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Full text of "O Panorama; semanario de litteratura e instrucção. v. 1-5, maio 6, 1937-dez. 1841; v. [6-8] (2. ser., v. 1-3), jan. 1842-dez. 1844; v. 9-13 (3. ser. v. 1-5), set. 5, 1846-dez. 1856; v. 14-15 (4. ser., v. 1-2), jan 1857-dez. 1858; v. 16-18 (5. ser., v. 1-3), [jan.?] 1866- [dez.?] 1868"

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^^Ê^M2Í^^ 


m 


SEMANÁRIO 


VOL.IME  IX 


PltlilFJRO  nA  TERCJCIRit  f^ERIE. 


(PUBLICADO  DE  f>  DE  SETEMBRO  DE  1846  A  2íi  DE  DEZEMBRO  DE  18S2.) 


LISBOA 

TrpottftAPUiA  UE  A.  J.   1'.   Eoi'Es.  —  Ria  Amiea  N'.*  67. 


I«d9« 


IMDICC:  AliPUABETICO 


DOS 
ARTIGOS  CONTIDOS 

NO 

y&LVME  NOXO  —  PRIMEIRO  DA  TERCEIRA  SERIE. 


(0«  a«leri«vor(  (lenolam  aw  urraviirns. 


Áhíí75í22 
'IO 


Abelhas  (as)  e  as  colmeias  .  .  399 
Acto  do  lealdade  portugueza.  232 
Aduarcs  dos  Mouros  .   .  .  •   .   216 

Agiotaçoni  d(!  Lavv 190 

Agua  doce  110  fundo  do  mar,   232 

—  para  dar  nas  obras  follioa- 
das,  antes  de  as  passar  ape- 
dra pomes S 

Álbum  Italo-Portuguez.  .  .   .   403 

Alguns  alienados 29tí 

Algumas  providencias  repres- 
sivas nosEstados-Unidos.  .  240 

Anão  (o)  e  o  Bobo  * 181 

Annuncios  dos  partos  emHaar- 

lem 208 

Antigos  officiaes  militares  .  .     40 
Antiguidades  egypcias  «...   341 
Aperfeiçoamento    nos    mate- 
riaes  que  se  empregam  pa- 
ra conservar  os  navios  .   .   .   308 
Apontamentos  de  viagem  — 

uma  historia  no  Bussaco.  .  363 
Architecto  da  Batalha  *  .  .  .  189 
Armadura  no  XIV  século  *  .   268 

Arte  antiga 81,     90 

Assassínio  d'Henrique  III  de 
França   pelo  frade  Jac<]ucs 

Clemente  * 204 

Augnienlo  gradual  de  calor 
nas  entranhas  da  terra.  .  .    103 

Avarento  (o)  * Im 

Avinhão  * j93 

Barcas  japonczas  * 60 

Barcelona  (thcatro  do  Lyceu 

em)  * 333 

Barcos  de  salvação  * 369 

Hencvenulo  Ceílini  * 132 

Bonzcduras  na  Prússia  ....  103 
Bernadottc,  rei  de  Suécia  199,  211 

Bey  (o)  o  o  louco 376 

Bibliugraphia  — sobre  alçiimas 
obras  do  padre  Francisco  Jo- 
sé Freire 38  i. 

—  sobre  a  publicação  de  clás- 
sicos porlugiiezcs 413 

—  Traducção  de  Lucrécio  pe- 
lo Dr.  liima  Leilão.   .  .  .   360 

Bilbau  (hospital  civil)  »  .  .  .   377 
Itiographia   do  bispo  resiijna- 
(ariodeCabo  \  erde  (.Spon- 

tamentos  para  a) 373 

Bocage  (M.  M.  Barbos;!  dn)  «  100 
Bom  (o)  amigo  é  preferível  ás 

riquezas  • 383 

Bo^iptioro  (o)  * 121 


Bosque    petrificado    de    l'or- 

tland 213 

Buchas   de  espingardas   inin- 

flammaveis 48 

Cacilhas,  vista  do  Tejo  ».  .  .  137 
Campina  (a)  de  Roma.  .  62,  68 
Cão  (o)  do  norte  da  Sibéria.  111 
Cardeal  de  Richelieu  (o)  122,  »129 
Caricatura  hollandeza  *  .  .  .  277 
Carlos  VI  eos  seus  cortezãos.  113 
Cartas  inéditas  de  Alexandre 

de  Gusmão 271,  278 

—  Inéditas    de   D.   João    de 

Castro 71,     77 

Carregação  singular  »    .  .  .  .   236 
Casa  nobre  de  Gand  em  1 300  *     81 
Castello  de  Heidelberg  ».  .  .    124 
Castello  de  Santa  Olaia,  len- 
da   do  Século  XII    (frag- 
mento)    3,  10,     18 

Castello  (o)  de  Bouchout  217,   227 
Cavallos  (os)  de  Venoza  .  .   .   208 
Ceremonias  da  cOrte  bizanti- 
na   191 

Chailes  (os)de  Cachemira21 4,  226 
Chalons  sobre  o  Saònc  «...   249 
Cholera  (a)  grupo  em  mármo- 
re por  Mr.  Etex  • 321 

Colochos  (os) 286,  293 

Colomba.  138, 130, 163,  186, 

19  í,  203,  219,  226. 
Commoda    (uma)    do  século 

XVI  « 281 

Combustão  espontânea  do  car- 
vão de  pedra  —  meio  de  a 

atalhar 80 

Companhia  do  commercio  das 

pelles lo> 

Congelações  nas  grutas.  ...   216 

Coopor  (Fenninore)  » 307 

Conservação  do  leite 136 

Consolação  para  quem  morre 

de  morte  violenta 297 

Convento   de   Nossa  Senhora 

de  Jesus  • 17 

Convite  de  Richelieu  (um).  .   183 

Corridas  .sobre  o  gelo 176 

Costumes  da  Lusacia  ».  .  .  .   221 

Critica  (a) 236 

Cultura  e  semeuteira  das  ba- 
tatas  233 

Curso  da  língua  italiana,  pelo 
cavallieiro  .\.  Galleano  Ua- 

vara 416 

Cyprestc  gigante  (o) 160 


Daniel  O'  Rourke  ou  o  sonho 

de  um  beberrão 60 

David  vencedor  • 209 

Demónio  (o)  do  Jogo  ».  .  .  .  297 
Derkeaub,  seita  argelina.  .  .  82 
Descida  ao  volcão  de  Kirauea.   237 

Descoberta 236 

Descobrimento'  (o)  da  Ame- 
rica • 257 

Diana  caçadora  * 164 

Dobrar  (o)  dos  sinos 283 

Duas  palavras  sobre  Hospitaes.   310 

313,  323,  333,  3lO. 
Duello  —  Vid.    (Proscripção 

do). 
Eleições  em  Inglaterra  (as).   .   301 
Elephante  (o)  de  Sião  «...   149 
Emigrado  (o)  rico  e  o  emigra- 
do pobre 235 

Episodio   da  vida  de  Aleixo 

Orlof 33 

Ercillae  Camões,  julgados  por 
A.  dellumboldtcomo  pin- 
tores da  natureza 269 

Eremitério  do  Vesúvio  (o)  •.   133 
Eschola  de  gravura  para  me- 
ninas em  Londres 192 

Essência  de  rosas 288 

Escolha  das  encadernações.  — 

conservação  dos  livros  ...   30  i 
Estatua  de  Mithra  « 68 

—  de  Mozart  • 241 

Expedições   de  três  potencias 

ao  polo  austral  ....  158,   165 
Extractos    d'auclores  portu- 

guezes  : 

P.  António  Vieira.  .  .  lO, 
200,  208,  328.  336,3  U, 
332,  360. 

Bocage 4í>.  280 

Euzebio  de  Mattos 232 

A.  Herculano 320,  336 

Fabrico  de  espelhos 56 

Fausto  da  mesa  dos  rom.^nos.   263 
Feitor  (11)  de  Cantão,  novella 

73,  86.  91,  98,  106,  119. 

123,   131. 
Fest.i  (a)  de  IVterhoff  ....    112 

—  do  Corpo  de  Deus  em  ^"a- 
loucia  • 53 

Gcnio  (o)  do  bom  • 253 

—  dos  liulaudetcs 115 

Gossior  inorlo  por  Tcll  «...    183 
Gomes  Freire  dWndr.nde».  .       6 

13.  21.  30. 


DO  VOLUME  PRIMEIRO  DA  SERIE  TERCEIRA. 


Gratificação  (a) 288 

Grude  de  arroz,   ou  cimento 

do  Japão 360 

Guadalajara  » 337 

Guarda  Escocez    dos  teia  de 

França  • 76 

Guernica  « 348 

Habitantes  das  landes  de  lior- 

deus 22,  32,     36 

Fíadjeb  (o)  de  Kordova  .  26, 

33,  42,  SI,  66. 
Havana  —  passeio  publico  .   .   393 
Historia  dos  Telegraphos  ».  .     61 

74,  83. 
Honras  (as)  devem  ser  confe- 
ridas a  quem  as  merecer.  .   408 
Hospitaes  —  Vid.  Duas  pala- 
vras sobre  — 
igreja  da  Bôa   Nova  —  Vid. 

Villa  de  Terena. 
DhaCelebes  —  Macassar.  84,     96 

101. 
I  iidios  (os)  de  Surinam .  »«  8o ,     93 
fnflainmação   da  pólvora  pelo 

choque ,    128 

Iniluencia  nociva  da  nogueira.      80 
Instituição  da  Ordem  da  Ro- 
sa »*   36 

Instrucção  primaria  em  Ingla- 
terra   383,  394 

—  popular 407 

—  publica.  —  Illustração  do 
exercito 262,  386 

liistrucções  dadas  ao  coadjutor 
de  liergamo  núncio  cm  l'or- 
lugal  no  tempo  de  D.  João 
IH..  306,  314,  322,  33'f, 
342,  330,  ,334. 
Instrumentos  de  musica  — 
Trombetas  ».  .  .  317  **««  397 

Introducção 1 

Inundação  na  Itália  «  .  .  .  .  303 

Isabel  11  * 113 

Jantar  (o)  d'ossos 120 

J<)l;os  e  festas  anti;;as  (frag- 
mento do  unia  liibloriu  ver- 
dadeira)       37 

Jornada    nas    pruvincias     da 

Suécia 43 

Juízo  (o)  final 232 

Jussieii  (ISernardo)  • 23.1 

Justiça  (a) 211 

licitura  (a) 319 

Lenda»  biíjloricas  — O  ]3emu- 

niudo  liago.  319,  327,  331,  373 
lii)Mgevi(l,ul<'  dos  saliios.  .  .  .   224 
.Macliiiia  infernal  dirigida  con- 
tra Saiiil-Muló 247 

MaeUrom  (o) 206,  210 

Mahomel  ou  Wafoni.i.  .  147, 

134,   166. 
Maneira  deliiar  ás  vasilhas  o 

cheiro  do  bol.ir 368 

Maria  de  Medíeis  eseus  vali- 
dos  L'89 

IMasaiiiclld.  —  Vid     'riioniaz 

Aniiiello. 
Mediciw  [,)»)   Kíilimikos.  .   .    .    303 
Meio  dl'  afugenlar  as  liirniigas.      64 
—  lie   remediar   as  eolíeas   dir 
ehuiiilHi    dciH     l<'eelòes     em 
learcí  a  Jac([uai'(l 61 


Meiosque  os  homens  têem  jul- 
gado próprios  para  se  livra- 
rem dos  raios 193,  203 

Melhor  (a)  trapaça 208 

Mercês  deíhonrosas 208 

Methodo  para  dissolver  a  gom- 

ma-laca:,  sua  applicação  aos 

tecidos  impermeáveis,  .  .  . 

Miguel  Contreiras  (Fr.)»  337, 

—  Paleologo 

Ministério  de  instrucção  pu- 
blica no  Cairo  * 

!Modo  de  desenferrujar  e  con- 
servar as  ferramentas  dos 
marceneiros  etc 

—  de  destruir  as  traças.  .   .   . 

Mónaco  » 

Monumento  na  Sé  de  Lis- 
boa (um)  » 

Morlacos  (um  anno  entre  os). 

197. 
Muitos  soes  e  muitas  luas,  .  . 

Naiades  (as) 

Nápoles  e  o  Vezuvio  *,    158, 

174,  181. 
Nobreza  de  Portugal  em  1736. 
Ódio  velho  nãocança.  .  234, 

2Í.2,  249,  258,  266,  274, 

284,  291,  298,  389,  399, 

403,  411. 
l'aço  imperial  de  Pekin  .    .   . 

—  de  Villa  Viçosa  » 

1'aizagem  da  Nova  Caledó- 
nia * 

Pandanus  (o)  na  Ilha  do  Prín- 
cipe * 

Panorama  (o) 

Partida  do  infante  D.  Ma- 
noel   

Passeios  de  Lisboa  e  seu  ter- 
mo em  1608  

Pastor  peruviano  » 

Pelourinho  de  Aljubarrota  *. 
Pelolíqueiro  (o)  íiieonibustivcl 
Penas  dos  empregados  venaes 
em  Portugal  ena  China.  . 
Perij.  —  Praça  maior  de  Li- 
ma * 361 

IMiarol  (o)  de  Bréhat  »,  .   .   .    273 
Pia  dollaplisino  de  S.  Luiz»  213 

1'íeada  da  Vespa  (da) 40 

Pímpinella  como   pasto  (da),   263 
Pio  IX  (o  Pontifico)  «.  .  49,     38 
Poetas  da   Arcádia  —  Pedro 
António  Corroa  Garção  .   .   330 
338,  317,  353. 

Punia  (,i)  do  Caju  * 89 

Ponl(!  de  Ceret  * 223 

l'»reelana  de  SiHres  * 380 

l'orlo  (a  cidade  do)  w 345 

Praia  do  Uota-Fugo  * 9 

Precauções  para  niécliar  os  To- 
neis        88 

Presbitério  dcBolleviile  ».  .   292 
Presença   de  espirito   de    um 

árabe 312 

Preservativos  contra  os  la- 
drões      88 

Processo  facílimo  paru  gravar 
em  aço  e<uu  uma  peniia.    .   352 

l'iiiMitp(;rio  do  diullo 413 

Prova    <iú   bordão   em    IMan- 


248 
379 
294 

289 


240 
192 
260 

29 
189 

160 
280 


406 


176 
57 

105 

409 
311 

370 

142 

365 
169 
103 

104 


deuvre 108 

Provas  judiciarias  na  Geór- 
gia.  112 

Províncias  (as)  vasoongadas  »*  324 

333,  343. 
Pyroxylina,   pólvora  azotica, 

ou  algodão-polvora,  .  179, 

272,  280. 
Gluadro  (um)  das  misérias  da 

vida  humana 110 

Gluem  compra  carece  de  cem 

olhos  e  quem  vende  basta- 

Ihe  um 128 

Raça  (uma)  de  homens  ».  .  .  44 
Rainha  (a)  Nomahanna  ...  16 
Reis  de  Inglaterra  que  foram 

auctores 190 

Relógio  astronómico  deStras- 

burgo 70 

Remédio  para  o  morrão   das 

searas 328 

—  para  destruir  a  traça.  .  .  .  400 
Residência     imperial    em    S. 

Christovão  » 33 

Roberto  Southey  * 12 

Rocha  (a)  do  Dragão  —  lenda 

rhenana 281 

Romances. 

Vid.  Apontamentos  de  Via- 
gem. 
Castello    de   S.    Olaia 

(fragmento) . 
Coíomba. 
Feitor  de  Cantão. 
Hadjeb  de  Kordova, 
Lendas  históricas. 
Maelstrom. 
Ódio  velho  nãocança. 
Rocha  do  Dragão. 

Roussillon  « 143 

Sacavém  « 329 

Salva-vidas  »»»« 373 

Santa  Isabel  —  rainha  de  Por- 
tugal * 404,   410 

Santo  Est^  líta  (o)  e  o  medico 
Sanclorío  * 

—  Ignacio  de  Loyola  *.  .  .  . 
S.    Boaventura  —  quadro   de 

Muríllo  « 

—  Vicente  de  Fora  « 

—  "        de  Paulo  ».    141, 
Seitas  religiosas   nos  Estados- 

Unidos 

Sequeira  (Domingos  Ant.")  » 
Sementeiras  (das)  ralas  ou  bas- 
tas  


196 
389 


Silencio  (poesia) 

Sobre  o  tialialho 

Soldado  de  cavallo  prussiano  * 
Sorte  dos  meninos  nas  minas 

de  Inglaterra 39, 

Superstições  dos  Árabes  antes 

de  Mafoma 78, 

Taílí  em  1842 

Templários  (os)  ».  109,  117, 
^  127,  134,  m,  131,  139. 
Theoiloroíl' Almeida  (1'adre)» 
Tllerniopylas  (íis)  eml8il.  . 
Tiiesoin-os  dos  antigos  reis  de 

Portugal ' 

Tholnaz  Aiiiello  (Musauíello) 

367,  381,  395. 


2 
143 

239 
153 

295 
319 
246 
301 

4S 

94 
277 


28 
120 

136 
339 


índice  alphabetico 


Tomada  de  Alcácer.  .  .  170,  178 
Trabalhos  geológicos  (dos)  .  .  294 
Três  enterros  (os)  de  um  con- 
quistador    2G1 

Tribu    (a)    dos   Guarayos   na 

America  meridional .  ,  54,  63 

Trovão  (o)  —  poesia 381 

Tumulo  de  Bartholomeu  Jo- 

hannes  * 41 

—  do  Richelieu  * 23 

Turkestan  (o)  cbina  »  .  .  .  .  248 

Tymbaleiro  (o)  » 284 


Usos  mexicanos  • 97  j 

Vae  muito  do  vivo  ao  pintado.  271  I 
Vasco  (D.)  da  Gama  ♦.  .  .  .  201  j 
Velocidade  da  luz 200  i 

—  (da)  do  som  * 228  i 

Vendedor  de  melancias  (o)  *     21 
Viagem  ú  lua fí6 

—  ás  minas  do  Peril.  .   184,  187 

—  á  Palestina  por  Mr.  Saul- 

cy 318,  327 

Viagens  —  Passeio   á  Norwe- 
ga.  . 391,   397 


Vida  (a)  humana  por  Eich- 
thal  * 313 

Vingança  (a)  do  homem  bran- 
co    223,  229 

^  isita  (a)  de  mau  agouro.  .  .  264 

Vista  de  Capri,  do  lado  de 
Nápoles  » 266 

—  interior  da  prisão  de  Tole-: 
do  • 401 

Villa  de  Terena  —  Igreja  da 
Boa  Nova  • 177 

Viuvo  (o)  e  o  Medico  ....     24 


FIM. 


o  PANORAMA 


SEMANÁRIO  DE  LlTTEMTlll  E  I.\STRLCCÃO. 


-=s.€?í3í®e=- 


II%XKOJDUCÇlO. 


UANDo  oPaiiorama,  n«  liin  de  seteaitnos,  ; 

L^jr^v-   3  interrompeu  a  íiia  [)Mlilica(,ão,  a  falta  da! 
kK  ^^  uiiica  fullia  verdadeirarneiite  popular,  que  i 

S^SÁír  possuianios,  foi  lastimada  pelos  amigos  das  : 
letras,  e  scnliila  por  tuilus  os  seus  nume-  j 
rusos  leitores.  O  oHicio,  que  acceitára,  e  continuou  j 
com  traballio  e  constância,  tinha  realisadu  o  objecto  j 
principal,  que  se  propuzera.  Na  hora  mesmo,  em  que  I 
te  retirava  da  imprensa,  o  gosto  da  leitura  estava  1 
creado,  e  a  saudade,  com  que  geralmente  o  viram  1 
desapparecer,   era  a  prova  mais  lisonjeira  d'isso.  1 

t)  resultado  obtido  em  sete  annos  de  duracjão  cor-  i 
tou-llie  verde  a  palma,  que  pedira  ao  começar  aohra. 
Km  quanto  a  admiração  repetia  os  nomes  mais  famo- 
sos da  epocha,  sepultados  na  obscuridade  de  áridas  e 
assíduas  fadigas,  iriineiros  da  civilisação  nacional,  os 
escriptores  votailos  a  este  lavor  humilde,  nas  entra- 
nhas da  terra,  que  revolviam,  encontraram  de  certo 
o  ouro,  e  09  diamantes,  do  que  enfeita  o  seu  diade- 
ma a  moderna  poesia  das  nações;  mas  tiveram  o  va- 
lor de  resistir  á  tentação,  e  virando-lhe  o  rosto  pas- 
saram adiunte.  A  sua  empreza  não  era  pôr  a  cupola, 
mas  crescer  com  o  alicerce  d»  edilicio.  Ao  tocar  o  ul- 
timo instante  da  sua  carreira,  estavam  cimentadas 
todas  as  pedras  da  consfrncção.  A  outros  mais  felizes 
o  cinzel  <]iie  tira  do  mármore  as  graças  da  arte  gre- 
ga, ou  levanta  a  estalu.i  de  Moiros  no  templo  da 
inspiração  cliristà  ! 

t>  jornal  [)opular,  creailo  pelo  modelo  dos  mais 
acreditados  nos  reinos  aonde  llíjreci:  a  cultura  inlel- 
lectual,  loi  de  certo  o  l'anoi'ama.  Se  o  não  dourou  a 
gloria  das  follias  sclentilicas,  que  estendem  o  sceptro 
•obre  a  lilteralura  activa;  se  não  caminhou,  como 
ellas,  na  vanguarda  da  civilisação  militante,  é  por- 
que em  l'ortugal,  aonde  tudo  principiava,  o  ruidu 
das  grandes  luctas,  e  o  eblron<lo  da»  armas,  apenas 
»e  ouviam  como  echo  de  batalha  hinginijiia  em  casal 
p(f(|Ui'no  e  solitário.  I'',ra  preciso  ensina-lo  primeiro 
a  andar  por  aijuelle  terreno,  para  depois  o  Introdu- 
zir, sem  sobresalto,  no  ajuntamenio  dos  |iovos  euro- 
peu» confundidos  na  hora  <la  fadiga.  O  erro  dos  que 
precederam  «  l'anuraina  consistiu  cm  julgar,  que  a 
medicina  das  nações  fortes  não  repugnava  á  débil 
compleição  de  uma  terra,  (lue  mal  se  podia  dizer  en- 
trada na  virilulade. 

A  imprensa  instructiva,  <■  accessivcl  a  lod.is  as  lor- 
tiinas  e  a  lodos  os  enirndimenlos,  é  um  iiistrumenlo 
próprio  para  eslimiilar  os  progressos  em  um  paiz.  (.) 
r.iiiorama,  distinguindo  a  iliflirençii  (|ue  ha  enire 
as  piiblic.icõei  purami.Mile  lillerarias,  e  o  jornal  dNís- 
(a  espécie,  eonsagroii-»e  ao  trabalho,  não  estéril,  de 
esi:ri'ver  para  d  grande  numero.  Não  foi  o  seu  fim 
•  •iilão,  nem  é  hoje  ainda,  fazi^r  a  liisloria  iloesttiilo; 
cumpre-lhe  só  apresentar  o  seu  resiillado,  resumido 
iin  bteve  ipiadro  e  popnlanneiile.  As  altas  questões 
•uciaes,  as  |inli'inicas  de  ipiahpier  natureza,  e  o  exa- 
me scieiíliliro  das  matérias  irinleresve  politiiui  ou 
mali'ri.il,  (|ne  oeruiiain  a',  rnliimiiiis  das  grandes  He 


vistas,  ou  dos  periódicos  scientilicos,  não  entram  na 
sua  csphera.  O  logar  mais  humilde,  e  a  tarefa  menos 
elevada,  que  acceitou,  reduzem-no  unicamente  a  pre- 
parar a  estrada  a  estudos  mais  profundos. 

Sete  annos  foi  este  o  pensamento  do  Panorama. 
Fez  intimo  e  familiar  o  tracto  da  sciencia,  facilitan- 
do a  todos  o  prazer  mais  barato  e  innocente  de  quan- 
tos ha.  i)  agricultor,  o  homem  publico,  o  artista  e 
o  commerciante,  nas  curtas  horas  de  repouso  de  uma 
vida  laboriosa,  sempre  o  receberam  como  bemvindo. 
No  continente  e  nas  províncias  do  Archipelago  da 
Madeira  e  dos  Açores  a  acceitação,  que  o  acolheu 
provou-lhe,  que  tinha  seguido,  sem  se  afifastar,  a  ve- 
reda, que  marcara. 

A  Inglaterra,  a  França,  aAllenianha,  e  a  Hespa- 
nba  tão  nossa  visinha,  e  desgraçadamente  tão  pouco 
conhecida  aqui,  exercem  com  proveito  o  sacerdócio 
de  instruir  com  leituras  aprazíveis  evariadas  milhões 
d'homens,  que  furtam  aos  breves  momentos  de  des- 
canço  o  tempo  necessário  para  refrigerar  o  espirito. 
N'aquelles  paizes  já  se  queixam  de  que  as  folhas  e 
impressos,  crescendo  como  as  aguas  d\iina  alluviãu, 
ameaçam  invadir  até  os  domínios  da  rigorosa  sciencia. 
Entre  nós,  |>or  infelicidade,  a  escacez  sécca  muita  for- 
ça latente,  que  se  perde  á  falta  de  cultura.  O  maior 
serviço  que  se  pode  prestar  ao  paiz  é  alimentar  o  fo- 
go sagrado  da  instrueção  ;  educar  um  povo  dos  mais 
aptos  para  aprender;  fallar-lhe  á  alma  e  ao  coração, 
leval-o  pelos  inslinctos  nobres.  (|ue  adormecem,  mas 
não  morrcHi  ,  dispertal-o  da  somiiolemia  pela  memo- 
ria das  tradições  passadas,  e  pela  promessa  do  melho- 
ramento, que  o  porvir  prometie  á  constância  e  ao 
trabalho,  (-luem  tomar  sobre  si  esta  obra  acceitou 
uma  grande  missão,  e  pode  contar  <|ue  se  não  ha  de 
vèr  só  no  meio  da  estrada. 

<J  Panorama,  quando  se  apresentou  na  imprensa, 
não  leveoulii)  fim,  e  agora  irá  prender  de  novo  aon- 
de <pi('brou  o  laço  que  o  unia  a  esl.i  modesta  mas 
fecunda  tarefa.  Accoinmodado  ao  gosto  de  todos,  o 
successu,  que  o  multiplicim  por  um  numero  d'exeni- 
plares,  de  que  não  ha  notícia  em  Portugal,  abona  a 
sua  im()arcialiilade.  A  religião  e  a  pliilosophia,  os 
sábios  e  os  indoutos  viram  n'elle  o  amigo  da  civilisa- 
ção, e  saiidarani-nn  como  auxiliar  do  progresso  in- 
tcllectual.  Osespiritos  sérios  o  profundos,  debaixoda 
ligeira  forma  ipie  vestia,  apreciaram  a  iniençào  mo- 
ral ,  os  preguiçosos  c  li;ves,  a  princi[)io,  receberam-no 
coino  recreio,  depois  acceitaram-no  como  lição  amena. 

«Tornai  de  todas  as  classes  e  de  tt)dos  os  partidos 
nenhuma  porta  se  lhe  fechou.  Iloje  a  sua  divisa  e  n 
mesma.  O  (jue  nos  ri'inos  estrangeiros  se  alcança  pe- 
lo amor  da  associação  ja  educada,  polo  progresso  nas- 
cido e  creiíilo  em  muitas  giTações,  pelo  impulso  dn 
aucloriílade,  e  pur  hábitos  lia  tempo  arraigados, 
creoii-se  aqui  espiuitaneo,  (piasi  pela  diligencia  indi- 
vidual, eamiiiluui  tniiitii  em  poucos  annos,  alVagado 
pelo  giMieroso  instinclo  do  povo,  e  pelo  sincero  luu- 
vor  dos  doutos.   Deveu  tudo  110  povo  i-  a  >i. 


o  PANORAMA. 


o  Panorama  espera  ser  amado  de  todas  ascathego- 
lias  dequc  ee  compõe  ;i  sociedade,  porque,  como  disse 
em  um  dos  aniius  na  aliertura,  a  cada  uma  ha  de  ir 
l>uscar  o  que  tiver  de  hom,  honesto  e  proveitoso. 

Ao  IJra/.ii  deveu  sempre  amizade  e  estima.  A  do- 
íuuião  poliliea  não  diminuiu  o  interesse,  que  a  lín- 
gua e  as  crenças  estreitaram  entre  o  vasto  império 
além  do  Atlântico  e  o  velho  Portugal.  Irmãos  pela 
inlellií;oncia.  amiiços  por  antii;as  ligações,  e  alliados 
pelo  commiim  desejo  de  plantar  a  eivilisajão,  o  r"- 
eiproco  interesse,  que  os  enlaça,  revela-se  na  soUi- 
eitude  com  que  si-  amam,  e  se  eomprehendem  para 
«uxiliar  a  renovação  social.  Como  sempre  costumou, 
n  Panorama  nlliani  para  tudo  o  que  pode  ser  agra- 
dável ou  conveiiicnle  ao  Urasil,  como  para  cousa 
sua,  dividindo  entrf:  os  diius  irmãos-  eom  imparciali- 
dade o  ()ue  a  cada  um  d^elles  eal)e  no  glorioso  testa- 
mento (la  njonareliia  que  formaram. 

Esto  jornal  compor  se-ha,  como  d^inles,  d(ítndoo 
ipie  se  julgar  <le  préstimo  em  descubrimentos  scienti- 
í"iC(]S,  em  aperfeiçoamentos  di- industria,  e  nos  inven- 
tos em  artes,  apar  tias  novidades  notáveis.  Sem  ser 
rlgorosan\ente  noliciador  acompanhará  o  andamento 
do  século  en[  lodos  os  seus  aspectos.  —  A  gravura  em 
madeira,  introduzida  por  elle,  e  tão  adiantada  hoje, 
continuará  í;  adquirir  maior  perfeição  ainda  em  mãos 

[)ortu"uezas.   Na  lin:ruai'eni  ha  lie  observarse  desve- 

• 
lo  constante  para  que  saia  limpa  de  locuções  estran- 
geiras, refoignantes  á  sua  Índole  vernácula,  e  igual- 
mente purificada  dos  requebros  aniiíjuadas  de  pala- 
vras e  plirases  exóticas,  ede  períodos  alatinados,  que 
a  desítiam.  soando  mal  na  dicção  corrente  e  clara, 
que  líies  libras  re(|u(rein.  Kão  (.squecerão  ])or  ullimo 


as  noções  de  scic^cias  naturaes,  e  as  das  sciencias 
inoraes,  opportunamente  disseminadas  aqui  e  atém, 
atjm  d'o  vulgo  dos  leitores  poder  tomar  d"ellas  a  n«- 
cessaria  tintura. 

Seguiudo  este  sistema  é  que  o  Panorama  arraigou 
a  sua  reputação,  e  proi.-iettcndo  persistir  nVUenada 
mais  faz  do  que  continuar  na  profissão  litterariaem 
que  sempre  viveu.    l'ara  penetrar  nas  cidades  e  vil- 
las,   alegrar   a  solidão   dos  campos,   e  chegar   até  os 
remotos   cazaes  das  províncias,    recTeando   as  longas 
horas  do  invernoso  serão,  não  aprendeu  nunca  outro 
segredo.  Para  se  tornar  o  hospede  certo  das  diversas 
classes  limitou-se  a  contar-lhes  o  que  tinham  sido  seus 
pães ;   a  mostrarUies,   além   do  estreito  recanto   em 
que  existem,  o  vasto  espectáculo  do  mundo,  as  gen- 
tes e  os  costumes  difierentes,  os  povos  longínquos,  eos 
'  lisos  estranhos;  e  a  represenlar-lhes  os  séculos distan- 
'  te»  e  tão  contrários  iiocaracler,  ora  fugindo  naCgura 
collossal  de  um  homem  notável,   ora  revendo  as  fei- 
!  ções   ii'um  grande   acontecimento,   ou  no  drama   de 
um  facto  interessante.  O  romance,  a  lenda,  c  achro- 
nicu    retratarão    com  as  cores   da  poesia    nacional  as 
maiores  façanhas  dos  axós,  de  que  descendemos. 
A  isto  se  reduzem  as  promessas,  e  para  tão  honro- 
;  sa   tarefa  convergirão   os  esforços   do   Panorama.    O 
I  benévolo   acolhimento,    que    o  distinguiu    sempre,   a 
I  espera    merecer    novamente,   sú   lhe  impõe  de   ni.iis 
I  que  na  prinieira  vez   a  responsabilidade   de  não  des- 
dizer do  passado,  nem  enganar  o  presente.  Km  bre\« 
o  juízo  publico  dirá  se  o  nome  do  jornal  popular  foi 
;  invocado  cm  vão,  ou  se  satisfez  aos  votos,  que,  tão  li- 
j  sonjeiramente  para  elle,   o  chamaram   ao  seu  antigo 
[)oslo  na  imprensa. 


S.  VICENTE  DE  FOBA. 


o  PANORAMA. 


3 


A  KbligiXo  de  nossos  aTÓs  foisincera  como  oscuro-  \  dava  ao  monge  a  brevidade  da  vida,  apontando-lhe 
busto  curação  nos  tempos  da  lucta,  em  que  o  sangue  '  para  além  do  tumulo,  —  tal  devia  ser  o  monumento 
do  rei  se  misturava  com  o  do  ultimo  cavalleiro,  tin-  1  de  Aflonso  Henriques.  Um  antiquíssimo  quadro  da 
irindo  cada  palmo  de  terra  arrancado  ao  domínio  ara-  j  Senhora  dos  Martvres,   edificada    no  mesmo  tempo. 

\jc. Vencidos,  uniam  ao  peito  a  cruz  da  espada,  pa-    abona  a  conjectura.  K  que  Lisboa    ainda    não  era    a 

ra  morrer  no  kíto  dVspinhos  do  martírio  ;  vencedo-j  orgulhosa  oídade  que,  rompendo  duas  vezes  o  cincto 
res,  os  cânticos,  trasbordando  pelas  abobadas  dos  tem-    de  muralhas,  cresceu  pelo  arrabalde,  obrigando  o  Te. 


•  A  cathe- 


plos,  iam  exaltar  o  Senhor  dos  exércitos 
dral  e  o  mosteiro,  levantados  nologar  aonde  a  vícto- 
ria  pousara  sobre  as  armas  chrístãs,  ou  no  sitio  aon- 
de os  fortes  dormiam  o  somno  derradeiro,  traduziam 
para  o  monumento  a  historia  das  monarchias,  que  te 
erguiam  do  sepulcliro,  e  guiadas  pelo  enthusiasmo 
começavam  a  caminhar  para  a  nova  epocha  social. 

O  dedo  do  conquistador  que  a  construía,  gravava 
na  fronte  dacathedral,  d'e5se  livro  de  pedra,  a  breve 
inscripção  de  uma  batalha,  e  de  novo  partia  aembria- 
gar-se  no  revolver  das  pelejas.  A  igreja,  esposa  alílíc- 
ta,  arrastara  no  desterro  os  pulsos  roxos  dos  grilhões, 
até,  como  a  clirisal^da,  romper  o  cárcere,  e  abraçar 
entre  as  rosas  da  esperança  a  primeira  liberdade.  <J 
templo  ii'estesdias  de  combate  era  o  hymno  dochris- 
tianismo  tríumphante.  O  sacerdole,  depondo  a  cer- 
vilheira  e  a  iança,  muitas  vezes  architeclo,  vestia  de 
mármore  as  aspirações  que  a  alma  elevava  aothrono 
do  Eterno.  N'esle  período  a  arte  da  meia  idade,  fiel 
á  inspiração,  sentia  profundamente,  antes  de  lavrar 
a  cinzel  na  pedra,  o  sacrário  do  seu  culto.  Áspera  e 
incorrecta  nos  primeiros  passos,  respira,  comtudo,  o 
mais  puro  sentimento  religioso.  Obra  demonges-mi- 
litares,  ede  soldados-mongcs  não  trahiu  nunca  a  sua 
origem.  Em  toda  ella  vive  oespirito  dos  séculos  guer- 
reiros. 

S.  Vicente  de  Lisboa,  de  que  hoje  damos  a  estam- 
pa, nasceu  d'esta  intima  aliiança  da  idéa  religiosa 
com  o  ardor  militar,  caracter  distincto  da  artechris- 
tã  em  três  séculos  da  nossa  liistoria. 

Debruçado  nas  ameias  de  Santarém,  rendida  por 
lurpreza,  Alfonso  Henriques  alargou  os  olhos  para  o 
horisonte,  curado  do  sol  nascente.  Além  estava  Lis- 
boa, sonho  de  sete  ânuos,  ardente  voto  de  toda  a  sua 
vida  de  soldado.  Tomada  Santarém,  tinha  á  cinta  as 
chaves,  que  podiam  abrir  as  portas  á  conquista  •,  po- 
rém a  sultana  dos  califas,  reclinada  á  sombra  dos 
frescos  laranjaes,  com  o  porto  aberto  ás  armadas  de 
Ceuta  e  a  testa  coroada  de  torres,  não  écaptivaque 
ceda  no  conflicto  de  uma  só  noite,  Desde  essa  ma- 
drugada o  tempo  que  decorreu  não  fez  senão  amadu- 
recer o  plano.  Deus  marcou  a  ultima  hora  da  filha 
dt)  árabe,  escrevendo  no  peito  de  D.  Alfonso  a  im- 
mntavel  residiição  d<.'  a  engastar,  como  a  mais  rica 
jóia,  no  diadema  da  nascente  nionarchia. 

Ninguém  ignora  de(|ue  modo  estreitada  pelos  ho- 
mens do  norte,  e  pelos  antigos  lidadores  de  Portugal, 
Lisboa,  estorcendo-se  nas  anciãs  da  lume,  succumbiu 
mais  a  cilas  do  <|ue  á  lança  dos  seus  inimigos.  Dois 
monumentos  perpetuaram  o  terror  da  queda  em  lodo 
o  Islam  ,  —  a  igreja  dos  Martyres  e  a  de  S.  Vicente 
de  fora  ;  a  primeira,  mais  visinha  da  cídaile,  no  ee- 
niiterío  dos  ingleziís  e  Irancos  :,  a  segunda,  alem  dos 
muros,  no  cemitério  dos  leulonicos,  futura  urna  r\- 
neraríu  i|e  reis  n  prineipis.  J''iii  o  respeito  ehristão 
pelos  ijui:  tinham  caído  antes  do  dia  da  victoria  <|nem 
eollouoii,  nos  dois  recostos  á  direita  eeííiuerda  da  brl- 
licosa  Lisboa,  essas  povoações  de  iniutos,  em  testemu- 
nho de  le  n  ai|U(dli-  (po;  na  sua  justiça  mede  a  gran- 
deza (!  a  dicadiiiKÍa  ilos  niaiorcH  iuiprrios. 

A  prímítivii  eonstruecão  lei  nutnralnirnle  tão  sim- 
ples como  lis  mãos  (pie  «levantaram.  Ermida  islrei- 
ta,  em  íiírma  rotunda,  reehando  o  telhado  em  eiipii' 
lu  i  paredes  de  barro  vermelho  sobre  escuro  ^  cellade 
píiiiteiicia,  «onde  o  cilicio,  pungindo  n  cariie,  rccor- 


jo  a  recuar  diante  de  palácios  de  mármore.  Ainda 
não  descera,  como  a  Koma  imperial,  do  cume  dos 
montes  a  assentar-se  em  alcatifas  de  uma  quasi  eter- 
na primavera  no  regaço  do  pátrio  rio. 

Correram  os  annos,  e  os  séculos  comelles.  A  coroa 
de  AíVonso  Henriques  da  cabeça  de  D.  Fernando  as- 
sentou no  elmo  de  D.  João  I,  e  retemperada  no  san- 
gue mais  nobre,  no  duelo  entre  o  íilho  de  Aflonso  \ 
e  a  fidalguia  portijgueza,  ornouse  com  as  espheras  de 
D.  Manuel,  e  fundiu-se  na  dissolução  dos  últimos  tem- 
pos de  D.  João  III.  Lisboa,  que  no  principio  seani- 
nhava  aos  pés  do  seu  alcácer,  alargouse  para  lodos 
os  lados,  tornando-se  a  Cleópatra  dooccidente  :,  pros- 
titiiiii-se  iiob  braços  do  deleite,  desfazendo  na  taça 
dos  banquetes  as  pérolas  de  Ceilão,  e  cozendo  era  ou- 
ro a  sua  boa  espada,  sceptro  da  antiga  monarchia. 
Lisboa,  a  namorada  da  briza  (|ue  ihe  ondèa  o  véu 
d^escuma  e  tlores,  Lisboa,  que  o  velho  oceano  adorme- 
ce einlialando-a  cora  o  bramido  das  suas  vagas,  abriu 
as  portas  ao  estrangeiro,  e  viu  as  suas  bandeiras  su- 
jeitas aos  leões  de  Castella,  que  afinal  ousaram  cra- 
var as  garras  nas  quinas  de  D.  Alfonso. 

Foi  então  que  a  sombria  piedade  de  Filippe  II  se 
lembrou  de  erguer  das  ruínas  a  igreja  deS.  Vicente. 
Em  logar  da  estreita  casa  aonde  primeiro  se  murmu- 
rou a  oração  dos  mortos  pela  pátria  livre,  levantou- 
se  o  pomposo  ediCcio,  construído  no  estylo  romano, 
que  tinha  substituído  já  o  gosto  imaginoso  dosarchi- 
teclos  da  liatallia,  e  a  arte  da  renascença  manuelina, 
não  menos  rica  e  phantastica.  Os  cónegos  regrantes 
deS,  Agostinho,  que  desde  a  fundação  da  monarchia 
allí  tinham  visto  ílorecer  emsauctidade  muitos  varões 
insignes,  nos  espaçosos  claustros  da  nova  fabrica  con- 
tíiuiaram  a  cultivar  as  leltras  e  as  virtudes,  uuioo 
allivio  dos  tempos  revoltos.  A  construcção  moderna 
levou  uns  poucos  de  reinados  para  se  concluir,  e  os 
copiosos  documentos  do  archivo  dos  \  icfiiles  abriga- 
ramse  alli  das  repetidas  convulsões  por  que  atraves- 
sou o  reino.  Ultimamente  passaram  para  a  Torre  do 
TiMiibo,  aonde  o  investigador  os  poderá  exaniinar,  e 
restituir  aqui  e  além  algum  dos  factos  da  nossa  his- 
toria, para  a  qual  oxalá  que  se  voltasse  tanto  talen- 
to consumido  em  menos  úteis  esforços. 


O  Castello  de  Sant.v  Olaia. 
Lenda  do  seeií/o  XI. 
(Fragmento.) 
(■luANDo  na  Incta  com  Os  árabes,  alta  noite,  se  ras- 
gava o  véu  d.is  trevas,   e  faise.mdo  pelo  negrume  do 
céu,  resplandecia  no  cimo  da»  serras  o  logo  dasalme- 
nar.is  (1)  ;    quando  na  torre  d\italaia,  ao  serpear  do 
sulco  luminoso,  a  sineta  do  vigia  aionlava  osechos^ 
«inanias  vezes,  <lcspertado  pelo  embale  das  armas,  não 
sahisle  do  ri'pouso,    antigo  castello   de  Santa  Olaia, 
com  o  alfange  do  infiel  quasi  sobre  o  peito  f 

Então  a  trompa  christã  retumbava  mais  alto  >pi* 
os  anafis  mouriscos,  coroando  se  repenlinameote  o 
adarvi' (-J)  de  cervillieir.is  (It)  brunidilS,  d<'  iiKilh.is  lii 

(O  Alnifiiiiiias  eram  .siitiiap.s  qiie  se  failam  com  fogueiras 

nos  lo^jaios  altos,  il.iiido  rebate  ile  iiilmlKOs. 

(J)  Ciirreilor  l:u';;o,  ipie  circulava  |K>r  ilelra?.  das  ameias. 

(li)  Armadura  dcIViisIva  da  laheça  «  lados  do  rosto,  q»« 
desvia  como  loallia  a  ativelnr-se  no  lioiubro. 


o  PANORAMA 


lente».  —  Com  o  arco  retezado,  como  os  frecheiros  es- 
preiliiin  iinmoveis  ás  seleiras  a  lioste  tios  filhos  <lo 
propliola,  ijiK!  desenrolada  encoita  abaixo  se  curva  e 
se  oorla  para  trepar  a  hideira  aprumada  1 

tAuantas  vezes  não  deixaste  crescer  em  meia  lua  o 
exerciti)  inusulmauo,  e  avi»inhar-se,  lento,  silencio- 
so, pela  calada  da  noite  «té  em  nó  robusto  te  enla- 
çar as  torr(.'s,  cuidando  estoural-as  no  possante  aper- 
tar dos  collos  ?  Era  assim  que  folgavas  com  os  dias 
perigosos.  O  raio  dos  cngenlios  partia,  a  lan<;a  dos 
fortes  erguia-se,  e,  como  a  cholera  de  Deus,  fulmina- 
vam o  orgiiUio  do  agareno,  desfeita  a  esperança  de 
VPT   tremular  nas  ameias  o  estandarte  de  Córdova. 

E  hoje  nefn  unia  pedra  para  lembrar  que  exististe  ! 

Largo  tempo  a  hera  e  os  abrolhos  se  enrolaram  pe- 
los fustes  parliiios  das  coluninas,  e  do  seio  rolo  das 
abobadas  penderam  em  festões  as  plantas  musgosas. 
As  quadrellas  gigantes  rangeram  ao  golpe  einbarado 
do  alvião,  e  as  pedras  aqui  e  além  tombadas  na  en- 
costa, ou  espalhadas  no  valle,  alvejaram  de  longe,  se- 
melhantes ás  ossadas  dos  Til.ães  vencidos. 

Os  séculos  carcuniir.ini  o  cimento  dos  muro*,  em 
pé  desde  que  a  águia  de  César,  voando  do  'l'ibre, 
pousou  ás  frescas  margens  do  Mondego.  Os  homens, 
olhando  com  desprezo  para  o  alcácer  desmoronado, 
apressaram  mais  os  estragos  dos  annos  ;  aténatradi- 
<;ão  popular,  p(jr  costume  tão  fiel  ú  gloria,  se  lhe  per- 
deu a  lembrança.  Nem  então  nem  depois  o  alaúde 
mouro  ou  a  liarpa  cliristã  recordaram  ao\i.ijante  os 
(Mjrcos  e  batalhas  que  o  combateram,  os  festejos  que 
o  alegraram,  os  amores  e  pezares  que  alli  choraram. 

Antes  das  scenas,  que  n'elle  se  vão  passar,  o  cas- 
tello  de  S.inta  Olaia,  levantado  do  chão  pelo  primei- 
ro rei  portuguez,  cresceu  novas  forres  e  ameias  em 
alicerce  robusto,  e  no  alfo  da  penha  escalvada  cam- 
peou ainda  baslanles  ânuos  o  pendão  real,  terror  e 
castigo  do  árabe. 

A  historia  da  repeiiliua  destruição,  recordada  ao 
eistercieiíse  por  D.  Marfim,  já  n'aqiielli^  epoclia  era 
a  lenda  marjvilhosa  da  credulidade  popular.  O  fe- 
mor,  que  incutia  a  narração  d'esle  successo  trágico, 
apertava  o  coração  dos  fracos  e  até  o  dos  animosos. 
W-iial  dos  cavalleiros  de  Allonso  Henriques,  sem  a 
pallidez  do  susto,  atravessaria,  depois  do  pòr  do  sol, 
as  ruinas  do  velho  alcácer.'  Assim  mesmo  bem  pou- 
cos, a  horas  criticas,  iriam  arrostar  as  almas  pena- 
das, as  visões  diabólicas,  que  o  vexavam. 

Apenas  se  acabou  de  reedificar,  os  espectros  —  tão 
corleies  furam  1 — c<ilcram  aos  vivos  o  passo  novo, 
tomando  só  posse  do  <|ue  se  ficou  cliamando  a  »  torre 
nuildiel.i.  !•  Da  primitiva  construcção  era  auniiaaiii- 
da  inteira  econservada.  As  .abobadas  subiam  em  fres 
espaçosos  andares,  rasgados  de  esguias  frestas.  Os  lan- 
ços de  ameias  lodeavain-nos  até  fecharem  noseirados 
aonde  morriam  as  escadas  espiracs,  que  se  tori:iam  pe- 
lo interior.  Do  nada  se  linliani  esquecido  os  funda- 
dores para  tornar  iiiaccessivcl  .los  homens  e  ao  tem- 
po o  Seu  ninlio  d^igiiias,  sobranceiro  na  coroa  do  mon- 
te aos  cabeços  pitlorescos  dos  liorisonles  que  o  emol- 
duravam. 

Wue  singulares  historias  não  contava  o  [lovo  sobre 
.iquella  torre  maWicta  !  Eóra  de  horas,  clizia-se,  na 
ermida  levuut.imse  .as  campas,  os  ossos  desfeitos  CTn 
po  vestem  passadas  formas,  p  todos  os  a n nos.  ve«pera 
de  S.  João  á  miáanoiíe,  na  sala  velha,  espiimaovi- 
nlio  nas  taça»,  langein.se  harpas,  e,  nn  clarão  de  mui- 
tas luzes,  conviva-,  mortos  depois  d"um  século,  \em 
assentar-se  á  mesa  do  baiupiefe  infernal 

Entretanto,  no  anno  de  1211,  e  na  tarde  em  que 
estamos  a  i>  torre  mal.licta"  perdeu  os  privilégios. 
Os  espíritos  s.ilanicos  foram  perturbados  pela  repen- 
tina enlr.ida  ile  hospedes  mortaps  no  seu  asvio.    Nos 


eirados,  no  mais  alto,  appareceram  dois  cavalleiro 
e  um  monge  de  Cister,  fallaram  momentos  apontan- 
do para  o  lado  de  Coimbra,  e  desceram  logj  á  sala 
d'armas,  aonde  aqui  e  acolá  se  viam  dependuradas 
grevas,  cervilheiras,  e  arnezes  de  malha  já  sem  bri- 
lho. • 

A  conversação  que  iam  continuando  aiiirnou-se  en- 
tre elles  mal  chegaram  lá.  Os  homens  darmas,  que 
passeavam  perto,  com  as  ascumas  ao  hombro,  ouri- 
rain  distinclamente  palavras  inteiras,  que  vibradas 
no  calor  d'altercação  retiniam  longe. 

—  u  Não  o  digo  (lor  mim,  reverendo  nono;  escre- 
veram-no  nossos  avós  no  Furo  Velho  de  Castella  — 
no  livro  da  nobreza  goda.  Este,  ao  menos,  é  tão  nos- 
so como  é  de  seu  iillio,  e  está  na  cabeça  de  seu  oeto 
a  corAa  d'AfTonso  Henriques  .  .  .  E  mais  compramos- 
lli'a  nós;  aqui,  ás  lançadas  com  os  mouros  ,'  além,  na 
fronteira,  a  golpes  d^acha  com  o  rei  de  Leão — pa- 
gou-a  o  corpo  de  meu  pai,  e  o  de  todos  os  cavallei- 
ros, que  lh'a  cingimos.  Custou  cara  esta  coroa  de  Por- 
tugal ;  e  Deus  sabe  o  que  ainda  custará!  Mas  apon- 
ta das  lanças  também  firmámos  nos  pannos  dos  mu- 
ros os  privilégios  de  ricos-homeii'.  Não  lhe  toquem 
se  não  (pierem  partir  o  briíço  ao  rei  '  Não  se  façam 
esquecidos  com  elles,  olhem  que  os  lembram  demais  I  » 

—  «A  ermida  está  armada?»  perguntava  no  pro- 
fundo vão  de  uma  fresta  o  outro  cavalleiro  a  um  ho- 
mem d^armas,  cuberto  da  loriga  de  couro  cr".í. 

—  »  (^oino  vót  dissestes.» 

—  II  A  tumba  .'  " 

—  41  Aonde  mandastes  —  no  meio.  •< 

—  «E  na  casa  por  cima.'" 

—  uTudo  prompto.  Só  falta.  .  .» 

—  "  Não  falta,  ha  de  vir.  Três  repiques  na  sineta  ; 
ao  terceiro"  —  f.dlou-llie  ao  ouvido  —  uao  terceiro, 
entendeste  '.  m 

—  11  Ficai  descançado"  —  replicou  o  outro  com  ar 
firoz. 

—  II  liem  -,  volta  agora.  Espera  !  .  .  .  mas  não,  não  ; 
eu  pouco  tardarei.  " 

—  «A  justiça  quem  a  nega?  —  dizi.i  entretanto  o 
monge  depois  de  algum  silencio  ao  primeiro  cavallei- 
ro—  nem  elrei  nem  a  sua  cúria  siibem  aindu.  .  . 

—  u  Não  querem,  que  é  o  peior  de  tudo.  •• —  Ata- 
lhou o  cavalleiro  que  tinha  falladn  com  o  homem  d"ar- 
nias. — "Contem  isso  a  outros,  não  a  .Marlim  l'aes ! 
Ah,  elles  não  sabem  I  A  c.ibeça  dos  traidores  os  avi- 
sará do  alto  das  nossas  torres.  Não  »epni?  (Ane  lhes 
abra  os  olhos  o  fogo  dos  castellos.  Não  ouvem?  Tam- 
bém não  importa  I  Aecorda-los-hu  o  ctitellu,  cahiiido 
no  cepo  cubiTfo  de  lucto.  .  .  Os  ricos-homcns  de  Por- 
tugal não  são  manadas  de  \illõa8  que  se  levem  as  va- 
ras. .  .  " 

—  "  Hein  se  vê  que  morreu  Sancho  I '.  n  replicou  o 
frade  amargamente. — uO  leão  velho  esta  na  cov», 
por  isso  todos  faliam.  As  garras  do  moço  ainda  não 
mettem  medo;  tempo  virá  I  .  .  ." 

—  "Que  venha.  .Amole  as  unhas  o  leão  novo  n.i 
armadura  dos  cavalleiros  da  sua  casa.  .  ." 

—  ..Cuidado!  primeiro  não  as  experimente  elle 
na  orgulhosa  serpe  de   Laidiov»!  ..." 

—  "A  urgiilhos.t  serpe  de  ].ianhoso,  padre,  está 
muito  alta  para  lhe  chegar  assim.  .Meu  pai  deixou 
no  armatem  setas  e  azevnns  para  os  solarengos,  nina 
Linça  e  uma  espada  na  sala  d*armas.  Não  se  entra 
lá  senão  quando  o  senhor  ijiier,  e  porque  elle  qilpr.  .  . 
.Aquillo  não  são  «s  cubas  que  S. incho  1  nrrelwntoii 
ao  saneio  homem  de   Lourenço  Fernandes.  " 

—  .€  D.  Marfim,  não  vos  fiei»  Ha  soberb.i  I  \  ondo 
adormecer  os  reis  de  Israel  dilxiixnda  purpura  quem 
havia  de  dizer  que  o  «ol  seguinte  allumiiiri.i  o  jeu 
caminho  para  o  e.iptiveirof  n 


o   FAINORAIVIA. 


—  tt  Uma  cova,  sete  palmos  de  terra  benta,  eque- 
brou-8e  o  captiveiro  mais  rigoroso  ...» 

—  "  E  o  inferno  ?  " 

—  u  Não  ha  peior  inferno,  padre,  qne  a  infâmia  1 
todas  as  aguas  do  mar  não  a  lavam  ;  a  morte,  nem 
«siía  a  desvanece.  O  cnrpo  coine-o  a  terra,  os  osius 
faiem-se  em  pó,  e  a  infâmia  dura  eterna  sobre  a  se- 
pultura I  ...  a  quem  a  solirer  callado,  com  a  espada 
i)iiiela,  ainda  em  cima  :u-outum-lhe  a  cara  com  a 
liainha,  e  lião  de  rir-te  d'<lie  como  d'nm  pi>bre  de 
Ctiristo.  .  .  por  Deus!  Não  se  hão  de  rir  de  mim. 
Aqui  licou  um  punhal,  que  é  bastante  para  Martim 
l'ae«  não  servir  crescarneo  ao  vulgo  ..." 

—  II  Escuta.  Já  te  não  lembram  o  cuidado  com  que 
te  criei,  o  amor  com  que  te  estremeci  desde  peque- 
no? Amou-te  ninguém,  ia  a  dizer  —  maisl  ...  tanto 
como  eu  ?  " 

—  li  quando  me  esqueci  ?" 

—  Bem  sei  ;  vê  lá  :  — não  me  doera  como  minha 
própria  a  tua  aíTronta  ?  " 

—  it  E  fallais  de  perdão,  reverendo  noiíii  I  .  .  .  " 

—  i' E  fallo,  e  peço-t^o  etn  nome  de  Deus,  pela 
ahna  dos  (lareules  a  que  mais  qui/este,  por  !na  ir- 
mã, o  doce  prazer  do  teu  cor3<;ão  !  .  .  .  Eillio,  acima 
da  aflroiita  ha  outra  cousa  maior  —  a  honra,  a  fede 
cavalleiro.  Se  fosse  vivo  teu  pai.  fallava  te  pela  mi- 
nha bocca  i  dizia-le  :  Martim  l'aes,  é  uma  ac(;ão  vil  :, 
é  o  despique  traiçoeiro  da  mulher  fraca  .  .  .  depois  de 
feita,  o  nome  de  ii  Ribeira  >'  liça  um  nome  deshonra- 
do,  e  teus  avós  deixaram-to  limpo  e  puro  I  Como  el- 
les  corariam  na  sepultura,  se  podessem  vêr,  se  podes- 
tem  ouvir  o  mundo,  apontar-te  ao  dedo,  e  dizer: 
.itJIlia  Martim  Paes,  quem  o  diria,  o  filho  d'aquel- 
le  pai  !  Como  se  não  achou  com  valor  de  morrer  com 
uma  lani,'aila  :  de  cavalleiro  feZKC  carrasco'."  \  ôs 
que  vergonha,  que  desprezo,  D.  Martim  !  " 

—  "  Erade,  não  tentes  a  paciência  do  homem"  — 
exclamou  o  mancebo,  <|ue  de  uni  lado  para  outro  cor> 
ria  a  sala,   accessas  no  rosto  as  rrtxas  cores  da  raiva. 

—  nNão  me  peças  impossíveis," 

—  "Equem  t\js  pede.'  Não  te  estou  dizendo  que 
depois  te  ha  de  amargar?  Eu  mesmo,  juro-te  piílo 
cordeiro  divino,  que  desce  imuiaculado  a  estas  mãos 
indignas,  o  mais  pequeno  dos  villõcs  que  fosse,  por 
todos  os  thesourosdo  mundo  nãoquereria  viver  n'esta 
terra,  e  Deus  sabe  se  a  amo  I  com  a  allroiita  do  no- 
me de  Martim   l'acs.  " 

—  "Frade,  pede  que  te  não  ouça  isto  duas  vezes.  " 

—  u  Podes  também  matar-me  a  mim,  filhodel'aio 
Moniz  de  Jierredo  ',  não  te  prenda».  —  Um  anuo  mais 
cedo?  A  viagem  sempre  se  ha  ile  fazer  por  fim  !  Mas 
iJha  que  te  hão  de  chamar  na  caravillão  e  covarde, 
e  tu  ouvil-cs  callado!  tiue  remédio!  Não  foi  para 
isto  que  eu  criei  de  menino  o  filho  (ra({uelle  pai! 

—  .1  Erad<!,  deixa-te  lie  vaid.ules  mundanas,  tiue 
falias  alii  de  brios  de  cavalleiro,  tu,  (pie  não  levan- 
tavas iiiiiit  haste  doestas,  jior  ahi  eniostadas  aos  lan- 
ceiro»  ?  " 

Nos  olhos  do  niongií  um  iiisl.intc  acccndtMi  o  orgu- 
lho o  fogo   de  nina   indignação  severa. 

—  ..Maiicí^bo,  !■  cuspir  iiris  faces  do  liomini  morto, 
ilue  vilania,  dizer  a  qui'm  falleceu  e  se  amortalhou  : 
lOrgiiete.  JCs  um  covarde  !  'l'«inpo  h(uive  i'm  que 
•6  dois  pulsos  feriam  mais  rijo:,  o  (riii{uell(!  rei  que 
Deus  levou,  e  o  d(!  Ijonrenço  Vi<'gas,  o  espadeiro. — 
1'uraçào  nenhum  tiiihu  (pie  invejar  ao  outro.  I'ira  is- 
to ha  muitos  aniios,  !■  verdnile  —  loucuras  de  velhos  ! 
O  <|oe  sou:os  nós  ao  pi;il'esteH  ravalleiriis  moços,  (pic 
ajoelhiim  diante  <los  inimigos,  e  os  matam  pelascos- 
tas?  " 

E  peganilo  na  niuis  grossa  lança  o  monge  mciieou-a 
iigeiru  como  um  \im«.    Depois,  retrahindo  u  corpo, 


sacudiu-a  de  arremesso  contra  um  escudo  d'aço,  aon- 
de, gemendo  som  cavo,  vibrou  cravado  o  ferro  maii 
de  duas  pollegadas. 

I  — u  Este  braço,  sequiiesse,  D.  Martim,  ainda  po- 
dia jogar  duas  lançadas  .  .  .  aos  mouros  :  accrescentuii 

;  serenamente. 

1  —  "  Por  minha  alma  !  .  .  .  valente  golpe  ;  "acudiu 
o  cavalleiro  idoso. 

—  «Não  é  nada  já  ;  lembranças  de  velho  que  ain- 
da se  quer  fazer  rapaz?"  retrucou  sorrindo  com  iro- 
nia. 

A  côr  do  pejo  subiu  ás  faces  de  D.  .^lartim.  A  li- 
ção involuntariamente  o  obrigou  a  pòr  os  olhos  tio 
chão.  Seguiu-^íO  longa  pausa.  Os  lábios,  brancos  de 
raiva,  do  mancebo,  repuxados  o'um  rir  convulso,  tre- 
miam como  as  urzes  no  monte  bravo  diante  das  ra- 
jadas do  norte.  E  que  lá  dentro  ia  uma  tempestade, 
que  reluzia  na  vista,  e  no  fogo  das  faces. 

O  frade,  poiísando-lhe  a  ;não  no  hombro,  cortou- 
Ihe  as  reflexões  em  que  estava  abysmado,  faltando  em 
tom   insinuante  : 

—  -.í  ÍJra  vamos,  Martim  Paes  —  é  ser  homem  I  .  .  . 
Ouve  o  meu  conselho,  deixa-te  dVssa  má  tenção. 
Vai  deitar-te  aos  pésd"elrei,  pedirlhe  justiça  —  ha- 
de  fazer-l'a  ;  diz-me  o  coração  que  t'afará  como  ain- 
da se  não  viu  em   Portugal." 

—  11  Justiça  dVlrei  !  "  —  acudiu  o  mancebo  com 
ira,  e  cerrando  o  punho;  — «esperem  por  ella,  que 
morrem  de  velhos  !  E  ce^a  e  coxa.  A  nossa  anda  me- 
lhor : —  Sangue  por  vilta  !  Pode-nos  depoisquebrara 
espada  pela  empunhadiira,  ou  queimar-nos,  como  fe- 
ras, nos  castellos  —  ficamos  pagos!  Não  é  assim  D. 
Nuno  1  1' 

—  «E  o  que  sempre  disse.  Alli,  a  duas  passadas, 
temos  Castella.  (lucm  não  couber  aqui  .  .  .  aindaum 
caviíllo  me  pode  levar  lá.  Estou  velho  i  será  a  minha 
ultima  corrida.  " 

D.  Martim  apertou-llie  a  mão,  exclamando : 

—  "  Até  que  ciu  fim  encontrei  um  homem,  D.  Nu- 
no !  " 

—  «Um  louco"  murmurou  o  monge. 

O  niiiiicebo,  olhamlo  liopois  para  as  paredes  nuas 
da  sala,  meditou  Iristemenle  alguns  momentos.  la- 
se-lhe  carregando  o  semblante.  — «  Como  estes  muros 
estão  negros,  e  ainda  tintos  <io  sangue  da  orgulho- 
sa família  do  Douro.  Alegra-fe,  D.  Ini^o.  Antes  de 
romper  o  sol  dormirá  o  mais  novo  da  sua  raça  ao  la- 
do dos  (|iie  além  descançam  í — e  apontando  para  a 
porta  da  ermida:  —  «  CíLuaiido  entrares  por  alli,  Go- 
mes Lourenço,  não  te  dirá  o  coração  que  esta  noite 
será  a  ultima  ?" 

—  «Não  blasphemes  "  —  atalhou  o  frade  com  im- 
pério.—  «Não  auordcs  á  vingança  os  mortos  que  re- 
pousam. " 

—  «Vingança  de  <|ue,  e  por  quem  .' " 

—  «  Ctiamaste  ]tor  Inigo  Lopes,  e  não  saiws  (pie 
nas  veias  de  Ciomes  lioiirenço  corre  o  sangue  d  Vdle  .' 
N'estas  pedras  ha  oscilo  deC.iim.  Cavalleiro  de  La- 
nhoso, estas  ruinas  contam  uma  historia,  capai  de  fa- 
zer tremer  o  priqirio  inr(;riio." 

—  «  Sabeis  então  .' .  .  .  " 

—  1.  As  desgraça»  ipic  vieram  d'uma  só  vingança? 
Si^i  domais.  Ocastello  t^n  (|ue  estamos  era  de  paren- 
tes vossos.  ()  iillinio  senhor  foi  o  coiule  Ordoiiho,  des- 
iciidcnle  trelrci  Kainiro.  Esse  D.  Inigo  (pie  acabas 
de  convidar,  era  lio  do  mori>  Ansur,  viuvo  aos  de- 
zoito annos:,  do  uiiico  filho  doesse  vem  a  raça  detio- 
nics  liOiírcnço .  .  .  Desaliaslt!  o  inlerno:  giiarde-te 
Deus  (pie  ello   te  levanli;  a   luva.  " 

—  «Vivo  ou  morto  pódc  vir  (juando  (|uir.er.  Um 
anuo  >:  um  dia  com  braçaes  (<  cotia,  a  peou  a  cavai- 
lo,  juro  delciider  o  que  hoje  faço,  " 


6 


O  PANORAMA. 


—  II  Jesus!"  íxclainou  o  frade,  mais  branco  que  o 
pilar  <ie  pecira  a  que  st;  encostava. 

Ou  fosíP  acaso  ou  mvslpriu,  o  guante  ferrado  d'u- 
ma  armadura  negra  desprendcuse  e  bateu  nas  lageas 
aos  pés  de  D.  Martiin.  Ocavalleiro  enfiou  ^  mas  eu- 
cubrindo  ergueu  do  ilião  a  manopla.  No  canhão  em 
lettras  douradas  lia-se  o  terrível  nome  de  Inigo  Lopes  ! 

Um  instante  ficou  contrafeito  e  pallido  ;  depois  com 
apparencia  traiiquilla,  virando-se  para  o  frade,,  dis- 
se-lhe  : 


—  II  Em  quanto  esperamos,  f)or  que  no»  não  coii - 
taes  a  historia  d"este  castello.'" 

—  "  (Jxalá  que  aproveite!  >■ 

—  "Como  este  ódio  nasceu  velho  1  "  murmurai» 
comsigo  D.  Martim. 

O  monge  assentou-se  então  :,  D.  Nuno  á  sua  esquer- 
da, e  D.  Martim  á  direita  ouviam  em  silencio.  Pos- 
ta na  linguagem  de  h<ije  a  historia  dizia  assim  — 

(Continua.) 


Uma  das  mais  interessantes  biographias,  até  agora 
por  escrever,  é  a  de  Gomes  Freire  de  Andrade,  sol- 
dado e  escriptor  distincto,  tão  celebre  pelos  seus  fei- 
tos gloriosos,  quão  digno  de  lastima  pelo  seu  fim  de- 
sastroso, lia  quasi  trinta  annos  que  o  vento  lhe  dis- 
persou as  cinias:  hoje  que  o  ódio  dos  partidos  d"en- 
lão  devi!  de  estar  adormecido,  é  um  acto  de  justiça 
perpetuar  a  memoria  do  guerreiro  a  quem  até  foi 
negada  humilde  sepultura  na  terra  de  seus  avós.  Es- 
te esbo(,'o  biographico  não  lein  por  liin  decifrar  as 
causa»  mysteriosas  da  cat.islrophe,  mas  a  imparcial 
exposição  de  factos.  l'óde-sc  honrar  o  morto  sem  of- 
feiísa  «tos  vivo». 

Nasceu  (lonies  Ereire  de  Andrade  em  '2~  de  ja- 
neiro de  ITói),  curte  de  \  ienna  d".\ustria,  onde 
•leu  pai  Ambrósio  Freire  de  Andrade  e  Castro  era 
embaixador  de  1'ortugal.  Desceiulia  d'um»  familia 
entroncada  na  antiquíssima  casa  dos  condes  da  Tra- 
va, e  na  dos  1'creiras,  Forjaies,  e  Holiadfllas.  e  con- 
tava  entre   os  seus  antcpnssadoj   muito  varões   illus- 


tres,  dos  quaes  bastará  citar,  peio  que  Iik!\  aos  mai» 
modernos,  Jncintho  Freire  de  Andrade,  penejvrista 
de  D.  João  de  Castro,  e  (iiiines  Freire  de  .Andrade, 
que  nas  guerras  da  restauração,  depoi>  de  sacudido  o 
jugo  hespanhol,  obrou  prodígios  de  valor,  epatifiron 
os  tumultos  do  Mar.inhão  com  prudência  rara  e  ad- 
mirável politica,  temporada  pelos  diclame>da  huma- 
nidade. 

Três  carreiras  havia  em  Portugal  p.ira  nobres  :  a 
das  armas,  a  da  iiiagisiraturu,  e  a  eccle»iasliea.  (ío- 
mes  Freire  elegeu  a  das  armas,  sentou  praça  no  re- 
gimento d'infaiiteria  de  Peniche,  e  e>n  t7S2  foi  prt>- 
movido  a  alferes.  O  mancebo  brioso  e  valente,  exci- 
tado pela  memoria  de  seus  maiores,  almejav.i  .1  ix- 
easião  de  provar  o  para  «lue  era.  Em  breie  so  ib> 
proporcionou.  Carlos  III.  rci  d'Hcsp;inh,"i.  querendo 
tirar  vingança  da  insolência  dos  argeliiu»,  restd«eii 
o  bombardeamento  do  refugio  d'estes  piratas  infe^tc>»  á 
christandadc,  a  ijuem  potencias  poderos.is  não  ^c  peja- 
vam de  pagar  infame  tributo  pela  alta  merci!'delhe»njo 


o  PAJNORAMA. 


captivaram  os  seus  súbditos  o  tempo  que  fosse  do  agra- |  armada  raal,  ou  porque  a  vida  maritima   lhe  desa- 

do  dosde^sd'Argel.  Sob  o  mando  supremo  do  teneu- i  gradasse,  quando  desacumpaiibadadu»  pe^igo^  da  guer- 
le  general  da  armada  liespanhola,  D.  António  Bar- |  ra,  ou  porque  servindo  no  exercito  de  terra  belhean- 
celó,  já  experimentado  em  tats einprezas,  sejunctou  i  tolliaase  augniento  mais  rápido,  voltou  para^  o  regi- 
no  porto  de  Carlliagena  uma  armada  composta  de  niento  de  Peniche,  em  30  d'abril  de  17SS,  com  o  pos- 
vasos  hcspanhoes,  napolitanos  e  maltezas,  fazendo  ao  i  lo  de  sargento-múr 


todo  cento  e  vinte  e  três  embarcações,  em  queentra- 
vara  sele  naus  de  linha  u  nove  fragatas,  afora  asnáiis 
Sancto  António  e  Uom  Successo,  e  as  fragatas  Golfi- 
nho e  Tritão,  com  que  1'ortugal  contribuiu.  A  nos- 
ia  frota,  em  que  Gomes  Freire  foi  servindo  como  of- 
ticial  de  marinha,  commandada  pelo  coroutl  do  mar 
Jiernardo  Kamires  Esquivei,  largou  do  Tejo  aos  11) 
de  junho  de  178Í-,  e  na  tarde  de  22  ancorou  na  ba- 
ilia de  Cadiz.  Na  maiiliã  seguinte,  feudo  niellido  pra- 
clico  a  burdo,  tornou  a  fazcr-se  á  vela.  Na  noite  de 
23  cinbocou  o  Kstrcilo,  passou  por  Gibialtar  ás  do- 
te horas,  e  seguiu  o  rumo  de  Carthagena.  Acalma- 
ria que  lhe  sobreveio,  e  a  inconstância  e  variedade 
do  vento  l!ie  atrazaram  a  viagem  até  o  principio  de 
julho,  de  modo  que,  tendo  já  sabido  a  armada  com- 
binada para  Argel,  a  fiossa  dirigiu  a  derrota  para  es- 
te porto,  omle  chegou  no  dia  i'2  jielas  seis  bofas  da 
tarde.  Pv'tste  dia  dera  U.  António  Barceló  o  primei- 
ineiro  ataque,  o  qual  durou  de«de  as  oifo  até  ái  dez 
horas  e  vinte  iniiiulos  da  niatibã,  ulcaiidu  em  parte 
da  cidade  um  incêndio  que  não  piulcram  apagar  até 
as  quatro  horas  da  tarde,  e  fazendo  voar  quatro  lan- 
chas inimigas.  O  vento,  empolando  us  mares,  suspen- 
deu as  hostilidades  até  o  dia  IS,  e  n'este  meio  tem- 
po repararam  os  argelinos  as  ruiiias  do  forte  de  15a- 
Ijiísao,  resultantes  do  alacjue  do  dia  1'2.  No  segundo 
fttaijiie  r(>iii|jeram  cllcs,  ás  seis  horas  e  sete  luiiuitos, 
II  fugi)  de  sessenta  e  nove  latiihaf,  ([ue,  adastadas  meio 
tiro  de  canlião  das  suas  fortificai  ões,  occwparam  o  es- 
jiaijo  entre  o  forte  di.'  li.ibasan  o  o  de  Betei.  Aslan- 
clias  aililhadas  da  armada  saliiram-llie  ao  encontro 
e  sustentaram  o  logo  sem  interrupção,  até  que,  con- 
sumidas as  munierjes,  se  retiraram  apoiadas  pelo  dos 
navios.  O  vento  do  levante,  dissipando  o  fumo,  dei- 
xou vir  deimilidus  os  ineilões  da  bateria  do  iiscollui, 
A»  i'iobarcai;õis  portuguezas,  favorecidas  da  aragem, 
com  presteza  se  inetteram  em  linha  a  leste  da  esqua- 
dra, para  reeha<;arem  as  lanchas  argelinas,  toda  a  vez 
que  chegassem  ao  alcance  da  sua  artillieria,  acossan- 
do as  nossas  na  retirada.  Oito  vezes  se  repetiram  os 
ntaques,  em  que  Gomes  Freire  deu  decisivas  provas 
de  v.dor  expundci-se  a  pi'ito  descoberto  á  chuva  de 
bailas  disparadas  pelas  fortalezas,  e  embarcações  luiu- 
ilas  ili!  Argel.  No  ipiarfo  aceoin  mel  li  mento  haviam  si- 
do niellidas  a  pique  as  faluas  dos  dois  geiíeraes  ini- 
migos ;,   tão  renhido  foi  elle. 

Ivslavani  já  destruídas  a  maior  pai  te  das  lanchas 
argelina»,  havia  ardido  a  bateria  do  Escolho,  e  o  fo- 
go reduzira  a  cinzas  muitas  casas  da  cidade;,  e  por 
iseo  1).  António  JJarceló convocou  os  geneiaese  com- 
inanilantes  dos  navios  a  conselho  no  ília  '2i  de  julho 
lie  17Sl  para  delibitrar  se  era  conveniente  continuar 
ns  hosliliila<lei,  apesar  do  risco  iin mine nie  de  saltar  um 
vento  contrario,  ijue  pinia  a  i-squadra  em  giaiule  aper- 
Ib-eiíliram  iinaiiinie»  que  a  empreza  se  devia  dar 
iluiila,  e  a  esquadra  parllu  da  bahia  de  Ar- 
gel no  dia  'J3,  e  no  liia  27  entrou  em  Carlhagt'iia, 
líepois  de  ler  dado  uma  boa  lieão  nos  argelinos,  con- 
tra os  (|iiae»  gastou  sele  mil  e  Iniit.is  bombas  e  gra- 
nudac,  e   mais  de  doze  mil  bailas,  nlém  da  metralha. 

A  nossa  esquadra  saiu  di>  (-'artliagena  a'.)  tragoslo, 
niidoii  a  corso  pm-  hI:;iiiis  diassobre  a-  cosias  d' Afi  i- 
ea  para  li'ste  de  Argel,  ie|i»ssiiu  o  l'Atieito  na  noile 
de  ;i(i,  apurloii  eni(.'adizno  dia  Beguinte,  eiecullieu- 
ke  a  Ijisboa  aos  1'J  de  seleiíibto.  Gomes  l'Veire,  <iuu 
em  S  de  iiiarei)  de  17íi7  |iussára  a  tenente  duniarda 


lo. 

liiil    eiiliel 


Catharina  II,  imperatriz  da  Rússia,  havia  tentado 
sublevar  varias  províncias  do  império  ottomano,  e 
com  especialidade  a  Grécia,  em  nome  da  indepen- 
dência e  da  liberdade,  a  que  se  mostrava  aifeigoada 
nas  cartas  a  Voltaire,  mas  que  proscrevia  nos  seus 
estados.  A' guerra  que  por  este  motivo  accendèra  pu- 
zera  termo,  em  1774,  o  tractadoassigiiado  eniKust- 
cbouc-Kainardgy,  depois  de  larga  contenda  termina- 
da com  immensa  vantagem  dos  russos,  que  haviam 
queimado  a  esquadra  turca  no  porto  deThechesme;  e 
pur  meio  de  novas  acquisii;ões  de  portos  de  mar  e  da 
indepeiidcncia  dos  khans  daCrimca,  reconhecida  iio 
mesmo  traetado  com  o  Ijin  occulto  de  os  sujeitar 
á  Vontade  do  gabinete  de  S.  l'etersburgo,  ficavam 
abertas  as  portas  a  futuras  invasões  no  território  tur- 
co. A  czarina,  com  osolhos  sempre  fitos  em  Constan- 
tinopola,  pretendia  encetar  a  conquista  de  todo  o  im- 
pério oltomauo,  apoderando-se  da  Criméa.  N'uma 
conferencia  que  teve  cm  1780  com  José  II,  impera- 
dor d'Allemanba,  ajustaram  que  elle  o  ajudaria  a 
assenhorear-se  da  Baviera,  sob  a  condiij'ão  de  ser  au- 
xiliada pelo  imperador  na  guerra  contra  os  turcos, 
ficando  ella  com  o  melhor  quinhão  dos  seus  despojos, 
e  de  restituirem  ambos  de  commum  accordo  a  inde- 
pendência ás  republicas  gregas.  Reduzida  esta  con- 
veiieão  a  traetado  no  anuo  seguinte,  tractou  Catha- 
rina de  coiisuinmar  a  usurpação  da  Criméa.  Dewlet 
Gherai,  khan  dos  tártaros,  era  muito  allecto  á  Bor- 
la :  a  ambiciosa  e  astuta  Calharina,  recorrendo  a  pei- 
tas, enredos,  e  violência,  obrigou-o  a  fugir,  e,  invo- 
cada a  independência  dos  tártaros,  fez  que  elegessem 
para  seu  klian  a  Sabim  Gherai,  cuja  servil  obediên- 
cia ao  governo  russo  excitou  contra  elle  o  desprezo  e 
até  a  raiva  dos  seus  súbditos,  os  quaes,  morta  a  guai- 
da  russiana,  que  o  escoltava,  elegeram  Selim  Gherai. 
Calharina  appioveiloii  logo  o  pretexto,  invadiu  a  (Cri- 
méa, venceu  os  tártaros,  restabeleceu  Sahim,  e extor- 
quiu á  i'orta  iini  traetado  addiccional  ao  de  Kaiiiar- 
dgy  com  o  recunljecíinenlo  formal  do  khan  seu  patro- 
cinado. Sahim,  despresivel  aos  olhos  do  seu  povo  pe- 
las distincçòes  e  honras  que  a  Rússia  lhe  concedera, 
tornou-se-lhe  cada  vez  mais  iiisupporlavel.  Acabavam 
08  russos  de  o  ajadar  a  comprimir  a  revolta  de  Bat- 
ti-Glierai,  um  dos  seus  irmiios :  suggeriam-lhe  quo 
exigisse  da  i'orta  a  cessão  deOczakol,  iniportantissi- 
ma  praça  de  guerra  situada  na  Bessarabia,  onde  con- 
fluem os  rios  Bog  e  Dnieper,  antes  de  desaguarem 
no  Mar  Negro,  e  por  isso  disputada,  com  grande  mor- 
tandade, pelo»  russos  e  turcos,  desde  i|ue  os  tártaros  a 
perderam.  O  incauto  Sahini-Gherai  obedeceu,  e  pa- 
ra desaggravar-se  d'uiii  acto  de  crueldade  cominet- 
tido  contra  um  dos  sens  emissários  pelo  pachadailha 
de  'lamaii,  abriu  passagem  pelos  seus  estados  aos  pro- 
tectores russos,  que,  depois  de  o  violentarem  ajur.ir 
hdelidade  á  czarina,  eaceder-llle  a  soberania  em  tro- 
ca iriiina  pensão  de  oitocentos  mil  rublos,  que  lhe 
não  pagaram,  o  mandaram  desterrado  para  Kaluga, 
e  pur  tini  enlrei;araiii-no  «ou  turcos,  pelos  quaes  foi 
decapitado  em  Uliodes,  sem  lhe  vnlerini  os  esforço» 
do  cônsul  dl*  França  par.i  o  salvar.  Trinta  mil  tárta- 
ros, suspeitos  de  eonspirareni  para  dar  a  liberdade  .i 
sua  pátria,  ri'eeberain  a  morte  por  ordem  de  l*aulo 
l'oleinkili,  sem  commiseração  para  com  »  sexo  ou 
Idade,  As  tropas  de  Calharina  devastaram  a  Tarla- 
riii,  u  como  e  natural  herdaram  os  verdugos  os  des- 
pojos dus  Mij>pliciados.    A  c/aniia,  proclamando  que 


o   PANORAMA. 


estes  puvo*.  não  ineniB  ingratos  que  os  poUcm.  ba- 
liam trabalha'lo  por  aluir  o  edifício  erecto  pelo»  seus 
benéficos  cuiòados  para  íclicila-los,  declarou  que,  em 
virtude  do  ultimo  tractado,  reunia  á  Roíssia  a  penio- 
9ula  da  Criniéa.  com  a  ilha  de  Taman,  e  todo  oKu- 
ban,  afim  de  pòr  termo  a  tantoi  de>asfrí».  e  como 
ju*ta  iiidemnisação  de  perdas  e  despelas. 

A  Porta  ahaixou-!e  a  sancciouar  taml^-ni  estas 
usurpações:  porém  Calharina  aspirava  a  iiaiia  menoi 
que  a  erguer  uiD  throno  sobre  as  ruinas  do  iiuperio 
turco.  Na  famosa  jurnada  que  fizera  á  Tauride  em 
1787,  a  instancias  de  Poleinkin,  teve  outtu  encon- 
tro, emK.ersun.  com  o  imperador  José  II,  e.  rasgan- 
do a  mascara,  fez  com  que  por  entre  as  nuvens  de  in- 
censo que  a  lisonja  lhe  queimava,  se  lesse  esta  ins- 
cripção.  escripta  em  caracieres  eregos  sobre  a  porta 
oriental:  Por  a«vi  se  ma  de  passar  i-aba  ibter 
A  ISVZASCIO.  Então  o  çrão  senhor,  cançado  de  tra- 
gar o  fel  da  afiVonta.  detiarou  zuerra  á  Kussia  ;  e  a 
Bulgakow,  seu  en\  iado,  encerruu-o  nas  Sefe-Torres. 
onde  jazeu  mui  I.irco  tempo. 

Catbarina  esperava  impaciente  este  rompimento. 
A  um  seu  aceno  partiu  uma  frota  numerosa  para  o 
Mar  Negro,  duas  esquadras  respeitaveb  occuparam 
Cronstadt,  e  os  exércitos  de  terra  sob  o  commandu 
supremo  dePotemkin  recomeçaram  uma  guerra  mais 
feroz  que  nunca,  auxiliados  pur  oitenta  mil  austría- 
cos. A  Porta.  desampHrada  dos  seus  alliados,  menos 
da  Suécia,  a  mais  fraca  e  a  mais  exposta  de  todas  a: 
potencias,  nem  por  isso  de-esperou  do  triumpho. 

Promettia  esta  formidável  lunta  hasta  me^se  de  lou- 
ros. Gomes  Freire,  desdenhando  o  ócio.  oble\e  licen- 
ça em  17  de  Maio  de  1788  para  ir  militar  nos  exér- 
citos da  Rússia,  sem  perder  o  direito  aus  seus  soldos 
durante  a  guc/ra  contra  os  furcos,  e  em  quantu  iilli 
se  demorasse.  A  gloria  convidava-o  a  illustrar-se  dian- 
le  dos  muros  deOczakof:  obedeceu  ao  chamamento. 

Continuava  esta  praça  a  zombar  d'iim  assedio  p"r- 
linaz,  posto  a  cercasse  por  terra  o  exercito  de  l*o- 
temkin,  e  por  mar  uma  e-quadr.T  ás  ordens  do  con- 
tra almirante  Paulo  Jonnes,  um  d<is  mais  audazes  ma- 
rítimos, tão  bem  descripto  ii*um  romance  d' Alexandre 
Dumas,  o  qual  corre  trasladado  era  \ulcar  com  o  ti- 
tulo de  Ca^fuo /'ou/o.  Ocapitãobaxa  que  ha\ia  ten- 
tado fazer  uma  diversão,  atacmdo  uu  seu  ancoradou- 
ro a  oquadra  rus^a  á  frente  de  outra  de  oitenta  e 
seisvellas,  fora  desbaratado  por  Paulo  Jonnes.  quelhe 
tomou  duasnáut  de  linha,  queimou-lheseis,  incluin- 
do a  capitania  e  a  vice-capitania  e  aprisinnou-lhe 
quatro  mil  homens.  O  almirante  turco  tinha  saído 
determinado  a  vencer  ou  a  morrer,  e  por  isso  se  des- 
pedira da  espo«a  como  «e  nunca  mais  hou\r«e  de  a 
lurnar  a  vêr,  edera  a  liberdade  a  todos  iis seus escra- 
v<is;  mas  alguaas  das  embarcações  da  sua  enquadra 
começaram  a  fu;ir  vilmente,  depois  de  quatro  horas 
de  CDOibate,  ape>ar  de  sobre  elias  fazer  fogn  u  baxá, 
que  se  viu  constrangida  a  refugiar-se  com  o  resto  de- 
Iwixii  das  baterias  de  Oczakof. 

Ii>tes  e  outros  revezes  não  queirnrani  o  animo  de 
Hadgi-Kniael.  governador  da  praça,  o  qotl,  a  des- 
peito do  mau  resultado  das  sortida»,  e  dos  incêndios 
repelidoi  que  as  bomKis  e  bailas  ar^leiiles  cansavam 
nas  casai,  não  cessou  de  fulminar  ossitiaiites  purlre- 
seiítas  e  dez  l«)ccas  de  fujo,  até  que,  chegado  o  dia 
Io  d  outubro,  em  raião  da  perda  d.«s  ubras  exterio- 
res, e  do  fogo  mortífero  das  mais  protiina*  baterias, 
sú  p(K|e  troar  a  arlilhcria  dos  lialuartes  interiores. 

U>  frios  incomportáveis  do  mez  de  der^mbro  iam 
ctlando  a  desesperação  nos  coraçiTe»  do*  onpugnado- 
res.  Não  podendo  antever  quando  leri.ini  fim  estes 
duri>s  trabalhos  d'unia  guerra  sem  frurt»,  começaram 
a  murmurar  conlrj    a  inTT.lo   onc  o»  cuiidí  nin,i\a  a 


'morrer  gelados  nas  barracas,  quando  podiam  nacon- 
I  quista  d'aquella  fortaleza  achar  ampla  retribuição  da 
j  aturada    fadiga,    por  haver   alli  grandes   riquezas   de 
I  alfaias,  armas,  prata,  ouro,  pérolas  e dinheiro.  O  ve- 
nerai em  chefe approveitou  afavoravel  disposiçãodas 
tropas  ;   fez  reduplicar   o  fogo  da  artilheria  na  Doite 
de  16  para  17,  e  tendo  conseguido  desmontar  a  qae 
os   cercado*   tiubaro    n«s  redejites  da    trincheira,  no 
bastião  da  fortaleza,    e  na  cortina    do  flanco  do  lado 
esquerdo,    e  visto  voar,    coai  medonho  estampido,   o 
armazém  da  pólvora  do  inimigo,  que  uma  bumba  in- 
'  cendiara,  ordenou  o  assalto  geral  no  dia  17.  As  sete 
i  horas  da  manhã,  sob  ama  abobada  de  fogo  e  por  ci- 
ma a'um  pavimento  degeloresvaladiço,  quatorzemil 
homens,  repartidos  em  seis  cul  um  nas,  investem  a  pra- 
'  ça  pur  todus  os  lados  ;  rompem  os  machados  as  portas 
du  forte  de  Hassan  13axá;  correm  rios  de  sangue;  e 
'  Gomes  Freire,  á  frente  do  seu  batalhão,  atira  seábre- 
.  cha,  eedos  priíneirus  que  entram  na  praça,  onde,  aba- 
tido o  estandarte  do  crescente,  faz  tremular  as  águias 
mo'CijVÍtas  soltas  ao  vento  da  victoria. 

Oczakof,   a  tão  cubicada  praça  de  Cruoéa,    Ocia- 

;  kuf,  ao  pé  de  Cujos  soberbos  muros  tinham  vindocair 

'  vinte  mil  russos,    é  tomada  a  ponta  da  bavoneta  em 

menos  de  duas  horas,  sem  lhe  valer  a  resistência  de- 

se-perada  de  doze  mil  musulmanos.  a  maior  parte  dos 

quaes  acabaram  com  as  armas  na  mão  ou  foram  bar- 

iiaramente  mortos  a  sangue  frio  nas  casas  e  nas  cbo- 

iças;  e,  se  não   ha  exageração  n'um  dos  maismoder- 

nos  emais  minuciosos  bisluriadores  da  Rússia,  a  mor- 

tanda<ie  dos  soldados,    homens   do  povo,  mulheres -e 

crianç.<s  subiu  a  v/ute  e  ciuou  mil  pesso.-is. 

,'  Continua.) 

.AgCA    PAKV     dar    >AS   obras    rOlBCADAS,    ARTES   DE 
AS    1-ASSAB     A    PtOKA-rOMBS. 

Toi>os  os  marceneiros  c  amadores  d 'este  género  de 
trabalho  sabem  que  o  óleo,  dado  nas  obras  f^tlheadas, 

j  escurece  as  vezes  muito  a  madeira  :  o  que  se  evita 
usando-seda  a^uj  seguinte. — Tome-se  :  Goniniaara- 

j  bica  em  pó  duas  e  meia  onças  .  Cremor  t.írl.iro  uma 
onça  ;  Sal  commum  uma  onça.  ^-  Desfaça-s>  tudo  em 
meia  canada  d'a;ua.  — ^.Dá-se  uma  demãu  d*esta  asna 
com  um  trapo  jior  cima  du  folheado,  deixa-seseccar, 
e  depois  passa-se  a  obra  com  esta  »gua  a  peóra-po- 
mes,  ou  usa-se  do  óleo,  sem  o  perijo  d'elle  entrar 
muito  pela  madeira. 

Subscreve-se  para  este  Jorncd  na  Typoyrapkia 
oníle  é  impresso ;  na  luja  da  Viuva  Henriques, 
Hua  A>igiista  n."  1  ;  ena  de  Zeferino,  fíua  dns 
Capellisias  n."  32  It.  —  A  mesma  Typographia 
se  poderão  dirigir,  parle  franco,  ussadwres  que 
residirem  nas  Prorincia<,  remellendo  em  caute- 
la do  segttro  a  imp'irlancia  de  sttis  auignntu- 
ras,  em  quanto  se  niio  annunciain  os  ntmus  < 
moradas  dos  Corrc/pondeules  nas  lernu  prinei- 
paes.  Da  mestna  maneira  serec^  a  correspon- 
dência jiura:nen!e  litleraria,  que  será  restituida 
quani)  não  sejíi  adaptada  a  itiiole  da  Jorna!. 

Preço  da  assignatura  annuni  ou  52  X.""   IJíOO 

Dito  por  seme>lre  ou  26  .N." <504O 

N."  avulso OÍ030 

Ao  fm  do  anno  se  publicara  um  iudice  ai- 
pha''eiico.  cvn  o  rosto  i^ara  o  i"'u-ne. 


o  PANORAMA. 


PBAIA   DE  BOTA-FOGO. 


A  BAHIA  ilu  Mio  (l<!  Janeiro  ó  iiin  cIiik  m:\U  riiriiio- 
to»  poilíi»  (|ue  SC  ciiiilieecin,  (leveniio  li  ii,iliir(  ia  to- 
(!at  lis  sua»  vantagiMis  e  prjiici|iiies  allr.-iclivys ',  a  cii- 
Iraiia,  l)iirra  iiiiil  estreita,  dá-liie  o  caracter  de  iiiiin 
aiii[)li«siiiia  liaeia.  ca|iaí  de  leceljer  com  |n'rfi'ita  se- 
(;<iraii(,'a  iiilinilo  niiiiiero  deiiavíoa:  iki  seu  maior 
('oiii|iriiiii'iil<>  1<'iá  beih  le;;ii(in,  ípiasi  na  direii,'ão  nor- 
ti'iiul  :,  II  maior  iar;;4ira  coin|iiila-i-<i  em  rjualro  leguaí. 
A»  iiiar(;ciis  recortadas  em  re<'oneavo»  e  jjoiítaes,  a 
iiiullidão  deiiliju,  povoadas  algumas,  desertasoulrat, 
mas  l(j(las  aprazivcis  á  vÍ6la,  variam  o  i|iiadro  d'eslu 
vasliasiiiio  recinto,  realçado  pulo  aspecto  da  pop\dosa 
capital  lirasiliensi;  qiiu  se  estende  do  lado  doeiciden- 
te,  (içando  liii'  fronteira  a  nova  cidade  de  Nillieroy, 
(jue  avulta  enlre  o»  amenos  silios  rpic  a  circiillidam. 
A  entrada  manifestu-se  ao»  na\ej;aiile»  como  iini  cór- 
lo  leito  cm  cosia  alcantilada,  mas  snliretiido  serve  de 
imircu  o  cerro  de  {granito  denominado  l'ão  de  A*sn- 
tar,  em  rasão  da  sna  lóriíia  Ijciii  dislincla.  A  Irarra 
diviílese  em  duas,  di^  1)0  liraeas  de  lar|,-o  cada  uma  ; 
entre  ella»  aclia-se  o  forle  da  Lii^e,  filo  no  illieu  do 
iiiitsiiio  mimo;,  amUas  são  dcsemliaraçaihis  de  cacho- 
|)0»  erecilcs.  A'  direita  aforlaleza  de  Santa  Cruz  co- 
roa um  promontório  (pieacalia  de  circoiiiMrever  a  lia- 
hiii,  liem  defi  iidida  alem  iPisso  por  outros  pontoB 
forlilicailos,  como  V  illa(.;allião,  illu:  das  Colirns  eon- 
tros  iiiuilos.  Na  retin;uarila  dns  lialerias  de  S.  Jo- 
«é  e  K.  'riicodosio  esta  a  enseada  a  <pie  eliamam  lia- 
ília  e  praia  de  Itotafuí^o,  linda  perspectiva,  paÍ7.a- 
Reiíl  das  mai»ai,'radiiveisc|uearormoscam  as  visinliail- 
VoL.  I. — SiiTEMiiuu  li!,  lylO. 


cas  da  capital.    Para  se  fa/er  alguma  ideia  d  cslabel- 
la  posiijào  veja  se  u  precedente  {gravura. 

A  regularidade  do»  ventos  facilita  o  o  ini;rcs?o  e  a 
saída  dos  navios;  á  noite  e  pela  iiianlià  o  terral  traí 
para  o  mar  os  lialsamicos  perfumes  d,i  costa,  e  pelas 
oníe  horas,  (juando  o  calor  se  torna  intenso,  a  brisa 
do  mar,  chamada  viração,  veiii'  refrescar  suaiemeiite 
a  temperatura.  Os  navios  que  chegam  appro\eitani 
esla  occasião  mais  favorável  para  a  entrada. 

O  panorama  de  Constanlinopola  ou  de  Nápoles  não 
se  avantaja  ao  do  llio  de  Janeiro;  o  viajante  vêcoiii 
admiração  desenvidveremstt  successivameiíteo»  varia- 
dos e  cncaiitadorts  oontoriins  dVsla  iinmensa  hahia  : 
e  iiVsle  ponto  o  Novo-Mumlo  disputa  a  Europa  a  pri- 
mazia dosquadros  naturans.  A  terra  perinanenleiíien- 
le  se  enf;rinalda  com  a  espleiidiíla  vos;elaçào  dojtro- 
piíos ;  dilata  se  a  cidade  ao  lon{;o  da  praia,  cerca  a 
liase  di;  ipiatro  ou  cinco  eminências,  e  allea-se  pela» 
encostas,  em  cima  das  ipiaes  tem  assento  editu  ios  reli- 
gioMi»  t)  a  cidadellrt,  produzindo  mui  picloresco  ctlei- 
lo  ;  nui  aqueduclo  ile  duas  ordens  de  arcadas  li;.;a  iluas 
d'aqurllas  eollinas,  e  eonilui!  a  a;.;ua  potável  aos  cha- 
farizes principaes,  servindo  «o  mesmo  lem|io  deorna- 
nieiilo  accessorio  da  paita;;eiii  ;  esla  construcção  data 
do  meado  d<i  sciMilo  passado.  O  horisonie  e  limitado 
por  altas  montanhas,  curoadaii  de  aUaiilis  e  Hj;ulhas 
de  tàii  singular  forma,  ()ue  fizeram  dar  a  esla  conli- 
llieira  o  nomo  de  strm  Jos  ori/õos,  por  semelharem, 
na  sua  remota  disluncia,  os  tiiho»  d'estes  inslrumcii. 
tes- 


10 


o  PANORA3IA. 


Parece  que  a  circumstanciada  noticia,  dada  por  um 
antigo  collaborador  nosso,  tão  liahil  como  bem  infor- 
mado, em  três  artigos  impressos  no  volume  de  1840 
i!o  Panorama,  nos  dispensava  da  rápida  descripção, 
<|iie  inserimos  agora  ■,  sendo  porém  esta  escripta  pos- 
teriormente pelo  auctor  de  um  livro  sobre  as  reldções 
commerciaes  entre  a  França  e  o  Brazil,  Mr.  Horácio 
Say,  qtiizemos  confirmar  com  volo  estranho  as  não 
encarecidas  expressões  da  admiração  que  excita  a  vis- 
ta geral  da  bahia  e  porto,  onde  nossos  antepassados 
lançaram  com  feliz  escolha  os  fundamentos  de  uma 
grande  metrópole. 

Do  orçamento  da  receita  para  o  anno  de  183Í  a 
1835  exlrahiuse  a  seguinte  tabeliã,  que  mostra  em 
números  redondos  a  distribuição  da  população  livre 
nas  dezoito  províncias  do  Brazil  e  as  quotas  com  que 
cada   uma  d'ellas  contribuía  para  a  renda  nacional. 


o            vi 

1 

'i    '<^     = 

Quotas.       j        Total.         i 

Provincias. 

2     t     ^ 

; 

1=1 

Réis. 

Réis.           1 

Norte. 

Pernambuco.  . 

400:000 

1.490:000;^ 

Paraíba  .   .  .  . 

100:00tj 

137:000;?» 

Rio  Grande  do 

Norte 

30:000 

29:000;Si 

Ceará 

150:000 

122:000íi 

Maranhão  .  .  . 

120:000 

585:000^ 

Pará 

110:000 

262:000;^ 

2.623 :000"^ 

CenUo. 

Goyazcs  .... 

S0:00t 

29:000,<í 

Matto-Grosso  . 

30:000 

37:000;^ 

Bahia 

400:000 

2.396:000;^S 

Sergipe 

50:000 

196:000,<í 

Alagoas  .... 

100.000 

1.39.000;ÇÍ 

Piauhi 

70:000 

100:000,^ 

2.887:000^ 

Sul. 

Rio  de  Janeiro 

320:00e 

5.43a:000,,«Í 

Espirito  Santo 

40:000 

79:000,i^ 

S.  Paulo.  .  .  . 

270:000 

2GI:00U;?Í 

S.  Catharina  . 

40:000 

57:000;Si 

Rio  Grande  do 

Sul 

160:000 

G00:000i^ 

Minas  Geraes. 

(i00:000 

746:000;S 

7.178:000# 

3.040:000 

1 2.090 :000,S 

O  Ca 

STBLLO  SE  SaKCTA   OlÀlA. 

Lenda  do  teculo  XI. 

Fragmento. 

(CoDiiDuado  depag.  3.) 

0 

CaSTELLO    aVEIMADO. 

I 

l>om  timúo  le/as  um  máu  christão. 

Como  de  um 

lIocvK,  ha  mu 

ito  tempo,  grandes  guerras  entre  duas 

poderosas  fami 

las  das  terras  do  Rloiidcgo,  onconle- 

ceu  matarem  u 

m  fidalgo  moço,  de  sangue  godo.  Ma- 

taram-o    .i    fals 

a  fó,   uma  véspera  de  S.  João,  não  o 

deixando,  sequ 

cr,  despedir  do  único  filho  que  tinha, 

ainda  pequeno. 

Por  ler  ^ 

alído  do  rei,  c 

muito  queri-  | 

do  das  damas,  o  enganaram  com  traição.  Foi  ura 
grande  dezar  para  oj  cavalleiros.  As  duas  famílias 
nunca  mais  se  puderam  vêr,  e  entre  ellas  taes  motioi 
se  alevantaram  que  chegou  elrei  a  ter  cuidado. 

Assim  entraram,  sahiram  annos;  as  rixas  não  aca- 
baram. O  que  vencia  n'uma  era  na  outra  vencido; 
os  moços  faziam-se  homens,  i.im  para  velhos  os  ho- 
mens, e  os  ódios  Sempre  constantes  1 

Succedeu  que  o  filho  do  cavalleiro  morto  vieste  a 
namorar-se  da  neta  do  teu  inimigo.  Cumo  foi  nunca 
se  soube  ;  só  contam  qiie  nenhuma  historia  falia  de 
amores  tão  vivos,  nem  de  promessas  tão  bem  guarda- 
das. No  Cm  de  muitos  mezes  deram  o  sim  o»  paren- 
tes d'ella  ;  como  logo  o  acceilou  D.  Moço  Antures! 

A  justou -se  o  noivado  para  outra  véspera  de  S.  Juão. 
N'es3a  noite  fiiíia  qiiatorze  aiinos  que  se  enterrarão 
bom  cavalleiro.  Q.ue  alegrias  por  Coimbra  !  Uiiindu 
o  amor  o  sangue  inimigo,  das  raiies  do  ódio  floria  a 
doce  paz. 

O  homem  põe  e  Deus  dispõe!  O  cavalleiro  morta 
tinha  um  irmão  da  mesma  idade.  Amigos  como  fo- 
ram aquelles  dois  não  (orna  nunca  a  haver.  Inigo  Lo- 
pes queria  tanto  a  seu  irmão,  que  não  estimava  maif 
a  luz  dos  olhos.  Nasceram  gémeos  dia  de  S.  Pedro, 
por  isso  nos  dous  peitos  escusado  era  procurar  mai» 
que  uma  só  alma. 

GLuando  se  espalhou  a  noticia  do  desastre  do  S. 
João  quem  não  havia  de  chorar.'  —  D.  Inigo,  o  ir- 
mão orphão.  —  Sele  dias  com  sete  noites  levou-as  de 
bruços  na  sepultura.  Rompia  a  manhã  do  oitavo  quan- 
do se  levantou.  Cinto  e  espada  deixou-os  ;  ia  a  rezar, 
suspendeu-se.  Ao  entrar  ainda  fez  o  signal  da  crui ; 
mas  ao  sahir...  Jesus!  por  que  voltaria  as  costas  ao 
altar?  Os  anjos  o  defendam  I 

O  que  faria  sete  dias  com  sete  noites  D.  Inigo,  na 
capelia,  só?  Não  o  disse  a  nenhum  vivente;  se  o  sa- 
be alguém  é  a  cova  fria.  Fallava-se  que  um  monge 
vira  tombar-se  a  pedra,  crescer  da  sepultura  um  cor- 
po, e  na  mão  do  vivo  tocar  a  mão  do  morto.  Visões 
do  medo!  Corpo  que  vai  á  terra  não  torna. 

Somente  com  a  aurora  do  oitavo  dia  uma  roseira  i» 
abrir  de  dentro  da  cova  mesmo.  Que  frescas  rosas, 
que  ricos  botões  nos  ramos  !  Mvsterio  I  Se  lhe  pu- 
nham dedo,  murchavam  logo;  uma  tlur  cortada,  e  o 
sangue  cm  fio  a  correr  do  pc.  Sele  rosas  eram  bran- 
cas c  sete  vermelhas,  todas  abertas  áquella  hora.  Ha 
já  também  sele  nuiles  que  debaixo  da  terra,  com  ou- 
tras tantas  feridas,  não  descança,  bradando  vingança, 
o  corpo  do  leal  cavalleiro. 

Não  se  fallou  mais  cm  D.  Inigo.  Um  anno,  depois 
outro,  e  sele  com  mais  cinco  correu  peregrino  os 
desertos  qne  D>'us  pisara,  comendo  das  ervasdo  mon- 
te, bebendo  da  agua  dos  rios,  e  dormindo  as  incle- 
mências do  eéu. 

xVida  penitente  a  d^aquelle  sancto  !n  palavras  do 
mundo.  Deu-,  que  U'  no  fundo  doscorações,  aíTtsIa- 
va  os  olhos  d"elio.  Cedo  u  velhice  do  espirito,  não  a 
do  corpo,  lhe  cavou  de  ruga»  a  testa.  Por  cedo  que 
viesse,  primeiro  lavrou  ainda  a  semente  do  peccado. 
Com  ser  chri-tão  nascido,  nunca  mais  se  encoraraen- 
dou  á  \  irgem,  nem  ajoelhou  a  Ccur. 

Uma  vez,  no  fim  do  lonjo  desterro,  anoiteceu-lhe 
no  deserto  da  "yVníoião.  Subitamente  brilharam  as 
areias  como  chrislal  ;  n;.s  pontas  das  rochas  dançaram 
milhares  de  luzeiros  phantasticos.  FalU-lbe  uma  voi, 
elle  responde,  e  por  sangue  vendeu  a  salvação,  .aca- 
bava o  pacto  de  se  assign.nr,  quando  o  chão,  como  es- 
pelho, lhe  representou  a  fealdade  do  crime,  pintada 
no  rosto.  Tirou  os  olho<  com  horror  de  >i  ,  niasaima- 
gem  pcrseguia-o  por  Ioda  a  parte,  como  a  sombr» 
atrat  do  corpo. 

Na  lolidão  dobravam  sinos  iavisiveis  ;  três  veies  o 


o  PANORAMA. 


11 


cantar  do  gallo  acordou  os  cchos  ^  e  d'alli  muito  lon- 
ge risadas  soltas  nas  profundezas  do  Mar  Morto  che- 
gavam aos  ouvidos  do  renegado.  A»  cidades  maldictas 
sacudiam  alegremente  a  mortalha  d^agua,  festejando 
o  rei  das  trevas. 

i)  chão  furtava-se  debaixo  dos  passos.  O  temporal 
rebentava  com  as  ondas  na  costa,  com  o  raio  no  céu, 
cora  os  furacões  na  terra.  Cedrosantigos,  comoo  Lí- 
bano, estalavam  que  nem  vimes;  as  feras,  tímidas  co- 
mo crianças,  acoutavamse  aos  povoados.  Gluando  tu- 
do supplicava,  por  que  estaria  íurdo  o  corai;ão  do  ré- 
probo ' 

Não  passou  um  dia  d'alii  em  diante  em  que  não 
corresse  atraz  da  perdição.  ll;iiava  a  manhã  ;  ornai- 
díclo  curvado  na  margem  enchia  um  cântaro  na  ri- 
beira do  Jordão.  Kamos  enfezados  torciamse  em  ra- 
ro toldo  sobre  as  ervas  que  a  frescura  mal  amparava 
do  sol  abrazador.  A  duas  passadas  desfallecia  um  ve- 
lho prostrado  da  sede  e  de  cançaço  Uma  gota,  uma 
»ó,  d'a(|uella  agua  era  bastante  para  o  salvar. 

D.  Inigo  negou-lh.i.  Com  o  cântaro  entornado  dian- 
te dos  olhos,  que  tragam  sôfregos  até  a  ultima  lagrima 
d'agua  escarnece  da  anciã  doafílicto,  dizendo;  uVai 
pedir  ao  teu  Deus  outra  nascente  no  deserto.  "  —  Mas 
o  Senhor  não  acudiu  com  prodígios  ao  seu  servo,  pa- 
ra que  elle  abraçado  com  a  resignação  expirasse  ven- 
cendo o  inferno. 

Desde  essa  hora  nunca  mais  Inígo  estancou  a  sede 
que  lhe  ardia  nos  lábios  e  no  coração.  Kios  e  fontes 
cu  se  furtavam  para  lhe  enganar  os  beiços,  ou  mu- 
davam em  lume  a  fresquidão  mal  os  tocava.  A  gota 
d'agua  negada  no  deserto,  na  balança  do  Senhor,  pe- 
lou um  século  de  peccados. 

Cumpridos  quatorze  annos  voltou,  nunca  se  soube 
como,  á  terrado  nascimento.  Contavam  que  um  ca- 
vallo  cijr  da  noite,  olhos  todos  chammas,rião  corren- 
do mas  voando,  o  trouxera  da  Judéa  a  Portugal.  A 
rauda  varria  o  pó,  era  fogo  o  respirar,  as  crinas  fu- 
giam soltas.  Diante  os  montes  suiniam-se  ;  os  abys- 
nios  fapavamse;  e  ao  passar  do  galope  infernal  os 
carvalhos  tremendo  varriam  o  pó,  arvores  de  séculos 
j^emiam  como  juncos,  curvado  o  tronco.  Correram, 
voaram  I  Debaixo  da  ferradura  magica  os  mares  coa- 
lhados eram  diamantes.  As  faíscas,  lambendo  alava, 
ialtavam  da  bocca  dos  volcões  a  coroar  o  rei  do  fogo. 
Ao  juiir  d'alva  o  corsel  leviínloii  as  mãos,  refugiu,  e 
parou.  A  luz  apontava  no  topo  da  cruz  d'uma  ermi- 
da. A'  medida  qne  aclarava  o  dia  adelgaçou  o  cavai- 
lo,  ao  primeiro  raio  di-  s(j1  desfiz  se  em  fumo. 

I).  Inigo  ouviu  tanger  ao  pé  um  sino;  e  conheceu 
o  sitio;  —  u  mesma  igreja  aonde  seu  irmão  jazia  se- 
pultado; o  demónio  não  lhe  mentiu.  Au  primeiro 
passo  abriu-se  o  portal  de  si  nicsnui ;  deu  segundo,  e 
a  capidla  ílluinínuu-se  ;  diu  li'rceiro,  e  seccarain  as 
rosas  vermelhas,  (loríndo  as  branca»  De  dentro,  em 
cântico  suave,  entoavam  o.i/ict  t/iaiis  itctla.o  Esta- 
va emlim  applacada  a  vingança  do  morto. 

A  fú  a  chamar  I).  Inigo,  e  elle  sem  a  ouvir.  A  voz 
do  céu  a  ofl'eruc(;r-lhe  o  perdão,  e  i-lle  surdo  á  miso- 
ricordia  ! 

N'aquelle  instante,  muito  longe  iralll,  orava  a  Deus 
um  suncto  pelo  maior  peixNidor  da  terra.  Arrebatado 
»m  visão  descubriu  um  homem  <u»pindo,  por  escar- 
neo,  na  cruz  de  Christo,  A  porta  da  capella.  O  anjo 
da  guarda,  ajoelhado  no  cro/.eiro,  banhava  delagri- 
inaii  ns  viisles  luminosas.  Mas  o  desacato  gelou-lhe  o 
pranto,  e  cnliriíulo  de  repente  o  ronlo  h\d>iu  iiaara- 
gvm,  até  SI!  perder  nu»  raios  do  sol  nas( tii. 

—  iiA  tua  clemenclii  é  in»(uidavel,  Si^nlior  !  excla- 
mou o  justo.  —  u  Haverá  liunbem  perdão  c  esperan- 
ça |)ara  o  qui;  te  renega.'" 

A  viiuupaiiuu  ;  as  portas  da  cruiidu  fvvharaiii-iecoiii 


grande  estrondo  —  e  uma  voz,  semelhante  á dotem' 

poral  rugindo  nas  selvas,  bradou  ao  longe: — uMe- 
■menlo,  homo,  yuia  pitluit  es !  .  .» 

lí 

J\«o  ha  gosto  sem  jtezar. 

j\'aquelle  tempo,  em  terras  do  Mondego,  que  rico- 
homem  havia  mais  nobre  e  mais  poderoso  queD.Or- 
donho  conde?  Do  alto  do  seu  castello,  até  onde  es- 
tendia a  vista,  vallcs  e  campos  eram  todos  seus.  Um 
aceno  de  lança,  «;  trinta  cavalleiros  partiam  a  bom 
galopar.  Uma  setta  do  arco,  e  centos  d'homenbd'ar- 
inas  em  volta  do  seu  pendão. 

Aquella  raça  vinha  dos  primeiros  lidadores  das  .As- 
túrias; e  foi  sempre  raça  de  ferro  para  os  combates, 
insaciável  na  vingança.  Mouro  ou  christão,  cavallei- 
ro  ou  monge,  se  lhe  desse  uma  vez  o  nome  d'inimi- 
go,  podia  desde  logo  abrir  a  cova. 

A  idade  tudo  gasta.  Açor  \elho  não  vòa  ás  águias. 
Quando  deluixo  da  touca  bordada,  nocorrer  do  mur- 
zello,  o  vento  lhe  açoutava  as  madeixas  brancas,  D. 
Ordonho  bem  sentia  que  se  o  espirito  não  envelhece- 
ra, o  corpo  já  não  tinha  nem  a  metade  d'antiga  for- 
ça. Os  annos  quebraram  o  conde,  que  andava  sem- 
pre triste.  Só  a  neta,  Auzenda  linda,  sabia  o  segre- 
do de  o  espairecer.  Aquella,  mais  que  filha,  encerra- 
va o  seu  único  amor,  duas  vezes  o  sangue  da  sua  alma. 

Na  torre  de  menagem  vigiavam  os  atalaias.  Cru- 
zando de  um  para  outro  lado,  não  faziam  senão  esprei- 
tar se  rompia  de  longe  a  lustrosa  cavalgada  que  ee 
esperava  en\  Santa  Olaia.  Escondeu-se  o  sol  detraz 
do  ultimo  outeiro,  o  clarão  da  tarde  desmaiou  no  to- 
po da  cruz,  apparcceu  em  fim  a  lua,  sem  nas  campi- 
nas ao  redor  se  avistar  um  só  vivente. 

Era  no  castello  véspera  de  noivado;  Auzenda,  a 
bella  Auzenda,  casava  com  D.  Moço  Ansures.  Estava 
por  horas  o  S.  João,  e  cumpriam-sejiístamente  qua- 
torze annos  <]ue  os  monges  negros  rezaram  em  volta 
da  tumba  dVim  cavalleiro  assassinado. 

Pensativa  ao  seu  balcão,  por  que  estará  Auzenda 
mirando  a  coroa  do  fronteiro  monte  ?  Córdova  e  Gra- 
nada, entre  mil,  não  contam  uma  pérola  d'igual  va- 
lia. A  ilor  do  Mondego  não  tem  par.  Sorrilhe  o  céu 
nos  lábios;  c.diellos  louros  são  laços  d'oiro  que  o  ven- 
to ondêa  ;  olhos  azues,  onde  o  amorsuspira  languido, 
oh!  quem  pudera  vence-los  como  d'elltís  foi  vencido  1 

O  delgado  cinto  aperta  no  talhe  csbillo  roupas  li- 
geiras, alvas  lie  neve;  no  rosto  rosas  que  desmaiam  em 
lírios,  no  bocca  um  riso  sua\e,  furtivo.  Oveudetis- 
so  bordado,  ora  solto  folga  á  brtza,  ora  em  pregas  des- 
ce ao  seio,  palpitando.  Eil-a  sao  com  o  luzir  d*alva, 
ferindo  os  pés  de  IVaga  em  fraga  pela  Íngreme  aspe- 
reza da  serra.  IJoninas  e  cecéns  ticem-llu- a  coroa  svl- 
vestre,  pelos  hombros  em  anneis  l\igen\  livres  as  ma- 
deixas. Ajoelhou-se  á  cruz  solitária,  mãos  erguidas, 
olhos  meigos.  E  n  oração  matutina,  que  na  fragrân- 
cia d'aurora  sobe,  como  perfume,  ao  throiio  do  Senhor. 
O  vestido  branco,  deseidiando  ns  formas  graciosas, 
visto  de  longe  (liieluii  na  vaporosa  madrugada  como 
visão,  (|ue  voou  do  céu  nos  raios  da  primeira  liu. 

Ella  a  chegar,  um  cavalleiro  que  sae  do  lado  op- 
[losto.  Trazia  brancas  nriiuis;  no  capello  o  açor  do 
Douro,  e  na  coita  a  cruz  azul  e  branc.i.  E  D.  Moço 
Ansinis.  Aos  (lés  da  cruz  oraram  juntos  —  olVerecen- 
ilo  a  Deus  «quelle  anior.  Elle  deu-lh>^  um  aniicl  de 
prata  singilla,  ella  um  laço  cortado  da»  tranças  d'ouro 

—  ..Voltas.'.. 

—  ..Dia  de  S.  João.» 

—  ..'rào  tarde  '. >» 

—  t.Uuurcs  luait  vvJú.'  uu  véspera  a  meia  uuulo.» 


12 


O  PA1NORA31A 


«Oh!  Juras  .'n  Voltearam  as  danças,  corriam  at  taças,  e  pelas  por- 

i.  Se  jurarei! — á  meia  noule,  ou  morto  ou  vivo.  >'    tas  palenle%  do  alcácer,    uns  e  depois  outros,   entra- 

Seijararam  se.  D('spediu  o  cavallo  pelas  -çiirjraiilas  !  vani  monges,  donas,  e  cavalieiros.  D.  Ordonho  poi- 
rlo  Mionie  até  te  perder  detrazdo  ulliinu  outeiro.  lil-  se' de  pé:  —  u  A'  paz  das  Hcspanhas  1  n  jçritoucoma 
Ja  ficou-o  oliiando  ate  lliefuj;ir  da  \isla  na  distancia.  1  líira  erguida.  A  longa  acdamação  dos  convivas  aco- 
J'or  que  tliorani  os  lindos  olhos   se  elle  lia  de  volta.'  '  Iheu  a  saúde  do  guerreiro  velho. 

(lueni  sabe!  Deullie  o  coração  nnia  pancada.  }       — u  l'oí!-am  como  esta  findaras  rixasenire  irmãos!  " 

No  balcão  o  aue  tcisinará  sósinlia  Auzenda .'  Serão  j  Ainda  não  pnnlia  oxa^o  na  mesa  quando  um  gri- 
receios  de  noiva,  ou  saudades  de  namorada.'  |  to  llie  escapou,  'iodos oiliaram  attonitos.  etodosfica- 

Ao  cair  da  noule  retiniu  a  sineta  ir^talaia.  Do- |  rani  com  as  taças  suspensa?,  imnioveis  como  estatuas, 
nas,  cavalieiros  e  pagens  approxiniavanise  docastel-'  IWo  lo^ar  vasio  do  pai  de  Moço  Ansurcs  derepen- 
lo  ;  é  a  suspirada  coinitiia.  As  armas  reluzentes,  as',  te  apparecia  um  homem  sentado.  \  estia  armas  pre- 
plunias  que  o  \cnlo  (ieiíruça  para  orosto,  os  ricoí  ta- I  tas,  antigas;  viseira  callada  ;  por  cima  cot  ta  nejra, 
l'ardo5  de  nializ  scinliliauí  ai>  fulgor  dos  fachos.  O  som  (  e  n'ella  liordado  o  açor  do  llnuro. 
das  tropas,  o  latir  d^itrelladas  matilhas,  o  relinchar  i  Descalçou  o  -ruanle  direito,  e  tomando  a  primeirj 
dos  cavallus  fu';osi>s,  «  o  voicar  de  cavalieiros  e  peões  laça  levanlou  a  lentamente: 
animavam  o  quadro  mais  bello.  I       — "D.    Ordonho,  conde  Ordonho,  disseste  bem  ^ 

Pela  estatura  de  gigante   o  conde  Ordonho  sobre- i  á  par,  do  S.  João! 
báe.  lí  o  carvalho  velho  que  abriga  osarbustos  ásom-|       Não  bebeu.  Derramando  todo  o  vinho  nas  toalhas 
bra.   O  seu   brado  vence  o  ruido  da  confusão  geral.-    i  escorria  sangue  vivo.  Aonde  pousou  o  pratu  da  laça 


■  II  l'agens,  escudeiros,  fazei  honra  1  " 
A's  lestas  só  um  lioinem  falia  —  com  elle  tudo  fal- 


licou  o  signal  de  ferro  em  brazii.    Alçou  então  a  vi- 
seira. Ollios,  feições  e  nuidos  todos  eram  docavallei- 


ta.  As  frescas  horas  de  junho  deviam  traze-lo  aos  pés  j  ro  morto  fazia  quatorze  annos  aquella  noite.  As  fa- 
(PAuzeiula  —  a  escuridão  cerrada,  e  elle  nãoappare-  j  i-es,  as  barbas  brancas  como  o  sudário  em  que  o  en- 
ce  !  Do  lado  de  Coimbra  não  ha  rebate  de  mouros,  terrarani,  lembravam  qiie  [lor  cima  lhe  tinha  passado 
as  almenaias  visiiihas  dormem  em  silencio;,   qual  se-    o  frio  da  sepultura. 


rá  o  motivo  d.i  tardança  de  moço  Ansurrs.' 

Aiiles  irunir  á  sua  a  mão  de  Aiizenda  o  mancebo 
quiz  justificar   o  teu  perdão    aos  olhos   da  Ilespanha 
clirislã.  —  A    alliatiça    unia    o  sangue  dos  duas  casas 
inimigas;  mas  alli[ierto  (podia-o  elle  esquecer  ?)  não 
jaziam    os  ossos   de   seu  pai  inquietos    jior  vingança  ! 
Aão  ha  nome   mais  feio  que   o  nome  de  covarde,   e 
talvez  dissessem  :    u  I\loço  Ansures,   o  fraco  1    vendeu 
por  uns  olhos  azues  o  sangue  de  seu  pai.  »  Foi  |)or  is- 
so que  não  quiz  deixar  envergonhada   a  boa  espada. 
Saiu  occullainentc  quinze  diasanlcs  doS.  João.  Gal- 
gou   os  montes,    Iranspoz   os  rios,   e  nas  ricas   terras  j 
d'An<!aluzia,  na  lide  dos  pelejadores  de  Leão  Ires  ve- ; 
7.e5  jilanlou  a  cruz  dcCIíristo  nusaniei.!S  mouras.  As- i 
sim  ó  que  D.  IMoço  respondeu  aos  que  fingiam  cho-  j 
rar  jiela  lança  de  teu  tio.  viandou  logo  adiante  o  liei  I 
escudeiro  ao  conde  Ordonho,  e  o  seu  pagem  repeliu 
u  Auzenda  o  juraincnlo  feito  na  cruz  do  monte. 

—  II  A'  meia  noile,  véspera  de  S.  João,  ou  morto 
ou  vivo  !  » 

Na  sala  lie  Sania  Olaia  resoaiii  mil  grilos  d'ale- 
gria.  (iiic  luz  que  faiscain  ai  malhas  polidas,  quere- 
lle.\o  que  cega  nos  dourados  c:ipellosI  Cavalieiros 
moços  faliam  d'aniorcs.  ajoelhi  dos  ás  donze  las  ipie 
os  esculam  noestiado.  Violasedoçaiuasacoiiipaiihain 
as  eiuleixas  novas  do  ubiino  tro\aJi>r.  .Mais  longe,  no 
turbilhão  de  cem  cores,  no  laço  de  mil  lórmas  gentis, 
vollcam  as  danças,  e  o  furtivo  olhar  de  galantes  pa- 
res pronulle  dias  paiecidos  com  este  a  mais  de  um 
solar  deserto. 

Na  vasta  (juadra  do  festim,  em  quanto  não  chegam 
os  convivas,  geme  o  vento  nos  frizus  chuçarias  dusco- 
Inmiielus  delgados.  A  lua,  alia  no  céu,  deita  pelos 
vidros  corados  unia  ;;olpliiida  de  luz  mortal,  que  tre- 
ine na  ponia  dos  ferros  encostados  ú  sala.  — De  re- 
pente as  tr<iin|ias  quebram  o  silencio.  O  clarão  dos 
fachos  retleele,  avisinhase,  e  alarga  o  circulo  orlado 


Todos  quizeram  fugir,  e  ninguém  se  poude  mover. 
O  cavalleiro  era  Inigo  Lopes,  o  irmão  gémeo  de  D. 
Anaur.  (Continua.) 


n.0BKCTO    SOCTHSy. 


A  IxoLATKmiA,  entre  ouhas  \irlui!es  pmpri.i»  d.il 
grandes  nações,  «prescnta  a  de  um  orgulho  legitimo 
de  sombras,  (|iie  se  estira  no  pavimento.  Escanções  |  pelo  ein;i-iiho  dos  poetas,  ou  inventores,  que  »  lUus- 
cnclKUi  taças,  circulando-as  em  redor.  Saúdes,  dic-  Iram  Kol  erloSoulhcy  meric-u  aos  jeuseoiilerraneo» 
los,  risadas  trocam  se,  baralham  se,  c confundidas  vão  |  a  honra  de  um  monninenlo,  cuj.i  estampa  InjedAnios 
de  um  «o  outro  e.\lremo''da  mesa.  !  no  Panorama.  nin'_'"ein  ignora  que  apreço  acollnu  a 

Knire  os  da  sua  raça  1).  Ordonho  é  o  mais  confen- !  carreira  de  WallerSctt,  econi  que  vener.içâo ainda 
lo.  A'  esquerda  tem  Auzènda  ;  á  direita  umescanho  hoje  m;  pronuncia  o  nome  la.vfi  mais  cilebre  «-iilre 
vago  espera  Moço  Ansures.  Defronte,  n'oulru  tam-  os  insignes  escriplorcs  modernos  —  o  nome  de  lord 
bem  vasio,  estaria  o  pai  do  noivo,  se  podesse  deixar  l?vroii.  ao  mesmo  tempo  famoso  pelos  infortúnios  e 
u  sepultura.  Cobre-o  um  grande  >cu  de  lucto.  pela  gloria.  Iau  uma  terra  que  os  sabe  agasalhar,  as 


o  PANORAMA. 


13 


lettras  cullivam-se,  vivem,  e  ennobrecem  a  reputa- 
ção dos  povos.  Athenas  eRoina,  d»  diias  maiores  glo- 
rias (ia  aiilij;uidade,  reinaram  nos  século»  pela  civi- 
lisa^-ão  intellecliiai,  ainda  mais  do  que  pelas  luctas 
(juasi  civis  da  primeira,  ou  pela  amlji(,ão  conquista- 
dora da  sef^und.i. 

Roberto  Sontliey  escreveu  diversos  poemas,  no  que 
á  força  querem  ainda  hoje  chamar  uogoslo  romanli- 
co.  >'  Joauna  (V  Are  foi  o  primeiro,  e  7'Aa/i(6a  o  se- 
gundo poema  da  sua  pcnna.  A'  critica  dos  estran- 
};eiros  não  cabe  apreciar  as  qualidades  da  sua  me- 
trificação, nem  os  dotes  do  seu  estalo.  Esses  pon- 
tos são  do  domínio  exclusivo  dos  censores  nacio- 
iiaes,  familiarisa<lo8  com  os  segredos  o  as  bellezas  da 
língua  natal.  Mas  pôde  se  assegurar  qut;  a  satyrade 
lord  l$vron,  Ião  celrbre  ainda,  aos  bardos  da  Escó- 
cia, a  respeilo  dVlbí  <ití  certo  foi  mais  que  satura,  e 
€!slá  muito  longe  d<'  satisfazer  as  condições  da  im- 
parcialidade lilteraria.  O  nobre  poeta  corrigiu  depois 
o  acerbo  das  primeiras  iras,  e  mais  de  uma  vez  se 
Hrrcpondcu  do  impelo  <lo  cbolera  (|ue  o  arrastou  a  es- 
folliar  os  louros  de  bomcns,  que  o  tracto  litterario  fez 
depois  seus  iniimos  amigos. 

iMas  é  doloroso  que,  em  quanto  a  Inglaterra  ins- 
creve em  jaspe,  como  paginas  do  brazão  bcreditario, 
n  gloria  dos  mais  illusires  dos  seus  íillios,  núsospor- 
tuguezes  ainda  não  achassiinos  nas  ric.is  pedreiras 
d'este  -solo  um  só  mármore  para  lavrar  o  nome  dus 
engenhos  escolhidos,  a  quem  devemos  tanto.  Negá- 
mos até  agora  a  Camões  uma  pedra,  uma  data,  e 
lima  saudade.  Esse  está  vingado^  o  mundo  é  o  seu 
monumento  \  —  em  toda  a  parle,  aonde  se  entenderem 
os  magoados  cantos  da  sua  Ijra,  tem  um  padrão.  Gas- 
támos fcm  dòr  em  assara  pintar  de  ocre  e  vermelhão 
a  architectura  dos  templos  gotliicoa,  cotno  vulgarmen- 
te se  diz,  e  cisámos  com  avaraza  algumas  moedas,  que 
tirariam  de  cima  dVste  reino  a  Te|>relR'nsão  de  in- 
grato que  o  envergoiilia  ilesde  séculos ! 

lia  dias  que  se  ajiagou  o  maior  sábio  dos  nossos 
dias,  o  Sr.  Silvestre  1'inlieiro;  caiiçado  de  uma  lon- 
ga existência  de  estudo  o  meditarão  desceu  ao  tumu- 
lo, e  n'elle  esfiiou  em  iini  o  pensamento  <[ue  tanto 
«mon  o  berço  natal,  e  que  nem  uma  hora  tiquer  <!ei- 
xou  de  lhe  consagrar  as  suas  vigílias.  Diante  da  cos- 
tumada iiidillereiíça,  a  amisade  dosseusdiseípulos  po- 
de ser  que  não  consiga  erguer  o  nioileslo  monumento, 
que  li'inlire  o  pensador  —  o  publicista,  diante  doqual 
a  Europa  se  inclinou  i  om  resju-íto,  e  cujas  lições 
(quem  sabe!)  o  fnl.iro  nos  lançará,  talvez,  em  rosto 
Mão  ter  subido  approveítar.  Ciue  bello  dia  aquelle 
oin  (|iie  a  protecção  ao  estiido,  a  veneração  ao  génio, 
<!  o  respeito  á  gliTÍa  linidineole  se  naturalizarem  em 
J'orlugal.  N'e^se  dia  esta  nação  lormiu  na  realidade 
a  ser  o  reino  de   !).   iM.inuel  e  deí^nnõis 

Vossiim  estas  palavras  ingénuas  ser  ouvidas  —  pos- 
sam estas  breves  linhas  ac-ordiír  no  coração  dos  qua  as 
lerem  o  allecto  pelas  nossas  cousas  e  o  iiinor  pela  ei- 
vilisação,  (|U(!  ha  instantis  de  desespero  moral,  em 
que  parece  que  estão  mortos  e  si.'pultados  para  sem- 
pre. Desgraçado  do  povo  que  passa  frio  e  irreverente 
pcdas  memorias  da  sua  antiga  gloria  —  i;  um  cadáver 
de  que  fugiu  a  nobre  alma  que  o  animiiva  —  a  na- 
ei<inaliibule.  Não  esperem  d'elle  nada  —  era  pedir  a 
lloma  im|ierial  a  espada  de  itoma  consular,  a  Tibé- 
rio as  virtiidi's  au^l(■ras  do  primeiro  censor. 


(JOMUS   í''iii'.iuif.   nu   Animivdi:. 

((ajiilinniniiid  ilr  \\[\'^.  (i.) 

A    IMPK  iiATuiz  premiou    C(Mii    mercrs    honorificas  e 
pecuniárias  os  generaej  u  oíficiacs  que  mul->  se  dis- 


tinguiram na  (ornada  de  Oczakof.  Potemkin,   afora 

um  presente  de  cem  mil  rublos  (8õ:.30O,^00O  réis), 
alcançou  a  grão-croz  da  ordem  deS.  Jorge,  para  ob- 
ter a  qoal,  segundo  se  disse,  havia  aconselhado  esta 
guerra  cruenta,  obra  da  emulação  de  potencias  euro- 
peas,  que  levou  iminensidade  de  victimas  ao  mata- 
douro. Durou  a  campanha  cinco  annos,  e  ireste  pe- 
ríodo morreram  o  sultão  Abdul-llamet  e  o  impera- 
dor José  11^  aquelle,  se  a  fama  não  mente,  de  mor- 
te violenta,  porque  se  inclinava  á  paz.  Selim  III, 
exacerbado  por  uma  serie  de  revezes,  e  pela  perda 
da  praça  do  Ismail,  cuja  numerosa  guarnição  foi  pas- 
sada á  espada,  empenhou  na  desforra  todas  as  forças 
do  império  turco,  sem  o  demoverem  de  seu  propósi- 
to a  fome  e  a  peste  que  assolavam  Constantinopola, 
o  temor  de  cair  traspassado  pelo  punhal  dos  ulemas, 
que,  por  vezes,  viu  bem  perto  do  peito,  e  o  geste 
ameaçador  com  que  um  povo,  pailído  como  um  ca- 
dáver, faminto  qual  fera  no  deserto,  exigia,  ao  cla- 
rão lúgubre  do  incêndio,  que  a  paz  viesseacabar-lhe 
os  tormentos  da  fome.  Exhaustos  os  thesouros,  de- 
cretou (|ue  todos  os  seus  súbditos  levassem  a  cunhar 
os  moveis  ile  ouro  e  prata  para  serevn  pagos  os  exér- 
citos, e,  cuinopara  sedesallrontar  das\lerrolas,  man- 
dou cortar  as  cabeças  d'uni  grão-vísif  e  de  outro» 
grandes  personagens,  ou  pela  culpa  de  covardia  e  des- 
lealdade, ou  pela  de  temerários.  O  visir  Gazi-IIas- 
san-Ha\á,  um  dos  mais  fieis  e  destimidos  servidores 
dal'orta,  (|ue  exercera  os  principaes  cargos  sob  ornan- 
do de  três  sultões,  poz  termo  á  vidaenvenenando-se  a 
si  ou  envenenado  por  outrem,  logo  depois  de  contra- 
hida  entre  a  l'russia  e  a  Turquia  uma  alliança,  a 
que  este  velho  venerando  sempre  se  op[)uzera,  bem 
como  se  havia  oppostodebalde  á  continuação  daguer- 
ra,  que  de  dia  para  dia  causava  novos  estragos.  Com- 
ludo,  resta beleci<la  a  paz  entre  a  Rússia  e  a  Suécia 
ao»  3  de  agosto  de  ITDO,  e  entre  a  Áustria  ea  Tur- 
quia em  4  de  agosto  do  anno  seguinte,  os  gabinetes 
de  Londres  e  de  líerliii  trabalharam  eflicazmente 
paru  coiigraçar  a  Turijuía  com  a  Rússia,  e  vencidas 
algumas  dillieuldades  quanto  a  ficar  a  ultima  com  a 
praça  edistrícto  de  Oczakof,  renasceram  a»  esperan- 
ças d'uma  [)roxinia  [lacificação.  Apressaram-na  porém 
a  declaração  formal  (|Ue  fez  a  1'olonia  de  que  nunca 
entraria  em  liga  ollensíva  com  a  l'orta,  a  continua- 
ção dos  incêndios  que  em  quatro  me/es  tinham  devo- 
rado trint.i  e  (luas  mil  casas,  e  uma  nova  conspiração 
contra  S.dini,  cerc.nlo  pelos  descontentes  dentro  da 
mesquita  de  Achmct,  (ronde  escapou  acusto.  Tudo 
isto  obrí;;iiu  o  governo  turco  a  annuncíar  a  paz,  <|ue 
se  concluiu  cimi  clleito  em  Jassv  aos  1\)  dedezembrn 
de   17"J1. 

Gomes  Krciíe,  (|ue,  estando  aind.i  n  i  lluisía,  fora 
promovido  a  tenente  corcuiel  du  1.''  l'lanu  da  C(jrte 
em  8  de  outubro  de  17U0,  e  a  coronel  do  regimento 
du  marquez  dus  Minas  em  IS  dej, melro  do  anno  im- 
medíato,  voltou  a  l'ortugal  em  setembro  do  17UJ,  con- 
decorado com  o  habito  da  ordem  de  S.  Jorge,  com  ()Ub 
a  imperatriz  (.'atliariíia  o  recompensara  pela  ncçãode 
Oczakof,  alem  di!  lhe  dar  uma  espad.i  de  honra  e  o 
posto  dl-  uoToiíid  dos  exi^rcitos  moscovitas. 

.\  (-'onvençào  Nacional,  em  sessão  de  7  do  marçu 
du  l7'Jo,  declarou  guerrit  ú  lli-spanh.i  em  niuneda  re- 
publica IV.ineeza,  e  votou  (jueo  exercito  dos  1'vrínéus 
se  compo/esse  de  cem  mil  homens.  Carlos  l\  ,  n'uiii 
manifesto  di^  i\\  do  mesmo  ine<,  rceapítulaudoos  es- 
forços (]ne  fi/,eiii  pura  salvar  IjuÍz  W  I,  einc|ueixas 
i|Ue  tinha  d.i  re|Hiblii'a,  levantou  a  luva  ^  e  1'urtugal 
acudiu  á  sua  vi>lnha  e  alliail.»  com  o  cuntingontede 
seis  regimentos  de  inianieria  e  um  de  arlillieriíi,  (pie. 
com  o  título  de  exercítu  auxiliar  do  ilespanha  sob  >■ 
cominando  do  leneiile  general  João  Foibcs  dctskil- 


14 


O  PANORAMA. 


later,  saiu  do  porto  de  Lisboa  na  tarde  de  20  deic- 
tembro,  em  quiilorze  iiavius  de  transporte,  comboia- 
dos pelas  iiáiib  iMuduza,  lioni  Succcsso  eS.  Sebastião, 
e  pela  fragata  Veiius.  u  N"este  exercito,  dizia  a  Ga- 
«eta  de  Lisboa  II."  40,  do  1 ."  de  outubro,  «  vâoconio 
voluntários  o  iiiarqiiez  de  Niza,  João  Gomes  da  Silva 
Telles,  o  dutjue  de  Northumbcrland,  e  opriiici(iede 
Moiitnioreiíc^' ;  o  conde  deCbaloiis  se  elTcreceu  i^tial- 
niente,  mas  licou  detido  por  moléstia,  e  intenta  ir 
por  terra  :  o  mesmo  se  propõe  fazer  Gom^s  Freire 
de  Andrade,  o  qual  depois  de  se  ter  dutinijitido  glo- 
riusaviíule  no  serviço  da  Rússia  e  l'tnssio,  voltou 
«qui  nas  vésperas  da  partida  do  soiíredito  exercito,  a 
qne  de\e  unir-se  para  pôr-se  atesta  do  regimento  de 
que  é  coronel.  » 

Ksla  pequena  porção  de  tropa  sustentou  em  toda 
a  cainpaiiba  do  llossillioa  a  honra  do  nome  portu- 
guez,  e  lez-se  credora  das  disli noções  com  que  a  so- 
l)erana  a  galardoou.  A  granada  ou  a  [JCÇa  <l"artilhe- 
ria  bordada  no  braço  direito  do  veterano  (I)  deviam 
encbel-o  de  ufania,  recordando  que  fora  elle  um  dos 
que  primeiro  se  oppuzeram  á  fúria  dos  francezes. 

A  priiiifira  acção  para  cujo  feliz  resuliado  os  nos- 
sos muito  concorreram  foi  a  de  Ceret,  dada  aos  26 
de  iioveml)ro  de  17'Jt).  Ricardos,  general  emcliefedo 
exercito  liespaiihol,  já  não  tinha  coinmunieaçõescom 
a  Hespanba  senão  pela  villa  de  Ceret,  e  para  o  privar 
d  esta,  Turreau,  general  em  chefe  do  exercito  fran- 
cez,  apreseuta-se  de  súbito  diante  d.i  villa,  e  inves- 
te-a  com  Ímpeto.  O  2."  regimento  do  Porto,  l."de 
Olivença,  e  os  Freire  de  Andrade  e  de  Cascaes,  mal 
acabavam  de  alli  chegar  :  cançadosd'uma  penosa  mar- 
cha, e  repassados  da  chuva,  tomam  parte  noconllic- 
to.  O  incessante  fogo  daartilhcria  republicana  lança 
o  terror  entre  os  defensores  da  villa  e  ponto  de  Ce- 
ret; mas  o  conde  da  União  faz  retroceder  os  fugiti- 
vos, voa  em  soccorro  da  praça,  desaloja  o  inimigo 
d'um  reducto  que  tomara,  persegue-o  até  os  seus  en- 
trincheiraincntos,  á  frente  dos  hespanhoes  e  dos  por- 
tuguezes,  toma-Uie  Ires  baterias  á  bavoneta  calada,  e 
recupera  as  antigas  conimiiiiicações.  Gomes  Freire 
estava  servindo  de  brigadeiro  de  dia,  e  oseudistinc- 
to  valor  foi  elogiado  nos  oflicios  e  participações  do 
general  Forbes. 

Consecutivamente  ganhou  o  exercito  combinado  as 
acções  de  \  iHalonga,  e  apoderou-se  das  praças  de 
S.  Telmo,  l'ort-Vendre  e  Collioure.  As  portas  da 
primeira  abriu-as  a  traição  <loseo  <;overnador,  depois 
de  derrotadas  as  tropas  de  Ooppet,  successor  de  Tur- 
reau, ede  terem  desamparado  os  entrincheiramentos 
de  llan^uls-les-Aspres  ;  Í'ort- Vendre  defendeu  se,  mal 
a  sua  guarnição,  privada  do  soccorro  do  exercito,  quei- 
mou as  munições,  encravou  a  artillieria,  eretirou-se 
para  Collioure.  O  general  Cuesta,  para  a  tomar,  pro- 
curou incutir  o  maior  terror.  Ftz  avançar  demiitea 
.irlillicria  contra  esta  praça,  laiiçou-lhe  algumas  bom- 
bas e  granadas,  e  intimou  a  guarnição  para  depor 
as  armas,  a  querer  salvar  as  vidas.  ()  espectáculo  pa- 
voioso  de  três  batalhões  descendo  do  forte  deS.  Tel- 
mo com  archotes  accesos  para  queimarem  a  cidade 
acabou  de  resolver  a  guiirniçào  a  render-se.  ^o  dia 
■2i  de  dezembro  de  1793,  depois  de  deienoxe  horas 
de  combate,  licaraiu  os  alliados  senhores  de  Colliou- 
re e  dos  seus  fortes  com  88  peças  d'artilheria,  d'um 
arsenal  bem  provido,  e  do  melhor  porto  daco-ta.  K 
tão  deplorável  foi  o  desbarato  dos  fraiiccií-s,  qoe  Fa- 
bre,  commissariu  da  Convenção,  não  podendo  recon- 


(1)  Por  (locroto  de  i  7  de  dezembro  de  1705  se  lhes  con- 
cedeu este  «tisliiiclivo,  sendo  de  ouro  .i  dos  generaes,  de 
prat.i  .1  dos  uniciaes,  e  de  lã  braQca  *  iloi  «nicUei  iDr*riu- 
rcs  c  soldadui. 


duzír  os  fugitivos  á  refrega,  diligenciou  e  conseguiu 
morrer  no  campo  da  honra.  Com  esta  acção  geral 
terminou  a  campanha  de  1793. 

A  Doppet  succedéra  Dagobert,  e  por  morte  deste 
tomara  o  commando  em  chefe  o  general  Dugom- 
mier,  famoso  pelas  suas  viclorias  nos  Alpes,  e  por  ha- 
ver arrancado  Toulon  das  garras  dosinglezes.  O  con- 
de da  União,  general  eui  chefe,  di^no  de  competir 
com  elle,  tinha  reunido  o  grosso  do  exercito  no  cam- 
po de  Boulú,  dentro  de  linhas  fortiticadas  e  guarne- 
cidas de  artilheria,  as  quaes  os  francezes  forçaram  to- 
davia apesar  d'uma  desesperada  resistência  ;  e  como 
todas  as  estradas  estivessem  cortadas,  foram  muitos 
os  mortos,  e  passaram  de  dois  mil  os  prisioneiros.  A 
retirada  fcz-se  com  incrivel  celeridade,  por  espaçode 
dez  léguas,  atravessando  montanhas,  pt-la  beira  de 
precipícios,  e  debaixo  do  fogo  dos  republicanos. 

Ao  primeiro  tiro  de  canhão,  precursor  do  combate, 
pula  o  coração  do  homem  mais  intrépido  :  desperfa-se 
então  com  toda  a  força  cin^tincto  da  vida.  e  o  valor 
verdadeiro  consiste  em  saber  domal-o,  conhecer  o  pe- 
rigo, e  ir-lhe  ao  encontro  :  mas  passado  este  breve 
instante  da  lucta  entre  o  dever  da  honra  e  a  natu- 
reza que  repugna  á  própria  destruição,  o  que  pôde 
na  peleja  trocar  tiro  por  tiro,  cruzar  ferro  com  ferro, 
logo  perdeu,  com  raras  excepções,  o  ap>ego  á  vida. 
N'este  eslad<i  de  exaltação  todos  são  destemido».  Não 
assim  o  que,  medindo  os  perigos,  está  condemnadoa 
pensar  na  conservação  commum  :  n'esse  requer-se 
uma  abnegação  quasi  incompatível  com  as  forças  hu- 
manas. Gomes  Freire  linha  esta  qualidade.  Gluando 
nas  balas  inimigas  ou  nas  lascas  despegadas  das  pe- 
nedias voavam  mortes,  quando  os  soldados  caiam  d» 
cançidos  ou  rolavam  nos  abysmos,  era  espectáculo 
magesloso  vêl-o,  impassível,  cobrindo  a  retaguarda  e 
velando  na  salvação  de  todos ;  nem  causava  menoi 
maravilha,  quando  os  mais  dos  soldados  tinham  lar- 
gado as  próprias  bagagens,  ver  um  punhado  de  arti- 
lheiros portugiiezes  levando  cm  braços  as  peças  pelo» 
alcantis  dos  Pyrinéus. 

Depois  da  retirada  do  \P  de  maio  de  1794  recu- 
peraram os  francezes  S.  Telmo,  l'ort- Vendre  e  Col- 
lioure, e  a  praça  de  Bellegarde,  e  em  20  de  novem- 
bro deu-se  a  terrível  batalha  da  Montanha  Negra, 
disputada  dois  dias,  com  outro  de  intervallo,  e  em 
que  morreram  dois  generaes  em  chefe  :  Dugommier 
no  dia  18  de  uma  granada  que  lhe  rebentou  na  ca- 
beça, estando,  entre  os  seus  dois  filhos  e  outros  ofíi- 
ciaes,  a  dirigir,  docume  de  Montanha  Negra,  os  mo- 
vimentos do  exercito;  e  o  conde  da  União  no  dia  20, 
no  momento  de  montar  a  cnvallo  na  bateria  de  Rou- 
re  para  dar  no  iniiuiío  a  frente  dos  seus.  Pelejou-»» 
todo  o  dia  18  até  anoitecer,  e  grande  parte  do  dia 
20  :  ficaram  mortos  perto  de  dei  mil  homens,  e  pri- 
sioneiros oito  mil,  contando-se  n'esle  numero  o  1. 
regimento  do  l'()rto.  que,  sendo  atacado  por  tret  for- 
tes columnas,  não  poude  de  modo  algum  resislir-lhe». 
l)'aqiii  em  diante  cuntinuou  a  guerra  com  incerta 
fortuna,  porque  se  o  exercito  alliado  obtinha  de 
quando  em  quando  alguma  vantagem,  oshespanhoe» 
foram  perdendo  as  suas  melhores  praças.  K  de  Fi- 
gueiras rendeu-se  covardemente  cm  27  de  novembro, 
e  a  de  Rosas  foi  desamparada  pela  sua  briosa  guarni- 
ção na  noite  de  2  para  3  de  janeiro  de  1795,  depoii 
de  setenta  dias  de  cerco  apertadíssimo  c  mortífero, 
que  immortalisou  a  perícia  do  general  Perignon  e  a 
constância  sublime  do  governador  D.  Domingo»  Ii- 
(|uicrdo.  F.ntretanto  D.  Jv»c  de  Urrutia,  successor 
do  conde  da  União,  bateu  os  francezes  em  Baseara  e 
em  Calabuix,  manteve  a  reputação  d.is  armas  he»- 
paoholas  no  ataque  do  Fluvia  e  outros  recontros,  » 
por   ultimo   na   tomada  do   posto  de   Puig-Ccrda   • 


o  PANORAMA. 


15 


■itio  de  Belver,  em  que  muito  se  distinguiram  oa 
portuguczes. 

£m  virtude  do  tractado  de  paz  entre  a  Hespanha 
e  a  Kraiiya,  assignado  aos  2'2  de  jullio  de  1795,  se 
embarcaram  as  nossas  tropas,  cobertas  dos  elogios 
dos  alliados,  e  tendo  arribado  a  Málaga,  só  puderam 
entrar  no  Tejo  nos  dias  10  e  11  de  setembro.  O  l'ri- 
cipe  Regente  foi  \él  as  a  bordo,  e  fez  muitas  mercês 
a  militares  Ião  beneméritos. 

Gomes  Kreire,  por  decreto  de  17  de  dezembro,  su- 
biu a  marechal  de  campo  graduado,  e  por  outro  de 
20  do  novembro  de  1706  passou  a  eflectivo.  Doisan- 
nos  depois  deu-se-lbe  a  commenda  de  Sancta  Maria 
de  Midõct,  tendo  já  desde  1781  a  das  Herdades  de 
Mendo  Marcjucs,  despojo  ensanguentado  do  duque  de 
Aveiro. 

Em  1801  foi  nomeado  quartel  mestre  general  do 
exercito  d'enlre  IJouro  e  Minho,  e  em  180G  publi- 
cou o  seu  liiisaio  sobre  o  mclhodo  de  ovQainsar  em 
Portugal  o  cjercito,  com  o  Cmd'applicar  o  systema 
da  urganisação  mililar  da  Suis?a,  combinando  os  car- 
gos dos  dillerentes  ramos  de  administração  publica, 
por  tal  modo  que  a  deluza  do  estado  fosse  incumbida 
a  todos  aquelles  cidadãos  próprios  pela  idade  e  pela 
constituição  ph\".ica  para  o  serviço  de  inilicia  n^um 
determinado  periudo,  findo  o  qual,  voltariam,  como 
licenciados,  a  occupar-se  em  seus  antigos  misteres, 
renovando-se  assim  o  exercito  com  pouca  despeza,  e 
liabilitando-se  todos  os  mancebos  para  pegarem  em 
armas  sempre  que  a  pátria  reclamasse  os  seus  braços. 

Os  crentes  em  agouros  não  terão  deixado  de  notar 
que  a  epigraphe  dVste  livro  é  o  seguinte  verso  de 
Uoracio : 

Dulce  ei  decorum  e».  ~ro  pátria  rnorí. 


Seria  vaticínio? 


(Coniinúa.) 


A    COMPAKUIA    DO   CoiUMERCIO    UAJ    PeLLCS.    (1). 

A  CoMi-AMriiA  ingleza  da  bahia  de  Iludson  alarga  a 
»ua  dominação  não  són)cnle  por  Iodas  as  possessões 
britannicaa  n'aquella  baliia  ;  mas  também  pelo  tão 
contestado  teírilorio  do  Oregon,  e  até  n  uma  parle 
da  Califórnia  :  em  relação  ã  America  está  qiiasi  no 
mesmo  caso  da  Companhia  da  índia  a  respeito  da 
Ásia  \  para  a  aristocracia  financeira  e  mercantil  da 
Grã-líretauha  é  um  meio  de  estender  o  monopólio, 
e  para  ogoverno  o  instriiniento  de  adquirir  território. 
A  companhia  da  balii.i  d'lludson  dispõe  irum  ca- 
pital mui  considerável,  dividido  cm  acções  ;  e  a  maior 
jjarle  dos  accionista»  é  residente  na  America,  e  vi- 
giam pessoalmente  os  negócios  da  companhia.  Os  cu- 
bo» ou  leitores  tem  o  titulo  de  sócios,  dirigem  as  lei- 
toria»,  o  tem  direito  a  um  vencimcnlo  eipiivaleiíle  a 
um  oitavo  de  acção,  islo  é,  :25:000  fr.  (I-.UOO^OOO 
réis);,  aos  agente»  subalternos  só  pode  con)p(>tir  anie- 
tade  «resta  «juaiilia,  o  decimo  sexto  de  uma  acção, 
Annualinenie  o»  principaí!»  agentes  reúnem  seemas- 
sendiléu  geral  em  York  (alio  Canadá),  onde  «e  exa- 
iiiinam  o»  relatório»  dosagcMilessi^cundarios,  seliqui 
dam  a»  coiila»  da  sua  gi'reiicia,  se  discutem  e  resol- 
vem o»  proji'cloH  do  operações  paru  o  seguinte  anuo, 
e  «»  novas  orden»  ipie  «<!  hão  <le  expedir  uo»  caçado- 
res de  conlraclo;  em  «umma,  é  esta  a  direcção  ge.ai 
para  tractar  do  migmi^nto  dt;  fazendas  para  acompa- 
■  diia  ,  vigiando  iiiniliido,  nos  ilistrlilos  <|ue  perten- 
cem ú  mesma  privai  ivamente,  a  conservação  dos  caa- 

(I)  Extracto  de  uniu  ohra  mullo  recente  do  iníijor  (í.  J. 
1'oussiu  íocrca  dus  lislaiioí-Uuidus,  u  rcaiòcii  adjacouies. 


teres.  Todos  estes  relatórios  são  depois  enviados  á  di- 
recção de  Londres  para  um  exame  individual. 

Km  virtude  da  sua  organitação,  oii  faculdade  cons- 
titutiva, a  companhia  exercita  sobre  todos  os  seussu- 
bordinados  completo  despolismo,  direito  absoluto  de 
liberdade,  vida  e  morte  sobre  toilos  os  que  andam  ao 
serviço  dVlla,  quer  sub-agentes  e  empregados,  quer 
contractados  eetcravos,  porque  a  escravidãoque  exis- 
te nas  tribus  Índias  é  admittida  igualmente  em  toda 
a  circumscripção  do  dumiiiio  da  Companhia  de  No- 
roeste. 

Os  cabos  ou  feitores  tem  direito  de  vida  e  morte 
sobre  o  individuo  inferior  que  se  não  submelter  aos 
regulainenlus  da  Companhia.  Estipulam,  alteram, 
ou  suppriuiem  á  sua  inteira  disposição  os  salários  doi 
agentes  ou  empregados;  e  lixam  como  querem  o  pre- 
ço de  lodos  os  géneros  ou  objectos  de  consumo,  bem 
como  das  pelles  de  castor  vendidas  pelos  indígenas. 
D  este  modo  realisam,  tanto  em  compras  como  em 
vendas,  lucros  que  não  são  inferiores  a  300  porcento. 

Os  contractados,  em  geral  naturaes  da  Escócia  ou 
do  Canada,  alistani-se  ao  serviço  da  companhia  por 
cinco  annos,  pelo  preço  de  37o  a  42o  francosannuaes 
pouco  mais  ou  menos  (liO^UOO  aUS.5(000  réis)  :  mai> 
recebem  os  caixeiros  das  postas. — Todo  aquelle  pes- 
soal é  armado  e  submettido  á  mais  severa  disciplina 
como  tro|)a  regular:  qualquer  acto  de  insubordina- 
ção é  immediatameute  punido  de  morte. 

Cadaum  caçador  anda  acompanhado  de  dois  ou  três 
escravos.  O  [ireço  de  um  escravo  indio  é  de  dez  até 
vinte  cobertores;  é  mais  subido  sendo  escrava.  Se  al- 
gum morre  dentro  do  semestre  immediato  á  compra, 
o  vendedor  é  obrigado  a  restituir  metade  do  preço. 
O  engodo  da  retribuição  pela  venda  de  um  indígena 
tem  tal  força  entre  os  Índios  que  são  frequentes  os 
exemplos  do  pai  vender  os  filhos. 

A  companhia  cobriu  o  território  do  Oregon  de  fei- 
torias e  de  postos  militares,  que  servem  de  depósitos 
e  de  pontos  de  reunião  para  os  seus  agentes  e  para 
os  Índios.  Fundou  a  feitoria  ou  deposito  central  em 
Vaiicoiiivr,  na  margem  septentrional  e  quasi  a  36 
léguas  da  embocadura  do  Colômbia,  aonde  chega  a 
navegação  avela;  eao  sul  do  mesmo  rio  o  forte  Vino- 
qua,  próximo  á  foz  do  (|ue  tem  este  nome;  invadiu 
parte  da  Califórnia,  e  occupa  uma  importante  posi- 
ção na  enseada  de  S.  Francisco,  que  ó  das  maisbel- 
las  de  todo  o  litloral  noroeste  do  Mar  1'acilico,  e  on- 
de podem  entrar  navios  de  todas  as  lotações.  E  se- 
nhora <le  in.ii»  de  500;0f)0  milhas  quadradas,  ealéin 
d^issu  de  Í2.o00;000  milhas  para  leste  das  montanhas 
ditas  Ilocheuscs.  Finalmente,  como  se  não  bastara  o 
território  do  Oregon  á  ambição  da  Inglaterra,  que 
a»[iira  ao  senhorio  absoluto  no  Pacilico,  embora  ilis- 
piitado;  e  ])ara  não  ter  que  recear  aconcurrencia  da 
lliissia  nos  mercados  da  China,  a  companhia  da  ba- 
hia de  Iludson  tomou  <le  arrendamento  em  lt!o"J,  por 
dez  annos,  lodosos  estabelecimentos  russianos  na  Ame- 
rica dol\'(irte,  in<'(liaiite  o  redito  aniiual  delJOilLiOO 
mil  fraiKiis  ;  coniludo  esta  convenção  «'xcluiii  oposto 
da  ilha  de  SitUa,  em  a  nova  Arkangel,  onde  allut- 
sia  tem  um  i'stabil('ciineiito  mui  vasto.  —  Como  ul- 
timo indício  demonstrador  das  intenções  ila  Iiiílater- 
ra  i|uanlo  a  rsla  parte  da  America,  e  deque  osame- 
ricanos  da  l'nião  se  receiaram,  appareceu  o  pl.mo 
daoccupação  permanente  do  território  do  Oregim  pe- 
la fundação  de  estalHlcciínentos  agrícolas  oindustríaes 
»  par  da  creação  de  escholas  piactieas. 

A  companhia,  para  segurança  do  seu  cominiTcio, 
dispõe  dii  uma  pcípiena  força  naval,  composta  doqua- 
tni  navios  do  alto  mar,  duasgoh-las  destinadas  .i  cos- 
tear a  Califórnia  até  os  pontos  russianoii,  o  um  barco 
do  vupur,  todos  armados  uiiit;ucrra.  Kuiiduu  iiiaii  im» 


16 


O  PANORAMA. 


ilhas  de  Sandwich  uma  estação  onde  as  suas  embar- 
cações vão  tomar  refresco  e  provimentos,  e  ao  mesmo 
tempo  frfzer  negocio.  —  N'esfas  mesma»  ilhas  m  nu- 
meroso; baleeiros  americanos  estabeleceram  também, 
com  o  consentimento  das  auctoridades  locaes,  nma 
estação  de  arribada.  K  com  efleilo  estas  illias  niui 
importantes  da  Oceania  são  as  únicas  que  appresen- 
tam  todas  as  vantagens  de  porto  de  abastecimento, 
favorável  aos  interesses  commerciacs  que  attralieni 
áquelles  mares  todas  as  nações  niaritiroas. 

As  ilhas  de  Sandwich  estão  reservadas  para  um 
brilhante  futuro  de  jirosperidade  comniercial,  pe- 
la sua  particular  sitnação  geographica  na  Oceania, 
equidistantes  da  America  e  da  China,  e  são  a  linha 
obrigada  do  trajecto  dos  navios  europeus  que  vão  as 
Índias  ou  ás  pescarias.  Os  habitantes  indígenas  cora- 
prehcnderam  as  vantagens  de  tão  exceiiente  situação, 
p.  por  isso  tem  procurado  que  a  sua  independência  e 
neutralidade  sijam  reconhecidas,  e  m.andaram  com- 
niissarios  a  AVa^hington,  a  Londres  e  1'arís,  para 
traclarem  de  seus  interesses,  como  nação  livre. 


A  Rainba  NoMAHA^■^*. 

Jixirahido  das  viagens  do  capitão  }Usso  Oilo  de  Kotz- 
bue — A  new  voyage  round  the  world. — 

O  CAPITÃO  Kotzbue  (filho  do  celebre  escrijilor  alie- 
mão,  a  quem  o  nosso  (1)  tlieatro  deve  algumas  obras 
applaudidas,  imitadas  da  lingua  original  pilos  frau- 
cezes,  c  da  franceza  pelos  nossos  arranjadores  no  prin- 
cipio d'esle  século  efins  do  passado),  tendo  apporta- 
do  em  Woaboa,  a  mais  formosa  das  ilhas  de  Sand- 
wich, depois  de  descrever  o  estado  da  illia  —  que  já 
então  revelava  (1823  a  2tí)  um  certo  progresso  de  ci- 
vilisação  — e  a  falta  do  rei^  Tamahamaha,  que  mor- 
rera deixando  herdeiras  do  reino  e  do  mando  as  suas 
duas  viuvas  —  couta  do  seguinte  modo  a  visita  que 
fez  á  segunda  d^ellas,  rainha  Nomahanna  : 

"A  rainha  Nomahanna,  a  outra  viuva  —  diz  elle 
r—é  de  uma  corpulência  enorme  :  parece  ser  o  mais 
ardente  apoio  da  propagação  das  sciencias  na  sua  ter- 
ra. A  lilteratura,  isto  é,  o  saber  ler  e  escrever,  de- 
clarou ellaser  cousa  indispensável  para  alcançar  seja 
que  ofliciu  f(ir  na  sua  corte,  e  envia  os  mais  caducos 
a  eschola.  São  tão  moda  as  orações  como  a  leitura,  e 
a  rainha  vai  duas  vezes  por  dia  á  igreja  n^uma  espé- 
cie de  carreta  de  quatro  rodas,  onde  não  cabe  exac- 
tamente senão  a  sua  volumosa   pessoa.  » 

"A  residência  da  rainha  fica  juncto  ao  forte,  abei- 
ra do  mar.  K  unia  linda  casa  de  madeira,  de  dois 
andares,  edificada  noestvlo  enrojieu,  ciun  j;iiellas 
rasgadas,  e  nma  sacada  aceiadameiíle  pintada.  Fomos 
lecebidos  na  escada  jior  Chinau,  governadordo  ^^'oa- 
tioa.  l'odia  apenas  andar,  pelo  aperto  dos  s.ipalos:,  e 
loino  a  sua  veste  vermelha  não  tivessesido  feita  para 
iiin  bu^to  Ião  ciilossal,  não  alcançava  abotoa-la.  C!um- 
primcntou-ine  repelindo  a  palavra  ^archas^,  rcon- 
«luziu-inc  ao  segundo  andar,  onde  tudo  apprescntava 
um  agradável  aspecto.  Desde  a  base  das  escadas  até 
a  porta  dos  quartos  da  rainha  todos  os  degraus  esta- 
vam cobertos  de  crianças,  de  adultos,  cate  devclhos 
de  ambos  os  sexos,  que,  superintendidos  por  sua  ma- 
gestado,  soletravam  »  abcedario  ou  escreviam  cm 
pranchas  delgadas.    U  próprio  governador  traiia  um 

(1)  Eolzbue  foi  o  primeiro  que  introduziu  oqueosfrance- 
lescbanuni  dramc  larmoijaut,  peyas  familiares,  que  iam 
buscar  lodosos  spu.seUVilos  n  uma  sensibilidaile  nuiilas  ve- 
zes exaí,'geradacafri'ct.iila.  Este  penero de  com posivões leve 
grande  íok,i,  e  o  poeta  allenião  iraeiou-as  com  unij  supe- 
rior!'ladeiucouiesiavol. 


livro  n''uma  das  mãos  e  na  outra  um  pequeno  instru- 
mento de  osso,  que  lhe  servia  para  indicar  e  6«guir 
as  lettras.  DVsles  numerosos  adeptos  os  mais  adian- 
tados em  idade  estavam  alli  mais  para  dar  exemplo 
do  que  para  utilidade  pessoal  :  porque,  na  máxima 
parle,  estudavam,  com  grande  adectação  de  applica- 
ção  e  diligencia,  segurando  o  livro  ás  avessas." 

«A  vista  d 'estes  estudantes,  dosteusestranhos  tra- 
jos, insufficientes  e  espedaçados,  tinha-me  feito  per- 
der quasi  toda  a  gravidade  de  que  me  havia  provido 
para  a  minha  apresentação,  quando,  abrindo-se  as 
portas  de  par  empar,  fui  introduiido  como  comman- 
dante  da  fragata  russa.  O  quartoestava  guarnecidoao 
uso  da  Kiirojia  com  mesas,  cadeiras  e  espelhos.  L  m 
dos  lados  era  occupado  por  um  leito  desmesuradamen- 
te largo,  ornado  de  cortinas  deseda  :  nomeio,  sobre 
finas  esteiras,  estava  estendida  a  rainha  Nomahanna, 
deitada  de  bruços,  lom  a  c.ibeça  voltada  para  a  por- 
ta, e  o  cotovello  encostado  a  uma  almofada  deseda. 
Duas  raparigas,  ligeiramente  vestidas  e  encruzadas 
no  chão,  aos  lados  da  rainha,  lhe  enxotavam  as  mo»- 
case  os  insectos  com  uns  ramos  de|>ennas.  Nomahan- 
na, que  parecia  não  ter  mais  de  htí  aiinos,  eia  uma 
mulher  de  seis  pés  e  duas  pollegadas  de  altura,  e  de 
pouco  mais  de  sete  pés  e  seis  pollegadas  decircumfe- 
rencia  ^  trajava  um  vestido  de  seda  azul,  á  moda  an- 
tiga \  os  cabcllos,  prelos  de  azeviche,  tinha-os  escru- 
pulosamente penteados  e  puxados  para  o  alto  da  ca- 
beça, redonda  como  uma  bolla  :  o  nariz  achatado,  e 
os  beiços  grossos  e salientes  não  afaziam  fejuramen- 
tciuma  formosura,  mas  no  todo  não  tinha  desagradá- 
vel apparencia.  Ao  ver-me  pousou  no  chão  o  livro 
de  psalnios  que  estava  soletrando,  e  conseguiu  assen- 
tar-se,  auxiliada  por  todos  os  que  a  rodeavam  ;  daii- 
do-me  então  a  mão  com  um  gesto  infinitamente  ami- 
gável, e  pronunciando  muita  vez  a  palavra  ^laro- 
has^n,  convidou-me  a  sentar-roe  n''uma  cadeira  «o 
pé  de  si.  >' 

Cl  Disse-me  que  era  christã.  A  razão  que  tinha  ti- 
do para  adoptar  esta  crença  era  haver-lh'a  dado  pe- 
la melhor  de  todas  o  mis>ionario  Bengharo,  que  lia 
e  escrevia  perfeitamente  bem.  Depois,  não  via  ella 
que  os  americanos  e  europeus,  ío</o$  chi-islãos,  leva- 
vam muito  a  palma  aos  seus  compatriotas?  Concluia 
d^isto  por  lanto  que  a  sua  religião  devia  ser  mais 
razoável.  " 

—  u  No  fim  de  contas  —  accrescentava  ella  —  se  es- 
ta nova  fé  não  convier  ao  nosso  povo  .  .  .  está  acaba- 
do..  .  mudamo-la  T  « 

Na  segunda  visita,  Kotzbue  foi  dar  com  a  rainb.i 
a  jantar.  Estava  lambem  de  bruços  sobre  esteiras 
liiias  defronte  d"uni  grande  espellio ;  tinha  diante 
de  si  um  semicirculo  de  pratos  de  porcelana,  que  ci 
circumstantes  Uie  iam  successivamente  apprescnlando, 
e  cujo  conteúdo  engolia  voraimenie,  em  quanto  uns 
rapazinhos  lhe  enxotavam  os  mosquitos  com  umas 
vassouras  de  pennas.  1£  inaccredilavel  o  que  cila  co- 
mia :  era  bastante  para  fartar  si-is  homens,  seis  rus- 
sos, diz  ingenuamente  o  capitão. 

(rluando  acalniu,  aspirou  duas  ou  trcs  veies  com 
evidente  difliculdade,  e  exclamou  : 

—  II  Comi  bem  I  " 

Depois  vollou-scdecostas,  ajudada  pelot  queeram 
presentes,  e  acenou  a  um  latajãocomo  um  Hercules, 
que  parecia  estar  alli  para  algum  lim.  Olatagãodei- 
toií-se  immedialamente  a  ella  de  pese  mãos,  e  poi-sc 
a  calca-la  e  recalca-la  como  se  amassasse  pão  era  pa- 
ra facilitar  a  digestão,  diria  aquella  genle. 

Teodo  gemido  o  seu  pedaço  com  esta  rude  opera- 
ção, descançou  alguns  rftonu-nlos.  Mandou  depois  que 
a  tornassem  a  voltar,  c  começou  novamente  a  comer 
como  d'aotc>. 


:\ 


o  PANORAMA, 


17 


CONVENTO  z>£:  :ac3SA  SEJNHonA  SE  jrssus. 


o  eciNv  KKTn  (li!  N(ií'.a  H<MiIiiira  de  Jcmis  c'  um  t;i]i(i- 
i.iii  ri'íailiiriii('iil()  coiistriiiilo  iid  psI^Io  inoiltTiio  ;  u 
iircliiliíclo  Jo<i<|iiiiii  (lu  Ollv«ir>i  ftií  i|tií'in  licii  o  iju- 
iii.iiiio  <la  failitidri,  i!  «lo  si!U  <'N|)a(j«si>  adro.  (.'iiiiio  íi; 
fjódu  viT  lia  <?sliiui[i.[,  ijuR  dV^lli'  daiixi»,  é  liiToradii 
de  pilhiitrail  do  iirdciu  jniiiia  boliri;  outras  do  ordoiii 
dórica;  f  a  líiiijjcna  ou  IVoíilão  a|iarl,isf  tia  usual  lor- 
lua  triaiu',ular.  (,'olloi'ailo  riu  um  logur  iMiiiiifule, 
com  u  !Jll^o  diautt*  dcbciMido  t-m  rampa  para  o  i>ul, 
o(U;ri;fc  a  ap|)art!ucia  ilc  flegaiite  iiia^i  hlailf,  por  que 
■  iilre  muil4in  si:  rculca 

A  luiidaç,'ãoil'<!hl«  c:ma  rfli;;iima  úaiili(^a.  Km  K<8J 
vioriiiii  d<!  b.  bimão  d'Almada  o»  padr<;H  que  o  po- 
vouraiii  ;  a  ohra  principiou  rom  liteiini  <loHi'iiailo  da 
cuinuru,  o  por  proiiiiã»  do  iirteliiiipo  I).  .I(irj:;o  dt>  Al- 
llieidii  ^  por  «IcíimUi  iiiiuoh  ni-  viu  <d>ri^ada  a  luiHar 
riiiitra  o  udiu  do»  íriíili'»  iiuuoriH,  ipie  M-llie  oppiíxo- 
i'am,  não  poupando  ihloiro»  iirm  ruriilos  pura  aata- 
lliUr  ou  impedir.  O  cdilirio  levaiilou-ho  imii  um  iiilio 
dtiiumiiiado  o  Valle  ila  Kspi-raur»,  aomlc  IjuÍi  Ho 
dii^uvt  de  i'i'druy.a  i<  Hua  mullier  (iuliaiu  uii>a  rruji- 
Voi,.  1.  —  ^íkiicmiiho  11»,  JS40. 


<la  e  iini  cardai,  de  que  fr/.eraiii  dipuijâo  ao<  relifiio- 
sos  i  e  estes  muito  depois,  para  alar!;arcm  n  edifício 
e  a  cerca,  e  para  romperem  a  rua  nova  de  Jesus, 
disde  (1  larj^o  da  if^reja  até  a  eal(;ada  do  Combro, 
com[iraram  diversas  propriedaile»  e  terras  confi-jua» 
HO  seu  mosteiro,  com  auctorisa<;ão  re^ia,  concedida  lio 
ah  ara  de  Ui2;t. 

t:oiii  o  terremoto  de  1753  desalíOii  a  maior  p»rt« 
do  edifício,  e  á  pressa  si:  armaram  liirracas  na  cere* 
para  o»  padres  »e  reeolherem  no  meio  ilas  riiinas  da 
passada  li»liita(,ào.  l).'eorriilos  ali;iiiiH  aiiiios,  o  pro- 
vincial Kr.  José  debanda  llosa  Teixeira  applicou  » 
maior  «elo  á  ree(liliea<;ão  ;  mandou  colirir  a  aluibada 
do  templo  e  ndoriiar  a  igreja;  preparou  o»  dormitó- 
rios, e  erip;iii  ilesdo  oalieerco  todo  o  cunhal  datroii- 
t.iria,  e  a  escada  principal.  Ao  dontofr.  Manuel  d. i 
Cenáculo,  eleito  em  ITCiS,  é  devido  o  actual  frontu- 
piíio  ,  eno  seu  triínnio  si- conipl<'taram  muilasobn,» 
imperleila».  A  exeelleiile  casa  da  livraria,  do  que  nu 
altiiliui-m  a»  pintura»  ilo  teclo  a  ('yrillo  Rluchiido, 
lui  cinprvzuMtu.  O  pudrt  Sarmento,  traductor  da  Hi- 


18 


O  PAJNORA31A. 


blia,  e  o  padre  Mayne,  confessor  de  D.  Pedro  3.", 
também  acoreiceiítarain  varids  inelliorairioiitos,  tanto 
ao  corpo  da  igreja,  como  ás  diversas  oiticinas.  E  do 
padre  Mayne  a  instituição  do  gabinete  de  historia 
natural,  hoje  reunido  ao  museu  que  veio  da  Ajuda  ^ 
a  dotação  da  cadeira  de  zoologia,  ainda  conservada 
pela  Academia  das  Sciencias  i  o  gabinete  de  meda- 
Ihas^   e  a  galeria  de  pintura. 

Neste  edilkio  existem  algumas  obras  de  inncga- 
vel  merecimenlo,  e  á  sombra  das  suas  paredes  flure- 
ceram  os  mais  sábios  e  virtuosos  varões,  entre  os  fjuaes, 
pela  cliaridaili'  evangélica,  sobresaíu  o  verdadeiro 
apostolo!).  l'"r  Caetano  Brandão.  Depois  da  extinc- 
ção  das  ordens  religiosas  estalieleceuse  no  Convento 
de  Jesus  a  Academia  Real  das  Sciencias,  e  tomou 
posse  das  preciosas  collucçõis  de  que  os  frades  tiravam 
gloria,  e  ainda  boje,  com  motivo,  as  lembram  como 
prova  do  seu  amor  ás  lettras  e  ás  artes. 


O  Castello  de  Sanota  Olaia. 
hcnda  do  século  XI. 

Fragmentos. 
(Continuado  de  png.  3.) 

Ill 

Como  do  noivado  saiu  o  cnici  ro. 

Era  meia  noite  em  ponto.  A  sineta  da  ermida  toca- 
va três  dobres  compassados. 

Ao  primeiro,  suspenso  na  c.irreira  estacou  o  turbi- 
lhão das  daiijas.  Homens  e  damas,  immovi'is,  com 
os  esbeltos  grupos,  ainda  pareciam  querer  voar. 

Ao  segundo,  o  somcalou-se  nas  violas e alaúdes.  A 
ultima  noia  tremeu  solitária  nas  prolundas  arcarias. 
Eram  mudas  as  chonias,  e  surdo  fugia  o  sopro  nas 
trompas.  A  cantiga  dos  jograes,  sem  elles  saberem, 
levantou  de  rejjcnte  o  tremendo  dica  Íiíc,  rctumb.m- 
do  em  longo  ecbo. 

Errijavau!  se   os  cabellos   de  terror. 

Ao  terceiro  dobre  gemiMi  o  castello  nos  aliceries, 
como  se  ababis»!;  C"m  o  furacão.  Jogavam  oseir.idos, 
as  torres  vaclllavam  ;  mas  o  encantamento  desfe?,-se 
pelo  condão  de  um  saiictu  eremita.  Tudo  isto  levou 
um  abrir  e  f<-cliar  d'olhiis. 

E  o  cavalleiro  iiegni .'  A  inua  dubrava  o  sinoquan- 
ílo  dusapp.ireceu. 

Que  susto,  que  pavor  não  bouve  ?  L  ny.  a  correr, 
outros  gritando,  e  todos  que  não  se  entendiam!  (iui- 
zeram  fugir,  aculher-se  ao  terreiro  ;  atrai  dVdles  fe- 
chavam as  portas  sem  ninguém  as  mover  ;  diantecer- 
roH-se  o  portal  sem  ninguém  llie  locar,  e  »  ranger 
nas  cornnles  alavam  aslevadiças  mãos  inviíivels. 

Ai,  noili:deS.  João,  noite  aziaga  '.  Os  lindos  ollios, 
que  por  ti  choraram,  valiam  reinos:,  a  alcachofra,  ar- 
dendo ein  esperaiiça,  não  arrebentou  llòr  ao  orvalho 
lieiilu  ^  e  o  teu  palmito,  negra  sin.i  !  não  desfolhou 
cm  ve7.  de  ros.is  mais  qller.lmo^  de  cvprcste  em  leito 
de  noivado. 

Nos  paços  do  conde  quem  atinava  se  o  poder  dos 
inlernos  eslava  sobre  elles.'  O  suor  frio  corria  das  la- 
ces aos  eavalleiros^  o  tremor  do  corpo  tinia  a  espa- 
da contra  a  espora,  A  pouco  e  pouco  raiou  uma  plu- 
ma de  fogo  na  escuridão  ;  crescfii.  alargou,  e  em  nu- 
vens de  fumo  sobem  das  tones  cardumes  de  eham- 
mas.  Jesus!    acudi-llie  !  Todo  o  castello  e^tá  a  arder. 

