectos.
Extrahimos este artigo do tomo :;3."do -Vomraii
Dictionnairc (/ * //ísíoíic Htilurcllf appliqiuc auxarts.
Piírís 1818, e exj>erímenfamos a acção da agua rai
sobre traças apanhadas cm estantes de livTos ; ella é
prompta eefticacíssíma. Quem quirer verificar o fac-
to metta as traças debaixo de pequenos copos de vi-
dro borrifados com a essência de therebentina ou
Com agua rai, e verá que lojo camcçam a andar a
roda u maneira de ventoinhas, e que ao estado de
agitação >iolcnta succede era breve a immobílidade
da morte.
.\ CALCMNIA mata trcshomens: o calumniado, oca-
lumni;idor e o que ouve.
QcK.M aprende sem ensinar semelha aomvrlo node-
serto : ninguém gosa d'elle.
Kxtrahidas do Taltwttl.
25
o PAKORA3IA.
193
AVZNHÃO.
AviNnÃo é uma cidailc biiigulur, que lein conserva-
do cjiiasi inteçralnieiito o sou aspecto nu idade me-
dia-, as muralhas que ainda lhe restam parece fjue
não existem senão para protcgc-la de uma surpreza
da civilisajão moderna \ nas suas ruas tortuosas a
cada passo so encontram nichos com imaj;ens nos ân-
gulos das casas •, sombrios palácios fendaes ahrem de
tempo a tempo as pezadas porias para dar saída á
sege do algum cavalleirole melancholico. Nos bairros
que não são animados jicla industria, cresce lierva
pelas calcadas. K a terra dos penitentes, das confra-
rias, dos ascéticos, das ceremonias religiosas, tudo
grave e austero na exterioridade. Nos dias festivos
quebra-se o usual silencio com uma i)ulha de sinos,
que faz ensurdecer. Não ha cm toda a Franca terra
na apparencia mais devota. l'or aquelle estrondo de
campanários faiilnicnt<: se recoidicce a antiga capi-
tal dos pajias, quando o scisina fez (pu' iiouvesse a
um tempo dois |)ohlil"ic(!>. A séch; poiíliluia esteve
em Avinhão por G8 .inuos desde ( 'hunciitc V, que
<js nossos leitores coidicccm pelo» artigos acerca dos
liMnplarios, atii (Jregorio XI, isto é, dc^sde 1;105) até
I.'Í77. Ainda os esforc;os do tempo e do áspero inls-
liiil, \enlo assola<lor, particular á 1'rovcnca e uo
|janguedo<-, não poderani destruir o]>alacio torreado
que manilou cdilicar o papa João Wll ; o tumulo
gothico (Tiste acha m- hoje em luiio ilas ruinas do
templo de Ao.vvíi Si II III» it ilis Dinis, onde entre ou-
tras curiosidades se unta uma capclla il.i S.iiicla \ ir-
geu), cercada de soberbas peidas de arcbilcctura (|ue
("rmam |>,iineis em relevo-, a abobada d'e!ila ca|>ellu
\'oi.. 1, — Kkvkukiko 27, 18t7.
serviu de modelo á do Pantheon de Paris. No njcio
dVsta cidade numacal é fácil decomprehender o ter-
ror de um viajante do qual se conta que, levado a
casa doniaiVe para se examinarem os seus papeis por
causa de suspeitas, perguntou aftlicto se os gendar-
mes o conduziam aos calabouços da inquisição.
lia comtudo outra parte da cidade, na qual pare-
ce \iver-se sob o dominio do outras prcoccupações :
vêem-se por toda a parte botcípiins, lojas e casas á
moderna, n'uma palavra a vivacidade e movimento
da eivilisação. Ciccroni esfarrapados vos perseguirão
para ir uu)strar a casa em (pie morou Laura, tão ce-
lebrada pelo 1'etrarcha, ou a famosa fonte de Vau-
cluse, (|ue dista cinco ou seis léguas, onde parece que
rctiunbam os echos das canções (raiiuellc poeta cele-
bre. Nos bairros (Pesta parte da cidade ruas mais
largas o mais arejadas que na outra são hal>itadak
por negociantes ricos, porqu»' ha aiinos <pie uma lem-
íirança ministerial fez di- Avii\hão unui das cidades
mais louinierciantes do reino, em razão das suas vasta*
tinturarias; alii tingem as calças para todo oexercilo
francez : a granza ou ruiva deu-lhe \iila e rii|ueza«.
(.) earactir do provençal de Avinhão pódc dividir-
se em duas parti's liem ilisliuctas como a cidade que
habita : uma pertence á industria, aos institU'tos da
eivilisação cousiilerad.i em relação ;i politica ; outra,
talvez a n\ais curiosa, representa aiullueuiia ile pas-
sado histórico egeographico. Ali'Ui de(|ue, cslagran-
ile ili\isão moral não «• mais que a lucta entre o pre-
sente e o passado, que se oliserva a cada pusso e >ol>
mil iJrinus dilVercnles cm ti>da a Provença,
194
O PANORAMA.
Apesar do grande numero de mulheres bonitas,
apesar da passagem frequente de todas as diligencias
do sul, e não obstante o movimento de muitas fabri-
cas, Avinhão é uma cidade triste. Tara espraiar os
olhos c o coração é necessário passear nos arredores :
pelas margens do Rhódano e do Durance se appre-
sentani prados viçosos, dilatadas cearas, e ricos po-
mares ; o clima é benigno c o torrão fecundo.
CoLOMBA.
Romance da Corsaju.
Poveríi, orfana, zitella,
Seoza cugini carnali ! —
Ma per far la to vcií<letl:i.
Sta siguru, vasta anche cila.
Ldtimtnt. funeh. de Niolo.
A RAPARIGA, depois de olhar fita alguns minutos
para delia Rebia, disse :
— "Onde vai, Orso Anton' ! O seu inimigo está
perto, não sabe ? "
— "Glual inimigo? (jue é d^elle?"
— " Orlanduccio espera-o. Volto, volteja.)'
Orlanduccio era o filho mais velho do velho advo-
gado Barrieini.
— '1 Está bom . Por (juo lado foi ? >'
— " 1'elo mesmo por onde vai Orso Anton". '•
— 11 Obrigado ! . . . Adeus 1 »
Jli chegando as esporas ao cavallo, correu ligeiía-
mento para o sitio que a rapariga indicara.
A paisagem, no principio, tirava atóaidéade uma
emboscada. Era chão nú, unido, sem moitas nem
balsciras. Blas logo adiante desenrolavam-se campi-
nas viçosas de cultura, tapumes de sebes, e castanhei-
ros colossaos, plantados irregularmente. O caminho
aqui trepa\a em ladeira empinada. Orso apcou-se,
deitou as rédeas sobre o pescoço do cavallo, c come-
çava a subir, quando, a vinte passos d^uma sebe, k
direita, viu scinlillar de repente o cano d^uma espin-
garda apontada para elle, (?apparccer alraz uma ca-
neca quasi renie com a aresta do muro. A clavina
abaixou-se, e Orso conheceu Orlanduccio com o de-
do no gatilho. Delia Rebia n\im iiislantc se póz em
aeicza, e ambos, eoin as armas em ])ontaria e a mão
pronipla a desfechar, cruzaram a vista acccsa de rai-
va entre pungente comnioção, <jue estremece o cora-
ção do mais valente na hora suprema do perigo. "
"Covaiile! ...» gritava Orso. Ainda não aca-
bara, já a ihamma tinha fiizilailo do cano da espin-
garda de Orlanduccio. Ao mesmo tein])u partiu ou-
tro liro da esquerda, da parte opposta, disparado por
homem (jue não apercebera encol)crto com um pare-
dão. Ambas as balas acertaram. A de Orlanduccio
passou-llie o braço esquerdo, descoberto no apontar.
A outra bateu no peito, (|ueimou o falo, o por feli-
cidade achatou encontrando o ferrodo cstilclc, fazen-
do só uma leve contusão. O braço ferido descaiu frou-
xo sobro a perna, e a espingarda dois ou três segun-
dos se inclinou desamparada. IMas, invocando toda a
energia, Orso, segura a arma só na mão direita, dcs-
feciíou sobre Orlanduccio. Acara d'cste, aonde só os
olho» se divisavam, sumiii-se immediataiuente. \"i-
rando depois á esipierda, delia Ucbia disparou o ou-
tro tiro n"uni homem, ainda rodeado de fumo, que
mal SC distinguia. E>ta segunda figura lambem dcs-
apparecou. As quatro detonações reboaram com in-
crivcl rapidez ; e á ultima o mais profundo silencio
reinou nas solidões circumvisinhas. O fumo subia
lento ao céu, em quanto detraz dos muros nem se ou-
via ruido ou signal que demonstrasse vida. Se nSo
tivesse a dòr do braço, para lh'o lembrar, Orso diria
que eram phantasmas aquelles sobre que tinha desfe-
chado.
E o padecimento crescia. Receiando novo ataque
de inimigos cobertos com as sebes, delia Rebia bus-
cou o abrigo d'um muro, pôz no chão o joelho direi-
to, edeseançando no outro o braço ferido, approvei-
tou o esgalho d"uma arvore meia queimada para pou-
sar a ajraa. Assim ficou immovel com o dedo no ga-
tilho, os olhos cravados nas sebes, e o ouvido afiado
á escuta, alguns minutos que se lhe affiguraram sé-
culos. Erafim de longe soou um grito, e logo depois
um cão, descendo o morro com a velocidade dasetta,
parou defronte d' elle alTagando-o com mostras d*ale-
gria. Era Brosco, o lebréu dos salteadores, que lhe
vinha annunciar achegada do terrível Brando, o pai
da rapariga creada por Colomba. Com effeito elle
não se demorou em sair d'entre um cerrado de ar-
bustos.
— 41 Aqui I sou eu. Brando! >' exclamou o tenente.
— 11 Está ferido, Orso Anton' ? , perguntou o ban-
dido ainda suffocado da carreira. E no corpo.'-'
— "Não. E no braço."
— « Ah ! não é nada então . E o outro ' '•
— "Creio que lhe acertei.»
Brandolaccio, seguindo o cão, foi á primeira sebe,
e deliruçou-se para olhar para dentro. Apenas olhou,
tirando o barrete, exclamou :
— "Boas tardes, Sr. Orlanduccio! — E voltando
para Orso com outra cortezia : — aqui está um ho-
mem que não se ha de queixar — isto chania-se fa-
zer as cousas com aceio. "
— "Ainda vive?" perguntou delia Rebia comso-
bresalto.
— " Nada I D'cssa o livrou a baila que lhe furou
o olho . . . mas vamos ver mais. Oh lá ! . . . e esta ?
Dois coelhos da mesma pancada I .j. . bem se vê que
está cara a pólvora, j'
— "Mas o que é?»
— (. E . . . o di.ibo. Que bonita noite terá hoje o
velho Barrieini . . . ambos mortos ! '•
1 l'ois Nicentello também ? . . . "
— "Também. E morto deveras como o senhor sou
mano Orlanduccio. Ficou de joelhos, a rezar. . . Sa-
fai dois tiros doestes ! Nunca mais pego em clavina. "
E rasgando-lhe a manga da sobrecasaca com o pu-
nhal, Brandolaccio principiou acurar Orso. Nomeio.
lc\antando a cabeça e no tom mais natural do mun-
do perguntou :
— "E agora para onde \ai Orso Anton' f "
— .1 Para onde hei de eu ir. Brando ' "
— "Ou para o matto ou para a cadeia. Ora como
um delia Rebia não vai nunca á cadeia, seguc-sc que
fogo para o matto . . . Sabe que mais? de lonje, quan-
do ouvi pim ! pim ! disse comigo : adeus ; l.i se foi o
tenente com mil ilemonios 1 mas d"ahi a nada rcfine-
me ás orelhas botim! botim! Ah! então é outro ca-
so— como ladra a cadella inglcia sempre quero s>-
ber em que altura estamos. . ,"
— .1 Ellos ó que atiraram primeiro. <•
— " E verdade. Conheci j>eU) calibre da arma . .
Naiiios lá ; antes de partir, Orso Anlon", dei(e-ine
sempre os olhos ú sua obra . . . veja-iiie os dois . . .
dialx) ! "
DoUa Rebia, sem rcsjvjiider, cravou as esporas no
cavallo — toilos os thcsouros do mundo não o resolve-
riam a pO^r a vista nos infeliies a quem roubiira a
vida.
o PANORA3IA.
195
Brandolaccio também se fingia mais forte do que
na realidade estava. No fim não se poude conter e
desabafou :
— II Orso Anton', disse elle pegando-lhe na rédea,
quer que lhe diga o que sinto? Tenho dijd'cstes po-
lires rapazes. Perdoe. Kram tão moços, tão bellos que
faz pena, coitados ! E verdade que sua alma sua
palma, mas, emfim, custa, não o nego ! Orlanduc-
cio ainda não ha quatro dias que me deu um maço
de cigarros c caçou comigo a manhã inteira. E Vi-
centello, tão alegre sempre ! ? . . . Levaram a paga que
mereciam. Sempre foi um tiro de mestre'. . . . mas
apesar d''is50 . . . emfim, paciência ! Que se lhe ha
de fazer. "
E com esta oração fúnebre, guiando Orso, e pro-
cedido pelo seu cão Brusco, Brando principiou a sua
jornada para o matto.
Dos MEIOS aVE os HOMENS TÊEM JULOADO PRO-
PniOS PARA SE LIVRAREM DOS RAIOS.
A LiTTERATiHA grega nos iniciou completamente
nas idéas dos antigos philosophos acerca da causa do
raio ; porém mui summaria e imperfeitamente nos
indicou dois ou trcs meios preservativos. Uefere He-
ródoto no liv. 4.", cap. 98, ([ue os thracios costu-
mam, quando ha relâmpagos ou trovões, disparar set-
tas contra o céu j)ar."i o ameaçar.
Note-se Ijem qu<í o auctor grego diz para o amea-
çar. N'esta passagem nem se allude a que a solta, por
ser de metal e t(!r ponta, poderia roubar ás iiuvímis
algumas parcellas de matéria fulminante-, por isso o
próprio IJutens, esse admirador fanático da antigui-
dade, receiou assemelhar as flechas dos thracios aos
guarda-raios modernos, e subir com a invenção do
apparelho do Franklin até os tempos de Heródoto.
l'linio conta que os clruscos sabiam obrigar o raio
a descer do céu, e dar-lhe a direcção que lhes pare-
cia, o que uma vez o fizeram cair sobre um monstro
chamado Volta, que devastava os arredores de Vol-
sinia ; (|ue Numa tamiiem sabia este segredo, que
'l'ullo Jlostilio, por ser ])ouco exacto observante das
coremonias inslilui<l.is jk^Io seu predí^ccssor, desafiou
o raio por que fui lulminado. (luanto ao meio de
evocar o meteoro, flinio só falia em sacrilieios, ora-
ções, &e. •, podemos por tanto passar agora a outro ob-
jecto.
Criam os antigos (Plinio liv. 2."^. UO) ((UíMiraio
nunca entrava mais de cinco |)és pela terra dentro.
l)'a<jui vinha ri.'pularem elles asylos seguríssimos a
maior parlií das cavernas ;, d'aqui vem que assim que
se |)odia |)rever alguma trovoada, s(.' retirava Augus-
to, segundo dizSuiítonio, par.i iiiii lugar baixo e abo-
badado.
Os tul)o9 vidrosos, produzidos pelo raiei, ipu! íis ve-
zes descem a ipiarenla e seis palmos a cimlar da su-
perfície lia terra, moslram quanto os aiitig<is se en-
ganavam. Ninguém sabe, ninguém pud<> dizer, mes-
mo hoje, em (pie [irofundidade se? escaparia com cer-
teza dos raieis descendentes, e com mais liirte razão
dii» raios ascendentes.
]'ara augnienlarem a garantia resultante da gros-
sura da alvenaria, cantaria ou terra qiiií cobre um
snblernineo ou uma caverna natural, fazem os impe-
radores do ilapào, aiiar-se credito ao(|nc ilizKuMup-
fer, construir um reservatório d'agua por cima da
gruta onde se n^fugiam ipiando troveja; a agua tem
pcir fim a[iagar o fogo do raio.
I''m eiTtas condições um lençol d^igua livra, com
lima qnasi certeza, (|iianto lhe fica pur liai\o; mus
não se conclua d'isto que os peixes não podem ser
fulminados no seio das maiores massas d"agua.
VVeichard Valvassor nos da noticia fPhilosophical
(Transacíions, tom. 16.") de ter caído um raio, no
anno do 1G70, sobre o lago Zirkmitz i na paragem
chamada Leuche viu-se logo boiar uma tal quanti-
dade de peixes, que os habitantes encheram vinte e
oito carros de taipaes.
Em 2i de setembro de 1772 caiu um raio em Be-
sançon no Doubs. Pouco depois a superfície da a^ua
apparoceu coberta de peixes atordados, cjue boiavam
a sabor da corrente.
Era uma crença muito commum na antiguidade,
que as pessoas que estavam na cama c deitadas ne-
nhum medo deviam ter do raio. Esta opinião, ape-
sar de ser muito extraordinária, parece ter conser-
vado partidários. Vejo, por exemplo, que Mr. Ho-
ward regista estes dois factos com parliculcr predi-
lecção.
Aos 3 de julho de 1838 caiu um raio n'uma casi-
nha de campo (cottage) em Birdham, perto de Chi-
chester. Fez em estilhas a madeira d"um leito, re-
volveu pelo chão os lençoes, os colchões c a pessoa
que estava deitada, sem lhe fazer nenhum mal.
Em 9 do mesmo mez levou um raio, em Great
Ifonrjton, perto de Duncaster, acoberta da cama em
(jue madame Srook estava deitada, e esta senhora
não teve outro mal além do medo.
A estes factos opporei outros não menos authenti-
cos. O volume 65 das Fhilosophkal Tramactiom
contém uma memoria cm que o reverendo Samuel
Kirkshavv dá conta de todas as circumsl anciãs da
(jueda do raio que apanhou Mr. Thomas Hearthle^ ,
a dormir na sua cama, em Hearrowgate em 29 de
setembro de 1772, e o matou logo. Madame Hear-
thley, queeslava deitada ao lado de seu marido, nem
sequer acordou. Todo o seu incommodo foi uma dòr
no Jiraço direito, que durou alguns dias.
Ás cinco horas da manhã do dia 27 de setembro
de 1819, caiu um raio em Confulens (Charente) so-
bre uma casa onde matou a criada que estava na sua
cama. O corpo achou-se cheio de regos desde o pes-
coço até a perna direita.
Os romanos attribuiam ás pollcs das phocas uma
virtude efficaz contra os raios:, epor isso faziam bar-
racas d'cstas pelles, onde as pessoas medrosas iam
abrigar-se quando trovejava. Suetonio narra que Au-
gusto, que tinha medo de raios, trazia sempre uma
pelle de phoca. (A ide tom. 1. "do antigo Panorama
jiag. 9i.)
Nas Cevennas, onde por muito tempo houve coló-
nias romanas, teem os pastores o cuidado de guarda-
rem os desjiojos das cobras com que rodeiam, ainda
em nossos dias, as copas ilos chapéus, porque se per-
suadem de que isto os guarda dos raios (Laboissié-
re ^ .\cad. do Gard.) Está claro que as pelles de co-
bra, no conceito do povo, tinham ontr''ora o mesmo
préstimo das pelles, mais raras e inais caras, das
phocas.
Fi mui licito por certo criticar a cscollia que Au-
gusto fizera das pelles de phocas, porque hojií mesmo
não acharíamos modo ile asjuslificar nem porl.iclos,
iiiiii pela Iheoria. A idea, porém, que não piídc ser
iiiililVirente, de escolher certos vestidos ipiando ha
trovoada, em nada écontraria aos conheciínenlus do.s
modernos acerca <la matéria do raio. Podcri.imos ale
cilar muitos casos em <|ue umas pessoas parecem ler
ficado illesas e outras fulminadas, conforme eram m
fazendas do» vestidos oii as matérias que traíian»
cnnisigo.
No dia du caiaslrophe de Chatenu-Neiir-les-Moii
tiirs dois ou trcs jiadrcs que estavam á roda do ai
196
O PANORAMA.
tar caíram gravemente feridos. O terceiro, pelo con-
irario não sollrcu nenhum damno : era o único rjue
tinha nas vestes ornatos de seda (1).
Os factos seguintes suo ainda mais pasmosos, por-
que mostram que um animal tem mais expostas aos
estragos do raio certas partes do corpo segundo a côr
do pello que as cobre.
No principio de setembro de 1774 caiu um raio
sobre um boi, em Swanborow (Sussex). Este lx)i, de
côr avermelhada, era malhado de branco. Depois do
raio notou-se com pasmo adcsnudez das malhas liran-
cas; nem um só pello conservavam, ao passo que a
parte avermelhada não tinha soffrido nenhuma alte-
ração visível. O dono do animal contou a Mr. Ja-
mes Lambert que dois annos antes, outro boi ma-
lhado de branco tinha apprcsontado exactamente o
mesmo phenomeno depois de um trovão violento.
Finalmente em 20 de setembro de 1773, tendo si-
do fulminado cmGlynd ura cavallo ruço-rodado, no-
tou o dono que em toda a extensão das malhas bran-
cas llie caía o pello quasi sem se lhe tocar, e que no
resto do corpo conservava a antiga adherencia.
lí Tibério, quando o céu estava tempestuoso, nun-
ca deixava de trazer uma coroa de louro, por acre-
ditar que o raio jamais toca n'esta sorte de folhas. »
(Suctonio) .
A opinião de que o raio nunca deu em certas ar-
vores ainda tem muito quem a siga.
Rir. Hugh jMaxuell escrevia em 1787 á Academia
americana, que, pela sua própria experiência, c pe-
las informações que havia colhido de grande numero
de pessoas se julgava com o direito de affirmar que
o raio cáe muitas vezes no olmeiro, castanheiro, car-
valho, pinheiro, algumas no freixo, e nunca na faia,
Ix^tula, o bordo.
O Capitão Dibden não admiltiadifferenças tãofor-
maes. N'uma carta escripta a Wilson, na data de
176Í, contentava-se com dizer (|ue nos bosques da
Virgínia, que acabava de visitar cm 1763, os pi-
nheiros, ainda que inuito mais altos do que os car-
valhos, eram muito menos vezes feridos pelos raios.
Não melemliro, accrescentava elle, ter visto carvalhos
crescendo entre pinheiros em sítios onde estes tives-
sem sido fulminados. Os factos seguintes dissiparão
muitas duvidas.
Criam os antigos que o raio jamais cáo no lourei-
ro ? Jamais é uma expressão que não tem dcfeza,
porque eu aclio nas notas de Poinsinet deSivry, um
dos traduclorrs de Plínio, que Sennett, que \ico-
luercatus, que Filippo-Jacques Sachs, referem mui-
tos casos do loureiros fulminados.
JMaxuell coUoca a faia entre as arvores que o raio
respeita. N'um folheto de Mr. llericart do Thury,
recentemente distribuído na Academia, vejo eu que
mna faia aunosa, reservada em 18l!o, n^um antigo
curte feito no meio da matta de Villiers Collerets,
foi fulminada e quasi demolida no mcz de julho do
mesmo anuo.
.•Vlgumas considerações thooricas tinham induzido
a crer que as arvores resinosas estavam isentas do
raio i todavia acaba de se vôr que Maxuell melle o
(1) Toilos os jOiysicos Icem rcconhcciílo nue o tafol;i
cncenulo, «scila, a lã, sH» menos jiernu-avois a niator!a ilo
ralo que as fazcnilas ilc liiilio oii mitra malcria M-golal.
("ouror.lam uiciios al,i;iiiiia musa na (|iirsl.'io do serem os
vesliitos iiiolliailus prefiTlxois aiis voslMos serros quando
ha trovoada. Nollct temo os vestidos niolliailos em rai.">o
Je llie rommiuiirar a a^ua a |ii'ojiririlade qiio lem do ser
um (los eorpos <nio o raio profere a outros. Kranlslii) adop-
ta a opinião roíitnuia, ua idea do «jiio os vestidos molhn-
«lo.s devem trausmiltir immodialaiiioiitc ao solo a iiinteria 1
tVdminantc qnc roroberoin.
pinheiro na classe d'aquellas em que mais a miúdo
caem raios. No já citado folheto de Mr. de Tburv
acho eu entre as arvores fulminadas :
Um pinheiro marítimo em S. Martinho de Thu-
ry, aos 2 de agosto de 1821.
Um pinheiro alvar em S. João de Day (Mancha),
em junho de 1836.
Uma cerejeira preta brava em Anthillv, em acos-
to de 183Í. . ' =
Uma accacia em S. João-le-Pauvre deThurv, em
setembro de 1814.
Um olmeiro em Moiselles, em junho de 1823.
Carvalhos e choupos (1).
Os homens são muitas vezes fulminados em planí-
cies descobertas. O perigo, muitos factos o attestam.
é maior debaixo das arvores ; o doutor ANinthorss
concluía d'esta dupla observação, que, para escapar
aos insultos do raio, quando colhe alguém d'impro-
viso em raso campo, o melhor é collocar-se a pessoa
a pequena distancia d'alguma arvore alta ^ por pe-
quenas distancias entendia elle todas as comprehen-
didas entre vinte e dois e meio a vinte eoito emeio
palmos. Seria ainda mais favorável a estação que sa-
tisfizesse as mesmas condições de distancia em rela-
ção a duas arvores visinhas. Franklin approvava es-
tes preceitos. Henley, que tamlwm os cria fundados
natheoria e na experiência, somente os modificava no
caso de haver só uma arvore, recommendando que se
coUocasse a pessoa, relativamente ao tronco principal,
os vinte e dois e meio a vinte e oito e meio palmos
além da vertical que passasse pela extremidade dos
ramos mais compridos. (Continua J
O SAKCTO ESTYLITA E O .MEDICO SaSCTORIO
S. SiJiE.vo, O estylita, foi um anachoreta do V sécu-
lo i deram-lhe aquella antonomásia de uma palavra
grega, que significa cohimna. Houve outro do mes-
mo nome no \'I século. Aquelle de que tractàmos
submetteu-se por longos annos a permanecer assenta-
do no alto de uma colunina sita n'uma das m.iis ele-
vadas montanhas da Syria. — Sanctorio foi ura me-
dico italiano do \\1 século, que passou uma gran-
de parte da vida pendurado n"uma balançii. — O
amor de Deus o a vida contemplativa eram os incen-
tivos de S. Simeão ; o amor da sciencia e o bem da
humanidade eram os de Sanctorio.
Simeão nascera perto de Antíochia : liad*clleuma
carta a Basílio, bispo d"essa cidade. Morreu cm 461.
de 69 annos. Thcodoro, bí?po de Tyro, escreveu o
resmno da vida crdle. — Para se desapegar intoira-
mentc das paixões humanas e das preoccupações ter-
renas, para se libertar complel.imente da escravidão
dos sentidos, para converter o pensamento a cncami-
nhar-se exclusivamente a um ponto único, Deus, n
amor infinito ou a perfciç.'io, para reJuiir-sc quantn
possível fosse ao estado inimateri.-\l, Siinc.MOSiijciton-
se expontâneo ao extraordinário supplicio de viver
noite c dia sobre o acanh.ido topo de uma columna
solitária, exposto a todas as intemperanças das esta-
ções, e absorvido n^uma continua oraç.^o. Na primei-
ra idade do clirislianismo. durante os horríveis dcs.T--
tres que abysmarani o império romano, observou-se
([ue o receio do mundo, a abnegação dos sentidos, a
propensão para a mystioa conlempl.ição de Deus, se
apoderou de grande numero de almas, e^ccitando-as a
largar a sociedade dos homens, e impoUindo-as para
a solidão. Sob a independência é que se formou a
Thebaida i os logarts mais ermos, as cavernas inac-
(I) Vid. P«nor.imn, >ol. 3.'\ serie 2.". jw;. 158.
o PANORAMA.
197
cessiveis convidavam á contemplação estes desterrados
voluntários, que não toleravam por testimunhas de suas
austeras penitencias senão os animaes bravios. Al-
guns homens insignes, como S. Jerónimo, allumia-
ram com a luz de seu génio estes logares solitários.
A Igreja usou da sua auctoridade para reprimir o
excesso d'esta tendência, que nada menos importava
que o retrocesso da civilisação, já tão perturbada cm
seu caminho, para os extremos limites da barbaria.
Nas suas exhortações insistiu de mais a mais n*esles
princípios de fé : — que a oração, isto é, acommuni-
cação directa com Deus, o solitário impulso do cora-
ção para a infinidade, não é bastante para merecer
as recompensas reservadas aos justos. Ha uma estra-
da de aperfeiçoamento, de elevação a Deus, não me-
nos segura e não menos necessária •, é a charidade, o
amor do próximo. Amar a seus semelhante», tomar
parte nos seus trabalhos, perigos e afílicções, é mul-
tiplicar a faculdade de amar a Deus. O amor écomo
o fogo, mais se dilata mais se eleva. — N'aquella re-
ligião dos anachoretas entrava muito egoísmo e pu-
sillanimidade ; suniir-se no deserto para fugir ás pai-
xões não é vence-las. Os mosteiros foram uma crea-
ção intermediaria, e que recolheu pelo menos a ccl-
la para o centro da sociedade.
A vida de Sanclorio Iransporta-nos para outra or-
dem de pensamentos; entrámos no domiiiio da in-
telligencia e das suas applicações, abstrahindo da fé
religiosa. Este sábio medico nasceu em Capo d'Is-
tria, em 13G1. Primeiramente foi professor em Pá-
dua, c depois eslabeleceu-se em Veneza. A maneira
original por que mostrou a sua devoção á sciencia
<:ontribuiu .-litula mais para a sua cclel)ridade (pio a
utilidade real de seus traballios. Estava persuadido
que a saúde e as doenças dependem muito dos phe-
nomenos da transpiração insensível, (juo se elfcctua
pelos poros do corpo. Ciuiz calcular a quantidade exac-
ta do lluido que se evade por esta tran'ipíração : pa-
ra alcançar isto, punha-s(! n'uma halança de sua in-
venção ed<?pois de Iiaver pesado os alimentos e belti-
dii dl' que carecia para vímI(^ (Miualro horas, ciiinpa-
rava o pczo com o das ■•xcicçik'» sensíveis do corpo ;
e prelendia «ssini delcrmiiiai' o pezo e quanlídaih'
da transpiração insensível, e a sua relação com os
alimentos quo aaugmentam ou a diminuem. Achou,
por exemplo, que se n'um dia se comer e beber a
quantidade de oito libras, saem perto de cinco pela
transpiração insensível. O livro onde consignou os re-
sultados das suas experiências foi traduzido em fran-
cez com este titulo : Medicina síalica de Sanciono,
ou Arte de conservar a saúde pela transpirarão.
Sanctorío falleceuem 1636 : foi sepultado no claus-
tro dos servifas, e na igreja d"estes frades lhe erigi-
ram estatua. Legou uma quantia annual ao coUegio
dos médicos de \'cneza, que por gratidão manda to-
dos os annos recitar por um de seus membros o elo-
gio do testador.
Um anno enthe os jiorlacos.
As Nui-ciAs dos morlacos têem grande semelhança
com as dos povos limitrophes. Se n'uma família ha
muitas donzellas, casasempre primeiro amais velha,
a menos que não tenha alguma enfermidade que a
condímine ao celibato. í) meu patrão casou umafillia
no tempo em que fui seu hospede. Eis-aqui como foi
o caso.
Os svati, nome que dão aos amigos que acompa-
nham o noivo, chegaram acavallo e bem equipados ;
rabos de pavões em cima dos liarretes formavam ele-
gantes pennachos. Armados de ponto cm branco, co-
mo que estavam de sobre aviso, menos por necessi-
dade que por se conformarem a um rito antigo. Em
tiímpos remotos, não eram raras entre os morlacos as
mesmas contendas quo, segundo a fabula, perturba-
ram as núpcias de Piríthúo pelo combate entre os
centauros o os lapíthas. Se havia muitos pretenden-
tes á mão de uma rapariga, dísputavam-n^a por ac-
commettimentos de agilidade e destreza, ou por vi-
vacidade de espírito, e não poucas vezes resultavam
scenas sanguinolentas. Sol)re este assumpto <;xíste um
antigo poema íllyrico. O vaivodo (caudilho) Janco
de Scbigue pedira em casamento Jagna de Teme-
swar : os irmãos da noiva, depois de o haverem em-
briagado, propuzeram-lhe um jogo de habilidades,
com a condição de que teria a concessão da noiva se
ganhasse, e a morte se perdesse.
— u Em primeiro logar (reza o poema) cravaram no
chão uma hmça com iim pomo na ponta, cdisseram-
Ihe sorrindo : Junco, esta maçã te servirá de alvo ;
se a tua seita a não atravessar, cairá tua cabeça em
paga do arrojo. — Janco saíu-se bem da primeira
prova; propuzeram-lhe outras duas. Ordenaram-lhe
que galgasse só de um salto nove cavallos postos
adíantí! (Pelle. A final foi obrigado a reconhecer a
sua noiva entre novo donzellas col)ertas de véus.
Periníttia o uso ao noivo ser substituído por alguém
que quizesse siijcitar-se ás horríveis alternativas do
mau exilo. íCéculo, sol>rinho de Janco, fez as provas
em logar d'elle ; galgou com elleílo os nove cavallos.
A terceira era amais dilTicíl, porem o mancebo saíu-
seirdla mui (-iigeahosameiíle. Coniluzido perant(> as
nove donzellas, estendeu por terra o seu capote, Iiin-
çou-llu- um punhado de anileis de ouro, e disse com
voz ami>açadora ? — (^hega-le e apanha esses mineis,
ó virgem iiiuavel, ipie estás prometi ida a Janeo. Se
outra <|Mal(|U('roiisarestcnder obraço, de um só golpe
d'eslii cimilana lhe deceiiarei aeajieça. — Ksla pro-
posta nada corlcz inlíinidoii oito das raparigas; po-
riMii a pieleiulida de Janeo iiãvi hesitou, eollu^u os
anileis, c por essi- meio arliliriosi) loi por /éeulo re-
<'oiiliecida. " — Ainda ha bai\os-reh'Vi>s grosseiros ipif
ri'|ii'(',sciilain crestes usos. \'olteiiios ao easiimeiílo da
fillia do meu patrão.
198
O PANORAMA.
Depois da benção nupcial, observou-sc uma cere-
monia quo outr^ora os romanos practicavam. Appre-
sentou-se á desposada uma cest;i com amêndoas e no-
zes ^ distribuiu-as primeiro aos svati ou companhei-
ros do marido, c atirou com o resto aos mais cir-
cumstantes, para symbolisar que na sua casa haveria
sobras.
No primeiro dia a noiva comeu em mesa separa-
da com as pessoas de seu séquito, e o noivo n'outra
com seus companheiros. O banquete foi ao inverso
do í|ue se adopta em nossos jantares : começaram pe-
las fructas e queijos, e acabaram pela sopa. As mu-
lheres comeram em mesa á parte.
Entre as viandas accumuladas com prodigalidade
achavam-se cordeiros, cabritos, aves caseiras, e caça ;
porém nada de vilella : não usam d^ella os morlacos
que não teem adoptado usos estrangeiros. Tal aver-
são á vitella data do tempos remotos: S Jeronymo,
que era dálmata, já faz menção d'ella.
Os festejos nupciaes duraram por muitos dias \ em
cada um doestes appresentavam a cada convidado
uma bacia para lavar-se, na qual devia deixar algu-
ma moeda. Este dinheiro é para a desposada, que
tem o cuidado de augmentar o pequeno pecúlio, apos-
■■aiido-se dos barrotes e facas de matto dos assistentes,
que são obrigados a resgate. Cada convidado também
faz sua dadiva voluntária ; e por tal modo se dobra
o dote, que consiste em fato e cabeças de gado vac-
cum.
Depois da comida dança-se ccantani-se trovas cora
allusões a cortas divindades pagãs, cujas memorias o
christianismo não tem podido apagar.
O mais extravagante costume precedeu a despedi-
da da noiva da casa paterna. O pai e a mãi, entre-
gando a filha ao genro, fizeram a este uma exagge-
ração cómica das ruins manhas d^aquella. n Não tens
miolos em levar tãointraclavel creatura :, mas se em-
lim queres carregar com cila, sabe quo para nada
presta, ó caprichosa, l)irrenta, &c. ;>' Mas até aqui a
cousa não vai mal, porque tacs cumprimentos são do
estjlo:, a resposta do marido é que é pouco edificante,
sendo bem sabido que os morlacos não são homens que
faltem á palavra. «Pois sim {diz para a esposa), se
tens esse niáu génio, eu te cliamarei á razão, ejá te
mostro de antemão a força do meu pulso. " Segucm-
se gestos de lhe Ijater, eás vezes não pára em gestos.
Estas maneiras brutas passam entre os povos iilyri-
cos, como entre os russianos, por demonstrações de
amor:, as mulheres querem antes levar pancada do
que vêr que os maridos fazem pouco caso d"ellas.
A occupação ordinária dos morlacos na tenra ida-
de é pastorear os rebanhos nos mattos e serras \ e
ahi approveitam as suas horas de vagar em abrir
diversas csculpturas em madeira, sem mais instru-
mento que uma navalha ; as quacs se parecem com
as grosseiras figuras d"animaes que fabricam de lenhos
resinosos os pastores da Suissa, e que os bufarinhei-
ros compram por atacado, e revendem por \il preço
até cm Paris. Os rapazes morlacos fazem também
taças e assobios com lavores curiosos.
O sustento habitual d*este povo compõe-se deleite
o lacticínios de toda a casta. Fcrnienlam o leite com
\inagrc e obtecm assim uma beberagem refrigeran-
te :, o seu prato mais estimado consiste em queijo
frito cm maufeiga. A galeta ou bolo chato que lhes
serve de pão é fabricada de mistura de farinha de
milho miúdo e grosso, de cevada, e de trigo quando
o podem liaver ; tudo jimassado e cosido debaixo do
borralho. Fazem lambem grande coi\5um(i de raiies
e de hortaliças. Decidcm-se por assados de carnes
com uni gosto que nem sempre podem f;itisf«ier.
Teem o que se [xidc chamar paix.li) por colxiUinhas
e alhos ; e por isso um morlaco se denuncia de longe
pelas exhalações da sua iguaria estimada. E fora de
duvida que o uso diário d^esses vegetaes corrige em
parte a ruim qualidade das aguas dos lameiros edos
arroios encharcados, onde os habitantes de muitos
districtos são obrigados a ir no verão buscar a bebi-
da. Os mesmos vegetaes concorrem talvez para a saú-
de e robustez do povo. Acha-se nos morlacos grande
numero do velhos ainda frescos e bem dispostos •, pe-
lo que, a despeito d'Horacio, dão-me venetas de pre-
zar o alho. E quem acreditaria que os morlacos, por
descuido seu, se fazem tributários d'estranhos por
um género cuja cultura lhes seria mui fácil.' Man-
dam vir annualmente, de Ancona e Rimini, as res-
tas d'alhos por milheiros de piastras.
Quanto á idade avançada a que chegara estes po-
vos Seria difficultoso fixa-la ao certo : a maior parte
ignoram a data precisa de seu nascimento, que pou-
co lhes importa comprovar. E como, passado certo
período, a garridez que inclinava a diminuir a idade
converte-se era basofia de augmenta-la, pôde repu-
tar-se que muitos dos inculcados centenários não te-
rão mais de oitenta annos. Além de que não ha um
só que tenha, como o ill^rieo Dando citado por Plí-
nio, a pretenção de haver vivido quinhentos annos.
Aconteceu fallecer ura visinho nosso. N^essa ma-
nhã acordou-me o prantear das carpideiras, porque
na morte dos morlacos paga-se, conforme a riqueza
dos herdeiros , a certo numero de mulheres para
aquelles lamentos. Pela primeira vez testimuuha de
uma ccremonia lúgubre d'este género, informci-me
das qualidades do defuncto que, segundo parecia, ins-
pirava tão fundas magnas. «Ai, senhor! (rae respon-
deu uma carpideira) bem vedes que era uma pessoa
rica, c os seus herdeiros não olham a gastos. "
Porém antes de descrever as tristes ceremonias.
cxarainemos o regimen dos morlacos durante a doen-
ça que os leva á cova. Digo a doença, porque a ro-
bustez do seu temperamento lhes não permitte co-
nhece-las senão de uma casta \ esão as moléstias in-
tlammatorias em consequência de transpiração impe-
dida apoz os violentos exercícios que esta gente fai
em seus bailes. Tal foi a infelicidade do defuncto de
que fallo. Como a maior parte dos morlacos, não
chamou facultativo, tractou de se curar a si próprio.
O primeiro medicamento a que recorreu foi uma
farta dose de aguardente com infusão de pimenta e
pólvora bombardeira. Nada ommittiu que podesse
provocar abundante suor ; pOz cm cima de si quanto
fato poude haver á mão, e apprcsentou-se deitado de
costas á torreira do sol. Para recobrar oappetíte en-
goliu muito vinagre; e a final applicou sobre uma
ferida, que fizera caindo, um pouco de ocre a\erroe-
Ihado. Feito isto os mezinheiros e os curandeiros to-
maram posse d"elle. O principal remédio foi o que
lhe serve para todas as moléstias, assucar : até quan-
do estava já agonis;inte llie fizeram engolir grandes
pedaços, afim (diziam elles) de lhe aditar o amargor
de seus últimos momentos.
Logo que o morlaco succumbiu ao excesso domai,
toda a sua família, reforçada, como acab:imos de di-
zer, pelas carpideiras assdari.idas. fci retumbar na
casa seus prantos. Os amigos do defuncto chcgaram-
>e ao corpo, e, fallando-lhe cora toda a seriedade, o
incumbiram de recados para o outro mundo. — Vin-
da a hora di) enterro, inibrírara o cad.iver com um
lençol branco e o transportaram a igrrja. Mal o dei-
xaram debaixo da terra, voltou o .acompanhamento
a casa junctamcnic com o cura; ahi se renovaram as
rezas, a que se seiuiu um grande banquete, no qual
a maioria dos conxid.idos penloram o uso da ra>ão.
O biclo dos homens consisto em d«'i\ar crescer a
o PA>ORA3lA.
199
barba a trazer uma carapuça azul ou roxa : as mu-,
Iheres amarram na cabeça um lenço azul ou preto, e
escondem com farrapos de panno preto aquellas por-
ções do vestuário que são de côr encarnada. — No
primeiro anno immediatoao fallecimento, as mulhe-
reâ da família vão, todos os dias de festa, fazer no-
vas lamentações, e espalhar sobre a cova ílòres eher-
vas cheirosas. Se alguma imperiosa circumstancia as
constrange a faltar a este pio dever, teem o cuidado
de vir depois dar suas desculpas ao defuncto eexpli-
car-lhe a falta, como se fora capaz de ouvU-as. Per-
guntam-lhe também novas do outro mundo, e fazem
a este respeito os mais extravagantes interrogatórios.
Estes discursos aos finados não se repetem em tom
natural da voz, mas lamentoso e compassado, como
uma lição.
Deu-me na vontade vestir-me por algum tempo á
moda dos morlacos. Eis-me, por tanto, com um alto
carapuço de felpa, caíndo-nie os cabellos sobre o ca-
chaço ^ a minha vestia e as calças são brancas com
guarnições azucs :, d'uma cinta de couro pendera uma
faca e uma Ixjlsa de tabaco \ as minhas polainas são
de lã grosseira e branca, orladas na extremidade su-
perior e abertas aos lados. Nunca saio sem o meu
trem militar \ uma espécie de chalé comprido agoi-
ta-se com elegância sobre o meu hombro esquerdo, e
quando me é preciso embrulho-me n'elle como n'um
cobertor.
As mulheres toucam-se com um lenço branco dei-
xando as duas pontas caídas por detraz, guarnecidas
de laços de fitas azues e encarnadas : as das cidades
trazem por toucado um passôlat, que é de estofo
branco pintado de flores com seus bordados de fio de
ouro ou de prata.
As solteiras trazem barretinhos vermelhos enfeita-
dos de moedas c de conchinhas, principalmente da
«ispecie <|ue chamam porcelanas (cyptra moneía) que
servem de dinheiro n^algumas parles da índia.
As cuinpoiíczas morlacas, muito laboriosas, fazem
algumas vezes longas jornadas, levando á cabeça uma
trouxa mui pezada, e ás costas uma crcança \ estes
dois pezos não lhes vedam de irem fiando na roca, pa-
ra distrahir o enfado do caminho, ou para não per-
der tempo.
Quasi que não ha pessoa dos morlacos que deixe
de acreditar nas almas do outro mundo, cm lodos os
prestígios de bruxaria, e nos vampiros que chupam
o sangue das creanças. O mais inlrepido toma as de
villa-diogo á vista de qualcjucT olycclo que se lhe
affigurar um espectro ou um 1 rasgo. A sua ardente
imaginação e espirito naturalmente crédulo multi-
plicam cslas a])pariçue3 ; o mais singular é <jue não
se envergonham de taes medos, c desculpam a sua
covardia com um adagio ill^rico, que corresponde ao
verso de Pindaro, que di/. : nO temor dos phantas-
mas faz fugir ale osfiliius dos numes." — Asmulhe-
r(ís muito mais propensas á superstição do que os ho-
mens, chegain ao cíxcesso de se capacilarom (jue são
feiticeiras. As bruxas altribuem cousas fura de todo
ográu de credibilidade : ilizem queellas fazem perder
o leilc ás vaccas dos visiiiluis para augnu^nlar o das
suas.
Direi um conto que mo n leria Pedro, o meu ve-
lho.— Narrava v[\f que eslando uma noile deitado
na m(?sma alcoNa com um maniclid morlaco, não
liorinia e viu claramente duas feiliíeiras que abri-
ram o corpo <lo moro para lhe tirar o coração c as-
•^a-io |iara comer. O rapaz, ai-iuilando, sentiu o sitio
do coração vasio : n'esli' miunento di'\i:i acabar o
Icitiço-, e as bruxas voaram deixando em cima das
brazas o guizado. l'i'dro, que ale alli s<' não bolíra,
por((Ue eslava embruxado, puude entào sidlar du ca-
ma, e appressou-se o salvar o coração do companhei-
ro, tirando-o do lume, e fazendo com que o engolis-
se ; o rapaz, como é bem de crer, sentiu loso a vís-
cera tomar o seu logar. —
Os morlacos trazem sempre zappis ou talismans
cosidos nos barretes ; também os penduram nos cor-
nos do gado. Por insignificante que seja um successo
fortuito, que pareça provar a utilidade d"aquelle5
amuletos, todos logo bradam que foi milagre. Até os
turcos, levados do exemplo, compram aquelles bu-
giarias ; e a exportação dos talismans é para os pa-
dres ignorantes dos morlacos considerável objecto de
negocio. — Attribuem também propriedades milagro-
sas a algumas medalhas ou moedas, ou do Baíxo-Im-
perio, ou cunhadas em ^ eneza na idade media : con-
fundem-n*as sob a denominação de medalha de Sanc-
ta Helena. Igualmente veneram muito as medalhas
húngaras, chamadas peíiz:íe.
BerNADOTTE, rei de StECIA.
Filho de um advogado de Pau, João Baptista Júlio
Bernadotte nasceu n'aquella cidade a 2G de janeiro
de 1764. Seu pai o destinava á sua profissão, mas o
animo franco do mancebo não quadrav a com as dis-
putas furenses •, o que ambicionava era o movimento
das campanhas ca gloria das batalhas. Comtudo não
lhe era favorável a occasião, porque a nobrezii occu-
pava todos os postos militares, e chegando a ajudan-
te o plebeu não tinha que esperar adiantamento.
Quasi sempre os homens celebres teem a consciên-
cia do que hão de valer no futuro, e as difficuldades
que lhes embaraçam os primeiros passos não servem
senão de os estimular mais. O mancebo Bernadotte
fugiu da casa paterna e alistou-se n'um regimento
da marinha, affiançado pelo magistrado de um mu-
nicípio visinho. Passou»se isto em 1780; c d"ahi a
nove annos ainda Bernadotte não tinha subido de
sargento:, masd'então por diante fez rápidos progres-
sos, e em i~'J'2 foi promovido a coronel. O exercito
tinha perdido os seus commandantcs ; uns tinham saí-
do do território francoz, outros tomado armas contra
a republica. Mocidade sem experiência, sem instruc-
ção militar, ás vezes mal armada e equipada, pela
maior parte roubada a suas famílias, taes eram os
defens<jres que a Commíssão de Salvação publica en-
carregara de manter as fronteiras. Em meio d'estc
exercito, levantado apressa, éque Beriuulottc, já co-
ronel, fezasua primeira cam])anlia ásordens deCus-
line : assuas proezas lhe adijuíriram logojusta repu-
tação, mas a independência de caracter o fez alvo do
resenlímento dos representantes do exercito do povo.
Com efleilo, teve por vozes deluctar com ellcs, e en-
tão não hesitava em provar-lhcs que cran» ineptos.
Depois, arrancando as ilrai;onas, só requeria a espin-
garda de soldado e permis.-.ão de verter o sangue em
defeza da Krança. — A brigada Cioguel amolinou-se
contra o general d'este nonu-, eíani mata-lo, porém
Bernadolte, indignado, lançou-se nomeiodosamotí-
nailos e arrancou-lhcs a viclima. Este nobre procc>-
dinicnlo iles.igradou taudiem aos representantes, ijuo
o ([enunciaram por aristocrata, e esperavam tpu- .i
(Vinimi^^ào deS.dvaçrio publica expedira contra clle
ordem lie aresto e testilniçào. l'"inalniente o inimigo
atacou os postos avançados, e líern.idotte, ri'pelliu-
<lo-ii, fez prodígios de valor \ nTio ousar.un por l.mto
l)rincl<'r o vencedor. A coniinisvio snUstítuiu o ares-
to piir unia patente de gi^nrral de div iv i-^u» : Iterna-
dotle iijcilou-a, e sií dcpoi^ ile h.iver poderiisanunie
eoncoirido paru u vicloria de l''lcurus é «juo ucceilou
200
O PAjHORA3IA.
í
as dragonas de general de brigada, que lhe foram
conferidas no j)roprio campo da batalha.
Entretanto a republica consolidou-se, e os gene-
raes não tiveram que luctar senão contra inimigos
externos. Bernadotte proseguia na sua gloriosa car-
reira :, passou o Rheno, pelejou por três semanas, e
mereceu pela valentia elogios do Directório. Pouco
depois foi destacado com um corpo de 20:000 homens
para o exercito da Itália. Então começou a carreira
politica de Bernadotte : está ás ordens de Buonapar-
te ; a amizade não ligara estes generaes ; o bernez
adivinhara a profunda ambigão do seu commandan-
te, e sendo com todas as veras affeiçoado á republica,
deplora uma rui na que reputa imminente e certa.
Como quer que fosse, Buonapartc, que sabia melhor
que ninguém fazer justiça ao tino militar, confiara o
commaiido da vanguarda a Bernadotte. Psãocabe n^u-
ma breve noticia fallar das peritas manobras doeste
general, e dos brilhantes feitos que fundaram eaug-
mentaram a sua fama. Vencedor em muitas partes,
Bernadotte, depois de ter posto em apuro o príncipe
Carlos, ede lhe haver tirado das mãos a fortaleza de
Gradisca, achou-se encarregado pelo Directório de
instrucções verbaes para o general em chefe, eotrac-
tado de Campo l>'ormio pouco depois foi assignado.
Dissenções, cuja causa émal conhecida, não tarda-
ram a desunir os generaes Buonaparte e Bernadotte;
este chegou adeniittir-se do commando que lhe con-
fiara o Directório, e procurou servir na índia ou em
Portugal \ em sumnia, queria afastar-se do general
Buonapartc. Passaremos em silencio os enfados e des-
gostos com que largamente mimosearam Bernadotte
durante a sua eniliaixada de \ ienna para onde fora
nomeado no mez de abril de 1798 : muitos auctores
accusam Buonaparte de não ser estranho a esses me-
xericos. Bernadotte, ao voltar a França, casou com
Jl.elle Desirée Clary, filha de um rico negociante de
Marselha. Napoleão Buonaparte a tinha pedido an-
nos antes, quando ainda era general de artilheria, e
não a poderá obter, porque Mr. Clary, segundo re-
ferem alguns biographos, assentava que era de sobe-
jo um Buonaparte na sua familia, tendo com elVeito
casado outra sua filha com José, irmão de Napoleão.
Era grande o merecimento de Bernadotte para que
o deixassem muito tempo sem emprego-, foi portan-
to chamado ao ministério da guerra. A guarda na-
cional rcorganisada, a remonta de 40:000 cavallos, as
fronteiras reforçadas com 100:000 homens de novas
levas, taes foram os felizes resultados da breve admi-
nistração de Bernadotte. Mas a republica tocava no
seu occaso, e dentro em pouco Sieyés podia exclamar
com razão que a França adiara um senhor.
Bernadotte luctou até o ultimo momento contra a
ambição de Buonaparte-, porém, quando viu derri-
bado o Directório, cedeu também, e com prudência
desempenhou os novos encargos que acabavam de lhe
ser conimetlidos. l'rincipalni(Mile como commandan-
te geral nas províncias d'oestc é que Bernadotte me-
rece estudado; ora guerreiro contra os inglezes, ora
pacificador impedindo a renovação da guerra civil,
triumpha em tluiberon, c com uma sóvictoria segu-
ra a província contra as invasões do inimigo e as re-
l»ollíues dos habitantes. Então assentou Napoleão que
não tinha mais a fazer que encher de mercês t.ão il-
lustre general e liga-lo á sua fortuna. Bernadotte foi
succe5si\amente nomeado marechal do império desde
;\ creação d'esta dignidade (l\) de maio de 1S04),
chefe da oitava cohorle da legião d"honra, cgo\erna-
dor de Ilannover. Esta commis.sãii em liannover ti-
nha dois motivos; arredava-se um homem que havia
muito tempo se fizera estimado do exercito, c que
por tendência republicana não pudera aindu submet-
ter-sc ao despotismo imperial ; além d'isso emprega-
va-se o talento de um prudente pacificador n'um paiz
quasi exhausto pelas guerras. Bernadotte partiu sem
pena, porque desesiHirava da França, que, no seu
pensar, não podia viver senão sob a era gloriosa da
republica. No entanto a sua administração d^Han-
nover deu os mais prósperos fructos ao império ; e
quando foi chamado para amemoravel campanha de
180o, Napoleão deu a Bernadotte o mando do pri-
meiro corpo do grande exercito composto de tropas
hannoverianas. Já estes soldados tinham assignalado
o seu valor, porque Bernadotte á sua frente tinha
feito recolher o eleitor de Baviera á sua capital, e
concorrera para a tomada de Ulm, sopeando os rus-
sianos por três dias inteiros. Na batalha de Auster-
litz o marechal se distinguiu novamente, e geralmen-
te lhe attribuem grande parte n'e5ta victoria ; foi
recompensado com a soberania e títulos de duque e
príncipe de Ponte-Corvo, que lhe conferiu o impe-
rador. (Continua.)
Velocidade da Ltz.
A VELOCIDADE com que a luz atravessa o espaço foi
calculada pelos geómetras em setenta e nove mil qui-
nhentas esetenta eduas léguas porsegundo (de2:000
toezas cada légua), em quanto que a velocidade do
som não passa de 32o metros ou 2o braças. A velo-
cidade da luz é por tanto novecentas mil vezes maior,
segundo Euler, que a do som, e a faz correr n"uma
hora o espaço que uma baila de artilheria andaria
cm perto d"uin século. E como o sol dista da terra
trinta e nove milhões e duzentas e vinte e nove mil
léguas gasta a luz solar oito minutos e treze segundos
para chegar á terra, e a luz das estrellas que lhe fi-
cam mais próximas, mas que assim mesmo distam
de nós mais de duzentas mil léguas, gasta quasi qua-
tro annos para cá nos chegar ; de sorte que eviden-
temente vemos os astros na posição em que estavam
quatro annos antes. O mesmo espaço que as estrel-
las mais remotas distam da terra faz com que a sua
luz careça d"alguns milhões de séculos para chegar ao
nosso plaiíeta.
Os políticos.
Temtos houve em que os demónios fallavam, e o
mundo os ouvia; mas depois que ouviu os políticos
ainda é peior o mundo. Vieira — Hcnniki.
AEmpreza d'csteJonial hcàtou por algum icmpo so-
bre se levaria por diante a sua publicação além Jo
n." 20, OH se a suspenderia como ttem feito as de ou-
tros periódicos littrrarios de muito metwr coste amento .
liesolvcu-se comtudo a continua-la, arriscandc-x a
nova perda, citja ejrtcnsão só jxjde avaliar íjuem ti-
ver conhecimento deimprczas seviclhantes. Findando
poríni as assiynaturas dcseineslre norrferiílo n.°26,
os senhores que quizerem renova-los ou assignar de
jim'0 o poiierão faxe r na tt/pographia do jiitínio Jor-
nal. I^argo do Contador-^lúr, ii.*-'! A. ou na loja de
livros da Sr.^ f iuva Henriques, rua Augusta, n.''l.
.1 falta, por ausência, de um dos prinripaes rtdac-
Icres, que teve togar dc/xtis da publicação do «.** T.
vai ser sujyprida por outro, a cotdar do u." 27.
-Aão deve a Jimpreza jMrnler esta oteasião de u-
quei.rar amargamente <ía protecção ncgati\a9uc ífm
rtcebido de quem st acha (ncarnyado da parte lilte-
raria do Diário do Governo, r que Ião soUicito ha
sido f III se approveitar dos artigos do Panorama, quan-
to descuidado em o citar.
26
o PANOUA3IA.
201
/V,:--:-v
I )■ I M Vasco da ( j a .m A .
Com hcroini tiriiic/ii,
A reiniituf cmiini o lioroc laiiiosu
A |ioi'lci)toMi riii|»rr/ji.
\ sí'us |)ll^sl)S oiii \i"n» lijirluira f;('iilt',
lloircluio'» <i^ltn^, s^rlrs rvtiiiiMls,
Sr Uir o|>|infiii cspiíiiti^Mis,
i^uc a »<'ii |)i">ai- rnli-o(i no ucciílto OririiU'.
DiMí— O./. I."
ArAiilvA ilc inurrLT um lioiii rei i; uiii iii.iii liuiiium,
liigumlu 111) IManiicl, (lu(|iii.' ilc lii^ja, um reino paci-
licado |iili) tuiuor dii lulcllo c do xcucini, c a f;loiia
(la |iiOht'cui;ão(los(lcs('i)liiimculns maiilimus. I')m 1 '(87
Imvia Jiaillujlomeu Dias passado o ( 'alaMlasToriuen-
lai ; iH-m \'\m\\ ja (slraidjas aos nossos as Icrras (pu.-
Iliit tiram alem ua rosla di; (iuiué ate clicuar i|uabi
a Holula (' M(i|;amliii[ue. A isjuTaiiija, |ioii'm, dcdíjs-
('ol)rii' a Índia u ra/(.'-la Iriliulariít ao pcijucno reino
dl' l'orhigal, <sp4'ran<;a que movera 1). João Jl a inu-
Voi.. 1. — MAiíeo O, isn.
dar o nome d"ii(|Uelle ("alio para o (jiie ainda hoje
conserva, não linlia podido roalisar-sc. l'ara perfazer
esta cmprczu pòz elrei os olhos n'um mancebo de
vinl<' e oito annos, lldal2;o da sua casii, enaluralda
villa de Sines noAlemtejo; o não se en^-Tion naes-
eollia, (jue eslo manccijo <;ra Vasco <laGama, filho de
Kslevam da Gama alcaide m«ír de Sines e commeu-
dador do Seixal, e um dos lioniens mais entendidos
na arle da navej;a«;ào, a <|uem 1). João II, pouco
antes de morrer, havia enearrenado d'eslu viasçem.
\ asco da (Jama pediu para eimipanheiro seu ir-
mão l'aulo da (iauui, e lari;ou do siliu de HeU-ni aos
7 di^junho de 1 't!)7, c<im três naus, além d"uma i|Ue
li\a\a uianlinxiilos e em ipie ia Nicolau ( 'oilho. O
piloto d'esla armada era l'ero Oalanipicr. i'\perimen-
lado marilimo, <|Ue linha acom|>anliad'i lt.ullu>lo-
meu Dias até ao rio ilo lidanle.
l'assou á vista das Canárias, che-uu em :J1) de ju-
lho ao |ioi'tii de Sancta Maria na ilha ile Sanetiai;o,
e ponilo a jinVi a leste em hnsc.i do Caho de Hoa-
Ksperanea, líastoii os meies ileanosto a oululiro,.luc-
tundo com tormenta'» eventos ponteiros, parache;;ar
202
O PANORA3IA.
a uma bahia que chamaram Angra de Sancta Hele-
na. Aqui foi Vasco da Gama ferido n'um pé, nabri-
"a que se travou por causa diurna imprudência de
Fernão ^'eloso, a quem obrigaram a descer um outei-
ro com mais pressa do que o subira (1).
Tornou a frota a desfraldar as velas no dia 16 de
novembro, a 20 dobrou o Caíra da Boa-Esperança, e
a 2o, navegando sem perder aterra de vista, chegou
á aguada de S.Braz, sessenta Itguas distante dV-Ue :
proveu-sc de mantimentos c agua, e depois de Vas-
co da Gama ter mandado queimar, por desnecessá-
ria, uma náu que levara viveres, seguiram as ou-
tras naus a sua derrota, não se demorando alli mais
do que treze dias, porque o não consentiram as de-
savenças e pendências dos portuguezes com os negros i
sobreveio-llies um temporal, mas em 8 de dezembro
estavam cinco léguas além do ilhéu da Cruz, onde Bar-
tholomeu Dias pozera o derradeiro padrão, e dia de
Natal haviam deixado atraz de si as terras descober-
tas por Lopo Infante. Já não tinham competidores!
Communicando, todas as vezes que era possível,
com os habitantes da costa ao longo da qual iam na-
vegando, entraram as embarcagões no rio dos Bons
Signaes onde se detiveram 32 dias, não só porque
foi preciso calafeta-las,- como por ter enfermado mui-
ta gente. Partiram emfim aos 24 de fevereiro e no
1." de março avistaram a ilha de Moçambique, cujo
xeque, induzido p('los mouros, resolveu atraiçoar os
"nossos, o que obrigou Vasco da Gama a ir surgir
juncto da ilha de S. Jorge, uma légua ao mar de
IMoçambiquo, c a partir em demanda da ilha de
Quiloa, onde um piloto de Moçambique promcttia
leva-lo, tendo-lhc fugido o outro. As calmarias fize-
ram com que a armada tornasse a fundear na illia de
S. Jorge, d'ondc partindo de novo no 1." de abril,
Já com três pilotos, com direcção a QLuiloa, a passou
em claro e chegou aTáilha de IMonihaça, com mui-
ta gente doente, além dcjá ser morta metade d^aquel-
la com qne viera de Lisboa. Aqui armaram os mou-
ros a Vasco da Gama e aos seus novas ciladas, de que
os livrou a rara prudência doeste capitão e o medo
dos pilotos traidores de 3Ioçambique, que lançando-
se ao mar deram a conhecer toda a perfidia. Tão
acerbo era o ódio dos de Mombaça aos portuguezes,
que vinham de noite a nado com terçados e macha-
dinlias para picarem as amarras das naus, as quaes
comtudo chegaram senidamno a^lelinde diadePas-
choa da Rcsurreição. No rei d'csta terra achou Vas-
co da Gama cordial amizade e desejo de lhe fazer
bom agasalho e de lhe acudir com todos os mimos e
regalos, de que tanlo careci.im depois do uma nave-
gação cm extreme longa e trabalhosa.
Deixando um padrão na praia, seguiu a frota pe-
lo golpho (la costa de Melinde até a do Malabar, e
foi ancorar ao 18 de maio, duas léguas distante da
cidade do Calecut, havendo onze mezes que saíra do
Tejo ; mas porque não era seguro este ancoradouro,
recolheu-se ao porto de Pandaranc, primeira terra
da índia em que % asco da Gama desembarcou, dei-
xando enconimendado a seu irmão Paulo da Gama
ca Nicolau Coelho, que, se algum desastre lhe acon-
tecesse em Calecut c sentissem que corriam risco cm
esperar por ellc, fossem a outro porto comprar espe-
ciarias, e lornasbcni ao reino com ellas ecom as no-
vas doquetiniiam descoberto. Tendo dado asua em-
baixada ao rei deCidecuI, quiz-lhc oc:itual ou rege-
dor impedir a volta para bonlo, e levou a ousadia a
pelir-lhe as velas e lemes das endiarcações, c a pren-
. der os dois feitores que ficaram em terra para mer-
(!)• Cam. Cunl. 5.0 Est. 31 a 30. — Gocs, Chron. de
«cl ici Tt Mmmcl.
cadejar. Reclamou-os Vasco da Gama, e porque Ih^os
não davam fez represália em seis malabares com de-
zenove criados que tinham vindo a Fwrdo, e foi an-
corar quatro legoas ao mar de Calecut, e depois ain-
da muito mais longe, cm paragem d'onde quasi que
se não via terra. Elrei de Calecut propoz-lhe então
a restituição dos feitores, que elle veio tomar, surgin-
do diante da cidade. Também lhe mandou uma car-
ta para elrei D. Manuel, e lhe queria restituir a fa-
zenda arrestada, em troca dosséis malabares ; no que
^'asco da Gama não conveio porque os queria trazer
a Portugal, e, firme n''este propósito, mandou dis-
parar a artilheria contra as almadias que vinham
com a fazenda, e tomou a sua derrota para Melin-
de, promettcndo em carta que remetteu ao rei de
Calecut tornar-lhe estes reféns. Monçaide, mouro tu-
nesino, em quem sempre achara muita lealdade, veio
igualmente na armada, a qual desde alli até uma
ilheta chamada Anchediva tirou vingança dos que
pretenderam accommette-la.
De Anchediva a Melinde gastaram os nossos in-
trépidos navegantes mais de quatro mezes, com as
calmarias c ventos contrários, no qual tempo morre-
ram mais 30 homens. Eslximbardeadas >Iagadaxo
na costa de Ethiopia, c oito embarcações de juerra
saídas da villa de Patê, renovadas as relações de
amizade com elrei de Melinde, que lhe mandou re-
frescos, queimada uma das nossas naus defronte da vil-
la doTagata, por trazer já muito pouca gente, rece-
bidas tandjem as vitualhas que lhe mandou o senhor
da ilha de Zanzibar, etendo-se provido de agua, lenha
e gado em S. Braz, dobrou Vasco da Gama o Cabo
da Boa-lísperança aos 20 de março. Na altura da
ilha de Sanctiago se desgarrou da sua conserva a
náu de Nicolau Coelho, o qual chegou aCascaes aos
10 de julho de 1490 com as novas da viagem.
Vasco da Gama foi ter á ilha de Sanctiago, c por
que Paulo da Gama adoecera gravemente, arribou á
ilha Terceira, onde elle falloccu, e foi enterrado. Fi-
nalmente, a 29 de agosto entrou cm Lisboa, haven-
do já dois annos c quasi dois mezes que d"aqui par-
tira, c trazendo só 53 homens dos 1 Í8 com que saíra
a barra.
Estava rematada a empreia que deu a Portugal o
commercio da índia, a ^"eneza um golpe mortal, <■
ao mundo o poema dos Lusiad.-is.
Por este alto feito concede\i elrei D. Manuel a Vas-
co da Gama o prenome de Dcm, para si e seus des-
cendentes, mil escudos de renda, e poder trazer no
meio das suas armas as (luinas reacs portugucias.
Das outras mcri.ès que recebeu na volta da sua se-
gunda viagem á índia, e quando, já no reinado de
D. João III, a foi governar, tractaremos cm artigo
separado. Bem digno era dVUas quem. por dilal.ir
a gloria do nome portuguex, arrostou
No m.ir tanta tormenta e tanto dano.
Tantas vezes a morte apercebida '.
Na terra tanta guerra, tanto engano
Tanta necessidade aborrecida'. (1)
O retrato que damos, com o /ac-sími7«- daassigna-
tura de D. ^ asco da Gama. reprodui uma pintura
de muito valor por ser da cjKicha, a qual hoje jwr-
tence ao Fx.'"" Sr. Conde do Farrolx), o foi copia-
da pelo Sr. Sondim, edada em lithographia pelo Sr.
Luiz Triíianzi. D. \'asco da Gama. segundo uma
descrijiç.ío que temos d'elle, era de eslatuni n>edia-
na, muito gortlo, de semblante ciírado. e aspecto um
pouco severo, em que se reflectia a cholcra que não
(1) Cnni. Im<. Cant. 1." K«t. lOfl.
o PANORA3IA.
203
poucas vezes o dominava. O retrato não desmente a
descripçãu.
CoLOMBA.
Romance tia Córsega.
I'u^c■ra, orfaua, zitclla,
Seuza rugiui carnali ! —
Ma per far la to vendetta.
Sla siguru, vasta anrbe ella.
Lament.funtb. tU Niolo.
VI.
Depois de Orso ter saído, Colomba lòra a\isada de
que os dois lUlios do advogado Barricini o seguiam
armados. Os seus temores a cada momento cresciam
mais ese tornavam mais intensos. A chegada do co-
ronel e de miss Nevil, que pelas onze horas da ma-
nhã entraram em Pielranera, veio augmentar-lhe a
inquietarão. Ainda elles se não tinham apeado, já
Colomba perguntava, rtcobendo-os : " \ irara meu ir-
mão ? >' E á sua resposta negativa a pullidcz substi-
tuía as rosas do rosto, e o coração, pulando no peito,
queria arrebentar. A despeito da firmeza varonil do
seu caracter venceu o amor fraternal, e depositando
entre lagrimas o terror que a dilacerava, accusou-se
perante Lidia e sir Thoma/. de haver, talvez, prepa-
rado a catastrophe que de novo ia cobrir de lucto a
casa do seu pai.
Esta noticia gelou o sorriso nus lábios de miss Ne-
vil. O conhecimento que tinha de Colomba, ligeiro
como era, bastava para ella saber que a bella lilha
da Córsega não tremia sem motivo. A sua imagina-
ção exaltada, o um sentimento profundo que só en-
tão poudc appreciar, represenlavam-lhe o mancebo,
victima do tiro de um traidor, expirando só o ao de-
samparo nas solidões funestas da terra pátria. Duas
lagrimas mal sustidas escaparam-se dos olhos, e quei-
mando nas faces, foram sumir-se nosanneis dourados
das madeixas. Coloml)a adi\inhou o preço d'aquellc
trilinto silencioso, e apertaiido-llie a mão, ouviu com
resigi^da tristeza as consolações que o coronel balbu-
ciava, ])ara desempenhar com todo o decoro o papel
de animoso, papel que os estylos sociaes prescrevem
aos homens em circumstaneias taes.
Assim passou otenqKi. A \niia hora o passo de um
eavallo soou debaixo «íasjanelias do quarto aonde es-
tavam. IMiss Lidia ergueu-se de repente exclamando:
— uE algum dos mensageiros que se mandaram ? "
("olomba, que a acompanhara no ninvinieiito, l>ra-
dou :
— 41 Não é o eavallo de num irmão ! r \ ciulo-o sem
cavalleiro, puxado á rediNi pila rapariga sua prote-
gida, \oltou para dentro, e apertando afronte entre
as mãos, om voz sumida e eoni nm geiíiido <le espe-
daçar a alma, soluçou: n Morreu — matarain-n'o ! "
O coronel, (|ue eslava á mesa, deixou cair o copo:
miss Nevil deu um grito agudo, (ítoihis ficaram tras-
passados de ilór. ( liilina, a sobriídia de llrandolac-
cio, apenas poude atar o corsc^l, |>iir(|ue já a aperta-
vam com anciã os braços de Colomba. \ donzelhi
vuúra n porta gritando :
— liCliilina, <|ue é feito i\v niiu irni.'io.'"
A creança olhou para ella e estremeceu No ter-
rível lampiijar d"a(jUi'lla vista, mesmo com os seus
pouco» ainios, viu ospllo de uma desesperação medo-
nha; por isso as primeiras palavras que proferiu fo-
ram as tão expressivas do choro de Olello ;
— .. íVinila \ ive ' -1
— 1£ E os outros ? -•: insistiu Colomba em tom forte.
Chilina fez só o signal da cruz ; e á paUidez succe-
deram as cores purpúreas no rosto da irmã de delia
Rebia. Deitando á casa dos Barricini um olhar ar-
dente, voltou para a sala, e tranquilla e serena foi
traduzindo na linguagem corrente a embrulhada ara-
i via em que a rapariga contou tudo o que se passara
; no combate de Orso com os dois assassinos.
I Ao acabar, Chilina referiu que o tenente só pedia
com instancia papel para escrever, encarregando-a de
dizer a sua irmã que supplicasse a uma senhora que
lá devia estar, que não partisse sem receber uma car-
ta d'elle. E, accrescentou a creança, o que mais o
afíligia, ejá eu vinha meu caminho e ainda ellcm^o
tornava a repetir. Ouvindo isto Colomba sorriu-se
com meiguice para Lidia, apertando-lhe a mão com
I força. A ingleza desatou a chorar, eteve a prudência
de não traduzir a seu pai esta parte de narração.
O coronel só fazia perguntas extravagantes — sua
filha soluçava e enxugava os olhos, e Colomba prepa-
rava fios para o ferido, quando ao cair da tarde en-
trou na aldeia a triste procissão que trazia ao advo-
gado Barricini os cadáveres de seus dois filhos, atra-
vessados cada um sobre seu eavallo. Seguia o cortejo
uma turba do clientes e ociosos. l)'envolta viam-se
gendarmes, que sóapparecem quando não são preci-
sos, eoadjuncto tio ^lairo que, levantando os braços,
não cessava de clamar : — u O que dirá o senhor pre-
feito ? " — Algumas mulheres, sobresaíndo a ama de
Orlanduccio, choravam, arrancando os cabellos ; po-
rém a sua carpideira ruidosa eommovia menos do que
a dòr muda de um personagem, que attrahia a at-
tenção de todos. Era o infeliz pai, que ora ia direito
a um dos cadáveres, e erguondo-lhe a cabeça mancha-
da de pó e sangue, beijava os lábios azulados e frios;
ora tenteando aquelles membros já hirtos, os abraça-
va para lhe evitar os sobresaltos do eavallo. De vez
em quando abria a bocca para fallar, mas a voz es-
trangulava-se na garganta, e nem um ai nem um sus-
piro desabafava. Com os olhos sempre fitos nos cadá-
veres tropeçava nas pedras, embatia nas arvores, e
olhando sem ver, topava em tudo o que o rodeava.
Os lamentos das mulheres e as maldieções dos ho-
mens redobraram diante da casa de Orso. Alguns
pastores do partido u delia Rebia " ousaram levantar
brados de triunipho, e a este desafio insolente aeho-
lera dos seus adversários respondeu por clamores de
vingança. No meio d^uma nuvem de pedras, atira-
das ás jancllas, dispararam-se dois tiros de espingar-
da. As bailas entraram na sala onde Colomba i" os
seus hospedes conversavam, atirando lascas de páu
para cima da mesa a que estavam assentados Liilia
soltou gritos de susto, e o coronel agarrou-se a uma
clavina-, mas Colomba, antes <le apoderem atalhar,
voou aporta da rua, e abrindo-a com ímpeto, de pé,
no limiar, com ambas as mãos oteiulidas para amal-
diçoar os inimigos, exclamou ;
— «Covardes! . . . atiram adu;is mulheres eainn
estrangeiro! ^ is ! que salieru só ferir |K'las costas, . .
matem-nos ; meu irmão está longe. . . ou vão chorar
antes como crcanças, agradecido- por lhe não pi-dir-
mos mais sangue ! "
.\ voz e o gesto de(.'olomba eram terríveis. Dian-
te il"ella a nuiltidào, cortada d"assombro, recuou co-
mo se de repente sursisse um phantasnui. O adjuncto,
os gendarmi'< o diversas pes.so;is aproveitaram n oc-
casião para se nieltereni entre os dois bandos, porque
Os pastore» de dell.i llebia já carregavam aselavinas,
eludo annnneiava pro\in)a uma lacta cruenta. í'o'
lomba, aipienia \ieloria ensinava a moderação, lon-
ge de se op|)âr favoreceu estes eíforço."! ditondo lu»
seus amisos :
204
O PA1VORA3IA.
— 11 (Aue chorem, coitados 1 . . . Épai, eelleseram
o sangue da sua alma — deixa-lo ir em paz, o trbte
velho! . . . Guidice Barricini I Lembra-te do dia íi
d'agosto ! Recorda-te da divida que os dedos mori-
bundos de meu pai lançaram na sua carteira. A tua
mão do falsario apagou a lettra, mas teus filhos pa-
gam-n'a agora. Estás quite, Barricini — vai-te era
paz 1 "
E com os braços cruzados, e um sorriso de despre-
zo errante na bocca, assistiu á entrada dos cadáveres
na casa inimiga. Depois, quando o povo se retirava
por todos os lados, cerrou a porta, e entrando na sa-
la disse ao coronel :
— "Peço perdão ao coronel Nevil cm nome dos
corsos — atiraram sobre esta casa, é porque não sa-
iriam que abriga\'a uni estrangeiro. "
O coronel respondeu com certo enleio um pouco
ridículo :, principiava a julgar bastante possivel que
as maldictas discórdias da ilha acabassem por lhe alo-
jar um par de bailas na cabeça — cousa que reputa-
va muito seria e digna de maduras reflexões. Mas,
consultando sua filha sobre a opportunidade de uma
retirada atempo, com desgosto se achou repellido, e
foi obrigado a capitular de um modo nada airoso.
A noite correu agitada para todos. Em quanto sir
Thomaz sonhava que os Barricini o surprehendiam
em camiza, e o empalavam n'um poste erguido no
alto da chaminé, sem curarem dos seus protestos bri-
tannicos, miss Lidia, fechando os olhos, via a ima-
gem de Orso, pallido, ensar.guentado, em convulsões
atrozes. Depois a memoria representava-lh"o de joe-
lhos, como no dia da despedida, beijando otalisman
que d'ella recebera . . . Accusava-se de ter sido causa
do perigo que o ameaçara — pela vér ura instante
mais cedo éque se fura expor á morte — e a valentia
heróica da sua defeza ? Só, e ferido, contra dois ! . . .
O amor, a saudade e a dòr luctavara assim, e ven-
ciam junctos ao mesmo tempo no seu coração.
O quarto onde dormia era o de Colomba. De re-
pente, levantando os olhos, viu o retrato de Orso, em
miniatura, de uniforme de tenente, suspenso na pa-
rede. Miss Nevil, hesitou, ergueu a mão, resistiu, e
por fim não teve forças e desprendeu-o. Em logar
de o tornar a pendurar, ]iousou-o no travesseiro, e,
adormecendo já sobre a madrugada, a primeira cou-
sa que viu ao despertar foi Colond)a, que de pé ao
lado da cama esperava que acordasse.
— "Ha noticias d'elle ? " perguntou Lidia assen-
tando-se ; c vendo o retrato corou, cá pressa deitou-
lhe o lenço em cima.
Colomba viu, e sorrindo, respondeu: — nJá re-
cebi noticias. » E, tirando o retrato com a maior
naturalidade, accrescentou : — n Acha-o muito pare-
cido ? . . . Eu digo que Orso 6 melhor. »
— " ^'alha-me Deus '. — acudiu miss Nevil enver-
gonhada— qucmáu costume que tenlio do desarran-
jar tudo . . . Mas como está seu irmão ? "
— "Muito melhor. Veio de lá Giocanlo n trouxe
uma carta. . . para vós — Orso não me escreveu a
mim . . . porém as irmãs não são ciosas. Giocanlo
dissc-me que Orso mal podia escrever, mas assim
mesmo não quiz que ninguém liio pozcsse aqui npen-
na. Estava de costas, e Brandolaccio segurava ojia-
pel. A cada instante meu irmão queria levantar-sc.
e com o movimento eram diíres cruéis, qvu' o alri-
l)ulavam . . . mas emfim cá está a carta. >»
Miss Nevil leu-a immediatamente. \inha cscrip-
ta em inglez para maior precaução. Eis o que cila
continha.
— "Senhora. Foi o destino que me precipiloii.
Não sei o que dirão os meus inimigos, nem me im-
porta, <;eo«não acreditar. . . Desde o dia cm que nos
vimos affaguei esperanças . . . atrevidas de certo e
talvez loucas. Agora, que já vejo o futuro, e me re-
signo a elle, sinto que para mim tudo se acabou na
terra. Este annel, talisman da minha ventura, dado
na única hora ditosa que vivi. . . já não o posso guar-
dar . . . receio que o anjo que m'o deu se arrepen-
desse ... ou que vendo-o eu, enlouqueça mais. Co-
lomba o entregará I . . . adeus, senhora, adeus para
toda a vida. Oh ! se ao deixar a Córsega, uma pa-
lavra só, dieta a minha irmã, me affiançasse a sua
estima . . . ao menos seria feliz um instante mais. —
O. D. R >.
Lidia não ousava nem levantar a cabeça i Colom-
! ba oflerecia-lhe o annel, e ella nem o recebia nem o
j recusava.
— 11 Posso saber o que diz meu irmão ? Está mc-
I Ihor ? "
I — " Não sei . . . — não me diz nada — balbuciou a
ingleza, còr de rosa : — pede-me que diga a meu
pai ..."
I Colomba, sorrindo com malícia, assentou-se sobre
a cama, pegou cm ambas as mãos de miss Nevil, e
fitando-a cora penetração :
— " E tão má comigo ! . . . — Promette responder
a Orso .' Elle ha de estimar tanto . . . tive tentaçOes
de a acordar logo que chegou a carta, mas tive me-
do! ... >'
— "Oh ! fez muito mal ! . . . Entretanto se uma
palavra rainha podesso . . . i»
— "Tudo. Mas agora não. Chegou o perfeito, e
Pietranera está cheia de correios . . . Ah, miss Ne-
vil, se conhecesse meu irmão I . . . amava-o como
eu ... "
— "Pobre de mim — que o amo talvez mais I <•
murmurava comsigo Lidia suspirando.
Mas oste voto ficou silencioso no coração.
Assassino d'1Iemuíiie III de Fr.\>ça pkio
FRASE JACaCES ClEMENTE.
A Fkakça, no desgraçado tempo de Carlos IX, era
preza do todos os horrores das guerras intestinas, os
catholicos contra os protestantes, a casa dos Guises
coiitra a dos Bourbons procuravam dcbcllar-s% até o
exterminio , bastará citar a matança do dia de S.
Bartholomeu. Depois d'cslc actoodioso dofinalisnio
Carlos IX pouco temi>o viveu :, e seu irmão Henri-
que III largou a Polónia para acarretar sobre a Fran-
ça novas calamidades. No seu regresso achou o reino
dilacerado por dois partidos : o dos protestantes re-
formados, renascia das ciozas, violento como nunca,
tendo ásiia frente. Henrique oIMaguo, que então era
rei de Navarra. O outro partido era n Lirn. facção
poderosa, gradu.-Jmcnte formada pelos prineipes Jo
Guise, excitada polus papas, favorecida da ííespa-
nha, cque de dia para dia aagmciit.-.va por artificio
dos frades : era capitaneada pelo duque de Guise,
prineipe de estrondosa reputação, c que tendo mais
c;iialidades notáveis do que boas parecia nascido pa-
ra mudar a face do estado n'aqucllc tempo de dis-
córdias. Henrique IH, em vez de esmagar t>stcs par-
tidos sob o peto da auctoridadc real, fortalcceu-os
por sua fraqueza : ass<'ntou ler feito um prtxiigio ein
politica dcclarani}o--e cal-eça de liga ; o facto é que
não foi mais do que estravo d'esta : pelos intcre»'>i'<
do duque de Guise, que pretendia defxVlo. \iu-s.-
obri'.;ado a fazer guerra u Henrique de Navarr.t, seu
cunhado cseu herdeiro presumplivo; porém o exer-
cito quen\andou contra t^le foi desidratado em Cou-
tr;>s. (.>monarcha de Navarra não queria outro fruc-
lo da \ictoria scuuo a rocoueiliaçào «>m o da Fran-
o PANORA^3IA.
205
ça, e vencedor como era pediu a paz, mas o vencido
não ousou acceita-la, por temor do duque de Guise
e da Liga. NVste mosnio tempo Guise acabava de
pôr em fugida um exercito de allemães, e soberbo
com a sua gloria, forte pela fraqueza do soberano,
veio a Paris contra ordem expressa. Houve então o
<'elebre dia das barricadas, om que o povo repelliu
as guardas rcacs, e Henrique teve de fugir da capi-
tal.— Guise ainda fez mais, obrigou o rei a abrir
os Estados geraes do reino em lílois, o de lai modo
dispoz as cousas que chegou a ponto de tomar parto
da auctoridade real por consentimento dos que re-
presentavam a nação e deljaixo da apparencia das
mais respeitáveis formalidades. — Henrique, acorda-
do por tão instante perigo, mandou assassinar no
castello de Blois aquelle inimigo temeroso e o irmão
d'elle, o cardeal, ainda mais arrebatado e mais am-
bicioso que o próprio duque. — Por este successo^e-
bellou-se Paris, e a Liga tirou a mascara, pretextan-
do que Henrique matara os defensores da religião.
Henrique IH n''esle apuro viu-se necessitado apor
sua parle fazer também liga, associou-se com o seu
presumptivo Iierdeiro o ri-i de Navarra, cambos vie-
ram acampar diante de Paris. N.ío é nosso intento
referir os vários successos doesta guerra, em (jue en-
trou parte da Europa •, a Inglaterra a favor dos dois
Henriques, e a Áustria e a corte de Roma protegen-
do a Liga. — Henrique III estava quasi a tomar Pa-
ris, quando foi assassinado em S.lCloud por >ini fra-
de dominicano, Jacques Clemente, o qual estava per-
suadido de que agradava a Deus o alcançava o mar-
tyrio.
.)ac(|ues Clfiuenle era um fanalico exaltado, qu(!
os outros sectários da Ijiga excitaram, (í |)re[iarou-.si!
])aia cominei ler um crime com todos os actos religio-
Hosque faria um bom clirislão coiuuuttendo imui cm-
prcza arriscada nia.s justa : coMfessous<' e commun-
gou i e ('(imo era eipiado pelos seus observaram, (a-
tando elle a dormir em aiKjilií precedenle ao delic-
io, (ine liidia a Itiblía abi'rla no capitulo do assa.ssi-
uio de llolo[)lu'rnes por .Imiitli. — Jacíjues iipuiilui-
loii a hua victima em a noile de um para dois de
agosto de 1389. Depois de justiçado imprimiram os
seus consócios uma relação do intitulado martvrio,
em que se contam visões que do céu ti\ era o miserá-
vel frade para commetter oattentado, que não foi o
crime simplesmente de um fanático, mas de todo o seu
partido; sendo a opinião e crença de todos os da
Liga que se devia matar orei se estivesse desavindo
com a corte de Roma :, assim o publicavam pregado-
res em seus niáus sermões, ese escrevia em péssimos
livros, alguns dos quaes se conservam como documen-
tos curiosos de um século tão bárbaro em letíras co-
mo em costumes. — Henrique III era um animo fra-
co c um poço de vicios •, causa nojo a narração das
suas torpezas.
Dos .MEIOS aVE os UOMEKS TÈEM JILG.VDO PRÓ-
PRIOS I'Aa.V SE LIVR.iREM BOS n.\IOS.
(Continuado He pag. 184.)
FiND.VDos em certas analogias, admitfcm os physi-
cos que o raio sempre respeita o vidro. Pouca disfan-
cia vai d esta opinião asuppôr que uma gaiola toda
feita lie vidro seria um logar de refugio perfeitamen-
te seguro ; e por isso houve quem propuzesse, e até
chegasse a construir, gaiolas d'esta matéria para ifso
das pessoas muito medrosas dos raios.
Certamente que estou muito disposto a crer que
na occasião de trovoada um envolucro vitreo altenuu
uma pequena parte do perigo, mas não posso admit-
tir que o dissipe de todo. As minhas du^idas baseam-
se no seguinte : ,
O terrível raio caído no palácio Minuzzi, no ter-
ritório de Ceneda, em ia de junho de 1776, furou
ou quebrou mais de oitocentos vidros de vidraça.
(iuando a Mr. James Adair o lançou por terra,
em setembro de 1780, o violento raio <pic matou dois
ou Ires criados na casa de East Bourne, estava elle
pordetraz d'uma janella envidraçada. Nenhum dani-
no sollVeu o caixilho da janella, mas os vidros desap-
pareceram completamente, reduzidos a pó pelo raio.
Em rigor, é admissível asupposieão de que a rup-
tura dos vidros é consequência do abalo do ar, sim-
ples elleito do estampido, da detonação. Vamos a fac-
tos menos duvidosos.
Em 17deselemlno de 1772 caiu um raio em Pá-
dua sobre um casa situada cm Pi-cdo dilla falir, e
lezn'um vidro da janella do pavimento baixo um liu-
raco redondo e lizo como faria uma broca.
O engenheiro Caselli, d'Alexandria, notou i'ni
1778 nos vidros das suas janellas, logodcpois da que-
da de um raio, Iniracos redondos, quasi sem rachas
adjacentes.
Tendo caído um raio, em setendjro de 18:21, em
Milton of CuitUHjc, em casa de Mr. ^Villiam líreni-
mer, appareceu unidos vidros da janella com um bu-
raco circular da grandeza d'unKi baila de espingarda :
no resto da sua extensão não appreseutavii osto vidro
uma só racha.
Um buraco sem lascas, perfeitamente circular, nSo
pôde .ser elleito do estremecimento quo resulta do es-
trondo. Se necessário fosse poder-sc-hia citar m.lis es-
l<! caso para prova da ra|>idez extrema con» (|ue ca-
minlia a matéria fulminante, t) liuraco do vidro do
IMr. lireniuior fortilica us observações dcstacadiís de
J'adua I' de Alexandria.
JOstas observações reunidas hão de desengaiuir al-
gumas ))essoasqueiinagina\am serem «s vidraça» b;ir-
reiras que o raio não ultrap.issava.
l'or mil exemplos se aelia provado que o raio já-
niiiis eác( sobre n homem nu mulher sem atacar i'iuu
mais empenho as parles un-tidlicas do ^eii vestuário.
20G
O PANORA3IA.
róil(;-í>c pur lauto atlmiltir <jue os metaes auçmen-
taiii sensivelmente o perigo de ser fulminado quem
(js traz comsigo. Ninguém negará ahyputhese imun-
do setracte demassas metallicas d"algum vulto. Em
todo ocaso direi que, em 21 de Julho de 1819, caiu
um raio na cadeia de Bibcrac (Suavia) (ífoi ferir na
sala grande, no moio de vinte prezos, um capitão de
ladrões já condemnado, que estava agrilhoado pela
cintura.
Será difflcil a defeza da hypothese quando se trac-
te das ténues i)artes metallicas que entram nos nos-
sos vestidos ordinários. Não poderei eu todavia qua-
lificar com o nome do prova a observação curiosa fei-
ta em Bróven, em 17G7, por Saussnrc e os seus com-
panheiros de viagem ?
No meio do tempestade, quando os observadores
levantavam a mão e estendiam um dedo, sentiam na
extremidade d'e!le uma espécie de formigueiro. nMr.
Jalabert (nos diz o celebre viajante), que tinha um
galão de ouro no chapéu, ouvia, além d^isso, á roda
da cubtca um zumbido medonho. Tiravam-se faíscas
do botão do ouro do chapéu, assim como da virola de
metal d'uma bengala comprida que levávamos com-
nosco. "
Dai á trovoada qualquer porçãosinha mais de in-
tensidade, o o leve galão de ouro eo pequeno botão
de mal se converterão, em circumitancias semelhan-
tes ás de Eréven, em causas de explosão, e Mr. Ja-
labert será fulminado com preferencia aos seus visi-
nhos, cujos chapéus não tiverem enfeites de galão de
ouro, nem botões de metal.
O fato seguinte, referido por (^onslantini em 1749,
ainda presta uma prova mais directa :
Eslava a Irovejar, uma senhora estende a mão pa-
ra fechar ajanolla ; parte o raio, leva-lh(^ o bracelete
de ouro que trazia, sem deixar vestígios d'elle. A se-
nhora só ficou ferida muito ao de leve.
Sem estas observações preliminares causaria admi-
ração o colligir ou aqui a explicação que o celebre
viajante Eridone dou ao caso acontecido a uma pes-
soa do seu conhecimento, a Madame Douglas.
Estava esta senhora á sua janclla a olhar para fo-
ra em occasião do trovoada. Fez um trovão, e o seu
cliapéu, somente o chapéu, ficou reduzido a cinzas.
Na ojiiniào de Mr. Eridone tinha attrahido o raio o
delgado fio metallico que guarnecia o contorno do
chapéu, e a que estava preza a fazenda. Propõe por
este motivo que se deixem doestas cercaduras do me-
tal, o declara-se contra a moda, muito seguida, de
■segurar ou enfeitar os cabcUos com alfinetes e tran-
ças de ouro ou prata. Temendo, com justa razão, que
os seus conselhos não fossem attcndidos, pedia « que
cada mulher trouxesse comsigo uma cadeiasinha ou
um fio de arame de latão para prender, quando hou-
vesse trovoada, ás partes metallicas do chapéu, afim
de tjuo por clle se escoasse a matéria fulminante até
o chão em logar de abrir caminho por entre a ca-
beça e os membros inferiores. ■•
Em resumo, é melhor, quando troveja, não ter me-
tal comsigo \ mas vai a pena do scismar no augmcn-
to do perigo quepódcm cansar um relógio, os brincos
das orelhas, odijdieiro, as tranças ou agulhas metal-
licas do que as mulheres us;im .' Esta questão não i-
susceptível d'uma solução geral, porque cada qual ha
de encara-la atravoz dos seus preconceitos, cdeL.\ar-se
possuir mais um menos do medo quo o meteoro lhe
"'^pirar. (Aiiago.)
O M
AELSTIIOM.
U.M.v das circumstancias da minha vida marítima
não se pode explicar senão por um milagre. Como! i;o, ^uwiiio «l;um (cmpv.
me expelliu vivo a voragem que me tragou? Porque
prodígio saídoabysmo que jamais solta a sua preza?
Depois de ter sentido todas as angustias da morte,
que predestinação me obrigou a viver para revelar
aos homens os mjsterios d'uma situação de que niu-
guem escapa ? Tenho conservado presentes no pensa-
mento todas as particularidades d'este dia ; o seu
terror é inseparável de mim, a sua impressão é in-
delével. Vejo o navio impellido pela fatalidade para
a destruição a quo não pode esquivar-íe \ ouço as
conversações dos homens no seu agonisar ; çravou-se-
me na memoria a expressão de seus semblantes, sei
tudo o que om torno de mim aconteceu. Estas pagi-
nas, que algum valor teeni nos annaes da humani-
dade, vou eu escrc:vê-las. E forçoso ; que, a não ser
eu, nenhum outro tem os mesmos documentos para
poder dizer o que é uma companha attrahida pelo
Maelstrom (1), eoque sente, eque tragedia enlucta
o convez do navio, e como se realisam esta absorp-
ção, este naufrágio na bonança, esta ruína sem es-
trondo, ao sol claro e em tempo sereno.
— II E sexta-feira : o capitão quer largar \ não faz
bem. ■'
Assim fallava a bordo da Jovcn Suzanna, schoo-
uer (escuna) escoceza, o contramestre Braerigg, de
braços cruzados, encostado a uma caronada e com os
olhos levantados para o céu. No mar da Norvvega s«'
espelhavam esses raios desbotados do sol do outono,
que alumiam a natureza, m;is não a penetram nem
a vivificam.
Uma menina escoceza, roais alva e descorada do
que os raios do s<j1 da Norwega, repousava um dos
braços sobre o braço de seu pai, velho que no trajo
annunciava pobreza, no rosto inspirava respeito, e
cujos eabellos lhe haviam encanecido na practíca de
todas as virtudes. IMac-Read era ministro da igreja
presbiteriana :, a pequena distancia d*cste grujH) es-
tava Helena, filha mais velha do sacerdote, com os
seus eabellos negros e feições cheias de nobreza e cn-
thusiasmo, sentada sobre um feixe de cordas, ouvin-
do os contos do criado Donald, natural de S.tírling
na Escócia, adherente á familia ])or uma d'estas as-
similações que só por lá se encontram, e persuadido
de que as duas meninas, Helena e Sprighthv , nãi>
oram menos suas filhas do que dcMr. Mac-Re.-id, s»-
é que o não eram mais.
Continuava a conversação entre o contramesti* <■
>Iac-Read.
— "Sim, dizia o contramestre, é sexta-feira. E
vôr como a nossa gente traballia i parece que se não
mechcm. Assim não se faz nada d'ellcs. '•
— ii Como, interrompeu a fdba mais velha, é su-
persticioso, senhor contramestre ? ■'
— li Oh I cu não digo tanto, menina. Lii em ter-
ra não me importa a sexta-feira ; mas quando agen-
te precisa dançar por cima d"es(.i5 aguas aiues, <■
manobrar com todo o tempo, haja Itorrasca ou baja
bonança, á fé de quem sou, embirro con» a sexta-fei-
ra i porque a maruja ninjuem a leva para onde quer
quando não está contente. Est.mdo alegres trepam
(i; O Alail-troin oii MaUtruiii c um immenso rcinoi
nln> ou vortitt'. a>vi:;iuiliul(i \*v\o> ii,»\o^:intcs ciilroit* ilha^
^^<lul'n c ^lorkcn, >iln,ul;i~ unoroium árctico in» riT'-'^"
liititiule >'. c 11" 44' loiípilude I.. O nniçúlo <l'o>l,n >o-
riigcin ouvr-sc » niiiitav Ic^uns de di.t.inrin. o o »cu poder
de ])ttracção e lito forto. q\ic os iia\io^ que lí.T.-aiii pvh'
ln.'d\'llosi'uiarr«>liido'.au'»orvcdoun>. A for^adU^^-lcroiiioi
iili», di< >lr. .Malti- lUiiii, rro»ce alguma- vr/o> |>cla ton-
ccrmu ia de iluav ■.»:;írt's choiíi^ orontrari.i>, mi }h*I.> ai^r»-
! dii> MMito». \rrasta o« na^io'•. <lf>iH.>ita<,'a-o» dt ciirontri'
ao> roclieda^ on o> atiiuda, e di-i\n npiwrerer o> dcjtro-
o PAINORA31A.
207
lestes pelas enxárcias, ontoa-sc a cantiga ao som do
apito, todos os músculos se reforçam, parece que a
esperança arromba o coração; despreza-se a terra e
brinca-se com o mar 1 mas d 'uma tripulação zanga-
da, como esta, que diabo (|uercni que se faça ? »
— it Contramestre I bradou uma voz estrondosa,
onde está esse cão das montanhas, esse Campbell?"
Era o capitão quem fallava.
— lí Dorme, respondeu o contramestre :, í^ampbell
está doente. "
— i! Dorme ". não quero cá doentes! n
— 11 Tem febre, segundo diz o cirurgião. Ainda
esta noite, capitão, estando deitado na maca, teve
uma visão, das taes visões do iiiierno ! "
— «Que o levem todos os diabos do poço infernal
ao Campbell mais aos seus agouros ! gritou o capi-
tão, praguejando muito de rijo para toda a campa-
idia saber que ocapitão tinha praguejado. — Mette-
ram-me a bordo um mono das montanhas, um ma-
rujo dos tojaes, que me assusta o deita a perder a
companha com as suas visões ! "
— li Capitão, queria pedir-lhc, com o devido res-
peito, por parte da marinhageni, um favor em que
'•lies fazem grande fincapé. "
— a Ah ! "
— «Esperam que não se faça á vela senão ama-
nhã. AJoveii Suzmina, fie-sf! em mim, nunca seiez
á vela á sexta-feira. !'
O capitão não ouviu o íini da plirasc, voltou cos-
ias ao contramestre, vomitou pragas contra a sua
gente, e accendcu-se em tal chol(!ra que as vozos to-
das suniiram-se e todos os rostos enfiaram. A mano-
bra não se fez mais rápida -, os marinheiros olhavam
uns para os outros com um modo desconliado e tris-
liudio. l'artiu aJovcii Siizaium. Oagastamento rei-
nava na embarcação ; ocapitão passeava, de mãos
alraz das costas, proeurandcj occasião de ralhar, o
ereando-a quando não a descobria. Campbell, o es-
<!Ocez da segunda visia, que tinham obrigado a le-
vantar-se, havia saído da coberta, e fazia .i sua obri-
gação resmungando. De repente?, deu-lhe vontaiie de
começar o 7va{l, lamentação inarticulada, cântico <le
mortos dos escocíízes selvagens, ululo modulado, solu-
çar sem lim, suspiro prolongado que semcllia ao ge-
mido do vento nas calhedraes. O veliio criado esco-
ecz levantou a cabeça e reconhcci'U o cântico fúnebre
do (ían (tribu) dos Camplxill. Helena fez um gesto
de terror, e Sprightliy, a innocente menina, desfez-
se em pranto. A lembrança da morte e da pátria
despertaram-se-lhes simultâneas no pensamento.
Cjunio quer que seja, estes presagios cedo se reali-
saram. Anniinciaram uma borrasca, o vento saltou á
proa, o mar cobriu-se de escarcéus ; declarou-se em
breve atormenta. A manobra fez-si>lenlanu-nte, fer-
raram todas as velas, mas com frouxidão, sem dili-
gencia, como se lhe» falhcéra a i'sp('iança. A supers-
tição, renegando do futuro, matando a ejiergia, an-
iii(|UÍliou o sentimiMito da conservação. Vacillava (í
estremecia o navio com o <'mbate das vagas, como
estremece no seu leilo o lebricitante. Kesi-itia, (!om
o auxilio da sua eonstrucrão e da roliuslcz do caver-
name-, mas o rumo (|ue seguia era ojiposlo ao que
ilevi^ra seguir. l'or cinui e deredor da Joi\ n Sintiit-
iiti, ao longo das es(H)tilhas, alvijnva a escuma e bra-
mia o \agalbão, (jue rebentava em llòr, batenilo-a
lomo o aricte bale a-í inurallias. Toda a noite se le-
vou a dar ás bondtas ; ji ngua entrava pelo porão, e
o mais que a tripidação pcjude fíizer foi lançar fora
i.'sta agua, e pi\r o navio em i'stado ile navegar.
Ma» (|ue navio! Viu dos mastros desappnreeí^ra :
foi preciso picar ooutro. (J i!s(|Meh'lo ou o cadáver da
Jíircn Sií^Kitiia seguia a sua derrota sobre o alivs-
nio, que sacudia, roncando, os destroços da escuna,
tão ágil e louçã, tão forte e veleira ainda ha pouco.
Dentro d'este ataúde, arrastado pela tormenta, esta-
va uma chusma desanimada, que só por habito fazia
o seu dever. O heroísmo dos marinheiros é obedecer
e trabalhar, mesmo quando do heroismo e do traba-
lho nada esperam senão a morte.
— «Meu pai, ha esperança?» perguntava uma
voz suave.
— .1 Oremos junctos, minhas queridas filhas» res-
pondeu o ministro presbiteriano com os olhos choro-
sos e o peito anciado.
C) orar d 'esta voz veneranda, o susurro das folhas
da Biblia, que os dedos do velho viravam, as respos-
tas das meninas, pallidas e deitadas nas suas macas
a luz tremula de uma alampada, nunca me sairão
do pensamento. A morte bramava no céu e nos
abysmos, a morte cercava o navio ; o capitão bebia
rhum para reanimar, não o valor, mas a esperança ;
a marinhagem extenuada luctava ainda ; e a embar-
cação, com a ajuda de uma vela que haviam arma-
do, seguia avante, incerta, sem governo.
— 11 Então, Donald, exclamou ocapitão depois de
passada esta noite, sempre demos conta da tarefa. O
vento amainou. Está um lindo dia. O seu Campbell
áaseijunda vida é um pateta:, não havemos de mor-
rer por ter dado á vela á sexta-feira. "
— 11 Estamos muito estropeados : >; respondeu Do-
nald.
Campbell, que ia passando rente com elle, asso-
biou pausadamente a sua melodia lúgubre.
— «Almoçar, rajiazes ! gritou ocapitão-, um copo
degrog a cada uni pela faina (jue tiveram! hourra ! »
Ninguém respondeu a este viva do chefe i as testas
não se desfranziram, nem se desgravou dos rostos o
sello do terror.
— "A Jovcn Suzanna precisa mais da sua mas-
treação (jucí nós do almoço )' niurnnirou um mari-
nheiro.
Todavia a névoa da manhã, desfazcndo-se grada-
tivamente, descobria no liorisonte grupos de ilhotes
picturescos. A ira do oceano apasiguára-se -, liso era
o mar como um espelho, mudo qual o tumulo, due
murmúrio rompe este silencio ? que soído é este que
parte de tão longe, indistincto, confuso, crescendo
mais e mais, e semelhante ao zumbido de um enxa-
me de abelhas ? Toda a campanha subiu á tolda;
nem respirar «nisavam. O capitão ficou immovel ao
pé da escada da coberta; o contramestre, debruçado
na proa, com o pescoço estendido, o corpo dobrado,
os olhos sem pestanejarem, escuta com anci.dade ; >•
seu ajudante, que levantara a mão para dar ordens,
licou com a mão levantada e suspensa. Depois de
dois minutos d'este silencio, dVsta angustia, dVsto
torpor, todos os olhos do navio enecuitraram-se, en-
I<índerani-se, adivinharam-se. O contramestre foi-sc
direito ao capitão.
— «Ah! disse-llie elle, estamos perdidos di- todo,
é o Maeistrom ! ><
— «O Maelsirom ! -
l'"oi um celio ile morte, vinte, trinta vezes ri-peti-
do, <|ue(liscorreu lodoonavio; depois calou-se tudo.
— ..O (pie é o IMaeIstroin ? " perguntou ingenua-
meiíte a mi nina Spriglitli}'.
Donald ricomcçou o canto dos finados. l'm maru-
jo, com o peito nu, que acaliava de engolir um copo
de grog, respondeu : — « K a morte ! •>
— 11 Andar, rapazes, bradou ocapitão com voz de
trovão, míios á obra eiuii mil raios ! outro mastro,
outra vela! Trabalhar I tral>.illiar ! ■•
( l\iittii)iiii.)
208
O PAi>ORA3IA.
Annincio dos i'artos em Ha.vkle.m. j
Q.UANDO discorria as ruas de Haarleni, causou-ine
grande admiração vúr penduradas, ao pé das portas ,
de algumas casas, grandes eniui elegantes almofadas, i
guarnecidas de rendas, e semelbantes em tudo ás ijue i
se encontram sobre o toucador das senhoras de mais |
tafulaTÍa. Eslava longe de adivinhar o motivo de tal I
liso, e ainda o ignorara, se uma senhora d'aqueUa I
cidade não tivesse a bondade de m^o explicar, u O '.
nascimento d'uina creança, me disse ella, annuncia- i
SC d'esle modo-, quando o chão da almofada écòrdc
rosa, é signal de que veio a este mundo uma meni-
na i se o chão da almofada é azul annuncia que foi
um menino. Estas -almofadas conservam-se expostas
quarenta dias, e se acaso o marido é perseguido por
dividas não lh'as podem pedir n'este praso. (A cur-
te de HoUanda no fempo cie Luiz Buonaparie. Pa-
ris 1823.)
Os cAVAtios DE Veneza.
£ntr£ as obras artísticas que nos ficaram da anti-
guidade, nenhuma Jia cuja existência fosse mais
aventurosa, nem por tantas vezes arriscada, como fo-
ram os celebres cavallos de bronze dourado, conheci-
dos pela denominação de cavallos de Vencxa.
Quando os francezes e os venezianos se apossaram
deConsíantinopola, em 1204, acharam alli os derra-
deiros restos das riquezas artísticas da Itália e sobre
tudo da Grécia, que haviam sido poupadas quer pe-
las invasões dos bárbaros, quer pelos incêndios, n'essa
epocha quasi tão frequentes n'aquella capital como
em 03 nossos dias. Porém os latinos, tão ignorantes
como avarentos, fizeram pedaços e venderam a pczo
indistinctamentc as estatuas de bronze, as quadrigas
de metal, que adornavam por toda a parte as praças
publicas, e as suas devastações não tiveram termo se-
não no momento cm que o espolio do saque foi re-
partido entre os vencedores.
Os quatro cavallos de que fallumoí tinham sido pre-
servados dos incêndios pela sua elevada postura no
híppodromo •, por fortuna escaparam também da avi-
dez dos espoliadores, e llzerani parle do quinhão que
coube a A eneza, para onde os mandou transportar
no seguinte anno opudcsiú Marino Zeiio. Durante o
trajecto quebrou-se o pé de ura e separou-se da per-
na ; Domingos Moresini, commandante da galé em
que os haviam embarcado, pediu e alcançou guarda-
lo •, o tal pé foi primeiro assente i^um pedestal em
casa particular, e depois coHocado no an;ulo de uma
rua. Os cavallos, logo que chegaram, foram mellidos
. no arsenal, onde permaneceram por muito tempo
ignorados e esquecidos, até que unsenibaixadoros ilo-
renliiios deram a conhecer o \ alor d'aquelhi obra ;
resolveu-se que fossem tirados de um logar que lhes
causava estrago, porque de dia para dia se despega-
vam parcelias da basta folha de ouro que os rec^mia-
va •, collocaram-n"os então sobre a portada principal
da igreja de S Marcos, depois de terem substituído
o pé que faltava por outro do mui inferior mereci-
mento. Ignora-se a epocha d"esta disposição ; e só por
fins do século XV se acha pela primeira vez menção
d"aquella obra nos escriptores.
Os francezes, em 1798. tiraram de Venera aquel-
les cavallos de bronze para os trazerem a Paris, onde
assentaram cada um em pedestal separado, e depois
osjunclaram a um carro de bronze, que foi posto em
cima do arco do Carrousd. Em ciimprimenlo dos
traclados de ISlii foram restituídos a Veneza, c oc-
cupam actualmente o sou logar antigo sobre a {wrta- | que lhe não pa,'o
da do templo de S, Marcos. baque. ••
Tal é a parte histórica d'estas escuJpturas desde
120Í. Tem-se porém suscitado uma disputa, viva-
mente ventilada, acerca do sitio d"onde foram toma-
dos para os levarem a Constantinopola . Segundo uma
opinião bastante antiga e acreditada por muitos es-
criptores, tinham pertencido a um arco de triumpbo
de Nero em Roma, cos levaria Constantino quando
estabeleceu em Bvzancio a sede do império : funda-
va-se ella u'uma medalha de Nero, em cujo reverso
se vê o arco erecto em honra d'este imperador, co-
roado por quatro cavallos com duas allegorias davic-
toria i e demais d'isto pretendiam que os cavallos de
\ eneza, carnudos e roliços nas formas, estavam lon-
ge de se parecerem com os cavallos gregos, que os
baixos relevos do Parthenon representam seccos, del-
gados e de contornos angulosos. — Para refutar esta
segunda asserção basta lançar os olhos sobre grande
numero de medalhas gregas em que se acha o t^-po
dos cavallos de Veneza ; e quanto á primeira é des-
mentida por muitas passagens de escriptores bvzanti-
no : entre outros umauctor anonymo de um opúscu-
lo sobre as antiguidades de Constantinopola exprime-
se n"estes termos : " Os quatro cavallos dourados que
se vêem sobre os caccci-ts no híppodromo foram tra-
zidos de Chio em tempo de Theodosio o moço n Ain-
da mais ; Nicetas, designando mui claramente os mes-
mos cavallos pela sua collocação n"aquelle circo, os
representa «com a cabeça um pouco encurvada, vol-
tando-se uns para os outros, e exprimindo o ardor
na carreira, " o que se verifica nos que existem em
Veneza. — Tendo morrido Theodosio o moço em 1 450.
vê-se que na primeira metade do século \' é que fo-
ram transportados de Chio. Quanto ao tempo em que
foram feitos nada se pôde dizer com exacção : a mais
provável conjectura é a que os attribue a al:;um es-
culptor de Alexandre Magno ou dos seus primeiros
successores. Adouradura que os reveste, lon^e de in-
dicar epocha de decadência, demonstra remota anti-
guidade clássica das artes. Quanto á belleza de tra-
balho, tem sido exaggerada ; no entanto passa por
provérbio na Itália. \ sua maior notabilidade pro-
cede de terem viajado successivamente de Chio a
Constantinopola, daqui para ^ eneza, d* esta para Pa-
ris, e a final de Paris para Neneia.
Mercês desbonbosas.
] QvANDo as mercês não são prova de ser homens, se-
] não de ter homens ; e quando não significam valor,
senão valia ; pouca injuria se faz a quem se não fa-
zem. Dizia com vertladeíro juizo 5Iarco Tullio, que
as mercês feitas a indignos não honrara os homens.
aiVrontam as honras. E assim é. .\s commendas em
' semelhantes peitos não são cruz, são aspa ; e quando
I se vêem tantos cnsíimlienitados de honras, bem vn-
podeis honrar de não ser um d'elles.
^IEInv — Si/m<J(s.
j .\ MEl.IIi.M-. TUAl'A5.\.
j Dois jogadores, a qual d*elles mais velhaco, c^nvi-
1 daram-se para se depenarem um ao outro sob condi-
I ção de se admíttir no jo^o toda a casta de trapaça.
I Lm d"ollcs fez quanto sabia, — cnão sabia pouo) —
! para) desbancar o parceiro ; o outro jojou liso e per-
deu sempre. — " P.igue-me tanto •• bradou o trapií-
ceiro. — ..Alto la. rospondeu-lhe o fsomttn df htm;
vijcê fez quantas trani(H>!inus quii, eu dcíxeí-o, por-
' que até o lavar dos cestos e vindima. .\gor.i digo
Esta é a melhor trap.iça. só bas-
27
o PANORAMA.
209
DAVID VSXCEOOR.
O MKSF.ii do Miirsollia lui riiiiil;i>li> om 1S():i pnr dis-
|iosi(,rn) de Itiionaparti*, iMitãii |iriiiii'lri> i^misiil. <■ da
iiiPbinii niiiiicir» a l)ilili()tli>-c,'i, o janliiii bnliiiiiin i-
o ga)iiiii-li- dMiÍHlDria nntiiral da iiifiiiia cidade. I''i-
zeriii» !>!' tio iiiilii;n conviMilo ilos lliTiiardos a» lUíron-
narias acciímiuiidiíròfs para ri'i(dlii'r cii livros r pai-
linis, <• foi i'iii'arri';;ada iiiDa íMiiiuiiisHão ilo os i>M'(dlii>r
dV-lilrc nina i'oll ■ào iiiiincroHa de nliriis a il isl icn»,
oiK' liuraiili' a ri'Milni;ão linliaiii saído dos il.iuslros,
igrojatt, I' i'asl(dlos. — [''oriíiiido com o |i>'i|iii>iii) iiu-
mero (It! piíil liras prcIíTldas pof i>sla iiMiiiinsM"io, ii«
dadivas di- al'^'iiis iiiinislros c as olVnlas ilc variíis
parliriilarrs, o iiiiisimi de Marsidllrt <(iiiipridiriiile lui-
je cento « idiieoiMita painéis i a colloeaçiM) é pi<ssiinil,
receheiído os oliji^elos mal a liir, o (pie pii'jil liea iniii-
lo o eITeilo ipie di'via causar esla líaleria — Niini
\vi.. \ - -^I vr.r.. 1:1. IS':.
local coiisai;rado á arle devcni ter a arcliitcctnru, 11
decoração, e solire tildo a disl riblliij-ão da liií tuna
inlliíeiicia lai ipie o curioso, ainda 11 iniii» previslo,
seja por olle niilijiii;ado ; é nii-ler evitar aiis olluis to-
do o caiiçai;o, todo o «iilado : liiilo deve coiioorror
para attr.ilnr, encantar, e dcscaiiear lirandamentn «
vista. lUiia leia de Uapliael mal colloc.ida cm rela-
ção .1 111/. piTile inel.idc lio sen prcco. Tal <• o defei-
to dl miisiMi de iMarsellia. l'osMie diMTsoii ipiadro»
das dilVcreliles cscholaH ; «■iitre ns da italiaiii merece
parliiMilar allenção um iiiiailro do príncipe ilos piii-
lorcH ipie iiualiaino!! <ie nomear, repre.seiilaiido S.
iloão Kvain;elistii a escrever o Apocalipse; perten-
cia Hiiliii,ainciite a iiin.i collrcção do ^aliiiiele real,
("lirislo moilo, sustido por mãos de anjos, é iimavi-
'.;orosa coiii[iosieão de l\li-iicl .'\ mci i^lii, diclo oCiV-
210
O PA]NORAMA.
Tavagio. Para não cilarmos outros, enão faier cata-
logo, apontaremos só dois de Aníbal Carracci ; um,
e mui gracioso, representa um casamento de aldeia :,
outro do mancebo David com a cabeçii do gigante
Goliath laz contraste notável com aquelle. David es-
tá liçurado como a Biblia o descreve n^esse periodo
da vida, o mancebo que o soberbo philisteu despre-
zava, por quanto era ndolesctns, rufus et pitlchcr as-
pechi. Cap. 17 do 1." liv. dos Reis.
O Maelstbom.
(Continuado de pag. 306.)
Houve um reboli(;o, que ninguém se entendia. A
embarcação cortava tranquilla as aguas i o sol res-
plandecia. A tripulação, entretanto, ardendo em
inaudita febre de actividade, laiia os aprestos neces-
sários para arvorar outro mastro, apromptava a ve-
la, e andava a correr por tudo o navio. Soo homem
«la segunda vista não quiz trabalhar. Douald, pelo
contrario, o que queria era ser útil; acudia a tudo,
tinha cem braços; arrancava o niartello das mãos do
carpinteiro; admoestava, qual pai, os negligentes, e
chegava a embaraçar a manobra, querendo-a ajudar.
Pobre velho, que nunca vira procellas senão sobre o
Ijoch Newis, nem outros pegos mais do que os do
Tweed e do Clyde. Donald não podia coniprehender
a placidez do visionário Campbrll ; repreliendia-o se-
vera e amargamente. Dentro d'uma hora estava tu-
do prompto ; JevaiitoMse o mastro postiço, Íçou-sh-
Ihe uma vela. Baldado trabalho! A vela não a en-
funava o vento \ balia, enrolava-se no mastro como
uma mortalha. Oh! desesperação! a lancha perdúra-
se na borrasca. K já se divisavam os pincaros das
rochas lie Lofodfu : \k a Maelstroui, o sorvedouro
inexorável, se ouvia de níais perto, e o navio a ca-
minhar, a caminhar para ellel... Estavam todos os
olhos pregados no mastro e na vela, porétn o mastro
não se encurvava, a vela não se movia, (iuem pin-
tará o qtie exprimiam todos estes rostos, a mudez de
toilos estes homens, a imniobilidade de todos estes
olhos, o abatimento dos mais destemidos, a resigna-
ção das meninas, a atllicção do pai, não por amor
lie si, mas de suas tilhas? N'esta calada, um tiel cão
da Terra-Nova. pertencente aocapitão, corria li uma
para outra banda como para não vèr este quadro la-
tal, dando longos <• medonhos uivos, que repassavam
a alma dos que iam no navio. iM.ic-Kead rezava em
voz alta •, as meninas estavam de joelhos.
— .lEu bem o sabia" exclamou o visionário, que
loi o [)riiiieiro a quebrar o silencio.
— .iCAue saliias tu .'»
— "Acidá estão os rochedos de Lofoden ! Jaós vi,
conheço-os. listavam á direita como alli estão. Não
me enganou o somno. Oh! sexta-feira, dia aziago!
Oh! capitão malilicto!"
— .iMaldicto capitão!"
O brado de guerra dos Mohawks, o bramido car-
niceiro com que Os 1'alikars se arremessam a peleja,
não são mais tremendos do que o alarido dos mari-
nheiros enraivecidos, que, deitando a correr para a
popa agarraram no inalaventurado, e sem que lhe
valesse bradar, pedir, luctar, embriKkecer-se, o bal-
dearunt ao uiar. U seu cão viu o cair. Era amigo
tincero, não o desamparou na hora suprema , lançou-
»e logo ao mar, nadou direito a elle, segurou-o pela
golla da jaleca, puxou o para o navio, e l.irgo tempo
resistiu á corrente que o arrebatava. Por fim o capi-
tão deitou ambos os braços fora d'agua, agarrou-se
ao cão com a aucia com que se abraça a ultima es-
perança de salvamento, e o bomem e o seu leal ami-
go afundaram-se para tempre.
Perpetrado o crime cora a morte á vista, a inuti-
lidade dos esforços humanos, a nenhuma probabili-
dade de salvação fizeram desamparar toda a mano-
bra, deixando o navio ir-se ao som d*agua em direi-
tura ao precipício. A marinhagem dispersou-se ; o
contramestre sentou-se sobre os restos do mastro, e
ficou se u contemplar o suicídio da embarcação. .Al-
guns começaram a rezar, outros dançaram, a maior
parte brigaram por amor do grog e da aguardente.
Houve alguns, e dos mais valentes, que se deitaram
ao mar dando grandes berros; vi muitos que de
mãos dadas dançaram em circulo como phreneticos.
Estes, das gargalhadas passavam de repente ao solu-
çar horrendo da extrema agonia ; aquelles, que ti-
nham ficado como assombradas de raio e estirados
pela tolda, erguiam se e davam-se aos últimos paro-
xismos diurna alegria insensata, quebravam as esco-
tilhas e lançavam a cordoalha ao mar. O cotivezera
um fragmento do inferno. E toda\ ia o sol, derra-
mando luz suave, parecia afagar com um sorriso as
vagas pacificas- e a ilha verdejante de Mosken. A Jb-
vcn Suzanna já então voava, qual setta, a sepultar-
se nan entranhas do abismo, que arreganhava a boc-
ca para a engolir.
Contramestre, bradou o seu ajudante, seja boa tes-
tímunha de que eu não fiz mal ao capitão !<i
O contramestre sorriu se sem responder. O aju-
dante modia a justiça divina pela dos Iribunaes da
terra. O pobre homem julgava precisar d^uma tes-
tiinuuha que depuzesse em seu abono perante Deus.
— ..Então ! amigo %V'ill ! não me responde ? Ora !..
que tempo podemos ainda viver, dija ia!..-
O contramestre vultou-se para Tom :
— .'Meu rapaz, lhe disse elle, se for preciso dar
contas do que fizemos, conla comigo. Tu tens mais
bom coração do que esses que estão a dançar la em
baixo. Mas, digo-t'o eu, ferremos o panno e fallar
pouco listamos a dar fundo: temos o outro mumlo
pela proa; viremos pela ultima vez a ampulheta da
barquinha. Tom I um homem valente morre calado.
-Adeus, Tom! cinco minutos ainda nós viviremos!
mais não !"
— "Contramestre, você vera se o vento me laz
adernar. Adeus, camarada 1 E aquellas duas pobres
raparigiiinhas ?... Ai ! cortaram-me o coração!"
— "Cala-te. com mil demónios! Deus me perdoe
estas pragas' Não digo mais nada ! Vai-te embora !
A attracção do Maelstrom crescia a olhos vistos.
O suicidio dos homens que se deitavam ao mar, uns
cantando, outros chorando, despovoava a escuna. Nas
alturas de Hellsseii enxeri^avam-se grupos de homens
e mulheres, que viam o navio arrastado a perdição,
e o lamentavam sem o poderem socvorrer. Mac-Read
tiiiha-se abraçado com as duas filhas, e Donald toca-
va gaita de folies, em quanto o pai, com as duas
filhas cingidas nos braços, murmurava al:;umas pala-
vras que mal se percebiam. Lm p.issaro, branco co-
mo a neve, de pennas lustrosas e brilhantes, voou
dos cerros de .\mbareem, pairou sobre o nivio, ba-
teu as azas a pouca distancia do convci e seguip por
muito tempo )i levada da embarcação, t) felii pássa-
ro podia viver e o navio linha de morrer por força.
Ciuno o olhávamos com inveja ! a sua liberdade re-
quintava os tormentos do captiveiro que iio> levav.T
a morte.
Mhs cheg.ivanos nos ou«idos um estrépito medo-
nho que parecia vir do Maelstrom ; scnti.imos um
inuçir pavoroso e nivits de agonia, como se al^uin
monstro gigante se debale-se com a morte. Com el-
feito, uma baleia tinha cedido a valentia da correu-
o PANORAMA.
211
te. e quando chegara ao meio do sorvedouro, luetára
debalde contra a força irresisfivel que a absorvia.
Em vão batia a cauda do colosso as aguas que re-
moinhavam :, debalde lançava ao ar pelas vtjiitas duas
colnmnas d'agua que borbulhavam, o monstro enor-
me desappareceu tragado.
lira a sorte a <|iie corríamos c:ida vez mais velozes.
A belleza do dia, a transparência do céu, u brilho
das aguas, não deixiivani crer a morte tão propiíi-
<jua, o naufragiii tão certo. Um grumete, queleváru
muitas horas a chorar, levantou a cabeça e disse ao
contramestre :
— 11 Não, não posso crer em tal ; não pôde ser,
contramestre'. O mar está tão quieto! que é do ca-
chopo f queé dj) temporal .' que é da morte? São con-
tos de crcanças, e tolos todos que os engnliMU."
<• contramestre levantou acabeça, e soltou um sor-
riso .sardónico.
— A manobra ? continuou o grumete. I<esles 1 les-
tes ! ... "
— «Manobra como quizeres, retrocou o velho ma-
rinheiro olhando para o rapa/, com desprezo infinito:
d"aqui a fres minutos não tem a Joveit Sttzanna \ rea
tábuas unidas. "
— liâual! quando todos tinham perdido as espe-
ranças e a borrasca nos levou o mastro, ru cá bem
íabia que escapávamos! ?•
— "Rapaz, prepara-te, limpa esses ollios :, engo-
lem «e doas ou três canadas (l'agua salgada, e esta-
mos aviados. í) navio começa a alagar-se : a atnia es-
tá turva. Kapaz, se queres vércomo um hon)em mor-
re como um homem, fica ao pé de mim. Mascala-te
e deixa-me em paz. "
Dizia iv verdade. A impetuosa altracção do Maels-
trom augmentava a rapidez da nossa marcha ! Fervia
O mar á roda de nós-, e Jovm Suzaiiiiu rolava para
a direita e para a esquerda, feita ludibrio dasondas
que se guerreavam, ("onío bei de repelir a agonia in-
tensa, a di.'tnencia atroz crestes moribundos cheios de
vida? O próprio navio, ptdaudo para o sorvedouro,
parecia um ente vivo e louco. Km br>ve, ílespcdido
como a balia pelo impulso da pólvora, resvala, lo^e,
arfa, afocinha, faz pião, resalta o aderna. l)s mari-
nheiros penduram-se no» cabos •, Donald atira-so ao
abysmo : levanla-se o brado final — misericórdia ! O
* _
contramestre agita o chapéu no ar, em quanto a ./o-
iicn Siizuntta anda ao redor como o pião nas mãos
d'uma creança. Nada mais sei. X consciência d'este
horrível naufrágio não deita adiante do momento fa-
tal em que só a pflpa estava fora d^igua;, em que o
abysmo, sorvendo, se assim me posso explicar, a sua
preza, a puxava pela pn^^a para o pego mortífero, o
a conservava m<iui<mtaneami'utH suspensa a pino.
(Quanto a mim que, esteiidi<lo na tolila, mudo, sem
esperança, «juasi estúpido, vi o íim d'esta scena com
resignação desesperada, achei-ine ensanguentadoe iiií
na cr)sta piuihascosa delleggesen. Apiuias tive forcas
pura me arrastar at(> um grupo de i:abana8 de mi-
neiros. Sem duvida, o vórtice por eUeito da violência
das correntes contrarias qu<' formam o nnichanismo
do seu turbilhão funesto, expelliu para longe de si
algum doi destroços que (li'vi'^ra tragar. Vi espalha-
dos pela areia um fragmento de tábua quebrada e
um resto de mmsame. Memoria <rhomem não ilava
llotiiia, segundo mi- disseram os pi'Scadores (jue mc^
agasalharam, d(5 ler oMaeIstron) perdoailo a nenhu-
ma das suas vielimas.
a luz? Que qualidade mais branda, mais suave e
mais amorosa? Ella <■ a alegria dos campo?, a respi-
ração das flores, a harmonia das aves, a delicia dos
olhos, a formosura dos astroí^, e emfim o contenta-
mento de todo o mundo.
l'ois esta propriedade da luz ha de ser também a
propriedade da justiça, porque a justiça devesertão
branda, tão amorosa e tão benigna como a luz. Hen»
cordieço que muitos serão de mui contrario parecer;
porque couMi vêem na mão da justiça desembainha-
da uma espada, tolalinente se persuadem que a jus-
tiça toda devo ser rigores, toda crueldades. . .
i'j para não ser crueldade deve temperarse com
brandura, e só com ella •.erk justiça. E porque sei
que a espada da justiça é a que obriga a imaginar
que toda a justiça deve ser rigor, quero que nos >ir-
va de prova a mesma espada.
1 ergunto assim : E para que se armou com uma
espada a mão da justiça? — Já sabem todos que pa-
ra significar o seu rigor. Pois porque se não pinta a
llgura da justiça com um cutello senão com uma es-
pada ? O instrumento mais próprio do rigor da jus-
tiça não é ocutello? Que razão haverá logo para que
não pintem como o cutello a justiça? l'orque a pin-
tam com uma e>pada ?
Com grandíssima razão. Entre o cutello e a espa-
da ha e»la diíTereTiça : que o cutello é inllexivel ; é
tanta a sua dureza que- a nada se dobra : e se por-
fiam a que se dobre arrebenta. E a enpada ? Toda
pelo contrario. A espada com sertão rigorosa é mui-
to branda. Quanto mais se dobra tanto tem de me-
lhor espada ; e. o que é mais de admirar, que ainda
que o vejamos dobrar-se, não deixa nunca de ficar
mui recta :, de sorte que a Cípada é branda, a espa-
da (hibra se ; e comtudo sempre é recta, e sempre é
espada.
l'ois assim ha de ser a justiça : espada sim, mas
que se dobre ; recta sim, mas que se abrande. Em-
íim ha de ser como raio da luz : é raio, mas beni-
gno; é vaio, mas é de luz.
EvsKUio DE íIattus — Sermões.
BeRNADOTTE, rei de SlECIA.
(.CniitiDuado de pa^'. 199.)
A JVKTIÇA.
A ruisiiaiiA jiropriedade da lux é ser benigna. Que
Í.OUSU 11)1119 U>lii[,'na, que cousa muis fuvuruvel docjuu
Para acompanhar Bernadotte em todas as batalhas
que ganhou, seria [)rcciso traçar a historia dos primei-
ros annos do império francez, tão fértil em acções es-
trondosas ; elfectivameute o acharão em todas as cam-
panhas onde havia perigos a arrostar, louros a colher.
Vencedor cm Schicil/., onde desbaratou a vanguarda
do exercito prussiano, oprincifie de 1'onfe-Corvo per-
seguiu vivamente este corpo, o depois de lho haver
olVerecido batalha, inutilmente por muitas vezes, ai
cançoií-o em Lubeck. l'oucos feitos d^armas houve
tão brilhaiiti^s ; (Uize generaes, que eram command.t-
dos pido marechal Illilcher e o príncipe de Kriinswicll,
<í doze mil homens caíram em poder dos traiicezes.
N.i Polónia liiTiiadoMu triumphoii dos russianos no
combate de IMoruiigen em 2.'> de janeiro delSKT. l'ni
leiímenlo suspendeu a carreira das suas victorias o d
coiistrangiui a algum tempo ile repouso. .X paz de
Tilsítt, (]uu pozcra termo a esta campanha, não foi
de longa duriiÇão, e Dernadotte, apenas eomalescido
da fi'rida, recebeu ordem dií tomar o governo das ci-
dades ansealieiís. Chamado á Allemanha cm t8US,
cominandoii o i-xcreito alliado, francez, hespanhol e
hollandez, o nssígnalou-se por dislinctas neçòes ao
mesmo tempo que se fazia querido de suus soldados.
Nu campanha de líJO',1 alcançou muitas vaiitugons
212
O PAJNORAxMA
contra os austriat-os, e assignalou-se sobre tudo em
frente da ponte de Linz:, realisoa depois a sua junc-
cão com o '^r;imicM'xercito. A G de julho tomou par-
te na batalha de Wasçram Lommandando a ala es-
querda coni Massena aleita das tropas saxonias ; por
este lado <■ que o ataque foi mais vivo; o príncipe
de l'oiife(,'orvo em vão fez prodígios de valor, as
suas tropas sohrfcarreu;iidas pela nudlidão dos inimi-
gos recuaram desorilenadamente, elle próprio se achou
cercado, e só conscíi;uiu desembara(,ar-se por intiode
"uma presença de espirito c ousadia, que suriani bas-
tantes para firmar a sua re[)uta<;ão militar. l'ela tar-
de a victoria estava ^anba, porém os saxonios líca-
ram em u,rande numero no campo lia batalha, apa-
gando assim a verjjonha de iim nuimento de temor.
iíernadotte, furioso por não ser auxiliado, bradou
<]ue era traição; cjueixou-se de que o abandonassem
e sacrificassem os seus soldados; deu a demissão do
comniando, e 15uonaparte, acceitaiido-a, parecejusti-
licar as censuras cjue de futuro sefiieram. — Coiiitu-
do, o demittido, apenas contava vinte dias de reco
Ihido a Paris, fci encarregado de repellir uma inva-
são dos ingle/.^s na ilha de Walclieren ; passou logo
a Aiivers. Nada era mais precisi) do que a activida-
de do príncipe de l'(Uite-C'urvo para organisar ade-
feza ; as obras de fortificação apenas estavam princi-
piadas, nos ars<naes não havia artilheria nem pólvo-
ra, e as tropas fianuezas eram obrigadas a viver de
pilhagem como em paiz inimigo. IJerniidotte não se
desalentou com esta mingua, a sua inlatigavel acti-
vidade acudiu as faltas; de dia paí-a dia se levanta-
vam novos fortes on se assentavam novas baterias.
A ruína da ilha de VNalchcreii foi a vantagem úni-
ca que tirou da sua einpre/a o general ingie?., que
perdeu mais de quatorzemil homens. — Esta campa-
nha, que iindou quasí siMii combate, foi mais funes-
ta ás tropas britaiinicasdoqiie se tivessem experimen-
tado grandes revezei. O príncipe de Ponle-Corvo, de
volta a 1'arís, recebeu a condecoração da ordem de
S. Henrique, da Saxonia.
IV'ão reinou muito tempo a boa intelligencia entre
o imperador e o príncipe de Ponte-Corvo. Napi<leão
I) culpava de excesso do auctoridadi; ii'uma procla-
mação á tropa ; chegou até a prohibir-lhe entrar em
l'aris. Kernadotte diniíttiu-se de honras, dignidades
e títulos, e depois recusou sujeitai se a intimações
tão tirbilrarias. O ministro, temendo com razão uma
guerra civil que teria por cabeça homem tão intluen-
te, modificou a ordem do imperador, e contentou-se
em escrever ao príncipe de Poiit'--Corvo que passasse
ao exercito de Allemanha no mais breve prazo possí-
vel. Díspozerani uma entrevista de ambos, qiio teve
logar em Schoenbrun ; Napoleão mostrou esqiiecerse
dos aggravos que imputava ao seu marechal, e até
lhe deu o governo geral de Koina ; porém Bernadotle
só acceitoii depois de muitas hesitações.
No entanto aconteceu a revolução da Suécia ; Gus-
tavo IV tinha siiecedido a Carlos Xlll, que largou
a enrija sem víulentaH agitações. Gustavo era velho,
<• não tardava que a sua morte deixasse vagoothro-
1IO d'aquelle reniu. Km circiimstancías taes, era pre-
ciso um homem enérgico, capaz de tomar o governo
com mão firme, de impor aos inimigos externos res-
peito, c de refrear as revoltas internas. Os votos dos
suecos recaíram em Bernadotte, e veio a Paris uma
ilcnutação olferecer-lhe o titulo e us direitos de prín-
cipe real da Suécia. Conviin saber que dipoisda to-
mada de Liibeck, Uernadotte, tendo cercado um cor-
po numeroso de tropas suecas, contentou-se com fa-
zer-lhe depor as armas, admíttiu os princípaescabo«
a sua meza, c tractou-os com Ioda a possível consi-
deri'.(,'uo. Este acto de iiiuucr:içãu ihc adquiriu gran-
de partido, — .Napoleão, que devia a sua fortuna á
eleição popular, não podia oppòr-se a que um de seus
generaes fosse escolhido por um povo para seu mo-
narcha. Altirma-se, porém, que esta escolha o des-
gostou vivanii nte, porque sabia que entre si eaquel-
le que os suecos queriam para príncipe hereditário
existia todo o rancor do Directório, de quem Uerna-
dotte se havia mostrado sempre o mais firme susten-
táculo.— uCumprain-se os nossos destinos" — disse
por fim pezaroso , e Bernadutte foi unanimemente
saudado tipriíicípe herdeiro de Suécia, para depois
do lallecímeijto do rei actual reinar na Suécia e paí-
zes d'ella dep>'iidenle«, ser conado rei da Suécia e
receber o juramento de fidelidade; emâm governar
o reino conforme o sentido litteral da constituição
de li de junho de 1809."
Bernadotle a principio mostrou querer permane-
cer fiel alliado da França, mesmo em detrimento da
Suécia. Tendo-lhe Napoleão dado urdem de quebrar
todas as relações com a Inglaterra, o príncipe here-
ditário obedeceu, posto que bem soubesse que a Sué-
cia não podia subsistir pelos próprios recursos. Pro-
hibín o commercio cora Inglaterra, e determinou
que fossem confiscadas as fazendas aprehendidas. Era
uma ordem illiísoria que o governo nem podia nein
queria executar; pelo que a fraude substituiu as per-
mutações regulares. Napoleão, julgando-se mofado
pelo seu antigo logar tenente, enculerisouse ; Berna-
potle, por sua parle, supportava a custo a arrogân-
cia com que o imperador lhe dictavaordens. Por ou-
tro lado o interesse do seu paiz adoptivo oppunha se
a uma cega submissão á França. Pa^saram-se de par-
le a parte notas cheias de acrímonia; c a final Buo-
naparle expediu ordem as suas tropas de invadirem
a Pomerania e a íiiia de Kugen. Era a epocha em
que a França levava as suas armas victoriosas até os
gelos, epuclia em que Napoleão, ofTuscado peio seu
poderio, parecia desprezar todos os meios de asse-
gurar o triumpho. A Suécia, descontente cum o
procedimento do imperador, separou-sc da sua al-
liaiiçíi, c a Rússia, approveítandu-se destas sementes
<ie discórdia, olfcreceii a Noruega áquelle paiz que
tanto tempo a ambícicnára. Bernadotts, depois de
bastantes hesitações, assignou o Iractado de S. Pe-
tersliurgo a '2% de niarçn de ISllí, e nomeado chefe
do exercito confederado viu-se constrangido a tomar
armas contra os seus antigos camaradas. Lançado
n'esla carreira, Bernadotle marchou rapidamente,
em demasia talvez para a sua reputação. Era impel-
lido, para assim dizer, por uma força que não sabia
explicar, porque não ignorava que cada uma das suas
victurias era não somente uma nódoa na sua gloria,
mas também um golpe na individualidade do seu
paiz adoptivo; bem percebia que para a liberdade
da Suécia conviria oppur o poderio da França ao in-
cremento invasor da Kussia ; mas não podia uu an-
tes não ousava mudar de procedimento, pretendia
esconder sob louros novos a sua ingr.itidão para com
a França, Um dos seus mais brilhantes leitos d'ar-
mas foi a batalha de Leí]isick, onde decidiu da vic-
toria. e forçou Napoleão a passar oulra vcioRh?no.
Debalde os panegvristas de Bernadotle affirmam que
fizera todos os esforços por mitigar asdurascondições
npprcscniadas ao imperador; debalde díicm quedu-
raiite lodo o anuo de 181 1 oe.xercito sueco seconte-
ve em neutralidade inolVcnsiva : as notas diplomáti-
cas provam ao contrario que Bernadotle incitou os
confederados, e nada tanto de>€-j,iva como ,i proRi pia
abdicação de Napoleão. — iluando viu a iiivjisãoda
França, começtni então a deplorar a sorte do homem
extraordíiiaiio que tivera na suu mão muit. is coroas,
e u quem iam dar por cslduu uuia ilha pi-queiia e
o PAISORAMA.
213
»ein recursos. Dptde eiilio mostrou não curar da
guerra europeu.
Nap<)l»'So subiu de novo ao throno
imperial, e do no\i) 01 moiiarcli^s coiilra elle se col-
1 igara m ; d't8sa vei l!ernadotte lieou neutral. <iuan-
do os Bourbníis recolirarani o poder, abriu a sua cor-
te aos expatriados franee/.cs e llies prestou seguro
as>lo.
Julgando se estabelecida a pm geral, o principe
real da Suécia voltou as suas armas contra a Norue-
ga, que recusava reconliecer a sua noxa sníerana.
Finalinenti', por morte de Carlos XIII, a lo de l'e-
■vereiro de 1818, os suecos asradt-cidos o proclama
rain rei de Suécia e IVoriiega sol) o nome de Carlos
XIV.
Exahadoao tliruno. Deriiaiiolfi! rodeoii-fe tlefran-
ceae», e com elles conversava acerca da pátria, lasti-
mando os acontecimentos de 181 o e a cega ambição
do imperador. Teve porém o cuidado de respeitar
sempre o orgullio nacional dos suecos, e lhes confiou
os principacs cargos do reino, não obstante toda a
benevolência para com seu» antigos compatriotas.
Bernadolle lalleccu a S de março de 184i, depois
de uma eiifermidafle dilatada e acerba, contando de
idade oitenta e iim annos, um me/, e doze dias. Suc-
cedeu-lbe Sfm a menor opposicão seu filho Oscar I
(José Francisco) tendo M annos e O mr/es : é geral-
mente estimado, eludo inclina a pre-agiar que a fa-
mília de Bernadotie, ;^fsi'ntada no tlirono da Suécia
pela eleição espontânea do paií, conservará a coroa
com a piosficridade do estado.
PIA DO BAPTISMO I>£ S, liUlZ.
A TKK» léguas de \'c rsaillis e a cinco ao noroeste di)
Turis rsla situada 1'iiissy, cidad" per|net;a, (pie terú
'J'itl() iiluins ^ lua na innruim esi|ni-rda do Snnii, e
iiz-sc hoje nuKncl (niu ■jr.iiidc incrc.ulo de giidoí de
que se aprovisiona Paris. Gloria-se porém de uma
illustraçãu histórica, e vem a ser a honra do pátria
de S. Luiz, o nono d'este nome na serie dos reis de
França. A pia baptismal, onde este principe recebeu
o primeiro sacramento, ainda está bem conservada
na igreja parochial d''aquella villa : antigamente foi
j objecto de muita \eneração, e pendentes da parede
se viamjuncto dVUa muitos milagres ; e dizia-seque
i algumas particulas*despeí;adas dVlla, sendo dissolvi-
das n'um copo d'agua, e dadas a beber aosenlerrao»,
efrectuavain a cura de quasi todas as moléstias. A
eapella em que 5e acham o baptistério e mais pecas
que serviram no mesmo acto é dedicada a S. Luiz
e sobre o caixilho de uma grande vidraça que lhe dá
claridacie, liani-se n'outro tempo quatro versos mui
I singelos, que commemoravam o nascimento de S. Luiz
I em l'oissv, e o seu baptismo n"aquclla igreja.
Luiz IX de França, contando apenas onze annos,
isuccedeu a seu pai Luiz A'!!!, ccjgnominado oLiuo;
j durante a menoridade esteve sub a tutela desuamãi
|D. Branca, que fora infante deCastelIa, senhora de
, animo forte e de talento governativo. Luiz IX, edu-
I cado piamente, de espirito ascético, eenlhusiasmado
; pelo fervor que inspiravam as guerras no o.-ienteha>
i via mais de um século, levado além d"isto por um
■sincero sentimento religioso, que predominou em to-
lda a carreira da sua existência, intentou, em 12i4,
j ir resgatar pessoalmente os sanctos logarcs da Tales-
tina ■, porém só quatro annos depois é que ponde pôr
'em pratica o seu desígnio, contra osconselbos desna
inãi e dos principaes do reino. Foi esta a ultima cru-
zada. í2nibarcou-se com um exercito de 200:000 ho-
mens em 1 ;S0O navios, e tomando terra no Egvpto
ganhou a principio algumas vantagens-, porém a j
d'ahril de 1'250 foi completamente desbaratado pelos
sarracenos \ na batalha morreu seu irmão Roberto ;
elle e outros dois irmãos, Affonso e Carlos, caíram
prisioneiros. Trasladaremos aqui algumas palavras
da baroneza de Minutoli nas suas Recordações do
Egypfo. — «1 Pennas mais eruditas que a (nínlia lize-
rain, e continuarão provavelmente a fazer a eniime.
ração das cidades antigas que se levantaram nntr"or«
nas margens que vamos costeando (viagem do Cairo
a Damieta) e que não oHerecem agora, como as mi-
nas de Atribis, aos olhos magoados do viajante senão
acervos de entulho e algumas coluninas derrubadas ;
quanto a mim. apraz-me recordar aqui memorias
mais recentes, fallo d'aquella epocha em que o eu
thusiasmo religioso e cavalleiro de toda a Europa,
dirigido pela política de alguns padres, precipitou
no» abrazados desertos da Africa e da S_\ria um sem
tiumero de valentes, que encontraram a niorle ao pé
de seu piedoso monarcha, Luiz IX, <|iii' perinamoeu
rei mesmo em ferros. Foi em Rlansourah, silin por
onde passámos, que Ijuiz foi feito prision<iio, depois
de uma batalha cuja perda se attribuiii ao intrépi-
do, porem imprudente ataque dos templários. A re-
ligião e a lembrança de uma espos.i adorada ainda
podiam adoçar os revezes dVste principe desafortu-
najo : essa princeza heróica e virtuosa, qni- haviu to-
mado a cruz para não separar se de seu augusto es-
poso, preií-rindu a morte á ignominia, lc\e a cora-
gem de exigir de um cavalleiro da Mia tomili\a i|uc
antes lhe tirasse a viila do i|Ue a deixasse cair nas
mãos inimigas. Comtndo o ceii (|ui/. coiisirvar tantas
virl<i<lcs e animo intrépido: é verdadi' «jue foi pri-
sioiwiru próximo á antiga niuiiiella, mas sob con-
dições muito honrosas, e foi tractiula durante o seu
eaplivciro eoili o respeito devido á sua jerarcliia eá»
suas qualidades pe'snn)'s. ••
O próprio S. Luit foi iguiilmtnlr biin ttachulo.
Obtido o re«giitfl por uviíltada quiiiili», rcíliluiii se
214
O PANORAMA.
á França em 1254, e o seu governo foi regulado pe-
la justi<;a e prudência, applicou se muito á reforma
dos costumes, a proteger os desvalidos, a soccorrer os
pol)re<i, á decência dos templos, e a supprimir os tri-
butos que tinham sido lançados para acudir ás ur-
gentes necessidades doestado. Não pude este raonar-
chaser censurado senão por suas infelizes expedições.
Era 1270 de novo o accommetteu a febre de voltar
á terra Sancta ; transtornado em parte o seu projec-
to, passando a Africa, poz sitio a Tunes; porém, du-
rante este cerco, deu tão horrivel peste no seu exer-
cito que a mortandade foi espantosa \ o próprio rei
acabou do mesmo contagio a '2'á d'agosto do dicto
anuo, tendo reinado 43 annos e um mez.
Liuiz IX. deixou oitofílhos, um dosquaes, por no-
me Roberto, casou com Beatriz, lilha herdeira de
Ignez de Bourbon, d"onde dimanou a familia d'este
nome, que d'ahi a três séculos tomou a corúa de
França na pessoa de Henrique I\ , por antonomásia
o Grande. — S. Luiz foi canoniaado peio papa Boni-
fácio VIII.
Os CUALES DE CaCHeMIRA.
Desoe tempo immemorial fabricam-se chalés de
grande preço no valle de Cachem ira. Ocommereioos
transportou successivamente aos logares do seu con-
sumo por vias que mudaram de direcção, conforme
as sanações que a politica ou a guerra iiupozeram
aos limites dos diflerentes estados. iSão fallando se-
não posteriormente á elevação do poder dosafghans,
uma parto do tributo imposto ao valle por esta na-
ção consistia em chalés, e era transportada para a
Capital, Candahar : o restante entrava nocommercio
directamente, e espalhava-se para regiões longínquas
por diversos mercados. Sem fallarmos em muitas al-
terações antecedentes, o commercio de Cachemira
com a índia tem-se encaminhado nos últimos tem-
pos por Juinbo, que em todos os seus arredores é
protegido por uma cordilheira de allissimas serra-
nias, inaccessiveis ás bestas de carga. — Os chalés
são conduzidos a Jumbo ás costas de homens, e vêem
arranjados n'um fardo oblongo, composto de certo
numero de peças, e de pezn marcado : o fardo com
unia capa de couro de boi, bem cozido e apertado
com as correias do mesmo couro, chama-se biddery :
vem acompanhado d"unia factura, e de raro oabrem
para o verificar: o portador traz a carga comoossol-
dados a mochila, e tem um bordão comgeito demo-
leta, que lhe serve para auxiliar a caminhada, e pa-
ra se alliviar escorando o pezo pela parte de traz.
Por esta nova derrota de.Innibo vem esta gente mais
abrigada dos assaltos da soldadesca ; caem porém nas
garras de milhafres não menos devoradores que se
chamam liscaes daifandeíja. — De Sirinagor, capi-
tal de Cachemira, até Lacknau, cidade populosa,
situada entre o Ganges e o Gogra, ha trinta esta-
ções, em cida uma das quaes as fazendas estão sub-
tnettidas a taxas arbitrarias, que no dizer do viajan-
te Forster chegam ás vezes a três cquatro porcento.
£stas exacções exorbitantes, junetas ás despezas de
longo e penoso transporte, augmentauí prodigiosa-
niente o preço do género nas regiões inferiores da
índia, e fazem mui caros os chalés antes que deSur-
rate ou de Calcutá wiihain para a Europa. U^aqui
a raridade dos legitiinos chalés de Cacliemira, sup-
pridos nos mercados europeus pelo fabrico adulterinu
da França. — Não acontece assim para a parte de
oeste de ('achemira, por onde a exportação foi sem-
pre considerável, pois que os povos inusulmanos da
Asia Occidental ficam gerahnentc ircjta dircc^.úOj e
ahi os chalés teem grande valor e servem ainda mais
para turbantes e cintas de homens do que para ador-
no de mulheres. — A Africa, onde os costumes teem
tamanha analogia com os asiáticos, provê-se dos cha-
lés por via de Meca: na epocha da chegada daí ca-
ravanas, a afluência dos mercadores e dos curiosos e
dos devotos é tão considerável que a cidade saocta
do islamismo toma o aspecto de uraa grande feira.
As que procedem da Asia vêem carregadas dasmai»
preciosas fazendas d'esta rica região : especiaria» de
Cevlão, do .Malabar e das Molucas, cassas de Ben-
gala, estofos do Decan, chalé» de Caehemira. tudo
alli se acha, e tudo é objecto de commercio impor-
tante. Depois, uma parte d'esfas mercadorias, em-
barcada em Jidá, porto da Meca, sobe pelo golpho
arábico até Suez, e d"alli é levada ao Cairo em ca-
mellos : outra parte é transportada pelas caravanas
que da Meca voltam para Alepo ou Damasco, ou p;^
ra Tripoli, Tunes, Alger, Fei, e o interior da Afri-
ca musulmaua.
Muitos chalés das fabricas de Cachemira partem
de 1'eichour pelo noroeste, para o consumo particu-
lar da Furopa : atravessam o Afghanistan, a Pérsia,
e o Cáucaso, para chegar a Macariefl'. — Moscow,
cidade das mais próximas á .\sia, e de certo modo
muito asiática, está sempre bem proiida d"elles, e
ahi vão negociantes francezes fazer as suas compras,
como vão aos leilões da Companhia das índias em
Londres, e também a Constantinopola. Quando suc-
cedeu o incêndio de Moscow, prodigiosa quantidade
de chalés de Cachemira foi devorada pelas chammas
no Kremlin nas esplendidas lojas do Kitai-Gorod,
ou cidade chineza. — Talvez que alguém goste de
saber como a antiga capital da Rússia veio a ser
uma grande escala para este género.
Na margem direita do Volga, defronte de Lisko-
vo, ha uma aldeia, na apparencia a mais mesquinha
do mundo; chama se Macarieff, do nome de^. Ma-
cário, padroeiro do logar. Esth aldeia fez-se celebre
pela feira que alli ha annualmente no mez dejulho.
ou, para melhor dizer, que alli havia; porque não
ha muitos annos foi transferida para Nisnei-No»oro-
god, por causa da pequenez do precedente local. —
A feira, assim mudada a distancia de alírumas mi-
lhas, ficou sempre sob a protecção de S. Macário, é
feita no dia da festa do patrono, e conserva e prova-
velmente conservará o seu nome ate a consummação
dos séculos. Não ha pílavras para encarecer o como
uma pobre feira, em sua origem limitada a bolos e
frandulagens, veio a chamar tamanha concorrência,
que em sua comparação as maiores e mais conheci-
das são reuniões insi;niticanfes. — ^ crdade e que a
sua situação sobre o Volça, quasi ao meio do curso
d'e5te caudaloso rio, no centro do império russiano.
entre a Europa e a Asia, a distancia isual do norte
e do sul, offerecia muitas probabilidades de grande
vantagem, favorecidas também pela estação em que
a feira se ajuncta, e que pcrmitte aos concorrentes,
ainda que sejam das regiões msis remotas, recolhe-
rem-se a seus lares antes das invernadas. — Ahi se
acham misturados rutsianos de todas as provindas,
tártaros de todas as Iribus, uma inlinidade de na-
ções, cujos nomes bárbaros espantariam os leitores;
ahi acodem çregos. arménios, persas, Índios de As-
traoan, p<il,ioos. allemães, franceies, etc. — Faz ad-
mirar que os iii<;leies, que apparecem aos milhares
onde cheira a negocio, eque os americanos, que cora
elles correm parelhas, alli se achem em diminuto
numero, e os poucos que vêem, só como curiosos. Se-
ria curioso o quadro d"esfa feira, por certo a mai^
notável: limitar-nos-hemos, porom ao que dii res-
peito á nossa epigraphe — os chalé» de Cachemira —
o PAWORAMA.
215
esse fim recorreremos a teítiuiunha ocular, i clima no período secundário, e os botânicos teem re-
e para
Mr. Rehmon, cirurgião do imperador Alexandre.
( G/niinúa . )
BoSaVB rBTKIFlCADO CE PORTLASD.
Na ilha de Portland, ao pé da costa d^Inglaterra,
líiicontra-se um dus mais curiosos monumentos das
revoluções do globo e da tranqiiillidade com que al-
gumas d'elias se efleituaram. E um bosque da mun-
do antigo, cujas arvores ainda se conservam no seu
jogar coni todas as raiies cravadas no solo em que
conhecido, entre os restos descobertos até hoje, trin-
ta e nove espécies diffVrentes. Uma propriedade mui
notável que teem estas plantas é a de formarem a
transição entre as palmeiras, a que se chegam pela
forma da insersão das suas folhas e pela parecença de
toda a sua configuração externa, entre as coniferas,
que na estructiira inferna teem certos caracteres aná-
logos, e finalmente entre os fetos, cujas folhas do
mesmo modo se desenrolam dos gomos.
Esta prova tão manifesta da mudança que teve o
clima das regiões em que vivemos, antes da terra
ser habitada t)fl<.s homens, não é o único motivo que
recommenda o bosque de Portland á attenção dos
outr^ora vegetaram. Petrificou-o a acção das aguas
que vieram inunda-lo em epocha remota \ mas cbc-
"OU até os nossos dias tão bem conservado, que se j pensadores. í)s troncos de que falíamos, que appre-
prcsta ao» estudos dos botânicos como os nossos bos- sentam tão perfeita analogia assim por fora como por
[ues actuaes.
O solo vegetal, que tem doie a dezoito pollegadas
<ie espessura, descança n'nma base de rocha calcarea ,•
t: de côr negra ou pardo escura, e contém grande por-
ção de matéria vegetal decomposta, como a que tam-
bém hoje se encontra nos nossos bosques: consta de
;irgila mislur.ida com seixo». Aá arvores espalhadas
sobre esta camada, á qual estão prezas pelas raizes,
que chegam a i-ntrar algumas vezes pelo fundo da ro-
cha, distam uma» das outras o espaço que de ordiná-
rio se guarda entre as de uma bem disposta matla.
W-uasi todas estão partidas na altura de um até três
pés i todavia algumas ha que chegam a seis pés, e
mais. (Js troços dos troncos partidos estão espalhados
pelo solo e n'elle mais ou menos enterrados. E raro
passarem esti.s fragmentos de tre» a (juatro pés ^ mas
unindo topo com topo as porções correspondentes, tor-
na-se a formar troncos inteiros de vinte e cinco a trin-
ta pés de comprimento antes da primeira ramitica-
ção. Analisados attentamente os caracteres exteriores
e a estructura interna d'estes troncos, conhecese que
pertenceram a arvores [)onco ditlerentes dos [linhci-
ros araucárias, que só medram hoje no hemisphorio
austral, cm clima mais quente que o nosso :, ma» a ar-
vores d'uma espécie particular, que já não seencon
tra entre os vegetaes que vivem no nosso globo. Ao
pé doestas grandes arvore» se vêem troncos muito mais
curtos e de natureza em tudo dillerenfe. Se não co-
nhecêssemos a l"'lora <le paizes longínquos, admirar-
nos-hia a fornia d'i'stiis plantas, que semelham, no
neu todo, a uma alcachofra ou ananaz. Mas conipa
randose com os tron<(js da» plantas da familía das
c^cadeas, cessa toda a incerteza a respeito da analo-
gia que Icem com cilas ^ analogia que se dá não só
na configuração i^xtcriia, m.is no modo por <|iie nas-
cem o» gomos irentre as escama» qii,i as folhas caída»
deixaram na supcrficic dos tronco», e na estructura
interna d^cstis, i|ui' apprcsenta, como nas e^cadeas
actuaes, um circulo de fibras lenhosa» convergente»,
comprehendido cntri- duas massa» de ti'cido ccllular.
Por tanto nenhuma duvida resta de (pie este é um
busque antigo di? vrgclacs mai» ou menos análogo»
aos nossos piídieiros araucária», e ás nossas cyca».
A familia ilas c^ca» c intere»sal\le pela parte «jue
teve no desenvol\ inicnto da vegetação domuniloan-
tigo. Hoje só dois gencr(i» ii repri'sentam no globo :
n género ziiniia, e o gi'nrro cycaa propriamente dic
dentro com as plantas das mesma» famílias do mun-
do actual, não teem uma só parcella de substancia
vegetal, mas estão completamente mudados, nãoeiíl
carvão de pedra, mas em pedra. A sua substancia é
uma pederneira mais ou menos escura, mas translú-
cida quanto basta para deixar vèr todas as fibrasdu
antigo vegetal, que se distinguem pelas gradaçõesda
côr. Molécula por molécula, estes troncos de arvores
foram realmente desapparecendo á medida que pas-
sava a substitui-las uma matéria silicosa, a qual pou-
co a pouco se lhe introduziu nos poros. E' este nin
do» mais bellos exemplos de petrificação que se pos-
sa citar, tanto pela perfeição dos resultados como pe-
la grande quantidade d'elles.
Mas este bosque torna-se principalmente recom-
mendavel pelas rellexões que inspira acerca da va-
riabilidade da superficie da terra. Pelos mais irre-
fragaveis testimunhos attesta a variabilidade dos cli-
mas e da geographia. (^om efleito, por ser formado
o fundo da rocha, em que elle assenta, de substancia
calcarea marinha e de conchas do mar, deve-se con-
cluir que antes do período a que remonta a vegeta-
ção d'estas arvores, estava debaixo das aguas domar
esta parte do solo d'Inglaterra. Km certa epocha se
alevantou este fundo do mar ; nVdle se depositou uma
camada de terra argilosa misturada com seixos, com
muita verosimilhança pelo clleito dos rios que derra-
mavam as suas aguas lodosa» n"este baixo. Por fim
o alteamento completou-se e a terra sobrepujou o ní-
vel do mari n^ella se espalharam sementes, e germi-
naram, e deram vida a arvores altaneiras, cuja ida-
de é fácil de medir pelo numero das suas camadas
lenhosas. (íerações de arvores scnielhantcs succederani
a outra» gerações segundo toda» as probabili<lades.
Além (Tisso póde-se vèr em alguns pontos que o ter-
reno sollVcu por muitas vezes pequenas oscilações, por
que se observam três camada» de terra vegetal, com
tronco» de cycadeas sejiarados uns dos o\itros por ca-
madas de sedimentos marinhos. Mas este idtinio phe-
nomeno não leve logar senão em espaços comparati-
vamente r<!slriclos, e, segundo se póilc crer, sobre
pontos que pertenciam ao antigo litloral, c que o me-
nor nn)vimento bastava para põr acima ou abaixo
do mar.
Depois de ter estado fiíra das aguas certo espaço
de tcm|)i>, esto paiz selvático tornou a entrar n"ella».
Com elVeito observa-se qni' o solo vegetal esta cober-
to. A» principacs localidades onde »e top.iui este» sin- lo até uma certa idiura por um deposito de mame
;;ulare» vcgctacs são a America meridional, o cabo
de ])oa-Espcr:inça, IMaihigasear, a» Índias, iis Mol
ou marga ciinleiído conehn» d'agua doce. Houve por
taiilo um tempo em <|ue o bosi|ue, invadido peia»
ena, c n Novíi- llollanda :, lambem se eni'onlram fora agua», ficou formado o fundo de um lago situado
do hemispherio austral, na ('hina o no Japão. Anti- I na foz d'alguni grande rio. Esta» iigua» doce», ao pas-
gamtnle, conio se vA por este exemploe onlru» mui- «o <]ue nutriam a» concha» cujo» resto» se vêem por
'oSj rrcsciani em copni estes vegelac» sob o ccu da ('ima do» trcuicos, depunham a» tolha» de inarne cnl-
Europa. Acham-se com elleito numeroso» vesligio» caroo e »ilicoso que ciMittitueiii o|lorro lio l«go.<"on-
dVdlcs nus (lepusitus furmudu» nu território do nosso |«idi>remus o bosque iruinu inundação permanente,
216
O PANORAMA.
«m coniequencia d'um abatimento geral do solo : as
arvores pererem em breve tempo , a parte dos seuí
troncos que ticoii fora d'agua apodrece pouco a pou-
co e vai caindo em fragmentos dentro do lago, e se
enterra iim pouco no solo amollecidu. Uo amolleci-
mento do solo do bosque acham-se claros vestígios.
A' roda de certos troncos está a terra levantada em
montinhos redondos, como aconteceria a arvores plan-
tadas em terra molle se acaso lhes abalassem os tron-
cos para todos os lados. Este abalo produziram-n'o
naturalmente os ventos, no bosque de Portiand, quan-
do as suas arvores ainda estavam fora de agua. Koi
então sem duvida que se fez a petrilicação ou trans-
formação em matéria silicosa, devida á natureza das
aguas em que as arvores estavam mergulhadas, e
que deixavam depósitos de marne silicoso.
iVIas não pára aqui : o solo continua a abaixar, as
conchas d'agua doce desapparecem ; osdepositos mu-
dam de natureza e encliem-se de conchas mariílhas.
Desceu por tanio o lago e o mar invadiu-o. O aba-
timento cresce, e as camadas semeadas de conchas
inarinlias se vão sobrepondo, e chegam a ter, não
qualquer pequena altura. Ires mil palmos, para mais,
de espessura, líaixou pois esta região toda inteira
mais de três mil palmos ao fundo do mar, e lá jazeu
O tempo que é fácil imaginar á vista dos depósitos.
K hoje está o vcu levantado! Parte dos terrenos co-
bertos pelos bosque desentulharani-n'a as correntes ^
resurgiu do abvsmo, e patenteia o segredo das revo-
luções pasmosas do mundo antigo. E lacil de conce-
ber que este terreno sollrcu muitas deslocações, e
não se alteou de uma só vez: ineontestavelfiiento o
prova a inclinação parallela das arvores e perpendi-
cular ao solo, posto que fora da linha vertical, de
que não se desviariam a ter elle i)rinntivanH'nte a
inclinação que hoje tem.
Qual era a extensão exacta d\'ste antigo paiz .'
Formava verosimilmente unia ilha; mas é muito
diflicil marcar-liie os liniitos, em razão dos terrenos
que se lhe soliri^pozeram, e que não deixam chegar
ao solo primitivo senão em alguns pontos. Ciuntuilo
recoiibecerani-so vestijios (l'elle, não só na ilha de
Portiand, mas na costa d'lnglaterra, e até na Fran-
ça nas visiiihanças de Boulos;ne. O phenomeno, po-
rém, abr.inge um espaço de valor medíocre em com-
paração com a siiperticie total da terra; e pôde -se
até dizer que ainda estão acontecendo outros análo-
gos, por(]ue, dejiois do tremores de terra são muitas
vezes submergidas grandes porções de terreno próximas
do mar. e outras vezes, pelo contrario, alteam-se os
fundos do mar e cobrenisc em lireve de vegetaes.
CoNOKLAÍ^Õl-S NA'» (IKl IAS.
As AOtiAS que contém earlioií.ito calcareo em disso-
lução o depositam quando expostas ao ar eseevapo-
ram ; por isso, (juaiRlo su.im ila abobada de onía ca-
verna, formam certas massas peiídenles, como cara-
mellos, qno se cliamam slalactilts : ([uando pelocon-
trario são tão abundantes que as gotas caem no chão,
a matéria calcarea se agi.;loniera em p\rauiiil<'s que
teeiíi o nomo de slala'litiUs. \ pedra assim lorinada
por deposito tem o nome :;eral de n/ofcas/io, sobre
tudo quando conserva mei.i transparência. A pedra
da niesina denominação, que deu logar ao adagio
uhranco cmno alahnstio>i é de outra casta, do natu-
reza gessoza e notável pela alvura. K.slas con5;elações
por particularidades de formas, teem dado celebrida-
de a algumas cavernas.
F.m a serra de .\Knibcrta<. em a no«sa proviíicia
da Estremadura, termo da villa d' Alcanede, ha uma
gruta ou concavidade com a tHjcea para o sul, a qual
se estende pela serra dentro um grande espaço. O pa-
dre Cardozo refere o seguinte: — >.No roeio d"esia
gruta esta uma penha como parede, á qual 5obe-*e
por escada de mão, e passando para a outra parte ae
coiitiniia a mesma concavidade outro tanto. Por to-
da esta gruta com as chuvas do inverno cae alguma
agua coada por entre as penhas da mesma serra, e
quando chega ao concavo da lapa vai tão fria que se
congela pelas paredes da mesma lapa e em outros pe-
nedos d'ella, e fica em bicos e castellinhos mui ga-
lantes e formosos; e se esta agua vein pura por en-
tre as penhas e se congela sobre oulr.is pedras lim-
pas, fica mui branca e christallina ; porém se pasta
por alguma terra ou se congela sobre terra, fica côr
da mesma, que é entre vermelho e pardo; e estas
são as mais que se acham, e ainda que na cór não
são tão vistosas, os castellinhos são mui galantes, e
cortados em pedaços com a pedra em que se congela-
ram servem para embrechados ; d'estas pedras é fei-
to em grande parte um curioso embrecliado que te-
mos no noviciado d'eata Congregação do Oratoriode
Lisboa, servindo os castellinhos para formar as gru-
tas de seis grutas ein que estão alguns sanctos ana-
choretas : e a mais pedra quadrada, cortada em bo-
cadinhos, serve de fazer columnas salomonicas, me-
tas, festões, brutescos, vasos de llôreí, repreias e ou-
tras galanterias, obradas com grande engenho e ar-
te. Também em algumas partes d'esta sprra ha uns
bancos de pedra, qne por si se partem em pedaços,
ou talhadas quadradas, á feição de azulejos ou tijo-
los, uns mais grossos e outros ni.-»is delgados, uns
mais compridos e outros menos, e são mni brancas e
claras, e quando lhes dá u sol em chapa lançam uns
rellexos como se fossem espelhos, tem alguma seme-
lhança na alvura com o christal. Todas estas se acham
á llòr da terra, e se conhecem ao longe pelo resplen-
dor e raios que de si lançam. São mui buscadas para
matizar os embrechados, que lhes dão especial graça
e galanteria.
.'VdUAULS UOS MOIKOS.
Os NOSSOS historiadores que escreveram das cousas
d' Africa faliam muitas vezes em aJuaics. Eis-aqui
como os descreve concisamente D. Agostinho Manuel
e \asconcellos na fiila de D. Jiuarlc Jc ^Iciuzts,
3.'^ conde de l iatiua, escripta.em liespanhol.
iiOs aduares são umas povoações de cem nu duien-
tas barracas dispostas em roda, que fatem um âmbi-
to redondo, onde os alarves recolhem os seus gados á
noite. i>ão de còr de burel neíro, feitos de lã ile pel-
lo de cal>ra>e de folhas de p.ilmeira, tod.is entrança-
das e tecidas, que rormam um paiino grossoe muito
tezo para resistir á fúria do sol e da agua ; estão as-
sentadas tão junctas ninas ao pé das outra", que for-
mam um muro ao redor, e não se pode entrar n elles
senão por duas portas, c estas fecham n"as á noite
com estrepes, para qne os leões não entrem a faier
damno. Em árabe querem diíer circulo cu cousa redon-
da : nsavam-n'os antigamente do me«ino modo que
os usam agora os bárbaros africanos. Ha auitor que
alrtrma que d'esla forma eram os tabernáculos e ten-
d.ns dos ismaelitas ccdarenos, negros ahureiados, con-
forinando-se ao uso da .Vrabia, da mesma cór e mo-
do, mui conformo ao nome do Cedar. que é obscuri-
dade e trevas. Com a invasão dos árabes ve introdu-
ziram em .'Vfrira. \ ivem nos campos e serras, seguin -
do os pastos melhores para os seus gados, que é de
que se sustentam e subsistem.
28
o PA]\ORA3IA.
^17
o CASV2:i.I.O Dx: bouchout.
Nas visinhanças de liruxuUas, porto da deleitosa ca '
sa de campo dí; Lackcti, (|uo c(jsliimaiii haliitar du-
raiití! o Ixjiii toinpo o ri4 c a rainha dos l)('l;;as, avut-
1a iiin «.'aslfllo de aspcelo iiílciraiiitMiU' tiudal : as
suas torres, <iito vezes ceiíltr.raias, suricein, branquea-
das e majestosas, dViitre a verde alcalila de uma
grande taj)ada : r|iii-ni se aviainlia d"es(a fortaleza
antiga, a vê espi>lliar-se ii'um forniusu e pcipieno
lago quR llie baidia os alieerees. — K o eaaloUo de
iiuucliout.
I.
-■/ líiulti ilii fiiiiduilor .
(• eastillo de liuuclioul foi edificado pidos aniios
ile 1121) p<ir (iddofrcdo ii liailiuilo, duipiede Lotliior,
'.'Stado <| ■íiinpreliiiudia grande parte tia Jiorenit e
de lodo o iiraliaute. A lriidi(;ão e as lendas apossu-
runi-su triste ptírsiuiageni, e o fizeram lieroe de umn
dVssus e|)opeas ipie se coiitum ha t>ito sei-ulos, aos
serões juiielo á lareira, e de ijue apenas lia eseriptos
alguns eslio(;i)s, ainda inesino nos thesouros nianu-
striplds tias liililiotlieeas.
Sei^uiiilo ifflsas Iradiíji")!», (jiodofredt) o liarliudo, or-
phão em tenra idade, espoliado do» duininios paler-
Voi.. 1._Maiií;o -M, 1847.
nos, não conservara do illustre sangue de Carlos Ma-
gno, lie fpiem descendia, seniio corayão nobre, gran-
de valor, perseverança a toda a prova, e o seu con-
dado de Jjovaina, tjue era a uiiiea cidade tio Lothier
rpie não atrai<;oára a causa ilo fillio de seu senhor. —
Huaiido Goilofredo chegou A idade de tlezeseisaiinos,
I' t) pi.'llo macio e louro começou a ilourar-lhe a har-
lia, congregou em presemja de sua mãi os seus vas-
sallos prineipaes na igreja de Ijovaina. ('íicgado o
monienlo ilc lt.'\aiilar a hóstia, o príncipe maneelio
dfsiniliaiiihou a cspatla do pai, tjue cingira pela pri-
meira vez, e a poz solire o aliar; e ilepuis, apontan-
do para a sagratla fornia, e\eLiiiiou :
— .i Telo sangue do llcdeniptor u pela memoria
til' meu nolirt! pai, juro trazer nua li cinta esta es-
pada, è não pòr navalha no rosiu em ipuinto não en-
trar na posse di; lodos os dominitis dos meus antepas-
sailos. . . A franile e a \iuleneia m'os rouliiirain
t|U.iinlii era aiiula muito ereança para ilefentlel-o»
Afccilem Deus e os sanetos ti meu jiirainenlo, prt>-
ti'{aiii'iiji' par.i ciiinpril-o, t- casligucm-me se falt.ir
a ".lie. "
iNa *oz e gesto tie (iodofretln niaiiili-ta\ a-se tanta
riisolução e nuducia, tjiie todos os testiinuiilias tlu
acto arrane.iruill tumbt;m tias espadas e cluinarauí
218
O PANORAMA.
— " Sim ! Sim ! Derramaremos até a ultima gota
de sangue, e daremos até a ultima moeda para ser-
virmos em tão justo empenho. "
— íi Não permitia Deus, meus senhores e meus di-
gnos burguozes, que eu arrisque o vosso sangue de
tanto pre<;o, equc despeje as vossas bokas que tanto
vos tem custado í encher. Sósinho, sem mais auxi-
lio que a protecção divina, quero recobrar meus di-
reitos e ganhar ainda mais amplos. Se eu perecer,
ao menos não arrastarei ninguém com a minha rui-
na . . . Mas não succumbirei, ajunctou logo, porque
uma voz celestial, que ouvi em sonhos, me inspirou
esta resolução e me promette feliz successo."
Tomou de novo a espada, nua a poz á cinta, e
ajoelhou para se continuar o sacrifício da missa. Ao
vê-lo rezar com fervor, scntiram-sc todos repassados
de coniiança na empreza do conde manccljo, tanto
mais que do momento de se aproximar elle á mesa
da comnmnhão, brilhou um grande clarão na igreja,
e uma voz, suave como a de um anjo, e que por
certo não era de outrem, saiu do sanctuario, e can-
tou distinctamente : — Adjidornim nvttrum innomi-
nc Domini. — Apenas pronunciou o nome divino,
estalaram trovões com violência; o castello desvane-
ceu-se como fumo ; e Godofredo achou-se n'um cimi-
terio solitário, ao pé do seu escudeiro que rezava de
contas na mão. O mancebo poz-se também a orar,
porque percebeu que acabava de escapar ás insidias
do espirito maligno ; e seguiu jornada afim de en-
contrar o imperador.
Não bastariam dez dias com dez noites para enu-
merar todas as provas por que passou Godofredo no
espaço de seis niezes que decorreram até chegar ao
termo da sua viagem ■, desconcertou, pela sua pieda-
de e valor <? pelos conselhos do seu escudeiro, todos
os enredos do demónio ; soccorreu oppriniidos, prote-
geu orphãos, venceu gigantes e monstros, e tão bem
andou que por toda a parte eram admirados o seu
nome e valentia. Afama de tantas proezas lhe devia
servir de muito para com o imperador, que não po-
dia ignora-las, pois que tão estrondosas c illustres el-
las eram •, porém, antes de apparecer ao seu sobera-
no, largou as armas com brazòes, por conselho do es-
cudeiro, para vestir outras que só tinham por sim-
ples divisa uma cruz singela com este moto : Deus
seja cm minha ajuda! A minha cansa i boa. Estava
o imperador então mui triste e embaraçado-, rebel-
lára-se seu filho e acarretara á traição a maior parte
dos senhores vassallos de seu pai: havia, sobretudo,
entre ellcs um prejiiro, por iiome Henrique deLim-
burgo, que nuiito contriliuíra para o fiUio conspirar
contra o pai, e que dava conselhos scelcrados e funestos.
Assim (|ue Godofredo o iiarbudo avistou o acam-
pamento do imperador, metteu d\'sporas ao eavallo
a fim de chegar nuiis depressa, e voltou-se para ob-
servar SC o escudeiro o seguia. Com grande assombro
seu viu-o todo de branco, e que despelava o eavallo,
e tomava Iodas as disposições para não ir por diante,
e passar alli mesmo a noite comnmdamente.
— >. Então não queres aconipanhar-me '. E lazes
conta de não ser mais meu escudeiro, pois que assim
agora me al>anilonas? '>
O companheiro sorriu-se e abanou brandamente a
cabeça.
— II 1'enso (pie é prudente c de assizado conselho
passar n'este sitio a noite jiara /ananhã comparecer-
mos per.Tnte o imperador vosso amo. "
— II Amanhã ! . . . uinda ijão é bem noite c vamos
perder tempo precioso . . . Avante ! ■•
iSe o senhor j)ersistn em partir já. por mim
aqui ficarei ; si.-rá o senhor ((ue me larga, r n.lo eu
que o .nbaiidono. •<
Godofredo, sem examinar os motivos da delioera-
ção do escudeiro, abnegou a sua opinião para abra-
çar aquella :, deitou-se na relva, resoluto a esperar
pelo outro dia. — Chegou este e ainda o conde man-
celx) dormia á larga, mas os echos de tromVjetas e os
clamores de combatentes o acordaram de sobresalto.
Montou logo e subiu a uma eminência ; d'alli desco-
briu que as tropas do imperador estavam ás mão*
com as do príncipe Henrique, e que n*aquella occa-
sião o exercito do filho levava vantagem sobre os sol-
dados do pai. O escudeiro, conforme o=. seus hábitos
taciturnos, metteu o eavallo a galope, alcançou o cam-
po da batalha e entrou na refrega : escusado é dizer
que o conde o seguiu. Chegados ambos mudou tudo
de face. Os dois combatentes levavam a victoria on-
de quer que acudiam •, nunca se viu a cavalleiros
practicar façanhas como Godofredo ; quanto ao escu-
deiro de branco, bastava-lhe estender o dedo n uma
direcção para se postrarem os batalhões, como toca-
dos por força invisível. Brevemente o príncipe Hen-
rique se pôz em fuga com a sua gente, e viu-se com
admiração o príncipe de Liimburgo, que até alli es-
tivera de observação, afastado sem carregar com sua
tropa, cair sobre os fugitivos, soltando ogritode guer-
ra do imperador, e voltando depois a frente dos seus
e trazendo muitos prisioneiros, ajunctar-se ao mo-
nareha. — Chegado á presença do seu soberano, pòi
o joelho em terra e disse :
— "Mostrei atraiçoar-vos p.ira melhor servir-vos :
dignai-vos perdoar-me um fingimento que bastante
me tem feito padecer, porque me produziu a vossa
cholera sem que eu a merecesse. :•
O imperador não se deixou lograr por esta menti-
ra, e bem percebeu que o conde de Limburgo tinha
manhosamente esperado que se decidisse a victoria
para tomar o partido do mais forte. Não mostrou
agrado ao Limburgo, guardando para mais tarde
tracta-lo como elle merecia. — No entanto Godofredo
G seu escudeiro estavam confundidos na multidão •-
mas os olhos do soberano os distinguiam maraxilho-
samente.
— .4 Vinde cá, valorosos incógnitos; nós vamos de-
liberar no que muito nos importa; vinde tom.ir par-
te no conselho, porque vos devemos a victoria. ~
Obedeceram, apearam-se, centraram na tenda di>
imperador; e tendo este jiiiilido a cada um o seu pa-
recer :
— " A minha opinião, é, disse o conde de Limbur-
go, que se persiga o príncipe rebcUado até cair. vivo
ou morto, por força ou astúcia, nas mãos do stibí-ra-
no que olfcndeu. ••
tluantos ouvirauj este voto bateram palmas em
signal do assentimento. O imperador enxugou uma
lagrima, e vollando-se para Godofredo, o único que
não applaudíra :
1 Vós, senhor eavalleiro. qual é o vosso voto '. -
Senhor, o príncipe Henrique é voss<i (Uho ; r
o filho tem juz á misoriconiia de seu jwi. Penso que
MTia conveniente en\iar-lhe um eavalleiro para lhe
declarar que tendes os braç\>s alvrtos e que o vossi»
perilão sií espera jk-Io seu arrependimento. ••
O imperador, eommovido, abraçou Godofredo c
lhe disse :
— .. C> vosso ivirect^r prevaleoer.i a totlos, porqiie
foi Deus que vo-lo inspirou. Eu vosrncnrregx» dcpri>-
curar meu filho; pjirti já, e á volta nvelioreis a re-
compensa que pcdinles. No entanto não tendes ipie
requerer de mim algum galardão .' •■
— i. Só um, rosi>ondeu Godofredo; jx>ro a vossi
ma"estadc o favor de não lev.nntar a minha viseira
e de não diicr meu nome até a minha volta.-»
— .. Teri.i grande contonlamcnto om saber quem
o PANORA3IA.
219
sois ; porque não conto entre os meus cavalleiros vas-
sallo mais valoroso c mais avisado do que vós ; mas
fa(;a-se como desejais. ■■> *
Godofredo se poz logo a caminho, guiado por seu
escudeiro ; mas no espaço de duas semanas não pou-
de alcançar o príncipe Henrique, taes eram os obs-
táculos de toda a casta que lh'o impediam : a final en-
controu-o ao pé de Bruxellas, quando menos espera-
va c vinha de volta já descoroçoado. Inimediata-
inente lhe fallou, e com voz respeitosa mas firme
lhe disse :
— " Senhor, venho da parte do imperador, vosso
pai <• meu amo, exhortar-vos ao arrependimento e
' trazer-vos proposta de perdão. "
— «Vindes do outro mundo, bradou descortezmen-
te unia voz, que Godofredo reconheceu ser do conde
de Limburgo : o imperador Henrique III morreu ha
oito dias; e estais fallando ao vosso soberano, Henri-
que IV. "
As risadas da assembléa, a estas palavras, descon-
certaram algum tanto Godofredo ; mas o novo impe-
rador fez signal que se calassem.
— u Mancebo, sois bom e leal súbdito ; desarmas-
tes a justa cholera de meu pai contra mini ; aben-
çoou-me, cm logar de me amaldiçoar, no leito da
morte; avíjséque devo esta felicidade. Dizei, quem
sois .' "
O anjo branco adiantou-se antes que seuamosup-
posto fallasse.
— íi Ksto cavalleiro é o senhor conde Godofredo de
Lovaina, despojado, em sua infância, de seus estados
pelo conde Henrique de Ijiniburgo. n
— " Ah ! . . . acudiu o imperador ; estimo ... eu
lhe restituo todas as ferras do liotiiier, eosdominios
que lhe roubou um traidor que enga(iou successiva-
mente a meu pai eamim. Aiiiila mais; (h)U-llie mi-
nlia irmã cm casamento. l'reiidani o con<le lie Jjini-
burgo, osepidlem-n\j para sempre? n'um cárcere. Go-
ilofriMlo, abraçai vosso cuidiado. "
— u Está consumniada a minha missão ; posso vol-
l.ir para occu" — bradou o escudeiro l)ranco, que
despregou duas azas de oiro e desappareceu por en-
tre as nuvens, porque era um anjo (pie Deus tinha
fnviado para proteger Godofredo. (Continua.)
Coi
Romance da Vurseya.
I*uvera, orfiiiiu, xitcilu,
Seuza cu^iiii rariiali ! —
Ma pir liir l,'i li> vciideltii,
Stu si„-iiru, vii^ta aii< lu- clín.
Jjamcnt. /itiub. de Niolo.
Vil
O ciRunoiX» <|ue devia fizir a autopsia dos dois ca-
dáveres tardou muilo. Nocaniiiiho Iimm apciíado por
(iiocanto< 'a.ilrioiíi, camarada di' ilrandolaccio, e con-
vidado ciini a maior polidez para ir curar lua ferielo.
Levarani-n'o ao pé ihí Orso, a (pii'rn a|qilicou o pri-
meirrf curativo, i> (lejiois o honrado Caslriuiii encar-
reg(iu-.ie (h-oeonihizir alémiia graii(h' dislíuuia, fal-
lundo-lhe lios nuiis afimados prolesMores de l'i/a, que
eram, dizia elle, ai-us amigou inliinos. — ..Doutor,
neereseenlou o salleador-lheoiogo á dcsnedida — esli-
nio-o lauto (pie é coiiveiiienlii adverlir-llie (|ue o se-
gredo éualma do módico c do confessor. •• M ao mes-
mo lenqio liiitia no cão da espingarda. ..Já iosube-.
ver, ouvir, e calar, que é a antiga regra de bem vi-
ver. Adeus.
Por causa d 'este encontro era que o cirurgião che-
gava tarde e um pouco perturbado.
Q-uasi ao pòr do sol Colomba e miss Lidia saíram
da villa, e conversando sobre a aventura de Orso.
objecto de extremo interesse para a bella ingleza,
alongaram-se insensivelmente de Pietranera. No fim
de um quarto de hora de subida por montes inore-
mes acharam-se n"uma assomada coberta demyrthos.
Miss Lidia estava muito fatigada, e a noite ia cer-
rando.
— «Minha querida Colomba, parece-me que nos
perdemos. I'ietranera deve estar por força ali, onde
se vêem, aqucllas luzes ...■>■>
— " E verdade, respondeu Colomba, mas a dois
passos d^aqui . . . nas mattas . . . posso vêr e abraçar
meu irmão . . .n
Miss Nevil recuou sobresaltada.
, — «Mas o que hão de dizer de mim, Colomba?
E tão tardo ! . . . E Orso o que pensará ! "
— «Ha de pensar que os seus amigos o não desam-
param. j>
— " E meu pai .'...;■
— .. Salte que saiu comigo ... Então I . . . Esta ma-
nhã viu o retrato d'elle e á noite vê o original. . . !■«
ajunctou com um sorrir malicioso.
Lidia corou, e sem dizer mais nada fez signal de
que estava prompta. Colomba apertou-liie a mão e
principiou a andar com tanta rapidez, que a sua ami-
ga mal a podia acompanhar. Cinco minutos depois,
parando de repente, a irmã de Orso disse :
— «Agora, para nos não expormos a algum tiro,
e preciso avisa-h)S. " E assobiando j)ur entre os dedos
soltou um silvo longo e estridente, a que immedia-
tamente responderam os latidos de um cão. Passados
instantes apparecxui asentinella avançada dos bandi-
dos, o nosso conhecido vellio Brusco, o qual, alVaiían-
do Colomba, lhe foi servindo de guia. — Torcendo
por muitas voltas nas estreitas sendas do bosque, fo-
ram eneontrar-se com dois homens l)em armados.
— "Es tu, Brandolaccio ? perguntou Colomba. —
E meu irmão onde está ? »
— Lá em baixo, replicou elle. Mas devagar ! . . .
Dorme. »
As duas mulheres adiaiilarani-sc com cautela. Ao
pé da fogueira, escondida detraz (Pum muro de pe-
dra solta, Orso repousava deitado n'um feixe de pa-
lha secca e i'uibuçado no seu capote. Estava uniilo
(lallido e tinha a respiração alta. Cidomba assentou-
se juncto d\lle, c, contemplando-o silenciosa v com
as mãos erguidas, j)aiicia extasiaila cm oração men-
tal. Lídia, pondo o lenço na cara, eneostou-seaohom-
bro da sua amiga, ede vez em (piando estendia a cff-
bcça para vêr o ferido. Kinalnieule Orso aconlou .
Api'nas elle abriu o ollius, Colomba ih'ilou-llu' os
l>raços ao pescoço, e, sem o deixar res|)ouiler, profe-
riu iiiil pergiinlas ternas e inipiietas. Orso, entretan-
to, par(!cia ter um só peiisaiiH'iilo na cabeça. No meio
dos padi'cinicnli)S atrozes ipie o pungiam, e dos re-
ceios que oalormentavam, o amor, mais forte, (juei-
inava-llie no coração, e persoguiu-o ineessaniemeute
de esiieraiiças e duvidas; aquellas, tão iloccs que as
não ousava acreditar, estas, tão cruéis que .sentia es-
morecer o animo se acaso .se demorava n eomlutlt^-his.
A iiiiagciii de miss Nevil ap|iarcria-lhe nas solidões
llo^ lii.-,i|iiis, |Mir entro os vultos sombrios dos bandi-
dos, sorrindo meiga de saudade, como anjo consola-
dor, cujas ay.as eseondiam as duas covas saliiiiadas de
sangue, onde jaziam os dois iniiiiigns ila sua easji,
Diaiile «ressa visão, radiosa di- formosura e innocen-
cia, as suukbras do remorso desvaneciaiu-se ; purijue
220
O PAIVORA3IA.
a paz da consciência, e a aventura que perdera ao pi-
zar a terra natal, só d''clla as ousava esperar ainda.
Foi por isso (jue Orso só .achou palavras para per-
guntar a sua irmã se niiss Liidia ainda eslava em
i'ietraiiera, e se respondera á sua carta. Colomba,
inclinada sobre o rosto do mancebo, occulta\a-llie in-
teiramente a sua bcUa amiga, que, mesmo sem isto,
a obscuridade da noite, quasi serrada, lhe não dei-
xaria perceber.
— " Não, Orso, replicou Colomba ^ iniss Nevil não
jne entregou nenhuma carta . . . Mas tu tens-lhe mui-
to amor? ])ensas n^elle sempre?"
E em uma das mãos segurava a da tremula ingleza,
e com a outra erguia brandamente a face do ferido.
— " Se a amo, Colomba ! . . . amo-a tanto, que não
me queixaria de morrer, só pela ver agora um ins-
tante só . . . Mas ella . . . que mal me conhece, ha de
desprezar-me hoje . . . Esta idóa é que me mata '. "
Ouvindo isto niiss Nevil forcejou para retirar a
mão d'cntro as de Colomba, mas dcljaldc. ('om um
sorriso de malicia infantil a linda fjlha de Córsega
aprcssou-se em rcspoiíiler :
— " Desprezar-le cila I ... se soubesses '. . . . Olha,
Orso, qucro-te contar muita cousa a esse respeito . . . >»
A mão captiva tornou a querer fugir, mas a de
Colomba, mais firme, cada vez a approximava mais
das de Orso.
— u Mas por qu(! me não respondeu ? . . . duas li-
nhas, uma lettra só que fosse ; . . . enganas-me. Ella
não, poude supportar esta terra, partiu já I . . . ^'
A força de attrahir a mão de niiss Nevil, Colom-
ba conseguiu afinal juncta-la á de seu irmão. Então,
afastando-se de repente, ecom uma rizada d'alegria,
exclamou :
— "Orso, pedi a resposta a niiss JAilia.:^
Aingleza, vermelha como um coral, balbuciou sons
inintelligiveií. Delia Rebia cuidava que tudo isto
<;ra ainda um sonho.
— "Miss Nevil, aqui ! como se atreveu? . . . Ah I
esta felicidade étjnianha. . . que ainda duvido d'el-
la . . . "
E tentava erguer-se para lhe beijar a mão.
— "Acompanhei, Colomba, disse Lidia, não que-
ria que suspeitassem que vinha aqui . . . e depois eu
desejava também saber . . . Mas que mal está n'este
ermo ! "
Colomba, assenlando-sp atraz de Orso e levanlan-
ilo-o com cuidado, encostou-lhe a cabeça ao joelho.
Depois passando-lhe os braços á roda do pescoço, fez
um aceno a miss Nevil para que se aproximasse.
— "\ani06, mais perlo, mais perto! Não obrigue
o doente a fallar alto. ti
E como Lidia hesitava, pegou-lhe na mão, cobri-
gou-a a assentar, Ião chegada a Orso cpie o vestido
tocava 110 capote, e os dedos pouzavam no hombro
do mancebo.
— " Agora sim — estão como devem estar, disse
(."olomba. Então, Orso, não se passa bem nacharnc--
ca, ii'uma noile d'esta5?"
— "Linda noile, que nunca ha de esquecer!'-
— "Mas não pode licar aqui, insistiu Lidia; é,iic-
cessario voltar a l'i(?lranera. Esta /Icsgraçada aven-
tura não lerá consequências... A minha partida,
accrescentoii suspirando, espero que levarei a feliz
certeza <le estar reconhecido o seu valor e lealdade. >•
— " Partir, iniss Nevil, já ! . . . pelo céu não nro
diga n'esta hora . . . sou tão tlitoso ! ••
— " l'or força ha de ser! meu pai não ]>óde caçar
sempre ... o talvez o mais cedo b«ja o melhor para
nós ambos. •'
Orso arrancou um suspiro e ilesc.aíu a calH-çn so-
bre o peito. Scguiu-se um momento lie silencio.
— "Nós é que a não deixamos partir, acudiu Co-
lomba. Ainda ha muito que fazer em 1'ietranera . . .
Mas tjue tem Brusco ? . . . Abi vem Brandolaccio . . .
Vamos vér o que é ! "
E erguendo-se, deitou sí;m ceremonia a cabeça de
Orso nocoUo de miss Nevil, e correu direita ao ban-
dido.
Envergonhada de ficar assim só com um mancebo
quasi nos braços, a Ijella ingleza não se atrevia nem
aarredar-se, por não molestar o ferido, nem a levan-
tar o rosto por timidez ; porém Orso arredou-se lo-
go e apoiando o corpo no braço direito, disse :
— .lOh ! miss Nevil, partir já ! . . . tem razão, es-
ta miserável terra não merece que esteja aqui . . . e
apesar d'isso, cada vez que me lembro de que nos
havemos de separar é uma dor, que me arrebenta o
coração . . . Sou um official jiobre, s<!m esperanças, e
proscripto hoje . . . que momento para lhe declarar
que a amo I . . . é a primeira, e de certo a ultima
vez. Depois, morrer aqui, ou nos desertos da Ame-
rica, pouco importa. Em toda a parte se acha um
punhado de terra para cobtir um cadáver. ;-
Miss Lidia desviou a cabeça, como se a obscurida-
de não fosse bastante para esconder a sua confusão.
— "E cu viria aqui — respondeu ella com voz tre-
mula— se não fosse ... ■' — faltando assim, mettia-
Ihe no dedo o annel que lhe dera em Ajaccio. E.
vencendo um pouco a sua torvação, accrescenlou : —
"Enial feito fallarmos n"estas cuusaa n'uma charne-
ca, entre bandidos . . . Aqui não podia, ainda que
quizesse, enfadar-me . . . como devia.'-
Orso, desbriiçando-sc para lhe beijar a mão, per-
deu o equilíbrio, e caiu sobre o braço ferido. A dòr
arrancou-lhe um grito.
— " E eu éque tive a culpa I . . . -' exclamou ella.
le\antando-o. O rosto de ambos encontrou-se, e o
mancebo ousou iniprimir-lhe nos lábios um beijo ar-
dente, <|ue não foi repellido. — N"e»le instante Co-
lomba, correndo prccipit.-idaniente, gritou de longe:
— " Os soldados ! . . . Orso ; levanta-te, foce '. •■>
— "Deixa-nie. Dizc aos bandidos que se vdveni.
Eu fico ; mas pelo amor do céu, leva d'aqui mis»
Lidia, que a não vejam. ■•
— "Eu é que o não deixo,'- disse Brandolaccio.
— "Nem nós também," acudiram as duas mu-
lheres.
— "Não, dcixem-me. Em nome de Dous, Colom-
ba salva miss .\c\il, ou não tornas mais avèi^mel"
Mas Colomba e Brandolaccio toniaram-n"o no»
braços, e este ultimo, carregando-o aos honibros, co-
meçou a descer a ladeira no meio das ameaças do
ferido. Correram assim aliicum tempo, ouvindo d*es-
paço a espaço os tiros dos soldados, a que respondia
a intervallos a espingarda de (^rso, atirada p»-lo tlieo-
logo Giocanto Castrioni. l'or fim Brandolaccio de-
clarou que já não ^xidia mais, e deixnu-sc cair no
chão, a despeito das reprehensõcs de Colomlía.
— "Onde está iniss Nevil.'-' jiorguntou Orso.
Disícrani-lhe que assust.itla pelos tiros, e detida a
cada passo pela altura c nspercxa do roatto, natural-
I mente tinha perdido o rasto dos fugitivos; Brando-
laccio assegurou que não corria o menor perigo.
> .\hi \eni uni cavallo. exclamou Colomba, cs-
t.iinos salvos I ••
Elleetivamenfe um c.ix.illo, espantado pelo estron-
do dos tiros, corria jiara aquelte sitio.
. Estamos siilvos I •• gritou Brandolaccio. Correr
.10 cavallo, segura-lo pelas ciiii.-is, passar-Uie na lxx>
ea um,a laçada em vez de freio, foi obra d"um ins-
tante para o Kiiidido, auxiliado por Colonilia. —
"Agora vamos avisir o no>so cura, Cnslrioiíi - disso
elle. E assobiou duas vezes — um silvo distante rcs-
o PANORAJIA.
221
pondeu ao signal, e logo depois a espingarda ingleza
emmudoceu. Então Brandolaccio saltou no cavallo, e
Colomba ajudou seu irmão a coliocar-se diante d'el-
]p, que o segurava com um dos braços, em quanto a
outra mão dirigia a rédea. Apesar do pezo duplica-
do, o cavallo, robusto e generoso, partiu a bom gal-
lopar por uma mouta empinada.
Colomba tornou então atraz, chamando miss Ne-
vil com toda a voz, mas ninguém lhe respondeu. De-
pois de vaguear cm busca d%jlla algum tempo, foi
encontrar á bocca d'uma senda dois soldados, que a
mandaram parar.
— "Q.uantos mortos trazem da sua campanha, ca-
maradas?" perguntou cila rindo.
— «Estava com os liandidos, disse um dos solda-
dos, ha de vir comnosco. "
— "Decerto; preciso d'escolta. Mas tenho aqui
uma amiga; c antes é preciso saber onde está. >■>
— "Já foi preza. Hão de ir ambas dormir á ca-
deia. >:,
— "Sim ? Deve ser curioso ! "
Poucos minutos depois estavam junctas as duas
amigas, c escoltadas pelo destacamento encaminlia-
ram-sc para 1'ietranera.
Q-uando chegaram, antes de entrar em casa do
prefeito para onde as conduziam, Colomba, apertan-
do o braço a miss Ntvil, murniurou-lhe ao ouvido :
— " Meu pobre irmão, como ha de estar '. ]Mas eu
conheço que ni'o ama, pelos menos tanio como eu. n
Miss Lidia apertou-Uie a mão sem responder.
— ufAuando a ouvi conversar tão baixo com Or-
so, entendi logo «jue tinha alguma cousa r|ue dizer a
íeu pai. "
— "Ah, Colomba, que traição! . . . E o que hão
de dizer ? »
— " (i,uo se per<leu na charneca."
— " l'"azer-me isto, a mim <|ue linha tanta confian-
ça na sua amizade ! "
Colotnba, sorrindo, passou-lhe o braço á roda <lu
cíorpo, e Ijeijando-a na fronte, disse em voz bai.\a :
— "iMinli.i querida irmã, perdoas-me .' "
— "(lui- remédio, minha terrível irmã!" repli-
cou Lidia, <l,Ui(lo-lin? oiilro beijo.
(-luando subiram, o coronel, pela vigésima vez,
voltava a buscar noticias de sua filha. A sua inquic-
lação crescia a cada momento, ^)t) re|)enli; aniuincia-
lam ;t appreliensão de duas es[iias dos bandidos, e
d<!baixo (Peste honrado lilulo foram inlroduzidas na
>iala onde sir Tliomaz Nevil, o pcrleilo e o procura-
dor régio se achavam riMinidoí'. E fácil de sup|)(ir
qual seria o pejo de Lidia, o desafogo de Colomba,
II esjianio do pcrleilo, a alegria e assombro do ciiro-
iiel. O procurador régio, moco e malicioso, ]irocedeu
a uma i'specie de inlerrogatorio, «pie terniiium por
elle eonfuiiílir de todo a tímida (í assustada iiigleza.
— II Julião, ilisse o |)releilo, que jioileiiios soltar
niiibas. 1'yslas senhoras foram passear, e (lor acaso
enconlraram um niaiicelio amável e Uu-ido — nada
ira mais nalural do qut- fallar-lhe. " — Depois, clia-
luando Ci)l()riiba dií parle, ajuntou : — " 1'óde nian-
ilar dizer a seu irmão (pu; u seu negocio c^slá excel-
('•iileiueiile figurado. O (íxanu^ dos cadáveres e o de-
poim<'iilo do eoriiiiil provam (pii! elh; eslava só, e
não fiz mais do qui^ dcleiider-se. Tudo se ha de ar-
ranjar, mas (• necessário ipu^ vcMiha eiilregar-se ájus-
liça !■ soliii'ilar o seu livramento."
I''.ram on/e limas <|uaiido ocoroiiel, Colomba e Li-
dia se assenlaraiii á mesa. Colomba di^vorava com
appiMile, escanieceiídii o |(rcH'eito, os advcgados e os
soldados. Sir '1'liiiiiiaz comia silencioso, ollianilo acu-
da iiislaiile para sua fillia, que não levaiila\a avis-
la. l'or fim imii loiíi iiieino mas grave:
— " Lidia, perguntou elle cm inglei, estás com-
promettida com delia Tíebia ? "
— "Sim, meu pai — desde esta tarde" respondeu
ella corando, mas com voz firme.
Depois, fitando o pai, e não o vendo com mostras
de cholera, foi-se-lhe lançar nos braços.
— "Está bom I . . . E um bello rapaz. Mas, por
Deus, havemos de sair da sua excommungada pá-
tria, ou nego o meu consentimento. "
— .1 Não sei inglez, acudiu Colomba, mas aposto
que adivinhei o que disseram .' "
— "Dizíamos, replicou o coronel, que a havíamos
de convidar para vêr a Irlanda. "
— "Com todo o gosto, coronel. Serei a surdia
Colomha. Toquemos as mãos. «
— "O costume em taes casos é abraçarem-se as
irmãs, e beijarem-se os pais. "
(,"olomba foi collocar-se ao lado de Lidia, e o co-
ronel, despejando o ultimo copo de vinho, retirou-se
rosnando entre dentes:
— " Orso i; um excellente companheiro, mai não
ha de viver n'esta amaldiçoada terra. "
COSTUMES DA X.USACIA.
I'/Ni 111! as iluas capilaes, Dresda do reino de Saxii-
nia, e ltn>>lau da provineia de Sili'sia, eslende-se
uma planiiie ferlil e ondulosa, dividida em duai«
parles chamadas alta e baixa Lusauia, o qui> fslá
nqiarlida enire a Saxonia i- a 1'russia : eincoenia
mil habilaiites do lado d.i |irimi'ir:i, e du/ciilos mil
222
O PANORA3IA.
do lado da Prússia, é rjiianto resta de uma popula-
ção alava, que no VI século se havia derramado polo
meio da Thuringia, do território de Anlialt e de
uma parte da marca de Brandeburgo, e que esfá ao
presente encravada, estreitada n'um acanhado dis-
tricto da AUemanha. ]No século XIII ainda este po-
vo gozava de notável influencia em muitos paizcs do
norte d'cste império; nas ruas de Leipsick falla\a-
se o slavo, e bom numero de aldeias e senhorios con-
servavam desde essa epocha denominação slava ; ac-
tualmente este dialecto estrangeiro some-se de dia
para dia até na província onde se refugiou a tribu
nómada, que o conservara atravez de tantas vicissi-
tudes c. por tantos séculos ■, a linguagem allemã o
substituo nas escholas, púlpitos e actos públicos. Tal-
vez que ^brevemente essa tribu derradeira da antiga
raça esclavonia, que amedrontou e subjugou parte
dos paizes germânicos, venha a perder até a memo-
ria de sua remot;i origem, e também os seus usos
tradicionaes, para adoptar o idioma, leis e costumes
da casta allemã, que a cerca por todos os lados.
Lma parte doesta família esclavonia é protestante,
outra parte catholíca ; os estrangeiros os designam
pelo nome genérico de vendes ; pela maior parte se
occupam todo o anno nos trabalhos agrícolas e cria-
ção de gado. Antigamente, além do dizimo que pa-
gavam, deviam estar ás ordens de seus respectivos
senhores quando fossem requeridos, com seuscavallos
e carroças, ou para lhes lavrarem as terras, ou para
lhes prepararem a habitação, e até para os transportar
d'um para outro sítio : libertos actualmente d'aquel-
la espécie de servidão, cidtívam em paz seus campos,
e administram sem olheiros os seus bens ruraes. O
pai de família exercita sobre quantos se lhe aggre-
gam auctorídade patriarchal •, rege, determina, e to-
dos lhe devera obedecer : em quanto anda occupado
fora de casa, governa a mulher em seu logar ; na
verdade é quem manda na ausência do marido, mas
quando este volta deve ser a primeira a dar exemplo
de obediência. — Nas laboriosiis casas dos vciulcs to-
dos têera suas tarefas e attribuições :, os filhos que
ainda não são bastante robustos para ajudar o pai
nas lidas campestres, os velhos que já não podem
guiar a relha do arado, passam o dia a liar lã, câ-
nhamo ou liidu). lia assembléas regulares de pessoas
que liam desde a manhã até á noite como se fora
ii'uma fabrica, com a diflerença que cada um traba-
lha por sua conta. 1'ara os que podem occupar-se
n"outro lavor ^ó começa a fiação em 11 de Outul)ro
e linda na (juarta-feira de cinzas. Arrancha uma dú-
zia de pessoas para irem de roca e fuso n'um in\er-
iio para uma casa e n'outro inverno para outra : o
primeiro dia d"este industrioso ajuuclamento é de
festa. A dona da casa onde se reúnem as que fiam
aos serões n'uma invernada, appresenta-lhes n"esse
dia um ganso bem assado e um pralo de vacca : co-
meça a tarefa ás sete da tarde e demora-se até ás
dez, excepto aos sabbados, que acabji uma hora mais
cedo. Todos estes serões são muito alegres e animados ;
■ora as raparigas cantam em côio cantigas populares
ou xacaras ; ora uma santa velha refere as iiislorias
de fadas e encantadores que aprendera na infância ;
e de tempos a tempos inlerronípc-so o fio usual d'es-
ses cautos e narrações com uma concorrência mais
festiva c ruidosa : os mancebos pertencentes uo ran-
cho annuncium que em tal dia so apresentarão na
casa da fiação \ c trazem comsigo bilhas de cerveja e
frascos de aguardente ; então dcpõe-se a roca jKir.i
dançarem ao som dos instrumentos de que usam.
Em véspera du Natal ha uma reunião mais grave e
solemne, espécie de juízo cm que se examina o tra-
balho das fiandeiras, esuú niulctadas usque uão fiam
bem igual e as que deixam ir gudilhões de lã pega-
dos ao fato : a sentença dá-se em meio das risadas
da assembléa, e as culpadas receljem a sua amnistia
n^uma dança geral. No dia seguinte festeja-se em
cada casa a solemnidade do Natal : — uma donzella
vestida de branco entra no quarto em que a família
está juncla, tendo n'uma das mãos uma varinha e
na outra um panno cheio de nozes e maçãs, e diz :
— i"IIa aqui meninos bons?" — Responde-lhe : —
" Ha. >! — K apparece toda a rapaziada da casa : per-
gunta-os eUa a um por um, e aos que respondem
mal dá-llies alguns leves toques com a vara, e aos
que se explicam bem reparte os presentes que traz
da parte do Menino Jesus : é um exame carinhoso
mas serio, que se passa perante os cabeças da famí-
lia, e que nos corações da infância causa profunda
impressão.
No verão festejam-se outros dias, principalmente
o de S. João e das ceifas. Acabada a colheita os se-
gadores conduzem a casa o ultimo carro de trigo, que
no cimo da carga traz um molho de paveias engri-
naldado de flores : bandos de raparigas precedem o
carro trazendo ancinhos enfeitados de ramos e cor-
riolas ou campainhas do campo; 6eguem-n"as os jor-
naleiros em duas filas a modo de procissão cantando
ura hvmno religioso. Junctam-se no pateo da viven-
da rústica; os cantos continuam até a ceia; e depois
doesta, na qual apparecem (raríssimo caso!) muitas
garrafas de vinho, começam os bailes ; a dona da ca-
sa é sempre quem rompe a dança, e a festa deita
até o raiar da aurora.
O canto é um dos prazeres habituaes doesta boa
gente; encontra-se nas .mais simples aldeias da La-
sacia ranchos de cantores, todos camponezes mance-
bos, que em certas epochas do anno andam cantando
ás portas dos recem-nascídos, ou dos que estão para
casar ; começam o gvro de ordinário pela meía-noi-
te, e ás vezes ainda se acham pela madrugada diri-
gindo a sua harmoniosa saudação aos que acabam de
vir ao mundo, ou aos que pelo casamento vão entrar
em vida nova.
Os antigos usos dos vendes apparecem sobre tudo
nos funeraos e nas funções familiares, tíuando fallc-
ce um camj)onez, us parentes e aniigos associam a
sua magua os animaes de que elle cuidara qiiando
vivo: uma pessoas da casa vai bater nos cortiços c
grita: — usurgi, abelhinhas. le\antai-\05, já não
tendes o vosso bom dono. K um criado leva ao
gado ração extraordinária de feno ou de aveia. Não
escarneçamos d'esfes hábitos ingénuos: ha entre o
homem do campo e os animaes que o servem emsu3
penosa lida ma\ ios;is relações. Não e dotado de com-
pleto sentimento de compaixão aquelleque. entcme-
cendo-se somente com as misérias humanas, pódc vèr
sem abalo o cavallo titubantc na estrada se puxa por
uma carga de Sdlxjo pezada, ou o loi desfallecido
arando de manhã até a tarde um chão pedregoso.
Os baptisados solem nisiim-se na Lusooia com gran-
de pompa: dão á creança muilus padrinhos, c rt?fi-
tani sobre o berço quantidade ile religiosas e ternas
orações : seus pais salicm por experiência de quantos
embaraços é juncado o trilho da vida, e quereriam
iirescrvar das afllicçtVs por que pass,iram a sua que-
rida prole, dando-llie em nome de (^hrislo muíli.<s
tutores c invocando para elle as bênçãos celeste*.
O sABEn sem ríqueri é como um pé sem sapato, e
I a riqueia sem o saber como um sapato sem pé.
(Extralnda do TalmuJ.)
o PANORAMA.
223
A VINGASÇA DO HOJIEM BRANCO.
Secna da vida dos Índios selvagens da America
Septemirional .
Nas margens do Maria, a pouco mais distancia da
de um dia de jornada do sitio onde este rio mistura
a sua corrente com as aguas turvas do Missouri, ar-
diam debaixo das arvores, fjue assombreavam as ri-
banceiras do pequeno rio, as fogueiras de um bando
de mancelK)S ca^'adores, da tribu dos Pés-Negros, os
quaes se tinham afastado do corpo da tribu para ce-
lebrarem os mNsterios que os haviam de elevar á di-
gnidade de guerreiros. A uns cem passos dVste logar
estava um wiguam (ou choupana iiidia) agudo e al-
to, levantando-sp da terra como uma pirâmide, em
cujo interior mal podiam penetrar alguns raios de
luz por entre a ramagem fortemente entrelaçada.
No mais profundo silencio aquelles mancebos em
numero de vinte e oito tinham os olhos pregados no
chão, entretido cada um com osseus próprios pensa-
nxentos lúgubres, quando de repente se ouviram no
interior do wiguam os sons allos e compassados de
um tambor. Obedecendo ao chamamento todos suc-
cessivamente se levantaram, sem tirarem os olhos do
chão. O primeiro que chegou levantou apelle de bú-
falo que ta])ava a entrada estreita e baixa, scguran-
do-a até o ultimo ter entrado, centrando elle depois
tornou a tapar a entrada deixando cair a pelle.
O interior, de forma circular fechando no alto em
ponta, que teria trinta pés de altura, estava ornado
com vários utensílios, armas, mantas e cscalpos (1),
sobrcsaíndo a pelle de um búfalo branco, oflcrtas con-
sagradas ao Grande Espirito ^ e no centro onde se
reuniam as varas <|ue sustinham a construcção, esta-
va pendurada, ainda ensanguentada, a cabeça de ura
enornii' búfalo, Ioda rodeada defumo que não tinha
por onde sair.
Sen> fazerem a menor bulha todos aquelles mance-
bos tomaram os seus logares em roda da fogueira, e
o que tinha locado o tambor desenrolou uma pelle
branca e macia, e tirou o cachimbo de paz, com um
tubo ou pipcj largo a comprido, ornado de jerogliphos
significativos, ecom pemias de aves decores vivas até
a chaminé, feita de barro encarnado, cncheu-o de ta-
baco e hervas odoríferas, poz-lhe em cima uma braza
i?levuntou-o com solemniilade : aspirando ofumodei-
tou-o pelo nariz •, tomou o tubo com ambas as mãos,
inclinou-se para diante até locar com o cachimbo no
chão, e repetiu a aspiração; pasmou então o emblema
de união ao que eslava a sua dircrita, e d'este modo
.indou em roda, circulando asoflértas f<'ilas aoGran-
de Espirito, bem como a cal)eça do búfalo.
Houve uma pausa de alguns minutos, até que um
dus mancebos se levantou, estendendo o braço e dis-
se : — " Manitoú (assim denominam os selvagens o En-
te Supremo] os nossos corações ardem em desejo de
encontrarmos os nossos inimigos; as nossas armas es-
tão aliadas e as nossas llechas aguçachis — os nossos
olhos estão claros — seguem o vi)o da águia até o mais
alto j)enhasco da montanha, — descobrem o rasto que
.1 paiillii-ra deixa h.i rocha dura; mas feiticeiros ma-
lévolos se entreuK-ttcm, e nus «•ni^xiVim a \ista, en-
guimin-nus com rastos tingidos e al'ugenlam a caça
(1) Km falia di' trrnw prupriu em iiorlii^iicr., |mrccrii-
IK» i|iie iinii lijitiii iiiriiiivciilciilc cm u<l<>|>liir i'sl<', iiiliiiil-
tiilo cm ili\<>r-<jis liii^iLis, parji si^iiituiu' ii )M-llt- ila cahcra
iloii iiinrios cm luitiiMiii, iii-i-anca<lai't>iiM>^cal>t-lltts, pm- meio
lie um f;iil|M' rirruliu*, para firiír hci'\íiuIo «Ic troplirii no
vi-mciliir, Ac^umlo <i csljlo ilc iuiiíIiih imi;iic4 itc imiiut
iiiiicricaiiiis.
do nosso território. Manitoú, estende o teu braço so-
bre nós ; conserva-nos os olhos claros e os braços for-
tes; faze-nos encontrar búfalos e a antílope pastando.
Manitoú, guarda-nos do poder dos feiticeiros.
■ Sentou-se ; e o que lhe ficava immediato á direi-
ta, erguendo-se, continuou as preces : — .í Manitoú,
estende o teu braç-o e salva-nos dos malefícios dos fei-
ticeiros : elles são fortes e poderosos ; podem incutir-
nos doenças e quebrantar-nos os braços; mas tu has
de destrui-los. .iVlostra-nos o rasto dos nossos inimi-
gos; e nós te tributaremos ricos despojos — escalpas
'e mantas quentes ; um cavallo novo e forte e uma
Ciildeira de cozer a caça : Manitoú, guia-nos ao rasto
dos nossos inimigos. "
Então se levantou um dos que estavam sentados
defronte, e estendendo ambos os braços por cima da
fogueira, disse : — u O fumo do cachimbo da paz su-
biu cora as nossas preces aos pés do Grande Espiri-
to : elle sabe que nós estamos aqui reunidos ; não só
vê o nosso sacrifício e as nossas offertas ; mas também
ouve o nosso juramento. Os paconis e kausaus, os
chochonis eartapaóes tractam enegoceam com as ca-
ras pallidas (1), — devem morrer. Elles têem medo
dos homens brancos ; espalham a mentira de que os
brancos atravessaram a agua grande em monstruosas
canoas com azas, e que manejam armas que um ho-
mem não pôde abraçar : — arrastem-se no pó ; — nós
os i't's-JNcjros queremos vingar o fansue dos nossos
irmãos assiíssinados ; — os caras pallidas devera mor-
rer. Nós amamos a terra onde os nossos maiores es-
tão enterrados ; nós prezamos as nossas famílias e os
nossos amigos; eo sol não ha de illuminar o dia em
que voltemos sem termos derramado o sangue dos
nossos inimigos ; e nós te of!ertarcmos o melhor des-
pojo. ^
Depois d'isfo todos se levantaram c repetiram o
juramento solemne ; e, seguindo os tons reguladores
do tambor, principiaram as danças sagradas. A prin-
cipio andaram a passos apausados cm roda da foguei-
ra ; mas os sons gradualmente apressiidos do tambor
os animaram; os movimentos foram-se tornando mais
rápidos e enérgicos, até que com o grito de guerra na
bocca, cansados equasi desfallecidos, caíram no chão
para então receberem cm sonhos os conselhos dos va-
lentes que morreram nas batalhas, e as prophecías
das suas campanhas futuras.
Três dias e três noites repetiram estas ccremonias
agradáveis ao Grande Espirito, e em todo este espa-
çt) nem comeram nem beberam, nem saíram do wi-
guam ; mas logo que ao quarto dia o Sol despontou
no oriente, reunidos aborda do rio nomearam iVeu-
tre si para seu caudilho o filho de um cacique, o qual
na tdtiina caçada se linha distinguido pelii sua intel-
ligencia. Com animo (msado, quando no ultimo in-
verno estavam exhaustas as provisões, e a caça se ti-
nha tornado escaca, tinha clli- entrado na caverna de
um urso pardo, e malando-o tinha distribuído a car-
ne aos esfomeados. Sete pellos tle panthcras estavam
penduradas no seu wiguam, e suas irmãs repous;i-
vam em pelli's macias de caça que <'llc m:if;ira. To-
dos unanimenicnle acciam.ir.im o l'\iiiihii (nome qtic
a sua astiu-ia e velocidade lhe tiitham grangeadn) por
seu capilã<i ; e concordaram no logar em que p.issa-
dos Ires dias se deviam encontrar para começarem
as suas operiições de guerra.
Três semanas se leriam pa>-.aui« iii[ii>i> da solem-
(l) O» niMiiiiv Icilorc» não i^nuram ijne i>« índios ame
rit':iii(»H »í\o i-iir ttr coltrc, c «iiic por i^>o t*Ml*iN tis lirtnu-tts
hc llic* lí^unim |ialliilo<* ; il\)iiilc nasce a c\|>r«"»MV> tlrriffiis
fiaWtltit com <|iic tl<'>i^nam os iMiro|iciu.
224
O PAJVORA3IA.
iiiJadc que acabámos <lo relatar, quando uma peque-
na caravana de viajantes ia atravessando a Savana,
planicie ((ue parece não ter fim, a qual, terminada
da banda do poente pelos JNlontes de Rocha, e do
lado do nascente pelos Estados-Unidos, corre im-
mensa extensão para o norte e para o sul : voltavam
os viajantes de uma expedição mercantil a Sancta
Fé do México, e se lisonjeavam de brevemente en-
trarem no território pátrio. Formavam a caravana
quatro carros puxados por vigorosos e possantes ma-
chos, rodeados de nove cavallelros montados em pe-
quenos mas rijos cavallos índios, em quanto outro,
uns cem passos adiante, ia espiando os contornos.
— í£ (iue tal seria, Roberto, se descansássemos um
pouco ? disse um dos cavalleiros a outro : os machos
estão cansados, e os homens não o estão menos : des-
de manhã que nem um boccado temos mettido na
bocca ; e se temos encontrado rastos de selvagens,
isso não é motivo para nos esfaimarmos. "
7 — «Diga isso ao conductor, respondeu o outro,
em quanto elle anda devemos segui-lo :, mas parece-
me (jue lá está elle procurando um logar para des-
cansarmos; porque em quanto nós temos conversado,
tem elle examinado attentaniente aquelle bosquesito
que lá está adiante. AUi também deve haver algu-
ma fonte ; a folhagem parece tão fresca c viçosa ! "
Não se rí;alisaram porém estas supposições, porque
cm logar de entrar no arvoredo, o conductor com
um movimento de braço deu a entender á caravana
que o rbdeasse, e que se não approximasse ás arvo-
res, que tania sombra e frescura promettiam.
— «Maldicto! dis^e o cavalleiro ; tomara eu ago-
ra saber que escrúpulos tem na cabeça o conductor
para privar os nossos pobres corpos do um pedaço de
descanso. Até onde a vista pôde alcançar não ha ou-
tras tirvores. Roberto, dè-me um boccado de tabaco ;
necessito ter alguma cousa na bocca. "
O companheiro satisfez o podido i e para evitarem
o logar que parecia suspeito ao conductor, tirou os
carros fora do (rillio que outros tinliam feito, o tor-
nando a entrar n"elle, quando o perigo era passado,
continuaram a caminhar até o sol lançar a saudação
de despedida sobre o immenso e ondeado horisonto
da Savana. O bosqucsinho. tão cuidadosamente evi-
tado, se via já a uma di-lancia immensa, como um
oásis no deserto do Sahara, quando em cim.i de uma
d'cstas suaves alturas, que dão á Savana o aspecto
de um mar agitado, formaram os carros em quadra-
do, e no meio acceiíderam um lume que durou pou-
co tempo, e que prudentemente foi escondido com
cobertores suspensos cm roda, para que o clarão não
indicasse que estavam alli a qualquer inimigo que
podesse estar emboscado na visinhança.
Apenas os viajantes acabaram a sua coia, que se
limitou a carne secca de búfalo o café, apagaram as
brazas que restavam, e cuidadosamente guardaram
os carvões para o resto da viagem •, c atando as ca-
valgaduras a estacas cravadas no chão, collocaram
sonlinelhis que, deitadas na terra, podiam facilmen-
te descobrir inimigos que se approximassem. INo
centro d'esta pequena fortificação improvisada re-
pousaram tranquillamente os que não vigiavam, e
encurtaram as longas horas da noile com antícdotas
e casos da vida agitada <|ue tinham passado.
— ii Mas, llopkins, disse um «relles chamado Thi>-
maz, porque nos não deixaste dccansar n^aquelle lo-
gar que tão aprazível sombra nos onerecia ? "
— "Não viste os açores que pairavam por cima,
Thoniar? •>
— li E verdade que sim, disse este; mas quetf*em
ejlos com isto ! ■-
— "Os rauzaus, curou os viajantes do Oregon que
antes de hontem encontrámos nos disseram, larga-
ram estes sítios ha apenas cinco dias, e podeis con-
tar de certo que não deixaram nem uma só peça de
caça. "
— ií Pode bem ser; mas talvez que aquellas ave?
de rapina sentissem alguma caça morta, r?
— .'E podeis crer que uma peça de caça morta
ficasse um só dia na Savana, sem lhe serem os ossot>
roídos pelos lobos e por aquelles mesmos açores, tão
limpinhos, que o resto não daria comer a uma for-
miga.' Nada — n'aquelle bosquesito ha mysterio ; e
antes do romper d'alva hei de estar acordado ... os
demónios vermelhos, no caso que lá os haja, não cos-
tumam apparecer mais cedo. Gluizesse Deus que el-
les viessem — para mim seria uma delicia vêr de no-
vo espirar um par d'elles, com o grito de guerra na
bocca como ursos feridos de morte. "
— " Dize-me, llopkins, que te índíspoz tão furio-
samente contra os pelUs vermelhas' (1) perguntou
Thomaz ; leve-me este e aquelle se eu tão pouco os
posso soffrer, e confesso que nunca me acho tão
bem como quando nada ouço d"eUes : mas um ódio
tão inveterado e profundo como tu lhe tens, não te-
idio eu. Não lhes posso levar a mal que nos não pos-
sam tragar ; porque bem mal os temos tractado. -•'
Rangendo os dentes exclamou Hopkins : — « GLue-
reís ainda desculpa-los ? Se tivésseis soffrido o que eu
tive que supportar ; se tivésseis -visto cair nas suas
garras o que mais appreciaveis n'e5te mundo, então
serieis seu inimigo mortal como eu, e lhe tericís ju-
rado eterna vingança e incessante perseguição até os
exterminar. Mas lon^e de mim eslas recordações dos
quadros funestos e pungentes de tempos que já pas-
saram. Ainda pisámos o território d'aqueUcs demó-
nios vermelhos que não conhecem misericórdia ; c
temos motivos bastantes não s<') para estarmos acau-
telados, mas t;inibem para pouparmos as forças para
a occasiâo do perigo. ^ amos agora descansar para
termos a vista clara quando nos tocar a vei de ve-
larmos.
Longevidade dos s.v.bio».
Os hábitos estudiosos, tis trabalhos da infclligencia
não são prejudiciaes á saúde senão pjira quem os não
sabe conciliar com um exercício sufficíente das forças
plivsicas e uma livgiene conveniente. Os exemplos
de longevidade não sào mais raros entre os sábios e
os plillosophos do que nas outras classes d.a s<icíeda-
de. Boerhaave viveu 70 annos ; Ixx-kc 73; Galileu
78; Newton 83; Fontenelle 100, Bavle, Leibniti,
^"^llnev•. Buffon, e muitos homens distinctos do sécu-
lo passado, que virão a memoria dos noss.» leitores.
chegaram a uma idade muito avançada. Poder-se-hia
citar grandíssimo numero de eruditos c doutos allc-
mães quasí centenários. O profess<ir Hlumcnbach
morreu ha pouco tempo com 88 annos de idade, e
o doutor Olbers. ocelebrc astrónomo de lírcmc. com
81 annos.
Tenho conhecido homens dotados de boas qualidades,
que eram utilíssimos aos outros «■ inúteis parasi : co-
mo um reloíio solir na fronlaria d'unia casa mostr.i
as horas aos visinhos c aos passantes, mas não ao
dono. Svvii-r.
(11 Os leilorc fí«iniliari<«ilosroiiiosronvanccs de Coojwr
c outru-i c>crij>K>» iltt Aiiifricii tio .NorlcxilH-iii i|uantuo>u
cxprvstiiu c unsiÍj |Mra tlc>i;ii.ir o>ínJio>aiucric.inoi, peio
mulivo iodicailo aa nula anterrdcnlr.
29
o PANORA3IA.
225
PONTE DE CERET.
O RIO Tccli, oriuililo, lios l'^rciiin;iis ceiítracs, vem
iicabur no Modilorr.iiipo ulxiixo de JVTpiíilião, entre
Klnc, a atilif;,! lIliljeriH, i|iic- pos-^ue um templo (]o
século XI, e Argéles. — Da hase dos l'yrennéus até
os arredores de- (>'eret a vista do vallu é austera e
liravia i mus d^alli ale a foz do Tecfi a paizagem é
rica i! aprazivel \ descobreill-sc amenos prados e vei-
gas lert('is, os castanheiros, as oliveiras, e o» so-
breiros.
A ponte de ('i^ret e uma das glorias do Tech, não
aómente entre os arelieologos do llussillião, mas até
entro os ruslioos iialutantcs, |)ori|u<' scL;uudo um con-
to jiiipular o atrevido ianramcMilo do arco d^atiuella
ponlc é olira do demónio. ScgiiMiI<i a opini.lo di.' al-
guns (.aliios a oiMistruccão [jcrleiíce ao limpo dos reis
visigoilos. Temos á vista os apont.imcnlos de um ho-
mem coMlii'C(.'dor na maleria, ipie a visiloii cm 183'l' :,
eilu ainda exitte , é nuds um docuniciito eiuilr» a
pseudo-scii'ncia <le alginis eng(Mdiciros modernos. —
Mr. Merimci;, insj>ector ilas obras puMicas no sul
da I'" rança, diz: — >< é uma einistrucri"i(i arrojada e
ao meiíno liMnpo immm graça:, nm .-irco de líipésde
alii-rlura atravessa um algar pnd'undo . de Imigc pa-
ri;cerá un\ii fil.i lançida airavcz de um precipício. A
Voi.. I. — M.wiro Zl, 1SÍ7,
volta d.i abobada no fecho é extrcmamonle diminu-
ta :, porém as guardas, accresccntamento nK)derno.
não deixam observa-la e i)rcjndicam o eiTeilo geral
do composto. l"ista ponte, muito estreita como ijuasi
todas as de remotissinia data, só dá i)assagem a nma
carruagem, e mesmo assim é preciso entrar com pre-
caução. O arco cstriba-se em ilois massanies de alve-
naria, na parte superior dos ijuaes ha rupturaií ar-
queadas, ([uc não tecm outro destino senão alli\iar
aiiuelle massiço, ])or(iue as torrentes nunca lá che-
gam."—Alguns centenares de nn-tros agua abaixo
lia ponte acbam-se vestigios de outra que faíia parte
da via jireloria de Uoma a Uespanha : e erí-se ipie
lilra dcslruida no século decinn) ipiarlo. (\insidere-se
o islado dos povos, nu)ral e intelleclind, n''essa> epo-
clias remotas, c vAr-sc-ha i|ne não tenms de i|Ue nos
enioberbcciT quanto ás nuidernas construcçòcs •, a»
obras ni.iis eslupei\daí vieram da antiguidade. —
<'onslrui pvramidcs do l''gvpto ; ignora se como o»
materiaes torani transporladns r iMlloeailo> : aind.»
mais ■, olli:ii para esses isilossacs nn)uunn'nlos do pa-
g;inisniii nas índias, e par:i os que o infatigável
llurnboldl descobriu n:t America. I''. isto são obra»
dw po^os barburus ; a civitisação rouuuu. ninguém
226
O PA]>ORA3lA.
contesta-, e monumento! como o! da idade media
ninguém sa\>e construir.
CoLOVBA.
Romance da Córsega.
Povcra, orfana, zitella,
Senza cu;;ini carnali I —
Ma per far la to vandetta.
St3 iij;urn, vasta anche ella.
lAíment./antb. de Aiolo.
VIII
(Conclusão.)
PoE uma fresca manhã d'abril o coronel sirThomaz
Nevil, sua filha cazada de poucos dias, Orso e Co-
lomba sairam de Piza, de caleça, para ir visitaram
hypogeu etrusco, descoberto de novo, e visitado por
todos os estrangeiros. Apenas se apearam Orso esua
mulher, tiraram os lápis, e entrando dentro do mo-
numento principiaram a desenhar as pinturas ; o
coronel e Colomba, que professavam a mais impia
indiffcrenja á archeologia, dei.'saram-n'os cm paz, e
foram passeando pelas visinhanças.
— i;Q.uerida Colomba, disse o coronel suspirando,
não voltamos de certo a Piza a horas de lanch. E
tens vontade de comer, aposto eu ? Orso e sua mu-
lher lá andam com as antiguidades ,• Deus sabe quan-
do acabarão. »
— « E assim; e também por signal que nunca
trazem um desenho que se veja.»
— 4.- Pois eu era de voto que íb?semos áquelle casal
lá em baixo. Ha de haver por lá pão e vinho, e tal-
vez mesmo leite e morangos. Com um reforço d"esses
já se espera cora mais socego. "
— ií Vamos, vamos, coronel ; nós somos as únicas
pessoas de juizo da nossa casa."
Conversando, chegaram ao cazal. Havia leite, mo-
rangos e vinho. Colomba foi ajudar a cazcira a co-
lher os morangos, em quanto o coronel sorvia a pe-
quenos golos o néctar da Itália. Dobrando uma rua,
apercebeu um velho assentado ao sol n'uma cadeira
de paliia ; parecia doente porque tinha asfacescava-
das e os oliios mortaes o sumidos. A immobihdade,
a pallidez e a vista pasmada eram mais de cadáver
do que de homem vivo. A irmã de Orsocontemplou-o
silenciosa alguns minutos,- e. a caieira, reparando na
altenção com que o observava, disse :
— íí Este desgraçado vellio é seu patrício — é cor-
so. Morrcram-lhe os filiios de um desastre, evondo-
se sozinho veio a Pita para casa de uma parenta que
o mandou para aqui. Não dá trcs palavras no dia;
c o medico assegura flue pouco durará. "
— 11 Xão escapa I E uma fortuna para elle. n
— wi Falie-lhc corso, menina. Ha de alegrar-se de
ouvir a sua lingua. "
— "Veremos! acudiu Colomba, sorrindo irónica,
c approximou-se do velho até llie tirar o sol com a
sombra. Então o pobre idiota levantou a cabeça, e
encarou-a filo. EUa sorria sempre sem despregar os
olhos. Passados instantes o velho correu a mão pela
testa, e cerrou as paiprbras, tentanào evitar avista
de Colomba ; depois tornou a abri-las, m.is dilatan-
do-asdeum modo incrivel ; tremiam os lábios ; que-
ria estender o braço, porrm fa^c^nado pela attracção
dos olhos sempre fitos nVlle, ficiiu cravado na cadei-
ra, mudo e entorpecido. Ijngrimas, como punhos.
principiaram a rebentar caindo pelas faces, e alguns
suspiros e soluços se quebraram no peito anciado.
— uE a primeira vez que o vejo assim, disse a
jardineira. Esta menina éda sua t«-rra e veio vê-lo, »•
accrescentou fallando com o velho.
— « Perdão 1 exclamou elle com voz rouca, per-
dão'. Ainda não basta? Aquella folha da carteira
queimei-a eu ; como a leste ? . . . E mataste ambos! . . .
Orlanduccio não fez mal. . . porque me não deixas-
te ao menos um ! . . . "
— li Q.ueria-os ambos, respondeu Colomba, era tom
baixo e no dialecto corso. Cortei os ramos, e se o
tronco não estivesse carcomido arrancava-o também.
Não te lamentes; pouco tens já que padecer. Eu ge-
mi dois annos ! n
O velho soltou um longo suspiro e descaía a cabe-
ça para o peito. Colomba, virando-lhe as costas, vol-
tou vagarosa para casa e cantava os versos de uma
bailada : — uCaíu a mão que fere. Oolbo que mirou
nunca mais verá; ai do coração que trouxe escondi-
do no seio o crime, aquecendo-o como a vibora !... r.
Era quanto a jardineira soccorria o velho, a irmã
de Orso veio assentar-se á mesa com o coronel.
— uGLue ha de novo? exclamou este. Colomba,
esse'é o modo com que a vi em Pietranera na tarde
em que nos presentearam cora um par de bailas ao
jantar. "
— íi Lembrou-me a Córsega . . . pela ultima vez.
Acabou-se. Vamos ! Do primeiro filho que Orso ti-
ver hei de eu ser madrinha, não! £ que lindo nome
lhe porei. . . "
— " Glual ? "
— " Ghilfuccio-Tomaso-Orso-Leone. '•
A jardineira entrou n'este momento.
— "Então? disse Colomba com o maior socego;
morreu, ou desmaiou só?"
— .i Foi desmaio. E celebre o efieito que lhe fez
a sua vista ! "
— "O medico disse que elle não vivia muito ?-
— « Nem dois mczes. "
— " A perda não é grande. "
— "Jlas, cora o demónio, de que faliam?"
— "De um louco da minha terra, que está aqui,
accudiu Colomba com ar de indifferença. De tempos
a tempos hei de mandar saber d'elle. . . Coronel Ne-
vil, deixe ao mcno» um punhado de morangos para
meu irmão e para Lídia."
Quando sairam, a caieira, seguindo-a muito tem-
po com os olhos, disse por fim á filha : — vês aquel-
la menina tão liuda? Pois mata com os olhos ! " — Se
ella soubesse que ódio fulminava u''aquella vista ha-
via de tremer, mas em silencio.
Os CHALÉS DE CaCHEMIRA.
(Continuando de pi;. 314.)
4» Entre os mais preciosos oljcctos da Azia que se
acham em Jlacaricfl". diz Mr. llehman, c4 chalés de
Cachemira sem duvida tccm um dos primeiros lega-
res. A conclusão de uma compra de ch.ileí é frita
sempre cm presença dealçunias fcstimunlin?, segun-
do o uso do logar. que requer e>ta formalidade para
os negócios importantes. Sendo uma vci convidado
para tcstimunha, fui á feira com o comprador, as
outras tcstimnnhas, e o seu corretor, que era armé-
nio ; porque c por intcr\cnção dos individuas d"csta
nação que passa o commercio dos objectos preciosos
1 da .-Vzia. Parámos diante de uma casa sem telhado,
' c que estava por acabar; fizeram-nos entrar n*uma
o PANORA3IA.
227
espécie de cava, e posto que fosse a Iiabitaçãode um
inillionario natural do Indostão, não tinha outros
moveis senão oitenta fardos mui bem feitos, coUoca-
dos ao longo das paredes. As partidas mais pr-.-ciosas
do chalés vendcm-se sem as vêr o comprador senão
pela parte exterior ; nem se desembrulham, nem se
examinam; e não obstante isso conhece-se circuras-
tanciada e minuciosamente cada uma peça, median-
te uma lista parlicularisada, que o corretor arménio
manda vir de Cacliemira com muita difficuldade, e
que pela marca, tecida nos mesmos chalés, indica com
<í£criipulosa exactidão as qualidades, as bellczaseim-
perfei<;ões de cada um, o nome do fabricante, as di-
mensões, quaes e (juantas as Uôres e palmas, as co-
res, &c. — Com este documento na algibeira, o co-
mo vi eu, muitas vezes cora assombro, de cór, ven-
dem aquelles negociantes as partidas da fazendasem
<|Uo seja examinada. E de crer que os corretores, a
<|uetn a lista custou muito trabalho e dinheiro, repu-
tem caro bastante esta sua habilidade ; segundo o
preyo da partida de chalés dão-se 200 a GOO rupias
por uma copia da factura. — Entrando o comprador
tom suas testimunhas e com os corretores, porque ás
vezes lia dois, não diz palavra; estes fazem tudo, an-
dam d'aqueile para o vendedor failando a occultas,
i; assim corre o negocio até o ajuste ; ainda antes
d'cste vem a fazenda empacotada; o com prailor des-
denha, o vendedor gaba ; e a linal ha uma confusão
e algazarra de que ninguém faz idéa. 1'oréni o mais
cómico da scena é quando se tem quasi assentado
ii"um prcíjo conveniente, vêr os corretores agarrados
ao Índio dono da fazenda a quererem por forga que
elle tome a mão do comprador, que a tem aberta, c
repete em alta voz o que oflereceu : o indiodcfeiide-
»e, resiste, desembaraça-se dos assaltantes, cmljrullia
as mãos nas íluctuantes mangas da sua túnica, e in-
siste cm tom queixoso no seu primeiro pre(;i). Dura
muito tempo esta comedia. Separam-se ; ha pausa
como para crcar forças para novo cond)ate ; e por
fim os corretores apoderam-se da mão do vendedor,
<! apesar de esforços e gritos conseguem qne o com-
|)rador a aperte. Seguc-se então silencio absoluto : o
inilio chora, os corretores fclieilam quem fez a com-
pra : tornam a tomar assentos para se proceder á ul-
tima ceremonia, a entrega \\o género. Como disse-
mos, tudo é comedia, mas indispensável, ponjue o
Índio quer sem[)re figur.ir de constrangido e engana-
do. Se não o «^npurraram e sacudiram bem, se não
lhe rasgaram a gola, se não recebeu bom numero de
punhadas, se não tem o iiraço direito pisado pelos
apeilões, arrepende-se do merc.ido até a feira proxi-
nni ; e a não ser assim é mui dillicil chega-lo á ra-
zão. ])'estcmodo, as <|Ualidadesessenci.i(s de um bom
corretor é sabi?r apoquentar o homem Ires lioras, e
piVIo <!m estado de concordar no que se i)retende.
l'-m summa, o primeiro preço pedido soIlVe sempre
grande reduceão. No ajuste a «pie assisti, o índio ti-
nha exigido tJJOrOOO 'rul)los, u abateu a 180:000,
alem d'ibso liavia de pagar dois por cento aos eorre-
lorei. — l'Vilo o conveido, lodo» os cireumslantes nos
assenlánH>» do pernas encruzadas sobre um formoso
tapete: viiTam doces e gelados,' e em vez do eolhe-
re.s nos serx imos de es|)atulas de madrepérola com seus
cabos de prata, esmaltados com pedras preciosa», e
não menos rii'as do qnn rubis eosmoralihis. ']'omadu
Cl refresco (Milregou-se a fizenda.
Durante o liMupo cpie um corretor e o intitrprele
:.^islaram em formular o acto da venda, vieram os
fardos, abiirum-se, u viram-h(^ os ehahs nm por um :
verificara m-sc iis marcas e tudo se achou em ordem ;
delerniiiiiulo o termo do pagamento, depois de algu-
ma alIercMçflo, a as»endil<'a ajoi>lhuu, « rezou-»e. Se-
gui o exemplo dos mais, e não pude deixar de me
admirar observando a diversidade das crenças doa
homens que alli estavam reunidos a orar ; eram Ín-
dios adoradores de Brahma e de infinidade de ido-
i los ; tártaros que confiam seu destino á vontade de
AUah e de IMahomet seu propheta ; dois parsios ou
guebros, adoradores do fogo ; um official kalmuco,
1 que reverenciava no Dalai-Lama a imagem da Di-
vindade; ura mauritano que venerava não sei quem ;
e a final um arménio, um georgiano, e eu lutherano,
todos os três christãos, mas de três communhões dif-
ferentest Exemplo notável de tolerância !
j Finda a oração, appresentaram-uos um enorme
1 vaso de prata, c uma taça a cada um ; a bebida era
um composto d'agua e assucar com çumo de laranjas
doces, alguma aguardente, e temperada com toda a
casta de especiarias ; era agradável, e com isto nos
despedimos. "
O CASTELLO DE BoUCHOVT.
II
Historia do fundador.
Sabemos já as aventuras que as lendas e tradições
contam do fundador de Bouchout ; vejamos agora o
que a historia poude colligir a seu respeito, e que se
acha recopilado n'uma chronica velha do Brabante,
impressa em Anvors em 1312. —
Godofredo, appellidado o barbudo, genro de Hen-
riquíj III c cunhado de Henrique IV, \eioasercon-
de de Lovaina e de Bruxellas e marquez do Sacro-
Imperio em lOttU. Deram-lho aquella aleuidia, por-
que promettêra a seu pai não se barbear sem ter re-
conquistado as suas possessões hereditárias, o Bra-
bante e o Ijothier. O caso passou-se assim. — No
reinado de llourique III, sogro de Godofredo o bar-
budo, fez a sua expedição á Terra Sancta o duque
Godofredo de Bulhão, que o era do Lothierpor suc-
cessão dos condes de Ardenno; durante a ausência
confiou aquelle estado aos cuidados o guarda do con-
de Henrique de Limburgo, seu sobrinho, príncipe
de caracter fingido c desleal, sobre tudo nas desaven-
ças que se suscitaram entre o imperador Henrique
e seu lilho do mesmo nome, que se rebellon contra
seu pai, e diligenciou occiípar o sólio do império.
Como o pai ollendèra o papa e sé pontificia, o filho
altr.ihiu ao seu partido grande numero de senliores.
HenriíjiK! de Limburgo handeou-se também; mas
depois abandonou o príncipe moço jiara seguir a cau-
sa do imperador, o qual, passado pouco tempo, falle-
ceu em Liegc, de[ii)ís de haver reinado 'iS annos e
experimentado bastantes infelicidades. Henrique 1\',
exaltado ao throno, lembrou-se da deslealdade do
conde de Limburgo, e o mandou prender, |V)rém el-
le evadiu-se aslulamentc: como herdeiro (!<• Godo-
fredo e de IVdduino de Bulhão, o seu poderio vinha-
llie do Ijothier, mas ir novo im]>erador lh'o tirara
para da-lo ao conde de Lovaina, cognominado o bar-
budo, seu cunhado, e a quem por decreto imperi:d
de|ioís ereou duque, dando-llie um brasão em campo
de prata e outro em campo de ouro, tal quid o trou-
xera o deluncto duque de Angys, marido de Sancl.i
Begga. Suceedeu isto |ielo anuo da graça II OS : ha-
via exaelameiite cento e um annos ilepuisque ( •ihão.
filho de Carlos, minrí^ra, e que su.t irmã Gerberga
fOra despojada do ducado, ficando somentt^com Uru-
xillaH e Lovaina. l'orém (•odofredo reuniu <lo novo
o Jiiilhier o(i Ijotharingia ao Brabanti! desde o Mo
sa até u Escalda, doniiiiio que IAr:i tir.ulo ao« ieu>
228
O PAINORAMA.
antepassados, que comtudo descendiam da raça de
Carlos Magno.
Até aqui seguimos a narração do cbronista, que
todavia incorreu em notável erro, dando por mulher
a Godofrcdo o barbudo uma filha ou irmã do impe-
rador, por nomtí Sophia, princeza que parece que
nunca existira \ a vordade é que teve por primeira
mulher Ida de Namur, e por segunda uma filhade
Guilherme de Borgonha, que era viuva de Roberto
de Jerusalém, conde de Flandres.
(iuando Godofredo chegou ao auge que dissemos,
todos o« vassallos, quo o tinham sido do antigos as-
cendentes d'elle, se Ihesubmetteram promptamente,
á excepção do mais poderoso eriço, Arnaldo, senhor
de Grimberghen, que além d'este senhorio adquirira
outras muitas terras. Ajunctou-se exercito de parte
a parte, e o duque apodcrou-se, á força d'armas, das
povoações e dominios de Arnaldo. Como as forças
doa contendores eram quasi iguaes, a campanha foi
porfiosa, e o Brabante teve graves prcjuizos com a
perda de muitos cavalleiros. Arnaldo, temerário, va-
lente e animoso na guerra, e da mais a mais de Ín-
dole sanguinária, excitou o seu povo e arrostou com
Godofredo, posto que este a final ficasse victorioso,
graças aos estragos que nos contrários fizeram as suas
tropas : não obstante isso, até a morte de Godofre-
do continuaram sanguinolentos combates.
"Godofredo o barbudo (continua a chronica) era
mui querido de toda a nobreza : houve também mui-
tos reis que cubicaram a sua amizade, porque era
um príncipe bcmfazejo, inimigo de toda a crueldade
e tyrannia : trabalhou sempre mais para o bem de
seus fidalgos do que para o seu próprio. \ clava que
o seu munieipio podesse dormir sem susto, e fez
grandes diligencias para que os seus vivessem em
descanço. Encheu de bcncCcios até os mesmos ingra-
tos.— Este principe, depois de um reinado de M
annos, desceu ao tumulo era 1 1 40, o fui sepultado
na igreja do mosteiro d'Affligen, sito entre Bruxel-
las e Alost. Deixou um filho, Godofredo II, e ou-
tro, Henrique, que foi condo de Lovaina, que para
o diante se metteu frade no sobredicto mosteiro, e
bem assim uma filha, por nome Alcydis, que veio
a ser rainha d'Jnglatcrra. — Os conventos que fun-
dou á sua própria custa são documentos da sua pie-
dade e devoção; mandou erigir uma clausura, situa-
da ao pé de Lovaina, chamada Ulierberk, que ain-
da hoje existe, e que, graças ás doações de almas
pias, tem sido angmentada e adornada cora outras
propriedades. »
A esta antiga e singela historia, que também pa-
rece uma lenda, accrescenlaremos que Godofredo o
barbudo recebeu do imperador Henrique V em 1107
a investidura do inarquezado deAnvers; e que en-
trando cedo em guerra com o conde de Limburgo
tomou Aix-la-Chapelle, onde foz prisioneira a mu-
lher do'scu adversarão, a qual porém romctteu gene-
rosamente a seu marido depois de a Iiriíidar com
muitos presentes. Não obstante ser um principe pie-
doso e fundador d"igrpjas, como reza a citada chro-
nica, foi cxcomniungudo pelo papa por harer guer-
reado o intruso bispo de Liège. Além d'outr.is cam-
panhas, que fora ocioso enumerar, Godofredo, na
ilesavcnça entre Guilliernio de Normandia, comlcdc
Flandres, com seu competidor Thircry- dWhacia,
tomou o partido do primeiro ; porém, morrcndoGui-
Ihcrmc emll"28, convcnciunou-se com Tliicrrv obri-
gando-o a que lhe reconlioccsse senhoriagem quniito
ao» dominios de Alost, c que se submcltcsse á deci-
vào do rei d'Iiiglalerra quanto aos mais |iontos da
contenda. Em virtude do mesmo convciiiu, Godofre-
do cedeu a villa de Dendermonde em troca do terri-
tório de Bouckaut ou de Bouchout, para ahi fondar
uma fortaleza que podesse, no dizer dos historiado-
res, obstar ás excursões dos flamengos de Gand e de
Malines para a banda de Bruxellas. A construcção
de sete torres e de uma triplicada cerca de fosso*
cheios de agua foi a origem do castello de Bouchout,
que dêmos em estampa no precedente numero. —
Porém este castello, como existe boje, não tem o
menor caracter de fortaleza feudal. — Os três fossos
reunidos formaram um lago de certa extensão ; a
ponte levadiça e a torre da entrada desappareceram.
Uma parte dos edificios actuaes fora construida no
j século passado ; as janellas foram alargadas e postas
em symetria ; a final a cidadella converteu-se em
vasta e commoda habitação, porém o proprietário
existente, conde de Beauffort, director das Bellas-
Artes na Bélgica, qnerendo conservar a esta viven-
da o interesse que se liga a um monumento históri-
co, o fez restaurar completamente no estyio gothico
do renascimento. Moveis antijos, baixos-relevos, ar-
maduras, quadros também antigos, vidraças de cores
adornam o castello de Bouchout : as janellas das sa-
las, capella, bibliotheca e galeria estão adornadas de
retratos em pé, dos duques de Brabante, pintados
no vidro, edos soberanos austríacos e hespanhoes dos
Paiíes-Baixos, ou dos homens illustres da historia
belga. Sobre o vasto e sumptuoso fogão da casa de
jantar acham-se as estatuas de Godofredo obarbudc,
de Godofredo de Bulhão, e de Filippe o bondoso.
Uma galeria, no primeiro andar, encerra «Tande
quantidade de objectos raros e curiosos, sobre tudo
painéis antigos que representam personagens cele-
bres, batalhas, monumentos, e castellos os mais in-
teressantes dos Paizes-Baixos : notam-se alli muita;
armas que serviram em Sempach, I^aupen, e outras
famosos batalhas. O possuidor de Bouchout não se
tem descuidado de tornar importante para oarcbeo-
logico e o artista esta bella propriedade.
Da velocidade do som.
NisGiEM ha que, vendo de longe um artifice que
I bate com o martello, ou o fogacho de uma arma de
fogo, deixe de conhecer que o som che:^ aosou\ido«
, passado certo intervallo de tempo. Já no principio
' do século X^ II Merscnne c Gassendi tinham feito
alguns ensaios para mc-dir a velocidade do som, po-
I rém as suas experiências, como as de outros physicos
1 da mesma cpocha, não podiam produzir resultado
exacto i porque se desprezavam muitas precauções e
ignoravam-se muitas causas de erro que 3 moderna
' sciencia deu a conhecer; as expressões numéricas,
achadas pelos physicos do século \VI1I, também pe-
los mesmos muti\os não concordam uroas com .ns ou-
tras. — Longa seria a historia de todas essas expe-
riências e tentativas, que desde 17JS se fizeram com
' peças d'arlilheria. j>orém como os tiros nãoeram re-
cíprocos para eliminar a infiuencia do vento, e o
instrumento dimensor que se in\cntara ainda era
um tanto imperfeito, não havia alisoluta confiança
nos resultados obtidos. A sciencia cmfim tomou ti>-
das as precauções, c o in>trnnienlo calculador ulti-
mamente appresentado por MM. Brèiruel nãooflere-
co os inconvenientes que notavam nos anteriores. —
No calculador da invenção d"e»tes babeis machinis-
las, o ponteiro f.ii o gyro do mostrador n"nm minu-
to. Kite jwnteiro trrmina pv>r ura peqi>onino orifício
sobre o qual assenta um receptáculo a maneira de
tigclinha. que na segunda ligura se marca pda lel-
tra g; ahi se põe uma pinga de tinta. Kepresentou-
'. SC o ponteiro cm separado do instrumento n'cstas*-
o PAN011A31A.
229
'linda figura ; vê-se por cima d'elle um braço cha-
mado calibrador l e que acaba ii'uma ponta perpen-
ilicular ao dicto braço e correspondente ao buraco
lio ponteiro, ao qual segue em todos os seus movi-
mentos. O calculador é munido de um registo ou
descanço (fig. 1 •'' />)■ No momento em que se toca
<%t/
tjuj. 2
no descanço, abaixa-se o l)raço superior ao ponteiro,
atravessa o orifício d'este, e espremendo a tinta
marca um ponto negro no mostrador ; o meclianis-
mo do braço sendo completamente independente da
mola geral do instrumento, não tem iniluencia algu-
ma no gyro do ponteiro dos segundos. Ksles instru-
mentos são mui preciosos para experiências, como
as de que lalliMnos, que sempre se fazem de noite.
O observador v& o íogaclio do tiro e toca no descan-
ço, depois espera a chegada do som, e apenas esto
lhe bate no ouvido toca de novo no dicto registo :
então approxima uma lanterna e calcula ointerval-
lo <|ue separa os dois pontos negros marcados no es-
malte do mostrador : não pode liavur erro exceden-
le a um decin\o d(! segundo. Como se marca o ins-
tante do phiMiomeno comprimindo com o poUegar o
botão do registo ou descanço l>, as demoras relativas
a i.'sse instante teem sempre scnsivelmenli! o mesmo
valor (í compcnsam-se st^nsivelnuiiile. Nos instrumen-
tos, relógio» (eliamenios-Uie assim), empn^gados por
observadores |jollaiiil(7.(^s nas experií^neiíis de 2',i de
junho de ISá j os dois pcjnlos eram marcados por movi-
mentos dilVerenles, o tpic! podia eaus.ir dillireneas ;
inconveniiMile (|ue não se dá no calculador de MM.
Ureguet.
1'oslo (|ue a seiencia se não di:va propor a outro
fim senão o conhciiincnlo das leis da natureza, tem
eomtudo odireilo de indie.ir as appii<:ii;õis ulcisdos
wnis discobriniiiilos. Kslando agora sul'lic'ieiiteinen-
t<.' eonheeiílas as leis da propagação do som, poderá
servir o calculo da veloeid"i|(. d'(ísle ]iara medir as
<lislaii(Mas horlsoulai's ouolili<|uau irum grau aproxi-
iiiadamriile Ijastaiile eui grande numero de opera-
ções geodésicas. Todo o liabalho d'eíí(e g(!iiero lir-
ma-se na medição de uma base, operação hmga, mi-
nuciosa, fatigadora, dillliil, e innilas vezes iiupossi-
vi| ,\r practiear em lerrilorios monlanhusos u em
certas costas marítimas. A velocidade do som será
um meio fácil de medir essa base, quaesquer que se-
jam os accidentes do terreno. Sobre tudo nos traba-
lhos hydrographicos pode empregar-se estemethodo,
e um distincto engenheiro, Mr. Chazalon, teve essa
idéa. Havendo a bordo dos navios de guerra os ob-
jectos roais pezados e mais caros, que para esta ope-
ração se requerem, isto é, as peças do artilheria e
05 bons chronometros, não ha que temer asdespezas
e dilficuldades de transporte, que podem fazer recuar
o geograplio que entra por terra dentro longe dos
caminhos frequentados. Supponhamos um navio an-
corado a uma distancia que não deverá ser menor
de oito kilometros (26,6 de milha) transporta-se um
canhão para a praia , n"uma noite própria para ;i
experiência dispararu-se vinte e cinco a trinta tiros
recíprocos do navio e da praia ^ e depois por um cal-
culo fácil determina-se a distancia do navio ao ca-
nhão. Esta distancia conhecida pode servir de base pa-
ra a hydrographia de uma grande extensão de costa.
A VINGANÇA DO HOMEM BEANCO.
Sccna da vida dos Índios selvagens da America
Scptemtrional .
II.
Embrulhados nas suas mantas, com as espingardas
ao lado escorvadas de fresco, e as facas de mato des-
embainhadas, estavam os viajantes junctos, deitados
em fileira no chão, para com algumas horas de soin-
no restaurarem as forças dos membros cançados e so-
nharem, em curta illusão, que já se achavam respou-
sando, sãos e salvos, soVj os tectos protectores das ha-
bitações das suas famílias. (Auando as estrellas indi-
caram meia noite, os que estavam velando acordaram
os amigos, para também elles poderem cerrar as pál-
pebras cluimbadas pelo soinno.
— "Nada de suspeitoso, Roberto?" perguntou
Ilopkins.
— "Nada de particular, excepto alguns lobos que
pela banda do poente teem rodado o nosso campo :
varias vezes os pude vêr contra o liorísonte :, mas não
(piizerain appro.\imar-se. . . O lobo da Savana c co-
varde.
— " E estais bem certo que eram lobos ? disse de-
vagar, e com ar significativo, o conductor. Vistes-
llies bem a figura ? . . . a cabeça aguda ? . . . o ralw
pclludo .' >i
— " Não . . . isso não , até me parece (jue as ca-
beças eram mais redondas do ipie compridas. »
— " lloberto '. lloberto ! disse o conductor \ esta Sa-
vana ha doestar muito animada antes do romper ilo
dia. l'odereis ler razão:, talvez que sijam lobos •, não
os pardos e inuocentcs de Savana, mas os lolnispaco-
nis, ou ainda peior, as pantheras da montanha, os
sanguinários l\'s-A'<tjros . . . i5em :, não nos hão de
surpreudi^v dormindo ^ ese as hervas ao ri^dor de mis
se tingirem de sangue, não ha de ser só nosso. To-
mai conta nos bacamartes ; e vamos melter aseaval-
gaibiras no recinto do acampamento. Se o inimigo
não for muito numeroso, cachar as nossas cousasse-
guras, lalvez que não ataque. Eu coiiIu'çoesla eiiiia-
Iha i são covardes. Aonde não lia grande preza, e
onde os cscal|ios lhe correm verdadeiramenli- perigo,
eosluniain sumir-se como o lolio <pie pri>cnlc o ci-»
[111 . . . ([uo os leve o diabo. •<
fonfurnu! as ordens do iMndmIor todas as bestas
foram recolhidas no acampainento o se designaram
os logarea onde caila um dos coinpauheiros devia col
230
O PAINORA3IA.
locar-se quando fosse necessário; e logo se deitaram.
Em ponco mais de meia hora o tranqnillo resonar
dos que dormiam, de quando em quando interrom-
pido pelos movimentos das cavalgaduras, mostrou cm
quão pouca conta estes homens, costumados a priva-
ções e a perigos, tinham a vísinhaiiça dos seus mais
acérrimos inimigos; e que estavam habituados a dor-
mirem com a faca de matto na mão e a serem acor-
dados pelos uivos dos lobos e pelo grito de guerra dos
Índios selvagens.
Hopkins porém melhor do que nenhum dos outros
sabia o que os esperava, se se deixassem illudir pelo
astucioso inimigo. Vivendo desde a infância entre os
exploradores do oeste, tinha-se familiarisado com os
guerreiros Índios e com os seus usos ; e tendo pre-
senciado a matança de todos os seus por um bando
de Sioux, tinha jurado eterna \inganca á raça ver-
melha. De que modo tinha cumprido este juramen-
to mostrava-o o terror que nos mais ousados fdbos
do deserto causava assim o nome de niuo de sangite,
que os próprios Índios lhe tinham posto, comoú nun-
ca, apesar das mais bem combinadas emprezas, o po-
derem colher ás mãos ; de sorte que além das quali-
dades que o faziam temido, lhe atfribuiam poderes
EobrenafnraCs.
Como elle sa\pia que ainda que os inimigos effdcti-
vamente se achassem próximos, e tivessem os seus es-
pias mui perto, não ousariam atacar antes do alvore-
cer do dia, tranquillaniente e sem mostras do menor
receio ou agitação se dirigiu ao seu posto, e deitou-
se, como os outros séntinellas tinham feito, na herva,
que teria um pé de altura. Poucos momentos esteve
assim parado, porque logo se fui arrastando, á ma-
neira de gato, sem levantar o corpo sequer uma pol-
legada acima da herva balouçada pela viração da
noite, até um logar uns vinte passos maisao poenie,
d'onde podia bem descobrir qualquer cousa que se
passasse de extraordinário.
Um silencio mortal reinava na vasta e deserta Sa-
vana, só de vez cm quando interrompido pelos uivos
de ul^um lobo, que, desgarrado do companheiro na
perseguição de algum veado, procur.iva os sons com
que o outro lhe respondesse. Com a maior attenção
escutava Hopkins eslcs sons, para ver se entre clles
haveria algum si^nal disfarçado. Mas mais perlo es-
tava d'elle o inimigo, do que os habitantes u^^uaes
da Savana ; porque do repente quasi ao pé il elle, a
menos de dez passos de distancia, appareceu muito
de vagar e sem fazer a menor bulha, uma cabeça que
por algum tempo olhou com attenção para o logar
onde elle primeiro se deitara; mas antesqueosenli-
nella branco podesse tomar uma resolução, a cabeça
tornou a desapparecer; e por mais de uma hora na-
da interrompeu o silencio penoso, cm quanto Hop-
kins, vendo confirmadas as suas suspeitas, evitava a
menor bulha com uma irritação febril. A íinal levan-
tou-se do nascente a estrella d'alva ; e bem sabia el-
le que a sua sorte e a dos seus companlieiros se ia
agora brevemente detidir.
Cora a espingarda cn:;atilhada esperou socegada-
mentc que o inimigo apparecesse, e isto não tardou
muito; porque no mcsniu ponto onde elle tinha visto
a calieça <lo espia, tornou ella a erguer-se ; prova de
que nunca se linha retirado d'aquelle logar. Apenas
porém Hopkins recoiíhcceu a forma da cabeça, e a
madeixa que os selviígcns nunca rapanj noaltod'el-
la, logo o estrondo da espingarda disparada interrom-
peu o silencio, caindo o inimigo morto na herva que
o encobria.
Enlào de repente c como por encanto se animou
.•< Savana Ioda, e ilc todos o* lados rompeu o horren-
do grito de guerra dos Pés-Negros, comu se as regiões
infernaes tivessem vomitado outros tantos demónios.
Riscos de fogo vermelho fulguravam cm todas as di-
recções; o estampido das espingardas succedia-secom
rapidez ; e figuras negras e medonhas corriam amea-
çadoras para o sitio dos carros. D'entre ellas se er-
gueu Hopkins, e esmagando a cabeça do que lhe es-
tava mais próximo, voou cem saltos enormes a unir-
se aos seus.
Entretanto os viajantes de Sancta-Fé não estavam
aterrados com a súbita apparição dos selvagens: ca-
da um estava no posto assignado; e exceptuando o
lado onde sabiam que estava o conductor, faziam fo-
go em todas as direcções, de modo que o grito de
guerra de alguns dos guerreiros pintados e ornados
do pennas converteu-se em arrancos de morte, porque
em quanto levantavam o toraaha^vk para disparar
golpe, caíam feridos das bailas.
fcó junctamente com Hopkins dez doestas figuras
bravias e terríveis romperam, sem acharem resistên-
cia, até os carros; mas então Roberto, que com a
espingarda á cara tinha finalmente reconhecido afigu-
ra do amigo, disparou o tiro, e a baila atravessou a
cabeça de um inimijo. Xo mesmo momento Hop-
kins saltou por cima da lança de um carro, eambos
junctos esperaram os selvagens com as facasde matto
e as coronhas das espinjarJas.
Os gemidos" dos feridos e dos moribundos mistura-
ram-se cora os gritos da fúria guerreira dos pelles ver-
melhas, e por alguns momentos brigaram brancos e
vermelhos, pé a pé, com coronhas, facas de matto e
tomahawks, em quanto cavallos e machos espantados,
rinchando e ás patadas augmentavam a confusão ca
bulha infernal.
Hopkins repellia a iodos com a coronha da sua
pezada espingarda; e tendo já morto o chefedoban-
do, o astucioso Fuinha, a quem arrancou da mão o
tomahawk, virou-se para um guerreiro de figura es-
belta, que já tinha, levantado a sua faca para lh'a
cravar no corpo, quando este, vendo o seu mortal
inimigo tão perto de si, fitou os olhos n"elle, ficou
ímmovel, e exclamando: Mão de sangtic! ... ia re-
cuar ; mas n'este momento, alcançado pelo toma-
hawk, que Hopkins tinha na mão, caiu no chão
«ora a cabeça fendida. Aquelle nome temido operou
como um encanto nos grosseiros filhos da Savana :
atlonitos procuraram subtrahir-sc eom rápida fugida
a um braço que elles reputavam dotado de força ir-
resistivel, e de poder sobrenatural.
Com a mesma rapidez e astúcia com que tinham
vindo assim dcsappareceram ; e um minuto depois
só se ouviam os gemidos dos feridos : porém os bran-
cos não se fiaram inteiramente nVsfa retirada; c o
sol nascendo luziu nos canos das suas espingardas,
tom que, ainda a cara. esperavam .t cida momento
a volta dos selvagens. Nenhum porém appareceu : .1
Savana jazia ante elles. silenciosa c deserta, imnitr-
sa na refulgente luz do sol ; e só a lierva pisada c
cheia de nódoas de sangue dava tesfimunho que rei-
naram aqui as paixões, o olio e conjbatc de morte.
i)i Índios tinham levada ct)msigo os seus mortos e
feridos, e só dentro do recinto formado pelos carro»
j.iziara os corpos de dois, mortos j>or Hopkins; dVs-
Ics elle lo;o escalpelou a sesrunda vicliroa. e atando
cÁc tropheu ensanguentado a sua cartuxeira, voltou-
se para ojoven caudilho, e entrelaçava com mão ha-
bituada a madeixa do fsraípo nos dedos indexe gran-
de, quando o supposto motio abriu os scusolhos gran-
des c escuros e vazamento os poi n'clle. .\ primeira
idéa de Hopkins foi aniquilar o seu inimigo, e ja
tinha a faca erguida na mão, quando de repente,
mudando de tenção, metteu a faca na Isiinba, to-
mou os braços do selvagem que, ainda atormcctado
o PA1N011A3IA.
231
da pancada, não estava capaz do resistência, e atou-
llie as mãos ás costas.
Pouco a pouco o caudilho tornou a si, e conhecen-
do a sua situação, ergueu-se, e olhou em roda de si
com ar altivo e de desprezo !
— 11 Ah ! disse Roberto chcgando-se ao pé docap-
tivo, de quem será o escalpo que este malvado tem
na cinta ?>>
— "Onde está Thomaz ? vociferou Hopkins olhan-
do espavorido em roda de si : Thomaz . . . onde está
Thomaz ? "
títuatro dos companheiros gravemente feridos ja-
liam ao pé dos carros; mas nenhum d'elles era Tho-
maz. Levado de um prescntimento fúnebre, Hopkins
correu ao iogar onde na noite passada tinha estado
de sentinella. Aqui infelizmente se confirmaram os
«eus tristes receios^ nadando em sangue jazia o ami-
go morto a tomahawk, e (Iopu's escalpelado. Ran-
gendo os dentes, voava Hopkins direito ao seu cap-
tivo com 03 olhos ameaçando destrui<;ão, quando deu
com o olhar triumphanle do vencido , mas mesmo
assim conteve-se, dizendo cora voz fúnebre e que mal
se ouviu :
— « Vamos embora. "
— "E que faremos nós com este infame, que tem
no cinto o escalpo do nosso melhor amigo ? hem ?
perguntou com gestos raivosos o velho Roberto. Co-
mo te veio á idea poupar este assassino, que dez
mortes merece? tu, o que até agora perseguias tudo
que se parecesse com unja pdle vermelha, como se
a tua salvação dependesse d'ahi?"
— "Ha de morrer dez vezes, disse Hopkins com
um riso rouco ; mas não pelas nossas mãos : vamos
leva-lo ás plantações. )i
— "O que? ás plantações? disse Roberto gritando
e quasi fora de si : para lá o encarcerarem, processa-
rem, e de|ujis sollarem com uma reprehensão pater-
nal ? Inferno e diabos! Hopkins, já to não conheço. "
— "Knluoouçai disse o eonductur, cujas feições
tomaram uma expressão venlaileiVanicnle diabólica,
apertando rijamente o braço de Uolierlo. Sabeis (|ue
ódio eu tenho jurado a estes cães vermelhos , não
ignoraes o motivo dVUe ; mas de que me sorve mais
uma viclima, so cu o matar, e jiinclar o seu escalpo
aos C5 que estão pendurados na minha cabana ? é
mais um só; mas devem morrer centos... millia-
res . . . antes que eu julgue a minha vingança sacia-
da. Olhai, se nVsle único individuo eu (lodesi-e ex-
tinguir a raça toda, então veria», Roberto, então ve-
rias com que delicia eu o sacrificava ás cinzas de
meus pai»; nias mesmo assim me ha de servir para
tm alcançar o meu fim. "
— "Ah! disse Roberto, presentindo delongo a
intenção do conductor ; é para elle levar as bexigas
á sua triliii. i,
— "Adivinhaste; disso Hopkins sorrindo-se. Infi-
cionado com esta peslc assoladora, poderá tomar as
suas armas, c montar n'iim dos meus :Mvallos mais
ligeiros . . . ti.rá liberdade . . . i; o esi)irilo da vin-
gança guiará os «eus |)assos o protegerá a sua jorna-
da paru que enj pouco tempo clicgue ao Iogar do seu
povo. E i|uando o meu ])lano se realisar, (piando o
veneno ])ara que elles não coniicceiH remédio, lliea
roer as <'nli:in|]as, e extirpar famílias e povoações —
enião, Itobcrto — então direis qu(! teidioeumpri<lo o
meu juramento, c (pic! tenho pago ao menos \ima
parle da divi<l.i (pie eonlrahi ciim i'stes monstros ver-
m<:lhos, t<
Atlenio (piiz o m.incilii) indio peneirar o senlido
lias palavras dn seu iuimi;;'o; mas não enlcndiMido o
inglez, e vendo <pie im seus senhores se |)i('paravain
para mareharem, [iresuniiu i|ue o huviani ile levar
t até Bs suas habitações, e que o queimariam vivo na
estaca do martírio; mas firmemente resolvido a mor-
rer como um homem, qualidade que elle acabara de
adquirir pela conquista do escalpo que ainda tinha
pendurado á cintura, quando o pozeram em um dos
carros, entoou os seus cânticos de guerra e de escar-
neo, relatando o numero de caras pallidas que seu
pai matara nus combates, e cujos escalpos estavam
pendurados no seu wiguam.
Os viajantes de Sancta Fé entretanto enterraram
o camarada morto, apparelbaram as cavalgaduras, e
accommodaram cuidadosamente os feridos nos carros,
confiando a guarda do indio captivo á vigilância de
Roberto. D'este modo se poz a caravana a caminho,
e em poucos dias chegou ás fronteiras do Estado do
Missouri.
Três mezes depois voltavam os mancebos Pés-Ne-
gros da sua expedição. Tinha ella sido feliz, porque
apesar do terem perdido o seu caudilho e mais oito
companheiros, a fortuna poucas horas depois os le-
vou a encontrarem rasto de uma caravana hcspanho-
la que conduzia uma manada de machos para os Es-
tados-Unidos. Tornados mais prudentes pela perda
que acabavam de soflrer, seguiram os rastos dias a
fio, espiando de noite o campo dos hespanhoes, até
que estes u'uma noite fria e chuvosa se esqueceram
de tomar as cautelas indispensáveis, e pagaram com
a vida esto descuido. Ornados com grande numero
de escalpos, e guiando diante de si os machos que
haviam tomado, com os corações alegres e entoando
e.inticos de triumpho chegavam os l'LS-yctjros á sua
aldeia.
Cânticos fúnebres e vozes de desesperação saíam
dos vviguans onde tinham nascido: innumeraveis ca-
dáveres, empestando o ar, jaziam ao longo do rio
Alaria : — todos os. laços de família se achavam dis-
solvidos: as bexigas grassavam coui irresialivel fúria
entre os filhos vermelhos da Savana; e a muito cus-
to poderam obter algumas noticias por uma das
stjuaws (nuillieros Índias).
Havia semanas que ojovcn caudilho Fuinha tinha
chegado á povoação montado irum cavallo allicio, e
coberto de escuma ; mas apenas linha força jiara se
segurar na sella. Os seus mend)ios tremiam e o san-
gue g^rava-lhe nas veias com o-ardor da febre. Nin-
guém poudo atinar com o motivo. uO es])irito máu
lhe tinha deitado o seu bafo, e lhe tinha crestado a
pclle. "
O jovcn Fuinha havia morrido três horas depois
de chegar, e os qUe o enterraram logo adoeceram ; o
mesmo aconteceu em todos os casos que se foram se-
guindo, até que os pol)res Índios começaram a crer
que era castigo do Grande Espirito jior terem enter-
rado os mortos. Por isso guardaram os cadáveres;
mas d'alii residtou nova epidemia, ijue ameaçava
extinguir a tribu inteira. A isto se junctava o modo
de traetar a doença, meltendo os enfermos em estu-
fas, c d'ahi na agua fria do rio, além dacireuinslan-
eia que as bexigas nos povos (|ue (piasi somente vi-
vem d(? carne, como todos os selvagens da America
Septcnilrional, ijuasi ijue não lêem cura.
Dilirio e pavor se apoderou por fim dos poucos
que ainda viviam : fugiram jiara as brenhas da ser-
ra bravia, di'i\ando os restos inorlaes dos seus para
[iHslo dos lobos o dos açores.
l'or mnilos aiinos nenhum indio ousou pisar este
l(>riitoiio infislado prlos espíritos ináus : mas quan-
do na primavera logo seguinte a neve se linha ilei-
rclido, e hervas viçosas e variailas IhUes do campo
232
O PANORAMA.
tinham crescido entre os esqueletos e os wiguans ar-
ruinados, viu-se no centro d'aquolle districto uma
fogueira solitária, que com suas chammas espalhava
um reílexo tremulo e lúgubre sobre aquellascena de
destruição. Só um caçador branco estava deitado,
sem se mover, ao pó do lume, com os olhos nobrazi-
do cm apparento apathia ; movendo-se apenas quan-
do, aíTrouxando a labareda por falta de lenha, o
obrigava a tirar alguma madeira do wiguam que ti-
nha ao lado.
Os olhos d'este homem não se fecharam em toda
a noite ; o quando o sol nascente dourava cm todo o
seu brilho as pontas das arvores, elle se levantou,
lançou um ultimo olhar de exame em roda de si, e
parecia querer contar os montes de ossos : mas sen-
tindo então como um calafrio interior, embrulhou-se
mais na manta, segura por uma cinta á maneirados
Índios, poz a espingarda ao hombro, e dirigiu-se pa-
ra o lado do nascente.
I'".ra este homem o mão de sangue.
(Traduzido do allemuo.)
Agua doce ko fundo do mak.
Existem fontes de agua doce no fundo domar, pró-
ximo ás ilhas de Babarem e de Ared, que estão si-
tuadas nas visinhanças da costa do sul do golplio pér-
sico. A ilha de Babarem é pouco alta c mais fértil
do que nenhuma das outras do mesmo golpho ; ap-
presenta numerosas e bellas espessuras do palmeiras,
e n^ella se acha agua potável mui pura n"unia gran-
de bacia que tem a nascente pouco distante da villa
de Monama. Quando o capitão Maughan largou de
Babarem, em 1828, estavam de posse da iliia osou-
tobís, tribu árabe do próximo deserto, assaz podero-
sa. A perto do milha e meia da primeira acba-se ou-
tra iliia pequena, por nome Ared, ilhéu mui razo e
coberto de areia, só com raras palmeiras e uma al-
deota de cabanas de pescadores. A enseada, onde os
navios se podem abrigar, alarga-se entre as duas illias,
das quaes por um lado e outro saem penedias de mui-
ta extensão :, a profundidade da enseada é de três a
quatro c meia braças, com fundo de areia ao poente
e ao norte de Ared ; a alguma distancia da custa ha
fontes de agua doce que sácm de roeliedos submari-
nos, sobre as quaes ondeia a agua salgada até a pro-
fundidade de uma a duas braças, conforme as marés.
Algumas dVsfas fontes ficam perto da praia, e os
pescadores alli vem encher sem difficuldade os seus
odres: ha porem outras mais arredadas de terra; c
quando os pescadores portcndem fazer aguada guiam
o seu batel |)ara juncto de uma d'essas fontes; um
Iiomcm da companlia deita-seao mar e mergulha com
nm odrv ou folie de pelle curtida de carneiro ou ca-
bra, tendo o cuidado de virar a bocca d'esla vasilha
para cima da nascente, e basta a violência com que
esta brota para o encher logo; o mergulliador volta
ao lume d'agua, e, despejado o odre, continua o mes-
mo serviço em (juanto é preciso. Estes homens, pela
maior parte, não se occupam senão da pesca das pé-
rolas, i- estão habituados a mergidhar doze c, ás \c-
les, ipiatorze braças. O capitão Maughan refere que
existem mais de trinta fontes como estas nas cerca-
nias d'aquellas duas ilhas.
Na Europa nota-se um semelhante phenomeno. |
ainda mais saliente. Em Spozzia, um dos bellos por-
tos do Mediterrâneo, pertencente ao território da an- I
tiga republica gcnovcza, ha vima fonte de agua doce
que rebenta do meio do mar a pouca distancia da
praia, com uma força tão prodigiosa que fai cachão I
acima das ondas, e quando fuzbonvnçaaltcia-scqua-
si um palmo sobre a agua do mar ; tem de diâmetro
obra de cinco palmos. Julga-se que procede de uma
quantidade immensa de aguas, que, não achando saí-
da nas montanhas, se despejam em alguma grande
cavidade dos Apenninos, de forma afunilada, e pene-
tram por infdtração até por debaixo do mar, e su-
bindo obedecera ás leis da^ua força e da gravidade.
O JciZO FINAL.
Serí chamado a juizo o religioso, o sacerdote.
li Dá conta do ten estado : reduzi-te da confusão
do mundo para o socego da religião ; communiquei-
te o claro conhecimento do que é Deus, e do que é
o mundo; puz-te no caminho mais seguro da gloria;
dei-te os auxilies mais proporcionados á tua salva-
ção. E como correspondestes a tanta misericórdia ? ••
Será chamado a juizo o monarcha, o príncipe, o
senhor.
"Sendo igual a todos por natureza, eu te fiz a to-
dos superior por dignidade. Como me agradeceste es-
te beneficio? »
Será chamado ajuízo o que possuía muitas rique-
zas, o que logrou muitos annos, e assim lodosos que
receberam especiaes benefícios da mão de Deus.
" A juizo '. Todos a juizo '.
"A ti te dei as riquezas que possuíste, vivendo tan-
tos visinhos teus em pobreza. A ti te dei largos annos
de vida, quando tantas llòres se cortaram em sua pri-
mavera. A ti telivreid'esta, d'aquella doença, quan-
do outro acabou da mesma enfermidade.
"A ti livrei da justiça: a ^i de um peri;o : a ti
de um naufrágio. A ti dei a fazenda : a ti a saúde :
a ti a sabedoria ; e finalmente a vós todos dei o co-
nhecimento da minha fé, quando por falta d'cste be-
neficio se.eondemnam tantos hereges, e se perdem
tantos bárbaros . . .
" E como correspondestes todos a tantos beneficíos .'
"(Auando todas estas mercês vos haviam deporem
maior obrigação para me servirdes, d"ahi mesmo ti-
rastes matéria para me uflenderdes ; da riqueza, do
valor, da saúde, da dignidade, tomastes occasião pa-
ra maiores oflensas, quando o haviam de ser J»ar3
maiores serviços . . .
"E assim se pagam os favores.' Os beneficíos a'-
sim se correspondem ' l'ois á medida das mercês se
executam as penas, e os castigos á medida das mise-
ricórdias ..."
Oh quantos estimaram não ter gozado n'csta \ ida
tantas felicidades, por não ter tanto de que dar con-
ta na outra vida ! . . .
EvsEBlo DE Mattos — l*racl.
N.\o ha fundo de agulha que seja mui pequem) par.i
dois amigos; para dois inimigos não basta a exten-
são do mundo.
O HOME.M é sábio quando busca a sabedoria, louco
quando crê tè-la encontrado.
São convidadas os senhores cujns tíssignaturas.
por serem de semestri'. ucafuiram em o A' "20.
ri renova-las na Typographia. Largo do Con-
t(idor-3I(ir «." 1 .1. piidemld das /'ruiiiiríus di-
rigir-se em aula franca á — UedacoSo do Pa-
norama. —
Preiy das Assigna(uras por anuo. . 1,^200 r$.
Dito por semestre ^S G iO "
30
o PANORAMA.
233
BERNABDO JUSSIEU.
i) iiijsr.i ilMiistoria natural de l'arís 6 o mais vasto
cstahelcciíiientij qiiu se tem consaf^rado ú stiiiuia ila
iinturcza , imiierão oxislir (dizia (-'iivier) collec(,rjes
iiiaih <(iin|il('la» iiiianlo a ocrto» ramos, ma» ii<M)hii-
iiia |)or ccrlo lia «juc apprcsciiti! iiin conjiiiiclo (i<i
íiiiios os (ia scicncia iiicllidrori^aiiisado c (.■()m|)iisto. Dc-
iioiniiiaiii-iru t;«ralrm'iiti' o Jardim das iMaiitas, cm
razão d'csta parti; impcirtaiiti- (jiic c'om|ircli<Mid4' mais
de ciiicociita ^'liras Iranccza», iiaqiial, liem comocin
■ ■sliifas, •'í;iialiiii-iil<; iiiiiiKTosaH e vastas, si; ollcreoeiíl
á vista mais di; sotc mil rspecirs di; [)iaiitas na sua
vi'^ftacão, assiiciaiidosi; alii i'm pátria adoptiva as
lialiilaiiti's dos dillrmilcs climas; ti-rrrnos <'S|)(;t'iaes
i'»tã(i reservados ás plantas ntiis, e ás arvorrs 1'ructi-
leras on (loreslaes. Um amplíssimo patro de liiclios,
<|iie fica ao lado do jiirdim, conserva «ontimiamente
iMiii i^ramlc e variada ipiaiilidade dcanimacs vivos,
transportadot de todasas rei^iôcs : clcplianliis, camvl-
io», /clira», lliiimas do l'orú, kaiigurnues, fçiwellas,
leões, lij^res, toda a custa <l(! pantlicras, macacos,
etc, alii purinaneccin, 8(!i\do revezados os tvposi|iie
|ierecRn\, para ipie, depoiu deterem sido olmervudos
em vida pelos naturalistas relativamente aoshaliitos,
rorne(,'am, i|iiando mortos, aos anatómicos oliserva-
òcs não menos imporlantes peloi{iic toca á or!;aiii-
VoL. 1. — Auiiii. II, INlT.
sacão animal. Os fçabinctes de producfos preparado»
ap|)rcsentain em liellissima ordem (planto lia que i\
iiatiir(;za crie ([ui; possa conservar-se. A collec(;ão dos
(piadnipedes ú superior a todas que n^cste Renero se
conhecem-, as outras classes são da mesma fiirma ex-
tremamente ahiindantes eriças; os herbarios, viven-
do ainda Cuvier, continham acima de vinte mil es-
pécies de plantas. — Kste jardin\ data a sua origem,
mas ténue, desde o reinado de Luiz XllI. Foi il
administrai.ão do famoso e eloipicnte Jor;;e Luíii IjC
(,'lerc, mais conhecido pelo sen titulo de conde de
Hullon, que no meiado do século passado deu vÍ!;o-
roso impulso a i;ste grande estabelecimento, o (piai
desde então não fein cessado de enri(inecer-se ; por-
(pianto circnmstiinci.is favoráveis, como os resultados
das via;.;ens e explorai;ões recentes, o tem elevado ao
duplo depois da morte d'a(pielle homem celebre. —
Outro sábio naturalista, fieoUVoy de St. llil.iire, hu
pouco fallecido, a (|uem ItulVon chamou como cha-
mara Daubenton, com graiidissimas dili_q;encia» eon-
sci;uiu auf^meiítar o innseu em ^eral, mas particu-
larmente na curiosa collec(;i1o de aninnics vivos, c
na (los animaes empalhados, que é hoje o modelo
n'esle i;enero.
O ensino das scicncias naturaci ettú distribuído
234
O PAJNORA31A.
por tliflereiítfis caJeirHs, cujos professores adminis-
tram em commiuri o estabelecimento sob as ordens n
a inspecção <lo ministro do reino. Homens distinctos,
"loria da França, teein pi-rtencido a esta brilhante
eschola, e lons^o seria ennmeral-os^ de bastantes já
por veies lemos fallado, mais on menos extensamen-
te, nas series dVste jurnal. Os dois Jnssieu não fo-
ram dos menos notáveis. Bernardo de Jussieii, de-
monstrador de l)i)taiiica no jardim das plantas, e
membro da Academia dasScieiícias, fui um d^es^es
])Iiilosopboi práticos que dedicaram ávida inteira ao
estudo e ;'i virtude, em ^ilencioso retiro das turbu-
lências das paixões politicas e das ambições munda-
nas. Adquiriu salii^r immeiísu, fez importantes des-
i.-obrimentos ua sciencia, mas deixou poucas obras;
porém a sua memoria é prezada de numerosos discí-
pulos, muitos dos <]uaes se illuslraram na mesma
i-arreira, e que, polo frncto das lições de tão conspí-
cuo mestre, elieij;araMi a.eminentes lugares noniagis-
terio, — IScrnardo de Jussieu falleceu em 1777.
António Lourenço de Jussieu, sobrinho e discípu-
lo do precedente, unidos primeiros botânicos da nos-
sa idade, é auclor do iuiporlanie livro Famitius na-
turaes das /i/uii/as:, elle próprio confessa serdevedor
u seu tio das primeiras idéas d'e»fa obra clássica.
(JniO VELUO KÃO CA^ÇA.
(Ri;mance Histórico.)
ltdioduc£uo.
Cura, cbe di timor ti nutri e cresci.
Petrarcua — SliicI.
Abuindo em um capitulo o Nobiliário altrilmido
ao conde 1). l'cdro, aclui a tradição do rapto de
O. Maria l'aes, ainanti; de Sancho I, por Gomes
ÍAiurenço da lamilia do faUiOio Vie;;as de Uiba-Dou-
ro. denominado poios cbrouistas o Jispadciíu.
Lo<;o á primeira leitura me travou o sabor míti-
co, mas agradável, das historias populares cantadas
com a ingenuidade dn velho eslylo palriarchal. O
quadro do L,ivru das L/iuhngtits lend>ra aquelles pai-
néis dos llaiin-ni;os, amide ciim siniplera e naturali-
dade, demasiada as \ezes, as figuras de>tacam [lara
conversar o serão, illuininadas pelachamnia que ar-
de nas gotliicas chaminés.
Pelo menos |)roiiu/.iu em mim etleefleilo. Por mo-
mentos cuiis(dei-me, respiraiuio o ar uspcro em que
foi creada a infância de Portugal.
O colorido do estalo é antigo, e incorrecto o de-
senho das btenas. K verdade ; mas toques e physio-
numias ha alli que hoje se não encontrarão, a não
ser em alguns retábulos da eschola chamada de Gião-
O drama c a noveila histórica, se quizerem a hon-
ra de naciuUiies, devem eétudar muitas d'eslns len-
das do Nobiliário, e repa^sar•se n'eilas do espirito
das epcciías passadas. Aquelles retr.itos quasi ap.i-
gados já, aniiiia-us.ainda um resto da alma da vida
e das crenças dos primeirosseculos. Pedaços do gran-
de espelho em que ellcs se encravam é necessário
ajunctal-us c cmbelicl-us na muldura moderna para
tornar a vCr alguns dos seu> defeitos o bellcl.is (\).
' Na tradição de Maria Paes sente-se isto. A' excep-
ção de duas situações, tudo o mais levou a torrente,
■ que tanto monumento precioso tem varrido.
Também ignorámos quasi todas as circumstancia»
do louco amor quearrojou ocavalleiro a forçar, não
qualquer dama (o que era então vulgar), mas a aman-
te do rei Sancho I. Apesar de ter o corpo agrilhoa-
do ás parede* do tumulo, a sombra irritada do ven-
cedor de Silves devia ainda arrefecer a audácia do
i homem que, pisando as soascinzas quentes, Ihepro-
' fanava as intimas affeições da vida.
A não existir uma causa poderosa, afrever-se-hia
■ o Ímpeto dos sentidos atai evtremo? Parece-meque
não. Gomes Lourenço em Avellans nada mai> feidu
que revelar a desesperação de alTectos mal retribuí-
dos ou completamente desprezados.
O ndio de raça, o detdem de mulher, e o escar-
1 neo, mais pungente que ambus juuclos, bordaram
■ de escuro a tela em que esses amores se despregaram.
E o que indiía a própria reconciliação, depois di>
■rapto, fingida, vé-se bem, para a<lormeeer o caval-
! u-jro nos braços da esperança, earrastal-o, enganado.
la morrer da morte dos traidores.
De que maneira o coiiSe:;uiu Maria Paes?
l',sle segredo cumeu-o a terra com as entranhas
I dos auctures do crime.
Kntretantii uma conjectura pouco arrojada oflere-
ce a mais plausível explicação. E natural que re-
presentando a comedia do amor que não sentia, e
embalando Gomes Luureuçu com promessas e jura-
{\) O vel(l.i(Jeiro cancler i\o I.irrn ilns J.inhngens li-
xou-o, com a sua iiislum:i'l:i crilica e eru(hi,aio, o meu
.imiao o S1-. Alexaniire llercul.inn em o I ° volume J-i His-
torin de Porlugal, moiiimiento de gloria para elle, e de ufa-:
nia par.i a nussa líileratura.
>i U Liirn 'las l.i-ihagcns, que aiiiil.i hoje existe na Tor-
re do Tonibo, itlribuiilo ao coiule U. 1'eJro, c que não é
mais que um composlode diversas memorias genealógicas,
escriptas em epochasdifferenles, e mnl coordenadas, pro-
vavelmente nos meados do século XV, estabeleceu a opi-
nião, ele. » (Nrita 14." pag. 47o in priíiclp.)
Na conlusão daRabel genealógica (assim lhe chama o Sr.
Herculano n'oulra parle) apparecem a cada pa&so claros
siynaes Ue lacunas, ou Dlhas do obscuro narrar dos primei-
ros eollectores, ou, o que é mais provável, por jí correrem
desfiguradas as memorias oa lembrança dos velhos, archi-
vo incerto e transitório. Se ás injurias do lempu accrescen-
tarnioso descuido dos copistas, pouco admirará que as no-
tícias hebldas em tonles turvas e lançadas em diversas epo-
chas, alterando-se, passassem mutiladas da tradição oral
para a tradição escripla.
K o que se observa no capitulo em que vem o raplo de
Maria Paes Ti-opeça-se a cada linha em erros e difliculda-
des insuperáveis; pungue de um drama completo apenas
recolheram incertos fragmenlos. Só iluusscenas escaparam
inteiras, e a ullima com evideiiie falsilicação : as circnm»-
lancias de que ali se reveste o assassinio de Gomes Lou-
renço são inconciliáveis com o caracter <lo rei. com as leis
d'a(|ijella sociedade, e alé com o senso commuiu.
Kpor isso que, loina.ndodo.\»2>/<i()riffa leia já preparada,
nos aparlamos d'elle em quasi ludoo que pertence ao la\or
do enredoe ao desenlace da acção, respeiljudu sempre o que
resta do primitivo desenho das phvsioiiumias, ns vezes adoií-
ravel, e conservando a eôrantiya que em muitas pnrlesiesu-
ina das mesmas innovações com iiuh o fur-im cji^tndoe as-
sarapintando decimadas de ocre e vermelhão restaurador.
Aproveitámos igualmente com reii^iosa diligencia loJos
os clarões históricos, quedVspaço a es|iaço alegram a mo-
notonia dasenfadonh-is ladainhas ;:ene.iliij;icas. Ksles cla-
rões, infelizmenle rarus, são impurlaules para adiinihar o
« viver e crer " de séculos mortos.
N'este sentido e immenso o valor dú \abiii»rio. Sem «lie
é diflicultoso que se eviíe o absurdo 'le atlribuir ás ttiia -
ções da idade media, a pretexto de lhe polir a harl':i.-j3,
I idéas e cnslumes gue n;io foram seus, e virtude^ que lii,,
' não conheceu, nem po iia conhecer u.i preversao mor d do
1 existir de soldado nos arraiaes, eda rudera feruz das clis-
i ses, mesmo elevailas. Quem não pôde fjier d.is anlis<!i-
' dades pátrias o esiudo e\oiu.<iivo da >idji, acha nu M^hilia-
I ria, expurjiando-o ile fahuias insensatas, algumas feições
i dVssas epochas, hoje deácouhecid.is.
o PANORAMA.
235
mentos, oatrahiíse aoslaro? qiiefecíra d'acordocom
os parentes, (iuem reflectir no caracter de Maria
Pa^s, esboçado com tanto vigor iw JÂvro das Linha-
gens, ha de concordar com fsfa liy[iotliese. Mí-btra
na horrível sciencia da hypocrisia e da perfídia, e
batendo-lhe no peito o coração de uma raça impla-
cável, os encantos da belleza escondiani o espirito de
um demónio. Era a alma e a formosura da piedosa
rainha Leonor Telles.
A' versão do íitibiliario so?)re a morte de Gomes
Lourenço preferin-te, por maisadeqiiado á invenção
poética, e mais conforme aos costumes do século o
desenlace que figura neste romance. O papel que lá
se dá ao rei de Jjeão, e a justiça arrebatada attri-
buida a AiVonso II, oppoeni-se demasiado aos usos
do tempo, para ao menos serem verosímeis.
Lini dos Viegas, família enlaçada por allianças
com tantas casas importantes do reino, não se justi-
çava como villão a quem o verdugo coita as orelhas
por sentença d^alvazis. A historia dos primeiros rei-
nos mostra, pelo contrario, que os fidalgos, desen-
freados pela impunidade, ousavam tudo, sem a au-
ctoridade real ainda ter força de os cobibir.
Além d^isto, que havia o rei de estranhar, seelle
frequentes vezes dava o exemplo das violências?
Nas contendas de Sancho I e seu filho com o clero
e alguns nobres, o monarcba recorreu ao incêndio e
á oppressão, como a meios promptos e naturaes. Os
ricos-homens, de que na realidade só era o primei-
ro, imitando-o ou excodendoo na fereza das Vingan-
ças, não seguiam as suas pizudas como leae» admi-
radores do príncipe?
De mais, se o rapto da mitUicr ile linhagem era
leito mais arriscado do que desflorar a iiinoceiícia
da filha do povo, o perigo não estava no poder do
rei e na severidade dosseus tribunaes; provinha das
reprezalias sempre rápida» e sempre inexoráveis da
família. (Jroubador ficava deante d'ella como homi-
cida de mais que a vida, da honra e orgulho da ra-
ça nobre, e só com o sangue podia lavar a nódoa e
expiar a injuria. O direilo de vindicta, exircido
pelos parentes, legitimado nas leis. e saMctilii-ado pelos
coslumes, bastava para llageilar de receios e perse-
guir de remorsos o coração lio criminoso. Knlrelan-
to, no mei.) das ameaças erguidas sobrn elle, o cu-
tello do algo;!, afiado por D. João II na cabeça da
fidalguia, não lhe estremecia a alma com o reflexo
sanguíneo.
Então o rei não tinha ainda aprendido a canoní-
uar BSsuHS paixõ<-s com a opada justiça, mercadeja-
da no leilão das cubicas humanas. Ambições uuvin-
ganç/is eram sinceras e andavam sem mascara. Es-
te reipiinte do civilisação, ou de atrocidade legal,
veio su com ostem|)os romanos do filho dWnbnso V,
do ultimo rei cavalleifo !
'J'oilo o enredo d'catH novellu prende no ódio de
raea, (eição caracterisl ii-a da idade media. A ehro-
iiica das bielas individiiaes. a das classes e concelhos,
rcataurada i oní eonsciencia |>(!lo drama ■' pelo roman-
ce, erii a pintura exacta das hoei('iladi'S semi-barba-
ras, que clorim;m ii« urna cineraria. A origlnalida-
ili* tragiea, e o pii-t,(»res(M( d<js cosi umes, cjue oIIimim-c,
então cravados nos episódios Ião admirados da IJi-
»'i/ir» (,'(>riii<li<i doDanli', i! em algumas das melhores
peras de Shakspeari'.
Umad'ellas, .hiliilti i UotULii, il talvez a mais hei-
la ccjm|iosição do poi;ta inglez. (,'ilii-a de propósito,
porijue recorda nos traços geraes algum lanloila Ira-
dição d» IMaria l'aes. Ointeressi! nasce lambem das
iixns de iliins fainilias, e UH espadas ernzamse par»
'iisopar em snngiin o ntrio do» paços, e coiiverlor as
, iiieeiía» de iim noivado nos goivos do sepulehru
A semelhança, porém, está tó na identidade do
facto. Na fabula, nos caracteres, e nos sentimentos
aparta-se completamente, pela opposíção de índole
dos dois povos, e mais que tudo pelo abismo que
separa a poesia do Norte da poesia peninsular.
E entretanto, Shakspeare em nenhum drama foi
menos inçlez do que em JitíiVía e Romeo. Meditou-a
debaixo do til, como se, á sombra dos laranjaes e li-
moeiros, Sevilha ou Granada lh'a ouvissem metrifi-
car. Sem ser escripta com choradeiras da pieguice
sentimental, é filha legitima dos aOVetos da natu-
reza. Avaliada só pela forma parece inspirada pelo
solda líespanha ^ mas o espirito desconsolado do scep-
tícismo moral esconde-se entre os mvrthos e as boni-
nas que a vestem.
\ endo Romeo eamando o, Julieta presenteque o
verme da morte eslá dentro da rosa coUiida [»elo amor.
E ella quem prophetisa "que o tumulo será o seu
leito nupcial, e os brandões funéreos as tochas acce-
sas 110 banquete de vingança das duas casas inimigas. "
Longe de espairecer no jardim das illusões, a don-
zella apaixonada geme na tristeza as horas solitárias
da noite. A lua, amiga dos amores, caindo mollemente
sobre as pedras do jazigo, parece que só lhe mostra o
sitio aonde irá descançar o peito das anciãs do in-
fortúnio !
Glue diflerença entre a contemplação da morte no
afTcctii, qne resume a vida, e os extremos da paixão
arrebatada, que respiram as peças castelhanas de Lo-
po da Voga e Calderon ? ! Na immensídade do de-
sejo, e no infinito da phantasia, como que ainda se
acham apertados, pedindo á esperança azas que os le-
vem ás regiões nebulosas do futuro. O inglez, pelo
contrario, recolhe dejctelhos o orvalho «lue gotejado
topo das cruzes no chão dos mortos, para regar com
elle a tenra flor que nasce para morrer. E que, se-
gundo Shakspeare, aexibteiicia qne mais significa do
(pie o martvrío do homem, p.issando pela terra de
viajem paru o secreto e invisível chamado eternidade ?
Chorosa no deserto dos maies e no conlrangir da
ausência, as duas grandes solidões da vida, a muia
brilaiinica mal pôde sorrir. Tormentas balouçam-lhc
o berço, os nevoeiros toldam-lhe a luz, e a luz baça
dos dias annuvia-lhe o resto, .\ graciosa ironia, nos
climas da l'eninsula, verte lá o sangue da inju-
ria. A comedia, jovial na Itália e na líespanha, per-
de o riso amigo do povo, e. não sei porque, lembra
as gargalhadas dos coveiros de /ídin/tí sobre a sepul-
tura á meia noite, quando os pyrílampos fulgem ao
ridor, e as briza» soluçam nos cypresles !
A paixão do Norle ó aj noite dosesponsaes de Ro-
meo (aet. 2. scen. '2.) conversada ao luar. Glue na-
morada cantiga nos trillos do rouxinol ! Os suspiros
da aragem e a (rigruncia das flores são harmonia e
perfume enfri! os ipiaos recendem os juramentos e
111 ijcis do primeiro amor ! O coração vive, e a alma
lib.i o mel do existir. E comiudo ha n'esla sctína
mais tristeza do <pie prazer. Nn própria ternura re-
llecte-se um ci>mochiiãod'ahimpada fiinebre. .V crii>
da ermida, onde por fimv.-io morrer, negreja desde
o priíuMpío por eiitr<.' as grinalilas do amor.
A musa das llespaníias não entende assim u exis-
tência. Eilhu de amiMiusciiiiias, não se reclina sobre
as ciHcatiis nevoentas, mas sonha acordada debaixo
das arvores qne bordam o leito das eslrailas, susur
rando a beiía dos nos. Não vai, como o rei Leur,
exposta aos temporae», voii'ando'iinprccaçõcs nus de-
sertos. Como i'llo, não pára, eom o p^^dlo queimado
pura rir de um riso louco, t|uando reso.tm na soli-
dão as mofas du Yoric, mai.s amargas que siduço». A
luzeosol, iiH flores eii» aguas, alma da nntureica, tam-
bém são aalmad^ella. O csliooalmososiirprchendeíi
236
O PANORAMA.
singela e pastora a Vjaiiliar-se meio corpo nas fontes, I Aquelle que entender esta grande regra, e aaex-
ou pulsando a l^ra ao doce luar de junho. primir na lustoriaou no romance, levantou um mo-
Se chora, poucas vezes são amargosos os prantos, numento lilterario capaz d'esmagar a inveja de todos
Se o coração suspira, raro geme pelas convulsões da os torniquetes de phrases quinhentistas. Felizmente
«lôr. Se a alma anceia, quasi nunca é de desespera- a novella e a historia já nasceram em Portugal, e»e-
ção. Os delirios de Sa|)lio, as saudades que matam, ria duvidar da gloria doseuauctor o eitar-lhe o nome.
■ ) amor que verte sangue em vez de lagrimas, no tiuanto se tractou este romance havia o pensamen-
jardim do Minho e na primavera da Hespaiiha, nun- to de fazer d'elle o prologo em acção de obra de malu-
ca se levantam como os sinistros espectros do ciúme res dimensões, já riscada. Paraalii se reservava tam-
de Othello, doscepticismo de Ilandet, e da fúria de bem o corolLirio moral no espectáculo dos remors<is
Lear. de Maria Paes. O castigo, caindo sobre osqueerain
As paixões da Península são ardentes, porque o sangue da sua alma até a segunda geração, cumpri •
sangue jiortugucz queima como africano-, uias a es- as maldições contra ella proferidas por Gomes liou-
perança, mesmo no meio das vascas da morte, apon- i renço na hora suprema. Se otempo oconsentisse, .1
ta para océu. Padecer é expiação e não inferno. O segunda parte da novella satisfaria ás condiçõesmo-
que, desfallecidc) doptzo da cruz, ajoelha e cáe, não ' raes que importa combinar com as invenções do ro-
expira enchendo a terra, como lijrun, dos clamores mance.
dosceplicisnio. Acima d<is tempestades do oceano, em Todos as hipocrisias são immundas, mas a mai»
asquerosa de todas, a dos Labras litterarios, só nn-
pira dó a quem não negoceia popularidade, exa^ge-
rando as tendências da epocha. A maiur punição de
taes homilias, puhilhadas com o gorgulho do* ar-
IVa harpa do IVorte fultaesta chnrda de consolação [ chaisrnos, está no ckcarneo com que asOagelIa a sen
que a vida se afunda ou sobrenada, está Deus para
estender a mão de misericórdia tanto a quem oim-
])lora com a fé, coino a quem o chama com ani^r-
iiura.
religiosa:, e a alma enfeza se, mutilada dos mais no-
bres sentimentos. O coração, cortado d'espiidios, san-
•gra, sem conhecer a paz que só dá a resignação ao
animo conlncto.
A opposição de idéa e de natureza entre a poesia
do Norte e do Meio-dia contitue a originalidade
d'ellas. Os cantos de Macphtrsun em Caslella e Portu-
gal nem sequer eram intelligiveis para o povo.
Tem-se dicto de mais para tirar qunlquer suspeita
de semoliiançaentie a tradição do iXubiliarin e a Jti-
licla e Jtvmco deSliakspeare. Agora seja pcrmittido
accresceiítar duas palavras para explicar o fim quese
teve em mira, acceitaiido-a para ba^e das ficções da
novella histórica.
A còr antiga do Livro das Liiiliagtm serviu de
fundo ao painel em que se tentou debuxar algumas
Bcenas do século XllI. O povoaclia-se retratado, de
escorço, nas ondas da praça publica, aonde ensaiou
satã opinião publica. Hoje é tão nece-sirio acatar a
moral como declinar qualquer de si a accusação de
pertencer a seita dos irmãos da charidade da repu-
blica das lettras.
Por ultimo, coroo esta tradição revê a mais funda
melancholia e chora sobre vivos e sinceros affectos.
talvez com motivo se adoptou para epigraphe cíIc
verso de Shakspeare em Othello :
«Shewasborn tobefair; I todie for her love. "
De certo o desgr.içado Gomes Lourenço se ja exis-
tisse no seu tempo, diria com o poeta iuglez ;
Ella nasceu para matar d'encaiitos.
Eu para amando a em vão, morrer d^amores.
E que Shakspeare, mestre na sciencia do coração
peito ; V, em duas palavras, a historia do martírio
do infeliz cavallciro de Salzedas.
O liifinilo padecer d'aquelle homem, bastante pa-
ra enclior uma vida de séculos, e->ta resumido n'es>»
verso subliiiie, escriptu com lagrimas na alma pura
de Desdomana.
a vida enérgica dos reinados de D. Fernando e D. i humano, sondou aferida queeste desespero corta do
João I, e esboçado d(! leve nos costumes Íntimos e
menos apparentes, que se concentram ao pé da fo-
gueira no lar domestico. As leis conservadas no Fuc-
»o vicjo de Castilía, e os usos civis e relii;iosos, colli-
gidos pelo sábio licrganza nas Jnliijuidadcs de IJts-
panlia, ministraram tintas, hoje raras, para ás já ob-
literadas [ih^sionomias do clero e da nobreza na ida-
de media. As virtudes e os defeitos das classes, (juan-
to era possível em breve quadro, re.-umiram-se, para
melhor rcsair o espirito de que outr'ora viveu a so-
ciedade que tanto lidou pela gloria do nome portu-
guez.
Em assumptos hisíaricos o dever do romance con-
siste em expressar o vircr c crer de Portugal, ou d«
Março 28 de 1847.
L. A. Keuello Dá Silva
Cárbeoaç.Xo singular.
ililKScbocarreiros melteram em calieç.-i a um t.il Íj:i-
outra qualquer nação, n'uma epocha designada. Evo- 1 rose, guarda roupas de Mr. d"Argcnlal emb.ii\ador
da França em Coiistaiitinopola noanim de lõliU.que
se levasse para a Tiirqui.i boa quantidade de cahel-
leiras, acharia gasto prompto e d'estomudo enrique-
ceria. O pateta crédulo empregou lodo opccuiiodas
suas poupanças em comprar cahclleiras ^ ea[>enasche-
lezse tudo, menos uma obra útil. Para oscaluraniar gou a Constantiiiopola cummuiiicou o segreilo a um
tar o cadáver do tumulo, e envolto 110 sudário mos
tra-lo ás gerações prcsciitws em caricatttra, ou como
gigante monstruoso, é crear uma cousa vã. Se não se
derem aos mortos os sentimentos e crenças que o» ani-
maram, e as paixões humanas por que padeceram.
não vai a pena assoprar-llics as cinzas.
A religião de scpulcliro é tão sagrada para a arte
como para a historia.
Porem a verdade, nos lavores da imaginação, c»la
cm reproduzir a c>»i'ncia, e não em suar paradis^ol-
ver em arengas sonisabons e palavrões torcidos a tin-
ta de cada letra dos pergaminhos velhos. O verda-
negociante traiieen, que des.itou a rir, como é bem de
suppòr, e declarou ao parvoque fOravictima de mu
o|iio ; esta rcvel.ição põi o triste Larose em grande
desconsolo e inebiiicholÍH. Percebeu Mr. dWrgental
quanto o seu guarda roupas andava mago.ido, equii
saber omolivo: informado do ciso não poudedeixar
de rir também ; mas cuiidoendo-se do criado, tallou
deiro espirilodus séculos foge sempre dos copistas que no outro dia ao grão \isir a ver se haveria niciode
u julgam colher n'uina rede de apanhar vocábulos. , tarde ou cedo seexpcdir afaieiida^ ogrão visir, que-
o PANORAMA.
23:
reudo agradar ao embaixador, affirmou>lbe que o ne-
gocio íinha bom remédio. Com effeito, logo no dia
immediato um firnian ordenou a todos os judeus de
Constantinopola trazer cabelleiras. Este ridículo abu-
so do poder despótico espalhou terror entre os judeus.
Como obteriam de proniplo cabelleiras.' Larose ap-
proveitou-se d'esfe apuro dos pobres hebreus e ven-
deu bem o seu género, e poude, ao voltar a França,
tombar dos farcístas que o tinham empulbado.
melhanfe, e abi os depõe, cobrindo-os com uns fios
de còr parda, macios como seda, que tece de sua
própria substancia, abandona depois ebte casulo, que
llucttia ao sabor das aguas até que saiam as larvas e
calam no charco ; estas nadam velozmente, mergu-
lham com muita presteza, eexbalamum cheirodes-
agradavel ; vão e vêem da agua, como lhes con\éni,
ate o tempo da metamorphose, que então alcançam
as margens seccas, cavam a terra e ahi se retiram
ate tomarem a forma de escaravelho ^ depois da qual
o insecto vôa e está perfeito.
O HVOIt,OPHII.O.
Na cíassificação de insectos chamaram os naturalis-
tas colpopteros aos que são munidos de queixos e de
duas azas cobertas por dois el^tros, ou estojos, de
bubstancia córnea, deliaixo dos quaes se dobram. Es-
ta classe c mui numerosa e variada, contendo inse-
ctos mui brilhantes, e outros niijentos udcpreziveis.
Entre os seus diversos (géneros coiila-se odoshydro-
philo», que por muito tempo foi confundido comos
d^tisco», debaixo da geral dtnomina(,-ã() de cscara-
volliosa(|uateis j o nome dos primeiros (juir dizer amii-
duics da atjua • dvlisco, ii;ualiiifiitt' d(? origem gre-
ga, significa jiiíit/ulliador. Ha uma multid.Mi d'inse-
clos d'e«lH riiça nos tanques, l.igoa, agua» cmliarca-
da-, pântano», e alénos ribeiroi. Acham se grandes
e pe(|uenos, pretos e pard(js, «juc lêem o corpo oval
(lu oblongo, convexo e com bordas, a cal)i'(,a chuta,
«• também os dedos da» pernas ch.itos em fornia de
remos, pelo que principalmenle ok i uiifiiiiiliraiii eiun
o» dyliscos, que vivem no meiíno alimento. As lar-
Tas il estes insectos, i«to é, o primeiro estado ao sair
do ovo, são uns vermes ac|uiiti('o» <lc sei» pernas, e
cjueixoi ioin[iriili(» e curvo», mui destruidores, e pre-
judici,;es nos taiiijues e viveiro» por devorarem as
desovas lios peixi-s ; esc<nidem>»e debaixo da terra
para se metainorpliosearcm. O insecto no seu estudo
perfeito nada, iiiergullui ^ porém anilumul, esóvôa,
ao inodu das barata-, próximo da noite para mudar
de agua», (luaiido u fêmea ipier piV o> ovo-, busca
nm buccailo de ]iáii, uma folha larga, ou cousa se-
DeSCIDA ao VOLCÃO BE KiRàVEA.
Nos ANTKios compêndios de geographia citavam se
i geralmente três volcões em actividade, o Vesúvio e
o Etnasebreo Mediterrâneo, eoHeclana Islândia;
porem os modernos descobrimentos fizeram bem
conhecidos outros muitos em remotas regiões.
O volcão de Kirauea eztá situado na parte meri-
dional da illia de Oahu ou Owvhee amais conside-
rável do archipelago de Sandwich. Esta ilha, como
outras muitas do Oceano Pacifico, é de formação
volcanica : dilatadas corrente» de lava cobriram de-
pois grande parte da sua superfície ; algumas, da ex-
tensiio de oito léguas, vieram precipitar se no mar
do alto das ribas de penedia. Em ISOO, uma d'es»as
grandes t(jrrentes, expulsa por uma das crateras da
ilha, entulhou uma bahia vasta, e formou nVsta pa-
ragem a co»la actual. A lava recente appresenta a
superficie inteiramente mia, sem q ue n'ella bote
uma Itívera de lierva, ao passo que a mais antiga se
deconipoz e está recamada de riquissima vegetação.
Fora d^isto, o aspecto de Owvhee niostra-se encan-
tador, ofterecendo por todo» o» lados vistas admirá-
veis ^ algumas das suas montanhas elevam-se quinze
a dezesei» mil pés acima do nivel do mar. Porém,
o Volcão de Kirauea não e como os outros, mais no-
meados, um monte truncado, sobranceiro ao territó-
rio adjacente, e que de toda aparte se divisa -, pelo
contrario, occupa o centro de uma vasta planura,
levantada mas chã, e é preciso chegar á beira do
precipício para se descobrir subitamente o seu iui-
menso foco. — Ouçamos a relação de um viajante. —
Na madrugada de 7 de maio de 1S43 saímos da
bahia de lord Uyron para visitar aquelle celebre vol-
cão. Passada uma a duas horas decamiiihn por meio
de uma cinipina deliciosa, cortada de outeiros eval-
les, semeada de bos(|ue5Ínhos de bellas arvoress che-
gámos a uma tioresta um tanto extensa \ o solo era
tão espinhado de abrolhos, enlaçados por tal forma
com trepadeiras e outras plantas que rojam pelo
chão, que muito nos custou a alrave»sal-o. A' saída
d'esta matia, ainda era mais agradável n paizagem ;
mas d'ahi a (lOuco appresentou se de aspecto sumbriti
e de assolação ; caminhávamos sobre um.i camada de
lava de perto dedua» léguas de largura ; era de for-
mação recente, e tão lisa e escorregadia que era iliffieil
firmar os pé»; n\>utras parles era Ião escabrosa e
elu'ia lio escorias <|ue»ó |>odiaino< andar c<uu muito
trabalho. Aquiiii e alem surgiam alguns eiiletados
arbustos ijiie haviam tomado raii ii'aquelle solo re-
qiii'iniado, e de ambos os lados do leito da torrente
eoriiam iiiattas de arvores anãs o pobres de rama.
Ue»cobriam»e ao longtí as niageslosas nssiunadas do
Muna -Roa -Miiua-Kea ; á direita eá esiguerda perdiH-
se a vista na immensidadu do Oceano, e ii ciU das
aguas confiiiiiiia-se com o azul dos ceu».
Antes do piW do sol tinhamo» ganhado até A ori-
gem da lava, maseslavaiuo» exli.iu»los deeaiísaço, o
dcinociu» por felizes de acli.ir «brigo para a noite
23 S
O PANORAiMA.
II ''uma cho<;a mal reparada q«e o« naturaes tinham
construído, onde dormimos profundamente. IVo dia
se<'uinte estávamos a caminho ao romper d'alva, e
não tardou que descobríssemos a fiimarada do vol-
cão em graciosos redemoinlios. Apertámos o passo e
chegámos pelas nove horas a uma espécie de lago de
enxofre c do escorias, d^onde seexhalavam os vapo-
res; apanhámos algumas crystallisações, mas não nos
demorámos. Logo nos prendeu a atlenção uma longa
abertura que se estendia de SOO a (iOO passos para
diante da cratera :, tinha de largura 30 pés por 700
a 800 de comprimento, e d'ella saíam incessantes
turbilhões de vapor ião quente que os nossos guias
cozeram com elle batatas em poucos minutos. Este
vapor, em consequência do contacto com o ar frio,
condensa-se, e perto d'alli formou-se um bonito lago |
de agua exceilenle, a iinica que se topa a muitas lé-
guas em redondeza ^ é ensombrado d"arvores altas, e
n'elle folgam bandos numerosos de aves aquáticas. |
Eram dez da manhã ; e depois de havermos passa- j
du o pego de enxofre, caminhávamos por um leito j
do lava extremamente accidentãdo, costeando escu-
ras fendas, com que o terreno estava todo rachado, e i
a que os olhos não descol>riam fundo. A final demos
com a principal cratera de Kirauea, que mede três
léguas do circuito; e suspendemos os passos á borda
de um precipício, onde a vista se desvairava mergu-
lhando n'uni escancarado medonho abismo a muitos
pe» abaixo de nós, onde todos os elementos da natu-
reza pareciam baralhados em lucta uns com os ou-
tros; nada mais podíamos distinguir do que massas
enormes de fogo roiarem-se como vajas encapcUadas.
Este abvsmo, que parecia verdadeiro respiradouro
do inferno, estava salpicado de muitos cones volcanl-
cos, do vértice dos <|uaes jorravam de continuo tor-
rentes de lava derretida, chegando nós a sentir o ca-
lor d''estas erupções. Da profundeza se levantavam
amidos siUos, espantosos mugidos, e um como re-
bunibar de trovões, acomp:;iihado tudo de espessas
nuvens de vapor, cinzas e fumo.
'Ião grave e temeroso espectáculo bastava para ge-
lar corações os mais animosos; porém, sobejos eram
os perigos com que na vida liuhamosarrostado, para
hesitarmos perante outros obstáculos. Armado cada
uni de nós de comprido bordão para sondar o terre-
no ignoto a que nos aventurávamos, começámos a
descer á cratera ; o perigoso declive por onde inves-
timos era ás vezes quasi a pique, e sulcado de gretas
fundas; adianiámo-nos com precaução, e ao fim de
três quartos d"hora estávamos no fundo da cratera,
^obre o próprio solo do volcão. Contámos vinte e seis
n;ontcs conici» dislinctos que variavam na altura de
vinte a sessenta pés, somente oito delles eram aoti
vos. Trepamos a al2:un9 dos que expelliam so vapor
e cinzfiro, e d'onde trasbordava material avermelha-
do e ardente; ate que chegamos tão perto da Iwcca
lie um que podemos mersulhar os bordões no fogoli-
qui.lo ; lançamos n'outro volumosos pedaços d'efCO-
rias. que logo foram despedidos para o ar.
Entre o? objectos de curiosidade que apprescntava
ii'aquelle momento o boqueirão ou cratera grande
numeravam se os charcos lie lava ilerrefida : distin-
s;«lain-se M>is, o maior na direcção de sudoeste. Clie-
gadii> u borda, não podemos contemplar sem admi-
ração o espe.laciilo d'aqueile mar de fogo que rede-
moinhava a mais de trezentos pés abaixo do logar
que (iicupavanios ; pujantes vagas inflammadas re-
lentavam de encontro ás paredi'» do boqueirão, e ao
mesmo tempo repuxos de lava incendiada, atirando-
se á altura de 60a 70 pé», produziam lãoiutensoca-
lor que fomos obrigados a retirar-nos precipitadamen-
te. Í'assados alguns minutos a scena mudou como por
encantamento: abonançou tudo, e a superficiedola-
go não mostrava aos olhos espantados senão uma in-
forme e negra massa d'e!!coria5. Porém a natureza
tinha apenas descançado um instante para recuperar
forças novas ; em quanto observávamos esta maravi-
lhosa mudança, a côdea que se formara a superfície
começou a rachar e despedaçar-se de uma a outra
extremidade; a lava no estado de fusão, alteando e
estalando por todas as partes aquella frágil capa, co-
briu de novo a extensão do lago, á excepção de uma
ilhota que notámos no centro, e que parecia dar ba-
lanços como nm navio em mar tormentoso. Vimos
reproduzir-se muitas vezes o mesmo phenomeno, sem-
pre acompanhado dos me>mos efTeitos. — .\traves«á-
mos então o fundo da cratera, nezroe desigual, cor-
tado de extensa» c altasferidas, ed''ahi a algum tem-
po fumos parar defronte de um longo dique formado
de lava endurecida ; depois de o termo* galgado, e
descido uma ladeira de obra de 40 pés, acbámo-nos
n'um plaino que toma quasi a quarta parte da su-
perfície total da cratera. Não fardou que conhecêsse-
mos que não podíamos estar alli muito tempo, por-
que a infinidade de gretas por todas as direcções des-
cobriam o fogo subterrâneo a poucas poUegadas da
superfície que pisávamos: um dos meus com panhei- '
ros accendeu o cigarro n^umad'essas aberturas. En-
contra-se enxofre com abundância no volcão e im-
mediações ; era toda d'esta matéria a parede da cra-
tera no sitio onde estávamos, a qual não tinha me-
nos de mil pés de alto, antes teria mais. Andávamos
occupados em colher n^aquella escarpa algumas for-
mosas amostras de crvslallisações, quando um gran-
de pedaço em bruto que se desapegou por acaso ro-
dou para uma das aberturas; foi-nos forçoso retirar
a toda a pressa, e assim mesmo esteve a ponto de
nos sufTocar a fumaça que surgiu. Havia mais de
cinco horas que percorríamos a cratera, e allí esta-
ríamos de boa vontade por mais tempo; porém os
derradeiros raios do sol a pòr-se douravam a aresta
da bocca do precipício, e por isso começamos a su-
bir, operação assas difficil, e quenosco: sumiu nada
menos de cinco quartos d'hora. Dirigimo-nosá mes-
ma cabana da precedente noite, eem quantoassom-
bras engrossavam aviámos uma refeição frugal ; mas
não podemos resolver-nos a dormir sem fazer a ultí-
Uia visita a cratera de Kirauea ; pozerao-nos com to-
do o vigora caminho, e tendo checado, não sem cus-
to, porque tropeçávamos a cada passo, contemplamos
imvamente da beira do precipício aquella ímmensa
voragem allumiada por a lava incendiada : toda a
superfície do plaíno que tinhnmos visto cheio de fen-
das parecía-nos agora uma rede de lava ardente.
I Quando examinávamos este espectáculo, que a ob^
• riiridade nocturna fazia rt-alçiir, transformou -se de
súbito a planura irum vasiu la!;n d>- fogo; a crusta
I solida liquldlfícou-se, e os la.iosderrubacios mistura-
I ram-se com a massa a-.;itaja. l'ozenio-noS emretira-
i da, estremecendo com a lembrança de que poucas
I horas .intes estávamos n'aquelle nvesmo logar. onde
I agora ferviam cachões de fo>;u. No seguinte dia vol-
I lanios á cratera; tudo achamos no mesmo estado . o
novo Jago continuava a fervrr, e osoono» voh-anicos
' despediam aos ares fracnientos de roí-has calcinadas,
' acompanhadas de rolos de vapores que se evadiam
por entre sibilos; o grande iaçudo sudoeste achav.-v-
se n.is mesmas crise? convutsitas que na vcper». E
I por esta \ei liemos ao volcão a no-sa de5f>eilida.
' Não eslejss nunca entreos persegiiidores; está antes
I entre o» p -rs-iiiid.s.
o PAJNORAMA.
239
Seitas religiosas ros Kstados-Unidos (1).
i)i Estados-Unidos do iiorle da Aniorica teein fei-
lo iniiovações na relÍ£;ião como na politica. Asdifle-
rentes seitas inglezas, passando do antigo para o no-
vo mundo, muilaram de caracter, de disciplina, e
ainiia mais de proporções relativas
Nos Ksladoi-Unidos a maior parte das seitas prac-
ticam oque cliamam retitix/ís (revificações), queteem
por objecto avivar o zelo religioso. U í-eiwiia/ consta
de rezas em cíjminiini, sermões, practicas, reuniões
prolongailas, visitas domiciliarias: parecese de al-
gum lijodo com as missões provinciaes dos catholicos.
As igreja» americanas a])presenlani o reflexo das
institui<;ões politicas do paiz , os ministros são alli
mais depenileiites ilos lieis do seu rebanho do que
em parte alguma; são escolliidos e aléamoviveis por
ellea : a dependência é mais on menos absoluta con-
forme as diversas seitas; é muito maior entre os con-
greganistas, cujas igrejas são isentas umas das ou-
tras, ao inverso das outras seitas que reconlieceni
mais ou menos aiictoridades sn|)eriores, como por
exemnio os svnodos e a assenil)léa geral dos presbv-
terianos. Os m(.'tliodisla«, tendo poucos on (|uasi ne-
nliuns ministros residcntKS, isiju;varam-sp a» dilljcul-
dades que por onlra parle res^llani da situação pre-
cária dos ministros.
Além dos ministros ou pastores ha nas varias sei-
tas outros funccionarios ecciesiasticos : quasi todas
teeni anciãos (tWc/s) que tomam parte no governo
espirilu.il das igrejas, e diáconos, especialmente in-
cumbidos da administração dos recursos temporaes
das mesmas; estes últimos, entre os congreganistas e
os baptistas, reúnem as attribuições dos anciãos.
E sabido que na Inglaterra a igreja numericamen-
te dominante é a episcopal, estabelecida pelo gover-
no ; na Ksoocia, do mesmo modo, o é a presbiteria-
na ; na Irlanda, a catholici. tolerada pelo gover'no.
Alem d. IS igrejas reinantes na liiglaterr.i e ICscocia,
ha seitas, igualmente protestantes, a que chamam
dissidentes, que compõem mais de melade da popu
laçãu das cidades, e as duas (jnintas parles, [)elo me-
nos, d,a população proteslante de t<ido o paiz : as
priricipaes d'eslas seitas são, a denominada presbi-
teriana, que se não deve conlundir com os presbvte-
riaiios da Escócia, a dos independentes, a dos bap-
tistas, e a dos quakers oii amigos; as três prinutiras
ahsemelhani-si! muito, e dirien ni da inreja estaliele-
(.ida ou d<jmiiiant<^ pela muito maior latitude na dis-
ei|)liiia <'ei'lesi,islica, ciiiieediMido lixlas nniilo ú inde-
pendi'nc ia indrvidual. Os melhodistas inglezes, posto
qiK! laçam corpo a parte, não são contados eniruos
dissidentes; permanecem annexos ú ignja dominan-
te ; são como jansenislas anglicanos.
No» Kstados-Unidos a igreja episco|>al anglicana é
iMuito pouco numerosa; não chega á vigésima quin-
ta ou ir Irigesinia p;irle da população. As seitas do-
minaiiles «ào : 1." melhodislas; 12." bapi istas ; li."
pri'»byl(rianos ; 4." congreganistas Al»'m d'esla» ha
nma granili; ipianliilade de seitas separadas d'esle»
rauMis piinci|)aes ou <|Ue vieram da Kuropa. Osca-
ihiilieos. em numeii) de cpiasi seteceulo') mil, estão
repartidos pui úr/. bispados, lia llnalmiiite tis qua-
kers, I! outras eotiimunhões menos iiniiortanles. Os
unilarios, ijui' muito se? chegam iiiw/ciwnu, >' íi (|U<un
lodos os oulriis cliauui iii i/i/iV/s, saLiam dos congrega
nislas.
Ou melhodislas dos l'lslados l'nidos ililíerem dos
(I) Kxiraein da iiilertiss.nilo d multo ;ipplan(liilit uhn
ih) Sr. Miguel Clievaller sohre a Annirlea d» Norli', ila l,"
«eihefió, em IKll, niuilu aiii,'nieulada.
de Inglaterra, assim na disciplina, como pelas for-
mulas que adoptaram, compõem uma seita inteira-
mente distincta ; elles é que fazem asassembléasem
campo aberto, e»pecie de rcvivah, que lhes é parti-
cular. O seu clero consta de padres ambulantes, pos-
suídos da veliemencia, actividade e espirito de pro-
selvtisnio, taes como em França manifestaram logo
depois da restauração os missionários catholicos : tem
seis bispos que andam sempre em visita. Oscongre-
ganistas constituem igrejas recij>rocamenti" indepen-
dentes, que não teem outras relações mais que as
conferencias, convcnruts ou iissociarões, e que não pu-
blicam decisões obrigatórias, mas somente simples
<lisposições facultativ.is ; tandjeni ha entre elles con-
sel/iijs compuslcs de dele2;.idos das igrejas confinantes,
e que só teem attribuições consultalivas ; até a orde-
nação dos Hiinislros, que é feita em co»ist7/iO, proce-
de, de lado e direito, das mesmas igrejas, isto é, do
povo. As igrejas p^e^b^•te^ianas estão associadas, for-
mam um corpo, ainda (|ue na verdade mediocremen-
te compacto, e dependem de uma assemldéa geral e
de sjnudos parciaes. Os congreganistas são lambem
chamados HKÍcjjoiíknlcs, nume dos sectários que na
Inglaterra lhe corres|iondem em doutrina. Os puri-
tanos creadorcs dos Estados da Nova Inglaterra eram
d'esla coinmnnhão. A sua [iropria organisação mos-
tra bem que ha entre ellus muitas gradações; n'al-
guns casos approximamse das opiniões presbvteria-
nai. Os baptistas, que não são mais doipie uma de-
rivação dos congreganistas, differeni d'eslesem bap-
tisar as pessoas só quando já são adultas ; usam tam-
bém de uma linguagem mais democrática, e mais
vehemente ; em geral os seus adeptos pertencem ás
classes menos polidas.
Nos Estados da Nova Inglaterra a maioria dos ha-
bitantes é cungreganista, seita (jue fora d'esses Esta-
dos apenas existe. Os Kstados centraes são os que
compreliendem presbiterianos em maior proporção ;
o8 de Ohio, Indiana, e o lllinez, não contém lauta
(quantidade crelles.
Os melhodislas e baptistas dominam nos Estados
do sid e de oeste, onde sobre tudo existem escravos ;
além d'isso apparecem em toda a parte.
10 nos antigos i''sladus do sul que os episcopaes
contan» m.iis adherentes: boa parte das pessoas illus-
Iradas ou ricas da União, em geral, [)ertcnceni a es-
ta communhão ou á dos unitários.
São numerosos os catholicos na [iui/iana e no Ma-
riland, e os emigrados irbiiulezes engrossam o nume-
ro d'(dles no oeste e in)rte.
Acli.imse os qn.ikers quasi unicamenie na l'<nn-
sylvania e Nova Jcrsev. A igreja relormaila hollan-
deza conta certo numero de adeptos n'esles dois Es-
tados e no de Nova- York. E sal)ido que os liollan-
dczes foram os primeiros que colonisaram as margens
do liuilsiMl.
Acham se tandiem na União todas as variedades
do protestantisnn) europeu, ou porque em outro tem-
po ridugiados de Iodas as nações ahi buscassem as\lo
para o livre exercício de suas crenças, ou porque a
emigração acarreta [)ara alli prisenlemente homens
de ^idas as sibilas. Huanto á primeira hv|iolhese, é
cerlo <)ue (hqioís du r('Vogação do edicto lie Nantes,
certo numero de hni;'uenoles se rcll^,;iaram na Amo-
ri<'a inglezii ; estabideci-ram-se partlcidarmcule na
Carolina do sul, ondi' ainda oHseii«discendculi'S re-
pii'srnlaui enirí? as lamilias mais rcspeita\cis do
pai/..
A seL'ninli> lishi é exiridiida de uma labelln do
.iiiiuinak .-liiit licano.
240
O PANORA3IA.
í^elta!l.
Methodistas episcopaes
Outros methodistas
Baptistas, ou aiiubaplisins
Outros baptistas, denominados do sétimo
dia, dos seis princípios, do livre arbítrio,
christãos, mcnnonilns, tunkers, ele. . .
1'rL'bbyterianos
Outros presbiterianos, dictos de Cum-
hcrland, associale church, ele
(^oiigreganistas
Reformados d'Uollaiida e d'Alleraaiiha,
lutlieraiios
Fopulasão.
3 300 000
300 000
3 200 000
700 000
2 000 000
300 000
1 oOO 000
1 000 000
Episcopaes 500 000
Unitários •_ 200 000
Irmãos unidos, Nova Jerusalém, judeus,
^.tc 300 000
ttuakersV 200 000
Universalistas 300 000
Catholicos 700 000
14500 000
Esta lista mostra approximadamente a distribui-
rão da população americana na propor(;ão das diver-
sas opiniões religiosas.
Algumas providencias repressivas nos Ebta-
DOS-UaiDOS.
níio tinham assaz discemimenio para contrahir um
conlracln Ião importante. — Estados ha em Allcma-
iiha, onde as auctoridadej exercitam igual fiscalisa-
^•ão sobre os matrimónios.
A lei de muitos Estados \edava antigamente via-
jar ao domingo: era prohibido fazer n"esse dia cousa
alguma que não fosse de absoluta necessidade fqfne-
ecssily or mercyj. Cremos que esta lei foi abrogada
em lodos oj Estados sem excepção ; porém n alguns
ficou a pratica, e para grandíssimo numero de pes-
soas viajar ao domingo é uma grave quebra da lei
religiosa.
N 'alguns Estados da Nova-Inglaterra, no Connec-
ticul por exemplo, e até n'alguns Estados do cen-
tro, como em a Nova-Jersev, expor-se-hia a ser re-
tido pela gente popular qnem quiiesse viajar ao do-
mingo; por toda a parte se acha interrompido oser-
vico das carruagens publicas e das embarcações de
transporte. Não ha circula<,ão ao domingo, nem mes-
mo entre 1'liiladelphia e Baltimore.
Os transportes dos correios partem ao domingo,
como nos mais dias. Numerosas petições se teem di-
rigido ao congresso a este respeito. Os requerentes
pretendiam que não houvesse malas de posta ao do-
mingo, e mesmo qne os respectivos escriptorios esti-
vessem fechados. Comtudo foram rebatidos. No en-
tanto, de três companhias dos caminhos de ferro que
vão dar a Boston, duas não abrem a circulação ao
domingo; e são as de Lovell e Morcestcr ; tal e o
respeito ao habito inveterado do povo. que prescin-
dem dos lucros não pequenos que lhe podiam provir
do transito n'aquelle dia.
Em nenhuma parte o poder da sociedade sobre o in-
dividuo foi levado a tão subido auge como em a No-
va-Inglaterra. NoConneclicut havia leis para regu-
lar o tempo que era permittidodemorar-se qualquer
na taberna (meia hora), o maxiinuni que podia be-
ber (meia canada) ; depois das nove e meia da tar-
de as estalagens e tabernas deviam fechar-se. Não era
permittido aos celibatários ter casa sem consentimen-
to dos habitantes da comniuna; nenhum pae de fa-
mília podia receber na sua casa um cclil)atario sem
a mesma formalidade. — Era proliibido praguejar,
mentir, espalhar noticias falsas, eaté era defeso usar
do tabaco sem ter auctorisação do medico, declaran-
do que era por bem da saúde; e para isso era preci-
so ainda em cima a licença do tribunal. Outros re-
gulamentos simplesmente vedavam fumar em publi-
co. Ainda no aiino de 184G os magistrados de Bos-
tim prohiliiram fumar no passeio publico da cidade
(Mali)., que é uma cerca muito vasta.
Inútil ó dizer que as Uis das colónias da Nova-In-
gialerra eram de grande severidade religiosa; todos
eram obrigado» a pertencer a uma igrt-ja congrega-
nista, e iiao |M)diam obter empregos sem esta condi-
ção : os|di.,sidenles pagavam para as despelas docul-
1o da Igreja dominantí!. Os judeus e quakers eram
banidos e sujeitos a pena de morte se se apresentas-
sem noterritorio doestado. — As Icischamadasaruts
de Connecticut continham também prescripções mui
curiosas acerca de matrimónios.
Não restou d'esta legislação, que já caducou, senão
unia forte organisação municipal. Comiudo, ainda
hoje acommunidadi intervém algumas vezes na vii
Modo uk nESEWFEUBiJAR E consertar as ferra-
mentas DOS .MARCENEIROS ETC.
TiRA-sE com facilidade a ferrugem dos utensilÍM e
ferramentas com a seguinte preparação.
Mistura-se uma libra de argila bem dura com meia
libra de pode tijolo muito fino, duas onças de esme-
ril, e igual porção de pedra pomes moida ; incorpo-
ra-se tudo com um pouco deleite, de modo que fique
uma massa rija, de que se falem uns paus, com os
quaes, depois deseccos. se esfregam as ferramentas.
Estando o ferro limpo e polido, é preciso livral-o
da ferrugem, o que se consegue expoiídose a peça
de ferramenta ao lume, dando-se um calor algum tanto
forte sem comtudo a chegar muito perto do fogo,
esfregaiulo-a com cera branca, tornando-a a aquecer,
e lin:paiido-a n"um pedaço de panno. Para os ins-
trumentos delicados vai mais usar d"um vernit. Os in-
glezcs p reparam n "o derretendo em banho-maria, n u-
ma porção de espirito de vinho que baste para dis-
solver tudo, uma onça de mástique, meia onça de
cainpliora, onça e meia de sand.iraca. e meia onça
de resina clemi. Este vernii pode-se dar mcsniofrio.
Conte, que fei tantos serviços a industria, empre-
gava um meio ainda melhor. PejHjis deter limpado
os utensílios com uma lixívia forte, usava, para o»
envernizar, deuma mistura doveriui gordo, teílodc
resina copal, com um. dids. e ale três Lintos de e>
sencia de therebontína. Uuanto maisessencia temo
I verniz, mais transparenie tic.i. Ua-se com uma espon-
ja muito lina. molliad.i primeiramenlo na essência.
privada do indivíduo, a ponto de o despojarem de 1 espremida entre os dedos, ensopada no verniz, etor-
direílos que nos parecem os mais naturaes e inipres- j nada a espremer, de modo que tique com multo pou-
cripliv.is. EmTauntun, no Massachusetts, em ISÍlí. | ca porção d"elle. Corre-se com a espiinja a peç.i. fu-
dois juizes depnzprohibiram a publicação doibaiihos gindo de a tornar a passar por cima do mesmo logar
ou dniunci.u para c.isamento a um homem e a uma depois da primeira dcmão ter enxugado. Este nie-
iiiulher. porque os futuros cônjuges >uio ti iihain meios thodo é óptimo, principalmente pura quem traball..
Ji subsisti iicia depois de casados, c por consequência por curiosidade.
31
o PANORAMA.
241
'■'^WlllilBIllililli iilIlIlIlimilllEliIllIlBI nil!IMIII|l!ÍlpillllBlllllil'^lll|illlílMÍil'' "-' '■■■illlll
estatVa de MOZAHT.
A «HTATiiA er(,'L'l;i L'iii lioiira ilo iiisi^iu! coniposilorile
iniisioH, IMoíiirl, íiindidíi oiii lironzc cm Miiiiicli pc-
loiíwpoiliir tio ri'.il liili(iríil(irii>. Sli(íi;cliiiavi'r, nc"ui\-
.lu o iiimlclo (1(1 proftt^Bor Spliwiinlliiilpr, iui iii,iii"ii.
N"i.. l - Aiiuii. 10. 1817.
ruda cm SíjIl/.ljuriLjii a o de ^('ll•mll^ll de 181á. Mo-
zart, de ciiiistiliiu^^ilo (I(,>liil. fiiilia morridn prpmatli-
raniciitc om 179), contiiiido iiptMiaH trinta «scisnii-
iiciH , ;( li'imci\ni;t'iii au laliMilo du !;T:ni It- iiicslrc toi
242
O PANORAMA.
tardia, comtudo não o foi tanto como a que a Fran- i ctica do teclado que, tapado ette com uma toalha, to-
ra em nossos tempos tributou á memoria de muitos i ca com a mesma presteza e rijor. Escrevi-lhe, por
de seus fillius illustres, por exemplo, Coriieille, Mo- minha própria mão, um minuete, e pedi-lhe me po-
liére. A. viuva do famoso compositor ambicionava ! zesse por baixo o acompanhamento ao minuete. E»'
viver até o dia da inauguração; mas seus votos não ta creansa me fará virar o juízo se o ouvir muitas
os ouviu o c('u, tinlia fallecido poucos mezesantes, a ! veze» ; conheço que é impossivel fujir a uma certa
6 de março de 1SÍ2. (.) filho de Mozart assistiu ves- .insânia quando se presenceiam semelhantes prodi-
tido de lucto úquclle acto pomposo, q<ie deixou per- I gios. "
manentes lembranças entre os habitantes de Saltz-
burgo. Grande numero de nobres estrangeiros, admi-
Odio velho ^Ão cAxri.
(Romance Histórico.)
I.
Kti murto, rei posio.
radores do génio de RIozart, e muitos artistas cele-
bres aflluiram de varias partes da Europa. Os con-
servatórios e academias de musica de Najiules, Ruma,
Florença, JMilão, Veneza, \ienna. Praga, lierlin,
IMunich, Jlamburgo, Varsóvia, S. Tetershurgu, Sto-
ckolmo e Copenhague estavam representados n^a-
quelle concurso por alguns professores de seus gré-
mios. Esperava-se uma deputação de Paris ; e os en-
viados do conservatório francez, que interpreta Mo-
zart com tão rara perfeição, seriam acolhidos com en-
thusiasmo, porém não compareceram. A festa de O
de setembro ajunctou mais de cincoenta mil pessoas. ■
Gluando ao mrio-dia caíram os pannos que velavam Na sala d'armas dos paços deCoin]bra havia já dois
a estatua, as s^mphonias de seiscentos músicos se dias que se junctava desacostumado concurso de se-
misturaram cora as salvas de artilheria e com repi- uhores é cavalleiros, d'homens de religião ed'ufliciaes
Sbe vvas bom lo be fair ; I to die for
lier love.
Sbaí^sfeare — OtKtllo.
quês dos campanários. Á noite dois mil artistas ecu-
riosos tocaram, ao pé do monumento, illuminado por
fogos de Bengala, um hymno escripto expressamente
pelo conde Ladisláu de Sirker, arcebispo d Erlau, e
posto em musica pelo cavalheiro Neukonim. No dia
immediato, pelo meio dia, dois mil e oitocentos cu-
riosos executaram o Iteqidem de Mozart.
A estatua está no meio de um mercado; esta es-
colha de collocação tem sido censurada : alguns críti-
cos quereriam que os monumentos commemoralivos
do génio estivessem sempre cercados de silencio e re-
motos do espectáculo do quotidiano movimento do
vulgo. Outros, ao contrario, preferem velos no meio
do sussurro e laboração das cidades populosas, afim
de que mantenham as recordações gloriosas, o culto
do talento, e uma constante emulação.
A pag. 2'J'(- do 2." volume dVste Jornal demos
a historia dos ullimos dias de Mozart, e do famoso
Reqtiicm, sua derradeira composição; poremos aqui
al!;umas circiimstancias relativas á sua infância. —
"Mozart (luse na liioyraphif Lnivci'scllc) não tinha
ainda oito annos quando, em 171)3, appareceu na
corte de Versailles. Esle génio precoce foi ouvido em
Paris em dois concertos públicos. O seu retrato foi
gravado por um desenho de Carmontelle, a que os
amadores deram prompta extracção, de forma que
em poucos dias se venderam os exemplares, cncon-
trando-se hoje alguns somente em collecções particu-
lares. O barão de (irinim, correspondente de todo o
palatinos. O mez de março do anno de 1211 estava
a expirar por cinco dias. Nos pateos e oflicinas do
castello não se teciam cotas nem se poliam arnezes.
Os alfagemes e amieiros não temperavam espadas,
azevans, ou achas d"armas. O silencio era apenas in-
terrompido, a espaços, pelo tropel das roídas, descen-
do das torres e muralhas, ou pelo trote dos cavallos
em que chegava á corte mais um rico-homem.
Não se tractava de novas guerras. O estandarte de
Sancho I não ia desenrolar-se mais uma vez ao bafo
ardente das batalhas. Os seus cavalleiros, que aos três
c aos cinco se apartavam pelos vãos das altas frestas,
ora olhando para os cabeços além da ponte, ora cra-
vando a vista u"uma porta grossa de castanho cha-
peado, não vinham á cúria para resolver entradas na
fronteira dos mouros, ou para tentar o cerco d"algu-
ma das fortalezas, d'onde a bandeira das luas desafia-
va a sis;na real. A lança dos combales encostada ás
paredes da vasta quadra, repousava por bastante tem-
po. Outro era o motivo que allí os tinha reunido.
.\. porta de castanho da sala d"armas communica-
va para o recinto interior, aonde estavam os quartos
do rei. Por ella desapparecèra o esforçado monarcha
do reino portiiguez na primeira tarde demurço. e sa-
biam já que por ella só havia de sair um cadáver,
restos d'aquclle que, na paz do tumulo, ao lado d .-M-
foiíso Henriques ia descançar das luctas e pelejas d'um
reinado trabalhoso.
Juncto dacarcóva exterior ^fosso) do alcácer, oslio-
grande rancho dos eneyclopedistas, annunciava pelo ' mens d'armas e os homens de pé da n>ercè dossenho-
modo seguinte, no 1." de dezembro do 1T(Í3, a che- ' res e c.ivalleiros entretinham-se cm grosseiros jogos,
g.id.i do tenro Slozart a Paris eos seus triumplms. — . l ou brutescas porfias. De vez em quando alaridos, ri-
11 Liii mestre de capella de Saltzburgo, por nome Mo- I sadas, e clamores de cholera rompiam do meio d'cl-
zart, acaba de chegaraqui com duas creanças as mais le», soando até os aptwentos do paço. Por um vagn
«■bbeltas do mundo. A filha, de idade de onze annos, boato que andava no povo, diiia-se que D. Sancho
toca cravo mui espl^-niiidamente, executa as maiores esmorecia na angustia de moléstia dolorosa ; mas niio
peças e as mais liiflkeis com uma precisão que as- se cuidara que a morte tivesse caminhado tão depres-
siimbra : seu irmão, que completará sele annos em ! sa como a tristeza sincera, ou hvpocrita, lá dentro
fevereiro próximo, é um pbenonicno tãoextraorilina- | inculcava. Ainda para fora não transpirara a nolici.i
rio, ipie custa aos olhos acreditarem no <|ue entra pe- ide que, em poucas horas talvez, Coimbra, poios ge-
los ouvidos. Não (• nada o executar esta creança com niidos da sua cathedr.il, havia d'annunciar a orphan-
todo o rigor ns passos mais difficeis com mãos que dade ao reino. — Secundo o costume, o povo era o
apenas alcançam a sexta; o que parece incrivel evè- ultimo a sabel-o.
Kl tocar de cor por uma hora a Co, c abandonar-se á j Dous cavalleiros, nm que partia, outro que chega-
inspiração do seu génio e iruma infinidade de idéas | va ao palácio, cruiaram-se diante da ponte Icvadiça.
ixtasiadoras, que elle sabe fazer seguir uma á outra . Por fortuna nunca entre elles se intcrpoiera o ódio
com bom gosto e sem confusão. Tem tamanha pra- {encanecido de uma rixa de família.
o PANORAMA.
243
— II Boas tardes >» disseram a um tempo, e por mo-
vimento simultâneo colheram as rédeas aos cavallos.
— 11 O infante ?>5 perguntou o que saía.
— i< KIrei ? " interrogava o de fora.
— «O infante sobe agora aquelle cabeço. Trescre-
dos mais, e ahi chega com os poucos que aturaram a
carreira do seu tom andaluz. E clrei ? . .. Ha espe-
ranças, 1). Martim Annes?"
— «Nenhuma. Vi-o, faz quinze dias hoje, e logo
disse comigo : Não é este que torna a ser homem ! —
D. Sancho ouve já as enchadas do coveiro, D. Moço
Ordonhes. »
— u Era um homem ! »
— M Se era ! "
— "E está só? muito desfaileeido ? "
— «1 Peior que só:, os monges rezam-lhe ácabecei-
ra. (Aue dòr d'alma, I). Moço ! Cada terra que ti-
ram á herança de seus lilhos; caila punhado de ma-
ravedis que levam das arcas do thcsouro, dizem-lhe
que o lava d"um peccado mortal . . . e eirei, tão que-
brado de corpo, tão fraco d'aninio, a dar-lhes ainda
niais do que elles pedem ! . . . O infante que seapres-
be. "
— II Estes padres, ah ! estes padres. . . em nos cain-
do a cabeça no travesseiro, fazem o que querem de
nós . . . Mas, ahi vem o infante. »
("om efleito,, á rédea larga saía do lado da ponte
do Mondego um tropel de cavalleiros, galgando en-
costa acima direito ao castello. O pendão do infante
de Portugal esvoaçava nas mãos deííonies Lourenço,
seu collaço e alferes. A cavalgada parou defronte do
alcácer. Seguiu-se uma pausa de alguns minutos, em
<]ue não se escutava mais do que o respirar cançado
de homens e corseis. Com os ginetes á rédea, os ca-
vallariços, vestidos de saios alvacentos, torciam por
entre os homens d^armas, atacados naslorigas de cou-
ro escuro, e no perpassar evitavam as cotas bordadas
dos pagens, que andavam de um [)ara outro lado.
Decorridos instantes, do ferreiro interior saiu um
oflicial palatino : atravessou vagarosamente o aeanlia-
<io largo que se rasgava diante da porta, e foi cur-
var-se na presença do infante. Kra Suciro Itajmun-
<lo, alferes do rei D. Sancho. No» olheis roxos do guer-
reiro velho, filho da creação d'A)lonso Jlenriques,
borbulhavam lagrimas mal sustidas. Pagava assim ao
amigo da infância, e ao companheiro dos tratwlhos,
o tributo do soldado. Sem vergonha chorava allidian-
te de todos as primeiras lagrimas, talvez, de toda a
sua vida.
liuasi (pie se sentiu orphão o infante aoencaral-o.
Apertando a mão d»; Soeiro it»^ inundo, e tão baixo
que mal se percebia, apenas piiude dizer :
— i> Meu pai .' ! "
O alteres niór p6z n vista no i hão ; c pnr mais es-
iorços que fez, a voz não se lh(> soltava (la .^aiganta.
IJ. Alluiiso vendo-o, recuou, gemendo n'iiina ex-
clamação, que nau ha iidlexão capiíz de exprimir:
— " Meu piíi ! i>
Era o grito das eiitianhas, a verd.idciía d<"ir daoi-
phandadi'.
O alleres niór eiileiideu ; c lomandolbe o liraíjo
murmurem :
— " Ainda não. n
O princip(! não ouviu mais nada, e entrou preci-
pitadamente, seguido do» seu» cavaMeiros.
Chcg.iram á sabi (l'armas. No mesiiio instante »e
abria a porta de ciislanlioihcpeado, e uni mongu al-
to de corpo e grave (raspccio, Irazemclo ii cogula da
ordem de Cisler, adianlamlo se pura os(j(ie alli esta-
vam, disse :
— "Muito reverendos bispos, reverendo mestre do
'Icinplo, e prior do Jlospital, uUi dentro um mori-
I bundo deseja reconcilia r-se com Deus 'e com a sua
' Igreja antes de o tomar o transe d'agonia. "
I O monge era o abbade d' Alcobaça ^ e ao pronun-
^ ciar as ultimas palavras, um sorriso d'orgulho Ihefu-
, gia pelos beiços grossos e vermelhos, sorriso que logo
mudou de expressão apenas deu cora os olhos no in-
fante. O frade não se poude conter do primeiro so-
1 bresallo, e deixou que os mais observadores conheces-
j sem que não era extrema a sua alegria pela chegada
j repentina de D. Aflonso. Uma sombra dedesconten-
1 tamento carregou furtiva no seraphico semblante,
aonde lloj-eciam as rosadas e sadias c(jres dos deleites
I mundanos, em vez de se estampar a maceração e o
abatimento dos cilícios e jejuns.
Entretanto, pezar ou desgosto, soube reprimil-o
com arte. Approximou-se deD. Atlonso, aquém não
tinha escapado a mudança de phvsionoraia, e com ar
de profunda magua accrescentou :
— " Bem vindo, illustre infante de Portugal ! Deus
conhece a anciã com que vosso pai pedia .i \ ir^em.
pelas dores da Paixão, que o não levasse antes de vos
abraçar ...»
— uE por isso que só hontem me levaram aviso,
muito saneio abbade?" respondeu o príncipe.
— "Senhor da Maia, atalhou o frade, como quem
não ouvira a pergunta irónica, D. Sueiro Raimun-
do, ricos-homens do Douro e Minho, D.Sancho, pe-
la ultima vez, se quer despedir dos seus cavalleiros. "
E acompanhado do infante, dos muito veneráveis
padres em Christo, e dos ricos-homens, sumiu-se pe-
lo corredor, em quanto detraz dV-lles a porta chapea-
da se fechava, e os dois pagens voltavam a postar-se
aos umbraes. D. Aironsodeixou-os ir adiante, e ficou
atraz alguns momentos.
O infante pediu a Deus animo e resignação. Aquel-
le golpe esperava-o ha muifo, doia-lhe já havia me-
zes ^ porque a sepultura de D. Sancho não se tinha
aberto de repente. Dois annos compridos levou a mor-
te na viagem, trazendo-o pela mão até Ihemetteros
pes e lhe encostar a face ás paredes do tumulo, desde
então escancarado para o tragar. Agora a campa er-
guida, pizaiulo-lhe o peito, rangia descendo, e quasi
(jue ja lhe sulVocava as desfallecidas pulsaçiios do pei-
to. Martyrio atroz e sem nome! A mortalha vestida
110 cor[)o do homem vivo para lhe queimar na raiz
os desejos e as illusiles; para sempre vi"r osejiulcliro.
e ouvir de dentro d'elle a voz que o chama, mais de
perto cada hora, sentindo passar por cima do coração
o sopro regelado da morte, que lhe apaga n'alma a
luz da esperança, em (juanto o rosto foge da frieza da
terra que o ha de comer ! Um pií a escapar do mun-
do, aonde tudo o (|ue liça é saudaile, e o outro já e
sem remedhj a despenhar-se pela cova dentro!
Esta situação tão cruel de seu pai D. Atlonso co-
nhccia-a, e tremia d'ella. Mas eiiganava-se, ou cui-
dava eiiganar-se, suppoudo todos os dias afastado ain-
da o momento daseparação. Nos iiltiiiuis tempos, po-
r(''m, a moléstia correu, e a» horas loram minutos,
O iiinur costuma temperar assim o espirito, llludin-
do-o cmii a força de uma constância, que vem a lal-
lar só ([uaiido expira o anioriccido lume da vida no
qu(^ e o objecto delle. A esta ciisi' natural ibisgran-
des dores iiioraes deveu o iiilante osahntos (pie o ar-
rastaram al(- o leito de D. Sancho,
Durou o combati! interior ate darem de dentro o
aviso. Ao escutal-o todiís asduvidas mi desvanecer. iin.
() abbade tomoiio pelo braço, atravessaram duas ou
três salas ijuasi (escuras d'abol>iidas iiclialadas, mctte-
ram por uni eorreilor mais sombrio ainda, e pararam
diante do reposteiro d'arraz (aeitara ), (pie disfarçava
u entrada dos aposentos ruaes. O monge bateu de
leve, o reposteiro franziuse d'ulluab«ixo, c tranniui-
244
O PAWORA31A
r.erain oi umljraes. Era alli, im interior cia vasta qua-
dra, com os muro-) iiús «las preciosas tapetarias do
oriente que os enfeitavam d'ante9, que D. Sancho se
preparava para a tremenda jornada da eternidade.
No recanto da camará, Juliano, o notário da cú-
ria, a uma mesa coberta de panno escuro escrevia era
pergaminho as ultimas confidencias de elrei a seu
lilho. D. Sancho receou que a morte ainda corresse
mais do que a saudade do moço infante, e no mo-
mento supremo diclara ao notário e ao bispo de Coim-
bra uma carta, aonde, entre palavras de pai e sup-
plicas de homem, mais de uma vez se gravara o tu-
nho da vontade robusta de vencedor de Silves.
Defronte do leito, em cima d'um altar, estava um
devoto Crucifixo, trazido como rcliquia da Palestina
pelo conde Henrique. O sol poente, entrando pela
estreita fresta do aposento ia banhar de raios lumi-
nosos a imagem que, desjiregada dos braços, parecia
querer voar para o peccador arrependido. JSo lado
opposto, peidida na confusão das roupas, estirava-se
na parede a sombra do monarcha, desenhada vigo-
rosamente no escuro do fundo. Afigura de Juliano,
com a face encostada ao punho, alvcjando-lhe sobre
a garnacha preta as madeixas brancas, c o vulto se-
vero, e austero semblante lio bispo de Coimbra, com
■A mão esquerda no espaldar da cadeira doofCcial pa-
latino e os dedos da direita passados na barba, des-
tacavam na sua atitude melaucliulica do resto dos
grupos que os rodeavam.
O capello brunido, a cota de malhas e o montante
de D. Sancho pendiam dos muros. Despindo as ar-
mas e as galas de rei, o monarcha guardou só ura
habito pobre para seamortalhar. As faces encovadas,
os cabellos desgrenhados, e os olhos mortaes mostra-
vam que o corpo, extenuado de fadigas, não existia
já senão para padecer. Mas lá dentro velava ainda,
até chegar a sua hora, a grande alma do guerreiro
da idade media, resignada com a vontade de Deus,
despegada das vaidades iiumanas, e apertando a sua
< ruz sobre o cilicio da penitencia. A morte, que no
século actual assenta a cabeceira o liorror da duvida
e a ironia do remorso tardio, tinha n^aquelle as con-
solações da expiação. O afiliclo reclinava se no rega-
ço da fé, e a religião, adoçandolhe na bocca a es-
ponja do fel, com a vella da esperança na mãoallu-
miava-llic o terrível transe, aonde, depois do suor de
sangue d"agonia, a carne morre, e o espirito se li-
berta purificado pela dòr.
Se fosse hoje, os que vissem o monarcha portuguez
na humildade de um habito, enrii{uecendo do leito
de morte os mosteiros e as igrejas com a herança de
seus filhos, haviam di' exclamar : — .» A moléstia sec-
cou o braço, mas Roma matou o espirito, rei D.
Síincho. Depois de largos aiinos de resistência, tu,
ipie defendeste a coroa das invasões do audaz Inno-
cencio III, castigand<i com rigor selvageui a lemeri-
ilade de um clero, que se dizia só feito paradevoíar
a grossura da terra, decepado pelos terrores da eter-
nidade sentiste o joelho do clero esmagar-te o peito,
e, curvando a lesta ao estrado pontiliciu, na hora
extrema renegaste o documento da lua victoria ! ••
(iuando o infante entrou no aposento, o coinelle
os ricos-homens e alguns dos caxalleiros priucipaes,
o rei linha sido tomado de um desmaio. D. Aflbnso
■ IN isinhou-se da e.mia e pe^ou-llie no braço. 1). Sau-
iho ia tornando a si, e, abrindo o> olhos, fitava a
vista pasmada ora n'uns ora n'uiitros, sem conhecer
ninguém. A final abaixou-a leulamente p;ira ositio
aonde o filho estava ajoelhado. Aflirmou-se, duvi-
ilou, tornou a aliirmar-se, e meio levantado nocolo-
\ello deitoullie uiii braço ao pescoço, exclamando
com alegria :
— « Filho ! . . . filho da minha alma '. "
O infante não teve forças de responder. Eocoitou
a cabeça no hombro do pai, e reprimia os solutos,
que se istrangulavaro na garganta.
— .iJa me tardavas, Aflbaso, dizia o rei passan-
do-lhe os dedos pelos cabellos. Ia cuidando que não
tornaria a vêr-te, filho ! "
— «i Estava perto de Lisboa" raurmarou o príncipe-
O monarcha, virando-se para o monge de Cister,
disse :
— t> Não cheguei a vêrmeu pai — morreu um dia
antes de eu chegar. Emfim ouviu-roc Deus, ainda
tornei a abraçar meu filho ! — que peio se me tirou
d'aqui, Jesus!... .\gora, quando for chamado a
contas . . . e que estreitas contas, Senhor '. E porel-
le, e apontava para o filho. E pelos irmãos, é pelo
reino, é por todos, pur todos . . . Chego a duvidar da
salvação, padre ! c
— 11 Pois não vos haveis de salvar! redarguiu o
abbade. E peecado desconfiar da clemência divina.
O sangue da Paixão correu para lavar as culpas dm
que se humilham diante da face do Juiz."
— a Eu sei ! acudiu o rei com anciã Xão se me
tira isto d"aqui 1 "
— «E preciso tira-lo, tornou o monge. Sabeis a
historia do filho que se despiu para tapar a Dudei
do pai, p appareceu vestido de graça aos olhos de
Deus. A Igreja, esposa de Christo, é nossa mãi es-
piritual. Alli está — ajunctou, indicando o pergami-
nho— o que peza mais diante da sua misericórdia,
do que a vida do maior peccador diante da suajuv
tiça. »
O pergaminho era o testamento de Sancho I.
Um sorriso fugiu quasi imperceptível pela bocca
irónica do notário, que olhou ao mesmo tempo para
D. Affonso. O principe, carregando o sobr"olho, rcs-
pondeu-lhe com outro, que parecia dizer — u enten-
do ! "
Em quanto o monge pregava esta bella theoria
utilitária, D. Sancho esteve com a cabeça debruça-
da sobre o peito. Levantou a vista, depois, e por
muito tempo mirou o infante sem fallar.
— ií Es o retraio de tua mãi, Aftonso — suspirou
emiim — lotlo tu és ella, a bocca, os olhos , tudo, até
a voz parecP d'aquella saneia que eu perdi . . . que
nós perdemos, filho."
í Oh pai, querido p.ii da minha alma!"
— 1. Isto havia de ser por força, um dia autes ou
um di.i dejiols. E hoje . . . Aflonso, tenho que te re-
comniendar muita cousa. Estava-le escrevendo agtv-
ra. Teu pai pedia-te a esmol.i de o enterrares nn
humildade d'esle habito, ao pé da sepultura de teu
avô. "
— .illa de se fazer, » retorquiu oinfantc com me -
lanchuiia.
— «Aquelle manto e aquelle sceptro xâoser teus
por minutos. .. Deus sabe que os não choro, que
nem d*elles levo saud.ide». Tainl>em me ceguei com
essas vaidades, mas hoje! . . . não me enganam. N e-
rás o que são. Não se dorme n"uin travesseiro de es-
pinhos, molhado das lagrimas do povo, Afibnso . . .
Eu commettí peccivdos de homem, mas sobre tudo
peza-me das culpas e dos crimes ne rei. Tenho medo
da voi que ha de bradar por justiça com que lhe eu
faltasse ; horrorisa-me só cuidar que o sangue dos
que feri sem causa se levantará contra mim . . . Fi-
lho, teu pai as portas da iteriiidade roga ao herdei-
ro da sua corijaque lhe dè a pai da consciência. Af-
lbnso, da-me d'esroola com que restitua aos que of-
Icndi. "
As palavras crnm de supplica, mas o tom de voa
■era de quem manda e quer ser obedecido.
o PANORAJVIA.
245
— iiO^uanto el-rei disser será cumprido, volveu o
príncipe. Juliano, csntinuou virando-í>e para o no-
tário, é ess» o testamento? Lí-de. »
O testamento rezava de ricos legados ao» Templá-
rios e Hospitaleiros. U. Affonso approvou, dizendo
como para si : — "E justiça. Lá andam as lançadas
com os mouros na fronteira. "
Vinliara doações em dinheiro e terras ao mosteiro
d'Alcobaça. A parábola do venerável abbade de Cis-
ter estava explicada. D.Sancho despia o seu herdei-
ro para edificar mais uma casa aos eremitas do po-
voado. O infante franziu as sobrancelhas e carregou
o rosto, dizendo só — «adiante ! >i O abbade respirou
vendo pajsar sem gloza a sua importante verba.
Seguiam-se doações a D. Maria Paes Ribeiro, e
aos filho» que d'ella tivera el-rei. Liam-se finalmente
copiosos legados de castellos, villas, <lireitos reaes e
tbesouros aos irmãos legítimos do infante. A paciên-
cia foi vencida pela cholera, e o principe, com o ros-
to escarlate e a voz estridente, bradou :
— " Santa Virgem ! tluebram-mi? a coroa em
l)occados, repartem-ira, e dãome o maior por mer-
cê de nascimento? Enganaram-se ! Não a hei de re-
ceber senão inteira como a deixou meu avô, e meu
pai a trouxe. — E virandose para l). Sancho, cada
vez mais acceso em indignação ;■ — (iuantos reis fa-
ieis aqui em Portugal.'' Em Alemqiier é a rainha
D. Sancha ^ em Montemor é a rainha D. Thereza.
Villa do Conde a 1). Maria Paes! Os maravedis de
Thomar, de Santarém e de (timbra pspalli.uios ao
vento. . . O rei que morre corta o braço direito ao
rei que tica, deixa-o pobre. . . oh ! estes monges, es-
tos monges ! Não, isso nunca em quanto eu me cha-
mar Aflbiíso. »
O ciume do poder real, origem depois das conWMi-
das civis enire 13. Allonso e siiiis irmãs, a(al)ava de
se descobrir em toda a força. 1). Sancho escutou em
uilencio as primeiras palavras do infante :, depois gra-
dualmente se lhe animaram as feições, - a linal fuzi-
lou nos olhos mortaes a faísca d'aqnella ardente cho-
lera, que os mais valorosos tremiam (Farrostar. Seií-
tando-se com Ímpeto no leito, e fechando o punho
coín furor, exclamou em voz fraca mas distincta :
— " AUbnso, D. Aílbnso, quem é aciui o rei ain-
da ? ..
Tinha razão. A cholera galvanisára um mominlo
I) cadáver. Era outra vez O. Sancho 1 antes de o to-
mar o terror da morte e de se arrastar nas cinzas da
penitencia. Era toilo aqiielle soldado de Silves, <|ne,
«nitrando pela mina a golpes d'acha, estalava oeora-
SSo das rochas. Era di! novo aqiielh- rei, f|ue, arran-
cando pela ni.To dos saiões os olhos aos cónegos de
(timbra, com o sangue (rillcs <'scriplo, atirava um
cajtel arrogante á liara papal de InnoceiKno 111.
D. Allonso, |)ori'm, tinha nascido iíllio craipulh'
pai. Dl! caracler mais eoiicenlrado nos lances exln^-^
mos, era tanto ou mais iiidcimavrl cpie o próprio San-
cho I.
— 41 Agora o rei sois viís! cl.iniou o priiici[ie, res-
]>unileiidi> á piírgiinla ameaçadora do monarcha. E
oxalá que Portugal não tenha outro inriitd tempo.
Em quanto assim for sois o senhor, o inianic nem
vè nem ouve. ><
— "D. inhinte!" bradem Sancho com ira.
— i. Mas o r(M D. Allonso, continuava o filho,
qiianilo pojiT a coroa na <ab.'ça ha ile põ la inteira,
ou nfio a põe. Hoje mandais víís ^ «ois rei, <; o pri-
meij-o u obedecer sou eu. Desgraçado ilo que áma-
idiã me não fizesse outro tanto. . . u mim ! "
Era um.i resolução inabalável também. D. San-
cho conhecia di^ mais o infanli!, (|ue nenhuma força
ou temor o abalava. Por Íhso, c por({U(' la denlro lhe
dizia a consciência que, 5e o irmão peccava, o rei de
Portugal fazia o que eile mesmu tinha feito, D San-
cho mudou de tom :
— «Oh Aironso, (|ue não sejas, que nunca foises
irmão de teus irmãos! Deus sabe com que dôr aqui
09 levo atravessados — e apertava o coração coin ma-
gua. — Elle te não castigue nos teus filhos. -<
— "Como rei não conheço senão vassallos. •?
E caiu tudo n'um silencio constrangido. Passado
breve espaço o rei ergueu a fronte, e aJ'inctou com
tristeza :
— «E os outros, Aftbnso, os outros que também
sãu irmãos? «
— uOs filhos de D. Maria Taes ? .>
— "Deixo-lhes honra e riqueza, mas comigo per-
dem o que se ião suppre . . . Alloiiso, tu és seccode
coração :, mas pelo amor de tua mulher, pela ventu-
ra do teu Sancho, avalia nas tuas entranhas de pai
a minha aftlicção — dize-me, quando eu faltar has
de ser o pai dos meus filhos?»
— "Pela cabeça do meu Sancho^ e pela alma de
minha mãi o juro, senhor.»
— " Não faltas a esse juramrínto, bem o sei . . . ao
menos a respeito d'elle5 morro descans.vdo. »
A pallidez do rosto a cada instante se fazia mai»
livida. Os olhos sumiam-sc, e a respiração era curta,
preza e rouca. Mirou muito tempo pela fresta como
quem se despedia do céu, das llòres, e das aguas do
Mondego. D'ahi, virando-se para Sueiro Ravmundo;
disse com melancholia :
— "N'um dia como este lomei Silves. Não bole
folha ! (Alie saudade faz isto? (iuem me havia de di-
zer que aquelles cercos e combates haviam de vir a
parar n'islo .' »
E olhou outra ve/, com maior tristeza ainda.
De repente arredou a vista, e como por um gran-
de esforço murmurou : — «Cerrcin-me aquella fres-
ta I »
Depois, asseienando, armou-sede resolução e disse :
— ii D. Allonso, filho, um abraço! — e mais bai-
xo:— rei moço, não te cegues ; toma exemplo de
mim. (juidado com a velhice, com as contas finaes.
Adeus, filho. E uma viagem, Sueiro Itavmuudo.
Supponham que fui á Terra Sancta e me demorei.
Meus cavalleiros, o rei que fica pagará as dividas
(jue deixa o rei que morre. >i E tornou-lhe a mesma
tristeza,
— "E escapar eu ao cerco lie Santarém! Não ha-
ver uma setta que me varasse em Silves . . . Era me-
lhor do que islo ! »
E que D. Sancho, filho de um soldado, acalentado
110 escudo pali^rno pelo embate das armas, chorava
(icla morte do guerreiro. Uni peíjucno espaço estev«>
assim, e, cruzando os braços, exclamou suspirando:
— " i"'aça-se em tudo a vontadir de Deus!»
E cerrou a» pálpebras como (|uem não queria \èr
mais nada. lUiia sezão do febre, e com cila oilclirio,
arrancavam Ihc' palavras soltas e incuherentcs, como
de Ihuiiiiii (|ui' adoece mais irafllicção moral do que
das dores |)li_vsicas. A idea da orphambule dos filhos
vullava Se como um espinho a rctalhar-lhe ocoruçào.
— " hevem essas creanças :, seu irmão que as não
veja . . . olhem o inianii- ! . . . Digam ao senhor pa-
pa . . . oh Allonso ! . . . »
Diqiois, passando repentinamente a outras lem-
branças, fechava o |)unlio, eestorcia-se ciun violência
na cama.
— «i Esses monges eu os ensinarei ! . . . oh, bispo
do Porlo, liào fazes liiuii em roç.ir a iiiilra pelo lueu
elmo, pôde» parti-la I . . . Esculem ! ii'ai|Uella ccrvi-
Ihcira ha uma malha ilescaiiln . . . .Ajiinetem o fio A
acha irarmas ; está embotada iraoucllas ruclins do
246
O PANORAMA.
Silves... sellem o cavallo murzello . . . vamos; é
menos que uma caçada de javali! »
A uni signal do pliysico ou medico saíram todos,
menos o bispo de Coimbra. O infante nem mais pa-
lavra proferiu. Enfiou salas sobre salas, até ir assen-
tar-sc em uni escanho, com o rosto entre as mãos.
Fallavam-lhe não respondia, tocavam-llie não sentia,
nem a voz amiíça do seu eoliaço Egas Lourenço o
acordava daquella apatbia, O sol escondeu se detraz
(los outeiros, as trevas apertaram até cerrar com a
noite, e elle sempre do mesmo modo. A lua abriu
cedo, e uma golpliada de luz branca veio tremer um
pallido reflexo na armadura do príncipe, pendurada
nas paredes. A pouco e pouco o sentido do ouvir foi-
se despertando. Julgou distinguir atoada dasorações
da igreja na agonia, cuidou escutar o dobre lunebre
dos sinos de Saiicta Cruz:, imaginou percel"r o cbo-
rar de muito povo. mas confuso tudo, esvaído, sem
ler força para se mover d'alli, ou animo, ao menos,
de olhar pela janella fronteira.
A final empurraram aportado seu quarto, e, sem
saber como, o infante deu por sie>tacado nonn-ioda
casa. Caíram-llie as névoas dos ollios. Aljaixou a vis-
ta, e achou ajoelhado diante o mordomo da Cúria,
que, entregandolhe o annel do seu pai, soluçou suf-
focado :
— 4(Aqui está, senhor rei, o sello do reino."
D. Afionso recebeu o annel. fcluando o passava no
dedo entrou pelo aposento uma como fumarada de
vozes em canto religioso, e o sino dacathedrai bateu
uoia pancada lúgubre. O príncipe estremeceu, e, le-
vando a mão ao peito, acenou ao mordomo da Cúria
que se podia retirar. Apenas elle saiu, desafogando
nos braços de Gomes Lourenço, D. Afionso excla-
mou a chorar :
— «Ai Egas! sou rei, roas rei sem pai!»
SoBBE O TKAEALUO.
JÁ ninguém hoje duvida que o trabalho é o meio
único com que a 1'rovidencia dotou os homens na
sociedade para satisfazerem suas necessidades, aecu-
mularem bens, e serem felizis. Os povos que mais
adiantados se acham na carreira da civilisação co-
nhecem isto perfeitamente i o rivalisam entre si so-
bre o emprego das suas forças pliysicas e intelle-
cluaes para obterem os productos agrícolas ou fabris.
Os governos mais esclarecidos lêem tomado uma
parte activa no desenvolvimento d'este principio fe-
cundo : tractam de proteger e honrar o trabalho, ga-
rantindo o direito de propriedade, animando a asso-
ciação das intelligencias e dos capitães, excitando o
génio a novos inventos, preservando as industrias
menos adiantadas de uma ampla loncorrencia que as
aniquilaria, e linalmente acabando com as classifica-
ções odiosas da antiga sociedade quando u trabalho
era votado ao desprezo, e a indolência ou a rapina
títulos recouinjendaveis.
Mas do grande desenvolvimento d'este principio
nasceu a divisão do trabaWio. Nos antigos tempos, o
cultivador de uni prédio rústico não somente fazia
os instrumentos agrícolas, mas até l.ibricava os teci-
do<i do (jue elle e sua família careci.im : o vestuário
o calçado eram igualmente feitos em sua casa. Esta
reunião de trabalhos ditVerentcs ainda hoje existe em
maior ou menor estala nas pequenas localidades. ISas
grandes povoações, porem, ou nos grandes focos de
producçâo fabril, a divisão do trabalho achase esta-
belecida de maneira que um individuo ja muitas ve-
ies se não appliea a uma industria, mas a um ramo
ou a um trabalho especial d°i-lla.
A divisão do trabalho tornou-o mais productivo.
foi um grande passo para o bem estar e civilisação
das sociedades, mas por outro lado deu origem ás
pretenções de classe — muitas vezes difficcis de «e
conciliarem. l'arece que as diflereiítes industrias não
são corpos de um exercito creador, mas corpos ini-
migos e destruídos uns do3 outros. Todas fazem va-
ler a sua importância, todas querem favor e protec-
ção : e querem be.-n, porque favor e protecção lhes
são devidos. Mas como ! Deve-»e por ventura a be-
neficio da industria agrícola sacrilicar os interesses
da industria fabril, ou vice-versa? eis a grande ques-
tão.
Assim como da divisão do trabalho entre os indi-
víduos resultou considerável incremento de produc-
çâo e de bem estar entre as nações, assim também
alguns economistas entenderam que esta divisão de
trabalho se deveria estender as nações : que umas de-
veriam exercer exclusivamente em grande escala a
industria agrícola, em quanto outras a industria fa-
bril ; e por isso propuzeram a ampla liberdade do
commercio. Este svstema, na verdade bello e liuma-
nitarin, e para o qual a primeira nação industrial
da Europa acaba de dar um grande passo, não nos
parece inteiramente adoptavel, e muito menos para
as nações pouco adiantadas nas ditferentes industrias.
Nem temos por conveniente que uma nação essen-
cialmente fabricante despreze os meios de fazer pros-
perar a sua agricultura, tornando a sua subsistência
em grande parte dependente da abundância das co-
lheitas dos outros paizes, nem nos parece acertado
que em um paiz essencialmente agrícola se despre-
zem os meios de fazer prosperar a sua industria fa-
bril obrigando quasi toda a sua população aos traba-
lhos agrícolas, e trocando os excedentes do consumo
interno com as manufacturas estrangeiras. A indus-
tria agrícola demanda um determinado numero de
braços, pela maior parte das classes inferiores da so-
ciedade, e não é como a industria fabril cujo desen-
volvimento e variedade de producçâo podem ser in-
finitos com o auxilio das machinas. Em que se po-
derão pois empregar grande numero de braços que,
ou não são aptos para os trabalhos agrícolas, ou não
são necessários? E evidente que segundo este svste-
ma, adoptado sem modificação alguma, considerável
numero de pessoas que pertencem á classe media te-
riam de emigrar, ou de morrer á miséria, que uma
nação meramente agrícola se tornaria em poucos an-
nos um aggrcgado de aldeias e pequenas villas, que
as cidades ficariam quasi desertas, c que a civilisa-
Ção retrocederia consideravelmente.
Já que não é possível que todos os povos sejam re-
gidos pelas mesmas leis, formando uma única fami-
lia, já que as nacionalidades crearam interesses pe-
culiares a cada paiz, é forçoso convir que os-rovernos
devem simultaneamente animar tiidas as industrias
que promclterem bom resultado.
A industria agrioola exerce uma considerável in-
lluencia no bem estar das nações: o seu desenvolvi-
mento traz cotnsigo o emprego de grande numero de
braços, e o barateamentu dos géneros mais necessá-
rios á vida', sem esse desenvolvimento nem a popu-
lação augmcnta nem é possível nielhorar-se a condi-
ção das classes jorniileiras. A agricultura tem pois
direito á sollicitude dos governos: é innegavel que
ella entre nós prosperou nVstcs últimos tempos a
sombra das leis que a libertaram de pezadissiroos
impostos e alcavaias, mas lambem c certo que esta
ainda muito longe do que pode vir a ser. O derra-
niamente de conhecimentos agrónomos sobre proces-
sos e instrumentos mais simples e perfeitos — a cons-
trucção de pontes eestradas — a auimação da iodus-
o PANORA31A.
247
tria fabril e do commercio interno eão a nosso vêr
condições essenciaes para o desenvolvimento da agri-
cultura.