E  as  portas  cerradas,  e  os  eira<los  altíssimos,  e  o 
fosso  tão  fundo  ! 

A  lua  tornou  a  romper,  espelhando  o  clarão  no  ro 


chedo  talhado  a  pique  um  tiro  de  setta  do  alcácer. 
Rebentadas  alli,  a  sombra  do  choupo  antigo,  ferviam 
as  aguas  nas  fragas,  despenhando  em  cachão  na  ri- 
beira, que  lá  em  baixo,  a  muitas  braças  funda  e  ar- 
remessada, bramia  entre  penedos  broncos. 

Aonde  estará  D.  Ordonho,  conde.'  —  aonde  estaria 
senão  aos  pés  d^Auzenda.  Com  ella  desmaiada  nos 
braços,  aschammas  aroutando-lhe  o  rosto,  voou,  não 
correu,  de  andar  em  andar  até  o  terreiro.  Olhou, 
viu  tudo  cerrado,  as  lavaredas crescendo,  e  pedra  por 
pedra  u  castello  que  ia  desabar.  Os  cavalieiros  sem 
falia  escondiam  as  envergonhadas  lagrimas  que  a  dór 
arranca  ao  coração. 

—  i«  Erusigis,  escudeiro,  a  minha  acha  adamasca- 
da, clama  o  senhor  de  Sancta  Olaia.  Este  pulso  ainda 
pode  com  ella.  Houve  tempo  que  nem  diamante  o 
quebrantava.  " 

—  "Aqui,  tudo  aqui»^  grilou  depois  em  grande 
brado. 

Outra  vez  palpitou  a  esmorecida  esperança. 

Levantam  as  achas.  Golpe  de  cem  machados,  vi- 
gor de  tamanhos  braços,  anciã  de  desesperação  mor- 
tal quebraram  juiictos  na  mas>iça  porta.  Genieu  o  ro- 
ble no  monte,  feriu  lume  o  ferro,  e  os  gonzos  nãoce- 
deram  !  No  castanho  chaieado  nem  signal  dos  finos 
gumes!  Os  machados,  partindo  em  rachas,  lascaram 
até  o  cabo. 

Por  cima  do  alarido  ou\iram-se  estalar  risadas  rou- 
cas. Deitou  D.  Ordonlio  osollios  áquella  parte,  eviu 
surgir  na  coroa  das  rochas  o  cavalleiro  negro.  Espu- 
mava a  cascata  aos  pes  docavallo.  A  direita  brandia 
um  tacho,  e  na  esquerda  a  rédea  mal  continha  o  cor- 
sel,  mãos  no  ar  sobre  o  abvsino. 

—  "Conde  Ordonho,  a  fogueira  do  S.  João  falta- 
va á  tua  festa.  Ahi  a  tens  di"na  d'um  rei.  ]*a<ro  a^- 
sim  as  arrhas  do  noivado.  » 

—  "  Cão  nialdictu  !  n 

—  "  Liembre  te  Ansur,  morto  faz  hoje  quatorze  a;.- 
nos  e  um  dia.  O  sangue  da  lua  raça  nem  chega  pa- 
ra vingar  o  sangue  d'elle.  Cumpra-se  o  voto  delni- 
go   Lopes. 

E  como  se  o  inferno  o  assoprasse,  atea-se  o  fogo 
aonde  não  ardia,  e  mais  lavra  ainda  nas  outras  par- 
tes. D.  Ordonho  ajoelhou.  Nohombro  reclina-se  des- 
fallecido  o  bello  corpo  dAuzenda  ;  as  faces  d'alvura 
do  lírio  encostadas  a  tez  queimada  du  velho  ;  as  tran- 
ças folgando  entre  as  madeixas  brancas,  e  nos  olhos 
languidos,  meios  fechados,  qunsi  expirando  aducelui 
da  vida. 

—  "  Casligai-nie,  Senhor,  dizia  o  conde  i  mas  r«la 
innocente  que  lo^jre  os  verdes  annos.  Não  fei  crime 
para  acabar  tão  ceiio,  e  de  tal  morte.  ...  ca  a  iin  ca- 
lieça  lio  peecador  a  espada  da  justiça  —  pouco  tenho 
já  a  viver  •,  e  do  mundo,  ai  1  não  levo  mais  que  esta 
saudade  !  «* 

E  apertando  ao  coraç.~io  a  neta,  duas  a  duas  lhe 
saltavam  !is  lagrimas  como  punhos.  O  que  n.ío  daria 
o  senhor  de  tantos  eastrllos  evassallns  por  alguns  pal- 
mos de  terra,  por  uma  rcspir.ição  a  fresca  liriza  da 
noite,  que  refrigera  o  escravo  nas  pedras  do»  serros 
visinhos  ! 

O  conde  ergueu  se  1oí;o.  Tinha  lido  nm  instante 
de  fraipieta.    Alma  de  soldado  verja,  mas  nãoqiieiírn. 

A  maior  diir  calou-se  diatile  da  sua  dòr  ;  opranio 
deixou  de  manar  diante  it\iquelles  ulhus  enxulus  ;  e 
o  muís  animoso  eslremt'c>-u.  vendo,  muda  e»«,  passar 
u  Vln;;ança.  Ei  lo  vai  o  velho  fronteiro;  nem  capei- 
lo  nem  ariiez  lhe  cobre  a  fronte,  ou  veste  o  corpo.  No 
rosto  leva  a  morte  e>cripla.  A  orbita  ensniiguenlada 
reluz  chninma  tcrrivel  —  os  lábios  brancos,  convulso», 
Isuflbcam  o  extremo  suspiro  Dei\ai-o  ir,  é  o  castigo 
Ide  Deus-,  —  ineliiiai-vos,  c  o  soneto  amor  de  pail- 


o  PANORAMA. 


19 


A  águia  real  ferida  não  cedeu.  Ainda  sobe  a  ulti-  ; 
ma    vei  com  a  flecha  varando  o  peilo.    Cine  fogo  na 
vista  iinmovel,  cjiie  fria  raiva  no  vôu lento  !  oh  '.  guar-  ! 
de-se  o  falcão  —  primeiro  mcjrrerá  que  o  rei  dosares  I 

Toldou-se    o  céu,  a  lua  escondeuse,  e  nas  alturas 
o  vento  bramiu    profundo.   Até  ao  longe  nos  plainos  j 
e  nos  outeiros    o  clarão  do  incêndio  tingia  campinas  i 
e  casaes.   No  castello  o  fumo,  ora  fechando  em  corti- 
na espessa,    ora  rasgado  dos    furacões,    rompendo  em  ' 
rolos,    entre    faíscas    como  espadas:,    as  aguas  espada- 
nando nas  tragas;  o  relâmpago  liimbcndo  a  coroa  dos 
montes;    o    trovão  estourando  em  estampidos  medo- 
nhos; qnc  especlacnio  de  terror  para  todos,  deadmi- 
ra^-ào  sublime  para  tão  poucos  ! 

A  aza  da  tempestade  varria  a  face  da  terra  ;  quem 
V  o  vulto,  encostado  ao  arco,  no  alto  da  torre  albar- 
ran  ?  Tremem-lhe  aos  pés  as  lageas  abrazadas,  e  não 
assiMite.  Sobre  a  cabeça,  cruzando  os  dardos,  fogem  ; 
amiúdam  mil  scentellias.  e  não  as  vê.  Ao  lado  o  fra- 
gor dos  madeiros  estalando,  o  gemer  das  paredes  que 
abatem,  e  nãi)  acorda.  Pas^a,  rugindo,  o  temporal 
pelos  Cfdros  e  fstronca-os  ;  o  raio  fuzila,  lascando  a 
montanha;  as  torrentes  são  rios  caudaes  :  —  qual  é 
o  escudo  do  filho  do  homem  que  não  vacilla  ? 

A  desesperação',  (lue  lhe  importara  ao  desgraçado 
as  ameaça»  do  céu  ou  as  ruinas  da  terra?  Nas  mãos 
<|UPÍnia-lhe  a  taça  do  fel  —  no  coração  tem  a  peinr 
morte  —  a  morte  d^alnia.  Chorem  por  elle  os  que  po- 
dem chorar  ainda  —  ha  poucas  dores  como  foia'|uel- 
1.1  dor. 

U.  Ordoiiho,  o  conde,  o  senhor  de  sele  castellos,  a 
lança  de  vinte  cavalleiros,  o  pendão  das  terras  de 
Coimbra  morreu  cm  vida.  A  torre  de  seus  avós  foi 
"  ji"'o"  aonde  se  enterrou  com  as  suas  armas  o  ulti- 
mo fillio  de  uma  grande  raça. 

Saiu-lhe  emfim  do  peito  um  rugido  semelhante  ao 
furacão,  abjsniando-se  nas  cavernas  da  terra.  l'elas 
faces  correu  a  livida  cór  da  ira.  Encurvou-se  o  arco, 
vibrou  a  corda,  e  a  vista  accesa  mediu  a  distancia. 
Ai  do  que  receber  o  tiro!  A  sefta  escrava  espera  um 
aceno  para  se  despedir  livre,  sibilando  ao  alvo. 

De  repente  três  vezes  estoura  o  trovão,  e  três  vezes 
o  logo  do  céu  ilbnnina  os  valles  e  os  campos.  Sôa  o 
galope  d'uni  cavallo;  e  raspando  as  fragas  do  monte 
a  lerradura  d^aço  retine  ao  longe.  Armas  brancas, 
capello  sem  viseira,  no  peilo  o  açor  do  Douro,  na  cot- 
ia a  cruz  azul?  Será  D.  Moço  Ansures  ?  A'  claridade 
do  relâmpago,  á  luz  do  facho  do  cavalleiro  negro  vi- 
ram o  corsel  enuovelar-se  estacado  na  aresta  do  pre- 
cipício ;  os  pé»  já  descaem  pelo  declive  aprumado.  Ca- 
vallo e  cavallifiro  banhados  cm  suor,  suspenso»  por  um 
lio,  arquejam   tremendo  a  sezão  do  perigo. 

O  que  D.  Inigo  lhe  <liz,  o  que  elle  responde,  nin- 
guém o  ouve  —  o  vento  bramia,  e  f.diavam  manso. 
l'ouco  depois,  com  o  ginete  empinado  meio  corpo  na 
voragem,   D.   Moço  exclama  : 

—  i.Koge,  mais  as  tua»  vinganças;  nnildicto  o  no- 
me que  lo  deram  no  baptismo.  Renegado  !  troca»  pe- 
lo inferno  o  paiaizol  . —  Anlc»  a  morte  que  ter  san- 
gue do  teu  sangue  !  n 

O  renegado  não  replica.  Atira  o  f.icho  ás  aguas. 
Ja  tinha  a  espada  sobre  D.  Moço,  já  o  golpe  d(!scia, 
luzilauflo  na»  treva»,  e...  asnoMou  nnni  setl.i  ;  expi- 
ra a  bbisphemia  na  bocca  do  mahlicto  :  e  o  mancebo 
mal  percebe  rolar  o  lionwm  au»  pe»  do  ginete,  torcer 
Os  dedos  no»  raino»  do  clioupo,  e  resvalando  o  corpo, 
didmdo  ii(js  are»,  liatendo  nas  rocha»,  cnlerrar-se  nos 
cachões  da  cascata,  iPonib-  espirra  a  gr.inile  aliura 
esciMini  e  sangui-. 

Nu  torre  do  alcácer  ri'»oam  no  largo  brados  de  triíim- 
pln>.  Por  inslanten.  soltos  ao  temporal  que  os  esfia- 
lha,  (hicl    am  os  cabelloí  do  conde  Drdonho.   A  cslii- 


tura  gigante  avulta,  cosida  nas  cbamraas,  immovel, 
n-.agestosa.  Depois,  com  grande  fragor,  abateuse  a 
torre,  as  quadrellas  voaram  soltas,  as  traves  accesas 
girando  remoinham  sobre  si,  e  d'entre  os  estroços, 
como  em  leito  Iranquillo,  o  velho  guerreiro,  sacudin- 
do o  pendão  no  braço,  parecia  desafiar  ainda  cora  os 
leões  victoriosos.  Honra  ao  que  morre  sem  virar  o 
rosto,  amortalhado  nas  suas  armas,  envolto  no  seu 
pendão  !  Ao  cabo  d'oitenla  annos  de  pelejas  o  fron- 
teiro de  Coimbra  desceu  armado  a  sepultar  comsigo 
a  raça  orgulhosa  de  rio  d'Ave.  Do  alcácer  ficou  soa 
torre  que  além  vemos,  e  aquella  ermida  aonde  jazo 
pó  dos  ossos  de  D.   Ansnr. 

—  "E  D.  Moço?»  perguntou  Martim  Paes.  nE 
Auzenda  ? 

D.  Moço,  continuou  o  monge,  véspera  de  S.João, 
como  prometléra,  corria  já  de  noitecaminhode  Sanc- 
ta  Olaia.  Ainda  longe  do  alcácer  deu-lhe  nos  olhos 
o  resplendor  do  incêndio.  Teve  um  presentiraento. 
Crava  esporas  no  cavallo,  despede  a  carreira  por  tor- 
rentes, p.)r  cabeços,  por  fragas  alcantiladas.  A  tem- 
pestade a  rebentar,  e  o  ginete  sem  se  deter.  Maisao 
perlo  viu  distinctamente  o  castello  arder.  Novo  esti- 
mulo, e  corrida  mais  veloz.  Já,  sem  saber  por  onde, 
na  escuridão  sentiu  o  cavallo  parar  e  tremer,  o  lu- 
zeiro d^um  facho  cegar-lhe  a  vista,  c  lá  em  baixo,  mui- 
to lundo,  quebrarem  as  aguas  com  grande  motim. 

O  que  enlão  succedeu  já  eu  contei. 

.Mal  expirou  D.  Inigo  desbz  se  o  encanto;  e  D. 
Moço  procurou  Auzenda.  Quando  chegava  quizbei- 
jar-lbe  as  mão.» ;  a  bocca  recuou  <lcis  dedos  frios  de 
neve.  O  seio  já  não  arfava,  os  olhos  não  viam.  Le- 
varam-na  a  ermida;  piizeram-lhe  a  coroa  de  rosas  \ir- 
ginaes,  e  a  terra  comeu  de  quinze  annos  aquella  for- 
mosura, inveja  das  Hc-panhas. 

Uma  hora  só  nunca  mais  deixou  de  travar  a  D. 
Moço  a  amargura  da  separação.  A  saudade  matou- 
Ihe  os  prazeres.  Arrumada  a  lança,  encostada  a  espa- 
da, nunca  mais  os  seus  joelhos  apertaram  o  fiel  ca- 
vallo das  batalhas.  O  que  iria  fazer  agora  aos  com- 
bates? Se  a  gloria  não  tinha  já  a  quem  a  dar;  se  a 
pátria...  oh  1  talvez  essa!...  nem  já  por  essa  aque- 
cia o  gelo  d\iijuelle  coração.  Sombra  do  que  fora,  o 
que  lazia  o  desterrado  n'este  valle  de  lagrimas  ?  Amor, 
ambição,  esperança  vira  as  morrer  jiinclaniente  com 
a  flor  dos  seus  annos  na  cruz  em  que  penava. 

Conjo  o  carvalho,  que  as  aguas  minaram,  debruça- 
va os  ramos  nós  sobre  o  oceano  da  vida;  e  vendo  fu- 
gir outras  arvores  com  as  ondas,  e  vendo  as  rosas  pal- 
pitar arrebatadas  na  corrente — perguntava:  Oh! 
(juando  será  lambem  para  mim  a  hora  desejada  ? 

Na  anciã  das  veladas  noite»,  ao  amortecerda  lâm- 
pada sentia  a  dõr  mais  vi\a  recordar-lho  o  que  per- 
dura, (iue  espinho  cruel  é  a  memoria  !  Sobre  a  ma- 
drugada (seria  mvsterio?)  o  somno  pous.iva-lhe  de  le- 
ve nas  pálpebras  molhadas  de  lagrimas.  .Vcordavu  so- 
bresallado,  nem  dormira  instantes.  O  delirio  dos  sen- 
tidos inoslravalhe  então  ao  pé  do  leito  a  imagem  que 
traziii  no  coração  —  era  cila;  via  a  como  nos  diasd.i 
sua  lielleza  ;  a  mesma  grinalda  ile  lU^res  do  campo 
sustenilo  os  cabello»  louros;  as  inesoia»  roupas  alva» 
diseidiando  formas  clivinas.  í>s  olhos,  brincaiulo-lhe 
o  raio  do  vivo  amor;  o»  lábio»  a  sorrir,  abrindo  co- 
mo rosas,  fallavam,  mas  não  se  ouviam.  No  dedo  o 
annel  dos  cponsae»  —  aquelle  que,  havia  um  anuo, 
ambos  trocaram  no  cruzeiro  ila  serrii.  a  despedida. 
1).  Moço,  corri-ndo,  <|in'ria  estreitar  ii  visão  ao  pei- 
lo, e  ao  aperla-la  apertava  »ó  o  nr.  N'estes  tormen- 
tos eidczou,  ijue  não  vivou,  inejc»  sobre  iiioius,  ate 
ijwe  liou.»  annos.  contados  líti  noite  1'alul,  morreu  no 
pobre  mosteiro  «onde  ^e  retirara. 

Ao  umorlalha.Jo,  iicliaraiulhc  u»  mungos  um  laço 


20 


O  PA1VORA3IA. 


He  cal)ello  sobre  o  coração,  seguro  nos  Aedm  liirlo». 
l'or  iiiaii  que  fizessem  não  lh'o  puderam  tirar.  Pelo 
niiarto  tfiiiva,  os  que  velivam  ;mj  lado  da  tuiiilNi  ador- 
iiiffHraiu,  o  um  (jue  y.i\:i  em  ora<;ão  eoiítou  di-pois 
que  vira  appareccr  uma  dama,  formosa  como  os  an- 
jos, e  ajoelliar-se  cliorando  sobre  a  cova  ;  de  dfiitro 
»aír  um  liraço  ■,  e  cila,  com  a  mão  apertada  na  do 
morto,  cingir  llie  na  testa  a  sua  coroa  de  cecéns.  Um 
guerreiro  de  armas  negras,  rodeando,  sem  o  romper, 
o  circulo  luminoso  que  a  cercava.  Ires  vezes  tentou 
quebra-lo.  e  outras  tantas,  retirando  o  pé,  vergarso- 
bre  o  joelho,  arrastada  a  face  no  pó  do  templo.  Era 
o  noivado  dos  mortos  entre  Auzenda  e  D.  MoçoAn- 
.sures,  — e  a  sombra  de  Inigo  Lopes,  que  ainda  per- 
seguia implacável  o  sangue  do  conde  Ordonho. 


VPl  ^OXVVIENTO  I^A  SB     SE  I.I3BOA. 

l'Al>aÃ<>  de  diversas  idades,  a  Sé  d^  Lisboa,  sem  ca- 
ractcrlsar  absolutamente  neuluima.  tem  herdado  de 
todas.  Vê-se  que  a  mão  dos  séculos  llie  deixou  p;rava- 
do  osello  particular  de  cada  um  ;  mas  debalde  se  pro- 
curará encontrar  no  seu  todo  aquella  perfeita  revcla- 
<;rio  que  denuncia  para  logo  aos  oUios  do  observador 
o  génio  de  uma  epoclia. 

Todavia  no  interior  do  templo  da  Sé  parece  revoar, 
na  solemnidade  dos  seus  magcslosos  destino»,  o  espi- 
rito da  religião.  N'aquellas  fei(;õe5  beterojjeneas  ha 
o  que  quer  que  seja  que  infunde  respeito  —  n'aquel- 
las  relíquias  augustas,  legadas  pelas  gerações  ás  gera- 
ções, como  que  se  cstamiiou  o  n>vstorio  de  uma  cren- 
ça divina. 

Será  porque  n^essas  paginas  de  m.Trmore,  apesar  de 
desordenadas,  vive,  se  não  uma  historia  completa,  ao 
menos  a  memoria  ile  muito  feitoglorioso  .'  —  será  por- 
que a  V07.  dos  nossos  maiores  nos  esteja  alli  fullali- 
do  de  cada  pedra,  posta  pelo  b.aço  das  eras  succes- 
sivas  ? 

INão  sabemos.  Sabemos  só  que  otcmploé  dos  raros 
que  ainda  boje  fazem  impressão  no  espirito  dos  que  o 
visitam.  Assombra  ainda  o  seu  aspecto  grave  e seve- 


ro —  reputamo-iios  pcrqueno»  aili  porque  nos  achamos, 

não  entre  homens,  mas  entre  sanctus  ^  não  entre  as  tur- 
i)as  de  hoje,   mas  entre  as  raÇdS  desapparec-idas. 
Pois  as  lendas  e  a»  tradições  que  la  vivem  airídal 

A  poesia  solemiie  do  pa»-ac;o escreveu  também  n'a- 
quellas  paredes  os  seus  dislicos  mvsteriusus,  a  pardos 
emblemas  svmbolicos  da  areliitcclura. 

li  quantas  tesmunb;is  do  que  é  ido  avultam  .-íili- 
da  alli,  despresaiias  e  ignoradas,  no  sanctn  recinto'. 
Não  terão  ellas  nina  »!gni!Ícarão,  não  representarão 
uma  iiiéa,  não  se  iiivolverãu  n^um  pensamentucomo 
u  um  veti  preservador? 

Infinitos  objectos d'es!>es  podíamos  appresenlar  :  en- 
tre elles  indicareinoa  agora  um  só  —  a  eaoeira  de  pe- 
dra, que  se  pude  ver  nu  claustro  das capellas chama- 
das alI'oiisiii,is,  á  direita  do  ailar  niór,  equehojeda- 
mos  copiada  na   nossa  estampa. 

Tem  a  data  de  lti:2!).  A  sua  historia  está  reduzida 
somente  a  conjecturas.  Corre  que  um  rei  í).  AfTonso 
alli  vinha  assentar-se  para  dar  sua  audiência,  c  ad- 
ministrar justiça.  Ha  também  quem  pretenda  que  fo- 
ra mandada  pór  n'aquelle  siliu  por  elrei  D.  AQun- 
so  VI. 

A  dala  que  se  lhe  lê  oppõe-se  evidentemente  a  se- 
gunda opinião,  iim  1629  ainda  D.  Aflonso  VI  não 
eia  nasciio.  U  mais  próximo  rei  d"este  nome  é  por 
tanto  D.  Allonso  V.  —  Aflonso  V  porém  viveu  muito 
antes  de  llji29,  e  ainda  «'este  ponto  a  data  vem  ine- 
xoravelmente repellir  a  tradição:  no  século  W  nãc 
era  já  uso  administrar  justiça  senão  nos  paços  e  tri- 
bunacs. 

Kesta  por  tanto,  na  nossa  humilde  opinião,  uma 
só  probalillidade. 

O  costume  de  irem  os  reis,  ou  chefes  do  estado,  ou- 
vir os  povos  nascatliedraes,  ou  as  portas  d"elU9,  é  ante- 
rior e,  só  por  algum  tempo,  conteinporaneodamonar- 
chia.  Quem  nos  aiQança  que  este  pequeno  monumen- 
to não  seja  obra  dos  primeiros  soberanos.'  A  data 
que  se  intenta  dar  como  prova  da  sua  origem  não  pi>- 
ilera  por\eiitura  ler  sido  aili  posta  como  indicadora 
do  seu  reparo  ! 

U  I  ste,  cremo-lo,  o  único  modo  de  harmonisar  as 
provas  da  historia  com  aijuella  demonstriíção ;  tanto 
mais  quanto  outras  ruzôcs  vem  ainda  reforçar  esta 
opinião. 

A  capella  mór  da  Sé,  como  lodus  sabem,  eraanti- 
gniiiente  rota  para  todos  os  lados.  Não  se  tinham 
construido  os  claustros  actiiaes,  c  o  altar  niór  vinha 
por  tanto  a  ficar  erguido  e  »olit»rio  no  meio  d'um.t 
ampla  quaora.  Combina  por  tantoestacircumstancia 
I  com  a  tradição:,  eéprovavel  quejan'essa  epnrha  alli 
estivesse  aquella  cadeira.  A  sua  posição  a  direita  do  al- 
tar, no  centro  d"um  grande  espaço,  parece  justificar 
I  o  uso  patriarchal  que  lhe  é  atlribiiidu. 

.Memoria  mvsleriosa  à'outro  tempo,  talvei  relí- 
quia veneranda  da  robusta  adolescência  de  um  povo, 
nas  suas  pr.ícticas  iiniis  respeila\eis  —  o  antigo  mo- 
I  iiiimentinhu  lá  está  ainda  a  segredar-nos  ao  ouvido  o 
que  quer  que  seja  daquella  grande  viila  dos  antepas- 
sados, tão  cheia,  tão  activa,  vivida  tanto  asclaras... 

Tão  diversa  da  nossa  vida  de  hoje  —  recatada,  dis- 
farçada ;  gangrenada  por  dentro,  (Milida  por  fura  ,' uo 
intimo  tempestuosa,  uniforme  nu  exterior! 

Lu  está  :  escapou  a  invasão  do  camartello  devasta- 
dor. ISão  se  lembraram  ainda  d'aquella  pedra  pa- 
ra... para  approvcila-la  n'uma  tarada  de  agua  fur- 
tada, como  aconteceu  á  lousa  do  conde  Andeiro  em 
S.  Marliiibo;  ou  em  supporle  de  carniça,  comosuc- 
!  cedeu  ao  templo  de  Diana  em  livora,  converti<ioen» 
aç<ms;uc.  por  graça  de  um  muito  proveitoso  eappro- 
veitado  barbarismo. 

Lá  está  cora  eíTcito.  Valcu-lhe  talvct  a  sua  peque- 


o  PANORAI>IA. 


21 


iiez  para  evitar  a  í^uiilia  dos  nivelladures,  e  o  desti- 
no de  iiiaÍ!>  de  iiiii  seu  iruiâo  e  coevo  no  recinto  do 
templo. 

Pois  (jue  !  haviam  de  consr-iitir  el!es  uma  pedra 
ctcura  e  leia  —  quer  dizer,  augusta  e  veneranda  —  a 
macular  aquelle  rcgalhido  alvejar  da  cal  e  do  gesso. 
Ijso  sira,  isso  é  que  é  formosura  :  que  lhes  vão  lá  dar 
cousa  niais  para  ver-se  e  aJmirar-se  do  que  um  mu- 
ro l)ein  liranci>'  e  bem  liso  1  O  aniarellejar  liumido 
das  arcadas,  o  aspicto  mclancholico  e  grave  das  fron- 
tarias,  aquelle  respeitável  e  augusto  testemunho  dos 
aeculos,  que  parecem  assenlarse  nas  cornijas  vestidas 
de  heras,  como  no  seu  throno  natural,  e  vão  acordar 
no  fundo  d'alnia  tanta  memoria,  tanta  impressão, 
tanta  idéa  —  isso  que  importa?  —  Càue  o  ardente  res- 
pirar d^unias  e  outras  e  outras  gerações,  que  vie- 
ram ajoelhar  ante  aquelles  monumentos  e  passaram 
e  caíram,  tenha  colorido  pouco  a  pouco  essas  pedras 
—  vale  isso  porventura  alguma  cousa?  ííão  anligua- 
Ihas,  são  velhices,  são  ninharias.  De  rebvs  minimií 
non  cu7-al  l'r(zlor.  O  nossu  secnlo  é  essencialmente 
alindador  e  económico.  IClegante  e  confortável,  com 
uma  das  mãos  estende  caminhos  de  ferro  e  lavra  ca- 
deiras á  Voltaire,  com  a  outra  varre  do  solo  os  mo- 
numentos, que  lá  tinham  deitado  raizes,  porque 

porque  lhe  impedia  as  vistas.  \'arre-os  ^  e  se  os  não 
varre,  caia-os,  que  é  talvez  peior  ainda. 

Não  ralhamos  dos  caminhos  de  ferro  c  cadeiras  á 
\oltaire.  Deus  nos  livre;  mas  não  podemos  deixar 
de  bradar  alto  contra  o  vandalismo  e  a  barbaridade. 

Tornando  ao  nosso  monumentinho,  pela  terceira 
ve7,  repetimos  cora  o  alvoroço  do  descostume: 

Lá  está. 

Se  figurasse  em  logar  mais  a|)parente  ter-lbe-iajá 
acontecido  provavelmente  como  ás  columnas  do  tem- 
plo, suas  irmãs  talvez,  de  mármore  antigo  n  precio- 
so, e  hoje  c/«ya»iíf  ccoii/oríauíVjntítíc  cobertas  d^lnla 
camada  de  estuque  —  ter-lhe-ia  acontecido  comoaos 
antigos  capiteis,  que  a  esculptura  morta  havia  reca- 
mado laboriosamente  de  finos  lavores,  e  que  a  mão 
dos  restauradores  esclarecidos  e  intelligentes,  com  o 
íiui  seguramente  de  faxer  começar  uma  nova  era  pa- 
ra as  artes,  escondeu,  depois  do  terremoto,  n'uma 
económica  e  agradável  capa...  de  gesso  civilisador? 

Muito  e  muito  mais  poderíamos  aqui  dizer.  Tara- 
remos por  em  quanto  com  uma  só  observação. 

Tor  que  será  que  o  século  actual,  desenvolvendo 
e«pantosainente  na  sua  rápida  acção  todas  as  cousas 
que  dizem  respeito  ao  materialismo    da  vida,    tende 

constani ente    a  annnllar    a  iniluencia  de  todos  os 

objectos  (jue  podem  favorecer  as  inspirações  do  espi- 
rito .' 

Uesolva  rjuem  qulzir  o  problema. 


GuiUEs  Fhkhik  hk  Andradf. 

(Coulinuanifo  de  p.ig.  l.t.) 

Caiu.os  VI,  ou  o  seu  ministro  e  valido  T>.  Manuel 
(iodoi,  iluque  do  A.lcuilia,  agradeceu  o  auxilio  prcs- 
tailo,  havia  pouco,  na  campaidia  do  llossilhon,  fazen- 
do-sc  iuslrunu-nlo  da  vingança  de  Kuonap.irtecontra 
l'ortui;iil,  a  qinil  este  guardara  para  occasião  oppor- 
luna  ilesibí  o  momento  em  <|ue,  oppondoso  uosseus 
intentos  a  rsqinidra  ilo  nuir(|ui'/,  de  Niza,  já  em  Mal- 
ta, já  diante  lie  Alexandria,  lhe  arrancou  o  despeito 
estas  pidavras,  consignadiis  n'uiiui  oriliun  do  dia  ao 
exercito  tio  oriente  :  .iVirá  tempo  em  ipie  a  nação 
portugueza  pague  com  lagrimas  de  sangue  aaflVimta 
feita  á  republica."  Vendose  Ibiíinaparle  primi'iro  con' 
sul,  começou  u  lançar  os  alicerces  do  sjsleina  conti- 


nental, e  pouco  depois  do  tractado  de  Luneville  fez 
um  pacto  secreto  coma  Hespanha,  e  instigou-a  a  met- 
ter  em  Portugal  um  exercito  cominandado  pelo  mes- 
mo Godoi,  mais  conhecido  pelo  titulo  de  principeda 
Paz,  que  a  vaidade  induzia  a  querer  passar  por  babil 
general.  E  de  feito,  n"esta  campanha  de  1801,  que 
achou  Portugal  desprevenido  e  privado  dos  soccorros 
d^Inglaterra,  custou  a  obstar  aos  progressos  do  inimi- 
go com  três  pequenos  exércitos,  e  só  o  marechal  Go- 
mes Freire,  conimandante  do  de  Traz-os-Montes,  se 
havia  animado  a  fazer  guerra  offensiva  enfreprenden- 
do  a  praça  de  Montc-Rei  ;  plano  que  falhou  por  es- 
tarem os  hespanhots  avisados,  sem  que  estes,  todavia, 
nem  mesmo  depois  da  retirada  que  o  marechal  havia 
feito  para  não  ficar  cortado,  se  aventurassem  a  poro 
peno  território  portuguez  por  aquella  banda.  A  pou- 
ca probabilidade  da  defeza  havia  pois  feito  appellar 
para  as  negociações  diplomáticas,  em  que  se  gastaram 
muitos  milhões  de  cruzados  até  o  annode  1807.  Em 
1804,  novas  ameaças  por  parte  da  Hespanha  exigi- 
ram novos  sacrifícios;  e  assim  continuou  Carlos  IV, 
sempre  em  genuflexão  diante  do  primeiro  cônsul  ou 
do  inijierador  Napoleão,  a  inquietar  o  seu  antigo  al- 
liado.  Por  ultimo  houve-se  com  a  maior  deslealda- 
de no  tractado  de  Fontainebleau,  pelo  qual  Napo- 
leão repartiu,  como  cousa  muito  sua,  o  reino  de  Por- 
tugal e  os  seus  domínios,  á  excepção  das  províncias 
da  Ueira,  Trazos-Montes,  e  Estremadura  portugue- 
za,  que  deviam  íicar  em  sequestro  até  a  paz  geral, 
porque  o  imperador  e  o  rei  de  Hespanha  as/!i/</ai'am 
próprias  para  ser  rcsliluiãas  ú  Casa  tlc  Braçjati^a, 
em  troca  das  colónias  conquistadas  pelos  inglezes  aos 
hespanhoes  e  seus  adiados.  Por  este  tractado  davam- 
se  a  Gudoi  o  Além-Tejo  e  o  Algarve,  com  o  titulo  de 
príncipe  dosAlgarves;  ao  rei  da  Etruria  a  Estrema- 
dura, iM ilibo,  e  a  cidade  do  Porto,  com  o  titulo  de 
rei  da  Lusitânia  septentrional,  obrigando-se  a  ce- 
der a  Napoleão  o  reino  da  Etruria;  e  ao  reíd'IIes- 
panha  o  titulo  sonoro  e  õco  de  imperador  das  duas 
Américas.  Um  exercito  de  vinte  c  oito  mil  francezes, 
reforçado  por  onze  mil  hespanhoes,  havia  de  virapoiar 
a  es|)oliação  occupando  Lisboa,  ao  mesmo  tempo  que 
duas  divisões  hi'spanbolas  se  apoderariam  das  provín- 
cias d'Eiilre-Douro-Miiiho,  ,\lém-Tejo,  e  Algarve. 
Por  conseguinte,  um  exercito  de  trinta  mil  homens, 
capitaneado  por  Junof,  entrou  em  Portugal,  auxilia- 
do pelas  divisões  dos  generaes  hespanlioesTaranco  e 
Solano,  e  a  marchas  forçadas  veio  bater  ás  portas  de 
Jjisboa  na  manhã  de  líO  de  novembro  de  1S07,  um 
dia  depois  da  salda  da  faniilia  real  para  o  Brasil.  Es- 
tava por  esse  tempo  (imnes  Freir»!  {tenente  general 
desde  1:2  de  setembro)  commandando  uma  divisàoao 
sul  do  Tejo,  o  no  meio  do  geral  dosalentoainda  ten- 
tou ver  se  obstava  á  invasão,  cujo  primeiro  resultado 
loi  o  dividir  Juiiot  o  reino  em  trcs  grandes  ilistric- 
tos  militares,  reservando  para  si  o  governo  da  Estre- 
madura e  lieira,  e  deixainlo  a  Solano  o  das  provín- 
cias ao  sul  do  Tejo,  e  a  Taranco  odo  Porto,  .Minho, 
e  Traz  os-IMontes.  O  marquez  de  Aloriia,  e  Gomes 
l'reire  conservaram  o  cominando  das  tro|)as  portugue- 
zas  existentes  nos  districlos  de  .lunot  e  de  Solano,  e 
luram  encarregados  de  as  reformar,  e  de  reduzir  a 
seis  os  vinte  e  (piatro  corpos  do  infanleria,  o  a  tre» 
os  dozi!  d<!  cavallaria  de  que  então  se  compunha  o 
exercito  portuguej.  Feita  a  reducção,  marchou  a  íic- 
gião  Portugueia  nos  priiU'i|ilos  irabril  de  ISDS  em 
direcção  a  Salamanca,  levando  por  ciniimandanleein 
chele  o  iimr(|uez  d'Alornii,  e  por  seu  iimiu  diatoo  te- 
iieiilo  goneial  (ionies  Fndri'.  Enlr<- os  olTiciaes  forniu 
fidalgos  da  primeira  nobreza,  e  Inunens  de  alto  me- 
rito,  que  chegaram  a  oecupar  os  priínipjteseargos  na 
[latria  ;  al^Mins^  talvez,  porque  n.io  puderam  eximir- 


Ô9 


O   PAiNORAMA. 


se;  outros,  <;  licito  crê-lo,  deslumbrados  pelo  esplen- 
dor diií  victiiriíis  do  cDiiíjuistador  da  Itália. 

A  infidelidade  de  Carlos  IV'  já  então  estava  puni- 
da. Fernando  VH,  seu  filho,  nsurpou-lhc  a  coroa  em 
fevereiro  d'tsse  mesmo  aiimi-,  o  rei  deposto  Imscou  o 
patroeinio  de  Napoleão,  e  Fernando,  afim  de  tornar 
este  propicio  á  sua  causa,  pediu-lhe  para  casar  uma 
pritioeza  do  seu  sangue;  porém  Napoleão,  como  fino 
politico,  attrahiu  pai  e  fillio  aterras  de  França,  for- 
eou-osa  cederem-llie  todos  os  direitos  ao  reino,  e  man- 
dou Carlos  desterrado  para  Compiej^ne,  e  Fernando 
para  Velençay  ;  procedimento  ijue  irritou  os  patrio- 
tas liespaniioes,  e  llies  inspirou  ódio  indomável  aos 
francezes,  aos  qnaes  prineijiiaram  If.^o  atraclarcomo 
iii;migos  da  sua  liberdade  e  independência.  Por  esla 
razão,  Gomes  Freire,  qua  fieára  alguns  diasatrazado 
da  Legião  na  manha  para  IJayonna,  tomou  em  Lo- 
grono,  por  ordem  do  marechal  liessieres,  ocnmman- 
do  lie  uma  forca  portugiieza,  áqual  se  reuniram  tro- 
pas fr.<iieezas,  fjue  elle  igualmente  fuou  commandan- 
(1(1  até  o  fim  do  primeiro  cerco  de  Saragoça,  levan- 
tado aos  lo  d'ago>to  de  1808,  porque  os  franeezes, 
apesar  do  entrarem  a  cidaclc,  acharam  uma  resistên- 
cia sem  e.\emplo  nos  tempos  antigos  e  m.idernos.  Aca- 
bado o  cerco,  vieram  as  tropas  iTelle  empregada":  pa- 
ra o  Oilpliinado,  e  Gomes  Freire  foi  porUa^oniuia 
Taris,  e  cralii   para  Greuoble. 

Nova  guerra  entre  a  .'Vustria  e  a  França  propor- 
cionou a  parle  das  tropas  da  Ijegião  o  asiignalarem- 
se  muito,  debaixo  das  ordens  de  (Judinot,  na  véspe- 
ra da  bat.dha  de  Wagram,  sustentando  a  pé  firme 
uma  posição  que  os  franeezes,  rareados  j)ela  metralha 
de  duas  baterias  austríacas,  haviam  desamparadoem 
vergoiiiiosa  debandada,  cobrindo  lhes  a  covardia  o  véu 
da  noite,  quasi  a  cerrar-se,  engrossado  pelos  vapores 
do  Danul)io.  O»  dois  batalhões  que  diram  este  irre- 
fragavil  documento  do  valor  e  disciplina  combateram 
eom  muito  brio  no  dia  da  batalha,  e  mereceram  que 
o  próprio  Napoleão,  juiz  o  mais  competente,  dissesse 
ao  conde  da  liça  :  "tíenhor  conde,  estou  muitosalis- 
leitocom  os  portuguezes  :  sempre  pelejaram  com  mui- 
ta galhardia  n^esla  guerra,  e.  decerto,  nào  ha  na  Eu- 
ropa melhores  soldados  do  que  elles.  " 

Gomes  Fieiresó  em  fevereiro  de  1809  teve  ordem 
de  partir  [lara  a  Allemaniia,  onde  permaneceu  até 
maio  com  as  tropas  pertencentes  á  Legião,  as  quaes, 
n-stabeleeida  a  paz,  acompanhou  para  os  seus  aloja- 
mentos na  ]5aviera  ;  e  tendo  Napoleão  decretado  a 
reunião  do  cantão  tie  V'alais,  também  foi  tomar  pos- 
se delle  com  três  batalhões  portuguezes,  mas  esqui- 
vou-se  do  servir  no  exercito  deMassena,  empregado 
contra  l'orlugal  (mii   ISIO. 

Alexandre,  imperador  da  Uussia,  que,  ainda  em 
1809,  aceitara  das  mãos  de  Napoleão  uma  boa  por- 
ção dos  despojos  da  Áustria,  colligou-se  contra  elle 
em  1812,  e  o  compelliu  a  emprehender,  a  frentede 
quinhentos  mi!  homens,  u  fatal  campanha  da  Rússia, 
em  que  a  Ijcgião  portugueza  acrisolou  o  seu  denodo, 
nomeadamente  na  tomada  de  Smolenko,  c  batalha 
de  Moslcowa  ou  lioiodino,  mas  d'oude  veio  reduzida  a 
setecentas  e  eincoenla  praças,  tendo  levado  de  l'ortu- 
gal  nove  mil  homens,  con>  que  se  incorporaram  qua- 
lorze  mil  recrutas  tiradas  dos  depósitos  de  prisionei- 
ros lu'>panhoes  1 

O  tenente  general  Gomes  l''reire  havia  iilo  para  a 
Hu^sii.  com  o  estado  maior  de  Napoleão,  e  ficou  na 
Lilhuaiiia  governando  a  província  de  Disiia  até  o 
tempo  ila  retirada,  em  que  voltou  para  França.  Caí- 
do •■ni  terra  o  colosso,  auto  o  qual  os  reis  da  Europa 
queimaram  incenso  de  joelhos,  para  que  o  inipern- 
dor,  hiimem  do  povo,  ungido  com  osansuc  davicto- 
riíi,  lhes  não  arriincassc  as  coroas  da  cabeça,  tractoi: 


I  Gomes  Freire  de  regressar  a  Portugal,  e escreveu  pa- 
ra este  Dm  uma  carta  a  seu  primo  António  de  Sousa 
Falcão,  a  qual  trasladamos  por  dar  a  conhecer  o  seu 
estylo,  e  revelar  um  presenlimento  da  sorte  cruel 
que  o  esperava  : 

Paris  2  de  fevereiro  de  181o 

"O  teu  sermão,  bem  longe  de  me  adormecer,  des- 
pertou-me  !  o  que  a  estas  horas  Já  terás  visto  pela  mi- 
nha carta  de  20  dedezembro,  n."8,  em  que  te  di^o 
que  estou  resolvido  a  voltar  quanto  antes  a  Lisboa, 
no  caso  que  os  senhores  governadores  queiram  ter  a 
bondade  de  auctorisar  algum  negociante  para  accei- 
tarme  uma  lettra  de  quatro  mil  cruzados,  seguran- 
do se-lhe  que  será  paga  lojo  que  se  me  entresue  o 
dinheiro,  que  se  acha  no  erário,  das  rendas  de  mi- 
nha casa;  e  por  tanto  se  for  deferida  a  minha  sup- 
plica.  lá  me  tens  por  todo  o  mez  de  abril.»» 

u  Achei  muita  graça  ao  teu  sonho,  e  feí-metanla 
impressão  que  sonhei  outro  na  mesma  noite,  que  te 
vou  contar,  e  em  que  acharás  talvezaiguma  analogia 
com  o  que  tiveste.  " 

I  II  Sonhei  que  me  achava  na  China,  aonde  uma  gran- 
de província    tirdia  sido   invadida  pelos  inindgos;    e 

'  achando-se  esta  desprovida  de  tropas,  o  imperador 
chamou   em    seu  soccorro   os  tártaros,    seus  alliados  : 

'  estes  vieram  proniptamente,  e  deitaram  Wjth  os  lae» 
inimigos  dos  chins;   e  como  o  imperador   tinha  tido 

j  pouco  cuidado  no  seu  exercito,    deram  lhe    um  cabo 

j  iscolhido  d"entre  elles  para  lhe  organisar  e  discipli- 
nar as   suas   tropas:    o  imperador  a^radouse   tanto 

1  d"esse  tártaro,  que,  além  de  muitas  honras  e  podere» 

I  que  lhe  concedeu,  fe-lo  mandarim,  e  escreveu-lhe 
uma  carta  em  que  lhe  di^se  (juc  ilbulrasse  com  os 
seus  conselhos  os  oiilrcs  mandarins  e  os  anin\assc\  e 
por  tanto  po-lo  acima  d'elles,  do  que  os  mnndarins 
chins  não  gostaram;  e,  para  lhes  fazer  perraea,lem- 
braram-se  de  mandar  chamar  á  Pérsia  um  chim  que 
alli  militava,  e  que  elles  tinham  em  conta  de  t."io 
grande  militar  como  era  o  tal  tártaro:  porem  este, 
que  era  muito  vivo.  fiado  nos  seus  poderes,  que  eram 
os  mesmos  que  algum  dia  se  concediam  aos  dictad»)- 
res  rimianos,  armou  trempe  ao  pobre  chim,  pren- 
deu-o  e  polo  em  cooseilio  de  guerra  ;  e  vendo  os 
mandarins  que  o  tártaro  puxava  pela  su.i  auctorid.s- 
de,  calaram-se  todos  muito  bem  calados,  e  o  pobre 
chim  foi  fusilado  sem  que  ninguém  punisse  por  el- 
le :  e  eu,  acordado  ao  estrondo  dos  tiros,  assentei  de 
nunca  me  lembrarde  jogar  ascristas  com  generaestir- 
taros,  massim  de  pendurar,  logo  que  chegue  a  Lislwa, 
a  minha  espada  na  parede,  para  se  deixar  enferru- 
jar bem  á  sua  vontade  I  .  .  .  Que  me  diies  ao  sonho  '  •< 
ti  \'euha  dinheiro,  e  brevemente   lerei  o  gosto  de 

'  segurar-te  que  sou  —  Teu  verdadeiro  amigo  e  primo 

,  fiel  —  Gomes. 

I  Não  em  abril  como  promellia  a  cart.i,  mas  em  ilG 
de  maio  de  181o  apresentou-se  no  quartel  general  d.t 
corte  e  província   da  Estremadura,  e  por  aviso  de  S 

'  de  junho  foi  declaraoo  ínnocente,    não    obstante    ter 

1  marchado  com  as  trop.is  porlugueins  p.irn  França; 
e  mandaram-se-lhe  «bunar  os  soldos  a  que  tive«edi- 

'  reilo.  ((.oiiítniío.) 

I  lIvniTVNTKS    0*s    IjVNDEs    llt    HoRPKrs    (1  \ 

MiiTos  dos  estrangeiros,   «ibservadores  superficiaes. 
'  que  apenas  passam  entre  nos  algumas  semanas,  assen- 

I      (I)   l.andrs  quer  dizer  o  cliarnecas  j  ou  lanihem  «  uiíl- 
,  lajíaes  iiianinLus  »  «  terr.is  (ifaras  e  br.iMas.  r  Conserva- 
mos porém  o  nnme  francei,  porque  o  consiiieranios  aqui 
•  termo  yeojírjpliico,  como  por  exemplo  diremos  «  »s  Du- 
uas  r  e  outros  seuiellriules. 


o  PANORAMA 


23 


taram  julgar  mal  de  tudo  o  que  se  diz  e  o  que  se  faz 
para  cá  dos  Pirinéus;  esta  maledicência  svstematita 
(.'  injusta  produz  unia  alluvião  di:  liliellosinlainficon- 
fra  nós  e  a  najão  visinlja.  Nju  precisamos  (joréni  de 
pagar  embuste»  com  outros  tnjljustps.  ÍVos  próprios 
tscriptores  nacionaes  de  l'"raii(;a  e  de  Inglaterra  en- 
contramos quadros,  ora  de  misérias,  ora  de  crimes  e 
dissolu<,'ões,  que  não  tem  parceiros  em  a  nossa  terra. 
Não  é,  por  certo,  em  I*ortugal  que  existe  em  longo 
tracto  de  território  gente  de  tão  nii'squinlia  condição 
p.  minguados  recursos,  como  aquepasiàmos  a  descre- 
ver, trasladando  as  (iroprias  palavras  de  Mr.  Victor 
Gaillard.  — 

Não  procurcnios  dissimular  que  as  Laiiilps,  esse 
extenso  deserto  que,  começando  hs  polias  de  Hordéus, 
vai  rematar  na  foz  do  Adour,  nuda  tem  de  agrada 
veis,  e  mui  [loiíco  lisonjeiam  «  nosso  amor  [iro[iri() 
nacional.  Ksta  comarca  é  sem  c*.»ni pararão  a  parte 
mais  desagradável  do  liello  reino  de  França,  qualquer 
que  seja  o  lado  jior  onde  a  contemplem.  Áreas  ar- 
dentes no  verão,  charcos  e  abismos  no  inverno,  clima 
doentio  em  todas  asestaçõns,  temerosas  solidões  onde 
jiarece  illimilado  o  horisonte  ;  eis-aqiii  o  aspecto  das 
Ijaiides,  sobretudo  do  lado  maritinio  Se  uma  tem- 
pestade, por  exemplo,  arroja  alli  um  niiseio  estran- 
{jeiro,  poderá  por  ventura  capacitar-se,  depois  de  ha- 
ver galgado  trahalhosamente  os  medões  movediços  do 
litloral,  que  po?,  o  pé  em  França,  tão  celebre  por  ler- 
lilidade  do  solo  e  pelos  progtessos  da  civili-ação  ?  A' 
vista  de  uma  praia  medonha  em  siiuuiio  grau,  de 
planícies  áridas,  e  de  raros  eagoientados  habitantes, 
que  vagueam  n'aquelle  terreno  devastado,  cuidará  lo- 
go actiar-se  á  mercê  de  uma  tribo  selvagem,  a  mais 
extravagiiiile  em  trajos,  maneiras  e  postura  Embora:, 
II  este  solo  ingrato,  onde  só  crescem  em  pontos  dis- 
persos os  abrolhos  e  tojos  e  alguns  pinhais,  mais  ve- 
getam do  que  vivem  trinta  vollos  humanos  porcada 
légua  quadrada,  iiittii  aiiuíilc  fruiicczci  cdiiio  vús  e 
cu,  com  os  (|uaes  todavia,  de  nenhum  modo  <|uero 
participação  em  liabitos  ou  gostos.  Longe  de  poderem 
articular,  em  sua  barbaia  algaravia,  pens.inieiilns  coui- 
niuns,  muito  é  se  acham  palavras  para  ex|iriinirem 
algumas  necessidades  [ihysicas  i  acoslumaclos  a  ver 
«einpre  os  mesmos  objcvlos,  anão  passar  desensações 
unilormcs,  copiam  no  sen  caracter  a  monotonia  sel- 
vagem do  di^triclo  que  habitam.  Ignorância  profun- 
da, iiic!S(piiulia  cubica,  aliathia  no  maior  auge,  e  um 
lalexce^sode  indillereiíça  que  iiléembola  osentimen-  , 
to  da  penúria,  fa?.ein  esta  gi'iile  ineapa?.  de  energia, 
equasi  que  até  de  rellexãir.  Habituados  desde  o  ber- 
ço a  maia  absurda  su|)ersliçào  accilhtiii  aviílaiiienle  os 
contos  e  tradições  de  feiliceiroi  e  de  almas  em  pena. 
Debalde  recebem  de  seus  curas  as  noçõi  s  religiosa», 
porqui.',  prroccupados  de  terrores  pueris,  a»  desligu- 
ram,  ap|)lieando.as  a  ChcíMijuros  e  ridicuK:s  exercícios 
de  mal  enlindida  devoçãu. 

A  raça  /oík/cío,  propri,iuii-iite  ilida,  vive  no  ter- 
ritório mais  vlsinho  do  oeeauo,  desde  a  lorre  de  Cor- 
douaii  alé  la  Tesle,  e  d'alii  ali'  Kavoíiua.  Ahi  se  de- 
ve estudar  esta  variedade  andróide,  que  em  cada  uma 
das  sua»  leições  ilá  assUiU{ilo  para  observações  etno- 
graphleaii  e  a  triste»  meditações.  —  O  habitunle  das 
liandes,  baixo  o  miigro,  lem  còr  macilenta,  eabellus 
prelos  e  corredios,  idlios  b.iços,  e  a  plij  sioiíoinia  tris- 
tonha ,  a»  suas  li'ições  iinp.issi veis,  que  o  riso  anima 
poucas  veies,  tem  certa  ex|iressào  inedilaliva,  iinalo- 
ga  á  que  se  observa  n'ulguus  loaniacos.  l'orem,  ape- 
sar da  consliluição  fraca  e  eoiisuiniibi  pelas  febres  na 
maior  paili'  do  anuo,  o  h.ibilanle  das  liiindes  desem- 
penha os  mais  pezaclos  trabalhos,  o  arrosla  todas  as 
inteuipei  leH  almosphericiis.  Aecresco  a  tudo  isto  que 
os  seus  giosseiros  trajos  comliiem  liiiil  com  a  liinpe- 


ratiira,  porque  o  estafam  no  verão,  sem  o  resguardar 
do  frio  no  inverno^  o  mesmo  se  observará  quanto  á 
sua  pousada  miserável  e  immunda,  que  o  esquimau 
e  o  hottentote  despresariam,  e  na  qua!  se  amontoam 
ás  vezes  trinta  a  quarenta  pessoas  ;  a  peça  principal 
é  uma  grande  coslnha,  cuja  lareira  occupa  todas  as 
noites  um  (aldtirão,  onde  a  decana  da  familia  mexe 
o  escuUm,  em  que  se  encerra  todo  o  jubilo  dolaiidez  : 
esta  comida  consiste  n-umas  papas  de  farinha  de  mi- 
lho. Em  quanto  se  prepara,  as  mulheres  fiam,  e  os 
homens  entrelem-se  invariavelmente  acerca  do  lobis- 
hoinein  que  anda  mais  em  voga,  ou  da  returreição 
do  feiticeiro  que  ultimamente  se  enterrou.  Da  cosi- 
nha  passase  para  alcovas  escuras  e  sem  ar,  onde  to- 
dos de  mistura  se  encovam,  uns  deitados  nochãoso- 
bre  vellos  de  carneiro,  outrosem  ruins  enxergas,  snp- 
pottando  um  calor  capaz  de  coser  ovos. 

De  quantas  povoam  ai  Laiides  a  classe  dos  pasto- 
res c  a  mais  numerosa  e  lí!int'em  a  mais  miserável, 
(iuasi  sempre  alfastado  das  habitações,  cada  pegurei- 
ro anda  munido  de  nina  saccola  de  farinha  de  milhn, 
de  toucinho  excessivamente  rançoso,  e  de  uma  panei- 
la  para  lazer  as  papas  em  agua  de  Ião  ruim  qualida- 
de que  a  corrigem  com  um  pouco  de  vinagre  e  sal. 
Muitas  vezes  correm  semanas  inteiras  sem  ver  crea- 
lura  huniana.  Empoleirado  nas  compridas  andas  de 
pau,  que  o  levantam  á  altura  de  seis  pés,  e  com  as 
quaes  parece  ter  nascido,  galga  mattagaes,  atravessa 
charcos,  e  liicla  em  velocidaih-  com  os  cavallos  bra- 
vios da  charneca,  por  onde  discorre  fiando  a  lã  de 
seus  carneiros.  De  longe  a  longe,  o  encontro  de  outro 
pastor  interrompe  as  suas  longas  horas  de  solidão,  e 
lhe  causa  uma  distracção;  mas  quanto  é  curta  !  por- 
que os  rebanhos  junclos  em  breve  esgotariam  o  sus- 
tento sulficienle  iraquellas  enfezadas  pastagens. — 
Mais  raras  vezes  ainda,  um  boieiro  se  aparta  da  es- 
trada para  levar  o  gado  a  pascer  no  meio  dos  tojaes, 
c  enião  couta  a  nova  apparição  de  uma  alma  do  ou- 
tro mundo  ijue  fu2  anil.ir  em  bolandas  a  próxima  al- 
deã ;  e  conversam  depois  na  boa  criação  dos  seus  ga- 
dos, lioi»  e  carneiros  eis  toda  a  paixão  da  gente  das 
Landes,  que  ii'elles  deposita  toila  a  alVeição  de  que 
é  susciptivel,  olhando  com  indilVerença  para  tudo  o 
que  lhes  não  diz  respeito.  Perguntai-llie  pela  mulher 
ou  filha  doente,  responderá  com  lamurias  pelo  mal 
que  deu  no  vitello  ou  nos  carneiros.  Dizei-llie  :  —  «Já 
sei  que  vosso  irmão  tem  iim  grande  catharro;  mas 
penso  que  vai  melhor."  —  Não  vai,  não,  senhor  (vos 
responderá)  um  dos  bois  Irasfulhou  e  não  pôde  comer  ; 
u  meu  irmão  está  por  isso  muito  ma^uado.)' 

A  rouparia  do  pastor  no  inverno  consta  de  vellos 
com  a  lã  para  dentro;  com  elbs  cobre  ocorpolodo, 
á  excepção  dos  [les  sempre  descalços,  e  tia  cabeça  <]Ue 
abriga  com  um  barreie  pardo-,  vesle  por  cima  uma 
capa  de  burel  branco  com  seu  capuz  anuilo,  guarne 
eido  de  bandas  encariiailas  e  de  clinas  soltas  ;  chamam- 
lhe  caimtc  ílt  Carlos  ilA/i/iio,  e  troei  111  no  de  verão 
por  outro  mais  leve  depellede  cordeiro,  e  por  igiiiies 
pelles  largam  os  vellos  ipie  Irouxerain  no  tempo  iVio  ; 
o  resto  do  veslii.irio  é  roupa  branca  iiue,  ciiiiio  e  de 
sup|ior,  nunca  mais  loi  l.ivada. 

A  \elhice  do  zagal  das  LanilfS  é  «nlecipad.i  ;  de 
maravilha  alcança  os  sessciit»  unnos.  ("omludo,  nii 
sua  vida  vegetativa  lá  encontra  att  laclivos  na  verda 
de  inexplicáveis.  Se  e  const  rangiilo  a  pagar  o  tribiilo 
de  sangue  á  pnlria,  desespiriido  sae  de  seu  deserto  : 
iliísde  esse  inomento  couta  os  ineze»  de  serviço,  e  qual- 
quer «pie  «eJH  n  melhoria  i|in' expofiinenle,  ri'spoiulo- 
ra  sempre:  —  >•  Eu  em  bem  feliz  ipiaudo  me  cliaiiia - 
vum  desgraçado." — Nada  o  póile  reler  sol»  iis  baii- 
deiriis  iihiii  do  priiso  <bi  lei,  e  bem  ilepressa  toma  o 
caminho  ibis  suas  ih.nnecas  soliliirias,  Alii  iccobra  a 


24 


O  PAINORA3IA. 


liberdade  e  a  melancholica  ventura  a  «eu  modo,  que  | 
prefere   a    quanto   se  chama  civilisaijão.  Ao  cabo  de  | 
seis  iiiczes  está  como  te  nunca  fe  auseiilúra  ;  tudoltie 
tem  esquecido.  í 

l)'este    modo   a   soberania   dos   pântanos  e  mattos  , 
das  Landes  pertence  ao  pastor  ^    domina,  do  alto  das 
suas   andas    de    páu,    sem  rivaes  nem  ministros,    e  a 
sua  autocracia  não    adia  obstáculos  nos  \astos  ermos 
de  I3orn  e  Maremmes.    Porém  no  cantão  de  Maran-  [ 
sin,    onde   crescem  e  abundam  os  pinhaes,   a  impor- 
tância  do  pastor   é  secundaria,   e  cabe  a  supremacia 
ao  ganha-pão  que  apanha  a  resina.  Ifiquem  é  este.'... 
E  um  homem  qne  se  ergue  ao  raiar  d'alva,  urma-se 
de  um  machado  afiado,  carrega  com  uma  longa  >ara 
talhada    em    degraus    á    feição  de  escada,  e  com  um 
bornal  que  leva  a  comida,  encaminha-se  logo  para  as 
mattas  de  pinhal,  onde  consome  a  máxima  parte  da  ', 
sua  vida.  Apruma  a   sua  vara  a  par  do  tronco  recto  , 
de   um   pinheiro,  por  ella  sobe  a  muita  altura,  sem 
mais  apoio  do  que  o  entalho  em  qne  estriba  o  pé  es- 
querdo, e  com  a  perna  direita,  abarcarulo  a  ar\ore, 
sugiga    a  vara    e  não  a  deixa  vacillar.    D'esle  modo 
suspenso,  com  mão  certeira  dá  os  golpes  da  machada  i 
e  trará  na  superficie  do  tronco  uni  rego  estreito,  tal  | 
que    qualquer   juraria   que  por  alli  passou  a   plaina. 
I)'esla  incisão  vertical,  que  vem  dar  ao  pé  da  arvo- 
re, manará  a  resina,    que  esse  mesmo  homem  ha  de 
apanhar  e  transportar   mais  tarde  ás  fabricas  onde  é 
dislillada. 

Habituado  desde  muito  moço  a  tão  penoso  traba- 
lho vive,  como  o  pastor,  apartado  da  sociedade  ;  e  to- 
davia vive  sem  tédio,  e  não  trocaria  a  sua  condição 
por  uma  existência  mais  commoda.  Devorando  á  pres- 
sa uma  sardinha  com  um  pedaço  de  pão  de  centeio, 
mata  a  sede  com  a  agua  que  se  empoça  na  malta  ;e 
6Ó  volta  á  choça  solitária  para  tomar  algumas  horas 
de  descanço.  Assim  continua  por  nove  niezes  do  an- 
no,  desde  o  principio  de  março  até  o  principio  de  de- 
zembro ^  os  três  restantes  passa-os  em  casa  da  sua  fa- 
mília ou  do  proprietário  da  raatta.  l'ara  dar  tréguas 
a  esta  vida  desacompanhada,  ao  domingo  larga  do  pi- 
nhal mui  cedo  e  entia  para  a  taberna  ;  é  onde  se  es- 
quece de  Iodas  as  fadigas  i  as  ruidosas  explosões  da 
sua  descommunal  alegria  cobrem  apenas  as  vozes  es- 
ganiçadas das  mulheres  e  os  berreiros  dos  rapazes,  ijue 
»e  apinham  ao  redor  de  mesas  onde  o  vinho  corre  em 
bica.  As  libações  succedem-se  sem  descançar,  e  quan- 
do a  noite  chega  é  completa  a  embriaguei ;  então  >ce- 
nas  inauditas  se  divisam  ao  clarão  vermelho  e  «fuma- 
do d'archotcs  enresinados  :  a  desordem  vai  em  aug- 
inento  alé  que  uns  caem  por  baixo  das  mesa"-,  outros 
forcejam  por  se  rclirarem  ás  choupanas  perÍL'osomen- 
te  cambaleando.  No  dia  immodiuto  o  apanhador  de 
resina  corre  de  tronco  em  trunco  a  rccollier  o  produc- 
to  de  seu  anterior  trabalho,  e  tão  lestes  e  diligente 
como  se  o  houvera  refrescado  a  orgia  da  véspera.  O 
seu  trajo  é  sempre  o  mesmo,  alé  que  encebadoe  po- 
dre caiu  aos  farrapos  ;  consta  de  barrete  ou  chapéu  de 
palha,  vé^tia  de  pano  grosso,  calça  de  linho  crii  ou 
semelhante,  c  cinta  encarnada  :  se  clio\e,  embuça-se 
«"um  capote  que  tem  só  as  cavas  das  mangas,  e  de 
nm  talhe  particular,  privali\u  do  .Maransiii,  e  que 
ainda  não  tem  desmentido  desde  a  idade  media. 

Antes  de  sair  dos  pinhacs,  presentemente  objecto 
de  avultada  e  llureceiite  industria,  o  .upitalista  vai 
visitar  um  laboratório  de  resina-,  porém  o  poeta  eo 
pintor  encaminham-se  para  o  oceano.  —  Não  é  andar, 
V  bordejar  n'um  chão  que  na  mobilidade  imila  as  on- 
dulações do  mar:  agora  se  desce  ao  fundo  de  um  bar- 
ranco onde  liu  agua  salobra  e  encharcada,  logo  mon- 
ta-se  a  sumniidade  de  uma  vaga  de  arê.i  saibrenta  : 
acabam  os  pinhacs,  c  ai  dunai  ou  roéduei  i-omeçaiu. 


Decorridos  alguns  minutos  divisam-se  muitas  malhai 
escuras  que  se  movem  lentamente  nos  ladosalvacen- 
tosd'aquelles  cabeços  collocados  em  amphilheatro  ;sii  ' 
os  paisanos  das  dunas,  puxando  trabalhosamente,  por 
ténue  salário,  as  faxinas  com  que  é  necessarioc-obrir 
o  pinisco,  de  que  hão  de  sair  »s  robustos  pinheiros, 
que  d'ahi  a  cincoenia  anuosdefendernoolerrenoeol- 
tivado  da  irrunção  das  aréas  le\aiiladas  pelos  ventos 
d^oeste.  Oulro^,  mais  ao  longe,  cccupam-se  era  forta- 
lecer 09  tapumes  de  caniços,  que  em  distancia  se  to- 
mariam pelos  traços  divisórios  de  uma  carta  geogra- 
phica.  Chegai-\us  de  perto,  e  aebar-vos-heisá  entra- 
da de  um  labvrinlho,  que  em  suas  \ollas  encerra  in- 
numeraveis  videiras  com  as  \aras  verdejantes  carre- 
gadas da  bella  uva  de  qne  se  espreme  o  nomeado  Bor- 
déus. E  elle  o  único  produclo  notável  de  todas  as  Lan- 
des, e  exige  considerável  co-trio  de  cultura  :  a  boa 
qualidade  dovinho  compensa  bem  a  falta  naquanti- 
dade  ;  e  admira  como  pôde  adquirir  tanta  sevee  vi- 
gor n'um  terreno  formado,  como  o  de  CaboBretão, 
pelos  areaes  acarretados  pelo  mar. 

(Ccnlinúc.) 


O  V 


II vo  E  o  .Medico. 


Um   pobre   operário   de  PIvmoutb,   tendo  a  mulher 
muito  doente,  foi  pedir  a  um  medico  de  fama  que  a 
viesse  traclar.  O  doulor,  por  ser  o  homem  mal  tra- 
jado, prometteu-lhe  que  iria,  mas  não  fi>i.    Peiorou 
a  doente,    e  o  marido  voltou  a  casa  do  doulor  a  pe- 
dir-lhe  com  lagrimas  a  soccorresse.  Ainda  d"esta  vez 
perdeu  as  passadas  \  tornou  terceira  e  disse-lhe  ■  ». Dou- 
tor, minha  mulher  eslá  ás  portas  da  morte,  e  tem  fé 
que  só  vós  a  podeis  sal\ar.  Eu,  com  ser  um  triste  ope- 
rário,  tenho  algum  dinheiro  de  reserva,  porque  soo 
forreta  i  promelto  pagar-\os  dez  libras,  quer  a  cureis, 
quer  a  mateis."  O  doutor  enlerneceu-se,   e  medicou 
I  a  doente,  que  d"ahi   a  poucos  dias  estava  na  eterni- 
I  dade.  Passados  os  da  corleiía,  mandou  o  esculápio  a 
I  conta  ao  viuvo,  e  como  elle  não  qnizcsse  pagar-lhe, 
citou-o  para   comparecer  no  jurv.   Concluída  a  alle- 
I  gação  por  parte  do  auctor,  o  presidente  perguntou  ao 
1  réu  se  tudo  aquillu  era  verdade.  E  certo  e  mais  que 
;  certo,"  disse  este;  "puréiii.  se  me  derdes  licença,  fa- 
rei uma  breve  pergunta  alli  ao  amigo  doutor."  Foi- 
Ihe  concedida. — "Eu    não   vos  promeiti  dei  libras, 
quer  curásseis  quer  matásseis  minha  mulher  ?  —  "  Não 
ha  duvida"  respondeu  o  medico. — «.Basta.  Ora  res- 
ponda-me  o  senhor  doulor:   curou    minha  mulher.'" 

"Não,  porque  a  moléstia  i>ão  tinha  cura."  —  uEii- 

tão  matou-a  ?"  —  «Deus  me  defenda',  que  testimu- 
nho!  1  Morreu  porque  tinha  de  morrer."  —  «Logo, 
se  confessais  que  não  a  curastes  nem  a  matastes,  cas- 
pite '.  temos  as  contas  sald.iòas.  "  O  jurv  .  ciiigindo-se 
á  lettra  da  promessa,  ab^Ueu  o  operário,  e  uescu- 
lapio  ficou  sem  a  paga  e  pagou  as  custas. 


Subscrei<e-se  para  este  jornal  na  Tiipographioende 
V  impresso,  e  nas  lojas  Jc  livros  de  /  iufa  Henriques, 
c  Bordalo,  rim  /íugusia  —  Ziferino,  ttio  <í<.i$  Copií- 
lislas  —  e   'J'ori]Ualo,  tua  do  Ouro. 

fendi-se  nos  locaes  aonde  se  subsireve,  e  naslojas 
4c  livros  de  Lemos,  rua  .-lugusia  11."  1-"  —  na  rua 
direita  da  lisperanra  11. °  1:2o  —  e  na  loja  de  livros  ui. 
y.  F.  ela  Silva,  rua  direita  do  Livramento  n  .'^  H  ^ . 

Assignatur.i  p<ir  anuo  —  b^N.*" 1  S20O 

Dila  por  semestre  — 26  N."* .5640 

N."  avulso .«030 

A  corrrspendeneia  franca,  <írre  ser  dirigida  á  Re- 
dacção do  Fanorama,  Lar^ode  Coniador-mórny  l\. 


o  PANORAMA. 


25 


TUMULO  D£  niCHELIEU. 


O  ifliuiu  do  cardi.'al  do  lUchelicii,  que  ainda  hoje 
iu  conserva  na  Surtxinna,  é  reputado  como  o  primor 
do  cintel  do  fainoso  mestre  dV'ículplura  Franc'i>co 
(iirardon,  natural  de  Trojes,  e  nascido  querem  uii> 
que  no  anuo  de  lb:i8,  asie^tirani  outros  que  no  de 
1G3U.  Iluuve  quem  sustentasse  (|ue  os  ricos  desenhos 
do  hello  inaubolcu,  que  damos  n'este  n.",  eram  to- 
ilos  do  lápis  de  Lflirun  :,  mas  Girardon,  com  uma  al- 
ma nohre  como  linha,  he  estivesse  em  dívida  para 
c-ofii  elle,  nàoahriria  no  inoiuimi-nto  »  /'V.  O,  iilftu- 
luti  c  jcí"  —  ni-in  Lehruii  era  homem  pura  »e  calar 
iliaiile  de  s>'iMt'lh.inle  impostura, 

A  eselioia  de  (iirarduii  não  sr  pautava  pelo  molde 
da  arte  ^ree4>  romana.  O  secidu  «i  as  piopensões  tio 
artista  at1asta\aiii-n\i  da  iniitat^ão  rigorosa.  Na  sua 
epocha  olaiisto  e  o|;alanteio  invadiam  tudo,  c  passa- 
vam dos  costumes  periumados  da  corte  para  o  inar- 
inoie,  o  bron?!',  e  o  j^esso.  l'ar»  alcj^rar  o»  jardins, 
«onde  ja  espaireciam  a-,  poc liças  visTiescle  maileimiiselle 
de  La  Valliéri-.  IjOU.  \l  V  ordenava  ;.  o  jaspe  e  á  (leilra 
que  imitassem  a  ligeireza  e  o  {gracioso  sorrir  daslicl- 
leius  mundanas.  O  (jranile  rei  não  se  arrehalava  |)e- 
la  romposlnra  da  estatua  [;riga,  prehria-lhe  o  hraco 
arredondado,  <j  i;estu  inei^o,  aquella  posição  toda  pra- 
<;us,  tjue  allíii^a  o  deleite,  e  arranca  do  fundo  d\dina 
um  kU>piro  laii'.;uÍdo. 

tliiando  (.'orneillu  na  tfní^edia  fuudia  ui  teu(  per- 
Kiiiugen»  ei>m  a  fori;a  viril  e  ud  paixões  tevenit  de 
Uoma,  l'uj;ct  pela  escuiptura  tirava  da  pedra  ok  hus- 
tuk  de  herue»  a  que  n  admiração  >e  inclinava,  iinik 
que  erum  frios,  grandioso»  de  muia  paru  captivur  u 
Not.   1    — JkTíMituo  ■-'(>,  ItJi li. 


svmpathia.  Nenhum  d'elles  cahia  nas  proporçôe!.  ver- 
dadeiras, eamhosas  excediam  paraaltingir  um  ideal 
maior  <|ue  n  realidade,  e  |ior  isso  mesmo  mais  gi- 
jjante  do  «juc  terno.  Uaciíie  e  Girardon  peloconlra- 

I  rio  dí-sluinbravam  pela  singela  bellena,  que  toca  no 
coração:  helleza  humana,  aliectuosa  pela  divina  har- 
monia. <|ue  a  espiritualisa,  menos  elevada  que  a  ou- 
tra, porém  muilo  mais  natural  e  verdadeira.  Asdua> 

j  escholas  levantavainse  até  a  altura  do  génio  creailor 
por  di\eno  caminho:  a  prini<'ira  nas  azas  do  pen«a- 
meiíto  rigido  e  do  clássico  austero  :  a  segunda  pelo 
fogo   ía^'rado  do  amor.    CorneiUe    e  l'uget    eram  ro- 

j  manos  em  França  ;   ll.iciíie  e  Girardon  eram  Irance- 

I  zes  em  llunia  ,'  e  d'esla  ilivergcncia  «••.*enci,d  se  resu- 
miria a  dinérenija  dos  dois  sistemas.   Us  primeiros  <les- 

I  liimhr.i^am,  (dirigando  a  admir.t-los  ;  os  srgundoi.  '-■i- 
hendo  o  se:;redii  ilo  peito  humano,   prendiam  o  e^prl  ■ 

'  1aLh>r  pelas  eommo^>ões  ila  alma.    LI  por  issii  que  (ti- 

I  rardon  nunca  foi  IVomelhen,  qu<'  infundisie  lla^ 
suas  oliras  o  fogo  do  céu,  possuindo  como  ninguein  ■> 

I  suhliinc  inslinclo  de  indicar  n  seií-ihilidude  das  car- 
nes, (iuandoos  didosapalp.iili  os  contornos  Ião  bran- 
dos e  suaves  das  buas  estatuas,  quasi  que  recei.im  \c- 
las  estremecer  de  repente. 

Duas  palavra»  mai»  sobre  o  artista.  —  Giroidoii 
seutiu  desde  o  principio  aquella  vaga  Irisleia,  tignal 
lie  uma  vocação  que  hesita  e  procura  o  seu  dettino. 
Levava  horiís  inteira»  abvsmado  a  cí)iit<'inplar  a  n»- 
ture/a  ,  —  depoi»  ilcceiídia-iu  o  ardor,  a  fibredu  ins- 
piração, acalmando  em  etboçot  interrompido»,  cinde 
senhos    truncadui  .    a  fronte  cursada  a  revelação   do 


26 


O  PANORA31A. 


ideal,  o  peito  comprimido  pelo  tamulto  da  duvida  e 
da  esperança  em  lucta  lá  dentro  ;  e  no  meio  d'e5ta 
agonia,  a  historia  do  ine\itavel  martjrio  com  que 
a  cegueira  das  familias  attribulou  sempre,  consfran- 
gendo-05,  os  primeiros  ensaios  do  génio  precoce.  A 
isto  se  reduziu  a  mocidade  do  celebre  escuiptor. 

A  contar  do  dia  cm  que  livremente  lhe  foi  permit- 
tido  consagrar-se  ao  culto  das  artes,  a  sua  carreira 
foi  grande  pela  gloria,  mas  pacifica  e  igual.  Nem 
revezes,  nem  rivalidades,  nem  perseguições.  Entre  o 
amor  ao  berço  natal  e  a  devoção  da  escuiptura,  atra- 
vessou por  todas  as  tempestades  do  mundo  até  ador- 
mecer nos  braços  da  nioite  sem  dòr  nem  afflicção. 
Foi  um  lindo  dia  de  in\erno,  que  a  noite  apagou 
nas  trevas ;  dia  raro,  e  minguado  sobre  tudo  porque 
íobresaíu  na  estação  sombria,  illuminado  de  um  sol 
vivo  e  creador. 

N'outro  artigo  esboçaremos  o  caracter  do  cardeal 
de  Richelieu,  a  quem  se  levantou  o  soberbo  mauso- 
léu da  Sorbonna.  Era  justo  começar  pelo  artista  —  o 
homem  d"Eslado,  posto  que  tão  superior,  pode  mui- 
to bem  admittir  qne  elle  o  preceda:  —  felizes  ainda 
aquelles  quo  não  vivem  só  do  mármore  em  que  se 
mandaram  retratar,  ou  do  poema  em  que  insinua- 
ram allusões  parciaes  e  lisonjeiras.  Anda  ainda  na 
historia  e  no  mundo  muito  Aflbuso  d'Este  sem  car- 
deães  llvoolilos. 


O  Hadjeb  de  Kokdova. 

(972  a  992) 

I 

Os  jardins  (VAzahrai. 

MoBBEBA  o  famoso  kaiifa  El-Hakem,  levando  ao  apo- 
geu da  grandeza  e  prosperidade  o  império  kordovei. 
As  luctas  immensas  da  raça  árabe  e  da  raça  goda  na 
l'eninsula  tinham  adormecido,  ou  pareciam  adorme- 
cer. Os  filhos  de  l'elavo  encostavam,  momeutanea- 
mente  ao  menos,  ao  canto  do  lar  a  pesada  lança,  qne 
tantos  annos  lhes  hav  ia  levaJo  a  temperar  nas  aguas  do 
Astura,  a  afiar  nas  rochas  de  Covadunga  —  e  os  her- 
deiros de  Tarik  deixavam  dcscançar  ao  lado  a  rude 
cimitarra  do  Maghreh. 

.\  El-}iakem  succedêra,  no  nome,  seu  filho  Ilecham 
criança  de  dez  annos,  e.  no  mando,  Mohammed-len- 
Abdiíllab,  nomeado  hadjcb,  e  tutor  do  moço  príncipe. 

Mohammed  dissipara  o  bando  dos  seus  inimisosco- 
nio  u  vento  do  céu  varre  as  nuvens  da  tormenta.  Guer- 
reiro feliz,  cortejuo  prudente,  dominador  sem  rival, 
o  hadjeb  via  elevar-sc  progressivamente  oedificioi^as 
suas  prosperidades  sobre  as  ruinas  dos  seus  adversá- 
rios. 

Não  tinha  o  titulo,  mas  tinlia  o  poder  de  um  so- 
berano. Não  se  assentava  no  throno,  mas  f.iiia  mais 
—  dominava  omonarcba.  Cercava  o  por  Ioda  aparte 
a  pax  e  a  ventura.  No  meio  porém  d'esta  atmusphe» 
ra  de  felicidailes  ouviase  oquequt-r  que  fosse,  como 
um  rumor  de  tormenta   no  horisimte. .  . 

O  alcaçar  de  Arahrat,  fundação  do  kilifa  morto, 
erguia-se  nointio  da  sombra  c  dosilencio  con.oo  vul- 
to immenso  de  um  gigante  a  descar.çar  estendido. 
Nenhum  rumor  de  dentro  vinha  quebrar  a  cilada  da 
noite  ;  earuidosa  habiliiçãu  do  soberano  knrduvei  pa- 
recia ler  adormecido  com  todos  os  seus  moradores. 

Não  dormiam  todos  porém.  Cliieni  penetrasse  nns 
j.irdins  do  alcaçar,  e  percorresse  em  Ind.i  asuaexten- 
»ão  aquelles  vastos  niassiçns  ebosqiledos.  ouviria  sus- 
pirar baixo  ao  pé  d'uma  fonte  de  mármore,  oude  se 
despenhava  do  alio  uma  veia  d'agua  cristalina. 


I  Mas  que  suspirar  aquelle  1  Q.uasi  que  se  não  podia 
bem  distinguir  se  era  afoute  que  se  lastimava,  se  era 

i  a  voz  humana  que  murmurava. 

I       Só  quem  se  approximasse  veria  uma  alva  figura  de 

]  mulher,  immovel,  de  pé,  encostada  ao  alto  parapei- 

'  to  da  bacia  de  pedra,  como  a  estatua  pendida  na  ur- 

!  na  d^um  monumento. 

Era  esta  poética  figura  que  soluçava — era  ellaque 

!  misturava   os  seus  queixumes  com  o  gemebundo  tu- 

;  surrar  da  agua. 

!       Quem  a  levara  alli  áqoella  hora  a  prantear  dârei 

;  ou  a  gemer  saudades? 

I  A  noite  corria  escura  e  voluptuosa.  As  estrellas  ver- 
tiam para  a  terra  aquella  tremula  e  indecisa  clarida- 

1  de  que  augnienta  os  mvsterio»  e  faz  abrir  as  tlores  do 

i  coração.  O  ar  estava  embalsamado  de  mil   perfume* 

■  diversos.  Os  jasmins  de  Toledo,  as  rosas  d' Africa,  e 
j  os  loureiros  da  Grécia  entrançavam-se  na  terra,  e 
I  misturavam  no  espaço  as  suas  exhalações odoríferas  : 
;  era  uma  hora  de  amor  emvstifa  solidão,  como  a  de- 

■  viam  deinvocar  osguerreiros  kordoveies  nos  seus  dias 
de  pai  c  descanço. 

I        A   pouca  distancia  da  fonte  ia  uma  rua  tapada  de 
'.  murtas,  que  se  ia  embrenhar  no  interior  dos  jardins  . 
um  lanço  de  muro  dos  pateos  interiores  vinha  quasi 
morrer-lhe  ao  pé. 

Dois  vultos  de  homem  surgiram  ao  mesmo  passo 
juncto  da  dolorida  solitária.  Um,  trajado  do  escuro, 
silencioso,  sombrio,  acautelado,  saía  d"entre  as  mur- 
tas espreitando  attentamente  as  trevas,  parando  a  ca- 
da passo,  e  como  querendo  adivinhar  o  que  não  po- 
dia sentir  —  o  outro,  adiantí:ndo-se  confiadamente, 
coberto  d^um  amplo  manto  alvacento,  eddxando  on- 
dear as  prejas  amplas  em  roda  da  nobre  e  mages- 
tosa  figura.  Tão  altivo  e  ousado  era  o  porte  d't'«- 
te,  como  suspeilosos  e  prudentes  eram  os  meneios  do 
outro. 

Chegados    a  breve  espaço  da  fonie,    pararam   am- 
I  bos.   O  que  se  escondia,  como  er»  i^atural.  presentiu 
;  primeiro  oque  se  nãooccultava,  e  retrahindo-sed:an- 
te  d"elle  com  dobradas  precauções,  oppressa  a  respi- 
ração, accesos  osolhos,  immergiu-se  de  novo  na» som- 
bras do  arvoredo, 

U  vulto  do  manto  branco  adiantava-se  noen'anto. 
Ou  fosse  que,  esperando  já  alguém,  a  figura  da  fon- 
te não  estranhasse  o  rumor  daquelles  passos  que  >e 
approximavam,  ou  fosse  que,  toda  em)  ebida  na  sua 
meditação,  os  n?o  sentisse,  é  certo  i)ue  não  pareceu 
dar  pela  vinda  d'elle  senão  quando  este  lhe  era  ja 
i  chegado  ao  pé. 

Voltou-ve  então  subitamente,  como  qu> m  de«perta 
d'um  longo  lethargo,  e  exclaiuBu  em  ar-s  de  repre- 
hensiva  : 

—  .1  Aens  I."i0.  .  .  •» 

Evidenlemente  a  pessoa  que  viu  não  rr«  a  qiiees- 

■  perava,  que  as  palavras sumiram-»e-llie  nu^ lábios,  e» 
tremendo  toda  como  um  vime,  poude  apenas  balbu- 
ciar : 

—  u  Vós  !  .  .  .  «qci  '  ■• 

.  — >i.\qui  —  tornou  uma  vei  sonora  eehei.i  —  esu 
aqui.  A  formosa  Gelobtra  l)emsal>cque  n'outra  par- 
le. .  ." 

—  uN^outra  parte  seria  uma  fraqueta  dar  ouvido» 
I  ao  hadjeb  de  Kordova  :  aqui  é  um  crime   •• 

!       —  u  Porque  ?  " 

—  "  1'orque  em  quanto  o  poilerwii  Mohammed  des- 
,  ce  escondido    a  perseguir    na*  trevas  quem  não  pi'>de 

ser  sua,  desespera-se  talvez  lá  em  cima  quem  elIe  nà» 

deve  esquecer.  " 
;       — «•  Lemhr.is-m'o  demais.  •• 
I       — ■•i.EIla  é  uma  princeia,  »enbor  :  eu  lou  ama  e>- 

crava. 


o  PANORAMA. 


27 


—  uDize  lima  palavra:  será  ella  a  escrava,  tu  a  i sobre  elle,  e  se  retrahe  sem  o  amollecer,  deixando  o 
priíieeia."  como  o  achara. 

—  "li  o  que  vós  llie  devcisf»  |      — .iGeloliira,   Sabes  que   te   amo  I  >•  —  prorompeu 

—  iiNão  lhe  devo  iiad.i.»  ^  Mohaimiied  com  a  voz  alterada. 

—  "E  o  que  ella  pôde?»  I       A  virgem  goda  só  respondeu  com  um  grilo  de  ler- 

—  uNão  pôde  iiada.'i  |  ror  e  angustia,    que  resoou    no  âmbito  immenso  dos 

—  "Não  é  a  mim  que  me  pertence  acoiuelharvos,  jardins  como  um  brado  de  agonia.  Uma  espécie  de 
senhor  i  mas  se  a  voz  de  uma  escra\a  pôde  alguma  '  rugido  abafado  respondeu-lhe  ao  longe,  podendo  to- 
cousa  no  vo%so  coração,  recordai-vos  que  Shobeia..."  j  inar-se  por  um  ecbo. 

—  "Nacillava  no  seu  throno:  foi  este  braço  que  a  |      Geloliira   conhecia   a  implacável  resolução  que  si- 
seguruu  nV^Ue.    Não  era  amor,  era  ambição  o  que  a    gniljcava  aquella  súbita  confi^são  do  hadjeb. 
movia.  Apertei  a  coroa  na  cabeça  de  seu  íillio,  con- ,      JNão  siipplicou  mais.  Sabia  perfeitamente  que  seria 
lervei-llie  05  seus  títulos,  e  sacrificando  os  meusdias    tudo  inútil. 

e  as  minhas  noites  tomei  n'estas  mãos  robustas  as  re-  '  — 'Levanta-te,  escrava"  —  continuou  Moharomed, 
deas  do  império,  que  estava  em  riscos  de  se  despe-  i  sufiucado  pela  violência  do  que  lhe  fervia  lá  dentro, 
nhar.  Não  lhe  devo  nada.  Que  me  importam  as  suas  Geluhira  poz-se  em  pé  de  repente  como  se  algum 
lagrimas?  que  me  faz  a  sua  cholera  .'  Não  a  temo  tam-  j  occulto  macliinismo  a  tivesse  feito  mover.  O  rosto  dis- 
pcaico.»  I  putava  pallidez  com  os  mármores  da  fonte.  Os  olhos 

—  "I£u  sei,  senhor,  eu  sei  que  o  vosso  poder  éim-  j  dilatados,  qtiasi  resplandeciam  nas  sombras,  a  curva 
nunso,  sei  que  as  vossas  iras  são  terríveis.  Mas  de  1  magestosa  da  fronte  parecia  rodeada  d\ima  aureola 
certo  não  haieis  de  emprega-las  contra..."  deslumbrante.   A  altiveza  do  seu  porte  rivalisava  com 

—  "Contra   quem.'"  —  interrompeu  em  tom  rude    o  do  guerreiro. 

e  desabrido  o  hadjeb.  Mohammed  contemplou-a  de  novo  como  assombra- 

—  "Contra  uma  pobre  mulher"  —  clamou  a  don-  do,  e,  sem  poder  já  conter-se,  e.\clamou  imperioso  com 
lella  caindo  a  seus  pés  n'uma  violenta  explosão  de-la-    a  voz  estrangulada  pela  anciedade  : 

grimas!  — i.Segue-me." 

O  guerreiro  kordovez  filou  os  olhos  ardentes  n'a-  ^       — "Morta  sim  ;  viva  não." 
quelld  figura  angelical,   dobrada  na  terra,  chorosa  e  ,       Bradou   a  virgem  de  .Amaja,   e  o  lampejar  d'u 


prostrada  ante  elle,  e  por  um  momento  as  linhas 
d"iiquelle  rosto  severo  e  tostado  pareceram  distcnder- 
se  n'um  impulso  de  compaixão. 

E  que  realmente  nada  se  podia  ver  mais  doloroso 
e  gentil  do  que  o  gesto  e  a  altitude  e  o  todo  deGa- 
luhira,  de5espera<la  e  supplicante. 

(ieloliira  reunia  a  graça  á  magestade  •,  sorria-lhe 
nu  rosto  a  innucencia  e  a  candura  ;  resplandeeia-lhe 
110  aspecto  a  energia  e  a  nobreza.  Nascida  nas  mon- 
tanhas, tinha  no  porte  o  que  quer  que  Ibsse  de  força 
varonil,  temperada  pela  graça  e  pelo  melindre,  que 
tão  o  poder  do  seu  sexo.  (Jra  se  erguia  altiva  como  o 
roble  <la8  serras,  ora  se  curvava  timidamenle  como  o 
lirio  do  valle  :  os  olhos  ncgroi  e  rasgados,  semi-vela- 
dos  por  uma  longa  franja  de  sobrancelhas  asselina- 
dus  e  recurvas,  eram  demasiadamente  brilhantes  pa- 
ra encarar  a  terra,  só  se  abriam  em  todo  o  seu  régio 
esplendor  para    conlemplar  o  céu  '. 

Gclohlra,  liiha  do  paií  de  Amava,  fora  fiMta  pri- 
sioneira ii'uina  correria,  e  conduzida  a  Kordova  com 
outros  sen»  companheiros  do  llo^ll■rro.  Em  Kordova  o 
extraordinário  da  sua  formosura  fe-la  para  logo  ac- 
ceita  de  Shobeia,  inài  do  moço  prineipe  líecham, 
n  quem  fora  duita  como  ehcrava.  Viu-a  o  impetuo- 
so ha<lji-b,  e  o  mesmo  fui  ve-la  que  ficar  para  lo- 
go u  arder  por  ella  na  mais  violenta  chamma  que 
nunca  devorou  um  coração.  Longo  tempo  sutloeara 
M<ili«iilined  o  incêndio  que  lá  deiit  10  lhe  lavrava  :  fora 
"  amor  de  Sliob<'ia  que  o  levara  áquellc  ponto  de  po- 
der, receava  ollendcla,  e  altrahir  a  sua  cholera.  A 
final,  porém,  seguro  do  seu  dominio,  e  não  |K)dend>i 
já  conter  o»  ímpetos  furiosos  que  o  assaltavam,  r^^ol- 
>eu  pôr  lerino  aqui'lla  hornnda  ínei^rteza,  e  abrir-ae 
com  a  linda  chrislã. 

Vigiaiidoii  de  nnile  e  liia  \  ira-a  de*<  er  nos  jardins, 
e  seguira  11  ediílendu  ilinículto>ainenle  no  peito  «ipul- 
la  lunenle  de  (haininas  (|Me  ameaçava  de  trasbor- 
dar. 

Geloliira  eoiilii'<'ia  o  hiidjeli,  e  era  por  isso  que  se 
lhe  lançara  aos  pi'»  ii'nqui'ile  iinpuKo  rnlranho  de  ter- 
ror e  de  pranto. 

i.)  iiioMinentu  de  piediidi- (jiie  parectVn  apoderar  se 
do  guerreiro  fui  loiíio  a  luida  ijiii' escunile  por  insluii- 
les    u  aspiro  cabeço  d'um  rothvdu,  mas  i|n«iie  quibra 


ferro  como  que  lhe  alluniíou  as  mãos  de  alabastro. 

—  "Ti:'ha  previsto  já  este  momento"  —  accrescen- 
tou  fclla,  e  alçou  o  punhal  sobre  o  peito. 

O  guerreiro  porém  foi  mais  prompto.  Com  um 
simples  movimento  d"aquelle  braço  robusto  fez  cair 
na  terra  o  instrumento  homicida,  e  travando  irresís- 
tivelmenteda  mão  á  virgem,  clamou  em  toui  depun- 
gente  ironia  : 

—  «  O  teu  braço,  Gelohira,  não  está  afleito  a  estes 
brincos.  " 

—  "  Mas  está  o  meu  1  " 

Trovejou  n'este  momento  ao  ouvido  do  hadjeb  uma 
voz  medonha,  e  um  como  raio  furioso  desceu  scintil- 
lando  ao  peito  do  guerreiro  que  vacíllou. 

—  «Também  eu  estava  prevenido  —  respondeu  el- 
le espumando  —  não  se  abre  assim  o  aruez  de  5Io- 
bammed.  " 

E  arremeçando-se  como  o  tigre  ao  imprudente  que 
o  a>salla\a,  coineçim  entre  ambos  uma  d  aquellas  lue- 
las  silenciosas  e  desesperadas,  que  não  acabam  senão 
com   a  morte. 

Os  dois  vultos,  do  hadjeb  e  do  descouliecido,  tra- 
vados arca  por  arca,  luctaram  longo  tempo,  aperta- 
dos os  peitos,  entrançados  os  braços  como  dois  athle- 
las  110  circo;  depois  vieram  ambos  a  terra  como  dois 
carvalhos  st;culares,  que  tlesal>assem  al)^açado^,  leri- 
dos  ao  mesmo  tempo  do  machado  do  lenhador.  .  . 

E  continuaram  a  biela  como  duas  Ber|>cntes  o»qu« 
se  haviam  acommellido  como  dois  leões. 

No  fim  d'algum  tempo  um  dos  vultos  fieon  pro»- 
trado  no  chão,  o  outro  ergueu-se  dilacerado.  Tinha 
uma  tempestade  norontu:  o  manto  branco  pendía-lhu 
espcdaçado.  Maculnvamnu  toiiolargas  nódoas  xerine- 
lhas. 

Kr.i  o  bailjib. 

Estendeu  os  olhos  em  rod.i.  A  vir:;eiii  gudnjutin  a 
poucos  passos  prostrada  :  suctumbjra  ao  hotror  d'a- 
quelle  espectáculo 

O  guerreiro  kordovez  arrojouse  parn  ella  rugindo 
de  prazer,  ergueu-a  do  chão  manchando  lhe  asbr.nn- 
cas  vestes  no  sangue  que  o  cobria,  e,  Muiudo  com  el- 
la, dcíMpparcccu  nas  profundas  arcada»  do  alcaçar. 

((  iiil(iiii«u). 


26 


O  PANORAiMA. 


FAISRE  THEOSCnO  D'ACnXEl!lA. 


DiFFiriLMENTE  reuiiirá  Tortiisial  tão  i:;raiule  numero 
(li!  lioniens  diítinctns   por  saher  profundo  e  variado, 
fervorosos  na  constante applicarão  atraliallios  liltera- 
rios,  como  no  memorando  reinado  d'elrei   D.    José: 
niuitosd^ellcs  doutrinaram  e  enobreceram  a  pátria  até 
o  começo  do  presente  século;  do  empenho  e  diligen- 
cias de  quasi  todos  nasceu  a  restaurarão  dos  estudos, 
ecom  cila  a  reforma  da  Universidade  :   porseu  exem- 
plo e  magistério  deixaram  bons  discipidos  e  imitado- 
res.—  E  geralmente  celebrada    a  memoria    do  bispo 
conde  reformador,  do  matheniatico  Monteiro  da  Ilo- 
<:hr,  do  eruditíssimo  prelado  Fr.  Manuel  do  Cenácu- 
lo, do   sábio  padre  Pereira  de  Figueiredo,  e  de   ou- 
tros ;   porém  lia  muitos  nomes  ignorados  ou  esqueci- 
dos,   que  são  dignos  de  menção  por  notáveis  eslurços, 
<]ue  tinliam   por  movei  o  amor   da  sciencia  escorado 
na  vastidão  de  conhecimentos.   As  recordações  de  Ião 
'•■losos  cullores  da  iiitelli^cncia  ou  ficaram  quasi  sot- 
tcrradas  na»  ruínas  lios  claustros  em  que  lloreceram, 
ou  jazem  escondidas  com  o  pó  de  livros  que  ninguém  | 
sacode  i    e  comtudo  foi  a  esses  homens  devido  o  mo-  i 
demo  adiantamento  ;  kl  saiu  o  progresso  das  aulas  par-  ; 
ticulares  que  criaram  ou  regeram,  quando  no  ensino  : 
publico  campeava  poderosa  e  fátua  a  pliilosopbia   ai-  ' 
cunhada  de  aristotélica,    a   par  da  sua  companheira, 
não  menos  arguciosa,   u  theologia  scotisla;    então  os 
estudos  inferiores  nãoeran\  por  melhor  melliodo  trac- 
tados.  O  indicado  (-enaculo  di/.  a  esle  proposilo  ( iiLm. 
Htd.    (los  pioijrisso   c    rcstabcltcimtnlo    Jas  Ictlros): 
"  duando  os  estudos  geraes  teem  degeneração  ou  se 
reduiem  áinlluencia  do  mero  costume,  fica  reservada  | 
aos  particulares  a  excepção  «pie  lhes  fai  glorin   pelas 
suas  tentativas  e  exemploi  emailiantar  oparlidodas  \ 
sciencias.  "  l'or  isso  bem  merecem   da  posteridade  os  ' 
talentos  sãos  que  .inimosos,    a  despeito  de  quaesquer 
considerações  e  in(liii'ncins  pessoaesou  daepocha,  pro- 
pagaram a  verdadeira  doutrina,  desempeçando  o  ca- 
minho para  os  vindouros;  mormente  porque  ointen-  1 
taram  n'um  tempo  ei»  (jue  (conforme  escreveu  o  Sr. .; 
Trigoso)  u  não  poucos  preferiam  á  verdadeira  honra, 
que  dá  a  sabedoria,  as  honras  e contemplações  cxtcf 


nas,  dependentes  do  vicioso  systema  litterario  que  ço- 
sava  exclusivamente  do  favor  publico;  a  maior  parle 
não  estimava  o  que  não  sabia,  e  o  que  não  queria 
aprender;  e  se  algum  tinha  a  constância  deafTrontar 
descobertamente  os  antigos  prejulios,  ficava  exposto 
ao  escurneo  dos  que  presumiam  desabios,  eera  desa- 
nioravelmente  atacado  no  seu  saber,  na  sua  moral,  e 
até  na  sua  crença.  "  Todos  sabem  quantas  tempesta- 
des se  excitaram  entre  nós  por  occasião  do  Verdadei- 
ro melhíido  de  estudar  de  Verney,  e  das  primeirai 
obras  que  publicou  o  padre  António  Pereira  de  Fi- 
gueiredo.—  Na  conta  d'esse5  varões  desconhecidos  de- 
ve entrar  o  padre  João  Baptista,  da  Congresação  do 
Oratório,  de  quem  diz  o abbade  Barbosa  :  ualcançou 
a  gloria  singular  de  ser  o  primeiro  que  n^esta  còrle 
dictasse  a  philosophia  moderna,  que  totalmente  se 
ignorava  em  Portugal":  deixou  impresso  um  curso 
em  latim  em  doisvulumes  de  fulio,  valioso  para  oseu 
tempo;  e  entre  os  seus  discipulos  sobresairam  o  bis- 
po Cenáculo,  e  o  padre  Theodoro  d"  Almeida,  o  qual 
(na  Cart.  o'J.''  das  Phyúcn  Malhem.)  o  nomeia  in- 
rão  d  eterna  saudade,  aquém  devo  esse  pouco  que  ui 
do  co7ihccimento  da  natureza. 

Com  aslições  de  seu  mestre  approveitou  tanto  o  pa- 
dre Theodoro,  que  se  habilitou  para  continua-la", 
aperfeiçoadas  com  as  numerosas  experiências  e desco- 
brimentos que  diariamente  se  faziam  nos  amplos do- 
minios  das  sciencias  phvsicas.  K  lai  foi  o  enthusias- 
mo  de  que  se  possuiu  por  semelhante  estudo,  que  to- 
da a  sua  vida  o  professou,  não  só  nas  aulas,  mas  em 
lições  particulares,  dentro  e  fora  do  reino,  consagran- 
do-lhe  o  tempo  que  lhe  sobrava  dasoccupações  do  seu 
estado,  em  que  não  foi  menos  assiduo,  como  o  pro- 
vam o  continuado  exercício  do  ministério  evangélico, 
e  muitas  obras  ascéticas  que  deu  á  estampa.  .\  phi- 
losophia experimental  servia-lhe  de  recreio;  folgav.-v 
ue  trabalhar  com  as  machinas  na  presença  de  alum- 
nos  curiosos,  (femonstrando  practicamente  as  verda- 
des então  conhecidas  nas  sciencias  naluraes;  e  tanto 
se  deixou  levar  dVste  louvável  impulso  que,  a  benc- 
iicio  dos  que  não  possuíam  princípios  elementares, 
compoz  os  seis  primeiros  tomos  da  Ricrea^uo  Philo- 
sophica,  em  dialogo,  nos  quaes  procurou  ser  claro,  e 
adoptou  um  metliodo  fácil  para  as  intellii^encias  vul- 
gares. .D"aqui  nasceu  que  esta  obra,  deficiente  já  no 
seu  tempo,  foi  pouco  estimada  dos  entendidos  n.i*ma- 
teria,  ceusurando-se-lhe  algumas  opiniões  siiiguLires, 
por  exemplo,  a  substituição  da  thcoria  newtoniaria 
da  luz;  taxaramn"a  tanibem,  quanto  a  forma  dialo- 
gislica,  de  pouco  peso  nas  objecções  do  pliihisopho  pc- 
ripatetico,  que  facilmente  o  peilagogode^trui.i,  incu- 
tindo a  opinião  própria.  Comiuilo  é  inneçavel  que 
esle  escriplo,  com  todos  os  seus  dffeilos.  concor- 
reu muito  para  excitar  á  leitura  de  obr.is  mais  cra- 
ves, e  para  dílloiuiir  notavelmente  o  go^to  peloestu- 
do  das  sciencias  naturaes,  então  concciítr. idas  nas  aca- 
demias e  fora  do  alcance  dos  curiosos.  Foi  um  servi- 
ço do  padre  Almeida,  que  é  hoje  reconhecido;  por 
esta  razão  o  appresenlànios  como  facto  principal  da 
sua  biographia  littcraria.  Dos  quatro  volumes  que 
completam  as  Jttcieai^òcs  nada  diremos,  senão quea 
apologia  da  Ileti:;ião,  assumpto  dos  dois  últimos,  foi 
dictada  por  Loas  intenções.  Seguir.im-se-lhcí,  como 
supplemento,  os  três  volumes  pseiidonvmos  das Cnr- 
las  l'hiisico-Mathcmaticas,  dcstinad.is  prinLJpalmente 
a  tornar  populares  as  noções  de  geometria  c  de  nie- 
chanica. 

Se  considerarmos  a  vida  do  padre  Theodoro,  indc- 
peiídenle  do  car.icter  e  funcções  do  sacerdócio,  acha- 
remos que  em  grande  parte  a  consiigrou  ásuaappli- 
cação  prcdilect.i,  as  sciencias  naturaes.  —  Aos  \inf« 
e  quatro  de  idade  tinha  sido  nomeado  substituto  dv 


o  PANORAMA 


29 


uma  cadeira  de  philo«ophia  na  sua  Cooíçregação,  e 
ao»  vinte  e  nove  já  era  mestre  ^  mais  tarde  o  vemos 
ensinar  com  applausos  fura  do  reino  a  mesma  disci- 
plina. 

GUiando  os  padres  nerys  estiveram  ameaçados   de 
nma  proscripção  quasi  igual    á  dos  jesuilas,    a  ponto 
de  serem  obrigados  a  celebrar  osofficios  divinos  apor-  , 
ta  fechada,  parece  que  mais  especialmente  se  declara-  j 
ra  contra  alguns  a  má  vontade  do  poderoso  ministro  j 
d"elrei  D.  José:,  e  do  numero  d"'esses  foi  sem  duvida  i 
Theodoro  d"Aln)eida,  que  se  refugiou  era  França  no 
m&í  de  setembro  de  1768.   De  passagem  contaremos 
uma  anecdota  desse  tempo.  —  Buscando  o  marquez 
de  Pombal  motivos   para  proceder   contra  a  Congre- 
gação, mandou,  entre  outras  averiguações  domicilia- 
rias nas  casas  d'ella,  indagar  o  estado  dii  prisão  pri- 
vada, suppondo  que  deveria   have-la  como  em  todas 
a»    ordens    religiosas.    O    ministro  visitador  pediu  as 
chaves  do  cárcere  ao  prelado  superior,  mas  este  res- 
porideu-lhe  : — a  porta  do  cárcere  é  aquelia  —  apon- 
tando para    a  da    ruH.    Sabido    é  que  os  congregados 
penduravam  a  roupeta  e  largavam  a  clausura  quando 
llies  aprazia,  sem  que  o  prtiadu  ou  qualquer  lh'oim- 
pcdisse. 

O  padre  Theodoro  deu  lições  publicas,  durante  o 
seu  desferro,  primeiro  em  Jjiiyonua,  começaudo-as 
pela  geometria  e  álgebra  ;  e  depois  em  Auch,  onde 
fez  um  cursodegeometria,  geographia  e  phvsica  ;  ad- 
quirindo tanta  reputação  que  foi  convidado  para  re- 
ger em  Brest  uma  cadeira  depbysica,  offerecimento 
<|ue  recusou,  bem  como  rejeitara  prebendas  ecclesias- 
tieas  e  a  reitoria  de  um  coUegio  de  Bayonna,  man- 
tendo sempre  esperanças  de  tornará  pátria,  que  nem 
perseguido  lhe  esquecí-ra.  Toude,  com  elleito,  voltar 
a  Lisboa  em  março  de  1778:  e  tendo-se  acabado  a 
reedificHção  da  Casa  da  invocação  do  Espirito Sancto 
ao  Chiado,  em  outubro  de  1792,  para  ahi  se  passou 
a  foniar  conta  da  cadeira  de  pliilo-ophia,  que  leccio- 
nou até  o  fim  de  sua  vida,  que  leve  o  termo  feliz  do 
homem  justo,  sábio  e  laborioso,  a  18  de  abril  de  1804, 
contaniio  pouco  mais  de  oitenta  e  dois  annos,  por  ha- 
ver nascido,  ii'esla  capital,  em  7  de  janeiro  de  17:22. 

Theodoro  d'Almeida  adquiriu  os  primeiros  graus 
da  instrucção  na  casa,  já  niencimiada,  do  Espirito 
Saneio,  e  distingiiiuse  |jor  boa  educação,  porte  sisu- 
do, e  applicação  eschobiít  ica,  de  maneira  que  muito 
novo  mereceu  ser  admillido  á  corporação  religiosa  a 
que  pertenciam  seus  mestres.  Hucr  fosse  por  vocação 
(iropria,  quer  por  alheio  conselho,  em  todo  o  caso  foi 
acerto  que  o  futuro  justificou.  E  porque  aquelia  cor- 
poríição  eeulesiastica,  compreliendida  na  geral  extinc- 
ç-ãodas  ordens  religiosas,  pude  também  ser  confundi- 
da ciiiii  c.las  na  imaíiiiacão  ila  mocidadeque  se  cslá 
criando,  não  obstante  os  assigiial.iilos  serviços  que  pres- 
tou a  educação  lilleruria  da  mocidade  lisbonense,  prin- 
cipaliiienle  na  lleal  Casa  das  Necessidades,  traslada- 
remos a  sua  mais  exacta  di-fmlção  nas  seguintes  pou- 
cas palavra»  <lo  bispo  de  \'i/.i'U,  um  dos  clássicos  es- 
criplore»  dos  nossos  dias.  —  u  A  Congregação  do  Ora- 
tório lio  S.  Eilippe  Nery  não  é  dVstas  corporações 
ou  institutos,  em  quo  o  encarecimento  e  estreiteza 
dos  volos,  o  profundo  da  solidão,  as  austeridades  da 
disciplina  sirvam  a  mover  o  enthusiasino  ou  allrahi- 
lo.  10  uma  gravi!  associação  de  ecclisiaslieos,  que  tem 
por  único  vinculo  o  desejo  unanime  deiílciínçar  a  per- 
feição do  seu  islailo,  que  não  iviliini  di>  mundo  senão 
os  embaraços  á  virtude  e  os  riscos  de  a  peidrr,  (|oe 
nu  modo  regular  ilu  viila  se  liinilaiii  á  siiii|iiii'idade 
e  friigiiliiladi'  dochrislão,  obrigado  a  ser  em  seus  cos- 
tuincii  doutrina  e  eMinploaos  homens  dostculo.  Não 
!■  tolhiilo  a  c.ul.i  iim  i|ue  «•.pire  no  seu  [).irliciiiar  á 
praclicu   Ião  ulta  dos  cuiiiclhus  evangélicos,  mas  em 


commum  restringem-se  aos  propósitos  e  funcções  do 
sacerdócio  e  ao  serviço  da  Igreja,  de  que  nunca  se 
pôde  desunir  o  do  Estado,  pelos  meios  da  rele;ião  » 
da  litteratnra.  "  {1>.  Franc.Alex.  Lobo — Elo^iode 
D.  José  Mtitia  de  Mello.) 

A  ideia  fundamental  do  instituto,  qne  abraçara, 
correspondeu  a  longa  carreira  de  estudo  constante  e 
de  acções  religiosas  do  padre  Theodoro;  ainda  que  a 
maledicência  quizesse  increpa  1j  de  nimiamente  bea- 
to ou  de  fingido,  reluzem  osaSectos  de  crença  e  pie- 
dade sinceras  nos  seus  escriotos  espiriíunes,  que  são 
muitos,  como  as  MtãHnrOes  sobre  os  ailribvios  divi- 
no», as  cartas,  osopusculos;  entre  estes  doi>  intitula- 
dos 1.1  Ávida,  e  amorle  alegre  dophilosopjiochrisliip.  ■:• 
D^isso  mesmo  dão  tesi  i  m  un  ho  contem  porá  neo  os  desin- 
teressados e  dignos  de  credito.  O  padre  Theodoro  foi 
aí^siduo  no  púlpito  até  muito  além  dossetenla  de  ida- 
de, e  publicou  uma  collecção  de  sermões,  e  o  Pastor 
livangelico,  deixando  maniiscriptos  dois  \olumes  de 
Pracíicas.  Dos  seus  trabalhos  scientificossão  também 
documentos  as  Iiistituir^ões  PAi/s/cos,  publicadas  em 
latim  em  178o,  e  o  seu  Flanctaiio  que,  datando  de 
179G,  é  por  aiiclorid.ide  competente  reputado  supe- 
rior ao  do  celebre  Desaguliers. 

Cuidadoso  da  educação  que  promovia  por  conselhos 
oraes  e  por  obras  dadas  á  estampa,  como  a  Gtogra- 
pliia  breve  para  uso  das  educandas  do  recolhimento 
da  Fisitaçuo,  igualmente  se  desvelava  pela  cultura 
moral  e  religiosa  do  entendimento  e  do  coração.  Con- 
tribuiu efficazmente  para  a  fundação  do  seminário 
dos  orphãos,  instituído  pdo  padre  António  Luiz  de 
Carvalho,  e  para  a  do  convento  da  ^"isitação,  para 
onde  vieram  de  Anecy  as  cinco  primeiras  fundado- 
ras, que  foram  recebidas  com  grande  solemn  idade  a  26 
de  janeiro  de  178t.  D'esta  casa  foi  elle  odirecicrao 
mesmo  tempo  espiritual  e  litterurio. 

Este  homem,  dotado  de  relevante  merecimento,  da- 
do toda  a  vida  ás  sciencias,  também  inienlou  colher 
llòres  nos  campos  amenos  da  litteralura,  abalaiiçaii- 
do-se  a  tentativas  poéticas  ;  e  não  se  limitou  a  peque- 
nas composições,  cominetteu  a  emprera  de  extensos 
poemas.  Foi  porém  infeliz,  porque  se  algum  dote  lhe 
laltava  era  por  certo  o  dom  da  inspiração  dos  vales, 
o  nem  sequer  possuia  a  arte  da  simples  metrificação  : 
não  nos  deixam  mentirosos  a  Lisbua  i/tsíi  i/íi/u,  e  os 
ensaios  do  Veliz  iitdtj)endtntf.  primeiro  em  rinia,  de- 
pors  em  verso  solto.  N'estaobra  de>aiiiparou-o  a  final 
a  inania  poética  i  chegou  a  conclui-l.i  em  prosa,  eas- 
sim  conseguiu  que  por  alguém  fos^e  lida  :  écomtudo 
uma  ficção  moral,  onde  no  maravilhoso  figuram  as 
paixões  personalisadas ;  ó  prolixa,  fria  eseiciínle,  do 
que  proveio  chamarem-lhe  os  facetos  —  o  felix  imper- 
tinente.—  Apesar  d'isso,  a  novella  do  padre  Theodo- 
ro obteve  oito  edições  na  traducção  he>panl>ola,  o  que 
pode  servir  de  allegação  aos  que  ainda  tiverem  u  pa- 
ciência de  a  ler.  —  A  concepção  douuclor  era  nobre 
e  digna  dos  seus  virtuosos  senliinenlos,  mas  petcoii 
nas  formas  e  na  geral  conlexlura  il.iobr.i,  por(|uellie 
faltava  o  gosto  apurado,  ijiiedeu  u  iminorlalidade  nu 
auctor  do  Telemaco. 

l'oréiu,  se  os  louros  do  Parnaso  não  vecejavnm  pa- 
ra coroa  do  no^so  pliilo>opho,  merecido  galardão  lli« 
coul)e  reci'beiulo-<)  eiii  seu  grem.o  com  distincção  al- 
gumas celebres  corporações  se ienliticas,  priíicipalineii- 
le  a  Academia  Ki'al  das  Sciencias  de  Lisboa,  e  a  So- 
ciedade lleal  de  Loiídrei.  S.dúos  cslrangeiros  o  hon 
raram  com  sua  correspundencia  e  elogios:  enire  oi 
patrícios  ainda  hoje  são  populares  seu  nomee  memoria  . 

O  oovr.uNO  absoluto  em  Portugal,  diiin  certo  nobre, 
sustiMilase  riii  três  II  :  Ignorniicia,  Incoiifidcncia,  <• 
ln'lui>ição.  , 


30 


o   PAIS  ORAM  A 


GoMb5    hlllilltK    IIK    A.NDIIAUE. 

(Conlinuado  de  pag.  21 .) 

I''.iiA  "pral  odcsconsolo  dos  portugiiezpspm  18(7,  por 
causa  da  triíiiifereiícia  da  corte,  para  o  Rio  de  Janei- 
ro. rt'onde  níio  voltavam  despachados  os  requerimen- 
tos sem  grande  accrescinio  de  despeza  e  irreparável 
perda  de  tempo:,  além  de  que,  o  fausto  da  corte,  ab- 
sorvendo a  maior  parte  dos  rendimentos  de  l'ortuj;al, 
iiiuilo  diminuídos  pelos  estragos  d'nnia  guerra  diu- 
turna, converlcra  em  outros  tantos  bandos  de  men- 
liigós  as  classes,  assas  numerosas,  dos  que  serviam  o 
estado.  A  dos  militares  deplorava,  alóra  os  inales 
communs  a  todos,  a  falta  dos  accessos,  a  que  lhe  fe- 
chava a  porta  crescido  numero  de  oITiriaes  inglezes, 
conservados  nas  fileiras  do  exercito  depois  da  campa- 
nha peninsular;  linalmente  o  general  Cabanas,  vin- 
do incógnito  a  Lisboa  com  a  mira  em  promover  uma 
nnoluçiio  de  accordo  com  os  liberaes  de  Ilespanha, 
liíera  lembrar  a  tiecessidade  d'uma  mudança  politi- 
ca, encaminhada  a  substituir  a  regência  do  reino  por 
um  governo  mais  popular,  e  a  privar  o  marechal  ge- 
neral lord  Beresford,  marquez  de  Campo  Maior,  do 
inando  absoluto  que  tinha  nas  tropas.  Quizeramap- 
proveilar  este  ensejo  alguns  homens  faltos  de  repre- 
sentaijão  e  dinheiro,  e  em  nome  d'um  Conselho  lie- 
ijeiíerador,  formado  na  sua  imagina<;ão,  começaram 
a  fazer  proselvtos  militares  com  preferencia,  e  a  es- 
palhar pasquins  e  proclamações,  impressas  por  alguns 
dos  sócios  contra  o  rei,  e  recheiadas  de  pretextos  frí- 
volos, como  eram  o  ter  vendido  l'ortugal  ora  á  In- 
glaterra ora  á  Hespanha.  Sobre  tão  fracos  alicerces 
se  propuzeram  elles  a  erguer  um  propusnaculo  d'on- 
de  guerreassem  a  realeza  de  D.  João  Vi,  aoqual  ac- 
ciisavam  de  ingrato  e  queriam  derribar  do  throno, 
exacerbados  talvez  pelo  apoio  que  dava  a  lord  líeres- 
ford,  a  qiiem  votavam  ódio  figadal.  l'ara  accreditar 
este  conselho  frtbuli>so,  que  expedia  ordens  nos  seus 
reinos  e  aos  seus  crercilos,  careciam  de  citar  um  no- 
me respeitável,  capaz  de  vencer  a  repugnância  dos 
convocados  mais  prudentes  ou  mais  timoratos,  fazen- 
dollus  conceber  aesjirrança  do  bom  e\itod'ui>ia  em- 
preza  tão  perigosa.  Esle  nome  foi  o  de  G(unes  Frei- 
re, o  (]ual  vinuis,  pela  carta  inserta  no  artigo  ante- 
cedente, resolvido  a  viver  retirado  dos  negócios,  e 
pareci'  não  se  haver  apartado  d'esta  salutar  resolu- 
ção,  pois  fugia  até  de  frequentar  os  lugares  públicos. 

O  leitor  imparcial  que  meditar  um  pouco  sobre  it 
doutrina  e  linguagem  das  proclamações,  sobre  a  ne- 
nhuma influencia  dos  conspiradores,  solire  asceremo- 
nias  pueris,  interrogatórios  e  juramentos  que  prece 
diam  as  admissões,  ficará  miio  convencido  de  que 
(iomes  Kreire  não  podia  implicar-se  na  conspiração, 
<lo  nu)d(>  que  se  figurou,  sem  ter  perdido  ojiiizo.  Na 
da  mais  próprio  para  matar  o  euthusiasnio  do  adep- 
to do  que  ver-se,  ao  tirarem-lhe  a  venda,  n'\im  con- 
venticulo  de  três  pessoai  insi;;niflcantes,  sentadas  no 
canto  diurna  easa  ao  pé  d'unia  mesa,  sobre  a  qual 
ardia  uma  vella  com  a  sua  bandeirola  de  papel  par- 
do para  lhos  asstunbrar  as  caras.  l'or  fatalidade,  a 
esta  conjuração,  que  seria  ephemera  se  logo  se  pro- 
curasse alalh.i-la,  deu-se  Iodas  as  largas  para  que  to- 
masse corpo,  despertasse  horror,  o  arrastasse  af>  ca- 
dafalso muita  viclima,  que  ficara  bem  eastigad.i  com 
penas  incomparavelmente  mais  leves.  As  niorlesdes- 
necessarias  d'aqucllcs  mala\enturadiis  confrangem  os 
corações,  mas  a  de  Cioines  Kreire,  não  convencido  do 
crime  de  lesa  niageslade,  foi,  cm  rigor,  mais  um  as- 
sassínio politico. 

Por    indiscrição    cVurn    dos    princlpaes    conjurado» 
■se  descobriu  u  consnir»ção  muito  a  tempo  de  u  aba- 


far. António  Cabral  Calheiroí,  enconlrando-se  n'um 
botequim  com  um  ajudante  d'ordens  docommandan- 
te  da  o."  brigada  d'infanteria  cm  Trazos-Moutes,  en- 
trou a  ralhar  do  governo  em  voz  alta,  e  convidou  o 
ajudante,  que  o  contradisse,  a  acompanha-lo  a  casa 
para    lhe    If-r    uma  proclamação.    No  fim    da  leitura 
pergunfou-lhe  <|ue  tal  lhe  parecia.  "É  quanto  basti, 
respondeu  o  ajudante,    para  o  enforcarem  e  a  fodoí 
nós."  O  facto  foi  contado  por  este  a  outro  ajudante 
do  governador  do  Além  Tejo,    e  chegou  aos  ouvidos 
de  Beresford,  que  estava  alerta  com  a  vinda  de  Ca- 
banas, e  deu  ordem  positiva  por  escripfo,    em  nome 
do    rei,    a  estes   dois  militares,    e  a  um  bacharel  da 
mesma   terra    de  Cabral,    para  lhe  irem  relatando  o 
andamento  da  conspiração,  em   que  fez  entrar  o  ba- 
charel e  o  official  que  primeiro  a  descobriu  no  bole- 
qnini.   (Jbedeceram  ambos,  e  posto  que  depois  dead- 
1  mittidos    muitas    vezes  se  lhes  marcasse  dia  para  se- 
rem appresentados  a  Gomes  Freire,  nunca  o  viram 
Por  isso  o  ajudante,  envolvido  por  mandado  do  ma- 
rechal general  no  rol  dos  conjurados,  não  hesitou  em 
declarar,    n'uma    carta    publicada    em    Londres  cmn 
anctorisação  sua,  i.que  não  tinha  motivo  al^um  par.i 
presumir  que  elle  fosse  um  dos  conspiradores,  senão 
o  que  tinha  ouvido  dizer  a  Cabral."  Na  verdade,  as 
vãs  promessas  ile  que  elle  lhe  appareceria,  e  o  extra- 
vagante aviso  que  por  ultimo  lhe  fizeram  para   ir  ás 
pedreiras  de  Alcântara  com  phosphoro  e  duas  vellai 
de   cera,    para    iruma  caverna  receber  certos  papeis 
da  mão  do  tenente  general,  deviam  te-lo  capacitado 
de  que  ou  abusavam  da  sua  paciência,  ou  não  o  jul- 
gavam fiel,  ou  era  impossível  a  apparição  de  Gomes 
Kreire.    Excluída  a  idéa   da  zombaria  e   da  descon- 
fiança,   por  isso  que  lhe  haviam  revelado  o  mais  se- 
creto   dos  seus  planos,   estava  provada  a  impossibili- 
dade. 

Lord  Beresford  remelteu  em  22  de  maiodel8íT 
aos  governadores  do  reino  as  provas  do  que  se  tra- 
mava, e  instou  pela  prisão  dos  implicados  para  evi- 
tar que  o  negocio  transpirasse. 

Na  tarde  de  "Jt  para  lio  recebeu  Gomes  Freire  car- 
tas anonymas  participando  lhe  que  á  meia  noiíe  ha- 
via de  ser  preso,  e  pela  bocca  do  padre  Manuel  d« 
Mesquita,  I).  abliade  do  mosteiro  de  Belém,  ouviu 
igual  aviso,  sem  que  procuras«e  evadir-sp.  Aos  con- 
selhos prudentes  do  amigo  oppot  protestos  de  inno- 
ccncia,  e  para  melhor  mostrar  que  de  nada  se  recea- 
va, tendo  passado  parte  da  tarde  em  casa  do  conde 
de  Kio  Maior,  onde  disse  o  que  eslava  para  lhe 
acontecer,  não  obstante  isso,  recolheu-se  essa  noit» 
muito  mais  cedo. 

Alta  noite  cercam-lhe  a  casa  de  soldados  da  pnli- 
eia,  arrombani-llie  a  porta  dama,  e  snccessivanienie 
todas  as  outras  interiores  até  entrarem  no  ^abiiiHie 
onde  estavi-.,  e  o  tenente  coronel  d"aquelle corpo,  fa- 
zendo apontar  as  espingarda»  ao  peito  do  tenente  <;e- 
neral,  como  te  por  ventura  se  tractasse  da  captur,t 
d'algiim  famigerado  facinoroso,  hradou-lhe  por  de- 
Iraz  dos  soldados:  uVossa  excellencia  está  preso  I-< 
Klle,  sem  dar  sighal  de  su-to,  e  sem  resistir,  expro- 
bou  lhe  a  villania  da  acção,  e  eslriínhou  «er  pre-o  por 
official  de  patente  inferior,  contra  as  usanças  milil.i- 
res.  Adiantou-se  então  o  .ijudintp  do  iniendenlc  ge- 
ral da  policia,  e  appresenl.mdo  lhe  a  ordem  o  gene- 
ral se  deu  á  prisãti.  Depois  de  lhe  apprthcnderem 
todos  os  papeis,  n»etteram-n*o  n'iiina  sege  de  aluguel 
com  o  ajudanle  ilo  intendente,  e,  escoltado  por  uma 
força  de  cavallrtria.  eondnrirr.m-n'o  para  a  torre  d» 
S.  «Inltão    unde  chegou  as  seis  horas  da  manhã. 

Duurava  o  sol  .is  grimpas  da  altiva  Lisbo.i ;  om»l- 
fadado  preso  olln^u  s.iuiloso  par.i  a  cidade,  onde  lhe 
ficava  quanto  tinha  de  mais  charo  ;  carrcram-lhc  ra- 


o  PANORAMA. 


31 


pidoí  pela  mente  os  dias  da  passada  gloria  ;  ao  re- 
manso da  vida,  ao  suave  tracto  dos  amigo»  disse-llies 
o  adeus  derradeiro,  e  transpnz  o  limiar  du  faial  torre, 
i)iie  devia  ser  a  sua  ultima  habitarão  n'este  muudo. 

Dos  outros  accusados  de  tonspirareni  mui  poucos 
escaparam.  Em  quanto  se  prendiam,  conservou-se  a 
tropa  em  armas,  com  espingardas  carregadas,  mor- 
rões a  ccesos,  e  todo  o  mais  apparato  bellico  que  é  do 
estylo  quando  o  inimigo  está  á  \isla.  Leresfurd  vie- 
ra estabelecer  o  seu  quartel  general  em  Alcântara, 
no  aquarlelamcnto  de  cavallaria  n.°  1,  e  d''alli  des- 
tacara patrulhas  pelas  praias. 

Apenas  Gomes  Freire  entrou  na  torre  foi  lançado 
ii'uni  calabouço.  Aquelles  comniodos  indispensáveis, 
que  não  se  negam  aos  maiores  criminoso»,  não  os  te- 
ve elje.  Dormiu  sobre  as  lageashumidas  da  masmor- 
ra.. . 

Nomeou  o  governo  sir  Archibald  Campbell  para 
cornniandante  da  torre.  Condoído  do  preso,  a  quem 
não  davam  de  comer,  sustentou-o  á  sua  custa,  até 
<jue,  no  íim  de  seis  dias,  a  poder  de  soliicilações, 
chegou  ordem  para  se  dar  ao  tenente  general  Gomes 
í""reire  a  mesquinha  pensão  alimentaria  de  doze  vin- 
téns diários,  no  casu  dVlle  não  ter  diiilieiro  ou  outro 
modo  de  se  sustentar.  Gomes  Friire  preferiu  escrever 
a   algunm  de  sua   familia,  afim  de  obter  dinheiro. 

Uma  cama  que  então  llie  concederam  de  pouco  alli- 
vio  lhe  servia,  por  estar  sempre  repassada  de  humi- 
dade. 

O  marechal  Campbi'!!  não  era  um  carcereiro  des- 
huuiano,  era  um  homem  de  eharidade  e  militar  iionra- 
do  :  u  preso  inspirou-lhe  ao  principio  dó,  depois  inte- 
resse, e  por  ultimoamisade -,  deu-líie  pois  Iodas  as  pro- 
vas d'uni  coração  beinfaz^jo,  compaliveiscom  o  rigor 
das  ordens  superiores.  1'assadas  algumas  semanas  co- 
briu-sc  a  cara  do  preso  de  pústulas  que  lhe  causavam 
dores  agudíssimas  e  tresvarios.  A  este  tempo  faziaiii- 
«1*1  lie  interrogatório». 

O  couimandante  da  torre  requereu  um  inedico  ^ 
foi  lá  o  physico  mor  do  exercito  e  certificou  não  ser 
do  perigo,  fe  bem  que  muito  dolorosa,  esta  doença, 
procedida  de  se  não  ler  barbeado  o  preso  havia  mui- 
to teinpo.  Sir  Archibald  Campbell  mandou  comprar 
naxalhas  de  seguranç/i,  e  pediu  lÍLi'nça  á  intendência 
geral  da  policia  para  se  fazer  a  barba  ao  desgraçado 
("omes  J''reire,  —  fui-lhe  negada-,  instou  mandando 
njiliresentar  as  navalhas, —  nova  rejiulsa  ",  pediu  ter 
lendiílo,  nào  lh'o  eoncedirain.  10  quasi  a  historiada 
amputação  da  perna  gangrenada  de  ftlaroncelli,  de- 
nicir.iila  ali;  vir  ordem  de  Vieima. 

1  inh.i  (ioines  Freire  peiliilo  licença  para  eiivi.irn 
"Irci  um  riqiierimenlo  |iila  mão  (hlord  lleresford,o 
qual  rispoiídeu  a  (.'ampliell,  em  data  de  :2t  d(.' ju- 
nho, que  o  tenente  general  Gomes  Freire  podia  cuin- 
niunicar-lhe  o  (|ue  desejava,  escrevendo  na  piesença 
dl)  cominiinilaute  da  torre,  e  siMido  os  escriptos  le\a- 
dos  pelo  marechal  general  á  presença  do»  goveriiado- 
re»  do  reino.  F  iiccrescentava  :  "Fu  não  preciso  dar- 
vos  outras  instrucçries  senão  que  vijaes  e  olheis  bem 
<|ue  vo»  pareie  o  estado  da  sua  cabeça  e  do  sen  jui- 
r.o,  porfpie  pela  informação  que  me  deu  o  tuiientu  co- 
ronel lladdock,  quusi  parece  ijue  esfá  algumas  vezes 
ftjra  de  si.n 

Gomes  Freire  remclteu-lhe  um  protesto  om  cuja 
appresenlaeão  tio  soberano  punha  a  ultima  esperiinea, 
e  indagando  o  que  era  fidlocrelle,  deilarou  lord  lie- 
'resford  a  Campbidl,  em  carta  de  7  ib;  »i'lembro,  ipie 
transmlttira  tudo  ao  presidente  do  govenni,  sem  dei- 
xar copias  do  p.ipel  dirigido  ao  lei,    nem  tampouco 


que  era  eiidereçailo  .-lo  duque  de  Sussex .   Ueinala- 


.1. 

va    o    marei  hal    general  n  sua  caria,    ilizi'udo  :  uSou 

niuilo  cxplioito  n'esle  ponto,  porque  a  pobre  crealu- 


ra  (poor  fello-w)  parece  julgar  que  o  conhecimento  lic 
deslino  que  tiveram  estes  papeis  lhe  pôde  ser  útil  pa- 
ra a  sua  defeza,  para  a  qual  nada  que  dependesse  Oe 
mim  haveria  certamente  de  ser  omniittido  ou  recusa- 
do. O  <|ue  os  papeis  diziam  é,  e  será  talvez  para  sem- 
pre, um  mvsterio -,  mas  é  notório  que  Gomes  Freire 
respondeu  a  Campbell  quando  soube  o  deslino  del- 
les ;  líSendo  assim,  vossa  excellencia  veiá  que  eu  se- 
rei enforcado  como  um  cão  nesta   fortaleza.» 

O  processo  tenebroso  da  conspiração  fi>i  progredin- 
do; nem  faltou  quem  culpasse  Gomes  Freire  para 
salvar-se  á  sombra  do  seu  nome  illustre  (1);  fecha- 
ram-se  os  olhos  aos  depoimentos  que  o  favoreciam, 
esquadrinhuu-se  e  deu-se  vulto  a  quanto  o  carregava, 
trocaram-se  datas,  e  conclusos  os  autos,  sem  que  Go- 
mes Freire,  o  único  que  permaneceu  no  segredo,  fos- 
se acariado  com  osaccusadores,  subiram  da  intendên- 
cia para  o  governo,  que  os  remetteu  as  tribunal  do 
juizo  da  inconfidência,  onde  com  incrível  brevidada 
foi  proferida  a  sentença  de  lo  de  outubro  de  1817, 
cundemiiando-o  a  morte  com  mais  onze  viclimas,  e  a 
outras  quatro  em  degredo.  Dos  depoimentos  de  Go- 
mes Freire,  ein  que  a  própria  sentença  nota  muitas 
contradições,  efleitos  do  tresvario  e  da  difficuldade 
com  que  se  explicava  em  portuguez,  afiproveitaram- 
se  os  dictos  iendentes  a  aggravar  a  culpa.  p;ra  se  lhe 
impor  as  penas  de  garrote  na  torça,  de  llie  cortarem 
a  cabeça,  de  ser  queimada  com  o  corpo,  de  lançarem 
as  cinzas  ao  venlo.  A'cerca  do  protesto  que  ocondem- 
nadi>  tanto  desejava  submetter  ao  rei,  nenhuma  re- 
flexão se  fez, ;  ou  se  desencamiidi.ira.  ou  não  o(|uize- 
ram  ver:  á  coarctada  de  que  elle  prelendia,  caso  hou- 
vesse uma  súbita  explosão,  dirigi-la  em  ordem  a  con- 
servar o  reino  ao  soberano,  evitar  a  anarchia,  e  sal- 
var a  pátria,  nenhuma  refutação  convincente  quize- 
ram  traçar  ii'uma  sentença  que  deu  oepilhelo  de  sa- 
oilcgas  a  certas  expressões  eseriptas  contra  lord  15e- 
resford,  e  fez  menção,  como  d'uii)  crime,  daanalvse 
do  regulamento  do  exercito 

Dias  antes  de  sentenceados  os  réus,  linha  ido  para 
a  torre  um  desembargador  a  titulo  de  assistir  ás  per- 
guntas, e  regular  as  communicaeões.  Moirer  arcabu- 
zado era  o  mais  veliemente  desejo  de  Gomes  Freire  : 
fez  a  barba,  \estiu-se  e  calçou-se,  esperançado  em 
(jue,  á  semelhança  do  Ney,  sem  pe»tanejir,  daria  a 
voz  de  fogo,  e  cairia  crivado  d(!  baila»,  (-toando  po- 
rem soube  <|ue,  sobre  embargos,  llii;  fòi  a  (omniotada 
a  pena  na  de  morrer  enforcado;  qtianilo  o  dispirani 
e  lhe  enfiaram  a  fatal  alva,  deu  lhe  nui  desmaio.  'l'or- 
nado  rmsi,  ouviu  ler  a  sciileuça  com  animo  tranquil- 
lo  ,  (piiz  escrever  aos  seu»  parentes  e  auii^ns,  econio 
liro  não  consentissem,  lecidheu  su  ao  silencio  paru 
morrer  em  paz  com  o  muudo.  Grato  ás  allenções  de 
Campbell,  manilou  IIk;  rogar  pelo  len<'iite  coronel 
llaildock  (|ue  viej-se  receber  oadeus  da  despedida,  e 
assim  que  lladdock  \ollou  com  iiscortezes  ilesenlpiis 
do  coinmaiubinle,  senlou-.e  na  cama  em  que  estava 
<leÍlado,  estendeu  lhe  a  mão,  appertou  lh'a,  e  escu- 
touas  com  mostras  de  sati^l.içào. 

A  intiiniilade  <|ue  parecia  reinar  enire  os  dois  fet 
crer  que  elles  se  haviam  feito  signaes  maçunieo«. 
A^H  cinco  horus  du  manhã  de  18de  oulubroja  eslava 
u  Iriq)!!  em  armas,  e  tudo  dis|)oslo  para  a  execução; 
porém  mal  saiu  o  (>ad<'cenle  d.i  poria  do  enlabouço, 
deitou    a  fugir  o  préstito  dos  ministros  e  ofliciaes  «1» 

(I)  Kui  siiii  mãi  a  coiiiless;i  ile  SclialKoclie,  llllio  do  coli- 
de Wencesláii  de  .Selialuciclie,  e  da  ccmmIcss;!  ilo  iiiesnio  ti- 
tulo, lia  casa  dos  ciuides  di^  Alllien  ;  aiiduis  il;is  mais  anti- 
gas o  liliislres  laiiidlas  da  liolieiniii.  Nasceu  no  «mui  ilu 
n;i7,  o  não  em  )7,'iU.  |ie|iiiis  ile  im|uissii  o  1."  arliiíoai- 
caiieaiiius  estes  eschireciíiieiitos  por  iiilei  veiiçiio  ilii  Sr.  IV. 
h.  V.  de  LciicaMrc,  a  ipiciii  iiniiiu  os  ni^rudeceniuii. 


32 


O   PAINOKAMA 


justiça,  pretextando  perigarem  as  suas  vidas  em  ra- 
■/fio  de  estar  Hatidock  de  intelligencia  coiu  o  réu,  e 
liaver  manifestado  altamente  a  sua  indignarão  ao  ver 
■  |ue  o  obrigavam  a  caminhar  descalço  para  o  patíbu- 
lo •  tormento  ()iie  Gomes  Freire  reputou  o  mais  cruel 
de  quantos  tinha  soílrido. 

A'  vista  dVsle  pavor,  real  ou  fingido,  dis'e  Gomes 
Freire,  sorrindo  amargamente  :  nPois  tem  mcdode 
mim  no  e'>tado  em  que  me  acho  !" 

Em  baldadas  diligencias  para  ser  rendido  Iladdock 
do  commando  da  guarda  se  consumiu  n.ais  de  uma 
hora,  prolongando-se  o  martyrio  ao  infeliz  Gomes 
Freire.  Desenganados,  conduziram-no  ao  patíbulo  fo- 
ra da  fortaleza  de  S.  Julião,  e  requereram,  sem  fruc- 
1o,' ao  coronel  de  infanteria  19  que  mandasse  fazer 
meia  volta  á  direita,  para  que  Gomes  Freire  não  fi- 
zesse algum  signal  que  revoltasse  os  soldados. 

Dado  o  da  execução,  subiu  Gomes  Freire  com  desem- 
baraço e  serenidade  os  degraus  do  patíbulo....  Dos 
olhos  de  Iladdock  rebentavam  as  lagrimas:  osacrífl 
cio  eslava  consnmmado.  A^snove  horas  da  manhã  ti- 
nha voado  para  Deus  a  alma  de  um  dos  maiores  gc- 
neraes  portnguezes  (1). 

lléu  ter-lhe-ia  approveitado  o  perdão  do  soberano, 
iiinoceiited(.fende-lo  bia  a  sua  justiça,  se  tivesíem  que- 
rido consultar  a  vontade  d'elrei  D.  João  VI,  sempre 
inclinado  á  clemência. 

No  mesmo  dia  eram  executadas  no  Campo  de  Sanc- 
ta  Auna  mais  onze  victímas,  e  as  fogueiras,  muito 
tempo  depois,  aiuda  enchiam  de  terror  Oí  consterna- 
dos habitantes  de  Lisboa.  Passados  quasi  três  aniios 
resoavam  em  todo  o  Portugal  os  vivas  ao  svstema 
constitucional.  Ignorando  esta  mudança  voltava  do 
IJrasil  o  marquez  de  Campo  Maior,  revestido  de  po- 
deres amplí^sinlos  i  mas  o  governo  constitucional  não 
o  deixou  desembarcar,  e  o  vento  contrario  deteve-o 
no  Tejo  até  18  de  outubro  de  1820  !  Um  anno  de- 
pois, no  mesmo  dia,  á  roda  d'um  cenotaphío  levan- 
tado na  igreja  de  S.  Domingos,  assistia  «juanto  havia 
de  bom  em  Lisboa  ás  exéquias  das  victimas  de  1817, 
cuja  memoria  veio  a  ser  rehabilitada  por  sentença  de 
20  de  maio  de  18:>-2. 


Habitantes  das  Landes  de  Borpeus. 

(Continuado  de  pag.  22.) 

Of,  cAMi'oi»KZES  das  dunas,  por  efTeito  de  antigas 
preoccupações,  ainda  entre  os  estrangeiros  tem  fama 
de  pedirem  cocn  votos  cobiçosos  o  naufrágio  dos  na- 
vios que  pass.im  á  vista  da  costa  das  Landes,  chama- 
da c<wn  tanta  raíão  cos/a  i/f /trio.  Comtuiio  ninguém 
In-je  é  mais  humano  e  compassivo  do  que  elles  ^  e  nma 
inlinidade  de  acções  generosas  altestam  a  sua  cora- 
gem e  desinteresse.  (•  naufragante  é  alli  socc<irrido 
na  suíi  afilícção  c  traclado  com  mil  cuídailnsi  os  ca- 
dáveres das  victimas  das  tormentas,  por  desgraça  so- 
bejamente numerosos,  recebem  religiosamente  sepul- 
tura; os  salvados  são  respeitados. 

Km  quanto  os  homens  guardam  gado.  ou  colhem 
resina,  ou  fazem  carros,  as  mulheres  das  Landes  em- 
pregam-se  no  Irabalhi)  caseiro,  no  amanho  das  ter- 
ras, e  em  preparar  carvão.  A'  parte,  verdadeiramen- 
te injusta  c  superior  ás  suas  forças,  do  lavor  cjuetem 
«  seu  cargo,  accre^ce  a  creação  dos  sirgos  ou  bichos 
da  seda,   e  das  abelhas-,    tarefas  em  que  estas  trist<s 

(1^  Jul;;anio-lo  auctor  d'um  folheto  com  oiilulode  .V*- 
moire  raiioiiriit  Ue  In  rtlraile  de  lorrnct  coinbi'ire  ispugno- 
it  tt  porlugiiiae  da  HovsíiIí:;  ParC  . .  .  t  .  .  cUicier  au 
uervice  Je  l'ortu3al. 


creaturas  se  occupam  com  tamanha  actividade  qn> 
antes  de  tempo  se  fazem  velhas.  Todas,  saKo  poucas 
excepções,  nascem  bonitas,  e  o  são  até  os  vinte  ân- 
uos ;  passado  esle  terrao  realmente  fatal,  a  olhos  vis- 
tos se  definham. 

Não  acontece  outro  tanto  ás  mulheres  das  povoa- 
ções grandes;  sobre  tudo  as  da  pequena  cidade  de 
Dax  gozam  da  geral  opinião  de  formosas  e  a<'radd- 
veis  na  conversação  e  no  mudo. 

No  districto  de  Born  ha  um  costume  tradicional, 
quanto  a  ajustes  de  casamentos,  escrupulosamente  ob- 
servado, em  virtude  doqual  ao  amante  rejeitado  cha- 
mam namurwlo  dasnozes:  referi-lo-hemos  porsin"u- 
lar.  —  (Auando  um  paisano  quer  pedir  uma  raparij.i. 
vai  acompaidiado  de  dois  amigos  á  noite  bater  á  por- 
ta da  sua  bella  ;  prevenidos  da  visita,  os  donos  da  ca- 
sa franqueam-lhe  a  entrada,  e  cada  um  tomalo^ar  a 
mesa  em  que  está  posta  acéa.  Come-se  bastante,  1m'- 
be-se-lbe  melhor,  palra-se  muito,  mas  nem  palavrn 
se  diz  sobre  o  objecto  da  visita.  .Assim  corre  anoiti-. 
e,  ao  alvorecer,  a  donzella  levanta-se  e  vai  buscar  .i 
sobremesa  composta  de  dítierentes  pratos;  se  n'uni 
d'elles  traz  nozes,  o  pertendente  deixa  o  logar,  cor- 
teja a  toda  a  pressa,  e  abala  com  os  seus  dois  ami- 
gos, testimunhas  dVsta  despedida  svmbolica  e  for- 
mal. Poucas  horas  depois  é  publicc  o  caso,  que  im- 
põe a  desastrada  alcunha  de  namorado  das  tiozes  ao 
noivo  repudiado,  até  que  s<^  lhe  offereça  outra  sobre- 
mesa mais  felizmente  combinada. 

Arranjam-se  os  casamentos  mais  á  cavalheira,  e 
quasi  á  moda  primitiva,  n'aquella  parte  das  Landes 
que  pertence  audcpariamciiiu  doGironda.  —  Km  dia 
festivo  depois  da  missa,  os  parochianos  apartam-se  a 
um  lado  e  as  mulheres  a  outro,  formando  circulo  de- 
fronte da  igreja  ;  no  meio  está  um  pastor  trepado 
n'uma  pedra  ad  hoc,  atraz  do  qual  Ijca,  repartida 
em  bandos,  a  nuicidade  de  um  e  outro  sexo.  .\o  ca- 
bo de  dois  ou  três  minutos  u'espera  e  recolhimeui". 
o  pastor  levanta  ambos  os  braços,  e  entoa  em  alli'S 
berros  uma  cantiga  bem  acceita,  mas  de  tal  incobe- 
rencia  euphonica  que  é  dífficil  imagina-la.  O  canlo 
selvagem  é  signal  de  nma  dança  brutesca,  pulando 
cada  homem  to-camente  diante  do  seu  par,  niuil» 
atlento  em  imilar-lhe  os  movimentos,  brevemente 
se  declaram  na  gente  moça  xelleidade,  matrjnio- 
níaes  :  um  agarra  a  mão  da  sua  querida  a|>erlaiido- 
lh'a  por  algumas  veie»;  se  a  estas  provocações  poui-ii 
equivocas  ella  corresponde  com  um  apertão  de  mão 
significativo,  o  noivo  a  empurra  para  fora  do  circu- 
lo;  e  ambos  que,  até  então,  conservavam  os  olho< 
baixos,  ja  se  contemplam,  ditem  mutuamente  algu- 
mas palavras  seguidas  de  quatro  ou  cinco  cach»çõ<-, 
e  torrem  a  procurar  seus  p.tis  p;ira  lhes  declarar  qun 
estão  njusiados.  Tracla-se  dos  arranjos  sem  demor.i, 
e  é  chamado  o  cura  para  marcar  o  dia  dos  desposo- 
rios  a  que  hão  de  a»si>tir  os  moradores  da  patochia. 
.\  noiva  apparecera  com  vestido  de  sergnilha  lalh.i- 
do  sem  graça,  e  um  toucado  feito  de  muitos  lenço», 
ou  uma  coifa  de  grandes  franjas  còr  dep.ipouU,  tr.i- 
zendo  por  cima  como  bonito  enfeite,  «m  ch.ipeiriio 
guarnecido  de  tilas  pretas  com  um  ramo  de  gnopha- 
lio  ou  alecrim  das  arcas:  em  cada  braçtv  ha  de  tra- 
zer uma  c>'sliuha  para  recolher  o»  presentes  que,  por 
uso  imperioso,  se  devem  oflerecer  ao  no»o  par,  pur.i 
quem,  no  fiin  de  contas,  o  facho  do  1m  meneu  lanoa 
uma  chiridade  baça  ,  porque  a  inÚ'ienci«  que  o.sn)or 
tem  no  paisano  da»  L.indes  é,  quando  muito,  analo- 
ja  á  que  lenUm  o  castor  e  outros  quadrúpedes  am- 
phibios.  ;  LVniinua.) 

Este  mundu  é  tomeJ ia  pira  quem  »è.  etrigedij  pa- 
ra ouem  jentr.  Cks»K  Iami. 


1^ 


o  PANORA3IA. 


33 


RESIDÊNCIA  IMPEBIAZ.  EIS  S.  CHUISTOVAM. 


í)  PALÁCIO  do  S.  Clirislovani,  liahitu.il  resiileiícia  de 
S.  M.  o  iinpeiadur  do  Jirasil,  antes  do  ser  iiocupado 
pelo  Kr.  1).  João  Vf  e  real  faniilia,  era  uma  casa 
particular  e  fazenda  de  recreio,  a  menos  de  le^ua  da 
('ajpital,  sol>re  nina  enuneiicia,  em  situarão  <le  tal  mo- 
do amena  o  pictiiresca,  ipií-  se  diainava  a  (juinla  da 
lioa-Visla  ;  noirie  solu-jamente  jnstiljeado  pelo  aspec- 
to do  bairro  do  i'"nj^enho-\'ellio  e  paiz  adjacente,  cu- 
ja descriptj-ão  pode  ler-se  no  vuliiuie  en>  qnr;  licou  sus- 
pensa a  pul]|ica<;Sio  do  1'jinorairia,  o  de  18ií,  a  pas;. 
liUtJ.  Saiu  então  unia  vista  do  edifjcio,  mas  Ião  aca- 
nhada, »  por  isso  ineunio  pouco  favorecida  da  impres- 
lãu,  que  ohriv^ou  o  distíncto  collaborudor,  (|Uo  escre- 
veu a  8<!ri<!  de  artigos  eitcel|(?ntes  e  notiiiosos  sobre 
o  llio  de  Janeiro,  a  dizer  n^aquelle  lof;ar  :  —  nDan- 
du  urna  pef|uena  estampa,  sentimos  (|ui.>  não  si''{aella 
(copia  de  outra  do  Sr.  >Stuiz)  em  verdade- a  mais  |iro- 
pria  para  dar  uma  idea  iniMios  desfavorável  e  exacla 
dVsta  habitueão  ical.'i  Afrora  (|ue  obtivemos  Irau- 
luinptu  muito  mais  desenvolvido  e  el<';;anli:,  nãoln- 
sitámos  em  o  publicar,  a  imilaeão  ilo  que  si;  praeti- 
cira  na  colleceão  precedente',  também  a  resp(dlo  da 
capitai  brasilicH,  repelindo  visla»,  comiudoassaz  nie- 
Iboradas.  Deixando  porém  a  parle  deseripliva,  ja  co- 
nbecida,  passaremos  a  bistoriar  um  sijccesso  brllico 
menos  sabiilo. 

Adverso  foi  o  lado  ãs  nrnias  francesas  Iodas  as  ve- 
ies <)ne  intentaram  eoiKpjislur  e  conservar  o  li  lo  de 
Janeiro.  Mm  lliliti,  mandados  pelos  esfor(,ailo  cavallei- 
ro  de  V  illegaignon,  foram  rej)ellidi>s  pela  valentia  e 
piiticia  do  governador  Rlendo  de  Sá,  com  vicloria» 
VoL.  I.  —  Oini/uito  ;j,  1SÍ(). 


continuas  até  o  anno  de  1Ò57,  não  Uies  valendoaal- 
lianea  que  travaram  com  os  bárbaros  naluraesda  ter-' 
ra.  Canta  estes  triumplios  o  padre  Durão,  no  canto 
S."  (1)  do  seu  Caramurií. 

Corr(!iido  o  anno  de  1710  bavia-te  preparado  cm 
IJrest  com  grande  segretlo  uma  esquadra  decinco  na- 
vios de  guerra  e  uma  balandra,  com  loOO  liomeni 
de  deseudiarque  de  tropas  escolhidas,  e  numero  de 
voluntários,  debaixo  da  segurani;a  que  dera  3Ir.  du 
Clerc,  cabo  da  empreza,  de  que,  com  a  partida  da 
frota  do  Brasil,  u  gente  do  Rio  de  Janeiro  ia  para 
Minas,  e  seria  fácil  gaidiar  a  cidade,  li»vando  bom- 
bas e  os  mais  instrumenlosd'expugiiação  ;  lend)rou-se 
do  bom  successo  que  tivera  outro  cabo  francei  em 
Carthagena  daslndias.  ("hegou  a  «s(|iiadra  as  costas 
do  llio  de  Janeiro  a  li  iPagosto  ile  1710,  e  ainda  na- 
vegava quatorze  léguas  ao  norte  já  tinha  aviso  dV-l- 
la  o  governador  l''rancisco  de  iMoracs,  (|uc  vigilante 
re|)artiu  mililarinenli;  os  postos  eaugmentoua  guar- 
nição das  lortalcza».  A'  barra  seavistar.iin  os  seis  na- 
vios com  bandeira  ingleza  :  os  tiros  da  fortaleza  d<r 
Saneia  Cruz  os  obrigaram  u  nninter-se  ao  largo,  e  lo- 
go iKi  dia  IH  se  ti/eram  tio  vela  pnr.i  o  sul.Ogover- 
nador  mandou  guarnecer  as  praias  ipiu  se  denomina- 
vam iX.i  l'escaria  e  da  i'fdra,  avisando  a  Santos  u  a 
Ilha  (irando  para  (pie  eslivessein  prevenidos:  juncto 
a  esta  ultima  ancoraram  os  contrários  a  -T,  o  alu 
permaneceram  ale  31  csaqucaram  algumas  fiuend.is, 

(1)  Vhiena  edlvSo  ele((aiiin,  daila  pelo  Sr,  Vurnh!i««'ii, 
dub  doispucmai  hruiiiicus  rcuiwUui,  dii  p;ii{.  JOJoiu  eliauie. 


34 


O  PANORAMA. 


que  mui  poucos  moradores  defenderam  em  quanto  ti- 
veram munições,  mortos  assim  mesmo  seis  francezes 
e  feridos  muitos.  Mais  algumas  avarias  fizeram  pela 
costa,  até  que,  a  10  de  setembro,  dois  navio*  com 
uma  sumaca  da  liahia,  que  tinham  apresado,  haven- 
do sondado  as  aguas  da  praia  da  Lagoa,  intentaram 
o  desemiiarque  a  duas  léguas  da  cidade;,  havendo  se 
reunido,  porém,  a  gente  destinada  á  defensão,  foram 
rechaçados  sé  pelas  ordenanças  ;  dois  dettacainenlos 
enviados  a  reforça-las  acharam  já  os  inimigos  retira- 
dos em  virtude  da  opposição  dos  defensores  e  da  as- 
pereza do  sitio.  No  seguinte  dia  chegaram  á  barra  de 
Guaraliba,  que  acharam  desguarnecida,  pela  confian- 
ça que  se  punha  na  altura  dos  cerros  e  impetuosida- 
de dos  mares ^  com  efleilo  nVsse  districlo  levaram  a 
cabo  o  desembarque.  Precavido  o  governador,  escien- 
te  de  que  não  passava  de  mil  e  duzentos  homens  a 
força  que  se  dirigia  á  cidade,  com  o  fito  de  acolher 
de  improviso,  conhecedor  do  intractavel  dos  cami- 
nhos contentou-se  em  mandar  pequenas  partidas, 
com  praclicos  do  terreno,  a  embaraçar-lhes  o  progres- 
so, e  a  matar-lhes  a  gente  que  podessem  no>  passos 
estreitos;  ordenando  junctamente  ao  tenente  general 
engenheiro,  José  \ieira,  que  com  um  corpo  mais 
grosso  de  tropa,  reunindo  as  guarnições  que  o  inimi- 
go deixava  nas  costas,  lhe  picasse  a  retaguarda,  elhe 
cortasse  a  retirada.  Continuaram  os  francezes  a  mar- 
cha, vencendo  as  difúculdades  do  transito,  até  che- 
garem ao  engenho  dos  padres  da  Companhia,  uma 
légua  da  cidade.  Com  esta  certeza  o  governador,  dei- 
xando nos  quartéis  a  gente  absolutamente  precisa, 
passou  com  o  resto  no  dia  17  ao  campo  de  Nossa  Se- 
nhora do  Rosário,  onde  formou  em  batalha,  e  defen- 
dendo a  parte  que  os  inimigos  procuravam  para  ac- 
commetter  a  cidade,  plantou  artilheria  nos  locaes  con- 
venientes, entrincheirou  ot  mais  fracos,  desfazendo  tu- 
do o  que  podia  ser\ir  aos  atacantes  para  cobrir-se. 
Em  a  noite  de  18  acamparam  os  francezes  na  roça 
dos  padres  da  Companhia  •,  e  antes  que  de  bordo  po- 
dessera  receber  reforço  e  as  embarciíçõcs  simultanea- 
mente se  atrevessem  com  as  fortalezas,  o  jovcrnader 
assentou  de  tomar  a  olfensiva  investindo-õs  com  um 
corpo  de  mil  homens  ás  ordens  de  seu  irmão,  ocoro- 
nel  Gregório  de  Castro  de  .Moraes-,  porém  Mr.  du 
Clerc  achou  mais  prudente  retirar-se,  procurando  ten- 
tar a  aggressão  por  outro  lado,  e  fazendo  nma  diver- 
são aos  defensores.  l'resumido  este  designio  no  cam- 
po portuguez,  um  forte  destacamento  de  300  homens, 
do  regimento  do  coronel  Crispim  da  Cunha,  passou 
a  occupar  o  caminho  do  outeiro  de  Nossa  Senhora  do 
Destetro,  para  entrar  na  cidade  pelo  sitio  de  Nossa 
Senhora  da  Ajuda  ;  e  como  os  inimigos  talvez  ousas- 
sem atacar  a  fortaleza  da  l'raia-Vernielha,  marchou 
a  disputar-ihe  o  passo  a  força  do  commando  do  coro- 
nel Joãode  l'aivaSouto-Maior.  Oprinieiro  encontro 
foi  reidiido  de  parle  a  parle,  continuando  por  largo 
tempo  o  logo,  augmentado  em  nosso  favor  pelos  tiros 
de  urlilheria  miuda  do  forte  deS.  Sebastião,  sobran: 
ceiro  ao  logar  do  combate,  e  doqual  era  governador 
José  Correia  de  Castro,  que  o  fora  da  ilha  deS.  Tho- 
me,  e  que  n'esta  occasiãu  se  houve  com  animo  e ca- 
pacidade. 

Os  invasores,  observando  quão  defcndidoseslavam  j 
todos  .Tquelles  pontos,  e  experimentando  já  notável 
estrago,  conheceram  o  arrojo  da  sua  cmpreza,  econ- 
ceberam  a  estranha  resolução  de  entrarem  a  cidade, 
no  presupposlo,  aoque  se  julgou  depois,  decapitniar 
dentro  d"alguma  igreja  par.i  salvarem  .-is  vidas.  Con- 
seguiram seu  intento,  apesar  da  resistência  que  lhe 
oppoz  o  tenente  general  \icira,  que  se  achava  com 
pouca  gente  do  lado  por  onde  elles  romperam  :  for- 
maram-seemfim  juncto  ao  convento  do  Carmo,  eiiuo 


alcançando  arrombar-lhe  as  portas,  furam  buscar  a 
casa  dos  governadores,  ja  com  perda  de  muita  gente 
pelas  riiase  pela  retaguarda.  Defendeu-lbesa  entradn, 
obstinadamente  e  com  muitas  mortes,  uma  compa- 
nhia de  estudantes  que  na  cidade  se  organisára. 

Assim  que  chegou  á  noticia  do  sovernador  este  ac- 
to desesperado,  fiz  marchar  o  coronel  Gregório  de 
Castro  com  o  seu  regimento,  e  por  outro  lado  um 
troço  ás  ordens  do  sargento  mor  iVlartim  Correia  de 
Sá.  A  pproximando-se  estes  corpos  da  rua  direita,  onde 
ainda  os  estudantes  detinham  os  inimizo;,  atacaram 
estes  tao  vigorosamente  que  os  forçaram  a  retirar-se. 
desamparando  o  corpo  da  guarda,  em  direitura  a 
praia,  onde,  apesar  de  porfiosa  lucta,  s»  apuderaram 
de  um  grande  trapiche  e  de  sei-)  peças  de  urtilbería 
que,  para  proteger  a  babia.  ahi  estavam  cuUocadas ; 
n  esta  refrega,  pelejando  valorosamente,  morreu  Ce 
duas  bailas  o  coronel  Gregório  de  Castro  de  Moraes, 
e  foi  ferido  gravemente  seu  filho  mais  velho  Francis- 
co Xa»ier. 

Lembrou  ao  governador  lançar  fo;o  ao  trapiche, 
mas  susteve  o  a  consideração  de  que  poderia  alear-se 
nas  casas  visiiihas,  e  porque  alii  se  havia  recolhido 
quantidade  de  creanç.is  e  mulheres;  ordenou  então 
que  jogasse  a  artilheria  da  ilha  das  Cobras  e  de  ou- 
tras baterias,  tendo  já  tomado  com  algumas  peças  as 
boccas  das  ruas.  O  commandante  da  companhia  de 
cavallaria,  António  Dutra  da  Silva,  morreu  lastimo- 
samente, á  frente  de  uma  carga,  n"este  conflicto. 

JMr.  Du  Clerc,  achando-se  instantemente  apertado, 
quiz  capitular :  o  governador  concedeu  só  as  vidas, 
se  no  mesmo  momento  se  rendessem.  .Assim  o  fizeram  ; 
mas  não  tiveram  igual  fortuna  os  francezes  do  ultimo 
troço,  que  havia  marchado  pordiOerentes  ruas,  por- 
que quasi  todos  foram  mortos:  acharam-se  os  cadá- 
veres de  trezentos,  e  depois  appareceram  muitos  pe- 
los niattos  e  rios.  Ficaram  seiscentos  prisioneiros, 
mais  de  metade  feridos;  entre  elles  officiaes  de  dis- 
tincção  e  alguns  titulares.  Dos  nossos  morreram  cin- 
coenla,  e  houve  feridos  oilenta.  Passando  de  mil  os 
francezes  que  desembarcaram  não  escapou  mais  que 
■im  negro  fugitivo  que  lhes  havia  servido  de  guia,  o 
qual  levou  a  nova  de  sua  má  fortuna  aos  uaviusque 
eslavain  na  Ilha  Grande. 

A  vinte  e  um  de  setembro  chegaram  á  barra  dois 
navios  e  a  balandra,  que  tinham  caiihuneado  a  po- 
voação da  ilha  com  pouco eflVito,  recebendo  sú  algum 
damnu  osconventos  do  Carmo  eSancto  António.  Go- 
vernava e  defendia  a  villa  u  capitão  de  infaiiteria 
João  Gonçalves  \  ieira;  e  apesar  de  ser  aberta  e  não 
termais  guarnição  que  asnrdenanças,  despresou  sem- 
pre as  propostas  para  renJer-se,  rechaçando  os  inimi- 
gos quando  inientaram  saltar  em  terra.  As  embar- 
cações que  primeiro  se  approximaram  da  barra  des- 
pediram inutilmente  seis  bombas,  que  bem  se  pode 
dizer  serviram  de  festejar  a  nossa  victoria.  Mr.  Du 
Clerc  lhes  fez  saber,  com  perm»s«ão  do  governador, 
o  estado  em  que  se  achava.  I^go  o  participaram  pa- 
ra os  outros  navios,  que  ainda  de  um  ilhcu  visinho 
procuravam  oflender  a  villa  da  Ilha  Grande  com  ti- 
ros e  bombas.  Reunida  a  esquadra  lançou  em  terra 
o  fato  e  Irem  dos  prisioneiros,  restituiu  os  vinte  e 
oito  portugtieies  que  havia  tomado  na  sumaca  da 
Rabia,  e  assai  escarmentada  deu  a  vela  para  a  Mar- 
tinica, possessão  franceza  no  archipelago  das  Anti- 
lhas. 

Esta  noticia  Irouxe-a  a  Lisboa  um  patacho  de  avi- 
so. No  dia  14  de  fevereiroSS.  Magestades  c  Alteias 
assistiram  ao  Te  Dcum  na  capella  real  ;  e  foi  com 
salvas  e  luminárias  festejado  este  felii  tuccesso. 


o   PA>ORAMA. 


35 


o  Hadjeb  dk  Kordova. 

(972  a  992) 

(ConiinuaUode  pag.  26.) 

II 

O  Moslaiabe. 

As  vicTORiAS  de  Moliamed  promettjam-lhe  um  lon- 
go dcscanço.  Os  succeisus  dos  jardins  de  Azbarat  eram 
desconhecidos  de  todos.  Siioleia  ostentava  extremos 
como  sempre,  e  o  liadjeh  mais  anibi<;ão  do  que  nun- 
ca. Vjhinlio  do  tlirono,  e  súbdito  unicamente  no  no- 
me, o  sen  [jodor  não  conhfcia  limites.  Curvavanise 
na  sua  presença  as  duas  raças  que  disputavam  o  do- 
mínio das  Hespanbasi  tremiam  d'elle  vencedores  e 
vencidos.  —  tí-uem  ousaria  pois  erguer-se  contra  o 
irresistivel  dominador  de  Kordova  e  do  kalilado,  se- 
nhor em  Africa  e  na  l'eninsula  —  quem?  .  .  . 

Descia  a  tar<ie.  As  nuvens  da  tormenta  acciímula- 
vani-se  rápidas  no  borisonte  afogueado  e  carregado 
de  vapores.  O  sol  tinha-se  engolpliado  havia  pouco  n'u- 
ina  lagoa  sanguinea.  Ao  cair  das  primeiras  sombras 
um  vento  impetuoso  curvou  até  o  chão  os  sovereiros 
e  azinheiras  :  estremeceu  atlonita  a  selva  inteira,  e 
gemeram  tristemente   os  seus  echos  mais  profundos. 

N'uma  clareira  do  bosque  sobresaía  um  grupo  si- 
lencioso d^homens:  inclinavam  uns  o  rosto  para  a 
terra  em  atlitude  de  conimiseração ;  estendiam  ou- 
tros os  olhos  ao  largo  n'um  gesto  instinctivo  de  pro- 
YOca<;ão  e  rancor.  Cubria-os  uma  espécie  de  albornoz 
escuro,  ondeando  amplamente  ao  som  do  vento,  e 
abrigava-lhes  a  calieça  o  l(in5,o  capuz  dos  sarracenos- 
Ao  primeiro  aspecto  seria  dilíicultoso  conhecer  se  per- 
tenciam aos  antigos  senhores  do  Andaluz,  se  aos  no- 
vos conquistadores  —  tão  equivoco  era  o  seu  traje.  Se 
bem  se  atlenlasse,  porém,  dir-se-hia  logo  que  os  vul- 
tos reunidos  na  clareira  sú  podiam  ser  d'aquelles  ha- 
bitantes do  pai/ invadido,  que,  tendo  guardadoo  cul- 
to da  bua  religião,  so  haviam  ccjmtudo  sujeitado  ao 
governo  dos  invasores. 

Era  uma  ra<;a  inixta,  digna  de  curiosidade  e  de 
interesse.  Ciirislãos  e  godos  pehi  tradição,  o  contacto 
iuccssaniu  com  os  inusulmanos  dera-llies  uni  pouco 
da  ph^sionomia  particular  di>s  últimos.  Tinham  her- 
dado dos  avós  a»  virtudes  guerreiras,  a  tenacidade  e 
a  firmeza:  tinham  adquirido  no  trado  com  osintru- 
los  os  seus  impetuo^ns  moviíiieiilos  e  os  seus  briosci- 
viiisado».  (,'ullivavam  no  lar  da  familia  o  legado  pre- 
cioso lios  antepassados  :  no  C()mniercio  da  eivilisação 
apossavam-se  d%'lles  insensivclnientí!  as  idéas  d'uma 
nação  esplendida  mente  ca  valle  ira.  Trabalhados  si  mui - 
laneainenie  por  estas  dua»  acções  encontradas,  a  al- 
ma iPesles  homens  fiira  ganhando  pouco  a  pouco  uma 
viiorgia  e  uma  tempera  <|U<:  os  devia  necessariamen- 
te lurnar  dislinclos  dos  outros  eom  quem  viviam,  A 
eivilisnção  africana  era  pura  elles  mais  elTuait,  por- 
que cr»  mais  iinmediala  :  asmemorian  da  pátria  de- 
viam de  ser  lauto  mais  sagrailas  (piantu  se  conserva- 
ram nu  familia  com  um  deposito  venerando.  <>«  re- 
bellados  do  Asiura  tínliani  começado  uma  era  nova 
pura  ni,  surginilo  armados  do  firro  e  da  prevenção 
contra  o  inimigo:  estes  não-,  ciuiheciani  do  passado 
o  necessário  para  gnanlarein  intactas  as  Iradiçúes  de 
•cu»  pais.  Tinham-se  civilisadu  sem  deixar  de  ser 
(,'odos. 

l'al  eru  esta  raç:i,  conbeeida  nas  Hespanhas  pelo 
nome  d(í  M(jslarnbe.  A  sujeição  havia  a  policio  sem 
a  ter  abastardado.  As  suas  paixões  eram  porliniaes 
e  profunilas  eiiino  as  inspirações  do  sangue  que  ha- 
viam lieribido,  ardentes  e  dcvorudurai  cuniu  ut  «tuia- 
ccD  quu  liaviam  cunlruhidu. 


D'estes  eram  pois  os  homens  reunidos  na  clareira 
da  selva,  abatidos  nns,  furiosos  os  outros. 

Que  motivo,  porém,  dobrava  para  o  chão  aquel- 
les  olhos  e  aquellas  froutes?  quem  os  reunira  alli,  a 
taes  horas,  em  despeito  das  ameaças  da  natureza  .' 

K  o  que  nós  saberemos  se  nos  approximarmos  du 
grupo,  e  o  examinarmos  cuidadosamente. 

Õs  vultos  que  tentamos  descrever  formavam  um 
circulo  em  roda  do  outro  estendido  no  chão  húmido. 
Envolvia-o  um  manto  igual  ao  dos  circumstantes.  O 
rosto,  pallido  e  cavado,  contrastava  singularmente 
eom  o  fulgor  temeroso  dos  olhos,  que  pareciam  dar- 
dejar chammas.  ISarbas  e  cabellos  negro?,  hirsutos  e 
desaiinliados,  davamlhe  uma  apparencia  selvática  e 
tremenda.  Por  bai.xo  do  manto  entreaberto  appare- 
ciam-lhe  sobre  o  peito,  nos  vestidos,  algumas  largas 
nódoas  de  sangue  fresco  e  vermelho. 

—  "As  guardas  do  hadjeb  perseguem-nos,  irmãos, 
—  dizia  elle  em  voz  sumida  mas  firme  —  deixai-me 
aqui  morrer,  e  buscai  salvar-vos." 

—  11  Morreremos  lodos!  "  —  exclamaram  os  circum- 
stantes brandindo  as  armas. 

—  «A  vingança  de  Mohamed  nãodescança  —  con- 
tinuou o  ferido,  depois  de  breve  pausa.  —  Não  são 
porém  estas  perseguições  que  me  aggravam  o  meu 
mal  .  .  .  são  ...» 

Não  poude  continuar.  Unia  lembrança,  terrivel 
sem  duvida,  veio  sullbcar-lhe  as  palavras  nos  lábios. 
Apertou  convulso  a  espada  que  lhe  descançava  ao  la- 
do, vibraram-lhe  dois  raios  nos  olhos  inllammados, 
e,  alçando  meio  corpo  n^um  esforço  sobrenatural,  co- 
mo que  pareceu  procurar  em  torno  de  si  algum  ob- 
jecto horroroso. 

Assustava  o  seu  aspecto. 

N'isto  um  dos  <]uo  o  rodeavam,  destacando-se  do 
circulo,  veio  ajoelhar  a  seu  lado.  Saía-lhe  de  dentro 
do  escuro  capuz  nina  barba  branca  de  neve:  era  a 
imagem  dos  antigos  patriarchas. 

—  "  Ilermengardo,  meu  lilho — prorompeu  elle  — 
anima-te,  vive,  descança  :  has  de  ser  vingado.  Di- 
zem-t"o  aqui  teus  irmãos  :  digo-t"o  eu  :  has  de  ser 
vingado.  " 

Um  frémito  sonoro  d  armas  percorreu  o  circulo. 
Nenhuma  resposta  podia  ser  mais  eloquentemente 
affirmativa. 

O  ferido  era  o  vulto  dos  jardins  de  Ailiaraf,  que 
havia  Itictado  e  succumbido  aos  golpes  do  hadjeb.  O 
ancião  era  sen  pai,-  os  circumstantes  seus  companhei- 
ros d'armas. 

Ilermengardo,  mal  ferido,  tinha  conseguido  sair 
des  jardins  n'aquella  noite  falai.  Luctára  dois  meies 
entre  a  morte  e  a  vida.  A  íinal  triuniphára  a  natu- 
reza e  a  idade.  Convalescente  ainda,  saíra  erguendo 
por  Ioda  a  parte,  entro  seus  irmãos,  o  grito  de  guer- 
ra contra  o  hadjeb.  (ieloliira  era  sua  noiva  ^  e  o  in- 
feliz Ilermengardo  nunca  mais  pudera  ter  alcançado 
noticias  da  virgem  de  Amaja.  Minava  o  surdamen- 
te um  ciúme  implacável,  as»altavHm-n'o  ii  cada  pas- 
so eslraiihos  terrores,  e  a  alicia  horrenda  de  vingan- 
ça, que  parecia  devora-lo,  provinha  toda  de  seus'ze- 
los  furiu^os.  \agava  em  torno  do  aleaçar  do  kalifn 
como  um  lobo  em  torno  do  reilil  ;  •  dos  que  o  viam 
espreitar  avsiiii,  cuiii  Iniiianha  lenacidade  e  Ião  [m)U- 
co  fruclo,  a(|UclleB  muro»,  diziam  uns  »ai  dVlIel  •• 
diziam  outros  oai  do»  seus  inimigos  !  " 

O  hadjeb  porém,  po»lo  julgar-»e  deM-inlmrnçado 
d'um  rival,  não  descançava.  SoubiTa  que  entre  us 
moslarabes,  alguns  maiui'bos,  eoininandados  por  um 
micião  venerando  e  por  um  cabo  tirrivel,  trama- 
vam contra  o  seu  puder,  e  paru  logo  projectúru  dis- 
persa-los. 

Kru  d'e»ta  (lerjeguição  qiio  fugia  Honnenjjardo  e 


30 


o  PAN0RA3IA. 


»s  conjurados.  Tiiihani-»e-Ibe  aberto  as  feridas  rec^n-  :  outro  divertimento  senão  folgsr  na  taberna  ',  comlu- 
tes  o  [.refundas;  rra  por  isso  que  «lies  ••.peravani  alli  i  do  os  que  habilam  as  margens  do  Adour  aduptam 
a  cada  passo  a  liora  da  salvarão  uu  do  combate  no  '  algumas  >e7.Fs  uutiu  recreio,  não  oíjotanle  expressa 
meio  d'aquella  teKa.  |  probibi^ão.  Fazem  corridas  de  louros,  principalmen- 

Ao  lenilirar-se  de  que  ia  talvez  acabar  miserável-  j  le  no  festejo  dos  oragos  das  fregueiias.  Maseslas  chã- 
mente, na  incerteza  e  êem  vingança,  o  infeliz  man-  ;  niadas  corridas  não  lêem  semelbai.ça  com  as  tardei 
icbo  sentiu  atravetsar-llie  o  coração  uma  dor  aguda  [de  touros  na  península,  li  uma  brincadeira  ridícula, 
«í  penetrante.  I  uma  farça  burlesca;  porque  a  funcção  faz-se  na  pra- 

—  "Meu  pai  —  exclamou  elle  voltando-se  para  o  |  ça  ou  rocio  da  aidéa,  onde  nem  soinbra  detourosap- 
.incião,  e  tomando  lhe  custosamente  a  mão  —  se  eu  I  parece.  .\  pleVie  espectadora  accomnioda-se  pelas  ja- 
inorrer  aqui  aos  golpes  dos  nossos  inimigos,  jurai-me    nellas   e  telhados,   i-m  cima   de  carros   ou  de  quatro 


que  buscareis  salvar-vos 

—  Eu,  ficando  tu!;:  —  respondeu  attonito  o  an- 
cião. 

—  11  Jurai-m'o"  —  accrescentou  Ilermeneaido. 

—  "  1  ara  que  .  v  —  redarguiu  seu  pai. 

—  II  Para  ...  —  acudiu  o  mancebo  —  para  saberdes 
o  que  é  feito  de  Gelohira  .  .  .  e  para  me  vingardes 
«egundo  a  minha  offen^a.n 

—  "A  tua  oITensa.  Hermengardo  —  exclamou  uma 
voz,  que  parecia  vir  do  mais  tapado  do  arvoredo  — 
só  pôde  vingar-se  d"um  modo." 

O  mostarabe  tremeu  todo  da  cabega  até  os  pés: 
voltou  rapidamente  o  rosto  e  viu  .  .  . 

Viu  surgir  d'entre  as  arvores  um  vulto  de  mulher 


palanques  mal  armados;  sáe  a  terreiro  uma  pobre 
vacca  mansa,  que  apesar  d'Í5so  ^em  segura  por  uma 
corda  lançada  ao  pescoço  ;  capeam-na  com  lenços,  e 
tanto  atiçam  o  anim.il  que  a  íiiial  arremette  com  al- 
guns, c  pára  tudo  em  meia  diuia  de  buléus  não  pe- 
rigosos c  iralgumas  calças  rasgadas,  em  meio  dus  apu- 
pos dos  circumstantes;  os  rapazes  fazem  sortes  a  um 
iiotilho  tonto;  e  assim  termina  a  famosa  corrida  de 
iouros. 

Em  todo  este  retrato  do  habitante  das  Landes,  na- 
da temoi  dicto  dos  que  moram  nas  cidades;  porque 
não  teem  vislumbre  de  analogia  com  o  ente  meio 
selvagem  que  descrevemos  segundo  as  suas  principaea 


variedades.  O  morador  das  cidades  n'esta  província 
trajando  de  branco.  Espantava  o  seu  olhar.  As  faces  1  lé  jornaes,  frequenta  botequins  e  theatros,  questiona 
estavam  pallidas  como  o  vestido,  os  cabellos  oudea-  ^'n  politica,  tracta  negocio»,  em  summa  écomoqoal- 
vam-lhe  soltos,  os  pés,  chagados  pelas  urzes  do  cami-  quer  outro  dos  oitenta  e  seis  departamentos  :  entre 
Jiho,  escorriam  sangue.  >ião  andava,  era  uma  som-  seus  antepassados  contam-se  generaes  distinctos  por 
bra  a  voar  por  entre  os  mysterios  da  selva.  Arfava-  valor  e  pericia,  oradores  d"ima5Ínação  viva  e  origi- 
nal, e  alguns  talentos  consumraados   nas  artes  e  nas 


Jhe  o  seio  semi-nú  em  vagas  tempestuosas:  dosolhos 
corriamlhe  dois  rios. 

Atravessou^  gemendo,  o  espaço  da  dareira,  e  tan- 
to que  chegou  ao  lado  domancebo.  caindo  de  joelhos 
defronte  do  ancião,  alçou  o  punhal  que  trazia  na 
mão,  e,  appresentando-o  ao  mancebo,  exclamou  ; 

—  "Hermengardo,  vinga  a  tua  oflensa  !  » 

Era  a  virgem  de  Ainaya ! 

^ (Contínua.) 

Haeitastks  das  Lakdes  de  BORDÍII-. 

(Contiouado  de  pag.  32.) 