Os processos e instrumentos agrários quando mais
simples e perfeitos ecuiiomisani tempo e despezas, e
podem taniljem concorrer para a mellior qualidade
da pro(iuc<;ão. As buas estradas, e em geral as boas
vias de coiiiiiiunicação facilitam o transporte dos gé-
neros aos grandes mercados, baratcam n^estes o seu
custo, e acabam com o i^ulamento das p<)Voa<;Ges tão
fatal á sua riqueza como á sua civilísação. A indus-
tria fabril, crearido proJuctos necessários ao cultiva-
dor, e muitas vezes ale para a sua cultura, favorece
por outro lado a venda dos prcjductos agricolas nas
localidudes. K o commercio, tractaiido de colher das
localidades o excedente do consumo para os grandes
mercados, doestes llies leva o dinheiro e os géneros
que lá se não produzem.
Se lançarmos os olhos sobre os principaes estados
da Kurupa, veren.os que em toda a parte onde a in-
dustria e as .relações commerciaes prosperam a agri-
cultura vai em progresso, e que pelo contrario esta
definha n'aquelles paizes pouco adiantados na indus-
ria fabril, e que teem difficeis meios de communi-
cação para o commercio interno. Vemos pois a In-
glaterra, a 13elgica e a França serem os paizes mais
bem cultivados^ ao mesmo tempo que nailespanha,
na Itália e na Rússia, onde a industria fabril está
pouco desenvolvida, a agricultura acha-se ainda na
sua infância, não obstante, note-se bem, ser o solo
da llespanha e da Itália muito mais fértil do que o
da França e Inglaterra.
A iniluencia da industria fabril e do commercio
sobre o desenvolvimento da agricultura pode ser de-
monstrada até á evidencia. Figuremos uma aldeia
com terras ferlilissimas no centro de um paiz agrí-
cola, e sem relações commerciaes, ou por estar mui-
to distante dos grandes mercadcjs, ou por se achar
quasi incommunicavel com elles por falta de estra-
das, lista aldeia não produzira nem tractará de pro-
duzir senão para o sustento dos seus nuiradores.
Rias estabeleçamos n'ella uma fabrica, levemos-llie
'|Uatrociuitiis operários, veremos como cada cultiva-
dor tracta de melhorar a» suas culturas e de obter
mais do que até enião alcançava, eslimuladu pela
esperança de poder Vc;ndi'r com lucro os seus produ-
ctos. Além de que a accumulaçãodos lucros purmitti-
rá ao cultivador fazer os avançcjs necessários e tirar
de suas terras lodo o partido possível. Ks(! em logar
da fabrica se abrir uma bua estrada para uma cida-
de ou villa marilima, ou mesmo para algum grande
mercado no interior do paiz, vereis como ocoinmer-
<:io irá procurar á aldeia, até então isolaila c desco-
idiecidn, os producto» quu lhe sobrarem do seu cun-
Hiimo local, ievandolhe outros de que alli carece-
rem : e esta nova |>rocuM lerá o mesnui resultado
qu<! o estabelecimento da fabrica. Assim, se quereis
<'nri<|Ui'cer um paiz agrícola, dai-lhe coiisnmid<ircs,
daithe fabricas, e abri n'elle boas estradas para a
livre (! facll circulação dos priiductos.
Por outro lado, a industria fibril ib^pi^nde lam-
bem multo do desenvolvimento d.i agriíiiltura e do
commercio. Aonde a agricultura prosjierar, o» géne-
ros da primeira iu'cessidade serão baratos i as mate-
rijis primas custarão iiuuios, os »alarios serão meno-
res, e os operários, senilo mais robustos, Irabalhiirão
mais. INJas sem a iiilcrvenção do comiuereio, a indiis-
Iria labril não poderá iiiinea subir de ponto, muamo
dada a favorável circiimstaiiitia do desciivolviíuiMito
da agricultura : os simis proiliiclos, (piaiido vendiílos
só na |oeidida<le, serão iniMunpariivelmenlo menos
importantus do ijuc quando [lossum ser levados com
vantagem dos diSerentes mercados nacionaes e es-
trangeiros.
Finalmente o commercio para poder prosperar é
indispensável que também prosperem a agricultura
e as fabricas, por quanto sem productos agrícolas e
fabris não são possíveis as trocas, e sem boas vias de
commuiiicação tornam-se ellas mui dilficeis entre as
diUerentes localidades pela excessiva despeza dos
transportes.
Km suniina, a industria agrícola, a industria fa-
bril e a industria commercial ligam-se intimamente
como parti-s do mesmo corpo. Se uma vai bem, as
outras [)rosperam, se uma vai mal, as outras sofirem
também. Kstas três industrias são igualmente neces-
sárias, igualmente indispensáveis [lara o bem estar
do paiz; e assim não devem ser consideradas e tra-
ctadas como inimigas umas das outras, mas protegi-
das com igualdade, porque todas concorrem para o
grande fim da feliridade das nações.
m.vciiina infeknal dirigida co.vtra
Saint-Maló.
Km 1G8.3, querendo a Inglaterra vingar-se das enor-
mes perdas que os corsários de Saint-iMaló causavam
ao seu commercio, projectou destruir completamente
esta cidade. No mez de novembro chegou uma es-
quadra á vista da costa, e para desviar as suspeitas
fingiu ao principio querer só fazer um bombardea-
mento. Deixemos fallar um correspondented^um jor-
nal d^atjuelle tempo (o IMcrcurc yclnnt).
u Como os inimigos viram que as bombas não fa-
ziam nenhum elléito, resolveram fazer rebentar no
dia 2'J contra a cidade a mais horrível machina de
que jióde haver noticia. Kra um navio novo e fabri-
cado de propósito, que pelos destroços parece ser do
porte de (|uarenta toneladas. Kste navio estava cheio
de toda a qualidade de fogos d^artilicio, de grandes
massas de alcatrão, pez, resina, palha picada, e toda
a casta de matérias combustíveis, de mais de qui-
nhentas bombas e carcassas', e tinha quatro buracos
redondos, próprios para vomitar para todos os lados
h)go e bomba», de que ficaram para cima de tresen-
las sobre a areia da praia, bem atacidas de pólvora,
sem terem causado muito damno. Este grande navio
foi trazido arelioi|ue, |)ela ineia-noite, estando amu-
re cheia, porlris lanchas inimigas atéjunctodos mu-
ros da cidade o da porta de 6. Thomaz, defronte do
castello. Algumas sentínellas de fora da cidade bra-
daram para o forte e para a ciilade, mas antes que
la chegasse o aviso bateu a machina felizmente n"uiu
roí hedo a tiro de pistola da« nossas muralhas. Al>riu
com a pancada e pegou-lhe fogo mais cedo ilo que os
inimigos desejavam. Kstavani umas cem pessoas em
casa lie Mr. de Chaulnes. A priiiu'ira cousa que se ou-
viu foi uma bomba que os inimigos ilispararam para si-
gna! ou |iara o cpier ipie fosse. Todos estavam alten-
tos a viír ondí! a bomlia cairia, quando de repente,
c(imo se voassem dois ou três armazéns de pólvora,
sentiu se um tremor seguido do estrondo o mais me-
donho i|ue ser podia. Pensamos <|ne a casa se despe-
daçava, lin fogo pavoroso entrou portodas asjanel-
las das salas com estilhaços desj)i'didos com tal luria
«pie (|iieliraram vi<lros <• arrombaram madeir.iinenlos
com um cslrepitode que não se pode fa/eridca. De-
vAra de conter jiara cima de seiscentas e oitenta ar-
robas de pidvora esta machina, que estava abarrota-
da dc! mais d(í «el('<'enlaH bombas ou carcassas, e de
mais de cem barricas di' tmiiposíçrics di> toda a sorte
de arlilieíos. Só a parte dianteira do navio, qiic ^o
voltou para a banda do mar, chegou n rebentar. ••
248
O PANORAÍttA.
í^e não fosse o feliz acaso qiie fez naufrajar o na-
\io, ficava a cidade qiiasi toda destruída. Mas só a
duH» ou três ea^as furam pelos ares os telhados; nem
um só homem morreu da banda dos francezes, em
quanto que a perda dos inglezes foi orçada em loO
liiiuiens, que compunham a guarnição das lanchas
que tinham rebocado o iiavio. Entre os mortos foi
encontrado o engenheiro inventor da terrível maclii-
na ; era uni refugiado, por nome Fouriiíer, natural
'la Rochella. (J duque de Chaulnr», que governava
a praça, depois de se ter certificado do pouco estra-
go cdusadif pela explosão, mandou passear por toda a
<idade três prisioneiros inglezes para que vissem que
nenhuma casa caíra por terra, e por fim maii{iou-os
(lara Jersey, aCm de contarem aos seus compatrícios
<■ que tinliain visto.
Os inglezes empregaram, sem melhor resultado,
uma inachina (|uasi similhante contra Dunkerque.
I Julien traduziu do chim algumas noções acerca d'e5-
I te povo, que por tal modo ficou sendo mais conhe-
I eido. A nossa gravura indica um habitante da Bu-
I kharia Menor no seu trajo habitual. — .\s raparigas
solteiras d'este paíz trazem os cabellos pendentes pe-
i las costas abaixo, repartidos era dez tranças; porém.
I um mez depois de casadas os desatam, penteam-n'os
' e deixam-iTos lluctuantes, amarrados n"um raolho
por duas largas fitas de seda, com borlas nas extre-
t inidades, que cáeiíi até os calcanhares ; as solteiras
^ iiitresacliain as tranças com pérolas, pedras finas e
I coraes : as pobres e as que andam de luto as embru-
I Iham com uma facha de estofo azul ou verde. — Os
homi lis não entrançam o cabello em forma de rabi-
■ cho, ao modo chim, nem rapam as barbas e suissas \
fnrtain só os bigodes para comer e beber mais com-
i Miodamente : as suas túnicas têem jolas compridas e
niaiijas estreitas, e prendem do lado esquerdo a ro-
|da doeste vestido ; de inverno usam barretes de pel-
les ; pas-,ada a estação fria cubreiii-»e com um tur-
; baiite pontagudo de feltro vermelho com bandas al-
tas de seda por diante eatraz: calçam sapatos ou de
sola ou de marroquim encarnado com saltos de páu.
Os turbantes dos padres são de tela branca, estofados
de algodão ; quando os leigos encontram algum d"es-
tes sacerdotes não costumam prostrarse na presença
d'elles : diante de tndas as auctoridades e dos anciãos
I cruzam as mãos sobre o peito e curvam a cabeça;
quando se encontram pessoas igiiaes saudam-se reci-
procamente com um osculo na bocca. Depois que o
I Tiirkctan está sujeito á China, os habitantes para
! ciiniprimentar '|uae«qiier magistrados chins ajoelham,
e perguntam-llies pela saúde : diiem que os veneram
como o sol e os deuses.
A Iíli.iiaki.v Menor, ou Turkestaii china, é das re-
giões da Ásia central até ao presente menos explora-
da pelos viajantes •■uropous ; a sua historia é quasi
desiMMihecida. Sabese que reduzida em 17J8 a im-
plorar o (Totectorado da China, desde então se tor-
nou Iribiilatia c a final súbdita do império celeste,
liin IHiT foi agitada por uma robellião violenta,
i(ui-. couitudo, pance jião tivera coiise(|iiencias im-
purtjinlcs. Confina pelo poente com o Tiirkestan in-
itepciídonle. pelo sul ciun o Tliíbel e o Kabiil ; tem
ao norte a Dzuiigaria c a lo>te a China. l)i\ide-se
em lie?, prouiicias governadas por priíu-ipes hereilita-
rios, vassallos lia China ; tiMii di- população qimsi dons
milhòi-s e meio <ralmas. pela maior parte de orijem
lurca e que professam n isjaiiiisino Mr. Kstuníslau
MeTIIODO IMUA DISSOLVEK * UOMMA-HC* ÍCA
I APPLICAijÃO AOS TECIUOS I .VI rEBM E A V FIS .
Mn Lemcre de Normandy obteve um privilegio, em
Sd^abril delS4o, para usar d'este methodo, que con-
siste em derreter a gomma-laca ou antes a laca em
escamas n'uma solução de cinzas de soda ordinária.
.\ cada três e meia arrolias de laca junfam-se 317
canadas d^agua, em que e~tejam dissol»ídos M arrá-
teis de cinja de soda. Depois de lerver ci)a-se por um
panno grosso, e jmita-se ú laca dissolvida iraquelle
liquido certa porção de acido sulphurico. .\ Uca que
if separa da di-solução, na forma de massa ou papas,
derrete-se para depois sl estendi-r sobre o tecido que
se quizer tornar impermeável. Taml>em se yóde em-
pregar como grude para ligar peças de madeira e ou-
tras materiaps.
<f aiiclor indica como um bom dissolvente da laca
uma substancia conhecida pelo nome deo/<o di bnla-
<(|5 fhiiàralo (/f pi-iitoxidit itr nrniyla K produzida du-
rante a distillação do ulcoul d.ts balatas.
.'IlrfKri. ,.f paUnt initnt.)
KosTo a rosto ofloreioinos a verdade a quem for nos-
so igual ; a um senhor, so de perfil.
, l']log. de La Fonlaitu. Trad. Jt F. tUysio.)
De hoje cm dinuir iamlvm se x-cndc rnttima parac*-
If jornal na lojii Jo Sr. João l'iUilo MaHins iocotío,
oiitiifo eaij-ciro i/o >SV.* / iiirn //iiiiíi/nrs, csiabclecido
na rua Auyiisia, n." 8. — .lí corrispondcneia e quan-
ijftcr leclama^tet fHidem dirigir sr li referida kja.
32
o PANORAMA.
S49
CHALONS SOBRE O SAONE.
Saíise (que ic pronunciu sí<;ií) c um rio da Kraiuja
que tem sua orijçein no monlc- de \ os^o, rogaosde-
parlamcntos do Jura e do Allo-Saònc, separa o do
lUiodaiio do de Aiii, (•■ juncla-so ao lUiodano abaixo
deLyuo, na exlrciiiidaíli; do uma península, (|U(: te-
rá d<r eompriniento meia légua, liordada de eiioupos,
e famoia pela tenaz ri'sisteneia da niocidadt' lyoniMi-
se, que se aeliava entre três fogos do ext^reito silia-
dor em ÍÍD de setembro de 17S)J. listo rio, ([uo leva
as agua» mansamente, comeea a ser navegável em
Port-sur-SaAn<í : o canal <|ue o juneta com o lioiru
atravessa o departamento dononiinailo do SaAne e
lioire, I) i|ual conta perto de quinhentos mil habi-
tantes, e lai seu principal commercio em trigo, pa-
lhas, gailo \accum, e vinhos; d"estes us cpii! produ-
zem certos territórios do MAconnais são os mais esti-
mados ; porém apenas larão a centésima parle dos
vinhos ipie em l'ai'ís se vendem com onomede.Mà-
connais. liste departamento oceupa a parle meridio-
nal da liorgonha, e uma das rineo subprefeiluras em
iMie se divide é CliAlons, cidade ipie a sua situa^'ãu
laz grandemente commereianie ^ por acpii sáirm os
p.irisienses não só a negociar, mas a viajar pelo cli-
ma mais agradável ilo sul da l''rani;a, ipii' já em
< 'hàlons se iipmeia a <i)idii'eer suHicienlenieiiti' ■, por
aqui tambrin muilus tomam caminho d'llaiía ; mais
ihí trinta carriiagiMis publicas o muitos barcos de va-
por transportam diariamiMite nov<'Contas pessoas, ter-
niii médio; o camiidio do ferro <!•! l'ans a livào de-
Ne intluir muito n<> augnuMilo do numero. Os arre-
\oL. I. — OiTuuiio '2, 18^7.
dores de Chàlons são fírteis, de campos bem cultiva-
dos, e d(! maltas abundantes, cobertos em grande
parte de vinhas, conhecidas de tão remota data n'e5-
te torrão ([ue se refere ser o districto, onde o impe-
rador romano Probo, repartindo como vencedor o
terreno das Gallias entre os seus soldados, mandara
plantar videiras, de que os bárbaros não tinham no-
ticia. lndepeiident<' do trafico dos géneros da terra,
o porto lluvial ilo Chàlnos é como um armazém de
deposito entre os dois mares: a(|ui chegam os\inho5
do Heaujolais, do Rlàconnais, do Languedoo, <|U0 se
embarcam depois no canal que une o SaOne ao Loi-
re começando em Clullons ; aqui vem ter igualmente
grande <|uantidado de ferro das forjas da Uorgouha
e do Franche-Comté ; com toilo este movimento e
prosperidade mercantil, a cidadi» não possuo odilicio»
ou monumentos dignos de contempla(;ào.
OníO > K1.1IU .\Xo 1AM,A.
(Komance Histórico)
11
,7 lot i/ii /)(ii'o n«in ttnii>>r » (r »'"i '/<' /Ji ii<
Tnts dias perunineceu silencioso oalcat;ar; lio ipiar-
lo o novo rei, no esbelto and:ilu/, utriivcMou nciíla-
250
O PAN011A31A.
de trazendo sobreveste d'almafega em cima da cota
de cavalleiro, como signal de lucto. Os que o se-
guiam comjiuiiham-se ao seu exemplo, e segundo
sempre acontece, por demazia de zelo faziam do lue-
lo e dòr uma espécie d'arremedillio, exaggcraiido-os.
Os lionicns da rua, assim chamavam então a fjuem
não procedia do linliagcni nobre, concliegando os man-
tos escuros, e apertando a cinta em redor do saio,
diziam entre si :
— "O fjuo haverá lá fora? Serão corridas de mou-
ros ? Ha no reino levantamento de ricos-homens ? >'
E acotovelavam-se, beliscavam-see pisavam-so, avul-
tando já em alguns a gordura succada, as roscas pe-
gadas do duas barbas, e a veneranda rotundidadede
um ventre escrupulosamente municipal.
l'or felicida'le (rdles não havia ainda na terra
portugiicza rebellião, guerra e fome. Os porlagciros
cobravam sem novidade á entrada de Coimbra os di-
reitos reaes com a proverbial mansidão de lobos en-
tre ovelhas. Os que haviam do sair no appellido
(chamamenio ás armas) por foro da cidade, não ti-
nham recebido aviso; o muito satisfeitos estavam
d'isso, porijiie três annos bastaram para não caberem
nos seus lorigões de couro cru.
— "Mas que novidade era esta? perguntavam el-
les aos cochichos, ou em voz baixa. Por que sáe el-
rei tão cedo?" Elle s() e os anjos é que lho j)odiam
responder. Mas nada obstava a cada qual aventurar
as mais extravagantes conjecturas, gizadas na areia
com um convencimento digno das maiores verdades.
Se elles adivinliassem ou se atrevessem a escutar
o que ia conversando o moço rei com os seus caval-
leiros, caíam das nuvens, ficando menos mal curados
do arrojo das suas imaginações. D. Aflbiíso partia
pelo motivo mais simples do mundo. Maguava-o
aquelle eastello, aonde perdera seu pai, e determi-
nando demorar alguns dias a ceremonia da coroação,
desejava ajjprovcila-los em se distraliir fura de Coim-
bra. Já se vé que nada havia mais natural.
l'ois, arriscasse alguém esta explicação aos honra-
dos burguezes, o saberia que S. João Baptista não
se fez debalde advogado das cabeças quebradas. O rei
sair so a passear . . . ora es^a ! Pois era a verdade. O
rei sala a passeio, e nada mais.
Depois d'elrei passar, uma scena frequente nos cos-
tumes da meia idade veio distrahir a attcnção dos
populares. O espectáculo era próprio para lhe lison-
jear os inslinctos, e satisfazer as crenças religiosas,
vivas e ardentes, n*unia epoclia em que a politica
do olero consistia em li'as saber entreter e exaltar.
Tractava-se de um acto de justiça popular. O po-
vo era juiz e parte ao mesmo tempo. l'm judeu o
réu ou a victima.
O caso succcdeu assim.
Havia annos que D. Sancho I tomara para the-
soureiro Mestre Zacharias 2>uleima. O rei morria
por encher as arcas de maravedis de ouro e prata, c
o judeu suava agua c sangue por lhe agradar, acugu-
lando-as. lestes serviços augmentaram o seu valimen-
to, e com o valimento principiou a vér-se de mais
perto a obscura pessoa do honrado thesoureiro. Até
alli tinha andailo rente com o clião, e o agrado real
animou-o a levantar a cabeça. Entregaram-lho a ad-
ministração de todas as rendas e terras do rei cm
Coimbra, e o seu zelo fiscal, se é possível, ainda ex-
ceileu as esperanças que n'ellc depositara o seu illus-
Ire protector,
Mestre P^uleima unia á raça dos criiciticadores o
sangue africano de uma furmnsa moura, que seu pai
(que escândalo I) ás barlias da synagoga elevara da
abjecção de escrava á graude/a invejada do sou pre-
cioso thaUimo pharisaico ; e o virtuoso Zacharias era
o fructo único dos amores conjugaes da bella Eicha
com o rabbi Judas.
Até aqui optimamente. Mas o mestiço thesoureiro
real parecia-se muito com um tlagello para não »er
cordealmente aborrecido. Se as arcas da coroa incha-
vam é bom saber que as bolsas dos populares achata-
vam á proporção. Os reguengueiros, tosados pela de-
salmada tesoura, queixavam-se de que ella lhe entra-
va já pela pelle. N'isto é queoSr. ZachariasZulei-
ma andou mal, como a experiência veio a mostrar.
Não resistimos á tentação de retratar o agiota do
século XII, muito semelhante em tudo aos lobos cer-
vaes d^agiotagem no século \IX ; porque atravez dos
tempos e das distancias o seu parentesco perpetuou-
se intimo e nunca interrompido. .\ dynastia dos
miUionarios é a mais antiga dynastia do mundo i
renasce debaixo de mudadas formas sempre a mes-
ma, para supplicio de todas as gerações e de todos
os tempos.
Mestre Zacharias ainda não tinha cincoenta an-
nos. Baixo ; antes gordo quo magro ; cara redonda e
menineira ; faces cheias o rozadas ; e nos olhos ver-
de-mar um brilho d'astucia e viveza raras, que per-
feitamente casavam com a finura do seu habitual
sorriso. Vestia aljubeta curta de sarja amarella ; e o
capuz do balandráu debruado d'encarnado, com man-
gas largas de meio covado, descia sobre a testa cal-
va, arqueada e luzidia.
GLuem ouvisse os populares não podia vèr D. Zu-
leima; porém o demónio nunca é t.ão feio como o
pintam. O ovençal do rei era dos maiores sabedores
da sua tribu, e o grande .\nnaz, o Pythagorasda s_v-
nagoga, não era maior doutor na scicncia do Tal-
mud. Eui todos os seus conselhos se apreciava a ma-
dureza de homem experiente; e os conselhos eram a
cousa única que dava de graça. Disposto a prestar
serviço, com tanto que lh'o pagassem, ria-lhe na boc-
ca um sorriso perenne; c a espinha dorsal nunca
esquecera a curvatura d'arco. Máu amigo, o peior
inimigo, o destro judeu dirigia todos os seus negó-
cios com avareza intelligente. Como o povo lhe jura-
va para iim dia cedo a recompensa, elle, á cautela,
por empréstimos de ficticia liberalidade, tractou de
comprar poderosos protectorss para a adversidade
entre os nobres c os ecclesiasticos. Esperava que, se-
melhante a Noé, dentro da arca do seu ihesouru ha-
via de desaliar impune as iras de todos os dilúvios.
Em quanto viveu I). Sancho, as proezas de Mes-
tre Zacharias furam cada vez a mais. Mas o medo
atava ot liraços aos seus inimigos. Contentavam-se
em lhe disparar na passagem duas valentes pragas,
e um ou outro monge em lhe escarrar na cara, cm
latim bárbaro, as roucas maldições de um zelo alra-
bilario. D. Zuleima, entretanto, era rrspoi.savcl por
todas as desgraças acontecidas em Coimbra. As scc-
cas e as geadas, os gafanhotos e a peste tudo era obra
do seu amor paternal. Já so v." que era jiopular de-
veras, o judeu !
Isto dc\ia-se mais ao emprego do que ao homem.
O ovençal, em contacto com os homens-livres doi re-
guengos, e opprimindoos, attrahia sobre si o ódio
dos maus pagadores e o dos Ixjr.s, quo perseguia
igualmente d"inloleraveis cxaeçòcs. .\ consciência de
D. Zuloima, preta como .i do Poncio Pilatos, cr.i
mais dura quo um penedo. Assarapintandu de gara-
tujas abomináveis ih livros do rccahah. na Ixilsa do
couro, preza á cinta da aljubeta, trasi.i umcscripto-
rio portátil capaz de arruinar em duas horas três ca-
sas honradas, segundo diziam os seus admiradores da
cidade.
Cluando morreu D. Sancho a prudência disse ao
ovcnç.d : — i* Zacharias Zuleima, pOc-lo á sombra.
o PANORA3IA.
251
Tu não sabes quem te quer bem, nem quemteqner
mal; dcixa-te Qcar de guarda ás tuas arcas na boa
terr<í de (,'oimbra. " — ^Jas a cubica gritava: — u
D. Zulcínia, amanhã arrecadam-se as rendas dos re-
guengos, e o modo não dá de comer. Meu amigo,
faz como a virtuosa Uutli, ou vêem os pardaes ele-
vam-te os respigos da seara. " — O judeu ainda se
teve dois dias, mas ao terceiro, o do prazo da co-
brança, mandou passciar a prudência, e melteu hom-
bros á empreza.
Desceu do ninho, invocando Moysés, e a toura,
atravessou a levadiça, transpoz a barbacan,, e d'ahi
a nada ci-lo já fora do bairro coutado dos ricos-ho-
mens.
Ia respirando. Tudo parecia favorece-lo ; nem se-
quer o zumbido usual (ias pragas e maidijões o in-
commodava. l'erto daPortagem havia um estafermo
corcovado, verdc-negro, com uma perna um palmo
mais curta do que a outra. Este enxalmo tomava a
soalheira do meio dia e a fresquidão da meia noite
assentado <lebaixo da alpendrada, acaIenlai:do-seem
coplas trôpegas ao divino; cera fregucz certo de
pragas a D. Zuleima. O judeu, antes de chegar ao
sitio, espreitou o seu argos, e viu-o enrolado na es-
buracada túnica de burel, escabcceando com os olhos
fechados. O rouxinol adormecera com a própria me-
lodia.
Animo, Zuleima, murmurou o homem dos mara-
vedis-, e passou depressa, o mais subtil qu^' poude,
tomando para opposla direcção.
Mestre Zacharias dava-se já por salvo, eiigana-
va-se. EUe a virar a quina da rua, e o heroe da
Portagem, o diabo-coxo, que espiava pelo rabo do
olho, a saltar na muleta de dois galhos, deitando
aos pulos atraz do digno official da fazenda d'elrei.
Cluiz então a má fortuna do judeu que fosse esbar-
rar justamente de cara acara com o respeitável Vul-
cano de Coimbra, o afamado l'ero Brilador, amiei-
ro de liombros de Hercules, tez morena, e pulso ca-
paz de derrear um touro.
Assobiava á porta da sua forja, acabando de polir
a folha de unia ascuma. A Iniste curta, encostada
fora do umbral e pintada d<! novo, estava a seccar
ao sol. JÁ dentro ia um inferno de malhos, puxados
por homens de carões ebam\iscados.
ftlesíre Zacharias enliou. Sabia que tinha alli um
amigo vellio.
Duas injustas penhoras apearam o illu^-lre Pêro
Britador do foro de cavalleiro villão ; e este obse-
quio singular era devido a 1). Zuleima. Jurou-llie
pelos osí.os até á primeira uccasião, c era homem de
palavra. Por isso o judeu, apenas o viu, logo lhe
dueram as cuslella».
lOntrelanto Iraclou de fazer a retirada .lirosa. Co-
seu-se com a parede fronleira, o muito sorrateiro foi
dobrando o passo sen» olhur para traz.
Pêro liritador deix(m-u chegar mesmo á quina
por oníle su virava |)ara o terreiro da picota \ e,
(lanilo para denUo da forja iim assobio agudo, agar-
rou na hasle da ascuma •, em três ou quatro passa-
<las estava com ella no ar sobie tjs malfadados lom-
lius de I). Ziileinia.
— ii l'sio ! amigo velho ! . . . ipio é isso, vai-se ro-
lando sem fallar á gente?»
10 opáu á;i mãos ambas caiu, como uma alavanca,
nu cnstailo do aterrado Zuuliarias.
Sú então é i|ue (fllu ouviu, si-nliu e viu o fer-
reiro.
Osuor fiioescoriia-lhe da li-sla em golas; umais
se assustou ainda, quando do meio ilc um tropel do
pasfo?, (|ue se ap|)roxiniava íi cada insliinie, uma
voz IrcniuUi e desiinloada cantou cslc» versos ;
Malha, malha, meu armeiro
E não cesses de malhar ;
Bate o ferro qu"esfá quente.
Até a mão te calejar.
Era o diabo-coxo á frente de mais de vinte ga-
leotes do Mondego, couteiros, e moços de monte,
excellentes caras para figurarem era bruto n'um auto
da Prizuo do Senhor no Horto.'
O vulgacho, altrahido pelas pragas dos galeotes,
pelos gritos taurinos do armeiro, e pelos guinchos de
cega-rega do diabo-coxo, ajuncfava-se em maior nu-
mero. Pelas frestas das casas e ás portas meio aber-
tas arriscavam-se algumas cabeças curiosas. D^ahi a
minutos era uma feira. O povo já não cabia na rua
e no terreiro !
D. Zuleiraa, ora branco, ora verde, ora roxo,
cambiando as cores do medo, batia os joelhos e os
dentes n'uma verdadeira sezão, amaldiçoando a cu-
bica, que o mettêra na bocca do lobo. '
— " Deus d'Abrahão e do Isaac I " gritou, ajoelha-
do ao ferreiro, com grande anciã.
— "Blasfema! bradou um da chusma. Tubarão,
ouves ? . . . tu que estás mais perto, mette-lhe oito
dentes pela bocca dentro, a vêr se o fazes cuspir o
nome d^esscs ídolos. "
— "Altol leva rumor', clamou mestre Pêro. Isto
ha de ser com todas as ccrcmonias, ou não presta.
Q.ue é dos alvazis da arraia miúda?"
— "Aqui estão, mestre Pero" disseram ao mesmo
tempo umas poucas de vozes.
— "Depois os verdadeiros alvazis, os da cidade,
que venham cá pôr-nos a muleta ! continuou, rindo,
o ferreiro, ^'amoí^, um banco; alli o judeu da esqui-
na que traga o livro d'esles cães. Uiabo-coxo, upa!
estás arvorado era alvazil. Ntjs somos os homens bons.
Alia Dordia ca tia Ruiva as queixosas. Eu execu-
to a sentença . . . Ora digam lá que a gente cá não
sabe fazer justiça. »
A medida que elle fallava, tudo como porencau-
to chegava a postos. O judeu da esquina tremia en-
gelliado de medo e frio • o diabo-coxo encruzava-se
no banco. Eaos eni])urroes o atribuindo Zuleima era
levado á presença d'a(juellc novo tribunal, cercado
de caras avinhadas no meio do borborinho dos rapa-
zes e do resmungar das velhas, a parte mais desin-
quieta da asscmljléa.
— "Anda cá, judeu, iscariote — disse a tia Rui-
va, fincando o punho c6r de lagosta na cinta — não
me dirás que mau olhado dJste á vinha de mestre
Chambãu ? . . . »
1 D. Znleima, perturbado e fora de si, ouvindo o
nome de um dos seus devedores, cliimuu :
— "Não lhe ficou bago no cacho .' estimo bem
porque ..."
Uma trovoada de gritos, pragas e ameaças caiu
sobre elle apenas dissera isto.
— " lirada ao céu '. Aborto do inferno! Agouroda
cidade I » gritaram os galeotes e ferieiros, tinindo <i
ferro dos malhos, c batendo as pás dos remos.
— "E as maleitas, ao visinho Telmo? Não o lar-
gam ha duas semanas!" guinchou u senhora Eva
S.ili/:.
— "E o pobre Estevam do Moinho, não lhe inct-
leu esto cão uniu penhora em casa? Eslá arrastado-
borrava uma oitava acima a lia Dordia.
A cada accusação a cara de D. Zuleiínu era um
arco iris.
• — " N'nnios, judeu, disse o diabo-co.vo, lesponde;
o (|ue te fez Ioda esta gente?"
Mislre Zacharias e ipie podia pcrgunlar rm que
linha DlVeiidido aqucllo respeitável urcopiigo; m.i*
252
O PAIVORA3IA.
iruma convulsão de medo mal tinha força da mur- |
murar :
— "Deus de Moysés, salvai-me da mãos dos na- |
rarenos I " i
— iiOlbem acara de Judas I » grunhiu a tia Rui-
va, sacudindo um braçado de hortaliça.
— " Deixem o caso aos alvazis ! n bradavam algu- |
raas vozes.
— " Sessenta açoutes. "
— " Noventa. "
— "Cem e deveras, ou vou-me embora" concluiu
o diabo-coxo.
— " Cem, nem um de menos! ;i barafustaram todos, i
— "Gluem demónio ha de cá dar tanto açoute?"
disse o amieiro.
— " Cem ! cem 1 » trovejaram de todos os lados.
— "Pois cem, sejam cem, com dezdemonios '. re-
torquiu o ferreiro. Lopo Secco, arregaçar as mangas
e malhar ! " (Continua.)
Acto de lealdade portuguez.4.
E GERALMENTE conhecido o heróico feito do magnâ-
nimo e leal Salvador Ribeiro, na rejeição da coroa
do Pegú, e que mereceu ser cantado pelo Pindaro
portuguez; tem, comtudo, permanecido no esqueci-
mento outra acção semelhante, posto que não tanto
estrondosa, practicada no sertão do Brazil em tem-
pos mais modernos.
Durante o interregno de 1580 a 1640 tinham-se
estabelecido na cidade de S. Paulo muitos hespanhoes,
que para alli passaram da Europa, ou que concorre-
ram das índias occidentaes : alii exercitavam avulta-
do negocio, possuiam habitações e fazendas, e pela
maior parte estavam casados e mantinham estreitas
relações com a gente da terra. Chegada ao Brazil a
noticia da acdamação d'elrei D. João IV, concer-
taram-se aquelles hespanhoes para conservar na obe-
diência de Caslella as povoações de Serra-acima \
conhecendo porém que, se declarassem abertamente
a sua intenção, seriam viclimas do rancor geral contra
» jugo estranho, traçaram valer-se de artificio e ma-
nha. Lembraram-sc que, seduzindo os paulistas para
se desmembrarem da metrópole e erigirem qualquer
governo em separado, cedo ou tarde seriam forçosa-
mente aggregados ás índias da coroa de Ilespanha,
supposto a communicação lluvial entre as villas de
herra-acima e as províncias da Prata e Paraguay.
N este presupposto, inculcando-se mui zelosos do bem
commnm da terra em que se haviam naturalisado,
propozcram a seus amigos, parentes e alliados, e a
todos em geral, a eleição de um rei paulista, não lhe
esquecçndo apontar logo, como digno da coroa, Ama-
dor Uueno, ])essoa mui estimada de todos os seus pa-
trícios pelas circumstancias de qualificada nobreza,
da opulência, do respeito de que era credor poios car-
gos que honro.sanicnte desempenhava, pela numerosa
clientella de indivíduos com elle vincnladus por san-
gue ou amizade, c pelas allianças de seus nove filhos
e filhas, duas das quacs eram casadas com dois irmãos
fidalgos liespanhoes, que vieram ao Rrasil, cm ItilJj,
lui arm.ula hespanhola, destinada á restauração da
Bahia. — \aleram-sc os dasizania de todasas razões
especiosas convenientes a seu propósito, expondo áquel-
la gente sincera e pouco instruída, que o acto a que
os instigavam de nenhum modo seria taxado de re-
beldia, porque, rolo o domínio intruso de Castella,
estavam no jus de reconhecer ou não, conforme seus
interesses, um soberano a (]uein não haviam juradj
preito e obediência. Para lisonjear as paixões exal-
tavam o mérito dos paulistas, allcgando que, pela
nobreza de muitos cariqucia e capacidade de muitos
mais, podiam crear um estado forte e independente '
que alistariam exércitos entre o grande numero de
Índios seus administrados e escravos; que era defen-
sável a posição de S. Paulo, mais vantajosa ainda
porque para os portos marítimos, d'onde haveria
que recear algum accommettimento, não exbtia se-
não a ruim estrada de Paranaapiacaba, que bastaria
despedir penedos pela serra abaixo para derrotar os
invasores. Este enredo esteve a ponto de ir por dian-
te, e os hespanhoes lograriam seu intento, se não
fora a lealdade acrisolada do próprio homem que pro-
curavam para instrumento de seus desígnios. — Eis-
aqui como refere o facto o historiador daprovincia,
Fr. Gaspar da Madre de Deus :
« Eram sinceros os moradores deS. Paulo, c ainda
que fieis, bem poucos entre elles teriam a instrucção
necessária para conhecerem o direito incontestável
da sereníssima Casa de Bragança ao sceplro, e para
perceberem os laços e as funestas desgraças em que
aquellas machinações os iam precipitar. Além d'isK>.
a plebe em toda a parte é fácil de mover-se edear-
rojar-se a excessos. Os hespanhoes conseguiram sedu-
zi-la eajunclar um grande numero de pessoas de to-
das as classes, que, acclamando unanimemente por
seu rei a Amador Bueno de Ribeira, concorreram,
cheios de alvoroço e cnthusiasmu, á sua casa a con-
gratular-se com elle. Pasmou Amador Bueno de Ri-
beira quando ouviu semelhante proposição; elle de-
testou o insulto dos que a proferiram, e com razões
efficazes procurou dar-lhes a conhecer sua culpa >■
cega indiscrição. Lembrou-lhes a obrigação que ti-
nham de se conformarem com os votos de todo o reino,
e a ignominia de sua pátria senão se reparasse a tem-
po, com voluntária e prompta obediência, odes;icer-
to de tão criminoso attentado. ^LlS a repugnância
do eleito augmenta a obstinação do povo ignorante;
chegaram a ameaça-lo com a morte se não quizes-
se empunhar o sceptro. Vendo-se n'esta consterna-
ção o fiel vassallo, saiu de sua casa furtivamente, e
com a espada nua na mão, para se defender se ne-
cessário fosse, caminhou apressado para o mosteiro de
S. Bento, onde intentava refu^iar-se. .Advertem o*
do concurso que havia saído pela porta do quintal ;
e todos cortem apoz elle, gritando : — Tiva .amador
liucno, nusso rei.' ao que elle respondeu muitas ve-
zes era voz alta : — T iva o Sr. D. Juuo II', iioí<i
rei c senhor, pelo i^iial darei a viJa.
Chegando Amador Bueno de Ribeira ao mostei-
ro, entrou e fechou rapidamente as portas. Como os
paulistas antigos veneravam summamcnlc aos sacer-
dotes, principalmente aos regulares, nenhum indul-
tou ao convento, e todos pararam da parte de fora.
insistindo, porém, na sua indiscreta prctenção. Des-
ceu á portaria o D. abbadc, acompanhado d.i sua
communidade, ecom attençiKJs rntretexe a multidão
em quanto xVmador Bueno de Ribeira mandou cha-
mar com pressa os ecclesiasticos mais respeitáveis, c
alguns sujeitos dos príncipsics que se não achavam
no concurso. Vieram logo uns c outros, e todos uni-
dos ao díclo Bueno úcerani comprehonder aos cir-
cumstantes que o reino pertencia á sereníssima Casa
de Bragança, e que dVIle se acharia esta em posse
pacifica desde odiada morte docardeal rei D. He; -
riquc, so a violência dos nionarciias hcsjíanhoes nã
liouvera suflbcado o seu direito. Nada mais foi ne-
cessário para se conduzirem aqu»-lles fieis portngue-
rcs como deviam ; todos arrvpendídosdoscu dcsacor-
ilo foram, cheios de gosto, acclamar solemnemcnte o
Sr. D. João 1\, com magua dos hespanhoes, os
(juaes, para não perderem as conimodídades que tí-
nliani vindo procurar em S. Paulo, prestaram tam-
bém ojuramcnfo de fidelidade ao mesmo soberano.-
o PANOR7I3IA.
253
Este facto é, como dissemos, mui pouco sabido :
um amigo nosso o tomou para assumpto de um dra-
ma que tem coricluido, porém ainda não vulgarisado.
O GEMO DO BEM.
Ao VASTissiMO império da Rússia, povoado por tan-
tas e tão diversas nações, pertence a grande penin-
sula de Kamtschatka, que demora ao nordeste da
Ásia entre 03 i)2 e 61 graus de latitude scptemtrio-
nal, e entre o golpiío do mesmo nome c o mar do
Japão na extremidade sueste da Rússia asiática ; tom
nlira de 7o léguas na sua maior largura •, asua extre-
midade ao sul é o cabo Lopatka ; de norte a sul cor-
re uma serrania de altos que a dividem quasi em par-
les iguaes, ed^ella nascem vários rios que se lançam
no (Jceano e no mar de Okotsk. Da-lhe o nome o
Kamtschatka, que tem seu manancial na falda de
um monte volcanico, corre ao norte por terra dentro,
edespeja-se no mar depois de um curso de 70 léguas
de áO ao grúu. Os russianos só tiveram cnniiocimen-
to d'ella por fins do scculo XN II ^ porém, em 171 1
é que alli se estabeleceram e foi recordiccida a aucto-
ridado do Czar, a cujo império os Kamtschadaes pa-
gam tributo em pelles finas i sendo ocommercio dV-s-
te género o que tem feito mais frequentada esta pe-
nínsula. O clima é áspero e pouco tolerável para ou-
tros povos que não sejam os russos; dizem estes (jue
o torrão é fértil •, porém as arvores que tem são aca-
nhadas ; dá alguns vegetaes no estado silvestre, taes
como alhos, cebolas, aipo, o também excellentes na-
lios em alguns silios nos valles. Esta região, comtu-
do, não tem o frio tão rigoroso como indica a sua
situarão; o<|n(! procede das montanhas onde ha três
volcões, e de certa temperatura que o mar conserva
por meio de densas névoas : o inverno é longo e cons-
tante, c n'esta estação não se pede viajar senão em
trenós" janeiro é, como na Kuropa, o niez mais frio;
.1 primavera é curta, e posto que chuvosa tem alguns
dias bonitos,' o verão não é comprido, mas muito
inconstante : a approximação do bom tempo é peri-
gosa para os moradores por causa do derretimento
dos gelos ; e ás vezes se vêem obrigados a refugia-
riMii-se Uiis copas das arvores para não serem subver-
tidos.
Os babilanles pôde dizer-se que são de Ires raças,
kamlsibadacs, nativos do ])aiz, e russos, e cossacos,
«em fallar nus mestiços d\:stes povos : construem trcs
castas de habitações; as (pie chamam yiiríts, para o
inverno, parecem exteriormente um outeirinho re-
dondo, com um buraco ao meio, que serve de cha-
miné, de porta ede janella; as sogunilas, chamadas
halaiKjanas, habilam-11'as de verão ; as terceiras, qu<!
ileiíoiiiiiiam loijuziis, introduzidas pelus russos, são as
vivendas da gente mais graúda. ()s verdadeiros abo-
rigenira aão de estatura abaixo da mediana, de cara
larga e redonda, oliios peijiienos e encovados, maçãs
<lo rosto proniinentes, nariz esborrachado, calíellos
jireliis, e (e/, iiaea ; o seu caracter é brando e hospi-
lalijiro; são grandes preguiçosos, e asua inaiordita,
depois da eniliriaguez, é a ociosulade : veileMi-sed(!
pelles de lolxis, de ursos, ilu rangiferos, e ile argalis
(carneiros selvagens) : a necessidade os obriga a dar
eaça a v>,[m e aos animaes (pie tcem as peljes tinas,
poripu! n'est(! ramo consistem Iodas as suas rii|nezas.
lia n\'sla região castores d(í tamanho exlraordina-
rlo ; o lanibeiii inaila» ezibelinas; as rapcisiis de va-
rias cures são mais fi)iiu(i-.as (jiie as das ilhas de les-
te. A pesca é ninllo .ibiindaiile nas cosias, onde se
.leliam salmòes c hul;i->, e se caça o lobo marinho.
Aniinacs domésticos nàu ha senão alguns runglleros,
eo5 cães, que são da maior utilidade, porque os can-
gam aos trenós em numero impar, e assim transpor-
tam pelo gelo seu dono com a bagagem. — Esta gen-
te parece que não tem culto fixo; eomtudo reveren-
ceiam de algum modo certos animaes, e invocam
differentes génios sobrenaturaes, crendo que ha mui-
tos que ordenam o mal, por isso que são mais os ma-
les que os gozos da vida, e que ha um que é causa
do bem, e ipie representam pela imagem brutesca
que mostra a precedente gravura. — Os casamentos
elVcctuam-se de um modo notável : uma rapariga
pretendida para mulher é como uma fortaleza que
se ha de tomar por assalto; é defendida jielas outras
mulheres, as <]uaes se atiram ao pretendente, dão-
Ihe muita pancada e muitos lioléus, arranham-iro e
puxam-lhe pelos cabellos ; é necessário ([uo elle tri-
uniphe dCsles obstáculos, aliás não casa : porém se
vence, leva a sua noiva, e então os dois partidos se
reconciliam, e tracla-se da boda em casa d'ella.
CuLTUnA K SBiMENTEIUA DAS UVTATVS.
No DiAiiio doGovorno, n." G7, publicaram-se Ins-
truc(;ões convenientes para dirigir a cultura das ím-
iittus, com as precauções necessárias, afim do evitar
(( prevenir o mal (pie alem contaminado; apontan-
do logo a providencia de sementeiras.
Entre as causas provavirl» de tão funesto mal ligu-
ra, no seu tanto, o enfrac|Ueclinento e degeneração
do ijiiiiiv iliis hitliitíis, o (piai, por melhores (pie se-
jam, enlraípiece c degenera em menos de vinte ân-
uos; (• por isho (|ue os bons agrónomos não teem ces-
sado de rccomnielidar a stitunltint d'ellas ouno \ ia
iialural e providente de lhes restaurar o prineiplo de
reproilueeâo feiíinda, perieita e sã: inleli/niente es
sas reeommeiíd.KjVes, e outras mais, teem sido des
prezadas, ate (|Ue agora a gravidade do mal obriga
a empregar todas as cautelas e meios de o evitar, e
de o prevenir para o fiiluro, recorrendo as semen-
teiras, cujo mctliodo praclieo jnlg.imos opportuiio in-
dicar.
254
O PAINORAMA.
Como porém as tementes devam snrsãs r perfeitas,
c colhidas como taes de planta sã e perfeita, estaob-
\ia consideração auçmenta ainda o cuidado especial
com que se deve proceder na plantação etractamen-
to das batatas no presente anno, afim de produzirem
fructos sãos e perfeitos para as necessidades e usos da
>ida, e sementes próprias para a reproducção.
Finalmente a escacez de cereaes cora os seus cíTei-
los do carestia do pão, fendo-se de atravessar assim
os mezes que decorrem até as colheitas, e colheitas
que se hão de resentir dos muitos trabalhos agrário»
que se teem deixado de fazer por causa das perturba-
ções da guerra civil, conduzem a lançar mão da cul-
tura das batatas como objecto iroportanlissimo de
siiljsistencia publica e como supplemenfo das lavou-
ras que se não fizeram em tempo. E cora o intuito
de contribuir para ííhs f 3o ponderosos, que. insistin-
do na doutrina das citadas Instrucções publicadas no
•Diário, resumimos os seguintes apontamentos para a
cultura e tracfamento das batatas, suas sementes, e
sementeiras.
1." A batata quer terrenos leves, soltos, enxu-
tos, c arecutos: e aborrece os argilosos, tenazes, com-
pactos, e húmidos : em geral os bons terrenos para
centeio são os melhores para as batatas : ns terrenos
inclinados ou elevados produzem melhor batata do
que os planos: e os de exposição ao nascente ou melo-
dia favorecem particularmente a producção têmpora.
:2.° Kntre as espécies ou variedades de batatas,
as brancas são em geral mais volumosas e producti-
vas ; as vermelhas admittcni terreno mais forte ecoD-
siitente, produzem um terço menos, conservam-?e
melhor, e amadurecem mais tarde; asamarellasteem
a polpa mais fina, são de boa producção, e as mais
têmporas.
3.° Para a plantação de qualquer cspetie de ba-
tata prepara-se o terreno cora uraa cava ou lavra de
doze a quinze pollegadas de profundidade; deixando
o mesmo terreno perfeitamente destorroado e limpo.
4." No terreno, a^sim preparado, se faz a plan-
tação; ou a braço, o que é mais dispendioso, ou á
charrua ou arado, o que é mais económico e expedi-
to, e se practíca pela maneira seguinte : — a charrua
ou arado vai abrindo um rego sufficienfemente pro-
fundo e largo, e o mais direito possível — seguem
duas mulheres, uma rom um peneiro de batatas que
vai plantando no meio do rego aberto, guardando a
distancia de palmo e meio entre cada uma; a outra
mulher vai lançando o estrume sobre as batatas as-
sim dispostas. — Plantado d'esla forma o primeiro
rego, a charrua na vclla cobre as batatas plantadas —
e assim se prosegue na pl.infação dos outros re^os,
guardando entre uns e outros a distancia de dois pal-
mos e meio. Convém oliservar que a plantação deve
ser mais espaçada nos terrenos ricos do que nos ma-
gros; roais profunda nos fracos e areentos do que nos
fortes e consistentes; e sempre mais espaçada nas es-
pécies brancas do que nas vermelhas.
6.^ A balata que se plantar deve ser sã o perfei-
ta, e havida com escolha de sitio cm que não tenha
app:;recidu o mal ; deve plantar-se inteira, e ter vo-
lume razoável, pois que a sua polpa édestin. ida para
nutrir o germo na primeira idade: todavia, aonde
forem raras e caras as batatas, poderá praclicar-sc a
economia de partir as mais volumosas em IxiccaJos
grossos, cada um com trcs olhos c com a maior por-
ção possivel de polpa; esses boccados plantan\-se um
a um como as batatas inteiras; advertindo, porém,
que devem ser partidos um ou dois dias antes da
plantação o expostos ao ar para apertar c s«'ccar os
poros das superfícies cortadas, c lhes servir de pelle
do modo possível; e na sua plantação não «e lança o
' estmme ímmediatamente sobre elle;, mai sim co-
brem-se primeiro com uma pollegada de terra elan-
ça-se então o estrume por cima.
Convém aqui observar: 1." que deve sempre cul-
tivar-se e plautar-se em separado cada especiede ba-
tatas : 2.° que se não devem cmprejar na plantação
I de qualquer terreno as batatas que tiver produzido,
' mas sim as melhores e roais perfeitas de terreno diverso.
j tít." .\ plantação das batatas requer estrumes bem
curtidos e apurados : os chamados compostbi e os vc-
getaes são preferíveis a todos os respeitos.
7.° Desde que a planta tiver três a quatro polle-
gadas de altura, precisa ser sachada cora uma enxa-
da pequena para extirpar todas as hervas^ mover e
amaciar a terra, e facilitar a extensão das raizes fibro-
sas que hão de produzir as batatas; esta operação re-
novar-se-ha segundo a terra for mostrando a necessi-
dade de ser limpa de hervas, movida e amaciada.
aP Ijogo que as plantas estiverem próximas a
lançar llòr, deve junctar-se em roda de cada pé uma
sufficienle quantidade de terra, tomada de ume ou-
tro lado: esta operação se irá repetindo successiva-
mente até que a força e lançamento dos pés éramos
intercepte a passagem nos intervallos ; e se aperfei-
çoará ainda mais deitando na terra, assim amontoa-
da, os pés e ramos da planta, afim de provocar no-
vas raízes, e com ellas novas batatas. Concluída esta
operação, nada mais se precisa fazer até se acharem
maduras as balatas, o que se conhece pela mudança
da càr verde dos pés e folhas em Amarella e marcha,
ate seccarem completamente : e desde então chegou
a cpocha de proceder á colheita das mesmas batatas,
e necessários cuidados paraseapproveitarem, conser-
varem, e usarem era toda a extensão do seu préstimo.
9." Se durante a vegetação das plantas apparece-
rem em alguns pés, ramos, ou folhas, manchas ou nó-
doas pardacentas, que são indicativas domai, devem
ser ímmediatamente cortados bem rentes esses pés
com todos os seus ramos e folhas , e depois queima-
rem-se, e lançar as cinzas na terra.
10." As espécies mais têmporas de batata offere-
cem um recurso de subsistência publica, particular-
mente benéfico e providente nos annos de carestia e
fome: pois que, para acudira taes necessidades, vão-
sc colhendo as batatas maiores apartando geitosamen-
t€ a ferra que as cobre, e tornando a conchegar a ter-
ra em roda dos pés da planta, e sobre as o,!tras ba-
tatas, que continuam a crescer e aperfeiçoar-se aft
de|>ois de seccarem os pés e ramagem das mesma'
plantas.
Scrr.cnirs.
I 11-" . As sementes da batata são - e re-
I doudas, e formam-se dentro de cap^u ■. que
'■ a< contem em muitas cellulas. listas c; -^ul.;'. pen-
I dentes da planta, colhem-sc quando •se acham bem
I maduras, o que se conhece pela sua niollcza e cOr
; branca; cspalham-so ás camadas cm caixas entre ca-
1 madas de areia; conscrvani-se assim ate o IJmdoín-
I verno; então rsmagam-se entre as mãos p«ra cxtra-
! hir e separar as sementes por meio d»" n^ua c uma
' peneira, di^pois do que seccam-sc perfeitamente an
i ar, e ficam promptas p.-ira <cnie,ir,
' Cabe aqui ,i rcct)mmenda<:ão fundamentaldcesco-
llier as capsulas mais perfeitas das plantas mais pcr-
; feitas de cada espécie de balat.is ; c de cons*r»,nreiM
I sopnrado as sementes obtidas de cada uma da» nicr
! ni.is espécies, pw-írascsonvearcm t.imlx"m emsot^^r .1
. Scmcn'cirn%
I
I lá." Esta soroenlcira fi2-»c nos princípios da pn-
I n)averii, em terreno Iwm preparado; cpralica-sepe-
o PAjNORA31A.
SoD
la maneira seguinte : — mistura-se a semente com
areia fina, ou com terra secca reduzida a pó — lan-
ça-se em regos Leiíi alinhados, que tenLauí de duas
a três poUegadas de profundidade — cobre-se ligeira-
mente com terra, e espallia-se por cima uma media-
na iwrção de estrume do melhor e mais bem curti-
do— e assim se prosegue na sementeira dos outros
regos, guardando entre uns c outros a distancia de
palmo e meio.
13." Desde quQ a no\a planta ti\er três a qua-
tro poUegadas de altura, applicam-se-lho as operações
de sacha, e de se lhe junctar successivamente a ter-
ra era roda dos pús, como fica apontado para a cul-
tura ordinária. Quando a planta se mostrar comple-
tamente aniarella e secca, coUiem-se então as novas
batatas, que são do tamanho de avelãs, asquaes, de-
pois de bem limpas da terra, e enxutas, se espalha-
rão folgadamente em logar secco e arejado, e sobre
caniços aonde for possível, moveiido-as de tempos a
tempos, e catando as que appareoam defeituosas,
doentes, ou imperfeitas; e assim se conservarão até
a prinxivcra seguinte, em que se plantam : esta pri-
meira plantação deve já produzir batatas assaz volu-
mosas, mas a do seguinte anuo é que ha de appre-
senfar plena producção de batatas com todo oseu vo-
lume e perfeição.
Luiz Antomo Rebello da Silva.
A importância tio artigo precedente, importância
absoluta eui si e que o estado das subsistências em
Portugal torna ainda muito maior, é fácil de avaliar.
O auctor d'este escripto, pessoa distincta nasciencia
agronómica, é cinihecido assaz para que os nossos elo-
gios servissem de grangear-lhe a confiança dos leito-
res acerca do Ijoni êxito que devem tirar da applica-
ção dns suas doutrinas. Kllc .ijuiictou n'um breve e
iutclligivel quadro tudo o que ha essencial acercada
renovação das batatas pelo sistema das sementeiras,
c ainda sobre a sua cultura pelo methodo ordinário.
Nós accrescen taremos aqui aigun)as idéas que nos pa-
recem vir a propósito de uma «juestão gravíssima pe-
la situação em que se acha à agricultura no paíz. Se-
guiremos nas seguintes observaçues a ordem dos pa-
ragraphos cm que o auctor dividiu a matéria do ar-
tigo-
1.0 E incontestável que as batatas preferem os
terrenos soltos c areentos : mas não deixam de pro-
duzir nos argilosos, uma vez (pie não sejam extrenia-
menti! compactos. iVa verila<le o producto não é tãó
abundante-, mas paga o trabalho do agricultor. A
possibilidade de progredir a carestia dassubsístenci.".s
(porque as colheitas ainda <!stão contingentes, e por-
que em cons<'qucncia das perturbações jiublícas mui-
tos campos fic.iram por cultivar) é um incentivo pa-
ra (|ue SC |>roceda á scnionteíra da batata nos terre-
nos deixados de ])oiisio, embora furtes, ou mcdiana-
mciile compactos.
O " A propósito (1(15 estrumes e compostos mais
convenienli's para a cultura da batata, aconsclhariu-
mos a mistura do uslnime do gado vaccuni, que é o
<juc abunda mais, com a marga, onde a houvesse, o
que se verifica jiistamenle nus terrenos fortes (terras
avermelhadas) ciii cujo subsolo, muitas vezes iipuims
u Ires ou inialro palmos de profiimlidade, se encon-
tram bancos de marga calcarea. N'uiii terreno húmi-
do, plano e lortíí um coin[)osto de ; de c^lriime de
gado vaccum e ' de marga, empregado .na seineii-
teiru de um batatal, sabemos ter dado o|>timo rcsiil-
ladu.
O que, sobre tudo nas torras mais fortes, u ainda
nas fruciis, nos parcw; que deve contribuir paru ulu-
. Ihar os eíTeitos terríveis da doença que vai accommet-
I tendo as batatas, é o demorar a» sementeiras para
] mais tardo do que geralmente se faz. Um batatal se-
meado depois do meado de abril de lS4tí, produziu
I excellentemente e sem vestígios de doença em terre-
i no forte, raarg.ado. As chuvas que vem ordinariamen-
te ainda na primavera bastaram para o fazer pros-
perar. Suspeitamos que a moléstia d'esta preciosa
planta se deva ú demasiada humidade a quo estão
sujeitas as sementeiras têmporas. Pedimos aos agri-
cultores praclicos (jue repetindo as experiências acer-
ca d'ísto, busquem estabelecer por meio d"ellas as epo-
chas mais convenientes de semear, o que nos parece
fazer-se ordinariamente demasiado cedo.
11. o A semente das batatas pode-se extrahir das
capsulas, logo que estas estejam bem maduras, pelo
methodo ordinário que se emprega para apurar a se-
mente do tomateiro, e guardar-se era logar secco sem
mais prevenções. Também se podem guardar os gló-
bulos que a contém para a empregar do modo que
abaixo se verá.
12." Em França faz-se a sementeira lançando a
semente nos regos, do mododiscrípto pelo Sr. Rebel-
lo da Silva. Era Allemanha usa-so de methodo di-
verso. Colhidos os glóbulos que contém a semente,
completamente, enterrara-se v.o principio do inverno
em terra bem preparada e iVifa, em linhas de distan-
cia de palmo, e com ii;ual distancia entre os glóbu-
los. Com a primavera as batateiras nascem aos gru-
pos nos logares onde se enterraram os glóbulos. Quan-
do as plantinhas teem duas ou três poUegadas de al-
tura arrancara-se cuidadosamente, para se transpLnn-
tareni para regos com as distancias convenientes. Ca-
da planta leva já uma ou mais batatinhas do tama-
nho de ervilhas, que é preciso não e-magar nem se-
parar do pé, porque d"elles se formarão os futuros tu-
bérculos. Depois pro5egue a cultura segundo o me-
thodo descripto pelo Sr. llehello no artigo 13." Am-
bos os metluidos, experimentados entro n>js, deram o
resultado pretendido. Houve )a dillerença ile semear
tanto a semente como os glóbulos nos lins de feverei-
ro, posto que ao abrigo do norte, attendendo a ser o
nosso clima mais brando no in\erno o menos húmi-
do no verão do (jue a França central, onde a semen-
teira se faz em abril.
13." Para maior clareza advertiremos que as plan-
tas, ainda da semente semeada a rego, vem muito
junctas, o que por isso na occasião ila primeira sa-
cha cumpre desbasta-las de modo que fiquem na mes-
ma distancia de pé a pé que ha de rego a rego. As
plantas que se tiram no desbaste, uma vez que tra-
gam a batatinha inicial, i>lanlam-se em no\us regos,
esperando para esta transplantação que ou a terra
esteja sufticíenteniente húmida, ou ijue haja signaes
de chuva ínimincnte.
O K.'U1GU.\I>0 IlICO K o KMIUltADO rOUItE.
A sK(iiiSTK anceildla é exlrahida de um livro mui-
to engraçado o instruclivo, escripto por Mr. Ij.-lí.
Picard, da .\cademia franceza. O livro chama-se (rií
Iliiiti da Jlcroliíçiiu : de\('ra ser lido <• meditado por
muita gente. De^d(í Jacob, que icliali- a Ksaú o di-
reito lie primogenitura por um prato de lentilhas cm
occasião lie fome, nlé o dia de hoj(r ainda não muda-
ram OH pensamentos, palavras, e obras do usurário.
Quer enri(|U(C<í»se no vergonhoso e arriscado trafico
da escravatura, tpier enthcsoura^se, estirado nos mol-
les siifds d(! gomma-elaslíea, sem outro trabalho mais
que o de recolher o tpic os outros semearam e ceifa-
ram suando suor c sangue, é sempre o homem i|ue.
256
O PATSORA3IA.
ainda quando o convidem para salvar aseupaid*ain
incêndio, perguntará primeiro: u Com quantos por
cento de desconto?" — "Tomara, dizia um d'estes,
vêr todo o género humano bem desgraçado . . . para
lhe valer com o meu dinheiro.» — Como porém o
mal já vem muito de traz e é quasi sem remédio,
vamos ao nosso conto, o qual mostra que o usurário,
como vulgarmente se diz, nunca dá ponto sem nó.
Mr. Dervilé, que fura juiz e conselheiro d'um par-
lamento, tinha-se preparado para emigrar desde o
principio da revolução. Reduziu a dinheiro os seus
prédios rústicos, estabeleceu-se em Stuttgard e havia
leito especulações Ião vantajosas com capitães que
mettêra nos bancos de ^'ienna, Londres e Hambur-
£;o, que estava muito mais rico do que em França,
onde tinha fama de onzeneiro.
Chegou um dia á ebtalagcm onde eu morava um
homem que fora soldado razo da minha companhia
110 principio da campanha. Era Mr. Darnal, ex-con-
selheiro do mesmo parljmcnto a que pertencera Mr.
Dervilé. Depois de ter gasto todo o seu pecúlio para
poder emigrar, e de pelejar com denodo, ia agora
para ^ ienna, onde esperava valcr-se de uma paren-
ta de sua raullier ; e como fora insigne dançante nas
assembléas, fazia tenção de dar lições de dança. Re-
novámos o nosso conhecimento. ^Ir. Darnal vinha na
maior penúria, e não sabia como havia de continuar
a sua jori:ada. Conversando eu com elle, dei-lhe a
noticia de que estava em Stuttgard Mr. Dervilé, o
rico Mr. Dervilé.
— " Ciue ventura ! o meu antigo collega ! um ami-
go velho ! j!
Ei-lo livre de cuidados ; não duvida de que Mr.
Dervilé lhe acuda á pressa; dão-lhe a morada do seu
opulento collega; corre a procura-lo.
— ii Ai I que é o meu prosado Darnal, amigo cer-
to e verdadeiro I exclama Mr. Dervilé apertando-o
nos braços, (iuem havia de dizer, quando nos sentá-
vamos nas cadeiras do nosso tribunal, que nos havía-
mos de encontrar assim na AUemanha, ambos des-
terrados .' "
E começou o sensível Dervilé a amaldiçoar a re-
volução e os jacobinos, e a inquirir com o maiorin-
teresse o estado do seu constante e velho amigo. Es-
te, conimovido, muito esperançado, narra as suas
aventuras, explica os nioti\os da sna jornada a ^ ien-
na, a miséria extrema cm que se acha, a gratidão a
que o obrisa tão cordeal acolhimento, eporfimaba-
lança-se a pedir emprestados vinte e cinco luizes, de-
clarando não poder dar em penhor senão a sua pala-
vra e as suas esperanças. Em quanto isto dizia, tinha
Mr. Dervilé posto os olhos no céu ; cheg;tram-lhe a
correr as lagrimas; cortou o discurso do collega com
exclamações que ainda continuavam depois de Mr.
Darnal se ter calada.
— ií\ alha-me o céu 1 um conselheiro do parlamen-
to obrigado a andar de espingarda ás costas '. <|ue
desacato I corta o coração I E agora vai para Vienna
implorar a compaixão (l'unia parenta ? >•
> (Aue remédio tenho eu 1 "
— .. E faz tenção de dar por lá lições de dança .' >«
iSiin. '•
— li Um magistrado antigo I obrigado asndar em
cala de bilhetes de lições de dança I Eeslá no maior
aperto por não poder continuar a jornada?"
— xSIm. )»
— II E queria que lhe eu cmpresfa5>e vinte e cin-
co luizes .' "
iSim, seiscentos francos.
— .i E não me pinlc dar oulrj h\ nollu-ca senão es-
peranças e a sua palavra '•
r-T- " Nada mais. ••
I — u Oh ! ea não duvido de que o meu amigo, «e
, acaso se visse algum dia n^um estado mais prospero.
; correria logo a pagar-me. Aqui tem, todavia, a que
'■ está reduzida uma multidão de fidalgos, de magistra-
dos, de prelados, deabbades, de pessoas decentes, qne
' se viram constrangidas a deixar os seus palácios, os
seus tribunaes, ou as suas dioceses. Tome lá, veja,
leia, meu caro amigo, meu presado collega, corra os
olhos comigo por cima d"e5ta lista, que prouvera a
Deus não fosse authentica. "
Dizendo isto abriu uma secretaria e tirou um ca-
nhenho, cujo titulo deu a lêr a Mr. Darnal. O titu-
lo dizia assim : Lista dos infelizes emigrados qtu fie-
}am valer-se (lo conselheiro Denilé.
— « ^ eja, veja, meu querido amigo; começam os
pedidos em 17'J1 ; veja: o conselheiro de • • • mil
escudos; o senhor bispo de s • * quatro mil francos :
o senhor duque de • * • seis mil francos; o senhor
marquez de * • • mil e duzentos francos ; e vai por
ahi fora. .. Tome sentido, vá vendo, vá vendo: os
nomes mais illustres da França ! obrigados a pedirem
emprestadas umas quantias insignificantes, como se
fossem ahi uns pobres fieis de feitos.
Mr. Darnal sentia-se desopprimido de nm peso ■.
admirava o génio serviçal e a prodigalidade bêmfa-
zeja do desinteressado Mr. Dervilé, a quem tinham
ousado accusar de avarento e usurário, e principiava
a dirigir-lhe os mais vivos e sinceros agradecimentos.
— «Espere: veja asomma, diste-lhe Dervilé, no-
venta e oito mil e quatrocentos francos ; sim. senhor,
noventa e oito mil e quatrocentos francos. Que tal I
amigo do coração, accresceutou elle, pegando de no-
vo nas mãos de Mr. Darnal ; sempre quero que me
diga o que seria feito de mim se eu tivesse empres-
tado aos njeus queridos compatrícios a somma de no-
venta e oito mil e quatrocentos francos. Doeu-m<r
n alma não os soccorrer, e pareceu-me convenientt
tomar nota dos seus pedidos para me premunir, pa-
ra me armar contra as fraquezas do meu coração, con-
tra os conselhos imprudentes da minha compaixão,
assim como cá vou tomar nota do seu, que leva a to-
talidade á conta redunda de noventa enove mil fran-
cos. V
o infeliz Darnal ficou aterrado. Levantou-se em
quanto M. Dervilé escrevia, e lançando-lhe um olhar
de indignação, deixou-o sem diíer palavra.
A CRITICA.
A LKiTii.v ê um tributo que todo o candidato á ce-
lebridade tem de pajar ao publico: querer subtra-
hir-se a ella, por mui subido merecimento que haja.
é loucura; não poder tolera-la é fraquez.1. t)5 mais
insignes personagens da antiguidade, e pixlemos ac-
crescentar que os de tutlos os séculos, estiveram íb-
jeifos á. critica. Contra cila stí na oliscuridade ha re-
fugio. E uma espécie de condição inevitável de tod.i
a preeminência, quasi como as invectivas eram en-
tre os romanos uma ]v.rte essencial do Iriumpho
.■\ddiso>
Descoberta.
Vm egresso de uma Ordem respeitável, dedicado ii:-
teiramcntc ás sciencias, c votado ao ensino da gr;ini-
matica, arithmelica, !:oo;raphia, geometria, histo-
ria, &.C., per;unfando-lhe um seu discípulo, de cin-
co annos de idade, aonde se creavam a* castanhas do
Maranhão, respondeu com arltiagistral : — .. Criam-
»e dentro dos cucos. -
33
o P ANGRA 31 A.
257
niiiiiii iiiJii||,iiiiiiMiiiiiiiiTiTiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii(jiiii "11,1,"^
O DESCOBníMENTO DA AMERICA.
I'^M 1'. Riiipi» ili: inarmoro íiij:;iu('IiI>mi cm l.S}4 <iiui-
iiieri» dl" riíMh <^S(iil|)tiir.'is(|iioi'\l(;rii)iim;n((.'ilL'i'i)riiin
n (';i|iiliiliii (la riilailu loilirnl ila iiiiiãii .'iiiiiTicanii,
\Viii|]iiiji;li)ii ; ciiròij o porlicD il.i Imiiihi do iiinccnlo.
O llicnia <• o ilrsciihriíiiciilodo l\(JVO-.Mi)niii). Cliria-
liiviiin ( 'i.IiiiiiIjii i'Iu1uii |>Ími a<|iii'lliM'iiiiliiiciilc utlivi-
iili:idi> |ii'lo !i(!ii oii^ciiIki :, vollii-.sc parn a Kiirujiii c
musIra-Uii' iiiii gloln), «.'inljliMiiii d» linunida Irrrii, que
.< i'^iu>rai>ulii (' 11 inveja m> (ilj»tiiiarani a coiihidurar
'iiniii (ima cliiiiicrica li^ |iiiIIm'.i(.'. Km ijiiantinc ciitit'-
V;a iniuiratiiuiitc aos iiuii.iamciitii» (jiic llic iiiiiiidam a
jIiiiu de i^ravt' i'iilliii:iiii'>iiio, uma ímliaiia ut'uiili'iii|ila
\oi.. I.— OiTiuiio '!, IStT.
mm adiiiiraião r a<i iiicmio Icmpo Lom (cnior , ao^
ollios d'i'sla inullior, ('olomljo >■ uma vi^ã>)sullr^•uatu-
ral, uui semideus; vé-se <|Uo ella iu-sita se <l<'»or;i fu-
gir, bu prostrar-be respeitosa. A dilVereiíi;» da ei\di-
saeão entro as duas raens, está expressa nos eontor
nos uuiciíis o nlú em a nudei da selvai;em, lonlras-
tando eom o ar varonil e nobre atlituile ilo iieroi' eu-
ropeu. Os jornaes dos Kstados-riiidos liíoram »uliidi>
eloijio iCesla eoinposi(;ão, <|ue seria dilVuil asaliarpor
um simples i'slioi;o. l;ouva-9e unaniuienli na pli>
sionomia de ("ulondio a exi)ress,'io ila fui'crioriJaili-
iiitelleelual e da divriíidade nior.il , oljser\aiii>c n.<
•258
O PA>ORAi>IA.
moça Índia todos os caracteres distinctivos da raça
que representa. Em Nápoles d que o Sr. l'ersico es-
culpiu este grupo, ao qual consagrou cinco annosde
trabalho. O trajo de Colombo é de uma rigorosa fi-
delidade, -segundo afGrmani : o artista copiou uma
.nrmadura pertencente áquelle homem insigne, a qual
os seus descendentes conservam em Génova. O már-
more foi extrahido das pedreiras do la Palia em Si-
ra-Verra entre Pisa e Garrara. O Sr. Pérsico tinha
sido encarregado, precedentemente, de duas figuras
para a decoração do capitólio de Washington : a Paz
e a Guerra. K citada também como obra magistral
uma estatua colossal, que foi inaugurada no mesmo
edifício ha dois aniios : — o Jorge ^^ ashington pelo
csculptor Greenougb.
Ódio veluo são cança.
(Romance Histórico)
{Conimuarão do Cap. II.)
A EuLfiA crescia entretanto; os apupos c as palma-
das retuinljavam. Kra unia assuada verdadeira. De
quando em quando iam ao ar toucas, gorros e som-
breiros , choravam creanças ; as velhas altercavam ;
e choviam bofetadas. Gargalhadas grosseiras mistura-
vam-se com impropérios , murrose pontapés retiniam
cm cheio, e o rosuUado da horriveí matinada era re-
dobrarem as pragas e ameaças contra o padecente.
]N'uin abrir e fechar d^olhos o judeu, despido, ras-
gado e arrastado, com o rosto negro de punhadas, a
bocca cheia de sangue, e os cabellos arrancados sem
do, revolvia-se com gemidos pungentes entre dois
membrudos cyclopes da forja de Pêro Britador.
Dos degraus da picota, no meio das matronas se-
nhoras visinhas, a tia Dordia açulava as iras popu-
lares com exclamações furibundas.
— " Fel e vinagre a esse cão tisnado '. »
— 41 Lopo Secco, bradou o amieiro, açouta o ju-
deu, mas não lhe deixes tocar. Isso é matar '....«
exclamou, vendo sobre a cabeça do pobre D. Zulei-
ma alçado o remo d^um galeote
— u Assem-iro
Uuiva.
— u Olha a vasjoura do monturo!» disse oarmei-
ro para o diabo-coxo. — nOh tia Uuiva, muito tou-
cinho ha lá ])or casa » gritou elle.
A setta bateu no coração. A inalrona crasuspciiu
de parentesco com a raça pharisaica.
— «Não te calarás, excommungado ? fote brazas
te sequem as guelas, chaniiço do inferno I " rclor-
ijuiu a fúria investindo para o ferreiro.
— i' Simão Ferro, trazes a tua cntella? Corla-me
uma vara de lingua áquoUa serpente de clérigo ! "
acudiu Pêro Britador, virando-lhe as cosias.
A segunda injuria foi peior que a primeira. A
honesta Kuiva linha f.mia d'ah.'grara vida jionilcnie
d^um scr\o de Deus. Accesa em raiva ia replicar di-
gnamenle, quando Simão Ferro com os dedos callo-
sos lhe aportou os gorgomilos como cm uma lenaz,
obrig.indo-a ;i ficar sem resposta, o que niima até
aqncllc dia lh'acontecêra.
O motim aiigmeulaxa. Os improvisados algozes
iam principiar a execução. O judeu, supplicante,
com os olhos torvos de lagrimas estendeu os bruços
para o povo.
— "Cruzes, demónio!" rogougaram as velhas.
— '.Leva, cão!... Peior liicsle tu a Christo. »
Era um arcliaÍMno de mil e duzentos annos pago
fm açoutes por mestre Zacharias.
n'uma grelhai» guinchou a tia
— "Façaip-lhe traçar um porco vivo ! « disse uma
voz aflaiitada de monge ou clérigo moço.
— " Kefresquem-ii'o alli no rio" csclarooii um
besteiro torto.
Esta idéa obteve a unanimidade. Mil vorcs estou-
raram a um tempo, gritando ;
— " Ao rio I ao rio ! Mata I »
Nem o diabo-coxo, nem o armeiro, nem os vul-
canos da forja no meio da açougaria se entendiam cu
eram escutados. A revolta já deixava atraz os cabe-
ças. As turbas a cada instante remoinhavam mais
impetuosas. Em mó cerrada os populares começaram
a encurtar o espaç^o que os separava da picota. Lm
furacão de milhares de vozes saía do meio d'elle-.
Entalado e sacudido, mestre Pêro, Ião possante e
corpulento, volteava no meio do tropel, como a plu-
ma d um cavalleiro ao sopro do vento. Já se ia sen-
tindo desfallecer no apertão encontrado das ondas do
povo.
N'este momento o armeiro, a custo abrigado no
ultimo degrau do pelourinho, e perdida já de todo
a esperança de poder salvar o judeu, descobriu as as-
cumas dos besteiros do concelho, que desciam a Ín-
greme ladeira trazendo no centro Sueiro Gundes. al-
vazil da cidade. Os aniotinadog taml)em o apercebe-
ram, e como tigres recuaram para melhor armar o
pulo. Esperaram todos por elle em profundo silencio.
O alvazil e a escolta fizeram alto ao pé do pelou-
rinho, mandando recado ao mordomo para que nc
apressasse em lhe acudir. Sueiro Gundes, de altur;:
de um rapaz de doze annos, abaulado, pernas lorla»
e curtas, nariz grosso e arrebitado, suava por toHcs
os poros o ridículo orgulho da sua dignidade muni-
cipal. O silencio com que o recebiam parecia-lhe um
tributo de respeito, e a vaidade crassa desenhoa-«e
no sorriso boçal com que principiou a subir em pas-
so d enterro os degraus de uma escada que ia ter á
espécie de varanda, saccada fora da porta d'uma ca-
sa mourisca. De lá, assoprando de cançado, acenou
ao povo que ia fallar. Assobios, gargalhadas c mofas
rebentaram então de toda a parte \ porque fora do»
outros alvazis, o Sr. Sueiro Gundes era olhado como
o animal mais estúpido de Coimbra, com costclla de
mouro ainda por cima.
— " Burgiiezcs e homens villões I . . . »
— "llim ! him ! gritaram os rapazes, imitando o
desesperado fahcte do.. h.izil. Him! lera o marrão ! ••
Marrão, ou bacorinho, era a alcunha popular do
eloquente Sueiro.
— .. Meus amigos ...» continuava cllc.
— "Adiante ! " berrou um sj.deote.
— "Fora o sermão 1 » barafustava o povo.
O alvazil arregalou os olhns piscos, laml>eu os bei-
ços, tossiu, e inlcrionnenlc dava tudo para fc vèr
muito longe d'alli e diante d*um pralodcappelitosa
dobrada.
— " Em nome dos alvazis ..."
— " Morram os al\azis I . . . r. respondia a turba.
— "Soceguem. Deixem sair o honrado thesonreiro
d oirei, senão justiça e exemplo haxerá ... ai I »
Lm repolho pei|ueno. de-ipcdido pornião dc^-alma-
da, Uitendo na cara roliça do orador, poi em fugida
lodo o discurso, cnchendo-lhe a Ixicc» de dentes que-
brados. Ao mesmo tempo a cbolera [Hipular. ileqiio
era terrixel annuncio aquell.i violenta inlerpclação.
com crie n-se na mais compicla e eslrondo>a i.ir:;a-
lliada. As mãos que apanhavam |>odr:is largaram- ii'as
para ajíertar as illiarg.is. Por cim.n do púlpito de
Sueiro Gundes, iim di.ibrelc ilo s<>to para novo an-
nos, enrolado no bal-iiidráu de D. Zuleiíiia. acabava
de depor solemncmento na c-ilt-çii do Dcmoslhcnes
municipal a tuuca do judeu, enfeitada de duas medo-
o PANO II AM A.
259
r.lias orelhas de burro. Depois d'esta gentileza, ora- 1
paz desceu pelo muro por onde trepara no meio de
applausos numerosos.
A touca pharisaica eaquellas orelhas asininas oram i
(luas insolentes allubije<, como diríamos hoje, uma ao
sangue mouro, e outra á fraqueza d'enfendimentodo
digno alvazil. Ksle, atormentado da pedrada nos quei-
xos, efuluiinado pela coroação em plena f)ra(;a, fez- |
se verde-fulo de raiva, e desceu precipitadamente ao j
tom d'uma acougaria infernal,
A))onas recolhido ao centro dos seus besteiros, mes-
tre Gundcs, afoçado em ira, em suor, eemgordura,
mandou immediatamente alimpar o terreiro d'aqucl-
la villanagem. Isto, porém, era muito mais fácil de
dizer do que d'executar. Dos frecheiros unsencurva-
ram os arcos, outros sopezaram as ascumas, mas
olhando sempre para todos os lados. K que elles per-
cebiam perfi'i ta mente que, se os amotinados empre-
gassem a for(;a, liaviam de pagar com a cabeça o pri-
meiro tiro disparado contra o povo.
Um do» couleiros de Lorvão, velhote fresco, in-
corpado e baixo, saiu de um tropel de gente, e vi-
rando-se a rir para o adail do troço, gritou :
— 11 Sabes (|Ue mais, vai aprender apegar n^uma
liésta. Ksse arco não faz nada, homem. Mandas o vi-
rote de presente ás ameias da torre. Mais alto ; não
repuxes a corda, o abaixa o tiro ao vento. . . "
— uSe não bcijeres melhor a tua vez de vinho do
que jogas a ascuma, dizia um galeote, morres a be-
ber agua fria, veliio. "
— " Andar, besteiros! " exclamava mestre Suciro
enfurecido.
Mas os besteiros tinham excellenfes razões para
não andar — queriam levar as orelhas para casa. A
rapazia<]a, pulando diante do alvazil, batia-lhe as
palmas, guinchando: — n Puni ! l'ah ! prrr!..."
Os mesteiracs também faziam a segunda aos rapa-
zes com injurias mais pczadas.
— II Fogo, tavoleiro ! olha que ficas varado pelo
cavalleiro-conego ! »
— 1< Viva o alvazil Mafamede ! « gritavam os ra-
|)azes.
— "Sua mercê já veria a cara aos mouros.'"
' — íi Aos de casa, aos de casa ! »
— "Viva o alvazil! Vai á guerra a cavallo no
cão do monlomo ! "
Kra um cscanieo desaforailo, capaz irendoudecer
um honwni i\o jiiizo. Sueiro tiundes não ondoudfícia
porqiK.' nãi) tinha juizo, mas tremia de cholera edc
nii:d<j no centro da sua eoliorle pretoriana.
— ..() judeu ao rio 1 " bradou uma voz.
— iiO judeu eoalvazil-, são parlo da mesma vac-
ca ! " rcipimileu outra.
— "Mata, mala ! "
Vê a gimtalha difu um rcpiilão, que fi.z recuar os
bi".teir(js I' cair sulire oi joelhos o pol)re Sueiro (iundes.
Pcro lirilaíhir viu bem que a lucla não jindia.ser
hmga se ciiegasse a travar-se, avaliando as funestas
consiíqtienci.is (la victoria <hjs populares. Por issodo
alto do pehmrinhi), aonde se conservava, em grande
voz exclamou :
— " A mim, homens da forja da 1'iirlagem I fia-
Icotes de S. CuciiCiite .' •>
— II A mim, arraia miúda dei). Velaça ! " accu-
iliii com i'll(.' (I diabo-cdxo.
O hcisma já iirdia no campo dos grcL^w. Nomeio
lios massiçoH ilc povo nisgaram-su di> rípcnle duas
l"ila» largas e tortuosan. I';raui algun» galcole.i, mu-
ços du monie, e ferreiros iju(í rouipiatu á força viva.
— 11 A elles! ao rio ! ■> vozeava a gentalha.
— "O primeiro (pie der um passo nãose i]Ueixe ! n
gritou o amieiro estenih.Mido o braço
As companhas de Pêro Britador unidas aos bes-
teiros esperaram firmes o Ímpeto do povo. Um ins-
tante o conteve aquelle valor frio, e a distancia en-
tro uns e outros não se alargou. No meio d'esta es-
pécie de trégua uma pedra soou, e faíscando naco-
lumna, lascou-a, ferindo lume quasi diante dos olhos
do armeiro.
— «O teu arco! gritou elle a um frecheiro. Por
alma de meu pai, não torna aquelle a atirar outra."
K, enfezando o arco, elevou-o e soltou o tiro. Um
gemido agudo quasi que se misturou com o silvar
da setta ao partir da besta. Rolou no chão um cor-
po, duas mãos convulsas arranlsaram aterra, e mur-
múrios abafados sussurraram por entre a multidão.
— "Voltem cá outra vez!" bradou o armeiro eu-
costando-se ao arco desarmado.
Este sangue frio susteve a plebe minutos ; mas
passando o assombro, a reacção rebentou mais feroz
do qnc nunca.
— "Morram os traidores!" Repetiram mil vozes
estalando a um tempo, em quanto todos de tropel
se arremessavam contra a picota e os seus defensores.
— "Animo!" gritou Pêro Britador.
— "Firmes!" repetiu odiabo-coxo, e um comba-
te cego, furioso e tremendo se começou entre o povo
e elles. Era ferir corpo a corpo, braço a braço. No
meio do avançar e recuar d^aquellas ondas de gente,
avultava o amieiro descarregando a duas mãos a
acha d'armas, c abrindo largos claros pur onde pas-
sava.
dual seria o êxito? Era muito desigual o partido.
Pêro Rritador o os seus bem n^o sentiam, mas ti-
nham f(; no auxilio que esperavam, e já pelejavam
como desesperados para salvar a própria vida.
N^esta agonia o falsete dcSueiro (jundes, que ao
lado do judeu, apenas se principiara abriga, repre-
sentava o papel de espectador, retiniu acima do ala-
rido das pragas e do reboliço do eonliicto.
— "O soccorro ! .\hi vem o soccorro ! "
Eera verdade. Já se ouvia da banda da /Meaçova
a tropeada de muitos cavallos. Todos olharam. O
sol batia de chapa nos capellos brunidos, escintíllava
nas pontas das lanças ilos homens d'armas.
— "Fujam, fujam!" exclaniaram de toda apar-
to j eem um momento o terreiro e as ruas conliguas
ficaram limp.as de povo.
Instantes depois esvoaçava na praça o pendão de
Gomes Lourenço, colla(;o <relrei I). AtVonso, e da
sella do fogoso cavallo o moço cavallciro ouvia a his-
toria do motim contada pelo armeiro, commentada
por Sueiro (íundes, e glozada em suspiros eais pelo
moído D. Zuleinia. t) mancebo fechou os diíliates
por nm.i seiílença própria da cabelleira de Salomão:
— " INIesIre Zacharias, deixai-vos estar uns tempos
á sombr.i na torre das arcas. Em (ornando elrei iia-
vemos d'eiisinar cortezia a esta villanagem . . . por
Deus! fui atrevimento! ... E lu, meu armeiro de
não sei (pie diga, não <e ia saindo cara tambeu) n
lolia? Torn.i a tocar aos ursos, verás como dan-
çam ! . . . Melte-te a temperar montantes c azevana,
e deixa-te de fazer justiça por tuas mãos, homem ! "
— Tudo se faz, Sr. D. Gumes, mas com gente
que le entenda... "
— "Adeus! Nãij mo caias n\iiilra 1 (juarda-te
para a ])rinieira arrancada."
l'], dizendo isto, deu (l\.'<poras ao ginete, (|Uel.ir
gou u todo o gallopc direilo á piuite.
— Ouvi cá, D. J'".sl(!vlnho, acudiu o armeiro se-
gurando um pagem, (pie abelha mordeu em D. Gu-
mes lioureiíço, ipie Vai (pie nem um corisco.'"
— " l'ergunlai-lli"o a elle" respondeu alio o mo
ço ;^ e, iiielinando->e du cavallo. murmurou uouhtí-
260
O PAIS ORA 31 A.
(Io ílo armeiro umas palavras, (juc não firam Ião
liaixas que as niio ouvisse o juJeu.
— 11 Nossa Senhora o ajude '. "
— li Deus de Isaac ! E D. ligas, o irmão, aonde
jiara ; >'
— 11 Em Monleiíiór, com elrei . ,
ide
]i opaj;eiii desappareceu pelo caminlio (jue levara
o ca vai lei ro.
— II K uma loucurn ! :' dizia oarmciro sem levan-
tar a cabeça.
— 11 Sem a boa espada do irmão ! " rosnava o ju-
deu com ar contristado, olhando para l'ero Britador
com quem a adversidade o reconciliara.
— II A gente de Riba-Douroé vingativa e cruel..."
— "Como ncidiumaii respondeu mestre Zaclia-
rias.
— 11 Jlas Deus proverá. Vinde comigo, D. Zu-
leima. Temos pazes até o S. João. . . "
— II Por toda a vida, ])or Ioda a vida" acudiu o
judeu, que soubera avaliar aquella auiisade.
— 11 l'ois, toda n \iila n'y.i\ . . . mas lião de )ne
dar outra vet o meu foro de cavaliniro villão — por
arte vossa o perdi, e por arte vossa. . . "
— 11 O haveis de ter — juro pelas tábuas da L»ci. —
Mas aquelle nazareno vai mcfter-se n'uina. . . n
— 11 Peior do que a brija de que nos tirou I Pa-
receis amigo de D. Gomes Lourenço !...'•
— 11 Oh, muito'.... Deve-me cem maravedis-
replicou Zacharias com ingenuidade.
— 11 E devedor morto, credor perdido. Entendo.
Veremos, veremos! O melhorsempre éireu a Mon-
temor dizer tudo ..."
— II A Egas Lourenço .'...»
— 11 Justamente. "
E os dois, em perfeita harmonia, encaminharain-
se para o sitio da forja do honrado Pêro Britador.
Meia hora depois, se tanto, uma cavalgada de
pessoas, entre as quaos ia uma formosa dama rica-
mente vestida, partiu, vindo do lado de S. Crui.
Era D. Maria Paes Ribeiro, que se recolhia com
seu irmão D. Martim ás terras legadas por D. San-
cho, c confirmadas por Aflbnso II.
MÓNACO.
EsT.\ cidade é cabeça doliniitadissimo principado do
mesmo titulo, sito entro o Mediterrâneo eaprovin-
cia de Nice nos estados sardos. — No século decimo,
o im])crador da Alemanha, Olhão I, cleu a investi-
dura d'este principado a uni nobredacas;i Grinialdi.
Achando-se extinela, em Itiol. a descendência varo-
mil doesta família, afilha do ultimo priíicipe levou,
por casamento, |)ara a casa franceza dos Alalignons o
l>rincipado do IMoiiaco eo nome dos Grinialdi. Em
JGil, tendo recebido Honorato Grinialdi guarnição
IVanccza em Mónaco, o coUocando-sc debaixo do pro-
tectorado da França, Luiz XIII lhe dera para elle
e sua progénie o ducado do ^'alelltinoi4. Aos 1 ide
fevereiro de 17!)I), a Eraiiça ajunelou aquelle pu'-
quenino domínio ao território francez, o Mónaco
passou afazer parte do departamento dos Alpes Marí-
timos até os tractados do 1811, que o icslituiraiu
a seus [iriíieipes sob a protecção da Sardenha.
A capital, Mónaco, povoada por mil c duzento!.
habitantes pouco mais ou menos, está construída na
extremidade de uma península nas duas vertentes do
um outeiro. No meio da cidade aclia-se uma grande
praça quadrada, ocastcllo occupa umdosladoj, e dos
outros ficam os tribuiiaes e as prisões: trcs ruas se
I estendem parallelamcnte para o pontal do cabo, a
I igreja está no fim, e por detrai da igreja um tcrra-
I do sobranceiro ao mar. Sobc-se ú cidade por uma
! rampa calçada; seis portas vedam a entrada, abrin-
I do-se c fechando-se a horas prefixas, por ordem do
commandanio da praç;i.
: Todo o território de Mónaco, abrigado dos \enli -
do norte pela corda dos Alpes, o patente ao meio di^ .
desfrucla nnia loniperalura mui favorável a todas .i-
producções dos climas quentes ; n"ellc se c-ulheui com
abundância azeitonas, laranjas, limões \c. Asdivcr-
' sas escarpas das montanhas estão profusamente s;ilpi-
cadas de vorgcis defriicta d"espin!io, e de cactos, que
[ niinistraiii a paítagom iiin aspecto assaz picturcsco.
I Ao cahir da noite mvriadas devagalumcs reluzem s«)-
brc as ramadas, c fazem scíntillar Iodas as cmincn-
j cias como i'spclhos.
Mónaco )>re5umc fofamente remontar a stia funda-
ção a Hercules, quar.do este nume veio a Ibéria omi-
b.ilcr Gervão. Hercules para iii\erlir-$e cavou o (>or-
tode Monao. E c«>rlo (pie houve aUiuulr\ira um tem-
plo dedicado a Hercules, onde o reverenciavam s> '
o nome de liluiiacut. e fi)ra tahci a única divinda
de dV-slc pait.
o PAXORAMA.
261
Antes da revolução de 1789 o soberano de Mónaco
tinha sua corte permanente : passava na sua capital
metade doanno; davam-se alli muitos bailesefunc-
ções ;■ e durante o verão toda a ciirte se transferia a
Carnoletto, o St. Cloud do principado, pequena mas
bonita casa campestre, edificada no cimo da serra no
meio d'um vasto pomar d'espinho. O príncipe fazia
da sua bolsa as despezas todas, pagava todo o custeio
entrando os dos seus empregados; e cumprido tudo,
ainda podia pòr de reserva (diz um historiador do
paiz), annos maus por annos bons, uns trinta mil fran-
cos. O príncipe hoje reinante despediu aqueila peque-
na corte, permanece o maisdo tempoem 1'arís, e go-
verna os seus estados por procurafjão. — Orçam-lhe
os rendimentos líquidos em trezentos mil francos.
Os TEE» KKTEKnOS DE UM tONOlIST ADOR.
Guilherme o bastardo, conquistador da Inglaterra,
adquiriu nos últimos annos da sua vida umatalgor-
<iura, que Filíppe I, de França, príncipe inclinado
á jovialidade, disse um dia por gracejo: — atinan-
do parirá Guilherme .' " — O que sabendo este respon-
deu : — "Brevemente, e acabado o regimento, de-
pois da appresenlação na igreja, eu irei ofierecer a
Kilippe em vez de círios tantas lanças que o farei ar-
repender da sua chocarríco. >! — Com elVeíto não tar-
dou em abrir a campaiiiia com exercito numeroso,
assolou o território de Aexiii, tomou Slantes eare-
liuziu a cinzas; mas também aqui pararam as suas
proezas e a sua gloria, lim certo passo, indo a saltar
um fosso acavallo, deu com o peito tão violenlamen-
te de encontro ao arção da sella que licou mui gra-
vemente ollendido. .Mandou primeiro que o transpor-
tassem ;i Uuão, cabeça do seu ducado de Norman-
dia, e depois para IlermentruvíUe, terra doada por
seu avò Ricardo á abbadia de 1'écamp. l'or mais de
um mez soffreu excessivos padecimentos, e a tinal
succumbiu a 9 de setembro de 1087.
Apenas Guilherme exhalou o ultimo suspiro, to-
dos os que o rodeavam, prelados, barões, e ofltcíaes
<ia corte, foram accomuiettídos de uma vertigem tão
inaudita, que o historiador Orderico Vital a quali-
fica como loucura; correu cada um a fechar-secni seu
castello e a preparar-se ádefcza, como se a Norman-
dia estivesse ameaçada de uma invasão ou de qual-
quer outra calamidade inevitável: até dentro de Ruão
i-ntrou ínstanlaneamenle o terror, e tamanho e tão
geral (pie a maior parle dos habitantes fugiram para
mui longe, e os que ficaram foi por não saberem on-
de achariam mais scguiança ; todos, pelo menos, es-
conderam quanto de mais precioio tinham, siippon-
do-se ameaçados d:is mais tremendas inf<'licidades.
Diqioia da lolal dispersão da còrle de (iuillierme,
os indivíduos das classes baixas, que lambem (inham
fugido, voltaram ; e achaiido-se á 'olla sem sujeição
practicarani desordens de toda a casta. O caslellode
llerni<fnlruvillcconverleu-sen'um monienloem Ihea-
lii) lie absoluta devastação: osa(|U(í da liaixella, dos
movei» e rou|i:is fui Ião atrevido e completo (pie até
o corpo do falleciílo monareha foi achado semí-nu e
despojado do \i-ur,i\ em (|uo f(Va ínvolvido.
No meio d'e»la vertigem, de que ii historia não
appresítnia outro exenipío; quando todos não cuida-
vam senão em prcn>uuir-se contra uma ínfulicidadu
imiiginaria, ninguém podia Iraclar (tiem i^M) lho im-
portava) de uma obrigH(;ão rostriela, ofuiieriil do rei;
ealev(?, por tanio, o corpo kmu sepultnrii dur:inleal-
Runs dias, nlé (pie cmfiiii um genlillioiiiiiii, por no-
me ilerbiino de ( 'onlcvílle, movido a pr.ielicaresle
acto, como 80 exprime um liisloriudor cuiilemporaiicu,
por sua natural bondade se encarregou d" elle corajo-
samente por amor de Deus e pnr honra da nação ;
porque não estava ligado com o rei por vinculo de
parentesco. Procedeu, pois, ao funeral á sua custa,
ajunctando no castello de Hermentruville os eccle-
siasticos dispersos pelo terror pânico geral. Mandou
transportar o corpo a Ruão para o priorado de S.
Gervásio ; e o arcebispo dVsta cidade presidiu aos
officios religiosos: tendo, porí-m, ordenado este pre-
lado que o corpo fosse trasladado para Caen afim de
se" lhe dar jazigo na abbadia de S. Estevam, funda-
da pelo defuncto. nenhum official da coroa se appre-
sentou para cumprir esta disposição ; efoi mister que
o generoso líerluino carregasse com mais esta desptfza,
que era considerável. — O préstito fúnebre foi por
terra at(^ o sitio onde se edificou posteriormente a
cidade do Ilavre ; e tendo embarcado alli, dirigiu-se
para a foz do Orne. A" noticia d'esta trasladação, a
Úòr da fidalguia normanda e todos os prelados da pro-
vinda acudiram a Caen para tributarem ao rei de
Inglaterra as derradeiras honras, e repararem quan-
to n'ellcs cabia a desairosa impressão que deixara nos
ânimos ascena extraordinária, passada em Hermen-
truville. Chegado o dia aprazado para o desembar-
que, o abbadc de S. Estevam, acompanhado de todos
os seus religiosos, e dos prelados el)arões, foi proces-
sionalmente encontrar-se com o fúnebre cortejo, que
os es[)erava no arrabalde de Vauxelles á borda do
rio. Postos a caminho com segurança e com a gravi-
dade própria do acto, estavam quasi a chegar a S.
Estevam, eis que um súbito e violento incêndio, di-
que nunca se descol)riu a causa, manifesta-se siniul
taneo em muitos bairros da cidade, eos consome em
tempo breve. Lemlira então (pie semelhante desastre
succedi"ra em ^^ estminsíer durante a ceremonía da
coroação do mesmo rei Guilhornie, eque grande nu-
mero de habitantes foram vielimas das chammas, e
outros muitos foram esmagados pelas ruínas das ca-
sas; e esta recordação origina instantaneamente ou-
tro distúrbio como o de Hermentruville; ao menos
para esla segunda scena houve motivo ap|);irente e
de algum modo natural. Todos correm sem saber por
onde vão; param uns na veiga de Louvigny, outriis
nas terras lavradias ; todos procuram salvação na fu-
ga ; e em pouco tempo a deserção é completa. Só os
religiosos se congregam, só elles chegam á igr(>jn, e
só elles são testimunhas doenterramenlo, como antes
os padres de Westminster foram testimunhas da co-
roação do monareha. No entanto, um dos resultados
da confusão foi impedir que o ultimo aelo da cere-
monia fúnebre se practicasso n'a(|uelle (li;i. Os re-
ligiosos limitaram-se a depositar o esquife no pri-
meiro degrau do carneiro, <pie estava ao meio do co-
ro, afim de deixarem para os prelados a honra de lhe
fazerem as exéquias, conforme a igreja prcscri'\e,
constando do officio solemne e do encerramento for-
mal no caixão.
N'essu dia não foi menos numerosa a eoncurroncia
do que na véspera : havia-se apagado oincendío, ti-
nham V(dtado os fugitivos, e se resfabeleciVa asegu-
raiKja. 1'odia suppor-su que e.slavam acabados us in-
cidentes: errado calculo! Sem querer, Gisleberlo,
bispo d'Evreux, suscitou um de novo e mui singu-
lar. Esl(! prelado, que o historiador \ Ital iip|M'llida
nxnjito, priíuipiou a oração fúnebre, primeiro exem-
[»lo em Franíja (Pestes discursos de pompa, sendo o
segundo 300 annus depois (IjSit) nas exe(piiai de
l)iiguesi:liii. Gisleberlo, na sua oração, exaltou a»
magnânimas (pialidudes do rei Guilherme, oseu va-
lor na guerra, asua jusli(;a na paz, easua piedade
em tiiil.iH as occusiues ; porem concluiu por uma íii-
terpelhKjão singular na bucca de iim iiiiiiisliu daru-
262
O PANORAMA.
ligião, fallando da cadeira d;i verdade; — «Appre-
senfe-«e (disse) r^ualqiier que >e persuaila poder ac-
ciisar-me d'cxa!;ger.ifão ou falsidade." —
A principio algumas vozes attestaram quo o bispo
lallára certo c com verdade; em seçiiida ouviu-se
iini sussurro geral de assentimento, e por fim toda a
assemlfléa licou em profundo silencio. Ia consummar-
se oenterrarnento, quando um burgucz deCaen, As-
celino, fdiío de Artliur, rompendo peia multidiío,
sustou a ceremonia com uma allocução, Ião vehe-
iiiente quanto inexperada, contra um acto arbitrário
do rei.
— 11 Aqui da justiça! (clamou com vozretumban-
te) A<)ui da justiça ! Declaro perante Deus ()ue a
tcriM, onde querem depositar esse corpo, me pertence
legitimamente. lira nm campo que o rei (juiilier-
me, sendo ainda duque de Normandia, usurpou a
meu pai por abuso de poder: não lhe pagou o valor
(piando edificou esta abbadia. Reclamo este campo
por embargo da justiça, e vos inhibo de enterrar o
corpo do raptor na minha lierança." —
Imagine-se o assombro de quantos testimunharam
este enérgico e ousado protesto. l'ouco faltou que não
Iiouvesse nova deserção , mas ao menos a ceremonia
ecclesiastica foi outra vez impedida ; e o longo si-
lencio da anciedade seçuiu-se á primeira explosão do
espanto. Nenlium dos íillios do rei estava presente^
nem sequer o príncipe Roberto, que Ilie devia succe-
der no ducado de Normandia, podéra cbeicara tem-
po d']nglalerra, onde andava occupado em enredos
para tirar a eoròa a seu irmão Giiilliernie o ruivo.
Ninguém o representava nas exéquias, por conse-
(juencia, segundo o estalo, ninguém podia em seu
logar prometter o preço do clião usurpado. 1'íspcra-
vam todos inquietos que saída teria acção por tal
modo inaudita. No entanto Ascelíno nãosoarreda-
va da entrada do carneiro, mui resolvido a não o
deixar encerrar sem ter obtido reparação. l'or fim,
os bispos e Ijarões, lendo conferenciado, IheoHerece-
ram em nome d'el!es sessenta soldos pelo direito
da cova, f;:zendo-lli(! promessas de que feriam depois
attendidos os direitos oriundos da propriedade do ter-
reno. Rendeu-se a esta proposta o ousado burguez e
consentiu que se fechasse ojazigo; porém como tudo
tinha de ser extraordinário no enterro, não bastou
isto para que se conchiisse. Descem o dcfiinclo, e os
que o baixavam tralialhosamcnte chegam aos degraus
últimos, porque o corpo do rei, não obstante liaver
diminuído na moléstia, ainda conservava pozo e vo-
lume consideráveis: escorrega um dos homens, esca-
pa-lhe das mãos o caixão, que estoura, bem como o
cadáver, no fundo do jazigo. Um raio rpie passasse
pelas grossas abobadas do templo, no ni<>mento da
oração dos líeis, não os faria fugir mais amedronta-
dos, (iual seria a causa de tão desusado elleito?. . .
<-) simples estrondo não a explica. K venlade que
não : porém, d"aquellòs caixão roto exhalou-se um
fétido tão horrível que, apezar de Ordorico \ il)d,o
elironisl.i, reíerir que o corpo de (iuilhernie fora
preparado poios embalsamadores, polliuduru:, u to-
dos os que alli se acharam pareceu que aspiravam a
morte. Debalde o incenso subia ao ar em cohininas,
e os periunies corriam em enchentes, era forçoso fu-
gir ou morrer sullueadi) ; pelo que, nem a deserção
de llernientruville, nem o abandono motivado pelo
incêndio da véspera, podiam eomparar-sc á evasão
que occasionou este acontecimento extraordinário.
Terceira vez, depois da sua morte, Guilherme foi
abandonado pelos grandes e pido povo. Até o clero,
demorado por mais tempo om razão do seu dever e
caracter, a final se viu constrangido a seguir a geral
corrente-, abbroviou as orações que ainda faltavam a
rezar, e dejappareceu da igreja por todas as saídas e
em completa desordem.
(iuando o tempo fez perder ao máu cheiro sufD-
cientemente a intensidade, voltaram •, assentou-se
sobre o jazigo acampa, etudo ficou consummado. —
" D'cste modo (dizem os historiadores do conquista-
dor da Inglaterra) um monarcha poderoso e temido
foi deixado nu sobre o pavimento da camará onde
acaljára de expirar, o foi despojado da mortalha do
lençol por aquellcs mesmos a quem dera sustento.
Um dos reis mais opulentos da Europa deveu a se-
pultura á charidade de um súbdito seu. Ao senhor
de um grande império faltou chão para receber sen
féretro, ou pelo menos Ih^o disputaram. Finalmen-
te, um corpo que cm vida fora objecto de desvelos,
conduzido á igreja por um cortejo atemorisadoatra-
vez das chammas de um incêndio, só toma logar na
sua derradeira morada depois de ter sido de alzum
modo deshonrado pelo acaso mais inaudito e oppro-
brioso. Lições memorandas para aquelles que prezam
as vantagens materiacs e precárias doeste mundo em
mais do que realmente valem, e que não procuram
alcançar, refreando os appefites sensuaes e as paixões
desregradas, bens.mil vezes superiores ás delicias do
corpo, que já em vida é corrupto, e que depois da
morte só deixa poeira vil e insensível, n —
IMostrando o corpo de Guilherme por três veze^
abandonado antes do seu definitivo enterro, traça-
mos a historia de três grandes humiliaç-ões ; resta es-
boçar em poucas palavras a dos três grandes vilipên-
dios que sofiVeu depois da morte. — Ricardo, seu fi-
lho, lhe tinha levantado na abbadia de S. listevam
um monumento fúnebre, que consistia n"um sarco-
phago de schisto preto, collocado sobre quatro pilas-
tras de mármore branco, e rematado pela estatua do
duque, deitada como era do uso nos túmulos d'essa
epocha ; era todo o mausoléu adornado de obras de
lavor d^ourivcs as mais preciosas. Este monumento
foi três vozes profanado-, e da primeira (notável cou-
sa!) por ministros da religião.
Conlase que um cardeal, um arcebispo, e outros
muitos ecclesiasticos de alta jerarchia, visitandoa ci-
dade de Caen, em 152-2, tiveram a desassisada vel-
luidade de examinar o interior do sarcophago, e ob-
tiveram permissão para isso; que acharam o corp»»
do monarcha, que mostrava forra c grandeza extraor-
dinárias, e estava perfeitamente conservado! — Se a
circumstancia da completa conservação é verdadeira,
confirma o que escreveu Orderico Vital a respeito
de ter sido embalsamado, mas não concordo com a
putrefacção que presiippne a ultima scen.-i do enter-
ro. Fosse como fosse, achou-se no tumulo uma lami-
na de cobre com uma inscripção em verso francei,
que pelo estvio se pó<le reputar po»terior ao monu-
mento ; n'ella, depois de comparado Guilherme a
Carlos Magno, f,iz-se cmphaticanientc o elogio d.i
conquista d'Inglalorra ; e concluindo dii: — A mor-
te me desfez; que sou eu agora.' Nad» mais do que
cinza vil, &c. "
Depois dVsta primeira quebra da par do sepul-
chro, desculpável até rerto ponto, porque só leve por
motivo um simples ineenli\o de curiosidade, sobre-
veio outra muito mais criminosa. Em lotii, os hu-
guenotes, que andavam destruindo por toda .1 Fran-
ça os monumentos mais sagrados da religião e oi
mais caros á gloria nacional, devastaram. c<im espe-
cialidade quanto havia de precioso na igreja e mor-
teiro deS. Estevam -. eofijoram com tamanho furor
que ficTo ficaram tcsliyios, stnão ilos muros, diz um
auto lavrado nm mei de|>ois da profanação. Olumu-
lo doGiiilherme foi feito ped.nços, oscu ferefroaber-
to novameulc. e a sua ossada dispena. Dobras, auc-
o pa>orama.
263
tor contemporâneo, fjuo foi feslimiinha dVstes hor-
rores, só 03 relatou cm parte — ii porque {Ah) se eu
pretendesse enumerar e descrever pelo miúdo todas
as cousas de estimação que foram demolidas, despe-
daçadas ou queimadas nos dictos templos, não basta-
ria um mcz bem puxado." — Debras viu um osso
da coxa da perna de Guilliorme, que era mais com-
prido quatro dedos de travez do que outro de qual-
quer bomein da mais alta estatura. K indubitável
que a(|iielle osso fazia parte dos que se poderam coU
ligir depois d*aqucl]e successo, e que foram guarda-
dos n"um monumento singelo, erecto de novo, c que
tubsistiu até o nosso tempo.
Veio a tormenta politica de 1793; terceira vez foi
violada a jazida do illusfre duque de Normandia;
mas foi esta a derradeira, porque fizeram tão abso-
luto destroço que tudo acabou para sempre, mármo-
re, caixão e ossos. — Aqui termina a historia do cor-
po de (Juilbormeoconquistador. l'ergunta-se, — ha-
veria algum que fosse mais agitado durante ávida e
ainda dejwis da morte? Haveria algum que desap-
jjarecesso pelo concurso de circumstancias tão culpo-
sas?. . . Nenhum — crcinosque responderá a historia.
I<
AlISTO DA MESA 1)03 ROMANOS.
Não poderemos recusar-nos á admiração, se reflec-
tirmos na quantidade e qualidade fie géneros estran-
geiros que os romanos mandavam buscar com enor-
mes despezas, e nos cuidados mui especiaes com que
procuravam aclimatar vegetaes exóticos, e com que
Iraetavam de engordar mimosamente os animacs des-
tinados para as mesas. Tinham tapadas onde susten-
tavam javalis, cabritos inontezes, veados, três castas
lie lebres, &c. •, e estes animaes eram nutridos com
alimentos próprios da scui natureza e reílcctidamenle
escolhidos; d'esto feitio, os lirõe», espécie de ratos,
que eram então estimada galosina, e cuja carne pa-
rece que no gosto se assemelhava á do porco da ín-
dia, eram criados a bolotas e castanhas em cercados
á parte ; até os caracoes tinham seu recinto guarne-
cido de vasos para se recolherem, aonde os engorda-
vam com farinha cosida e amassada com viidio, de
modo que, segundo l'linio, chegavam a extraordiná-
rio volume: cslcs niiillus(!(is eram tão procurados <|ue
os mandavam vir da Africa e da Jlíjria. O gosto
por esla iguaria não parecer.! extravag.inte a quem
souber que um famoso eapilão IVancez dos nossos dias
uão deixa de engolir ao almoço uma dúzia de cara-
coes, que lho são ap])re^cnla(!os n'uii) paralhdogram-
liio de |)ra(,i, cheio de l)iirai'(is em rada um tlosquaes
vem uma ((jucha com seu c;iraeol cosido e tempera-
do com nullho appeliloso de h<!rvas aromáticas. Pa-
rece que era d'esle modo qnc os romanos os prepa-
ravam ; porque as receitas dadas por Apiciu ((/(• ob-
ioiiiis << í-ondimcidu lih. 7, cap. 10, jimj. 212 da
edirão de AmUirdam^ de 170!)) são as6i'guintes ; —
•iKiizei c|ue os cara<oes larguem a baba ])rinieiro em
leito salgado, depois em l(.'ite ])nro ; frigi-os em azei-
te ; e Bervi-os (|Uenles com molho ikias^d-fctida' i>'r-
menla, «ubsianeia de carnes e azeite ; ou do outro
modo, grelhni-os, borrifando-os sempre com um mo-
lho de substancia, pimenta o cominhos." — (^■«■moa
que II iis.sa-1'elida não é a gomma (pie hoje cunliece-
mos por esl(' nome.
llorlensio não dcMMi .i cclclirld.idi' unii-aiMeiíleao
seu laleiílo oralorio ; coulie-lhe o meiecinicnio deser
o primeiro (pie regalou os seus convidailos com um
piivao assado, ser\ido coiii tod.is ;is pennas, no ban-
quete qu(? deu para celebrar dignamente a sua ad-
missão no coll''gii) dos auguics -, este novo assailofoi
' então havido por grandíssimo luxo : mas em breve
se fez d''elle uso tão geral que seria ridículo dar um
I jantar sem pavão assado; era como hoje sem um pe-
I rú bem corado. Por este modo o tracto de engordar
I pavões tornou-se muito lucrativo: cita-se um certo
' Ophilio que por este misteç adquiriu um rendinien-
i to maior que os salários modernos de três emprega-
dos da maior cathegoria no Estado.
I Sobre tudo, os peixes eram em Roma objecto de
mui notável predilecção. Ajunctavam-iros em vivei-
ros em quantidade extraordinária, e nada se poupa-
va para lhes alcançar agua salgada ; Lucullo mandou
cortar um monte a Cm de trazer agua do mar «sua
tapada : alguns romanos chegaram a encana-la dos
esteiros para a casa do jantar, onde abertos os regis-
tos os convidados colhiam ás mãos os peixes vivos,
por não duvidarem de que estivessem frescos. César
mettia-se-llie ás vezes em cabeça dar de jantar aos
cidadãos romanos, que se envergonhariam de re-
ceber tão mesquinha pitança como eram os comestí-
veis que se distribuíam á plebe de Paris em certas
festas publicas; era mister haver peixes raros; e
n*uma oecasião César viu-sc obrigado a recorrer a
empréstimos para completar o seu banquete. Foi Mi-
rio Irrio que lhe forneceu moreias; e não Ih asquiz
dar nem vender, porém exigiu C|ue César lhe desse
palavra do restituir-lli'as em numero igual.
Seria para sentir uma immensa lacuna na arte de
cosinba dos romanos se ellcs não tivessem conhecido
as tubaras da terra, porém elles as conheceram e
apreciaram : para guizar este succulento tubérculo
tinham pelo menos seis modos dilferenles, alguns dos
quaes se parecem com as receitas de cosinha-las á
franceza.
A invasão dos bárbaros, as trevas da idade media,
e principalmente o costume que tinham os frades de
raspar os inanuscriptos antigos para escreverem as
suas lendas, causaram a perda de muitas obras pre-
ciosas da antiguidade. Porém, Deus louvado, a fra-
daria respeitou o tractado de Apicio sobre a boa me-
sa, no qual explica, com um desvelo digno de elo-
gios, a arte de lazer as conservas, as maneiras de
preparar os diveríos guizadus, e os condimentos pró-
prios para cada um dVlles. Três individuos se conhe-
cem do nome de Apicio, todos três famosos pela [)ro-
p(M)são á gula, que parece hereditária n'aquella feliz
iamilia : um viveu em tempo de SvUa, outro nos
reinados de Augusto o Tibério, e o terceiro impe-
rando Tiajano ; o segundo foi o que compoz a obra
(|Ue cilàmos, e para se vêr que escreveu no seu ra-
mo, e caracterisa-lo, assim como o f nisto d. i mesa do
seu tempo, basta a seguinleanccdota. — Ouvira elle
dizer que env certo porto do Adriático se comiam ca-
marões mais cheios e saborosos doqiie osqiie vinham
nos mercados de Uoma. Era tão apaixonado de bons
boccados, que não socegoii cm quanto não fretou de
propo«ito um navio para ir pessoalmente verificar
aqiielle facto importante. Quando a embarcação che-
gou á vista do porto, pesradores informados pela fa-
ma lio nome do celebrado viajante deram-se pressa
em ir a bordo ollereccr-lhe os maiores camarões (|ue
tinham podido colher : porém, Apicio, depois deaf-
tento exame, não os achou preferíveis aosijueecuni.i
em Uoma; e vciido-se enganado na sua expectativa,
fez virar de bordo sem digniir-so sequer pi^r jié em
terr.i.
Da
rlMI-INUMA lO.MO CASTO.
Nada devemos desprezar ])iira aiignicnlarmos os ri'-
ciirsos das pastagens, que são sempre u lado fraco dai
cNplor.içõcs ruracs. Se os cultivadores dessem lod.i n
264
O PANORA31A.
importância tlevi<ia ao emprego <re5tcs recursos, po- ■ — n Repito-vos, senhores, que vos devo diíer com
(luriani approvcitar as pontões, appareiítomente mais quem esfacs fallando : eu sou o carrasco de Paris-, ca-
citorcis, do terreno confiado aos teus cuidados :, por ; sei minha filha e festejamos o casamento,
quanto nenliunia lorra ha tão má onde não possa Os mancebos hesitaram se entrariam ; uma forja
crescer uma planta para pastagens, podendo concor- j occulta parecia puxar-lhes os pés para a porta da rua,
rer pela producgão dos estrumes para a prosperidade j mas d^aíii a pouco recomeçaram a rir c- a zombar, e
de toda a explorarão. A pimpinella, desde muito i aUororados com a lembrança de poderem dizer nas
tempo conhecida, contenta-so com terrenos os mais , salas ;do paço de Vcrsaillcs : u Dançámos em casa do
áridos, principalmente <juando elles são mais leves j carrasco de País" foram logo tirando para pares as
!o que compactos : as expericncias seguintes, publi- mulheres mais bonitas que alli estavam, e principia
radas por um cultivador allemão, são a todos os res-
peitos dignas da attenção do leitor.
"Tendo os jornaes agrícolas recommendado a cul-
tura da pinipiíicHu dos prados [pclorium santjnhor-
lia) como niuilo própria para pastagens, alcancei a
semente d'esta ])!anta, e em Ij de abril do corrente
anno semeei meia geira de terreno arenoso, e um
(juarto de geira do terra forte e húmida. O primei-
ro campo teve uma cava profunda, e o segundo foi
lavado com enxada.
As sementeiras seguiu-se um tcmposecco; fiz pas-
sar o cylindro de rolar sobre o campo arenoso: as
sementes rtobenlararn, mas a vegetação era fraca. So-
ram a dançar.
O conde de Lally ficara só ao pé do dono da casa.
que interrogava com curiosidade.
— íi Não sois vós que fazeis as execuções?"
— «Do ordinário não sou eu-, tenho ajudantes;
não sou obrigado senão a assistir a ellas. Mas toda
a vez que o condemnado for al;;ura fidalgo da pri-
meira grandeza, por dever, e até por honra minha,
hei de eu mesmo fazer a execução. »
Um riso sardónico entreabriu os lábios de Lallv,
o qual se retirou d^ahi a pouco.
O conde era valente e audaz; tinha-se distinguido
no campo de batalha de Fontenoy á vista de Luiz
^llllUlil^J II, IftllltiKHlJ) •1IU'J H »».çj*-n.»-^>«*' v,l« ■■.ti... P —. w . -- [ — - — — — ^f — ......._ — —
brevindo porém as chuvas, as plantas lançaram gran- XV, e ousara ir a Inglaterra formar uma conjuração
des folhas de iim verde escuro, e a vegetarão tornou-
se ião forte e Ijclla que causava admiração. Tendo
cada semente lançado três ou quatro ramos coroados
(ie flores, mandei-os segar cm á de julho para sus-
tento do gado : as vaccas os comeram com avidez, e
notaram que este sustento lhes augmentára o Ifite.
Depois do primeiro curte, a pimpinella repiodu-
ziu-se com mais força, e dou tamljeni um pasto mais
abundante ; o terceiro corte foi ainda mais rico que
o segundo:, mas sobresindo as nebrinas tive de de-
sistir de outro.
O segundo campo (terra forte) alimentou a planta
muito bem, mas não obtive uma collieifa Ião abun-
dante porque dera ajjcnas um corte. Desde lo de
outubro, os dois campos semeados de pimpinella ser-
viram de pastagem durante trcs semanas a três bois
de trabalho, e os sustentaram perfeitamente. >'
A MSITA Dl; MAU AGOURO.
para restituir o Ihrono aos Stuarfs. Depois de des-
empenhar uma missão na Rússia obteve o posto de
coronel, e com pequeno intervalio o de tenente ge-
neral, com o governo das possessões francezas nas ín-
dias orientaes. Nas primeiras acções que teve com os
inglczes favoreceu-o a fortuna; perdida porém a ba-
talha de ^ladras, viu-se obrigado a cnlregar-lhes a
praça de Poudicberi, onde se recolhera e que elle^
arrasaram. Um sem numero de pessoas a quem a so-
berba e más palavras do conde haviam indisposto o
accusaram então de se ter vendido aos inglezes, que
para o salvar, o transportaram a Madras, e de lá pa-
ra Inglaterra. Q.uiz tornar para França e escreveu ao
duque de Choiseul : aqui trago a minha ccUn-^a e a
minha imwccicia ; espero as vossas orJetxs. Enccrra-
ram-n'o na Bastilha, e depois de longa detenção uro.-»
sentença de (j de maio de 1769 o condemnou a mor-
rer degoUado, por haver trahido os interessfs do rei.
do estado, e da companhia, e cummcttido abusos de
uuctoridade, vexames e exacções.
Estava culpado ou innocenfe.' Esta sentença con-
dcmna-o, outra de 17TS rchabilitou-lhe a memoria.
O certo é que ao cabo de quinze annos, contados qua-
si dia u dia desde aquellu em que teve logar o dia-
logo que repetimos, o mesmo carrasco decepava a ca-
U.vi bando de mancebos nobres e estouvados corria,
alta noite, as ruas de 1'arís. Tinham bebido bem e
vinham investindo as pessoas, que ainda áquellas ho-
ras se aventuravam a andar por fira no fim da pri-
meira metade do século passado, eque, poracaso, to- i beça de Tliomai Arthur, conde de I>allv e barãode
])avam no caminho. Capitaneava o bando Thomaz | lolleiulal.
Arthur, conde deLalh, fidalgo gentil, casquilho,! G.ueni fosse ha dez annos ú rua de Marais, por
amigo de se divertir, ebiillienío como ))odia ser um | dotraz do Diorama, e batesse á porta de uma ca«.^
miiço escudado com a impunidade inherenl.! a um i de bonita apparencia, seria recebido por um homem
nome respeilavel. Ao entrarem na estreita rua de S. | muito parecido na cara com Luiz \VI. Esfebomem
João, de ordinário muilo sueegada, ouviram tocar ! tractaria com civilidade o visitador e rcípondoria.is
contradanças; olharam para ciina, e viram imia ca- ' suas perguntas sem a menor repugnância. Sem se f.
sa coin niuitas luzes if um terceiro andar. ■ zcr muilo rogado lhe mostraria oscu museu, comp -
— ..É aqui, disseram todos aumavoz; dança-se ; ; to d"uma pequena guilhotina de mahogoiio, e d"u:
subamos e dancemos.," i '•"'S'' '•'"'ello. A guilhotina foi o primeiro modelo q>:
— Dielu e feito; puxam pela campainha : nmho- ' se fez d"csle instrumento, o cutcllo o mesmo c
mem que no rosto inculcava franqueza e sinceridade ' que eram degollados os fidalgos que n'outro tciiii
veio rcccbe-los á c-cada. tiidiam o privilegio de não morrer enforcados. D'
Somos pessoas capazes, lhe disse o conde; te- l'»Í5 de lhe mostrar uma grande bocea na parte in:
inoi paixão ]>ela dança; viemos por acaso tor ao vos- rior do cutello, dir-Uie-hi.i : ..No tempo de nn-u p.
hu bairro, e não pudemos resistir á idéa dcvospcnlir ■ gosavam os fidaljos da côrle d.i prero^ativa de is!
licença para dançar em vossa casa. •• ' '<"'"> sobre a pl.ita-forma do cadafalso cm quanto -
— '..De muilo boa vontade vo-la concedera; mas, f.niam as execuçõc*. tiuando cortaram a cabeça
senhores, aiiles de entrar bom é saberdes cm casa de -Mr. de LalK. um fid.ilgo moço empurrou o br.i.
quem «ntraes. » do ii;cu pai, desviou o golpe, e a folha d'oste cuti ;
— "Glue temos com isso'. Sois um homem bem lo nbriu uma l^jcca batendo n"uni dente do jus'
criado L q':c mal cstarcinus cm vossa casa.'- ç:ido.
34
o PAI\ORA3lA.
265
^gmv^^^si
VISTA I>£ CAPai, DO I.ASO S£ NÁPOLES.
As EMEROicAS paginas de Tácito, descrevendo as dls- '
solu5<7os de Tibério, deram nomcaotu [)L><|ucMa ilha, j
laii^'ada na iMitrada meridional do golplio de Nápoles, |
ein face do cabo de Sorreiíto.
Auiçu^to César, antes d'af|iielle tvranno babitára '
Cajiri ; e a linha rpe<;l)ido dos na|)olitanos em cambio
du ilha de Iiehia, que lhe^ lia\ia toniailo c (|nel!ics ;
restituiu por isle prec-o. J')ni (|Uanlii os magnates ro- :
manos c<jmp<'iidia\aiii as suas dilieias nas lillas ou '
<|iiinlas espalhailas nu costa fronteira do golphonea- '
polilano, em Jlaias, l'uu//olu, e nu amenissimo l'au- {
bilippo; Au;;usto foi postar-se diaiile d'elles, como
para \ij;ia-los, da outra banda da extensa bailia, n\'s-
la illia aprazível csoce-çadii, «pie o promontório Atlic-
iieu, boje cabo de Si*rreiilo, resi^uarda, no inverno,
dm ventos inipeluosos, e ijue a brisa do mar, duran-
te o verão, tempera com agradável frescura. Alii re-
tiiliu (pialro aiinos, paru o fim da sua vida, e levan-
tou obr.iH de <pie ainda vestijjios existem, i) aspecto
radiante e bunaneoio (Pesla ilha formosa parecia us-
ni^nala-lii para liabita(,-ão predestiuaila de Au!;usto,
e todavia é o nome terrível do Tibério (|ue painiací-
niu de suas recorilaeões, e (jue não cesiam ij<' re|ielir
cum horror os liabilantes de suas praias afortunadas.
'J'iberio mandara eonslruir no illieu di? Capri, <|ue
não tem mais de du.is lei;mis <le eomprimcnto por uma
de lar;;iira,(lo/e palaeion, ipie deiliciia aos do/.e nu-
mes superiores. .Mal se ilisliiii;iiem boje, pela maior
p.irle, os residuíjs desses edilicios;, subsistem apenas
ilii'erees, ipie lei.ni sido poui'o(r\cavados, ealór.iisso
|].'io se leni deseuberlo mais do cpie alu;umas camarás
subterrâneas, rr.i;.;meiitos de mosaico, e medallias,
\oL. l.— Oinr.iiu IG. 1SÍ7.
em sítios avulsos. A incúria tem deixiidous abrolhos
|)aciricamente cobrirem os despojos da magnificên-
cia imperial ; o ferro do arado é o instrumento úni-
co, (ju(! de luní;e a longe e ao acaso, busca na terra ,
os monumentos, testiniunhas de uma notável epo-
cha da historia romana.
Em (pie ]iiTÍodo se desfizeram em pó os palácios de
Tibério í — t) pharo, situado no pontal da ilÍKi [xira
o lado do promontório Atlioncu, desabou poucoantes
da morte do imperailor, como núncio dos futuros es-
trug(js. ^ inte e seis annos depois i!e Tibério haver dado
o derradeiro arianeo, um espantoso terremoto, que om
toda a região itálica se sentiu, e que >ião era mais
<|Ue o precursor de mais terrível calamidade, derribou
a melhoria dos monumentos de I'oii>[)eia, que se tem
achado cerculns do lodo o .ippar.ito da reedifua(,ão :,
porquanto, d"alii a deteseís annos, no 71) da craehrís-
làa, reinando Tilo, a iiiaxíma erupç.lo, (|ue rasgou a
i cratera do \'esu\io, e<pie submergiu l'ompeia e llet-
culano, luuilou largamenie a fóriíia do eontiiiente v
fias ilhaii. l'arece que antes (Pesla c.ilastrophe, fapri
tivera un> esteiro que abrigava as embarca(;ões neces-
sárias li segurança de Tibério, e de que boje nfio hii
indicio. L'ina convulsão que «ssimdeii á ilha aspecto-
novo devia forçosamente derribar os palácios. (Inait-
do no século segundo, a mulher e a irmã doimpura-
diw ('tiinmodoesliviTam di'sterrad.is em ("iiprí, sodv-
\eriam achar os enlulbos d. is moradas <le'l"ibcrio. A
idade medí.i, que arremeeou os sarrneeiíos jiuraestii»
cosias, pouco trabalho leria par.i lompli^lar ,i dvvasta-
eão iliis edifícios (|ue por ventura uinila subsísiissciii .
l'ui imperador, ipiu suílenl.iva ciilão com «splmduv
2G6
O PAiNORA31A.
o nome augusto dos antigos romanos, Frederico Bar-
ba-rdxa, quiz ter um palácio na mesma ilha que Ti-
bério habitara, e o fez construir no mais alto píncaro.
Flavia muito (era no século duodécimo) queascons-
trucções dos césares tinham sido arrasadas.
A ilha tem a figura de uma grande barca prolon-
gada, e duas agulhas oppostas marcam, como dois mas-
tros, as extremidades. Entre estas montanhas pedre-
gosas de cada uma das pontas ha uma faxa de terre-
no chão que atravessa a ilha, equeconstitue um dos
mais agradáveis sitios que se podem imaginar ; é to-
da coberta de murtas, oliveiras, amendoeiras, laran-
geiras, figueiras vinhas e terras de semeadura, que
te mostram de uma bellezaefresquidão encantadoras,
Ahi está sita a cidade de Capri, com dois ou três con-
ventos, o paço episcopal e perto de 1:800 habitantes.
No vértice da parte occidental, a qual não é mais
que uma rocha continua, por extremo elevada eiiiac-
cessivel da banda do mar, tem assento a povoação de
Anacapri, com 1:700 habitantes. O montechama-se
Solaroi e sobe-se a ella por uma rampa, talhada no
rochedo, e que não tem menos de ÒOO degraus. Che-
gando-se ao cume da base do castello de Barba-ròxa
desfructa-se a mais linda vista que pode haver u^este
paiz admirável. — Para o sul a vasta extensão do Me-
diterrâneo ; ao poente asilhasdelschiaeProcidaque
guardam a outra margem do golpho de Nápoles, a
enseada de Baias e Pozzolo que lhe aformosea a en-
trada; ao norte o golpho em todo o seu brilho, a ci-
dade estendida na falda das collinas, o Vesúvio que
fumega sobranceiro á bella praia d'onde surgiram as
cidades que engulíra, substituídas por cidades novas :
no oriente o promontório de Sorrento, de que parece
ter sido Capri um prolongamento, separada talvez
por algum fortíssimo abalo era remotas eras:, além
do cabo, novo golpho, maior que o de Nápoles, que
com este forma contraste severo, o de Salerno, nas
duas praias do qual dormem duas cidades arrazadas
pelos séculos ; P;estum, scpulchro magnifico da ar-
te grega ; Amalfi, tumulo, não menos curioso, do
commereio e da liberdade da idade média. — Taes
são as recordações que suscitam as diversas perspec-
tivas que se avistam do cimo do monte Solaro ; po-
rém, para reproduzir a magia das cores e das linhas
d'este espectáculo único, seria inefficaz e nuUo o
mais hábil expressivo pincel.
Ódio velho s.vo casca.
(Romance Ilistorico)
111
A mão direila ou a esquerda '
A CAVALGADA de D. Maria Paes entrou n*um val-
le, apertado entre outeiros viçosos, os pampanosdas
vinhas penduravam-se sobre um regato, que fervia á
sombra de grossos castanheiros. A traz desdobrava-
se a perder de vista a charneca lisa e árida ; aqui
e além rangia a copa esguia do pinheiro, erecto no
meio das urzes e murtas bravas, como senti ncUa per-
dida na solidão. Adiante o sol, no occaso, dourava
de pallidos rcUrxos as ameias negras, e a torre agi-
gantada do paço acastellado do uma honra. O sopro
da aragem ciciava, brincando, nas largas preças do
pendão. Aquella fortaleza era o castro d'A\ellans,
dcado por Sancho I a Gomes Lourenço, o alferes o
amigo de seu filho, D. Aflonso.
Chegando defronte, todos colheram as rédeas por
movimenio simultâneo-, D. Marlini Paes levautou-
se noj estrlbof, e mirou em roda. Virando-sedepoi»
para um homem já de idade, coberto da loriga tran-
çada de tiras de couro cru, perguntou :
— «Tello Ervi^iz de quem é aquella torre ? si
— "A honra d'Avellans ' . . . r>
— «Sim! Não a deram a Gomes Lourenço?»
— "Dizem que deram."
— " Glue vos parece — accrescenfou o cavalleiro,
olhando para um monge de Cister que levava a e»-
querda — atrever-se-ha o de Riba-Douro?"
— "A raça do Espadeiro tem fama de não dobrar
o joelho senão a Deus»» respondeu o frade.
D. Martim sorriu-se ironicamente. Depois, rol-
tando-se para sua irmã, continuou com apparentc
tranquillidade : — "D. Maria, é perigoso este passo.
\ oltae atraz; e Ervigiz com dois homens d"arma»
que vos acompanhe, n
— «Não irei -, nunca dirão que uma dama de La-
nhoso fugiu do pendão dos Viegas de Salzedas. r>
— "Mas se elles vierem, minha irmã? ... o qne
havemos de fazer d'estas creanças, que não podem
com uma lança, com estes velhos, que já deram o
que podiam dar? . . . Melhor é tornar ao conto de
D. Nuno. Faz-se amanhã a jornada, n
— .. Que vergonha ! . . . Quereis que o nos^ no-
me seja a fabula de Coimbra ? . . . liei de ir para
diante, só que vá. "
— .1 E Deus comnosco ! " murmurou o monge.
— ".Amen! reverendo nono, respondeu o caval-
leiro. Adiante, vamos! Não quero que se gabem os
de Salzedas que Martim Paes da Ribeira, fugisse
da sombra do mais moço dos Viegas. Não, por Sanc-
ta ?laria. Ainda que ahi nos esperasse Egas Moniz,
o velho I I»
O frade perguntou com timidez : — « Dura ainda
a guerra entre vós c elles .' >»
Antes de responder, D. Martim passou a mão pe-
la testa com tristeza.
— «Pizastes a terra de Sancta Maria, e repousas-
tes á sombra dos carvalhos do meu solar de Lanho-
so, e perguntaes-m^o ainda ! r>
— « Q.ue ódio tão velho ! . . . "
— «Como o sangue que nos corre nas veias. Des-
de que houve solar era Riba Cavado, e forre na ca-
sa dos ^ iegas, abriu-se uma cova entre elles. ••
— »E assim se perde a ílòr òcs bons cavalleiros !
Se querem morrer, se tecm pressa d"acabar, não es-
tá aberta ahi a fronteira dos mouros?. . . por qu*
não morrem pela fé ? "
— « Primeiro linipae o sangue que rcssuma das
pedras dos nossos castellos, acudiu o cavalleiro com
j viveza. Tirae-nos a memoria c o coração d'aqui . . .r>
• E dizendo isto loxava a mão ao peilo cá cabeça cora
! ar maguado.
I Houve então uma pausa longíi, durante a qual os
dois caminhavam sem proferir palavra. D. Martim,
passados instantes, ergueu a fronte, c com um sus-
piro exclamou :
— «Ai, padre! Muito sangue tem Iwbido aquella
terra do Minho. . . e do melhor de Portugal. >■
O monge niio resjiondcu. nem levantou 04 olhos.
O cavalleiro, pondo-lhe a mão no honibro, prosejuiu :
— "Já ouvistes contar .ilfuma vei a historia da
torre velha de Saneia Olaia? Não a sei íx-m ru.-
— "Tenho-a de còrtod.i. replicou o frade. E uni.i
historia que fax esfriar de horror. "
— "D''ahi vem, dizem, a rixa com os de Riba
Douro."
— "E ódio que envelheceu com os socuK^. •♦
— «E! c diz-sc que, na n)c»mn taça mi>tiirado, o
sangue d'uns coui o sangue d"outr« não se une. Nè-
de lá : "
o PANORAMA.
267
Tornaram a calar-se ; e ainda foi Martim Paes
quem rompeu o silencio. Como se respondesse a um
pensamento interior, e cruzando os braços, o caval-
leiro exclamou :
— 11 E ha de se esquecer tudo ... lia de.se per-
doar istp ! "
O frade olhou para elle pasmado. D. Martim per-
cebeu que era uma interrogação silenciosa.
— «Tendes irmã?^' perguntou de repente.
TJm aceno de cabeça negativo foi a resposta.
— « Abençoac o céu. Nunca soubestes então que
amargura ó não se atrever um cavalleiro a dizer al-
to o sou nome, sem divisar na bocca do todos um
sorriso que lhe enterra a infâmia pelo coração, como
iirn punhal. "
O monge fitava-o com espanto. Não entendia
nem as palavras que ouvira, nem a tristeza com que
furam dietas.
— u O solar de Lanhoso estaria deslionrado, sancto
monge, continuou o cavalleiro, so houvesse n'elle
um covarde. SIas Marlim Paes, o descendente de
reis godos, o neto do conde Oseiro, soube guardar a
herança de seu pai, soube vinga-la ! . . ."
E nos olhos pretos e rasgados do irmão de Maria
Paes reluziu uma faísca de cholera. Tinha feições
mais bellasdoqnede ordinário costumam ser as dos ho-
mens ; masfaltava-lhe a expressão viril, que dá o va-
lor seguro de si o confiado na sua força. Notava-se na
sua physionomia o que quer que era de carregado e in-
quieto. A vista do observador nada bom e generoso
podia divisar n''olla ; c momentos havia cm que, re-
bentando n^um relâmpago a raiva do coração, illumi-
nava as paixões más que lá dontro bramiam vingativas.
Kr. Miinio, cedendo ao Ímpeto natural, sem saber
o que dizia, exclamou :
— " E se não soubesse, e se deixasse manchar da
calumnia iini nome noijre, sem cravar de pese mãos
o traidor, merecia que lho cliamassem covarde. "
— «Obrigado, reverendo nono, obrigado! bradou
o seu comp.inhciro. Não se dirá com verdade. Meta-
de da divida ostá paga, e a outra . . . pouco lia de
»iver quiMn não a ajustar. "
— « jUtíi culpa, mca culpa! nmrniurava, caindo
em si, o |)()l)r<.' frade. Preguei o orgulho, eu quodc-
»ia ensinar a humildade!"
— "Está p;iga ! proseguiu arrcljatadanicnte o ca-
valleiro. Uma filha do solar de Lanhoso, a mulher
que ch.imam minha irmã, atraiçoando o sangue de
|>ai e mãi, vendou o nome ao inimigo da nossa ra-
ça . . . nem ella nem quem lh'o comprou se riem
já I . . . Deus lho perdoe, porque morreu \ c a mim,
»i! ajustei de mais a conia . . . não me restam remor-
ios. O (|ue iiz, hoje, outra vez, tornava a. . . . n
— « 101 la morreu ? »
— «Como havia de viver, padre, ilepois d'aquil-
lo .' . . . mas demais filiámos n'oslas cousas. "
Eiilr<;tidos n'e'ila conviirsação, linhani-se insensi-
Yolmcnle approximado do castro dW\cll.iiis. O ca-
minho, cavado entre ralicços, ia fichar a uma cla-
reira, onde dois freixos allos e nodosos sobre a liinlc
ninurinca chamada (Pm/iius daccs, curvavam os ranjos
«i li-ciam uma espécie do toldo vireiíle. l)'alli partia
a ladeira enipinada, que se enroscava em vollas si-
nuosas alé a poria do easlello. O vnllo niassii;o do
alcaçar, chboç.ido no clarão duvidoso, avultava a dis-
tancia \ e na aresta das ameias esmorecia cada vei
muil o filele .'ilaranjado do sol poiMili-.
— " Ei-1<), o pendão dos sciberbos invalleiros do
Salzcdas! liraduu Marlini l'ai'». Viegas de Sal/.cdas,
os tcut parentes lia/eiii iini iioint» muito pe/adu pam
«liei — nãu ha uni que piissa aluvantar o moiilaiilc
tio Eiipaduiru ! ><
E o rico-homem de Lanhoso sorria com desdém
para a torre, no alto da qual o vento desdobrava a
bandeira quarteada de vermelho e branco cora o açor
voando.
O monge não abriu a bocca.
— «Cedo virá o dia, proseguiu o cavalleiro, em
que os homens não fallem d^aquella raça orgulhosa
sem chorar do dó pela sua queda. Os mesmos inimi-
gos hão de chegar a ter compaixão d'ella. E o açor,
accrescentou rindo, o açor sem garras irá esconder-
se entre os penhascos nataes : então os filhos de Salze-
das hão de procurar pelo ninho paterno . . . e o mais
pobre ha de abençoar a sorte por se não chamar
d'aquellc nome !...?•
Kvoltando-se para o f:ade perguntou com voz rou-
ca :
— « Como tracfaveis o homem que fizesse de vossa
irmã uma cousa vil, e do nome de seu pai o escar-
neo do ultimo villão .' "
• — " Malava-o ! » replicou o monge, fazendo»se
branco.
— «E deixei-o viver, eu! respondeu Martim
Paes. — Mata-lo! . . . pedia-m'o de joelhos, elle! . . .
Estes homens de Salzedas não lêem medo do morrer,
padre ... a allronta, o desprezo é que os decepa. "
— « GLuc lhe fizestes vós então?"
— « Ceguei-Ihe os olhos, c com um ferro cm bra-
za escrevi-lhe na testa o que se põe no hombro do
captivo fugidiço : escravo de Lanhuso. "
— « Jesus ! » bradou o monge, tremulo.
— u Oh ! aquelle não torna mais a ser homem I
Matei o cavalleiro, c quiz que vivesse o serviçal pe-
dindo esmola ao soalheiro da praça, encostado ao
bordão de mendigo . . . Aflbnso o lidador, querido de
Sancho I, pagou-nie com mil mortes a allronta . . .
oh que chaga para o orgulho da sua raça . . . um ri-
co-]iomem escravo de Lanhoso ! "
Ia a responder o indignado monge, quando se avis-
tou, descendo do cabeço fronteiro, um tropel do ho-
mens d'armas. Vinha adiante uni cavalleiro com a
vizeira do capello levantada. Era Gomes Lourenço.
— «Homens de Lanhoso, aqui! bradou Martim
Paes, que logo o conheceu. Ervigiz, aminhal.inea e
o meu escudo. Maria, Fr. Munio ficai n"este sitio. »
E largando as rédeas ao cavallo, foi cncontrar-sc
com o alferes do rei. (iomes Lourenço viu-o vir, e
estacou o ginete. Encostou ao eoxole direito o cabo
da lança de monte, e nem desceu a vizirira.
— «D. Martim, disse elle com mclaiicholia c di-
gnidade, não venho fazer uni rapto. Peço-vos vossa
irmã D. Maria em casamento, c acabemos por uma
vez estas rixas, que nos matam sem razão. "
Martim P.ies olhou para elle cora assombro. Não en-
tendia aquella proposta, nem sabia a que a attribuisse.
(Cuidou, por fim, que era o temor que a inspirava.
Uni sorriso irónico fiigiu-lhe nos beiços, ao responder :
— «So teu pai le ouvisse agora, Gomes Lourenço,
amaldiçoava a hora em que to gerou. »
— «Talvez!" replicou tri>teinciite o mancebo.
O cavalleiro de lJanho^o lornou-o açucarar. O ar
magoado, e a hesitação <lo amigo de .MVonso IK ca-
da Vez mais o persuadia de ipie eram devidos auiur-
dl) da sua vingança.
— «Por lleiís ! exclamou com iiin.i risnd.t cslron-
doia, isto p;iicce um conto de fula>. ... l'< um de
Sal/cdas. ou uma mulher qui! cslii iliaiilc ilo mim T ••
— «Martim Paes, trago a cspaila na bainha, não
m'a fiiçaes de%einbainhar " retrucou o nianoclio com
tranquillid ide.
— «Saneia Maria, e a hiniiiUIadi' (l'niii :u\.irhore-
ta ! . . . Ueveivndo ca\;dlcirii, que sindo» pedir cimi
I cs>a cara ili' pciiitentu ' "
268
O PANORAMA.
— «A. paz, e a inuo de tua irmã» respondeu elle
sem se alterar.
Marliiii l'aes desatou a rir.
— Maria, minha irmã — gritou, virando-se para
traz — mal sabes que fortuna nos espera. Aqui está
uma pomba sem fel, tão namorado, que te pedeem
casamento ' "
D. Maria sorriu contrafeita. Gomes Lourenço ia
desmaiando visivelmente daeôr escarlate da corrida.
— "Acabemos isto, e deixa-nos passar" disse o
senhor de Lanhoso, em tom secco, ao seu contrario.
— ii Dás-me a mão de tua irmã?" insistiu o mo-
ço alferes com firmeza.
— 41 Não, mil vezos não ! Eeu te digo porque. A
raça d'onde descendo nunca teve covardes; e tu és
covarde. Demais, quando o meu sangue se unir ao
teu, has de vér o mar era Coimbra. Deixa-nos pas-
sar, "
— " Recusas? "
— uMette-te frade, e larga a espada."
— "D. Martim 1 "
— "Já que o queres, aqui tens a resposta. "
E, descalçando o guante ferrado, atirou-o ás faces
do mancebo. O sangue espirrou na cota matizada
decores. Gomes Ltjurenço não disse nada. Vibrando
a lança curta arremessou-a direita ao peito de D. Mar-
tim. Este siu o tiro, e es<|UÍvou-se. O venablo, sil-
vando nos ares. passou-llie uma linha distante do la-
do, e foi cravar-se alé meio cabo no tronco do pri-
meiro freixo.
— "A pé, fraco villão I " bradou elle, saltando
abaixo do cavallo. D. !Marlim fez o mesmo. Os ho-
mens d'arnias de ambos encontraram-se lambem,
mas os de Lanhoso pouco tempo disputaram o com-
bate.
Continuava o duello dos dois caralleiros. Emfim,
de um golpe. Gomes Jjourenço desarmou a D. Mar-
tim, ferindo-o no braço. A espada caíu-lbe da mão,
em quanto o ferro inimigo descia como o raio, e,
falseando no arnez, assentou o frio gume mesmo so-
bre o coração. O rico-homem de Lanho?o sentiu fu-
gir a luz dos olhos, vergou, desfalleceu, c ajoelhando
uniu as mãos. Foi um acto de fraqueza.
Gomes Lourenço sorriu-se. Abaixando apontada
espada, disse socegadamente :
— " .Agora estás á minha mercê ^ perdoo-te a vi-
da. 1'údes apanhar aquella espada, que é mais curta
que a tua lingua. "
Era uni desprezo frio; uma vingança nobre e ge-
nerosa como a alma de quem a tomava.
D. Marfim íaa levantar-se. O mancebo surteve-o,
pouzando-lhe a mão no hombro :
— «Espera. Oflereci-te a paz, e tu escolheste a
guerra. Vencido como estás, ainda te digo om^smo.
Dá-me tua irmã, e fiquemos amijos. n
— " l'<jdes leva-la, mas eu dar-t'a, nunca ! n
— "Obrigado então; queria-a para mulher, e tu
entregas-m"a sem condiç<-)es. D. iSlartim, o teu or-
gulho precisa de melhor lança que o sustente, n
O moço Gomes Lourenço cumprimentou então o
cavalieiro inimigo c»m ar de escarneo, e partiu pa-
ra o seu castello, levando D. Maria Paes no raeio
da cavalgada.
D. Martim ficou immovel por alifum tempo. De-
pois, livido, com os olhos roxos de fúria, quebrou a
espada em duas., e, fechando o cabo no punho, gri-
tou :
— .' Lembra- te. Gomes Lourenço, de que ííiestc
um punhal d'esta espada '. "
O alferes d"elrei ja o uão ouvia.
AUMADURAS NO XIV SÉCULO.
O TiiLATno c romance modernos, roubando á traça | mento os prrg.nminhos das tradições, lerdas c feitos
o teu património, e desenterrando dopo do esqueci- 1 da idade media, poicrara cn\ scena a vida publica e
o PAINORAJIA.
269
a vida intima dVssea séculos em que se travou a luc-
ta da barbaria com a civilisação, de que brotou a po-
licia e cultura dos nossos tcn][)os. A guerra era então
estado permanente da sociedade, e por isso as mini-
mas circumstancias que llie dizem respeito tecm sido
exploradas e explicadas para completa jntelligencia
dos dramas e narrações em que figuram usprincipes,
os paladinos, e os malfeitores da epocha. As armadu-
ras era ponto importante para taes investigações, e
de sobejo estão descriptas as dos cavalleiros e outros
guerreiros principacs, sem escaparem as dos povos se-
ini-barbaros, que, de origem septentrional, se acha-
vam estabelecidos nus climas mais brandos da Euro-
pa, nem as do árabe buliroso e mais culto, que tem-
perou a rudeza dos costumes das nações peninsulares.
Tendo já tractado por vezes este assumpto nos pre-
cedentes volumes, damos agora um specimen, copia-
do de um antigo deseiího, das armaduras das classes
inferiores dos exércitos. Não entendemos por estas a
inilicia feudal, composta de quantos liomens havia nos
senhorios em estado de pegar em armas. Esses, ar-
rancados dos trabalhos rústicos e ordinários da vida
para os campos de batalha, não tinham de ordinário
outros resguardos e armas defensivas mais que seus
grosseiros trajos, e o capacete e colete de couro, vin-
do d'cste, talvez, o notne da C(iura<^<i.
Os senhores feiídaes tinham reconhecido o inconve-
niente de tropas tão mal e<|uipadas, ecomecarain de
alugai- mercenários, (jue mantinham em seus solares
epresidios, e([ue, servindo assalariados, tiveram a de-
nominação latina de scivienits, da <|ual ofrancezfez
a palavra scrytnls. Eoi esta a tropa a quem seus amos
•proveram de armas defensivas, e que combatia a pé
usando do arco, béíta, danlo, adaga, c partazana. A
nossa estampa, desenho contemporâneo de slniilhan-
tes militantes, da sufliciente ideia de seu equipamento.
Ebcilla e Camões, julgados pok A. de
IIUMBOLDT COMO I-INTOIIES DA
NATUREZA. (1)
Os DEscoiiBiMENTos dos paizes remotos, além dos
diários dos navegantes, produziram mais de um poe-
ma épico entre as naçõesque primeiroentraram n'es-
ta brilhante e ousada carreira. E não eram aqui ex-
cedidas |)cla realidade as licções dos antigos poemas
de cavallaria.' J'or isso os aventureiros hespanlioes
tiveram a sua Jliada, a Aiawana. E uma extensa
epopéa histórica de um poeta guerreiro, U. .Monzo
de lOrcilIa e /íuniga, o qual, no reinado de Car-
los V, serviu no l'eru e no Chili, e cantou os leitos
em que, longe da sua pátria, tinha tomado parte glo-
riosa. Acha-se em todo elle um nobre sentimcMilode
liatriolismo : a pintura dos coslumcs d<! umpovosel-
Vageni, que suecumbe nas nKuitanhas daAraucade-
((•ndendo contra (js hespar\boes .a independência da
sua i)atria, não é falta d(.' interesse, n(!m de vida :
especialmente os condiates são pintados com uma ver-
dade, que mostra sempre que o poeta teve parte n'el-
(I) O' iiii|iiiiliuile artigo, ipie loiíi r>le litul» oITcre-
ccinos uo-í lutsMiS leitores, *• uui ÍVaj;uii'nt(> fio .'i.o volume
tio ailiiiiravcl fb<i'i|tl(t que, <-oiii o nome th* CnsmoSy eslu
plililiiiniilo o (elelire Al, i . ilr l liiiiilm/i/t, /;loiiii ilii A|-
leniaulia, iissiiii |ielii elevHi;ào e };raiiili'/a ilos seus laleií-
tus, como pelo seu innneiixo e |H'ol(mtlo salier, ijuasi Nem
e\ci-|ti^ào, tni todos os 1'JUmos dos roíila-t imnitos liuiiuuios.
l'ediliHis uits nossos leitores ipie allend.iln ji i|ti<* ooliieeto
do JIU4 lor t^í\^^ e la/er mo |tií/.o eiitieo dos dois jioenias
epieos mais < elehnk ila r<'iiinsula liis|i.iiiicii ; iini.s sonien-
to avaliar a inflnein ia (|ne no seu mérito iteseriplivo ti-
veram os tiesetdtriínenlob dtis |>urtnv,ne/eH e dos tiukpa-
nlioei, u e>i>ucialiiU'iile u do Auv.j Mniiih.
les ; mas, em sumina, é unia composição histórica,
onde abundam as digressões frias : a dicção épezada,
e quasi sem mostras de inspiração poética. Por isso
admirariam os elogios que Cervantes faz a Ercilla
na espirituosa revista satírica da bibliotheca de D.
(Auixote, se se não attendesse á emulação apaixona-
da que reinava então entre a poesia italiana eahes-
panhola. Esemduvida estejuizo, muito parcial, que
tem induzido a erro a Voltaire e a outros muitos crí-
ticos modernos sobre o merico d'esta obra. Uma cou-
sa mais que tudo admira n'este poema, e é, quen"eE-
le Novo Mundo o cscriptor esteja ainda inteiramen-
te preoccupado de recordações clássicas, e queaquel-
la natureza maravilhosa lhe não inspire nada : que
nem o espectáculo do volcòes cobertos de neves eter-
nas, nem a vista de formosos valles cobertos de ar-
voredo, ou aquelles braços de mar que penetram no
interior do paiz, nada lhe desse occasião a umades-
cripção viva e original. Nas marchas um soldado dis-
corre sobre Virgílio e a morte de Dido, sem dar at-
tenção ás grandes sccnas que o rodeiam. Se o poeta
se lembra um instante de descrever o paiz, é para fa-
zer um árido catalogo de nomes geographicos, sem
lhe accrescentar um epitiíeto que os caracterise.
O poeta portugucz, Camões, foi mais feliz que Er-
cilla; e com verdade eu não pusso dizer o que se de-
ve admirar mais na sua grande epopéa nacional, se
a riijuez.i da imaginação do poeta, se a singular ver-
dade das descripções. Não é a mim, por certo, que
compete confirmar com a minha opinião o juizo do
Frederico tíchiegel, que, quanto á vivacidade das co-
res e á maravilhosa riqueza daphanlasia, põe os i/ií-
siadna muito acima do poema de Ariosto; mas por
certo me é dado accrescentar, na qualidade de ob-
servador da natureza, que nunca houve poeta mais
exacto na pintura dos phenomenos naturaes ,• c que
em neidiuma parte da sua obra, nem oenthusiasmo
de cantor inspirado, nem oornato da sua linguagem,
nem os seus melancholicos pensamentos o fizeram um
só instante infiel a esta espécie de verd.ide [di^sica.
A sciencia pude acceitar as suas descripções, ao mes-
mo tempo que a imaginação é arrebatada pelas suas
pinturas. E realmente o céu da índia-, sãoos varia-
dos aspectos do oceano. Sente-se em todos estes can-
tos, ou já escriptos na gruta de Macau, ou já no des-
terro das Molucas, um cheiro endiriagante de fiores
dos trópicos. O auclor viu, ou antes observou, e ob-
servou como poeta. l'or isso não é possível ileixar de
notar em toda a ])arte a viva phvsionomia dos gran-
des quadros da natureza, pintados por elle. .Mas on-
de Camões é particularmente inimitável, é nas pin-
turas do mar : nunca ningn<-ni soube melhor perce-
ber, nem pintar melhor estas mvsleriosas harmonias
«pie reinam entr(! a atmosphera e o mar, entre as
mil coidormações variadas (|ue tomam as nuvens no
céu, na successão dos seus phen(uneiun meteorológi-
cos, e os diversos aspectos, ipie, retiectimio-os, appre-
senla a superficie do oceano. Ora e uma doce bri-
sa (pie lhe encrespa a superficie, enchendo-a como
de carneiros, o destas peipienas vagas ijuebradas fax
sair brilhantes faíscas de luz que alli parece mover-
se : ora é a tempestade, com lodos os seus horrores,
c|ue se levanta em roda das naus de Coelho e de l'au-
lo lia («ama, u solta os elementos enfurecidos. Toiio»
estes quadros são de uma verd.ide palpável. Camões
tinha poditiu cstnilar pausadamente os pheiíomiMios
do mar. Soldado, tinha feito a guerra, não «lao pt-
do Atlas, no iuteriur de I\larroe<'S, iii.is também nai
margens do Mar \'ernn'lho e dotiolplio l'er»ico : duas
vezes dobrou o Cabo ilas lurini-iitas, e eoiii a NUa pai-
xão tão viva jiela natureza, linha podido, em «lo»e-
seis aniioa de soliilãu nas costas dii índia u da (.'hi-
270
O rAlSORA3IA.
na, observar as alternatives do oceano. Nada lhe es-
capa : em um logar descreve os pennachos eléctricos
do fco de Santelmo, que os pilotos da Grécia cuida-
Yam ser Castor e PoUux, mas a que elle chama
o lume vivo
tiue a marítima gente tem por santo
Em tempo de tormenta : (1)
n"o>itro logar é a tromba assustadora com as suas
successivas transformações ^ e se vê
levantar-se
No ar um vaporzinho, e subtil fumo
E, do vento trazido, rodear-se :
De aqui levado um cano ao polo summo
Se via tão delgado que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia: i
Da matéria das nuvens parecia.
I
la-se pouco e pouco accrpscentando, i
E mais que um largo mastro se engrossava :
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de agua em si chupava :
Estava-se co'as ondas ondeando.
Em cima d'elle uma nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada
Co'o cargo grande d'agua em si tomada,
Mas depois que de todo se fartou.
O pé que tem no mar a si recolhe,
E pelo céu chovendo emfrm voou.
Porque co*a agua a jacente agua molhe;
A"s ondas torna as ondas que tomou.
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe ;
Vejam agora os sábios. . . .
a.ccre3centa o poeta
GLue segredos são estes da natura,
I
palavras com que parece dirigir-se ainda aos sábios '
de boje, que, fundados só na sua inteliigencia e no i
seu saber, não duvidam tractar de visões as cousas I
que ouvem contar ao navegante, que só tem por si a
experiência . i
!Mas se Camões ésupcriormenteadmiravel naspin- i
turas do mar, as scenas terrestres não lhe chamaram !
tanto a sua attenrão. Já Sismondi notou com razão i
que em todo o poema se não acha nenhuma verda-
deira pintura da vegetação dos trópicos, e da phy- ]
tionomia particular das plantas d'aquellcs novos cli-
mas. O poeta apenas mencionou algumas plantas nro-
niaticas, producròes que eram objecto decommercio. '
O episodio da illia encantada cnc"rra um delicioso
quadro de paizagem, mas quadro commum e clássi-
co, (iuc se acha n"elle além das plantas banaes, com i
que forçosamente se ha de ornar uma iUta de lenus,
murtas, cidreiras, limoeiros odoríferos, romeiras, e I
outras arvores selvagens na Europa meridional, eaín- i
da mais nas poesias pastoris d'aquella epccha .' 0|
poeta n'este logar julça-se infelizmente oirrigado a
entrar na natureza de convenção da poc^ía contem- I
poranca. (2) Uuanto não ba emChristovam Colom-
(1) Estas palavras acham-sc nu Connos citadas
em porluguez.
(2) Sem pretendermos combater as opiniões do
illustrc sábio, e ao mesmo tempo sem pretendermos
achar nos Lusiados perfeições que lá não haja. de-
vemos aqui declarar que tondo muílas vezes notado,
bo com uma observação exacta das formas da ve^e-
tacão estranha que se offerecia aos seus olhos, um
sentimento muito mais verdadeiro, e um enthusias-
mo mais francamente p<jetico, em v ista de nova*co5-
tas cobertas de bosques ! Mas o almirante escrevia
um diário de viagem, onde consignava diariamente
as suas vivas impressões, ainda mh o império da sua
imaginação abalada, e Camões compunha um poema
épico para immortalizar os feitos dos portuguezes,
juntando aos factos as maravilhosas creações da phan-
tasia poética. Que pintasse o oceano, é natural. Os
navegantes luctam com o mar; é um combate de to-
dos os dias; e demais, em toda uma viagem sempre
ha tempo para estudar os phenomcnos mais ou me-
nos terríveis do mar ; mas chegados a terra, a lacta
é quasí só com os homens; a zcção que se trava não
deixa ver a natureza. A paizagem torna-se um fun-
do de quadro a que se i.ão dá importância, quadro
em que os guerreiros ou os mercadores portuguezes
animam a parte principal. Ainda mais: e não falta-
vam as palavras para pintar a natureza nova da ín-
dia? onde buscaria comparações ou epilhetos? Adop-
tará o poeta os nomes das plantas novas, do idioma
bárbaro dos naturaes do paiz.' Uma dcscripção labo-
riosa, formas singulares, cousas sem nome, não po-
diam deixar de repugnar a um poeta costumado á
sonora harmonia da sua língua natural.
Comtudo não deixou Camões de ter algumas ve-
zes singulares ousadias nas grandes descripçues pictu-
rescas, no seu tempo muito originaes ; nem deixou
de esboçar em linhas ousadas a phvsionomia geral
dos continentes. E assim que no 3." canto faz uma
pintura rápida de toda a Europa, desde as mais frias
regiões do norte até
Onde o sabido Estreito se ennobrece
Co*o extremo trabalho do Thebano.
Mas é especialmente aos costumes e á policia do»
povos do Meio-dia que elle dá raais attenção ; em
breve passa pela Prússia e pela Moscovia, nações sep-
tentrionacs,
que o Rheno frio
Lava (1)
Para chegar ás deliciosas regiões da Grécia
Que creastcs os peitos eloquentes
E os juízos de alta phantasia.
No 10.° canto o espectáculo é ainda maior. Tethys
conduz o Gama a um alto monte para lhe descobrir
os segredos da
crande macbína do mundo.
e o curso dos planetas segundo o svstema de Ptolo-
meu, que então reinava. K unia vi>no no estvlo do
Danle. Depois de ter dcscripto o todo do universo,
o poeta torna ao globo terrestre que lhe fica no cen-
tro, e expõe então tudo o queses;ibiados paizesn*»-
quelle tempo já descobertos, e das suas producçõcs ;
como Ilumboldt, que todas as plantas que aformc-
seam a ilha dos amores, se encontram em Portugal,
nos tem sempre parecido que n*istn houvera um.v in-
tenção patriótica no pensamento di> poeta ; conjec-
tura que não será inverosímil para quantos titerrin
admirado, (e certamente são lodos os que teem lido
us IjUsiadas) o extremado amor da pátria rmquesc
abrazava o peito di- Camr.cs ; c que ainda maii »«
confirmará com a explicação que se \c nas estancias
com que termina o cinto U.° do poema.
(1) Tambcm estas p.nlavras se acham cm portu-
guei nu (wtmos.
o PATSORA3IA.
271
aqui já não é súmente um mappiípicturesco da Eu-
ropa, como no 3." canto; é um quadro de todas as
partes do mundo, sem exceptuar a terra de Sancta
('rua (o Brasil), e a costa descoherta por.
. . Magalhães, no feito cora verdade
Portuguez, mas não na lealdade.
Camões, po^ito (|ue se eiiceirasse em um quadro
clássico, foi um dos primeiros que abriu caminho a
uma poesia nova: o seu génio percebeu alguns dos
maravilhosos recursos que um inundo novo ainda vi-
nha dar ú poesia.
Cabtas ineuitas de Alexandre deGismão.
KitTBE OS nossos cscriptores políticos occupa logar
distincto Alexandre de (íusmão, o secretario parti-
cular de D. João V. l'ul)licaram-se diias collec(;ões
das suas obras, impressas no Torto, uma em 18il
pelo Sr. J. I\I. T. de C, e a outra cm 18H. Na
primeira vem as Itejlexõis d^aquelle illusire brasilei-
ro contra 0(jue escreveu o brigadeiro António Pedro
de Vasconcello», que havia governado a Colónia do
.Sacramento, a respeito do Tractado de Limites da
Atnerica. A segunda re|)roduz a IÍ.xpcsi'juo dos mal
remunerados serviços de Alexandre de Gusmão, im-
pressa no 1." vol. do antigo Panorama, pag. 155 e
IGG. Compreliendo também esta cullccíjão uma .//)o-
logia do mesmo Tractado, publicada, pela primeira
vez, no 7." vol. do Panorama, com os elogios cor-
respondentes ao valor liltcrario e politico d'ebte dis-
curso.
Lê-se no prefacio da 1 .^ Collecção ; u A resposta
ao brigadeiro António Pedro de Vasconcellos, relati-
vamente á conveniência dos Tractados dos Ijiniites
da America, que vieram pôr termo ás continuas desa-
venças entre Portugal e a nação visinha, é obra do
muito primor, &e, Ahi apparecem grandes conheci-
mentos topograpliicos do paiz, do seu commercio, das
•uas relações, das suas vantajosos posições, dos seus
futuros melhoramentos, e de tudo quanto importava
á prosperidade e quietação da sua pátria."
Tildo isto 6 certo, o prova o grandíssimo talento
"ioauetor, que assim sobrosaía, defendendo, no ulti-
mo quartel da vida, opiniões contrarias á sua, que
«dle desejou revelar á posteridade, já que o não po-
dia fazer, sem perigo, aos con1eni|)oraneo3.
Chegou o tempo d'cste louvável desejo ser cum-
prido, de SB fazer uma revelação, talvez não inútil
a nossa historia diplomática.
Entra na eollccção manuscripta que temos de al-
gumas das obras de Alexandre de Gusmão, a Apolo-
gia do Tractado de lyimit(ís : uma nota marginal de-
clara ter si<lo feita por ordem do governo. Segue-íe-
llie a iin|nignação do papel do brigadeiro V.-sconeid-
los com esl\)utra nota no fim: n Gusmão foi obriga-
do a fazer eslis piipeis, e os fez contra sua vontade,
i! por isso, poílo (jiie em segredo, desabafou coin a
seguinte caria, que logo depois escreveu.»
I'^is-a(|ui acarta, copiada da minuta por leltrade
-Mcxandie do Gusmão, o as outras a (jue allude.
Sr. 1\1.<I l'.r.'' de K.^
Ill' bem verdade, que fiz bua tal, ou (piai Apolo-
gia ao Tractado di' Limiles da America, e lambem
liila refutação ao Piip(!l, contra o nii'smo Tracliiilo,
<piu escreveu António l'eilto de Vasconcellos goviT-
naihir (pi«í foi daCoUonia : nunca escrevi niaisinvo-
lunl.irio, mas como foi por ordem superior, estou per-
suadido, (pie não devo ser easligailo. 1) que não oba-
tante, logo mo desforcei, escrevendo « esse res[)eilo,
o que se achará nos meus Papeis, se acaso houver
quem os lêa : reporto-me a Jl.r Lapin (»), que sa-
tisfará a V. M., mas digo finalmente, que se não ti-
vera m.' e f.os nunca passara por este trabalho.
Logre V. m. boa saúde, e toda a sua casa, e te-
nha-me sempre na sua graça, porq. sou
O portador leva a co-
pia da carta de mimo
de agradecimento da
Apologia, e também
a minha resposta.
De Vra.ce
Adj.° m.to obrig.° em. to v.or
A . de G .
Copias dtis carias concernenlei ás Memorias
sí cretas .
(Carta de ÍSuno da Sylva Telles para Alexandre
de Gusmão.)
Síír. Alexandre de Gusmão.
Ainda hoje chegarão a esta casa as copias dos dois
Papeis, que V. S.'^ doutamente escreveo em defensa
do Tratado de Limites, Tratado, que tantos desgos-
tos nos tem causado. E como V. S.'^ com esta sua
Apologia, c defensa do Tratado, defende ao mesmo
tempo a honra da nossa familia : eu lhe rendo as gra-
ças, eolfereço em nome de toda ella esse annel, que
se deo ao embaixador por brinde da negociação do
mesmo Tratado, afíiançando a ousadia desta minha
oflerta com a fé da nossa antiga amizade. Desejo a
V, S.'' a mais feliz sa^de e estimarei ter muitas oc-
casiões de poder empregar-me em servir, e dar gosto
a V. S.'' Deus guarde a Pessoa de V. S."' muitos
aunos. Casa em 10 de Maio de 1750.
De V. S.-'
Ven .or Cap.to c fiel Servidor
Nuno da Silva Telles.
(Resposta de .\lexandre de Gusmão.)
111."'" e R.ni" Sfir.
Pelo mesmo portador da Carta receberá V. S.^o
annel imprópria caixinha em que elle vinha : líu
não quero dar a V. S." a resposta que merecia esta
sua olferta ; considere V. S.'^ com attenção os moti-
vos (jiie me farião lembrar, pois cu sei, <jue os não
ignora, e persiiada-sc V. S." que ma embargou a nos-
sa antiga amizade, olirigando-me a fazer-llie este sa-
crifício. Fico para S(;rvir a 111.'"'' Pessoa de \. S.",
a quem dez<'jo saúde com felicidades.
Deus guarde a V. S.'' escrita em 10 de Maio <lc
1750.
]leija as Mãos de V. S."
Seu m.lu Veii.or c alfect." Crd."
Alexandre de Gusmão.
( Continua.)
\\i miiiTo no \ivo AO 1'iNrAno.
(ii'\Ni>o O melodrama reinava no tlieatro do Pano-
rama Draniatico, que já não existi', lembraraiii-sio
di: põr em scena u acção estupenda d'um pastor ciiainn-
(«) ntuiMiel Cwelliu<lel,iimir»uliiihu, dr)|neiii hcrtl-H-
itius viiIcH pnpeis. ,\lt'\, th'<>. falia nelle iiii ^l.'* r;irl« díri-
(;iila II Mialiiiho Vellio iluUeihu Oliioul^er,!;. 1." fullff..
272
O PAJNORAMA.
mado Pourril, o cjiial, por alguma; moedas de ouro,
se confessou riu d'iim crime que não commettêra.
1'ara í|ue a illusão fos^e perfeita queriam fazer tudo
ao livo, e, desprpzaiidi) os polires carneiros de pape-
lão esarapilheira pintada, que até alli tinham feito
tão bom servi(;o, foram em cata d'um rebanlio de
carneiros de carne c osso, que obedecesse ao som da
gaita capadcira.
Lmas vinte crcaturas lanzudas, mansas como bor-
regos que eram ou tiidiam sido, foram cscripturadas
(já se sabe, por intervenção d'nm emprezario, que
sempre esta gente acode quando ha lã que se possa
tosquiar) para realçarem o espectáculo ^ com a obri-
gação de comaijrarem crclinivamenlc o seu taludo
ao thcatro a que se ligavam.
O cuiprczario metleu na algibeira o diuheiro do
sjusle, deu ao seu lobanlio uns !;rãos de milho, di-
íem as más línguas que avariados, ctrouxe-o ao en-
kaio. fiue docilidade nos iJíbiiiaidcs .' iam para onde
os loVavam. O contra-regra não cabia em si decon-
lente.
Chegou o dia ou a noile da primeira representa-
ção (no theatro faz-se da noite dia c do dia noite) ^
o rebanho saiu detraz dos bastidores n"uma desor-
dem que parecia reconimendada, ensaiada, /tíía de
propósito. Balou em choro sem desaliuar muito, e
formou um j)icturcsco tahlcciu á roda do pastor.
Os animacá sempre sãoapplaudidos. Uma trovoa-
da de )>almas abalou as paredeõ da casa. Ninguém
tinha ])revisto o elleito que podia produzir oestron-
do da (jrididCiO do respeitável em miolos de carnei-
roí O (jue ó o dcscíjstumc '. As fileiras da carneira-
da desordenaram-se, do meio d'ellas saiu o balido
de — sahe-se quem jioder — e o corpo pòz-se em de-
bandada. O carneiro mais iíitrepido na fuga chega
á bocca da s;;ena, e atira comsigo acima da orches-
tra ; os outros enfiam atrazd'elle. Não ha pincel que
descreva o reboliço que este assalto fez n\ima frisa
cheia de senhoras. IVão ha expressões que pintem as
j;argalhadas dos espectadores, os gritos dos cercados,
as pragas dos músicos, quo, armados de rabecões, d\ar-
cos, de rabecas, de trombones e de fagotes, defcn-
iliain a orchestra da invasão, a todo o transe.
A peleja durou mais de duas horas ^ á guarda do
theatro e mais dois ou três moços do açougue deu-
Ihe agua pela barba para conduzirem o> sublevados
ao curral.
No dia seguinte não tiveram outro remédio senão
tornar-se aos papelões, que sempre prestaram para
muito.
I'vii0^ V LIN-V ou ALCOD.to-rOLVOllA.
Depois do 1.*^ artigo (inserido no Panorama, pag.
179) fizerani-se á Academia das Scií-ncias de l'ari5
importantes cominunicaçõcs acerca da preparação,
ofleitos, o inconvenientes da nova pólvora, de que
vamos (lar uma nolicia succinta.
l'riparii(^uo. — Não é necessária a immersão repe-
lida do algod.u) na mistura de acido nitrico esulpliu-
rico, que se tinha indicado, nem quo elle fique um
quarto de liur.i dentro ilo liquido, t) celebre chinii-
co, Mr. l'a^cn, estudou a maneira de exitar os dg-
itastrcs <|Ue podem iicontecer na preparação da pyro-
xylina, piincipalmenle quando as quantidades são
grandes, e parece que resolveu este problema. No
seu relatório assignala os perigos que resultam de não
ficar o algodão bem coberto do acido, e rccommen-
da que a iuimersão seja completa, assegurando que não
l;a inconveniente em que o algodão sv. conserve no
lirpiido quarenta c oito horas. Conhecendo-sc, po-
rúm, que nem temprc dava bom resultado a prepa-
ração da pyroxylina feita com a mistura dosdoisaci-
dos, aconselhou ^Ir. Milton a Mr. Gaudin que pu-
zesse o algodão de molho n^uma mistura de porções
determinadas de acido sulphurico edeazotato de so-
da ou de potassa. A praclica provou que se não ti-
rava proveito do azota to de soda, e as experiência»
de Mr. Gaudin habilitaram-n'o para publicar um
processo, que a elle lhe parece infallivel, para pre-
parar a nova poKora, com toda asua força, nosmail
pequenos locaes.
u l'ulverisai salitre refinado ordinário (desseccado
ou não desseccado), mas yuc não esteja himido, e
de[iois de o metter n'um vaso de vidro ou de porce-
lana, junctai-llie bom acidosnlphurico concentrado do
commercio (acido monohydratado) mexendo a mis-
tura com uma vareta de vidro ou de pau, de modo
que forme umas papas raras; passados alguns minu-
tos, quando a mistura tiver outra vez engrossado,
junctai-lhe mais acido sulphurico, até que o todo,
bem misturado, tenha a consistência d'um xarope;
depois deita-se-lhe dentro o algodão, o papel, o tra-
po, &c., conchegando-o bem. Q.uasi sem demora se
fará em massa, e ao cabo de um quarto de hora melte-
reis o vaso dentro d'agua para dissolver o sal adhercn-
to-, por ultimo lavareis em muita agaa, eseccaicomo
é costume. "
O algodão curto é mais barato e dá melhores pro-
dnclos que oalgodão comprido, segundo o parecer de
]\1M. Combes e Flandia.
Enxtigo. — Esta operação é muito perigosa, e re-
quer por tanto que haja muita cautela, quer se tra-
cte do algodão pólvora, quer do papel azotJco ; não
convém que se accelere aquecendo o ar por meio de
brazeiros, mas pede a prudência que se faça era es-
tufas cuja temperatura seja constante e muito mode-
rada. Mr. Piobert fez ver que uma corrente de ar
quente inllamma muitas vezes o algodão azotico em
menor temperatura que adelOU". Por estaoccasião
expoz Mr. Paven que existiam talvez muitas causas
de inílammação accidcntal, mas que estava provado
que as correntes de ar, mesmo aquecido com mode-
ração pelos caloriferos, fogões, ou brazeiros, podiam
inflammar o algodão-polvora, em quanto que a py-
roxylina, posta em contacto, no seu laboratório, com
paredes delgadas de metal ede porcelana, aquecidas
pelo vapor d'agua, nunca se inllammou. Nuvasex-
periencias, feitas por este chimico em companhia de
alguns dos seus collegas, confirmaram queascorrcn-
tcs de ar, aquecidas por meio de chapas metálicas
ou partdes de alvenaria, inllaromam oalgodão, por
mais cautela que haja em que a temperatura, ter-
mo médio, não passe de 2o a 30" ; o que nunca suc-
cedeu toda a vez que a dessrccação, aliás mais prom-
l)ta, se fez em temperatur.i próxima á de 100", trau»-
mitlindo-se o calor, produzido pelo v-^jpor ou pela agu.t
a ferver, ás superlieeis metálicas ijue elevam a tem-
peratura do ar ou do algi^dão.
l'arecia por tanto que uHia estufa de corrente de
ar, aquecida a 30 ou 36" pela circulação d*agua ou
do vapor, preencheria as condições de segurança;
com tuilo Mr. tiandin, j»ersuadido. cum raíão, que
do fabrico do algodão-|>oKora se deve proscrever «'
emprego de todo o calor, procurou descobrir um moio
de seccar de prompto e a frio, em uma camará fe-
chada, cheia »le cal viva pisivda, c a que exirahe c
ar um ventilador helicoide : oalgodão que scjwrleo-
de seccar, mclte-se dentro d'umn mangueira, i-ons-
truida de modo que ojlra\e««a uma corrente conti-
nua de ar secco, a qual lhe vai tirando ahumid.-vde
em porporção do augmenio da temperatura ambien-
te, ato SC converter to«la a cal viva em hydraío pul-
verulento. t'u;iiinua.)
35
o PANORAMA.
273
o FUAROL SE BREBAT.
A coNftTniTfjÃo <!os |)liíiroc8 em iios§os dias tom che-
gado a i;r;iiiiíe iiii'^e de a[)errei<,'uanienl() ', seiulo unia
iiecesiidadc! rccoiiliecida para licncficio d^ iiavegaí^ão,
prodigiosiltntiiti' se Um inu!ll|ilicadi) em Iodas as cos-
tas iiiaiiliinas ainda as iiiait liravids e af.istadas. N'at-
giiiiias il"eslas i.'oiistruc(,ò(S, icí|Ucrcndo Ioda» ellas so-
lidei, (te leni |ioilii unia cerla niai^nilieencia ailapla-
úa á iialiiieza de sirniilianlcs obras : dos inai) notá-
veis que iit devem á urle moderna, acliar-sc hão no-
ticias e dfsenlios em as nossas precedentes setic», co-
mo o de ('ordoiian, o du Hcllrock, o de Kdd^btone.
A gravura cjne aduriia o fronlispitio do presí-ule nu-
mero, rcprescnia o pliaruj provis<irio, li'VHiitail() na
illia dellréliat, eusla lie l'"ran(;u, eas acconunodarõts
(jue se rueriim para os operários «jue trabalharam nu
pliarul permanente, já concluido e que disputa pri-
maria a liidiis, pilas dinicniilaiiis nascentes da Mia
posição, e por ninit.is parlicLdaridadcs na con^true-
eão do edifirio. .lu^lamiMitc se dirá ijuo não tem ri-
val, poripie os dl' Iblle rock e Kddjstone, acima mrn-
eiunados, de ipie se jactam os in'j;lt /.is, estão lon.;e d'a-
(JUellas propiirçiics luonumenlaes. l'"oi o seu en^eniiei-
ro M. Ui'^naii<i, depois nomeado pror('>»iir da esclio-
lil pol^ leclinica. — 'r<'m esta simples inscripeão. —
Kflf cilificU, cuwiriitiu im íbHiJiii aciihiulo I III IbijQ,
rtmaiiiío //iiii Vilijijie. — ■
O illieu de Hrilial é um penhasco em siliiaeão tem-
pcttuoia, tituudo ijuasi u trei léguas Jui rovhusc rei-
Tomo I. — Ouhuuo 2í, 1857.
tinj^as t/fs licnxix. — Eram assai reconhecidi)5 os pe
ri|;os e difficuldades qne ollerece a navec;ajão nacosln
do norte da Bretanha, ao desembocar do !;olpho im-
portante que se dilata entre esta península e a dj
Cotenlin. Tractando-se de obvia-los procedeu-sea uru
inquérito para conhocer-se qual deveria ser a locali-
dade do phanil, se ao norte ou ao sul do passo estrei-
to que os navios iVequentam entre os cachopos de Uo-
quedouve e os de lléaux de Bréhaf. t> resultado de
um nttcnto e prolongado exame foi preferirse csli»
ultimo local.
Oní
> VGLIIO N.VO CA JCri .
(RotDince Ilinorioú )
IV
Suvtm e ettreUa.
I'"ii\ .1 tarde do terceiro dia depois <jue liomes Iioo-
reni;ii comniettèra o rapto de Mana Vm- l''.iicerri-
da n'iiin aposento, guardada com vii;ilancia, mu>
cercada de respeitos, em todo este tempo a altiv.i
ilania cada \it sentia maior pciar. K.m vei do dimi-
nuir aii;;meiilava a sua djr.
D. Maria linhn aindu tuda o vi^oto lustre da mo-
274
O PANORAMA.
cidade. Não era a flAr tenra, (]iie de mimosa se des-
pega', era a roía feita, aberta, e luxuriante, que '
nasceu helia, cresceu forte, e sente a vida e ama a j
lur.. As formas airosas, o talhe esbelto, o corpo flexi- j
vel como haste de junco novo, realjavam pela graça
a imiuensa nobreza da phisionomia. Os cabellos pre-
tos, ora em espiras ondadas fugiam da rede d'ouro
e seda, ora soltos, folgavam brincando com o seio e
pelos hombros. Era uma belleza regular, mais seve-
ra que branda, como a representa ás vezes a esculp-
tura grega. Os olhos, lambem negros, e tiio negros,
que cegava o brilho delles:, na rara transparência
da sua chíunma, quando queriam, sabiam dizer tu-
do— ou lhes luzisse a rápida faísca das paixões, ou a
languida esperança chorasse n'elles.
Ninguém diria, vendo-a — "Assim foiaformosu-
ra da antiga Vcnus Idalia. " — A elegância n'ella
era viril, e o garbo soberano; e o que recordava era
o typo da fragueira virgem dos bosques. Uni roma-
no que a apercebesse, gallopando com as tranças li-
vres ao duudejar da aragem, falcão em punho, e as
pregas do saio verde inchando na carreira, excla-
maria logo — 11 E Diana — a deusa caçadora! "
E linda como Diana c que ella p:'ssava, acct-sas as
faces no ardor da caça, levando a buliçosa alegria
de pagens e donzellas atraz de si ; o latir das mati-
lhas, o vozear da inoularia adiante ; e d^espaço a es-
paço reboando o som da buzina de prata, ora pela
coroa dos montes, ora pelas quebradas do valle.
E foi assim que o moço Gonies Lourenço a viu
correr ao lado de Sancho I, uma tarde de maio,
d'aquellas risonhas tardes que dá o céu da Penínsu-
la, e se respiram ás margens do Mondego. D'esse
dia em diante nunca mais a poude esquecer. Alli
nasceu, e d'alli medrou, banhado de lagrimas, o in-
feliz amor lio amigo do infante D. AíTonso. A ini-
mizade que bebera com o leite da infância \ o ódio
que lli^ensinaram a balbuciar com as primeiras pa-
lavras ; o orgulho da sua raça, que entrava com o
sangue das veias no âmago do coração, fundiram-se
para sempre á luz d^aquelles olhos, um momento
fitos n'elle, no perpassar. O homem de Riba Dou-
ro, o neto dos Viegas de Salzedas acabou alli. Na
alma só lhe morou um desejo único — o de apertar
ao peito o anjo, que fugira como visão celeste, e com
elle nos braços perder o nome, a família, e Deus
até.
De noite, em sonhos que enlouqueciam, appare-
cia-lhe de rejiente. Na vista, como llie sorria a mei-
guice do amor! tiue doce balia nas faces a respira-
ção suave! Sentia arder nos lábios o primeiro beijo,
sentía-o di^pois queimar na alma. (Aue dòr atroz,
quando, passando os dedos convulsos pelo rosto, hú-
mido dos seus prantos, a verdade lhe dizia que a
imagem dos seus desejos se reclinava no seio d'ou-
tro tão feliz! Então o ciúme, assentando-se á cabe-
ceira, insitiuava-lhe o veneno d'iiqiielles olhos, es-
trangulava-lhe os suspiros no laço dos cabillos pre-
tos, e cortava-lhe a alma com inveja de tanta bel-
leza, que era d'outro, de quem nem sequer ousa-
va proferir o nome nu segredo mesmo das veladas
noites.
Assim correram os mezes e pasmaram o" aniuts,
sem descatiço ii'aquella fadiga, nem retrii;erio a ta-
manho martvrio. .\ amizade dd Egas, seu irmão,
tinha sido até alii um culto para a sua .ilma ', des-
pi'gou-se também essa, como a nltinui folha cáe á
llòr morta. Condemiiado a recolher silenciosamente
no coração as lagrimas, a fi'char n\'lle o amor. .1
desespernção e o ciiime, entre os humens e no mun-
do, era sombra do que fi^ra. No» olho, só, n'esse
verdadeiro espelho do espirito, é que ainda não mor-
rera. Lá vivia concentrada, indomável, a fatal pai-
xão que o consumia. O que elles fallavam, mudos ;
o que choravam, enxutos ; o que no rápido fuzilar
d'um momento sentiam e revelavam ; nunca o sou-
beram entender os que, vendo o cavalleiro deSalte-
das tão diflerente, perguntavam se alguma fada lhe
dera encanto, para elle envelhecer de quarenta an-
nos. A amizade de Egas talvet suspeitasse a desgra-
ça do cavalleiro — o que não adivinha o coração de
um irmão? Mas se adivinhou fui di»creta — soube
occulta-la.
E D. Maria Paes? também essa a perceljeu. Não
é possível ser mulher, e por muito tempo ignorar o
amor que nos acompanha a toda a parte. Por ios-
tincto, a irmã de Martim l'aes foi a primeira a de*-
cobrír a lunda melancholia do mancebo, e a pene-
trar o motivo d"ella. Leu-a nos olhos, que a fitavam,
se cuidavam escapar aos seus, e esmoreciam, tími-
dos, apenas »e cruzava a vista. Viu-a nas faces pal-
lidas, que se affrontavam de vivas cores ao encontra-
la de repente. Em tudo a lurprehendia ; — na ter-
nura da NOZ, na hesitação dos olhos, na incoheren-
cia das palavra». Em vez de reprimir, a dama alti-
va animou por leves favores o incêndio, em que se
gastava a vida do triste cavalleiro. Era orgulho, ou
era calculo vingativo? Se foi um ou se foi outro, o
segredo a ninguém o disse — mas bem cedo teve de
se arrepender. O primeiro fructo culheu o nocastel-
lo d'Avellans-, o segundo, o mais amargo, custoo-
llie lagrimas e remorso» eternos.
Tudo isto a opprímía de terror no alcaçar de Go-
mes Lourenço. Nas mãos do homem, de quem es-
carnecera o amor, convertcndo-o em recreio das ho-
ras vagas, D. Maria, ofTendida, ultrajada, mais da
uma vez resistiu a tentação de se precipitar no leito
de pedras do valle que se torcia em baixo. Não me-
nos altivo, o cavalleiro de Salzedas contínha-se, dí»-
farçando a sua paixão. Nas breves e curtas palavras
que tinham trocado distinguiu ella a vontade impe-
riosa da aborrecida casa de Riba-Dourn. Por instan-
tes uma duvida cruel passava-lhe pela ídéa, fulmi-
nando-a. Aquelle amor, de que tinha imaginado
zombar, seria um laço, como o falso ajrado, o trai-
çoeiro rizo de que ella o embalara? A vingançave*-
tia as cores da paixão para ferir mais certa ? Suppo-
lo era enlouquecer. Lm rapto só para infamar a
nobreza de uma dama, era a injuria mais atrut da
todas.
Sombrias como estas eram todas as suas reSexõet
nos dias que durou o captiveiro. Na tarde em qua
estamos, antes do pòr do sol, ouviu descantar debai-
xo da torre. Com que alvoroço, ao debruçar se da
janella, conheceu o escravo mouro de seu irmão!
Não a tinha esquecido. La fora havia quem traba-
lhasse para lhe restituir a liberdade.
D. Maria repeliu as ultimas palavras da c.inti;a,
e o pagem, olhando p.ira cima, mostrou um rami-
Ihele. Creaiios por uma velha africana, os dois ir-
mãos aprenderam d'elU a puelici língua dos jardins.
O ramílhelc subiu por umaeurdão, ceom as me«m.i»
llòres se coinpoi a resposta ao recado svmbolico. O
escravo upanhou-as, e desappareceu. Momentos de-
pois as sombras cresciain no valle, c só de vei em
quando se a\ísta\a ao lon^e o vulto du pastor, enca-
iníiibanilo-se a pressa prlo trilho das montanhas.
Desfolhadas nos dedos as violetas o os Ivrios jun-
cavam o chão, ao» pés da d.iiiia de L.inho'", enleva-
da em meditações prufuiid.is. No ro«to immovel, ii.i
vista pasmad.1, a vida p.irccia |Mr.-il_\«ad,t. Apenat
um sorri/o apag.nio tremia 110» lábios, onde os sons
temiam str iiuliscrctoí. O que ia la dentro era mui-
to intimo para te desaff-igar era palaNras. — Nu»
o PANORAMA.
27b
olhos, ás vezes, fuzilava um relâmpago de ódio, de
esperaiif^a, ou de terror — e depois amorteciam-seas
pálpebras sobre as pupillas negras e sem brilbo.
Ainda estava suspensa no vago reflectir, quando
»e abriu a porta do aposento, e Gomes Lourenço ap-
pareceu aos unibraes. Um grilo d'ella, um suspiro
d'elle, e d'ahi o mais completo silencio — disseram
tudo o que ambos tinham sobre o coração.
O saio escuro, o cinto e a capa da mesma cor es-
tavam em harmonia com a pallidei do mancebo. Che-
gando ao meio da vasta quadra, ergueu a vista e
fitou-a em D. Maria. Era lento, doce, e profunda-
meute triste o seu olhar.
Porque tremia ella ? Pedia ha pouco a Deus que
o tocasse a vir alli, e agora não tinha animo para o
receber? — Ella que tão de perto estudara as pai-
xões e as fraque^ías de muitos homens — que o mun-
do chamava grandes — porque não se atrevia a lír
na alma de um mancebo que a não sabia conter, que
a não queria fingir, e tinha só no coração e na buc-
ca um sentimento e uma palavra — amor!
D. Maria receiava mais o fogo d'aquella paixão
do que os cálculos pacientes do ódio. De tudo, o que
mais custa a simular, é o amor, quando os olhos que
nos vêem o faliam, o choram, e o adivinham !
E ella, para sair, precisava fingir que amava mais,
tanto pelo menos como o infeliz mancebo.
Por isso tremia e vacíllava. Escapou lhe, quasi
envergonhada, uma lagrima, e \eio queimar nas fa-
ces. O seio anciado arfava que fazia ranger as rou-
pas, (iuiz levantar se, e os joelhos descaiam ; quiz
fazer um signal com a mão, e o braço estava mortal.
Abria a bocca para fallar, e as palavras, sullocadas,
não se articulavam. — Um deslumbramento repenti-
no cegoulhe a vista.
Entretanto conteinplava-a Gomes Lourenço com
orna ternura ineflavel.
Sem luz nos olhos, sem còr nas faces, verdadeira
imagem da afllicção, U. Maria era ainda maisbella
do que no orgulho de todas as galas da sua formo-
sura.
Depois de a estar contemplando grande espaço, o
mancebo ajoelhou, e, pousando um beijo na mão que
pendia fria, com um suspiro alio exclamou :
— II Meu Deus, que immensa d<5r é amar assim !»
Q.uandu este grito saía da alma do cavalleiro, ia
cila tornando a si ^ e, abrindo frouxamcnie os olhos,
deixou cair sobre elle a \ista turva, onde o alvoroço
da esperança brincava radioso. Depois um véu de
timidez empanou-lhe o brilho, e uma lagrima furti-
va pendeu das pestanas assedada». Lin sorrizo, ao
mesmo tempo meigo «triste, aihjou, sem asdesabo-
toar, pelas rozas d\i'juella bocca, de que o mancebo
esperava (juvir bem severos (|Ueixumes.
(»ome» Lourenço fez-se crtr de purpura, e depois
branco com um lyrio. Subjugado pela adorável fas-
ciMução d'ui|uelles olhos, nem deu mais uma passa-
da, nem disse uma palavra, nem ousou despregar a
vista dVdlcis
Nenlium d'elles fallava. O mancebo porque não
podia, a dama porque aiiul.i não ousava. Uucria as-
terenar o espirito, e medir os gestos e as palavras;
uma He mais era bastante para a perd.r. — Einfim,
com ar magoado, correndo os dmlos afilados u rola-
dos pc-lii testa :
— i. (liii! mal faria ou, fraca mulher, para chegar
n esta diir ! . . . exclamou ella, e. nem esperar res-
posta, accrescenlou, não fitando «'elle a receiosa vis-
ta : — Oh, (juein me dissiTa isto n\iquille ília á noi-
te ! . .. — e, virauilo-se pura o cavalleiro subitauien-
te, perguntou ; — Não vos lembraes d'ellr, nem do
sitio onde foi ' ■•
— «Lembro, tenhora. Aquella tarde de março.
na coutada de Lorvão, como havia d'esquece-la ? . . .
Os felizes só é que se esquecem. Oh se eu a podesse
tirar d'aqui ? ! n
— «Era talvez melhor para ambos n acudiu ella
entristecendo.
O mancebo corou. D. Maria insinuava-lhe que o
seu amor só na apparencia fora desprezado. Dava-
Ihe a entender que, similhante aod'elle, gemera di-
lacerando-se em silencio nos laços do dever, ou do
receio. A vista, que então encontrou a sua, dizia
tanto, que as palavras eram nada ao pé d'aquelle
fogo. Gomes Lourenço accreditou-a. Podia lá duvi-
dar da única esperança que lhe promettiam no fim
de tantos annos? Se a experiência e a suspeita lhe
diziam II não cedas, olha a realidade" o coração, can-
çado, apegava-se ásillusões para não morrer. De que
tinha horror era de viver sem fé.
— "Melhor? ! . . . Ciuem não amou sabe lá o que
é a vida?. . . Não é verdade ; melhor era não ter
vivido, que viver, como eu, sem esperança, sem mo-
cidade, sem nada ? u
— "E se vos dessem esperança tinheis fé?»
— "Oh, se m'a de;sem 1 . . . Mas a esperança a
mim ninguém m'a pôde dar, senhora. »
— " Ninguém ? >i
«Hoje ninguém!»
— " Nem Deus ? I »
— «Nem vós, senhora! Já não creio.»
Houve outra pausa então, em que ambos, com a
vista no chão, se conservaram ímmoveis. D. Maria
cortou-a de novo, dizendo:
— "Vou-me queixar de vós, cavalleiro. — A uma
dama tractaes como inimiga?"
O mancebo tornou a corar da expressão doce com
que lhe diziam estas palavras.
— "Inimiga?" murmurou elle.
— "Hospedaes então os amigos n'unia torre?"
perguntou sorrindo.
— "São os paços onde moro, senhora D. Maria. Se
estaes nos aposentos da torre — é que os não tenho
melhores aqui. «
— »Dizei-me, cavalleiro: sou livre ou estou cap-
tiva ? . . . Não respondeis ? Juro accusar-vos, desleal,
aob mais bellos olhos de toda Hespanha."
— "Sou condemnado então — replicou o mance-
bo, sorrindo lambem — seos vossos me não perdoam. ■•
— "Lisonjas e prizões, D. cavalleiro?"
— " \'erdades e rogos por alguma belladama. . ."
— «E meu irmão, que tãocara Ihecustou aaven-
tura! " proseguiu ella mudando de tom.
— " De quem foi a culpa, senhora? A' lança res-
ponde a espada. Talvez D. ftlarlim cuidasse que não
havia em Salzedaa casa paru receber uma dama de
Lanhoso ? "
— «E como entrava ella lá, cavalleiro?"
— "Como mulher de Gomes Lourenço — como
dama dos seus pensamentos — como senhora onde el-
le mandar. "
— «E cada passo para o aliar a faier-nos um ac-
cusador. O mundo a elannir ..."
— "O mundo I ... Só conheço o temor de Deus.
Abaixo d^elle nada. »
— " Desarrazoaes como um trovador. Com asm.i-
guas estaes peior <jue (ionçnlo Uormiguet, o nion-
ge-eavalleiro. "
— "Ambos padecemos da mesma pena, senhora.
A elle curouo «eova. A mim. . . Deus sabe <|uem. "
E olhou-a COMI receio e esperança. Ella sorriu.
Oh, se o mancebo adivinhasse ? !
— "E eu sei lambem ser Deus, senhor cavalleiro,
Mai oquedarieii vós »«; o coração de uma duma ' . . . "
276
O PANORA31A.
— II Tudo ^ não tenho que dar depois da vida, e
essa . . . não é niiiilia. Mas o coração de que fallaes
é frio como pedra. JJe que serve per^untar-lh'o ? "
— ii Jiilçou o vosso tanto tempo inimigo, que. . . »
— .í Inimigo, eu! de mim, da honra do nome que
tive. (Auando diíserem : — olha D. Gomes Louren-
ço, seu pai mataram-lh'o á traição, smi mãi morreu
de dòr, e o íraco, o vil não teve uma lança que es-
talar no peito dos de Lanhoso! . . .O que ha de res-
ponder o vosso inimigo, senhora? Mezes, ânuos sem
erguer o braço I l'or que solTre tudo isto como um
escravo, como um villão, como reféce ? ! íoi por-
que o sangue dos que eram meus inimigos me doia
mais do que o meu . . . para poupar lagrimas a
olhos . . . que as chorariam de alegria ... se eu caís-
se na sepultura ! E verdade, Martim l'aes. O mon-
tante do Espadeiro está nas mãos d'uma mulher. —
Hoje não ha em Portugal appellido mais infame do
<]ue o meu, o de Salzedas. O sangue dos \ iegas aca-
bou com o ultimo que se chamou do seu nome ! . . .
Chorai por elle, cavalleiros, que era um nome velho
como as Hespanhas — e morreu, sepultou-se com o
])ai de Gomes Lourenço, o covarde ! "
D. Maria percebeu que fora imprudente escaldan-
do aquella chaga. Mudando logo para outro assump-
to, com os olhos baixos c a voz commovida, excla-
mou :
— « Pague-se agora a divida! . . Aqui tendes uma
de Lanhoso — mulher e como é, talvez baste ..."
— II Sr.'' D. Maria Paes, os de Salzedas vingam-
se como homens . . ..ou não se vingam. Ca!a-te, or-
gulho antigo ! . . . E a tua bocca que o pode dizer,
Gomes Lourenço? Covarde, que fizeste do nome dos
Viegas? . . . murmurava o mancebo, soluçando. —
Por compaixão não me deitem em rosto o que fui...
Cavalleiro, nienli ao meu juramento I Filho, rene-
guei o sangue de meu pai ! Irmão, vendi a herança
de outro irmão ! Rico-homem, arrastei o pendão e
manchei as armas de meus avós, para até os servos
se rirem d'ellas ! . . . Gomes Lourenço, era melhor
amortelhar-te n^ura mosteiro — ao menos as faces
não te curavam diante dos teus escravos ! »
E ao soltar estas palavras, quebradas. na garganta
pela anciã do peito, fechava o punho e media o apo-
sento a passos largos. O semblante carregouse de
amargura, e os olhos accenderam-se em terrível
chamma. Parando de repente diante d'ella, o man-
cebo, en) tom prezo e rouco, exclamou :
— « Morreu tudo aqui, senhora. Diante de Deus,
diante do meu sangue, na presença dos homens sou
um traidor, que me vendi pelo teu amor, Maria ...
mas se me enganasses, se me enganasses ! »
E tapou o rosto com as mãos, desatando a chorar
como uma creança.
Só então conheceu bem ella o abysmo d'aquclla
alma — a dòr insolVrida da sua paixão. (Auantos sa-
crifícios se podem fazer todos o desgraçado cavalleiro
tinha consummadu por sua causa. Familiu, ódio,
gloria, vingança, quanto o seu tempo estimava em
mais, tudo i) <jue por assim dizer temperava o espirito
do guerreiro da meia idade, tudo lhe depozera aos
pés. Um inslantu teve dó d'aquclle delírio, c pela
mente adejou uma idéa generosa. Foi um momento
apenas. Veio logo o ódio, veio alraz a soberba risca-
la para sempre, e gravar em sangue outro pensa-
mento immutavel. K deram-lhe a força, e emprcs-
taram-lhe a astúcia, necessárias para continuar na
scena de dessimulação que até alli representara.
— li E nunca a esperança de agradecerem sacri-
fícios tacs vos adoçou a magua?" — perguntou cila,
illuminaudo-u com o ruiu de luz que faiscava dos
ulLos.
— ii Nunca. O escravo chorou e ninguém Ihelim-
pou as lagrimas. Talvei se rissem d'ellas ainda em
cima ! "
— u E se não rissem — e se dissessem : — Gomes
Lourenço, outra alma houve que penou com a tua
n'esse martírio — que chorou e padeceu cnmtizo
e por mais d'uma vez, no fundo do coração, bradou
a Deos : — Senhor, quebrae-me estas pniões d'oucu,
que ferem como ferro ? »
— uSe m'o dissessem, se fosse verdade ...»
— "O que fazíeis?"
— t.Morria d'aleçria aqui, como tenho morrido
de dòr sempre ... Se houvesse . . . e o ouvisse da sua
bocca ; se o coração, batendo com o meu, o repetis-
se ^ se os olhos, ardendo em fogo, m'ojurassem . . ."
— " \ ós o que juráveis ? . . . "
— " De joelhos, com as mãos postas, dizia : — por
ti perdi o nome de meus avós e a honra da minba
espada. O sangue de meu pai é uma nódoa no meu
rosto — o único irmão que tinha passará por mim
como estranho — o mundo ba de cbamar-me vi), ha
de chamar-me tudo o que envergonha as íaces c fai
pular o coração de raiva — abençoada a hora em que
fiquei assim, se tu me amas ! Estrella, que nas tre-
vas me deste a luz da esperança — por te seguir morri
na flor da vida — e bcmdita sejas, que me salvaste ! ••
— 1< Ama-la-heis a ella s<5?"
— «Não se adora mais que ura Deus."
— íí Oh Gomes Lourenço, também eu direi alvo-
ra : — Por ti chorei em silencio trabindo a paixão
d'outro, tremendo de remorsos e de ciúme — por ti
esqueci pai, irmão e sangue — abençoado sejas, que
enches de um amor immenso o vazio que o affectn
d^elles me deixou no coração !... também eu fico sem
parentes e sem nome. "
E proferindo estas vozes, D. Maria derramava so-
bre elle o fogo dos olhos pretos, aonde no delírio áo
aHecto faiscava a mais ardente paixão:
O mancebo ajoelhou, exclamando: — u Oh Maria,
Maria, porque me não disseste isto senão ai;ora.
E julgava-se tão feliz, que alli queria morrer df
alegria aos pés da primeira e única esperança quc
lhe colheram ao cabo de tanto padecer.
E ambos assim, largo tempo sem fallar, estive-
ram a ver-se, a beber pelos olhos, e na alma, adoce
alegria d'aquclle instante. Elle de joelhos ^ — ella.
sorrindo, amorosa, meiga, como em sonhos o man-
cebo a vira esteuder-lhe a mão, e eDXu>;ar-lhc o
pranto.
Por fim D. Maria, erguendo-o e pousando-lhe a
mão no hombro com doçura :
— u.\gora, que sois o meu cavalheiro, disse ella,
quero pedir-vos um dom. — Concedeis-m'o ' >•
— «tiue te hei de eu negar, Maria ?"
— i. Nas horas em que rogavaaDeus que nos aci-
basse este martvrio, fiz voto de atar esta alliançnem
Sancta Olaia, sobre o tumulo de minha mãi. Aquel-
la que tantas vezes me embalou ao peitu, e, ainda
creança, me deixou, quero que abençoe do céu csle
amor, que tão triste nasceu e chegou aqui. "
Uma nuvem se estendeu de repente pelo rosto de
Gomes Lourenço.
— uE tão pouco! respondeu elle. Não bei de ter
segredos para ti, Maria : não sei o que me dito cora-
ção. . . Sinto que me espera lá desgr.iça grande."
— t. E a alma de Inigo Lopes ? >• acudiu cila, rindo.
— 41 Não; quem sal>e o que é? Pelo amor do céu,
Maria, escolhe outro sitio. — Não agoure» «te» amo-
res com a sina do castello maldicto. '•
— .1 Que visões ! "
— ..TaKci — e são. Mas o segundo casamento óe
meu pai fei-se lá. Alta noite, no dia do noivado, oo-
o PANORAMA.
277
briu-se de lucto a armadura de Inigo Lopes. A has-
te do pendão de Salzedas quebrou, e não assoprava
aragem de vento. A essa hora sonhou meu pai que
o enterravam alli mesmo com cervilheira e espada. , .
e — tremo de o lembrar! — alli se enterrou, no mes-
mo dia, quasi a mesma hora, passado um anno.
— li Acaso I E o meu voto.'"
— "(iueres t ... cumpra-se, e Deus seja comnosco. »
— ií .'Vmeu I Es um leal cavalleiro. Gluando par-
timos ? '• .
— " Era tu dizendo. »
— " Ijogo ? J>
— lí Já. )*
E duas horas depois saía da honra de Avellans a
rica-dona de Lanhoso com Gomes Lourenço. Ella
com o seu falcão no punho, esbelta no fogoso corsel,
que escarvava o chão, mordendo o freio. Elle, pro-
curando espairecer o máu presentimento, montado
na possante «mula do corpo n , sem armas, e só com
a espada sobre o saio. Poucos homens d'arrças o se-
guiam. Dentro em pouco os atalaias perderam-n'o5
de vista no meio d'um rolo de poeira.
Sobre a madrugada, ura cavallo a toda a carreira
galgou a empinada encosta, e o som da buzina, pu-
xado com anciã, accordou os echos. O villico chegou
ái ameias.
— 11 D. Gomes Lourenço?" perguntaram de fura.
— II Saiu sobre ocaír da tarde."
— K So ? Jí
— "Gluem é, que tanto pergunta?»
— "D. Egas, seu irmão. Foi só.'"
— II Levou D. Maria Paes a Sanefa Olaia.»
— "Abri então. Perdi a jornada."
O» alçapões ferrados rangeram ; a levadiça caiu \
p pelo portal de volla bai.xa entrou o cavalleiro ao
clarão dos fachos.
OARXOATDIIA BOLI.AI(rDSZ&.
KoLi.it^u, irunia cpinloja, representou » llollandn
mui nobrumrnle pcrionilicada debaixo dus feiçuoidu
uma divindade marítima, o deus Rheno, aui^usto
velho de barba limosa, e que da verde pupilla do»
olhos despedia húmidos fulgores. Porém a malícia
franceza teve também as suas ficções, e no tempo da
famosa passagem do Rheno não escaceavam as repre-
sentações burlescas ou caricaturas d'aquelleexcellen-
te povo llamengo, bebedor de cerveja, taciturno co-
mo o seu príncipe, todo vestido de lã parda, e que
todavia pelejava pela sua liberdade, pela pátria, era
quanto o sangue francez se derramava para servir
principalmente a ambição de um homem.
A figura brutesca, acima estampada, é transum-
pto de uma d'es£as caricaturas internacionaes, hoje
obsoletas. Será a Hollanda, entrincheirada atraz da
sua enorme balsa, em vez da urna clássica de Boi-
leau, e prompta a innundar as campinas com a sua
beberagem estimada, oceano de cerveja onde seaffo-
garíam os francezes? Nada: os francezes d'essa epo-
cha tinham sulíieiente esperteza e finura para não
empregarem o pincel em desenhos vagos, e como as
novidades suscitam vulgarmente irrisão, é uma no-
vidade que deu assumpto á caricatura; posto que a
cousa não fosse nova na Europa, algum sabor parti-
cular Itie achariam em respeito á Hollanda. A figu-
ra representa um gazeteiro hollandez. A lloUauda,
paiz livre, contou entre os primeiros fructos da sua li-
berdade a gazeta. Olhai paraaquellas formas d'Eso-
po; o enorme cangirão onde mergulha a vista não
será o emblema áasua folha, d'onde sáe a inesgotá-
vel innndação que ameaça cobrir o mundo. É o te-
mível novellista que semeia por toda a Europa os
boatos assustadores ; que falia dos turcos como se as-
sistisse ás deliberações do divan, e ameaça com cem
mil janisaros Belgrado, o baluarte da christandade.
ftlas onde viu tudo isso? No fundo da sua dorna. . .
"Com 05 braços arregaçados (dizia Beaumarchais)
até os cotovellos, pescando o mal em agua turva. "
Oh que terrível homem, o segredo dos embaixa-
dores corno a sorte das nações está na sua mão : ve-
de como sáe armado, mas de espada do cana I
PoréiM a gazeta d'esses tempos transformou-se nu
jornal moderno. Parce sepultis. Os francezes contem-
porâneos é que lhe não perdoaram.
Taiti em 1S42.
O CELEUUE navegante hespaidiol, (lueiroz, descobriu
em IGOlj a ilha de Taití, que esta situada próximo
ao trópico de Capricórnio: dcram-lhe primeiro o no-
me dtíSagittaria ; depois ocipitão N\ illis. em IGbC,
a chamou ilha do rei Jorge, e Bougainville, que to-
mou posse d'ella pela França, a intitulou Nova Cv-
thera: d'ahi a um anno, era 17G'J, Couk ao visitar es-
ta região fértil restifuiu-llie o nome (juo llie liavi.im
posto seus naluraes, isto ú Taílí. — l'",s.ta ilha appre-
scnta n ligiira de uma cabaça . um grupo denuiiita-
nhus ver<lej.iiilts, torneado ao sul por uni furnui>o la-
go, ecercado de um lilloral fecundo, fúrnia a ilha de
Taítí prupriamiiile ilicta, a qual, por um i>thmodf
légua de largo ipiando muito, pega com a p<'uinsul.i
dcTahia-llabií i estafai uni dos seisdistriclos em «[U*
todo o território «ediviílc. !>ú o littoral é habitado;
lis montes,' (|ue conslitucni o centro da ilha s.T(H|iia-
si atidos noi cumes, posto ciue as encostas cst.Jam per-
feitamente «libertas ilematt;is. Ilccífes de coraes n ro-
d.'iain,aervindo-lluMledii|ue.s, e formaudo muitos por-
tos, seguros <• ronimodos ; são iis ipie de iinlin.iri.i ir
frequentam, a balii.i du Tunoa lui distriífo de Mal«-
vó/., e « de PcpiMti no districlo de Pari'.
'laiti se piidi! considerar como n cubeçd das ilha*
du Sociedade, de que todas as mui«d'cittt archipeli-
278
O PAJNORAMA.
CO dependem. A rfligião da terra é o protestantismo j taculo que torna a pronunciação da sua língua mui
mie para la levaram milionários inglezes, e que foi difficil para europeus.
abraçado pelo rei l'oniaré I. Os iialuraes mostram- A dança nacional consiste n\ima espécie de mimi-
te de boa índole, brandos e affaveis; gostam dos e»- ca que se practica com os braços ; os que fazem a pan-
trançeíros e os procuram com alegria e amizade: os tomína assenlamse no chão em meio circulo para
homens são altos e bem parecidos, posto que a pelle imitar os geitos, e sons gutturaes de um que está de
seja muito acobreada ; as mulheres, de cutis mais pé no centro da roda.
branca, parecem baixas, e senão bellas bastante altrac- i O governo taitiano consta de um rei ede ama es-
tivas, o que teem de mais notável são olhos vivos, pre- pecie de parlamento a que todas as povoações do ei-
tos, è rasgados, e dentes de estremada alvura. Os cos- tado mandam deputados: o seu código não passada
tumcs estão corrompidos no maior auge: os missiona- summa das leis feitas pelos missionários, cujas disposi-
tíos in!;lezes com seu absur.lo svstema de intimida- ÇÕes penaes reduzem-se a muletas em proveito d^aquel-
lão, te^èm conseguido fayprem-sê temidos, porJni não le ávido clero. — Os francezes rezidentes em Taítí,
fazer respeitada a reli-iao que ensinaram. No Taití principalnfente os missionários, por vezes soffreram
fallar.^o a cada passo em inferno, ein penas eternas, perseguição indirecta dos padres protestantes. Já em
enas coimas que os missionários inglezes exigem dos 1838 Mr. Dupetit Thouars teve de exigir reparações
peccadores colhidos em llagrante:, mas ninguém fará da parte da rainha Ahimata l'omaré Ouahiné I,
menção de Christo eda sua missão de amor edecha- ! então reinante, por causa dos insultos feitos á Fran-
TÍdade, da sua lei de perdão e de indulgência. , Ça na pessoa de seus missionários a instigação deMr.
O clima de Taili é de incomparável salubridade, Oritchard, cabeça da missão protestante. Posterior-
iiunca o thermometro sobe acima de 28 graus Réau- mente o mesmo oflicial, promovido a almirante, acbou-
mur, nunca desce abaixo de 15 ; por isso, também, ' se obrigado a fazer respeitada no Taítí a bandeira
o terreno é de pasmosa fertilidade. As canas de as- franceza. Depois da expedição ás ilhas .Marquezas .Mr.
sucar que lá se dão reputam-se pelas melhores emais [ Uupetit Thouars dirigiu-e á de Taítí, e deitou fer-
bellas do mundo: a arvoredo fruotopão encontra-se 1 ro no porto de 1'apeitia 30d'agosto del8i2:, gran-
por toda aparte, acada passo: as goiabeiras, as mau- ; de quantidade de francezes que habitavam na ilha
gas, as bananeiras, os coqueiro», as larangeiras, os li-
moeiros, alli se acham em quantidade prodigiosa : o
café, o tabaco, a batata doce, o anaiiaz, eiicontram-se
na mais rica vegetação; e dizemos rica, porque bella
seria termo impróprio. Os habitantes de Taiti, sen-
do excessivamente preguiçosos, cuidam pouco da cul-
tura : filhos mimosos da natureza mui fecunda, so trac-
tam da colheita ede al:;uns leves trabalhos indispen-
sáveis. Boa quantidade de cavallos, de cabras, de car-
neiros, de buis, e um estupendo nninerode porcos, ha-
bitam os mattos no estado bravio: não haveria mais
trabalho do que agarra-los para alimento da gente, se
os missionários inglezes não tivessem encerrada gran-
tle porção d^elles em seus curraesafim de fazerem ne-
gocio.
N^uma palavra, Taítí é um paiz extremamente ri-
co em vpgctaes, em aiiiniaes, em nácar, cm coral \ e
poderia fundar umcommercio de permutação com as
ilhas do Oceano, se os missionários se não tivessem
apossado de toda a casta de expeculação. Sob o pro-
tectorado da França, este bello paiz não pôde deixar
de ser restituído em poucos annos ao seu antigo es-
plendor, por quanto outrVira contava uma população
queCook avaliou em mais de cem mil almas, e Pos-
ter em mais de cento fc cincoenta mil, numero que
hoje esta reduzido a seis ou sete mil. — A aniquila-
ção da população também éobra dos missionários in-
glezes ; e as causas são as guerras por elles suscitadas
contra os infiéis idolatras que não queriam converter-
»e ao protestantismo, e depois ireste o rigor de suas
leis: a guerra civil reduziu a metade o numero dos ha-
bitantes. O infaiiticidio também se converteu iruiua
espécie de habito entre este povo ainda meio selva-
gem, e 11 sua origem é a pobreza que os missionários ! provisório.
temmoli\aHo á força de se apoderarem de tudo: qiia-
si que se não eiicontr;ini cri"anças n'esta bella região.
A' linguagem doTailí émuitosuave e pronuncia-
se com graiitie facilidnde ; a abundância de \ogaes nas
lalavras a torna harmoniosa: f.iltnmlhe muitas let-
vieram logo a bordo queixar-se do mau tractamento
de que acabavam de ser victimas, e requereram a
protecção do commandante. — Com a noticia da oc-
cupação das ilhas Marquezas a rainha 1'omaré »e pe-
netrara de grande temor e se retirara para £iméo :
os missionários pretestantes se haviam approveitadoda
sua ausência para amotinar os naturaes contra os fran-
cezes, expostos doeste modo á perseguição dos bárba-
ros, que subornados os tr.ictavam como a inimigos
sem saberem porque : o agente consular da França
não tinha poiler para favorecer os seus compatricios,
e até elle correra o risco de ser assassinado. Cbegoa
a cousa a ponto de derribarem as moradas dos fraD-
cezas, e talaremlhe as cultivações. — O almirante
gastou uma semana a reunir as provas de todas aquel-
les malelicius, e logo que as obteve convidou os côn-
sules estrangeiros a proverem á segurança de seus na-
cionaes, quer na residência respectiva, quer a bordo
da fragata delle almirante: ao mesmo tempo man-
dou intimar ao governo taitiano que se não lhe en-
viassem a bordo dentro em quarenta eoito horas des
mil piastras, por iiidemnisação devida aos francezes
moradores na ilha, começaria as hostilidades apenas
expirado a<iuelle praso. — Reuniu-se oconsclhoa to-
da a pressa, e depois de bastante discussão resoWeu
que se não pagaria a quantia exigida, masque se po-
ria o estado debaí.xo da protecção da França ; a rai-
nha prestou immediatamente assentimento a delibe-
ração do conselho, csubmetteu aá decisão do almiran-
te. Para este foi de contentamento a proposta, eae-
ccitando-a, mefteu a França de posse d'aquellel)ello
e fértil território ^ a bandeira fr.inceza tluctuou por
cima da de Taití, e o almirante nomeou o governo
pai
trás do alphabelo, oc, os, o </, o^. os etc
Toda
(EDITAS DE AlkSANDRK DK GvSMÃO.
OiTKA carta, de que possuímos o authographo, e
que vai aqui fnluienle transcripta, mostra quanto
de Alexandre de Gusmão três annos
as palavras terminam em vogal :, os verbos empregam- rendia « casa de Alexandre de í.usmao três annoi
se somente no infinito: não se usa dos pronomes pes- | ant.s do de 1741). cm que podemos aflirmar fora es
soaes senão nos casos de absoluta necessidade. Ostai-
tiaiios fazem preceder a muitas palavras uma emissão
de ar que se parece ao som de c e á aspiração do h,
e que neiu uma neiu outra cousa é: é o un-co ob»-
cripta a exposiçãa dos seus serviços, peU declaração
que elle fez de estar ser\ indo, haviaperto deselean-
nos, o logar de conselheiro ultratn.irino. pura oqusl
linha lido despachado em tTl"J.
o PA^ORA>IA.
279
Meu am." e meu Sr. do Coração. A carta com que
Vm. me fet favor em '2'2 do passado não me foi eu-
tregue logo, e depois mediarão dous correios em que
me foi impossivel responder. Agora o faço dando a
Vm. mil agradecimentos pelos cordeais parabês com
qne me felicita pelo nacimenfo de meu fiiho, q. se
■»ai criando muito bem, e hum destes dias terá a hon-
ra de ir á pia debaixo dos auspícios de SS. MM ^ e
permitta D' q algum dia vetiha a fazer, q. seja de
hum Santo o nome de \ iriato, q. ja foi de hum fa-
moso Capitão Portuguez. D. Isabel (1) a quem fu
prei" a attenção de Vm, e q. m.'" estima por fé as
suas virtudes também lhe rende as graças, e \ m. as
dará da minha parte ao M. R. P. Cónego Sebastião
de Prada Lobo pela continuação com que nie favore
ce. Ao Sr. Dez."' e ás P."* dessa casa oferecerá Vm.
o roeu obsequio e reconhecimento pela sua lembrança.
O recommendado de Vm. ja o foi por mim a Dom."*
Pires Band.", que com toda a bizarria prometeu que
a ele recorreria nas ocasiões que se oferecessem.
Graças a Deos, que chegou este encantado prazo
da sua renuncia, e me deixou esta no\a cheio de re-
gozijo pela esperança de o ver finalmente docança-
do, e a mim gozando da sua amável companhia, que
me faz cerlameiíle mais saudades do que a ^ ni. faz
a minha. Tudo está muito bem ajustado cumo cuuza
do seu juizo, que a tudo soube atender, e até para lhe
não esquecer, ainda o desnecessário, vejo o cumpri-
mento com que Vm. encerra a sua narração, que he
bem digno da sua generosidade, e me deixa obriga-
djssinio; mas tomara eu poder concorrer par.i algum
maior cómodo seu, ou dos seus parentes, que só isso
me lembrara em tal cazo ; e pelo serem de Vm. eu
os reputo, como .se tivera a honra de serem meus. e
ettimo todo o seu bem como se fora próprio. So liua
condição peço a meu favor, e desta quero que \ in.
rae dô palavra infalível, e he que Vni. hade vir pa-
ra a nossa conip.'', e uzar desta caza rm tudo e por
tudo como sua. Da gente que nella achara espero se
não hade desagradar:, porque não ha nuiis que hua
•uma quietação e união perfeitíssima de génios todos
dóceis, excepto o meu, que Vm. já se tem costuma-
do a sofrer; e todos o hão de tratar com amor e sin-
ceridade delrinãus, osu|)iislo nãotemos decaza (|uem
jogue xadrez temos quem toque quatro sonatas Sofri-
velmente.
No papel que restituo tudo está certo, ainda o ul-
timo ponto, sem embarg» de parecer que tem algu-
ma contradição com o penúltimo. A expre»sã() pre-
tente ha de ser ainda de todos os frutos, ao que eu
posso entender , porque o Uenefaicio aluda se conser-
va inteiro ; mas a paga da anata me parece, que ha-
de ser somente da ametade que resta ao Coadjutor,
e a componendu da Coadjotoria levará outro tanto.
Isto depende essencialmente da capacidade, e zelo do
correspondente de Konia ; porque se for aeli\o e liei,
liao lhe faltão rezões com que sustentar que a anata
•e uão deve pagar senão da pro|)orção do (|ue fica ao
•ucessur de cujo priivimenlo se trata, nialiirnieiite es-
tando expreB^o na Bula que para o futuro se expedi-
ra esse IJcnelicio por ametade do que tinha ; mas se
o correspundente não for esperto, dir-lhe-hào que o
Heneficio ainda s(r n.To diwilc, e a^sim hade pagar
como inteiro, (luauto ao i de morto pareei ine, (|ue
« seu tempo d'aqui a eem aunus ic hade p,i..;ar pro
rata pelo »ueeSM>r e pela l'alriarclial, purijue o direi
to estava ailipiirido a \in. antes da graça <la l'a
'•'archal.
V 1 •
'>n. me da conta de um praso que está p.ira clie
(<) I). Is.iiiti Maria Teixeira C.liaves, lillia do Krancisco
Teiíeira Chaves, ljiiuH;o da casa real.
gar, e eu lha dou de dous que já chegarão. O t .'^ foi
despachar-me S. M. nas mercês que estavam prometi-
das, isto he, Comenda de S. Comba dos Vales, Al-
cajdaria Mor de Piconha, a tença dos Portos seco»,
tudo pertencente a minha mulher ou por vida, ou
pelos serviços de seu pai.
O 2.*' praso he um que foi da casa do Conde de
Vilaílor por espaço de 200 annos, e pondo-se agora
em praça para pagamento das dividas do Conde que
Deos tem, o arrematei eu em quarenta mil cruzado»
e ciuco mil réis ; e comlaudemio &e. chegará aper-
to de 50. He silo junto á Azambuja, e ao Tejo, tem
boas terras de Liziria, e cazaes com excelentes pastos.
Cliamase pelo nome genérico de Corte da Vila, que
comprehende uma e outra couza. Anda mal aprovei-
tado ; mas nesse estado rende por arrendamento já
de muitos annos vinte moios de trigo, vinte de ceva-
da, três barcos de palha dos maiores, ÍO-S r.^ em
dinheiro, oO alqueires de legumes, e alguns porcos
com outras achegas, salvo o foro que hede hummoio
de trigo, e 8^ r.* em dinheiro. A con)pra não foi
das mais baratas, mas eu a dou por bem empregada
por não estar desembolsando para palha, cevada c
trigo, que he hum roubo, e sempre governado aquilo
melhor, poderá darnie fartur.i jj caza, como a dava á
do Conde de \ ilatlor em quanto opossuio. Faltame
agora comprar quatro pés de oliveira, que me dem
o azeite necessário para o ga-to de caza, e ficarei li-
vre de muitas pontadas.
O 3.° praso que he o da minha satisfação ainda
não chega ; porque eu confio na sua bondade, qu«
ainda não eslá exhaurida a sua paciência para comi-
go. Verei o que posso fazer antes da partida da fro-
ta : porque nela não me veio nada a respeito da ou-
tra fazenda que tinha arrematado nolBrazil meu Tio
obrigando-se a dar de primeiro pagamento lOS cru-
zados e 900;^ T.^ por ano até completar o preço de
i3^^ cruzados, e como me fazia grande conta man-
dei lançar mão dela por haver muitos toureiros, e o
Procurador acudiu com o primeiro pagamento menor
do que meu Tio se linha obrigado por estar a fa-
zenda deteriorada ; mas esta parcela com a de algu-
mas letras que passei absorbeu toda a remessa. K o
certo he que por estes primeiros quatro ou cinco anos
heide meter, coiiui dizem, agulhas por alfinetes, até
me alimpar da carepa das dividas, que em quanto
as ha, não lenho descanço. Porém hua vez que me
veja livro -dei. is; terei com que passar decentemente,
porque ja conto 1'J;^ cruzados de renda, e se conse-
guir algumas cousas que estuo pendentes e não pen-
dem de muita demora, passarei dos 20. Permita Deos
darine lui para saber fazer bom emprego de tantos
favores seus. Conserveme \m. o seu amor, que hea
minha maior riqueza, e mandeme em que o sirva; e
quando se vir com o nosso Prelado, me ponha ao*
seus pés com mil amorosas lembranças.
1).^ g." a Vm. ni.' a.'' Lisboa li) de Fevereiro de
Í7i'j.
M. K. P. João Monteiro Bravo.
De Vi
Hestituo a carta de Alexan-
dre Urandãi), ea minuta da
resposta, que de bem guar- Ain." do Cor.° e obr."'"
dadas não uparcciãu. , , , ...
' Alexandre de Uusmau.
As partieul.irid.ides da vida intima do secretario
e eoiilideiile de D. João V', que a presente carta nos
di'sei)bre, nus obrigaram a piiblii-al.i com\o um sul>-
sidio importante para a bioi;r.ipbia de .-Vlexaiulre de
(iuMiiào, t|ue tem siilo etciipl.i ate agora muito eiu
resumo, em cuiisequcncia da escacet de noticias.
(Ji. F.)
280
O PANORAMA.
PrRoxvLiNA OU AluodXo-polvora.
Força baíiílica. — Mr. A veros, coronel tie arlilhc-
ria, fez varias experiências com um pêndulo balisti-
co, rmprcçando em concurrencia a pólvora vulgar e
i> fiilmi-ólíodiio. Deraiu-llu; os rpi.iiltados sejuintffs :
1 gram.
'2. . . .
3. . . .
VELOCIDADES TRODliZlDAS
Pela pólvora
Met.
9i..2(i,S
1G8,8',»7
23 í, 091
28i,95l>
320,153
Pelo fulmi-algodâo
Mel.
1 '(9,3 í 2
280,433
400,349
447,732
518,393
Cinco çrammas de fulmi-algodão produzem pois o
mesmo efleito <]ue treze para quatorze gramraas de
pólvora de espingarda.
.MM. Combes e C. Handin fizeram alguns ensaios
sobre a extracção da pedra das pedreiras por meio do
algodão azotico. Estes ensaios, com bcrem iusulicíen-
tes e não darem a medida exacta dos eflWitos da no-
va pólvora, mostram que ella pode ser empregada na
exploração das minas, sem exigir precauçíJes ditticul-
tosas. A propriedade que tem de arder quasi sem fu-
mo nem cheiro, lhe assegura que será preferida á
pólvora ordinária em todas as excavações subterrâ-
neas, sendo igual o custo de uma e outra.
Efeitos pyrotcchnicos. — O papel, preparado pelo
methodo de Mr. 1'elouze, e embebido em dissoluções
de nitrato de strontiana, de sulphato de cobre, de
nitrato de baryta, produziu lindos fogos vermelhos,
verdes e brancos. Os papeis azotados, como era dVs-
perar, poderão também ser úteis á p^rotechnica. A
pequena demora com que ardem, devida a terem si-
do mergulhados na dissolução dos saes metálicos, fa-
vorece muito a duração das vistas que se pretendem
faier com os fogos de cores.
Anahjse. — Mr. Dumas concluiu da analvse do al-
godão-polvora, que, se a sua explosão nas armas ou
nas escorvas deste os productos gazosos que eiie adia-
ra, estragaria as armas dentro de pouco tempo ■, mas
depois de outras considerações, que não são para aqui,
admittiu a possibilidade de que o algodão fulminan-
te, empregado nas cargas das armas de fogo, não cau-
sará os damnos ()ue promeltiam os produefos ácidos
da sua explosão ao ar livre, sustentando, comtutio,
que lhe parecia inevitável a formação du acido ni-
troso nas escorvas.
f^antagcns c iitconvcnitutes. — As vantagens que
apresenta o fulmi-algodão em relação ao serviço mi-
litar, diz o coronel .\veros, são oaceio, a combustão
prompta e sem residuo solido, o nãodeilar máu chei-
ro, a leveza, e ser possível manusea-lo sem perigo, lon-
ge do fogo, bem entendido i não largar poeira nem
ter precisão do ser peneirada, uma força incontestá-
vel, e que se podo avaliar (por agora) cm três nrcs
a da pólvora.
Entre os inconvenientes aponta Mr. Averos o gr.in-
dc volume, e por conseguinte a difficuldade do fa-
brico c transporte; finalmente a producção de gran-
de quantidade de vapor da agua. Accrescenla-se a is-
to a formação do vapores capazes do estragar as ar-
mas, 8 de vapores nitrosos, ilos que i\Ir. l)uiu^\s se re-
ceia ; ainda que o longo uso da pólvora fulminante
ou aramoniureto de mercúrio nas escorvas dovc ter
dissipado o medo du9 vapores mercuriae;, pro>enicn-
tes da combustão.
A practica deveattenuar estes inconvenientes-, de
outros mais graves houvera a chimica contemporânea
accusado a pólvora vulgar, se assistisse ao seu nasci-
mento com os apurados niethodos Ja analise deque
hoje dispõe : por exemplo, de deixar srande porção
de resíduo, e de deitar um fumo que incommoda. E
a chimíca a nenhum d"estes defeitos poude até ago-
ra dar remédio, e ha perto de cinco seculoi queeste
informe producto está na posse de auxiliar os ódios
dos homens e dos governos.
De resto, os inconvenientes que appreseuta o ful-
mi-algodão feem muito pouco valor compurailos com
as suas vantagens, e bem fazem <is que continuam a
estudar o modo de o applícar áí armas de guerra. Os
progressos, que se teem feito na prpp.iração, já res-
pondem as principaes arguições de que foram alvo o»
primeiros productos. As commissões de artilheria que,
na Prússia e na Inglaterra, não quizerani adniitliru
fulmi-algodão, mais por orgulho nacional que por
motivo serio, terão, a sua pezar, ile reformar, dentro
de pouco tempo, um juízo precipitado.
Ninguém pode prever o futuro a re>()''ito da nova
pólvora :, está dado o primeiro passii n'utDa carreira
nova, seguida com ardor pela curio>Ídade impacien-
te de uma multidão de indagiidores. Talvez que no-
vos compostos venham fazer esteesquccid». Eeni to-
do o caso elle carece de passar pelas provas do tem-
po e da critica; e a sua preparação. Se não puder ser
simplificada, deve adquirir ocaracter de unilurmida-
de indispensável, para que grandes porções de pólvo-
ra azotica possam ser fabricadas com presteza.
MM. Aubert, Pellisier, e Gav-Lussac, no fim do
seu relatório sobre a pólvora e escorvas fulminantes,
perguntavam, se havendo uma guerra geral, a Fran-
ça, que não tem minas de mercúrio, poderia obterá
quantidade d'este metal necessária para fabricar as
escorvas para o exercito. Actualmente, que a pvro-
xvlina deixa muito atraz de si ofulminato de mer-
cúrio, porque serve ao mesmo tempo de carga e de
escorva, a questão não será ociosa, visto que o algo-
dão é um género exótico. Conviri.i por tanto que os
chimicos fizessem ensaios encaminhados a substituir
o algodão por outras matérias textis dos nossos cli-
mas, como são, por exemplo, o linho c o canamo.
A' questão daiiiateria prima segue-se anão menos
urgente da conservação. Terá a p\ roxvlina a pecha,
commum a todos os tulminantes. de se alterar com fa-
cilidade, de custar a conservar ? lia razões para o crer.
Que meios se poderão empregar em tal caso para
fazer grandes provimentos sem perigo, já que a pre-
paração da no\a pólvora não é tão fjcil e rápida,
que baste ter a mão as matérias indispeniaveii para
fabricar grandes porções d'ella.'
As NAIADES.
Intgktando aformoscar com ura chafarii a praça (Je
Luii 15.0 Napoleão incumbiu um architeclo deapre-
sentar o desenho. Feito este, viu o imperador queo
monumento se compunha de quatro iiainde» que dei-
tavam a agua pelos peitos ; achou a lembrança pouci»
decorosa, e disse para o riscador d,i obra. — ..Tirai
d'aqui estas amas de criar; as naiades eram virgens
Co.M aspisfoUas cng.itilhadas. pergunto» uma patru-
lha a Pocage : — Uuem e .' d'unde vem f p^ra oode
vai.' .\ resposta foi prompta:
E o poeta Bocaçe ;
Vem da loja do Nicola ,
^'ai para o outro mundo.
S« lhe dispara a pislolla.
36
o PANORAMA.
281
UMA COCIMODA DO SÉCULO XVI.
Os trastes caseiros dos séculos passados começaram a
ser prociiradiis a par do moviíiionto (juo inculiu álit-
toratura moderna o romance extraliido dos factos e
vida intima dos nossos maiores. A ric|uc'7.a da mobi-
lia, já pelo preço da matéria, já pelo primor c mi-
nuciosidadc do trabalho, não tem sido ij^ualada pela
pom|)a deslumliranle da arte moderna. São portanto,
cid)i<;ado» por dois motivos-, valor intrinseco, e amos-
tra do gosto i: hábitos da sociedade antii^a. Sobem mui-
lo de valia, ounãoteem preço assignavel, alguns d'es-
«os trastiís (jiie recordam memorias hisloricas. — JN'es-
te ulliino caso, riMinindo em alto gráii todas as do-
mais «jiialidades, está uma com moda ou pa|)elleira Cjuc
perlenceu a Maria dir Medicis, oeslá li^iirada node-
«enlio prrcediínte. No anuo próximo passado loi ella
vendida em i'aris junctamentc com um.i si.'cr(.'taria do
rei |>opnlar Ilenrii|ue IV, dtsaiortuiiailo i'sposo de
Maria lie Mwlicis, — São duas pi'('.is d'obra lormosis-
simas noseu g(,'n<'ro, conslruidas intiir.unenle deéba-
no com veios de Ideies iTouro;, dois moveis ile n)a-
■^nificencia verdadeiramente regia. Allirina Mr.íioz-
lan (jue ao mais h.iliil artista dos nossos contempora-
noo.H não b.islariani de/, annos de tr.ibaiho assíduo
para concluir lodos os marchetados eendiulidos só da
■'ommoiia, (pn; é i>bra ilclicadissima (i ile pcrleilo la-
vor. Uma prani'iia inleiriea de ébano, eiun o mesmo
ornato, cubie esla i'ommoda (|u<í tem por timbre os
escudos d'ai'mas de l>"raiiea i^ Florença, reuiatado» pi'-
la corda ila grã-dui|uez,i ■, o (|u<í provav<'lnii'nle in-
dica haver sido esla peça algum presente <logrão-du-
que, Kraneisco 11 a sua filha, a rainha Maria.
Uma singularidade preciosa dá incalculável apreço
Voi. I, — Otiiiitui 30, 1«17.
histórico á secretaria. C) escudo de Henrique l\ foi
arrancado do uma das almofadas, e substituído ti—
merarianienle pelas armas de Concini. l'arece fpic
este movei fora dado pela rainha, depois da morte
de Henrique, ao marechal d'Ancre, pois cpie depois
de assassinado também o marechal, o seu espolio foi
engrossar, como é sabido, a casa do Luynis. iixacla-
menle próximo á pcipiena vilia de Lu^iies, na Toií-
raine, foi descoberto este tliesouro arcluíologico.
A comniuda e a secretaria são por tanto dois mo-
veis inestimáveis para os amadores ilos tempos anti-
gos; provaveimenie n'elles se recostaranj a infeliz
llenriípieta d'Inglalerra, Luiz \I1I, e (jastão d'()r-
léaiis. Além d'islo re|iulam-se dois prodigitis artisli-
cob do século decimo sexto, vísio que serviram a Ma-
ria de M<'dicis e seu marido logo no começo do sé-
culo X\ll. Mr. liozlan, <|ueiXando-se ilecpionu-
nnmenliis assim portáteis e de lai preço histórico não
sejam adipiiridos pi lo <:stado para ornamentar o mu-
seu de uma grande nação, dá-us coinliido por muíK>
bem em|iregados, \ isto t|U(? foram comprados |>or um
lilleralo, o celebre romaiicisl.v Mr. de iSaltae.
No próximo numero daremos uma curiosa noiiei.i
de Mana de Mediei» e das jicssoas mais ligadas a
sua historia.
A KOCII \ l>n iiuAuAu.
I.emla i lu uitna.
As suTic montanhas (pie na mnrgciii direita 4I0 Itlie
nu levanluin [lurti as ntiveni os mugostoaus ciiutcs, .-
2S2
O PANORAMA.
ocastello de Roldão, outr'ora magnifico e forte, cam-
peando sobre uma eminência, dão lot!;o na vista do
viajante, fjuí- visita o formoso valle do Klieno, ao
subir ])(ir este rio. Alli cessa como por encanto auni-
Ibrmidade das [)lanieies ; e qualquer, avista (Peste es-
pectáculo prestigioso, coidiece que com justiça foi cha-
mado o itlieiio o pai <las lendas. — O viajante, que
trans[)ortado pelas verdes aguas do rio, se adianta
para o norte atravezd'csteparaizo, divisa ao longe mon-
tes piclurescos com as assomadas verdejantes coroadas
de minas de caslellos antigos ; sente-se attrahido por
lima irresistível força para aquellas alturas i pelo me-
* nns apressa-se a ir ver o Urachenfels ; é o nome que
tem aquella aggregação coUossal de rochedos na mar-
gem direita, que com suas cavernas escuras e a fron-
te guarnecida deruinas sealttia á beira do rio. A pe-
quena e aprazível cidade de K.-cnigswinter encosta-se
a parte sepfentrional d'este monte, o qual com o la-
do do sul abriga contra o vento do norte a bonita al-
deia de I{lia;ndorf; os pâmpanos viçosos e grupos de
arvores, picturescaraente espalhados, embcllezam a
raiz e a parte meridional da montanha.
N'uma das cavernas que d'esta parte se mostram
ao esj)eetador existia n'uma era remota um dragão
monstruoso ; os habitantes do cantão o reverenciavam
como divindade, e tinham, em razão d'elle, chamado
as rochas que lhe serviam de acolheita Diavlicnftla,
rochedo do dragão. As tribus d'este districto eram
cruéis e selvagens; comliates e saques eram seu úni-
co passatempo. A esperança de rico espolio os enca-
minhou certo dia para a margem esquerda do Kheno
onde raptaram uma virgem christã. Dois caudilhos,
dos mais poderosos d'aquellas iiordas, sentiram-se
abrazados do fogo de amor brutal á \ islã da casta
donzella, e a quizeram para mulher, mas nem o ar-
rebatado IJarwisck, nem o astuto Rinbold consegui-
ram mover-lh(^ o coração. Tal resistência redobrou a
violência fios desejos ; e rebeniou entre os dois rivaes
eiume terrível: resolveram levar pela força oque por
instancias não tinham podido alcançar: por tanto a
discórdia sacudiu seus fachos em meio d^aqucllas tri-
bus barbaras que divididas em dois campos inimigos
traclaram de decidir a contenda á mão armada. En-
tão os anciãos surgiram e clamaram : — "Que oppro-
brio para a nossa gentc", se os mais nobres fizerem cor-
rer sangue por causa de uma rapariga, que nem se-
quer tem a honra de pertencer-nos ! Os numes sem
duvida escolheram esta victiina para lhes ser offe-
recida : obedecei á voz da divindade : immoie-se a
lilha do estrangeiro, entregue-se ao dragão do lUie-
no. " — Os dois cabeças viram-se obrigados aceder
dos .seus desejos pela vontade dos deuses, que os an-
ciãos proclamavam.
No seguinte dia, ao romper d'alva, a virgem foi
conduzida e agrilhoada a um penedo, por cima da gru-
ta do dragão, para ser pasto do monstro. — A don-
zella, ])iamente resignada á vontade do Allissimo,
lom os olhos fitos no oriente, nãocxhalou um só quei-
xume, o povo apinhado na cliapada da niontanlui es-
perava impacieiíle a consumação do sacrifício, li dra-
gão acordou aos primeiros raios do sol, desenrolou-se
fora da caverna cm longas roscas e preparou-se para
se apossar da preza. l'arecia chegado o momento fa-
tal; já odragão deolho tlammejante e fauces inflam- I
maihis ia arrenieller á victinia, ipiando esta, tirando
doseio um crucilixo, oappresentou ao monstro. Avis-
ta dosignal daredempção, que faz tremer os próprios
espiri(os malignos, o dragão se enroscou n'iim feixe ,
e precipitoií-se por uma abertura da rocha no fundo |
do rio, onde desapp:ireceu |)ara sempre. j
A turba pagã ficou tomada de assombro e admi-
ração na presenç:i do milagroso successo i custava-lhe
a crer no testimunho de seu» olhos. Apenas aquelles
tornavam a si do pasmo, quando viram nomeio d'el-
les a donzella que Rinbold transportara nos braços ro-
bustos, tendo-lhe despedaçado as cadeias. Ix)go se fez
ouvir a voz da innocencia e abrandou aquelles peitos
endurecidos; a tribu se converteu, o. Rinbold, feito
christão, foi o ditoso consorte da virgem.
Erigiu-$e para o novo casal, no cume de Drachen-
fels, uma habitação que recebeu o non:e de Drochen-
burg (castello do dragão). As ruínas que actualmente
se descobrem no cimo da montanha pertencera, na
verdade, a epocha mais recente; porém o viajante
não deixa por isso de trepar ao rochedo, conv idadu pela
vista enlevadora que d^aquella altura se desfructa ;
no primeiro plano mostra-sc o ameno paiz que se es-
tende ao sul ; mais além das ilhas de tiraífen e Non-
nen-Werth, nas quaes se descortinam atravez da ra-
mada dos arvoredos edos tapumes florentes, as bran-
queadas muralhas, resto de um convento de religio-
sas ; finalmente, na margem esquerda apparccem as
ruínas do antigo castello de Roldão. Era elle habi-
tado, ha muitos e muitos annos, por um cavalleiro
chamado Rolando ou Roldão quegosava da amizade de
todo aquelle districto. Viam-n'o muitas vezes no castel-
lo de Drachenfels ; de dia para dia mais se amiuda-
vam as suas visitas; a amável Ilildeiriinda, única fi-
lha do conde d^aquelle titulo, era o objecto que oat-
trahia áquelle velho domicilio. Em breve se entende-
ram os corações d'aquellas jovens jMjssoas ; e com vi-
va alegria o pai de Hildegunda ouviu Roldão dar-lbo
parte de seu amor e do desejo deligar-se á sorte does-
ta menina. Ja estava aprazado o dia nupcial ; eis
que um amigo de Roldão implorou o seu auxilio no
perigo instante emque se achava; o generoso cavallei-
ro não hesitou em obedecer ;i invocação do brio e da
amizade. — Assomaram as lagrimas ás pálpebras de
Hildegunda, quando oseu querido se despediu promet-
tcndo voltar promptamcnte : não achava termos para
explicar a amargura e terror occulto que lhe repassa-
vam a alma : não ponde fer-se que não caísse de joe-
lhos, lastimando-sc, c supplieando ao noivo que não
partisse. Estí» a ergueu carinhosameníe, sorriu-se de
taes sustos, e deu o signal da saída. Hildegunda o
chamou de novo para rogar-lhe com instancia que não
arriscasse imprudentemente a vida nos eomliatcs, c
que se poupasse pelo amor d'ella. — RoKLão fci ásoa
adorada todos os promeftimentos que lhe exibiu, e
deixou-a com o coração não menos opprimido de car-
regados presentimeutos. Era distante a arena das li-
des a que o chamava a honra: fez distincto o seu va-
lor por brilli.intcs feitos d'armas, e parecia que o amor
o protegia no meio dos maiores riscos. No entanto
proloiígaram-se as hostilidades; e não okstante o de-
sejo intenso de lornar-se ás margens do Kheno, jicr-
niaiieeeu Roldão liei á palavra cpie .a seu amigo de-
ra.— l'orém, assim que se restalx-leccu a piiz, sem es-
perar agradecimentos do soeeorrido, c nem se quer
passar pelo seu prtiprio castello, tomou o caminho de
Drachenfels. Chegou, finalmente, ao p<' d'cste, ja
alta noite: \im rumor aliafado, o tinir d'arinas, vi>-
zes de eomb;itentes, subitamente lhe entraram pelos
ouvidos; ajHTta com o seu ginete; o o que elle lo«^
suspeitara era verdade. L'm di>s eavalleiros malvadi»,
que n"essa epocha aviltavam a cavallaria, aLicára de
improvi.-o Drachenfels; ainda nos ]>ate«s andava re-
nhida a peleja ; mas tuilo indicava o próximo Iríum-
plio do bandoh-iro. Roldão, veU>i cx>mo o relâmpago,
lanç;i-se no meio da refrega, nenhum dos inimigos
poudc resistir contra asna valente impada. Em pouco
tenuio re|K-lliu os assaltantes para fora da cerca exte-
rior, e o sou exemplo reanimou nos homens d''arnias
do castello a corag«'m c vigor, que estavam quati a
o PANORAMA.
283
abandona-los. Obrado de guerra de Roldão foi repe-
tido pelos echos das montanhas e incutiu terror no
[)eit<) dos inimigos. NV'bt<! momento se appresenta
um cavalleiro entre os <jue ainda pelejam completa-
mente envoltos nas trevas da noite ; o recem-chegado
ilerribado por uni vigoroso talho d'espada. ia a cair
jior t('rra, tjuando iini punhal lhe poz termo á vida.
Os salteadores eseaj)arani-so tumultuariamente, e os
clamores da gente de Drachenfels retumbavam pelas
fracas dos montes. Roldão perseguiu vivamente os
fugitivos . . . mas rjue espectáculo o esperava á volta.
Os homens (Parnias do Drachenfels estavam abysma-
dos em profundo etriste silencio eHildegunda atroa-
va os ares com gemidos que lhe arrancava a dor pe-
la morte de seu pai, de quem abraçava o ensanguen-
tado cadáver. Roldão, esquecido de tudo o mais, pre-
cipitou-se parasoccorre-la ; mas ficou passado de mor-
tal assombro, quando á luz das tochas reconheceu pe-
la armadura no cavalleiro incógnito que derrubara o
pai da sua noiva. l*or um engano fatal o matara no
tumulto da refrega. — E sou ou o seu assassino! (bra-
dou no auge da exasperação). Meu Deus, perdoai-me !
Ena tua presença, Hildegunda, achará o meu delicto
perdão ? . . .
— " Foste tu o assassino de meu pai ! — E ao fin-
ilar esta exclamação, llildegunda desmaiou totalmen-
te.— Não era porém cheu;;»lo o momento de arrebatar
a morte tão formosa jircza. Hildcgunda, restituída á
vida também o foi á dor pela perda do que mais pre-
zava no mundo : copiosos j)rant(is lhe manaram dos
olhos, temperando os jirinieiros transportes da sua de-
sesperação ; intensa pena, [lorérn muda, lhe tomou as
potenci.is d'alma, e a ri'Solveii a abandonar o século
e seus prazeres, e até a mão do seu futuro esposo. —
Roldão, ao saber ila sua pro|)ria bocca tão funesta
deliberação, poz em practica todos os meios para dis-
suadi-la des(;u projxisiloi mas suas diligencias e sup-
plicas não impediram que Jlildegunda fosse buscar á
sombra do claustro de Nonniíwerlh o socego da alma
V a consolação única que podia achar na terra.
— Jjcmbrar-nie-hei de ti em niinhas orações (lhe
disso Hildcgunda); esquecer-me-hei porém dequeme
estavas destinado; na cella pacifica que me aguarda
encontrarei o que não pôde o mundo dar-me •, implo-
rarei Deus que te perdoe ocrimc! involuntário, como
eu pro|)ria te p<!rdòo. "
Viu então o misero cavalleiro desvanecer-se Cjuaii-
la íélicidade lhe promeltia o futuro ; os muros do claus-
tro e uma cella ucuihada, encerravam quem ])odia
realçar-llie ávida; depuz armas, largou instrumentos
de caça ; luctuosa trisl('za cobriu o seu castello, iPan-
tes th(?alro di- alegria e divertimentos. Desde que a
aurora desdobrava no orienti^ seu vou per|)urino até
<pje o erespueulo iiidiíMVa a volta da noite, o viam
ussent.ido n'iima sacada (Ponde avista profundava no
hocegado asylo qu(' a piedade abrira, na ilha de Non-
iiewerth, ásconti^mplativasilonzellas que renunciaram
oseculo ])ara consagr.uem-se ,i Deus : um rápido sen-
ti mento ile |iraz<'r lhe vislumbrava noseiiilil.inti', quan-
do alcançava enlrevir lliidegunda que ap|)ar(ícia en-
tre as suas companheiras, como o l^rio descorado em
meio das llores do jardim. — Assim decorret-am me-
«es ; c n'iim dia o som funéreo e coiii|)assado do sino
do nio6t(!Íro veio bater em stMis ouviílos; sombrio e
occulto presentimi'nto lhe revelou que nqu(>lla ])or
amor do <|uem ainda linha iipôgo áexistencia cessara
de pertciii'er ao numero dos vivos. Nuvamente as la-
(Çriínas lho huinede<eram us pal[)ebras, ha muito tem-
]]<> enxutas pela amargura, quando viu depositar no
seio da terra a que tanto amara. Desde <!sse momen-
to, a sua vista eonstanti-meute se dirigia para o tumu-
lo silencioso (|ue ;i amizade das compaiih<'iras de Jlil-
degunda cercara de ameno jardim, ornado das flores
mais lindas. Finalmente, Deus teve compaixão do
soIVrimento do triste cavalleiro, e n^nm dia o acha-
ram inanimado, com o rosto voltado ainda para a
parte d'aquelle tumulo.
Os castellos de Drachenfels e Rolandteck de ha
muito que estão destruídos; só asruinas attestam sna
passada existência. No cume de Rolandseck subsis-
tem todavia os restos de um sobrearco da janella, to-
dos forrados de heras, onde Rolando passou horas tão
melancliolicas, contemplando o tumulo da sua queri-
da ; porém a chronica e a poesia celebram sempre e
transniittirão a remota posteridade osleaes amores de
Rolando.
O DOBRAR UOS SINOS.
Considérée comine harmonie, laclorhe a
indiibilableinent une beaulé ile la pre-
niiéresorle: celle que Icsartistesap-
pellent le grand.
CnATEAcr.niiND.
1'kzado, lúgubre sino,
Em vaivém, qual o da sorte,
Desprendes sons, que recordam
Lembranças tristes da morte.
Ha n^esse dobrar singello,
Mil torrentes d^harmonia :
Sublimes notas, que ferem,
tifexcitam melancholia.
Essa fúnebre toada
Vibra n'alma do christão,
Como, o raio, quando estala ;
Como os gritos d'aflição.
O coração dos t^'rannos
\ ergas, como brando vime :
Ao peito d'esposa adultera
l'ezar levas do seu crime.
Soltas do mão homicida
l'iiiihal, ébrio de vingança;
A culpa dizes : — remorso 1
Ao innocente ; — esperança !
J'assado e futuro a todos ;
A lodos a eternidade!
Tormentos, <|ue não acabam ;
( )u elhérea felicidade.
lluando, triste som começa
RraiiiliiuKMite compassado,
E veloz, segue troando ;
E morto! E morto! E linado !
Como s'imitar (piizesse
Lenta vida agonizanle,
(l\>ni mortal, ultimo arranco
S^esvaíra dcdiranle ;
Se, mil coraçõi's divi-rsos
O escutam: — n'esse momento.
'I'odos elles |ialpitaram.
Em aeeorde Mantimento !
Som d'eslraidia melodia I
( > teu (iregão é fatal
Oue são vaiilades ilo mundo.
(iuando viizi^a
mortal !
284
O PANORAMA.
Mortal ! — íolcmnc epitaphio,
De nossa cominum jazida :
Vigia, fjuo nos despertas,
Do sonho falso da vida !
— Oii ! n'csse dobre singcllo
Ha iiiixlo de céu e inferno :
Um tal seqiredo, um mistério . . ,
]la n'elle um poder eterno I
Em dia de Finados de 13 16.
C. Cascaes.
O TIMBAI.EIBO.
O INSTRUMENTO conliecido na musica marcial polo i
jioine de iimhalcs veio d^Allcmaulia. [
Os primeiros <|ne apparcccram cm França foi cm
1457, no séquito da embaixada que Jjadishin. rei
de Hungria, mandou a Carlos \ II podiudo-Uic a
inão de sua fdlia Maçdalcna. Este ruidoso instru-
mento, que convém não cr.iilimdir com o cifinbalum
ou atabales, os ijuacs são de remotíssima anti;riiida- i
de, c mui commum entro os orientaos o até outre os
negros de Africa, posto (jue grosseiro como ellcs.
Carlos ^ H, grande amigo de festas o folguedos, a
jionlo de ])or amor d'clles desprezar <is cuidados da !
realeza, devia vôr com muilo goslo um instrumento ■
novo, que, atroando os ouvidos, convidava ao mesmo
tempo os olhos á contcmpla(;rio da magnificência de
lima embaixada que havia de lisongear a sua vaida-
de. Ciuasi tudo o que é novo agrada, ainda que não
seja senão como estimulo de curiosidade ; felizmente
a d"este rei levava-o a amar a verdade, talvez tam-
bém como objecto curioso e raro de enconlrar nos pa-
ços dos raonarchas. "Onde eslá cila, exclamava al-
gumas vezes, a pobrcsita deve de ter morrido, e mor-
rido sem confissão. "
Caindo alzuns dos timbales allcmães em poder doi
soldados no fim do WH século, então fui permitti-
do pelo rei de França usarem d^esses instrumentos
os corpos militares cjue os haviam tomado ao inimi-
go. De futuro foram concedidos ás companhias da
guarda real e aos regimentos de cavallaria. Tamlicm
para estes se adoptaram em Hespanha e Portugal.
(,'onla-se que certo maniaco pela musica instra-
mcntal queria cercear a paga de um pobre timba-
leiro, porque o via estar parado em quanto os seus
companheiros desengonçavam os braços. Custou mui-
to a despersuadi-lo de que o limbaleiro não era man-
drião, e merecia o salário do seu trabalho, que não
consistia em tocar muito, mas em tocar a propósito.
Quantos homens que lêem mando sobre outros ad-
quirem, caindo em faes parvoíces, a fama de zeloso*
e activos. Mas deixemos ir o mundo : nada de mora-
lisar sobre uns timbales. que são muito chocalheiros.
A estampa representa um timbaleiro fardado •
montado á moda do século passado.
Ódio telho xão cavça.
(Romance Hislorico.)
V
o castello de Sancta Olaia.
Em quanto Gomes Lourenço ao lado de 3Iaria Paes,
refreando o fogoso corsel, se distrahe d.as idéas tris-
tes, chegaram a Sancta Olaia D. Martim. e pouco de-
pois o monge de Cister. O castello tinha a voi de
elrei, co alcaide D. Nuno, amigo e parente do ric«>-
homem de Lanhoso, reeebendo-o, ouvia a historia do
rapto commeitido em iVvellans pelo mais moço dos
Viegas.
O castello de Sancta Olaia já então n.^o era ascn-
finelia de Coimbra, levantada no alto para annun-
ciar as corridas dos ar.ibcs. Diante do braçii victo-
rioso de Aflbnso Henriques, os esquadrões do Islam
recuando de Leiria até Santarém abrigaram-sc, por
fim, á sombra dos muros de Lisboa, aonde se pelejou
a batalha cm que perderam, com a sultana doTejo,
as ferieis várzeas da Estremadura.
Desde esse dia Coimbra despiu a couraça, e de
guerreira tornou-?e corteiã. Já não e.Trecia d'enganar
o somno, recost.ida ao escudo ; nem do afiar o ouvi-
do, no silencio da noite, para da erguida atalaia to-
car i> rebate. .\o castello de Sancta Olaia, seu com-
panheiro d'armas, foi igualmente livre, então, depor
a lança e respirar da lucta de meio século. Deixara
de ser o gladiador prompto a aparar .is primeiras
freclias despedidas ao peito d,i rainha da lleira. As
iras dos mouros, accesas no intento de, jior cima do
seu cadáver, baterem ás jxjrt.as da .Vlmedina, amor-
Ircidas com o tempo, e poios acontecimentos da guer-
ra, nem o (xnliani seipier ameaçar. Clucbradas pelos
revezes tiiiham-se froí-ado no desalento, que precede
as derrotas.
O árabe, escravo do destino, curvando a fronte,
submcllia-se resignado. Depressa reconheceu i|ue nun-
ca mais, envolto no albornoz, dorniirá á sombra do»
pomares, acalentado polo Mondego, que a briía cm-
|v>lr. . t^sol do imjKrio dcTarik, apagando-sc uo oc-
o PANORAMA.
285
caso, só um ou outro raio podia antes golphar mais
puro ^ porfjiin as trevas da agonia principiavam pa-
ra elle. Descendo ao tumulo, ainda vivo, ouvia ran-
ger a canij)a, em (]ue u historia, gravando um nome
illustrc e uma grande lição, legava n'elles o exem-
plo c a herança do futuro.
Na terra consagrada, em que o rei soldado descan-
sou de oitenta annos de fadigas, acabava de se erguer
oreino portuguez. O leão do occidente, íjlho do ocea-
no e da guerra, como Alexandre, estava fadado |>ara
devassar pela gloria á Europa os mares e as regiões
além do misterioso Indo. — A America, mundo bal-
buciante, e irmã mais nova do antigo, alli esperava
desde si-culos a hora em que o dedo de Deos, arran-
cando-a á solidão moral, a arremessasse ainda vir-
gem pela estrada do ])rogredir humano !
Os tempos, correndo sobre o castello de Sancta
Olaia, crestaram as pedras. As raças conquistadoras,
íuicidando-se, estamparam-lhe na fronte, cadauma a
sua pagina ^ mas oodiocivil, mais feroz, não se pejou
de destruir o que ellas poupavam. Muito antes do
conde Henrique vinganças de faniilia poderosas des-
locaram as quadrellas, e demoliram as torres, que
nem o temporal dos annos, nem as devastjções dos
bárbaros tinham prostrado ! O incêndio acabou o res-
to; CO monumento que assistira de pé á marcha trium-
phal das cohiirlcs romanas e das tribus do norte \ que
não vacillava ao embater doscavalleiros dWfrica nas
hostes godas, succumbiu em uma noite, victimad obs-
curo encontro.
Aonde os rozaes em latadas enramavam viçosas
ruas \ heras, cardos, e arbustos silvestres, eriçando-se,
apregoaram a loucura das vaidades do homem. A as-
solação, assentada nos vergéis em que o mouro can-
tou o Éden, pelo silencio das ruinas ensinava, que
prazeres e belleza o sol os abre, e a noite os leva.
Foi no remanso da paz, ou na pausa breve da ten-
da de guerra, queAdonso lienriques tornou a coroar
d'ameias o arremessado monte, aondí; o alcácer cam-
peava.— No tempo em que passa esta historia, as
cearas ondeando, os pomares recendendo, e as noras
(comedoras mostravam que a vida de novo volvera a
visitar aquelles sítios. As casas, antes raras o aninha-
das ao abrigo das torres, sem temor se penduravam
pela encosta Íngreme. Com a guerra fugiram os re-
ceios. Asehammas ateadas pelas correrias nunca mais
hão de morder, em espiras roxas, a loura cabeça das
paveias, nem cnroscar-se pelas vigas de castaidio dos
tectos, em quanto ao perto e ao longe osanalis do ára-
be entoam, feros d^alegria, o liymno das ruinas.
Esses dias de lucto passaram, para não voltar . . .
ii) se for na dextra, pezada de crimes, da lucta civil !
Entretanto, arrazanilo tudo, a raiva tios homens e
.1 furía eh) incêndio, tinham respeitado uma antiga
torre, preta como a face do elhio|)e, scinlilhindo pe-
lo» dois óculos rasgados na testa o luzeiro vivo que,
na escuriílrio, fulgia como os olhos reluzentes do um
ilemonío, C4uem amassara oeimenio ipie lhe unia as
juncturas? (Aue segredo lançou n'esses cantos de ro-
tdieilos desíguiies o archileito, para os não corroiT o
hálito dos iiecuhis f Aondi' estava a sciencia capaz de
loletrar n'ai|Urlla folha de pedra o pensamento da
giTaeão que escrevera as piimciras linhas.' — Em ro-
ila tutlo caíra ^ porque mistério só ella, salv.i da es-
pada, dos séculos e do fogo, sobrevivia, eli-vando a
negra fronte cjue topetava com as nuvens, de cima
dus quaes a aguía a contemplava, arfando as azas !
Os andan's achatados e massudos, subindo, <>streita-
Tam-ae )iara rematarem no eirado, aonih; se abria
um circidn a bocca da escida interior. l*or baixo do
chão, nus entranhas da rocha, gyravam corredores e
kalaii. Era lú que a superstição do povo collucavu a
scena das maravilhosas lendas da sua m^thologia \
porque, na realidade, sobre aquella torre, que o vul-
go appellidava niatJicta, nas horas de tempestade pa-
recia alçar-se o spectro gigante do primeiro homici-
da. Os monges, por isso, ou por outra razão hoje des-
conhecida, deram-lhe o nome de torre de Caim.
O mais estremado cavalleiro, ao passar perto d^el-
la, no breve espaço que foge entre o ultimo raio de
sol e o aportar das sombras, olhando as estrellas tre-
mulas, invocava a \ irgem, que ellas coroam de glo-
ria immarcescivel. — De noite, fora de huras, os agu-
lheiros das abobadas subterrâneas accendiam-se n'um
clarão lívido, transudando harmonias de harpas, me-
lodias de cânticos, pragas e rizos, como os que se ou-
vem á mesa de festim dissoluto. Quem vira, quem
escutara ? Ninguém ! Mas dizia-se, era voz do povo.
Asseguravam mais, que em certos dias os senho-
res e seus convivas, ha tantos séculos enterrados,
saíam da cova, e despindo os sudários, por minutos
atavam o fio <la vida, espantando o inferno com as
imagens d'antigos crimes.
No anno de lail, e na tarde em que estamos, a
torre de u Cain " foi comtudo visitada por hospedes,
que nada tinham de sobrenatural — A grade de fer-
ro da ermida, que não se abria ha quarenta annos,
rangeu nos enferrujados gonzos:, e a claridade baça
do lampadário de bronze, estremecida bateu nos cor-
pos d^armas, capellos e pendões, de feitio desusado,
pendurados das columnas. Outra vez pés de homem
e tinir dVsporas soaram nos degraus partidos da es-
cada, enredados de hervas e musgos. Breves instan-
tes, no terraço, bojando curvo de ruinas para o tecto
da sala, se divisaram dois eavalleiros e um monge,
que, depois de mirarem em volta, e sobre tudo pfira
a parte de Coimbra, voltaram á igreja, continuando
a conversação principiada l.i em cima.
.\o entrar na ermida, esperava-os, entre portas,
um homem de robusta estatura. \ estia loriga tecida
de tiras de couro, e por cima saio branco e verme-
lho, cores do solar de Lanhoso. O casco de ferro liso
carregava nas sobrancelhas hirsutas. As barbas e ca-
bellos, do ruivo aguado, enrissados como a juba do
leão, encrespavam-sc ásperos sobre o peito e pelos
hombros. Os olhos, pequenos e sumidos, luziam com
brilho esverdcíado. Encostando-se deleixadamente ao
cabo de um machado, que lampejava em veios azues-
ferretes como as boas folhas de Damasco, ergueu a
cabeça quan<lo Martim l'aes chegou, c boliu os bei-
ços ; porém a um aceno d'este, volveu á primeira
postura o licou immovel.
A escada por onde descoram, no patim da sala
d'arnias dívidia-si; em duas. Uma ia ter ao eirailo ;
a outia á capella, construída de forma que as pala-
vras pronunciadas n''ella se escutavam distinctamente
nos aposentos de cima. Na igreja, colgaduras escuras
disfarçavam os rombos das paredes. No altar de már-
more, a pressa ornado de tVunt.d custoso, mas desme-
recido, tinham livaiilado a cruz do descinuMilo com
a toalha sobr.içada. O alanipad.trío pendia sobre tr<'>
túmulos ih- lavor grosseiro. O monge ahí ili'>cobriu
lelreinis (jue lh'estrenieceram o coração. .. .Vnsur Lo-
pes-' em uui. 4i D. jNloço Ansures" defronti-. K ,10
lado do altar, com o galgo aos pés, a ligura de um
guerreiro, o >> conde Ordiudio."
l'or <!ntre montes de caliça, debalde andou |>ri>iu-
lando outra sepultura. l*or lim, examinada nnllior
a dl! Moço Ansures, nas ap:ig.idas lei trás rastreou o
nome (|ue buscava, nume querido di- mtdher — .. .\u-
zenda ! ■<
Escapuli, iin lhe ni.d sentidas lagrimas soltri' aquel-
les dois punliailos de pó, qm- até a urna cineraria te-
ve dó dt' sep.irar. O» íamos de arvore oriental, des-
286
O PAx\ORAMA.
cabcUando-se, dcl)riif;avam sobre metade da campa
um docel de palmas vectjantes e estrellas gredelins.
A M-rbena, os -goivos, e os lyrios sylvestres, frescos
(la agua ([ue estilavam as junctas rotas das abobadas,
arqueando-se, envolviam em viçosa alcatifa a triste
morada dos dois noivos. Recostada assim no berço
dos amores, a morte nada tinha de pavorosa.
Km quanto o frade se inclina para a c:impa, em
(jue pelos olhos da imaginação vê passar chorosas as
sombras dos amantes, Jlartim Paes, chamando o ho-
mem d'armas, arredou-se com eilc para um lado.
D. IVuno passeiava, reflectindo. Adiantado em ân-
uos, carregado de semblante, e sem calor nos olhos
pardos, a sua vista fria c lenta gelava-se em fitando
alguém. Respondendo aos pensamentos Íntimos, um
sorrizo desmaiava nos cantos da bocca, motcjador ou
feroz, segundo era d'escarneo ou de crueldade a idca
que o suscitava.
— «Telo Ervigiz, dizia Marlim Paes, aonde foste
nado e manteúilo?»
— ii No solar de Lanhoso n respondeu o homem
d"armas com singelleza rude.
— "Sabes o que me deves fn
— "O corpo pelo sustento, a alma pelo baptismo,
e o sangue, que, sem vós, teria escorrido das varas
do carrasco. »
— "Pediste-me abrigo e protecção. Neguei-t'a al-
guma vez? »
— «Nunca. »
— ii Nasceste servo. Quem te fez livre??'
— 4t \ os . "
1 Quem te deu a mulher que amaste, a casa
cm que vives, a terra que lavras, e o berço de teus
iilhos ? »
— íí Vos. "
— «Telo Ervigiz, o solar de Lanhoso foi deshon-
rado I "
Todas as perguntas até estas ultimas phrases ti-
nham sido feitas no mesmo tom rápido e natural;
mas ao proferir a palavra dcshonra, a voz do caval-
leiro tornou-se vibrante c aguda. Ouvindo-a, o sola-
rengo pulou para traz, como mordido devibora, epor
Ímpeto instinctivo floreou a hacha, exclamando rouco :
— « Deshonrado ! ? •'
— iiDeshonrado para sempre. Hoje vai mais o teu
nome que o do senhor dos paços em que te creastes. "
O rosto de Tclo Ervigiz, ora branco ora afoguca-
<Io. retratava a dòr e a sede de vingança. O assom-
bro pintava-se nos l>ciços entreabertos e nos olhos di-
latados:, a cholera nas pupillas encandeadas como as
do tigre, e nas alvas amarelladas, que o furor injec-
tava de veios sanguíneos.
— II Infame ... o solar de Lanhoso ! . . . "
Eram duas palavras, que em toda a vida não sa-
beria ajunctur nunca.
— 4iA filha de meu pai, continuou D. Martim, a
lilha de teu, amo, Ijcará viuva sem ter marido . . .
entendes? E o appcllido da nossa casa cscripto com
II lodo das prostitutas ! . . . Quem sabe ? Amanhã, ao
tecto em ([ue moras chegará o homem de Riba-l>ou-
ro, e, arrancando o filho do peito ú mãi, com ella
nos braços rir-se-ha de ti, como riem de mim, os
covardes ! . . . v
O solarengo não rpsjxindeu. jMas os cabellos e as
barbas pareciam espinhos, e os dentes, alvos e agu-
çados, rangeram uns nos outros. Com um revci da
liacha lascou a aresta da campa visinlia.
— ti KÍ7.-fe livre como o ar, Telo Erviçii; p nas
luas mãos ponho a honra de Lanhost). ^"inga-a. Que-
res apagar a aíTronta da face de leu amo?"
Telo Er\igÍ7, sem o entender bem, largando a
hacha ajoelhou-se.
— " A mim essa pergunta ? I •• disse elle chorando.
— u Então, interrompeu Martim Paes, erguendo-o,
farás o que mandar ? "
— «Tudo. r"
— "O homem que nos dcshonrou charaa-se Gomes
Lourenço, n
— «Onde está?» gritou o solarengo dando um
passo.
— «Aqui perto. \ em caminho do castello. Quero
que morra da tua mão como traidor."
— "Apesar de velho, não erra setta do meu arco.
e gol[>e do meu braço entra ate os ossos . . .-•
O senhor de Lanhoso despregou, ao ouvi-lo, um
sorrizo de mofa e crueza.
— « Não me entendes. Essa Diorte não a sentia
elle ! Ha de vêr cavar a cova, coser a mortalha, e
afiar o cutello . . . Morrerá justiçado por ti. «
— " Por m i m I ? . . . >i
E ao proferir estas palavTas recuava de horror uns
poucos de passos. A falsa e grosseira idéa dos devere«
do homem d^armas, tirava-lhe o escrúpulo de matar
com a apparencia de combate; porém só ao nome de
algoz, a vergonha e a anciã cortavam-lhe a alma.
— «Telo Ervigiz, bradou D. Martim, levei dei
annos a fazer um ingrato? — e, vendo-o immovel.
uniu as mãos, exclamando: — Meu Deus, ainda me
faltava este ! "
O homem d^armas, com a cabeça descaída e o»
braços hirtos, continuava sem dizer palavra.
— «Se não ha outro, murmurou emfim, seja ; mas
os meus filhos hão de chama-los filhos do carrasco. ••
— « Ninguém o sabe" acudiu o cavalleiro.
— «E Deus?" interrogou uma voz atrai d"elle.
Olharam ; era o monge de Cister.
— "Deves a Marlim Paes, disse o frade virando-
se para Telo, o corpo e a liberdade. Que te lance
ferros e te mate, se quizer; mas que não tente per-
der-te a alma. Pelo sangue de Christo, não vendas «>
que é do céu I "
— "Sancta ^ irgem !" soluçou o solarengo.
— «Não, homem temente a Deus. vende antes a
teu amo, acudiu D. Marlim com amargura. Casti-
ga-o da loucura de acreditar que podia haver leal-
dade no peito d'um villão."
Era tão pungente o ar com que disse isto, que vin-
te punhaladas doíam menos. Telo Ervigii não resis-
tiu mais -, e, abaixando a cabeça, murmurou triste-
mente :
— «Serei verdugo. . . tudo o que quizcrem. ^las
depois ..."
— «Espera pelo inferno!" bradou o frade, amea-
çando-©. ( CotUinúa.)
Os COLOCBOS.
Nas costas do noroeste da America, entre os 40 c CO
graus de latitude, e nas fronteiras das colónias rus-
s;ís, vive um jv)VO desconhecido ate uma ejK)cha rs-
ccnlc. Chamam-lhe o povo dos colochos.
Os colochos são de estatura mediana, espertos o
destros \ tcem cabellos compridos e negros, e a pellc
parda escura, pintam t-.xlavia o rosto com diffcrente»
cores, oapplicam um jh-Io branco sobre os seus áspe-
ros calwllos. As mulheres, na menenice rasgam o bei-
ço debaixo, que estendem por meio de um j>edaço de
madeira até descer abaixo da barba : dos homrnt os
pnions ou anciãos são os únicos que seguem esta mo-
da. Avaliam a bclloza pelo maior ou menor oimipri-
mento do lábio inferior. O seu %estu«río consiste
n'uma manta branca, feita de lã doctrneiro. en'uma
jH-lle ou n'um grande panno quadrado que lançam
sobre os horobros.
o PANORAMA.
28:
Oscolochos não gostam da guerra declarada; com-
tudo mostram muito valor quando sSosalleadoj. Dão
torturas e morte cruel aos prisioneiros, principalmen-
te sendo europeUs, que muitas vezes sobrecarregam
de trabalhos penozos a que as victinias succurabem.
Algumas vezes vem os navios dos Estados- Ln idos per-
mutar n'estas costas, p)r pclies de lontras pequenas
peças deartilheria, espingardas epunhaes, que osco-
lochos preferem ás lanças e flechas de que usavam an-
tigamente. Costumam por um modo systematico fa-
zer o corpo insensível ao frio e á dor. Os rapazes
abrem toda a cana do braço com uma concha agu-
çada, egabam-se d'este acto de heroísmo, sem solta-
rem um gemido. Andam descalços, mesmo quando o
frio é de vinte graus ; saem d' um banho quente e met-
lera-se no mar, onde licam parados cousa de meia
hora. Depois d'este refresco alguns colochos querem
ser açoutados até deitarem sangue, e assim adquirem
o direito de escolher mulher entre as beldades colo-
chas, sem que de nenhuma d'ellas possam soffrer re-
pulsa.
Os habitantes não crêem &'um ente supremo. \ êem
no homem umserai-deus, e no corvo o dispensador da
vida. Vamos dar um extracto á sua mjthologia.
O primeiro habitante do nosso mundo chamava-se
Kitch-Usin-Si ; matou os filhos de sua irmã para que
I) género humano não multiplicasse. Comtudo ainda
na terra existiam outros homens independentes do seu
poder: intentou destrui-los com uma grande inunda-
ção, porém alguns d'ellcs salvaram-se nas suas bar-
cas, retiraram-se para as altas montanhas onde a agua
não podia chegar, e amarraram os seus bateis, que
ainda lá estão. A irmã, com medo dos tormentos
eternos, se apartou do irmão e fugiu para a beira-
inar onde construiu uma cabana. \ iu brincar as ba-
leias nas ondas douradas pelos raios do sol, chamou-as,
e dcterminou-lhes que lhe trouxessem alimentos pa-
ra não morrer á fome. As baleias não lhe deram res-
|X)sta e desappareceram ; mas de noite veio um ho-
mem de agigantada estatura, e a interrogou acerca
do seu infortúnio, Contou-lhe a mulher que seu ir-
mão lhe matara os fdhos, que o med» a obrigara a
fugir, e ijiie viera ler a esta paragem onde padecia
fome. Kiitão o homem mandou a um escravo que o
acompanhava que fosse buscar uni seixinho redondo
a um banco de areia que estava no meio do mar •,
deitou o seixo no lume, e quando o viu em braza dis-
se á mulher que o comesse eretimu-se proferindo es-
tas palavras: «Tu darás á luz um filho que ninguém
poderá matar. "
J'^Ua teve um filho, ao qual cliaiiiou El-rieh, eque
todos os dias banhava no mar. Cresceu o filho e a
mãi fez e eiitregou-lhe um arco e flechas com que
Kl-rich nialiMi niuitDS piea-llorts, de cujas pennas
ella fez veslido-i. Elri-t-h, tendo morto um dia uma ave
branca inuifo grande, tirou-lhe a jjalle e vesliu-a, e
percebendo que o pássaro st; servia das azas para voar,
disse conisigo : utiuem me dera voar como um pás-
saro ! » Voouap<-na» soltara estas ]>alavras, mas como
ainda não sabia fazer Ixuii uso das azas, vagava no ar
como tonto, e exclamou dando um suspiro; i>Ah!
(juem me ch^ra tornar para o pé de minha mãi!» No
mesmo inslanl<' se achou ao lailod\-lla na sua cubana.
Certo dia narrou a mulher a «eu filho a maneira
com ijue Kitcli-L siii-Si a Iractára, e porque moti\o vi-
via n'esle ermo ; a narração enfurcci'u o iiiaiici-lx) ; as-
segurou á mãi que liavia de vinga-la e punir otliio.
Mas amai não queria consentir em lai, teiiieiKli>que
não saisse \iv(i da eiiipreza-, ludavia cedeu p<ir fim ás
suas supplicas. (•«■Iji- partiu, eehegando á uiorada de
seu tliio soube pi-hjs rM'r;n os iPcsto qiii-esta\a ausen-
te. \ iu o muiicebo uma grande arca u pergunlandu o
que continha, respondcram-lhequeo thio, cioso, n'el-
le encerrava a sua formosa e joven consorte todas as
vezes que saía do casa. Entretanto expulsou El-rich os
escravos, abriu a prisão, tirou para fura a rapariga.
e com ella viveu vida alegre e deleitavel. Dias de-
pois, estando os escravos na praia, como enxergassem
a barca de seu senhor, apoderaram-se de súbito da
mulher e a fecharam no caixão. El-rich metteu-se iia
pelle do pássaro e trepou para o telhado da casa.
Informado Kitch-Usin-Si pela bocca dos escravos do
que acontecera na sua ausência, irou-se ao ultimo
ponto, reuniu todos os seus servos em torno de si, e
\ conjurou a agua para que afogasse toda a gente, ex-
cepto elle e os seus ; mas seu sobrinho entrou a rir.
I desceu do telhado, fechou a porta da casa e coui pa-
; lavras magicas obrigou a acua a voltar para o sou lei-
to; depois d'isto voou. Com tudo, de cançado, caiu
em cima diurna pedra agudíssima, que o feriu gra-
vemente, e d'aqui provieram todas as enfermidades
que afiligem a raça humana. O pobre mancebo jazeu
muitos dias no mesmo logar sem se poder mexer,
porém uma manhã, estando a dormir, ouviu uma voz
que lhe dizia: u \ era, que te chamam." Como não
via ninguém, cuidou ser sonho, mas a voz soou de
novo. Então ergueu-^e e foi ter á praia onde viu lon-
tras marinhas, e perguntando-lhes se o tinham cha-
mado uma d'ellas lhe respondeu : 3Ionta r.o meu dor-
so para que eu te transporte ao logar onde desejam
ver-te. «Tenho medo de me afobam, lhe tornou o
mancebo, u^em, e nada temas," disse a lontra. Sen-
tou-se pois no lombo do animal, fechou os olhos e via-
jou assim por muito tempo ; quando os abriu acha-
va-se ao pé d'uma costa coberta de gente; a lontni
lhe disse então : « Agora vai para a praia e lá acha-
rás tua mãi e teu lliio.» Encontrou-os com efleilo.
e todo o povo o recebeu com ^;rande contentamento.
Foram para a mesa : os convidados eram muitos; mas
El-rich não podia comer. Outro tanto não acontecia
a um dos commensacs, que tinha duas barrigas e co-
mia por dois. Este homem contou a El-rich a histo-
ria seguinte: Tinha um dia encontrado, lhe disse el-
le, um corvo, o qual lhe mandou cortar a pelle que
lhe forrava os pés pela parte debaixo ; feito o que.
saiu grande quantidade d^agua dos pés do corvo, e
lieou este, dejKiis da cura, com o poder de crear to-
dos os animaes. Keferiu o homem que n'esse tempo
tinha perdido a vontade de comer, e que pediu ao
corvo lha restituísse. O pássaro lhe disse que comes-
se a parte dos seus pés (|ue acabava de cortar; obe-
deceu o homem e d'alii a nada tinha duas barriga>
e dobrado appetite. El-rich, depois que ouviu esta
narração, alcançou tomar conhecimento com este vo-
látil potente, que se fez seu amigo, restituiu-lhe a
vontade de comer e obteve do mancebo o direito de
se chamar jiai dos eoloclios. Entre as dillerentes tri-
bus dos colochos ainda ha uma chamada a tribu do
Corvo, que reputa El-rich seu fundador, e as outras
tribus menos nobres do ijue ella.
Oscolochos em geral, crêem nos espiritoi malignos,
que atormentauí os homens com moléstias. Os laes
espíritos estão dentro d^agua e comuiunieam as mo-
léstias aos homens |ior via dos peixes. Contava uiu
cliaiiitiii ou sacerdote, que ii5;irenques tinham peiiido
aos 1'spirilos lhes entii'gassem KabatihaLolV, empre-
gado d.i companhia russiana que perseguia o> areií-
<|ue» sem lhes dar folga; a pilição foi deferida: Ka-
liatcliakolV afogou-se indo a pesca.
Uuandci morre algum inlutlio qiieiuiaiii-lhe o cor-
po, e erigeui, aos que são ricos monumentos de pe-
dras ninontoudas. Este jiovo erè lirineuiente na ini-
morlalid.iile da alma. mas não da nenhum credito .los
prémios e castigos d^umu vivia futura. As aluiu» sãv>
288
O PANORAMA.
no outro mundo ofjue eram n'este : o senhor ficasen-
flo senhor, o escravo fica sendo escravo. Depositam o
corpo n'um caixão e levam-n'o para a fogueira entre
prantos e gritos dos parentes e amigos. Ouso de quei-
mar escravos com o sou senhor cessou desde rjue hou-
ve tracto os entre colochos e os europeus.
Em signal de lucto, usam os parentes do defuncto
de cabellos curtos, e pintam as canis com certa côr
negra luzidia, por espaço d'um anno completo.
As moléstias mais communs entre esta gente tão
robusta são as de olhos, de cabeça, e de estômago.
As moléstias de olhos e de cabeça provém sem duvi-
da do fumo de que estão cheias as suas choças^ as
moléstias de estômago originam-se das comidas pesa-
das e indigestas. Accomeltem-n'os ás vezes febres ar-
dentes que por falta de soccorros apropriados, de or-
dinário vem a sor mortaes. As bexigas fizeram taes
estragos em 1770, que não ficaram mais de uma, ou
duas pessoas das famílias que habitam o districto li-
mitado ao sul por Stachin c ao norte por Sitcha.
iVesta epocha andavam a guerrear-se muitas tribus,
e se deram pressa em fazer pazes, persuadidos de que
o corvo lhes mandara este flagelo para castigo das
suas dissensões. Os chamõcs, seus sacerdotes não se
dão á medicina como fazem os de outras povoações se-
melliantes a estas •, mulheres velhas é que curam os
eolochos doentes, com remédios extrahidos de diffe-
rentes raizes ou plantas-, comtudo, consultam oscha-
niões para saberem se oinfermoniorre ou não morre.
(Continua.)
Essência de rosas.
A piiEciosA essência de rosas falia gotil), tão celebre
em todos os paizes do mundo civilisado, é feita deflo-
res de que ha grande copia nos arrebaldes de Ghazi-
pour, cidade da provinda de Bengala. Já o leitor es-
tará imaginando um paraiso encantado e recendente,
taboleiros de jardim matizados de todas as cores, la-
tadas em que as roseiras, enlaçando-se, casam as de-
sabrochadas flores que respiram aromas com o deli-
cado botão purpúreo, enlevo dost)lhos. Ficção! Ima-
gem sem realidade ! A cultura das rosas em Ghazi-
pour é um negocio como outro qualquer, uma espe-
culaçjlo comniercial. Os vastos campos todos cotwrtos
das flores mimosas dos nossos jardins não offerecem a
vista mais do <)ue um quadro vulgar e sem poesia.
A rosada índia, posto que oseu nome in<li<juequeé
diversa dadaKuropa, pódecompetir nasuavidadedo
sou aroma com as dos nossos climas. Mão lhe falta a
formosura \ mas qual é a rosa que não a tem ! Kxcep-
to em Agra, não cresce tanto como na Inglaterra, e
dá muito menos variedades. Os cultivadores Índios
contentam-se com as producções espontâneas da natu-
reza ; não sccançam em as melhorar com a arte para
o deleite ou para o lucro. Na rosa não vêem senão
um género de grande valor, e parece-lhes desacerto
o cultiva-la só para recreio dos sentidos ^ e para a
extracção da essência acham «pie bastam as rosas que
assim medram sem nenhum desvelo.
Kis aqui porque no Oriente a mão de hábil jardi-
neiro não dispõem as roseiras para que trejwm e cu-
bram caramanchões, e teçam latadas, ese aggreguem
em espessuras. Os rosaes ile Cíhazipour n."io passam de
nm pouco demallo rasteiro jior entre oqual brilham
raras flores apoucadas, ijuc mostram doer-se da fouce
tiesapiedada ; as rosas que \ão abrindo são cuidadosa-
mente colhidas todas as manhãs.
.As roseiras são plantadas eon> regularidade, em
alinhamento, eoccupani nuiilos centenares de geiras
do terreno á roda da cidade. Quando as rosas pur-
púreos desabotoam ao sol nascente e esmaltam o ver-
de tapiz da campina, apresentam um aspecto qur
muito agrada. Se algum dia, porém, os mogõrs vo-
luptuosos celebravam n'estes sitios a famosa /es(a Jat
rosas, nem tradicção nem vestígios restam detãogra-
taceremonia. âuandochega acstação da colheita não
vão os Ijandos de rapazes e raparigas encher alegres
os cestos de vime com os ricos productos da ceifa ;
nem enlaçam ramilhetes nas tranças descabello?, nem
cingem as frontes de coroas fragrantes. A colheita faz-
se debaixo de regra por mãos de pobres jornaleiros
que trabalham com a idea íixa no ténue salário, e
em nada mais cogitam.
A distillação das rosas ( noulaahie pannie) é a pri-
meira operação que se faz para fabricar a essência.
A que se extrahe é recolhida em grandes vasos, que
ficam de noite expostos ao ar livre. De tempos a tem-
pos escumam estas jarras, e o óleo essencial que so-
brenada tira-se, e constitue a essência concentrada,
cujo aroma os amadores reputam por um preç-o tão
subido. São precisas duzentas mil flores para produ-
zirem o peso d^uma rupia de essência a que os da
terra chamam aita. Esta quantidade, quando é pu-
ra e sem mixtura de óleo de sândalo, vende-se alli
mesmo por cem rupias (equivalerão a 40$ 000 réis) ;
preço exorbitante, e que assim mesmo dizem que dei-
xa pouco lucro.
A agua de rosas privada do seu óleo essencial pas-
sa por inferior á que o conserva e vcndc-se em Gha-
zipour por um preço também mais baixo. Asseguram
comtudo muitas pessoas que a differença mal se co-
nhece.
O uso da agua de rosas na economia domestica é
geral entre os Índios. Empregam-n'a nas abluções,
na medicina e nas cosinhas. Antes de abolido o uso
dos presentes (nuzíurs) figurava entre as cousas que
ofl"ereciam as pessoas de poucos teres. Costumara dei-
ta-la em cima das mãos quando se acaba de jantar,
e na grande festa chamada houlic, alagam com cila
os hospedes. Os europeus atacados do prurido .-irden-
le sentem grande allivio usando d'esta agua; os natu-
raes da terra bebem-n'a como remédio para todas as
moléstias, e efficacissimo para as lesões internas.
IVuma palavra a agua de Colónia não é mais po-
pular na França doque éua índia agoulaabiepaauie.
GRATIFICAÇÃO.
Nkm sempre as feridas são documentos irrefragaveis
de valor. A seguinte anedocta l)em o prova, ao mes-
mo tempo que serve para confirmar o nosso rifão: os
homens não se medem aos palmos.
Poucos dias depois da famosa batalha de ^^ agram,
querendo Napoleão dar aoexercilo um no>o testimu-
nho da sua satisfação promulgou um decreto cm vir-
tude do qual concedia mil eduientos francos de gra-
tiflcaç.ão ao soldado mais valente de cada regimento.
Um coronel appresenlou o candidato do corpo do seu
commando de tão n)es<]uinha e enfezada apparoncia,
que em nada mostrava dever aspirar áquella gr.iça.
Napoleão disse-lhe. — Pois na veniadc es tu o mais
Valente do teu regimento.' — Senhor. i>elo menos as-
sim o dizem. — t)nde fiíste ferido. — Em parte ne-
nhuma senhor. — Q.ue dizes! Não foste ferido e pre-
tendes ter direito á gratificação que concedo a teu»
camaradas (jue já derramaram sangue pela jvitria ? —
•Mii está ! (acutliu o soldado s»-m jvrturbar-so) |H>rqur
não me piíile suceeder o mesmo que a \ossa mages-
tade .' a honra de ser ferido ? E comtudo não deixa
por isso de ser nmito e muito valente?
Giwtou o inijM-rador do descmliaraço do soldado, e
niandou-lhe pngar cm ouro » gratificação promettida.
37
o PANORAMA.
289
MINISTÉRIO I>'INSTnUCÇAO PUBLICA NO CAIHO.
Q.i!»Ni>o a ex j)C(l irão de Buonaparteocciípou o Egy|)-
t.o, o cdilicio, cuja 1'rente intorior s<! representa na
gravura, servia <1(! (juartel general aos irancezes, de-
pois <la tomada <lo Cairo : intitulava-se então o pa-
lácio de Jílfy-Ley. A direita no jardim, próximo da
ultima janella doesta casa, havia n'essa epoclia um
cumprido eirado, colierlo de parreiras, quecomniuni-
eava do alojamento do clxíle do estado maior para o
ipiartel í;i'neral. Foi n'esse terrado, no sitio que aca-
lianios deiuílicar, ijue foi assassinado o valente gene-
ral Klelier, aos M de jiiniio di! lUdU. Ksle delicto
teve a sunuinte ori;;em.
Soleynião-el-lvalel)y, de idade de vinte e cinco ân-
uos, natural de Alepo e lillio de um mercador de
manteiijas, tinha visitado a IMeca c Meilina, as ci-
dad(fs sanctas ])ara a sua crencja ; tinha estuilado no
Cuiro na mesipiila lOI-Atçhar, e cpieria ser admilti-
do ao numero dos íliinlurta da lei. O seu rancor con-
tra osiiijiiis «(• exaltara recentemente a vista ilos IVaj;-
inentus do exercito do };rão-visir Jussul, desharala-
<lo (!in llcjiopolis, ipie atravessaram a l'alestina na
occasião em ipie S<ileynião allí estava. () ai;á dosja-
idsaros o incitou ainda maia, e persuadiu-o a inten-
tar iíviímliale íiiijrtido, que consiste i'm matar iiiniii-
fii:t. O mancelio lanatieo pensou nal uridni<'nle no
'''}íyi''"i entào <ieiiqiado jiclos francizes, e no u;enernl
Ihionaparle, >> o sultão <lerogo>< como lhe chamavam
os arali<'s.
(iuanilo o nu;á o viu bem 1'irnie mi sua resolução,
mandou-lhe dar um dronii^dario e uma |iei|uena ({uan-
tiii de dinheiro pira a viagem. Solcymão partiu pu-
VuL. 1, — NoviiMUiio (i, lU-17.
ra Gar.a, onde comprou o seu kamljar ou punhal,
atravessou o deserto e chegou ao Cairo. Ketlcctindo-
se na data da sua jornada ei|ue elle devia ignorar o
regresso precipitado de liuonaparte para a Kuropa,
está claro (pie asna intenção não era malar ao acaso
o primeiro suliuu (/os iiificisque topasse, e(|uc, sedesie-
chou o golpe sobre Rleber, i'oi na lalta ile liuonaparte.
No Cairo, Soleymão enccrrou-se por muitos dias
na mesijuita do Sultão Ilassan, (^ até ahi passou em
rezas a noite da véspera do seu attentado. Tinha des-
coberto o seu designio aos (|uatro ulemas da mesqui-
ta; estes o dissuadiram, mas não avisaram os gene-
raes IVancezezes : Ires foram prezos, e o quarto fugiu.
O processo foi rapidamente comluido; e a 17 de
junho os funeraes do desvenlui-.ido Klibir foram se-
guidos d(> <|uatro supplicios.
Os r"stos niortaes do general, conduzidos a .Marse-
lha depois d,i evacuação do l'lg_vi)to, cons<Tva\ani-so
no caslello de l'lf, <iuando cm I !1 1 II Lui/. W 111 o»
mandou transportar e encerrar n'uni monumento eri-
gido cm memoria de Kleber n.i sua cidade natal,
Slrasburgo.
Diqiois <his importantes reformas ilo actii.d pacha
do l''.gyplo, o pal.nio de Klly-liey foi destinado .is re-
partiijòis lio ministxrio ila instrucçào publica.
IMvalA 1>K MeUICII K bUVll VALIDO».
Maiiia de .Medicis, que foi siicccssuamcnle r.unh.i e
regente de Frttii(,-a, eru liUiu de Francisco 11 de I\l^^-
2Í)0
o PANORAMA.
dlcls, grão-duquc da Toscana, e de Joanna, archidu-
ijueza d'Austria, rainlia dt? Hungria e de Jínlicniia.
Loío que Hcnriíjiie 1\ ()l)teve do papa dissolver o
matrimonio com Margarida do ^ alois, man<l()U [)or
seus embaixadores pedir a mão de Maria de Medieis.
lista união foi feiizuKMite concluída e pomposamente
celeltrada. Fernando, irmão o suecessor de Francisco
II, recebeu a procuração do rei pelo duque de IJelle-
Garde, estribeiro-múr da casa de França, e celebrou
os esponsaes com sua sobrinha em nome deH<!nrique
1\ , aos .5 de outubro de 1600. Aceremonia foi pre-
sidida pelo cardeal Aldrobrandini, sobrinho do papa
Clemente \ III. A narração das festas que se lhe se-
guiram justifica a magnificência attribuida aos du-
ques de Toscana : só a representação de uma comedia
custou mais de sessenta mil escudos.
Q.uando a raiidia chegou a Lvão, orei que estava
occupado na sua lide com o duque de Saboya, veio
enconlra-la a esta cidade ; e no mesmo dia dachega-
da se concluiu o casamento. A cidade festejou-a com
o fausto de uma recepção magnifica.
li notório que a 1.5 de maio de 1610 o punhal de
KavaiUac fez viuva Maria de Medíeis. Na véspera
d esse dia fatal Henrique I^', antes de a deixar para
a consummação de um grande projecto, tinlia-a de-
clarado regente de França e como tal a fizera coroar
solemnemente.
Foi confirmada a regência de Maria do ^Medíeis
durante a menoridade tíe Luiz Xlll, seu filho; e foi
então que começaram as desgraças pelo valimento e
privança de Concino Concini, e deElconor Galigai,
sua mulher. Eslas duas pessoas são os exemplos mais
assombrosos do capricho da sorte e da ingratidão das
eòrtes.
Concini, oriundo da classe ínfima da sociedade, na-
tural do condado dePenna em Toscana, tinha acom-
paniiado Maria de Medíeis á França na condição de
lacaio. Leonor Dori, appellídada Galigai, sua mu-
lher, não se lhe avantajava pelo que respeita ao nas-
cimento e bens da fortuna. Filha de um pobre mar-
ceneiro de Florença occupava mui humilde emprego
na casa domestica da rainha: porem o que sobretudo
se conta como extraordinário é ser ella mulher mui
leia e maltiactada no quinhão dos dotes naturaes. l*ois
apesar de todas estas desvantagens, Leonor era a po-
derosa valida de Maria de Medíeis, e elevou seu ma-
rido á jerarchia de marqui-z d^Ancre, governador de
Amiens e da Normandia, marechal de França, equ.a-
si primeiro ministro. De facto, Concini governou,
.sob o nome da regente, nos primeiros annos de Luiz
^HI "(.'onío adquiristes tanto império sobre vos-
sa ama? (perguntavam um dia á manchala dWiiere)
(iuu philtro, que sortilégio empregastes ? " Ne-
nhum (respondeu ella) mais que o ascendente dasal-
nias fortes sobre as almas fracas " — Aphrase era pro-
lundamente exacla. Leonor possuía em grau siililime
a firmeza de vontade e a energia dV-spirito. Maria de
^Medíeis não tinha senão p.iixões eteím.is. Esta ulti-
ma qualidade moslrou-a defendendo os seus <lois vii-
lídos até á ultima extremidade. l)'ahi provieram as
maliciosas prevenções das memorias contemporâneas
que atlribuir.im ao marechal d'Ancro um titulo mais
intimo <|ue o de amigo. A parle esta asserção, que
nunca foi provada, o caso é que Concini se apossou
do go\erno de forma que constrangeu os ministros a
receberem d'elle ínstrucçijes. Sully foi o único que
lhe resistiu, resgatando as finanças da inspecção d^el-
Ic : toilavia, Concini, ou para melhor dizer sua mu-
lher dilapidou o Ihcsouro do estado pelas próprias
m.ãos da regente. Leonor vendeu as graças e os pri-
vilégios, traficou corn a sua influencia por toihis os
modos imagiiiavei-í, c accumulou uma riquem im-
mensa ; alem dos rendimentos dos empregos que lhe
foram dados e a seu marido, que monlavam a um
milhão de libras francezas, cada um dVUes tinha igual
quantia nos seus cofres, muitos milhões na Itália, e
dois milhões em moveis e jóias, sem contar o que
tinham extorquido ao povo.
Um privado de Luiz XIII derribou os validos de
sua raãi, Maria deMedicis; foi Alberto Luvnes, ho-
mem/i7Ao ãashcrvas como seu rival; hábil como el-
les em captar a confiança de seus amos. Luynes al-
cançou a do joven monarcha nos divertimentos d.i
exercício da caça, e de adminístr.ador da falcoaria de
sua magestade passou aseu ministro intima e instru-
mento pérfido. Ameaçado quanto ao seu poderio sem
limites, Concini atreveu-se aodelirio que mais tarde
se attríbuíu a Fouquet; fortificou as suas praças e
castellos, subornou as tropas, e organisou uma guar-
da tão numerosa e mais respeitável que a de Luiz
XIII. Foi então que o rei o abandonou a Laj-nes, e
este a \itry, capitão das guardas rcaes.
N'uma stígunda feira, 24 de abril de 1617, indo o
marechal d'.-\ncre a entrar no Louvrc para o conse-
lho, \ iUy se lhe approxima e ]iede-!he a espada. Con-
cini fez um movimento, ou jjara resistir ou para en-
tregar-se ; no mesmo instante recebeu fres tiros de
pistola na cabeça e peito ; e cáe rL-<londamenfe mor-
to sem proferir palavra. Viu-se então oqiie é alcal-
dadc doscortezãos ! . . Luiz XIII apparcccu na varan-
da do palácio para approvar com a sua presença o
assassino do marechal; todos os amigos d'estc se afas-
taram do cadáver, e foram tomar logar á roda de Al-
berto de Lu^nes, no\o sol que despontava! . . ôual
d'elles a quem mais praguejaria Conciíii, e mais de-
pressa correria a prender-Ihe a mulher, e a deter a
regente no seu aposento.
O povo, pronipto sempre a insultar os seus próprios
ídolos, excedeu em vilezas os cortezãos. Tinham pri-
meiro deitado o corpo do marechal d'.\ncre nas la-
trinas; depois foi enterrado, de noite e secretamente,
em S.* Germain-1'Auxerrois. Lm de seus amijos da
véspera descobriu-lhe a sepultura c denunciou-a á
gentalha amotinada. Então todos esses homens que
havia pouco beijavam os pés do valido, caem de cho-
fre como vampiros sobre asua jazida, arrancaind'al-
li o ensanguentíido cadáver. arrastan>-no pelas ruas
e praças publicas; aqui o enforcam, mais adiante t>
esquartejam, e por lim o dilaceram omplctamente.
Os horríveis pedaços foram pnstos cm leilão, e tive-
ram muitos compradores; e o mesquinho Luii XIII
vendo todas estas infâmias persuadiu-se que fizera
bem mandando matar um homem tão detestado de
toda a gente.
A queda e o desterro de Maria de Medíeis segui-
ram-se immedíatamcnte á morte de Concini. Ao sa-
ber tal noticia, o assombro da recente *<> ]iodia eqni-
parar-se .i sua dor. Chorou muito e amargamente,
pondo a si a culpa de sedeixar ludibriar por dois ra-
pazes, Luiz XIH c Alberto Lu\iu>s. Depois, lison-
geando-se de ainda dominar o primeiro, rest^lveu ap-
pellar para o amor tilial : mas era apjíellar para o
!\ada, [Kircpie simillianle amor não existia nocoração
de LuizXlII. Ordenando o desferro de sua mài, re-
cusou-lhe o aileus da desjH-dida '. S<' a muito custo
obteve s;iuda-lu em meio dos inimigos que a expul-
savam. No acto da (urtida, o rei foi .t camará da nv
gente : tudo o que deviam dizer de parte a p;irte esta-
va antecipadamente regulado, até as mais iiisigniíi-
cantes palavras c os mínimos gestos. Maria de .Medí-
eis, depois de balbuciar por entre soluços algum.ts
queixas, quiz pedir por Leonor, presa dep»iis da mor-
ft! de seu marido ; o rei olhou para ella <le um modo
irresoluto, e refirou-se sem lhe dar r-sposta. A rai-
o PANORAMA.
291
nha deu um passo para reter Luynes qne saía com I INIartim Paes tinha-os escutado silencioso, traçan-
stii amo ; mas o roi chamou trc-s vezes o tão império- I do com a ponteira da espada figuras na terra move-
saiiieiito o seu valido, íjue este voltou as costas a rai-
nha, a fjual, suflbcada pela cholerae choro, entrou pre-
cipitadamente para o coche, e cobrindo a cabeça com
o manto partiu para oexilio que devia abhreviar-lhe
velhice. . . Luiz aconipanliou-a com os olhos, pos-
diça. Erove, ouvindo o monge, ergueu a cabeça, per-
junlandu coni ar d'e6carneo :
— li Wuando fallaes verdade vós outros, padres?"
— "(iuando pregamos a lei de Deus."
O cavalleiro de Lanhoso emmudeceu, e D. Nuno,
suido da alegria de estudante que se vê livre do pe- encaniinhando-se para a jKirta, rosnava
dagogo, e apoiando-se no bra^o de Ln^ nes passou o
dia todo em divertimentos!
D'ahi a poucos dias a marechala dWncre foi con-
demnada á morte, degoUada equeimada na praça de
(iréve. Diremos pelo alto que os bens que lhe loram
eonliscados passaram para o duque de Luynes ! . . , e
entre a rica mobilia a famosa commo<la, quo no pre-
cedente numero appresentámos desenhada.
Odio velho não cança.
(Romance Histórico,)
(Contiiwaplo do Cnp. f.)
Sem lhe responder, D. Martim pnxou de lado Telo
Ervigiz, o fallou-lhe (|uasi ao ouvido por algum tem-
po. Insensivelmente foi levantando a voz, de forma por suas mãos" respondeu seecamente o frade
— « Estes monges, braucos ou negros, ninguém os
entende ! »
Pegando então no brajo de Fr. Munio, Martim
Paes exclamou :
— i. Esta aftronta é tamanha, padre . . . Gluem me
fará justiça?"
— !.«Já t'a negaram, mancebo? redarguiu o mon-
ge. Elrei e a sua cúria não sabem . . . queixa-te ! «
— u Contem isso a outros, atalhou, rindo cora des-
prezo, o cavalleiro-, e, batendo o pé com fúria, ac-
crescentou : — Não querem, reverendo nono. Depois
de feito dizem : não ha remédio, ou se eu soubera I . .
O rei ? ! . . . tomara elle mais tempo para lançar os
faleões e correr os javalis . . . era quanto os seus vali-
dos entram pelos solares a tleslionrar donzellas nobres
como lilhas de mesteiraes . . . Justiça d'elrei ? 1 . • •
(iuando a houve n'csta terra, padre ? ! "
— " lAuanilo tu e os teus i<i;uaes a não tomavam
que perguntas e respostas ouviaui-n''as 1). Nuno e
Fr. I^Iunio no logar aonde estavam.
— II Na ermida?" interrogava Telo.
— uSim. AUi : " respondia o cavalleiro, apontando
um espaço entre os três túmulos.
— « E a tumba ?"
— " Ao pé. "
— íi O cepo ?"
— 11 Do outro lado."
— 11 E na casa de cima ?"
— «Nada. K para cila. ti
— II O signal ?"
— íiTres repiques de sineta."
— «Deus me perdoe! . . . Depois?"
— 11 Na barbacan os eavallos enfreados; e de pe
no estribo os homens d'armas. "
— II Ficae descançado."
KTelo Erviniz saiu com os olhos arrazados d'agua,
a fronte curva, c os braços encruzados no peito. D.
Martim seguiu-o com a vista até elle transpor a por-
ta; e, encostando-sc á espada, licou silencioso o pen-
sativo alguns momentos.
— 11 Até este homem tão leal ! . . . (lue me impor-
tam os remorsos dv um villão? Não me queima a
vergonha na» faces, e o odiu no coração ? . . . E de-
pois ? . . . "
(.'omo algumas vezes acontecia aos ijue scisniam, i's-
qui.-c"eu-se de si i; do que o rodeava, pronunciando
cm voz alta as ultimas palavras. Ijc-vando, por aca-
so, (Mitão, a vista, achou, cravados em si, os olhos
escrutadores do mongi- de (.'ister.
— uE verdadt-, Martim I'aes, atalhou Fr. Munio
i?m tom brando; a vingança, ao provar, é iloce de
mel ; mas di;pois. . . é lél. "
— «Não ha fel quando nos íiea um inimigo de
nxMios : " acudiu I). JNuno, que se a|ipi'o\iinára.
— "EnganaCB-vos, I). Niiinp, lieani ns lemursos de
mais. "
— 11 Visões ! respondeu
hombros. Ainda não morreu piMrador <pie vds
monges, não absolvêsseis por bons testamentos.
eavidleiro, encolhendo os
os
Nn
pia dos moslíMros lu\am-se as mãos do sangue,"
— iiDi'US não tome contas a quem vae abrir lei-
lão á porta do seu templo. Os hunieiis perdoam, nuis
l'-llc eundeinna. >'
— 11 Não temos outra . .
— u Mentira " murmurou Fr. Munio.
— «EUes não sabem? proseguiu Martim Paes, co-
mo se o não ouvisse. Ensine-os a cabeça dos traidores,
levantada no alto das torres. Se não vêem, abram-
se-lhe os olhos. Ah ! fazem-se deslembrados? Nós os
acordariimos. "
— " Bem se conhece que morreu elrei D. Sanclio !
replicou o monge amargamente. O leão velho na co-
va já não mettemedo. Guarda-te das garras do novo,
D. Martim."
— u D. AlTonsolI, o Leproso ! . . . oh ! esse não ha
de morrer de lança nem de frecha I " exclamou o ca-
valleiro, rindo.
— 11 Mancebo, cholera de rei é acholera de leão. "
— «Falias do seu valido padre? . . . Pois não I Go-
mes Lourenço, o coUaço, o amigo de D. AlTonso.
ninguém seja ousado a molesta-lo. . . ainda que nos
roubo irmãs e filhas. Aonde aprendeste a paciência,
salicto monge ?"
— 11 Na desgraça ! "
Era tão verdadeiro esinccro o tom em que foi da-
da a resposta, que o senhor de Lanhoso, estacando
no passeio precipitado, com os ])uiihos ainda fecha-
dos de raiva, fitou o frade com ailiniração.
— .1 Martim Paes, filho, disse este meio severo, já
alguém te amou — ia<lizer tanto — mais do que eu ? "
— 11 Não. Mas a honra está acima de tudo!.,."
O monge sorriu, sacudindo a cabeça com ar incré-
dulo.
— « A honra ! . . . Ah! Martim Paes, manci-lH» !
não se enganam assim os v<>lhos 1 Para que mentes a
Deus e a mim ?"
— «Olha o (jue dizes, padre. Falias de mentira a
um eavalleiro ! ■'
— 11 Fallo. Se o eavalleiro ineiile. que remiMlio se-
não dizer-lli'o 1 acudiu ofradesem scalter.ir. Depoii,
toeanilii nas barbas brancas, efllando-o com Ião agu-
do olhar que elle o não podia soIVrer, ajunctou cm vo/.
severa :
— «lia quantos niinos choro ou u'esle vallc de la-
grimas, mancebo?! Julgas tu, e os que nasceram luin-
lem, que as amarguras da vida n."io dão expcrien-
eia.'. . . — E mudando para um tom áspero: — E a
honra de I). Maria ipie aeeendc a tua sOdc de saii-
292
O PAx\ORAMA.
gue ? Responde ; atreve-te a dizer que sim I Por que
não acceitas então o nome de Gomes Lourenço para
ella ? . . .
— u Porque é um covarde ...»
— "Tu, ou elle ? exclamou omon^e com indizna-
ção. ^ i-te de joelhos, pedir-lhe a vida por mercê, e
o de Salzedas perdoar-t'a . . . diante de mim, Mar-
tim Paes, chamar-lhe fraco ? ! n
— í. Padre ! " bradou o cavalleiro irado.
i O covarde, o traidor, onde estará ? n continuou
o monge friamente.
— «Padre!» rugiu D. Martim, dando um salto
para elle com a mão no cabo do punhal.
— .íElstá em ti, proseguiu no mesmo tom o frade.
Eu te digo por que. Tu, o valido de D. Sancho,
aborreces o homem que vai succeder-te na privança
do rei novo. Os infantes descontentes saem do reino.
As infantas, a quem negam as heranças, defendem-
n'as em seus castellos. Os cavalleiros moços correm
a florear as lanças debaixo do pendão das damas. O
senhor de Lanhoso, atirando-lhe a cabeça de um dos
Viegas, do coUaço de D. Affonso o Leproso, não se
vinga a si, não os vinsa aelles? pjde ser bem accei-
to? errei n'islo, D. Martim ?;j
O cavalleiro de Lanhoso, qusisi succumbido por se
vêr descoberto, pasmou a vista no rosto do monge, e
pallido como um defuucto, nem teve animo de o des-
dizer.
— .i A ambição sempre foi irmã do crime, .disse
Kr. Munio. Não te fies nVila, Martim Paes. £uma
Judith. Olha que namorado nenhum deitou a cabe-
ça no seu regaço, que Ih'a não cortasse ao primeiro
som no. )'
D. Nuno. que já tinha voltado, ouvindo isto, tro-
cou uma vista rápida e desalentada com o senhor de
Lanhoso-, e essa vista, que não escapou ao frade,
queria dizer : u estamos perdidos. " Depois todos três,
caiados e contrafeitos, mediram-se por algum tempo.
O monge adivinhara o negro abysmo d'infamia em
que soçobravam aquelles dois homens. Colhidos de
Eobresalto, ambos, sem se arrependerem, estavam co-
mo assassinos na presença do cadáver, que tremem
de vêr levantar uma accusação pelos lábios de cada
ferida. De repente Fr. Munio, travando da mão a
^Martim Paes, lovou-o com impcto ao pé do tumulo
deMoço.\nsures, e mostrando-lh'o com o dedo, bra-
dou :
— u Sabes a historia d'este homem, Martim Paes?»
O cavalleiro, acenando com a cabeça, respondeu
que não.
— li Sabes em que dia estamos ?
— «Sei."
— uFaz hoje mais de um século que este sepulchro
foi o leito nupcial de dois amantes, e que la em ci-
ma, na sala d^arra.is, se travou um combate tão me-
donho, que Deus aflastou os olhos da terra, e o mes-
mo inferno teve horror. Marfim Paes, o cadáver das
victimas descança entre aqueUas Úòrcs, mas odelni-
goLopcs(l), o amaldiçoado, não pôde ter repouso."
— "Padre, o braço que feriu o coração e derra-
mou o sangue do inimigo foi um braço nobre. Inigo
Lopes — exclamou estendendo a mão com força — nas
azas da tormenta, ou nas voragens da terra, ou\e o
juramento que faço, de accender as tochas do enter-
ro no dia da tua vingança. »
— u Não blasphemes, atalhou o frade com impé-
rio. Insensato, não acordes os mortos que repousam. ^^
(I) A hisloria tle Inijo Lopos, com n mararilhoso tlamy.
tholojia popular publicou-se no faitorcma n" S i-3 da no-
va cniprcia. NVsle género, percorrenju as Initlas pa(ría$, e
as que narram M.itheuj Paris eoulros, cumpunha-se um livro
trio novo, como agradável e raríado.
'Aquelle soube ser homem. Lavrou em três se-
pulturas a historia do seu ódio. "
— " Não chames por Inigo Lopes, disse o monge
com alsum tremor na voz. Gomes Lourenço é sangue
d'elle. O alcácer em que estamos era de parentes teus.
O conde Ordonho, tronco da tua casa. foi o pai d'.\u-
zenda, a noiva do S. João . . . Desafiaste o inferno ;
guarde-te Deus que elle te levante a luva."
— u \ ivo ou morto venha quando qaizer. .Ajino e
dia prometto esperar o repto. »
— u Jesus ! " bradou o frade, branco como o pilar
de pedra a que se encostava.
Ou fosse acaso, ou fosse mysterio, o guante ferra-
do d'uma armadura preta desprendeu-se e veio ba-
ter nas lageas, aos pés de D. Martim. O cavalleiro
estremeceu, mudando de cõr ; mas ergueu a mano-
pla. No canhão, em lettras doiradas qaasi comidas
do tempo, leu o terrível nome de Inigo Lopes.
Um instante o mirou calado, tremendo-lhe os de-
dos convulsos. Na fronte pallida o snor frio borbu-
lhou ás gottas. Entretanto, vencendo as cummoções
interiores, com apparencia tranquilla virou-se para
o frade, dizendo :
— u Pelo que vejo, os mortos acordam aqui . . . é
um duelo com Satanaz '...."
— "Martim Paes, gritou uma voz que parecia sair
do fundo do sepulchro de Moço Ansures ; acceito o
repto ! De boje a sete dias, á hora da meia noite,
responderás perante Deus. Prepara-te I "
D. Nuno, dobrando-se-lhe os joelhos de terror caiu
de bruços; e D. Martim acontecia-lhe o mesmo, se
não se encostasse acampa do conde Ordonho. Fr. Mu-
nio, tremulo e perturbado, exclamou, estendendo pa-
ra elle o braço :
— " Estás satisfeito ? O inferno empraiou-te para
o dia de juizo. "
Uma risada convuba e estridente resoou nas abo-
badas, e repetida nosecfaos foi morrer lá em cima na
sala d'armas.
O monge não disse nada, mas, arrojando-se ao
chão, começou a orar com fervor. Os dois cavalleiros
tinham um nó na garganta, que os não deixava fallar.
Sem dizer palavra, todos três se encaminharam pa-
ra aescada, que se torcia até a sala d*armas. Os pés
trémulos escorregavam nos degraus ; e era tão pro-
fundo o silencio, que se podia quasi ouvir a pancada
do coração, pulando atropellado contra o peito.
Cluando chegaram á sala d^armas. assentaram-se,
e muito tempo estiveram sem fallar. Por fim, viran-
do-se para o monge Martim Paes disse :
" Ha de ser terrível a historia de Ini^ Lopes ! n
"£. E o povo ainda a conta com mais terrores.
Nunca a ouviste .' n
" Nunca. "
" Eu vo-la digo, como a ouvi da ama que me criou.
Depois soube que nem tudo acontecera como asaucta
velha acreditava."
" Principiai, Fr. Munio. n
E debruçando-se para elle, os dois cavalleiros fita-
ram-n"o com curiosidade de quem deseja saber, em
quanto o frade se recolhia c prvx-urava ordenar na
memoria as quasi obliteradas tradições. Decorridas
alguns instantes, Fr. Munio come^u assim (1).
Presbtterio db Bolleville.
o VI4JANTK que dcíonhou esta vista do ppcsbytcrio
e igreja rural explica-se d"este modo. —- Atra vcssan-
( 1 > Esta lenda é a qae já foi pnblirada em os ao
i e 3 do Panorama de 1846.
o PANORAMA.
^93
do recentemente a aldeia de BoUeville não pude sub-
trahir-ni'' a certa cotnmoção, reOectindo que n'este
humilde e socegado retiro se tem concebido e con-
summado tão excellcntes trabalhos, e considerando
taiNb<>m nas lições do modéstia, que emanam da vi-
da do illustre erudito, Uicliard Simon, cuja presen-
<'a faz celebre aquella pequena povoação. Não só pelos
retratos, que mostram as fctições do rosto se dão a co-
nhecer os homens notáveis, mas também pela fiel pin-
tura dos sitios que preferem o habitam :, o que nos
adquire oconhecimcnto familiar doseumodo deexis-
tir. •'
Esto desenho ele^ianto não só agradou muito em
França, pela idéa associada que expomos, inas tam-
bém é pela nuísiiia rasão em AUemanha onde Ricar-
do Siinoii é muih) conlieeido, c o seu nome reputado
nas universidades e priíicipai^s eschulas eouio uma das
;;lorias rranei;/.as. — A sua mansão valida, liolleville,
é uma tiTra pequena no departamento do Sena in-
ferior.
Os COIOCIIOÍ.
(roíiUntiail.) (li- iiiii;. iOÍÍ.)
(ii/ANíio |)are al);iima mulher colocha fica do cama
por um mez ; expirado este praso, lava o menino,
lava o seu próprio corpo e a sua roupa, e ataviada
cuni o melhor ipie tem convida todos os parentes pa-
ra uirui lesta esjiiendiíla. Duranlí' a refeição põe a
llliíi o nome ao luriiiho, (■ eosluuia ser o de al!;;uin
parenti' já fallecido. A» mài» amametitaiii os filhos
até andariMu ; o vestuário d'esles é í'i>il,o de pelles
macias de (juadrupedes ou ili' aves. Depois de des-
mamados e ante» de lhes nascerem os denles, susteii-
lam-n'os as mais min peixe sicco (pie in.isli'^am pri-
meiro. Assim ipic o meiíiiiu princiíiia a fallar, liãu-
Ihe todas as manhãs um banho no mar ou no rio,
quer faça bom quer raáu tempo. Para que os gritos
das ereanças não movam os pais a ter compaixão
d'ellas, é encarregado de pôr em practica este uso
espartano algum primo ou tio, que faz calar o pade-
cente com uma chibata. O respeito dos filhos a seus
pais á para os colochos um dever sagrado, assim co-
mo os carinhosos desvelos com que costumam tractar
os velhos e os enfermos. Nota-se unia particularidade
n'esfe povo, que é herdarem sempre os parentes do
lado materno com preferencia aos do lado paterno.
O colocho que quizer casar ha de ter a robustez
necessária para poder com os trabalhos mais rudes,
e ser destro no manejo das armas, principalmente
da espingarda. Munido de uma prova de idoneidade
que os pais lhe entregam, dirige-se á aldeia onde
mora a noiva e a manda pedir por um amigo. Se a
rapariga e o pai dão o seu consentimento, vai o man-
cebo em pessoa ter com a noiva, troca-a pelos presen-
tes que trouxe eomsigo, e recebe cm retorno do pai
da rapariga outros presentes de maior valia do que
os que lhe fez. Kslas dadivas consistem em pelles de
aniniaes, mercadorias da Europa, armas, «k.c. ; as
pessoas ricas junctam a isto alguns escravos. Falha -
muitas vezes u negocio por não querer ou não poder
o mancebo cumprir as condições que lhe impõe a ra-
pariga : houve uma que exigiu de Nanch Ket, o an-
cião, o repudio da sua primeira mulher; o pagão
negou-se a isto, e desfez-se o projectado casamento.
Os matrimónios fazem-se sem sacerdote, nem saerifi-
cios, nem ceremonias religiosas de qualidade alguma.
Os colochos da classe mais elevada casam com muitas
iiuillicres, para enriquecerem com os presentes que
ellas lhes trazem, e augmeutareni o seu poder e in-
fluencia por meio de uma parentella numerosa. Os
caudilhos das liibus casam os seus filhos quando ain-
da são meninos. As mulheres do mesmo homem teem
eonimumente muitos ciúmes umas das outras, e as
fre(|uentes rixas que provém d'estes zelos costumam
acabar em mortes. O marido que apanha em sua ca-
sa um extranho inata-o, e mata também a mulher,
sem receio do resentimento dos parentes, aquém faz
alguns prisenti'S de valor a titulo dedesculpa ou con-
ciliação-, mas se o homem (jue o olVeudeu é seu so-
briídui, não tem o marido o direito do o malar e só
pôde obriga-lo a tomar conta da mulher. Acontece a
miude qiK! homens brandos e indulgentes n."io fazem
muito caso d.is suas espozas de mais idade, e em tal
caso concedem-lhes que tomem para o seu serviço um
rapaz que é obrigado a fazer o trabalho da casa. Os
colochos jamais casam com assuas parent;is, escolhem
sempre as suas mulheres nas outras tribus. 'J"oJavia,
esta regra tem uma excepção', ponpie quando morre
luu colocho oseu sobrinho tem obrigação de casar com
a niulliiT lio lio, seja qual fòr adillereuça das idades.
As mulliires não são isentas do traliallio ; pelocon-
Irario tem obrigação de ir buscar lenha c agua, e de sal-
garem o peixe, dl! fazerem cestos, vestidos de lã, >\.c. ,
cm quanto <pie seus maridos se conservam em ócio.
Os homens não se mexem em quanto lhes duram em
casa os mantimentos; ao acaso se enfastiam de atu-
rar as mulheres vão e«tirar-se na areia das pr.iias,
e até sobre as aguas geladas do mar. Teem um amor
ilesordeiiado a um jogo nacional qiic se joga com umas
varinhas, no qual muitas vezes penlein quanto pos-
suem entrando até as suas mulheres.
t> peixe !■ II principal maiitluu-uto dos habitantes.
Os an-iiques vem em grandes e.irdumes desovar no
mez de março iio estreito, ao pe d.i fortalcxu de
Sileha. N'esso tempo os colochos cortam arvores, car-
rei';aMi-ii.iH de piMlriis, e metteiii-uas deb.iixo do mar
ao pe lia costa. Tiram il'agua a desova que seajH-gou
294
O PANORAMA.
aos ramos, seceam-na ao sol ecomem-na mais tarde.
l'esca-sp no mcz dejunho uma espécie de salmão ('sa/-
7110 ijihbosus) que i; secco ao fumeiro depois de st- lhe
tirarem as espinlias. Os rodovalhos apanham-se tan-
to no verão como no inverno, e comem-se frescos ■, edos
ovos de solho misturados com os dos arenques também
fazem os colochos certa comida. Na primavera tiram
íle diversas arvores um liquido que depois de fermen-
tar embebeda. Os phocas e as baleias que o mar de
vez em quando arroja acosta são paraelles umac;ulo-
dice ; porém preferem a tudo o azeite doestes peixes,
(jue bebem com o maior gosto nos seus banquetes.
São amigos das carnes de alce e carneiro, mas des-
prezam a de urso. Comem com boa vontade todos os
pássaros indistinctamentc, excepto o corvo que para
elles é sagrado.
Os colochos não devoram a carne dos seus prisio-
neiros; contam que existe por de traz dasmontanlias
sí'ptontriona('S uma nação diUerente da sua nalingua
(■maneira de viver, eque foi em tempo de grande pe-
núria, obrigada a comer carne humana. Kstea ho-
mens, chamados Connaquos, vem ás vezes á aldeia do
TcUilchatou trazer aos colochos pelles de martas-zibi-
linas e de rajjozas, e pedaços de cobre bruto, em tro-
co de armas o pólvora.
(Estrah. da Revista do Norte.)
Dos TRABALHOS GEOLÓGICOS.
O MELHOR modo decomprehender bem a serie natu-
ral das ideias relativas á geologia consiste em acom-
panhar com o pensamento os viajantes geólogos nas
regiões que não submeltidas á observação enasquaes,
por conseguinte, tudo está porfazcr. Achar-se-ha que
são obrigados atractar de innumeravcis objectos, que
se encadeiam intimamente, taes como o calculo das
latitud(!S o longitudes, a medição das alturas, a de-
terminação dos elementos do clima, a topographia do
solo, das suas formas picturescas, das suas produc-
ções &c. Km nenhuma parte, porém, este encideamen-
to se observa mais claramente edeum modo mais in-
teressante doqiio na America. Os geólogos são os ver-
dadeiros arroteadores por conta dacivilisação, que se
vai propagando tão rapidamente ])or aquelles rios e
fecundos desertos. Por isso se começou a trabalhar
al!i geologicamente nas proporções mais vastas ecom
lima extraordinária actividade. Os governos que com-
prchendem perfeitamiMite, quanto á riqueza publica,
a utilidade de obrar cm toda a parte conforme o co-
nhecimento exacto da natureza dos territórios, ani-
mam com superior intelligencia todos os trabalhos
d'estc género; e ])or isso os listados do norte da Ame-
rica estão munidos de cartas geológicas, mui bem de-
sempenliadas, pelas quacs se regulam.
O problema projwsto aos geólogos americanos con-
siste em organisar um quadro completo dopaiz. Não
teem, como os seus collegas da Kuropa, o auxilio de
cartas topographicas já publicadas. Devem levantar
ou polo menos completar o rnappa geographico e phv-
sico, medir a» alturas, calcular as correntes d\iguas.
determinar a composição do terreno. Suo ao mesmo
tempo encarregados de explorações relativas ás ques-
tões de utilidade publica, que nascem da natureia do
solo, relativamente á agricultura, ás vias dcconiniu-
nicação, á abertura das pinlreiras c das minas; nem
hão de siniplrsu\enle conlentar-se com o ter indicado
.•i existência (Festas, c mister que designem ao mí!s-
mo tempo os melhores meios de se priKvdcr ásua ex-
ploração. Da mesma maneira pelo que respeita a agri-
cultura ; tem de examinar a flora e a fauna pr».)prias
de cada districto. para d"ahi deduzir túUos os esclare-
cimentos possíveis soVjre ascondições da economia ru-
ral, que é chamada a substituir o seu império ao da
natureza livre. «O trabalho, a que as cartas geoli»-
gicas dão causa (diz M. Klias dcBeaumont. dequeiu
tirámos estas informações) é uma investização ency-
clopedica década estado. São funcções importantissi-
mas as doestes naturalistas pensionados pelos governos,
(geologist to the sfate) como lhes chamam nos Kita-
dos-Unidos. Verdadeiros batedores da sciencia e da
industria, teem uma commissão muito mais ampla pa-
ra desempenhar do que a dos engenheiros de minas
em França, até mesmo dos que são incumbidos das
operações das cartas geológicas, eda inspecção da mi-
neração e officinas dependentes."
Certamente, (diz um escriptor francez) que seria
para desejar que a França ton)asse a este respeito al-
gumas lições dos americanos, jxjr muito extraordiná-
rio que fosse vêr uma nação de administração vigo-
rosa, procurar modelo n^outra onde a administração
em geral é mais frouxa. Mas é innegavel que resulta-
riam grandes vantagens de possuir em cada departa-
mento um svstema de noi-ões scienlificas, Ijem orde-
nadas era relação a todas as condicções naturacs do
território, não somente pelo que toca á exploração
suV)terranea, mas sobretudo no concernente á explo-
ração agrícola, mais essencial ainda. Mui importan-
tes esclarecimentos se obteriam para a economia ru-
ral do paiz, estando em bons map^vis representadas
as varias zonas do solo vegetal, segundo as suas di-
versas qualidades constitutivas, da mesma maiíeim
que as cartas geológicas propriamente ditas marcam
os dilTerentes maciços do que podemos chamar o ma-
deiramento mineral dos terrenos.
3I1CCEI Paibologo.
1253.
Vestido de habito religioso, deitado cm cinza cconi
as mãos postas sobre o peito, o imperador Thcodon»
Lascaris eslava a expirar.
Reconciliado com Deus, preparado para este mo-
mento solemne; e enojado mais que tudo das grande-
zas humanas, estendera alegre os braços á morte, st-
não fosse o pensamento de seu filho João. pobre crea-
turiuha de nove annos apenas, cuja cabeça ia talvez
esmagar cobrindo-a com o pesado diadema deNicéa.
O imperador chorava.
Porque era mister mão fiel para suster o diadema
por cima da cabeça de João, e o desgraçado pai uão
via em torno de si sen.ão inimigos.
Jorge Acropolita não podia ter esquecido que, por
ordem do imperador fôr.a nagelladocomo um escravo.
Musalon fflra expulso do conselho aos jK>nta[x-s.
Miguel Paleologo . . . Oh I se elle pixlessc desleiu-
brar-se de uma noite funesta . . . talvez se ileslcmbre,
porque só esta vez foi o imperador cruel par.i com r.l-
le : ^liguei será generoso. Ide chamar Miguel Pa-
leologo, dai-vos pressa.
Saiu um dos guardas, c voltou logo, prccc<lcudo
Miguel Paleologo.
Sobreviera a noite, uma só alamp.ida allumiava a
tenda do im|«-rador, e embalada de continuo pelo
vento derramava uma luz tremula. Du.is mulheres o
um p.vdrc. ajoeULidiu ao pé do leito, velavam ao lado
do enfermo. Assim qucThcodoro viu appareccr o .igi-
gantado Miguel, fez-lhc signal para se retirarem, c
estes dois homens ficaram mudos defnmte um do
outro.
O imperador foi quem quebrou o silencio.
o PANORAMA.
295
— «Miguel, lhe perguntou elle, tu odeias-me?»
— ii Sim. "
— " E, todavia, mando-te chamar a ti para juncfo
d'esto leito damoilc, |K)rf]ue quoro que me facas um
beneficio immeiíso. •'
— íí É porque não achas outrem que to faça.»
— «iMigiiel, eu sempre te amei, tu liem o sabes, n
Um sorriso amargo c irónico enrugou os lábios do
l'aieologo.
— II Oli ! Miguel, não sejas severo juiz «lo meu pro-
ceder |)ara eointigo ! Se reinares algum dia {Ueus e
os sanctos te guaniem de semelhante desgraça) sabe-
rás quanta d(^scul|)a mereço por te haver feito encarce-
rar \ porque me diziam : elle cubiça-te a coroa, cons-
pira contra ti, é moço, eloquente, amado dos solda-
dos . . . Mas deixa-me acabar que os instantes são pa-
ra mim preciosos. »
Escuta: estou a morrer e deixo um filiio, uma po-
I)re creança sem soceorro nem amparo. Nomeio-te
seu tutor conjunetamente com jMusalon. Acceitas es-
te titulo ?
— " Acceito. >'
— "Ejuras-me no meu leito de morte, e diante de
Deus que nos ouve, que meu filho ha de achar em ti
um pai terno, extremoso ? . . >i
— ií Escuta :
" A manhã, quando fores a enterrar farei matar BIu-
salon e todos os seus, para eu licar sendo o unito tu-
tor de leu filho.
uD\iqui a oito dias farei lançar teu filho n'um cár-
cere á beira-mar.
" l)'aqui a um anuo mandar-lhe-hei tirar os olhos
com um forro em braza.»
O imperador, concentrando as poucas forças que
lhe restavam, arrastou-se para fora do halo até os pés
do l'alei)logo.
— " ['erdão, lhe bradou elle ! pc^rdão para a pobre
creança ! \'inga-te em mim, alravessa-nie com atua
espada, mas tem d<í (l'cll(,> ! n
— « l'assar-lo com a minha espadai morres dentro
iPuma hora. "
— II Oh! piedade, peço-te pela tua alma!"
— íiTheodoro Ijasearis, Deus é justo. Na masmorra
em que teu filho ha de ser sepultado, sepultaste-me
tu três annos. O ferro em braza que lhe ha de tirar
os olho» empregaste-o tu para assanhar os galos bra-
vos, que devoravam minha irmã encerrada, por tua
ordem, ii'um saeeo cheio d'elles.
— " Ma» é um menino innocciíte ! )i
— «Era uma mulher innocente. "
— 11 tílual fui o crime que elle commetleu .'»
— uHual era ocrimc deminha irmã? Nãoquerer
dar sua filha jiara mulher de iMusalon teu valido.
Jlasgasle nni conição il(! mãi, 9('rá rasgado o leu cora-
ção de[iai ! Mataste uma nmlher, morrí^rá uma crean-
ça i é a pena d(^ talião: ('justiça.
(* Ah ! aind.'i sfiu imncrjirlnr I
(luardas ! n
Miguel, pondo o pé
fou-lli<! as vozes \
— liSileneio, eadaviT ! não sabes (pie um impera-
dor moribimdo já não nrina ? Mas poiquí' ti! não hei
de diMxar grilar, accrcsrentou lirando o pé : ninguém
vir/l, ningu<'m accudirá aos sihis gritos, e se alguém
viesse, u um signal da minha mão, escarrava-lhe na
cara. "
Depois senlon-se á br'ir;i cio Icilo chi iiii|iiT.i(lor.
i'assou ijuia hora si'm »e ouvir sciiáo o cslcrlor do
nini'iliuii<l(>.
I)r repcnle, cessou o títortor, e um movimento
convidsivo agitou o habito de frade em cjue 'J"heodo-
ro se amortalhara.
asou imperador! exclamou Lascaris.
ir^anla ilc 'Vlieoduro alia-
Miguel inclinou-se sobre o cadáver, e lhe tirou do
peito oediclo do imperador, que nomeava tutores de
seu filho a Miguei l'aleologo e a Musalon.
— ií Soldados, bradou elle, o imperador éfallecido.
e deveis obedecer-me, porque sou regente do imp<;rio
de Nicéa. Aqui está a derradeira vontade do impe-
rador. "
— 11 Viva Miguel Paleologo ! bradaram milhares
de vozes.
ISo dia seguinte foi morto Musalon no enterro do
imperador.
E passado um anno, n'uma fortaleza á beira-mar.
tiravam os olhos a um pobre menino, que nem se
quer luctava com os seus verdugos.
(Traduzido de 3/. Jicrthoud.)
D
AS SEMENTEIRAS RALAS OU BASTAS.
Poucas questões são na agricultura mais interessan-
tes do que a da quantid;ide de sementes que convém
empregar para se obterem, em igualdade deeircums-
tancias, as mais vantajosas colheitas. Ha ainda mui-
tas experiências para fazer a este respeito; e ainda
não temos uma taboa exacta das quautidades de ca-
da espécie de sementes as mais appropriadas ásdifié-
rentes naturezas do solo.
Um agrónomo inglez avalia em Ires milhões de
(juarters (24 milhões de alqueires approximadamente)
a quantia dos eereaes que (se empregam de mais do
que é necessário nassementeiras da Grã-Bret;mlia.)
Segundo o preço médio doscereaes n'aquelle paiz pi>-
de-se calcular em .')4 milhões de cruzados a economia
que se poderia fazer na produção dos mesmos cereaes.
se se limitassem a empregar nas sementeiras a quan-
tidade estrictaniente necessari;i, ed'aqui se pode in-
ferir que o objecto \al bem a pena de ser estudado.
As sement(!S ridas augnienl;im a altura doscereaes,
são favoráveis ao desenvulvimcnlo da haste, da espi-
ga e do grão; ])rol(Uigam a duração da vegetação, e
retardam ])or conseguinte a epocha da madureza.
As sementes bastas produzem o cUeito contrario ;
diminuem todas as dimensões das plantas que se tor-
nam individualmente menos produetivas, abbreviam a
duração da vegetação, e apressam por conseguinte a
epocha da madureza. Assim quando semeamos ralo.
ceifamos tarde; e quando semeamos basto, ceifamos
cedo.
Dada a igualdade do estrume, e da fertilidade do
solo, uma ixí<iuena (|Uiintidade de semente produz,
dentro de um periodo ni;iior, uma colheita i>;ual á
que pode dar uma (juautidade mais a\ultad;i de -e-
nienle lun um [leriodo ui<'uor.
t) segundo ;inianho (biitatjv) doscereaes é causa de
se retardar a mailureza do grão, mas dispõe as plan-
tas para deilar rebentos.
As sementi^iias em liniui a]iressani :i madureza dos
cereaes, m:is liiuiiuueui a sua disposição para deitar
rebentos.
Além d\'st<-s jirincipios, as eircumstanci:is loeaes,
isto e, a natureza e a i'xposieão do terreno iniluem
puderusamenli' nos resultiidos de uma semeiílelra r.i-
la, basta, ou minlLana ; a temperatura, e sobre tudo
o urau de humi(lad<' do elima devem determiiuir o
cultivador no ijui' diz respeito a esta p;irte ile seus
Iriíballios. J'au geral, as ijuaniiilades ile sementes re-
conhecidas como uiais adaptadas :ios climas aimulla-
neamenle brandos e húmidos e ás terras onde a ve-
giliiçuo e muito vigorosa, d<'\eiu ler eonsideruduii co-
mo insulfici<'nt<'s pura as terras menos ferlei.s e paru
os paize» mais elevados ou mais septentrioinies, que
tecm invernos inuis longos, o estios mui curtos.
296
O PANORAMA.
Se o terreno não tem as condições necessárias de
cultura e de fertilidade, não produzirá abundante-
mente, quer lhe prodigalizem quer economizem as se-
mentes. Mas se o terreno for bom, poderemos espe-
rar unia boa colheita de uma pequena quantidade de
grãos semeados ornais cedo possível, isto é, no outo-
no, depois de amiudadas cavas profundas, muito prin-
cipalmente se a sementeira for feita em linhas assaz
espaçadas para que a grade de desterroar possa tra-
balhar pelos intervallos.
O cultivador de um grande prédio deve ter o cui-
dado de não semear todos os seus campos nem muito
basto nem muito ralo, preferindo variar a densidade
das sementeiras tanto quanto a natureza dos terrenos
Ih o permittirem. Com este processo, evitará o in-
conveniente, muitas vezes gravíssimo, de lhe amadu-
recerem ao mesmo tempo todas assearas faltando-lhe
braços para a ceifa em tempo opportuno.
(Auanto uma sementeira de trigo succede aumdes-
torroamento ou vem apoz uma cultura de raizes, co-
mo cinouras, betarraba? &c, que tenha revolvido o
interior do terreno, podemos ter a certeza de que a
colheita se fará pelo menos oito ou dez dias mais tar-
de do que nas outras culturas. Se n'estas circunstan-
cias semearmos ralo, as plantas já dispostas pelo es-
tudo da terra, para prolongarem a sua vegetação,
achar-se-hão ainda mais demoradas, e corremos o ris-
co de ceifar muito tarde, o que acontece frequente-
mente aos cultivadores que não attendera a esta par-
ticularidade. Se pelo contrario semearmos tão basto
e tão cedo quanto o comportarem a natureza do solo,
e o estado da temperatura, apressaremos o momento
da madureza do grão de maneira que ficará compen-
sado o effeito do destorroamento do terreno, e consegui-
remos assim fazer chegar a ceifa á epocha opportuna.
Os axiomas que acabamos de expor são conhecidos
de muitos cultivadores practicos : temos visto muitos
velhos aldeões a quem a sua longa experiência prati-
ca dá a justa consideração de oráculos entre os seus
visinhos, quando consultados sobre este ponto delica-
do, decidirem onde e quando convém semear ralo ou
basto, mas sem darem as rasões d'islo, se bem que a
observação seja indubitavelmente a base de suas de-
cisões. Em quanto o uso dos sementeiros (l) se não
tornar mais geral, um bom semeadorserá sempre um
homem raro e precioso, disposto a prevalecer-se de
uma aptidão a que os practicos só com muita diflicul-
dade conseguem chegar. Com os sementeiros ecom .1
applicação judiciosa dos princípios, o resultado das
sementeiras não dependerá já da dextreza de um
bom semeador, e todos podem esperar uma excellen-
le vegetação quando empreguem bons instrumentos,
e não anteponham a rotina aos princípios bebidos no
estudo do progresso da vegetação.
Algdms alienados.
Jíntre os loucos que estavam reclusos em Bicítre em
183(5, distinguia-se um pelas suas manias.
Tinha sido liabil musico da orchestra da Opera
o compositor de merecimento, e empregava o seu
tempo na educ.ição (Pum pardal armado de todas as
peças como um cavalleiro, e na de um idiota de de-
zoito annos, a quem ensinara, com indizível paciên-
cia, a cantar um iiynuio iin lou\or tie Jesus. Kste
infeliz alienado, falla(h)r e vaidoso, e inimigo, co-
mo é de crer, da prisão a que vivia condemnado,
mostrou ser cscraro da honra, conforme elie dizia em-
))halicamente, voltando para o captiveiro dVuide o
deixaram sair uma vei sob sua palavra para tractar
(1) Machinn invcutada para semear melhor ecom menor
ilcspcrdicio o Irigo.
de certo negocio. Comprazia-se em contar anecdotas
da sua vida artística, sendo uma das mais interessan-
tes a cura do pai do actor Gavaudan, que perdera o
juízo por ter tomado um remédio violento. — u Estava
doudo varrido, dizia elle, nu, furioso, não consentia
ninguém ao pé de si ; quebrava todos os moveis a que
podia chegar." — "Este homem tem cura, disse eu
aos seus parentes, e se estiverem peloquecudijo, em-
pregarei um remédio infallivel. " — l)eram-me cre-
dito. Junctei logo doze ou quinze músicos^ csconde-
mo-nos debaixo das jauellas de Gavaudan, e dou o
signal. Eis que começa uma s^'rophoniamelancholica
e suave. Gavaudan levanta-se, escuta attento, lança
os olhos ároda desi^ conhece que está demente; de-
bulha-se em lagrimas -, chama a família ', acodem to-
dos, lança-se nos braços de seu lilbo. . . Chama-me
seu salvador. . . Tínha-o curado.
Este caso é verdadeiro, um louco foi curado por
um homem que havia de enlouquecer.
Outras vezes Schn. . . (era o seu nome) contava as
maiores extravagâncias, como por exemplo que en-
cantara um elephante, tocando-lhe trompa, a ponto
de o animal pegar n'elle com a proboscide e leva-lo
em triumpho; eque ensinara musica a um burro que
ja cantava maravilhosamente.
A loucura parece que nunca se declara instanta-
neamente, e se acaso se manifesta de repente n'al-
guns indivíduos, interogadas as suas famílias, desco-
bre-se que elles ja teem dado indícios de demência.
Mr. CuTÍer alcançou para um moço de muito me-
recimento e ínstrucção, eque vivia em pobreza, olo-
gar de mestre de dois príncipes allemães com seis mil
libras de ordenado ; e dou-lhe a noticia d'esta fortu-
na sem o dispor para recebe-la. O mancebo deu sig-
naes do mais despropositado jubilo, e perdeu logo o
juizo. Soube-se pela gente da casa em que morava
que era sujeito a ataques de misanfhropia que duravam
semanas inteiras \ outras circumstancias comprova-
ram alguma falta de siso.
Um d'esses histriões rafados que vão de tempos a
tempos cardar as províncias, um tal Lagardiére pa-
rodiava grotescamente Talma no theatro de Cam-
brai ; e de certo fazia dó ver a sua cabelleira russa,
e os seus joellios cambaios ; e ainda mais dó faiia ou-
vir-lhe a declamação empolada, e a voz enrotiqueci-
da pelas continuas libações de agua ardente. Um ho-
mem, que estava muito quieto a ver esta borrachei-
ra, salta de repente para o palco, vai-se direito ao
histrião e proga-lhe o mais bem puxado murro que
elle nunca levara na sua vida. E fácil de imaginar
o reboliço que faria este assalto ; tanto mais que o
homem, sem cessar de servir de pancadaria o farrou-
piliia, o alagava n^unia torrente de nomes injuriosos,
repetindo muitas vezes o de taJrCio.
Separam-n'os, fazem-lhes perguntas, mas oaggres-
íor não se cança de gritar : ■. Houl)ou-me ! »•
— >i E o que vos roubou ? pergunf.i alguém. "
— " KoulHJU-me um gesto I . . este gesto, disse o
doudo, coçando o nariz, n
Lagardièrt" usava muito d'este gesto trágico.
Levaram d'alli á força o homem queixoso de o te-
rem roubado, o qual desde este momento deu .is pro-
vas mais decisivas de demência. Tiraram-se informa-
ções, e Deus sabe o que este acontecimento deu que
fallar na pequena cidade de Cambrai, e descubriu-se
não ser este o primeiro acto de demência pr.'ícticado
por J. . . 'let, o qual. de^Kiis de melhorar veio mo-
rar para l'arís, e publicava thcurias solares cum esta
epigraphe :
São ha senuo um Deus ,■
^^ão ha icnCto uma iheoria solar.
-Yuo ha senão um /. . . Tet, cnpat Je a t.rplicar.
38
o PANORAMA.
297
o DEMÓNIO DO JOGO.
Appiiesentamos copia do uma estampa antiga, para
i|ue se veja o j^osfo da invenção e desempenho d'este
jçenero de desenhos, ha quatro ou ciiieo séculos. Ser-
vir.! lamheni de prova de fjuão desenfreada domina-
va a paixão dojoi^o entre os nossos maiores, <iuealém
das declaniarões vulgares, deu oceasião a diversos li-
vros, lioje raros e escjuucidos. A par da censura dos
auctori's ap|)arece a severidade das h-is, fulminando
penas contra os jogadores, reforçadas com a auctori-
dade canónica.
A opinião j;er.il reconheceu os damnos d^essa pai-
xSo devastadora, (jucr começou pelas pirturhações e
ruinas entre osi;randes, esemeou-as depois nosdomi-
(■ilios dos p.irli<ularc3, roubando a p:iz e ,i fazenda de
innumeraveis famílias. Sempreeste vicio, fonte de ou-
tros muitos, tão fatal eonio a guerra intestina, foi fu-
nustissiino, e ainda em nossos dias é causador de bas-
tantes estragos, (pialilicadoeomo uni flus males niorae»
da sociedaile :, porém, nunca se manifestou Ião solto c
contaniinailor,' como na i.'poeha a <|Ue alludimos, c a
(jue ])ertence aipiella estampa, poslo dedala um lau-
to inirertit. l""oi mister re|)resentar, então, este Uagel-
lo da eomniuiiidade social sol> a allegori.i de um en-
te inidelico, ri'vr'sli(lo deforma monstruosa !■ horrida-
respirando incêndios e toda acasta de assolações, em-
polgando palácios e Ioda a espécie de propriedatles.
Se a invenção da allegoria |ióde parecer exlrataganle,
u fundo do |ietisamento é assar, vurdaileiro.
<iue o jogo <'stava em muita voga entre nós nos
VoL. I. — Novit.MUiio 1.1, 1817.
dois precedentes séculos niostra-se pelas passagens rps-
peclivas dos nossos escriptores ascéticos e moralistas.
Uepr<;hendciido o jogo nos dias sanetilicados," e para
mostrar a observância dodomingo entre os heteredo-
xos, o nosso \ ieira, no sermão de domingo de lia-
mos, pregado no Maranhãoem IfiSli. c\priine-sed"es-
la maneira. '
— tinero-vos contar o rjue me succedeu em In-
glaterra. Iam comigo dois portuguezes, os ipiaes em
um domingo se puzeram a jog;ir as lalK)las em uma
eslalagi'm i saiu o hospedi' muito assnslailo, e como
fiíra de si : e bem senhoris, (piereis «pie ine venham
<|ueimar a casa.'. . tiueimar a casa. . . e poripie f . .
Poripie é esse um jogo ipie se pode ouvir fora, e.sc o
ouvirem ou soulxTem os magistrados, sou perdido.
Assini o dizia este hiunem, v assim havia de ser. K
jiara <pie mais vos admireis, a cidadi- ou vdia, er.i
Doiivres, porto e escala marilima, onde todos, sem
exceplinr nui sií, são hiTeges. t)h >ergonha dos t|ue
tanto nos prc/amos do nome de calholicosl
CuNSOL\çXo PARA aUKM MOHHIC I>K MOUTK
VIOLKNTA.
Na sentença lia piuico tempo profiTÍda em Ijondros
sobre um processo de desafio fazse notável a seguinte
l)hrase no acto da accusaçào ; Oaccusailo matou o seu
adversário com uma pistola (yiie eu/ 10 uhtlliiHjs.
298
O PANORAMA.
Perguntarão alguns f|Uo importa o valor da arma
II uma causa tio (lucilo? Gluer a pistola custasse um
ou C(fiii sliilliiiçs noni jjor isso deixou dehaver morte
de homem. INirein os inglezes toem uma lei particu-
lar e rara, a lei do Jeodand^ isto é riue qualquer oh- \
jccto que houver causado a morte de um homem fi-
ca conliscado em proveito do estado. Assim é confis-
cada a pistola com que se eíTeifua um desafio; acar-
roagem que atropella alguém é também confiscada;
a casa que desaba soljre os viandantes é também con-
fiscada. Com esta lei dá a entendí^r o fisco quanto se
interessa na vida dos cidadãos. Perde um d'elles a
existência? Para consolar e applacar-lhc os manes des-
cubriu o estado um meio inlallivel : é herdar o ins-
trumento homicida.
()i)IO VELHO >-Ã0 CANÇA.
(Rumance Histórico.)
VI
Só o coração não morre!
títoANDO os dois cavalleiros e o monge entraram na
sala d'armas o sol escondia-se no poente.
A manhã tinha sido calmosa, e o céu, embaciado
de vapores, ao cair da tarde desmerecia em azul-li-
vido, e em branco-azulado mais para o longe. Dotraz
das serras iam levantando a cabeça torreada nuvens
grossas e pardas, diante das quaes outras mais leves
e alvas esvoaçavam, fugindo. O sol vermelho de fogo
despedia-se mergulhado na barra cinzenta do poente,
tingindo de reflexos de ouro erosa as arestas dos mu-
ros e o vértice dos montes.
Como cincto que se alarga, dos horisontcs despon-
tava o cerrado negrume, que a intervallos sulcam de
veios chammejantes os relâmpagos, fuzilando. Depois
surdos e prolongados rebombos de trovão repetiam-se
de echo em eclio no espaço.
O silencio era profundo. No ceu as aves fugiam
aos bandos; ena terra, árida com o calor da tormen-
ta, tinh.i-se calado até o sussurrar das arvores, e o
murmúrio das aguas; que são as vozes do hymno con-
solador, que aaurora na fresquidão, c na sua melan-
cholia ocrepuscido da tarde, entoam a Ueus, saudan-
do a luz e a noite, svmbolos da fadiga c do repouso.
De quando em quan<lo scuitia-se passar lenta e ge-
mida a rajada do sul nas gargantas dos serros. Assea-
ras acamavam tremulas ao açoite da sua cliolera. Es-
ta lufada breve c sceca era a nuncia do temporal.
I)(!ntrc> em pouco, na sua pompa tremenda ve-lo-hão
chegar coroado de raios, e vestido de chammas. No
esteiro do INloudego, perto do alcácer, as ondas estor-
ciam-se no leito, e gemendo tornavam a adormecer,
como enfermo que as convulsões largaram, o se afa-
diga depois cm somno agitado.
Entre tanto, dos trcs homens, reunidos na sala de
armas, nenhum levantara ainda a vista para Kí. A
historia de Inigo Lopes tinha prendido toda a sua
attenção, sem modificar os seus planos.
Entregue a pensamentos de vingança é que Mar-
tim Paes alli vii'ra. llcspondendo á mensagem do
mourisco, D.Maria proniettòra trazer aSanctaOlaia
o ilhuiido cavalleiro lU- Salzedas. Um recado do se-
nhor de Lanhoso aos parentes da sua casa, que, em
Coimbra, ajunctára a festa da coroação, avisava-os
para acudirem ao castello, onde eram chamados pa-
r.i se resolver um caso de vida ou morte para to-
dos. Tentando, debalde, conciliar com o crime a
consciência, o irmão de D. Maria Paes prf)Curava
imputar a outrem a principal responsabilidade do
acto de crueza e pcrfidia que estava determinado a
practicar. Os costumes do século concediara-lhe ser
quasi juiz no seu pleito; e, approvcitaudo-os, suppu-
nlia-se absolvido da infâmia de covarde matador,
uma vez que desse ao assassínio a sancção de muitos.
O desgraçado esquecia que o homicida «piebra os la-
Ços de pátria e familia, e, sobre o sorriso dos filhos
e o amor da mulher, pela mão do remorso espalha
as roxas agonias do terror e do castigo !
A voz que, da capella, acceitou o seu desafio, at-
tcrrando-o, não lhe mudara a tenção. Similhante a
todos os criminosos, imaginava que os olhos de Deus
o não seguiam pelos tenebrosos desvios do seu crime.
Taes eram, na hora cm que estamos, assuas refle-
xões: encostado ao mainel da fresta, <■ olhando os
campos, por onde, como fita tortuosa, colleava a es-
trada que havia de pisar Gomes Ijourenço.
Do outro lado D. Nuno, dobrado sobre os joelhos,
scismando, comparava a aspereza dos antigos tempos,
em que eram aço as almas, á debilidade do seu, em
que os homens, por fracos, dizia elle, já não abriam
uma c<jva á porta de cada solar, e não respondiam
com punhaladas ao mais leve doesto. Degenerado sé-
culo ! . . ,
Para este adulador do passado a cultura dos cos-
tumes era perversão. Não via o caminho da socieda-
de, e, tapando os ouvidos, não escutava a palavra de
esperança, que as gerações presentes repetem áã ge-
rações futuras. Com as costas para o porvir, cegava
os olhos no crepúsculo da noite, sem força para os
fitar no romper da aurora. Para elle o berço, d^on-
de o scculo novo se ergue triumphaute, era o tumu-
lo cm (jue dorme o século findo.
Homens assim, andam cegos com os olhos abertos.
E qucixam-se, e calumniara, e perseguem I Secta-
rios-sonambulos, matam e morrem em nome de poli-
ticas proscripfas, de idéas cadavéricas, e de crenças
nioriliundas, julgando resuscitar, pela intolerância, o
predomínio que passou.
D. Nuno, sem o valor heróico, verdadeira coroa
da cavallaria da epocha, fora accusado de fraque-
za em occasiõcs, cm que cila se torna indesculpaveL
— Cruel e vingativo, não esquecera, nem perdoara
os motejos. No fundo do coração assentou, como di-
vida sagrada, a memoria de todas as injurias. Os ca-
valleiros moços, menos prudentes que os velhos, cra-
varam-lhe o punhal do escarneo diante do rei, uos
saraus da corte, e na presença das damas; c para
\ingar as ofTensas rticebidas, D. Nuno sabia que uma
existência de séculos não chegaria ! Por isso, ferindo
na cabeça o mais estimado dos soldados moços, esco-
Ihia-o para victima do seu des.iggravo. e exemplo dos
motejadores. Quem era mais apta do que Gomes
Loureiu.Kj, para realisar este |^«nsamenlo vil e atroz?
De pé, no \imbral do b.ílcão. descnhav.»-sc a figu-
ra de Kr. Munio, destacando d.is outr.is duas pela
mansa e resignada expressiio do rosto. .\o passo que
assombras do crime carregavam na phvsionoinia d"a-
quelles homens feroics, a sua respirava pai c miseri-
córdia.
A testa elevada ; os olhos, aonde, ap.igado o ardor
das )>aixõps, brilhava a serena luz da rellexão ; e os
cabellos brancos, caindo oiulados pi-los hombros. assi-
milhavam-n^o ao vulto de granito, em que a tradi-
ção esculpiu a saccnlotal niagestade dos prviphetas.
N.is feições, allumiadas de uma melancholia mansa
e nol)re, estava escripta a vietoria do espirito sobre
a carne, e a lucta siH:reta (quem salio so mais nobre,
tio que n\uitas estrondosas) do orgulho do soldado
c-om a humildade do claustro, .\quclla grosscir» es-
o PANORAMA.
299
tamenha, em que apertava o cilicio ao peito, conhe-
cia a historia, talvez terrivcl, do a;;oiiias, de sauda-
des, e de aíléctos clioradoa na solidão. Era a morta-
lha das paixões que viviam e queimavam no corarão
do cavalleiro, mortas ou vencidas no coração do
inon^te.
Pastor <ie homens, lierdeiro da mansidão do pri-
meiro mestre, era risonha a sua virtude e consolado-
ra a sua fé, como filha da esperança. Austero só com-
sijo, trazia no semhlunte a alegria do céu, a hu-
mildade dojusto, e a charidade do apostolo. Masquan-
do a sua voz, hranda como Chrislo, não era escutada
no tumulto do mundo, então, elevando-a ameaçado-
ra, como Jeremias, evibrando-a, pezada de exemplos
o lições nos paços e mosteiros, algumas vezes semea-
ra nas cinzíis dos vicios as llores do arrependimento.
A historia da sua mocidade! era um segredo. iNas-
cido em berço illustre; cavalleircj dos últimos tem-
pos d'A(ronso Hciiri(|ues, e dos primeiros de seu íilho
1). Sancho, altriliuiam-lhe rasgos de valor heróico.
Derepenti! di'sappareceu, e ninçuem soube mais d'el-
le ; diziam uns que lòra peregrinar á Palestina-, di-
ziam outros que partira para i-horar, longe da terra
natal, a mulher de quem oamoríòra para elle a única
luz da vida, eciija morte prematura, envolta em mys-
terio, se ignorava se proviera do ciúme, ou do pesar
d'oecultas penas.
(Jluando, «lecorridos doze annos, voltou, já o co-
tdieceram com aquelle habito e aquellas feições •, ve-
lho antes de tempo, e sobretudo admiraram o refle-
xo de serenidade celestial que as dourava. Das pai-
xões do soldado ou do amante nem o menor vestígio!
— Se em algumas oecasiões a memoria ou a saudade
se ergueram na solitária enxerga, as suas lagrimas
c soluços, sudocados na cella da penitencia, nunca
transpiraram para fora d'ella. O nome por que se
tinha cliani.ido no século, eseondeu-o, como se recor-
dasse quebra ou desdouro. Hecordava-lhe elle acaso
uma vida, de que vivera instantes, e aliciava esque-
cer, nas austeridades monásticas, inúteis ijuasi sem-
pre para curar as dores da alma ? tituem sabe ! l're-
sumir investigar taes segredos é vaidade, (iuando o
ititerrogavam sobre o passado, respondia: u O homem
novo despiu as vaidad<'S do homem velho. O (pie é o
nome, quando quem o teve morreu, e se amorta-
lhou ? )i
Os curiosos ficavam iUudidos, c o monge com ose-
gredo. Cançaram-se jior fim de indagar, acostuman-
do-se a ver em l'"r. Muiiio um frade como os outros.
A sua historia, os seus trabalhos, e a constância com
que os ]>ade<<"r;i, revelados sob o sigillu da confissão
ao abbade de Cister, tiravam ás vezes do illustre di-
^iialuriu da igreja esta sentença moral: — u Ha vir-
tudes, assoprad.is, que luzem muito e valem pouco.
Os bons não são os (pie choram sempre, mas os que
andam risoidios <!staiido trist(!s, e consolam preci-
sando d(.' Ser consolados. Vejam Kr. Muniol . , . n O
abbade parava Beinjire n(]ui.
Em (juanio dêmos ao leitor esta breve noticia do
enracter das pessoas que entram na scena (Pesta his-
toria, do lado de Coimbra, e no alto de um tezo ain-
da distante do eastello, reiíKjiidi.iram rolos d(? poeira,
o aos raios do sol poente scinlillaram capellos, lan-
ças e arnczen. Os sons da» trompas relumiiavam no
iir, e eslendi.iin-a(í ao longe.
— wE (iomes |jouren(jo .' brailini 1). Nuno. 'rãn
cedo ! ? "
— «Não, atalhou IMarliin 1'ais ; hão ser os de Ci-
ina-Cavndo ^ é (Telles o l()i|ue de Irimqias á mouris-
ca. Vamos ver. •■>
O monge o os dois car-illeiros subiram .lo eirado,
A cavalgada linha cheirado u um cabe(;oj d"ond(> era
faeil aos do alcaçar contar os homens e conhecer os
indivíduos; d'alii o caminho, rtxleando os montes,
torcia-se até a barbacã. No centro do (squadrão tre-
mulavam pendões, (juarteando-se as cores dos ricos-
homens.
O frade voltou a cabeça com tristeza. Pelo contra-
rio, a vista do cavalleiro de Lanhoso tinha um bri-
lho estranho ao cravar-se em D. Nuno.
— "São elles 1 exclamaram ambos a um tempo.
São elles ! D. Nuno, vede 1). Frojlas ! Glue airoso
que vem o bom do velho no seu (avalio fouveiro? ! '•
— "São setenta annos do idade para envergonhar
os trinta e os vinte! >'
— "E bom aço, que não parte» atalhou o monge.
— "GLue oscavalleiros moços tivessem metade. . .»
— "Os cavalleiros moços! . . . disse D. Nuno, rin-
do. São para dançar na corte, á roda das damas, co-
mo liorboletas ; e os velhos para pelejar ! Com o ulti-
mo d'elles adeus Portugal."
— "Não, ainda ha cavalleiros moços, D. Nuno;
acudiu iMartim l'a(?s. Olhai, aquelle que D. Froylas
traz á sua esquerda. . . »
— "Não é Tructezindo Ramires?" perguntou o
frade, ntsguardando a vista com a mão curva.
— "Esse. Com vinte annos, não os terá ainda com-
pletos, o moço Ramires é a melhor lança de Lima e
Cima-Cavado ! j>
1). Nuno fez que não ouvia; e, apartandose, des-
ceu á sala d'armas para gritar do balcão :
— " Erga-se o rastilho! abaixo a levadiça ! honra
aos ricos-liomcns de Lima e Cavado ! »
Em quanto elh; gritava, o monge, pondo a mão no
hombro ihí Marfim Paes, dizia:
— " Este homem é máu e covarde, Marfim Paes ! "
O cavalleiro de Lanhoso não respondeu. O frade
accr(.'Sceulou :
— " Ouve-me agora : — Pelo sancto nome de Deus,
pela alma de teu pai, pelo amor de tua irmã. . . não
faças tal ! >i
— " Pareces parente de Gomes Lourenços, padre I "
— "No amor sou teu pai, mancebo."
— " E fallaes de perdão ?!..."
— " Fallo, porque acima da allronta está a fé, u
honra do cavalleiro. Teu pai, se fosse vivo, gritava :
Martim Paes, é (lesj)iipie de mulher. . . E o mundo
não dirá : O senhor de jjanhoso, — olha ! — como se
não achou com valor para morrer de uma lançada . . .
fez-se carrasco! ! (iueres (jue digam isto de ti, man-
celjo ?"
— "Frade, não me tentes! . . . exclamou a caval-
leiro, cerrando o punho com raiva. Não peças im-
possíveis. "
— "0.iiein t'os pede. ])igo-le o ()ue ha de succe-
der. . . O nome d(í "Ribeira" fica deshonrado, por
ti, o filho d'a(jnelle pai. Pelos thesouros da terra, se
tal ousares, aafVronta do teu nome será a maior com
(pie se pcjssa injuriar alguiMii."
— "t-lue te não ouça outra vez isso, padre!"
— "Ameiu^as a mim, 1). cavalleiro.'!"
— "l)eixa-le (l(M';ii(la(les, nono. (iiie falias ahi (K>
brios, tu ! .' . . . Deixa isso ,i (piem pôde com nina
haste como essas que estão pelos laiiceiros. "
Nos olhos do monge relampejou o fulgor de seve-
ra indignação.
— .. E foi |>ara isto (pie eu te criei ! A (piem aca-
bou para o inundo chamas covarde . . . e não te pejas
de pisar os mortos, homem de orgulho c soln-rba ?
Aonde estão os (-ides de hoje, mancebo f "
Envergonhado da reprehensAo D. Martim n.lo ros-
poiídeii. Fr, IMunio proseguiii :
— ..No meu tempo o» en\aUeiros, no Andaliii, fe-
riuin três contra doxe. e não > iravam rotto . . . Imvia
300
O PANORAMA.
muitos \ chamava-se um D. Sancho, infante de Portu-
gal. O segundo ora Lourenço Viegas — o espadeiro I —
e o outro, o terceiro. . . esse rezemos-lhe por alma!
morreu para o mundo ! . . . As lanças rjue vergam o
braço aos cavalieiros d'agora eram canas de torneio
para nós. "
K pegando na mais grossa meneou-a ligeira como
um vime. D'alii, retrahindo o corpo, despediu-a de
arremesso contra um escudo, em 'lue, vibrando, se
enterrou duas poUegadas.
A côr do pejo assomou ás faces do rico homem de
Lanhoso, (]ue não levantava avista do chão. Seguiu-
se longa pausa.
— "I3sto braço, D. ]\Iartim, assim mesmo velho
ainda jogava duas lançadas . . . aos mouros. "
Dizendo isto, o frade sorria-se com brandura, mas
o cavalleiro não o ouviu. Com os fjoiços brancos e tré-
mulos, e semblante torvo media o eirado a passos lar-
gos e precipitados. Lá dentro ia uma tempestade me-
donha.
O monge, pouzando-lhe a mão no hombro para o
deter, dizia era tom insinuante: — "Vamos, é ser
homem I " quando de uma barca pequena, navegada
alii perto no esteiro, entoaram estes versos de uma
cantiga conhecida.
São frescas noites de junho
Noites de meigo luar ;
Estão a arder-me no jieilo
Amores que fui queimar.
A medida que a voz cantava, a mão do frade es-
corregando confrangida apertava-se contra o peito:, e
no rosto, sempre tão sereno, passou a sombra d'uma
saudade, ou correu uma nuvem de pezar. — A canti-
ga continuou, mais distante já :
Fonte moura, fonte d'ouro,
Bem chamada de Atamhar,
l'or que sendo d'aguas doces,
Como pranto has de amargar?
A voz do rio ]>er(leM-se ao lons;e \ mas do outeiro
próximo o pastor respondeu, eaminl.andoparao valle :
Minhas galas são as armas,
Meu descanço o pelejar;
K no São João á noite
Meu dormir só c velar !
lím quanto uma iiola suspirou nos echos, Fr.Mu-
nio, debruçado, parecia beber a toada da melopea
popular com o ar da respiração. Uma das mãos no
peito como que sustinha o coração — a outra na fron-
te, sobre os ollios, queria dizer á memoria e ao pen-
samento: "Fugi! " Tinha a vista pasmada c extáti-
ca; os beiços ontr'abortos ■, e as feições na dolorosa
suspensão da mágua e da saudade. Escutava com a
alma toda ■, o corpo nem sabia que existisse.
Depois que os últimos sons expiraram conservou-
so assim por minutos. A vida intensa do espirito,
solta dos sentidos, xciava livre pelas illusões do senti-
mento. A jiouco e pouco a realidade apagou a visão,
atraz da <|ual a idéa v.nueava louca; e tornando a
existência positiva, os olhos deFr.Munio arraiaram-
se d'agua. Os suspiros e soluços (jucriam romper, e
comprimidos sulTocavam-sc na garganta. Que inlini-
lo paileccr (Palma não accumulou aquelle só momen-
to .' l*or liin não as poude conter; dois rios de lagri-
mas r<'lienlaram judias faces do infeliz.
D. Marfim contemplava-o, admirado da repentina
mudança, Minutos antes, via noscu rosto a serenida-
de do céu ; que versos eram pois esses que desafia-
vam a tristeza ou o remorso ? ! (iue m vstcrio encer-
rava a canção do rio? O cavalleiro sabia vagamente
que uma desgraça, dasque são incuráveis, tinha met-
tido nas ausleridades do claustro um homem que, na
robustez da idade e na sede da gloria, ainda se quei-
xava de ser estreita para elle a terra do seu berço.
Como o tinha prostrado a desventura, arquejante
d'ancia, sob o joelho ? por que serie d'agonias, fu-
gindo do arruido dos arraiaes, da morte breve do sol-
dado, buscara o abrigo do ermo ? Mysterio era este
que o senhor de Lanhoso ignorava como toda a gen-
te. (Auando pela vez primeira conhecera o monge de
Cister contava doze annos, e já com as neves do in-
verno na fronte, o esparto cingido ao corpo, e o riio
da paz na bocca para não lhe escapar do peito o se-
gredo que lá guardava.
Os prantos que ardem nas pálpebras dos velhos
desatara-se agros e sombrios como tempestade que
são. Guando virdes as lagrimas, a uma e uma. bor-
bulharem nos seus olhos, inclinae-vos '. E a dòr em
toda a solemne grandeza da sua elevação. Inclinae-
vos. N'aquclle seio as fontes do pranto, para mana-
rem depois de seecas, rebentaram d'uroa chaga, das
(jue matam em poucas lioras ! — A infância chora
juncto dos amores e dos rozaes •, a velhice quasi sem-
pre rega com as suas lagrimas o sepulchro, aonde
jazem os affectos que a consolavam do martvrio da
vida !
Pobre monge I A força de enganar as saudades,
chegaste a enganar-te a ti. Julgaste que as paixões
se extinguiam? Vê! bastou uma d'ellas, bastou a
voz apenas, e acordaram todas, e inorderam-te na al-
ma mais incisivas do que nunca. E que só dormiam.
O teu coração, macerado com os cilicios e Jejuns,
sangrado dos espinhos, como o escravo, aprendeu a
amar mais a liberdade. Despega-lo da carne, e con-
verlc-lo em vaso purificado, para só arder com o in-
censo da penitencia, era victoria de anjos ; as forças
do homem não podiam tanto, ^'eio ochamar domun-
do, e o captivo, similhante ao corsel da Numidia, foi
buscar os silios da primeira vida. Monge, o teu co-
ração de esposo e de soldado não cabe na estreita cel-
la do mosteiro.
Fugiu-to! procura-o nas ruinas do mundo, aonde
sonhou a gloria, provou da alegria, e enterrou a ven-
tura', — mundo destruído, de que tu ficaste só, larva
errante, para, no vago scismar da noite e das sau-
dades te consolares ; porque a noite, eomo a alma
gemedora do poela, é um mvsterio insondável . . .
pobre monge ! Os prantos não aquecem cinzas frias ;
os aflectos mortos não os reverdecem lagrimas; o ca-
lor dos suspiros não abre olhos, nem anima peitos
mortos e áridos do sepulchro. A tua mortalha arque-
ja com o soluç.-ir do remorso, mas o sudário, sobre
a(iuclh'S ossos, não se levanta mais. Tem o peio da
eternidade.
E que se erguesse ... os teus votos esmagam-te o
coração como a louza de uma sepultura, ealcaudo-o.
(iuizeste morrer em vida. e os mortos não tecm von-
tade, nem esf>erança, nem memoria! Choras?! As
lagrimas são o alivio do que vive; nas tuas faces
queimam com o ardor do crime. Amas?! Monge. »
aiiior do solitário é um sacrilégio, quando se não en-
trega todo ;i Deus.
Assim, do fundo d'alma, clamava a consciência de
Fr. Munio. Era amargosa a reprehensão ; mas o rc-
iiuxlio que diH> q>iasi sempre cura. Limpando os
olhos com as costas da mão, o frade disse, virando-
se para Marfim Paes :
— " \ carne é que chorou ; o espirito está ale-
gre . . . resignado ! n
o PANORAMA.
301
— u Mas esta cantiga ?!..."
iiLembrou-mc que duas horas de felicidafie hou-
ve na minha vida. Glue de cousas veio recordar ! >»
— w Amores ? . . . "
— uQlue amores, D. Martim ? ! Eram do céu •, por
isso Deus os levou tão cedo. Véspera de S. João can-
lou-sc esta cantiga ... a bocca a quem a ouvi não
torna a abrir-se. Estavam alli uns olhos '. . . . já os
comeu a terra. "
— « Morreu ? »
— " Mataram-n'a ! » respondeu o frade, pallido co-
mo cera.
— "Ah!... E vús?...»
— «Eu! ? Para que m'o perguntaes ? Este habito
não é o sudário de um innocente.
— II Uesignaste-vos depois ! ... 51
— «Altos juizos de Deus ! n
E cruzou as mãos no peito. O cavalleiro não insis-
tiu em o interrogar, porque viu que seria inútil.
— "Martim Paes, proseguiu o monge com vehe-
niencia, pela hóstia sagrada, não mates Gomes Lou-
renço. Esta cantiga ainda a não ouvi senão quando
está para vir desgraça grande ! »
— « Agouros, padre .' "
— "Avisos, filho. Deus falia por todas as boccas."
Sem responder, o mancebo apertava-lhe a mão
com força.
— " Promettcs ? "
— «E tarde, já não posso. "
— «Ainda agora viste se eu padeço; pelo amor
de tua tnãi, arreda de ti o meu destino . . . Casti-
gue-o Deus ! »
— « E juiz que mora tão longe, padre ! «
— " E que te ha de v2r de lá mesmo, filho. »
— « Q.u<? veja então se eu sei vingar-me. "
E sem querer ouvir mais nada, desceu a escada o
foi receber os ricos-homens de liima e Cavado. O
frade, em vez de o acompanhar, entrou na ermida.
Ahi, ao relampejar do céu, de mãos erguidas ajoe-
lhou em fervorosa oração. Instantes depois, o ruido
das vozes e o tinir das armas na sala por cima, an-
nuneiaram-lhe a chegada dos parentes de I/anlioso.
Já lie noite o inont^e, ainda di> bruços na lageni,
sentiu tropeada e relinchar de corseis. Ouviu per-
guntar de lura, e D. JNuno responder de dentro.
Atraz, os alçapões rangeram nas cadeias, e caíram
de pancada surda nos apoios de pedra da ponte.
— «E ninguém te diria. Gomes Lourenço, excla-
mou o frade, que as portas d'este castello, como as
da ctiTnidadc, não se aljreni mais? Seja feita a tua
vontade, Senhor !
E levantou-se sem aecrcscentar mais nada.
SoLBAnO I)K CAVALl.O 1'llOSSI ANO.
E sAiiiDO que o rei da Prússia estima apaixonada-
menti.' a idade nx^dia. A principio, desenvolveu-se o
seu di'SVelo pela imitação il'i'sta epoelia por meio de
impulso e favor prestado ás artes, <■ restauração de
monumentos:, ixirem ainda não ha bem diiit annos
estetideu-se aos unirnrnu's ilo ex<,'rcilo. Supprimiu o
moderno firdaniento para todas as armas, assim de
cavallaria e infanteria de linlia, como ihis regimen-
tos da lanilvvlier, ou segunda niilicia. S<') os lanceiros
e os hussares eonservarani seus unil'ormi's, cjuií tli-no-
lam a sua origem estrangeira.
Uma siilaina .viu\ para a infant<'ria, a/.ul clara pa-
ra os dragões, branca para os guardas de rtirpo e os
i'ourai.'eiros, subslitue arar<la:, faz lembiar pelo feitio
a sobreidta da idade media:, émuilo curla e dá qua-
hÍ jiela curva da perna.
O shakó, ou barretina de pelles, é substituído cm
todos os corpos por um capacete de forma bastante
singular, que recorda as celadas ou elmos do século
Xl^' i guarnecido de uma larga viseira quadrada, e
pela parte de traz, de um comprido resguardo da nu-
ca, é uniformemente coroado por uma ponta de cobre.
A infanteria tem este capacete de couro, e o da ca-
vallaria é de ferro polido ; os guardas de corpo tra-
zem no alto do mesmo capacete uma águia douraua.
Convém observar que se esta reforma de fardamen-
to na l'russia não satisfaz inteiramente o bum gosto,
ao menos o antecedente não deixa saudades : no an-
tigo, os soldados, afogados por enormes gollas acolche-
tadas, silhailos com as fardas, presos com as calças es-
ticaihis por baixo das solas, parecia (|ue faziam cuii-
linuos c-sforços |iara suster em e(|ullil>rii) os longos <■
ásperos ])ennachos de clina, arvorados na frente ilas
barretinas-, o fardamento actual á primi'ira \ ista mo-
ve o riso, in;is é fora de duvida que ilá muita mais
facilidade ao movimento do soldado.
As KLEIÇÕES KM InGLATKURA (l).
Sk os homens conhecesiem a fundo epor exame pró-
prio tudo qu:intoamam ou admiram, ashossns ou pro-
iuberancias do .imor e da admiração, como iliria uu>
plirenologista, não occupariam no seu cr;in<'o o tama-
nho de uma leiítillia ; porém, a da inililVeriMiç.i eli--
var-se-hia ao volume di- um lobinho monstruoso. Ku
sou o prinu'iro que applico a mim mesmo esli' .dllic-
tivo aphorismo. Todos os objintos qui' anu-i e admi-
rei, á excupção de um sd, bem depii-ssa p< idi-ram os
(1) Artijo Je Mr. ('liiiri>«iilior i»
Mus
iWi l''*millo«.
302
O PANORAMA.
direitos áquelles dois scntinienlos, loi;o que os coUo-
quei em Irenlu do pribiiia attcuuannto que se cliania
ob9erv;i(;no.
Na priíDoini linha cl'csscs objectos que só me dei-
xaram o pesar de os liaver conhecido, entra a Iiigla-
lerra !■ a sua constituição politica. Q-uanto eu tinha
lido e ouvido d'este paiz me tinlia apaixonado, exal-
tado, quando eu era maníaco de angloniania furiosa.
O mais intimo e o melhor dos meus amigos aflligia-
f,e muito de ver-me n'este estado; e vinte vezes esti-
vemos a ponto de ficarmos mal avindos para sempre
em as nossas continuas e ardentes discussões sobre a
preeminência da Inglaterra sobre a Krai)(;a evicever-
sa. Eu, sustentava sempre que aciviljsar.^o nalnj^la-
terra andava a<liantada meio sc^culu ao rosto da Jiu-
ropa ; porém o meu amigo, homem de juizo e pru-
dência, achou o meio de cortar o mal pela raiz. Acon-
selhou-nio uma viagem a Inglaterra na epocha das
eleições, e muniu-me de cartas de recommendacão
para um rico negociante hoUandez, estabelecido em
Londres, havia trinta annos, e chamado M. Van-
Kroocck .