O^  HABITASTE  das  Landes  é  bondoso  e  obsequiador, 
não  obstante  a  insensibilidade  que  deve  ncceisaria- 
menle  resultar  da  sua  idiosvncrasia  ;  ao  mesmo  tem- 
po e  dócil,  e  respeitador  das  aucíoridades,  pouco  in- 
clinado ao  roubo  e  á  fraude;  é  pcrém  constante  que 
instantaneamente  se  arrebata  e  coinniette  assassinios 
em  certos  acce«os  de  irritabilidade  nervosa.  Apezar 
d  isso.  é  religioso,  e  nada  ha  tão  afiectuoso  como  os 
lamentos  e  saudades  que  consagram  á  memoria  dos 
mortos.  — Se  os  filhos  teem  que  deplorar  a  morte  de 
sua  mãi.  durante  todo  o  anno  immediafo  ao  falleci- 
mento  os  utensílios  de  cosinha  então  tapados,  e  alou 


sciencias  ;  nomes  que  elle  cila  com  justU  vaidade,  po- 
rém nomeando-os,  nunca  lhes  esquecerá  aconselharão 
viajante  uma  romaria  á  aldòa  chamada  Pouy,  que 
fica  a  uma  légua  de  Dax.  Ahi  ainda  está  de  pé  um 
carvalho  mui  velho,  excavado  pelo  tempo  e  em  par- 
tes quebrado,  de  colossaes  dimensões,  e  cercado  de 
unia  estacada  pintada  de  verde.  Esta  arvore  vene- 
randa é  chamada  n'aquelles  silios  a  arvore  que  cu- 
ra as  maguas  e  dòrcs\  é  um  monumento  consagrado 
.1  memoria  de  um  h<imilde  pastor  de  Pouy,  que  a 
vontade  de  Deus  converteu  em  beroe  de  brandura  e 
charidade.  e  que  fui  o  homem  mais  reverenciado  em 
França.  O  paisano  do  Maransin,  qi;ando  passa  por 
diante  da  aivoíe  que  cuia  as  aúrcjajoelha  em  silen- 
cio, e  não  ha  um  só  curioso  viajante  qne  deixe  de 
saudar  com  respeito  o  antigo  carvalho  de  S.  ^  icente 
de  Paulo. 

Institcição  da  Ordem  da  Rosa. 

Quantas  riquezas  próprias  alardca  o  vasto  e  fertilissi- 
mo  império  doBratil,  quantos  mimus  derrama  na  sna 
nobre  capital  o  coinmercio  da  Ásia  e  da  Europa,  es- 
tavam de  ba  muito  prevenidos  para  uma  festa  ma- 
gnifica. O  fundador  do  império  esperava  ancioso  ver 
<,a  na  ordem  inversa  d"í;qnella  em  que  a  tiiiba  a  de-  I  apontar  a  barra  as  embarcações  que  lhe  trariam  uma 
luneta  ;  ed  este  modo  a  precisão  da  mais  insijnitkan-  I  esposa  na  llõr  dos  annos,  c  ric.-»  de  virtudes  e  de  b«l- 


fe  mobília  faz  lembrar  o  respeito  devido  á  fallecida 
e  o  luclo  se  renova  a  cada  momento  no  coração  d'a 
quelles  a  quem  amara. —Se  morre  qualquer  habitan- 


leia,  e  a  filha  querida  em  quem  abdicara  um  throno, 
e  por  quem  depois  veio  expor   a  vida  nos  combates. 
A  esposa  esperada  era  a  neta  dos  reis  da  Baviera, 


te  das  Landes,  toda  agente  do  logar  assiste  ao  enter-  a  filha  do  principc  Eugénio  lieauharnais.  a  Sr.'"*  D. 
ro,  e  algumas  mulheres  com  trajo  lucluoso  vão  rcci-  |  Amélia  Augusta  Eugenia  N.ipoleão.  duqueta  de  Lea- 
tar  orações  s<Jbre  a  sepultura.  Frequentemente  seen-  |  chtenberg,  recebida  por  procuração  comS.  M.  Irape- 
contrani  ranchos  assim  vestidos  c  de  joelhov  nas  igre-  1  ''»'  °  S""-  D.  Pedro  I,  em  .Munich,  aos  Íd'açostode 
jas   do  Maransin  ;    e  o  crepe    fúnebre  que  occulta   o     IS-Í).  .Ajustara  este  consorcio  o  marquei  de  Uarhace- 

na,  o  qual.  conforme  as  instrucções  doimperadorseu 
amo,  o  solemnisou  de  um  modo  mui  grato  a  Deus 
com  actos  de  beneficência,  comprando  por  quarenta 
mil  cruzados  um  capital^  de  cujos  rendimentos  saem 
todos  os  annos  os  dotes  de  quatro  meninas  pobres; 
O  povo  roiudo  das  Landes  quasi  que  não  conhece  1  duas  escolhidas  pela  casa  de Leuchtenbcrg,  eduasli- 


semblante  d"esfas  pessoas,  as  tochas  accesas  a  par d"el 
las,  sobre  tudo  a  attitude  melancholica  e  o  profundo 
recolhimento  dVspirito,  exaltam  a  imaginação,  e 
prestam  a  essas  reuniões  certo  caracter  magestoso  e 
solemne. 


o  PANORA3IA. 


37 


radas  á  sorte.  N'esta  occasião,  por  ordem  de  S.  M.a 
Imperatriz,  se  di^trihuirani  de  unia  só  vez  em  esmo- 
las sessenta  mil  cruzados. 

S.  M.  Imperial  partiu  a  4d'as;osto  para  Manlieim, 
com  o  tilulo  de  dui^cieza  d«  Sancta  Cruz,  na  compa- 
nhia de  seu  irmão  o  príncipe  Augusto.  Em  Porths- 
mouth  se  reuniu  com  a  rainha  a  Sr.*^  D.  Maria  II. 

Aos  10  d'outubro  de  1S:29  chegaram  ao  Kio  de  Ja- 
Jieiro  as  fragatas  brasileiras  Imperatriz  c  Isahel.  O 
Imperador  saiu  imnifdiatamente  n^im  barco  de  va- 
por ao  encontro  da  lillia  e  da  esposa,  e  áquelles  olhos 
radiantes,  que  liam  nu  intimo  dos  corações,  assomaram 
duas  lagrimas  —  lagrimas  de  prazer  ineílavel. 

Rebocada  por  um  barco  de  vapor  entrou  no  porto 
a  fragata  Imperatriz  ao  som  das  salvas  de  cento  e  um 
tirot  dos  fortes  e  dos  navios,  adornados  de  bandeiras 


multicores^  lançou  ferro  e  respondeu  ás  salvas.  Á  noi- 
te começaram  as  festas  com  a  illuminação  da  cidade 
e  das  euibarcações.  No  dia  seguinte  ao  meio  dia  de- 
sembarcou S.  M.  a  Imperatriz  no  arsenal,  e  por  bai- 
xo de  soberbos  arcos  de  triumpho,  saudada  pelos  vi- 
vas do  povo,  que  mal  cobria  o  estrondo  dos  canhões. 
se  dirigiu  á  capella  do  paço,  onde  recebeu  a  benção 
nupcial  e  assistiu  a  um  Te  Deiin\,  cuja  musica  fòra 
composta  pelo  próprio  Imperador. 

Teve  logar  no  dia  iininediato  a  entrada  solemne 
na  capital,  e  a  apresentação  de  todas  os  grandes  e 
fidalgos  do  império.  S.  M.a  Imperatriz  viu  lançar 
ao  mar  uma  corveta  baptisada  com  o  seu  augusto 
nome,  e  o  Imperador,  afim  de  perpetuar  a  memoria 
d'uma  alliança  tão  fausta,  instituiu  a  Ordem  da  Ro- 
sa para  prenliar  serviços  militares  e  civis. 


A  insígnia  da  ordem  é  uma  estrella  branca  de  seis 
pontas  com  orlas  c  maçanetas  de  oiro,  engrinaldada 
de  rosas,  soljrepujaiidoa  a  coroa  imperial  do  Brasil. 

Tem  no  centro  a  cifra  1*.  A.  (l'edro  e  Amélia) 
em  letlras  de  oiro,  cercada  de  um  largo  circulo,  tam- 
bém de  oiro,  com  a  iiiscripção:  Amok  k  Fidelida- 
j)E.  No  reverso  a  data  da  fundação  em  campo  de  oi- 
ro, sobre  um  circulo  azul  com  a  legenda  :  Í'iíduo  e 
Amki.ia. 

O  imperador  do  Rrasil  é  o  grão  mestre  doesta  or- 
dem, o  príncipe  imperial  é  grão  cruz  e  dignatario,  e 
todos  os  princi()es  de  sangue  são  grão  cruzes. 

'IVm  oito  grão  cruzes  illeclivos  e  oito  honorários, 
ilezeseisi  grandes  dignalaiios,  trinta  dignalarios,  enu- 
mero illiniitado  de  commendadures,  olliciaesucaval- 
leiros, 

A  grã  cruz  .inda  inhcn-nte  o  Iractanieiiti)  de  ex- 
cellencia,  assim  <:omo  ao  dignatario,  e  ;'i  commenila 
I)  de  senhoria.  K  necessário  ler  a  patente  de  coronel 
l)ar«  siT  olfuial,  c  a  du  capitão  para  ser  cavalleiro. 

Os  grão  cruzes  tcazcni  a  insígnia  a  tiracollo  da  di- 
reita para  a  es(|u('rila  :  os  di'^natarios  em  aspa,  e  os 
commendadcui'»,  &e.  sobre  o  peito  isiiuerdo.  I'cla 
dillerenra  na  largura  da  iilii,  <|iio  r  cAr  de  rosa  orla- 
da de  branco,  lanibeni  se  dislinguein  os  graus.  Os 
oito  grão  cruzes  ellcctivos,  nos  dia»  de;  grande  gala, 
usam  de  um  eollar  de  oiro  com  rosas  csmultuilus. 

A  chapa  que  roprcsciitu  u  iJ."  liguru  preiíde-se  no 
lado  esquerdo  da  cbsucu.   O»  gruo  cruzo»  o  grandes 


dignatarios  Irazem-n^a  com  a  coroa  :,  os  digiiatarios. 
commendadores  e  ofíiciaes  sem  ella. 


Jogos  k  Festas  antigas. 

Pracjmcntu  de  tima  historia  vtnhiãeira . 


Nos  ciiuoNicÕEs  velhos  e  pergaminhos,  enterrados 
nas  bibliotliecas  de  Ilespanlia  o  nas  nossas  também, 
está  a  parte  mais  curiosa  <la  historia  da  idade  media 
na  l'eiiinsMla.  Ouem  (juizcr  saber  mais  doqiicdatas 
e  nomes  não  tem  remédio  senão  resignar-se  a  sole- 
trar em  latim  bárbaro  a  ingénua  narração  dos  es- 
criptores  monásticos,  que  não  eram  nem  Ião  rústicos 
nem  tão  iiriílos  como  decretou  o  orgulho  ila  passud.i, 
o  ainda  da  presenti!  epoeha. 

S(!  a  poesia  pudesse  incarnar  iriim  cadáver,  tinli.i 
alimento  ili'  mais  nos  in-folios,  honrados  com  o  am- 
bicioso tilulo  do  líiilorids  (\imi<li:tat.  Mas  a  poesia 
é  a  vida,  c  por  isso  seria  sacrilégio  e  delírio  tent.ir 
abraça-la  com  a  morte  i  e,  aos  iillios  da  sci6ncia  e  d.i 
philosophia,  é  nuirlo  do  passado  tudo  o  que  se  n.u' 
anima  pela  ;dina,  l'é,  c  crença  dos  homens  ed. is  iiis 
tíluíções,  dos  costumes  e  das  ideas  qne  reinar.uu, 
it  sua  hora,  ou  modíiicadas  ou  decaídas,  passaram  l> 
thruiiu  á  urna  ciucruriíi  diij  civilistieões  t\ndas. 


38 


O  PANORAMA. 


Colher 'O  espirito  do  passado,  para  o  infundir  no* 
•(iiadros  das  grande»  epuclias  hibtoricas,  é  o  seiçredo 
dut  me'ilres  que  fundaram  u  nova  religião  lideraria, 
cliarnada  romaulica  impropriamenle  •,  porqiii;  não  é 
outra  cousa  mais  do  que  a  nossa  rcnascciíça,  a' ver- 
dadeira resiirrtiijão  da  arte  cliristã,  fillia  das  tradi- 
;,'õe»  nacionaes,  que  embalaram  nos  l)ra<;os  a  socieda- 
de moderna. 

Nós.  por  mais  que  <iif;am,  fomos,  e  havemos  ain- 
da continuar  a  ter  muito  tempo,  porttiyuizcscaslc- 
Ihanos  pelu  nossa  origem  cúmmum.  K  não  deve  doer 
ao  orgulho  pátrio.  K  o  mesmo  sangue,  éa  mesma  al- 
ma em  dois  irmãos  gémeos,  mal-havidos,  e  apartados 
cedo  um  do  outro  pelo  ciúme  da  respectiva  naciona- 
lidade^ mas  no  fim  de  tudo  irmãos,  e  bons  irmãos. 
Physicamente  não  é  possível  reunirtm-se  debaixo  do 
mesmo  tecto  —  ambos  querem  ser  morgados  —  porém 
intellectualmenle  devem  viver  em  uma  só  commu- 
nbão,  e  orar  em  uma  só  igreja.  A  parte  melhor  —  a 
mais  feliz  —  da  historia  da  família  leram-na  pelos 
mesmos  pergaminhos,  nascidos  da  mei^ma  mãi,  ador- 
mecidos no  mesmo  berço,  e  criados  com  o  leite  de 
crcnjas  e  costumes  semelhantes.  Depois  d"is{o  pôde 
lá  deixar  de  haver  allianja  ainda  que  não  haja^ustio.'' 

O  quadro  que  se  segue  é  a  prova  do  que  se  diz  n'es- 
te  artigo.  A  epocha  corresponde  em  1'ortugal  ao  rei- 
nado de  Aftonso  Henriques.  Os  usos  e  costumes,  ovi- 
ver  e  crer,  que  o  lapIs  do  chronista  retrata  com  tan- 
ta fidelidade  era  o  mesmo  em  ambos  os  reinos.  A  phy- 
slonomia  social  apparecla  tão  confundida,  tão  seme- 
lhante nos  dois  povos,  como  incertas,  vagas,  e  mal 
distlnctas  as  fronteiras  que  os  separavam. 

O  sábio  Berganza,  nos  documentos  de  que  illustrou 
as  suas  famosas  "Antiguidades  de  Ilespanlia  »  ,  In- 
cluiu a  clironica  do  imperador  AíTonso  Vil,  conser- 
vada no  archivo  da  cathedral  de  Toledo.  Foi  o  livro 
d"ondc  se  tirou  este  painel  de  costumes  de  tão  precio- 
sa raridade  ,■  a  descripção  do  chronista  é  dVsses  cla- 
rões históricos,  que  alumiam  até  o  fundo  o  modo 
de  ser  de  um  período  inteiro  quanto  ás  relações  so- 
ciaes.  O  leitor  ajuizará  por  si. 

II 

Guerra  e  casamento  lia  seie  sectilos  tia  Hespanha. 

A  vida  de  AiTonso  VII  foi  uma  continuada  lucta 
com  os  árabes  helhcosos  das  fronteiras,  ou  com  os  prín- 
cipes chrlstãos  seus  visinhos  —  a  guerra  nacional  c  re- 
ligiosa por  um  lado  —  a  guerra  civil  pelo  outro  fize- 
ram da  sua  corte  um  verdadeiro  acampamento  mili- 
tar. O  nionarcha  castelhano,  assim  como  onossoAf- 
fonso  Ilenriques,  é  das  figuras  históricas  que,  alon- 
gando os  olhos  ao  passado,  nos  parece  vèr  ainda  de 
pé  sobre  o  scpulchro  tom  a  acha  d'armas  no  braço 
esquerdo. 

lira  um  coração  de  leão-,  uma  vontade  indomável 

—  um  esforço  ct>go,  tenaz,  e  Incessante.  De  um  re- 
contro de  mouros  voará  refrega  com  Portugal  ,  d'a- 
hi  tender  a  bandeira  real,  e  despedir  o  galope  dos 
esquadrões  frementes  sobre  o  Aragão  i>  a  Catalunha  ; 

—  dormir  no  leito  da  terra  dura:  descançar  d'uma 
batalha  nos  braços  d'outra  batalha;  nunca  despir  as 
armas,  nunca  fechar  osolhos  —  eis  em  resumo  a  exis- 
tência dos  soberanos,  que  no  começo  disputaram  a 
palmos  o  solo  da  i'enlnsula  á  conquista  estrangeira, 
c  á  ambição  natural. 

Depois  lie  uma  vida  d'eslas  —  quando  ocoraçãofs- 
fria,  c  08  br.iços  se  cruzam  no  peito  para  se  não  abri- 
rem mais,  o  somnu  da  morte  deve  ser  bem  piofundo 
e  tranquillo  '. 

Vejamos  uin  episodio  do  gigante  ducllu.  cm  que 


se  consumiu  inteira  a  trabalhosa  carreira  de  Aflba- 
so  VII. 

u  Acabadas  outras  !;uerras,  o  rei  mandou  diíer  um 
dia  aos  condes  de  Castella  :  —  enfreai  os  cavallos  ; 
amanhã  partimos  a  pedir  contas  ao  rei  Garcia  na  sua 
boa  cidade  de  Pamplona.  n 

li  Dias  depois  os  almogavares  voavam  na  testados 
esquadrões  de  Castella,  talando  oscampo»,  tomando 
os  gados,  e  accendendo  a  fogueira  do  arraial  com  at 
cepas  das  vinhas.  " 

"  Por  toda  a  Castella  soava  o  pregão  da  guerra  — 
cm  Leão  e  nasAstiirias  o  grito  dos  montanhezes  suf- 
locava  oclamor  dosexercitos,  quedesfilavam  nos  val- 
les,  de  lança  erguida  e  bandeiras  soltas.  Todo  o  poder 
do  reino  abalava  para  Pamplona.  >' 

u  K  o  rei  Garcia  no  seu  alcaçar  sentiu  apertar-se- 

I  lhe  o  coração  no  peito,  porque  bem  via  que  de  Naja- 

ra  até   as  suas  portas   u  inimigo   não  tinha  mais  do 

que  dizer  aos  castellos  :    entregal-vos  1  —  ás  cidades  : 

abri  !  " 

li  Ia  em  meio  o  mez  de  maio.  De  uma  para  outra 
hora  D.  AQonso  podia  chegar,  ecomo  haviam  dere- 
slslir  ?  Nas  planícies  de  Pamplona  ouvia  se  o  choro 
do  povo,  e  descobria  ao  longe  o  fogo  das  cearas  alheias 
como  descia  rápida  das  alturas  acholera  do  castelha- 
no. )> 

II  E  o  circulo  estreltava-se,  estreltava-se  I  .  .  quasi 
que  já  íuflocava  o  calor  do  incêndio  na  bella  cidade.  " 

"iintão  D.  Garcia  não  teve  animo  dever  e«i  ruí- 
nas os  paços  de  seus  pais  e  a  terra  do  seu  nascimen- 
to. Não  chorava,  mas  no  coração  era  uma  dôr  de 
cortar  a  alma.  Fechou-se  n'um  aposento  com  us  do 
seu  conselho:  — Vem  ahl,  disse  elle,  os  de  Castella 
tão  numerosos  como  as  areias  do  mar.  A  pat  com 
Portugal  foi  para  nos  destruir  com  certeza.  Se  pele- 
jamos, a  terra  perdeu-se  por  cerco  ou  por  batalha, 
Glue  hei  de  eu  fazer.'" 

"  GLuem  lh"o  diria  ?  fallavam  todos,  e  ninguém  acer- 
tava. " 

II  N 'este  meio  tempo  sobreveio  o  conde  Affonsode 
Toloza.  \  estia  esclavina  de  romeiro,  e  no  chapén 
trazia  asconchas  de  Sanctiago.  .Asbarbas,  queeram 
brancas  de  neve,  davam  lhe  pela  cintura.  O  reieot 
cavalleiros  sentiram  grande  alegria,  porque  não  tinha 
Castella  melhor  conselho  que  o  seu,  nem  braço  mais 
rijo  na  peleja. " 

»E  tiveram  ratão  de  se  alegrar.  O  conde  foi  escu- 
tado—  e  dias  depois  estava  concluída  a  pai  entre  o 
rei  de  Castella  e  o  rei  Garcia.  » 

"O  rei  de  Castella  tinha  uma  filha —•»  mais  que- 
rida do  seu  amor.  O  conde  .^flbnsofallou-lhe  assim  : 
—  D.  Garcia  é  moço  e  solteiro:  dai-lhe,  senhor,  a 
infante  para  cavar  —  eo  inimigo  far  >e-ha  lealami^. 
Assim  sedecidíu;  e  agora  vereis  as  festas  que  te  apre- 
goaram em  toda  a  Ilespanha.  •> 

II  O  noivado  fez-se  em  Leão  no  mei  de  julho.  Veio 
o  Imperador,  e  vieram  os  condes,  us  príncipes,  e  os 
duques,  com  os  cavalleiros  d.i  sua  rasa  e  os  homens 
da  sua  mercê  \  a  todos  se  tinham  mandado  próprio* 
a  avisa-los  que  estivessem  allí  ii\iquelle  dia,  áquella 
hora,  com  armas  lutldas  e  esquadrões  vistosos.  Das 
Astúrias,  e  de  Castella  chegaram  á  competência  :  qual 
mais  rico  nos  trajos,  qual  mais  soberbo  na  comitiva. 
Plumas  ondeando,  pendões  quarteadis  de  cjrcs  ;  o  sol 
falseando  no  polido  dos  arn»jcs,  nos  lavores  de  ouro 
c  prata;  os  falcões  no  punho  das  damas;  as  matilhas 
pela  trclla  dos  montciros  —  trombetas,  anafis,  e  do- 
çainas  —  tudo  istoscvía  eouvia,  e  mal  K  pôde  con- 
tar, na  corte  de  Leão.  •' 

II  Chegou  o  imperador  com  a  impcratrii  Berengera 
sua  mulher,  cercado  de  condes  c  cavalleiros;  doou- 
tro  lado  entrou  U.  Garcia,  o  noivo,  vestido  de  pre- 


o  PANORAMA 


39 


cioaas  galas,  cavallos  com  redpas  d*ouro,  testeiras  de 
prata,  e  pedraria  nas  armas,  (.'iitre  fidalgos  e  senho- 
res— que  nenhum  tinha  inveja  na  riqueza  ao  mais 
galhardo  de  Castella.  " 

«A  infante  D.  Sancha  entrou  em  Jjeão  pela  porta  de 
Toro,  e  com  ella  D.  Urraca,  a  bella  esposada  de  D. 
Garcia.  Os  cavalleiros  e  barões  que  a  rodeavam,  as 
damas  e  virgens  que  a  acumpanliavani,  os  clérigos  e 
monges  que  a  seguiam,  eram  tantos  que  não  tinham 
conto.  Ijpvantou-se  o  thalamo  nupcial  nos  paços  reaes 
de  S.  l'elaio —  em  volta  dVlle  a  infante  U.  Sancha 
mandou  collocar  os  choros  de  bailarinse  mulheres,  que 
teciam  danças  e  cantavam  li^ninos  ao  som  de  órgãos, 
citharas,  e  psallerios.  O  imperador,  entretanto,  com 
U.Garcia  ao  lado  tinha-»e  assentado  cm  um  Ihrono 
levantado  no  terreiro  que  se  alargava  diiinte  do  por- 
tal dos  paços.  Em  redor,  em  escanliiis  baixos,  assis- 
tiam aos  festejos,  segundo  suas  dignidaiies,  os  bispos, 
abbades,  duques,  e  condes." 

«A  um  signal  principiaram  os  jo^os  á  antiga  mo- 
da de  ]lesp.tnha.  Abriranise  pelo  òiiforilio  ou  torneio 
das  cannas.  (rJLuadrillias  de  cavalleiros  terçavam  na 
arena  hastes  di-lgadas,  que  na  veloz  corrida  despediam 
iin»  contra  os  outros,  colhendo  no  ar  o  golpe,  ou  evi- 
tando-o  de  um  s^lto  com  pasinosa  galhardia.  Veio  de- 
pois o  tiro  do  tablado.  O  alvo  estava  posto  no  meio 
do  circo,  e  ao  uso  pátrio  os jusl.i dores  deviam  acertar 
partindo  a  todo  o  galope.  A  destreza  do  cavalleiroe 
o  meneio  doscorseisdistinguiamse  pelo  maior  nume- 
ro <le  sortes  felizes.  Corrida  esta  scena,  viram-se  ma- 
tilhas de  cães  açulados  investir  com  os  mais  ferozes 
touros  de  Andaluzia  —  desaliar-llie  a  ira,  enraivecer- 
Ihe  o  sangue,  e  quando  escarvavam  o  chão,  atroando 
o  campo  de  mugidos,  e  revolvendo  os  olhos  afof^uea- 
dos  nas  orbitas  raiadas  de  sangue,  saírem-lhe  os  ca- 
valleiros ao  encontro  a  esperar  o  Ímpeto,  e  a  prostra- 
los  de  um  golpe  de  \enaV>ulo.  Os  pcqjulares  também 
tinham  o  seu  quinhão  na  alegria  geral.  Um  tropel 
de  cegos  foi  introduzido  nu  praça  ;  e  apoz  elles  o  ri- 
dículo contendor  i|iie  lhes  estava  destinado.  —  Era  es- 
te o  mais  alentado  porco  dos  montados  de  Castella. 
Os  cegos,  animados  pela  esperança  de  se  banquetea- 
rem coní  a  victíma,  premio  prometlido.i  destreza  do 
muis  venturoso,  corriam  de  um  para  outro  lado;  es- 
te, apanhando  a  p.iuluila  do  visiidio;  aqnelle  afoci- 
ohaiulo  o  chão,  rola  aos  pés  do  terceiro;  oquartose- 
gue  malhando  sem  dcscançar  no  raslo  do  pobre  que 
tenta  atracar  pela  cauda  o  inin-.ígo,  em  (juanio  em 
rodeios  e  iugidas  o  porco  ora  se  furta  a  um,  ora  es- 
capa ao  malho  liiriosodooulro.  Osesp<cla<lores  riam, 
batiam  as  palmas,  e  tripudiavam  de  prazer  no  meio 
dos  liruleseos  episódios  lio  entremez." 

"No  dia  seguinte  os  esposos  foram  abençoados,  e 
despedidos  com  ricos  presentes." 

Assim  s(í  feslejiiva  um  noiva<lo  real  no  seiído  XII. 
tiuem  não  achará  originalidade  em  divertimentos  ru- 
des e  ásperos  eofno  os  homens  eas  instituições  da  epo- 
cliu  ?  Cegos  atordoundose  ás  pancadas!  cavalleirose 
villõesmihtunidos  a  applaudir  o  jogo  das  escondidas, 
de  que  é  protagonista  H  escoria  dos  animaes  —  o  por- 
co! ■—  (J  li;ito  da  noiva  cercado  de  palhaços,  bailari- 
no», e  menestrcíis!  dois  reis  um  toil.i  a  piimpiídoseii 
!  estado  presidindo  á  farça,  e  t.dvez  ilcM;endodo  thro- 
lio  a  disputar  um  lanço  uo  tablado,  ou  a  tirar  nma 
•orte  no  liafordio! — (pie  espeiM.ieulo  novo  e  variado 
ln"io  olVcreciin,  de  ipie  naturaes  cores  n."io  retratam  a 

I   «ida    <Pai|uellis    s dos  f  —  E  um  (piadro  para  di'«a- 

liar  a   viMa  di:  VVidliír  Scott,  propor<ionando  lhe 

MS  mais  chistosas  «cenas,  tluem  visse  o  bello  painel 
do  torneio  ile  Anliourgbi  /uche,  no  Ivanlioe,  ilirá 
«caso  qu<',  tirada  d'esla  deseripç'ão  do  (thrOnistji,  a 
•cenu  íicuria  menos  piclurescu  nus  costumes,  uu  mais 

I 


fraca  nos  caracteres  e  pbysionomias?  Esta  acção  por 
si  só  colloca-nos  na  verdadeira  idade  media,  e  desen- 
gana a  muitos  da  diflerença  que  vai  de  contrafazer 
as  epochas  a  estudar-lhes  a  Índole,  e  desenhar-lhes  os 
usos  e  a  existência. 


Da  sorte  dos  meninos  nas  mimas 

DE    InGLATERKA. 

ÍSa  parte  occidental  da  Inglaterra  ha  camadas  im- 
mensas  e  profundas  de  carvão  de  pedra,  tão  ricas, 
que  os  geólogos  lêem  chegado  a  asseverar  não  basta- 
rem para  o  consumir  vinte  séculos  de  exploração. 
r<5de-se  dizer  que  a  Inglaterra  tira  das  suas  minas 
de  carvão  os  elementos  do  poder  industrial  e  mer- 
cantil. O  consumo  domestico  absorve  poranno  deze- 
sete  milhões  de  toneladas;  as  forjas  produzem  an- 
nuabnente  oitocentas  mil  toneladas  de  ferro,  gastan- 
do quatro  milhões  de  toneladas  de  carvão;  as  fundi- 
ções de  cobre  empregam  quinhentas  mil  toneladas 
de  carvão  em  derreterem  cento  e  oitenta  e  cinco  mil 
toneladas  de  metal;  as  fabricas  de  algodão  oitocentas 
mil;  as  de  là,  seda  e  linho  seiscentas  mil  ;  finalmen- 
te, se  a  estas  parcellas  se  accrescentar  o  contingente 
das  outras  industrias,  e  dasexportações,  queem  1837 
eram  de  um  milhão  e  cem  mil  toneladas,  a  quanti- 
dade de  carião  que  produz  a  Inglaterra  orça  por  vin- 
te e  seis  milhões  de  toneladas,  o  que,  avaliando-sea 
tonelada  por  1  .JSOOO  réis,  preço  médio,  repntsenta  a 
somnia  annual  de  quarenta  e  um  mil  e  seiscentos 
contos  de  réis. 

Mas  cumpre  confessar  que  a  extracção  do  carvão 
de  pedra,  assim  como  é  uma  das  maiores  fontes  da 
riqueza  da  Inglaterra,  tem  exercido  funesta  influen- 
cia não  só  na  saúde,  porém  na  moral  das  pessoas  cu- 
jos braços  emprega. 

A  população  das  minas  está  dividida  em  quatro 
calhegorias.  Na  mais  alta  acham-se  os  overmcn,  eos 
dejiulitiovcrvien,  encarregados  da  policia  da  explo- 
ração ;  vigiam  os  trabalhos,  e  a  segurança  da  mina. 
Seguem  se-lhes  logo  os  mineiros  que  extrahem  o  car- 
vão de  pedra  [huwers)  Os  mais  dVlles  são  homens 
feitos;  descem  para  o  trabalho  ás  duas  horas  da  ma- 
nhã, e  recebem  as  ordens  dos  íUptitiíS  ofírmen  ,•  lar- 
gani-n^o  ás  djias  horas  da  tardi?.  O  jornal  que  se  lhes 
paga  nos  gr.indes  districtos  d'estas  ndnas  anda  por 
1G;SOOO  réis  cada  mez. 

Nem  apoz  estes  os  fttUtcrs,  que  são  rapazese  ás  ve- 
zes creanças.  liaixam  á  mina  ás  quatro  horasdu  ma- 
nhã, e  são  os  que,  de  duas  em  duas  horas,  levam  em 
carrinhos  para  as  grandes  galerias  o  carvão  cxtrahido 
pelos  mineiro»,  iúiipnrram  por  defraz  os  carros,  car- 
regados com  p('rto  do  oito  quintaescada  iim,  dobran- 
do-se  muito,  allm  <le  empregarem  inaii>r  força, enfio 
partirem  a  cabeça  no  teclo  dos  corredores,  que  é  ra- 
ro passarem  de  cinco  palmos  dealtura.  O  puilernão 
sáe  da  mina  senão  duas  horas  depois  do  hfwcr  :  o8e\i 
jornal  regula  de  quatro  até  seis  mil  c  oitenta  réis  por 
mez. 

O  carvão  acarretado  pelo  piillcr  ])assa  para  o  poço 
|)rineipal  em  wagons  puxados  por  liesfas,  servindo- 
Ihes  dl'  ciMuliietores  uns  rapazitos  de  iliue  atéquinzu 
annos,  a  ipie  chamam  iliiveis.  D^ahi  o  tiram  por  inu- 
ihin.is  d.-  vapor,  ou  por  engenhos  ou  rodas  em  <|ue 
trab.ilham  cavallos  o  iité  mulheres.  No  lini  do  dia, 
que  é  de  iloze  horas,  tem  o  driver  andado  oito  ou 
nove  léguas  nas  galerias. 

A  ultima  e  mais  interessante  classe  ile  operários  ti 
a  dos  pe(|Ui'ninus,  de  cuja  vigiliincia  depende  a  «egu- 
rançii  da  mina,  |ioÍn  lêem  a  seu  cargo  o  fechar  as  por- 
tas l^trojiy)  das  galerias,   de  mudo  que   kC  cunservtí  a 


40 


O  PANORAMA. 


ventilação  indispensável  para  impedir  a  formação  de 
gazes,  u  por  conseguinte  explosões  porigosissimas. 

Ao  pequeno  irappcr  acorda-o  a  inãí  ás  duas  lioras 
da  manhã  ;  levaiila-se  c  bota  a  correr  para  a  mina, 
levando  comsigo  para  o  sustento  de  todo  o  dia  um 
pedaço  de  pão,  e  unia  guta  de  cafú  dentro  d'uma 
garrafa  de  estanho.  Mal  chega  ao  fundo  do  poço  to- 
ma para  o  corredor  estreito  e  baixo  em  <)ue  faz  sen- 
tinella  ;  metfe-sc  dentro  d'um  nielio  excavado  por 
detraz  da  porta,  que  deve  abrir  apenas  sinta  rodar  o 
carro  d'algum  jntllcy,  e  fechar  assim  que  elle  passe; 
o  alli  se  conserva  duas  horas  seguidas,  súsiidio,  sem 
luz,  desperto.  Sú  lá  de  quando  cm  quando  vem  adel- 
gaçar-lhe  as  trevas  a  luz  mortiça  c  tremula  da  alani- 
pada  que  os  carros  dos  putlers  trazem  na  dianteira  : 
triste  d'elle  se,  aborrecido,  se  deixa  vencer  do  som- 
iio,  que  a  mão  pesada  do  depuiy-uverman  quQ  anda 
de  ronda  virá  prestes  lembrar-ltie  o  dever  de  velar 
pela  vida  de  todos.  A's  quatro  horas,  a  palavra  lilier- 
dade  I  liberdade  1  parte  do  ponlo  principal,  e  ii'um 
instante  é  repetida  nos  mais  reinofos  recantos  da 
mina:,  porém  o  irappcr  ainda  se  não  vê  livre:  não 
larga  o  pusto  em  quanto  não  passa  o  ultimo /)ní/c»- ; 
depois  d'isso  é  que  sobe  para  a  choupana  de  seus 
pais,  onde  engolido  o  jantar,  que  não  enjoa  de  gor- 
do, se  vai  logo  deitar. 

Não  tem  o  trapper  grande  traballio,  mas  aiinnio- 
bilidade  e  solidão  a  que  eslas  infelizes  creancas  estão 
condcmnadas  lhes  tolhem  o  desenvolvimeuto  do  cor- 
po e  da  inlelligencia.  A  pobreza  ou  a  cubica  dos  pais 
as  encerra  nas  minas,  ás  vezes,  de  quatro  a  cinco  an- 
IIOS,  mas,  comniummente,  em  tendo  seis  para  sete. 

O  trabalho  em  que  se  empregam  mais  meninos  de 
ambos  os  sexos  é  o  ãoi  jndlcrs.  lia  minas  cm  que 
empurram  os  carros  por  cima  de  carris  ■,  porém  na 
maior  parte  puxam  os  piiticrs  por  clles  como  bestas 
de  carga.  Nas  galerias  mais  baixas,  o  putlcr,  atado 
ao  carro  por  uma  corrente  de  ferro,  que  lhe  passa 
por  entre  as  pernas  e  vem  prender  n'uni  cinturão  de 
coiro,  arrasta,  engatinhando,  o  instrumento  do  seu 
martírio.  Um  velho  mineiro,  quando  ointerroíraram 
acerca  d'este  modo  deconducção,  muito  seguido,  ar- 
rancou do  seio  d'alma  a  seguinte  exclamação:  "Se- 
nhor, não  posso  senão  repetir  o  que  diíeiii  as  mais: 
é  uma  barbaridade!"  (C(»iii:iú(i .) 


Da    PICADá.    DA   VESPA. 


Se  a  vespa,  quando  morde  alguém,  é  logo  enxotada, 
parte-se-lhc  o  ferrão  e  iica  na  feiida  ;  se  pelo  con- 
trario a  deixam  ir  embora,  desencra\a-o  pouco  a  pou- 
co cm  zigzag. 

No  primeiro  caso  a  pesso.i  mordida  está  exposta  ás 
dores  e  perigosquo  podem  resultar  d"uma  feriíla  com 
um  corpo  estranho  e  irritante  dentro;  no  se;;undo 
não  ha  q\ie  temer  senão  oselleilos  d'uma  picada  sim- 
ples, salvo  se  o  insecto  inoculou  algum  veneno. 

(.'uinpre  pois  a  quem  fór  picado  yur  alguma  vespa 
conservar  presença  d\'spirilo,  e  dar  ao  animal  lodo  o 
tempo  necessário  [)ara  tirar  o  ferrão  sem  oquehrar.  A 
primeira  cousa  que  se  deve  fazer  cm  todos  os  casos 
depois  da  picada  é  examinar  se  o  ferrão  se  conserva 
na  ferida,  c  se  assim  fòr,  extraiam-no  logo  com  uma 
pinça.  Atalham-se  depois  «s  inllammações consecuti- 
vas, banhando  a  uiiudo  ologar  teridocon»  agua  mui- 
to fria  ou  nevada,  que  tenha  dissolviíla  uma  grande 
porção  de  wl  lominum.  Se,  apesar  d'esle  curativo 
timples  e  ordinariamente  eflicai,  continuar  a  dòr  e 
progrediram  a  inchação  e  inllaiiimações ;  se  houver 
razão  para  crer  que  o  ferrão  íicou  na  ferida  ;  ^e,  so- 
bretudo, a  picada  fòr  na  mão  ou  lui  cara.  c  preciso 
invocar  sem  demora   os  succorros  da  arte,    porque  a 


ferida  pode  ler  maus  resultados.  O  doutor  Cbaume- 
ton  narra  o  seguinte  facto: — n  Certo  manceVjo.  não 
tendo  reparado  n'uma  vespa  que  estava  no  fundo 
d'um  copo  cheio  de  vinho  doce,  cnguliu  o  insecto, 
que  o  picou  na  garganta.  Oefieilo  fui  promptu  e  ter- 
rível ;  inllammou-tie-lhe  a  garganta  no  logar  da  pi- 
cada, e  toiheu-se-lhe  de  tal  modo  a  respiração  que  o 
mancebo  morreu  suOueadn,  nem  que  nenhuma  das 
pessoas  que  o  rodeavam  lhe  podes-em  valer.  Salva- 
vam-no  sem  duvida  se  logo  depois  de  picadu  o  obri- 
gassem a  engolir,  com  intervallos  curiós,  uma  forte 
solução  de  sal  commum  nevada,  alé  lhe  passar  a  dòr 
de  garganta.  Este  traclamentu,  pelo  menos,  dava 
tempo  a  chamar  um  medico  ou  cirurgião. '- 

II  Um  agrónomo  inglez,  accrescenta  o  doutor  CLau- 
meton,  teve  a  satisfação  de  salvar  a  vida  a  um  dos 
seus  amigos,  picado  noesophago  pur  uma  vespa,  que 
não  tinha  visto  n'um  copo  deccrveja.  í'e-loenguiir, 
por  muitas  vezes,  sal  commum  desfeito  nainruosagua 
possível,  de  mudo  (j'ie  formava  uma  espécie  de  papas. 
Ossymplomas  ameaçadores,  manifestados  no  instante 
da  picada,  abraiidaram  quasi  de  repente,  e  cederam 
como  por  encanto.  .  .  Já  o  ilbistre  Dioscoridos,  que 
\ivia  antes  da  era  christã,  recommendaia  a  solução 
de  sal  ou  a  agua  domar,*  e  desde  e^tes  tempos  remo- 
tos até  os  nossos  dias  a  efúcacia  d'um  romediu  tão 
simples  e  económico  não  tein  tido  contras;  cu  mes- 
mo tenho  por  muitas  vezes  sido  testimuuha  do  seu 
bom  effeilo.  " 

Algumas  vezes  a  dôr  é  agudissima  e  custosa  de  ce- 
der. O  doutor  l'icarui,  medico  italiano,  tendo-o  pi- 
cado uma  vespa  nas  costas  da  mão,  deram-lhe  dures 
insupporlaveis,  que  nenhum  dos  remédios  usados  em 
taes  casos  puude  mitigar.  Já  tinha  a  mão  muito  in- 
chada quando  lhe  lembrou  recorrer  ao  uso  do  unguen- 
to napolitano.  Não  é  para  aqui  tractar  da  applicação 
d'este  remédio,  porque  pede  a  prudência  que  s<»  um 
facultativo  o  receite,  basta  que  se  diga  que  o  allivio 
foi  proniplo  e  grande,  e  que  se  deve  applicar  o  n>e- 
dicamento  por  espaço  de  seis  ou  oito  horas  e  até  mais. 
A  cura  do  doutor  l'icardi  foi  breve  e  radical. 

Este  curati\o  não  isenta  de  ter  virada  para  cima 
a  parte  mordida,  e  ao  ar  fresco  quanto  seja  pu:sivel. 


Do  EsTVlO. 

Como  hão  de  ser  as  palavras?  Como  as  estreitas.  At 
eslrellas  são  muito  distinelas  e  muito  claras.  E  nem 
por  isso  temais  que  pareça  o  esl vlo  baixo:  as  estrel- 
las  são  muito  distinelas,  e  muito  claras,  e  altis»inias. 
O  estvlo  púJe  ser  muito  claro  e  muito  alto:  tão  cla- 
ro que  o  eiilendam  os  que  não  sabem,  c  tão  alto  que 
I  tenham  muito  que  entender  n'ellc  os  que  sabem.  O 
I  rústico  acha  documento»  nas  estrcllas  para  a  sUa  la- 
I  voura,  e  o  mareunle  pura  a  sua  navegação,  e  o  nia- 
I  ihcmatico  para  as  suas  oliservações  e  jwra  os  seus  jui- 
]  zos.    De  maneira  que  o  rústico,    e  o  mareante,  que 
I  não  sal)eiii  liT  nem  escrever,   entendem  a»  estrellas  ; 
I  c  o  matheuiatico,  que  tem  lido  quantos  escreveram, 
não  alcança  o  entender  quanto  irdlas  ha. 

Este  desventurado  eslvhi  que  hoje  se  usa,  os  que 
o  querem  honrar  chamam-lhe  cullu ;  <»  que  o  con- 
demnam  chamainlhc  escuro;  mas  ainda  lUc  faiem 
muita  honra.  O  estvlo  culio  não  c  escuro,  é  negro  e 
negro  boçal,  e  muito  i-crrado. 

ViKuiA  —  Scrm.   T.  1 .",  po<í.  3'.- 

Co'a  matéria  convém  casar  o  estvlo: 
Lcvante-se  a  exprtsjào  se  é  grande  a  iJca, 
Se  a  idéa  e  negra  a  locução  ne;r«gc, 
E  lenue  sendo  se  attenue  a  |)hrí«c. 

l?oiAyK  —  íiií.  ao  laóic  J.  A.  úc  Mazcc^' 


6 


o  PANORAMA. 


41 


TUMULO    DE    BAIVTHOLOni^U    JOHANIES, 


Na  sé  inetrupulitana  lisbonense,  nu  eiifríir  da  porta 
principal,  lia  uma  capella  antes  tie  clie^ar  á  porta 
travessa  <io  norte,  fecliada  com  seu  canci-Uo;  e  den- 
tro, taniliern  do  lado  es(|uerdo,  está  nietlido  n'iim 
vão  de  ano  o  tumulo  cuja  lace  apparontc  se  mostra 
na  gravura  (|ue  precede.  Km  volta  da  campa  tem  aber- 
ta uma  inscripção;  e  do  cjue  se  pode  decifrar  na 
parte  maniirsta  infere-se  que  diz  o  seguinte  ;  —  Bar- 
tliolumeu  Juhanes  cidadão  que  foi  de  I^iishoa  a  quem 
Ileus  perdoe  passou  trinta  dias  de  novembro  (uti 
iLtfníbrof }.  —  Alguns  caracteres  acliam-se  indistin- 
«los.  A  eilalua  jacente  está  de  roupas  lalares  com 
nUia  espada  larga,  ou  montante,  sohre  si  ;  os  trcs 
otcudos  insculpidos  no  cofre  teein  por  armas  llôrcs 
ili-  liz  francczas,  divididas  por  uma  lista  lancjada  obli- 
quainiMite,  ou  banda.  —  Seierim  de  Karia,  no  Disc. 
'i"  das  Not.  de  l'ortuf|;.  ,  mencionando  familiasque 
nus  escudos  tra/.iam  as  Ihíres  de  liz,  aponta  algumas 
raiõe»,  c  em  dois  exemplos  que  traz,  das  casa»  de 
l-arias  e  Mirundas,  marca  u  oripein  Iranceza.  — 
\  eeni-se  no  tnmtdu  (|Ui'  copiáuM)s.  lin  documen- 
to i|Uí  vamos  citar  prova  (|uequem  para  si  o  fez  eri- 
gir tinlui  liens  em  Flandres  eKranr.i.  Sem  indagar- 
mos o  sen  grau  de  nolireza  derivada  (Peste  idtimo  rei- 
no, liiisla  ipie  pi'!a  razão  de  uns  as  adoptarem  as  po- 
disM-iii  esciillier  outros.  K  mio  temos  visto  lautas  car- 
ruagens que,  [iila  concorrência  ile  appulli<los  encon- 
trado», nos  appresentaram  por  alii  liriizõc<  mestiços  1 
A  i>scul|)lnra  do  tumulo,  piírecid.i.  por  exemplo. 
..  <líis(]nee\isti-m  «mu  ( tdivcilas,  indií-axa  aniignula 
rlc  remota,  e  pari  eia  «nlirior  áepoclia  de  1),  JoSo  1 
pela  circnmsl/incia  ilos  caliellos  cri'S('i<liis  cli  cabeen  e 

Vol..    I     -  OUTIUIIO    10,    1«iO. 


I  barbas,  que  se  observam  na  estatua  deitada  ;  porque 
é  sabido  (jue  no  tempo  de  João  vencedor  de  João  de 
Caslella  usaram  os  nossas  cabello  tosquiado,  para  se 
dillerençaríMii  dos  cailelhanos,  d'onde  veio  o  chama- 
rem-iMis  vltumorros  os  adversários  ;  e  n"esla  confornii- 
díide  e  bom  uso  nacional  apparecem  nos  monuinentus 
d^então  as  elTigies,  como  no  tumulo  do  sabedor  João 
das  llegras,  muilo  bem  trosquiadas. 

No  real  arcbivo,  dicto  a  Torre  do  Tombo,  arca 
sancta,  onde  se  leni  salvado  incólumes  preciosos  do- 
cumentos no  meio  de  naufrágios,  existem  na  cbance- 
laria  lie  1).  Diniz  dois  aforainentus  (a  f.  "6  etc.  do 
L."2.",  e  f.  ol  V.  doL."  {."jcm  queapparece  o  no- 
me de  Jiartliolomeii  Jolianes  ;  mas  não  é  isto  motivo 
bastante  para  se  dizer  que  fossem  feitos  a  uma  ou  a 
duas  diversas  pessoas,  e  que  alguma  (Pellas  fosse  a 
de  que  se  Iracta.  —  Não  ha  porém  duvida  de  que 
d'esse  tempo  é  o  jazigo  acima  estampado,  e  que  per- 
tence a  individuo  iPaquelle  nome,  o  qual  «levia  ter 
sido  lioinem  de  muita  ri<|ueza  c  de  valia,  como  piídw 
ajuiiar-se  pelas  suas  dis|>osi<;ões  testamentárias,  de 
(|Me  s<')iiii?iitn  mencionaremos  as  notáveis;  pelas  cau- 
telas queu\ilgumas  se  observam  limpossivel  que  não 
losse  coinmerciante,  pelo  menos  em  seus  princípios, 
coiiheceilor,  como  parece,  das  tralicani  ias  <lo  niuiidu, 
que  ja  então  se  praclicavani  como  v  provável  que  se 
larão  até  á  consumm.içào  dos  séculos.  Talveí  perten- 
ceu «  alguma  corpor.ieão  como,  por  exemplo,  o  gré- 
mio dos  mercad<ires;  porquanto  nu  ii  u  testamento 
falia  moitas  vezes  em  eciinpanln'iros,  e  llies  conoede 
entirrarem-se  na  capelbi  i|Ue  lunda .  —  l"'slf  documen- 
to, dal, ido  de 'JS  dr  novembro  de  I  J'2t  (I  ;ló'J).  elinr.i- 


42 


O  PANORAMA. 


do  pelo  tabellião  Domingos  Martins,  na  cidade  de 
liisLioa,  nas  casas  que  chamam  da  Torre  da  Eslevay- 
iilia,  nas  quaes  morava  o  honrado  barão  (varão) 
liariholnineu  Jo/iano^  cidadão  de  L.ishoa,  .  .  ,  o  qual 
jazia  t7n  iva  cama  com  iodo  o  seu  sizo  ele.  Declara-  | 
se  que  para  rcmiriunio  de  seus  pcccados  este  funda  ! 
uma  capcila  e  lioí^pital. 

Ao  diante  se   Ic  a  seguinte   disposição:  —  Mando 
deitar  e  sottcrrar  o  meu  corpo  na  ii^reja  calhedral  de  | 
Lisljoa    na  capella  que    eu  alii  mando  fazer  no  logar  j 
que   me  alii   o  cabido  assignou   á  qual  igreja   deixo  \ 
com  o  meu  cnrpo  duzentas  livras.    Os  legados  prin-  , 
cipaes  são:  A"  igreja  de  S.  Mamede  de  Lisljoa  loO  ' 
livras.    Para  resgate    de  caplivos    2000  livras.    1000  | 
livras  para  vestir  pobres  (jiic  não  vendessem  osvesli- 
dos.  Para  casar  orpliãs  donzellas,   que  sejam  de  boa 
nomeada  e  boa  vida,  o  taes  que  mereçam  casamento, 
loUO  livras.  liiO  livras  para  fazer  iinia  ponte  no  rio 
de  Pontevel  que  c  no  caminho  puLlieo  que  vai  paia 
Santarém  enlre  Aveyras  e  o  Cartaxo:  e  n'esta  dis- 
posição ha  uma  plirase  que  denota  profissão  mercan- 
til do  doador  —  ali  cusoyidar  a  venda.  —  300  livras 
para  a  obra  do  mosteiro  da  Trindade  de  Lisboa  com 
a  condição  dos  frades  não  receberem  senão  empedra 
e  cal.  10  livras  para  criar  um  engeitado  no  hospital 
dos  meninos  ;  as  quaes  mando  que  os  meus  testamen- 
teiros paguem  a  uma  ama,  de  tjuiza  que  ocomenda- 
dor  do  dito  Inrjo  não  seja  tcúdo  de  asrcceber.  Para  os 
gafos  (leprosos)  de  Lisboa  10  livras,  com  as  mesmas  pre- 
cauções. A  todas  as  emparedadas  da  villa  da  Azam- 
buja 30  livras. 

Funda  um  hospital  para  doze  pobres.  Inslifue  a 
capella  para  jazigo  na  sé:,  determina  que  seja  da  in- 
vocação de  S.  Eartholomeu,  cm  que  canicmcadadia 
para  sempre  1 G  capellães  ,•  a  saber,  doze  cappellães 
por  Tninlia  alma,  c  os  deis  dos  oídros  capcUães  can- 
iem  por  meu  scniter  elrei  I).  Diniz,  c  os  oídros  pela 
rainha  I).  Isabel  sua  7nulher  (não  podia  adivinhar 
que  seria  canonisada)  c  outro  j^ch  infante  D.  yjjfon- 
so  seu  fillio  e  pelos  filhos  iVessc  irfanic  :  esjunctaqiie 
sob  tal  condirão  que  o  senhor  rei  cm  stta  vida,  e  de- 
pois o  senhor  infante  na  sua,  e  assim  por  diante  os 
seus  filhos  c  nelos  lidimos  aletvi  c  façam  alçar  força 
de  qualquer  pessoa  ou  pessoas  que  queiram  usurpar 
a  capella  que  iiislitue,  ou  os  bensd'elia  ou  do  hospi- 
tal que  taml)cm  funda. 

Dotou  a  capella  com  bens  que  subissem  arfíiícrc- 
ecs  7)iii  Heras;  e  mandou  que  senão  lhe  dessem  logar 
na  sé  fosse  feita  na  freguezia  de  S.  Mamede.  Para 
capellães  manda  preferir  portnguezes. 

ISomeia  iestanienteiros  Gonçalo  Domingues,  saca- 
ilor  das  dividas  de  twsso  senhor  clrei  meu  compadre, 
p  l'ero  Esteves,  sobrinho  de  João  Dias,  reposteiro 
d'elrei,  e\priniindo-se  dVsta  forma  u  e  os  metto  de 
posse  de  todos  os  meus  bens  moveis  e  de  raiz,  cm 
qualquer  espécie,  maneira  c  cousa  que  possa  ser, 
achados  também  em  Portugal  romo  em  França  e 
em  Flandres.  1'  E  ailiaiitc  diz  :  uE  peço  por  mercèa 
meu  stnlior  elrei,  (|ue  sempre  manteve  a  mim  e  os 
meus  lieus,  e  n\e  defendeu  em  minha  vida  sua  mer- 
co, por  algum  serviço  (se  lli^o  eu  fiz)  depois  do  meu 
passamento  defenda  os  meus  testamenteiros.  " 

Uma  copia  d'esfe  tumulo,  desenho  em  contorno 
foito  á  penna,  com  as  de  outros  dois  igualmente 
existentes  na  sé,  foi  appresentada  na  exposição  da 
Academia  das  Piellas-Artes  em  ISlO.  E  bem  mere- 
cia commemoração  esta  antigualha,  que  os  cscriplo- 
res  deixaram  no  esquecimento,  quando,  pela  cpocha 
a  que  pertence,  como  spccinieii  archeologico  de  mo- 
numentos d'c5ta  espécie,  merecia  particular  uttcnção. 


O  IIadjeb  de  Kordova. 

(972  a  992) 

(Coniiauado  de  pag.  33.) 

in. 

Gclohira. 

A  TEMPESTADE  rugia  em  toda  a  sua  força.  ^  iera  to- 
talmente a  escuridão  e  a  noite.  A  única  luz,  queal- 
lumiava  esta  sccna,  era  a  de  um  álamo  gigante  a 
arder  d'alto  a  baixo,  incendiado  pelo  raio.  Este  fa- 
cho tremendo  fulgii  lugubremenle  nomeio  da  selva, 
como  a  tocha  funerária  d'aquelle  templo  imiiiensu, 
cujas  naves  e  culumnas  eram  os  renques  profundo» 
do»  cedros  e  carvalhos. 

A  estranha  apparição  da  virgem  fez  recuar  os  guer- 
reiros. O  circulo  retrahiu-se  e  alargou-se.  Uernien- 
gardo,  firmado  sobre  o  punho,  voltou-se  para  con- 
templar a  sua  noiva,  e  cravou  os  olhos  n'ella  com 
uma  anci  i  que  apenas  pude  comprehender-se.  Gelo- 
liira,  por  única  resposta,  fitou  os  «eus  nos  doniosta- 
rabe  cum  desesperada  resolução.  O  que  aniLos  sp  dis- 
seram n'aquclle  longo  e  profundo  olhar  souberam-n"o 
só  elles  c  Deus.  Devia  de  ser  horrendo,  porem  :  de 
certo  que  o  mancebo  leu  alli  a  certeza  das  suas  hor- 
rorosas suspeitas,  porque,  erguendo-se  do  repente  eiu 
pé,  por  um  esforço  que  já  nada  tiiiba  de  humano, 
alçando-se  firme  —  elle  que  havia  momentos  lual  po- 
dia arquejar  estendido  —  com  o  peito  aberto  a  gote- 
jar sangue  vivo,  exclamou  brandindo  furioso  com  uma 
das  mãos  a  sua  larga  espada,  e  com  a  outra  apon- 
tando para  a  virgem,  prostrada  ainda  a  seus  pi-s- 

—  Vedes  esta,  irm.los?  era  vossa  irmã  também  ; 
era  a  jmmaculada  recompensa  que  Deus  me  linhn 
destinado  ;  era  o  anjo  vtslido  de  purez;i  a  quero  eu 
tinha  erguido  aras  no  coraç.lo  ;  era  a  companheira  que 
havia  de  cingir-me  asarn:as  ápartidn,  c  à  volta  lini- 
par-nie  o  pó  e  o  suor  da  fronte  ;  minha  consolação  e 
meu  auxilio,  meu  desvelo  e  meu  enlevo;  era,  era 
esta  meus  irmãos.  E  sabeis  hoje  o  que  é .'  quereis  sa- 
ber cm  que  m^u  tornaram  .'  N'um  opprobrio.  n"uma 
vergonha,  n'unia  infâmia,  n''uma  atVronta  !  Tocarani- 
Ihe,  os  Ímpios  !  mancharam-n'a,  os  vis  !  .  .  .  " 

Gclohira  caiu  com  a  face  melindrosa  iiocliãoala|;j 
do  elimuio,  diante  do  guerreiro  :  Herniengardo  viu-a 
n''aquella  postura  c  continuou  : 

—  i.  (iuebraram-me  tudo  n^alma,  elles!  O  amor 
cem  que  eu  contava,  aventura  que  esperava,  a  glo- 
ria a  que  aspirava,  tudo  I  Essa  fronte,  essas  faces, 
esses  lábios  que  ou  Tcceiava  macular  com  o  s<'>  miu 
balito,  nem  ousarei  beija-lo» sequer;  estão  poli uidos '. 
Não  posso  nunca  mais  cbegar-me  a  cila  ;  e  f.Va  era 
omcucul'o:  adorava-a  !  Vt;de-a,  meus  irmãos.  Ma- 
tarum-na  ;  mataram-nie  !  G.ue  me  resta  pois  no  mun- 
do .' " 

—  II  A  vingança  !  " 

Bradou  o  ancião,  surgindo  também  de  pé  ao  l.ido 
do  ni:>nccbo,  transportado  como  elle,  temeroso  e  furi- 
bundo como  elle. 

Parecia,  um,  oarchanjoextcrminador  ;  assemelha- 
va-sc  o  ouiro  ao  :ipustolo  das  dcslruiçues. 

—  .1  \  incança  !  " 

Exclamaram  taml>cm  os  guerreiros  inattaralH>s. 
apertando  de  novo  o  circulo. 

(iclohira  soluçava  contra  a  terra! 

—  •!  Sim,  meus  irmãos,  vingança  I — proseguiu  ller- 
mengardo.  —  \"inguemo-nos  ,  vingai-me  I  .  .  .  (Que- 
reis vós  faicr-me  um  juramento.'» 

—  u  (Queremos  —  bradaram  a  um  tempo  os  seus 
companheiros  —  qucremo-lú  nós  todos!- 


o  PANORAMA. 


43 


—  u  Jurai  pois  —  continuou  elle  —  de  vigiar,  de 
seguir  incessaiifemcnte  o  hadjeb  Mohamed,  a  cada 
hora,  acada  passo,  nomeio  dos  seus  guardas,  dosseus 
iílcaçares,  das  suas  phalanges,  dos  seus  exércitos,  até 
íicar  remida  a  injuria  d'esta,  a  minha  injuria,  a 
injuria  de  nós  todos,  irmãos!  Eu  serei  o  primeiro, 
eu  darei  o  exemplo  de  força  e  de  constância,  eu  o 
espiarei  de  noite  e  de  dia,  eu  lhe  trarei  o  punhal 
continuameute  suspenso  no  coração.  E  omeulogar; 
não  quero  que  ningem  m'o  usurpe.  Mas  se  eu  cair 
antes  de  vingado,  se  o  poderoso  esmagar  o  pequeno, 
jurai-me,  juriíi-me  todos  que  mo  substituirá  outrode 
entre  vós,  igualmente  implacável,  igualmente  vigi- 
lante na  obra  da  vingança,  eoutro  apoz  elle,  eoutro 
depois  d''osse,  e  outro,  e  outro  em  iim,  sem  parar, 
sem  se  repousar  em  quanto  esse  homem,  esse  tlagel- 
lo,  esse  IjadjeI)  não  tiver  expirado  aos  seus  golpes,  e 
não  só  elle,  mas  os  seus  sectários  maldictos,  os  que 
lhe  dão  famaidio  poder,  os  que  o  ajudam  a  erguer  o 
ediGciu  das  SU..S  prosperidades.  Se  uma  geração  não 
bastar  para  derril)ar  ocollosso  das  TIespanhas,  jurai- 
ine  que  legareis  a  vossos  fdhos  esta  missão,  que  a  pro- 
pagareis piir  tilda  a  parte,  que  a  contareis  a  quanto 
ii'estas  terras  tiver  um  nome  godo.  Edilllcil  e  peri- 
goso, «'■  tremendo  o  que  vos  peço;  aquelle  homem 
guarda-o  Deus  como  um  signal  da  sua  ira  •,  ha  de 
cair  muito  d'entre  nós;  mas  o  dia  ha  de  raiar  a  fi- 
nal; a  cholera  do  céu  não  dura  sempre!  Jurais-me 
pois  de  o  cumprir  como  digo,  sem  fraquejar  nma  vez, 
bem  descanç.ir  uni  momento?» 

—  u  Juramos,  juramos !  » 

Clamaram  cm  redor  os  guerreiros,  tremendo  de 
indignação,  de  impaciência,  e  de  enthusiasmo. 

—  Jurai-ni^u  por  vossas  mães,  por  vossas  filhas  e 
esposas  !  n 

—  "Juramos !  >■> 

—  »  Jurai-m'u  pelo  sangue  de  vossos  irmãos  derra- 
mado; pela  honra  do  vossas  famílias  maculada.  " 

—  «  Juramos,  juramos  !  " 

—  "Jiirai-m'o  pela  memoria  dos  avós  quedormcm 
o  seu  ultimo  somiio  nos  leitos  de  pedra  profanados 
pelo  pé  dos  Ímpios;  jurai-in'o  pelo  nome  dos  ante- 
passaílos  qu<!  erguem  um  canto  dos  seus  sudários  de 
mármore  para  no-lo  virem  troar  uos ouvidos,  nomeio 
d'esla  vergonha. 

—  «Juramos,  juramos!  » 

—  uJurai-m'o  líiialmente  por  esta.  .  .  >' 

—  "Jurai-o  por  este  sangue!  >' 

InterroiMpeii  a  virgem  de  Amaya,  alçando  o  rosto 
formosissimu,  todo  maculado,  todo  lastimado,  lodo 
golpeado  do»  tojos  o  abrolhos,  o.  erguendo  sobre  o 
peito  o  ferro  que  i'inpuiihava.  A  Jjueri.cia  goda  que- 
ria Baiicliliiar  o  jiirainenlo  doa  seus  irmãos  e  viiiga- 
<lores,  ú  semelhança  da  matrona  romana. 

Ilerinengardo  viu-lliu  o  gesto  o  não  se  moveu.  A 
dilr,  n  desespcrueão  e  a  vergonha  tinhani-u'u  torna- 
do feroz. 

I'"oi  o  niiciào  que  lho  desviou  o  golpe.  A  velhice 
ítnlii!  muitas  veies  eiitcniler  nndhor  ua  fraquejas,  c 
avuliur  II  iniioeeneiíi. 

ICni  um  evipeelaeulo  horrendo  afjuelle.  O  bosque  a 
dobrar-se  inteiro  iilé  a  turra,  a  ciirvar-se  humilde 
para  deixar  passar  a  tormeiíla,  todo  cheio  de  frémi- 
tos pungentes,  tle  gemidos  doloroso»,  e  desilvosagu- 
dus— todo  cortado  de  brados  de  agonia,  de  uivos  e 
rugidos  —  c  iilli,  no  centro,  aquelli^s  roslos  toslados, 
uquelle»  tilhos  seiMilelhantes  <i  furibamlus;  iu|iiell(' 
velho  uugusio,  eiiuiu  presidindo  á  saturnal  da  viii- 
guiiça  ;  H(|uel|(!  hoineiu  com  o  peito  nbirlo,  a  toda- 
via bobraniu'iro  e  ile  pé;  o  finalmente  a(|uella  mu- 
lher ajoelhada  no  meio  de  todos,  iijoelhaiia  no  chão 
lodoso,  brainus  o»  vestidos  como  o  rosto,  todo  man- 


chado o  rosto  como  os  vestidos,  os  cabellos  soltos  ao 
vento  da  tempestade,  o  olhar  desvairado,  meigo  e 
selvático  a  um  tempo,  enérgico  e  supplicante,  lluc- 
tuante  entre  o  céu  e  a  terra,  curvo  para  esta  pela 
vergonha,  atraindo  para  aquelle  pela  coiiícientia  .  .  . 
era  horrendo  e  sublime! 

Os  homens  d'hoje  não  comprehendem  de  certo  a 
energia  primitiva  das  paixões  virgens.  A  civilisa- 
ção  nivelou  tudo  ;  incommodavam-n"a  estas  ingénuas 
asperezas;  afleiavam-n'a  estas  escabrosidades  natu- 
ra es :  passou-lhe  por  cima  a  plaina  omnipotente,  e 
deixou  tudo  liso  .  .  .  á  superfície  !  Lá  por  dentro .  .  . 
Deus  sabe  o  que  vai  lá  por  dentro!  No  nossoestado 
actual,  estas  scenas,  tão  fora  do  commum,  segun- 
do por  ahi  dizem  —  do  nosso  commum,  direi  eu  — 
hão  de  parecer  tllectivanietite  um  desvario  d'ioia- 
ginação  ('scaldada.  Ueixa-lo.  CLuera  está  costumada 
ao  piso  igual,  commodamente  fastidioso  e  nausea- 
bundo das  nossas  modernas  banquetas  d'asphalto,  por 
força  que  estranha  as  fragosidades  piclurescas  d''um 
trilho  alpestre  e  inculto.  E  natural. 

(^ue  imporia  lá  ? 

Se  o  mundo  tivi^i-se  sido  sempre  como  agora  ! 

Um  toldo  de  nuvens  còr  de  chumbo,  franjadas  de 
horrendos  claruci,  cobria  a  almosphera  d"um  \éu  mor- 
tuário. O  raio  estalava  em  roda.  Era  uma  tempesta- 
de na  natureza,  semelhante  á  que  sacudia  aquelles 
corações. 

A  arvoro  inílammada,  ardendo  a  poucos  passos, 
projectava  cm  cheio  na  branca  figurado  Gelohira  os 
seus  rellexos  vermelhos.  l'oder-se-liia  dizer  que  a  co- 
bria uma  purpura  transparente,  ou  ([ue  a  cingia  uma 
sanguínea  mortalha.  A  sua  altitude  era  ao  mesmo 
tempo  resignada  e  altiva.  A  desesperação  conlrahia- 
Ihe  os  lábios  esbranquiçados,  como  se  lh'os  houvera 
tornado  de  mármore  algum  impuro  contacto;  mas  a 
chainma  d'um  saneio  e  fervoroso  enthusiasmo aecen- 
dia-llie  um  resplendor  na  fronte:  ainda  era  bella  as- 
sim ;  ora  talvez  mais  bella  do  que  nunca  ! 

ih  guerreiros  abaixaram  os  olhos  para  a  nobre 
filha  das  montanhas,  primeiramente  para  lhe  admi- 
rarem talvez  a  altitude  de  ins])irada  ;  depois  para.  .  . 
O  ancião  voltou  a  cabeça  limpando  uma  lagrima 
silenciosa  :  mais  de  um  rosto  fero  e  indomável  o 
imitou  envcrgonhiulo. 

Só  Hermengardo  não  chorou.  Olhou  muito  tempo 
ííto,  fito  para  (íelohira,  s(ím  dizerem  palavra  um 
nem  outro.  O  (|ue  pensava  lá  conisigo  não  n"o  soube 
ninguém.  A  final,  sem  dar  omiiiinio  signal  de  com 
miseraeão  ou  dó,  estendeu  a  mão  á  infeliz  ecun  uni 
gesto  soberano. 

(iclohira  retirou  a  sua. 

tJlharam-se  di!  novo  e  em  novo  silenein. 

—  "Tens  razão  !  —  disse  o  mostarabeem  voj  baixa  , 
depois  continuou  em  voz  alta  ;  —  Jjcvanla-te  d'ahi, 
mulher  ...» 

E  fomaiulo  a  sua  espada  pela  ponta  olVercceu-lh".! 
pelas  cruzes  p.ira  ella  se  ampar.ir  e  hivaiitarse. 

(íelohira  ergueu-se  e  appresentou-lhe  lambem  ca 
lada  o  seu  punhal.  O  guerreiro  re|ielliu-o  vivamen 
te,  e  prosegniu  : 

—  "Mulher,  tu  não  tens  culpa!  Recaia  a  vergo- 
nha o  a  infâmia  na  cabeça  dos  crimiuoios.  Olhai 
bem  para  ella,  meus  irmãos;  olhai,  iiieii  pai.  .  .  Era 
a  iiiiiiha  noiva  :   ha  de  .ser  minha  miillier  !...'• 

Instas  palavras  feriram  eoino  o  raio  os  cireumslau 
l(!s.  Ninguém  a»  esperava.  O  ancião  curvou  a  cabe- 
ça; (ieloliira  cravou  resoUilamente  os  iilhos  no  cini, 
i|iie  o  raii)  aliria  a  cada  instante;  oin  murmúrio  ile 
np|irovação  pi^rcorreu  o eiriiilo  dos  guerreiros.  .Acha 
vaiii  lodos  sublimo  o  que  fazia  aijuellu  homem  ! 

l'oii  o  régio  inudo  eoni    que  elle  di/ia  ii<|iiillol 


44 


O  PANORAMA. 


—  II  Ua  de,  lia  de  eê-lo  —  continuou  elle,  lançan- 
do os  olhos  em  redor  —  aqui  o  juro  também.  Ha  de 
íê-lo  ...  se  eu  viver  .  .  .  quando  já  não  existir  um 
homem  que  me  possa  dizer  —  «essa,  ante»  de  ser  tua, 
foi  .  .  .  I' 

Não  poude  acabar.  SuiTocou-se,  tremeu,  vacillou.  .  . 

—  uGeluhira  —  accrescentou  o  triste  ii'um  penoso 
esforço  —  esta  mão  .  .  .  lia  de  tocar  a  tua  .  .  .  sobre  o 
cadáver  do  liadjeb  '.  >■ 

O  sangue  não  Uit  gottjava  sónienle  ,  corria-llie  ja 
cm  fio  das  feridas  rasgadas  de  novo.  lira  o  mais  que 
podia  fazer  um  homem. 

Caiu . 

Ninguém  disse  palavra.  Asscntarani-se  todos  em 
roda  para  soccorre-lo.  Gelohira  e  o  ancião  estavam 
a  seu  lado.  Orava  cada  qual  lá  no  seu  iiiteriíir! 

N'isto  apagou-se  o  tronco  incendiado.  Tinha  ar- 
dido até  á  raiz.  O  silencio  e  as  trevas  ficaram  pro- 
fundas. 

Gelohira  rasgou  os  véus  que  lho  cobriam  o  seio, 
para  unir  e  conchegar  as  feridas  do  mancebo.  Q-ue 
lhe  importava  a  ella  que  a  alagiisseui  as  torrentes  do 
céu,  ou  que  a  chagassem  as  urzes  dos  caminhos? 

Os  rumores  temerosos  da  tenipesladocontinuavam. 

Ao  pé  ouvia-se  unicamente,  por  entre  aquellessons 
medonhos,  o  resfolegar  oppresso  do  ferido-,  ao  longe 
sentia-se  um  tropear  pressuroso  de  ginetes. 

Eram  os  cavalleiros  do  hadjeb,  que  perseguíamos 
fugitivos  ! 

Uma  kaça  D'no»iENS. 

Kntiie  as  principaes  variedades  do  género  humano, 
sempre  se  notou  como  assaz  distincla,  por  caracteres 
especiaes,  a  raça  negra  ;  porém  esta  mesma  é  divi- 
dida pelos  modernos  oljservadores  em  duas  castas dif- 
ferentes,  cada  unia  de  t^  po  fanibcm  especial.  Cha- 
mam raça  propriíimeiite  negra  aos  elhiopes  eaoscaf- 
fres  ;  os  primeiros  habitam  o  pait  dos  jalofos,  o  be- 
negal,  Serra  Leoa,  e  finaliiienie  toda  a  costa  orien- 
tal da  mesma  região,  desde  o  rio  do  Kspirito  Sancto 
até  o  estreito  de  Hab-el-Mandel,  e  dislinguem-se  dos 
outros  por  maior  habilidade,  e  caracter  mais  activo 
e  bellicoso,  posto  que  traiçoeiro. — Deiiomina-se  raça 
morena  ou  lusca  tanto  a  dos  hottentoles  como  a  dos 
papuas,  posto  que  unia  seja  continental  e  outra  in- 
sular, em  regiões  diversas.  Us  iKitlentotes  habitam  o 
território  circnmvisinho  ao  cabo  da  lioa  Esperança. 
H  os  outros  povoam  na  Oceania  a  N<  va  lioUanda  e 
»  Nova  Guiné  (1),  assim  appclluhida  pila  prelidão 
dos  naturaes.  Conservam  porém  entre  si  a  maior  pa- 
recença, salvas  algiimasdiliereneas  de  Índole,  porque 
o»  hottentoles  são  em  geral  brandos  e  pacilicos,  ain- 
da que  proverbialmente  aborrecidos  por  fealdade  e 
desaceio.  .Ambos  os  povos  constituem  a  mça  acima 
dieta,  que  dillere  dos  negroselhiopes  eciilVies  purl>r 
uma  espécie  de  focinho,  parque  nem  e  próprio  cha- 
ni.ir-llie  tromba  nem  cara;  e  esse  ainda  inais  prolon- 
gado que  od"estoutros,  roatoquasi  triangular  que  re- 
mata em  ponta,  o  angulo  faci.il  de  7a  graus  pouco 
mais  ou  menos,  pelle  de  eôr  tirante  a  pard.T-escura, 
narii  tclaloiente  esborrachado  e  muito  largo,  beiços 
mais  grossas  que  os  dos  negros  legitimo^,  eabellos 
ijuc  semelham  iiovellus  <le  l.~i,  as  faces  muito  salien- 
tes, £  a.  testa  de  tal  modo  achatada  que  apenas  se 
descobre.  Todos  são  de  induie  summnmente  estúpi- 
da, quasi  incapaz  de  coiicepção;  comtudu  os  papuas 


são  mais  espertos  e  dextros,  i^uaps  porém  na  pr«!- 
guiça  e  em  medo,  pelejando,  não  ol>stanlc  Í4so.  com 
encarniçamento  se  uma  vei  se  deliberam.  Ninguém 
os  iguala  em  simplicidade  de  espirito  \  teem  de  seu 
natural  bom  coração;  deixam-se  opprimir  por  bran- 
dura de  car.icter  ;  porém  não  se  pode  fazer  delle* 
bons  escravos,  pois  preferem  a  morte  a  todo  otraba- 
Ihu  custoso  e  aturado.  Tão  apatbicos  são  para  todos 
os  cuidados  da  vida  domestica  quanto  dados  a  lodn^ 
os  appetites  sensuaes,  como  a  dança,  a  gula,  a  em- 
briaguez. Parece  que  são  inteiramente  corpo,  ape- 
nas teem  alguma  leve  noção  do  ente  Supremo  ;  uiu 
podem  chegar  a  conceber  idéa  alguma  Oeque  se  lhes 
não  appresente  aos  sentidos  oobjecto:  emtim  passam 
vida  totalmente  animal.  Parece  que  esta  raça  se  en- 
contra tão  somente  no  hemispherio  austral,  compon- 
do as  duas  espécies  ou  famílias  principaes  que  temoi 
indicado.  —  O  tronco  ou  linha  holtentote  estende-se 
por  toda  a  extremidade  do  sul  dAfrica  desde  o  Ca- 
bo Negro  até  o  de  Boa  Esprrança.  e  d'ahi  quasi  até 
o  Muuomotapa.  Ha  uma  tribu  mui  bravia  e  boçal, 
que  os  colonos  do  Cabo  chamam  dos  boihmans,  eque 
moram  em  cavernas  e  matlas  ;  fazendo  correrias  d"ira- 
proviso,  vivem  de  rapina,  e  de  raizes agrestes,  acdara 
niís,  e  são  tão  ariscos  como  osanimaes  do  sertão.  Os 
outros  huttentotes  v  ivem  lambem  sem  leis  nem  regra 
fixa-,  porém  como  são  mansos  e  socegados  não  faiem 
mal  ;  e  nos  arredores  do  Cabo  leni-se  de  algum  mo- 
do sujeitado  algumas  famílias  a  um  pequeno  grau  de 
civilisação.  E  um  povo  excessivamente  feio.  e  para 
que  se  aprecie  isto  devidamente,  damos  um  speci- 
men  do  que  elles  reputam  formosura  feminil,  com 
todos  os  atavios  e  arrebiques  que  usam  para  adornar 
a  cabeça. 


U)  Foi  descoberta  por  D.  Jorge  ile  Menezes.  in(top.i- 
ra  as  ilhas  de  Moluco,  sogiindo  iinrra  Dioito  do  foiito  na 
Década  i.* 


Kcnresenta  uma  raparig.-j  de  vinte annos:  tem  um 
rololo  de  marfim  afr.iv<'«ado  nacarlilngem  dunarii. 
duas  argolas  de  cobre  pi-ndentea  Has  orilh.iS.  e  presa 
á  carapinha  a  um  lado,  como  aodesdeni.  uma  rosei» 
de  plumas  misturadas  com  pontas  de  porro-cspinho. 
Aoore>cPiile-se  a  i^fo  uma  c.ip.-i  sórdida,  uma  tane» 
ou  avental  guarnecido  profus.imente  de  conlas  e  avi- 


o  PANORAMA. 


45 


Inrios,  e  o  restante  do  corpo  iiú,  besuntado  de  cebo 
de  carneiro  de  mistura  com  ferrugem,  nos  braços  e 
peruas  luanilliHS  de  metal  ;,  e  ttr-se-ha  )d(''a  com- 
pleta da  gentileza  bolteiitote. 

Comem  os  bandullids  dosauimaes  sem  os  lavarem, 
deitam  o  leite  em  odres  de  pelles  imrnundasi  nenhu- 
ma porcaria  os  enoja  ^  são  a  quinta  essência  dos  stl- 
vagens  brutos  e  Çujos.  A  sua  maior  delicia  é  estira- 
rem-se  indolentemente  pela  areia  de  cachimbo  na 
bocca,  porque  o  fumar  é  a  sua  maior  paixão;  quem 
lhe  dá  tabaco,  tem  d'elle5  esse  pouco  que  podem  ou 
sabem  fazer.  A  sua  linguagem  é  uma  espécie  de  ca- 
carejo de  voz  c|ue  em  nenhum  idioma  se  pode  expri- 
mir; toda  a  sua  religião  consiste  no  culto  ridículo 
que  prestam  a  alguns  objectos,  pedras,  arvore»,  etc, 
que  cada  um  escolhe  a  seu  talautc  pura  especial  ve- 
neração.   

JoltNADA    NAS    I"KOVINCIAS    UA   SuEClA. 

i)  Sii.  X.  IMarmier,  dotado  das  raras  qualidades  de 
observador  inlelligeute,  visitou  e  examinou  irestes 
últimos  aunos  as  regiões  do  norli;  da  Lutopa,  e  con- 
signou o  resultado  das  suas  investigações  n"algun» 
volumes,  que  letm  recebido  do  publico  litterario  o 
acolhimento  distincto  que  merecem.  De  uma  das 
suas    ultimas    obras  tirámos    o  seguinte  extracto. — 

Aosiyde  maioontravanios  n"uma  carruagem  corm 
o  conde  de  Guldeiistope,  que  S.  M.  o  rei  da  Suécia 
se  dignou  nomear  para  acompanhar  a  nossa  expedi- 
ção, e  servir-nos  de  guia  nas  provinci;is  do  reino.  A 
iiora  da  nossa  partida  ajunctaram-se  o  ministro  aus- 
triaiio  e  outros  muitos  amigos  pura  nsvislireni  á  des- 
pedida. K  assas  agradável  aos  {|ue  [lartimos  para  lon- 
ga e  arriscada  viagem  reci'ber  ii'essa  occasião  as  de- 
monstrações da  alTeição  das  pessoas  que  estimámos  : 
«'  nina  sancção  solemne  do  tracto  passado,  e  uma  pro- 
messa para  o  futuro.  l'orc'm  se  o  tempo  (pie  passou 
lembra  pebis  didicias  que  se  gosaram,  amcdronla-nos 
o  futuro  coberto  deveu  iinpenilravel  :  ijuem  sabe  se 
tornaremos  a  vêr  aquc-lles  a  quem  tão  tordealniinie 
apertamos  a  mão,  e  de  quem  ouvimos  com  gratidão 
protestos  de  sincero  adecto  !  A  vida  de  viajante  éa 
niiii»  fiel  imagem  da  vida  humana.  Larga-sc  a  bar- 
raca que  se  levantara  iTum  sitio  escolhido,  o  quem 
sabe  se  lá  voltaremoH?  Diz-se  adeus  por  alguns  dias 
nu  pessoas  (jue  pre/ámos,  e  esse  adeus  pode  ser  eter- 
no ;  caminha-se  com  impaciência  para  um  ponto 
remoto,  o  este  objecto  de  vivos  desejos  talvez  que 
iiãii  possa  all:ançar-^e.  Deus  é  quem  mede  (^limita  os 
t;raus  dos  nossos  esforços  ;  a  consolação  do  bomiMii, 
ii'esta  incerleza,  é  aireverse  nobreincnle,  <■  perseve- 
rar na  idea  que  concebera,  e  que  pretende  pôr  em 
practica. 

Saindo  de  StocUolmo,  passámos  pelo  edifício  da 
A<a(li'mia,  ir  o  nosso  derraileim  adeus  foi  encainiidia- 
ilo  a  residi  iiciii  do  Sr.  ]lcr/.i'lio,  sábio  qui?,  por  su- 
bliini'  plirane  (^alVavel  recepção,  capti\a  a  um  tempo 
i>  alma  e  o  coração,  deixanilo  na  reminiscência  de 
<|Ui'in   o  tracta   inextinguível   leinbranra. 

Ainda  bem  não  liuliaino^  saído  d\iquidla  espaçosa 
e  bonita  rua  ila  Uainliii  quevue  dar  aporta  do  nor- 
te, conlrisloii-iKis  avista  diipaiz  glacial,  onde  a  na- 
tureza parecia  siidocada.  Não  era  ojisjieclo  gravedo 
inverno  envolto  na  capa  de  neve  ipnrbiillia  aos  raios 
do  sol,  dos  lagos  lap.idos  de  caraiiiello,  das  maltas  di; 
abetos  parecidos  a  |>^rainidi!S  dechristal,  menos  era 
ti  |>iiiiiavera  amável  que  noselimas  do  norte  remoça 
e  aviventa  por  alguns  dias  os  [irados,  aguas  o  selvas, 
I-  que  dos  poetas  seandinavos  é  bem  recebida,  «  fes- 
tejada cm  suas  sirophes  eiithiisiiislicas.  Por  tuda  a 
parte  não  viumos  mins  que  a  lerra  núa  e  sccea  j  na- 


da de  ramagem,  nem  ílôres ;  a  raros  espaços  divisa- 

vam-se  algumas  casas  de  madeira,  onde  o  pisco,  aman- 
sado pela  fome,  vem  procurar  ávido  algum  bago  de 
trigo,  caído  das  mãos  <io  casaleiro.  Estas  vivendas 
campestres  quasi  Iodas  são  pelo  mesmo  molde  .  cons- 
tam de  um  corpo  quadrado,  feito  de  barrotes  assen- 
tes uns  em  cima  dos  outros,  calafetados  com  barro  e 
musgo,  firmps  nos  quatro  ângulos  por  via  (feiítalhos, 
onde  encaixam  fortemente  uma  peça  na  outra  ;  de 
ordinário  pintadas  de  encarnado  em  todas  as  lacei, 
e  cobertas  de  tecto  de  madeira,  no  qual  espalham 
uma  camada  de  terra  que,  no  verão  se  alcatifa  de 
verdura  e  flores.  A'  direita  e  á  esquerda  ha  outros 
dois  corpos,  de  construcção  egualniente  simples,  que 
servem  de  celleiro  e  de  estrcliaria  ;  em  Irente  teeni 
um  grande  pateo;  etudo  é  fechado  com  cerca  de  pa- 
rede ou  de  cancellas  de  pinho.  Eis-aqui  o  que  cha- 
mam jai  ti,  antiga  palavra  isíaiideza,  que  significa  lit- 
teralmente  moiada,  e  nas  sagas  (cantigas  velhas)  se 
acha   muitas    vezes   applicada   a   cidades    populosas. 

Estas  casas,  em  certos  districtos,  situadas  a  muitas 
léguas  de  distancia  umas  das  outras,  compreheiídem 
oiticinas  completas  de  construcção  de  carros,  demo- 
veis, utensílios  e  ferragens,  porque  é  mister  que  se 
suppram  a  si  mesmas  durante  grande  parte  do  an- 
no  ;  muitas  ha  onde  se  acharão  em  actividade  todos 
os  oflicios  fabris  das  nossas  aldeias.  A  necessidade 
cria  a  industria  ;  e  o  camponez  do  norte  aprende,  na 
sua  solidão,  a  ser  tudo  quanto  lhe  é  preciso  para  sa- 
tisfazer ao  seu  arranjo  e  da  sua  família  ;  é,  por  isso. 
çapateiro,  alfaiate,  colxoeiro,  e  até  .irchitecto  ;  ne- 
nhum camponez  do  sul  da  Europa  é  comparável  a 
este,  recolhido  na  sua  propriedade,  que  ahi  vive  só 
por  muitos  dias  e  mezes,  cultivando  as  terras  e  tra- 
ctaiido  do  tjado.  Apenas  algumas  vezes  aos  domingos 
vae  com  a  (amilia  á  igreja,  e  la  topa  com  amigos  velhos 
e  parentes  com  quem  passa  o  dia.  Outras  vezes  vao 
a  cidade  que  lhe  fica  mais  próxima  para  feirar  no 
mercado.  De  inverno  é  (|ue  elle  emprebende  com- 
mumniente  as  suas  excursões,  porque  então  não  u 
obriga,  como  de  verão,  o  trabalho  agrário;  corre  ve- 
lozmente, em  seu  leve  Iraió,  pelos  rios  e  lagos  co- 
bertos de  gelo,  e  pelas  planícies  recamadas  de  neve. 
E  muito  para  vêr-se  uma  doestas  habitações  rústicas 
quando  chega  asolemnidade  do  Natal,  a  maior  festa 
da  Suécia.  Então,  parentes  eamigos  costumam  reu- 
nir-se,  quaUpier  que  seja  a  distancia  que  os  separa. 
Muitos  dias  de  antemão  a  dona  da  casa  tem  prepa- 
rado a  cerveja,  especialmente  destinada  para  essa  oc- 
casião, e  amassado  os  bidos  ile  cevada  e  de  trigo  ; 
tem  mais  que  mostrar  asna  habilidade  no  tempero 
dos  leilões  (pie,  por  uso  tradicional  devem  vir  a  me- 
za  n"esse  dia.  liimpa-se  a  casa  com  lodo  odesvelo,  « 
os  Irastes  apparecein  no  apuro  do  aceio  :  enfeila-se 
tudo  ciuii  ramos  verdes  e  llõrei  artitudaes.  Chega  <• 
dia  da  reunião,  desde  o  alvor  ista  aberta  a  cancel- 
la  do  ijíiid:  a  festa  é  completa. 

A  vida  S(ditaria,  a  necessidaile  de  praticar  a  um 
tempo  muitos  oITicios  para  satisfazer  as  precisões  do- 
mesliias,  prestam  a  estes  caiiiponezes  um  caracter 
dihlinclo  de  altivez  e  independência:  muito  civis  pa- 
ra com  o  estrangeiro  atteiicioso,  eiierespani-sií  prom- 
(itamente  contra  (piem  os  menospreza.  Não  ha  muitos 
ânuos  (pie  uni  iiiglez,  indo  de  iMalmo  paruStockol- 
ino,  injuriou  nin  cam|ionuz  (pnt  lhe  sorvia  do  posti- 
lhão, e  o  ameaçou  de  pancadas  ;  este  saccoii  tranquil- 
lamenle  da  algibeira  uma  correia,  ngarrim  vigorosa- 
mente ambau  iis  mãos  do  turbiiliuito  \  iajante,  umnr- 
rouliras  com  segurança  sobre  o  peito,  e  depois,  som 
di/er  |ialavra,  voltou  a  tiumir  oseii  assento,  e  si^guill 
a  jornada.  Chegado á  primeira  estação  da  posta  con- 
tou o  qiio  8u  linha  passado,  o  oinglel  coutiiiuou  so- 


40 


O  PAKORA3IA. 


girado  como  um  animal  bravio.  A  cada  mudaopos- 
tilbão  tirava  escrupulosamente  da  mala  a  importân- 
cia do  aluguel  da  jornada  que  acabava  de  fazer,  pe- 
dia outros  cavallos,  e  assim  andaram  até  (iothem- 
burgo,  onde  o  inglez  quiz  fazer  alto,  muito  enjoado 
(3'este  modo  de  peregrinar,  e  provavelmente  bem 
emendado.  Eu  mesmo  experimentei  algumas  vezes 
quanto  era  imprudente  irritar  o  amor  próprio  dos 
camponezes  suecos.  Certo  dia,  achava-me  a  algumas 
milhas  de  Gelfe,  mui  desejoso  de  chegar  cedo  a  esta 
cidade,  ondeesperava  acharcartas  de  Krança.  O  pos- 
tilhão não  se  appressava  á  medida  da  minha  impa- 
ciência, eu  quiz  fustigar  os  cavallos :  ao  cabo  de  al- 
gumas palavras  ásperas  de  parte  a  parte,  elleapeou- 
se,  poz-se  em  acrão  de  tirar  as  bestas,  e  deixar-me 
só  com  a  minha  caleça  no  meio  da  estrada.  I''oi-me 
precibO  accommodar-me,  e  esperar  para  ver  a  bonita 
cidade  de  Gelfe  á  hora  que  o  meu  cunductor  lá  me 
quizesse  levar. 

Não  se  viaja  na  Suécia  como  em  França  e  Alle- 
inanha.  Não  ha  mais  que  duas  diligencias,  uma  que 
vai  em  sete  dias  de  Helsingfors  a  Stockolmo,  outra 
que  faz  três  vezes  por  semana  a  jornada  da  capital  a 
Upsal.  Fora  d'eblas  duas  estradas  privilegiadas,  é 
mister  cada  um  ter  a  sua  carruagem,  ou  alugar  de 
posta  em  posta  o  bonJhárra,  caleça  pequena,  desco- 
berta e  nada  commoda.  A  distancias  de  cinco  a  seis 
léguas,  c  á  beira  do  caminho,  lia  uma  casa  feita  de 
vigas,  como  já  disse,  qile  serve  junclameute  de  esta- 
ção e  de  estalagem  :  o  dono  6  obrigado  a  ter  prump- 
tos  na  estrebaria  três  ou  quatro  cavallos  disponiveis, 
mais  ou  menos  conforme  a  importância  do  log:\r,  e 
além  d'estes  um  certo  numero  de  reserva,  que  pelos 
habitantes  do  município  lhe  são  fornecidos,  se  assim 
é  preciso,  por  escala.  Se  os  cavallos  do  homem  da 
posta  já  estão  a  caminho,  quando  se  chega  ao  logar 
da  muda,  é  necessário  expedir  um  rapaz  á  procura 
dos  cavallos  de  reserva,  que  ás  vezes  pastam  a  duas 
ou  três  léguas  d'alli :  imagine-se  que  paciência  é  pre- 
ciso ter  com  tal  sjstema,  por  pouca  pressa  que  haja 
de  chegar  ao  termo  da  jornada.  Ha,  é  verdade,  ura 
meio  de  abbrcviar  estas  demoras;  isto  é,  mandar 
adiante  um  mensageiro,  queencommende  <is cavallos 
para  hora  certa',  mas  note-se  que  os  cavallos  não  es- 
peram na  estação  mais  de  duas  horas  além  d^aquella 
que  se  fixou  \  depois  d'este  prazo  o  homem  da  posta 
pode  manda-los  outra  vez  para  o  campo,  e  o  viajan- 
te, que  teve  no  seu  transito  alguma  demora  inespe- 
rada, ha  de  pagar  o  recado,  e  uma  indemnisação  pe- 
las duas  horas  que  («  cavallos  alli  estiveram  para- 
dos, e,  em  cima  de  tudo  isto,  ha  de  esperar  que  tor- 
nem a  ir  buscar-lhe  os  mesmos  cavallos.  Porém  a  ta- 
xa da  posta  é  tão  módica,  que  em  verdade  não  se  pei- 
de exigir  portal  preço  ser»  iço  mais  activo,  c  ao  men- 
sageiro dá-se  uma  bagatella  •,  é  um  rapaz  ou  ás  vezes 
niua  rapariga,  que  parte  com  toda  u  gravidade  levan- 
do unia  fatia  de  pão  n^algiLelra,  para  cantinhar  as 
suas  oito  ou  dez  léguas,  quer  ã  thnva,  quer  á  neve, 
de  dia  ou  de  noite;  c  que,  se  na  estação  lho  retri- 
buem com  meia  dúzia  de  soldos,  se  inclina  até  o 
chão,  e  agradece  do  intimo  d'ulma.  Bem  se  vê  c|ue 
<i  serviço  da»  postas  não  é,  como  em  França,  rendo- 
so e  invejável ;  e  uma  espécie  decontribuição  de  que 
nenhum  caníponez  pode  isentar-se,  e  fácil  será  com- 
prehender  que  não  se  põe  muita  pressa  e  zelo  em 
praetica-lo.  —  Não  devo  passjir  em  silencio  que  na 
Suécia  os  campunczes  tomam  parle  directa  na  logis- 
liição  <lo  estado;  lia  rústico,  »|Ue  se  vos  appresenta 
tom  sua  calça  de  brim  grosso  e  cru,  c  \ estia  aiul, 
conduziíidu  os  cavallos  que  vos  hão  de  transportar 
até  a  outra  estação  visinhn,  que  pôde  muito  bem  ser 
um  honrado  membro  da  ditla,  um  ropreícntantc  da 


classe  doacamponezes,  eleito  unanimemente  pormui- 
tos  concelhos;  e  que  algumas  vezes  com  seus  discurso', 
dictados  pelo  conhecimento  practico  das  cousas,  e  pe- 
la recta  razão  natural,  vence  as  mais  elegantes  falias 
dos  deputados  pela  nobreza  e  pelo  clero. 

O  povo  sueco,  com  o  orgulho  hereditário,  conser- 
vou tatnbem  as  virtudes  de  seus  antepassados  :  é  va- 
lente e  leal,  cumpridor  da  sua  palavra,  hospitaleiro, 
e  de  austera  probidade.  Vivi  mais  de  dois  annos  r;i 
Suécia  ;  atravessei,  só  com  o  postilhão,  llorestas  d." 
duzentas  léguas,  passei  noites  em  casas  remotíssimas 
de  povoado,  e  nunca  fui  victima  da  menor  falsidad». 
(riue  differença  da  Rússia,  onde  mal  entrava  n'uma 
hospedaria,  o  dono  da  casa  vinha  logoreccmmendar- 
me  que  fechasse  armário  e  commoda  com  volta  do- 
brada, e  que  não  saísse  do  quarto  sem  deixar  cadea- 
do na  fechadura,  declarando  que,  mismo  com  todas 
estas  precauções,  não  estava  inteiramente  seguro  de 
não  ser  roubado  ! 

Outra  caracterisfica  do  povo  sueco  é  o  sentimento 
poético,  innato,  e  que  se  revela  a  todo  o  momento 
nas  suas  festas  e  ajunctamentos,  e  até  ás  vezes  nas 
practicas  quotidianas.  Não  ha  uma  só  familia  em 
Suécia  que  não  conserve,  como  preciosa  herança,  cau- 
tos populares,  tradições  misteriosas,  que  patenteam 
imaginação  pura,  e  uma  certa  adoração  dasbellezas. 
harmonias,  e  phenomenos  da  natureza.  E  a  tradição 
dos  génios  que,  á  noite  ao  luar  dançam  nas  campi- 
nas, dos  que  cantam  á  tlôr  d"agua.  dos  que  fazem  vi- 
brar as  chordas  melodiosas  de  suas  harpas  argêntea» 
nas  cataractas  e  fontes;  de  uns  que  deitam  sorte  fu 
nesta  sobre  homens  e  animaes,  ou  de  outros  que  fol- 
gam de  estar  juncto  aos  lares  caseiros,  e  protegem  a 
casa  onde  buscam  abrigo  na  estação  invernosa. 

Todos  os  camponezes  da  Suécia  sabem  pelo  menos 
ler,  e  quasi  todos  escrever:  o  ministro  não  admitti- 
ria  ao  sacramento  da  chrisma   os  que  não  podessetn 
dar  prova  d'estes  conhecimentos  elementares  ;  e  uma 
razão  imperiosa  a  que  todos  se  sujeitam.  Nas  habita- 
ções solitárias,   onde  não   pude   haver  professor  ctun 
eschola,  os  pais  são  os  mestres  dos  filhos  ;  e  o  pastor 
de  tempo   a  tempo,   vem   ccrlificar-se  se  elles  cura 
prem  o  seu  dever,  auxilia-los  com  eshortações  e  con- 
selhos, c  averiguar  os  progressos  dos  discípulos.  Não 
creio  que  haja  casa  de  lavrador,  por  mais  pobre  que 
seja,  onde  se  não  achem  alguns  livros,  ao  menos  uraa 
Bíblia,  o  psalterio,  e  ás  vezes  obras  d"historia.  prin- 
cipalmente u  dopaiz,  tão  heróica  chella,  e  que  é  re- 
lida  nos   longos  serões  de  cada  inverno     E  fácil  de 
conceber  a  inlluencia  que  semelhantes  leituras  devem 
ler  no  animo  de  um  povo  intelligeiite  por  natureza: 
a  Bíblia  lhe  dá  elevação   d'espirito;    e  as  chronicas 
nacionaes  mantém   o  nobre  sentimento  de  p.itriofi»- 
mo.   Qttanlos  homens  ha  cm  França,  tjut  ntmsff/uer 
ptln  nome  conhecem  os  homens  mais  illtutris.  oijíitvs 
mais  ijloriosos  lie  nossos  annacs.  ao  passo  que  na  Sué- 
cia taltez   não    haja   um   rústico   que  ignore   a  vida 
grandiosa  de  Gustavo  Vasa,  as  emprezas  de  (íustavo 
.-Vdolpho,   e   a  coragem   aventureira   de  Carlos  1;2  " 
Ainda  mais  :  —  não  é  raro  encontrar  nos  c,impt«  tr.i 
balhadores  que,  ouvindo  pronunciar  o  nome  do  vii 
cedor  de  Narva,    tiram   o   barrete   por  impulso   ii.- 
tinctivo;  tão  fundas  raízes  temem  seu  cur«çãnor<'- 
peito  á gloria  militar,   que  foi  a  primeira  |;loria  >■•.■ 
sua  nação. — 

A.NTIGOS    omclAES     MIlIT*BC^ 

o  Mail. 

Desde  o  principio  da  monarchia  se  encontr-i  lif 
qucnlemente  citado,  como  importante  no;  excrciti 


o    PAJNORAMA. 


o  cargu  de  adaíl.  Cliainavam-lhe  zaga,  e  ainda  em 
1700  davam  os  venezianos  esteiiome  ao  mesire  de  ce- 
renionias  que  precede  a  todos.  O  foral  de  Tliomar, 
(ielUb^,  iallaniio  das  correrias  da  fronteira,  diz  :  u  Da 
presa  de  fossado  não  sede  ao  zaga  mais  que  duas  par- 
tes, licando  aos  moradores  do  conceliio  as  outras  duas.  " 
O  officio  do  adail  era  na  realidade  delicado  e  es- 
pinhoso. D.  Aflonso  o  Sábio,  na  lei  das  Sete  Parti- 
das, descreve  com  miudeza  as  suas  obrigações,  e  in- 
siste nas  qualidades  que  os  deviam  rccommendar.  Era 
o  zaga  ou  adail  quenj  governava  os  almocadens  e  os 
alniogavares.  (iuando  pela  calada  da  noite  as  caval- 
j;adas  se  torciam  pelas  queliradas  da  montanha  para 
amanhecer  sobre  a  coroa  eminente  do  caslello  roquei- 
ro, um  homem  havia,  em  cujas  mãos  se  pesava  a  sor- 
tecommum.  Lá  ia  na  test.i  dos  almogavares,  que  ora 
cornam  á  direita,  ora  exploravam  á  esquerda,  ba- 
tendo as  encostas  ebalseiras.  Seelle  se  enganasse,  se 
trocasse  os  caminhos,  um  golpe  d'ininiigos  podia  res- 
ponder á  surpresa  pela  surpresa.  Se  fosse  mal  infor- 
mado dos  movimentos  dos  árabes,  em  quanto  silen- 
cioso» te  mettiam  pela  fronteira  moura,  podiam  ou- 
vir (ie  longo  e  pelas  costas  o  grito  d'Allah  !  mistu- 
rar-se  com  os  gemidos  dos  filhos  e  das  esposas,  o  ver 
o  foa'!)  do  incêndio  ateado  nas  casas  c  herdades  d'on- 
de  tinham  partido.  E  que  diante  do  adail  chrislão 
estava  sempre  o  adail  dos  árabes,  velando  nas  trevas. 
Na  lealdade  dos  udaís  repousava  a  segurança  dos  for- 
tes—  se  o  coração  lhe  desmaiava,  ou  a  vista  tremia 
diante  do  perigo-,  se  a  setla,  voando  do  pinhal,  lhe 
varasse  o  peito,  quem  diria:  —  uaquella  estrada  leva 
á  mina  ;  «'esta  está  a  salvação  ?  " 

De  origem  sarracena,  como  o  indica  o  próprio  no- 
me, o  adail,  nas  guerras  de  recontros  e  emboscadas, 
de  surpresas  e  correrias,  continuadas  quasi  sem  tré- 
gua da  fronleira  moura  pari!  o  concelho  chrislão,  era, 
jMir  assim  dizer,  o  homem  do  destino.  Em  quanto 
tudo  dormia  ve-lo-hieis,  disfarçado  no  albornoz  mou- 
risco, montado  no  lÍ!;<iro  andaluz  ccmi  sella  e  estri- 
bos á  airicana,  só,  mudo,  e  firme,  atravessar  as  vei- 
f^aa  onde  susurra  a  aragem  nocturna,  ocorrer,  e cor- 
rer, aqui  transpondo  a  ribeira  que  se  arremessa  do 
alto,  alli,  furfande-se  nas  trevas  ao  encontro  dos  al- 
mogavarcí  árabes,  cujo  galopim  sAa  na  solidão  :,  mais 
longe,  susiendo  a  rédea  e  repi  iinindo  o  respir.ir  junc- 
to  do  tronco  tio  roble,  em  (|uanto  a  roída  do  mouro 
segue  lenta  e  pausada.  Vo-lo-hieis  solTrcndoa  tormen- 
ta giiianilo-se  pelo  clarão  dos  relâmpagos,  padecendo 
«frio  V.  a  fome,  estudar  atalhos,  medir  veredas,  com- 
binar a  marcha  occulla  por  gargantas  de  serros  bra- 
vio», por  cima  das  agulhas  dos  mais  temerosos  despe- 
nhadeiros. E  dias  depois,  á  mcania  hora,  com  o  mes- 
mo recato,  voltar  ao  caslello  de  Coimbra  ou  deTlio- 
inar,  edizer  aoalcaide: — u  O  mouro  dorme  sem  re- 
ceio :  quereis  acorda-lo?  O  caminho  é  perigoso  mas 
breve  i  amaidiã,  se  Deus  no»  ajudar,  Jjeiria  será  d'el- 
rei,  e  a  cruz  de  Chrislo  vencerá  mais  uma  vez  as  luas 
do  pro|)hcta.  >' — E  vencia  (piasi  sempre! 

Eis  nipil  o  quo  era  o  adail.  Um  instante  de  des- 
cuido—  um  relancear  da  vista  menos  pcni^trante  — 
uma  traição  fácil  —  c  o»  cavalliMros  esforçados,  quasi 
lios  braços  da  vietoria,  caíam  ucni  remédio  diante  da 
lunça  do  surraceno. 

Com  o  nomií  ile  adail  ajipareeo  já  este  officio  no 
tempo  dei).  João  i,  edin-ou  aléau  dei).  Joãolll, 
A»  chronica»  da  guerra  d' A  bica,  <>  mais  bello  e  ca- 
valleiroso  episodio  ila  nossa  liialoria,  em  muitos  lo- 
cares encarecem  a  importância  do  cargo,  e  piíiUiiil  o 
caracter  ilo  alguns  que  o  exerceram. 

Vejamos  ngora  de  (|iu!  maneira  nos  exércitos  se  fa- 
zia um  adail.  A  nolicii  das  cereinonias  é  tirada  di^ 
um  livro  lio  século  XIII,  eachu-sc  tunibcni  quasi  pe- 


lo mesmo  tbeor  na  segunda  Partida  de  Aflonso  o 
Sábio. 

Era  costume  antigo  ser  o  adail  levantado  pelomo- 
narcha,  ou  pelo  rico  homem  que  d"elle  tinha  ienen- 
ciii  da  terra.  Cbamavam-se  doze  adaís  dos  mais  ex- 
perimentados, e  tomava-se-lhes  juramento  por  Deus, 
pelo  rei,  e  pelas  cruzes  da  espada,  de  só  dizerem  a 
verdade  cm  consciência.  Se  não  houvesse  numero  suf- 
ficienle  de  adaís,  convidavam-se  tantos  soldados  ve- 
lhos e  sabedores,  quantos  fossem  necessários  para  com- 
pletar a  numero  dos  doze. 

E  então  em  presença  de  todos  era  perguntado  o 
pretendente  sobre  os  quatro  pontos  seguintes:  nCo- 
nheces  u  terra,  os  atalhos,  as  veredas,  para  guiar  as 
correrias,  e  as  defenderes  dos  assaltos  e  surpresas  .*  Por 
tal  sitio,  se  te  mandarem,  aondecorre  a  fonte?  aon- 
de se  corta  a  lenha  para  a  fogueira  do  arraial  ?  Em 
que  logares  porias  asatalaias  docampo?  aonde  farias 
o  assento  d'plle  ?  por  onde  enviarás  osesculcas  ealmo- 
gavares  ?  n 

"  Como  proverias  ao  sustento  do  cavalleiros  e  peões  ? 
Glue  vianda  podem  levar,  e  para  quantos  dias.''> 

li  Es  esforçado  de  coração?  Irás  de  noite  vèr  o  ata- 
lho, espreitar  no  meio  do  mouro  que  dorme,  cruzar 
por  entre  os  atalaias  ealmogavares  que  escutam?  Se 
te  pozerem  a  lança  no  gorgel  trahirás  o  segredo  de 
uma  entrada?  Se  te  encerrarem  n^uma  masmorra  sem 
luz,  com  agua  pelos  peitos,  venderás  a  segurança  de 
teus  irmãos?  Se  te  atarem  ao  pescoço  o  nó  da  corda, 
bradarás  mercê  descobrindo  a  cidade  ?  " 

"Es  leal?  por  peita  de  ouro,  ou  decavallo,  de  vac- 
ca,  ou  de  mulher  entregarás  ocastello  ao  infiel,  a  es- 
pada ao  cavalleiro,  e  a  cavalgada  ao  alcaide  delNIa- 
foma  ? " 

Depois  de  ouvida  a  resposta,  se  o  testimunho  dos 
antigos  lhe  era  favorável,  juravam  sobre  sua  alma 
"Seja  este  feito  adail»,  e  honravam-no  do  modo  se- 
guinte, t)  que  o  devialevantar  dava  lhe  vestido,  es- 
pada, cavallo,  c  armas  de  fuste  e  de  ferro  ao  uso  da 
terra.  Um  rico  homem  cingia-lhe  a  adaga,  mas  sem 
a  peseoçada  de  prancha,  que  só  competia  aos  caval- 
leiros.  Depois  de  cingida  a  espada  punha-se  no  chão 
um  escudo  chato,  com  as  costas  para  fora,  e  alli  se 
eollocava  de  pé  o  novo  adail.  t)  rei  ou  osenhorque 
o  investia  no  cargo  desembainhava-lhe  a  espada,  e 
dava-lira  nua  pela  ponta,  para  ello  a  ter  direita  co- 
mo esto(|ue.  Osduze,  (jue juraram  por  ello,  crguiam- 
n'o  então  no  escudo  á  maior  altura  dos  braços  i  pri- 
meiro voltado  ao  oriente,  e  ello  com  a  espada  fazia 
uma  cruz  no  ar,  dizendo;  "  Em  nome  de  Deus,  d'el- 
rci,  edesta  terra  desafio  a  lodos  os  inimigos  da  fé!» 
Depois  iam-iro  voltando  ás  outras  trcs  partes  do  mun- 
do, e  elle  sempre  repetindo  o  mesmo.  Apenasdescia 
do  escudo  embainhava  a  espada,  e  o  rei  ou  o  rico 
homem  punlui-lhc  na  mão  um  signal,  dizendo:  "Em 
noiíKí  do  rei  concedu-le  de  hoje  rm  diante  o  officio 
de  adail  \  poderás  ter  cavallo  u  armas  ^  nssenfar-leá 
mesa  dos  cavalleiros ;  e  quem  Ie  olVonder  será  cas- 
tigado por  honra  dV'lrci,  como  eo  tivesses  foro  de 
('.ivalleiro  !  "  Depois  de  feito  adail,  e  honrado  as- 
sim podia  governar  os  homens  do  concelho,  o  os  eu- 
v.illeiros,  dando  vozes  de  commando,  e  punir  de  va- 
ras os  almogavarcs  opções,  sogundo  merecessem,  mas 
dl-  lórimi  (|ue  os  não  tolhesse  de  algum  membro. 

Eiii  siibsi'(|tienlea  artigos  se  descreverão  outras co- 
remonias  militares  da  meia  idade,  próprias  paru  se 
conliCL-erani  os  uustumus  dus  séculos  antip;o9. 


t)  siídiíuno  é  a  alma  das  grandes  nmprctas.  Um  un- 
ligii  escrevia   na  cinza   u  minuta  dos  seus  projectos 
supruvii,  c  dcsuppurcciu  o  luciiut  ve^tigiu. 


4f< 


O  PAIVORA3IA. 


Da  sobte  dos  SIBSISOS  KAS  M  15AS 

DE   laaLATZIÍfíA. 


(Continuado  de  pag.   39.) 


I  tovello,  havia  muito  tempo,  segundo  parecia.  Q.aaD- 
I  do  esle  desgraçado  pequeno  foi  á  presença  dosmagis- 
I  trados  não  podia  ter-ie  eoi  pé  nem  estar  sentado; 
I  não  hou\e  remédio  senão  deital-o  no  chão  sobre  uma 
'  espécie  de  berço.  Provou-se  na  de%assa  que  lhe  ti- 
A  HEaiiEN-i  altura  das  camadas  de  carvão  em  mui-  ;  nham  quebrado  o  braço  com  uma  barra  de  ferro,  e 
tos  logares,  e  por  conseguinte  a  pouca  elevação  das  !  que  nunca  Ih^o  encanaram,  antes  por  espaço  de  mui- 
Calerias,  é  cauéa  d'e5te  abuso.  Uma  comiiiissão  de  tas  semanas  o  forçaram  a  trabalhar  com  o  braço  par- 
inquerilo  verificou  que  em  muitas  minas  teem  as  tido.  Provou-se  mais,  por  confissão  do  mestre,  que 
galerias  dois  e  meio  até  três  palmos  e  meio  d^alfu-  este  cortumava  dar-lhe  com  um  pedaço  de  páu,  que 
ra,  e  que  em  certos  logares  não  passam  de  dois  pai-  tinha  na  ponta  um  prego  de  muitas  pollegadas  de 
mus.  No  Dcrbvsliire.  om  que  a  maior  parte  das  comprimento.  O  raj)az  pasmava  fumes,  como  atlesta- 
camadas  não  excedem  a  der,  palmos  de  espessura,  tem-  ,  va  a  sua  extrema  magreta  i  o  mestre  empregava-o 
>e  empregado  rapares  em  todos  os  trabalhos  da  lavra  em  puxar  carros,  e,  depois  de  o  inutilisar  para  o 
das  minas  :  os  mais  velhos  exlrahem  o  ca r>ão  deita-  '  trabalho,  mandou-o  de  presente  á  mãe.  que  era  uma 
«los  de  costas,  iiasposluras  mais  penosa».  Outro  tan-     pobre  viuva." 

to  acontece  om  Halifax,  onde  as  camadas  não  toem  A  condição  das  mulheres  eraparigas  ainda  é  mais 
em  muitos  logares  mais  do  que  dois  palmos  e  meio  deplorável.  As  rapariguínhas  são  empreitadas  nos 
(termo  médio),  e  n'oulras  ainda  menos  de  dois  pai-  mc-nios  trabalhos  que  os  rapazes:  assim  como  elles. 
mos.  Na  parte  oriental  d.i  Escócia  começam  os  me-  empurram  ou  puxam  carros;  mas  sujeitam-n  as.  e 
iiinos  aextr;;liir  o  carvão  aosdoze  aniios  deidade,  e  ás  mulheres  também,  a  tarefas  oue  os  operários  do 
no  principado  de  Galles  aos  sete.  De  mais  a  mais,  outro  sexo  em  nenhuma  edade  acceitam.  Km  muitas 
ii"algumas  dVstasminas  é  muito  imperfeita  a  \enti-  minas  da  Escócia,  que  não  teem  machinas  para  tra- 
lação,  e  olhe-ie  tão  pouco  para  oe«gotameiito,  que  os  zer  o  carvão  á  superfície  da  terra,  as  mulheres  eme- 
inineiros  trabalham  todo  o  dia  com  os  pés  no  lodoe  ninas  o  carregam  ás  costas  em  cestos  por  toscas  esca- 
atc  dentro  d'agua.  Accrescente-se  a  isto.  que  nos  darias  ouescadasde  mão.  Andam  tão  nuas,  que  não 
logares  mais  doentios  é  que  empregam  meninos  de  seatreviam  avir  á  presença  dos  coinmissarios  encar- 
mais  tenros  annos,  preferindo  as  rapariguínhas.  trepados  pelo  governo  do  inquérito.  A  decrepidez  al- 

A  maior  parte  dos  mineiros  de  ambos  ossexosem-  cança  toda  esta  gente  com  espantosa  velocidade.  <J 
pregados  nas  minas  de  carvão  pertencem  a  famílias  ,  mineiro  aos  quarenta  ou  cincoenta  annos  eita  inça- 
dos próprios  mineiro»,  ou  a  gente  pobre  que  mora  pai  de  trabalhar,  parecendo  tão  quebrado  de  for- 
nas  visinhanças.  Estes,  com  o  fructo  do  seu  traba-  !  ças  que  nem  um  vellio  de  oitenta  annos.  Os  homens 
lho,  ajudam  a  viver  seus  pães,  e  sempre  d'al)i  Ihesre-  I  de  setenta  annos  que  se  contam  entre  os  operário»  das 
sulta  proveito  ,  mas  ha  districlosem  que  certo  nume-  i  minas  são  menos  de  metade  dos  que  pertencem  á 
ro  d'estas  desgraçadas  creaturas  consomem,  sem  lucro  1  classe  dos  lavradores;  e  nos  seus  costumes  parece  que 
algum,  a  flor  da  mocidade  namaisdura  escravidão.  !a  dureza  dos  trabalhos  imprime  um  caracter  rude  e 


Tal  é  a  sorte  de  muitos  orphãos  de  queas  parochias, 
a  cujo  cargo  os  poz  a  indigência,  se  livram  entre- 
gando-os  para  aprendizes  aos  mestres  mineiros,  que, 
c»mo  nos  trabalhos  das  minas  não  ha  que  aprender, 
Ih-s  \ão  ficando  comas  ferias  até  elles  chegarem  á 
edade  de  vinte  e  um  annos,  occurrendo  apenas  ás 
módicas  despezas  de  vestuário  e  sustento.  Fora  dif- 
ticil   imaginar    o  que    os    malaventurados    padecem 


Lm  d"estes  apreijdir.es  narrava 
a  historia  da  sua  negra  vida 


brutal,  que  chega  muitas  veies  a  ser  feroi. 

Os  effeitos  do  trabalho  excessivo  e  prematuro  dos 
meninos,  em  classe  alguma  são  mais  nocivos  ao  phy- 
sico  eao  moral  do  que  na  que  vive  da  lavra  das  mi- 
nas de  carvão  de  pedra.  Os  factos  esta\am  paten- 
tes, e  a  Inglaterra  não  podia  demorar  a  repressão 
dos  abu!o«  e  crueldades  apontadas  nos  relatórios  dos 
commissarios,  e  por  isso  uma  lei  votada  em  1642  pro- 


iios  seguintes  lermos  I  hibiu  o  trabalho  das  mulheres  nas  minas  ;  determinou 


ao  commissario  que  o  '  que  os  meninos  d"alli  em  deaute  entrassem  para  el- 
iiiqiiirira  :  u  Não  sei  a  edade  que  tenho  ;  morreram-  I  las  aos  dei  annos,  e  saíssem  aos  quinze,  não  podendo 
me  pae  e  mãe,  ha  quanto  tempo  não  posso  diielo.  j  trabalhar  mais  do  que  três  dias  por  semana  ;  e  sujei- 
O  meu  mestre  tinha-se  obrigado  adar-me  de  comer  !  tou  asexplorações  subterrâneas  eai  todo  oreino-uni- 
e  de  vestir;  duva-me  uns  farrapos  comprados  aos  do  á  vigilância  do»  inspectores  das  manufacturas. 
trapeiros,  e  a  comida  nãochegava  para  matar-me  a  'criados  por  uma  lei  de  lSo3. 
í«me.    Lar^uei-o  pori|ue  me  maltratava  ;    bateu-me  . 


BmrUAS  os  esvingahda  im.ml  «mmav  eis. 

As  DESGRAÇAS  que  acontecem  muitas  veies  por  ca.- 
uma  bucha  sobre  matérias  combustíveis,  fiíeram  com 


duas  veies  com  uma  picareta."  ^Ao  ouvir  isto,  dii 
o  conm.íssario,  mamiei  despir  o  rapar,  e  lhe  >í  no 
peito  uma  larga  cicatriz  de  ferida  feita  con>  instru- 
mentocortante  ;  tinha  também  pelo  corpo  todo  mais 
de  \inle  feridas,  qne  recebera  aempurrar  os  carros  pe- 
las galerias  baixas.)  li  O  meu  mestre  t  sp.incava-me  que  Mr.  liassaigne  applicasse  o  phospato  de  ammo 
tantas  veies,  e  dava-me  tão  máu  tractamento,  que  '.  nia  á  fabricação  de  buchas  ininfl«mm.T\eís.  O  nie- 
re-iil\í  deixal-o,  a  vêr  se  melhorava  de  condição.  1  thotlo  pelo  qual  transforma  o  papel  de  que  se  falem 
Muito  tempo  dormi  dentro  de  pt>ços  abandonados,  as  buchas  em  papel  inintlamniavel,  e  simples:  cot: 
tiu  nas  cabanas  que  estão  ú  beira  dos  poços  expio-  j  siste  em  dissolver  uma  parte  de  ph>»phato  de  amm  • 
fados,  sem  comer  mais  do  que  os  ioti's  das  vellas  nia  crislalisado  em  dei  partes  d'agna  doJ^io,  e  em 
de  cebo  que  os  operários  |)or  alli  deixavam.  "  conservar  mergulhado  o  papel  n"este  liquido  tre»  ou 

Oseguinte  facto,  escolhido  d'entre  outro»  muitos,  '  quatro  minuto».  Tira-se  depois,  aperta-»e  na»  mãos.  e 
piiila  mui  bem  a  brutalidade  e  fereia  dos  mineiros.  ,  fai-se  seccar  ao  sol,  nu  em  estufa.  O  p-ip^l.  n"esta 
i'Le\aram  um  rapai  ao  doutor  Milner,  medico  em  [operação,  ganha  mai»  uma  vigésima  parte  do  seu  pe. 
Ri>c!.dale,  no  Iiancabhire.  Exaniinaiiil.)  o.  achou-lhe  to,  porque  absorve  certa  quantidade  de  phosphato  de 
no  corpo  vinte  eseis  ferid.is ;  o  lombo  e  a  parte  p<i5-  leal.  que  o  não  deixa  arder.  Das  experiências  feitas 
lerior  docorpoera  umachaja,  na  c.ibeç.i,  despotoa-  ^  com  estas  buchas  n'uma  espincard.i  de  caça  resulta, 
da  decabelln».  \iam-<p'lh<'  O"  «ignaes  dx  muita»  feri-  que  ellas.  ao  «.tirem  da  «rmã.  caem  no  chão  »eni 
d.is  gra\eí,  tinha  uni  hrcço  partido  nor  baixo  doco-     se  incndiTrem. 


o  PANORAMA. 


49'. 


o  pontífice  fio  IX. 


C-luANUi»  a  voz  Hos  sino»,  fçííinondo  om  lliiiiia,  .iiiiuin- 
ciou  ú  Itália  a  <jr|iliaii(l.iil('  <ia  cidailc  dos  ccsaros  t' 
ii  du  iiiiirido  Hirislão,  |iiMii^lriiit  ciii  todos  us  uiiiinos 
a  mais  prol'iiii<la  iindanrliolia.  O  cortejo  fuiioijre  do 
papa,  ipic  ia  di'SiMii(;i'ii'  ao  lado  de  (Jrc;;()rio  \'1I  edo 
lilliocrii<'io  II],  al^.lVl'^sallllo  peio  meio  «las  iiiultiducs, 
avivou  a  iiifinoria  das  ililTn  iildadcs  (juc  (inlia  do  su- 
jeitar o  siictcssor  a  (pii'm  roulwsst-  ri'<'clK'r  as  chaves 
do  Apostolo.  Todos  sciiliaiu  (|1|ií  oiii  tacs  circunislan- 
fius  o  lioinciii  d(slina<lo  a  oi'i'upar  a  radciía  de  S. 
1'edro  podia  perder  ou  salvar  a  it;riju  eiuii  uma  pa- 
lavra. 

No  domiu;;ii  de  juulio,  ipie  preei^deu  o  eonelave,  o 
céu  i.-slavu  col)erl(P,  easnuviMis,  dcsenrolaudo-si!  soui- 
briuN,  pareciam  pesar  siihre  o  cora(;ão  da  Ilalia.  Ao 
vutrurciii  os  cardeae»  para  a  eh.deão  relienloii  o  tcui- 
porul,  t!  o»  rouiani>s,  ainda  superslieiosos,  tiraram  do 
acuso  os  mais  Irisles  agouros,  (,'iueoenta  eardeaesiauí 
fucerrar-se  para  elej^er  o  calx-iju  da  if^reja,  e  o  voto, 
»^U(;  llie  devia  firmar  a  tiara  na  fronte,  por  (oti^h  ti- 
iilm  lie  reunir  duas  leri;aH  partes  e  mais  mu  ilos  ns- 
nutuiitcs.  Os  cardeacH  nio(;os,  tjuasi  estruulios  UIW  «01 
VoL.   1. — OuTUUitu    17,    IU46, 


outros,  iieí^avam-se  a  aceeitar  direcção  ou  conselho. 
Apontavani-se  nouies  dilVerentes.  re\olviam-sc  aml)i- 
(;òes  incpiietas;  a  diplomacia  hutava  ás  portas  do  sa- 
cro colle^io,  <lividido  em  IVaceòes,  e  entretanto  as 
conjecturas  de  lora  aniniavam-se  ou  esmoreciam  íe- 
u,ui»lo  se  li;j;uravam  nudlior  ou  peior  as  prol>,ibiLida- 
des  <los  diversos  concorrentes. 

Numa  a  incerle/.a  foi  maior,  nunca  o  interre2,uo 
anuMçou  de  Ião  proloni:;ada  ai;onia  os  ijraudes  inte- 
resses penileutes  da  eleição  do  sunimo  pontifica;.  K 
por  isso  (pie,  no  cíuicurso  apiíduulo  para  assistir  áso- 
ieiune  abertura  do  conclave,  a  tristeza  carregava  .!■• 
sombras  o  rosto  de  todos.  Vozes  sullocadas  repetiam 
(pie  a  i^roja  s(!  conservaria  lari^o  temiio  viu\a.  Vi\* 
lallavam  da  tempestade  qiu"  ia  estalar  no  sacro  ool- 
lej^io  ;  outros,  escutando  ao  loni;e,  já  presentiam  as 
passadas  darebellião  accesa  em  toda  a  Itália.  \tv  viíc. 
em  ipiando  o  galope  dos  cavidlos  soava  a  distancia,  «^ 
calavani-S(!  as  conversa(;('>es  em  lodos  os  sítios.  O  cit- 
valleiro,  passando  rápido,  deixava  atra«  de  si  loiígi» 
e  ciudVaniçido  silencio.  —  Krani  oscorreios  (l'.\ustriu  ; 
crum   oa  avisos  das  cortes  de  Ituli.i  \   crum  cmtim  os 


50 


O  PANORAMA. 


mensageiros  das  legações  romanas,  que  se  cruzavam 
na  estrada,  e  chegando  a  Roma  vinham  augmentar 
a  perplexidade  da  crise. 

A  Europa,  vista  pela  superficie,  parecia  espectado- 
ra pacilica  do  grande  drama  representado  nas  visi- 
nhanças  do  OLuirinal.  A  guerra  não  troava  —  o  laço 
da  concórdia  unia  a  França  á  Inglaterra,  e  a  insur- 
reição como  que  adormecera.  Mas  um  dia  depois,  se 
o  papa  eleito  trahisse  as  esperanças  do  maior  nume- 
ro, quem  ignora  (usando  de  uma  imagem  tirada  do 
antigo  Lacio)  que  oTitão  encadeado,  exacerbadas  as 
dores,  se  havia  de  virar  de  lado,  sacudindo  com  a 
possante  espádua  ovolcão  da  Sicília?  A  Itália,  reven- 
do a  desgraça  actual  no  espelho  de  um  passado  glo- 
rioso, allumiada  pelo  sol  que  infundiu  o  raio  d^amor 
na  alma  de  Rafael,  e  acccndeu  a  faisca  de  Prome- 
theu  no  peito  de  Miguel  Angelo,  não  esqueceu  ainda, 
que  também  a  representam  encostada  ás  fasccs  con- 
sulares ou  á  lança  de  Attila.  O  céu  meigo  e  as  es- 
trellas  d'ouro,  que  ouviram  suspirar  o  Tasso,  os  jar- 
dins e  .as  rosas,  entre  as  quaes  sorriram  os  amores  do 
Ariosto,  também  virara  arder  as  çarças,  d'onde  o 
Dante  se  levantou,  trazendo  na  mão,  sacerdote  epro- 
pheta,  a  divina  ctimeilin,  tábua  do  ferro  escripta  com 
sangue  pelo  dedo  da  discórdia  civil. 

A  Itália  é  terna  e  suave,  mas  é  perigosa,  sobretu- 
do nos  instantes  de  cholera.  Já  se  viu  rainha,  ha  de 
custar-lhe  a  ser  escrava.  Quando  as  mus;is  desterra- 
das da  Grécia,  tomando  pela  mão  a  lilicrdade  d'A- 
thenas,  vieram  naturalisar-se  nos  campos  do  Tibre, 
acharam  pais,  irmãs,  e  família  no  solo  fecundo  aon- 
de César  caiu,  e  Virgílio  cantou.  A  Itália,  costuma- 
da a  ser  a  primeira  nas  idéas  e  no  gosto,  não  podia 
mais  tempo  resignar-se  a  vêr  caminhar  tixlos  os  po- 
Tos,  e  ella  permanecer  atada  á  columna  •,  não  queria 
ouvir  exclamar  acivilis.ição  "adiante  !  ••>  e  como  cap- 
tiva  ficar  pisada  pelas  rodas  do  carro  que  cm  melho- 
res dias  dirigira  !  A  intensidade  dos  seus  infortúnios 
podia  te-ia  quebrantado,  mas  o  enthusiasmo  não 
morre  senão  com  a  nacionalidade  ^  eosa,  viva  na  al- 
ma e  no  coração  de  todos,  reina  dos  Alpes  ao  Aveu- 
tino. 

Por  isso  o  silencio  que,  juncto  ao  leito  de  morte 
de  um  papa,  gelou  a  voz  e  o  chOro  da  Roma,  e 
das  legações,  c  aquella  multidão  apinhada  ao  limiar 
do  sacro  collegio  não  indicavam  aos  olhos  dos  reflec- 
tidos senão  a  pausa  que  precede  ura  instante  as  gran- 
des batalhas.  Se  ao  cair  o  muro  erguido  á  pressa  á 
entrada  do  conclave,  saísse  coroado  um  papa  que  lhe 
cortasse  as  derradeiras  illusões,  quem  sabe  se,  levan- 
tando o  terrível  brado  de  Mário,  iriam  ao  capitólio 
desprender  a  espada  de  Marcello,  arremessando  a 
bainha  para  lon^e  ? 

Era  isto  o  que  sonliani  reis  e  povos,  uns  distíncta. 
inilros  confusamente.  Tixlo*  avaliaxani  que  se  estava 
nas  vésperas  do  acontecimento  mais  imp\.>rtante  des- 
te quarto  do  século.  A  cruz  de  Christo,  nas  mãos  de 
iim  apostolo  ptidia  ser  bandeira  de  esperança  e  civi- 
lização, jiodia  salvar  .1  igreja  ea  sm-icdade — nos  bra- 
ços de  um  fanático  con\ertia-so  no  cepo  aomle  o  al- 
•o«  tont.irí,a  deca]>itar  o  progresso,  conseguindo  só 
cortar  o  pulso  a  si.  Da  varanda.  d\)ndc  o  cardeal  ha- 
w,-»  de  nnnunciar  o  novo  papa,  podia  partir  ajKiz  ou 
a  guerra  —  a  es|K-rança  ou  a  discórdia! 

\  reforma  era  necessária,  estava  m.tdura  no  pcn- 
«lunento  c  nos  factos  —  devi.v  operar-so  de  cima  para 
baixo,  ou  romper  armada  do  seio  das  lucta5  civis.  .A 
aitiiação  dos  Esf.ados  ]M>ntíficias  não  se  exaggcra,  di- 
wkhIo  ()ne  era  deplfirai-el .  O  poder  absoluto,  sem  o 
frei»  d;is  conveniências  dvivisticas  deixava  as  rédeas 
(io  governo  soltas  .aos  caprichos  das  potencias  ou  das 
iodividuos.   Us  abusos,   incarnando  em  fúrmas  cadu- 


cas, corroiam  o  corpo  social,  sem  nenhum  dos  vene- 
raveis  anciãos,  que  subiam  á  cadeira  de  S.  Pedro,  ter 
tempo  nem  esforço  para  os  cortar  de  um  golpe.  A 
anarchia  administrativa,  confundindo  todas  as  no- 
ções, invadindo  os  direitos,  c  ameaçando  os  interes- 
ses geraes  e  particulares.  Legislação  incerta  emovd; 
justiça  coniiada  ao  arbítrio^  processos  entregues  í 
preponderância  local ;  a  fazenda  sem  fiscalísação  ;  as 
economias  feitas  pelos  que  lucravam  nos  desperdícios; 
um  sistema  inquisitoríal  comproraettendo  a  religião 
na  cubica  das  cousas  mundanas  —  eis  em  reaumo  aa 
maiores  feridas  de  que  se  padecia. 

Juncto  das  abundantes  culturas  devidas  ao  brajo 
laborioso  de  alguns  lav  radores  estendiam-se  baldios  e 
desertos  arruinados  pelos  vícios  da  má  admiuistração. 
Cidades  activas  e  esclarecidas  gemiam  sob  a  vara  fis- 
cal com  que  a  tvrannia  de  agentes  irresponsaveii  fe- 
ria a  industria.  £  sobre  toda  a  Itália  a  íniluencia  de 
uma  grande  potencia,  eslendeudo-se  n^umas  parte» 
benévola  e  económica,  n'outras  severa  cquasi  inexo- 
rável. 

N^estc  estado  de  decadência  a  que  chegara,  a  igre- 
ja tinha  de  escolher  o  seu  logar  no  século  e  na  ciw- 
lis;ição.  F"ilha  do  amor  edo  sacrificio  podia  levantar- 
se,  como  Christo,  do  sepulchro,  e  larg.indo  o  sudário 
apixl recído  vestir  a  túnica  do  Mestre,  e  fazer  do  Evan- 
gelho o  verbo  da  nova  sociedade.  O  seu  reino,  que  é 
do  futuro,  perde-se  na  hora  em  que  o  esquecer  pelo 
passado.  Levando  alta  c  victoriosa  a  cruz,  opera-se  a 
reforma  mansa  e  suave ;,  abatendo-a,  para  tirar  a  es- 
pada, conipra-se  apreço  de  lagrimas  esangue.  Entre 
os  dois  caminhos  era  cliegado  o  momento  de  marcar 
a  preferencia. 

Homa  e  a  Itália  tinham  razão.  O  novo  papa  ia 
receber  as  chaves  de  S.  Pedro  n^uma  epoclta  dlflicil, 
i  rodeada  de  escolhos.  As  qualidades  que  o  deviam  re- 
(  vestir,  para  desempenhar  a  sua  grande  nii>são,  foram 
sempre  raras,  e espinhosas  de  practicar.  Intelligencia 
elevada  para  abraçar  as  necessidades  do  estado  tem- 
poral; vista  extensa  para  medir  os  verdadeiros  pas- 
sos <lo  progresso  humano;  força  e  prudência  para  con- 
ceder a  paz  oque  cila  deví.i  podir",  áesperança  oque 
se  lhe  podia  prometter.  Carecia  de  animo  para  não 
desfallecer  entre  os  excessos  inveterados  e  o  delírio 
faccioso ;  de  coração  robusto,  que  não  quebrassem 
ameaças,  nem  esmorejessem  suspeitas  ;  finalmente  re- 
quería-se  n''elle  a  virtude  risonha  do  Apostolo,  a  hu- 
mildade do  Precursor,  e  a  firmeza  d'ura  Innocencio 
III.  Todos  conheciam  isto,  todos  o  diziam,  mas  ho- 
mem tal  aonde  o  havia,  ca  existir  quem  lhe  abriria 
caminho  t 

E  entretanto  as  horas  a  succcder-se,  os  obstáculos 
a  cruscer,  u  a  ctmfusão  talvn  que  .assentada  a  mesa. 
do  escrutínio,  acccinJvudo  as  maíure:í  dissidências  nu 
sacro  collegio. 

Passaram  vinte  e  qnatro  horas  n*esía  ag<inia.  Dv 
rep/uto  caiu  a  famosa  muralha,  e  o  carde.d  Hiark» 
Sforza,  camarlengo.  com  voa  sonora  qnc  rt"s<niii  em 
toda  a  praça,  pronum-i.indo  o  -  hahemut  fonti/icetn-'  , 
V  proclamando  papa  o  cardeal  Mastei,  cuDi  o  nome 
de  lho  1\,  mudou  em  jubilo  as  mais  sioistra  ap- 
pruhensòes I 

As  long.os  accl.ima<H>es  de  Homa,  correspondendo  á 
eleição,  indic.anim  que  a  ign>j.a  !;.uihara  uma  grande 
vicloria,  constituindo  a  tiara  em  penhor  das  suspi- 
radas reformas. 

iiue  m;igía  tinh.a  o  nome  dr  um  sacrrdot»  para, 
apenas  lançatlo  das  varandas  ao  povo,  o  faier  chorar 
d"al«»:;ria,  c  abraçar  nas  ruas  os  dooonhecidi»  comn 
irmãos,  á  semelhança  da  aatiga  Roma  depois  de  du- 
vidosa lutalha .' 

K  que^  o  paps  eleito  sigoilicaTa  a  ide';»  generiiif 


o  PANORAMA. 


51 


da  em  toda  a  Itaiia.  A  iRieja  arvorava  a  cruz  de  i 
Christo  como  symbolo  d'esp<Taiiça  para  o  futuro.  A 
rnli^çião,  sorrindo  consoladora  ao  prcsonte,  promettia 
guiar  os  lionieiis  por  entre  os  espinhos  de  uma  civili- 
sação  trabalhosa,  abrarada  com  a  fé,  e  inspirada  pe- 
lo amor.  (Cunlinúa.) 

O  IIadjeb  o£  Kordova. 

(972  a  992) 

(Coolinuado  de  pag.  4i.) 

IV 

Calal-al-noior . 

A»  thombetas  sarracenas  soavam  por  todos  os  an<;u- 
los  do  Andaluz.  Os  cavallciros  berebéres  e  as  hostes 
»larabes  passavam  o  mar,  eviniiam  reunir-se  com  os 
«quadrOes  kordovezes.  Os  kadis,  os  wasires  e  al- 
kuids  proclamavam  por  toda  a  parf  e  a  gazwat,  ou  guer- 
ra sancta,  contra  os  christãos.  D'um  a  outro  extre- 
mo das  Ilospanhas  não  se  ouvia  senão  o  zunir  das 
forjas  apparelhando  as  armas,  cortado  do  grilo  de 
guerra  chamando  aos  combates.  As  planícies  arripia- 
vam-se  de  lanças  t.ão  bastas  como  as  espigas  no  pra- 
do ;  as  fragas  tremiam  com  o  peso  dos  escpiadrões  ■,  e 
no  topo  das  serras  o  estandarti;  dos  cabos  lluetuava, 
•obranceiro  ás  selvas  da  encosta,  desenrolando  nos 
ares  as  suas  brilhantes  insígnias  e  as  suas  cores  es- 
plendidas. 

Deslumbrava  o  aspecto  dos  campos  então.  O  solo 
dcsapp.irecia  debaixo  dos  pés  das  multidões.  Todos  os 
dias  riíbentavam  dos  caminhos  cohortes  sobre  colior- 
tes,  todos  os  dias  rolavam  das  montanhas  torrentes 
dehomens,  impellindo-se,  aperlando-se,  agglomeran- 
do-se  nos  plainos  immensos,  como  os  rios  que  descem 
c  desernlxiccam  no  oceano. 

A  linal  chegou  uma  legião,  mais  numerosa,  mais 
rica,  mais  formosa  e  esplendida  do  fjuo  todas  as  ou- 
tras legiões,  eno  meio  dV-Ila  um  cavalleiro,  mais  fe- 
ro, mais  altivo  e  magnifico  do  <|uc  nenhum  d'a(]U(íl- 
lia  cavallciros.  Á  sua  chegada  Iodas  as  signas  e  ban- 
deiras se  abateram  nos  nKJutes  como  os  cedros  dobra- 
dos pela  mão  da  lornKíula  —  todas  as  laiicjas  e  cimi- 
tarras se  prostraram  nas  planícies  conm  as  cearas  aca- 
madas pi'lo  vento.  Por  onil(;  aípiclle  capitão  jiassava 
liomiMis  e  armas  caíam  .i  seus  pés  beijando  a  terra, 
«  elle,  com  afronto  erguida,  atravessava  por  entre  as 
Úleira.s,  curvas  na  sua  preseu<;a,  dignando-se  apenas 
de  olhar  para  os  milhares  e  milhares  di-  guerreiros 
alli  HMinidos. 

O  .issiunbroso  cabo,  galgandii  .lo  pjncaro  mais  iillo, 
deu  osignal  dap.irliija.  Ao  simples  .iciMio  do  seu  bra- 
ço dobr.irani-se  ;t  um  Icmpo  as  lendas  e  pavilhões  — 
abalaram-se  simidlane.is  as  hostes  variadas.  Tresdias 
com  Ires  noites  levaram  os  desliladeims  a  sorver  a 
turba  iníiiiila.  Ao  raiar  do  <|iiarto  bradou  lá  (h-  ci- 
ma o  capitão  da  montanha  áijuellas  lilás  incommen- 
luruveÍH : 

—  ..Tara  Caslella.  " 

K  deltanilo  o  gimlc  a  galope  nos  fragM<'dos  da  en- 
ulMtii  foi,  com  as  idtinias  phal.ingi's,  ininiergir-3(!  nas 
liçarganlas  iiroliuidas  <los  (mimímIios. 

A(|uelli'  hoiiieni  era  (Mohanied,  o  hadjeb :,  JMoha- 
med,  o  |iiilcntc  :,  íM<iliauied,o  víctorioso  : — el-Mansur, 
UMiio  oliuliam  leito  chamar  vinliMinnos  d(>  viclorias ! 
Kra  —  era  elle  (pn;  S(!  abalava  com  todo  o  poder 
do  Andaluz.  edoMaghreb  a  invadir  o  território  eliris- 
tão,  Huceessivamiuili!  mulil.ido,  (junsi  retrahido  nos 
•cus  primeiros  liuiiles,  c  agora  umeaçadu  ilu  ultinui 
ruinu.  Eru  oLle ! 


A  mão  de  Deus  parecia  Laver-se  interposto  sobre 
o  ímpio  contra  o  punhal  dos  vingadores.  Vinte  anno8 
tinha  estado  sus|K'nso  o  ferro  dos  mostarabes  jura- 
mentados no  peito  do  infiel  —  vinte  vezes  se  lhe  ap- 
proximára  a  morte  no  gume  afiado  —  outras  tantas 
um  dedo  invisível  aflastára  a  pontj.  homicida,  e  o* 
inimigos  do  hadjeb  haviam  caído  fulminados  a  seus 
pés  para  nunca  mais  se  levantarem. 

Os  al-kaids  das  fronteiras  eos  condes  chrístãos  ha- 
viam-se  successívamente  erguido  contra  o  hadjeb,  ex- 
citados por  uma  íniluencía  desconhecida  e  misterio- 
sa. Apoz  um  viera  outro;  das  fileiras  destrocadas 
d'um  capitão  infeliz  surgia  um  novo  calio  de  guerra; 
sarraceno  ou  goilo,  penínsidar  ou  berebere,  ao  guer- 
reiro prostrado  succedêra  um  novo  guerreiro,  concita- 
do pela  mão  occulta  que  não  dava  um  momento  de 
repouso  ao  ministro  kordovez  —  e  todos,  e  cadaum, 
igualmente  infatigável,  igualmente  pertinaz,  arre- 
mettía  com  o  mesmo  cego  esforço,  caía  com  a  mes- 
ma intrépida  consl.incía. 

Aquella  immensa  lucta,  depois  do  breve  descanço 
de  umas  tréguas,  súbita  e  misteriosamente  quebradas, 
era  realmente  admirável.  Da  parte  do  hadjeb  sem- 
pre o  mesmo  irresistível  ímpeto,  e  o  mesmo  glorioso 
resultado:  da  parte  dos  seus  c-ontrarios  sempre  o  mes- 
mo animo  indomável,  e  a  mesma  invencível  tenaci- 
dade. Onde  IMohamed  se  apresentava  era  certa  avic- 
toria;  os  seus  inimigos  porém  pareciam  renascer  da» 
próprias  cinzas,  e  moltiplicar-se  com  os  revezes. 

Nos  acasos  das  batalhas,  na  confusão  dos  campos, 
no  rumor  das  festas  e  no  retiro  (h)s  paços  a  vida  do 
terrível  capitão  estivera  muita  vez  pendente  d  um 
fio.  Mas  a  mão  de  D<'us,  como  dissemos,  estendera 
sobre  elle  uma  dobra  do  manto  da  sua  justiça,  e,  co- 
brindo-o,  prcservanilo-o,  conser\ára  para  IlagcUo  e 
c.isligo  das  llespanhas  chrístãs,  dos  seus  príncipes  cul- 
pados, e  dos  seus  cabos  ambiciosos,  o  tremendo  el- 
Mansur  ! 

N  ígíavam  por  elh-  os  olhos  da  cholcra  divina  1 

Os  chrístãos  ])orém  não  dormiam.  l)espertava-os  a 
notícia  dos  formidáveis  aprestos.  Os  guerreiros  àr 
Leão,  d(!  Gallíza  e  de  Caslella  marchavam  unidos; 
ao  seu  encontro  vinham  os  de  Navarra  :  á  frente  d'a- 
quelles  os  condes  Menendo  Gonçalves  e  Sancho  Gar- 
cez, em  nome  do  moço  rei  .AflonsoV  de  Le.ío ;  a  tes- 
ta doestes  Sancho,  o  (piadrímano,  chamado  assim  pe- 
lo seu  esforço  o  actividade  incomparáveis. 

Nos  campos  de  Lorca  foi  que  pela  primeira  vci  se 
abraçaram  sincera  e  cordíalmcnt<;  eslcs  liomens,  ir- 
mãos pela  crença,  o  separados  |)elos  odíos  ruins  d.i» 
paixões  e  ambições  politicas.  Os  condes  (pie  tanta  vci 
liavíani  mutuamente  aberto  os  eapellos  e  lascado  as 
achas  nos  recontros,  estendiam  a'i;(>ra  a  mão  uns  aos 
outros  —  e,  (Xpieera  mais,  estendíam-n'a  docoraç.lo. 
Muitos  d'elles  —  qiiasí  todos  (*)  —  haviam  inílítado 
debaixo  das  bandeiras  do  hadji-b,  excitados  pelo  ran- 
cor que  lá  por  dentro  os  remordia,  ])ar.i  melhor  se 
olVenderem  e  dcspedaiarem  n-ií|irocanuMite  ;  e  agora 
esticíta\ani-se  no  abrai;o  IVateriio,  reconciliados  con- 
tra o  antigo  senhor  qin'  os  [irolegèra  ao  modo  leo- 
nino. 


(»)  N'!lo  nilniiro  o  <]iie  nVste  lopnr  se  nlTiriiin.  As  itisseo- 
«ilcs  |iiililii'iii>,  c  ás  H'i!rii  luinlH'in  iiikIímis  ile  |mrlioiiliii'  into- 
ri-ssi^  Ifviivaiii  lie(|iii'iili'ini-iiti'  os  |>iiiii'l|>es  ciiiihlcs  l•llM^ll^u^ 
iiíío  nó  II  ussiiciur-Kií  cum  im  iloiiiiiimlniis  iiii  f;iicirii  ipir  fii- 
zliuil  1'iim  ii.s  sciiH  irmilos  ilr  fé  v  iiaMlinciilu,  seiíilo  luiiilicni 
a  g('i\iii'iii  H»  mias  nnliMis,  ca  IjivtiTciii  n  gm-rra  por  .siia  cuii- 
In.  Silo  l'ir(|ii('iit('s  este'»  cM^iniilos,  solirilmlo  dn  siriilii  \  nt«i 
ao  »i'i'ul(i  \ll.  Sirvii  di' prova,  eiilii-  miiiins,  o  iiifi'li«  rriímil» 
de  Hcniindii  II,  eiii  (Hle,  por  oiiusii  ifislaa  iiiorliririH  disíciv 
8<V'H,    11  Horle   do  ri'ilio  Irollc»  l'»li'Vr  loilll    llii.H  ilosv  iu8  sflvali- 

cui  dus  Anturiua,  cuuio  iio  coiiii'i;o  du  ri'í;i'iiuriii;ilu. 


52 


O  PANORAMA. 


âuem  fizera  porém  aquellc  milagre  ?  quem  congra- 
çára  aqiielles  tremendos  ódios  civis  tão  difficeis  sem- 
pro  de  conciliar  c  sempre  tão  cruei?  o  tenazes? 

Maravilhavam-se todos;  mas  nãono-sahia  ninguém. 
Altribuiam-n^o  alguns  á  eminência  do  perigo  com- 
mum.  Os  experimentados  e  prudentes  não  se  enga- 
navam. Sabiam  que  esse  perigo  appareceria  muitas 
vezes  sem  dar  este  resultado  —  conheciam  sobre  tudo 
em  d<'masia  a  implaeabilidade  cegoismo  das  paixões 
politicas,  para  lhe  poderem  julgar  tamanha  etão  sú- 
bita virtude. 

Outra  era  de  certo  a  origem  e  razão  do  acontcci- 
cimenlo  que  espantava  e  regosijava  as  Hespanhas 
christãs,  porque,  havia  longo  tempo,  n^eslalucta con- 
tinua, sanguinolenta,  temerosa,  das  duas  crenças  ri- 
vacís  era  esta  a  j)rimeira  vez  que  a  raça  goda  peleja- 
va unida. 

Q.uanto  á  suprema  influencia  que  fizera  o  que  ain- 
da se  não  liavia  feito  nas  Hespanhas,  repetimo-lo, 
ninguém  sabia  de  quem  era  ella. 

(.'orriam  porém  estranhas  conjecturas  acerca  d'um 
lavalleiro,  moço  ainda,  de  uns  quarenta  a  cincoenta 
annos  quando  muito,  apesar  das  cans  que  lhe  alveja- 
vam numerosas,  do  qual  se  contavam  maravilhas  de 
valor,  de  actividade  e  constância  n'esta  longa  e  por- 
fiada hicta  de  vinte  annos.  Pelejara,  diziam,  em  to- 
das as  batalhas  contra  o  hadjeb,  apparecêra  em  to- 
das as  cidades  que  se  haviam  rebellado,  percorrera 
todos  os  condados  que  se  haviam  armado.  Contavam 
mais  que  um  anno  inteiro  andara  atravessando  as 
Hííspanhas  de  Leão  a  Navarra  e  de  Navarra  a  Gal- 
liza,  por  (!ntre  nuvens  de  corredores  berebcres,  que 
o  perseguiam  sem  fructo,  levando  e  trazendo  mensa- 
gens, predispondo  os  ânimos,  salvando  as  difliculda- 
dos,  e  pregando  por  toJa  aparte  com  palavras  admi- 
ravelmente enérgicas  e  eloquentes  a  necessidade  da 
completa  liança  e  união  da  raça  goda. 

'J"odos  estos  dictos  porém  não  passavam  de  simples 
vozes.  O  qu(!  d'elle  unicamente  se  sal)ia  ao  certo  era 
que  cluígára  das  fronteiras  do  paiz  de  Afranc,  trazen- 
do do  meio-dia,  um  troço  de  cavalleiros  escolhidos, 
hoste  temerosa,  que  passava  pela  Uiir  do  exercito 
cnristão.  Kra  também  fura  de  duvida  que  as  suas  pa- 
lavras gozavam  de  um  grande  credito  entre  os  cabos 
godos,  ilaros  lhe  tinham  ouvido  a  voz  :  nenhum  lhe 
tinha  ainda  visto  o  rosto.  O  my,sterioso  capitão  en- 
tra\  a  a  toda  a  hora  na  tenda  real  de  Sancho,  o  qua- 
drimano,  e  nos  pavilhões  dos  condes  deGalliza  eC'as- 
tella ;  mas  ninguém  lograra  ainda  examinar-lhe  de 
perto  as  feições.  Era  um  ihema  inexgotavcl  para  to- 
dos no  exercito.  Deus  salx;  que  de  boatos  se  espalha- 
vam a  seu  respeito. 

No  entanto  os  campos  de  Lorca,  imitando  os  de 
Kordova,  ouriçavam-se,  como  elles,  de  signas  e  bal- 
sues  tremulantes,  de  lanças  e  espadas  fulgentes.  Da 
base  até  a  coroa  dos  montes  suliiam  como  serpes  enor- 
mes as  fdas  tortuosas  dos  serranus  do.Vstura.  As  pon- 
tas d  aço  das  maças  de  roble  scinliiiavam  aosol,  pen- 
dentes no  lado  dos  guerreiros  navarros,  e  dos  descen- 
dentes dos  fr.inkiis,  ao  passo  que  os  seus  brilhantes 
rellexos,  rcfraiigendo-se  no  ferro  da  secure  goda,  se- 
gura na  siílla  dos  cavalleiros  de  Leão,  como  que  JH)- 
voavam  ile  rápidas  estrellas  as  planícies.  Sc  as  hostes 
musulmanas  desenvolviam  mais  arte  e  perícia,  se 
brilhavam  inaís  pelo  esiilendor  das  armas  e  pelo  va- 
riado das  cõr(>s  ;  em  compensação  os  capellos  de  ma- 
lha, as  grosseiras  dalmaticas  e  as  caniizas  de  ferro 
dos  eliristãos  não  cobriam  corações  menos  ardentes  e 
impetuosos. 

O  exercito  godo  esperava  a  pé  firme  o  tremendo 
hadjeb:  ia  pel<jar-se  a  sorte  futura  das  duas  raçiis 
que  disputavam  liavia  scculus  o  dominio  das  Hespanhas. 


A  final,  um  dia,  ao  despontar  da  aurora,  appar«- 
ceram  as  margens  do  Douro  c  as  alturas  cobertas  de 
corredores  africanos :  era  a  vanguarda  do  hadjeb. 

As  hatalh:is  christãs  aguardavam-no  já  formadas  e 
ajjcrcebidas.  Prevenira-os  o  infatigável  desconhecido. 

O»  dois  exércitos  pararam  em  frente  um  do  outro, 
medindo-sc  uma  hora  inteira,  até  romper  osol,  como 
dois  lucladores  que  se  contemplam  na  arena. 

Depois,  dois  homens,  um  na  planície  outro  na  mon- 
tanha, á  testa  cada  qual  das  turbas  impacientes,  es- 
tenderam simultaneamente  o  braço  direito  contra  os 
adversários  fronteiros,  e  clamaram  unisonos  com  a 
voz  sonora  e  fn.-mente  : 

—  u  Avante  !  j' 

E  no  mesmo  ponto  os  dois  mares  procellosos.  rom- 
pendo os  diques,  trasbordaram  em  duas  ondas  mons- 
truosas na  planície,  até  se  embaterem  e  se  confundi- 
rem e  tumultuarem  n'uma  vaga  immensa  que  fez  va- 
cillar  os  rochedos  na  sua  base,  saindo  subitamente  do 
seiod\'lla,  horrendas,  confusas,  infernaes,  mil  Ímpias 
blasphemias  e  mil  gritos  de  agonia.  Não  se  via.  não  se 
percebia,  não  se  distinguia  nada  n''aquella  mole  infi- 
nita a  revolver-se  furiosa  no  meio  d'uma  nuvem  es- 
pessa de|)OCÍra.  Atravez  do  horrendo  véu  trovejava  o 
combate  como  asurda  explosão d'um  terramoto,  lam- 
pejavam os  ferros  como  outros  tantos  raios  a  atraves- 
sar os  ares  carregados. 

No  pináculo  d"uina  serra  o  hadjeb  vigiava  o  com- 
bate, despedindo  d'alli  uns  sobre  outros  os  seus  es- 
quadrões de  berebcres  a  apertar  os  christãos  na  pla- 
nície. O  terrível  el-Mansur  ardia  lá  por  dentro,  m.-is 
continha-o  a  prudência.  Não  queria  empenhar-se  na 
peleja  senão  para  decidi-la  como  costumava.  O  logar 
(jue  occupava,  comum  pequeno  troço  dos  seus  melho- 
res guerreiros,  designam-o  as  historias  árabes  pelo 
nome  de  Calat-al-nosor,  isto  é ;  o  pincaro  dos  abu- 
tres :  julgava-se  seguro  alli. 

Jlohanied,  anojado  já  de  ver  a  firmeza  e  a  contu- 
mácia desesperada  dos  seus  competidores,  mandara 
avançar  os  últimos  esquadrões,  e  desembainhava  já  ii 
irresistível  cimitarra,  para  resolver  a  contenda,  quan- 
do uma  hoste  de  cavalleiros.  pequena  como  a  sua. 
SC  arrojou  com  assombroso  iinjjeto  pela  encosta  aci- 
ma íio  seu  encontro. 

O  hadjeb  rugia  de  prazer:  ia  cmfim  pelejar:  es- 
tava certo  de  si.  Os  seus  cavalleiros.  imperturbáveis, 
não  se  moveram;  esperavam  tranquUlos  o  inimigo: 
el-Mansur  sorria  de  orgulho. 

Os  guerreiros  contrários  approximavan>-se  no  en- 
tanto, impetuosos  como  o  vento  do  deserto.  Eram  os 
de  Afranc.  Apesar  do  impulso  que  triuiam.  deix.-»- 
ra-os  longo  espaço  afraz  o  seu  mvsferioso  cabo.  Se- 
guia-o  unicamente  de  perto  uma  figura  melindrosa 
de  pagem,  estranlio  contraste  no  meio  d^aquelles  col- 
lossos  furibundos. 

Ao  hadj<'b  não  lhe  soffreu  o  animo  esperar  assim 
a  pé  lirme  t.ão  desesperado  inimi^:  yikiu  ao  seu  en- 
contro. 

Toparam-se  no  alto,  cm  cheio,  os  dois  feroies  con- 
tendores :  nenhum  d"elles  vacillou.  As  duas  hostes, 
que  se  precipitavam  tainlx-m  ao  enciinlro  uma  d.i 
outra,  pararam  attonilas.  olharam-se  e  rt>cuaram  :  a 
horrenda  |>orlia  omtinuou  entre  os  dois  como  os  com- 
bates dos  herocs  d"M(imero.  Não  tinha  nome  a  fúria 
i-om  que  os  dois  calnis  se  atacavam,  se  precipitavam, 
e  se  ret rabiam  p.ira  s«>  tornarem  a  atacar.  .\  cimi- 
tarra dl)  hadjeb  caiu  de5[HHlaçada  pela  s«>eur<'  do  de*- 
I  conhecido,  a  arma  do  guerreiro  de  .\franc  \ixni  jwra 
o  ladi)  cortada  eercca  pelo  resto  da  folha  de  Moha- 
med.  \o  fim  d"unia  hora  o  ginete  andalui  do  cabo 
kordovei  caiu,  alierto  jxda  testeira,  ao  j>é  do  negro 
corsel  do  desconhecido,  atravessado  pelos  peitos.  Mas 


o  PANORAMA. 


53 


os  cavalleiros  já  estavam  a  pé  e  continuavam  o  com- 
bate, igualmente  incansáveis,  igualmente  furiosos, 
igualmente  encarniçados  ao  lado  dos  dois  nobres  e 
fieis  animaes,  que  gemiam  e  agonisavam  tristemen- 
te voltando  os  oUios  lagrimosos  para  seus  donos. 

O  elmo  d'um  e  o  capollo  d'outro  saltaram  parti- 
dos por  dois  revezes  assombrosos  :  o  peito,  os  braços, 
a  cabeça  de  ambos  estavam  cobertos  de  feridas-,  o 
«angue  corria-lhe  em  fio  nos  fraguedos  do  solo  \  e  os 
dois  combatiam  como  se  n'aquelle  momento  se  hou- 
Tcsseni  accomraettido.  .  . 

Desceu  o  sol,  veio  o  crepúsculo,  seguiu-se-lhc  a 
noite,  e  os  dois  a  combaterem  ainda.  .  . 

A  final  o  Iiadjeb  caiu  ;  —  el-Mansur  o  glorioso,  el- 
Mansur  o  potente,  el-Mansur  o  invencível  —  caiu  na 
montanha  sem  poder  valer  aos  seus,  que  fugiam  na 
planície  —  caiu  com  os  olhos  voltados  para  elles,  aos 
pés  do  gu<'rrciro  desconhecido. 

Um  longo  gemido  saiu  então  dVntre  as  fileiras 
dos  berebena.  N'um  Ímpeto  espontâneo  arrojaram- 
se  contra  o  vencedor  ao  passo  que  a  lioste  do  Afranc 
também  pela  sua  parte  voava  com  gritos  de  alvoroço 
a  soccorrer  o  seu  cabo. 

Mas  este,  indífferente  a  tudo,  não  via  amigos  nem 
inimigos.  Passou-lhe  pelo  rosto  um  como  relâmpago 
de  barbara  al<!gría,  e,  ciirvando-se  para  o  hadjeb 
prostrado,  estrugíu-lli<.'  ao  ouvido  com  uma  inflexão 
que  arrancou  o  liad  jeb  aos  l)ra(;os  da   niorle  : 

—  "  lii'mbras-te  dos  jardins  de  Azahrat  ?" 

Molianied  abriu  os  ollius  e  liloii-os  no  desconheci- 
do. Aqiiclles  dois  lionicns,  que  assim  tinliain  comba- 
tido por  V(;ntura  em  mais  de  uma  occasião,  era  a  pri- 
meira vez  que  se  encaravam.  O  hadjeb  nãopoudesup- 
portar  o  aspecto  do  seu  vencedor,  ap('rtou  o  punhal 
que  não  largara,  o  fechou  de  novo  os  oUios. 

N'isto  chegavam  as  duas  liostes  encontradas,  eem- 
batiam-se  no  escuro  da  noite. 

A  batalha  recomeçou  mais  brava  do  que  nunca  em 
torno  do  hadjeb. 

Mas  os  sarracenos  já  não  eomlialiaiii  para  vencer: 
era  somente  para  alcançar  niorle  hmirada. 

listava  em  terra  o  collosso  das  Ilcspauhasl 

(CvHcliiii  -sc-ha.) 


Festa  de  Conrus  Curisti  km  ^'AI.ENCIA. 

A  pnocissjo  dVste  dia  solcmne  er.i  anlcs  das  ulti- 
mas revoluções  famosa  na  llcspaiilia.  INa  ca[)ítal  de 
Valência  celebrava  se  tio  modo  seguinte.  —  Dias  an- 
tes lançava-se  um  bando  convidando  os  habilantos  a 
concorrerem  á  riiiicçào  ea  lraz<'rein  vcllas  de  cera  de 
rai'ia  libra.  Na  hora  prclixa  as  coimniiíiidades  reli- 
giosas e  o  clero  das  [larochias  entravam  no  choro  da 
ké  entoando  o  I'mt<ji ,  lintjtia  ;  <•  em  seguida  piiiiha- 
íe  a  caminho  ,i  procissão,  indo  á  freiíle  as  diversas 
corporações  de  offKMos,  como  entre  nós  se  usava,  com 
as  bandi'iras  de  seus  |)adro<'iros,  e  higo  apoz,  [lor  ordem 
d'anligiiitlade,  os  ecciesiaslico».  ISi^islo  não  ha  novi- 
dade: |iorém  o  clero  da  sé  dístiiigiiia-se  d<?  todos  pe- 
lo acompaiihamenlo  rle  ligurasallegorieas.  Três  águias 
enormes  traziam  rolulos  nos  bicos,  onde,  em  lettras 
de  ouro,  KC  lia  clividída  esta  Jihrase  u  In  principin 
erat  reihimt;  Hl  vi:rl>iiui  tritl  iipinl  Dtinn  ;  et  Dius 
eral  lerlum:  alraj!  seguiam-s<' lri's  homens,  um  com 
mascara  ih;  leão,  oiilro  de  boi,  e  oufro  sem  mascara, 

que  jiinclamenl in  as  águias  vinham  alli  para  ihv 

notar  os  (pialro  KvangelislaH  :  logo  ii|ipareriaiii  mais 
três,  <(uii  harpa,  \  i<ihi  e  cithara,  em  nieniiiria  (lo  rei 
David  dianie  <laarea  daalliança.  Vinte  eseis  v<'lhos, 
vestidos  de  branco,  traziam  tochas  di' (';raii(li-  volume, 
e  precediam  oito  leviUis,  lanibiím  trajados  de  roíiiias 


largas  brancas,  parecidas  ás  antigas  dalmaticas,  em- 
punhando varinhas  com  que  tocavam  na  cabeça  dos 
espectadores,  a  quem,  ao  passar  a  procissão,  esquecia 
decobrirem-se.  Immediatamente  app.irecía  oSanctis- 
simo,  e  a  custodia,  de  altura  fora  do  commura,  era 
magnifica  obra  de  ourives  no  estjflo  gothico. 


Por  todo  o  comprimento  do  préstito,   de  distancia 
em  distancia,  iam  repartidos,  em  bandos  numerosos. 


gigantes   e  anões,   extravagantes,   monstruosos,   o 


de 
variegados  vestuários.  Carros  triíimphantes,  aque  em 
Valência  chamam  rocas,  cheios  di'  liguras  allegori- 
cas,  eram  tira<los  por  machos  ajaezados  ricamente,  e 
junclo  dVlles  havia  rodas  infatigáveis  de  danças,  que 
muito  faziam  Iciiilirar  certas  festas  pagãs,  principal- 
mente as  de  Ceres  <í  I$accho,  por  isso  que  os  carros 
eram  enfeitados  com  espigas  ecom  festões  de  pâmpa- 
nos. O  mais  nota\el  era  seni[U('  o  (pie  deniuiiinavam 
la  roca  de  la  i'i<(issii)i(i,  (pie  transportava  sobre  ele- 
vado throno  a  imagem  da  Sancta  \  irgein,  precedida 
no  jilano  inferior  pela  figura  symbolica  da  religião, 
como  se  V(^  representado  em  o  nosso  desenho. 


Episodio  da  vida  d'Aleixo  Ouloi'. 

A  iMi-EiiATiiiz  Isaliel  leve  Ires  lillias  do  seu  consor- 
cio elandestlno  com  o  grão  governador  Aleixo  (ire- 
griovitcli  Kazoiunovski,  a  mais  moça  das  (piaes  foi 
crcada  na  Kiissia  com  o  nome  de  priíiceza  Tarraka- 
nolV.  <-liiaiido  Catharina  II  começou  a  en>pregar,  em 
concurrencia  com  os  enredos,  a  violência  contra  a  IVi- 
loiíia,  o  priíicipe  Carlos  Uadzxvil,  por  palriolismo,  por 
vingan(;a,  ou  por  a(iibl<;ão  talvez,  roubou  esta  meni- 
na, subornando  as  pi^ssoas  encarregadas  de  a  guarda- 
rem, ea  levou  eonlsigo  |iara  a  Il.ilia,  onde  por  mui- 
to leiii|io  viveu  do  prodiicto  de  diamaiiles,  (pie  elle 
salv.ira  da  destrui(;à(i  de  sua  casa;  mas,  esgotado  es- 
le  recurso,  a  precisão  o  obrigou  a  voltar  á  1'olouia. 
t)  agasalho  inesperado  (pie  achou  na  corte  de  S.  IV 
tersbiirgo,  então  emiieiihada  i-iii  oppo-lo  a  uma  lac- 
<;ão  coiilruria,  por  la  o  foi  detendo.    Se  iiào  coiumel- 


54 


O  PANORAMA. 


♦«■  a  baiseza  de  consentir  na  entrega  da  infeliz  filha 
de  Isabel  aCatharina,  caiu  na  de  prometter  que  nun- 
ca mais  íaria  caso  d'ella,  c  de  a  desamparar  no  re- 
gaço da  naiseria. 

Aleixo  Orlof,  assassino  de  Paulo  III,  era  homen> 
de  menos  escrúpulos.  Vira  de  bem  lonçe  o  incêndio 
das  embarc2çc;jes  turcas  em  Thchesmé,  victoria  insi- 
gne aos  olhos  de  Catharina,  que  lh'a  attribuia  toda, 
ronbando-a  aGreig  eElphinston  ,  desmaiara  durante 
o  conflicto ;  despertara  do  dormitar  para  insolente 
cingir  na  fronte  louros  immerecidos  \  era  por  tanto 
o  esforçado  campeão  digno  de  ir  buscar  a  victima 
para  a  sacrificar  aos  sustos  da  sua  soberana.  Um  cer- 
to Ribbas,  que  depois  chegou  a  ser  vice  almirante 
na  Rússia,  lhe  descobriu  o  retiro  onde  a  princeza  vi- 
via, cm  Roma,  na  companhia  de  uma  só  criada,  pa- 
decendo privações.  Alt-ixo  foi  procura-la,  fallou-lhe 
no  ódio  que  todos  os  russos  tinham  á  imperatriz,  na 
hydra  das  conspirações  a  que  ella  não  podia  cortar 
as  cabeças  sem  que  as  multiplicasse;  engodou-a  com 
a  esperança  de  subir  a  um  throno  que  asseverou  per- 
tencer-lhe  por  direito  de  sangue  \  e  reforçando  com 
as  seducções  do  amor  as  da  ambição,  por  ventura  in- 
sufficieutes  para  deslumbrar  uma  menina  habituada 
á  obscuridade  da  mediania,  simulou  um  amor  impla- 
cável, como  não  era  capaz  de  ter  a  ninguém;  porque 
os  homens-srralhas  adornados  com  aspcnnas  do  pavão, 
que  desfaçadamente  roubam  osfructos  do  trabalho  ou 
daintelligencia  alheia,  —  submissas  quando  precisam, 
altivos,  ingratos,  e  talvez  inimigos  quando  já  não  es- 
peram; estes  homens,  que  convertem  quanto  os  cerca 
em  instrumentos  com  que  se  lavram  o  pedestal  da  sua 
própria  elevação,  eque  lançam  para  longe  de  si  ape- 
nas seg;istam  oucsfjlam  n'este  lavor  ingrato;  amam 
é  verdade,  e  amam  com  excesso:  amam-se  a  si.  Para 
si  desejara  e  querem  tudo  —  para  os  mais  o  resto. 

Captivado  o  coração  da  princeza.  viu  Orlof  apla- 
nadas as  barreiras  que  poderiam  empecer  os  seus  in- 
tentos. A  princeza  consentiu  em  desjxisa-lo,  e  uns 
perversos,  disfarçados  em  padres,  fingiram  todas  as 
oereroonias  do  rito  grego;  crendo  ser  mulher  de  Or- 
lof não  hesitou  cm  segui-lo  para  Liorne,  e  ahi  o  snp- 
posto  marido,  para  lhe  occultar  a  iufame  cilada,  lhe 
prodigalisou  adulaç<jes,  festas  c  honras  as  mais  pró- 
prias para  a  cegar. 

£stava  fundeada  no  porto  de  Liorne  uma  esqua- 
dra russa  ás  ordens  do  almirante  Greiç;  souberam 
iDspirar  á  princeza  o  desejo  de  a  ir  vér,  c  levaram- 
n*a  a  bordo  ao  sair  d'um  banquete.  Os  vivas  d'um 
povo  immcnso,  as  vozes  de  toda  a  casta  de  instru- 
mentos retumbavam  na  praia,  e  davam  á  visita  a 
apparcncia  [>omposa  e  risonha  d'ura  dia  de  gala.  O 
escaler  que  a  transportava,  elegante  e  empavesado, 
prendia  os  olhos  dos  espectadores,  pela  riqiiez.i  e  pri- 
mor dos  ornatos:  içaram-n'a  commodamente  n'uma 
cadeira  de  espaldas  mui  sumptuosa,  para  bordo  da 
náu  almirante,  onde  entrou  comoesposa  de  Orlof,  ou 
antes  qual  soberana  que  deve  em  breve  reconquistar 
um  império  opulento,  herdado  de  seus  pais.  Apenas 
porém  pisou  o  convei,  desappareceu  o  prestigio,  os 
^•eepcitos  e  attenções  cessaram  de  repente,  tractaram- 
n'a  como  escrava,  carregaram-n'a  de  ferros,  eno  dia 
seguinte  a  nau  fez-sc  de  vela  para  a  Hussia. 

O  cônsul  inglcx  e  o  almirante  Greig  favoreceram 
<^a  trama  infame,  que  deixou  toda  a  cidade  de 
liiorne  horrorisada  e  fremendo  de  indignação.  Leo- 
poldo, grão  duque  da  Toscana,  queixou-se  altamen- 
te d'esta  violação  de  tv»do  o  direito  hum.ano,  com- 
mcttida  no  seu  território ;  mas  a  inipuílcncia  de  Or- 
lof arrostou  as  queixas  do  grão  duque  c  a  indign.-iç.ão 
publica. 

.\  victima,  que  então  contava  apenas  dctcs.^is  an- 


no9,  foi  encerrada  em  S.  Petersborgo,  em  estreita 
prisão,  aonde  pereceu  seis  annos  depois,  no  mez  de 
dezembro  de  1777,  em  consequência  d'uma  inundaçãn 
do  Neva,  ou  ila;cllada.  segundo  dizem  alguns,  peUw 
seus  Ímpios  carcereiros. 

Aleixo  Orlof  causou  espanto  e  escândalo  na  Itália 
pelo  seu  luxo  desmedido,  pelo  seu  brutal  orgulho,  e 
pela  sua  má  educação ;  mas  cm  Liorne  lançou  a  tur- 
ra até  onde  podia  ser.  Tinha-lhe  dado  ordem  a  im- 
peratriz para  mandar  fazer  por  um  hábil  pintor  da 
eschola  italiana  um  quadro  de  sua  sonhada  >'ictoria 
de  Thchesmé.  O  pintor  disse-lhe  que  nunca  tinha 
tido  occasião  de  ver  ir  pelos  ares  um  navio  :  "  Não 
esteja  n''isso  a  duvidai  respondeu-lhe  Orlof;  e  dcu- 
Ihe  este  espectáculo  a  risco  de  incendiar  o  porto. 


A    TRIEU    DOS    KBABASOS    HA    AmXRICA 

Mebioioxal. 

O  Sr.  Alcides  d'Orbieny  tem  adquirido  celebridade 
pelos  seus  importantes  trabalhos  sobre  a  America 
Meridional ;  intrépido  e  irifati»avel  naturalista-via- 
jante,  percorreu  por  oito  annos  consecuti\os  as  costas 
do  Brasil,  a  republica  do  Uruguav,  a  repulJica  Ai^ 
gentina  desde  as  fronteiras  do  Parasruav  até  a  Pata- 
gonia,  as  republicas  do  Cliili,  do  Perij.  de  Boliria. 
Sem  mencionarmos  outros  escriptos.  citaremos  o  se« 
livro  O  homem  americano,  estudo  ethno^raphico  de 
grande  valia,  a  tímligia  ila  /Jmerica  ^IniJionaL, 
que  lhe  mereceu  nota\el  elogio  votado  pela  academia 
das  sciencias  de  Paris ;  e  por  fim  a  sua  obra  princi- 
pal, com  que  tanto  lucraram  as  sciencias  e  a  ;eogr»- 
phia,  a  /  iagem  n"aquella  região,  recem-pu blicada 
em  7  vol.  de  4.^  com  atlas.  —  A.  esta  pertence  o 
fragmento  que  trasladámos,  sobre  uma  tribu  selva- 
gem quasi  desconhecida. — 

Aos  19  de  dezembro  de  1831  deixei  a  ultima  das 
missões  dos  chiquitos  para  passar  ao  território  dos 
guaravos,  q»e  me  disseram  que  ficava  a  4tí  ou  50 
léguas  ao  nor-norde*le.  A  minha  comitiva,  constan- 
te de  meus  ajudantes  a  cavalJo  c  de  60  Índios  chi- 
quitos a  pé,  que  levavam  ás  costas  a  bagagem,  tre- 
pou em  filas  as  l.ideiras  Íngremes  das  alturas  limi- 
trophes  dos  chiquitos,  em  meio  de  paizes  semeado* 
de  vallíís  selvosos  c  de  cabeços  coberto»  da  sombra 
das  ele?antes  palmeiras  bocayas,  e  onde  uma  infini- 
dade de  figueiras  p.irasitas,  com  as  raixes  enredadai 
parece  que  procuram  por  toda  a  parte  esconder  aa 
fracas  esoahadas.  Da  cumiada  da  ultima  cordilheira 
appresentou-se-nie  á  vista  o  mais  bello  contraste;  ao 
nascente  coUinas  amontoadas  em  ampiíitheafro.  aa 
contrario,  para  o  piHjnte  a  superticie  azul  e  illiraitap 
da  d(^  mares,  no  horisonte  as  extcnsissimas  floresta» 
que  se  dilatara  por  niai»  de  80  leíruas  até  os  cxti^ 
mos  pégiVs  da  curdiiheira  de  Santa  Cruz.  —  Costeai 
a  falda  d'es$as  eminências  por  entre  paii  deshabita- 
do  mas  WIlissimo,  exposto  frequentemente  aos  farta* 
aguaceiras  da  estação,  e  alvo  das  ferroadas  dos 
quitos,  e  privado  de  todo  o  descanço  ;  porém  á 
dida  que  caminhava,  a  natureza  se  mostrava  com 
mais  variciiadc :  a  pequenas  pianicies  vijoaaa,  «it- 
cumscript.is  por  mattas  cerradas,  succediam  çropoa 
de  coqueiros  de  varias  cast.ts.  que  contrastavam  eoM 
os  oíitrvis  vegelaes :  havia  biisques  fechados,  e  com  a 
extens.~io  de  algumas  léguas,  de  palmeiras  rtincA.  de 
tronco  recto,  coroado  na  altura  de  nove  braças  pela 
copa  «-siiessa  de  foUias  semelhantes  a  laminas  d'espa- 
da ;  por  outra  parte  alteav.i-se  a  graciosa  palmeira 
real  de  folh.%gem  cm  fiírraa  de  Icqoc.  .\  masestanie  éa 
todo.  a  riqueza  década  objecto,  tudo  me  inspirara:  a 
vida.   a  aitimação  da  campina  revestiam  este  paiaal 


o  PANORAMA. 


55 


de  um  entanto  irresistível,  mormente  para  um  na- 
turalista. Nuvens  de  borboletas  de  azas  matizadas  le- 
Tantavain-se  adiante  de  nós  ^  as  folhas  e  troncos  de 
plantas  e  arvores  enchiain-se  de  milheiros  d'iuseetos 
que,  nos  rellexos  metallicos,  rivalisani  ou  com  o  bu- 
liçoso passarinho  mosca,  ou  com  as  aves  brilliantes 
que,  com  suas  melodias,  aviventam  a  solidão  d'aquel- 
iu  terra  virgem. 

Ijogo  no  primeiro  dia  me  adiantei  dos  Índios;  e 
ao  terc(;iro,  depois  do  marcha  forçada,  contava  che- 
gar ainda  com  dia  aos  guarayos,  mas  enganei-me. 
Não  pude  resistir  á  vontade  de  caçar  bandos  de  ma- 
cacos e  cotias,  sobre  tudo  um  corpulento  veado.  Os 
meus  Índios  não  tinham  outro  mantimento  senão 
maçaroca  assada:  quiz  que  se  approveitassem  da  mi- 
nha caça,  o  que  fez  perder  f<'mpo,  ficando  atrai!;ido  o 
guia,  occupado  em  desniancliar  o  Veado,  com  a  pre- 
caução de  pendurar  os  quarlos  nas  arvores  por  causa 
do  dente  do  jaguar,  em  quanto  não  chegava  a  comi- 
tiva. 