Aqui estou eu na capital dos três reinos unidos, na
cidade de um milhão e setecentos mil habitantes, no
empório docommcrcio do mundo inteiro, no asvlo in-
violável e sagrado da liberdade humana. Este ultimo
privilegio me enthusiasmava de maneira que, pas-
seando nas amplas ruas de Londres, scntia-me livre
e leve como um homem que se acha solto de grilhões
que lhe pesavam nas mãos e lhe peavam os pés.
No terceiro dia da minha chegada, o hollandcz a
quem eu estava recommendado conduziu-me ás elei-
ções na City. Como ellc habitava na extremidade op-
posta da cidade, tínhamos que andar longo caminho ;
o que elle quiz approveitar para dar principio ás suas
observa<;ões e á minha instrucção sobre os inglezes e
a Inglaterra.
— «Todos esses homens que vedes tão tczos e cala-
dos por esses largos passeios (me disse) trazem impres-
sa no rosto a expressão do sentimento que é a origem
dos seus vícios e das suas virtudes, o orgulho, imnien-
so, sem igual, espantoso. O inglez ama o seu rei co-
mo um seu amigo i mas não quer reconhecer outro
senhor senão as leis, para a confecção das quacs con-
tribue. O inglez professa <lesprezo profundo daquelles
povos que il."io a um homem licen<j-a illimílada, para
viverem depois todos escravos ás ordens d^elle."
— 11 (\)m elfeito, é curiosa posição (observei eu) a
das nações que teem governos absolutos: inspiram ao
seu dominador um terror continuo, e ao mesmo tempo
estremecem sob o poder que julgam didegação do céu. "
— " Essa contradição c de facto Ião veriiach^ira co-
mo singular; mas acha-se em Inglaterra debaixo de
outro as|>ecto. Aqui, o nome de liberdade retuuiba
em todas as asscmbleas \ estão promplos a morrer por
esta palavra milhares de homens, da qual apenas al-
guns eomprehcndem o sentido. Alem d'isso, a liber-
iladc aqui é privilegio do rico, e só do rico ; o pobre
operário falia como um Catão ou um Uruto, é a vigi-
hmte guarda d'e3sa liberdade, mas nunca a conhece-
rá. O dia único em que a póile exercitar éo daselei-
çõcs, dia em que se vende por alguns cangirões de
cerveja e algumas postas de vatta, ou por meia dú-
zia de schellings."
— iíl'ois esso indigno mercado é tão efTcctivo, tão
geral como dizem ! — liradeieu, olhando attentamea-
te |iara o meu interlocutor."
— "Muito elVtM'tivo e muito geral (me tornou el-
le, sorrimkvsc). Msis não crimineis i> jhjvo in:;lei ; no
intervallo da» eleiei">es elle tem o pnucr politico àe
f.dlar da sua liberdade; mas, na epocha das eleições
tem uma fartadetla, que épruxcr muito mais :>oUdo. ^
Passávamos exactamente por diante de uma taber-
na, onde havia eleitores abancados, de listas nas mãos.
entre vasilhas enormes.
— "Olhai, (me disse o meu cicerone) aqui esta
guapa gente que joga o seu voto com Ixjlelhas de cer-
veja. »
Chegamos bem depressa a um vasto e sombrio edi-
fício, que me parecia uma prisão.
— "Não vos enganais: (disse M. Van-K.rooeck) é
a prisão dos devedores. Vede aquelle infeliz que con-
versa, atravez das grades dajanella rente docbão. com
dois homens, que se mostrara muito agitados. (Aue-
reís escutar por alguns instantes a sua conversação?
Ha dez que apostar contra um, que estão faltando de
eleições, e discutem, segundo a sua opinião, as pro-
babilidades e os merecimentos de cada candidato. t>
— "De boa vontade, (repliquei eu) mas para não
perceberem que osescutamos, paremos aqui n*estecs-
tendal de gravuras velhas, conuj quem quer vér e
comprar alguma d'essa fazenda."
Lni dos dois interlocutores do devedor preso era
um moço de fretes, outro era um soldado de marinha
com uma desmarcada cicatriz no rosto; o que desco-
brimos pelos ganchos pendurados noshombros do pri-
meiro, e pelo fardamenloum tantosafado dose^undo.
— "iMeus amidos (dizia-lhe o preso, por entre as
grades) cu não tenho receio senão pela nossa liberda-
de; daria o meu voto, se podesse sair por uma hora
somente dVsta prisão para ir votar; e o daria aquel-
le dos doi» candidatos que expozesse as opiniões roais
decididas quanto á liberdade do povo."
— '"E contais sair tão breve da prisão? — Pergun-
tou-lhe o soldado. "
— «Sim (tornou o prisioneiro) : porque sirColing-
broke, que sabe a minha opinião, deve a estas horas
ter pago a divida que me retém aqui. Oh ! sirColing-
broke é um fervoroso radical, um amigo da liberda-
de ; aflirmo-o eu ; e por isso, o roeu voto é d'elle. n
— " Gluanto a mim, (disse o homem dos fretes) eu
quero o bera do povo; e como eu e minha filha per^
tencemos ao povo, quero o bem-ostar de nós ambos.
Ora o concorrente de sir Colingbroke éMr. Larker,
negociante rico, como vós sabeis; prometteu a Uary
Jeus-Kjns, o pretendente de minha filha, o logar de
guarda de armazéns na sua casa, oque rende [>or an-
no cincoenta libras esterlinas, com o que passaremos
todos conimodamente. .'\gora, deixo ao vosso juizo.
meus amigos, se eu hei de deixar de votar com Mr.
Larker, bemfeitor do povo e da minha família .'jj
— .i Bello ! (exclamou o soldado) eis-ahi está oque
é fali:ir estupidamente ! Eis-ahi o que é nunca ter
queimado uma escorva, nem amolgado uma espad.i
na cabeça calva de um china ; se o soulx"sscm não
iriam dar voto em dois paisanos, antes que n'uni va-
leiíli' militar. A quem compete fazer as leis, pergun-
to eu, senão áquolles (jue as defendem ! O meu coro-
nel, lord Leveuson, era nniíto mais digno de ser elei-
to ; elle que deixava o soldado saquear á discrição as
cidades tomadas de ass;ilto. Dix-se que detesta o povo
e (|uer a todo o custo a lei dos cereaes ; mas é esli-
mudo do soldado pela liU-rdade que lhe permitte fu-
ra da veUia Inglaterra. N ivaellc '. liuando se lhe met-
ter em cabeça ser candidato, gritarei t.'io alto que o
meu voto valerá por dez: agora não voto em nin-
guém. •»
N'este ponto, o» três políticos sepnraram-se. bem
con\encidos da sinceridade c desinteresse dos seus prin-
cípios.
— u Acabais deappreciar (disse-me então obollan-
der.) em toda a sua luidci o prxfundo coah«oimeulo
lios plelH'Us inglezes em matéria de lilitrilade. O de-
putado liberal é para esse devedor iusolvivel o que
o PANORAMA.
303
lli(? abrir as porias dii cadeia; o moço dos fretes e o
outro coiii[)aiilieiro não tem outra l)alaiiça para pozar
o mérito do earidiíiato de sua escoliia."
Teslimuiihei a Mr. Van-Krooeck áminha extraor-
dinária admiração no tocante ao que acabava de ou-
vir.
— «Senhor, (disse eu) estes três homens são uns
pobres diabos, a <|U(.'ni a oppressão da miséria parece
menos insup])ortavel (jue a da aristocracia : asuaopi-
nião não passa de uma excepção. K d'(?sperar mais
elevação e delicadeza de sentimentos na massa geral-,
não será assim, senhor.'"
— " Ureve o podereis julgar. — Respondeu o hol-
landez. "
Com elTeito, depois de um fjuarto de iiora de ca-
minho, ouvimos unia algazarra, ainda ao longe nias
formidável^ de vozes de iiomens. A proporção (jue
íamos c:iu'í;ando, augnientava de iiiti.-nsldade a buliia ;
distinguia-se o riso desordenado, a dòr, a impreca-
ção òLc. — Mas <jue espectáculo se me olfereceu aos
olhos desvairados.
— "1'orém, senhor, (disse eu para o meu explicador
neerlandez) não é uni acto politico que se prepara
nVste logar ; estamos no campo de um mercado, no
meio de feirantes impando de cervejas, que seaçulani
uns aos outros, não sei porque. Confesso (jne esta scena
nada tem do divertida."
— «Mas é instructiva, meu senhor francez. "
Entrámos, mas com muito custo, n'um d'cssesim-
mensos cafés — estalagens, e casas de comida ao mes-
mo tem]>o, <|ue lá chamam « taliernas. "
Comprid.is mesas estavam atulhadas de ossadas de
diversidade de animaes, empilhadas como jKídras de
uma casa, que se vai construir. Nunca ca tiulia ob-
servado uma destruição tão considerável <le entes ani-
mados, nem tão variada, nem t.lo capaz de tirar com-
pletamente oappetlite aqualqucr homem (jue não se-
ja inglez.
— "A()ui tendes oulra face dos cuslum(;s do jiaiz
(me disse l\Ir. Van-KrooecU). Não ha em todo o mun-
do povo mais comilão:, i- não ha festa em que se co-
ma tanto como [lor occasião das eleições. O boi gordo
é realmente aqui o primeiro elemento ])olitico. lia
trinta annos que resid(j no paiz:, e n.'io cesso de pas-
mar avista dos ban(|uete3 monstros d'esta gente. Ain-
da que eu tivesse ciii('oenla cabeças, ecada uma d'el-
las iMuiiiila da competente inlelligencia, ser-me-hia
impiwsivcl computar o numero de vaccas e bois, de
porcos, ganços, e perus, que desde esta maniiã morre-
ram para o bem da velha Inglaterra, sua jiatria coiu-
mum.'> ^Co/iíi/iiía.J
Os MÉDICOS KALSIDKOS.
Os tjtiiíiiiKji, ou sacerdotes kaliiuikus, accumulam
do oniiiiario asftincções sacerdotais com asile ciiilsthi
ou nieilido; Iractam ao mesmo t('iii|io do coiqio e da
alma do doen(<,-.
C'(]|ili<'ceiii pelo |)ulso, c, as mais das vezes, tam-
bém pelo exaiiH! das ourinas, a natureza e intiwisida-
de da moleslia, e depois eomeçaiii o curativo em que
adoptam, como princii>io •;eiMl, qiii' o doente deve
soflVer uma dieta rigorosíssima. Mesmo <|uando, a
olhos vistos, se vai reslabelecendo, não llie dão por
duas semanas senão agua cpiente.
Conipõeiil-sí' os seus mcMlicamenlos de dillrreiíles
hervas que idles vão colher por suas mãos aos sUppct
de Asiracan, ou (pie niand.iin vir de diversos pontos
da Ásia, e ali' da índia. lUn ilos seus priíiripaes re-
médio é o (Itic ou alniisiar do animal chamado larga.
Alfirinam oskulmukoa, ena buufií os russos quv ha-
bitam as steppes, que um cozimento, chamado _/a-ori,
é um sudorilico excollente, melhor que todos os re-
médios análogos da medicina europea.
Se algum d'elles tem a dcsgraç-a de ser picado pe-
las tarântulas ou aranhas negras, ajunctam os médi-
cos certo numero d'aquelles animaes, mettem-n'os
em azeite ou ccbo de vacca, e esfregam com esta es-
pécie de untura forte não só aferida, mas todo o cor-
po do doente, que toma ao mesmo tempo remédios
internos, tiuando não se applica logo este remédio
corre o enfermo grande perigo. Os symptomas da
mordedura manifestam-se immediatamente : são um
aperto de coração, e um delirio, que, se os soccorros
não forem promptissimos, só acaba com a vida. Os
couvaloscontes, muito tempo depois da cura, conser-
vam a amareliidão do rosto, sentem estremecimentos
])or todo o corpo, e mal podem ter-se em pé. Para
sarar de todo é indispensável ter a maior cautela em
tudo e por tudo, e uma sobriedade completa.
Taes são as idéas dos kalmukos pelo que toca aos
medicamentos-, ha todavia muitos casos em que os
guehmg% ou crntschis, receitam aos doentes bebidas
escandecentes, e enormes quantidades de carneiro gor-
do para alimento.
Julgam incuráveis as bexigas, e por isso lhes feem
o maior horror possível ; de sorte que se alguum kal-
muko se chega, por descuido, a sitio onde haja pes-
soas com ellas, apanha um susto mui grande, com que
fica mais sujeito ao contagio. Para evitarem as con-
sequências perigosas do medo que rapa o seechthts
(aquelle que julgam iscado do mal) accusam-i/o de
algum crime que não commetteu ; por exemplo, de
um roulio. O réu supposto é agarrado, quando me-
nos o espera, e convencido por testimunhas falsas ;
amarram-lhe as mãos, e dão-lhe uma roda de chico-
te. O novo teri-or, a impressão inesperada do ver;;a-
liio no lombo da victima doesta cruel hygiene, fai
com que elle se i'squeça das bexigas, e mata a in-
lluencia desfavorável causada pelo terror d'uma ima-
giiiaç-ão exaltada.
K certo que muitos <jiichtn^s mostram grande ha-
bilidade no traclanieulo das doenças, e que teein co-
nhecimentos prolundos das virtudes das plantas. E
provável que d'um bom exame, feito nas steppes, re-
sultasse mais de uma descoberta útil á saúde da es-
pécie humana.
Oigiieiu7iyi ajudam com orações a acção dos remé-
dios, e, por consequência, exigem dos seus doentes
oflertas de grande valor para os hourouls ou templos
de Ídolos. O kalniuko, suiiersticioso ao ultimo pon-
to, ostenta geneiosidade n'estas occasiòes, ecomnium-
meiíle o homem rico não consegue livrar-sc da moléstia
sem licar reiiuziílo á imiigcnoia ou, pelo menos, deixa
a sua íaniilia a pedir esmola. Osgtiiluixjs, que tam-
bém tuiiiani o nome ili- jiiiii/iiíc/ií, ou astrólogos, pe-
la sua erudição, teem a habilidade irapoular, como
causa da moléstia de que Iractam, a propriedade de
algum objecto de valor i-onsiiler.ivel, que o enfermo
[lussue, e qui-, seguiiilo os tjiuliiiKjs, se oppòe a (pie
recobre a saúde. Tanto que o siiiiy/m/c/ii, de quem
iiaila se esconde, fiz esta interessante descoberla, co-
meça a persuadir o ilocnte que se desfaça do tal olv-
jecto, doamiij-ii ao templo, e o conselho é logo segui-
do como se fosse uma ordem do céu.
l'oem outro nome aoenrermo, oqual, depois d'esles
actos, (ua certo de que em breve cori\ aliscera. .. N\i-
m.i aldeia, refere um historiador russo, um certo Sei-
saiig-Zezenc-Dorchi, que il'anles se ehaiinna Tatu-
I\a/.ane, me contou que só fiUa curado por este me-
thoilo, depois lie ti;r esguiado todo» usoiilrus meios.»
A religião dos kalmukos obrigu-i» n crer «pio o
causador de todas uit desgraças que lhes acontecem i^
304
O PANORAMA.
um gonio máu, chamado Erlik, ou o diabo, o qual
carrega com todos os moribundos. Assim que o esta-
do do doente não deixa haver esperança de vida, re-
correm os gueliingt ao expediente do resgate, appre-
scntando a Erlik, que teima em não apparecer, uma
lx)neca de barro como oITerta, para que elle conserve
a vida d'um kan, ou d'algum outro homem de con-
sideração ; c se a obstinação da moléstia prova clara-
mente que Erlik está deliberado a empolgar o doen-
te, procuram entre os homens seus dependentes, al-
gum que, por affeição, queira sacrificar-se j)or elle.
Aquclle que se decide a salvar das garras de Erlik
algum caudilho desenganado de que morre, recebe o
nome, os vestidos mais ricos e a armadura comple-
ta do doente, para que no exterior se pareça com
elle o mais que fôr possível; cavalga no seu cavai-
lo mais estimado, coberto de uma sella brilhante, e
ao som bellicoso do clarim e outros instrumentos, es-
coltado por todo o povo e pela cleresia, que repete as
orações prescriptas em tal caso, fazem-lhe dar uma
volta á roda do houroul, e depois perseguem-n'o com
uma berraria como andyno, ou expulso para sempre
da sua aldeia. O andyno pode todavia naturalisar-se
ii'outra povoação, e até casar; mas é obrigado a vi-
rer solitário, e conserva o nome de andyno, que trans-
niitte aos seus descendentes. Nos nossos dias se vai
perdendo cada vez mais este uso, e hoje substituem
andj-nos feitos de barro ou de farinha aos and^^nos
vivos.
Independentemente d'estes artifícios, usam osgue-
lungs de outros, que provam o charlatanismo impu-
dente com que procedera, e attcstam a superstição e
a incrível cegueira dos kalmukos.
l'ara satisfazerem a sua insaciável cubica, chegam
algumas vezes a persuadir ao doente que a sua alma
já está separada do corpo, eque se ainda sente e res-
pira, só o deve attribuir aos vãos esforços da força vi-
tal. Todavia, não tiram de todo ao doente a espe-
rança de ser ainda possível tornar a unir-lhe a alma
ao corpo, e é então que o desgraçado ofTerece quanto
possue para que lhe dilatem a vida, e pede ao medi-
co com as mais vivas instancias que lhe restitua a al-
ma. O yuehmg finge fazer esforços para a revocar,
tocando primeiramente, para esse fim, um instru-
mento de vento. Saindo depois da barraca, faz mui-
tos bichancros á alma que foge, e a convida a vol-
tar, bradando-lhe : "Debalde partes; torna atraz se
não queres que os lobos te comam, &c. " O pobre
doente, perplexo entre o medo c a esperança, per-
gunta-Uie ancioso pelo resultado dos seus esforços, e
o guclnnij llie responde : "Tudo vai bem ; a alma já
appareceu lá ao longe, e dá mostras de querqr vol-
tar." Continua assim a cmlialar o doente com esta
esperança até que elle morre ou se restabelece. N^es-
te ultimo caso dá os paral)ens ao doente pela feliz
volta da sua alma ; mas se a morte põe termo á far-
ça, asssegura aos parentes dodefuneto que a alma es-
tava a ponto de voltar, quando o perverso Erlik em-
pregou unia astúcia inesperada, que elle conta mui-
to por miúdo, para não perder o direito ao premio
proniettido.
Se a uma moléstia grave sobrevem o delirio, e o
doente profere palavras inintelligivcis, não deixam
ns circumstanfes de acreditar que Erlik lhe está dan-
do tractos cquer roubar-lhe a alma. Fazem ent.ão uma
bulha nu<donha não só na barraca, mas também (6-
ra ; quantos estão ao pé do enfermo armam-se com
tudo <iuanto acham á mão, correm d'uma banda pa-
ra a outra dando grandes berros, e briçando com o
ar, para expulsarem o génio ilo mal, animados pelas
exhortações e j>elo exemplo do guclung.
Escolha das EKCAnERNA^ÕEs. Co.vservação
SOS LIVROS.
Mn. Sebastião Lenormand, na ia.* secção doseuMa-
nual do Encadernador (edição de 184U), consideran-
do o encadernador consócio do bibliophilo, ou guia
dos amadores que querem fazer livrarias sem terem a
experiência ou os conhecimentos necess.irios, dá os se-
guintes conselhos para este fim, tirados quasi todos,
segundo confessa, das /niírucjõci tobre a dáposifão.
conservação e administração dal bibliolhccai, porMr.
Constantin.
Sortimento e qualidade das diversas encadernações.
A encadernação orna e conserva os livros ao mesmo
tempo ; mas cumpre que seja escolhida e graduada
pela natureza e importância das obras ; porque tão
mal caberia a capa debello marroquim dourado n'um
folheto ephemero, como a de carneira ou cartonagem
n'uma ol)ra prima de sciencia ou d''artes. Tenha o
rico amador na sua livraria certo numero de volumes
embellezados com as mais primorosas e elegantes en-
cadernações, mas que sejam livros merecedores d'este
ornato; o resto da livraria seja encadernada para
durar.
Quando o amador dos livros duo pôde dispender o
necessário para que a riqueza da encadernação cor-
responda ao mérito de certas obras, deve contentar-se
com uma encadernação muito singela para todos os
seus livros ; pois vai muito mais isto do que ter al-
guns livros com encadernações de luxo, e outros em
brochura, que pareçam desprezados e desagradem á
vista.
A encadernação mais ordinária é de carneira ou de
bezerro com doirados e cores diversas : convém ás pes-
soas de muitos ou de poucos teres, a todas as livrarias,
e a todas as obras. Das encadernações de jiergamiuho,
de marroquim, de moscovia, de fazendas ondeadas,
de veludo &.C. , só se deve fazer uso em casos d'ex-
cepção.
Um género mui conveniente, e adoptado por mui-
tos amadores, éo da meia-encadernação com lombada
de bezerro ou marroquim, não aparada, com margens.
Postos nas prateleiras os volumes assim encadernados
são tão elegantes como os livros com encadernação in-
teira ; e teem a mesma solidez. Esta encadernação reú-
ne de mais a mais a vantagem da Iwrateta e da lar-
gura das margens; cousa de muito valor aos olhos dos
bibliophilos, que apagam por alto preço, e fazem todo
o empenho por cila. Alguns d'ellcsteem tanto a peito
a conservação das margens, que fazem as vezes cobrir
com a mais bclla encadernação um livro por aparar,
eaté sem ser tosquiado. Cumpre ao encadern.-idor res-
peitar e satisfazer esta pretenção, que tem bom fun-
damento, não obstante tornar-se ás vezes ridicula.
O conhecimento technico da encadernação (diz, in-
sistindo muito n\'ste p<into, o i-stimavel auctor da Bi-
bliothccnomia) é indispensável para evitar jx-rdas
reaes. E preciso saber escolher um Ixjm encadernador,
poder avaliar o seu trabalho eapontar-lhe os defeitos,
aliaz ter-se-hão lixros mal encadernados, ornados som
gosto, e pouco fortes; e cm quanto estas encaderna-
ções defeituosas hão de ir valendo menos de dia para
dia, encadernaçõ»^ boas de não maior custo conserva-
rão, adesp<'ito dosannos, todo o seu valor. Uma pro-
va de que o trabidho bem feito é sempre estimado, e
que as antigas encadern,ições dos Dusseils, IX-romes,
1'adcloup e outros, ainda hoje siio tão procuradas co-
mo os primores d'arle dos encadernadores do l'arís e
Londres de maior voga.
(Continua.)
39
o PA>OR\31A.
30.;
INUNDAÇÃO NA ITAX,IA.
A csTnADA iIp Alr>\Tinlii:i ]i,Tr.n IMacmcia iilravpssa
iiiii.i iiDiiiciis.i <'aMipin.i-, M,i «11,1 mirada «'slão nilua-
<laB Ircí iildi^ai ii)d<.ailtis de ai\iiic,s o di> jardiíi». A
|i»iii'a ilisUiiiiia da do meio coni! um rio, e acima
d'rsli' um ril)firo tjuo ih- coiivcrl"' ciri («ireiílc Ciim
a infiior Icmpcsladc. Ksli- riliciro, ciiírossado pelas
alHinrlaiiliwiinas <-liuva» da |iiimavpra dr 18W, sníu
do seu ]i-il() n 2.'1 de março, (iiiaiulo menos so líspr-
rava. ICiilrr os iidrlincs (|uf n iiiundarão Mirjirelien-
dcu iio<t caiiiiios nihava-si! uma família d'a(|Uellas
cercanias-, era um paisano piomontor., sua mãe, sua
inullii!!- c sfu lillio. Ao arrnidi) das aj^uas, o oní pro-
«'•n(;n da morte ipio se acercava Ircmonda. cada um
«•iculou u» impulvi\ do hiMi corar;flo. O lillio iti;upu
hiia mãe mihrr' os rolnislos liondiros ^ a mulher Irjivou
'la mào dl' mmi lillio. c amliot, alcnlando so mutua-
nionio, 1 uirciaiii a ponlc ijiir atra\fMava o rihriro.
Avalie-se <|ual seria o sru de5c<.pero «piando, ao
chocarem ali, doiiois de iuerÍM'is esforeos, \irnm a
ponio diíslaíer-í.í>, o sumir-se iia corrente ! Krcuarani
c poderam ainda suhir um comorosiuho «pio a a'^ua
todavia galçava com rapidci, e cPali eoiitcniplaraiu,
atlerrados, as ondas ipie niuf;iam, ns lures da aldè».
onde parecia cpie ninf;uem sp lemlirava d^elles, ncéu
aonde está Aipielle ijuc t/i os jxxlia salvar ; r os coi-
tados soltavam grilos <le desespero cortados ile mmiIí-
dus deprpen^'ões a Deus, aos santos e a Nir^em. Ma-,
a a^ua continuava a crescer, anoile lo^lla^a-^e enda
vei! mais medonha, e o peri';o alliíurnva-se tão eiui
neute, ipip nie a csperan<;«, essa ultima das illii»õc»
<los homens, in a n[ia';;nr-se-llie no coração.
N^■^lc inoincnlu de air^uslia inexplicável, vir«m
t».-ix.MUKu 2j, ISòJ,
;306
o PAiNORAMA.
'.nii jiniilii liiiiiiiiiiw) (|ue parecia lluctuar sobre as
nguas, Í-. !iccri:ir-so il'clles. Bradaram com (lol)rada
lorr^a. Atjiiollc jionto ia au;;mentaiido c aproximan-
(lu-se rapidamente, p em brcvo, ao clarão avcriiK!-
Ihado iIp um archote, que se reflectia n'agua, viram
um ancião do barl)as brancas, que seguro na, outra
niargeiri aos fragmentos da ponte, esguardava cora
ancicilade a margem direita.
Os inundados soltaram um único brado, uma so
palavra se lhe despegou dos lábios — o pae '. E não
se enganavam \ quem senão um pae affrontaria com
tanta decisão os j)origo3 d'aquella noite temerosa !
Infelizmente o seu valor tornava-se em taes circum-
stancias inútil. Ao sinistro rumorejar das aguas pres-
tes a engolir :ls suas victinias, todos sentiam que após
a dita de se tornarem avêr, não lhes restava senão a
cruel certeza de perecerem juntos i e coratudo a voz
do ancião ergueu-se rija e tirme :
— Animo, meus filhos! animo! Ainda nos pode-
mos salvar !
— ^ Ai ! nós estamos perdidos ! responderam da ou-
tra margem.
— Não! não! Ueus é grande e misericordioso!
Ah ! se eu tivesse vinte annos ! Mas que ouço !
— São as aguas do la Bormida que vêem talvez
buscar-nos ! Adeos, adeos, meu pae I
Este, porém, não lhe podia responder então. Com
o archote erguido para o lado do rio, olhava fito, e
escutava attento, immovel como uma estatua.
De repente os olhos arrasaram-se-lhc de lagrimas,
ergueu a veneranda cabeça para o céu, (piiz fallar,
mas apenas pôde proferir estas palavras — Graças,
meu Deus !
De feito uma barca guiada pela luz do archote
vogava em liidia recta para os inundados, junto dos
quaes clicgou dentro de pcjucos minutos, para os ar-
rancar a uma inorle tão horrorosa como inevitável.
Eis-aqui pouco mais ou menos o pequeno, mas in-
teressante e terrível episodio ([ue o hábil pintor, o
sr. Schnetz, pertendeu representar no seu quadro,
que se acha ilepositado , com outras muitas preciosi-
dades artísticas, no museu ile Luxemburgo, e que na
nossa , aliás bem acabada gravura, se procurou re-
produzir com a maior exactidão c primor.
As linhas que precedem são o sufficiente commen-
tario d'e5t;i tão formosa composição. O artista eom-
prehend(íu o assumpto, no nosso entender. O terror
que se vê debuxado nas feições dos infelizes campo-
nezes, nora é exagerado, nem tão pouco está abaixo
da situação •, aquella creancinha, que do mundo st?
conhece as alegrias no meigo sorrir de sua mão, dor-
mindo serena nas azas da morte, (jue paira tremen-
da sobre as cabeças das differentos figuras, não pode
deixar do impressionar profundamente, e constituo,
se nos não enganamos, uma ilas (|ualidades mais emi-
nentes doeste quadro. As diflcrontes figuras estão
agrupadas com muito disccTiiimonto, arte c natura-
lidade. O desenho é correcto e severo como convi-
nha, sem deixar de ser rasgado e elegante. A pai-
sagem está em perfeita harmonia cora o pensiimon-
to geral da composição \ as aguas ruem furiosas por
toda a parte, galgam sobre as casas, as arvores, as
encostas ; e o céu carregado e negro serve de fundo
a este quadro de desolação, e parece conservar-sc
surdo aos clamores dos infelizes. Finalmente, pelo
que nos dizem os periódicos de donde extraímos es-
ta noticia, e pelo (pie se iióde dizer em presença da
nossa giavura, cremos que nada falta a excellcnte
eomposição do sr. Schnetz para ser uma obra acaba-
da o digna a todos os respeitos da maior attcnção e
elogio.
ARCIIEOLOGIA POKTLGLEZA.
InBTHVCÇÕES dadas ao COAUJITOR DE BEKGAMO,
MSCIO EM rOETLGAL NO TEMPO DE D. JOÃo III.
O sEGLi.VTE documento curif»o é traduzido do ori-
ginal italiano, existente entre os códices da bibliothe-
ca do Vaticano, com o seguinte titulo : Insiruzzione
piena dcUc cose di Portutjallo in tempo dei re Gio :
.3." daia a monsiijnor coadjutort- di Jíergamo, nún-
cio apostólico in <jucl rcgno, per ordinc di I^tutlo 3."
uRev.'"« e Ill.nio Sr. — Tendo-me V.» S.^ pedi-
do que em uma memoria lhe apontasse as cousas,
(jue para o presente julgasse mais conveniente recor-
dar ao núncio, que vae a Portugal, obedecendo a es-
te desejo, depois de me informar primeiro com mui-
tas pessoas d^aquelle reino, e depois com outras, que
lá estiveram na companhia dos núncios antecedentes,
notei aqui o que reputo mais importante e necessá-
rio que o núncio saiba, para falLir e responder segu-
ro a tudo o (jue lhe possam perguntar, e não ser no-
vo em nenhuma espécie, sobre tudo que prenda com
interesses da Sé Apostólica e serviço de nosso amo.
e não confundir ou equivocar os negócios, nera s«
assustar com objectos que o não mereçam : — para isso
bom será saber :
(E um péssimo resumo da historia portugueta até a
pag. 25 em que diz:)
"No tempo da suppressão dos Templários, as ren-
das e terras d"aquella ordem, que eram immensas,
foram concedidas pelo papa a uma ordem no\a em
Portugal creada, que chamaram de Chrislo. Os Pon-
tificcs, em épocas (iiffercntes, confirmaram-lhe as mer-
cês de muitos benelicios, decimas, e depois as ilhas
da Madeira e todas as mais descubertas em seguimen-
to ; tle motlo, que já valia no tempo de D. Diogo
irmão do rei D. Manoel somente a raezadom«'>trado
láO,^000 ducados d'ouro annuaes.
«A este mesmo mestrado concederam depois os
papas a decima das navegações da índia eElhiopia.
ii O papa Leão (X. .') conc-eídeu mais á onlcm 20*000
ducadtis de renda em parochias donde as ditas rendas
se tiravam: por erro ou incúria dos p.idresv.Tjem ho-
je mais de SO^^ODO dvicados as que estão vagas, ou
a vagar, e pela letra da mencionada bulia se hão de
unir ao dito mestrado, e são de collação regia.
u O mestrado da ordem possuia-o o duijue D. Dio-
go, o depois d'cllo foi d'el-rei D. Manoel seu irmão
antes de ser rei, 'c quando subiu ao thronoincorporou-
so na coroa, e é agora possuído pelo rei D. João seu
filho, tudo com conces.sões e auctoridado desta Se &.c.
.. lia mais duas ordens em Portugal, adeS.Thi.i-
go, e a de Aviz que devem ser de 305000 ducados
de renda mensal, c possuem Iwllissim.is terras, o gran-
des commendas e benefícios. E hoje mestre d*ellas
1). .lorge, filho do rei D. Jo,ão (II).
.i Estas três onlens sendo Iodas Ires elecliv.is e de
grandíssima importância, tanta que se lhe deveu a vi-
cloria de todo o reino em re[)etidas guerras, ti jKips
Leão concedeu ao rei do Portugal faicl-as depadnia-
do real íii solido, c apresentação rt^ia íd /Hi-ftelua
rii memoriam ; e eonviíulo <» rei em pag.ir uma co-
piosi>sima composição pelo dito padroado opap;» con-
cedeu a graça livre.
..Item a Sé .\|H>stoliea eoiicoileu ao rei de Portu,
g.il a naveg.içiio da Índia e Elhíopia, e mais terras
descidierlas de novo, debaixo de ccrt.T liiih.i divi.^o-
ria do mundo entre o rei do Portugal »• o de Cis-
tella. E com a Lulla d'esfa concosMo >«• defende-
o PA\ORA31A.
3or
não menos do que com ;!•» armas, o direito adquirido
contra francezes, e outros que pcrtendcm poder na-
vegar n'aqueilaí paragens, e negociar também.
" Item o papa Leão concedeu ao rei D. Manoel uma
cruzada em todos 01 seus reinos, que ha quem diga
que Uie rendeu por perto de 41)0^000 ducados.
u Item o mesmo papa. concedeu ao rei de Portu-
gal a terça parte de todas as rendas ecclesiasticas ad
instar honoruin Castctli et Lcgionis non perpetuo. E
[wrque o clero moveu lide para se defender, e a ques-
tão se tornava perigosa para o rei, e odiosa para o
papa, sendo o clero poderosissimo, o rei D. Manoel
conipoz-se com o clero por 153^000 ducados d'ouro,
obrigando-se por instrumento publico, e contracto de
juramento solemne ])or si e seus successores de não
wUicitar, nem acceitar mais decima de nenhuma es-
pécie do papa. Ajiesar d 'isto a santidade de nosso
padre l'aulo III concedeu depois ao actual rei duas
decimas em Portugal, que custaram mais ao clero.
E sua santidade, podendo entender, que já o clero es-
tava obrigado por promessa da sua resi>ectiva or-
dem, e que tudo montava a 100^000 ducados, com-
poz-se por 30*000 ducados, e o rei os arrecadou.
"Item a Sé Apostólica por pacificar o rei D. Ma-
noel no reino, fazendo-o rei de Castella ainda, con-
cedeu-lhe dispensa para casar com a filha primogé-
nita do rei catholico, sua parenta era grau mui pró-
ximo, viuva do principe D. Affonso de Portugal,
seu primo, princeza e herdeira de tantos reinos ; c
morrendo esta de parto, como as cousas do reino fi-
cassem revoltas, deu-lhe dispensa para segundo ma-
trimonio com a outra filha do rei catholico a rainha
D. 3Iaria, mãe do actual rei D. João, e irmã da
primeira. E tendo-lhe imposto, quasi em penitencia
da dita dispensa, (que era em grau de tão estreita
affiuidade) de passar pessoalmente a Africa com o
exercito, o desligou d'isto depois sob condição de
enviar soccorros determinados contra os turcos, no
que lhe fez assignalada mercê. E ultimamente o dis-
pensou para poder casar com a sobrinha das ditas
duas irmãs, a (|ual hoje é rainha de França.
(Continua.)
FEBJKTIMORE COOFER.
Nii Dl* qualoríH dr si'|einl)ri> 110 «mio de ISjI cx-
lialava o nllimo nuspiro na ri'<idencia di- ('oo])er-
stown o famoso cvriplof, <|in' IlUislrou a pátria de
V\ ashiii'.;!iin com iinu paljii.i, rival do Imiro <lo bar-
do KsciiiTZ, Wallcr ScnK, t) auctor do ,, Piloto '< e
do ■., Ihirítdiiro 1/(i/i/V(i»i) " ^ oporia que deu Yoz
<• alma /is (loresl.is virgens da \mrric,i ^ o pintor <|ue
deneniiou as plll^lonollll.^s dos jieroes das selvas em
lurla 1'oni a civilis.ição :, animando a c\lstenoia ma-
c lio inlerc->se rni laiilos quadro» ;
dcs opn-l.uulos da naliire/.a, e ;'is maiores scenas do
coração, ofiererendo na tela dnimalica coslunie», ca-
rccItTcs, r sítios, apenas aperii-bidos de longe, anlc^
do caiiliio nielanroliio dos Nalclirs c di' Alala. l'Vn-
niniore Coopcr foi reunir-se á sombra de (Vrvantc>,
e descançar ao lado do auclor <le W averlev I
•V grande voz calou-se , o ob-ervador que \iu l.io
fundo no seio da sociedade iiovn, e nos inslincto-
confusos das tribus selvagens-, o inlerpreli- rioquenlc
I d.Ts harmonias íla solidão, nada mais dirá no berço
rilinia da pnixã
o liomi-iii. i|iie nos f.;z assistir em c^pirilo aos grau- | natal, objecto do seu amor, apar da arte. da n-li-
308
O PA>ORAMA.
glão de todos o» instantes ! Longos annoi hão de pas-
sar antes, que outra mão ouse continuar na obra in-
terrompida as M-ena* ijue immortalisam o mestre.
A rara Anglo-araericana, tão soberba das íuíis con-
t|UÍ8tas, tem razão de se cubrir de lucto. As gerações
não costumam ser fet-undan em vultos doesta altura.
Como o romancista, íjue perdeu, Ião cedo não torna
outro a ilinstral-a.
A liistoria da vida de Fennimore é a historia de
ura homem modesto nos des<'jo5, irrcpreliensivel no
oarac-ter, e vivendo mais com a intelligencia, do que
uo mundo, que pouco o maguou no seu contacto.
Filho do magistrado (Jooper, descendia de uma fa-
mília inglcza natural do condado de Buekingham,
c-stabelocida na America no anno de l(i79. >iascido
jia casa paterna, no meio de uma lavoura opulenta,
formada por seu pae, abriu os olhos no Estado de
Xew-York, em Burlington, ás margens do Dela-
Avare, tantas vezes calebrado nas suas descripíjões.
Começou a educação no collegio de Yale (New-
Hav€sn) aondtí bebeu as noções, que ampliadas de-
pois, cultivaram o espirito e enriciucceram a imagi-
nação. Como aconteceu com outros talentos raros, a
disciplina escolar parecia comprimir, oin logar de
desenvolver, as propensões littorarias do mancebo.
De 1802 até 1805, em que entrou no serviço da
marinha, nenlium indicio revelou o auspicioso futu-
ro, que o esperava.
Imjjetuoso, robusio e indócil, oppunha a tenacida-
de e a resistência ás advertências e aos estimules da
severidade coUegial. EUe mesmo ainda ignorava as
forças intcllectuaes, de que era dotado, e não aspi-
rava senão ao movimento e ás commoções da traba-
lhosa carreira do mar, entre- os perigos da tormenta,
c ás vezes o con flicto dos combates. A vocação dor-
mitava \ o a phanta-sia apenas disperta procurava na
acção o alimento necessário ao seu ardor. Mais tar-
de é que dcscubriu a verdadeira estrada, e a pisou
••omo triumphador.
Aos treze annos, accedendo ás supplicas repetidas,
seu pae deu o consentimento, deixando-o satisfazer o
inquieto desejo de firmar o pé no conver de um na-
vio de guerra, debaixo do pavilhão da sua pátria.
A influencia ifeste pericnlo nas qualidades do seu es-
pirito foi indelével. Seis annos de continuo serviço
fortificaram a imaginação adolescente, deram vigor
ao engenho, e gravaram na alma as primeiras ima-
gens dos dramas maritimos, que desenrolou depois,
«■ serão sempre a admiração da arte.
Nas scenas tão exactas e amiudadas que retracta,
quem poderá dizer até que ponto o poeta foi actor?
tluando debruça da amurada a figura grandiosa de
Tom Jones, com os olhos fitos no deserto das aguas;
quando levanta os cachões da vaga, f.izendo pular no
<Iorso a í|uilha e gemer o costado no embate-, quan-
do colloca o homem liiioico pela serenidade no meio
do temporal e da guerra, dominando a morte que o
ameaça dos abysmos, quem sabe se as manobras que
descreve, se os perigos que huniillia, se a anciedade
que representa, é só ficção apenas, ou se une a rea-
lidade, o episodio terrível de \ima cirn-ira fértil em
lances e em rasgos sublimes f
\ saudade dos trabalhos náuticos transluz nasdes-
'TÍpções, cm que o romancista sentado ao lar domes-
tiro se compraz. í)s personagens, que nos apresenta,
pouca perspicácia v no«'.*suria para perceber, que não
foram sempre puras formas intellecluaes ', sentc-se no
■ uídado com que os segue, no disvello com que os
tracta, que o poeta os conheceu e acompiínhou.
A bella creacão ile Tom Longo no /'i/oío, é uma
recordação visível. A arte só não adivinha tanto.
Antes lie oonsuljstancijir a existência com a da esiu-
na, objecto da sua idolatria, o pobre Tom, bem af-
faslado de prever a gloria de servir de trpo á Síia
classe, mastigou o rolo de tabaco, afiou o* barpões,
e tocou o apito de contra-meítre a l>ordo de um na-
vio ; e foi de certo no exercício regular de tão cons-
picuas funeções que o pincel veiu colhel-o, e o seu
retracto passou da vida real para os vastos domínios
da imaginação.
Era o processo de Waltcr Scott ; e em grande
parte também o de Cervantes ; e ha de ser eterna-
mente o dos interpretes, que desejarem sondar os se-
gredos do coração, e o destino da humanidade. Nas
manifestações da arte entram sempre c-omo elemen-
tos essenciaes, a observação objectiva, c a revelação
interior. Não ha quadro grande, aonde, como nos at-
tribuidos ao Gran-\ asco, o auetor se não veja a $i
e ás imagens familiares do seu espirito. A invenção
está no desenho e na collocação ; o bello na verdade,
e o sublime no estvlo.
Cooper saiu da armada no anno de 1810 para se
unir á esposa, que hoje deplora a sua falta, e que é
filha de Pedro Lancev. Depois de habitar pouco tem-
po em \% estchester nas cercanias de Nevv-York, pas-
sou a fixar a sua residência em Cooperstovvn, aonde
consagrou inteiramente todas as faculdades aos estu-
dos litterarios e á composição d'essa longa genealo-
gia de personagens ideaes, a quem deu a gloria do
mesmo modo tjue ^^'alter Scott á sua, de invocar a
paternidade do auetor do " I'ilolo •• como titulo de
nobreza nas jerarchí.-is da arte. Entretanto, não se
creia que o romancista americano se repousou á sí-
milhança do Titiro de Virgílio nos ócios do Idílio,
sentado á sombra copada das arvores, vendo gemer e
fugir as aguas, e tosar as relvas pelo dente dos re-
banhos.
A necessidade de acção, que o levava na adoles-
cência a preferir as commoções violentas domar .i ou-
tra vida mais pacifica obrígou-o na idade da reflexão
a visitar o continente, aonde se demorou bastantes
annos, sobre tudo em 1'arís. As notas d'estas via-
gens, lançadas com rapidez, e mais inclinadas á apre-
ciação politica, do que ao exame artístico, mostram
um dos aspectos curiosos d'este caracter, que feria o
orgulho britannico pela austeridade dos princípios re-
publicanos, e pela expressão rude e sincera das idéas.
A tendência crítica tornou-o nos últimos annos um
censor íncomraodo para os costumes menos severos já
dos seus compatriotas, aos quaeã tão pouco disfarça-
va a verdade, como aos estrangeiros.
A obra litteraría de Coop<'r forma um monumen-
to : e pikle-se dizer que a existência lhe deu espaçv>
para a não deixar inc-omplcta. Nos últimos meres,
em que a saúde debíl o avisou de que era tempo de
descançar, depoz a pt-niia, e foi procurar áfresi-ura e
á serenidade das caippina». que pintava com tão ale-
gres cores, o remédio ou o engano das forças que $uc-
cumbíam. Era tarde. Os dísvellos tornaram-sc inú-
teis ; a moléstia zombou da scicncia e da ternura de
tantos amigos ; e a extrema esperança fugiu com o
derradeiro suspiro do jxx-ta, que cerrou os olhos pou-
co antes de prefaier so^-íonta e ilous annos de idade.
Durante a sua lucfa com a morte, a .Vmeríca ancio-
sa pendia do exíto, c recebia <xini avidez tixlas as no-
tícias, ora reanimada, ora abatida pelas crítos que se
;dtern.ivam. Em fim chegou a ultima, e cvim ella o
lucto nacional de um grande j>ovo digno de se ajoe-
lhar na magua viril da admiração perante o sepul-
cro de um dos reis da íntelligemía, depois de se ter
levantado em presença do throno, e de respi>iider
com a espada ao golpe do sn>plro, e á intimação das
armas '.
O numero dos romances compostos por Kennimo-
o PANORAMA.
309
re rivaliza com a fecundidade de Walter Scolt. O
priítifiri) ensaio, muito inferior ao cunho magistral,
}ue fei pasmar a Inglaterra lendo as paginas de
faverlcy, foi publicado antes do poeta se estabele-
cer em Coopersiown. A Precaução, no enredo frou-
xo e. embaraçado, no dialogo balbuciante muitas ve-
ies, e no traço indeciso do» personagens, estava lon-
ge da rasgada e fecunda invenção, e do correcto de-
senho do bardo Escocez. Ninguém, examinando a
primeira novella de (Jooper, ousaria ajuizar que a
mão do pintor ganhasse a firmeza, e achasse o segre-
do, que tornam immorlaes tantos dos seus quadros.
Ua Precaução ao Espia (o segundo romance de
Kennimore) vae uma distancia Ião grande, que só a
omnipotência do génio era capaz de a vencer. Etfe-
ctivamente o protogonista, Harvey Sirch, é uma
creação poderosa pela originalidade e pelo interesse
dramati<-o. O sacrifício não da vida, mas da honra,
que é mais, á victoria da pátria, era um rasgo épi-
co, digno das virtudes antigas de Sparta. A concep-
ção de um homem, que tira a sua gloria da maior
infâmia social, e so resigna a humilhar a fronte ao
opprobrio, não a podendo erguer com orgulho senão
diant(' de Deus e da consciência de outro homem,
iguala, pela novidade e pela grandeza moral, o que se
conhece de mais nobre e heróico na historia do sen-
timento e da abnegação. Não contente deluctarcom
as difficuldades do assumpto, Fenniuiore atreveu-se
a outra empresa não menos arriscada, pondo na mes-
ma tela a figura severa e patriótica de Washington,
idealisada com raro talento. Desde esse dia, a Ame-
rica primeiro, e a Europa depois, saudaram no au-
ctor dos Mohieaiios um dos príncipes da arte.
Os Pionncm (rotcadores), seguiram-so ao Espia
confirmando .i reputação do poeta, que o Derrculci-
ro Mohicauu coroou de um louro inunarcescivel. Foi
depois de (aes triumphos que em 18:20 Cooper fez a
siia viagem á Europa, e visilando os povos, e obser-
vando os costumes, continuou sem se interromper na
obra lilteraria. (J Alrjoz de licnie, o Corsário Vir-
mellio, c a Campina j)ertcncem a este periodo, em
que a sua fama se consumou. Finalmente o Filolo,
lalvcz a mais perfeita das suas creações, apesar da
deelinaç.Mo de outras novellas eivada» de intenção po-
litica, e despidas do interesse original das primeiras,
cujo thealro era uma naluresa quasi virgem, atles-
lou (|iie a iiunginação do mestre subia com o assump-
to, alumiando de magico ('xplendor assccnasdo mar,
os affectos da alma, e as luctas da •lil)erdade.
Antes de Washington Irving e de (Viopcr a ori-
ginalida<le da lilteiatura americana não existia. El-
les é (pie a icvelaram, dourando com a lui! ila in-
venção e do estalo l besouros de poesia, até então des-
presado». Irving, niiiis liniido ilo (juo Fenniniore,
e(U'riiclo, apraslvcl <• <lelie.ido, tinha pouco ódio u
<lepeiidencia 4I0 taliiito, e 11 cada iiislanti; revê nos
• scriplos a transparência da antigii escola ingleza. A
sua imilução graciosa e ligeira, assemelha-se a uma
copia tir.ida cru p.ipel de seda do g(jslo de Addison,
<le Stceli' i' de Svvin , eoino observa l'hilarete ( 'luis-
le». Mesmo no J.ivru dos Eshoroa, na í.'(i!i<i i/c Jtra-
cebrulijc o no melhor de todo» elies, o» Ctmtus du
f^iiijuiiti', transluz de uiuio a recordação de Addison,
c Síínlu-se uma certa inollisa na |)hiase e 110 ponsa-
ménto.
Nn segunda maneir.i, <|iu' ailoplou, a empliane,
e a» illuminuras a|icnas disf.irçam csle ih'i'('ilu. Koi
preciso A sua volla da embaixada de llcspanba, <|ue
.1 imaginação e o espirito hc relempenissem no cspe-
claculo daii cascata» ilo Niagara, nus lagos Cliamplílin
<' l'ilie, e na» margens do Obio , foi necessário galo-
])ar ao latiu do^ mtcadoruji, <• correr <'i)iii rllcs o imjI-
dro selvagem pelo interior das tribus Pawnies, de-
vassando as florestas e assentando-se k fogueira do
campo, ou sob o tecto do wigwam dos Índios, para
o engenho inspirado pela naluresa se elevar á origi-
nalidad(í das scenas, que os olhos admiravam, e rom-
per com a imitação elegante ma» fria, deixando esca-
par da penna as paginas aeductoras da mais beUa das
suas obras, a Campina .'
Cooper destingue-se pelos toques vigorosos e ori-
ginaes, e pela frescura transatlântica que respira tu-
do o que descreve. Associa-se pelo coração e pela
idca á naturesa grandiosa do seu berço, e pinta-nos
a lucta das industrias, das artes e do pensamento do
mundo velho, encontrando a apathia da vida selva-
gem, e a resistência do instincto contra o progresso,
obrigado a domal-as, ou a succumbir.
A estrada rasgava-se diante d'elle, infinita, varia-
da e desconhecida. Eram painéis sem quadro, scenas
sem theatro, tudo novo, tudo raro, fácil de ligar pe-
lo interesse moderno, mas árduo de exprimir nas
formas estreitas da imitação. O povo, que lhe serve
de actor, levanta-so gigante, saindo ai)en;iâ da infân-
cia. Os heroes da sua gloria repnxluzem o heroísmo
sereno o perseverante de Washington e de Frank-
lin. Florestas carregadas de séculos formam o fundo.
Os apóstolos do novo mundo em contacto com os fi-
lhos do deserto ; o wigwam e o cachimbo do selva-
gem ao lado das artes da Europa no meio de soli-
dões rara vez penetradas :, o combate das raças de
avós a netos, entre os oppressos e 05 oppressores ; que
variedade de situações e de affectos ^ que novidade
de perspectivas e de cores ; (jue immenso problema
para a íntelligencia do philosopho e para a imagina-
ção do poeta ! ?
O mérito do romancista de (Jooperstown é ter sa-
biilo aproveitar-se de elemento» tão diverso», nãolhea
corrompendo a candura, nem a ingenuidade, por
meio da imitação bastarda. Os personagens são hu-
manos, as scenas possíveis, e a linguagem própria do
caracter e dos costumes que representam. A natu-
reza gigante das bellas regiões, j-efleete-se no drama,
como em um espelho. E ])or isso q>ie os seus compa-
triotas celebram em Fenniniore o Homero america-
no, o bardo das glorias naciouaes. Os defeitos da sua
maneira, o excesso de analise e de descriptivo ; a
minuciosa exactidão da pintura', o cuidado enfado-
nho com i|uo insiste no mais insignilicantt acccssorio,
ou na menos importante cir<'iiiiistancia, nascem da
intima analogia ilo auclor com a terra, e com a re-
ligião que professa. Calvinista, o estylo e a oliserva-
ção do poeta, deniiticiain a austeridade da seita, e o
escriqniloso culto da verdade. Nos painéis «pie dese-
nha não ap[)arcc<'m a» massas do liu e de escuro que
deslumbram em Chateaubriand \ mas acha-sc a vida
do homem, o silencio <las aguas, da campina, da flo-
resta, e a immensiílade dode.serlo. A crenção opulen-
ta do outro heiiiis|iherio em toda a graiiihsa. Com
elle, diz l'liiliiri'te Chasles, osoUio» docupirito, quasi
tão bem como os scntiilo», vfiem i- conhecem os bos-
<|ues viçosos, os jilaino» ari^entos, os robles antigos,
as solidões, imagem do infinito, os lagos (|ue parecem
iiiare», e a grainlií sombra d'cssaí matas gigantes,
aondi' a sombra foi seinpro cternn '.
OI)servae-o quando ascena é sobre as aguas. Lide
o 1'Hoio, Iradiiíido cm porluguez, a obr» prima du
sua iniagiiiação, cujo» heroes são o mnr e o navio.
Noiae a iiuiibule <• o vigor com que a «içào procede
íhi» c.irai'lí'res, v os lanei'» nascem ilo t*nredo. v* a
apiilb<'os<' do lioinem dtuuinaiulo o oecenuo, como ii
cavalleiíd subjuga o corci'l, exclama um critico fran-
cez. Oiie ciitliiisinsmo e que vida no» <|Uiuiios. l*»re-
(C <p'e iiv ondas ilii' (ib« (l< cem, lauta e u bcllci'.-» c o
.'310
O TANORAMA.
fprror das sceiías, que oflerec». O Corsário Verme-
lho, oPilolíi, ;i Fcitircirn das Ayuas, <|iic' ailmiravfl
iiiterprrtarão ilas paixões do coração, do sublime da
naturesa, c (los coslumes náuticos I Como o pittores-
eo abraça o positivo, <: a realidade exalta a magesta-
de do <'sp(a'taculo 1 Não são pliantasmas de navios
correndo sobre ondas fingidas ; embarcação e vagas
falsas^ dentro, e á roda, está a acção e ávida, o ca-
racter e a poesia do assumpto. As velas ição-se e
amainam-sc ■, os cabos rangem ^ as vergas gemem ; a
maruja canta ^ e o roUo do mar, coroado de espuma,
vem quebrar o dorso esverdeado no costado da escu-
na, que Tom Colfin ebamava a sua pátria.
i\as pliisionomias femininas, Cooper ostenta uma
finura de observação comparável ao lápis de Shakes-
jieare. Não as disfarça, não as exagera, inostra-as o
que são, e o «jue devem s(!r, mulheres; mas revesti-
das das graças, da boudad(> meiga, e do pudor, que
as torna sedn(-toras. Por esta alliança do sentimento
moral com a belli^za phjsica, e a serenidade da al-
ma, as suas heroinas sustentam uma virtude alegre
que não fatiga ; são verdadeiras, e fazem que tudo
respire ao pé d'ellas o aroma dos mais puros affectos.
Kntre os seus romances, que montam a trinta e qua-
tro, sendo o uUinio publicado em 1830, ha mais de
uma figura delicada, pensativa e cheia de ternura,
como Ijucia llardinge, que pouca inveja tem á Des-
demona de Shakespeare e á Flora-Mac-Ivor do \Val-
ler Scott.
Dos romances de Fennimore apenas três. que nós
saibamos, se encontram vertidos em portuguez. São
o Piloto, o Espia, o o Jhrradtiro 31ohicano, admi-
rável elegia épica, cuja scena é o novo mundo, cujo
actor é o génio primilivo da raça humana. Assim de
todos os grandes vultos, que eram o brazão do sécu-
lo, nenhum resta de pé. Napoleão, o César moder-
no, o poeta d^acção, tem chamado, uns atraz dos ou-
tros, os grandes nomes da época. Bvron primeiro,
Wallcr Scott depois, Chaleaubriand após! ("ooper,
o ultimo, acaba de adormecer no meio das laci-imas,
que o sou coração merecia, e das saudades, que o seu
caracter inspira. Entrou n^esse grande estádio das
sombras aonde o espaço é longo, o a luz ardcnti-, de-
nominado posteridade; mas como os bardos, que o
pr<'ce(leram, o monumento pôde com o nome, o o
l«niro da memoria, longe de se consumir ao sol da
gloria, cada dia reverdece.
li. A. Kebello n.\ Silva.
E é o que, talvez, eu hei de conseguir a respeito do*
hospitaes.
.\ outra razão, porque acceitei o convite do meu
amigo, é, que considero o apparecimento d'um pe-
riódico uma romaria ou festa popular, onde ordina-
riamente se dispensam etiquetas e dislincções hierar-
chicas ; onde o erudito e o illitterato, mov idos do
mesmo sentimento ou enthusiasmados pela mesma
idéa, e nivelados no mefo da multidão exultante se
podem abraçar fraternalmente ; uma festa, sim, onde
até o pobre es<iuecendo as trisfuras do seu alvergue.
e desvestindo os andrajos que o tornam repugnante
aos felices da terra, vae folgar entre elles, e deixar
á p<jrta do templo o óbolo, que porventura deveu á
caridade de algum devoto.
Ora aqui tem as razões porque o meu nome havia
de apparecer duas ou três vezes nas columnas da 6ra-
zcta </os Hospitaes, e porque anniío agora ao seu pe-
dido niandandi>-lhe o primeiro artigo que destinava
para aqucUe periódico, o qual por difliculdades que
não se podem perdoar facilmente, ainda não appa-
receu nem apparccerá talvez.
J. M. NoulEIRA.
Sr. Redactor. — Ahi llie remetlo o artigo que te-
ve a bondade de me |Hxlir, e que eu escrevi ha mais
de me/, e miio, quando estava para licar collocado |
na cont.idoria do Hospital de S. José.
Lin dos collaboradores da Gazeia dos Hos/iHacs,
meu amigo, ha\ia-me convidado para assistir á inau-
guração d^aquelie periódico, pelo ((ual desgraçada-
mente se espera ha tanto tempo.
Sem ine accusar ii consciência de ir como preten-
sioso, ou mettediço assentar-me a nenhum banquete
litterario, acceitei o convite \ e acceitei-o por duas
razões. A primeira : porque um escripto ile jK-iina
incompetente, como a minha, nem sempre faz um
grande mal, antes produz ás vezes um grande bem.
<.)s defeitos d'est_ylo e a inexactidão dos factos são
um meio imlirecto de obrigar as suinmidades litte-
rarias a desallronlar as latiras e a sciencia. Ou se
irritem contra o cscreviídiador por o \èr meller foi-
ic cm sr.ira alheia, ou se contristem da sua iiie)KMa
e lemcriíl.idc, quasi que não tèeui mais remédio do
que vir á iinpr.Misa expor na sua verdadeira luz, v
restabelecer tiiunipiuintcmcnle a \crdadc dos factos.
DcAS P.\LAVRAS SOBBE HOSPITAES.
I.
*' .4 piedade pt>rliij:iirM, acrettilada
era todo u mundo, com rr|irtidak
e\|H:riencias, sc oMiirriiii com maior
fervor dentro das espheras deste
reino, na crerr.~io de rico-, c ^raiidio-
<os hospilac', j)ara Iodas a, cnfer-
niidadcs, com tão regulada^ disjio-
siçõcs. que serviram |>or varias ve-
«•> d'idea e exemplar aos de outros
reinos. "
{Padre F. lU Sitnía .VnHa. —
Historia n.4s Sagradas Co>cri>
GAÇÕKS.)
Km matéria de iH-nelicencia publica não pode dar-se
novidaile. Tudo está discutido e assent.ado. Não ha
escola, nem svstcma nem alvitre, que se não s.iiha,
e de que n'alguma parte não se hajam feito ali^uns
ensaios.
E grande to<lavia entre nós o numero de pessoas,
que não cogitam da infância, ou da velhice enferma
e desamparada.
Não pertendo form.ar I Ibi-llos injuriosos contra iiin-
guein. l)es.igradar não foi nunca meio de persuadir;
nem o declamar meio dVmprebender e realisar o*
benefícios e melhorameiífos. que as classes infelie»~»
demandam a este nosso século, tão orculhoso easso;»-
Ihador da sua illustraçiio e caridatle. Menos quero
doestar a civilisiição dos nossos tempos. Mas creio
que não devo, i|ue não deve ninguém tributar-lhe
culto que dcsiiuctorise e rebiiixe a pennadoescriptor.
Li não ha muito, citada com applauso do llausset-
Uo(|uefort, uma proposição de Wafteville, que vem
agora ao meu propósito: .. Km nenhinna ep<icha, dii
este escri|itor, >e cuidou com mais intelligeiícia, nem
com mais caridade das classes soflredoras. "
Eu n.ão soi SC ^^atteville de feito disse ou não
disse o que Rtxpiefort lhe attribue ; o que sei í que,
relativamente a hospitaes eliospicios, omosmoWat-
le\ille duvidou n"um relatório da exactidão do cal-
culo de Necker, <)uo dava a França só 870 d'aquel-
les i-slalielecimentos no anno de 1780; e ,i raião ila
su.i' duvida é, que havendo n*aquelle p.ii», até ha
pouc-o, 1270 hos|)itacs, não julg;i\a |vivsi\el que d'a-
<|ueUa ejKJcha |vira ca se tivessem fundado -iOO, E
o PAiNORA3IA.
311
VVatteville diz mais : " O numero de liospitaes em
França não í assas considerável principalmente nas
cidades. Ha íiO anuo* ])oucos estabelecimentos doeste
género se têem fundado. »
Ora, se de al^iini modo não deixa diminuído o va-
lor da citação de Rorjuoforl, esta circurastancia acon-
selha um certo escrúpulo em acreditar asserções, que
parece terem sido lançadas ao papel voluntariosamen-
te. Não é de certo com pennadas de capricho, que
se devem fazer parallelos diílicilinios, senão impossí-
veis, entre epochas tão diversas e remotas.
Km rslampando nos jornaes ou nos relatórios a
receita e despesa das juntas de beneficência, e dos
estabelecimentos de caridade existentes, o numero
de soccorridos e outros dados estatísticos, importan-
tes sim, mas colligidos, ás vezes sabe Deus como,
exultam logo alguns escriplores fão cheios d'orgulho
e enthusiasmo, que é impossível não os aecusar de
puerilidade. A estatística, ainda enfaxada no berço
em que a vão acalentando, não tem cifras completas
e methodicas, que nos revelem o passado com todos
os factos e cinunistancias que o deixem apreciar
exactamente i nãn jiódc dar-nos testeniunlio autlien-
tico dos sentimentos que distinguiram muitas gera-
ções, que não raras vezes mais souberam obrar do
que escrever. Careciam ainda, ou não sabiam apro-
veítar-se do auxilio da imprensa, d'tb«e sentido, e.isa
faculdade Twvaj que, na bella phrase de Lamartine,
remoçou a humanidade. K que a tivessem, quando
mesmo a sciencia de colligir e exprimir os factos pe-
la linguagem dos números lhes fosse muilo familiar,
como poderiam, se ninguém o pode, subordinar o es-
pírito e os aflectos a nenhuma expressão de algaris-
mos !
Deletreando n'alguma ínscripç.ão de templo abati-
do pela acção destruidora dos séculos, ou decifrando
em pergaminho iMigellia<lo e pulverulento alguns gre-
gotins importunos, p(í(le colher-se para a historia
muit.i revelação imporlanle de factos ignorados, mas
é impossível apreciar perfeitamente o passado. Nem
basta ir a esses cartórios compulsar os seus livros e
papeis : é impossível coutar exactamente todos os
testamentos, os legados, as instituições com que a
caridade (Poutros teuqíos enriquecia o património
dos pobres, nem os livros, as escripturas e documen-
tos que os incêndios consumiram, que o desmaselo e
a inépcia deixaram [)erder, ou que a má fé, a vena-
lidade e a rabulice subtraíram, (-luem terá arte de
calcular o valor das propriedades <()m que milhares
de famílias, no successivo perpassar dos tempos, se
lêem ido locu|)Ietan(io á custa <lns classes deslierda-
das i" (rluem adivinhará todas as quantias que se es-
crtaram pelas mãos impuras da avareza e hipocrisia?
Como poderemos graduar as intenções e as crenças
jiara as podermos comparar.'
IC certo <|u<; ha sessenta annos se toem discutido o
resolvido com mais inlclligencia a» <|uestõ(íS da be-
neficência e organisae.'io social •, mas custa-me a crer
que as geraçòi^s m()<li'rnas lenham tido mais carida-
ile lio que ai|uellas, (jiic levantaram por lodo o orbe
milhares e milh.iies cPas^his e rccolliinuMitos para a
infância desvaliila, hospitai\s <> alln-rgarias para os
enlermos <• peregrinos. I<'irm<'uiente creio <|iu' me não
engano, pelo menos no <pie Inca ao nosso paiz.
(^luem não lerá ctuii prazer, cpie ha V.lll e tantos
annos (três séculos ipiasi antes de S. \'icente de
Paulo iiisliluir em l'arís o hospital dos expostos), já
entre nos se erigi.im casas para a cre.ição, e educa-
ção dos meniuijs e meninas eiigeitadas, uiandando-
sc-lhes dar nieslies jHint linhi lUjuiUu i^iu- lln^ fosse
Ilidis fiiiiviiiiriil'', ponfiii- sciiilti tu lu tw^intiduí, po-
í/i «c/M li r Imii rt iiliiin !
Gt-uem não admirará a rapidez prodigiosa, com
que a piíssima obra dos conselhos e esforços do ve-
nerável Miguel Contreiras se propagou a <juasi todos
os concelhos do reino ? Gtue redactor do Código de
Beneficência Publica estabeleceria- agora provisões
mais caridosas e humanitárias do que as do Com-
promisso da Misericórdia de Lisboa ? Onde se pres-
taria mais sincera homenagem aos dois grandes prin-
cípios da — associação e eleição — fundamento das
sociedades livremente constituídas?
Se entre nós não houvesse esfriado o zelo da ca-
ridade, que antigamente caracterísava o po\o portu-
guez, estaríamos ainda sem as creches (presépios) e
as escolas maternaes para as creancínhas pobres, eas
officinas industriaes e as colónias agrícolas para os
adolescentes ? Como se explica esta lenteza injustifi-
cável, com que procedemos na reformação dos insti-
tutos de beneficência ? Glue melhoramento relevante
temos nós feito, em que nossos avós não tomassem
uma nobre iniciativa?
Esses hospitacs que por ahi vemos são obra sua.
Monumentos magestosos de caridade ahi hão de fi-
car para attestarem aos vindouros, como nosattesta-
ram a nós, que só são duráveis as instituições que
assentam na uníca e eterna base de toda a felicida-
de : o amor a Deus e aos homens. (Contínua.)
Com o presente numero 39 enceta o JPanorania
uma nova epocha — começa uma vida nova e inde-
pendente, em quanto á parte económica, que não
em quanto á parte litteraria e artística que o editor
deseja conservar, pelo menos, na altura em que a
opinião íllustrada collocou este tão utíl semanário, por
ventura o que melhor comprehendeu entre nós a
sua elevada missão, e sem duvida o que conseguiu
ser mais geralmente lido, estimado e querido de to-
das as classes.
Julgando-se uma impropriedade o apparecimento
de um novo prologo, (|uando o volume vae já em
mais de metade da publicação, e querendo o editor
que a todos ficasse bem patente a sua boa fé, enten-
deu-se conveníenle repetir a(|ui o programma, des-
Iribuido avulsanuMite, o ipial foi redigido de accôrdo
com os antigos collaboradores e protectores lio Pano-
rama, o que assim representa como uma obriga-
rão que o mesmo editor faz perante o publico de
bem e fielmente cumprir as condições ali exaradas.
O fim do editor, iMnpregando n'esta empres;i co-
mo empregou, avultados cabedaes, é principalmente
restituir á litteratura portugueza um dos seus mais
illustres representantes, e á causa da instrução um
dos seus mais esforçados campeões, pois (pie é iune-
gavel (pit nenhuma publicação perioilica nacional
tem concorrido tanto e tão efficazmente para o der-
ramamento dos úteis conhniineutos como o l'aini-
raiiia,
l\'este sentido o <tlilur está resuUido ,t empregar
todos os meios .10 seu alcance para que o l'aiioniiiia,
não sil não seja inferior á sua antiga e bem mereci-
da nputaeão, mas si- torne cada \ez mais prestante
e digno da santa missão ipie vae proseguir com igual
l'é e preserverança ■, contando, como tiesde já conl.i,
com a protecção dos ipie prezam as nosi-as cousas,
sem a qual é impossivi'1 <^^nsogui^-se resultado algum
de \ ullo.
(I l'ANOU.\M.\.— CoMl'l.l5MKNTO UO D .*' VOI.I M K.
( 'oN riNe ,\c\o KM ISIiU.
.>
I(;i Al. ao alvoroço com ipic o publico acolheu a reap-
pariçâo do /'«íie/díiKi em 1810 foi o (le/ar p«(hi sua
312
O PANORAMA.
suppressão, motivada por «mia fatal coiicurreiícia de
causas imprevistas e pelas difliculdadcs d^essaepocha.
A predilecção do geral dos leitores por este Jornal
litterario e iiistructivo, o consumo que ainda hoje
tem a collecção, explicam-se pela utilidade e varie-
dade das matérias n"elle tratadas clara e amena-
mente era boa linsçuagem portugueza. O panorama
ú um re|)Obitorio das cousas que mais cumpre saber :
n"esse3 ramos dos conhecimentos humanos que são de
immediato interesse para a maioria da sociedade,
nos assumptos de erudição escolhida, nos que se refe-
rem a moral, bem como em as noyjes das sciencias
ao alcance de todos, será sempre consultado com pro-
veito, e lido com gosto.
Poucas são as pessoas que frequentaram estudos
regulares na teura idade, menos ainda as que se lhes
dedicaram na idade adulta, c raras as que occiípa-
das no trato da \ ida dispõem de tempo para estudar
seguidamente obras volumosas, por mais fáceis e
agradáveis que sejam. Por outra parte, ha muito
quem deseje lêr cousas úteis, que fecundem, ador-
nem ou recreiem o espirito sem « fatigar, e sem o
desvairar ou corromper.
A Europa culta attesta com a multiplicidade de
publicações periódicas, mais ou menos no género do
Panorama, que estes jornacs, veliieulos da civilisa-
ção, são o mais poderoso elemento da cultura intel-
Icctual do povo, quando os redigem escriptores que
sabem unir a correcção e elegância da plu-ase, de-
cência e mais condições necessárias, á proficiência e
clareza no ensino. Escriptores taes iorani os que sus-
tentaram a redacção do antigo Panorama ; e d"ahi
o constante apreço, a continuada extracção de suas
coUecções, que par:i actualmente se preencherem,
afira de satisfazer numerosos pedidos, é mister im-
primir muitos números de toda a serie.
Sendo innegavel que, se o paiz tem dado passos no
caminho do progresso malcriaJ e moral, o Panora-
ma não foi alheio a este movimento, que enraizou
entre nos o gosto pela leitura e o converteu em ha-
bito, quasi n"uma necessidade ; que os seus exem-
plares são mui procurados e dentro em jiouco tem-
po serão raros ^ a emprcza qjie tomar a tarefa de !
reimprimir os números que faltam, completar o vo-
lume que ficou por concluir no 2."semcslrede 1S47,
c proseguir com a publicação no futuro anuo sob o
mesmo svslema da antiga redacção, fará um serviço
mui prestadio ás pessoiis que procuram na leitura a
iiislrucção e a recreação ulil. j
Possuído doesta idca, tendo consultado a maior i
parte dos collaboradorcs do Panorama que funda-
ram e mantiveram a celebridade do Jornal, e mui- 1
tos dos escriptores dislinctos que encetaram a sua i
gloriosa carreira depois que este foi sus])enso, certo
da sua cooperação litteraria, e guiado pelos seuscon- |
selhos, não hesitei, de|)0Ís de tomad;is as convenien-
tes disposições para este lim, em oflerecer ao publico
o presente prospecto, ciimo eilitor do l'anorama em
seu complemento e continuação, emprezii inteiramen- |
te distiiicta e separada das precedentes do mesmo >
Jornal \ podendo affianear o cumprimento das eon- :
dições que em seguida vão exar.-idas, no caso de ter
obtido o numero necessário de assignaturas.
Os nomes dos senhores A. Oliveira Marreca, Luii
Augusto Rebello da Silva, Mendes Leal Júnior,
José Maria Ij.Ttino ("oilho. J. J. Casoaes, F. A. 1
\ arnhagen, Palmeirim, Serpa, são .ilxmadores se- '
guros do credito <|ue ha de merecer esta (lublica- [
ç.ioi espirramos obter do sr. A. Herculano algun* i
;irtigos, e do »r. A. V. Caílillin, e contamos com
a coUaboração de muitos litteraUis <jue deixamos de
mencionar {x)r ora. — As gravuras jwío buril do
sr. Coelho, e de outros hábeis gravadores não des-
dirão da belleza das que adornavam a» primeiras »f-
ries do Jornal; itcualmentc jctb nítida a imprrswo, c
o papel da melhor qualidade.
As pessoas que não possuírem os 38 n."* que saí-
ram em 1846 e 1847, poderão ubtel-us com abati-
mento, isto é, a 20 rs. cada numero, no caso de que
subscrevam para a continuação do Panorama : tam-
bém se fará algum abatimento no custo da coUecrão
antiga aos senhores que assiçnarem para a continua-
ção do mesmo Jornal. Avubãment» vendcr-se-ha pe-
lo preço de 9^600 rs.
Assignatura por um anno ou 52 n."' a começar
em Janeiro de 1853 — 1^300 rs. , por semestre ou
26 n."* — 700 rs. .Numero avulso 30 rs.
Os 14 n.°* que faltam ao 9.'-" volume serão pu-
blicados nos sabbados a contar da ultima semana de
Setembro próximo; com a mesma regularidade sai-
rão á lui os números da nova serie em 1853.
Os senhores que residirem nas províncias do reino
ou no império do Brazil, e desejarem subscrever para
o Jornal, poderão fazel-o por meio dos seus corres-
pondentes em Lisboa ; e os das províncias também
por meio de remessa do preço da subecripção pelo
Seguro do Correio ; toda a correspondência será fran-
ca de porte. As assignaturas são pagas ailiantado ; e
lecebem-se tão s<5mente no armazém de li\n>s do
emprerario e editor do Panorama, Aiitonw JvU F*r-
natidei Lopes. — Rua .-íurca, ii.°' 227 c 228.
Presença Jt espirito de um Árabe. — El-Uadjaje,
governador de uma província de Africa, saíra um
dia com os seus grandes officiaes a caçar, e como se-
guisse tenazmente uma rez, aúastou-se dos que o
acompanha\am a ponto, que não sabia depois como
voltasse.
Quando estava a meditar no que de\ia fazer viu
um árabe velho, era um próximo campo, a miral-o
muito .ittento.
— De donde es tu .' disse o governador.
— D"aquella cabana que v.Ji além.
— Não CS dos de Beni-Adjel .'
— Tu o disseste : este campo pertence-lhe.
— Ora conta-rae cá bom velho, que s« diz por
aqui dos agentes do governo '
— Diz-se que são homens sem bonra, sem fé, e
sem vergonha, que roubam, perseguem e opprimem
os habitantes.
— K tu formas d'elles a mesma opinião '
— .V mesma exactamente.
— K que me dizes de EU-Hadjaje .'
— Digo quo é o pcior de todos. Deus o faça tão
negro como um carvão, e amakiiçue o Califa qua llie
confiou o mando.
— Sabes ctmj «[uem estás f.iliando.'
— Km verdade, não sei.
— Pois cu sou El-Hadj.ijc.
— Folgo de conhecer-tc, dis;e o ancião sem per-
turbar-se. E tu sabes quem eu sou .'
— Não, respondeu o governador maravilhado.
— Chamam-me Zeid-lien-.\,imer, e sou o/owcodo
Beni-Adjcl. Todos os dias, um pouco antes do sol
|x>sto, ptrr»"» a razão. São quatro horas talvci ^ nio
me jxíde tanlar muito o aece^so.
O governador não priKtxleu contra o pi^bre do ho-
mem, e depois de lhe perguntar pelo caminho que
devia seguir, dcu-lhe algum dinheiro, e abalou.
— .\ rducaç.~io tem |>or fim descnvol\cr cm cad.t
individuo a j>erfcirSo de que clle lòr sui^ceptivel .
K»KT.
40
o rAAORA3IA.
313
A VIDA HUMANA — POR £ICHTHAL.
O UEap-NHii cli- que n mo^h.i !í;i';i\ iir.n «• (('jiiia fii-l, foi
ni>r<"S('iilaili) iin cxpusirão ilo Loiívrc, já iresliNiiiiio,
c iiiiTcccii ser (•niisidciaili) cuiii a maior di-stiiitrào <;
ni>ri!(;o. Kis coiiiu o ii!.|i(il i\(i calaloiío se cxiiriíue a
»ou rcspcilo :
.. RcprcsiMilar a viila rrcprcscnlar a a( lis idadf .li-
>f;rsa, an rclai/jcs iniilua» dos dois si'\iis !■ dascdiujcs.
" (J iiiaiicM>iio r(';j;i'f>.f(aiido da sua |iriiiiiiia \ iancm
no imiiido, lari;a a sua liarca, o miIic á iiraia. O lio-
niciii (• u lliullicr, no pciiodo ilc nialiiiidadr, o cs-
|)obo r a opina, <s)>(rani-no di- pi' |iro\iiiLo do aliar,
o oflerer<'in-llic o pão c o vinho, syndiolos anliijosda
aljundancia. A inidiur Ifui nu iv.in (vM|U(rda o dia-
Vi)L. 1. — ;i''' SiiHiit.
paȈr>, o lioninn n rcc;im, fonlos da harmonia o da
mi'dida. O ancião indica com um gvslu no inancclxi
o par no ipial n^idi' ai;oni a vida no maior uraii ilo
dcscnvolv iiociili' \ velha, com itroliinda <'miK;i1o,
cs|>cra o succcisor ila '^cra^vio ipic >uhsliluc u >un.
A domudla, ainda protegida pela capa de ^ua avó,
coulcnijila com inicrcsse »■ curiosidade o espivlaculo
(jue SC llie anlolha. A pai«a!;em reprodiii o coalras-
le c|uc SC dá na vida ilos dons soxo». Do lado do liu-
mcm v<^-se o espaço sem limites, o occeano com lo-
dos os icus |ieri^'os ; do la<lo da i\ndher, o valle Coui
seu circuniscriplo horisonle, o hosipn', a cidade, o
liimiilo. •'
i>i' ri HHo 2, ISJJ.
31
O PANORAMA.
Esta descripíão Ião clara e concisa não deixa ne-
iiliuma duvida sobre o caracter do desenho. A scena
íiue se nos offerec-e é o resumo /íf/rt/Wo de uma dou-
trina philosopliica sobre a vida humana, e particu-
larmente sobre a família : é um symbolo.
O desenho do sr. Eichthal, quando não fosse, co-
mo é, a expressão de uma grande idéa philosophicd,
teria ainda assim um valor real como ol>ra de arte.
Agrada á vista, antes de excitar a meditação. Oty-
po das figuras é nobre ■, graciosas e correctas as atti-
tudes \ as phjsionomias tem um caracter grave e se-
vero, temperado de serenidade, e de ternura i e tu-
do isto enimoldurado em uma paizagcm tão sóbria co-
mo variada.
A composição symbolica do sr. Eichthal deve ser
apenas considerada como o frontespicio de um livro
em que a theoria ha de ser exposta com todos os seus
desenvolvimentos. Nós não nos atrevemos, pois, mais
que a indicar o que julgamos entrever.
Sup()unhamos que um pintor pertendia dar uma
idéa da constituição da familia nas primeiras edadcs
da historia humana ; é provável que o seu quadro
oífereccsse pouco mais ou menos o aspecto seguinte :
— Como figura principal, e sobrepujando todas as
outras, vêr-se-ía um ancião exprimindo no porte e
feições austeras a authoridade absoluta. A sua di-
reita, mas em posição inlerior, estaria o seu primo-
génito, e os outros filhos, e irmãos d\'ste, todos in-
clinados cm sÍ!;nal de humildade e de obediência. A
esquerda, mas muito mais abaixo, vêr-se-íam repre-
sentadas as inulhens, sem exceptuar a esposa do an-
cião, sentadas no chão, ou antes prostradas, resignan-
do-se sem lutar ao dominio inílexivel do ciíefe da fa-
milia, e acceitando sem se queixar a inferioridade
<io seu sexo.
Tal foi com eíleito a familia por espaço de muitos
séculos. O pae tinha o direito de vida e de morte
•íobre os filhos. A lísposa, comprada como uma escra-
va, ou uma serva, podia ser, a arbitrio do seidior,
repudiada, re])ellida do seio da familia, expulsa de
casa. Si) o filíio priniogeiíilo herdava a authoridade
do pae. O nascimento de uma lillia <?ra eonsider.ido
como uma desgraça ou uma infâmia.
Insensivelmente foi-se modificando este sondjrio
quadro. A dominação paterna despiu o caracter de
despotismo militar. A mullier rehabilitou-se. A pro-
tecção deixou de ser opprcssiva ; a submissão de ser
abjecta •, o medo de prevalecer sobre o amor ; as re-
lações, na familia e na sociedade, tornaram-se mais
humanas e aflectuosas.
Assim estudada, desde as suas origens até ao nos-
so século, a vida humana offerccc \nna serie de mo-
dificações que facilmente |)odiam sor representadas
em quadros symbolicos análogos .ao ilo sr. Eichthal.
Estes quadros constituiriam d'cste modo a historia
philosophica da humanidade. INão é isto, de resto,
suppor o <pu' existe .' não se encontraria esta histo-
ria se a quircsseni jirocurar ? A arte, tenha ou não
consciência da sua obra ince.s,santc, symbolisa, sécu-
lo por século, geração por geração, a marcha vaga-
rosa, mas senq)re progressiva, do género Iiumano.
Se bem conqirehendcmos o jiensamento do sr. Ei-
chthal elle não [lertende indicar nem predizer mo-
dificações novas no .seio da familia ; propõe-se unica-
mente conhecer e interpretar as <\i\c. o desenvolvi-
mento natural da moral e ilos costumes jjroduziu.
A velhice amada, respeitada, honrada, superior
pela sua larga exp<'riencia, pelos seus beneficios, pe-
los seus direitos á gratidão, repousa, recorda, e es-
pera. 13encvolenle e carinhosa, querida da infância,
ella anima conx a sua approvaçâo c fortifica com os
seus conselhos as gerações que precedeu na vida.
A resolução e a actividade pertencera á edade ma-
dura. E então que a vida attinge o mab alto grau
de desenvolvimento e de poder ; relações mais nu-
merosas e deveres mais difticeis impõem maior 6om-
ma de responsabilidade. N'esta communhão activa
de sabedoria e de amor, a esposa não tem um qui-
nhão inferior ao do esposo ; o seu papel é diflerente,
mas não é menos útil nem menos santo. Da harmo-
nia das duas vontades dependem a moralidade e a
ventura da familia.
A adolescência, confiada e submissa, inicia-se,
amando, nas severas provações do futuro. O cons-
trangimento dos antigos tempos influe menos dura-
mente sobre a alma do mancebo repleta de esperan-
ça. Com os olhos respeitosamente erguidos para esses
entes que Deus poz no mundo para serem seus pro-
tectores e guias, toma alegre a vereda alumiada pelo
exemplo das suas virtudes.
Não terminaremos este artigo, que já vae longo,
sem mencionar uma circumstaneia que torna ainda
mais notável a composição copiada na nossa gra-
vura.
O sr. Eichthal não é desenhador, nem pintor tão
pouco :, foi-lhe mister buscar dois artistas para lhe
realisarem no papel o quadro que concebera na men-
te ; e eonseguiram-no com a maior felicidade. Esta
espécie de collaboração é talvez um exemplo único,
no tempo presente, da maneira porque se salie que
um considerável numero de pinturas foram executadas
luis grandes epochas de fé, e mormente na meia edade.
Era assim que os religiosos faziam representar nas
paredes dos claustros as imagens que se Ihei affigu-
ravam em suas meditações e extasis.
ARCIIEOLOGIA PORTUGUEZA.
Instkccções dadas ao coadjutor de bergamo,
scscio em portcoal no tempo de d. joão iii.
"Item. Da Sé Apostólica dispendcm-se em Portu-
gal, a saber : de mestrados, bispados, mosteirtis, e
outros benelicios, logares religiosos e comniendas de
Uhodes, para mais d'um milhão d*ouro de renda,
do qual quasi o total, ou por inna ou por outra via,
pode dispor e dispõe de fado o mesmo papa.
" liem os bispados antigos e grandes não são do
padroado real como alguém pensou, e totlos os mos-
teiros são do provinuínto do papa, assim como a
maior parte dos bi-neficios. E somente são do pa-
droado real alguns pequenos bispados novos nas re-
giões da índia e em algumas ilhas, como o do Fun-
chal, S. Thomé, S. Thiago e diversos. E os referi-
dos mestrados e todos os outros beneficios o são por
graça recente da Sé .'\ postolica . E posto queospajias
muitas vezes costumam dar os ditos bispados asuppli-
cas do'rei, é todavia obra de mera liberalidade, por-
que quando quizeram fazer o contrario sempre o fi-
zeram como verdadeiros padroeiro,s de todo o cccle-
siastico d'a(iuelle reino.
ultem. Todas as abbadias de S. Bento. S. Ber-
nardo e Santo Agostinho de cónegos regulares sem-
pre a Sé Apostólica as dou, aquém aproiive ao papa.
sem contrariL^dade alguma, reservando c impondo
|)eusòes, e dando reservas e acccssi ad vac<íttira, a
M-u prazer e liberalmente, e são de summa importân-
cia e valor.
i. t^ prior.ido de S. Jo.*io de Jerns;»lem é do infan-
te D. Luix, que o jKissue em cominenda com dero-
gnçiio de todos os privilegitis da ordem da religi.Hode
Khodes, e sendo proviíki p''la r>'b\'iâo vale mais de
105000 ducados.
o PANORA-IIA.
315
41 A cidade de Braga no temporal e espiritual tem
o mero e niixto império da igreja, e arcebispo de
Braga com pactos jurados pelos reis de Castella an-
tigos, para que o rei não seja juiz em nenhuma con-
tenda, levantada contra o arcebispo e elle acerca de
jurisdicção, e somente o seja em taes casos o arce-
bispo de Compostella, e a Santa Sé por appellajão.
M O infante D. Henrique é arcebispo d' Évora e
inquisidor mor de Portugal por acto de uma nomea-
ção inquisitória in defectu dos nomeados na bulia.
Mas diz-se que tal faculdade não se estende a poder
nomear quem não tiver a determinada edade pelos
sagrados Cânones, e sabe-se que elle não tem dispen-
sa do papa, exercendo apezar d'isto o ofCcio.
"O filho natural do rei chamado D. Duarte, é
arcebispo de Braga, tem Santa Cruz de Coimbra, e
muitas outras ricas e bellas abbadias.
" O arcebispo de Lisboa é velho, nobre, e paren-
te do rei, e seu capellão mor. K um prelado de boas
qualidades, que indica ser bom ecclesiastico e lem
bastante entrada com o rei. Parece conveniente que
o núncio llie leve breves de N. S. com brandas
palavras, misturadas porém d'auctoridade, e m vir-
lulc ubeãicntia: . E como é respeitosíssimo e tiniido,
fará quanto o núncio determinar. Ainda é preciso
lamijmn que se possa tirar pretexto e razão do que
fizer e disser, porque pode ajudar muito, e essencial-
mente nas cousas que parecer proveitoso dizerem-se
ao rei secretamente com advertência paternal, e elle
para isto é mui apto.
« O bispo de Coimbra é o bispo mais antigo tal-
vez da cliristandade, o foi eleito no oitavo anno de
Xisto. E homem muito bom, porém inteiramente
f<5ra do giro da curte. Porém não falta ás cousas do
papa e da consciência, sendo-lhe re(.'ommendadas de
modo, (pic tema.
II O Egitanense, que se chama da Guarda, é ho-
mem de não boa vida, e muito desobediente ás cou-
sa» de Roma, c além d'isto anda ausente da corte.
Não importa este para nada, a não ser para o
amoeslar.
•<0 infante 1). Henrique arcebispo d^Evora, e ir-
mão do rei faz taes demonstrações de si, que ainda
que não seja senão para se conformar com ellas, se
vi obrigado a obedecer, queira ou não. Será útil,
dissinmlando o seu niúu animo nas cousas da Sé
Apostólica, eliamal-o a ellas o mais possível, unindo
n brandura á aspereza. E não se lhe levando o ofii-
eio d(.' inquisidor, por convir ao nu^nos forral-o a ti-
rar a dispensa da idade, absolver-se do peccado, e ra-
lificur ou annuUar os processos passados, que eslão
tiec íj: dignitate udis ApoiloUcie, nec Sanciissimi l)o-
mútí JVos/ri.
" O bispo do Porto é frade carmelita, pregador e
confessor da rainha-, não ti"m mui boas opiniões acer-
ca das cousas de Hunia, e dil-o e prega-o. E de mais
muito tímido, e reputado h'viano, fallando com o
rei e rainha a miudu. E essencial que o núncio o
não perca de vista, e sentindo du pcirebendo cousa
pul)lii'a iiu hcerela <|uo srja má, lhe fall(> com liber-
dade |)or ser liomem que subitamente iiiuilará para
o que se qiiizer.
«D bispo du Lamego é religniso, li(jniem muito
simples, lie pi)Ui'as letras e de boa Indoli!. (í que se
lliii recomuii'nd.ir, com tanto ([U(! enlenda que é cou-
sa de eons<'ieii<iii, p(Kle-Mí ter |)or cerlo i|ue o fará
logo. E iipli) |i,ii;i iiii|iiisid(ir agora em .ilfjuiiia par-
le do reinii.
"O rei e a seu exenqilo a nobri'za Inda que o
••erca dá ;;i'iin<le credito aos frades; ou seja pela acti-
vidade e immensa ambição d'eUes, ou pelo descuido
dos prelados e sua negligencia, se apoderam do
animo d^aquelle rei por via do púlpito e do confes-
sionário. O que importa proxer a este respeito dir-
se-ha quando se tratar n'este capitulo do que pode
e deve fazer o núncio de Portugal. Por em quanto
vão nomear-se as pessoas importantes para que as
conheça.
" Na ordem de Santo Agostinho ha três frades
principaes ; Fr. João Soares, confessor d'el-rei, ho-
mem de poucas letras, mas de extrema audácia,
de infatigável e immensa ambição, de péssimas opi-
niões, e abertamente inimigo da Sé Apostólica, que
não faz profissão ; e para dizer tudo n'uma palavra,
herege no ultimo ponto. E conhecido do geral,
que tentaria dizer-lhe a verdade, mas não pode fal-
lar-Uu; muito, porque saiu da religião por breve de
N. S. c da Penitenciaria, e o seu mosteiro é o
palácio. Todos o conhecem por hereje menos o rei,
por cujo motivo, e porqut? o frade negoceia em tudo
sob pretexto de confissão, ninguém o vigia ou con-
ta :, é de péssimos costumes e perigoso, c sempre que
podesse ser apanhado em algum laço, ou retirado
do lado do rei, se conseguiria grande vicloria. E
mesmo attrahil-o a nós por qualquer meio seria gran-
de serviço a Deus e a N. S.
ulia outros dous frades de Santo Agostinho, de
reputação, que lá estão agora commissarios do geral,
e confessam grande numero de pessoas, e occupam
um logar grande ao lado do rei, e são os padres VUla-
Franca e Montoza, ambos hespanhocs. Pregam sem-
pre, e o Villa-Franca com grande concurso. O Mon-
toza é reputado como homem de melhor vida, ecom
verdade, porém é governado pelo outro. O rei e
grandes personagens ouvem-no muito.
(CotUinúa.)
l)l'A4 I-At.WRAS SOBHK HOSIMTAKS.
II.
Os 1'itiMKiKos christãos, antepundii ao rico o pobre,
ao forte o fraco, á prepotiMicia o <lireilo, á gloria a
humildade, e os celestes gosos do espirito aos gros-
seiros prazeres do mundo, seguiam e pregavam uma
doutrina contraria á Índole e orgauisação ila socieda-
de pagã. Malerialisada pelos hábitos, pelas ligações
physicas e imperativas, mal podia ella eomprehcn-
der e estimar a idealid.ule eliristã, os laços suasivos
c sympatliicos, por que o Evangelho unia os homens
e os povos na sujeição espontânea e gratíssima d^um
amor reciproco e universal.
A doutrina, ijue proclamava a unidade de Deu»
e a do género humano, eoiisiderando-o conui uma só
família com ]iae e <lestinos eiuiimuns, foi nos seus
primiMros tem|)os inna utopia aceusada <ranarehíca
e subversiva ', e leve de refugiar-se nas solidões dos
bos<pu's, ou nas fraguras dos n\ontes. 1)\u|ui, o nio-
niU'hato. Mas (pie tem o nionacluito com os hospi-
taes.' me perguntará alguém. l'i«le não tornada,
luas eu penso (pie deve ler muito.
As solidões, para onde os p(<rs(>guidos e os descon-
tentes se refugiavam, deviam ser visitadas por gran-
de Miiniero de correligionários, (pie não raras ve»e»
cliegariíini extenuados de (lUiçHsso e privações, pre-
cisados de soccorro e gazalliado. C(U'reiido os tempo»,
e aflluiiido aos eremitérios miiilos sectários do eliris-
liiiiiismo, a pojiulasAo havia de crescer alii. ou nu*
316
O PAjNORA3IA.
visinhanças infalliTelmente. Era impossível então
não empregar meios fjue produzissem uma cxibteu-
cia e lioupitalidade mais commoda.
dualqner que fosse o systema que os gregos e ro-
manos tivessem adoptado para soccorrer os proletá-
rios e desgraçados, parece natural que emanaria do
principio em que assentava a sua organisação social,
e que a centralisação politica, a acção do estado dis-
pensaria a acção individual. A policia e a philantro-
pia haviam de ter mais cuidado dos vadios e mendi-
gos válidos, que pudessem aitentar contra a proprie-
dade e a segurança dos cidadãos, do que dos polires
desvalidos, das creanças e vellios sem amparo, que
não pudessem servir o Estado.
Facilmente se coinprehende quanto o divino pre-
ceito que manda a cada um amar o seu próximo co-
mo a si mesmo, alentado pela communhão de cren-
ças e de infortúnio, havia de concorrer para a abo-
lição da formula politica e administrativa, que regia
a sociedade.
GLuando a idca clirLslã já tinha conquistado lias-
tante numero d'lntelligencias e corações, quando já
havia alargado bastante a sua esphera d'acção, era
impossível que não quízesse ir acabar nas cidades o
que havia ensaiado nas furnas dos rochedos, ou en-
tre as palmeiras do deserto. E raro que as cidades
não preponderem sobre os campos ; c tanto o enten-
deram assim os Apóstolos, que elles procuravam ga-
nhar para a fé, com preferencia, os grandes centros
de população.
Assim apparcceni logo S. Izidoro (d' Alexandria)
S. João Chrisostomo, e outros, dirigindo hospitaes
em cidades populosas.
Cumpre, porém, notar aqui uma cousa. Não di-
stante o que deixo ponderado relativamente á con-
centração politica da sociedade pagã, e apesar da au-
ctoridade d^escriplores altamente reputados, os pri-
meiros christãos não podiam ser, de todo, innovailo-
r(>s no que respcMla a liospitaes e albergarias.
Pondo agora de parte o que a historia ou a tradi-
ção podia dizer-lhes sobre a fundação do hospital de
S. João Baptista em Jerusalém, attribuida a Judas
Machabeu, e bem assim sobre a fundação do hospi-
tal, que S. Bazilio edificara em Cesárea no anno
374, á imitação do que se diz que Moysés já havia
feito nos arrabaldes da mesma cidade, é muito pre-
sumível e pro\avel, que os primeiros christãos vives-
sem das tradições lilterarías e politicas de itoma e
Athcnas.
Nenhuma doutrina teve, jamais, poder bastante
para apagar os vestígios dos s\stemas que a precede-
ram. A acção das idéas e do tempo desmorona im-
périos, mas não pode abolir absoluti>simamente to-
das as suas leis o costumes. Por muitos séculos se de-
vísam na nova ordem de cousas, praticas, ainda as
mais absurdas e abusivas, da sociedade exfincta. Os
christãos dos primeiros séculos, calumniados e perse-
guidos Ião encarniçadamente, não tinham tempo de
sobejo, nem proporções para meditarem e crearem
t\ido.
Q-uanilo se vê q>ic elles foram mendigar ao Grego
palavras para significarem os dillerentes estabeleci-
mentos de caridade, que iam fundando, ehega-se a
duvidar, se tand>ein iriam ali Ivix-r, além da ex-
pressão, a idéa. Eis-aqui as denominações dos mes-
mos estabelecimentos ;
Ihphotroiihium. — Casa onde eram recolhidas e
sustentadas as creancinhas de peito, não so e\[)Ostus,
mas quacsquer outras.
Gtfoutocoiiiiuin. — Asvlo dos xclhos.
\osocomunn. — Jlospital dos doentes.
Urphanoirophium. — Asjlo dos orphãos.
I Ptochoirophium. — As} lo geral para todot os po-
I bres.
, Xenodochium. — Hospedaria para os estrangeiros :
' propriamente hospital ou casa d"ho5pitalidade.
I Ora, na Grécia efTectivamente houve diversos in-
stitutos de pliilantropia, como o dos soldados inváli-
dos, ou mutilados nas campanhas, que foi obra de
Pisistrato. Se estes institutos não podiam servir de
modelo, podiam ao menos suscitar a idéa de erigir
outros melhores, e mais conformes ao seu fim huma-
nitário.
Porque havemos de admirar, por exemplo, o cos-
tume que tinham muitos bispos e ecclesiasticos, de
dar pousada aos peregrinos mandando lavar-lhes os
j)és, e não havemos de admirar esse mesmo costume
entre alguns povos pagãos? Se S. Luiz faz uma boa
obra mandando formar roes dos seus súbditos mise-
ráveis para lhes distribuir soccorros, porque se ha de
dissimular que a fizeram também o senado e os im-
peradores romanos na distribuição dos cereaes aos
proletários ?
As re-idencias dos bispos e os mosteiros foram de
certo modo hospitaes, ou casas d'hospilaIidaJe, queé
isto o que na sua origem significava hospital. Mas
também as hospedarias gratuitas da Grécia (icnodo-
chiaj o eram. liergier, ou La Croix — não me lem-
bra agora qual d"elles — fallando d"e5tas hospedarias
com algum desfavor, diz que as pessoas de bem (hon-
nítes gcns) não se aproveitavam d"ellas, porque iam
hospedar-se cm casa dos seus amigos, quando >iaja-
vam d"unia para outra cidade. Eram os ricos (que
em toda a parte, e em todos os tempos se chamam
pessoas de bem) que não acceitavam ao Estado um
soccorro, de que não tinham precisão. Mas é n"eíta
mesma circumstancia que eu vejo uma razão de pa-
ridade com as all)ergarías chrislãs, aonde d"ordina-
rio só os romeiros e caminhantes pobres se iam re-
colher.
As casas levantadas no Peloponeso em honra d*Es-
culapio, e servidas p<ir certa chisse de sacerdotes que
exercitava a nu-dicina, eram institutos similhantes
aos nossos hospitaes d"agora Tenho esta persuasão,
não obstante dizer-nie o sr. • » • que não ha ne-
nhuma similhaiiça. jwrque n*aquollas casas só so ap-
idicavam meios puramente hxgienicos. Para mim é
essa uma <|uestão secundaria. Creio (|ue posso pre-
scindir de averiguar e discutir, se os ascUpiadcs co-
nheciam ou não a medicina clinica O que importa
saber é, se taes casas existiram, e se os doentes, af-
trahidos pela repulaç.ão íIos padres, ou levados pela
fé que punham nos oráculos, ian> ali curar-so, c ef-
fcctivaincntc se curavam sob a inspecção d'aquelles
sacerdotes.
Não perfendo sustentar que ha identidade, ma»
similhança. TandK>m não devo cntender-se que com-
paro o chrislianismo com o gentilisino alhcnienscou
romano. Deus me lixre de desconhecer a sublime, a
divina espiritualidade d'iim, e a grosseira materiali-
dade do outro. Eu n.ão ]HHlia e<|uij>arar a força ao
direito, a guerra á paz, nem faier jwrallelo entre a
luz o as trevas. Não jidgo porém dcsairadiis os pri-
meiros christãos por saberem dar nova fornia a in-
stituições, (|ue a rudeza dos teiu|Ki$ que os precedo-
raiu não podia multiplicar nem aperfeiçoíir.
O gentiliMno poilia ter fundado asvios o cosas de
hospitalidade, mas dar-lhc» este caracter de pemia-
i.ciici.i e perpetuiiladc, que agora ItVni, sií o chris-
lianismo o podia fazer o o fel.
(Cotittnúa.)
o PANORAMA.
317
INSTRUMENTOS DE MUSICA. — TROMBETAS DOS HEBREUS.
O» IIf.rkevs tomaram de certo dos Egypcios aí
froinbclas, (|m' rrprcsoritavam, de resto, um papel
imporlanie uns «•iTenioniu» relÍE;iosas dVsse povofor-
maliíla. A llihlia menciona em iimilas passaíçons es-
te itislriiniPiilo. A origem das trombetas do templo
»]ue se eonitervavam como a arca, ocaiid(ílabrodeset<'
braços, ctc. é referida na Kscriptura polo seguinte
modo ;
11 Ka liou mais o Sfoliiir a Moysés, o lho disse:
~ I'"a7.i' para li duas Irombetas de praia f/iníso/s-
follis) l>alidas ao inarlélo, das (jiiacs le |>ossas servir
[lara convocares lodu u INivo, (piando se li(jiiver di'
Icvaiilar o campo.
•'(luando lu tiveres Icilo soar eslas Irondielas,
todo o povo HO. njunlará ao pr de li, á entrada do
'rabernaciilo do conccrlo.
u Se til não locar<'S senão uma vez, virão a li os
J'riiicipcs, e os ClieCcs do 1'civo di- Israel.
ujMas se o som tiW mai-i dilalado i' mais conciso,
os <pi(' eslão para a baiid.i An < (liiiile serão os ])ri-
meiros, cpie di'scaiiipcm .
.* Ao segundo loi|ii<' da Ironibela, simlllianle ao
primeiro, os (jiie eslão para o IMcio-diadeilarãoaliai-
xo (]s seus pavilliiíeji: e o mesmo farão os oiilro» no
soniiji) duti liinnbelas, ipie .loirarão .1 partir,
4. Mas ijiiando fòr necessário somente ajuntar o Po-
vo, farão as Ircjnibetas um som mais miúdo i; mais
simples, o não aípielle som conciso.
.1 A» trombetas tooal-as-hâo os Sacerdotes, riliiosde
Arão : o esta Lei será guardada para sempre pelos
vossos vindouros.
u Se vós sairdes do vosso paiz para a guerra con-
tra os inimigos que vos atacam, fareis com as Iroiii-
betas um som <pu.' retumbe, e o Senlior vosso Dous
se lembrará ile vós, para vos livr.ir das mãos ile vos-
sos inimigos.
..(luando fizerdes algum l)ani|ucle, c celebrardes
os dias do festa e os primi'iros dias do met, locareis
cslas troinlielas, ollcrccendo os Missos liolocausios, e
as vossas hóstias pacilicas, afuil de (pu" o vosso Deus
se lemliri" de viw. "
Kis-aipii taiiii>em como a liitilld nana a loniaila
dc> .leri<hii.
4. Mas no ília sétimo os Sacerdotes tomem as sele
troinlielas, de que se usa no anno do.lubili'0, i- mar-
chini adiante da Arca do concerto i '' roíii-areis sele
vc/.es a ciilade, e iis Sacerdotes tocarão as I roínbclas.
.. K cpiando as trombetas fi/crem \im sonido mais
largo, c p( Iranle, e este vos ferir os ou\ idos, todo
o Tovo a uma vox dará uni grande ^giito, <• então
318
O PANORA3IA.
cairão os muros da cidade, alé o fundamentx), e ca-
da um entrará por aqiielle logar, que lhe ficar de-
fronte. » (Bíblia Sayrada, Números, Cap. X.Jo-
sué, Cap- VI. Trad. do PaAre A. Pereira.)
Contam os Gregos uma historia analoça de um
combate entre os Spartanos e os messenienses \ estes
atterrados pelo som da trombeta, novo para elles,
foram vencidos quasi som combate.
Deve notar-se que as trombetas, a que se refere o
ultimo logar da BiUia citado, não eram direitas co-
mo as hatsohroths, que correspondem ás iubae dos
Romanos :, eram feitas dos cornos de carneiro ou boi,
como mostra o seu nome hebreu, e o latino comua,
bvccinae.
Não conhecemos monumento algum em que te-
nham sido representadas as trombetas curvas dos Ju-
deus :, mas possuímos dois transumptos authenticos
das trombetas sagradas do templo. Depois da toma-
da de Jerusalém, Tito voltou triumphante a Roma.
Ao uso romano, foram apresentados na solemnidade
triumphal os despojos dos vencidos \ entre estes des-
pojos figuravam os dois haisoUroihs ordenados pelo
Senhor a I\Ioyse'3. O arco de Tito ainda existe em
Roma, e nos baixos-relevos de que é ornamenta-
do acha-se figurada a solemnidade triumphal cuja
memoria este monumento devia perpetuar. A nossa
gravura é cópia de um dos grupos d'essosbaixos-rele-
vos. Três escravos laureados conduzem aos hombros
uma espécie de padiola, no qual estão postos o altar
das propiciações e as duas trombetas. Vê-se que são
direitas e muito compridas, a boca não é mui lar-
ga, e não tem ornato algum. Um personagem vesti-
do de toga, e com um ramo de loureiro na mão, ca-
minha ao lado dos trcs escravos. O segundo monu-
mento em que apparccem as trombetas, é uma moe-
da de prata cunhada em Jerusalém, de que também
damos gravura.
Esta moeda tem de um lado um cacho de uvas, e
em hebraico Schitneoti ; ó o nome de Simão Maclia-
beo, grão-sacerdote, general cm chefe o princii)e de
Israel, da dynastia asmonéa, que imperou desde o
anno líi até ao anno 13o antes de Jesus Christo.
No reverso vêem-se as duas trombetas, similhantes ás
do arco de Tito, c lê-se igualmente em hebraico :
Laherout Jerouschalim. (Libcrtição de Jerusalém).
Esta medalha não c contemporânea do valoroso
Simão Machabeo, que restituiu a independência a
Israel, porque foi feiia em um dinheiro doTrajano^
mas o sr. C. Lenormanl resolveu recentemente esta
diíficuldado, mostrando que os judeus, em reconhe-
cimento dos grandes feitos de Simão Machabeo, per-
petuaram em sua moeda o nome doeste lieroe e a
memoria da libertação de Jerusalém, em quanto con-
servaram a sua nacionalidailo.
Viagem Á 1'ai.esti^a i-nn A!r. ok Sai h \ .
Sarcophayo de David. — ií.r;i/(i|-njuo do Mar-Morlo.
De todos os estudos históricos sol>rp a antiguidade
sacra ou prophana, os mais notavcu e os mais fecun-
dos FHO incontejtavelmcnte 03 que resultam da? ex-
plorações feitas pelos auctores nas próprias localida-
des. A maior parte dos sábios privilegiados preferem
dilucidar tranquillamente no gabinete as arriscadas
investigações dos mineiros da sciencia, ou examinar
códices inintelligiveis, a irem passar incommodos e
correr perigos para estudar per si mesmos os logares
e os monumentos. Comtudo, ha honrosas excepções,
entre as quaes cumpre contar Mr. de Saidcy, cuja
viagem recentisiima á Palestina tem merecido a at-
tenção dos sábios, do clero, e das pessoas instruídas.
Ao dar os primeiros passos na terra santa, na ci-
dade fr(;quentada annualmente pelos piedosos pere-
grinos, fez Mr. de Saulc>- importantes descobrimen-
tos. Paliaremos s<5 de um monumento grandemente
interessante para a arte e para a sciencia, mais uma
preciosidade que adquiriu o museu doLouvre. £um
sarcophago extrahido dos sepulchros dos reis de Ju-
dá, que segundo as provas colUgidas pelo sábio aca-
démico encerrou os despojos mortaes do santo rei
David.
Próximo de Jerusalém, obra de 22o a 270 braças
distante da porta de Damasco, á direita do caminho
de Naplusa, divisa-se n^um sitio entre ruínas uma
catacumba sepulchral, conhecida desde tempo im-
memorial pelo nome de Kobour d Salathin, Ko-
bmir el Melouk, ou jazigo dos reis : é aberta na ro-
cha com admirável arte :, o aspecto singelo e jrandioso
appresenta as príncipaes linhas e algumas particula-
ridades de monumentos gregos \ o plano e distribui-
ção assemclham-se aos hipojeus esvpcios; mas o to-
do tem um caracter particular, que não égre^o nem
egypcío. E uma architeclura hybrida que recorda as
imitações de outros paizes, feitas por um povo que
pereceu antes de haver chegado á edade viril, antes
de ter desenvolvido toda a sua individualidade.
A fachada couipõe-se de duas columnas, hoje par-
tidas, e duas pilastras embutidas nas paredes lateracs
da rocha : uma rica grinalda de folhagens, de fructas
e de pinhas corre ao largo da architravc, e pende,
em angulo recto, de cada lado da entrada. O enta-
blamento apresenta também um largo friso, cujo
centro é occupado por um cacho de uvas, emblema
da terra da promissão, e typo das moedas asmodeas.
A direita e esquerda doeste emblema estão coUoca-
das svmetrieamente imia coroa, depois um florão de
três palmas e por ultimo triglyphos alternando com
pateras repetidas tros vezes. Sobre este friio come<,'a
uma formosa cornija, formada de numerosas moldu-
ras, elegantes e variadas, clevando-se até a altura da
rocha.
A porta d'entrada doeste hypogeu abre sobre um
poço fundo, hoje cego, destinado n'oulro tempo a
vedar o accesso, e tragar o temerário que se atreves-
se a prophanar este ultimo asylo dos reis de Judá. A
boca era cerrada com uma porta maciça de pedra
que se podia abrir exteriormente por meio de um
mcchanismo simples e engenhoso, m:is que era im-
possível mover da parte interior, como para indicar
que s<5 a morte devia habital-a. Esta jxirla da para
um vestíbulo quadrado, artisticamente talhado, e
cova três portas que dão entrada p.ara outras (antas
naves sepulchraes. A primeira ciuitén» seis túmulos
abertos na rocha em lisura de forno, vendo-sc no
fiuido um pequeno rcducto quadrado, para conter o
sarcophago e provavelmente para guardar ihesourose
objectos preciosos. A direita uma abertura, occulla
com ornatos, conduz por um corredor inclinado a imia
camará sepulchral mais Ixiixa que as demais, á qual,
|x>rcuj, parece subordinado todo o monumento : esta
camará, pr.iticada exactamente no eixo doh>p<>çou,
occupa no mausoléu dos reis de Judá o log.ir hoi>o-
rifico, que parece ter sidu reservado a Da\id.
o PANORA3IA.
319
N'csta sala ha um sarcophago, cuja parte superior,
de trabalho magnifico, foi trazida porMr. deSaulcy,
que conseguiu apossar-so dY-Ua, ajudado de seus com-
panheiros de viagem, ft]r. Ed. Delesset e o abbade
Michon, e depois de infinitas diffieuldados logrou
apresental-a no Louvre, onde ha pouco foi exposta
ao exame dos curiosos.
A cobertura <• dividida em cinco faxas longitudi-
naes, que representam parras, cachos d'uvas, romãs,
folhas d'enzinho e bolotas, pinhas e grinaldas de oli-
veira. Todos os adornos emblemáticos, de que é co-
berto o sarcophago, são tomados do reino vegetal, se-
gundo a lei judaica, e são os mesmos que a Jiiblia
menciona descrevendo a ornamontayão do templo de
Salomão.
A mencionada cobertura do sarcophago é dividida
em duas partes, e ainiia que lhe falta uma das ex-
tremidades a sua largura total é hoje de perto de no-
ve palmos. A pedra é um calcareo mui duro, pelo
que devia ser bastante difficil o lavor do ornato. As
palmas, flores, fruçtos, toda esta filagrana delicada
foi feita a cinzel. E o único monumento notável da
arte judaica que possue a Europa.
As outras camarás ou naves sepulchraes contém
uma nove túmulos e a outra seis : da primeira d'es-
sas camarás desce-se á sala inferior onde parece que
estivera o corjjo de Ezechias, filho e successor de
Achas, que restabeleceu o verdadeiro Culto Divino
e derrotou os pliilisleus. Todos os túmulos completos
perlencerani aos réis de Judá, que segundo a Bihlia
foram sepultados ii'este jazigo de família. Cada tu-
mulo por concluir corresponde a um rei que não foi
depositado na se[)ullura de seus antepassados, uns
porquí! levados ein captiveiro a líabylonia ou ao
Egypto por lá morreram, outros portpie tiveram se-
[)ulluia particular como Manasses e Amon : quanto
Íl usurpadora Alhalia de certo não foi depositada en-
tre os principes da ra(,a que pertcndêra exterminar.
Tal é o precioso monumenlo que Mr. Saulcy fez co-
nhecido. (Continua.)
SILENCIO.
Toul tlort.
V.HtGo.
GLue noite sombria 1
duc triste mudei !
De lenta agonia
(iue sello profundo
Na fac(! do mundo,
Rliiih'alma, náo vis '
Um nsiro doirado
Não brilha no céu ^
D(í negro loldndo
O lúcido império
Em crepe funéreo
A terra «•n\olveu !
LJin som não «o escuta^
Não 61! ouve um só ai ;,
De concava gruta
No fundo retiro
Perdido suspiro
Da brisa não Hai.
An agua» não gemem
< !oireudo no elião :,
As folliMN não tremem
Nos I roncos frondoso»
l-luc mudos, chiu'osu>
IniniiiMMs cBlào.
Sem frémitos d 'ira,
Sem queixas d'amor,
Apenas expira
Na riba fragosa
Da vaga espumosa
Confuso rumor.
Em paz dorme tudo,
Jaz tudo sem voz \
O pego sauhudo,
A folha ligeira,
A brisa fagueira
E a lympha veloz I
Contente, e sem medo
Eu goso esta paz !
Ao que ama em segredo
Soffrendo isolado
O mundo calado
E quando lhe apraz I
Silencio ! sublime
Linguagem de Deus !
Ella única exprime
O imnienso, o eterno,
As anciãs do inferno,
E os gosos dos céus !
Silencio ! eu bemdigo.
Eu amo-lhe a paz,
Q-ue é elle o amigo
O sócio discreto
Do ultimo tecto
Glue, ó terra, nos dás '.
A. Lima.
LENDAS HISTÓRICAS.
O Demónio do Lago.
I.
O Tumulo c o Ber^o .
Poii meiado do mez de dezembro de 1j'(2 lazia-se
um grande tumullo no castcllo de Falkland, em Es-
cócia. Achava-se ahi reunida parte da nobreza, na
cxpccLaliva de uma grande desgraça, e de uma boa
nova. A desgra(;a ia consuinar-be no próprio castello
cm que o rei Jaques V se tinha recolhido dei)oÍ3 da
denota do seu cxercilo jjelos inglezcs, em Solway-
iVIous:, a boa nova esporava-se do castcllo de Lin-
liliigow, onde residia a raiiiiia d'Escocia, Maria de
iiorraiuc, llllia de Cláudio de liorraine, primeirodu-
<jue de Ciiiise.
lOra <!sla para a Escócia uma ipiadra de tristeza e
(■s|icraM<;a ao mesmo tempo. Acabava um rcÍMa<lt>.
aniiuiiciava-se oulro. Em quanto o pobre Jaipics N
lurlava com os plianta>uias que o lorluravani em sua
a'4<)iiia, a raiidia, com grande seutiuienlo de nàojMJ-
dir acompanhar seu esposo muito amado, esperava,
longe d'elle, o priuu'iro vagido da crean<;a que devia
subsliluir o seus dois filhos nuirtos no l)cr(,o. Final-
mente, a S de dezeud)ro, um cavalleiro partiu a to-
da a brida do castello ile líinlithgow para u residên-
cia de Falkland, <'s|ialhaudo pelo caminho u feliz no-
ticia do nascimento de uuiii menina, que devia ter
o nome di> sua uiài<, Maria.
N'esle di.i mesnui entrara o rei Jaques iruui ni'-
denlissiino delírio. F.siierou-se iiue lhe sobrcvies-icnl
320
O PANORAMA.
gum momento lu(;i<lo para o informar do acontecido ;
11)33 a razão parecia têl-o abandonado para sempre.
A Escócia era então um paiz bem terrível, cheio
de ignorância c de bruteza. Os fidalgos exerciam ali,
fjuando lhes convinha, o mister de assassinos e de
ladrões. O assassinato era a ultima razão politica.
Jaques V, organisacão poética c delicada, não nas-
cera para este paiz svlvestrc, e para esta epocha bar-
bara; fòra-lhe muitas vezes necessário renunciara
suas illusõcs, aos seus passeios aventurosos, á sua vi-
da de galanteiar. Calliolico sincero, e justiceiro im-
placável, sacriiicando os interesses da sua dvnastia
aos princípios da fé, combatera rijamente o presbj-
terianismo de seu tio Henrique Mil. Mas em vão
aHbgára os seus generosos instinctos ■, em vão appellá-
ra para a espada, para o cutelo, para a fogueira \
al)andonado, pela ambição dos nobres e pela indiíle-
rença do povo, duas vezes vencido por Henrique VIIT,
lamentando a vergonha das suas armas e a inutilida-
de dos seus rigores, consumido pelos remorsos, pela
áÒT e pela febre, não estava mesmo em estado de re-
ceber a consolação que a Providencia lhe enviava.
Com os olhos ardentes e encovados, os cabellos dis-
persos, os lábios contraídos, as ventas dilatadas, as
mãos estorcidas, Jaques luctava desesperado com as
temerosas visões que lhe tumultuavam em torno do
quarto.
Umas vezes afíjgurava-se-lhe que todas as victimas
da sua intolerância, escapando á fogueira, vinham
arrojar-lhe á cama a lenha e as chainmas do suppli-
cio :, e então o infeliz inonarcha, bradava que havia
fogo, queria saltar do leito, fugir, e dizia que o in-
cêndio lhe requeimava os ossos. Se os criados e os
gentis-homens se atreviam a aproximar-se e lhe pe-
gavam dos braços para o segurar, o moribundo des-
maiava de terror, tomando aquellas mãos oflicíosas
por tenazes sanguentas. Espectros, que elle nomeava,
vinham, ora escarnecêl-o, ora chamal-o. Um, dizia
elle, tinha-lhe cortado os braços c as pernas, o jura-
ra cortar-lho a cabeça. Outro enipuxava-o para um
lago cujas aguas eram avermelhadas, e pertendia af-
fogal-o. Era um espectáculo horrível a agonia d"cste
moço rei, n aos menos sensiveis arrasavam-se os olhos
de lagrimas de o vêr assim.
A 14 de dezembro, pela manliã, a paixão de .La-
ques V pareceu tocar o seu termo. Depois de uni le-
thargo de algumas horas, o rei aceordou, socegado,
mui fraco, mas no uso pleno da razão. Sentou-se na
cama, esguurdou tudo em roda com aquelle olhar
pasmado de homem que acaba de ter um pezadélo,
fez signal jiara que abrissem uma janella, aspirou
longamente o vento do hvnverno que açoutava as ar-
vores nuas •, depois descaiu a cabeça sobre o traves-
seiro, murmurando :
— Wue terrível somno me destes, meu Deus I E
que ^ào triste accordar !
Cercaram todos então o leito real, e reconhecen-
do, no triste sorriso com que o monarcha saudava os
cortesãos da morte, que elle estava mais tranquíUo,
um laird «rEscocia ajoelhou, travou-lhe da mão hú-
mida que o rei llie apresentava, beijou-Ura, e an-
nunciou a .la(|ues A o nascimento de Jlaria, sua ti-
Iha.
Esta nova, como rocio divinal, por um instante,
spagou o fogo que consumia o infeliz Jaques. Cer-
rou os olhos, de goso celeste. Oseu pobre coração tão
entumecido, tão niartvrisado, pulou-llie n'um suspi-
ro de alegria e de triuniplio ; o inferno desapparcceu ;
abriu-se para elle o c(!u ; o rei deu I.T^ar ,u> pae, e estas
palavras: — uma filha 1 repclliram nas trevas os es-
pectros horríveis (jue liuviam velado junto do leito
rei'- — Lina lillia ! nnirmuruu o enfermo, c osollius
arrasaram-se-lhe de doces lagrimas ; depob recaiu
n'um ineflavel extasís, e via-se, pelo mecher dos bei-
ços, que a sua alma franqueara o espaço, voando pa-
ra Linlithgovv, e íluctuava reconciliada, por sobre o
berço de sua lilha. 1'obre rei! pobre pae'. E julga-
va-se feliz de pensar na débil creancínha que nascera
ao pé dos cadafalsos ; é que o tumulo alx?rto dos
seus dois filhos tornava a fechar-se •, o horisonte tão
triste, tão desencantado, tão negro illuminava-se, e
de longe, e através dos nevoeiros, elle imaginava vêr
uma loura caljeça de creança a sorrir-lhe I Kepresen-
tou-se-lhe, como em um relâmpago toda essa epocha
indiscríptível de alegrias, de affagos, de mimos, de
folgares da infância. Era bálsamo de vida e de es-
perança que se lhe entornava no coração.
Ai '. as tréguas foram breves, e a miragem desap-
pareceu presto ; a consciência de uma morte próxi-
ma veiu de novo afíligir o rei. A testa eubriu-se-lhe
de suores \ vieram-lhe as convulsões ; tornou-se a fe-
char a janella, e reanimou-se o fogão ; mas o vento
do tumulo não cessou mais de açoutar aquelle espe-
ctro real.
— Uma filha I repetiu Jaques ; pobre creança '.
vaes tomar lucto por teu pae e pela Escócia '.
Esta idéa evocou os esquecidos phantasraas. o rei
tapou os olhos com as mãos, como para não vêr hor-
ríveis quadros, e disse :
" Os que não respeitaram o cardo real, que man-
" charam a coroa d'Iíscocia, e que profanaram cíta
i> coroa na minha fronte, hani de arrancal-a da sua. ?•
Depois de ter proferido estas palavras propheticas.
o moribundo virou-se no leito, e soltando um gran-
de grito, expirou.
Os gentis-homens acercaram-sc, um após outro,
do leito fúnebre, deram um ultimo adeus .t majestade
morta, depois desceram silenciosos ao paleo do cas-
tello, montaram seus cavallos, e abalaram-se para o
castello de Linlithgovv. Iam saudar a sua rainha de
seis dias, JMaria Stuart.
A prophecia do rei parecera preceder este sinistro
cortejo, e, apesar da sua rudesa, os nobres com-
prehendiam que o tumulo aberto era muito vasto
para uma só víctima, c que a Escócia ia entrar
ii"uina larga e sanguiiio>a viuvei.
fCuntiitúa.)
— Q.uanto dariam ás vezes os ricv» e os feliie* e
poderosos para comprarem ou imporem essas affciçõcs
invsteriosius, que o cscriptor pobre e desvalido vae
despertar }ior uma acção invisível no seio das multi-
dões.' A consciência, que vos assegura que tendes isso'
em grau mais ou menos subido, reconipeiisa-\ os d< s
vossos esforç-os intellectuaes. \'aidade ou orgulho Ile-
gítimo, essa persuasão é um goso, c o goso é a causa
final de todas as ambíçi">es, de t(xlo otrakdho huma-
no. São na verdade diversas .is utilidades que provém
lia riijueza das que provém do engenho. Predominam
n"aquellas os commodos niateriaes, n*esta5 a satisfa-
ção interior ; mas por isso mesmo, tanto n'umas co-
mo n*outr;is ha a homogeneidade, a harmonia entre
os esforços e as recompensas.
.•\ . H KRCv lASO. — .4 Propríetlade LiUrrnria .
— .\ idca moral da antiguidade era o amor da pa-
tria. Todos os prodígios das antigas repulJica» as.-<-n-
tam n"eàl;i Ikisc vígorv>sa. mas limitada.
.V idéa moral ik>s t«'m|>os mmlernos, é o amor do
género humano. .-V iKMievolencia universal, que <•
o espirito do Evangelho, abrange a liumanid.ide
inteira. .Vi.mi:-M.vbtin.
41
o PAiNORA3IA.
321
Voi.. 1.— J.-' Sl,UlK.
oiTiMui.. ".), is;í-j.
322
o PANORAMA.
(JRI ro EM MÁRMORE, PUR M. EtEX .
TarÍs, a capital do mundo moderno, a cidade mo-
numental por excellcneia, vae perpetuar a memoria
tle uma das maiores calamidades que tem aifligido a
humanidade, erigindo em uma das suas praças o
grande e S(?vero grupo que a nossa gravura repre-
senta.
Q-uem SC não recorda com angustia d'esses dias
horrorosos enj que a morte feria rápida, sem tré-
guas, a cada hora, a cada minuto, todas as classes,
Iodas as edades. GLiicm não sentiria então rebentar-
Ihe no seio, mais abundantes e fecundas, as fontes
santas do amor do próximo, e do temor de Deus !
Vergando aos golpes do íiagcUo invisível, cada um
de nós comprchendc mellior a sua fraqueza, a ne-
cessidade de amar, de soccorrer os seus similliantes,
e de confiar só no Su[)remo Redemptor '. J''sla cari-
dade, esta piedade lêem em si a própria recom-
pensa, como todas as virtudes ; porqui; confortam !
a nossa coragem c alimentam a nossa esperança.
Q artista idealisou unia c outra na figura principal
do grupo, que representa, até certo ponto, todos os
habitantes sob a personificação da cidade de l'arís.
Como carinhosa mãe ella abraça as duas mais fra-
cas d'cnlre as victimas ; o velho, cujos olhos meio
cerrados procuram o céu, e o adolescente, que fita
na terra uiii derradeiro olhar de saudade. O senti-
mento da dòr na figura da cidade de Paris é simples
e digno ; não altera a bolleza das linhas :, um movi-
mento da cabeça e do pescoço bastou ao arlista para
exprimir a idéa moral, na proporção permittida pe-
las regras sublimes da arte. Uma dór como csla po-
de viver eterna no mármore ; contorsões do corpo,
refrangimonto no rosto, teriam apenas produzido a
imagem do -«lesespero, que nunca é de larga dura, e
i|ue dlfficilmonte se presta a uma bella expressão.
ti velho, de (jue na gravura apenas se vê a cabeça e
uma pcijuena parte do corpo, v<Tga sob a violência
da moléstia •, para esto a morte é a maior mercê que
lhe Uciis piíile fazer. O adolescente cede sem luctar.
O ]iedcblal é de uma forma e côr severas, quaes
convinham ao objecto. — Finalmente esta obra, que
foi concebida em Roma, pelo illustre aucfor do gru-
po d(! Caim e Abel, é digna dos melhores leinposda
eseulptura, na opinião unanime dos entendidos.
A lU IIEOLOGl A rOHTl (U V/A \ .
J^ÍSTniUíjÒKS DADAS AO COAD.1VTOR 1)E BERUAMO.
NÚNCIO EM l'ORTl-GAL NO TEM1'0 DE D. Joio ÍII.
.. .\a ordem de S. Domingos ha um frade também
de Caslella, que se chama o 1'adeglior, pregador c
litterato, homem de má vida e audaz. Este, refor-
mando o convento de Lisboa, incorreu publicamen-
le na liulla in Cana IJomin!, recusando obedecer ás
provisões do papa, fazendo despojar o Notário, oex-
lorquir-lbe as letras Apostólicas pelos ofl\ci;H-s rt-aes ;
os <|uaes depois com elle mostraram alisolvição jxir
penitencia, e mesmo excommungado continuou a
pregar. O que sendo publico o núncio de N. S. e
outros muitos nunca mais o \ imitaram, nem ouviram
como «ranies costumavam. Diz-se que elle vem a
Koma ao Capitulo, se cá não está a esta hora.
.4 Na ordem de S. Jeronvino ha um frade de V"a-
lencia, chamado Kr. iVliguol, com reputação de ópti-
ma vida-, é liberalissimo e proccilo isentamente
com os seus confessados, cous.i rara em frade ; tunto
que por não querer absolver o rei uma \et, não foi
mais chamado para o confessar, e por isso o substi-
tuiu o referido Fr. João Soares.
« Ao pé do rei nas cousas grandc-s fem sumnna in-
fluencia o infante D. Luiz, por auctoridade que as-
sumiu sobre elle quasi violentamente ; e o cunde da
Castanheira por extrema aíTeição, que o rei lhe con-
sagra. Este é homem malvadíssimo, mas louva-se de
delicadesa, de crmsciencia, e de santidade, afim de
por este caminho se introduzir na intimidade d(^
frades que não largam as ilhargas do rei. O pae do
conde foi traidor, e desterrado ; e o irmão mais ve-
lho pelo mesmo crime foi publicamente esquarteja-
do. O conde de \'iraioso, flUio do bispo d"Evora,
também tem credito com o monarcha. Ambos elles
possuem muitos bens ecclesiasticos jjor via dos frades.
JPóde-se-lhes insinuar a vontade de N. S. o papa.
" Os doutores da Relação têem muita valia com o
rei, e de ordinário são insolentíssimos nas cousas ec-
clcsiasticas ; se os deixam, fazem todo oníal possivel.
nada respeitando. A estes, diz-se, que é necessário
que o núncio feche a boc^ empregando a sua aucto-
ridade
í-O rei e seus irmãos, ou por causa dos frades com
quem tratam a miúdo, e de cujas letras e consciên-
cia se fiam, ou por causa de alguns homens maus.
de quem ouvem conselhos, não mostram l)om animo
pelas cousas de Roma, elevando-as p<irém ás nuvens,
sempre que requerem d^ella alguma graça. E o mo-
tivo porque tanto se temem dos núncios, diz-sc que
é por metterem a mão de boa vontade, sempre que
podem, nas cousas da juristlicção da igreja, não tan-
to para a expoliar, como para go\ernar, nomeando
priores e abbades, clevando-os por considerações par-
ticulares, e chamando ao seu tribunal os clérigos, e
outras similhantes usurpações. Mas sempre faiem pro-
fissão de proceder em tudo segundo o conselho do^
religiosos, em serviço de Deus e de S. S. Aomesmt»
tempo todo o povo portuguez por Índole se mostra
obedientíssimo á Sé Apostólica, sendo religiosissimo ;
e nuo convém diverfil-o do modo algum da sua de-
voção, não o deixando nunci sair do caminho. Em
se tendo o caracter de núncio, e exercendo a aucto-
ridade apostólica, esta contém a todos, e não a con-
testa ninguém, principalmente desde o tempo do pa-
pa Paulo, salvo algum dos que se .icolhem aos que
estão ao lado do rei, c é preciso comprimil-os, aliát
ham de apanhar quanto puderem colher.
"A nobreza e grande parte ilo jwvo não se pôde
' apartar de forma alguma da inlluencia da Sé Apos-
I tolica, nem niover-se fora d"ella, porque todos, ou
por causa das coinmendas, ou dos beneficias com o
I habito, ou da emplivteusis, ou de p.ircntes clérigos
! vivendo dos bens da igreja com bulias e provis<">cs
' apostólicas, se inclinam a Roma , e som ella nenhum
I se crê seguro, como podem altesfar os núncios ante-
riores e a Penitenciaria, e não ha difTunildade ou du-
vida, por mininia que seja, que não desejen) resol-
vida por favoráveis provisõ<-s de Roma.
»i As cous.as em que o rei de Portugal (e este so-
bre tudo pareei>-me cpie não fará nada sem a Sé
.Vpostolica) é fácil em incorrer i-ontinu.-unentc en»
censuras, acrose<>ndo outras di\idas á Camará, são as
seguintes :
«•As commciidas nomeam-se sob condição doscoin-
nu-ndadores dentni de oito incies serem obrigados n
tirar noAa provisão, p;ig,indo os ri-siíectiv os din-it<>«
á Camará Apostólica, r passaiulo o dito tcmpti sem
a tirar, as commcndas ficam A.i;ras e os fructos per-
tencem á Camará .\[>ostolica pelo temixi <|Ueoseom-
nuiidadorcs se obstinam n.i contumjci.i. São tantos
os <|ue as ii.lo têrni lirailn, e fruem as rendas depois
o PANORA3IA.
323
dos oito inozcs, que se julga certo, que a sua divida
á Camará Apostólica excede a 100^000 escudos!
li Logo que se faça a revogação da união perpetua
que não teve elleito, de propósito, e que seja revo-
gada a bulia das comincndas por vagar, não se jul-
gando obtida a rivalidajão, existe quasi um terço
d'ellas, que precisa de nova concessão.
íí A mercadoria principal que o rei manda ás ín-
dias para resgatar especiaria, consiste em immensas
carregações de cobre e bronze, que todas são vendi-
ilas aos infiéis, os qiiaes fazem d'elle arlilheria bel-
lissiina, havendo na índia regulo, que possue maior
copia e melhor do que toda a que o imperador, ou
o rei de França possuem. Isto é expressamente op-
posto á letra da bidla iit Cccna Domini. Isto, se con-
seguíssemos cvital-o, cortaria metade das contesta-
ções, porque da sua continuação é indubitável que
resulta sumni» prejuizo á christandade.
" Entre as leis do reino muitas existem contra a
liberdade ecclcsiaslica, e os sagrados cânones ; e en-
Ire ellus uma, que manda a todos os prelados,- ou
protonotarios e outros similhantes, cuja isenção de-
fendemos, e que não lêem no reino juizo ordinário,
<iue sejam obrigados a responder perante o juiz se-
cular, cjianiado corregedor da corte. De forma que
está em muito melhor situação o mais pobre e bai-
xo clero, do que os isentos por bulia pontifícia ;
visto aquelles irem ao foro ecclcsiaslico do seu pre-
lado com ap[iellação para o papa, e estes responde-
rem perante o juiz secular, naturalmente inimigo dos
padres p. dos núncios, sem appellação alguma. K por
causa d'esta Uú incorrem de continuo nas censuras e
morrem fulminados por ellas. Este abuso só por si
bastava para haver sempre núncio em Portugal, ao
menos para os escusos terem o seu juiz.
II Os comniendadorcs e cavalleiros na milicia do
reino são freires professos, e como ta(!S proliibitlcjs de
julgarem causas crimes, e de tocarem em cousa de
sangue:, mas usualmente quasi todos são juizes, e ra-
ro será o juiz criminal, que não traga ao pi-ito acruz
de alguma ordem, fado em estremo escandaloso, sa-
bido eaponl;iilo de lodos, que não se remedeia, quan-
do por tíjdo o direito ficam nullas as suas sentenças.
li Ordinarianienle cjuando um juiz ecclcsiastico faz
cousa ijue ch^sagrada ao rei, ou alguma sentença dos
seculares, por injustíssima e violenta, é desobedecida
dos padres, de repente, a reiíueriniento de quem
quer, se faz inna carta regia clianiando-o á sua pre-
sença para ser ouvido <'m matéria de seu serviço. A
estas cartas ch.imani carias ila ('amara real. Se o pa-
dre vem ao paço, o n-i nem lhe falia nunca, nem o
deixa partir da cõrt<', fazendo-o gastar quanto pos-
sue, morrendo ii'ella. E necessário que o que deseja
relirar-se revogue a sentença ou obedeça ás ordens
dos seculares. Aos ipie recusam vir sequestram-lhe
as rendas. O (pie é uma servidão cruel expressamen-
te atli-ntatoria da liberdade ecclesiastica e da aucto-
rid
(la
aile (la Igreja.
i. I)escubriu-se agora em 1'orlugal um novo meio
lii' usurpar a jurisdicção ecciesiaslica i e consiste cm
t) rei erear um audilorio ou parlamenlo cliamado —
Mez/i da eonscieiícia — eonipitolo de padres, secula-
ICH, frades e prelados, para conhecerem de tudo com
tanto (|iie se diga, «jue é cousa de consciência \ e a
pretexto d'esta consciência mandam, liuiilam, fa-
iem o desfazem cousas gravissiiiias conlra os prelados
e outros ecciesiaslicds, •iiiu jurisdicçàn iienliuiua do
pupa nem dos ícus legadcjs, sendo aliás iiicoiiipeleií-
tisaimos os juizes em ludo o ijiic scnleiíceiam, A ori-
gem e a côr com ([Ue se fuiidim foi a piclexto do rei
((uerer <|ue esla Meia du i;oiiaciencia por ser de pes-
Mii* litloruluv, liunraduii u ruli^ionu», lhe luuibrastu
as cousas de consciência. E quando alguém reque-
resse ao rei alguma cousa de satisfação ou de divida
por caso de consciência, que houvesse, onde eUe apre-
sentasse as razões da sua pretensão ordinariamente.
Em taes casos a iMeza limita-se a dizer ao rei, so-
bre aquillo em que é consultada, que a consciência
o não obriga, ou por consciência não fxíde permittir.
E o fim d'isto é sabido e censurado de alguns, e
d'aqui provém grave damno á liberdade e jurisdic-
ção ecclesiastica.
(■• O rei entregou nas mãos dos mouros e infleis
duas ricas e importantes terras. Uma, que era bis-
pado, e se chama Zafãn, e a outra sujeita a este
bispado e com igrejas consagradas, em que se cele-
bravam os officios Di^•inos continuamente. E ma-
chinando já d'outras vezes fazer isto mesmo achou
resistência em todos, dizendo que a fazer-se se não
podia consumar sem auclorisação da Sé Apostólica e
causas justilicadissimas. Agora fez-se em uma e ou-
tra, e diz-se que só com provisão da Penitenciaria.
E o mesmo se falia da questão do cobre e bronze,
que vão para a índia ; porque sabe que prohibindo-
se como é rasoavel, leria elle de pagar uma grossíssi-
ma composição, por ser matéria de summa impor^
tancia. ( Continua. J
Dias i>alavras sobke hospitaes.
III.
Eu desejava apresentar n'este artigo algumas consi-
derações, que pudessem servir para a historia dos hos-
pitaes do nosso paiz. Mas os elementos para esse tra-
balho são tão escassos, ou andam tão dispersos pela»
chroiiicas das ordens religiosas, por bulias e breves
pontifícios, por insliluiçôes de capellas, por testa-
mentos de bemfeilores, por estatutos de diversas con-
gregações e irmandades -, e eu tenho tão poucas pro-
|)orções de os ler e estudar, e além d"isso, seria em-
presa lanlo acima dos meus recursos, que é forçoso
resignar-me, e emittir apenas algumas proposições
conjecluraes, algumas opiniõ(?s sem nexo, sem appli-
caíjão nem fundamento talv(?z, e certamente sem ne-
nhuma casta de mérito. Ninguém [jóde dar mais do
quií tem. Eesla impossibilidade, uo meu caso, é uni
verdadeiro suj)[)liiio.
A i(h!a d'erigir hospitaes e .dbergarias, de neidui-
nia parte creio que nos veio directamente, senão da
Itália, que fora ])or muitos séculos o grande centro
de luz e verdade, (jiie o chrislianismo derramava si>-
bre o mundo. Foi d'ali <[ue todos os povos modernos
re('eberam um iiiijxilso de piedade religiosa, (pie nem
o fanal ismo e In pocrisia clerical, nem o philosophit-
mo incrédulo e apaixonado puderam destruir de to-
do. Foi da Itália que vieram ao nosso paiz os mon-
ges de tí. lieiílo, (pie levanlaram os |)riineiros miis-
leiros (|U(í houve em Portugal. Mandados, segundo
se diz, ]ielo jiroprio Santo, seu [)alriarclia, não po-
diam ignorar ipie em Jerusalém, junto ao templo
destinado a ora(j'ão, e na dependência (rum mosteiro
da sua ordem (o de Santa Maria dos hatinos) se ha-
via erigido um Im^pital para re('olher os peregrino»
e os enfermos.
K um facto, (|ue só per si fiVra baslaiile pura sup
piirmos os monges animados do e>pii'il« (rimitação e
pni|iag.inda, a (|ue .se di^veu a maior parte dos esla-
belecimentos de caridade. hMlllcaudo as suas vuMis,
ii."ici e |iro\a\el (|\ie es(|uecessc'm o dever, (|Ue a reli-
gião lhi'!í impiinliii, dagasalhar, ifassistir e íoccor-
rui- 1.1» iwcussilado» i e muito luvno» pro\aM'l me pa-
324
O PANORAMA.
rKX íjue ãáxaMem d'acon»eihar aen-cão d^zlberga-
ría» í: }iV»pilaet.
A historia d'e«te» «*ab«rle<3m»!iitc« prfrriíle, decer-
lo modo, iia das diíjorse» e aM^ía<. Kín tíxlz a par-
te írt lÁiyji *■- <» inonçe» tinbam f/w cosíaine reco-
JI»CT e traclar o» fyA/ri^ t t^<íTm<>ii- S. Fructuoso.
n'un) dm capitule* da »ua re^ra, U^ni/rz a/j pastor,
<iue jiiardava o jado do in'*t*riro de Ooin';, 'jue da
sua industria dí-pendia <; rtyilo fjk/t er^errriof, ocrto-
"lo 'fcf mcrãn/jt, « « 'juniUfid/j 'i/n hmfjt^A. Tra-
tando da» («usa» qu^r p<xJia/n prcnar o 7fi»Tí-';i mento
•líj abWJ'-, diz ']U'- é uma d'dlas ret-eW Kmjrrt: á
toa in/;ví <A jitrfjriruji tjut vunern ivj miiAi^ir<j. Ao
prior iinpiji a oí^çaf^j de dar 'xirita* ao abbad^,
?MÍM o» nutztt. para que a íazeijda do irioítriro /kí</
(iíúaaie tic vy^ci/rrer os i»ec»fl*ito»oí.
IC «n tampos muito ant^w/r»;* a S. Fruduouoíno
*<%-ulo S/') t5o píTih-uhinnetríii; itc d«di'a>arn <» >/i»-
po» ao Mirvifco df^ pi/oreí, «jue não podiam cumprir
iriuitai da» »ua?i altriíwiçõefc, parte da» (jijaw incum-
biram a un» viíari'ys, <ni eÍKirejÀiief^/ot, 'joe faziam at
tuai ve?/-» na» a)'i<^«.
(A-uaífi fijwiero, piarem, não digo as jjríincira» c^ka*
d'bo»pitaJJdade, Mfuão «/s priííifáro* Ijwpitae» fjue t«
•-ríçiram in Portij;;al, destinado» principalmente ao
tratamento dot enfermo», nSo o poívj eu saber. Ewia
averiguação 'njmpre que a faca pesíioa competente.
Alj^uns d*aquel)e» /ne»mo», cuja íundaí^o 110» é co-
iiljfcci'la, tiveram origem em era», que não é powsi-
vel íiçnalar prexi»amen1*f. Por exemplo : o )io»pitíi]
da» ÍJaida» da Kai/iba. Adiarei» em iiiuhiji livro»,
que foi obra da piedoia rainha D. Ijeonor, mulber
dVl-rei I). João II, a qual, jxn- vér ali alguns po-
Iwes eníermo» m':r1tido» em presa*, e *er informada
«la» roaravilhoía» cura» produzida» jxiraquejlaia-rij: ■
le reyjveu a mandar cont-truir, á «ua custa, o «'
if/iyitul. Ma» \:asi))M:m é certo, poíto que nã<j >■
tãíj »abido, que ali em tírmpo» muito re/noto» — / ■
do» rojnanoí, provavelmente — linlism esi»1ido um
iiotpital e baiilio». l>uravam ainda '/» veirtiírioe d"<-l-
le», q«ando a be;jL'íra D. Ytt^ntor maudou Ifwt r
siqoelle e»tab<;)ecim'iito, 'j»>mo te >/>tí>t da» pals;'.r;-i
do re^íectivo breve ymiifu-io, e da* do aívaiá d«
«ea f.«po»o, au>^jrí«aijdo a o}^«.
K.U já me 'X/nten1ava, »e, pretermilfirtdo ffrxiiz*,
para mim tão cercada» de treva», pudesv; levar o
ír»eu e»1«do ai* o» priw.-ijwj» da mojiarciíia, e partir
«Talii para fixar a» data» da» primeira» f uíflaçfV:» díj»
rio»»íí» Jwtpit.aí'», «em o espirito (* jf>e enredar em
duvida», e á» vase» lamU^m iialg^uma anMidola J«»-
iriolíea e in'ilíf^T</nt, c^nw a do If^wpital de l'"<ir<j
Ktcvro, ou do JO.iJ/iiruj/J/jr »-;n Kantar<-in,
I>j que Kr. Agoítinho d" Kanta Alaria dií no
Snnduurvt Mnriíjranj, Ái^nn d'j« '•rfifiitu' ■
K»-nh<«'a 'le H'«)i;i-amador, p<'«Je inferir-»e •
1eniy> il rei d<- I'ortugal 'I>. Kai,
via iio ; .!■ j/Kiwro d»- (i<>i(Hj.<
tara quem Ifcjiiia j>or <■
1<» *■ r«Tr? r.otrtr, fitic r
Ora, ke Iiavia mnit/jt iiotpítae* e aJber^ría» uo
r^no, perg^untará alçueoi ; j, ' 'tf-ioplou IJ.
f^ancho no »eo txtamento uu ■ .-i»?
.Não qu<'ro affirmar que tiavia m--j:':'f. nem poueo»,
roa» pareí-e-me que do t^rttaawnto d«-<-larar ví tá»
fíão pode c>ncl'jjr-»e que não havia muit'> rnai*.
H.ue '•'^>clijiriamfys eritã» do t>r»1aa>eDto de ÍJ. Aí-
fonv.! II, onde {'mm ojiiUrmylaifji tairto» movteiro»,
e i>e nãíj /r»encion'/u e« prr-w-jtwnte nenfaum l^/tp»-
tal ? Kis-aí^ui a» única» ■ 'o r«-i, ooe ytÁKm
Tt^KTlT-^^ áqo«ll«» eifta.b' ~ ti <v> q«*!: re>-
fíir d"e!!ta minha terça npb.».<io que repartaiii e des-
pendam 'y^n a» igreja» p'>bre« do meu reiíyj, yjtAt^
e fcy/rotoi, í-oroo mait Uie parwaer eonTeni»-ut*. <»
Ninguém, t/yiavia, aríruinentará, que no tenipo d*
D. Afloiiyj II não tiavia em Portugal uenhum ht»-
pital nem all<ergaria. por»^ue no O-tí.a/neiit/j du rei
/ião fce faz d'elle» menção.
Aão v^ não prjMO dizer quae* foram o> yúwm iro»
ho»pit4ie» que houve eiri fortuçaL senão tam>>iD.
quanto» exúfíiam no fwincípio da Mouar<.-bia. Kctn!-
tant», não deixarei de pn^tefiir no ineu intíutt»,
que é tirar 'Iíj» pou'íi» í;"i'- ■ ■- pude •fMiçii. al-
guma» iilaçíie», que nâ'' la» tAí-itt, e da ín-
dole da antija vxifáaák j^^í . ^-líí.
ti'>[.i
ei»-
jWO
»i <J' • "Ul
\ac^>, «/\<lliii, t-yn»'.. berda»)»», pof , *
oma part* do reru; r ■ ri^ 'Io ■ •'■/ • k •■.'.-
ra; e o de Galo». ■ l<- -
'la ma arca, u»! ai • r»-.
<lí», «leixando »'»» )e[)r<.i.'.i fl";,qiíHla cidade (ad<» «i« j
rouKM riii twi rrj»-'!"'" •'•• •" .r.i..,t.. «...
■-.arlatji», l*tiçor, ■
M......^..„ i rainha í;. ... .
< dito 1**lameiito, >
• .Ml ■. irt-nl'"* "T», «..;■■
uma-, ao ''<•'■ '•Minnn'
. VIlfCZAS VA»COaCA»AS.
(KoTtria Mi«ioBirji.}
'> »'OTO
«:... ,.
referem r»^<'
< um d"» majf «n
i.ind» na Kurvp».
Horn. tuutitr-
''m TrmttKttM. - VcL V« da
o PANORA3ÍA.
325
mementfí com as tradições que os vascongados e irlande-
les receberam de seus maiores, os primeiros passaram
a Irlanda, dois séculos depois da chegada de Tubal
á Hespaidia, e a povoaram. A siiiiilhaiiça de caracter
e as sympatbias que entre vascongados e irlandezcs
se tem sempre notado, o confirmam até certo pon-
to; porque não podo unicamente ser efleito do ca-
sual coincidência.
Entre os acontecimentos remotos que quasi to-
cam o dominio da fabula, encontramos uma gran-
de secca, que parece ter durado não poucos annos,
deixando ermas as comarcas de Ilespanha, á exce[>-
ção das montanhas septentrionacs, que não experi-
mentaram, pelo menos em grau tão elevado, aquel-
le ílagello. As pessoas que não foram victimas da fo-
me, e das muitas enfermidades que por essa occasião
se desenvolveram, trataram de acolher-se ao único
porto de salvação, retiraiido-se ás províncias vascon-
gadas. Copiosas chuvas succederam a tão larga ede-
vastatlora secca, e pozeram em estado de ser cultiva-
das as terras que a falta de agua tornara estéreis.
Então saíram pela segunda vez do paiz \ ascongado
as famílias que foram povoando a superfície da pe-
nínsida, e se confundiram com os estrangeiros, que
a fama da fertilidade c riqueza do solo hespanhol at-
traíra de longes torras.
Dos largos períodos que a mingua de noticias nos
obriga a passar por alto sú diremos que estamos de
accôrdo com os que julgam que em Ilespanha não
havia um soberano, uma auctorídade central cujas
ordens se cumprissem igualmenle em suasdítferentos
regiões, c que caila uma se governava per si, não
estando sujeita, nem querendo sujeitar-se ás demais.
Ninguém ignora <lu<^ os celtas por uma parle, e
os phenicios por outra, invadiram ardilosamente o
território hespanhol, o que, com quanto lhes fosse
mui faeil enganar os seus singelos habitadores, não
puderam reduzil-os por forea, ((uando, largando a
mascara, descubriram seus perlidos intuitos. Nem dos
mencionados povos, nem dos gregos, e carthaginezes
soUreram os vascongados aggressão alguma, servindo-
Ihes de baluarte o seu valor, a fragura das suas mon-
tanhas, e ainda mais a pobrexa d\'stas, em que os
inva-sores não podiam encontrar luetaes preciosos com
que satisfazer sua insaciável cobiça.
Na cpocha a <pi<! nos referimos eram já conheci-
dos sob a denominação de cantabros e vasconços, os
povos (jne viviam nas montanhas situadas á esi|uer-
da do Kbro. lOra a Cantábria uma região vastíssima
que comprehendia as nu)ntanhas de Santander, as
três província» Vaseongadas (■ a llíi'ja; ao (íríente
da ('aniabria ficava a Vascoiiía, <|ue iioje chamamos
Navarra.
()« moradores iPeslas regiões eram homens robus-
tos e bellicosos, a intempérie de ncnliiiiii modo os
molestava, e despiesavam a vida qiiandu a edade
avançada lhes não permiti ia tomar jiarl»' nos cumiia-
tes. Ali^laralil-se uiuílos cantabros e vasconços no
eiceriilo de Annibal, e distiugiiirain-se mui particu-
larmente, marcliando siiiipi-e na vanguarda, (t poe-
ta Silio Itálico faz. menção honrosa de uns e outros,
n reCfre ikiI.ivcís círcumslancias que manifestam o
proceder d^iquelies em a segunda guerra |iuiii>'a.
Knire tantas o<'casiòes que oshespanhoes derraina-
rnm o seu sangue por causas t|ue na verilade lhes
liuo lieviam iiiliT<rssar, não fallarain algumas em
que coinmaiidados por capitã»'» valorosos pelejaram
pcli» sua índ<-pendeiicia, o para arrojar da península
estrangeiros aniliicioMis, ipie com siKvessivas guerras
IITa disputavam. \ nobre l<-ntaliva de \ iríatoacliou
erlio eiilrw os ranlabriis qm- seguiram suas bandei-
ra», e posleriormenie ^occorreram o< nimiantiiioii.
I obrigando o general ruiiiunu Caio-Hostilio alevautar
' o sitio da sua heróica cidade. Uniram-se também os
cantabros a Pompeio acompanhaiido-o á Grécia, e
como s«'inpre deram provas ue inimitável valor na
celebre batalha de 1'liarsalia.
Temo» referido, posto que succintameute, os suc-
cessos mais notáveis <|ue tem relação com opai^^'as-
congado nas epochas que pr<M;tHjeram a guerra can-
tabrica ; c n;is minguadas e confusas uotiiúas que d'el-
las nos restam, acha-se mais do uma ve: indicado o
caracter dos primitivns cantabros, mui similhanteao
dos actuaes vascongados. Firmeza no cumprir a sua
palavra, resignação admirável em tudo menos naliu-
mílhaçâo e na deshonra, otlío a toda a casta de no-
vidades e mudanças repentinas. Eis-aqui indicador
os princípaes pontos de similhança entre o cantabro,
que ha mais de vinte séculos habitava aquellas mon-
tanhas, e o <[ue presentemente as cultiva.
Ha uma circumstancía que ainda faz sobrcsaír mais
a observação ([ue acabamos de fazer ; e»ta eircuuistan-
cia, a muitos respeitos notável, é a religião. Os can-
tabros não prestavam culto aos Ídolos, adorando uni-
camente um deus desconhecido, ao qual, diz Slra-
bão, festejavam sempre tie noite, o mui particular-
mente nos plenilúnios, ftuem introduziria esta reli-
gião entre aquelles montanhezes .' Seria porventura
alguma tias numerosas phalanges de aventureiros,
que seilentos de riqueza invadiram o território da
península ibérica ? Cremos que não, e antes o attri-
buimos ao respeito com que os vascongados con.serva-
ram sempre as crenças, as instituiçvcs, tudo final-
mente que herdaram de seus maiores. i\""e.sse culto
do que faliu Strabão, achamos o que sem duvida pra-
ticaram os primeiros habitadores d'aquellas moiila-
nlias.
Entrelauto esta nobre tenacidade não garantiu os
cantabros dos ataques de um homem soberbo, que
não podia tolerar que no mais obscuro e remoto canto
da terra deixassem de ser obedtH'iJas as suas ordens.
Augusto entendeu que nada valeria quanto eiu du-
zentos annos se liav ia feito, se os cantabros e os as-
turianos continuassem gosaudo os seus foros, e apar-
tados das outras gentes. A conquista d"aquelle pe-
queno território julgou-a digna de sua pessoa, e reu-
nindo um [loderoso exercito, « cercando-se ilos mais
afamados generaes, deu princípio á guerra cantabri-
ca, na qual, em vez <\e louros, só encontrou pezare»
c amarguras sem couto. Foz seus arraíaes em Sogui-
sarna, e dividindo as forças em três corpos, entrou n
Cantábria por dillerentes pontos, ao mesmo tenifw
que Agri|)pa bloqueava os portos e ivnduzía em sua
armada um exercito (pie dev ia aj>oderar-sc do lit-
toral.
Surpresos os cantabros com tão inesperado succes-
so e vendo «pie o inimigo enviava numerosiis legiões
(pie assolavam tudo, tomaram o uníiv partido que
lhes restava, retirando-se aos mais fragi>sos logares, e
luftlílisaudo irali os ^eus contrários, «pie a cada yui»
so se viam sem víveres, investidos e mortos. Cinco
annos durou a(piella guerra, suceuiubimlo muitas ve-
zes as mais aguerridas hosles dos nunanos, já á (6-
ine, já ao cansaço, já aos contínuos ala(iues parcíae<>.
l'Vítos singulares de valor, inimitáveis rasgos de hc-
roisuio deveram de succeder n'u<piella larga o sau
greiíta guerra ; como, porém, os cantabros não ti
nliam ipiem as escrevesse, suas fiiçaiihtts llcaram w
pnltadas em perpeluo olvido.
As não interrompidas fadigas que uvexavum o C»
sar, as suus marchas de noite, e o tenu)r (pieem uma
d'estas lhe causou um raio, «pie matou a seu» IK-S o
escravo que o alumiava, foram causi de perder «
saúde, e de retirar se a 'rarragon.i, deixando a« »uus
326
O TAiXORAMA.
Iropas sob o comniando deCayo-Antistio. Continua-
ram as facíjões militares depois da retirada de César,
f conseguiram suas hostes apoderar-se de alguns pon-
tos importante?, com o que se deu por terminada a
guerra .
Fez-se |Ki/. em todo o mundo, v. apparceeu no
Oriente aquella sublime doutrina (jue devia regene-
rar o homem. A somljra d'este grande successo, os
nossos intrépidos montanhezes emprehenderum nova-
mente a guerra e com maior arrojo, rccujK.rando os
pontos que nas luctas anteriores haviam perdido, e
desbaratando completamento as forças que íe lhes op-
pozeram. Encarregou-sc ao celebrado Agrippa a árdua
tarefa de sujeitar os cantabros e asturianos. Foi-lhe
adversa a fortuna, chegando á cruel extremidade de
ver os seus soldados negartm-sc ao accomeftimento.
Com exemplares castigos, e extrema actividade, e
com os soccorros e reforços que de contínuo lhe che-
gavam, piído tomar a iniciativa, e á custa de rios de
sangue conseguiu algumas vantagens, que exagera-
damente se consideraram como um triumpho.
As relações entre os cantabros e romanos eram fre-
quentes nos períodos der Iranquillidade que oecur-
riam n"aquellas horríveis guerras, e o que não pôde
a força, <^ue não remedeia males, conseguiu a cor-
dura, a tolerância e o respeito ás crenças e hábi-
tos do vencido ; meios que empregados com franque-
ia, sem doble/., nem Iiy|)ocrisia sempre surtiram ad-
mirável etTcilo. Surtiram-o igualmente então, c
aquellcs que tinham acendido ao combate quando
viam que se lhes queria inrpôr ura jugo duríssimo,
tornaram-se depois nos mais fieis amigos dos roma-
nos, quando estes se contentaram com ser seus allia-
dos e protectores.
(Continua.)
\ I\GEM \ fALE^TIN.V POR Mk. DE SaILI V.
iiarc(q>lin(jo de J)avid. — Jijrploracuo do Alar-^Iorio.
■Os DEScoiuiiMEXTOs do sabío académico na ^iagem
ao Mar-Morto não são menos interessantes. Os tra-
balhos e perigos d'csta excursão rctrahiani os mais
"intrépidos exploradores, e alguns pagaram com ávi-
da a ousada empresa. Mr. de Saulcv, homem tanto
de acção como de sciencia, deeidiu-se a perscrutar
aquellas paragens, e executou seu projecto a despei-
to de riscos o obstacidos. Acho\i com o auxilio dos
textos hihlicds, da tradição árabe, e pela inspceção
dos logares as ruínas de Codorna, de Gomorra e das
outras cidades da 1'enlapolis, o descrcvcn-as como
archeologo experiente. Colligíu sobre o Mar-Morto,
o valle que o rodeia, a constituição gefilogica das
montanhas projtimas, a natureza de suas aguas, c o
curso do Jordão, particularidades tão exactas, expli-
cações tão evidentes, desenhos tão authenlicos, queé
impossível hoje não se render o mais incrédulo ante
a concludente círrteza dos factos.
Ao primeiro aspecto d'aquplle mar ou grande la-
!;o sertanejo, onde Mr. de S;iuley e seus companhei-
ros chegaram pelo valle de Cedron, agradável ad-
miração os tomou do súbito. A vegetação maravi-
lhosa por aquelle lado, um verdadeiro bosque de ca-
naviaes de vinte pés de altura, os Kindos de adens,
os pássaros <|ue avi>ejavam e subníergiani-se no lago
maldicto, causaram-lhes a primeira sensação de as-
sombro : prestes, acercaiido-si! da praia recamada de
roateriaes sulphur(~os e bituminosos, colheram um
peixinho morto, levado pela corrente do Jordão ao
M&r-Asphaltite, cujas aguas não aduiiUaii: svr vi-
vente. Rectificaram também outro facto : a depres-
são incrível do Mar-Morto abaí.xo do nível do .^le-
diterraneo. — Esta depressão, calculada porMr. Ber-
tu mediante observações barometricas, é para mais de
mil metros. — A agua é de estremada transparên-
cia •, porém, mui salgada e amarga ao mesmo tem-
po ; está saturada de saes em dissolução, e o fundo
do lago é coberto de uma crusta cristallisada.
Seguindo a beira do lago encontraram succestiía-
mente bosques espessos de canas, tamarindos, e bo-
nitas mimosas, onde cantavam centenares de pássa-
ros, e plainos áridos, queimados e desertos; cami-
nharam trabalhosamente pelos flancos de ladeiras for-
madas de rochas calcinadas, que representavam exa-
ctamente jactos de pedras arrojados por uma mina :
estas projecções se dirigiam para um centro, onde í«
divisava unia cratera apagada.
(aluando chegaram próximo a Avii-Djedy, vestí-
gio cNÍdente do nome bíblico Engaddi, reconheceram
as ruínas de uma cidade considerável, próximo das
margens de um ribeiro, cobertas de formosas arvores.
Ali viram pela j)rímeíra vez o fructo cuja estruetura
deu logar a tradição das maçãs ou pomos de Sodo-
ma, d essa fructa maldícta que se converte em cinza
e fumo quando se llie toca. Estes pomos são de duas
plantas differentes : uma, asclcpias proccra dá um
fructo, que os árabes chamam borlu-kan-esdum. la-
ranja de Sodoma ; estando maduro abre quando o
apertam com os dedos, e mostra milhares de pevides
sustidas por um;is plumas setosas, que se desvanecem
como fumo. A outra planta é uma salúnca magnifi-
ca de flores rosadas, cujas pequenas maçãs abriudo-
se apresentam uns grãos denegridos que parecem
cinzií.
De Ayn-Djedy passaram aMassad, ultimo baluar-
te da independência judaica, atravessando uma pla-
nície cheia de montinhos de cinza arrojada pelas tor-
rentes do inverno. Reconheceram muitas crateras
bem caracterisadas e uma larça corrente de lava ;
descançaram depois em ^laíel-limbareheg. onde tam-
bém se vêem ruínas eonsitleravcis c um pequeno cas-
tello romano, ainda cm iMjra estado de conservação,
junto de uma deliciosa campina, cuja vegetação n>-
bubla fiizia notável contraste com o paiz devastado
{jue acabavam de j)ercorrer.
l'roseguindo a jornada examinaram novas crate-
ras e chegaram á montanha do íal. Mesmo no flan-
co da rocha salina se desctibrem as ruínas de uma ci-
dade ímmcnsa que as tríbus nómades dononiinani
Klitibtt-Ksdiím ; e Sodoma: nuús longe, no flanco do
lado do noroeste, acham-se os restt» de Xoar, a Se-
gor da BibUa. «Só um forti^imo rcpellão (diz o sa-
bío viajante) podia fazer surjlr esta mole salina de
três léguas de comprimento e quarenta e cinco bra-
ças de altura ; neste sacudimento, oricinado pela
erup;.lo volcanica que di'>truiu simull.ineamcnte to-
das as cidades de l'entap<ilis seria aniquilada Sodo-
ma cora todos 08 seus habitante?. •■ Intinidade de en-
tulhos envoltos em escorias c cimas é o que se vê on-
de foi Sodoma.
A memoria da destruição das cidades do Pentapo-
lis conscrvou-sc até o presente entre us habitantes du*
terrenos próximos ao Mar-Morto.
A chapada que se otende pela montanha do sal <c
mui perigosii em raião da natur«^za do s<.>lo qucafúr-
m;;. As vezes a arei:i impregnada de sal, logo qu«'
csle se desprende <• ilissolve «>m as aguas, perde to-
da u sua conbistenci.i e falta debaixo dos pes; então
não ha que esporar salvação \ o infclit que esta ii*e»-
s,i paragem afunda-sc nos abvsuios e perece abafado.
Os nossos viajantes correram risco de acabarem U'»»-
sc modo, por teu amor á scicacia.
o PAl>iORAMA.
COT
O Sabkhab é uma planura lodosa e sem vegeta-
ção que cobre a ponta meridional do Mar-!Morto :
«fite rios bastante «audaes, entre elles um como o
Jordão, regam essa planicie •, porém, logo que d'ella
se sáe encontra-se uma verdadeira floresta dos trópi-
cos com suas pantheras e seus colibris. Os viajantes
atravessaram umas ruinas parecidas ás de Sodonia \
eram os vestígios de outra cidade de Pentapolis, Se-
boín. D'ahi passaram ao paiz de ISIoab, onde visi-
taram os fragmentos de cidades edificadas em moles
de lava, e que por assim dizer cobrem todas as ver-
tentes dos xailes. Na ponta do norte visitaram Sclii-
l)an, ruina desamparada de todos os lados, e como
<jue apegada á cúspide de um pincaro soljranceiro á
planície ; o seu nome recorda quasi sem alterarão o
do rei de Bassan, que foi o conquistador do paiz de
-Moab.
Visinho d'este ponto os viajantes examinaram os
restos de templo magnifico dedicado ao sol na epo-
dia romana •, é construído sobro as ruinas de outro
lemplo moabita, edificado com pedaços de lava. Su-
bindo para o norte, ]\Ir. de Saulcy e seus compa-
nheiros viram muitas localidades bihlicas, entre ou-
tras Adamali, cuja catastrophe e nome nao se tem
apa;Ta<lo da memoria dos árabes. Depois está Quasr-
Jladjlab, convento arruinado da opotha das cruzadas,
que tem as paredes cobertas de pinturas do século 13.*^
\a extremidade septentrional do IMar-Morto rc-
lonheceram um ilhote bem pequeno cheio de entu-
lhos, a que os árabes pozeram nome Jiedjom-Liuih,
morouço de Loth. 1'or ultimo, costeando a praia
atravessaram uma espaçosa cratera, ao pé da qual ha
ruinas de bastante vulto que os beduínos chamam
Knhil-ÍTumram ^ são os 'vestígios de Gomorra, des-
triiida pela eholera celeste.
A<|ui termina esta interessante viagem. A catas-
trophe terriv<4 (juc aniquilou as cinco cidades po-
leiítes, criminosas entre todas as cidades, e que for-
mavam a ]'enlapolls, a saljor : Sodoma, Gomorra,
Adamali, Sel)uín, e Segor, é hoje um facto incon-
I estável. Ksta nova exploração é tanto mais pr<'cíosa
quanto mais confirma todas as itarrações da Biblia.
LENDAS HISTÓRICAS.
O Dk.monio DU li.VUO.
II.
S\o p.iiia<h)S seis annos. Ajoven .Maria leni desabro-
chado, qual rústica fiôr, nas margens do lago de Mon-
tx-ith. Educada no most(íiro de Inch-Mahome, stí co-
nhece do mundo os rochedos esc;ilvados, as estevas
^3'lvestres <; as ribas verdejantes, testemunhas dos
«eus passeios e dos seus folgares.
licvantii-se .-lo romper do dia : alegre <• doiuh-jaii-
te os H(?us passatemp<js são as eorridxs pi'lus veri'das
fragosa», semeadas «h; [«'iiedos, (jue até ás vezes lhe
rasgam o plaid de selim preto, .icolehetado com um
(iruclie, em (pie estão es(Mil|)i<las as annxs di' Lor-
rainc o da Escócia. O seu ci>raç.'io lambem n.'io co-
nhece outras coiumoções que as que llie despertam
.w lendas e as bailadas, e a musica, e a dansa.
Maria i' a gr.iciosa Bylpliíd(! d'aqui'IKT. jilagas, e
nit pescadores suiríein satisfeilos quanclo a viVtii cor-
rer ou .iritcs (liiiidcjar por entre o m.illo:, é o duen-
de tulcllar d'.i(|Uilhi região. Oseu seiuliliiiite Ião al-
vo e ('('irado, i> seu olhar Ião lirilhante e Ião lím|)i(lo,
(|iic ((inieça (Ic ensaiar-se n\i(|uelle fascinar de (|ue
depois lanto jibusou ^ os louros eabellos ;i beijar-lhi^
fiii unneis o deljcadi) pcMVMjo ■, a vo7 iiisiiuianle, (pie
ora toma uma intonaeão imperiosa, ora eiprime a
mais refinada garridice ^ tudo n^eUa encanta, seduz,
arrebata .
Os monlanhezes, na estação formosa, àeixair. sem-
pre ficar a porta de suas cabanas aberta •, porque sa-
bem que a filha de Jaques V ha de ir alguma ver
podir-lhes um bocado de pão negro, e ouvir-lhes as
suas canções poéticas.
Outras vezes vê-se no lago a vogar graciosamente
uma barca, de donde partem risadas estridentes, e
ditos chistosos, em espirituoso tiroteiar : é a formosa
herdeira de Elscocia a divertir-se com as suas com-
panheiras. !Maria tem uma pequena corte composta
de meninas todas da sua edade e do seu nome. A
rainha-mãe, como mui devota que era da Virtjem,
quiz que todas as que acompanhassem sua filha ti-
vessem as mesmas razões para buscar a intercessão da
Mãe de Deus. Por consequência todas se chamavam
Maria :, e esta corte em miniatura era consagrada ao
mesmo culto.
íluitas vezes, pois, todas as pequenas Marias met-
tiam-se n'uraa barca com a sua jovenil rainha, e la-
ziam-na vogar sobre o lago de !Monteilh ^ e as aguas
esverdeadas e profundas serviam de cspellio aos seus
rostosinhos gaiatos.
Um dia soube a joven rainha que ia partir para
França. Em sua fronte tão meiga e tão pura punha
Deus duas coroas; e promettiam-lhe, em S. Germa-
no, um esposo da sua edade, o delphim Francisco.
Com quanto a idéa de viajar, de mudar de clima,
de sair d^aquelle mosteiro, que tinha sido para ella
um tão triste berço, fizesse arfar-lhe o coração, nem
por isso tinha menos saudades do seu formoso la^o,
e das verdes estevas, e dos tristes campos (juc ale-
grara com os seus folgares. Ia ver .i j)atría de sua
mãe, o dos seus tios de Guise, (jue lhe mandavam tão
lindos presentes, e lhe escreviam tão bellas palavras ;
ia, arreiada de gentis galas, tomar um logar eminen-
te na côrle de S. Germano ; mas era-llie mister re-
nunciar á liberdade. A pequena nionlanheza ia lor-
nar-se uma verdadeira rainha \ isto é, não poderia
jamais sair, e correr á sua vontade ■, até o delphim
Francisco, esse futuro sócio de brinquedos, a atterra-
va. Se elle tinlia de ser um dia seu marido 1 l'or isso
Maria (]uiz dar um ultimo jiasseio pelo seu (|uerido
lago, e as suas quatro com[)anheiras ordinárias Ma-
ria Fleming, Maria Seaton, Maria llivínglon, .ala-
ria Ueatouii, comluziram-na á barca que a esperava.
N este dia estava o céu carregado e triste como o
coração da joven rainha. A Escócia parecia tomar
lucto ; o lago agilava-se como a murmurar uma (|uei-
xa sentida ; os pescadores, que tinham accorrido pa-
ra assistir ao derradeiro passeio ila sua fada, con-
templavam calados as cinco Marias, sem soltar as
costumadas aeclamaçõcs; A rainha , sobre (piem
pesava toda aquella tristeza exterior, tentou rir,
excitar as suas amigas, e não ccmseguimlo distraí-
las (piíz comcç"ar uma bailada; mas a sua voz não
era agora tão pura, n(;m tão clara ; não se atreveu
a continuar, c ao primeiro estribilho caloii-se ; de-
pois deitou os braços ao pescoço (h? IMaría Fle-
ming, (pie estava aupéd\<lla, e parecia a mais triste,
e dísse-lhe :
— Olha, minha (lueridinlm, não ni(> faças chorar;
ponpie não pensaremos nós nas terras (|ue vamos
vf-r >
— Ah ! respondeu Maria Fleming, pôde lá haver
terras lionitas sem este lago.'
-- l'()br(í lago! acudiu a rainha, bi-m (|ui/.era po-
der |c'\al-o comigo! E iiiclinando-se |iara fora da
borda, nietteu i\ rósea mãosinha nu iigiia esvcidea-
da, eiicheu-ii, (> levou-a á boca.
328
O PANORAMA.
— Tumae seutidu, miuha rainha, disse uma das
meninas, não vos inclineis tanto, queoKelpy, o de-
mónio do lago, pode agarrar-vos I
O Kclpv ! replicou 3Iaria Stuart, esse é um de-
mónio bom, (jue sempre se sorriu para mim, e sem-
pre me quiz muito ! não me ha de fazer mal !
— Se vos quer muito, mais rabões deveis ter pa-
ra vos arrccciardes d'elle.
— Minhas amigas, disse então a rainha, digamos
adeus ao demónio do lago, a esse \ clho companheiro,
que nos não pôde seguir, e que nunca mais ha de
ouvir as nossas canções.
Kntão Maria Stuart ergueu-se na barca, que as
vagas eiinovelladas começavam de balouçar, e a jo-
\en feiticeira dirigiu-se n''estes termos ao mvsterioso
tyranno do lago.
— O velho Kelpy, tu que es negro como a noite,
e que tens os compridos braços cobertos de limos, e
galopas sobre as vagas qual fogoso corsel, c mostras a
humana cabeça aos affogados, e com as geladas mãos j
affundas as barcas perdidas ; demónio, que sempre
me aâagaste — adeus — e cm lembrança da tua mui-
to amada Maria, rcceb-e este broche com as armas de
EíCúcia e de Lorraine, que tem estadojuntodo meu
peito, e vac tocar o teu.
E arrancando do plaid o broche que o acolcheta-
va, Maria atirou-o ao lago ^ depois po^-^e de joelhos,
e mergulhou a vista na profundeza das aguas, espe-
rando \ér o Kelpv. Todas as suas Loniprinheiras a
imitaram, ede tal modo fizeram tombar abarca que
as vagas solevantadas pdo vento quasi lhes beijavam
us rostos.
De repente, ou fosje porque es remadores atterra-
dos de tão imprudente brinquedo, e desesperados de
não terem feito algum caso das svias recommecda-
ções, quizessem obrigar aquellas estouvadinhas apôr-
Ihe termo, ou fosse porque tiv esse augmentado o tem-
poral, ou fosse finalmente porque o demónio quizes-
se tornar a Maria Stuart agouro por despedida, sen-
íiu-íc um grande abalo nos costados da barca, e ele-
vou-se uma forte columna de agua que as alagou a
todas. lalaria soltou um grito, e caiu pallida e semi-
morta de susto nos braços das suas companheiras,
murmurando que vira perfeitamente o Keípv", eque
o Centauro a travara dos braços, e a quizcra levar
conisigo.
Forcejaram por a socegar, sem comtudo esta-
rem isentas de medo \ tanto que se não atreviam a
encarar o lago, rocoiaiido vér os olhos verdes do
monstro, esses olhos terri\cis que trazem infallivel
quebranto, e que ate agouram a morle a quem os en-
contra, alaria Stuart essa, ora entraxa n'um tremor,
ora corria a mão pela cintura, como para cxperi-
uíentar o tiTcilo do aperto que dizia ter sentido. El-
ia vira mui distinctamente o demónio agarrar abar-
ca e sicudil-a •, e asseverava que no momento em
que soltara um grande grito, cnconimendando-se á
Virgen), de quem era mui devota tamhcm, o mons-
tro, que, pelo c-ontrario, tem grande temor da Mãe
de Deus, mergulhara, deitando-lhe comtudo um
olhar terrÍNel.
A barca cm breve chegou perto do mosteiro. Ne-
idiuma se a(re\cu a contar o incidente do seu pas-
seio. \ rainha Cí^a tinha o coração ainda mais com-
primido. O presenlimcnlo acabou de agourar aquella
viagem i!e França, com i|ue debalde tentavam fascl-
na!-a. Quando a deitaram linha febre, e em ftxla a
noite, (que esle\e iim temporal di-sfcito) cila julgava. .
no assobiar do vonto. o no n\ugir das a;;uas. ouvir |
as voios »io Kc!p\- a cham.il-a, o a reclamar a sua
joven noiva.
.\ sua aiu, que uão eslava pouco assustada com n
perturbação da kua real pupilla, velou toda ,a noi-
te junto do leito, c ouviu-a murmurar : u O meu
Deus, que me tendes destinado para marido o for-
moso delphim Francisco, não consintaes que eu fi-
que aqui sendo a noiva do demónio de Monteith.-
Pela madrugada o somno affugentou-lhc os terro-
res ; mas a partida para França devia ter logar n'€í»-
íe mesmo dia, e quando deu a hora, Maria deixou-
te condiuir macliinalmente, e fechou os olhos assim
que chegou á vista do lago.
f Contínua.)
RtiiuJio pura o morrão das searas. — Acontece
serem muitas vezes as searas de trigo acommettida';
de uma terrivel moléstia, a que os lavradores chi
mam morrão, e que não só acalxi com a espiga ata-
cada, mas aifecta toda a colheita, destruindo a boa
apparencia do grão ou da farinha.
l'or vezes se havia tentado curar cala ;ra»issima
enfermidade, sem que se colhesse das diligencias r
disveUos empregados pelos práticos um resultado de-
cisivo. O sr. commendador Marques Rodrigues, cu-
rioso e opulento lavrador, achou um processo que com
ser mui simples, económico, e da mais fácil execu-
ção, cura radicalmente aquella doença.
Recommendamol-o aoa agricultores, podendo af-
fiançar-lhes o bom resultado da receita do sr. Mar-
ques, que tem já a saucção da experiência de seis
aunos.
Eis a rccciia :
<.. Dissolvc-sc uma porção da sal em agua fria, de
modo que n"ella aboic um ovo.
" Lave-se o trigo n"csta salmoura. Todos os grãos
doentes sobrenadam iramediatamentc, c lanjam-se
fora.
». Relira-se o trijo, e deita-se para o lado, conti-
nuando com o mesmo processo até que toda a semen-
te cístcja Lvada.
í. Depois de estar quasi sácca, envolve-se cm cal
cm pó, e temeia-se n'este estado. "
O processo do sr. !Marques tem ainda a pr«nosa
vantagem de affucentar «las sementeiras os pássaros
damninhús, que lhe não tocam sendo as sementes
assim preparadas.
— Não receeis seguir o verdadeiro progresso do
: espirito humano, que confia, não a exércitos com-
manJados por capitães mais ou menos peritos, não
á força bruta, mas aos nobres combates do espirito,
ás lutas da intcUigencia, o destino c a direcção dis
sociedades. Bkkrver.
— Ao poder absoluto chamou um politico ani-
mal desbocado, que corre » prccipitar-se sem o freio
da razão, tem ns rédeas da politica, entendidas na
vara da justiça, c sem os e>tnlios cm que se dove
so-nirar a prudência, e assim não devem o< p<HÍc-
rosftt ter jxir dita o i-onscrvar tudo o que intentam.
Desgraçado e o poder, quando o podero?o cuida
que tudo úo\c e pode obrar; o Demónio, em quan-
to não teve todo o poder de Deus, respeitou as vir-
tudes do íol, e nem fo lhe atreveu ", e corao se viu
com poder absoluto logo o destruiu.
1'apke A.VicjR.v, cariaaoccítãcdcC. MMor.
— O reino de Deus não consiste em uma escrupu-
losa observância de lH-<;ueuas fonnalidadi-N ; consiste
par.v cida um t;a^ \irl«des propHas do seu estado
42
o PANORAMA.
329
SACAVÉM.
A I)i;as Irf^uas rio Lisboa, na estrada r^uc dVsta ca-
liilal (joiuliiz á cidade do Porto, osfá assentada Saca-
vém, ficando ao norlo do ribeiro de Kriellas, ou pa-
ra nielliur dizer, di- uni braeo do Tejo (|ue entra lar-
go esi)aeo pelo leito d'a(juellc ribeiro.
Não se distingui! Sacavém nem pela sua impor-
tância coniinercial ou agrícola, nem pela sua popu-
la^'.ão, (pie ascende apenas a umas 1,.'!()0 almas, em
uina única parocliia, a de Nossa Senliora da Purifi-
c.ição, nem por f^loriosas Irailifj^ões, nem por veneran-
dos monumentos, nem finalmente por a;;Tadaveispai-
."iaj^ens : care<'e até ({'(íssas preciosas ijualidades ([ue
se eiieonlrani nos arrabaldes de Lislioa, em {;eral ^ a
frescura e salubridade di? ares, (pie llio roubam a pro-
ximidade de l(^rr(íii(js encliarcados, e de valias ipie a
incúria e o desleixo tem conservado meio entullia-
du».
1)ivide-s(! a |)i)Voa(;ão ejii alia <■ baixa ; aipiella ('
mais lavada d(! nrm, e mais vistosa u alegre-, esta é
menos salubre, mas um pouco mais aceiada.
( 'onslnieijões (pi(! mere(^'am mencionar-se a[)eiias
ite contam em Sacavém a cereja e convento de Nos-
sa Senliora dos Mártires, i^ a ponte de i|ue lallan-
mos dep(jis.
Ib-iies (la. Cosia, iiiiiUier de Mi^^oel de Moura,
seerelaiio (Testado iTel-iii I). Si'basl i,"io, e depois da
batallia de Alcacer-Kiliir um dos f^overnadores do
reino, lendo sido iiiiracidosaiiicnle saha, por inter-
VoL. 1. — S.'"* SltldU.
cessão da ^ ir'j;eni, dentre a< ruinas da sua jiropria
casa, fjue saltara ])elos ares, cm consequência de uma
terrivel explosiio de pólvora n"uiis armazéns á l'ani-
pullia, (jbtcTe, pelo valimento de seu marido, a pos-
so de uma ermida, com a invocaíjão de Nossa Senho-
ra dos Martvres, (jue ficava contigua a uma (juinta
(pie possuia em Sacavém. No logard'esta (>rmidafoi,
])ela referida J?rites da Costa e seu marido Miguel
de Moura, fundado em 157('> o convento da uiesmu
denoiniiKKjão, tal (piai ainda lioje existe.
Diz IWandào, na S."' 1'arte da Moitarcliin l^usi-
laiia, Jiivro \, Ca])itiilo X Wll, cpie aipiella ermi-
da ou oratório mandara ali erigir I). AlVonso Hen-
ri(pies, em inemoria de uma milagrosa vicloria que
alcançaram os cliristãos, em numero de mil e qui-
nbentos, de cinco mil musulnianos, ipie de Aleni-
ipier, < )bidos, Tliomar e outras terras da Kstrema-
dur.i, liiibam aecorrido em soccorro de Lisboa sitia-
da então pelo jirineipc porliigiiez. l)(>pois da batallia
foi entrado ocaslello (pie existia u'um /«'.vo proNiiiio,
fii-íiutl'> I iitnijit iVilli- (I iilitiuli- niKtiio <• i/iKil s<' lor-
iioit vlirlslàii ]><»• líjMK )M((riii'i7/i(i!(i i'ís<7<) (/kc /iI'<-, e
foi o primeiro erniilão ipie cuidou d\iipielli- orató-
rio (Ml eriíiida.
Iiilili/nieiite, porem, para os apai\oiiadiis da os-
ciila milagreira, a liisliuia do lai \\vr.\\ Zavde, (as-
sim se clianuiva o alcaidiO <p"" se coiiverl('^ra á fe de
cliristo, c íe fiiera depois ermitão, e a du grande
OuTunRo Itl, \H'J1.
330
O PAIVORAMA.
peleja travnda junto do ribeiro de Friellas entre os
guerreiros <lo I^lanl c os batalhadores de Ibn-Errik,
não apparoceni mencionadas sequer em documento
algum contemporâneo, c só se lêem n'um ccrio livro
dt: privikyios do século 16.° Brandão, que parece
inclinado a acreditar o facto, c assevera existir o
mesmo livro no árcliivo da Torre do Tomlw, confessa
todavia que ellc confim ali/uns erros, conio cm o an-
uo do cerco de Lisboa, no asscnio dos exércitos, em
tlizer que iodos os csirangciros eram intjrczcs, e cm
outras cousas accidcniaes, cie.
Os curiosos podem consultar a este respeito a. His-
toria de Portugal do sr. A. Herculano, nota a pa-
ginas ÒOS do primeiro volume.
Já no volume IV da 1." Serie do Panorama fal-
íamos da ponte de Sacavém, cuja construcgão se en-
cetara n'esse tempo, particularisando com louvor os
arcos de ferro que aguentam o pavimento da ponte,
fundidos no nosso Arsenal do Exercito com uma per-
feição notável.
Essa ponte aclia-sc inteiramente concluida vaeem
dez annos, c realmente, pela sua solidez e até ele-
gância, justifica os elogios que havíamos prodigalisa-
do a quem traçara e dirigira tão importante obra.
Em tempos remotos existiu, no mesmo sitio da
actual, uma boa ponte de cantaria, que veiu a cair
em ruinas, por faU^ dos indispensáveis reparos : as
necessidades do transito, que é sempre considerável
n'aquclla estrada, foram escassamente suppridas por
uma barca, e depois por uma ponte de madeira. No
reinado da sr.'"' D. alaria I, sendo secretario d'esta-
do o célebre José de Seabra da Silva, planisou-se a
edificação de uma outra ponte de três arcos, que foi
de feito delineada pelo architecto franccz José Auff-
diener, sendo avaliado o seu custo era tresentos mil
cruzados.
Nos principies doeste século tentou-se novamente
uma siniilhante construcção, que a invasão dos fran-
cezes não permittiu reulisar.
Finalmente, por contracto com uma empresa par-
ticular, começou-se e eoncluiu-se em breve tempo es-
ta tão necessária pont<', que se compõe de três arcos
de ferro fundido, firmados sobre quatro pegões, c
com rodizio no centro para a passagem das embarca-
ções, que hoje, em consequência, de estar mui entu-
lhado o leilo do rio, apenas podem vogar até S. An-
tónio do Tojal, a uma légua de Sacavém.
Ha em Sacavém muitas quintas e hortas — c pela
Paschoa do Espirito Santo faz-se ali uma importante
feira de gados, á qual afflue immensa concurrencia.
O camiidio de ferro de Lisboa a Santarém, de que
SC fez concessão pro\isoria á comp;ii\hia representa-
da pelo sr. H. Hislop, cm 13 de agosto do corrente
anno, deve atravessar Sacavém, onde termina a pri-
meira secção, começando em Arroios, segundo o ira-
rado dos hábeis engenheiros inglezes encarregados da
direcção d'esta gnuidiosa obra. Se cila se realisar,
como esperamos, Sacavém de\e melhorar considera-
velmente de situação, apesar de algumas das suas des-
fa\ora\eis condições.
Pertencia este logar ao termo de Lisboa ; por um
decreto de setenibro ultimo, liça fazendo parte do
novo concelho dos Olivaes.
POETAS DA ARCADL\.
\.
PEnno António Corkka Garção.
J\'o Menalo — Corydon Erimanthfo.
No vouME quarto do i'nnor<im<i encontrarão os
nossos leitores a noticia completa da fundação, e pro-
gresso da sociedade litteraria, cuja memoria se honra
com os primores do Garção, do Quita, e do Diniz.
.\ão repetiremos, pois, o que está dito ; mas servir-
nos-ha de base. Posto que de curta duração, o pe-
ríodo que abrange a escola dos árcades, exerceu gran-
de influxo no futuro da arte, vingada por elles da
baixeza do estvlo e da corrupção inveterada dos imi-
tadores da decadência estranha.
A Arcádia fundou-se no anno de 1756, sendo os
mezes de agosto e setembro empregados em compor
e discutir os estatutos, confiados á redacção de .An-
tónio Diniz da Cruz e Silva, o auctor do Hyssope, e
das Odes Pindaricas c Anacreonticas. O objecto da
nova instituição era restituir aos diversos géneros de
poesia a severidade de formas, a correcção clássica,
e a perfeição imitativa dos séculos de ouro da litte-
ratura dos antigos, e das melhores obras nacionaes.
A degeneração tinha envilecido tanto a lingua, e es-
tancado por tal modo as fontes dos bons estudos, que
SC tornavam indispensáveis os conselhos, e os exem-
plos de uma associação dotada de forte vontade e de
esclarecido talento, para com ^■anta^em luctar con-
tra a corrente, e salvar da obscura inundação os mo-
delos primorosos do gosto romano, e da primeira re-
nascença portugueza.
A existência da Arcádia não foi longa nem tran-
quilla. Na ultima epocha esse resto de vida, que de
longe manifestava ainda, emprestavam-lh"o os esfor-
ços de um ou outro sócio, sobre tudo os de António
Diniz ; e ao cabo de vinte annos exhatava o derra-
deiro suspiro, em 1776, pouco chorada e quasi nada
conhecida do po\o, com quem não quizera nem sou-
bera congraçar-se, descendo ao meio d"eUe.
O defeito principal dos pastores do Menalo foi
preoccuparem-se de mais com a fidalguia das letras,
julgando que uma grande revolução no gosto é pos-
sível, e pode consuramar-se, resumindo em poucos
apóstolos o ensino e a propagação da nova lei. A
Arcádia, nunca saiu, (e julgar-se-ia sacrílega, sain-
do!) do circulo restricto da imitação antiga. No
theatro, na poesia, e nos outros géneros, em que
exerceu as suas reformas, os modelos eram sempre os
livros dos auctores mortos, e a reflexão constante de
idéas e costumes, que a mão do tempo tinha encer-
rado na urna dos séculos.
Nenhum rasgo original, similhante aos que ale-
gram a veia jo\ial de Gil \ icentc -, nenhuma inter-
pretação larga e profunda do sentimento humano.