J'oT  muito  tempo  segui  a  galope  os  inumeráveis 
rod<!Íos  de  um  trilho  apenas  traçado  ora  na  matta 
ora  na  campina;  nias  [jcla  tarde  os  cavallos  faliga- 
dos  adrouxaram.  'l"ornoii-se  extrema  a  obscuridade; 
nada  se  podia  distinguir,  e  os  ramos  d'arvores,  que 
eu  de  dia  evitava  bem,  de  continuo  me  batiam  na 
cara :  o  meu  cavallo,  sem  eu  dar  por  isso,  enterrou- 
«e  na  espessura  da  ndva,  onde  fui  asperamente  mor- 
dido por  formigas  ruivas,  que  teem  um  ferrão  como 
as  vespas.  Não  tendo  podido  alcançar-me  o  guia,  de- 
pois da  morte  do  veado,  comecei  a  suppor-me  extra- 
viado:  a[)e<'i-nie,  acc('ndi  luz,  e  por  fim  entrei  de  no- 
vo no  trilho.  li  preciso  ler  passado  por  crises  iguais, 
para  dar  valor  ao  prazer  que  causam  os  primeiros 
raios  da  claridade  que  succedeni  á  escuridão;  reani- 
mam a  coragem  do  viajante,  que  então  se  resigna 
com  a  situação  até  alli  insopportavel.  J'elas  onze  ho- 
ras ouvi  gritar;  era  o  guia  (jue  nos  alc:inçava,  e  vi- 
nha resgatar-nos  da  inquii'tação,  aniiuncíaiido  que 
apenas  distávamos  duas  léguas  das  primeiras  habita- 
ções dos  Índios.  Ksta  nova  deu-me  alento,  e  deter- 
minei-m(!  a  progredir :  o  guia  acccndeu  uma  vella  e 
poz-se  á  Irente  do  rancho. 

Pela  uma  hora  da  manhã  topámos  as  cabanas  dos 
guara^os.  lineaniinhei-me  para  a  do  maioral,  onde 
logo  ine  veio  fallar  um  homiím  coberto  di!  uma  lon- 
ga túnica,  cujo  tecido  era  de  enlr(K'as(^o  d'arvores. 
Ignorava  i!U  completamente  a  que  raça  pertencia  es- 
ta tribu  ;  e  por  isso  não  pequena  foi  a  minha  admi- 
ração ouvindo  a  saudação  dos  hniis  dias  em  guarani, 
dialecto  de  <pi<!  eu  tiidia  aprendiílo  uma  porção  de 
(Kilavras  nas  fronteiras  do  l'araguay  :  res|)oiidi  na 
mesma  linguagem,  e  o  cabeça  guará vo  não  ficou  me- 
nOH  afbnirado,  e  logo  um  consagrou  <>or<lial  amisade; 
.leompaiiliiiu-me  jku'  Ioda  a  parlei  durante  os  quaren- 
ta dias  <puí  iiu:  denuwei  entre  esta  gente  hospitalei- 
ra. 1'aieontrava  eu  com  vivo  |)razer,  ni>  seu  <>stadii 
priuiilivo,  os  restos  de  uma  das  antigas  emigrações 
lios  gu.iranís  ou  citaíb.is,  os  coiupiisladores  mais  in- 
trépidos da  Aiui'iir.i  nwíiiliiuial,  ijue  l(v;irain  assuas 
victxjrias  de.sdí!  as  margens  do  rio  da  l'rata  jt(;  as 
Antilhas. 

JVIo  território  dos  guar.iyos  corre  o  rio  de  8.  Mi- 
guiíl  ;  as  eart.is  geograpliic.is  dão  o  curso  d'este  rio 
pasa  o  rio  (juapaix  ou  Hío  (irandn,  e  d'ahi  para  o 
IVlamore  :  se  assim  fosse,  enibarcauilo-me  nVdle  iria 
liar  á  missão  de  lioreto  de  iVloxos,  (pi.iudo  o  meu  in- 
t«nilx)  era  encaminhar-me  para  a  piird?  oriental  d'i'S- 
tn  província.  lnt4Uroguei  os  guaraj-os,  e  irelle»  sou- 
lie  <pie,  em  viiz  de  voltar  pura  oes-neiroeste,  o  rio  S. 
-Mi)»nel  se  dirige  a  nor-uoroeste,  pansando  perl»)  da 
missão  de  Carnum  de  Mox.o.s,  Sem  íuber  então  su  cl- 


le  ia  ajunctar-se  mais  abaixo  ao  rio  Branco  ou  botíA 

Itonamas,  afluentes  communs  do  Guaporé.  tomei  e 
resolução  de  .seguir  este  caminho,  aíim  de  elucidar 
esta  questão  importante  em  geographia.  Porém  o 
meu  plano  não  era  de  fácil  execução  :  a  ir  por  terra 
oppunham-se  a  estação  das  chuvas,  já  muito  adian- 
tada, e  a  inundação  dos  campos,  independente  do* 
estorvos  inherentes  á  abertura  de  um  caminho  novo  : 
por  outra  parte,  ascanoas  dos  gnaravos,  feitas  de  um 
só  tronco  e.xcavado  a  fogo,  podiam  levar  só  doas  peí- 
soas,  e  não  tinha  logar  para  as  bagagens.  Vali-me 
das  amigáveis  disposições  do  caudilho  guarayo,  e  ob- 
tive d'elle  expedir  dois  índios  a  Cármen  com  uma 
carta  em  que  pedi  ao  administrador  me  enviasse  ca- 
noas e  remeiros  d^aquella  missão  para  me  transpor- 
tar a  IMoxos. 

Os  guarayos,  dispersos  por  um  território  de  ciii- 
coenta  léguas  dVxtensão,  habitam  os  bosques  som- 
brios que  separam  as  províncias  de  Chiquilos  e  Mo- 
xos,  não  distante  das  margens  do  rio  S.  Miguel,  pe- 
los 17"  de  latit.  sul  e  os  (io'^  de  long.  occidenfal  át 
Paris.  Em  numero  de  mil,  rep-irtem-se,  fora  algu- 
mas famílias  espalliadas  no  centro  da  llortsta,  em 
três  aldeias,  '1'rindade,  Ascenção  o  Sancta  Cruz,  on- 
de alguns  religiosos  trabalharam  pelos  chamar  ao 
christí;inismo.  Uepois  de  as  ter  visitado,  estacionei- 
me  em  Trindade,  onde  não  havia  missionário,  aíim 
de  estar  menos  constrangido  no  meu  oftício  de  obser- 
vador. Todos  os  dias  o  cacique,  velho  de  aspecto  pa- 
triarchal,  vinha  otl'erecer-me  o  seu  préstimo.  Se  cu 
lhe  p(?dia  alguma  cou,sa,  voltava  d'alií  a  pouco  com 
suas  mulheres,  que  traziam  excellentes  fructas,  legu- 
mes ou  aves  caseiras  :  recebia  também  visitas  de  to- 
dos os  Índios,  que  me  brindjivam  com  géneros  daí 
suas  terras,  ou  com  objectos  d'historia  natural.  Pa- 
g.ava  eu  tudo  em  agulhas  grossas,  facas,  tesouras,  c 
outras  bagatellas,  porque  o  dinheiro,  conui  em  Chi- 
(piitos  e  Moxos,  não  era  conhecido  dos  iiabitantes. 
Por  exemplo,  um  bom  frango  valia  três  agulhas  de 
coser,  e  o  mais  em  proi)orção,  sem  tpie  toilaxia  m» 
fixassem  preço  ou  fizessem  a  mais  leve  observação  a 
respeito  do  <|ue  eu  olferccia ;  dava-nie  seus  conselhos 
o  meu  amigo,  o  maioral  que  encontrara  em  As- 
cenção. 

Altos,  bem  feitos,  providos  de  longa  barba,  facto 
excepcional  nos  americanos,  os  guurayos  são  de  as- 
pecto arrogante,  mas  teem  feições  regidares  e expres- 
são pacifica:  oseu  caracter  corresponde  pcrteitauien- 
te  a  extiMÍoridade ;  mostram  o  tvpo  da  franipieza. 
hosiiitalid.ide,  e  denutis  virtudes.  São  bons  p;iis  e 
bons  maridos,  e  graV('s  |)or  habito  julg:im-se,  na  sua 
isenção  e  liln^rdade  no  meio  da  abundância,  os  mais. 
felizes  dos  humanos.  Os  velhos,  verd.ideiros  patriar- 
chas  e oráculos  das  famílias,  ach.im  nos  tillios  respei- 
to e  submissão.  As  suas  cabiiruis,  oitavadas  e  seme- 
Ihnntes  ás  dos  antigos  caraíl);is  das  Antilhas,  são  es- 
Jjíçosus  e  eol)ertas  de  folluis  ele  palmeira.  —  O  gua- 
rayo pnssa  Ioda  a  su.i  iidancia  ao  pe  da  nu"ie,  que 
lhe  prodigalisu  o  mais  teino  desvelo.  Chi'gando  aos 
oito  ou  d<-/.  annos  aitmipaidiíi  seu  pai  aos  campos  ea 
caça,  oxercitando-se  a  atirar  á  trecha,  e  no  fabrico 
d.i»  urmas :  deixa  (Uilão  a  com]>:niliia  ihis  mulheres, 
1»  só  frequenta  a  sociedade  do.s  r;tpai!ea  d.t  sua  nlade 
«  dos  liiiinens.  .'Vhsiiu  que  reunu  á  forca  a  destriv-ui 
suflicieiíte  para  nu-near  o  arco,  isto  é,  paru  supprir- 
se,  traita  <le  eh>ger  companluiira  :  frita  a  escollui  »«•- 
goeeia  com  os  irmãoN  da  donr.ella,  <pie  são  iks  tpir 
teem  o  direito  oxelusivo  de  dispor  da  nuu)  d<>  sutis 
irmãs;  ascondiçõrs  consistem  i\'uni  certo  numero  de 
machados,  de  facas,  ou  de  outros  instrunu-ntos,  ou 
n  um  certo  Ir.iballio,  ctuuo  por  exemplo  .t  «ouslruc- 
çãu  du  uma  caba,  oanotcamcutu  do  uuia  terra.  CVri- 


56 


O  PANORAMA, 


cedida  a  noiva,  o  pretendente,  despido  e  pintado  de 
encarnado  e  preto  desde  a  cabeça  até  os  p«ís,  armado 
da  sua  maça,  passeia  por  alguns  dias  em  redor  da  ca- 
bana da  noiva ;  findos  estes,  os  pais  d'ella  preparam 
a  bebida  de  milho  fermentado,  e  o  casamento  é  cele- 
brado no  meio  de  ajunctamento  numeroso,  a  que  são 
convidados  todos  os  parentes  e  amigos  — O  par  vive 
algumas  vezes  com  os  pais,  mas  de  ordinário  edificam 
casa  própria  juncto  aos  seus.  Quanto  mais  um  gua- 
ra^o  augmenta  de  familia,  tanto  maior  consideração 
adquire  \  e  c  por  isso  que,  sem  despresar  a  primeira 
mulher,  que  é  sempre  a  mais  estimada,  toma  succes- 
sivamcnte  outras  muitas  na  carreira  da  sua  existên- 
cia. Os  filhos  de  todas  parecem  ser  de  uma  só  mãi. 
Ião  unidos  vivem  :  não  ha  desavenças  ou  altercações 
da  parte  do  marido,  que  respeita  as  suas  mulheres, 
não  obstante  considerar-se  muito  superior.  Sendo  ca- 
Ijeça  de  numerosa  familia,  o  scuaravo  é  um  oráculo, 
passa  tranquillaniente  os  seus  dias,  sem  cuidados  nem 
[>enas,  pelo  que  chega,  quasi  sempre,  a  extrema  ve- 
lhice, isento  de  enfermidades  e  da  perda  dos  sentidos. 
No  centro  da  abundância  provê  com  pouquíssimo  tra- 
balho ás  precisões  da  familia.  A  cultura  dos  campos 
é  feita  em  commum  com  os  parentes  e  amigos ;  as 
mulheres  fazem  de  antemão  a  cerveja  de  milho;  con- 
vidam-se  aquelles,  eao  nascer  o  dia  vão  alegremente 
para  o  campo  •,  todos  os  convidados  trabalham  com 
infatigável  ardor  durante  duas  terças  partes  do  dia, 
em  quanto  que  o  proprietário  está  deitado  na  maca, 
ou,  quando  muito,  dirige  os  trabalhadores.  ^  oltam 
junctos  á  cabana,  onde  começara  danças  serias  eliba- 
oões  por  alguns  dias,  mas  tudo  se  passa  sem  rix;is 
nem  contendas.  Assim  cada  cabeça  do  casal  reúne 
huccessivamente  seus  amigos,  quer  para  derribar  ar- 
vores e  arrotear,  quer  para  semear-,  e  todas  estasope- 
raoões  dão  logar  a  outras  tantas  festas. 

(Continua.) 

Viagens  á.  lia. 

Km  linda  noite  serena,  quando  só  o  disco  da  lua  ful- 
ge no  firmamento,  a  qual  de  nós  não  tem  transpotar- 
do  a  imaginação  a  este  astro  silencioso ;  qual  de  nós 
não  perguntou  jamais  a  si  mesmo  se  o  fielsatellile  da 
terra  não  é  povoado,  como  cila,  de  criaturas  intelli- 
gentes ;  se  não  será  possível  travar  relações  com  os 
nossos  visinhos  mais  próximos  naimmensidade  do  es- 
paço celeste  ?  O  génio  do  homem  ha  feito  tantas  des- 
cobertas imprevistas,  tem  ousado  tanto,  e  tem  tant;is 
vezes  triumphado  pela  audácia,  que  uma  viagem  de 
sessenta  e  duas  mil  e  quarenta  e  seis  léguas,  não  é  cousa 
<|ue  o  aterre.  Vencer  esta  distancia  equivale  a  andar 
dez  vezes  ároda  do  mundo,  e  muitos  na\egantes  teem 
andado  mais  na  sua  vida.  Examinemos  comtudo  as 
probabilidades  a  favor  ou  contra  esta  \iagem.  e  em- 
Inira  destruamos  alguns  sonhos  lisonjeiros  ou  incor- 
ramos na  accusação  de  coarctar  o  pixler  do  homem, 
niostremos-lhc  que  esse  poder,  sem  limites  no  cam- 
po da  intelligencia,  embaça  nos  obstáculos  materiacs. 
o  não  alcança  altea-lo  da  estreita  habitação  <|ue  lhe 
foi  marcada.  1'oude  sim  o  homem,  á  força  de  enge- 
nho e  tempo,  supputar  a  distancia  das  cslrellas  fixas, 
<•  calcular  a  reapparição  dos  cometiis  ■,  mas  é-lhe  ve- 
ilado  sair  do  pequeno  planeta  que  o  transporta  {>elo 
('.•(paço.  Imagine-se  um  acrostato  cortando  os  ares  com 
vento  favorável  que  o  impellisse  sempre  para  a  lua, 
<!om  a  velix."idade  de  vinte  e  três  palmos  por  segun- 
do ;  gastaria  na  viagem  dois  annos  e  cento  e  cin- 
coenta  e  seis  dias.  E  se  preferis  a  vcUx?idade  do  va- 
|X>r,  lançae  mão  d'um  hK-omotor  que  ande  det  léguas 
por  hora  e  caminhe  sem  parar,  chegareis  lá  cm  du- 
'^cntos  e  sessenta  e  seis  dias. 


Dirão  que  o  tempo  nada  faz  ao  caso.  Sou  d'essa  opi- 
nião; não  se  podiam  dar  por  mais  bem  empregados 
dois  annos  devida  do  que  n 'esta  ida  e  volta;  mas  en- 
xergo outros  estorvos  muito  mais  assustadores.  Sup- 
ponho  que  a  machina  de  vapor  está  prompta,  que  é 
bem  segura,  que  viajou  pelo  ar  desde  Paris  ate  ¥e- 
kim ;  tudo  está  prestes  para  a  viagem  lunar ;  é 
partir.  Mas  em  direitura  aonde? — Boa  pergunta! 
me  direis  vós  :  —  Em  direitura  á  lua.  que  brilha  no 
firmamento.  —  Sem  duvida;  mas  a  lua  jvra  á  roda 
da  terra,  e  o  aeronauta,  seguindo  sempre  a  direcção 
primitiva,  jamais  a  encontrará.  Aocresce  a  isto  que 
também  a  terra  gyra  á  roda  do  sol  com  uma  veloci- 
dade de  quatrocentas  e  vinte  e  seis  léguas,  levando 
apoz  si  a  lua,  e  que  em  quanto  a  terra  acaba  em  um 
anno  a  sua  revolução  em  torno  do  sol,  g^ra  alua  do- 
ze vezes  á  roda  da  terra.  A  estrada  por  onde  ella  cor- 
re, desenhada  n'uma  carta,  assemelha-se  a  um  cordel 
enroscado  em  doze  ou  treze  voltas,  e  forma  uma  cur- 
va muito  complicada,  \odecurso  de  muitos  milhares 
d'annos,  talvez  nunca  se  encontre  a  lua  no  logar  que 
occupava  no  espaço  no  momento  da  partida  do  aero- 
nauta. 

Mas  ainda  aqui  não  está  tudo ;  ninguém  pôde  ir 
á  lua  sem  csquivar-se  á  acção  da  gravidade  exerci- 
da pelo  globo  terrestre,  o  qual,  desde  que  existe, 
nunca  deixou  cair  para  fora  do  seu  dominio  a  menor 
parcella  de  matéria  ponderosa.  Em  virtude  doesta 
acção  é  que  os  aerostatos  se  levantam  da  face  da  ter- 
ra, sem  que  possam  todavia  tocar  as  raias  da  nossa 
atmosphcra,  quanto  mais  transcende-las.  Dêmos  por 
vencida  mais  esta  difficuldade ;  admittamos  que.  pe- 
lo acaso  mais  estupendo,  o  aeronauta,  em  vez  de  se 
perder  n.i  immensidade,  chega  á  esphera  d*attracção 
da  lua.  Desde  que  lá  entrar,  a  força  d'attracção  tan- 
to mais  poderosa  quanto  elle  mais  se  approxim.ir  do 
astro,  com  a  velocidade  da  queda  o  fará  em  mil  pe- 
daços na  superfície  da  lua. 

De  propósito  não  particularisamos  as  impossibili- 
dades piívsicas  da  nossa  organisação.  Todos  as  conhe- 
cem, todos  ascit.im;  são  incontestáveis.  O  limite  da 
atmosphera  não  pode  passar  de  sete  Icíguas.  e  já  na 
altura  de  pouco  mais  d'uma  légua  é  o  ar  tão  rarefei- 
to que  chega  quasi  a  não  se  poder  respirar.  Suppo- 
nhamos  igualmente  que  este  obstáculo  se  remove,  e 
que  o  viajante  leva  comsigo  uma  provisão  de  ar  para 
dois  annos,  como  os  que  descem  ao  mar  debaixo  de 
certos  sinos  merçulhaaores  levam  para  alguns  minu- 
tos ;  figuremo-lo  chegado  felizmente  ao  termo  da  sua 
viagem,  poderá  elle  viver  na  superficie  da  lua  f  Não 
é  de  presumir,  porque  tudo  prova  que  este  astro  não 
tem  atmosphera,  e  não  pôde  por  conseguinte  ter  agua  ; 
segue-se  d"aqui  que  a  nenhum  ente,  cuja  organisação 
plysica  for  semelhante  á  dos  animaes  terrestres,  c  da- 
do viver  na  superficie  da  lua. 


Fabrico  dos  espsluos. 


Mk.  Tourasse  achou   o  meio  de  livrar  os  fabricantís 

d"espclhos  das  emanações  mcrcuriacs,  sul>stituindo  a 
amalgama  de  estanho,  vulgarmente  chamada  aço  de 
esf)clho,  por  uma  solução  de  nitrato  de  prata,  a  que 
junctaahiHil,  carbonato  d'ammonia,  ammonia.  eoleo 
essencial  de  cássia.  Derrama  o  litguido  assim  prepa- 
rado sobre  o  vidri»,  accrcsccntando-lhe.  no  momento 
da  op»>ração,  óleo  essencial  de  cravo  da  índia.  Passa- 
das duas  hor.is  a  com]Kisição  cribre  o  vidrvi  d'uma  ca- 
mada do  prata  amais  pura.  Comeste  aperfeiç-oamcn- 
to,  que  por  ora  gosa  de  um  privilegio,  nào  saem  o» 
espelhos  por  maior  preço. 


o  PANORAMA. 


57 


PAÇO  DE  VII.I.A-VIÇaSA. 


/iLl-A-V  iroHA,  (lislMiitc  iJo  Iji^liD.i  vinti!  c  oilo  léguas, 
.'Iil\;is  quatro  [lara    o  poiMilc,    i;  cIMOvora    oito  para 

ri  a  ICC  II  ti',  foi  calicça  de  comarca  e  ouvidoria,  i|m-, 
?;;uiidii  a  fçcu^rapliia  de  I{cc;o,  coiiiprclicndia  doup 
illas  com  (jiiar.Mila  t*  sele    IVcguczias,   dez  mil   foi;os, 

trinta  p  duas  mil  aliiias(l):  «fra  defensável  por  •(i'ii> 
luros  antigos,  e  por  um  peipieno  castello.  licamli)  o 
rosso  da  povoai^ão  para  aparte  do  poente  :  a  priíiiei- 
a   forliriraciío  rejrolar  foi  olira  di'  D.  Diniz,  nu,'iiicii- 

ada    depois    pi'lii   inclil Jiidestavcd     Nuno   Alvares 

Vreira. 

Poucos  nomes  liaverá  tilo  adei|uailoa  aos  lo;;ares,  co- 
ió o  d  esta  villa  ,•  por  ipiaiilo  vii;oso,  a[>rasivel,  fer- 
il,  saudável,  fresco  de  aijuas  e  arvoredos  é  todo  o 
alie  cm  (pie  tiMii  assento.  K  geralmente  liem  edifi- 
ada,  com  al;;iiiis  edilícios  iiolires,  illustrando-a  os 
iiços  mui  amplos  ouile  tiveram  sua  côrti"  sumptuosa 
s  sereníssimos  iloipii'S  de  ltra'.;ani;a,  já  príncipes  so- 
eraniis  «nies  df!cio;;irem  a  coríVi  de  l'ortU'.,Ml.  ("oii 
ulti-  se  n  este  respeito  o  artijço  de  arclieolo;;ia  portii- 
juoia  u  pn<r.  ,1:t8  do  vid.  do  Panorama  di!  IStl. — 
pamos  o  desenho  d»  froiitaria  do  palaiio,  tal  ipial 
|»tava  antes  das  modernas  reparações.  Adjacenli' lhe 
[CU  H  celehre  tapada,  com  tre»  h-^iias  de  circuito,  oii- 
e  é  tanta  n  caça  iniiida,  e  a  de  veados  e  (oitriis  ani- 
laes  monteies,  ipie  (na  expressrio  do  historiador  da 
?a«a  Uragantina),  aimla  sendo  o  sitio  fértil  por  na- 
Jire/.a,  ns  siislenta   por  marivilhii. 

(1)   No  niiip|i,i  lia  |jo|]ulai.;iio  lio  reino  cm  1I1'J0,  foiíiiailo 

jiclo  Sr.  Kraimiii coiilia-sc  a  c(Uiiarca  de   VlIU-Vivosa 

tom  !)0  frexuczias,  ÍIIOO  Iokos,  «  .IIIH»  .ilmas. 
VoL.  1.—  (Jiniiiiio  'ii,   1H4G. 


A  insif;ne  collecjiada  e  real  capell.i  de  Nossa  Se- 
nhora da  Conceição  i;  tida  pela  mais  antiga  d'IIes. 
panlia  com  esta  invocação.  O  Sr.  I).  João  I^  ,  em 
<drti's  dos  trcs  estados  no  aiino  ile  l()í'2.  tiunoiíe  ju- 
rou a  Senhora  soU  aqnelle  tit  iilo  por  l*adroeira  do  rei- 
no, o  \\\'o  fei  Irilmtario  em  ciucoenia  cruzados  ileou- 
ro  cada  aiino,  .ipplicados  para  a  dicla  ij^rcja  de  \  il- 
la-\  içosa.  —  t)  Sr.  1).  João  VI,  por  decreto  de  tí  de 
feiereiro  de  1S18,  instituiu  a  ordem  de  Nossa  Se- 
nhora da  Conciução  di;  \  illa- Viçosa,  com  i;rão  cruz.es 
clleotivos,  que  são  todas  as  pessoas  rcaes  ile  ume  ou- 
tro sexo,  doze  gr.ãi)  crnues  honorários,  qiiareiíta  coili- 
iiiendadores,  o  cem  cavalleiros  :  foram  d.ulos  os  esta- 
liilos  peloidvará  de  10  ileselemliro  de  ISID.  ( )  Dcãu 
da  capella  era  sempre  hispo 

Na  irrupção  dos  arahcs  padeceu  esta  povoação,  qiio 
é  de  aiiliqiiissima  data,  o  c.iptiveiro  !;eral  da  Hespa- 
iiha,  até  que  l<ii  ciunpiistaila  |ior  elrei  1).  .'MTonsoIl 
pelos  aiino^  de  l'JI7.  <  "oiii  .is  continuas  ■;uerras  pos- 
teriores chegou  a  total  mina;,  poriam  O.  .\lVonsolll" 
a  reedificou  logo,  i-oiicedcndo-lhe  foral  com  mnitiw 
privih-gios.  I'',iii  1  no  foi  erecta  em  niari)ue/.ido  por 
elrii  I).  Allcuiso  V  a  f.ivor  dei).  Kernando,  filho  se- 
giiiido  do  iiui[iie  lie  Itriigauça.  'I\'ve  a  gloria  de  sep 
o  lierço  do  senhor  rei  1).  JoãoIV,  n  restiuirador,  quo 
era    o  oitavo  na  serie  dos  diiqiiesd.t   mesma  real  casa. 

I'',m  Kiti,')  II  mari|uez  de  Caracena,  que  veio  snhs- 
titnir  1)  •loão  iTAustria  no  mando  do  evenito  cas- 
li  lhano  contra  aprovincia  do  Alcmlejo,  intentou  por 
primeira  oper.ição  tomar  Villa  \  içosa,  eru  entãoo 
nosso    gaiicrul    o  inarquer.   de  Marialva,    que  acudiu 


58 


O   PAISORA31A 


com  todas  at  preven<;õe9  de  que  era  capai  a  fortifica- 
ção da  terra,  achando-ae  lyue  só  ocadcito  ednva  suf 
ficieiíle  paia  ilifendcr-sc,  como  escreve  o  uoiuie  da  Eri- 
ceira, e  luu  tUhil  THíplaculo  que  não  ic  podia  cmisi- 
firrar,  ijuc  a  dtfema  permanecesse  niuiíos  íii<is.  A  9 
de  junlu)  a  vanguarda  iiiiiuiga  eslava  em  Bwrba,  que 
fica  a  meia  le;;ua  de  distancia.  O  governador  Chris- 
tovam  de  Brito,  e  os  mestres  de  c;.inpo  Manuel  Lo- 
bato e  Francisco  de  Moraes,  guarneceram  os  postos, 
que  entenileram  dever  guardar,  entre  elles  os  que 
pareceram  necessários  na  VilU-Vellia  para  dilatari-m 
o  mais  tempo  possível  o  provimento  da  agua  ',  e  as- 
sim repelliram  a  primeira  investida  feita  atrevida- 
mente por  a()uella  força  da  vanguarda,  que  no  acco- 
iiieltimeiíto  perdeu  trezentos  homenii.  Omarquez  de 
Caracena  alojou-se  no  paço;  porem  a  artillieria  do 
oastello  o  ol)rigou  a  despejar:  no  dia  seguinte  man- 
dou assaltar  (.elo  lado  da  porta  da  Senhora  dos  He 
médios,  mas  foi  rebatido;  em  seguida  tracfnu  do  si- 
tio formal  da  praça,  jogando  do  outeiro  da  forca  a 
primeira  bateria.  Em  11  de  junho  começaram  os 
aproches  ou  trincheiras,  e  as  levaram  tão  perto  do 
convento  da  Esperança  e  da  camará,  que  chegariam 
com  os  três  ramaes  á  estrada  coberta,  se  o  talor  dos 
sitiados  IWo  não  embaraçara  :  a  13  e  14  adianlaram- 
se  muito  ostrabalhos;  eámeia  noite  ordenou  o  mar- 
quei um  furioso  assalto  á  estrada  coberta  ;  treí  veres 
foi  repetido;  era  nin  exercito  conlr.i  um  ponto  mal 
fortilicado,  e  defendido  por  diminuta  guarnição  ,  e 
frcs  ve/es  foram  rechaçados  osexpugnadores  com  per- 
da considerável.  O  governaiior  e  os  dois  mestres  de 
campo,  assignajaiido  se  no  conflicto,  receberam  feri- 
das, e  não  se  retiraram  até  o  fwn  da  contenda  ;  po- 
rem, sendo  mais  graves  as  do  primeiro  e  de  Manuel 
liobato,  recollieram-se  ao  castello,  e  ficou  Francisco 
de  Moraes  assistindo  á  estrada  coberta.  A  lo  de  ju- 
nho mandou  o  marquei  de  Caracena  accommetter 
novamente,  e  depois  de  porfiosa  luct.i  por  muitas  ho- 
ras em  dciis  tremendos  assaltos,  ficaram  os  inimigos 
de  pos-e  de  dois  alujamentos  n'um  angulo  da  estrada 
■  oberta,  e  os  sitiados  n"uma  corlaciura  que  haviam 
fdbricadi. 

Inteiraiio  d'este  apuro  o  marcjuei  de  Marialva  re- 
solveu soccorrer  Villa-Viçosa  a  todo  o  risco  com  to- 
das as  tropas  do  keu  cominando,  porque,  apesar  do 
não  ser  praça  de  grande  importância,  se  o  inimigo 
a  occopasse,  estando  situada  a  duas  léguas  do  Estre- 
moz, ficaria  dVsta  sorte  arbitro  das  estradas  d'Elvas 
eCampo-Maior,  eaehi;ria  com  modos  alojamentos  nas 
\illas  próximas,  logares  dos  mais  abundantes  da  pro- 
víncia ,  n'este  presupposto  tez  marchar  o  nosso  exer- 
cito; e  o  marquez  de  Caracena,  resolvendo  desbara- 
ta-lo na  marcha,  levantou  do  sitio  da  villa,  deixan- 
do nos  entrincheiramentos  um  corpo  de  mil  e  oito- 
«;enlos  inf.intes.  O  resultado  do  encontro  foi  a  celebre 
batalha  de  Mentes  Claros,  uma  das  mais  notáveis  que 
ganhámos  na  guerra  pela  independeneia. 

íío  entanto  os  'itiados  não  ficaram  ociosoi ;  faten- 
do  uma  sortiria  todos  os  que  se  achavam  capazes  de 
pegar  em  armas,  apesar  de  pertiníz  resistência  to- 
maram as  trincheiras  com  morte  da  maior  parle  dos 
que  as  occiípavam,  assenhorearam  si-  da  artilheria 
grossa,  e  coroaram  lom  esta  acção  todas  as  que  valo- 
rosameute  tiuliuin  practicado  na  defesa  da  praça. 


O  PoiiTiricz    Vio  I\. 

(Continuado  de  pag.  49). 


EsTB  homem,    para   quem    as  esperanças   do  mundo 
christão  «orriem  todas,  e  só  com  o  seu  nome  docnina 


a  Ttalla,  nasceu  na  Siiiigaglia,  perto  d'Ancor.a,  e  t 
da  antiga  casa  doscondes  de  MastaiFerreli.  Foi  pe- 
lo ofCcio  da  guerra  que  principiou  a  carreira,  q';< 
havia  de  completar  a  máxima  honra  do  pontificad' 
No  tempi)  de  Pio  VII  serviu  como  guarda  nobre,  e 
distinguido  pela  estimação  do  Papa,  despindo  a  cou- 
raça, trocou  um  dia  a  alegre  turbulência  das  armas 
pela  austeridade  do  estado  sacerdotal. 

De  certo  eslava  bem  longe  de  suppôr,    quando  fa- 
zia o  sacrifício  de  todas  as  illusões  mundanas,  que  a 
humildade  daquella  roupeta  se  mudaria  brevemente 
na  purpura,    e  que  a  fronte    se  ergueria    coroada    de 
tiara  de  (jregorio  Vil.  Q.uem  sabei    A  vida  de  sol- 
I  dado,   pouco  apertada  de  escrúpulos,  livre  como  océu 
I  que  é  o  tecto  dos  arraiaes,  e  desafogada  de  preconcei- 
I  tos  monásticos,  preparou  talvez  afortuna  deMastai- 
j  Ferreti,    desenvolvendo  qualidades  latentes,  que  ou- 
tra educação    p<jde  ser  que  annulasse.    A  oli-ervação 
j  continua,    e  a  vista  penetrante  de   um  caracter  con- 
cenlrailo,  como  o  seu,  descendo  ás  entranhas  dos  er- 
ros é  de  crer  que  de  golpe  abraçassem    as  causas  e    i 
cura  dVlles.  No  silencioso  estudo  do  homem  reflexi- 
vo, ao  pas«u  que  os  vicios  lhe  appareciam    descarna- 
dos, a  razão  apontava  o  remédio,  eopen-amento  er.>- 
vava  indelével  o  principio    das  reformas.    \  escnlha 
do  conclave,    e  o  voto   unanime    com  que  a  Itália  a 
confirmou,  .ifliançam  bem  que  nem  taes  ideias  eram 
um  segredo,    nem  o  propósito  de  as  realisar  deixa.  : 
de  ser  uma  resulução  inabalável. 

.Mas  qual  loi  o  motivo  porque,  mudando  devo 
ção,  .Maslai-Ferreli  encostou  a  espada  juncto  d.i  ■- 
pada  de  seus  avós,  e sepultou  nobreza,  esperanças.  • 
os  mais  doces  enganos  d'uin  curaçã<i  tenro,    iiatrist-- 
severidade  da  vida  cleri-al.'  Que  olistaculo  ignora  ! 
se  lhe  ergueu  diante,  ou  que  ferida  lhe  cortaram  i 
alma,    para  «He,  desesperando    do  mundo,    ir  ra»-af 
os  joelhos  nos  espinhos  d.i  penitenci.i  .'  Q.uasi  sempre 
é  pelo  desalento  que  se  fecham  para  qualquer  atpjir 
tas  do  secult»  —  como  f(»i  este  acolher  se  ao  ptjrto  ;,-. 
tes  desentir  sobre  a  cabeça  aamargosa  onda  das  I    • 
mentas  do  mundo.'  Foi  toque  doceu,  ou  fi>i  dOrd".j 
fccio  illudido.'  Esse  mvslerio,  se  oéf  dorme  ci>m  <1 
le,  sumido  no  seio  do  coração. 

Logo  nos  exercícios  escholares  ecclesiaslicos  revelou 
talentos  elevados  eprefundos;  c  mal  os  acabava  quan- 
do já  era  enviado  ao  Chili  para  missionar.    A  rapa- 
cidade  e  o  zelo  apostólico,  que  demonstrou  entre  pe- 
rigos e  difticuldades  graves,  confirmaram    o  concei! 
que  geraram  as  suas  virtudes,    e  justificou  sempr-    ^ 
sua  psphera  superior.   Os  acontecimentos  políticos  d"a- 
quclla  terra,    al>reviando-lhe    a  missão,    restítuíram- 
no  a  Koma,  aonde,  cm  recompensa  dos  pideciínent'.- 
eserviços,    ^io^II  orevestiu  da  purpura  decardeal 
Foi  rápida,  porem  não  excitou  ciúmes,    a  cxalt  . 
ção  de  Mastai-Ferreti.  Certos  homens,  depressa  q... 
sedislinguani,  nunca  espanta  a  sua  grandeza.  Aoons- 
;  ciência  publica,    concorde  em  que  lhes  pertence  u:n 
I  logar  eminente,  acompanhaos  com  louvores  até  «i- 
liirem  o  ultimo  degrau.    O  que  o  maior  numero  al- 
canç.i  por  empenhos,  obtém  esses  raros  p.  la  m;tis  ri- 
gorosa jiisliç.^.    O  novo  cardeal,  duladi"  de  "jenernM  • 
sentimentos  e  de  engenho  cultivado,  ja  provara  r  ■ 
ta>el  aptidão;  pouco  tardou  que,  preenchendo  fn: 
ções  não  menos  espinhosa»,  deinonslrasve  sersuaei.    - 
tural  a   estrada  que  leva  as  primeiras  dignidades. 

li  bispado  dlniola,  cm  que  o  apresentou  o  papa. 
depois  de  servir  ni>  de  Spoleto,  foi  o  ihcatro  aonde J 
larga  e  pr>>l'icuamenle  poderam  .if^parecer  «s  grande»! 
qualidades,  que  o  ilbistravam.  Foi  .ihi  que  ocara..'terl 
frio  e  prudente,  .i  lirmeta  de  vontade,  e  a  reclidã 
djs  decisões  lhe  grangcaram  onome,  que  o  tornou  lã"! 
querido   da  Itália.    .\  administraçãu   descuidada  d<i^ 


o  PANORAMA. 


59 


1  „   ,;nhA  (leixdo  lavrar  abusos    Mastai-Ferreli   estremeceu,   e   inclinando   a   cabeça 

Li,po,  se.,  antecessor-   fnb.  d    K^  ^^  ^^^^   ^,.^.,,,^^,,^  MIulade.    m.u 

euc.os  q>-^  •"-  7i    j         TLle    desde  í,o    Deus,  e  e„,  <jue  ,no,nento  !  .  Só  .s.as  pa b.vra.  retra. 
,             [L  "s  1                 n<õe.  de   M.,stai.Ferreti  ■,     fam  um  grande  homen..  Aquelle  que,  da  n.:uor   al- 
contaram    com  as  •>»"  "^J'^  ^  ^1,^    ,„ra  da  grandeza  humana,  senão  cega  com  oesplen- 

„,a.  o,  mezes  ^^f -"  ;  ;.;„^',;.  ",^.,,„.,,„,.,;  pa.i-  dor  da  tiara,  o  sente  vergar  „s  hombros  deba.xo  da 
naodava  ^'S"--''=  -l--  ''  ^^;'  '';.;  ^^„^,  ,i,,.  O,  impa-  peso  da,  funeções  que  Voe  incumbem,  deu  a  n.a.or 
v„  dos  male»  que  su^puavam  ^    ^  .,   ^V^    ^  P^^^^^  ^^  ^  _^  ^^^,^_^  ^  i,„portancia  da 'ua  missão    e 

•  ^»„t  rpvn'viam-«e;  ot  ^ensaio?  tu..... j  ,  -       ,_„.„„,  ,1^  (ornada  a  que  se  vai  melter,    verda- 

r  o  -iíXes  íevan.avam  a-i-^-^Xt  oiro'  ,p^olo  Írguendo  ^  cru.  de  Christo  no  me.a 
«Jo»    «  "..  -  ,  _   ..  ,,„  ,„„„„tP  o  simulado  rep»u    j  jjj,    j^,       ^o  scepticismo,    e  da  confusão  do  se- 

,.;.1„.  NVs.e  dia  a  igreja  I'"'"!--';'"-.^'»""^  ^J^^ 
como  arca  da  lat.,ra  allianra.  -  Das  rumas  do  mun- 
do velho,  do  mesmo  modo  que  na  era  dos  césares, 
sairi  oe.iilioio  da  civilisaí,no  moderna  ; —guiada  pe- 
,,  .„,,i,.i,o  do  evangelho  ha  de  encontrar  a  colu.nna 


..rd^:í^:-e;^n.^o;mu,ado...^ 

so.  fugiu   a  inacção,    e  o_  novo  ';^"'_F^,;;,;'\..„i,„,„.,   Ja 


so.  fugiu   a  maci-au,    -  ^  ■■■  ,,„„plelo   da 

v.-P-n>r^^'l-^;;^t:'    :-X-•-•-'^"S- 
r,.organlsa.;ao  des-jada    S  ■  -  ,        H„„„.„a,    e  a 

binete,  levou  •-> /^ j'  ^^,  i^^^e  „,,duras  queas  podiam 
„.^r.ar  aye^^  '^...icamente  ..  M-u  systema,  j  -'j;;;-'-;;;::  í,;;;-;,;^,„o  deserto,  em  que  a.rans- 
''  Z  se  sem  s  orv"^^.,  abençoado  pelo  ^"o  «.pe-  M  qu^^  1  ,^I,;_.„^.,,  ,„„^,,,  „  „deres  huma- 
Tvo  e  O  auX,  objecto  da  mais  Mva  ""';><;"''  v'  I  ".  ,  ;.i''ados  por  terem  perdido  a  fe  e  esquecido  a 
:  ccer  a  -.  diJcJ  nos  bra,os  da  pa.  e  do  conten-  -J^^^,;.^,  /..<,edade  ^,ova  tornou  o"tra  vez  . 
1                                                                     „,      I      1  ._......,...  n..,.,    nHo  terrível,  ameaçador  ecoroa 


;  rs;,bias  e  maduras  queas  podiam 

rom-ertar  as  reformas  sal.iase  ma  i 

icatrisar.    Estudado    practicamente 

ex 
po 

♦^■ír;;--t.nb.aoseu..c,er^ 

..orno  .lissemos,    o  arcebispado  d     S^    ^           ^^^^  ,^^^ 
romanos,  accendeu  o  laU.o  "■'       _^  j  ___^    ^^_^_,,, 


adorar  o  seu  D.us,  não  terrível,  ameaçador  e  coroa- 
do de  raio,  como  no  Sinai,  mas  brando  ^  "'h-'^"'  '" 
do  piedade  «esperança,  como  ajoelhou  ""  l'"^'"  ,^  f";. 
deceu  no  Calvário.  l>o,sa  o  sangue  de  tantos  n^  t> 
res,  descendo  s.obrea  cab-ga  dos  netos  de  nossos  f.llus- 
d-.r  lhe,  a  felicidade  porque  lanio  suspiramos,  eque 
:    iVnu  sempn..  fms.rando  o  preeo  delagnmas  por 


—  u  [\a  vernaue,  ..."■-  '■•■•  .    , 

licia  importante.    E  os  papeis  aonde  '•."'••'«" 
Lulii-losaqui,  respendeuocommissario   „ 

.,K„tão  espero  que  m'os  entregueis    -." 
.Ma,  devo  remei te-lo.  par.   !tom 


solemne  |uiu,o..!-=    que  se  pu-...- -^     „„trp  id- 

diversas    .essoa,  tinhan.  ji  ^'t'- "7"""       i.  F^rre 
las  o  famoso   ma.hema.ico    Orioh,    <>,-'"';'/;^7;'j'^ 
innão  do  cardeal,  e  outros  mais,  poren.  -"=  ;''^'°  '^'' 


_..  Ma,  devo  reme.te-lo.  para  '^<""»;  ;  ;  "    _^^^   „    eonciliaçHo  nr.opoude  verifuar-se  tao  J'M'---;^  P     ' 
_..  Dai  n,\.s.   Fu  é  que  se,  o  que  se  deve  la/,e  .      ,  J  .„„  „,e  nu.veram,    e  pela  clássica 

O    o  n  nissario  não  insistiu,  e  entregou-U.  os    p     -  ,  o  ^  -  u  ^^^^^J^^^.^  ^„„^,.,,,.   Kntre  tanto  .,  l'.u.- 

«uadido  de  que  o  arcebispo    os  ia  enviar  —■"■■'"-,  ^|'i,.^  ,dei,o,     ''i^'-^— .'"^'^';,P;;;;:;     ^ 

-rZ  ;;;;:":;...    n.i  na  reaUdade  grande  quamb,     medidas      «upp^miu    .,s^  c.nrn.^^  

.  íu'|:v:n,ar-s,:,  qu-brar  o  l^";;;;;,    3;;:  ^^'''^^     r'd:^:uLncia    puMiJ    eu>  cada  semam.  para  .m- 


„  viu  levantar.se,  quM,rar  o  lacr..,  edcq,>u^  J^^ 

-e..^.-^M '"-'lí:,:,;;;':;;:!^;:;;^:: 

p^lj^s!.  a  estas  tamil l  lag,  ima,  c  a  magna  de 

*"i,^;;:';:.i,;  fae„.  ,.i  premiad ou,,  -.•;;';-„;^- 

j,„rio  .\VI  soub,.  d.slin.M,,.-  o  ,„.-l:,do  que  entendia, 
M  meio  da,  eo,ninov>es    pobtoas,    qu 
governo  do,  pov..,  se  dirl-e  pelo  amor 
'"'r"n:;an.e    prae,  iea    d,,  vn  I  odes  religios.s,    e  o 

dei  o  ;.  eharidlh.  para  cou,  as  classe,  ."''■--- 
naram-nopopular.n.  Imola.  <)s-l..O|neer.,o^^ 

rndo  como  svuibolo  d'esperança    e  salvaço.    Sup.mr 
nu     u  u     da,^.rincipae,  ravõ„H  da  sua  ele.çao  fosso  o 

r.    nar.iculareonhi.ei ,o  da  Uomagna,  e  a  cer 

a  d  ,  -a  inlluencia  moral  sol,r..  a^u-H-  "'..ao  aon- 


ne  o  verdadeir 
(•  se  funda  na 


.ii<>(ltil\s       c*uporioiui    »'3    *-" .     , 

r  ,s  nueiuliavam  nas  provindas  •,  estabeleceu  um 
d  'd'auLncia  publica  eu>  cada  semana  para  -- 
,;,  „  ,.,dos-annunciou  e  -'-í-'."  P"';^''  ,^7 
e,„Korrencia  para  empreras  de  caminho,  de  r 
n,.oois  .l'estas  não  se  demoraram  as  outras  mais  ur 
„ente»,  que  demandava  o  estado  temporal. 

'  ,)  rontiíice  começou  as  '•■f"^'""V"",''7"'No  diã 
,„„nias  na  sua  casa  e  na,  despega,  doestado  ISodia 
odejulhosaiudoUuirinal,  ?  --P-'-;'  ^^  ; 
gons  prelado,  dirigiu-se  á  igv.-,a  <'- ^"l^^^;?  '^^  ^ 
(Mcmente  \lV<u,e  não  havia  eKemph.  de  se  v.r  um 
I  ,  :  :minhan.lo  a  pe.  (iuando  regressou,  rom  e- 
Ln,  grandes  acclamaçòes  de  p,.vo,    '-•';-••,;: 

,;ão  d .guinte s.òe,  :  -  (  ouu,  se    e     ■         Ir 

.,„   pnqeeto  d'amnis.ia   por  cousas  H""'";         /'^ 
,„J,  j  hão  .le  reend...lçar  os  credores  doestado,   h. 

,.„viria    dar  baixa  ás. ,■opa,^es.r,u.ge,rrs-^P 


'ir:        i:;nuen;.i;i  mora.  sobre  - dl:^  "'f 'i;':-     Ti^'   d       oUbli   .^la  bd  d'. Mi-,  <.-  •"•-'•;- 

'l  a  elb.rvescencia  poH.ba  se  não  podia  -';  -'  „     M    ^^  :  ..,  ...dencead:,,  politi.o,,  --i^':-';';'  ^     1^, 

-o  pel lluxo  de  um  g nu-  pa.ernal,  |  ^^_.,., ,^  ..  ^.,    ....dos.    A  r.-^  -T-     <     ^l;; 

amargou    «o  cora(;ao  do  papa,    ma,  1.  \t 


Itiio  p 

demasiado  nvenlunir. 

Xeleieão  do  novo  papa  desmentiu   lodos  ..sprogno 

tico,,   a' Providencia  qni«  mostrar  e -'';  f 'l^''  ^ 

osseu,  decretos,  e  isoudavel,  osseus  n<.  ,  erio,.   N    n 

cu, «reuniu    sacro   eoUegu.   '---»-""'."■,;;;;' 

houve  eleição  ni.ii, breve  e  menos  '■''-"•''''■•*;  ^.      ,„,,„  de  proscriplo, 

do  .e  leu  no  escrutínio  o  voto  que  o  bi.iu  i-ontiiiu,  l  l 


""""•íí""'    ""  """^ ■    -  '       .  n.rlido  estacionário, 

nara  amortecer  a  opposiçao   do  parli.l.i  .  su 

■      „.á  vontade  da  grande  po. la.  T'V''.|r.    d. 

,...    ^  an.nis.ia   da  a  Uberdade    »  •:""*•''•;;,.        . 
,..„,.„  individuo,,  eresll.ue  a  pa.v.a  um  grand.    nu 


60 


O   PANORAMA. 


o  povo,    meia   hora  depois  d^affixada    a  lista  dos  |  como  nunca  vi  nenhuma,  deix^-se  cairão  pede  mim 

amnistiados,    correu    massiço    e    cerrado    ao    palácio,     fdic-ndo  uma   bulha  que  Odrecin  um  trovão   Eh  lá  ' 

enchendo  os  ares  com  as  repetidas  acclamai,ões  de  Daniel!  me  disse  ella,  tncarando-me  muito-  como 
"  fiva  u  papa\  /'ira  Pio  IX\  "  Aorchestra,  que  ás  \  vai  isso.'  —  Muito  mal  por  em  quanto,  lhe  respondi 
dez  da  noute  locava  na  funcjão  da  igreja  da  Magda-  ,  eu  apar»iilliado  por  ou\ir  esta  ave  seVa^em  Wlar 
lena,  toi  levada  no  íropel  das  multid.je,    ale  o  Uui-  j  cm  bom  irlaiidez;  quem  me  dera  pilhar-me  no  meu 

rinal,  e  manifestou  com  unia  serenata  os  sentimentos     "•-■l  '    ''- •  ■  — ... 

da  cidade.  Roma  illuminou-se  .muitas  noites  a  tio  ^  e 
em  toda  a  Itália  crescem  e  amiuaJii-se  as  rumarias 
a  visitar  a  casa  onde  nasceu  o  cardeal  .Mastai-Fer- 
reti. 

E'  assim  que  se  annuncia  o  reinado  do  pontífice. 
.\  igreja  encontrou  a  desejada  coliimna  e  tão  necessá- 
ria para  suster  as  contrariedades  dos  tempos  ásperos. 
A  barca  deS.  IVdro,  exposta  ás  luctas  de  um  sécu- 
lo atribulado  pela  du\ida,  e  devorado  pela  interior 
agitação,  concedeu  Deus  o  piloto,  cujo  braço  lirme 
fMMfríít^A ..   «  1 -. ;  .     1  —  I 


egendo  o  leme,  nomeio  do  e>pumar  das  to^n.entas'     o  n,eu''auxmo 'irão^Xri'''"^  "^^^ 
desviará    do  naufraíri,,.    ft„.i    ,pr/.  ..  I.„r.„   ,l„   |.; .  i.   :        "°  "-"^  '^"  «^  esta  ilb 


a  desviará  do  naufrágio.  Q.uíiI  será  o  logar  de  J'io 
IX  na  historia  e  na  civilisação  moderna  .'  Ao  tempo 
cabe  decidir.  Mas  a  primeira  hora  descobriu  a  luz 
de  uma  intellii;piicia,  que  promelte  resplandecer  so- 
bre a  igreja,  solire  os  povos,  e  sobre  os  reis  da  terra, 
como  resplandeceu  nas  trevas  dos  subterrâneos  sobre 
os  primeiros  eliristãos,  e  sobre  o  cenáculo  dos  após- 
tolos, o  fogo  da  fortaleza  que,  insjiirando  os,  os  levou 
pela  mão  da  esperança  aos  pés  da  cruz  ás  mais  re- 
motas e  barbaras  regiões. 


casal  .    1  ergunta-me  |«jr  que  casualidade  vim  dar  no 
meio  da  noite  a  esta  ilha  deserta,  e  eu  conto-lho  co- 

cair  n'a::ua  TouVrr'   ^"''"  '^'^  •""'   "««  «l«i"i 

que  nã^rc"ousa    "  re',er  ""  7""  '  '"'"*^'  ^'"''- 
mem  dia  da  íestaTx     ^^^"^ ''"''•""-har-se  um  ho- 

boa  alma,   e  l!^     nÍ  ÍpXfjs     ?"'  "'""  '"""-^ 
nhos,  quero  expor  a  vid.n^   V"      V"  ""'  ""^"'  fi'^'' 

n.inhas  costas,  re/,lel?:i  o  ''"V"  '"^'^  =*« 

do  que  eu  helu..:      C^^^^^^^'^  ^^P^-^  -"- 
centou,  encolhendo  ««  n  ?v        P^'-"»'  accreí- 

.  "..u'auxmo     t.     P  ,'""  ^:^^'"  «í"  peito,  seo. 


so-ihe  muito  que  :xt'.r'::::í°'^^"-''°'- 

lucuiiias  que  eu  sou   lorna  '  Xí^  .  • 
P"S  dois  homens'com  espin 'a  das' '    o  °    ."  ""'  '■""" 
chumbada    para  ler  o  goslo   de  iV  r "  '"  """^ 

Daniel    Q-Holkke    of  o  sonho    d'i.m    iíbbeukÂo.  I  Cc"  inuma  w',^r'''''V'"'''"'  '"  ""'"""  d"  "osso  vai! 
,.,  ,,.,,,,..  .  do  sen  dobo.  ''"^•^''■''  "■'"»'■■' ^""'o,  bem  no  meio 

JN  c.MA  aldeia  d:i  Irlanda  vivia  antigamente  um  po- 
bre camponez  crédulo  e  simples,  mas  pessoa  muito  ca- 
paz, sem  outro  defeito  mais  que  uma  inclinação  for 
tesita  aos  folguedos  da  taberna,  e  uni  amor  lirme  á 
cerveja  e  ao  vviskv,  duas  bebidas  (jue  elle  confundia 
nos  seus  desejos  quotidianos,  e  que  muitas  vezes  lhe 

r-.u..l..-U 1 :.:    .l„l  :):.     .1  i        ■   .      . 


do  sen  globo. 


Deu 


-Assentar  me  na  lua  !  que  lembrança  •  \-  IK 

us  :  como  ouer.,i«  „...  „.^..-      """'^■"•S»  -    >  alba -me 


j    -  -í 1-1 —  .K.3   "='■'='  '"e  I  ueus  :  como  O iieriíis  ,...  ""i»  .    >dioa-me 

perturbavani  a  cabeça  já  debilitada  pela  idade.   Um     sem  cair.'  «jueeu  possa  assenUr-me  na  lua. 

dia  voltou  d\ima  viagem  comprida  o  moço  senhor  da  Ora  essa  '   I -i     I 

terra;  grande  rumor  »ai  pela  aldeia,  grande  festa  no     a  esta  fouce  com  as^n-       '"'",."  "■""'"i'^"  i  agarr.vle 
castell.,  I   f)l„.,„  n.,„;«l  „.-..,  r.  11,..  .   „ii..  .;_     _..-  .         I  .  "^  •■"'"  *'='  "'aos  ambas,  que  ella  le  suste 

—  Nada  :  nada  ! 

^«  bato  com':ima  das  ;L::rr,:x::p-- 

—  lor  quem    sois!    compadecei. vo,     f».  V      i-j 
mim  !  I"»uecei-vo5,    tende   do  de 

—  Leva  de  lamurias.    Q.uer»«    „ 
Wa^;meumii.slanle,esenU::;.':,Vi::.''"^'"^'^- 

oMo.n»,. ...^    |i»ei  sobre  ogh.bo  escorrecadiço, 


■    ->  r    5   Q.«..vj^   n;oia   iiu     a  esi 

castello  !  O  bom  Daniel  não  falha;  ellc  sim,  que  tem     tara. 
a  seu  amo  tanta   amizade,    logo  vai  que  deixasse  de 
Ih  a  provar  bebendo  muitos  e  bons  tragos.  Ao  anoi- 
tecer cada  qual  dos  convidailos  foi  se  chcando  para 
o  seu  casal.  Daniel,  que  ainda   tem  que  ajustar  con- 
tas  com   iim  respeitável    frasco  de  aguardente,    licou 
sosiiilio.     Levanlou-se    a  final,  disse  adeus  a  este  dia 
de  felicidade,  eencaminluiu  sc^  paraovalle,  onde  sua 
mulher  o  espera  na  choupana;   ora  pelo  caminho  suc- 
cederam-lhe  casos  estupendos,  que  hão  de  amd.t  ser 
repetidos  nor  muito  tempo  nos  serões  da  Irlanda.  Mas 
deixemos  ao  bom   Daniel  contar  o  conto  das  suas  pe- 
regrinações e  agonias. 

"  lame  por  ahi  fora,  diz  elle,  com  o  sentido  nas 
bojudas  garrafas  que  o  nosso  generoso  patrão  nos  ti- 
nha mandado  dar,  esenlindo  soque  o  tempo  passas 


que  aperte,  entre  os  dois  joelhos  "^  ^'■■0"'Ç-»i.So, 
.-  firma.a  com  as  nJ:22CZT°'""'r''"^ 
tinha  tomado  esta  horrível    „,,  "'    ^^"'^ 

airuia.  olh.nH..  .......'    P'"'""'    1"^  a  maldicla 


.  ^'    pusiura 

agula,  olhando  para  minicnm-.-.) 
,  _. „„  _.,„.  ......j,„  passas    I  SC  — .A .ura      adeus     ,   "  "'"^  "'^í^esc-.rneo,  medis- 
se lao  depressa      vai  senão  quando  chego  á  beira  d'um     Na  primavera    p-^s^.da    r"  í  ^"""^  Q-Roorke. 
no  q.ie  tinha  de  atravessar,  e  estaco.    A  n,„f„  „..,....  I 1     .  :          "    P"'"»''-'    roubaMe- 


no  que  tinha  de  atravessar,  e  estaco.  A  noite  estava 
hnda,  o  céu  carregado  de  estrellas.  Lembra-me,  que 
este  dia  é  um  dos  dias  da  festa  de  Nossa  Senhora, 
olho  para  o  céu,  benzo-me,  e  ao  mesmo  tempo  escor- 

rega-me  um  pé,  e  vou  parar  dentro  d'.igu,i Ah! 

pobre  peccador,  disse  eu  de  num  para'mim.  estas 
perdido. —  Ainda  assim,  faço  das  fraquezas  forças, 
começo  a  nadar  d"uma  banda  para  a  outra,  e  por  fim' 
deito  a  unha  á  praia  d*uina  ilhota  deserta.  Que  se- 
rá de  mim.'  Entro  a  correr  a  ilha,  espantado  da  so- 
ledade,  tremendo  de  frio,  sem  saber  onde  me  agasa- 
lhasse, quando  de  repente  vejo  uma  sombra  muito 
grande,  que  me  tapa  a  claridade    da  lua.    Duas  azas     de  m,n.     „  ) 

d'um  tamanho  enorme  saccud.am  o  ar,  ,  uma  IgX  |  it;":;;^!:^':;: 


quena  v.ngar-me,  e  estou  salif^ir"  !?•  "'*"'  "'"*'"' 
...eu  Oanielzinho  ;'  estas  coiut;'  T'"  ^'''^'^ 
da  e  sentado  a  tJu  commodo  '  ''-"-"""en- 

...^-'u^h:;::^"  pr ''"""•''- -í- - -'- 


-a  Sra..deia  d-alma,  a  57;    „hre  "T  '    'l""*'"'"'  " 
medo  «'.uvens  «chorar  ca  tremer  do 

■  ou  :    ts  tu,  n,,p,  a>r 


inenoj. 


o  PANORAMA. 


61 


liMe  elle;  porque  in.lagre  vieste  ca  fer  ?  Contei-Ihe  ,  sejo  de  cornmQi,icar-,e  com  elles  Ibe  inspirara  3  ideia 
oda>  a»  UM>,ha,  dev^ra^a»  desde  o  infante  em  que  i  do  telegrapho  de  talniii.bas  fal  comoexinte  hoje.  Oa- 
le  escorregou  o  peno  no.  Ouviu-me  calado,  epare-  \  tro»  biograpl.os  as.everani  que  foi  em  1791  que  elie 
.a  apieda  lo  de  mim  o  meu  conto.  Ai  '.  quanto  me  j  o  imaginou  para  ,e  corresponder  com  amigos,  e  qu« 
iiganava  .  ,,  ,  I  '■aíndo  bem  das  primeiras  teulativas  tractou  de  aper- 
—  liom,  bom,  dis.eme  elle  quando  eu  acabei;  é  |  feijoar  o  seu  descobrimenlo  •,  e  que  quando  obteve  de- 
ma  astima  que  te  Casses  n  uma  aguia  vingativa  ;,  terminadamente  o  resultado,  estando  a  lin-ua-cm  da 
iiinda  teiií  que  viajar,  porque  não  podes  ficar  aqui.  j  signaes  e  o  in. ir, .«.»..»"  ♦- 1-»—  -..?_. f j;. 


—  Tomara  cu   ir-me  embora:,  mas  como.' 

Com  isso  nada  tenho;  o  que  quero,  o  que  exijo 
que  te  vá». 

—  Estais  gracejando.  E  para  me  apurar  a  pacien- 
a  quefullais  em  dt-spedir-me.  Se  tendes  algum  sen- 
menlo  de  humanidade  dar-me-heis  agasalho  na  vos- 

vivenda,  e  em  eu  tendo  occasião  vou-me,  á  lé  de 
laiider. ! 

—  Nada,  nada,  nHo  estamos  para  te  dar  agasalho 
r  um  dia,  nem  por  uma  hora.  Na  gente  da  lua  não 

l!  mossa  o  teu  palavreado.  Has  de  partir,  e  já. 

—  Sim  !  pois  não  vou  .'  bradei  eu  no  tom  de  deses- 
|ra(,ão. 

—  Al,  !  tu  re-.pingas!  diz  o  feroz  cidadão  da  lua, 
I  içando  inir  uns  olhos  de  fogo;  veremos. 

Dizendo  islo  retirou  se,  e  com  um  machado  que  foi 
Iscar  deu  uma  pancada  tão  forte  na  fouce  que  me 
S  tentava,  que  me  b.ildeei  com  a  cabeja  para  baixo. 

—  DVsta  feila,  disse  eu  comigo,  lá  me  leva  a  bro- 
\'lcus,  (.asai  da  minha  alma,  minha   boa  Judllh, 

■    1^  queridos  filbos. 

ido  afazer  o  acto  de  coiitriíjão,  ás  revira-voltas 

■  sp.K^o,  caio  no  meio  d'um  bando  de  patas  bra- 

\  cabeíjMda  colnmiia  conhecia-iiie,  porque  vinha 

's  viTÕes  fazer  o  ninho  nos  arredores  (bi  minha 

Oh!   és  tu,    Dan.'    gritou   ella  ;   que  exlrava- 

'      l'inbraii<,'a    foi  essa  de  viajares  assiiii  ?  —  Coii- 

'11"    Indo,  e  ella  teve  dó  demim.— (Jlha  ca,  me 

I      'lia,   pendurate  iruma  dasmiiilias  pern.is,  que 

'"      'Iwi.  Obedeci,  agarrcinie  auina  ilas  suas  per- 

'  '     Ml  as  m.Tos  ambas,  e  a  p.ita  charitativa  levou- 

'    '   'oio  um  bezouro  pendurado  na  ponta  ti'iimcor- 

'i'-  iiionlanha  em   inontanlia,  ile  várzea  ein   var- 

•  ''  a  beirainar.  —  Aonde  vamos  nós?  lhe  di^se 
III  terror;  eujá  não  dislingiio  a  minha  bella  Ir- 
'  '  Estou  flor  isso,  respondeu  a  pata,  se  nós 
"  '     p-ira  a   Arabi.i.    E  foi  seguindo   viagem. 

iw.i    iiMiito  tempo    (jiie  andávamos    por  cima  do 

■'<"•,    quando  de  repente,  oh  felicidade!    enxergo 

iiibarcaeão,  arrasada  em   panno,  que  me  pare- 

•gar  p.ira  a  minha    quirida     terra Deixa- 

I-  Hl  flobn.'  esle  navio,  dissi;  eu  á  pata  niiscíricor- 
"  íioueo,    me  respondeu  ella,    não  vês  que  te 

r  .IS  a  morrer  afogado  !  — Não,  rogo  te  que  me 
Bilenhas  !  Dizendoestas  palavras  larguei  Iheaper- 
.  '■■'!  no  meio  das  ondas,  (iuamlo  ia  aerguer-me 
ledi,  e  a  estender  os  bra(;os  para  me  salvar  a  na- 
,  e,,rdo,  eou<,o  uma  voz  a  berrar  :  —  (luetii  nuii- 
H..IS  de  emendar,  bêbado  sem  vergonha!  Antes 

•  estirares  nu  chão  como  um  bruto  escolhesses  ao 
■fi  um  silio  mais  limpo.  —  Era  miiih.i  mulher  u 
fcr  comigo  com  esta  delicadeza,  e  a  despejar- me 
flrpo  um  balde  d\.gua  para  me  lavar  da  lama  em 
•  mha  chafurdado. 


dos 


I  ser  segundo  a  »ua  concepcjão,  dirigiu-se  á  assembit'a 
j  legislativa,  no  seguinte  anno,  enviando-lhe  a  machi- 
I  na,  qne denominou  Megrapho,  de  duas  palavras  .-re- 
gas que  dizem  escreuer,  /unye.  O  que  então  se  passou 
relataremos  no  devido  logar.  Chappe  morreu  em  180S. 
Em  razão  da  originalidade  aqui  estampamos  o  seu 
monumento  sepulchral,  erecto  'no  cen.iterio  do  padre 
la  Chaise,  e  coroado  pelo  símbolo    da  sua  inveiifão. 


IIlSTOniA     no»    TICLK0IIA1'|10«. 

>l«  riiappe,    inventor  do»  lelegraphos,    nasceu 

00.    De  idade  de  20  a s  já   (inlia   publicado 

■Ui  memoria,  „d,re  a  pbysiea,  qne  lhe  fran.niea- 
enlrada   na  soeieda.le    phllo.nalica    em    I7'.I2 
«equ.'e«ludand..noseminariod'Angers,  eseu» 
I  II  um  collegio  situado  acerta  distancia,  o  de- 


Divulgado  «  descobrimento  de  Chappe.  cftou-se  um 
sem   numero  de    ancloridades  para    lhe  disputarem    .1 
honra  do  invento,  e  pnblicou-se  uma  multidão  de  (o- 
ll.etos,    pela  maior    parte  em  alhunão,    ,,ne  serviram 
"nicam.nle  para  provar  a   niili.ladr  .•  a   novidade  do 
melbodo    qne  elle    achara.    l'or  certo    .pie    a  idéa  de 
communicar  noticias  a  grandes  distancias  era  conhe- 
cida <■  practuada  muito  ante»  de  Chappe;  comtudo, 
compete  lhe  a  construc.;ão    de  uir.   instrumenio  com- 
inodo  .pie  serv.-  para   transmillir    sulViciente  numero 
.  .!  signaen,  e  o  u>o  .r,.st  es  é  tão  simpl.^s  qne,  auxilia- 
<los  pela  arithmelica  binaria,    pod-iii   passar  Iodas  as 
novav,  to.las  as  palavra»  e  phrasesque  se  qui/er.   I)e- 
Ip.iis  .le  Chapp,.  não  cessou  de  ser  empr.-gado  o  tele- 
grapho   e  aperfenoado-,    mas  ante,    «rdle    os  ensaio, 
haviam  sido  mfrueluos..,.  T.i.bivia  .:  conveniente  hi,- 
tori.ir    esta,  tentativas,    e  examinar    a  serie    do  pro- 
gresso,, m.'.li«nte  o,  .,u«e,  „  h..mem    a  fmal  r.-ali,ou 
um  .le^c.brim.nto  tã..  imporlanl,-,  .,uer  em  laião  do, 
r.'Sulla.lo,  ja  c.msegui.l,,,,  ,,,„.r  ,r,„|,„.|l,.,  ,|,„,  „i„j^ 
<•  licito  .■sp.rar.    Ao  .|i.m|„  ,.„„eluir.Mn..s  ccmi  o    mo- 
derníssimo achado  <I,>H  t.d.'grapho,  .lertrico,. 

(ir.isseira,  cmo  t.,da,  .iii  mmi  principi,.,  a  artete- 
legruphlcu  melhoiou  se  pra.lualmenlc.    Tr.',  periodo. 


62 


O  PAIVORA.MA. 


se  podem  assi^nalar  na  stm  Iiistoria  ;  o  primeiro,  quan- 
do SC  empregavam  sii;iiaes  antecipadamente  ajusta- 
dos, cnja  apparirão  annuiiciiiva  uni  acontecinienio 
previsli.,  mas  (jiif  era  nece.sario  fixara  no  secundo 
perjotio  usaram-so  signaes  alpiíahelicos  :,  e  no  tercei- 
ro, por  fim,  os  aignaes  não  representam  leiras,  po- 
,A~  r«c    ^..„  ,.„^  „.„„„^,„„  ,).,  ;,rithmetica  bi- 


naria, como  dissemos,  em  pequena  quantidade,  pres- 
tam-se  a  todas  as  comltinarões  da  linguagem. 

Km  tempos  mui  remotos  os  signaes  eram  brados, 
lume,  ou  fumoi  é  na  Ásia  que  se  acham  os  mais  an- 
tigos vestigios  doeste»  :  com  eITeilo  c  fácil  de  perce- 
ber que,  nas  vastas  regiõas  d'esla  parte  do  mundo,  o 
homem,  tão  desejoso  de  commnnicarão  com  os  seus 
similiiantes,  procurasse  meio  de  abreviar  as  distan- 
cias, e  imaginasse  esía  casta  de  escripta,  para  assim 
dizer,  aérea.  Oscliinas  serv<'ni-s(!  lia  muitodesignaes 
telegrapliicns.  Tamerlão  fazia  uso  de  alguns  nas  suas 
gnerrHs ;  quando  assaltava  qualquer  pra(;a  mandava 
ariorar  uma  bandeira  branca,  que  annunciava  a  sua 
chegada  e  queria  dizer:  Jtcnjcix^os  \  'íaintrlão  será 
elerncnic  \  se  não  lhe  obedeciam,  içava  bandeira  verme- 
lha, que  significava,  que  o  f/oLcriiíjfZor  seria  moilo;  e 
nas  ultimas  a  bandeira  preta  declarava  aos  infeliies 
haViilaiites  que  tudo  seria  àcslrríijo.  Em  epocha  ain- 
da mais  antiga  os  monarch.is  da  1'ersia,  segundo  Dio- 
doro  (liv.  19.")  tinhain  estabelecido  por  todo  ii  im- 
pério linhas  da  sentinellas  que  traniiiiittiam  uns  aos 
outros,  por  meio  da  voz,  as  novidades  ou  as  ordens 
do  príncipe.  Na  expedição  dos  persas  á  Grécia  collo- 
COU-se  uma  linha  similhante  desde  .\fhenas  até  Su- 
sa,  e  as  noticias  chegavam  á  residência  do  poderoso 
iiionarcha  dentro  de  quarenta  e  oito  horas  (vejam  se 
Heródoto  e  Cornelio  IVcpotel. 

Da  Ásia  se  espalhou  pela  Europa  a  arte  da  com- 
municação  por  signaes.  O  primeiro  exemplo  «.'O  caso 
das  vellas  brancas  e  pretas  de  Tlieseu,  inrlicios  gros- 
seiros e  incompletos.  Eschvlo,  na  tragedia  de  Aga- 
meninon,  nos  dá  esclarecimento'»  manifestos  de  uma 
communicação  entre  a  Ensopa  e  a  Ásia  por  imia  li- 
nha de  signaes  por  fogo.  Um  vigia,  que  por  espaço 
de  dez  aniios  observava,  se  a  fogueira  estava  accesa 
sobre  o  monte  Ida,  e  que  repetida  em  outros  muitos 
logare»  devia  servir  de  aviso  a  Clvtemnestra  da  to- 
mada de  Tróia,  brada:  "Graças  aos  numes,  o  sigiial 
feliz  rompe  n  escuriíl.ide.  Salve,  f^clio  da  noite,  pre- 
cursor de  um  formoso  dia.  "  (  Ivlenincslra  depois  an- 
liuncia  aochoro  avicloria  dos  gregos;  eeslelhe  per 
gunta  quem  lhe  dera  a  noticia,  u  l''oí  ^  olcann  (res- 
ponde ella)  por  seus  fogos  accesos  no  monte  Ida  ;  de 
facho  em  facho  a  tiamina  mensageira  voou  alcaqui.'- 
Kefere  em  seguimento  que  os  postos  estavam  colloca 
dos  n'aqiiella  montanha,  no  pr<imoiilorio  iPIíerines, 
na  ilha  de  Lemiios,  na  serr.i  d'Alliiis,  em  Macisfo, 
em  Messapc  ás  margens  do  Euripo,  no  monte  Cvlhe- 
ron,  no»  de  Egiplaiieta.  cm  .^rachiie.  o  finalmente 
em  Argos.  —  Pouco  provável  é  que  se  fizesse  uma  si- 
milhante linha  de  signaes  no  XIII  seeulo  aiiles  da 
nessa  era  :,  mas  é  certo,  que  desde  o  \'  seeulo  essa 
communicação  ••iilre  a  Europa  e  a  Asi.i  e»tav.i  esta- 
lielecida  i  é  t.imbeni  provável,  que  o  desejo  de  haver 
noticias  dos  movimentos  inlliiares  ilos  persas  decidis- 
.se  os  gregos  a  servir.se  (r.-iqnelles  fogiis  :  Arislopha- 
nc»,  nosecido  seguinte,  faliu  do  facho  de  licmnos,  na 
comedia  de  Lvsistralo. 


.■\  i  v  viiiN  *    i)i;  UoMA. 

Detois  de  ter  deveiíio  os  últimos  encontros  doCimi- 
no,  seguindo  a  antiga  via  oassiana.  chega-se  m  llac- 
cano,  Ingar  mesquinho,  edificado  n'uma  collina  ari- 


I 


da:  d'alli  vê-8e  avultar  no  horúonte  á  direita  umm 
corda  immensa,  rematada  por  uma  cruz  scintillante  : 
e'j)  zimbório  de  S.  Pedro.  Asondulações  dosolo  por 
cinco  léguas  de  extensão  escondem  ainda  aos  olho»  a 
cidade  eterna;  porem  a  cúpula  da  cathedral  do  orbe 
catholico  surge  do  meio  da  campina,  onde  parece, 
coUocada  como  um  sijnal  de  soberania  esquecido  no 

deserto.  —  Odeserfo  —  esfranha-«e  esta  palavra,  ap- 
plicada  á  Campai/na  di  Roma,  o  agro  romano,  para 
onde  convergiam  outrora  as  leis,  artes,    industrias   e 
crenças  da   Africa  eda  Ásia  para  se  fundirem  n'umi 
grande   unidade,    e  as»im    transformadas   se  espalha- 
rem pelo  mundo.   Embora,  a  campina  de  Koma  tem 
todo  o  aspecto  de  um  vasto  deserto.  A  sua  superfície 
comprehende,  alem  do  território  ou  termo  particular 
de  Roma  fagcr  romanus  dos  antigos),  o  Laciu,  . 
bina  e  a  Maremma  ;  tem  quani  vinte  léguas  de 
prido    por  nove    a  dez  de  largo  :    o  mar  Thvrrei.  i    .. 
costeia    pela  parte  do  poente    desde    Montalto    :  t      s 
cidade  de  Terracina,    onde  findam    os  estado*  ri 
nos.  Ao  norte,    la  Fiora,    ribeiro    que  separa    a 
remma  toscana  da  romana,  e  as  montanhas  deC: 
no  demarcam  a  campina  :  os  busques  espessos  d  •■ 
ultimas,    que,    pelo  terror   supersticioso    que  in»; 
vam,  susliverain  tanto  tempo  os  romanos  já  sen: 
do  Lacio,  desappareceram  ;  pelo  menos  vêem  se  a 
nas  aljuns  restos  no  declive  meridional:  nãoobsl 
te  a  aridez,  as  encostas  macias  dVsta  cordilheira  vi 
canica  e  os  topos  ondulosos   dão  lhe   nm  aspecto  oi 
destituído  de  altractivo.    Mais  para  alem.  no  an 
formado    pelo  norte  e  levante,   descobre  se   o  mon' 
Soracte,    hoje    Saneio  Oreste :    levaiila.se    completa» 
menie  desacompanhado^    como  se  um  abalo  o  tiverm 
despegado  da  corda  dos  montes  Sabinos,  que  corre  a 
leste,  e  o  arrojara  violentamente  ao  loiíje  para  apta» 
nicie;  a  sua  cumieira  recortada  eas  formas  abrup 
debuxam  se  claramente,    e  por  ângulos  salientes, 
azul  do  eeu,  ao  mesmo  tempo  que  o  jog>i  da   lui 
suas  ladeiras  amassadas  n  asseiiielliain  a  opila  de 
fle.xos  variáveis.  Detraj  d'elle,    encerrando  a  cam 
Ilha  ao  nascente,    alteam-se    as  serranias  d«  S.ibina 
calcareas  como  o  Soracte,    m.sis  do  rpie   clle  ^ão  d( 
pidas  e  escarnadas  ;   piredõcs  enormes  di- rochas  pei 
dentes  do» seus  declivs,  osdcpenhailciros  queoss 
cam,  os.pinearos  agudo»,   bem  separaiios  uns  dos 
Iros,    prestam    a  essas    montanh.is   certo  caracter 
niage^fade    selvagem:    lodaxi.i    na  raiz  d'elbis   p 
deiii-se  eminências  vestidas  dearvorcrín  ■•  ciillivíd 
sobre  as  qnacs  estão  assentes  a  fresca  Tivoli,  Gi' 
e  Miinlieelli,  que,  por  seus  t»>lhados  chntoseedi; 
muito  juuclos,  cujos  alinhamentos    rectos  se  coiilu.i- 
deiii,    lie  loiíufe  dão  visos    de  templos  vastos,    er< .  '>> 
no  meio  de  florestas    «agradas.    .Ao  sul  fica    o  p 
Albano,    de  formas   brand.is  que  descem  foaven- 
p:ir:i  a  rampiíia  ;  ora  col>ert»  de  mnllns,  ora  de   • 
gis.  cercado    com  o  alvo  cinto  de  ciddde».    Fra- 
Mariano,   Castello  ••  .Mbano,  c  de  outras  pnvo.-i 
aqiieile  iiuuite  contrasta  sincnlarmente   com  n  i 
reia  bravia  d. is  montanhas  Sabinas:  com  os  ah 
mais  «:;udoi  dos  Lepiíios.  que  a  muita  distaiici 
reoe  que  fogem  para  o  reino  de  Najioles,    termi- 
Albano  oarco  decirculo,  que  abraça  oojro  romoiwi. 


e  que  tem  o   mar  por  tangente. 

E  portanto  a  campina  de  Koma  lodo  o  espaço 
prehenilido  dentro  d'e>fes  limites  :  o  Tibre 
de  norílcste  aoe-te,  descJevendi>  uma  curva  quej 
bra.para  o  sul.  Esle  rio  desce  do  .Apennii">  e 
jise  á  planície  pelo  valle  que  separa  o  Ciniino  ' 
inoiíles  S.ibinos-,  a  areia  e  lodo  que  acarreta  n«f 
curso  impetuoso  f.izem-lhe  as  asnas  turvas  e  »mi 
lentas:  as-im  que  deixa  a  visinhança  das  montar 
por  onde  abre  passagem  airavct  de  liosqnes  e  ml 


»>■ 

•dl 


o  PANORAMA. 


63 


das 


i  veíetação  quasi  inteiramente  desapparece  tias  suas 
margens:,  ora  corre  »i)lilario  entre  ribanceiras  nuas, 
jra,  rebaixando  se  oterreno,  sederraina  em  iharcos 
pelos  campos:  próximo  á  (oz  reparle-se  em  dois  bra- 
dos, abi  forma  a  ilba  sacra,  e  vai  suniir-se  no  mar, 
'ujos  limites  annualmcnie  ím  recuar  com  a  alluvião 
le  seus  entulbos. 

A  uniformidade  do  grande  deserto,  por  entre  o 
qual  se  escoa  comi)  uma  cobra  amarelbi,  so  é  in- 
terrompida pelos  numerosos  altil)aixos  do  terreno; 
Mnteniplando  se  estas  ondulações  do  solo,  poderá 
pensar-se,  Cjiie  esta  campina  não  é  mais  <)Ue  o  an- 
tigo leito  de  um  golpbo,  onde  o  mar  retraliindo- 
se  deixou    em  descoberto    as  eleva^'ões   dos  sens  baii 


do  paíi,  que  não  parece  cabeça  de  uma  nação,  eque 
a  sua  existência  é  absorvente  (1).  {('ondnúa.) 


A    TRIlíl;     DOS    GlAUAVOS    NA    AmERIC4 

Meriuional. 

(ContJBuado  de  pag.  oi  ) 

SENDOa  cultura  o  primeiro  recurso  dos giiaraN os,  poii 
que  a  caça  si)  a  tomam  por  passatempo,  ajiinctam-!he 
muitas  das  suas  ceremonias  religiosas.  A  sua  crença  é 
simples  como  os  seus  castumes.  O  Taiitoi  igrão  pai), 
deus  benéfico,  aquém  reverenceiam  sem  o  temerem, 
:os  d^areia,  os  sulcos  <las  suas  correntes,  as  profun-  [  viveu  entre  ellcs,  ensinou  llics  a  agricnltnra.  e  pro- 
iidades  dos  seus  abvsmos.  Longas  fileiras  daque-  '  metfeulhes  protecção,  ao  despedirse  eloallo  de  uma 
dnctos  a  partir  da  falda  das  serras,  atravessam  ou-  .arvore  sagrada  lie  llòres  purpúreas,  subindo  aoorien- 
sadamente  esta  superfície  terrestre  de  ondas  imn\o-  ■  te  para  o  céu.  Invocam,  este  deus  na  epocba  das  se- 
veis  e  vem  rematar  na  cidade  parecendo  q\iea  pren-  :  nienteiras,  ou  quando  desejam  que  abundante  chuva 
riem  aoclião.  AiitigamiMile  Uoma  contava  dez  aque-  i  vivifique  aterra  sullocada  com  os  ardores  de  um  sol 
dueto»,  alguns  dos  quaes  tinham  doze,  e  deteseis  le-  j  abrazador.  Uma  singela  cabana,  de  forma  octogona, 
íTuas  de  extensão  :  hoje  só  possue  três:  osoutros  sele  '  no  meio  da  floresta,  é  o  templo  onde  imploram  Ta- 
em  ruínas  ainda  mostram  os  seus  fragmentos,  mas  jnui :  homens  inteiramente  nús  assentamse  á  roda, 
as  suas  fileiras  estão  quebradas;  eaovér  tantas  «tão  ^  tendo  cada  um  na  mão  um  troço  de  bambu.  O  mais 
nia"esto»as  arcadas  poderiam  rejiufar  »e  arcos  trium-  ancião,  com  os  olhos  fitos  na  terra,  bate  o  compasso 
pliaes  de  um  povo  de  lieroes.  f.ni  raros  sitios  despon-  com  obambii,  eiitoatwlo  um  hymno  que  todos  oscir- 
ta  uma  pequi-na  matia  de  pinheiros  ou  de  eypres-  conistantes  repetem,  batendo  também  o  chão  com  os 
les  i    e  de  ordinário    marca    a  [)aragem    onde   jaz  ai-     troços  decana-,  a  bulha  «Festcs,  juncta  as  vozes  varo- 


guma  eidaiie  de  antigas  eras,  ou  alguma  sumptuosa 
h;<bitação  romana,  cujos  resíduos  estão  sotterrailos. 
Alí;uns  ccnnli,  casaos,  sem  verdura  que  oseirciiinde, 
dcsliabitados    uma   parti!  do  .inno,    inoslrani  a  iiiler- 


nis,  a  postura  grave  dos  cantores,  me  admiraram  quan- 
do fui  festimiinha  desta  cereinonía;  pediam  a  natu- 
reza, em  estalo  figurado  emui  poético,  que  se  reves- 
tisse do  seu  mais  grandioso  adorno,  ásflúrcs  que  de- 
vallos  os  seus  tectos  solitários.  K  depois  segiwm-se  j  sabrochassem,  ás  aves  que  se  cobrissem  da  sua  mais 
túmulos,  restos  de  templos,  de  circus,  de  torres  feu-  I  brilhante  plumagem  e  renovassem  os  seus  alegres  caii- 
laes,    lie  pontes  ameiadas,    e  tudo  em  minas,    desa-     lares,    ás  arvores    que  se  enfeitassem    com  a  verdura 

ouça  da  primavera,  afim  de  se  lhes  unirem  para  at- 


handi),  coberto  de  trepadeir:is  que  se  enroscam  ntc  o 
topo,  eque  com  os  radicnlosiis  festões  Iluetuanies  oc 


o,  equi! 
eupam  os  remates  desmoron.idos  dos  edifii.ios  :   e  não 
lia  ruido  de  homens,  movimenlii  algum  de  gente  do 
impo,    salvo  na  estacão  das  sementeiriís    ou  das  co- 

leias  :  ha  iiii- 
com 
<)  mV)  circular  parece  evocarem  as  sombiiis  (Faquel- 
les  silios  devastados;  ha  manadas  de  bois  de  pontas 
desmesuradas,  bandos  de  cavallos  bravos  que  passam 
rapidamenle    na  planura,    búfalo»    sumidos    entre    os 


ip. 
Iheilas,  porque  não  lia  higares  nem  alUeias  : 
lhanos   e  águias,    que  pairam  sobre  as  ruínas 
)  circular  parece  evocarem 


trahir  a  atlenção  de  Tamoi,  que  nunca  invocanajil 
debalde.  —  Crêem  que  por  sua  morto  são  por  inter- 
venção deTainoi  arrebatados  ao  céu,  para  o  lado  do 
oriente,  do  vértice  da  arvore  saiicta  ,•  eque  na  outra 
vida  gosam  de  quanto  possuiam  n''esta  :,  por  isso  en- 
terram os  corpos  ataviados  de  pinturas  e  eom  a  ca- 
beça voltada  ao  nascente.  —  Hão  pouca  liberdade  ás 
mulheres,  que  em  pequenas  nunca  largam  as  mães, 
e  che;;ando  á  idade  núbil  as  subinettem  -J.  jejuns  ri- 
gorosos, e  as  incisões  que  lhes  fazem  no  meio  dopei- 


paues,  d'oiide  alçam  a  cabeça  negra  c  disforme,  sir-  J  to  demonstram  que  passaram  da  infância  para  a  ida- 
'fianilo  trabalhosamente  os  poucos  bateis  ()ue  sobem  o  j  de,  em  que  tomam  o  seu  grau  na  sociedade.  Nunca 
Tlbre  :    v(''em-si-  também  f;raiides  rebanhos  com  seus     ;,s  mulheres  apparecem  sós:    ou  os  paia  ou  os  irmão* 


pastores,  que  ao  decair  da  tarde  procuram  abrigo  em 
cavernas  ou  em  túmulos  antigos,  cujas  entradas  figu- 
ram de  loM^e    malhas    escuras  ;    todo  o  terreno    é  de 
'tinetura  uniforme,   requeimada,  como  m;  por  alli  pas- 
'sasse  o  fogo.    Tal  é  o  aspecto    geral    iTista    lainpíiia  |  ri 
'romana,    que  jiilo  síleiíiío,    solidão,  destroços  e  ciV, 
podeiia   tomar  se  pelo  valle  deJosaphat  <leum  muu- 
ilo  antími  extineto.  —  10  bidh)  jiara  o  contemplativo, 
para  o  artista  ou  o  poeta  :  — aquille  caracter  de  as- 
solação,   a  seviriilade    dos    contornos,    a  ausência    de 
particularidades  prosaicas  e  ant  í|)icturescas  da  vida  e 
lavor  agrícola  ;,  todas  aqiiellas  ciriii  insta  mi  as  eom  que 
Ml  asam  as  recordaçiiis  heróicas  d  a  anligiiidailn  põem 
o  ispirilo  em  disposiçài)  sulemne.    Mas  ipi  iiidii  se  abate 
o  vòi)  desde  a  altura  da  arte  ou  d<>  philosophia,  e  se 
iiivfstiga  íi  causa  iPeste  aspecto  ermo,  cessam  as  iiis 
pii.iç-ões  poéticas,  e  as  substituem  penosas  ri-llexões  : 
'  idia    d»  eivilisação  e  das  <'oniniodiiladi'S    concerla- 
se  iiouco  com  n  davaslação  de   um  pai/,.   Observando 
Itoinh    CHI  iindit    da  soledade,    sem   população  rural, 
«em    eiil\i|ra    permanente    do    titrrílurío,    sem    movi- 
mento coiiimcrcial  nus  suas  visinhanças,  cnuiprcheu- 
lie  se  logo   que  tsla  cidudo   não  está  libada    ao  reslo 


as  acompanham  ;  o  seu  trajo  é  mui  simples;  trazem 
apenas  um  pedaço  do  tecido  que  colire  das  cadeiras 
até  os  joelhos  ;  a  cõr  ebellas  fiírmas  lhes  dão  aappa- 
rencia  das  nossas  (estatuas  delironze;  iiosdia*  Icstivos 
scam  o  corpo  com  estreitas  f.ichas  pretas. 
O  caracter  mais  saliente  dos  goaravos  e  ii  sua  es- 
crupulosa probidade,  jamais  se  quereriam  apossar  de 
cousa,  que  lhes  não  pertencesse  :  venceram  sempre  na« 
provas  a  que  subinetli  a  sua  delicade/a  ;  ileixava  de 
propósito  um  lenço  de  cõr  no  mallo,  ou  machados  fo- 
ra da  minha  residência;  sempre  estes  objectos  me  l'j- 
ram  tornados  liclmcnte.  Tal  e  o  esboço  do  retrato  do» 
anlÍMis  descendentes  ilos  c.iraibas,  que  eram  homens 
ferozes  e  anthrii|)ophagos,  lonira  os  quaes  não  acha- 
vam expressões  assai  enérgicas  o»  esi  riptores  ilos  pri- 
meiros séculos  da  con<|uistu.  —  .\  par  de  tantas  vir- 
luile»  admira  n  repugnância  dosguara_>os  asprescrip- 
ções  da  religião  catholica.  l'iii  venerando  iiiissíon.i- 
rio,  o  padre  liiieuevH,  o  iii.iisestimavcl  religioso  IrttU- 


(1)  ICsle  i|u.idro  foi  tríçidoeni  IHii  por  Mr.  .St<h.islieu 
Alliín.  lia  l)eiu  lun.lailas  esperaiiçis  hoje  ile  que  iSo  ilesí- 
iiiiinidOra  situai,-'»  piin;i'es(.n.iiueiilo  incltioie. 


6 


L 


O  PArVOaAMA. 


ciscano  que  eu  conheci  na  America,  hespanhol  dena- 
<;io,  homem  tão  instruído  qiianiu  modesto,  nada  tem 
obtido  ha  nove  annos^  não  porque  os  indígena»  op- 
punhani  resistência  aos  seu»  desígnios,  ou  tenham 
aversão  ao  homem  piedoso,  a  quem,  pelo  contrario, 
reverenceiam  ;  mas  os  que  recebiam  o  baptismo  vi- 
nham pouco  á  igreja,  e  não  largavam  os  seus  antigos 
costumes.  O  padre  disse-me,  que  as  maiores  difficul- 
dades  que  tinha  a  vencer  eram  fazer  largar  aos  ho- 
mens o  habito  da  polygamia,  e  alcançar  que  as  mu- 
lheres se  cobrissem  um  tanto  mais. 

O  padre  Lacueva  \ivia  em  Sancta  Cruz,  uma  lé- 
gua adastado  de  mim:,  habitava  uma  choça  humilde; 
a  sua  Igreja  era  uma  cabana  coberta  de  folhas  de  pal- 
ma, onde,  n'um  altar  feito  de  barro  amassado,  eque 
aos  domingos  revestia  com  um  simples  estofo  d'alg()- 
dãii.  costumava  celebrar  missa.  l'ara  avisar  os  iieo- 
phvto»,  o  respeitável  ancião  só  tinha  um  almofariz 
velho  de  metal  em  que  balia  com  uma  pedra.  Per- 
teiicia  a  unia  casa  rica  naHespanha,  e  tinha  estuda- 
do as  nialhematicas  ;  piirém  a  voração  o  impellíu  a 
pregar  o  Evangelho-,  melteu-se  rranciscauo,  edentro 
em  pouco,  por  virtudes  e  saber,  mereceu  o  cargo  de 
preleito  demissões,  (jue  poderia  equivaler  ao  de  pre- 
lado superior.  l'assou-se  á  America,  eahi  fugindo  da 
vida  quieta  dos  conventos  consagrou-se  á  conversão 
dos  iiidios,  rrpellinuo  todas  as  honras  que  pretendiam 
coiiterir-lhe  :  viveu  vinte  annos  com  os  selvagens  vu- 
rucares,  ca  final,  cançado  de  não  os  reduzir  áfc,  Uei- 
xou-os  para  habitar  com  os  guarayos,  entre  osquaes 
começava  tambein  a  deseuganar-se  de  que  terminaria 
a  sua  nobre  e  ignorada  carreira  sem  lograr  vantajo- 
sos resultados.  Mal  enroupado,  subsistindo  das  esmo- 
las das  senhoras  devotas  deSancla  Cruz  delaSierra. 
sustentava  se  de  arroz  cosido,  iguaria  que  por  suas 
mãos  preparava,  vivendo  solitário,  e  apartado  das  re- 
lações do  mundo.  V  ivamente  me  cominoveu  a  perse- 
verança doeste  religioso,  de  idade  então  de  setenta 
aiinos,  e  puz  todos  os  meios  de  merecer  a  amisade 
com  que  voluntariamente  me  honrou. 

A  2o  de  janeiro  alguns  maioraes  indígenas  de  Cár- 
men de  Moxos  me  trouxeram  uma  carta  doadminis- 
trador  d'esta  missão,  pondo  ao  meu  dispor  quatro 
grandes  pirogas  (canoas).  Trcs  <li.is  depois  «'u  niedes- 
pcdia  d'aquella  boa  gente  de  Jiiaravos,  e  confessi», 
que  não  me  esquecera  o  abulo,  que  me  causou  o  mo- 
mento da  separação:  o  padre  Ijacueva  e  todos  os  ín- 
dios me  acompanharam  alé  abeira  do  rio  com  todas 
as  mostras  de  amizade  intima.  Tudo  »e  embarcara, 
e  os  remeiros  só  esperavam  a  ordem  para  sulcar  a 
corrente:  deitei  o  ultimo  olhar  para  a  praia,  e  \i  o 
sanctu  varão,  de  olhos  lagrimosos,  que  de  cima  da 
Tliíanccira  medeitaxa  a  bençam,  e  Itidos  os  í;u;tra\t». 
com  seu  caudilho  á  lesta,  me  diziam  adeus  nos  ler- 
mos mais  signilicalivos  e  atlecluo^os. 

O  primeiro  meandro  do  rio  sinuoso  me  separou 
Q  esta  scena  terna,  eenlregup  atis  mens  pensamentos 
procurei  dislraliir-me  cimlemplaiido  lodos  os  objecto» 
que  1110  rodeavam.  Oito  dias  consecutivos  naveguei  o 
no  ^.  .Miguel,  admirando  a  variedatle  da  natureza 
no  estado  bravia,  e  inarciíiidu  com  a  bússola  até  «s 
menores  voltas  do  rio.  Quem  penetra  por  um  puiz, 
para  assim  dizer,  virgem,  experimenta  prazeres  real- 
mente desconhecidos  do  viajante  que  nunca  saiu  dos 
legares  habitados.  Osanimaes  do  mattu,  ignaros  dos 
perigos  que  lhe»  provem  da  frequência  dos  homens, 
liao  mostram  receio;  e  eu  tive  occisião  de  \èr  com 
gosto  que  os  bando»  de  macaca»  se  movi.im  mais  pa- 
ra me  observarem  do  que  para  foíirein. 

Chegando  a  Cármen  de  ftloxos  eu  havia  Iraçjido 
um  longo  trilho  n^uin  csp.içu  que  nos  m.ippas  se  acha- 
va em  vasio,  c  reconhecera  que  o  rio  S.  Miguel,  cm 


vez  de  ser  nm  affluenfe  do  Mármore,  ia  pissar,  com 
o  nome  de  rio  Itonama,  pela  mi«são  da  Magdalena, 
vindo  a  ser  affluente  doGuaporé  ou  Itenés  ;  junctára 
portanto  ás  minhas  precedentes  investigações  este  no- 
vo resultado  geographieo,  estudando  uma  porção  do 
continente  americano,  muito  interessante,  eque  per- 
manecia desconhecida. — 


Méis  df.  remediar  as  cólicas  de  chcmbo  dos  tc-I 

CELÕES    EM   TEARES    a'    jACaCABD. 

Ha  nos  teares  á  Jacquard  umas  cordinhas  cm  qae  pren- 
dem uns  cordéis,  em  cujas  pontas  estão  pendurados 
cylindros  de  chumbo,  de  perto  de  sete  a  oito  poUe- 
gadas  de  comprimento.  O  numero  d'estes  chumbos 
anda  por  1000  até  SOOOO,  conforme  a  largura  das  fa- 
zendas, ^upponhamos  uma  casa  de  teares,  de  150  pal- 
mos, com  100  000  dVstes  pesos  de  chumbo  aroçar-se 
uns  pelos  outros  sem  ce«sar,  e  faremos  uma  idéa  do 
pó  venenoso  que  resiilla  da  fricção.  Este  pó  não  ■•  • 
faz  que  dê  nos  operários  a  chamada  cólica  saturnin  . 
mas  pôde  causar,  e  causa  com  effeilo,  moléstias  de 
bofe  nos  indivíduos  comdemnados  a  respirar  esle  ir 
viciado,  principalmente  quando,  no  tempo  dos  calo- 
res, o  ar  externo  não  basla  para  renovar  e  de  den- 
tro. Se  por  desgraçi,  como  em  França,  molham  os 
chumbos  em  vinagre  com  agua,  tanto  peior,  porque, 
depois  de  seccos,  o  pó  que  os  cobre  se  converte  em 
acetato  de  chumbo,  e  augnicntaiido  em  quantidade 
au;inenta  o  perigo. 

.Mr.  í)almencsche  observou,  que  as  moléstias  eram 
menos  frequentes  nos  operários  empregados  em  tecer 
fazendas  muito  largas,  como  chalés  de  ^  e  d"  ^.  por- 
que, trabalhandti  mais  deva;;ar,  ó  muito  menor  a  fric- 
ção dos  chiimb<is  e  a  quantidade  de  pó  que  se  levan- 
ta. Também  observa  que  o  termo  médio  dos  operá- 
rios inferinos  era  um  dos  doze;  e  que  quanto  mais 
pequenas  são  as  oflicinas  menos  são  as  p<'»soas  ataca- 
das das  cólicas  de  chumbo. 

ttuanfo  aos  meios  de  remediar  o«  enellos  nncifOS 
de  mecliaiiÍMno  do  tear  a  Jacquard,  Mr.  D.ilmenesche 
adoptou  a  proposta  do  corníí^  d-»  saúde  de  Ijeão,  de 
pór  em  hv.;ar  dos  chumbos  cvlindros  de  vidro  òoo, 
que  se  ••ncham  de  chumbo  derretido  para  lhes  dar  o 
peso  ncce»5arÍ9  :  esta  substituição  cpreferivl  aos  c_v- 
,  lindros  de  ferro,  que  fazem  muita  bulha;  inas  aind* 
não  i<;uala  a  do  estanho. 

Todavia,  coinooestanho  cu«»a  muito  caro.   pode->" 
us.ir  do  chumbo,    seguindo  esta  iudicaç.u'  do  mesf 
Mr.  D.tlmeiíesclie  :   meller  os  pesos  metaliicos  der.' 
d"umii  caixa  de  páu,   prpporcion:ida  á  largura  dote.ir, 
e(juc  alira,  por  meio  de  dobr:<diç:is.  da  baiid:i  vol!.- 
d.i   para  o  tecelão,    para  que  elle  pii»»,-»    concerta'- 
<-bunibos,  etc.  ;  cobrir  a  tampa  da  caixa  com  u.tia  r 
de  de  metal,  de  malha  estreita.    p.-»ra  que.  p.-««»ai 
pila  malha   o  cordel  em  que  se  penduram  o»  chun 
bos,  fique  opó  dentro  da  caixa,  e  ii.io  se  esptlhe  I    i  - 
'  to  pelo  ar.   Este  meio  niechanico  (nidc  ser  m.idific.i- 
I  do;  m:is  o  que  se  deve  em  todo  o  caso  reconimeiídar 
;  ê  um  bom  «vsteina   de  ventilação,    que  r«novf    o  ar 
I  viciado  das  ufficinas. 


Meio  de  afcgístar  as  formiga».  "5 

Mr    Henrique  Koerster,  cura  d'Anheim  (grã'>-<luc»- 
do  deBaden)  achou  este  meio  no  sal  ordinário  esten- 
jdido  por  cima  do  formigueiro,  e  regado  depois,  s<  o 
tempo  estiver  secco. 


o    PANORAMA. 


65 


BARCAS  JA1'()NEZAS. 


O   J  A  l'ÃO. 
1 

A  MTDAt^Ão  (Io  iiiificrio  (loJapiio  (.orroipoiKli;  na  la- 
titude ás  rfgiões  do  nosso  liC'iiiis|>liori()<iij<í  jaZLiii  eiw 
trc  as  províncias  nieridionaes  da  Franra  faparlede 
miesli!  do  império  d<í  Marrocos  :  a  longitude  é  cem 
^ráu»  a  leste  de  S.  l'etersl)urf;o,  desorte  i|ue  nocen- 
íro  lio  Japão  nasce  o  sol  sele  horas  mais  cedodoijije 
na  capital  da  Itussia. 

O  Japiio  é  mil  arehipelago,  de  (pie  lí  cal)e(;a  a  illia 
(iu  Niplion,  (pie  tem  no  seu  maior  comprimento  tre- 
zentas le);uas  de  8iidoest(!  a  noroeste,  c  na  maior  lar- 
;i;ura  i|uasi  seskcnta,  de  vinte  ao  i;ráu.  São  oito  as 
ilhas  priíicipaes,  e  ha  iim  grande  niimoro  de  outras 
de  menor  importância,  ('om|>ondo  todas  o  mesmo  es- 
tado, cercadas  do  oceano  oriental,  defronte  da  Co- 
réa,  da  ('hiiia  e  da  Tartaria,  e  separadas  do  conti- 
iioilte  por  um  extenso  lira(;o  de  mar,  chamado  o  Mar 
(In  Japão,  tomando  na  partia  oiiiIim!  mais  apertadou 
nume  de  eslreilo  da  (,'iir('a  ,  entre  esta  peniiísiila  ea 
eoula  meridional  dií  Niplion  ha  trinta  <;  cinco  lé- 
guas ,  a  maior  largura  (•  de  dii/eiitas. 

♦  'omparando  a  sitiia(;ão  geographiia  do»  domiiiios 
japonizes  com  a  dos  estados  ipje  de ram  sol)  o  mes- 
mo grau  de  latituili;  no  humisplurio  (icciíleiital,  es- 
perar-se-hia  acluir  ;;raiiile  seuielliaiiija  decliina  •,  mus 
não  é  assim.  A  dillerença  <pie  (íxiste  a  este  respeito 
«Mitre  as  duas  porcncs  ciirrelatinis  do  gloho  i;  Ião  ad- 
mirável (pie  iiierece  particular  explicação.  I'oreXclll- 
Voi,.  J. — (Ji  iitiio  Jl,   ISiO. 


pio,   a  cidade  de  iMasImai,  na   ilha  do  mesmo  nome, 

:  ao  norte  de  Nipliou,  está  cm    i2  de  latitude  no  mes- 

nio  parallelo  de   liionie  na  Itália,  do  Kilbaii  na  llea- 

panha,  e  de  Toulon  em   Kran(;a  ;   n'estas  três  cidades 

os  lialiitantes    sií  conhecem  a  neve' nos  altosdas  iiK^n- 

I  lanhas:,  e  cm  Mastmai  os  higos  e  pântanos  estão  íjela- 

dos  todo  o  inverno,  osvalles,   e  planícies  estão  desde 

iiovemhro    ati;  ahril   coliertos    d(í  nevo,  (]ue   não    cáe 

iiieiios  allululalltl'lllentt^  que  em  S.    l'ctersl)urgo  ;    at 

fortes    geadas    alli    são  na  verdadi!   [xiiico  ordiíi.irias, 

comtiido  viuse  ás  vezes  o  therinometro  de  Ke.iiimur 

descer  ,1   \'ó  gráiis  abaixo  de  zero.   No  verão  os  paize» 

da  Kiiropa  situados  debaixo  do  mesmo  parallelo  em 

I  que  eslá  iMastmai  sotVrein  calores  fortes  eeontiniios  ; 

I  poriMii    n\iquella    ilha    caem    aguaceiro»    rijos,     pelo 

j  menos  duas  vezes  na  semana,  escurece  a  atiiiosphera 

no  extremo  do  liorisonti-,  reinam  ventos  impetuosos. 

e  permanecein  os  nevoeiros. — •  lím  Jedo,  capital  de 

I  Niphuii  e  do  império,  nos  .'!(>  de  latitude,    neva  por 

'  muitas    vezes  em    as  noites   do  inverno  ;  se  rellectir- 

I  mus  qiiir  Jedo,  c  tão  distante  do  polo  como  a  cidade 

iti!  Málaga  na   llcspanh.i,    (haveremos  concluir  ijiio  o 

clima  do  hemispbcrio  oriental  e  mais  rigoroso  (pit*  u 

Ido    heiíiisplierio    opposto. -— Ksta    enorine   dillereni,"n 

procede    d.is    localidades.    O    Japão  esta    lan(;aiio  no 

I  oceano  oriíMilal,   iustanitiite  chamado  o  mardasbru- 

liijis  (Ml  ceirai;òi«.  Não  é  raro  aturarem  os  nevoeiro» 

no    verão  três  ou  (piatro    dias  11  tio  ^    e  piuicas    lioras 

p.issaiii  no  (lia  sem    iii|uclles  ou    scin  chuva.    O  iiiúii 

tempo  lai  o  ar  IVio  (■  húmido,  <■  os  raio»  do  sol    não 

Icem  .1  iiHsma  actividade  ipiedesiMivolvem  ii'uiu  c('ii 


^& 


o    PANORAMA. 


inais  sereno;  accresce  que  a  parte  septentrional  das 
lre'>  ilhai  iiiaioroí  é  de  serrania?  elevadas,  <|iie  per- 
dem iKi  meio  das  tiuvens  os  seus  alcantis:  o  \eiito 
uue  parte  das  montanhas  vem  repassado  de  frio  gla- 
cial. Finalmente  os  japonezes  ficam  separados  da 
Ásia,  fjue  foi  o  seu  ber<;o,  por  um  brajo  de  mar; 
teeni  defronte  o  paiz  dos  mantcliú»  ea  Tartaria  ;  to- 
da essa  região  é  cortada  de  serras,  de  pântanos  ex- 
tensíssimos, e  de  incultos  desertos,  d'onde  se  deri- 
vam, mesmo  no  estio,  ventos  excessivamente  frios. 
Taes  são  ns  causas  prodnctoras  de  uma  dilVerenja 
considerável  de  clima  entre  as  regiões  orientaes  do 
mundo  antigo  e  o  nosso  hemisphero  Occidental  no 
mesmo  parallelo. 

O  povo  japoTiez  tem  uma  nacionalidade  distincta 
dos  outros  asiáticos,  posto  que  a  muitos  res[)eitos  pa- 
reça approximar-se  dos  chinas  até  na  ph^sionomia  : 
tem  usos,  costumes,  e  praticas  peculiares; — e  uma 
cidade  do  seu  archipelago  appresenta  muita  varieda- 
de em  comparação  com  as  de  seus  visinhos.  As  ca- 
sas, á  excepção  dos  alicerces,  não  são  de  alvenaria, 
construem-nas  de  madeira  e  de  um  só  andar,  os  ta- 
biques  que  separam  os  quartos  são  moveis,  de  forma 
que  se  pôde  fazer  de  toda  a  casa  uma  só  camará,  co- 
mo em  algumas  partes  da  Hespanha  antiga.  O  uso 
das  chaminés  é  ignorado;  e  fazem  a  cosinha  em  fo- 
«■ões  também  á  semelhança  dos  brnseros  dos  hespa- 
iihoes  :  os  pobres  teem  lareiras  de  tijolos.  A  mobília 
e  quasi  nenhuma  ;  cobrem  o  solho  com  esteiras  mui 
finas,  conservadas  com  toda  a  limpeza,  porque  em 
tudo  são  muito  aceados ;  para  receber  as  visitas  es- 
tendem por  cima  alcatifas  ou  mantas,  segundo  suas 
posses.  —  Armas  de  varia  espécie,  vasos  de  porcela- 
na, e  alguns  objectos  curiosos  adornam  as  casas  inte- 
riores :  as  paredes  são  guarnecidas  de  papel  dourado 
ou  de  cores,  forro  a  que  os  ricos  accrescentam  mol- 
duras e  outros  ornatos  de  madeira  lavrada  com  gos- 
to, e  envernizada  ou  dourada.  —  Os  edificiossão  ex- 
teriormente de  extrema  simplicidade  ;  a  diíTerença 
entre  a  morada  do  abastado  e  a  do  pobre  consiste 
em  ter  a  casa  das  pessoas  illustres  um  pateo  espaço- 
so, fechado  com  altas  estacadas  ou  muros  de  taipa, 
de  sorte  que  apenas  se  descobrem  os  telhados.  Além 
d^isso,  os  nobres  e  opulentos  possuem  jardins  vastos 
contio^uos  ás  casas,  e  muito  se  applicam  a  aformosea- 
los,  para  o  que  não  se  poupam  a  gastos.  No  interior 
das  habitações  observa-se  aceio  minucioso.  Nota-se 
porém  a  nimia  estreiteza  das  ruas. 

Os  japonezes  barbeamse  e  rapam  o  alto  da  cabe- 
ça, deixando  porém  o  cabello  da  nuca  e  umas  gue- 
delhas sobte  as  fontes,  amarrando-as  para  traz  com 
uma  íjta  :  é  simples  o  riçado,  mas  ainda  assim  re- 
quer seus  desvelos ;  é  preciso  conserva-los  '■om  certa 
pomada  que  faz  os  cabellos  lustrosos  e  os  em  pasta  ;e 
para  que  o  nionete  se  arranje  com  a  devida  perfei- 
ção, é  mister  que  arremede  um  pedaço  de  pau  en- 
vernizado c  quadrangidar,  um  tanto  cavado  pela  par- 
te superior  e  dos  lados.  Os  seus  cabelleireiros  são 
mui  destros,  mas  consomem  muito  tempo  n"esla  ope- 
raç.no. 

O  trajo  commum  é  um  chambre  sem  gola,  e  de 
mangas  largas  que  chegam  só  aos  cotiivellos:  a  parte 
inferior  da  manga  arregaça  se  e  faz  uma  espécie  de 
saco,  que  serve  de  algibeira,  como  usavam  os  fran- 
ciscanos. Ou  por  fausto  ou  para  resguardar  do  frio. 
vestem  cinco  ou  seis  d'essas  túnicas,  umas  por  cima 
d^outras,  e  sujeitam-n"a>  com  nm  cinto  em  duas  vol- 
tas á  roda  do  corpo.  Todos,  ainda  os  de  menos  pos- 
ses, trajam  vestidos  de  seda,  sobre  tudo  nos  dias  fes- 
tivos: o  povo  miúdo  usa  conimumente  de  tecidos 
d^algodão;  fato  de  brim  é  de  indigentes,  ou  dos  ope- 
rários durante  o  trabalho. 


O  japonez,  se  estando  em  casa  sente  calma,  despe 
o  vestido  de  cima  e  prende-o  á  cinta  :  se  ainda  acba 
muito  calor,  desembaraça-se  do  segundo,  e  assim  por 
diante  até  ficar  com  um  só.  Se  arrefece,  vai  enfian- 
do successivamente  as  suas  túnicas.  As  mulheres  por 
moda  e  luxo  ainda  se  servem  de  maior  quantidade^ 
chegam  a  trazer  vinte,  porém  de  seda  muito  leve  e 
subtil,  quasi  semelhante  a  gaze  :  usam  cintos  como 
os  homens,  porém  de  muito  maior  largura,  deixan- 
do soltas  e  fluctuantes  as  pontas. 

Ha  outra  casta  de  opa,  do  mesmo  talhe  da  prece- 
dente, mas  muito  mais  ampla,  que  se  trai  sobre  as 
outras,  e  sem  cinto.  Paliando  propriamente  é  o  ves- 
tuário de  ceremonia  ,'  é  indispensável  para  visitasde 
gravidade  ;  e  com  o  outro  sáe-se  a  passeio,  a  negó- 
cios, ou  a  procurar  um  amigo.  Os  nobres  mandam 
bordar  sobre  o  peito  e  nas  mangas  os  seusbrazões.—— 
O  terceiro  traste  para  vestir  é  nm  fraque  largo,  que 
se  usa  quando  faz  frio,  e  que  se  larga  ao  entrar  em 
qualquer  casa. 

Os  japonezes  não  usam  pantalonas  ou  calças,  á  ex- 
cepção dos  militares,  e  de  quem  vai  de  jornada  ;  po- 
rém 03  empregados  do  estado  as  trazem  no  exercido 
de  seus  cargos,  nos  dias  solemnes,  e  quando  vãofal- 
lar  a  superiores. 


O  Hadjeb   de  Kobdova. 

(972  a  992) 

(CoDclasão.) 

V 
f-P'alcorari '. 

O  RECONTRO  das  duas  hostes  separou  o  terrível  guer- 
reiro do  seu  contrario,  o  el-Mansur.  D'uma  e  outra 
parte  era  a  llòr  dos  dois  exércitos:  pelejou-se  mais 
bravamente  do  que  nunca.  O  desconhecido,  sem  fa- 
zer caso  das  feridas,  que  lhe  sangravam  por  todo  o 
corpo,  travou  da  massa  ponteaguda  d*uni  cavalleíro 
morto,  e,  a  pé,  de  cabeça  descoberta,  como  estava, 
foi-se  ao  mais  basto  das  fileiras  sarracenas,  dand» 
fim  a  uma  vida  em  cadaum  dos  seus  golpes  formi- 
dáveis, lira  incrível  a  energia  d'aquelle  homem  .'Não 
parecia  mortal  :  podia  julgar-se  um  d'aquelles  semi- 
deuses fabulados,  que  as  divindades  do  Olympo  gre- 
go protegiam. 

A  guarda  do  hadjeb  não  fugiu  como  as  hostes  da 
campina:  acabou  de  pelejar  quandoo  ultimo  homcn> 
caiu. 

Mohamed,  porém,  não  appareceu  no  campo.  Duas 
horas  inteiras  levou  o  desconhecido  n  examinar  os 
r;.daveres  um  por  um  ;  e  era  realmente  um  espectá- 
culo assondiroso  vèr  aquelle  homem  curvado  sobre  os 
mortos  e  moribundos,  a  apalp.ir-lhes  o  rosto,  a  ten- 
tear-lhes  as  feridas,  a  contarlh"as,  tremendo  .incio- 
so,  e  a  espreita-los  e  a  revolve-los,  como  se  alli, 
'  n"um  d"ellcç,  tivera  occulta  a  própria  vida. 

IVpois  de  ler  corrido  todos  ergueu-se,  rugindo 
contra  os  seus  pelo  haverem  sep-^vrado  do  hadjeb.  Já 
poucos  d'elles  restavam  tnmbem.  .\  cimit.-vrra  dos 
bereberes  não  havia  ficado  ociosa  :  os  guerreiros  d* 
!M.ighred  tinham  caído  vingados. 

t>  desconhecido  não  contou  os  combatentes  que  i> 
cercavam.  Cavalgou  n'um  ginete  perdido,  largou-n 
pela  enct><.ta  abaixo,  e.  sem  desviar  o  rosto,  sem  ver 
se  o  seguiam  os  da  sua  hoste,  foi  direito  a  pl.inície, 
perguntando  rapidamente,  a  quantos  encontrava,  no- 
ticias do  hadjeb. 

Eis-aqui  o  que  elle  soube  : 


o    PANORAMA. 


«9 


Logo  DO  começo  do  recontro  da  montanha  alguns 
dos  principaes  africanos  tinham  levado  Mohanied  pa- 
ra longe  do  combate.  Os  guerreiros  de  Navarra,  dis- 
persos na  planície,  viram  fugir  um  tro(;o  de  cavallei- 
ros  levando  nos  braços  um  dos  seus  mal-ferido,  c;;ini- 
iiho  de  Medina-C(jL-li. 

O  guerreiro  não  perguntou  mais  :  picou  direito  so- 
bre Medina-Cdíli. 

Acompanhavam-n'o  os  que  tinham  ficíido  vivos  da 
refrega  em  Cai;it-al-nosor. 

Sancho,  o  quadrimano,  perseguia  no  entanto  os 
restos  fugitivos  das  liosles  de  Mohamed. 

O  terrivel  eal)o  dos  de  Afraiic  m."io  paruii  em  ]Me- 
dina-Ca^li.  O  badjeli  estava  em  Walcorari  com  uma 
parte  dos  seus. 

K  inútil  di/cr  se  o  temeroso  desconhecido  voari.i 
im  não  sobre  o  castello. 

Seguiain-n\i  sempre  (>s  seus. 

Tanto  que  chegou,  o  mesmo  foi  dar  vista  das  mu- 
ralhas que  principiar  o  ataque.  Os  de  dentro  resis- 
tiram como  quem  defende  as  vidas,'  os  de  lora  pre- 
cipitaram-se  como  quem  se  esquece  d^ellas.  ICrain 
poucos  e  cança<los',  mas  o  exemplo  do  seu  calio  mul- 
tiplicára-os  :  combalia  á  frente,  elle.  Os  golpes  da 
sua  massa  eram  como  as  pancadas  deumariete.  Cho- 
viam sobre  elle  os  arremesses  ,  mas  o  broquel  il.i  pro- 
Ircção  divina  parecia  estar  sobre  a  fronte  mia  d'ai)uelle 
homem:,  e  elle  continuava  a  marlellar  na  purtacha- 
peada  do  castello  ccuno  se  o  seu  braço  não  foise  huma- 
no.  A   porta  vergou,  lascou  e  cedeu. 

Os  de  dentro,   passados  de  medo,   reviiUiam  se. 

O  desconhecido  não  fez  ciso:  voou  de  (|iiadi.i  em 
•{oadra  até  dar  com  um  leito  ensanguentado,  onde 
jazia   um  m<iribunilu. 

lOra  o  hadjcb. 

O  estranho  pagem,  que  vimos  acompanhando  o 
desconhecido  desde  o  principio  do  cimíbate,  era  o  só 
que   o  seguia. 

Ao  vêr  o  corpo  estendido  nas  roupas  sanguent.;s, 
o  peito  do  guerreiro  pareceu  dilatar  se  :  respirou  á 
\o.'itade.  Cruí^ou  os  braços,  manchando  a  cami/a  de 
ferro  sobre  o  peito  retalhado,  e  approximousi!  len 
lamente  conn)  saboreando  o  espiíctaculo  do  infeliz,  al- 
li  firosirado,  O  pagem,  do  outro  iadu,  approximou- 
se  como  elle,  parandolhe  jonclos  á  cabeceira. 

Um  archote  de  resina,  prega<lo  n'um  espigão  de 
f<;rro  (|ue  saia  da  muralha,  prujcciava  sobr<!  i;sle  gru- 
po uma  Un  vacill.uiti;  e  avirniclhada,  <|ueo  tornava 
ainda  mais  terriíel  (í  phantastico.  O  venio  da  imite 
••ngolfava-se  e  gemia  nos  corr(íilorcs.  Lá  fora  nos  pa- 
lcos ouvia-se  um  embate  soporo  d'armas  :  eram  os 
cavalliuros  do   ,\franc    a  despojarem    os  prisioneiros. 

O  gu('rreiro  descfuihecido,  porém,  não  ouvia,  não 
sentia  nada  ^  Ioda  a  sua  vida.  Ioda  a  sua  alma  pare- 
cia residir  alli,  n\'i<|uelh'  leilii   e  n\i<|ui'll>'  corpo. 

Peinieu  se  para  o  moribundo,  r,  br.idando-llii' co- 
mo Ihc!  bradara  no  píncaro  ihis  abulrrs,  riqii'1  lu-llie 
ao  ouvido  : 

—  II  llecordaw-li'  dos  jardins  de  A/ahrat  ^' 
Molnnned  dctscerrou  as  pálpebras,  cm  ipi(!  já  car- 
regava o  <ied(i  da  morte,  i^  voltou  a  cabeça  inachi- 
oalincntii  d'nm  ao  outro  lado.  A  vista  do  pagem  |)a- 
receu  fa/i-r-lhe  uma  im|uessào  proíiiiMl.i.  O  desconlic- 
i'iilo  no  enlanlo  snrría. 

—  "  l'agi)  li'  cmrini  a  minha  divida  — clamou  clh' 
conm  jdirindo  os  di(|uc8  ú  Iorr<'nle  qui"  lá  diuitro  Hw 
refervia  —  pago-lii  omlim  a  minha  divida,  Rloha- 
nn'd.  l'otenle  donunador  das  Ilrspanhas,  que  é  feito 
da  tua  força,  (uide  está  ella  i"  Invencível  liadjeb,  on- 
de tens  essa  In.unenda  cimitarra,  que  vinte  annos 
vibrasle  <'iinlra  os  du  ('bilslu.'  \{\h!  l'ai^le  a  final: 
ii  tua  hora  clieL;nu  te.    \  iiile  .iiinos  lambem  Ic  segui 


eu  para  alcançar  a  desaffronta,  sem  nunca  desesperar 
d'ella.  Alcancei-a.  Sabes  quem  é  esse  pagem  que 
ahi  vês  a  teu  lado?  Conheces-lo?  Foi  outr'ora  a  mais 
formos.i,  a  mais  nobre,  a  mais  pura  das  virgens  go- 
das, hcije.  .  .  quem  tal  ha  de  dizer  ?  .  .  .  nem  eu  íei  -. 
é  uma  sombra.  .  .  é  o  teu  remorso,  é  o  teu  castigo, 
ií,  é  o  leu  remorso  vivo,  a  minha  viva  injuria.  Vin- 
te annos  m'a  tom  ell.i  trazido  fresca  e  viva  ao  lado 
—  n^aqnelles  ollnis  apagados,  n'aquellas  faces  inco- 
radas,  n'aquelles  beiços  sem  còr,  n'aquellas  rugas  pro- 
fundas. .  .  í>  -  i-ib 

O  pagion  era  efledivamenle  a  virgem  de  Amaya,' 
e  era  também  uma  sombra  como  o  dissera  Hermen- 
gardo,  a  quem  todos  lerão  já  recoidiecído  na  pessoa 
do  guerrreiro  <io  Afr:iTio:  nunca  tão  escura  sombra 
se  seguira  a  Ião  viva  bi/..  Sulcavam  lhe  o  rosto  lon- 
gas cicatrizes,  ganhas  juncto  do  guerreiro. 

O  rno-ítarabe  continuou: 

1  Vinte    annos,  repito,    me  ardeu    cá  dentro  a 

indignação,  a  cada  hora,  a  cada  iti^taute,  accendcn- 
do-me  a  xergonha  nasfacescada  \et  que  me  lembra- 
va do  que  tu  me  fizeras  a  esta  mulher,  límbranque- 
ceu-iiie  a  cabeça  o  receio  de  morrer  sem  vingar-me. 
lioiívado  «ejjís,  Senhor,  liu  cheguei  a  duvidar  da 
vossa  Justiça  ;  mas  vós  sois  melhor  do  que  os  homens. 
Cincoenta  éramos  nós — ouves,  Mohamed  ?  —  ein- 
coenta  éramos  nós,  que  nos  juramentamos  para  cum- 
prir esta  vingança.  Do  todos  fujoei  eu  só  ;  os  mais 
caíram  um  depois  do  outro,  debaixo  do  ferro  dos 
teus.  Caíam  un.s,  mas  não  se  cançavam  os  outros  \ 
eu  miMio-,  lio  que  nenhum.  1'rolegeunie  Deus  como 
(iirecia  proteger  te  ;  eu  fui  o  só  que  fiquei  de  tantos. 
Vè  lá  se  elle  é  justo!  Fui  eu  que  ergui  contra  ti  os 
condes  ehristãos  e  os  .il-kaides  do  Andaluz^  fui  eu 
que  uni  e  concordei  os  príncipes  godos,  fui  eu  que 
vinte  annos  successivos  provei  couitigo  o  meu  braço 
cm  todas  as  batalhas,  até  o  tornar  mais  robusto  do 
que  o  teu  j  fui  eu  que  sobre  asplialanges  prostrada» 
liz  surgir  novas  |)lialanges ;  sou  eu  finalmente  quele 
tenho  agora  aqui  <lcb:iixu  do  joelho,  como  tu  me  ti- 
veste ha  vinte  aiiuov.  Keeordas-te  dos  jardins  de  Aza- 
hrat,  rccord.is  te  ?  Sabes  o  que  eu  prommetti  a  esta 
mulher.'  l'rometti  restitui-la  pura  ás  llespanhas,  pu- 
ra, purificada  como  meu  nume,  livre  da  macula  com 
que  tu  a  maculaste. '1 

O  peito  de  llcrmengardo  arquejava,  a  sua  respi- 
ração era  profunda  e  sibilante:,  as  palavras  rebenta- 
vainlhtt  dos  lábios  precipitadas  e  pressuros:is.  Golfa- 
valhc  o  sangue  do   peito. 

(iiiantoa  (íelohira,  parecia  insensível  a  tudo.  Tinha 
morto  o  coração  como   a  formosura. 

O  hadjeb  inurmiM:ivu  limas  palavr;is  siimíd.is  e  in- 
disliiulas,  (jue  ningiiiMii  poderia  saber  se  er.iin  libis- 
phemías  de  desesperado,  se  rogiis  de  arrependido  :  não 
linliii  mais  que  um  sopro  de  NÍda. 

O  mostarabe  contemplou  longo  tempo,  inanimado 
e  exangue,  o  corpo  tra(|iii'lli-  homem,  que  tora  por 
vinie  .innos  o  açoute  dos  godos  e  o  terror  da  christan- 
dade.  Depois,  arranciiido  com  a  inãn  esipierda  o  pu- 
nhal que  trazi.ino  cinto,  estendeu  a  diriúta  ao  siippos- 
lo  piigeni  por  cima  do  qiiasí  cadáver. 

—  ..  (ielohira  — disve  elle,    já  com  esforço,  tr>niu 
li  ,1  voz  e   vacíllanti'  o  corpo  —  (ielohira,    .Kini  tens 
esta  mão:,  iicceila-a  :  e  oeoinprimento  da  ininlia  prt> 
lliess.l.  " 

l'',slas  ulliiiias  pnhivras  foram  proniincíadns  em  yo> 
terrível  :  dizendo  as  iie.ibár.i  o  desgraçado  eriívaiido- 
lhe  no  coriíção  eslaiKMilo  o  ferro  que  j.i  llie  tremi.i  n.l 
mão  I 

Aqiielle  assassínio  inútil  seria  iini:i  piedade  «e  fos- 
se feito  p.ira  aeubiir  os  holrtl^llso^  toi  ntunto-C  nOr  *|ne' 
cslav.i   paiisando  u  limljeb  ;  in.is  na  ilitetleliíi  cviii  que 


68 


O    PANORAMA. 


Herinen!;ardo  o   commctfêra   era   uraa   atrociáade '. 

(ielohira  precipitou  se  sobre  a  outra  mão  que  lhe 
estendia  o  mostarabe,  com  um  grito  era  que  parecia 
fu"-ir-lhe  a  alma  ébria  de  reconhecimento.  Curvado 
um  para  o  outro  os  dois  noivos  e  terríveis  esposos, 
recebiam  no  rosto,  por  confirmação  do  horrendo  con- 
sorcio, o  sangue  que  espadanava  da  nova  e  derradeira 
ferida  do  ei-Mansur. 

Mas  a  vida  de  Ilermeiígarda  estava  também  por 
iim  fui.  £ra  já  miraculoso  como  aquelle  homem  po- 
dia susfer-se  de  pé,  depois  de  tantas  horas  de  fadigas 
inauditas,  con»  o  corpo  todo  retalhado  de  feridas  pro- 
fundas :  resistir  mais  fora  impossível. 

Mal  a  victíma  tinha  cerrado  os  olhos,  o  vingador 
caiu  a  seu  lado. 

Kra  para  nunca  mais  se  levantar! 

Gelohira  encarou  este  espectáculo  a  olhos  enxutos. 
O  que  se  passou  n'aquella  alma  não  n'o  soube  ninguém . 
Foi-se  ao  mostarabe,  e  com  o  punhal  ainda  ensan- 
guentado cortou-lhe  um  anel  dos  cabellos  esbranqui- 
çados . 

Um  mez  depois,  nos  despenhadeiros  das  montaehas 
de  Amava  foi  achada  um  corpo  de  mulher  por  tal 
forma  desfigurado  que  nunca  foi  reconhecido.  Fecha- 
da no  punho  e  chegada  ao  coração  achou-se-lhe  uma 
pequena  madeixa  de  cabellos.  Espantaram-se  todos  : 
«ram  cans  de  um  velho  ! 


na  mithologia  grega,  e  por  fim  na  dos  romanos,  que 
adoptavam,  como  é  sabido,  as  divindades  dos  poso» 
que  conquistavam.  Foi  durante  a  guerra  doi  pira- 
tas, anno  de  Roma  687,  que  o  numen  Mitbra  come- 
çou a  ser  venerado  na  Itália  :  aão  romanas  todas  i% 
estatuas  que  d'elle  permanecem.  De  ordinário  é  re- 
presentado na  figura  de  um  mancebo  bem  apessoado, 
coberta  a  cabeça  com  o  barrete  phrvgio,  e  com  um 
joelho  firme  sobre  um  touro  derribado,  enterrando  a 
faca  na  cerviz  do  ar.imal.  — São  muito  mais  raros  os 
simulacros  iguaes  aos  da  nossa  estampa;  e  aos  attri- 
butos  de  que  são  revestidos  dá-se  aseguinte  explica- 
ção. —  A  cabeça  com  as  feições  leoninas  allude  ao  po- 
der que  |o  sol  manifesta  no  signo  de  Leo ;  as  azas 
indicara  o  movimento  eterno  e  rápido  d'e»se  astro; 
o  corisco  esculpido  no  peito  recorda  o  fogo,  as  cha- 
ves de  dois  feitios  que  tem  seguras  denotam  as  que 
serviam,  na  crença  dos  persas,  para  abrir  as  sete  por- 
tas por  onde  passam  as  almas  humanas  ;  a  serpente 
que  o  enlaça  significa  a  prudência  unida  á  força:  o 
grifo  e  o  caduceu  de  Mercúrio  postos  ao  lado  são  ac- 
crescentamentos  que  lhe  addiccionaram  os  romanos. 
—  Oflercciam  a  este  nume,  em  virtude  dos  seus  sym- 
bolos  de  creador,  as  primícias  dos  fructos :  na  deca- 
dência do  império  romano  ainda  tinha  sectários. 


ESTA  Tl  V    ny.  MiriiK  v . 

E.M  nni.i  das  salas  da  bililiotheca  do  \  aticniio  está 
collocada  a  est;itua  que  a  precedente  gravura  repro- 
duz :  é  um  Ídolo  copiado  da  nijthologia  oriental. — 
Segundo  a  religião  dos  antigos  persas  o  de'is  Mithr.i 
era  symliulo  do  sol,  do  fogo  e  do  amor:  a  f.il>u!;i  o 
faz  nascer  de  uma  pedra  como  .'i  f.iisca  sáe  da  peder- 
neira percutida  com  o  fuzil.  Alguns  o  ciuifundíram 
com  Osíris. 

Parece  que  o  culto  de  Alithra  passou  da  1'ersia  á 
Cappadocia,  onde  no  tempo  do  geographo  Strabo  ti- 
nha avultado  numero  de  adoradores.  Entrou  depois 


A  CAMPIHA  DE   RojIA. 

(Cootiauado  de  pag.  62.) 

Q.i/At  será  a  causa  a  que  devemos  attribuir  a  despo- 
voação  da  campina  de  Roma?  —  Escriptores  de  su- 
bido merecimento,  como  Lícolai,  Sísmondi,  Muller, 
de  Tornou,  nas  suas  dísquísições  sobre  o  agro  roma- 
no, tractaram  felizmente  esta  questão  importante  cm 
relação  á  historia  eá  economia  politica,  e  todos  acha- 
ram a  caus:i  na  própria  grandeza  da  fortuna  ro- 
mana. Assim  que  Roma  se  fez  senhora  das  pro- 
ducções  do  orbe,  desprezou  as  do  seu  torrão  próprio  : 
—  as  riquezas  acarretaram  o  desgosto  do  tracto  agrí- 
cola. -Nos  primeiros  séculos  da  era  romana,  as  famí- 
lias patrícias  cultivavam  pessoalmente  o  seu  quinhão 
de  terras,  e  essa  porção  era  n'esse  tempo  mínima:  a 
principio  foi  só  de  dnas /ujera  (geiras  romanas)  ;  pa- 
ra o  diante,  annoiíGS,  lixou-se  em  sete  geiras,  proxi- 
mamente 11,33  braças  portuguezas  quadradas,  o  pa- 
trimónio de  cada  família:  em  oti'2.  o  senado  pcrmit- 
tíu  a  cada  membro  de  família  aquella  porção ;  d^aht 
a  vinte  e  seisannos  concederam-se  quinhentas  geiras 
a  cada  família  ;  e  em  breve  deixaram  de  regular  .i 
extensão  da  propriedade,  pelo  que,  apouco  c  pouco, 
algumas  casas  patrícias  acharam-se,  por  compras,  ou 
substituições,  ou  heranças,  senhoras  de  toJa  a  cam- 
pina :  abandonaram  então  ás  mãos  de  »eus  escravos 
esses  vastos  terrenos,  e  para  tornan-m  mais  facíl  o 
amanho  os  reduziram  a  pestos.  a  quintas  sumptuo- 
sas, a  lagos  c  viveiros:  —  a  agricultura  propriamen- 
te dieta  dcsappareceu.  Então  a«  povoarães  que  não 
haviam  sido  absorvidas  pela  cidade  de  Roma,  que 
tinham  vivido  dos  fructos  dos  territórios  circumvísi- 
nhos,  decresceram  cm  numiro  de  habitantes,  e  a 
final  desvanoceram-se,  cuiram  em  ruínas.  Já  no  co- 
mero  da  era  chrístã,  os  campos  do  Lacio.  cm  qup 
haviam  residido  naçiles,  tínham-se  convertido  n'um 
ermo  inculto.  Plínio  o  naturalista  assignala.  no  se- 
gundo século,  os  IntifiirtiUa  (grandes  prtipriedades) 
como  causa  primeira  da  ruína  da  Itália  ;  o  o  que  cl- 
le  diiía  da  península  em  geral,  applícava-se  mais 
particularmente  á  campina  romana,  porque  n'elU  a 
despovoação  deixava  em  pleno  poder  o  inimigo  tre- 
mendo, que  bavia  cotnbatido  a'outro  tempo  cgm  fc- 


o    PANORAMA. 


69 


licidade  —  a  insalubridade  da  atniosphera,  Asseve- 
Tou-se  repetidas  vezes  que  a  terrível  mal  ária  era 
gerada  da»  exhalaçõcs  deletérias  próprias  do  terre- 
no, em  muita  parte  volcanico.  Posto  que  amiudadas 
analises  feitas  por  cliimicos  mestres,  entre  outros  o 
celebre  Davy  em  182i,  iiuiica  demonstrassem  que  o 
ar  da  campina  fosse  naturalmente  viciado,  comtudo 
reinam  febres  mortiferas  no  agro  de  Roma.  (iue se- 
jam a  causa  original  doeste  flagello  os  elementos  cons- 
titutivos do  solo  volcanico,  não  poderá  lalveí  contes- 
tar-se  ;  mas  o  certo  é  (e  a  antitça  populajãodo  Lacio 
tão  numerosa  bem  o  prova)  que  a  ciillura  e  a  iiabi- 
tação  d'homeii3  o  tinham  superado  de  algum  modo  : 
—  se  fora  perciso  ,  poderia  invocarse  o  testimunho 
de  Tito  Livio. 

Só  quando  as  grandes  propriíídades  tiiibaii)  sub- 
vertido a  cultura  parcellar,  e  a  populafjão  lialillaute 
dos  campos  fora  absorvida  pela  capital  do  inundo  , 
apparecem  nos  escriptos  de  Strabo  c  Cieero  noiicins 
das  febre»  que  raream  parte  do  agro  de  Roma,  ({'an- 
tes tão  fecundo  em  gente  :  — á  medida  que  se  alar- 
gou o  deíerlo,  dilatou-se  a  praga  e  augraeiítou  d^in- 
tensidade.  Nem  eram  próprias  para  restabelecer  a 
povoa(;ão  e  a  agricultura  as  circiimstanciai  da  queda 
do  império,  as  desor<lens  subsequentes- ,  e  a  barbárie 
da  idade  media.  l'or  isso  S.  i'eJro  Damião,  no  un- 
deciaii)  século ,  dizia  de  Roma  que  abundava  cm 
fruclos  de  morte. 

O  estado  ermo  e  de  baldio  em  que  se  achava  a 
campina  sempre  foi  Ião  considerado  causa  da  misé- 
ria e  de  falta  de  gente,  ipie  os  poulifices  alternati- 
vamente cuidaram  do  pAr  termo  a  situação  por  tal 
insdo  triste.  Em  1407,  (liegorio  VII  ^  mais  tarde 
Sixto  IV,  Júlio  II,  Clemente  VII,  Pio  V,  perten- 
deram  obrigar  os  senhorios  feudaes,  que  tinham  suc- 
cedido  ás  famílias  patrícia»  de  Roma  na  posse  dos 
bens  rústicos,  a  amanhar  as  suas  terras,  ou  j)elo  me- 
nos a  confia-las  a  cullivarlores,  mediante  aforamentos 
que  identificariam  o  lavrador  com  a  projiriedade  por 
um  contracto  perpftluo  e  transmissível.  Sixto  IV  até 
chegou  a  permittír  ao  primeiro  cjccupante  semear  a 
terça  parte  de  qualquer  terreno  inculto,  e  colher  a 
seara  sem  renda  para  o  propriílarío  ;  porém  seos  poií- 
tiCces  tiveram  boa  vontade,  fallava-llies  poder  para 
isso-,  as  sua»  determinações  não  produziram  resulta- 
do. Sixto  V,  com  toda  a  sua  energia,  não  pôde  ven- 
cer a  obstinada  resislencía  dos  senhorios.  Km  tempo 
de  Alexandre  VII  (1720)  pralicaram-se  alguns  me- 
lhoramento» na  lavra  da  campina,  mas  depois  d^elie 
tudo  caiu  no  estado  antigo.  Entretanto  pelos  fin»  do 
«eculo  passado.  Pio  G."  renovou  com  fervor  os  projec- 
tos de  arroteação,  emprehendeu  a  obra  admirável  do 
esgotamento  das  lagoas  Pontinas,  e  em  poucos  annos 
recuperou  para  a  cultura  nuii  avultada  poreãodeum 
terreno  grandemente  feeuuilo.  Infelizmente,  ao  seu 
nuccessor,  J'io  VII,  faltaram  recursos  pecuniários  pa- 
ra eontinuar  o  eiixuganuNitodos  pântanos;  comtudo 
eneau\inhou  a  sua  solliciludií  para  a  campina  propria- 
mente dieta,  eempriígou  de  novo  os  jno/it  próprio  pa- 
ra obrigar  os  proprietário»  á  lavra  das  turras:  tam- 
bém imaginou  o  plano  de  colonisar  i>  <leserto,  fazen- 
do cultivar  (irimuiro  o»  arreiiores  d(r  Roma  o  de  ou- 
tro» locais  habitadvs,  de  tal  férma  que  a  cultura,  di- 
latando-se  cada  vez  mais,  irradiando  de  eeiilros  dif- 
ferente»,  acabaria  porcobrir  tudoo  território.  Porém 
este  projecto  não  foi  posto  i.in  prai;liea,  ou  porcausa 
da»  inquiiítações  da  ipocha,  ou  porque,  segumlooaij- 
tigo  e  ex.ulo  [M-overbio  romano  —  em  Roma  todos 
inaiul.im  e  ningucun  oiiedece.  — 

O  agro,  isto  é,  a  comarca  de  lloma  avalia-so  em 
ÍÍ0!)()1H(  hectares  desuperfieie  (o  hectare  corresponde 
a   4l3ií   brtijiis   «juadradiv») ;    177   proprieturios,   en- 


trando 64  corporações  religiosas  ou  de  beneficência» 
partilham  entre  si  inalienavelmente  toda  aquella ex- 
tensão ;  inhabílitados  de  amanharem  as  propriedade» 
á  sua  custa,  arrendam-n'as  a  caseiros,  que,  substi- 
tuindo temporariamente  os  donos  (porque  não  exis- 
tem aforamentos  senão  em  as  montanhas),  não  pro- 
curam o  melhoramento  duradouro  dos  terrenos,  mas 
sim  tirar  o  ganho  mais  pingue  e  mais  fácil  de  apu- 
rar. Note-se  que  o  solo  da  campina  produz  excellen- 
tes  pastos  :  a  brandura  do  clima  permitte  a  pasta- 
gem durante  o  inverno,  ao  passo  que  a  temperatura 
mais  Iresea  das  montanhas  e  das  mattas  do  littoral 
no  verão  facilita  aos  gados  retiro  e  sustento,  que  es- 
capa aos  raios  abrasadores  do  sol  :  a  carência  de  mu- 
nicípios ruraes,  a  vastidão  das  propriedades  cftere- 
cem  aos  rebanhos  dilatados  espaços  para  vaguearem 
livremente.  Em  tão  favoráveis  circumstanciasacrea- 
ção  do  gado  requer  mui  diminuto  pessoal  de  pastore* 
e  guardas;  é  por  tanto  fácil  conhecer  que  esta  in- 
dustria deve  appresentar  grandes  vantagens  ;  ellas  é 
que  decidiram  a  transformação  da  campina  em  pas- 
cigos  desde  os  laliftuutia  de  Rotna  até  os  nossos  dias  ; 
e  é  provável  que  assim  continuem  em  quanto  as  pro- 
priedades não  forem  repartidas,  porque  a  agricultu- 
ra está  longe  de  appresentar  quanto  aos  lucros  os 
mesmos  satisfactorios  resultados. 

A  talta  de  çente  de  trabalho  constransre  o  cultor  a 
chacnar,  na  estação  da»  semeaduras  e  nas  das  colhei- 
las  ,  jornaleiros  da  Sabina,  do  reino  de  Nápoles,  e 
das  Marcas;  os  preços  dos  jornaes  sobem  a  uma  taxa 
mui  alta  ;  as  longas  jornadas,  o  perigo  imminente 
que  allVontam  os  trabalhadores  por  causa  do  clima 
doentio  no  verão,  justificam  a  alta  dossalarios.  São 
por  tanto  consideráveis  as  despezas  de  costeio;  ac- 
crescentando-llie  o  preço  das  sementes,  os  gastos  de 
transporto  ii'um  dístricto  sem  vias  navegáveis,  che- 
gar-se-ba  a  um  total  muito  subido,  que  appresenta 
lucros  miiiimos  nus  annos  fecundos,  e  perdas  reae» 
no»  annos  (estéreis.  Em  geral,  a  terra  pouco  cultiva- 
da pelas  dietas  razões  de  carestia  é  mal  amanhada,  e 
por  isso  não  dá  para  pa^ar  o  emprego  de  capital  que 
exige  a  lavoura:  de  ordinário  não  rende  mais  de  oi- 
to a  nove,  ainda  (lue  n'algumas  folhas  de  terra  bem 
situadas  c  bem  tractadas  por  pequenos  proprietários 
dá  ás  vezes  dezoito  sementijs. 

Por  este  modo,  as  despezas  quasi  que  fornam  im- 
possível .1  cultura  ;  d.i  falta  d'esta  procede  a  da  po- 
voação ;  e  a  carência  d'ambas  deixa  largas  á  índuen- 
cia  maligna  do  ar  doentio.  Tal  é  o  circulo  vicioso  de 
([ue  era  mister  sair.  O  papa  Leão  XII,  de  illustrado 
espírito,  que,  se  tivera  mais  saúde  e  um  pouco  me- 
nos de  génio  capriclioso,  poderia  fazer  grandes  cou- 
sas, formou  o  desígnio  de  melhorar  a  campina  roma- 
na, para  o  que  mandou  «uganisar  planos  de  lavras 
de  terras,  o  dv.  canalisaeão  do  Tibre  e  alluentes.  A 
sua  vontade,  ás  vezrs  violenta,  constrangeria  !\  obc- 
decercuii  os  grandes  proprietários,  rebeldes  scmpro 
(juaiulo  se  trácia  de  melhoramentos;  porém  falleceu 
iiu^speiadanicute  imu  ukuo  cresle»  projectos  e  de  ou- 
tros que  reanimariam  os  estados  pontifícios.  Porém 
as  suas  disposiçòi!»  foram  coiihecid.is  fóru  dos  domí- 
nio» da  saneia  sé,  e  sem  duvida  liznram  ellas  nascer 
outro  projecto.  Em  18l!"J  appareceil  uma  socií-ilade 
d.'  capiliilisla»  franceze»,  inglezes  e  hnllaiidezes  para 
arriMidar  toda  a  campina  de  Roma.  Propiinliam  pa- 
gar uma  renda  aniiual  ao  governo,  a  (|ual  este  fixaria, 
e  além  d'isso  dar  uma  grossa  quaiilia.  O  contractode- 
vi'ria  durar  cincoenta  annos.  Cada  proprirlariodevia 
receber,  no  dia  do  arrendamento,  a  renda  que  lhe 
produziam  as  suas  terras.  A  sociedade  coulrahia  «s 
obrigiições  de  cultivar  a  campina,  de  esgotar  a»  U- 
gOus  Pontinus  c  as  de  Macarcsc  c  Dslii»,  focos  de 


70 


O    PANORAMA. 


enfermidadeB,  e  de  fazer  navegáveis  o  Tibre  e  o  Te-  O  capitulo  soberano  de  Strasburgo  queria  ter  uro 
verone  em  todo  o  seu  curso,  o  que  facilitaria  ás  mon-  relógio  digno  da  cathedral  magnifica,  em  que  devia, 
tanhas  de  Sabina  a  extracção  de  seus  productos,  que  lembrando  aos  fieis  a  hora  das  oraçue;,  recordar-lhes 
se  vendem  com  prejuízo  ou  se  perdem  por  falta  do  ^  os  factos  mais  importantes  da  fradi'jão  christã  e  o» 
meios  de  transporte.  Deveriam  edificar  se  nos  Ioga-  principios  fundamentaes  da  moral  evangélica.  Para 
res  mais  sadios,  de  distancia  a  distancia,  aldeias  com  o  conseguir  não  se  forrava  a  despezas ;  e  por  toda  a 
suas  igrejas  e  escholas,  e  em  algumas  também  alber-  ^  Europa  gyravam  cartas  convidando  para  emprehen- 
irarias.  Estradas  e  caminhos  vicinaes  cortariam  a  |  der  esta  obra  admirável  os  mechanicos  mais  distinc- 
campina  em  todas  as  direcções.  As  aguas  mineraese  '  tos,  os  astrónomos  mais  sábios.  Houve  um  homem  que 
sulpliureas,  que  abundam  n'esta  comarca,  se  appro-  i  respondeu  ao  convite  i  veio  offerecer  o  seu  préstimo  ^ 
veitariam  para  banhos  thermaes.  (iranjas-modelos,  i  foi  acceito,  metteu  mãos  á  obra,  e  em  1532  estava  o 
«■oUocadas  nas    roais    adequadas   situações,    serviriam  ;  relógio  acabado. 

para  natura  lisar  certos  productos  coloniaes,  como  o  Foi  convocado  o  capitulo  para  assistir  aos  primei- 
anil,  a  canna  do  assucar,  que  em  circumstanciasana-  ,  ros  movimentos  da  maravilhosa  machina.  Nada  lhe 
logas  teein  dado  bons  resultados.   Finalmente,  seriam     faltava:  alguns  instantes  antes  de  dar  as    horas,    unk 


leitos  todos  estes  trabalhos  pelos  habitantes  da  cornar 
ca,  os  serranos  da  Sabina  e  os  camponezes  das  Mar- 
ca» \  tomando  se  todas  as  precauções  indicadas  pela 
experiência,  taes  como,  agasalho  para  os  operários 
ate  a  construcção  das  aldeias,  e  abrigos  provisórios 
longe  dos  centros  d'infecção,  o  impulso  dados  aos  tra- 
balhos pela  agglomeração  d^homens  ,  e  a  suspensão 
d^quelles  durante  as  seis  semanas  mais  perniciosas 
do  verão.  Estas  providencias  hygienicas  sem  duvida 
impediriam  que  a  insalubridade  se  tornasse  infensa, 
ou  fizesse  paralysar  a  colonisação,  O  governo  ponti- 
fício conservava,  bem  entendido,  plena  auctoridade 
na  comarca  por  todo  o  tempo  do  contracto  :,  e  a  final, 
«íxpirado  o  prazo  dos  cincoenfa  annos  do  arrendamen- 
to, as  propriedades  voltavam  a  seus  donos,  porém  me- 
Jhoradas  e  com  o  cêntuplo  do  valor.  —  Por  viad'e5ta 
empreza  intelligentc  era  restituída  á  cultura  vasta 
porção  de  terreno:,  e  os  recursos  do  solo,  assim  appro- 
veitados,  geravam  a  abundância  e  o  commercioi  a 
receita  do  estado  augmenlava  pelo  rendimento  cres- 
cente dos  impostos ;  este  augmento  punha  termo  ao 
estado  precário  de  Roma,  que  vive  das  províncias  :,  a 
população  miserável  que  superabundasse  na  capital, 
no  interior  das  montanhas,  ou  nas  planícies  mui  po- 
voadas da  iMarca,  poderia  esperar  obter  conimodi 
dades  pelo  seu  trabalho.  N^uina  palavra,  a  civilísa- 
ção  iria  penetrar  n'uin  território,  que  em  relação  a 
outros  se  acha  no  atrazo  de  alguns  séculos.  Foi  isto 
exactamente  o  que  fez  abortar  o  projecto.  O  pontí- 
fice Pio  VIII  desejava  o  bem,  mas  não  se  achava 
munido  de  força  bastante  (lara  fazer  adoptar  a  pro- 
posta t|ue  tinha  acolhido  com  boa  vontade;  parece 
que  foi  reputada  perigosa  para  o  staiu  quo  político 
<ia  Itália  central  -,  e  as  doenças  e  a  .solidão  ficaram 
soberanas  da  cainpínn  de  Roma. 


Relógio  astronómico  de  Sthasburod. 


gallo  empoleirado  na  grimpa  d'uma  torre  advertia 
os  fieis  batendo  as  azas,  e  com  a  voi  estrondosa,  que 
estivessem  alerta  e  em  guarda  contra  as  suggestões 
do  demónio,  a  que  o  príncipe  dos  apóstolos  não  sou- 
bera resistir.  Vinha  depois  a  morte  dar  tantas  pan- 
cadas n'uma  campainha  quantas  eram  as  horaa  ^  em 
seguida  um  numero  de  apóstolos,  igual  ao  das  horas, 
passava,  inclinando  se,  por  diante  de  Christo,  que 
lhes  impunha  as  mãos.  Finalmente  o  carro  du  sol, 
discorrendo  por  um  mostrador,  indicava  os  mezes  e 
as  estações',  e  os  ponteiros  marcavam  as  dífferentes 
horas  do  dia,  os  dias  da  semana,  os  do  mez,  a  idjde 
do  mundo,  o  anno  de  J.  Christo  ikc.  Era  mais  di> 
que  os  coni-gos.  haviam  esperado. 

Retiraram-se  para  deliberar  sobre  a  recompensa 
que  o  artista  havia  de  receber.  Mas  apenas  se  affas- 
taram  deliu  assaltou-os  o  susto  :  o  homem  que  lhes 
fizera  o  relógio  podia,  amestrado  pela  experiência 
que  acabava  de  adquirir  ,  fazer  outro  relógio  ainda 
mais  portentoso  para  alguma  outra  cidade,  e  priva- 
los  a  elles  da  gloria  de  possuírem  uma  singular  ma- 
ravilha. Um  só  meio  havia  de  esquivar  este  dissal>ur  ^ 
foi  proposto,  adoptado,  e  posto  em  pracliea  no  mes- 
mo instante,  e  um  horrível  sacrilégio  privuu  da  vis- 
ta o  infclíi  artista.  Infurinaram-n*o  depois  da  caus.i 
d"este  trartamento  bárbaro.  >•  Insensatos  !  exclamou 
elle,  que  fizestes?  O  relógio  está  por  acabar,  e  pára 
se  lhe  cu  não  pozer  a  peça  que  lhe  f.dta,  e  deques<> 
eu  sei  o  liigar  .  >'  Deram-se  pressa  em  condutilopar.i 
juncto  d'aquella  obra  prima  ;  porém  assim  que  lá 
chegou,  agarrando  nVima  roda  de  que  dependia  Ioda 
o  mechanismo,  quebrou-a  ,  c  deixou  parados  para 
sempre  os  movimentos  engenhosos  que  haxiamdelhe 
dar  renome,  e  a  cidade  de  Strasburgo.  Nunca  inai« 
se  poude  achar  um  homem  tão  hábil  que  fizesse  an- 
dar de  novo  este  relógio. 

Tal  é  a  lenda  da  primeira  machina  astronómica 
de  Strasburgo.  Quem  a  quizer  tomar  a  serio  tem  ou- 
tras qo.isi  semelhantes  de  mais  dois  relógio»;  o  pri- 
meiro é  o  de  Nurcmberg,  concertadn  em  I  H6  pelo 
cekbre  astrónomo  Regiomontanus  (João  Muller),  a 
quem  a  tradição  atlribue  a  feitura  de  dois  autóma- 
tos maravilhosos;  uma  mosca  de  ferro,  que  voava  .V 
roda  da  mesa  c  di)s  convivas,  c  \olla\aá  mãodoseii 


Em  1321),  segundo  Baillv,  foi  construído  o  primeiro 
relógio  astronómico  cuja  data  se  conhece  ao  certo,  t) 
auctor  dVUe  chainava-se  Ricardo  ANalingfort,  abba- 
de  de  S."  Alban  na  Inglaterra,  e  a  sua  obra,  desti- 
nada a  ornar  uma  das  principaes  igrejas  de  Londres, 
••ra,  conforme  a  expressão  d'um  contemporâneo,  liiii  1  dono  ;  e  uma  águia  do  mesmo  metal,  que  saiu,  voan- 
DÚlaijre  da  aric,  (jut:  jttiitta  icriíi  iyiiaí  Jia  Kuropa.  do,  ao  encontro  do  imperador  Ottão  II,  eoacompa- 
Ainda  bem  não  tinham  eointudo  passado  \intoe  qua-  '  nhou  até  as  portas  ila  cidade.  O  outro  relógio  é  o 
tro  annos,  um  artista  italiano  repetiu  o  milagre  em  ido  laão,  construído  em  1j9S  por  Nicolau  Lippius 
Pádua.  de  Rasilea,    e   coiicert.ido    cn>    ItiGO   por   Guilherme 

Eis  aqui  o  que  se  sabe  <restes  dois  relógios  ;  pou-  >  Nourríson.  hábil  relojoeiro   Ivonei. 
CO  é,  mas  é   mais   do  que  se   piíde   dizer   do   primeiro 
relógio  astronómico  de  Strasburgo.    Uma  data,  uma 
tradição    vaga,   uma  lenda  l.islimosa.  em  que  não  en- 


tram iiiuie,,  são  os  únicos  elementosda  historia  dV'S- 
ta  obra  prima,  que  todavia  gozava  no  XIV  scculo 
iTuma  celebridade  talvez  maior  ainda  do  que  as  pre- 
cedentes. 


Em  I  JòO  tentaram  cnccrtar  o  relógio  de  Slraj- 
burgo,  ou  autos  fazer  outro  novo,  a  conslrucçãodo 
qual  ha\iam  de  presidir  os  malhemalico»  maíscele- 
bres.  .\  morte  de  alguns  d'elles  veio  interromper  o 
trabalho,  e  deixou  a  obra  incompleta.  Finalmente 
confiaram-na  em  lotíO  a  Conrado  Rauchfuss,  sábio 
professor  de   mathcmalica  na  universidade  de  Strat- 


o    PANORAMA. 


71 


burgo,  que  analysando  e  traduzindo  o  seu  nome  em 
grego  "ostava  de  que  lhe  chamassem  Dasypodiu»  (pt- 
cabelludo).  Conrado  junclou-se  com  o  seu  amigo  Da- 
Yid  Wolkcnstein,  astrónomo  liamburguez,  e  encarre- 
gou da  coiistrucijão  das  dilTerentes  partei  do  mocha- 
nismo  os  irmãos  Habrecht  de  SchalToose,  e  do  ornato 
Tobias  Stimmer  de  Strasburgo:  al;J;nlna^  pinturas  e 
pequenas  estatuas  devidas  ar.  talento  d'este  artista, 
ornam  ainda  hoje  o  relógio,  que  foi  acabado  aos  2S 
de  Junho  de  lo74.  ULuatro  annos  depois  saiu  á  I117. 
uma  deseripção  d\'lle  n^jnia  ol)ra  em  latim,  cuji»  ti- 
tulo se  pôde  traduzir  d'este  modo:  Dt^crijirrioilo  re- 
lógio astronnmko  Strnsbitrguense  ,  construido  pelo 
cuidado  de  Ctnirado  Dasypodius,  e  cvUncndo  no  cimo 
da  cathcdrat.   Hliash.    1578  in   i." 

A  obra  de  Oapysodius  fui  restaurada  em  KiCiOpor 
Miguel  Habrecht,  e  em  17o:i  pur  JacquesStraubliar. 
Cessou  de  trabalhar  em   17S'J. 

Aos  24  de  junho  de  1838  foi  começado  por  IMr. 
Schwilgué,  hábil  artista  strasburgue?.,  o  relógio  ac- 
tual, que  se  concluiu  em  "2  de  outubro  de  iSÍ'2. 

Um  motor  central,  que  é,  por  si  só,  um  relógio 
muitissimo  exacto,  serve  para  indicar  iTiim  mostra- 
dor, collocado  por  fora  da  igreja,  as  horas  e  as  suas 
subdivisões,  e  o»  dias  da  semana  com  os  signaes  lios 
planetas  que  llies  correspondem.  Estas  indica(;ões são 
repetidas  para  a  parte  de  dentro  em  duís  mostrado- 
res: o  primeiro,  mais  pequeno,  mostra  as  horas;  o 
outro,  que  não  tem  menos  de  4ò  palmos  decircum- 
ferencia,  é  exclusivamente  consagrado  ao  kalendario, 
e  mostra  os  mezes,  os  dias,  a  letra  dominical,  o  no- 
me do  sancto  ou  sanefa  que  se  festeja,  &.c. 

Dois  génios  com  azas  estão  sentados  cadaum  do 
seu  lado  do  mostrador  pequeno.  A  cada  quarto  de 
hora,  o  que  está  da  banda  direita  bate  na  campai- 
nha uma  pancada,  immediatamente  repetida,  por 
cima  de  todos  os  mostradores,  por  um  autómato  que 
representa  uma  das  quatro  idades  da  vida.  A  Infân- 
cia dá  o  primeiro  quarto,  a  Adolescência  o  segundo, 
a  Virilidade  o  terceiro,  a  Velhice  o  quarto.  A  Morte, 
que  se  vê  sobre  um  pedestal  a  par  da  Velhice  que 
se  dispõe  a  tocar  o  ultimo  quarto,  tem  .1  seu  cargo 
dar  as  horas-,  e  de  cada  vez  que  o  faz,  osegundodos 
dois  génios  de  que  falíamos  volta  uma  ampulheta, 
cuja  exacção  appresentou  mais  difliculdadcs  a  Mr. 
Schwilgué  do  que  os  problemas  mais  complicados. 

Ao  meio  dia,  ás  badalailas  das  horas,  succede  uma 
procissão  de  doze  apóstolos,  que  inclinaiulo-se,  cada- 
um d"elles  do  seu  modo  particular,  vem  saudar  o 
Christo,  que  de  cima  d'nni  pedestal  estende  sobre 
clles  as  mãos  como  para  os  ab(!n(;oar.  Ao  mesmo 
tempo  o  gallo,  empoleirado  na  torre  que  se  vê  á  es- 
i|urrda,  sacode  as  azas,  e  canta  por  três  veies. 

Uns  carros  em  que  vem  lindas  figurinhas,  c  que 
saem  alternativamente  d'um  grupo  de  nuvens  que 
está  por  baixo  do  mostrailor  das  horas,  indicam  os 
dias  d:i  semana,  representados,  o  domingo  por  A  pol- 
lo,  u  seguiulafeira  por  Diana,  a  tcrea-feira  por  Mar- 
te. O  retrato  que  «o  vê  no  sopé  da  tcjrreda  es(|uer(la 
é  o  de  Co|)ernieo  ;  homenagem  d'um  dos  admirado- 
res d'esfe  astrónomo,  (|up  todavia  não  ponde  obter 
que  o  syslemu  de  seu  mestre  fosse  pn  Icrido  ao  de 
l'lol<m)eu. 

Kste  relógio  foi  in;'Ugur,ido  aos  .'M  de  dezembro 
de  1N4'J,  ás  seis  horan  da  noite.  Mr.  Schu  ilgué  ti- 
nha-o  adiantailo  (>  horas  para  que  os  movimento» 
lio  Ualendiirio,  do  computo  eivlesiaslico,  iVc.  ,  ipie 
ri'gularnii'nte  di'viMn  ler  logar  todos  os  annos  ameia 
noite  <le  III  de  ilezenibro  se  fizess<'m  na  presença  dos 
espiícladores  ((uivididos  para  a  cerenioiiia.  As  cinco 
horas  e  meia,  estando  já  a  calhedriil  i-Inia  de  gente, 
chegou  o  bispo  com  toda  a  cicresia,  e  proferiu  a  for- 


mula da  benção.  E  logo,  ao  darem  as  badaladas  das 
seis  horas,  pozeram-se  em  movimento  as  machinag 
de  todos  os  mostradores,  e  com  maravilhosa  exacti- 
dão cada  festa  movei  veio  tomar  o  logar  que  havia 
de  occupar  no  anno  de  1843, 


C.VKT.VS  I:«ED1TAS  DE  D.  Jo.ío  DE  ClSTBO. 

Pela  seguinte,  não  incluída  na  copiosa  coUeccão  de 
d«)cumeiitos  com  que  o  douto  cardeal  Saraiva,  patriar- 
clia  de  Lisboa,  enriqueceu  a  edição  feita  em  183o  da 
vida  d'este  vice  rei  por  Jacintho  Freire  de  Andrade, 
daremos  começo  á  publicaçãod'al2uma  das  cartas  iné- 
ditas mais  interessantes  do  grande  D.  Joãu  de  Cas- 
tro. N'esta  descreve  elle  a  victoria  de  Diu  com  que 
vingou  a  morte  do  filho.  .Mterou-«e  a  ortboiTaphia 
do  urginal  para  biciiitar  a  leitura. 

Carta  do  Viiorti  I).  João  de  Castro  aos  f^ereadores. 
Juizes  da  cidade  de  Goa. 

1347.    lo  de  Noi\-mbro. 

(iuAiiTA  feria  que  foram  vinte  seis  dias  do  metd*ou- 
tubro  parti  da  fortaleza  de  Baçaini,  caminho  de  Diu,  e 
l'ui  surgi  na  ilha  das  \  actas.  O  nutneroda  minha  ar- 
mada eram  sessenta  fustas,  doze  naus  e  galeões  onde  po- 
diam ir  mil  e  quinhentos  soldados  ;  e  porque  me  era  ne- 
cessário ir  tomar  a  ilha  dos  IVIortos  para  ahi  fazer  acua- 
da e  para  ahi  recolher  todos  os  navios,  que  no  atra- 
vessar do  golphão  de  necessidade  se  haviam  de  apar- 
tar de  mim  como  aconteceu,  determinei  de  approvei- 
tar  o  tempo,  que  nesta  ilha  havia  de  estar,  com  fa- 
zer guerra  pela  costa  de  Cambaia  i  pelo  que  logo  da 
ilha  das  Vaccas  mandei  D.  Manuel  de  Lima  com 
vinte  fustas  por  capitão  mor  á  enseada  pêra  queimar 
e  assoUar  toda  a  costa  do  mar.  O  qual  por  seus  me- 
recimentos lhe  deu  Nosso  Senhor  tal  ventura,  que  en» 
breve  tempo  abrazou  dezesete  léguas  de  costa,  sem 
lhe  ficar  cidade,  villa  nem  logar,  que  não  fosse  quei- 
mada até  os  cimentos;  nos  quaes  toda  a  gente  foi 
mettida  á  espada  sem  perdoar  a  nenhuma  cousa  vi- 
va, e  depois  d'isto  assi  fazer  se  inetteu  pola  terra 
adentro,  queimando-lhe  as  sementeiras,  pondo  fogo 
a  todas  as  eiras,  de  madeira  que  receberam  grandís- 
sima perda  nos  rios  e  portos  d'onde  entrou,  nos  quaes 
queimou  vinte  iiáus  grandes  e  cento  e  vinte  cotias; 
que  levavam  niantimeiílo  ao  arraial  dos  mouros. 

Isto  assim  feito  veio  ter  comig(>  á  ilha  dos  Mortos, 
onde  o  estava  esperando  por  me  não  parecer  ra/.ui  ha- 
ver de  entrar  em  tão  duvidosa  batalha  sem  um  tal 
cavalleiro,  e  chegando  cnni  grande  alvoroço  de  todo» 
os  capitais  iUlalgos  e  lascarins  parti  e  fui  surgir  a  vis- 
ta da  fortaleza  de  Diu,  e  ao  outro  dia  ti/,  duas  batalhas 
de  minha  armada  :  os  navios  de  remo  onde  eu  ia  na 
dianteira  e  as  naus  e  galeões  um  pouco  ntraz.  Com 
esta  ordem  eaniinhei  e  vim  surgir  de  fora  da  barra 
de  Diu,  onde  d'armada  (|ue  cá  estava  e  o  baluarte 
do  mar  fui  mui  bem  recebido  com  muitas  festas  e 
grandes  alegrias,  e  me  salvaram  com  toda  aartilhe- 
ria  e  eu  depois  a  elles,  e  tanto  que  surgi  niaiuleiao 
eapitão  que  tirasse  as  portas  da  fortaleza  fora  e  o 
fizesse  a  saber  aos  mouros.  K  poniuo  o  logar  mais 
ciuiveniente  da  minha  desembarcação  estava  escuroe 
em  muitas  opiniões,  iior  cansa  de-  todalas  parles  onde 
podia  deseinlianar  estarem  cercadas  ile  muros  baluar- 
tes, com  (Ultras  muitas  Iraiuiueiras  e  defensas,  ile  tan- 
tas maneiras  ipie  ijiiasi  exeeili.iin  a  iuiliistria  huma- 
na, quiz.  ccnn  minha  pi'ssoa  ver  e>te  segredo  com  Lnu- 
reiíçu  I'ires,  capitão  iiiór  d'arin.ida  do  reino,  etí.ir- 


72 


O    PANORAMA. 


cia  de  Sá,  e  Manoel  de  Sousa,   Francuco  da  Cunha  ' 

«Diogo  Álvares  Telles,  contras  pessoas  sufficientes,  e 
com  elles  fui  vero  baluarte  de  Diogo  Lopes,  Bem 
embargo  que  nos  defendessem  u  vista  com  muita  arti- 
Iheria  :,  mas  no  fim  o  houve  de  fazer,  como  ii?,  muito  á 
minha  vontade,  c  com  parecer  de  todos  assentei  de  niío 
desembarcar  por  alli,  poios  grandes  inconvenientes  que 
para  isso  havia,  mas  queiosse  á  fortaleza  equed'ahi 
saísse  dar  combate  :,  e  como  isto.  tivesse  assentado  lan- 
cei fama  na  minha  armada  e  dentro  na  fortaleza  que 
havia  de  desembarcar  pola  banda  do  baluarte  de  Dio- 
go Ijopes,  e  pêra  fazer  isto  crer  aos  mouros  mandei 
ao  outro  dia  trcs  caravelas  que  os  fossem  combater, 
das  (|uaes  eram  capitães  IíUÍí  d'Almeida,  António 
Leme  e  Francisco  Fernandes,  a  que  chamam  mori- 
cale  :  os  quaes  ante  manhã  combateram  este  baluar- 
te com  tanto  esforço,  que  foi  muito  para  louvar,  e 
vrendo  os  mouros  que  esta  obra  era  a  fim  de  desem- 
barcar por  esta  parte,  trouxeram  logo  a  maior  parte 
da  artilheria  do  campo  e  a  assentaram  sobre  a  desem- 
biircajão,  fortihcando-se  com  muita  induitria,  trazen- 
do para  ahi  grão  numero  de  soldados.  F.m  quanto  se 
esta  ol)ra  fazia  mandei  mui  secretamente  desembar- 
car toda  a  gente  na  fortaleza,  e  apartei  cincoenfa  fus- 
tas desemmasloadas  como  que  eu  havia  de  ir  ao  ou- 
tro dia  desembarcar  n'ellas  polo  logar  que  as  caravelas 
combatiam.  EnVstas  fustas  não  levavam  outra  gen- 
te senão  marinheiros,  puz  muitas  trombetas  eataba- 
les  e  charamelas,  pêra  quando  ouvissem  a  diversidade 
dos  instrumentos  déíse  fé  de  minha  (armada)  para  ir 
dentro. 

E  por  Nicolau  Gonçalves  ser  homem  muito  esper- 
to e  cavalleiro  muito  practico  nas  cousas  do  mar,  o 
1Í7.  capitão  mor  d'esta  fostalha  ,  e  concertei  com  elle 
que  ao  tempo  que  lhe  lançasse  sete  foguetes  da  forta- 
leza remettesse  á  praia  e  disparasse  toda  aartilheria 
das  fustas,  e  que  fazendo  que  queria  desembarcar,  se 
detivese  ali;un)  espaço,  porque  dVsta  maneira  primeiro 
que  os  mouros  reconhecessem  o  ardil  teria  tempo  de 
passar  as  suas  muralhas  e  dar  lhe  batalha.  Isto  assim 
concertado  me  desembarquei  duas  ou  f  res  horas  da  noi- 
te, o  ordenei  de  toda  a  gente  duas  batalhas  s.  s.  o 
capitão  D.  João  Mascarenhas  com  toda  a  gente  da 
fortaleza  fosse  uma  na  dianteira,  e  eu  com  a  gente 
d^armada  na  outra.  E  em  sendo  a  manhã  clara  saí- 
mos ióra  da  fortaleza  cou)  nossos  esquadrões  cerra- 
dos, e  os  mouros  nos  resistiram  á  saída  muito  forte- 
mente, tirando  muita  artilhcria  que  estava  assenta- 
da na  entrada  da  ponte,  e  disparando  cm  nós  toda 
a  sua  arcabuzaria,  com  a  <|ual  nos  mataram  muita 
gente  que  poz  logo  grande  espanto  aos  nossos,  mas  po- 
ilendo  mais  a  fúria  portugueza  que  as  armas  dos  ini- 
migos, houveram  de  passara  diante,  posto  que  por  ci- 
ma de  mortos:  D.  João  Mascarenhas,  capitão  da  for- 
taleza, com  seu  es(]uadrão  chegou  por  uma  banda  ao 
pé  das  muralhas  ,  com  seu  grande  esforço  edos  fidalgos 
e  lascarins  <)ne  comsigo  levava  as  liouvodesubir,  scm 
embargo  iPellas  serem  valiMitrmente  defendidas  com 
grande  numero  de  Irechas,  espingardas,  bombas  de  fo- 
go e  paiicdhis  de  pólvora,  e  outros  muitos  e  grandes  ar- 
tifícios de  guerra  ■,  e  passando  além  começou  a  pelejar. 
Eu  cheguei  por  outra  parte  com  minha  batalha  .lo  pe 
das  murallias,  e  as  subi  pi)sto  que  com  grande  dam- 
no  e  perigo  dos  (|Ue  comigo  iam  ;  passando  a  outra 
banda  comecei  a  batalha.  *•  numero  dos  mouros  se- 
riam vinte  mil  homens  m.  rumes,  abexins,  arábios, 
robustos-,  porque  a  outra  gente  era  infinita  que  se 
não  podia  contar.  E  os  mouros  posto  que  receassem 
pelejaram  valentemente  por  espaço  de  duas  horas  j 
mas  Nosso  Senhor,  que  era  por  nós,  lembrandn-sc 
que  pelejávamos  por  sua  fé  e  defensão  de  sua  chris- 
tandado,  apttíuxc  u  tua  misericórdia  de  nos  Udr  iu- 


teira  victoria.  Com  a  qual  os  arrancámos  do  campo 
e  fomos  apoz  elles  até  a  cidade  e  n*ella  os  entrámos 
por  força  d^armas,  e  por  mais  resistência  que  nos 
fizeram  lh'a  ganhámos  toda,  pondo-os  cm  fugida^  e 
seguimos  apoz  elles  o  alcance  espaço  de  meia  legua  : 
e  creio  que  se  fora  pola  vontade  dos  fidalgos  e  lasca- 
rins que  não  pararam  menos  do  Madabá.  Mas  ven- 
do eu  minha  gente  cansada  e  o  grande  numero  de 
mouros,  os  fui  recolher  e  trazer  pêra  a  cidade.  Fal- 
tarmos particularmente  em  cada  capitão,  fidalgos,  e 
lascarins,  seria  nunca  acabar  polas  muitas cavallarias 
e  sortes,  que  todos  fizeram  n'e5ta  batalha  ■,  morreriam 
homens  português  obra  de  trinta,  em  que  entraram 
a  maior  parte  fidalgos  e  muito  honrados,  e  ficaram 
feridos  duzentos  e  cincoenta.  E  dos  mouros  morre- 
riam passante  de  três  mil,  e  com  elles  o  Rumecão 
capitão  geral  d'elrei  de  Cambaia  ,  e  outros  notáveis 
homens,  e  foi  captivo  Juzarquão,  capitão  geral  do» 
abexins,  que  é  um  dos  principaes  senhores  do  reino 
de  Cambaia.  E  Mojatecão  fugiu  a  unha  de  cavallo. 
Tomei  mais  a  bandeira  real  d'elrei  de  Cambaia  e 
quarenta  peças  d'artilheria,  s.  basiliscos,  lionês,  es- 
peras, salvages,  e  alguns  tiros  de  campo,  e  assim  Io- 
das as  munições  de  seu  arraial.  NVsta  batalha  me 
ajudou  muito  Lourenço  Pire^,  capitão  mór  da  arma- 
da do  reino,  pondo-se  diante  de  mim  a  todalas  af- 
frontas,  como  se  esperava  de  tão  nobre  e  principal 
fidalgo  c  Ião  experimentado  em  batalhas  de  mou- 
ros :  o  capitão  D.  João  Mascarenhas  fez  lanlo  e  pe- 
lejou tanto,  que  se  não  pôde  louvar  seu  esforço  eca- 
vallaria  tão  famosa.  Tal  victoria  como  esta  que  me 
Nosso  Senhor  deu,  digna  de  ser  celebrada  em  quanto 
durar  a  memoria  dos  liomens,  eu  vos  posso  afúrinar 
que  se  não  podéra  alcançar  sem  graça  e  ajuda  divi- 
na, que  endereça  minhas  cousas  de  maneira,  que  por 
ter  confiança  em  Deus,  que  fora  da  opinião  e  espe- 
rança dese  poder  acabar  tamanho  feito  me  deu  ven- 
cimento e  inteira  vingança  da  morte  de  meu  filho. 

Por  Simão  Alvares  cidadão  d'essa  cidade  vos  man- 
do a  bandeira  real  d'elrei  de  Cambaia,  para  que  lo- 
dos laçaes  uma  soiemne  procissão  e  \adcs  a  Nossa 
Senhora  da  Luz,  iia  qual  levareis  a  bandeira  alevan- 
lada  c  estendida  para  que  o*  mouros  egentios  vejam 
as  mescês  e  victorias  que  nos  Nosso  Senhor  dá,  por 
sermos  christãos  u  pelejarmos  cm  defensão  de  sua 
sancta  fé  cafliolic.i. 

Dos  casados  e  moradores  fui  mui  ajudado  assim  no 
mar  como  na  terra,  os  quaes  se  mostraram  n"csta  ba- 
talha grandes,  e  notáveis  cavalleiros  :  todos  roeteem 
tão  bem  ajudado  e  serviilo  a  elrei  nosso  senhor  que 
são  merecedores  de  mui  grandes  prémios. 

Havida  esta  victoria  mandei  que  lodosos  mestiços 
que  se  n'ella  acharam  fossem  assentados  cm  soUu  e 
mantimenlo,  por  honra  d"csle  grande  feito  como  por 
me  parecer  que  n'isto  comprazia  a  lodos  os  cidadãos, 
e  po\o  d"essa  mui  nobre  e  sempre  leal  cidade  de 
Goa.  A  Simão  .alvares  vos  encommcndu  muito  pêra 
que  de  todos  seja  mui  honrado  e  bem  recebido,  por- 
que a  sua  vinda  a  esta  fortaleia  foi  muita  parte  de- 
pois de  Ueus  ás  vidas  de  muitos  fidalgos  c  lascarins 
os  quaes  elle  curou  como  grande  phvsico  que  é,  dan- 
do geralmente  Iodas  las  suai  mezinhas  de  graç.i,  fa- 
zendo outras  muitas  boas  obr.-.s  d'csfoi^o,  de  manei- 
ra que  com  verdade  se  |)óde  dizer  por  elle  doutor  e 
cavalleiro. 

As  novas  de  mim  são  ficar  em  boa  disposição,  Nos- 
so Senhor  seja  louvado,  e  cm  trabalho  de  fazer  esta 
fortaleza  de  novo,  pêra  que  me  faliam  muitas  cou- 
sas;, mas  se  me  Dous  ajudar  os  montes  se  (ornarão 
valles,  e  os  barrancos  estradas  chãs. 

Encommcndo-me  scllhorc^  em  vossas  nicrcèí.  De 
Diu  a  lo  de  i.u\cmbro  de  JblT. 


I 


10 


o    PANORAMA. 


73 


S.     IIOAVE.NI  LRA  aVADKO    DK    MCRIILO. 


KtTF.  quadro  <•  re[mliiili>  nina  il.ii  ohrai  |>^illla^  ilci 
feciiiiilo  pintor  tiispaiiliiil  Murilli) :  rt- (iresfiita  S.  l!i)rt- 
ventiira  na  occatião  ••m  'lU'",  scgiimln  as  lifmlas,  re-  , 
siisoildii  depois  de  liaver  siiJo  enterrado,  f  veio  aca- 
bar ot  sem  íivroi  de  lomnientarioi  i^ue  deixara  in- 
«ompletoa.  —  O  harãu  Tavlor,  u  (|(iein  a  França  lir-  j 
ve  pranile  numero  de  (ireeiosidaili^t  arlisliiMS,  Irou.ie 
de  Seviliia  a    1'aríi  esta  liella  pinlnia.  I 

Kfitevain  Miirillo  fui  natural  deSivillia  e  naseeu  no 
I,"  de  janeiro  de  1018:  -icii»  pai»  eram  pid)re»  ;   mas 
teve  a  fortuna    de  <{ue  mu  dos  seui    pnrenleit   era  ar- 
tiatn,    «Inau  dei  Cntilln,    o  ijunl    Itie   deu    as  priíiiei- 
rai    iieôei    du    arte,    lmoi    (jne    medrou    o    tiileulo    do 
«liinino  lie  sorte  (|ue  (louro  depois  mereceu  ser  a<lniil-  j 
lido  discípulo  do  r.iinoso  V'>'lasi|ni'7.,  (|ue  Ciijura  áfri'nj 
te  da  eiilioU  lo-sp.inliola.  ■ — Munllo  loi  extreuiauieu-  i 
tu  applieado,   auianle  il,i   vida  tranijiilila  e  duineslica ,  | 
por  forma    <|iie  a   in/iior  parle  da  sua   \ida    passou  em  j 
Sevillia,    sua  pátria,    luzindo    o    mais  posiivel  ile  fre-  , 
(juentar    Madrid    e  a    i  òrte,   p.ir.i  mole    o    cliaiiiava  a 
nonieaila  dos  seus  taleolos.   Ki.i  um  jj;ran  Ir  pintor  sem 
ver    a   Itália,    e   pintou     inlinitii  ;    as  suas  euiiipusi(^'õi-s 
revelam  a  liraitdura  do  seu    caracter;  al;;uiiias  são  do 
«libido    merecimento.    Na  si-    ile  Sevillin    liík  um  i|ua- 
VuL.   I.  —  NoVEMíiio  7.   18t(j. 


dro  seu,  rpie  representa  o  r.vl.ue  de  um  salicto,  que 
é  a  tida  de  maiores  diiiieii>õcs  e  uma  <las  mais  aca- 
badas oliras  <jue  saiu  das  suas  mãos:  o  dnqiiede  \\'e!- 
lin);lon,  i|iiereiido  adquiri-lo  pa'a  a  jj.ileria  de  Lon- 
dres, idrereceii  por  elíe  tantas  uncas  de  ouro  da  moe- 
da bespanliola  quantas  fosscni  necessária»  para  cobrir 
a  superfície  do  quadro,  o  qiio  devia  montar  a  uma 
quantia  por  extremo  avultada:  assim  mesmo  u  cabi- 
do sevilbaiio  rejeitou  di;;namente  u  pruposla  da  ven- 
da. Muiillo  fundou  uma  academia  de  piuliira  na  sua 
cidade  iiatalici:i,  onde  morreu  (renferiiiidade  no  an- 
uo lie    lljtiO. 

S.  Uoaventura  foi  natural  da  Toscana,  e  iiasren  em 
1221  ;,  entrando  na  ordem  francisc.ina  chegou  a  aer 
geral.  l'ur  sua  iiiiiita  piedade,  disliiictus  estudos,  r 
servi(,'OS  á  ifjreja,  (ircjçorio  \  em  l"J7o  o  iitiiiieou  bis> 
po  de  Albano,  e  u  fel  carde. d.  O  seu  transito  foi  em 
I27i  em  liVão  de  Krança.  Sixto  1\'  o  canonisou  em 
I '»iSÍ  ;  Sixto  V  o  proclamou  donlor  d.i  i'.;reja.  K  co- 
iiliecido  pela  antonomásia  de  doutor  serapliico.  As 
suas  obras  iniportanlen  são  os  Commentarios  í  Sa- 
grada  i'"scriplura,  e  o  Mestre  das  Seiílenjai. 


74 


O    PANORAMA. 


"       "  HiSTUIlIA    DOS   TElECRAI'HOS. 

(Continuado  de  pag.  Cl.) 

S(5  NA  epoclia  dePliilippe  pai  de  1'pri.eu  (século  III), 
começou   a  fazer  proj^ressos  entre  ot  gre^DS  a  arte  te- 
lpera|iliica,    porque  aijuelle  príncipe   serviu-se    niuito 
lie  >>i"iiai"i  nas  suas  í^iierras.     Pol^bio  ela  no  seu  livro 
9."  muitas    iiiforina(;ões    a  este  respeito,    e  nota  cum 
razão    que  é  fácil    prevenir    al;;uein    de  uni  aconteci- 
mento esperado  por  meio  de  sifjnaes  con\encionadoH. 
l'orén),  annunciar  a  reall8a(;ã<>  de  successos  llll[lle^i^- 
tos,    de  uma    rebellião    repentina,    não  pôde    lazer  se 
sem  croar  processos  próprios  para  indicar  as  circums- 
tancias  que  menos  se  podem  conjecturar.   Eneas,  auc- 
tor  de  pscriptos  sobre  a  arte  militar,  econtemporanco 
de  Alexandre,    tinha  alvitrado  o  estabelecimento  de 
postos    a  certos    intervallos:    t>s  cstacÍDuniids   deviam 
ostar  munidos  cada  uin  com  dois  vasos  iilenticameiíle 
semelhantes  em  l.tri;ura  (4  i  pés)  e  em  profundidade 
(pé  emeio),  clieios  d'agua  e  com  torneira:  sobre  um 
pau,    que  atravessava    um  pedaço   de  cortiça    boiante 
«'agua,  escrevia-so  a  novidade  que  se  queria  commu- 
nicar.    Dispostos  estes  vasos  por  esta  maneira,    a  pri- 
meira vigia  levanta   um  pharol   (»),    a  immediata  le- 
vanta outro    semelhantemente;    assim    advertidas   de 
<)ue  estão  alerta,    as  duas    vigias  abaixam    os  pharoes 
c  abrem   as  torneiras;    a  cortiça  desce  á  medida    que 
o  nivel  d'agua    se  abaixa,    o  páu   pregado    na  cortiça 
abaixa-se  também  \  e  quando  a  phrase  que  se  quer  an- 
nunciar, e  que  está  escripta  no  páu,  tem  chegado  ao 
nivel  do  vaso,  para  mostrar  que  está  completa,  a  pri 
meira  vigia   alça  de  novo  o  pharol,    do  mesmo  modo 
a  segunda,  e  fecham-se  as  torneiras;  assim  por  dian- 
te em  toda  a  linha.  —  Este  melhodo  era  engenhoso; 
mas  era  preciso  que  tudo  o(|ue  podesse  acontecer  fos- 
se inscriplo    no  bordão  indicador:    ora,    muitas  vezes 
não  poderia  isto  ser,  e  a  novidade  sairia  incompleta. 
J'ara  obviar  a  este  inconveniente    iinaginou-se    pouco 
depois    um  novo    processo: — tomaram-se    as  vinte    e 
quatro  híttras    do  alphabeto,    divididas    em  cinco  co- 
lumnas.   Por  este  melhodo  o  que  dá  o  signal  iça  dois 
pharoes:,  a  vigia  immediata  levanta  dois  também  pa 
ra  mostrar  oue  está  prompta  :  então  a  prinicira  vigia 
levanta    o  numero  de  pharoes    estipulado    á  esquerda 
para  indicar  a  columna    a  que  pertence  a  lettra   que 
vai  designar,    e  outros  tantos   á  direita    para  indicar 
«•ssa  letra  •,   por  este  sistema   um  pharol  á  esquerda  e 
dois   á  direita   indicam   a  letra   M.    Este   methodo   é 
um  tanto  mais  demorado,   porém  mais  seguro. 

Entre  os  romanos  foi  a  telegraphia  empregada  mui- 
to mais  tarde.  Devia  ser  1'ol^bio,  commensal  deSci- 
))ião  o  magno,  quem  a  vulgarisou  em  Rom.'  :  comtu- 
(lo  parece  (|uo  César  (liv.  á."  de  15ell.  Gall.)  f(\ra  o 
primeiro  do  povo  conquistador  que  se  serviu  de  si- 
gnaes  de  fogo  par.i  conhecer  dos  movimentos  dos  ini- 
migos:, e  pelo  emprego  d'estes  meios  se  poderá  talvez 
ex|)licar  a  rapidez  e  certeza  das  suas  operações  mili- 
tares. Os  gallos  também  tinham  noticia  de  alguns  si- 
gnaes',  por  isso,  cpiando  os  carnuttis  tom:iram  Or- 
Icans,  esp,ilhou-se  a  novidade  por  todas  as  Ciallias 
<>  porijue  (diz  o  próprio  César  liv.  ".")  quando  acon- 
tect!  alguma  cousa  importante  e  de  interesse,  os  gal- 
los ailvertcmse  reciprocamente  por  clamores  que  traus- 

(1)  Phaml  vem  da  palavra  Krega  pharos,  que  exprime 
tanto  a  torre  onde  se  acceiiili.ini  fachos,  como  esles  mesmos, 
«Ul  grandes  laiilernas  e  lampeõcs  para  si^naes  ;  e  tanta  era 
a  praclica  d'csles  entre  os  gregos  antigos,  ipie  no  sen  liello 
idioma  adiamos  muitas  palavras  para  os  exprimir  eosloga- 
res  e  modos  onde  e  como  eram  feitos.  Alem  dVssas.  sijmho- 
la  si^nilicava  os  signaes  Iransmilti Jos  pelo  som,  e  tyntcmiia 
os  signaes  invisíveis. 


mittem  atravez  dos  campos,  e  que  tão  repetidos  de 
perto  em  perto^  de  sorte  que  o  »ucce«»o  de  Oriéans, 
passado  ao  nascer  do  sol,  soube  se  na  Alvernia  antes 
das  nove  da  tarde,  não  obstante  a  distancia  deuitea- 
fa  léguas." — Em  epocha  posterior  cw  romanos  abri- 
ram em  todo  o  império  admiráveis  estradas,  e  dedit- 
tancia  a  distancia  erigiram  torres,  eoi  que  postaram 
sentinellas  para  passarem  ostigiiaes:  ainda  se  divi- 
sam em  Uzcs,  Belle-Garde,  Aries,  Nimes,  Besançun, 
etc  ,  torres  quedeviuin  ter  servido  para  aquella»  par- 
ticipações telegraphícas  :  a  columna  Trajana  appre- 
senfa  nos  seus  portentosos  baixos  relevos  uma  torri- 
nha, de  uma  fresta  da  qual  sae  um  facho;  o  que  no» 
dá  a  entender  a  maneira  por  que  eram  feitos  aqueU 
les  signaes. 

Taes  são  as  informações  de  mais  vulto  que  n'esta 
matéria  nos  fornece  a  antiguidade.  Na  idade  media, 
es«e  inetliodo  rápido  de  communicações  foi  usaiio  em 
Constaiitínopola,  onde  geralmente  se  conservaram  o» 
conhecinKMitos  antigos  durante  aquelle  longo  período. 
Para  terem  aví«o  da  chegada  do»  árabes,  os  impera- 
dores grejos  haviam  estabelecido  uma  linha  de  si- 
gnaes de  Tarso  a  Ijy-aucío.  —  Os  árabes  da»  H^spa- 
nhas,  e  também  os  hesp;inhoes,  serviram  se  igualmen- 
te do  fogo,  de  bandeiras,  e  de  tiros,  á  maneira  de  si- 
gnaes. l'or  fim,  no  século  XV,  um  monge  chamado 
Trithemio  publicou  um  sy^fema  de  telegraphia  (f/e- 
noyiaphia  iiithimiana)  para  fazer  chegar  as  noticiai 
a  qualquer  distancia  :  porém,  excepto  algumas  noções 
incompletas,  nTio  é  conhecido  o  meio  proposto  p>r  Tri- 
themio. Apesar  de  todos  osejforços  não  ponde  a  anti- 
guidade conseguir  un)  sistema  teiegraphico  completo. 
No  século  XVII,  um  francez,  Amonlons,  membro 
da  Academia  das  Scieucias,  approveilando  os  traba- 
lhos dOs  antigos,  e  os  descobrimentoi  dos  moderno* 
em  óptica,  propoz  um  methodo  novo  de  communica- 
ções. Com  effeito,  para  escrever  de  longe  é  precito 
que  se  vuja  de  muito  longe;  e  os  progres-os  moder- 
nos são  devidos  á  applicação  dos  telescópios  á  tele- 
graphia ;  o  que  permittiu  poderem  ser  diminuídos 
os  postos  para  os  signaes.  Restava  aiiida  vencer  uma 
difliculdade  : — deveriam  empregar  se  os  signaes  al- 
ph.ibeticos  para  compor  as  palavras  e  phrase».'  .  .  \ 
esse  melhodo  demorado  e  dífiicil  substituiu  se  outro 
inteiramente  novo;  recorreu-se  aos  números.  Redu- 
zidos dVsta  forma  os  signaes  a  pequena  quantidade, 
practicados  por  machinas  mui  simplices,  e  vistos  pe- 
lo telescópio,  constituiu  se  a  telegraphia  moderna. 

Seria  difticil  de  comprehender  porque  ratão  ,i  ideia 
de  Amonlons,  posto  que  imperfeita,  não  foi  logo  en- 
saiada para  se  aperfeiçoar,  como  fei  Chappe,  se  por- 
ventura não  l"sse  cousa  sabida  que  os  povos  não  se 
servem  senão  c.is  objectos  de  que  carecem.  O»  gover- 
nos europeus  dos  séculos  XVII  e  XVIII  não  experi- 
mentavam a  necessidade  das  communtcações  iinl.in- 
taneas;  e  o  pensamento  de  Amontons  foi  jalijido  e 
admirado,  mas  cu  no  pura  curiosidade.  Coube  á  re- 
volução francez, 1,  que  incutiu  no  mundo  tão  prodijioso 
movimento,  eqwe  prin-lamoti  a  forte  alliunça  dos  po- 
vos, o  pòr  em  exercício  ivs  primeiros  'elejraphos. — 
Tinha  ("happe  (como  ja  díssemo»)  appresentado  á  .As- 
semble.i  legislativa  asna  niachina  ;  no  nono  se:;uinte. 
\  d'abril  de  1793  (\id.  Monitor  pa;.  4|7\  Romme, 
por  parte  das  duas  commi-sõe»  reunidas  da  inslruc<;.io 
publica  eda  guerra,  leu  o  relatório  sobro  nqurlle  "ies- 
cobrimento.  «.Em  todos  ostemnos  (disse)  foi  reconhe- 
cida a  necessidade  de  um  meio  ra()ído  e  sejuro  de 
correspondência  a  largas  distancias.  Sobretudo  nas 
guerras,  quer  por  mar  quer  por  terra.  íinp<vrta  dar  a 
saber  instantaneamente  os  numerosos  acontecimentos 
)  successivos.  transmillir  ordens,  annunciar  <»  soccor- 
'  ros    u  uma  praça   ou  a  um  corpo   quo  .itacassem    etc. 


o    PANORAMA. 


75 


A  historia  conserva  memorias  de  muitos  roethodos 
concebidos  nVsta  intenção-,  porém  a  maior  parte  fo- 
ram abandonados  por  incompletos  e  de  practica  dif- 
ficultosa"  Passando  depois  á  appreciação  do  systema 
de  Chappe  disse  o  orador-  .  .  "que  ofterecia  um  meio 
engenhoso  de  escrever  no  ar,  desenvolvendo  caracte- 
res pouco  numerosos,  simplices  como  a  linlia  recta  de 
que  »e  compõem,  entr.;  si  mui  distinctos,  de  execu- 
ção veloi,  e  sensivel  a  grandes  distancias.  "  O  relator 
observa  mais  que,  não  tendo  conhecimento  do  valor 
dos  Mçnaes  os  agentes  intermediários,  não  podem  ser 
violados  os  segredo».  —  A  convenção  votou  a  quantia 
de  seis  mil  francos  para  se  estaljeLcer  uma  linha  de 
correspondência  dVxten^âo  tal  que  p.Tmittltse  obter 
resultados  concludentes.  —  Em  l'li  de  julho  de  17y.} 
(Monitor  pa','.  894)  Lakanal,  em  nome  da  comtnis- 
aão,  deu  c<Mila  das  experiências  f.Mtas  s.-};iiiido  o  nie- 
thodo  lacliigrapliico  propoito  pelo  cidadão  ('liappe. 
INo  rel-itiirio  descreve  o  niavhinÍMiio  com  individua- 
ção ;  declara  que  tiveram  li.i;ar  as  experiências  a  12 
de  julho  n'uma  linha  d^-  nove  léguas;  que  o  segredo 
das  participações  não  era  sabido  do»  hoinens  dos  pos- 
tos; e  que  a  traiisinis-ão  ile  um  aviso  de  Paris  a  Va- 
lenciennes  (•)  poderia  eflcciuar-se  <in  treze  iiiiiuitos 
«  40  scçíindiis  :,  que  o  preço  necessário  ()ara  ciillocar 
uma  linha  tele_s;raidiica  entre  as  duas  cida<ifs  st-ria 
àt  58000  francos.  A  a-senilil-a  appriiviMi  e  dccretcui 
unanimeiíiente  a  proposta  da  cuiiiinissão,  isto  é,  «es- 
tabelecimento dasobreilita  linba,  e  concedeu  a('hap- 
pe  o  titulo  de  en!;enbeiro  telegraphico,  com  n  veiici- 
iiieiilo  de  tenente  dVineiilieiros.  A  Convenção  se 
apressara  a  lançar  mão  iPeste  meio  extraordinário  de 
commuiiicação :  os  seus  ininiigos,  que  não  estavam 
preparados,  a  ca<la  instante  se  (hrviain  acli.ir  emba- 
raçados; porque  a  actividade  inlaligavel  d'esta  as- 
lemblea  apparecia  mu  toda  a  parte,  tinha  modo  de 
«aber  tudo  e  de  fazer  constar  tudo  com  a  rapidez  da 
«ua  voz  enérgica.  —  Algum  tempo  depois  da  adopção 
da  proposta,  o  presidente,  na  abertura  da  sessão,  par- 
ticipiMi  á  assemblea  que  o  telegrapbo  anunciara  a 
tomada  lie  Conde.  A  Convenção  resolveu  que  o  exer- 
cito <io  norte  era  benemérito  da  [latria,  eque  aridade 
de  Conde  ficasse  d'abi  avante  com  o  nome  de  Norle- 
Ijivre.  l*assados  alguns  iniiiulos  o  presidente  di'cla- 
roíi  que  o  decreto  havia  chegado  a  Conde,  que  se  im- 
primia, e  que  o  exercito  applaudia  a  resolução  ita 
Mssemblea  ;  esta,  comprebendendo  todos  os  vantajosos 
resultados  que  se  podiam  colher  da  invenção  telei;r:i- 
pbica,  decretou  a  formação  d.'  muitas  linli.is  para  li- 
par  as  fronteiras,  e  toilas  as  parles  da  Kraiiça,  a  l'a- 
rís,  «fim  depor  este  modo  presidir  aos  exércitos  qua- 
si  pessoalmente,  econcentrar  a  acção  peculiar  dos  de- 
partamentos no  centro  s;eral  do  estailo,  em  virtuile 
da  presteza  da»  comniiinicações.  Napoleão,  nas  suas 
immeiísas  campanhas,  também  tirou  grandlssinin  pro- 
veito do  telegrapho,  sobretudo  na  de  ISlIIJ  ,  a  respei- 
to do  que  se  podem  consultar  os  escriptos  do  general 
Jomini.  Tinha  feito  estabeleier  uma  linha  de  IMu- 
tiich  «Strasburgo;  eipiando  os  anstriacos,  jul'.;aoilo-o 
antrelido  com  o  meditado  desi-nibari|;;e  na  Iii'.;laler- 
r«,  avançaram  «obre  o  Kbeno,  sem  esperar  os  seus 
alliadiis  russianos,  Napoleão,  informado  diis  primei- 
ros movimentos,  partiu  pela  posta,  aiompaiiliado  lo- 
go de  uma  parle  das  suas  tropas,  m-guindo-o  a  outra 
a  marchas  forçadas,  e  por  meio  de  manobras  ailmira- 
veis,  tiMiiando  pe|,i  ret.ii;uarda  os  aostri.icos  em  Ulm, 
constrangeu  4()()0{>  bnmeiís  enierrailos  irui^a  praça 
furte  u  deptV  as  armas  sem  disparar  um  tiro. 

{('onliuiift.) 
(1)     Anilha  Ciipilai  du  liainauí  Trance/.,  a  :>,>  léguas  traiic. 
distante  de  ParU,  no  departainentu  do  Nurle. 


O  Feitor  de  CautIo. 

Novella. 

O  isiMENso  império  da  China,  que  comprehende 
G88000  léguas  quadradas  (isto  é  a  terça  parte  da 
Ásia)  e  3o0  milhões  d'haV)itantes,  por  um  só  ponto 
está  aberto  ao  commercio  da  Europa,  e  mesmo  assim 
com  reslricções  que  ate  o  novo  tractado,  a  que  a  In- 
glaterra oobrigou,  pouco  poude  modificar.  Ainda  ho- 
je é  o  Tigre  o  único  rio  do  celeste  império  aberto  á 
navegação  dos  èaiíinios  europeus;  mas  uma  frota,  que 
está  sempre  na  foz,  vigia  os  navios  que  por  elle  aci- 
ma vão  ter  a  Cantão.  Compoem-se  de  juncos  de  guer- 
ra cujos  mastros,  curtos  e  massiços,  todos  carregado* 
de  bandeirolas  de  cores,  teem  nos  topes  o  pavilhão 
amarelU)  com  o  dragão  imperial  (•)  listes  navios  que 
não  passam  <le  grandes  chalupas  mal  constriiidas,  re- 
beldes á  manobra,  por  terem  as  popas  elevadas  cou- 
sa detrinia  palmos  acima  d'asua,  raras  vezes  «e  aven- 
turam a  sair  ao  mar.  Toda  a  sua  artilheria  consiste 
n'algumas  peças  pintadas  de  vermelho,  assentadas  no 
meio  da   tolda. 

Além  d"isto  ha  pelas  <liias  margens  do  rio  fortes 
ouriçados  de  mastareos,  no  .-illo  dns  qoaes  tluclnaiit 
baluleiras  de  todas  as  cores.  0.uaodo  alguma  embar- 
cação quer  subir  pelo  rio  sem  licença  deitam-se  fogue- 
tes em  todos  estes  fortes  para  dar  aviso,  pendoram-se 
lanternas  nas  canbon»ira«,  e  os  artilheiros  chins  co- 
meçam um  fogo  lento,   ilesigual,  e  (piasi  sempre  inútil. 

A'entrad.i  doTi^re  se  acha  a  ilha  de  Ijin-tin,  on- 
de os  navios  ín^lezes  trazem  o  opío,  cuja  ioiroducçãi» 
é  prohibida  em  tola  a  Cliina  com  pena  de  morte. 
Abi  o  vem  buscar  as  peejoenas  barcas  de  contraban- 
diiitas,  armadas  de  quarenta  remos,  que  o  espalhan» 
ilepois  por  toda  a  parte,  De  seis  em  seis  mezes  uir> 
mandarim  imperial  desce  pelo  rio,  n'um  junco  eiiver- 
nisado  edijurailo,  que  se  conhece  de  longe  pelos  doi% 
parasóes  que  traz  na  tolda,  para  verificar  se  as  leis  se 
cumprem;  porém,  como  os  negociantes  inglezes  costu- 
mam compra-lo,  manda  sempre  aniuinciar  em  segredo 
a  sua  vinda,  e  d'este  modo  quando  che;;a  a  Tiin-tia 
nunca  encontra  navios,  nem  contrabandistas,  nem 
ópio. 

Mais  acima,  no  Tigre,  ha  um  porto  chamado  mam- 
pnn  onde  os  navios  snríem  para  c«rrei;arem  de  chá, 
algodão,  seda.  assuc;'r,  ver"i.l'i";.>,  eoibenilha,  cam- 
pbora,  porcelana,  alini«t-.(r  e  l.irtarog.i.  Dl  vide-se  aqui 
o  rio  em  dois  braços,  cujas  margens  estão  cheias  de 
baro.is  velhas  encalhadas,  com  seus  toldos  feitos  de 
bambus  entrançados,  as  quaes  servem  <le  cabanas. 

(Isdois  braços  doTi;;re  reunem-se  em  Cantão,  <|ue 
é  uma  cidade  de  perlo  detresentas  mil  almas,  defen- 
diila  por  muralhas  de  cinco  léguas  de  circuito,  edifi- 
cada em  parte  á  beira  do  rio  sobre  estacas,  e  que  se 
compõem  na  realiilade  de  Ires  cidades  dislinctas:  a 
primeira  assentada  ao  longo  do  Tigre  comprehende 
mais  tle  iiul  c/inmpnus,  que  si»rvem  ao  mesmt>  temp*» 
de  barcas  de  pas-ai;>'m  e  de  liabitações  ;  a  segunda  ci- 
<l.ide  abrange  as  feitorias  europeas  e  americanas;  fi- 
nalinenle  a  terceira,  separada  dVsla  por  muralbas, 
e  por  uma  p<»rta  por  <u»de  aos  europeus  não  e  [>ermil- 
lido  pass.ir.  forma  a  verdadeira  cidade  clilnn. 

Ao  pe  d\'sla  mesiiiA  porta,  mas  tbi  lailo  em  t|ue 
mora  a  gente  da  Koropa,  é  que  escolhemos  o  lognr 
da   nossa  scena   para   a  inlriulucçãi»  ti*esta  historia. 

Diiis  homens  seguidos  di-  criados,  «pie  lhes  vinb.iiix 
fazendo  sombra  com  amplos  parasóes,  se  encaminha- 
vam   para  h  banda   do  rio,   da  vagar    e  conversando. 


(I I    I)  :iiiKireMu  é  cor  exclusiva  do  imporadur  c  da  sua 
família. 


76 


O    PANORAIVIA. 


o  vestuário  do  mais  idoso  era  uma  sotaina  de  seda 
lavradii,  tal<;as  largas  de  tafetá,  e  barrete  acolchoado 
debaixo  do  <|iial  saia  ui"  luiigo  ralnclio  eiitrançiao 
que  lhe  checava  ás  curvas  das  perna».  Aiiula  quan- 
do a  sua  li;2  ciV  de  limão,  a  pequetiez  dos  olhoí,  o 
pintado  das  sobrancelhas,  e  a  barbinha  curta  e  bicu- 
da, di'ixassom  a  mais  pequena  duvida  a  respeito  da 
sua  raça  os  sij^naes  de  avareia,  de  velhacaria,  e  de 
pusillanimidade,  espalhados  por  todo  elle,  bastariam 
para  dar  a  conhecer  que  era  chim.  Ao  seu  compa- 
nheiro, pelo  contrario,  que  vestia  de  nankini.  p.a«:'i 
europea,  lia-selhe  no  roíto  o  deseml)ara(;o,  Iraiiqni;- 
la,  e  audácia,  filhas  do  habito  de  mandar  e  da  natu- 
ral valentia.  Ambos  conversavam  em  voz  baixa  e  i.a 
lingua  china. 

— 1< Torno  a  repelir,  Ymi-hi,  di?.ia  o  europeu,  q<ie 
acompaidiia  americana  não  piJde  sofirer  taes  ladroei- 
ras:, osdireitos  que  Ihechuna  o  vosso  hou-pou  (1),  em 
dois  annos,  dão  com  ella  em  terra.  Acha  pouco  mel- 
ter  a  bordo  dos  nossos  navios  c;uardas  d^alfandCjTa 
que  furtam  até  as  cordas  i  e  no  invenl.irio  da  car^a 
triplica  o  numero  das  varas  da»  peças  de  panno,  re- 
pete a  contagem  das  caixas  de  ferragens,  e  vale-se 
de  quantas  manhas  pode  para  augmenlar  os  direitos. 
Ainda  ha  pouco,  verbi  gralia,  não  poz  a  alcunha  de 
espelhos  a  uns  vidros  lisos  de  líoheinia,  e  de  agalhas 
a  pederneiras  dVspingarda  ?  E  muito  abusar.  You- 
hi,  sabei  que  isto  não  dura." 

O  china  fpz  um  gesto  de  afflicção. 

—  "Ah  '.  que  posso  eu  faier  ?  disse  elle ;  o  hou-pou 
é  um  homem  avarento;  a  companhia  fez  mal  em  lhe 
apresentar  a  mão  meia  aberta  quando  era  preciso 
abri-la  toda." 

—  uPelo  céu!  bradou  o  feitor  americano,  não  te- 
mos nós  feito  bastanln  sacrifícios?  não  tem  recebido 
o  vosso  director  da  alfandega  em  pannos,  em  aço,  em 
vinhos  de  França,  em  obras  de  ourives,  para  cima  de 
cinco  mil  doUars?  Não  podemos  dar  mais,  c  a  vós, 
You-hi,   compete  desenganar  o  hou-pou.» 

You-hi  quiz escusar  se. 

—  "Por  força,  replicou  o  americano  com  firmeza. 
O  imperador,  quando  concedeu  o  privilegio  exclusi- 
vo do  commercio  estrangeiro  aos  doze  negociantes  que 
formam  is^o  a  que  chamais  JC>ny-han,  quiz  que  el- 
les  servissem  de  medianeiros  obrigados  e  de  procura- 
dores dos  harharos.  Q-uando  chega  algum  navio  nos- 
so sois  vós  que  lhe  forneceis  os  mantimentos,  que  pa- 
gais os  direitos  da  carga,  que  tirais  o  cliop  da  saí- 
da (á).  N^iima  palavra,  sois  os  nossos  mandatários, 
tendes  obrigação  de  sollicifar    que  nos  façam   jnst  ça. 

—  "Mas  por  que  meio  se  hu  de  alcançar,  uiister 
KnVndon  ?  disse  You-hi,  com  vozes  magoadas.  Não 
sabeis  que  os  desgr.-içados  httiiislai  (3)  são  o  malhadei- 
ro  onde  vem  bater  todos  os  pontapés,  que  não  se  atre- 
vem a  dar  em  \ósoulros  por  si-r<les  estrangeiros  .'  Met- 
tidos  entre  os  nu«siis  superiores  e  os  europeus,  como 
o  ferro  entro  o  nurtello  e  a  bigorna,  aparamos  toda 
a  pancadaria   sem  lhe  podermos   fugir  com    o  corpo." 

—  "I'ela  iniidia  alma!  Isso  compete  vos,  Yon  hi, 
repliiiui  Kílendon  ;  sois  tão  experto  no  nes^ocio  que 
liáveis  lio  achar  remédio  para  amansar  o  hou  loií.  A 
companhia,  que  vos  enriquece,  tem  jus  a  que  H  o  re- 
tribuais com  uma  protecção  real-,  traetai  de  lh'adar, 
quando  não  vae  a  cousa  por  mal,  e  deitam-se  i.o  Ti- 
gre alii  uns  doze  guardas  da  alfandega," 

—  "diic  dizfis  !  exclamou  o  china,  cxiyo^  olhinhos 
exprimiam  terror ;  mister  lidendon  diz  o  que  não 
«ente  ?" 


(1)  Director  das  alfandegas. 

(2)  Licença. 

(3)  Membros  do  Kong-han. 


—  uPelo  contrario,  estou  persuadido  que  era  uDlk 
lição  útil  e  capai  de  fater  os  empregados  roais  im- 
parciaes." 

—  "K  eu,  mister  Eflfendon,  interrompeu  o  china 
sobresaltado ;  já  vos  não  lembra  que  por  ser  haniila 
respondo  por  tudo  que  fizerem  as  vossas  tripulações' 
Sejiiegam  o  pagamento  d'iim  direito  pago-o  eu;  »e 
fazem  alguma  desordem  o  mandarim  mette-me  na  ca- 
deia ;  se  afogarem  os  guardas  a  mim  é  que  me  cortam 
a  cabeça  !" 

—  Bem  sei,  retorquiu  o  americano,  sorrindo  sem 
mostrar  abalo;  r  por  isso  assentei  que  vos  devia  avi- 
sar antes  de  irás  do  cabo.  Ide  ter  com  o  director  da 
alfandega,  fazei  o  ajuste  ;  ijbri  a  mão,  como  ditieis 
ba  pouco,  e  deixai  cair  na  bocca  d'aquelle  tubarão 
um  pouco  do  ouro  que  tendes  ganho  com  a  compa- 
nhia. K   preciso  saber  fazer  um  sacrifício  a  tempo." 

You-hi  suspirou,  sem  dizer  palatra;  conhecia  o  gé- 
nio inilexivel  de  EfTendon.  Seguiu-se  uma  grande 
pausa,  durante  a  qual  chegaram  ambos  á  frontaria 
do  palácio  do  hou-pou,  fácil  de  differençar  pelas  ca- 
beças de  dragão,  que  lhe  ornavam  a  portada,  por  ci- 
ma das  qiiaes  estavam  pendurados  grilhões  e  chicotes, 
symbolos  do  direito  de  julgír. 

—  "Estais  á  porta,  disse  KfTendon  ao  china,  apon- 
tando para  o  palácio;  advogai  bem  a  vossa  causa  :  ha- 
veis de  vence-la  SC  quizerdes :  com  a  vontade  abalam- 
se  montanhas." 

—  "Sim,  é  o  vosso  estribilho;  porém  nói  temos 
um  provérbio  que  diz  que  o  rnaii  hábil  lettrado  não 
pôde  obrigar  a  aranha  a  fiar  seda  !  Todavia  eu  hei 
de  me  empenhar,  e  sabereis  a  resposta  do  hou-pou  es- 
ta tarde  vindo  jantar  á  minha  casa  de  verão...  pen- 
so que  recebestes  o  meu  convite." 

—  "Em  papel  vermelho,  escriptn  com  tincta  d» 
ouro!  Lá  vou  sem  falta." 

O  china  fez-lhe  com  a  mão  um  signal  de  despedi- 
da, e  separaram-se. 

EITendon  costumava  cumprir  o  que  dizia,  e  You- 
hi  julgava-o  capaz  de  pór  em  practica,  ao  menos  em 
parte,  a  aineaç.i  <jue  lhe  Ijzera,  sem  lhe  importarem 
as  consequências  nem  os  trabalhos  em  que  podia  met- 
ter  o  hanista  ou  meltcr-se  a  si.  Havia  quasi  dei  an- 
nos que  elle  dirigia  a  feitoria  da  sua  companhia,  e 
sabia  por  experiência  que  o  meio  mais  seguro  de  ob- 
ter justiça  era  faze-la  por  suas  próprias  mãos,  e  que 
da  violência  resultavAm  menores  perigos  que  do  lon- 
go soflVimento.  Não  se  podendo  resolver  aentranhar- 
se,  como  os  chins,  no  labvrintho  de  trapaças  e  men- 
tiras em  que  elles  gvram  tanto  por  inclinação  como 
por  interesse,  tinha-se  costumado  a  caminhar  direito 
pelo  meio  de  liid.K  as  suas  alicantinas,  exigindo  re- 
par.ição  de  cada  offens.i.  e  toinando-a  por  suas  mãos 
quando  lli"a  negavam,  lista  espécie  de  inteireza  rígi- 
da c  audaz  tinha  feito  por  fim  que  o  Kotig-hang  lhe 
cobrasse  medo,  assim  como  os  empregados  imperiaes, 
auctnrisados  para  commetterem  injustiças  e  latrocí- 
nios, mas  não  para  provocarem  um  rompimento  com- 
pleto. [rori(ifnio) 

GlAHDA    ESCUCEZ    DOS    REIS    DC   FbA>'^«. 

Caiilos  ^  II,  que  reinou  em  França  desde  H'2'2  a 
IIGI,  c  que  pelas  vicissitudes  das  armas  esteve  mui- 
tas vezes  a  ponto  de  perder  a  liberdade  e  a  coroa,  foi 
o  primeiro  que  fez  organisar  uma  companhia  de  guar- 
das escocezes  par»  a  pessoa  do  rei,  quer  na  pai  quer 
na  guerra,  em  conimemoração  dos  lerviçiis  que  rece- 
bera, em  sua  varia  fortuna,  das  tropas  d'aquella  na- 
ção  :  denominou-a  dos  besteiros  do  rei,  porque  eram 
nrjnados  de  arcos  e  frechas.  —  Luii  XI  engrossou  con- 
sideravelmente esta   companhia,   e  lhe  concedeu   pri- 


o    PANORA3IA. 


77 


vilegios  honrosos  c  boa  paga,  não  se  poupando  aos 
meios  de  grangear  a  affeição  d\iquellrs  »a!entes  es- 
trangeiros, (jue  no  ililatado  peri.ido  da  durai-lo  d  es- 
ta guarda  sempre  na  verdade  se  dislingiiiraàu  [i)rde- 
senipenlio  exacto  das  suas  (ibrigações  e  escrujiulosa 
fidelidade.  Luiz  XI,  astuto,  ciupI  e  di-.íiniulaHo,  tú 
nos  etcocezcs  piiniia  inteira  confiança,  e  coviuinava 
dizer  <|ue  a  companliia  escoi-eía  tinha  nas  suas  inãos 
a  sorte  da  França,  porque  elle  llie  havia  coiiCiado  a 
tua  real  pessoa. — N%sla  companhia  lez  AVí.iter  Scott 
entrar  o  lieroe  de  unia  das  suas  nielljores  rovcUas  — 
GLuintino  Ourward  —  e  iihi  sh  acli.im  enire.achadas 
com  os  Incidentes  da  n.irração  niuit.is  parlicubirida- 
des  que  pintam  tiem  a  inihile  e  ^er^iço  do  corim  es- 
cocez,  como  [>od«'  ver  sf  na  traducijão  fi>it  i  do  origi- 
nal iniílez  pelo  Sr  Ramalho,  publicada  en  í  vol. 
em  1838,  e  impressa  na  anti^-a  tvpnijraphia  do  nos- 
so jornal. 

Esta  guarda  continuou  nos  suhs.  quentes  reinados, 
porém  çradualmenle  se  foi  compondo  de  fraricezes  a 
dalar  do  reinado  de  Henrique  4.";  de  fornia  r;ue  em 
tempo  de  Luiz  XIV  a  compaidiia  só  era  escoteia  de 
nome:,  officiaes  e  simples  praças  eram  todos  france- 
Zes.  lintão  a  companhia  constava  de  cem  cavalheiros 
ou  guardas,  dos  cjuaes  só  vint<!  e  cinco  recebiam  sol- 
do; formava  na  frente  das  nutras  três  coin|anhias  da 
guarda;  na  igreja  postavase  no  choro;  reciO.ia  as 
chaves  da  casa  real  ;  e  no  préstito  fúnebre  dos  ino- 
liarclias  competia-lhe  levar  o  corpo  do  rei  defunclo 
para  o  jazigo  de  S.  nyoni»io.  Km  siiinma,  gozava 
na  corte  de  muitos  privilégios,  que  seria  longo  enu- 
inerar.  —  A  estampa  representa  um  guarda  escocez, 
cm  tempo  de  Luiz  W,  com  o  firdamento  dos  dias 
tolemnes,  que  na  primitiva  crearão  do  corpo,  no  rei- 
nado tio  Luiz  X.I,  e  ainda  muito  tempo  depois,  ora 
inteiramente  diflerente,  trajando  os  guardas  á  sua 
moda  nacional,  e  trazendo  sem|>re  por  distinctivo  a 
gorra  escoceta. 


uuAitnA    uscot:r.r    noh    iiicis    iis    iiianca. 


Cartas  inéditas  de  D.  JoÃo  de  Castro. 

Carla  do  fisorei  D.  João   de  Castro    aot  vereadores, 
juizes,   povo  de  Chaul. 

Bem  creio  que  a  todos  vos  será  notório  quanta  justi- 
ça tenho  feito  a  christãos,  mouros  e  gentio»,  (Jcpois 
que  sou  n'e»ta  terra;  e  assim  quão  inleirainente  te- 
nho guardado  as  pazes  e  cumprido  os  contractos  que 
05  governadores  passados  fizeram  com  os  reis  e  gran- 
des senhores  da  índia,  em  nome  d'elrei  de  Portugal 
meu  senhor,  e  quantas  amizades  todos  tem  achado  em 
mim,  deixando  navegar  suas  naus  segurainenie  pêra 
todalas  parles,  e  trazendo  armados  n'esta  costa  contra 
corsário»,  que  molestavam  ris  seus  mares  e  portos,  e 
roubavam  o^  mercadores,  que  de  um  logar  para  outro 
trasfi'gavam  em  proveito  de  suai  republicas.  Dos  quaes 
benefícios  mais  que  todos  gozavam  os  guiarates  e  seu 
rei.  Ora  estando  eu  seguro  e  descançado  na  amisade 
antiga  dos  guzarates,  por  estas  e  outras  muitas  boas 
obras,  e  assim  mesmo  o  seu  capitão  Coje  Çofar,  pô- 
las  muitas  umisades  que  cada  dia  de  mim  recebia, 
agora  como  todos  sabeis  quebrantando  a  fé  e  contrac- 
tos de  pazes,  que  com  elrei  nosso  senhor  tinham  fei- 
to, jurado,  e  promettido.  como  desleaes  e  fementido» 
vieram  a  pôr  cerco  sobre  a  forlaleia  de  Diu. 

E  posto  que  eu  tenha  muita  experiência  da  lealda- 
de mui  antiga  dos  portuguezes,  e  grande  confiança 
em  suas  forças  e  valentia,  e  no  viio  e  natural  amor 
que  todos  geralmente  teein  a  seu  rei  ;  e  que  a  forta- 
leza de  Diu  esteja  tão  forte,  assim  por  sitio  natura! 
e  industria  dos  homens,  e  que  dentro  esteja  tal  capi- 
tão, fidalgos,  e  lascariíis,  que  seguramente  possa  es- 
tar <lpscançado,  com  ajuda  de  Nosso  Senhor,  de  po- 
der acontecer  desastre;  todavia  como  pae  que  sou  de 
todos,  e  desejoso  sobre  todalas  cousas  de  suas  vidas, 
honras,  e  proveitos,  dão-me  grande  cuidado  os  seu» 
trabalhos,  em  quanto  eu  pessoalmente  os  não  posso 
ir  soccorrer,  e  vingar,  das  traições  dos  guzarates  Por 
tanto  determinei  de  vos  fazer  a  saber  meu  propósito, 
e  aperceber  pêra  a  empreza  que  ora  quero  tomar  de 
Cambaia. 

Eu  tenho  mandado  recolher  talacas,  fustas,  e  ca- 
tures,  que  se  acharem  ein  toda  a  costa  da  índia,  «fa- 
ço huma  armada,  n'esta  cidade  de  Goa,  de  cem  fus- 
tas e  caturcs,  na  qual  irá  por  capitão  inór  D.  Alvuro 
meu  filho. 

E  eu  (jueroinu  ir  assentar  no  logar  de  Baçaini, 
com  trezentos  decavallo,  pêra  ir  por  terra,  e  elle  por 
mar  irmos  destruindo  essa  costa  ;  e  espero  cm  Nosso 
Senhor  de  ainottrar  as  armas  dos  portugueics  ao  pró- 
prio rei  de  Cambaia,  pêra  se  acabar  de  certificar 
qnamanha  diflirençi  a  ile  nós  aos  mogores  e  patanes, 
rumes,  e  toda  a  outra  nação  do  universo;  e  dar  es- 
cala Iranca  assim  aos  do  mar  como  aos  de  terra.  E 
porcpie  eu  não  saberia  entr.ir  em  semelhantes  einpre- 
zas  sem  vossa  ajoda  e  conselho,  vos  peço  a  todos  em 
geral  e  a  cada  um  em  especial  iiinili)  por  mercê,  <|ue 
queirais  estar  prestes  com  vossas  armas  e  cavallos, 
peru  com  minha  peisoa  em  comp.iidii.i  do  vosso  capi- 
tão passardes  a  Baçaim,  e  seriles  presi^nte»  a  esta  guer- 
ra, a  qual  assim  por  cila  ser  justa,  e  feitii  por  tae» 
tavalleiro»,  li'nho  por  certo  alcançarmos  grandts  e 
glorioso»  triumphos,  e  verdadeiramiuite  quB  tixlalu» 
vezes  que  me  lembra  como  levo  a  esta  gui'rrii  tanto  no- 
bre eavalleiro  de  (loa,  acoitumados  sempre  a  vencer, 
e  como  os  lascarins  derramndos  pela  índia  se  vein  lo- 
dos para  mim,  com  grande  e  notável  alvoroço  de  tri- 
lharem tt  passearem  as  terras  de  Ciimbaia,  e  como 
Ivo»  hei  lie  achar,  oli  ridail.'ios  ile  Chaul,  aomeuUilo 
co\u  vossas  armas  i.i'eiiU'S,  e  ct)rações  graiule»  e  for- 
tes,  que  ussim  entro  a  fmcr  esta  gucria  como  a  mui- 


78 


O    PANORAMA. 


to  certa  e  averiguada  victoria,  ouso  de  vos  pedir  isto 
com  fuo  pequenas  palavras,  porque  sei  que  pêra  as 
cousas  semelhantes,  e  de  tanto  5crvií;o  d'elrei  nosso 
senhor,  nunci  houvestes  mister  esporas;  e  sendo  es- 
tas obras  tão  de  vossas  próprias  naturezas,  e  exer- 
citando-as  em  tempo  de  governadores  da  vossa  mui 
nobre  cidade  pouco  amigos  e  favoráveis,  que  se  po- 
derá etperar  agora  que  militais  debaixo  de  minha 
disciplina,  que  sempre  vos  fui  tanto  amigo  e  compa- 
nheiro, assim  no  tempo  que  n'estas  partes  se  serviu 
elri'i  nosso  senhor  de  mim  de  soldado,  como  agora  que 
por  sua  grande  e  real  cleniencia,  e  muita  virtude, 
me  entregou  a  governani^a  d"estab  partes  da  índia,  e 
me  fei  capitão  geral  de  toda  ella. 

Eu  fico  tão  confiado  em  me  todos  ajudardes  a  fa- 
zer esta  guerra  aos  giizarates,  que  me  parece  ver-vos 
já  correr  os  seus  campos,  e  entrardes  suas  cidades,  e 
saqueardes  suas  terras,  de  maneira  que  pêra  todos 
seja  esempro,  pêra  que  não  ousem  outra  ve?.  de  ten- 
tar estas  e  outras  semelhantes  novidades.  Nosso  Se- 
nhor vos  tenha  a  todos  na  sua  guarda,  e  nos  ajunte 
e  conserve  n'este  propósito.  Escripta  em  Goa  a  3  de 
maio  de  t5í6. 

Resposta  doi  vereadores  de  Chaul  a  D.  João  de  Cas- 
tro, tisorci  da  índia. 

5  Notório  éachristãos,  mouros  e  gentios,  que  a  maior 
mercê  que  nos  Deus  eelrei  nossosenhor  fez,  foi  avin- 
da de  V.  S.  a  estas  partes;  e  bem  su  pôde  crer  que 
n'elle  anteveio  iiiQuencia  divina  em  S.  A.,  porque 
de  quão  arriscada  e  djmnificada  estava  ao  tempo  de 
sua  chegada,  está  agora  no  estado  que  deve;  e  isto 
pelo  muito  cuidado  e  vigilância  que  elle  tem,  prin- 
cipalmente no  auto  militar,  em  que  claramente  mos- 
tra sua  tenção  ser  segurar  no-.sas  pessoas,  e  fainilia, 
e  o  estado  de  S.  A.  E  posto  que  este  beneficio  fosse 
rommum  a  todos  os  q-ie  habitam  n'estas  partes  da 
índia,  nós  fomos  os  que  em  particular  participámos 
mais  d'ene,  polas  muitas  aventajadas  mercês  e  hnn- 
Tas,  que  temos  recebidt>  de  \^.  S.  Polo  (|ue  nunca  de- 
sejamos outra  cousa  senão  oITerecer-se  alguma,  por 
que  a  experiência  manifestasse  nossas  vontades,  com 
obras  que  mereçam  tal  beneficio,  presup[>oudo  «em- 
pre  que  nossas  palavras  até  o  presente  haveria  por 
•verdade  nua,  que  (não)  é  duvidosa. 

GLuí/  Nos-o  Senhor  chegar  nos  a  tempo,  que  por 
uma  sua  carta  dada  pelo  capitão  em  camará,  soube- 
mos d'e5ta  jornada,  que  quer  fa/cr  contra  estes  gu7a 
rates  e  inimigos  desagradecidos,  dignos  de  sentirem 
a  ira  de  V.  S.  ;  os  qiiaes  assim  devem  ser  punidos 
como  escravos  que  tomam  as  armas  contra  seussenho 
res,  pois  sendo  a  elhs  notório  quanto  tod'  a  outr.i 
<iai;"ro  de  todas  as  três  partidas,  de  animo  mais  viril 
<jueelles,  no»  tem  aquelle  acatamento,  e  ten\or,  que 
se  nos  deve  ;  e  como  a  vencidos  e  privados  de  forças 
lhes  demo»  paies  e  socego,  mnis  movidos  de  clemên- 
cia que  por  outra  necessidade,  quizi'ram  intentar  es- 
ta inalicia  e  rotura,  não  attenlando  que  por  elles  se 
podia  dizer  que  as  cousas  ?anclas  se  derauí  aos  cães,  e 
as  pedras  preciosas  a  porcos. 

l*elo  que  lida  a  carta,  vendo  a  tenção  e  propósito 
<Ie  V.  S.  querer-se  ser\ir  de  nós  n'este  tempo,  e 
dar-nos  tamanha  honra,  que  é  a  m:iior  mercê  que 
nunca  recebemos,  pelo  desejo  que  já  tinhamos  e  iui 
menso  amor  interior,  por  isso  sem  mais  silencio  f.il- 
larão  as  hoccis  ofTerecon  lo-nos  to. los  ao  capitão,  que 
tão  bem  iiola  encommendou.  V.  S.  nos  tem  aqui 
prestes  com  nossas  pessoas,  armas,  cavallo»,  na^ios,  e 
f.ijeiída,  por  todo  o  tempo  que  qui:er,  e  qnanio  pê- 
ra isso  não  supprirem  as  farendas,  nossas  mulheres 
nos  oITerecein  as  jóias,   como  fiieram   as  romanas   di- 


gna» de  grande  louvor  e  memoria,  no  Capitólio;  por. 
que  assim  como  Deus  favoreceu  e  ajudou  aos  reis  do  Is- 
rael, e  aos  Machabeus  que  velavam,  ea  nós,  manifes- 
tando suas  maravilhosas  obras  nas  muitas  victorias,  que 
até  aqui  nos  deu  a  tão  poucos,  se  não  fieis  ainda  que 
peccadores  contra  tantos  inimigos  de  sua  sancta  fé,  que 
muito  melhoro  fará  agora  comnosco,  levando  estas  duas 
cousas  por  nós,  justa  guerra,  e  grande  esforço  e  magna- 
nimidade de  V.  S.  na  guia.  No  qual  temos  por  mui 
certo  que  fallecendo-nos  as  forjas  cobremos  outras  novas, 
vendo  seu  constante  animo  e  propósito  ser  convertido  em 
serviço  de  Deus  ;  e  prazerá  a  elle  que  não  menus  será 
temido  n'esta  passagem  do  que  foi  Annibal  quando 
passoti  os  Alpes,  e  por  isto  ser  assim  como  e  mesmo 
Annibal  dizia  em  sua  oração:  asprincipaes  armas  se- 
ja conceliermos  ira  contra  estes  inimigos,  que  nos  que- 
rem desprezar,  e  teremos  a  victoria  por  mui  certa. 
De  maneira  com  que  a  congregação  dos  fieis  em  sua 
companhia,  e  esta  nossa  igreja  militante  venha  al- 
cançar a  friumphante,  c  aquelle  summo  bem,  e  os 
inimigos  se  não  atrevam  a  outras  taes  malicias.  Pêra 
isto  tu<io  ratificar  e  concluir  em  poucas  palavras,  tor- 
namos a  dizer  que  estamos  muito  prestes,  como  leae» 
portuguezes,  com  os  pés  nas  estribeiras,  como  se  o 
já  víssemos  ir  e  muito  alvoroçados,  {)«ra  os  seguirmos 
com  as  nossas  pessoas,  as  quaes  tivemos  sempre  e  te- 
mos a  seu  serviço,  por  respeito  de  lua  pessoa,  á  qual 
nunca  recusaremos  pormos  as  nossas,  e  as  fazendas  e 
filhos,  pela  muita  obrigação  em  que  somos  a  V.  S. 
a  que  Nosso  Senhor  augmefite  os  dias  da  vida  e  es- 
tado por  muitos  annos.  Amen.  Escripta  em  camará 
dVsta  cidade  de  Chaul  a  2á  dias  de  maio.  Francis- 
co da  Veiga  escrivão  a  fez.   .\nno  de  15^6. 


SuPKHSTtÇÕES   DOS    AMAKES    ÁISTES    DE   MaFOM*. 

AiNOA  agitava  o  Oriente  a  queda  do  império  roma- 
no e  do  polvlheismo,  quando  Mafoma  n'elle  veio 
fundar  um  novo  império  e  uma  religião  nova.  Se 
p.ira  firmar  o  direito  dos  homens  a  fama  se  devesse 
ter  em  conta  o  ponto  d'onde  partiram,  as  difficulda- 
des  das  emprezas  e  dus  successos  mais  prodigiosos, 
nenhum  homem  tattez  se  poderia  comparar  com  .Vla- 
f<inia.  Fora  das  circumstanciHS  f.svoraveis  que  muitas 
veies  |ire|iaram  ou  trazem  os  acontecimentos;  so  p<)r 
só  n*uma  epocha  de  pleno  socego  na  terra  natal,  em 
(|ue  os  aniimis  não  app-eseiitavam  svmptoinas  d"in- 
uovaçã<i,  .M.ifoma,  ou  Mohamed,  como  lhe  chamam 
os  árabes,  ousa  de  repente  formar  e  levar  ao  cabo 
um  projecto  cujo  pensamento  ba«tár.i  para  amedron» 
far  o  mais  atrevido  novador  ;  projecto  que  consisti» 
em  lançar  por  terra  as  iiistiluiçues  exi«tenteí,  refor- 
mar os  costumes  nacionaes,  destruir  tud.i,  arrastar 
tudo  apoi  si,  e  appareeer  a  final  aos  olhos  do»  «eus 
compatrícios  feito  proplieta,   legislador,  e  rei. 

Viviam  o«  árabes  na  m.iis  ridícula  superstição,  e 
n'uma  absoluta  corrupção  de  costumes;  comtudo  er* 
crime  capital  atacar  lhes  o  culto,  c  censurarlhes  at 
leis  e  os  u»os,  mesmo  na  parte  mais  insignificante. 
Nenhum  rtMi  de  taes  crimes  escapava  d»  severidade 
d. IS  penas,  e  nem  os  intrenidiis  apóstolos  do  chrulia- 
nismo  ousavam  f.izer  neophs  tt>s  na  Meca;  o  que  pro- 
v.\  que  n*esta  epoch  i  não  era  fácil  mudar  a»  ideas 
religiosas.  Mas  quando  uma  iiitelligencia  superior 
rralis.i  um  vasto  plano,  logo  o  vulgo,  que  raras  veies 
mede  os  perigos  das  empreias.  e  se  limita  a  avalia- 
los  pehi  resultado,  jviliX'  esse  plano  fácil  de  lesar  & 
elTeilo.  Nada  era  mais  diffieil  do  que  introduiir  en- 
tão mudanças  na  .\rabia.  Parecia  reservado  par» 
Mafoma  vencer  to  los  os  obstáculos,  lançar  por  terr« 
os  Ídolos,  desarraigar  as  joper5tiç<"e5,   promulgar  no- 


o    PANORAMA. 


79 


\as  lei»,  prescrever  novos  costumes,  e  crear,  para  as- 
«iin  <iÍ7.er,  uma  iiafjão  nova.  Cliejoil  ao  mais  a  que 
podia  cliegar,  porque  dentro  da  iua  própria  pátria 
con>e"uiu  ser  reconliecido  e  acatado  como  se  fôrii  na 
verdade  enviado  do  Kterno. 

Mai»  para  o  diante  «".bojaremos  a  vida  de  Mafo- 
ma,  e  anaiysarcmos  o  Koran  :  por  em  quanto  resu- 
miremos a»  fabulas  que  os  orientaes  recitam  acerca 
das  personaf^ens  anteriores  ao  propl)eta.  Parte  d'es- 
ta»  latiulas  se  acham  noTalmud  e  nus  livros  dos  rab 
binos.  Dir-se-liia  que  á  cxcepi^.Tío  do  que  us  musulma- 
lioí  tiraram  da  Bíblia,  se  enipenhar.iin  em  reprodu- 
íir  as  circumstancias  mais  extravagantes  e  allieias  da 
razão. 

O»  mnsulmano»  reconhecem,  como  nús,  anjos  bons 
e  anjos  niáus.  Knlrií  os  bons  distinguem  os  quatro 
archanjos,  Gabriel,  Miguel,  Azrael.  o  Azrafel,  aos 
quaes  chamam  os  ap/noximados,  por  estarem  sempre 
estes  anjos  ao  [lé  <!o  ihrono  de  Deus,  promptos  para 
cumprir  as  suas  ordens:  (jabriel  tem  a  sou  cargo  le- 
var as  mensagens  celestes  i  Miguel  preside  ao»  ele- 
mentos e  ecii  particular  á  chuva  ;  Azrael  recebe  aí 
blmas  dos  homens,  e  por  isso  lhe  chajnani  o  anjo  da 
morte-,  linalmente  Azrafel  é  o  guarda  da  trombeta 
celeste,  e  quem  a  ha  de  tocar  no  fim  do  mundo.  Os 
miisulmanos  [irezam  Gabriel  mais  que  os  outros,  por- 
que dizem  que  este  archanjo  era  amigo  intimo  da 
sua  na(;ão,  e  foi  escolhido  pelo  Eterno  para  annun- 
ciar  a  Mafoma  a  sua  missão  prophotica.  Por  isso  o 
nome  de  Gabriel  se  acha  repelido  nos  monumentos  ^ 
ora  designando  I)  pilo  numi!  de  Pavão  do  jardim  do 
Paraizu,  em  razão  de  Gabriel  brilhar  com  luz  pró- 
pria entre  os  entes  angélicos  bem  como  o  pavão  bri- 
lha entre  a»  ave»;  ora  dando  lhe  os  titulus  de  Vitl 
DepoiUaiio,  e  d'iO</;ntío  SiDiclo,  por  ser  o  confiden- 
te da»  vontade»  de  Deus,  e  ter- lhe  cabido  a  preroga- 
tiva  de  communicar  a  Mafoma  todos  os  preceito»  do 
islamismo.  Mafoma  diz  no  Koran:  u  Ciucm  é  ini- 
migo de  (iabriel  seja  confundido!"  Para  o  archanjo 
Miguel  olham  us  musulmanos  com  alguma  descon- 
fiaiKja  ^  na  sua  opinião,  o  arclianjo  Miguel  amava  o» 
judeus,  e  se  Deus  lhe  desse  ouvidos  nunca  u  islamis- 
mo ílorecêra  sobre  a  rerra.  Dos  anjos  maus,  o  de 
mai»  nomeada  é  Iblis,  (jue  se  poz  ú  frente  dos  anjos 
rebelde»,  e,  ícgundo  o  Koran,  foi  precipitado  do 
céu  mai»  elles,  á  pedrada  com  pedras  em  braza  :  é  o 
Diabo  dos  chrislãos,  e  oSalanaz  <lci»  judeu».  Em  nie- 
liioria  da  sua  trágica  aventura,  não  lhe  chamam  os 
árabes  senão  o  yljiednjado. 

Depois  do»  anjos,  aihnilliram  os  inusulmanos  uma 
raça  intermédia,  que  é  a  dos  gi'nios.  Os  génios,  se- 
gundo o  Koran,  avisiniiamsi!  aos  anjos  em  terem 
(ido  tirados  como  ellis  da  substancia  do  fogo,  c  avi- 
BÍnham-íe  á  natureza  do  homi'ni  em  beberiam  u  co- 
merem como  elle  :,  uns  eram  machos  e  outros  fêmea». 
Distinguem-se  muitas  espécie»  de  génios:  são  a»  fa- 
das e  os  ilemonio»  di>  Oriente.  Como,  na  opinião 
dos  árabes,  a  terra  ou  cousa  semelhante  existia  un- 
te» de  Adão,  suppozeram  <|Ue  a  habitaram  gi-nios 
por  muitos  inilliares  d'aniias,  e  rjue  só  depois  de  res 
coidiecida  a  inipossibilidade  de  o»  conservar  nu  vir- 
tude, é  (|ue  Deu»  tomou  a  re»olueão  de  creur  o  ho- 
mem, (iuasi  Ioda  a  r.iea  de  génio»  foi  então  extinc- 
ta  :  o  peijoeno  nuiniu»  do»  qui^  escaparam  ao  desas- 
tre loi  di^gradailo  paru  certo»  logare»  dintantes  ila 
terra.  Ile/.a-»(!  d'elle«  outra  vez  na  epoclia  em  que 
viíalomão  o»  iMinsIr.ingeu  a  trabalhar  no»  imIíIÍ<'Ío»  que 
o  tornaram  celebre.  Em  tempo»  mai»  recentes  abra 
<;arain  algun»  génio»  ,i  religião  de  Mafcuna. 

O»  mijssulin.ino»  rhegam-si!    mai»  ás  nossas  ereniM» 

lio  (pie  diz Ic  Ailãoe  ICva.   Ar<Te»eentam  i| lie  Adão, 

di'poi»  lie  pec>'ar,  foi  lançailo  pilo  anjo  do  Senhor  na 


ilha  de  CeylSo,  no  sitio  onde  está  a  montanha  cha- 
mada ainda  nos  nossos  dias  Pico  d''Adão,  e  que  E\a 
foi  desferrada  para  as  costas  do  mar  Vermelho,  e  lo- 
gar  onde  depois  ie  ediQcou  Meca.  Os  dois  esposos  vi- 
veram a^sim  separados  mai»  de  dois  século»  ;  a  final 
o  Eterno,  compadecido  das  suas  lagrima»,  os  reuniu 
nas  visinhanijas  de  ?ileca.  Ainda  alli  se  mostram  ho- 
je os  vestígios  da  sua  morada.  Depois  de  terem  dado 
o  ser  ao  género  humano  veio  o  anjo  da  morte  apre- 
senlar-lhes  d.i  parte  de  Deus  uma  taja  que  lhes  poz 
termo  á  vida.  Dizem  os  histcjriadorts  arabt-s  que  es- 
ta faya  serviu  successivamunte  a  todos  os  prophetas  ^ 
d'aqui  se  derivou  sem  duvida  a  expressão  tão  com- 
mum  entre  os  orientaes,  beber  na  ia<^a  da  morle,  ou 
simplesmente  provar  a  morle,  isto  ó,  morrer,  (.'on- 
sideram  Adão  como  propheta,  R  estão  capacilado»  de 
que  elle  tinha  na  fronte  um  raio  de  luz  muilo  pare- 
cido com  o  que  os  pintores  põem  na  cahcja  de  Moy- 
sé».  Accrescentam  que  Deus  lhe  mandara  dez  livros 
de  revelações,  com  o  auxilio  dos  quaes  deviam  os 
seus  descendentes  seguir  a  estrada  recta  ;  mas  estes 
livros  não  iins  chegaram. 

O  raio  pri>|ihelico  passou  d' Adão  a  Sefh,  de  Selh 
a  Enodi,  d'Eiioch  a  Noé,  e  de  Noé  a  «eu  filho  Sem, 
Os  inusulmanos  citam  depois  d'elle  os  dois  propheta* 
Iloiid  e  Saleb,  de  que  a  Bíblia  não  falia.  A  Iloud 
vleterininou  oSeidlor  que  fosse  pregar  a  fé  a  algumas 
Iribus  d"arabes  nómades,  povo»  notáveis  pela  sua  es- 
tatura desmarcada  ;  os  mais  pequenos  tinham  sessen- 
ta cuvados,  e  com  dilTiculdade  achavam  arvores  com 
a  altura  necessária  para  servirem  d"esfeios  as  suas 
barracas.  Como  padeciam  desde  muito  tempo  um» 
seccura  horrível,  aj)pareceu  lhes  Iloud  diiendo-lln-s  : 
"Oh,  meus  irmãos  !  adorai  o  Deus  verdadeiro,  o  Deus 
único,  eelle  fará  descer  a  chuva  do  céu  sobre  os  vos- 
sos campos  rcqueimados.  »  Não  quizeram  os  Ímpios 
ouvir  estas  palavras:,  accusaram  n'o  de  louco,  eamea- 
çaram-n^o  com  a  morte.  O  Senlu-r  irritado  suscitou 
contra  elles  um  vento  espantoso  ipie  os  exterminou, 
sem  poupar  senão  o  pequeno  numero  dos  que  linhaui 
dado   credito    a  llouil.    Narra  este  succe^so  o  Koran. 

Saleh  foi  incumbido  da  reconducção  de  certos  po- 
vos chamados  temuditas,  os  quaes,  segundo  a  opíniãu 
commuin,  h.ibitavam  um  valle  fértil  da  Arábia  Pe- 
fre.i,  ao  meio  dia  do  mar  Morto.  C"ercados  por  to. loi 
Os  lado»  de  scrr.'iS  empinadas,  o»  temuditas,  das  suas 
habitações  excavadas  na  penedia,  se  jactavam  de  »f- 
frontar  a  vingança  divin.i.  Saleh  veio  proeural  os  d:i 
parle  <le  Deus;  ii  Oli  !  meu»  irmãos!  fizeí  peniten- 
cia, lhes  disse  elle,  adorai  o  Deus  veriladeiro  !  "  His- 
ponileram  os  leniuditas  que  por  bem  nenhum  terreno 
largariam  o  culto  de  seus  p;iis.  Para  os  «'Uivcncer  feK 
Saleh  sair,  [>or>'Ui  debalde,  do  seio  tPuui  ochedo  uma 
camélia  milagrosa  prestes  a  |)arir  ;  os  ímpios  cada  ve£ 
mais  se  endureceram.  Imputaram  a  SaK-h  artes  m.i- 
gícas,  e  Nialaram  a  camélia  com  a  sua  cria.  Eutão 
enviou  Deu»  cvnira  elle»  um  anjo,  <|Ue  os  <  ilheu  de 
salto  uma  manhã  diuitro  das  suas  civernas,  e  os  ma- 
tou a  todos.  Os  mtisulmanoj  conservam  profunda  re- 
cordação da  im|>íedade  dos  temuditas  <■  da  vingançit 
que  Deus  tirou  d^elles.  Mostram  ainila  as  moradn* 
|)olliiidas  pela  presença  d'e»tes  homens  criminosos  : 
até  crei'm  ouvir  nas  círcumvisinhanças  ou  grilos  piin- 
genle»  da  camelhi,  e  quanilo  passam  [)or  este  -itío  ar- 
redam-S(!  do  rochedo  f.ilal.  A  cria  da  cninelli  ficou 
sendo  eiilre  elles  o  svmbiilo  das  maiores  ealamidailes  ", 
ipinudo  o»  ameaça  algum  desantre,  iliicin  :  ..  E  o  gri- 
li>  lio  camelinho  de  S.deli.  " 

Assim  passaram  os  tempo»  anlerlores  a  /MiralLÍo. 
Ciuii  este  patríariha,  a  que  os  inusulmanos  chamam 
Ibrahim,  começa,  par:i  a^sim  diíer,  um.t  nova  ira. 
Ilipulam  iTo  o  amigo  predilcito  de  Deu»  e  o  pwi  do» 


80 


O   PANORAMA. 


crentes-,  algumas  tribus  árabes  se  ufanam  cie  o  ter 
por  avó,  e  não  ha  no  Oriente  nome  maia  venerado. 
A  vida  de  Abrahão,  salvo  o  que  tiraram  da  Í5ibli;i, 
segundo  o  Koran,  não  c  mais  do  que  uma  teia  de  fa- 
bulas.  As  mais  singulares  são  estas  : 

Abrahão  era  filho  d^Azar,  oflicial  de  Nembrod  rei 
de  Babylonia.  Tendo  Nembrod  visto  de  noite  um  as- 
tro erguer-se  no  horisonte  e  desmaiar  com  seu  brilho 
as  outras  estrellas,  cobrou  medo  e  consultou  o«  adivi- 
nhos;  todos  lhe  responderam  que  este  prodiçio  un- 
nunciava  o  nascimento  d'um  menino  extraordinário, 
que  domaria  os  príncipes  maií  potentes.  Assombrado 
Nembrod,  mandou  apartar  os  liomens  das  mulheres; 
mas  ignorava  a  prenhez  da  companheira  de  Azar,  a 
qual  se  retirou  da  corte,  e  em  breve  deu  á  luz  Abra- 
hão. Tudo  foi  inaudito  n'este  meuino  ;  o  próprio 
Deus  proveu  na  sua  sustentarão:  ministrava-ltie  um 
dos  seus  dedos  leite  delicioso,  e  outro  ministrava-Uie 
Diel.  Ao  cabo  de  quinze  mezes  estava  tão  forte  como 
um  moço  dr  quiiiz;  annos.  Desde  logo  se  poz  a  ca- 
minho para  Babilónia,  deliberado  a  perfazer  as  gran- 
des cousas  a  que  era  chamado.  Todavia  ainda  não  ti- 
nha muitas  luzes  da  verdadeira  religião.  Como  o  gé- 
nero humano  estava  en'ão  avassallado  pela  idolatria 
e  culto  dos  astros,  e  o  próprio  Nembrod  se  inculcava 
por  Deus,  Abrahão  não  poude  vér  sem  pasmo  os  glo- 
bos magestosos  que  rodam  sobre  as  notsas  cabeças. 
A  accreditarmos  o  Koran,  quando  Ibrahim  viu  lu- 
eir  no  horisonte  a  estrella  Vénus,  quii  adora-la  ;  mas 
reconheceu  o  seu  erro  quando  ella  desa|iparecea  :  vol- 
veu então  os  olhos  á  lua,  e  fez  o  mesmo  ao  sol.  Ven- 
do que  todos  estes  astros  momentaneamente  appare- 
ciam  na  scena  do  mundo,  caminhou  con\  passo  íirme 
pela  estrada  de  Deus.  Só  o  estorvava  o  que  ouvira 
contar  de  Nembrod  e  do  seu  poderio',  tmla  grande- 
za desluinbrou-o  a  principio',  porém  como  Nembrod 
era  medonho  de  feio,  compreliemleu  que  D-us  não 
hivia  de  mostrar  se  com  uma  cara  tão  deforme,  e 
não  hesitou  mais  em  tributar  homenagem  á  verdade. 

Abrahão  pregou  na  cidade  de  Bal)ylonia  ;  poucas 
pessoas  o  creram;  Nembrod  foi  o  mais  rel)'dde  ás 
iuas  exhortaçíjes,  c  como  Abrahão  recusou  adora  lo, 
o  mandou  laiiçMr  n'uMia  fornalha  ardente.  Felizmen- 
te, accrescenta  Mafoma  no  ÍVorau  ,  veio  Deus  em 
soccorro  do  seu  servo,  e  o  fogo  fez  se  frio;  alguns 
auctores  asseveram  que  a  fornalha  se  converteu  em 
jardim  de  rosas,  (iuanto  a  Nembrod,  crêem  os  mu- 
sulmanos  que  mesmo  n"este  mundo  foi  castigada  a 
sua  desmedida  impiedade  :  Deus,  para  lhe  confundir 
a  soberba,  permittiu  ejue  um  mosquito  pequeno  lhe 
entrasse  no  cérebro.  Nemlirol  morri-u  atormei\t,ido, 
batendo  com  a  caberá  pelas  pareiies  do  seu  palácio, 
e  o  seu  nome  ainda  serve  no  Oriente  para  designar 
os  tyrannos  e  os  (lagellos  da  espécie  huntana. 

Abrahão  saiu  todavia  de  líabvloiiia  para  visitar  a 
Syria  e  a  Palestina.  Os  mosulmauos  citam  muitas 
'particnlariíiades  em  que  os  nossos  livros  sagr.idos  não 
faliam.  1'or  exemplo,  qu.indo  Sara  e  Agar  deram 
cadauma  d'ellas  um  filho  a  Abrahão,  e  não  puderam 
continuar  a  viver  em  paz,  este  patriarcha  pegou  em 
Agar  e  seu  filho  Ismael,  e  os  levou  para  o  logar  on- 
de se  acha  agora  a  Meca,  terra  então  erma  e  mani- 
nha. Não  achando  alli  Abrahão  nina  fonte  para  lhe 
matar  a  sede,  ia  a  continuar  na  sua  peregrinação, 
<)uando  um  anjo  fei  brotar  com  <i  pé  uma  fonte  d  a- 
gua  viva  ;  é  o  pooo  que  se  acha  agora  ao  pé  da  Caa- 
ba,  chamado  o  poço  do  Zeintcrn.  Abrahão  eiiificou  n 
Caaba  ,  foi  o  pedreiro,  e  Ismael  o  servente.  Mostra- 
se  a  pedra  en  qup  o  povo  suppõe  que  ellr  pnnha  os 
pés.  Kegulou  as  ceremonias  <la  pere^ri nação,  e  desde 
então  ficou  sendo  a  Caaba  o  ponto  de  reunião  de  to- 
do» os  po\os  da   Arsbia.  Kis  as    próprias   p.ilavras   de 


Mafoina  acerca  d'este  patriarcha  :  «Abrabão  não  er* 
judeu  iiein  christão;  era  orthodoxo  e  musulmano.  n 
T«l  6  o  artifício  empregado  pelo  propheta  para  faxer 
accreditar  que  a  sna  religião  não  era  nova,  e  que  te 
differia  da  seguida  n"aquc)Ie  tempo,  era  porque  os 
Ímpios  a  tinham  corrompido.  [Cmitinúa  ) 


CoMBDStSo    ESP0.1TA5E.V     DO   CARVÃO    DE    l-EDRA. 

Meio  ue   a  atalhar. 

Ha  pouco  temiio  ardeu  no  Tejo  uma  embarcação 
grande,  que  servia  de  deposito  de  carvão  de  pedra 
para  os  paquetes  inglezes,  e  muito  custou  a  tira-la 
il^entre  os  mais  navios  que  podia  incendiar  caindo 
sobre  ellc»  com  a  força  da  corrente.  Terse-hia  pou- 
pado esta  desgraça  e  a  perd.i  da  galera  S.  Domingo» 
Kneas,  empre'.;andose  o  seguinte  melhodo,  achado 
pelo  capitão  Carpenler. 

E  precii  1  ter  muitos  canudos  de  ferro  batido, 
cheios  do  buracos  na  extremidade  que  fica  para  a 
parte  d-?  haixo.  Ksles  canudos  enlerram-se  no  carvão 
quasi  até  o  fundo  <lo  barco,  separados  algumas  pol- 
le^adas  da  borda  do  navio,  onde  se  atam  bem,  A  par- 
te superior  dos  cxnudos  deve  subir  até  a  coberta  do 
barco,  e  estarão  dispostos  de  modo  que  facilitem  a 
ventilação,  sem  que  deixem  entrar  a  hiimidade  no 
carvão.  Cumpre  ao  mesmo  tempo  ler  tudo  prompto 
para  fazer  entrar  uma  grande  porção  d'agua  nos 
barcos  de  c.ir^ão,  com  qtie  vão  a  pique  no  caso  d*ín- 
cendio.  A  agua  produz  então  dois  effeito»  ;  apaga  o 
fogo  no  lo'.;.ir  do  periío,  e,  entr/iudo  pelos  canudos, 
impede  toda  a  ventilação,  e  concorre  para  extinguir 
o  incêndio. 

E  evidente  que  a  causa  das  combustões  espontâ- 
neas é  a  acjumulação  dos  ^aies,  provenientes  da  hu- 
midade do  carvão;  nVsle  estado  o  calor  ou  a  fric- 
ção produzem  o  fogo.  Para  o  evitar  c  preciso  deixar 
circular  livremente  o  ar  atniospherico  por  entre  o 
carvão. 


Influencia   kociva    da  NontElRA. 

\  GKNTK  do  campo  nunca  ileixa  de  avisar  os sens  co- 
nhecidos que  a  vem  vèr  de  que  não  de»em  parar  de- 
baixo das  nogueiras.  Muitas  pessoas  dignas  de  fé  se 
queixam  de  ter  sentido  dòret  de  cabeça,  deliquios,  e 
náuseas,  por  se  terem  demorado  á  sombra  das  noguei- 
ras ;  inooinmo  losque  lhes  passaram  tanto  que  se  affas- 
taram  dV-Uas.  Até  ha  queuí  conte  as  mortes  d'»líu- 
mus  pessoas  que  «ilormeceram  ao  pé  d  estas  arvore.-. 
Mr.  d'lIumbrHs  Kirmu»,  julgando  que  e»t;,8  asserções 
obrigavam  a  um  exame,  fei  .-xperiencia»  endiometri- 
c«s  a  diflerentes  horas  do  dia,  em  tempo  cdmoso, 
com  o  céu  sereno,  e  em  lerapo  de  chuva,  para    inda- 

,  irar  se  o  ar   era    menos    puro   a   sombr.i   das   nogueiras 

I  do  que  á  sombr»  das  outra»  arvores,  e  no  meio  do» 
campos.    Não   ll<e   achou   dillVrenç.i   scnsivel  ,   e    pensa 

I  que  os  maus  eiTeitos  apontados  >ó  podem  ser  attribui- 
dos  ao  cheiro  soporiGcn  que  exhala  a  nogueira.  Pro- 
curou  além    di-so   certificar  se  »e    a  xisinh.snça   da  na- 

'  "-ueira  fiiiui  mal  ás  pl.mtas.  e  cffecliNainente  conhe- 
ceu que  os  cereaes  em  pirlicular,  estando  ao  pé  da 
nogueira,  sofTriam  uma  perda  proporcional  á  copa  d.\ 
arvore. 


4 


ClfKM  ama  .?  cio  is.  teme  a  infâmia,  c  não  resiste 
ao  vicio,  nssenielin  -e  «o  que,  tcmend  '  a  humid  ide, 
se  aloja  no  meio  d'uin  piu'. 


11 


o    PANORAMA. 


81 


/ 


CASA  NOJÍIUi  DE  GAx\D  EM  IjOO. 


^ViiTlGA  Ciipital  de  lodii  a  Flaiules,  a  cidado  d<!  Gand 
hoje- sóiniMileócabei;;!  liu  província  denominada  Flan- 
dca  Oriental  110  moderno  reino  da  IJi.^ioa  :  i;  sede 
de  arccliispado,  e  está  nituada  na  jiincrãodo  Escalda 
cuni  o  I^i/.,  cjiio  coui  oiilrcis  doisconlliicntcs  itli^Mu  toda 
a  povoação,  rcpaitindo-a  cm  vinte  i!  seis  purijões  cer- 
cadas d'a<;iia,  ipic  m' coiiiinnnicaiii  por  Ircsenia')  pon- 
tes dl!  madeira  lançadas  solire  os  canacs,  Tejn  cida 
delia  nianilada  edilicar  por  Carlos  V,-  uma  excellcii 
te  catlicdral,  onde  ha  um  |>iiI)>ilo  de  niariiiore  bran- 
co de  primoroso  lavor:  tn./.i:  praças  publicas,  sendo 
a»  principacs  mui  es|)açosas  ;  cacs  mHf;nií'icos  ;  (t  em 
ra<ão  d\'«las  oliras  e  da  licll>.'Za  de  i;raude  (|naiitida- 
de  de  sins  edifícios  conl.ihe  entre  as  mais  formosas 
do»  l'ai/.es  liaixos,  passando  pela  maior  de  todas  re- 
Ialivam<'nte  ásu|ierlicie  ipie  uccupa  ;  porém  não  cor- 
reitpriii<l<!  a  tanwinlia  (extensão  o  numero  dos  luiliilaji- 
tes,  fpie  se  avalia  em  poucl)  mais  ile  S0;()0().  Já  em 
tempo  do  inipiTador  Carlos  V,  (|iie  nasciui  n"elia,  ira 
vasta  e  populosa,  e  diziasi^  ipic>  I  ouiava  mais  campo 
que  a  <(^rle  d(!  Erança  n'ista  epodui.  A  cidadella  é 
daH  inelliores  da  Europji  ;,  e  são  tamliem  noiíiveia  » 
UUHJI  da  camará,  o  pa<,'o  da  universidade,  i;  a  casa  ile 
correcção  com  capacidade  |)ara  mais  iK;  700  presos 
uccupadosem  Iralialhos  ulidsás  numulacluras.  De  ou- 
tros estalielecimenlos  importiiuli's  meneiíuiarcmos  só 
a  academia  de  Itellas  Aries.  A  sua  situação  i!  muito 
adc(pnida  ao  cominercio  ^  exporia  prin>  ipalnienle  ren- 
das tpie  seinpri!  foram  .issaí  estimada»,  o  tecidos  de 
toda  a  caslii,  liavendo  nas  suas  immeilia(;ões,  n'uni 
iraiude  (jualro  le;iuaH  proximameiíli?,  alijumas  peiítiu 
VoL.  I.  —  Nu\  HMllIU)  1 1,    1810, 


nas  cidades  industriaes,  entre  outras  Lokeren,  de 
10:000  almas,  clicia  de  fabricas  de  estofos  d^algodão. 

Gand  aU.ineou  grandes  privilégios  e  espociaes  isen- 
ções dos  condes  soberanos  de  Elaudes  e  seus  succes- 
sores,  regcudo-se  por  maj,'ibtrados  próprios.  A  paz  fa- 
uujsa,  denominad.i  de  G.intl,  tev(!  lojjar  ein  1367. 
Luiz  XI \  dl!  Eranea  a  tomou  em  lli7S,  porém  res- 
lituiua  :'i  Ifcspanba  pelo  traclado  de  Nimegue.  O 
du(|ue  de  !M.irlboroui;b  a  oecupou  em  1700  e  170S, 
1!  os  francezes  em  17ío  e  em  I7;(2.  Foi  eneorporada 
na  Er.uiça<!ni  171)2  apouco  depois  caiu  em  poder  das 
tropas  colligailas,  mas  o»  francez.es  de  novo  se  asse- 
nluirearam  (Pclla  no  anno seguinte,  17'JJ.  Seri;i  lon- 
go seguira  bisloria  moderna  da  eiiiade  nas  vicissitu- 
des das  campanhas  pela  independência  eiiropeaedas 
guerras  intestinas  até  a  separai,'ão  definitiva  do  rei- 
no da   Itelgiea. 

Damos  em  estampa  o  exterior  ile  uma  casa  nobre 
perteuconiu  a  um  magistrado  opulento  da  cidade  no 
século  XV  para  o  XVI,  e  não  faremos  obsorvaijues 
sobre  o  esl^lo  da  architeclura,  poripie  um  nosso  dis- 
liiicto  collaborador  se  propõe  traetar  dos  earaeterc» 
capitães  d,i  arle  da   idade  media. 


\  u  n:  ANTIGA. 

A-i  iiKi.ns  calliedraes,  e  os  soiuptuosos  nu)sloiros, 
ipii'  a  pieibole,  «braçada  com  as  mlinias  orrii<;as  du> 
séculos  guerreiros,  levantava  parii  monumentu  das 
viclorias,  ou  recordação  ilo  iuarlvrio,o  ^xc  eram  so- 


82 


O    PANORAaiA 


não  cânticos  escripfos  nos  lavores  da  pedra  pela  mes- 
ma mão  qiic  pouco  antes  brandia  a  espada  on  enris- 
tava a  laiii'a?  F:llia  do  sentimento  e  do  enthusiasmo, 
partindo  do  coração,  e  inspirada  por  ellc,  a  arfe  reli- 
giosa da  meia  idade,  sem  desprezar  os  conselhos  da 
razão  elcva-^e,  e  eleva  a  alma  pela  magestade  e  de- 
voção das  suas  manifestações.  Soldado  ou  monge, 
quem  quer  que  desbastava  esses  robles  de  mármore, 
que  os  sujeitava  ás  caprichosas  phantasias  da  verda- 
deira poesia,  tinha  no  peito  um  coração  capaz  de  cho- 
rar, de  sentir,  e  de  crer.  Todas  as  obras  dVsse  tem- 
po de  fé  viva  orelevam.  Ainda  mais-,todas  ellas  tra 
duzem  o  pensamento  christão,  ardente  e  forte,  nos 
membros  içigantcs  da  cathedral,  que  vestem  ornatos, 
e  embellczam  figuras.  Osjmbolo  reina  em  todo  o  es- 
plendor. Não  ha  acaso,  não  ha  iniliUerença  na  esco- 
lha, harmonia,  o  proporções  do  ediliciíi.  Tudo  está  su- 
ieito  a  regras;  tudo  explica  o  mysterio,  que  só  po- 
dem solettrar  os  olhos  dos  iniciados.  São  paginas  do 
mesmo  livro,  que  se  não  interpolam  sem  truncar  a 
leitura  e  destruirá  unidade. 

N'este  artigo  damos  noticia  de  alguns  pontos  mais 
importantes  da  n/mboUca,  que  as  conjecturas  e  inda- 
gações dos  estudiosos  conseguiram  decifrar  \  em  ou- 
tros subsequi-ntes  tractaremos  da  formação  das  socie- 
dades de  "  Artistas  livres",  e  dos  signaes  de  que  se 
serviam,  dos  quaes  muitos  se  encontram  gravados  nas 
pedras  das  igrejas  portuguezas.  São  pontos  dignos  de 
ser  examinadoscom  cuidado,  e  próprios  para  esclare- 
cer a  historia  das  artes  entre  nós.  O  que  vai  seguir 
é  resumido  dos  largos  tractados  escriptos  por  diversos 
auctores  alemães  e  francezes. 

lia  quem  pergunte  ainda  hoje  se  os  templos  da  meia 
idade  nasceram  unicamente  da  rigorosa  formula  geo- 
métrica, ou  se  encerram  na  caprichosa  bulleza  o  se- 
gredo de  symbolos,  em  parte  esquecidos.  A  resposta 
iiílirmaliva  parece  sustentada  nas  possíveis  provas. 
De  certo  05  arcbitectos  d'aquella  epocha  levaram  ho- 
ras inteiras  a  solettrar  pela  descripção  bíblica  a  mis- 
teriosa harmonia  do  templo  de  Salomão.  Adivinhar 
a  sin-nilicação  religiosa d'aquillasublin)c  epopeia,  em 
que  se  resumiu  a  lei  antiga,  foi  o  objecto  de  longas 
vio-ilias  para  os  sábios  do  tempo.  Um  escriptor  do  sé- 
culo VIII,  líeda,  na  sua  obra  i<  Uc  Templo  Salomo- 
JUS  "em  diversas  passagens  se  occupa  dos  segredos  mys- 
ticos  d'elle,e  aventura  opiniões  não  pouco  arrojadas. 
D'ahi  nasceu  talvez  o  sentido  figurado  que  se  dá  á 
composição  das  cathedraes  dos  séculos  XII  e  XIII. 
51  A  porta  do  templo  do  Senhor,  diíii  Keda,  signifi- 
ca, que  ninguém  chegará  ao  seio  do  Padre  senão  por 
aquella  entrada.  Hu  siui  o  caminho,  escreveu  elle.  " 
A  signilieação  svmbolica  do  portal  pedia  que  se  lhe 
cravasse  a  historia  de  Jesus  ('hristo  referida  ás  pro- 
phecias  do  Testamento  antigo.  Nas  outras  partes  guar- 
dava-se  a  inesma  regra,  como  se  vai  vêr. 

lixiciior.   Os  poriacs. 

Nos  monumentos  da  meia  idade  o  que  logo  dá  nos 
olhos  sobro  tudo  é  o  portal  ea  fachada  do  occidenle. 
As  três  portas  d'e:ilrada,  e  no  meio  dVUas  o  pottal 
do  centro,  symliolos  da  nossa  recepção  na  vida  phvsi- 
ca  e  espiritual,  são  traduzidos  de  modo  simples e  cla- 
ro nas  series  de  liguras  entrelaçadas  nas  volla'>  do  re- 
mate dos  porlaes,  que  de  ordinário  nunca  excedem  a 
três.  Na  primeira  volta  exterior  está  a  historia  da 
criação  do  mundooado  Testamento  antigo;  na  vol- 
ta central  iavravam-se /)íjs.'ios  tirados  do  Evangelho  e 
da  l'aixão  ;  a  terceira,  a  mais  cavada  de  todas,  con- 
tinha (|uasi  sempre  allusões  á  vida  futura,  cxpre-sas 
em  scenasdo  Apoealypse.  Por  baixo  eaolado  dastrcs 
arcadas  coUucavam  as  estatuas,  gigantes  na  altura, 


dos  patriarchas,  prophetas,  e  evangelistas,  rodeadas 
de  um  sem  numero  d'anjo5,  uns  com  harpas,  lyras, 
e  trompas;  outros  incensando  com  tliuribulos,  como 
para  celebrar  as  maravilhas  de  Deus. 

Ua  arcada  principal  crescia  magestoso  o  tympano 
ou  frontão  agudo,  symbolo  da  Trindade;  no  vértice 
Deus  Padre  assentado  em  throno  excelso,  mandando 
á  terra  o  Espirito  Sancto  com  seu  Filho  predilecto. 
Em  outros  era  Jesus  coroando  a  Virgem  rainha  dos 
céus.  Acima  do  frontão  da  porta  rasgava-se  o  óculo 
ou  espelho  da  igreja,  de  lavores  arrendados,  ornado 
de  ricas  vidraças  coradas.  A  figura  circular,  sem  prin- 
cipio nem  tim,  doesta  janella  immensa  era  a  imagem 
da  providencia  divina,  de  si  mesma  infinita,  e  da 
luz,  alma  e  calor  de  toda  a*creação.  Nos  óculos  dos 
séculos  XII  e  XIII  as  pinturas  das  vidraças  repre- 
sentam o  sol,  a  lua,  as  estrellas,  e  tudo  o  que  se  re- 
fere aos  eíTeitos  admiráveis  da  luz.  Na  cathedral  d'A- 
iniens  o  espelho  principal  representa  a  terra  e  o  ar, 
o  do  septentrião  representa  as  aguas,  e  o  do  meio 
dia  representa  o  fogo,  compondo  junctos  o  quadro  dos 
quatro  elementos.  As  portas  lateraes  ao  lado  do  por- 
tal, e  nas  igrejas  do  século  XII  as  que  se  abrem  de 
uma  e  outra  parte  do  choro,  viradas  ao  levante,  si- 
gnificavam a  entrada  pira  acommunhão  christã,  as- 
sim como  as  quejse  rasgavam  para  norte  e  sul,  e  as 
coUateraes  ao  meio  dia  e  septentrião  indicavam  a 
conversão  dos  povos  da  terra,  habitantes  de  todos  os 
reinos  e  climas. 

Tones  e   campanários. 

De  ambos  os  lados  da  porta  da  cathedral  subiam 
ao  céu  duas  torres  descommunaes.  A  da  esquerda  era 
o  symbolo  da  jerarchia  ecclesiastica  ;  a  da  direita  si- 
gnificava o  estado  civil  e  temporal.  A  união  dos  dois 
poderes  nos  monumentos  do  culto  era  natural  nos  sé- 
culos em  que  o  sacerdote,  como  padre,  ajoelhava  á 
hóstia  nos  altares,  e  ao  mesmo  tempo  enlaçava  o  el- 
mo de  soldado,  e  exercia  os  direitos  de  senhor.  Oque 
ha  de  notável  consiste,  nas  igrejas  aonde  estão  aca- 
badas as  duas  torres,  ema  da  esquerda  ser  mais  ele- 
vada que  a  outra;  e  nas  cathedraes  em  que  só  uma 
se  completou,  em  quasi  sempre  a  da  esquerda  se  er- 
guer severa  e  magestosa,  em  Strasburgo,  Anvers,  To- 
ledo e  Bordéus. 

Apenas  nas  igrejas  metropolitanas,  nascoUegiadas, 
nas  parochias,  e  raras  veres  nas  conventuaes  se  notam 
as  duas  torres  subindo  iguacs  em  altura.  Em  geral 
dividiam-n"as  em  quatro  andares.  O  primeiro,  par- 
tindo da  base,  representava  symbolicamenfe  o  cura, 
grau  primórdio  da  jerarchia  ecclesiastica.  O  segundo 
reprosenfava  o  deão.  O  terceiro  eraobispo,  eoquar- 
ta  referiase  ao  arcebispo  ;  quando  havia  cinco  oquin- 
to  marcava  o  primai.  O  coruchéu  indicava  os_\ml>o- 
lo  da  auctoridade  papal.  Na  jerarchia  civil  o  primei- 
ro andar  representa  o  maire..  ou  o  official  do  muni- 
cípio. O  segundo  é  o  conde.  O  terceiro  o  duque.  O 
quarto  o  rei,  e  o  coruchéu  o  imperador. 

.\  pesar  de  n.ío  merecerem  excessiv.-»  fé  taes  conjec- 
turas, pelo  menos  aventuradas,  convém  entretanto  ad- 
vertir que  a  uniformidade  de  todas  as  forres  de  ca- 
thedraes, e  o  numero  sempre  certo  e  igual  dos  anda- 
res provam  que  n'esf«  construcção  havia  uma  inten- 
ção qne  se  ligava  a  fins  c  ideias  regulares  e  univer- 
saes. (Cunfífiód.) 

Os    PBnKAlIS,   SKIT.<    AROFLISA. 

Entrk  05  marabutos  da  Argélia  ha  uma  seita  liga- 
da por  vincules  dVissociação  análogos  aos  da  fraiic- 
maçonaria,  e   os  seus  membros  appeUidam-se  der- 


o    PANORAMA. 


83 


kauts.  O  seu  propósito  é  luctar  contra  todo  o  poder 
temporal,  que,  segundo  elles,  só  se  serve  da  força 
para  opprimir  a  gente  musulmana,  e  destruir  os  seus 
primitivos  costumes,  privaiidoos  de  se  governarem 
conforme  os  preceitos  do  alcorão.  —  Os  derkauis  são 
de  todas  as  tribus,  e  reconhecem-se  mutuamente  por 
meio  de  signaes  em  geral  e  de  outros  particulares. 
Não  cortam  os  cabellos ;  só  vestem  farrapos,  e  ne- 
nhum árabe  rico  se  appresenta  em  suas  assembléas 
com  albornoz  novo  sem  o  esburacar  e  fazer  em  fran- 
galhos. Os  mais  fanáticos  vesfem-se  de  esteiras,  de 
pedaços  de  tapetes,  e  de  trapos  de  iiarracas  velhas. 
Porém,  como  por  necessidade  muitos  dos  árabes  ião 
teem  outros  trajos,  os  derkauis  reconhecem-se  de 
mais  a  mais  pelas  inflexões  da  voz,  e  por  aspirações 
'|tje  cortam  as  palavras  com  um  rytlnoo  como  em  ca- 
dencia musica  :  completam  o  reoonhi'cim('Mto  levan- 
do a  mão  direita  ao  coração,  e  pronunciando,  com 
certo  accento  d'inspirados,  o  nome  de  .J//tiA  (Deus). 
I)'elles  uns  são  pobrissimoí,  e  vivem  á  guisa  de  ere- 
mitas e  mendicantes,  outros  são  ricos,  e  pertencem 
ás  casas  principaes  de  suas  terras.  A  despeito  do 
mvsterio  (]iie  esconde  os  seus  regulamentos,  alcan- 
<,ou-se  conliecimento  do  modo  da  admissão  dos  neo- 
phytos,  o  da  eleição  dos  cabeças  da  ordem.  —  Gtuem 
quer  ser  derkaiii  embrulha-se  em  an<lrajos,  e  vai 
descalço  aonde  se  congregam  os  membros  da  seita. 
.Se  obtém  a  permissão  de  assistir  a  um  ajunclamen- 
•  ii,  reza  certas  orações,  passa  pelas  provas  que  são  do 
estylo.  e  os  mestre»  proclaniam  a  afliliação. 

A  eleição  dos  directores  e  cabeças  principaes  o  por 
concurso,  e  hão  de  ser  escolhidos  da  cathegoria  dos 
laleis,  (doutores).  Aquelle  que  nas  discussões  religio- 
sas e  politicas  alcançou  por  vezes  o  miiior  numero  de 
snflragios,  o  que  t(!in  divulgado  a  melhor  obra  reli- 
■iiisa  ou  especialmente  relativa  á  seit.i,  odVrece  se 
r.indidato  ao  logar  vago  d(!  maioral:  a  umacommis 
slojdos  superiores,  que  o  devem  admittir  no  seu  gre 
mio  ou  rejeitar,  é  enearregíido  o  inquérito  do  proce- 
der e  acções  do  pretendente,  e  sobre  o  relatório  does- 
ta ha  lie  votar  a  assembléa  geral  convocaila.  Ospar- 
liJarios  do  candidato  ordenam  se  juncto  <lV>lle,  e  se 
formam  maioria  fica  eleito.  Os  maioraes  nomeiam 
íi'cntre  si  o  mestre  supremo,  que  deve  presidir  ás  as- 
sembléas, e  que  as  convoca  ou  dissolve  com  assenti- 
mento da  maioria. 

Oh  derkauis  ajunclam-se  nas  montanhas  mais  af- 
fa-,tadas  do  povoado:  a  serra  de  Uenseris  é  o  centro 
lia  sociedade.  Alli  discutem  as  suas  (piesiões  theolo- 
gicas,  <•  pelas  pregações  chamam  os  liids  da  sua  seita 
ii.  rigorosa  observância  das  leis  do  propheta,  edo  mis- 
tura com  a  integridade'  do  alcorão  pregam  também  a 
independência  da  nacionalidade  árabe. 

(Auando  os  derkauis  se  reúnem,  vivem  em  com- 
munidade,  alinientando-se  de  uniiíspiípas  de  farinha 
Jr  cevada,  que  trazíMU  dentro  de  folies  de  pelle  de 
cahru  curtidos.  Se  lhes  falta  o  provimento,  expedem 
alguns  do  ajunctamenlo,  (pie  vão  de  aduar  em  aduar 
soccorrer-se  á  cari<lade  ilos  árabes,  <!  que  trazem,  co- 
mo os  frades  da  saeeolu,  ;i  colheita  <lo  pcídilorio. 

Ksta  seita  é  numerosa  \  mas  não  <■  possível  cifrar 
u  quantidade  ilos  prosidy tos  :,  ramiliea-se  extensa- 
mente entre  as  tribus  independentes,  sobre  tudo  nos 
kiih^lus  <!  nos  de  Tafiiii  ■,  (•  são  inimigos  acérrimos 
«los  francezes-,  quasi  todii  a  lamilia  de  Ab-el-Kader 
llie  pertence. 

lllSTOHI/.    nos    TttKUnAI'llOS. 

(ronllnuailuUe  pa^.  Cl.) 

O  TBl,Kuu\eii()  <l(!  ('happe,  ainda  bem  não  eslava  di- 
vulgado, apenai  se  apreciaram  os  ti'us  ininiunsus  re- 


sultados, foi  por  toda  a  parte  adoptado ;  esfudaram- 
n^o  depois  para  o  aperfeiçoarem  i  porém  ainda  ha  que 
fazer  muitos  melhoramentos  :  com  eITeito,  a  noite,  os 
nevoeiros,  a  chuva,  interrompem  as  noticias.  Tentou- 
se  remediar,  mas  sem  exilo,  estes  inconvenientes, 
adaptando  lanternas  ásdiversas  peças  que  constituem 
o  telegrapho.  —  Este  modo  de  transmissão  já  é  mui- 
to lento ^  o  espirito  humano  caminha  tão  veloz  que 
a  rapidez  telegraphica  actual  já  não  satisfaz.  A  ins- 
tantaneidade, apesar  das  distancias,  é  só  quem  pode 
sacia-lo  ;  e  para  corresponder  a  esta  ardente  activi- 
dade, os-  ph^sicos  ensaiaram  ha  alguns  annos  o  em- 
prego da  eleeíriciíiade  para  obter  certos  signaes. 

Em  1747  alguns  sábios  inglezes,  entre  os  quaesse 
cita  Cavendish,  quizeram  servirse  da  electricidade 
para  estabelecer  conimunicações  telegraphicas ;  com 
o  auxilio  de  descargas  de  baterias  eléctricas  obtive- 
ram communicar-se  na  distancia  de  duas  milhas.  Em 
17'J0,  Keveroni  S.'  C^  r  propoz  um  telegrapho  eléc- 
trico para  unnunciar  o  resultado  da  extracção  da  lo- 
teria,  afim  de  prevenir  as  trapaçarias  de  alguns  in- 
tiividuos  especuladores;  d'ahi  a  seis  annos  o  doutor 
Francisco  Salva  leu  na  Academia  de  Barcelona  uma 
mi  nioria  solire  a  applicação  da  electricidade  á  fele- 
graphia  ;  [)orém  todos  estes  primeiros  esforços  ficaram 
infruefuosos.  Recentemente  a  creação  dos  caminhos 
do  ferro  é  que  ministrou  meios  de  estabelecer  as  li- 
nhas telegraphicas  electric;is. 

IjÔ-so  no  Morainíj  1'ud  (1839)  oseguinte:  —  «Ha 
dois  mezes  o  telegrapho  electromagnético  do  cami- 
nho de  ferro  Grand-Occidenlal  está  continuamente 
em  exercício  cada  vez  que  os  trens  fazem  o  transito 
entre  Dro^ton,  ílewell,  e  Padington.  Estando  aca- 
bada a  linha  o  telegrapho  servirá  dfsde  Padington 
até  Bristol :  por  elle  se  transmittirá  qualquer  noticia 
a  Bristol  e  se  receberá  a  resposta  dentro  de  vinte  mi- 
nutos. Os  negociantes  poderão  approveit.irse  lias  van- 
tagens d'esle  modo  expedito  de  conimunieaeão,  devi- 
do á  sciencia  dos  inventores,  !MM.  Cook  e  Weat- 
sonne.  Dois  rapazes  surdos-mudossão  os  encarregado» 
da  transmissão  dos  siijnaes,  tendo  sido  exercitados  al- 
i;um  tempo  ha  n'este  trabalho.  Rir.  Cook  inventou 
um  mi'clianÍsmo  muito  simples  que  indica  ao  rapaz, 
incapaz  de  ouvir  o  som  da  campainha  em  razão  da 
surdez,  <|ne  ha  de  transmittir  pelo  tele;;rapho  tal  ou 
tal  noticia.  Nunca  se  ainolgam  ou  quebram  os  fios 
(pie  servem  para  a  fr;insniissão.  Pareceque  seria  mui 
dillicil  acertar  exactanuMitc!  com  o  logar  onde  acon- 
teceria a  ruptura  n'uma  extensão  de  117  milhas,  es- 
tando os  lios  todos  encerrados  n'um  tubo  da  capaci- 
dade de  uma  pollegada  de  diâmetro  :  todavia  Mr. 
Cook  achou  meio  de  verificar  precisamente  o  ponto 
em  que  possa  ter  logar  a  solução  de  continuidade  ;  a 
sua  nnichina  está  encerrada  n\ima  peça  de  madeira 
compacta  de  oito  pollegadas  quadradas." 

Em  iMunich  ensaiou-se  um  telegrapho  eléctrico  pa- 
ra communicações  no  interior  da  cida<le.  l'o>to  que 
seja  de  recentíssima  data  este  grande  melhoramento 
da  arte  lelegraphiea,  eomtudo  já  se  lem  experimen- 
tado ern  grande  escala,  e  quando  chegar  á  sua  per- 
feição dará  pasmosos  resultados. 

O  telegrapho  lem  estado  commuuunente  ao  servi- 
ço dos  g4ivernos,-  eomtmio  a  seiencia  e  o  (ommcrcio 
ganham  muito  tenilo-o  especialmente  á  sun  disposi- 
eào.  I''m  IS!17o  governo  sueco  estabeleceu  nma  linha 
lelegraphiea  dií  Storkolmo  a  Furnsnnil  ,  e  furam  auc- 
lorisados  os  partieiíhires  a  se  aproveitarem  d\'lhi  pa- 
ru a»  suas  eiii)i'ciaes  parliiipações,  niediante  o  paga- 
mento de  uma  cpianii.i  piir  cail»  aviso. 

l'an  a  H(X'hUi  l''.tt>iunuiva,  impressa  <'m  Tjishou  no 
eoiriuile  anno  (17  d'abril)  lese  OM'guinte.  —  ..O  le- 
legrapiío  elcetricti,  quo  deve  cstabelecer-so  em  toda» 


84 


O    PANORA3IA* 


linha  entre  Francfort  e  Castel,  está  prompfo  até 
Haltersheim.  Diz-se  <jue  o  governo  tenciona  permit- 
tir  o  uso  do  telegraplio  á  praça  dos  negociantes  para 
obter  proniptamente,  no  interesse  do  commercio,  com- 
iniinieaçõe»  e  noticias  mercantis  de  Mogiincia. " 

Esta  eunia  das  consequências  mai^  directas  da  trle- 
graphia.  quer  óptica, quer  eléctrica  Aniiuliar  a  dista-- 
cia  por  moio  do  pensa  mento,  como  os  caminhos  de  ferro 
e  o  vapor  a  ahhreviam  quanto  aos  corpos-,  approximar 
mais  estreitamente  os  indivíduos  e  as  tiaíjões  :,  prepa- 
rar a  unidade  da  confederaçãoeuropea,  dando  Iheos 
necessários  tneios  de  coininiinicação  ;  taes  siío  os  re- 
sultados da  invenção  do  teli-grapbo,  dos  seus  desen- 
volvimentos, edas  Suas  indispensáveis  applicações. 
Voltaremos  a  este  assumpto  assim  que  tivermos  col- 
ligido  os  últimos  factos  mais  interessantes. 


A    ILUA  CeLEBES   (») ACASSAR. 

o  SEGUINTE  fragmento  foi  extrahido  do  memoria' 
diário  de  Mr.  Desgrai;,  secretario  do  almirante  d'Ur- 
ville,  na  viagem  á  roda  do  mundo,  eflectuada  nas 
corvetas  L^ j4drolah  e  Ija  ZcUc  por  este  illustre  of- 
ficial  marinheiro,  que  com  sua  mulher  e  filho  pere- 
ceu victima  do  desastre  no  caminho  de  ferro  de  l'a- 
rís  a  Versailles,  emSdemaio  de  lSt2. — Descreve- 
se  a  arribada  das  corvetas  á  enseada  ds  Macassar  na 
grande  ilha  Celebes. 

Aos  áO  de  maio  de  1S39  entrámos  o  estreito  de 
Salayer.  Por  esta  parte  é  mui  jucundo  o  aspecto  das 
praias  da  Celebes:,  descobrc-se  um  terreno  chão,  e 
pouco  variado  no  primeiro  plano,  e  pela  terra  den- 
tro altas  serras  involtas  em  sombras  azuladas,  fingi- 
das pela  distancia  e  pela  transparência  da  atmosphe- 
ra.  A'  beiramar  as  aldeias  malaias,  os  estabelecimen- 
tos protegidos  pela  bandeira  hollandeza,  a  cidade  de 
líonthain,  <]ue  faz  lembrar  o  máu  acolhimento  feito 
ao  capitão  ^Vallis,  ora  se  mostram,  ora  se  escondem 
á  medida  que  o  navio  passa  singrando  avante. 

Vista  da  enseada  a  cidade  de  Macassar  appresenta 
uma  longa  fileira  de  construcções  diversas,  que  se  de- 
senvolvem na  extensão  approxiuiativa  de  duas  mi- 
lhas, porém  com  pouca  largura:  tem  seu  assento  nas 
bordas  de  uma  vasta  e  bella  planície,  que  assim  fica 
occulta  a  quem  a  observa  do  mar  :  á  direita  do  es- 
pectador, isto  é  ao  norte,  as  paredes  brancas  das  ca- 
sas hoUandezas  estão  sobranceiras  a  uma  linha  de  ha- 
bitaeõi's  miseráveis,  térreas,  e  feitas  de  baml)ijs  del- 
gados, juncto  á  praia.  F,m  frente  do  molhe dilala-se 
uma  veiga  vecejante,  e  o  forte  Rotterdani-ostenta  as 
suas  muralhas  elevadas,  pardas  e  massiças,  guarneci- 
das de  canhoneiras:  mais  para  a  direita  descortinam- 
se  varias  obras  de  alvenaria,  que  parecem  pertencen- 
tes a  nm  bairro  europeu  \  e  no  composío  do  painel  a 
vegclacão  lustrosa  estremeia  com  a  cagaria  a  rama- 
gem \ir.'nte,  e  embelleza  a  ribeira  serena  e  aprazí- 
vel, junclo  á  qual  apenas  se  enruga  a  superficie  do 
mar.  E  nnia  scena  toda  de  socego  ;  a  povoação  pare- 
ce que  dorme;  a  chegada  de  algum  na\io  não  altra- 
lie  niultilões  á  margem  da  enseada.  Ião  somente  se 
aggregam  alguns  riinchos  para  examinar  a  inauohr.i 
do  adventício  colhendo  as  velas. 

A  tropa  pernianeiilc  em  div  rsos  pontos  da  Pele- 
bes  segura   á    Hollanda   a    prepí)nderancía   sohi-r.ma 


(«)  Esla  {jr.iniie  íllia  deninra  enire  n  de  Itnmeo  e  o.ir- 
chlpejago  d:is  Mnlueas  naOceania  nu  quínia  |i;n'le  ilo  mun- 
do. Os  llos.so.s  ii.ive).;:idi)rcs  a  (leseohriruni  imn  i'Ulras  do< 
incs  luos  mares  pelnsannos  de  IMá  :  alii  InaJamnsfeiloria 
perto  Ja  ciJade  |)rinci|i;il  M.neassar,  mnsos  liollamlezes  nos 
expelliiamna  ei>nclia(la  noss.i  ilecadcncia  nianlima,  resul- 
tado da  usurpação  dos  Philippes. 


n'um  território  vasto  que  não  pode  ocoupar  nem  des- 
fruutar  inteiramente,  e  ao  mesmo  tempo  refreia  as 
depredações  dos  indígenas,  que  melide  são  pescado- 
res, e  a  outra  metade  piratas  afamados  n^aquellas  pa- 
ragens por  audazes  accornmettimentos  contra  os  va- 
sos de  commercio  europeus.  Os  buugais,  que  habitam 
o  litloral,  teem  a  reputação  de  melh'jres  marinheiros 
entre  todos  os  malaios:,  aventuram-se  asatr  muitoao 
alto  em  seus  paráus,  ou  para  pescar,  ou  para  bascu- 
Ihar  os  mares,  e  frequentemente  as  suas  viagens  le- 
vam por  fim  esta  dobrada  especulação  :  se  ao  pescar 
encontram  um  navio  de  pouca  força,  ou  em  calmaria 
ou  pouco  veleiro,  dão  lhe  abordagem,  e  de  ordinário 
degollam  a  gente  para  não  haver  noticia  do  atten- 
tado. 

O  bairro  europeu,  Haarctigcn,  tem  a  forma  de  am 
parallologramo,  e  é  fechado  por  um  muro  alto,  onde 
se  abrem  largas  portas  guardadas  por  destacamentos 
da  milícia  ;  consta  de  seis  ou  sete  ruas  principaes, 
ípie  te  curtam  em  ângulos  rectos,  bordadas  por  am- 
bos os  lados  de  grandes  e  bellas  casas  de  pedraecal, 
branquejando  e  luzindo  com  aquelle  admirável  aceio 
c)ue  se  encontra  em  todas  as  cidades  hollandezas  :  se- 
gando a  practica  geral  das  colónias  das  índias,  não 
passam  de  um  andar  as  casas,  mas  as  frentes  são  pa- 
ra notar  com  seus  peristylns  ornados  de  columnas  bo- 
judas, produzindo  agradável  effeito  :  circula  o  ar  fres- 
co em  grandes  repartímentos,  resguardados  do  calor 
dl)  dia,  porém  abertos  á  mais  leve  viração:  á  tardi- 
nha o  peri»tvlo  é  de  preferencia  o  logar  das  compa- 
nh  as,  e  guarnece-se  de  cadeira»  e  de  mcas,  em  que 
abundam  bebidas  mais  estimulantes  do  que  para  re- 
frescar, Comtudo,  a  parte  mais  formosa  d*este  bairro 
transpõe  a  barreira  dos  muros  :  ha  n"ella  a  morada 
do  governador,  o  hospital,  e  o  eudracht  ou  casa  da 
iocicílade  tia  harmonia,  espécie  de  assembléa  perma- 
nente, que  se  acha  em  todos  os  estabelecimentos  liol- 
landezes,  um  como  casino,  logar  obrigatório  de  reu- 
nião, que  constilue  o  núcleo  da  boa  sociedade  da  ter- 
ra, e  que  se  abre  com  affabilídade  e  cortezia  aos  ra- 
ros estrangeiros  que  visitam  aquelles    territórios. 

Visto  o  pagode  china,  meia  hora  é  b.istante  para 
correr  o  bairro  de  Haardígen,  povoado  por  hollan- 
dezes  e  chinas:,  estes  ullímos,  preciosos  pela  indus- 
tria, fazem  tudo.  mercadejam  em  tudo,  seguem  apoi 
a  mais  pequena  probabilidade  de  lucro  por  toda  a 
parte  ;  são  de  real  utilidade  nos  estabelecimentos  eo- 
loniaes,  e  formam  a  maioria  dos  habitantes  do  bair- 
ro, que  chegarão  a  oito  mil  almas.  As  moradas  dos 
naturaes,  arrimadas  á  praia,  levantadas  sobre  esta- 
caria, e  ás  veze<  nos  cães.  estão  um  tanto  espalhadas 
por  todas  as  banda»,  mas  acham-se  especialmente 
.nnontoadas  diante  da  ciilade  hollandei»,  e  em  rela- 
ção a  si  mesmas  e  á  ribeira  e<lão  dispostas  grndual- 
niente,  formando  um  verdadeiro  bat.^r  atulhado  de 
vendas  e  de  mercad.ires,  com  uma  portH  que,  fecha- 
•  'a  á  noite,  interrompe  a  communicação  e\terior. 
Casas  de  índigrnas  taniliem  .«e  alar;sm  para  o  norte 
em  meio  da  e»pes*ura  de  arvoreilo  frondoso,  produc- 
ç.To  c.iracieristica  da  vejelaç.To  intertropical, 

A  maior  parle  do  trafico  de  Macassar  está  concen- 
trada na  comnrida  rua  moro.inlil  que  chamamos  ba- 
zar, «mde  chinas,  malaios  e  europeus  teem  su.is  lojas 
ou  armazéns.  O  maior  numero  compõe-se  dos  que 
vendem  armas,  como  crizes,  lanç.is,  facis  de  feitios 
dilTiíreiítes,  e  arreios  para  cavallo-,  «kc,  —  A  cada 
n.isM)  se  fopi  com  um  d"esfe»  homens.  gr.'<\ementc 
a^sentado  juncto  á  grade  de  can.is  onde  alardeia  a 
-ua  fazenda  á  espera  do  fregtiei.  nunca  fslh.indo  em 
pedir  o  dobro  do  valor  do  objecto  que  lhe  apreçam. 
M.icass.ir  tem  grande  fama  de  f.ibricar  os  punhaes 
chamados  crites  e  os  ferros  de  lanças :   os    primeiros 


I 


o    PANORAMA. 


85 


são  de  dois  feitios,  a  saber,  rectos  ou  com  uma  leve 
inflexão,  ou  colubriíios  •,  estes  são  mais  procurados 
lia  Java,  e  aquelles  os  preferidos  na  Celebes.  A  fo- 
lha d'estas  armas  é  forjada  de  modo  que  descobre  o 
numero  de  chapas  de  ferro  de  que  se  compõem,  e  se- 
gundo a  quantidade  doestas  e  o  trabalho  que  deman- 
dam é  mais  ou  menos  sul)ido  o  custo:  os  cabos  e  bai- 
nhas também  influem  no  valor  i  punhos  de  marfim  la- 
vrados ou  dourados,  e  bainhas  ou  estojos  de  páu,  ama- 
Tello  ou  vermelho,  bctn  polido,  dobram  ás  vezes  o 
preço  a  ponto  de  chegarem  a  24;^000  reis.  Os  pu- 
nhos são  recurvados ,  de  modelo  uniforme  ,  pouco 
adherentes  ao  ferro  ^  servem  para  encostar  a  palma 
da  mão,  e  o  index  e  o  pollegar  de  um  c  outro  lado 
dirigem  o  golpe.  —  O  ferro  das  lanças  não  excede 
seis  a  dez  pollegadas,  é  chato  e  de  dois  gumes  :  seu 
preço  também  dilTere  na  razão  do  esmero  no  fabrico, 
porém  sobre  tudo  na  proporção  da  riqueza  do  cabo, 
que  é  de  cobre  ou  de  prata  lavrada,  e  haos  também 
de  ouro  :  a  haste  é  de  lenho  duro  de  certa  palmeira, 
e  no  comprimento  varí-i  de  nove  a  doze  palmos  ^  por 
elegância  teein  uma  cauda  de  cavallo  (n'alguinas 
tincta  de  encarnado)  enrolada  com  artificio  no  conto 
da  lança:  os  cavalleiros  macassares  trazem  esta  arma 
com  a  ponta  para  baixo,  mettida  u'um  estojo  de  páu 
prezo  ao  estribo,  a  cauda  Uuctua  então  no  ar  e  faz 
bonita  vista. 

A  par  d'estas  armas  vê-se  grande  quantidade  de 
podôas,  de  que  os  indígenas  se  servem  para  todos  os 
trabalhos.  Porém,  não  obstante  a  fama,  os  instru- 
mentos de  ferro  de  Macassar  teem  mui  fraca  tempe- 
ra ■,  as  facas  de  mesa  inferiores  fazem  sem  custo  boc- 
cas  no  corte  mais  vistoso. — A  variedade  de  objectos 
patentes  nas  outras  tendas  é  grande,  mas  o  seu  valor 
em  geral  miniino  :  ha  tal  que  toda  a  sua  fazenda  são 
alguns  robles  de  cana  d^assucar',  muitas  não  teem  a 
importância  de  100  francos  (IGj^OOO  réis)  ■,  e  com- 
tudo  todos  estos  vendeiros  vivem  bem,  graças  ao  bai- 
xo preço  dos  géneros,  e  á  fartura  de  arroz  e  de  pei- 
xe, bases  do  seu  alimento.  As  lojas  mais  ricas  são 
inquestionavelmente  as  dos  chinas  que  emprestam 
sobre  penhores;  ahi  se  acham  os  mais  curiosos  tras- 
tes e  as  armas  melhor  fabricadas;  são  numerosas, 
porque  esta  industria  (se  tal  nome  lhe  cabe)  é  exer- 
citada por  todos  os  traficantes  chinas,  que  absorvem 
d'e»se  modo  os  haveres  dos  malaios,  propensos  em 
geral  á  ociosidade:  não  somente  emprestam  sobre 
inoveis,  mas  também  sobre  toda  a  casta  de  fazendas, 
e  até  succeile  frequentemente  comprarem  ile  anteci- 
pação a  parl(!  dos  ganhos  dos  pescadiir(!s  e  dos  culti- 
Tfldorcs  de  arroz.  [Conlinúa.) 


O    INUIOS     DE    SulllN.\M. 

O  iNnio  é  por  sua  iinlole  timorato,  (bsconfiado  c  ar- 
diloso. Obrigado  desde  a  invasão  dos  euriqieusu  púr- 
se  em  lautela  e  ;i  manter-s(r  na  tbfiuisiva  contra  os 
hospi'di's,  (jue  não  cessavam  de  o  in<|uii'lar  hostiliuen- 
to,  e  (pie  ao  isento  iniligena  das  selvas  traziam  ou  es- 
cravidão (Ml  morte,  teve  do  oppc\r  ii  astmia  á  força, 
nalgumas  vezes  a  desesperação  á  violeiuia.  Mas(|uan- 
do  não  é  conslrangido  p,)r  cin-uinstauciiis  externas  a 
snír  do  seu  primitivo  caraetcr,  inaiiircsta  a  sua  bran- 
dura <í  boa  fé  ;  é  na  realidade  o  filho  da  natiireíu. 
Não  piíile  iiegar-si!  ipn!  em  razãoda  t\'raiiiiia  dos  seus 
«ppressores  perdeu  um  tanto  da  sua  original  siiigide- 
ía  :  os  europeus  tiveram  a  culpa,  liabiluaiiiio-o  a  no- 
vas efaitieias  preeisõrw.  Hastava-lhe  em  seus  mattos 
o  necessário,  e  a  fartura  do  seu  território  o  provia 
abundantemente^  mas  agora  o  supérfluo  (renlAo  Uir 


desconhecia,  sem  os  quaes  tinha  passado,  e  que  lhes 
ensinaram  a  appreeiar  para  sua  desgraça.  Aos  ví- 
cios das  suas  tribos  os  selvagens  ajunctaram  os  das  na- 
ções civilisadas.  Estes  dois  elementos  diversos  de  des- 
truição moral  concorreram  tanto  como  a  oppressão 
para  bastardear  a  sua  Índole  ori<;inaria,  franca  ece- 
nerosa.  D'este  modo  os  Índios,  Ião  numerosos  e  for- 
midáveis' em  outro  tempo,  desapparecerão  Gradual- 
mente, acabando  pela  mistura  completa  com  os  colo- 
nos. Esta  fusão  será  demorada,  mas  parece  infallivel 
porque  é  impellida  pela  natureza  dos  factos,  isto  é,  por- 
que pertence  á  industria,  ao  commereio,  á  civilisa- 
ção.  — Os  Índios  ou  raça  dos  Caraíbas,  que  habitam 
Surinam  e  seus  contornos,  são  em  geral  bem  feitos e 
proporcionados,  sadios,  robustos,  sem  deformidades 
corporaes,  e  a  não  ser  por  accidenie  extraordinário 
e  raro  encontrar  alíum  corcovado  ou  coxo.  A  tez  é 
morena  tirando  a  c(ir  de  cobre-  todavia  saem  bran- 
cos á  nascença,  mas  a  alvura  desapparece  em  poucos 
dias,  e  ficam  da  ciir  natural  da  sua  casta.  Entre  as 
diversas  tribus  nota-se  geralmente  grande  conformi- 
dade de  feições.  A  sua  maneira  de  vestir  é  mui  sim- 
ples, ou,  para  melhor  dizer,  quasi  nenhum  vestuário 
trazem.  Gluando  lhes  faliam  da  nudez  com  apparen- 
cias  de  lli'a  censurarem,  dizem  que  vieram  nús  ao 
mundo,  e  que  é  bnicura  contrariar  a  vontade  da  na- 
tureza, 8  cobrir  o  que  ella  deixara  patente.  Faz  isto 
lembrar  a  resposta  de  um  maior.il  índio,  prisioneiro 
dos,,  hespanhoes,  (|ue  o  tinh.im  vestido  á  europea  ^ 
quando  o  general  lhe  fez  as  primeiras  perguntas  in- 
qoirindo-o  sobre  a  sua  j^^rarcliia,  disse-lhe  : — iiTíra- 
me  estes  trajos  para  que  cu  me  conheça." 


As  inulhereH  sà.i  ilr  or  liii.ino  ilc  mais  baix.t  rsla- 


é  hoje   indispensável   para   trocar   puc  objcxtos  que  I  tura  do  <pie  os  homens,  mus  de  bo«  ligur»,  sobre  tu- 


86 


O    PANORAMA. 


<]o  as  raparigas,  que  peccam  talvez  por  corpo  muito 
reforçado:  feein  seiíiblante  redondo,  porém  acliatado, 
os  duiites  alvos  por  extremo,  bocca  pequena  e  oltios 
pretos,  os  cabellos  são  d'esta  côr  e  caudalosos,  eo^ 
levantam  em  (lírma  de  trança,  prcndendo-os  para  traz 
com  um  broche  :  ás  vezes  os  tosquiam  ao  modo  das 
chinas,  e  rentes  na  testada.  Trazem  nas  orelhas  pin 
gentes  de  prata  •,  atravessam  o  beiço  iiifeUor,  ou  a 
cartilagem  do  nariz  com  alfinetes  ou  arc;olas  de  me- 
tal, e  cingem  o  pescoço  de  collares  de  vidri  IhosoiMle 
coral,  junctando-lhes  dentes  de  animaes,  e  as  casadas 
os  dos  inimigos  vencidos  por  seus  maridos  :  nos  bra- 
ços, acima  dos  cotovelos,  usam  ás  vezes  faxas  de  al- 
godão como  braceletes.  São  galanteadoras,  e  gostam 
de  que  lhes  chamem  bonitas,  mas  pena  é  que  para 
assim  o  parecerem  pintem  cara  e  corpo  com  tincta 
de  urucií,  collando  em  cima  da  untura  vermelha  far- 
ripas de  algodão  branco  ou  plumas  de  aves  diversas. 
A  maior  parlo  só  usam  da  tanga  para  se  cobrirem, 
porém  as  de  algumas  tribos  visinhas  á  colónia  hol- 
íandeza  e  nas  margens  do  Amazonas  servem-se  além 
d^ibso  de  um  pedaço  de  algodão  ti  neto  de  genipapo, 
ajustado  como  se  vê  no  desenho. 


O  Feitoií  de  Camão. 


Novella. 

(Coniinuado  de  pag.  7o.) 

Vindo  a  pensar  pelo  caminho  no  resultado  provável 
da  tentativa  de  You-hi,  chegou  o  feitor  americano  a 
sua  casa,  distincta  pela  bandeira  eslrellada  que  s» 
protegia.  Atravessou  o  primeiro  corpo  do  edifício,  e 
ia  a  entrar  n'um  pateo  interior,  no  topo  do  qual  es- 
tava o  pavilhão  em  (pie  morava,  quando  lhe  foz  er- 
guer a  cabeça  um  sonido  de  voz  sonora  porém  mal 
articulada,  semelhante  ao  dos  surdos  mudos.  No  pri- 
meiro andar,  por  detraz  d'um  guardasol  meio  le- 
Yantado,  estava  a  sorrir  para  elle  uma  menina  ves- 
tida como  se  fosse  para  um  baile. 

EITendon  soltou  uma  exclamação  dVspanto,  ace- 
nou-lhe  muito  depressa  para  que  se  retirasse,  olhou 
á  roda  de  si  aterrado,  e  subiu  n^uin  pulo  a  escada. 

A  menina  surda  veio  aiirir-lhe  u  porta. 

—  iiMaria,  enlouqueceste  ?  exclamou,  fechando  a 
porta  por  dentro.  A  janelia  n'este  trajo  !  desgraçada 
lilha  !    Queres  a  nossa  perdição?" 

Maria,  sem  perceber  as  palavras,  percebeu  o  enfa- 
do de  seu  ]).ii,  porque  se  lhe  lançou  logo  nos  braços, 
tão  arrependida.  Ião  luimilile,  tão  meiga,  q.ieoseni- 
blante  do  feitor  asserenou  de  siibito,  mesmo  sem  elle 
querer. 

Ainda  accreseentou  cm  tom  de  mais  despeito  do 
que  na  reíilidade  sentia  : 

Tinha-l'o  prohibido,  Marias  porque  me  des- 
obedeceste ht 

A  resposta  da  muda  foram  redobradas  meiguices. 
Effeiidon  (iniz  resistir  mais  um  momento,  mas  ce- 
dendo por  liiii  á(iuellc  assalto  <le  caricias,  murmu- 
rou : 

.Coitada!  esquecia-me  que  não  tem  outro  di- 
vertimento.;' 

Jí  apertou-a  ao  peito. 

A  pobre  menina,  vendo-se  perdoada,  soltou  um 
grito  de  alegria  ;  olhou  depois  para  si  cheia  de  com- 
placência, deu  três  passos  para  Ira»,  enlcsou-se,e 
ficou  muito  direita  diante  d'Eflendon  com  a  gravi- 
dade ingénua  d'ufna  creança  que  quer  que  lhe  ad- 
mirem as  galas,  listas  eram  com  elleito  singulares 
na  riqueza  e  elegância.  O  vestido,   de  crespão  bran- 


co guarnecido  d'uma  grinalda  de  jasmins  de  cheiro, 
posto  que  artificiaes,  apertava-o  na  cintura  um  cor- 
dão de  seda  torcida  com  prata:,  uma  espécie  delur- 
bant^í  de  setim  lavrado,  enrolado  nos  cabellos,  pen- 
dia de  ambos  os  lados  acompanhando  o  rosto  ,  e  final- 
mente tinha  calçados  uns  borzeguins  franjados  de  pé- 
rolas. A  belleza  de  -Maria  enfeitiçava  com  este  trajo 
esplendido.  Eífendon  não  poude  reprimir  uma  de- 
monstração de  maravilha.  Disséreis  que  era  uma  fa- 
da do  (oriente  em  todo  o  seu  fulgor. 

Contemploua  um  momento  fascinado  por  aquelle 
garbo  desluiiibraiile  ;  depois  fazendo  uma  espécie  de 
esforço,  trouxe-a  pela  mão  para  um  sophá  de  bam- 
bus artificiosamente  entrançado,  fè-la  sentar,  e  tra- 
vou um  dialogo  por  signaes,  quasi  tão  rápidos  para 
quem  está  nu  habito  de  os  faier  como  a  conversaçã» 
fallada. 

Lançou-lhe  primeiramente  em  rosto  a  imprudên- 
cia de  apparecer  á  janelia  assim  vestida. 

A  surda  e  muda  abaixou  os  olhos  corando. 

—  ijgnoravas  que  não  podem  os  estrangeiros  tra- 
zer mulheres  das  suas  terras?  Se  sabem  que  estás  co- 
migo expulsam-nie  e  pagão  a  companhia." 

Maria  fez  um  jignal  de  pavor. 

—  iiílelhor  fora  não  te  trazer  comigo ;  mas  não 
tive  animo  para  me  separar  de  minha  lilha,  dos 
meus  únicos  amores.  Fizeram-me  acceilar  a  direcção 
doesta  feitoria  para  te  deixar  rica  ;  quii  conciliar  a 
afleição  e  o  interesse,   fiz-te  passar  por  meu  filho...» 

—  ti  li  ainda  até  hoje  ninguém  desconfiou  de  meu 
disfarce,  disse  Maria  inferrompendo-o  com  a  sua  lin- 
guagem muda. 

—  «Porque  nunca  o  larg;'iras,  replicou  EfTendou  ; 
porque  te  dei  mais  liberdade  para  arredar  toda  a 
suspeita  i  porque  assim  mesmo  transfigurada  conser- 
vaste o  nome  de  ílaria,  que  aliás  me  escapara  mil 
vezes  e  nos  trahira.  Masque  será  de  nós  se  te  virem 
em  traios  mulheris?  Muito  mal  fiz  eu  em  te  mandar 
buscar  esses  atavios!  Manias  de  pai  ;  quiz  ver-te  qual 
devias  ser  e  qual  serás  um  dia  I...  Mas  estes  vesti- 
dos só  eu,  a  furto,  os  podia  \êr  em  ti,  Maria." 

—  iiPerdoai,  meu  pai,  disse  cila;  serei  mais  acau- 
telada d'aqui  em  diante,-  mas  que  temos  que  receiar 
em  nossa  casa  ?" 

—  "Não  te  lembras  que  estamos  cercados  d'es- 
pias  i  que  não  se  move  uma  palha  sem  que  o  saibam 
os  niandarius  chinas?...  Despe-le,  Maria,  despe-lc 
immediatamente,  se  não  queres  que  tenhamos  algum 
desgosto." 

A  menina  surda  fez  signal  de  que  ia  vestir  o  fato 
de  homem,  abraçou  o  pai  com  ternura,  e  siiu. 

O  feitiir  ficou  no  mesmo  logar,  com  os  braços  cru- 
zados, engolfado  em  tristes  pensamentos. 

Era  in:iis  que  certo  o  que  elle  acabaxa  de  diíer  á 
filha.  .V  menor  imprudência  podia  revelar  este  se- 
gredo, e  roubarlhe  infallivelmente  a  fortuna  eo  Sú- 
cego.  Sabia  por  experiência  com  que  lelo  e  rigor 
executavam  os  chinas  a<  leis  cuiilra  os  estrangeiros, 
quando  o  podiam  fazer  sem  perigo;  nem  devi.i  con- 
fiar, em  tal  caso,  no  apoio  da  cumpanliia.  que  aos 
seus  agentes  mandava  respeitar  escrupulosamente  ai 
ordens  do  imperador,  toda  a  vei  que  a  não  lesassem 
nos  interesses. 

Como  dissera  a  Mnria,  vi\ia  sempre  entresusios; 
estava  dentro  da  sua  própria  casa  á  mercê  do  gover- 
no china  ;  os  creados  que  o  serviam  hão  os  encolhia 
elle,  designava-lh'os  o  cmiiprailor  (♦)  a  quem  devia 
saldar  todos  os  meies  a  importância  dos  roís  do»  co. 
mestiveis  sem  questionar  sobre  asparcell.is.  Não  obs. 

(•)  Nome.1-0  o  mnnd.irim  ou  vice-rci  de  Cautão  pjn 
prover  de  maiulnienlos  os  esirangeiros. 


1 


o    PANORAMA. 


87 


tante  ter  aprendido  a  língua  da  terra,  obrigavamn^o 
a  sustentar  e  pagar  a  um  lingu.i.  N'uina  [jalavra  es- 
tava em  tudo  sujeito  a  uma  espécie  de  tutella  rapa- 
ce, minuciosa  e  infatigável,  que  o  conservava  em 
perpetua  inquietação. 

A  campainha  d'um  relógio,  dando  quatro  horns. 
veio  arranca  lo  do  seu  devanear.  Ilecordandose  de 
que  devia  ir  jantar  com  You-hi,  mandou  apromptar 
o  seu  palanquim,  e  poz-se  a  caminho  para  a  casa  de 
campo  áohanista. 

Esta  casa,  situada  da  outra  banda  do  Tigre,  fica- 
va no  meio  d^um  j.irdim,  celebrado  em  Cantão  pela 
sua  vastidão  c  lindeza;  porque  apesar  deYouOii  nãu 
se  forrar  com  pessoa  alguma  no  tracto  do  comsnercio, 
nem  por  isso  era  mesquinlio.  Lidava  para  saccar  di- 
nheiro por  lodos  os  modos  aos  bárbaros  estrangeiros, 
mas  gastava-o  com  o  luxo  da  familia,  e  em  alormo- 
sear  o  seu  retiro. 

Effendon  apeou-se  do  palanquim  ao  péd'uma  por- 
ta pequena,  onde  encontrou  um  creado  china  que  lhe 
deu  entrada  no  jardim. 

Tinha  o  hanista.  como  dissemos,  esgotado  aqui  to- 
dos os  recursos  da  arte  china-  Ruasinhas  areiadas, 
cruzando. se  c.  voltando  atraz  de  quando  em  quando; 
fileiras  d'espessuras  d'arvores  com  seus  claros;  can- 
teiros irregulares;  grutas  artiíiciacs  cavadas  em  ro- 
chedos alii  enxertados  ;  pontesenvernizadas,  por  bai- 
xo das  quaes  não  se  enxergava  nem  um  regato  ;  kios- 
ques  ornados  de  vidros  e  de  vasos  cheios  de  agua.  em 
que  boiavam  lirios,  revelavam  a  cada  passo  o  go.to 
extravagante  e  a  predilecção  dos  chinas  pelas  rarida- 
des monstruosas  e  pueris.  Viam-seá(|uem,  accommo- 
dadas  dentro  de  taças  de  pedra,  mattas  de  carvalhos, 
faias,  ou  olmeiros,  que  fizera  anões  a  cultura;  além 
arvores  verdes,  arremedando  no  feitio  aves  eelephan- 
tes  ;  e  mais  ao  longe  feras  de  porcelana  com  hervas  a 
aairemllies  das  orelhas.  No  meio  porém  (Peste  dt?s- 
concerto  sistemático,  zombando  do  porfiado  empenlio 
da  arte  desassizada,  alardeava  a  niitureza,  simples  e 
variada,  a  sua  opulência  ;  cresciam  eui  toda  a  parte 
a  oliveira  de  cheir  >,  a  figueira,  o  alues,  a  amor(!Íra, 
a  bananeira,  e  os  frangimpaneiros  recendentes.  Moi- 
tas de  yu-lan  (1),  engastadas  em  amaranlhos  verme- 
lhos ou  kelmias  cambiantes,  matizavam  o  verde  das  ' 
folhas,  a  gardénia,  as  roseiras  da  China,  e  os  chu- 
lan  (lí)  delineavam  os  mil  toreicollos  das  veredas. 
Finalmente,  por  um  pomarzinho  de  laranjeiras,  jam- 
beiros e  figueiras,  cercados  de  ananazcs  fragrantes,  se 
entrava  para  casa  de  You-hi- 

Ksta,  como  todas  as  dos  chins,  não  tinha  senão  iini 
plano  térreo  para  as  visitas,  e  um  primeiro  andar 
exclusivamente  reservado  para  as  mulheres  o  filhos 
de  Vou-hi,  que  a  ninguém  appareciam. 

í)  hnnisla  estava  esperando  os  hospedes  na  primei- 
ra casa  ou  sala  de  visitas,  ijue  contém  o  altar  domes- 
tico onde  BC  queimam  os  perfumes.  Kia-lhe  «  sem- 
blanle. 

—  "Hcm  vindo  sija  niisti-r  Klléndon  á  ininh.i  po- 
bre choupana!  disse  ell<!  assim  (]ue  viii  o  feitor.  CÍie- 
puiii  agora  de  casa  do  hoii-pou,  e  esjicíro  que  cPaqui 
em  di,int<^  a  companhia  não  tirá  razão  de  (pieixa." 

—  i.rl  isso  cusloii-te  muito  caro,  Vouhi?"  per- 
guntou l')n'eniloii  rindo. 

—  i.  J'ão  earo  <|ue,  se  eu  fosse  a  hiiibiar-me,  não 
me  faria  proveito  o  melhor  jantar.  N'(nitru  occasião 
filiaremos.'! 

—  "I'ela  iniiilia  alma!  se  o  hou-pou  visse  a  lua 
casa  de  verão  pi^dia-te  dobrado.  Timis  uma  morada 
«limia  lio  siibi-raiio  ilii  império  do  nieio  (H)." 

(I  1      lispecie  lie  iii:i){|1(jIiiis. 

(í)     Arbusto  cujas  liillias  iní.sluram  com  tis  do  chi, 

('<)    Nume  que  dúo  6  Cliiiigt  os  seus  naluruvs. 


—  "Mister  Effendon  vê  tudo  cora  os  olhos  da  in- 
dulgência, respondeu  You-hi,  n'umtom  de  modéstia 
vaidosa  ;  ainda  não  poude  fazer  idéa  da  casa  ;  se  a 
quer  vêr...jj 

EiTendon  respondeu  que  sim,  e  o  hanista  o  levou 
a  todos  os  quartos  do  pavimento  baixo,  explicando- 
Ihe  o  seu  destino. 

Os  moveis  d'estes  quartos  eram  só  camapés  e  nie- 
zas  de  pé  de  gallo ;  mas  dos  tectos  pendiam  lanter- 
nas de  chavelho,  gaze,  ou  papel,  e  as  paredes,  en- 
vernizadas com  primor,  serviam  de  ornatos  alguns 
quadros  e  sentenças  nioraes. 

O  feitor  atravessou  com  bastante  pressa  as  primei- 
ras salas,  mas  deteve-se  quando  chegou  á  livraria. 

—  "Tu  aqui  não  achas  os  trezentos  mil  volumes 
da  bibliotheea  imperial  de  Pekin,  advertiu  "^ou-hi 
sorrindo-se  ,■  mas,  além  dos  livros  sagrados,  tenho  ahí 
um  cento  de  manuscriptos  em  meialingua  (I),  e  o 
dobro  dos  volumes  impressos  escolhidos  das  obras  dos 
quatro  armazéns  (á).  O  negocio,  infelizmente,  toma- 
me  quasi  o  tempo  todo.  E  ha  tanta  cousa  para  ler! 
Nenhum  povo  tem  escrípto  tanto  como  o  nosso!  ne- 
nhum povo  pode  gabar-se  de  ter,  como  nós,  uma  lín- 
gua sagrada,  que  é  só  para  os  livros  e  não  se  pode 
lallar,  a  qual  contém  oitenta  mil  caracteres,  que, 
em  vez  de  representarem  sons  ou  palavras  como  os 
vossos,  exprimem  idéas !  Mas  vamo  nos  chegando  pa- 
ra a  casa  do  jantar  ;  deve  estar  prompto,  e  os  con- 
vidados já  hão  de  ter  vindo." 

Effendon  já  lá  os  encontrou.  Os  mais  d''clleserain 
lettrados  amigos  do  hauisla,  que  os  foi  fazendo  sen- 
tar a  umas  mezas  pequenas,  cobertas  de  panno  escar- 
late ricamente  bordado,  e  postas  em  triangulo.  Ti- 
nha cadaum  diante  de  si  um  prato  de  prata,  uma 
faca,  duas  varinhas  curtas  de  marfim  para  comer, 
uma  colher  muito  grossa  de  porcelana,  e  dois  pires 
um  cheio  de  soya  (3),  e  outro  contendo,  á  maneira 
de  acipipe,  peixe  salgado,  e  couro  do  Japão  curtido 
em  salmoura. 

Começaram  os  creados  a  trazer  para  a  meza  as 
viandas;  serviram  primeiro  uma  sopa  de  ninhos  de 
salangana  ( f)  em  palanganas  de  porcelana  ;  depois 
vieram  fricassés  de  rãs,  costeletas  du  cão,  barbatanas 
do  tubarão,  as  hololhtirias  ou  bichos  do  mar,  grossos, 
negros,  com  seis  pollegadas  de  comprimento,  e  ar- 
mados d'um  corno  agudo  em  cada  aniiel  ;  e  iPalii  o» 
ovos,  as  carnes,  as  hortaliças,  tudo  temperado  com 
óleo  de  ricino,  e  adubado  com  lagartas  salgadas,  e 
molho  de  bichos  de  conta,  lliiando  os  convidados 
queriam  biber,  os  creados,  que  estavam  de  pé  por 
detraz  das  cadeiras,  lhes  deitavam,  contorme  o  gosto 
de  cadaum,  chá  em  cliavenas  de  porcelana,  ou  ca/n- 
chou  em  taças  de  metal. 

Tiraram  depois  os  pratos,  e  trouxeram  na  segun- 
da coberta  massas,  saladas  irolhos  de  bambus,  e  gar- 
rafas com  uma  certa  agua  fedorenta. 

Veio  a  final  o  dessér,  composto  de  conservas  e  fruc- 
tas  deliciosas. 

Os  lettrados,  (|Uo  o  jantar  aquecera,  começaram  a 
desafiar  se  para  um  (Pestes  certames  poéticos  em  que 
o  vencido  é  condemnado  a  beber  o  numero  de  la绫 
decn;)i  <7/i>u  marcado  pelo  seu  adversário.  .Mandou 
\onhi  buscar  paus  de  tincta,  o  fiincel,  e  p.ifiel,  e 
saíu-«e  cailaum  i mu  o  seu  improxiso. 

O  primeiro  lettlado,  que  da  janella  via  o  campo 
illuminudu  pelu  sol  quasi  nu  uccusu,  i>screveu  : 

(1)     Ohrns  iiijii  esljlo  é  um  meiu  terinu  entro  u  (|os  li- 
vros e  a  líiiKUaKeiii  ipie  se  falia, 
(-i)     CiilliT^iioiroIn^iscliiii^is  eni  ISO-OOO  volumes. 
(;))     I.iqiiiilo  lirailii  (1'iiiiia  fava, 
(-1)    lliruiulu  escutcnia  ou  auduiíulia  sahntfan*. 


88 


O    PANORAaiA. 


"Os  dias  que  passaram,  carrancudos  e  chuvosos, 
avivam  o  lustre  dos  campos  cultivados  pelas  mãos 
dos  homens. 

"Os  passares,  semelhantes  a  ruViis  e  ameth^stas, 
voam  por  entre  as  folhas  «lo  arvoredo. 

iiAl"uma9  borholetas  adejam  ainda  sobre  as  cristas 
dos  pecegueiros  sacudidos  [)elo  vento. 

iià relva  parece  esmaltada  como  um  tapete  borda- 
do por  mão  hábil. 

tilSanquete  delicioso!  risonho  aspecto!  suaves  aro- 
mas ! 

"E  doce  o  viver  entre  amigos,  quando  o  céu  res- 
plandece como  um  docel  <Je  seda." 

Depois  de  liilos  e  apphiudidos  estes  versos,  mostrou 
os  seus  o  segundo  letlrado. 

uTraiisjilaiita  o  lavrador  o  arroz  ainda  mui  tenro 
para  terreno  de  no\o  roteado. 

"Vê  em  breve  no  campo  vi<;oso  e  coberto  d"agua 
a  imagem  d'um  lindo  céu  azulado. 

"O  nosso  coração  é  o  campo  \  loução  eriço  quando 
as  paixões  são  puras  e  regradas. 

"O  único  nieii)  de  chegar  a  este  grau  de  perfeição 
é  não  presumir  muito  de  si  " 

Estes  versos  pareceram  ainda  melhores  que  os  pri- 
meiros, mas  o  terceiro  letlrado,  que,  como  ElVendon 
soubera  pelo  jantar  adiante,  era  viuvo  de  poucos 
dias,  leu  o  improviso  seguinte: 

"O  famoso  Ou,  n'um  transporte  de  ciúme,  mata 
a  mulher:  brutalidade. 

"O  iiiustre  Sium  quasi  que  morre  de  pena  por  llie 
morrer  a  sua  :.  asneira; 

jiO  philosopho  Tchouang  diverte-se  com  a  mali- 
nada  dos  picheis  e  das  taças ;  abraça  o  partido  da 
liberdade  e  passa  vida  folgasã. 

E  o  meu  mestre.  !\Iorreu-me  minha  mulher,  pe- 
guemos no  leque  para  lhe  seccar  muito  depressa  o 
jazigo.» 

Foram  recebidos  estes  versos  com  grandes  garga- 
lhadas e  applaiisosi  unanimcnionte  se  lhes  adjudicou 
o  premio,  e  ca<laum  dos  outros  <lois  ieltrados  foisen- 
tenceado  a  bebpr  dez  chávenas  de  vinho  quente 

Cumprida  a  sentença,  Yuu  hi,  que  queria  tractar 
os  seus  convidados  com  toila  a  magnilicencia  china, 
levou-us  a  uma  varanda  que  dava  para  o  pateo  prin- 
cipal, illuminado  por  lanternas  de  papel  de  cores, 
liogo,  a  um  signal  dado.  rompeu  um  fogo  de  vistas 
em  tudo  o  nateo,  figurando  alternati"amente  arvo- 
res de  cliainrna  carrei;adas  de  IVuctos  de  todas  as  co- 
res, canteiros  esmaltados  do  ilòres,  e  cobras  mui  com- 
pridas que  saltavam  até  a  cinialhu  da  casa. 

Acabado  o  fogo  de  vistas  vieram  pelotiqueiros  de 
maravilhosa  destreza,  e  por  fim  unscomediantes,  que 
representaram  uma  das  peças  mais  celebres  do  seu 
repertório  improvisado.  Como  porém  lhes  faltassem 
o  espaço  e  as  vistas,  tinham  o  cuidado  de  annunciar 
cada  mutação,  dizendo  : 

—  Agora  o  thentru  representa  um  bosque,  ou  um 
palácio,  ou  um  cárcere  (»). 

Guando  algum  actor  tinha  de  ir  vi.ijar,  nem  por 
isso  saía  da  seena.  Montava  a  eavallo  n'uma  benga- 
la, dava  três  voltas  á  roda  d»  Iheatro,  parava,  e  di- 
ziu  : — Ciieguei  ao  firmo  da  minha  jornaila.  —  E 
continuava  u  representar  como  se  na  \erdade  tivesse 
feito  a  tal  jornada. 

Eflendiin  gostava  d"esla  qualidade  de  espectaculcs 


(»)  Na»  fjraniies  cidades  dn  Cliina  clieg.i  a  baver  seis 
iheal rosem  caila  rua.  Oses|icclailoresseiiinm-secm  bancos, 
e  leeui  dianlf  de  si  innas  |i<'i|iieiias  mesas,  niide  luuianiclitl, 
com  \\m»  In/,  para  os  (|iii'  luiuani.  As  ri'|iresenla\'ões  sORUeni- 
se  desde  pela  in.iiili&  ale  a  noile.  Os  papeis  das  niullieres  são 
feitos  por  bomeiís. 


apesar  de  os  ter  visto  muita  vez.  Ficou  até  acabar  a 
peça,  e  quando  saiu  de  casa  do  hanista  já  a  noite  ia 
muito  adiantada. 

[Continua.) 


Precauções    p.vra  mÉchar  os  toseis. 

Todos  sabem  como  e  para  que  fim  se  faz  esta  opera- 
ção, muito  fácil  quando  o  tonel  se  despeja  por  uma 
só  vez,  e  no  mesmo  dia  em  que  se  lhe  dá  a  mecha. 
Mas  quando  se  mécham  toneis  despejados  por  veies, 
ou  passada  mais  de  uma  semana,  acontece  que  o  ar 
de  fora  entra  no  tonel,  decompõe  as  borras  e  os  restos 
de  vinho,  produz  absorpção  do  oxigénio,  e  enche  a  va- 
silha de  gaz  acido  carbónico:  não  porque  os  restos  do 
vinho  tenham  azedado,  como  se  diz,  mas  porque  o 
gaz  carbónico  é  impróprio  para  a  combustão,  a  me- 
cha apaga-se.  Para  vencer  este  obstáculo  enxagua-se 
a  vasilha,  e  deixa-se  a  escorrer  por  doze  ou  vinte  e 
quatro  horas,  cora  o  batoque  destapado  e\jradopara 
o  chão.  O  gaz  carbónico,  por  ser  muito  pesado,  vai 
saindo  e  cedendo  o  seu  logar  ao  ar  atmoçpherico.  O 
espaço  de  vinte  e  quatro  horas  é  pouco ;  é  preciso  ás 
vezes  deixar  passar  três  dias  antes  de  dar  a  mecha, 
principalmente  se  as  vasilhas  tiveram  vinho  generoso. 
Convém  enxofra-las  todos  os  annos;  com  muito  mais 
razão  as  que  lião  de  ficar  vasias. 


Preservativos  contra  os  ladroe*. 

Um  advogado,  que  depois  foi  deputado  ás  cortes  na 
França  no  tempo  da  restauração,  quando  era  moço 
foi  chamado  para  defender  rx  cfficio  três  homens  ae- 
cusados  de  roubo;  e  de  <al  modo  se  buuve  que  conse- 
guiu Salva-los. 

Passado  algum  tempo,  quando  já  senão  lembrava 
de  tal,  viu  em  casa  os  seus  três  cliente';,  osquaeslhe 
declararam  que,  por  não  terem  dinheiro  comque  lhe 
provassem  o  seu  agradecimento,  queriam  dar-lheum 
bom  conselho;  purque  ouro  é  o  que  ouro  vale. 

"Senhor  doutor,  se  quer  afugentar  os  ladrões  da 
sua  casa  <le  campo,  duse  em  tom  peiaroso  o  orador 
da  quadrilha,  lenha  um  cãosinho  e  uma  lamparina, 
e  esteja  rlescançarii)  que  nenhum  ladrão,  que  nãofòr 
de  portas  a  dentro,  se  atreve  a  pòr-lhe  os  pesem  ca- 
sa. Um  quarto  que  tem  lut  de  noite  lança  o  ladrão 
na  Incerteza;  a  regra  em  tal  caso  é  não  irlá.Cluan- 
to  aos  cãesinlios,  mel  tem  mais  medo  aos  ladroes  do 
que  os  cães  grandes,  porque  ladram  sem  p.iusi,  e  por- 
que se  mettem  por  baixo  dos  trastes,  e  não  se  podem 
agarrar.  (1  cão  jrande  afira-se  ao  homem,  e  pôde  ser 
morto  na  lucta.  Demais,  o  caniarrão  do  pateo  fai-se 
mais  depressa  á  mão  com  um  pedaço  de  carne  ou  al- 
gum osso,  do  que  o  cãosito  costumado  a  comer  liem, 
e  a  receber  a  r.íçãodasniãosd'«lguma  pe»soadc  casa," 

O  advogado  fic"ou  muito  obrigado  aos  seus  pobres 
clientes,  que,  para  o  obsequiarem,  trahiam  o  segre- 
do da  honrada.  aniigM,  e  niimrrosa  corporação  dos  la- 
drões. Ensinou  a  receita  «os  muilus  amigos  que  ti- 
nha ;  usou  dVlla  toda  a  sua  \iila,  e  deii-se  bem,  as- 
sim como  os  amigos  que  a  adoptaram,  i-iuaiido  che- 
gou a  ser  ma!;istrado  teve  muitas  occasiões  de  verifi- 
car a  eflicacia  do  remédio  que  lhe  haviam  ensinado 
na  sua  mocidade. 


NiMA  escrevais  po~<nido  de  eholf  ra.  Lm  dicto  fere 
ás  \c7es  mais  do  que  um  punhal  :  como  ferirão  os  bi- 
cos d^umn  pciinn .' 


12 


O  PANORAMA. 


89 


A  PONT.V 

A  1'KoviNtiA  lio  llio  de  Janeiro  é  uma  iliis  iikiÍs  im- 
purtuiitcH  do  diUliid»  iiii|ierio  Liasíiiunse,  não  lauto 
pur  cuiiipreliuiidcr  a  capiUil,  bella,  ^opulo^a,  e  };raii- 
deinenlc  cuiiiiiiercial,  coiiui  pula  sua  vaatajusa^iiua- 
{;ão  ri-lativaiiiuulu  ás  uutras  parte»  do  l'^«tado,  o  pe- 
los heuH  proprioii  cabijndaiitc»  recurtos.  ilaz  euU^*  ^1 
e  24"  de  latitude  meridional,  e  enlre  43  (i4iS  de  lon- 
gitude uecidental  pelo  nieiidiano  de  l'arii.  Teu)  por 
limite!)  du  parte  dii  norte,  a  C(init'ç;ar  da  eosta  muri- 
tinia,  o  rio  (.'aliapuana  («)  i|ue  a  separa  da  pruvin- 
cia  do  Kspirilo  Santo,  o  rio  l'araliiba  c  seus  ai- 
tluenteíi^  e  a  si^rra  da  iManli(|ueira,  uulro:i  tantos 
pontoa  ijue  lanibeia  a  separam  da  província  de  Mi- 
iiat-Ueraea  :,  da  parte  d<r  oesle  u  sudoeste  confronta 
com  a  província  de  S.  l'aulo  desde  a  dieta  serra  tia 
Mantiijucira  até  a  ponta  <le  Cairii<,'U,  que  finece  no 
Oceano,  da  banda  do  sul  ^  do  li-sle  é  cercada  de  mar 
por  e>pa(,'o  de  uman  cento  e  vinte  le);uai,  contandu- 
se  trinta  e  cinco  entre  a  costa  e  a  pro\  incia  de.Mi- 
nas-UiTnP!!. 

Avaliane  a  siiperlUie  da  província  ilo  llio  de  Ja- 
neiro em  sela  mil  e  dcuenlas  b-i:nas  nuadradiis:  em 
e  montnuni,  exceptuando  o  terreno  ijuedeuu»- 
ru  atr.ii  do  Cabo  de:  S.  'Tlionn',  e  «jul- na  esla(;àoda» 
cliuvas  e  alagado  d<i»  afluas  reprizadas  pilui  inedõe» 
dv  areias  ijue  as  ondas  anuniltiam,  e  desra2eni  iitves 
te»,  iiendo  poiíiu   mistiT  <|ne  os    liabitunli!«  a*    nniia 

(•)  Anula  no  anuo  de  IHKi  iiileM.ivatnas  margens d'es- 
te  rio  <is  iinluis  liotocuilds,  ipie  ileuius  nn  c"<(;iui|ki  mi  t  .*  st>- 
rie  d'csl«  Jurnal  j  porciu  jll  em  lK;2Use  polliiarain  niaísp 
£e  luniaiunitriíciareis. 

\'0L,   l. I\o\t»IUKO   il,    1810. 


DO  Caju. 

(Fellas  cortem  vailas  para  o  eícoomento'!  ftffs  lago:»! 
d'estas  torras  brejosas  l>a  grandíssima  copin  de  aves' 
palustre*  de  mui  diversas  cores  e  de  lodos  os  t  ^n-ui-' 
nlltis.  Ni»  estação  chuvosa  o  viandante  vf'-seatalliado, 
o»rt  pclti  violência  da  corr«tito  dos  rios,  ora  pf  la«  aguaS' 
eiielnirfadaj  na  estrada,  e  lein  dnsesinir  jornada  em 
canil»»,  levando  arreatadas  ns  cavaleaduras,  sis  i''eze» 
a  nado.  I'udera  e\iliirse  ef.to  s;ravo  iueon-ycnientese' 
as  auetorid.iiles  lofaes,  por  via  de  derrama   entra  os 

I  povos^  ou  por  outro  meio   habilitadas,    <-nrassem    de 
abrir  valias,  e  eurninhos  allos  nos  lugares  alas;adii,o«, 
com  pontes  nos  sitios  em  que    precisa»    fossem,    Irac-' 
tanilo  posteriormente  da  reparação  econservíiçilo  das 

,  estradas  ^  assim  alo.inc;ar-se-liia  não  só  (;rande  benefi- 
cio para  o  transito  como  para  a  aiiricnlltira  pela  ac- 
•|UÍsi(,'ão  de  óptimos  terrenos,  e  lambem  paru  a  saú- 
de diis  babitantes,  (|ue  pailecem  nuiilo  cuii)  as  lebres 
periódicas. 

Deixando  as  la^iVis  visinluis  aiv  mar,  é  Ioda  a  pro- 
víncia bcin  cortada  de  a<;oas  ,  ao  norte  a  rega  o  l'a- 
ralillja,  para  o  (piai  coMÍloein  os  rios  Crande,  líosa- 
ralii,  l'a(jue(|iierH,  1'iabanlia,  e  l'iralii,  lodos  parjt 
além  de»  montes  e  serra  dos  Or;»fios  ;  ao  sul  d\'slii 
serra  u  da  dos  .Vymorés  teem  seci  eiirso  os  rios  iM«ca- 
lui,  lie  S.  João,    ÍNIaeabé,  iMaeacn,  I'.;oiii;ú,  e  (iuaiulil, 

j  (]ue  somiem  dilleriMiti-s  rumo«,  sem   lidlar  em    oulrns 

j  muitos,  imiios  lopiosos,  ipie  toda\ia  servem  dentei» 
vias  lie  C(unniiinieat,'ão  para  o  Ir.insporte  dos  i;eiieri'« 
do  sei  tão. 

lis  portos  da  cid.ide  de  l'abo  l''rio,  do  Uio  deju- 
nciro,   ed'An|jru  doj  lieis  são  os  «pie  toem capwcidu- 


90 


O  PANORAMA. 


de  para  grandes  vasos  de  guerra^  nos  outros  da  mias- 
ma costa  só  entram  barcos,  e  são  os  princip.ies  Arma- 
ção, Barra  deS.  João,  Guaríitil)a,  iMacaliée  Parati. 
A  maior  parte  das  illias  das  bahias  e  próximas  á  cos- 
ia são  povoadas  e  cultivadas. 

Q,uanto  á  [larte  mineralógica,  é  bem  escaco  o  ou- 
ro iiVsta  província,  [)orém  ha  minas  de  ferro  c  de 
ciixolVe  ainda  por  lavrar,  e  por  toda  a  parte  pedrei- 
ras de  granito',  varias  espécies  de  barros  que  te  em- 
pregam na  feitura  de  louea  ordinária,  tijolos  e  te- 
lhas ^  ii'algumas  serras  acha  se  também  o  kaotin  de 
que  os  chinas  fabricam  a  sua  meliior  porcelana.  Mal- 
tas vastíssimas  ministram  cxcellcntes  madeiras  de  car- 
pintaria, a  saber,  cedro,  caiiella,  merindiba  e  caixe- 
ta ;  o  jacarandá,  vinliatico,  arariba  e  outras  sern-m 
para  moveis  pela  belleza  da  cír  e  facilidade  cora  que 
tomam  polimento:  fa2em-.se  canoas  do  lodosos  tama- 
nhos com  o  páu  d'oleu,  arvore  que  cresce  extraordi- 
nariamente. A  ipecacuanha  e  a  jalapa  brotam  espon- 
tâneas na  orla  das  maltas  abundantes  de  lenhos,  que 
vertem  gompias  e  baLsanios  mui  prestadios  e  procura- 
dos. O  páu-^>rasil  ou  ibirapitanga  é  inferior  ao  das 
províncias  do  norte.  Nas  terras  incultas  visinhas  ao 
mar  acham-se  três  espécies  de  aroeira,  que  servem 
hos  pescadores  para  tingir  as  redes,  que  assim  se  tor- 
nam mais  duradouras. 

A  província  do  llio  de  Janeiro  é  entre  todas  as  do 
Drasil  a  melhor  cultivada.  O3  plantios  de  café  são 
inuitos  e  grandes,  e  de  boa  qualidade  o  seu  produe- 
to,  encontrando-se  por  toda  a  parte,  bem  como  os  ba- 
iianaes  e  palmares,  laranjaesc  mangueiraes,  eoutras 
arvores  que,  trazidas  das  índias  orientaes,  se  aclima- 
taram, como  aconteceu  aos  pecegueiros  e  marmelei- 
ros da  Europa.  Das  arvores  fructiferas  indígenas  umas 
requerem  terreno  forte,  como  asjabulicabeirus,  gru- 
niixameiras  ,•  outras,  como  os  cajueiros,  se  dão  mui- 
to bem  nos  arneiros  \  algumas  em  toda  a  parte  me- 
dram sem  precisão  de  amanho,  como  os  ararazei- 
ros  e  goyabeii.li.  Antes  da  chegada  do  Sr,  D.  João 
VI  ao  Brasil  não  se  cultivavam  nas  hortas  senão  fei- 
jões, couves  e  nabos  ;  porém  a  afiluencia  dos  estran- 
geiros introduziu  o  uso  de  todas  as  hortaliças  de  que 
os  ir.ercados  se  acham  bem  próvidos.  Nas  matlasdas 
parles  da  província  que  se  acham  povoadas  críam-se 
cabritos  niontenes,  pacas  e  outra  caça;  nas  do  sertão 
vagueam  onças,  jagtiaios,  galos  bravos,  gambás  ou 
ssrihoés,  tatus,  e  outros  aliimaes  próprios  d.i  Ameri- 
ca. l>or  toda  a  parte  tem  multiplicado  prodigiosa- 
mente o  gado  vaccum,  cavallar  e  muar,  originário 
du  Kuropa. 

Segu.ndo  o  arrolainenio  de  18-'f0a  população  da  pro- 
vjncia  era  de  430000  habitantes,  contando  2á  ÍSÕO 
escravos  de  ambos  os  sexos;  o  total  será  (iOOOOO, 
ajunclando-se-lhos  170000  almas  da  povoação  da  ci- 
dade e  arrabaldes,  distribuída  du  soguintc  maneira  : 
—  brasileiros  por  nascimento  ou  adopção  6OO0O,  es- 
trangeiros dl!  diversas  nações  2Ò000,  escravos  de  to- 
da a  còr  e  sexo  -SoOOO. 

No  anno  de  IS 'ti  exportou  a  praça  do  Uío  de  Ja- 
neiro 10:i8  3()t>  sacoas  de  café  de  cinco  arrobas,  lOilio 
caixas  de  assucar,  \~  i  ti  Í8  couros. —  Noaniiolinan- 
eeiro  de  )t>42a  1S'(3  saíram  4804813  arrobas  de 
café  da  colheita  da  província,  e  10:29  732  arrobas 
vindas  das  províncias  de  S.  l'aulo  o  iMínas-Geraes, 
que  fazem  a  totalidade  de  1  ItiG  ilOi)  saceas  decafé  de 
cinco  arrobas.  Sigundo  o^  documentos  ofliciaes  publi- 
cados em  18i3  ha  na  cídadedo  Uiu  de  Janeiro  4  734 
casas  de  commercio  de  dilVerontes  géneros;  7  Iwlgas, 
95  inglezas,  328  fraucezas,  o  o  restante  pertencentes 
a  portuguezes,  que  especialmente  se  occupam  do  com- 
luercio  de  ferragens,  quinquclherias,  mercearia,  e  ven- 
dem juiictamente  por  miúdo  aguardente,  vinho,  siei> 


te,  manteiga,  especiarias,  conservas,  carne  secca  e 
outros  comestíveis. 

Tirámos  o  presente  artigo  de  uni.i  bem  redigida 
obra  recem-publicada  em  Paris  (18io],  compilada  so- 
bre 03  manuscríptos  de  Mr.  Míllíet  lie  St.  Adolpbe 
pelo  Sr.  Dr.  Ijopes  de  Moura  :  o  auctor  originário 
residiu  no  Brasil  vinte  e  seis  annos,  percorrendo-o 
em  variadas  direcções. 

A  nossa  estampa  representa  um  sitiodas  visinhan- 
ças  do  llio  de  Janeiro  —  a  ponta  do  Cajií.  Este  pon- 
tal arenuso,  e  sobremaneira  saliente  na  bakíaNítbe- 
róhi,  fica  a  uma  légua  ao  noroeste  da  cidade.  Ahise 
vê  um  palácio  imperial,  notável  pela  simplicidade  da 
archilcctura  e  pelos  soberbos  jardins  plantados  em 
chão  árido.  I)'este  local  se  espraia  a  vista  pelabahía 
e  montes  circumdantes,  e  por  muitas  casas  de  recreio, 
vivendas  agradáveis  na  boa  estaçiin  por  causa  da  vi- 
ração do  mar,  que  refresca  a  intensidade  do  calor 
diurno,  e  da  viração  ou  briía  da  tarde,  que  de  ordi- 
nário reina  todas  as  noites. 


AnTE      ANTIGA. 

(Continuado  de  pag.  81.) 

Entuanoo  no  interior  das  igrejas  é  que  se  observa 
na  disposição  particular,  e  em  todo  o  plano  d'ellas, 
o  symbolo  a  revclar-se  em  toda  a  sua  magestade.  Os 
archiíeclos  da  meia  idade  imitavam  a  estructura  das 
primeiras  basílicas,  sem  se  deterem  com  a  sua  ori- 
gem pagã.  No  século  XIII,  sobre  tudo,  exprimem 
com  individuação  e  clareza  a  historia  e  o  fim  do 
christianísmo. 

A  figura  em  cruz  de  todos  os  monumentos  religio- 
sos é  para  recordar  a  morte  do  fundador  da  nova  re- 
ligião, que  escreveu  com  o  sangue  do  martyri  •,  DO 
coração  dos  povos,  a  sua  doutrina  sublime.  A  entra- 
da principal  dos  fieis  na  igreja  fazia-se  pelo  grande 
portal,  pelo /it-  </a  cr»;.  Nãosígníficará  isto,  que  pe- 
ias trabalhosas  missões,  pelo  «elo  incansável,  se  der- 
ramou o  Evangelho  entre  as  nações?  A  nave  repre- 
senta a  congregação  dos  fieis.  A  intersecção  do  choro 
e  da  nave,  aonde  se  ersiie  o  altar  mor.  é  o  logar 
sanctissimo,  em  que  o  sacrificio  se  consumma.  Ksfe 
logar  sagrado,  aonde  se  deposita  o  que  os  christão» 
adoram  mais  reverentemente,  coros  o  um»  cupola, 
imagem  do  empvrco :  umas  vezes  redonda,  outra» 
cortada  em  pannos.  Debaixo  á.i  cupola  está  o  púlpi- 
to, d\)nde  o  sacerdote  falia  «  palavra  de  Deus,  c  ex- 
plica a  lei  moral.  No  da  direita  liam  se  ot  Evange- 
lhos, no  da  esquerda  commrniavam-se  as  Epistolas. 

O  choro  situado  para  o  levante,  no  sitio  mais  emi- 
nente da  igreja,  é  o  symbolo  da  sanctidade  e  da  loi 
do  ENpirilo  Sancto.  Primitivamente  só  trcs  jnnellas 
se  rascavam  para  o  allumiar.  Alii,  nns  cadeiras  eí- 
culpidas,  assistiam  ao5  oflicios  os  icclesiaslicos,  con- 
servadores das  cousas  sagradas,  e  os  magistrados,  re- 
presentantes do  estado  cítíI.  Tndo  isto  significava  a. 
união  da  vontade  calholíca,  uma  c  universal,  e  a 
fortaleza  do  christi:inísmo. 

As  capellas  collnteracs  d.is  naves,  e  as  que  se 
abriam  em  volta  do  choro  resplandeciam  umn  como 
auréola  sobre  a  cabeça  de  Christo,  representando  o 
ciilto  dos  niartvres  da  fé.  e  o  das  communidades  e 
povos.  As  naves  eram  o  logar  de  reunião  assígnado 
a  todas  as  gentes  da  terra.  Kstas  divcrs.is  partes,  no 
todo,  significavam  a  igreja  niililantc. 

Por  dcluii:(u  d'ella  cavavani-se  tenebrosos  subttr- 

raneos -,  existia  uma  segunda  igreja  abobadada  ;  etsa 

compunha  o  symbolo  da  igreja  aftlicta.  Nas  gallerias 

superiores,  nas  tribunas  do   choro,   e   algumas   veies 


o  PAiNORAMA. 


§« 


CIO  capcilas  feitas  Mos  campanários  celebrava-se  o  cul- 
to do«  anjos.  Era  o  symbolo  tia  igreja  triumpbante. 

Ornamenia^ão. 

As  (Iguras  que  se  enlaçavam  pliantasticas  nas  vol- 
tas dos  arcos,  nos  capiteis  dus  roluinnellos,  e  rio  ar- 
queamentn  das  portas,  esja  iiiiiuineravel  serie  dpgri- 
pbus,  arabescos  e  arcliaiijos,  não  er.im  formas  inven- 
tadas ao  acaso  pelo  capricho  do  artista.  Ijigavam-se 
ao  pensamento  da  epucba,  e  á  idéa  de  quem  deli- 
neada os  admiráveis  bymnos  de  pedra,  chamados  ca- 
thedraes.  Kin  umas  eram  a  traJncjão  do  mysterio 
em  allusões  palpáveis  j  n'outras  exprimiam  a  resis- 
tência popular  á  violência  civil,  ou  ao  predomínio 
sacerdotal,  lim  muitas  os  terrores  da  eternidade, e o 
desespero  moral  vestiam  as  suas  apprehenjõysde  cor- 
pos horríveis,  truncados,  e  medonhos,  como  os  criava 
a  imapina(,'ão  atribulada  das  na^'ues.  Olivrode  már- 
more dava  a  forn)ula  —  a  sociedade,  para  a  qual  se 
abria,  possuía  o  segredo  de  a  resolver. 

As  parochías,  quasi  nullas  no  século  XII,  apgiare- 
cem  rudes  e  singelas  como  os  habilantes  ruraes.que 
o  tino  chamava  á  oraçfio.  No  século  XIII  a  reacção 
começa  ;  as  ordens  niendic  iiites  crescem,  e  levando 
erguida  a  cru?,  da  penitencia,  e  trazendo  sempre  vi- 
va em  si  a  imagem  da  primitiva  pobreia  e  humilda- 
de do  apostolado,  disputam  aos  opulentos  benediclí- 
iios  e  bernardos  o  império,  de  qu<!  já  principiavam  a 
abusar,  li,  no  tempo  da  epopéada  Idade  media  que 
O  archileclo  e  o  esculplor  lavram  lambem  a  sua  epo- 
péa  na  face  das  cathedraes;  o  cinzel  responde  ao  tro- 
vador. Cada  andar  de  mármore  encerra  um  canto-, 
cada  figura  repete  um  verso.  Nos  porlaes  lavrados, 
que  reíguarduni  o  sanctuarlo,  os  que  passam,  ao  le- 
vantar u4  olhos,  encontram  um  episodio  adiniravtl, 
e  param  para  o  estud.ir.  A  poesia  mund.ina  rima 
cm  canções  d'anior  as  bellezas  d.i  gaia-sciencia,  os 
soláus,  as  chácaras,  as  cantigas  populares,  que  se  di- 
zem ao  pé  da  lareira  na  inginua  melopéa  do  povo. 
O»  niunumenlos  escrevem  com  o  escopro  a  epopéa 
religiosa,  a  creação,  o  verbo  dVspirraiiça,  n  alliança 
antiga,  renovada  pelo  saiig'ie  do  Justo  nas  raizesdo 
Golgotha.  São  os  prophelas,  são  os  martyres,  ca  vir- 
tude triíimphante,  dobrando  o  vicio  escravo  aos  pés 
do  arrependinicnlu  e  da  fé. 

O  século  XII  cie  e  sente:,  mas  é  uma  crença  aus- 
tera—  é  um  sentir  áspero.  ^  iu  KarI  o  (irande  e 
Frederico  Karbaròxa,  heroes  gigantes  e  autocratas, 
como  os  reis  de  Judá,  resplandecerem  com  severa  e 
lerri\tl  magi.'slade.  Deus  era  para  clles  oanIigoJe 
hovah.  assentado  n\im  llirono  ilo  nu\cns,  fulgindo 
lhe  na  fronte  a  corda  de  fogo  dos  relâmpagos,  fulmi- 
nando pela  voi  dos  Iroviles  os  oriínesde  uma  geração 
de  poderosos  oppres>ores  e  corrompidos.  —  l'or  i^.«o 
em  toda  a  parle,  nos  poemas  e  n;if  escnlptiiras,  pre- 
domina n  copia  das  passagens  do  Testamento  velho. 
Depoiíi  siiavisaram-se  eslas  id(-as  lugolires.  (^hrislo, 
pela  sua  natureza,  prometlia  rccoiieiliar  os  homens 
com  <i  céu.  A  misericórdia  estendeu  o  braço  para 
consolar  ns  diires,  com  que  a  duvida  e  o  temor  pun- 
giam o  peito  dos  criMiles.  A  Virgem,  ineiga  eterna 
como  o  amor,  era  a  luz  da  esperança,  cpie  illumina- 
va  MS  Ireia»  de  um  futuro  carregado,  (iuaiulo  o  sé- 
culo XIII  rompia  com  a  tremenda  ameaça  do  fim 
do  miiiKlo,  mÍ  Klla,  a  INMi  do  Kilho  de  Deus,  incx- 
gotnvcl  na  bondade  e  na  doçura,  podia  obstar  ao 
castigo,  e  deler  a  espada  da  justiça. 

Então  as  artes  esqueceram  as  figuras  ineilonlins 
apenas  humanas,  que  o  cérebro  desregrado  do  artis- 
ta evocava  da  imaginação  delirante;  figuras  ile  d(\r  e 
pcscspcração.  As  iiléas  purificam  se  pela  promessa  do  ' 


Evangelho,  e  a  victoria  da  esperança  grava-se  na 
architectura,  reproduz-se  nas  bellas  e  animadas  esta- 
tuas dos  sanctos  e  confessores,  como  nas  calhedraes 
de  Paris  e  Strasburgo,  e  penetra  pelos  olhos  e  pelo 
coração  no  aperfeiçoamento  moral  dos  povos. 

D'esta  revolução  nas  crenças  proveio  a  reacção  nas 
artes.  Os  sumptuosos  e  magníficos  portaes  de  Reims 
e  de  Amiens  nasceram  d'ella.  A  variedade,  a  rique- 
'  za,  e  o  numero  dos  ornatos  extasiam.  ^  isfos  de  per- 
to, percebe  se  que  no  seio  do  infinito,  no  meio  da 
cpulencia  de  milhares  de  formas,  a  ordem  anima 
desde  o  mais  simples  até  o  mais  complicado  orna- 
mento. São  palavras,  são  phrascs,  «ão  versos  abertos 
em  mármore.  Da  sé  de  Lisboa  á  Batalha,  e  da  Ba- 
talha a  ISelein  que  disl.mcia  moral  n.^io  vai,  que  re- 
volução no  gosto,  que  progressiva  tran5formação  nas 
idéas  ? 

lia  nos  monurhentos  religiosos,  que  o  passado  nos 
legou,  a  hiitoria  de  civilisações  extinetas.  Os  inno- 
vadores  de  camarlello,  os  cmplastrndores  de  gesso  e 
vermelhão,  não  sabem  que  esses  relc\os  partidos,  es-' 
sas  columnas  Ijrulolmente  assarapinta-biç  de  cal,  es- 
ses capiteis  variado»,  e  os  filetes  bordados  de  figura?, 
enriquecidos  ile  mil  tarjas,  de  que  fazem  marcos  e 
calçadas,  contém  uuii  parte  dos  pergaminhosda  nos- 
sa antiga  nacionalidade.  Fanáticos  de  uma  cousa 
que  não  percebem,  invocam  o  progresso,  cuspindo 
nas  cinzas  de  >evis  avós.  .\s  artes,  os  b.omens,  e  a  ci- 
vilisiição  devem  perdoar  aos  pobres  de  espirito,  por- 
que na  sua  ignorância  não  entenderam  o  que  fize- 
ram. Mas  quem  nos  re5tiliiir.i  o  que  nos  roubaram 
no  seu  entbusiasmo  municipal  os Gracchns da  picare- 
ta, CS  .atilas  das  sés  e  dos  mosteiros?  Pó  nos  resta 
conservar  o  que  nos  deixaram,  e  defende-lo  das  es- 
tações e  dos  vândalos.  O  mais  perdeu-se  irremedia- 
velmente. 


O  Fkitok  de  Cant.vo. 

.\nrc!!a. 

(Continuado  de  pag.  86.) 

M.\RiA,  depois  de  vestir  o  fito  ordinário,  viora  ter 
com  seu  pai  a  sala  ondo  odeixára;  e  eomonãooen- 
conlrasse,  affigurou-s>-lhe  que  ainda  estava  .Tgastado 
e  saíra  para  não  a  vèr. 

Arrazaramse-lhe  os  olhos  de  lagt-imas  só  de  o  ima- 
ginar. Maria  amava  d'alma  a  seu  p:ii,  estremecia-o, 
tinha-lhe  nin  alVocto  implacável,  como  á  única  cria- 
tura com  quem  podia  commuiiicar  pensamentos.  Apar- 
tada dos  mais  homens  por  causa  da  s>ia  enfermid  ide, 
p.ira  ella  o  inundo  cifravuse  em  seu  pai,  em  quem 
coiicentr.ira  toda  a  amizade  qneuina  menina  reparte 
com  a  mãi,  irmãs  ou  compaidieira»  ;  não  podia  pois 
supportar  o  mais  levo  enfido  d'l''Hendon  ;  uma  re- 
prelicnsão  sua,  por  niois  branda  que  fosse^  cauíava- 
Ihe   uma  espécie  de  desesperação. 

Mas  se  ao  principio  a  afiligíra  a  ausência  do  fei- 
tor, em  breve  lhe  despertou  sorioi  cuidado»  a  tardan- 
ça depois  da  hora  <lo  costume;  pori]ue,  comoo  feitor 
se  osqueo^ra  de  lhe  dar  parle  do  convite  deYoii-hi, 
parecia  a  demora  inex()lu'avel.  Chegou  a  hora  lia 
ceia,  o  Kflendoti  semapparecer  !  Mnria  mandou  pro- 
cura-lo aos  dilVerenlcs  escriploriosoiide  elle  tinha  ne- 
gócios ;  em   parle  iilguina  o  virilo  ! 

A  imuginação  da  infeliz  ineninn,  já  nbn1ndn,  co- 
meçou a  desvairar.  Muilo  conlribnia  pura  lh'a  exal- 
tar n  impossibilidade  de  c;'inmunicar  os  seiu  receios, 
de  os  discutir,  e  de  os  ouvir  emitrnrir.r.  Desceu  mui- 
tas vetes  ao  porlo,  e  caminhava  á  l(^;l  procurando  avi- 


92 


O  PANORAIVU. 


da  com  os  olhos  por  enfre  as  turbas  o  seu  idolu,  co- 
mo se  esperasse  encontra-lo  a  cada  volta.  Sobreveio 
a  noite  e  seu   pai  tem  chegar. 

Recolheu-se  a  casa  e  sentou  Se  a  uma  janella  so- 
branceira á  rua.  Alli,  delirnjada,  com  o  coraç.loan- 
<'usliado  e  a  cabeça  a  abrazar-se  lhe,  se  afanava  por 
distinguir  do  borborinlio  a  Ião  conhecida  voz  pater- 
na. Kntroii  finalmente  nm  criado  (]ue  fora  liuscar  no- 
ticias, e  deu-lhe  a  entender  que  tinha  visto  ir  <i  pa- 
lanquim do  feitor  [)ara  os  arralialdei  chinas,  onde  es- 
tava a  casa  de  Yoa-hi. 