Todas as paixões, todos os quadros da >ida e da na-
tureza, repro<luzem. na máxima parte, as recordações
do l>ello antigo, e rara vei a expressão exacta das
sensações do poeta, s;uidando o sublime na verd.ide
actu;U. No sentido da lil>crdade regrada, mas neces-
sária, da arte, a sociedade arc.adica nada adiantou ^
continuando a crer e a ensinar os dogmas da religião
immovcl, mantida pelos sectários de Aristóteles e
Boileau.
.\ inspiração nacional pouco lhos sorriu ; e bem
escass;i lui conseguiu metfer no cárcere voluntário,
aonde estes admiradores do passado sepultaram fa-
culdades, que em \tVi alto e menos preso, os teriam
elevado aos amplos horisontes da revolução moderna.
O povo, amando as suas tradiç\Vs. os seus usos, e
as fu.ns lendas, viu pass;ir por tanto a Arcidia, e
não achou n"ella i-ous;i <|ue lhe attrahisse as sjinpa-
ihias. Ouvia-a f.illar em lingua correcta dos amores
de Ovidio e das lagrimas da es[K>sa de Sichcu ; es-
cutava dcsoripções de tormentas, e bosquejos de pai-
sagens, que não eni-onlra\a no céu e nos sitios mais
plftorescos da terra natal ; cantavam-lhc os marty-
rios da alma, .as n\aguas e as desventuras de perso-
nagens que lhe eram indiflcrcntcs, porque pertenciam
o PANORA3IA.
331
á» saudades de civilisações cxtinctas. Os feitos dos he-
roe» portuguezes, mesmo celebrados na lyra orgulbo-
aa de Piíidaro, ou na casta, inas para nós ja fria
imitação de Horácio, esmoreciam do calor e davive-
»a, que em rudes melros e imperfeitas formas, sabia
dar-lhes a cantiga nacional, ingénua e sincera, bella
naturalmente, e mais própria para fazer estremecer
o seu coração com o gemido do coração de seus ir-
mãos, pintando o enthusiasmo da gloria áquelles que
o sentiam c o presavam como ella !
Entretanto as razões, que separaram o povo dos
Arcados, não roubam a estes o louvor merecido pela
renovação clássica, que emprehenderani e assignala-
ram com o engenho. Se não alcançam além da sua
epocha, se não levantam o espirito acima das regras
criticas, postas no seu tempo como as estremas do
império intellectual, seria ini<|uidade negar-lhes a
palma, que lhes cortou a fama, e que ainda rever-
dece na sua campa. Ha factos que excedem as pos-
ses de um século \ e que outro realisa sem fadiga.
Voltaire, o engenho mais vulgarisador da Europa,
regeu como déspota o gosto no largo período, que
abraçam as suas obras ; e apesar d'isso viveu sujeito
á severa desciplina decretada na Academia doRiche-
lieu, e fui o executor fiel dos ])receitos aristotélicos,
na máxima parte dos seus escriptos. As innovações,
que introduziu; os arrojos a que se abalançou, fazem-
iios sorrir hoje \ e com tudo eram arrojos e innova-
ções rcaes para a epocha em que se atreveu a com-
mettel-os. O poeta cortesão e esmerado, que accusava
de barl>aro o estro de Shakespeare e se compadecia
da sua arte informe, não estaria bem longe de pre-
ver o futuro próximo, qui! devia proclamar a supre-
macia do grande trágico inglez :, jiondo abaixo dos
dramas immortaes do auctor de Oihcllo c Julieta, as
peças regulares, castigadas, e cheias tle elegantes de-
clamações do dictador de Ferney ? !
A Arcádia, mesmo no circulo a que se limitou,
fez serviços reh^vantes ;is letras pátrias. Se não reno-
vou no sentido lato da palavra, purificou a poesia d:is
maculas, qu(! a escureciam, e exaltou-a pelo respeito
da sua origem, o. pela castidade das fornias, tiran-
do-a da decadência em que veiu aehal-a precipitada.
A frequência e a imitação dos Ixjns modelos resla-
beleceii o gosto, que túmidas e obscuras cópias ti-
nham depravado. A lingua, corruida do cancro das
locuções viciosas, tornou a mostrar a riqueza, a lou-
çania, e os brios da lingua de Sá de Miranda, v. de
('amões, additada com o pecúlio dos séculos seguin-
tes. Estudos variados diívassaram os íissumptos mais
aptos para a fecundarem \ variados poemas de uma
correcção altica <; de um lavor incomparável, prova-
ram quií o exemplo podia jiislilicar a doutrina. Até
onde, na esphera das idéas do tempo, era possível
levar a restauração, foi ella h^vada \ e ha no seu ca-
minho mais de um monumento que lujs obriga a ve-
ni.Tar os homens, que o ergueram. Em (pinnto a lin-
gua portugui'za fõr sabida, e as gallas do estjlo e da
imaginação forem estimadas, a Ijra clássica do Gar-
ção, e os versos pastoris do (luita, hão de ser admi-
rados como um dos mais hellos rasgos do engenho,
O Sr. I), José I, (|ue lauto desejava, ou mais exa-
cto, o si;u ministro do despacho universal, qiu-, em
nome d'elle, lautas providiuicias loiíioii |)ara aper-
feiçoar o» estudos su])eriori>s, e diiriiudir o ensino ele-
mentar, arraiK-ando aos Jisiiitas o in(>iio[iolio dains-
tnicção, for.Mii hcm tristes Mcceiícis p,uM iis cultiu°es
das leiras. Excepliiniiilo António Diniz, cuja musa
mais llexivel tinha caíilo em graça ao iM.ir(|ue/, de
(Vimlial, os outros Árcades, nu exprriiui'nlar;im os
rigores dii sua vingança, ou esfriaram sol> o gelo ilu
•ua indiflerença. Se ao principio pareceu ueolhel-os
a boa sombra, se os frequentou até algumas vezes, é
certo que pouco depois esta benevolência se conver-
teu em desagrado. IVão ha memoria de mercê ou de
premio concedido a homens, que Luiz XFV se não
esqueceria de inscrever no seu livro das pensões lit-
terarias, como auxiliares do grande século, que abriu
e encerrou o seu longo reinado. A Arcádia susten-
tou-se por si mesma, e caiu enfraquecida pela morte
dos sócios mais notáveis ; não nos consta que o mi-
nistro omnipotente se lembrasse de a proteger, nem
tentasse dilatar-lhe os dias. O Garção serve de exem-
plo para provar, que nenhuma espécie de mérito po-
dia eximir da iramediata repressão domarquez áquel-
les que julgava adversos ou pouco affectos á revolu-
ção monarcliica, em que, similhante a Richelieu, e
sem o querer, trabalhou mais a favor da liberdade,
do que era proveito do poder absoluto, cujos esteios
demoliu, arrancadas as pedras angulares, que eram a
sua base.
O homem, que pelas qualidades do talento, e pe-
la consciência da erudição, melhor caracterisou a
Arcádia, e o seu espirito foi o Garção. Nenhum dos
outros sócios o igualou no acabado do lavor poético,
e na forma sóbria e correcta dos assumptos. Debaixo
dos seus dedos a lingua opulenta e dócil, presta-«e
com propriedade a todas as exigências do pensamen-
to, revendo com graça e transparência os modelos da
imitação clássica. Menos imaginoso do que Bocage,
faltando-lhe aquella veia fogosa (irada ou terna), que
fazia do cantor de Hcro um prodígio, quando o Ím-
peto divino o arrebatava, o auctor do Thtutro Novo
e da Cantata de JJido, se não tinha os raptos do es-
ti-o, e as grandes visões do génio, se não subia tão
alto com o vôo lyrico, também era isento dos lapsos
e das quedas, que tantas vezes precipitam a Elmano,
desfeiando as formosas inspirações de poesias inesgo-
táveis na sensibilidade e no ardor.
Se uma comparação pudesse dar a idéa da ditfe-
rente Índole d'eslis dous grandes poetas, IJocage se-
ria a torrente, que se despenha por alcantis, toucada
de nebulosos vapores, cheia de estrondo e de gran-
deza, mas volvendo com as aguas troncos, ramos e
limos, tudo a um tempo ! O Garção, assimilhar-se-
ía a essas ribeiras fundas e claras, tão próprias da
nossa paisagem, que gemem por entre a fresca som-
bra dos arvoredos inclinados para as beijar ; (]ue en-
grossando lambem se enchem de ])oder e de niages-
tadc :, mas cuja belleza mais consiste na graça, do
que na força ; arrastando antes flores e palmas na
corrente, do que os cadáveres dos antigos cedros que-
brados pela fúria da sua cheia ; e deve confessar-s<!
<|ue um não atlralu? menos pelo enlevo e serenidade,
do (jue o outro pelos rasgos audazes, e os relâmpago»
de imagens arrojadas !
As noticias qut? nos restam da vida do Garção pou-
co satisfazem a curiosidade qu<! excita o seu nome,
e a memoria de infortúnios siipportados <'om gran-
deza d'alnia, e vontaiK' firme. Pouco se >abe d'elle,
e esse pouco anda confuso na tradição oral. Auste-
ro, dotado da rigidez de carai'ter, e da isenção de
(■s|iirito, que rara vez deixou de provocar os rigoro»
da fortuna, se lhe não requestou o fivor dobrando o
joelho, taiubem se não curvou ao açimti.' da sua ira,
liem derrinioii as lagrimas de uma di^r eoliarcle. Co-
mo clii' próprio diz em uma ode, não ceili'ii nem se
fez pallido, sentindo a mão da desdita >ola-e si; af-
Inuitou-a sem recuar ;
Asnim, assim a misera pobreza,
.\ coiilraria forliiiia
Deve iiiimovel sotlVtr uma alma gr.iiide
Oh, Sousa esclarecido '.
332
O PANORAMA.
Varra o credor soberbo a pobre casa
Co desabrido Alcaide \
Dormo no duro clião Ião dcscançado,
Como no leito brando,
O intrépido varão, que do destino
Prova os fataes re\ezes.
A reminiscência, apropriada ao seu destino, de uma
das mais famosas odes de Horácio é o quadro moral
do seu espirito. Constante no infortúnio, acha ainda
o sorriso de outro lempo e as saudades deannosmais
felizes para chasquear a pnlida caha do padre Del-
fim e a sua caseira relx^ca deixada em penhor com a
loba <• o Iwrdão campestre. Convida-o a que volte,
promettendo-lhe o cheiroso lombo, e a fogueira da
chaminé, aonde estala a lenha, e silva a chaleira,
fervendo a agua para o ponche. N'estiis pinturas
cheias de graça natural, era que respira o conchego
do lar domestico, acham-so toques que só o pincel do
Tolenlino foi capaz de vencer depois.
O sr. Trigoso, na sua Memoria sobre o estahcleci-
menlo da Arcádia e sita injluciicia na lillcraiura
porturjucza, assegura em uma nota que Garção nas-
cera a 29 de abril de 172'í e fallecêra a 10 de no-
vembro de 1772, depois de jazer encerrado para ci-
ma de anno e meio, expirando justamente na occa-
sião, em que, reconhecida a sua innocencia, se lhe
espedíra a ordem de soltura. Sendo exacto, bem cur-
ta e atribulada foi a sua vida nos últimos annos i so-
bre tudo desde que, arrancado aos braços da esposa e
dos ijlhos, que tanto estimava, e tinha tão mimosos,
»e viu de repente longe d^elles c sepultado com a
nota de crimes que se ignoram, e que elle próprio
tdlvez ignorasse como nós, porque o braço do mar-
quez do Pombal em ferir era tão prorapto, como a
suspeita cm despontar no seu coração.
Pelo que se deprehende das suas obras, o auctor
do Thcatro ]\ovo não viveu sempre na estreiteza de
iiens, a que alhidem muitos dos seus versos. Houve
uma epocha, em que não sentiu os cuidados da in-
digência, e se pôde entregar mais desassombrado ao
estudo dos poetas, que fizeram as suas delicias mes-
mo quando caiu na maior pobreza. Comparando cer-
tas passagens, c aproximando-as, parece rasoavel a
conjectura, de que uma demanda perdida, c as pe-
nhoras resultantes d'ella, o trouxeram á penúria,
deixando-lhe apenas (se deixaram) a sua casa da
Konte Santa, que era o ermo Tibur aonde o Horá-
cio põrtuguez corregia com lima frequente as pagi-
nas pouco numerosas, mas acabadas, que nos legou.
Casado e rodeado de filhos, é fácil prever as amar-
guras e inquietações que lhe perturbavam o espirito,
vendo-se com escassa renda, e oom as obrigações ca-
da dia mais aucmcntadas. Alguns dos sonetos c das
odes, em uma zondiaria sem fel, descrevem os em-
baraços domésticos, c os meios engenhosos adoptados
pelo poeta para es remediar. (Imas vezes quem o
declara é uma letra c/n verso sacada sobre um ami-
jro abastado \ outras o medo ao rol dos pedreiros e
'■arpinteiros, oecupados no concerto de uma escada,
« quem (diz elle) o bloqueia dentro de casa. As ca-
beças do alcatrão, e os busca pcs da noute de Santo
António, fazem-no tremer, porque se acha com a
bolsa cxhausta, o não tem animo de o confessar aos
filhos '.
Q.UC motivo deu origem á prisão do Garção, c aos
rigores do niarquez de Pombal '! Ha diversas tradi-
ções, mas inconsistentes ou fuleis, a nosso vér. As
que se fundam n^um enredo amoroso, c na traduc-
ção de uma carta, imputjim ao ministro severidade
mais que monástica, e essa não era da su.i Índole.
As que se referem a segredos de estado revelados,
esquecem que não consta que houvesse nunca intimi-
dade entre o marquez c o poeta para occorrer a in-
confidência d"este, e a indiscripção d"aquelle. Uma
opinião mais sisuda, e que julgamos mais em harmo-
nia com as probabilidades, quer que a perse-niicão
do Garção fosse devida a allusões dos seus versos con-
tra o despótico governo do ministro : e talvez que
ainda era cima exacerbadas com menos prudência
pela indignação natural de uma alma nobre contra
a tyrannia.
Cita-se até a Falia do Infante D. Pedro aosFor-
iuyuczes como corpo de delicto, que o marquez apre-
sentava contra o poeta, afim de prolongar a sua pri-
são. Efiectivamente o assumpto era melindroso para a
e[>ocha •, a recusa de uma estatua feita pelo duqde de
Coimbra em presença da estatua equestre de cl-rei
D. José I, e da medalha do seu ministro, já em si
equivalia a uma satyra desfarçada, ou pelo menos a
uma censura indirecta. Ijendo-se e meditando-se di-
versos trechos d^aquelle discur-o, acha-se fundamen-
to bastante j)ara acreditar que o marquei de Pom-
bal visse n"elle a reprebensão clara dos seus actos.
Mais de uma phrase acerada, mais de uma sentença
austera devia excitar o seu resentiniento, porque era
a critica do ministro e do monarcha. Um poema
aonde se acham versos como estes, podia «alvar o au-
ctor das iras do poder .'
Não queiraes olTuscar minha memoria,
Provocando-me a collocar no sólio
Um injurioso exemplo da vaidade,
Um padrão de lisonja
Fora imprópria
A gloria que me dacs, se n"esía e>tatua
Descubrissem os séculos futuros
As maculas horrendas da vangloria.
Mas haja quem se lembre d'cste caso,
E quem diga, que rejeitei modesto
\s honras de uma estatua ■, eque estas houra>,
(-luem chega com justiça a merccel-as.
Também sabe atrever-se a dcspresal-as.
tiue paralldo I Que terrível e fulminante allusão I
O duque de Coimbra de uma parte rejeitando a es-
tatua, porque
E mui pc^ada
A sujeição do sccptro ; c quem domina
Não tem a seu arbítrio as leis sagradas :
Fiel executor deve cumpril-as ;
Mas não pôde altcral-as '.
O marquez de Pombal da outra levantando a .Me-
moria, e antepondo a scUncta certa e o poder atito-
luto á execução fiel das leis, alteradas a m-u arbitrio I
tiue mais era preciso para aquella voz censora ser
obrigada a calar-se ; para o iniprudenfc, que ousava
chegar o espelho tão perto do nisto contrahido do
orgulho e do despotismo. s»t tirado d "entre os ho-
mens, e sumido nas entranhas de uui cárcere! Por
muito menos se povoaram as prisões do Fort«t da
Junqueira I
•.) mari]uez condoeu-sc por fim, e consentiu era
deixar voltar o piiota para a sua pohro morada f Fci
merc-ê cspiinfanea d"clK', ou ordem particular do so-
berano.' A ullinni \crí.";o jvin-cc mais natural. Sc-
Ivistião Jost- de Carvalho o Mello rara toi [x-rdoou
aos que o offendcram ; c a coincidência do a\ iso de
soltura com a morte do G-.irção, deixa sobn- a me-
moria do ministro uma sombra de crueldade c.ílcu-
!ada, que i6 provas irresistivei» hão de destruir. ^•-
o PAINORAMA.
1, -^ 'í
ria acaso, mas no govorno Jo «pcretario do despacho
universal estes acasos são muito frequentes. A siini-
lhan<,'a <lo cardeal de Kichelicu, s. ex."* não tinha boa
lerabrai!(;a senão para castigar '.
A morte do Garção privou a Arcádia .lo seu es-
teio principal, (iuatro annos depois acabava a so-
ciedade, apenas entretida coino unia apparencia de
vida pelas diligencias de Diniz, que debalde procu-
rou ebaniar sobre ella a protecção, que o ministro
estava resolvido a não conceder. Os dilhvrambos em
honra (do marquez, recitados em casa do morgado de
í)liveira, serviriam só de fazer estremecer as cinzas de
Corydon no tumulo, se podessem ouvir a boca dos
seus pastores torcendo em lisonjas a magua sincera
que experimentaram pelos rigores, de que fora vic-
tima.
Para Sebastião José de Carvalho ainda era cedo \
a apologia do que ha de verdadeiramente grande no
seu governo, a posteridade encarregou-se de a fazer,
e tal que vive nuiis do que os elogios esquecidos dos
yatcs i para a Arcádia era tardo, porque o seu logar
não era aos pés do poder, o a sua missão estava con-
kummada ; a essa também o futuro já fez justiça.
1'assemos agora á apreciação litteraria do engenho
c das obras do Garção. Será o objecto do seguinte
iírtigo.
L. A. Hebello d.4. Silva.
'^íi^^i^
AS I'IU»VI.\('1AS \AS((»N(;AI).\S.
(ko'1'icih MmroKMA .)
í-lrAKDo n» barbaroí do Nofle se derr.ininrani V\>-
nio imp(<tuusa lorrenie pelos j)ai?es iiiiTcdiniiiics du
l'4irii[ia, os caiilubroH pcvtunnccerauí flein ;ios rouiu-
nos, e sustentaram rijos combales com os invasores,
os quaes não poderam sujeitar os esforçados monla-
nhezes que estanceavam entrí! o Ebro e o Oceano.
Conservaram-se independentes largo tempo, ainda
cjue expostos aos repetidos aiaques dos godos ; até
que Leovigildo emprehendeu a conquista d'aquelle
agreste pai/.. Resistiram-llie os seus naturaes com »
ordinário valor, e detiveram o Ímpeto dos godos,
que não puderam penetrar na parte central d'eile,
contentando-se em occupar e fortificar vários pontn;<
fronteiros para evitar atrevidas correrias.
Unidos alUm os cantabros e godos pelos vínculos
da religião, porque uns e outros abraçaram o chris-
tianismo, angregaram-se as províncias vascongadas ati
vasto império ([ue a desmoralisação, a cobiça, a])erli-
dia, e o total esquecimento da honra e do dever
(flagellos que são a ruina das nações) fizeram suc-
cumbir nas margens do Guadalete.
São conformes todos os historiadores em asseverar
que os bárbaros não puderam jicnetrar no território
vascoiigado, defendido generosamente pelos seus vir-
tuosos moradores, e por muitos outros que futcindo
aquella ilcsfeila tempestade que a justiça Divina ha-
via desencadeado sobre a desventurada Hespanha,
foram buscar nas cordilheiras septontrionaes a sua
salvação, e a do glorioso nome hespanhol.
Começam depois d^aquelles tristes successos as du-
vidas sobre o estado do paiz, que é o objecto d'esta
resenha histórica, siippondo-o uns independente, e
outros como formando parte do reino que se erigiu
em Covadonga : opinião, segundo nosso entender,
mais pro\a\cl e fuiidaila.
Temos fallado até aqui das províncias vasconga-
das em geral, porque de feito, os referidos successos
são communs ás três •, e ainda que em todas as epo-
clias se hajam distinguido com denominações parti-
culares, é sd^ido que seus habitantes constituíram
sempre um único povo, sendo conhecidos nos tem-
pos antigos pela designação de cantabros, e pela de
vascongados nos modernos.
Entre a historia de Alava c a de Guipiizcoa [wu-
ca diflerença se nota, jk)Ís não só correram a mesma
sorte, senão lambem que o nome da primeira das
mencionadas províncias se tornou extensivo á se-
gunda.
1'erteiiceram piu' algum ttiiipo .;s pro\iiu-i.is de
Alava e (juipnzcoa ao reino de Navarra, e no anuo
de 1:200 da era eliristã se encorporaram definitiva-
incnte á coroa de (\istel!a. Não assim a Biscayn,
que, durante alguns séculos, teve seus senhores par-
ticulares, dignid.ide (|ue se considera dirivada do fa-
moso du<pie iji! Cantábria. Era possuidor do referido
doiuinio por lins do s<'culo 9.^ D. lA)po Zuria, a
([ucin succederam D. .Munio Lopes, que alguns chn-
mam D. Manso, D. íjope Nunes, D. IMiinio Lopes,
D. Lojie Mome^ ou I\u[ies e D. Tnigo ]iopi-s, por
antonomásia o Suiilo, o qual vivia no principio do
século 11.'', e é reconhecido como senhor deUiscayá
por lodos os historiadores, honra que pouco» outor-
garam aos seus cinco predecessores, cuja existência
se t<'m poslo em duvida.
Seguindo os senhores de Biscaia o costume geral
da sua epocha davam iio succcssor o nome de seu
avó, e assim vemos altenuir-ae por largo tempo na
chronologia d'a<|uelle9 os nomes de Ijope Dia» e Dio-
go Lopes.
Como ,-1 hisliiria, fadm iii<-xtinguível dn verdade,
n>"io eslá por desgr.iça i> coberto da.s paixões dos ho-
mens, que desejam escudai -s<' ciun ella, para sntisla-
ier seu orgulho e seus o<lios, não é par» estranhar
que inimi'J:os incoiiciliavci'' <io pai". VHseongado, que
de certo iicmIuiui damiio \\\fn te;., lenliauí qneriílo
334
O PANOR :V3IA.
provar, ou para melhor dizermos, assentar como cou- '
SA certa, que o Eonhorio ou condado de Biscava c 1
suas duas irmãs têem conslanlemeiílc soflVido estra-
nho jugo. l'ara o conseguirem derani-se tratos ás pa-
lavras dos chronistas e historiadores, inverteu-se o
vcntiiio de muitas passagens históricas, e olvidou-se
a critica.
E incontestável (jue os senhores de Biscava exer-
ceram algumas vezes uma auctoridadc independente
dos reis de Navarra e Caslella, que coadjuvaram nas
guerras com os musulraanos e contra os quaes de-
fenderam em alçuns casos com as armas ósseas direi-
tos e a integridade do seu pequeno território.
(Cmitinúa.)
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA.
Ikstbccções dadas ao coadjutor de bekgamo,
xuncio em rortlgal no tempo de d. j0.\o iii.
"O REI, sem O dar a saber a N. S., em tempo ur-
gentíssimo para nós e apropriadíssimo para si, diz-se
ter concluído um tratado de paz com o Turco, polo
qual cm cida anno lhe paga cem mil ducados d'ou-
ro ou mais. No tratado não se faz a menor menção
da Sé Apostólica, nem de terras e cousas da igreja,
e affinnam que somente ahrange as do imperador,
sendo toda aquella negociação com concessão da Cú-
ria \ contam que o imperador ficou muito desgos-
toso.
"As cousas de que parece que se pode tirar de Por-
tugal grande utilidade, e para isso encarregar o nún-
cio de as esclarecer com informações profundas e
sensatas , são as seguintes :
^. Primeiro, na matéria de christãos (novos?) caso
não queira S. Santidade revogar absolutamente a
Inquisição extraordinária, conimeltendo o Santo Of-
ficio aos ordinários, segundo a razão canónica, em
que não faria cousa que não fosse santa e justa, e
muito pedida, até porque animaria assim os prela-
dos a ter sempre officiaes da n Eretica pravidade"
sendo o meio e a forma do os cercar de homens li-
dos, podendo cada um na sua diocese fazer melhor jus-
tiça, c (irando-se o confisco dos bens, reduzindo tu-
do a castigar os maus, e a deixar aos hons a fruição
pacifica dos seus bens, só com o encargo de pagarem
uma boa composição e subsidio para a guerra dos
infleis;; e os tristes não sairiam da pátria, nem iriam
fazcr-se judeus, nem en>inariam aos infiéis todos os
artifícios que sabem, como armas, artilhoria, e simi-
Ihantes cousas ; é então mais conveniente, segundo
parece, reger-sc isto antes por provisões particulares,
do que por bulias com a concórdia e limitação que
80 fez; em o núncio tendo faculdade ampla de pas-
sar o breve a quem o pedir, pagando ainda que seja
pe<)ucna quantia, o rendimento niontari;i a muito
pelo numero das pessoas exceder a cincoenta mil.
"Item. Os mosteiros e bispados tèem grandíssimo
numero do pensões e bons eniplivteuticos, e estes cos-
tumam-se dar em prasos tle três ou mais vidas. E
são tão desejados e cubicados dos seculares, que se
N. S. 03 quizer conceder in pcrptiuo a quem ospos-
íue, ou a outrem, não os <|uerendo o possuidor, ain-
da que seja com grande an'.;nu-nto para as igrejas, se
tirará muito dinheiro •, e pondo por condição, que
se as igrejas os quizcreni, deverão remir ou comprar
a S. Santidade a isenção para ficarem como estão,
se arrecadará ainda grande somina ; o que seria por
estremo vantajoso por S. Santidade colher a compo-
sição e os bens ficarem livres como d"antes ás igre-
jas. E esta negociação, tratando-a o núncio, não em
geral, mas segundo caísse á mão, não seria fora de
propósito para não confiar a ninguém o segredo d*ella.
"Item. (iuerendo S. Santidade conceder licença
ás igrejas para trocarem d'estes bens por outros de
igual valor, seriam obrigadas a pagar a mesma pen-
são, o que permittiria receber ainda alguma couia,
porque muitas existem a quem bto conviria, e que
de boa mente pagavam.
"A composição dos commendadores de — frucHbui
male pcrccplis — pelos motivos acima indicados, éde
grande importância, e estão obrigados a iiizel-a, ou
o rei por elles, como se prova em direito : e dit-se
que muitos a teriam já feito se o rei se não oppo-
zesse por cuidar n'uma convenção com S. Santidade,
similhante á das decimas, para depois haver dos com-
mendadores um agradecimento valioso.
"Item. Gluerendo o papa revogar a bulia das com-
mendas, (que de todo o modo no Concilio será a pri-
meira a revogar, pois que quem possue, possua em
quanto vivo, e depois de morto volva a propriedade
ao seu antigo estado) affirmam que o clero pairará ao
rei toda a composição que se deu ao papa Leão e a
S. Santidade, tanto que poderia ser uma grande par-
te das despezas da Hungria com summo serviço de
Dcos, e em seu louvor. Mas não querendo tirar na-
da ao rei, do que obteve do papa Leão, e se contém
na bulia, se quizer reduzir as ditas commendas aos
vinte mil ducados de rendimento, que são os concedi-
dos ])elo papa, e que o que excede volte ao estado
primitivo, c não se dêem mais commendas ; ainda
por isto o clero pagará uma justíssima composição,
e accrcsce não ter de repartir nada com o rei, fican-
do a S. Alteza o que lhe foi concedido na bulia.
"Item. Se o núncio levar faculdade para conceder
aos padres licença de test;ir qualquer quantia, com
uma taxa de tantos por cento, se tirará bastante di-
nheiro sem o menor damno da Sé .\postolica, por-
que ali não é como em Castella, aonde a Camará
Apostólica herda o espolio, e de toda a maneira os
bens são abafados e roubados, e sempre vão aos suc-
cessores :, e quem os houvesse por licença tel-os-ía de
direito e os padres, de Iwa mente, para se livTarcm
de mil obstáculos, e beneficiarem os seus, haviam de
estar pelo prompto pagamento da composição.
"Item. Julgando-se conveniente permittir ao rei
os contratos sobre mctaes para uso bcllico ciim osin-
lieis, como até agora, e absol\el-o do peccado, se ti-
rará por isto uma grossa corajHJsição, como atrai no-
tei, porque elle o não fará tranquíUo sem ella, e o
mal e escândalo da cliristandade é graudissimo e ma-
nifesto.
" Não seria fora de propósito lembrar, se fosse ser-
viço de Deus, que o núncio levasse faculdade para
dispensas matrimoniaes de — conlraciu imtium —
com os limites que pudesse, e terrores do futuro,
que suscitasse, pois ha immensos que para vir a Ro-
ma gastam o ((uc tiVni, e lá ]iagariam voluntaria-
mente para saírem do peccado. t)u então fazer no-
tificação geral para ninguém ir a Roma sem infor-
mação do núncio, e quem devesse vir, viríaomi cla-
resa e de mudo que não tivesse mais do que apre-
sentar-sc a S. Santidade e ser dcsjvichado, s<^indo
sua justiça.
"O que o núncio deve faicr, c a maneira de se
reg\dar na direcção dos negócios, depende mais da
vontade de S. Santidade, do que de outra cousa
qualquer •, porém attendeiido-so aos teni|xis, c ás ne-
cessidades d\-iquellcs reinos, á honra c serviço de
N. S. seria op|Hirtuiio andar com mais actividade
que .1 costuinaila, porque os negócios d'.di, e s«)bpe
tudu o dos christãos novos, exige brevidade, c ni3Í>
o PANORAMA.
33i
ainda porque d'ella se concluirá, que principalmen-
te vae á corte por matérias de publico interesse, o
que lhe auginentará a auctoridade e acceitaçuo.
u Deverá levar comsigo algum homem lido em di-
reito e um hábil extractor, porque estes dois ofticios
«ão sufíiticntes.
" l'arece-me que o núncio deverá deitar a fama
aqui, c pela jornada, de somente ir para os liiis, e
com as bulias do Concilio, e cousas do Turco e pe-
rigos da christandade como é conveniente, sem des-
cobrir o resto da sua missão.
"Também me parece bom que passe pela corte do
imperador, e, podendo ser, pela de Franca sem lon-
;;a demora, para chegar depois com maior auctorida-
de a Portugal, vondo-se que fallou antes com os mais
príncipes; e igualmente não seria máu ao serviço de
S. Santidade, que elle, em geral, recommendasse os
negócios, porque o envia, e a pessoa do seu núncio
ao imperador, pedindo-lhe que escreva ao seu embai-
xador para ajudar as cousas de Roma, o que lhe ha
de dar valia e força, correndo a negociação unida,
c podendo além d^isso o núncio com destresa deixar
suppor muito maior intimidade do que na realidade
exLsta.
« l'or nenhum caso deverá o núncio fazer entender
a sua chegada, (salvo tendo chegado) para não mos-
trar em nada que duvidou de o receberem ou não ;
porque aquella gente em vendo um receio ou hesi-
tação logo se ensoberbece, o que n'este caso não acon-
tecerá \ mus sempre 6 melhor andar de longe e não
criar difficuldades aonde as não ha.
" l'are((! que deverá trazer })reves aos infantes D.
Fili|)pc, I). Henrique! e D. Duarte, e ao arcebispo
de Lislioa, e que os breves para os prelados sejam
escriptos com auctoridade, e nVlles S. Santidade
discorra — iamquani poUslakni Itabtus. — Assim é
preciso.
"Seria bom imprimir a bulia das faculdades para
em tempo poder ser publicada em todo o reino,
posto qu(! parece não ser opportuno publical-a senão
depois lie encetadas as duas negociações principaes,
a do Concilio e a das cousas do Turco.
(Continua.)
Duas palavras sobke hospitaes.
IV.
As CAusAn que, desile o anno 1097, tornaram indis-
pensáveis i'm toda a líuropa os lii]sj)ilaes e ailjerga-
rias (fallo das cruzadas) creio <|ue deveriam actuar
entre nós cnm niuilo menos iniensidade, pi)r(|ue
envulvidos em crua guerra contra os musuluianos,
eram poucos lodos os liarões e villões, todo o eslurço
e hondiri<!ade (!<■ nobres e popidares se r('qu<'i'ia en-
tão, para expurgar o território da raça inli<'l <jue o
povoava, e firmar a na<'iiiiiali<lad(' |)orlugueza, tão
«•onlrariada cPobsIaculos poderosissinios, c ciuKpiista-
da á força de persevc-ranea e sagacidade |iiililica, e a
troco de innuMicrosos sacrifícios. l\ão faltava aqui
inccMitivo de gloria ás amliiçries guerreiras, nem ri-
q\ie7.a d'agari'nos |iara saciar a cobiça de cliristãos.
Não podianuis nem precisávamos de ir combater ou
j)eregrinar á Paleslina, e recdlher ao paiz milal cheios
de Uqira. Km 1'orlugal, di! feito, nào houve alista-
mentos pani expiclieòes de cruzados ; anies vieram
osles, de tiTriis longiiiíjuas, auxiliar-nos iiaexpugna-
ção de Lisboa, Silves e Aleaeer, rendi<lii'( di^pois de
longa e h((roica resislencia dos sarr.iieiidb,
Dcviaiuuí ter, creio eu, nieno» Icprulos do c|ue a
França e outros povos do Norte, onde a paixão das
romagens á Terra Santa chegou a tocar o delirio, e
onde, segundo alguns escriptores, o maior numero de
hospitaes e albergarias foi devido áquella_/è6re Tno-
ral, como lhe chama o sr. A.Herculano. Parece que
a França contava 2,000 d^aquelles estabelecimentos
no anno de 122C, e que, logo que o fervor das per-
egrinações esfriara, se fechou uma grande parte d'el-
les, porque não havia já romeiros que albergar.
Não digo que não houve leprosos no nosso paiz,
nem que similhante enfermidade não obrigasse a eri-
gir hospitaes em Portugal. E sabido que antigamen-
te se construíram muitos da invocação de S. Lazaro
(gafarias, como lhes chamavam) os quacs eram en-
tão edificados fora das povoações. Estou persuadido
porem, de que não se deram entre nós as mesmas
causas, que n^outros povos, para que tão cruel e re-
pugnante mal se propagasse na mesma extensão, e
no mesmo grau d'intensidade.
A. chamada ;jes<e negra, que em 1348 matava em
Paris oOO pessoas por dia, e outros contágios, que
por aquelles tempos aflligiam e desfalcavam horri-
velmente a população europea, creio também, que
não intluiram entre nós tanto como n'outros povos,
para a fundação dos hospitaes ; porque, se é exacto
o que diz o padre Francisco de Santa jMaria, rara
vez houve peste em Portugal antes da tomada de
Ceuta, c depois da perda de el-rei D. Sebastião, ha-
vendo-a quasi sempre no tempo intermédio. Diz po-
rém o mesmo chronista, que algumas foram tão ex-
traordinárias, que lhes deram os antigos o titulo de
grandes ; titulo com que elle achou nomeadas três
em ditferentes memorias: a primeira (1438) «pie fez
tanta mortandade em Lislwa, que esta citlade pare-
cia um ermo; a segunda (1493) (pie se ateara espe-
cialmente na cidade du Porto; a terceira (1569) que
foi tcrribilissima, e se desatou furiosamente por to-
do o reino, morrendo d'ella, só em Lisboa, oitenta
mil pessoas {.'.') ; a quarta (1379) na qual se dizia
também, que em Lisboa chegaram os mortos a (yiía-
renfa íiiíV(.').
Ora, eu bem sei que no periodo que decorre do
senhor D. João I até a fatal batalha d'Alcacer-Ki-
bir, é que os hospitaes mereceram maiores cuidados
aos monarchas portuguezes, e parf^ce isso infirmar a
minha opinião, ou antes a siipposição que ha jiouco
manifestei relalivamente á iidliiencia da ])esle.
Deve porem notar-se :
Em priíiuiro logar : (liie já em tempo muito
anterior a D. João 1 havia grande numero <le hos-
|iilai's no n'ino. No 3." voliinw da Historia de l'or-
liiijid <liz o senhor A. Hertulani), <pie o bispo do
Poilo e outros, se ipicixaram ao papa, de <pie D. Af-
lonsd 111 lhes usurpasse a administração, c os lH'ns
dos liiis|iilacs e albergarias. I)'cste facto, cpie teve
logar cento e (piarenta e tantos aniios antes da to-
mada de Ceiíla, iniiro eu «pie deviam ja ser mui-
tos aipu-lles inslitiilos e iiiiporlaiiles as suas ren-
das, para <pie os bispos alli'gasseiii, como fiiiida-
menlo digno de ser pi>iuUrado, a siip|u)s|;i usurpa-
ção.^
Fi i'ni segundo logar : (^ue as provideiici.is, jKir
que nos reinados des senhores D. Juão U, O. Ma-
noi'1 e I). João 111, se reformaraiu aipielles esi.;!»--
|eciiiH'iilos e s(! regulou o seu serviço, provam, aiitvs
<l<' linio, o propósito ile cenlralisar a respectiva ad-
ministração, c lalvrz dirigir vaiilajosamente o i-i^lo
religioso, (|ue miilliplicava os hospitaes sem sabir
aproveitar C(uivenii'iili'ineiile os i('<ursos «la caridade
|)arliciilar. l'in zl^lo sincero, mas iiie\|ierienlc, l.uia
então, pelo que ri'speila aos luispitaes, o ipie ai;ora
um zi''lo irrcllectido, >e nào c mu egoísmo de cUiiwc
3.3Ô
O PANORAMA.
indesculpável, está fazendo pelo que respeita aos
inonte-pÍ05, que mais cedo ou mais tarde têein de
morrer áiiiingoa de recursos, porque são já soui con-
to, ao passo que o numero de sócios em cada um
dV-Ues é limitado, c não pode com os encargos cres-
centes da associação.
Tela Vjulla de Sixto l^ , que começa: a lix debilo
snliciUuIuiis officii pasto) alist' se vê que ainda D.
João II não reinava, c já o papa lhe concedia am-
plos poíkrcs para fundar o hospital de Todos os San-
tos, e para encorporar n'ello todos os outros hospi-
taes de Lisboa C(jni os seus rendimentos. Foi effecti-
vamente levantado o liospital do Todos os Santos,
refundindo-se n'elle, além de outros, o de Santo
Eloj', que havia sido fundado pelo Vjispo D. Domin-
gos Jardo no aiino do 12S't, sob a invocação de S.
JPaulo o Apostolo. Vinte annos depois do terremoto
de 1753 foi o dito hospital real (ou de Todos os San-
tos, como lhe chamavam) transferido para o coUegio
novo dos Padres da Companhia, onde hoje existe
com a denominação de S. José. ])'esta pequena di-
gressão verá o leitor, que o hospital de S. José, com
quanto .seja o maior e mais rico de Portugal, não
pode, ainda remontando até a sua origem, recom-
niendar-se por uma alta vetuslidadc.
A bulia de Sixlo IV, a que me referi, é de agosto
de 147D, e d"il!a se deprehende que foi solicitada
com o fundamento e sob condição de 1). João II
»_i construir lun hospital com amplas e commodas of-
" ficinas para a varilalha htispiUdidaãcdos pobres, per-
iíegrinos, inválidos (laiKjiiidorum, diz a bulia) cn-
iifermos c outras pessoas miseráveis.^-: ICm iòíó, rei-
nando já o mencionado príncipe foi expedida outra
bulia de Innocencio A'III, com os mesmos amplos
poderes.
Na presença do tão calamitosos insultos da peste,
que o nosso paiz já havia solirido, parece que nem
levemente se allude a elles no pedido, como se não
allude na concessão.
E é cousa notável, que nos poucos livros e papeis,
que pude folhear, não deparasse eu senão com algu-
mas raras provisões do governo relativas á peste, e
encontrasse noticias sobre noticias de preces, e fun-
dações d'ermidas, para aplacar a fúria do contagio.
Por exemplo : o go\ orno da cidade e o povo de Lis-
toa, atemorisados pelo incêndio do mal, correram a
igreja de S. Domingos, e tomaram JNossa Senhora
do Rosário por sua advogada, obrigando-se com voto
a solenuiisarem as suas festas. D. Manoel nos prin-
cípios do seu reinado, confiando na intercessão c va-
lia de S. lloque, manda pedir á Senhoria de \ enc-
za algumas relíquias do corpo do Santo, as quaes lo-
ram recebidas <um grande applauso e consolação de
todo o povo. Manda depois levantar-lhe uma ermi-
da, que foi começada em março de lòUG, e sagrada
pelo bispo D. Duarle em fevereiro de lalo. Insti-
tuiu-se logo uma confraria, em «jue o rei, a rainha,
os infantes, e muitos nobres e populares se inscre-
veram .
São muitos os fados <|ue poisuadom, (pie n'aquel-
le tempo havia mais confiança no poder da oração
do que nos recursos da sciencia. L in ou outro alva-
rá, que me citem do tempo de D. Manoel, não dcs-
truc a minha asserção. Setenta e tantos annos de-
pois da primeira grande invasão da prsle, e quaren-
ta o tantos depois da segunda, é que se proliibiu que
saijibcm dos navios as pessoas que vinham a Lisboa
de logares impedidos do contagio.
Dizem-me que posso juntar a isto o silencio dos
dois registos geraes, que se acham no cartório do
liospital de S. José, e que abrangem os reinados de
D, João II, D. Manoel c D. João III. Não posso
verificar o facto i mas nos alvarás e provisões que re-
busquei pude notar alguns respectivos a certo mal,
que não obstante pertencer-lhe logar dislincfo na
historia das enfermidades, que têem afilicido o gé-
nero humano, não devo suppor que fosse mais digno
da consideração e cuidados dos nossos reis do que a
peste, a respeito da qual o silencio dos registos ar-
guiria menos solicitude.
A oração pode ser, e é um preservativo grato á
Divindade \ mas á sciencia, que é de Deus, deviam
também pedir-se com igual fervor e confiança as pre-
venções, e os remédios necessários para debellar ou
evitar os calamitosos effeitos do cont^"io.
Talvez me digam que o propósito de centralisar a
administração e serviço dos hospitaes era suggerido
pela necessidade d'acudir com providencias efficaies
ás invasões da peste, e que era uma das mais impor-
tantes, porque assim se proporcionavam a maior nu-
mero de doentes os meios de se curarem, facilitando
aos empregados o traUimento das enfermidades. Se
assim foi, sinto que não me fosse possível encontrar
expressa menção de um motivo tão justo nos diplo-
mas que consultei, e que das differentes pessoas a
que recorri nenhuma pudesse indicar-ra^os como eu
precisava.
E certo porém, que D. João 11 encorporou vá-
rios hospitaes de Lisboa no de Todos os Santos. De
quinze, que pelos annos de li83, havia em Santa-
rém, fez elle um só (o de Jesu-Christo) por aucto-
risação de Innocencio \ III. D. Manoel em 1501.
obteve de Alexandre M um breve para encorporar
no hospital de Todos os Santos os mais hospitaes que
se achavam dispersos por dillerenfes partes do reino.
Este breve que o padre João Baptista de Castro diz
<|Uc começa : u Ferentes in dcsidcriis cordis yiosiri, ui
hospitaliay: não sei porque não existe no cartório
do hospital de S. Jo^é, nem certidão ao menos. En-
tretanto, em occasião mais opportuna, se me não
faltar tempo c paciência, tenciono fallar a respeito
d"elle e de outros diplomas, para averiguar até que
ponto são justas ou injustas as disposiç-ões, porque
em 17 de janeiro de 18ol a commiisão administra-
tiva da Santa Casa da Misericórdia regulou a ad-
missão dos doentes nas enfermarias do dito hospital.
IVlo <|ue respeita á cidade de Coimbra havia ali
grande numero de hospitaes e ;dbergarias, que em
tempos anliíjos tinham sido erectos p»>los fieis para
soccorro dos pobres enfermos, peregrinos e desampa-
rados; D. >lanoel impetrou de Julio 11 concessão
para fazer de todos aquelles institutos um só, e para
esse fim edificou o hospital de Kossa Senhora da
Conceição.
N "outras cidades e villas do reino teve logar a
mcsuui refundição. (Contínua.)
— Falsas lend;is religiosas, f;dsas ou verdadeiras
lendas humanas nunca s;il\aram um paiz, quando a
podridão penetrou no âmago da arvore social. t)nde
e quando o homem renega da sua origem divina,
venile a liberdade a troco de delicias, e5<iuecc que o
elevar-se acima de viciosas paixões traz um gost) in-
terior que vale l)em todos os que dão os sentidos,
não é lisonjeando-lhe vaidades, que nem se quer res-
peitam a magestade de Deus, que o havemos de r«-
vocar ao sentimento da dignidade e do dever.
A. Hkbcilaso. — Solcttuiia I 'eròa .
— Não se intriíiluziu a iliijnidade no mundo se-
não para abrigo d'aquellcs, «jue a não logram. Ad-
virta o privado .lo priniii>e o que deve a todos cm
conimum. e a cada um em particular.
ri.UHK A. ViKIBA.
43
o PANORAMA.
3n-f
CUABALAJAUA,
A ciUADB de Guadaliijara está silu.ida a 10 léguas
de IMadrid, solirn a mari^iim esquerda do llciiarcs.
Uma ponte antiga, inoiíiiineiitos em niiiias, r al'4'11-
iiias iii^crilMyjes, provam «pie os romanos liiiliaiii fuii-
dadu iTaipic^lle «ilio uma povoaeãodc haslaiilc impor-
Laneia. 'l"(jdavia a liisloria (rirstaeidadedala verdadei-
ramente tia eonipiisla dos aralies, (pje llu- [)ozeram o
nome de (ruwtdl/iiiclinrit, rpM' é o <jue, com pcípie-
na corrupeão, tem lioji-.
(inailalajara no eoniejo do secido nllinifi eliei;ou a
nm i;Táii d(.' riipieza e de actividade ailmira\eis. C)
cardeal Alljeroni, mara\ illia<lo de \êr a» lãs de su-
perior «puiliilade, ipie a llespaniia produz em tão
içrande abundatieia, saírem do reino ])or vil preeo,
voltando depois eonvcrlidas em maçnifieos pannos
miiMuraclurados no estran!;eiro, resolveu sulitraldr a
llospaidin a i'sle impost-o pesadissinio, <|ue assim es-
lava pairando. IMandou vir de llollanda alguns ia-
Ijricantes expiTimentados, !• numerosos tecelões esco-
lhidos enlre os mais lial)eis, e eslalieleceu-os cuin ils
nua» ofliciuas nos suljurliios de Araujuez. Um anuo
ilepoi». em 17111, tornou se indiipensaul liral-os
d^uiuellc; sitio, <pie tivera inna iullueni'ia lalai na
saúde de operários liaMiuados a \iver i-m rei;ioi's
Irias, e Ibi escolhida (luad.d.ijara pela biui saluliri-
dade. Crearani-se aip\i (grandes laluicas, e em pouco
Inujio chegaram a Iralulhar na ciilude mil t<'arei.
% tu.. J. — 3." ÍMUilii.
Km 1757 cedeu o governo hespanhol estas fabri-
cas á cor|)ora(jão tios nujrcadores de ])annos de Ma-
drid, pelo tempo de dez annos, conctídendo-lhe mui-
tos privile!;ios ^ mas, ou ]>or incapacidaile. ou ))or
má gerência, o residtailo d"cbta operação foi ilesas-
trono.
(> e^lailo reassumiu a admiui^l ra(;ão, sem i|U>'
acpiellas manufacturas ileixassem di.> ileclinar eonti-
nuameute. A iu\a^ão ile 18l)S tleu-lhes oídtimn gol-
pe. \']m 18:21) alguns espccidailures eslr.ingeiros ten-
taram restaurar aipudlas solicriia'- manutacluras ; ni;;->
o resultado foi a rtdna de suas fortunas. Desde en-
tão têem estatlo inleirauuMite aliantionadas.
lia em (iuatlal.ij.ira con^lrlU(;òes mui notáveis,
lias ipiaea meuciíuiarcmos as prineipaes. O pautheon
tia casa do infantado, ipn- contem :i7 umas sepul-
ehraes, é digno pela sua magnilieencia <la altençà'>
tios entendidos, fustou esta ohr.i, jirimor tia arte
do Iti." século, 1.800:707 reales de velou, tiu ri'-i>
«1:0;i1.SK.iO da nossa moeda.
.Mas o monumento de (iuadalajara mais curioso a
lodos tis respeitos t'' o celebre palácio tia casa dt>stlu-
(jues do infauludo.
Secundo alguns t.Tudilos este palácio foi eonslrui-
<lo pelo cardeal IMeniloi.i. d.i casa tio infantado, ^^\u^
nasceu e morreu em (iu.iihdaj.ir.i. t> i-stvio geral tio
edilicio parucf juslilicar t>sla tipiniào. A faehaila «pro-
;338
o PANORAMA.
senta um desenvolvimento considerável ^ c podem
ainda distinguir-se na ornamentação vestígios das tra-
dições fcudaes : a galeria que coroa o edifício é cor-
tada em ameias destinadas á defesa, as duas torri-
nhas, que acompanham o portal, figuram as torres
que outr'ora se edificavam á entrada das fortalezas
para a defender. São estes os caracteres preciosos que
marcam perfeitamente a transição da archilectura da
meia edade para a da renascença.
No interior, o palácio soífreu importantes modifi-
cações; mas o pateo, que a nossa primorosa gravura
representa, é o que mais profundamente contrista os
artistas. Glue desagradável efleito não produzem as
columnas tão frias, tão lisas, que sustentam aquella
V(-rdadeira renda de pedra '.
Admiram-se n^este palácio, soberbos tectos, repar-
tidos em taboleiros, enrequecidos de pinturas e orna-
tos delicados •, as paredes guarnecidas de soberbos
azulejos ; e vastas chaminés, ricamente insculpidas.
O salão chamado a sala das linhagens, porque as
pinturas que o ornaram representavam os brazões da
maior parte das famílias nobres de Hespanha, éuma
peça curiosíssima. Oceupa inteiramente um dos la-
«los do edifício ; mas a sua largura não corresponde
ao comprimento. A diaminé colossal collocada em
uma das suas extremidades é um verdadeiro prodí-
gio de esculptura.
Hoje esta sala serve de deposito de antigos mo-
veis, e está coberta de pó o de tèas de aranha.
Conta Guadalajara 0,736 habitantes apenas, com
ijuanto seja capital da provincia do seu nome, e por
<!onsequencia onde residem as respectivas auctorida-
des.
Os edifícios das antigas fabricas foram cedidos ao
corpo de engenheiros. No primeiro está a academia
do mesmo corpo, e quartel espaçoso para parte da
força do regimento. No segundo projecta-se fazer ac-
conunodações para o resto do regimento, e conslruiu-
se um quartel, com o nome de Santa Izabel, para
serviço das tropas que por ali transitarem.
POETAS DA ARCÁDIA.
1'edro António Cobrê.^ Garção.
Ao Menalo — Coit/don Erimanikío.
II.
(At ando a Arcádia se fundou as leiras porluguezas
tocavam o ultimo periodo da sua edade de ferro.
Verso e prosa, decaindo da graça viril, e da casti-
gada abvindaiicia, tão estimadas dos bons auctores,
serviam de moro jirctexto a talentos pueris para sab-
batiiias pedantcscas do trocadilhos e couccifos, de
que a I^ltcntx Ucnastida nos conserva curiosos exem-
plares.
Abram ao acaso essa collecção volumosa, corram
algumas juiginas, e julguem depois se a lingua que
ali se escreve foi a luigua de Ferreira, Camões e Sá
de Sliranda ; ou se ora o portuguez de \'ieira c
U. Francisco Manoel. Digam Re ns poesias, que se
<-nrodjim, desfeiam e retorcem nos gongoricos /«afcf-
liiiihus, nos presumidiis AcrosUcoi, e n.is Silvas cn-
tenenadas com a quinta essência da aílcclação, re-
cordam ao menos sequer a c:\sta Mus;i, que laiifo
honrou os tempos clássicos do Parnaso Lusitano !
Pois o livro c o retrato da civilisação litteraria !
A esta baixcsa edescom|X)stur.i, descendo degrau em
tlegrau, a trouxera a prcvetsão do gosto e a estul-
ta imitação de uma escola bastarda e falsa, que tan-
tos annos dominou a arte e tão grandes estragos dei-
xou atrás de si. Desde que Marino introduziu em
França a lepra das imagens bombásticas, e da ob-
scuridade emphatica, e que D. Luiz Gongo ra (o di-
vino) lhe abriu as portas da Hespanha, tudo decli-
nou. Se a renascença grega e romana nos tinha suf-
focado os primeiros ensaios da poesia nacional ; esta
segunda e funesta invasão, varejando flores e fructos,
creou uma seita de rimadores insulsos, jurados ini-
migos da verdade, servis aduladores das invenjOcs
dos Euphoistas.
O contagio propagou-se depressa \ e appareceiam
logo, como svmptomas da corrupção, essas innumera-
veis Academias, palestras patentes á ociosidade ver-
sificatoria dos vates sem Miner^■a \ era d"estes púlpi-
tos rhctoricos que eUes frechavam sem dó a arte, os
modelos do bello antigo, e até a razão e ojuiio. Re-
nasciam umas das outras, e no seu zelo deplorarei
não esgotaram só o ridículo na escolha dos assumptos,
apuraram-no também na túrgida linguagem, com que
ainda em cima completaram a obra, assassinando-os.
Houve-as de todas as datas e invocações ; e algumas
ciosas da gloria posthuma nem se esqueceram de re-
commcndar a sua desgraçada memoria, dando as hon-
ras da estampa as indigestas composições, aonde a
inchação forceja, entumecendo-se, por chegar á altu-
ra do sublime, e ás dimensões do bello ! Diniz, zom-
bando, queria que a pátria de taes monstros fo->so o
paiz das bagaictlas. Ainda era humano :, mereciam
menos.
Façamos um rápido inventario d''estes seminários
dignos da veia satírica de ôuevedo \'illegas. Elxis-
tiu a Academia das Confcríiicias Eruditas, erecta
em 1G9G na livraria do quarto conde da Ericeira
D. Francisco Xavier de Menezes:, a dos Sinyidarct
de Lisboa creada, ao que parece, antes de lb*J2; a
dos Instaniancos, no paço do Bispo do Porto ; a dos
Generosos, restaurada em 1624 pelo Trinchante de
el-rei D. Pedro II •, a dos Eruditos, a dos .ifidicn-
dos, a dos Anonymos, celebre pela Arte dos Conceitos
primor do género, e filha dilecta da prosa alambica-
da do seu ApoUo o doutor Leilão Fca-reira :, a do»
Humildes e Ignorantes e outras ainda, que ou se
eclipsaram esquecidas, ou trabalharam jnir captar a.
posteridade, que não quiz vêr n'ellas com justiça se-
não a ironia do gosto e a corni[)ção das letra».
A Academia de Historia, creação dosr. D. João ^'
em 17áO, em virtude do plano do Theatino D. Ma-
noel Caetano de Sousa, e graças aos varões cora que
se formou, destingue-se, é preciso dizel-o, da plebo
dos amotinadores de glos;is e colcheias. Muitas das
oliras que nos legou são credoras de louvor em rela-
ção á epoclia ; o se a critica tem bastante que notar
nos escriptos dos académicos; se a recente escola his-
tórica pôde sorrir-se das idé:i$ o da cretlulidade, que
respiram alguns dos livros, á verdade cumpre igual-
mente acrescentar, mesmo depois de rigoroso exame,
que os principaes trabalhos, ((Mllecção de Memorias
de 17:21 — 1734) não cnver^oidi.un o seu^e^.•ulo, an-
tes exaltam a erudição dos sábios, a quem se de-
' \em.
Entretanto a esphera do acção da Acadeniia de
Historia foi limitada dcxle o começH>, c a in(luenci.-i
: que e\erceu ainda mais. Os zelosos escriplores desa-
i tavam as dissertações naquelles peri"xlos cheios de
! pompa asiática, ouriçados de citaçõ»"^ c de reminis-
ccncias latinas, c abundantes nos m.iciços de phrascs,
•jue tornam nu>tlianamente dcleilavd o seu estylo
para o vidgo dos leitores. Hubita%'am na região quasi
inaccessível dos estudos eruditos, e 9c ás veres Iviixavani
á terra era p;ira lerem a D. João V, e a família real.
o PAjVORA.MA.
339
na sala da Gallé, em conferencia aulica, algum dos
apparatosos elogios, em que foi primoroso o marquez
de \'al(;ni;a, coUosso de eloquência apologética, a
quem tocou a missão voluntária de censurar o Cid
de Corneille, réu de lesa-poetica, segundo as orde-
nações de Aristóteles 1
Os poemas ^'otantcs, os sonetos, as decimas, as
espinellas e siniilhantes futilidades, estavam muito
abaixo do lavor scientifico dos sacerdotes da Historia
para lhes concederem um momento. Sc algum poe-
tava, se adoecia da enfermidade commum, distrahia-
se cm linhas desiguaes, c fazendo pouco apreço da
obra chamava-lhe recreio fugitivo I Como haviam de
familiarisar-se com os metros a não ser em epopeias,
ou em voos líricos, (e para isso era curta a sua res-
piração) homens enlaçados na doce intimidade dos
herocs de Homero, e dos patriarchas da latinidade,
que sem descanço queriam fazer pães e fundadores
de Ul^ ssea ?
Assim, em quanto Barbosa Machado edificava la-
boriosamente o seu vasto archivo da litteratura pá-
tria, as rãs do l'arnaso, impunes e audazes, saíam
dos viveiros das Academias, e vinham coaxar para o
sol enxames de versos chilros, travando soporiferas
polemicas, ou adormecendo em requebros infantis,
tudo diluído nas paginas da sua prosa miserável.
Os Costas Corrêas nos Sinrjulares de Lisboa, en-
tre uma nuvem de trocadilhos, saudavam os Pimen-
teis, e louvando obscuros destichos, exclamavam com
seriedade :
\'on(lo, oh raro l'inientel,
^ ip^ilio que a tua alteza
Humilhou sua grandeza,
Te poz aos pés o laurel !
Os Serrões de Castro faziam romances, que prin-
cipiam :
Com um cajado, senhores,
Dous coelhos mato agora.
Satisfazendo um Romance
A assumpto de prosa e verso.
Km fim o padre ])rior de S. Lour<?nço de Lisboa,
o doutor Francisco de Castro, perseguia uma infeliz
Narcisa em versos peiorcs que vespas, declamando de
dentro da sua loba :
<íppoz-»o o sol á bellcza
1)(! Narcisa (alma do prado)
Klle nos raios fiado.
Fiada ella na dureza ;
('upido, que n"esla empresa
\ iu Narcisa, reforçou
Seu peito, com que mostrou
(iui- Narcisa defendia,
K coin o mesmo sol ijueria
(Auebrar, como em fim quebrou I
ULui- mais é preciso para se fazer uma idéa exacta,
quando por outro lado está put<'nli; o corpo de de-
licio na J'litni.c Itiniísciíld, nos incrixcis íViris/iícs
W/Hmn, ^; no AHviít c/i' Tildraf O (pie suiredia nos
Sinijuhiiia era com leves alli'rai;òes o (jiie passava nos
IluiiUlilm f JijiKirdiitcs, e nos .Inuinjiniis ; adifleren-
Ça consistia mI «;m ser a prosa a sua língua, e o pe-
dantismo a sua feição. Os tratados de [ihihnopliia o
dl! erudição das faliies coUecções, que nos transniit-
tiram, não são niciios fertins em papoulas do (jiie os
niotrus assassinos do prior de S. Lour<-iiço, que Deus
lein t
K os Piíiiunleis e os ('ustas CurrAas ila prosa não
incoininodain menos do que us luuruudos d'/Vpullu !
Tudo vem do mesmo cacho, e nasce da mesma vide I
Para apreciarmos a que ponto a corrupção tinha
chegado, para avaliarmos o despreso da razão e dos
bons modelos, é preciso examinar a collecção dos
poetas do sr. D, João V, conservada na Bibliothe-
ca da Ajuda em volumes manuscriptos ; lendo-a ha
de pasmar-se do divorcio quasi completo d^aquelles
vibradores de rimas, d'aquelles engenheiros de pue-
rilidades com o verdadeiro gosto, com a imaginação
cultivada, e com o iustincto do medíocre, não dize-
mos ja do bom. Tirando poucos poemas (curtos) do
doutor Caetano José da Silva Sotto ^laior, por an-
tonomásia o Camões do Rocio ; e bastantes versos fu-
gitivos e satyricos, que uma veia fácil e natural ins-
pirava em assumptos críticos a Thomaz Pinto Bran-
dão, comicamente denominado o Pinto Renascido.
(grande freguez do bolsinho particular do sr. D.
João V, antes de devoto, e do secretario de estado
Diogo de Mendonça Corte Real,) o resto, com mo-
tivo, e salvas raríssimas excepções, serviria de ludi-
brio a uma aula de ensino secundário, edeopprobrio
ao próprio José Daniel, o vate menos escrupuloso na
(lualidade do Pégaso, em que rastejavam os voos da
sua mais que modesta musa !
A arte dramática não tinha escapado também . Os
padres da Companhia de Jesus recreavam os seus
amigos, convidando-os para assbtirem aos autos gram-
maticaes, as vezes latinos, era que os discípulos dcs
coUegios de Santo Ignacio figuravam de Gerúndios
e Supinos, chegando a extravagância ao auge das Fi-
guras da Dicção dançarem minuetes umas com as ou-
tras, segundo conta unisatvricodaepocha ! Nosthea-
tros, a Opera Italiana principiava a introduzir-se,
attrahindo a corte e a fidalguia. A devota casa do
Hospital de Todos os Santos dava a comedia hespa-
nhola e a farça de chocarriees, entremeiadas de árias
e coros, cm virtude do seu privilegio, concedido no
reinado de Filippe II de Castella, c o reportório era
já avultadíssimo, (juando fr. Lucas de Santa Catha-
rina e Thomaz Pinto Brandão, parodiando os enre-
dos inverosímeis, c escarnecendo os diálogos rebom-
bantes das peças mais em voga, tocaram ao primeiro
rebate, (? romperam a guerra, que o Garção depois,
e Manoel de Figueiredo na sua cauda, declararam á
Thalia vagabunda, ídolo dos Saramagos e Perrexis
tão festejados pelo applauso publico.
Os dramas de fr. Lucas de Santa Catharina, que
só lemos manuscriptos, intitulam-se : Amor sem pés
nem eahv^a, comedia famosa •, c os Amantes de Es-
picha, fabula jocosa em (jue entram, garganteando
duetos e cavatinas, Priamo rei de Trova, Tisbe,
Diana caçadora, Cupido frecheiro, e vários deuses e
heroes ! A farça de Thomaz Pinto reduz-so a uma
satura contra os irmãos do hospital, por delinearem
despedir a companhia bespanhola, na fé (pie de \'a-
lença vinha o Garcez com outra mais \lstosa. K in-
significante como composição :, porém ollereee gran-
de interesse nas frequentes ijllusões aos títulos das
comedias, que ii'a(]uelle tempo estavam mais em
scena, e vt^-se por ella, que o reportório Ineluia mul-
tas obras de Lo|)e da Vega, Calderon, e Tirso de
Moliiia. Para não omittir um rasgo característico
ajuntaremos, que os amadores da opera do sr. D.
João V não eram menos ardentes em ovações de
prosa e verso do ipie os legítimos dilelt<i)di dos nos-
sos dias. Acliam-se nas coUeeções repetid, is poesias no
cantor fllnei, o á eomodiaiite castelhana Rosa, que
pelo que parece foi um ussonibro de gent ilesa e um
enlevo de melodia. No meio de tantos triumplios
alheios e do tanta oliseuridade pro]>rla, cpiein deeai.i
a ponto do não ser posilvel declln.ir mais era othea-
lio nucioiíul. (:luiisi ipic nem existia senão |k>Io'»
.340
O PANORAMA.
cliulos ciilrcmczoa (lr> vpía dissoluta, vergonha da ar-
te o escândalo da moral. 1'ara compensação, em logar
da coroa arrancada a Gil \'icente pelos dramáticos
liespaniioes, o povo tinha para se consolar os carpi-
dos Madrigaes da nobilíssima Academia das Olarias '.
(Cuntinún.J
DtAS 1'ALAVnAS SOEKE HOSPITAES.
V.
o i'£NsAiME.\To ceutralisador que presidiu á refun-
diçSo dos hospitaes do nosso paiz, olleituada desde
D. João II até D. João III, seria hoje, guardadas
as diílerenças dos tempos c das luzes em matéria de
bcnelicencia publica, perfeitamente coadunavel com
a Índole e jjrecisões da sociedade actual.
Os inconvenientes e vantagens dos systemas de
succorros, que uns pertcndem realisar pelo cxercicio
da caridade individual, outros pelas praticas da ca-
ridade legal, estão mais que discutidos e demonstra-
dos, relativamente ás enfermidades do pobre. Para
lhe alliviar ou extinguir os padecimentos que acom-
panham a sua miséria, quem não verá que são in-
suilicientes os soccorros levados á sua própria mora-
da . (Auantas horas não consumiriam dous médicos,
por exemplo, a visitar cem doentes, se os não tives-
sem reunidos em duas ou trcs enfermarias contíguas ?
A questão, se a pudesse haver, deveria unicamen-
te versar sobre o numero e grandeza dos estabeleci-
incntos. JMas esse ponto mesmo não deve reputar-se
indeciso. A multiplicidade de hospitaes com poucos
leitos requer pessoal numeroso, e augmenta sem uti-
lidade as despezas de administração. Levantar asy-
los e hospitaes de dimensões enormes, e agglomerar
ala grande numero de necessitados e enfermos, é o
sv'stema opposto, tão \icioso como o primeiro. Um
contraria os tirinrinins nnnnnn-iíí^nc ■ n nntrn trifl;ic
os princípios ecoiionucos ^
as máximas e coudiçõos hygienicas,
o outro, todas
;i que deve su-
bordinnr-se o serviço interno das casas de hospitali
dade e tratamento dos jiobres.
<Auando affirmei, pois, que o pensamento ccntrali-
sador, que dictou as reformas de D. João 11, seria
coadunavel com a Índole e necessidades da nossa
epocha, não quiz de nenhum modo conformar-rae
com a monstruosidade de certas edificações, que são
Sorvedouros, ao mesmo tempo, das vidas e do patri-
mónio das classes desgraçadas, (iuiz só indicar a con-
veniência de supprimír muitas confrarias, sem exce-
ptuar algumas casas de misericórdia, c de commutar
a maior parle dos encargos pios, conj que estão gra-
vados iniproiliictivamcnte os rendimentos de quasi
todos os institulos de caridade, afim de se lhes po-
der dar uma ajiplicação mais conforme aos bons de-
sejos dos instituidores. A supprcssão ecomniutaçàode
que trato são medidas, que, mais cedo ou mais tar-
de, so hão dV-mprchender ínfallivelmente, porque as
reclama a sciencía (que assim se lhe pôde hoje cha-
mar) de bim querer c bem fazer. A reforma, como se
ella precisa, ha de levantar muitos clamores, talvez do
boa fé, talvez interesseiros e apaixonados. Mas mui-
to mais alto do que esses clamores todos, bradam os
sentimentos da humanidade, os interesses legítimos
do pobre o desvalido, que nos j)ede. pelo monos,
que não fechemos os olhos por ni.iis tempo aos abu-
sos e díiapí<laçõos, que tèem dado cabo dos estabele-
cimentos de caridade.
Não temos hospitaes especiaes iralgumas localida-
des, onde a frequente romagem de enfermos, e ou-
tras condições e circumstancius favora\eis os pcdeiu
de ha muito. Não temos as\los e hospitaes centraes,
adetpiada e convenientemente regulados, nas calcas
de dístricto administrativo, e na dos municípios mais
populosos, com hospitaes e albergarias dependentes
nos concelhos e povoações menos importantes. Enão
havemos de eonu-çar um trabalho de reformação pa-
ra não desgostarmos meia dúzia de de\ofos, que es-
tão, desde tempo iminemorial, na posse de deixarem
perder todos os rendimentos que lhes entregam, ou
para não fazermos a outra meia du2Ía de economis-
tas onzeneiros a grave injuria de lhes tirar das gar-
ras a fazenda dos pobres !
Não desconheço que erigir e dotar os hospitaes
centraes de que precisamos, é empresa para largos
dias, por mais fervorosos que fossem o zelo e a cari-
dade do povo portuguez, e a dos nossos legisladores
e governantes. Os estabelecimentos d'esta natureza
são obra de séculos, porque as instituições não se im-
provisam : nascem, vingam, florecem e fructificam
em períodos admiravelmente regulares e successivos.
Mas, por isso mesmo que é este um dos srrandes la-
vores sociaes, que as gerações tèem de ir legando
umas ás outras, para que no seu acabamento coope-
rem todas, é que urge começar quanto antes.
Tenho-me alargado mais do que queria n'um in-
cidente alheio do assumpto, que me propuz n"estas
duas palavras, e que é uma rápida vista sobre a ori-
gem dos hospitaes. ^'ou por tanto rematar o meu
escrípto, resumindo as minhas idéas a este respeito.
Nas diflerentes phasos porque têem passado aquel-
les institutos, desde os primeiros tempos do christia-
nismo, dístinguera-se três períodos, que talvez pode-
ríamos chamar : religioso, civil, administrativo.
No primeiro período prevalece quasi exclusiva-
mente a Ciiridade evangélica. Os bispos e os mon-
ges, ou são fundadores ou directores dos hospitaes e
albergarias.
No segundo período começa a ter vulto na ordem
politica, civil e religiosa a classe que chamavam
mechanica. Alguns estatutos expressamente admif-
tiam gente plebca, rústica, sem tetras e $«m isfima-
f;uo. O mestre d"ofricio, ou como membro d"um
grémio industrial, ou como confrade de alguma ir-
mandade, afaga na sua alma, rude mas crente, a
ídéa d^um hospital, em que seus irmãos de tra-
balho, inválidos ou enfermos possam tratar-se. E
um sonho que lhe não esquece \ sonho, que á porfia,
todos procuram realis;ir. Nem se refira a outra cau-
sa o grande numero de hospitaes, que os ourives da
prata, os carpinteiros, os tecelões, os hortalãos, os
pescadores, e varias outras corjwrações tinham em
Lisboa e por essas cidades e villas do reino. Se o es-
pirito de caridade evangélica piVle n'esto facto equi-
vocar-se com o egoísmo de classe, as tendências de
aquella epocha não o deixam apreciar deliaixo d"ou-
Iro aspecto, que não seja o da fraternidade, em que
o sentimento religioso, a lei, o trabalho — e a com-
mum desconsideração, talvez, — uniam totla a famí-
lia operaria.
No terceiro perioilo apparece muito prtmunciada
a idéa da centralisaçâo administrativa, ou antes a
centralisação politica jirocura manifostar-se sob todas
as formas. Reduz o numero dos hospitaes c alberga-
rias, e ii'unias partes, como em França, o governo
tira a direcção o administração d'i'stesestaljoleciracn-
tos aos ccclesíastiois, [>orque eram dríiiiasolados, e
dislrahíam os rendimentos da sua piedosa applica-
ç.ão ; n'outras, como em Portugal, algumas \eies s*
procura entregar a governança e regimento d".iquel-
las casas aos s.icenlotes, |x>n]ue os seculares não se
mostravam entendidos nem zelosos no manejo da fa-
xenda dos pobres.
o PA>ORAMA.
341
Não attribuo os hospitaos a uma causa anica; mas
na concorrência das (liflcn.-ntes causas, avulta sobre
tudo o espirito religioso. A caridade, esse sentimen-
to, esse principio de eterna moral havia de forçosa-
mente converter-se em institutos sociaes, vitíssem ou
não as lepras, as pestes e oulras calamidades afervo-
rar o zelo e a piedade, que o Evangelho ensina. Fo-
ram, quando muito, meras causas particulares e oc-
casionaes :, mas a geral, a verdadeira c eífetiva causa
estava na própria energia e efíicacia do principio re-
ligioso e humanitário.
Ainda quando na sociedade antiga não achasse tra-
dições que estimulassem os seus primeiros propaga-
dores, o Evangelho fazendo os povos menos sedentá-
rios, e mais communicalivos e afiectuosos, necessa-
riamente liavia de multiplicar o aviventar as dille-
rentes relações moraes c conmierciaes, (|ue tinham
de manter entre si. As casas de liospitalidade o en-
fermaria para recolher e tratar os pobres e peregri-
nos, eram e serão sempre uma necessidade lógica,
uma consequência forçosa do principio chrislâo.
A religião, que define o amor do próximo pela
paralx)la do Samaritano, curando as feridas do vian-
dante, que os ladrões deixaram por morto, e pre-
stando-lhe os soccorros que o sacerdote e o levita lhe
não haviam dado ^ a religião que manda ao rico
agazalhar e soccorrer o pobre como seu irmão ; cjue
manda fazer o bem até áquelles que o não merecem,
porque também o sol allumía o bom e o máu, e o
orvalho do céu cáe tanto sobre o justo como sobre o
peccador \ a religião que prescreve ao abastado, qui;
venda o que possue para soccorrer os pobres, promet-
tendo-lhe um thesouro na outra vida, tinha em si
mesma a virtude, o principio de actividade necessá-
rio para levantar em toda a parte, e muito princi-
palmente em Portugal, essas casas que admiramos, o
que a religiosidade de nossos antepassados nos legou,
sob a denominação de hospitaes.
Lisboa, 20 (/<,• ninio de 1832.
Jovo Makia Nogueira.
• lEni;') da antiga civilisação, o Egypto ainda liojc as-
sombra o viajante pela graMiicsa e mai;cstadir dos
v:us monumentos. VMt: [juiz foi por largos siiculos
um enigma ])ara a scieiícia ^ — as suas instituições, os
seus costumes, a sua litti^ratura, a sua liistoria, fi-
nalmente, estavam cobertas de um véu impenetrá-
vel e misterioso como as sph^ngcs collocadas á en-
trada dos seus templos. No lini <l(i século jmssaiio é
<|ue se começiir.im sérios Iraballios di> invesi igiiç,"i(i
archeologica no hlgypto — e iid presente se li'm pu-
liliiado j.'i pela imprensa inqioitanies <'sliidos sobre
ai|uelln curiosa parte do mundo antigo. I''.nlre outros
• ficriptos, dc! maior ou menor valia, púdcm consnl-
tar-w com J)ruveili), pi>npii' l.inçam inuila luz na
hivloria, ])oueo i'onli<TÍda, das cousiis (i\ii|uc'lle cele-
bre povo, as Ki;/ii« de Savarj', a I iuijiiii á SijrUi c
ao 1'lfjypto de \'olney, a Ai(r»'(/(,õ<> </<( / itiíjc m de
Th. Legh, os trabalhos de ("hanipollion o moço, e
o relatório da grande expedição scientitica franceza.
Deve tambeni It^r-se acerca do Egvpto o 1." volume
da olira venhuleiranienle monumental de t"esar Can-
tu — a llisliiriíi í íiíct ;s(i/, ili; que está saindo uma
Iraihicção portugueza.
Desde a publicação ira(pielles livros t' que datam
os esloreos, que se tem conlinuado com louvaxelper-
»i'verane:i, para colligir na Europa vastos museus de
anliguidailes egypi-ias, pondo-as ao alcance dos cu-
riiiMis, <pn' poderão assim estudal-as sem os riscos de
uma excursão perigosa por meio ili' tribus scmi-bar-
baras.
(• museu de similh^nites antiguidades, qui- existo
em l'aris, no palácio do Louvre, e ipic idtimameuti'
342
O PANORAMA.
Inii recebido consideráveis melhoramentos, assim na
disposijão interior, como no numero e raridade dos
monumentos ali collocados, é um dos mais ricos, se-
não o mais rico da Europa, sem exceptuar mesmo o
de Turim . lí lá luo, entre outras muitas preciosida-
des archeologicas, se vê o pequeno grupo copiado na
nossa gravura, e que representa dous personagens
desconhecidos, de mãos dadas, (dous esposos, talvez)
como o indica também uma pequena figura em pé,
que apresenta todos os caracteres da infância. O
homem tem a cabeça rapada, e parece ter sido pin-
tado de vermelho. Vê-se que não são divindades,
nem indivíduos de estirpe real, porque lhes falta o
caracter essencial da distinccjão egypcia, a magre-
za ^ e parece que se não privavam, como os reis c os
sacerdotes, da excellente agua do Nilo só pelo re-
ceio de engordar ; a sua physionomia [não é intei-
ramente desagradável, mas um pouco ordinária ; o
homem occupa\a provavelmente algum emprego ci-
vil. Ha outros grupos na galeria, representando tam-
bém duas pessoas de sexo difierente, já um sacerdo-
te, c uma sacerdotiza, já um perceptor e sua mu-
lher, ou sua irmã, consagrada ao culto de um deus.
Em geral os homens eram pintados de vermelho, e
as mulheres, umas vezes de amarello, e outras de
ròr de rosa.
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA.
Instbucções dadas ao coadjutor de bebgamo,
kuxcio em portugal no tempo de d. jo.ão ih.
«AcEucA do Concilio, depois d'apresentar a bulia
e dizer quanto S. Santidade lhe encarregar, parece
que bom seria supplicar a S. Magestade que queira
inspirar aos seus letrados o que mais conveniente fòr
n'estcs tempos para se promover no dito Concilio o
bem da igreja e da christaudado, defensão da fé, e
remédio das heresias, e aucloridade apostólica, que é
um dos principaes argumentos dos herejes, sendo tão
conjunta com o serviço dos reis christãos, especial-
mente de S. Alteza, e instar súbito pela partida dos
pi-elados, empenhando-se com clle para os fazer ir
mais cedo.
" Mandar aos prelados a cópia authentica da bulia
(• escrever a todos, (jue costimiam ser chamados ao
Concilio; isto corre pelo ordinário.
ii FaUando-lhe das cousas do Turco e dos perigos
da christandade, c subsidio que N. S. manda,
não ol)stante os perigos domésticos do estado ec-
dcsiastico, parece-nie que será bom lamentar com
bom modo ao rei, e reprehendcl-o paternalmente do
aceôrdo e paz feita com o Turco, n'este tempo, e so-
bre tudo sem comnuinicar nada, sendo um negocio
tão importante, e accroscentando (assim o diz a ra-
tão) com similhantc acti^rdo o poder e o orgulho do
Sultão, que ha de dizer, que desde o cabo do oo-
cidente enviam os reis á sua corte a pedir-lhe paz e
a pagar-lhe tributos \ que segundo a sua natureza
immana e barbara serão estas palavras as mais hu-
manas que puder proferir; e indagar ao mesmo tem-
po se S. Alteza se reconla ao menos na reflorida paz
da igreja e cousas ccclesiasticas e da Sé Apostólica,
porqiie tudo isto eonciirrerá para elle (o rei) se Im-
milhar nas demais negociações, vendo claramente
que errara n'csta, tanto como na realidade errou.
í. Parece ser necess,irio pela mesma causa, e por
«cr dever de S. Santidade, ])edir intornuiçõesdoniõdo
porque S. Alteza desamparou duas terr.is tão nobres,
e as entregou aos iiilicis. estando la l)ispo pela San-
ta Sé, e tendo sido tomadas aos mouros com tanta
dcspeza, e sustentadas por seu pae, e por elle, e pe-
los bons christãos -, não se occultando o pesar de se-
rem desamparadas depois incontuUo romano ponti-
Jice contra a consideração devida para com a Sé
Apostólica, c contra a lei e serviço de Deus ! AfBr-
mam pessoas praticas d"aquelle reino, que um dis-
curso assim confundirá tanto a cdrte, que nunca
mais saberá onde está , e talvez se descubra então se
porventura o fez por auctorisação da Penitenciaria,
o que seria estranhíssimo.
" Sobre o negocio do bronze e do cobre admoes-
tal-o para que o não torne a mandar, mostrando-lhe
o grande erro passado, e o damno presente e futuro
da christandade ; e que vendo e sabendo isto de al-
guém o excommungará solemnemente ; que um rei
tão catholico, despresando a censura e trans<Tedin-
do-a, dá aos outros péssimo exemplo, e aos bons gran-
díssimo escândalo. E considerando a natureza d'' aquel-
la gente, o que deseja parecer, e as fraquíssimas for-
ças d'ella, julgo que tocar estes pontos c-om auctori-
dade servirá muito para a dispor a não recusar ne-
nhuma cousa razoável, ou a recorrer a vagas lamen-
tações.
" Na matéria dos christãos novos, o que soube de
pessoas sensatas, é que a buUa feita cm favor d'eUes.
limitando a outra de certo modo, foi ajustada com
D. Pedro Mascarenhas, e tão discutida que não fal-
ta senão publical-a •, e não creio que convenha fallar
ao rei de licença ou de outra cousa ; mas sim fazer-
Ihe perceber as causas porque se não tem feito ale
agora ; c com toda a brevidade, sem mostrar de ne-
nhuma forma que se espera resposta, notifical-a ao
infante D. Henrique, porque parece que n"elle está
tudo, dizendo-lhe da parte de N. S., que aquella é
a forma que se ha de guardar na mencionada inqui-
sição d'ora em diante. E a qualquer objecção que
faça, responderá, que tal é o theor da buUa e a von-
tade deN.S. Que se S. Alteza quer sobre isso escre-
ver a S. Santidade, elle (núncio) não pódc suspen-
der a execução dos preceitos de S. Santidade, que
são rigorosos; mas fora d^isto está prompto aservil-o
em tudo, que assim lhe é expressamente orden.ido.
Depois d'este oflicio, c|ue eu desejaria brevíssimo, e
com jialavras mui resolutas, porque ha de fazer as-
sim grande impressão, deve dar-se aos christãos no-
vos a cópia-, e a quem a quizer authentica p.ira a
levar ajuízo, conceder-lh"a ; e não affixar annuncio»
nas portas das igrejas, nem apregoar a bulia, nem
fazer outras demonstrações, que talvez des<'jasscm o?
christãos novos, como homens muito tímidos, porque
ás realidades do negocio pouco importam, e ao ca-
racter do rei e do seus irmãos pó<le prejudicar bas-
tante ; talvez suppozcssem que haveria tenção de af-
frontar o povo ; e isto não se deve f;i7cr sem grande
causa ; e para os christãos novos é suflicíente o ofTei-
tu, c não se proceder contra elles scuãu pela forma
determinada.
.. Este negocio dos christãos novos diz-so que in-
teressi muito o rei, e que tanto elle como o infante
D. Henrique bem quereriam que n.ão houvesse re-
vista nos processos; por isso. vendo elles ^eito de mi>-
ver o núncio, hão de tental-o : é ncix-ssario pv^is que
este obre e falle rcsolutanuiile, e vá munido da f.i-
culdade de suspender <u/ ii mpus. e re\ogar in toium
a dita Inquisição, podendo mostrar a auctorisação a
quem convenha, períUadindo os ínlervss,->do5 de que
está na sua ni."io almlir inteiramente o tribunal, que
tanto estimam.
'. Kom é que o i.umio saibs. que se dii do infcin-
te D. Luiz, que se .-jcha muito indignado contra es-
ta relorma da Inquisição, tendo inspirado n'ikto peio
o PAINORAMA.
343
imperador, e devendo trabalhar quanto puder em
I'ortuzal contra ella por diversas causas, entre as
quaes ;is principaes são estas :
ai.'' Temer que o exemplo de Portugal sirva pa-
ra lhe reduzirem a Inquisição de Hespanha aos mes-
mos termos, como ia acontecendo no tempo do papa
Leão, e para o atalhar deram-sc em Nápoles ao du-
que Alexandre aquellas rendas, porque os christãos
novos de Castella promettiam e davam muito dinhei-
ro effectivamente.
iíá.'' A segunda razão do imperador é que a In-
quisição de 1'ortugal tira aos castelhanos o refugio
<juc tinham, quando eram maltraiados em Hespa-
nha i e ao mesmo tempo quantos fogem de Portugal,
todos por um modo ou por outro caíam no poder do
imperador e dos seus, e na Flandres existe grande
numero d^elles, que pagam boas sommas quando se
precisa.
ii Por iíso o núncio sailia que ha de ser tentado
por todos os meios, e deverá fallar a todos com isen-
ção, irias sempre com reverencia : obrando assim não
«.■ncontra difficuldades.
(Continua.)
AS províncias vascongadas.
(noticia histórica.)
KiGUKA entre os senhores de Biscaya, no ultimo
quartel do século 12." epriíicipios do seguinte, D. Dio-
go Lopes de Haro, chamado o hom, o qual chegou a
romper com seu cunhado el-rei de Leão, e com ode
(.'astella, veado-se obrigado n^uiuella lucla desigual
a relirar-se a Navarra. Fizeram-so pazes entre os
reis de Navarra e Aragão, e D. Diogo buscou aco-
lheita na província mourisca de Valência, de donde
leve (|ue fugir, por haver dado o seuoavalloem uma
bataliia ao rei de Aragão para í|Ue se salvasse.
Ileconciliado com AlVonso Vlll de Castella e re-
«•obrando o governo que antes da sua desgraça exer-
<'êra nos mais importantes pontos d*aquelle reino,
mereceu que Uio fosse confiado o cominando do exer-
cito alliado dos christãos na grande liatalha dasNa-
vas deTolosa. (1) Scpullaram-se no real mosteiro de
Nájera os restos desle insigne varão. A santa igreja
n>etro[)olitana de Toledo iioiirou a sua memoria, col-
locando-llie a estatua no coro, em reconhecimento
das doações que adita igreja iizera, e a ter ali pos-
to os Iropheos ganhos na batalha das .Navas Jle-
recft tamhem noiar-se qiic! a cidade de Nájera, desde
.'. morte de D. Diogo até os nossos dias, tcni consi-
derado nulla toda a eleição de junta provincial (ayun-
tamienlo) (jui; não seja pulilicada diante do s(m se-
|Mjl<'hro.
Continuou gosando eni Castella das mesmas pre-
rogativas <? dislincçòes (jue o ineiuionado D. Diogo,
seu lilho, e successor no scniuirio, D. liope Dias de
Jlaro, iiiiilwrtibntx^a por antonomásia. Fez serviços ila
maior ini|iorlancia ao santo rei D. Fernando, e íál-
b-Tcu em 12i!!). Não viveu em tão boa liarinoniacom
o soberano de Castella D. Diogo Jiiqies d(í llaro,
duodécimo senhor de Jtiseaja, nem deixou de ter
serias desavenças com os biscaynhos, cujos loros in-
fringira.
(1) Vcja-w II ilcM ri|ii;.*i(i il'<'sli' iiiiiicirlaiili^Kliiui suc-
ri-iJi) iiu liiOlii <■ rciciilc lialialliii iln «r. O. Moileslo Im-
liiciílc — lliílui iíf (•inrfiil <lt /'.'7«i/i«. — .Miiilrid —
lUil, IIU):!.
Assignalou-se a Biscaya, armando a esquadra com
que o almirante Ramon Bonifaz contribuiu para a
rendição de Sevilha.
E mui notável entre os senhores de Biscava D. Lo-
pe Dias de Haro, já pelo grande {xider qiíie adqui-
j '■i"? j^ P^lo consorcio de sua filha com o infante
D. João, irmão do rei, já pela trágica morte que
i teve, no momento em que, afiTrontado por uma res-
posta desagradável, puxou da espada contra el-rei
D. Sancho o bravo. A successão no senhorio ou con-
dado de Biscaya começou a ser origem de discórdias
civis por morte do decimo quarto senhor D. Dio<'o
Lopes de Haro. Obteve-o por força d'armas, e aju-
dado da vontade dos biscaynhos, outro D. Dio^o,
tio do ultimo ; sendo pouco tempo depois despojado
pelo infante D. Henrique d^aquella dignidade, que
todavia no anno seguinte lhe foi restituída. Dispu-
taram-lhe com tudo os seus direitos até a sua morte,
que occorreu no sitio de Algeciras ; succedeu-lhe o
infante D. João, por ser casado com D. Maria Dias
de Haro, que alguns auctores contam como decima
sexta, e outros como decima sétima, no catalogo dos
senhores de Biscaya.
Sendo já viuva renunciou esta seus direitos a fa-
vor de D. João de Haro, o iorto, que apesar de ser
fdho de um infante de, Castella, tomou o appeliido
de sua mãe, D. JMaria, circumstancia que prova a
alta importância dos senhores de Biscaya. Morreu
D. João, assassinado com outros em um banquete,
por ordem de Allbnso XI, cuja tutella exercera ;
sua mãe reclamou a posse do senhorio, que depois
vendeu á coroa.
D. João o iorto deixara uma lillia casada com o
senhor de Lara, D. João Nunes, que valendo-se do
seu poder e inlluencia conseguiu que o mesmo se-
nhorio fosse restituído a sua mulher. As serias dis-
sensões qu(! sobrevieram entre D. João de Lara, e
el-rei, obrigaram este a entrar por Biscaya, fazendo
reconhecer a sua auctoridade nas juntas de Guerni-
ca, e tomando posse de todas as povoações e castel-
los, excepto do de S. João de Gastelugaclie, situado
na costa, e de alguma outra fortaleza. Ao mesmo
tempo invadira D. João alguns logares de Castella,
cuja restituição foi concertada com el-rei.
Uma creança de dous annos herdou o condado de
Biscaya, e como D. Pedro de t^astella se declarasse
inimigo da casa de Lara, perseguiu-a tenazmente.
A morte dV-sta creança, que, com o nome de D. Nu-
no de Lara, se conta como o decimo nono senhor de
Biscaya, deixou os seus estados expostos aos desas-
tres de uma guerra civil, pois que havendo casado
sua irmã mais velha D. Joanna com D. Tello. ir-
mão do rei, e a mais nova, D. Izabel, com D. João,
infante de .Vragão, ambos os esposos pretenderam o
senhoi-jo, fuiid.ido o primeiro nos direitos de sua es-
posa, <! o s<!guiuio na protecção de D. Pedro.
D. Tcllo desbaratou completamente as tropas au-
xiliari's (pie D. Jofio connnandava. Novamente en-
trou eí,te por Biscaya, aciunpanhado do rei D. Pe-
ilro, que anciava por arrancar a vida a D. Tello.
<|Ui! deveu a salvação a fuga. O infante D. João,
que ilevia conhecer perleitamenie o ipie se jicide es-
perar dl' um eoraçiio ambicioso, julgara que D. Pe-
ilro não tiidia ouiro objecto em mira <pie o impos-
sal-o na diguidade a qiii- aspirava, e loui pueril sin-
(■iTÍilade llie pediu em Bermeo ipie o seiítavie no só-
lio dos M-nhores d.> lliseayii. Uedar';,uiu-llie o rei que
só esperava ipie elh> fosse reeoidicviílo pela junta ge-
ral, empregando ao mi<smo tempo ([uantiks meios llie
lembrar.im para ipie na referida junia se deciílisse
(pie Uiscaya nilo uduiilliriu outro s(>nhorio senão o
(ie el-rei.
344
O PANORA3IA.
Conseguido o snu intpiito, c tendo passado a Bil-
liao, ordenou ao incauto infante que se apresentasse
nos seus paços:, mandou-o matar, determinando fjue o
seu corpo fosse lançado á praça, e disse ao povo : isAlii
lendes csíc que queria ser vosso senhor." Foram
igualnienie victimas da crueldade de D. l'edro, a
inãi' do infeliz infante, D. Leonor, e as já mencio-
nadas 1). Izabel e D. Joaniia :, que não tinham outro
crime, além do de serem parentas d'aquelle mons-
tro que manchava o throno de Castella.
Sollrcu Hiscaya por alçum tempo o jugo do feroz
D. l'edra, c quando á Providencia, que nunca de-
sempara as nações se ainda conservam algum fundo
de honra, aprou\e que uma desastrosa morte, segui-
da da publica execração, acabasse com aquella exis-
tência funesta, recuperou D. TcUo o senhorio que
legitimamente tinha possuido como esposo da des-
graçada D. Joanna, porém que já lho não pertencia,
por ter sido assassinada, como fica ref<?rido. \ aleu-se
de algumas fraudes para se apossar d^aquelle estado,
(■ assim não é para estranhar, que o disfructasse mui
pouco tempo, pois morreu antes de um anno da sua
chegada. Foi jurado então (1371) sob a arvore de
Guerniea, o infante D. João, filho de D. Henri-
que II, tendo por essa occasião treze annos. (Auando
succedeu a seu pae, com o nome de D. João I, in-
corporou na coroa o senhorio, mandando que o titu-
lo de senhor de liiscaya o usassem os reis, entre os
mais diclados de soberania, o que assim se tem pra-
ticado até hoje.
Incorporado na coroa o senhorio continuou sendo-
liie tão leal como o ha\ia sido aos seus primitivos
-senhores, distinguindo-se mui particularmente pelas
esquadras que cm varias occasiues armou e pozá dis-
posição dos mouarchas hespanhoes. Foi theatro o se-
nhorio de scenas lamenta; eis não poucas vezes, mui
particularniente quando os conhecidos bandos Oneci-
no e Gainboino derramaram por largos annos em to-
do o paiz vascongado a desolação e a morte. No prin-
cipio do presente século foi occupado militarmente o
senhorio cm consequcncia dos movimentos que n'el-
le occorroram o da valorosa resistência <jue oppoz a
Napoleão.
IMui gloriosos feitos de armas otTcrece a historia
das tros províncias Vascongadas, porém são ainda
mais dignas de eterna memoria as suas empresas na-
V aes. l)edicarani-se os quipuscoanos e os l)iscaynhos á
pesca da Ijalêa, o era tanta a importância que da-
vam a este ramo de industria, que mui raro será o
porto do paiz vascongado (juo não tenha cm seus es-
cudos de armas uma balèa. O famoso foral de S. Se-
bastião menciona muitos olyectos de importação e
exportação, c por elle se pôde formar idéa do exten-
so comniercio (pie se fazia n'aquelta cidade por meia-
<lo do século 12."
O caracter activo e cmprehendedor d"estcs mon-
lanhezes, acostumados desde a mais tenra idaile aos
perigos do tempestuoso mar que banha as suas praias,
c a at)undancia de madeiras de conslrucção <pie otle-
rccia o paiz, toriiou-lhes fácil augmentar considera-
velmente o numero de seus navios, e emprchendcr
C(Uii (lies largas viagens no século 14."; o resultado
«restas foi o descubrimento da ilha e l)anco da Tcr-
ra-iSova, a prepomlerancia (|uc ti;eram os vasconga-
dos nas costas occidentaes da Europa; o pingue com-
niercio (]ue faziam, assim nos portos da noss;i penín-
sula, c 110 interior da nu'*ma, como cm os portos de
França, Taizes-liaixos e Inglaterra; e finalmente te-
rem sido os que est.d)clcceraiii na cidade de iiriixcl-
las, imporio então do comniercio, a celebre bolsa da
ihta cidade, nnlecipando-íc aos inglezis. venezianos,
V outros po\os mercantis.
O poderio dos vascongados começou a causar ciú-
mes á nação ingleza a quem aquellcs disputavam o
commercio das lãs. Dec)arou-se finalmente a guerra,
e deu-se um combate naval em que os vascongados
perderam 26 navios de alto bordo, sendo os restan-
tes obrigados a fugir. Não foram mui felizes para os
inglezes os resultados doesta victoria, por isso que as
hostilidades continuaram ; e para pôr termo a uma
tão exterminadora guerra, assignaram-te em Lon-
dres tréguas por vinte annos entre vascongados, fran-
cezes e iiiglezes, tendo-se, para este effeito, reunido
n'aquella cidade os representantes das praças de San-
tander. Biscava e Gluipuscòa.
Continuou era maior progresso a marinha dosva»-
I congados, e por fins do século lo." os quipuscoanos
I fizeram um tratado de paz com a Inglaterra, noqual.
I entre outras cousas, se estipulou que os navios do>
t vascongados não hostilisariam os dos iiiglezcs, nem
í receberiam d'estes damno algum, ainda que as na-
ções ingleza e hespanhola andassem travadas em
guerra.
Muitos e mui assignalados serviços prestaram aos
reis de Castella os ;ascongados com os seus navios.
A esquadra que o almirante Boniiaz comraandava
por occasião do cerco de Sevilha, armou-se e csqui-
pou-se nos portos das províncias vascongadas, e dos
mesmos saíram também grande parte dos navios que
formavam a invencivií armaJa de Filippe II.
Doesta costa saíram também, o primeiro homem
que deu a volta do mundo, (o portugucz Fernaudi.
de ^lagalhães,) o imraortal Oquendo, e os celebres
navegantes Mitzarredo e Churruca.
Esta curiosa notícia, extraída do Manual dellw-
gcro cn las l^ruvincias lascongadas. obra excellen-
te, mas, como é natural, pouco conhecida em Por-
tugal, junta aos bellos artigos, que citámos, e foram
impressos na 1 .'^ Serie d'este semanário, constituem
um trabalho completo, e habilitarão o leitor a for-
mar uma idea, quando não jierfeita, pelo menos suf-
ficicntemente exacta, de tão interessante parte da
monarchia hespanhola.
llesta-nos declarar que as duas gravuras que se
acham estampadas, nos N."* 4l e 42, á frente d"cs-
te artigo, representam, a primeira três biscav idios de
um e outro sexo, e a segunda, um camponíõ al.tvex.
acompanhado de sua mulher : são ambas notáveis
pela singularidade dos costumes que u''ellas se acham
fielmente representados.
— Nos luzimcntos se dei.xam vêr melhor as som-
bras ; aos raios do sol se divisam os mínimos arcuci-
ros ; o pinlornal com a mesma faísca com que relui:
mostra melhor o áspero e tosco da sua matéria, níf-
forentc prespectiva f.izem as acções dos grandes na-
attcnçues dos olhos; irestes com as sombnís se dei-
xam melhor vêr os claros, «"aquellcs com os claro»
.^e di\isani melhor as sombras.
Padbe a. ^ ikira.
' — dual é pois a verdadeira sciencin das inullip-
res ? A da moral ; eis o único Cítudo cpie llie> con-
vém, que lhos é necess,irio, e pelo qual púdcni in-
fluir sobre a virtude dos homens.
Madame Bcrmsr.
— .\s mulheres que bcin comprehendcm os direi-
tos e deveres de mãe de família n.'io tem do certo
<|iie se queixar do seu destino. Se existe desigualda-
de entre os meios de felicidade concedidos aos dons
sexos, tila é a favor das mulheres.
Madami; SiRL» .
\
44
o PAINORA3IA.
345
A CIOABE SO PORTO.
liAKUAMP;.NTr. tratou da segunda cidado do roiíio o
Paniirama nin suas series iinleriores. Aeha-se unia
(los(;ri[)i;uo gorai no vol. 3." pag. :ÍS1, o noticias es-
pcciues solire ViUa Nova o a Sorra do l'ilav no vol.
4." pag. líjl, sol)r(- a Torre dos Ck-risíos, museu
Allon c o coinniorcio do l'orto, a paíç. lí.ílí do vol.
I)." Acerca de Cedofeita consultc-S(- o vi>l. ("i." pui;,
lt)'J, e de Mira^aya o vol 7." pag. 81. Uospi-ctiva-
uienlt! ao rio Douro pódeni vôr-se os artigos insertos
no vol. J." pag. 177 e vol. 8." pag. ."I.i
'l"eni decorrido alguns annos depois <|uc se publi-
caram essas noticias, illustradas com osdcscnlioscom-
petenliís •, por iíso, para acompanhar a i)resenle es-
tampa, e para <pie se eoidu-e.i como descreve <■ ava-
lia o Porto um ilesliiiclo escriptor estrangeiro, reco-
pilaremos o i|ue se lê n.i oiir.i [luMicada em Turim
em 1850, p<.'lo cavalhcíiro Ijuiz filirario. — Jlicordi
U^ttnit missioiíf in l'í>rl<i<jiill<i til iv Curln .■ítlitilo.
Kis o deseidiii «pie la/, do conspecto geral. .. (^uer
|«'ln via l(!rrcslre cheguemos da deli<'i<isa província
da Hejra as margens ilo Douro, <pier, deixando o
Oceano, vi'ncitl(is os Ijancos de areia <pie olislruein a
fo7., remontc^mos lireve espa(,'o do curso do rio, sum-
inamenle inagi's(osa e picluresca é a vista ila cidade
du 1'urlo, a cpial <'ampeia snhre duas altas collinas,
colire com seus variados edilicios lodo o d<'clive, alé
vir hanliav ipiasi u^agua a extrema casaria. l'or isso,
conlcmplando-se do miMo do Douro, vtVm-sc uinnt
i.a^a» surgindo de \v»r. iPoulvas ale maii a cima ilos
\ III,. 1. — ;j." Sicuiii.
dous montes conVidos pela Sé, o jialacio do liiapo. a
porta do Sol, e a lorre dos clérigos que serve de ba-
lisa aos navegantes. Em certos togares, onde mui»
Íngreme é o declive, os edilicios <pie so levantam a
varias alturas uns a cima dos outros parece forma-
rem um corpo só, tle propor(;ões tlesmesur.idas. de
altura gigante. Junte-se a isto um rio caudal entu-
lado nas margens e fundo, sulcado ile navios e bar-
cos de Iodas as nat;0e5, atravessado pela ponte pên-
sil <|ue liga a cidade á povoação de Villa .\ova de
(iaya; aggregueiii-se-lhe as quintas espalhadas pelas
encostas de ambas as margens em meio das mais cx-
cellentes e robustas arvores que ha no mundo ■, u
('onvento da Serra cpie se eleva solitário a esquerd;»
do Douro; o céu ora avivado pelos esplendores do
; sol nieridioLial, ora ofluscailo pelo- nevoeiros do Ocea-
no, os <|uaes (piando n.'io se condensam muito ii.m lu-
llieui a loniiosura das scuiias tia nature/.a, revestin-
d(i-as dl- tintas melancholicas ; ora estumando leiílu-
I menie as laileiras dos montes, ora afogando os pi-
I nheiraes solitários, em parte occullando, eiu parte
escurecendo apenas os objectos, multiplicam o» pai-
néis (pie a vista procura e em qui- si-eompraí uiiua-
giiiaeão, priii<'ipalnieute quando pensaiiientos triste»
e iiitiiuos, tructo de amargos desengaiios e previsue»
sinislrits, agitam a mente, e parei'e que a magoa se
mitiga se aclia eorrespoiíileiicia no melancholico as-
pecto da iinture/.a. ••
No capitulo <iy eiii que o uuclor Uiais aspneial-
OurvuHU 3U, t8õ'i.
346
O PANORAMA.
mente trata do Porto, menciona as obras devidas ao
zelo do benemérito provedor, Francisco d' Almada c
Mendonça, <jiio deixou no Porto pelos fins do século
passado honrada o popular memoria, taes como, as
ruas -de S. João e Almada, a rua nova dos Inglezes,
a praça do S. Rorjue, a cadeia da relação, o passeio
das Kontaiidias, o bello diafariz f|ue adorna a praça
de D. l'edro, o theatro de S. João, os quartéis de
Santo Ovidio.
u Não faltam ruas largas c regulares entre muitas
estreitas e tortuosas; bella é a que vac da torre dos
Clérigos ú Ratalha, e assas opulenta a rua das Flo-
res -, suflicientcmentc largas e direitas são as de Ce-
dofeita, da Princeza, dos tluarteis, ele. Amena em
muitos sitios é a margem do rio. Não faltam praças
espaçosas e regulares ; citarei as de D. Pedro, da Ra-
talha, dos Ferradores, e também a vastíssima da La-
pa. As casas cm certos bairros são altas e tão corta-
das de portas e janollas, que apenas se vícm peque-
nos intervallos de parede solida. Os palácios são ra-
ros; o principal é o do bispo, construído no século
passado ; senhoreia a cidade toda, e d'ali se gosam
dilatadas vistas. Oex.'"" D. Jeronymo da Costa Re-
bello, digníssimo bispo actual, melhorou e adornou
a ampla escadaria. Dignas do nome de palácio são
também a feitoria ingleza e a casa onde habitou
D. Pedro na rua dos Q-uarteis. O banco e a bolsa
de construcção moderna são casas elegantes, porém
não palácios. "
O auctor censura as ruas dos bairros mais baixos,
[)orque em ruas estreitas, tortuosas e Íngremes não
pôde circular livremente o ar, e tendo feito algumas
observações sobre a limpeza, que já hoje é muito
maior, continua dizendo : uÓ clima do Porto é tem-
perado ; os calores raras vezes são intensos ; o ar é
húmido ; o céu com frequência se cobre de névoa
até três e quatro horas de sol fora. Não faliam
exemplos de extraordinária longevidade. As doen-
ças que predominaram no anno de 1843 foram as
tysicas pulmonares, as hemoptyses, as broncbites e
gastrites : a mortalidade, segundo a Gazeta 31i<Hca
do Porto, foi de •í:08tj, a saber 990 homens e 1:090
jnulher<'s, comprehendidos em o numero total 208
expostos.
- "Adornam o Porto muitos chafarizes-, ao todo são
112 fontes, quasi todas construídas de pedra, 1'2 de
agua potável. A melhor agua é no passeio das Fon-
tainhas, e brota de uma rocha sobre a ribeira do
Douro :, corre j)or quatro bicas \ a da praça de D. Pe-
dro tem cinco.
« O principal estabelecimento de beneficência é a
Santa Casa da Misericórdia erecta em lSo5 na rua ]
das Flores, com uma bella igreja. O auctor louva,
como é de justiça, a piedosa instituição das casas de
Misericórdia. Antes do século 16." havia no Porto
i|uinze iiospitaes petjuenos e mal administrados, re-
li(|U)as da idade media ; el-rei D. Manoel quiz que
SC construísse no 1'orlo um hospital geral. Pelo mes-
mo tempo iguaes transformações succediam em Fran-
ça, na Itália e iroutros paizes ; o mundo saía dos
iperVados círculos e mcsqninhezas da idade media, e
avultava em
proporçoi's menos municipaes, porem
uuiís nacionaes. Não tardou que se estabelecessem
no Porto asvlos i- hospitacs além dos que já exis-
tiam. A Santa Casa administrava c ainda admi-
nistra o hospital geral, que se chamava hospital real
(na rua das Flores) e ora é o hospital no^vo de San-
to António na praça da (.'ordoaria ; e mais sole hos-
pitacs, isto é, dos expostos, e das velhas, dos entre-
vados, lios leprosos ;, e alén> d"isso dá dotes a orphãs,
veste pobres, <■ soccorro os surdos-mudos.
i« Outros hospícios valem aos desgraçados nas diver-
sas misérias humanas. O collegio de Nossa Senhora
da Esperança, fundado em 1724, sustenta orphãs des-
de os 8 até os 2o annos. O recolhimento da Madre
de Deos, vulgarmente chamado do I<\rro, asyla ra-
parigas pobres que vivem do trabalho de suas pró-
prias mãos e de esmolas. O recolhimento das meni-
nas desamparadas, os de Nossa Senhora do Res"ate,
e da Senhora das Dores, para mulheres idosas, com-
pletam o sistema de beneficência portuense no que
respeita o bello sexo.
" O coUegio dos meninos orphãos, o seminário dos
meninos desamparados provêem ao sustento e educa-
ção de outras duas classes infelicíssimas da polireza.
O dos orphãos foi fundado no anno de 1631 pelo ve-
nerável sacerdote Balthasar Guedes, sob a invocação
de coUegio de Nossa Senhora da Graça, e com tão
boa ordem se governava que d"clle saíram muitos sa-
cerdotes e religiosos, muitos doutores eatéum bispo. »•
Passa o auctor a elogiar a bella e útil instituição
das casas d^asjlo da infância desvalida, de que dá
resumida, mas exacta idéa, e depois de mencionar
outros estalielecimentos trata dos monumentos sacrr»
dignos de memoria.
" Comecemos pela Sé ou cathcdral que campeia ma-
gcstosamente coroando um monte. A fachada, é um
grande arco entre duas torres : o interior não é des-
tituído de magestade. (iuerem que este templo foss<>
fundado pelo primeiro rei de Portugal, e sua esposa
1). Mafalda de Saboya (que o auctor por encano
chama D. Mathílde). Como n^estas comarcas foi o
berço do reino de Portugal, não admira que em
Braga, aqui, e cm Coimbra se encontrem as primei-
ras provas da liberalidade de seus principes. Sabe-se
que a capolla mor foi construída no século 17."
"Outra igreja antiga é S. Francisco ; o abside que
é do século lo." está muito bem conservado. A da
Lapa é vasta e bella. 3Iuitas outras igrejas, entre
ellas, a do Carmo e a dos Clérigos são a^radavek c
ricas de douraduras, ornatos e pinturas de ima£:ens ;
no que em Portugal como em Hespanha ha supera-
bundância. Mas são pequenas e não contéem cousas
notáveis; (1) todavia o aspecto exterior da dos Clé-
rigos é monumental, especialmente era razão do lo-
gar onde se eleva, e da elegantíssima torre que a
acompanha e serve, como dissemos de balisa aos
mareantes.
" .\ duas horas de caminho da cidade, na direcção
de Braga, é digna de vcr-se a igreja de Leça do Ba-
lio, que dizem ter pertencido aos templários, do
que não ha vestígio, e veiu depois ao poder da or-
dem de Malta. A igreja é de três naves com srande
abobada golhica sustentada por feixes de quatro co-
lunnias. O baptistério é lindamente lavrado nootv-
lo gothíco ; na capella lateral do altar mor do lado
do evangelho, se vê um tumulo com cslalua jacen-
te, e a inscripção que diz estar ali sepultado D. Fr.
João Coelho, prior do Crato, clianceller morde Rho-
dcs, bailio de Negroponte, do conn-lho d"el-rei. etr.
1314.
"A fachada dVsta igreja éum nobre cpuro cxem-
pl.ir do bom ostvlo gothico ; mas sobre tudo notável
é a grande e alta forre quadrada, com boslciras c
ameias, o que antes da invenção da pólvora devia
ser\ir de podcroM defes;i. •'
O auctor termina mm uma brevissiniaro*onh«dos
est.ibelocí mentos liller.irios o algumas noticias sobre
o commercio c industria do Porto, que não tem o
merecimento du novidade.
(1 ) tTii (lissenKvo qnr oxpuuhiunos MopIoiOei <lo andor
rouiu cllo as cuiittiu.
o PANORA3IA.
347
POETAS DA ARCÁDIA.
Pedro António Corrêa Garção.
Ao Menalo — Corydon Krimanihêo .
III.
N'b8tas indignidades tinham caído as musas, quan-
do a Arcádia veiu luctar contra os corruptores do
gosto, combatendo-os com a critica e com o exem-
plo. C) (juȒ resta dos seus poetas e censores, e o que
se sabe dos seus trabalhos, basta para attestar o zelo
<: o engenho com que vindicou os foros da lingua, e
cultivou as verdadeiras letras, cujo formoso seio os
escravos da imitação não se can<;avam de rasgar com
repetidos ultrages. N'esta empresa o Garção era o
homem talhado para supportar o maior pezo, trazen-
do sempre a par a censura da baixesa, e as regras
severas da arte, cujo amor foi a paixão da sua alma.
Austero e inflexível nos juízos que compunha, ne-
nhuma atten(;ão estranlia o amaciava. Com os olhos
em Roma antiga, e em Alhcnas, só n'ellas via a per-
feição, n esforçava-SK para que os outros a sentissem
como elle. A magoa do abatimento em que jazia a
poesia, tão opulenta um século antes, ainda fazia o
seu espirito mais rígido, e a sua opinião mais in-
exorável. A divisa dos Árcades a Jnutítia irintcal"
applicada por elle, se poccou ás vezes foi por exces-
so de justiça, nunca por indulgência. Os seus amigos
quando se assentava na cadeira de censor já sabiam
que só verdades iam ouvir da sua boca.
Na famosa disputa sobn; a thcoria da arte moder-
na, o Garção, e ao lado d^elle José Caetano de Mes-
quita criminavam de incestuosa a alliança damytho-
logia o das risonhas liccijcs do jiaganismo com o sen-
tido moral d.i inspiração catholica. Assim a these,
<]ue diclou a Chateaubriand capítulos admiráveis no
Génio do Christianismo, era ventilada com menos
expleudor, mas com bastante erudição rtiuilos annos
antes na Arcádia.
Pouco accessivcl ao exagerado escrúpulo dos pas-
tores seus sócios, e mais ecléctico nas tendências, An-
tónio Diniz, (Klpino Noií.icriense) advogou a liber-
dade do Parn.aso com galhardia. A seu vêr dester-
rar as musas gregas de todos os assumptos, significa-
va nada menos do <\ur proscrever nuiitas obras ex-
coUentes do engenho humano, cc)uqiriiiiin<lo a piían-
lasia ■, ([uando era suflicienlc excluir a imitação pa-
gã dos poemas religiosos em (|ue a mistura das duas
escolas só havia d<' produzir absurdo e desliarinonia.
lista contf^ida suscitada pelo Garção no exame da
primeira écloga de Diniz, deu origem ás disserta-
ções do auctur do Ilyssopv, que não licou vencido no
certame.
O cxercicio fre((uenle dVsla censura austera foi
unia das armas poderosas da Arcádia:, o devc-se des-
culpar aos sócios em muitas occasiões o abusoda eru-
dição, ipiando a ignorância era geral e o desprcso
dos bons diclanics (■<unph'lo. De certo nem o Garç.ão
«: Diniz, nem Valladares e o (.'andido liusilano su-
biam com os estudos critii'os além do principio imi-
tativo', a sua Ihcoria não exprimia a reacçãi> ilo pro-
gresso, descubrindo i<léas novas, e lormulanihj-asciim
u doutrina e com o exemplo:, resumia apenas um
progresso menos ambicioso <■ mais a<'anhado, ({ue se
contentava com a restauração das tr:iib<;ões da re-
nascença, não crendo (|U(' lóra d ellas piidissc eucon-
trar-be o bello eo sublimi' no peusiimenlo ou na for-
ma. As disseriaiMics de (iari;ãu sol)re n Irageilia, ea»
de Figueiredo sobre a comedia não se apartam de tão
reatriíla inlelligencla. Nenhum d\'llc» Irilliu dusoo-
nhecidos caminhos ou os suspeita; nenhum julga pos-
sível mesmo, que o drama saia do molde greco-ro"
mano, e das ultimas correctas apropriações da Tha-
lla, e da Melpomone franceza.
Discutiam o caracter e a importância da manifes-
tação dramática, mas sem anteverem que a liberda-
de fora o espirito vivificante, que tinha infundido a
alma e o sentimento da sociedade grega nas grandes
creações de Sophocles, de Eurlpides e de Aristopha-
nes. Os rasgos de Shakspeare, a poética de Lope da
\'ega e de Calderon, a comparação da arte do norte
com a do meio-dia, e o gérmen da futura renovação
depositadas n'ellas, nunca o entenderam e nunca se-
quer o presentiram !
O Garção, que é quem symbolisa mais o lavor in-
tellectual da Arcádia, expressou claramente o senti-
do da reforma nos preceitos impostos á imitação da
antiguidade, e do renascimento portuguez. Nem ad-
mitte o despreso das máximas do Parnaso, nem per-
doa a servidão da cópia quando até os vícios quer
adorar! Diniz, condemnando o insulso e rústico esty-
lo da poesia pastoril, de que Pina e Mello eraovul-
garlsador, se não poupa as setas ao Corvo cio Mon-
dego, (assim lhe chamavam por Ironia) também nun-
ca excede o circulo dos reparos Imlfatlvos, não ante-
vendo nem as primeiras imagens da admirável poe-
sia, que tira todos os quadros da natureza viva, c os
enriquece com as cores e as maravllh.as da creação.
A tala e Waverley, os painéis de Cooper, e as des-
cripções de Byron, vieram depois ; n^aquelle tempo,
se apparocessem, é mais que provável, que pela sua
temeridade excitassem a desconfiança dos pastores do
Menalo. Haviam de julgar a realidade poetisada
forte de mais para a sensibilidade da sua critica.
O sentido que domina todas as censuras e disser-
tações dos Árcades, encontra-se com a mesma inten-
sidade nas obras <pie apresentam como tvpos da sua
theorla. A fórmula não varia ; a interpretação poé-
tica não se ilesvia dos modelos, os Arcádias conhecem
os autos de Gil \ Icente e louvam-nos, leram as co-
medias <le (,'alileron, Jjopo da ^ ega e Tirso de Mo-
lina ; mas se o primeiro nada lhes indicou para a
creação de uma escola nacional, os segundos deviam
ser (|Uasi um objecto de horror para ellcs, como pre-
cursores da inundação decomposições hy bridas, que
enchiam de visagens e de chascos a scena do seu tem-
po. O inimigo, (|ue mais se empenhavíiin em debel-
lar, saíra da Imitação dei)r:ivada dos auctores hespa-
nhoes do século 17."; as nuvens de i)aprlão, os dia-
bretes, os sacatr.ipos, os carros de phaetonte, as se-
renatas e mais accessorios obrigados das magicas e
operas estrangeiras, traduzidas ou dadas no original,
com o sabido cortejo ile bobos, barbas, amorosas e ga-
lãs, tiravam a genealogia e deduziam os mascavados
brasões d'essa fonte <|ue, no seu odlo Implacável, os
Garções eus Figueiredos de certo accusavam de ser u
causa |)riiielpal (l;i corrupção ilo gosto o dos preceitos
salutares.
Assim, vcj;i-s(M(>moa veia, de (M'diiiarío serena, ilo
(i;in;íio corre agitada na comedia salvric;i intitulada
(í '1'liiittru Aovu. O enredo, na sua simpli<'ldade,
siTVe apenas d<' pretexto ao rúlleulo Jiara disparar
seta sobre seta aos eslragadores da escohi severa. A'
V(.'zes a '/.omliaija azechi-.se, e o (hirdo Irónico sente-se
ferir tocado de fel. Apparece a cada passo a cabeça
do piieta por cima do huinbro do Interprete da suu
critica no personagem liil Liintl; são fustigados e
i'nvih'i'idos os apologistas do drama th' espectacuh',
da> niacliinas, e dos lurots c/ioiims no personagem
i'ond<'mnado du llnií, liiccniiiidn. .\ surriada sus-
lenla-se continua ocruel, o verso i'aniin:ido, :i phr»
»c fulu, tf u uiilylu próprio At iiiugicus do desdltout
348
O PAKORA3IA.
António José, Os Encaiiios de Ahdeia, Os 1'rLCÍpi-
cios de l'haclonlc, e o Alecrim c Jilangirona, pa-
gam por todus os desvarios da ITialia plebea, expos-
tas a uma irrisão, que nada esquece para as lacerar.
A indignarão da austera critica desata-se em Ijellos
trechos ^ a censura arma-se de uni açoute, que doen-
do, não estanca o riso; mas quando cessa a parte ne-
gati\a :, <juando as tramóias, os dragos, e as irans-
Jorma^õcs de roldana se derreteram ao calor da ira,
e os Eneaa e Theseos cantantes se sumiram pela vo-
ragem do ponto : o que põe o reformador no loMr
d'elks? "^ ^ ^
De que mudo promette curar o publico da baixe-
la de um <;enero falso, etrazel-o ao (rosto de uma es-
cola seria, lilferaria e isenta de abjectas truani-
ces? voltaiido aonde ficou o génio original e portu-
ijuez de Gil \'icente ? Ponderando o uso da sensata
liberdade com a observância das regras, que hão de
ser eternas em quanto houver thcatro? Não'. Cego
pelo espirito de reacção, levado pelo pendor imitati-
vo, entregue á especulação clássica, perde a realida-
de de vista, e quer a regeneração da arte, converten-
do as plateias em academias, e o povo ein Árcade \
substituindo ao péssimo estylo da prcvertida imita-
ção uma escola, rigida sim, elevada de certo, mas
nao menos falsa, não menos opposta á fundação da
verdadeira sceiía nacional. Contra o veneno das ma-
gicas propõe como triaga efficaz as traducções de So-
phocles, de Euripides e de Terêncio ! Contra as co-
medias de enredo e os entremezes destemperados,
receita a comedia francoza e a tragedia de caracter,
ou traduzidas ou pauladas pelo decálogo rigoroso das
unidades e seus gloíadores. Appliea a mordaça ao
judeu c ás snas cerces, para dar largas á verbosida-
de erudita do reverendo à'' Aidiignac '.
.Manoel de Figueiredo, um santo homem, oflieial
de secretaria, e poeta de martello, batia entretanto
na incude dramática os versos forrecs c gelados das
suas peças \ e ofiendido da solidão em que gemiam
os Ocdij.os, os T irialos e as Osínias, mais estrangei-
ras e antipathicas ao povo, do que os sacatrapos que
o luziam rir, c os Iwbos hespanhoes que o divertiam,
vingava-se da negação trágica do seu talento, eruci-
neando no Dramalico .(fitiado, e nos Ct?i!iort.<; de
Jfícalro, as ingratas plateias (jne dcser1a^am da sua
musa, bocejando, para irem bater as palmas e aspa-
teadas ás operas do Judeu. O Cfin)ilr< das Alagoas,
personagem ridículo e presumpçoso, servo-llie de bo-
de emissário; n'ellc representa ecasfiga mais doque
em nenhum outro os peccados dos detractores. Se é
entidad(! purainenie ideal, o aucfor faria melhor cm
aparar a penna cómica, dotando a sccna de obras que
hombiea.^scni com os modelos immortaes de IMolière,
que tanto ciia, e que nas suas versões se metteu a
corrcgir. Se é allusão a pessoa certa, esqueceu-se de
que a ousadia jjoelica de comettcr os arrojos da Xh/ii-
tiada, exige a, força e a estatura de um l'ope.
Figueiredo luctava com Minerva adversa. Feliz e
abundante nas idéus capitães dos dramas, cnredan-
do-os com arte, a])enas pega no pincel e principia a
encher o quadro, empasta c perde tudo. O Avaro
iiissipador, O Fiduhjo de sua Casa, O Indol^-ide
Mscraixl, c tantos outros, oram assumptos «juc, sus-
tentados os caracteres, animado o dialogo e travadas as
situações, dariam nome a um auctor. .Nas mãcísird-
le gela-se o iiitere>se ; adormece a conversação; ajvi-
gaui-se as phisioiiomias, e aborrece a fabula. Como
<lueMa Figueiredo com ossens treze volumes, inacces-
sivcis a curiosidade mais aecêsii, tviii\erler o publico,
mudar o gosto e renovar a arte.' l'm \erso hirto e
contrafeito, um esl^lo árido e somnolcnto, a phrasc
parecendo torneada para a gineta, foram nunca os
dotes de um engenho cómico, cujo êxito consiste na.
! intenção, no propósito espirituoso, e na veia fácil c
I transparente ? A Musa jovial, que ensina com o riso,
podia acaso conhecer-se na rabugenta e soporiíera
] Thalia do pobre Licidas Cynthio, emp.ipelada nas
j toucas, pejada de advertências moraes, e preciosa era
impertinências cançadas ? O povo não riu com as co-
medias, riu-se d^ellas e deixou-as ; a posteridade con-
firmou a sentença, e esta tentativa lembra só para
assignalar a queda de mais um ícaro, ao qual enga-
naram as azas, precipitando-o quando siippunha de
fácil alcance a altura do verdadeiro engenho !
(Cuniinúa.)
GUXRMICâ.
Xo SITIO mais desafogado e formoso da Biscava,
a distancia de duas Icguas c meia de Bcrmco e qua-
tro de Durango, enconlra-se uma povoação que ape-
nas consta de sete ruas c uma praça. No tú(xid"csta
levanta-sc a sumptuosa casa consislorinl. ronstriiida
de lioa cantaria, cuja espaços;i galeria serve de oim-
inodo passeio nos dias de chuva. No einpodramen-
to da j)raça c ruas ha todo o esmero, e conserva-
se o maior ac«io , como acontece cm quasi toda*
as povoações das proxineias vasconjadas. Esta a que
nos referimos, e que e jM-qnena, mas apralivel, v a
vilia de tínernica, fuiiilada p>ir P. Tello. irmão do
rei n. J'edro tlc t^HstelIa, e senhor de liiscava por
sua espos;» 1). Joannu, em virtude do privilegio ex-
pedido no anuo de 13lit). e que fv>i confirmado pos-
teriormente jH>r \arios »ol>eranos.
• ) monumento mais nota\el de tlnemii-a «■ a igre-
ja da invocação de Nossa Senhora la .-hitigua, que.
o PA>ORA3IA.
349
principalmente, por estar contigua á famosa e vene-
randa arvore sob a qual se tem reunido os biscay-
nhos desde tempo immcmorial para celebrar os seus
congressos, e receber o juramento aos seus senhores,
de guardarem religiosamente os seus foi-os, bons usos
« coslumes, é mui digno de ser visitada pelos estran-
geiros.
Este templo cuja antiguidade se crê, com algum
fundamento, remontar ao século 3." da igreja, el.°
da iutroduc<;ão do cliristianismo entre os vasconga-
dos, foi reedificado, por princípios do século lo.'', a
expensas do célebre doutor Gonçalo Moro, primeiro
corregedor de Biscaya. Escolheu-se o seu recinto pa-
ra n'clle se celebrarem as juntas que d'antes se reu-
niam sob a arvore sagrada ; e em 1826 começou-se
a construcfjão de uma soberba iyrcja, com igual in-
vocação, e para o mesmo fim, que, por virtude das
guerras civis de que a Hespanha tem sido theatro,
uão se aclia ainda inteiramente concluida.
Cluem tiver lido os artigos que demos no Pano-
rama acerca das províncias vascongadas poderá ima-
ginar a veneraç.uo em que os biscaynhos guardam a
gloriosa arvore, monumento sempre vivo de honra-
das tradições. , Com cUeito sob aquelle roble magos-
loso infinitas gerações tem sido verdadeiramente li-
vres, sem que essa liberdade tenha custado sangue,
nem lagrimas, porque é intimamente identificada
com o sentimento religioso e monarchico, e com os
costumes, com o caracter e com as necessidades dos
singelos e virtuosos moradores d'estas montanhas.
O espectáculo que Guernica ostenta por occasião
das juntas geraes é realmente interessante. Ao be-
nigno clima, ^o formoso prospecto das deliciosas vei-
gas que se estendem ao Norte e ao Sul, reune-se a
alegre concorrência que a obrigação e a curiosidade
ali attrahein. As juntas duram ordinariamente dez
dias. Durante a guerra civil enj IS.Ji) estiveram
suspensas, faltando a Guernica o que lhe dá interesse
r importância. J'ailccou em 18.'ií' um considerável
incêndio.
A JjEITlKV.
Í-OM razão se dá o nome de arle á de csarcver ; a do
lêr merece em nosso conceito a iiKiSma ((ualificação.
Adornar as idéas com elegância e bom gosto é um
aclo do enlendinicnlo, superi<jr sem duvida ao d<í re-
ceber a imprc^ssão que produzem no aiiinin; porém,
acolher com aceito i^slas idéas em nossa inlclligcíiicia,
e elleilo (lo bom gosto jmilo a lona pralica illus-
trada.
IC ineonleslavel que o bom gosto não basta per si
«o para conseguir-se na leitura o fim app<'l<-<'ido. A
leilura do mesmo livro piído produzir sensações mui
diversas em duas pessoas d(! goslo igual e dtrafleições
simtlliaiit<.'S. Uma si: imbuirá com|)lelamente das idéas
do auctor ^ u obra despertará no seu cnlindimento
nova serie <U- emoções qiuí até ali desconliecia :, ao
jiasso que a outra pessoa só terá conseguido distrac-
ção agradável (pie não deixa mais vestígio do (pie
um Irojiel lie sensações.
l'ara explicar cbIis díHerentcs n ^ull.iilos (• preciso
recorrer a uma disliiicijão idiuilogiia, (|ue parece re-
velar um dos grandes mistérios da arle de l(^r. A
lógica estabelece dilléníiiça entre a |)erce|ieào e as
idcns. Cliania-se percep(;ão á faculdade do entendí-
iU(;nlo peia qual compreliendcmos a simples im-
pressão dos objcclos , porem, <|uando eslcs objeelos
exislcni já no enlendimenio enllnsoiirados e orde-
nadu» como maleriaes [)ara Uío da reUiíxão, damoí-
Ihe o nome de idéas. Podemos comparar a percepção
a um raio de luz, tibio e fugaz, que alumia momen-
taneamente um objecto, sem deixar apoz si luz ou
calor : pelo contrario, a idéa é como o raio ardente
do sol (jue derrama luz fixa e poderosa sobre o ob-
jecto que illumina.
Alguns leitores singelamente e a miúdo se quei-
xam de ruim memoria e de tirar escasso fructo de
seus estudos. De ordinário procede isso de acharem
maior satisfação em se entregarem aos fáceis praze-
res da percepção do que ao laborioso habito de trans-
formar as percepções em idéas.
A percepção requer unicamente sensibilidade no
gosto, sendo os prazeres que proporciona continuados,
delicados e laceis. Não assim (pianto ás idéas, que são
uma espécie de combinação ou de esforço do racio-
cinio, um trabalho mental •, por consequência, é in-
justo que os aborrecidos do lavor se lamentem de
metter o arado á terra e não colherem depois uma
só espiga.
A leitura tem segredos encaminhados a facilitar
seu intuito, ora auxiliando a memoria, ora augmen-
fando o cabedal enthesourado no entendimento. !Mui-
tos d"estes segredos inventa-os o nosso próprio enge-
nho, e é de suppor que cada leitor tem seu modo
especial de estudar, assim como cada tachvgrapho
tem seu sistema peculiar de transcrever suas notas.
l'línio o velho, que além de ser infatigável com-
pilador, devia ter grande experiência da arte da lei-
tura, observa que não ha livro, por máu que seja, que
não contenha alguma cousa boa. Lêr todos os livros
seria perjudicial á maior parte dos leitores: também
não é necessário para qualquer se instruir Iít um li-
vro do principio ao cabo. De muitas obras basta to-
mar idéa do plano, ou examinar uma parte. Poucos
leitores percebem toda a utilidade do pequeno sup-
plemento coin (pie geralmente costumam terminar os
livros : todavia, alguns escriptores eminentes foram
consummados na arte de lèr os Índices, (iuanto a
mim, posso diz(T que venero o inventor dos índices
a tal ponto que não sei a quem dar preferencia, se
a Ilyppocrates, que foi o primeiro anatómico do cor-
po iiiiMiano, se o desconhecido génio que primeiro
poz patentes os nervos, as art(írias de um livro.
iSlontaigne costumava notar no fim de qualquer
obra que não tratava de l('r de novo o tempo que
dedicara á sua leitura, o um lacónico juizo do seu
merecimento upara recordar (dizia) a idéa geral que
receb("ra do auctor e de sua obra. "
K sabido que o poeta Young, chegando a uma
passagem digna de atten(;ão, fazia uma dobra na fo-
lha, de maneira que por sua morto acharam-se-lhe
na bibliolh(!ca infinitos livros que não podiam fe-
cliar-se. Este metiiodo é mais comniodo (|ue útil,
porque, se bem o examinannos, veremos que passa-
do algum tempo é necessário l(''r outra vez para ave-
riguar porque se dobraram as folhas. Evitam alguns
o inconvenicnie, apontando n"uma folha ein branco
as paginas a (pie pcriendeni r(íferir-sc, com duas ou
três palavras de analise ou critica.
E não se lenham cslas minúcias por iiuligiias de
inlfllígencías su|i('riorcs :, por ta("s meios, sem iinpor-
tancia no (|ue parece, consegue aiictoridade .-i erudi-
( ão, c combina suas ideas a íuiaginacàn maíi> exal-
iad.i.
(• liiliir dl' plllli^^^lo lievír dividir oliiiipo entre .■!
leilura (|ne dcnoniínaicmo» de i.obrigação" que e
mais Milislancíal e mais ulíl, c a de .. devoi;ào" tpie
|ini|Mirii(>ii:i inslructivo recreio. Guído l'alín, celn-
bre inedico, diz (pie lia diariamente ll_\ p|»H'ral(S,
(ialeno c outros mestres ín>igncs da sua proliss."»), ao
(pie chamava a sua leitura de proveito; e c(un aljju-
350
O PA>ORA3IA.
ma frequência lia Oviílio, Juvenal, Horácio, Tácito,
<• era esta a sua leitura de recreio, ('unipre fazer es-
ta difleren<,'a, porque succede ás vezes um juriscon-
sulto, um medico, um engenheiro, mui laboriosos c
afeiçoados ao estudo, darem-se áquellas leituras va-
riadas, descuidando-se das que devem ser sua appli-
cação continuada.
Pode em muitos casos considerar-se o leitor como
um caplivo atado ao carro triuraphal de um auctor
de celebridade:, então não costuma julgar per si mes-
mo, e quando lê as obras inditterentes de um es-
criptor famoso imagina que o cansaço e fastio, que
sente, nasce da sua falta de bom gosto. 3Ias tenham
presente que os melhores escriptores, quando são de-
masiado volumosos, já tem muito de mcdiocres.
Por outra parte, o leitor não deve figurar na ima-
ginação que todo o prazer que llie produz uma com-
posição provém exclusivamente de seu auctor, por-
que sempre o leitor tem de púr alguma cousa do seu
para que lhe agrade o li\ro. O escriptor não pode
dar certo appelite litterario que é indispensável, co-
mo o mais hábil cosinheiro não pôde dar vontade de
comer ao commensal sem appetencia.
O estado accidental em que se encontra o animo
do leitor inllue ás vezes desfavoravelmente na apre-
ciação que faz de uma obra : e.Kemplos temos de juí-
zos mui erróneos emittidos por grandes escriptores, c
que s<5mcntc podem atlribuir-se áquella circunistan-
cia. O animo Iransmitte a sua má disposição ao li-
vro, e o infeliz auctor tem que pagar uão só pelas
suas culpas, mas também pelas alheias.
Um obstáculo mui frequente para a leitura é a
antipathia do animo cm lixar-se n'um assumpto-,
yistigados por idéas diílerentes e achadas com difli-
culdade acolhemos as do auctor. Applicando-nos com
graciosa violência á leitura de unia obra interessan-
te, conseguimos em breve consubstanciar o entendi-
mento com o assumpto. I
Os leitores ])ódem dividir-se em um numero inii- ]
iiito de classificações, em quanto que o niisero auctor
é um ente solitário, que pela razão de agradar a uns,
desagrada por consequência a outros.
O talento veheniente em demasia 6 mais prejudi-
cial á própria celebridade do que o talento mediano,
porque devemos observar que as obras mais popula-
res não são as mais profundas, mas sim as que ins-
truem o que carece de instrucção, e deleitam os que
não tcem sufficicnte para gostarem de sua novidade,
ílontaigne queixava-se de que os seus leitores eram
sempre ou demasiado iiislruidos ou demasiado igno-
rantes, de sorte que só podia agradar a certa classe
mediana, que possuia a instrucção strictamente ne-
cessária para entendcl-o.
Congrèvc diz que u ha na verdadeira belleza certa
cousa que as almas vulgares não podem admirar. "
Balzac queixava-se amargamente dos leitores. •■■ Um
periodo (exclama) ter-nos-ha custado o trabalho de
>im dia inteiro; teremos dislillado n"um trecho toda
a essência de nosso entendimento •, temos conseguido
fazer um modelo da arle ; e pensam que são indul-
gentes quando declaram que o livro tem cousiis bo-
nitas e que o estslo não ó máu '. " Ha um não sei
(jue nas coinposiçries mimosas c delicadas que o vul-
go dos leitores não alcança comprehendcr.
Os auctores são \angloriosos, mas os leitores são
caprichosos. Uns Só querem livros antigos, como se
não houvera verdades de muito preço nas publica-
ções modernas; a outros agradam somente as obras
novas como se não houvera cousas de mtiilo preço
nos livros antigos. Muitos não lerão um livro, por-
que conliecem o auctor, no que pude perder mais o
leitor do i|ue o auctor; outros não >ú U-riam olÍTro,
mas até leriam e interpretariam o homem, no que
o escriptor de maior engenho pode perder mais do
que o leitor mais impertinente.
( Kxíraclo das obras de I. D' Israeli. )
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA.
Ikstri'cções dadas ao coadjctob de bzbgamo,
nlncio em portugal iso tempo de d. joão iii.
"Ha em Portugal continuadamente infinitas ques-
tões matrimoniaes, e de outras espécies ecclesiasticas.
E havendo núncio auditor, está o reino todo nas suas
mãos pela causa principal, ou por outras dependên-
cias. Porém é necessário ter o núncio auditor, e fa-
zer justiça ; o que muito concorre para a sua aucto-
ridade, e para ser respeitado ; e os irmãos do rei, e
outras pessoas grandes, precisam d'elle, a ponto que
lhe apresentam supplicas, e lhe reconhecem poder
aquelles mesmos que mais lh'o contestavam.
"Como o rei é muito governado por monges e fra-
des, e por isso todos os dias carece de dispensas, creio
que será oportuno, que o núncio traga faculdade par-
ticular sobre frades e monges, não usando d"ella se-
não em casos importantes, de que lhe resulte aucto-
ridade perante o rei, e com que incuta temor ao»
frades, attendendo sempre a que elles são poderosís-
simos em Portugal.
" l'or isso e para concluir muitas cousas, que dr
outro modo se não acabam, é preciso que o núncio
leve breves para os frades mencionados ha pouco, e
credenciaes, dando-lh'os com preceito de os não pu-
blicarem.
"Também é conveniente trazer o núncio três ou
quatro breves credenciaes sem sobrcscripto para os po-
tíer entregar a alguns frades cm circumstancia grave.
em que produzam grande cffeito.
«lE necessário que o "núncio traga expressa cora-
missão e ordem de defender a liberdade ecclesiastica.
e os padres que vir opprimidos ])or seculares, fican-
do por isto todo o clero seu escravo; e o clero forma
aparte mais poderosa do reino; assim attrahirá á Sc
Apostólica muitos amigos que se calavam por não
haver para quem recorressem ; c castigando os cléri-
gos culpados com justiça, dará satisfação também ao»
seculares.
" E preciso saber o núncio quem são os pregado-
res c confessores das personagens da corte, e assim
que descubrir na sua doutrina qualquer opinião ma.
acuda cora o remédio em tempo, e usando deauclo-
ridade sem contemplações, que c o modo de cur.iro?
males sem violência, evitando chegar á extremidade.
"Como os males da igreja principalmente nascem
de se deixar perder a obediência, dissimulando as
cousas por considerações particulares. chcg:indo-5c por
negligencia á ruina total, com perigo eminente de
derriljar tudo }>or terra ; attendendo e reflectindo na
imj)orlancia d"islo, os príncipes passados sabia c san-
tamente estabeleceram a ixcommunhão publica da
i|uinla feira s;uita, e ainda no tempo de Leão e de
Clemente se costumava mandar a dita bulia aosprr-
lados, afim de se publicarem nas respectivas dioo-
les como cila determina; o «jue vejo que hoje se nâ.'
I faz. .\ftirmam todos, com quem me inlormci. que.-<-
ria couç;i religiosíssima e de óptimo etTeito, c levan-
taria iinmcnsos olistaoulos, trazer o núncio a bulia c
en\ial-a aos pr«-lados e preg.idores. com prix-eito de
a publicarem ao povo, visto ser cila uma d;is 3rma>
principaes da igreja para vonserrar a união dos fiei».
o PAAORA31A.
351
e a sua auctoridade. Faz-se uma ceremonia, voem
que não passa da praga de S. Pedro, em quanto na
Hespaniui são raros os que saljcm o seu conteúdo,
e o que significa, e os confessores, ou porque a não
lêem, ou porque a dissimulam, absolvem dos casos re-
servados, ficando tão cxcommungados como os peni-
tentes, e causando grande prejuizo á Sé Apostólica
por se notar, que assim como se deixa de cumprir
unia bulia d'esta importância, de que depende mui-
to a auctoridade da santa Sé, menos se deverá temer
a desoljediencia a outros preceitos ordinários do papa
e da igreja. K posto que isto jjarcça fútil, os que
conhecem a Índole d'aquelles povos, asseguram queé
importantissimo.
"Em os negócios da Inquisição, que vieróm ex-
pressamente ao núncio, o em que elle ti\er de se en-
contrar com os actos do infante D. Henrique, deverá
acautelar-se muito, para, sem consentir quebra no
que pertence ao seu officio e a justiça, obrar efallar
sempre com sunima reverencia, porque os irmãos do
rei querem ser tratados quasi como iguaes do monar-
clia. Sejam livres as acções e decididas na auctorida-
de ; nas palavras porém guarde sempre maneiras cor-
tezes e respeitosas, porque assim não terão pretextos
a que se peguem, e as cousas substanciaes irão por
diante.
"Deverá visitar o infante algumas vezes sem ou-
tro motivo senão o de o comprimentar ; e do mesmo
modo acompanhar o rei sempre que elle sair, assis-
tindo ás festas e ceremonias publicas, a que S. Alte-
za concorrer com a corte.
u Não deixará trazer ou ter comsigo nenhum por-
tuguez-, porque, por amor da pátria ou por amiza-
des particulares, poderia revelar o que visse ou escu-
tasse cm casa do núncio, cousa perigosissima, que
além de o tornar suspeito cm tão delicada negocia-
ção, viria a ser origem de graves inconvenientes dan-
do que fallar.
" Bom será travar estreitas relações com algum
prelado para lhe puder confiar algumas das cousas
que quizer que se saibam ; e entendo que uind'clles
seja o arcebispo de Lisboa, prelado maior, jiarenie
do rei, e seu capellão-mór \ creio que elle ha de ser-
vir bem, sabendo com tudo que foi recusado pelos
chrislãos novos, que o não quizerani para inquisidor.
E muito tímido. O núncio fallar-lbe-ha sempre isen-
to e firme, como homem, que executando o seu de-
ver, segundo avonta(l<' de seu amo e serviço do Deus,
não teme nada, com Deus, o papa, e a Sé Apostó-
lica da sua parle. D\.'ste modo os medos que lhe
inettercm hão de cair sobre elles.
"Item. Como os l'ra<les n^aijuclle reino (já o dis-
m) gosam de grandi; favor, e muitos cortczãos por
verem <|U0 é este o caminho de se intnuiuzirem no
valimento do rei, faliam econver^am muito com elles,
julgo essencial (pie o núncio faça o nieinii) ; visitan-
do de j>roposito os mosteiros, tratauilo amiside com
os íieus prirhidos, nuistrando confiança n'i'lli's e pe-
ilindo-lhcs conselho ; com esta táctica siicccderá que
fallem d"<'llc -.iti rei : i- em (planto pessoalmente fiz(>r
«aber a S. Alteza inil cousas agradáveis, (lor via de
outrem, fará que lh(! cheguem outras mil. E é fací-
limo scdiizll-os, porque a iiiaiur paile cuidam mais
do miinijo, (lo (jiK! (la clausura. K pura servir bem a
Deus e a N. S. c jiislo aconimoilar-se a lodos sem
pcccado , por csIí- caminho hão de concluir-se mais
cuusns (lo (|ue á |iriineira vista parece.
•lO» porlugiiczcs espiam muito as famílias dos es-
trangeiros, especialmente iis dos núncios e padres,
que naturnlni(?nle desejam caluinniar. K indispensá-
vel (|ue o núncio lenha grande vigilância na vida e
costumes (hm seun fâmulos, pori|Uc de outra cousa
não fallo •, eisto é facílimo, vivendo como se sabe que
vive, e com a família honestíssima que tem.
( Continua. ■
LENDAS HISTÓRICAS.
O Demónio do Lago.
lU.
Duat t iayens.
Embarcaiiam em Dumbarton ; mas apenas a frofa
(jue combo>ava a rainha de Escócia se aflastou da
costa, começou de ^soprar o vento rijamente, e os na-
vios, combatidos pelas vagas, estiveram prestes a
abrir-se e fazer-se pedaços.
A rainha occorreu logo a medonha visão. Eviden-
temente o demónio do lago perseguia-a, e as ondas
deviam de ser-lhe funestas. Com as mãos postas, e
orando fervorosamente, a filha de Jaques V suppli-
cou ao genib máu de Monteith que poupasse os seus
companheiros, e a ferisse a ella só. Esta prece de um
coração puro, remontou ao céu atravez as acastella-
das nuvens. Um vento favorável impcUiu a esquadra
para as costas de França, e uma segunda feira, 20
d^agoslo de 1548, o navio (|Ue conduzia Maria Stuart
abordou, ou para melhor dizer, foi encalhar, na pon-
ta da bahia de Morlaix, em uma furna de contra-
bandistas e de corsários, no porto de Roscoff.
A influencia do Kelpy parecia perseguir Jlaria
ate na terra em que devia reinar. Quando saía em
grande estado da egrcja de Nossa Senhora de Mor-
laix, onde se havia cantado um solcmnc Tc Dcum,
e ao passar a porta da cidade, chamada Porta da
Fiisuo, a ponte levadiça quebrou-se e caiu no rio.
Os escocezes gritaram (jue havia traição. "Mas (diz
o ciironista) o senhor de llohan, que ia a pé junto
da liteira de Sua Magestade, relroquiu-lhcs severo ;
(iue um bretão era incapaz de allraiçoar alguém. E
de feito nos dous dias que a rainha se demorou ali
para descançar das fadigas do mar, estiveram abertas
todas as portas da cidade, e ás pontes foram corta-
das as cadéas. »
Em S. Germano Maria Stuart breve esqueceu os
adeuses do demónio de Monteith e os agouros da sua
viagem. l'assou ali alguns annos felizes «"um conti-
nuo lid.ir de ca(;adas, de festas, de dansas, de con-
certos. A rainha, enllni>iasta como o era já no mos-
teiro de Incb-Mahome, cnticgava-se a todos estes fol-
gares com um prazer inaudito Toda a(|uella corte
fastiiosa dos \alois, de (pie Catliarína de Medíeis, era
a sombra, e <jue Maria Stuart fazia esplender com a
sua mocidade, lorinosiira precoce e superior espirito,
cmbriegava-a ao niesmo t('in])i).
iloaipiiin de JSelav, llonsard, Jamvn la/^iam repe-
tidas excursões bucólicas ao l'arnas(), forcejando por
atapelar de I v rios e rosas a estiada da vida á gra-
ciosa rainha, que a trilliava dc.>cui(losa e a rir.
.\ gélida e nevoenta Kscucia era cs(|uccída por ve-
zes; e (piaiido dos eirados de 8. liermano ella coii-
teniplava a larga laxa do Sena, ou iiuaudo percor-
ria, em uma barca dourada e empavezada, o lago de
l'"tuilaiiiebleaii, a tilha de ihupies \' nem se lenilira-
va seipier do lúgubre Kelpv 'J"ambem (|iicm hav i.'v
de agora pensar nas aguas prorondas do iMontcith,
teiiilii diante dos olhos as nayades de França, e umtt
Ivmplia chrjstaliiui .' Se algum génio se esc(Uuliasob
iis ondas argênteas dos ribeiros, era aenipre alguni.i
iliviíidadu formosa e moca, assentada eiit nacarada
352
O PANORAMA.
concha, o não de certo nenhum centauro horrível
como o cseoeez.
E esquecerani-o '. Mas elle é que nuo ha de es-
queccr-se, não ! A filha de Jaijues A fòra abenf'oa-
da |(or seu pae no meio de uma dolorosa agonia ^ o
clarão das fogueiras aluiniára-llic o berço i a ventu-
ra, ])ois, só podia ser para ella uma excc[)(;ão. De
feito apenas completara 11) annos, roubou-lhe amor-
li' o seu muito amado esposo Francisco II, e uin cor-
tejo illustre o. lirilhante, mas coberto de luto e tris-
tesa, se dirigiu para o litoral, reconduzindo aos seus
navios a coitada de Maria Stuart, que desafogava a
sua dôr em fervorosas preces e versos harmoniosos.
A la d'agosto de lotíl, duas galeras e dous na-
vios de transporte largavam de Calais. Em um does-
tes navios ia Maria Stuart sentada, contemplando
as costas de Franga, que começavam a minguar
no horisonle. A historia revelou-nos o coshtmc da
rainha n'esse dia : trajava um vestido de veludo
branco, <jue então se usava para o luto carregado
das rainhas de França ■, um grande cabeção guarne-
cido de preciosas rendas no pescoço \ o véu engom-
mado formava uma curva por cima de cada hombro -,
as mangas, de tela de prata, eram estreitas em bai-
X(J è tufadas em cima ; o cabello, liso na testa, era
riçado junlo das fontes, e prezo na nuca com fitas ;
uma ioiwa leve descia-lhe em feitio de coração sobre
a testa, c cobria, sem os esconder inteiramente. Ires
fios de bcUibsinias pérolas; no pescoço esplendia-liie
um collar lamliem de pérolas, que cila preferia a to-
das as suas jóias.
1'obre Maria! A medida que se aflastava das mar-
gens, sentia inexplicável angustia apertar-lhe o co-
ração •, i; que deixava em França um tumulo, no
<jual jaziam com o seu joveii esposo, todos os seus
sonhos, todas as suas illusões, e ia encontrar na Es-
cócia fogueiras de pouco tempo apagadas, cadafalsos
ainda sanguentos; abandonava uma còrle folgasã,
peitos abrasados de amor ; e ia tratar súbditos me-
lancholicos e desconfiados, e uma nobreza soberba e
ciosa. Em França amavam-na, adoravam-na. E cm
Escócia apenas a conheciam, e já começavam a
odial-a.
As viagens eram funestas a Maria. Desde o dia
em que o demónio do lago de Montcith lhe appare-
cêra, não puzera o pé em navio que não succedessc
algum desastre. Estando já a distancia da terra, dous
barcos que conduziam aos navios gente do cortejo,
viraram-sc, e sois homens sumirain-se nas ondas; a
agua espadanou até á cabeça de Maria Stuart, cjue
bradou por soccorro, mas em vão ; o mar não resti-
tuiu o holocausto, e depois de inauditos esforços vie-
ram aniuinciar á rainha (jue a ccpiipasem perdera
seis homens.
Duas lagrimas se deslisaram pelas faces da real
viuva, que disse para as suas damas, ([ue a haviam
rodeado, e forcejavam por a consolar ;
— A minha fé inhilie-me do accrcdilar om sorti-
légios ; o meu coração rcpell<> loucos terrores ; mas,
a despeito do meu coração e da minha fé, decla-
ro que vi o demónio do lago travar d\u|Uollcs bar-
cos c atlundal-(is.
— Minha rninlia, acudiu Maria Kli-ming, deixae-
vos de illusões; demónio de Monteilh é cousa que
não existe; existe, porém, a cólera do Oceano, c, lá
cm cima, Dous, que permitte a morte.
— Oh ! eu creio cm Deus, replicou Maria Stuart
com exaltação; mas não posso ser superior ás supers-
tições que me embalaram na infância.
E largando as suas fieis conniaiihciras, foi para um
canto do navio, meditar c chorar á sua vontade.
Ouviam-na .1 espaços dirigir uiolaiicholico» adeuses á
França ; enviava-lhe, n'aza dos ventos, os mais ar-
dentes votos ; depois orava pelos infelizes que o na-
vio deixara em sua esteira ; e quando lhe occorria á
idéa o demónio do lago, evocando todas as recorda-
ções da sua infância, comparava a triste rainha, re-
gressando viuva á Escócia, com aqucUa alegre me-
nina que fòra a França buscar fugitivas ale^rrias e
pezares eternos.
A rainha acreditava na eternidade da sua ddr:
mas Maria Stuart era d"estas naturezas excepcio-
nacs, ((ue absorvem as lagrimas como a arí-a arden-
te do deserto aViSorve o orvalho do céu, e em quem
nunca acabaram as tentações da terra, e os delírios
do coração. Era sincera a sua dòr. N'aquelles deli-
ciosos versos que todos conhecem — Adieu pUiisani
pays de Francc, etc. , julgara exhalar quanto lhe
restava de paixão na alma , em presença d'aquella
terra que abandonava, para sempre, após a scena
de luto que tão profundamente asensibilisára, julsa-
va de boa fé, que não tornaria a recuperar o seu
sorrir de rainha, e a sua isenção infantil. Mas esta-
va escripto que ella tivesse de passar ainda muitas
vezes pelas violentas alternativas de insensatas ale-
grias e incomportável anciedade.
A viagem passou-se pois tristemente. Maria cho-
rou muito, e disse ao timoneiro que a accordasse ao
romper do dia, se ainda se avistassem as praias do
França. O velho marilimo não esqueceu esta ordem,
e Maria Stuart pôde saudar pela ultima vei, ao cla-
rão da alvorada, as costas da sua pátria adoptiva :
depois tudo despareccu ; o horisonte tornou-se infini-
to, c a rainha achou-se sósinha, com os seus desgos-
tos, entre o céu e a terra. Chegaram á vista da Es-
cócia no domingo pela manhã ; mas um nevoeiro
cerradissimo impediu o desembarque, que só se ef-
fectuou no dia seguinte, 19 d"ag05to de lotíl.
(Continua. I
Processo facílimo para gravar cm a^o com i/nio
pciina. — Aquecc-se uma lamina de aço, conxcnicn-
temente preparada, esfrega-se com cera branca, d.
modo que sobre o aço fique uma camada bem dcs-
tribuida, mas de pouca espessura ; depois escreve-s».-
sobre a cera com uma pcnnn, tendo o maior cuida-
do em ([ue os traços penetrem até o aço ; concluída
a escripfa ou desenho lança-se sobre os traços que se fi-
zeram um pouco de vinagre forte, que se Sídpicará com
o bichlorureto de mercúrio (sublimado corrosivo) ;
passados dous 011 tre» minutos cx]>onha-se a jauiina
ao calor para lhe tirar a camada de cera, e appare-
cerá a gravura bem visível, e prompta para qualquer
applicação que se lhe queira dar.
— f ) (|uc nasceu para o trabalho, como boi, não
se lhe dí-em azas, com que queira ou possa elevai^sc
fora da sua esphcra ; o que e aíuia navivpz,i, parti-
cipe mais dos raios do sol, |Hiis lhe sio mais natur.vr^
seus resplandores ; o que é le.ão no valor adnnnistn
as operações da valentia, jxirquc lhe guardara respei-
to a mesma fortuna; e o que é homen\ noninsclho.
governe elle os mesmos conselhos, jH>rque sejam acer-
tadas as re,soluç"òcs nas matérias; jxir isso succedrni
muitas vezes mil desastres no carro da monarclii.-i .
Padrk a. N'isika.
/ícr/ific<jç<io . — No artigo sobre hospifacs. publi-
cado a pag. 33ò, lin. 32 do N.** 42. oi'''«- *<■ l-"' —
134j «Ivve ler-iic lUí.').
45
o PA]VORA3IA.
353
XHEATaO SO X.TCEO EM BARCELONA.
G.LANUO a pag. 288 do 3." vol. da 1.'' serie do Pano-
rama, liemos AviiUi ijeral de liarcflniia, euma noti-
cia iTesta, [Kir todos os titidos, ini|)ortaiitis'>ima ci-
dade, Ião cireuiiisl aliciada <{iiaiito o permiti iam osele-
n\<>iitoí de<|<ie podianios dispOr, meiKJonámos de pas-
sagem o seu tlieatro como um dos mais notáveis mo-
numentos <pie ornam nquella povoação, aliás opulen-
ta de eoiistruo<;ões magestosas c oleiçantes.
K esbo bídlo e vasto edifício o que ;i nossa gravu-
ra representa com a maior exactidão.
n cavalheiro Cilirario, distincto escriptor italiano
que o leitor já conhece pelo extracto (pie da sua
olira publicámos no N." M d'este volume, fazendo
justiça ao caracter pundonoroso dos catalães, e men-
cionando muitas das riquezas que encerra a capital
lio principailo, di'cUra <|ue o tlieatro do liVcéo e um
dos mais espli-ndidos que lem vislo, e |)orvcntura o
lie maior capacidade, incluindo mesmo o famosíssi-
mo da Si.nlii em Milão
O testemunho insuspeito de um cscriptor tão es-
timável, appnrece confirmado jeralnienle pela opi-
nião de todos os que tem visitado Barcelona. De
foito, a fachada, que a nossa estampa ri'))resenta, e
que não pode considerar-se irreprelien-ivel a luz dos
]>iepi'itos severos da arte, npn.-senla eoinludo um !;ran-
dedrsenvolvimenlo, é apparatoía. decorada com Ihis-
lanle profusão, e proilui em çeral um honi efleilo,
A sua archileclura. como a da máxima parle do in-
lerior, pertence á rpocha do renascimento. As |ior-
\oL. I. — 3." Si.mt.
las do edifício abrcm-sc dentro de três bem lanhados
arcos. O vestíbulo, maj.;niíico sal.ão quadrado, termina
em tros esc.idarias, duas lateraes cpie communicam
jiara os pavimentos inferiores, e a do centro, de for-
moso mármore branco, que dá para o (inJar mihri .
N"este, á direita e á esquerda da escad.i, ha duas
sumptuosas portas que abrem para uma rica e .ampla
sala de descaneo. E um p.irallelogrammii, leniio u
clião de mosaico de uiarmore, e ;is paredes estucadas
em arabescos, medalhões, retratos, ijrinaldas de llò-
I res e outros adornos do melhor pislo. Alumiam-mi
cinco lustres, com cerca de cem lumes cada um.
O palco scenito é vastíssimo, e o prosceido oons-
i truido se>.;undo os pri.'ceihis da iqitica e da acústica.
I O tliealn) tem cinco ordens ilecimaroles, ecadaum
iTestes commodos aposentos jiara desal'o;;o dos espti--
tadores. O tecto t primorosamente pintado; repri'-
senlam-sc nVlle quatro alle'.;orias, ;i INIusica, a l)an-
sa, a (.'omedia e a Tra;jedia, inlerpolailas com os
I retratos de falderon, Lopc de ^ e^a, Aloreto ele.
l'or cima do proscénio, e no meio das armas de H.ir-
I celona. \i''em-.se pinl.tdos em dons miilalhõcs os ri--
I ralos de Soplioeles e Schiller. O i^rande luslre feito
em Taris não é das cousas menos notáveis d"esle
lliealro, pelo seu delicado ;;oslo e imnieliso Iralxa-
Iho.
Os camarins dos actorei, que excedem a cem, as
i:m>rdas-roupas, a Sida de pinturas, tudo e formoso
no Iheatro do hvcêo e iIílIio de ser ("xainin.ido pelo
No\ KMnuu (i, 18o'J
354
O PAINORAMA.
viajante curioso. Para o serviço e comodidade dos
concorrentes lia três cafés, providos com a maior
aVjundaiicia de ludo íjuaiito pode desejar-se.
O tlioatro de Barcelona, que tem custado avulta-
dos cabedaes, como deve imaginar-se, pode admittir
até qudiro mil cxpectadores !
Desde que escrevemos o artigo, já citado, acerca
de Barcelona, esta grande cidade tem crescido con-
sideravelmente em opulência e importância ; á som-
bra de uma protec^-ão racional e moderada, as suas
extensas manufacturas têem prosperado largamente;
os seus meios de communicajão interior augmenta-
ram pelo melhoramento das estradas e caminhos ; o
seu amplo porto recebe navios de todas as partes do
mundo ;, e todos estes elementosjuntos á natural acti-
vidade e intelligencia dos catalães, que não é infe-
rior ao seu conhecido esforjo, e amor de indepen-
cia, constituem Barcelona a primeira praça commer-
cial da Hespanlia.
Cabe ainda a Barcelona a gloria de uma generosa
iniciativa, na adopção dVsse grande e maravilhoso
vehiculo da civilisação moderna, os caminhos de fer-
ro. Com efleito o ferro-carril de Barcelona a Mata-
ró, (medindo cinco léguas) aberto á circulação em
28 d'outubro de 1848, e por onde transitam diaria-
menle 2, SOO a 3,000 pessoas, foi o primeiro d'este
género, que se construiu em toda a peninsula I
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA.
Instrucções dadas ao coadjvtor de bergamo,
núncio e.m portugal no tempo de d. jo.ão iii.
it As COUSAS principaes que me lembra recordar ao
núncio são estas :
" !.■' GLue tudo o que desejar que tenha êxito, se
puder, o faca sem pedir licença, como quem acredita
que são ordinárias ; porque os porluguezes em notan-
do duvida, ainda nos negócios de maior interesse,
levam tanto tempo a deliberar, que a occasião se
perde.
'í 2." Nas cousas de summa importância, de que
convenha avisar a N . S. com diligencia, ou praticar
qualquer acto a tempo, não se prenda, esperando a
resposta do rei, porque é iiiorosissimo, e arruina os
seus próprios negócios por indeciso e irresoluto ,
(juanto mais os alheios, se para caminhar se espo-
rar a resposta dVlles. Em tal caso é sempre pru-
dente avisar secretamente, e em quanto corre a
posta, esperar a resolução do rei, de outra forma o
núncio seria enganado.
"3."^ Quando o rei prometter que fará uma cou-
sa d'ahi a tantos dias, ou disser que em dia certo
responderá, não conte o núncio que o cumpra, mas
creia ijue será d'ali a dobrado ou mais tempo. Por-
que isto é no modo de fallar.d^aquelle rei, e é pre-
ciso accommodar-se a elle. Mas no praso marcado
deve comparecer ou mandar pedir a resposta, mas
sem se irar, porque não faria outra cousa em todo o
tempo.
" 4.^ Na sua linguagem seja suave sempre e reve-
rente ; nas obras d<!cidido e firme, trazendo de ordi-
nário na boca o serviço de Deus e de N. S. , ca
auctoridade da Sé Apostólica, da qual está crrtissi-
mo que S. Alteza é c será sempre o maior defensor
entre os reis christãos.
"S.-* liouvar em puldico os actos do rei. e espc-
cialmcnle certas reformas, a que c mui inclinado, e
mostrar que approva todos estes actos, não scudu
contra o serviço ile Deus c do papa, porque assim
ganhará a affeição dVlle, e o disporá a senil-o na
occasião própria ; o mesmo pratique a respeito dos
frades ou das pessoas influentes, diante dequemlh'o
possa ir contar, deitando sempre os defeitos que ou-
vir notar á culpa dos maledicentes.
" 6.^ Fallar sempre, e principalmente com os fra-
des do paço, acerca da santidade e religião do rei, e
recommendar-llie que o estimulem sempre a conti-
nuar, repellindo as linguas maledicas, e prometten-
do avisar N. S. das obras d"elles. E a cada um em
particular, segundo o caracter, o modo e o tempo,
o quG só lá pode apreciar-se, fallar-lhe para lhes dar
esperanças, ou para os admoestar com rigor. Não
perdendo nunca de vista o seduzir os frades, e tel-os
da sua parte, declarando que N. S. será informado
de tudo. E em cousas de consciência e censura fa-
zel-as dizer primeiro em segredo ao rei pelos frade»,
meio, segundo dizem, que muito lhe apraz.
" Está era Portugid, embaixador de França, um
l)ispo chegado de novo, e outro que se chama Hono-
rato de Caen ali residiu muito tempo. O do impe-
rador é um cavalheiro chamado Diogo Sarmento.
Parece que será a propósito, e até necessário entrar
na sua intimidade, se N. S. outra cousa não man-
dar. Porque quanto maiores e mais secretas relaçSes
o núncio provar que ligou com elles, tanto mais te-
mido, respeitado e despachado ha de ser. Mas nisto
não se pode dizer cousa certa, por depender dus ne-
gócios públicos, e do modo que N. S. quiíer que se
tenha por motivos estranhos a Portugal ; principal-
mente estando em lucta os seus principes, e sendo
neutral o papa.
"De Honorato de Caen, embaixador de França,
nada se fiara os francezes, nem parece que o núncio
se deva fiar n'ello de modo nenhum.
" Diz-se que a rainha de boa vontade se arroga
influencia nos negócios, e quer ostentar que inÚue
muito n"cllcs. E senhora mui reli;:iosa. Convém fi-
gurar-se muito seu dedicado, e encommendar-lhe as
cousas de N. S. e da igreja, como a pessoa que além
da rainha, se conhece s<!r temente a Deus. E sobre
tudo, quando se lhe fallar reduzir os negócios ornais
que puder ser (como em verdade se deve) ao serviçt>
de Deus, ao bem da igreja, sempre com menção da
consciência, do outro mundo, e do perigo da heresia
e das censuras da igreja \ em summa aquillo que
apavora as mulheres religios;is ; o que n"ella ha de
produzir copioso fructo. E este meio e maneira é o
que mais convém aos ministros do papa cm todo o
tempo, logar e r;izão.
" Direi por idtiino o que devia dizer ao principio,
eoque o núncio nunca deve esquecer para negociar
com mais vigor e animo. Presentemente Portugal
está reduzido a um estado débil e fraquíssimo de
forças ; e o rei, além de pobríssimo, com dividas
dentro e fora do reino, c enormes e lessivos juros
d"ellas, acha-sc mal olhado do jx.>\ii. o com a nobre-
za mais desconccituado ainda, não por má imlolc
sua, porque se se governasse elle próprio obraria me-
lhor, mas pelos ruins conselhos e e\ccssos dos que o
rodeiam. As cousas de Portugal por contestação com
a França sobro as navegações, e por causa da irmã
filha »la rainha de França, que os fraui-eies podem .
o também cm virtude das dissidências com o impo-
I rador, o outras secrot.is paixões, decaíram a {xinto de
I se riH.-eiar total ruína, ainda que n.ão parece que S
] .Mteza a veja ou a toma, ijuando .is calamidades fu
turas estão previstas jmr muitos discretos o s,ibio? ; c
]W)r mais receios que lho moltnm não muda do cami-
nho, o cuiila que com p;ilavras e ordens, o a poder
de ameaças poderá faicr-sc tcuicr. Por Ís5<i é neces-
sário nunc.1 perder timílhantc estado do \ista, eman-
o PANORAMA.
355
ter firmes os bons propósitos : assim o effeito será
óptimo, como dirão os núncios anteriores.
« E sobre tudo assentar por cousa decidida cjue o
caracter da nação e do povo, o numero e o poder do
clero não soflre rjue a Sé Apostólica ceda {no todo
ou em parte) salvo se nós para temer o que não as-
susta, ou por descuido, ou por despreso do que o
não merece nos maltratarmos a nós mesmos e como
se diz — Bona nomina, nun appcUant, deteriora fic-
rent — o que Deus tal não queira, e o papa Paulo,
guiado por Ueus, não consinta ! "
POETAS DA ARCÁDIA.
Pedho António Cobrèa Garção.
IV.
Ao Menalo — Corydon Erimanihío.
Nas comedias, que são duas, O Hicairo Novo, e A
AssembUa, o Garção mostra, como em todas as suas
obras, que nasceu poeta, e que sabia repassar de côr
e de phisionomia nacional os seus assumptos. Os ca-
racteres não se desmentem ; carrega-os por vezes com
exageração ; e de certo estão lonçe da profunda ana-
lise e da critica íina de INIolièrc, que nas suas pc;-
ças, e na intenção profunda dVUas, tende sempre
a retratar o homem e a humanidade ao mesmo tem-
po ; mas quem cheirou a igualar o mestre nos acaba-
dos quadros (jue deixou? Q.ue ])incel, depois do seu,
tornou a descubrir a correcção de desenho, eascien-
cia do coração, tão admiráveis no Tarliifo, nas Frt-
eiosai, e em tíortje Dandim, imitado por Alexandre
de Gusmão com o titulo do Marido Confundido, e
representado a roços de lord Tirawlej em 1737 no
theatro de Lisboa !
Pelos lineamentos das figuras, pelo calor do dialo-
go em algumas situações e pela exacta interpretação
tios costumes, a Assembléa deve ser collocada entro
os bons ilramas da escola clássica portugueza. A in-
venção é pou<'a , o enredo, frouxo n^umas partes,
confuso e precipitado n''outras, carecia de mais pau-
sa ; os caracteres, tirando dous, o de Braz Carril e
sua mulher Urraca Azevia, peccam por falta de i'X-
pressão individual, e pouca originalidade mostram.,
mas a mania liilalga em plebeus, e o ridículo de fi-
gurar sem posses, achaques da sociedade do sccidodo
auctor, e ainda do nosso, estão pintados com vivesa,
e ha toques i\f perfeição em varias scenas. Asjiarti-
das de curiosas de? árias e di? cravo ; as altas eomlii-
nações de um chá de mofo :, a rivalidade feminina das
preciosas; e os repciílistas do Parnaso caseiro, vivem
e ali'Kram a acção iTcste rápido (juadro, ipu' tem o
defeito de ser curto para o desenvolvimento da fabu-
la (; dos caracteres. O personagem de (íil Tustote, que
apenas apparece de escorço duas ou três vezes, re-
presentaiiilo o juizo grosso, mas são do povo, ganha-
ria em ser iasi;adaruenl<! <l<'senhado. (lue excellente
Ivpo sendo aproveitado ! E na Assemhlia, que a ce-
lehrada Ciiiilitla de JJido, pagina rara e ]irimorosa
da nossa poesia clássica, foi sepultada na scena XIII
enire as sonetadas e as impertinências dos verseja-
dores Jofre e Picote ! liCndo este ensaio, e apesar
dos lapsos que se lhe notam, ví^-se que o Garção, se
quiiesse, eia de todos os Árcades o único dotado <le
engenho cómico, i\ ai|uelli' a (|Uem a musa teria mos-
trado um Síjrriso e entregado ii palma. Infeii/nuMite
purou no ]iriu<'ipio !
Mas aonde o <iaii;.1o se levauloii niais alto, foi nn
|Hiesia Ivriea, pari iciil.uiiienle no género horaciano.
Poucos conversaram tão de perto com o amigo de
Mecenas, e souberam como elle colher no trato in-
timo de suas obras a ilòr e o perfume. Seguindo o
seu modelo não esperem o vòo imaginoso e Ímpe-
to atrevido que em tantas occasiões approxima a al-
ma inquieta e ardente de Bocage do génio de Bv-
ron — não \ o verso de Coridon nunca sobe a essa al-
tura, nem se deslumbra n"ella para cair. Cultor das
musas castas, teria horror de si e da arte se Ihedes-
cabellasse em fervidas imprecações a compostura di-
vina, ou desvairasse em gritos de desesperação o seu
canto suave e puro. Tudo o que saiu d'aquelle pin-
cel respira o gosto correcto e o tacto delicado de um
talento, que tinha poder em si, que sabia conter-se,
e não se esquecia nunca de se alumiar da critica.
Naturalisando com primor a arte latina, evestindo-a
das gallas de um estylo digno delia, na interpreta-
ção imitativa do bello antigo não foi igualado, nem
será excedido por ninguém.
Não arde nos raptos pindaricos de Elpino ., não fer-
ve em enthusiasmo como Elmano ; é sóbrio em erear,
e lento em fundir na forma as imagens e as idéas ;
mas em compensação que delicadeza de traço, que
ingenuidade vernácula na plirase, que admirav el per-
feição em todas as partes ! ftue somma de bellezas,
e que pequena sombra de defeitos, ás vezes parecen-
do esquecidos de propósito para realce ! Quando mes-
mo o seu engenho não houvesse dado se não o Cân-
tico de IKdo, bastava esta coroa para não morrer.
Esforce-se a critica, apure-se a lima, e n'este com-
posto de graças e perfeições da musa clássica, não en-
contrará um lapso de estylo, de idéa, ou de sentido;
não descubrirá uma queda só na sublimidade, quedo
principio ao íim não cessa de a inspirar. Como a
scena abre magestosa n'estes versos :
Já no roxo Oriente, branqueando
As prenhes vellas da Troiana frota
Entre as vagas azues do mar dourado
Sobre as azas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido
Pelos paços reaes vaga ululando,
Cos turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneas.
Como cada palavra pinta, e cada verso dii o sen-
timento natural, ou descreve otpiadro próprio! Ve-
ja-sc depois como a dõr que delira, e o amor que
mata, <'stá traduzido em rasgos de mua forca e de
um acabado dignos do Livro I\ da Eneida :
i
Frenética delira ;
{'allido o rosto lindo,
A mailí ixa siditil desentrançnda ,
Já com tremulo pé entra sem tiiK'
No ditoso aposento.
Onde do infido amante
Ouviu enterncciíla
Magoados suspiros, brandas quei.\as.
Com a convulsa mão sul)ilo arranc.i
A lamina fidgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetranti',
.\rroja o tenro, clirvstaliiio peito .
E em borliotòe.s de espmna niuruuir.indo
O (pu"nte sangue du ferida salla
!)<• ri^xas espadanas rociadas
'ricniem ila sala as iloricas column»».
Três veies lenta erguer-se.
Três vezes desmaiada sobre o leito
O lorpo revolvendo, ao céu levanta
O macerados olhos.
356
O PAIVORAMA.
Seria preciso transcrever tudo para não omittir
nenhuma das bellezas que n'esta obra, uma das
mais acabadas que saíram da mão do homem, (se-
gundo nota um grande escriptor contemporâneo; es-
tão espargidas com rara profusão. Podem observar
que o assumpto estava em \'irçilio, e que d'elle
eram os rasgos capitães : de certo ^ mas em entender
e sentir assim a antiguidade quem imitou ou ven-
ceu o Garção entre ni^^, e talvez no estranzeiro ?
GLuando Goethe lucta com a Melpomene de Sopho-
cles e Euripides, mareou-se-lhe a coroa poética, por-
que vae pedir á tragedia grega a cór e fúrma do
Ijello clássico ?
O Garção detestava a rima, e parece-nos pouco fe-
liz no seu uso. Os sonetos peccara por ella ; encer-
rando alguns apesar d*isso pinturas finas, e quadros
de interior incomparáveis pela graça famUiar, e f)ela
discreta jovialidade. Nas queixas ao padre Delfim
riem-se a miúdo os penates domésticos com uma in-
genuidade, que, attrahindo sempre, elogia o coração
e a sensibilidade do poeta. Mas as odes horacianas
é que hão de ser o seu monumento na posteridade.
O amor não vem n'ellas molhar as cordas da Ivra
das lagrimas tão doces e amargas ao mesno tempo
de Desdemona, de Hydé, e de Julietta ; mas a ami-
sade aíFectuosa e a gratidão sem baixesa, fal-as-hão
resoar com brio pouco sabido antes d^elle. A sua mu-
sa, abrindo as cândidas azas e coròando-se do vapor
luminoso de uma inspiração christã, não subirá ás
regiões da contemplação, suspirando pelo ideal do
bello aos pés de Deus como Lamartine ; mas os de-
dos irementes do vate acharam o segredo d'essas no-
tas raras, que foram o seu canto á ^irtude. e o seu
gemido de saudade ás tradições da pátria. O desalen-
to, e a imprecação desgrenhadas e ululando, não al-
çaram ao céu em verso audaz o grito impio da al-
ma, que não cabe em si, e se gasta com o fogo dos
desejos á similhança de Byron i mas a suave ternura
da esperança, e a serena confiança do espirito dirão
em metros admiráveis, que o justo não se curva ao
açoute da ruína, mas vaÚdo e firme ergue o rosto, e
ferido ainda desafia o infortúnio !
Se a poesia não é uma vaga melodia ; se a aspira-
ção e a ídéa são o espirito immortaJ, que a levanta
superior aos séculos, e aos impérios, com os pés cal-
cando as urnas do passado, com a fronte tocando as
estrellas do empjTeo, a lyra do Garção vi virá nos
tempos, porque ninguém, igual a elle, soube nunca
unir a pureza da arte á elevação do sentimento, nem
traduzir em carmes mais viris o destino sublime do
homem, que a fortuna não espanta, e s«j á mão de
Deus se dobra I Não é só enlevo e agrado o que
attrahe nos cânticos, que legou ; é a interpretação
moral da vida, e a revelação do segredo das grandes
almas, cuja passagem na terra assignala não a
gloria estrepitosa das conquistas, mas a victoria pa-
cifica da resign.ição e da constância. E estes heriícs
eram os Régulos antigos, e são os martjTes catholi-
cos!
Q.ucm ir-r a Ode ^' á Virtude, e a comparar á de
Horácio — -Jusium tt tcrtacem proposili vinim — a
quem dará a palma, ao latino, que esfria do pri-
meiro impoto, ou ao cantor moderno, que de estro-
phe cm estrophe cada vez se arremessa a maior al-
tura ? As bcUezas do segundo parecem-nos superio-
res a correcta, porém menos concisa c mais débil as-
piração do pfiefa romano : aonde o Garção o recor-
da, as duas línguas luctam como irmãs, e nenhuma
vence ; .londe a ídéa do lyrico jxirtuçucr so separa c
TÔa so, a que distancias não deixa o ieu modelo ?
Ouçamo-loi, e ajuiic-íe :
O constante varão, que justo e firme
Da difficil virtude segue os passos.
O pesado semblante do tjTanco
Não teme, não estranha.
E uma reminiscência clássica: mas com ',ue va-
lentia de estylo e de phrase expressa ! Como sentia
o génio antigo, e o revelava I Na Ode romana toda
a vantagem da opulenta versificação latina, e toda
a elevação do pensamento poético, bastam apenas
para se manter a igualdade. E veja-se ; a Incta é
com Horácio.
Justum et tenacem propositi rímm,
Non civium ardor prava jubentium
Non vultus ínstantis tvTanni
]Mente quatit solida : neque Auster,
Dux inquieti turbidus Adria
Nec fulminantís magna Jo^is manus.
Si fractus illabatur orbb,
ImpaWdum ferient ruinae.
Agora escute-«e o Garção, e diga-se que elle não
era digno de se medir com o primeiro Ivrico do sé-
culo de Angusto !
V eja ferver o chumbo, erguer as cnues :
Ouça afiar na pedra o curvo alphange ;
Soffra no potro aspérrima tortura i
Não perde a cór do rosto.
Com pavoroso estrondo se desatem
Em vermelhos coriscos as estrellas ;
Brote volcões a terra ; da ruína
Impando não foge.
Até aqui o certame. D'esta estrophe em diante
os deus separam-se ; e quem conhece e meditou a
famosa Ode de Horácio sabe, que desmaia em di-
gressões, e abate da grandeza quasi épica do primeiro
rapto. O Garção não. A musa sorri-lhe até ao fim ;
o seu enthusiasmo ferve de cada vez com mais ar-
dor ; e subindo sempre, expira só o canto, quando o
sentido moral, e a grande ima<;em poética estão per-
feitas ; quando disse tudo como não toma a diicr
outro !
Assim Mário subiu ao Capitólio
Entre Ajuias e Lictores conduzido,
Com aspecto sereno ; ainda que atada>
As ròx.TS mãos em ferros.
Na presença de César e Conscríptos
Fui, disse, fui fiel a Galha, e a Roma ,
Confesso o meu delicio, se delicio
A TÍrtude se chama.
.\s legiões romanas testemunhas
Poderão ser ; vós. Cônsules. Tribunos.
.\ verdade dizei. Dizei se Mário
Foi amizo de Galba .'
Eu vi o triste velho descorado
A garganta offerecer ao duro golpe ;
E indo da pátria o nome repetindo
A grande alma fugir-lhe.
Oh César I Aqui tens de Mário Celso
O crime e a confissão : Romanos, Mari'*
Foi a Gallu fiel ! Vamos, aonde
Está o cadafalso.
Acabou de fallar : Cônsules, Padres
.\ttonitos ficaram ; porém César,
Dl- tão rara constância namorado.
Nos braçiís o rccel)e.
o PANORAMA.
357
E foi este o homem, que em quanto as graças cho-
viam sobre obscuros legulejos, e douravam a fátua
estulticia de lisonjeiros aguerridos no impudor, um
aviso despótico e camerario arrancou ás musas e aos
braços amantes da esposa a dos filhos, sepultando-o
sem culpa conhecida em um cárcere, de que só a
morto devia abrir-lhe as portas ! Até essa mesquinha
mercê da redacção da Gazeia não tardou que lh'a
tirassem, vingando-se do moralista austero, e do poe-
ta isento, que não arrastava carmes servis pelas
festas dos poderosos ! Como elle os conhecia, quando
exclama na Ode IV :
O Lisonjeiro
Elstudando o segredo
J)e agradecer despresos, não se afiaste
Da sala do ministro.
Ali dourando o sol os altos montes
Na madrugada veja ;
Ali o deixe a lua, que vermelha
No horisonte mettida
Estende os frouxos raios pelas ondas \
Se com publica fraude
Ao miserável orphão a capella
Sonegar-lhe pertende.
Aspire á becca o julgador iniquo,
Gl,"aos olhos da justiça
Roubou a santa venda, que equilibra
Nas vendidas balanças
Os dourados delictos '.
As poesias do Garção, que se conhecem, foram im-
pressas e formam dous tomos. Consta-nos que houve
quem possuísse outro volume inédito, que talvei a
esta hora esteja perdido. Uma edição expurgada
dos erros que desfeiam as que existem, e augmenta-
da com o precioso pecúlio das obras ainda não pu-
blicadas, seria um serviço relevante ás letras, e um
documento valioso para a historia dVUas. Masquem
se occupa hoje de versos, e sobre tudo de versos do
Garção ? Eram rabugens de um velho clássico, e não
vale a pena de se lhes lançar os olhos '. Animem-se
entretanto ;, folheem essas paginas, infelizmente tão
curtas, de uma perfeição quasi irreprehcnsivel ■, e di-
gam depois se fomos parciacs, se fomos excessivos,
assegurando que era uma grande alma aquella, e
um nobre engenho ! Julgae com as suas bellezas dian-
te da vista, e estamos certos que sereis do nosso voto.
L. A. Rebei.lo da Silv».
FK. nSICUEI. CONTREIRAS.
Kh. Miguel f!onlrc-iras nasceu em Valência de Hes-
paiiha, i)U cMi Segóvia, como quereni outros, a 2'J
de sclcímbro ilr H'M . Passados os primeiros annos,
iromeçou de cursar os estudos, nivelando <h'sde logo
singular talento, e unia ilrcidiíla inclinação para a
solidão e o rc<olliinieiito, inclinação, ou antes aspi-
ração ar<lenti.ssima, ((uc Ião funilo se lhe enraizou
n^ahna, que, api^sar de dcsccndcT da nobre casa ilos
('ontreiras, de <|ue foi progenitor o famoso conde
Kernani (ionçidves, díuide procedem niuilos nionar-
crhas de llespanha, e [xirvenlura <'onlra a vontade ih'
seus pães, i|ue sinn duviíla iulgariani que elle abra-
çasse imiR carreira brilhante i> condigna da sua illus-
Irc prosaiiia, jinfiiin, depois ile contluidos aquellcs
estudos, a obscura vida numastica, entrando na or-
dem lia Saiitissiina Triíid.nle, onde professou.
Já sacerdote e adiantado em annos, pediu licen-
ça ])ara vir residir no convento da sua ordem eru
Lisboa, e obleiíilo-a passou a IVirtugal cm HSl
() motivo que l"'r. Miguel Contreiras tivera para
abaiidimar a sua pátria é mui dillicil de averiguar,
niiii vale a )ieiia finel-o : o que e certo e qiu" soube
em Portugal susienlar dignaiiieiite a reputação que
hl tora liavia grangeado, e que o povo, concorrendo
em iiiiiiliilào a escutar os seus sermões, repassado». le
veidaileira unção christã, ciimei;oii de appellidal-o
11 (l/l(ls/(l/o.
K era de feito um MTiladciro .looítolo. No l<Mi\-
358
O PANORAIVIA.
pio a sua palavra eloquente convertia os impiedosos,
roborava a fé ;ius tibios, mostrava aos justos o cami-
nho do céu \ o SI! sabia ilestribuir com mão genero-
sa o alimento do espirito, a sua caridade não era
menos fervorosa, menos sincera, e menos solicita em
promover o bem temporal de todos os desvalidos.
Conliecia Fr. Miçuel por essa capital muita viuva
sem pão, muito enfermo abandonado, muito orphão
sem amparo, muitas donzellas que a miséria expu-
nha de contínuo ás mais perigosas seducgões ; abra-
sou-o um santo zelo, e tomado da compaixão de tan-
tos infortúnios, que a sociedade descuidosa não só
não curava de evitar, mas nem sequer forcejava por
diminuir, deitou-se a pedir pelas ruas e casas para
os pobres.
Deus abençoou a sua obra ", e fez largamente fru-
ctificar os seus esforços ; não só a corte, e mormente
a virtuosa rainha a senhora D. Leonor, de quem fo-
ra nomeado confessor, e cujo nome anda vinculado
á fundação de alguns dos nossos principaes estabele-
cimentos de caridade, mas também o povo concorre-
ram a ajudar com suas esmolas o venerando sacerdo-
te, que assim pôde, pobre e humilde frade, enxugar
muita lagrima, attenuar muito infortúnio, acabar
com muita miséria.
Entretanto o seu zelo, com quanto fervoroso e ar-
dente, não podia acudir com a necessária regulari-
dade a muitos enfermos, que ou por serem estran-
geiros, ou por não terem quem os recebesse em casa,
andavam recolhidos pelos adros das egrejas e pelos
arcos do Rocio.
Incansável no serviço dos pobres, e não recuando
perante qualquer difficuldadc, pediu instantemente á
Camará de Lisboa lhe quizessedar uma casa que esta-
va junto a Santo António da Sé, onde antigamente se
faziam as audiências do eivei :, a Camará não pôde
resistir ás solicitações de Fr. Miguel, que obteve
a concessão pedida, e entendeu immcdiatamente em
mandar fazer nas referidas casas as accommodaçues
necessárias e indispensáveis ; recolhendo ali pouco
depois os enfermos, e assistindo-lhes com todos os
soccorros corporaes e espirituaes. (1)
Fi tradição corrente <|ue el-rei D. Manoel, tendo
noticia d"esta caridosa fundação, entrara um dia,
sem que fosse esperado, pela enfermaria dentro.
Como é natural os devotos que andavam curando
os doentes, e fazondo-lhes as camas, perturbaram-se
com a presença do rei, e largaranj tudo para o re-
ceber, porém este dissc-lhes : u Fazei a vossa oí»-ijn-
juo, " e continuando elles o rei, pegando em um co-
bertor pela ponta, disse : .' Eu tambcm. " (2)
(Cvittinúa.)
THOMAZ AMELLO (MASANIELLO.)
(Revolvção de N.\rOLK5 EM 1647.)
I.
A HISTORIA da repentina elevação, e da trágica c
precipitada queda do famoso pescador de Amalfi
Thomaz .\nicllo tem constantemente servido dcthc-
ma !i inspiração dramática, desde a Iwlla opera da
(1) Kxjunc critico c lii^íoriío soi»re os diroilo-» c^tabe-
icciílo» |)cla lci;i>larHO nutisiti o niotlrni.i, rcl.iti\aineulo
.no'. K.xposlos c Kii^citados. |ior António Joaijniiii ilcGou-
Ti-a l'iiito — Lisbo.i, T\|i"^ra[>hia tia A<aOt^niia ilj> Scicii-
cias.
(!) Veja-te o referido Eramr cri/iru, etr.
Muda di PoHici até í ultima peça castelhana de
um auctor contemporâneo. Pela sua origem e pro-
gresso, e pela grandeza da catastrophe, o assumpto
mereceu até hoje a predilecção dos compositores, eo
applauso do povo \ e de feito poucas scenas iguaes a
esta crearia a imaginação, tão férteis em lições mo-
raes, tão agitadas de vivo e profundo interesse '. A
verdade aqui desafia a arte, e vence-a. O drama
nasceu perfeito ^ os caracteres saíram da realidade
sem nada deverem invejar aos typos mais acabados
da invenção poética.
O vulto do concitador popular que uma rajada
tempestuosa da praça publica atira ás eminências do
poder, e uma onda não menos rápida logo enrola e
despedaça aos pés da multidão volúvel, acclamado
chefe e réu quasi ao mesmo tempo ; esse vulto cheio
de movimentos dramáticos, fadado com a predesti-
nação singular dos entes, que o dedo de Deus mar-
cou para serem os exemplos da Providencia, domi-
na tudo, atterrando o espirito, e fazendo vacillar o
animo. Masaniello é o retrato de todos os tribunos.
As suas qualidades e os seus defeitos, a sua exalta-
ção e a sua morte, resumem a dolorosa paixão do
homem e da humanidade ; e explicam em algumas
letras uma parte do tenebroso mjsterio da vida. Foi^
te e omnipotente para desencadeara tormenta, quan-
do tenta suspendel-a sente-se débil, e acha-se só ; a
lucta sofToca-o I
A noticia dos acontecimentos, que levantaram nos
braços populares do século 17." este rei ephemero,
corre na versão vulgar confusa e inexacta. Nas pa-
ginas mais serias dos livros históricos encontram-se
mais bem caracterisadas a acção e o agente \ porém
as particularidades escapam ; os costumes faltam ; e
a própria phisionomia do protagonista apparece apa-
gada por acaso ou de preposito. O homem, sim pin-
tou o leão, mas pintou-o prostrado. Os castelhanos,
que o braço do pescador de Amalfi obrigou a cede-
rem, e acceitarem por algum tempo o jugo que ti-
nham imposto, eram juizes suspeitos; e a sentença
que lavraram, na sua estudada concisão, é a primei-
ra a accusar a parcialidade do amor próprio.