Com  esta  noticia  recresceram  os  sustos  de  Maria. 
O  exemplo  recente  d^um  inglcz  que  tinlia  sido  apanha- 
do n'um  d'esses  bairros  escusos,  e  maltracladu  pelos  mo- 
radores chinas,  que  não  o  largaram  sem  receberem 
avultada  sonima  de  dinlieiro,  [irovava,  com  eff.;ito, 
que  taos  excuríões  não  eram  livres  de  perigo.  lim 
quanto  luctava  entre  temores  sem  se  deliberar,  alon- 
gou 05  olhos  machinahnente  para  a  margem  opposla 
do  Ti''re,  e  deu  um  grito.  Cresciam  longas  labare- 
das por  cima  das  casas  do  arraVjaide,  espalhando  uo 
liorisonte  um  clarão  aziago  '. 

A  muda  não  pensou  em  mais  nada  senão  cm  que 
tinha  lá  seu  pai,  exposto,  além  dos  perigos  já  sabi- 
dos, aos  do  incêndio!  Este  receio  acabou  de  a  desa- 
tinar. Correu  fora  de  si  ao  cães,  voou  ás  barcas  de 
passagem,  niaso  povo  pejava  os  embarcadouros,  apon- 
tando para  as  chammas  a  medrar  na  outra  banda,  e 
bradando  soccorro.  Depois  <ie  haver  tentado  cm  vão 
abrir  caminho  até  os  campans,  lembrou-se  Maria 
d'outro  sitio,  mais  para  baixo  e  menos  frequentado, 
onde  estanceavam  barcas.  Livra-se  do  apertão  c  par- 
te ás  carreiras  pela  ribeira  abaixo. 

E  a  noite  escura,  e  o  vento  a  sibilar  lúgubre,  eo 
Tigre  a  bramir  ao  longe.  Na  passagem  só  e->ta\  a  atra- 
cada uma  /oicAa  sem  lanterna.  IMaria  divisou  na  proa 
dois  barqueiros  tártaros  mal  encarados.  Conversavam 
em  voz  baixa.  Uuins  agouros!  IMaria  não  repara-, 
lança-se  na  barca,  e  desata  a  corda  que  a  prendia  á 
praia,  soltando  o  grito  agudo  com  que  ajudava  a  ex- 
pressão dos  gestos.  Os  tártaros  ergueram-se,  c  cimio 
que  se  interrogaram.  iVlaria  vendo-os  irresobitos,  pu- 
xou depressa  pela  bolsa,  tirou  d'ella  uma  moeda  de 
curo,  e  lhes  indicou  a  outra  banda.  (Js olhos  dos  bar- 
queiros faiscaram  ao  vêr  ouro-,  correram  ambos  aos 
remos,  e  o  batel  fez-se  ao  largo. 

A  menina  muda,  de  impaciente,  tinha  ido  para  a 
proa,  e  agujaxa  a  vista  para  distinguir,  nas  trevas 
da  noite,  a  outra  margem  do  rio.  E  a  barca  tão  va- 
garosa, tão  vagarosa!  Até,  por  três  vezes,  lhe  pare- 
ceu parada,  como  se  os  couductores  hesitassem  em  ir 
Avante,  e  ao  voltar-se  os  viu  a  conversar  com  grande 
interesse  em  voz  sumida.  Chegara  emfiui  a  meio-rio  ;, 
a  outra  banda  começava  a  avultar  no  escuro,  c  cila. 
para  assim  dizer,  já  a  alVerrava  com  os  olhos,  quando 
;i  cingiram  dois  braços  vigorosos  I  Voltou-se  dando 
uni  grito-,  mas  quasi  no  mesmo  instante  sentiu  feri- 
rem-lhe  o  peito,  e  caiu  sem  sentidos. 

Eflendon,  como  fica  dicto,  lá  pelo  meiodanoiteé 
que  veio  para  casa,  e  só  quando,  no  outro  dia,  per- 
guntou pc'la  filha  é  que  deu  pela  sua  falta.  Como  os 
criados  não  a  tinham  visto  sair  nenbuma  informação 
puderam  dar.  O  feitor  esi)uadriiibou  tudos  os  recan- 
tos, correu  a  casa  dos  seus  amig>>s,  interrogou  os 
\isiiilios,  e  espalhou  a  criadagem  por  toda  a  cidade 
de  Cantão.  As  primeiras  pesqnijas  foram  inúteis  ; 
mas,  porto  da  noite,  trouxeram-lhe  uns  barqueiro» 
tuna  cravata  com  manchas  de  sangue  achada  no 
Tigre. 

Éffendon  na  cravata  reconheceu  a  firma  de  Maria  ! 
Esfe  lúgubre  indicio  fulminou  o  malatcnturado  pai  ! 
Nem  já  podia  duvidar  ,  morrêrK-lhe  a  filha,  c  n>or- 


rêra-Ilie  assassinada  !  .  .  .  Mas  aonde  ?  por  quem  ?  com 
que  motivo?  Enredava-selheamente  em  supposições 
impossíveis.  Eram  baldadas  as  tregu,.-.  "^.ue,  para  as- 
sim dizer,  dava  á  desesperação  afim  de  imquirir  re- 
miniscência; não  podia  acertar  com  ■>  rumo,  e  do 
meio  da  cerração  um  só  verdade  surgia,  innegavel 
e  terrível:  assassinaram  tua  filha.  ElVeiidon  repetia 
estas  palavras  como  um  louco,  ou  como  um  homem 
que  trabalha  por  despertar  de  sonho  horrendo.  Por 
mais  provas  que  desse  a  si  mesmo  da  certeza  da  per- 
da da  filha,  se  o  entendimento  as  admitt  ia  u  coração 
rejeitava-as.  IVesta  lucta  perpetua  de  um  com  o  ou- 
tro, se  elle  ouvia  fallar  r.a  cacada,  se  sentia  abrir  al- 
guma porta  com  mais  pressa,  vultava-ce  ,  tobresalta- 
do,  com  a  esperança  de  ver   Maria  ' 

l'a5saram  se  dias  e  dias,  e  ella  sem  appareeer.  O 
feitor,  por  fim,  foi  obrigado  a  crer.  .  .  a  crer  que  já 
não  era  pai  1  Esta  certeza  matou-lliea  energia.  Rom- 
peu de  súbito  todas  as  suas  relações,  abandonou  a  di- 
recção da  feitoria  aos  agentes  ii:ferioreí,  e  escreveu 
á  companhia  para  o  mandar  substituir. 

tiuizeram  vêr  os  auiigoa  se  o  confortavam,  ma» 
sem  fructo,  que  ao  feitor  até  aborrecia  e-cuta-los.  Dei- 
tado n'uma  marquuza  diante  do  retrato  de  Maria 
passava  dias  inteiras,  immovel,  olhando  sem  vêr,  e 
ouvindo  sem  responder.  A*quella  actividade  enérgi- 
ca e  curiosa  d'outrora  succedèra  o  torpor  daindiffe- 
rença.  Disséreis  que  a  filha,  ao  desapparecer,  Ibe  le- 
vara comsigo  força  e  vontade;  triste  abatimento  das 
almas  mais  fortes,  quando  as  preenche  um  só  aCfecto 
e  a  desgraça  o  corta  pela  raii. 

Um  dia  que  Eflendon  tinha  ido,  como  quem  vai 
de  rastos,  ajustar  umas  contas  com  o  kong-hang,  o 
que  só  elle  podia  fazer,  ao  passar  pela  porta  defeta 
da  cidade  china,  obrigou-oa  parar  uma  longa  cáfila 
de  camellos,  que  vinham  carregados  de  sal  e  de  car- 
vão. Acabava  o  ultimo  de  entrar  pela  porta,  e  o  fei- 
tor, immovel  qual  estatua,  ficara  a  olhsr  material- 
mente para  as  carroças  de  vela,  equilibradas  n  uma 
só  roda,  para  as  liteiras  levadas  a  braços,  e  para  os 
grandes  carros  empurrados  por  um  só  homem,  que 
transportam  os  viajantes  com  assoas  bagagens,  quan- 
do deu  com  os  olhos  n^uma  sumptuosa  carroça  de 
quatro  rodas,  com  a  caixa  enverniiada,  puxada  por 
cavallos  ricamente  ajaezados.  Dirigia-a  um  cocheiro 
natural  da  Coréa,  como  indicavam  a  largura  da  >ua 
túnica,  o  ch.npéu  cónico  de  bambií  entrançado,  e  as 
botas  d"algodão  acolchoado.  Sobre  as  almofadas  de 
verniz  preto  avultava  o  bastão  de  mandarim  em  re- 
levo dourado,  coroado  d\ima  grinalda  de  jasmins  de 
prata. 

A  carroagem,  que  parara  por  achar  a  rua  empa- 
chada, tornou  a  rodar.  Ao  passar  defronte  de  Eflen- 
don .  .  .  Buliram  Je  repente  as  cortinas  de  seda  e  soou 
um  grito  !  .  . 

O  feitor,  que  ia  a  partir,  voltou-»e  attonilo.  Reco- 
nhecera aqiiella  \oi  que  se  não  confundia  com  ou- 
tra I  .  N'esle  mometilo  corrcram-»e  rapidamente  as 
cortinas  agitadas,  ouviu-se  outro  grito,  eumrostode 
mulher  se  inclinou  para  fora  !  .  .  .   Era  Maria. 

O  americano  estendeu  os  braços  e  qui»  lançar  se  a 
ella  1  .  .  .  mas  a  carroagem  passara  a  porta  china,  e 
oí  cavallos,  achando-»e  em  campo  largo,  metleram 
de  trote.  Eflendon,  fiira  de  si.  a  seguiu  noi  brados; 
alcançava-a  scosguardas  chinas  da  porta  lhe  n?o  im- 
pedissem a  passagem. 

— ..Ê  minha  filha,  vil  gente,  é  minha  filha  !  n ex- 
clamou o  feitor  forcejando  por  soltar-sc. 

— .Para  as  feitorias,  para  as  feitorias,  cão !  n  re- 
plicaram os  soldados  empurrando-o. 

— a  Não,  disse  EiTendon  ali uci nado,  largai-ine  1  .  .  . 
minha  filha  . . .  quero  segui-la  ! " 


o  PANORAMA. 


93 


— u  K  um  doido  ,  »  repetiram  algumas  vezes. 

— uE  deitai»  no  Tigre.» 

— 11  Agarrem-n'o  bem." 

Tinham  comefleito  agarrado  o  feitor,  que  deu  um 
tirro  de  raiva,  e  fez  o  supremo  esforço  ao  vêr  a  car- 
roai'em  próxima  aeiimir-se  navoltad"uma  rua.  Mas 
o  official  manfchdu  que  commaridava  o  poíto  aciba- 
va  de  clief;ar  com  um  rcfi)r<j'0  de  soldados,  que  se  dei- 
taram a  elle,  lançaram- ii'o  por  terra,  e  depois  de  o 
terem  atado  de  pi;s  e  mãos  com  as  cordas  dos  seus 
arcos,  o  puzeram  ás  costas  d'um  burro  e  o  lrou.\eram 
para  as  feitorias  no  meio  dos  insultos  e  apupos  da 
gentalba.  (Continua.) 


Oj  índios  de  Suhinam. 


CoNTiNUANDoa  narração  dos  costumes  dos  índios  de 
Surinam  ou  C-ayonna  liollandezu  (vide  a  pag.  85), 
tractari-mos  de  sexo  masculino.  —  Os  Índios  são  ge- 
ralmente de  caracter  bondoso,  e  tudo  se  alcança  d'cS- 
les  por  via  de  brandura  e  af.igos,  e  principalmente 
pela  dadiva  de  bebidas  espirituosas:,  porém  na  em- 
briaguez são  tão  formidáveis  como  na  cholera,  o  tão 
cruéis  nas  demasias  da  gula  como  na  vingança.  Teem 
as  feições  do  rosto  assaz  agradáveis,  o  que  se  observa 
principalmente  na  gente  moça,  mas  divisa-se-llies 
certo  fundamento  de  melancholia,  que  provém  da 
bruteza  e  do  excesso  das  bebidas,  a  que  se  entregam 
com  furor  quasi  incrÍTel. —  Teem  a  testa  chata  e  re- 
cuada, olhos  pretos  e  de  ordinário  pequenos,  dentes 
mui  bellos,  que  conservam  até  muito  avançada  ida- 
de ■,  nunca  são  atacados  de  escorbuto  e  outras  enler- 
midades  da  bocca,  tão  commun»  na  Kuropa  :  os  ca- 
belloB  feem-n'os  pretos  como  azeviche,  e  só  se  fazem 
brancos  na  extrema  velhice:  serapintam  a  cara  com 
listas  negras  e  encarnadas,  as  primeiras  ieitas  com 
çumo  de  genipapo  c  as  segundas  com  urucú  :  a  sua 
c<1r  estimada,  como  entre  todos  os  demíis  povos  sel- 
vagens, é  o  vermellio,  c  dVdIa  tingem  cabellos,  pes- 
coço, espáduas,  e  ás  vezes  outras  partes  do  corpo  :  a 
quem  os  TÔ  de  certa  distancia  parece  que  estão  cri- 
vados de  golpes  ^  e  alguns  riscam  também  metade 
das  perna»,  o  que  faz  o  elTeito  de  borzeguiiis  (•)  :  a 
natureza  lhes  concedeu  pouca  barba,  e  assim  que  es- 
sa pouca  desponta  é  arrancada  com  pinças  feitas  de 
cascas  de  marisco.  —  Assim  como  as  mulheres  furam 
ai  ventas  e  o  beiço  inferior,  os  homens  fazem  o 
mesmo  ás  orelhas,  trazendo  n^ellas  um  como  alfinete 
de  certo  metal,  que  parece  prata  ou  platina,  )i  (|ue 
elles  affirmam  haver  em  abundância  nas  suas  terras  ; 
comtudo  os  mais  d^elles  trazem  bocados  ilu  páu  ou 
08SUS  de  inimigos.  Uns  cobrem-se  com  chapéus  teci- 
dos de  pennas  de  aves  diversas,  ou  simfdesmentecom 
pennas  de  varias  cAre»,  outros  põem  barreie,  alguns 
cingem  H  cabeça  com  uma  tira  de  pelle  de  onça,  e 
os  mais  dV-lles  andam  de  cabi-ça  Ioda  descoberta.  Ao 
redor  da  cilura  amarram  uma  corda  ou  faxa  de 
cAr  escura,  as  mais  ilas  vezes  vermelha  ,  que  \\m 
serve  pura  pendurar  uma  fa<'a  sem  bainha.  l'assain 
por  entre  pernas  outra  faxa  de  algodão  azul  ou  en- 
carnado, da  largura  di!  meia  vnra,  e  docomprimm- 
to  lie  ipiatro  a  cinco:  as  duas  pontas  ou  cahem  sol- 
tas posterior  ou  anteriormente,  ou  as  arregaçam  sd- 
bre  a»  pernas  ou  sobre  os  hombros  ^  haos  que  tra- 
tem uma  espi-cie  de  dalmalica  ou    capa,    de   <luas   a 

(»)  ICstii  piíituri  dos  gelvaKcns  6  crnvrjaila  ii.i  pelle,  co- 
mo fazem  os  supeisllciosus  da  ICuropa,  <pie  se  ferram  ouni 
signos  salaniues,  c  oulrusi  signatis  sjnibulicos  cyiiua  bruxe- 
dos e  fcilivos. 


três  varas  em  quadro,    que   enrodilham   á   cinta    uh 
traçam  por  cima  do  hombro. 


Nada  ha  tão  cómico  para  quem  não  está  habitua- 
do como  vêr  um  caudilho,  ou  capitão  indio,  vir  ao 
forte  europeu,  ou  a  ((uaiquer.iuclorijale  da  colónia, 
com  seu  casacão  vermelho  agaloiuio,  sem  camiza  nem 
calções,  de  cha|)éu  reilondo  tanilicni  agaloado,  e  em- 
punhando um  bastão  como  usan\  os  tambores  mores: 
toda  a  tribu  o  segue  a  certa  distancia,  e  as  mulheres 
e  rapazes  cerram  a  marcha.  Coninuiuiente  é  um  ve- 
lho, e  sempre  o  mais  liabjl  guerreiro  da  cabiida  ^  faz 
()ue  lhe  obedeçam  ao  primeiro  aceno,  e  os  seus  mais 
leves  dictos  são  tidos  como  oráculos  por  lodosos  seus. 

Teem  por  armas  arcos  feitos  il>!  páu  rijo,  de  ordi- 
nário de  cinco  a  seis  pés  di-  comprido  ^  e  h-aos  me- 
nores :  os  rapazes  os  teem  do  junco  para  se  exercita- 
rem :  as  frechas  são  de  Ire^  a  Ires  e  meio  pés,  c  tam- 
beni  são  de  junco  ou  de  páu  de  palmeira  ■,  a  seis  pol- 
legad.is  da  extreniiilade  as  eul'.'it«m  de  pennas  dc- 
papagaid  ;  as  pontiis  são  de  lerro  ou  de  espinhas,  ar- 
liliciosamenle  tr.dialliadiis  :  outr.is  frechas  lhe  servem 
para  varar  o  peixe  quando  o  descobrem  a  dois  ou 
Ires  pés  do  fundura  iTagu.!  :  us  de  que  usam  contra 
os  inimigos  são  hcrvadas  ciim  o  sueco  da  arvore  man- 
cenilbeira.  Também  se  armauí  de  lanças  ou  dardos, 
(|Uo  arremec\ini  com  grande  dislret»  ;  farem  r  iralia- 
lanas  com  juncos  de  nove  a  dez  pé<,  ca>  frechas  que 
dispar.in»  são  pequena»,  mui  delgadas,  e  involla»  cuk 
algodão,  jogamn"as  a  cen\  e  mais  passo»  ko  tom  o 
impulso  do  siqiro,  o  com  força  bastante  para  matar 
animaes  pei|uenos,  pássaros  ou  quadrupeile».  Teen» 
varias  castas  di-  miisias  de  lenho  duro  e  prelo,  algum 
com  veios  ou  juspcado  ;  uma»  boleadas  c  do  cumpri- 


^4 


O  PANORAMA. 


mento  de  dois  a  três  pés,  outras  chatas,  <|iiasi  da 
forma  de  catana,  e  na  ponta  ornadas  de  plumas : 
também  as  faliricam  quadradas,  e  pouco  mais  ou 
menos  do  dois  palnms. — Todas  estas  armas,  bem 
como  as  fundas  e  as  facas  de  matlo,  tornam-se  mui- 
to sanguinárias  nas  suas  niiios,  sobre  tudo  em  mo- 
mento- do  cholera  ou  quando  acirrados  na  guerra. 
Deade  a  chegada  dos  europeus  é  que  conhecem  o  uso 
da  esp  iigarda,  do  macliado  e  acha  d'armas  e  da  es- 
psda:  atiram  com  a  primeira  á  moda  dos  negros, 
ufoian  lo  a  coronha  no  quadril  direito. 

Uma  aldeia  india  é,  [)i'lo  comnium,  habitada  por 
vinte  a  trinta  pessoas  entre  homens  e  mulheres,  sob 
as  ordens  de  um  caudilho  \  coiistrucn\  as  suas  casas, 
ou  ramadas,  do  modo  mais  económico,  compondo  as 
de  alguns  troncos  bifurcados  e  mettidos  no  chão  :  o 
tecto  é  de  serrafos  de  lenho  de  palmeira,  recamados 
de  follias  de  bambu  e  de  bananeira,  tão  Ijem  concer- 
tadas que  não  as  penetra  a  agua  :  não  teem  [)ortas 
nem  frestas,  e  o  tamanho  é  pioporcional  ao  numero 
de  indiviílnns  que  ha  de  occupa-las  JOm  geral,  os  ín- 
dios não  teem  residências  fixos:  ora  habitam  05  bos- 
ques, ora  á  beira  das  calhetas  ou  dos  rios-,  umas  ve- 
zes se  retiram  para  as  soas  roças,  outras  vezes  aba- 
lam para  as  praias  maritimas.  Quando  intentam 
mudar  de  morada,  escolhem  o  logar,  e  o  aplanam 
para  construir  a  choça.  Feito  isto,  preparam  em  re- 
dor o  chão  para  a  cultura  da  mandioca,  domilbo,  e 
da  bananeira;  porém  nunca  para  mais  do  que  lhe  e 
absolutamente  indispensável  ao  gasto. 

A  caça  e  a  pesca  são  as  occupações  habitiiaes  dos 
Índios,-  as  mulheres  são  obrigadas  a  segui-los  n'estes 
exercícios,  carrei^adas  das  necessárias  provisões  i  e 
além  d'isso  cumprelhes  ir  buscar  a  cai^a  que  os  ma- 
ridos derribam,  e  carrega-la  paia  a  cabana.  \i  um 
dia  (diz  Mr.  litnoit)  uma  india  moça  e  interessante 
que  voltava  da  caça  com  seu  marido;  este  não  trazia 
mais  que  o  arco  e  frechas,  e  aquella  caminhava  apoz 
elleaccurvada  ao  pez-o  de  um  grande  molho  de  ba- 
nanas, de  uma  creança  de  mama,  de  nma  cabaça 
cheia  de  chica  (bebida  fermentada)  e  ao  mesmo  tem- 
po pendia-lhe  de  um  braço  um  cabaz  cheio  de  caça. 

Quando  os  Índios  vão  á  pesca  empregam  as  suas 
pirogas  ou  canoas,  de  nove  a  dez  pés  de  comprimen- 
to e  de  quatro  de  largura,  inteiriças  porque  são  fei- 
tas de  um  só  tronco  de  arvore  excavado  :  as  grandes 
ou  de  guerra  compoem-se  ordinariamente  de  nove 
aprnchas,  junclas  mui  artificiosamente  com  cordoa- 
lha :  algumas  teem  viuie  a  trinta  pés  de  compri- 
mento, V  as  velas  quadradas-,  servem  também  para 
as  excursões  pelo  mar,  ou  á  vila  ou  a  remos  :  irelhis 
conservam  sempre  lume  prompto,  que  as  mulheres 
vigiam  para  não  .se  apagar. —  1'".  do  ordinário  em 
terra  mesmo,  sobre  tudo  nos  bosques,  as  mulheres 
hão  de  ter  sempre  fogueira,  por  duas  razões  ;  ame- 
drontar e  fazer  fuíir  as  feras,  e  dissipar  as  nuvens 
<le  mosquitos  e  outros  insectos,  nimiamente  incom- 
moilos  n^estas  paragens. 

Em  Surinam,  da  mesma  maneira  que  entre  todas 
as  tribus  selvagens,  as  formalidailese  ceremonias  que 
precedem  e  acompanham  os  ca>ainenlos  são  de  uma 
singeleza  primitiva.  Qiiaiulo  o  indio  pretende  tomar 
mulher  principia  por  presentear  a  sua  noiva  com  n 
«.-nllieita  ilas  suas  caças  e  pescas,  ou  al.irdeia  em  sua 
presenç.i  os  trophcus  guerreiros,  se  teve  occasião  de 
eonquistar  os  despojos  ou  o  craneo  de  um  inimigo. 
Se  a  rapariga  acccila  as  dailivas,  é  |)rova  de  que 
consente  em  toma-lo  por  senhor  e  marido  :  equando 
o  seu  noivo  se  recolhe  das  suas  occupações,  traz-lheá 
cabana  o  mimoso  molho  de  pei.xe  ;  e  depois  volla 
para  sua  casa.  lim  breve  se  fixa  o  dia  das  núpcias; 
e  110  entanto  parentes  e  amigos  ajunctam  provimen- 


to de  comidag  e  bebidas  para  o  fesliuisolemne.  Che 
gado  II  dia,  o  mancebo  procura  a  rapariga  na  caba. 
na  da  família,  e  diz  lhe  u  eu  te  escuiht  pur  mulher. n 
liastam  estas  simples  palavras  ;  «lia  o  segue  logo: 
celebra-se  o  banquete,  primeiro  para  os  homens,  por- 
que só  depois  são  admittidas  as  mulheres,  uso  de  tal 
sorte  rigoroso,  que  nem  mesmo  a  receu)-casada  co- 
me n''e9sa  occasião  com  (ieu  marido.  D'ahi  purdian- 
te  começa  a  vida  áspera  e  ttabalhoia  da  ilidia  cuin 
seu  senhor. 

ScPBlISTKjÕES    DOS    .\KA11ES    .\!<TES    DE    .^IAKO.Mâ. 

(Continuado  de  pag.  78.) 

Isaac  e  Ismael  herdaram  o  raio  prnphelico  ;  mas  pa- 
ra os  musulmanos  tem  a  primazia  Ismael,  porque  o 
consideram  pai  da  tribu  de  Mafoma,  e  único  filho  le- 
gitimo. Contam  d'Ismael  o  que  a  Biblia  dizd'Isaac. 
Tractam  pouco  por  miúdo  de  Jacob;  mas  Jusepb,  ou 
Jossoiif  como  pronunciam  os  musulmanos,  gosa  de 
grande  nomeada  no  Oriente.  Mafoma  cunsagrou-lhe 
um  capitulo  inteiro  do  Koran,  e  o  que  d"elle  di(  é 
tão  fora  do  natural,  que  mesmo  alguns  dos  seus  dis- 
cípulos o  tem  por  embuste. 

Sabese  que  Jo:eph  fui  vendido  a  um  e:v  plano 
por  nome  1'utiphar.  Crêem  os  oriciitaes  que  l'uli- 
pliar  era  primeiro  ministro  de  l'haraó ;  affirmam 
que  Josepli  era  formosíssimo,  e  que  nenhuma  mulher 
o  podia  vêr  sem  que  o  amasse.  Mal  o  avistou  a  de 
1'utiphar  ÍJcou  louca  de  amor.  Estava  Josepliapoo- 
to  de  cederlhe  quando  u  sombra  de  seu  pai  o  recon- 
duziu á  estrada  do  dever.  Soou  esta  aventura,  accres- 
eenta  o  Koran,  na  capital  do  Egvplo,  e  todas  as 
damas  se  indignaram  contra  a  fraqueza  da  compa- 
nheira de  Puliphar,  levando  lhe  muito  a  mal  a  bai- 
xeza de  dar  o  coração  a  um  escravo.  A  mulher  da 
rico  egjptano,  querendo  vingar-ic,  convidou  algu- 
mas d'ellas  para  virem  comer  romãs  a  sua  casa.  Es 
tando  todas  á  mesa  fez  apparccer  de  repente  Juseph, 
cuja  belleza  cegou  as  damas  a  tal  ponto  que,  semat- 
tentarem  110  que  faziam,  cortaram  os  dedos  cm  vex 
de  corlanni  as  romãs.  Este  caso,  escreve  ílr.  Rei- 
naud,  aclia-se  re|)resenladú  n'um  bellissimn  manus- 
cripto  persa  da  bihliotheca  real,  o  qual  tracta  da  his- 
toria dos  patriarchas  e  dos  propheta». 

Decorreram  muitos  annos  depois  da  morte  de  Jo- 
scph  sem  apparccer  nenhum  personagem  celebre. 
Moisés  ou  Mus.sa,  segundo  a  orlhographia  oriental, 
foi  quem  Deus  elegeu  para  fazer  lembrados  os  gran- 
des nomes  de  Noé  cd'Abrahão.  Mafoma  cita  muitas 
vezes  .Movsés  no  Koran  -,  como  elle  se  achou  n'uma 
situação  quasi  semelhante  á  d'cste  patriarcha,  cooio 
também  se  viu  obrigado  asair  da  pátria,  e  esta  emi- 
gração lhe  estendeu  o  poder,  agradava-lhe  pôr  em 
scena  o  legislador  dos  hebreus,  e  auclurisar-se  comos 
seus  exemplos.  Na  opinião  dos  orientaes  sabia  alcbi- 
mia  e  loiios  os  segredos  da  natureza  ;  obrou  a  maior 
parte  dos  milagres  com  a  mão,  que  elles  figuram  tão 
alva  como  a  neve,  Ião  brilhante  como  as  eslrellasdo 
firmaineiito.  E  por  isso  quando  querem  f.iUar  d'uni 
homem  poderoso  pelo  dom  da  pala\ra,d  um  medico 
que  fai  curas  maravilhosas,  dizem  que  tem  a  mão 
branca  de  Moisés. 

David  ou  D.ioud,  como  lhe  cliainam  os  povos  do 
Oriente,  não  c  menos  illustre  para  oi  musulmanos 
do  que  |>ara  nós  ;  por  ter  composto  o<  psalmus  o  pu- 
zcram  a  par  de  Movscs,  Jesus,  e  Mafoma.  Livrosd"ou- 
Iros  qu.usqiier  não  05  julgam  inspiratloe.  Os  aralics 
luzem  uma  idéa  Ião  cabiil  da  voz  de  David,  que  Ih» 
atlribuem  o  condão  de  deleitar  o«  pnss.-iros,  amollecer 
o  ferro,  e  aplanar  montanhas,   quando  celebrava  o« 


I 


I 


o  PANORAMA. 


05 


louvorns  de  Deus  toda  a  natureza  vinha  a   acompa- 
iiliar-llie  os  cânticos.  l'aru  provar  a  conjpuiicrSo  com 
que  IJavid  cliorou  o  seu  erro,  escrmem  otniusulma- 
nos  que,  durante  os  quarenta  dias  da  penitencia,  as 
plantas  e  as  iiervas  cresciam  coím  a   abundância    das 
suas  lagrimas.   Além  d^isno,  querendo    exallar-llie    a 
modéstia  e  lhaneza,  faljularani  quf  elle  escrupulisava 
de  gozar  o  fasto  real  ;  e   que  não  sú  fazia  timbre  de 
vestir  uma  túnica  simples  de  lã  branca  nos    dias  so- 
lemnes,  como  a»  dos  proplietas,  mas,  a  exemplo  d'el- 
les  trabalhava  pelo  officio  de  armeiro  e  fabricante  de 
totas  de  malha,  c  do  seu  produelo  se  mantinha.   Cum- 
pre saber  que  osorientaes,    testemunhas    diárias    dos 
abusos  do  despotismo,  inclinam  pouco  a  respeitar  aS 
grandezas    mundanas:    o    .ifamado    Areiíg-iíeb,    que 
reinou  na  índia  ha  mais  (run\  século,  comia  e    ves 
tia  do  que  lhe  rendiam  as  co[)ias  que  tirava  do  Koran. 
Succodeu  a   David  no  throno  e  na    luz    propliotica 
seu  filho  Salomão,  a  quem  os  orientaes  chamam  So- 
linião.   Não  lia  casta  de  maravilhas  qiiR  lhe  não    at- 
tribuani,  e  o  snu  nome    ficuu    sendo    o    emblema    de 
quaulí)  ha  grande  soljre  aterra.   Dizem  osaralies  que 
Salomão  havia  sujeitado  ao  seu  poder  não  só  os    ho- 
mens e  os  nnimaes,  mas  os  j;eiiiose  os  elementos.   ICra 
pio  por  natureza,  e  assíduo  no  orar.    Certo    dia    em 
que  eslava  a  ensinar  os  seus  cavallos,  chegada  a  ho- 
ra da  reza,  largou  tudo  para  cumprir  esledever.   En- 
tretanto fugirainlhe   os   cavallos  i    [)nrcm    Dmis    lhe 
resarciu  a  perda  mandando  aos  ventos  o  levassem  on- 
de desejava.  CAiiando  tinha  de   fazer  alguma  viai^oni 
sentava  »(;  ii'uma  alcatifa,  e  a  aragem    brandamente 
o  transportava    ás    regiões    mais  longínquas.     Doeste 
modo,  pelo  que  dizem  os  árabes,  salvou   Salomão    03 
deserto»  da  Arábia,  zombou  das  correi. tes   mais    im- 
petuosas, discorreu  todas  as  ilhas  do  occeano  indico, 
e  obrigou  o  universo  a  recoiihecer  a  lei    do    Klerno. 
AccrcAcenlam  os  orientaes  que  quando  Salomão  jul- 
gava, assistiam  ás  suas  sentemjas   dois    mil    patriar- 
clias  c  pruphetas,  sentados  n^outros  tantos  thronos  de 
ouro  á  direita  \  e  dois  mil  sábios  e  doutores  da    lei, 
sentados  em  tlironos  de  prata  á  esquerda.   As  aves  do 
céu  vinham  fazer  sombra  ao  riquíssimo  sólio  de   Sa- 
lomão, que  sabiu  a  língua  dos  passarcjs,  dos  insectos, 
e  de  quanto  respira.  Mafoma  iiãu  desdenhou  inserir 
n»  Koran  a»  praticas  de  Salomão  com  uma  formiga. 
Tinha  ensinado  uma  poupa  a  levar-llie  as    ordens    a 
todas  as  |iartea  do  mundo,  e  por  ella  é  que  soube    a 
existência  da  raính.i  de  Sabá  :,  o  lambem  era  senhor 
d^um  escudo  que  o  defendia  do»  <'ncanlos  e  dos    en- 
caiitador<!S,  o  <|ual  «íseiulo,  reveslíihxiecaraclrr  mys- 
tico,  composto  de  sete  pi-lli:s  iliUerenlcs,  e  cercado  de 
sele  círculos,  fi^ra  fabricado  sob  influxo  celente.  Salo- 
mão possui. I  igualmente  uma  espada  chainmejante  e 
uma  (ouraria  imponelravi'1. 

O  Ihesoiiro  mais  precioso  de  Salomão  era  o  nnnel 
<jUe  trazia  no  dedo,  com  (|Ue  lia  :io  presentii  e  no  fu- 
turo, e  com  <jUC  sujeitara  a  maior  parle  dos  génios  a 
lhe  obedecerem.  Tão  Nubníissos  eram  os  génios  á  von- 
tade de  Siilomãu  <|ue  bastava  mandar  para  seringo 
servido.  Por  este  meio  fácil,  segundo  os  ori('nlaes, 
erigiu  o  filho  de  David  o  templo  de  Jeriisaleni,  o  pa- 
lácio da  rainha  di;  Sabá,  e  os  outros  inoniimenlos  (pie 
lhe  illuslrarani  o  nomir.  K^liindo  um  dia  nu  banho 
caiu  infelizini.-nle  o  nniiid  em  poder  d'um  gi'nío  pér- 
fido, que  o  laii(;oii  no  mar.  Kste  génio  levou  o  alre- 
vimenlo  a  ponto  di!  se  intitular  Salomão,  (í  o  verda- 
deiro Sahunão  viu-s<.'  obrigado  ,1  vagar  quarenta  dias 
pfílos  Ni!u»  estados,  fiúlo  alvo  dos  mais  grosseiro»  111- 
aullos.  Uni  |iuixe  trouxe  por  fim  o  aniiel  milagroso 
n  Salomão,  «jiie  prosegiiiii  na  (estrada  dossiuis  Irium- 
pho».  Osorientausultribiiiam  n  Salomão  grande  scieií- 
cin  magieii,   o  etta  opinitlu   romonta  ans  tcinpoi  dii 


maior  antiguidade.  Lê-se  nohisloriador  Josepho  que 
desde  o  tempo  do  rei  Ezechias,  isto  é  três  séculos  de- 
pois de  Sali;mão,  j,í  circulavam  cnm  o  seu  nome  mui- 
tos  livros  de  magia  e  sortilégios  :,  Kzechias  mandou-cs 
queimar,  mas  escaparam  muitas  copias,  e  a  supersti- 
ção fui  crescendo  de  dia  para  dia.  Mafoma  assegura 
110  capitulo  segundo  do  Koran  que  faes  livros  não  os 
escrevera  Salomão,  mas  demónios  lifleralos.  Quando 
S.domão  exhalou  o  suspiro  derradeiro  fizeram  os^e- 
nios  mil  tentativas,  baldadas  todas  ellas,  para  se  apo- 
derarem do  aunei.  Os  musiilmanos  estão  persuadidos 
de  que  Salomão  se  acha  enterrado  n"uina  ilha  do  mar 
do  Sul,  e  que,  senão  f()ra  uma  serpente  com  azas  que 
lhe  guarda  o  tumulo,  já  os  génios  so  teriam  apossado 
do  talism.in.  Taes  são  as  difierentes  causas  que  con- 
correram para  prop.igar  o  nome  de  Salomão  pe!r> 
Oriente.  ]juuvararii-lhe  a  sabedoria  e  conhecimentos 
raros  ;  chamaraiiillie  o  ministro  de  Deus,  e  o  seu 
nome  serviu  para  desig-!ar  os  grandes  monarclias. 
l)'aqui  vem  essa  turba  de  Salomões  que  figuram  iia 
historia,  ou  antes  na  mylhologia  oriental.  Al"uiis  auc- 
tores  ehegiram  a  contar  sessenta,  o  foram  buscar  o 
(jrintipio  da  serio  ilos  Salomões  a  tempos  anteriores 
a  Adão.  <|uando  os  génios  habitavam  a  terra.  A  maior 
parte  iresles  aiictores  representaram  todos  os  Salo- 
mões como  principcs  igualmente  ilutados  de  sabedo- 
ria e  poder,  e  altribiiiram-lbes  o  escudo  mystico,  a 
espaila  chainmejante  e  o  annel  maravilhoso. 

Um  personagem  singular  nas  tradições  do  Oriento 
é  Klieder,  <|ne  alguns  escriptores  confundem  com  o 
proplicta  IClias,  empregando  indiflerelitemeiíte  esíps 
dois  nomes.  Os  orientaes  derivam  o  nome  de  Khe- 
der  d'oma  palavra  que  significa  eslar  verde.  Com 
elTidlo  elles  teein  lá  para  si  que  este  personagem  não 
morreu,  porque  bebera  as  aguas  d'uma  fonte  situada 
na  extrema  do  OriíMite  nas  regiões  chamatlas  os  i'aí- 
zts  icncbrosos,  as  quaes  aguas  teem  a  virtinlo  de  per- 
petuar a  vida.  Os  que  distinguem  Kheder  d'l'"lia» 
concordam  em  lhes  dar  a  mesma  duração  e  emprego. 
Ambos,  dizem  elles,  andam  agora  acorrer  mundo,  e 
velam  na  segurança  dos  viajantes  :,  su;>poem  que  Khe- 
der  serviu  de  guia  aos  israelitas  quandoatravpssaram 
os  areaes  do  deserto.  Portanto  Kheder  e  Elias,  a  an- 
daram sem  descanço,  trazem  á  memoria  o  Judeii-er- 
rante.  Alguns  orientaes  lhes  attribuirain  <ui>  especial 
a  guarda  das  cartas  missivas  e  dos  correios-,  os  seus 
nomes  acham-se  ás  vezes  nos  sobrescriplos  das  cartas, 
para  com  inliis  certeza  cilas  chegarem  aoseu  destino. 

tJs  musiilmanos  leein  gr.inde  di'Voção  com  o  pro- 
fiheta  Z.icliarias,  e  com  seu  filho  Yahia,ai|uem  nós 
chamamos  S  João  Maptisla.  No  Koran  o  próprio 
Deus  dirige  ,1  palavra  ao  precursor  do  .Messias  :  Oh 
Yahia,  |>ega  all'outameiil<'  no  livro,  lhe  disse  o  Eter- 
no! i«  Nós  lhe  eonciMlemos  a  sabedoria  desde  a  meni- 
nice, einilinuou  o  .'Mtissimo  .-  repartimos  com  elle  a 
nossa  charidade  e  misericórdia,  e  tez  provaiiça  de 
piedade.  Ilespi-ita  muito  seu  pai  e  mãi,  e  é  limpo 
de  soberba  e  iniquid.ule  :  a  salvação  seja  com  elle  iu> 
dia  do  seu  n.isciíiwnto,  no  da  sua  morte,  e  110  dia 
em  (|iie  resuscitar  1  "  Os  orientaes  ciuirordam  com  o 
l''.v;ingelho  na  íiistcriíladi-  da  vida  de  S.  .loão  llap- 
tista,  <■  na  morte  cruel  que  lhe  fei  ilar  uma  mulher 
por  lhe  elli-  cjuerer  reprimira  devassiilão.  Aecrcscen- 
tani  <pie,  por  iiieinoria  de  crime  tão  eiuirnie,  nunca 
ei'Ssou  de  ciurer  o  sangr.e  deS.  João  Haptista.  Esti» 
morte,  dizem  elles,  foi  a  causa  primaria  da  minado 
templo  de  tlerusalem  e  da  ilispersào  dos  judeus  pelrt 
superlieii'  da  tirra.  Ainila  hoje  vão  os  iniisulmano^ 
peregrinar  a  Daniiiseo,  onde  presumem  (pit*  estãi>  os 
ilespojos  mortaes  de  S.  .laào  Haptista,  porcjiie  o  seu 
lim  trágico  recorda  aos  orientaes  todas  as  cillamSdu- 
dcs  que  ufllii^nm  n  espécie  huiiiaiiti. 


96 


O  PANORAMA. 


Mas  O  nome  de  Jesus,  ou  Yssa,  como  lhe  chamam 
es  rousulmanos  occupa  entre  elles  logar  mais  subli- 
me. Lê  se  no  Koran  <jiie  Jesus  nascera  sem  pai,  e 
íòra  creado  só  por  virtude  da  palavra  de  Deus:,  por 
isso  os  orientaes  lhe  chamaram  o  Vcrho  Divino,  ou 
simplesmente  o  \'erbo.  l'oetn-n'o  a  par  de  Adão  por 
terem  sido  ambos  creados  d^um  modo  particular.  Os 
niusulmaiios  reconhecem  todos  os  milagres  referidos 
no  Evangelho-,  admitlem  a  faculdade  que  tinha  o 
Salvador  de  rcsuscilar  03  mortos,  fazer  que  ouvissem 
os  surdos,  dar  vida  aos  enfermos,  e  fazer  que  andas- 
sem os  coxos.  Até  citam  milagres  em  que  a  Biblia 
não  falia.  Dizem  qiic  Jesus  só  esteve  três  horas  no 
herço,  que  fallcu  ainda  involto  nas  fachas,  e  que  ani- 
mava com  o  seu  sopro  pássaros  de  barro.  O  Kotan 
cxprime-sc  assim  :  "  Dé.tios  a  Jesus,  lilho  de  Maria, 
o  poder  dos  milagres,  e  a.-,5Í:timo-roe  forlalecemo-l'o 
com  o  Espirito  Saneio.  Alguns  dos  prodígios  que  os 
livros  sanclos  não  mencionam  tirouos  SIafoma  dos 
falsos  evangelhos  que,  no  seu  tempo,  geravam  pela 
Arábia.  Os  orientaes  estão  convencidos  de  que  o  Sal- 
vador fazia  a  maior  parte  dos  milagres  com  o  seu  so 
pro  i  e  na  verdade,  lêuios  no  Evangelho  que  elle  lez 
ouvir  uni  surdo  sn|irando-llie  n^unia  orelha.  Todos  os 
escriptores  do  oriente  alludem  frequentes  vezes  ao  so- 
pro do  Messias.  Em  geral,  nada  é  mais  louvável  do 
que  o  respeito  que  os  musulmanos  lêem  a  Jesus.  Ma- 
toma,  no  Koran,  faz  assim  fallar  o  Eterno  :  uOli  Je- 
sus!  eu  e.xallarei  os  que  se  te  unirem,  e  humilharei 
os  que  te  não  reconhecerem  !  n  Desgraçadamenie  ne- 
garam os  árabes  a  divindade  de  Jesus  Chrisío  ;  lêem- 
se  estas  palavras  no  Koran:  u  São  infiéis  os  que  dizem 
que  o  Messias  é  Deus.  "  Mafuma,  na  opinião  d'el- 
_les,  occup.i  logar  mais  alto^  chegou  a  dizer  um  dos 
seus  auctores  que  o  patriarcha  Abrahão  não  passara 
«]e  ser  um  ollicial  do  exercito  do  propTieta,  e  o  Mes- 
sias o  mestre  de  ceremonias  da  sua  corte.  Negam 
igualmente  a  paixão  e  niorle  de  Jesus  Christo.  Diz- 
se  no  Koran,  cap.  4.";  uCreein  os  judeus  ter  dado  a 
itiorle  ao  Messias,  enviado  de  Deus  i  não  o  fueram 
tnorrer  a  elle,  mas  a  algum  outro  com  elle  parecido.  " 
^  opinião  dos  orientaes  é  que  Jesus  ha  de  voltar  no 
fim  dos  séculos-,  as  religiões  eliristã  e  musulmana  re- 
duzir-se-lião  a  uma  só,  e  depois  d"Í5SO  acabarse-ha 
o  mundo,,  p,,  ,| 

Por  uma  consequência  natural  da  veneração  que 
os  musulmanos  teem  a  Nosso  Senhor,  professam  admi- 
rarão profunda  á  Virgem,  a  quem  chamam  Mariam  ; 
teem  a  convicção  de  que  a  ^'irgenl  Slaria  e  o  Mc- 
iiino  Jesus  foram  isentos  das  manchas  do  pcccadoori- 
ginal.  II  Não  lia  homem  nenhum,  disse  Mafoma,  que 
ao  nascer  não  traga  em  si  os  signues  das  garras  de 
Salanaz;  por  ikso,  quando  nascemos,  desatamos  em 
cliuro  i  Maria  e  seu  íilho  foram  os  únicos  dispensados 
d'esta  prova."  P^ínalmente  os  orientaes  ropcitani  os 
doze  a[)Ostolos  e  fodososquccontribuiram  para  a  pro- 
pagação do  christianismo.  Todavia,  são  algum  tanto 
desafleiçoados  a  S.  Paulo;  eaflirmam  quese  oschris- 
tãos,  em  vez  de  considerarem  o  Messias  como  simples 
propheta,  lhe  atlrihuiram  a  divindade,  tem  S.  Pau- 
lo Ioda  a  culpa  d'isto.  Depois  de  Jesus  Christo  os 
«)rientdes  não  reconhecem  nenhum  propheta  até  Ma- 
foma. 

Taes  são,  segundo  os  musulmanos,  os  principaes 
personagens  que  abriram  a  estrada  ao  seu  propheta. 
Muitos  d'elles  existiram  realmente  ;  mas  os  orientaes 
«."onverteram-nos  em  Iieroes  de  romance,  afogandoa 
Verdade  em  miudezas  bem  ridículas  e  disparatadas, 

Seguiremos  este  trabalho  de  .Mr.  de  Courteua^-, 
dando  conta,  para  o  diante,  da  vida  de  Mufonia,  c 
do  Koran. 


A    ILHA   CeLESES — MaCASSAR. 

(Continuado  de  pag.  8i.) 
A  VEiuA,  para  além  do  bazar,  c  do  arrabalde  que  o 
continua  ao  cabo  da  cidade,  é  um  continuação  de 
bonitos  jardins  antes  de  chegar  á  campina.  Vè-se 
depois  o  terreno  plano  sombreado  por  arvores  formo- 
sas, e  que  se  prolonga  a  perder  de  vista  :  á»  vezes  ha 
lagos  próximos  a  pequeninos  bosques  deliciosos,  por 
entre  os  quaes  volteia  a  estrada  :  os  arrozaes  mos- 
tram por  muitas  partes  as  ondas  das  basleas  tremu- 
las ao  sopro  da  briza  do  largo,  ao  passo  que  nos  bal- 
dios vagueam  soltas  manadas  de  búfalos  e  de  cavai- 
los.  Casas  malaias  em  quantidade,  embutidas  no  ar- 
voredo, com  teniie  cerca  de  estacada,  e  bellos  jar- 
dins, tanto  mais  bastas  apparecem  quanto  menos  dis- 
tam da  cidade,  chegando  a  encostarein-se  a  esta  da 
banda  do  bazar. 

A  parada,  amplo  terreiro  que  medeia  entre  a  ci- 
dade e  o  forte,  na  extremidade  é  guarnecida  de  ala- 
medas, que  vão  rematar  na  morada  do  governador 
da  colónia,  a  quem  intitulam  u  residente -, «  e  em 
contraposição,  á  beira-niar,  vê-se  o  estaleiro,  onde 
são  cunstruidos  os  paráus  destinados  á  navegação  da 
ilha  :  não  ha  cousa  que  dê  melhor  idéa  da  arca  de 
Noé  do  que  estas  casas  fluctuanles,  governadas  por 
dois  lemes  postos  de  cada  lado  da  popa,  e  com  fortes 
mastros,  imitando  um  triangulocoroadode  velasqua- 
dradas  feitas  dV^teira.  Estes  barcos  são  tardos  no  an- 
damento, demorados  nas  viagem,  e  denotam  a  bonan- 
ça d\-iquelles  mares  :  são  destinados  especialmente  á 
pesca,  que  vão  fazer  á  costa  do  norte  da  Austrália, 
ao  estreito  de  Torres,  e  tan.liem  a  apanhar  pérolas, 
e  ninhos  de  salangana  (»)  :  — estes  objectos  consti- 
tuem grande  parle  do  commercio  de  exportação  de 
Macassar,  e  expcdem-se  para  os  mercados  da  China. 
O  ganho  da  pesca  do  peixe  iripmig,  que  vai  para 
fora,  é  muito  lucrativo  na  Celebes:  os  negociantes 
hollandezes  entram  activamente  n^esla  especulação; 
só  um  dVIles  equipava  annualmente  para  esla  pes- 
caria uma  dúzia  dos  taes  paráus. 

A  população  hollandeza  conta  poucos  brancos  ; 
compõe  se  em  grande  parte  de  homens  decôr,  mes- 
tiços oriundos  das  allianças  dos  europeus  com  as  ma- 
laias, porém  nunca  de  malaios  com  brancas:  édifli- 
cuitoso  ao  estrangeiro  fixar  o  numero  dos  europeus, 
mas  talvez  não  passe  de  500  pessoas -,  igualmente  o  é 
orçar,  durante  o  pouco  tempo  de  uma  arribada,  3 
população  china,  que  de  mais  d'issoé  fluctuante,  va- 
riando, em  certas  temporadas  do  anno,  conforme  a» 
entradas  e  saídas  de  navios  que  transportam  os  via- 
jantes. Vimos  alli  chinas  que  tinham  habitado  alter- 
nativamente em  Manilha,  em  Singapura,  eem  11a- 
tavia.  Esta  gente  que,  no  grandearchipclagoasiali- 
co,  faz  as  vezes  dos  judeus  levantiscos,  deixa  a  pátria 
pelo  engodo  do  lucro,  ou  aguilhoada  pela  penúria. 
Acodem  a  qualquer  parte  em  que  se  fundar  uma  co- 
lónia ;  apossam-se  do  commercio  11  retalho,  enrique- 
cem pouco  a  pouco,  e  as  tnais  das  veies  voltam  a 
suas  terras  quando  teem  junclo  cabedal,  posto  que 
alguns  se  cstalieleçam  de  assentada  onde  teem  feito 
seu  trafico.  Ágeis,  engenhosos,  perseverantes,  dão-se 
a  toda  a  casta  de  especulações;  de  tudo  sabem  tirar 
proveito;  e  se  fazem  c«rpiiiteiros  de  carros,  quinca- 
Iheiro*,  alfaiates,  çapaleiros,  \.c.  ,  com  a  mesma  fa- 
cilidade. Porém  ao  mesmo  tempo  conservam  escrú- 
pulos.imenle  os  ct)stumps,  h:\bitos,  trajos,  e  crença  d« 
m.Ti  pátria:  nunca  se  perde  a  sua  nacionalidade; 
vangloriam  se  dVlla,  e  isso  impede  que  se  confun- 
dam com  os  povos  malaios,  especulando  com  a  negli- 
gencia e  preguiça  dVstes.  (Ci.iiftiiiio.') 

(«)   (Aue  se  comem  e  passam  porsiagulariguatiana  Ásia. 


15 


O  PANORA^IA. 


97 


usos  MEXICANOS. 


A  1'iioviNCiA  <1(!  Oaxaca  sempre  fui  a  mais  rica  do 
México,  não  pelas  minas,  mas  pelas  produceõts  (lo 
terrono,  que  valem  muito  mais.  Só  ai  exportaeões 
da  cochoiiillia,  secundo  a  ejtadistica  de  (Carlos  .^[a■ 
ria  Uustamante,  calculada  de  1757  a  1820,  prolu- 
iiiram,  aiiiio  ordinário,  1:12!)  UOU  piastras,  ijuanlia 
enorme,  <jue  pila  maior  parle  passou  ás  mãos  dos 
Índios  cultivadores  docaclo  codioniltieiro.  listes,  cu- 
jas precisões  são  liem  pouco  dispendiosas,  nãosaheií- 
du  que  ru<,'ani  rle  tanto  diiduiro,  f>  enterram  n\imu 
c  n\iutra  parte,  nu  campo  ou  doliaixo  das  penhas 
dos  outeiros.  D'este  modo  a  «vare/a  restituo  a  terra 
o  que  lhe  roubara.  Sú  os  proprietários  conhecem  os 
escondrijos,  e  a  nin'^iiem  osdescohrcm  ;  morrem  sem 
dizer  nada  aos  tillios,  nem  estes  se  dão  ao  cuidado  de 
indai;ar  isso.  Se  por  iienso  algum  índio  acha  um 
iracpiplles  thesouros,  fica  amedrontado,  torna  a  ta- 
par eserupulosauiente  o  deposito  sem  focar  n'um  cei- 
til, persuadido  de  que  morreria  n'esso  anuo  te  fizes- 
se u  mínimo  latroeinio  aos  manes  de  quem  enterrou 
seu  dinheiro.  —  'l'od.ivi.i  ha  índios  ricos  (jue,  sem 
alteraren»  na  mais  leve  eovisa  os  seus  cosi  umes  o  mo- 
do de  viver,  siurilieam  ao  luxo  e  á  vaidade,  o  };«»- 
tam  avultadas  (pianilas  no  traclamento  de  suas  ca- 
sas. ilanti'i  ás  ve/.es  á  mesa  de  muitos  d'esses  natu- 
raes  mexicanos,  oníle  vi  liaixella  de  prata  i;  outros 
moveis  preciosos:  tiidiam  íjenerosos  viidnis  do  Mala- 
j;a,  de  \eri'Z,  e  lamlieiu  de  Hordéus,  com  ipie  reija- 
lavam  á  larica  osseus  hosjedes :,  o  as  coherlas  eram 
atulhadas  de  i);uarias  na  maior  aliuudancia  c  mui 
heiíl  preparadas  ao^^osto  da  terra.  l'orém  niincu  ol- 
VoL    I. NuVKMlIKO   :iK,    18íti. 


les  comiam  coninosoo  europeus;  recolliiam-se  com  a 
família  á  cosinha,  e  alli,  assentados  n''uma  csteiraj 
tonuiN.im  a  sua  l'ru|^al  retei(;ão  e  bebiam  agu:i  pura. 
Bella  li(;ãu  de  temperança  dada  pelo  homem  semi- 
civilisado  aos  tilhos  das  nações  policiadas. 

Afora  aciuellas  despezas  de  fausto,  ha  outras  cir- 
cumstancias  que  concorrem  para  diminuir,  de  tem- 
[los  a  esta  parte,  a  copia  de  thesouros  escondidos; 
tallo  dús  gastos  que  em  cad.i  um:i  aldeia  fasem  osaí- 
cíjA/ts  e  oi  mordomos  fabriqueíros  das  igrejas  ijuando 
são  eleitos  :  n\"stas  festanças  banqueteam  todos  OS 
moradores  do  seu  logar,  pag.im  á  própria  custa  a 
lesta  <ri;;reja,  a  musica,  o  fogo  de  vistas,  t-Slc.  iXc, 
e  enfeitam  ai  imagens  dos  sanctoj  com  aderecei,  ha- 

I  bitos  e  mantos  novos,  conunummcnte  de  niuitopreço 

i  e  esplendidos 

l'osto  que  o  valor  da  exportação  dn  cochonilha  te- 
nha l)ai\ado  metade  o  mais,  a  província  de  Oaxaca 
sempre  continua  rica  ;  apenas  n  capital  e  mui  po- 
bre :  os  índios  tiram  algum  lucro  do  amanho  dos 
eaclo»  próprios  d^i<|uella  droga  \  porém  os  negocian- 
tes nrriiinam-so,  e  o  eonimereio  vai  de  dia  para  dia 
de  mal  a  peior.  Huando  os  rebidlados  entraram  em 
1812  na  cidade  de  Oaxaci,  os  eseriptorios  dos  hej- 
paidioes  e  creoidos  tr.isbordavam  ile  ouro  e  prata; 
arrebalnram-se  essas  riquizas  ás  carradas;  mas  ja    lá 

I  vai  o  tempo  de  tamanha  prosperiíhule,  e  si!    tem    df 
voltar  n."io  será  tão  cedo;  te  lo  ha   no  entanto  Oaxa- 

j  ca   para  chegar  «o  fundo  do  abvsmo  para  onde  a  mi- 
séria a    impelli-. 

I       O  trajo  das  mulheres  iiatur«es  da   terra    tem   suu 


98 


O  PANORAMA. 


especialidade  ',  é  um  enrollado,  nome  hespanliol,  de 
um  corte  de  paiiiio,  posto  á  roda  do  corpo  desde  a 
cinta  até  os  joelhos,  tecido  de  lã  preta  raiada  de  ver- 
melho ;  e  um  hucpil,  pedaço  de  panno,  com  abertura 
110  meio  para  passar  a  cabeça,  que  cobre  as-  costas  e 
o  peito,  e  é  de  estofo  d'algodão  branco  tramado  com 
fio  de  còr  :  usam  também  uma  espécie  de  meiocha 
le,  com  que  cobrem  a  nuca  e  os  hombros,  e  alem 
d'isso  trazem,  como  lambem  os  homens,  um  letjço 
encarnado,  de  seda  ou  de  algodão,  amarrado  na  ca- 
beça, e  sandalhas  nos  pés  enfeitadas  de  lavores.  Com 
o  nariz  de  bico  de  papagaio,  queixo  revirado,  e  còr 
de  cobre,  raras  d\'5tas  mulheres  são  bonitas;  nota- 
se-lhes  conitudo  na  physionomia  um  toque  de  astú- 
cia, pouquíssimo  vulgar  nas  outras  Índias. 

A  còr  geral  dos  naturaes  é  cobreada  ;  n'alguns 
cantões  do  México  tira  para  encarniçada,  en'outros 
para  azul  escura.  lia  muitos  indivíduos  que  teem  na 
pelle  nódoas  de  diversas  cores ;  porém  esta  particula- 
ridade não  é  natural;  deriva  de  uma  lepra  que  vicia 
a  massa  do  sangue;  incurável  para  os  que  atrouxe- 
íam  do  ventre  materno,  e  nos  quaes  se  tornou  orgâ- 
nica, communica-se  pelo  contacto.  O  numero  dVstes 
enfermos,  que  os  hespanhoes chamam /j/níos,  é  muito 
grande  em  Teliuantepec,  nas  costas  de  Tabasco  e  na 
de  Acapulco:  habitam  de  involta  com  os  outros  Ín- 
dios, sem  que  estes  tenham  pensado  em  os  affastar 
da  sua  communidade  e  evitar  um  commercio  fatal. 
Demais,  apesar  dos  incommodos  inherentes  á  sua 
doença,  aquelles  gafos  vivem  tanto  como  os  sãos,  e 
podem  dedicar-se  aos  mesmos  trabalhos.  E'  uma  en- 
fermidade análoga  á  dos  albinos  ou  pretos  brancos. 

Tehuantepec,  de  que  acabo  de  fallar,  é  unia  cidade 
de  14  000  almas,  creoulos  e  Índios,  situada  a  70  lé- 
guas de  Oaxaca.  Cortez,  nas  suas  cartas  a  Carlos  o.", 
e  todos  os  geographos  antigos  a  designam  como  porto 
de  mar;  mas  pelo  retrahimento  gradual  das  aguas 
do  oceano  Pacificn  ja?.  ao  presente  a  mais  de  quatro 
Ic^uas  da  praia.  A  industria  principal  dos  habitan- 
tes consiste  na  cultura  da  planta  do  anil  e  na  prepa- 
ração da  droga  d'csta  formosa  tincta  ;  este  trafico 
excede  alli  ao  da  cochonilha.  As  colheitas  que,  ha 
trinta  annos,  davam  proximamente  3o  000  librasde 
anil,  anno  ordinário,  ainda  hoje  regulam  pelo  mes- 
mo, e  até  ás  vezes  excedem  aquelle  algarismo.  O 
anil  mais  fino  é  feito  da  flor  da  planta,  e  só  em 
Guatemala  se  fabricam  alguns  quiiitaes  d'elle. 

O  murice,  concha  que  dá  a  còr  purpurina,  tão  fa- 
mosa na  antiguidade  que  esgotou  os  bancos  dVstc 
niarisco  nas  praias  de  Chypre,  acha-se  em  toda  a 
costa  Occidental  desde  (íuayaquil  até  .\capulco  :  co- 
Ihe-se  principalmente  nas  lagoas  de  Teluiintepec, 
onde  existe  em  grande  quantidade.  As  mulheres  tra- 
zem tiras  de  panno,  ou  maços  d^algodão  liado,  repar- 
tido em  negaíhos,  o  á  proporção  que  arrancam  o  ma- 
risco da  pedra  espremem  com  os  dedos  o  animal  sobre 
o  panno  que  pretendem  tingir;  extraheni  assim  um 
liquido  esbranquiçado  que  seccando  se  fiz  escarlate, 
lista  còr  é  indilovel,  e  até  adquire  lustro  depois  de 
lavada  a  niiudo;  nem  todos  os  tecidos  a  tomam  bem, 
assenta  melhor  na  l,"i  c  algodão  do  que  na  soda.  As 
mulheres  de  'rehuantepec,  de  Chihuitan  e  dos  arre- 
dores fazem  grande  estimação  d"ella  para  as  guarni 
ções  das  saias  ;  e  pagam  muito  caro  este  enfeite,  se 
não  vão  pessoalmente  tingir  os  seus  vestidos. 

As  habitantes  cie  Teliuantepec  usam  de  um  ves- 
tuário espCLUal,  que  sem  cíuitradicção  é  dos  mais  ele- 
gantes da  America,  sem  exceptuar  o  trajo  das  scno- 
ritas  de  Lima,  o  qual  me  parece  mais  extravagante 
<jue  original,  mais  ridiculo  que  engraçado,  apesar  de 
todo  o  artificio  que  põem  em  pratica  para  o  nfor- 
mosearem.  —  As  mulheres  de  Tehuantepec  vestem 


uma  saia  de  cassa  ou  de  gaze,  guarmcida  de  grandes 
folhos,  e  mesmo  de  franja  de  ouro,  pieza  acima  dos 
quadris  por  uma  banda  de  seda  :  depois  assenta  o 
huepil  de  mangas  curtas,  cerrado  siure  os  rins,  e 
ageitado  em  ondas  fluctuantes  sobre  ca  peitos;  é  de 
cassa  bordada  ou  de  tecido  liso  e  de  còr  ;  mas  tra- 
zem outro,  sempre  de  cassa  branca,  sobre  a  cabeça, 
de  sorte  que  a  guarnição  que  circula  o  pescoço  serve 
como  de  moldura  ao  rosto,  e  as  duas  mangas  pen- 
dem para  diante  até  a  cintura,  e  para  traz  até  o 
meio  das  costas;  o  complexo  d'este  vestuário,  perfei- 
tamente próprio  para  realçar  os  attractivos  de  uma 
senhora  juvenil,  conserva  ás  mil  maravilhas  as  for- 
mas corpóreas,  e  ao  mesmo  tempo  é  rico  e  gracioso. 
A  primeira  vez  que  eu  ^i  damas  de  'l'ehuantepec 
com  este  trajo  pareceram-me  extremamente  agradá- 
veis :  além  d^isso,  no  olhar  c  nos  modos  teem  um 
mimo  que  muito  bem  casa  com  a  graça  dos  seus 
adornos.  —  O  viajante  que  chega  áquella  cidade  em 
dia  festivo,  e  que  vê  as  jovens  ataviadas  com  tanta 
elegância,  pasma  attrahido  do  espectáculo,  como  fica- 
ria achando  formosa  e  fresca  verdura  no  meio  dos 
áridos  areiaes  da  Lybia  ;  acaba  de  discorrer  por  um 
território  onde  os  habitantes,  raros,  são  de  fealdade  e 
sordidez  repugnantes,  e  o  contraste  lhe  causa  todo  o 
prazer  de  uma  inesperada  e  bella  mutação  descena. 


O  Feitor  de  Cast.ío. 

JNoueí/a. 

(Continuado  de  pagina  91.) 

N.\  mesma  noite  do  dia  da  prisão  de  ^^'alter  Effen- 
doii  encerrou-se  este  com  You-hi  no  quarto  mais  re- 
tirado da  casa  do  feitor  americano.  Ohanista,  senta- 
do n^uma  cadeira  de  bambu,  parecia  assustado,  e 
olhava  amiúdo  para  a  porta  como  quem  receiava  ser 
apanhado  n^esta  conferencia.  EíTendon  passeava  in- 
quieto com  uns  papeis  na  mão.  Saíra  solto  havia  pou- 
cas horas,  e  mandara  logo  chamar  o  negociante  chi- 
na, a  quem  havia  revelado  tudo. 

Grande  foi  a  admiração  de  \ou-hi  quando  soube 
do  disfarce  de  Maria,  que  elle  sempre  cuidara  ser 
fillio  do  feitor;  mas  quando  Eflendon  chegou  a  con- 
tarlhe  o  inaudito  encontro  que  tivera  de  manhã,  o 
pasmo  se  lhe  converteu  em  incredulidade.  Comtudo 
o  americano  sustentou  o  que  afirmara.  Eram  de  Ma- 
ria aquelles  dois  gritos  que  ainda  o  faziam  estreme- 
cer: eram  de  Maria  as  feições  que  tinha  entrev  isto. 
Não  estava  morta  a  sua  filha,  mas  em  puder  d'um 
roubador  que  elle  queria  descobrir  a  todo  o  custo. 
Acabava  por  tanto  de  fazer  um  requerimento  ao  go- 
vernador ou  vice  rei  de  Cantão,  expondo  concisamen* 
te  os  factos,  e  pedindo  que  procurassem  e  lhe  resti- 
tuíssem Maria. 

—  >.  Se  não  proraeltes  algum  premio,  advertiu  \  ou- 
hi,  o  governador  não  da  um  passo.  " 

—  .iTcnsraião,  disse  o  feitor  ;  vou  accrescentir  que 
pagarei  pelas  buscas  quanto  elle  exigir.  .  .  " 

—  II  Não  escrevas  isso,  atalhou  o  hanista  ;  pediam» 
te  quanto  tens.  OtVereoe  uma  quantia  redonda.  .  . 
Mil  liangs  talvez  (1).  " 

—  14  ^'á  !  Disse  Eflendon,  correndo  para  uma  mesi, 
afim  de  «ddicionar  a  promessa  á  sun  petição.  Mas  co- 
mo bei  do  fazer  entregar  este  requerimento  cm  mão 
própria  ao  vice  rei .'  •■ 

—  "Não  Isns  senão  um  meio,  disse  ^ou-hi,  e  ain- 
da que  é  contrario  ás   leis.  .  .  " 

(.11  Mil  liangs  andam  |Kir  um  coDto  e  ceuto  e  quarenta 
e  tantos  mil  réis. 


o  PANORAMA. 


9^ 


—  Tem  razão,  interrompeu  o  americano,  levan- 
tando-se  i  corro  á  porta  chineza. 

—  u  Mas  peço  te  encarecidatneiile,  replicou  Yoiilii 
abaixando  a  voz,  que  não  digas  que  fui  eu  que  te 
dei  este  conselho.  Se  desconfiassem  que  no»  entende- 
mos, ficava  eu  perdido.» 

Effendou  socegou  o  haiiista  promettcndollie  a  maior 
discrição,  e  apartou-se  d'elie  para  ir  n'um  pulo  ás 
feitorias  afim  de  reunir  os  seus  amigos. 

E  bem  o  precisava  para  que  scirtisse  elTL-ilo  o  meio 
porque  elle  queria  que  o  requerimento  fosse  entregue. 
Tendo  mostrado  a  experiência  que  as  petições  entre- 
gues por  estrangeiros  aos  mandarins  nunca  cliegavain 
ás  mãos  do  vice  rei,  alguns  pretendentes  mais  desle 
midos  haviam  inventado  um  methodo,  estranho  (lo- 
rém  certo,  de  as  fazer  chegar  ao  seu  destino.  Juncta- 
vam  para  este  fim  umas  trinia  ou  qiiart^nta  pessoas, 
dispersavam  á  paulada  a  guarda  da  porta,  e  entra- 
vam fie  roíid.ío  na  ci<!ade  china,  com  grande  alarido, 
furando  os  lampiões  de  papel  dos  logistas.  Estes,  as 
saltados  de  terror  pânico,  deitavam  logo  a  fugir  i  os 
guardas  das  ruas  fechavam  as  barreiras,  e  os  clccit- 
riucs  (I)  corriam  em  busca  d'um  mandarim  que  vi- 
nha ínformar-se  da  causa  da  súbita  irrupção.  Então 
os  requerentes  abaixavam  os  bordões,  ap[>rcsentavam 
a  petição,  e  retiravam  se  com  a  certeza  de  que  o  vi- 
ce rei,  inteirado  do  motim,  havia  de  querer  vêr  o 
requerimento  que  o  causara. 

O  resultado  da  empreza  d'I'',lTendou  excedeu  as  suas 
esperanças,  porque,  no  auge  do  tumulto,  acertou  de 
passar  por  alli  a  liteira  do  vice  rei.  ElVendon  entre- 
gou-lhe  o  requerimento. 

Passaram  ilois  dias  sem  chegar  a  resposta,  e  Eílen- 
don  já  se  estava  preparando  para  repelir  a  supplica 
fazendo  outra  invasão,  quando  llie  entregaram  um  p.i- 
pel  fechado  com  sinete  do  mandarim  de  primeira  or- 
dem.  Ahriu,  ;i  tremer,  o  leu  o  seguinte  : 

«Eu,  Kiug-fo,  munido  cio  diploma  i\e  Isinsse  (2), 
condecorado  succcssivamenie  com  os  dois  botões  azues, 
e  com  obolão  de  coral,  e  hojoeom  o  botão  de  pedras 
preciosas  (.3),  e  recoiinnendado  novo  vozes  no  regis- 
tro dos /;/íií/-;íoií  {^) '^  governador  da  provinc-ia  de 
Cantão  em  nomo  do  lilho  do  céu,  o  grande  e  sobera- 
no iiriperador. 

«Ao  chefe  bárbaro  da  fi'itoria  americana. 

11  Lemos  o  memorial  que  tu  nos  dirigiste,  suppli- 
cando,  e  ao  lô  lo  reconhecemos  a  verdade  do  prolo- 
quio  do  sábio,  quando  disse  que  os  corações  dos  ho- 

(t)  Ha  nas  ruas,  de  certa  em  certa  distancia,  portas  ou 
cancellos,  «uanlndos  porsoMadiis,  as  (|uaes  se  fecham  as- 
sim qin'  prinei|iia  alfíum  lunnillo.  I)c!  ilezem  dez  casas  ha  um 
rfffCKriV/n,  (|iie  (' um  ('lied'  de  Caniilia,  resp(}nsavcl|jclaina- 
niílciição  (lo  snceKo  em  parle  ila  rua.  O  serviço  dosdecu- 
riOos  corre,  piu' escala,  todos  os  cidiiilãos. 

(1)  lia  II»  diiiia  dois  «raus  litlerarios  :  o  hinJinQio- 
meni  rccomineinlado)  o  o  de  laiiissa  (duiilor  adiantado  em 
grau.) 

(i)  Todo.i  08  empregados  do  governo  china,  aquo  os  chi- 
nas chamam  í«tí«/i  eus  europeus  jiiandariíis,  esiàodiviíli- 

dose ove  ordens  ou  elasstis.suhdividida  <':ida  uma  d'ellas 

em  principal  e  secundaria.  A  divisa  da  I.''  classe,  a  que  ape- 
nas porleineni  mui  raros  personaKcns  rios  maiseniinenles 
do  império,  é  um  lioirio  de  pedras  preciosas  qin-  trazem  im 
K<*)rro  ;  a  ila2.''  classe  nm  lioiào  vernn-llio  ou  Je  coial,  do 
feilln  (l'uma  Ih^r  ;  a  da  3."  nm  liotão  de  peilra  azul  Icrrele  ;  a 
da  •!."  aaul  i'laro  ;  a  da  ."$.•'  de  ei  isial  liiauco  ele. 

(4)  O  p<í(y-;)(ii(  i' o  liiimnal  ou  ministério  (la  guerra.  Os 
Kovernadores  das  províncias  mIo  (^x-oltnio  picsideutes 
(Peste  ministério.  Os  mandarins  militares  são  repiiiados  In- 
l'erio^(^s  aos  mandarins  civis  da  un^^nia  classe,  recelieni  pe- 
(|Uciios  soldos  e  estão  sujeitos  á  iiispecvâo  d'a(Hi(dlcs.  Os 
chinas  presanití  nremeiaiu  mais  o  laienlo  llllcrarioe  o  de 
bem  governar  do  que  o  do  destruir. 


mens  eram  tão  vários  como  os  terrenosdoceleste  im. 
perio.  Porque,  do  mesmo  niodo  que  vemos  rochedo» 
eslereis,  e  terras  nocivas  que  não  produzem  senão 
plantas  envenenadas,  ha  corações  d'onde  não  pcide 
sair  cousa  boa  ^  taes  são  os  dos  bárbaros  estrangeiros. 

II  Tu  desobedeceste  ás  ordens  do  soberano  impera- 
dor, e  agora  queixas-tede  te  roubarem  tua  filha,  que 
em  tua  casa  conservavas  escondida  \  pori-m  sabe  que 
o  homem  prudente  não  crê  na  palavra  do  quebrauta- 
dor  das  leis. 

"  E  quanto  ás  mil  liangs  em  que  falias,  é  nossa 
vontade  contentarmo-nos  com  ellas  por  esta  vez,  pos- 
to sija  muleta  insuffieiente  para  a  falta  que  commet- 
leste  em   não  te  sujeitares  á  vontade  do  filho  dociíu. 

II  Seja  isto  unia  lei  a  teus  olhos  " 

Não  tentaremos  exprimir  a  dtjre  indignação  d'Ef- 
femlon  quando  acabou  de  ler  esta  carta  repassada  d'o- 
dio  aos  estrangeiros,  d'injustiça,  de  hvpocrisia,  e  ue 
cubica.  No  primeiro  Ímpeto  leinbrou-se  de  juiictar  as 
companhas  de  todos  os  navios  americanos  que  esta- 
vam no  rio,  arma-las,  e  ir  á  sua  frente  pedir  justiça 
ao  vice  rei.  A  rellexão  abriu  lhe  osolhos;  fazia  unia 
loucura.  Correu  a  casa  deYou  hi,  mostrou  lhe  a  res- 
posta qne  acabava  de  receber,  e  pediu-lhe  conselho, 
O  lianista  deu  lhe  de  parecer  que  requeresse  de  novo  ^ 
e  elle  próprio,  enternecido  pelas  supplicas  do  feitor 
e  pela  olVerl.i  de  quinhentas  liangs,  prometteu  dar 
p.nsos  n'este  negocio.  Mas  a  segunda  tentativa  não 
foi  mais  bem  succedida  que  a  primeira.  Oe  nada  va- 
leu a  Ellendon  o  afioio  dos  agentes  das  outras  feito- 
rias, nem  a  inlluenciu  do  IcuiKj-han  :  o[  vice  rei  sus- 
tentou o  despacho. 

Esta  inflexibilidade  lançou  o  desgraçado  pai  na de- 
nieiuia  da  desesperação. 

Em  quanto  julgou  a  filha  morta  sollreu  o  golpe  se 
não  resignado  ao  menos  sem  reluctar,  como  se  solVre 
uiii  desastre  irremediável.  Semelli.inte  a  esses  solda- 
dos a  (|uein  o  jugo  d.H  derrota  quebr.i  subitamente  os 
brios,  haviase  abraçado  com  uma  iifllicção  muda  e 
queda  :,  mas  este  vergar  ao  desalento,  porque  a  espe- 
rança o  desamparara,  desappareceu  mal  tornou  a  raiar 
a  esperança.  Ao  quebranto  succedeu  uma  espécie  de 
alegria  IVliril  i)Ue  as  repulsas  do  vice  rei  trocaram 
em  raiva.  Absorto  na  sua  d('ir,  e  azedado  ao  \rrque 
nada  podia,  Ellendon  tomava  mil  resoluções  que  lo- 
go abandonava,  formava  mil  planos  impossíveis,  e  a 
todos  pedia  conselhos  inúteis  ou  soccorros  que  lhe  não 
poiliam  dar. 

Comiudo,  You-hi  tinha  continuado  a  tirar  infor- 
mações em  segredo,  sem  poder  achar  rastos  de  Ma- 
ria. Einalmente  nm  dia  chegou  a  casa  do  feitor  mui- 
to esbalorido,  e  com  carii  alegre. 

—  «i  Ergue  nm  altar  nos  teus  génios  domésticos, 
exclamou  elle-,  tragote  novas  de  tua  filha  !  " 

EUcndoii  den  um  grito. 

—  4.  (  Míde  está  ella  .'  "  perguntou  in.iravilhadu. 

—  u  Em   l'eking.  n 

—  »  (iue  dizes  tu  ?  Maria.  .  .  » 

—  >t  l<evarani-n'a  de  Cantão  ha  pertod'um  niex. » 

—  >>  Ma»  como  !  (-Inem  .'   i'or  ondi-  soubeste  .'...>» 

—  ..  l)i\agar,  devagar,  disse  o  china  sentando-se 
<•  enxugando  a  testa.  Três  |ierguntas  rr<iuerem  tre» 
respostas,  i» 

— 11  Mas  i;slá»  certo,  bem  certo,  <jue  é  ella.'»  re- 
plicou  KlVcndoii,  quasi  sem  |ioder  respirar. 

—  11  Se  e  (|ue  tu  não  te  enganaste  ()uando  a  viíto 
na  carroagem  enverni/adu    » 

—  11  Não  me  enganei.  Mas  (jueni  i'  o  dono  dacur- 
roagem  .'  » 

—  11  E  o  (jiie  eu  lenho  andado  a  indagar  ha  tros 
semanas,  »  lhe  lornun  »  china. 

—  11  E  soubestc-o  por  fim  f ,  .  .  » 


400 


o  PANORAMA. 


—  iiSube  muitas  cousas;  mas,  pelos  céus  azulados 
que  invoca  o  nosso  soberano  imperador,  se  queres  que 
t'as  diga  has  de  ouvir  me.  >i 

—  u  Falia  !  falia  I  »  disse  o  feitor  sutfocado  de  im- 
paciência c  alegria. 

— 11  Tu  sabes,  conlinuou  You-hi,  que  temos  em  l'e- 
kiug  um  tribunal  de  censores  encarregados  de  adver- 
tir o  filho  do  sol  quando  erra,  e  de  discorrer  as  pro- 
víncias para  examinarem  de  que  modo  governam  os 
mandarins  o  reino  do  meio.  " 

—  "  Sei.  " 

—  II  Pois  ha  um  mez  que  um  d'e8tes  censores  se 
achava  em  Cantão.  Era  d'elle  a  carroagem  em  que 
viste  tua  filha.  .  .  » 

—  .i  Jlas  como  se  acha  Maria  em  seu  poder  .' 

—  II  Ah!  é  a  ponta  por  onde  eu  devia  ter  piinci- 
piado  a  historia  1  retrucou  You-hi ;  e  se  tu  não  me 
tivesses  cortado  o  lio  ao  discurso.  .  .» 

—  "A  final,  que  aconteceu?" 

—  n  Aconteceu,  mister  Elfendon,  que  na  noite  em 
que  desappareceu  tua  filha  foi  com  cfleito  apunhalada 
por  assassinos,  e  depois  lançada  ao  Tigre,  como  pro- 
vava o  lenço  do  pescoço  que  te   trouxeram." 

— 11  Ed'ahi  '  "  interrompeu  ElVcndun  arquejando. 

—  II  E  d^ahi  a  corrente  levou  a  pelo  pé  d'um  dos 
nossos  barcos  do  (lôres  (1)  d'onde  foi  vista. 

—  E  salvaram-n'a  .' 

—  Moribunda,  seguiiJo  parecia.  Valeu-lheachar- 
se  alli  o  censor  Fo-hu.  Quiz  que  a  transportassem  pa- 
ra sua  casa,  onde  se  curou,  pois  que  a  viste  pouco 
tempo  depois. » 

—  u  E  tu   descobriste   estas    particularidades..  ." 

—  No  barco  de  flores,  onde  tudo  isto  aconteceu.  « 
EfTendpn  saltou  aos  braços  de  \ou-hi. 

—  Es  o  meu  salvador,  You-hi !  exclamou  elle  fo- 
ra de  si  ;  dever-te-hei  minha  filha.  Mas  como  a  hei 
de  exigir  de  quem  a  agasalhou?" 

O  negociante  cliiu.i  abanou  a  cabeça. 

—  iiFohu  ha  Ue  pôr  muita  difficuldadeemfd  res- 
tituir, disse  elle,  porque  lhe  morreram  todos  os  seus 
filhose  tem  uma  avareza  insaciável.  Ha  de  casar  tua 
filha  com  algum  mandarim  da  corte,  mediante  gran- 
de somma. 

—  II  Ciue  dizes?    Pedirei   justiça    ao   imperador." 

—  «E  como  lhe  has  de  fazer  entregar  a  tua  sup- 
plica  ?  » 

—  a  Tens  razão,  disse  EfTendon  ancioso  •,  se  os  man- 
darins servem  de  medianeiros  interceptam-n"a  i  mas 
eu  não  po-.so  fia-la  de  mãos  seguras.'  .  ,  .  Tu  mesmo 
You-hi,  negar-te-hias  a  leva-la  a  Peking,  se  eu  te 
promeltesse.  .  .  " 

1  Não  proinettas  nada,  acudiu  logo  o  mercador  :, 

melter-me  eu  n'e6te  negocio  era  deifar-me  a  perder." 

—  11  (lue  me  dizes  ?  " 

—  Já  le  esqueceu  que  nos  é  vedado  ter  relações 
com  estrangeiros,  fora  as  do  nosso  commercio  ?  Não 
podia  encarrogar-me  da  tua  reclamação  sem  mostrar 
que  violara  a  lei  imposta  aos  homens  da  dinastia  de 
Han.  " 

— 11  Não  importa!  eu  acharei  alguém." 

—  Ningurm,  Ellondon,  ninguém. 

—  «Mas  que  hei  de  eu  então  fazer?"  exclamou  o 
americano  desesperado. 

You-hi  encolheu  os  hombros. 

— 11  Contcntar-te  com  saber  que  tuu  filhu  esl.'t  sal- 
va. .  .  >' 

— 11  Nunca  !  bradou  EiTcndon.  Uisse  muitas  vezes 
que  a  vontade  podia  abalar  montanhas  i  chegou  o  mo- 


mento de  o  provar.  A  despeito  de  to  los  os  obstácu- 
los hei  de  vêr  Maria  ou  encontrar  a  morte. 

{Continua.) 


M.  .M.   B.  DU  150CAGE. 


O  i'i!iNcirio  do  presente  século  viu  apagar-se  um 
brilhante  meteoro  que  fulgurou  entre  oj  astros  da  poe- 
sia portugucza  :  no  curto  espaço  da  sua  apparição  der- 
ramou maior  copia  de  luz  que  outros  em  dilatado  gy- 
ro.  Uma  vida  de  trinta  e  noveannos,  decorridos  en- 
tre 176G  e  180o,  assignalou-se  por  grande  numero 
de  composições  nos  vários  géneros  da  poesia  lyrica, 
recebidas  avidamente  do  publico,  e  applaudidascom 
tanto  enthusiasmo  que  requintava  em  frenesi.  Ne- 
nhum dos  nossos  vates  foi  mais  popular,  nenhum  en- 
grinaldou a  frente  com  m.iis  vecojante  e  farta  corOa 
de  louros,  do  que  Manuel  Maria  líarbosa  du  Bocage. 
.\  natureza  o  dot.ira  de  imaginação  viva  e  de  extre- 
ma sensibilidade,  que  transparecem  na    maioria   dos 


^l )  Barcos  ornados  de  Oores,  onde  ha  Ioda  a  qualtd.idc 
de  divenimenios.  Alli  se  reunem  os  chinas  a  noiío,  como  nós 
nas  assembléas  philarmouicas, 


seus  versos,  filhos  d*aqnel!a  facilidade  e  vchemencia 
de  estylo,  que  derivam  da  inspiração  intima  :  nssci'- 
ra  poeta,  como  cllc  próprio  dii : 


Das  faixas  infantis  despido  apenas 
Sentia  o  sacro  fogo  arder  na  mente. 


I 


Assim  como  ha  pintores  que,  ape$.ir  de  incorrec- 
ções no  desenho,  caplivum  pelas  graças  do  colorido, 
l^ocage  encanta  e  arrebata  pela  vivet.i  das  expressões, 
e  pela  harmonia  do  melro.  Seja-nos  licito  diíer  que 
crooH  uma  linguagem  sua  enérgica  c  ao  mesmo  tem- 
po flexivel  n  todos  os  assumptos,  distinela  não  tanto 
pela  abundância  como  pela  e«cp|h.t  das  palavras  ;  a 
collocação  d"cst.T?,  raras  veies  de  muitas  syllabas,  aju- 
dando a  cadencia  do  rythmo,  a  propriedade  dos  epi- 
thclos,  explicam  a  complacência  coot    que   declainâ- 


o  PANORAMA. 


Í0\ 


mos  05  versos  d'este  poeta  i  a  dicção  nas  composições 
eróticas  corre  íluente,  é  maviosa  ^  nas  satíricas  ú  for- 
te, pungente  e  até  acerba  ^  porém  sempre  correcta  e 
harmónica  a  versificação. —  Bocage  sobrPsaíu  princi- 
palmente nos  apologos,  idílios,  caiiçoneta?,  sonetos e 
outros  epigramnias,  e  também  com  muito  primor  no 
género  eiegiaco.  Como  improvisador,  iipuliiim  tive- 
mos de  tanta  nomeada,  nem  mais  prompto  e  fecun- 
do;  causava  assonil>ro  aos  que  oouviampela  aflluen- 
cia  e  variedade  das  rimas,  e  pela  presteza  dos  impro- 
visos, que  uns  a  outros  se  succediam  sobre  o  mesmo 
assumpto  como  um  torrente  copiosa  :  muitas  doestas 
composições  instantâneas,  que  os  curiosos   seus   con- 

Houve  tempo  fatal  em  que  arte  infensa, 
Guerra  aos  mais  bcUos  sitios  declarando, 
Enchendo  os  valles,  arrazando  os  montes, 
Formou  do  chão  gentil  planicie  ingrata. 
Hoje,  rural  tyraniio,  outro  artificio 
Q.uer,  por  contrario  abuso,  erguer  montanhas, 
Valles  quer  profundar.  Longe  us  excessos, 
lionge  as  lidas  e  ardis  ;  tudo  ó  lialdado 
Contra  iutractaveis  repugnantes  serros-, 
E>  sobre  terra  igual  montinho  humilde 
Cuida  ser  picturesco  e  move  a  riso. 

em  quadro  estreito 

Não  vás  aprisionar  montanhas,  bosques, 
Nem  lagos,  nem  ribeiras.  E  costume 
iíombar  dVsses  jardins,  parodia  absurda 
Dos  rasgos  que  a  atrevida  natureza 
No  seu  grande  espectáculo  derrama  ^ 
Jardins  em  que  a  arte  rude  e  inverosímil 
Um  paiz  todo  n^uma  geira  encerra. 

Enumerar  as  composições  do  nosso  vate  fora  ocioso 
trabalho,  por  quanto  geralmente  siio  conhecidas,  ainda 
dos  indoutos,  a  ponto  que  ha  muita  gente  que  não  sa- 
be de  mais  de  dois  poetas,  Camões  e  Bocage  ;  e  na  ver- 
dade, depois  do  grande  épico  nacional,  nenhum  é  mais 
popular  e  estimado  em  a  nossa  terra. 

Bocage  nasceu  em  Setúbal,  pátria  do  auclor  do  yí/- 
fonto  AJricanOf  aos  17  de  Setembro  de  1700.  Teve 
por  pai  o  bacharelem  Uireitu,  José  Lui?.  Soares  Bar- 
bosa, muito  dado  á  poesia,  qu<!  versejava  com  bom 
gosto,  e  que  serviu  com  distincção  alguns  lugares  da 
magistratura.  Sua  mãi  fui  1).  Marianna  Joaquina 
Xavier  du  JSocage,  íilha  de  Gil  Tlluduisdu  Bocage, 
natural  de  Cherburgo,  que  serviu  no  exercito  portu- 
guez  com  a  patente  de  coronel,  e  era  sobrinho  lic 
M.°"  du  Bocage,  auctorada  Columbiada  ^  d'(sto  poe- 
ma emprehendeu  o  nosso  vate  afraducção,  cocome 
ço  du  seu  tralialhu  anela  na  cullecção  das  suasrinjas. 

A.  educação  litteraria  de  iJocage  não  foi  Ião  regu- 
lar e  seguida  como  podia  esperar  se  da  epochadosco 
nascimento;  com  alguma»  lii,'ui'H  ila  grainnialioa  lati- 
na, que  llie  ensinou  um  padre  iicspanliol,  o  professor 
1).  João  de  Medina,  e  com  as  noções  ilu  idioma  frau- 
ccz,  que  aprendeu  na  casa  paterna,  subiu  a  altura 
do  seu  génio  á  elevação  a  ijue  não  allingem  quasi 
todos  os  <|Ue  ri'cr'lieni  a  pausad.i  e  s^sl<nialica  ins 
trucção  das  aula».  Deveu  luilo  ao  [iroprio  engenho,  ;i 
natural  perspicácia  ;  «prendeu  sem  mestre  o  it.ilia- 
iio,  e  o  soubi!  como  prova  a  tracbicção  primorosa  ilo 
drama  de  Mi;t,ista»io — Atilio  Uegolo.  —  Não  sabe- 
mos dizer  «I!  elle  entendia  lilleralinente  us  textos 
qu(!  punha  em  vulgar,  parece  que  adivinhava  por 
inslinito  us  pi^nsanientos  o  a»  i<li-as ;  e  se  em  maté- 
ria <le  bom  gosto  (|ui/erem  averiguar  n  »uii  escolha, 
basla  biu<|ar  o»  olhos  para  oa  fragmentos  i|Ue  trasla- 
dou de  auctores  selectos.  —  Não  era  por  certo  esln 
natural  tendência  u  mais  propriu  paru  fuicr  de   um 


temporaneos  guardaram,  farão  desesperar  os  que  mar- 
tellam  versos  no  silencio  do  gabinete. 

Foi  Iraductor  elegantissimo,  e  tão  conciso  quanto 
o  permittiam  a  fidelidade  ao  texto  e  as  leis  do  metro. 
Sendo  fácil  citar  muitos  exemplos  que  mostram  a  sua 
perícia  nVste  género,  apontaremos  um  só  que  por 
acaso  temos  á  mão.  E  um  pequeno  trecho  contra  o 
detestável  gosto  dos  jardins  ridículos,  ou  antes  paisa- 
gens de  presépio  e  verdadeiros  brincos  de  criança, 
ainda  muito  em  voga  no  presente  século.  Pomos  em 
frente  o  texto  francez  do  poeta  didáctico  por  excel- 
lencia,  Jacques  Delille,  para  realç.ir  o  merecimento 
da  versão. 

II  fiit  un  femps  funeste  ou  tourmentant  la  terre, 
Aux  sites  les  plus  beaux  Tart  déclarait  la  guerre. 
Et  comblant  les  vallons,  et  rasant  les  coteaux, 
D"un  sol  heureux  formait  d'iiisipides  plateaux. 
Par  un  contraire  abus,  Part,  t^ran  des  campagnes, 
Aujourd°hui  vent  créer  des  vallons,  des  montagnes^ 
Evitei  cea  excès  :  vos  soins  infructueux 
Vainement  comliattraient  un  terrain  montueux, 
Et  daiis  un  sol  égal  un  humhle  monticule 
Veul  étre  píttoresque,  et  n'cst  que  ridicule. 

N'alle2  pas  resserrer  dans  des  cadres  étroits 
Des  rivières,  des  lacs,  des  montagnes,  des  bois. 
On  rit  de  ces  jardins,  absurde  parodie 
Des  traits  cjue  jette  en  grand  l.i  naturo  hardie  ^ 
Oíi  Part,  invraisemblable  .i-la-fois  et  grossier. 
Enferme  en  un  arpent  un  pays  tout  entier. 

engenho  precoce  um  auctor  original;  massenosper- 
mittirem  a  phrase  u  originalidade  de  expressões" 
ninguém  superior  a  Bocage  na  basta  chusma  dos 
nossos  versificadores  ;  porque  poetas!  '.  !  llarissimos  ! 
Mas  Bocage  tinha  a  alma  d'um  poeta  ,  e  ella  ahi 
está  viva  em  versos  que  não  saem  do  Parnaso  lusita- 
no, que  não  se  riscarão  da  memoria  dos  amantes  da 
poesia.  Edemais,  é  Bocage  tão  portuguez  na  lingua- 
gem, (lue  o  numcrom  lilianno,  como  o  appellidou 
Kilinto  Elysio,  ha  de  a  par  d"este  conservar  o  seu 
busto  no  Capitólio  das  musas  portuguezas,  posto  que 
para  o  conquistar  seguisse  cada  um  d'elles  diversa 
vereda.  (Contimta.) 

A    ILHA   CcLEItES I\I.»C.\S3AB. 

(Continuado  de  pag.  90.) 

E  sAiiiuo  que  unia  lei  severíssima  defende  a  salda 
das  nndheres  do  ciltsle  fin/itíi')  :  penas  nuii  atrozes  e 
horríveis  tractos  a  tornam  de  tal  sorte  formidável, 
ijue  nem  sequer  intentam  iid'ringí-la ;  por  isso  os 
chinas  (]ue  se  expatriam  para  as  colónias  hoUande- 
zas  não  teem  mais  remédio  senão  desposarem-se  con\ 
mnlhires  malaias  ;  coinpram-n'as  couu>  escravas,  o 
inenlcam-llies  as  practicas  e  usos  da  mãi  pátria,  em 
ijue  são  (rdncados  os  f\llios  ;  os  quues,  posto  que  to- 
iiliam  saíilo  á  luz  mui  arredados  da  China,  são  tão 
allerrados  á»  ideas  o  religião  em  vigor  n'aquclleim- 
|ieiio  como  se  n'elle  himvessen»  nascido;  aonicadif- 
lerene.i  appnrente  ó  a  cilr  da  pidle  um  pomo  mais 
escura.  l'or  isso  <•  de  notar  que  o  t_v|u>  china,  tão  ca- 
racterístico, acha-se  assignabulo  nos  troncos  d'esta 
casta  :  embora  mestiços,  «luando  mesmo  ii  geração, 
|)or  muitas  allianças  successivas,  se  cruza  com  san- 
gue estrangeiro,  rcconhece-su  sempre  a  phjsiouomi.H 
original. 


\02 


O  PANORAMA. 


A  physionomia  dos  malaios  é  a  mesma  em  toda  a 
parte-,  só  differe  em  graus  miniraos.  Aqui  se  acham 
também  os  bellos  cabellos  pretos,  os  olhos  contrahi- 
dos,  as  maçãs  do  rosto  largas  mas  salientes,  o  rosto 
achatado,  o  nariz  pequeno,  a  bocca  mui  rasgada,  os 
beiros  grossos,  constantemente semi-abeitos  e corados 
ptlo  jumo  do  betele  (1),  deixando  vêr  uma  deforme 
enfiada  de  dentes  denegridos.  Os  bougiiís  teem,  de- 
mais que  as  outras  raças,  uma  certa  dureza  no  sem- 
blante, mas  não  se  diATerençam  quanto  a  feições.  O 
corpo  é  geralmente  bem  conformado,  mais  ágil  do 
que  robusto,  gracioso  posto  que  de  altura  meã,  cheio 
de  carnes,  o  que  parece  bem  á  vista,  mas  denota 
mais  a  nutrição  do  que  a  força  muscular.  O  trajo 
dos  bouguís  é  uniforme,  consta  de  ceroulas  curtas, 
de  um  lenço  que  cinge  a  cabeça,  e  do  sarong,  espé- 
cie de  sacco  sem  fundo  que  trazem  a  tiracoUo,  eem 
que  se  embrulham  pela  tarde,  quando  a  fresquidão 
da  noite  succede  aos  ardores  do  dia.  Gluasi  todos 
trazem  o  cris  á  esquerda  prezo  a  um  cinturão  i  ás  ve- 
zes deixam  cair  a  ponta  da  tal  faxa  a  tiracollo  sobre 
o  punho  u'aquella  arma,  e  cruzam  as  mãos  seguran- 
do-a  com  donaire:  c-lhes  natural  esta  postura  em  si- 
tuação de  repouso  :  é  bastante  engraçada  e  pictures 
ca,  como  em  geral  todas  as  suas  altitudes  do  corpo, 
livre  de  toda  a  sujeição. — As  mulheres  trajam  á 
moda  de  todas  as  malaias,  isto  é,  uma  saia  de  mui- 
to pouca  roda,  e  uma  camisola  que  tapa  c  tronco  do 
corpo;  algumas  ha  que  desprezam  esta  camisola,  e 
trazem  simplesmente  o  saiong  seguro  com  uma  so 
volta  acima  ou  abaixo  do  seio.  Exclusivamente  con- 
sagradas ao  amanho  caseiro,  não  apparecem  a  miú- 
do em  publico:  a  phvsionomia  das  mulheres  de  Ma- 
cassar  é  em  geral  repugnante  a  olhos  europeus :  o 
metal  da  voz,  também  dus  homens,  tem  um  tanto 
de  snave,  encanta  e  attrahe  a  attenção,-  se  porém 
olhardes  para  a  bocca  d'onde  sáe  a  melodia,  cessa  lo- 
go o  prestigio.  Um  facto  extraordinário  entre  um 
povo  que  professa  o  mahometanismo,  é  a  facilidade 
dos  costumes  das  mulheres  a  respeito  dos  estrangeiros. 

O  território  hollandez  de  Macassarestá  encravado 
nos  dominios  do  s\iltão  de  Goá,  que  reside  juncto  ao 
rio  do  mesmo  nome,  a  três  léguas  da  cidade  i  a  sua 
morada  nada  olVereoe  digno  lie  menção,  a  sua  corte 
é  uma  aldeia  malaia,  como  todas  as  mais;  e  comtu- 
do  é  supremo  cabeça  de  uma  população  de  cem  mil 
pessoas,  que  tantos  são  ca  súbditos  que  lhe  calculam. 
Posto  que  independente,  é  um  alliado  fiel  dogover- 
no  (l'lIollanda,  e  tem  dado  muitas  pro\as  de  de- 
voção aos  interesses  d'esta  potencia.  As  suas  tropas 
sobem  a  dez  mil  homens,  todos  de  cavallo ;  alguns 
trazem  cotas  de  malha,  elmos,  e  escudos;  todos  se 
servem  de  lanças,  e  pouquíssimos  de  armas  de  fogo. 
Abundam  os  cavallos  na  ilha,  e,  por  sua  boa  quali- 
dade, são  apreciados  cm  todo  o  archipelago;  a  mar- 
ca é  pequena,  mas  são  fogosos,  e  ainda  nas  longas 
jornadas  sustentam   a  celeridade  do  passo.  j 

Os  naturaes  de  Macassar,  propensos  a  uma  indo-  ' 
lencia  ipie  é  [iroverbial,  parece  terem  ganho  pouco 
no  tracto  da  civilisação  mais  avantajada,  ou  só  te- 
rem adquirido  os  vicios  d"esta.  Oi  chinas  os  presen- 
tearam com  as  cartas  de  Jogar  e  o  ópio,  e  os  euro- 
peus com  o  vinho.  São  desesperados  jogadores;  em 
toda  a  parte  se  entregam  os  mslaios  a  esta  paixão, 
mas  em  nenhuma  tanto  como  em  Macassar :  não 
usam  só  do  baralho,  mas  tair.bem  dos  dados.  No  ba- 
zar ha  barracas  miseráveis,  onde  uma  íurba  ávida  se 
apinha,  até  fora  de  horas,  de  redor  de  um  jogo  de 
três  dados.    1'ara  formar  idén  d''esta   scena   enojosa, 

(1)  Herva  que  de  continuo  mascam  os  povo» 
d'esfa5  regiões. 


era  mister  observar  os  rostos  hediondos  da  plebe, 
ainda  mais  desfeados  pela  expreisão  da  anciã  e  do 
temor  da  perda,  allumiadus  pela  claridade  vacillan- 
le  de  duas  lanternas  estropeadas:  julgar-se-ba  o  ob- 
servador transportado  á  região  infernal,  tão  atrozes 
são  as  physionumias  d'aquelles  homens,  anciosos,  ar- 
quejantes, e  de  vez  em  quando  levando  a  mão  aos 
punhaes,  que  nunca  desamparam. 

A  embriaguez  du  ópio  c  do  vinho  concorre  para  a 
bruteza  da  classe  intima  ;  de  raro  comtudosuccedem 
sccnas  de  assassínios  por  uso  immoderado  do  ópio,  co- 
mo na  Java  acontece  ;  ou  porque  baja  mais  efljcat  po- 
licia, ou  porque  seja  menos  vulgar  o  abuso  d'aqaella 
droga.  —  E  practica  habitual  do  povo  tomar  a  comi- 
da á  entrada  da  noite ,-  e  com  effeito  é  hora  bera  et- 
colhida  n'uma  clima  tão  cálido;  até  as  nove  boras 
gyram  entre  a  multidão  oi  vendedores  de  bolos  de  ar- 
roz amassados,  de  ovos  cosidos,  e  de  bananas  fritas, 
oflerecendo  os  comestíveis  por  vil  preço.  A  barateia 
é  tal,  que  uma  dúzia  de  galinhas  custa  uma  pezo  du- 
ro hespanhol,  e  pelo  mesmo  preço  se  alcançam  até 
dúzia  e  meia  de  patos;  e  assim  mesmo  dizia  um  em- 
pregado da  administração  hollandeza  que  havia  três 
annos  que  tinha  triplicado  o  custo  dos  provimentos 
de  bocca. 

A  ilha  Celebes  é  farta  de  caça,  e  também  possue 
animaes  corpulentos  ;  mas  não  ha  que  temer  os  es- 
tragos das  feras,  porque  não  existem  os  tigres  que 
em  tanta  quantidade  apparecem  em  Borneo,  e  na 
Java  e  Sumatra  :  porém  ha  crocodilos  como  praga, 
que  por  toda  a  banda  saem  ás  praias  regulando  se  á 
soalheira  ;  para  obter  um  d'elles  basta  dar  algum  di- 
nheiro aos  indígenas  :  alguns  são  monstruosos  de  ta- 
manho, ha-os  de  trinta  palmos  de  comprimento  des- 
de a  ponta  da  cauda.  —  Contaram-n'us  a  respeito 
d'elles  o  seguinte  caso. 

Os  crocodilos  frequentam  a  ribeira  quasi  até  o 
pé  da  cidade,  e  por  vezes  atrevem-se  a  chegar  de 
noite  muito  próximo  dobaiar.  N 'estas corridas  noc- 
turnas um  pilhou  a  geito  um  menino  china  desgar- 
rado, e  tragou  o  de  um  sorvo.  O  pai  do  rapai advi- 
nhou  logo  o  roubador,  e,  não  duvidando  que  estives- 
se perto,  iscou  um  forte  anzol  ou  arpéuci>m  um  cão 
vivo,  cujos  gritos,  ao  que  dizem,  attrahem  aquelles 
vorazes  amphibios  ;  assim  capturou  o  inimigo.  Vio- 
se  então  em  toda  a  sua  latitude  o  caracter  china.  O 
pai,  lodo  embebido  na  vingança,  amarrou  segura- 
mente u  preza  á  praia,  e  por  três  dias  contínuos  não 
a  largou  um  instante;  com  infatigável  perseverança 
recreavase  em  alancear  o  animal  captivo  nas  partes 
vulneráveis  porém  menos  perigosas;  atormcntou-o 
com  tal  refinação  de  crueldade,  que  a  linal  aborrecia 
á  gente  da  terra,  porque  tudo  acudia  a  vêr  o  espec- 
táculo. Quando  o  monstro  acabou  de  lodo,  abriu-o, 
extrahiu  a  ossada  do  filho  com  minucioso  cuidado, 
enterrou-a,  e,  nodiaseguínte,  continuou  serenamen- 
te a  carreira  habitual  das  suas  occupações  mercantis. 

Ha  veados  em  grande  quantidade  nns  visinhanças 
de  .^Iacassar,  e  caçam-n'os  d''ufn  modo  que  merece 
descrípto. —  A  caçada  é  feita  a  cavallo;  ocavalleiro 
arma-si>  de  um  bambu  de  nove  a  doie  palmos  de 
cumprido,  que  le\a  n'uma  ponta  um  ferro  de  lança, 
e  na  outra  extremidade  un)  laço  corredio  de  couro. 
O  caçador  persegue  o  veado  nas  vastas  planícies  in- 
teriores até  lhe  poder  lançar  ao  pescoço  o  laço,  des- 
embaraça e  revira  a  lança,  e  o  primor  da  desirna 
é  matar  de  um  jacto.  Não  c  isenta  He  perigo  a  caça 
quando  succede  atacar  o  «eado  oseu  antagonista,  ou 
arrasta-lo  na  carreira  para  sítio  onde  n.^o  podem  se- 
guir os  cavallos.  l'ara  este  exercício  c  preciso  ser 
bom  cavalleiro.  e  o  faiem  com  um.ts  sellas  muito  ra- 
sos, e  sem  estribos;  o  que  parece   impossível,    posto 


o  PANORAMA. 


Á05 


que  repetidas  vezes  no-lo  affirmaram,  é  cjue  a  cor- 
reia que  prende  o  veado  é  amarrada  ao  freio  e  uão 
á  sella  ;  o  iiomem  de  per  si  só  não  poderia  resistir 
aos  esforços  do  animal  perseguido,  e  parece  queoca- 
vallo,  puxado  d'aquelle  modo,  oppõe  resistência  que 
embaraça  a  fuga  da  victima  e  llieaccelera  a  morte. 

Outra  maneira  de  apanljar  os  veados,  original 
também,  porém  menos  arriscada,  consiste  em  guar- 
necer de  anzoes  os  cacbos  dos  fructos  de  uma  arvore 
especial  da  illia  mas  alli  muito  comnuim,  e  de  que 
são  muito  gulosos  aquelles  animaes,  que,  erguendo- 
86  sobre  os  jarretes  para  os  abocarem,  íicam  prezos 
pelo  anzol  :  semelhantes  ciladas  lhes  armam  á  beira 
dos  rios,  onde  costumam  beber.  Não  concluiremos 
sem  fallar  do  famigerado  óleo  de  Macassar  :  com  ef- 
feito  existe,  e  scrvemse  d'elli;  os  indígenas,  princi- 
palmente as  mulheris-,  vende-se  por  baixo  preço, 
uma  rupia  quatro  frasquinhos  :,  mas  não  tem  a  trans- 
parência, nem  o  perfume  do  que  vendem  os  nossos 
cabelleireiros  :  é  ruivo,  espesso,  e  deita  um  cheiro  for- 
tedecarvão  de  pedra  que  nada  tem  de  agradável.  Kx- 
tralie  se  das  amêndoas  que  produz  uma  arvore  alta  e 
de  folhas  digitadas,  que  parecem  de  nogueira  :  pi- 
zam-n'us  em  gral,  e,  depois  de  enxuta  a  massa,  ob- 
tem-se  o  óleo  por  meio  da  fervura  em  agua  •,  depois 
o  misturam  com  vários  ingredientes  que  o  tornam 
completo.   Aarvore  chama-se  íiat/ó  em  liugua  malaia. 

Em  resumo,  Macassar  appresenta  ao  estrangeiro  o 
aspecto  de  uma  colónia,  mais  importante  pela  sua  si- 
tuação do  que  pelas  suas  producções.  Actualmente  o 
seu  commercio  todo  consiste  no  que  dá  o  terreno, 
arroz,  gados,  e  a  pescaria  que  se  exporta.  A  im- 
portação esti  reduzida  a  objectos  miúdos  de  consu- 
mo, chitas,  ópio,  e  algumas  fazendas  de  uso  dos  eu- 
ropeus. Se  uma  administração  mais  activa  tomasse  a 
direcção  d'esta  colónia,  vêr-se-hia  indubitavelmente, 
dentro  de  poucos  annos,  cessar  a  pirataria  de  infes- 
tar os  mares  circumdantes,  adiantar-se  a  cultura 
i)'um  chão  fecundo,  desenvolver-se  a  industria  e  o 
commercio,  transformando  a  ilha  inteira,  e  tornan- 
do-a  a  mais  llurecente  possessão  hollandeza  das  ín- 
dias, assim  como  é,  quanto  á  extensão,  a  mais  im- 
portante. 

O    l'ELOTiaVKIIlO    INCOMllUSTIVEL. 

Em  180!)  appareceu  cm  l'arís,  e  depois  na  Inglater- 
ra, Itália  e  na  Allemanha,  um  hespanbol  por  nome 
Ijionettu,  que,  pela  sua  insensibilidade,  não  só  fez 
pasmar  o  povo,  mas  também  os  physicos  e  os  chy- 
micMS.  lirincava  com  o  fogo  sem  se  queimar,  c  pe- 
gava impun(>meiite  n'uma  barra  de  ferro  em  braza  e 
cm  chumbo  derretido,  bebia  azeite  a  ferver,  &c. 

Gluando  Lionetto  esteve  em  Nápoles,  chamou  a 
attenção  do  professor  Semenlini,  qui:  se  ap|ilicou  a 
estuda-lo.  Viu,  1."  <|ue  o  homem  incombustível  pu- 
pila uma  chapa  de  ferro  em  braza  em  cinui  do»  ca- 
bellos,  e  ipie  logo  se  levantava  um  va|>or  espesso  e 
denso-,  iJ."  batia  com  outro  lerro  em  braza  no  calca- 
iiliur  e  no  bico  do  pé,  e  levanlava-se  irisle  um  va- 
por espesso  e  Ião  picante  <|ue  inciimmudava  o  ollaclo 
e  a  visla  :,.'}."  feirava  os  dentes  n'um  firrii  (|Uiisi  em 
braza  sem  sn  <|ueimar;  4."  brbi»  quasi  a  l(M(;a  parle 
d'uma  colher  de  uzeil(í  a  ferver;  'o."  mergulíiava  ra- 
pidamenlí-  m  punias  dos  ileilos  em  chumbo  derri-ti- 
do,  e  punha  iim  piunu)  cie  einnnbo  sobre  a  língua,  e 
depois  um  ferro  em  braza.  Sementiní  observou  qn<! 
a  lingua  ile  liíoiiello  eslava  eobcria  de  uma  eamaila 
cinzeiíla.  I'',ile  chymíeo,  desejoso  de  descobrir  o  se- 
gredo dl!  liionello,  tentou  diversas  experiências  em 
8Í  incarno,  e  conheceu  : 

t."  (lue  por  meio  das  fricções  com   ucidos,    espe- 


cialmente com  o  acido  sulphurico  diluido  se  tornava 
a  pelle  insensível  ao  calor  do  ferro  em  braza. 

2."  Uma  Éolução  de  pedra  hume  evaporada  ale 
ficar  esponjosa,  e  empregada  em  fricções,  fazia  ain- 
da melhor  effeito.  Sementini,  depois  de  haver  esfre- 
gado com  sabão  duro  as  partes  do  corpo  tornadas  in- 
combustíveis ou  antes  insensíveis,  e  de  as  ter  depois 
lavado,  reconheceu,  pondo-lhe  em  cima  uma  chapa 
de  ferro  em  braza,  que  a  insensibilidade  auo-mentá- 
ra.  Decidiu-se  então  a  esfregar  de  novo  com  sabão  as 
mesmas  partes,  e  não  só  o  ferro  em  braza  lhe  não 
causou  dòr,  mas  nem  os  eabellos  se  lhe  queimaram. 
3."  Satisfeito  com  estas  pesquizas,  esfregou  a  lín- 
gua com  sabão  duro,  e  lhe  ficou  insensível  á  acção 
do  ferro  em  braza. 

i.°  Pondo  sobre  a  /íngua  um  emboço  composto 
de  sabão  e  d'uma  solução  saturada  de  pedra  bume, 
a  ferver,  o  ferro  em  braza  não  lhe  causou  sensação 
alguma. 

vi."  O  azeite  a  ferver  espalhado  pela  língua  assim 
preparada  não  a  queimou;  ouvia-se  um  assobio  pa- 
recido com  o  do  ferro  quando  se  apaga  n'dgua-,  o 
azeite  ficava  morno,  e  podia  por  conseguinte  seren- 
gulido  sem  perigo.  ' 

Estes  resultados,  obtidos  porSementini,  tendem  a 
explicar  as  experiências  de  Lionef  to.  Éevidenleque 
elle  preparava  a  língua  e  a  pelle  por  meios  análogos. 
Quanto  á  experiência  dos  eabellos,  é  certo  que  antes 
dl!  lhe  passar  por  cima  o  ferro  em  braza  os  lavava 
com  uma  solução  análoga  á  da  pedra  home,  ou  com 
acido  sulphurico.  Quanto  ao  azeite  a  ferver  que  en- 
gulia,  é  este  phenomeno  menos  pasmoso  para  quem 
observar  que,  quando  elle  procurava  demonstrar  a 
alia  temperatura  do  azeite,  lhe  deitava  dentro  chum- 
bo, que,  derreleiído-se,  absorvia  por  conseguinte  par- 
te do  calórico  do  azeite,  do  qu.il  derramava  depois 
com  ligeireza  a  quarta  parte  d'uma  colher  sobre  a 
língua,  onde  esfriava  a  ponto  de  poder  ser  engolido 
sem  lhe  fazer  mal.  A  falta  de  acção  do  chumbo  sobre 
a  língua  assim  forrada,  resulta  também  do  prompto 
resfriamenlo.  E'comtudo  provável  que,  em  vez  de 
chumbo,  Lionetto  empregasse  alguma  liga  fusível, 
tal  como  a  de  Darcet. 

Não  levaremos  mais  adiante  este  exame;  muitos 
pbvsicos  repetiram  com  bom  resultado  estas  expe- 
riências. Parece,  diz  Mr.  Julíon  de  l''ontenelle  no 
fim  d'isle  artigo,  que  o  hespanbol  Lionetto,  quando 
asemprehendeu,  teve  seu  susto  de  vir  algum  dia  parar 
á  inquisição. 

AUOMENTO   CnAllCAl    DE   C,\LOn   NAS  EKTRANII AS 
DA    TEUllA. 

CoNCLiíE-SE  das  observações  de  Rir.  Arago,  repeti- 
das em  diversos  paízes,  que  o  calor  da  terra  cresce 
na  razão  da  profundidade,  o  segue  no  seu  aii^mento 
uma  marcha  regul.ir  e  conslanie.  Por  cada  quinze 
braças  de  proliindídade  marca  o  ihermomelro  mais 
um  grau;  e  isto  quer  .te  meça  a  temperatura  dasnii- 
nas  mais  profundas,  quer  se  exiimíne,  como  fez  aijuel- 
h-distíncto  pb.ysiro,  a  da»  fontes  situadas  em  profun- 
didades conhecidas. 


Uenzkuitkas  na   Hussia. 

1'',  uuANDu  na  Hussia,  sobre  tu.lo  eni  Moscow  e  ou- 
tra» cidades  interiores,  a  inIlueiK-ia  do  clero.  Aí  ce- 
reinonias  religiosa»  do  rílo  grego,  <|uo  éo  <la  unção, 
Icem  certo  cunho  de  singularidade,  e  n  despeito  de 
eerlii  apparencia  do  parentesco  eoin  o  rilo  romano, 
não  deixu  de  maravilhar   o»  calholioos.   O  Sr.  Mur- 


104 


O  PANORAMA. 


tnier  nas  «  Cartas  sobre  a  Rússia  "  diz  :  —  «  Não  ha 
povo  fjue  receba  mais  bênçãos  sacerdotaesque  o  povo 
russiano  :  tenin'a9  para  si  e  os  seus  alliados,  para  as 
casas  que  habita  e  as  terras  que  cultiva,  para  as  sea- 
ras e  os  gados,  para  tudo  o  que  faz  e  tudo  o  que  em- 
preiíende.  Todos  os  annos,  a  6  d'agosto,  estão  as  igre- 
jas cheias  de  peras  e  maçãs  para  os  padres  as  betiie- 
rem  i  antes  d'e5se  dia  nenhum  verdadeiro  fiel  ousa- 
ria comer  um  pomo.  Apenas  finda  a  ceremonia  reli- 
giosa, toda  a  gente  se  arremeça  ás  celtas  rociadas  de 
agua  benta  :  todos  saem  de  algibeiras  e  mãos  cheias, 
saboreando  e  devorando  os  fructos  consagrados.  Nao 
c  a  sensualidade  grosseira  que  anima  aquella  multi- 
dão, não  é  liojnenagem  que  tribute  á  divindade  pa- 
gã, Pomoiia  •,  é  um  sentimento  de  piedade  e  fé  de 
que  está  possuida.  A  (i  de  janeiro  bcnzem-se  os  rios 
e  ribeiros:  o  padre  encaminha  se  para  as  margens 
com  grande  pompa,  manda  fazer  um  furo  no  gelo,  e 
por  ahi  mergulha  três  vezes  uma  cruz,  rezando  certas 
orações:  logo  as  mulheres  acodem  com  vasos  e  baldes 
para  tomar  d'aquella  agua  abençoada,  os  homens  a 
disputam  entre  si  e  bebem-n'aa  grandes  tragos  :  re- 
cresce o  tropel,  dão-sc  encontrões,  e  arrebatam  uns 
aos  outros  os  copos  e  frascos.-  é  uma  balbúrdia  por  al- 
gumas horas,  uma  lucta  entre  a  força  e  a  destreza, 
entre  a  audácia  e  a  astúcia.  Um  artificial  chafariz 
de  vinho  a  correr  n'uma  de  nossas  praças  publicas, 
cm  dia  de  festa  nacional,  não  causaria  mais  rumor. 
—  Esta  mesma  igreja,  que  abençoa  tantas  cousas, 
também  tem  suas  horas  demaldicção.  lia  um  dia  do 
anno,  em  o  qual,  na  cathedral  do  S.  Petersburgo  c 
em  meio  de  numerosa  assembléa,  o  cantor  da  seque 
tem  voz  mais  retumbante  pronuncia  alternadamente 
o  nome  dos  hereges  mais  celebres,  e  os  nomes  dos  fio- 
mens  que  lêem  causado  sedicções  e  desordens  no  im- 
pério riissiano  :  por  exemplo,  de  Boris  GonodofT  que 
usurpou  o  throno  dos  czares,  de  Mazzeppa,  intrépido 
caudilho  dos  cossacos,  de  Pngatscheff  quese  inculcou 
por  Pedro  III  etc.  ,  e  a  cada  nome  fulmina  cjm  o 
brado  nnnthema,  que  estruge  as  abobadas  do  templo. 
N'esso  dia  a  igreja  está  toda  brilhante  de  lumes  e 
inundada  de  intenso,  como  era  festa  solemne,  e  o  me- 
tropolitano no  altar,  revestido  como  em  ceremonias 
augustas.  Um  coro  de  meninos  repete  em  tom  senti- 
do e  melodioso  a  palavra  nnnlhema   " 


Penas  dos  empregados  venaes  bm  Portugal 
E  NA  China. 

A  NOSSA  Ordenação  no  liv.  o."  tif.  LXXI,  ha  mui- 
to tempo  em  di'suso,  prohibe  aos  desembargadores, 
julgadores,  ofiíeiaes  de  justiça  e  fazenda  ,  e  aos  da 
governança  das  cidades,  villas  e  logares  o  receberem 
dadivas  ou  presentes  de  pessoa  alguma,  ainda  que 
com  clles  não  traga  requerimento  de  despacho,  sob 
pena  de  perderem  os  oflicios  e  pagarem  vinte  por 
um  do  que  receberem  ;  e  reputando  mais  criminosa 
a  acção  de  dar  que  a  de  receber,  manda  que  quem 
der  perca  toda  a  sua  fazenda,  qualquer  ofticio  ou 
cargo  que  tiver,  e  o  mantimento  que  receberd'elrei, 
e  seja  degradado  cinco  annos  para   Africa. 

"12  trazendo  feitos  perante  os  dictos  julgadores  e 
desembargadores  o  mais  officiaes  acima  dictos,  ou 
requerendo  desembargo  ou  despacho,  e  recebendo 
qualquer  cous.t  d'a(iuelle  que  assim  trouxer  ou  re- 
querer, ou  de  outros  que  lli'o  der  por  elle,  sendo  ca- 
daum  de  todos  os  sobredictos  officiaes,  ofllcial  que 
tenha  ofllcio  de  juigar,  perca  para  a  nossa  casa  todos 
os  seus  bens  e  o  offitio  que  de  nós  tiver.  K  se  a  pei- 
ta passar  de  cruzado  ou  sua  valia,  ali-m  das  sobre- 
dictus  penas  será  degradado  para  todo  o  sempre  pa- 


ra o  Brasil.  E  sendo  de  cruzado,  e  d'aht  para  bai- 
xo, será  degradado  cinco  annos  para  Africa.  E  sen- 
do a  peita  da  valia  de  dois  marcos  de  prata,  ou 
d'ahi  para  cima,  além  do  perdimento  da  fazenda, 
morrerá  morte  natural.» 

"  E  sendo  o  que  recebeu  a  peita  official  que  não 
tenha  officio  de  julgar,  e  a  receber  trazendo  perante 
elle,  ou  requerendo  qualquer  despacho,  além  de  per- 
der o  officio  pagará  trinta  por  um  do  que  receber, 
ametade  para  quem  o  accusar,  e  a  outra  para  nossa 
camará. 11 

IVo  império  celeste  os  que  se  atrevem  a  conculcat 
os  mais  Siigrados  deveres,  vendendo  as  vidas,  honra, 
e  fazenda  de  seus  concidadãos,  são  punidos  por  uraa 
escala  de  muletas,  bastonadas  e  degredo. 

«Se  o  empregado  civil,  ou  militar,  no  exercicio 
do  seu  emprego,  commetter  delicto  que  mereça  pena 
corporal,  diz  o  Sr.  José  Ignacio  ile  Andrade  nas  suas 
inestimáveis  Carias  cia  índia  e  China,  será  commu- 
tada  em  diminuição  nos  graus  da  sua  ordem,  em 
muleta  ou  degredo,  segundo  o  numero  das  bastona- 
das correspondentes  ao  delicto.  Dez  bastonadas  equi- 
valem ao  salário  de  um  mez  \  vinte  ao  de  dois  me- 
zes  ;  trinta  ao  de  três  ;  quarenta  ao  de  seis  ;  cincoen- 
ta  ao  de  nove  ;  sessenta  ao  salário  de  um  anno  ;  se- 
tenta á  degradação  de  uma  ordem  ;  oitenta  á  de 
duas  ;  noventa  á  de  três  ;  cem  á  de  quatro  ordens  e 
perdimento  do  emprego.  Além  das  penas  menciona- 
das teem  degredos  relativos  ao  numero  das  bastona- 
das, segundo  a  espeie  e  o  grau  do  delicio,  por  um 
mez,  dois,  três,  etc.  ;  até  por  toda  a  vida,  como  ve- 
rás na  tabeliã  seguinte." 

II  (iualquer  funccionario  publico,  que  receber  pre- 
sentes ou  ajustar  recebe-loi,  para  fazer  um  acto  legal 
ou  illegal,  será  punido  era  virtude  da  lei  applicada 
a  tacs  crimes. 

Tabeliã  das punirões  quando  o  aclo  é  legal. 

Valor  em  onças  de  prata.      Bastonadas.      Degredos. 

1 60 

2  a   12 70 

20 80 

30 90 

•iO 100 

50 tiO  .    .   .    .   1     anno 

60 70  ....   1  ;     n 

70 80  ....  2 

80 90  ....  2  i     " 

90 100  ....  3 

100 100  .  por  toda  a  vida. 

"  Sendo  o  acto  illegal  a   pena  é  maior.  " 
'■Ha   outra  lei  singular  que  inllije  pena  de  morte 
a   qualquer   individuo   que  requerer  títulos  honrosos 
ao    imperador,    não  sendo  ja  distincto   por  serviços 
prestados á  nação.  " 

Já  que  falíamos  nas  Cartas  do  Sr.  José  Ignacio  de 
Andrade,  cumpre-nos  declarar  que  são  um  thesouro 
de  noticias  das  cousas  da  (Niina  :  absorvem  toda  a 
atlenção  do  leitor,  recreando  e  instruindo  ^  revindi- 
cara  a  honra  do  nome  porluguet,  e  desmentem  as 
calumnias  profwgadas  por  escriptores  estrangeiros  in- 
vejosos da  nossa  gloria.  O  auclur  não  se  fat  menos 
digno  de  elogios  pela  sua  vasta  erudição,  apurado 
gosto,  e  recto  juiio,  do  que  pelo  amor  da  pátria  que 
vivifica  toda  esta  producção  litlenria.  Desejamos 
que  a  nova  edição  que  se  prrfwra  das  Cartas  do  Sr. 
-Vndrade  vulgarise  a  sua  leitura  quanto  cila»  o  mere- 
cem ,  visto  que  a  primeira,  feita  com  e»mero  que 
honra  a  tvpographia  portugucia,  só  chegou  como  do- 
nativo aos  amigos  do  seu  desinteressado  auctor. 


14 


O  PA.NOllAMA. 


105 


1^  --"^Sm^MA 


:^^^í: 


■^h:â 


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if' 


PAISAGEM  DA  NOVA-CALEDONIA. 


Ah  u.has  Wallis  são  Je  toda  a  Polyuesia  as  únicas 
onde  o  christianismo  derrubou  complelainente  a  ido- 
latria. A  conversão  dos  inili^'i'ii  is  iTcsla  [jcqucua 
parle  do  mundo  uiaiitimo  tviu  :ipcnas  quatro  annos 
de  data.  Ciemos  que  será  inlercssaute  a  narração  das 
fa<li|,'as  que  leve  de  supportar  o  padre  Dataillou  dis- 
dc  o  anuo  de  1^37,  eui  que  pela  primeira  ver  poz 
pé  n'cslas  ilhas,  alé  o  dia  em  que  luram  coroados 
de  exilo  feliz  os  seus  esforços,  f^ogo  ao  principio  foi 
pelos  naluraes  reputado  como  tuji  dos  aventureiros 
vagabunitos  que  o:i  navios  da  |)csca  da  baleia  deixam 
ás  ienes  n'aquellas  praias  :  sem  praticarem  conlra 
clle  acto  algum  do  violência,  eomludo  oarrcdavam 
do  si,  eliamando-liie  nomes  grosseiros.  U  religioso 
ministro,  resignado  com  sua  sorte,  supportava  com 
tranqnillidaile  heróica  os  sens  iiaileeimenlos,  eonlian- 
do  meramenle  no  auxilio  da  l'roYÍdoiKÍa,  celebrando 
missa  ora  no  meio  de  espessuras  im|icnelraveis,  ora 
cercado  de  alguns  ociosos  allrahidos  (!(•  maligna  cu- 
riosidade :  |iromplamenle  se  fauiili.nisou  com  as  ex- 
pressões prineipaes  da  linguagem  nativa  das  ilhas,  c 
soube  distinguir  bem  as  imprecações,  a  (|ue  somente 
r('sp<jndia  com  um  (dliar  em  i|ue  se  cleliuxava  a  sere- 
niilaile  da  sua  alma,  v.  a  cmnpaixão  (|ue  lhe  inspira- 
vam a(|uelh!S  miserareis  idolatra.s.  Kstc  olhar  c  a 
brantiura  do  seu  caracter  caplivaram,  tendo  decorri- 
do alguns  rue/.es.  oilo  ou  dei  naturaes  da  pequena 
ilha  de  NnliUlea,  onde  reside  o  maior.il  (festa  gen- 
te, o  qual,  sendo  então  muito  moço,  declaruu-so  pro- 
tector do  |iadrc,  e  exhurtuu  a  sua  triliu  a  ouvi-lo. 
J'assaram-se  dois  annos,  eo  pequenino  rebanho,  cres- 
cendo em  numero,  mostrara,  perante  as  perseguições 
dos  seus  patrícios  pagãos,  uma  C(Mislanci,i  v  resigna- 
ção verdadeiran;ente  riuislãs.  (ieilo  dia,  .ilgiimas 
YoL.  1. — Dl^iímuiu)  1,   18ÍG. 


íribus  idolatras  saquearam  os  campos  d'inliamcs  dos 
catholicos  ;  esles,  privados  de  alimentos,  congrega- 
ram-sc  á  voz  do  mancebo,  seu  principal,  para  se  vin- 
garem :  mas  o  padre  Halaillon,  acalmando-lhes  o  fu- 
ror, concebeu  a  iiléa  de  encaminhar  esta  eircumstan- 
cia  á  gloria  da  religião,  intentando  por  uma  cruzada 
pacilica  a  conversão  simultânea  de  lodosos  irjulanos 
pagãos.  Fez  uma  bandeira  com  a  imagem  da  Sanc- 
tissima  Virgem  ;  e  os  christãos,  alistados  sob  este 
pendão  sagrado,  marcharam  ao  mando  do  missioná- 
rio para  trazer  á  fé  seus  irmãos  transviados.  Saido» 
de  Nuliutea  tomaram  terra  na  ilha  princii)al  do  gru- 
po das  Wallis  ou  por  outro  nome  l'\éj.  O  sacerdo- 
te arengou  á  tropa  e  recommendou-lhe  humanidade  ; 
ao  mesmo  lempo  o  mancebo  govornanlc.  I.uiigahala, 
procurava  chamar  ascu  partido  os  liabilanies  da  al- 
deia onde  havia  desembarcado,  e  a  força  cncami- 
nhon-se  por  terra  denlro,  entoando  cânticos  :  pouco 
a  pouco  se  aiigmenlou,  e  a  (inal  contava  em  suas 
lilciras  a  parle  imporlanlo  da  população,  excepto  a 
genteda  aldeia,  aclualmente  dieta  de  S.  João  IJap- 
lista,  onde  residia  l.ufrliHi,  rei  do  arclii|ielago,  de 
i(uem  sobre  tudo  os  calholicos  tinham  razão  de  quei- 
xa :  esta  tribu,  estreitada  por  loila  aparte  pelas  íri- 
bus convertidas  que  lhe  inlerceplavam  os  viveres, 
foi-se  bandeando  gradualmenle  e  reunindo  ao  eslan- 
daite  ehristão.  O  triumpho  não  podia  ser  mais  com- 
pleto ;  porém  o  (|ue  é  para  admirar,  o  mancebo  maio- 
ral, a  cuja  iniluencia  se  de»e  em  grande  parle  n  con- 
versão d'aquelles  gentios,  é  o  único  que  não  ó  ehris- 
tão. Este  homem,  de  inlelligencia  miiilo  superior  á 
de  seus  cinn[)atricios,  parece  haver  considerado  a  mis- 
são uma  favorável  circnmslancia  para  elevar-se  e  ga- 
nhar ascendência    sobre  o  |iovo.  abal.indo  o  [loder  di< 


106 


O  PANORAMA. 


Laveloa  seu  tio  :  é  animoso,  perspicaz  e  cheio  de  au- 
dácia, o  seu  modo  de  dizer  c  vivo  e  seductor  :  pare- 
ce ser  o  aferro  á  polygamia  o  motivo  que  o  desvia 
de  converler-se  á  fé  christã.  j 

Tivemos  (diz  o  ofiicial  de  marinha  escriplor  d'esta  i 
narração)  a  opporlunidade  de  assistir  á  sagração  do  i 
padre  Balaillon  ,   que  por  bulia  pontiGcia  ,  de  que  \ 
foi  portador  monsenhor  Amalha,  passageiro  do  nosso 
navio,  recebeu  o  titulo  de  bispo  de  Enos.  A  gente  ^ 
das  povoações  afluiu  a  S.  José  ,    centro  da  missão  ,  | 
trazendo  ofTcrtas  de  inhames,    porcos,  peixes,  e  fruc- 
tas  :  todos  vinham  trajados  com  seus  vestidos  de  fes- 
ta ;   as   raparigas  entoavam   hymnos,   e  as  creanças 
corriam  de  uma  banda  e  oulra   dando  grilos  de  con-  \ 
tentamento  :   quando  passávamos  pelos  seus  ranchos,  ! 
era  a  quem   mais  nos  apertaria  a  mão  com  ar  riso- | 
nbo,  e  nos  offereceria  casa  para  descançar,  ou  nos  | 
iria  buscar  o  refresco  das  fructas  da  terra.  ! 

Á  chegada  dos  missionários  calholicos,  oshabilan-' 
tes  das  Wallis  tinham  feito  bem  fracos  progressos 
nas  artes  da  industria,  e  acbavam-se  bastante  atra- 
zados  dos  seus  visinhos  do  archipelago  de  Louga-La- 
bou,  que  lhes  fica  ao  sul  :  porém  actualmente  já  os 
igualam,  cm  consequência  das  boas  disposições  que 
desde  aquella  epocha  manifestaram  para  receberem 
o  beneOcro  dos  conhecimentos  úteis.  A  maioria  já 
sabe  ler  e  escrever,  e  alguns  tecm  noções  gcracs  da 
arithmetica  e  da  geometria  ;  tudo  aos  faz  prcíumir 
que  chegando  ao  seu  alcance  as  nossas  artes  se  des- 
pirão do  resto  de  apatbia  que  ainda  os  ataca.  São  de 
boa  apparencia  e  excellente  conslituiçr.o  phy=ica,  seu  : 
caracter  é  affavel  e  generoso,  presam  os  estrangeiros, 
e  principalmente  gostam  do  génio  jovial  dos  fran- 
cezes. 

A  população  de  todo  o  archipelago  é  quando  mui- 
to de  2300  a  3000  habitantes  ;  o  solo  é  produclivo 
e  favorável  a  todo  o  gensro  de  cultura  ;  o  clima  sa- 
dio convém  a  todos  os  temperamentos,  e  se  não  fo- 
ram os  excessos  do  kouva,  bebida  fermentada,  que 
altera  o  sangue,  os  naturaes  d'eslas  ilhas  bera  depres- 
sa se  fariam  notáveis  entre  os  demais  ua  Polynesia, 
sobretudo  agora  que  mudaram  de  costumis. 

A  '20  de  novembro  de  1845  ferrámos  panno  na  an- 
gra de  Balnde,  que  é  o  porto  que  fica  mais  ao  norte 
em  a  Xova  Caledónia,  na  Occania  :  apenas  ancora- 
dos nos  rodearam  umis  canoas  muito  mal -ifciçoadas 
eom  velas  de  esteira  c  remos  apenas  desbastados  ;  a 
presença  dos  que  n'cllas  vinham  nos  di.sgoz  pouco  fa- 
voravelmente acerca  dos  naturaes  d'aquena  região  ; 
os  corpos  frágeis  c  estilicos,  cobertos  de  uma  capa  de 
cebo  preto,  a  estúpida  admiração,  que  se  manifestava 
por  sons  gulturacs  incomprehensivcis,  nos  compiLi\a- 
ram  a  verdade  da  asserção  dos  vi.ijantes  j.clo  que  to- 
ca á  raridade  das  communicaçõcs  de  navms  com  esta 
ilha.  Pareciam  receosos  e  desconfiados,  e  os  nossos 
menores  mo\imcnlos  os  atemorisavam  ;  com  dilTicul- 
dade  consentiram  em  subir  á  coberta,  e  aoi  olhavam 
com  pasmo  misturado  de  estupefacção  ;  tudo  os  en- 
leava ;  u  som  da  sineta,  o  toque  do  tambor,  as  canti- 
gas dos  marinheiros  eram  para  ellcs  um  objecto  de 
admiração,  que  ás  vezes  denotavam  por  singulares  es- 
talos dados  com  a  lingua. 

Os  caledonios  de  casta  pura  são  em  geral  da  cor 
do  chocolate  ;  dizemos  deca<'ia  piiva  porque  em  mui- 
tos pontos  do  littoral  são  mcstiçuo  (.jci  os  das  ilhas 
Loyalty,  oiuic  a  raça  é  de  cór  avermelhada.  São  al- 
tos, descarn.idos,  mal  proporcionados,  e  á  primeira 
Tista  mui  dc.-.:iirosos  ;  tem  nariz  esborrachado,  bocca 
rasgada  com  os  beiços  grossos  ;  m.is  os  olhos  pretos 
são  ás  vezes  expressivos  :  os  lóbulos  das  .rolhas,  fura- 
dos   de  grandes  buracos,  pendem  quasi  até  os  hom- 


bros  pelo  costume  de  trazerem  iiolles  objectos  volu- 
mosos. As  suas  armas  ordinárias  .«ão  fundas,  zagaias 
que  arremeçam  com  destreza  a  grinde  distancia,  e 
massas  mais  notáveis  pelo  pezo  que  p'--la  elegância. 

Os  caledonios  nos  pareceram  inofr-^nsivos  e  hospita- 
leiros ;  a  sua  extrema  indolência  que  os  desvia  das 
mais  simplices  recreações  é  provavelmente  a  causa  de 
dizerem  os  viajantes  que  era  uma  gente  sem  uso  de 
razão.  Examinando-os  seriamente  nos  convencemos 
de  que  junctavam  a  um  vulgar  entendimento  algu- 
mas boas  qualidades.  Nos  primeiros  dias  noS  incliná- 
mos a  crer  que  a  pouca  actividade  no  acolhimento 
procedia  da  carência  da  virtude  hospitaleira  tão  com- 
mum  nos  povos  selvagens  ;  mas  em  breve  reconhece- 
mos que  o  sen  proceder  nascia  de  temor  e  não  de  má 
vontade. 

Os  indígenas  da  Nova-Caledonia  sustentam-se  qaa- 
si  exclusivameut-e  de  vegetaes  que  cultivam,  como  o 
inhame,  o  tooco  &c.  ,  e  de  raízes  mucilaginosas  que 
crescem  espontâneas  nos  mattos.  As  habitações  seme- 
lham cortiços  d'abelhas,  e  outras  arremedam  as  arri- 
banas  e  telheiros  :  damos  amostra  d'ambas  na  prece- 
dente estampa.  .As  primeiras  servem  de  refugio  du- 
rante a  noite,  e  são  perfeitamente  fechadas  com  uma 
entrada  única  ;  as  segundas,  patentes  por  um  dos  la- 
dos, são  os  logares  para  os  ajunctameatos  diurnos. 

N'esta  ilha  encontram-se  formosas  planícies  e  ex- 
tensos bosques,  que  em  tempo  breve  offereceriam  va- 
liosos productos  á  exportação  :  e  pôde  segurar-se  que 
n'ella  por  certo  medrariam  todas  as  plantas  exóticas 
da  zona  tórrida,  e  grande  parte  das  que  se  cultivam 
nas  zonas  temperadas. 


O  Feitob  de  Castão. 

Novella. 

(Continuado  de  pag.  98.) 

Dias  depois  d"esla  conversação  estava  deshabitada  a 
casa  d'EfTendon,  •  outro  agente  dirigia  a  feitoria 
americana.  O  feitor  antigo  desapparecèra  sem  que 
ninguém  adivinhasse  o  que  era  feito  d'elle.  .Alguns 
presumiam  que  embarrara  ás  escondidas  para  a  .Ame- 
rica ;  mas  a  opinião  geral  era  que,  desanimado  de 
todo,  puzera  termo  ao  seu  penar  matando-se  pelas 
próprias  mãos. 

Ora,  em  quanto  na  feitoria  discutiam  esta  ques- 
tão, EiTendon.  embrulhado  n'um  vestido  talar  de 
daba  (1),  apertado  por  um  cincto  do  qual  pendiam 
uma  faca,  um  leque,  c  uma  caixa  de  perfumes,  cem 
umas  tandalbas  de  palha  de  arroz,  e  com  um  chapéu 
afunilado  de  perto  de  dezoito  pollegadas  de  abas,  ia 
já  caminho  da  cidade  de  Peking. 

A  razão  principal  por  que  escolherão  trajo  de  ho- 
mem de  negocio  da  Corça,  que  acabamos  de  descre- 
.  ver,  foi    para  que  ninguém,  pelos  seus  modos  e  pro- 
nuncia, reparasse  n'elle,  e  visse  que  era  estrangeiro  ; 
;  mas  a  poucos  passos  se  desenganou  de  que  bem  po- 
I  dia  ter  dispensado  esta  cautela,   porque  aos  chinas 
j  não  lhes   passava   pela   imaginação   uma  «mpreza  tão 
I  t«meraria.    Costumados,   além  d'isso,   ás   variedades 
de  dialectos   e  physionomias  das  raças  que  povoam  o 
immenso  território  do  império  celeste,    não  descon- 
fiavam d'elle.   O  que  no  princípio,  «os  próprios  olhos 
d'Effendon  pareceu   loucura,    que  só  o  amor  de  pai 
'  podia  desculpar,  agora  já  lhe  parecia  quasi  uma  via- 
gem ordinária. 

I ■ 

(I)  Fazend»  Je  algodão  de  que  soves  lem  ns  Cores. 


o  PA  NORA  Al  A. 


107 


Desejando  comtudo  não  encontrar  ninguém  que  o 
conhecesse,  resolvera  ir  a  Peking  embarcado.  Por 
mal  de  peccados,  este  modo  de  viajar  era  ainda  me- 
nos seguro  que  vagaroso  ;  porque  apesar  de  terem  os 
chinas  aberto  no  seu  território  trezentos  e  cincoenta 
canaes  por  onde,  quasi  exclusivamente,  se  transpor- 
iam os  viajantes  e  as  mercadorias,  os  seus  engenhei- 
ros ainda  não  inventaram  as  comportas,  de  sorte  que 
quando  as  barcas  chegam  a  alguma  portagem  enca- 
lhani-n'as,  içaai-n'as  por  uma  rampa,  com  a  ajuda 
d'uma  machina  que  está  no  ali  •  d'ella,  e  depois  ar- 
reiam-n'as  por  outra  rampa.  Como  esta  manobra, 
bastantes  vezes  repelida,  muito  retardava  a  viagem, 
pudera  o  feitor  fazer  miiidas  observações  no  paizqiie 
atravessava,  se  a  impaciência  o  não  tornasse  indiile- 
rente  n  quanto  tinha  diante  dos  olhos. 

E  todavia  o  espetaciilo  era  Ião  rico  quanto  curio- 
so c  variado.  Milhares  de  barcas  se  cruzavam  uo  ca- 
nal, carregadas  de  passageiros  sentados  em  esteiras  , 
os  quaes,  para  lhes  não  parecer  a  viagem  tão  longa, 
jogavam  as  cartas,  os  dados  ou  o  Isoi-moi  (1)  ;  trigo, 
canas  d'assucar,  cearas  de  arroz  ou  algodoeiros  rcves- 
liam  ambas  as  margens  ;  e  pelas  estradas  vinham 
cardumes  de  camponezes,  de  cujas  cinctas  pendiam  a 
bolsa  do  tabaco,  a  pederneira  e  o  fuzil,  ou  de  mu- 
lheres que  traziam  as  sua»  creancinhas  cm  saccos  pre- 
zos  aos  hombros.  Também  passaram  por  defronte 
d'alguns  lagos  cobertos  de  jangadas  de  pescadores  que 
faziam  mergulhar  os  kii-tzes  (2),  aos  quaes  depois  ti- 
ravam a  preza. 

Quando  EITendon  chegou  a  Naiil<ing,  achou  um 
grande  ajunclamento  de  gente  ordinária,  entretida 
em  vèr  uma  briga  dj  gafanhotos  (3),  quedava  occa- 
sião  <i  muitas  aposlas. 

O  arraes  da  barca  tomou  n'esta  cidade  outro  pas- 
sageiro que,  assim  como  Elfendon,  ia  para  Pel^ing. 
Era  o  íílh»  de  um  pobre  surrador  que,  em  voz  de 
seguir  a  profissão  de  seu  pai,  quiz  correr  a  carreira 
das  IcUras.  É  sabido  que  na  China  todos  os  empre- 
gos, lanlo  na  ordem  civil  como  na  militar,  são  da- 
dos por  concurso,  sem  se  attcndcr  á  classe  a  que  per- 
tence o  candidato.  Os  aspirantes  que  não  ficam  bem 
no  exame  abrem  commumciitc  escholas  nas  cidades  ou 
tillas,  c  assim  facilitam  á  gente  moça  os  meios  de  se 
apprescntarem  na  arena  quando  llics  loca  a  sua  vez. 
Com  um  (restes  mestres  linha  o  filho  do  surrador 
aprendido  o  que  se  exigia  para  o  exame  da  ultima 
classe.  (Juanlo  ao  dinheiro  preciso  para  este  exame, 
o  surrador  lh'o  alcanrou  vendcndu  como  escravo  uui 
dos  seus  irmãos,  espécie  de  idiota  aquém  nunca  ti- 
nha podido  ensinar  o  seu  ollicio  ;  porque  a  lei  china, 
semelhante  ;i  lei  romana,  dá  ao  pai  a  plena  proprie- 
dade de  seus  (ilbos ,  c  permitte-lhe  que  disponha 
d'cllcs  como  de  cousas.  Com  este  auxilio  conseguiu 
Tchao  (assim  su  chamava  o  moço  china)  entrar  para 
a  corporação  dos  lettrados  ;  poréni  ainda  não  linha 
podido  obter   o  logar  para  que  este  titulo  o  habilitava. 

Tchao  era  um  mancebo  activo,  fallador,  serviçal, 
e  que  não  cessava  de  andar  ao  faro  para  abocar 
qualquer  posla. 

l'ou<as  horas  depois  de  embarcado  já  tinha  toda  a 
intimidaile  com  KlVeiidon,  ao  (jiial  contara  a  historia 
da  sua  \iila. 

—  ".Vtó  agora  ainda  nada  me  deram  ;  porém,  co- 
mo diz  o  saijio,  o  homem  é  um  céu  pc(|ucno  c  uma 
terra  pequena,  sujeitos  a   mil  allcrniitivas  ;  dò  ou  o 


primeiro  passo,  que  o  resto  do  caminho  anda-se  sem 
ajuda.  Tu  és  meu  amigo,  Kang-bo  (era  o  nome  que 
EffcBdon  adoptara);  posso  communicar-le  o  meu  de- 
sígnio. Tu  sabes  que  o  que  está  debaixo  do  céu  (1) 
se  acha  repartido  em  dezenove  províncias,  cadaama 
das  quaes  tem  muitas  fou  (departamentos) ;  que  ca- 
da fou  se  divide  em  lacheous  (districtos),  e  estes  em 
lians  (canl<5es).  Como  letlrado  estou  apto  para  adaii- 
nislrar  um  d'estes.  Se  der  provas  de  capacidade  será 
o  meu  noiuí  recommendado  no  livro  do  li-pou  (2),  e 
adianlar-cie-hei  rapidamente.  Posso  em  poucos  an- 
nos  subir  do  degrau  em  degrau  as  nove  classes,  e 
obter  o  botão  de  pedras  preciosas.  Consiga  eu  com- 
prar a  algum  governa<lor  velho  o  direito  <!e  o  sub- 
stituir, que  o  mais  é  fácil.  O  peior  é  que  preciso  de 
uma  grande  somma  para  fazer  esta  compra,  e  para 
a  ganíiar  é  que  vou  a  Peking,  onde  ha  mais  meios 
de  enriquecer.  » 

—  «E  em  que  fazes  tenção  de  te  empregar?» 

—  «Em  tildo  que  possa  render-me  liangs  ;  topo 
tudo  com  tanto  que  as  pilhe.» 

A  medida  que  so  approximavam  a  Peking  crescia 
no  canal  o  numero  das  barcas,  e  faziam  mais  demo- 
rada a  viagem.  Elles  avistavam  de  distancia  a  dis- 
tancia grandes  cidades  quadradas  cingidas  de  forti- 
ficações, ás  quaes  sobrelevavam  arcos  triumphaes, 
tas  (3),  e  altas  torres  dos  mosteiros  de  bonzos.  X 
pouca  distancia  d'es'as  cidades  havia  cemitérios  com 
túmulos  de  diflerentes  formas,  ornados  de  pyiami- 
des,  de  estatuas  do  homens,  e  de  figuras  de  animaes, 
e  a  maior  parte  d'elles  cercados  de  ihuyas  e  cypres- 
tes.  Quando  passou  pela  frente  d'estes  campos  de 
repouso  foi  Eirendou  testimunha  do  muitas  ccremo- 
uias  fúnebres  que  os  chinas  celebram  com  grande 
pompa,  por(iue  a  veneração  aos  mortos,  c  o  respeito 
aos  pais,  são  as  únicas  virtudes  religiosas  que  lhes 
ensinam.  N'estas  coremonias  vão  os  bonzos  adiante 
do  féretro,  levado  por  cousa  de  vinte  homens  debai- 
xo d'um  docci.  Vem  atraz  d'elle  uma  liteira  doura- 
da, á  roda  da  qual  queimam  aromas,  e  dentro  da 
liteira  uma  tabeliã  com  os  nomes  e  titulos  do  finado, 
taes  quaes  hão  de  sor  gravados  no  tumulo.  Scguem- 
se  meninos  cobertos  com  um  gorro  particular,  e  com 
uns  balanilraus  de  paniio  grosso  por  cima  iii<  seus 
vestidos.  Em  chegando  o  corpo  ao  logar  em  que  ha 
de  ser  enterrado,  depositam-iro  n'uma  co\a  profun- 
da, cobrem-n'o  de  terra  misturada  com  cal,  e  depoi.'» 
de  haverem  cravado  em  volta  da  sepultura  bugias 
perfumadas  e  bandeirolas  de  cores,  começam  a  quei- 
mar cm  honra  do  dcfuncto,  cavallos,  vestidos  ou  bo- 
necos de  papel.  Tudo  acaba  com  um  banquete  com- 
posto de  iguarias  postas  com  antecipação  sobre  a  se- 
pultura, e  coiicluido  isto  voltam  os  parentes  para 
sua  casa,  levando  a  tabeliã  em  que  falíamos,  a  quai 
ahi  guardam  ao  pé  do  altar  consagrado  aos  génios 
domésticos,  o  incensam  duas  vezes  cada  anno. 

A  algumas  ti  (í)  de  Peking  os  embaraços  da  na- 
vegação cresceram  lauto,  que  ws  dois  viajantes  prefe- 
riram saltar  cm  terra  e  andarem  o  resto  do  caminho 
a  pé  pela  estrada  calçada  do  grai\ito  (Jho  vai  ter  á 
capital  do  impviio  cclest' 


(I)  Jo|,M  (|iii!  SC  jii(ía  ciiiii  os  iltíUos. 
(i)  H<|](H:ie  lie  coi  vo-inai'iiilio. 

(.'ij  ICáles  coiiiliales  silo  mui   CDiuimuis  na  China,  assim 
como  09  lios  ((lilos,  codoriiizes,  e  de  gallos. 


(l)  Nume  que  os  chinas d&o  ao  seu  império.  Tliiau-Hia, 
(I  (|iii!  esl.'!  debaixo  do  ci'u,  o  mundo,  correspondo  ao  orAi» 
dos  riMiiaiios. 

[•2]  lia  sois  (riliniiaos  <iii  ooiisollios  siii)eiiiiros  em  1't'kiiig, 
u  ipio  sào  vordaiioiros  miiiisteiios.  O  lipoii  corrospoiulo  ao 
nosso  minisloiio  ilii  roíiio. 

(.1)  Oliiinnm^so  las  coitos  oihlicios  <lo  cinco  im  seis  «mia- 
res, com  oiiiios  laiilos  lolliailu»  saiilos,  ipio  vonios  em  lod»s 
as  iiiiiliuas  lia  llliiiia.  Ignora  so  para  ipie  .sorvem. 

(i)  Modula  da  (.1011:1.   Dez  lis  l'a/.em  unia  hvua. 


108 


O  PANOP.AMA 


Novo  obstáculo  lhes  alrazou  a  entrada  na  cidade  ; 
era  dia  de  revista,  e  as  tropas  tomavam  todas  as  pas- 
sag'!ns.  EITendon  ainda  tentou  passar  por  entre  os 
batalhões  ;  mas  trabalharam  os  hamhús  dos  homens 
da  policia  encarregados  de  conter  o  povo,  e  fizeram 
n'o  tornar  atraz.  Não  teve  remédio  senão  moer  a  pa- 
ciência á  espera  que  a  revista  acabasse.  Tchao,  que 
não  deixava  escapar  pela  /r.allia  qualquer  occasiío  de 
fallar  e  ostentar  o  seu  sahsr,  approveitou  a  demora 
para  explicar  ao  seu  compmliriro  da  Coréa  o  sysle- 
ma  militar  dos  chinas.  Dissc-lhe  que  o  filho  do  céu 
linha'  as  suas  ordens  mais  de  um  milhão  de  solda- 
dos, assim  chinas  como  mongoes  e  raantchous.  Estes 
soldados,  que  se  casavam,  e  cujos  filhos  vinham  tam- 
bém a  ser  soldados,  estavam  divididospelas  duas  mil 
cidades  fortificadas  do  império,  onde  recebiam  do  es- 
tado um  soUlo  e  certa  porção  de  terra  que  fabricavam 
por  sua  conta.  No  armamento  tiniiam  muita  varie- 
dade :  havia  cavalleiros  que  pelejavam  com  azorra- 
gues  armados  de  pontas  de  ferro  ;  outros  corpos  esta- 
vam armados  de  espingardas- de  murrão,  outros  de 
lanças  e  dardos  ;  porém  a  maioria  do  exercito  com- 
punha-se  de  soldados  semelhantes  áquclles  a  que  se 
estava  passando  revista.  Ora,  o  uniforme  d'cstcs  con- 
sistia em  duas  túnicas,  n'«ma  cota  de  malha  de  gan- 
ga chapeada  de  metal,  n'iim  capacete  de  ferro  sobre- 
pujado d'uma  borla  de  crinas  pintadas,  n'um  sabre, 
arco,  aljava,  e  n'uma  pequena  caixa  om  que  guarda- 
vam as  cordas  e  dardos  de  reserva. 

Tchao  mostrou  a  EITendon  alguns  batalhões  esco- 
lhidos chamados  tigres  da  guerra,  por  ser  o  seu  far- 
damento de  "uma  só  peça,  justo,  mosqueado,  e  co- 
roado por  um  capuz  de  orelhas  que  lhes  dava  algu- 
mas parecenças  com  esta  fera.  .\s  suas  armas  eram 
a  cimitarra  c  ura  escudo  de  bambu. 

Quando  acabaram  de  desfilar  as  tropas  puderam 
cmfim  os  dois  viajantes  seguir  o  seu  caminho,  enão 
tardou  que  avistnssom  as  muralhas  de  Peking,  de 
quarenta  c  cinco  palmos  de  altura,  cercadas  de  um 
fosso,  e  defendidas  de  distancia  cm  distancia  por 
grandes  torres. 

Ao  entrar  na  capital  da  China  sentiu  EITendon 
pular-lhc  o  coração.  Chegara  ao  termo  da  sua  via- 
gem ;  respirava  o  mesmo  arque  sua  filha  respirava. 
Por  maiores  que  fossem  as  dilTiculdades  que  ain  la 
linha  de  vencer,  este  primeiro  triumpho  lhe  prova- 
va quanto  pude  a  coragem.  Começou  a  esperança  a 
entrar-lhe  no  coração,  ecom  uma  espécie  de  alvoroço 
se  entranhou  iiíis  ruas  da  grande  metrópole  da  China. 

Estas  ruas  alinhadas,  com  vinte  e  sele  braças  de 
largura,  tão  compridas  que  custava  a  vèr-sc-lhes  o 
lim,  estavam  obstruídas  por  tanta  multidão  de  povo. 
que  assim  que  n'ellas  se  entrava  era  forçoso  encur- 
tar o  passo.  Havia  n'ellas  enxames  de  \cndedores 
volantes  de  comestiveis,  de  bofarinhciros  que  tinham 
a  sua  fazenda  sobre  as  duas  conchas  d'uma  espécie 
de  balança,  cujo  braço  descançava  sobro  os  seus  hom- 
bros,  de  Icireiros,  de  sapateiros  que  andavam  d'uma 
Landa  para  a  outra  com  as  suas  laboletas  portáteis, 
de  barbeiros  que  chamavam  os  freguczcs  ao  som  de 
uma  Icnazinha  de  aço,  ou  que  os  barbeavam  com  um 
instrumento  triangular,  lhes  pinlavara  as  sobrance- 
lhas, c  lhes  escovavam  os  liombros.  T)'air.bos  os  lados 
havia  casas  de  madeira  pintada  com  enfeites,  nos 
vértices,  de  boUas  envernizadas,  c  em  lodos  os  pri- 
meiros andai. s  varandas  cobei las  ;  as  lojas  occupa- 
vaui-n'as  todas  os  homens  de  negocio,  que  chamavam 
os  compradorc;  tangendo  gonijs  que  atroavam.  Lf- 
fcndon  observou  que  cada  bairro  tinha  o  seu  com- 
luercio  especial,  e  cada  loja  seu  mastro  ornado  de 
bandeirolas,   por  baixo  das  quacs  umas  tabolctas  ne- 


gras ou  vermelhas  assoalhavam  i-.n  leltras  de  ouro  os 
nomes  dos  negociantes,  suas  gen'-ilogias,  suas  virtu- 
des e  as  de  suas  mercadorias.  Y,-.\  certos  sítios  se 
viam  paysangs  {0)  de  páu  com  suas  escuipturas,  e 
com  Ires  portas,  erigidos  á  memorii  de  grandes  soc- 
cessos,  columnas  cm  que  se  liam  ir.jcrípçõcs  em  hon- 
ra de  homens  celebres,  finalmente  corpos  de  guarda 
fortificados  e  ornados  de  estandartes. 

Apesar  das  turbas  que  pejaTam  as  ruas,  viam-se 
diante  de  quasí  todas  as  portas  mancebos  diverlíndo- 
se  ao  jogo  do  volante,  que  a  maior  parte  d"elles  reen- 
viavam com  summa  destreza  com  a  cabeça,  com  os 
cotovellos  ou  com  os  joelhos.  TcUao,  que  já  linha 
vindo  a  Pekíng,  gozara  do  pasmo  a  que  o  seu  com- 
panheiro não  pndia  resistir. 

—  "  Isto  ainda  não  é  nada,  disse  elle  com  aquella 
vaidosa  complacência  com  que  enumeramos  as  ma- 
ravilhas da  terra  que  já  conhecemos  ao  forasteiro 
que  n'ella  entra  pela  primeira  vez  ;  quizera  que  vís- 
seis a  morada  do  imperador,  que  contém  o  immenso 
palácio  cercado  d'agua,  no  qual  se  entra  por  uma 
ponte  de  jaspe  do  feilio  d'um  dragão:  mais  o  tem- 
plo do  céu,  cuja  sala  principal,  sustentada  por  oi- 
tenta e  duas  coluranas  pintadas  de  ouro  e  azul,  re- 
presenta a  abobada  celeste  ;  õs  templos  consagrados 
a  Fou-hi  e  a  Confulzec  ;  finalmente  a  grande  im- 
prensa imperial,  a  bibliotheca,  o  tribunal  para  os 
médicos,  a  casa  dos  expostos,  c  a  da  inoculação  e  da 
vaccina.  Pekíng  é  um  mundo  que,  para  ser  bem  co- 
nhecido, leva  toda  a  vida  d'um  homem ;  porque  as 
duas  cidades,  china  e  mantchou.  de  que  se  compõe. 
com[)rehcndem  perlo  de  dois  milhões  de  habitantes.» 

-No  meio  dVsía  falia  o  moço  lellrado  se  havia  en- 
caminhado para  uma  hospedaria  onde  já  linha  esta- 
do, c  Effendon  o  seguiu.  .\hi  começou  a  rcfiectir  que 
a  actividade  de  Tchao,  capaz  de  revolver  tudo,  e  o 
conhecimento  que  elle  linha  de  Pekíng,  Ibe  podiam 
ser  úteis  na  indagação  a  que  ia  dar  começo.  Por  con- 
seguinte, n'essa  mesma  noite,  revclou-lhe  o  fim  da 
sua  viagem,  e  perguntou-lhe  se,  medianfe  uma  re- 
compensa, quereria  auxilia-lo  n'csta  tarefa. 

O  moço  lellrado  acccitou  muito  depressa,  segundo 
o  seu  louvável  costume,  c  logo  no  dia  seguinte  saiu 
a  campo  depois  de  ter  recebido  as  instrucções  do 
feitor.  (Continua.) 


PliOV.l    no    DORD.VO   EM    M*>'DErTBE. 

Slbsistia  ainda  no  século  passado  cm  Mandcuvre. 
ao  pé  de  Jlontbelliard  (.Vlsacia)  uma  prova  judicia- 
ria bem  extravagante.  Quando  se  fazia  algum  roubo 
na  villa  intimavam  todos  os  habitantes  para  se  junc- 
tarem  na  praça  da  igreja,  no  domingo  seguinte  de- 
pois de  vésperas.  Tm  dos  mrjírr.í  mandava  que  o  la- 
drão restituísse  o  roubo,  c  por  espaço  de  seis  mezes 
se  abstivesse  do  contacto  da  gente  honrada.  Se  o  cul- 
pado teimava  em  não  se  dar  a  conhecer  appellavam 
para  a  prova  do  bordão.  Cadaum  dos  dois  maires, 
conj  o  braço  levantado,  segurava  n'unia  das  pontas 
d'um  páu,  por  baixo  do  qual  mandavam  passar  as 
pessoas  presentes.  Tal  era  o  terror  supersticioso  ins- 
pirado por  esta  cercmonia  que  não  havia  exemplo  de 
réu  que  se  sujeitasse  a  ella.  Ficava  só  e  ora  assim 
descoberto.  Se  acaso  se  atrevesse  a  passar  por  baixo 
do  bordão,  e  a  lodo  o  lempo  díscobrisscm  ser  elle  o 
criminoso,  nunca  mais  ninguém  coramuuicav.i  com 
elle,  c  era  banido  da  sociedade  dos  seus  compatrícios. 


Aicos  de  liiuiuplio. 


o  PAXORAMA. 


109 


CAVALLEIRO  TEMPLÁRIO  ARMADO 
EM  GLERRA. 

Havendo  de  tractar  da  celebre  ordem  dos  templários 
nenhum  arligo  poderiamos  redigir  mais  imporlante 
do  que  o  nntavcl  fragmciilo  que  ciicelnmos  nn  presen- 
te N.",  cxtraliiilo  da  llisloria  de  França,  ohra  com- 
pleta, ha  poucos  annos  publicada  pelo  Sr.  Michclet, 
mui  distincto  eiilru  ns  liisloriadorcs  nossos  contempo- 
râneos.— 

Os  |)apas  por  acto  próprio  haviam  preparado  o  seu 
captivciro  de  Avinliãn,  nomeando,  por  espaço  de  um 
século,  grande  numero  de  cardcaes  Irancezcs  em  con- 
sequência de  aversão  ao  Império.  I)'cste  modo  os  reis 
de  França  acharam-se  dominantes  das  eleições  ponti- 
fícias.—  Em  lliO/J  l''ilippe  o  formoso  vai  a  um  bos- 
que de  Saintonge,  próximo  a  S.  João  d'Angely  :  o 
gascão  IJerlrand  de  (iolt,  arcebispo  de  Uordéus,  alli 
o  esperava.  I'actuou-se  então  um  .ijuste  diabólico  ;  o 
monarclia  promettcu  a  Rcrlrnnd  di;  (Iolt  fazè-lo  pa- 
pa ;  Bertrand  promettcu  quanto  o  rei  quiz,  pòr-sc  á 
sua  discrição  em  Aviídião,  condemnsr  o  pontificado 
na  pessoa  de  Honifacio  VIII  ;  quanto  á  ullima  coii- 
diçiio  era  tal  que  l'"ilij(po  exigiu  que  o  arcebis|)o  se 
sujeitasse  a  cila  sem  a  saber.  lira  nada  menos  que  a 
suppressão  da  ordem  dos  templários,  a  poidiçã  >  de 
quinze  mil  cavalleiíos  tluistãos.  Rullrão  jurou,  c  foi 
papa  sob  o  nome  de  Clemenle  V. 

O  (|uct  era  enlão  o  'IVinjilo?  —  I'.ui  Paris  o  circui- 
to do  Templo  abrangia  todo  o  grande  bairro,  triste 
c  mal  povoado,  ([uí^  conservou  esle  nome:  era  a  ter- 
ça parle  de  ['aiís  (Pessa  cpoiba.  \  sombra  do  7Vm- 
plo,  e  debaixo  da  sua  poderMSa  prolí'cção  vivia  uma 
chusma  de  serventes,  familiares,  alliliaibis,  e  lambem 
de  gente  criminosa,  por  quanlo  as  casas  da  ordi'iii  go- 
zavam o  direito  de  asylo  :  o  próprio  hilippe  o  formo- 
so d'elle  se  a[)proveitára  quando  IVira  perseguido  pelo 
povo  aiiiolinado.  Ainda  permanecia,  no  tempo  da  re- 
volução, um  monumento  d'esla  inj;ralidão,  o  massi- 
ço  torreão  das  (|ualro  torrinhas,  eonslruido  em  l:i2:i  : 
serviu  de  prisão  a  Luiz  XVI. — Olemplode  Paris 
era  o  centro  da  ordem,  o  seu  Ihesouio  :  ahi  se  con- 
gregavam os  eapilulos  geraes  :  d'esla  casa  dependiam 
todas  as  provincias  di  ordem,  a  saber,  l'orlugal,  Cas- 


tella  e  Leão,  Aragão,  Malhorca,  Alíemanha,  Itália, 
Apúlia  e  Sicilia,  Inglaterra  e  Irlanda.  Em  o  norte 
da  Europa  a  ordem  tcutonica  havia  saído  do  Templo, 
como  nas  Hespanhas  outras  ordens  militares  se  for- 
maram dos  seus  despojos.  A  immensa  maioria  dos 
templários  era  de  francezes,  particularmente  os  grão- 
mcslres. 

O  Templo,  como  todas  as  ordens  militares,  deriva- 
va de  Cister.  O  reformador  eislerciense,  S.  Dernar- 
do,  com  a  penna  com  que  commentava  o  Cântico  dos 
Cânticos  lavrou  para  os  cavallciros  a  sua  regra  enlfau- 
siastíca  c  austera.  Esta  regra  era  a  expatriaeão  e  a 
guerra  sancta  até  a  morte.  O^  templários  deviam  ac- 
ccilar  combate  sempre,  ainda  que  fosse  de  um  contra 
três,  nunca  pedir  quartel,  não  dar  resgate,  nem  mes- 
mo  um  pedaço  de  parede,  uma  pollcgada  de  chão. 
Não  tinham  que  esperar  descanço  :  não  lhes  era  per- 
mitiido  passar  a  ordens  menos  austeras.  ,,Ide  felizes, 
ide  tranquillos  (lhes  diz  S.Bernardo);  repe.lli  com 
intrépido  coração  os  inimigos  da  Cruz  de  Christo, 
bem  certos  de  que  nem  a  vida  nem  a  morte  vos  po- 
derão pòr  fora  do  amor  de  Deus  que  esta  em  Jesus. 
Em  qualquer  perigo  repeli  a  phrasc:  —  vivos  cumor- 
tos,  somos  do  Sc;ihor. — Gloriosos  os  vencedores,  bem- 
aveiilurados  os  m.irlyres."  Eis  aqui  o  áspero  bosque- 
jo que  clie  nos  ofterece  do  aspecto  do  um  templário. — 
«  Cabellos  tosquiados,  peilo  erriçado,  sujo  de  pó,  ne- 
gro como  ferro,  crestado  do  rigor  do  tempo  e  do  sol. .  . 
Gostam  dos  cavallos  fogosos  e  ligeiros,  mas  não  ade- 
reçados, mosqueados,  acubcrtados.  O  que  pasma  n'cs- 
Ic  tropel,  n'csta  torrente  que  corre  para  a  Terra 
Sancta  ó  que  não  vedes  senão  scelerados  c  Ímpios. 
Christo  de  um  inimigo  fez  um  campeão,  do  perse- 
guidor Saulo  fez  um  S.  Paulo."  —  Depois  n'um  elo- 
quente itinerário  guia  os  guerreiros  penitentes  de  Be- 
thlem   ao  Calvário,  de  Nazareth  ao  Saneio  Sepulchro. 

O  soldado  tem  a  gloria,  o  monge  a  Iranqnillidade  : 
o  templário  abjurava  uma  e  outra  cousa  ;  reunia  po- 
rém o  que  ha  de  mais  duro  n'essas  duas  vidas,  os  pe- 
rigos o  as  abstinências.  A  imporlante  Ijda  da  idade 
media  foi  a  guerra  sancta,  as  cruzadas  ;  o  ideal  das 
cruzadas  parecia  realisado  na  ordem  do  Templo.  Era 
a  cruzada  convertida  era  fixa  c  permanenle,  a  nobre 
imagem  da  cruzada  ispirittial,  da  guerra  mystica  que 
o  chrislão  sustenta  até  a  morte  contra  o  inimigo  in- 
terior. 

Associados  aos  de  S.  João  do  Hospital  na  defensão 
dos  logares  sanclos,  os  cavallciros  templários  dilTeriam 
d'aquelles  por  ser  a  guerra  mais  particularmente  o 
objecto  de  seu  instituto  :  uns  c  outros  prestavam  os 
mais  relevantes  serviços.  Que  felicidade  não  era  pa- 
ra o  peregrino  que  viajava  pela  estrada  puherulenla 
de  Jaila  a  Jerusalém,  c  que  imaginava  caírem  sobre 
elle  a  todo  o  momento  os  salteadores  árabes,  encon- 
trar um  ca\alleiro,  reconhecer  a  valedora  cruz  verme- 
lha na  ca|)a  branca  da  urdem  do  Tumpio  ?  Nas  bata- 
lhas as  duas  ordens  forneciiim  por  turno  a  vanguar- 
da e  a  relaguarila  :  no  centro  colloeavam-se  es  cruza- 
dos recem-ehegados  e  pouco  afeitos  ás  guerras  da  .Vsia  : 
us  cavallciros  os  llaiiqucavam,  c  protegiam  (diz  alti- 
vamente um  d'ellrs)  como  a.i  mãcsaseti.t  fillnK:.  Es- 
tes passageiros  auxiliares  deurdinario  retribuíam  mal 
lanlo  ulTecIu  ;  mai.s  embaraçavam  do  que  serviam  us 
cavallciros.  Arrogantes  c  fervorosos  á  chegada,  findos 
em  (pie  se  faria  logo  a  seu  favor  um  milagre,  não  fal- 
tavam a  quebrar  tréguas,  nrraslavain  os  cavallriros 
a  riscos  inúteis,  procuravam  ser  combalidos,  o  despe- 
diain-so  deixandolhcs  o  pezo  da  guerra,  queivando- 
se  tle  iiãu  serem  bem  soccorridos.  t>i  templários  for- 
uia\am  a  vanguarda  em  Mansourah,  quando  aquello 
uianccbu   louco,  conde  d'Arlois,  apesar  do  consclha 


110 


o  PANORAMA. 


d'cUes,  se  obstinou  a  perseguir  os  inimigos  arremel- 
tendo  á  cidade  ;  seguiram-n'o  por  brio  os  cavalleiros 
e  foram  todos  mortos. 

Com  razão  se  juigára  que  nunca  seria  de  mais  o  que 
se  Ozessc  a  favor  de  uma  ordem  de  tanta  dedicação 
e  utilidade.  Coiicederam-se-llie  grandiosos  privilé- 
gios :  a  principio  não  podiam  ser  julgados  senão  pelo 
papa  :  mas  perante  um  juiz  tão  supremo  e  Ião  remo- 
to ningHcm  os  requeria  ;  pelo  que  passaram  os  pró- 
prios templários  a  ser  juizes  nas  causas  d'ellei  :  e  tam- 
bém podiam  ser  lestimunhas  nas  mesmas,  tamanha 
era  a  fé  na  sua  lealdade  ;  Era-lhcs  defczo  p.igar  tri- 
buto a  potencia  alguma,  e  conceder  qualquer  de  suas 
commendas  por  sollicitação  de  poderosos  ou  de  mo- 
narchas.  .Não  podiam  pagar  nem  direitos,  nem  feu- 
do, nem  portagem. 

Qualquer  desejara  naturalmente  participar  de  tão 
altos  privilégios.  O  próprio  ínnoccncio  III  quiz  ser 
alliliado  á  ordem  ;  c  Filippc  debalde  sollicitou  o  mes- 
mo. —  Jlas  quando  mesmo  a  ordem  não  tivesse  Ião 
grandes  e  magníficos  privilégios,  nem  por  isso  deixa- 
ria de  se  lhe  appresentar  immenso  numero  de  pes- 
soas. O  Templo  tinha  para  as  imaginações  um  attrac- 
tivo  de  mystcrio  e  de  terror  vago  :  as  recepções  cele- 
bravam-sc  nas  igrejas  da  or<lem,  de  noite  e  á  porta 
fechada:  os  membros  inferiores  eram  excluidos  d'el- 
las ;  dizia-se  que  se  o  rei  de  França  em  pessoa  lá  pe- 
netrasse por  certo  que  não  sairia.  O  formulário  da 
admissão  era  tomado  de  ritos  dramáticos  e  singula- 
res, dos  myslerios  de  que  a  igreja  antiga  não  receou 
cercar  as  cousas  sagradas.  Primeiro  o  adepto  era  ap- 
presentado  como  peccador,  máu  christão,  renegado. 
Negava  a  exemplo  de  S.  Pedro;  e  a  abjuração  ex- 
priraia-se  por  um  acto,  cuspia  na  cruz  ;  a  ordem  en- 
carregava-sc  de  rehabilitar  este  renegado,  e  de  o  ele- 
var tanto  mais  quanto  mais  profunda  era  a  sua  que- 
da. Da  mesma  maneira  na  festa  dos  Inucos  o  homem 
offcrccia  o  preito  da  sua  imbecilidade,  da  sua  infâ- 
mia á  igreja  que  o  devia  regenerar.  Estas  comedias 
ao  divino,  tie  dia  para  dia  menos  compreheudidas, 
eram  cada  \ez  mais  perigosas,  mais  capazes  de  escan- 
dalisar  uma  epocha  prosaica,  que  só  via  a  lettra  e 
perdia  o  sentido  do  symbolo. 

IVeste  caso  tinham  outro  perigo.  O  orgulho  do 
Templo  deixava  n'cstas  fMmulas  um  equivoco  impio: 
o  adepto  podia  capacilar-se  de  que  além  do  christia- 
nismo  vulgar  a  ordem  ia  revclar-lhc  uma  religião 
mais  sublime,  abrir-lhc  um  sanctuario  por  dctraz  do 
sanctuario.  Este  nome  do  Templo  não  era  sagrado  só 
para  os  christãos  :  se  para  estes  designava  osancto 
sepulchro,  aos  judeus  emulsumanns  lembrava  o  tem- 
plo de  SalosMão.  A  idca  do  Templo,  mais  elevada  c 
mais  geral  do  que  mesmo  a  da  Igreja,  estará  de  al- 
gum modo  sobranceira  a  qualquer  religião.  A  Igreja 
tinha  data  e  o  Templo  não  a  tinha  ;  contemporâneo 
de  todas  as  idades  era  como  um  symbolo  da  perpe- 
tuidade religiosa.  Ainda  depois  da  ruina  dos  templá- 
rios o  Templo  subsiste,  pelo  monos  como  tradição, 
nas  insinuações  de  grande  numero  de  sociedades  se- 
cretas, até  os  rosa-cruzes,  até  os  franc-maçons  (1). 

A  Igreja  é  a  casa  do  Cliristo,  o  Templo  a  do  Es- 
pirito. Os  gnósticos  tomavam  para  sua  grande  festa 
não  o  Natal,  ou  a  Pasclioa,  mas  o  Pentecostes,  dia 
em  que  baixou  o  Espirito.  .Vté  que  ponto  subsistiram 

(I)  ii'  possível  que  os  templários  que  escaparam  se  coii- 
vertesseiH  nas  socieUailes  secretas.  Na  Escócia  desupparecam 
todos,  ;i  excepção  de  dois.  Ora,  teni-se  observ.ido  qneosmais 
secretos  mysieríos  da  Iranc-niavoíieria  se  reputai»  emanados 
da  Escócia,  e  i|up  os  graus  superiores  são  chamados  escoce- 
res.  Vide  Orouvelle  e  os  escriptores  a  quem  seguiu,  Muaier^ 
Moldenbawer,  Nicolai,  etc. 


estas  seitas  relhas  na  idade  media  ?  .  .  .  Foram  a  el- 
lasaffiliados  os  templários?  .  .  .  Taes  questões,  a  des- 
peito das  engenhosas  conjecturas  dos  modernos,  per- 
manecerão sempre  obscuras  pela  insuDBcienEia  dos  mo- 
numentos. 

Estas  doutrinas  internas  do  Templo  parece  que  a 
um  tempo  se  querem  manifestar  e  esconder.  Julga-se 
que  SC  reconhecem  nos  emblemas  estranhos  esculpi- 
dos na  portada  de  algumas  igrejas,  ou  no  ultimo  cy- 
clo  épico  da  idade  media,  nos  ;  oemas  em  que  a  ca- 
vallatia  purificada  não  é  mais  que  uma  odyssea,  uma 
imagem  heróica  e  pia  em  demanda  do  sancto  graal. 
como  chamavam  ao  vaso  que  recolheu  o  sangue  do 
Salvador.  A  simples  vista  d'este  vaso  prolonga  a  vi- 
da quinhentos  annos  :  si)  as  creanças  se  podem  chegar 
a  clle  sem  morrer.  A  roda  do  templo  que  o  encerra 
velam  as  armas  os  lemplislas  on  cavalleiros  do  Graal. 

Esta  cavallaria  mais  que  ecclesiastica,  este  ideal 
grave  e  sobejamente  puro,  que  foi  o  remata  da  ida- 
de media  e  o  seu  extremo  sonho,  achava-se,  por  sua 
mesma  elevação,  estranho  a  toda  a  realidade,  inac- 
cessivel  a  toda  a  practica  :  o  templisla  ficou  nos  poe- 
mas, figura  nebulosa  e  scmi-divina  ;  o  templário  en- 
tranhou-se  na  brutalidade.  fContinúa.) 


Um  qcadro  de  miserus  da  vida  iiimana. 

Vem  um  negociante  da  praça,  ou  logrador  ou  logra- 
do, jantar  esplendidamente  (depeis  se  farão  os  rateio; 
aos  credores^,  e  determina  ir  n'aqaella  tarde  para  a 
sua  quinta  ;  o  ar  e-tá  sereno,  o  sol  claro  e  tépido,  a 
estação  risonha  ;  ahi  estão  as  seges,  os  boleeiros  lêem 
o  porte  c  o  cnapenado  da  Assembléa  ;  a  família  em- 
barca, o  troto  começa,  a  voz  gorgeta  sóa  repetidas 
vezes  desde  a  envernizada  caixa  até  as  orelhas  do 
desavergonhado  carrasco  dos  cstiticos  cavallinhos ; 
mas  alli  a  Sete-Rios,  no  meio  da  triumphal  carrei- 
ra, outro  demónio  peior  que  o  boleeiro  da  .■V.ssem- 
bléa,  ou  do  Pilha-gatos,  um  carreiro,  se  atravessa 
diante  com  um  carro  de  feno,  que  vem  para  consu- 
mo da  cidade,  c  que  \cm  bem  emparelhado  em  altu- 
ra com  os  próprios  arcos  das  Aguas  Livres,  metle-se  a 
sege,  lá  vão  as  senhoras  com  a  sege  lombada,  amar- 
rotam-se  as  plumas,  rasgam-se  os  filós,  pcrde-se  um 
indispensável,  e  era  de  França.  .  .  primeira  des 
graça. 

EmCm  chega  aquelle  potentado  ao  seu  palácio 
campestre.  Um  horisonte  enganador  lhe  promette  o 
mais  agradável  e  salutar  passeio.  Vai  passear  em  li- 
berdade, diz  elle,  e  consiste  esta  em  andar  de  jaque- 
ta ;  porém  os  caminhos  estão  perdidos,  os  combros 
com  as  invernadas  são  immcusos,  as  pedras  soltas 
são  ás  carradas,  volla-se  u  discreto  para  fazer  uma 
rcQcxão  em  Botânica  a  uma  das  seuboras  da  parti- 
da, dá  uma  formidável  topada,  c  o  pé,  que  lhe  vai 
estalando  dentro  da  envernizada  bota  ,  sotTre  uma 
dór,  que  lhe  faz  acabar  o  discurso  antes  de  o  princi- 
piar. E  isto  não  presta  ?  Continua  o  passeio  a  coxear, 
mas  é  preciso  passar  uma  levada  de  agua,  que  vai  im- 
petuosa, e  para  a  passar  apenas  ha  no  meio  das  aguas 
umas  pedras  redondas  ou  agudas,  postas  em  grandes 
distancias.  As  senhoras  tremem,  guincham,  e  fa- 
zem infernars  caretas  sobre  esta  perigosa  ponte.  Ei- 
lende  o  negociante  a  mão.  mas  na  ultima  pedra  es- 
correga um  pé  á  senhora,  e  dá  comsigo  n,i  levada. 
Nova  desgraça  :  porém  o  sol  c  o  vento  reparam  em 
poucos  instantes  este  funesto  accidentc  ;  esquece  esta 
primeira  tribulação  e  tudo  vai  bem  :  mas  de  repen- 
te cobrc-sc  o  cóa  de  nuvens  espessas,  esconde-se  o 
sol,  c  começam  de  se  ouvir  ao  longe  os  ccbos  dos  tro- 


PANORAMA. 


fíí 


voes  ;  eis-aqui  o  nosso  homem,  tjue  se  linha  adianta- 
do no  passeio,  a  correr  para  casa ;  mas  o  vento  cres- 
ce em  remoinhos,  levanta  nuvens  de  poeira,  que  de 
tal  sorte  lhe  enche  os  olhos,  que  não  pódc  dar  um 
passo  ;  caem  golas  d'8gua  como  castanhas,  que  lhe 
alagam  o  chapéu  mais  a  jaqueta,  e  que  são  annun- 
cios  de  novas  desgraças.  O  temporal  cresce,  os  relâm- 
pagos são  tão  bastos  que  o  deslumbram,  e  com  um 
estrepitoso  trovão,  rasgando-se  uma  nuvem  perpen- 
dicular, cáe  em  cima  d'elle  um  diluvio  d'agua  que 
o  submerge;  foge,  mas  é  preciso  subir  um  outeiro 
que  não  é  de  granito  primitivo,  como  dizem  os  natu- 
ralistas, é  de  barro,  e  tanta  agua  tem  embebido,  que 
atasca  até  o  joelho  ;  o  homem  mais  rccúa  que  adian- 
ta, e  puxando  um  pé  com  força,  lica-lhe  lá  uma  bo- 
ta ;  mas  á  força  de  trabalho  lira  a  bota,  calça  a  Lo- 
ta, e  a  chuva  a  cântaros  em  cima  dVUc.  E  noite  fe- 
chada, e  ellc  ainda  está  a  meio  caminho  da  casa; 
perdc-se  no  caminho,  e  querendo  ir  para  Bemfica 
vai  para  o  Calhariz.  S,ic  da  porta  crum  palheiro  um 
cão  esfomeado,  e  tanto  lhe  ladra,  e  lanto  o  perse- 
gue, que  o  homem,  curvando-se  para  acliar  uma  pe- 
dra com  que  lhe  atire,  escorrega,  e  dá  uma  formidá- 
vel cambalhota  no  meio  d'um  lameiro,  onde  conti- 
nua a  chafurdar  um  quarto  de  hora. 

Depois  de  muitas  fadigas,  chega  emlim  a  casa  mo- 
lhado, enlameado,  e  morto  de  fome;  mas  os  criados 
c  as  criadas,  que  pilharam  os  senhores  fora,  cuidan- 
do em  divertir-se,  descuidaram-se  de  fechar  as  janel- 
las  da  sala  e  da  alcova,  e  está  tudo  um  lago  de  agua 
que  não  ha  onde  pôr  os  pés:  uns  patos  destinados 
para  a  ceia  apanharam  agua,  e  ahalarani,  de  sorte 
que  não  apparccem,  nem  apparecerão  mais.  Parece 
que  tudo  se  reunira  para  o  contrariar,  c  para  lhe 
Consumir  a  paciencia.- 

Isto  ainda  é  pouco  :  a  casa  campestre  do  senhor 
fica  mui  próxima  á  igreja  ;  ha  um  enterro  de  luxo 
aquclla  noite,  c  o  estouvado  do  sachristão  deixou  ir 
os  rapazes  para  a  torre,  que  se  fazem  a  olho  com  os 
sinos,  desafinadissimos,  e  um  d'cllc3  quebrado.  Isto 
é  pouco.  Tinham  feito  debaixo  das  jancllas  um  mon- 
te de  estrume  da  altura  do  monte  Cáucaso  ;  o  vento 
que  sopra,  a  chuva  que  caiu,  fazendo  fermentar 
aquelle  thesouro  do  deus  StercuUnu,  como  lhe  cha- 
maram os  romanos,  o  faz  lambem  exhalar  um  perfu- 
me que  empesta  as  casas  Iodas  ;  e  um  forno  de  lou- 
ça vidrada,  que  está  na  visinhança,  as  enche  de  um 
fumo  tão  espesso,  que  se  nãu  pódc  respirar  :  da  par- 
te de  cima  está  uma  eira  de  milho,  c  osladruesdos 
saloios  a  Iraballiar  incessantemente  com  os  compas- 
.sados  manguacs.  O  estrondo  c  os  assobios  de  um 
moinho  de  vento  no  próximo  outeiro,  não  cessam 
nem  de  noiti;  nem  de  dia,  Uma  ra(iosa,  talvez  que 
de  dois  pés,  veio  n'essa  mesma  noite  :io  (]uintal,  e 
desiiovo(ju  as  capoeiras  de  tudo  o  que  eslava  esperan- 
do o  momento  da  morte  no  dia  dos  aiinos  da  senho- 
ra ;  e  uns  poucos  de  rapazes,  sallando  o  muro  da 
quinta,  varejaram,  verdes  c  maduros,  os  peecgos  lo- 
dos, que  se  guardavam  para  a  mesma  funcção. 

Fatigado  o  nosso  homem  de  tantas  contrariedades, 
rcíolve-se  a  tornar  para  Lisboa  ;  mas  lombando-se  o 
carro  de  matto,  caiu  na  calçada  de  S.  Sebastião  um 
caixote  com  ura  apparclho  de  .Saxoiiia,  que  serua 
na  partida  das  quiiitas-feiras,  (jue  a  senhora  dava  ; 
tudo  so  fez  em  pedaços,  quebrou-se  um  pé  de  um 
piano  do  lírhard,  e  esmigalhou-se  de  todo  a  guitar- 
ra das  lições  da  menina. 

Com  estes  ineommodos  fhega  a  casa,  e  saindo  lU) 
outro  (lia  a  d(!scontar  uma  íettra,  virando  alraz  a 
cabeça  na  rua  do  Lamliaz,  um  homem  que  vinha  na 
mesma  dirceeã   lhe  deu   tamanha   marrada,   que  se 


I  ouviu  no   adro   de   St."  Catharina  :  caiu  no  chão,  « 

I  trazendo-lhe  de  uma  casa  um  púcaro  de  agua,   tod* 

lh'a  entornaram  por  cima.  Ao  virar  da  Cruz-de-paa 

um  cumprimenteiro  seu  conhecido  lhe  quer  ceder  o 

j  logar  da  parede,  o  homem  toma  outra  direcção,  eo 

j  outro  a  toma  ao  mesmo  tempo,  de  sorte  que*  ambos 

por   meia  hora  balanceiam   ao    mesmo  tempo  ora  á 

direita  ora  á  esquerda  sem  ninguém  se  decidir. 

Vem  como  arribado  á  rua  larga  do  Lorete,  ama 
rebanada  de  vento  lhe  leva  o  chapéu  pela  rua  do 
Alecrim  abaixo  ;  corre,  e  no  instante  cm  que  lhe  ia 
a  pegar,  oulra  rebanada  de  vento  lh'o  leva  até  o 
cães  do  Sodré  ;  uma  nuvem  de  rapazes  lhe  dá  uma 
apupada. 

Recolhe-se  o  homem  a  casa,  janta,  e  quer  dormir 
a  sesta  a  ver  se  o  fio  das  desgraças  se  rompe  ou  se 
interrompe  algum  instante,  mas  dois  cegos,  um  com 
uma  sanfona,  outro  com  uma  rabeca,  e  um  rapaz 
com  um  pandeiro,  se  põem  a  tocar  e  a  cantar  mes- 
mo ao  pé  da  janella  do  quarto  debaixo,  onde  o  ho- 
mem tem  o  escriplorio,  c  onde  queria  soccgar  no  seu 
camapé;  e  uns  bárbaros  que' moram  no  segundo  an- 
dar, a  darem  mais  dinheiro  aos  cegos  para  se  não 
calarem. 

Quer  o  homem  dar  um  passeio  de  tarde  para  vèr 
se,  em  ar  livre,  se  lhe  desempoeira  a  cabeça,  e  ape- 
nas sáe  de  casa  encontra  o  seu  lettrado,  equerendo 
dar-lhe  novas  instrucções  sobre  um  pleito  que  traz 
pendente  em  matérias  de  câmbios,  linguagem  mais 
inintelligivel  que  a  dos  cálculos,  ura  maldicto  carro 
de  fanico,  carregado  com  vergas  da  ferro  da  Suécia, 
começa  de  fazer  tal  motinada  atraz  dos  dois  interlo- 
cutores que  vão  passando,  que  não  entende  palavra 
um  ao  outro,  c  o  perlinacissimo  carro  tão  obstinado 
em  os  seguir,  que  por  fim  se  apartaram  deixando  as 
instrucções  por  fazer. 

J.  A.   DK  M.iCEDo.  —  O  Desapprovador,   n.»  3, 

O    CÃO    DO    NORTE    DA    SiBERU. 

Na  expedição  ao  norte  da  Sibéria,  feita  por  ordem 
do  governo  russiano,  c  dirigida  por  Mr.  Wrangell, 
hoje  almirante,  teve  este  ciliciai  de  attender  a  lon- 
gos c  dilliceis  preparativos  para  a  sua  primeira  ex- 
cursão no  mar  tilacial,  apenas  chegou  a  Kolima,  que 
devia  ser  o  centro  das  suas  operações  por  espaço  de 
trcs  annos.  Era  mister  assegurar  a  subsistência'  dos 
membros  da  expedição  por  todo  o  tempo  d'esla  pri- 
meira entreprcza  :  cincoenla  uarlas  ou  carrinhos  tre- 
nós, puxados  por  seiscentos  cães,  eram  necessários  pa- 
ra conduzir  viajantes,  guias  c  abastecimentos,  e  só  « 
sustento  dessa  legião  canina  era  de  per  si  gra<e.  X 
actividade  do  commandantc  e  de  seus  amigos  superou 
as  dilliculdados  ;  provcu-sc  de  sulliciente  peixe  secco, 
dos  trenós  e  dos  seisienlos  cães. 

O  cão,  fiel  e  ulil  companheiro  do  homem  nas  di- 
versas regiões,  entre  os  povos  remotos  sei)tenlrionaes 
suppre  O  cavallo  ;  équem  accarreta  seu  dono  por  ci- 
ma da  neve  gelada  c  entre  serras  lluctuantos  que 
atulham  o  littornl,  e  é  quem  o  conduz  á  caça  e  á 
pesca,  e  a  qualquer  parlo  onde  o  chamam  as  neces- 
sidades materiaes  da  existência.  Conlenlaso  com 
um  pouco  de  peixe  secco,  e  mesmo  nem  tem  preci- 
são de  satisfazer  inteiramente  o  appotite  («ara  correr 
a  perda  de  fôlego  até  o  ponlo  que  lhe  manam.  — O 
cão  cio  iHii  l'  •!.'  Sibéria  parece-se  singularmente  com 
o  lobo  ;  o  loeinho  loiígoe  (loniagudo,  as  orelhas  sem- 
pre lezas,  o  rabo  lel|)U(lo,  o  pello  iiii  mor  parle  do  tem- 
po basto  como  o  dos  cães  da 'IVrra-Nova,  dão-lIuMini 
aspecto  scl>agoiii,  o, forçoso  é  diío-lo,  pouco  ciipa/  e  do 
in!i|iirar  alToutoza  ao  viajante  que  nãu  sabo  distin- 
gui-lo ;  uivu  mais  do  que  ladrit,  mais  outra  semc- 


ua 


o  PANORAMA. 


Ihança  com  o  lobo.  Fica  exposto  constanlenenle  ao 
ar;  é  para  rcsgaardar-sc  das  ferroadas  dos  mosquitos 
no  verão  sabe  ca\ar  locas  na  terra,  ou  enlão  iDer^'u- 
Ihar-se  na  íigua,  e  assim  passa  tranquillo  o  dia  todo  : 
de  inverno,  para  prcservar-s(;  do  frio,  agacha-se  cm  a 
neve,  ennoveiado  e  só  com  a  ponta  do  focinlio  des- 
coberta, lendo  a  precaução  de  cobri-la  com  a  cauda 
espessa  para  a  livrar  da  geada.  A  sua  criação  é  tão 
mal  tractada  como  a  dos  filhos  dos  sibcrios.  O  cão 
mais  astuto  e  melhor  ensinado  põe-so  na  frente  do 
tiro,  porque  d'ellc  dependem  a  celeridade,  o  bom 
caminho,  e  não  poucas  vezes  a  segurança  do  viajan- 
te. Porém  occasiõcs  ha  em  que  o  instinclo  vence  a 
criação:  se  os  cães  topam  com  vesligios  de  animaes 
bravios  partem  na  direcção  que  lhes  indica  o  olfacto, 
puxando  com  assombrosa  velocidade  o  trenó  e  seu 
dono;  nada  os  poderia  cm  tal  caso  trazer  ao  bom  ca- 
minho, sobre  tudo  se  os  estimulou  a  fome;  comludo 
o  instinclo  superior  do  que  vai  na  dianteira,  que 
mostra  entender  o  erro  dos  companheiros,  c  uivando 
enlão  com  toda  a  força,  tomando  o  lado  opposto  á 
direcção  que  os  outros  seguem,  como  se  descobrira 
alguma  preia  digna  da  sua  avidez,  lhes  troca  assim 
as  voltas  e  consegue  leva-los  para  o  caminho  recto. 
Também  ás  vezes  é  cllc  quem  conhece,  no  meio  dos 
redemoinhos  de  neve  que  a  tempestade  levanta,  o 
abrigo  que  erguera  no  deserlo  mão  provida  para  o 
viajante  desgarrado.  Tamanho  é  o  apreço  que  os  na- 
luraes  fazem  d'csla  raça  de  cães,  que,  reinando  uma 
epizoolia  em  que  morreram  milhares,  a  mulher  de 
um  sibcrio,  para  salvar  dois  únicos  cachorros  que 
lhe  restavam  de  seus  numerosos  tiros,  alimentou-os 
com  o  próprio  leite  ;  fazendo  os  coUaços  de  um  filhi- 
nho que  a  esse  tempo  desmamava. 

A    FESTA    DE    PeTERHOFF. 

O  Sr.  marqucz  de  Custine  teve  a  fortuna  de  se  achar 
em  S.  1'clersburgo  na  opocha  d'csla  brilhante  func- 
ção,  dia  festivo  assim  para  a  córlc  como  lambem  pa- 
ra o  povo,  c  cm  que  por  \ontade  do  imperador  Io- 
das as  jerarchias  c  classes  se  misturara  e  tomam  par- 
le nos  regosijos  públicos  dcnlro  dos  doniinios  particu- 
lares do  soberano,  1'elerholT  é  um  caslello  situado  nos 
subúrbios  da  capital,  e  a  tapada  magnifica  que  o  cer- 
ca c  logar  onde  se  ajunclam  os  curiosos,  quer  no- 
bres e  militares,  quer  burguczcs  e  paizanos.  —  O  ci- 
tado auclor  descreve  assim  a  illuminação  da  noite 
d'esse  dia  : 

«  Dizem  que  no  anniversario  da  imperatriz  seis  mil 
carruagens,  trinta  mil  peões,  e  innumcravel  quanti- 
dade de  barcos  saem  de  1'etorsburgo  para  formar  abar- 
racamcntos  ao  redor  de  PelcrholT.  Parle  da  guarda 
imperial  e  o  corpo  dos  cadetes  tomam  igualmente 
acampamento  em  torno  da  residência  do  autocrala  ; 
e  toda  a  gente,  officiaes,  sohiados,  mercadores,  ser- 
vos, amos  c  senhores  \aguoam  peias  maltas,  onde  du- 
zentos c  cincocnta  mil  lampeõcs  expulsam  assombras 
da  noite.  Dizem  lambem  que  dcnlro  em  Irinta  e  cin- 
co minutos  todos  os  lanipeões  lio  parque  se  accendem 
cmpregando-se  mil  c  oiloccnlos  homens:  a  parte  da 
illuminação  que  faz  frente  ao  caslello  acccnde-sc  em 
cinco  minutos  ;  entre  outras  porções  abrange  um  ca- 
nal que  correspondo  ã  principal  varanda  do  palácio  c 
SC  embrenha  cm  liiilia  recta  a  grande  distancia  por 
enlre  o  parque,  caminho  ilo  mar.  Esta  perspectiva  c 
de  cifcilo  magico;  a  esteira  d'agua  do  canal  é  de  tal 
modo  bordada  de  lumes  e  reflecte  Ião  viva  claridade 
que  se  poderia  lomar  por  fogo.  ()  Ariosto  ó  que  le- 
ria imaginação  assaz  cs|)lendida  para  descrever  tan- 
tas maravilhas  na  linguagem  das  fadas  :  reinam  bom 


gosto  c  phantasia  no  uso  que  alli  fazem  de  Ião  pro- 
digiosa massa  de  luz.  Deram  a  diversos  grupos  de 
lampeões,  engenhosamenlcdispostos,  fórmasorigiaacs, 
são  fliJrcs  da  grandeza  de  arvores,  soes,  vasos,  parrei- 
ras de  pâmpanos  imitando  as  pérgolas  italianas  (IJ, 
obeliscos,  columnas,  muralhas  á  mourisca ;  emGm, 
um  mundo  phantaslico  vos  passa  diante  dosolhossemL 
repousardes  a  vista,  porque  as  maravilhas  succedcm- 
se  umas  a  outras  com  incrível  rapiílez.  Dislrahem-vos 
de  uma  forlificação  de  fogo  as  roupagens  e  rendas  que 
fingem  pedrarias  finas  ;  tudo  brilha,  tudo  arde  ;  é  l 
ciiamraa  e  o  diamante  :  teme-sc  que  o  magnifico  es- 
pectáculo remate  u'um  monte  de  cinzas  como  um  in- 
cêndio. Porém  sempre  o  mais  admirável,  observado 
do  palácio,  é  o  grande  canal  que  semelha  a  lava  im- 
movel  n'um  bosque  abrazado.  Na  extremidade  do  ca- 
nal altca-sc  sobre  uma  enorme  pyramide  de  fogos  ar- 
tificiaes  de  cores  (que  tem,  pelo  meu  calculo,  70  pés) 
a  firma  da  imperatriz,  brilhando  com  alvura  rclozea- 
te  em  cima  de  todos  os  lumes  vermelhos,  verdes  e 
azues  que  a  cercam  ;  dir-se-hia  uma  pluma  de  bri- 
lhantes rodeada  de  finas  pedras  de  varias  cores.  To- 
do se  mostra  cm  tão  vasta  escala  que  du\idareis  do 
que  se  vos  palcntea. — Na  festa  cm  si  ha  lambem 
um  não  sei  que  prodigioso  :  fullo  dos  episódios  a  que 
dá  logar.  Durante  duas  oji  trcs  njites  toda  a  multi- 
dão, que  mencionei,  acampa  cm  circuito  da  povoa- 
ção, e  espalha-sc  a  muito  grande  distsp.cia  do  caslel- 
lo. Jluilas  senhoras  dormem  nas  carroagens,  ecscam- 
ponezes  nas  suas  carreias  :  lodos  os  variados  trens, 
meltidos  aos  centos  em  cercados  de  tábuas,  formam 
arraiaes  mui  curiosos  de  ver,  c  que  são  dignos  do  pin- 
cel apurado  de  algum  artista  engenhoso,  u 


Prtov.vs  JUDici.VRi.vs  >A  Geurgica. 

.V  LEI  admittia  n'este  paiz,  hoje  sujeito  ao  império 
da  Rússia,  três  qualidades  dislinctas  de  provas  para 
se  descobrir  a  verdade  :  o  ferro  era  braza,  a  agua  a 
ferver  ,   c  o  duelo. 

Prova  de  ferro  em  hraza.  Punha-se  uma  folha  de 
p.ipel  cm  cima  da  mão  do  accusado,  e  sobre  o  papel 
o  ferro  em  braza;  se  depois  do  ler  dado  Ires  passos, 
c  de  se  ter  tirado  o  ferro,  a  mão  não  apparcccsse 
queimada,  dcclaravam-n'o  inoucente.  D'esta  prova 
só  se  fazia  uso  em  caso  de  traii>ão,  roubo  de  igreja, 
o  adultério. 

1'roca  (laijua  a  ferrer.  Deilava-sc  dentro  dum 
vaso  cheio  d'agua  c  posto  ao  lume,  a  cruzinha  que 
de  ordinário  os  georgianos  trazem  ao  peito  ;  assim 
que  a  agua  começava  a  ferver  tiravam  a  vasilha  do 
lume,  c  o  accusado  devia,  em  nome  de  Deus,  tirar  a 
cruz  ;  depois  d'isto  mettiain-Ihc  a  mão  n"um  saqui- 
nho muito  bera  atado,    e   lacrado  ;  se  ao  terceiro  dia 

!  a  mão  não  tivesse  signal  de  queimadura  davam  por 
innoccnte  o  accusado. 

I'rora  pelo  duelo.  —  O  dcnuncianle  c  o  accusado 
encommendavam-se  a  Deus  por  espaço  de   quaronU 

j  dias.  Acabado  o  tempo  ilas  rezas  pcnduravam-lhcs  ao 
pescoço  c  nas  lanças  liras  de  |  apel  em  que  estavam 
escripias  breves  orações.  Depois  d'drmados  entravam 

i  na  liça  la''eados  dos  padrinhos  muniilos  dVscudos  e 
chicotes.  O  combale  a  que  o  rei  assistia  continuava 
alo  um  d'elles  vir  do  cavallo  abaixo.  Então  os  pj(- 
drinhos  o  traziam  á  presença  do  rei,  como  convenci- 

i  do  da  culpa,  para  fazer  dcllc  o  que  lhe  approuvessc. 

I -Vs  armas  do  vencido  ficavam  pertencendo  ao  vence- 
dor, e  o  seu  cavallo  aos  padrinhos  do  ultimo. 


(I)     Parreiras  sustidas  por  culurauas  ou  pilastras. 


13 


O  PANORAMA. 


lis 


S.  M.  CATHOLICA,  D.  ISABEL  II. 


Os  CASAMENTOS  das  augustas  fílhas  de  Fernando  VII 
deram  largo  thema,  antes  de  verificados,  á  imprensa 
politica;  e  ainda  tccm  continuado  a  fornecer  texto  pa- 
ra muitas  columnas  a  narração  das  solemnidadcs  e  fes- 
tejos que  se  llies  seguiram.  Algans  jornaes  francezos 
lembraram-se  (ie  publicar  por  osta  occasião  as  noticias 
dos  precedentes  enlaces  matrinjoniacs  entre  as  casas 
soberanas  de  llespaiiha  e  Franca.  Uesiiniiremos  a  rc- 
laçiio  do  ultimo,  porque  mostra  a  diplomacia  e  etique- 
ta do  século  passado  n'cstcs  negócios.  — 

Luiz  XV,  que  em  'i(i  d'agosto  de  173!)  concedeu  a 
mão  do  sua  lillia ,  Maria  l.uiza  Isabel  de  França, 
ao  príncipe  das  Astúrias,  lierdeiro  presumplivo  da 
coroa  d'IIespanha,  resolveu-se,  pelo  liin  de  1741,  a 
estreitar  por  novo  matriuionio  os  laços  que;  uniam  as 
duas  reaes  fauiilias.  <^)m  elíeilo,  foi  o  bispo  de  Krn- 
nes  enviado  oHicialmente  i  còrle  de  Madrid  eoin  o 
caracter  de  embaixador  extraordinário  e  a  commis- 
são  de  pedir  para  o  delpliim  de  França  a  mão  da 
prinecza  .Maria  Ibereza  Antónia.  A  (i  ile  dei^enibro 
eliegou   a  Madrid,   e  a  H  o  mordomo  de  seuiana  de 

Voi.  1.  — Dexuuuuo  12,   1810. 


Filippe  V  o  conduziu  com  grande  pompa  a  palácio 
n'uma  carroagem  da  corte.  Abriam  o  préstito  trinta 
e  seis  lacaios  com  librés,  vestidos  com  elegância  c  ri- 
queza, em  duas  linlias  c  precedidos  de  dois  suissos  a 
cavallo  ;  seguiam-se  seis  moços  da  camará,  e  o  mor- 
domo ia  .1  sua  frente,  de  faida  escarlate  bordada  de 
ouro.  Vinbam  depois  o  escudeiro  do  bispo,  também 
de  farda  escarlate  agaloada  em  todas  as  costuras, 
acompanbado  de  seis  formosos  pagens,  vestidos  de  y%- 
ludo  carmezim,  e  a  carroagem  que  trazia  o  embaixa- 
dor e  o  mordomo  de  semana  ;  dois  palafreneiro»  tom 
a  libré  da  casa  real  marchavam  conduzindo  os  cavai- 
los  de  eslado  ;  seguiam  quatro  carroagens  do  embai- 
xador tiradas  cada  uma  por  seis  mulas  ricamente  ajae- 
zadas :  as  duas  primeiras  iam  vasias,  na  terceira  ia 
o  esmoler  do  bispo  de  Kennes  com  mais  quatro  sacer- 
doles,  e  occupavam  a  quarta  quatro  gcntisliomeus  ves- 
tidos de  casacas  de  veludo  pardo  :  a  carroagem  do 
uiordoin(i,  tirada  a  i|iiatro,  e  guiada  por  um  cocheiro 
e  um  postilhão  cerrava  i>  préstito. 

A  comitiva,   depois   de  haver  «travessado  a  cidade, 
entrou  no  paço  do  Kcliro   pelo  pateo  das  cosinhas,  « 


11  i 


o  PANORAMA. 


alli  foi  recebida  por  uma  companhia  das  guardas  hes- 
panholas  c  oulra  de  guardas  valonas,  formadas  em 
alas:  desfilou  depois  no  pateo  principal  afim  de  que 
SS.  MM.  podessem  vè-la  das  janeilas.  O  embaixador 
e  mordumu  se  apearam,  atravessaram  os  corredores 
onde  estavam  postados  os  alabardeiros,  e  subiram  á 
regia  habitação  pela  escada  principal.  —  O  duque 
Bousuonvillc,  capitão  das  guardas  de  serviço,  á  fren- 
te da  ollicialidade  do  corpo  saiu  a  receber  o  embaixa- 
dor, o  qual  se  adiantou  entre  alas  das  guardas  até 
a  casa  que  comuninica  com  a  sala  de  audiência,  on- 
de o  esperava  o  secretaiio  de  gabinete.  El-rei  entrou 
na  sala  pouco  tempo  depois,  e  se  collocou  no  extre- 
mo mais  immediato  ao  seu  aposento,  e  ainda  que  ti- 
nha ao  lado  uma  cadeira  se  conservou  de  pé  e  se  co- 
briu, assim  como  todos  os  grandes  (i'Ilespanha  que 
estavam  em  fileira  ao  longo  da  parede  :  mais  além, 
em  seguida,  estavam  os  mordomos  de  semana,  e  de- 
fronte ao  lado  direito  OS  gentishomens  da  camará  que 
não  tinham  litulos  de  grandeza  ;  tendo-se  deixado  um 
espaço  entre  o  rei  e  ellet  para  os  embaixadores  e  mi- 
nistros estrangeiros.  O  resto  da  sala  estava  occupado 
por  grande  numero  de  pessoas  de  todas  as  classes,  po- 
rém bem  trajadas.  O  secretario  de  gabinete  disse  era 
alta  voz  que  o  embaixador  extraordinário  de  S.  M. 
Christiauissima  esperava  licença  para  entrar  ;  el-rei 
mandou  que  fosse  introduzido  á  sua  presença  ;  o  bis- 
po, que  se  revestira  de  roquete  e  pozera  a  mitra,  en- 
trou imuiediatamente,  seguido  do  seu  secretario,  pe- 
la porta  que  fazia  frente  ao  logar  onde  se  achava  o 
rei,  e  depois  de  haver  feito  as  três  reverencias  do  cs- 
tylo  fallou  a  S.  M.  em  latim:  concluído  o  discurso, 
declarou  o  objecto  da  sua  missão  :  o  rei  levou  a  mão 
ao  chapéu  e  o  embaixador  se  retirou  tendo  feito  as 
cortezias  do  costume. 

A  saida  da  audiência  real  dirigiu-se  o  bispo  aos 
aposentos  da  rainha  ;  esta  achava-sc  á  missa  com  as 
princezas  suas  filhas.  O  embaixador,  tendo  esperado 
um  puULii,  teve  aviso  de  que  a  rainha,  havendo-se 
concluído  o  oflicio  divino,  o  receberia,  c  foi  introduzi- 
do á  sua  presença  por  um  mordomo,  que  repetiu  em 
voz  alia  o  nome  e  dignidade  do  bispo.  A  sala  appre- 
sentava  o  seguinte  aspecto:  a  rainha  debaixo  do  do- 
ccl,  duas  infantes  a  seus  lados,  as  damas  do  seu  ser- 
viço por  detraz  ou  na  mesma  linha  das  infantas,  as 
damas  de  honor  e  os  grandes  do  reino  em  frente,  e 
ao  lado  destes  os  embaixadores  e  ministros  estrangei- 
ros. O  bispo  de  Reúnes,  depois  de  fazer  três  profun- 
das reverencias  á  rainha  c  duas  ,ís  infantas,  pronun- 
ciou a  sua  arenga,  mas  em  francez,  c  poz  nas  mãos 
da  camareira  mór  as  cartas  dirigidas  á  rainha  e  ás 
infantas,  depois  do  que  se  retirou  descoberto  como 
tinha  fallado,  porquanto  a  corte  de  Hcspanha  j;i  ha- 
via adoptado  o  uso  da  franceza,  de  fallar  :is  scnhorau 
de  qualcpier  jerarchia  com  a  cabeça  descoberta.  O  em- 
baixador teve  de  appresentar-sc  lambem  ao  príncipe 
das  Astúrias  ;  porém  do  quarto  d'esto  já  se  havia  des- 
terrado parte  da  etiqueta,  porque  a  prínceza  das  .\s- 
turias,  l.uiza  Isabel,  filha  de  Luiz  \V,  linlia  mani- 
festado a  sua  predilecção  pelos  usos  da  corte  de  Fran- 
ça. Seui  embargo  d'isso,  apparecendo  n'cssa  occasião 
o  infante  cardeal,  tiveram  de  gitardar-se  as  ceremo- 
nias  hespauholas,  de  que  o  mesmo  infante  era  rigido 
obscrvíidor. 

No  dia  13  ás  sele  horas  da  noite  verificoH-se  a  cc- 
remonia  da  assignatura  do  contracto  na  sala  da  au- 
diência do  rei.  Estará  esta  sala  magnificamente  ador- 
nada e  illuminada.  No  extremo  mais  visinho  do  apo- 
sento d'elrei  estavam  as  cadeiras  para  este  c  a  rainha, 
e  á  esquerda  d'esla  havia  outras  seis  collocadâs  em  fi- 
leira para  o  priacipe  c  priuccza  das  Astúrias,  o  in- 


fante cardeal  e  as  infantas  lliria  Thereza  e  Maria 
Antónia.  Um  poueo  antes  da  cl:ej;ada  de  SS.  MM. 
sairam  da  sala  os  que  por  seus  eM:prego3  não  tinham 
direito  de  assistir  á  ccremonia,  e  fi  aram  somente  oí 
principaes  empregados  da  casa  real,  os  grandes  d'Hes- 
panha,  e  os  gentishomens  da  cauiara  collocados  em 
duas  fileiras  á  direita  e  á  esquerda,  os  mordomos  de 
semana,  olliciaes  da  guarda  de  Corpo,  e  alguns  da 
guarda  d'infanteria,  os  dois  secretários  de  estado,  o 
inquisidor  geral,  o  presidente  do  conselho  de  Castel- 
la,  alguns  bispos,  e  a  final  os  confessores  d«  rei  e  da 
rainha.  Os  ministros  estrangeiros  tinham  logar  por 
detraz  das  cadeiras  de  SS.  MM.  Quando  todas  as  pes- 
soas da  f^milia  real  tomaram  assento,  cada  um  dos 
assistentes  se  collocou  no  posto  que  haria  occupado 
nas  eeremonias  anteriores,  e  os  grandes  d'Hespanha 
de  todas  as  classes  ficaram  defronte  do  rei  e  da  rai- 
nha :  o  embaixador  de  França  assentou-se  n'uma  ca- 
deira de  respaldo  ao  lado  esquerdo  do  monarcha.  O 
marqucz  de  Ussart,  secretario  d'estado  e  notário  mór, 
fez  preparar  uma  mesa  coberta  com  uma  alcatifa,  a 
quiil  com  dois  castiçaes  massiços  de  prata  mandou 
pôr  diante  do  rei.  O  mordomo  mór  deu  uma  panca- 
da de  bastão  no  pavimento,  e  o  sobrediclo  secretario 
d'eslado,  de  pé  e  de  cabeça  descoberta,  começou  a 
ler  em  voz  alta  o  contracto  de  matrimonio.  Concluída 
a  leitura,  que  durou  Ires  quartos  de  hora,  o  rei  e  a 
rainha  assignaram.  A  rainha  mandou  á  infanta  Maria 
Thereza  que  se  chegasse  e  assignasse  na  sua  presença. 
Depois  foi  collocada  a  mesa  diante  de  cada  pessoa  da 
família  real,  e  todos  foram  assignando  por  seu  turno. 
Do  contracto  se  fizeram  dois  exemplares,  um  para  H«s- 
panha  em  hcspanhol,  outro  para  França  em  francez. 
Deiiois  assignou  o  bispo  de  Kennes  como  procurador 
do  rei  e  do  delphim  de  França.  O  marquez  de  Villa- 
rias,  o  almirante  de  Castella  e  o  inquisidor  geral  ha- 
viam assignado  antes  da  ceremonia  como  commissa- 
rios.  Os  officiacs  mores  da  casa,  os  capitães  das  Ires 
companhias  das  guardas  de  Corpo,  um  considerável 
numero  de  grandes  e  gentishomens  da  camará,  os  dois 
secretários  de  estado,  alguns  bispos  c  os  dois  confesso- 
res, posto  que  designailos  como  testimunhas.  não  assig- 
naram. 

.\o  dia  18  á  noite  o  palriarcha  das  Índias  celebrou 
o  matrimonio  religioso.  O  príncipe  das  .\sturias,  em 
virtude  de  auctorisação  expressa  de  Luiz  XV,  repre- 
sentou a  pessoa  do  delphim.  À  ceremonia  foi  mui  sin- 
gela, e  só  fi>ram  presentes  a  real  familía,  alguns  gran- 
des d'Hespanha  e  seus  primogénitos,  e  algumas  da- 
mas do  paço. 

A  20,  depois  de  um  grande  banquete,  celebrado 
em  |)ublioo  segundo  o  costume,  a  delphina  rereben  a 
benção  de  seus  pais  o  rei  ca  rainha  de  Hespanha, 
dcspediuse  de  seus  irmãos,  c  deu  beijanião  aos  con- 
currentes.  Depois,  acompanhada  somente  do  prinri- 
|ic  e  prinreza  das  Astúrias,  c  seguida  de  toda  a  em- 
baixada franceza,  saiu  de  Madrid  :  a  uma  légua  d'es- 
ta  corte  subiu  com  uma  só  dama  de  honor  á  carroa- 
gem  que  para  esse  eiTeito  lhe  linha  enviado  o  rei  de 
França.  O  conde  de  Montijo,  encarregado  de  condu- 
zir a  princeza  até  onde  a  esperavam  o  conde  I.anra- 
giiais  e  os  commissiouados  francezes,  tooion  ent.ío  o 
mando  da  escolta,  c  lodos  se  pozeram  a  caminho  pa- 
ra a  fronteira  de  França.  Chegados  a  Fiicnlcrrabia, 
onde  csperaTam  já  a  delphina  havia  muitos  dias  os 
criados  de  sua  casa  e  os  oOiciaci  da  cseolla  franceta, 
recebeu  ella  da  parle  do  rei  seu  sogro,  e  por  mão  da 
cavalheiro  La  Fare,  seu  cstribeiro  o  retraio  do  del- 
phim c  vários  presentes  da  etiqueta  O  conde  de  Lau- 
raciiiais  por  parle  da  França  c  o  de  Montijo  pela  de 
Uespanha,  assistidos  dos  respectivos  secret.irio5,  rega 


o  PANORAMA. 


115 


laram  em  breve  todas  as  formalidades  da  entrega  da 
princeza.  VcriQcou-se  esta  entrega  na  celebre  ilha  dos 
Faisães,  situada  no  meio  do  rio  Bidassoa,  sobre  o  qual 
se  lançou  uma  solida  ponte  de  madeira.  Depois  na  mes- 
Oia  ilha  se  levantou  um  pavilhão  composto  de  dois  apo- 
sentos separados  por  uma  grande  sala,  servindo  esta, 
de  certo  modo,  de  fronteira  ;ís  duas  nações,  cujos  re- 
presentantes rivalisaram  cm  gosto  e  magnificência  pa- 
ra adornar  os  seus  respectivos  departamentos.  Do  lado 
dos  francezes  chegava-se  ao  pavilhão  por  uma  rua  de 
arvores  magnifica,  chamada  rua  de  Franca,  formada 
de  130  pinheiros  assentados  alli  no  dia  antecedente,  e 
adornada  com  grinaldas  de  louro,  murta  e  flores,  com 
divisas  galantes  em  papeis  de  côr. 

No  dia  í'i  a  delphina  apeouse  da  carroagera  ;í  en- 
trada da  ponte  da  parte  liespanhola,  e  passou  a  pé  dan- 
do-lhe  a  mão  o  conde  de  Montijo,  seguida  dos  liespa- 
nhoes  que  a  tinham  acompanhado  na  jornada.  Logo 
que  chegou  ao  pavilhão  descanrou  um  momento  debai- 
xo de  um  docel  com  as  armas  de  Hcspanha,  e  depois 
entrou  no  dcparlamcnlo  da  sua  nação  sem  mais  deten- 
ça que  atravfssa-lo,  e  por  ultimo  passou  á  grande  sa- 
la, onde  se  verificou  a  entrega  de  sua  pessoa  aos  caval- 
leiros  francezes,  os  quaes  assignaramde  \ic  o  Icrmo  de 
recebimento.  Terminadas  estas  formalidades,  a  prin- 
ceza comprimcnteu  o  condede  .Montijo,  deu-Ihe  a  mão 
a  beijar  assim  como  aos  mais  hespanlioes  e  os  despe- 
diu. Depois,  datiiio-lhe  a  mão  o  conde  de  Lauraguais. 
passou  ao  departamento  fr.incez,  onde  recebeu  as  feli- 
citações c  homenagens  dos  genlishoracns  e  o  juramen- 
to dos  criados  de  sua  casa.  A  duqueza  de  Brancas,  sua 
dama  de  honor,  e  a  marqueza  de  Uubempré,  sua  ca- 
mareira, lhe  appreserilaram  o  guarda-roupa  que  lhe 
enviava  o  rei  de  França  ;  a  princeza  mudou  logo  de 
vestidos,  entrou  para  a  carruagem,  e  deu  ordem  de 
marcha  para  Paris. 

As  particularidades  das  festas  que  se  fizeram  cm 
honra  d'esla  princeza  nas  cidades  por  onde  passou,  c 
sobre  tudo  em  Paris,  não  serviriam  senão  de  tornar 
mais  triste  a  recordação  de  seu  fim  prematuro,  pois 
que  morreu  sobre  parto  a  -26  de  julho  de  17Í-7,  ain- 
da não  decorridos  dois  annos  de  casada  :  sou  filho  não 
lho  sobreviveu.  O  delpliim  casou  depois  com  a  prin- 
ceza de  Saxonia,  Maria  Joselina,  e  teve  d'clla  Ires  fi- 
lhos c  duas  filhas,  que  foram,  o  desditoso  Luiz  XVI, 
Luiz  XVIII,  Carlos  X,  c  as  princazas  Clotilde  c  Isabel 
de  França. 

Génio  dos  riNLANDEaE.s. 

A  rsTRAn*  de  Abo  a  Ilelsiugfors  é  conservada  cuida- 
dosamente em  bom  estado,  mas  c  silenciosa  e  deser- 
ta :  no  espaço  de  sessenta  léguas  não  existe  uma  ci- 
dade, uma  aldeia.  Km  todo  o  tempo  que  gastei  a 
percorre-lo  creio  que  não  encontrei  seis  viajantes  :  o 
seu  aspecto,  em  summa,  asseiaelha-se  ao  (|ue  já  eu 
linha  observado  em  muitos  pontos  da  Suécia  :  ora  se 
passa  por  meio  d<;  um  l)us<|ue  de  abetos  c  de  bétulas, 
ora  se  trepa  um  outeiro  semeado  de  penedos,  ora  se 
desce  a  uma  planura  de  areal  por  onde  corre  mansa- 
mente um  ribeiro.  A  poucas  milhas  de  Biesherg  vi 
uma  cataracta  e  uma  ferraria.  i'ouco  mais  ao  longe 
dc3cortina-se  algum  lago  cercado  |)or  uma  ourela  de 
arvoredo  ou  por  muralhas  de  idcliedos  granitosos  Os 
mais  formosos  lagos  da  Finlândia  aeliam-su  nat  pro- 
víncias de  Savolax  e  Careliii,  (pie  pela  IVeseura  dos 
vallcs  c  as  verdes  laileiías  das  eiuineiu:ias  (razem  á 
lembrança  o  paiz  variailo  e  picluresco  da  l>al<'earlia. 
—  Westc  solo  pedregoso  e  areento.  eubrrlo  a(|ui  de 
musgo,  c  acolá  erriçado  de  malto,  nnde  i|urr  ([ue  ha 
uma  cuurellu  do  terreno  aruvel  c  cullivudu  cuiii   in- 


telligencia  e  perseverança.  Os  finlandezes  são  muito 
bons  agrónomos;  nem  o  trabalho  da  lavoura,  nem  a 
intemperança  das  estações,  nem  a  natureza  rispida 
que  illude  os  seus  esforços,  os  amedrontam  :  tem  le- 
vado a  relha  do  arado  além  do  circulo  polar,  e  colhi- 
do cevada  nos  confins  da  Laponia  ;  onde  houver  um 
campo  lavradio  assentarão  uma  vivenda.  De  ordiná- 
rio nãe  é  mais  do  que  uma  barraca  mesquinha  e  de 
madeira,  de  alguns  pés  d'alto,  sóallumiada  por  uma 
clarabóia,  c  mais  parecendo  um  pombal  do  que  hu- 
mana habitação  ;  sem  embargo,  é  bastante  para  ani- 
nhar uma  familia  inteira  ;  d'ella  saem  homens  robus- 
tos, acostumados  a  todas  as  privações,  rijos  para  to- 
da a  casta  de  fadigas,  e  mulheres  que  ostentam  o  ty- 
po  augusto  da  belleza  sob  os  trajos  da  penúria.  Dia 
virá  cm  que  a  ninhada,  mantida  a  batatas  e  leite  aze- 
do, largará  o  seu  pouso  ;  assoldadam-se  rapazes  e  ra- 
p.irigas,  e  de  seus  salários  levantam  um  piedoso  dizi- 
mo para  seus  pais  já  velhos,  que  com  o  auxilio  d'es- 
tc  soccorro  filial  acabam  com  certa  commodidade  a 
vida  começada  cm  lidas  e  fraguas. 

Os  paisanos  finlandezes  estão  capacitados  de  extra- 
vagantes superstições.  Esta  gente  simples  e  ignorant* 
crê  na  existência  de  uma  turba  de  espíritos  mais  ou 
menos  malfazejos  que  influem  poderosamente  nos  des- 
tinos dos  homens.  .\"algiins  districtos  imaginam  que 
os  mortos  podem,  lá  em  certas  epochas,  visitar  as  suas 
casas,  e  como  os  vivos  não  lêem  a  menor  cubica  de 
os  tornar  a  ver,  por  isso  Icmbraram-se  de  usar  de  um 
expediente  singular.  Põem  o  caixão  dodefuncto,  quan- 
do o  levam  ao  cemitério,  que  é  sempre  longe,  em  cima 
do  carro  que  no  andar  dá  mais  solavancos,  e  gniam- 
n'os  pelos  carris  e  azinhagas  mais  ásperas  e  intracta- 
vcis,  afim  de  que  o  corpo  vá  bem  balouçado  e  sacu- 
dido ;  isto  (dizem  tllesj  para  que  os  defunctos  lá  na 
cova  se  lentbrem  de  tão  ruim  caminhada  e  lhes  fuja  a 
tentação  de  voltar  ao  sitio  d'onde  foram  transportados. 


Carlos  VI  e  os  seus  cortezãos. 

E.M  1.'580  caiu  a  França  nas  desgraças  de  uma  meno- 
ridade :  Carlos  VI  se  achou  de  posse  do  throno  na 
idade  de  doze  annos.  A  regência  pertencia  ao  duque 
d'Anjou,  que  ambicioso  e  avarento  queria  dinheiro 
e  [loderio  ;  o  duque  de  Berry  era  cxcluidu  dos  negó- 
cios ;  a  lulella  estava  confiada  aos  duques  de  Borgo- 
nha c  de  Bourbon,  igualmente  tios  do  rei  menor:  es- 
tes dois,  invejosos  c  turbulentos,  não  contentes  ila  par- 
le de  auctoridade  que  lhes  tocava,  (lueriani  coarctar 
a  do  regente;  e  todos  elles,  desprezando  os  interesses 
do  povo,  não  curavam  senão  ilc  segurar  os  seus  pró- 
prios. Os  arredores  de  Paris  foram  desa|iiedajamen- 
te  devastados  pelos  partidários  que  estes  sediciosos  por 
alli  juiu:laram,  na  intenção  de  crearem  um  regime  a 
cujo  abrigo  o  sen  despotismo  e  rai)inas  ficassem  im- 
punes : —  foram  tamaulias  as  desordens  que  se  esta- 
beleceram árbitros  obrigados  a  intervir  n'ellas.  De- 
cidiu-se  (ine  a  coroação  teria  logar  a  %  de  novembro 
seguinte  ;  que  a  regência  cessaria  então,  que  o  rei  go- 
vernaria em  seu  nome,  assistido  comludo  de  um  con- 
selho de  (jue  seus  tios  firiam  parte.  O  diniue  d'An- 
jiiu,  certo  da  lran(|uilla  posso  do  poder,  ao  nieuos  por 
alguns  niezes,  ijuiz  aproveita-los  ;  nada  iguala  o  des- 
caramento de  sa(iuear  a  que  se  entregou  ;  apossou-»e 
até  das  jóias  e  baixella  da  coroa,  e  não  se  eiwergo- 
nhou  lie  ameaçar  de  morte  o  confidente  do  defuncto 
Carlos  V,  se  lhe  não  descobrisse  o  lugar  em  que  es- 
lava o  thesouro  de  dezesete  milhões  (jue  aqurlle  MO- 
nanha  culligira  :  o  temor  do  supplicio  quebr.intou  IX 
fidelidade,  c  loi  satisfeita  a  avareza  do  rcfc'ente. 


liG 


O  PANORAMA. 


Sendo  grave  o  peso  dos  impostos,  e  constando  que 
o  rei  fallecido  recommcndára  na  soa  hora  derradeira 
que  fossem  supprimidos  todos  os  que  se  havi»m  lan- 
çado depois  de  rilippe  o  formoso  ;  como  a  corte  não 
tinha  pressa  de  cumprir  a  ultima  vontade  de  Carlos 
V,  o  povo  amotinou-se,  e  o  conselho  viu-se  na  preci- 
são de  convocar  os  Eslados-geracs  ;  mas  esta  asscm- 
bléa  foi  frouxa  e  dividida  entre  si  ;  e  tanto  o  conhe- 
ceu o  regente,  que  renovou,  apenas  dissohida,  todos 
os  tributos  cuja  abolição  cila  havia  sanccionadu.  Foi 
este  acto  o  signal  de  um  levantamento  em  Paris  e 
muitas  cidades.  Não  dcscrevcrcmes  scenas  de  exces-  [ 
SOS,  dclirios  c  horrores  :  a  França  eslava  tão  desgra- 
çada quanto,  alguns  annos  antes,  havia  sido  podero- 
sa. A  expedição  a  favor  do  conde  de  Flandres,  perse-  i 
guido  pelos  súbditos  rebellados,  veiu  dar  motivo  a  no- 
vas calamidades,  e  peior  aconteceu  com  outra,  ar- 
mada pela  ambição  do  duque  de  Anjou  :  —  foi  um  i 
projecto  de  conquista  na  Itália. 

Traclava-se  do  reino  de  Nápoles  onde  reinava  a 
posteridade  de  Carlos  d'AnJ9u.  A  rainha  Joanna,  na 
sua  varia  fortuna,  achande-se  sem  descendência  havia 
escolhido  por  herdeiro  Carlos  Durazzo,  descendente  ' 
como  ella  do  irmão  de  S.  Luiz.  Estava  então  no  seu  | 
auge  o  grande  scisma  pontificio  :  Urbano  VI  em  Ro- 
ma, Clemente  VII  em  Avinhão  se  excommungavam 
reciprocamente.  O  primeiro  depoz  Joanna,  porque  se 
declarara  a  pró  do  seu  competidor,  c  foi  tão  immo- 
ral  que  ordenou  ao  próprio  Durazzo  se  armasse  con- 
tra a  sua  bemfeitora  ;  Durazzo  foi  tão  vil  que  obede- 
ceu ús  vontades  do  papa.  Então  a  rainha  napolitana 
retractou  a  sua  doação,  e  nomeou  para  successor  o 
duque  d'Anjou,  irmão  de  Carlos  V  de  França,  a 
quem  a  esperança  de  uma  coroa  conduziu  á  Itália.  O 
papa  Clemente  VII  devia  naturalmente  proteger  o 
duque  de  Anjou;  auctorisou-o  para  levantar  dizimos 
e  excommungou  a  Durazzo  e  aos  que  o  seguiam.  O 
duque  passou  os  .\lpes  com  um  exercito  de  srisenta 
mil  homt  iis  ;  não  duvidava  do  triumpho  ;  mas  já  o 
seu  rival  se  tinha  assenhoreado  de  Nápoles  e  metti- 
do  cm  prisão  a  rainha  Joanna,  a  quem  mandou  es- 
trangular á  chegada  do  exercito  franccz,  assim  como 
ella  em  outro  tempo  fizera  estrangular  o  seu  primei- 
ro marido.  O  duque  procurava  o  inimigo  para  o  com- 
bater ;  Durazro  que  conhecia  as  suas  vantagens  não 
as  quiz  arriscar  n'uma  batalha  ;  limitou-se  a  inquie- 
tar o  contrario,  que  por  deserções  se  ia  enfraquecen- 
do. Os  thesouros  de  duque  esgotavam-se  ;  sua  mulher 
lhe  transniiltiu  novos  recursos  pecuniários,  e  encar- 
regou um  confidente  de  os  ir  receber  a  Veneza,  mas 
o  valido  apossou-sc  do  dinheiro  e  o  dissipou.  O  du- 
que de  .\njou,  desesperado,  devasta  os  territórios  que 
atravessa  ;  arremeçase  furioso  a  uma  partida  d«  ini- 
migos que  encontra,  recebe  uma  ferida  no  conflicto, 
enferma  por  algum  tempo  c  morre.  Os  fragmentos 
dispersos  do  seu  exercito  se  recolheram  para  onlrisle- 
cer  a  França  cora  o  espectáculo  do  seu  desbarate. 

Pouco  tempo  depois  d'aquella  malograda  eipedi- 
cãe,  Carlos  VI  tomou  por  mulher  Isabel  de  Ba\icra, 
que  por  seu  caracter  ambicioso,  e  alma  dcshumana, 
lanto  mal  foz  a  França.  O  conselho  ilos  príncipes  go- 
vernava sempre,  apesar  da  maioridade  do  rei,  que 
contava  dczcseis  annos.  Novas  sedições  na  flandres, 
sustentadas  por  tropas  inglezas,  assustaram  o  duque 
de  líorgcinha.  O  conselho  assentou  de  mandar  á  In- 
glaterra uma  armada  formidável  ,  afim  de  castigar 
por  uma  vez  a  insolência  da  nação  rival.  O  miserá- 
vel estado  da  fazenda  publica,  continuadamente  sa- 
queada desde  a  morte  de  Carlos  V,  era  um  piuieroso 
obstáculo  ao  cumprimento  d'eslc  desígnio.  Dobraram- 
se  todos  os  impostos,  e  alem  d'isso  estabclcceu-sc  um 


empréstimo  forçado  para  acudir  as  enormes  detpezas 
que  exigia  aquelle  armamento.  A  oppressão  era  tal 
que  o  povo  não  ousou  murmurar ;  a  própria  nobreza 
foi  sujeita  á  derrama  geral ;  e  o  clero,  oulr'ora  tão 
cioso  das  suas  immunidades  e  arrogante,  já  não  pos- 
suindo mais  que  a  sombra  d'ellas,  obteve  por  privi- 
legio único  o  dar  a  titulo   de  donativo  a  collecta  que 

0  governo  lhe  podia  extorquir  á  viva  força. 

Foi  no  porto  de  FEcIusl  que  se  ajunctaram  todo* 
os  navios  para  esta  formidável  empreza.  Uma  frota 
de  trezentas  velas,  que  devia  levar  o  rei,  os  prínci- 
pes c  um  exercito  de  cem  mil  homens,  se  reuniu  com 
brevidade.  Na  Bretanha  embarcou  o  madeirameato, 
para  assim  dizer,  de  uma  cidade  inteira,  que  serviria 
de  alojamento  c  de  trincheiras  ás  tropas  depois  do 
desembarque.  A  Inglaterra,  assombrada  d'este  im- 
menso  apparato,  moveu-se  em  pezo  ;  ali  o  clero  cor- 
reu ds  armas  :  parecia  inevitável  uma  invasão  terrí- 
vel ;  e  todavia  os  colossaes  projectos  da  França  fica- 
ram em  nada.  O  duque  de  Berry  devia  trazer  tropas  da 
Guyanna  ;  porém  os  inglezes  oíTereceram-lhe  dinheiro 
e  deu  causa  a  falhar  a  expedição  com  delongas  coati- 
nuadas.  A.  esquadra  que  transportava  a  famosa  cidade 
de  madeira,  conduzida  da  Bretanha  a  Eclusc  pelo  con- 
destavcl  Clisson,  foi  accommettida  de  horrorosa  tor- 
menta que  dispersou  os  navios,  um  dos  quaes  á  dis- 
crição das  vagas  foi  dar  ás  praias  d'Inglaterra,  como 
para  informar  aquella  nação  de  que  os  elementos  cons- 
piravam para  desconcertar  os  desígnios  da  sua  adver- 
saria. Uma  parte  do  exercito  que  estava  para  o  desem- 
barque foi  ás  ordens  do  duque  de  Borgonha  guerrear  os 
flamengos;  ea  Inglaterra  ficou  desaffrontada  de  sus- 
tos. 

Mas  o  rei  não  abandonara  inteiramente  o  seu  pla- 
no da  invasão.  Equiparam-sc  em  segredo  nos  portos 
de  Treguier  e  de  Ilarfleur  navios  e  soldados  :  o  con- 
destavel  passou  á  Brstanha  para  tomar  o  commando 
da  armada.  O  duque  da  Bretanha,  cioso  dos  amores 
que  suspeitava  entre  sua  mulher  e  Clisson,  com  ma- 
nha attrahiu  este  a  Vannes,  fe-lo  agarrar  e  metter 
D'um  calaboiíçi);  fnra  a  sua  Itnção  mata-lo,  mas  o 
criado  de  confiança,  a  quem  dera  ordem  de  o  preci- 
pitar durante  a  noite  no  mar  que  banha  as  muralhas 
do  torreão,  horrorisou-se  á  idéa  d'este  crime,  e  não 
teve  forças  para  consumma-lo.  O  duque,  arrependen- 
do-se,  renunciou  os  seus  projectos  de  vingança  :  mas 
não  saltou  o  prisioneiro  senão  pelo  preço  de  muitas 
praças  fortes  c  de  una  considíravel  quantia.  Clisson, 
furioso,  appresentou-se  em  Paris  a  pedir  justiça  ao 
rei.  O  duque  foi  chamado,  c  pretendeu  justificar-se  ; 
o  rei  exigiu  a  restituição  das  cidades  e  do  preço  do 
resgate,  e  reconciliou  os  dois  inimigos.  Pela  segunda 
vez  se  renunciou  a  expedição  contra  Inglaterra. 

Fatigado  do  jugo  de  seus  lios,  o  rei  d«clarou  que 
queria  reinar  independente  ;  escolheu  ministros,  re- 
tirou do  governo  do  Langucdoc  o  duque  de  Berry, 
mandou  queimar  vivo  Bctizac,  confidente  d°este  prín- 
cipe e  agente  de  todas  as  dilapidações,  constituiu  per- 
manente o  parlamento,  e  excluiu  d°elle  os  abbades  e 
priores  como  Philippe  o  longanimo  já  linha  desvia- 
do os  bispos  ;  depois  dou  funcções  esplendidas  e  tor- 
neios, cm  que  o  duque  dOrleaus,  seu  irmão,  c  mes- 
mo clle  tomavam  parte.  A  cõrlo  mudara  totalmente 
de  aspecto  ;   a  rainha   e  a   formosa  Valenlina   de  Mi- 

1  Ião,  sua  cunhada,  ostentavam  o  brilho  da  mocidade 
juncto  á  bellcza  :   mas   a  prodigalidade   do  monarcha 

.  contrastava  com   a   penúria   do  povo.   .Não  se  cuidava 
'senão  de  divertimentos,   qu.indo  a  tentativa  de  assas- 
sínio  na  pessoa  do  oondestavel   Clisssn  por  m.indado 
j  do  duque  de  Bretanha   veiu  consternar  os  ânimos  :  « 
perpelrador  era  Pedro  de  Craon,  o  infame  que  rou- 


o  PANORAMA. 


117 


bara  o  espolio  do  duque  d'Anjou  na  Ilalia  ;  «vadiu- 
se  para  a  Bretanha.  O  rei  exigiu  que  Monlfort  ]h'o 
entregasse;  poréta  o  duque  recusou.  Então  Carlos  VI 
resolveu  fazer  guerra  á  Bretanha,  para  vingar  o  con- 
deslavel,  que  convalescido  das  feridas  continuava  a 
gozar  do  favor  da  corte  :  os  tios  do  rei,  ciosos  da  as- 
eendencia  que  grangcára  Clisson,  procuraram  oppôr- 
se  áquelle  projecto  ;  mas  Carlos  VI,  impetuoso  e  ab- 
soluto, quiz  leva-lo  a  cabo.  Poz-se  á  testa  de  ura  exer- 
cito, e  atravessava  o  bosque  de  Mans  quando  ura  ho- 
mem vestido  de  branco,  postado  verosimilmente  pe- 
los príncipes,  mas  que  a  imaginação  fraca  e  exaltada 
do  rei  tomou  jior  espectro,  saltou  d'entre  a  malta 
cortada,  o  agarrando-lhe  no  freio  do  cavallo  bradou: 
«  /Iclrocede,  ó  rei;  estás  at'-aiçoado !  »  O  infeliz  nio- 
narclia  ficou  mudo  de  assombro  ;  comludo  a  marcha 
progrediu  ;  de  repente  o  casual  embale  de  uma  lan- 
ça n'um  capacete  o  transporta  de  furor  e  de  espanto 


a  um  tempo  ;   e  declara-se  violentamente  n'esse   mo- 
mento a  demência  que  tinha  de  durar  toda  a  sua  vi- 
i  da.  Com  trabalho  o  seguram  e  conduzem  a  Paris  ;  os 
I  duques  de  Berry   e  de  Borgonha  apossam-se  da  auc- 
j  toridade  ;  Clisson,  a  quem  detestavam  e  queriam  dei- 
I  lar  a  perder,   viu-se  obrigado  a  fugir;  e  foi  despoja- 
do  da  dignidade   de   condestavel.   O  rei,   recobrado  o 
juízo  ao  lim   de  seis  mezes,   apenas  teve  tempo  para 
approvar  tudo  quanto  se  fizera  durante  a  sua  aliena- 
ção :   um  accidcnte,   succedido  n'um  baile,   lhe  moti- 
vou novo  accesso  ;   desesperaram   de  o  curar  :  recahi- 
das   frequentes  o  determinaram   a  nomear  um  conse- 
lho de  regência,    á  tesia  do  qual  collocou  seu  irmão  : 
aqui  tem  principio  a  sanguinolenta  rivalidade  das  ca- 
sas de  Borgonha  e  de   Orleans,   fonte   de   tantas  dis- 
córdias  que   não   particularisamos  por  não   ser  nosso 
intento  n.irrar  os  acontecimentos  de  uma  época  intei- 
ra da  historia  da  Franca. 


Por  este  tempo  appareceram  pela  primeira  vez  as 
cartas  de  jogar,  que  foram  inventadas  (ignora-se  dc- 
rinitívamente  por  quem)  para  entreter  os  lúcidos  in- 
tervallos  que  a  loucura  deixava  ao  rei  Carlos  VI.  — 
Depois  se  propagou  com  furor  pela  França  entre  a 
nobreza,  e  d'ahi  pela  Europa  e  enlre  o  povo  o  uso 
de  jogar  as  cartas,  converlendo-se  cm  causa  motora 
da  ruina  de  muitas  famílias  e  da  perda  de  muitas  vi- 
das c  reputações  o  que  fiira  iraaginailo  para  instru- 
mento de  distracção.  —  As  primeiras  cartas  eram  pin- 
tadas á  mão,  e  por  isso  custava  o  baralho  muito  ca- 
ro ;  muito  posteriormente  se  lembraram  de  as  gravar 
c  ílluminar,  •  então  desceu  muílo  o  preço,  (!  a  gen- 
te Yulgar  poude  nervír-sc  d'ellas. 


Os  Trmpi.arios. 

(Conllnuidodcpas.  10!)  ) 

Eu  não  quereria  associar-me  aos  perseguidores  il'esta 
illustre  ordem.  O  inimigo  dos  Icmplarios  sem  querer 
os  purificou  :  os  trados,  mcdiatile  os  «pues  lhes  ex- 
tor(|uiu  vergonhosas  confissões,  parecem  urna  presiimp- 
rão  de  innoeencia.  Move  nos  o  animo  a  não  acreditar 
desgraçados  (|ue  se  aeeusam  no  niarlyrio  do  potro  .-se 
tiveram  maculas,  iuclinamo-nos  a  não  as  divisar,  apa- 
gadas como  foram  pela  chamnia  das  fogueiras. —  .Sub- 
sistem, cwmtudo,  grav<^s  testiuiunhos,  obtidos  fora  da 
polé  c  dos  tractos.  Até  as  arguições  que  não  foram 
comprovadas  não  sãu  menos  verosímeis  para  <|uem  co- 
nhece a   natureza  humana,   para  (|ucm  considera  so- 


riancnte  a  situação  da  ordem  nos  seus  últimos  tempos. 
Era  natural  que  se  introduzisse  a  relaxação  entre 
cenobitas  guerreiros,  filhos  segundos  da  nobreza,  que 
corriam  *m  busca  de  aventuras  longe  da  christanda- 
de,  muitas  vezes  longe  da  vista  de  seus  capitães,  en- 
tre os  perigos  de  uma  guerra  de  morlc  c  as  tentações 
de  um  clima  ardente,  de  uma  região  de  escravos,  da 
luxuriosa  Syria.  O  orgulho  e  o  brio  os  sustentaram 
cm  quanto  houve  esperanças  a  pró  da  Terra  Sancta. 
.Vgradcçamos  lhes  terem  resistido  por  tão  dilatado  tem- 
po, quando  em  cada  wnia  cruzada  a  sua  expectação 
ficava  tão  tristeniítile  abatida,  quando  toda  a  predic- 
ção  menlia,  e  os  milagres  promeltidos  se  dilTeriam 
scm|)re  :  não  ha\ia  semana  i\ne  o  sino  de  rebate  de 
Jerusalém  não  annuniiasse  a  apparição  de  árabes  na 
planicic  assolada  :  tocava  sempre  aos  templários,  aos 
hospitalarios,  montar  a  cavallo,  sair  dos  muros.  A 
final  perderam  Jerusalém,  e  depois  S.  João  d'.Vcrc  : 
soldados  aliaiidojiados,  sentinellas  penlidas,  dexe  por 
>enlura  admir.ir   (|ue  na   tarde  d'aquella   batalha   de 

dois  séculos  se  lhes  prostrassem   os  braços? —  f". 

grave  a  queda  depois  dos  esforços  vehemonles  :  a  al- 
ma que  tanto  acima  se  elevara  no  heroísmo  e  sancti- 

(lade  bem  pesada  cáe  por  terra Enferma  e  cheí* 

de  azedume  cngolphase  no  mal  com  uma  sedo  aspér- 
rima, como  para  vingar-so  de  luver  crido.  Tal  pare- 
ce ter  siilo  a  queda  do  Templo.  (Juanto  havia  do  sane- 
lo  na  ordem  se  luriiou  em  preeado  o  mancha.  l>cpui& 
de  SC  ter  oneaminliado  do  homem  para  Deus,  vultuu 
lie  Deus  para  a  bruteza.  As  piedosas  ágapes,  as  fra- 
ternidades heróicas  encobriram  paixões  torpes  do  co- 


118 


O  PANORAMA. 


libalarios :  occultavam  a  infâmia  alolando-se  mais 
n'ella  :  o  or;,'iilho  lambem  entrava  n'islo  ;  esse  povo 
eterno,  sem  família  nem  geração  carnal,  recrutado  pe- 
la eleição  e  o  espirito,  ostentava  desprezo  á  mulher, 
crendo-se  sufficicnte  a  si  mesmo,  e  não  amando  nin- 
guém á  excepção  de  si  mesmo.  Como  passavam  sem 
mulheres,  passavam  sem  sacerdotes,  peccando  e  absol- 
yendo-se  uns  aos  outros.  E  passaram  lambem  sem 
Deus.  Ensaiaram  superstições  oricntaes,  a  magia  sar- 
racena. A  principio  symbolica,  a  abjuração  veiu  a  ser 
real;  renegaram  de  Deus  que  não  lhe  dava  a  victo- 
ria  ;  tractaram-n'o  como  um  alliado  infiel  que  os  Ira- 
hia,  ultrajaram-n'o,  cuspiram  na  cruz.  Parece  que  a  sua 
verdadeira  divindade  veiu  a  ser  a  sua  própria  ordem  : 
adoraram  o  Templo,  e  os  templários  seus  cabeças  co- 
mo templos  vivos  ;  symbolisaram  por  meio  das  mais 
immundas  e  repugnantes  cercmonias  a  devoção  ce- 
ga, o  completo  abandono  da  vontade.  A  ordem,  con- 
centrando-so  assim,  caiu  n'uma  feroz  idolatria  de  si 
mesma,  num  egoísmo  satânico.  O  que  ha  de  summa- 
mente  diabólico  no  diabo  c  o  adorar-se. 

Dir-se-ha  :  eis  ahi  conjecturas.  —  Porém  cilas  deri- 
vam mui  naturalmente  do  grande  numero  de  confis- 
sões alcançadas  sem  o  recurso  dos  tractos,  particular- 
mente em  Inglaterra.  —  Demais:  que  tal  fosse  o  ca- 
racter geral  da  ordem,  que  os  estatutos  se  tornassem 
expressamente  infames  e  ímpios,  estou  bem  longe  de 
o  allirmar.  Cousas  taes  não  se  escrevem  :  a  corrupção 
entra  n'uma  ordem  por  connívencía  mutua  c  tacita  ; 
as  formas  subsistem,  mudando  de  sentido,  e  perverti- 
das por  má  interpretação  que  ninguém  reconhece  em 
publico.  — Porém,  mesmo  quando  essas  torpezas,  es- 
sas impiedadcs  tivessem  sido  uuiversaes  ua  ordem, 
não  teriam  bastado  para  acarretar  a  sua  destruição  : 
o  clero  as  teria  vendado  e  abafado  como  outras  mui- 
tas depravações  ecclesíasticas.  A  causa  da  .jina  do 
Templo  foi  o  ser  mui  rico  e  mui  poderoso:  — houve 
outra  causa  íntima,  eu  a  direi  logo. 

Á  medí'la  que  o  fervor  das  guerras  religiosas  dimi- 
nuía na  Europa,  á  medida  que  era  menor  a  concor- 
rência ás  cruzadas,  da\a-se  mais  ao  Templo,  para  se 
isentarem  d'aquellas  ;  os  aíTiliados  da  ordem  eram  in- 
nameraveis  ;  bastava  pagar  dois  ou  ires  dinheiros  por 
anno.  Muitas  [lessoas  oITereciam  todos  os  seus  bens  e 
a  si  mesmas  ;  dois  condes  da  Provença  se  entregaram 
assim  •  o  rei  do  Aragão  legou  o  seu  reino,  mas  o  rei- 
no não  consentiu.  —  Pude  julgar-se  do  numero  pro- 
digioso das  possessões  dos  templários  pelo  das  terras, 
casacs  c  fortalezas  arruinadas,  que  em  nossas  cidades 
e  campos  ainda   conservam   o  nome  do  Templo.   Pos 


sas  o  soldão,  permittido  o  culto  mahometano,  avisa- 
do os  infleis  da  chegada  de  Frederico  II.  Nas  suas 
furiosas  rivalidades  contra  os  bospitalarios  até  chega- 
ram a  arremeçar  frechas  ao  Sant»  Sepulchro.  Af- 
firmava-se  que  haviam  merto  um  cabo  musulmano 
que  se  queria  fazer  christão  para  não  lhes  pagar  mais 
tributo. 

A  casa  real  de  França,  particularmente,  assentara 
ter  razão  de  queixa  dos  templários  :  tinham  morto 
em  Alhenas  Roberto  de  Brienne  ;  tinham  recusado 
contribuir  para  o  resgate  de  S.  Luiz;  e  por  ultimo 
SC  haviam  declarado  a  pró  da  casa  d'Aragão  contra 
a  de  Anjou. 

Entretanto,  a  Terra  Sancta  fdra  definitivamente 
perdida  em  1191  e  a  cruzada  concluída.  Os  cavallei- 
ros  vinham  a  ser  inúteis,  formidáveis,  odiosos  í  elles 
traziam  para  o  centro  d'este  reino  exhansto  (a  Fran- 
ça), e  para  debaixo  dos  olhos  de  un  rei  famélico,  um 
monstruoso  Ihesouro  de  cento  e  cíncoenta  mil  Qorins 
douro,  e  em  prata  a  carga  de  dez  muares.  Que  fa- 
riam elles,  em  plena  paz,  de  tanto  poderio  e  rique- 
za? Não  lhes  sobreviria  a  tentação  de  crearem  para 
si  um  estada  soberano  em  o  Occidente,  como  os  ca- 
valleiros  icutonicos  fizeram  na  Prússia,  os  da  ordem 
do  Hoipítal  nas  ilhas  do  Mediterrâneo,  cos  jesuítas 
no  Paraguay  ?  Se  elles  se  houvessem  reunido  aos  bos- 
pitalarios, nenhum  rei  do  mundo  lhes  poderia  resis- 
tir. Não  havia  estado  onde  não  tivessem  fortalezas ; 
pertenciam  a  todas  as  famílias  nobres.  Não  eram,  na 
verdade,  ao  todo  mais  de  quinze  mil  cavalleiros  ;  po- 
rém eram  homens  exercitados  nas  armas  no  meio  de 
um  povo  que  o  não  estava  depois  que  tinham  cessado 
as  guerras  dos  senhores.  Eram  exccUcnles  cavallei- 
ros, rivaes  dos  mamelucos,  tão  intcUigentes  e  ágeis 
quanto  era  pesada  e  inerte  a  vagarosa  cavallaria  feu- 
dal. Por  toda  a  parte  sa  viam  cavalgar  nos  seus  admi- 
ravei»  ginetes  árabes,  e  seguido  cada  um  do  seu  es- 
cudeiro, do  pagem,  e  de  um  servente  d'armas,  sem 
conlar  os  escravos  prelos.  Não  podiam  variar  os  ves- 
tidos, mas  tinham  preciosas  armas  oricntaes,  de  aço 
de  fina  tempera,  soberbamente  adamascadas.  —  Co- 
nheciiim  bem  as  suas  forças:  os  templários  d'lnglater- 
ra  linham-se  atrevido  a  dizer  ao  rei  Henrique  II!: 
«Sereis  rei  em  quanto  fordes  justo»  —  e  este  diclo 
na  bocca  d'ellcs  era  uma  ameaça. 

Tudo  isto  fazia  scismar  Filípi  e  o  formoso.  Os  tem- 
plários haviam  recusado  admitli-lo  na  ordem.  Tinbam- 
n'o  rejeitado,  e  linham-n'o  servido  ;  duplicada  bumi- 
liação.  Elle  lhes  devia  dinheiro  :  —  o  Templo  era  uma 
espécie  de  banco,   como  o  tinham  sido  muitas  vezes 


suiam,  pelo  quo  dizem,  mais  do  nove  mil  domicílios  '  os  templos  da  antiguidade.   Quando  em  130S  achou 


na  christandado  :  só  n'uma  província  de  llcspanha 
o  reino  de  Valença  ,  tinham  de/.osetc  praças  fcrtes. 
Compraram  |)or  dinheiro  de  contado  o  reino  de  Cliy- 
pre,  que  não  poderani,  é  verdade,  conservar.  Com 
taes  privilégios,  taes  riquezas,  laes  domínios,  era  bem 
dilTicil  ter  luimiblade.  lUcardo,  o  coração  de  leão, 
dizia  á  hora  da  morte  :  k  Deixo  a  minha  avareza  aos 
monges  de  Cister,  a  minha  incontinência  aos  monges 
pardos,  c  a  minha  soberba  aos  templários.  » 

Á  falta  de  musuluiauos,  esta  milícia  turbulenta  c 
indomável  guerreava  os  chrislãos  :  fizeram  guerra  ao 
rei  de  Cliyprc  eao  príncipe  do  .Vnliocliia  ;  desenlhro- 
nisaram  o  rei  de  Jerusalém,  Ilonriquc  II,  c  o  duque 
da  Croácia  ;  devastaram  a  Thracia  e  a  Grécia.  Todos 
os  cruzados  que  voltavam  djv  Syria  não  fallavam  se- 
não das  traições  dos  templários  e  do  seu  trado  com 
os  infiéis.   Estavam  em   notória  correspondência  com 


entre  elles  asylo  contra  o  povo  levantado,  leve  sem 
duvida  occasião  de  admirar  os  Ihesouros  da  ordem, 
sendo  os  cavalleiros  tão  presumpçosos  de  si  e  tão  ar- 
rogantes que  nada  lhe  occultariam.  —  X  tentação  ert 
forte  para  o  rei.  .\  vicloria  de  Mons  o  deitara  a  per- 
der :  constrangido  a  entregar  a  Guyanna,  lambem  o 
fora  a  largar  a  Flandres  Qamenga.  .\  sua  mingua  pe- 
cuniária era  extrema,  e  não  obstante  isso  foi-lhe  mis- 
ter supprimír  um  tributo  contra  o  qual  se  amotina- 
ra a  -Normandia  ;  o  povo  andava  já  tão  agitado  que 
foram  prohibidos  todos  os  ajunclamcnlos  de  mais  de 
cinco  pessoas.  O  rei  não  podia  sair  d'csla  situação 
desesperada  senão  por  algum  grande  confisco  :  ora, 
tendo  sido  expulsos  os  judeus,  o  golpe  havia  de  d«s- 
fechar-se  ou  contra  o  clero  ou  contra  os  nol)rf5.  ou 
sobro  uma  ordem  que  pertencia  a  uns  e  outros,  ma» 
que  por  isso  mesmo,   não  pertencendo  exclusivamen- 


os  aisassinos  da  Syria,  e  o  povo  observava  com  terror  \  te  nem  áquelle  nem  a  estes,  por  ninguém  seria  defen- 
a  analogia  de  seus  vestuários  com  o  dos  seguidores  i  dida.  Longe  do  serem  apadrinhados  os  templários,  aa- 
do  velho  da  montanha.  Tinham  acolhido  cm  suas  ca-  i  tcs  foram  acommeltidos  pelos  seus  naluraes  proieclo- 


PANORAMA. 


119 


res  :  os  frades  os  perseguiram,  os  fidalgos  principaes 
da  França  prestaram  adhcsão  por  eseripto  ao  processo. 
Filippe   o  formoso   tinha  sido  educado  por  um  do- 
minico;  e  dominico  era  o  seu  confessor: —  por  longo 
tempo  esta  ordem  de  frades  tinha  sido  amiga  dos  tem- 
plários,   a  ponto  de  se  obrigarem  aquelles  a  sollieitar 
dos  moribundos  que  confessassem  algum  legado  para 
o  Templo  ;   mas  gradualmente  as  duas  ordens  vieram 
a  ser  rivaes.   Os  dominicanos  tinham  uma  ordem  mi- 
litar  própria,    os  cavalieri    gaudenti  ,    que   não  teve 
grande  impulso.  A  esta  rivalidade  accidcntal  deve  ac- 
crescenlar-sc   uma    causa   mais   grare   de    rancor.   Os 
templários  eram  nobres  ;  os  dominicos,  mendicantes, 
eram  em  grande  parte  mechanicos,  posto  que  na  sua 
ordem  terceira  contassem  seculares  illustres  c  até  mo- 
narchas.  Nas  ordens  mendicantes,  como  nos  juriscon- 
sultos  conseliíeiros  de  Filippe  o  formoso,  havia  uma 
dúse.>commum  de  má  rontade,  um  fermento  de  ódio 
BÍvellador,   contra  os  nobres,  os  guerreiros,  os  caval- 
leiros.  Os  legistas  deviam  aborrecer  os  templários  co- 
mo cenobitas;  os  dominicanos,  por  outro  lado,  os  de- 
testavam como  guerreiros,  como  cenobitas  mundanos, 
que   reuniam   os  proveitos  da  sanctidade  e  o  orgulho 
da  vida  militar.   A   ordem  de  S.  Domingos,  inquisi- 
torial,  podia  julgar-ge  obrigada  em  consciência  a  dei- 
tar a  perder,    nas   pessoas  de   seus  rivaes,  descrentes 
perigosos  p»r  duas  maneiras,  pela  importação  das  su- 
perstições sarracenas  e  pelo  seu  tracto  com  os  mysticos 
do  occidente  que  não  queriam  adorar  senão  o  Espirito. 
O  golpe  não  foi  im[)revisto,  como  se  tem  dicto  :  os 
templários  tiveram  tempo  de  o  ver  impendente  ;  mas 
a  soberba  os   perdeu  ;  sempre  julgaram  que  ninguém 
se  atreveria.  —  O  rei,  com  effeilo,  hesitava:  primei- 
ro tinha  tentado   meios  indirectos  ;  por  exemplo,  pe- 
dira  ser   admitlido  na  ordem  ;  se   o  tivesse  consegui- 
do,  provavelmente  se  faria  grão  mestre,  como  practi- 
coil   Fernando   o  catliulico  com  as  ordens  militares  de 
Ilespanha  :    teria   applicado   a   seu    uso  a   fazenda  do 
Templo,  e  a  ordem  se  teria  conservado. 

(Continua.) 

O  FEITOB  DE  CaNTXo. 

ífovella. 
(Continuado  de  pag.  106.) 

TciiAO  e  EfTcndon  empregaram  muitos  dias  cm  tirar 
TIS  informações  de  que  o  feitor  caFceia  ;  mas  a  final 
o  moço  lettrado,  que  tomara  conhecimento  com  os 
criados  do  censor  Fo-hu,  vuiu  muito  ufano  dar  parle 
a  lilTendon  que  o  velho  mandarim  tinha  com  eifeito 
cm  sua  casa  uma  menina  muda,  que  trouxera  cum- 
sigo  de  Cantão  na  ultima  viagem,  e  que  fazia  passar 
por  sua  fílha. 

Estas  particularidades  tiravam  toda  a  duvida;  mas, 
ainda  assim,  o  americano  paru  ter  provas  evidentes 
ejcrevcu  um  bilheltí  que  Tchao  se  encarregou  de  fa- 
zer que  fuss»  entregue  a  Maria.  \'oltou  na  mesma  tar- 
de com  algumas  linhas,  escriptas  á  pressa,  eui  que 
Maria  implorava  o  soccorro  paterno.  ■. 

A  vista  d'cstc  eseripto  causou  no  feitor  unia  im- 
pressão inexprimivi'1.  Apesar  do  todos  os  indicios  es- 
tivera até  então  duvidoso  da  vida  da  lilha.  Sem  ani- 
mo para  S(j||ar-Hc  dos  braços  da  esperança,  sem  l'c  ro- 
busta para  cr(T  qtie  ainda  era  pai,  temia  eonlunilir  o 
desejo  com  a  realiilade  ;  masagora  linha  a  jirova  <liaii- 
te  dos  olhos,  via,  palpava  os  caracteres  (luoMtiria  tra- 
çara ;  cobria-os  de  beijos  e  lagrimas. 

—  «  Leva-me  a  casa  d'esse  homem,  disse  elle  a 
Tchao.  depois  de  reler  por  duas  ou  três  vezes  a  car- 
ta. Quero  que  liojc  mesmo  mo  entregue  minha  filha.  » 


— «  Keceio  que  t'a  negue  u  ,  ponderou  o  lettrado. 
— «  Porque  ?  « 

—  «  Porque  está  a  chegar  o  momento  em  que  as 
filhas  e  sobrinhas  dos  principaes  mandarins  vão  á  pre- 
sença do  imperador  que  desposa  as  mais  formosas  (1). 
Se  tua  filha  for  escolhida  medrará  Fo-hu  em  riqueza 
e  poderio.  » 

—  «  Ah  I  corramos,  exclamou  EfTendon  ;  eu  o  obri- 
garei a  reconhecer  os  meus  direitos.  » 

Mas  quando  chegou  a  casa  do  censor  vedaram-Ihe 
a  entrada,  e  o  mais  que  poude  obter  foi  deixar  ficar 
uma  carta  em  que  reclamava  sua  filha.  D'ahi  a  uma 
hora  vciu  buscar  a  resposta,  porém  os  servos  de  Fo- 
hu  o  enxotaram  como  um  mentiroso,  declarando  que, 
se  tivesse  o  atrevimento  de  alli  tornar,  tinham  ordem 
de  o  entregar  á  pslicia. 

EfTendon  não  se  expoz  a  uma  resistência  iuutil ;  sem 
perda  de  tempo  fez  que  lhe  ensinassem  a  morada  do 
juiz,  e  foi  de  corrida  levar-lhe  a  sua  queixa. 

Pela  magia  de  ricos  presentes  não  sofTreu  o  negocio 
demoras,  e  logo  no  dia  seguinte  foi  citado  o  censor  pa- 
ra comparecer.  O  feitor  esperou  ao  princi|iio  escorar- 
se  no  teslimunho  de  Tchao;  mas  este,  assim  que  teve 
noticia  lio  jílcito,  safoií-se  pelo  sim  pelo  não,  e  por 
mais  diligencias  que  EITendon  fez  para  o  achar  não 
lhe  poude  pòr  a  vista  em  cima.  Appresentou-se  por 
tanto  sósinho  perante  o  juiz,  e  achuu-se  na  presença 
do  raptor  cie  .Maria. 

Era  um  velhito  de  barbas  brancas  que  respirava 
avareza  e  falsidade  ;  tinha  na  mão  um  bastão  de  ma- 
deira preciosa  cercado  de  lettras  douradas,  e  vinha 
com  o  trajo  do  seu  cargo,  composto  d'um  vestido  ta- 
lar de  seda  ornado  de  dois  gryphos,  botas  de  bico  re- 
virado, e  chapéu  de  feltro  vioicte,  cam  uma  pedra  pre- 
ciosa por  cima,  dislinctivo  da  sua  dignidade. 

Effendon,  sendo  interrogado  pelo  juiz,  repetiu  a  sua 
historia  tal  qual  a  tinha  estudadj,  narrou  miiuiamea- 
te  como  soubera  que  sua  lilha  estava  em  casa  do  cen- 
sor (sem  comtudo  fallar  do  bilhete  que  ella  lhe  man- 
dara), e  em  conclusão  peiiiu  lh'a  rcslituissem. 

Fo-hu  tomou  a  palavra  quando  lhe  coube  e  come- 
çou o  seu  discurso  como  assombrado  pela  audácia  d'um 
desconhecido  que  se  atrevia  aolTendcr  um  cios  [irimci- 
ros  dignitários  do  império  celeste.  Declarou  que  o  re- 
querimento devia  de  ser  marcado  com  o  signal  sie 
(falso,  ealumnioso),  e  foz  que  alli  viessem  muitos  es- 
cravos, os  quaes,  depois  de  tocarem  o  chão  com  as  les- 
tas, asseveraram  que  a  menina  que  morava  em  casa 
de  seu  senhor  era  com  eITeito  sua  sobrinha,  lilha  d'um 
irmão  que  elle  tinha  tido  cm  Cantão,  e  que  acabava 
de  fallecer. 

Mas  estes  depoimentos  não  descoroçoaram  EiTcndon: 
sustentou  com  tal  intrepidez  quanto  alliruiara,  que  o 
juiz  pasmava;  e  requereu  que  anuída  fosse  trazida 
ao  tribunal  e  decidisse  a  contestação. 

—  c(  Se  é  sobrinha  de  Fo-hu,  disse  elle,  não  me  po- 
de conhecer  ;  e  posto  que  não  possa  fallar  pro\ará  com 
gestos  que  vè  cm  miai  um  estranho  ;  se,  polo  contra- 
rio, a  \ irdes  lançar  nos  iiious  braços  e  arredar  de  si 
este  hoinein.  não  podereis  duvidar  da  vonlado  da  mi- 
nha reolainação. 

Fo-hu  com  esta  proposta  enfiou.  Coiilraricui-a  com 
o  pretexto  do  que  era  uma  indoooiíoia  obrigar  a  ap- 
parccer  em  publico  uma  mullior  de  f.imilia  nobre. 

—  «Venha  com  um  vc'u,  replicou  F.lVoíicIcui  ;  mas 
voiilia,   poniuo   sc'i  ell.i  pcxie  decidir  por  um  de  luis.  i> 

O  juiz  dofcriíi,  o  dou  ordem  a  dois  olliciaos  do  jus- 


(I)  Acn  inipernciorcs  da  C.liíim  alio  cnHocdccIas  por  loi  oenlo  • 
viiito  u  unia  iiiuIIicmo:!  ;  a  siilior  1  iiiciioratrit,  ;l  raiiilia!',  9 
iciulliuro»  clu  i'  unloiii,  i7  tia  3.',  o  SI  ila  i." 


120 


O  PANORAMA 


tiça  para  que  fossem  a  casa  do  censor  e  trouxessena 
»ua  sobrinha.  Fo-hu  mostrou  a  final  annuir  de  bom 
grado,  e  deu-lhes  para  guia  um  seu  escravo,  a  quem 
fez  em  toz  muito  baixa  algumas  recommendações. 
Effendon,  que  estava  entretido  a  fallar  com  o  juiz, 
não  deu  por  isso. 

Depois  de  longo  esperar  voltaram  os  homens  man- 
dados a  casa  do  censor.  O  escraro  e  Fo-hu  fóllaram-se 
com  os  olh«s. 

— «  Achastes  quem  procuráveis  ?  »  perguntou  o  juiz. 

— «  Está  á  porta  do  tiu  tribunal  »  responderam  os 
officiaes. 

— «  Entre  !  entre  1  »  exclamou  Effendon,  sem  po- 
der reprimir  a  sua  commoção. 

Mas  Fo-hu  fez  signa!  para  se  deterem. 

— B  Antes  que  esta  experiência  le  esclareça,  tenho 
que  te  fazer  um  requerimento.  » 

— «  Falia.  » 

—  «  Se  esta  menina  me  reconhecer  per  seu  lio,  es- 
te homem  é  um  calumniador.  » 

— a  >"ão  ha  duvida.  » 

—  «  Requeiro  pois,  n'e5te  caso,  que  se  lhe  dè  um 
castige  exemplar,  para  provar  a  todos,  como  diz  o  poe- 
ta, que  a  acção  má  traz  tio  certo  o  castigo  como  o  bo- 
tão do  pecegueiro  produz  a  sua  flor.  » 

—  «É  justo,  respondeu  o  juiz,  e  será  cumprido  o 
teu  desejo  ;  vejamos  antes  o  que  faz  essa  menina.  » 

Os  officiaes  de  justiça  foram  abrir  a  porta,  e  fize- 
ram-n'a  avisinhar. 

Effendon  ia  a  correr  para  ella  ;  mas  estacou  de  re- 
pente, fazendo  um  gesto  de  espanto.  A  estatura  aca- 
nhada, o  andar  mal  Qrme,  as  mãos  com  as  unhas  com- 
pridas, não  eram  nem  at  mãos,  nem  o  andar,  nem  a 
estatura  de  sua  filha  ! 

— <c  Maria  '.  »  exclamou  elle  a  tremer,  com  os  bra- 
ços estendidos. 

Então  a  menina  o  encarou  como  assustada,  e  pas- 
sando-lhe  veloz  pelo  lado  foi  lançar-se  nos  braços  de 
Fo-hu,  á  maneira  de  quem  queria  amparar-se  com  elle. 

—  «  Vcs  ?  disse  o  censor,  cantando  a  victoria,  nãe 
le  conhece.  » 

—  «  É  impossível '.  bradou  Effendon  sem  crer  o  que 
eslava  vendo.  .Maria  '.  Maria  !  » 

E  arremeçando-se  á  rapariga,  arrancou-lhe  o  Teu 
que  lhe  cobria  o  rosto  ! Mas  recuou  de  súbito  dan- 
do um  ai  sentido  :  aquelle  rosto  jamais  o  vira. 

Seguiu-se  um  momento  de  desordem  que  interrom- 
peu a  sessão.  .4.  rapança,  atemorisada  e  confundida, 
tinha  tapado  a  cara  com  as  mãos  ;  Fo-hu  instava  pelo 
castigo  do  insolente  embusteiro,  e  o  juiz  gritava  aos 
esbirros  que  o  prendessem.  Effendon  não  se  tirara  do 
seu  logir,  immovel,  mudo,  esmagado  debaixs  do  pe- 
zo  de  cruel  desengano.  Comtudo,  quando  sentiu  que 
o  agarravam,  levantou  a  cabeça  e  recobrou  parte  da 
sua  presença  de  espirito.  Quiz  suscitar  duvidas  sobre 
o  dolo  com  que  o  censor  procedera  ;  pediu  que  se  lhe 
fizessem  novas  buscas  em  casa;  mas  o  juiz  o  atalhou 
declarando  que  a  sua  má  fé  estava  demonstrada. 

—  «  E  como  prometti  um  castigo  exemplar,  accres- 
cenlou  cUe,  eu  te  condemno,  a  li  Kang-ho,  a  andar 
carregado  com  o  Icha  grande  por  dois  annos,  que  pas- 
sarás nas  prisões  do  estado,  .\ssim  se  execute.  » 

(Continua.) 


As    TIIERU«PVL1S    KU    1841. 


O  Pisso  das  Thcrmopylas,  desfiladeiro  tão  celebre  na 
historia  da  Grécia  amiga  por  um  assignalado  feito  de 
valor  c  nobre  devoção  citica,  acha-sc  dcscripta  na  obra 
de  Mr.  Bucbon  pela  maneira  seguinte  : 


«  Approximo-me,  e  torneio  deliciosos  valles,  que 
ora  sobem  por  declives  em  relevo  nos  lados  eppostos 
de  duas  montanhas,  ora  se  eslreitan  um  pouco  e-  se- 
guem as  ondulações  da  serrania,  ofierecendo  aos  olhog 
uma  fileira  de  outeiros  vtcejantes,  que,  como  as  on- 
das do  mar,  se  confundem  contíguos  uns  aos  outros. 
A  olaia  espalha  com  profusão  as  suas  Oores  da  tincta 
do  lilaz,  e  a  verdura  se  esmalta  de  anemanes  de  to- 
das as  cores:  prosigo  á  sombra  de  arvores  as  mais 
formosas  ;  e  o  que  eu  esperava  era  achar  uma  gargan- 
ta bem  estreita  e  bem  pedregosa,  impendente  a  al- 
gum charco  profundo.  A  labrusca  por  cima  da  mi- 
nha cabeça  forma  impenetráveis  parreiras  e  me  furta 
á  vista  os  troncos  do  arvoredo  extremamente  nodo- 
sos; tudo  é  viçoso,  e  tudo  florido,  e  centos  de  roaxi- 
noes  se  desafiam  em  lucla  d'harmonia  debaixo  d'a- 
quellas  copas  amenas  e  frondentei. — Inquiro  se  na 
verdade  vou  caminho  das  Thermopylas.  —  Estais  n'el- 
las  —  me  respondem  ;  e  olho  os  montes  que  se  prelon- 
gam  para  apertar  o  desfiladeiro  ;  e  os  brejos  á  flor  do 
chão  estavam  mascarados  com  os  juncaes  que  os  co- 
briam. Chegado  mesmo  ao  sitio  onde  a  subida  se  acha 
mais  entalada,  cnlre  a  serra  e  um  pântano  que  se  es- 
tende até  a  beira  da  calça<ja,  investiguei  esta  monta- 
nha tão  formosa  de  verdura  para  ver  se  era  intransi- 
tável ;  o  fade  é  que  n'este  passo,  onde  Leonidas  pe- 
lejou á  frente  dos  seus  trezentos  espartanos,  denoda- 
da vanguarda  dos  cinco  mil  gregos,  formados  em  es- 
calões no  valle  immediato  e  em  poste  mui  forte,  não 
ha  outro  meio  de  seguir  avante  senão  passar  pelo  es- 
treito caminho  alto  entre  o  charco  e  a  montanha  :  pos- 
te que  viçosos  e  bellos  estes  cerros  não  podem  absolu- 
tamente ser  atra>essados  senão  por  esta  parle. 

t  fácil  ainda  reconhecer  o  local  marcado  por  He- 
ródoto onde  combateram  e  soccumbiram  Leonidas  e 
os  trezentos  espartanos.  N'esle  ponto  a  serra,  posto 
que  sempre  verde,  suspende-se  abrupta,  e  vem  fene- 
cer, sem  diminuir  o  declive,  justamente  ao  pé  da  es- 
trada, e  pelo  outro  lado  é  rodeada  por  um  paul  que 
se  prolonga  ale  o  mar  e  alravez  do  qual  é  impossí- 
vel penetrar,  .\lguns  passos  mais  para  além  vèem-se 
os  restos  de  uma  muralha  de  fortificação,  com  que  o 
imperador  Justiniano,  á  falta  de  peitos  valentes,  pre- 
tendera fechara  passagem. 

L'm  pouco  mais  avante  brotam  muitos  mananciaes 
abundantes  de  aguas  Ihermaes,  que  se  derramam  no 
pântano  e  formão:  uma  crusta  salina  e  branca  de  lon- 
ga extensão.  Perfeitamente  se  comprehendecomo  n'ts- 
te  desfiladeiro  trezentos  homens  decididos  a  morrer, 
e  servindo  de  vanguarda  a  cinco  mil  valorosos,  pos- 
tados entre  a  montanha  e  o  charco,  poderam  tolber 
o  passo  a  numerosos  exércitos.  » 


O    JAMAB    d'0SS0S. 


Cbrto  clérigo,  amigo  de  bons  beccados  e  de  applicar 
o  sancto  preceito  do  jejum  aos  seus  servos,  tinha  por 
cestume  quando  se  ret:alava  com  alguma  gallinba,  per- 
diz, ou  cousa  que  o  valha,  chuthar-llie  muito  bem  os 
ossinhos,  e  da-los  depois  ao  triste  moço,  dizendo-lhe 
muito  ufano  :  «  Vai  jantar.  »  —  i.  Jantar  o  que?  lhe 
disse  um  dia  o  transparente  moço,  se  V.  S.*  ja  roeu 
05  ossos  duas  vezes.  »  —  n  Essa  é  boa '.  lhe  toruoa  o 
clérigo.  Pois  eu  posso  roer  os  ossos  duas  vetes,  e  v«- 
cè,  só  biltre,  não  os  pode  roer  uma?  • 


A  Empkeh  d  fite  Jornal  Iti»  remettido  regularmente 
aos  Sti.  A$signantrs  das  Províncias  todos  o>  números 
publieadoí.epede  ai'S  qut,  por  qualquer  moliw,  dei- 
xattem  de  ot  receber,  hajam  de  faitr  at  tu(U  declara- 
fòe$,  que  promptamtnie  serão  allendidas. 


16 


o  PANORAMA. 


I2i 


o   BOSPHORO. 


Damos  á  vola  para  a  nitrada  do  Bosphoro  costeando 
a>  iimralhas  de  Constantiiiopola  «luc   o  iiiur  vem  ba- 
nhar ;    passa<la  meia  hora   de  navogaoão  por  entre   a 
multidão  eh- navios  ancorados  cheti;àiTios  aos  muros  do 
serralho  ijiie  continuam   os  da  cidade,   e  íbrniani    na 
extremidade  do  monte  em  <pie  assenta  Stanihul  o  an- 
gulo que  sitpara  o  mar  de  Marmara  do  canal  do  Bos- 
phoro, e  <]o  Corno  áureo  ou  í;rande  enseada  interior 
rte  Constantinopola  :    aili  é  (pie  Deus  e  o  homem,   a 
natureza  e  a  arte  collocaram  ou  crearani  de  concerto 
o  lanço  de  visla  mais  estupendo  que  podem  olhos  hu- 
manos C(Uit(Mnplar  na  terra  ^  dei  um  u;rilo  involuntá- 
rio, G  esípieci  |iara  sempre  o  ^olpho  de  Nápoles  e  to- 
dos os  seus  cMcaiilcis  •,    Comparar  alf;iima  <'ousa  litpiel- 
Ic  coniposlo  mauniljco  e;j;raciosi)  é  injuriar  acreacão. 
O»  paredões    (pie  siistenlam    os  terrados    circulares 
dos  imiiiensds  jardins  do  serralho  grande,    licavam   a 
nlguiis  p.issds  de  liús  para    a  nossa  es(pierda,    separa- 
dos do  mar  pur  um  eslreito  passeio  de  lagiMis  (|ue   as 
ondas  lavam  de  continuo,  e  ond(!  acorrente  perpetua 
do  lloNpliiiro  lorma  peipienas  vagassiisurranles  e  azues 
como  as  aguas  do  Ithodano  em  (ienclira.   ICsle»  terra- 
dos (pie  se  alleain  por  declives  impercepl  ivi?is  af('   os 
iHlliicios    (III  sullTio,    cujas   douradas  cúpulas    »e  desco- 
iirem    atravcz    dds  cimos  gigantes   dos  plátanos   e  c\- 
prestes,    são  tanilicm    plnnliidds   das  mcMiias  arvores, 
enornii'S,    di>  trducos  hdliriinceirds   nus  munis,   com   o» 
rumos  ipie  Irasliiuiliim  dos  jardins    e  |i('iidcni  para    o 
mar  como  esteiras  di   rdlliagini,  daii<lo  somlira  ás  lan- 
etnis  ;    os  remeiros  de  tcmpiw    a  Icnipos  paravam  de- 
liaixo   (Pesti<   alirigo  :    de  distancia   u  distancia  cstcn 
Voi.   1.  —  DuziiMBiio   lU,   lUiC. 


grii|)os  d'arvoredo  são  interrompidos  por  palácios,  pa- 
vilhões, mirantes,  portas  lavradas  e  douradas  (|ue 
abrem  para  o  mar,  ou  baterias  de  pe(,as  de  Idrnias 
singulares  e  antigas.  As  janellas  engradadas  d'estes 
palacioli  marítimos,  quo  são  porí^ões  dd  serralho,  dão 
])ara  o  canal,  e  V(*-se  atravcz  das  gelosias  brilhar  os 
lustres  e  as  douraduras  dos  tectos  das  camarás;  tam- 
bém a  cada  passo  elegantes  fontes  mouriscas,  inscrus- 
tadas  nas  paredes  do  serralho,  jirecipitam  as  aguas 
desde  a  altura  dos  jardins  e  murmuram  em  conchas 
de  mármore  para  saciar  os  passageiros ;  alguns  solda- 
dos turcos  estão  deitados  juiiclo  d\'stas  fontes,  e  cães 
vadios  vagueiam  pela  extensão  do  cães:  alguns  estão 
deitados  em  canhoneiras  [)ara  enormes  calibres.  A 
proporção  (pn-  o  escaler  seguia  ao  longo  das  muralhas, 
o  horisonie  se  dilatava  diante  de  nós,  a  costa  d  Asiji 
se  avisiiihava,  e  a  entrada  do  Hosphoro  conic(;ava  a 
deliiiear-se  á  vista  entre  colliiias  de  verde  escuro  e 
outras  fronteiras  ipie  pareciam  pintadas  de  todos  os 
matizes  do  arco  (deste;  alli  tornámos  a  dcscan(;ar. 
A  costa  aprasivel  da  .\sia,  distante  de  niis  obra  de 
uma  milha,  dcbu\ava-se  á  direita,  toda  retalhada  de 
amplas  e  all.is  eminências,  ipie  são  coroadas  ile  ne- 
gras si'l\as  decopas  ponteagiidas,  eas  beiras  doscam- 
pos  franjadas  de  arvores,  salpicadas  ilecas.is  encarna- 
das, eas  bordas  dos  barrancos  a  prumo  alcalilailas  de 
verdura  ede  svcdiiuiros,  cujos  ramos  beijam  a  agua. 
Mais  ao  longe  mais  avulta\aiii  as  collinas  edcpois  se 
ridiaixavam  em  ribeiras  viçosas  e  formavam  um  es- 
paiHiso  pniinontorio  (pie  servia  como  de  base  a  iiiiiii 
grande  ciilade  ;    era  Sculari  com  os  .seus  va.stos  qiiar- 


o  PAiNORAMA. 


teis  caiados,  semoUiaiitcs  a  um  caslello  real,  as  suas 
mesquitas  ccTcadas  de  coruchéus  refulgentes,  os  seus 
cães  e  ansras  guarnecidos  de  casaria,  de  bazares,  de 
lanchas,  ásoinl)ra  das  parreiras  ou  dos  plátanos  ^  era 
a  nielaiicholica  e  prolongada  niatta  de  ciprestes  (|ue 
cami)cia  sobre  a  povoação,  e  por  entre  os  seus  ramos 
alvejavam  com  lúgubre  clariíladc  os  innumeraveis  iiio- 
nunientos  dos  cemitérios  turcos:  para  lá  do  pontal 
de  Sculari,  terminado  por  um  ilhéu  <|ue  tem  uma 
capella  turca,  a  que  chamam  «o  tumulo  da  donzel- 
la, »  o  bosphoro,  como  um  rio  encanado,  soaliria-se  e 
mostrava  escoar-se  entre  montanhas  fuscas  que  irma- 
navam em  ambas  as  margens  pelos  lados  dos  roche- 
dos, os  ângulos  salientes  e  reintrantes,  os  algari-s  e 
as  maltas  i  na  falda  das  quaes  se  divisava  a  perder 
de  vista  a  serie  não  quebrada  de  aldeias,  de  frotas 
ancoradas  ou  avela,  de  portinhos  sombreados  d'arvo- 
res,  do  casas  espalhadas,  de  vastos  palácios,  com  seus 
jardins  de  rosas  ;i  beira-inar. 

Pequeno  impulso  dos  remos  nos  levou  avante,  ao 
ponto  exacto  do  Corno  áureo  onde  se  goza,  ao  mes- 
mo tempo,  da  vista  do  Bosphoro,  do  mar  de  Mar- 
mara,  e  emtini  do  conspecto  iuteiro  de  porto,  ou  pa- 
ra melhor  dizer,  do  mar  interior  de  Constantinopo- 
la;  alli  nos  esquecemos  do  Marinara,  da  costa  d  Ásia 
e  do  Bosphoro,  para  contemplar  d^um  só  relance 
d'olhos  a  caldeira  do  Corno  aurco  e  as  sete  cidades 
penduradas  nos  sete  outeiros  de  Conslantinopola, 
convergindo  todas  para  o  braço  de  mar  formado  pela 
cidade  única,  incomparável,  cunjnnctauionte  cidade, 
campo,  mar,  porto,  ribeira  de  rios,  jardins,  monla- 
nhas  arborisadas,  valles  fundos,  oceano  de  casas,  for- 
migueiro de  baixeis  e  de  ruas,  lagos  serenos,  o  soli- 
dões feiticeiras  ^  vista  que  nenhum  pincel  pode  re- 
produzir senão  por  miúdo,  e  onde,  a  cada  pancada 
de  remo,  os  olhos,  a  alma  se  encaminham  a  um  as- 
pecto, a  uma  impressão  oppostas. 

Damos  á  vela  para  as  alturas  do  Gaiata  e  de  Pe- 
ia \  o  serralho  se  arredava  de  nós,  e  avultava  alTas- 
tando-se  á  medida  que  a  vista  abrangia  mais  o  vasto 
recinto  de  suas  muralhas,  a  multidão  das  rampas, 
das  arvores,  dos  mirantes  e  palácios :  só  á  sua  parle 
tinha  com  que  servir  de  sede  a  uma  populosa  cida- 
de. O  porto  mais  e  mais  se  abria  perante  nós  •,  cir- 
cula como  um  canal  entre  as  curvas  das  encostas  das 
monianhas,  e  mais  se  patenteia  quanto  mais  progre- 
dimos. Este  em  nada  se  parece  com  um  porto,  can- 
tes um  largo  rio  como  o  Tamisa,  cingido  por  ambos 
os  lados  de  outeiros  carregados  de  cidades,  e  col)erto 
sobre  uma  e  outra  praia  de  uma  interminável  frota 
de  embarcações  aos  monies  e  de  ferro  no  fundo  ao 
longo  da  casaria.  Passávamos  por  meio  d'es5a  innu- 
meravel  multidão  de  navios,  ancorados  uns,  outros 
já  de  vela  singrando  para  o  Bosphoro,  para  o  Mar 
Aeçro,  ou  para  o  de  Marmarai  navios  de  todas  as 
formas,  de  todos  os  lotes,  de  todas  as  bandeiras,  des- 
de a  barca  árabe  com  a  proa  alterosa  e  saída  como  o 
be*jue  das  galeras  antigas,  até  o  baixel  de  três  pon- 
tes com  suas  paredes  em  que  fulgura  o  bronze.  iSu- 
vens  lie  lanchas  turcas,  guiadas  por  um  ou  tiois  re- 
jueiros,  com  suas  largas  mangas  de  seda;  barquinhas 
que  servem  de  transportes  uas  ruas  marítimas  dV-sla 
cidade  amphibia,  gyravam  entre  a(|uell;i3  grandes 
massas,  cruzando-se,  abalroando-se  sem  si>çobrar,  co- 
mo as  turbas  se  acotovelam  na  praça  publica;  e  ban- 
dos de  gaivotas,  seinelhanUs  a  lindos  jiombos  bran- 
cos, á  chegada  dos  barcos  se  erguiam  do  mar,  indo 
pousar  mais  além  para  os  balouçarem  as  ondas.  Não 
intentarei  enumerar  os  vasos,  os  navios,  os  brigues, 
as  embarcações  e  botes  que  dormem  ou  vogam  n;us 
aguas  do  porto  de  Coustaiitinopola,  desde  a  foi  do 
!Bo«i>lioro   c  o  pontal  do  serralho   até   o  arrabalde 


d'Eyoub  e  os  deliciosos  Talles  da?  aguas  doces  :  n 
Tamisa  em  Londres  nada  tem  que  se  lhe  coroparp. 
Basta  dizer  que,  independente  da  armada  turca  e 
dos  vasos  de  guerra  europeus,  sobre  fi?rro  no  meiu 
do  canal,  as  duas  margens  do  Corno  aurco  estão  co- 
Ijertas  a  dois  e  a  três  navios  de  fundo,  e  na  extensão 
(|Udsi  uma  légua  de  cadauma  das  margens.  Não  ti- 
vemos mais  tempo  do  que  divisar  estas  prolongadas 
fileiras  de  proas  apontadas  ao  mar,  e  a  vista  se  no< 
perdeu  no  cabo  do  golpho,  que  se  estreitava  entra- 
nhando-se  na  terra,  por  entre  uma  verdadeira  selva 
de  mastros. 


O  Cardeal  se  Rjchei.ikb. 


As  SITUAÇÕES  é  que  fazem  os  homens  grandes.  A 
Providencia  parece  crear  o  engenho,  que  os  ha  de 
resoKer,  pela  medida  dos  acontecimentos.  A  revolu- 
ção franceza  é  o  exemplo  d'esta  verdade,  exemplo 
próximo  e  sublime,  que  di>pcnsa  de  recorrer  á  cru- 
zada asiática  de  .\lexandre,  ou  aos  últimos  instantes 
da  republica  de  Koma,  consuromada  pela  gloria  do 
primeiro  César.  Na  hora  em  que  a  França  arrasou 
pelos  fundamentos  as  instituições  da  nionarchia  ve- 
lha, a  voz  de  Mirabeau,  subjugando  o  estrondo  das 
ruiuius,  um  momento  recebeu  a  força  qnc  destroe  os 
impérios,  ttuando  chegou  a  occasião  de  semear  nos 
sidcos  ensanguentados  dos  antigas  reinos  da  Kuropa 
o  gérmen  da  nova  doutrina,  Deus  coroou  do  tríplice 
diadema  a  fronte  de  Bonaparte,  e  do  carro  tríum- 
phal  enviou-o,  Messias  da  revolução  moderna,  pro- 
pagar pela  victoria  a  religião  politica  vencedora  nas 
Uailias  O  poder  constituiu-se,  a  ordem  restituiu  aos 
seus  eixos  o  Estado  vaciUante,  e  as  palavras  absolu- 
tas do  «Homem  dos  Destinos:'  jxir  instantes  usurpa- 
ram a  omnipotência.  Depois,  terminada  a  sua  obra, 
o  gigante  sentiu-se  deslalíecer,  firmou  os  pés  nas  ge- 
leiras da  Uiissia  c  as  geleiras  derreteram-?e  ao  in- 
cêndio de  ^loscow — quiz  apertar  u.i  muralha  de 
aço  dos  seus  batalhões  a  cabeça  do  leopardo  do 
Norte,  e  as  muralhas  deslizeram-sc  sem  vigor;  e  cj- 
le,  de  pé  na  rocha  baidiada  das  aguas  amargosas, 
Alexandre,  César  e  .\nnibal,  tudo  no  só  Napoleão, 
cruzando  os  braços  no  peito,  assistiu  vivo  aos  fune- 
raes  do  seu  império. 

Diis  glorias  passadas  restou-lhc  a]>enas  o  nome  pa- 
ra encher  os  séculos,  e  a  espada  para  depor  ao  lado 
da  de  Karl  o  Griuide,  de  que  foi  irmã.  .\  águia, 
nunca  mais  voou  ! 

Hichelieu,  no  seu  século,  foi  a  intclligoncia  desi- 
gnada para  completar  a  idé.i  de  que  elle  devia  vi- 
ver, o  principio  d*oude  havia  de  tirar  a  força,  a  uni- 
dade, e  o  poder. 

Essa  idéa  e  esse  principio  era  a  unidade  monar- 
cliica,  de  <|ue  Richclicu  fui  incançavel  o  architecto, 
c  o  inexoraTel  conlintiador,  do  svsteuia  esboçado 
(H-la  mão  cruel  de  Luix  \I. 

A  emprez.i  era  gr.tnde,  c  a  obra  levou-lhe  a  vid.\ 
inteira;  mas,  quando  o  amortalharam  na  sua  pur- 
pura, a  Europ;i  estava  preparada  para  o  Iraclado  de 
XNcstphalia,  e  a  Eraiiça  para  o  reinado  de  Luíi 
XIV.  JMinciro  ous,idu,  desc»>u  ás  entranhas  do  in»- 
|x»rio  de  Carlos  N',  e  mais  d'nma  vez,  piíssando  .1 
mão  [K-la  testa  cavada  de  uma  velhice  pre<"Oco,  es- 
I  tremeceu  de  sentir  as  raiies  da  casa  d^.Vustria  tanto 
dentro  do  coração  dos  maiores  Estados.  Emtiiii,  a 
força  de  perseverança,  de  rigor,  c  de  s^ij.icidade  veio 
o  dia,  em  que,  erguemlo-se  da  vigilia  de  n\uitos  an- 
nos,  poude  apoutar  do  leito  da  morte  para  a  Frau- 


o  PANORAMA. 


l2o 


ca  e  para  a  Europa  com  ori;ulho.  !N"etse  dia,  tam- 
ijem  o  espirito  fíitigado  soparou-se  para  sempre  das 
dores  da  carne. 

No  reino  de  Luiz  XIII  o  braro  resoluto  do  minis- 
tro apunhalara  a  aristocracia  dos  príncipes  íeudaes, 
como  a  revolução  em  I7!il)  decepou  a  nobreza  puri- 
tana e  cortezã.  A  realeza,  aonde  s<;  infundiu  a  sua 
alma  dominadora  e  implacável,  cresceu  e  vigorou, 
occupando  o  espaço  que  <le  um  lado  enciíia  o  leuda- 
lismo,  e  do  outro  devorava  a  seita  protestante  cons- 
tituída em  facção  politica.  De  um  golpe  robusto  o 
Sansão  do  poder  real  curvou  diante  da  monarcliia 
absoluta  a  sociedade,  ([Ue  lia  pouco  ainda  oscdiava 
retalhada  de  interesses  oppostos,  sacudida  por  forças 
contrarias  A  lloilanda  e  lienebra  assopravam  as  faís- 
cas da  reforma  para  fazer  d'ella  o  facho  de  um  fede- 
ralismo republicano  ein  França.  O  goveiNio  hespa- 
nhol  tentava  accendir  de  novo  as  cinzas  ainda  quen- 
tes da  li^a  contra  Henrique  IV.  Kiclielieu,  jiela 
tempera  e  originalidade  do  seu  geaio,  pondo  um  pé 
na  frente  á  iniluencia  do  ICsciirial,  c  domando  com 
o  outro  ii  audácia  dos  cal\  inistas,  traçou,  e  levantou 
o  edifício  da  monarchia  franc<!Za  acima  das  fogueiras 
da  inquisição  e  do  cadafalso  puritano,  que  já  se  ar- 
mava em   VVhite-liall. 

Armand-Jiião  Duplesis  de  Iliclieliou  nasceu  em 
15f!5  (ruma  fainilia  pobre  iiias  iilustre  do  Poitou.  A 
carreira  que  escolheu  tinha  sido  a  das  armas,  vindo 
ii  scuir  o  estado  ecclesiastico,  para  evitar  <)ue  o  bis- 
pado de  íjuçon,  que  andava  na  sua  casa,  não  passas- 
se a  estranhos.  AlVonso,  seu  irmão,  tinha-se  despoja- 
do d'esta  dignidade  para  se  retirar  á  solidão  d'um 
claustro.  Alguns  estudos  th(!ologicos  prepararam  pa- 
ra o  sacerdócio  u  o  episcopado  um  mancebo  bem  nas- 
cido, que  se  conformava  ás  idéas  do  tempo  seguran- 
do um  benííficio  lucrativo  n'uma  casa  pobre  e  lidal- 
jra.  Antes  dos  vinte  e  <'inco  ânuos  João  Diiiilessis  foi 
provido  em  lioma  no  bispado  vago.  JJizia-se  i|ue  ellc 
soubera  illiidir  l'aulo  V  acerca  da  sua  verdadeira 
idade,  e  «jue  o  |)i)iiliriee,  longe  de  se  agastar,  lou- 
vando a(|uella  destreza  e  talento  lhe  prophelisára  a 
sua  futura  eh.-vaçào. 

A  priini'ira  epoclia  da  sua  vida  consuiiiiu-a  em  se 
aperfeiçoar  na  sciencia  llurojogica  que  fcsjjirain  todas 
as  suas  obr;is,  rigorosas  nas  formas  didácticas,  e  seve- 
ras na  argumentação  lógica.  Os  aiirios  (pie  vivou  no 
seu  bi-qiado  foram  (un pregados  em  polemicas  com  os 
calvinislas,  ou  consagrados  á  eloquência  do  púlpito, 
em  que  sobresaíu  a  ponto  (Paltraliir  a  altenção  da 
côrle.  Maria  di:  iMeclicis  ouvio-o  eom  prazer,  e  n;- 
commeiídoii-o  ao  iiuireclial  d^Ancie,  então  no  auge 
da  inlliieneia  ('do  poiler.  Em  I  (i()4  conseguiu  ser 
eleito  depu(ado  aos  Kstailos  (ieraes  por  Koiitenay  e 
JVior),  e  n^estr-  caiaeler  ailvogou  com  ardor  a  causa 
da  rainha,  inlluindo  baslanie  na  r(.'dacção  dos  eipi- 
lulos  do  clero. 

Depois  de  encerrar  os  Estados,  M.iria  ih;  INIedicis 
não  se  esipieeeu  d<!  premiar  os  serviços  do  bispo  <le 
liUçon,  conferi ndo-lhe  o  c.irgo  de  cismoler  mór  da 
ruinlia  reinanie  Anua  d'Auslria.  O  marechal  d'An- 
cre  favoreeeií-o  com  igual  extremo,  apesar  do  que, 
ou  ]ior  enredos,  ou  pelo  achar  nuMios  dócil  do  (pie 
desejava,  para  o  lim  começava  a  tiada-lo  com  algum 
desapego.  CoMcini,  rodcailo  de  iiiimigos  poderosos, 
det<^rminou-s<'  a  feri-los  iki  (uração,  prendendo  o 
príncipe  di'  < 'onde,  cabeça  das  f.ieiiies  do  paço.  Esli' 
içolpe  auilaz  pi'ii\o<'ou  um  (uninllo  popular,  no  meio 
do  qual  os  iiinolinados  saquearam  o  si'ii   palácio.   E  o 

|>usso   do  goveri xigia  um  syslema  mais  eii<!rgic;o, 

e  homens  no  conselho  dc^  reeonheeida  aplidão  e  pro- 
vada lealdaili'.  A  regente  indicou  lliiliiliiii  pura  se- 
vruturio  dV-nludu  coDJuiicluiuenle  com  u  murquci  ve- 


lho de  \illero_v.  Associado  a  crcaturas  subalternas 
do  marechal  d'Ancre,  c  dirigido  por  elle,  o  bispo  de 
Ijuçon,  sem  n'o  estimar,  obedecia-lhe,  resignando-se 
no  gabinete  ao  secundário  papel  d'instrumento  quasí 
passivo. 

A  sua  ambição  entretanto  não  dormia ;  mas  com 
a  ordinária  lucidez  viu  bem  que  o  momento  de  se 
oHeiecer  em  todo  o  vigor  do  seu  génio  não  era  o  da 
lenta  mas  inevitável  agonia  d'uma  regência  débil, 
entregue  aos  caprichos  d'uma  mulher  fraca,  e  perdi- 
da peia  cubica  e  incapacidade  d'um  italiano  aventu- 
reiro. Richeiieu  esperava  a  sua  hora,  com  aquella 
rara  presciência  dos  acontecimentos,  que  ainda  não 
faltou  a  nenhum  homem  verdadeiramente  grande. 

Nos  últimos  mezes,  mesmo,  da  vida  de  Concini 
houve  mais  d'uma  dissidência  seria  entre  elle  e  o 
novo  secretario  d^^slado.  O  bispo  de  Luçon  via  emi- 
nente a  catastrophe,  e  por  destras  commiinicações 
com  os  principas  salvava  a  sua  fortuna  do  naufrágio. 
Uma  noite  o  manjuez  d'Ancre  era  assassinado  por 
Luines  segundo  expressa  ordem  do  rei,  e  no  dia  se- 
guinte Kichelicu,  thamado  ao  Ijouvre,  da  bocca  de 
Ijuíz  XIII  ouvia  a  formal  deirlaiação  de  que  nunca 
o  confundira  com  os  falsos  conselheiros  de  sua  mãi. 
A  situação  appresentava-se  arriscada  para  elle.  De 
um  lado  os  vencedores  chamavaiu-n'o  para  continuar 
no  ministério:,  do  outro  a  queda  de  Maria  de  Medí- 
eis, profunda  e  lastimosa,  iuipunha-lhe  deveres  res- 
trictos.  Renegar  o  nome  da  rainha  era  uma  infâmia 
ipie  o  maculava  para  sempreJ  Ab^smar-se  com  ella, 
era  um  acto  que  o  perdia  no  presente,  e  parecia  du- 
vidoso que  o  exaltasse  no  futuro.  O  bispo  de  Luçon 
tomou  entre  as  duas  alternativas  o  termo  médio, 
conciliando  as  conveniências  com  os  seus  interesses. 
Sem  faltar  á  antiga  regente,  sustentou  no  meio  das 
vicissitudes  o  apoio  de  Luines  e  o  bom  conceito  do 
rei,  por  um  modo  do  certo  hábil,  mas  pouco  digno 
do  menor  elogio. 

Leonor  Galligai,  marqueza  d'Ancre,  c  amiga  da 
regente,  expiou  no  cadafalso,  não  crimes  «pie  a  des- 
hoiirassem,  mas  um  talento  e  um  espirito  superior 
dignos  de  melhor  epocha  ;  e  quasi  no  mcsino  dia,  ao 
passo  que  os  piincipes  rebeldes  faziam  a  sua  entrada 
triuniphal  no  Louvre,  saía  d'elle  para  IMois  Maria 
d(!  Medíeis,  acompariiiada  de  poucos  criados  lieis, 
que  a  seguiam  no  desterro.  O  bispo  de  Luçon  toi 
um  \  mas  .sempre  cauteloso,  antes  de  partir  obteve 
liec^nça  do  rei  ;  temia  <|iie  na  ausência  o  accusasseni 
de  obedecer  aos  impulsos  do  seu  coração,  em  vez  do 
o  julgarem  o  \igilaiilc  observador  das  acções  da  in- 
feliz princeza  ;  miiiislerlo  que  aeccítou,  o,  repetimos, 
a  ninguém  podia  excilar  inveja.  De  151ois,  dirigindo 
em  tudo  a  rainha  mãi,  Kiclielieu  entretinha  com 
liuines  regular  correspondência,  instruindo-o  ile  to- 
dos os  passos  dV-lla,  e  garantindo  o  seu  proceder. 
Apesar  dV-sles  serviços,  a  devoção  verdadeira  ou  Im- 
gída  qui?  era  obrigado  a  ostentar  para  com  Maria  de 
Medicis,  esliiniilou  a  desconfiança  dos  vogaes  do  con- 
selho, e  sem  difllculiiade  arrancarauj  ao  nuMi.irchii 
uma  ordem  ipie  o  deporl.iva  para  Avinhão.  A  ex-re- 
giMile  olhou  esta  proxa  de  desagrado  conn>  mais  uma 
p<'rseguição,  redobrando  na  inteira  e  absoluta  fé  com 
<pie  se  illudia  ácerea  da  le.ildade  do  bispo  Duplessis. 

Esb'  deslerro  cPAvinlLui  foi  a  causa  d.i  sua  ra|>ida 
e  pasmosa  eh'va(;ão. 

Maria  de  iMedicis  I ranspoz  01  muros  de  lUois,  pro- 
legi<la  pel.i  esiuiidão  dir  noil<"  invernosa,  «'  foi  reixs- 
bida  no  seu  governo  pelo  dinpie  d'l''.spernon,  lia\  iii 
leinpos  desrouli-nli'  <la  ciirl<'  ('h.iiiKiudo  em  redvir 
d, ts  suas  bandeiras  os  ambiciosos,  brcMiniMile  se  achou 
a  lesta  de  um  exercito  sullicicnle  paru  assusl.ir  Lui- 
nc»  e  o!t  «eu»  purciucs.   As  desuveni,-as  que  já  ardiHiil 


124 


O  PANORAMA. 


enfrp  elle  p  09  príncipes,  o  a  tliscorflia  acccsa  entre 
os  Sí-iis  melhores  amigos,  aiiiçmentavani  o  periço,  e 
expiíiiliam  a  realeza  a  um  dezar  provável.  O  valido 
tentou  sair  da  difliculdade,  |)romovendo  a  reconcilia- 
ção da  rainlia  mãi  com  Luiz  XIII,  e  leinbrou-se  de 
Richolieu  para  guiar  esta  delicada  negociação.  O 
bispo  de  Luwn  aeceitou,  e  partiu  sem  demora  para 
o  Angouleme,  aonde  então  se  achava  Maria  de  Me- 
dicis. 

Apenas  chegado  apoderoii-se  da  vontade  da  prin- 
ceza,  e  facilmente  lhe  suggeriu  a  idéa  de  se  reconci- 
liar com  seu  filho  ^  mas  os  desejos  da  rainha  eram 
imp(]tentes  diante  da  tenacidade  dos  nolires  empe- 
nhados no  seu  partido.  Como  elles  se  recusavam  a 
qualquer  transacção,  mais  d^um  anno  decorreu  sem 
vencer  um  só  dos  ohstaculos  levantados  contra  a  al- 
liança.  jMaria  de  Medicis  queria  reassumir  o  poder; 
e  Luiz  XIII,  suspeitoso  e  ciumento,  adivinhara  em 
sua  mãi  a  ambieão  violenta,  que  havia  de  ser  o  mar- 
tírio de  ambos. 

Luines,  para  se  vingar  da  ex-regente,  soltou  o 
príncipe  de  Conde,  prezo  á  ordem  d'ella.  Foi  o  sig- 
nal  da  guerra  civil.  Kntretanto  Vrastou  um  encontro 
ás  portas  d'Angcrs  para  a  tempestade  asserenar,  e 
se  concluir  um  pacto,  em  que  só  lucraram,  como 
acontece,  os  chefes  das  duas  facções.  Luines  fez-se 
condestarel,  e  llichclieu  tirou  da  loteria  o  barrete 
de  cardeal.  Seguiu-se  a  campanha  do  Languedoc 
contra  os  calvinistas.  Luiz  XIII  appareceu  em  pes- 
soa, e  distinguiu-se  mais  de  uma  vez  como  soldado. 
Comludo,  depois  de  leves  suecessos,  a  fortuna  virou- 
Ihe  o  rosto ;  em  Montalbão,  e  era  Monheur,  peque- 
na praça,  o  exercito  real  padeceu  grandes  revezes,  e 
ulcerado  de  desgostos,  Luines,  seu  general,  não  re- 
sistiu muito  a  este  golpe,  e  dentro  em  poucos  dias 
desceu  á  sepultura. 

A  França,  á  niorle  do  valido,  desfallecia  esgota- 
da pelas  luctas  e  dissenções.  Todos  clamavam  por 
um  governo  forte,   que  trouxesse  a  paz,   a  segurança 


e  a  ordem  ao  seio  d'este  cahos,  aonde  todas  os  inte- 
resses transtornados  se  viam  agoiiisar. 

A  nomeação  de  Hichelieu  veio  satisfazer  o  brado 
geral.  O  livro  .í."  das  suas  "Memorias"  expõe  as 
duvidas  que  elle  oflereceu  ao  rei  antes  d'acceitar. 
Proposto  pela  rainha  mãi,  e  recebido  sem  desagrado 
pelo  monarcha,  o  cardeal  já  seguro  da  sua  elevação 
divertia-se  em  representar  uma  scena  de  hipocrisia. 

Era  a  muleta  de  Xisto  V.  No  dia  immediato  ao 
da  sua  entrada,  as  enfermidade»  allegadas  tinham 
desapparecido,  e  o  ministro,  com  a  pasta  nas  mãos, 
fallava  como  senhor  absoluto.  De  repente,  este  ho- 
mem humilde  no  tempo  do  marechal  d'.\ncrc,  8U- 
geito  no  governo  de  Luines,  erguia  a  cabeça,  e  no 
orgulho  do  poder  arrogou-se  a  presidência  do  conse- 
lho, que  ninguém  ousou  disputar-lhe,  e  estendia  o 
braço  armado  aos  partidos  inimigos.  E  que  a  tua 
occasião  tinha  emfim  chegado.  Tudo  era  fraco  para 
luetar  com  elle.  No  horisonte  não  havia  já  um  só 
astro  que  podesse  eclipsar  o  brilho  da  sua  estrella, 
levantada  e  radiosa  sobre  as  glorias  antigas  da  mo- 
narchia. 


O   CASTELLO    DE   HeIOELBEKG. 

Heideiberg,  cidade  d'.\llenianha,  antiga  capital  do 
Baixo-Palatin.ido,  está  situada  na  falda  de  uma  ser- 
ra, á  beira  do  Neeker.  O  castello  do  mesmo  nome, 
eque  llie  liea  sobranceiro,  é  famoso  na  historia;  mui- 
tas vezes  arruinado  contras  tantas  reconstruidoacha- 
va-se  no  esplendor  da  sua  magnificência,  quando  no 
anno  de  17()4  o  incendiou  novamente  um  raio.  edes- 
de  então  tem  permanecido  abandonado  inteiramen- 
te.—  Ainda  ha  pouco  alli  existia  um  tonel  enorme, 
que  pôde  conter  528  barris.  Em  tempos  da  prosperi- 
dade do  castello,  este  colosso  do  seu  género  estava, 
pelo  que  dizem,  cheio  sempre  do  melhor  vinho  do 
Rheno.  Damos  o  desenho  d'este  monumento  extrava- 


gante, curioso  sobre  tudo  pela  antiguidade  o  pelo» 
ornatos  de  que  está  carregado.  Porém,  (>or  descom- 
passadas que  sejam  as  suas  dimensões,  não  pode  cqui- 
parar-se  ás  descommunaes  vasilhas  que  existem  em 
Londres  na  imniensa  f.ibrica  de  cerveja  de  Uarclay, 
Pcrkins  e  C." — 1<  Achando-me  n'esta  fabrica  (escre- 
via um  observador  francez)  n'uni  pavimento  onde  es- 
tavam assentes,    n'unia  enfiada  de  armazéns,    99  to- 


neis, alguns  dos  quaes  tem  a  eap.icidadp  de  JlK)000 
a  (500  000  botelhas,  lembrou-me  o  celebro  tonel  de 
Heidelberg,  que  tinha  visto  anno»  antes:  6  o  único 
olijeelo  (|ue  se  conservou  soflrivelmente  do  delicioso 
castello  dos  condes  ]>alatinos,  c  rect-be  fielmente  visi- 
ta de  todos  os  viajantes  que  vão  admirar  aijucUas 
minas,  talvez  as  mais  bellas  de  tixlas  as  ruin.l^  feu- 
daes.    (iue  diflercnça   hoje  entre  o  >elho  castello   de 


o  PANORAMA. 


125 


Heidflberg  com  a  sua  vasilha,  e  o  colossal  estabeleci- 
mento do  fabricante  ingloz  com  o  seu  batalhão  de  to- 
neis, n 

«O  castello  antigo  dcsmorona-se ;  as  magnificas 
enculpturas  gothicas  se  deterioram  cada  vez  mais  :  de- 
balde um  desenhador  fraiicez,  f|uecom  zelo  digno  dos 
maiores  elogios  se  constituo  desde  tempo  indefinido 
o  guarda  e  o  cicerune  d'afjuelle  formoso  monumento, 
soUicíta  do  governo  de  Baden,  aquém  o  castello  per- 
tence, algumas  providencias  conservadoras.  Cadaum 
anno  ha  novos  estragos  pelo  gelo  na  primavera,  e  pe- 
las trovoadas  no  outono;  virá  dia  em  que  o  velho 
castello  será  uma  informe  massa,  de  que  talvez  se  ven- 
derão em  almoeila  as  cantarias,  não  ficando  mais  que 
os  desenlios,  IVilizmente  numerosos,  de  JMr.  Carlos  de 
Graiml)('rt.  A  sala  dos  cavalleiros  está  sem  tecto  :  as 
abobadas  que  sustentam  o  soberbo  eirado,  d'onde  se 
alarga  a  vista  pelo  curso  do  Necker,  e  pelas  bonitas 
eminências  que  o  bordam:,  essas  abobadas  abaladas 
pelos  barris  di?  pólvora  de  Louvois  desaliarão qualquer 
dia.  No  (Mitretanto  o  estabelecimento  do  fabrican- 
te de  cerveja  seaugmenlará,  ora  com  mais  um  arma- 
íem,  ora  com  unia  nova  niachina  de  vapor:  e  se 
acontecer  algum  sinistro,  como  o  incêndio  que  re- 
centemente devorou  um  corpo  do  edificio,  o  danino 
será  logo  reparado;  em  vez  da  construcção  que  ar- 
deu surgirá  outra  mais  esplendida,  em  que  o  ferro 
empregado  com  profusão  impedirá  no  futuro  os  es- 
tragos do  fogo . » 

«As  estatuas  dos  eleitores  palatinos  estão  derruba- 
das de  seus  nichos:  nenhum  dos  filhos  dos  seus  vas- 
sallos  se  dará  ao  trabullio  de  us  pòr  de  pé.  O  antigo 
tonel  está  vasio  ha  mais  de  século  e  meio  :  os  curio- 
sos podem  dckcer  ao  fundo  e  medir-lhe  o  bojo.  Uma 
vez  única  Mr.  Graiuibert  viu  jorrar  d'elle  o  vinho, 
«!  foi  cm  1813,  cm  honra  do  imparador  Alexandre  e 
dos  seus  alliados  os  íoberanos  da  Auslria  e  l'russia ; 
mas  não  passou  isto  de  uma  pia  fraude,  o  velho  to- 
nel não  estava  cheio,  o  vinho  que  corria  provinha 
de  uma  mesijuiidia  pipa  que  na  precedente  noite  se 
introduzira.  Os  'jy  toneis  de  Barclay,  l'erkins  e  C.'' 
estão  sempre  atestados  de  cerveja  que  fermenta  len- 
tamente ;  a  bel)idii  ipie  despejam  todos  os  dias,  e  que 
ít:  derrama  pela  Inglaterra  e  índias  occidentaes,  era 
suffieieiílíí  para  encher  o  tonel  do  príncipe  Casimiro 
(aSOOOO  lilrcjs  ou   14  747  alnindes)..» 

II  O  myst(-rio  d'estes  contrastes  é  que  o  volumoso 
tonel  feiíd.il  não  se  enchia  senão  do  producto  dos  di- 
reitos seidioriaes,  ao  passo  que  os  toneis  da  fabrica 
atestam-se  pelo  livre  concurso  de  trezentos  homens, 
que  lêem  a  C(írleza  do  receber  quotidianamente  o 
fructo  do  seu  trabalho. 


O  Fkitou  uk  Cantão. 

Novetla, 

(Coiilinuadci  ilr  pii;;.  ll'J.) 

í)s  NOSSOS  leitores  já  roídicnrii  o  sMpplieio  do  (cha 
ou  canga.  O  instiuniunio  de  tortura  a  (jue  S(!  dá  es- 
te nouuí  I'  um  niailriro  composto  de  duas  pi^i,'as,  com 
um  i'li,iufni  no  meio  por  ondi'  sií  i'nlia  o  pesco(jo  do 
eondemiiado  ;  depois  uueni-se  as  duas  pecas,  e  o  juiz 
lhe  põe  o  si'U  sello  com  a  senteuea  para  impedir  (|ue 
lu  ubram.  (I  Uliít  fornia  assim  uuui  especii-  de  eollci- 
ra,  (pu!  varia  em  pezo  ih^sde  sessenta  al<'  duzentas  li- 
bras, <•  segue  por  toda  a  parli."  o  infeliz  pailec<'nte. 
Um  carcereiro,  arnuido  d  uni  azorrague,  o  passeia 
uiiiim  todos  OH  dias  pelas  ruas,  exposto  ás  .ipupaUus 
du  guntulha,  e  a  uoile  o  rccondui  paia  a  |uiaáu. 


ElTendon,  que  acabava  de  soffrer  um  d'estes  pas- 
seios, tinha  chegado  mais  o  seu  guarda  á  extremida- 
de dos  arrabaldes  da  cidade  ao  pé  d'um  dos  canaes 
que  a  abastecem  de  viveres  vindos  de  todos  os  lega- 
res do  campo.  AUi,  exhausto  de  forças  pelo  muito 
que  padecera,  agachou-se  e  perdeu  os  sentidos.  O 
carcereiro  quiz  debalde  obriga-lo  a  levantar-se  ás 
chicotadas;  Etfendoa  não  se  movia. 

—  "  Tinha-te  em  conta  de  mais  valente,  resmun- 
gou o  homem  do  chicote,  olhando  para  elle.  Que 
hei  de  eu  agora  fazer  com  este  trambolho  sem  movi- 
mento ?  " 

Olhou  á  roda  de  si  em  busca  d'alguem  que  o  aju- 
dasse a  erguer  o  feitor,  porém  o  sitio  era  ermo,  e  a 
noite,  que  principiava  a  escurecer,  não  deixava  vêr 
senão  a  mui  curta  distancia.  O  carcereiro  revestiu- 
se  de  paciência,  e  sentou-se  ao  pé  do  prezo. 

N'este  momento  sentiu-se  rumor  de  remos  e  abi- 
coii  uma  lancha. 

Saíram  d'ella  dois  homens,  de  camizas  brancas, 
calças  largas,  japonas  abotoadas  pelo  lado,  e  chapéus 
de  palha  pontagudos,  trajo  que  indicava  serem  bar- 
queiros. Traziam  uma  carga  que  pousaram  alli  perto. 

O  carcereiro,  que  levantara  a  cabeça,  viu  que  era 
o  cadáver  d'um  homem  afogado. 

—  II  Pelos  gcníos  d'agua  !  exclamou  elle  com  um 
sorriso  grosseiro,  pescastes  um  peixe  grosso." 

—  II  U.ue  nos  não  faz  ricos  »  retrucou  um  dos  bar- 
queiros. 

—  "  Não  achastes  nada  ao  morto  ?  5> 

—  "Nada  mais  que  esta  caixinha  com  um  vidro 
de  remédios  e  uns  papeis.  » 

—  "li  verdade  que  pelo  fato  mostra  ser  medico." 

—  "Que  não  cura  mais  ninguém,  n 

—  "Pois  aqui  está  um  doente  que  bem  precisão 
tinha  d'elle ;  eu  não  sei  como  hei  de  leva-lo  para  a 
cadeia.  » 

Os  barqueiros  voltaram  as  caras  e  viram  então  a 
Edendoii. 

Ah!   tu  teus  rato   na  ratoeira?"   disseram  el- 

les  chega  ndo-se. 

—  "K  um  rico  negociante  de  Cantão "  respondeu 
o  guarda  com  unia  especii!  de  orgulho. 

—  "Bico!  re|»liram  os  barqueiros.  Ponjue  não 
comprou  ([Ueiii  ficasse  jior  elle  ? " 

Kllendon,  aquém  afrestpiidão  da  noife  tinha  rea- 
nimado, estremeceu  ao  ouvir  dizer  isto. 

—  "Pode  com  efleito  imtro  homem  ílcar  em  meu 
logar.'"  perguntou  elle  pasmado. 

—  "Conforme  o  [lartido  que  lho  fizeres"  replicou 
o  carcereiro. 

—  "  Mas  onde  hei  de  acliar  quem  se  sujeite  ..." 

—  "Não  falta  por  alii  quem  até  deixe  que  lhe  cor- 
tem o  gasiuite  para  obsequiar  uni  condemnado"  ob- 
servou o  baripieiro. 

liiizirain  os  olhos  do  feitor;  fez  um  esforço,  c  le- 
vaiilando-se  apesar  do  pezo  do  tcha  que  o  ilerrcava ; 

—  "lAual  de  viís  quer  solVrcr  esta  pena?  pergun- 
tou elle.   l''aço-o  rico  para  toda  a  sua  vida.  " 

—  "Poripianlo  tempo  lias  di'  tu  andar  ouu  oíc/iii 
grande  ás  costas.'"  piTguntaraiii  os  barqueiros. 

—  "  Por  dois  annos." 
Aliaiiaraiii  a  cabi>ça. 

—  ..Não  ha  hoiiiem  que  liie  resista.  Mais  vai  mor- 
rer eiii  cima  d'um  ciqxi.  " 

—  ..Salvo  se  houver  quem  ))eriiiitta,  lá  de  vei  em 
(jiiando,  ao  priv.o  largar  o  si-u  coll.ir "  ponderou  o 
gu.irda  piscando  um  olho. 

— •  i.  Kntão  como,  se  a  chave  do /cAa  pára  nas  mào'. 
dos  juizes  .'  " 

— ..  IMde  haver  (piem  tenha  outra." 

—  >.  E  o  sello  ,'  " 


126 


O  PANORAMA. 


—  «Tira-sn  sem  se  quebrar." 

—  "  Pódfs  tu  realmente  fazer  o  que  dizes  ?  n  excla- 
muu  ElVendon. 

—  "  l'or  um  taci!"  (l) 

O  feitor  procurou  dinheiro  nos  seus  vestidos,  e  ati- 
rou com  asomma  pedida  aos  pés  do  guarda,  que  met- 
teu  logo  mãos  á  obra.  D'ahi  a  um  instante  estava 
aberta  a  canga. 

KITendon,  assim  que  se  sentiu  solto,  deu  um  grito 
de  alegria,  e  levantou-se  d'um  pulo. 

—  li  Devagar,  gritou  o  carcereiro  agarrando-o  por 
um  braço-,  mostrei-te  o  que  sal)ia  fazer  i  agora  é  pre- 
ciso qu(!  tornes  a  metter  o  pescoço  n'este  collar. « 

—  «  N.lo  !  exclamou  o  feitor,  que  achei  quem  me 
substitua. » 

—  «  (iucm  ?  >> 

—  "  Este  cadáver.  » 

—  tt  ftue  dizes  ?>i 

—  "Digo  que  lhe  enfies  pelo  pescoço  o  teu  tcha 
grande.  Entrei  hoje  para  a  cadeia,  ainda  ninguém 
ine  conhece,  ninguém  dará  pela  troca.  Veste  o  mor- 
to com  o  meu  fato,  declara  que  succumbi,  e  ninguém 
desconfiará  da  mudança. » 

—  «Não  caio  n'essa,  disse  o  guarda,  podem  des- 
cobrir ...» 

—  «  Cem  tacis  se  consentes.  » 

—  "  Cem  taeis  !  » 

—  «E  outro  tanto  a  estes  dois  amigos  para  se  ca- 
larem, n 

—  "Valeu  !"  exclamaram  alegres  os  barqueiros. 
O  guarda  ainda  quiz  púr-llic  suas  duvidas ;  porém 

elles  tanto  o  apertaram  para  que  não  deixasse  ir  pe- 
la agua  a  baixo  esta  occasiiío  única  de  ficarem  ricos, 
que  elle  por  fim  chegou-se  ao  rego.  Effendon  entre- 
gou-llie  a  quantia  ajustada  em  bilhetes  sobre  o  hmt- 
pou,  e  sem  perda  de  tempo  tractaram  da  troca  dos 
vestidos.  O  leitor  vestiu  a  túnica  do  afogado,  pegou 
na  caixinha  que  os  barqueiros  lhe  deram,  e  eseapu- 
liu-se,  eustando-lhe  ainda  a  crer  no  seu  milagroso  li- 
vramento. 

Seguiu  por  algum  tempo  o  arr.ibalde  andando  o 
mais  de  pressa  (|ne  podia;  mas,  chegando  á  iKirta  da 
cidade  mantcliou,  faltarani-lhe  as  forças  eviu-se  obri- 
gado a  senlar-sc  ao  pé  do  lampião  que  alumia  a  en- 
trada. 

Depois  d'alguns  instantes  de  doscanço  lembrou-se 
da  caixinha  que  trazia,  eabriu-a.  Como  lhe  haviam 
diclo  os  barqueiros,  não  continha  senão  un»  frasqui- 
nho de  bronze  ciiidadosanientc  fechado  c  alguns  pa- 
peis. Os  que  Ertendou  passou  primeiro  pelos  olhos 
eram  rcceilas  de  dilVerentcs  venenos  com  a  indicação 
dos  seus  elleilos-,  ouldmo,  porém,  era  uma  carta  di- 
rigida ao  medico  Wang-ti,  na  qual  lhe  faziam  ins- 
tancias para  que  viesse  aPeking  paia  o  graiule  pio- 
jeclo  ()ne  llie  tinha  sido  coniuinnicado. 

Estava  Eflotulon  a  reler  esta  carta,  e  procurava 
adiviíiliar  que  projecto  seria  este,  quando,  levantan- 
do os  olhos,  viu  dois  homens  que  estavam  alguns  pas- 
sos distantes  d'elle  com  lanternas,  e  (|ue  parc>ciam 
«xamina-lo.  Ellendon,  tcmcndo-se  da  curiosidade 
doesta  gente,  lêvantou-se  para  seguir  avante  o  sou 
caminho,  e  tornou  a  metter,  á  pressa,  os  papeis  den- 
tro da  caixa,  mas  um  dos  homens  das  lanternas,  que 
chegara  mais  perto,  viu  o  nome  ([ue  u'ella  estava 
gravado. 

—  "E  elle,"  disso  em  voz  baixa,  fazendo  um  si- 
gnal   ao  seu  comjianheiro  para  que  se  approximasse. 

— "  (^luem  és  tu,  e  que  me  queres  .'^i  perguntou 
Klfendon  perturbado. 

—  "Não  te  chamas  VVang-tif»  rosnou  o  china. 


(n     O  tael  valia  dei  Xoílita  em  ISSO. 


—  uôue  te  importa  ?n 

—  "Tu  és  medico. n 

—  "Serei. " 

—  u  Chegaste  de  Pao  ?  » 

—  "  Porque  ?  >■> 

—  "  Fo-hu  mandou-nos  ao  teu  encontro,  n 

—  "  Fo-hu  !  "  repetiu  EfTendon  estremecendo. 

—  "  \  em  I  está  á  tua  espora." 

O  feitor  hesitou.  N 'este  meio  tempo  chegaram  uma 
cadeirinha ;  os  dois  chinas  travaram  d"elle,  e  depoLs 
de  o  terem  sentado  deram  o  signal  aos  moços  que 
partiram  a  passo  largo. 

EfTendon  <|U)Z  ao  principio  saltar  para  fora,  mas 
co.Tlevc-o  a  lembrança  de  sua  filha.  De  o  tomarem 
pelo  medico  rmultaria  estar  perto  de  Maria,  e  tal- 
vez achar  nieios  de  avêr!  .  .  .  Resolveu  tirar  partido 
d'este  succc-sso  inesperado,  representando  o  mais  tem- 
po quepodesse  o  pajiel  d'aquelle  cujos  despojos  trazia. 

Deixemos  pois  leva-lo  para  casa  de  Fo-hu,  e  omit- 
tlndo  a  conversação  que  teve  com  o  censor,  eque  du- 
rou parte  da  noite,  transportemo-nos  na  manhã  se- 
guinte á  habilaçrio  imperial  do  jardim  redondo,  dis- 
tante a  algumas  ii  de  Pcking  (I).         (Conlinúa.) 


Os  Templários. 

(Continuado  de  pa».  117.) 

Depois  da  perda  da  Terra  Sancta,  e  mesmo  anterior- 
mente, havia-se  dado  a  entender  aos  templários  que 
era  urgente  a  sua  reunião  com  os  cavalleiros  do  hos- 
pital:  reunido  a  uma  ordem  mais  dócil  o  Templo  of- 
fereceri.!  pouca  resistência  aos  reis.  Mas  os  templá- 
rios não  quizeram  estar  por  isso.  O  grão  mestre,  Jac- 
ques  Moiay,  cavalleiro  pobre  da  Borgonha,  mas  ve- 
lho e  valente  soldado,  que  acabava  de  cobrir-se  de 
honra  no  Oriente  pelos  últimos  combates  que  oschris- 
tãos  alli  sustentaram,  respondeu — "que  6.  Luiz  ti- 
nha, em  verdade,  proposto  n"outro  tempo  a  juncção 
das  duas  ordens,  porém  que  o  rei  d'Hespanha  não  a 
tinha  consentido;  (|ue  para  os  templários  se  reunirem 
aos  cavalleiros  de  S.  João  era  necessário  que  se  aba- 
tessem muito-,  que  a  ordem  dos  templários  tora  uiais 
exclusivamente creada  para  aguerra.n  —  Terminava 
por  estas  palavras  altivas: — "acha-se  muita  gente 
que  mais  quereria  tirar  aos  religiosos  sua  fazenda  do 
que  accrescentar-lh'a  .  .  .  Não  olfetantc,  so  se  liíer  es- 
ta união  das  duas  ordens,  ficará  uma  religião  tão  for- 
te e  tão  poderosíi  que  muito  bem  poderá  detendcr 
seus  direitos  contra  toda  c  qualquer  pessoa  n^este  mun- 
do. " 

Em  quanto  os  templários  rcsisti.im  tão  orgulhosa- 
nu-nfe  a  qualquer  conccs-são,  iam  ganhando  vulto  os 
ruins  boatos  contra  elles,  que  pur  sua  culpa  para  is- 
so concorriam.  Dizia  um  ca>alli  iro  a  Kaoul  de  Pres- 
les,  homem  dos  mais  sisudos  c<  seu  temjK»  —  uque 
no  capitulo  geral  da  ordem  havia  uma  cousa  tão  se- 
creta, que  se  alguém,  por  sua  de^gr.^ça,  a  visse,  fos- 
se emlwra  o  rei  de  França,  nenhum  temor  de  tor- 
mentos im|K>diria  os  do  capitulo  de  o  matan-m,  logo 
que  pi)dessem." — Lm  templário,  rcceni-admiltido, 
tinha  protestado  contra  a  formula  da  admissão  peran- 
te uma  auctoridade  de  Paris;  outro  se  havia  confes- 
s.-ido  a  um  franciscano,  que  lhe  deu  ix>r  penitencia 
jejuar  ttxlas  as  se\t;is  feiras,  um  anno  n  fio,  e  sem 
trazer  cauiiza;  outro,  emfim,  quecra  da  kis*  do  ptm- 


(l)  Pekinc  ou  Pc-kin;:  niSo  i  o  nota»  especial  d'um»  ci- 
(l.iili- ;  silTnific.i  rirtf  rfo  norlt-.  e  exprimindo  *  9Íltiai;3o  rel»- 
li\«  daci)rte.  |iú<le  ser  dado  «ciiloile  mui  ilirern  dcquclU  • 
qiic  os  europeus  eiclusii-amejile  o  >pplicar«iD. 


o  PANORAMA. 


127 


tificc  —  «lhe  tinha  ingenuamente  confessado  todo  oj 
mal  que  conhecôra   na  ordem,   em   presença   de  um  I 
cardeal,  seu  primo,  tjuc  escreveu  no  mesmo  instante 
este   depoimento.!'  —  Kaziam-se   circular   ao   mesmo  [ 
tempo  outros  sinistros  rumores  acerca  das  prisões  hor- 
riveis,  onde  os  cabeças  sepultavam  os  membros  da  or- 
dem  recalcitrantes.    Um   dos  cavalleiros   declarou — j 
«que  um  de  seus  tios  havia  entrado  na  ordem  são  e 
contente,  com  cães  ctilcões^  ao  cabo  de  três  dias  es- 
tava morto.  , 

O  povo  acolhia  avidamente  estes  boatos :  achava 
os  templários  sobejamente  ricos,  e  pouco  generosos. 
Posto  «pie  o<;rão  mestre,  nosseus  interrogatórios,  ga- 
}>c  a  niuniiiceneia  da  ordem,  uma  das  arguições  con- 
tra esta  opulenta  corporação  éque  —  «  as  esmolas  não 
se  faziím  como  cumpria."  — 

As  cousas  estavam  maduras  :  o  rei  chamou  a  Pa- 
ris o  grão  mestre  e  os  cabeças ;  afagou-os,  enclieu-os 
de  favores,  adormcceu-os  :  vieram  cair  na  rede,  como 
os  protestantes  na  tnaiançn  de  H.  BarUidlumcu.  O 
rei  acabava  de  acerescentar-lhes  os  privilégios  \  e  ro- 
gara ao  grão  mestre  que  fosse  padrinho  de  um  liliio 
seu.  —  A  12  de  outubro,  Jacques  Moiay,  nomeado 
expressamente  com  outros  personagens,  havia  assisti- 
do ao  enterro  da  cunhada  del''ilippe.  No  dia  13  Jac- 
ques  foi  prezo  com  os  cento  e  quarenta  templários  que 
se  achavam  em  Paris;  no  mesmo  dia  foram  também 
prezos  sessenta  em  Beaucaire,  e  um  grande  numero 
de  outros  por  toila  a  França.  Esla\a  seguro  o  assen- 
timento do  povo  e  da  unixcrsidade :  no  mesmo  dia 
da  prisão  foram  osburguezcs  chamados  por  parochias 
e  confrarias  ao  jardim  do  rei,  na  jiarlo  de  Paris  do- 
noininada  especialmente  a  ciJade,  e  ahi  pregaram 
alguns  fr.ides.  Póilc  jiilgar-se  d.i  violência  doestas  pre- 
gações populares  pela  da  carta  regia  que  correu  toda 
a  França. — "Cousa  acerba,  cousa  deplorável,  cousa 
liorrivel  ao  pensar-s<!,  terrível  de  dizer-se  !  Cousa  de 
exeeravcl  atrocidaile,  de  abominável  infâmia  !  Todo 
o  animo  dotado  d(^  razão  se  condoe  c  eonlundo-se  no 
seu  dú,  vendo  que  a  natureza  se  allieia  fora  dos  limi- 
tes naturaes,  que  se  deslendíra  do  seu  principio,  que 
desconhece  a  sua  dignidade,  que  jirodiga  de  si  uies- 
nia  se  assemelha  aos  brutos  deaprox  idos  de  sizo ;  que 
digo/.  .  .  qu(!  transcende  a  bruteza  dos  próprios  bru- 
tos! .  .  .  )i  —  Julgue-se  por  isto  do  terror  e  sobresullo 
com  que  (ai  carta  foi  recebida  por  toda  a  alma  ehris- 
lã  :  era  como  o  toipie  da  trombeta  do  juizo  llnal. — 
Seguia-se  a  indicação  summaria  das  aeifusações,  actos 
de  renegados,  de  traição  contra  a  christandade  a  pró 
dos  inlii'is,  iniciação  torpe,  e outros  muitos  horrores! 
Tudo  isto  fora  denunciailo  por  templários  :  dois  ca- 
valleiros, um  gascão,  outro  italiano,  prezos  por  mal- 
feitorias, haviam  r<;velado,  segundo  se  dizia,  lodos  os 
segredos  da  orilem  !  Oque  mais  exaltava  a  imagina- 
ção eram  os  dicto»  extravagantes  que  se  divulgavam 
ii  respíúto  dl.'  qual  fosse  o  Ídolo  que  os  templários 
udor.ivam  :  variavam  os  pareceres  :  diziam  lUis  que 
<!ra  uma  cai>ei;a  barbuda,  outros  (jue  uuja  eaix-ça  de 
Ires  faiM:s  :,  linha,  accrescenlavam  alguns,  olhoscliam- 
m<'janl<s.  Havia  (jueni  dissirsse  que  era  um  craneo 
d'liomeni  :,  outros  «ubstiluiam-lhe  um  gato. 

Fossem  <|uai's  fossem  os  lioatos,  Filip|ie  o  formoso 
não  perilrra  tempo.  No  mesmo  dia  da  prisão  pessoal- 
m<;nte  veio  ao'1'i'mplo  tomar  assento  com  seu  thesou- 
l'o  e  sellos  e  um  exercito' de  genie  forense  para  au- 
tuar, inventariar.  Ksta  bella  preza  o  eiiriípiícèra  di; 
um  jaclii. 

Oassondiro  do  pa|ia  foi  extremo  ijuando  soube  (pie 
o  rei  não  fazia  cabedal  iPelli'  na  perseguição  de  uma 
ordem  (piesc)  poília  ser  julgada  pelasajii'ta  sé:  nelio- 

li:ra  llie  fc/,  i.'squi r  a  sua  ordinária  abjecção,    a  sua 

jirccaria  e  depeudenle  situação   nu  meio  do»  estudos 


do  monarcha :  suspendeu  os  poderes  dos  juizes  ordi- 
nários, arcebispos  e  bispos,  e  mesmo  dos  inquisido- 
res.—  A  resposta  do  rei  é  violenta  :  escreve  ao  papa 
—  "que  Deus  detesta  os  tibios ;  que  os  vagares  são 
uma  espécie  de  eonnivencia  com  os  crimes  dos  accu- 
sados ;  que  era  melhor  que  o  papa  excitasse  os  bis- 
pos. Seria  uma  grave  injuria  aos  prelados  tirar-lhes 
o  poder  que  lhes  vem  de  Deus.  ISão  mereceram  esse 
ultraje  ;  não  o  supportarão  ;  o  rei  não  poderia  tolera- 
lo  sem  violar  oseu  juramento.  Saneio  padre,  quem  ú 
o  sacrílego  que  ousa  aconselhar-\os  que  menoscabeis 
aquelles  que  Jesus  Christo  envia,  ou,  para  melhor 
dizer,  o  próprio  Christo?  ...  Se  os  inquisidores  são 
suspensos,  a  causa  nunca  se  concluirá  ...  O  rei  não 
lançou  mão  dV-lla  como  aceusador,  mas  como  cam- 
peão da  Fé  e  defensor  da  Igreja,  do  que  deve  dar 
contas  a  Deus."  —  (l) 

Filippe  deixou  o  papa  capacitar-se  de  que  lhe  en- 
tregava nas  mãos  os  prezos,  e  que  se  encarregava 
d(?  conservar  os  bens  para  os  applicar  ao  serviço  dii 
Terra  Sancta.  Oseu  intento  era  alcançar  que  o  pon- 
tífice restituísse  aos  bispos  e  inquisidores  os  poderes 
de  que  os  suspendera.  Mandou-lhe  Setcnia  e  dois  tem- 
plários para  J'oiliers,  e  fez  partir  de  l'arís  os  prinei- 
paes  da  ordem-,  ordenou  porém  que  passassem  além 
de  Chinon.  O  papa  accoinmodou-sc ;  c  obte\e  os  de- 
poimentos dos  de  Poitíers  :  ao  mesmo  tempo  levan- 
tou a  suspensão  dos  juizes  ordinários,  só  reservando 
para  si  o  julgamento  dos  cabeças  da  ordem.  —  Este 
vagaroso  processo  não  podia  satisfazer  o  r<ú.  Se  o  ne- 
gocio assim  fosse  guiado  com  pouco'  estrondo,  e  per- 
doado como  no  confessionário,  não  havia  meio  de  iicar 
com  os  bens.  Por  isso,  em  quanto  o  papa  imaginava 
ter  tudo  na  sua  mão,  o  rei  mandava  autuar  em  Pa- 
ris pelo. seu  confessor,  inquisidor  geral  de  França.  Ob- 
tiveram-se  logo  cento  e  quarenta  coiilissões  pelos  trac- 
tos, em  (|ue  se  empregaram  ferro  e  fogo  :  uma  vez 
divulgadas  estas  conlissões  não  podia  o  papa  aecom- 
inodar  o  negocio.  Ksle  mandou  a  Chinon  dois  car- 
deaes  i)ergunlar  aos  cabeças  e  ao  grão  mestre  se  tudo 
aquillo  era  verdade:,  oscardeaes  os  persuadiram  a  di- 
zer que  sim,  e  elles  se  resignaram  a  ceder  :  o  papa, 
com  eHcito,  os  reconciliou  e  os  reeommcuduu  ao  rei ; 
julgava  tc-los  salvado. 

Phili]ipe  não  fazia  caso  e  continuava  seu  caminho. 
No  principio  de  1  ÍOII  fez  prender  iH)r  via  de  seu  pri- 
mo, o  rei  de  Nápoles,  todos  os  templários  da  Proven- 
ça. Pela  pasclioa  junetaram-se  em  Tours  os  estados 
do  reino.  O  rei  fez  que  por  estes  lhe  fosse  dirigido 
um  discurso  singularmente  violento  contra  o  clero. 
— 11 1)  povo  do  reino  de  Fran(;a  dirige  ao  monarchii 
instiintcs  suppilcas  .  .  .  Gue  se  lembre  (|ue  o  principȒ 
dos  lillios  «r Israel,  Moisés,  amigo  de  Deus,  a  ipiem 
o  Senhor  faUava  face  a  face,  vendo  a  aiiostasja  dos 
adorailores  do  bezerro  d'ouro,  disse:  Tonu?  cadaum  ii 
espada  e  mate  o  seu  próximo  )i:irente  ...  F  não  foi 
para  isso  pedir  o  consentimenio  ile  Aarão,  couslitui- 
do  suiunio  sacerdote  por  orilem  ile  Deus  .  .  .  Por  t]UO 
razão,  pois,  o  rei  clirislianis>inio  não  proceilería  da 
mesma  maneira,  mesmo  contra  todo  o  clero,  se  o  cle- 
ro errasse  assim,  ou  apoiasse  os  que  erram  .'...» 

Susti'ntaudo  este  discurso,  vinli-  e  seis  priiiciiR'S  *• 
lithilgos  se  constituíram  aciusadores  e  ilerani  procu- 
ração paru  se  proceder  contra  os  li-mplarios  per.inte 
o  papa  eo  rei.  —  x.Xrmado  orei  com  estas  íuIIutcu- 
cias  (diz  Diipuy),  toi  a  1'oiliei's,  .iconip.inliado  di> 
gente,  que  vinham  u»er  acpn-Ues  proiur.idiui's  (pu- clle 
retivera  junctu  á  sua  pessoa   par.i  loui.ir  p.ircccr  «i- 

(I)  l)ii|iny  (ilr  i/iiein  a/!o  oí  oiihos  rxirattes)  min  Imi 
csla  ruiiii  ii.i  iiili-f<ni  :  pioviivrliiiiMilo  iii\o  lui  rciutlliilii  mi 
j)uulíUcu,  uiut  i-ii|iiiibiiila  culiu  u  pvru. 


128 


O  PANORAMA. 


hre  astlifficiilflados  que  ])or  ventura  sobreviessem.  »  — 
Ao  chegar,  beijou  huiiiildemente  o  pé  ao  papa  ;  mas 
este  viu  que  nada  obteria.  Filippe  não  dava  ouvidos 
a  coinposi(;ão  alguma ;  era-lhe  preciso  haver-se  seve- 
ramente com  os  individues  para  lhes  poder  licar  com 
a  fazenda.  O  papa,  desatinado,  queria  sair  da  cida- 
de e  evadir-se  ao  seu  t^ranno ;  e  mesmo  quem  sabe 
se  até  iugiria  da  Fran(;a  ?  .  .  .  Mas  não  era  homem 
que  partisse  sem  o  seu  dinheiro ;  e  quando  se  appre- 
scntou  ás  portas  com  as  cavalgaduras  e  bagagens  não 
poude  passar  ^  viu  que  estava  prisioneiro  do  rei,  nem 
mais  nem  menos  como  os  templários  :  por  muitas  ve- 
xes intentou  a  fuga,  porém  sempre  inutilmente.  Por 
tanto  Clemente  deixou-se  ficar  e  deu  mostras  de  re- 
signado. No  primeiro  de  agosto  de  1308  expediu  uma 
bulia  dirigida  aos  arcebispos  e  bispos  :  este  documen- 
to é  singularmente  breve  e  compendioso  contra  o  uso 
da  corte  romana:  vê-se  claramente  que  opapa  escre- 
ve contrafeito  eque  lhe  impellem  a  mão.  Alguns  bis- 
pos (segundo  esta  bulia)  tinham  escripto  que  não  sa- 
biam como  deveriam  ser  tractados  os  accusados  que 
se  obstinassem  a  negar  ou  que  retractassem  as  suas 
confissões."  —  Estas  cousas  —  diz  o  papa  —  não  fica- 
ram indecisas  pelo  direito  escripto,  (lo  qual  sabemos 
que  muitos  d'entre  vós  tem  pleno  conhecimento  :  não 
e  nossa  intenção  ao  presente  estabelecer  para  esta  cau- 
sa novo  direito,  e  queremos  que  procedais  coutorme 
ao  que  o  direito  requer. 

Havia  n'isto  um  perigoso  equivoco.  Jura  scripta 
entender-se-hia  o  direito  romano,  ou  o  canónico,  ou 
o  regimento  dos  inquisidores?.  .  .  O  perigo  era  tan- 
to mais  efleetivo  que  o  rei  não  largava  mão  dos  ca- 
valleiros  prezos  para  ei\trega-los  ao  papa,  como  a  es- 
te dera  esperanças  i  na  conferencia  ainda  o  entreteve 
promettendo-lhe  os  bens  para  o  consolar  do  não  obter 
os  indivíduos:,  e  esses  bens  deveriam  ser  entregues 
áquelles  que  o  papa  designasse  :  era  ataca-lo  pelo  seu 
fraco,  e  Clemente  andava  muito  preoccupado  a  respei- 
to do  destino  dos  mesmos  bens. 

O  papa  tinha  restituído  (em  5  de  julho  de  1.303) 
aos  juizes  ordinários,  arcebispos  e  bispos  os  poderes 
momentaneamente  suspensos ;  ainda  no  1 ."  de  agos- 
to escrevia  que  podia  scguir-so  o  direito  conimum,  e 
no  dia  12  commettia  a  causa  a  uma  commissão.  Os 
commissarios  deviam  instaurar  o  processo  na  provin- 
da de  Sens,  em  Paris,  bispado  sullraganeo  de  Sens. 
Kram  nomeados  outros  commissarios  para  fazerem 
outro  tanto  nas  demais  partes  da  Europa:  o  julga- 
Diento  devia  ser  pronunciado  d\dii  adoisannos  n^um 
concilio  geral,  fora  <la  Krança,  em  Vienne  no  delphi- 
nado,  território  do  império. 

A  commissão,  composta  pela  maior  parti;  de  bis- 
])0s,  era  presidida  por  Gilles  de  Aiscelin,  arcebispo 
de  Narbona,  homem  brando  etimido,  de  muitas  let- 
tras  mas  de  pouco  animo;  tanto  o  rei  como  o  papa 
julgavam  te-lo  pela  sua  parte:  o  papa  julgou  que 
mais  seguramente  apaziguava  o  descontentamento  de 
Filippe  ajuntando  á  commiss.ão  o  confessor  do  mo- 
narclia,  acjuelle  dominicano  e  inipiisidor  geral  de 
França,  que  havia  conieçado  o  processo  com  tanta 
violência  e  audácia.  —  O  rei  nada  reclamou  :  carecia 
do  papa.  A  morte  do  imperador  Alberto  d\\uslria, 
no  I ."'  do  maio  de  l.iOít,  ollerecia  á  casa  de  França 
uma  perspectiva  sublime.  O  irmão  de  Filippe,  Car- 
los di;  N  alois,  cujo  de^-tino  era  pretender  tudo  e  fa- 
Ihar-ihe  tudo,  appresentou-M-  candidato  ao  império; 
se  elh'  lograsse  o  intento,  o  ])apa  vinlia  a  ser  mais 
que  nunca  criado  e  vassallo  da  casa  de  França.  Cle- 
mente escreveu  ostensivamente  a  favor  de  Carlos,  mas 
em  segredo  contra  elle.  —  l)'então  i>or  diante  já  não 
havia  segurança  para  o  papa  nos  dominios  do  rei. 
Conseguiu  sair  de  Poiticrs,   e  foi  metter-sc  em  Avi- 


nhão  em  março  de  1309  :  linha  dado  palavra  de  não 
sair  de  França,  e  d'este  modo  não  vioia\a,  illudia 
sua  promessa.  Avinhão  era  enão  era  de  França.  Era 
uma  fronteira,  uma  posição  mixta,  uma  espécie  de 
as^lo,  como  o  foi  Genebra  para  Cahino,  Ferney  pa- 
ra Voltaire.  Avinhão  dependia  de  muitos  e  de  nin- 
guém :  era  território  do  império,  um  antigo  municí- 
pio, uma  republica  sob  a  protecção  de  dois  reis.  O 
rei  de  Nápoles,  como  conde  da  Provença,  o  rei  de 
França,  como  conde  deTolosa,  tinha  cada  um  meta- 
de do  senhorio  de  Avinhão ;  míis  o  papa  ia  ser  alli 
mais  rei  do  que  elles,  trazendo  a  sua  residência  mui- 
to dinheiro  áquella  pequena  cidade. 

Clemente  julgava-se  livre,  mas  arrastava  os  seu» 
grilhões :  o  rei  o  tinha  sempre  seguro  pelo  processo 
de  Bonifácio.  Apenas  de  assento  em  Avinhão,  sabe 
que  o  rei  Filippe  manda  conduzir  á  sua  presença  pe- 
los Alpes  um  exercito  de  testimunhas,  a  cuja  frente 
marchava  aquelle  capitão  italiano,  Kaynaldo  de  Su- 
pino,  que  fora  na  prisão  de  Bonifácio  \I1I  o  braço 
direito  de  Nogaret.  A  três  léguas  de  Avinhão  as  tes- 
timunhas caíram  n'uma  emboscada  que  lhes  estava 
preparada:  Uaynaldo  salvou-se  cm  Nimes  a  muito 
custo,  e  fez  pelas  justiças  do  rei  lavrar  auto  d'csta 
cilada.  —  Opapa  escreveu  mui  depressa  ao  pai  do 
rei  para  rogar-lhe  apaziguasse  Filippe  o  formoso :  e 
escrev(!u  ao  próprio  rei,  a  23  d  agosto  de  1309  — 
"que  se  as  testimunhas  foram  retardadas  em  seu  ca- 
minho, não  era  a  culpa  d'elle,  mas  sim  dos  ministros 
do  rei,  que  deviam  ter  prevenido  a  segurança  d'a- 
quellas.  "  —  O  rei  havia  denunciado  ao  papa  certas 
cartas  injuriosas:  opapa  responde  queellas  são,  mes- 
mo vista  aorthographia,  indignas  da  corte  de  Koma  ; 
mandou-as  queimar ;  e  quanto  a  perseguir  os  aucto- 
res  d'ellas  disse  que  —  .i  uma  experiência  rc-cente  pro- 
vou que  estes  procedimentos  accelerados  contra  per- 
sonagens importantes  teem  triste  e  perigoso  resulta- 
do, n —  Esta  carta  do  papa  era  uma  tímida  e  humil- 
de protestação  de  independência,  uma  resistência  sup- 
plicanle  :  a  allusão  aos  templários,  com  que  conclue, 
indicava  bem  a  esperança  que  o  jjontilice  punha  nos 
embaraços  que  a  Filippe  o  formoso  devia  suscitar 
aquelle  processo.  (Conlinua.) 


InFLAMMAçXo    da    pólvora    pelo    CHOaCE. 

OíKio  icm  duvida  é  causa  de  muitas  desgraças,  prin- 
cipalmente quando  se  lida  com  matérias  intlamma- 
veis.  Antes  das  experiências  feitas  por  Mr.  .\uber, 
coronel  d'artilheria,  na  presença  da  commiiMo  con- 
sultira  das  pólvoras,  fugia-se  de  empregar  o  ferro  na 
coustrucção  das  machinas,  utensílios,  e  edilicios  d.-is 
fabricas  da  pólvora,  por  ser  sujeito  a  faiscar  com  o 
choque  •,  mas  o  latão  era  tido  como  um  di»  met,ie5 
livres  dVste  perigo.  Mr.  .\ul)er  provou  tixiavia  que 
a  pólvora  se  íntlamraa  :  t.*^  no  choque  do  ferro  com 
ferro;  2.*^  do  ferro  com  latão;  3."  do  latão  com  la- 
tão; 4."  do  ferro  com  mármore;  e  5."  do  chumbo 
com  cliumbo  ou  com  pau,  quando  o  choque  prvivem 
de  baila  de  chumlxi  despiilída  por  arma  do  fogo. 
Não  se  conseguiu  incvndiar  a  jxilvora  jwr  meio  da 
pancada  de  martcllo  solire  cIuiiiiIn.). 


QfKtl  compra  carece  de  crm  olhos,  equem  vende  has- 
ia-lhc  um,  éum  dictado  italiano.  Uuando  um  alqui- 
le vos  ((uer  impingir  um  cavallo,  lusfra-o  e  onfeifa-o 
para  lho  esoonder  as  mataduras ;  quando  um  liomem 
\os  ipier  enganar  cobre  o  rosto  oom  uma  mascara.  Ex- 
perimentai o  cavallo  cachareis  um  sendeiro;  dosmat- 
earaí  o  homem  e  achareis  um  malvado.         Méht. 


17 


o  PANORAMA. 


129 


o  CABDEAI,  DE  HICHEXIEU. 


O    CaUDKAI,    1)H     UlCIIIil.lKtl. 

II 

No  REGIMEN  anlif^o,  cm  (jin'  ii  aiictoridade  real  era 
u  único  poder  do  lísiailo,  era  lu.-ccssario  que  o  mi- 
nistro, <iu<!  80ul)e  suslcnlar-se  e  governar  de7.oito  au- 
nou comi)  verdadeiro  »ol)erano,  eonseí;uÍ!ise  duas  cou- 
sas i;;iialhienle  espinhosas  e  árduas  :  evitar  a  sorte 
do  niareclial  d'Anere,  eoiilcndo  a  noliii'za  pido  temor 
do  ininiedialo  easl  i(;o  ■,  caplivar  a  viiiilade  e  o  alVecto 
dl-  Ijiiiz  XIII,  li;;aii(lc>  á  sua  eousíírvaeão  a  seguran- 
ea  do  prineipi-,  e  a  existência  da  njonarcliia. 

Kstu  loi  a  politica  do  cardeal  cm  Iodas  as  epocluts 
c  no  nwio  das  maior<'s  dilTiculdadcs, 

Luiz.  XIII,  o  mais  (M|>riclioso  e  mudável  dos  ho- 
mens, Iraldu  sempri'  as  amiza(h'S  a  «pie  pari'cia  mais 
leal.  O  seu  atlcclo  não  poupou  a  sua  mài  as  iMin;;en- 
te»  dores  do  ch^slerro  na  terra  estrani;eira,  nem  sid- 
vou  o  mo(;o  e  destemido  ('in<|-MarH  do  cailalaiso. 
Com  um  amor  ^ehuhi  e  <'adaverico,  con>o  a  sua  ul- 
niu,    tinha   coulrahlihi    iiicljnaeòc»   ciim    as  inuis  fur- 

VOL.    1.  DlSZKMUUU    XOj    lUlO. 


nuisas  e  meigas  donzelhis,  e  não  sentindo  o  menor 
vácuo  no  cora(;ão  rompeu-as  sem  vioKmcia.  Este  era 
o  senhor  a  ipiem  Kichelieu  consagrara  a  sua  vida,  e 
que  até  o  uilinio  suspiro  não  viu  no  governo  senão 
pelos  seus  olhos,  não  ohrou  senão  ])eh)  seu  bra(;o,  co- 
mo se  o  robusto  espirito  do  seu  ministro  se  houvesse 
infundido  no  corpo  frágil  tio  succossor  de  Henrique 
IV.  Como  homiMU  huiz  al)orrccia  Duplessis.  Como 
rei  cs(tuiiou-o  contra  toilos  os  golpes  —  uma  lei  fatal 
e  misteriosa  uniu  a  sua  carreira  a  tio  auila/.  sacerdo- 
te, e  <pu',  ao  repousar  emlim  ile  tantas  fadigas,  fe- 
chando os  oliios  estendeu  a  mão  fria  do  seio  da  eter- 
nidaile  i>  arrastou  atrar.  de  si  para  a  urna  cineraria 
í\i'  S.  Diniít  o  suspeitoso  e  melaiicholico  numarcha  da 
l''rauça. 

O  segredo  d'esta  situa<;ào  eipiivoca  i'  conlradiclc- 
ria  estava  nas  cousas,  ena  Índole  do  priucipe.  As  rc- 
l)i'lli(jes  <pu'  lhe  sacudiram  o  Iii-r<;o,  ascs[ierani;as  ipie 
a  sua  deliil  saúde  auiuuiva  na  lamilia  real,  o  despre- 
zo popular  com  ipie  a  nai;ão  <i  Iraclava,  nem  os  igno- 
rava, nem  lhe  escpieciam  nunca.  A  sela  lra/.ia-a  sem- 
pre cruvuda   no  pcilii.    (.•  inleli/.  não  accrcdita\a   na 


130 


O  PANORAMA. 


aflieição  da  mãi,  no  amor  da  mulher,  na  fidelidade 
do  irmão,  c  na  amizade  dos  grandes  e  dos  povos. 
Sentia-se  só,  rodeado  de  inimigos,  exposto  a  vêr  a 
coroa  voar-lhe  da  cabeea  ao  furacão  das  discórdias 
civis.  Fraco  buscou  o  apoio  do  forte.  Tiniido  encos- 
tou-se  á  energia  e  audácia  de  outrem.  Ciumento  e 
desconfiado  só  se  entregou  a  um  homem,  que  poz  a 
cabeça  sobre  a  pasta  de  ministro,  certo  de  que  a  es- 
iiada  dos  vassalíos  poderosos  a  liavia  de  cortar  apenas 
a  victoria  lhe  sorrisse.  Luiz  XIII  e  Riclielieu  eram 
essenciaes  por  tanto  um  ao  outro.  O  príncipe  signi- 
ficava a  realeza  ;  o  cardeal  o  verbo,  a  força  activa 
d'esse  grande  principio.  Em  nome  da  unidade  mo- 
narchica  a  paz  renasceu,  e  a  decadência  tornou-se 
grandeza  dentro  e  fora  do  bello  reino  da  França. 