Cita-se a miúdo o episodio da revolução de Ná-
poles : e entretanto apenas se conhecem d*elle ge-
ralmente os lineamentos. As meias tintas, o que o
drama tem de intimo, as causis que produziram os
eHcitos, debalde se procuram; um véu espesso co-
bre-as ; e tanto a arfe como a historia, para as suas
manifestações, carecem de abranger tudo. O quadro
comido pelo tempo como está, só deixa aperceber
esmorecidas e desbotadas algumas figuras ; e assim
mesmo não passa de uma ciípia. infiel ás vezes. Dcs-
cubrindo outro painel, que nos parece mais original,
e mais verdadeiro do (jue a narração vulgar, enten-
demos que devia ser visto com go>to, o que os ]x>c-
tas, que o assumpto tem sempre convidado, nos le-
variam abem a exfwsição de um.i pintura extensa e
bem conservada. De\omol-a a documentos filhos da
epoclia ; c a mão que os tmçvm aport.iva talvez a
mão calosa do plelieu rebelde, e os deilos macios e
deb^jados do fidalgo hespanhol. um in>tantc súbdito
do seu V assa lio '.
Huauto se vae referir é tirado das relações con-
temporâneas do successo, e traz o cunho especial de
uma narração com informação copiosa, e as veies
apurada pelo testemunho ocular. Inserimos igual-
mente no locar mais adequado os capítulos acconia-
dos entre o vice-rei, o duque dos Arcos, e o povo de
Nápoles para se pôr termo a revolução, c se firmar
a concórdia. E um tratado ncgvH-iado de igual a
icual ; c attcstado pelos nomes mab illiutres da fi-
dalguia de Nápoles e de Castella \
o PANORAMA.
359
A conquista e a posse das possessões de Itália fo-
ram sempre infiuietas e amargosas para aHespanha;
c a oppressão, que arrancou da sua coroa os Paizes
Baixos e Portugal, desmembrando a vasta monar-
chia de Carlos V, produziu em Nápoles os fructos
venenosos, que sempre tem produzido. O episodio,
que estudamos, é mais uma demonstração fecunda
do erro de se retesar de mais o arco em matéria de
governo. A corda estala, e fere a mão inexperiente
que ousou brincar impunemente com o perigo. Co-
meçaremos pelas causas que provocaram os tumultos,
e depois exporemos o seu desenvolvimento, e as va-
riadas scenas <Mn que figuram de um lado os plebeus,
e do outro os senliores humilhados. E a maneira
íimples e clara de ollerecer o quadro no melhor pon-
to de vista.
O reino de Nápoles tinha-se conservado pacifico,
obedecendo ao império da casa de Áustria desde a
entrada de Carlos V c:m 1503 :, alguma alteração
parcial no tempo de I). Pedro de Toledo (ío47) e
o caso notório do Starace (I080) foram rápidas e le-
ves excepções. Enlretanto os impostos onerosos, suc-
cessivamente lançados pela imprudência insaciável do
fisco, com varias denominações, traziam o povo des-
contente, e mais de uma vez ameaçaram coníliclos
e tumultos. í) duque de Ossuna, desviado da còrle
pelo ciúme do conde duque de (Jlivares, eacceitando
do valido no vice-reinado de Nápoles um desterro
brilhante, achou a irritação aggravada pela nova ta-
xa sobre as fructas, e usando do seu poder para sua-
visar os vexames, aboli u-a com geral applauso. Este
exemplo de humanidade e de sabia administração
«(!rviu só de incentivo aos suecessores para a restabe-
lecerem apenas elle decaiu :, e apesar dos factos re-
centes de Palermo, (aonde a crueza dos supplicios de
Horácio Strozzi, Krancisco Angalone e José Amato
dera osignal da rcbellião) edos carteis anonymosaf-
fixados nos logares públicos, contra a promulgação
de mais tributos, ()du(|ue dos Arcos, allucinado e pre-
potente, mandou outra vez arrecadar a laxa das fiu-
ctas, e decretou outra de vinte por cento sobre os
vinhos. Os<!ainor(!saugmentaram :, oodioexacerbou-
se ^ c pouco tardou que a explosão não rebentasse,
<;onvenccndo os oppressores da tcMncridade com (jue
desafiavam de sangue frio a paciência dos súbditos.
No dia 7 de julho de lt)Í7, um incidente, que
»eria insignitic.intc se a mina não estivesse carrega-
da, e a menor fiiisca não bastasse para a fazer voar,
veiu desenfriar as iras, principiando uma lucta (pie
fez arrepi'nil(r os provocadores da sua obslinatla con-
tumácia. Era domingo. O merc.ido estava ajiinha-
do, e havia ordem para se arnicadar o imposto das
fructas chegadas á praça. Os compradores negavam-
ic a pagar a laxa, exclamando contra as extorsões
dos exactores, (? sustentando ipie o valor iPella ha-
via de ser satisfeito jielo vendeilor. Durava e crescia
a contestação entre uns e outros, quando o magis-
trado do povo João Jiaptista Naderio, st: apresentou
ordenando com ameaças aos compradores (pie liívas-
sem as friiclas, e aos veiiih(bires (pie as pesassem,
entregando as ipiantias relativas ao tributo. De am-
bas as (i.irtes recusaram aeccíhr ^ e por tini os ([uiii-
teiros de fora da cidade, i!xaspei;idos, h^vaiitaram os
logariís, laiiçar.iiii os fructos ao (rhão, e (jiiiziTam
sair. l'iil bando de creaiiças acudiu em enxame a
recolher os dcspujos da liiela, e no ardor do motim,
i|ue ia siibiihlo, eonverleram os figos em projecleis,
.iliraiido-os, ciiiii inofa» e doestos, ao riislo do magis-
trado; .itraz (bis figos voaram as [)e(b'as :, e Naderio,
eonheceiído tarde a sua loucura, salvou-si? do martí-
rio, fugindo no meio das vaias e dos arremessos do
vulgacho, que o perseguiu até cheio de terror che-
gar á praia e entrar n'uin bote.
Apenas o magistrado desappareceu a indignação
publica voltou-se contra a casa da Gahdla, e incen-
diou-a com os moveis e livros que tinha. Passando a
mais, e apparecendo-lhe a estimular-lhe a cillera o
pescador de Amalli Thomaz Aniello, a multidão le-
vando na frente as creanças, e arvorando uma can-
na verde, como haste de bandeira, dirigiu-se ao pa-
lácio do governo, engrossando em cada rua, e ani-
mando-se progressivamente com o numero e com as
exhortações reciprocas. Quando chegaram diante do
paço o bando era já um exercito, e o motim uma
revolução. Romperam vivas á casa reinante e mor-
ras aos tributos. A guarda quiz dispersar as mangas
de povo, que forçavam a entrada, e em um instante
viu-se desarmada depois de curta resistência. Subi-
ram acima ; deitaram pelas janellas os moveis, que-
brando e rasgando quanto encontravam. O vice-rei
assustado, e ignorando as circumstancias da repenti-
na novidade, desceu pela escada falsa e retirou-se a
S. Francisco. No caminho a plebe, apejar do ouro
e prata que lhe atirava, faltou-lhe ao respeito, gri-
tando : — a Não queremos dinheiro, queremos o pão
barato '. "
Do palácio, Masaniello e os populares partiram a
arrombar as portas dos cárceres de Santiago, guar-
dadas por um posto de soldados hespanhoes. Depois
foram abertas as outras prisões, restituindo-se á li-
berdade duzentos e quarenta presos. Os ferrolhos,
cadeados, c livros eram queimados em auto festivo ;
os processos lançados ás chammas ; e em roda das fo-
gueiras as creanças e as mulheres dajisavam, can-
tando em triumjiho. S(j exceptuaram a ^'icáTia por
ser o cárcere real. Tudo isto tinha sido obra de um
Ímpeto; o motim tomara as proporções de uma re-
volução sem ])lano, sem cabeça vísíacI, e sem meios
de êxito combinado. O tumulto levantou-so de re-
penttí no mercado, varreu tudo diante de si, e cres-
cendo com a própria fori;a, ganhou a victoria antes
mesmo de cuidar em combater. As rebelliõcs prepa-
radas falham muitas vezes, porque si? fundam na am-
bição, e tomam o desgosto ou os rancores de alguns
Iiomens pela causa do paiz ; as grandes revoluções,
pelo contrario, l'azem-se a si mesmas; ninguém as
inspira, ninguém as dirige, e ninguém as delata,
porque a idí-a está na mente de lodos, a injuria é
commuiii, e o esforço reciproco, líni Nápoles, ao
rom|ier do dia 7 de julho, nenhum dos actores da
s('eiia do mercado ao sair de casa era capaz de pre-
ver os acontecimentos, cm que devia figurar. A me-
dida estava cheia; uma gota de fel mais; c trasbor-
dou !
A rapidez e a iíspontaneid;ide da explosão atou as
mãos aos governantes, e fpz crescer os brios da cida-
de e dos arredores. l'areceu-lh(! que era chegada a
occasião do se libertarem dos impostos e de abatera
nolireza, causa da sua oppressão. Por um syslema
tenaz e imiilacavel, os lidalgos gningeavam os tribu-
tos, exliaurindo a substancia publica, e despojando
as outras classes dos seus privilégios. Desde o tempo
de el-rei ('"nnlerico (pie ]iendia o litigio entre o po-
vo e os senhores ; veiu-se ao acci^rdo de eseollier o
monarcha para arbitro; e as decisões da con^a dtTam
a razão ao jiuvo. Os soberanos hespanhoes, fáceis em
promessas, e intieis no ciiniprimeiílo d'elias, repí^ti-
das vezes protestaram riístiliiir á cidade aa isenções
UMirpailas; mas os abusos permaneciam, e cm lognr
(lo siiipiradii alivio, lodos os dia.s reciMites vexames
s<' accmiiulavam aos ,iiiliu;os, carregando de taxas os
mercadiires, os vendilhões, e os cHlraiigeiro* ; u con-
.360
O PANORAMA.
vertendo o fisco em uma prenaa para extraírem até
ao ultimo ceitil tia substancia dos pobres, esmagados,
<;m quanto a nobreza, livre de impostos pelas suas
prerogativaB, disfructava, á custa do suor do traba-
lho alheio e da indigência, as delicias do fausto edo
luxo. A tyrannia, dosenfreando-se com a paciência
dos oppressos e a impunidade quasi certa, chegou a
perder até as ultimas apparencias do pudor. As ta-
xas lançadas serviam-lhe de machinas para novas ex-
torsões, negociando-as com publico escândalo, a pon-
to de não esquecer mesmo o odioso trafico do con-
Irabaiido no calculo dos seus lucros. O excesso subiu
ao ponto de arrematar tributos a vinte cinco por
cento, por um praso que equivalia á perpetuidade,
tirando ila sua administração mais de trinta aoannol
(Continua.)
BIBLIOGRAPHIA.
A traducqão de Lucrécio, pelo Dr. Lima Leitão.
A. LiTTERATUBA portugucza rica em poemas épicos,
riquíssima em poesia lyrica, bucólica e elegíaca, e,
cumpre confessal-o, pobríssima em traducções poéti-
cas.
Portugal é a única nação civilisada que não pos-
sue traduzidos na sua língua, já não digo todos os
poetas gregos, que não são muitos, mas nem ao me-
nos um poema de Homero.
Quanto a poesia latina, possuímos apenas uma
parte das poesias de Horácio, os primeiros livros das
Metamorphoses de Ovídio, e uma única versão com-
pleta de Virgílio pelo sr. Lima Leitão, a da Enei-
da por João Franco Barreto, e a das Georgicas e
Éclogas por Leonel da Costa.
De que provirá este phenomeno tão notável ? aca-
so da falta de gosto no publico ? da falta de aptidão
nos poetas para este género de trabalhos.' da falta de
recompensa que dVllos se espera .' Talvez que não
seja por nenhuma d"ellas só, mas por todas juntas.
Na verdade é cousa bem para descorçoar aídéade
empreliender um trabalho de annos, com a desagra-
dável certesa, de que, depois de publicado, nem se-
quer dará para a despesa da im[)ressão.
Para aggravar estes inconvenientes vem ainda a
preocírupação vulgar de que ha pouco mérito em tra-
ducções, como se a traducção poética de um poema
não demandasse quasi tanto génio como o do auctor
original ; como se em tal trabalho não houvesse a
vencer obstáculos e difticuldades, que demamlam
grande força de talento ; como se um bom interpre-
te de Homero, e de Virgílio não fosse mais bene-
mérito da litteratura pátria do que muitos auctores
de poemas originaes.
Por isso em nosso entender grande louvor merece
o Dr. António José de Lima Leitão, que tão utilmen-
te emprega o tempo, que lhe fica livre dosestudosda
sua profissão, edo magistério, que dignamente exer-
ce, em traducções poéticas de poemas anti;os c mo-
dernos, ])rocurando assim preencher a grande lacu-
na, que existe na nossa litteratura, tão inferior n"es-
ta i)arte a dos italianos e francezes, que |>ossuem
muitas traducções em \erso de todos os poetas gre-
gos e latinos, e de todos os modernos auctores de li-
vros de gr.inde reputação.
Devemos ao sr. Dr. Lima lieitão a versão com-
l)ieta lie ^'írgilio, a do Paraíso l'erdido de Milton.
a da Arte Poética de Horácio, e de algumas trage-
dias de Racine.
EsLas versões são na verdade de merecimento
superior, e de grande trabalho, porém de mais traba-
lho, e de muito maior importância é sem duvida a
que emprehendeu ultimamente, e de que já publi-
cou um volume.
(iueremos fallar da traducção em verso do poema
da Natureza das Cousas de Tito Lucrécio Caro, um
dos mais insignes poetas, que produziu a antiga Roma.
Pela bellesa da poesia, pelo vigor da expressão, e pe-
la natureza das matérias, de que se trata n^aquelle
poema, é este talvez o mais difficultoso de traduzir
em verso, de todos os que nos legou a antiguidade,
e apesar d'isso elle apparece reproduzido em portu-
guez cora uma louçania de estylo, facilidade e for-
ça de metro superior a tudo, que pode imaginar-se •,
parece a cada passo que estamos lendo uma compo-
sição original, tão pouco é o constrangimento, que te
vislumbra na sua brilhante execução.
Interessados, como na verdade somos, na gloria da
poesia pátria, não podemos deixar de manifestar aqui
a nossa approvação a tão útil trabalho, e de exhor-
tar o digno traductor a não abrir mão de tamanha
empresa ; e a emprehender outras de igual importân-
cia, como o Astronómico de Manilio, a Thebaida
de Stacio, os Amores das Plantas, e o Templo da
Natureza do Dr. Erasmo e Darvvin e a Sphocsa de
Bucbanan.
J. M. D.\ Costa e Silva.
Grude de arroz, ou cimento do Japão. — Dissol-
ve-se em agua fria a farinha do arroz, e coie-se afo-
go brando até se tornar consistente. Esta colla ou
grude é muito branca e seccando fica quasi transpa-
rente •, a sua força é tal que os papeis grudados com
ella rasgara-se as mais das vezes, ainda que com cui-
dado se queiram separar :, assim é com preferencia
empregada para todos os objectos de cartonagem que
exigem aceio e solidei, taes como caixinhas, casas,
templos, c outros objectos ílc toucador.
Este grude é muito superior ao da farinha de tri-
go, ou pós de goniina, e convém especialmente para
as obras dos encadernadores de livros, para lijar có-
pias de manuscriptos, ou os próprios manuscriptos, e
gravuras C|ue se pretendem conservar em livros.
Empregando menor quantidade de agua na pre-
peração d'esla colla, pode dar-se-lhe bastante con-
sistência para modelar estatuas, bustos, bai.^ios rele-
vos, e outros siinilhantes objectos, que. seccando. to-
mam um bello polido e são susceptíveis de se con-
servarem por muito tempo mediante algumas pre-
cauções, taes como livrar da humidade os objectos
formados com esta massa. etc.
No Japão fazem d"ella enfeites que imitira tão
perfeitamente a madrepérola, que che;am a equivo-
car os compradores.
— Mais gravemente enferma o que logra melhor
disposição, que o que nunca deixou deter achaques.
E a razão é porque a enfermidade, que pôde vencer
disposição tão lH>a. teve muito de p.xlerosa ; ignorân-
cia (|ue não alumia o diíOur>o mais disperto. firoti
a> esperanças ao remeiiio.
Padre A. ^'IKlXA.
j — .\ caridade é uma divida eterna c sem limites.
— .\ paixão fai com que muitas veies condenine-
I mos em uns o que approvamos em outros.
j — .\. verdade e>candalisn ortlinariamcnte aqucUe*
que não esclarece nem converte.
I UtCSNEL.
46
o PANORAMA.
361
PRAÇA-MAIOR DE LIMA, P£RU.
O Per6, cortado do iiorlo ao sul, por dous ramaes
parallelos da cordillicira dos Andes, modo i-m coni-
primento do Kiiu.idor nu fhili crrca do 'M'ó lrt;iias,
p cm iari^ura t-tún: Ho o 15 loiçiias, da corddlicira
ao mar. Todo o Icrrilorio liaidiado pelo Oihniiio l'a-
«íilioo i: cm gorai agroslc, inuiillo o despovoado, |ior
<'oiis(Mpi('iicia. Os [)riiici|)a('s jiorlos na cosia são os
<)(! Lariil>a^(M|iii', ('alláo (porto de Jjiiiia) Tslay, Ari-
i,a, l'ayla, lluancliaco <^ S. .(osé. A parl(-' mais rica
naluralinrnte, c a menos coidiecnda (■ a vertente da
•'ordillieira (jue descí' para as famosas campinas, lizi-
rias, do Maranhão ou rio das Amazonas, e seus ai-
llnenlcs. l'or este lailo couliua o l'ení com o impé-
rio do lirasil. ("Inando os peruvianos, voilando Ioda
a sua energia e inl(;iiii;-eueia, até hoje gastas em dcs-
f;raea(his hielas idvis, derem a atlen<;ã<) necessária e
(h'vi(hi a este (grande o. nuii^estoso rio, o ])rocurarnni
lornal-o navcfçavei em toda a sua extensão, empresa
<]ue aliás não apresenta ilifliculdadc^s (pie possam eon-
siderar-se insuperáveis, não só o mesmo riosetorna-
ríí um dos principaes meios de comnuinica(;ãod'a(|uel-
le piiiz com os europeus, mas tandiem se consej^uirá
povoar de penle valida e laboriosa, re[;iòes de uma
lerlilidade e ri(|ueza iiieriveis, até ai;ora ipiasi iu-
li'irameu(e ileha|iniveila(las.
Ao sudoesle o l'erú é separado da Ituliiia pelo rio
l)i'saf;iiadero e o hu;!» t\i' 'l"ilieaca. IN as suas vaslas
••ampinns iucullas paslorAa o indio iiçnorante e ch's-
ciiidoNo MunierosoH relianhos di^ la|uas (^ alpnens, ani-
Voi. I. — J." Siiiiii...
mães utilissimos, que talvez conviesse naturalisar em
Poriuçal, j)orque produzem uma lã finíssima, muito
superior a todos os respeitos a lã de carneiro, i;'eral-
menle cnijireíçada nas fabricas de lanificios. Os tcr-
ri'nos cultivados jiroduzem alu;odão, lrij;o, milho, ba-
tatas e vinho. A populai;ão pi;ruviana eleva-sc a
1 ..'{7;J:7o() habitantes, segundo o Gu!<i tle Fiiruslfnts
il(t Rcpiildicd J'irniniti, dosr. Ciiiriisvn. v :\ 1 .'tOO.OOO
segundo o AiiiiiKirio tios Dnis Aliiiidns.
Ksla po])ulacão, insignilicmlissima em relação u
imuu'nsa arca do território, cumi)õe-se d(! brancos,
descendentes dos con(piistadorcs hespanhoes, de ín-
dios e de negros, e é ri-partida por 11 departamen-
tos, divididos em (ij províncias, e estas subdivididas
em dislrictos e ])arocliias. Os deparlanieutos distin-
guen\-se pelas seguiuli-s denominações: Amatonas,
liíbertad. Anchas, Junin, Lima, Iluaucavelica, Ayii-
cuciío, Cuzeo, l'unlio, Arccpiipa, 'Mo(|uegua. Cada
deparlanuMilo é governado por >im prefeito, que n<v
cumula as func<;oes civis, administrativas e milita-
res.
AtilliiiKi constituição politica do 1'erú foiapprova-
da e |)ulilica(la em lluancavo, a 10 de novembro ile
1H:H». Ksla eonstilui(;ão eslabi^lece, os tves poderes,
c.i<< ii/íeo, IiijÍhIíiUvo e /i((/iV(((/, c garante a s\ia in-
dependência n'laliva. O poder i'\cculivo é exercido
por um presidenie el<'ito, pelo suIVragio universal,
p(U' lempo de seis aunoi, qm- nouu'ia os seus delegu-
ilos ui»s qu.ilro ministérios si'guiuli"S : — iii/c i-ioc, iiis-
NovKMUiio 1j, 18j'J.
362
O PANORAMA.
írucção publica e beneficência^ exterior, justiça e ne-
t/ucios ecclesiaslicos; guerra e marinha; fazenda. O
puder legislativo é confiado a um congresso formado
de duas camarás — deputados e senadores — cujos
membros siio eleitos igualmente pelo sufíragio uni-
versal. O poder judicial é exercido por um tribunal
supremo, estabelecido era Lima, por triljunaes supe-
riores, ou do tippcllariío, existentes em cada uma das
capitães de departamentos, por juizes de primeira
instancia, e por juizes de paz nosdistrictos. Ha tam-
bém tribunaes especiaes de commercio, de minas, de
aguas, de prezas, e dos dizimos.
A religião do estado é a catholica apostólica ro-
mana, e a ordem ecclesiastiea no 1'erú comprehendc
um arcebispo, o de Lima, cinco bispos, os de Tru-
jillo, Chachapoyas, Ajacucho, Cuzco e Arequipa, o
clero secular para o serviço das parochias, e o clero
regular, que ainda é bastante numeroso. Todos os
proventos ecclesiasticos toem origem nos dizimos.
A força militar compõe-se do exercito activo, ou
de linha, e da guarda nacional. O exercito de linha
é formado de nm estado-maior de 29 generaes, e de
ti batalhões de infantaria, 3 regimentos de cavalla-
ria, e uma brigada de artilheria. O modo por que
este exercito tem sido recrutado, a pouca instruc-
ção da sua officialidade, e a insaciável cubica de
muitos dos seus generaes, constituem-no, em vez de
um elemento de paz e segurança publica, o principal
movei de quantas revoluções tem dilacerado aquelle
paiz.
O actual presidente é o general D. José Rufino
Echenique, homem estranho a todas as luctas civis ;
diz-se ser dotado de superior intelligencia, e outros
dotes que o tornam digno da tão elevada magistra-
tura que 03 seus concidadãos, quasi unanimemente,
o chamaram a exercer.
A capital da republica é Lima. Esta bonita cida-
de está edificada na margem direita do rio Riniac,
e a nove milhas da sua foz ; na outra margem vê-se
o arrabalde de S. Lazaro, que se communica com a
cidade por meio de uma bem construída ponte de
cinco arcos. A cidade tem duas milhas de compri-
mento, c apenas uma e um quarto desde a ponte até
as muralhas ^ estas, que medem doze pés de altura,
e dez ile espessura na l)ase, são construídas de uma
espécie de aJòhís; no seu recinto abrem-sc sete por-
tas, e comprehendem-se três baluartes, terminando
na extremidade sudoeste pela pequena cidadella de
Santa Calharina.
A antiga cidade dos reis, fundada, em loSl, por
Pizarro, em dia de Epiphania, foi outr'ora o prin-
cipal empório da America no Oceano l'acifico, gra-
ças ao seu porlo do ("alláo, construído em i779 de
uma maneira singular. Mandou-se encalhar um vc-
llio navio de grandes dimensões, que foi clieiode pe-
dras, de arèa etc. ; depois cravaram-sc-lhe em torno
estacas de mangueira, que não apodrece na agua.
mandadas de Guayaquil, e assim se conseguiu for-
mar uma segura e excellcnte base sobre a (|ual se
levantou o respectivo molhe.
O clima, mais temperado e agradável que o de
Carthagena e da Bahia, na costa fronteira da Ame-
rica, a formosura das paizagens, e o trato urbano e
ca\alheiroso dos habitantes, constituem Lima uma
das mais aprasiveis cidades do Novi>-5Iundo.
.\ nossa primeira estampa representa a Praça-
]\ltiii>i-. E^tá situada a mais de quatrocentos jh-s do
nivol do mar, e n'ella vem deseudiocar alguu)as das
principaes ruas da cidade. \ l'ra<:a-Maior serve ao
mesmo tempo de passeio, de bazar, de mercado ede
ieira. i\o pavimento inferior do palácio dos antigos
vice-rcis. que se vê em frciíte, estão estabelecidas lojas
de diversas mercadorias, e ao nivel do andar nobre
corre uma bella galeria ou varanda, onde o povo pode
passeiar nos dias de regosijo publico ; a este da pra-
ça levanta-se a airosa cathedral, e no centro admira-
se a bellissima fonte, constnuda em 16o3 por dili-
gencia do vicc-rei conde de Salvateria.
A nossa segunda estampa (pag. 36o) representa
um pastor indio vestido com o célebre puncAo, espé-
cie de manta de cores brilhantes, que se usa como
pôde vêr-se da referida estampa ; dá uma idéa apro-
ximada dos cobi-ejões ou mantas castelhanas, muito
estimados entre nós.
INSTRUCÇÃO PUBLICA.
IiLf STBAçXo DO Exercito.
Convidados a escrever algumas linhas n'este albunt
popular, cujos fastos estão tão inteiramente ligados
a nossa historia litteraria contemporânea, com quan-
to hesitássemos de principio, obedecemos por duas
razoes. A primeira, e por certo a mais attendivel, o
objecto sobre que tiidiamos de escrever ; pois hav«-
mos por verdadeiro que a boa semente ha de sempre
produzir bom fructo, ainda que também não desco-
nhecemos que a proporção do frucfilicar está na ra-
zão do cultivo ; apezar d'isso, não nos fez, nem fará
jamais recuar, o aventar uma boa idéa, só porque
poderia ser mais bem tratada por outrem ; o óptimo
é inimigo do bom •, e já no seu tempo lamentava
Séneca estes intermináveis adiamentos em que se es-
coa a vida.
A segunda razão parecerá sem duvida do género
d'estes clássicos preâmbulos, em que o auctor se vol-
tava para o seu publico, implorando a indulgência
do leitor benévolo, e a absolvição de todas as incor-
recções, que já de antemão e artisticamente exage-
rava.
Todavia, fallando desapaixonadamente, a duas se
se reduzem as espécies de relações que ha entre jor-
naes e collaboradorcs : — quando aquelles se ornam com
nomes conhecidos e apreciados pelo publico, e n"el-
les estabelecem sua principal recommendação ; — ou
quando apresentam artigos firmados por nomes, cuja
principal recommendação é a boa companhia em que
se encontram. Sem duvida alguma, estávamos no ul-
timo caso, e seria ini[)erdoavelraente descortei o re-
jeitar convite para terreiro em que se ia apparecer
tão bem acompanhado.
E do exercito que vamos fallar ; e ao soldado, e
do soldado que \amos dizer algumas poucas palavras
com a mão na consiiencia, e com a consciência tam-
l)em de que não haveremos por perdido o nosso tem-
po, nem cUe o siui. Não e ao soldado a quem uni
dos maiores guerreiros e e^criptorcs d"esta idade, e
a maior de todas as mulheres, marcaram com o fer-
rete epigrammalico do sarcasmo, que traduzia a amar-
ga opinião, que aind.i um dia por\cntura se ha Je
dissipar de todo da face da terra.
Com elTeito o soldado c\>mo ni<7rAí«<- à ftail. ou
como dt la chire à raiion, ja moralmente não pt-de
existir hoje. Frederico o grande e Madame de Stael
quando \iam o militar a uma lui tão pallida e so-
turna, não encaravam a questão com as propriaN
idéas ; Ir.iduziain, fazendo tspirito, uma triste con-
dição que não |Hxtia durar ja muito. Ambas aquel-
las intelligencia* superiores não puderam de certo
o PANORAMA.
363
vér, sem se condoerem, o mocinho imberbe que dei-
xa pae «• mãe por tarimba e rigores de estranhos;
raais tarde, o instrumento cego de machinajões, que
o mais das vezes nem chega por longe a conhecer ;
ora, symbolo venerando de abnegajão absohita, mu-
tilado, nadando no próprio sangue, que vae mistu-
rar-se com o do camarada a quem já tributava aflectos
de irmão ; ora arrojado á valia, erma de lagrimas e
orações, e cifrado n'um algarismo commum que ex-
plica a sorte de uma campanha ganha com a morte
de mil victimas obscuras, a quem sumiu o mesmo
ferro que Ibj plantar uma arvore também perece-
doura muitas vezes, e não quantas criminosa !
O soldado pasio de canhões, o soldado machinadc
malar, é já agora impossível ; é anachronico no se-
«■ulo dos caminhos de forro; na epocha em que se
apertam de dia para dia as relações entre todos os
povos; n'este viver das nações d'hoje, onde a diplo-
macia e não a estratégia decidem dos seus destinos ;
n^este mundo que já não promette nem tolera con-
quistas; n'esta véspera do grande dia da civilisação,
em que a inlelligencia tem de dominar (ísplendida,
em que o pensamento ha de ser coniniungado por
todos, quasi no próprio instante em que brilhar n'um
canliiilio (la terra ; em que as idéas hão de tornar-
se propriedade commum, ora tão breve como o va-
j>or que as escreve e arrebata para distancias incrí-
veis, ora tão momentaneamente como a electricida-
de que as atira para outro hemispherio.
E o soldado será porventura o desherdado n'este
farto banquete do entendimento ! Ha de ser por ac-
caso o fdho pródigo, a chorar com íome e sede in-
tellectual entre as asperezas do mister para que o ar-
rancaram ?
O soldado, que foi legado ás sociedades modernas
pelas convenções, ou antes desconvenções d'outr''ora,
não ha de participar do mesmo pão do (espirito que
com todos, pequeninos e grandes, se reparte ? não
tem de gosar da nuísina luz e calor <jue para todos
arde e resplandece .'
Deve-s<!-lhe dar muito d''cste calor, que longo ha
sido para ollo o inverno; as geadas tem-lhc bran-
<|ueado as cai)eças iia muitos sccuios estéreis, não por
natureza, mas por mingua de um eslio. Deve ale-
grar-so com a mesma luz (jue brilhar para lodos,
ponjue, entre os gclus de tantos ânuos de peregrina-
ção, havia muitas Irévas. O soldado vem de muito
longe; tem visto muito, mas C!ntre o barafustar de
aríetes em goljihãos de pó, c através <lc)s nevoeiros
da pólvora ; tem ouvido muita cousa, mas tudo con-
fundido no troar de artilhcrias e arcaliuzes. Carece
de luz mais suave e creadora em que lhe repousem
os olhos deshimbrados pelos clarões i|ue vomita o
bronze ; ])recisa di! calor mais l)rando e restaurador,
<|ue lhe rcífoeille os mendiros exhaustos ]>elas fadigas
das marchas, abrazados nus lides e fraguas da guerra.
A historia, essii arca onde se vão guardando al-
faias d'avós, e aonde lillios e netos revolvtun á von-
tade, lá res(írva os exércitos com todos os seus attri-
bulos de violência e força. K (longe, e bem longe!)
ainda ha de vir um dia em (pie eruditos e anli(|ua-
rios, ao |)rociirarem n'essa espii(;osa arca (h' desaven-
ças jiassaíhis docunuMitos de antigas auiunallas, hão
d(! admirar o soldado como objecto de ( iiriosi>lad(,'.
Jlão de ])erguiilar eulrc si, jiara (|iu' serviam ex(M-
«ritofl, (.'(inu) nós hoje perguntamos para ipie se levan-
taram )>yraHiides, ou levamos á coiil;! ilc riliiihi as
lendas (l.i ('avaliaria and.inle.
Jíjspirilos allanienle hiimauitavios tem concebido
a formosa iilo|iia da aboli(;ào dos exércitos em nos-
sos diiiH. Cremos Ião lirmemeiíli' em (|lic o congres-
»() (hl paz tem de S(T um dia lodo o género humano,
como cm que por largo tempo continuarão a morrer
sem triumpho quantc» esforços fizer n"esse sentido.
Mão muda assim uma organisação inveterada, posto
que antiphilosophica. Hoje, é utopia innocente, e
com que todos svmpathisam ; mas utopia que não
bastam para realisal-a os sinceros desejos dos que lhe
dão cultos. Resume em si a maior de todas as revo-
luções sociaes, a revolução da paz ; e essa não ama-
durece sem longa transição, e sem incalculável con-
curso de elementos civilisadores que, directa ou in-
directamente, a fomentem.
iMas o que não é utopia, e se já alguma vez o foi,
hoje é recebido como idéa corrente em toda a par-
te, (Í a máxima illustração dos exércitos. Florecem
as escolas polytechnicas, multiplicam-se as escolas espe-
ciaes, mautem-se collegios militares por essa Europa,
temol-as, e possuímos estaVjelecimentos d'estes em
Portugal ; porém o que desejaríamos cá, como lá o
são, e melhores ainda, é as humildes, mas importan-
tíssimas escolas regimentaes.
As escolas superiores, os institutos militares não
são para o soldado plebeu, para o soldado-povo. Per-
doe-se-nos a novidade do termo, mas ninguém pode
conceder que soldado e povo não seja uma e a mes-
ma cousa. A dilferença não constitue género diverso.
Soldado e povo, são duas entidades, que a infância
e adolescência reuniram, e que a velhice e a idade
madura hão de igualar. Um, adquire e augmenta a
proprí(;dade ; outro, guarda-a e mantem-lhe o respei-
to dos estrangeiros. E só quando o universo formar
uma única família, só quando não houver, por as-
.sim dizer, estrangeiros, quando as relações entre to-
dos os povos forem de conterrâneos e irmãos, se esse
doirado sonho se verilicar, é que o soldado tem de
ser uma reminiscência e nada mais.
Porém o soldado d'estas eras, é o hom(>m dos cam-
pos, a quem deu um porte mais distincto o tirocí-
nio da recruta ; é o operário, que deixou a ferra-
menta para pegar n^uma arma, j)orque a pátria lh"o
exigiu ; é o lllho do juíseador, que largou r(*des e
Ijarco para guarnecer fortalezas; é o servo, que foi
servir a nação; é o nuxjo sem arrimo, a (|uem a far-
da otlereceu um pão honrado ; é o adolescente, qu(!
enc(!tára uma vida criminosa, obrigado pela miséria,
e a (|uem a iia(;ão educou, perdoando-lhe o primei-
ro delicto ao pedir-llie um juramento solemne, (|Ue
para logo o constituiu cidadão ])ortuguez.
J'<, altente-se bem n''isto, a estes, e a todos, espe-
ra-os nas armas uma vida com muitos ócios ; um
desterro sim, porém na mesma terra da pátria. São
alguns aunos de (juasi ab.solutas ferias de suas anti-
gas [)rolissões ; é um marco a dividir-lhes a carreira
começada, mas que d'ella os não separa, e para (jue
se lhes permitte voltar, se era honesta. Foi creado
(Milre as lidas tia industria, o soldado para ellas tor-
nara mais (íxperienl(! pelos amios, (< pelo trato txmi
os outros honu'ns com (piem conviveu em communi-
dade ; terá aprendido a obeihicer, e por eonsenuiute
n)ais apto será para se fazer respeitar ; deram-lhe va-
lor (pie não eonheci,!, e a lodo o tempo o fará valer,
se o bem da sua terra reclamar (pie IriKpie o arado
ou II martelo pela espada ou pela bayonela. Ijcvará
hábitos (rordeui, (pie lá lhe hão de aproveitar (|uaii-
di> tornar a entrar na oflicina, ou (piaiiiio lõr chefe
de lainlli.i. 1'ailroii para o serviço com (plantas ver-
duras llii> sopravii a idade dos deseoneertos, irii lli>-
meiíi leilo abraçar os vullios da sua aldiVi, beijar as
iiiàos (pie (I embalaram, reconhecer os campos onde
primeiro viu nascer o sol; irá renovar na igreja do
seu casal as praticas religiosas (pie a vida militar lhe
iiào deixou esipiecer ; e eoiilrahir, lalve/,, junto ao
mcumu allur uiid(; lhe pu/.eram u nome e o literam
364
O PANORAMA.
christão, novos laços mais indissolúveis, novo jura-
mento, para servir a pátria como Ijom cidadiio, co-
mo bom esposo, como bom pae.
E a que vem tudo isso a propósito das nossas es-
colas reçimcntaes ? — Muito.
Como tereis o soldado educado ? Pela violência ?
pelo constrangimento .' pelos exemplos de respeito
hierarchico ? pelo inexorável das ordens ? pela abso-
luta necessidade de se ellas cumprirem? Tudo isso
produz a subordinação. D'isto, e d^outros elementos
de ordem, de decisão, de disciplina, resulta o desen-
volvimento physico e moral d'onde dimanam tantas
virtudes militares; com tudo a educação do espiri-
to, que é a instrueção, e a do sentimento, que é a
subordinação e disciplina moral do coração, não se
adquire na milicia, só com o ambiente que ali res-
pira a alma.
E nas escolas regimentaes que se pode belier ; é
ali que se completa o que o quartel jamais poderia
dar.
Teríamos nós conduzido o discurso até aqui para
pedir a cri^ação d(.' escolas regimentaes, como (juem
recommendasse uma novidade que se devia introdu-
zir? Não foi esse o nosso intento. Escolas regimen-
taes liavemol-as nos corpos do exercito.
(Auizcranios demonstrar, se porventura carece de
demonstração, que tem tanto alcance as simplices
escolas primarias dos regimentos, como as que para
paizanos sustenta o estado por todo o reino.
Ainda para estas, como para todas, é inteiramen-
te applicavel a sentença immortal de lord Brougham :
íiITora cm diante^ é o meslrc-cscola, e jamais o ca-
nhão, (jue ha de ser o arbitro dos destinos do mun-
do. "
O professor é a escola, é o gérmen das mil appli-
caçõcs úteis que os seus alumnos ali forem ganhar
para si, para o estado, para a familia, para a mora-
lidade publica, para a civilisação. O professor épara
a escola, o que a alma é para o corpo ; o professore
<i metliodo; é a boa execução do systoma d'ensino
adoptado ; é a continuação das praticas de subordi-
nação e disciplina, que ainda ali se devem manter,
mas despidas de rigores ; o professor é o bom conse-
lho; é o respeito mantido não só pelo posto, porém,
mais e muilo mais, pelo amor, pela gratidão; é o
mcrecinionlo a premiar merecimentos e aptidões,
propondo e apresentando como dignos de promoção
e recompensa os discípulos mais applícados.
A escolha do mestre é portanto muito attendi-
vel.
E por certo dos quadros maisbellos o que apresenta
unia escola regimental bem dirigida. A docilidade, tão
própria da iiinocencía e da infância, vê-se ali com-
binada com a austeridade do viver marcial, com a
roliusloz e vigor dos movimentos. Os sorrisos da me-
ninice a assomarem oin lábios e rostos crestados de
trabalhos. E o complemento da educação militar.
t-iuizeranios, e comnosco todas as pessoas sensatas
que tiverem reflectido, ao menos uma vez na sua vi-
da, i\a impi>rlancia que tem eslas escolas, que osme-
thodus mais expeditos, sejam ali os preferidos, (1)
para que o aprender não aborreça a homens, o que
acontece com n>othodos pesados e ronceiros ; jxira
que essas horas que o soldado destine ao estudo,
dêem para as muitas applicaçòes úteis do lèr ; por-
que l)em claro está (pie saber lér só por si e meio c
não lim.
Huizeramos que as escolas ri'gimentacs não fossem
facultativa», mas obrigatórias; saho aos que tive»-
(1) \ ejíi~sc a nota no tini d'o:í(e arlig*».
sem mais de 30 annos, para quem seriam facultati-
vas então.
Quizeramos que, além das primarias elementares
em cada corpo, houvesse também as primarias supe-
riores, para officiaes inferiores, e para todos os alum-
nos que não carecessem de frequentar as primarias.
Quizeramos que umas e outras fossem reguladas
convenientemente, pois que mal avisado é deixar ao
arbitrio dos mestres o regular cada um a sua escola.
A uniformidade do ensino produz a das idéas ; esta.
a unidade nacional, de que é congénita a opinião pu-
blica ; e se isto é uma verdade em instrueção, não
são as escolas militares de diversa natureza para que
não deva ter para com ellas a geral interpretação.
Ninguém nos levará a mal ousarmos dizer tão
francamente o que sentimos acerca doeste ramo de
ensino publico.
Repetimos : instrua-se o soldado-povo, e uma gran-
de massa popular, e em breve a maioria da nação,
])ossuirá aqueUes conhecimentos elementares queuão
é licito ignorar.
O exercito é, e ha de ser sempre, em quanto hou-
ver exércitos, como um lago entre dous rios, alimen-
tando-se d"um, e engrossando e alimentando tam-
bém o outro.
DV'ntre cem homens, escolhei-me vinte que não
tenham ainda mUitado ?
l'rosiga-se, insista-se n^esta idéa ; e o soldado não
deve ser mais o obscuríssimo pasto de canhões (de la
chèrc á cânon) porém a gloriosa machina de civi-
lisar, o apostolo do progresso.
Nota final.
Estíi preferencia já hoje não faria hesitar pessox
alguma. Decididamente a superioridade do mcthodu
de leitura do sr. A. F. de Castilho está comprova-
da até á evidencia. Já não era recommendação para
desattender-se um nome como o do seu auclor ; po-
rém elle exigiu de si mesmo, e da invenção que of-
ferecia ao seu paiz as ultimas provas ; porque se tra-
tava d'iim objecto muito serio emuitissinio positivo.
Contraprovou-a em escolas de todas as idades, e de
ambos os sexos, e finalmente em escolas militares.
Q-ucm ignora hoje em Lisboa, e em todo o reino
o que são os ./si/Zos de Infância dcsi-alida desde que
a leitura repentina ali foi introduzida e praticada ?
tiuem não sabe o que é u escola regimental de
lanceiros da rainha, donde copiamos o nosso profes-
sor soldado do benemérito alferes Dias da Silva, c
os nossos alumnos militares, dos d*aquelle corpo?
Na guarda municipal de Lislxja lá está outro modi-
lo. e outro modelo de commandantes, bem como o
sr. coronel ^Maldonado de lanceiros, o sr. i>aruo de
Francos, que emprega tinlo o género de seduc^>es pa-
ra obrigar por nobre emulação, o que ainda não é
j obrigatório. O regimento Iti a estas horas esta c«>-
meçando trabalhos que lhe não hão de ser menos hon-
rosos que os de uma campanha.
E a guerra contra a ignorância d"aquellas ultimas
camatlas sociacs tl"onile se tirou o soldado-jKivo.
Na praça de N alença o sr. governailor Frederico
; Leão Cabreira, e na d"Elvas o sr. brisadeiro BaUly
]'ertilharam o .yjctkcdo.l\ist:lho. Em Coimbra, ajuu-
j tani-se as praças de intaiitoria 9 com os |vobres e des-
I validos, para quem liomens philantliro|>oi abriram
uma escola gratuita.
O exercito é sem duvida a maior garantia d'um
svstema d"ensino que se lun^h» no ritlimo. e na cer-
teza dos movimentos, som f.iicr authomalv>s «>mo o
do Knsino mutuo. Em compensação, c este metho-
o PANORAMA.
365
do ameno <|ue falia á imaginação, e que liberta o
espirito, solida garantia também da illustração do
exercito, tornando appetitoso o que d'antes era mo-
nótono, e dando horas de útil recreio para mestres e
discipulos. Nos quartéis d'ora avante, o clarim ou a
trombeta que annunciar a escola é o signal da reu-
nião cubi<;ada, do verdadeiro folgar, e para melhor
dizer, da libertação do espirito, e das centenas de
espiritos que ali se vão fortificar e robustecer n'aquel-
la gyniiiastica do entendimento.
Consta-nos que o nobre marechal duque de Sal-
danha (que ha dias, bem como todo o ministério,
honrou com a sua presença as provas publicas que o
sr. Castilho deu do seu methodo) tenciona mandar
<|ue na escola do lanceiros se forme uma espécie de
escola normal militar para todo o exercito.
fluem não vê n'isfo um grande passo para a nos-
civilisaçãi
Luiz Fiupi-e Leite,
Director da Escola Normal Primaria de Lisboa.
PASTOn. PERUVIANO.
(l ijd-si: (I jjrimeiru arliijo d\íU- A.", nu fim.)
ai'ontami:ntos uk m.\(íki\i.
Ima iiistuiiia nu I>i;>)\<u.
( 11 mi (imos ií fonte fria. Kra o itilio apra»udo jHira u
iiieii poeta mi- contar a liinturiu que luiilu excitara
;i iijiiiha curiosidade,
De um recôncavo em rocha viva rebenta a veia ne-
vada e chrystalina d'agua, que vae derivando por
um encanamento de pouca extensão, e caindo depois
mais rápida pelo declive da montanha até o fundo
do valle.
Repousar á sombra d'aquelle arvoredo gigante e
espesso, depois de se terem caminhado quatro léguas
a cavallo pelo sol ardente de um dia de maio, é das
cousas mais agradáveis que na ^ida se podem expe-
rimentar.
Um agiota, ou um homem politico, que são os
entes mais semsaborões e mais positivos d"este mun-
do, se se encontrassem n'aquelle logar, estou certo
que haviam de sentir um raio fugitivo de poesia il-
luminar-lhes as almas devastadas e enegrecidas pelos
cálculos repugnantes da usura, pelas abjecções e vila-
nias que por ahi se alcunham de luctas politicas.
Dos políticos, dos agiotas e de todo esse bando de
fastidiosos animaes, que estamos condemnados a sup-
portar e a vêr todos os dias, nos não lembrávamos
nós n'aquelle momento.
— "A historia, a historia do frade" — exclamei
eu assim que chegámos ao logar aprasado.
— "Espera, deixa-me descançar um instanti-, c
accender este cigarro . . . Olá, camarada, tem lu-
me ? " disse elle para um veterano que nos servia de
cicerone. — «Prompto, meu patrão, ahi vae já. >'
— Gluando nos veiu dar a isca accesa, o santo velho
levou a mão ao boné perfdando-se respeitosamente.
O meu amigo respondeu-lhe por um gesto que mos-
trava certo conliecimento das etiquetas militare;-.
Eram reminiscências do tempo da Maria da J*on/t,
durante o (|ual elle cxero^Ta honrosamente o posto
de major de voluntários.
— " Isto são pouco mais de dez horas . . . até as
quatro, temos tempo : conta-sc a historia e ftima-se"
— disse eu, arrancando com toda a anciã uma longa
fumaça de um máu cigarro do contrato., mas que
n'esse momento me estava saljendo melhor do (jue
um iegilinio havano.
— "E verdade, conta-se a historia," — respondeu
o meu amigo rccostando-se voluptuosamente soljre o
musgo que vestia as raizes carcomidas e seculares de
uni agigantado cedro.
I.
11 Na minha aldêa, no anno de 1S2 . . . havia duas
f.imilias, ambas de illustre ascendência, <■ que\i-
viam ali com o modesto rendimento de alguns pré-
dios ruraes que tinham escainulo ás extravagâncias
dl' seus maiores.
Uma das famílias era realista, a outra constitucio-
nal. A realista compunha-se de mãe e de um lilho.
O siíu chefe iierrcèra, assassinado [)elos liberaes no
meio dos tumultos civis (pie precederam a reacção de
1821!. l'ae, mãe v uma lilha conslituiam a ouirti.
Houvera ahi também um filho; mas e>se morrera en-
fuicado por se .•u-liar cúmplice ii\inia eonspiraçuo li-
beral.
•lá \ês que nenhuma tTellas podin deixar de ter
1111 fundo do coraçãci grandes ódios ao parliilo con-
trario. Diante d"iiiiia erguia-se a imagem do cadá-
ver de um pae ; diante da outra a do caihuer tie
um fiilio.'
.\iubas as famílias conheceiído-se de nome. >i>en-
do vizinhas, \rndo-,ve a lodos os iiislaiiles, vieram por
fim a contniir relações, 1'aii politica e <|Ue n."io fiil-
lavam nunca, nem podiam fallar. i). .Mlonso de M«-
iiczcs era o nome do homem a quem tinliiim en-
forcado o lilho por sir constitucional , l'aulo o do
mancebo a quem luniauí »»s«MÍn»do o pae por ser
.366
O PANORAMA.
realista. Quando Henriqueta, mulher de D. Affon-
so, via 1'aulo ao lado de sua mãe, levando-a a pas-
sear á tartle por aquelles campos, amparando-a com
o seu braço, aftagando-a com as suas pala\Tas , re-
prescnta\ ii-se-lhe a querida imagem do filho, crean-
ça ainda, vindo alegre e descuidado arremessar-se-
Ihe nos braços, cobrindo-a de beijos, enchendo-a de
caricias ; e \'ia-o depois, homem feito, subindo as
escadas do patíbulo, com a alva vestida, encaran-
do orgulhosamente as turbas, e protestando em no-
me de Deus e das idéas contra aquelles que o sa-
crificavam. O extremo arranco da agoiúa do filho,
parece que o escutava n'aquelle instante o atribu-
lado coração da mãe. Oh ! então despregava os olhos
d'aquelles dous entes, porque nos desvarios da sua
afflicção como que se lhe representava n^elles o par-
tido que levara seu filho ao cadafalso.
Era, porém, momentâneo isto, e a sua alma, rica
de abnegação e de bondade, reagia contra aquelles te-
Jiebrosos pensamentos. Tornava a cravar n"elles os
olhos, e não raro exclamava banhada em lagrimas :
— "Também a ella, coitada, lhe assassinaram o
marido :, também a cite o deixaram, tão moço, sem
pae.^' — E assim ficava até que Luiza, a sua filha
querida, lhe vinha saltar ao pescoço, e derramar,
com feiticeiras caricias, bálsamo consolador na larga
ferida que lhe traspassava o coração.
II.
■' Luiza . . . Oh, se eu te pudesse fazer o retrato de
Luiza ! Imagina uma creança de quatorze para quin-
ze annos, alta, elegante, proporcionada, flexível co-
mo a liastea tenra de arbusto novo. Pallida, mas não
de certa pallidez que re\ela uma saúde débil : pelo
contrario, o seu rosto, da alvura particular e avelu-
dada da camellia, animando-se cora amais leve sen-
sação, denunciava que um sangue puro girava por
aquellas veias.
Se a visses doidejar como uma creança travessa
por a(]uellas luxuriantes várzeas da minha aldêa, in-
nocentc, risonlia, fresca, cheia de vida ' Se a pudes-
ses contemplar ao bater das Avc-Mai-ias, resando a
poética oração nos degraus d'aquella cruz, que se ele-
va a meia encosta, junto da qual estiveste já ; se a
pudesses contemplar, com as mãos erguidas, com os
olhos azucs puríssimos fitos no céu bclla, bianca vcs-
tiia, como diz o Dante, cuidarias ter diante de ti
realísada uma das visões encantadoras <|ue Shak-
speare nos fez conhecer pelos doces nomes de Ophelia
ou do Miranda.
Paulo fora educado na ccirto ; seu pae, membro
de uma das mais illustres faniilias de Portugal, con-
sumira nos des\aries do grande mundo quasi toda a
sua imniensa fortuna.
Paulo tinha quinze annos, cpiando seu p.ie fOra
assassinado ; n"esse mesmo anuo sua mãe viera com
elle para a província, e ali viviam os dous desafoga-
damente com (IS bens «pie lhes restavauí.
(■luando o vi pela primeira vez era cu uma crean-
ça apenas ; mas ficou-me tão vivamente impressa na
imaginação a figura d'a(|uelle homem, que ainda
hoje me parece que a estou vendo diante de mim.
Os ollios eram negros e seintillantes como os de um
árabe dolledjaz ou doVcmeu, atesta larga opromi-
nente, as sobrancelhas curvas e bastas, o perfil gre-
go, a hòc.i graciosa e grave : pallido, excessi\ amcnte
pallido, com uma grande expressão do melancho-
lia derramada pelo semblante. Até hoje não tornei
a vêr outra phvsionomia tão nobre como nquella.
Nas linhas regulares do seu rosto quaesquer olhos
descubririam á primeira vista os dotes de vasta in-
telligencia, de vontade inabalável, de nobreza de
caracter em grau difficil de encontrar. Sluando
Paulo ^^u Luiza pela primeira vez, era ella uma
creança ainda. Tinha onze annos. fiuatro annos de-
correram sem que entre ambas as famílias existissem
outras relações que não fossem as de simples delica-
deza.
Uma noute que D. AíTonso de Menezes recolhia
para sua casa, foi assaltado por um bando de ho-
mens, agarrado sem que pudesse resistir-lhes, e ia a
ser assassinado no momento em que Paulo, pas-
sando a cavallo, \eíu como ura relampajo sobre eW
les, e conseguiu salval-o. D. AfTonso, que era um
nobre caracter, votara agradecimento eterno a Pau-
lo ^ comtudo ha^ia momentos em que elle quita-
ra antes ter morrido do que dever a vida ao braço
de um realista.
Desde essa noute as duas famílias principiaram a
viver nas mais estreitas relações. Luiza tinha quinze
annos então.
III.
O coração de Paulo alimentava dous poderosos
sentimentos, a amizade e o odío ; a amizade a sua
mãe, e o odío aos homens que tinham apunhalado
seu pae, embora elle, livido, banhado de sangue, no
meio dos paroxismos da morte, lhe houvesse implorado
perdão para os que o tinham cobarde e cruelmente
assassinado.
Mas Paulo não perdoara : o sentimento da vin-
gança lá lhe estava no mais fundo do peito, e elle
esperava, apparenteraente tranquillo, a hora de o
poder satisfazer, porque sabia qual era a mão que
descarregara o golpe sobre o coração d'aquelle que
lhe havia dado o ser.
De outros quaesquer sentimentos estava a sua al-
ma virgem. O amor. . . oh ! esse existia para elle
em sonhos; apparecia-lhe nas formas de creaf ura hei-
la, de olhos languidos, de sorriso angélico, de vestes
brancas, que vinha seutar-se-lhe ao pé horas e horas,
olhando para elle meigamente, dizendo-lhe palavras
íncomprehensiveis, mas arrel»atadoras. O amor, como
todos nós o sentimos aos quinze annos, sentia-o elle
já depois dos vinte cumpridos ; isto c, vago, mvste-
rioso, phantastico, como tudo quanto sonha a nossa
imaginação.
O ente que realisasse n'este mundo os seus sonhos,
cora que energia, com que virgindade havia de ser
amado por aquelle homem I
IV.
Quando Luira encontrava Paulo faiia-se verme-
lha como a romã. Elle scguia-a largo tempo com
os olhos, en> quanta cila corria por aquollas vaneas.
jiulava pelas margens d"aquelle rio, ligeira como a
gazi'lla, virente cvmo ol_\rio, candiíla ivmo a jKimtia.
L ina tarde Luiza e sua mãe foram com a mãe
de Paulo até a igreja de Nossa Senhora do Monte,
que se abre para dar a festa dos tralvdliadores, e
que lica a meio d'aquella grande encosta, como tu
sabes.
Era na prinuivera : não havia um talho de terra,
que na minha abcnçojfda aldèa não estivesse coberto
de relva e de llor<>s.
A madre-silva jh-Io vallado. a murta florida |K'Io
mato. a ros;i agn-ste j>elas campina>. cxhalav.iiii
aquelles suaves perfumes, que aspirad»» na bris,i fn-s-
ca de uma lK>lla tarde do abril nos ombriaíam sua-
vcuiente os sentidos, p nos traicm á imaginação as
sccnas ni.igicos da nossa inf.incia, e os dias felijet da
no^s;i mocidade.
o PANORA3IA.
367
Paulo fhegára mais tarde á igreja, e sentado no
adro esperava por ellas, contemplando o firmamen-
to que SC esmaltava para o lado do poente de nu-
vens caprichosas e variamente coradas pelos últimos
resplandores do sol.
Sentiu um lii^eiro rumor de roupas ao pé de si :
voltou-se. Era Luiza.
Ambos ficaram por momentos calados ; depois el-
la, tremula, vermelha, perturbada, disse-lhe :
— í; Porque e^tá triste.' Não gosto de o vêr as-
sim ... já nos conhecemos ha tanto tempo e. . . "
— »i E afflige-a a minha tristeza, Luiza ? -•'
— " Se soubesse. . . "
— II O que? "
— u Nada ..." respondeu ella, fazendo-se escarla-
te como uma rosa de cem folhas.
N'este momento vinha saindo a gente da igreja :
Luiza foi a correr para dentro \ Paulo deixou-se
cair sobre os degraus da cruz, pallido e vacillante
como se uma vertigem o tivesse deslumbrado.
(Continua.)
R. A.
Bt
IÃO Pato.
THOMAZ ANIELLO (MASANIELLO.)
(Revolução de Nápoles em 1647.)
Ek.\ sob a pressão de tantos males, e estimulada pe-
la dòr de constantes violências, que a multidão to-
mava as armas, e levantava em fim a voz imperiosa.
Asslomerando-se no mercado e fazendo conselho en-
tre si, os populares elegeram para seu capitão a
Auiello Petrone, homem de grande séquito e de
animoso espirito. Este começou por soltar os bando-
leiros, que estavam em ferros ^ mas apesar da boa
vontade, que aparentava, as desconfianças sobre a
sua lealdade tornaram-se veheraentes, e os mesmos
que o tinham elevado, depozeram-no como parcial
conhecido do duque de Matalona. Foi em seu logar
qu(! entrou Tliomaz Aniello de Amalfi, auctor do
movimento, mancebo de vinte e dous annos e po-
lirissimo pescador á linha, que não possuía nem um
valor Ínfimo de que pudesse tirar dous palmos de re-
de 1 Investiram-no depois de nomeado nas faculda-
des precisas para governar as armas, e deliberar a
eitecução das cousas essenciaes ao serviç-o da cidade,
<• promelleratn-lhc auxílio e obediência.
Maaaníello, sem despir os trajos vis que o cobriam,
congregou o povo, e em assembléa, dictarani-se di-
versas ordtrns, assumindo elle i|uasí a auctoridade de
capitão general. A mais importante das suas provi-
dencias foi a pena de morte decretada contra quem
matasse ou roubasse, valendo-se da publica agitação.
Seguiu-sc dirigir aviso e convocação ás terras próxi-
mas, p^nlindo-lhes ajuda, favor e correspondência.
Por ultimo, considerando que agente era muita e as
armu4 poucas, resolveu ajioderar-se das da cidade,
investindo o posto de S. Lourenço, aonde se guar-
davam. Debalde! A nobreza tinha-o reforçado com
cincoenta soldados hespanhoes, sob o conmiando de
iiiagio de Kusco, logar tenente. O combate foi bre-
ve, e a<<sim mesmo custou u vida a um plebeu e u
dous frades de S. Lourenço. O povo retirou-se, e o
suu chefe passou a piir em pratica outras medidas.
Mandou pois que se buscassem as armas pelas casas
dos cidadãos e mercadorias d'cllas \, e assim colheu
muitas proinptíiniciite, sobre tudo nos armazéns de
João .Vndré .Ma-sollo. genovez, aonde acharam para
i-iiiiu de Ires mil, com todos os adereços perteuceu-
I tes ao fornecimento real, e que não estavam já en-
I tregues, porque o negociante recusava dal-as antes
I de receber o dinheiro. Apenas Masaniello se viu pro-
vido de armamento, repartiu-o por companhias que
formou, nomeou os cabos, e entendeu em todas as
outras disposições de guerra, que podiam concorrer
para a segurança da defesa, e para estimular os brios
á revolução. O applauso e a estimação que soube ga-
nhar grangearam-lhe a maior influencia. t> povo,
que em mangas de pé e de cavallo discorria pelas
ruas, executava as suas ordens fielmente, e vendo-o
cuberto como andava com os andrajos da pobreza,
reverenciava-o, como se a cori5a de rei lhe cingisse a
cabeça em vez do barrete vermelho dos pescadores de
Amalfi !
O duque de Matalona tinha sido preso logo no
dia 8 de julho pelo governo, como suspeito de fau-
tor ou de cúmplice nos tumultos da cidade. Este ri-
gor pareceu grande erro a alguns dos conselheiros do
vice-rei, e instaram para que o soltasse na certeza
de ser o único homem capaz de desarmar a rebellião,
destruindo o chefe, por meio das intelligencias que
trazia no mercado, e do poder que Petrone, seu
cliente, conservava entre a gentalha, contando mais
de tresentos bandoleiros e outra Ínfima relê, que o
seguia. O duque dos Arcos accedeu ; propoz-se o pa-
cto ao preso d'estado \ e Matalona não hesitou em o
acceitar. Passadas algumas horas o fidalgo italiano
passeava solto pela cidade no meio do pasmo de
quantos sabiam o aperto do cárcere, em que jazia,
e ignoravam a secreta convenção, com que obtivera
a liberdade, Gluasi ao mesmo tempo os populares,
indo tirar a pólvora de um deposito perto da praia,
descuidaram-se, o fogo pegou, e houve uma explo-
são, em que morreram perto de sessenta pessoas, a
maior parte curiosos, que estavam admirando a no-
vidade.
Solicito em agradar ao governo, e em preencher
as clausulas do pacto secreto, o duque de Mata-
lona veiu no dia 9 ao mercado, com o pensamen-
to de mandar assassinar a Masaniello, e achando a
facção perigosa, de embaír o povo, socegando-o com
falsas concessões. Para esse fim muniu-se de um pri-
vilegio apocrvpho, que fingia ser de Carlos V, pe-
dido pela cidade. Apresentou-se, e fallou no senti-
do de aplacar as discórdias com elle. Mas os crédu-
los foram poucos. O maior numero receioso de cila-
das, advertido pela experiência, e justamente des-
confiado da brevidade da soltura do duque, repelliu
o diploma, tratando-o de mentira, e guardando á
vista por todo o dia o emissiirio, i|ue já principiava
a arrepender-se do encargo (|ue tomara; m> pilo de-
clinar da tarde é que o deixaram livre, intimaiido-o
para ijue saísse e não voltasse com >ímílliaiites men-
sagens, se queria evitar maior desgosto. .\ cssii hora
mesmo entrava na praça CarralV.i, prior da Hocella,
e alguns fidalgos a cavallo, tra/.endo um Iromlwlado
vice-reí, e offereccndo landuMu outro privilegio, de-
clarando ser o verdadeiro privilegio di' ("arlos V'.
Chegando ao sitio aonde Tliomaz .\nicUo estava com
os principaes do povo, a cavalgada teve de >o deter;
e o ])ajiel examinado e convencido de fal.H» serviu de
corpo de delicto contra a má fé do governo e dos
agentes, que enviava. \ simplicidade do pescadorde
.\nialfl ainda uma ve< humilhou a asiuci.i dos con-
selheiros aidí<'os, dando-lhes liç-õe> severas,
Adiaiilando-se com aspi'i'to carregado e gesto no-
bre, Masaniello exclamou : >• Não, vos lulo sois emu-
sarios doviíf-rei; sois a]H'nas faUarios e i'ml>aido-
res pagos para trair. Não i- pos>ivi'l que o governo
commctfesse u infâmia tic vai m.indar mentir e en-
ganar cm seu nume 1 N.io vos conheço I •• Dito isto.
368
O PANORAMA.
voltou-lhes as costaj, e ordenou que o trombeta fos-
se apeado, assim como os fidalgos, que não se esca-
param pouco maltratados. O prior deveu ao seu ca-
racter conciliador, e a sua conhecida probidade na
questão da yaheUa, a segurança com que o deixaram
retirar. Desfeito o primeiro trama, mas descuberto
por elle o plano do governo, o chefe dos populares
redobrou de vigilância, e preparou-se para sustentar
a lucta com vigor.
Algumas das freguozias do termo eram vagarosas
om se mover, dominadas pelo temor dos hespanhoes,
ou dirigidas pelos avisos da nobreza. Thomaz Aniello
jutimou-as para que se armassem immediatamente e
acudissem ao mercado, assegurando que a sua deser-
<;ão seria punida com o incêndio das casas e das lo-
jas de venda. Como o bairro deChinya, apesar d'' es-
ta ordem, por ser distante parecia disposto a não
cumprir, enviou-lhe um recado em termos grosseiros
e cheios de ameaças. Dentro de duas horas tinham
obedecido todos, e perto de três mil marinheiros e
pescadores vinham engrossar as forças da rebellião.
Seguiu-se a proscripção dos argcntarios cúmplices nas
extorsões dos impostos. A gentalha sedenta de vin-
gança exigia-a em altos brados, e o seu cabeça, ru-
de e devorado de iguaes paixões, nem queria nem
podia conter o Ímpeto á torrente. Formou por tanto
uma lista de cento c vinte casas condem nadas a ser-
virem de exemplo, por se terem enrequecido com o
sangue dos pobres \ e dadas as instrucções, e distri-
buídas as companhias, na seguinte noute soltou a
cadéa ao tigre popular, e deixou-o cevar-se ! As
chanimas, levantando-se ao mesmo tempo de difle-
rentes partos, os clamores, o ruido das armas e do
estrago, offereciam um espectáculo tremendo. As fa-
zendas e os moveis, que se encontraram, foram quei-
mados ou atirados pelas janellas fora ; entretanto pa-
rece que nenhum roubo manchou de mais sombras
as atrocidades doesta scena lastimosa. O vento sopra-
\n fresco, e sacudia pelo ar as faíscas \ os tectos desa-
bavam com fragor i o clarão sanguíneo dos incêndios
avermelhava as ruas e o céu, rellectindo-se longe.
Era tudo horror, estrépito e luto. JMuilos julgaram
que tinha chegado o ultimo dia de Nápoles!
Os religiosos saíram em procissão, de cruz alçada,
pedindo em penitencia a JDeus que mitigasse a sua
cholera, socegando as commoções. Os homens abas-
tados, trémulos epallídos, ajuntavam á pr(«sa os ob-
jectos preciosos, procurando fugir de uma cidade so-
bro a qual o braço armado do povo fazia pesar in-
distinctamente o castigo e a vingança, a ruina e a
assolação. Mesmo os mais innoccntes nos contratos c
nos rigores fiscaes suppunham-se expostos, c calcula-
vam com anciodade o momento, em que Ihcs^ocaria
o seu quinhão na desgraça commum. Nas casas dos
principacs gcnovczos, que ainda não eram pasto das
chainmas, não se ouviam senão lamentos c gemidos.
Implicados nas arrematações dos tributos, e assigna-
lados como baiuiueiros do governo a preço de grossa
usura, os monetários amaldiçoavam já tarde os lucros
exorbilaiiles, e dariam de bom grado a metade da
sua iorluna por salvar a outra e as pessoas do riseo
ominenlo. E com ra/.ão. (Auebrado o freio das leis,
r solta a pedra da funda, "quem poderia di:'.er o sitio
onde elhi iria bater?
( ) povo agora era o soniior ; mas um senhor cruel
e ini|)hicavel, ulcerado <■ olVendido, que se compen-
sava do passado solVrimenlo com as iras da \icloria.
Nem o palácio de CorneJio Spínola, cavalheiro ijua-
liticado, e \ali(h> dos vice-roís, homem honrado c
estranho aos abusos dos impostos, foi isento da bar-
liara devastação. Apenas leve tenqio para salvar as
alfaias mais ricus dentro do caslcUo, ucolhcudo-se as
suas torres. A multidão logo dépob, rufando tambo-
res e levantando gritas, arremetteu dbposta a pra-
ticar o que fizera ás outras habitações. Uma ordem
de Masaniello chegou porém ainda a tempo de im-
pedir que lhe puzessem fogo, mandando-a respeitar.
O mesmo succedeu com a de Navarreta, a quem o
povo, por um dos seus caprichos usuaes, passando do
ódio ao enthusiasmo, acclamou por thesoureiro. com
maior assombro d'elle, que dos próprios vozeadores.
O núncio da cidade e o visitador, diante da» terrí-
veis represálias da revolta, soltaram os presos, e man-
daram reunir as milícias ; encerrando-se com o mais
precioso que tinham dentro dos muros da cidadella.
A obra da assolação consummou-se sem obstáculo .,
e ao outro dia as paredes requeiroadas e os montões
de ruinas no logar aonde eram as opulentas moradas
dos potentados, como padrões de horror, contavam a
historia da tyrannia passada, memorando a catastro-
phe da tyrannia recente. A medida dos crimes e da
demência começava a encher-se contra o povo. como
trasbordara pelas extorsões e violências da nobreza.
L. A. R
EBEILO DA bllVA.
Aperfeiçoamento nos matcriaes que se empregam
pai-a conservar os navios. — Este processo consiste
em fabricar e preparar composições ou tintas para
preservar c proteger o forro dos navios; e para se
conseguir este resultado, pode empregar-se qualquer
dos seguintes moios :
Primeiro processo. — Tomem-se 8 a 10 partes de
fel de Víicca ; accresccntem-se-lhe 30 libras de carbo-
nato de ferro ou de plombagina ; mistureni-se esta»
duas sulisfancias até se converterem em pó ; e ajun-
tem-se-lhe 4 g;dlões de agua do mar.
Seyumlo processo. — Tomem-se 30 libras de car-
bonato do ferro ou de plombagina era pó, e cerca de
3 libras do arsénico branco ; juntem-se-lhe 2 gallões
e meio de alcatrão, de naphta, ou essência de te-
rebenthina, e 12 ou 14 libras de pez de Suécia, dis-
soh-idas n'uma quantidade igual de espirito de vi-
nho ;, místurem-se depois até tomarem a consistência
da tinta.
Terceiro processo. — Para conservar o forro ou o
zinco emprega-se um preparado de gutta-pcrcha, que
se dissolvo no alcatrão, ou naphta, de modo que se
lhe dê a consistência necessária para poder applicar-
se com um pincel.
Qtiario processo. — Tomem-se 10 libras de carbo-
nato de ferro ou de plombagina pulvorisadas, e 1 li-
bra de arsénico branco ;, misturom-sc estas duas sul>-
stancías, e ajunte-se-lhe, ai]uecendo-o, o cobo neces-
sário para as ligar intimamente ; depois piíde-se ap-
plicar o mixto obtido sobre aquelles objectos que se
i|uizcrom conservar.
( Rqieriory of paicni inveniions.)
Maneira de firar ás i'asilhas o chcint de Mor. —
Díluem-se duas partes do acido sulfurio' em dei di-
tas de agua doce : lavaui-se as vasilhas ciun esta mis-
tura ; c passadas duas ou Ires horas ropet«^M> a lava-
gem com diversas aguas, ate s;i\rem jM-rfeitamcnte
limpas c claras.
Conseguc-se o mesmo result.id», queimando den-
tro das vasilha» uma mistura, om partes iguaes, de
nitrato de potassa (salitre) o enxofre.
l'sando d 'esto segundo meio, doixa-se fanilwm de-
correr o espaço de duas ou trcs lioras, e procedc-s»»
por líni ás lavagens com agua duce.
47
o PANORAMA.
369
BARCOS Bi: SALVAÇÃO.
O DESASTROSO naufragío do vapor portugucr Porto
será liímhrafli) soinprf como uma das maiores catas-
Iropliiví a<.'í)nli"('i(l:i» iia t('iii<'riisa harra do Douro, \'o-
ragom fcrrive), i|ut' toiíi engulido nuiitos centos de
victiiiiaH '.
Não Ijaslava, porétn, a graiidi za do desastre, ae-
CTCseitu ainda a falia <|uasi alttoiuta de soecorros ef-
fieaze», e a eoiiseieiíeia <!(• <jiie tantos infelizes pere-
ceram vietinias da re[)reheiisivel, e não só reprelien-
bivel, eriniinosa incúria e desleixo dus governos, pa-
ra tiirnar niuis profunda a dAr sincera (jue pungiu o
lorayão di- i|uanl(js tiveram noticia iraiiuelle lucluo-
»o acontecimento com t(idos os >eus liurronisos pro-
iiieiiorcs,
Se oesladi) da liarra do l'orlii é ou não suíccpti-
yel de se nielliorar, mio o podemos nós ilizer \ nem
o logar é próprio para tratar uma nialiTia tão im-
portiiiile, nem pela varieilade de opiniões dos homens
mais eompelcnics nn nmicria sujeita, e possível, á
falta dos dados e lial)ilila<;riea inilispensa\eis, formar
juizo seguro. K <'crlo, porem, lpu^ o problenui não
pariM.c irri'.soluvil, fin\> <pianlo para sua renolução se
encontrem difficulilades do maior vultu.
VoL. I. — J." Skiuh.
Luii Gomes de Carvalho escreveu uma extensa
memoria, impressa no volume 9." das da Academia,
sobre o estado daquella iiarra, e trabalhos necessá-
rios, (pie na opinião do liabil engenheiro podiam nic-
Ihoral-a ; esses trabalhos começaram de feito, mas a
barra peiorou. Knganar-se-ia o nosso engchlieiro na»
suas prcvisõ<'S, ou dependeria o nulhorainento defi-
nitivo cia barra da inteira conclusão das obras pro-
jccladas ,' K o ipie não pcúle averiguar-se.
Outros meios tem lendirado, sem si- obter resulta-
do algum •, eontralou-se o «piebramenlo dos rochedo»
ipie obstruem a barra ; nus esta obra nem chegou a
conieçar-se , íueram-se outros estudos, e a barra cada
vez a peior '. Kinalmente o naufrágio do vapor /*<r-
to, sobre muitos outros desastres, e o nenlnini pro-
veito d'es5CS p(iui'us meios empregados, lei lembrar
a conslrueção de um porto artificial, no logar (juf
se julgasse mais próprio, ligando-o á cidade |Hir meio
de earris-ferreos ■, i-sta obra dispeiidiosissima li^i man-
daibi estuilar en> concorrência com as da luvra, por
uniu comniisião nomeada por portaria de ;! d'abrU
de íh:>-2.
lim nome da luimanidade perniilla-se-nos cjue le-
NoMíMiiuo -M, 18;í<2.
370
O PANORAMA.
vanlemos a nossa débil voz para reclamar de quem com-
petir, o cumprimento de promessas feitas tantas vezes
e tantas Vezes esquecidas . Melhore-sc a barra se é pos-
sível, ou coiibtrua-se o porto artificial ^ mas empre-
guem-so todos os meios e diligencia ; sigam-se os
trabalhos com actividade e perseverança ; se os en-
genheiros nacionaes, pela falta quasi absoluta de
pratica de trabalhos hidráulicos de certa magnitude,
não satisfazem, convideni-se engenheiros estrangeiros
convonicntenicnle halnlitados \ empenhem-se todos
em estudar este difficil problema, de cuja resolução
depende o futuro de um povo laborioso, e de uma
cidade grande pelo seu commercio, pela sua indus-
tria epelo caracter generoso e leal dos seus habitan-
tes. A barra como se acha, é um crime de lesa-hu-
manidade, e uma vergonha para esta nação.
Se, porém, não é possível desde já prover de re-
médio ao estado da barra, se quaesfiuer trabalhos
que se emprcliendam, ainda que executados com a
desejada rapidez, tem de consummir muito tempo:,
cremos ser íacil ter ao menos os meios para que da-
da a eventualidade de um sinistro, aliás infelizmen-
te frequentíssima na nossa e.vtensa costa, se possa
acudir aos tristes náufragos conservando-lhes sequer
a esperança de salvação.
Estes meios devem dcstribuír-se pelos pontos mais
perigosos da costa, e nao só limitar-seá fózdoDouro.
A efficacia dos barcos de salvarão está provada, c
o seu emprego é facilimo. A nossa primeira estampa
representa um grande navio de vela soccorrido por
um dos excellentes barcos de salvação de Joseph
Francis (lift-%%irf-lmuis) que, apesar da braveza das
ondas vae estabelecer a eommunicaç.no do vaso per-
dido com a torra — n'outra parte damos os desenhos
de outros barcos, deumaconstrucção e applicação dif-
ferentes (lifc-carsj; mas mui prestadios no transjKjr-
te dos náufragos depois de estalieleeido um fac-vcm.
O digno ministro de Portugal cm Nova-York, o
sr. Joaquim César de Fíganière Mourão, de cuja
curiosidade c lítteratura existe honroso testemunho
em um artigo publicado a paginas 78 do l." volu-
me doesta coUecção, assim que leve noticia do nau-
frágio do vapor l'i)rto, oflieiou ao go\erno em datas
de 28 de abril e 11 de maio, recomnicnilando no
primeiro ofílcio o processo do professor Maillefort,
por meio do qual esse engenheiro francez conseguira
c(uebrar e remover os cachopos que obstruíam a na-
vegação do porto de Nova-York \ e no segundo,
dando noticia dos barcos de salvação, construídos ])or
.r<)seph Francis, e que declara cslarem em uso nos
vários pontos da costa dos Estados-L'nidos. Em l!(i
de maio escrevia o mesmo diplomata o seguinte :
i. A casa de Oslioru cV. Spencer de Nova-'^'ork (Os-
born & Irmão do l'orto) tendo-mc consulfadi-, com-
prou e carregou a bordo da barca (hiiljord , de que
são proprietários, um dos li/c-surf-hoati e ///t-c((»sde
f''rancis, com o louvável fim de os otlercccr á Socie-
dade Humanitária do Porto, pelo custo primitivo,
<• livre do frete. >•
Não nos consta que o governo tenha alteudido
convenientemente ás representações do nosso distín-
cto representante nos Estados-Unidos, e mais são já
passados alguns mezes desde que succedeu aipu-llo
horroroso sinistro ! Porém a Sociedade Real Huma-
nitária do Porto, associação respeitável, que tem
prestado, apesar da sua recente fundação, importan-
tes serviços, essa recebeu os dous barcos referidos, e
duas vezes fez experimentar o lifi-hoat, com o mais
extraordinário successo, em presença de um nume-
rosíssimo concurso. Toda a imprensa |)criodíea, ap-
plaudindo os esforços da associação, registou o resul-
tado das mencionadas experiências, «pie não podia
ser mais favorável. O barco de salvação que possue
a Sociedade Real Humanitária do Porto, construído
em Nova-York pelo systema do sr. Joseph Francii,
dcnomina-se Falentc; é todo de ferro galvanisado.
A proa e á popa tem duas camarás de ar, tão for-
temente construídas que resistem aos golpes mais
violentos. Não tem leme, bastando um remo para o
governar com a maior facilidade. Demanda mui pou-
ca agua \ e não ha mar que o afunde, sobrenadando
sempre com a maior galhardia : é guarnecido em to-
da a borda de um forte chumaço de cortiça, e assim,
ainda que vá de encontro a um penedo, dífiicílmen-
te soflrerá algum pequeno damno. Póde-se-lhe lan-
çar ura grande pezo, e de grande altura, ao meio do
porão, sem que o barco padeça. A todas estas qua-
lidades preciosas que o tornam de uma vantagem
ímmensa na salvação dos náufragos, reúne ser de um
preço relativamente módico, e não carecer de repa-
ros de consideração, estando sempre prompto para o
serviço que se requerer.
A casa de O^born & Irmão do Porto tem annun-
ciado, <jue se encarrega de quaesquer encommcndas
de simílhantes liarcos, cuja utilidade é incontestá-
vel. Porque não ha de o nosso governo, applicar al-
guns meios á acquisição de barcos de salvação deste
sistema, desfribuindo-os pelos pontos perigosos da
costa ? Porque não hão de as nossas companhias de
seguros influir para que se adoptem estas e outras
providencias igualmente necessárias.' Porque não ha-
vemos de imitar o exemplo dos americanos do nor-
te, cujo governo obriga todos os navios de guerra e
marcantes a proverem-se de barcos de salvação ? Por-
que se não presta um apoio enérgico ás diligencias e
generosos esforços da Sociedade Real Humanitária .'
Entregamos á consideração das auctoridades compe-
tentes estas ligeiras considerações, confiando que não
serão dcsattendidus.
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA.
A l'ARTinA
iNKASTE U. Manoel.
Começamos a publicação das curiosas carf.-is. cscrip-
tas no anuo de 171 j, reinando el-rei D. João \',
acerca da saída do infante D. Manoel sou irmão.
Este incidente, pouco conhecido ach.i-sc descrípto
com extensão na primeira correspondência do secre-
tario de estado Diogo de Mendonça que hoje trans-
crevemos. .\crescentaremos algumas noticias que o
podem esclarecer, explicando os verdadeiros motivos
que inlluiram no animo do infante para dar estr
passo temerário contra as ordens do sol>orano.
Em officio do embaixador de França cm Portu-
gal ao niíníslro dos negócios cstraugelros M. deTor-
cy reforc-se o projecto, que tinha formado o infante
D. Manoel de ir viajar pela Europa jKir tempo de
dous annos. Estava-se oin setembro de 171o, e pare-
ce que a idéa de seu irmão não era desagradável ,i
1). João \, por isso que não se observa da parte
d"elle o menor indicio de rf^istcncia. Pelo contrario
designou-se o séquito do principc que devia constar
dl- trinta e s<'is pcssivis, sendo doze dos primpirasfa-
uiilias do reino; determinando o infante principiar
pela Andalur.ia e mais províncias de Hcspanha até
ao Rus.-ilIião ; entrar no Languetloc ; e seguir d"ali
para Itália c .Vliemanha, voltando depois jior Fran-
ça, com o cuidado jxjréní de não se nprescnt.ir nas
capitães, aonde residisse a cOrlc dos sol<CTanos, jwra
evitar o ceremonial.
Foi no meio dVstcs planos, que de repente se de-
o PANORAIIA.
371
clarou a intenção de el-rei, que, a pretexto de uma
promessa pia, resolveu fazer a romaria de Nossa Se-
nhora do Loreto viajando por terra. O conde da
Ericeira, encarregado pelo nionarcha de dar aviso
d'esta resolução aos diplomatas das dillercntes na-
ções, não encubriu a nenhum d'flles o pesar que lhe
causava. O sr. D. JoãoVlinlia lixado para 4 de ou-
tubro o dia da partida, querendo achar-se pelo Na-
tal no Loreto, dicedido a i)crcorrcr depois a Itália,
a AUemanha, a Hollanda, a Inq;laterra e a França,
por espaço de um anno, le\ando na sua companhia
seus irmãos, o secretario de estado, os condes de As-
sumar, de Unhão, da Ericeira, e o marquez de Ma-
rialva. A regência ficava entregue á rainha, augmen-
tando-se o numero dos ministros ordinários com a
nomeação dos marquezes de Alegrete e de Frontei-
ra, c com a do conde de Castello Meliior, que de-
pois de largos annos de desterro c desagrado tornava
a ser bem visto.
Não é para aqui individuar os enredos postos em
pratica pela politica dos diversos gabinetes da Euro-
pa, uns procurando estorvar, outros desejando ani-
mar a projectada viagem ^ nem nos cumpre alargar
csla rii[)ida informação relatando os apreslos do es-
tado com que o ostentoso monarcha se propunha roa-
lisar incógnito a sua peregrinação. Talvez consagre-
mos um artigo especial a esle facto, for agora basta
insistir nos pontos, <iue toem intima relação com a
fugida <hi infante.
A rainha amava seu esposo e era cslremosa. Ape-
nas lhe constou o plano da romaria, e a ausência de
nm anno, a que no fundo tudo o mais servia dodis-
farcíí, declarou-se contra, e não ondltiu meio algum
para despersuadir el-rei da jornada, já com instan-
cias próprias, já (-om avisos indirectos dos (embaixa-
dores d(! França e Inglaterra, já pelo voto dos mais
auclorisados conscUieiros. Rias os seus esforços não
produziram outro eílcito mais do que confirmar o
monarcha na sua idéa. Achando diante da sua von-
tade maior rcsist<!ncia, do que imaginava, pela sua
índole tenaz, e orgulhosos espíritos, 1). João V ce-
gou-se sobre os inconvenientes, e a nada altendcu.
Expunha-sc a tudo, com tanto (pie provasse, que as
suas decisíTics uma vez tomadas não se alteravam,
nem cediam aos (jbstaculos.
N'(;3l(' apuro occorreu á rainha, (piií o modo úni-
co de (!mbaraç'ar os desejos de seu marido, cuja par-
tida fiira transferida para març'o de 171 ti, consistia
em lhe imr diaiile dos olhos o exein[)lo de nm prin-
ci|)(', (|iie por dever da cor(ja elle houV('Sse de estra-
nhar. Para isso dirigiu-se aoinfanlc D. IMano(,'l, mo-
ço ambicioso e impiieto, ardendo em desejos de se
moslrar e de ganhar fama, cubicando vêr o inundo,
desvinculado da lulella da C(')rte de s(MI irmão. Oin-
fanlc ai-hava-se d('Sconl(;nle por se lhe fruslrar a sua
viagem em virtude da romaria real; e ouviu com a
maior facilidade as sugestões da rainha |irestando-se
u auxilial-:i. Tralou-se o negocio com o mais fecha-
do segredo, e uma manhã a eilrt(' accordou sabendo
que o |irinci|)e d(!sapparecêra sem licença, e que se
ignorava ainda a sua diree(;ão. (-'omo sua esposa pre-
via, I). João V foi obrig.ido a desa|q>rovar publica-
nicMile o |n()Ccdiinento do infante, susiicndcndo u
jornada.
D iiifunie passou-sc depois á Alhnianh;!, e tonlou
serviço nos exércitos imperiaes. l'"oi um dos capitães,
(|U(í assistiram á famo'.;i balallia de llelgrado, ganha
em ItJ de agoslo de 1717 pelo príncipe Eugénio
contra os 'l'urcos.
Eis u primeira eorrcspondenci.i expeitiila ai>enas
SC soube da sua fugida.
Honteni 4 do corrente pelas duas horas de|)ois do
meio dia se deu conta a Sua Magestade de que osr.
infante D. Manoel não estava no seu quarto, e que
havia saído muito de madrugada com o sr. Manoel
Telles da Silva, lilho de v. s." (o conde de Tarouca)
e um reposteiro levando alguns baús do seu fato.
Logo deu cuidado a Sua Magestade a sua falta, por
(jue não costumava sair o sr. infante do paço sem sua
licença ; c dej)ois se soube que fijra em uma sege com
o lilho de V. s.'' e o reposteiro á Cartucha (de La-
veiras.') e ali se embarcara em um patacho inglez
chamado Tanij, capitão Slarshani, que ia para A m-
slerdam. Como se teve tão tarde esta noticia, quan-
do os avisos foram ás Torres já o na\io ia fora dos
cabos segundo referiram alguns pescadores. E porque
as fragatas da coroa, que estavam apparclhadas, an-
dam tora esperando a frota, e no rio se achava uma
de guerra ingleza, que veiu buscar D. Paulo Me-
thwen, me ordenou Sua Magestade lhe escrevesse
para que ordenasse saísse a dita fragata em segui-
mento do navio, o que elle executou com tão bons
termos, que veiu ao paço pedir a Sua Magestade o
deixasse ir na fragata. E com elfeito se embarcou
logo pelas 10 horas da noutc com o marquez de Ma-
rialva, (|ue se achava de semana, que foi com carta
da própria mão de Sua Magestade, para o sr. infan-
te para (jue voltasse para esta C(jrte na dita fragata-,
e tambíMU se ordenou ao capitão de uma das nossas,
(jue anda cruzando nV-sles niari-s, que fizesse a mes-
ma diligencia :, por(|ue além do grande dissabor, que
causou a Sua Magestade a inconsiderada resolução de
Sua Alteza, lhe dá grande cuidado o receio de que
o passam apresar os mouros, (]ue tècni tomado dez
prezas inglozas ha pouco tempo. I'orém, sendo con-
tingente enconlrar o tal navio, havendo tantas ho-
ras, que havia saído com um vento rijo, (' mui pro-
vav(d que o sr. infante vá aportar a Amsterdam para
onde ia o mencionado patacho, e para onde levava
um credito de dezesseis mil cruzados passado por IMa-
noel de ('astro Guimarães, ao qual o sr.infanti? per-
suadiu ser-lhe necessária aquella (juantia para man-
dar pagar uma cama, (pie nVssa còrle tinha manda-
do fazer por via do sr. Thomás da Silva Telles. N'cs-
te caso ú Sua iMagestade servido, que chegado (pie
ahi seja o sr. infante, v. s.'' Ihie entregue a caria de
Sua Magestade, e lhe aconselhe faça o que o mesmo
senhor llu; ordena, i- (pie vá para casa de v. s." eali
esteja inc(jgnito, como costumam praticar os princi-
|)es dosou alto nascimento nas (òiles estrangeiras ;
!• que na nu'sina forma s(! poderá recolher a este rei-
no ou por terra ou por mar. Espera Sua iMagestade
da grande prudência di: \. s." e do seu grande amor
e zilo, ipie procurará persuadir a Sua Alleza que o
(jue só lhe convém é (executar o (pie Sua Magestade
llu! ordena. K esta diligencia fará v. s." rcpíetidas
vezes, aluda que ache sempre grande repugnância no
sr. infaule, difricullando-lhe todos o-> meios para po-
({(■r continuar a jornada, e dizcudo-lhe ipie não tem or-
dem para assislir-lbe com iliiiluiro, antes ■-im para em-
baraçar o (pie lhe [)uderi'iii empreslar, e ainda a co-
brança dosdezesseis mil cruzados do credito de Manoel
de Castro Guimarães, mostra ndo-lhe a ordem, eiii (pie
elU; o revoga, da (piai v. s.'' se servirá paru nll)^tl•ar-
lh'u, inas não para a pôr em execução. Alcançiiii do \ .
s." do SI', infante a resolução de tornar para (•^le reino
por mar, pedirá v. »." em nonu^dieSua Magestade nos
estados dous ou Ires navios de guerra para transporta-
rem uSuu Alt(>i!a, «ssislindo-llie com o necessiirio pa-
ra o seu apresto. E quando se revdva a \ir por terrn
poderá vir coin Sua Alleja o sr. Thomasda Silva^Vl-
le», dando-lhi' v. s." us hlnis n«>ces.Mn-i«s |win asdcs-
pczns da joniivdii. E (pwndo o sr. Tliomas da Silva
372
O PA^ORA3IA.
Telles esteja já em Allemanha, virá v. s.'' com o sr.
infante até parte, em que o encontre a v. s.^ pes-
soa ou pessoas que Sua Magestade mandar ; para
cujo effeito me despachará v. s.'' postilhão antecipa-
damente, remettendo-me o roteiro das villas e cida-
de» por onde destina vir, para que as pessoas que fo-
rem sigam o dito roteiro. Porém se não obstante as
representações de v. s.^ o sr. infante persistir em
passar a Allemanha, como se entende, sempre v. s.^
trabalhará que se detenha até que cheguem alguns
criados e meios, e que possa ir, ainda que incógnito,
com a decência conveniente. E para a despeza que
ahi fizer Sua Alteza se poderá v. s.^ valer das licen-
ças dos estados, ou passar letras sobre o thesoureiro
da casa de Bragança. E no caso que o sr. infante
não queira ahi esperar, ou passe por rssa republica,
sem que v. s.'' o saiba, e vá em direitura a Allema-
nha, remetto a v. s.'' essa carta de Sua Magestade
para o sr. imperador, de que vae cópia, para que
tendo V. s."* certeza do que o sr. infante passou a
Vienna mande a mesma carta ao barão Tioztti para
a entregar ao sr. imperador. E será conveniente,
que V. s.*^ avise ao dito barão, que no caso de ali se
achar osr. infante lhe assista com as quantias de di-
nheiro, que lhe parecerem precisas, sacando da sua
importância letras sobre o thesoureiro da casa de Bra-
gança •, e n'este mesmo caso escreverá v. s.'^ ao sr.
infante remettendo-lhe a carta de Sua Magestade
para que lhe conste o que o mesmo senhor lhe or-
denava, aconselhando-lhe v. s.'' que volte para essa
republica para d'ahi tornar ao reino em execução da
ordem de Sua Magestade.
Bemetto as duas cartas do próprio punho do dito
senhor, de que acima faço menção, uma para o sr.
infante, e a outra para osr. imperador. — Deus guar-
de a v. s." — Lisboa, 6 de novembro de 1715.
Devo acrescentar ao sobredito, que Sua !Magesta-
de é servido que v. s."' procure persuadir ao sr. in-
fante, que se não executar o (|ue o mesmo senhor
lhe ordena, nem o sr. Manoel Telles, nem o repos-
teiro o hão de acompanhar:, isto mesmo deve v. s.''
dar a entender ao sr. Manoel Telles para que cUe
seja quem o persuada a que vultc. Porém no caso que
isto não basle para Sua Alteza mudar de resolução,
e persista na de seguir a jornada, não embaraçará
V. s.'' o acompanharem-no os sobreditos. Também
devo dizer a v. s.'' de ordem do mesmo senhor, que
o sr. Manoel Telles piíde voltar com o sr. infante na
certesa de que não tara demonstração com cUe por
haver finito esta jornada :, e espera Sua Magestade
que elle instruído por v. s." procure persuadir ao
sr. infante o que na carta do próprio punho ordena
ao sr. infante, e lhe adverte diga o que v. s.'' lhe
disser. — Diogo de 3/t ndotwa Curte Real.
De Sua Magestade para o sr. infante. — Meu ir-
mão. Recebi a vossa carta, e fico com grande sentimen-
to de que não iizes-seis a vossa jornada por este reino
como me havíeis so2;urado •, mas os vossos poucos ân-
uos dosculpan» esta falta, a qual espero emendareis,
considerando que nenhuma acção vossa vos estará
Ião bem como fazeres o que vos mandar ; pois não
hei de ordenar-vos cousa alguma, que vos esteja mal.
Como agora vos achaes n'essa cOrfe procurae són\en-
te fazer o que for vontade do sr. imperador, meu
bom irmão e primo, a quem peço queira encami-
nhar as vossas acções no |x)uco teinpo que ahi vos
íietiverdes. Ao conde de Tarouca ordeno vos parti-
cipe a minha resolução sobre os vossos particulares. —
Deus vos guarde como desejo. — Lisboa, i ile abril
de 1710. — Vosso irmão — Juuo.
De Sua Magestade para o imperador. — Sereníssi-
mo senhor, meu muito caro e amado irmão e primo.
Logo que o infante D. Manoel, meu muito amado
e presado irmão, saiu d 'esta corte participei a Vossa
Magestade a sua inconsiderada resolução, previnin-
do o caso de poder-se encaminhar a e^sa ; e sendo-
me agora presente que assim o executara tendo-in«
segurado se restituiria de Haya a esta corte, tomo
a pedir a Vossa Magestade o queira persuadir a que
se recolha ao reino na forma que tenho ordenado.
E como isto é o que lhe convém, estou certo de que
Vossa Magestade se empenhará, em que elle assim o
execute ■, e que o infante se não apartará das pru-
dentíssimas persuasões de A ossa Magestade, porque
só segui ndo-as poderei dissimular o desgosto, que me
tem causado as cireumstancias da sua ausência ; e não
duvido que os poucos dias que se detiver n"essa cor-
te, Vossa Magestade dirigirá as suas acções para que
sejam conformes ás obrigações com que elle nasceu,
e que eu fio do que lhe merece o meu amor, e pe-
dem os apertados vínculos do nosso parentesco. —
Nosso Senhor guarde a \ ossa Magestade como de-
sejo.— Lisboa, 4 de abril de 1716 Bom irmão e
primo de Vossa Magestade — João.
Carta para o imperador, a que se refere a antece-
dente. — Sereníssimo Senhor, meu muito caro e ama-
do irmão e primo. A inconsiderada resolução do in-
fante D. Manoel, meu muito amado e presado irmão,
saindo d'este reino sem licença minha em uma em-
barcação pouco segura, me deixa com o cuidado, que
pede o amor que sempre lhe tive ; e porque se en-
tende que o infante ia com animo de encaminbar-
se aos dominios de \ ossa Magestade, me pareceu
participar a Vossa Magestade aquella resolução para
que, inteirado das cireumstancias d'ella, procure N os-
sa Magestade persuadir ao infante se recolha a este
reino, na certesa de que o dissabor que me causou a
sua ausência se desxaneça na consideração de que
n'csta jornada lhe resultou a fortuna de vèr a ^ os-
sa Magestade ; e espero que com os seus prudentes
conselhos moverá Vossa Magestade o infante a que
execute o que lhe convém, que é restituir-sc á mi-
nha companhia. E os estreitos vínculos da nossa ami-
sade e parentesco me facilitam escrever a Vossa Ma-
jestade com esta carinhosa sinceridade. — Nosso Se-
nhor guarde a pessoa de ^ ossa Magestade como de-
sejo.— Lislioa. o de novembro de 1713. — Bom ir-
mão e primo de \ ossa Magestade — JoCio.
O infante resistiu a todas as diligencias, e como
dissemos tomou parte na gloriosa campanha contra
os turcos, em que a victoria de Bels^rado immorta-
lísou com mais um brasão o nome ja famoso do prín-
cipe Eugénio de Sabova. Mas o obji-cto, que a rai-
nha do Portugal se propunha, excitando a ausência
do príncipe, ficou plenamente satisfeito. Depois da
publica e solemnc desappmvação d.ida a partida de
seu irmão, o sr. D. João N viu-se obrigado a desis-
tir dos seus projectos de viagem ; o que fez com re-
pugnância, e custando-lhc o dissalx>r uma aguda e
loiíja doença. Consolou-se, pon-m. oon\ os recreios e
distracções, que a tradição e a historia são c«nfor-
nies em indicar quando so trata do Salomão portii-
guez.
L. .\. KkBKLLO Dl SitTA.
o PAXORAMA.
373
SAi:.VA.VIDAS.
riG. 1 .
Aí ESTAMPAS (figuras lo 2) ropresentam fielmente o
salva-vidas, a que nos referimos no primeiro artigo
doeste numero, e (jue se destina especialmente ao
transporte da tripulação (! passageiros dos navios pa-
ra terra.
O salva-vidas (life-car) assemelha-se a um peque-
no barco •, é construído, pelo systema de Joseph
Francis, de ferro ou de cobre •, superiormente tem
uma espécie de coberta convexa, com uma porta ou
escotilha, pela qual se introduzem os infelizes que
tem de ser conduzidos para terra, fechando-sc de-
pois hermeticamente e com a maior segurança. Po-
de acommodar de cada vei quatro a cinco pessoas.
Concluída a operação, expcde-se o salva-vidas por
meio do vae-vem, que deve ter sido previamente es-
tabelecido.
A construcção ireste salva-vidas obrigava os in-
divíduos, qu(' d^elle tinham de se aproveitar, a man-
ter-se n^uma posição difficil c incommoda.
FIO. 3.
O inventor Ir.ilou de remediar este ineonvcnien-
Ic-, e parece (ri-o conseguido no ícu novo salva-vi-
das, cujo diísiMiiii) dainos (figuras 3 e I).
Apontamektos para a Biograpkia
Do
u."'" sr. Inspo resignaiario de
Cabo Verde.
Nasceu o sr. D. Fr. Jeronymo do Barco da Sole-
dade, no logar do Barco, do bispado da Guarda, em
o anno de 1774, e recebeu de seus pães Manoel Ra-
mos Alves e D. Maria Antunes, que não proceden-
do de nobre geração pertenciam á honrada classe
de lavradores abastados, aquelta esmerada educação
christã e moral, que tanto concorreu para as herói-
cas acções de nossos, maiores. Mostrando o sr. D. Je-
ronymo, desde verdes annos decidida vocação para o
sacerdócio, vestiu o habito da ordem seraphica, pro-
fessou no convento de Franqueira da província da
Soledade, e concluindo os estudos com reconhecido
aproveitamento e geral applauso de seus superiores,
foram-lhe conferidas as ordens sacras, e mereceu exer-
cer pela sua capacidade a honrosa missão de orador
evangélico, e reger as cadeiras de theologia e phi-
losophia.
Contando 46 annos de idade em 23 de Fevereiro
de 1820, e dirigindo o leme da barca de S. Pedro
o SS.'"'' padre l»io %'II, foi elevado á suprema di-
gnidade episcopal, que não sollicitára eque acceitou
com repugnância. Trocando, por obediência, a paz
do claustro pelas espinhosas e árduas funcçCes do
eminente cargo, que tão dignamente soube desem-
penhar com verdadeiro zelo apostólico, logo que to-
mou posse do bispado visitou os sitios mais remotos
da sua jurisdicção, e n'estas visitas consagrou pelo
niatrinioiiio muitas uniões illicitas ■, e tratou tam-
bém, como bom pastor, de promover, quanto em vi
coube, a felicidade do rebanho que a Providencia
confiara aos seus disvellos. Tsão menos diligente na
instrucção do clero, por ser a fonte da qual dimana
a civilisação e nicralidadí.- <l(is povos, concebeu o lu-
minoso pensamento de fundar um seminário ; e de-
pois de vencer todos os olislaculos com que teve de
luctar, e que se oppunliani á execução do seu pro-
jecto, mandou construir, .'i sua própria custa, na ci-
dade da llibcira tirandr, iini cdilicio adaptado áquel-
le fim.
N^esta ol)ra de tamanha con\enioncia despendeu
este venerando bispo avultadas sonimas, apesar da
txiguidade da sua côngrua, pela parcimonia com
que se tratava, e sem deixar de distribuir aos des-
validos valiosos soccorros cm dinheiro e vestuário.
Mas não teve o prazer tie vêr realisados seus mais
ardentes desejos, porque soube, já em Portugal, que
a(|Uelle edifício não se completara, nem chegara a
eer liabitado pelos mancebos, <|ue tendo fre(|uenta-
do as auhis externas, se destinavam para seguir a
vida ecclesiastiea, e começava a arruinar-se. Para
SC saber o estado em que estará actualmente o se-
minário, bastará vêr o (juc d'elle diz o sr. Chelmi-
<lil cm IS.t": .1 Este edifício de dons andares, e
umas trinta janeiias lie frente, nunca ficou acabado,
mas o bicho comeu toda a madeira, que é do pinho,
e em bn'Ve caindo eui pedaços augmenlará o cahos
<las ruínas. " ( I)
l'lsti> infausto snccesso contristou jirofiind.inirnle o
magnaniiUí) coração do sr. 1). ,lerou\mi>, por fica-
rem sem elVeilo os gnindi's sacrificios ipic fizera para
levar ao cabo uma obra de tanta utilidade; porem
superiíu' a lo<los us revezes, supportou mais este gol-
pe i'om sua iiiiniilavel risií;n.u;àii ; e estamos con-
M'llciilos, (jiie SC tivesse \,i|l,iilo piíra Cillui ^'er<le
' (!) Churograpliin Ciiliu-Vonliniiii. — Tom. I, i'iig. (>7.
374
Q TANORAMA.
não deixaria de concluir tão nobre empresa. Acre-
ditamos, que íjuando a poderosa mão do tempo im-
primir nos últimos restos d*aquelle edifício osêlloda
sua total destruição, aíuda os seus vestígios serão um
padrão eterno que recorde ás gerações futuras o Ín-
clito nome do seu fundador.
Durante a sua residência no bispado, conser%'oa
sempre a melhor harmonia com o governador mili-
tar e auctorídades civis •, e mereceu, por sua mode-
ração e sbudesa, a estima e respeito dos habitantes
d^aquelle archipelago. Teve igualmente o sr. bispo a
satisfação de converter á santa religião que professa-
mos ama sr.^ protestante, que ouvindo-o pregar,
vendo a unção de suas palavras tão repassadas de fe
e caridade, e tanto era harmonia com o seu modo
de viver, sentiu-se abalada, e teve cora elle diversas
conferencias em casa do sr. conselheiro Manoel An-
tónio Martins, onde estava hospedada, de que re-
sultou pedir o baptismo.
Eleito deputado ás cortes de 1827, regressou o ve-
nerando prelado ao reino ; pobre, porém acompanha-
do das benoãos dos seus diocesanos que o presavam
pelo saber, justiça e prudência com que os dirigiu
espiritualmente por espaço de sete annos. A longa
distancia que o separava d^aquelles povos, não o fez
nunca esquecer do paternal amor que Ihesconsagra-
va, e foi na respectiva camará um constante advo-
gado dos seus direitos ecclesiasticos e interesses tem-
poraes, como seu digno representante, e conhecedor
das necessidades locaes d"aquella provincia. Da sua
vinda para a metrópole resultaram no decurso dos
annos graves prejuízos á diocese \ pelo desleixo do
clero, soltura dos costumes, e relaxação introduzida
nas ceremonias mais augustas da religião -, como lar-
gamente expende o nosso amigo e insigne auetor dos
EíiuJos sobre Cabo Verde, a pag. lo" do vol. IV
da Revista Popular.
Em 1829 resignou o sr. D. Jeronymo o episcopa-
do, para tratar de sua saúde, já então deteriorada
pelo insalubre clima africano ; repousar de suas fa-
digas, e olvidar no retiro os dissabores inseparáveis
do homem proijo e lionesto, que só cumpre as suas
obrigações, e não se afasta jamais do camúiho da
honra e do dever. N"este periodo cmprcgou-se na
continua meditação das santas doutrinas c máximas
consisnadas no código do Divino Mestre : na rigo-
rosa observância dos austeros preceitos da regra de
sua ordem, que xião deixou de executar em quanto
suas forças physicas o não abandonaram, e no exer-
cício das mais bellas virtudes, principalmente as da
humildade e caridade, que possuiu em subido grau,
as quaes sendo as firmes columnas do niagcstoso tem-
plo do christianismo, estão hoje formando os mais
brilhcuites florões da radiante coroa de immorlal glo-
ria que lhe cinge a fronte. Taml)em não se uceou a
ser útil ao estado, quando suas moléstias o não im-
}iediam, e na.s commissõcs de que foi membro pres-
tou sempre o seu consciencioso voto e conselhos pro-
fícuos sobre os importantes negócios cm que era con-
sultado polo governo por suas luzes e experiência.
Serviu zelosamente a religi^P, conferindo o sacramen-
to da ordem a grande numero de sacerdotes, e o da
confirmação a inimensos ílcis, no seu oratório e va-
rias ()arochias desta capital ; c sagrou a máxima par-
le dos actuaes prelados da igreja lusitana, incluin-
do os de Braga e Torto, que foi sagrar ás suas com-
petentes cathedracs.
Foi presidente da socit-dade catholica, e da asso-
ciação da propagação da fé, da qual era estrénuo pro-
tector, c deixou depois da sua morte evidentes pro-
vas de quanto presava esta respeitável corporação.
Nomeado deputado da junta geral da bulia da Cru-
zada, por decreto de 23 de outubro de 1831, publi-
cado no Diário do Governo N.°299, requereu a ex-
oneração d"esite emprego pelo seu estado \ aletudinario
(e ainda mais por nimio escrúpulo de fruir o orde-
nado de um logar, que não podia já servir com sua
usual diligencia), e obteve a sua demissão por decre-
to de 18 de dezembro do mesmo anno, estampado no
Diário .N." 302.
Com a paciência do perfeito christão, soffreu osc-
raphico bispo com inalterável conformidade por mais
de três annos os cruéis effeitos da dolorosa enfermi-
dade de que fora acconmiettido, e que progredindo e
aggravando-se tomou inúteis os recursos da medi-
cina \ baldados os esforç-os de seu intelligente medi-
co, e frustrados os assíduos cuidados que sempre lhe
prodigalisára um dijno religioso, seu leal amigo e
antigo companheiro. Vendo próximo o termo da sua
existência, preparou-se com os auxílios espirituaes
para a ultima jornada, e pelas sete horas da tarde
do dia 30 de junho de 1832 expirou o ex.™° e
jgy mo 5f jj pj. Jei-onvmo da Soledade, deixando
registados nas paginas do livro da sua vida — ot ser-
viroi c actos de beneficência — que praticara em mais
de quinze lustros e dous annos. E nossa crença que
sua alma, soltando-se dos ténues laços que a liga-
vam, subiu á região celeste para ir gosar do premio
dos justos ; e agora ante o refulgente throno do Al-
tíssimo é um activo patrono dos que o amavam cá
na terra, e têem fé na efticacia das suas preces. Prasa
a Deus attender os rogos do seu servo, e ouvir lá
do céu nossa débil voz. . .
A seu semblante agradável, estatura alta, porte
grave e modesto juntava este venerando prelado um
génio dócil, urbanidade e maneiras affaveb, que lhe
grangearam as sympathias das pessoas de todas as clas-
ses da sociedade ; e recebeu sempre dos caracteres
mais conspícuos do paiz, e dos seus numerosos amigos
diversas demonstrações de apreço e consideração pelas
suas raras virtudes, que mais distinctamente se ma-
nifestaram nos seus últimos dias. Ordenou em testa-
mento, que os paramentos de seu uso se repartissem
pelas igrejas mais pobres de Cabo V erde ; e humilde
por convicção, determinou que seu funeral se liiesse
sem apparato. A sua ultima vontade teve ciimpn-
mento, sendo o seu cadáver conduzido na tarde do
1 .° de julho por seis sacerdotes pobres, para a der-
radeira morada. Acompanharam o iUuslre finado o
rev." padre thcsoureiro da freguezia do Sacramento,
no impedimento do respectivo parocho, o corpo cle-
rical da mesma, e alguns dos seus amigos, dosde o
palácio dos ex.'""* duques do Cadaval, onde esteve
íiospedado dezoito annos, até á igreja de Nossa Se-
nhora da Conceição da Carreira, pertencente ao pa-
çNj da Bemposta, c outr"ora hospício dos religiosos
da provincia da Conceição, que também habitou, e
de que fura um dos mais brilhantes ornamentos.
Ni'^. que lízemos a mais ininima parte d"aquclle lu-
íiibre préstito, fomos testemunhas da compunção,
que uma scena tão edificante pnxliiiiu no sou tran-
sito, e so divisava nos rostos dos expect adores.
No dia 2 do referido mci ficaram depositados os
dc->ivijos mortaes do decano dos prelados portugucics
na mencionada capella. com permissão regia, obtida
pelo nobre duque de Saldanha, tendo-se celebrado
antes as exéquias solemncs devidas a sua jerarchla.
officiando o ex."'" sr. arcebispo de Palmira, e assis-
tindo a este acto religios-j muitos ca\ .alheiro* d"tsfa
corte.
Honrados com a estima d'este respeitarei prelado.
faltarianics a um dever de gratidão, se não fôramos
deplr sobre a campa, que encerra suas venerandas
cinzas, este mesquinho, mas sincero tributo Jo nosso
o PA>ORA3IA.
375
profundo respeito e saudade ; sentindo que a aca-
nhada csplicra da nossa intelligencia nos nãopcrmit-
ta poder lecer em sublime estylo o seu merecido Cflo-
^io. 1'orém, confiados na imparcialidade de nossos
illustrados leitores, temos esperança de que hão de
relevar as incorrecções próprias de quem não está ha-
bilitado para tratar assumptos doesta naturesa, e
conceder á nossa publicação a sua benigna indulgên-
cia, na certesa de que não fomos exagerados no im-
perfeito esboço que fizemos dos dotes ph^sicos do
sr. D. Jeronymo, nem nos desviámos da verdade na
apreciação das suas qualidades moraes, como podem
confirmar todos que tiveram aventura de o conhecer.
Escrevendo estes apontamentos, e ampliando o
artigo publicado na Imprensa N.'-'133, realisánios a
idéa, que já haviamos premeditado, pedindo infor-
mações a pessoas competentes, ás quacs agradcicemos
a bondade com que nos coadjuvaram n^esta empre-
sa, sem outro interesse senão o de perpetuar ainda
mais a memoria de um varão l)enemerito, que ad-
quiriu por sua justa reputação incontestável direito
á veneração da posteridade.
INI.
Paiva R. e S.
LENDAS HISTÓRICAS.
O Demónio do Lago.
IV.
O Ijoíji) de Jjocli-Jjcvcn.
.São passados alguns annos. A donzella descuidosade
Inch-Mulioine, toniou-se uma mulher enérgica c vio-
lenta. A paixão substituiu cm sua fronte e oní seus
olhos o limpido arraiar da primitiva iiuiocencia. A
aureola que a rodeava perdcu-a a g(Milil fada diílNlon-
teith ; amam-na ainda, hão de aiiial-a sempre, mas
com um amor fatal, frenético e cheio do remorsos, com
um amor i(ue deslionra e mata ; ainam-iia porque é
formosissinia, porque; não ha resistir a um olhar seu,
porque o seu faiiar enfeitiça , mas já lho não consa-
gram aquclla veneração, aqui'lle cullo religioso que
a fazia ailorar dos monlanheziis e pescadores. K cjue
Maria Sluart não é .só a viuva (le Krancisco l] ; ó
ijue 6 tand)em a viuva de Darnley, sacrilieado jiim-
oUa e ])or sua causa ; é (|ue o saiigm; de Riceio, o
cantar italiano, apunhalado no seu aposento, lhe
manchou os vestidos; é ipie Chastelard moir<'u em
um ca(hifalsi) por .i ter amado o so julg.ir an)a(h)por
ella ; ó qui', depois do derramado laiilo sangue, sr.
eutn^gou vobintariainente a llolliwell o |(irala, llo-
lh\M'll s(Mi tí.Tceiro marido, o assassino de l)arnh'_y ;
<• i|ui' a liiha (h- tiaquos V não foi sunieiile iuqilaea-
vel como seu i)ae (^)iilra a heresia, ma» iandiom me-
receu ser ainaldiruail.i c dcspresada |H)r João Knox,
o iMveníivel aposlolu do pii'sb_\ lirianismo, o unieo
homem <|ue dcbahle pn)i'urai;i >.eilu/.ir e fascinar-, é
c|U(! Diogo IMurray, simi irmão, que cumulara de
honras e Ihíiis, encontra a gliu'ia na ingratidão •, é
i|ue a desgraça e a infanda seguem [por Ioda a parte
esta rainha ih's,iforluna(lM, cheia de génio e resplan-
dccenle de formosura ; r (|iir a pudii il.' caprichos
•inguhires, (h'Megr.imeiilos o iriíues, loinar-se-ía
odiosa á historia se Deus não pernntlissi' (|ue a ex-
piação conu-çiísse para ella na terra. l''oi esposa des-
euidosa, será mãe; olviíhida ■, foi rainha iuqirudente,
v;i'a aliaiidoiiada o IraiMa ■ c líualuieiile irmiiá coiii
o próprio sangue tanto sangue precioso que fez der-
ramar.
Agora que a tornamos a encontrar, Maria Stuart,
vencida, mas infatigável, foge do castello de Loch-
Levcn onde a havia encerrado a nobreza rebellada,
para recomeçar uma vida de luctas, de guerra, de
violência, e de paixões.
Era a 2 de maio de I068:, a rainha esperava im-
paciente, havia algum tempo, o signal que lhe ha-
viam promeltido Jorge Douglas e João Beatoun,
dous dos seus mais fieis e verdadeiros amigos.
Jorge, parente do senhor de Loch-Leven, não pu-
dera vêr Maria sem ser tocado dos seus encantos.
Encarregado de a vigiar, quizera favorecer-lhe a
evasão •, mas descuberto o seu intento e constrangido
a fugir, congregara fora alguns partidários da rai-
nha, deixando um dos seus parentes mais moços, de
idade de 10 annos, cognominado Vuiit/las o pojuc-
nu, encarregado de abrir as portas da prisão á sedu-
ctora e fatal beldade.
O pequeno Douglas desempenhara com tanta maior
alegria a missão de que fora incumbido, quanto tam-
bém se sentira mo\ido de terna compaixão pela lin-
da feiticeira. Com efVeito, a i2 de maio, depois de
Maria se ter retirado ao seu aposento, bateram á
porta, e o pequeno Douglas, ajoelhando na presença
da rainha, annunciou-lhe que estava livre, porque
tinha em seu poder as chaves do castello.
— "Livrei" bradou a raiidia ■, .. abençoados se-
jaes vós que tivestes compaixão d"a(juella que o seu
povo abandonou. "
— u Senhora, o tempo urge ..." acudiu Douglas,
perturbado com estes testemunhos de gratidão.
— íi Estou prompta" respondeu Maria Stuart, le-
vantando-se ; e alguns momentos depois, de braço
dado com o seu joven libertador, franqueava, disfar-
çada, as portas do castello. Uma barca estava amar-
rada perlo. As aguas do lago do Loch-Leven, ne-
gras e caladas, balouçavam o frágil baixel. A lua,
cum])liee na fuga, cubría-a negro véu. Era uma nou-
le admirável para o intento.
Anl(}.s do líndjarcar rocordou-se do lago de Mon-
leith, (los folgares da sua infância, e talvez também
do Kelpy, porque, tocando no braço do Douglas,
que curava com afan de preparar a barca, disse :
— u Nunca embarquei que me não acontecesse al-
guma desgraça ■, e as aguas (|ue tenho cursado sem-
pre receberam os meus prantos ! "
— lí As aguas do Jjoch-Leven j)rimeiro receberão
o meu sangue <(ue uma só lagrima vossa- redarguiu
com energia o jov<'n Douglas. ..Si; não conseguir
restituir-vos á liljcrdado, malar-me-hei. "
— iiCalae-vos, por quem sois!" exclamou Maria
Stuart.
E viran<lo-se para as negras muralhas que tinliani
sido (^^(^«'las conlldenles dos sousdo^go^los, a rainha
do Kseocia dirigiu ao cou uma fervorosa prece. Cou-
sa singular '. (juanto mais o fogo das paixões munda-
nas lhe requeimava o poilo, tanto mais cUo so lho
abria aos consolos da religião.
E que a (ilha do calhulico <la<|Ues \\ consumma-
do» todos os desvarios, experimentava uma síklo inex-
plicável (|U0 só o orar fervente podia apagar.
Depois Maria saltou [>ara a barca, que impellida
vigorosamente pelos remos, deslisou-se como mu al-
cvoíi por sobre as aguas.
i\ algumas braças da margem, olhou a rainha pa-
ia a hm quo d<'ixára 110 sou cpiarto para servir ilo
signal aos seus amigos oMOiididos por aquellc.s eou-
lornos. (> peijuono Doui;las ouviu tiiu stispiíx).
— i. Tendos .saudados do ai,
iiiidamonlo o mancebo.
pei
'iiutou li-
376
O PANORA3IA.
— ;< Não tenho saudades ; tenho medo " disse Ma-
ri;i Stuart. íi Aquella luz avermelhada é uma ruim
estrella , parece tòr de sangue I "
u Aquella luz é a liberdade, 6 minha sobera-
na ! "
— ti Sim, a liberdade, para combater, a liberda-
de para castigar rebeldes ! Sangue! sempre sangue!
Douglas, Douglas, eu não nasci para esta vida terrí-
vel que tenho levado ! »
Douglas largou os remos, e vendo Maria Stuart
pensativa, poz-se a contemplal-a muito triste.
1'arece que era esta hora azada pára o meditar.
Loch-Leven esquecera •, os perigos haviam desappa-
recido :, Maria olhava para as ondas, Douglas olhava
para Maria, e o silencio era apenas cortado pelo ru-
morejar da agua batendo no costado da barca.
N'aquella noute tranquilla a rainha fugitiva dava
largas ao coração, e aspirava, nos perfumes da pri-
mavera, os perfumes da sua \ida passada. Lerabra-
va-lhe o bello tempo que passara em França, o seu
trbte regresso, os seus crimes, as suas faltas, os
seus remorsos, e no meio d'esta immensa serenidade
sentia a alma desprender-se-lhe pouco a pouco das
pungentes angustias que a aflligiam.
— "Douglas" disse afinal, u não ameis nunca I
conservas o coração tão puro como o esplender dos
vossos olhos. E o único conselho que eu posso dar-
vos em premio da liberdade que vos devo.»
— « E tarde," respondeu Douglas, com voz cor-
tada, «quando jurei salvar-vos, jurei também con-
sagrar-vos um eterno amor. '•
— ii\ós também, pobre mancebo!"
Fez-sc largo silencio. A lua, até então toldada de
nuvens, descubriu-se repentinamente, innundando a
barca com o seu paltido clarão. O pequeno Douglas
avistou na corrente um lyrio, tocante emblema para
uma rainha de França. Debruçou-se da barca, e com
o auxilio de um remo pôde apanhar a graciosa ílòr,
que oftereceu a Maria Stuart. No cálice refulgia uma
pérola ; era uma gota de agua, ou uma lagrima .'
— "Vossa Magestade fez que o lago ílorejasse, e
que o demónio de Loch-Leven vestisse galas para
:i vêr passar. "
— a O que? pois também u"este lago ha algum
génio ? "
— «Se ha ! referem as baladas. . . "
— « Oh I não me falíeis de baladas, Douglas ; já
gostei muito d'ellas, já as cantei muitas vezes . . O
demónio de Loch-Leven não \al mais que odeMon-
teilh, e de certo não será mais propicio á rainha do
que aquelle o foi á donzella. "
E Maria Stuart, sorrindo triste, e escarnecendo
da superstição de que todavia não se julgava isenta,
contou o seu passeio no lago de Monteith, os seus
esponsaes com o Kelpy, e as lúgubres viagens que
fizera depois.
Apenas acabara. Douglas exclamou :
— "Sei que ha uma olforta agradável ao génio de
Loch-Leven ; " e tirando do seio as chaves do cas-
tello, atirou-as á agua.
Ainda bem as aguas não as haviam recebido, ouviu-
so um tiro de fuzil. Tinham dado pela fuga da rai-
niia.
Douglas fei-se muito pallido ;; Maria Stuart soltou
utn grito, e a barquinha retomou o seu caminho ou
antes o seu vôo para a margem opposta. O trajecto
passou-se silenciosamente, e ao abordarem dijse a
rainha ao guia :
— "Bem vedes, Douglas os la2;os da Elscotia re-
pellem-me, e a morte até n'elles me persegue. "
A curta distancia, o ji ven Douglas apanhou uma
iJòr de cardo, e ollerecendo-a á rainlii, que trazia
na mão o lyrio, disse, alludindo aos eiqbleinas que
representam :
— " Rainha de França e de Escócia, os vossos
súbditos vos esperam. "
Depois, de um clarim que trazia suspenso ao cin-
to, tirou alguns sons. Jorge Douglas, João Beatoun,
e Cláudio Hamilton, que esperavam escondidos nas
moitas, accorreram a saudar a fugitiva.
Maria viu-se em breve cercada da sua nobreza
fiel. A esperança reentrou-lhe no peito, julgou-se fi-
nalmente senhora da sorte, e exclamou, abraçando
os seus amigos :
— « Estou salva 1 "
E estava perdida. O atravessar do lago de Loch-
Leven precedeu pouco tempo o seu largo e cruel ca-
ptiveiro , e no dia 8 de fev ereiro de 1 58", a filha de
Jaques V, a viuva de Francisco II, a rainha de
França e de Escócia, após desoito annos de ancieda-
des e de prisão, realisando a prophecia paterna, pòz
a cabeça, sempre viçosa e bella sempre, no patíbulo
mandado levantar por Isabel.
O carrasco tremeu quando lhe ordenaram que des-
carregasse o golpe, que teve de repetir. A alma de
Maria soltou-se das prisões terrenas reconciliada com
Deus pelo arrependimento e pela oração. Todos os
nossos leitores conhecem os pormenores d"esta subli-
me catastrophe.
Talvez que antes de subir ao cadafalso de Fothe-
ringay, n'essas horas dolorosas que consagrou ao exa-
me da sua vida, Maria Stuart se lembrasse das su-
perstições da sua infância, e dos sinistros agoiros do
demónio do lago.
Ou lembrasse ou não, o génio das aguas apodcrou-
se da sua memoria, encarregando-se de a perpetuar;
porque, nas margens do Men, que corre perto de
Fotheringay, colhem-se umas pequenas florinhas ver-
melhas que (segundo a legenda) tomaram aquellacór
do sangue da infeliz Maria.
(Trad.) L. IIilb.^ch.
O bcy e o louco. — No tempo de um bcy, cujo
nome se não declara, um habitante de Constantina
endoudeceu, ou fingiu ter endoudecido, puis que ali
e este um meio excellente de conciliar o respeito e
attrahir as dadivas dos fieis. A sua mania era consi-
derar-se como sendo o próprio Deus Todo Poderoso.
O bey mandou-o chamar, e em presença dos offi-
ciaes da sua corte, disse-lhe com voz terrível.
— "Não iia muitos dias trouxeram á minha pre-
sença um homem que se intitulava o propheta en-
viado por Deus. Mandei-o metter cm um cárcere, e
como sustentasse tenazmente o seu dito, ordenei que
fosse decapitado.
O doudo ficou silencioso.
— ..Wue dizes a isto.'" perguntou o \te\ .
— .. Digo que lizcste muito bem castigando o im-
postor. "
— "O que? pois não era o enviado pi>r IX-us .' "
acudiu o l>cy.
.Como o podia ser, se eu lhe não tinha outor-
gado o doiu da prophecia .' •• respondeu o doudo com
a maior presença de espirito.
O bcy desatou a rir, e determinou que o jolta»-
sem.
— Os homens, em geral, são mais propensos a la-
zer perguntas ociosas, ou fiibas unicamente de uma
curitsidade vã. e muitas \c:eb reprehcniivel. dot|u>-
solícitos em procurar adquirir noções úteis e neces-
sárias.
48
o PA1VORA3IA.
•3/ ,
BILBAU — HOSPITAL ClVII.
KiLRAD <• a povoarão mais iinporlanlc, iiiaii apriísi-
vt'l <• |)()ivi"iilurn iiinis Diml-nla ilf Hitca^a.
O leu |>ros|><cto é suiiiiiiaiiictilc ai;railavel :, asmas
ião liradat a oonlel, <• csmiriadamoulií calijaiiaí, aí
i«-,ai Im'111 lonstiuiihts, iis passeios vastoi. o ameno», e I
IJicilmfiili', por loila a ])arte seolisiTva omaioraccio
<• ('iii(lu<l(i, o (|iiii muilo concorre para tlcsile hv^o se
formar a mais lisont^iira idiía da leira e do» mo-
radores,
Muilo lia (pw \<'r ii'<'»Ih povone3o, limitar-iioí-lio-
mos, porém, a indicar o» edilJcios e cousas miiil lio-
lavi'is.
V<ii.. 1. — 3." Suitiu.
Knlre i.s templos sohresáe a insi-^ne lianiiica di«
Santiaf;o, a mais antiga dai parocliiaa de liilliaii. E
de ftindaeão imnieinorial, e consta quu no ultimo
([iiartel ilo século It." Wra melhorada e ampliada,
conalruinilo-se posteriorii\eiile o eôro, o ntrio e u
claustro lio Anjo. ( ompúe-so de Iro» navps e Ireio
capellas. t) presliyterio é de mármore e o frontal e
taliernaeulo do alinr-mór ile praia. Devem tambcui
\i.Mtar-se n parochia de Santo António AUwde, fun-
dada nosecidola.'-', «jue consta de Ires naves, a ii;r»-
jade S. João, com uma boa lacliada i;reco-roman»,
e a deS. Nicolau de llari.
NOVMAIUIU) úl, 1I1j'J.
378
O PAJNORA3IA.
o hospital civil, que a nossa gravura representa,
é talvez, é de certo, o monumento cjue faz mais hon-
ra a Bilbau, e de que esta villa mais deve gloriar-
se. Deu-se principio á sua edificação cm 1818, sen-
do o risco da obra traçado pelo haLil architccto D.
Gabriel Benito de Orbegozo. E uni parallclogram-
mo rectângulo, e consta de quatro frentes, tendo a
fachada principal em um dos lados menores. Com-
põe-se o pórtico de quatro columnas, qu<! sustentam
nma cornija com triglifos e outros adornos próprios
da ordem dórica. No friso, sobre ointercoliimnio do
centro, ha uma lapida, com a respectiva inscripção,
coroada pelo escudo das armas da villa. A fachada
que acompanha a rua direita mede 23o pés em com-
primento. A destribuição interior corresponde ao<jue
deve esperar-se do severo aspecto do monumento.
As enfermarias são bem ventiladas e a todos os res-
peitos excellentes. O amphitheatro, a capella, a bo-
tica, são dignas de particidar exame ^ e segundo a '
opinião dos que tem visitado Bilbau, é impossível j
exceder-se a solicitude, o disvello, a caridadf com
que os enfermos são ali tratados e assistidos de todo
o necessário. Custou este edifício a avultada somma
de 100:000,^000 réis. A administração dos conside-
ráveis fundos dVste hospital está encarregada ajun-
ta da caridade.
ISão menos digno de mencionar-se como estabele-
cinio de caridade, é o hospício ou casa da Miseri-
córdia. Expulsos os jesuítas, por alvará de Carlos III,
foi supprimido o collegio de Santo André, que per-
tencia aos ditos padres, e onde se dedicavam á edu-
cação da mocidade que ali concorria em grande nu-
mero. Tratou-fe de tirar o partido possível do aban-
donado edifício, o que de feito se conseguiu, conver-
Icndo o templo em parochia, e o coHegio em hospí-
cio, fazendo-sc-lhe as obras indispensáveis. Esta casa
conserva-se em óptimo estado, e nV'lla recebem ali-
mento e soccorros abundantes muitos pobres, sendo
considerável o numero dos que na mesma residem, e
se empregam em vários misteres, para o que se cons-
truíram e organisarani as convenientes officinas. As
creanças de ambos os sexos recebem ali educação es-
merada e cliristã, destinando-se os varões ao exercí-
cio dos differentes officios. lia também uma sala de
expostos ou engcitados, onde estes são recebidos e de-
pois entregues, para serem criados, a amas de fora :
todas asdespezas correm por conta da municipalidade.
Passando aos espectáculos públicos encontramos
apenas em Bilbau digno de parlicularisar-se o thea-
tro, que se começou cm 1833, concluindo-se no sc-
gumle anno. E decorado com bastante gosto, c reú-
ne todas as condições desejáveis em estabelecimentos
d(! similhante natureza n'uma torra de provincia.
A junta provincial (ayuiúamiodo) reunj-se em
um vasto e soberbo palácio. ísa sala das delibera-
ções admira-se uma excellente i)intura que repre-
senta a Conceição de IMaria Santíssima. No resto do
edifício acham-se estabelecidas a junta e tribunal de
commercio, os archivos, e uma extensa galeria com
os retratos dos reis. O grande terreiro interior serve
<le mercado de cereaes.
.\ praça nova principiou-se a edificar em 31 de
dezembro de 18áí). Tem de comprimento iii pés c
hm; de largura. E formada de graciosas arcadas,
apresentando em cada um dos lados maion^s, 18 ar-
cos e 1 'c nos menores, de forma e dimensões iguaes.
todos sustentados por columnas dóricas. Em um dos
edificios que circumdam esta formosa praça funccio-
na a corporação municipal.
A praça \clha é scímcnte notável por ser onde se
faz o mercado de comestiveis, ijue ali se encontram
de uma abundância c liaratesa incríveis.
A ponte de Santo António é antiquíssima, e dis-
tingue-se peia sua solidez, e atrevida construcção.
O cemitério não é dos menos curiosos monumen-
tos de Bilbau; concluiu-se em 1830.
Um portal adornado de columnas dóricas, sobre-
pujado de uma cruz e outros emblemas próprios do
logar, dá ingresso ao mencionado cemitério, que é
um vasto parallelogrammo rectângulo de 232 pés de
comprido sobre 180 de largura, comprehendendo ex-
tensas galerias, alguns sepulchros de merecimento, e
um deleitoso jardim no centro. Em frente da entra-
da vé-se a capella, que é de uma architectura serera
e elegante.
Poucas povoações haverá na península que conte-
nham tão grande numero de vistosos passeios públi-
cos como Bilbau. O do Areal abrange sete ruas lar-
gas e compridas e três menores, todas orladas de
frondosos robles, acácias, plátanos, e outras arvores •,
três jardins engradados ;, e é íiluminado á noite com
candieiros de reverbero sustentados por airosos can-
delabros de ferro. O de Santo Agostinho não é me-
nos aprazível ■, começa nas ruinas do convento d'esta
invocação, e segue pela margem do rio ; tem uma
rua de quatro mil pés de extensão, guarnecida de
um lado e outro de Ixinito e copado arvoredo. Além
doeste conta Bilbau outros passeios propriamente di-
tos, e algumas ruas arborisadas.
Os habitantes de Bilbau dbtínguem-se pela sua
cortezia e generosidade ; são honrados, activos, la-
boriosos e emprehendedores. A sua bravura nunca
se desmentiu, c ninguém ama com maus sinceridade
a sua pátria. As mulheres são extremamente aceia-
das, e cuidadosas no arranjo de suas casas e famílias.
Religiosas e castas observam no seu trajar a maior
compostura e decência.
Não é Bilbau desprovida de institutos de publica
instrucção ; além de uma escola de latiiiídade, exis-
tem estabelecidas cadeiras de mathematíca, línguas
vivas e desenho, afora as cadeiras sufficientes de ins-
trucção elementar, que são bastante frequentadas.
O commercio d''esta importante povoação em ou-
tro tempo iinmenso, quando alimentado por uma
poderosa marinha, acha-se em bastante decadência,
para o que não tem concorrido pouco as circurastan-
cias geraes da Hespanha quasi constantemente lace-
rada pelas guerras civis : comtudo ainda é bastante
considerarei, sendo o principal género da sua expor-
tação a lã ; importa ferro, sedas, tecidos de algodão
e bacalhau.
Eneontram-se em Bilbau algumas manufacturas
interessantes ■, mas a sua principal industria é a de
construcções navaes, que ali se fazem iMm a maior
perfeição e solidez, sendo também a que se acha
ii'uma situação mais vantajosa.
Bilbau deve a sua fundação ao senhor do Biscava
D. Diogo Lopes de Haro, que no primeiro anno do
Século I i." expediu um privilegio a favor dos mora-
dores de algumas cas;is que existiam sobro as mar-
gens do Nerbion ou Ibaizabal, para que fundassem
uma povoação. Confirmou e ampliou aqnella car-
ta de privilégios o\\ foral 1). Fernando o rmpraxn-
(A), devendo-se-lhes por const-quencia o principio da
formosa villa que descrevemos. Conservou €-lla o no-
me de Bilbau por que era conhecido desde temjwim-
niemoríal o sitio em que foi e<lific.id.T, c onde se
achavam a ponte do Santo António e a igreja de
Santiago. O primeiro monareha qoo a visitou fui
1>. Aflonso \l em 1331, o qual ordenou que n.in
■]iudesse nunca sor alienada da conia, c que se lhe
fizessem muralhas, destinando para isso l.iiOO ma-
ravedis em cada anno até prefaicr a somma do
T.oOO.
o PANORAMA.
379
Dos transtornos que em tudo e por toda a parte
Be observavam no século 14." não foram isentas as
províncias vascongadas, nem tão pouco Bilbau. De-
sencadeadas as paixõi-s, S(!nhore3 os poderosos da for-
(;a, o povo sem amparo e prolec<;ão, viam-se por to-
da a parte incêndios, assassinatos, roubos, quantos
crimes é capaz de commelter o homem, quando se
olvida das santas máximas do chribtianisino, ou quan-
do não ha para liie reprimir os excessos uma aucto-
ridadc cora verdadeiro prestigio e inílucncia. Corria
o sangue abundaniemente dentro e lóra das muralhas
de Bilbau, pois ás causas que ai-abamos de indicar,
e que eram communs ás três províncias e a toda a
nação, accresciam n'esta villa os distúrbios suscitados
por occasião das eleições para a junta provincial,
ttuiz el-rei D. João 11 pòr termo a tantos escânda-
los e horrores, e expediu um privilegio, approvando
a concórdia que entre os diUercntc~s partidos se ha-
via tratado, e impondo severos castigos a quem quer
que levantasse novas discórdias, aos que n'ellas to-
massem parle, e aos que se introduzissem armados
na villa.
Não foram as domesticas discórdias os únicos ma-
les que affligiram esta villa. No mesmo século em
que 60 fundara, e no principio do seguinte fizeram
extragos da maior consideração as inundações. Rc-
petiram-sc eslas de uma maneira espantosa no sécu-
lo 16.", causando danuios incalculáveis, e sendo des-
truídos muitos edifícios e até ruas inteiras.
Entretanto a prosp(>ridade de J5ilbau foi em au-
gmenlo, e cresceu de ponto sob a protecção dos reis
calholicos. Melliorarain-se as suas ruas, construiram-
se novas casas, c alargaram-se os limit<'S da po\oa-
ção, demolindo-se para esse fim a antiga cerca, ijue
a diflerença de tempos e costumes tornara desneces-
sária.
1'erlurbaram a paz d'esta villa desagradáveis oc-
correncias no decurso dos séculos 10.", 17." e 18.",
procedidas de se pertendcírem levar a eflbito certas
disposições contrarias ás isenções e fraiiqu(,'zas de(jue
sempre gosaram os vascongados.
Declarada a guerra com a republica, fui ebta\illa
occupada [iclas tropas francczas no anno de 17'JG.
Livre IJilbau do domínio estranho em consequência
do tratado de S. Ildefonso, viu d'ali a poucos an-
nos atear-se a discórdia dentro dos seus muros com
o pretexto de ter querido o si^nhorio impor direitos
sobre alguns artigos ile importação, que cniiu ap[)li-
cailos para íi conslrucção d<^ um novo porto que em
obsequio a Godoy se devia diainar da l'az. Este mo-
tim |>0)mlar, é conhecido no paiz pelo nome de Za-
macoladu, por chamar-se Zamacóla o (pie o promo-
vera.
Rebentando a gloriosa guerra da iuilependencia,
armou-se e levantou-stí ]5ill)au em defesa de tão sa-
grado objecto. Caiu S(il)re ella o exercito Iraneez, cu-
ja sup(?rioridade numérica piVle mais que a valorosa
rcsis(i'ncia dos (pie derramaram o seu geui^roso sangue
em defesa da pátria, sendo por (íonse(piencla occu|)a-
da a villa mivameiíti' pelas tropas IVaiicezas, (pie a
saquearam deíapieiladainenle.
Este, (iesiislre, poriMU, não é [)ara comparti r-s(í com
os (pie lhe provieram da prolongada e terrível guerra
civil em nossos dias. llm ciiiitiniiado bloijueio, a per-
da de tantos habitantes mortos nus eiimbates, três
circos, enlrií os (piaes se distinguiu pela sua largadu-
raíjão e fiineslus elleilips, o de ISliti, piizeraiii a villa
de Rilluiu n'uma situação embaraeuia, de ipic lho
lem custado a levaiitar-se.
Está silii.ida Hilliaii sobre as margens du rio Ner-
bion, ipie os naluraes channim Ibiiizabal, ao» 4I>"
l.'i' de latitude de l>" ií' c longitude. tJosa de be-
nigno clima, e eleva-se apenas 12 pés sobre o nível
das aguas. Tem 900 casas e 13,000 habitantes, pou-
co mais ou menos.
FR. MIGUEL CONTREIRAS.
Cresciam as necessidades da pobreza ao par da di-
ligencia e charidade de Fr. Miguel Contreiras :, mas
nem as difficuldades que o cercavam, nem a multi-
plicidade de cousas a que linha de attender no exer-
cício de tão santos deveres, lizeram soçobrar o animo
do venerando sacerdote ; já então muitas pessoas cha-
ridosas o acompanhavam nos seus generosos esforços
em prol dos desvalidos : cumpria, porém, centralisar
esses esforços, organísar para assim dizer a beneficên-
cia, de sorte que os soccorros so tornassem mais pro-
fícuos, e mais regular a administração do património
dos necessitados. Estas circumstancias obrigaram de
certo Fr. Miguel a pensar nos meios de remediar os
transtornos inevitáveis provenientes da falta de uma
organisação conveniente ; nem descansou sem ter le-
vado ao cabo o sou intento, creando em agosto de
1 'l!)8, sob os auspícios da rainha D. Leonor, a ir-
mandade da IMísericordía de Lisboa, modelada, em
parte, pela que existia em Florença desde 13o0.
A Misericórdia de Lisboa, a primeira de l'ortu-
gal e das Hespanhas, é um glorioso monumento da
piedade esclarecida de nossos maiores, e o testemu-
nho mais íncontrastavel de que o coração d'esses
guerreiros robustos que arvoraram o estandarte da
cruz nas muralhas de Ceuta i; Tanger, que depois
dobraram o calx) das TornUMitas, abrindo á cívilisa-
ção uma nova e ampla estrada, (pie finalmente eter-
nisaram o seu nome e o nome portiiguez, por feitos
do incrível audácia, nos inarci e terras do oriente,
qu(! o coração d^esses homens, que Voltaire ap|ielli-
doii de illtístns pinitas, não era insensível ás lagri-
iii.is do pobre sem amparo, da viuva desvalida, da
órfã abandonada, do enfermo tolhido de dores.
Se a Misericórdia de Lisboa, se as demais Mise-
ricórdias espalhadas por toda a monarchia, não pres-
tam hoje á humanidade os serviços que podiam e de-
viam jircslar-lhe, attribui isso aos homens e não á
instituição, que a não podia haver, attendendo á
epoclia em que foi creada, nem mais previdente,
nem mais presladía, nem mais repassada do verda-
deiro espirito do ehristíanismo. Lede os seguintes elo-
(paentistinujs trechos do relatório que precçde o de-
creto de 2ti de novembro de 1851, que modificou a
legislação por que se regulavam os (ístabelecimenlos
de caridade em Lisboa desde 183o, e dizei-iios de-
pois se não coneorthuís cmnnosco em que a inslllui-
eão das Misericórdias, a obra do singelo frade da
Trindade, foi a mais gloriosa herança <|ue o século
líi." legou aos \ indoiiros :
li lia séculos já (diz o relatório) ([ue a primitiva
instituição do hospital, da gafaria, e da albergaria
dos tempos fcudaes ('<\ra aperfeiçoada pela eivilisação
christã progressivamente illiislrada, e a linnl se for-
mulava na mais completa de (odasas instituições clin-
ritativas — a Misericórdia portugueza — irmandade,
cujo compromisso ira um modtMo, e cuja populari-
dade em liveve tempo a ler espalliar desde a ciipilui
a Iodas as províncias do reiiu>.
li Forte pela protecção real, animada pelo faTor
das leis, rica pelos legados de milliares >U'portuguo-
zes, (pie de Iodas lis partes do mundo lhe aiiiili.im,
essa admirável e veneranda conlr.iria Hcoinpaiiliou
t.iuiÍHMn depois u cspuda cuntpiiiitadoru, e o iiatrulu-
380
O PAIVORAMA.
bio descobridor da Liusitania aos mais remotos con-
fins da terra -^ levando com a palavra do Evangelho
as obras que não desmentiam da palavra, e que dei-
xaram, ainda nas mesmas conquistas em que já o
dominio portuguez se perdeu, a memoria indelével
da nossa pit^dade e da nossa misericórdia.
11 Nenhuma instituição social lez ainda, nem fará
jamais tanto para remediar as inevitáveis desigual-
dades da sorte, e para fazer irmãos o iguaes diante
de Deus e do Evangelho a todos os homens. Aqui
não 6 a administração publica ou a municipal que,
pelos princípios da economia politica vae cm auxilio
dos que não possuem, do órfão c do desvalido, para
que o estado tire maiores vantagens, para que o nu-
mero de contribuintes se augmente, não é a policia
que manda velar nos indigentes, curar os enfermos
e enterrar os mortos.
"O pensamento portuguez é todo outro, todochris-
tão, todo evangélico : são os irmãos mais afortuna-
dos que se juntam em redor do altar do Deus das
misericórdias para ir em soccorro de seus irmãos in-
felizes •, é o rico dando o braço ao pobre para o am-
parar; é o proprietário repartindo com o proletário ^
é o nobre, o grande, o dignitário do estado lavando
os pes ao mendigo plebeu, curando-lhe as chagas,
deitando-o em seu leito ; é o pae de famílias aqui-
nhoando o pão de seus próprios filhos com o engei-
tado que não tem pae, adoptando o órfão para o edu-
car, levando o alimento e os remédios ás casas da
miséria envergonhada, que não ousa mendigar, for-
necendo traballio ao operário sem recursos, acompa-
nhando piedosamente o próprio criminoso até aos tri-
bunacs para o defender, aos degraus do throno para
supplicar mercê por elle, ainda depois de convencido
e condemnado, não o desamparando em fim até ás
escadas do patibulo para o confortar, com a imagem
do Rcdemptor, com a promessa do eterno perdão,
no momento sujiremo, em que a justiça dos homens
não pode já apicdar-se."
Não se pode dizer mais nem melhor da piedosa
fundação do liumilde frade.
Outro estabelecimento de beneficência da maior
inilinrtancia, que lhe deveu incontestavelmente a
existência, recebendo d'elle os mais (íflicazes servi-
ços, recommenda á veneração da posteridade a me-
moria de Fr. Miguel Contreiras.
E o utilissinio liospilal das Caldas da Rainha, que
ainda hoje felizmente existe, mandado edificar pela
virtuosa rainha a senhora D. Leonor por conseliio c
exhortações do seu illusire confessor.
O magnifico templo da Alisericordia', que o terrí-
vel terremoto de ITiJo sumiu nas minas, e que era
situado junto da Uibeira A eliia, foi, a seus rogos,
começado por el-rei D. ISIanoel, concluindo-o D.
iloão 111 no anuo de liiSt; a grandiosa fabrica do
Jiospital do Rocio, começado por D. João 11 a lo
cie maio de 1 4-92, no (jual mandara incorporar todos
os hos|>ítaes disjiersos pela cidade, estava jior con-
eluir. l). Manoel, solicitado instantemente por Fr.
INliguel Contreiras, cuja influencia era immensa as-
sim na corte como em a cidade, ordenou que se re-
matasse a obra com a grandeza própria do generoso
.•mimo d'nquello monarcha.
Em quanto a ardente charidade do venerando sa-
cerdote amparava os desvalidos, creando os pieílosos
iíistitutos que eonlieccmos o enumeramos, a sua jxi-
lavra, e sem duvida o exemplo de Ião esplendidas
virtudes, trazia ao seio da igreja christã muitos dos
que baviam nascido c perseveravam na religião de
Moisés, e que eram então uma parle considerável, e
porventura a mais industriosa e opulenta da popula-
ção de Lisboa.
Chegou o mez de janeiro de ISOo, e o que não
puderam trabalhos proseguidos com tão incansável
zelo, acabaram os annos e as enfermidades suas inse-
paráveis companheiras. A '29 d'esse mesmo mez a
morte do confessor da rainha a senhora D. Leonor,
o instituidor da Misericórdia de Lisboa, o amigo e
o protector dos abandonados da fortuna, foi annun-
ciada pela cidade e geralmente considerada e senti-
da como uma calamidade publica. E foi de feito \
que homens como Fr. Miguel Contreiras não appa-
recem com muita frequência no succeder dos tem-
pos.
Sepultaram-no na capella-mór da igreja da Trin-
dade, em sepultura rasa, sem letra ou epitaphio.
O convento da Trindade, pela extineção das ordens
religiosas , foi vendido em basta publica , e pro-
vavelmente as cinzas de Fr. Miguel achara-se con-
fundidas no alicerce de alguma edificação burgue-
za ! . . .
Ijogo depois da sua morte, ordenou-se qne o s«u
retrato fosse debuxado nas bandeiras da Misericórdia :,
e por accordão de 15 de setembro de 1376, sendo
provedor Ruv Lourenço de Távora, que n'esse an-
no serviu device-rci da índia, determinou-se que se
pintasse com o habito da sua ordem, e com as letras
F. M. I. Fr. Miyutt Instituidor. Esta louvável pra-
tica foi ampliada a todo o reino e conquistas por al-
vará de Filippc III, passado em Lisboa a 26 de abril
de 1627.
PORCELANA I>E SEVHES.
/ aso i<i/ríformc. jior ]U. H. Rrifiiicr.
A NOSSA gravura representa uni liello spccimcn dos
magnificos productos das celebres mamifacturas de
Sòvros, cuja reputação pôde hoje n-pular-se ujiivcr-
o PA:^0RA3IA.
381
sal. É notável principalmonte pela elegância e no- |
vidade da frfrma. Recoinnicndamol-o, assim como '
outros modelos igualmente preciosos, que tenciona- j
mos publicar, á atteiição dos nossos fabricantes de |
porcelanas, cujos trabalhos já obtiveram na grande '
exposição de Londres honrosa" menção. Accusam ge- [
ralmente os nossos operários de falta de gosto : mas ■■
com a maior injustiça : o gosto artístico cria-se pelo 1
estudo dos bons modelos, guiado por uma esclareci-
da theoria. Como podem exigir-se dos nossos operários
estas habilitações, se até a maxJma parte d'elles ca-
rece da mais vulgar instrucção technica e do conhe-
cimento essencialissimo do desenho ? Fizeram-se as
pautas para proteger a industria nacional : mas a par
das pautas devera apparecer a instituição das esco-
las professionaes, sem as quaes as pautas são, em
muitos casos, um vexame inútil. O Conservatório
cias artes e officios nem prestou, nem podia prestar,
talvez, á industria os serviços e o impulso de que ella
carece.
Cabe também á illustre cidade do Porto a inicia-
tiva na fundação de uma escola industrial, que, a
julgarmos pelo quadro das disciplinas, deve ser cx-
cellente. Honra pois aos portuenses, sempre distinc-
tos pelo patriotismo e pela dedicação :, honra e gloria
á benemérita e respeitável sociedade, que desinte-
ressadamente poz por obra tão nobre e fecundo pen-
samento.
Em artigo especial trataremos mais extensamente
da associação industrial portuense.
O TROVÃO.
Era noite. Noin bafeja
Leve, branda viração •,
Nem pios d'ave agoureira,
Nem esses, ouvidos são.
Valles, montes, céu, e mares,
Negro véu todos enluta \
A natureza disséreis
Ampla, escura, hórrida gruta.
Ou, gigante, á luz \cdado,
Sul)t<Tr<M), fundo hypogiMj,
r)'essc's, ondo a prisca idado
Mortacs restos escondeu
Nem uma estrolla no céu,
Noni ond.i no ininicnso lago ^
Sinistro |)a\or, rni ludo.
Núncio de visinlio estrago.
Só, frouxo, jiallido rnnijx'.
Dl- qu.inili) <'Mi quando, r) luar ■-,
Cdiiii) lâmpada nixturna.
Junto d\ira lunuilar.
Só, d'horu a hiir» ilísiante,
Na torre, irantigii templo,
O bronze trrta, mais iillo,
Só, da vida, agora exemplo.
Mas liigo, cm fundo lelh«rgo
De MOVO, torna a cuír :
Silencio, trevas é tudo,
Nem uma folha a bollr;
Nem, d'ermo casal longínquo,
S^escuta o canto distante,
©'essa — qtial vivo relo^o,
Sentinella vigilante.
Silencio, trevas é tudo,
Nem bafeja viração \
Nem pios d'ave agoureira,
Nem esses, ouvidos são.
Nem da lua um só reflexo,
Nem já, da visinha aldêa.
Um som, confuso, s'escuta.
Um só lume bruxulêa.
Como fúnebre ataúde,
Vestido de negra cdr,
Occulta-se, o immenso espaço.
Em mais espesso vapor.
D'iniproviso, accordam euros ;
Como, em calado deserto,
Bramira, leão faminto,
D^incauta presa já perto.
Fugaz relâmpago sulca
A cerúlea immensidão •,
Como, nocturna, brilhante,
Agoureira exhalação.
Dispara canhão gigante !
E o projéctil, sou, eléctrico.
Eis desce rápido ; e perto
O trovão ribomba tétrico
E desperta a natureza
De sua inércia mortal :,
Tornando, de novo, á vida,
A vida, por maior mal.
Já, humana voz s^escuta,
O piar d\ivo innoccnte.
Das feras medonho ululo,
O bater da onda fremente.
Vibram, mil diversas cordas.
Sons crestranha afinação;
E todos — Poder Supremo —
Accordes, dizendo estão I
— Que sccnas d"assombro — estas!
.\bvsnia-sc o pensamento,
1'erdida a razão, nas trevas,
Brilha a luz do sentimento !
Mafra, 18 de outubro de 1852.
J. DA ('. Cascaes.
TIIOMAZ ANIELLO (MASANIELLO.)
{HuNOI.litjXo DE NaPOLBS EM l()i7.)
II.
Um.\ vez sollu da funda i|uem é lapni de prrxcr
nonde irá acertar o seixo .' As grnndesrommoçtVs po-
pulares siio o mesmo. Os pnilecinienlos públicos pr<>-
parani-nas :, as repressões violeutiis exacerbam o»ani-
382
O PA1NORA3IA.
mos-, e um dia, qualquer cousa iiu.igiiificante Jeter-
inina a explo&ão. Foi o que succedeu cm Nápoles.
Antes das aucforidade» atcordartm do pasmo, que
as tolheu de repente, o motim engrossando a cada
hora, estav;i senhor da cidade, e aclamava na praça
como rei da plebe o pe»c-ador de Amalfi, salvo ar-
rastar depois o Ídolo, e vingar-se n^elle da ol>edien-
cia que lhe prestara '. O incêndio das moradas dos
monetários e o armamento das companhias tinham
assegurado temporariamente o império do povo, o
primeiro pelo terror, o segundo pela força. Aprovei-
tando estes elementos Thomaz Aniello cuidou em
continuar a lucta, e em consolidar a victoria.
ttuando appareceu defronte do posto militar de
S. Lourenço, donde a disciplina das tropas regula-
res havia repellido as mangas desordenadas do vul-
gacho no anterior assalto, levava um corpo de dez
mil homens armados, e o ataque foi dirigido com
acerto, occiípando-se as casas visinhas c o convento.
A guarnição desfallecida pela fadiga dos repetidos
rebates, e tão estreitamente bloqueatia, que não pu-
dera receber viveres, rendeu-se sem combate, entre-
gando as armas c artilheria do deposito. E justo di-
zer <jue (IS vencedores não abasaram do triumpho,
portando-se com humanidade, e concedendo a livre
saída dos soldados hespanhocs, depois de no merca-
do llies saciarem a fome que os devorava.
Conse^^uida esta vantagem divulgaram-se as per-
tensões do povo •, e eram ellas ; extincção dos im-
postos lançados a contar do tempo de Carlos V^ res-
tabelecimento do privilegio original do imperador;
amnistia para os implicados na revolução de 7 de
jullin:, eleição de um popular com tantos votos,
quantos eram os assentos da nobreza i entrega da for-
taleza de Santelmo em pcndior da boa fe' do governo,
e final ratificação de cl-reí de Hespanha, conservan-
do-se 1) povo em armas até ser publicada. A par
d"estas condições nada suaves para o orgulho da au-
ctorídade, os vencedores ainda propunham mais, que
no caso de se faltar a qualquer das clausulas doeste
accòrdo fosse licito em lodo o tempo aos do merca-
do tornarem a sublevar-se sem incorrer por isso nas
penas do crime de rcbellião, insistindo para que de
tudo se lavrassem quatro dísticos em mármore, que
ficassem erguidos como padrões de perpetua memo-
ria. É claro, que do lado dos fidalgos e do governo
lacs propostas encontravam a máxima resistência.
Concedel-as equivalia a abater na praça a coroa, e
a assetUir á própria abdicação. A derrota completa
que mais podia arrancar-lhes, obrigando-os a tratar
de potencia a potencia com o vulgaeho, e a pòr nas
suas mãos' como reféns tantos privilégios, e sobre to-
dos a posse da cidadella .'
Servia então de consultor em Nápoles Júlio Ge-
novino, velho de 87 annos, ecclesiastico douto, e
um dos políticos mais'cstíniados pelo duque de Os-
suua durante o seu governo. O conde de Clivares
detestava-o pela sua amisade leal ao antigo vice-rei,
e caindo o duque não se esqueceu de lhe dar provas
do seu ódio, pucarcerando-o injustamente, c dester-
rando-o depois para Oran na l?arberÍ3. Dotado de
um caracter severo e rígido Júlio Geno\ino uão se
desraenliu nos traballius, nem se humilhou com
fraqueza. A perseguição acrisolou ainda mais as ra-
ras e singulares virtudes do seu animo. No lim de
vinte e dous annos cansuram-sc de o opprimil- •, mas
elle é que nunca se fatigou do oppòr o mesmo rosto
inteiro á fortuna. Voltando á pátria, na idade cm
que se destempera ordinariamente em todos a força
d'alma e a agudeza das faculdades, aohiva-se tão
perspicaz do entendimento e tão forte de consciên-
cia, como na epocha em que o seu coaselho. igual á
acção, eram tão profícuos ao vice-rei, amigo quenãu
trahiu nem denegou apesar das exacções. í^te con-
sultor era auxiliado nas suas funcções por oito dou-
tores anciãos, e tinha por secretario a Marco Vitale,
natural de Nápoles, e não só não foi estranho, mas
suppõe-se que protegeu, dirigiu em parte e estimu-
lou o movimento popular.
As cousas peioravam entretanto a cada instante ;
os tumultos cresciam, e noute e dia não se ouvia nas
ruas senão tambores e arruidos populares. O negociu
paralisou-se, o despacho ficou suspenso, até o da ca-
mera real e do conselho, e a própria .vicária civil t
crime fechou-se com receio da voz da justiça ser me-
nos respeitada. Entre outros elementos de anarchia,
formou-se um bando de tresentas mulheres armadas,
e é inútil accrescentar que nada concorriam para so-
cegar as inquietações. NVste estado não admira,
que sabendo Masaníello que 600 soldados walões de
Capua e Aversa vinham guarnecer ocastello de San-
telmo, mandasse marchar contra elles algumas das
suas tropas ; estas obrigaram os castelhanos a metter-
se dentro da igreja de Nossa Senhora de Constanti-
nopla, e cercando-a e deitando fogo ás portas, for-
çaram os soldados a abrir, e a deixarem-se desarmar,
indo depois d"ali para o mercado ao.nde se alistaram
ao serviço do povo.
O idtiino revez experimentado pela companhia
vvalona acabou com as indecisões dos governante>
receiosos de levarem o mal a t.il extremo, que depois
não pudesse remedíar-se. No dia 11, o cardeal arce-
bispo Filomarino, tomou a iniciativa, edeintelligen-
cia com o duque de Arcos, principiou a negociar a
paz, mostrando desejos de a obter. No conselho do
governo foi exposto o perigo sem disfarce, e lembra-
do o que succedeu em Flandres por causa do duque
de Alva, o qual pelos seus rigores metfeu a Hespa-
nha em noventa annos de cruelíssima guerra, derra-
mando-se tanto sangue (dizia o cardeal.) que seria
bastante para fazer um rio navegável, e díspenden-
do-se tanto ouro, que excedeu o quo produziram as
minas de ambas as índias. Estas razões e outras mui-
tas persuadiram o vice-rei, que auctorisou o prínci-
pe da igreja a prometter a sua appro\ação aos capí-
tulos do povo, ainda que alguns lhe custassem como
funestos ú dignidade do poder c ao esplendor da clas-
se nobre. O accòrdo tratou-se, e concluíu-sc, retira-
da a clausula relativa ao perdão da revolta, porque,
observou o povo, era imprópria, visto nunca ter sido
victoriado senão el-reí de ETespauha. O vice-rei man-
dou então chamar ao paço Thomaz Aniello para se
firmar o concerto", e oppondo-se os amigos d"cstc
com temor de alguma cilada, o chefe declarou que
iria, uma vez que ficassem como reféns da sua pes-
soa dous dos filhos do duque d*Arcos. Tão apMtada
era a necessidade que o vice-rei sujcitou-so, não op-
pondo a menor duvida I
A maior questão consistia em não se poder descu-
brír o privilegio original de Carlos ^ , que se tinh.i
perdido; o cardeal arcebispo, confes«ando-o, pej-gun-
tou a Masaníello como se havia de substituir .' Eui
quanto se não acha, ponham en> vigor o anteceden-
te de el-rei Fernando \ sei aonde está ! respondeu o
caudilho. Como ainda era mais amplo do que o do
imperador, o cardeal sorriu-se accresccntando : não
são teus, mas de Deus, taes accvWos '.
Mu» no fundo da app-ircnte submissão do poder
estava a cilada. A nobreza rcsscntid.i via nascipitu-
lações ajustadas a oflensa e o .ilxitímento da sua ín-
tluencia. Abolidos os im(>ostos, reícindíd,-is ficavam
desde lo;o tand.iem as arrem.-it.-íPõcs conlrafadas so-
bre elles ; e seccava-se a fonte copiosa dos seus ren-
diiuentos. Accrescia, que se achava coniprehemlida nas
o PANORA3IA.
383
penas cominadas aos negociantes de tributos em vir-
tude do privilegio de Carlos V, estendendo-se a ac-
ção igualmente aos monetários nacionaes e aos capi-
talistas forasteiros. A consequência da reforma das
contribuições era ficar a fidalguia despojada da sua
principal riqueza :, e a cidade, que no tempo do im-
perador devia apenas duzentos mil cruzados, acliar-
se de repente onerada com uma divida de oitenta e
sete milhões, tinha por isso jus a negar-se ao paga-
mento de outras soinmas, visto o engano com que
fora opprimida ! Assim a aristocracia perdia os vin-
te mil ducados, quo formavam o património de cada
uni dos seus membros, quando alcançava o grau de
eleito '. Depois d'isto é claro que o ódio entre ella e
o povo devia augmcntar-se, e as duas facções nada
esqueciam para se hostilisarem, procurando supplan-
tar-se á custa do todos os sacrifícios.
O governo vivia de interesses iguaes aos da nobre-
za, e era natural por isso que em quanto o obriga-
vam a mostrar bom rosto á má fortuna, empregasse
occultamente os seus agentes e recursos para semear
a discórdia e a desconfiança no seio da coUigação po-
pular. O vice-rei tratava com ella i mas os factos
provaram que a sua boa fé tinha muito de equivo-
ca. No coração jurava a ruina dos atrevidos peões,
que ousavam eiirval-o á sua vontade, e prender-lhe
as mãos, fazendo-o passar por baixo do jugo de con-
dições ailrontosas. Um homem era a alma c a intel-
ligencia da revolução ^ destruído elle a cabeça caía,
e o tronco sem direcção depressa se desmembraria.
For isso tanto a auctoridade, como a fidalguia j)U-
zorain o seu odiú em Thomaz Aniello, nísolveixlo
immolal-o ao reslaljeleciíiiento do seu império.
A reação [)riiicipiou, teninndo-se o povo com pei-
tas \ a corriijjção |)orém encontrava resistências. Os
plebeus recusavam o ouro, res[)ondendo que com três
earlins (120 réis) tinha cada napolitano a subsistên-
cia diária. Da sua ])arle o chcle não se mostrava me-
nos intx-iro, rejeitando as promessas com esta bella
resposta : "façam justiça ao povo, a (luem obedeço,
a<|uiele-s(! elle, e darei o'meu cargo por lindo, vol-
tando alegre á vida que sempre tive. Tornarei a pes-
car com a minha caiina." JVVsles termos os inimi-
gos da reforma decidiram que não havia remédio se
não ferir lun golpe audaz ; escolhendo para odescai-
regar a occ.isião em que o duque de Arcos vinha ao
mercado jurar as capilulaçõcs. Urdiram o |)lano, dis-
pozeram os insIruuK^iilos, e debignaram para cabeça
da empresa o mesmo 1'errone, quo por ciúme a Ma-
saniello, e devoção á casa de IMatalona se ollerecêra
já para assassinar o chele jjopular no sitio mais pu-
blico. A recompensa promellida eram dez mil duca-
dos, uma coijipanhia de infaiileria, e o perdãode lo-
dos os seus crimes. líis a lealdade com que o duque
•icceitava o pado, e o ia Urinar !
Thomaz Aniello ilesculiriu a conspiração e jjreve-
iiiu-.se. Os liaiidoleiroi apostados p.ira o matarem es-
tavam i'mlius(;idos no ( 'armo, irmiile saíram a si-
gnal dado, desfechando sobre elh; dez arcabuzes, <|ue
não lhe ac(-rtaram. I''ini Um momento os liandos do
mercado envolveram os sicários, crivaram de feridas
;i l'en'oii(; <« ao» seiít se(piazes, e eoni-mio ao mostei-
ro de Santa Maria a Nova, aonde José Carralla e
muitos d.i Mua l.icção r^speravam o exilo ilo homici-
dio para ronquTeiii, puzcnam-lhe circo, e ciilheram
um emissário que expcdijim aovii'e-rei, piidiudoque
mandasse di.spnrar para o ar a arlilheria do caslello.
Carralla liiiínu fugir, mas foi preso e (li'capilailo no
mercado, aitsiiii como o saigenlo-inór líeniiirdiíu)
(«rnssn.
(fiiiiliiinit.)
A ISSTRUCÇIO PRIMARIA NA InGIATEBRA.
O sysTE.ví-i de instrucção primaria adoptado cm In-
glaterra é inteiramente diverso do de todas as ou-
tras nações. A Portugal não podemos referir-nos,
porque infelizmente não temos instrucção racional-
mente organisada.
E uma vergonha, que todo o escriptor lamenta,
mas que não deve occultar, porque em sua missão,
toda civilisadora, não pode ser indifferente ao aper-
feiçoamento moral d'um povo. Vamos dar alguns
esclarecimentos sobre o methodo porque na Gran-
Brctanha se acha organisado o ensino, que tem por
fim promover o desenvolvimento intellectual e mo-
ral das massris.
Insistir sobre a necessidade, e a importância da
instrucção, é uma d'aquellas banalidades, que enfas-
tiam por demasiado repetidas. Nos paizes, em que o
governo repousa á sombra e sob a salvaguarda da so-
berania popular, é essencialmente indispensável, que
o povo seja illustrado, moral e religioso. Não é só o
interesse da humanidade, que o reclama, é também
uma garantia, uma necessidade da ordem publica.
Na Inglaterra, aonde não existe o suílragio univer-
sal, não é tão palpitante a defficiencia do ensino, no
ponto de vista politico. Todavia na Inglaterra mul-
tiplicam-se cada dia os esforços para a sua mais lar-
ga proj)agação \ a igreja, as corporações, a beneficên-
cia particular, o estado, finalmente, rivalisain nos
meios que empregam para <jue cada vez mais se de-
senvolva, e em maior escala o ciisího j)o[>ular.
Duas sociedades pnncipaes, (1) exercem uma in-
lluencia decisiva sobre o desenvolvimento da instruc-
ção primaria no Reino-Ciiido :, a sociedade nacional
(Ndlional Soclciy) e a sociedade ingleza e estran-
geira (Jiritislt <ind fiirciijn Socictt/). Ambas prose-
guem com o íélo mais incansável nNste grandioso
pensamento, — a diUusão da instrucção pelas clas-
ses pobres ; mas entre estas duas grandes associações
ha uma dillerença fundamental na applicação •, uma
é inlriramcntc ligada com a igreja, e a outra recu-
sando Ioda a formula dogmática, não se restringe
ao limitado circulo de um symbolo. A primeira não
admittc escolas mixtas; é uma poderosa arma nas
mãos do aniilicanismo. l'ara a segunda, a instrucção
é simplosmenlc unia propaganda social', não é só um
meio, é um lim .
A sociedade nacional é ilirigida {lor um conselho,
que SC compõí! exclusivamente dos altos dignitários
do anglicanismo, e que se corresponde com os dilVe-
rentcs conselhos diocesanos estabelecidos nos dille-
rentes pontos dopaiz. Escolas normaes formam mes-
tres i! mestras. As escolas, (|ue depeiiilem da socie-
dade são frequentemente visitada» por inspectores,
cspeciaes. l''inalment<>, um jornal, o Moittlili y popi r,
de «jue .se tiram ipiatro mil exemplares, representa
as idéas, expõe os deveres, e detende os direitos de
associação. Em I8.'i0 o numero de escolas, sujeitas a
iniluencia da sociedade nacional, excedia o do i20,000,
e o dos alumnos elevava-se a I ..'iOO:OlK>.
Já vimos, ipie esta sociedade obedece complela-
inente á direcção da igreja anglicana, só abre as suas.
escolas aos lillios de uuui «cria religião, de uma sei-
ta determinada, porque o .seu lim principal e sus-
tcular a unidade e iut<'gridade da igreja «'stabeli'-
i'ida.
Ijiiuilada a <'ste circulo eslreitissimo, não pode evi-
dentemente satisfazer ás nci-i>ssidades da iusInicç.HO
(I) Mr. KuKcnc llcmlu — Um>|''»l'' «" "'«■"■•l<<' ''••
riuslnirliou ciu Krimcf,
384
O PAIVORA3IA.
popular. A sociedade ingleza e estrangeira, pelo con-
trario, investida na propaganda, e representando um
papel grandioso, recebe alumnos de todas as seitas,
de todas as escolas, de todas as comraunhões. Segun-
do as informações de mr. Hautute, possue em Lon-
dres e arrabaldes ál3 escolas, cjue contam para ci-
ma de 300,000 rapazes, estende as suas operações ao
estrangeiro, e tem estabelecido escolas nas mais re-
motas colónias
Independente das escolas normaes, sujeitas á ín-
lluencia directa doestas duas grandes associações, cu-
jo fim e caracter explicamos, uma associação espe-
cial estabelecida em 1836 sob a protecção da rainlia
e do principe Alberto, fundou em Gray's inn road
um sala d'asvlo e uma vasta escola, destinada a for-
mar mestres, e sobre tudo mestras hábeis c perfeita-
mente instruídas. Esta sociedade cliama-sa — i<'Ao-
mc aiul colonial school Socicty — e adniitte jovens de
ambos os sexos, como alumnos internos e externos ;
e até faniilias inteiras \ lia simplesmente exclusão
dos homens celibatários. A educação é dada gratui-
tamente, e na mesma sala, aos educandos de ambos.
05 sexos.
Esta sociedade tem sido objecto de sérios estudos
para muitos curiosos e pensadores. O facto parece
extravagante; se se fallar na educação promíscua,
todos se espantam, e alcunham a idéa de immoral.
Mas um homem de talento, e que merece inteiro
credito por sua imparcialidade, mr. Eugénio Rendu,
que por ordem do governo francez foi a Inglaterra
estudar e analisar as vantagens e os defeitos d'' este
systema professional, aflirma que isso fora objecto da
sua mais seria attenção. Este costume não é pecu-
liar da sociedade (irmfs inn road. porque se encon-
tra em outras muitas escolas, e com excellentos re-
sultados.
( Coniinita . )
líIBLIOGRAPHIA.
Sohre algtimas obras do padre Francisco
José Freire.
Entre os mais fecundos e primoro.sos escriplores dos
nossos modernos tempos cabe um distincto locar ao
padre Francisco José Freire, da congregação do Ora-
tório de Lisboa, mais conhecido pelo Anagranima
de Cândido Lusitano.
Este douto padre foi um dos que com as suas dou-
trinas e o seu exemplo mais trabalharam para a res-
tauração do bom gosto e da boa poesia. A sua Arte
Poética, em que refundiu o melhor da de Aristóteles,
e quanto melhor haviam expendido os críticos moder-
nos, as suas Dissertações e outros escriptos sobre l)el-
las letras, as suas annofações á Poética de Horácio,
as suas orações académicas e panegvricas tiveram in-
fluencia directa no espirito dos seus contemporâneos,
e assim pôde ajudar os trabalhos de Garção, de An-
tónio Diniz, de tluil;'., e muitos outros Árcades,
que como elle lizeram guerra de extermínio ao
gongorismo.
Com a sua vida do infante D. Henrique se collo-
cou a par dos nossos mais afamados historiadores.
Seria ocioso insistir niais nas suas obras de prosa
todas escriptíis em estvlo puro, farto o harmonioso. |
Sem que seja um jx)eta do génio tem na |K>csia
um talento não nicdiocre que Uie deu grande consi-
deração entre oj .\rc.vdc9. Os seus versos latinos
iMOitram o ponto de perfeição a que levava oconhe-
cimer.lo da lingua do antigo Lacio.
O padre Francisco José Freire estava, e quanto a
mim com muito juizo, persuadido de que o meio
mais eftjcaz para restaurar entre nós o bom gosto em
poesia era a traducção na linguagem pátria dos me-
lhores poemas gregos e latinos i e comA praticava sem-
pre o que ensinava, deu-se a essas árduas tarefas, e
traduziu em verso portuguez quasi todas as tragedias
de Sophocles e Euripedes, a Eneida de \'irgílio, e
as Metamorphoses de Ovidio, além de outras obras
menos importantes, e outras dos modernos como a
Athalia de Racine, a Merope de Maffei, etc.
Desgraçadamente estas obras não foram publica-
das, ficando a Eneida e a Merope, segundo dizem,
na livraria da casa de ^ imieiro, e as outras na bi-
bliotheca de Évora, até que haja algum zeloso da
gloria litteraria d"este reino que de lá as desenterre,
para as dar á luz, como aconteceu ás poesias de An-
tónio Diniz da Cruz e SUva que tamisem jaziam na
livraria vimieirense.
E chegará esse dia de resurreição poética .' Talvez,
porém muito o duvidamos. E tal a inércia dos nos-
sos impressores e livreiros que muito difficil será que
a tal empresa se abalance algum d"elles.
Consta-nos que por mão de alguns curiosos exis-
tem cópias da traducção das Metamorphoses feita por
este douto padre, e essa traducção era a que convi-
nha publicar, sequer para nos remirmos da vergo-
nha de sermos a única nação europea que não tem
em sua lingua uma traducção em verso das Meta-
morphoses de Ovidio.
£ não será uma vergonha para a litteratura por-
tugueza o termos traduzidas as melhores tragedias de
Euripides, de Sophocles e de Séneca, por uma há-
bil mão,- e não correrem impressas, como convinha
aos mancebos que se applicam a escrever para o
theatro, e que não sabem grego, já que dessn^açada-
mente tão pouco cuidado se põe cm que os mance-
bos se appliquem ao estudo do mais bello dos idio-
mas da antiguidade, e sem cujo conhecimento nãoé
possiv el saber bem latim .'
Também fora muito para desejar que se impri-
misse o poema didáctico original do padre Francis-
co José Freire, que tem por titulo o Mentor Fktol-
/o, em que se encontram os mais judiciosos preceitos
de critica, e valiosas rellcxões sobre a arte de bem
escre\er em prosa e verso, expressados em culto es-
trio e florida e corrente versificação.
D''esta obra não faltam cópias pelas mãos dos cu-
riosos, e por isso não offereceria grande difltculdadc
o descubrir uma para por ella se fazer uma edição,
que não seria dispendiosa, pois que o manuscripto
pouco mais excede a mil versos.
Temos perdido tantas preciosidades litterarias p«v
la pobreza ou preconceitos dos seus auctores, pela
incúria e desleixo dos seus herdeiros, que nunca ces-
saremos de clamar pela impressão de ti.>d.-is as que
appareçam. ainda que estamos persuadidos de que
serão baldados os nossos esforços.
J. M. D.\ Costa e Sil\ v.
— Muitos confundem a vaid.#e, o amor próprio
e o orgulho. O amor próprio ó necessário ; c do amor
próprio bem entendido que provôem a honra, a de-
cência, a honestidade. .\ vaidade nada ptide produ-
zir de útil ; o do or-julho não espereis senão vicio*.
J. B. KOVSSSAV.
— Pi-nle definir-se o vicio : o sscrificio do futuro
.10 presente.
J B. Say.
49
o PANORAMA.
38i
o BOM AMIGO E FREFERIVEI. AS RIQUEZAS.
Qiuidrv di. Othovínius.
AoLKi.Lii ijiie ircsln, ora brovo ora lari;M, mas sem-
pre! aliorrceida, faslicnla, c por vez<'s, e (]uantas ve-
zes ! amarmirada ])erogriiiai;ão da vida, tiver encon-
trado <|uetn liio enxuj;;a6se os pranios, (juandu o al-
trll)idarani os desp;oslos, <|ui!in o atompanliasse sin-
cííraiiKMile na aieij;ria, se a fortuna Ilu' correu favo-
r.-ível, (|uem liie lossc! leal e o não dcsanijiarasse, se
porventura u adversidade o i'oi visitar ^ i|Uein o;^uias-
se, <jueni o dirigisse, (|uem o eonlorlabse, <|neni lhe
ilispensasse, (;eneroso, consolações e protecção, dis-
vollos e carinhos d(! irmão', a<iuel)e<|ue, linalmente,
houver «•oídiecldo um verdadeiro ami[;o, dirá com-
nosfo, dirá com todos ipie tiverem sentido c expe-
rimentado as doçuras da amizade, d'esse sentimento
i]\ie a l'rovIdi'neia cravou proAuidamente no cora-
«jãu d<j homem como para u compensar de todiíii as
amarguras do viver, não srf (|uu o hum om/y» <' prc-
firivvi (ís riijKtiti»; mas f|ue constilue per si só a
nniior de todas as riijuexas.
l)'esli! pensar era sem duvi<la o liimoso pintor al-
lemãc) Othoveniut, nuctor do bello quadro de (|uo a
nossa gravura é um transumpto tilo liei quanto po-
de desejar-se.
Voi.. I. — .'J.'' ámii t:.
A composição do quadro de < tllioveiiius é simples
como o sujeito, o o sentido moral d'elle acha-se in-
dicado perleitamcnte n'a<|uella coriza, svndiolo do
mando; n'aquellas moedas, derramadas por solire nhui
antiija mesa ', n^esses louros, ima^enl das i;lorias do
mundo, e que o mundo soe muitas vezes arrancar nu
dia seguinte da fronte ilos seus escolhidos de hon-
tem : e o mando, e as riijuezas, e ai^loria, cousas to-
<las inu' lanlo se prosam, e pelas quaes tem porccidu
tantos milhões de victimas, eil-as abandonadas n'uni
doce apertar de mão ', mas é que esta é a inãoileum
anMv;o, de um companheiro de trabalhos, de um ir-
mão '.
A postura das duas únicas i\);uras do<]uailri> e no-
bre e expressiva, o deseidio irreprehensiv<lmenle
correcto; os accessorios de unnt solirleilade apreciá-
vel. O colorido 1' as demais (pialidides ircste helln
trabalho não podemos nós avaliar. Comtuilo, a jul
j^arinos pelo q\ie temos ouvido e lido do auclor i'm
varias das mais bem conceituadas publicações eslniu-
jjeiraí, este quadro é, pela execução artística, dij;no
lio pens.imento (|ue o inspirou, e da eseolii allvmà
medernu.
I)K/.t:Miino \, l8i>'J.
386
O PAjNORA3IA.
INSTRUCÍjÃO PUBLICA.
TiLrsTRAfjío DO Exercito.
II.
Como apostolo do progresso imagináramos nós o sol-
dado, e fora um sonho, e tel-o-ía de ser sempre, se
não houvéssemos em nossas mãos os meios de conver-
tel-o em realidade ^ se não possuíssemos, verdade se-
ja que quasi sem darmos por isso, o poderoso talis-
man, que tem a virtude de transformar em machina
rivilisadora o mais obediente, o mais enérgico, o
jiiais activo, o mais prompto de todos os reagentes
de que a nossa sociedade pode dispor. E^te sonho,
repetimol-o, nunca passaria de sonho, e até seria pe-
sadelo, de que assim mesmo era bom não acordar,
se a Pro\ idenfia não tivesse derramado já as ben-
<;cíes, que sobre a cabeça respeitável do soldado de-
vem ir lançar-se, quando para a sua nova missão,
em nome da mesma Providencia, o enviarem.
E o soldado, apostolo do progresso, não deporá as
armas como Saulo, para ser o Paulo do apostolado •,
não, que as armas não as empunha contra a palavra
de Í)eu3^ se as tomou, foi com um fim santo. Con-
servc-as, estime-as, respeite-as, faça d^ellas o seu bra-
zão , mas que por cima d'essebrazão campeie um fa-
cho, que uma luz vivíssima lhes sirva de timbre,
que esse clarão lhe dirija a elle os passos na senda
da gloria, lhe ateie o fogo do amor da pátria, o cons-
titua farol, não d'invejas, mas de emulações nobres
e do amor dos seus irmãos a quem não coube igual
sorte i e que essa luz afinal, depois de lhe esclarecer
a vida, <jue tanto semeou por crepúsculos e névoas,
que tanto alumiou os outros, que tão bem soube
manter o fogo sagrado do patriotismo, da honra, da
abnegação e da virtude, que essa luz seja também a
aureola com que o soldado apostolo se ennobreça ", que
essa luz torne mais refulgente a coroa do martyrio,
se a missão lh''o tornar inevitável •, que as lagrimas,
que porventura humedecerem essa coroa, brilhem co-
mo gotas d"orvalho em alvorada santa ; que essa luz,
se pelos seus e pelo dever tiver dado a vida, seja
lima estreita, a guiar pelo exemplo e pela fé, a
((uantos o conheceram \ um conforto que para os
corações amigos do seu, lhes adoce a saudade-, uma
gloria para a torra onde nasceu, e por quem tiver
vivido c morrido 1
Uma supplica fazemos desde já a todos que lerem
estas paginas, uma supplica sincera e ardentemente
pedida \ não as tomem como rasgos do pretcnciosa
aflectação. Seriam já hoje tentativa niallograda. Ho-
je, quem não escrever para ser lido de boa fé, isto
é, quem de boa fé não escrever, malbarata o ocu pa-
pel, e o que ainda épeior, faz um papel tristíssimo.
Ha porém uma cousa em que cremos muito, c é na
necessidade de oonununicar aos outros o que deveras
*e sente, aquillo em que deveras se acredita, embo-
ra não tenha lodo o cunho da novidade ; e n"este
easo, tanto melhor ainda, por assegurar mais svm-
palliias para o que se diz, mais boas vontades para
o que se pede, c talvez um echo fa\ora\el para oquc
não era se não palavra, ou um desenvolvimento cm
bom terreno para o pobre gcrmen de idéa que se
manifestou.
.\inda o repetimos, a inslrucção primaria para o
exercito acha-se decretada ha mais do quinze an-
nos ; (1) a superior e a especial está organisada. Não
(1) Horrcto de 4 e l.t ilc Jaiiiir.. de 103", (Ir.l. 10
r 14 (lo janeiro dv 1B.T7, números J c 4, Or<l. ilc 10 de
m.iig de 1030 niuiicru 40.
é portanto para convencer da neceisidadc de secrea-
rem escolas regimentaes simpleímente. que nos de-
cidimos a escrever^ porém, insistimos n "alguns pon-
tos, que devem servir de base para as mesmas serem
reformadas, e permittir-se-nos-ha o apresentarmos
a final um projecto de regulamento para a sua or-
ganisação e pratica.
Todavia, esta insistência é fundada era mil raiõ«*
de publica utilidade.
Cada um de nós, é, e deve sel-o do coração, um
enfermeiro doeste nosso Portugal. Feliz o que tam-
bém é medico, porque pôde ajudar muitíssimo a na-
tureza nas sua^ tendências reparadoras \ mais feliz o
que para o resuscitar pudesse dizer-lhe : levanta-te e
caminha !
Mas, ao enfermeiro a quem lhe doe, será licito
abandonar o leito dos soffrimentos, em quanto lhe
fica uma esperança ? E quando em vez de fraca es-
perança, e tão débil como os restos de vida d"aquel-
' le por quem vela, lhe sorriem esperanças verdadei-
[ ras, e entrevê essa convalescença tão cubicada I . . .
Fomentar a instrucção elementar no povo, tomar-
lh'a convidativa, dal-a nocturna aos adultos, diurna
e sem rigores á infância, para todos amena, para to-
dos gratuita, é um pensamento fecundo e regenera-
dor. Porém, não basta. — Do povo que em trabalhos
penosos dispendeu o dia, irá uma parte recrear-se na
escola nocturna ; mas para que vá a maior parte, não
são sufflcientcs todas as seducções do aprender. Ain-
da nas povoações ruraes irão muitos, mas nas cida-
I des onde a maioria d'essa ultima camada social, que
1 é mister, que é urgentíssimo educar, se compõe de
' operários a quem os serões impedem metade do an-
no de frequentar a escola, (porque as horas do re-
pouso não as pôde roubar á madrugada que os espe-
. ra na oflicina,) e de servos que não dispõem de si,
nunca. Em tudo nos referimos agora aos adultos.
E serão só esses homens, que podem frequentar bancos
I de aulas, ainda que muitos, poucos todavia compa-
1 rados com os muitissimos que é instante p<jr a saber
j lêr e escrever, serão elles a fiança da nossa transfor-
I mação? De certo que não. E as creanças.' E essas
I escolas nacionaes mantidas pelo estado, cujas portas
estão abertas todo o anno e todo o dia para fijhosde
pobres e ricos por todo o reino? Fechal-as, seria lou-
cura pensar em tal. Reformal-as no que respeita a
, methodos d "ensino, tornal-as mais appeteci\ eis, mais
, obrigatórias pela convicção da sua bondade, multi-
plical-as, protegel-as, livrar essas barcas de salvação
de maus timoneiros, compensar os mestres d"essas
barcas, que navegam jiara o futuro, com mãos largas,
examinar bem o mantimento que se lhes mcttcr a
bordo, folgar de as vêr com \cnto em pt>pa levar es-
ses colonos dopor\ir contentes e instruído*, alegres c
ensinados, esperançosos e infelligentespromptos a ser-
vir sem terem experimentado a escravidão, nem os
tratos das galés negreiras, ousados e francos sem des-
pejo nem maus hábitos, isso é o que quer, é o que
iaz, c o que dcsoja fazer Itxlo o governo sensato.
E lá vae, ou lá promettc desferir vela essa frota,
que um dia ha de sor a geração que nos succeda.
Esse exercito grande, pois é toda a infância da na-
ç."u), que tem de ser o magistrado, o combatente, o
marinliciro, o lavrador, o operário, o legislador, <>
artista, o ministro, o sac>'rdote, o mostre também, c
mais que tudo o pae c a mãe de famílias.
O povo tem preconceitos, e quando os nio tora ?
lia ainda muita gente que não quor que seus filhos
aprendam o que ella ignora. E o svstema dos mis-
teres hereditários na Chiua, applicado á ignorância
e á rudez;i. Por isso ficam tantos quo não s;il>om lèr.
Ficarão porém de futuro, se a infância o a .idolesccn-
o PANORAMA.
387
cia de hoje tiver sem excepção cursado as escolas ele-
mentares .' Não o cremos.
Porém releve-se-nos o egoístico do argumento ; com-
ludo, é egoísmo onde o eu, é collectívo, e se pode
traduzir por quatro milhões d'almas. Mas dizía-
mos nós, apparelhar essa grande e pacifica armada
para as regiões do futuro assegura-nos a felicidade
actual, que pela instrucção se pode e deve conse-
guir.
E um legado que entregamos em vida ; e a heran-
ça de nossos filhos. E nós, que, sem lhes prejudicar
os direitos, sem lhes diminuir os bens, poderíamos em
vida nossa gosar d^ellcs, usofruil-os, sem que o uso
os alienasse, antes que lh'os augmentava e melhora-
va i nós, que somos os administradores doesse morga-
do era que se ciphra a maior felicitação da pátria,
se temos a certeza de que antes o administramos me-
lhor, e lhe damos maior valor, dispondo d'elle já
hoje, já para nós, porque não o faremos ?
Expliquemo-nos. — A instrucção elementar será
de todos para a geração nova, se dispozermos dos
meios que tomos sem outro esforço mais do que uma
pouca de fé. E a fé, que ainda é tibia, virá de per
si firme e bem firme quando se vir, quo se não gas-
tam seis ou sete annos para aprender a lôr, escrever
e contar.
A instrucção elementar será de lodos, com rarís-
simas excepções, na geração presente, em nossos dias,
se dispoz(!rmos dos meios (|ue temos com muita fé,
sem outro esforço mais do que uma vontade firme,
abrindo escolas para adultos, nocturnas e gratuitas,
nas cidades para os operários, para os aprendizes, para
os criados de servir, e para todos que careeer<?m de
instrucção, tendo-as de instrucção primaria superior,
e technologicas, (1) para quem souber lêr ; abrindo-
as também nos campos ih; lér e escrever, de princí-
pios de agricultura, de velerinaria, de higiene, etc.
Dêem-lhcs outras denominações, tirem os foros gre-
gos aos nomes das cousas úteis <|ue convém ensinar
a essa boa gente, s^porventura iõr necessário, mas
ensínem-lii'as. Não lhe ciiainem cursos i conversem
com ella, aprendam lodos, mestres e discípulos, que
se uns levam para casa o saber, os preceptores leva-
rão índelevc^iiuente gravada a doce convicção de que
o numero dos ingratos não é o maior •, de ([ue o ro-
eonhecimento é moeda corrente entre gente sincera,
para pagar até o mínimo do (jue por amor de Deus,
e com amor sincero se lhe der.
Está bem demonstrado que existe ainda muito fer-
vor pura que esta grande obra se erga desassombrada
lia l(MTa (jue está pedindo um monumento condignodo
século. l'ara .trabalhar nV-Ua não lia governantes nem
governados. E nossa, suem lodos-, as pedras serão Tiíe-
bas, por()ue as harmonias são muitas achainarcm-nas ;,
cada liouieiu de bem é um Orplieu', todo ac[Uclle
que ainda não tiver cruza<l<) os bra(;os pchi desespe-
rança poderá ser um Ampliião. Animcm-se reeipro-
eamenle, csles descobridores ila nossa índia, da ín-
dia que já agora é possivel para nós, (\uf o bom pro-
pósito é contagioso, e o cabo não é das lormenlas,
mas sim da lioa esperança Os A(himailores vão tles-
npparcíciniK), como fantasmas di' Irivas á biz ilo no-
vo dia. I''i\ra iinpcnloavolinciile purril i> jiiii^ar que
os governos iião de fazer tu<lo, e o povo nada. (ío-
verno epino eompõi-m a nação. Os esforços são recí-
procos. A polilicu é unia, é o bem ger.d. Trabalhe-
(I) Cuilio a l'i*S|M-i(jtvrl A^snriarrui liiilu%ll i.il tio Puí-
lo vue fíiiter, tíMii iti|iu-lla L■ln-r^ia t- M-rit-tlailr (|iic ja ca
ractcri^u tuilui us kctu ucluk l- ilelibrriivõr^. O ^ru juriiul,
>» per li, jú cru mu fjriuiile servk-u.
se no monumento d'esta era, e cada um dos operá-
rios levará um passaporte para a posteridade. O Le-
thes mudou-se em Jordão, e as suas aguas são de
apagar sftdes, e santificar sequiosos. O simples parti-
cular, como o alto funccionario, todos podem ajudar
ainda mesmo com a approvação e louvor, que mais
não seja, esta reedificação, nãojá de uma cidade, mas
de todo o reino.
Prosigàmos com o argumento egoístico se assim
lhe quizernios chamar. Não temer que o fructo se
perca, por lhe querermos apressar a maturidade.
Não é solipsismo, porque os filhos lá andam nas es-
colas, mas entretanto que os pães, e os irmãos roais
velhos as encontrem abertas por toda a parte. Com
que prazer não as vimos nós já em terra que não é
menos portugueza do que esta, (1) apesar das soli-
dões do Oceano que a estão cercando, com que pra-
zer e unção se não viam ali, chegada a noute, corre-
rem para a escola. A luz que deslisava alegre e fes-
tiva d^aquellas casas evangélicas, parecia a que en-
tre os rigores de dezembro solta a igreja em noute
de natal. Era noute de natal todas as noutes I
Faça-se isto, que já temos andado muito.
Abram-se escolas nas cadêas para os presos, que a
conquista irá mais adiantada. (2)
Abram-se porém como deve ser nos quartéis. Eis
o ponto que convém ferir.
O enfermo precisa de que se lhe empreguem to-
dos os meios therapeulicos para que a cura seja ra-
dical. Não é ídylío. E positivo, e tão positivo como
os cálculos, como os algarismos, como o pão, como a
vida real, como a felicidade publica, sobre que não
é licito romancear.
Das escolas populares podem fugir muitos por má
vontade, por desleixo, por más suggestões, por ne-
cessidade de dar ordem á vida, porque os filhos que-
rem pão, c ás vezes nem um salário de quarenta e
oito horas de traballio daria para sustentar n"um dia
uma família proletária.
(!) A ilha de São Miguel que já conta doze d'estas
escolas gratuitas c nocturnas.
(2) Não é nosso o alvitre. O mesmo fundador
das escolas gratuitas em São Miguel, o sr. Castilho,
impetrou do governo de Sua Alagestade o crear na
cadèa do Limoeiro uma escola de leitura e escripta
pelo seu niethodo. O pensamento foLdevidamentu
acolliido. A portaria do ministério da justiça do 29
de setembro (Peste anno, assignada pelo sr. Rodrigo
da Kiuiseca Magaliiães, é um documento que para
o avaliar basla haver coração. — Leia-se : — Cói'iA.
— Jtc]iíirtir<~ii) ilu jiisti{;u. — Sendo presente a Sua
Mageslade a Itainha o officio do procurador régio
da relação de Lisboa de 10 d'este niez, com a repre-
sentação em qu(; o exímio escriptor António Feli-
ciano de Castilho se olVerece a crear na cadèa da ci-
<lade uma escola de leitura e escripta repentina, com
mestre gratuito da sua escolha e approvação : A mes-
ma Augusta Senhora, reconhecendo os proficuos re-
sullailos <pie devem provir ihi instrucção dos pri-sos,
por meio Ião f.icil e pruniplo; Manila declararão
rereriílii procurador régio, ([Ue piide acceilar aqiielli-
generoso olVereciníenlo, .i liin de ler logar o ensino
de cpie SC trata, mas sil de dia e separadamente, em
i-ada iiiiia das respcciivas prisões, dando cm seguida
as providencias adequadas, para que, iiiiinlida rigori'-
hamenle a observância do rei;ulaiiieiili> de l(i de ja-
neiro de IHí;1, nào se perturbe a policia da c.idéii,
nem se arrisque n segurança dos presos. — l'«eo, em
2t) Setembro de 18.S2. — Uodrigo da Fonseca »a-
galiiiJIat. — K»tú eoufornie — José Maria llorge»
188
O PANORA3IA.
Das escolas das cadéas, oxalá que fugissem todos ;
inas do mal, o menos. O LasciaU ogni sperama
do Dante, já ali se não poderia repetir com ver-
dade.
]Mas da milicia, pelas rasões que apontámos em o
nosso capitulo precedente (1), quem fugirá? (iuem
não paca este tributo? GLueni ao solver a divida da
pátria não encontrará bemaventurangas nas riquezas
que d^ali trouxer .' Mais do que um pobre capote de
munição, e algumas alfaias que acompanham a bai-
I xa, lhe aproveitará ao soldado a leitara tomada em
I necessidade, e o préstimo que houver adquirido no
, serviço.
As escolas que existem para o nosso exercito, fa-
' zera do homem soldado. As que sinceramente dese-
I jariamos melhoradas, devem fazer do s<jldado ho-
mem.
Voltaremos ao assumpto.
Luiz Filippe Leite,
JJirecior da Escola formal Primaria de lÀtboa.
(1) Veja-se o N." 40 (Peste volume.
SANTO IGNACIO DE I,OTOI.A.
A BAINHA D. ]Maria Anna do Áustria, \iuva de
D. Filip]>e IV, desejando que na casa cm que nas-
cera Santo Ignacio, celebre fundador da companhia
de Jesus, se erigisse um coUec/io, procurou obter e
conseguiu a cessão do palácio de Lovola, situado a
légua c meia da \illa de Ascoitia, em Hespaidia,
cessão que llic foi feita pelos seus proprietários D.
Luiz Henriques de Cabrera e 1). Theresa Henriques
de Velasco, n)ar(]U<-zes de Alcanizas e de Oropcsa,
por oscriptura de Úi de maio de 1G81, lavrada na
(■idade de Toro, com a expressa condição de que se
não demolisse parede alguma. Carlos II approvou
esta escriplura, aos 14 do julho do mesmo anuo, e
a 19 de fevereiro seguinte, cm nome da rainha, to-
mou posse do edifício 1). Manuel de Arcc, correge-
dor de Guipuzcoa, acto que se celebrou com a maior
solcmnidade, e na presença de um numeroso con-
curso.
Achando-se no Bvm-rttiro a rainlia D. Maria,
firmou, aos '21 de maio de 1GS2, a escriptura de
fundação d"cslc coUogio, c pediu a seu fillio que lhe
concedesse as mesmas jirecmiiiciKias, prcrogativas e
isenções de que gosava o mosteiro do l'2scurial, e os
conventos das Descalças e da Encarnação do Ma-
drid. Carlos 11 acccdeu a este pedido, approvando
a fundação do collcgio em todas as suas partes, por
decreto de á3 de niarw de 1683.
Kntrada a companhia de Jesus ua posse do palá-
cio do Lovola, tratou desde logo de tomar as neces-
sárias providencias para a edificação docollegio, en-
carregando de fazer os respecti\os planos e desenhos
ao architccto Carlos Fontana, illustre pelas muitas
c .soberbas consIrucçOes, a que presidira nos pontifi-
cados de Innocencio \II e Clemente \I. Não cons-
ta qual fosse o primeiro artista encarregado da exe-
cução do difficil risco de Fontana ■ no primeiro quar-
tel, porém, do século 18.'' enlcndia nas obras Igna-
cio de ll>ero, succedeudo-llie \;í\ier Ignacio de
EclicNarria, que ainda as dirigia em lT(i7, quando
foram expulsos os jesuítas. A primeira poilra do edi-
fício coUocou-se em 2S do março de 1689 ; mas des-
de 1767 não proseguiram os tratxdhos, ficando por
consoquencia a \asla fabrica incompleta. De|>ois d.-»
expulsão dos jesuíta*, inissaram os cónegos de L r-
dax ])ara o antigo collcgio, e jwla exiincção das or-
dens religiosas, licou a Ciirgo da municipalidade de
Aspeilia, que, honra lhe seja feita ! tem emprega-
do todos os meios para preservar o etlificio dos es-
o PAIS OR AMA.
389
tragos do tempo, faiendo-lhe os necessários reparos.
Em 1846, discutia-se a opportunidade de estabelecer
no collegio de Loyola, que a nossa estampa repre-
senta no estado actual, um museu, e o archivo pro-
vincial. Muito convirá que tão cxcellente idéa se
realise, porque assim fica garantida a existência de
um monumento, que segundo a opinião dos enten-
didos, apesar de não estar concluído, não tem supe-
rior em Hespanha exceptuando o mosteiro do Escu-
rial.
Cedendo aos desejos de muitos dos leitores do Pa-
norama, reproduzimos nas suas columnas o romance
histórico — Odio Velho — do qual um fragmento
se publicou já em os n.*'* 2.*^ e 'i.^ do presente vo-
lume. Não ignoramos, que a edição que se fez d'el-
le lhe rouba o interesse da novidade ; nem agora ten-
taríamos a reimpressão, apesar de decorridos alguns
annos, se não nos julgássemos obrigados a satisfazer
os assignantes que o pedem.
O que está <la nossa parte é corresponder da ma-
neira conveniente, revendo cuidadosamente a novel-
la, e expurgando-a dos defeitos, que o tempo e a
reflexão lhe descubriram. N 'este sentido sujeitámol-a
a um exame severo, e podemos afíiançar que no es-
tylo e nas scenas mais importantes apparece quasi
completamente refundida, não se poupando a lima
nem o trabalho para tornar claras, fáceis e agradá-
veis essas paginas, que mais pelo assumpto, do que
pelo mérito litterario, obtiveram da benevolência pu-
blica um acolhimento, que em toda a imparcialida-
de somos os primeiros a conhecer, que excedeu mui-
to as esperanças do auctor, e o mérito intrínseco da
obra.
N^esta correcção tomou-se por empenho verter
quanto possível na linguagem de hoje as idéas e os
factos da sociedade no século XÍII. Procurou-se ti-
rar á phrase e ao ))eriodo a rigidez e a cilr antiqua-
da, que faziam bastantes vezes obscura pelo uso de
vocábulos obsoletos a intelligencia do texto. Sn o
fnn seconseguiu acrítica odirá; que sedesejou, que
se lidou para o alcançar, esperamos que o alteste a
comparação mais supi^rficial da jjrimeira edição com
«actual. Su[)priram-se igualmcnie todas as omissões,
que suspendiam a idéa, ou deixavam imperfeita a
expressão dos o.iracteres e das paixões. lia scenas,
que foram esrriplas de novo, e(|ue ainda assim des-
(.•ontentam o auctor \ mas não dependia (rdle agora,
sem alterar o plano do livro, dar-lhes o cunho, que
no flíMi pensaincnlii er.i preciso <|ue tivessem.
í) juizo dos enUindidos fará justiça, avaliando as
di('li<'ul(lades e os esforços. .Si; esh; ensaio fiír feliz,
em seguida ao romance — ()i>io Velho — publicará
o Panorama outra novella — A 1'kn/V iikTaliXo —
em que a deposição eh? Sancho II e os seus desgra-
çados amores com a bella Meeia d(? llaro formam
o fundo da arção. Um episodio d'este quadro, tal-
vez o mais dram.itico <ra(|uelle peiiodo liislorico, já
«aíu na Itvvhla Ihiivirsnl roni otilulo di Uauso
i'Oii Omizio — cujo desenho e coloriílo coidessa o
aiielor em toda a sincoridadi- «pie estão lojige das
condições, que, ii seu vôr, (íxige unia oln'a »l'arte,
que (leve piiiulpi.ir por wr agradável na leitura, não
»e enriMl.iiiilo o eslylo ile phrasi's arcliaislic.is, nem se
prendendo a ra(l:i pnsso coiu locoiòcs estiiiiiiilaMiciilc
obscuras.
Se o favor qui- acolheu os piimeiros ensaios da
Hua iinaginiieão inexperiente conlinuar a prolegel-o,
fii-ain salisleilos os seus desejos, e mais do (pie pagas
<piaes(jucr fadiga», applicadas a não o desiuei-eccr.
De resto, torna a declarar que não poupou diligen-
cias para que a segunda edição d"este romance saia
digna do pubUeo, e em estado de supportar a nece?-
saria severidade da critica.
L. A. Rebello da Silv.4.
ODIO VELHO NÃO CANC\.
Romance Histórico.
Iniroducção.
Abrisdo em um capitulo o Nobiliário, attribuido
ao conde D. Pedro, encontrei a tradição do rapto
de D. Maria Paes, amante de Sancho I, por Gomes
Lourenço da família do famoso Viegas de Riba Dou-
ro, denominado pelos chronistas o espadeiro.
Logo á primeira leitura acha-se o sabor rústico,
mas agradável, das historias populares, contadas ao
pé da fogueira, com a ingenuidade do velho estvlo
patriarchal. Os quadros do JLii-ro das Linhagens
lembraram-me os painéis flamengos, aonde, com mui-
ta naturalidade quasi sempre, as figuras se destacam,
parecendo viver «conversar ao serão allumiadas pela
chamma, cuja labareda affogueia as gothicas chami-
n(?s.
Pelo menos produziu em mim este effeito o Nobi-
liário. Lendo-o, por momentos meilludi, figurando-
se-me que respirava o ar áspero c livre, em que se
cre(5u a robusta infância de Portugal.
E antigo o colorido do estylo bem sei , é incor-
recto o desenho das scenas não o ignoro \ porém os
toques, eas physionomias que ha n'elles hoje não se
imitam, mesmo de louge, nem se encontrara, a não
ser em algum retábulo da escola chamada de Gran
fiasco.
Se a novella histórica c o drama quizerom deve-
ras fazer-se nacionacs hão de aprender ahi muito no
Nobiliário-, porque o espirito pôde ter a intuição da
sociedad(! passada, e aclivinhar a existência intima
de epochas, que talvez não seja erro denominar as
eras heróicas da nossa historia. Um resto da vida e
das crenças, que eram a alma dos primeiros séculos,
ainda anima aqnelles retratos meios apagados. Peda-
ços do grande espelho, aonde se reflectia o século, é
necessário ajuntal-os e embebel-os na moldura mo-
derna para tornarmos a \òt alguns dos seus defeitos
e bellezas.
Isto percebe-se na tradição de Maria Paes. A ex-
cepção de duas situações, a torrente (pie levou tan-
tos monumentos preciosos gastou o resto. A acção fi-
ca suspensa i os episódios estão confundidos •, os ca-
racteres apparccem em meio cslx)ço. O nexo, a uni-
dade e a lornia debalde se buscariam ali ; mas em
compensação acha-se o que nada pode supprir ta>n-
bem ; — a verdade dos costumes e cLis paixões, se-
gundo o >i viver p crer" d'aquelle tempo.
O Nobiliário entra na acção sem prologo. Gomes
Lourenço espera Maria Paes, rouba-a, e depois met-
le-se com ella nas terras do rei de Leão. Ponpie .'
O piedoso collector deixa-nos ignorar as eircunistati-
cias do louco amor, ([ue arrojou o cavalleiro a for-
çíir, não (pialquer dama (o que era então \ulgar),
mas a amante de Sancho 1 ! Apesar de encerrado no
liiniulo. a sombra irritada do \eneedor de Sil\es de-
via arreleeiT a ousadia do homem ipie pisava as suas
cinzas, profaiiaudu a alli ieão mais aitientt' da sua
vida.
Sem poderosa ciiusn atrover-sc-ía o iiiipelo dos
390
O PANORAMA.
sentidos a tal extremo? Parece quR não. Em Avel-
lans, roubando Maria Paes, Gomes Lourenço não fez
mais do que revelar a dcsesperajão de affectos mal
retribuídos, ou completamente despresados. Como se
preparou o desenlace da tragedia ninguém sabe \ é
provável, que o ódio ilus duas raças, o desdém de
mulher, e p<5de ser até q\ie o escarneo, mais pun-
gente do que todos cUcs, bordassem a tela em que
esta paixão negreja. — Eis o que indica a falsa re-
conciliação depois do rapto •, vô-se bem que foi fingi-
da para adormecer o cavalleiro e arrastal-o, engana-
do, ao precipício.
De que maneira o conseguiu Maria Paes ? Comeu
a terra o segredo, e jaz com os seus auctores. Entre
tanto ha uma conjectura plausi\el para a explicação
de tudo. E suppôr, que a dama representando a co-
media de um amor, (jue não sentia, e attrahindo Go-
mes Lourenço com promessas e juramentos, o trou-
xesse ao laço, armado de accôrdo com os parentes.
Quem reflectir no caracter de Maria Paes, vigoro-
samente desenhado no Livro c/os Linhagens, pouco
hesitará em acccitar a h^pothese. Mestra na arte da
hypocrisia e da pcȒidia, batendo-lhe no peito o co-
ração de uma raça implacável, as seducções dabelle-
za eram n'ella um perigo mais-, debaixo estava a al-
ma inexorável da famosa Leonor Telles.
Por isso se preferiu á versão do Nobiliário sobre
a morte de Gomes Lourenço, o desenlace figurado
n^este romance. Pareceu mais adequado á invenção
poética, e talvez mais conforme aos costumes do sé-
culo. A tradição do Uvro dns Linhayctis^ n'esta
parle, figura-se-mc visivelmente corrompida. O pa-
pel attribuido ao rei de licão, e a justiça violenta
imputada a Ailunso II, oppõe-se aos usos do tempo,
e são pouco verosimeis.
Um dos Viegas, família por alliança de sangue
unida a tantas casas imporlanles do reino, não se
justiçava por acto verbal e summario como o villão,
que os ofliciaes do municipio sentencia\ani, e o ver-
dugo açoutava. Para tocar assim na cabeça de um
rico homem do século doze o braço real ainda não
era bastante forte. Pelo contrario a historia dos pri-
meiros reinados moslra, que os fidalgos, desenfreados
pela impunidade, ousavam e podiam tudo, sem a
auctoridade soberana se atrever a cohibil-os.
Além d'isto, como ousaria o rei estranhar as vio-
lências, de que frequentes vezes era o primeiro a dar
o exemplo? Gk.uem estudou de perto as contendas de
Sancho I e do seu filho com o clero e com alguns
dos nobres, conhece que esles monarchas recorreram
ao incêndio e áoppressão sem o menor remorso. Ex-
cedendo-os na crueldade das vinganças, os ricos ho-
mens seguiam as suas pizadas, e compunham-se pe-
lo modòlo do príncipe.
Se o rapto da imiMcc </<,• liithaficm era feilo mais
arriscado do que manchar a innocencia da filha do
povo, o perigo não consistia na severidade do rei-,
provinha das rcprezalias inevitáveis e terríveis da fa-
niilia ultrajada. O roubador ficava diante d"ella co-
mo homicida de mais que ávida, como algoz da hon-
ra e do (.Tgulho de uma raça nobre i e injurias taes
nunca deixavam de verter sangue. O direito de vin-
dicta, exercido pelos parentes, legitimado nas leis,
e santificado pelos costumes, era sufficicnte para fla-
gellar amargamente as vigílias do criminoso. O re-
ceio, aguilluiaiido o remorso c tornando-lhe .acerbo o
prazer, f.izia-lhe de espinhos o leito da insomnia. En-
tre tanto, sem temor é licito dizer que no meio das
ameaças que o podiam perseguir o cutello alçado por
D. João II sobre a cabeça da fidalguia não lampeja-
va diant<! da sua vista.
O rui ainda uio aprendera a caoonisjir as suas
paixões, vestindo-as com a oppa da justiça, e com-
prando o sangue a preço de honras. As vinganças e
as ambições eram sinceras, e não punham mascara.
A atrocidade legal veiu depois, como requinte de ci-
vilísação, nos tempos do filho de Affonso \ !
Por estas razões é que a tradição do Nobiliário
pareceu corrompida, e se adoptou a hypotheíe figu-
rada no romance. O enredo vive do ódio de raça,
feição característica da meia idade. A chronica das
luctas individuaes, e do conílicto das diversas classes
e localidades, se fosse restaurada cm consciência pelo
drama e pelo romance, seria a pintura exacta das so-
ciedades semibarbaras, que dormem na urna da his-
toria.
A originalidade da acção, a grandeza trágica dos
aíTectos, e o pittoresco dos costumes, que offerece,
são dados preciosos para a arte aproveitar nas sua*
manifestações. O Dante nos mais admirados episó-
dios da Divina Comedia, e Shakspeare nas melho-
res peças, colheram a vaga tradição, e a ella aque-
ceram o raio luminoso, que é a alma das suas bellas
creações .
Uma d^ellas, Julieta e Jiotneo, talvez a composi-
ção mais delicada do auctor de Othello, indica uma
apagada similhança com, a tradição do Nobiliário,
thema doeste romance. E também uma rixa de fa-
mília, e um noivado que vêem expirar dentro das
paredes do sepulcro.
Mas a similhança está só na identidade do facto.
A fabula, os caracteres, e os sentimentos apartam-se
depois completamente pela diflferença da índole dos
dous povos, e mais que tudo pelo abysmo que sepa-
ra a poesia do norte da poesia peninsular.
Entre tanto em nenhum drama foi Shakspeare
menos inglez, quanto á forma, do que em Julieta c
Romeo. Meditou-a debaixo do til como se vivesse no
seio de Granada e Sevilha, entre os laranjaes c li-
moeiros. GLuem apreciar a sua obra só pela apparen-
eia, dirá que foi inspirada pelo sol das Hesjvinhas .
quem descer porém a mais seria analyse descobre lo-
go o desconsolado scepticísmo, que envenena os affe-
ctos, degenerando o coração porque lhe rouba a es-
perança em Deus.
Vendo Romeo, e amando-o, Julieta pressente que
o verme da morte está dentro das rosas do amor.
Ella mesma é quem prophetisa : .. que o tumulo se-
rá o seu leito nupcial, c os brandões fúnebres allu-
miarão a vingança das duas ca^as inimigas! " Longe
de sorrir a illusões futuras, a apaixonada doniella ge-
me na tristeza as solitárias horas da noite. E a lua.
amiga dos amantes, caindo branda e clara sobre as
pedras d'um jazigo, parece indicar-lhe o sitio aonde
o infortúnio acaba '. ^
(iue difíerença entre esta contemplação perennc
da morte mesmo no amor, e a paixão arrebatada,
que respiram as peças casteUnULis de Ixtpo da \ ega
e Caldcron ? '. No infinito, por onde \òa a phantu-
sia, e na immensidade do desejo, por que se alarga o
coração, ainda escrava a inspiração, e abrindo asara*,
eleva-se acima do universo, e rompe ate ás nebulo-
sas regiões, além das quacs estão os segredos do por-
vir.
Absorvido no exame do niystcrio da existência, o
iiigloz rcsolve-o pela duvida, quando o castelhano o
ilhimina com a ic. De joelhos, no chão dos mortos.
ShiiKsjiearo deixa p.is>ar a alma alguma cousa do co-
lido orvalho (]ue goteja das cruzes, e cresta a flor
que só viverá um dia. 1'ara elle a existência sígnili-
ca a pass.agen> dolorosa do homem, saindo do dei-
torro do mundo para o invisível e ignorado abisma
que está além do sepulcro, e que a >oi do mundo
chaiua eternidade !
o PANORAMA.
391
Creada entre as dua! maiores solidões da vida, o
mar e a ausência, a musa britannica é triste e seve-
ra como ellas. As tormentas, que lhe balouçam o
berço, os nevoeiros que lhe toldam o sol, e a luz ba-
ça e triste, que lhe allumia os dias, concorrem, com
a melancolia do clima, para a fazer chorosa, reflexi-
va c sceptica. A paixão do norte ó a noufe dos es-
ponsaes de Romeo (acto 2." scena 2.'') conversada
ao luar. Os suspiros da aragem, a fragrância das flo-
res, c o murmúrio das folhas, harmonias c perfumes,
entre os quaes recendem os beijos do primeiro amor,
enganam o coração deixando-o gosar em um minu-
to uma vida inteira \ a alma antevê o céu, estreme-
ce com os doces affectos, e apesar de tudo isto por-
ijue não ha n'esta scena senão tristeza ? Porque se
reflecte na admirável ternura dos dous amantes, co-
mo um clarão da lâmpada fúnebre, que aclara o
desenlace trágico ? Desde o principio, a cruz da er-
mida, onde no fim ambos vão morrer, apparece de
toda a parte, e até mesmo entre os myrthos do
amor I
A musa da Ilespanha não entende assim a exis-
tência. Filha dos vergéis, não se reclina a vêr do-
bar nos ares as nevoentas cascatas; não vae pela bei-
ra dos rios aspirando afresquidão, apanhando o fructo
com a ílôr, nos ramos que se debruçam em toldo vi-
çoso sobre a estrada. A luz e o sol, as flores e as
aguas, alma da natureza, também são a aln]ad'ella.
O estio calmoso colhe-a, ingénua e pastora, banhan-
do-se meio corpo nas fontes, ou ])ensativa e namora-
da pulsando com os dedos distrahidos a thiorba ro-
mântica. Se chora, poucas vezes verte prantos incon-
soláveis ; se o coração arqueja, raro é em convulsões
ilc desesperação. Os delírios de Saplio, as saudades
que matam, e o amor que verte sangue em vez de
lagrimas, rara vez levantam os sinistros espectros do
c'iume de Othello, do scepticismo de Ilandet, e da
demência de Lear no temperado e suave clima da
Ilespanha.
As paixões na 1'eiiinsula são ardentes, porque o
sangue hespanhol <|ueima como sangue árabe; mas,
nos trances do infortúnio, a esperança não foge ao
afllicto, antes lhe aponta para o céu. l';idecor é ex-
piação, não é destino. Vergado á sua cruz, aipielle
que descac, não ex[)ira enchendo a terra, tomo \iy-
roíi, dos clamores da desesperação. Acima das tem-
pestades em que a vida se aflunda, está Deus, a fé,
e o dogma consolador da remissão divina. Na harpa
do norte ha de menos a corda suave de esperança
níligiosu.
A opposição de idéas c de indohí entre a poesia
dl) iiorlir e a do meio-dia, constituir a respirctiva
originalidade. Km Caslella e Portugal os dramas de
Hainlii, e do rei hcar, iinitando-se, arriscavam-sc a
passar mal <.Mitendidi<s.
Tem-scí dito bastant(> para descnvcjlver a difleren-
ça entre a tradição do ISiiliiliarin, e a versão italia-
na, que: inspirou a Slialíspear<! o drama de itomooe
.luliela. Seja licito agora accre.scentar duas palavras
.linda para explicarmos o lim que o aiirtor se pro-
j)oz, acceitando o condi pcipuhii- cnuio base das fic-
ções da novella histórica.
A eòr antiga do Uvro dns l.iiiliiiijnm serviu de
fundo ao painel, em (|ue se debuxaram estas acenas
do século 1!)." O povo está retratado, de escorço ape-
nas, nas ondas da praça publica, aonde <>nsiiia a vi-
<la enérgica dos reinados ilcl -n-i I). Kirnaniln e D.
•loão J; o levíMuenle eiiiioçiiilo noscoslumes, que não
resaem bem si'não na intimidail(> do lar domestico.
As li'Í8 conservadas no Fiu iti I icjo ilr Ctistiltti, e os
usos civis o religiosos, colligidos pelo erudito Her-
ganza n.is .■liiUijniJadr^ dr Íl<fjiiiiili(i, niinisliaram
j tintas hoje raras para se restaurar um pouco das ob-
literadas physionomias do clero e da nobreza na ida-
j de media. As virtudes e os defeitos das classes, quan-
] to possível, resumiram-se em um quadro breve para
deixar sobresaír melhor o espirito, de que vivia a
sociedade, que tanto lidou pela gloria do nome por-
tuguez.
Em assumptos históricos o de\er do romance con-
siste em cunhar com a verdade mais aproximada a
expressão fiel do viver e crer de Portugal, ou de ou-
tra qualquer nação, n'uma designada epocha. Senão
prestarmos ás gerações extinctas os sentimentos e as
crenças, que as animaram, e as paixões humanas,
que as inspiraram, tudo se fará menos entender e
applicar a historia na sua essência mais philosophica.
Para calumniar um século e os homens d^elíe não
vai a pena levantar do tumulo o seu cadáver. A re-
ligião do S(!pulcro deve ser sagrada para a arte, como
o é para a historia.
Nos lavores da imaginação o mérito está em re-
produzir idéas exactas colhidas pela analyse das in-
stituições e dos factos sociaes. O desenho das physiono-
mias e o relevo dos costumes, dependem d"ellas \ ou-
tra cousa equivale a consummir as forças na ingrata
fadiga de adversa Minerva, dissolvendo-se a tinta
dos velhos pergaminhos em arengas insípidas, e es-
tolidamente falsas. O verdadeiro espirito dos séculos
escapa á rede de apanhar vocábulos dos copistas.
E a razão porque este romance é escripto e falla-
do na língua de hoje, e não torcido por torniquete
quinhentista. A historia reside nas cousas.
Por ultimo, como a tradição, que escolhemos, «
das poucas i-m que se revê a funda e quasi inconso-
lável tristeza da musa do norte, adoptou-se para epi-
graphe este verso de Shakspeare em Othello :
She was born to be fair; I lo die for her love !
De certo, Gomes Lourenço podia dizer com o poe-
ta inglez :
EUa nasceu para matar irencanlos
Eu para, amando-a em vão, morrer d^amores.
t) padecimento immenso do cavalleiro portuguez,
bastante para encher d^amargura a existência toda,
está resumido no verso de Shakspeare. Desdemona
tiiiha-o gravado na memoria com as suas lagrimas
antes de o soluçar na harpa; e atravez das epochas,
no infinito da eternidade, a amante do mouro de
N CiKíza, e o neto dos V iegas de Salzedas, dão as
mãos, confundindo no mesmo suspiro a dõr que os
dilacerou. Ambos ri-pousani n'um sepulcro ensan-
giunlado ; ambos do amor, ([ue foi a sua vida, co-
lheram apenas, ella o espinho do ciúme, elle o des-
engano da traição !
O IíkIo severo, que os levou a brincar cou\ a mor-
te, e em premio devotarem a alma a um alleclo, só
lhes deu tornuMitos e desesperação, é o mysterioso
cunho, com qiu- o di-do da l'r<)\ideneia assignala os
iiiarlyres do sfutimenlo, escrevendo a predestinação
da poesia na fronte de tiamòes, e debaixo da corOa
d'espinhos ile Uernaiilim lliheiro 1
VIACKNS.
U.M i'\ssnio \ Moiíiiai V.
Kiíi-.Mio outra ve/. em norgen. recolhendo de uin<i
excursão a', inoulauha-'. Direi duas palavras áeevcii
392
O PANORAMA.
d'esta cidade e seu commercio antes de te dar con-
ta da minha jornada.
Dizem <|ue a fundara cm 1069 ou 1070 o rei Ola-
vo Kjrre, que a elevou á cathegoria de segunda ci-
dade do seu reino i em 1)reve veiu a ser a primeira
pela vantajosa situação de seu porto e pelos privilé-
gios que Uie concedeu a liga hanseatica, (1) pondo
aqui uma feitoria. Até ISl-i conservou esta supre-
macia. O congresso de Vienna separou a Noruega
da Dinamarca para unil-a á Suécia em recompensa
da cooperação que o gcnieral Bernadolte, coroado rei
Carlos João, (2) prestou para a queda de Napoleão,
e por indemnisaeão da Finlândia e daBothnia orien-
tal com que ficou a Rússia. Desde então é a capital
da Noruega Christiania, que só fora fundada em
1624, mas que -augnienta annualmenle em impor-
tância, commercio e prosperidade. Todavia, Bergen
continua a ser a cidade mais commerciante e mais
povoada : monta a sua população a 23,000 habitan-
tes, e soube conservar no seu porto os depósitos das
grandes pescarias das ilhas situadas na extremidade
da província do Northland.
Estas ilhas situadas entre 68 e 69 graus de latitu-
de, de solo geralmente pedregoso e estéril, e de pou-
co âmbito, porque as maiores apenas tem oito a no-
ve léguas de circuito, formam ura pequeno archipe-
lago n'um mar extremamente piscoso, onde se jun-
tam todos os annos os pescadores do norte para a
pescaria de inverno : aqui concorrem aos centos, aos
milheiros tanto de Bergen como do Finmark e Dron-
theim, não obstante o dilatado e espesso véu que en-
luta estas aguas, e as temerosas tempestades que as
agitam
Mr. X. Marmier, (3) infatigável e verídico via-
jante, publica, segundo documentos officiaes, o se-
guinte quadro da pescaria em um anno ordinário :
2,910 barcos e 15,480 pescadores, tripulando cada
barco geralmente cinco ou seis pescadores, apanha-
ram em dous mezes 16.4o6;620 peixes, de que fize-
ram 21,530 cascos d^azeite e 6,000 d^ovas de peixe ^
o azeite produziu a quantia de 758:530 francos, o
peixe salgado 1 .371:388 c as ovas 30:000 ; total em
francos 2.159:938 francos, istoé, mais de 343 contos.
Comtudo isso os pescadores de Bergen não colhem
lucros correspondentes, porque vendem muito bara-
to o seu género ■, o ganho reverte em beneficio dos
negociantes c especuladores.
A cidade exporta annualmente o valor do dous
milhões de spccics (um spccie dollar vale perto de
900 réis) de bacalhau, 20,000 toneis d"azeite de ba-
calhau de 1.", 2 c 3." qualidade, e 400,000 a
600,000 toneis de arenques salgados. O bacalhau
vende-se em grande parte nos portos do IMediterra-
neo \ os arenques consommcm-so qtiasi todos na Hol-
landa ; o azeite de bacalliau vae para toda a parte.
Nos mezes de abril c maio é que se pode vir Ber-
gen, quando os grandes hiates (jocgis) chegam car-
regados de pescaria •, contam-se então no porto 600
a 700 embarcações de 70 a 200 toneladas, além dos
navios estrangeiros de mais forte tonelagem que ali |
esperam ou lomani suas carregações.
^C'o»i/i)ii(a.^
— t) primeiro passo para o bem é nunca faicr
mal J. 15. UoissK.*.i-.
— Se o vosso inimigo tem fome, dae-lhe de co-
mer ; se elle tem sede, dae-lhc de beber.
Salomão.
(1) Voja-so o que é a Iaj;a Ilunseatirn a pag. 349 do \
2.'^ voliiiiio lio Piinnianm. j
(-) ^ oj;i-io a biogr.iplii.T de Bcrii.-idottc a pag. 199d'es- ■
te \ulunic. I
(3) Viagcus a Scamliuavia. Lapoiua, Spitiberj, e ilhas
ilf Keroi-, aa> auiios Jc lt>31J a 1340.
No próximo mez de janeiro de 1853 co-
meçará a publicar-se o 10.° volume do Pa-
norama, Annunciando-o, o Editor aproveita a
occasi3o para agradecer a protccrio que o pu-
blico illustrado lhe tem dispensado, e a sym-
pathia com que foi recebido geralmente o pen-
samento de continuar um semanário t3o illus-
tre nos fastos da litteratura pátria. DiRiculda-
des inevitáveis na organis^rOo do uma empre-
sa desta ordem, que, como todos sabem, é
inleiramenle dlslinita das anteriores, obstaram
a que a nova serie do Panorama correspon-
desse inteiramente aos seus desejos. O pa-
pel, que nos fornecem as nossas fabricas, e
que ainda não reúne as condições necessárias
para uma edição nítida, faz principalmente
com que as excellentes gravuras que temos
dado, todus devidas ao delicado buril do sr.
Coelho, não sobresaiam tanto quanto era para
desejar. Esiienlmos obter melhor papel, e con-
tinuaremos solicitos a empregar todos os meios
para que o Patiorama venha a ser também
um specimcn dos progressos da arte typogra-
phica entre nós. Em quanto á redacção o Edi-
tor não duvida apresentar os números publi-
cados como uma prova insuspeita de que não
sabe faltar, nem faltará jamais ás condições
exaradas no_ seu programma.
Assigna-se para este semanário : em Lis-
boa, no armazém de livros do Editor, rua
do Ouro, n."' 227 e 228, e nas lojas dos
sr." Lavado, rua .\ugusta, n.° 8, Bravo, rua
do Ouro, n." 212, Zeferino, rua dos Capcl-
lislas, ele.
São correspondentes do Panorama no Por-
to, o sr. A. R. da Cruz Coutinho; em Coim-
bra, o sr. A. H. Dardallion ; em Braga, o
sr. Freitas Guimarães ; em Santarém, o sr.
José Firmino dAzevedo Pereira; em Setúbal,
o sr. ^Manoel José Ferreira ; na Ilha de São
Miguel, o sr. M. C. dAlbergaria e Valle ; e
na Ilha da .^ladeira, o sr. .\. J. de .\raujo.
Preços: — Por anno ou o2 n.°' 15300 rs.
Por semestre ou 26 n."' TOO rs. Numer.'
avulso 30 rs.
Os sr.'"' que dcs^jarom subscrcNor para o
anno de 1833 queiram dec!aral-o quanto an-
tes, em Lisboa, aos destribuidorcs. ou nos lo-
gares acima citados, e nas pro>incias aos cor-
respondentes, ou ]ior caria franca Jf porlr,
dirigida ao Editor, e acompanhada de uma
ordem da respectiva imporlanca.
50
o PANORA3IA.
393
PASSEIO PUBLICO DE HAVANA.
A itiiA (lo Cuba ó iiicoiílcstavolmente a mais rica,
a mais clvilisaila o a mais imporlaiil<; colunia de
llosjiaiilia. 1'olilitameiilo i' repartida cm duas pro-
víncias: Havana o Sanliago de Cuba^ militarmente
iomprcIii'nd(r Ires grandes divisões. í) poder judicial
c exercido pela riul lualunciu da Havana e l'orto-
Principe. () capilão-general, governador da colónia,
é o presidente-, os teus delegado» nos dislriclos exer-
cem igualmente a» fiineções de magistrados. Onde
nHo lia cominandanlcs militares la/em as suas vezes
os alcaides. Nas povoações ruraes ha tandiem y^tccs
pcdancos, (pie suo igualnicnle nomeados pelo gover-
nador. A admiiiistraijão das linaii<;as ('• leila sob a
inspecjjão das três intendências di; Ilavaiia, Matan-
za.s e Sanliago; pelo (|iic respeita á partia iiiaritima,
e a illia de (,'ulja repartida em cinco proviíicias ou
departamentos, cujas capitães são Havana, 'rriuidad,
Sanliago, S. Juan de los llemedius, Nucvitas. I''i-
nalnuMile si- ii eonsidcrarinus na biia divisão eccle-
siastira, comprelicnde um arcebispado, o de Sanliago,
e um bisjiado, sen suIlVagaiíeo, o de Jlavaiia.
A popula(;rio (la illia de Cuba era em 1S.'i(> de
8'J8:75'J liabilaiilcs, iL>U;7G7 branco» e ■'("■J;!l8;i de
C(")r, lios ipiaes i!'J't:7Ii!) eram escravos , a população
Ihictuante ori;ava por ■'(0:000. l'',m IS21 a populai;ão
da ilha de Culia era de G!10:',IS0 alinas, (oiuprcheii
Voi.. I. —3." SiciiiH.
dendo i!90:0L'l brancos; o em 1823 de 700:000. iu-
cUiindo 317:000 brancos.
A ilha de- Cuba tem -03 léguas de comprimento,
e em largura entre 10 a tO. A sua extensão terri-
torial foi ultimamente avaliada em 2,81 1 :0i8:9()0
ares. Destes súiiicnte um decimo se acha em esta-
do de perfeita cultura ; o resto ou está inculto, ou
cuberto de soberbas llorestas, (pie fornecem ao eom-
mcreio excellentes madeiras deconstruc(;ão. Os prin-
cipaes estabelecimentos agrícolas são: í2o:292 herda-
des; 9,102 vcijas de tabaco; l:G70 de eatV ; 1 : H2
engenhos de assucar. Em 1827 continlia apenas
1.3:000 herdades, .';:000 i<;/(/s de tabaco, e 510 en-
genhos. Esta ilha (' abiiiidantissima de minas de co-
bre, de (jue não se tem tirado todo o partido possí-
vel, mas de cpie todavia já se recolhem, termo mcilio,
9'í(i:'J30 (juiiitaes aniiualmeiíte.
Cuba produz cni cada anno proxiniaiuciile a-su-
car I7.839:i2l arrobas; 1 .i70:7o() arrobas de cnfc ;
lli8:09i volumes de tabaco em folha, etc. A sua
proibicçào agrícola total, incluindo o Mílor esliiua-
llvo dos gadcjs, calcula-se em .''K mil conto» de rei»!
A siui import.i<,ão foi, cm 18l7, de 31 mil coii-
toí, e a exporta(;àc) de 27 mil contos. O connnereio
da metro|iole foi rcpnscnlndo n'esle grande movi-
meiílo pel.i •.niiiin:i d.- (I mil eiintos. l'or este resu-
l)t:.'KMUHo 1 1 , 1852.
394
O PANORA3IA.
mo póde-se fazer uma idéa da immcnsa importância
coinmercial da ilha de Cuba, e coniprehende-se fa-
cilmente o motivo porque os americanos indirecta-
mente tem promovido a s\ia incorporação nos esta-
dos da republica.
A energia das auctoridades hespanholas, a disci-
plina e bravura das suas tropas iizeram malograr as
tentativas que se tem realisado u''e6sc sentido : mas
é certo que a Hespanha lucta com um poderoso ri-
val, e que só promovendo, como até aqui, com a
maior solicitude o bem estar d^aquelles povos, c au-
gmentando a sua marinha de guerra, poderá conser-
va hasteado nas muralhas de Havana o estandarte
de Castella.
Desde 1834 construiram-se em Cuba 300 milhas
de caminhos de ferro \ e 80 acham-se ainda em cons-
trucção ; as principaes linhas férreas são a de Hava-
na a União (88 milhas) ; a de Matanzas a Isabel
(47 milhas) :, a de Nuevitas a Porto-Principe (30
milhas) ^ e a de Cardenas (29 milhas) 1
A capita! de toda a colónia é a cidade de Hava-
na, com um dos melhores portos da America. E po-
voação de aspecto triste, c ruas estreitas e tortuosas,
com cerca de loO:000 habitantes ^ os edifícios mais
notáveis são a alfandega, o palácio do capitão-gene-
ral, a grande fabrica do tabaco, e o theatro de Ta-
con. A nossa estampa representa o passeio publico,
que é situado exterior e parallelamente ás muralhas.
As suas frondosas ruas são adornadas de lindas fon-
tes, sendo mais notáveis a dos Icues, a rudica, e a
da índia, em frente do campo militar. Esta vdti-
ma, realmente sumptuosa, é adornada de uma esta-
tua colossal de formoso mármore, languidamente re-
costada em uma espécie de carro, com a cornuco-
pia e outros emblemas ao lado, s} nibolisando o typo
mas perfeito da raça india. Do seu magnifico pedes-
tal saem quatro largas bicas, que derramam em um
bello tanque, grande cópia de e.xcellente agua. Esta
fonte monumental, como se pôde observar na gravu-
ra, é cercada de um elegante gradamento de ferro,
dentro do qual fica um pequeno, mas bem disposto
jardim. No centro do passeio, e entre a porta de
Monserrate e o theatro deTacon, ostenta-se o busto,
em bronze, da rainha D. Isabel 11, que actualmen-
te preside aos destinos da Hespanha.
A INSTRUCÇÃO PRlMAni-V SA IxCLATElinA.
Parece um paradoxo á primeira vista, o avançar,
que não ha uni caso que deponha contra o sjstema.
Mas o motivo é claro. O contacto e a familiaridade
começam logo n'uina idade mui tenra, e na casa de
asjlo aonde a moral é severíssima, a civilidade a
primeira exigência, e aonde finalmente se observam
todas as regras c bons costumes que se aprendem no
seio das familias, e tahez mais exemplarmente. O
systenia de separação adoptado nas escolas ruracs de
França, tem a experiência mostrado ser deficiente,
ao passo que se tornaria inexcquivel no asyloinglez,
porque seria absurdo sustentar uma separação, que
liesapparece ao abrir a porta da aula. O que é certo,
repetimos, cquc os meslres das escolas primarias na
Inglaterra, não tem apontado um único inconvenien-
te contra o systema. Concorrerá para este resultado
a superior moralidade do povo inglez ? Creio que
não. ,
As escolas abortas para cxpeculação particular, as
escolas catholicns e ffeshyaunm, e as escolas de
inanh.T, concorrem poderosamente para a diflusãodo
ensino primário. Todos sabem, que o principio de
associação na Gran-Bretanha se presta com tanta
vantagem ás combinações engenhosas da philanthro-
pia e da caridade, como aos cálculos ávidos do inte-
resse. Nem mesmo a sociedade poderia exigir outra
cousa na minha opinião.
As escolas de manhã foram instituídas pelos âns
do século 18." Apesar dVxistir uma lei que obriga
os mancebos e creanças empregadas nas fabricas, e
estabelecimentos de todo o género, a ir á escola um
certo numero de vezes em cada semana, aindaasbini.
as escolas de manhã são muitíssimo frequentadas ;
eursam-nas alumnos de todas as idades, ii^êem-*
ali — diz mr. Hantute — homens de trinta annos, <
mulheres de quarenta , que assistem regularmente
ás lições. . . Nota-se muitas vezes, que as pessoas en-
carregadas de ensinar, pertencem ás classes mais ele-
vadas da sociedade ingleza. A aristocracia mesmo
não se envergonha d'isso. Em casa do reitor de
Saint-Martin em Londres, encontrei eu um velho
membro do parlamento, que gasta parte do seu tem-
po a ensinar na escola de manhã, e que na semana,
concorre com os seus esforços ás lições dadas aos po-
bres no ragrjcd-schools.^1 E uma boa acção, um exem-
plo edificante, que raro se pratica fora da Inglater-
ra, aonde todos comprehendem, que sem instrucçãi
não é possível um governo livre.
Em tudo o que temos observado n'esse quadr'
de uma sociedade, que corre para a escola, con
mais anciã do que na Roma antiga o povo para ■
circo, não se divisa a minima influencia directa d.
estado. .\ Inglaterra não tem ministério de instruc-
ção publica, nem o precisa. A lei, sempre em re-
lação com os costumes e Índole do paiz, deixa tod.i
a latitude á iniciativa individual, que se exerce li-
vremente sem protecção, e sem restricções. Este é
o principio absoluto. No entanto, em 1818, .ippare-
ceram no parlamento numerosas reclamações contra
o systema, que revelava, da parte do governo, uma
completa indifferença pela inslrucção publica. Esta»
reclamações, vigorosamente combatidas então polo
espirito anglicano , prevaleceram pouco e pouco.
Em 1839 instituiu-;e o CumiUcc of council i/n ecltt-
caiion, conselho encarregado da educação popular.
Desde então a acção do estado tcni-se tornado mai?
sensível, e manifesta-se por subsídios concedidos pa-
ra a fundação e manutenção das escolas, e por um
methodo d'inspecções, que vigorando na metrópole,
se estende a todos os districtos do Reino-Unido.
A inspecção não governa na escola ; não entra
n^ella, sem que se prestem a admittir o seu auxilio
Não dá, nem recebe ordens ; limita-se a registar f -
factos, c dar conta d'ellos. Respeita religiosamente
a susceptibilidade dos costumes inglcies, que instin-
clivamcnte rcpellcm a intervenção governamental,
porque elles mesmos tèem a iniciativa c força bas-
tante para operarem sem o governo.
Por outro lado, como o conselho sui>erior nSodis-
Iribuc fundos do estado senão aos cslabelecimenlcx.
que excitam a sua visita; comprehcndc-se que o es-
pirito de independência tende a tornar-se nicncs fer-
rivel, porque enfraquece na espectativa de lun sub-
sidio.
Em 1846, o credito annu.il votado pelo parlamen-
to, c posto á disposição do conselho superior, não
excedia a 100:000 libras esterlinas (I30:OOOSOO(>
réis) e hoje monta a "iOtOOOÇOOO riMs. Por esta ci-
fra avalia-sc a influencia ascendente do estado nos
progressos da instrucção. Mas é preciso notar, que
essa influencia não se tem operado sem protestos. O
\eMho -espirito anglicano, oiofo d.ns suas prcrogativas.
tcm-se espantado c iudisn.-ido, de vèr oi agcnt' s
o PAINORAMA.
39õ
officiaes penetrar nas escolas ; a maior parte do clero
repplle um systema, que julga uma usurpação.
Eml8oO,'um numeroso mte/mj, reiuiido em Lon-
dres, votou, segundo o uso, resoluções, pelas quaes
era severamente estranhada a influencia do estado
nas cousas do ensino. Não é sem interesse notar,
que ha hoje em Inglaterra uma tendência pronun-
ciada para uma espécie de centralisação administra-
tiva ; começa-se a comprehender, que a sociedade
não deve ahandonar-se a si mesma.
Em França a centralisação tem sido bastante útil
ao descnvoh-imonto da instrucção primaria. Entre-
tanto convirá não perder de vista a Inglaterra, pelo
que respeita ao seu systema de associação, que seria
um auxilio poderoso aos esforços doestado n'este im-
portanlissimo ponto da governação de um povo.
Não appresentamos este systema para ser applica-
do no nosso paiz ; póde-se colher delíe alguma cousa,
eprova-se no Cm de tudo, que as classes superiores da
nossa sociedade poderiam dar um grande contingen-
te para o desenvolvimento da instrucção primaria em
Portugal, a mais necessária por certo. E verdade,
que os hábitos e costumes da Inglaterra divergem
absolutamente dos nossos-, a religião que os inglezes
professam, é di\ersa tanibem, e deve notar-se que a
religião é a verdadeira origem d'essa independência,
que o povo inglez sabe manter diante da iniciativa
governamental.
Não nos pronunciámos pois absolutamente pelo sys-
tema inglez, antes votámos pela inlluencia directa do
<*tadii na instrucção publica, porque d'ella depende a
lioniogeneidade de ensino, e sem esta nunca se con-
seguirá educar as sociedades para os elevados desti-
nos da civilisaçãc.
Ejitendemos porém que não devemos despregar
os olhos da Inglaterra, onde o principio de associa-
<fio, largamente desenvolvido, tem obrado maravi-
lhas, forcejando para que a nossa pátria, por meio
<raquelle poderosíssimo agente, já que a acção do
governo eslá provado f>or iiisufficiente, saia doeste
«ístado de marasmo intellcitiial (|ue nos envergonha
perante a Europa fivilisad;i.
.í. C Haucoprt.
THOMAZ ANIELLO (MASA-MELLO.)
{RevoluçXo de Nápoles em 1G'(-7.)
JIasammllo lançou bando c pregão contra os no-
bres, condemnando á morte os que fossem encontra-
dos nas ruas da cidade ^ enviou ordens eimtra o du-
que de Matalona, alim de lh"o trazerem morto ou vi-
vo, e mandou eoUocar a cabeça e um pé de José Ca r-
ralla dentro de gaiolas de ferro suspensas sobre apor-
ta <l(! S. Jennaro. A entrada das gallés reaes (pie
a|)ortaram ireste meio leinpo, ainda veiu augmen-
lar as suspeitas e a confusão. O aspecto da capital
lornou-ae medonho. O castello em som de guerra
ameaça\a-a. As aucloriílades cheias de receio não
transpunham o seu recinto. <> |'aÇo estava forlilica-
do i: com guardas dobradas do cavallaria. As ruas
com tranqueiras feitas <le pipas e saccos de turra ^ o
p3o e ns subsistências embaratircernin, temendo os
nçougnes o padeiros as xioleneias do povo. Os parti-
eularei ricos escaparam-so, c procuraram salvar as fa-
zendas na cidadella (i nos conventos. K nem nhi
mesmo fuarnm seguros; ponpio o ilictailor ilo mer-
«ado, ordenou aos mosleini'- (pie os i?xpulsassem den-
tro de rpiatro |i(ir;c. soli pena de os (pieiínar até llo^
alicerces. O terror, a expoliação e o sangue, cortejo
ordinário da anarchia, seguiam de perto a malogra-
da tentativa da aristocracia, preparando ao mesmo
tempo pelo horror dos excessos e iniquidade das vin-
ganças do po\o, a sua queda desastrosa. De ambos
os lados se despenhavam cegamente no abysmo.
Não havia senão um meio de apaziguar os alvo-
rotos e de pôr fim a um estado intolerável. O car-
deal recorreu a elle. Tornando a avistar-se com o
pescador de Amalíi convenceu-o a dirigir-se ao pa-
ço para ter uma conferencia com o vice-rei. Thomaz
Anicllo assentiu, e tendo disposto em companhias ar-
madas pelas ruas de Nápoles o seu exercito (cento e
quator/.e mil homens '.) foi ao largo do castello fallar
ao povo e publicar as condições. No fim levantando
mais a voz perguntou : estaes contentes ? Sim ! sim !
exclamaram todos em um grito unisono. Ellesorriu-
se com tristeza, apertou a mão no peito, e com os
olhos arrasados de lagrimas que não envergonham o
homem forte, redarguiu : Sei que hei de morrer por
este feito \ o perigo começa hoje para mira . Promet-
íeis em recompensa do que vos tenho servido resar
uma Ave Maria pelo descanço da minha alma ? A
multidão tornou a victorial-o estrepitosamente, ju-
rando defcndel-o e sustcntal-o. Eram as exéquias da
sua popularidade, e elle sabia-o. Rude de instrucção,
mas dotado da vista rápida e profunda, que só dá o
génio, percebeu, que esta paz era uma trégua, eque
o segundo c verdadeiro combate não se havia de dar
senão sobre o seu corpo. Assim aconteceu . A essa ho-
ra mesmo tudo se preparava para o precipitar.
Meia hora depois d'csla scena, pelas Ave Marias
entrou no paço, deixando no largo vinte mil homens
armados, e não consentindo que ninguém o acompa-
nhasse subiu á sida aonde o duque de Arcos o esta-
va esperando ^ beijou-lhc as mãos, apesar d 'elle o le-
var nos braços, c ambos á janella \iram destilar o
povo. A um signal de Masaniello as grossas e nome-
rosas filias gritavam três vezes — viva el-rei de Hes-
panha ! — a outro aceno as vozes calavam-sc, e o si-
lencio tornava-se profundo. O vice-rei, notando tão
admirável obediência, abraçava cada vez mais o pes-
cador, sorrindo muito, c ostpie oviamsaudavam-no.
julganilo que na pessoa do chefe abraçava a revolu-
ção. Engano '. Estava tomando a raeiUda do coUossii
para não errar o segundo tiro, como errara o primei-
ro. Repetia o abraço do monte das Oliveiras.
Tliomaz Aniello não o desconhecia. O seu Iriuni-
pho fa/.ia-o pallido c bnniilde. Wuando saiu do pa-
lácio, a alegria que representava no rosto era falsa.
e as providencias severas c|ue adoptou e poz em exe-
cução, provam que achara excessiva a benevolenciíi
do duque, e se acautelava. O supplicio de diversos
partidários tio duque de Matalona teve por fim lan-
çar o freio do lirrror á facção da nobreza. l)s impos-
tos decretados, e (pie tanto o desconccituarauí, leva-
vam em vista preparar os meios precisos para su»-
tentar a nova lucta, porque a julgava eminente; as
('h'i(;i~ies ipie ins[>irou tenderam a eolloc.ir osseusaiiu-
gos lieis nos logarcs de conliança, e o st^picslro de
grandes fazendas, tpie fel em casa de Pedro liiiiirn-
no, João de Cevallios, o outros muitos arreinalaiiles
de impostos, encnbriíim, sob pretexto de justiça popu
lar, a necessidade de crear alguns rendimentos, (pu.'
o liabilitassem a sustentar as companhias armadas, o
nervo o esteio da revolução. Estas prov i(lei\cÍHs go
ravam ódios e inquietações, e elle não o ignor.^vva :
inas tinha chegado no ponto em (|uc nào lhe restado
senão aeseulha do modo, por (pie havia de succumbir.
Não o fjiiendo caía sem defexa, inlcnlando-o arri»
cavn-se ao golpe de nin punhal, ou ú baila do um
arcabuz, disparado ale d"tntre os seu» «uxilinre* '
396
O PA1NORA31A.
EíToetivamente a traição já os minaTa, e os descon-
tentes não occultavaiii as queixas e murmurações. A
latastrophe avisinhava-se a passos rápidos, tendo por
guias a invtya c a venalidade.
NVste meio tempo éque se affixou o edital do\i-
ce-rei estabelecendo os privilégios da cidade, abolin-
do os impostos das subsistências, e declarando réus
de pena capital os perturbadores da paz do povo.
Seguiu-se a grande festa dada em Pausilippo a Ma-
saniello, aonde lhe prodigalisaram attenções c rega-
los, propinando-lhe, dizia o povo, uma bebida inve-
nenada, de que enlouqueceu. O fundamento d'csta
versão foi a incolierencia ca melancholia, que depois
d'este dia se notava no caudilho. Aproximava-se a
sua hora, e é de crer que mesmo no meio do ban-
quete, e entre as danças, lhe viesse o prcsentimento
da funesta sorte que o aguardava. Talvez percebesse
no sorriso de muitos dos convivas o mesmo ódio, que
lera na benignidade do duque dos Arcos. É certo,
que depois da sua ida a Pausilippo, a mento a miú-
do se lhe desvairava, c que alguns fumos de ambi-
ção lh'a offuscavam. Entretanto a conspiração pro-
gredia melhor planisada, e amadurecendo caminha-
va para o desenlace. Tudo estava disposto para o
desthronar, e as medidas tomadas com tal acerto que
nenhuma falhou. A contra-revolução rebentou no
dia 16 de julho, junto do paço, por ordem do vice-
rei, como tudo parece comprovar, no posto das guar-
das de serviço. Intimando os soldados da parte de
Thomaz Aniello, para se retirarem, responderam ne-
gativamente e mataram o mensageiro, esublevando-
se discorreram pela cidade, gritando que o governo
do mercado tinha acabado, o que ninguém obedecia
ao pescador.
Um trombeta e um tambor á frente de alguns dos
insurgidos levaram a noticia ao duque dos Arcos, que
a recebeu como homem que a esperava. Logo depois
o paço fechou-se e poz-se em armas, e o resente da
ícana, em uma liteira, saiu as ruas com grande
acompanhamento, dando vivas a el-rei de Hespanha.
A sorte estava lançada. Se o povo illudido se voltas-
se contra Masanielío o seu poder e a sua vida fica-
vam nas mãos da aristocracia. Foi o que succedou.
Os populares entregaram o seu chefe, esquecidos de
que na queda cUe os arrastaria comsigo infallivel-
mente.
Pelas seis da manhã Thomaz Aniello, que não
Ignorava inteiramente o que se dispunha, entrou no
i^armo e fez um esforço para commovcr o povo com
discursos, em que lhe manifestou que era chegado o
quarto dia das capitulações, o que estava certo de
que nVUe o haviam de matar. Depois, exaltando-se,
protcstou-lhes, que a perda communi seguiria a sua,
começando a contra-revolução por subir o preço ilos
alimentos, e concluindo pelo restabelocimenio das an-
tigas taxas. Esla allocução pouco clleito fez, sondo
ouvida até com alguns murmúrios. A saída, o cau-
dilho encommendou a sua alma a Deus, c pediu
que orassem a favor d'ellc. I)'ahi, dcsviando-se do
concurso, desceu os degraus do adro, e dera apenas
curtos passos, quando caiu morlalnienle ferido de
«lous tiros do arcabuz, disjiarados do uma embusca-
da. Os assassinos eram José Ardissone o Salvador
Catanco, parciaos ambos da casa de Matalona e seus
criados. Arrastando o cadáver pelos cabcllos e levan-
tando vozes cm nome do vice-rci, cortaram-lhe aca-
I)eça, e levaram-na ao iviço, seriam sete horas da ma-
nhã. Ahi levanfaram-na om mu pique, que o povo
iiHlignamcnte convertido já para a facção da nobre-
za, passeou por toda a cidade entre vaias e ullrages.
O irmão de Masanielío salvou-se, fugindo. Sua mu-
lher o irmã, presas, foram truiidus ao paço, c mal-
tratadas nos mesmos sitio», aonde o duque dos Arcos
honrara na pessoa d'eLlas o vencedor de seu governo '.
Assim, em poucos dias elevou-se e decaiu afortu-
na do pescador de Amalfi, mais do que um rei em
Nápoles, e depois tão infeliz, que o seu corpo torna-
do era ludibrio serviu de joguete ás infâmias da vil
gentalha ! Para ser completo o exemplo, não fidtou
a apotheose. A mesma plebe que lhe vendeu o san-
gue aos hespanhoes, desenganada de ter perdido n"el-
le a sua força, rebentou em novos tumultos, procla-
mando a innocencia do chefe assassinado, e pondo o
seu corpo e cabeça em um estrado cuberto de panno
branco do Carmo, com uma espada na mão, e o bas-
tão de commando, saiu em procissão com elle, acom-
panhado de duzentos padres e tochas, e seguido de
três mil soldados arrastando vinte bandeiras ao som
de caixas destemperadas. Iam no séquito innumera-
veis mangas de povo, quinhentas mulheres choran-
do, e outras mais recitando psalmos e chíunando-lhc
bemfeitor da pátria. A razão d"esta súbita mudança
era, logo no diaimmediato ao da morte de Thomaz
Aniello, (17 do julho) haver encarecido o pão, vol-
tando aos antigos preços. Já se vê que o povo não
se arrependia senão porque tinha fome.
A uma hora da noute o cadáver conduzido com
esta pompa chegou ao paço. O vice-rei, encerrado,
estremeceu. Das suas janellas via arder os fornos do
pão e os depósitos de farinhas do Espirito Santo e
dos Bancos Novos, a que os populares acabavam de
lançar fogo. Para desviar a tempestade mandou alu-
miar o palácio, imitando as casas particulares, á me-
dida que o préstito ia passando. As exéquias cele-
braram-se no Carmo, aonde Masanielío, simples pesca-
dor, foi sepultado com as honras não só de capitão
general do po\o de Nápoles, mas com o estado e gran-
deza de um rei coroado. Os sinos de todas as i-Tejas
dobravam por elle, nos mosteiros sem excepção pré-
gou-se o seu elogio fúnebre, dizendo-se mais de duas
mil missas, e a eleição de Palombo para capitão do
povo pareceu o único meio de distrahir a5 commo-
ções causadas pela queda de Thomaz .\niello, que pa-
receu tão ameaçadora ao governo como a sua própria
exaltação. O que é indubit.ivel é que os aconteci-
mentos posteriores confirmaram todos os prognósticos
feitos, uma hora antes de expirar, pelo chefe assassi-
nado.
L. \. Rebello d.% Silva.
INSTRUMENTOS S£ MUSICA. TROMBETAS.
liyijpcivs. (I)
1)evf.-se presumir que os cgypcios conheceram as
trombetas nos tenip<is mais remotos, por isso quecer-
los auctores attribuiram a invenção d"cstc instru-
mento aOsiris. .\pullcio falia de uma espécie de6n-
síiiíi, (juc annunciava a passagem da deusa Svria,
quando os sacerdotes conduziam a imagem cm pro-
cissão pelos campos. O sr. la Fago. na sua noticiosa
historia da musica, suppõe que esta trombeta era o
instrumento que os gregos conheciam pelo nome de
kuotic, de que se serviam para chamar o jvjvo ás ce-
remonias religiosas, r que, segundo Plutarcho, ate-
morisava os Uusiritos, os Lvcopolites o Abvssinios,
por caus;i dos seus sons estridentes, que so assimi-
(I) Vid. o N." 40 d'cJtc vulumc, pug. 317.
o PANORAMA.
397
Ihavam ao turrar do burro. Aquelles povos tinham
aversão a este animal, porque o consideravam como
representante de Typhon, o génio do mal.
riG. 1 E 2.
As figuras 1 c 2 moslrani, a primeira um egypcio
<le joolhos, cmbocando uni instrumento que parece
ser a trombeta; a segunda, tirada dos Monnmcnios
<U> Eijypto do Champollion o moço, (illustre auctor
da grammatica egypcia), um egypcio tocando troni-
Vjcta, lendo outra debaixo do braço esquerdo. Estas
são da lorma mais simples, porque apenas consistem
oní um tubo continuado até ao bocal, que abre de re-
ponte á maneira de funil. Nas figuras 3 e 4 damos
oiítras similliantes reproduzidas do atlas do sr. Fage.
na. o V. i.
Kiilrc OH lígypciíis as Iroiubctns snviaai para re-
gular a marciía de tropas, ()rd<nar o crimbíili', diri-
gir 08 inovimontu.s militares, e para reunir o povo,
VIAGKNS.
Um fAssKii) Á NoiítJuuA.
KsTA cidade foi variíiH vezes assolada pela peste o
devastada pelos incêndios. O ulliino fogo succeileu
"•111 ISJI) c destruiu a terça parti; dacidadi' ; cm cuil-
scquencia d'este desastre o conselho municipal deci-
diu que todas as novas construcções fossem de pedra
ou de tijolo, porque até ali a maior parte das casai
eram edificadas de madeira. Um pontal bojando para
o sul forma o porto, aberto ao noroeste, guarnecido
de casaria, e quasi de uma milha de comprimento \
duas fortalezas á entrada do mesmo dominam a ensea-
da ; a mais importante, construída por Olavo, o fun-
dador da cidade, foi antes da união da Dinamarca e
da Noruega residência dos reis noruegos, que fize-
ram Bergen sua capital.
Antes da reforma Bergen possuía trinta igrejas,
hoje restam só cinco c nenhuma merece visita ; os
demais edificios públicos também não são interessan-
tes. Em compensação vi na galeria do Kunst-Fore-
ning (sociedade das artes) muitos quadros bellos de
pintores norueguezes ; entre elles merece primeira
menção o de Jensen, domiciliado agora em Muni-
ch ; representa o rapto de uma grega [xir um pirata
norueguez. Agradaram-me muito os paizes deDunt-
ze, artista que reside em Bergen.
Um dia, saindo do museu, vi muitos criados que
espalhavam follias d'arvorcs na testada de uma casa.
Cheguei-me a um homem da policia que os obser-
vava, tendo líu mão a sua esírtlla da manhã, que
logo direi o que é. ^las se elle percebeu a pergunta
que lhe fiz por gestos, foi-me impossível entender a
resposta que deu na língua pátria. Devolta .í hospe-
daria soube que a maior parte dos noruegos costumam
de tempo immemorial espalhar folhas d'arvores dian-
te das casas onde acaba de fallccer alguma pessoa.
Os parentes e os amigos do defunto apressam-se a
praticar o mesmo logo que são informados da triste
noticia. Q-uanto á isirelta da manhã dos policias, é
um globo de cobre, quasi do tamanho de uma laran-
ja, solidamente fixo na extremidade de um grosso
bastão de cinco palmos de comprido, e erríçado de
puas de ferro ; é uma arma mui perigosa.
Vamos de camíniio agora, não para as deliciosas
vivendas campestres que circumdam Bergen, nem
para as apniziveis montanlias [liirgin) que canipeam
soljro ella e lhe deram o nome :, mas para a cataracta
do Voriíig, uma das cem maravilhas do inundo.
1'artiiiios de liergen a cavallo, mas prestes muda-
mos de lraiis])orto. Em Lyse, bonito logarejo sito á
entrada dos golphos Somnager e Bjuriic, tomámos
um batel (lue nos conduziu em quatro horas á boca
do fiurd de Jliirdanger que tiiihainoa de seguir em
toda a sua extensão. Quando ali chegamos, o dia es-
lava a findar; saltamos em terra para passarmos a
noule n^uiiia cabana de pescadores picturi'scaiiieiite
assentada lui alio (funi [)eiicdo de i3 a li braças;
no outro dia emljaicaiulo cedo navegamos poraquei-
Iffivnl, de que tanto ouvira lallar em Bergen, eque
muito <;xcitára a minlia ciiriosiilade. Em outras mui-
tas regiões do nosso glolio acliam-se montanhas, val-
les, chapadas de serras, lagos, catadupas \ poréiu u
Noruega é a iiiiíca (pii- olVcrece aos viajantes oa/ieíiii
e os/ii)C(/s.
A Noruega, curiosa metade da piMiiiisula scandí-
nava, esteude-se de 57" '61' di- latitude até 71'^' e
11' entre i e 29" de loiígiludeorieiítal ; tem de nor-
te a sul l,í)8t» kiloinetroH (;120 léguas de IS aograu),
too Ivilomelros de largura media no sul e de 100 ii
ilOO eiii o norte. Os IKifríiias, formailos dos montes
Kiiileii, l)ovi>r e Sevory, a s<<paraiii da Suécia. Es-
ta corilillieira, cujos píncaros niaiselevailos, coberto»
dc! neves que iiuiiea se derretem, passjini de 2,000
melros (DIO braças), é parallela ao mar (ilaeial emi
mar ilo Norte, nos quaes niergullia quasi ii piqm' a
sua vertiMile oecídental, ao passo que a orií-nt.d re-
b,uxa-sc em laileiras succcssi\aii para o lado ila Sue-
398
O PANORA31A.
cia, do golpho tle Bolhnia c do mar Báltico; entre
estas duas vertentes se estendem vastos platós ou cha-
padas (]U0 se denominam /iVWs oujjeljs; aliçumas si-
tuadas a mil metros e mais acima do nível do mar
tem 12 <! 18 milhas ; dominadas pelos mais altos pi-
cos do systema scandinavo são cobertas de lagos e
as regam numerosas correntes d'agua.
De todos os viajantes 6 mr. Adalbert de Beau-
mont c|uem melhor explica a origem dos fiorcfs. —
.1 Imaginc-sc (diz) oOO léguas de serrayias cobertas
de neve no espaço de oito raezes, e depois o sol que
brilhando de súbito não cessa de apparecer sobre o
horisontc noute o dia, sol abrasador e aturado a lu-
ctar com os gelos de imi inverno interminável. Fácil
é de comprehender quão grandiosos espectáculos nas-
cem d'este combate. Então os rios represados reco-
bram a sua violência ■, quebram, derrubam, arrastam
tudo, e formam essas cataractas gigantes de que ne-
nhuma região do nuindo appresenta idéa. Os abis-
mos e algares fundos, onde agora se perde a vista,
entupem-se então de agua ; os rochedos que as tão
poderosas forcas da mechanica não fariam abalar,
loda-os a agua como grãos d'areia ; e os vastos sor-
\edoiiros que se poderia presumir abertos pelas con-
Aulsòos do globo escavou-os a agua,' mais poderosa
<(ue a pólvora e o aço, porque a sua força é a cons-
tância, e a constância 6 o tempo que tudo con-
summa.
"Assim rasgados nas entranhas por essa devasta-
ção interior, por esses rios que saídos das cimas ge-
ladas se dirigem todos parallelamonte ao mar, os
alpes scandinavos dão acccsso ás vagas do Oceano fu-
rioso que os minam no sentido contrario.
«Vê-se, portanto, de um lado o mar açoutando
sem descanso o seu adversário inerte e avançando
victorioso ■, do outro, as cascatas, producto das im-
ujcnsas accumulações de neve do inverno, que se
despenham dos píncaros, se ajuntam e engrossam nas
chapadas, formam as torrentes que escavam os val-
les, arrastam-uos comsigo, e vão reunir-se carregadas
de despojos ao Oceano, que as attrahe. Assim estes
dous inimigos, luctando pela mesma causa, breve se
ligam e depois invadem todos os legares chãos, sul>-
stittii'ni os valles o dão origem a esses corredores es-
treitos, essas ruas tortuosas que tornam sem igual
esta região.
" Estes cannaes, profundados até o âmago das mais
altas montanhas e <pio tem por origem e causa as
catadupas e o mar, tomam o nome de fwrd ou fjoríl.
"De todos os fiords norueguezes, ode Christiania
V o mais largo, o de Sogne o mais comprido, tendo
para cima de iiO léguas, e o llardanger-llord o mais
formoso. A maior parte se dividem cm muitos ra-
mnes, e á proporção que por elles subimos, as suas
bordas vão apparecendo mais escarpadas c picturos-
eas ; quasi todos terminam n\uua eataracta. Abun-
dam em salmões, pelo que ali fazem os curiosos da
pesca excursões tão interessantes como as dos artis-
tas. Os caçadores matam igualmente muita caça, so-
bre tudo do ar. nas costas e cumes das serras, cujas
fald;is banham as aguas dos fiords. Para dar idéa da
qviantidade de peixe que se apanha, citarei um fac-
to. Air. Lasseis, de Liverpool, pescou em Boen, no
llardanger-fiord. de oO de junlio a 1'J de jullio de
1841, áltí sidmòes, pesando todos Í2,l 4o libras •, o
mais pequ(>no tinha quatro c o mais volumoso 30
libras. •'
^í '»'///ifiiíír . )
ÓDIO VELHO NAO CANÇA.
RoMA?tCE Histórico.
CAPITULO I.
O Filho e o Pae.
EUa nascen para matar d''encatitos
Eu, amando-a em vão, para morrer d'amore».
Shakspeare — Otkclh.
Havia dous dias, que na sala d'arraas dos paços de
Coimbra se juntavam em grande concurso os senho-
res e cavalleiros, os homens de religião e os officiaes
da corte. O mez de março do anno de 1211 estava
a concluir, e era fácil observar que o motivo, que
chamava tão numerosa companhia, era um motivo
triste. Nos pateos o officinas do castello não se te-
ciam cotas, nem se lustravam arnezes. Os alÊinge-
nies e armeiros não temperavam espadas, nem po-
liam achas d'armas. De vez em quando o tropel das
rondas descendo das torres e das muralhas apenas
interrompia o silencio interior, apesar da gente reu-
nida ; como só o trote dos cavallos, em que checava
á corte mais um rico homem, cortava o silencio ex-
terior.
Eífectivamente não se tratava de novas guerras.
O estandarte de Sancho I não se desenrolava outra
vez nos campos de batalha. Os seus cavalleiros, que
aos três e aos cinco, se mettiam pelos vãos das altas
frestas, olhando impacientes para os cabeços alem da
ponte, ou inquietos cravando a vista n'unia porta
grossa de castanho chapeado, não tinham vindo para
resolver uma entrada na fronteira, nem para tentar
o cerco de qualquer das fortalezas, d'onde a bandeira
árabe se hasteava em desafio ao estandarte real. A
lança do rei encostada ás paredes do vasto aposento
descauçava para sempre.
Aquella porta de castanho da sala d*armas abri.i
para o recinto interior, aonde eram situados os quar-
tos de Sancho. Por ella entrou o fdho de Aflbnso
Henriques na primeira tarde de marjo, o já sabiam
que não tornava a sair senão um cadáver, soccgando
na paz eterna do tumulo a sua alma ao lado do fun-
dador da monarchia, das luctas e combates de um
reinado trabalhoso.
Junto do fosso exterior do castello, então chama-
do carc6i-a, os homens d'armas c os homens de pc
da bandeira e mercê dos cavalleiros, entrelinhani-sc
com grosseiros jogos, e brutas porfias. De vei em
ijuando os alaridos, as risadas, e os clamores rom-
piam do meio d'ellcs. e iam so;ir nas s,ilas do paçn«.
l'm rumor vago. que andava no fiovo. dizia que
D. Sancho succumbia á antiga e dolorosa moléstia ;
mas não se cuidava que a morte caminhasse tão de-
pressíi como a tristeza sincera e hvpocrita inculca-
va na ci'>rle. .\inda para fora n.lo tinha transpirado
a noticia de que cm poucas horas Coimbra com lU
gemidos levanlailos no dobre fúnebre da sua catb«-
dral havia de annunciar a orphandade ao reino, l'
povo segundo o costume era o ultimo a salx;l-o.
l>jus cavalleiros, um quo partia, outro qnc che-
gava ao palácio, cnizaram-sc na ]>onle lov.idiça. Por
fortuna não existiam entro elle< os o<lioi das rixas
de familia.
— .1 Boas tardes! " di«5cram a um tempo, colhen-
do as rcdcas aos cavallos.
— "O infante?-' perguntou o que mu.
o PANORAMA.
399
— nEl-rei?» interrogou o de fora.
— ii O infante agora sobe aquclle cabeijo. Em três
credos mais, aqui o tendes com os que puderam atu-
rar a carreira do seu cavallo. E el-rei ? . . . Ha es-
pirauças, D. Martim Annes?"
— u Nenhuma'. Q.uando, faz hoje quinze dias o
vi, disse logo : Não, este não torna a ser o homem,
que já foi I 1). Moço Ordonhes, D. Sancho I ouve
as euchadadas do coveiro. "
— « Pois era um homem '. y>
— K E verdade. "
— i< Está só ? Dosfallecido ? n
— u Peior do que só ; os monges não lhe largara
a cabeceira. Glue dòr d'alma I Cada terra tirada á
herança de seus filhos ; cada punhado de maravedis
apanhado das arcas do thesouro, dizem-lhe que o la-
va de um peccado mortal. E el-rei, quebrado de
corpo, fraco tle animo, ainda lhes dá mais do que
clles pedem ! . . . O infante <|ue se apresse. j>
— ií Os padres, os padres ! Em nos caindo a cabe-
ça no travesseiro, fazem de nw quanto querem ! . . .
Ahi vem o infante. »
Com eíleito, do lado da ponte do INIondego, vi-
nha á rédea larga um tropel de cavalleiros, galgan-
<lo a encosta direitos ao castello. O pendão do in-
fante de Portugal esvoaçava nas mãos do Gomes
Lourenço, seu collaço e alferes. Defronte do alcaçar
a cavalgada parou. Seguiu-se uma pausa de minu-
tos, em que se escutava só o respirar cançado dos
homens e corseis. Com os ginetes áredoa, os serven-
tes vestidos de saios alvacentos torciam por entre os
homens d^armas, cubertos de lorigas (1) de couro
escuro, evilandt) na passagem as cotas (2) Iiordadas
dos pagens, que giravam de um para outro lado com
a petulância dos verdes annos.
Decorridos instantes saiu do terreiro interior um
oflieial-raór, atravessou vagarosamente o pequeno lar-
go rasgado diante da porta, e foi inclinar-se na pre-
sença do infante. Kra Sueirn llaymundo, alferes do
rei D. Sancho. Nos olhos do guerrc^iio velho, filho
da creação de Afionso Henriques, borbulhavam as
lagrimas. Assim pagava ao amigo da infância, ao
«•ompanheiro dos trabalhos, o tributo do soldado.
Hem vergonha chorava diante d(! todos os primeiros
prantos talvez da sua vida.
O infante, (piasi que se sentiu or|)hão, encaran-
<lo-o. Aperlaiidu-lbc a mão, e tão baixo que mal se
percebia, disse-lhe ap(;nas :
— " IMeu pae ! \ n
O alferes [kV, a vista no clião, e por mais esfor-
ços, a voz não se lhe soltava da garganta.
D. Aflbnso recuou, gemendo n^uma exclamação,
que nenhuma ijillexão é capa/, de exprimir :
— " McMi pae ! "
Era o grito das entranhas, a verdadeira lii^r da
orpliandaile,
<> oiricial-uiúr ciilcndeu, c pondo-lln! a mão no
braço, murmurou :
— " Aiiidíi não. "
S(Mn ouvir mais nada, o |)iiucip(! entrou pi'oci[)i-
tadamente sc;;uido dos cavalleiros.
Chegaram á sala (rarnias. N'esse instante abria-
se a porta úw castanho cli.ípcado, e um monge de
alta estatura e grave aspeclo, com o habito da or-
dem d<' Cister, adiantou-se para os (pii; estavam, di-
ziMido :
(1) Hniii raljridiilo ilc lorcK do rnuro cni. Km a arinu-
(Inra dctfiisivu íIoh Iidiiu-iih tCnriniis.
(2) Vfslhitt-. (1)1)1 o lini/ài) (fariiiiis linnliulo Ko1)re t»
peito, mais ciii Id <I<) i(m' as v<st<'s ailiiucs dos iiruutua e
passuvunlcs.
— íí Reverendos bispos, venerável mestre do Tem-
plo, e prior do Hospital, ali dentro está um mori-
bundo, que deseja reconciliar-se com Deus, e a sua
igreja antes de comparecer no tribunal da consciên-
cia. »
O monge era o abbade d^Alcobaça; e pronuncian-
do estas palavras, fugiu-lhe pelos beiços grossos e ver-
melhos um sorriso equivoco, sorriso que logo mudou
de expressão assim que deu com os olhos no infan-
te. Não se poude conter do primeiro sobresalto, e
deixou que os observadores conhecessem que lhe
agradava pouco a chegada repentina de D. .\ffonso.
A sombra de descontentamento, que passou como
um relâmpago pelo seraphieo semblante, aonde flo-
reciam rosadas e sadias as cores da saúde e da força,
em vez de se estampar apallidez dos cilícios e jejuns
foi bastante, apesar de rápida, para revelar o des-
gosto e o receio com que via o herdeiro da coroa.
Entre tanto, soube reprimir-se depois com arte.
Aproxiniando-se de D. Affonso, a quem não escapa-
va a mudança de physionomia, com ar magoado ac-
crescentou :
— 11 Bem vindo, illustre infante de Portugal 1 A
vossa presença socegará a inquietação com que el-rei
pedia á Virgem, pelas dores da Paixão de Chrislo,
que não o levasse antes de vos abraçar. . . "
— « E por isso só hontem ó que me levaram aviso,
santo abbade ? » respondeu o príncipe.
— «Senhor da Maia, atalhou o frade, como se não
ouvisse a pergunta irónica, D. Suciro Raymundo,
ricos homens de Douro e Minho, D. Sancho quer
dospedir-se dos seus cavalleiros. "
E acompanhado do infante, dos veneráveis padres
em Christo, e dos ricos homens, sumiu-se pelo cor-
redor, em quanto atraz dVllcs a porta chapeada se
fechou, e os pagens voltavam para os umbraes. D.
Aflonso deixou-os a lodos ir adiante, e demorou-se
alguns momentos.
(Contimia.)
As ABELU.1..S E AS Colmeias. (1).
O. MODO ordinário de crestar as colmeias destr(5e um
grande numero de abelhas, e por isso alguns apia-
rios intelligenles toem estabelecido outro methodo
de exlrahir o mel e a cera, sem prejuiso do insecto,
<;m maior quantidade, e de melhor (jualidade.
Este methodo consiste ent deixar int.icta a pri-
meira colmeia : logo que está cheia de mel e de ce-
ra, o que acontece no mez de junho, encosta-se-lhe
outro cortiço, ou culineia vasia, com a entrada de-
baixo junto da entrada da outra, de modo que as
abelhas achem franca passagem de uma para outra
colmeia
E então mister conservar uma temperatura uni-
forme na colmeia vasia, sem diminuir a temperatu-
ra da colmeia lialiitada , a vintilação, n<'('essiria pa-
ia conseguir este fim, oblem-se por meio ile um tu-
bo de folha de Flandres perfurado, «pie passe desde a
tampa até a abertura do fundo, a ipial se fechará
mais ou m<Mios com unia corrediça da mesma folha,
|iara niodifi<'ar a elreulação do ar, e graduar a tem-
peratura. O grau iPesta temperatura será 70" no
barómetro ile l'"alireiilieit, ou Í7" lliMUmur, porque
é a temperatura natural de uma colmeia no princi-
(1) Vijii-se liceroa Au* Aliellias o excellenie iirtij;o |iii-
liiinidi) II pa^. ■''-',"> do .'!." M)l. dii 1." serie dii l*u/m('«»i«,
lio i|tiid esl.ii liiilias |iodeiii servil' do coiitiiiiiai;."») e iimi
pleiíieiitu.
400
O PANORA3IA.
pio lios trabalhos ^ mas na colmeia cheia é necessá-
ria uma temperatura de 90" F., ou de 26" R. para
a incubarão da rainha, e para a preservação da cria.
Esta colmeia primitiva, ou paterfamilias, é pois a
residência da rainha, e o viveiro da prole, ao mes-
mo tempo que as colmeias, que se lhe aggregam ao
lado, apenas são armazéns para deposito do mel su-
perabundante, que se pôde extrahir, sem deixar as
abelhas privadas do alimento para o inverno.
GLuando o fhermometro na colmeia ultimamente
aggregada, s(5l)o a 90" ou 100" F. 2G" ou 30" R., é
signal evidente de haver-se augmentado a familia,
devendo por tanto preparar-sc-lhe uma nova habita-
ção, o que facilmente se consegue, collocando outro
cortifjo, ou colmeia vasia no lado opposto, como se
disse respectivamente á primeira. Achando entjo as
abelhas uma nova casa, vão habital-a, e começam lo-
go os seus trabalhos.
Para se evitar o methodo destructivo da cresta,
póde-se extrahir o mel, tomando um folie, ou ven-
tilador, e introduzindo por um orifício praticado na
tampa o ar exterior da athmospliera, antes que se
recolham as abelhas á tarde, as quaes, sentindo um
frio, que não poderiam supportar durante a noute,
se retiram todas para a colmeia intermédia mais
abrigada ■■, o colmeieiro então fecha a communicação
entre as duas colmeias, e leva a que foi desampara-
da pelas abelhas por causa do frio, cheia de favos, e
sem perecer uma só abelha. Limpa a colmeia de to-
dos os favos, repõe-sc no mesmo logar, como se fez
da primeira vez, e voltando as industriosas abelhas
no dia seguinte, ainda que deplorando o roubo, con-
tinuarão a trabalhar, inípcllidas por um instincto,
a que não podem resistir. Seguindo-se este processo,
sempre os enxames se conservam no colmeial.
O mel, extraliido segundo este systema de mane-
jo apiario, á mui superior em qualidade, e dobrado
em quantidade do que se obtém por qualquer outro
methodo ; exhibindo a alvura do assucar refinado,
assim o mel, como a cera. A causa da qualidade su-
perior d"cste mel é devida á igualdade do tempera-
tura com que se fúrraa, e preserva o armazém ; e
talvez, com especialidade, á carência de matérias
animacs e vegetaes, que as abelhas são obrigadas a
recolher para a incubação, e creação da prole, o que
apenas praticam na colmeia, que serve de viveiro.
A causa da maior quantidade é proveniente da ex-
cellente disposição dos armazéns, exclusivamente es-
tabelecidos para o abastecimento, sem paralisar a in-
dustria das abelhas, que recolherão mel e cera, em
quanto houverem fructos e llorcs nos arredores.
— Não ames o somno para que não empobreças :
abre teus olhos, e te fartarás de pão.
SalomXo — Pkovebbios .
Itcmcdio para disiruir a irara. — O espirito de
terel)enthina é o melhor remédio contra o bichinho,
que vulgarmente se denomina traça ; este mesmo
espirito serve também para destruir todos os outros
insectos. Se collocarmos um vaso no qual se encerre
un\ pouco d'esto espirito em uma guarda-roupa ou
gaveta que contenha panuos ou artigos de lã. pellcs
etc. , este destruirá imniediatamente qualquer larva
de insecto.
— O que escarnece do polirc. alTroiita o Crcador ;
o que se alegra da calamidade não ficará innoccnte.
— O preverso do círaçno nunca achará o Ijem : e
o que revolve com sua lingua virá a cair no mal.
No próximo mez de janeiro de 1853 co-
meçará a publicar-se o 10." volume do Pa-
norama. Annunciando-o, o Editor aproveita a
occasião para agradecer a protecção que o pu-
blico illustrado lhe tem dispensado, e a sym-
pathia com que foi recebido geralmente o pen-
samento de contintiar um semanário tão ilius-
tre nos fastos da litteratura pátria. Dificulda-
des inevitáveis na organisaçDo de uma empre-
sa desta ordem, que, como todos sabem, e
inteiramenle dislincla das anteriores, obstaram
a que a nova serie do Panorama correspon-
desse inteiramente aos seus desejos. O pa-
pel, que nos fornecem as nossas fabricas, e
que ainda não reúne as condições necessárias
para itma edição nítida, faz principalmente
com (juc as exccllcntes gravuras que temos
dado, todas devidas ao delicado buril do sr.
Coelho, não sobresaiam tanto quanto era para
desejar. Esperámos obter melhor papel, e con-
tinuaremos solicites a empregar todos os meios
para que o Panorama venha a ser também
um specimen dos progressos da arte t^pogra-
phica entre nós. Em quanto á redacção o Edi-
tor não duvida apresentar os números publi-
cados como uma prova insuspeita de que nã<>
sabe faltar, nem faltará jamais ás condiçõe»
exaradas no seu programma.
Assigna-se para este semanário : em Lis-
boa, no armazém de livros do Editor, rua
do Ouro, n."' 227 e 228, e nas lojas dos
sr.^' Lavado, rua Augusta, n.° 8, Bravo, rua
do Ouro, ii.° 212, Zeferino, rua dos Capel-
listas, etc.
São correspondentes do Panorama no Por-
to, o sr. A. R. da Cruz Coutinho : em Coim-
bra, o sr. A. II. Dardalhon : cm Braga, o
sr. Freitas Guimarães ; em Santarém, o sr.
José Firmino d Azevedo Pereira : em Setúbal,
o sr. Manoel José Ferreira ; na Ilha de São
Miguel, o sr. M. C. d Albergaria e Vallc ; c
na Ilha da Madeira, o sr. A. J. de Araújo.
Preços: — Por anuo ou o2 n.'' 1^300 rs.
Por semestre ou 2(5 n.*" 700 rs. Numero
a\ulso 30 rs.
Os sr.'* que desejarem subscrever para o
anno de lSo3 queiram declaral-o quanto an-
tes, em Lisboa, aos deslribuidores. ou nos lu-
gares acima citados, e nas proviucias aos cor-
respondentes, ou por carta franca de porte.
dirigida ao Edilor. e acompanhada de uma
ordem da respe(.t;>a imporlancia.
51
o PANORAMA.
401
VISTA INTERIOR DA PRISÃO D£ TOLEDO.
Cdukia. o anuo 1()14. N'umH poljrc casa de Tole-
do, cuj;i única niobilia consistia (•ni mu leilo, algu-
mas cadeiras, uni chapéu de plumas, uma espada e
uma pistola penduradas na parede, eslava um sujei-
to de leia catadura, sentado ao pé de uma velha me-
sa cuberta de carias e de livros. Ksle sujeito era U.
Miguel Cervantes, enl.Ho comniissario de viveres do
exercito de Filippe Hl, enqirego (|ue obtivera por
inlervenijão du seu protector o conde de Lemos, a
i|ueni unieanienlí! devia não ler já morrido de fome.
Mas o auclor do I). (-luixole, pensando agora só-
incnli! no sem livro, considerava-se o mais feliz de
todos os homens. K <|ue acabava de receber cinco
traducíjêes em varias lingnas da Kuropa , e sabo-
reava trinta carias em ipnr os mais illuslreseseripto-
res da AUemanha, da llalia e da França o coUoea-
vain a par de llonu^ro, de Virgilio e d(! Ovidio.
Es(pieecndo-su ale de (|ue estava a tiritar de frio, e
lie ((ue nem sequer tinha almoçado, end)Uçou-se ufa-
no na sua capa, um pouco amoldada. . . de boracos,
poisou o braço aleijado na vellia durindana de Le-
paufo, e |)oz-se a medir o aposento com unui arro-
gância tal corno se estivesse já no cume do Parnaso.
J)'ali a pouco entrou uma mulher, formosa ainda,
apesar da tristeza i|ne lhe annuviava o senil)lant<',
(t (|ue s(í fazia prlncipalnuMite notar pelo seu lindo
eabello negro ondi^ado, pelo colar ile pérolas (pie lhe
ornava o |)escoço, e pelo vestido di; lã, i'iireil;ido de
selim, (pie trazia.
— iiUlhii, Caliiarina, aipii está a nossa gloriai"
exclamou o piuMa, aprcaenlando a sua esposa (pois
era cila) cartas e livros.
— i. A nossa gloria .' » respondeu 1'atliarina. des-
viando Vi olhos arrasados de lagrimas: i. a nossa glo-
ria u(|ui t'a apresento . . . do avesso. "
l'i entregou ao marido três nova» carias. A pri-
meira era do seu editor de Madrid, conuuunicando-
]h(í que ningueni (jueria comprar o 1). (-luixolc, e
podilldo-lhc o einboltasse da ipiantia de 'iiOOt) rcale»
'pie lh(! empriísláru.
Voi.. 1. — :{.■' ShKii..
— u Cega c ingrata pátria!" disse Cervantes, ati-
rando-se prostrado para cima de unia cadeira. "Tra-
duzido, admirado em toda a Europa , desconhecido,
ludibriado no meu paiz ! A((ui está como me pagam
o sangue que derramei em dez campos de batalha,
e o captiveiro de seis annos, que soHVi cm terra de
mouros. "
Na segunda carta prevcnia-o o conde de Lemos,
de que os seus inimigos o accusavaiii de conciissiona-
rio, o que por pouco estivera para ser demittido do
empregíi qui? exercia.
— li É outro golpe do meu zoilo Avellancda I ••
exclamou o poeta, (•ncolhendo os hombros. o abrin-
do a terceira carta.
J'-sta er.i do proprietário da casa, intimando-o pa-
ra que pagasse a renda, ou saísse do prédio.
— " I'or estas e outras <• ([iic eu venho com as
mãos abanando," disso (^alharina, corando de ver-
gonha. .4 O tendeiro, como está prevenido, não me
qu(!r vender nada a credito. Tens pois, ó grande ho-
mem," accrescentou l'orct>jaiido por sorrir, .ide con-
lenlar-t(! para o almoço com este bocado de pão. ••
K (pu- importava isso ao soldado do Lepaulo, ao
auilor do 1). liuixote? O que a elle o imngiu era o
csipieeimenlo em (|ue tinham o seu priniiu' (farte;
nem curava agora senão no meio de o lazer conhe-
cido.
— ■• Lma idía ! " exclamou de repinle, dejHiis de
eineo minutos de rcllexâo. . . «^ liei de obrigara lies-
panha e o próprio rei a inleressar-se pelo cmtilleiy
í/it Mtmvha, ••
Su.i mulher olhou es[iant.ida para elle sem o (><>-
der eoniprehender. ('ervantes abrai;ou-a n iiimi es-
pécie de deiirio, t sentou se u trabalhar iiiendo uo
mesmo lenijio no seu pedaço de pão.
Dons dias e duas noules não cr:;ueu a peiína do
papel, excepto noa breve» inlerMillos em (|ue se le-
vantava par» rir ás bandcir.is despregadas, ou paru
pular de alegri;i, eonu> se tivesse dcseuberto um Ih''-
soiiro.
Dk/umiiiio is, I8j-.
402
O PANORA3IA.
D'ahi a três semanas publicava-se em Madrid um
folheto anonymo intitulado o Buscapé, e quarenta
p;oitohoreisdfpoÍ5tinham-se vendido tresentos exem-
plares do D. Quixote.
Como se operara este milagre ? O conde de Le-
mos, entrando severo e triste em casa do seu prote-
gido, no'lo vae communicar.
Cervantes, fatigado de trabalhar, estava na cama.
Sua mulher, largando a guitarra, Icvantou-se assim
que viu o fidalgo.
— " Fugi ! ^^ disso cste, offerecendo a bolsa ao es-
criplor, "fugi immediatamente, antes que os algua-
zis vos venham prender. "
— " Prender-nos ! 51 exclamou Catharina, assus-
tada.
— «Sim. Publicou-se em Madrid um folheto que
acaba de vos perder, demonstrando que o D. Qui-
xote é uma satyra pungente, cm que, debaixo do
nome de heroes imaginários, são fustigados o rei de
Hespanha, c os primeiros personagens da corte.
— "Ah ! pois o tal folheto fez bulha?" perguntou
o poeta, pensativo e irónico.
— "Fez imia biiUia infernal."
— "E então toniprnm o livro para verificar a mal-
dade ?. "
— «Não ha duvida \ por isso é que foi ordenada
a vossa prisão . »
— "Maravilhosamente!" disse Cervantes:, «até
que afinal consegui o que desejava ! Quando o D.
Quixote era apenas uma boa obra, nem lhe pega-
vam ; agora que se tornou cm uma acção má, todos
o querem ler ! Falta a palma do martjrio ao auctor
para chegar ao apogeu da gloria. Podem vir pois
prender-me. Fui cu que fiz o JBuscapé !
— « Vós I " disse o conde, compungido do deses-
pero do seu amigo. « Então aqucUe folheto é apenas
nm artificio, e eu posso salvar-vos, confessando tudo
ao rei ! "
— « De maneira nenhuma ! " bradou o poeta.
"Isso equivaleria a lançar 110 olvido o meu livro !
Deixae-nos a ambos a fama, pelo escândalo e pela
perseguição. Se o crime tem mais valia que o ta-
lento, a culpa não é minha, nem vossa tão pouco. "
O conde admirou aquella sulJime resolução, cpro-
inetteu guardar silencio.
IS 'essa mesma nouto Cervantes foi conduzido á
l)risão de Toledo.
Mas a cegueira publica o o rancor de odientos ri-
vacs puderam mais que o seu génio. Após alguns
dias de curiosidade, o D. Quixote foi esquecido por
innoflensivo ^ e Avellaneda descarregou-lhe o ultimo
golpe, pela audaciosa publicação de uma segunda
parte do Cavallciro da Mancha, rapsódia grosseira
e monótona, na qual Cervantes era apodado de ve-
lho maneia, pohrcião, tabiKjenIo, iagarcUiiro c ca-
/ifHiiiiWoí-, com applauso do todos os mestres da
'■ritica d'aquella epoclia !
O ccho d "estes insultos chegou ao cárcere do poe-
*'' i pegou da pcnna, v debaixo das loljrcgas aboba-
das, que a nossa estampa representa, á triste clari-
dade de muitos dias de Miflrimonto, e ao talincardos
ferrolhos cpie o separavam do mundo, Ccr\ antes es-
creveu a \erdadcira continuação do D. Quixote,
essa segunda parle ainda mais admirável que a pri-
meira.
Foi então visital-o o conde de Lemos, q>ie havia
ideado um plano exccHcnle de desforra para o seu
amigo.
Atacado de uma teimosa ophthalmia, e condem-
nado a um mez de escuridão, Filippe III pedira
aquelle fidalgo que lhe procurasse um bom leitor
para o distrabir, e mostrara desejos de ouvir por es-
ta occasião o D. Quixote de Avellaneda, que ainda
não conhecia.
Lma manhã pois o escolhido do conde de Lemos,
conduzido por eíle, começou a sua tarefa ameia cla-
ridade de uma luz fraca, no escuro aposento do neto
de Carlos V, do filho de Filippe II, d'es>S€ rei que
nunca tinha rido era sua vida.
A primeira sessão correu fria, apesar da profunda
eloquência do leitor, que accentuava e variava ain-
tonação, como se estivesse improvisando. O rei en-
tretanto declarou-lhe que ficara satisfeito.
No dia seguinte ja se interessou mais. O leitor
estava tão inspirado, que Filippe III julgava assis-
tir a uma comedia. Via e ouvia D. Quixote, San-
cho, todos 03 personagens, como se estivessem e fal-
lassera no régio aposento. Dignou-se sorrir, e disse :
Muito bera.
A terceira sessão essa acabou com a indifferença.
O rei encantado esqueceu as horas, e riu a bom
rir. O leitor cheio de enthusiasmo redobrou de gra-
ça, e Filippe III, soltando em fim uma estrepitosa
gargalhada, exclamou como se fora um simples mor-
tal. " E delicioso I E um primor d'arte I "
Esta noticia fez grande bulha no palácio e em
Madrid. «O rei riu! o rei riu ás gargalhadas ' —
Foi o D. Quixote de Avellaneda que fez este mila-
gre ! Honra e gloria ao Avellaneda I »
E este começou de gabar-se do seu triumpho na
corte e na cidade. Via-se em perspectiva felicitado
pelo rei no primeiro beija-mão, elevado a todas as
dignidades da gloria e do génio. O pobre Cervantes
esse, coitado ! não havia insultos e epigrammas que
lhe não dirigissem.
O único pesar de Avellaneda era não poder co-
nhecer e abraçar o leitor que tanto fizera sobresaíra
sua obra. . . ílas este, dirigido pelo conde de Le-
mos, esquivava-se a todas as ovações com incorrupti-
vel modéstia.
As sessões continuaram, cada vez mais longas e
mais animadas. O rei não tinha ouvidos senão para
o D. Quixote e para o seu interprete. Elsquecia as
Hespanhas c as índias, os seus avós, a etiqueta, os
seus aborrecimentos e desgostos, pelas façanhas do
bom cavalleiro, pelos provérbios de Sancho, pelas
aventuras de Dulcinéa, e pelo governo de Barata-
ria. . . Eram accessos de hilaridade contínuos, pas-
sagens relidas, bons ditos repetidos c applicados aos
cortezâos pelo augusto enfermo. Em fim. Sua Ma-
gestade era agora tão feliz como o mais pobre dos
seus súbditos !
O resultado foi abreviar-se a cura do rei. A sua
reentrada no palácio e o beija-mão çeral annuncia-
ram-se uma semana mais cedo. Madrid mostrou a
sua alegria com grandes festejos, e A\ellancda em-
penhou-se para comprar os esplendidos fatos com que
pretendia aprescntir-se a Filippe III
Chegado o grande dia, uma immensa multidão
enchia as salas do palácio. Conduzido |>elo duque de
Lerma, primeiro ministro, vestido como um grande
senhor, e com um niagnilicvi exemplar do sou D.
Qui.xote, Avellaneda ajocliia diante de Sua Mages-
tade, e lhe oflerece o li\ ro que teve a gloria de
divertir.
Dizei antes de me curar." res|>ondeu o rei.
.i pedi-nic pois o que quiíerdcs. "
A\ellaneda julgou a propósito pedir o logar de
enervantes, com um gr.ui su|H'rior. e soldo dobrado.
Filippe III conccdcu-lh"o immedialauu-nte. Eis que
apparece o condo de Lemos, condurin<Io um homem
poíiremenle vestido, a cujo apparccimcnto rompe-
ram brados de indignação.
— .. Cervantes aqui I •'
o PANORA3IA.
403
— «Sim, Cervantes" redarguiu o conde, «o au-
ctor e o leitor do verdadeiro D. GLuixote, d'aquelle
que tanto vos divertiu por espaço de vinte dias, c
ao qual o sr. Avellancda é completamente estranho.
Perdoe-me Vossa Magestade ter soltado sob palavra
uni dos vossos presos, aj)roveitando esta occasião de
revelar-vos um talento calumniado. "
Ao mesmo tempo Cervantes entrega ao rei o ma-
uuscripto que lhe lera no seu aposento, e que Filip-
pe III reconhece por certas passagens, que ainda
agora o fazem rir.
Rir assim, era perdoar. Cervantes confessou então
que fora elle próprio que escrevera o folheio intitu-
do Buscapé, declarou que no D. Quixote não ha-
via nada de oflensivo ; e finalmente que o seu crime
único era ter sido denunciado pelo sr. Avellaneda,
(• seus amigos.
— "Muito bem ! » disse o rei, abrindo finalmente
os olhos, li como me restituís duas vezes avista, dizei
<i que pretendeis de mira."
— .lA impressão do meu livro á custa doestado,»
respondeu modestamente o poeta, «com as notas e
os commentarios dos estrangeiros que souberem co-
nhecêl-o antes que os meus compatriotas. "
— « Eu vol-o prometto, " disse Filippe, dando-
Ihe a mão a beijar. « Ao senhor Avellaneda, a esse
que roubou a vossa obra . . . pertence-lhe o vosso lo-
gar ... na prisão do 'J"oledo. "
Assim foi vingado Cervantes, e punido o seu pla-
giário. Mas, infelizmente o rei esqueceu-se da sua
promessa, e em quanto Avellaneda vivia rico c fe-
liz, o homem do génio recaía no olvido c na misé-
ria. E só século e meio depois é que a llespanha
pagou a divida de Filippe III, publicando uma edi-
ção magnifica ((^m quatro volumes de 4." com es-
tampa») do D. Gluixote de Miguel de Cervantes.
ÓDIO VELHO NÃO CANÇA.
RoMANCfi Histórico.
CAPITULO 1.
O Pilho t o l'ar.
Kila iiiiíteu paia matar ironcaiito»
lOii, aiiiuiiilu-a riii vãu, |>ara morrer <l^amurt's.
SlIAKSfUAUí: — Ollii/lo.
O iNr.iNTE pediu iinimii (resignação ulJeus. Aquel-
le golpe ha niezes (|ue o esperava, porque a sepidlu-
ra de I). Sancln) não se tinha cavado de repinte.
Hous aniius gastou a morte Irazendo-o peja mão, até
lh<! nietter os pés dentro do tumulo, aberto para o
receber. Agora é que a campa, pizando-lhií o peito,
rangia descendo, c sunbcanilu quasi as deslallccidas
|)uisações do peito. Saliendo que os seus (lias exilavam
contados, mesmo com a força (ralnia lU- lun caracter
robusto, o moiiari ha não sentiu a mortalha sobre o
corpo vivo sem liorror. JOste martírio (|UiMmavaliie
na raiz ot desejos e as llbis(")es •, mobtrava-lh(í sempre
o sopuichro, e de dentro (TcUe ouvia a voz (|Ue o
ehainuva, mais próximo a cada hora, seiítiiiíbi por
cima do uoraç.ln o si'ipr() da morte apagando a luz da
esperança, em (pianlo o rosto recuava do Iraxesseiro
couio »e já fosse a terra fria da sepultura ! Tm pi^ a
escapar do mundo, aonde o que fica é saudade •, ou-
tro sem remédio a despenhar-se pela cova '.
D. Affonso conhecia esta situação cruel, mas en-
ganava-se, ou cuidava enganar-se, suppondo ainda
affastado o momento da separação. Nos últimos tem-
pos, porém, a mcjestia correu ; e as horas foram mi-
nutos. O amor costuma temperar assim o espirito ;
illude-o de propósito até esperar o amortecido lume
da vida no objecto d'elle. O ultimo desengano por
isso é que doe mais. A crise natural das grandes af-
flicções de\eu o infante o alento, com que se arras-
tou até ao leito de D. Sancho.
O infante, tendo-se armado do valor, que n^estas
crises presta o próprio extremo, decidiu-se a vêr pe-
los seus oliios um espectáculo, que só imaginado lhe
cortava a alma. Deram de dentro por fim o aviso,
e escutando-o todas as suas duvidas se desvaneceram .
O abbade tomou-o pelo braço, atravessaram duas ou
três salas quasi escuras d'abobadas achatadas, mette-
ram por um corredor mais sombrio ainda, c para-
ram diante do reposteiro depanno d"arraz (acitara),
que estava corrido diante da porta. O monge bateu
de leve, o reposteiro franziu-se d'alto abaixo, e am-
bos entraram. Ali, no interior da vasta quadra, com
os muros desornados das preciosas tapeçarias do Orien-
te que d'antes os enfeitavam, é que D. Sancho se
preparava para a jornada da eternidade.
No recanto da camará. Juliano, o notário da cú-
ria, diante de uma mesa coberta de escuro, escrevia
as ultimas confidencias de el-rei a seu filho. D.San-
cho, receando que a morto corresse mais do que a
saudade do infante, dicliava no momento supremo ao
notário e ao bispo de Coimbra uma carta, na qual,
cntrí! palavras de pae e supplicas de homem, mais
de uma vez apparecia a vontade robusta do vencedor
de Silves.
Defronte do leito, em cima do altar, eslava um
devoto crucifixo, reliquia trazida da Palestina pelo
conde Henrique. O sol poente, entrando pela estrei-
ta fresta do aposento, banhava de luz a imagem, que,
despregada (.los braços, parecia V(jar para o pcccador.
No lado opposto, na confusão das roupas, eslirava-se
na ])arede a sombra do monarcha, desenliada no fun-
do. A figura de Juliano, com a face recostada no pu-
nho, alv(;jando-l!ie sobre a garnacha preta (espécie
de bécca) i as madeixas brancas, e o austero semblan-
te do bispo de Coimbra, com a mão esquerda no es-
paldar da cadeira do olficial palatino e os dedos da
direita passados na liarba, destacavam pela melan-
cholica posição do resto dos grupos, (jue os rodea-
vam.
O capello brunido, a cota de malhas e o montan-
te de Sancho pendiam dos muros. Despindo as ar-
mas e as galas reaes, o monarcha guardou unicamen-
te um habito para se amortalhar. As faces encova-
das, os cabellos e a barlia em desalinho, e os olhos
mortaes indicavam (pie o corpo extenuado, já não
podia emn os padecimenl(is. Mas dentro velava ain-
da a grandi' alma do guerreiro da idade media, re-
signada com a vontade de l)eu>, despegada das viii-
dadis humanas, e apertando a cruz sobre <• cilicio d.i
p('nileiu'ia.
A morte, (pu' iriste século assenta á cabeceira o
horror da duvida e o remorMi tardio, n\npi('lle li-
nha iij consii|aç<'ies da expiação. O alllu-to rccliiiava-
se nu rega(;o da fé ; e a religião, adoçando-lhe a es-
piiiija do ti'l, com a vela da espiiançH alIunii.tN.i lho
li lerrivel transe.
Se fosse hoje, os (pie \issiin o monanh.i (HirUl-
;;iicz na humildade de um habito, enriípieccudo •»
mosteiro» e as igrejas com n hertin(;a de seus filho»,
haviam de exclamar : — "A mololiu kvccou o br^-
404
O PANORAMA.
ço, jnas Roma matou o espirito, rei D. Sancho. De
pois de tantos annos de resistência, tu, tjue defen-
deste a coroa das invasões de Innocencio III, casti-/
gando a temeridade do sacerdócio, que se dizia feito
para devorar a grossura da terra, decepado pelos ter- j
rores da eternidade, sentiste em fim o joelho do cie- |
ro sobre o peito, e com a fronte aos pés do estrado j
poiílificio, renegaste o documento da tua victoria na j
hora final !" De feito, Sanchol, diante da morte, bu-
milhou-se a Roma, abnegando os actos de resisten- !
tia muitas vezes feroz, com que reprimiu as invasões
de um sacerdócio mais ambicioso e audaz, do que
devoto e exemplar.
O filho de ÁíTonso Henriques, herdando o cora-
i;So esforçado de seu pae, não foi dotado com talen-
tos militares iguaes. Nas batalhas e combates paga-
va com a sua pessoa, mais do que o dever de capi-
tão, era soldado. Em Silves, dizem-nos os documen- !
tos, entrava na mina com os engenheiros, e mcltia i
o alvião ás rochas como um simples gastador. Mas
na historia do seu reinado debalde se buscarão as 1
concessões atrevidas, c os planos bem urdidos, com
que o vencedor de Santarém e Lisboa soube arran-
car aos chefes agarenos as jóias mais preciosas da con-
quista.
O chanceller Juliano, ministro estimado de Af-
fonso I, foi sempre o conselheiro do seu successor, c
apesar de velho, tinha o animo bastante moço ain-
da, para ser a alma que omonarcha portuguez oppoz
< om arrojo aos desenhos de predominio e usurpação
temporal do irritável e cubiçoso Innocencio III. As
cousas chegaram a ponto, que o papa, não podendo
já conter a sua ira, desce da cadeira de S. l'edro, e
não duvida medir a sua cholera com a firmeza do
chanceller, que fulmina directamente, mandando em
uma bulia aos commissarios apostólicos, que a façam
lèr ao rei pela pessoa, 'que lh'a entregar, porque sa-
be que as suas palavras, ou não lhe são repelidas, ou
suo desfiguradas por alguém. Este alguém, indigita-
do como falsario das letras de Roma, era o notário
da cúria, nome com que n'aquelle tempo se desi-
gnava o cargo de chanceller, occupado por Juliano.
A morte de Sancho foi o resultado de uma enfer-
midade lenta, que o levou pela mão até o prostrar
de todo no leito da dòr. No fim, desfallecido de cor-
po pelos padecimentos, descorado de animo pelos ter-
rores da eternidade, habilmente incutidos, não ad-
mira que o soberano procurasse a paz da consciência
na submissão ao poder espiritual, quando o orgulho
dos maiores philosophos modernos se dobrou, abra-
çando na agonia a cruzque tinham escarnecido. Tal-
vez não fosse unicamente mesmo o desejo exclusivo
da salvação o que levou um rei soldado, sem cultu-
ra, a beijar o pó diante do estrado dopontiCce. N"a-
quelle século de armas e de lucta, o braço da igreja
era o mais poderoso, e a sua influencia moral a me-
nos contestada. Sancho I curvando-se, quando a fra-
queza era desculpável, podia ter o pensamento de
implorar da igreja não só o perdão das suas culpas,
mas a paz do throno e o silencio daj discórdias para
o seu successor.
Depois doesta explicação necessária entremos com
o infante para assistirmos aos últimos momentos do
vencedor de Silves. Talvez do homem que foi nos
appareça ainda a somljra I
(('oniinúa.)
SANTA ISABEL — RAINHA DE PORTUGA!.
A MR-rfos.i rainha D. Isabel, que hoje o mundo nem o mei nem o dia çin que se verificira este suc-
naholico venera nos altares, nasceu no anno de ld71, j cesso, o que aliás pouco jmj>orta.
cm Saragoça, como dizem muitos cscriplorcs e chro- I Foran> sc<is pai-s 1). Tcln) III, o grande (X da
nistas, ou em Barcelona, como pretende demonstrar corAa de Aragão) e a rainha D. ^ lolanto, sua sc-
1). José Barliosa no catalogo das rainhas de l'ortu- i gunda mulher.
gal ; uns e outros, porém, não puderam averiguar I O nascimento de Isal>ol foi precovlido e acompa-
o PANORA3IA.
405
nhado de «uccessos felizes e até certo ponto tão ex-
traordinários, fjue a fé d'aquelles tempos os lançou á
conta de milagres ■, não sendo o menos importante
terminar por esta occasião a grave desintelligencia
<im que viviam seus respeitáveis pae e a\ô, e que ás
circumst anciãs de que apparecia revestida se julgava
com fundamento ser interminável.
Desde os mais tenros annos revelou Isabel os su-
blimes quilates do seu generoso coração, aquelle en-
traiihavel amor dos pobres, que a acompanhou e glo-
rificou depois no llirono, e aquella serenidade e igual-
dade de animo que nunca desmentiu em sua larga
yida.
Já então todo o tempo que liie sobrava das suas
devoções, c das leituras religiosas, que frequentava,
com particular vocação, e que preferia aos romances
de cavallaria, na voga então, aos saraus da corte
de seu pae, e aos folguedos próprios dos verdes an-
nos, emprega-o disveludamonte em exercícios de cha-
ridade.
A fama de tão singulares prendas e virtudes der-
ramou-se pela líuropa, e muitos príncipes solicita-
ram a sua mão. Entro os que forniularam claramen-
te estas pretensões figuravam Filippc de França,
Duarte, príncipe de Galles, e l'alcologo, imperador
de Constiintinopla, que a pedia para seu íillio An-
dronico.
A Providencia, porém, parecia ter reservado esta
suprema felicidade para o salão D. Diniz, o nosso
famoso r(;i lavrador.
João Velho, Vasco Pires, e João Martins, todos
do conselho d^el-rei, e pessoas de muita auctoridado
<; distincção, furam os encarregados de manifestar a
D. Pedro as intenções do monarclia portuguez. A
reputação de prudcnda e saljcdoria (|ue este soubera
grangoiír tornava a sua ailiança mui desejada : como
era pois de suppor a mão de Isabel foi-lhe immedía-
ta o gostosamente concedida, caos embaixadores por-
tuguez coube a honra de a conduzir a Portugal, ce-
lebrando-se as bodas, com extraordinária pompa, cm
Trancoso, onde a esperava I). Diniz, a '2i de junho
de 128a.
A magestade, que para tantos tem sido perdição,
foi para Isabel chrysol com que se apura r.im em mais
subidos quilates as suas eminenles virtudes.
Rodeada de uma córle esplendida, na primavera
lia vida, ainda formosa, d'essa formosura que pede
adorações, a modesta Isaind só mostrava ser raiidia
na magnaniiuidadi' do coração.
(Coniinúa.)
Aliium Italo-Poutdoue/..
No ruiNcino do seguiiilo anuo piibiicar-sc-ha um
exccllenlo livriniio com o lílulo <|u<' j)ri'C(ile estas
linhas:, ó uma eoHecção selecla <li' primorosas poesias
escrij)la« no opulento «^ harmonioM) idioma do 'Passo
|)(do nosso amigo e tlislinclissiino poeta e ()rofessor
de declamação o sr. A. (iaHeano llavara ; muitas
<1 elhis são acompanhadas <l,i Ir.ichicção porlugueza
diívida .1 algumas das nossas sumniidadcs lil liTarias.
A lingua ilaliana, que oiilr\iiM foi fiimiliar aos nos-
sos escriplorcs, e piiniipalinenle aos nossos poetas,
lloje é por inf(liii(la<le qiiusi dcsconhi'ci(la entre nós.
O sr. Uavara veui dispcriar as agradaviis tradições
dos melhores li'm[ios chi lilleratura nacional, o por-
ventura o seu livro é o núncio de futuras e mais
aperlailiis relações entro os idiomas qu<í o Dante e o
<'amõ(!s immorlaliaaram nos seus cantos. I''ste não é
o menor serviço <[W. temos de agra<l<'cer ao sr. lla-
vara. Em quanto ao merecimento essencial do livro,
o leitor poderá avalial-o pelo artigo seguinte, que
cxtrahimos, com especial permissão, do raasnifico
prologo, de que vae precedido o interessante livro
do sr. Ravara, escripto em cstjlo florido e eloquen-
te, por um dos mais illustres representantes da nossa
moderna litteratura.
Recomm.endar, pois o Álbum Halo-Poriugu€z,
quando o juiz, sem contestação, mais competente
que temos em matérias de poesia, assevera ser obra
de relevante merecimento, e muito digna de se lêr
e estudar até, seria, sobre inqualificável pretensão,
fazer injuria ao bom senso do publico illustrado. E
nós esperámos que este corresponda aos desejos do
illustre vate italiano, tornando-lhe menos amargas
as saudades da pátria, e dando assim, ao mesmo
tempo, uma prova de que sabe apreciar o talento.
F. P.
A riBLicAçÃo de ura livro é sempre em nossa terra
uma novidade ^ a de um livro de poesia duas novi-
dades ; a de um livro de poesia italiana, e excellen-
te poesia, três novidades, ou antes um acontecimen-
to sem precedente. O Alhuin do sr. Ravara, de que
eu me ufano de ser apresentador ao nosso publico
illustrado, não deve ser de modo .ilgum confundido
com os outros indivíduos da família mais numerosa
e mais fatal, que a de Agamemnon, a família dos
álbuns.
Os outros, que de toda parte nos perseguem, nos
toucadores, nas jardineiras das salas, nos indispensá-
veis das mamans officiosas, no bolso dos servidores
de damas ^ que nos assaltam no meio dos trabalhos
mais síírios, pedindo-nos a contribuição forçada de
um louvor insípido, ou n'um passeio ocioso, impon-
do-nos a mais afUictiva, a mais inglória c a mais
inútil de todas as tarefas ; os outros, escândalo dos
poetas, e descrédito dos prosadores, mereceriam per-
feitamente o seu titulo de livro em branco, se o lá-
pis, o pincel e a penna se não tivessem encarregado
de o desmentir materialmente.
Não assim este <jiio ides folhear talvez por desen-
fado e distracção, ao prinei[)io, mas que logo vos
convidará a seguíl-o da primeira linha até á altura,
e depois de líila ell.i^ a recomeçal-o.
O .ílbuiií Jltih)-I'oiítKjtui é uma obra do coração
para o coração. Dizer ()\u! é poesia não é dar idéa
d'<'lle ; é o sentimento melancliolico, são os aflcctos
mais delicados, revestidos da mais luxuosa forma ly-
rioa. E imjMJSsivel não amar a alma que vem do
fundo do labyrintho das suas penas reaes ou imagi-
narias, mas ainda ipiando imaginarias, semi>re reaes
para quem as ceva, laiiçar-se, cuberta do seu luto,
no seio ás almas compassivas que não conhece, mui-
tas das quaes estão ainda jior nascer, e, com a coi\-
I fiança de irmã para com irmãs, as inunda, iis repas-
sa das suas lagrimas, e, logo (jue um suspiro allieio
I Ihií esvoaçou sobre ellas, gosu toda a \oluptuosidado
do martírio.
Tal é o caracter iPeste opuscido, o o do auctor,
|>orque aqui o auclor c o livro são um só. Os seus
versos não são invi'nlados por elle, são por ello vivi-
dos ; concebe o mundo assim-, não ori^ cm prazeres
ipie não conlenliam em gérmen desenganos; anteví
no baile o cansaço, na infâmia as cãs, na llõr o pO,
na formosura o esqueleto, (iue de malogros de de-
sejos, (pic- de mentiras da for! una não foi necessário
haver passado, para <|ue aos trinta annos se cliegnssn
con» um soberbo lalenti>, e uma 1_\ ra magnillca anão
cantar si'nào magoas, n iiAo acreditar senão na dõr !
406
O PA1VORA3IA.
Mas esses segredos são os sens ^ não pensemos em
sondal-os.
Glue importa uma bioçraphia? O que importa, o
que interessa é o estado de um espirito e de um co-
ração. Saudades da pátria, sobre tudo quando a pá-
tria <■ a Itália; saudades de mãe, sobre tudoquando
o amor filial arde era poeta ; saudades dos silios em
quo voou a infância; saudades também, por certo,
de algum objecto doestes que se adoram com a alma
de joelhos e sem ousar proferir-lhe o nome. Sauda-
des, sempre saudades ; eb, debaixo de mil formas,
o assumpto percnne do seu canto, como amelancho-
lia e a doçura constituem, por entre as amenidades
da noute, todas as meditações religiosas e namoradas
do rouxinol.
A. F. DE Castilho.
NOBREZA DE PORTUGAL EM 1736.
Reis avz COTS-
TiTrLos.
APPEU.IOOS DAS CASAS
CED£RAM os
TITCLABES.
TITCLOS.
DiacEs.
]).
João III.
Aveiro. — (extincto no reinado de D. José) duques de Tor-
res Novas, por D. Filippe I, marquezes de Montemor,
pelo mesmo, condes de Penella, pelo mesmo.
Lancastros.
D.
João IV.
Cadaval. — Marquezes de Ferreira, por D. Manoel, condes
de Tentuçal, pelo mesmo.
Alvares Pereira de Me!lo.
D.
João V.
Lafões. — Marquezes de Arronches, por mercê de D. Pe-
dro II. condes de Miranda, por D. Filippe II.
MABarEZES.
Braganças.
D.
João V.
Abrantes. — Condes de Villa Xova de Portimão, marquezes
de Fontes, por D. Aflbnso VI, (extiucto).
Sãs Menezes.
D.
Pedro II.
Alegrete . — Eram condes de Tarouca , condes deVillar-maior,
por D. João IV, (extincto).
TeUes Silvas.
D.
João V.
Angeja. — Condes de Villa Verde, por D. João IV, (ex-
tincto).
Noronhas.
1).
João IV.
Cascaes. — Condes de Monsanto, por D. Affonso V, (ex-
tincto).
Fronteira. — Condes da Torre, por D. Filippe III.
Castros.
D.
Pedro U.
Mascarenhas.
D.
João V.
Gouveia. — Condes de Santa Cruz, por D. Filippe I, (ex-
tincto) .
Mascarenhas.
U.
Aílbnso VI.
Marialva. — Condes de Cantanhede, por D. Affonso V, (ex-
tincto).
Minas. — Condes do Prado, por D. João III.
Menezes.
D.
Pedro II.
Sousas.
D.
João IV.
Niza. — Condes da Vidigueira, por D. Manoel.
Gamas.
D.
Pedro n.
Távora. — Condes de São João, por D. Filippe III, (ex-
tincto no reinado de D. José).
Tavoras.
1).
João "\ .
Valença. — Condes de Vimioso, por D. Manoel.
CoXDE*.
Portuçal e Castro.
1).
João V.
Alva. — (O actual, filho do marquei de Santa Iria, c da ca-
sa Monteiro Paim).
Ataides.
D.
Pedro II.
Alvor. — (extincto).
Tavoras.
D.
Filippe II.
Arcos. ,—
Noronha?.
D.
Pedro 11.
Assumar. — Marquezes d"Alorna.
Almeida».
D.
Filippe I.
.\tulaia. — Depois marquezes de Tancos.
.^Ianoei^.
D.
Affonso V .
Atouguia. — (extincto).
Ataides.
D.
Filippe ni.
Aveiras. — (Marquezes de Vagos, alliança com os Noro-
nha s).
Telles Silva.
D.
Affonso VI.
Avintes. — Marquezes e condes de I^avradio.
Almeidas.
o PA1NORA3IA.
4o:
I
Ikstbucção PoriLAR.
I.
GliEM, percorrendo os monumentos escriptos dequa-
bi todos os povos modernos da Europa, comparar os
sons como elles verdadeiramente são articulados, com
a sua representação pelos signaes graphicos, mal pen-
sará, que a escripta tem por fim significar rigorosa-
mente os diíTerentes sons de que constam as pala-
vras, e de que se compõem os idiomas. E para nós
matéria quasi de fé, se bem que somente conjectu-
ral, queaescriptura primitiva devia representar uni-
camente os sons que entravam nas palavras; posto que
a verdadeira pronuncia das linguas orientaes não te-
nha podido até hoje ser verificada por antiquários
e pliilologos, tudo leva a crer que no principio hou-
ve um caracter phonico distincto, para representar
cada som fundamental.
Muitas letras do alphabeto grego, por exemplo,
que nós hoje, na nossa ignorância da linguagem at-
tica, confundimos no mesmo som, o 0 e T, que nós
pronunciamos indistinctaniente como t, o " e O,
a que damos coUoctivamente a pronuncia do o, é
claro que serviam na orthographia grega a distin-
guir sons differeiíles, que nós hoje não podemos dis-
criminar, e que todavia não soavam do mesmo mo-
do aos ouvidos delicados — terdes et riliyiosae aures
do cultíssimo povo d'Athenas.
Herdeiros na linguagem de litteraturas mortas c
.idullcradas pelo Ijarbarismo da meia idade, copiá-
mos para as palavras corrompid.is dos idiomas que
hoje falíamos na Europa, uma orthographia, que em
muitos pontos se torna alwurda á forca de ser escru-
pulosa. Na reconslrucção clássica das linguas moder-
nas, c princij)almente nas que chamam iico-ronianas,
ou nas do meio-ilia da Europa, esqueccmo-nos de
'jue á ortliographia andava ligada, como j)arte essen-
cial, a orlhoópia c a prosódia dos idiomas clássicos.
Cousa notável, é desde o renascimento das letras, é
desde o tempo em que mais escrupulosamenlf; nus
afadigamos a cojjiar do antigo, <jue a nossa ortlio-
graphia é mais absurda, mais disparatada, niaiscou-
tradictoria, á for(;a de ser mais correcta, maisiiolida,
mais cortezã e mais clássica.
Nas origens da língua europi'a não foi ao casto
idioma de Iloiacio e de Virgilio, (jue os nossos avoen-
gos foram bclicr os elementos do nosso fallar moder-
no :, ])rovavelmente, quando as linguas neo-romanas
(•ome<;avam de projiagar-se na Europa meridional,
lorauí as iiivasu(;s dos nossos antigos dominadores,
(juem forçou os nossos antepassados a a<'ceilari.'ni em
parle a lingua d 'estranhos, presente infausto, tpicsi-
gnilica sempre a ruina (l'uni povo, c. o sacrilício da
sua nacionalidade.
Na primeira elaboração dos idionnis europeus, é
provável, ó qnasi certo, (|u<! foram o latim rústico,
o latim do povo, e piin('i()Mlmi iite os dialectos pro-
vinciai's, (|ue evidentcmiMile os havia em grande nu-
mero pelas varias regines do niuiiilo romano, as fon-
tes d'ou(le jorriíram om priniilivos c.iutlais da nos-
sa linguag<'m niiKhfrna. Não lui aoprinci|ilo a ninsa
grcrco-romana, (|uc na decadência, na ridna do im-
pério despiu as suas vestes, o se despojou dos seus
attribuliis para enri([U(ícer (• adornar com elles a mu-
sa lias lilliTaliiriis primilivas dos [jovos chrislãos na
1'luropa.
Não lui sobre a castiça (• opulcnla lingniigcm de
V irgiliii !■ de 'ribullo, (pic se calcaram os rlemeulos
das noY.is linguas barbaras, com cpie mis lanio hoje
nos v.MMgluriamoH. O hilim (faiiuellas epochas, cor-
rompido, e iiH^icliiiJo lie barliarismos pela sua união
adulterina com as linguagens do norte, mal podia
conservar a pronuncia correcta, elegante e harmo-
niosa, que não se coadunava com a laringe grossei-
ra e com a intonação barbara das hostes septentrio-
naes.
Palavras latinas, copiámol-as é verdade para os
idiomas romano-gothicos, mas copiámol-as desfigura-
das na pronuncia, c escrevemol-as então como soa-
vam a ouvidos pouco delicados, omittindo letras inú-
teis, e seguindo em tudo a sirnplicidade das regras
de uma primeira construcção. E por isso, que a or-
thographia portugueza dos primitivos tempos, é sem
duvida, posto que imperfeita, muito mais racional,
e musicalmente mais correcta, que a dos tempos ci-
vilisados. Muito tempo andaram, como todos sabem,
em quasi total esquecimento as genuínas leiras clás-
sicas, só desenterradas do pó em que jaziam quasi
em fins da meia idade. Latim que então se escrevia
e deletreava, sabe Dens a custo de quantos sacrifí-
cios para a boa grammalica, e de quantas offensas
ás austeras musas romanas, era latim de frades ou
de legistas, que pouco iniluxo podiam ter no aper-
feiçoamento das linguas ouropêas. Veiu a renascen-
ça, e conheceu-se, que, com as linguagens barbari-
sadas e incompletas como estavam, pequeno vôo po-
deriam tomar as litteraturas modernas. Era chegada
a vez de educar era exercícios viris os idiomas, que
ale então haviam crescido nos incunabulos da in-
fância.
Os primeiros que tentaram crear na Europa lit-
teraturas com sabor e gosto clássico, reconheceram,
que a lingua dos trovadores c menestréis, não podia
attrever-se ás empresas gigantes da imitação dos
grandes modelos antigos. Os idiomas primitivos
eram como palhetas, em «[UC havia cores vivas,
mas grosseiras, lom que esboçar os quadros, por as-
sim dizer de género, as satvras, asfal)ulas, os contos,
os romances, a xacara, as baladas, e todos os mais
géneros poéticos em (jue se copiam as sccnas familia-
res. 1'ara quadros históricos, para a tragedia, para a
e|)opéa, para a alta lyrica, a lingua era deficiente,
e urgia procurar em fontes alheias os elementos da
nova maneira de fallar.
Todas as riquezas c ponqias, todas as superlluida-
dcs oratórias e poéticas da antiguidade clássica esta-
vam patentes e coidieeidas aos modernos cultores da
lilloratura clássica. \ irgilio, cpie s_\ nd)olisava aepo-
péa romana, ipu' era um modelo obrigado de todos
os épicos modernos, nllerecia-lhes, a par da invenção
eda fabula, um Ihesouro inexgotavel de estalo e de
linguagem. Era rasoavel, <pie para enriquecer <•
adornar as linguas neo-romanas, filhas, ainda qut!
bastardas e ingratas, da lingua do Lacio, se fossem
pedir as alfaias e as jóias á opulenta mãe, de quem
haviam lierdado os seus prinu'iros haveres. O latim
entrou pela segunda vez nas linguagens modernas,
não imposto pelo direito de coiii|UÍsla, senão invo-
cado pelos a|)iTfeiçoadores das litteraturas meridio-
naes. E cPeutão que data a segunda camada de pa-
lavras latinas no nosso iilioma |iatrio ; i' desde então
(pie nós vi'^nios o notável phenomenu de «pparecer a
misma iih^a reiíresentaila \wr duas palavras, ambas
ellas similhanles, and)as ellas originalmente latinas;
uma, |iorém, cíurompida e contemporânea <los pri-
nu'iros lineamentos da lingua ; aoulra, genuinamen-
te clássica i^ sem ilillerença alguma orlhographiia
em relação á palavra romaiui.
Da palavra latina fiicliihis fez-se pehi corrupç.u),
Ml primiMra elaboração da lingua porlugue».a, ./li/ít;»».
IMas a palavra romana lã a|ii>an'te depois no remo-
delamenlo eullo da linguagem, aporluguciada nu
|)alavra JUvIUw^ lioj.> nacionidisadu nos nosstw lexi-
408
O PANORAMA.
COS. Posição, derivada, cora a corrupção indispensá-
vel da desinência, da palavra latina posiiio, só deu
entrada no idioma poituguez, com a segunda inva-
são, ou com a invasão litteraria e culta da latinida-
de nas leiras pátrias, Foúura foi o termo que, cor-
rompido do latim vulgar, entrou nos primeiros es-
boços da nossa linguagem nacional. O mesmo se po-
de dizer áe feito, palavra corrompida, e fado pro-
miscuamente latina i auto da idade primitiva da lín-
gua, c acio de sua idade philosophica, mctaphysica,
raciocinadora e litteraria.
A existência das duas invasões romanas a modifi-
car o elemento celta, púnico ou árabe, que forma-
ram, porventura, o esqueleto, já hoje quasi desfeito,
da nossa antiga lingua indígena, o facto da deriva-
ção barbara e da appropriação litteraria dos termos
e dos modos de dizer romanos, levain-nos a coniir-
inar o que dissemos, de que nas idades primevas da nos-
sa litteratura, a orlliographia teve de ser mais sin-
gela, mais plionica, mais consonante á prosódia e á
ortlioépia nacional, do que nos tempos cm que tra-
támos de estabelecer filiações theoricas, e confrontes
philologicos do idioma latino á lingua matriz, de cu-
jos despojos se enriqueceram as linguas neo-romanas.
Se os primeiros tro\'adores da idade heróica da rao-
narchia souberam traduzir nos caracteres graphicos
da epocha as suas composições, se Gonçalo Ilermi-
gues e os seus confrades litt erários do nosso alvore-
cer poético, souberam escrever, não se prenderam de
certo com os escrúpulos de uma rigorosa etymologia,
e não respeitaram nos seus códices os direitos do y
grego, nem as prerogalivas iraperiaes da orthogra-
pliia romana.
J; M. Latino Coelho.
As HONKAS DEVEM SER CONFERIDAS A
aVEM AS MERECER.
K necessário ter respeito aos merecimentos de ca-
da um, porque se não lc\ein os favores por respei-
tos. Desgraçada foi sempre a republica onde se al-
cança a pretensão sem merecimento. Os mesmos mé-
ritos hão de ser o tribunal aonde se ha de requerer
e achar o ])rcmio.
Gluando os dous irmãos pretenderam lugares com
Christo, lhe respondeu o mesmo Senlior, que não
estava na sua mão o dar-lh'os :, pela razão de que
estes logares estavam apparelhados para quem os me-
recia ; como dizendo, que os primeiros eram mais
próprios dos beneméritos que os mereciam, que do
mesmo Christo que os conimunicava.
Contra si mesmo esgrime o castigo quem lionra ao
incapaz de honra. Não ameaçou Deus a serpente se
não com a própria mulher a quem persuadia comes-
se da arvore, porque lhe disse que ella havia de ser
que lhe daria na cabeça ; consequência foi esta assas
forçosa, porque como a serpente quiz subir ao ser
que lhe não era devido quem llie havia de dar o
castigo, senão quem immeritamcnte ella queria hon-
rar. O uicsino sol, quando levanta os vapores da ter-
ra, elle mesmo se torna nublado, quando os escu-
rece. rADIU: .\. \ lEIRA.
— o que opprime ao pubre ])ara se augmentar a
si, e da ao rico, certamente empobrecerá.
— O ornato dos mancebos é sua fortaleza;, e a
formosura dos velhos as cans.
— Doce é o somno do trabalhador, quer coma
pouco, quer coma muito : porém a fartura do rico
não o deixa dormir.
No próximo mez de janeiro de 1853 co-
meçará a publicar-sc o 10." volume do Pa-
norama. Annuiiciando-o, o Editor aproveita a
occasiao para agradecer a protecç^io que o pu-
blico illustrado ILc tem dispensado, e a sym-
pathia com que foi recebido geralmente o pen-
samento de continuar um su-manario tão illus-
tre nos fastos da litteratura pátria. Difficulda-
des inevitáveis na organisaçuo de uma empre-
sa desta ordem, que, como todos sabem, e
inteiramente dislincta das anteriores, obstaram
a que a nova serie do Panorama correspon-
desse inteiramente aos seus desejos. O pa-
pel, que nos fornecem as nossas fabricas, e
que ainda não reúne as condições necessárias
para uma edição nítidn, faz principalmente
com que as excellenles gravuras que temos
dado, todas devidas ao delicado buril do sr.
Coelho, não so!)resaiam tanto quanto era para
desejar. Esperámos obter me'hor papel, e con-
tinuaremos solicitos a empregar todos os meios
para que o Panorama venha a ser também
um specimen dos progressos da arte t\pogra-
phica entre nós. Em quanto á redacção o Edi-
tor não duvida apresentar os números publi-
cados como uma prova insuspeita de que não
sabe faltar, nem faltará jamais ás condições
exaradas no seu programma.
Assigna-sc para este semanário : em Lis-
boa, no armazém de livros do Editor, rua
do Ouro, n."' 227 e 22S, c nas lojas dos
sr.'* Lavado, rua Augusta, ii.° S, Bravo, rua
do Ouro, 11.° 212, Zeferino, rua dos Capel-
listas, etc.
São correspondentes do Panorama no Por-
to, o sr. A. R. da Cruz Coutinho ; em Coim-
bra, o sr. A. H. Dardalhoii ; em Braga, o
sr. Freitas Cuiimarães ; em Santarém, o sr.
José Firmino d .\zcvedo Pereira ; em Sottibal.
o sr. Manoel José Ferreira ; na ilha de São
Miguel, o sr. M. C. dAlbergaria e Valie ; e
na Ilha da Madeira, o sr. A. J. de .^raujo.
Preços: — Por anno ou 52 n.*" 1^300 rs.
Por semestre ou 2G n."' 700 rs. Numero
avulso 30 rs.
Os sr." que desejarem subscrever para o
auiio de 1S."53 t|ueiiam dedaral-o quanlo an-
tes, em Lisbiia. aos deslribuidores ou nos lo-
gares acima citados, e nas províncias aos cor-
respondentes, ou por carta franca de porle,
diiicida ao Editor, e acompanhada de uma
ordem da respectiva impi>rlanc:a.
52
o PA1VOUA5IA.
409
o PANDANUS NA ILHA DO PRÍNCIPE.
Voi.. I. _.;.;i SuuiE,
nK.KMir.i.) 'II, I8.'l-i,
410
O PANORAMA.
Os pRiMEinos exploradores das terras africanas, de-
pois de haverem lonieado as plagas desertas e incul-
tas do Saraiiah, soltaram um brado de admiração ao
formoso prospecto fjue, de uma e outra margem do
Senegambia, lhes oftierecia a natureza. A \egetaeão
mais luxuriante succede sem transição á mais com-
pleta aridez, e em vez dos árabes bronzeados, ma-
gros, c de pequena estatura, encontram-se homens
negros, altos, robustas e bem proporcionados.
" Nunca vi nada que se lhe pudesse comparar,
apesar de ter navegado largo tempo nos mares orien-
taes da Europa" dizia, em 14Í6, o veneziano Cada-
raosto, quando, depois de ter dobrado o Cabo Ver-
de, costeou as praias do Senegambia ; u a terra aqui
é baixa e povoada de grandes e bellas arvores, que
nunca se despem totalmente de folhas, porque as no-
vas desenvolvem-se antes de caírem as antigas fo-
lhas, e nunca esmorecem nem seccam como na Eu-
ropa. "
Vinte o sete annos depois da viagem do venezia-
no, descubrirara os portuguezes mais ao sul, a pouca
distancia das alagadiças terras de Guiné, quatro ilhas,
que devem ao seu solo volcanico uma vegetação ex-
cepcional.
Fernando Pó, a mais septentrional de todas, con-
serva ainda o nome do primeiro capitão portuguez,
que, absorto de admiração ao vêr as suas graciosas
collinas arborisadas, lhe chamara Formosa. Na se-
gunda, a ilha do Príncipe, situada a trinta horas da
costa de Guiné, c a 1° 37' latitude norte, é que se
encontra o siiigularissimo exemplar da faniilia das
pandaneas, que damos era a nossa gravura. Do alto
mar, a ilha parece um ponto verde no Oceano :, fo-
gos subterrâneos juntaram as gigantes massas de que
se compõe, e que levantando-se desde a margem,
vão crescendo de socílco em socalco até formarem
um grande cabeço circular que se esconde nas nu-
vens. O solo, rico conjuncío de lavas decompostas, e
de despojos vegetaes que incessantemente se renovam,
produz as niáis maravilhosas plantas, e as arvores
mais esplendidas <|ue se conhecem. Vaporosas coluni-
nas de fumo erguem-se das virentes collinas, reve-
lando a existência do algumas crateras no seio d'a-
quelles cerrados bosques. Debaixo das soberbas abo-
badas formadas pelas grandes arvores, crescem nu-
merosos arbustos, que, por sua vez, dominam vma
immensidade de plantas que alcatifam o terreno. O
ar aspira-se impregnado de activíssimos perfumes.
A par do baobab, doesse colosso do reino vegetal,
e das arrogantes tribus das nialvaceas e das niclia-
ceas tropicaes, cujas ramagens são, áquem e alem,
sobrepujadas ])ela elt>gante copa dos coqueiros, osten-
fam-se os arbustos do café, de purpúreas folhas, os
ananazes, as líliaceas, as extravagantes irideas, as
airosas campanulas, os graciosos con%olvuliis, as lo-
belias, e milhares de llores, sem nome ainda, que
tornam a nossa ilha do Príncipe um verdadeiro jar-
dim sem igual no mundo.
Um official da marinha franceza que a visitou des-
creve assim- o pandanus, reproduzido na nossa gra-
vura :
" Uma corrente que procede dos escarpados cerros
da illia, dcspenhando-se de «juebrada em cpiebrada,
mantém constante humidade u"inn citreito valle em
que se concentra o calor produzido pelos raios do sol
reflectidos sobre os llancos ile duas montanhas mui
próximas uma da outra. A elevada temperatura, d»--
vida a estas causas, alimenta no fundo do valle a
mais vigorosa \eg(?taeão. O pandanus ergue-se no si-
tio em que, espraiando-se n'unia límpida angrasi-
nha, as aguas da. corrente vão cncontrar-se com as
ondas do Oceano, que se ouve rugir perto.
íi A um quarto da altura, que na ilha do Prínci-
pe, chega a IG metros, a haste principal mede cer-
ca de 3o centímetros de diâmetro ^ d"ahi para baixo
diminue gradualmente de grossura, e quando chega
á agua, onde está mergulhada, não a tem maior que
uma raiz ordinária. O tronco é todo em anneis, e
d'onde começa a adelgaçar sáem-lhe varias raízes,
formando já ângulos agudos, já curvas ogivaes, que
igualmente mergulham n'agua. Sobre estas raízes,
de estructura e disposição singular, ergue-se a arvo-
re, qual monstruoso reptil, divídindo-se, a dous ter-
ços de altura, em cinco ou seis pernadas, coròada«
no fim de folhas compridas, carnudas, e de ríjissimcn
bordos. »
Para artigo especial reservámos dar uma noticia
mais circumstanciada doesta e das outras preciosas
possessões que Portugal ainda conserva na .\frica.
SANTA ISABEL.
EsTBANH.t absolutamente ás cousas do Estado, a rai-
nha Isabel conservava no throno uma austeridade
quasí claustral ; se lh'a notavam respondia .* que a
mortificarão era tanto mais necessária sol>re o thro-
no, quanto sobre eUe eram as paixões mais fivas, e
os perigos maiores. A sua corte ei-am os pohres c os
desvalidos ; os seus saraus o visitar de enfermos em
albergarias c hospítaes ; n"estes charidosos exercí-
cios, e no regimento da sua casa era incansável, me-
recendo por taes títulos o nome de rainha santa, já
em vida. Nem por isso as tribulações deixaram de a
visitar cruelmente.
As primeiras foi seu próprio marido, que amava
tão estrcmecidamente, quem lh"as proporcionou. D.
Diniz, arrastado pelo seu caracjer ardente e génio
galanteados, travara e conser\ára por largos annos
relações indigiias da sua dignidade , soube-o a rai-
nha, sabía-o toda a còrle ; havia d"essas criminosas
relações provas irrecusáveis. Isabel, porém, calou no
peito a dòr profunda, que lhe devia causar tão re-
prehei!si\el procedimcnio ; escondeu de todos as la-
grimas, que síinilhaníe aíTronía lhe ha\ía de forçosa-
mente arrancar :, não soltou uma queixa ; não mostrou
no trato com seu marido a mais pequena alteração ; era
sempre o mesmo rosto de anjo, a mesma serenidade
de animo ; sempre o mesmo carinho ■, o mesmo amor
sempre: fez ainda mais:, recebeu e tratou os filhos de
D. Diniz como so filhos foram das suas ciiiranhas!
O rei soube comprchciíder tão rara abnegação e
virtude; e corrigiu-se depois de uma falta, que Ibe
acarretou não poucos desgostos no seu reÍDado.
A intervenção de Isal)cl de\eu-se terminarem a»
alterações cÍMs promovidas pelo infante .\fi'on*o Di-
niz, íraião do niouarcha, >ob pretexto da jllegítí-
niidade dos direitos d"este á coroa de Portugal. D.
Diniz tinha a parte sã da jKipulrçao do seu lado
n''e^ta desgraçada contenda; mas o infante contava
tandieni grande numero ."e , art'aes, e a lucla, com
quanto não pudesse ter resultado funestop,ira D. Di-
niz, acarretaria sem duvida uma serie de desastres,
que tarde se remediariam, o cubríría certamente o
paiz de devastações e ruinas.
t>3 dous partidos achavain-se já cm campo, em
fronte um do outro, prom[>»os a ferir uma decisiva
|H'loja. A rainha apparcco a c;ivalli> entrt> os comlia-
tiuites, lembra a sou niarido que c monarcha para
perdair, ao infante que é vassullo para oI)0<lec<>r, e
tàii ardentes foram os seus rogos c intercessões, qu«-
conseguiu que os dous irm.los fiicsscnj pazes, dcspo-
jando-se voluntariamente de uma parle das suas ter-
o PANORAMA.
411
ras para com ellas' satisfazer, de algum modo, a mal
joHrida ambição do infante.
Novas e graves alterações, com mais nobres intui-
tos, e mais alto caudilho á frente, vieram perturbar
a tranquillidade fjue o reino disfructava, e annullar
uma par^e dos benefícios que deviam provir das re-
formas eraprehendidas, corajosamente e em larja es-
cala, por D. Diniz.
Estas reformas assim como haviam creado pode-
rosos interesses, e protegido efficaznienle o melhora-
mento das classes populares, garantindo-as das exac-
ções e tropelias das privilegiadas, fizeram também um
grande numero de descontentes nas ordens da nobre-
za e do clero, (iuizeram estas reagir \ mas quem as
dirigiria nas suas tentativas revolucionarias? quem
seria o chefe da arrojada empresa? que.-n havia de
capitanear as hostes lidalgas contra os liomcns bons
dos concelhos e os cavalleiros de mercê de D. Diniz?
As ciicumstancias depararam aos despeitados um
óptimo ensejo, e um corajoso cafdilho, o príncipe
D. Aífonso, o próprio herdeiro do ihrono, que se
suppunha aggravado por seu pae nas mercês que este
íizera a Aífonso Sanches, e que ardia em desejos de
manifestar publicamente o seu aliás pouco rasoavel
e pouco justo resenlimento.
A colligação foi proposta; o jiacto acceite e firma-
do de uma parle e outra; e o negro pendão da guer-
ra civil cgucu-se audaz c sinistro pelas províncias do
reino, levando a toda a parle or.do encontrava resis-
tência a desolação e a morte. Knipregou D. Diniz
todos os niejos para desviar o principo da sedição ;
mas deljaldí! ; tinahnenle, decidido a castigar seve-
ramente a temeridade dos levantados o de seu pró-
prio llllio, travou das armas e marchou para a cam-
panha.
No isolamento cm que vivia soiibe Santa Isabel
d'esles tristiís successos, e da perturbarão geral (pu;
elles haviam motivado.
Tien'eu pelo filiio, que de sobra conhecia ella o
caracter de sca marido ; e por isso não despresou
meio algum de acabar tão terríveis dissensões que
ameaçavam ao reino a ultima ruina. Attribuiu 1).
Diniz a parcialidade pela causa do príncipe o que
eram apenas extrcimos de mãe cavinliosa, e ordenou
que a rainha se retirasse para a sua villa de Alem-
quer. Santa Isabe?! obedeceu, resignada perante a in-
justiça de seu marido, mas continuou incansável nos
seus esforços, tendo a satisfação de os vêr coiòados
d(! meljior rcsuUado, pcdindo-lho depois seu marido
[)erdão da atfronia que involuntariamente fizera ás
suas egrégias virtudes.
1'oucos niezes depois da convenção de 23 de feve-
reiro de Dtiii, qucí pu/.era ter<no á giu;rra civil, en-
tregou el-rei I). Diniz a alma ao ereador ; e Santa
Isabi;! que Ijie assistira com disvéio e entranhavel
amiir até os últimos momentos, declarou, por acto
suieDMK!, (H'(! d'ahi em diante viviria e morreria no
babili) de 'JVrecira de S. hVaneisco ', <; assim o cum-
priu, veslindo o sa^al, ein";índ<) a corda, e usando o
véu liranco.
Dr'ix<iu Sania iNaliel ilbistr<'s niiinumenlos da sua
nuiila religião (^ (liaridade. I<'iind(>u o mosteiro das
rirligiosas de Santa ('Iara tU: ("oimbra, onde residiu
a maior jiarlc! do leuipo da sua viuvez; o mosteiro
de religiosas eish-rcienaea de; Almoster; a igrija ilo
Ksjiirilo Santo de Aleuiipier; e o hos|)ital d<' Lei-
ria. IMas em nosso entender a olira qui' mais reeom-
menda á veneração dos vindouros ii mem(U'ia da san-
ta rainha, é a fundação do huspilal dos innoceules
na villu de SanlariMU, para o recolhimeulo, uuuiten-
çã(i e educação de creuncitdias engeiladaa de um e
outro sexo.
Este hospital, fundado em 1321, e largamente do-
tado, incorporou-se no de Jesus Christo por bulia do
Sumrao l'ontiíice Innocencio \III, expedida em
14S5, a pedido de D. João o segundo.
Pena é que o padre Ignacio da Piedade e Vas-
concellos, erudito auctor da Historia de Santarém,
que nos apresenta curiosas noticias d'este hospital,
nos não transmiícisse a integra do compromisso, or-
denado pela santa rainha, e pelo bispo da Guarda,
D. Martinho, que não transcreve, diz elle : ti por
não trasladar um portuguez tão antigo e tão extenso
que poderá causar fastio aos leitores. "
Assim conheceu Portugal, como observa o nosso
escrupuloso collaborador o sr. Nogueira, três séculos
antes de S. Vicente de Paulo instituir em Paris o
hospital dos expostos, um asylo para creação e edu-
cação dos engeitados.
Recolhendo da peregrinação deS.Thiago, aquan-
do deliberava pòr-se a caminho para reconciliar el-
rei de Portugal seu lilho (Affonso IV) com el-rei de
Caslclla, seu neto, enfermou mortalmente, e passou
a melhor vida a 4 de julho de 1'ò'òii.
No testamento que tinha feito cm 19 de abril de
1319 ordenara que a sepultassem junto de seu ma-
rido em Alcobaça ; mas, como el-rei D. Diniz esco-
lhesse, em suas ultimas disposições, para sua ultima
morada, o convento de Odivellas, por elle fundado,
ordenou que a levassem a Santa Clara de Coimbra.
Foi beatificada por breve de loltí, pela santidade de
Leão X, concedendo seu culto em Coimbra ; esten-
deu-se este até ao logar, onde estivesse a corte de
Portugal, por breve do núncio Pompeo Zambicario
em 1552; e pouco depois a todo o reino por mercê
de Paido IV, <jue mandou celebrar a sua festa em
4 de julho : foi canonisada com grande pompa pelo
pontifico Urbano VIII, a 23 de maio de Hi23 ; e
a sua trasladação fez-se com extraordinária solenini-
dade, a 3 de julho de 1G9G, do antigo mosteiro de
Santa Clara, «je.e fundara, e estava arruinado pelo
3Iondego, para o que começou D. João IV, e aca- '
bou D. Pedro II, no alto da montanha fronteira á
cidade.
ÓDIO VELHO NÃO CANÇA.
KoMANCK liisroilUO.
CAPITULO 11.
Suu Víi itiiuht !
A scKN.*, a que o leitor vae assistir, apertava o co-
ração aos que a presenceavam. Os ulliinos instantes
ili; Sancho I apro\iuiavan>-se ; e n'esta hora supre-
ma, ([uandii uin rein.ido linalisiiva, e o outro podia
diz('r-se (pie ia começar, o ultimo adeus ilo pae e do
monarclia ao herdeiro da corrta oflcrecia um espectá-
culo de il(\r para quantos o presenceavam.
(luandii o infante entrou, e antes d\'lle i>s ricos
homens e eavalli-iros prini'ipaes, o n-i liidia caldo
em desmaio. D. AlVinisn ap^oxi^ulu-.^e da cama «
|ie'j;oti-lhe no braço. Sancho, tornando a si e abrindo
os olhos, fitou a vislii pasmada, ora n'uns, ora n ou-
Iros, mas niío (Hinhei^eu ninguém. l'or l"iiu abaixou-.-»
Iei\tamenl<' para o sitio aonde eslava ajoelluido o li
lho. Allirmou-se, iluvidoii, tornou ii aflirmar-se, i-
meio levantadu sobri' o colovello ileiloii-lhe o» bru-
ços HO iieseoço, excliinmndo com alegria :
— iili'illio! . . . filho da minha iilma ! ••
412
O PA]>ORA3IA.
o infante não levo forras de responder. Encostou
1 cabeça ao hombro do pac, e a custo reprimiu os
soluços, que lhe estalavam na garganta.
— "Já tardavas, Aflbiíso, dizia o rei passando-lhe
os dedos jielos cabellos. Ia cuidando que não torna-
va a vêr-le, filho ! »
\'irando-se para o monge de Cister o monarcha
accrescentou :
— "Não cheguei a vêr meu pae ; niorniu um dia
antes de eu chegar. Em íim ouviu-me Deus, ainda
lornei a abraçar este. Agora, quando fòr chamado a
contas ... o que estreitas contas, Senhor ! E por el-
•Jle ^ e apontava para o filho :, pelos irmãos :, pelo
reino •, é por todos. . . Chego a duvidar da salvação,
meu padre ! "
— " Duvidar da clemência divina ! redarguiu o
abbade. O sangue de Christo correu para lavar as
culpas dos homens, purificando-os diante da face do
Juiz. !'
— «Eu sei! acudiu o rei. Não se me tira isto da
idéa. "
— "E preciso tiral-o :, tornou o monge. Sabeis a
historia d'aquelle filho que se despiu para cubrir a
nudez do pae ; eappareceu vestido de graça aosolhos
de Deus ? A Igreja, esposa de Christo, é nossa mãe
e,spiritual. — Aquillo, ajuntou indicando o pergami-
nho— poza mais perante a sua misericórdia, do que
a vida do peccador diante da sua justiça. ^»
O pergamiidio era o testamento de Sancho I.
L'm sorriso fugiu quasi imperceptível pela liucado
notário, que olhou para D. Aftbnso. O príncipe, car-
regando o sobr''olho, respondeu-lhc com outro, que
parecia dizer — " entendo '. >i
Em quanto o monge pregava a sua theoria utili-
tária, D. Sancho conservou a cabeça pendida sobre
o peito. Levantou depois a vista, e mirou por muito
tempo o infante sem fallar.
— «Es o retrato de tua mãe, Aflbnso ; suspirou
elle. Em tudo se parecera, na boca, nos olhos, até na
voz :, és a imagem sauta que perdi . . . que perdemos
ambos !
— « duerido pae '. "
— «Havia de ser por força uin dia. E hoje...
Affonso, tenho que te recommendar muita cousa. Es-
tava-te escrevendo. Teu pae pedia-te a esmola de o
pjiterrares na humildade d'este habito ao pé da se-
pultura de teu avô. "
— « Ha de fazer-se, » retorquiu o infante com me-
lancholia.
— u A coroa e o sceptro são teus d'' aqui a pou-
co. . . Deus sabe que os não choro \ nem levo sauda-
des do mundo. Ccguei-mc com as vaidades, mas ho-
je. . . Njo se dorme n'um travesseiro de espinhos,
molhado das lagrimas do povo, Aflonso ! . . . Com-
nietti peccados como homem •, mas sobre tudo o que
rae peza são as culpas e os erros como rei. Tenho
medo da voz que possa pedir a justiça com que eu
faltasse-, horrorisa-me cuidar que o sangue dos que
feri sem causa ha de levantar-si; contra uiim. . . Fi-
lho, ás portas da eternidade teu pae roga ao herdei-
ro da sua corl^a, que lhe dê a paz da consciência.
AfTonso, dá-me de esmola com que restitua aos que
oflendi. "
As palavras eram de supplica, mas o tom era de
quem manda e conta ser obedecido.
— «Q.uanto el-rei mandar será cumprido, volveu
o ])rincipe. Juliano, continuou virando-se para o no-
tário, está ahi o tcstameuto .' Lede I '>
O testamento reza\a de legados pios aos Templá-
rios e Hospitaleiros. D. Affonso approvou, dizendo
para si: — «E justo ^ audain ás lançadas cora os
mouros na fronteira. "
Seguiam-sc doações em dinheiro e em terras ao
mosteiro de Alcobaça. A parábola do venerável ab-
bade de Cister ficou explicada. D. Sancho despia o
seu herdeiro para edificar uma casa mais aos eremi-
tas do povoado. O infante franziu a testa e carregou
o rosto, dizendo : — « adiante ! " Vendo passar sem
gloza a importante verba o abbade respirou.
Depois vinham doações a D. Maria Paes Ribeiro,
e aos filhos que cl-rei tivera d^ella. Liam-se, afinal,
copiosos legados de castellos, villas, direitos reaes, c
thesouros aos irmãos legítimos do infante. A paciên-
cia vencida pela cholera escapou ao principe ^ com o
rosto escarlate e a voz estridente :
— «Santa Virgem ! — gritou elle. — GLuebram-
me a coroa, repartem os bocados, e deixam-me o
maior por direito do nascimento ? Enganam-se 1 Não
a recebo se não inteira como a teve meu avô, emen
pae a trouxe. E virando-se para D.Sancho, cadavei
mais acceso em ira : ôuantos reis ha em Portugal T
Alemquor é da rainha D. Sancha ; Montemor é da
rainha D. Thereza •, villa do Conde fica a D. alaria
Paes. O dinheiro de Thomar, de Santarém e de
Coimbra é espalhado ao \ cnto I O rei que morre cor-
ta o braço direito ao rei que deixa I Ah I os mon-
ges, os monges 1 !Mas eu os porei no seu logar. Não
hei de cumprir senão o que fòr justo I ;?
O ciúme do poder real, depois origem das conten-
das civis entre Aftbnso e suas irmãs, dcscubria-se já
em toda a força. D. Sancho escutou cm silencio as
primeiras palavras do infante-, depois as feições ani-
maram-se gradualmente-, e nos olhos amortecidos fu-
zilou aquella ardente cholera, que os mais valorosos
temiam arrostar. Sentando-se com Ímpeto, e fechan-
do o punho, exclamou em voz fraca, mas distincta :
— «Aflonso, D. Affonso, quem é o rei ainda.'»'
Tinha razão. A ira jalvanisou um momento o ca-
dáver. Era outra vez Sancho I, antes do terror da
morte e sem as cinzas da penitencia. Era o soldado
de Silves, entrando pela mina, e a golpes d'acha es-
talando o coração das rochas. Era de novo o antigo
monarcha, arrancando pela raão dos verdugos os olhos
aos cónegos de Coimbra para com o sangue d*elles
mandar escripto o seu cartel contra a auctoriílade
pontifícia de Iiniocencio III.
Mas D. Affonso tinha nascido filho d''aquelle pae.
IMais concentrado, nos lances extremos era tão indo-
mável como o próprio Sancho 1.
— «O rei sois vós '. redarguiu o principe, respon-
dendo á pergunta ameaçadora do monarcha. E oxa-
lá que Portugal nunca tenha outro. Em quanto as-
sim fòr sois senhor -, o infante não sabe e não vê. »
— « .\ffonso ! " exclamou Sancho ean voi som-
bria.
— «Mas o rei D. Affonso, continuou o filho, quan-
do puzcr a coroa ha de pòl-a inteira, ou não a põe.
Hoje mandaes-, sois rei ; o primeiro a ol>edecer-> os
é o infante. Desgraçado porém d'aquelle que ama-
nhã me não fizer a mim o mesmo I ••
Era uma resoluçiio inabalável tan)l)em. D. San-
cho conhecia bem o infante, e sabia que a força cu
o temor erão inúteis para o mover. Por isso, c por
que Uie dizia a consciência, que se o filho peccava,
o rei de Portugal fazia o que elle tinha feito, D.
Sancho mudou de tom :
— «Affonso, por que não és, nem serás nunca ir-
mão de teus irmãos .' '. Deus conhece a dòr com que
os levo atra\ess;idos : e a|K>ntava o coração com ma-
gna. Elle te não ciístigue nos teus filhos! >i
— « Como rei vejo só vassallos. !<
Tudo caiu então n'um silencio constrangido. Pas-
sado algum tempo o rei ergueu a cabeça, e ajuntou
com tristeza :
o PA^ORA3IA.
413
u E 05 outros, Affonso, os outros, que também
são teus irmãos ? »
— u Os filhos de D. Maria Paes ? »
— líDeixo-lhes honras e riquezas, mas comigo per-
dem o que não se suppre. . . Aílonso, pelo amor de
tua mulher, pela ventura do teu Sancho, avalia pe-
las tuas entranhas a miiiha afilicjão : dize-nie, fal-
tando eu servir-lhes-has de pae ? "
u 1'ela cabeça do meu Sancho, e pela alma de
minha mãe, o juro.
— uDescanço no teu juramento ^ a respeito dV-l-
les morro tranquillo. "
A pallidez do rosto a cada instante se fazia mais
lívida. Os ollios sumiam-se, e a respiração era curta
e rouca. Olhou muito tempo pela fresta como quem
se despedia do céu, das flores, e das agu;is do Mon-
dego. D'ahi, virando-se para SueiroRajmundo, dis-
se com melancholia :
— uN'ura dia como este tomei Silves. Não bole
folha ! Gluem me havia de dizer que aquelles cercos
e combates haviam de parar n'isto ? "
E tornou a olhar com maior tristeza.
De repente desviou a vista, e com grande esforço
murmurou : — " Cerrem-me a fresta. "
Assereuando, e armando-so de resolução, disse de-
pois :
— «D. AfTonso, um abraço ! Emais baixo : — rei
moço, não te cegues ^ toma exemplo em mim. Cui-
<lado com a velhice, com as contas finaes. Adeus !
.Sueiro Raymundo, é uma viagem :, suppõc que fui á
Terra Santa e me demorei. Meus cavalleiros, o rei
novo pagará as dividas do rei que morre.» E tor-
iiou-lhe a tristeza.
— " E escapar ao cerco de Santarém ! Não haver
uma setta que me varasse cm Silves I . . . Era me-
lhor ! "
D. Sancho, filho de soldado, embalado no escudo
paterno, chorava pela morte (Ío guerreiro. Um pe-
queno espaço esteve assim i d^ahi cruzando os braços,
exclamou suspirando :
— " Kaça-sc a vontade de Deus ! "
E cerrou as pálpebras como quem nTio queria vêr.
Uma sezão de febre, e com ella o delírio, arranca-
ram-lh<! palavras soltas e ineoherentes, próprias de
<iuem ainda adoecia mais da alllícção moral, do que
das dores do corpo. A idéa da orpliaiidadc dos filhos
como um espinho não cessava de lh(! retalhar o co-
ração.
— II Levem essas creanças :, não asvija seu irmão!
Olhem o infante ! Digam ao pa])a. . . AIlbuM) ! . . . "
Depois, passando de repente a outras lembranças,
Icchava o ])unlio, e estorcía-se com violência.
— "Os frades eu os ensinarei !.. . ah, bispo do
Torto fazes mal ; não roces a mitra pelo meu elmo,
podes partil-a' N'a(|uella cotta ha uma malha caí-
da. Asscrntem o fio á acha cParmas i está cheia de
brteas das pedras d(! Silveis! Selleiii o ni<'U eavallo ;
Vamos \ i' menos que uma caçada de javalis. "
A um signal do ineilico loilui saíram menos o bis-
po de (Joimhra. O ínfanti! eiiliou salas Milire salas,
até ir assenlar-se em um cscaiih" deiilro lUiseu apo-
sento, com o nisto eseouilido eiilre as mãos. I'"alla-
vam-llie, não rcíspondia ; tdiavaiiiilie, não «eiitia ^
nem a voz amiga do seu eollaçu (ioiuis lioureiíeo o
acordou da apalliia. O sol escondeu se (h^traz ilos ou-
teiros:, asirevas apcriarauí ali- cerrar a iioule, (í elle
seinjire d(i nieMino modo. A lua abriu cedo :, umagol-
pliada de luz lirauia veíu liemer o si'U pallidii ela-
Tão sobre a ariuadura do piiiiripc, peu(lur;ida iia pa-
rede. A pouco e piiuci) o sentidi) do ouvidd ilesper-
lou-.se •, julgou disliiigiiir a Inada ilaMoraçues da igre-
ja nu agonia \ cuidou escutar o dobre fúnebre dos
sinos de Santa Cruz -, imaginou "perceber o choro de
muito povo, mas tudo confuso, esvaído :, e faltando-
Ihe n'este pezadello invencível até a força e animo
de se mover para olhar pela janella que tinha de-
fronte.
A final abriu-se a porta do seu quarto, e sem sa-
ber como, o infante levantou-se e deu alguns passos.
Abaixando a vista achou ajoelhado diante de si o
mordomo da Cúria, o qual entregando-lhe oannelde
seu pac, murmurou suffocado :
— "Senhor rei, este é o sello do reino I "
D. AfTonso recebeu o annel. Quando o passava no
dedo entrou pelo aposento unia toada de vozes reli-
giosas, e o sino da eathedral bateu duas pancadas lú-
gubres. Le\ando a mão ao peito, o príncipe fez si-
gnal ao mordomo que se retirasse. Apenas elle saiu,
desafogando nos braços de Gomes Lourenço, D. Af-
fonso a chorar exclamou :
— M Gomes Lourenço, já não tenho páh ! "
(Coniiniia.J
1'uosckipí;.\o do Diello.
O auE é o duello ? — Ultraje da phílosophía, e cri-
me contra as leis sociaCí. Absurda relíquia pagan.
Feição (mesquinha pelos abusos herdados) dos com-
bates singulares dos bárbaros. Invocação caricata ao
supposto juízo de Deus:, pregada pelo fanatismo ru-
de, e conveniências de outras eras^ acceita pela igno-
rância e ferocidade de outros ódios, e de outras pai-
xões ruins, que o melhoramento da vida social e da
espécie humana tem de todo banido e relegado.
Homens do dia e da eivilisação humanitária, por
que santilicaes o absurdo pagão.' Porque vos appare-
Ihaes, com os bárbaros, parallclo deshonroso .' Porcjue
confundis Deus com o acaso, rebaixaes a philosophia
a preconceitos pilios e hypoerítas, e, affectando sa-
crificar em aras santas, fazeis holocaustos a Baal !
E mais (jue tempo de chamar a razão e o bom
senso a eampii di; reflexão, para que d'uraa vez dís-
pareça a [lalavra e idéa de (liidlu, e se separe do
consorcio irrito (•m que tem vivido com a palavra e
idea sacramental e elástica de ponto de honra. Nãa
se perca a memoria das reparações, nem se siinccio-
n<! a impunidade; mas legísle-se, com mais cohereu-
cia e mais justiça, sobre o processo a seguir n'esses
casos, que até aciui tão erradamente fingiam não t(!r
remissão possível, fora do infausto e bárbaro assassi-
nato de convenção, fora do baptismo sanguinário do
duello.
O uso do duello foi, com a successão dos tempos,
degenerando dos altos e solemnes pretextos a (jue
por nuiílo tempo só parecia servir, e acabou por nu--
recer a execração máxima, desfeando a sua própria
fealdade nos pretextos corriqueiros e iiifaiilis, a que
veíu alliar-se, e dar vullii, (|Ue nào iiuMCilaiu nem
cousas nem pessoas. Se ouIrVira o iluello era sempr<>
l>aibaro, agora é geralmente ridículo. l'\>í jogo Iran-
i'o na Europa da idade? meilia, porque a cívílisaç."io
mal alviueeia pelas franças ila arvore social \ a igno-
raiieía era apanágio da multidão, o fanatismo bár-
baro a etílica, que descia a doiitrinal-a. Cria-se nu
suiiremo jubj-ameiílo da l.iiiea, da acha iParmas, do
jalagaii. Cria .si- nas prova» iragiui e logo: e a liu-
iiianicbiili', eorrompeuilu-si- de m:iis em mais, i.i com
jorros de síiiigue apagando-se ilo coniçào os vagos
tiaeos il.i iiiiu-.didadii univeihal i' iiiliata, <|ue o dedo
lie Deus lhe esculpira.
I''elí/iiieiile esse l<-iupo acabou. A clvilisiiç.'io fei-
90 hu de muito», v «guru sol para todos. O império
414
O PANORAMA.
da razão e da philosophia restaurou-se. Cumpre, que
esta sublime confjuista da humanidade, esta aspira-
r;ão do progresso, não soja uma chiméra. Não dei-
xemos que, como no engenhoso quadro do Florenti-
no, apparcça o denunciante pé de bode, por debai-
xo da orla dourada e deslumbrante do \osliào de
Satanaz, assim desfigurado para vir mais a salvo
em suas tentações. Não sejam os novos ditames da
sciencia social e moral uma mentira maldita, sobre-
dourada de muita fé postiça, e protestos ocos, em
occasião de fazer veniaga e mercancia. Haja fé e con-
vicção, para que a cousa medre, e dê de si os bons
fructns, que deve e se annunciani :, mas sobre tudo
isto haja cohcrencia, harmonia de parles e deriva-
ções, assim como se crê ou aífecta crer na harmonia
dos principies.
Como cousa seria é o duello bárbaro e irracional
de mais •, para brinco, revestido de formulas preten-
siosas, de pragmáticas, de regras, de prescripçóes e
cerimonial, é a suprema caricatura do mundo, ul-
traje do bom senso, opprobrio de <]uem podendo não
levantou caldeira e pendão a pregar, por beccos e
pragas, cruzada dVxterminio contra esta momice
pcccaminosa e absurda.
Fúteis ou relevantes que possam ser os pretextos,
o repto é sempre iuenieaz como reparação, e fre-
quentemente injusto. Nas grandes pendências não é
o resultado de um duello satisfação que contente,
senão a quem vergonha ejuizo tudo perdeu ^ nas pe-
quenas desintelligencias é escusado e estúpido, âuan-
do para altas e baixas questões de honra o pundonor
não haja satisfações mais racionaes, mais intimas,
nunca cousa alguma pode o duello ir corrigir. Para
as altas conílagraçõcs, em que a reparaç.vo ou sa-
tisfação é denegada, ou impossivel, queremos cousa
maior que o duello, queremos o cas! igo do culpado,
como legitima consequência do maldizer, ou do mal
fazer : para os desaecordos frívolos c o duello cousa
mui subida e arriscada, que em taes eircumstancias
só a idiotas ou jograes pode convir.
As absurdas leis do duello eqiiilibram, na mesma
balança, o réu e o auctor, o fraco e o forte, a sem-
razão o a razão, a destreza e o desastre. IMais um
quilate de sangue frio, mais um favor do acaso, mais
um ])onto de dextcridade sobre o contrario, etrium-
phará o criminoso do innocente ; ficará castigado o
resentimento o aspiração virtuosa ; e o culpado, o
delinquente, salvo, radiante, impune! lia de o es-
padachim, criminoso ou insolente, passear ovante ■,
em quanto o homem honesto e commedido, cujo era
a eausa da justiça, lá jaz no campo homicida, dei-
xando após si muita orpliandade de familia e ami-
gos! Q-ue juizo de lleus foi esle tjue se pronunciou ?
Q.ue reparação se deu ? Que satisfação lavou a pas-
sada oflensa ? (iual mancha pode o sangue do ho-
mem apagar ?
E haverá cegueira, obstinação tão ferina e rebelde,
que recuso abrir os olhos d'alma a estas verdades,
que são pai"a o velho repto uma condeninação, que
a sociedade nova lhe está de toda a parle fulminan-
do, o ])ara a no\a doutrina de reparações uni rebate
vehemente .'
Homens, c|ue fazeis as leiras e a politica i homens,
<[iie dominaes nos primeiros degraus da escala social,
e sois dos mais altos ; liomens, que na mão tendes a
imprensa e a tribuna; |)orque não lev.nnlaes pregão
contra o erro assassino, que tem zomb.ido do discur-
so de tanta genfi; de alluciuação faeil ? — Pré^aes c
])romoveis a reforma do individuo, da famjlia, ilo
grémio social em fun •, fomcntaes eoni a palavra,
com o eonsellio, com a acção, a associação que dá
forças, que illustra, que propag;!. Jdéas de engrande-
cimento e felicidade •, e este engrandecimento da
abatida realeza da razão humana, esta felicidade da
espécie, porque não armaes a propaganda da associa-
ção para ir a favor d'ella3, e contra lodos esses bar-
bados, deshumanos preconceitos, que um resto de
quixotismo transplantou e tem mantido na socieda-
de nova, que vive, ou se propõe viver pelo philoso-
phia humanitária, que é luz da verdade e do bem
estar? — O homem, que fatiando ou calando parece
crer no duello como cousa admissível, tolerável, ou
de algum préstimo no mundo, avilta a sua razão, e
a qualidade, o scUo de racionabilidade, qne lhe a
natureza imprimiu. O que podendo i<ão emprega a
palavra e a influencia, para extirpar e apagar todos
os vestígios d'esse crime velho e nefando, cuja he-
diondez se tem pretendido disfarçar com o apparato
de negociações e palavras, tão inúteis como insensa-
tas, com praxes, tão ridículas como vans, é homem
criminoso de lesa-philosophia, e lesa-human idade.
Sacerdotes da imprensa ! Propagae todos esia (pa-
ra nós talvez) nova doutrina sobre as reparações, em
pontos ditos de honra ou pundonor. Levemos con-
vicção a todos os peitos, e a moralidade soc-al ga-
nhará muiio com derrubar a razão indecente do aca-
so dos combates singulares, que quer armar a preemi-
nências e altos foros.
E não venham os susceptíveis, ou apaixonados, di-
zer que em se descopceiluar e proscrever o duello
ficam muitas reparações impossíveis oj frustradas.
Não '. Vós outros, que louvaes e muilo pugnaes pelo
duello apparatoso, (mas que não provastes ainda o
goslo do liatcr a serio) considerae, que a razão hu-
mana tem muitos recursos para legislar d"outro mo-
do, e melhor, sem ultraje da origem, sem vergonha
nem traição do fim appetecldo.
Por força, ou o duello não tem motivos plausíveis.
ou os que a elle costumavam conduzir, favorecem
mais uma do que outra das parles. .Acaso não pare-
ce isto estar aconselhando, que ambos os dis.<iden-
tes batam primeiro á porta d'um supremo tribunal,
const;tu'do (onicialmente, e em quanto assim rão fòr,
particularmente pelos interessados) arbitro de ques-
tões de honra e pundonor, para que estude o ponto,
e decida a que lado pende a r.azão e a justiça .' E
seja a decisão sentença sem appello nem a:;gravo,
que obrigue a parte decaída ás salisfaçiHís ou repa-
rações que a cousa pedir, e ninguém haja que ouse
rc\oltar-so contra o julgamento, e provocar a cor-
recção, não só da parte vencedoi-a, mas taanbem do
tribunal'. Aí d'elJe, que llie seria então o cjistigo
certo e ínfaman'e, sem p-climinar de nenhum dot
aliMirdos equilíbrios, que lhe dava a proscripta lei do
duello !
Fora assim que a razão e a conscícncia triumphára
sem baixeza nem cobardia !
Fora assim que a boa causa so protegera e fiíera
boa !
Fora assim que se castigara a culpa, c a ol»tiii.--
ção irracional I
Que melhor triumpho do «juc oljlor rcp3niçâop,v
cifica, ou satisfação pronipla, deixando a couKrien-
cia e amor jiroprio do cidpado altatidos pela convic-
ção e confissão, uma levada, outra arrancida pol,i<
armas do raciocínio .'
Seja a reparação, ou satisfaç."H>. particular ou pi.
lilica, como d'um ou d"outro modo í\'it a ofTens-n ; e
restabelecendo assim o império da raiãv) ultrajada,
eon>eguir-se-ha com mais pn>mptidào, inais cabal-
mente e sem perigii de reíulladcs, injustos, não me-
recidos, a reparação (|U0 o ducUo não dava nem jk)-
dia dar, porque innoconie e culpado amlx)s cqiiili-
i brava e confundia.
o PANORAMA.
415
Gluem delinquiu seja convencido, e dê reparação
ou 5atisfa;;ão de si.
Quem a uma ou outra cousa se negue, depois de
prévio convencimento, soffra as penas e castiço da
sua faita, não já só fulminadas pelo offendido, raas
ainda pelos que julja-am, e n'este caso úcaram sen-
do partes a bem da execução \ mas sem que espon-
taneamente se dÊem ao culpado garantias de comba-
te ou reacção.
Taes são as doutrinas de muita gente boa, a res-
peito do ponto. Fazemos votos por que se preguem e
propaguem, e, como devem em obsequio á razão hu-
mana, calem em todos os ânimos. A ellas nos pro-
metteraos sujeitar sempre. Por ellas unicamente pro-
testamos fazer obra, no caso imprevisto, e que Deus
não dê, do sermos a isso constrangidos.
A nenhum duellista pretérito, presente, ou futu-
ro queremos, ou é intenção nossa irrogar offensa.
Htjeitamos-lhe a má doutrina: propomos outra mais
equitativa e racional :, e cremos firmemente, que á
nossa se apparelha um grande triumpho. De ura ou
de outro modo o numero dos AcLilles ou niersites,
nem augmenta nem diminuo. Os que furam, e suo,
serão. Só a causa da justiça, assente cm bases mais
solidas, e menos arriscadas, servirá a esporear melhor
os ânimos nobres e imparciaes.
(iuanto aos outros pensamos assim.
(iuanto a nós, o que /òmos, so7nos, c scrcjnos, se
próxima paralisia, ou quejanda afiecção, nos não
desconcertar. . . isto é, somos apóstolos da philoso-
phia, e escravos da razão no que ella podo e deve
alcançar, e no que discussão e meditação bastam a
illuniinar.
José de TpuRES.
BIBLTOGRAPHIA.
Sobri a publicação de clássicos poriuguezes.
Koi na verdade um pensamento grandioso c civilisa-
dor a fundação de uma sociedade com os meios ne-
cessários para publicar pela imprensa as obras dos
nossos clássicos, tanto jirosadoros como poetas, cujas
edições eslaxam lia muito complolan-ciite consumi-
das, sendo ncccbsarios annos, trabaliio e diligencia
para alcançar po,- preço exhorbitanto um exemplar
de alguns d'clies.
Esta soci(ídade re;i1isou-se, e por sua diligencia já
possuímos novas edições do .lícrnardini llilioiro, Gil
Vicente, ( 'amõcs, o em breve Içaremos tan\be.n o
{'alnicirim ile Iriirlalcrra do elefante iMoracs. Estas
edições são con>pl<Mas, som as mui ilações, que llies
haviam sido feitas pela censura fradesca o a Inqui-
sição.
A sociedade, seguindo o louvável exemplo (!<! ou-
tras de igual género eslabelocidas em França, na IJel-
gica e na Allcmanha, (.uidou muilo não só na exac-
tidão, ebclleza typograiiliica, masque as suas edições
tivessem unia condirão mui atleiídivel n^estcs casos,
isto ó, serem baratas, único meio de as fazer pere-
trar nas classes pobres, o menos iiislruidas, jiarapcla
lacil acquisição dos bons livros poderem grangear
certo grau de .inslrucção, e aprenderem a fatiar a
lingua pátria com a pureza e elegância <|Ue tão ra-
rameiíle se encontra entre nós no povo, <M'iitre mui-
tos individuos (|ii(' não são jiovo !
Nada mais virgoiihoso, <• ipii' mais ciilailanieiiln
cnuse rpjo ouvir barbarisar e <'stropiar a lingua ma-
terna :, e este di Ic ilo m: observa a cada passo entre
n(«, (í muito priíiilpalmente no 8(>xo feminino. Não
acontece assim nos paizes em que os bons livros an-
dam nas mãos de todos, e se alcançam com pouco
custo e pouco dispêndio.
Temos pois para nós que os homens, que se asso-
ciaram para ifo nobre empresa fizeram um grande ser-
viço á litteratura pátria, e á boa educação dos seus
conterrâneos. Oxalá que esta benemérita sociedade
persevere com constância no seu propósito, e possa
vencer os obstáculos, grandes sem duvida, que se
atravessam em seu caminho.
Uma empresa similbante não pode, é verdade, ser
mui producliva em seus principies, especialmente em
1'ortugal, onde o gosto da leitura existe em tão gran-
de atrazo; é necessário por ora empatar algum ca-
bedal, e isso desgosta de ordinário os emprehendedo-
res de todo o género de industria i mas lá vem o fu-
turo, que indemnisa bem de todas as perdas, e en-
tão esse terreno, agora árido e estéril, começa afruc-
tiCçar com abundância.
E sobretudo da boa escolha de exemplares para a
reproducção lypograpbica que depende no principio
o credito da empresa. Tomaremos por isso a liberda-
de de indicar áquella associação alguns livros ; e co-
mo me consta queseoccupa com a publicação do Pal-
meirim de Inglaterra de Moraes, lhe lembrámos que
deveria ser acompanhado do segundo D. Duardos, e
D. Clarisol de Bretanha, que de alguma sorte fa-
zem parle d'este livro, porque são a continuação do
mesmo assumpto, e nada inferiores ao Palmeirim na
pureza e elegância da lingua, pois até a Academia
Real das Sciencias os allega muitas vezes noseuDic-
cionario como textos da lingua.
Lembraremos mais a Historia da Abvssinia do pa-
dre Alvares, obra clássica, e tão rara ijue é mais fá-
cil encontral-a em manuscripto que impressa, e é
obra que os estrangeiros tem mencionado com lou-
vor.
Igual attenção merece o igualmente raro Tratado
da Pintura por Filippe Nunes, algumas das nossas
chronicas, c as Investigações sobre os Celtas do de-
sembargador António Ribeiro dos Santos.
Quanto a poetas lembramos em primeiro logar o
Primeiro Cerco de Dio por Francisco de Andrade,
obra mui recommendavel jiela bellcza da linguagem,
e da versificação, e pelos excellentes trechos do poesia,
que n'elle se encontram, os Cancioneiros de Resende
e o do ("ollegio dos Nobres ; posto que o primeiro
fosse publicado em Allcmanha, entre uma collecção
dos livros raros de todas as nações, e o segundo por
lurd Stuart : como aquelle se não vende em separa-
do, c o segundo só foi impresso para brindar ami-
gos, e presentear alguma livraria, é evidente <jue
existem como d'antes lura da circulação.
Recommendamos igiialment(; as l'roezas de Duar-
te Pacheco e o S. (ionçalo <r.\marante, poemas ma-
nuscriplos de Uligml Cer<|ueira Doie, os Trabalhos
de Hercules de ÍManoel de Sousa Moreira, o Cancio-
neiro deJorge deMonteinaior, hoje rarissiuio, a -Ma-
laca conquistada de Sá de ílenezes, e as obras de Sá
e Miranda, juntandu-lhe as suas comedias, mas na
sua integra, e não mutiladas horrivelmente coino o
foram pila Inquisição.
E ponpie não chamaremos nós a afleiíçãniPaqucl-
la benemérita soiiedadi' sobro a eonvcnieiuia de pu-
blicar-se a traducção da Eneida ile ^ irgilio e das
IMelamorphoses ile Ovídio pelo pailre Francisini Jom-
l'"reire, da primeira das «piaes consta existir uma co-
pia na Academia Keal ilas Sciencias, e o aulogra-
pho da segunda na Bibliotlicca <le F.voni, havendo
além d'isMi algumas cilpi.is pelas nulos tios (•urio>osf
E tal a nossa pobreza eiu Iraducçõri pnctíca'- dos poe-
mas gri'gos e romanos que não seria po.viivcl deixar
416
O PA]\ORA3IA.
<le considerar como beneméritos das leiras pátrias os
(lue dessem- á luz pela imprensa duas obras tão aca-
badas.
Não ó nossa intenção dar conselhos á illustre asso-
ciação editora dos clássicos portuguezes, nem ensinar-
llie o caniinlio que deve trilhar : sabemos perfeita-
mente (juo ella não necessita dos nossos auxílios , o
cjue fiizemos é lembrar cousas que nos parecem pro-
veitosas, e fazemos isso pelo muito zelo que nos ani-
ma pela gloria das letras nacionaes, e para exprimir-
mos o pesar que nos causa vêr perdidas, ou quasi in-
teiramente perdidas, tantas obras de merecimento,
que infallivelmente desapparecerão se o patriotismo
de alguém llic não acudir com remédio.
J. M. DA Costa e Silva.
(JURSO DE língua ITALIANA, PELO CAVALHEIRO
A. Galleano Ravau.\.
Aknlsciando um curso da lingua mais poética da
Europa, dado por um dos mais extremados cultores
da poesia e litteratura canonisada pelo Dante e pelo
Tasso, julgamos levar uma boa nova aos leitores does-
te semanário. O auctor do Albiim Halo-Poriugiie:,
é ja devidamente conhecido n'esta cidade para que
ieja mister recommendal-o. E desnecessário tamljem
seria repetir, que não 6 licito, que deixem perder,
os que presam este bello idioma, occasião tão favo-
rável, para em breve espaço de tempo, e sem as te-
merosas inclemências d'abhorrimentos pedagógicos,
aprenderem a manejar como sua a linguagem da
Itália.
Eis as condições com que este sr. vac abrir o seu
curso :
O professor A. Galleano Ravara vae abrir um
curso de lingua italiana em sua casa no Largo de
S. Carlos K." 5, 3." andar. As lições terão logar
todas as quintas feiras ás 7 horas precisas da tarde •,
e n'ellas empregará um metiiodo pratico de ensino
que habilitará «jualquer pessoa a aprender a fallar
ajuellu lingua no breve espaço de três mczes.
O AVARXNTO.
No próximo moz de janeiro de 18o3 co-
meçará a publicur-se o 10.° volume do Pa-
noramu. Aniiunciando-o, o Editor aproveita a
occasião para agradecer a protecção que o pu-
blico illustrado lhe tem dispensado, e a svm-
pathia com que foi recebido geralmente o pen-
samento de continuar um semanário tão illus-
tre nos fastos da litteratura pátria. J)ifficulda-
des inevitáveis na organisação di- uma empre-
sa desta ordem, que, camo todos sabem, e
inteiramente distincla das anteriores, obstaram
a que a nova serie do Panorama correspon-
desse inteiramente aos seus desejos. O pa-
pel, que nos fornecem as nossas fabricas, c
que ainda não reúne as condições necessárias
para uma edição nítida, faz principalmente
com que as excellentes gravuras que temos
dado, todas devidas ao delicado buril do sr.
Coelho, nào sobresaiam tanto quanto era n^.a
desejar. Esperámos obter melhor papel, e con-
tinuaremos solícitos a enípregar todos os meio-
para que o Panorama venha a ser lambem
um specimen dos progressos da arte tvpogra-
phica entre nós. Em quanto á redacção o Edi-
tor não duvida apresentar os números publi-
cados como imia prova insuspeita de que não
sabe faltar, nem faltará jamais ás condições
exaradas no seu programma.
Assigna-sc para este semanário : em Lííí-
boa, no armazém de livros do Editor, run
do Ouro, n."' 227 e 228, e nas lojas dos
sr.'"' Lavado, rua Augusta, n." S, Bravo, ru i
do Ouro, n.° 212, Zeferino, rua dos Capel-
ITstas, etc.
São correspondentes do Pitnurama no Por-
to, o sr. A. R. da Cruz Coutinho ; em CÀ>im-
bra, o sr. A. il. Dardaihon ; em Braga, o
sr. Freitas Guimarães : em Saniarom, o sr.
José Firmino d.Vzevedo 1'ereira ; em Setúbal,
o sr. Manoel José Ferreira : na Ilha de S.V)
Miguel, o sr. M. C. d.Mbergaria e Valle : e
na Ilha da fiadeira, o sr. .\. J. de Araújo.
Preços : — Por amio ou
Por semeslie ou 2() ii."
avulso 30 rs.
.S2 n." 1 j300 r^.
700 IS. .Numei
Os sr." que disijnrem subfrre^er para o
nnno de 1833 queiram declaral-o quanto an-
tes, em Lisboa, aos destribuidoro*. ou nos lo-
gares ncinia citados, e nas provincia» ao» cor-
re>i|íi)ndentes, ou ji»r carta fraiua de porlf.
dirigida no Editor, e atom]ianhaJa «Ir »i"t'
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