Os  meios  por  que  se  elevou  ao  apogeu  da  influen- 
cia foram  qiiasi  sempre  immoraes,  ou  subterrâneos. 
Principiou  piíla  ingratidão  secca  e  despegada,  e  aca- 
bou pelas  tlifses  do  culello  e  patíbulo,  em  que  a  ca- 
beça de  Clialais  c  Cinq-Mars,  e  depois  o  nobre  san- 
gue dos  !Moiitniorencv  lavraram  o  documento  de  um 
triumpho  iinpio,  mas  solido.  A  primeira  victima  foi 
Maria  de  Medicis,  a  protectora  da  sua  mocidade, 
aquella  a  quem  devia  o  ter  subido  os  degraus  mais 
difíiceis  do  poder.  Perseguições  violentas  forçaram  a 
ex-regente  a  expatriar-se,  e  a  conslituir-se  cúmplice 
de  todas  as  tentativas  dirigidas  contra  seu  lilho.  Ri- 
chelieu,  pelo  contrario  firmando  com  isto  o  seu  cre- 
dito no  animo  do  rei,  fez-se  indispensável,  porque 
representava  a  gloria,  c  o  vigor  da  resistência  mo- 
narcliica  nacional  combatendo  braço  a  braço  com  os 
enredos  e  traições  do  estrangeiro. 

Pelos  principies  de  162ó,  poucos  mezes  depois  da 
entrada  de  Riclielieu  no  ministério  rebentou  uma 
nova  rebellião  protestante.  Desde  esse  dia  fortificou- 
se  no  seu  espirito  o  profundo  convencimento  de  que 
não  havia  governo  possível,  em  quanto  aquella  seita 
armada  e  audaz  estivesse  revestida  de  prerogativas 
anarchicas,  e  protegida  por  exércitos  aguerridos.  O 
cardeal  temporisou.  Ainda  não  chegara  a  occasião 
de  ferir  o  golpe  decisivo.  A  guerra  da  Itália  corria 
então  duvidosa  \  a  Inglaterra  vacillava  na  sua  alliaii- 
ça;  ea  casa  d^Auslria  não  poupava  esforços  jiara 
hostilisar  a  França.  I'or  meio  de  negociações  hábeis 
o  ministro  illudiíi  a  corte  de  I'"ilippe  IV  pcrsuadin- 
do-a  de  que  ia  pactuar  com  os  calvinistas  para  soc- 
correr  depois  a  Itália  com  todas  as  tropas.  Os  pro- 
testantes, da  sua  parte,  suppozeram  que  ellc  accom- 
modando  sem  demora  a  lucta  além  dos  Alpes  os  vi- 
ria esmagar  com  toda  a  segurança.  Kste  engano  dos 
dois  lados  fez  mais  dócil  oduque  d'01ivares,  e  muito 
modestos  os  sublevados  da  llochella.  K  por  tractados 
sinuilt.meos  Riclielieu  concluiu  a  paz  coni  osllugiiiio- 
tes  por  causa  do  pacto  com  allespanha,  ecom  aile»- 
panlia  por  cansa  da  transacção  com  os  llugunotes.  Fo- 
ram duas  evoluções  tão  destras  como  bem  succcdidas. 

Seguiram-se  dois  annos  de  socego  profundo.  O  car- 
deal enipregou-os  em  cimentar  os  alicerces  do  seu 
poder  com  uma  actividade,  e  uma  presciência  raras. 
A  marinha  de  guerra,  a  industria  e  o  commercio 
receberam  d'elle  serio  impulso,  e  tloreceram  em  pou- 
cos tempos.  A  reforma  dos  impostos,  objecto  das  suas 
craves  meditarões,  teria  sido  consummada  com  idéas 
progressivas  para  a  cpocha,  se  a  morte  o  nao  cha- 
masse tão  cedo.  Consulados  em  todos  os  portos  dVs- 
fala  no  Levante,  e  uma  legação  em  Moscow,  estal>e- 
leciam-se  a  par  das  negociações  militares  de  Hasilly 
iiiiii  costas  do  império  de  Marrocos.  Creava-se  uma 
T<mipaiihia  para  colonisar  o  Canadá,  outra  para  ex- 
plorar S.  Domingos,  e  a  coroa  animava  os  armado- 
res, que  eni[irehendiam  as  arriscadas  viagens  da  ín- 
dia.   No  interior  emprezas  paru  seccar  os  pântanos, 


arrotear  os  baldios  afazer  navegáveis  os  rios.  attesta- 
vam  a  boa  \ontade  do  ministro,  e  o  incremento  gra- 
dual da  classe  media,  a  quem  elle  no  seu  pensamen- 
to politico  desejava  coUocar  diante  do  poder  tvran- 
nico  dos  senhores  das  terras,  dando-lhe  a  influencia 
da  riqueza  para  os  abalar  e  abater. 

O  sangue  dos  Montmoreney,  aristocrático  por  cx- 
cellencia  foi  derramado  sem  piedade  pelo  cardeal, 
que  nunca  recuou  diante  da  violência  dos  meios  com 
tanto  que  obtivesse  a  utilidade  dos  fins.  A  auctori- 
dade  real  era  escarnecida  e  desac;itada  pelos  nobres, 
que  se  vangloriavam  de  estar  superiores  a  todas  as 
leis  e  ordens.  Riclielieu  publicou  um  decreto  contra 
os  duelios.  O  conde  Francisco  de  Montmorencv  zom- 
bou d'cUe,  e  exclamando,  que  os  escribas  podiam  en- 
cher de  garatujas  quantas  resmas  quizcssem  de  papel, 
desembainhou  a  espada  e  na  praça  mais  publica  de 
Paris  atacou  o  marquez  de  Benorou  com  a  elegância 
de  um  cavalheiro,  e  o  valor  trantjuiUo  de  um  solda- 
do. O  cadafalso  ergueu-se  silenciosamente  no  terrei- 
ro da  Greve,  e  o  algoz  decepando  uma  das  mais  no- 
bres cabeças  da  Franca  resolveu  a  questão,  inopinad.i 
e  cruelmente,  por  este  desfecho  sanguento. 

Tractava-se  de  decapitar,  ou  os  duelios,  ou  os  de- 
cretos régios,  como  dizia  Richelieu.  Pela  sua  firme- 
za os  duelios  é  que  sucumbiram.  Desde  então  o  ter- 
ror da  aucloridade  monarehica  fundou-se  por  toda  a 
vida  do  implacável  ministro.  A  sociedade,  que  ha 
pouco  se  agitava  no  calios  da  anarchia,  organisou-sc 
como  por  si  mesma.  O  poder  respeitado  pela  unida- 
de dos  planos,  pela  grandeza  dos  fins,  e  pela  terrível 
magestade  diis  suas  vinganças,  acbou-se  com  a  força 
e  o  necessário  prestigio  de  tentar  os  vastos  projecU», 
para  os  quaes  se  encaminhavam  de  longe  todos  os 
passos  do  grande  ministro. 

A  llochella,  defendida  por  tropas  consideráveis  e 
governada  pela  ambiciosa  mãi  do  duque  de  Rohan, 
era  o  baluarte  da  seita  protestante,  e  do  partido  po- 
deroso representado  n"ella.  A  Inglaterra,  ao  crito  le- 
vantado pelos  Hugunotes  respondeu  enviando  Buckin- 
gham,  valido  do  rei,  com  uma  forte  armada  em  seu 
soccorro.  A  incapacidade  do  duque  frustrou  a  sua 
tentativa  sobre  a  ilha  de  Ré  \  o  cardeal  acudiu-lhc 
com  pasmosa  promptidão.  ^las  este  successo  acciden- 
tal  não  destruía  o  immenso  perigo  da  sublevação  — 
aggravado  ainda  pela  má  vontade,  ou  pela  antipa- 
thia  das  potencias  visinhas.  A  Hollanda  vacillava 
por  escrúpulo  de  seita.  A  Grã-Bretanha  protegia  os 
calvinistas  com  o  apoio  da  intervenção  arm.ida.  A 
Áustria  preparava-se  a  tomar  Verdun  •,  e  Veneza 
parecia  esperar  o  momento  de  s;itisfazer  antigos 
ódios.  Finalmente  a  llespanha  affectava  uma  neu- 
tralidade fiJsa,  aonde  s?  descobria  secunda  tenção. 
No  inferior  os  princi|>es  parentes,  o  irmão  do  rei,  e 
o  conde  de  Soissons,  trainavaiu  de  concerto  para  se- 
pultar nas  ruinas  d'esta  guerra  o  ptxJer  de  Richelieu. 

O  cardeal  a\aliava  todos  estes  ol»tiiculos,  capaxes 
de  atterrar  um  espirito  robusto.  Mas  a  sahação  c  o 
futuro  da  França  estavam  irreme<iiavejmenle  [>epdi- 
dos  se  a  Rocliella  ficasse  de  {)é  e  victoriosa.  Minis- 
tro, general,  intendente  de  transportes  e  engenheiro, 
Richelieu  accumulou  todos  os  empregos,  exerceu  to- 
dos os  cargos  para  adiantar  as  ojwraçOes  naxacs  c 
militares.  Duas  vezes  a  esquadra  ingleza  app.ireceu 
1  .1  \  ista  da  cidade  bloqueada  e  duas  vexes  se  retirou 
diante  de  exércitos  e  niariídia,  quasi  que  improvisa- 
1  tios  de  repente.  A  F.uropa,  susjiensa  um  anuo.  assi»- 
:  tiu  diante  d'aqucllas  muralhas  como  esjxvladora  á 
gra\e  questão  que  se  discutia  alli.  Por  lim  \cnceu  a 
I  fortuna  da  França,  e  a  roale.».a  entraiulo  (wla  brecha 
da  Roílu-Ua  tomou  nVsse  dia  ven.ladeira  jiossc  do 
I  seu  reino. 


o  panorama: 


13i 


Depois  d'este  grande  resultado,  Luiz  XIII  á  testa 
de  trinta  mil  homens  ia  soccorrer  a  praça  de  Cazal 
na  Itália,  e  conquistar  pelas  armas  uma  paz  glorio- 
sa. Riclielieii  commandava  todo  o  exercito.  Esta 
campanha  heróica  e  brilhante  correspondeu  em  tudo 
ao  plano  do  minÍ!>tro,  e  ao  concluir-se  como  elle  pro- 
jectara a  sua  principal  missão  tinha  acabado.  As 
luctas  interiores,  <}ue  ainda  sustentou,  e  as  guerras 
<iue  depois  dirigiu,  foram  consequências  doeste  deci- 
iivo  e  assign  alado  successo. 

Pouco  tardou  que  esta  cabeça  tão  odiada  não  ar- 
refecesse, e  que  as  mãos  cruzando-se  no  peito  deixas- 
sem escapar  o  sceptro  de  ferro.  O  cardeal  de  Kiche- 
lieu,  como  uni  obreiro  diligente,  tinha  sido  enviado 
(•  despedido  á  sua  hora  pelo  senhor  dos  reis  e  dos 
imperioíi.  A  França,  (jue  elle  erguera  da  decadência, 
(pjc  lizera  temida  e  admirada,  respirou  ao  vêr  esca- 
par dos  seus  dedos  d'aço  as  rédeas  do  governo.  Mas 
alguns  annos,  bem  poucos,  bastaram  para  a  obrigar 
ao  tributo  de  respeito  devido  ao  grande  homem  que 
cm  vida  tanto  eatuniniaram.  Sobre  aquelle  tumulo, 
e  antes  dos  seus  ossos  se  carcuniireni,  a  consciência 
dos  próprios  contemporâneos  veio  antecipar-lhe  o  vo- 
to da  posteridade. 


O  Feitor  de  Caxtão. 


Novella. 

(Conlinuado  de  pa».  125.) 

YuEN-MiNG-YCF.N  (l),  oudc  O  fillio  do  céu  costuma 
))ass.ir  os  mais  formosos  dias  do  anno,  é  menos  uma 
vivenda  própria  para  o  verão  que  uma  cidade  de  pa- 
hicios,  ])ois  conterá  um  cento  d'elles  com  columnas 
d<-  ci'dro,  e  as  madeiras  douradas,  e  as  telhas  pinta- 
das de  mil  cores.  Separam-n'os  uns  dos  outros  jardins 
e  pateos  magnificos  que  o<cu|)am  um  espaço  de  perto 
de  cem  mil  geiras,  eem  que  ha  lagos  artiliciaes  atra- 
vessados por  pontes  de  porcelana,  collinas  com  torres 
anieadas  no  cimo,  e  rochedos  cobertos  de  tantos  mi- 
rantes, pavilhões,  e  kiosques,  que  o  som  exquisito 
<|ue  vibram  as  suas  campainhas  de  vidro  quando  o 
vento  as  agila,  ouve-se  em  toda  a  parte. 

Ora  n'este  dia  recebia  o  soberano  imperador  os 
grandes  do  império  no  quarto  particular  em  que  es- 
lava o  seu  throno,  e  que  s(!  chama  a  nioicula  do  ccti 
sereno,  Kslavam  á  porta  da  sala  vinte  edois  lidalgos 
moços  com  parasoes  amarellos,  outros  com  soes  ou 
meias-lu.is  de  ouro,  e  muitos  com  bastões  ornados  de 
borlas  variegada»,  band(!Íras  com  dragões,  e  outros 
com  machados,  alabardas  ou  massas  douradas.  De- 
fronto da  poria  da  entrada  se  viam  enlileiradas  vin- 
te pedras  moldurando  laminas  de  cobre  em  que  se 
neliava  gravado  o  eeremonial  a  que  se  devia  cingir 
(juem  fosse  íi  presença  do  imperador. 

l\o  topo  da  sala,  sobre  um  estrado  alto,  erguia-se 
o  throno,  para  oipud  se  subia  por  uma  escada  de  ala- 
bastro primorosamente  lavrada.  O  throno,  lodo  cosi- 
do em  pechas  preciosas,  re|)ousava  em  dois  dragões 
de  ouro  massi(;o. 

Acabava  o  imperador  de  se  sentar.  Trazia  vestida 
uma  lunica  de/.i'l>i'liua,  cobrindo  uma  compriíla  saia 
de  si'(hi  amai'<'lla  com  o  dragão  di'  cinco  garras  bor- 
iliido  (h"  rica  pedraria,  ena  c.d)ei;a  uma  gorra  de  pel- 
le  d(!  rapoza,  i|ui'  na  parte  de  cima  liulia  uma  péro- 
la de  grandiza  di's('ommunal.  l(o(h'avam-n^o  os  prín- 
cipes de  sangue  emiiili>s  govi'rnadori's  de  províncias, 
pelos  cpiaes  auuhuva   ili' ilislrilmir  chá   cm  pequemis 


taças  de  madeira.  Elle  porém,  com  os  olhos  pasma- 
dos e  o  rosto  carregado,  bebia  pequenos  golos  d^e- 
mulsão  de  favas  (l),  n'um  vaso  de  ouro  que  um  es- 
canção lhe  appresentára  de  joelhos. 

Com  ser  ainda  moco,  tinha  as  faces  pisadas  e  o 
corpo  alquebrado  como  se  velhice  prematura  ou  se- 
creto padecimento  lhe  seccasse  a  seiva  da  vida.  Saiu 
comtudo  da  espécie  de  distracção  em  que  tinha  caí- 
do, ao  ouvir  o  pregão  do  arauto,  que  dizia  : 

—  "Ide,  e  apresentai-vos  diante  do  throno." 
Haviam  com  effeito  entrado  os  principaes  manda- 
rins da  corte,  e  começavam  a  prostrar-se  diante  do 
estrado  ;  eis-que,  arredando-se  de  repente  a  turba  dos 
cortezãos,  passou  pelo  meio  d'ella  o  censor  Fo-hu, 
dando  a  mão  aEITendon  vestido  de  novo  e  com  mui- 
ta magnificência. 

Ajoiílharam  ambos  ante  o  throno,  é  tocaram  com 
a  fronte  o  pó  da  terra ;  mas  o  imperador,  sobresalta- 
do  de  alegria  ao  vêr  o  censor  e  o  seu  companheiro, 
fez  um  signal  e  ambos  foram  conduzidos'  para  cima 
do  estrado  e  juncto  d'elle. 

—  "  É  este  o  medico  que  me  inculcaste  ? »  pergun- 
tou depressa  a  Fo-hu. 

—  "  Eelle,  filho  do  céu  !  «  respondeu  o  mandarim. 

—  "  Afiianças-me  a  sua  sciencia?" 

—  «A  província  d''Ordos,  de  que  meu  irm.MO  foi 
por  ti  nomeado  governador,  está  cheia  de  milagres 
d'este  homem. n 

O  imperador  voltou-sc  para  o  fingido  medico. 

—  "Etu,  lhe  disse  elle,  esperas  reslituir-me  a  saú- 
de e  as  forças  ?  » 

—  "Espero,  respondeu  Effendon,  com  tanto  que 
tenhas  confiança  no  teu  escravo.  " 

—  "Glue  devo  fazer?  lhe  tornou  o  doente  com  a 
sujeiçjio  projjria  de  quem  vive  atormentado ;  estou 
pronipto  para  tudo,  obedecer-te-hei  em  tudo:,  apaga- 
me  este  fogo  que  me  queima  as  entranhas,  e  far-te- 
hei  mais  rico  que  todos  os  mandarins  do  império  do 
meio.  Mas  falia  sem  demora,  que  não  acalmam  es- 
tas dores. » 

—  "Antes  de  applicar-te  o  lenitivo,  respon<leu  Ef- 
fendon, releva  que  o  teu  escra<  o  te  interrogue  sem 
testimunhas. " 

A  um  signal  do  imperador  todos  os  cortezãos  que 
estavam  juncto  d'elle  desceram  do  estrado. 

(iuando  chegaram  a  distancia  d'onde  não  podiam 
ouvir,  o  feitor  se  inclinou  para  o  imperador,  e  abai- 
xando a  voz  disse-lhe  ; 

—  "Enganam-tc,  grande  príncipe;  enviou-me  o 
céu  para  te  salvar  !  Mas  não  uie  interrompas,  accres- 
centou  quando  viu  que  o  imperador  se  agitava;  não 
te  perturbes,  não  soltes  um  grilo,  não  faças  um  so 
gesto  que  possa  inspirar  suspeitas,  que  elles  teem  os 
olhos  filos  em  nós. " 

—  "Mas  que  sabes  tu?»  perguntou  o  príncipe  in- 
quieto. 

—  "Sei  que  querem  matar-te," 

—  "  A  mim  ?  " 

—  "  l'arte  dos  mandarins  da  tua  corte  conspira  pa- 
ra exaltar  ao  Ihrono  o  teu  suc<'cssor ;  e  d'.iqui  pri>- 
vém  a  pcnla  repentina  da  lua  s.iude." 

—  "Ah!  razão  tiidia  «-u  para  me  su|>pòr  envene- 
nado I  "  exclamou  o  imperador. 

j  — "Sim,  continuou  Kllendon,  mas  as  tuas  suspei- 
i  tas  enelieram-n'os  ilc  Icrror,  e  tcn<lo  noticia  de  ipio 
o  meiliii)  W  aiig-li  sabia  o  segredo  ile  venenos  mais 
snbli>,  (|iii'não  diM\a\am  vestígios,  elevavam  oiloen- 
ti-  á  >('pullura  coni  tão  peipicna  agonia  qne  parecia 
<-nlrado  cm  convalescença,   foram  li'r  com  elle.  .  .  •• 


(I)     O  jiuiliiil  rciloiKlii  u  le^lllllluk■ccllll.•. 


(1~)     Prepnrnçito  fuiln  com  iis  scuiciitci  do  cyliio  ou  codí- 
(;ii  lia  liului. 


132 


O  PANORAMA. 


—  «  Chamar.im-te  pois  para  me  dares  o  golpe  mor- 
tal! exclamou  o  imperador,  a  quem  esta  revelação 
inesperada  causara  a  ura  tempo  assombro,  dòr,  e  in- 
dignação.—  li  não  sabes  os  nomes  doestes  infames?» 

—  "Fo-hu  foi  só  fjuem  mo  fallou  :,  prometti-lhe  a 
elle  dar-te  lioje  mesmo  o  remédio  que  devia  coroar 
a  sua  obra.  » 

Por  um  momento  esteve  o  imperador  mudo,  cogi- 
tando o  que  faria.  Eis  senão  quando  animou-se-lhe 
de  súbito  o  semblante,  relampejou-lhe  nos  olhos  a 
victoria,  e  um  vislumbre  de  alegria  lhe  subiu  ás  fa- 
ces. Olhando  para  Ertendon  disse-lhe: 

—  "Tens  ahi  esse  remédio?» 

O  feitor  mostrou-lhe  o  frasquinho  de  bronze  conti- 
do na  caixa  do  medico. 

—  "Enche  este  vaso, "  disse  o  imperador,  esten- 
dendo a  taça  em  que  bebera  a  emulsão  de  favas. 

Elfendon  obedeceu.  Então  o  principe  fez  um  signal, 
e  tendo-se  chegado  todos  os  mandarins  proseguiu  em 
voz  alta  : 

—  "O  céu  protege  o  filho  da  dynastia  de  Han,  e 
um  grande  beneficio  acaba  de  baixar  sobre  elic. » 

—  "Glue  aconteceu?"  perguntaram  todos  a  uma 
voz. 

—  "  Olhai  para  este  homem  o  adorai-o  como  um 
deus  tutelar;  porque  pela  sua  scienoia  descobriu  uma 
bebida  que  não  só  abranda  qualquer  enfermidade, 
porem  restaura  as  forças  vitaes  do  mesmo  modo  que 
o  verão  faz  brotar  as  arvores.  » 

Voltaram-se  para  EíTiíndon  todos  os  olhos,  e  pro- 
longado snsurro  de  espanto  saiu  da  turba  doscortezãos. 

—  "Podia  reservar  só  para  mim  esta  bebida:  mas 
esta  escripto  que  o  soberano  deve  ser  qual  o  orvallio 
bemfazejo  para  osseus  súbditos.  Gluero  porlanto  «pie 
os  meus  fieis  servos  participem  do  thesouro  da  vida.» 

E  pegando  na  taça  accrescentou  : 

—  "  Clieguem-se  pois  todos  aquelles  que,  como  eu, 
quizerem  beber  n'esta  taça  a  vida,  o  vigor,  e  a  mo- 
cidade. » 

Estas  palavras  excitaram  grande  rumor.  Todos  os 
que  ignoravam  a  trama  chegaram,  a  qual  primeiro, 
ao  estrado;  mas  os  cúmplices  deixaram-se  ficar  eoiiia- 
vain  desconfiados  uns  para  os  outros.  O  imperador 
contou-os  com  os  olhos  :  eram  os  mais  nobres  officiaes 
do  império  !  Chamou-as  pt^los  seus  nomes. 

—  Por  que  motivo  cedem  os  mais  nobres  a  prece- 
dência? perguntou  elle,  levantando  a  taça  de  ouro. 
\em  cá,  vem  cá,  Fo-hu  !    quero  começar  por  ti .  .  ." 

O  censor,  pallido  e  tremulo,  deu  alguns  passos  pa- 
ra othrono;  mas  de  repente  ])arou,  estendeu  as  mãos, 
c  caiu  de  joellios,  exclamando  cpie  o  medico  era  um 
embusteiro.  Os  seus  cúmplices  iniitaram-n^o.  Então 
•  o  imperador  ergueu-se  temeroso  e  bradou  com  voz 
terrivel  : 

— »' O  céu  imprimiu  o  si'.;nal  iao  na  vossa  fronte. 
A  mim,  (jue  sou  o  pai  ea  niãi  do  meu  povo,  tinheis- 
mc  envohido  n'uma  rede  de  enganos  em  que  fostes 
colhidos.  iJemdietos  sejam  os  céus  azulados  !  Solda- 
dos !  prendei  estes  en\  enena(K)res,  e  arranque-lhes  a 
tortura  a  confissão  dos  seus  crimes. » 

A  este  chamamento  acudiram  os  guardas  das  por- 
tas da  sala  e  levaram  prezos  Fo-hu  c  os  seus  compa- 
nheiros.- 

O  terror  e  o  espanto  reinavam  no  resto  da  cilrte, 
e  houve  um  breve  momento  de  confusão  em  que  as 
leis  doceremonial  for.im  transgredidas.  Os  mais  leaes 
servos  do  imperador  tinham  cercailo  o  throno  e  inda- 
gavam e  ouviam  horrorisados  as  |)articularidades  da 
conspiração.  Socegado  o  tumulto,  durante  oqual  fica- 
ra ElVendon  es([ueeido,  todos  os  olhos  se  viraram  pa- 
ra elle.  O  imperador  fez-lhe  signal  para  que  se  lhe 
approximasse  : 


—  "Tu,  que  me  salvaste,  chega-te,  lhe  dl&se  elle 
com  affabilidade;  chega-te,  fiel  Wang-ti!  e  sejam 
quaes  forem  os  teus  desejos,  manifesta-os  e  terão  cum- 
pridos. 

O  feitor  ajoelhou. 

—  "Seja  o  primeiro  o  perdão  de  te  haver  engana- 
do ;  porque  não  sou  medico,  nem  me  chamo  \N  ang- 
ti.  Vês  na  tua  presença,  filho  do  céu,  ura  bárbaro 
estrangeiro,  que  affroutou  todos  os  perigos  para  te 
vir  pedir  justiça. » 

Contou  então  miúda  e  fielmente  a  sua  historia  que 
todos  escutavam  maravilhados.  Gluando  acabou  fez- 
lhe  signal  o  imperador  para  que  se  erguesse,  e  olhan- 
do para  elle  com  bondade  disse-lhe: 

—  "O  sábio  desculpa  o  tigre,  que  para  salvar  os 
filhos  rasga  as  entranhas  ao  caçador;  por  amor  de  tua 
filha  violaste  as  leis  do  que  tilá  debaixo  do  céu  ;  re- 
levo-te  este  crime.  Tamlxira  está  escripto  que  o  so- 
berano imperador  deve  ser  ura  manancial  de  delicias 
para  todos  que  a  elle  se  chegara.  Eia  pois,  levanta-te 
e  cobra  esperança,  porque  se  tua  filha  for  viva  ser- 
te-ha  restituída,  n      •• 

A  promessa  foi  cumprida,  e  um  mez  depois  nave- 
gava Effendon  cora  Maria  para  a  America.  A  filha, 
sabendo  avaliar  a  grandeza  do  sacrifício,  ainda  ama- 
va mais  a  seu  pai  depois  que  elle,  para  a  libertar, 
aplanara  tantas  barreiras,  e  quasi  que  vencera  im- 
possíveis. E  quando  fullavam  diante  d"ella  era  em- 
preziís  difficeis  em  cujo  êxito  o  vulgo  não  crê,  e  que 
Eífendon   repelia,  segundo  o  seu  costume  : 

—  "  Com  a  vontade  abalam-se  montanhas,  n 

A  muda  nunca  deixava  de  accrescentar  um  gesto 
para  significar  : 

—  «E  transportam-se  com  o  amor." 


Benevescto  Ckliixi  (I). 


Benevencto  Cellini,  auctor  da  estatua  de  Perseu  de 
que  hoje  damos  um  desenho  muito  exacto,  é  um  ho- 
mem em  que  se  resume,  por  sua  vida  c  obras,  todo 
o  século  X\  I  considerado  em  relação  ás  bellas  artes. 
Tendo  diegado  á  idade  de  cincoenta  e  nove  annos 
começou  a  escrever  a  sua  vida,  que  na  verdade  e 
abundante  de  aventuras  e  de  obnís  primas.  Seu  pai 
chamava-se  André  Cellini :  nasceu  em  Florença,  ci- 
dade edificada  á  imitação  da  formosa  cidade  de  Ro- 
ma.—  O  primeiro  objecto  que  deu  mais  na  vista  ao 
jovpn  Benevenuto  foi  uma  salamandra  no  fogo. — 
Logo  que  chegou  a  idade  de  poder  tocar  flauL-i,  seu 
pai  o  applicou  a  este  instrumento  e  lhe  ensinou  mu- 
sica :  fez  rápidos  progressos ;  porém  pateuteando-se  o 
seu  engenho,  cdeixanilo  a  musica  pelo  cinzel,  entrou 
de  aprendiz  no  lalwratorio  de  um  mestre  iPeílatua- 
ria  famoso  n'aquelle  tempo,  lluando  tixlo  se  empre- 
gava em  escuipturas  e  artefactos  d"ourives,  e  n"aquel- 
las  admiráveis  tentati\as  do  gosto  eda  arte  italiana, 
o  eondestavel  de  Bourbon  caiu  d'improviso  sobre  a 
cidade  de  Ilonia,  a  que  ]>oi  cerco:  a  cid.idc  resistiu 
como  poude  ;  e  o  mancebo  artista  não  foi  dos  últimos 
a  correr  ás  armas;  metteu-se  no  castello  de  S.  Ange- 
lo onde  estava  o  {>apa,  e  foi  tão  valente  c  afortunado 
que  matou  de  ura  tiro  de  jHMj-a  o  principe  de  Oran- 
ge,  e  de  uma  arcsvbuiada  o  eondestavel  de  Bourbon, 
vendido  aos  hespanh<.>es,  e  traidor  para  cora  scu  rei, 
que  morreu  como  o  cavalleiro  Bayard  não  mcn-cen- 
do  tal  honra.  —  .\cal>ada  a  guerra,  o  artista,  aquém 
o  Ikuu  successo  fizera  ambicioso,  foi  jH-dir  ao  papa 
Paulo  III   a  recompensa   que  assentava  ser  devida   a 


(1)     Eile  artigo  é  dcriílo  :i  penna  do  hábil  efcriptor  een- 
Senhuso  critico,  o  Sr.  Júlio  Jaaia. 


o  PANORAMA. 


133 


seus  serviíjos,  mas  o  pontífice,  em  vez  de  o  agraciar, 
o  mandou  metter  n'uraa  prisão  d'e5tado  :  Celliiii  era 
accusado  falsamiMite  de  ter  dado  descaminho  ás  jóias 
da  coroa  pontifícia  que  llieliaviam  sido  confiadas  du- 
rante o  sítio.  Da  prisão  em  rjue  o  sepultaram  Cellí- 
ni  conseguiu  escapar  duas  vezes  atravcz  das  maiores 
difficuldades  e  excessivos  perigos;  duas  vezes  tornou 
a  ser  appreliendido,  e  estava  aponto  de  padecer  mor- 
te, (juandu  Francisco  I,  que  ouvira  nomea-lo  como  o 
artista  mais  Iiabii  da  epoclia,  sollicilou  do  papa  que 
Ih^o  enviasse:  os  desejos  do  rei  de  Franca  eram  ti- 
dos como  ordens,  e  Benevenuto  foi  solto.  Ei-Io  nova- 
mente lançado  em  mil  aventuras  de  toda  a  casta  : 
que  vida  !  festas,  duellos,  amores,  tralialhos,  trium- 
phos,  jugo  desenfreado,  miséria,  humilhação,  tormen- 
tos de  todo  o  género;  ora  rico,  ora  pobre;  hoje  fidal- 
go, ámanliã  arti.'ita.  Assim  chegou  á  corte  de  Fran- 
ça, e  b(!ni  é  de  siijjpor  como  o  não  maravilharia  o  es- 
plendor iFcísta  cidade:  rec('l)(ni-o  orei  com  toda  a  es- 
pécie de  honrarias;  deu-lhc  plena  posse  de  um  palá- 
cio, o  Ncsle  pequeno,  onde  elle  assentou  os  seus  la- 
boratórios. l'or  esse  tempo  o  rei  andava  todo  preoc- 
cupadoconi  Fontainebleau  ;  esta  localidade  era  o\er- 
sailles  de  PVancisco  I ;  ahi  reinava  como  soberana  a 
formosa  duqueza  d'iítanipes;  era  a  rainha  d'aquelles 
jardins,  d'aquelle  palácio.  Cellini  descuidou-se  de 
Ule  fazer  corte:  a  dutjueza  era  inclinada  ao  1'rimati- 
ce,  equiz  deitar  a  perd<!r  o  artista  romano;  para  is- 
so imaginou  uma  astúcia  que  a  final  redundou  em 
vergonha  sua. 

Cellini  acabava  de  dar  o  ultimo  toque  a  uma  avul- 
tada (?sfatua  de  Júpiter  para  Fontainebleau  ;  a  du- 
queza para  desacreditar  esta  obra  a  mandou  pôr  en- 
tre as  mais  bellas  estatuas  anligas  que  vieram  da  Itá- 
lia, afim  de  que  o  Jiipiler  ficasse  abatido  em  vista 
da  comparação  com  acjucllas  obras  excellentes :  ainda 
fez  mais,  a  duqueza  aguardou  o  decair  do  dia  e  pro- 
puz  a  Francisco  1  e  a  toda  a  corte  irem  vêr  á  gale- 
na a  nova  obra  de  Cellini.  Outro  que  não  fosse  este 
esculptor  se  aterraria  (juanfo  ao  elleito  que  causaria 
a  estatua  :  ena  v(?rdade  i^tn:  esperanças  teria  de  que 
ella  gaidiasse  a  par  dos  ])ri mores  da  arte  antiga  da 
Itália?.  .  .  Mas  o  nosso  artista  não  era  lionníni  que 
ge  desalentasse.  A  duqueza  ficou  bastante  espantada 
quando,  ao  entrar  na  galeria,  achou  tão  admiravel- 
mente alliimiada  a  estatua  de  «Júpiter  <ju(!  era  esla 
a  qu(!  supplantava  as  outras:  a(|uelle  vulto  scdncfor 
par(?cia  animado.  O  rei,  bi;ni  como  a  ciirtc,  não  |)0- 
deram  reprimir  a  sua  admiração;  o  Iriumpho  do 
Artista  foi  complico.  —  Ao  mesmo  tempo  que  Celli- 
ni se  occupava  (Fessas  obras  em  ponto  grande,  e  do- 
tava a  França  com  nnja  arte  que  lhe  era  descoidicci- 
da,  lidava  land)i'iii  fervorosamentu  com  artefactos  de 
ourives:  nas  sua»  mãos  o  ouro  e  a  prata  centuplica- 
ram no  valor  :  fazia  vasos  tão  bellos,  de  tal  modo  ro- 
deados do  figuras  e  tão  ricos  do  ornatos,  (|uc  eram, 
j/l  n'e9SR  tempo,  de  ini'stimavel  valor;  hoje  os  me- 
nores trabalhos  seus  d'est(!  género  estão  acima  de  to- 
do o  preço  :  fez  annei»  de  prata  cpu;  são  avaliados 
em  nniis  (h)  ijue  os  mais  ricos  guarnecidos  de  pedras 
Jinas.  Não  ha  muitos  annos  (pn'iim  ciiriíiso  inglcz  que 
viajava  na  Itália  |)agon  por  1100  Inizcs  (.;;/i(iO  ,^000) 
unni  taça  singela  e  peipiena  ile  prata  cinzelada  piln 
insigne  lavranle  llorentino.  Cidade  e  còrti-  davani-sc 
prt!ssa  em  obter  alguma  das  obras  d'elle.  Tudo  o  que 
era  formoso  e  perleilo,  tudo  o  qui'  era  artístico,  es- 
culpturas,  painéis,  gravuras,  architeclura,  era  a  pai- 
xão d  ai|ui'lli>  scciílii,  chamado  iiim  ra/ão  o  sccnlo  de 
Francisco  I. 

'l"o(lavia,  não  obslanli^  o  triumpho  do  seu  .lupiter, 
C(dlini  viu-se  obrigado  aceder  á  má  voutailc  da  dn- 
rpiiv.a  iri'llampcs,  por  outra  parte  a  sua  iningiiun-ão 


]  errante  e  animo  inquieto  pouco  se  accommodavam  a 
]  permanecer  muito  tempo  no  mesmo  logar ;  precisava 
de  aventuras  a  todo  o  custo,  duvidas  e  desafios,  pe- 
núria e  vida  vagabunda :  a  existência  socegada,  a 
gloria  de  cidadão,  a  família,  não  se  coadunavam  com 
o  genío  fervente  d'este  artista,  celebre  até  a  este  res- 
peito. Deixou  por  tanto  Paris,  disse  adeus  ao  paço 
real,  ás  suas  obras  começadas,  aos  seus  próprios  ini- 
migos, de  que  linha  tanta  pena,  por  isso  mesmo  que 
o  inquietavam,  como  de  tudo  o  mais;  e  tornou-se  a 
Itália,  sua  pátria,  seu  primeiro  amor;  mas  ahi  o  es- 
peravam a  mesma  gloria,  a  mesma  inspiração  para 
obras  excellentes,  e  iguaes  pezares.  Nas  memorias  de 
sua  vida  qu<?  escreveu  com  bastante  estro,  muito  ta- 
lento e  viveza  d'estylo,  e  que  são  clássicas  em  italia- 
no, Cellini  descreve  maravilhosamente  o  como  con- 
seguiu fundir  a  sua  estatua  de  Perseu,  como  esta 
operação  lhe  ia  saindo  mal,  e  por  momentos  julgou 
que  a  sua  obra  magistral  estava  perdida,  e  os  seus 
inimigos  triumphavam  com  este  desastre.  A  final, 
fora  de  si,  sem  ter  outra  esperança  senão  no  céu, 
prostrou-se  de  joellios  e  dirigiu  a  Deus  a  deprecação 
mais  fervorosa  que  em  sua  vida  jamais  fizera.  Finda 
a  prece  ergueu-se,  correu  á  estatua  .  .  .  milagrosa 
cousa  !  .  .  .  estava  perfeitamente  fundida,  e  a  sua 
grande  obra  completada  ! 


As  memorias  de  Benevenuto  Cellini  são  principal- 
menti'  procuradas  ]iorqui!  nos  pocm  ao  facto  de  toda 
a  partií  tcchnica  das  bellas  artes  :  não  se  ap])rescnlii 
alli  SI)  ci>mo  artista,  maslandicm  como  operário ;  en- 
tra ao  mesmo  ti'nipo  nas  |iarticnlaridadcs  da  suu  vi- 
da e  nas  miudezas  da  sua  protissão.  —  l)<'pois  de  ha- 
ver feito  o  INírseu  de  bronze,  <'scidpin  um  C/irislo  de 
mármore  jiara  o  palácio  1'itli,  <pie  não  ha  outro  igual  : 
(í  depois,  como  por  passatempo,  grav:i\a  brazòes  pa- 
ra  mrilaliias  e  moctlas,  r  cra\'ava  ptnlras  tinas, 

(liiaiido  Cellini,  firlo  de  gloria  i-  de  dinheiro,  en- 
fastiado como  anmt<'i'i'  a  lodos  os  lionuMis  de  engenho 
eminente,  fatigado  di'  triiim|)hos  c  de  trabalhos,  sen- 
tiu <hegar-s<!  u  velhice,  1iz-m'  misanlhro[>o,  mctteu-M- 


134 


O  PANORAMA. 


frade,  corrigiu  as  suas  memorias,  e  fallcceu  a  25  de 
fevereiro  de  1570  na  idade  de  setenta  annos. 


Os  Templários. 

(Continuado  de  pa^.  126.) 

A   coMMissÃo  pontificia,  reunida  a   7  d'agosto  de 
1309  na  camará  do  bispado  de  l^aris,  tinha  sido  em- 
baraçada por  muito  tempo:  o  rei  tinha  tanta  vonta- 
de de  vêr  os  templários  justificados  como   o  papa  de 
condemnar  o  seu  rival  Bonifácio  :  as  testimunhiis  que 
depunham   contra  Bonifácio   eram   maltractadas   em 
Avinhão,     as    tesliniunha^    favoráveis    á    causa    dos 
templários   eram  atormentadas   em  Paru.    Os  bispos 
não  obedeciam  á  commissão  pontificia,  e  não  lhe  re-  ' 
mettiam   os  templários.   Todos   os  dias   a  commissão  j 
:issistia  á  missa,   depois  abria   a  sessão,   e  ura  nieiri-  ] 
nho  á  porta   da  sala  bradava  :    "Se  alguém  quer  de- 
fender  a  ordem   da  milicia  do  Templo,    appresente- 
sen   mas   ninguém    apparecia :    a  commissão   voltava 
no  dia  seguinte,  sempre  inutilmente. 

A  final,  lendo  o  papa  instaurado,  por  buUa  de  13 
de  setembro  de  1309,  o  processo  contra  Bonifácio, 
pcrmittiu  o  rei,  era  novembro,  que  o  grão  mestre  do 
Templo  fosse  levado  á  presença  dos  commissarios  :  o 
cavalleiro  ancião  mostrou  a  principio  muita  firmeza : 
disse  que  a  ordem  era  privilegiada  no  foro  da  sancta 
sé  e  que  lhe  parecia  cousa  assombrosa  que  a  igreja 
romana  quizesse  proceder  subitamente  á  destruição 
d'ella,  quando  tinha  diferido  a  deposição  do  impe- 
rador Frederico  II  por  espaço  de  trinta  e  dois  an- 
nos :  disse  também  que  estava  prompto  a  defender  a 
ordem,  como  em  suas  forças  coubesse,  e  que  se  teria 
em  conta  de  um  desprezível  se  não  defendesse  a  cor- 
poração de  que  recebera  tanta  honra  e  vantagens, 
porém  que  temia  não  ter  sufficiente  prudência  e  re- 
flexão ;  que  se  achava  prisioneiro  do  rei  e  do  papa  \ 
que  não  tinha  quatro  dinheiros  para  gastar  na  defe- 
za,  nem  outro  conselheiro  mais  que  um  irmão  ser- 
vente ;  demais  que  a  verdade  se  manifestaria  não  só 
pelo  testimunho  dos  templários,  mas  pelo  dos  reis, 
príncipes,  prelados,  duques,  condes  e  barões,  em  to- 
das as  partes  do  mundo.  —  Declarando-se  o  grão  mes- 
tre doesta  maneira  patrono  da  ordem,  ia  dar  grande 
vigor  á  defeza,  e  por  em  risco  o  projecto  do  rei  :  os 
commissarios  o  induziram  a  deliberar  com  madureza, 
e  mandaram  que  lesse  o  seu  depoimento  na  presença 
dos  cardeaes-,  mas  o  depoimento  não  emanava  d^elle 
directamente ;  por  vergonha  ou  qualquer  outro  mo- 
tivo encarregou  o  irmão  servente  de  fallar  por  elle 
ante  os  cardeaes :  porém  quando  appareceu  na  pre- 
sença da  commissão,  e  os  escrivães  ecclesiasticos  lhe 
leram  em  alta  voz  aquelles  miseráveis  depoimentos, 
o  ancião  cavalleiro  não  poude  ouvir  com  presença 
d'espirito  semelhantes  cousas  dietas  na  sua  .  cara ; 
persi^nou-se  e  disse  que  se  os  senhores  commissarios 
do  pontífice  fossem  outras  pessoas  alguma  cousa  teria 
a  dizer-lhes :  os  commissarios  responderam  que  não 
era  do  seu  caracter  levantar  a  luva  de  um  des.-ifio. 
—  nNão  era  esse  o  meu  sentido  (disse  o  grão  mes- 
tre) :  aprouvesse  a  Deus  que  em  casos  taes  se  obser-  1 
vasse  contra  os  perversos  a  practica  dos  sarracenos; 
cortam-lhcs  a  cabeça  ou  cerram-n'os  ao  meio. "  Esta  . 
replica  fez  sair  os  commissarios  da  sua  ordinária 
brandura:  resjwndcram  com  frieza  e  actiinonia: —  | 
i- aquelles  que  a  igreja  acha  heréticos,  julga-os  como 
heréticos,  erelaxa  osohctinados  ao  braço  secular."  — 

Um  dos  principaes  agentes   de  Kilippe   o  formoso,  i 
Plasian,    assistiu    á   audiência    sem    ser    convocado: 
Jacques  Molav.   atemorisado  {>ela  impressão  que  as  ' 


suas  palavTas  haviam  feito  n^aqnelles  padres,  assentou 
que  era  mi'lbur  confiar-se  num  cavalleiro;  pediu 
permissão  de  conferenciar  com  Plasian  ;  este  o  indu- 
ziu, com  simulação  de  amigo,  a  que  se  não  deitasse 
a  perder,  e  o  resolveu  a  pedir  uma  dilação  até  a 
sexta  feira  seguinte :  os  bispos  lh'a  facultaram,  e 
mais  longa  lhe  concederiam  de  boa  vontade. 

Na  sexta  feira  Janjues  Molav  tornou  a  compare- 
cer, mas  de  todo  mudado :  sem  duvida  Plasian  o  ti- 
nha tentado  na  prisão.  Q.uando  lhe  perguntaram  de 
novo  se  queria  defender  a  ordem,  respondeu  humil- 
demente que  elle  não  era  mais  que  am  pobre  caval- 
leiro sem  lettras ;  que  ouvira  lêr  uma  bulia  apostó- 
lica em  que  o  papa  reservava  para  si  o  juljamento 
dos  cabeças  da  ordem  ;  e  que  por  asrora  nada  mais 
requereria.  Inquiriram-n^o  expressamente  se  queria 
defender  a  ordem  :  respondeu  que  não,  e  só  rogava 
aos  commissarios  que  escrevessem  ao  papa  para  que 
mandasse  que  elle  fosse  á  sua  presença  o  mais  breve 
[XKsivel ;  e  accrescentou  com  a  ingenuidade  da  im- 
paciência e  do  temor:  —  "eu  sou  mortal.  t>3  mais 
também  ;  não  temos  de  nosso  senão  o  momento  pre- 
sente. )'  — 

O  grão  mestre  abandonando  assim  a  defeza,  tira- 
va-lhe  a  força  e  unidade  que  d'elle  podia  receber. 
Pediu  somente  dizer  três  palavras  a  favor  da  ordem  ; 
primeiro,  que  não  havia  i^eja  onde  o  culto  divino 
se  celebrasse  mais  dignamente  que  nas  dos  templá- 
rios ;  segundo,  que  não  havia  reliuião  que  fizesse 
mais  esmolas  que  a  do  Templo,  que  três  vezes  por 
semana  se  distribuíam  a  quem  se  appresentava ;  e 
por  ultimo,  que  não  havia  (que  elle  o  soubesse}  casta 
alguma  de  pessoas  que  tivessem  derramado  roais  san- 
gue pela  fé  christã  do  que  os  templários,  nem  que  os 
infiéis  tanto  teraesseni  •,  que  em  >Iansourah  o  conde 
de  Artois  os  puzera  na  vanguarda,  e  que  se  lhes  ti- 
vesse dado  credito..."  então  ouviu-se  uma  voi: 
asem  fé  tudo  isso  de  nada  vale  para  a  salvação.  r>  — 
O  chanceller  Nogaret  tomou  também  a  palavra  :  — 
"Ouvi  dizer  que  nas  chronicas,  que  estão  em  S.  Di- 
niz, se  achava  escripto  que  no  tempo  do  soldão  de 
Babylonia  o  grão  mestre  d'então  e  outros  magnates 
da  ordem  tinham  rendido  homenagem  a  Saladino ; 
e  que  este  mesmo,  sabendo  de  um  grande  revez  dos 
templários,  dissera  publicamente  que  isto  lhes  acon- 
tecera em  castigo  de  um  vicio  infame,  e  da  preva- 
ricação contra  a  sua  lei.n  —  O  grão  mestre  respon- 
deu que  nunca  tal  ouvira ;  que  apenas  sabia  que  o 
o  grão  mestre  d'essc  tempo  havia  mantido  as  tré- 
guas, porque  de  outra  sorte  não  teria  podido  conser- 
var tal  ou  tal  castello.  Jacques  Molav  concluiu  pe- 
dindo humildemente  aos  commissarios  e  a  Nogaret 
que  lhe  permittis>em  ouvir  missa  e  ter  a  sua  capella 
e  capellães  :  assim  lh"o  prometterara,  louvando  a  sua 
devoção. 

Por  este  modo  se  formavam  simultaneamente  os 
dois  processos,  do  Templo  o  de  Bonifácio  N  III  ;  e 
appresentavam  o  extraordinário  espectáculo  de  uma 
guerra  entre  o  rei  c  o  papa.  Elsfe,  constrangido  polo 
rei  a  perseguir  Bonifácio,  estava  vingado  pelas  de- 
clarações dos  templários  contra  a  barbaridade  com 
que  os  officiaes  de  justiça  haviam  encaminhado  os 
primeiros  proctxlimcntos :  o  rei  de>honrava  o  ponti- 
ficado, c  o  pap;i  deshonrava  a  realeza  :  mas  o  rei  ti- 
nha da  sua  parte  a  força ;  impedia  os  bispi»  de  re- 
mettcrem  aos  commissarios  os  templários  pretos,  <» 
ao  mesmo  tempo  imjx-llia  para  Axinbão  nuvens  de 
tcstimunhas  que  se  .ijuncfavam  por  sua  conta  na 
Itália.  O  papa,  de  aljum  modo  assediado  por  estas, 
\ia-se  condemnado  a  ouvir  os  mais  esp.into5os  depoi- 
mentos contra  a  honra  do  sólio  pontifício. 

O  processo  do  Templo  começara  com  grande  es- 


o  PANORAMA, 


135 


trondo,  apesar  da  deserção  do  grão  mestre.  A  28  de 
marco  de  1310  os  coiiimissarios  niandarain  trazer  ao 
jardim  do  paço  episcopal  os  cavalleiros  <jue  dcciara- 
vain  querer  dcreiíder  a  ordem  \  a  sala  não  tiidia  ca- 
pacidade para  recolher  todos  i  eram  quinhentos  e 
quarenta  e  seis.  Lêram-liies  era  latim  os  artigos  da 
accusação ;  queriam  depois  lèr-lh'os  também  em 
iraneez;  mas  ellcs  clamaram  que  era  bastante  tê-los 
ouvido  em  latim,  e  que  não  desejavam  que  seme- 
lhantes torpezas  fossem  trasladadas  no  idioma  vulgar. 
Como  eram  tão  numerosos,  disse-se-liies  que,  para 
evitar  tumulto,  delegassem  em  procuradores,  e  d^en- 
tre  si  nomeassem  alguns  que  iallassem  por  todos. 
tJluereriam  todos  elles  ialiar,  tanta  era  a  coragem 
que  haviam  recobrado.  Delegaram,  comtudo,  em 
dois,  um  cavalleiro,  frei  Ha^naldo  do  1'ruin,  e  um 
«aeerdote,  Fr.  Pedro  de  Bolonha,  procurador  da  or- 
dem juncto  ao  tribunal  ponliíicio:  ajunctaram-se- 
Ihes  mais  alguns  por  auxiliares. 

Os  comniissarios  fizeram  depois  tomar,  por  todos 
os  edifícios  que  serviam  de  cárceres  aos  templários, 
os  depoimentos  dos  que  pretendessem  defender  a  or- 
dem :  foi  unia  luz  espantosa  que  entrou  nas  prisões 
de  I'"ilip[)e  o  formoso.  Jl'ahi  saíram  extraordinários 
(damores  ;  uns  arrogantes  e  ásperos-,  outros  piedosos 
<;  exaltados  ^  alguns  ingenuanienle  dolorosos.  Uni 
dos  cavalleiros  disse  tão  somente: — ueu  não  posso 
pleitear  sósinho  contra  o  rei  de  Franca  o  contra  o 
papa."  —  Alguns  limitaram  todo  o  seu  depoimento 
a  uma  simples  deprecação  á  Saneia  Virgem  —  u  Ma- 
ria, estrella  do  mar,  guiai-nos  ao  porto  da  salva- 
ção."—  l'orém  o  papel  mais  curioso  é  um  protesto, 
ein  linguagem  vulgar,  no  qual,  depois  de  haverem 
sustentado  a  innoccncia  da  ordem,  os  cavalleiros  dão 
a  conhecer  a  sua  humilhante  miséria,  o  mesquinho 
calculo  da»  suas  despezas.  Singulares  jiartieularida- 
des,  e  que  appresentam  cruel  contraste  com  o  orgu- 
lho e  riqueza  tão  celebres  il'esta  ordem  !  Os  desgra- 
çados, do  miserável  subsidio  de  doze  dinheiros  por 
dia,  eram  obrigados  a  pagar  a  passagem  no  rio  para 
irem  comparecer  nos  interrogatórios,  e  ainda  em  ci- 
ma tinham  de  dar  dinheiro  ao  homem  que  lhes  abria 
e  fechava  os  grilhões. 

Afinal,  os  defensores  apprescnlaram  um  memorial, 
aulhenlico  em  nomo  da  ordem.  N'esta  jirotestacão, 
singiilaniiente  vigorosa  e  ousada,  declaram  não  pode- 
rem defend(!r-se  sem  o  grão  mestre,  nem  ])or  outra 
forma  que  não  seja  perantií  uni  conc-ilio  geral.  Sus- 
tentam—  iii|ue  a  religião  do  Templo  é  saneia,  pura, 
o  iinmaeulada  perante  Chrislo  cí  o  l'adre.  O  institu- 
to regular,  aoliservaii<'ia  salutar,  ahi  cístiveram  sem- 
pre e  estão  ainda  cm  vigor.  Todos  os  irmãos  não  teem 
mais  que  unia  |)r(iíissão  de  fé,  que  cm  todo  o  univer- 
so tem  sido,  e  é  scitiprc  observada  por  imlos.,  desde  u 
fundação  até  o  dia  presente.  K  ipicm  diz  ou  erè  ou- 
tra cousa  erra  iiilciranuMitc,  pccea  niortaliiienle.  "  — 
Kra  uma  aflirmaliva  bastante  audaz  su^lcntar  (|ue 
i<idi)s  tiiiliani  ])criiiaiieci(lo  lieis  ás  regras  do  institu- 
to primitivo^  ijue  nenhuma  <li>viação,  nenhuma  cor- 
rupção houvera,  (liiando  ojusio  pecca  sete  vezes  por 
dia,  aijiiclla  onlcm  soliciba  ai:liava-se  pura  esemjiec- 
cndo.  Tamanho  orgulho  fazia  eslremeeer.  Não  fica- 
ram n  islo.  1'eiliam  «pie  os  irniàos  apóstatas  fossem 
postos  a  liom  recado  até  (pie  se  mostrasse  se  ti- 
nham dado  Icslinainlio  verdadeiro;  (pieriaiii  também 
que  iii'iiliuiii  secular  assistisse  aos  interrogatórios. 
Minguem,  com  clleilo,  duvi<la  ipie  a  presença  de  um 
l'lasian,  de  um  Nogarel,  intimidaria  os  iieeiísiidos  e 
o8  juizes.  Aivibam  dizendo  ijue  —  i>ii  eommissão  poií- 
tilicia  não  piídc  proscgiiir^  porcpu',  emlim,  nós  esta- 
mos, e sempre  t(.'mim  estado  em  poder  (rac|iiclles  iiiu^ 
kuggerem  cousas  falsas  uo  senhor  rei.   Uuotidiana- 


mente,  por  si  ou  por  outros,  de  viva  voz,  por  cartas 
ou  mensagens,  nos  avisam  que  não  retractemos  as  fal- 
sas declarações  que  forain  extorquidas  pelo  temor :, 
aliás  seremos  queimados. " 

Passados  alguns  dias,  saíram  com  outro  protesto, 
porem  ainda  mais  forte,  menos  apologético  do  que 
ameaçador  eaccusador.  —  .í  Este  processo  (dizem)  foi 
inesperado,  iniquo,  injusto;  não  é  mais  que  uma  vio- 
lência atroz,  um  erro  intolerável.  >ias  prisões  e  trac- 
tos muitos  e  muitos  teem  morrido  ;  outros  teem  pelo 
mesmo  motivo  ficado  enfermos  para  toda  ávida;  ou- 
tros foram  constrangidos  a  mentir  contra  si  e  contra 
a  ordem.  Estas  violências  e  estes  tormentos  lhes  ti- 
raram totalmente  o  seu  livre  alvedrio,  isto  é,  quan- 
to o  homem  tem  de  bom  :  quem  perde  o  livre  arbí- 
trio perde  todo  o  bom,  sciencia,  memoria  e  entendi- 
mento .  . .  l'ara  os  impellir  á  mentira,  ao  testimu- 
nho  falso,  mostravam-lhes  cartas  com  o  sello  real  pen- 
dente, e  que  lhes  asseguravam  a  conservação  da  vida 
e  da  liberdade ;  prometliam-lhes  prover  cuidadosa- 
mente em  (jue  tivessem  bons  rendimentos  em  quan- 
to vivessem  ;  e  por  outro  lado  lhes  afijrmavam  que 
a  ordem  seria  irremediavelmente  condemnada."  — 

1'or  muito  habituados  que  então  estivessem  á  vio- 
lência dos  processos  inqnisitoriaes,  á  immoralidade 
dos  meios  commummente  empregados  para  fazerem 
fallar  os  aceusados,  era  impossível  que  semelhantes 
palavras  não  sublevassem  o  coração  :  porém  mais  ex- 
pressivo que  todas  as  palavras  era  o  lastimoso  aspecto 
dos  prezijs,  suas  faces  pallidas  e  encovadas,  os  vestí- 
gios horríveis  dos  tormentos  ..  .  um  d'elles,  Hum- 
berto Dupuy,  a  decima  quarta  testimunha,  foi  posto 
a  tractos  três  vezes,  e  este^e  retido  trinta  e  seis  se- 
manas, a  pão  e  agua,  no  fundo  de  uma  torre  ínfic- 
cionada :  o  cavalleiro,  Bernardo  Dugué,  a  quem 
metteram  os  pés  n'um  brazeiro,  mostrava  os  dois  os- 
sos que  lhe  haviam  caído  dos  calcanhares. 

Eram  bem  cruéis  espectáculos :  até  os  juízes,  le- 
gistas como  eram,  e  cobertos  com  o  secco  habito  de 
padres,  se  commoviam  e  lastimavam  ;  quanto  mais  o 
povo  que  diariamente  via  aquelles  infelizes  passar 
nas  barcas  para  se  transportarem  á  cidade,  ao  paço 
episcopal,  onde  a  commissão  celebrava  as  sessões! 
Augmentava  a  indignação  contra  os  accusadores,  con- 
tra os  templários  apóstatas.  N'um  dia,  quatro  d'es- 
tes  comparecem  perante  a  commissão,  conservando 
ainda  as  barbas,  porém  trazendo  as  capas  no  braço ; 
arremeçam-n'as  aos  pés  dos  bisjios,  e  declaram  que 
renunciam  o  habito  do  Templo:  os  juizes  os  olharam 
com  desprezo,  e  lhes  disseram  que  lá  fora  fizessem  o 
(juo  bem  lhes  jiarecesse. 

O  processo  tomava  um  andamento  peri<;oso  para 
os  que  o  haviam  começado  com  lamanha  ])recipita- 
ção  e  violência  :  os  accusadores  decaíam  a  pouco  o 
pouco  jiara  a  situação  di;  aceusados-,  de  dia  pára  dia, 
os  depoimentos  ircstes  revehivam  as  barbaridades,  as 
torpezas  ilo  |irimciro  processo,  cuja  intenção  se  tor- 
nava visível;  tinham  piistii  a  tormcnios  um  cavallei- 
ro ]iara  o  obrigarem  a  dizer  aipianto  nuuilava  o  thc- 
soiiro  tnizido  da  Terr;i  Saneia.  l'or  veiiliira  um  thc- 
sonro  era  crime,  e  olijeclo  d'accusação  .'  .  .  . 

Kellcetindo-se  no  grandi'  numero  de  afliliados  que 
os  templários  tinham  no  povo,  nas  relações  ipie  o» 
cavalleiros  tinham  com  u  nobreza,  da  ipial  eram  to- 
ilos  oriundos,  não  pôde  duvídar-se  que  o  rei  se  as- 
sustara de  ter  levado  tanto  avante  este  negocio:  a 
intenção  era  vergonhosa,  os  meios  atroies;  tudo  es- 
tava desinaseunido.  l'or  ventur;i  não  estava  u  poiítu 
de  Icvantar-so  o  povo,  inipiii-t.ido  na  su:i  crença  iles- 
ilc  a  tragedia  de  Jtonilacio  \  III  .'  .  .  .  tluando  hou- 
\c  omolim  por  causa  da  niocibi,  o  Templo  tiverii 
força   bastante   paru   protcjjcr   Filii>pe   o  formoso ;   c 


136 


O  PANORAMA. 


agora  ?  . . .  Todos  os  amigos  do  Templo  estavam  con- 
tra elle.  .  . 

O  que  mais  aggravava  o  perigo  é  que  nas  outras 
regiões  da  Europa  os  concilios  foram  em  geral  favo- 
ráveis aos  templários;  foram  declarados  innocentes  a 
17  de  junlio  de  1310  em  Ravenna,  no  1."  dejulho 
em  Moguncia,  a  21  de  outubro  em  Salamanca.  Des- 
de o  começo  do  anno  que  se  podiam  prever  estas  de- 
cisões \  e  seguir-se-hia  a  perigosa  reacção  em  1'arís. 
Era  necessário  preveni-la,  recorrer  á  audácia  :  era 
necessário  deitar  mão  ao  processo,  precipita-lo,  aba- 
fa-lo. 

No  mez  de  fevereiro  de  1310  o  rei  se  havia  con- 
certado com  o  papa  ;  e  declarara  reportar-se  a  este 
quanto  ao  julgamento  de  Bonifácio  i  e  em  troco  exi- 
giu, em  abril,  que  fosse  nomeado  arcebispo  de  Sens 
o  mancebo  Marigni,  irmão  do  famoso  Euguerrando 
de  Marigni,  verdadeiro  rei  de  França  no  tempo  de 
Eilippe  o  formoso:  a  10  de  maio  o  arcebispo  recem- 
nomeado  convoca  um  concilio  provincial,  onde  faz 
comparecer  os  templários.  Temos  dois  tribunaes  que 
julgam  ao  mesmo  tempo  os  mesmos  accusados  em 
virtude  de  duas  bulias  do  papa:  a  commissão  allega- 
va  a  bulia  que  Ibe  commettia  o  julgamento ;  o  con- 
cilio referia-se  á  bulia  precedente  que  restituíra  aos 
juizes  ordinários  as  suas  attribuições  a  principio  sus- 
pensas.—  Não  subsiste  acta  dVste  concilio ;  nada 
mais  do  que  o  nome  dos  que  n'elle  tiveram  assento, 
e  o  numero  dos  que  mandou  queimar. 

A  10  de  maio,  um  domingo,  appresentaram-se  os 
defensores  da  ordem  perante  os  conimissarios  do  pa- 
pa para  reclamarem  contra  o  concilio  :  o  presidente, 
o  arcebispo  de  Narbona,  respondeu  que  nem  a  elle, 
nem  aos  seus  collegas  competia  conhecer  de  tal  re- 
clamação;  que  não  deviam  intrometter-se  nMsso, 
pois  que  não  era  do  seu  tribunal  que  se  appellava  :, 
que  se  elles  queriam  fallar  em  defeza  d.i  ordem,  de 
boamente  os  ouviriam.  —  Os  pobres  cavallciros  sup- 
plicaram  que,  pelo  menos,  os  conduzissem  ante  o 
concilio  para  ahi  levarem  sua  reclamação,  conceden- 
do-lhe  ãoís  notários  que  a  reduzissem  a  forma  au- 
thentica.  Na  sua  appellação,  que  em  seguida  leram, 
coUocavara-se  sob  a  protecção  do  papa  nos  termos 
mais  patheticos. — As  infelizes  victinuis  parece  que 
já  sentiam  as  chammas,  e  abraçavam-se  com  o  altar, 
que  não  podia  protege-los.  (Cvnlinua.) 


Thesoduos  dos  antigos  keis  de  Poktugal. 

Os  nEis  antigos  de  Portugal,  segundo  refere  Fernão 
Lopes,  faziam  todo  o  possível  por  encurtar  as  despe- 
zas  suas  e  do  reino,  afim  do  junctarem  thesouros :, 
porque  sendo  o  povo  rico  diziam  elles  que  o  rei  era 
rico,  e  o  rei  que  thesouro  tiidia  sempre  estava  pres- 
tes para  defender  o  seu  reino,  e  fazer  guerra  quando 
lhe  cumprisse,  sem  aggravo  e  damno  do  seu  povo. 
Todos  os  annos  os  vedores  da  fazenda  lhes  davam 
contas  de  todas  as  despezas  feitas,  e  das  sobras  dos 
rendimentos  e  diriMtos,  tanto  em  dinlieiro  como  em 
géneros.  DVilas  sobras  se  mandava  comprar  certa 
porção  d('  moedas  de  prata  e  ouro,  (jue  eram  arreca- 
dadas no  castello  de  Lisboa,  li'uma  torre  diamada 
albarrã,  muito  forte,  que  ficava  por  cima  da  porta 
do  mesmo  castello,  c  de  que  tinham  as  chaves  o 
guardião  do  convento  de  S.  Francisco,  o  prior  do  de 
S.  Domingos,  e  um  beneficiado  da  sé.  Este  ouro  e 
prata  os  compravam  certos  camhaihics  d'elrei  nas 
cidades  e  villas  do  reino,  c  por  este  trabalho  perce- 
biam um  tanlo  por  cada  peça  de  ouro  que  compra- 
vam. No  cast<'llo  de  Santarém  também  havia  uma 
torre  onde  accumuluram  tanlo  dinheiro,  que  foi  pre- 


ciso pôr-lhe  espeques  para  não  abater ;  no  Porto  e 
Coimbra  havia  igualmente  thesouros  reaes. 

Elrei  D.  Pedro  I  achou  que,  pagas  as  despezas  or- 
dinárias, podia  todos  os  annos  metter  na  torre  al- 
barrã  até  quinze  mil  dobras,  e  só  na  torre  do  cas- 
tello de  Lisfxja  deixou  a  seu  filho  D.  Fernando  oito- 
centas mil  peças  de  ouro,  e  quatrocentos  mil  marcos 
de  prata,  além  de  outras  cousas  de  grande  valor  que 
alli  estavam.  Rendiam  então  os  direitos  reaes  oito- 
centas mil  libras  ou  duzentas  mil  dobras,  e  a  alfan- 
dega de  Lisboa,  uns  annos  por  outros,  trinta  e  cinco 
mil  até  quarenta  mil  dobras,  afora  algumas  dizi- 
mas;  e  só  em  um  anno  se  exportaram  doze  mil  to- 
neis de  vinho,  sem  fallar  nos  que  levaram  depois  os 
navios  na  segunda  carregação  de  março.  E  ás  vezes 
estavam  diante  da  cidade,  entre  portuguezas  e  es- 
trangeiras, quatrocentas  a  quinhentas  embarcações 
de  carga ;  e  no  rio  de  Sacavém  e  ponta  do  Montijo 
em  cadaum  logar  sessenta  a  setenta  navios  carregan- 
do de  sal  e  de  vinhos.  Com  estes  rendimentos,  ajuda- 
dos de  severa  economia,  poude  elrei  D.  Pedro  1  dei- 
xar muito  rico  o  seu  successor  sem  lançar  novos  tri- 
butos sobre  o  povo. 

De  outra  maneira  se  houve  para  enthesourar  elrei 
D.  Pedro  de  Castella,  a  que  se  pode  dar  o  epithelo 
de  Nero  da  Hespanha  pela  qualidade  e  quantidade 
das  mortes  que  mandou  fazer.  Estando  um  dia  a  jo- 
gar os  dados  com  alguns  dos  seus  cavalleiros  queixou- 
se  de  que  todo  o  seu  thesouro  andaria  por  vinte  mil 
moedas  entre  prata  e  dobras.  D.  Samuel  Levi,  seu 
thesoureiro  mór,  a  quem  elle  depois  também  man- 
dou tirar  a  vida,  deu-se  por  injuriado  d'esfe  dicto, 
porque  se  podia  inferir  dV'lle  que  não  cuidava  na 
arrecadação  da  fazenda,  a  qual  na  verdade  estava 
conimettida  a  recadadores  que  tinham  abusado  dos 
seus  cargos  valendo-se  ])ara  isso  dos  motins  que  nos 
últimos  sete  annos  houvera  no  reino  de  Castella ;  e 
afiançou-lhe  que  se  lhe  desse  dois  castellos  dentro  em 
pouco  o  faria  senhor  de  grande  thesouro.  Deu-lhe 
elrei  o  alcaçar  de  Torguillio  o  o  de  Fila,  cm  que 
Samuel  poz  homens  de  sua  confiança.  Mandou  o  the- 
soureiro que  todos  os  que  arrecadavam  ou  tinham 
arrecadado  rondas  d'elrei  desde  o  começo  do  seu  rei- 
nado viessem  dar  contas,  e  chamou  ao  mesmo  tempo 
todas  aquellas  pessoas  a  quem  elles  de\essem  ter  pa- 
go alguma  quantia  secundo  as  ordens  d'elrei,  para 
que  debaixo  de  juramento  declarassem  o  que  haviam 
recebido,  e  com  quanto  lhes  ficaram  os  p;igadores 
por  lhes  não  retardarem  os  pagamentos.  Cadaum  de- 
clarava que  não  recel)êra  mais  do  que  tanto,  e  que 
o  resto  fora  para  a  peita,  por  se  lhe  dar  a  entender 
que  sem  ella  não  obtinha  pagamento.  Se  o  recada- 
dor  não  mostrava  ter  pago  tudo,  mandava  D.  S;i- 
nuiel  que  metade  de  quanto  assim  le\ára  fosse  para 
o  tliesouro  do  rei,  e  a  outra  metaile  piíra  o  les;ido. 
1.  E  todolos  que  taes  livramentos  liouverom.  dli  o 
nosso  ingénuo  chronisfa,  eram  mui  contentes  de  di- 
zer a  verdade,  por  cobrar  o  que  tinham  perdido:  e 
elle  junctou  por  esta  guiza  antes  d'um  anno  n'aquel- 
les  castellos  tam  grande  thesouro  que  era  estranha 
cousa  de  vèr. » 


Conservação  do  leite. 

Ha  um  melhodo  inventado  jwr  Mr.  Appcrl  para 
conservar  o  leito,  o  (jual,  pola  sua  simplicidade,  me- 
recia ser  mais  conhecido.  Kiilui-se  a  encher  do  loile 
fresco  uma  garrafa  l>em  rolhada,  c  tc-Pa  moríulha- 
da,  cousa  de  um  quarto  de  hora,  em  agua  a  ferver. 
Asseguram  que  o  loitc  se  conserva  jHir  muitos  annos 
cm  óptimo  estado  doi>ois  doesta  preparação. 


18 


o  PANORAMA. 


137 


CACILHAS;  VISTA  DO  T£JO 


LtsBOA  é  al);i.steci(la  ile  todos  os  geiínros,  precisos  pa- 
ra as  i)rinci|)ui'S  noccssidaiJos  f  também  para  o  rega- 
lo <!Commoilos  cia  subsisteiieia  da  sua  grande  popida- 
<;ão,    não  só    pelo  Icrtil  território  adjacente,    ijue  liea 
ao  norte    do  Tejo,    como    pelo    da  margem  fronteira, 
abundante  em  Irnetos  do  toda  a  casta,    vinhos  cxcel- 
lentcs,  lenlias,  caças  e  outros  muitos  objectos  que  con- 
correm ao  consumo  iinmenso  da  capital.  A  otilia-han- 
da,   como    usualmente,  nomeámos   a  parte   ao  sul   do 
Tejo  mais  directamente  ojiposta  á cidade,  é  uma  das 
vastíssimas  «piintas  de  Lishioa,    iim  dos  seus  recreati- 
vos   passeios  domingueiros,    <pie  ollerece    a  variedade 
do  transito  pelo  rio,  e  das  excursões  terra  d(!ntro  pelo 
meio  de  fazi^ndas  deleitosas  ou  pela  crista  das  alturas 
d'oiidn  B(!  destructam  extensas  e  mui  picturescas  vis- 
tas, já  de  pai/.,  já  da  cidade.  Campeia  sobre  esta  mar- 
gem, atalaia   da  capital  por  este  lado,    a  mui  antiga 
villa  d(!  Almada,  cujo  porto  é  ope(|ueno  jogar  de  Ca- 
cilhas.   ICxtravagaules  etimologias  leeui  alguns  mar- 
cado á(pu'lle  nome-,    o  Cíirlo  é  ijue  deriva    de  origem 
radicaimenle    arábica:    ai  miiiUn    signilRa    »  niiiiu : 
tal  nouie  proveio  das  minas  d^oiiro  <|ue  iPesla  banda 
se   expl(M'avam    lUtsde    tempos    muito    remotos,    (mire 
uutrus   a  da  Adlea,    lavrada  já  no  ecuneeo  da  nionar- 
clliu.    Os  árabes,  grandes  jirescrutadores  das  rii|uezas 
mineralógicas,  llu-deram  esla  denominação,  <pu' com 
mais    icrieza   procede    d'a(piellas  palavras    do  (pie    da 
causa  (pie  lhe  assigna  Kbu  l'Mrisi,  (pie  escreveu   pelos 
annos  de    I  Ui  I    ai  iri.l,  o  (piai,  lallando  do  eastello  de 
Almada,    (pie  sigiiilica  caúrilo  ilu  iiiiiid,    diz  (pie  as- 
ilini    se  chama  por  causa    do  ouro  (pie  para  alli  acar- 
reta   o  mar    (piaiido  anda  l>ravo.    I)\'sla  asserção    do 
g(M)grapho  árabe  ornais  (pie  piiihi  inlerirse  (Mpien'!!- 
(purlla    praia    se  aili.iv^im    pallielas  dViiiro,    como    nas 
VoL.   1, — Jankiiio  ;í,   11I.17. 


areias  do  Zêzere  e  do  Alva,  justificando  de  algum 
modo  a  fama  de  aurífero,  de  (pie  já  em  tempo  dos 
romanos  gozava  o  Tejo:  a  verdadeira  razão  ex|)lica-a 
o  sábio  naturalista  Josí;  Bonifácio  de  .Andrada  e  Sil- 
va, na  Memoria  sobre  a  nova  mina  (Fouro  da  outra 
banda  do  Tejo-  —  "..  .  postí^riores  emais  miúdas  ob- 
s(?rvaç-(~)es  me  tem  ('onvencido  que  este  ouro  não  vem 
de  f(íra,  mas  S(>  acha  mais  ou  menos  disseminado  nas 
formaçiles  alluviaes  d'a(pielle  terreno,  o  (piai  foi  for- 
mado das  ruinas  e  detritos  de  montes  e  vieiros  auri- 
f(!ros,  ou  distantes  ou  visinhos,  cpio  as  antigas  iuun- 
daçcles  do  oceano  ou  de  s;raiides  laiíos  e  rios  internos 
causaram  em  diversos  tempos.  K  provável  (pie  i)elo 
andar  dos  séculos  as  chuvas,  peiuítraiido  as  camadas, 
desmoronando  as  iiarreiras  ealirindo  canaesinhos,  la- 
vassem as  lerras  e  ajunctass('m  o  ouro,  eo  fossem  de- 
pondo nos  baixos  e  sítios  mais  azados  da  costa,  onde 
as  ondas  lavam  e  apuram  as  suas  parlicnlas  dissemi- 
nadas, (-liierendo  verilicar  esta  suspeita  ipie  tive  lo- 
go que  pela  primeira  vez  examinei  o  local  e  a  natu- 
reza da  formação,  mandei  nu  mez  de  abril  passado 
(11)15)  trabalhar  de  novo  em  alguns  silios  Já  lavr;'.- 
dos  no  eslio  aniecedente.  Desde  l(>  de  abril  até  (■  do 
corrente  mez  de  maio,  o  ouro  (pie  lemos  recolhido 
(Paípiella  mina  foi  todo  tirado  das  aniigas  citas,  (pie 
o  mar  de  novo  enclic^ra  revolvendo  e  lavando  repeti- 
das vezes  as  areias  e  as  lerras  desmortuiadas  da-.  I. li- 
das (1.1  liarreira.  Verd.ide  (•  (pie  a  camada  aiirilera 
cpie  SC  formou  de  novo  não  leni  por  ora  mai>  do  (pie 
uni  palmo  de  grossura  \  e  o  [lalino  cubico  so  rende 
um  grão  (Poiíro ',  todavia,  em  Ires  semanas  em  ipie 
se  não  poude  abrir  em  sitio  virgem  calas  mais  ren- 
dosas, pela  falia  de  agua  e  ouiros  embara(;os  locai"» 
(pie  já  cslào  vencido»,  deu  esta  scgund.i  colheil.i    116 


138 


O  PANORAMA. 


oitavas,  ou  6  marcos  e4  onças  deexcellente  ouro  em 
pó  o  amalgamado.  —  Assim,  se  por  um  lado  as  ondas 
do  mar  ombravecido  sobre  a  immensa  praia  di^sabri- 
gada  contrariam  muitas  vezes  nossos  trabalhos  miiie- 
raes,  por  outro  »'  o  oceano  ao  mesmo  tempo  um  va- 
lentissiino  e  excellente  operário,  que  ajiineta  edepo- 
sita  as  fagulhas  sem  conto  do  ouro  derramado,  e  as 
lava  e  apura  sobre  as  rampa»  da  praia,  que  lhe  ser- 
vem enfão  de  o])timo  bolincte  ou  lavadouro  de  con- 
centra(;ão,  quando  aelia  base  firme,  ijual  é  o  salão  ou 
greda  já  descri|)ta.  »  —  Todo  o  contexto  d'esta  Me- 
moria é  d(!  muita  curiosidade  e  iiislrucrão. 

Ocastello  de  Almada  é,  como  vimos,  do  tempo  do 
dominio  sarraceiu)  •,  contam  porém  os  nossos  historia- 
dores que  a  villa  foi  povoada  por  cavalleiros  iniçiezes 
que  vieram  a  este  reino  na  armada  do  norte  de  Gui- 
lherme da  Longa-Espada,  e  auxiliaram  eomseuseom- 
panheiros  o  nosso  primeiro  rei  na  c(mquista  de  Lis- 
l)0a.  No  tomo  3."  da  Monaichia  Litúlana  vê-se  ap- 
proveifada  esta  circuinstaneia  para  crear  uma  falsa 
etjniologia  do  nome  da  villa.  Teve  seu  primeiro  fo- 
ral d'elrei  D.  Sancho  I,  que  d^ella  fez  doação  aos  ca- 
valleiros da  ordem  de  Santiago,  pehis  annos  de  l  l!i7  : 
elrci  D.  Diniz  a  incorporou  na  coroa,  dando  em  tro- 
ca áquella  ordem  as  villas  de  Almodovar  e  Ourique 
cin  Alemtejo,  com  os  castellos  de  Marachique  e  Al- 
jezur. E  do  notar  que,  no  regimen  absoluto,  era  a 
única  villa  que  a  coroa  tinha  no  Ribatejo,  pelo  que 
ainda  nomeado  do  século  passado  constituiu  eom  seu 
termo  comarca  de  per  si,  separada  das  que  então 
eram  confinantes,  Azeitão  e  Setúbal  (l).  Segundo  se 
lê  na  Geographia  de  Kego,  tom.  1.°  pag.  176  ■,  jkjs- 
toriormente  o  provedor  e  ouvidor  de  Setúbal  era  con- 
junctamcnfe  corregedor  d'Alniada,  não  entrando  es- 
ta villa  na  provedoria,  que  abrangia  vinte  villas:  a 
correição  d' Almada  comprehendia  também  as  de  Azei- 
tão, Lavradio,  Moita,  Çamora  Corrêa,  S.  Thiago  de 
Cacem,  Cezimbra  e  Torrão.  Oextincto  logar  de  juiz 
de  fora  foi  ereado  em   18ii6. 

Na  mui  levantada  eminência,  fora  da  villa,  d  on- 
de se  avista  um  magestosfi  ampliith('atro  de  edifícios 
da  capital,  tendo  na  raiz  o  Tejo  aninuulo  pelo  nujvi- 
mcnto  marítimo,  está  assentado  o  convento  da  invo- 
cação de  S.  1'aulo,  que  foi  da  ordem  dominicana, 
fundaç.ão  do  muito  lettrailo  padre  Fr.  Francisco  Fo- 
reiro,  confessor  dos  reis  D.  Jo.ão  III  e  U.  Sebastião. 
A  distancia  de  uma  légua  da  villa  ficava  também  o 
convento  de  religiosos  de  S.  l'aulo  eremita,  com  o 
titulo  d(!  Nossa  Senhora  da  liosa,  e  o  mencionámos 
porque  diz  o  padre  Carvalho  em  sua  Corographia  que 
na  cerca  ha  uma  fonte  de  aguas  salutiferas  para  cu- 
rar a  lepra,  e  assim  o  cita  o  doutor  Fonseca  Henri- 
<pies  no  AquiUgio  Medicinal.  Ksfe  ultimo  auclor  tam- 
bém refere  que  a  fonte  do  Alfeite,  chamada  a  IJiqui- 
nha,  é  excellente  para  os  achaques  ài:  pedra  c  areias 
da  bexiga,  e  que  por  isso  era  de  varias  pessoas  de  fo- 
ra procurada  :  já  o  mesmo  se  lia  na  Descripção  de 
Purtiignl  de  Nunes  do  Lião.  A  bem  conhecida  Fon- 
te da  Pipa,  á  beira  do  Tejo,  é  notável  pela  copia  d^a- 
gua,  pcrenne  em  todos  os  tempos,  fornecendo  provi- 
mento fácil  d(!agu.adas  aos  numerosos  navios  que  de- 
mandam o  porto  de  Lislíoa. 

Foi  n.ilural  (PAlmada  o  nosso  escriptor  Diogo  de 
Paiva  d',\ndradc  sobrinho,  distincto  em  poesia  lati- 
na, obras  moraes,  e  critica  histórica. 

OtTereeemos  uma  vista  da  ]>equenina  abra  ou  ca- 
lheta do  log.ir  de  Cacilhas,  tomada  do  barco  de  vapor 
ipie  |)ara  alli  faz  constante  carreira  diária.  Seja-nos 
permillida,  poresta  oocasi.ão,  uma  breve  observação  ;, 
—  toda:i  as  gravuras  que  temos  estampado  nVsta  se- 


gunda epoeha  do  Panorama  são  do  buril  do  Sr.  Bap- 
tista Coelho  sobre  desenhos  do  Sr.  Bordalo  Pinheiro, 
aosquaes  o  publico  já  tem  feito  em  seus  elogios  a  me- 
recida justiça  pelos  bera  acabados  trabalhos  que  iUus- 
traram  muitas  paginas  das  primeiras  series  do  jor- 
nal:  repetimos,  todas  estas  gravuras  são  devidas  áqnel- 
les  senhores,  posto  que  muitas  sejam  copias  de  desenho* 
de  jornaes,  e  outras  obras  estranseiras  —  nenhuma 
procede  de  cliché  vindo  de  fora,  e  os  origioaes  em 
madeira  podem  vêr-se  na  typographia  onde  imprimi- 
mos. Porém  a  que  vai  na  frente  d'este  numero  éobra 
de  uin  jovcn,  assaz  digno  de  louvor  pela  sua  appli- 
cação ;  revela  porém  certa  falta  de  estalo  de  gravar 
e  de  certa  animação,  se  nos  é  licito  cxprimir-nos  as- 
sim, que  á  primeira  vista  não  apparece  nas  outras, 
para  asquaes  pôde  esta  servir  de  termo  de  compara- 
ção :  também  n'este  ramo  ha  eschola,  c  eschola  mo- 
derna com  seu  estvio,-  mimo  e  perfeição  particulares; 
ojoven  artista  dá  esperanças  de  que  poderá  bem  apro- 
veitar-se  d'ella. 


COLOMBA. 


Romance  da  Curseya. 


(I)     Dicc.  (lo  p.idrc  Canloso  verbo  .\\mni\n. 


Ma  |>er  far  la  lo  ri^ndetli, 
Puvcra,  orfaiia.  zitella, 
Seoza  cugini  carnali  !  — 
Sta  si|;iira,  vasta  aoche  eita. 

Lament.  funei.  de  Xialo. 


Nos  princípios  d'outubro  de  181»,  o  coronel  irlan- 
dez  sir  Thoinaz  Nevil  apeava-se  á  porta  da  hospeda- 
ria Beauveau  em  Marselha,  recolheiído-se  algum  tan- 
to desgostoso  da  sua  clássica  peregrinação  á  Itália. 
Acompanhava-o  miss  Lidia,  lilha  única,  devorada  da 
romântica  ambição  dese  distinguir  pela  mais  pura  e 
requintada  originalidade  de  opinião  ede  critica.  Tiv 
dos  ajoelhavam  ás  maravilhas  do  jardim  de  N  irgilio; 
ella,  para  se  singulariíar,  adoptando  adivisa  doanii- 
go  velho  Horácio,  o  rtií  admirai  i,  passou  a>m  um  sor- 
riso sceptico,  ou  frio,  pelos  maiores  monumentos,  ou 
pelas  mais  gabadas  paizíigens.  O  quadro  da  Tranifi- 
guração  condemnado  por  medíocre,  e  as  erupções  do 
Nesuvio  assemelhadas  aos  crassos  fogaréus  das  chami- 
nés de  Birmingham  pintavam  o  dissabor  com  que  a 
bella  viajante  voltava  da  romaria  ao  Capitólio  e  ao 
Campo  sancto.  u.\  Itália,  coitada!  dizia  miss  Lidia. 
tinha  o  insanável  defeito  de  ser  desmaiada,  uc  lhe 
faltar  a  còr  local .  .  .n  (Aue  horror  ! 

A  formosa  lad y  saíra  de  lAindres  ci>m  a  lirme  ten- 
ç.ão  de  descobrir  além  dos  .\lpes  antiguidades  nov.as, 
para  Asna  chegada  alegrar  os  seus  doutos  compatrio- 
f.^ís.  Aquelles  dedos  atilados,  mimosos,  ciir  de  rosa, 
]K>r  força  queriam  tirar  das  cinr.is  dosst>culos  «ni  ob- 
jecto raro  e  admirável.  \  ãos  desejos  !  Antes  d'ella. 
n.as  suas  excursuc-s  scientilicos,  os  sábios  tinham  atti 
pelado  o  pó  das  urnas  cinerarias.  Debalde  procurou 
os  thcsouros  desconhet-idos  da  p;itria  de  Ces.ir:,  a  in- 
gratíi  fortuna,  voltando-lhe  as  costas,  nem  um  des- 
presivel  púcaro  de  barro  das  olarias  etruscas  lhe  con- 
invlcu  para  se  comwlar  de  tant.i  f.idiga  inútil-  Real- 
mente era  atri«.  Indigu.ula  d'estes  reveles  a  liella  Li- 
dia revoltou-sc  contra  a  Itália  c  p;issou  jiara  a  opiKv 
sição. 

Mas  o  peior  de  tndo  foi  vir  desfeita  na  própria 
hospedaria  a  única  illus.ío  da  sua  viagem.  Lm  deli- 
cado eslxicefo  da  porta  pelagici  ou  evdope  de  Segni, 
tirado  iK)r  ella,  ctraxido  com  todo  o  cuidado  na  per- 


o  PANORAMA. 


139 


suasão  de  <]Ue  escapara  ao  olho  voraz  dos  pintores, 
a[)]iarccL-lli(,'  de  nqienle  no  álbum  de  ludy  Francis 
FeuwicU,  L-nlre  uui  soneto  coxo  e  uma  flor  sccca ;  11- 
luniiuada,  para  maior  opprobiio,  a  maldicta  porta 
cyclope,  ooiu  a  mais  barbara  prodigalidade  de  ròxo- 
terra  !  .  .  .  Miss  Lídia  deu  o  seu  esboceto  de  presen- 
te á  criada  grave,  e  jurou  ódio  eterno  á  Itália  e  a 
todos  os  portaes  pelágicos. 

Com  este  ódio  eonimuiigava  sinceramente  o  coro- 
nel, (jue  depois  da  morte  da  esposa  via  só  pelos  olhos 
<1(!  miss  Jiidia.  A  Itália  tinha  desgostado  sua  filha, 
e  este  gravíssimo  crime,  na  sua  opinião,  tornava-a 
uma  terra  aborrecida.  Dasestatuas  efjuadros  não  di- 
zia nada  o  bom  do  irlaudezi  não  eram  do  seu  arado:, 
ma»  da  caça  sabia  iallar,  e  por  este  lado  o  paiz  esta- 
va uma  desgraça.  Dez  léguas  á  torreira  do  sol  nos 
cam|)Os  de  Uoma  para  matar  só  duas  magras  perdi- 
zes ! 

No  dia  seguinte  ao  da  sua  chegada  a  Marselha 
convidou  para  jantar  o  capitão EUis,  seu  antigo  aju- 
ilante.  Ellis  tinha  ido  passar  seis  semanas  á  Córsega, 
e  contou  amissLidia  com  a  verdadeira  cur  lovul  uma 
historia  de  salieadores,  magnifica  por  desdizer  de 
«juautas  ella  ouvira  da  estrada  de  Koma  a  Napoies.  A 
sobremesa  os  dois  militares,  entretidos  com  as  mo- 
destas i;arral'as  de  liordéus,  conversaram  de  caça,  e 
o  coronel,  como  amador,  enthusiasmou-sesaljendo  que 
a  Córsega  era  o  paraizo  dos  caçadores,  ])ela  .ibundan- 
cia  e  variedade  das  peças.  Ao  chá  o  capilão  tornou 
a  arrebatar  Lid ia  com  a  historia  dasvendettas  trans- 
versais, e  acabou  de  a  endoudecer  pela  Córsega  des- 
crevendo o  agreste  e  selvagem  de  uma  terra,  sem 
igual  pela  natureza,  caracter  dos  habitantes,  e  costu- 
mes primitivos  da  sociedade.  Finalm(!nte  depirz-lhe 
aos  pés  iiia  eiliUte,  punhal  pouco  notável  pelalorma, 
i/ias  curioso  pela  origem.  O  capitão  Jillis  tinha  com- 
prado esta  raridade  a  um  salteador,  e  podia  assegu- 
rar <|ue  varara  o  peito  de  (juatro  homens.  Abella  la- 
dy  j)assou-o  no  cinto,  pô-lo  sobre  o  toucador,  e  antes 
de  se  licitar  examinou-o  umas  poucas  de  vezes.  Oco- 
ron<-l  siadiava,  eiitrelanio,  que  disparando  sobre  um 
javali  monstruoso  voltava  com  três  cargas  de  perdizes 
o  veados. 

Ao  almoço  o  pai  ea  filha  estavam  s<js.  u  EUis  dis- 
sc--me  que  ha  excellenie  car-a  na  Córsega  —  se  fosse 
mais  |)rrto  queria  ir  lá  passar  uns  quinze  dias.  » 

—  i.  E  por  que  não  ?  respondeu  ella.  Em  quanto 
caçar,  eu  desenho.  Sabe  (jue  estimava  bem  ter  o  gos- 
to d(í  ciq)iar  no  meu  allnim  a  gruía  aonde  EUis  no» 
disse  que  IJuoiiaparle  costumava  aprender  as  lições 
quando  era  criança?»' 

\'r\n  primeira  vez  approvava  sua  fdha  sem  diseufc- 
)>ão  um  prciji'eto  iPelle.  O  coronel,  inliTiuruuíute  li- 
sonjeado, opp<iz  algumas  diividasconjtudo  [)ara  a  con- 
lirmar  mais  na  primi.ira  resolução:,  encarecendo  as 
diliicuhhuUíH  de  viajar  uma  seidiora  poi;  aquella  ilha 
tão  pouco  hospitaleira.  Ella,  pelo  contrario,  tudo  via 
íiicii  e  risonho,  N'aquellu  instante  linha  animo  para  ir 
nté  áAhia  Menor  de  romaria.  ]\eidnima  ingleza  via- 
jara ain<la  na  Córsega,  e  a  formosa  la<ly  exaltava-»e 
figur:indn-se  a  admiração  de  todo  o  Sainl-Janies^s- 
l*lace  quando  ella  mostrasse  u  seu  álbum,  tt  Minha 
querlila,  qu<:  pintura  é  essa  tão  bonita  ?  INão  pusse  a 
folha,  deixe  vi^r  !  n  —  "Isto  não  é  na<la  ;  é  só  o  esbo- 
ço do  famoso  salteador  corso,  (|uir  nos  serviu  dt»  guia 
quando  lá  tomos."  —  uAIi!  enlào  esleve  na  Córse- 
ga .'..." 

Não  liavi.i  ainda  carreira  de  barcos  de  v:ipor  da 
Fr;inça  para  a  ( 'orsega  ;  e  o  coronel  tanto  buscou  até 
H»!'  desenbriíi  um  hiale  com  duas  c:imaras  soUriveis. 
O  meshe  einbari'ou  os  viveres,  jur:inilo  pela  sua  ul- 
m:i,  ipie  linha  abordo  \iiu  marinheiro  capaz  de  fazer 


um  timbale  de  rouxinoes  digno  de  o  comer  o  sultão 
dos  turcos.  Deu  certos  o  vento  e  o  mar,  e  o  inglez 
para  obsequiar  sua  filha  estipulou  que  não  queria 
mais  passageiros,  e  determinava  costear  a  ilha  de 
lúrma  que  avista  abraçasse  as  picturescas  montanhas. 
Assim  arranjadas  as  cousas,  os  viajantes  esjjeravani 
com  impaciência  pelo  dia  da  partida. 

Luziu  a  final  o  dia  da  partida.  Embarcaram  de 
manhã,  porque  o  hiate  havia  de  dar  á  vela  sobre  a 
tarde.  O  coronel  andava  passeando  c<jm  sua  filha  no 
convez  quando  o  mestre  veio  pedir-llie  licença  para 
receber  a  lx>rdo  um  parente  seu,  bisneto  de  um  pri- 
mo arredado.  —  .1  Bello  rapaz,  disse  o  capitão  Mattei, 
é  ollicial  de  caçadores,  e  hoje  estava  brigadeiro  se 
aquelle  que  foi  para  a  ilha  não  deixasse  de  ser  im- 
perador. " 

— 11  Como  é  militar  .  ,  .  "  respondeu  o  coronel,'  e 
ia  já  conceder  a  licença  accrescentando  «pode  vir 
c-ouinosco, "  se  miss  Lidia  não  interrompesse  em  in- 
glez : 

—  "Um  official  d'infantcria .  .  .  vai  enjoar  talvci, 
e  ahi  fica  perdido  todo  o  divertimento  da  nossa  tra- 
vessia ! 

O  mestre  do  hiate,  ainda  que  entendesse  raal  o  in- 
glez, sempre  percebeu  que  a  senhora  recusava  ;  enão 
era  precLso  tanto  para  elle  entoar  a  ladainha  das  vir- 
tudes civis  e  militares  do  seu  parente.  Jurou  que  era 
pessoa  muito  de  bem,  de  uma  antiga  familia  de  ca- 
hos  cie  ijuerra  ;  affirmando  que  o  coronel  podia  estar 
certo  de  que  não  o  incomraodaria ;  havia  d'aboleta- 
lo  em  sitio  oiule  nem  sequer  lhe  pozessem  os  olhos  cm 
cima. " 

O  coronel  e  sua  filha  admiraram-s<!  muito  de  que 
na  Córsega  existisse  de  direito  hereditário  o  posto  de 
cabo  de  guerra,  que  ambos  traduziam  ))or  cabo  d  es- 
(juadra  ;  mas  como  setractava  d'um  ollicial  subalter- 
no, perderam  a  repugnância  de  o  adniittir;  a  quali- 
dade não  lhe  dava  largas  a  intrometter-se  no  seu 
tracto,  e  por  isso  estavam  dispensados  de  conviver. 

—  «O seu  parente  cnjAa?"  perguntou  miss  Nevil. 

—  41  Enjoar  elle!  Aquillo  é  de  cal  e  areia." 

—  "Então  deixe-o  vir." 

— "  l*óde  vir,"  repetiu  o  coronel  continuando  o 
seu  passeio  com  a  lentidão  solemne  de  um  veterano. 

As  cinco  horas  da  tarde,  ao  subir  á  tolda  para  vêr 
largar  oliiale  já  acharam  de  pé,  á  entrada  da  cama- 
rá do  capitão,  um  mancebo  esbi^lto  e  elegante.  \  es- 
tia a  sobrecasaca  militar  alK)toada  ate  acima  i  a  côr 
era  moreiui,  e  olhos  pretos,  brilhantes,  bem  r:isgados 
.•ininiavam-se  de  alegria  natural,  aimhi  (jue  um  tan- 
to irónica.  Apenas  o  coronel  se  ap|)roxiinou,  ojoxeii 
militar,  cortejando-o,  agradeceu-lhe  com  polidez  o 
obsequio  de  (jue  lhe  estava  credor. 

—  uNão  vai  nada,  meu  rapaz;  o  ipie  estimei  foi 
ser-lhe  útil !  "  re|)licou  o  antigo  ollicial. 

—  "O  tal  inglez  é  sem  cerenionia,  meu  amigo," 
disse  o  mancrebo  em  italiano  |)ara  o  mestre.  Este  poz 
o  dedo  no  olho  esquerdo,  e  franziu  os  cantos  da  boc- 
ea.  Glueria  dizer  n'esla  admirável  mimica,  que  o  in- 
glez percebia  o  italiano,  e  tinha  a  cabeça  um  pouco 
<lesconcert;ida.  Entretanto  o  coronel  convers:indo  com 
a  filha  iu>lava,  ipie  os  soldados  francezes  tinham  gar- 
bo', ])or  isso  é  Ião  fácil  lazer  d'elles  bons  olficiaes. 
Concluiu  sorvendo  o.seu  rap'-.  Depois  \oltaiido-»e  pii- 
rii  o  objecto  das  suas  observações  pergnntou-Hie  em 
francei : 

—  "Em  t|ue  regimento  .serviu  .' •• 
Comprimindo  um  sorriso  irónico  e  IoimuiIo  no  co- 

tovell(i    ao  bisneto   do  seu   (piarlo  primo,    o  mancebo 
respondeu,  ipie  noseptimoile  inl.mtiTia  ligeira. 

— ..  Ah!  eate\e  então  em  V^  atrrloo  f  IMuito  moço 
havia  de  ser.  11 


140 


O  PANORAMA. 


—  «Foi  a  minha  primeira  campanha." 

—  "Pois  olhe  rjiie  valeu  [)or  duas." 

O  seu  interlocutor  mordeu  os  beiços  sem  replicar. 

—  "Meu  pai,  disse  em  inglez  miss  Lídia,  pergun- 
te-lhe  se  os  corsos  admiram  muito  Uuonaparle.  " 

Antes  do  coronel  traduzir  a  pergunta,  o  mancebo 
respondia  em  bom  in;;l(z  : 

—  "Minha  senhora,  sabe  que  é  muito  raro  ser 
quahjuer  propheta  na  sua  t(!rra.  Os  compatriotas  de 
Napoleão  teem  por  elle  menos  enthusiasmo  que  os 
francezes.  Mas  eu,  apesar  da  rixa  antiga  das  nossas 
familias,  é  que  o  estimo  e  admiro  como  ao  maior  ca- 
pitão do  nosso  tempo.  " 

—  u  Vem  com  licença  de  seis  raezes  ?  >»  atalhou  lo- 
go o  in!;lez. 

—  "Não,  coronel.  Volto  á  pátria  tão  liçeiro  de  ba- 
gagem como  desoldo,  assim  reza  uma  cantiga  corsa.  « 
E  suspirou  pondo  a  vista  no  céu. 

O  coronel  melteu  a  mão  no  bolso;  pegou  em  meia 
peça,  e  preludiando  por  uma  vagarosa  pitada,  em  ar 
de  riso  exclamou  :  "Sabe  que  mais?  também  a  mim 
me  desligaram.  Tome  lá,  cabo  fraucez,  é  para  com- 
prar tabaco  ..." 

O  mancebo  endireitou-se  de  um  repellão  ao  sentir 
nos  dedos  o  ouro.  í>s  olhos  fuzilaram  i  ia  rebentar  to- 
da a  sua  indignação  ;  mas  de  repente  outra  idéa,  apla- 
cando os  Ímpetos  da  cholera,  mostrou-lhe  esta  scena 
por  um  lado  tão  cómico  que,  apertando  as  ilhargas, 
desatou  ás  risadas. 

O  coronel  com  a  meia  peoa  na  mão  estava  diante 
d'elle  extático  o  boqui-aberlo. 

— "  O  coronel  ha  de  perdoar,  advertiu  emfim  o 
mancebo,  quando  o  riso  passou,  se  me  atrevo  a  re- 
commendar-lhe  duas  cousas-,  a  primeira  é  que  não 
ofteroça  dinheiro  a  um  corso  :  dos  meus  compatriotas 
conheço  oa  algum  capaz  de  Ih^o  atirar  á  cara ;  a  se- 
gunda que  não  honre  ninguém  de  títulos  que  não  são 
seus.  Vejo  que  teimou  em  me  chamar  cabo  d^esqua- 
dra,  e  eu  servi  no  exercito  como  tenente  de  linha. 
A  diíferença  é  verdade  que  não  6  grande;  porém  o 
amor  que  tenho  á  banda  ..." 

—  "Tenente!  exclamou  sirThomaz  Nevil ;  tenen- 
te! mas  o  mestre  disse-me  que  o  senhor  era  cabo  d'es- 
quadra,  como  seu  pai,  seu  av6,  eloda  a  sua  familia; 
não  posso  entender  ..." 

O  tenente  tornou  a  recair  nas  suas  estrondosas  ri- 
sadas, econi  tanta  vontade  ria,  qued'esta  vez  os  dois 
marinheiros  romperam  era  coro.  Oinglez,  espantado, 
lazia  caretas  amargosas  vendo  este  accesso  de  hilari- 
dade. 

—  "  Gk,ueira  perdoar,  coronel,  se  me  rio  assim  d'uni 
i.-quivoco  verdadeiramente  singular  —  só  agora  o  per- 
cebi. A  minha  íamilia  ufanava-se  decontur  uma  lon- 
ga serie  do  cahas  entre  os  seus  p.issados,  mas  são  ca- 
bos sem  divisas  no  braço.  No  aiino  de  1  100  revolta- 
ram-se  muitas  communas  contra  a  tyrannia  dos  se- 
nhores montaidiezi^,  e  escolheram  capitães  a  ipie  se 
deu  o  nome  de  cahos.  E  uma  honra  na  Córsega  des- 
cender  d'esses  antigos  tribunos.  " 

—  "Desculpe,  exclamou  o  coronel  ■,  queira  perdoar 
o  meu  engano.  Bem  vê  quo  não  tinha  a  menor  ten- 
ção de  o  ofli;ndi>r. " 

E  cslendia-lhe  a  m.ão. 

—  "Eu  é  (pie  peçx)  desculpa;  mereci  este  equivo- 
co por  meu  orgulho  de  rapaz,  respondeu  o  moco  ofli- 
cial  rindo  e  apertando  a  mão  do  inglez.  O  meu  ami- 
go Mattei  não  me  soube  appresentar,  já  vejo;  c  não 
ha  remédio  sen.ão  faze-lo  eu.  Sou  Orso  delia  Rcbia, 
tenente  desligado  do  exercito  francez ;  cse  estes  caos 
d(!  boa  raça  não  mentem,  o  coronel  deve  for  o  vicio 
da  caça :  já  d'a<|ui  me  oITeroço  para  lhe  ensinar  to- 
dos os  passos  das  nossas  montanhas ...  se  me  não  es- 


queceram já,  também,  a  mim  , "  accrescentou  suspi- 
rando. 

SirThomaz  convidou-o  para  cear,  repetindo  as  suas 
desculpas.  Miss  Lidia  não  se  oppoz,  notando  no  seu 
hospede  um  certo  ar  aristocrático.  Só  o  que  lhe  des- 
agradava n'elle  eram  maneiras  rasgadas  de  mais,  e 
uma  alegria  imprópria  do  melancbolico  t^-po  dos  he- 
roes  de  romance. 

A  mesa  o  coronel,  tocando  o  copo  de  vinho  da  Ma- 
deira no  vidro  do  do  seu  commen^al,  exclamou  :  — 
"Tenente  delia  Rebia,  vi  em  Hespanha  muitos  cfim- 
pafriotas  seus  .  .  .  que  excellente  infanteria  d'atira- 
dores  ! ", 

—  "E  verdade,  lá  ficaram  bastantes  n  replicou  o 
mancelx)  com  tristeza. 

—  "Nunca  me  esíiueceu  o  valor  d'um  batalhão 
corso  na  batalha  de  \  ictoria ;  esteve  estendido  em 
atiradores  nos  jardins  todo  o  dia ;  quando  tocou  a 
retirar  cuidámos  que,  apanhando-o  na  planície,  che- 
gava emfim  a  nossa  vez  .  .  .  qual  desforra  I  Forma- 
ram quadrado,  e  fosse  lá  ô  diabo  rompe-lo.  No  meio 
d'elles  andava  um  official  montado  n'ura  cavallo  pre- 
to;  firme  no  angulo  do  quadrado  a  fumar  com  tanto 
socego  como  se  estivtísse  tomando  café  n'um  bote- 
quim. Deitei-lhe  um,  depois  outro,  três  esquadrões; 
e  nada.  Os  meus  dragões  fizeram  dois  meia  volta,  e 
a  maldicta  musica  dos  corsos  a  assoprar,  âuando  le- 
vantou o  fumo,  vi  no  mesmo  angulo  o  official  do  ca- 
vallo preto  chupando  no  eterno  cigarro.  Desesperei, 
e  puz-mc  á  frente  da  ultima  carga.  A  pólvora  tinha- 
se-lhe  acabado,  m.as  os  soldados,  sobre  seis  fihis,  apon- 
tavam-nos  as  baionetas.  Era  um  muro  de  ferro.  Gri- 
tei, amaldiçoei,  e  choguei  as  esporas  ao  cavallo  para 
puxar  os  dragões ;  tudo  debalde.  Então  o  official  ti- 
rou o  cigarro  da  boeca,  e  mostrou-mc  com  o  dedo  a 
um  dos  seus,  dizendo:  Al  capello  bianco.  Eu  trazia 
penacho  branco.  Não  ouvi  mais  nada.  Zuz !  veio 
uma  baila,  e  varou-me  o  peito.  Glue  l)afalhão  aquelle, 
decimo  oitavo  de  ligeiros  corsos,  Sr.  delia  Rebia  !  - 

—  "Era  firme,  era;  respondeu  Orso,  ao  qual  os 
olhos  brilharam  com  viveza.  Sustentou  a  retirada  e 
salvou  a  águia.  Mas  quasi  a  metade  lá  dorme  hoje 
nos  campos  de  ^  ictoria.  " 

—  "Por  acasj  saberá  o  nome  do  coraraandante  ?  « 
— "  Pois  não  sei !  .  .  .    era   meu   pai  .  .  .    Ganhou 

n'esse  dia  as  dragonos  de  coronel. " 

—  "Seu  pai!  .  .  .  com  mil  demónios,  juro-lhe  que 
não  se  pode  ser  mais  valente.  Ainda  agora  o  conhe- 
cia, se  o  visse  .  . .  ?? 

— "  As  suas  campanhas  estão  acabadas"  retrucou 
Orso  fazendi>-se  pallido. 

—  "  Morreu  em  NNaterloo  ?  ••• 

—  "Não,  coronel,  escapou  de  lá  para  ir  .  .  .  expi- 
rar á  Córsega  .  .  .  haxorá  dois  aimos  .  .  .  Ji-sus  I  que 
lindo  mar.  Ha  dez  annos  que  n.ão  via  o  Mixlitcrra- 
neo.  Não  lhe  parece  mais  bello  do  que  o  tíceano.  mi- 
nha senhora  .' " 

—  "E  muito  azul  .  .  .  e  domais  as  ond.is  não  tetuu 
magestade. " 

—  "  Como  gosta  do  sitios  alpestres,  já  lhe  assegu- 
ro que  ha  de  gostar  muito  da  Córsega." 

Miss  Lidia  despodiu-sc  do  seu  pai,  cumprimentou 
Orso  com  uma  cortozia  solemne  o  rofirou-s*-.  Os  dois 
I  ficaram  conversando  de  caçadas  e  do  guerras.  Soube- 
I  ram  que  em  \N  atcrliKi  estavam  fronte  a  fronte.  A 
I  harmonia  ainda  se  augmontou  mais  entro  cUos.  Cri- 
I  licaram  Napoleão,  \N  oUington  o  líluchor.  traçaram 
i  o  plano  d'uma  caç.nda  de  javalis,  o  tendo  ach.ido  o 
j  fundo  ás  corpolontas  garrafas,  separaram-*o  mutua- 
I  monte  satisfeitos  d\iquella  amiiado.  encetada  de  '.iiu 
mo<.lo  tão  ridículo. 


o  PANORAMA. 


141 


ESTATUA  Di:  S.  VICENTE  DE  PAUIiO. 


A  PUECEDKNTK  p;ravur;i  <!  um  transuinpto  da  esta- 
tua de  S.  Vi(,-i'iito  (l<'  l'iiiil(),  foita  por  Mr.  Rangi 
para  a  igreja  da  lMap;(la!í'na  oui  l'aris.  Alilíreviarc- 
iiios  aqui  a  r<!la(;ão  da  viila  dc!  mu  varão  saneio,  bra- 
são ('■>  clirisliatiisnio  c  da  iiunianidadí;. 

Guillicriiio  l'aulo  <•  sua  mullicr  I!i  rlrauda  habila- 
vauí  n'uiu  logarcjo  da  fr<'L;iii.'ZÍa  de  l'ouy  (1),  diocese 
de  Acqs,  para  a  ])arte  do»  JVreiíuéus  :  lodos  os  seus 
heiís  constavam  de  umas  l)arraeas,  <?  tli;  algumas 
eouridas  (|ii(?  ellcs  uiírsmos  cullivavain.  Tiveram  seis 
fdhos,  d(jis  d'elles  rapazes  :  o  terceiro  na  ordem  do 
iiascinuMito  foi  Vicí.-ute  de  l'aulo,  ((iio  nasceu  a  24 
«Paliril  dl!  1.57(i.  Até  a  idade  de  doze  annos,  Vicen- 
1;e  aeom[>anliou  o  tral>aliio  da  raniilia  guardando  o 
gado:  d'essa  idade  o  mandou  seu  pai  (estudar  com  os 
Iraneiscanos  de  Acijs,  e  as  lelizes  disposiç^õcs  que  mos- 
trou deram  azo  a  ipie  altendessem  por  elle.  ]^ara  o 
diante  um  magistrado  di>  l'<iMy  llur  eonliou  a  (educa- 
ção de  seus  lillios:,  c  o  encargo  de  prec(.'ptor  não  ar- 
redou o  maji<'el>o  da  applicação  ao  esluilo.  Tendo 
aprendido  dr-  seus  mestres  (piauto  lhe  podiam  ensi- 
nar, loi  prí)curar  instru<(;ão  maior  á  universidade  de 
Saragoç^a,  e  depois  a  Tolosa  onde  <'ur»ou  sete  annos 
<1(!  Iheologia  e  ali'aneou  o  grau  de  hadiarel,  que  en- 
tão não  era  iacilmente  <<Miec!di(lo.  l'ara  ol)ler  o  ca- 
(Míllo  d(!  doutor  (!ra  tn-C{'ssario  expli<'ar  pulilieamente 
as  sagradas  leltras  ou  o  mestre  das  senliMiças ;  não 
está  ÍKím  averiguado  seVicenli;  teve  maior  grau  que 
o  de  liacíliarel  •,  mas,  emlim,  a  pijuea  and>i(;ào  (pie  a 
este  respeito  mostraria  nada  prova  contra  o  s(!u  sa- 
lier,  «pie  par(;ee  ler  sido  solido  e  surii(i(nt(uuent(!  di- 
latado. 

Aos  art  (i(!  setendiro  de  ICdd  reeelieu  as  idtimas 
ordens:,  e  a  idéa  de  dizer  a  missa  nova  Uw  causou 
um  lenior  (pie  pareci.i  .espanto:,  não  se  aeluui  com 
animo  de  ('eii'l>rar  em  pulilieo  uni  aehi  que  liiilia  por 


(1)      Vlil. 


arli^i)  «ulire  iiH  l.iiiiclrs  iii  linc  |iiil;.   .')(). 


tão  serio:  a  tradição  refere  que  buscou  ura  sitio  apar- 
tado e  solitário,  onde  celebrou  a  primeira  vez,  seni 
mais  testimunhas  que  um  sacerdote  para  lhe  assistir 
e  ura  sacristão  para  ajudar,  n^uma  ermida  da  ^  ir- 
gem,  no  cimo  d'um  monte  entre  maltas. 

Passado  algum  tempo  Vicente  de  Paulo  passou-se 
a  Marselha  para  receber  uma  quantia  que  lhe  de- 
viam. Chegada  a  occasião  de  voltar  a  Tolosa  por  ter- 
ra como  intentava,  um  lidalgo  do  Languedoc,  com 
quem  morava,  o  resolveu  a  tomar  a  via  niaritima 
para  Narbonna  :  era  no  mez  de  julho,  boa  a  estação, 
e  contavam  chegar  n'essa  mesma  tarde:,  mas  não 
aconUiceU'  assim.  Vicente  de  Paulo  deixou  uma  rela- 
ção dos  accidentes  verdadeiramente  românticos  d'es- 
ta  viagem,  em  uma  carta  que  foi  achada  cincoenta 
annos  depois,   e  que  elle  tivera  tenção  de  supprimir. 

"Embarquei-me  (diz)  para  Narbonna,  afira  de  ir 
mais  depressa  e  poupar,  ou,  mais  exactamente,  para 
não  chegar  lá  e  perder  tudo.  O  vento  era  tão  favo- 
rável quanto  bastava  para  nos  levar  a  Narbonna  no 
mesmo  dia  (cincoenta  léguas  de  caminho)  se  Deus 
não  tivesse  permittido  que  três  bergautins  turcos  que 
costeavam  o  golpho  de  L\  ão  para  apanhar  as  barcas 
que  vinham  de  Beaucaire,  onde  se  fazia  uma  feira 
que  se  reputa  das  mais  excellentes  da  christandade, 
portassem  sobre  nós  e  nos  atacassem  tão  vivamente 
que,  mortos  dois  ou  três  e  feridos  todos  os  mais  o 
lambem  eu  de  uma  frechada  que  me  servirá  de  re- 
pertório toda  a  vida,  tivéssemos  de  nos  render  áquel- 
les  traidores.  Os  primeiros  Ímpetos  da  sua  raiva  fo- 
ram cortar  o  nosso  piloto  em  mil  boccados,  por  terem 
perdido  um  dos  seus  principaes  afora  quatro  ou  cin- 
co forçados  que  os  nossos  lhes  malarani  :  feito  isto 
nos  acorrentaram,  e  depois  de  nos  terem  curado  tos- 
camenlcy  proseguiram  na  sua  derrota,  eommellendo 
mil  roubos,  dando  todavia  liberdade  aos  (pie  se  ren- 
diam sem  coml)ate,  mas  depois  de  os  lerem  rouba- 
do. A  linal,  carregados  de  fazendas,  ao  cabo  de  sete 
ou  oito  dias  tomaram  o  rumo  de  15(!rberia,  covil  e 
espelunca  de  ladr<ies  sem  auctoridade  do  grão  turco  •, 
chegados  alli,  nos  expozeram  á  venda,  com  um  auto 
da  nossa  captura,  qui-  diziam  feita  a  bordo  de  um 
navio  hespanhol  ■,  porque,  se  não  fira  esta  mentira, 
seriamos  libertados  jielo  cônsul  (pie  o  rei  tem  n'aquel- 
le  logar  para  tornar  livre  o  commercio  dos  francezes : 
o  seu  proceder  para  a  nossa  venda  foi,  depois  de  nos 
terem  despojado,  dar  a  cadaiim  um  par  de  ceroulas, 
uma  fardeta  de  linho  com  iim  barrete,  e  passear-llos 
pela  cidade  de  Tunes,  ond(!  vieram  de  propósito  pa- 
ra nos  vender.  Tendo-nos  feito  dar  cinco  ou  seis  vol- 
tas por  Ioda  a  cidaih;  em  redondo,  de  corrente  ao 
pescoço,  nos  reconduziram  á  barca  para  que  os  mer- 
cadores podessem  vir  alli  presenciar  (jual  comia  bem 
e  (piai  não,  e  para  lhes  mostrar  (pie  os  nossos  feri- 
nneiitos  não  eram  mortaes.  Acabado  isto,  nos  torna- 
ram a  levar  á  praça  onde  os  mercadores  nos  vieram 
examinar  inleiramente  como  se  faz  para  a  compra 
de  uni  cavallo  ou  de  um  boi,  fazendo-nos  abrir  a  Ihh'- 
ea  ]>ara  verem  os  dentes,  apalpando  as  costellas,  son- 
dando as  feridas,  fazendo-nos  caminhar  a  passo,  tro- 
tar (!  correr,  e  depois  hevantar  pezos  e  luelar  para 
conhecer  a  força  de  eadauin  ;  (!  outras  mil  castas  di' 
brutalidades.  Ku  fui  vendido  a  um  pescador,  (pie 
foi  obrigado  a  dcsfazer-sc  logo  de  mim,  por(pie  nada 
me  «!  tão  contrario  como  o  mar;  passou-me  ii  um 
velho,  iiK^dico  espagirico,  solierano  manipulador  dc 
ipiiiilas  essências,  liomem  muito  hiiinaiio  e  Iracl.iM^I, 
o  ipiat,  segundo  elle  próprio  me  dis^e,  linha  Iraba 
Ihado  o  espaço  de  ciiicoeula  annos  em  pesquiza  da 
pildra  pbilosoplial  :  esliniava-nie  miiilo,  e  gosta\a  de 
me  ciinvi'i's;ir  sobre  a  alchíniia,  e  ilrpois  sobre  a  sua 
lei,    a  qual   miiilo  diligenciava  alliaiiir-me,    proinel- 


142 


O  PANORAMA. 


fondo-me  bastantes  riquezas  e  toda  a  sua  sciencia. 
Deus  mo  inspirou  sempre  uma  confiança  de  livra- 
mento pelas  assiduas  ora(-ões  f|iie  lhe  eu  fazia,  e  á 
Virgem  Maria,  só  pela  intercessão  da  fjual  eu  creio 
ter  sido  lilwrtado.  Estive,  pois,  com  atjuelle  velho 
desde  setembro  de  1601  até  agosto  de  IfiOU,  em  que 
foi  eml)art;ado  e  levado  ao  grão  sultão  para  traba- 
lhar com  elle^  mas  debalde,  porque  morreu  de  pena 
MO  caminho.  Heixou-me  a  um  sou  s<jbrinho,  verda- 
deiro aiitroporaorphita,  que  me  vendeu  logo  depois 
tia  morto  de  seu  tio,  [x)rque  ouviu  dizer  o  como  M. 
de  Breves,  embaixador  do  rei  na  Tur<juia,  vinha 
com  válidas  e  expressas  cartas  do  grão  turco  para 
restaurar  todos  os  escravos  christãos;  um  arrenegado 
de  Nice  na  Sabóia,  inimigo  natural,  me  comprou  e 
levou  para  o  seu  temar,  que  assim  se  chama  a  pro- 
priedade que  qualquer  tem  como  rendeiro  do  grão 
senhor  i  porque  alli  o  povo  nada  possue,  tudo  é  do 
sultão.  O  tomar  d'aquelle  era  na  serra,  onde  o  paiz 
é  extremamente  cálido  e  deserto.  Uma  das  três  mu- 
lheres d'eHe  era  grega  christã,  mas  scismatica ;  ou- 
tra era  turca  que  serviu  de  instrumento  á  iminonsa 
misericoriiia  de  Deus  para  tirar  seu  marido  da  apos- 
tasia e  torna-lo  ao  grémio  da  igreja,  e  a  mira  re- 
mir-me  da  escravidão.  Como  era  curiosa  de  saljer  o 
nosso  modo  de  viver,  vinha  todos  os  dias  aos  campos 
onde  eu  cavava,  e  n'um  dia  me  ordenou  que  can- 
tasse os  louvores  do  meu  Deus.  A  lembrança  do  — 
"Como  cantaremos  nós  elii  terra  estranha?..  .»:> — 
dos  liliios  de  Israel  captivos  em  Uab^lonia,  me  fez 
começar  com  as  lagrimas  nos  olhos  pelo  psalnjo  Su- 
per Rumina  liahyíonis,  depois  a  Salve  rainha,  de- 
pois outras  muitas  cousas;  no  que  cila  tomava  tanto 
recreio  que  era  maravilha  ;  não  deixou  de  dizer  a 
seu  marido  á  tarde  que  não  tivera  razão  em  abando- 
nar a  sua  religião,  que  ella  julgava  extremamente 
boa,  segundo  uma  informação  que  lhe  eu  dera  do 
nosso  Deus,  eos  louvores  que  eu  cantara  na  presença 
d^ella  •,  no  que  dizia  ter  experimentado  uma  satisfa- 
ção tal  que  o  paraizo  de  seus  pais,  o  que  ella  espera- 
va, não  julgava  tão  glorioso,  nem  acompanhado  de 
tanta  alegria,  como  o  contentamento  que  linha  sen- 
tido em  ([uanto  eu  louvara  o  meu  Deus;  concluindo 
que  n'isto  havia  algum  prodiuiio.  Ksta  mulher,  co- 
mo outro  Caipiía,  ou  como  a  burra  de  Balaam,  tan- 
to fez  com  o  sim  discorrer  que  seu  marido  no  seguin- 
te dia  me  disse  que  só  dependia  de  uma  opportuni- 
dade  o  escapar-nos  para  Kranç-a ;  mas  que  elle  daria 
tal  volta  que  dentro  em  bem  pouco  tempo  bemdiria- 
mos  a  Deus.  Ksto  Ikíiu  jvjuco  teuipo  duro^i  dez  uie- 
zes  que  me  elle  entreteve  n^esta  esperança,  no  termo 
dos  quacs  uos  escapámos  com  um  pequeno  batel,  e 
nos  passámos  a  Aguas-mortas  aos  2!l  de  junho  e  logo 
depois  a  Avinhão,  onde  o  senhor  vice  legado  recebeu 
publicamente  o  renegado  com  as  lagrimas  uos  oibos 
e  suspiros  do  coração.  « 

\'ioenl:o  de  P.iuío  foi  levado  a  Roma  pt'!o  vice  le- 
gado, e  d^alii  voltou  incumbido,  pelos  enilvjiixadores 
de  Denrique  IV,  de  uma  importante  commi^!^ão  pa- 
ra este  principo.  Alojou-se  com  uni  juiz  d^um  pe- 
queno logar  chamado  Sore,  situado  nas  Landes  o  no 
districto  do  parlamento  de  Bordéus  :  N  icente  era  do 
mesmo  cantão,  e  por  economia  haviam  tomado  um 
quarto,  despeza  ao  meio.  O  juiz  de  Sore,  erguendo- 
.se  um  dia  de  mailrugaila,  foi  á  cidade  tractar  de  aJ- 
gitns  negiwios,  e  esqueci»u-se  de  fechar  um  armariu, 
onde  mettêra  o  sou  dinheiro:  Vicente,  que  se  acha- 
\a  um  tanto  incomniodado  do  saúdo,  ficou  de  cama 
ai;iiard«nd<>  (x>r  um  ronicdio  que  deviam  trazor-lhe. 
Chegando  o  olticial  do  boticário,  e  procurando  um 
C(qK>  no  armário  que  via  aborto,  .vhou  o  dinheiro  e  [ 
o  tomou,   mostrando  á  saída  appareucia  de  trauquil- 


lidaue.  A  quantia  era  de  400  escudos:  o  juiz,  á  vol- 
ta, espantou-se  de  não  achar  o  seu  pecúlio:  pediu-o 
masoado,  e  depois  cora  grande  clioler.i,  a  \  icente 
de  Paulo,  que  respondeu  que  nem  o  tomara,  oem 
vira  tomar.  Foi  bastante  para  redobrar  o  fogo  do 
juiz,  que  rebentou  sem  attenções ;  as  raiuzuadaa  cir-  , 

cumstancias  de  V  icente  de  Paulo,   o  seu   silencio  e         I 
até  a  sua  paciência,   lhe  serviram  de  provas :    expul-  * 

sou-o  da  sua  companhia,  e  deu  ás  suas  suspeitas,  ou 
antes  á  sua  convicção,  a  maior  publicidade.  Por  seis 
annos  carregou  sobre  ^  icente  o  pezo  dVsta  accusa- 
ção ;  a  final  o  verdadeiro  ladrão  foi  descoberto  em 
Bordéus  e  confessou  o  delicto :  admirou-se  então  a 
paciência  e  resignação  do  sacerdote-,  e  quanto  maior 
fora  a  injustiça  para  com  elle,  tanto  mais  convidava 
a  que  o  respeitassem  e  amassem.  —  Em  1610  Mar- 
garida de  ^  aloJs  o  tomou  por  seu  capellão  ordiná- 
rio: o  palácio  d'esta  princeia  não  ora  um  logar  de 
edificação,  \  iceute  conheceu  que  alli  a  sua  fe  vacil- 
lava ;  parece  que  o  terror  que  experimentou  des- 
cobrindo o  que  se  passaxa  na  sua  alma  foi  exacta- 
mente o  que  o  decidiu  áquelle  grande  impulso  de 
charidade  ao  qual  deve  o  viver  eternamente  na  me- 
moria dos  homens.  N'uni  dia  que  se  achava  todo  oc- 
cupado  da  violência  da  sua  pena  e  da  maneira  de 
lho  obstar  para  sempre,  tomou  a  Arme  e  inviolável 
reíolução  de  consagrar  toda  a  sua  vida  a  bom  dos 
pobres.  Assim  que  formou  este  generoso  di-i^nio,  o 
seu  coração  gozou  serena  c  perfeita  liberdade.  E 
pouco  depois  rocolbeu-se  ao  domicilio  de  Pedro  do 
Berulo,  fundador  da  congregação  do  Oratório.  Em 
seguida  foi  successivamente  cura  da  parochia  de  Cli- 
chy  •,  preceptor  dos  três  filhos  de  Manuel  Gondi,  con- 
de dejoigny  ;  ecura  deChàtillon.  N'esta  ultima  pa-  j 
rochia  é  que  fundou  a  confraria  da  Charidade,  que  ' 
foi  o  modelo  de  todas  as  que  depois  se  estabeleceram 
em  França.  Diremos  a  razão  da  origem  doeste  insti- 
tuto. (  Cunctuir-te-ha.J 


Passeios  i>i:  Lisboa  e  sed  termo  em  1603. 

Os  seguintes  extractos  s.ão  pa-sajons  litteralmentc 
trasladadas  dos  Diálogos  de  Luiz  Mondes  de  \  ascon- 
cellos. 

"Cobre  Lisboa  os  outeiros  evalles,  que  já  dissemos, 
com  as  fabricas  das  casas  e  templos,  dando  com  isto 
grande  comniod  idade  dealegre  vista  aos  mais  dos  seus 
moradores;  ]x>rque,  das  mais  das  cas.-is.  estando  edi- 
ficadas nas  ladeiras  e  cumes  dos  montes,  se  vô  gran- 
de parte  da  cidade,  e  do  seu  rio.  e  de  outras  juncta- 
monte  com  algumas  hortas;  jwrquo  está  de  tal  sorte 
assentada  esta  cidade  que,  saindo  d''ella  alguns  lira-  i 
cos  nobremente  povoiídos,  abraçam  entre  siamonissi- 
nios  vallos,  plantados  de  hortas,  que  tixlo  oanno  .-ile- 
gram  a  vista,  variando  cm  diversos  tem{tc»  a  \crdr 
hortaliç.i  com  que  os  pr.icfieos  ;igricultoros  cobrem  a 
sua  terra.  E.issini  damaiorparto  d;iscas;is  se\è  uma 
grande  machin.i  de  unidos  edilicios.  ou  juncto  com 
isft>  o  iiuir  ou  as  venlos  hortas ;  o  se  estas  \  istas  sâ« 
alogrk^s,  jul^ue-o  quem  o  goKi.  E  as  casais  que  cstSo 
chegadas  ao  mar,  do  ohmIu  cjue  d^ellas  se  vecm  di»- 
tinctamente  as  grandes  o  pe<)uon.isemlí;irc.ições,  umas 
.•«ncorad.is  e  outr-.is  n.ivejando,  que  coliseu,  que  ciic» 
o  que  theatro  com  novi»*  espectacuK»  se  lho  ptide  c^'m- 
par.ir?  .  .  .  Pois  não  só  tom  esta  varia  vista,  mas  es- 
tondendo-a  mais  sobre  .is  esp;iç\isas  aguas  do  rio,  <■»- 
f,"io-se  vendo  da  outra  parte  resplandecer  entre  osbo- 
risiintes  da  manhã  e  raios  do  sol  á  t.irde  as  branras 
casas  das  quii)t.-is  o  loirares  n'olla  editicadi».  E  não 
só^ozam  d'osfa  aloçre  o  f»rmos,i  vista  aquolles  a  quem 
coube  porsortc  viver  em  casas  d'onde  atculiam.  nu^ 


o  PANORAMA. 


143 


tixloc  os  homens  que  vem  a  esta  cidade  podem  goiar 
d'elU.  indo  passear  aos  outeiros  de  Nossa  Senhora  da 
Orara,  di)  Carmo,  doCastello,  deSancta  Catharina, 
e  dasCha<;as  .  .  .  Eáquelles  que  se  recrearem  de  pas- 
sear em  grandes  e  espa^-osus  praças  tem  a  do  Rocio , 
que  senão  sabe,  em  outra  cidade,  deoutra  tamanha, 
cercaila  de  nobres  casas  c  grandes  templos,  e  o  Ter- 
reiro do  Paço,  que  tenho  por  muior,  medindo  desde 
os  Paços  até  os  Contici,  o  qual  tendo  pela  parle  da 
terra  estas  illustres  e  reaes  fabricas  dos  l'ai;os  e  Con- 
tos, tem  pela  do  mar  ordinariamente  tantos  navios 
postos  com  as  proas  em  terra,  e  outros  ancorados,  que 
os  mastros  e  antenas  parecem  um  grande  bosque  de 
espessas  arvores.  Pois  o  passeio  deS.  Roque  até  des- 
cobrir a  Boa-Vista  não  pode  ser  cousa  mais  agradá- 
vel, vendo,  depois  que  s(>  sáe  dos  Moinhos  de  Vento, 
de  uma  parte  o  valle  da  Annunciada  cheio  de  hor- 
tas e  illustres  casas  até  Andaluzes,  e  da  outra  a  Boa- 
V  iíta  e  todo  o  seu  mar  até  fora  da  barra  :  e  os  pas- 
seios dos  caminhos  de  Belém  e  de  Enxobregas,  para 
íjuem  os  quizer  mais  largos,  que  cidade  tem  outros 
inais  alegres  nem  com  melhores  lins,  acabando  um 
no  sumptuosíssimo  e.  real  mosteiro  de  Belém,  digno 
enterro  dos  nossos  reis,  e  o  outro  na  devota  e  saucta 
casa  da  Madre  de  Deus  v  no  religioso  convento  deS. 
Francisco.  K  o  passeio  do  mar  não  é  inferior  a  ne- 
nhum dos  referidos ;  porque  olhando  para  a  terra  se 
vê,  não  sem  admiração,  a  grande  cidade  que  se  le- 
vanta sobre  as  ladeiras  que  olham  para  aquella  par- 
te, e  para  o  mar  innumeravel  quantidade  de  navios 
e  barcos  fazendo  outra  grandíssima  cidade  naval,  li 
para  que  tudo  seja  sempre  ledo,  depois  cpie  o  sol  a[j- 
parece  S(jbre  o  nosso  horisonte,  até  que  (como  lingeni 
os  po<!tas)  melte  o  seu  carro  nas  aguas  do  Oceano,  não 
deixa  de  espalhar  os  seus  raios  por  cima  de  tixla  a  ci- 
dade, como  que  a  faz  muito  mais  aJogre  e  deleitosa 
á  vista.  " 

"  O  pescado  d'este  rio  edo  mar  d'esta  costa  de  Lis- 
boa é  tand)  e  tão  bom  que,  como  cousa  tão  manifes- 
ta, não  ha  que  dizer  senão  encoramendar  a  quem  o 
quizer  sal)er  que  passeie  a  Ribeira  onde  se  vende  .  .  . 
mas  j)or(|ue  não  se  creia  que  uso,  como  os  poetas,  de 
encarecimentos,  uma  sóc(^usa  direi  que  mostrará  cla- 
rissimaniente  que  são  n'isto  muito  cúrias  as  minhas 
palavras,  e  n'ella  tanilicm  vereis  a  grandeza  d'este 
p)Vo.  E  obrigada  a  camará  d'esta  cidadt  a  dar  ces- 
tos aos  p<'scadores  que  chegam  á  Rilxúra  para  lavar 
o  pescado  que  trazem,  o  os  pescadores  em  recompen- 
sa dão,  sem  obrigação  que  a  isso  tenham,  o  peseado 
que  <jueri'm  a  quem  lhes  dá  estes  cestos  :  encommcn- 
<la  a  caniura  isto  a  certos  homens,  os  quaes  dão  os 
cestos  aos  pescadores  e  recolhem  o  peixe  que  elles  li- 
vremente liics  (Ião,  do  qual  o  terço  é  <hi  camará,  e 
nsoutras  duas  partes,  dos  homens  que  teem  isto  aseu 
cargo.  A  cannira  importa  o  terço  UdO.^oiio  réis  em 
que  o  traz  arrendado,  e  com  o  ipie  fica  vivem  onw^ 
homens,  ipie  tantos  são  os  (jue  dão  estes  ciístos.  n 

»(>(pie  chama  mo»  Ti-rmo  de  Lisboa  terá  |h-Io  mais 
comprido,  ipii-  c-  de  Tornas  até  (.'intra  eCascacs,  dez 
léguas,  e  pelo  mais  largo  rinio.  Este  circuito  de  fer- 
ra e  Ião  povoado,  como  ja  disw,  sendo  m.h  estradas 
principae»  <|u.isi  unia  «■oiitiiiiiada  ciilade.  K  assim  pa- 
rece que,  ijiraiiilo  fiira  inuilo  fértil,  não  |Mnle-riii  al- 
cançar a  mais  cjui-  Misteiitar  a  muita  gfiite  ipu!  n'es- 
le  liiiilti-  li.iliila  ;  e  não  só  faz  isto,  mas  é  Ião  grande 
a  quantidade  de  cargas  que  entra  rada  dia  em  Lis- 
boa, só  d'i'ste  espaço,  de  toda  a  sorte  di?  mantimen- 
tos (jiie  nrio  é  jMisKivel  dizer  iiuniiTo  certo^  porque 
•endo  quatro  lis  estrailas  priiieipaei  por  onde  vem, 
«pie  são  Kiixoliregas,  Airoioi,  Andaluz  <■  Abaulara, 
eadanma  d\-ll.is,  priíi('i|>aliiieiile  as  Ires  ultimas,  a 
qualquer  hora  do  dia  (|ue  (lor  ellas  se  cuminhe,  su  vô 


aestrada  continuamente  acompanhada  dascargasque 
entram  e  das  cavalgaduras  que  &áem  descarregadas ; 
e  já  vi  tão  espessas  as  que  entravam  e  as  que  saiam 
que  comparava  a  estrada  á  das  formigas,  da  eira  pa- 
ra o  formigueiro,  edo  formigueiro  para  a  eira,  umas 
carregadas  e  outras  vazias ;  e  não  trazem  um  só  man- 
timento, mas  todos  os  que  usámos  para  sustento  e  pa- 
ra regalo,  trazendo  trigo,  cevada,  \inho,  azeite,  hor- 
taliças, fructas  de  toiJas  as  sortes  e  de  todos  os  tem- 
pos, leite,  nata  e  manteiga  todo  o  anno,  cabritos, 
coelhos  e  perdizes ;  e  como  um  perenne  rio  está  isto 
continuadamente  correndo,  e  todjLS  estas  cousas  vem 
com  tanta  abundância  que  não  só  se  vendem  nas  pra- 
ças, mas  as  mais  dVUas  pelas  portas,  o  que  não  ha 
em  nenhuma  outra  cidade  das  que  se  tem  por  abun- 
dantes \  e  se  esta  cidade  não  fora  mais  provida  qu« 
todas,  sabendo  os  que  as  vendem  que  de  necessidade 
as  haviam  de  ir  a  comprar  á  praça,  não  tomaram  o 
trabalho  de  as  trazer  pelas  portas,  etoniando-o  é  cou- 
sa clara  que  a  muita  abundância  os  desconfia  da  ven- 
da i  e  tem  razão,  para  o  que  só  direi  o  exemplo  da 
fructa  de  CoUares,  pequeno  logar  d'este  districto,  a 
qual  é  tanta  que  rende  a  siza  d'ella  um  conto  de  réis, 
que  são  de  principal  vinte  e  cinco  mil  cruzados,  cou- 
sa que  parece  incrivel  •  e  considerando  a  este  respei- 
to as  outras,  bem  se  vê  a  abundância  que  de  todas 
haverá,  e  pelo  conseguinte  que  d'ella  procede  a  dili- 
gencia da  venda.  E  quem  vir  só  o  que  ha  de  Saca- 
vém até  Friellas  ao  longo  do  rio,  conhecerá  que  em 
tudo  o  que  disse  da  fertilidade  do  Termo  de  Lisboa 
fico  curto ;  pois.  em  só  uma  parte,  tão  pequeno  dis- 
tricto tem  cousas  tão  esplendidas  e  que  melhor  pro- 
vem a  fertilidade  ^  porque  aqui  se  vê  um  deleitoso  e 
útil  rio  navegável  em  lodo  este  espaço,  que  regando 
de  uma  parte  ferieis  vallcs,  da  outra  faz  copiosas  raa- 
riiilias  i  e  pela  terra  da  parte  de  Sacavém  ha  taiitos 
logares,  quintas,  vinhas,  pomares,  e  outras  muitas 
férteis  e  deleitosas  propriedades  que  excedem  não  só 
a  capacidade  dVsle  pe<|ueno  districto,  mas  á  de  ou- 
tro muito  maior  •,  e  considerando  isto,  vejo  que  não 
tem  tanta  o  tempo  nem  a  minha  lingua  que  possa 
explicar  a  largueza  com  que  Deus  beneficiou  a  todo 
o  Termo  d'esla  cidade  de  Lisboa,    pelo  que  o  deixo. 

Mas  também  saindo  fora  d'elle  <jue  cousa  ha  que 
se  Compare  com  os  logares  de  seus  campos,  que  do 
mesmo  modo  são  povoados  e  ferieis,  e  tanto  que  de 
Sacavém  até  a  Castanheira,  que  sãoquatro  léguas,  se 
veeni  doze  logares,  postos  no  caminho  ou  juncto  d"el- 
le,  e  alguns  grandes  e  lustrosos,  e  todos  tão  abunilan- 
ti?s  de  tudo  í|uo  do  mesmo  inodo  ])roveem  pelo  rio  a 
cidade  detodus  as  cousas  necessárias,  tão  copiosamen- 
te, que  entram  todos  os  dias  n'ella,  só  das  embarca- 
ções do  rio,  assim  d'estes  logares  como  dos  mais  que 
juncto  aelle  estão  assentados,  S(Mn  contar  asque  M'm 
dl'  fora  da  barra,  a  roda  de  cento  e  cincoeiíla  carre- 
gadas de  mantimentos,  s«'ndo  e»te  um  manifesto  si- 
gna! da  grandeza  ii'esla  cidade:,  |)orque  oque  trazem 
estas  barcas  e  tudo  o  mais  que  cada  dia  entra  n'ella 
se  gasta,  tie  sorl<;  qu<!  é  necessário  haver  esta  conti- 
nuação para  ser  bein  pro\ida.  Pois  que  diremos  tios 
leililissiinos  campos  qui'rega  oT<jo,  creados  por  par- 
ticular l'rovidiMieia  ile  Deus  para  a  grandeza  dVsl.i 
eidiíile,  pois  fora  im|)ossi\el  sem  elles  susli-ntar  >e  .  .  . 
Diz  Diodiiro  Siciilo  que  loila  a  abundância  da  Índia, 
ijue  ogramle,  procede  da  inuiulaçào  dos  rios.  Do  mes- 
mo modo  i'sles  lerlili^simos  campos,  recebendo  em  si 
a  agua  das  ciulieiite.s  do  Tejo,  se  l',izom  tão  fecundos 
i|Ue  em  selo  seniuiias  se  semeia  e  colhe,  produxiiido 
Ião  copiosamente  (pn-  eu  sim  colher  mu  lavrador  ile 
um  moio  í\i)  trigo  cineoenta.  « 

••  ( >  logar  onde  se  vendem  as  cousas  necessárias  a  \  id.i 
(de  que  Aristutvles  fiu  muito  cuiío)  eiitú  na  uiuis  com- 


144 


O  PANORAMA. 


moda  parte  que  pode  ser ;  porque  (diz  elle)  que  deve 
estar  em  parte  accommodada  para  com  facilidade  vi- 
rem a  ella  as  cousas  do  mar  e  da  terra :  e  assim  ve- 
mos n'esta  cidade  —  aRil)eira  que  é  a  praça  onde  se 
vendem  todas  as  cousas  do  comer  —  a  Rua  Nova  e 
Telourinho  Velho,  onde  se  acham  as  de  veslir  e  fa- 
7£m  as  almoedas  —  assentadas  de  modo  que  da  terra 
edo  mar  se  vem  a  ellas  cora  grandíssima  facilidade; 
porque  os  que  vem  do  mar  ahi  desembarcara,  cos  da 
terra,  sem  subir  nem  descer  nenhuma  hideira,  por 
caminho  chão  suavemente  chegam  a  estas  partes,  e 
não  falta  a  estes  logares  a  conimod idade  que  Vitru- 
vio  n'clles  considera ;  porque  diz  elle  que  as  cidades 
marítimas  devem  ter  a  praça  juncto  ao  porto;  —  e 
assim  estão  a  Ribeira,  Rua  Nova  e  Pelourinlio  \  e- 
Iho  —  ese  forem  dentro  da  terra,  e  apartadas  domar, 
que  a  praça  se  porá  no  meio  d'ellas,  para  que  os  mo- 
radores com  igual  commodidade  se  possam  prover  d'el- 
la  ;  —  a  qual  não  falta  a  estas  praças  deJ^isboa,  por- 
que como  ella  é  quasi  em  dobro  mais  comprida  do 
que  larga,  ficando  estas  praças  no  meio  do  compri- 
mento estão  cora  pouca  differença  em  igual  distancia 
dos  extremos,  ij — . 


Os  Templários. 

(Continuado  de  paj.  134.) 

Todo  o  auxilio  que  lhes  proporcionou  o  papa,  com 
c[uem  contavam  e  a  quem  invocavara  como  a  Deus, 
foi  uma  tiiuida  e  frouxa  consulta,  cm  que  intentou 
interpretar  a  palavra  relapío,  no  caso  que  se  quizes- 
se  applicar  este  nome  áquellcs  que  se  tivessem  re- 
tractado de  suas  confissões.  —  "Parece,  de  algum 
modo,  contrario  á  razão  julgar  tacs  homens  como  re- 
lapsos. Em  cousas  semelhantes  duvidosas  é  necessário 
restringir  e  moderar  as  penas."  —  Os  commissarios 
pontifícios  não  se  atreveram  a  fazer  que  prevalecesse 
<?sta  consulta  :  responderam,  no  domingo  pela  tarde, 
«pie  sentiam  grande  compaixão  para  com  os  defenso- 
res da  ordem  e  os  outros  irmãos ;  mas  que  o  negocio 
de  que  tractavain  o  arcebispo  de  Sens  e  seus  suffra- 
ganeos  não  era  o  que  incumbia  a  elles  commissarios  ■, 
que  í'llfcs  não  sabiam  o  que  se  passava  n'aquellc  con- 
cilio; que  se  a  commissão  estava  auctorisada  pela 
sancta  sé,  também  o  arcebispo  de  Sens  o  estava  ;  que 
ella  não  tinha  poder  sobre  aquelle ;  que  não  viam  a 
primeira  fista  de  que  fazer  objecção  ao  dicto  arce- 
bispo;  que  comtudo  pensariam.  —  Em  quanto  os 
commissarios  pensavam  no  caso,  tiveram  noticia  de 
que  eincoenta  e  quatro  templários  iam  ser  queima- 
<Íos :  fúrá  sufficiente  um  <lia  para  esclarecer  o  arce- 
bispo de  Sens  e  os  seus  sutlragancos Sigamos  passo 

a  passo  a  narração  dos  notários  da  commissão  ponti- 
fícia na  sua  terrível  simplicidade. 

«Na  segunda  feira  12,  durante  o  interrogatório 
de  Fr.  João  Bertaud,  cheirou  ao  conhecimento  dos 
oommissanos  (pie  eincoenta  e  quatro  templários  iam 
ser  queimados.  Encarregaram  o  prioste  de  1'oitiers  e 
i>  arcediago  de  Orléans  de  dizerem  ao  arcebis[K>  de 
Sens  e  a  seus  suffraganeos  que  deliberassem  com  ma- 
dureza c  deferissem  a  sentença,  visto  que  os  freires 
mortos  na  prisão  tinham  affirin.ado,  segundo  se  di- 
zia, sobre  a  sua  salvação,  «jue  eram  accusados  sendo 
iiuiocentes  :  que  se  a  execução  tivesse  logar,  iin|x'<li- 
ria  os  commissarios  de  fazerem  o  seu  officio,  estando 
os  accusados  por  tal  modo  horrorisados  que  pareciam 
])erdiili)s  (lo  juizo.  Além  d'isso.  um  dos  mesmos  eoin- 
iiiissarios  incumbiu-os  de  signilicar  ao  arcebispo  que 
Fr.    Rajuialdo  de  Pruin,   Pedro  de  Boulogne,   Gui- 


lherme de  Chamboonet  e  Eeltrão  de  Sartiges,  caval* 
leiros,  tinham  interposto  certa  appellação  perante  oS 
commissarios. " 

O  caso  era  de  grave  questão  de  competência  de 
jurisdicção.  Se  o  concilio  e  arcebispo  de  Sens  reco- 
nliecessem  a  validade  de  uma  appellação  dirigida  á 
commissão  papal  confessavam  a  superioridade  d'este 
tribunal ;  e  as  iinmunidades  da  igreja  gallicana  fica- 
vam lesadas.  I'or  outra  parte,  instavam  sem  duvida 
as  ordens  do  rei ;  O  mancebo  Marigni,  creado  arce- 
bispo expressamente,  não  tinha  tempo  para  dispu- 
tar :  retirou-se  para  não  receber  os  enviados  da  com- 
missão ;  depois  alguém  (ignora-se  quem)  poz  duvida 
que  elles  fallassem  em  nome  da  commissão;  Marigni 
duvidou  também,  e  seguiu  avante. 

Os  templários  conduzidos  no  domingo  ao  concilio 
foram  julgados  na  segunda  feira;  os  que  confessaram 
postos  em  lilwrdade ;  os  que  sempre  negaram  encar- 
cerados j)or  toda  a  vida ;  os  que  retractaram  as  con- 
fissões declarados  relapsos :  estes  últimos,  em  numero 
de  eincoenta  e  quatro,  foram  no  mesmo  dia  exaucto- 
rados  pelo  bisjx)  de  Paris  e  entregues  ao  braço  secu- 
lar :  na  terça  feira  foram  queimados  diante  da  porta 
de  St."  Antão.  Estes  desgraçados  tinham  variado 
nas  prisões;  mas  não  variaram  oaschammas,  protes- 
taram até  as  ultimas  a  sua  innocencia.  A  turba  as- 
sistente estava  muda  e  como  estúpida  de  assombro. 

Quem  accreditaria  que  a  commissão  poutificia  te- 
ria animo  para  reunir-se  no  dia  seguinte,  continuar 
o  inútil  processo,  e  interrogar  uns  cm  quanto  quei- 
mavam outros.'  .  .  .  —  .iN"a  terça  feira,  13  de  maio, 
foi  trazido  perante  os  commissarios  Fr.  Avmerico  de 
Villars-le-duc,  de  barba  rapada  e  lein  capa  nem  ha- 
bito do  Templo,  de  idade,  ao  que  dizia,  de  eincoen- 
ta annos,  tendo  servido  na  ordem  oito  annos  como 
irmão  servente  e  vinte  como  cavalleiro  :  os  senhores 
commissarios  lhe  explicaram  os  artigos  sobre  que  de- 
via ser  interrogado.  Mas  a  dieta  testimunha,  palli- 
da  e  toda  espantada,  depondo  debaixo  do  juramento 
d'alma  c  dizendo  que  de  súbito  morresse  elle  se  men- 
tisse, e  fosse,  na  presença  mesmo  da  commissão,  em 
corpo  e  alma  subvertido  no  inferno,  ferindo  o  peito 
com  os  punhos,  prostrando-se  de  joelhos  e  erguendo 
as  mãos  para  o  altar,  declarou  que  todos  os  erros  im- 
putados á  ordem  eram  de  inteira  falsidade,  posto 
que  elle  tivesse  confessado  alguns  no  meio  dos  trac- 
tos a  que  o  expozoram  Guilherme  de  Marcillac  e 
Hugo  de  Celles,  cavalleiros  do  rei.  Accrescentava 
que  tendo  visto  levar  em  carroças,  para  serem  quei- 
mados, eincoenta  e  quatro  freires  da  ordem,  que  não 
tinham  querido  confessar  os  dictos  erros;  e  tendo  ou- 
vido dizer  que  com  ctVeito  foram  queimados,  elle  que 
receava,  se  o  mesmo  lhe  acontecesse,  não  ter  Kistan- 
te  força  e  paciência,  estava  prompfo  a  confessar  eju- 
rar  por  temor,  perante  os  commissarios  ou  qn.iesquer 
outros,  todos  os  erros  assacados  á  ordem,  e  a  dizer 
até,  se  assim  quizessem,  <jue  tinlia  morto  ^oao  Se- 
nhor Jetus  Cfiriilo.  .  .  Supplicava,  e  conjurava  os  dic- 
tos commissarios,  e  nós  notários  presentes,  que  não 
revelássemos  ás  justiças  do  rei  o  (|ue  acabava  de  di- 
zer, temendo,  se  o  soulx^ssem,  ser  entregue  ,io  mes- 
mo supplicio  dos  eincoenta  e  <piatro  cavalleiros.  Os 
coinmissarios  vendo  o  perigo  que  ameaçava  os  decla- 
raiites,  se  elles  continuassem  a  ouvi-los  durante  .nquel- 
le  tempo  de  terror,  e  levados  também  de  outros  mo- 
tivos, restilveram  sobre«star  na  causa  ]x'r  agora,  t- 

A  commissão  p.inx-e  que  se  commovcra  com  est.-v 
scena  terrível  :  J>osto  (pie  enfraquecida  p<-la  deserção 
do  seu  presidente,  o  aret^bispo  de  Narlx>nna.  e  do 
bispo  de  Baveux,  (]ue  já  não  v  inham  .hs  sessões,  in- 
tentou salvar,  se  ainda  fosse  tcm^Ki.  os  três  princi- 
paes  defensores.  {  Coniinúa.) 


19 


O  PANORAiMA. 


U5 


ROIISSILLON. 


O  ANTico  condarlo  do  Roussillon  era  apenas  uma 
parte  da  exlensãi)  de  território  que  de[)ois  teve  esse 
nome,  c  hoje  ineorporada  na  Kraiira  Oirnia  o  depar- 
tamento dos  Pyrennéds.  Esta  rej^ifio  cliiimava-se  em 
lempos  remotos  reijio  sardunum,  verosimilmente  por 
causa  de  uma  eolonia  que  os  romanos  para  alii  leva- 
ram da  Sardenlia.  A  cidade  de  itiisciíio,  eolonia  ro- 
mana, foi  a  que  deu  nome  á  eomarea  de  que  era  ea- 
pital,  e  foi  n'ella  ([ue  os  reis  celtas  teclosiii^os.  no  an- 
uo íi'M>  de  Itoma,  te  ajuiii^laram  para  delilierar  nos 
meios  ilc  impeilir  a  Annilial  atravessar  os  doininios 
d'ellcs,  por  temor  de  que  attenlasse  contra  suas  liber- 
dades. I'resume-se,  porém,  que  esta  cidade  lòra  des- 
truída ou  pelo  n>enos  assolada  pelos  vândalos  ao  en- 
trarem na  llespaniia.  .M  não  é  mencionada  Uuscinu 
na  historia  ila  expedição  do  ri;i  Vamlia  contra  o  du- 
(|ue  Paulo,  escripla  no  reinado  d'a(|uelle  prineipc 
por  Juliano,  bispo  de  '1'oleilo,  posto  ((ue  n'ella  se  falle 
de  EIneede  todas  as  forl.ílczas  da  rejíião  o  mesmo  si- 
lencio se  observa  no  jul;<a mento  publicado  então  con- 
tra os  rchelladus,  e  que  é  uma  ridaiao  alihri'viada  da 
«xpe<lição  :  linda  esta,  ao  voltara  llespaiiha.  Vamba 
<lemorou-se  dois  <lias  em  lílue,  que,  sem  duvida  devia 
ter  a  cidaile  mais  imporlanle  :  <!onstaiiliiio  dcra-lhe 
o  nome  ile  Helena  em  honra  da  iinperatri/  sua  mãi  ; 
não  é  pois  para  admirar  (|ue  ella  iosse  a  capital  do 
Uoussillon  depois  da  ruina  di'  Kuscino,  de  quo  já 
não  ha  memoria  no  doniinio  dos  visi^^odos. 

O  eastello  do  Koussillon  está  eililicado  no  assento 
da  antiga  Kuscino  a  uma  lef;ua  de  l>crpinhão.  Vin- 
da se  encontram  em  excavações  niedalbas  romanas, 
c  alicerces  d(^  edilicios  (|ue  mostram  ler  sido  exten- 
sos ;  em  )7(>Sse  desciilerraram  uunierosiis  columnas, 
capit(MS,  cornijas  e  vaiios  socos  d<^  mariuore.  Da 
cidade  não  restam  mais  vesti^ios  (|ue  uma  turre  du- 
VoL.   I.    -  Janeiko  !t,   1847. 


lave)  por  antiguidade,  fragmentos  de  banhos  pnhlv 
COS,  e  alguns  pedaços  de  muralha  :  a  torre  é  rcdondí 
e  em  posição  admirável,  apparecc  de  longe  denegri- 
da pelos  séculos.  .Muitos  pardieiros,  obra  de  seis  ou 
sele  casas  coiistruiilas  ao  pé  da  torre,  uma  ermida  ve- 
lha que  serve  de  venda,  c  quanto  enfeita  a  antiga 
colónia  romana,  cessas  mesmas  habitações  arruina- 
das não  são  mais  do  que  restos  do  castro  levantado 
sobre  os  destroços  da  cidade.  —  Taléem  Ioda  a  par- 
te a  acção  do  tempo  e  o  andamento  dos  séculos ! 


BlOliRAPHIA   DK  S.    VlCKNTE  DB  PaUI.O. 

(Conlinuado  de  ])ag.  IH.) 

N'i'M  dia  de  festa,  estando  \icenle  de  Paulo  para 
fazer  uma  exhortação  aos  lieis,  .M.""  de  la  Chassai- 
gne  o  delcve  por  um  instante  e  lhe  rogou  que  en- 
comrncndasse  ã  cliaridade  dos  seus  compaiocliianos 
uma  familia  exiremanieute  pobre,  da  (|ual  tinham 
caído  enfermos  i|uasi  todos  os  lillios  e  criados  n'nm  ca- 
sal a  meia  légua  do  C.liàlillon.  Conformou-se  ello 
com  o  pedido,  e  demonstrou  com  bastante  energi.i 
aos  seus  ouvintes  a  necessidade  de soccorrer  os  pobres, 
sobre  tudo  quando  a  doença  se  ajiincta  á  indigência 
e  não  eslãu  no  caso  de  scalliviarem  por  seus  recur- 
sos, como  succudia  aos  que  alli  lecommeudavu  :  foi 
tão  persuasivo  que,  depois  da  precação,  muitos  dos 
que  a  ouviram  foram  visitar  a(|uclla  lamilia  pobre, 
e  nenhum  com  as  mãos  vasias  ;  li'\.ir.im-llie  alimen- 
tos com  profusão,  \  iceiíle,  leslimunlia  desle  /elo. 
não  o  achou  bem  eiilendido.  -  l'lis  ai)iii  (disse)  um 
grande  acto  do  cliaridadc,  purem  não  c  bciu  regula- 


ih 


o  PANORAMA. 


1^  I 


do.  Aquelles  pobres  terão  muito  provimento  ao  mes- 1 
mo  tempo,  porém  parte  se  estragar.-»  ep'>r'1'»rT,  o  rt"- 
pois  recairjo  na  primeira  mingua.  Esta  reflexão  mo- 
veuVicenlc  lic  Paulo  a  examinar  os  meios  pelos  quaes  ' 
se  poderiam  soccorrer  com  regularidade  as  famílias  \ 
que  SC  achassem  cm  igual  precisão.  Confcrencic)u  cum 
algumas  pessoas  ricas  e  caridosas,  e  por  fim  organi- 
sou  a  confraria.  Vinte  e  quatro  pessoas  do  sexo  femi- 
nino, de  Chàtillon,  foram  as  primeiras  nomeadas  pa- 
ra assistir  aos  enfermos,  sob  a  direcção  de  uma  re- 
gente que  d'entre  si  escolheram.  È  notável  n  regula- 
mento escripto  por  Vicente  de  Paulo  :  citámos  o  ar-  i 
tigo  10.°,  como  exemplo  da  singeleza  c  bondade  que 
por  todo  clle  respiram.  — «  Para  queumaassociarão, 
que  muitas   vezes  não  é  composta  senão  de  pessoas  i 
obrigadas  a  viver  do  trabalho  de  suas  mãos,  não  fa-  t 
ca  prejuízo  ao  governo  da  casa  das  que  forem  dignas 
de  ser   admittidas,    as  irraãs  da  confraria  assistirão 
por  seu  turno  aos  doentes  por  um  dia  somente.  Pre  - 1 
pararão  o  alimento  dos  enfermos  e  lh'o  servirão  por  j 
suas  próprias  mãos  ;  procederão  para  com  cHescomo  | 
a  mãi  cheia  de  ternura  para  com  o  próprio  filho;  e  [ 
procurarão    distrahi-los   e  alegra-los  se  parecerem  ' 
muito  succumbidos  da  moléstia.  »  —  Os  bons  créditos  1 
e  resultados  da  confraria  foram  rápidos,  e  começaram  ] 
logo  a  imita-la  eui  todas  as  cidades  circumvisinlias, 
e  depois  cm   toda  a  Lorena,  na  Sabóia  e  na  Itália. 
A  familia  do  conde  de  Joigny.  da  qual  Vicente  fora 
preceptor,  não  podia  costumar-se  a  viver  separada 
do  seu  mestre;  resolveu-o  a  recolhcr-seaoseu  grémio, 
conservando  porém  a  liberdade  de  fazer  missões.  Ao 
mesmo  tempo  visitava  clle  os  hospitaes  e  as  prisões. 
Em  1618  viu  em  Paris  os  calabouços  dos  torçados  das 
galés,  e  commoveu-o  por  tal  forma  o  horroroso  esta- 
do de  desaceio,  e  padecimentos  docorpoe  alma,  em 
que  se  achavam,  que  rtsolveu  occiípar-se  do  allivio 
d'esta  classe  de  miseráveis.  Alugou  uma  casa  no  ar- 
rabalde de  Sancto  Honorato,  fè-la  preparar  com  ex- 
trema diligencia,  e  conseguiu  transportar  para  alli 
lodos  os  forçados  que  estavam  dispersos  pordifferen- 
tes  prisões  de  Paris.  O  conde  de  Joigny,  que  era  o 
general  das  galés,  lhe  concedeu  a  faculdade  de  dispor 
daquellcs  infelizes  á  sua  vontade.  Vicente  de  Paulo 
«hegou   a   obler  grande  auctoridade  na  consciência 
d'elles,  e  attrahiu  grandemente  para  e.s-ta  sua  obra  a 
opinião  publica.  Luiz  \I1I,  sobre  proposta  docoD- 
de,    nomeou-o   capellão  geral  das  galés  de  França. 
Seria  por  I()22  que  Vicente,  comiiadecido  da  deses- 
peração que  exprimia  um  condemnado  com  aidéa  da 
miséria  em  que  a  sua  ausência  sepultaria  a  sua  fa- 
milia,  restituíra   a  esse  homem  a  liberdade  ficando 
no  seu  logar  com  o  consentimento  doolllcial  de  ser- 
viço ;  mas  este  facto  tem  sido  mui  contestado. 

Em   1623  estabeleceu  em  Al.icon  duas  confrarias  i 
da  Charidade,  uma  de  homens,  outra  de  mulheres. 
Dois  annos  depois  recolheu-se  ao  collcgio  denomina- 
do dcs  llons-Enfaiis,  que  fora  fundado  em  12i8,   c 
que  pelo  novo  regulamento  fora  cspecialuicnte  desti- 
nado a  mandar   para   toda  a  parte   missionários  — 
«para  instruir  o  povo  dos  cam(ios,  e  exercitar  no  sa- 
grado ministério  aquelles  a  quem  a  salvação  d'esse 
mesmo  povo  devia  ser  confiada  de  futuro.  »  — Vicen- 
te eslava  angustiado  por  causa  da  ignorância  e  cor- 1 
rupçãodc  grande  parte  do  rlero.  —  .c  llevemos  ^dizia 
elle)  fazer  algum  esforço  para  acudir  a  esta  urgcnle 
necessidade   da    Igreja,  que  se  deteriora  cm  muitas 
parles  pela  má  vida  dos  sacerdotes  ;  porque  são  cllcs  ' 
que  a  arruinam  c  que  a  perdem  ;  c  a  inda  mal  que  «  ' 
muita  verdade  que  a  depravação  d«  estado  ecdosias-  | 
tico  é  a  causa  principal  de  se  desamparar  a  Igreja  \ 
de  Deus.  »  —  D'eslc  modo  a  sua  actividade  e  zelo  in- i 


fatigáveis  subiam  ás  origens  d-j  damno  moral  e  do 
physiro. 

Instituiu  cm  1623  a  congregação  das  irmãs  da 
Charidade.  É  quasi  o  mesmo  projecto  que  o  das  con- 
frarias da  Charidade;  mas  a  expi;ri''ncia  tinha  mos- 
trado que  a  dedicação  dassenhor^ts  ricas  e nobres  não 
podia  manter-se  por  muito  tempo,  e  ser  tão  assídua 
que  fosse  siifiicientc  para  os  cuidados  que  exigiam  o» 
doentes:  julgou-se  que  a  melhor  resolução  era  ter 
serventes  que  se  occupassem  unicamente  no  tracta- 
mento  dos  pobres  enfermos.  Vicente  associou-se  a 
este  plano,  e  o  poz  brevemente  em  practica.  As  pri- 
meiras irmãs  da  Charidade  rcuniram-se  em  1633  sob 
a  direcção  de  uma  pessoa  de  grande  virtude,  M.<^lle 
Legras.  A  regra  que  Vicente  formou  para  esta  con- 
gregação, que  mais  tarde  se  devia  estender  por  toJa  a 
França,  respira  prudência  «  sabedoria  :  estabeleceu 
a  dilTerença  que  deve  existir  sempre  entre  as  irmãs 
da  Charidade  e  as  religiosas,  recommendando  ás  pri- 
meiras seguirem  uma  vida  tão  perfeita  como  se  fos- 
sem claustraes  ;  e  accrescenta  a  este  respeito  :  — 
«Elias  não  teemurdinariamente  pormosteirosscoãoat 
casas  dos  doentes,  por  cclla  um  quarto  de  aluguer, 
por  capella  a  igreja  da  sua  parochía,  por  claustro  as 
enfermarias  dos  hospitaes,  por  clausura  a  obediên- 
cia, por  grade  o  temor  de  Deus,  c  por  véu  uma  saneia 
e  exacta  modéstia.  »  — 

\  compaixão  de  Vicente  pelos  engeitados  era  ha- 
via muito  tempo  vigilante  ;  porém  as  circumslancias 
favoráveis  para  acudira  mais  esta  miséria  não  se  lhe 
oITcreceram  senão  correndo  o  anno  de  1618.  Antes 
d'esta  epocha  os  recem-nascidos,  que  se  achavam  ex- 
postos ás  portas  das  igrejas  nu  nas  praças  publicas, 
eram  levados  pelos  commissarios  do  Chãtelét  para 
casa  de  uma  viuva  na  rua  St.  Landry.  que  com  duas 
criadas  se  encarregava  de  cuidar  d'elle5.  Como  o  nu- 
mero das  creanças  era  grande  e  as  esmolas  medíocres, 
a  viuva,  por  falta  de  suilícicnte  rendimento,  não  po- 
dia nem  conservar  amas  bastantes,  nem  alimentaros 
desmamados ;  e  assim  a  miir  parte  dos  meninos  mor- 
riam de  itebilidade,  on  ernm  dados  a  quem  os  q«e- 
ria,  e  até  vendidos  por  vil  preço,  ás  vezes  por  vinte 
soldos.  •—  Vicente  rogou  a  algumas  senhoras  nobres 
que  fossem  áquella  casa,  e  vissem  se  poderia  evitar- 
se  ou  [lelo  menos  diminuir-se  tão  grande  mal.  .asse- 
nhoras horrorisaram-se  do  espectáculo  que  appre- 
scnlava  aquella  multidão  ilecreanças  privadas  de  tu- 
do ;  não  podendo  tomar  á  sua  conta  todos  ellcs,  qui- 
zeram  eucarregar-se  de  salvar  a  vida  de  alguns  ;  ti- 
raram doze  á  sorte,  e,  para  os  arcommodar,  aluga- 
ram era  I63S,  uma  casa  jiinclo  á  porta  de  S.  Victor. 
Ensaiaram  primeiro  crea-los  a  leite  de  cabra  ou  de 
vacca  ;  mas  depois  deram-lhes  amas.  t^omludocsca- 
ceavani  recursos  para  ampliar  este  beneficio  quanto 
era  para  desejar.  Em  16  U).  \'icenle  convocou  uma 
assembléa  geral.e  persuadiu  ás  senhoras,  que  se  acha- 
ram presentes,  encarregarem  se  de  maior  numere  de 
ineninos.  Para  esta  tdira  alcançou  de  .\nuad'.Vuslria 
edo  rei  doze  mil  libras  de  rendimento,  porem  as  des- 
pezas  eram  cada  vez  mais  pczadas.  Algumas  vezes  es- 
tiveram a  ponto  de  desanimar.  Foi  para  reanimara 
confiança  e  para  fazer  loniar  um  partido  delinilivo 
que  Vicente  reuniu,  em  1618.  uova  assembléa  geral, 
recitando  um  discurso  em  quo  se  acham  «ítss  pala- 
vras : — n  Einfim,  senhoras,  a  charidade  vos  friadcp- 
tar  estas  creaturinhas  como  filhos  vossos,  lendessido 
mães  (Felles  segundo  a  graça  depois  que  os  abandona- 
ram suas  mães  segundo  a  natureza  :  vede  se  também 
os  quereis  abandonar.  Cessai  agora  de  ser  mães  para 
serdes  osjuizesdos  mesmos:  asuavida  ou  mort* es- 
tão nas  vossas  mãos :  eu  vou  recolher  os  Totos  e  suf- 


o  PANORAMA. 


447 


íragios  ;  é  lempo  de  pronunciar  a  sua  sentença  e  de 
saber  se  já  não  quereis  ter  misericórdia  (l'elles.  Vi- 
verão se  continuardes  a  tracta-ios  com  charitalivo 
desvelo,  ao  contrario  morrerão,  perecerão  infalli- 
velmente  se  os  abandonardes  :  a  experiência  não  vos 
permitteduvida.  »  —  A  asscmblca  só  respondeu  com 
lagrimas.  Decidiu-se  que,  custasse  o  que  custasse,  se 
continuaria  o  que  fora  tão  Ijcm  começado  :  as  crean- 
ras  tiveram  primeiramente  por  hospício  o  hospi- 
tal de  Uicótre  ;  mas  era  alli  o  ar  muito  agudo,  e 
traniportaram-n'as  depois  para  o  arrabalde  de  S. 
Lazaro,  para  o  arrabalde  de  S.  Antão,  eparajuncto 
de  Nòlrc-Dàme. 

A  vi'1a  de  S.  Vicente  de  Paulo  foi  tão  abundante 
e  tão  fecunda  de  inspirações  charitativas  que  seria 
impossivel  indicar  todos  os  titulos  por  que  elle  me- 
rece a  gratidão  e  a  admiração  da  posteridade.  Não 
fallaremos  dos  soccorros  quecolligiu  embeneDcio  da 
Lorena,  quando  esta  provincia  foi  assolada  pelos 
suecos  em  16.39,  a  favor  da  Picardia  e  da  Champa- 
gne  nos  alborotos  da  discórdia  cognominada  da  Fron- 
de, a  pró  dos  pobres  sacerdotes  irlandezcs  eescocezes 
duranlca  revolução  ingieza.  Passaremos  em  silencio 
os  seus  csferços  para  desarreigar  o  costume  dos  desa- 
fios, p  os  seus  conselhos,  muitas  vetes  aspt-ros,  á  co- 
roa para  evitar  as  funestas  dissensões  do  reino.  — 
Era  mister  declarar  também  a  parte  que  tomou  nas 
missões  destinadas  a  confíjrtar,  allumiar  e  civilisar 
povos  desgraçados,  o  zelo  com  que  animou  os  padres 
que  por  convite  de  Innocencio  X  enviou  a  Madagás- 
car, (jista  a  comprehcnder  o  como  um  homem  só, 
sem  outra  força  mais  que  a  sua  palavra,  poude  pres- 
tar ;i  lium.iniiiade  tantos  e  tão  dilTerentcs  scr\iços,  c 
dilTuiidi-los  em  tanta  latitude  .durante  a  sua  vida  e 
•lepois  da  sua  morte.  A  charidade  fez  lodos  esses  mi- 
lagres. O  nome  deS.  Vicente  d'  Paulo  é  do  peque- 
no numero  d'aquellesque  as  nações  modernas  podem 
f^vanlajosamenlc  equi()arar  a  quantas  memorias  illus- 
treso  bellas  a  antiguidade  nos  legou  para  honra-las. 
As  glorias  mais  estrondosas  do  paganismo  perdem  o 
brilho  em  presença  d'aquella  virtude  tão  sincera,  tão 
liura,  tão  engenhosa. 

liis-aqui  o  retraio  que  os  historiadores  nos  dei.va- 
ram  cie  tão  sancto  varão.  —  Era  de  estatura  media- 
na, tinlia  a  cabeça  gratuleeum  tanto  calva,  tcsla  es- 
paços.'), olhos  vivos,  olhar  meigo,  porte  grave,  e  gran- 
de aflahilidade  de  maneiras  :  nos  seu-  modos  egcsto 
reinava  aquella  singeleza  que  annuncia  a  serenidade 
e  rectidão  docoraçno.  Seu  temperamento  era  bilioso 
c  sanguíneo,  e  rebu.st.i  a  eonipiciçãu  :o  captiveiroem 
Tunes  verosimilmente  a  alterou,  (lorque  depois  de 
restituído  á  Trança  foi  sempre  mais  sensível  do  que 
poderia  suppor-se  ás  impressões  atiuospherioas,  e  por 
consequência  mui  sujeito  a  ataques  de  lebre  —  Kra 
dotado  de  espirito  \aslo.  cireumspeclo,  e  díllicil  de 
colher  de  iniproíiso  :  quando  se  applíia\a  seriamen- 
te a  um  negocio,  descortinava  Iodas  as  circumstan- 
cias  K'raiiil(s  (■  pe(|uruas,  e  untcv  ia  ds  íucon\ei)ienles 
c  resulladcis.  Ouamiii  nao  poilia  ilcclaiar  logo  o  seu 
[larecer,  dílleria  para  da-lo  até(|ue  houvesse  pezado 
as  raziies  pró  e  contra  :  mas,  se  por  um  ludo  não  era 
apressaclii  iids  nej^oiios,  por  outro  nãii  se  a^solnh^av.^ 
com  o  numero  d'etles,  n>'iii  com  asdillículdades  que 
appresenlavaoi  ;  piiiseguíaos  com  um  \ígor(r8nimo 
su|)erior  u  todos  os  obstáculos,  e  applieava  se  a  isto 
com  sagacidade  bem  ordenada  elumiiiosa  ;  supporta- 
va  o  pezo  (Telles,  as  ludígiis  c  os  \agares  eoiii  uma 
serenidade  c  paz  d'espirito  duque  só  as  almas  gran- 
<les  são  e.ipazes.  (,)iiaiido  se  olVerecia  Iraclar  de  al- 
gum assumpto  iuifiurlaute,  escuilava  eoni  muita  at- 
tenção  i|iietM  r.ill,i\a,  sem  iiuih.i  iiit('iTi>ui|ii'r ;  se  al- 


guém lhe  cortava  o  fio  do  discurso,  parava  logo,  e 
q«ando  acabava  o  interlocutor,  tomava  o  seguimento^ 
da  oração  com  admirável  presença  d'espirilo.  Posto 
que  houvesse  inventado  bastante,  ou,  para  melhor 
dizer,  tivesse  feito  applicação  da  charidade  sob  mai- 
las  formas  novas,  eslava  longe  de  innovações  em  to- 
do o  gen«ro  ;  dizia  que  —  '<  o  espírito  humano  é  ágil 
e  buliçoso  ;  que  os  talentos  mais  agudos  e  mais  illus- 
trados  não  são  sempre  os  melhores  não  sendo  refrea- 
dos ;  e  que  mais  seguramente  caminham  os  que  »» 
não  affaslam  da  senda  por  onde  pastou  amaioria  dos 
sábios.  »  — 

Crer-se-hia  que  em  outra  cousa  não  cuidava  senão 
nos  pobres  ;  nada  o  aflligia  tanto  como  vèr-se  em  cir- 
cumslancias  de  não  os  poder  confortar:  a  vista  e até 
só  o  nome  dos  infelizes  lhe  causava  uma  compuncção 
que  se  manifestava  na  exterioridade  :  pronunciava 
em  tom  repassado  de  ternura  aquellas  palavras  das 
ladainhas  :  Jesus,  pai  dos  pobres  »  ;  e  apesar  de  ser 
tão  senhor  de  si,  logo  que  lhe  annoncíaram  qualquer 
grande  necessidade  de  alguma  família  ou  de  algum 
particular,  divisavam-se-lhe  no  rosto  todos  ossignaes 
de  um  houiem  penetrado  de  alTlícção. 

Boísnel,  em  uma  carta  a  Clemente  XI,  explica-se 
a  respeito  de  S.  Vicente  de  Paulo  da  maneira  se- 
guinte:—  «Tivemos  a  fortuna  de  o  conhecer  logo 
em  nossos  tenros  annos.  Assuas  piedosas  practicas  e 
prudentes  conselhos  não  contribuíram  pouco  para 
nos  inspirar  o  gosto  da  verdadeira  e  solida  piedade 
e  o  amor  á  disciplina  ecclesiastica.  Na  idade  avan- 
çada em  que  nos  achámos  não  podemos  recordar-nos 
d'isto  sem  alegria  extrema  .  .  .  Nunca  faltava  que  ca- 
da um  de  nós  o  não  ouvisse  com  insaciável  avidez,  e 
não  sentisse  em  seu  coração  que  Vicente  era  um  d'esses 
homens  de  quem  o  Apostolo  diz  :  — Se  algum  fallar, 
pareça  que  falia  Deus  pela  sua  bocca.  —  n 

Vicente  de  Paulo  passou  á  eterna  vida  a  :27  de  se- 
tembro de  l(it'0  :  a  noticia  dVste  acontecimento  es- 
palhou geral  consternação  na  França.  Foi  recitada  a 
sua  oração  fúnebre  por  Henrique,  bispo  de  Puy,  n.i 
igreja  de  St.  (iermain-rAuxerrois.  O  breve  da  sua 
beatificação  é  datado  de  13  dagosto  de  1729. 


Mauomet  ou  M.tFCM.t. 

(Vide  pag.  9tí.) 

A  vini  de  Mahomet,  Mafuma  ou  Mafamcde,  como 
lhe  chamaram  os  nossos  escriptores  antigos,  é  um  as- 
sumpto grave  e  digno  de  attenção. 

Pertenci  1  .Maloma  á  tribu  dos  coraichilas,  a  mais 
antiga  da  Arábia,  e  os  seus  antepassados  descemiiím 
de  Ismael  lilho  <le  Abrahãii(l).  Ksta\a  n'este  tem- 
po sujeita  a  .Vrabia  a  estranho  jugo  ;  os  imperadores 
de  Constantinopola,  os  reis  da  l'ersia  c  da  .Vbyssi- 
nia  nccu(iavaiu  militarmente  a  maior  parle  das  pro- 
víncias da  península.  Só  .Meca  e  as  terras  sertanejas 
haviam  conserva<lo  a  sua  independência,  sem  que 
lhes  alterasse  a  tranquillídade  senão  a  turbulência 
iiiherente  aos  costumes  dos  povos  nómades.  .\lém 
d'ísso,  .Meca  era  citada  eciuio  a  primeira  cid.idi-  da 
Arábia  ;  a  memoria  d'Abrahão  e  de  Ismael,  a  rau- 
tageni  de  encerrar  nos  seu  muros  a  Caaba  ou  casa 

(I)  Nasceu  i'iii  Meca  na  srguinlauiclaili'. In  decimo  Oi- 
Klso  século,  (|iel(i  anuo  ile  .^(i;l  ilc  J.C,  )  Cunsdllao  o  excel- 
lenle  Iraliiilliode  Mr.  Itt-iniiud,  assim  enniu  a  Viilndf  Mn- 
Imiiut  |iiir  liagnier  ;  a  (|ue  Savaij  |io/  na  IVenie  ila  kiia  iru- 
ducvãoiKi  Kiiian  ;  o  a  oliia  de  .Mi .  (irassi,  |iiililli'ada  com 
II  mui  >  lie  t':irla  lurca,  Cli'. 


•  f 
^48 


O  PANORAMA. 


quadrada,  a  tornavam  um  como  sanctuario  para  os 
árabes.  Mas  a  dom iua<;ão  de  tantos  povos  dirersos 
eiercí-ra  poderosa  influencia  nos  ânimos.  As  provín- 
cias sujeitas  aos  romanos  e  abissyiiios  quasi  que  não 
eram  |>i)voadas  senão  dcclirislãos  e  judeus,  a  religiiio 
dos  sabeusedos  magos  dominava  nas  províncias  per- 
sas, as  outras  seguiam  o  culto  dos  ídolos. 

Os  habitantes  de  Meca,  principalmente,  se  tinham 
dado  a  Iodas  as  practicas  do  paganism.).  Viam-se  den- 
tro da  Caaba  as  estatuas  de  Ahrah.^o  e  Ismael  com 
sete  flechas  na  mrio,  por  meio  lias  quaes  (is  idolatras 
suppunham  adivinhar  o  futuro.  Da  parle  de  fora  es- 
tavam dispostas  trezentas  e  sessenta  estatuas,  cada- 
«ma  das  quaes  presidia  a  um  dos  dias  do  anno.  Umas 
representavam  anjos,  outras  planetas  e  estrellas  ;  to- 
das ellas  tinham  o  seu  culto  especial,  os  seus  adora- 
dores, as  suas  olTerendas,  Invocavam-n'as  para  que 
fizessem  descer  a  chuva  do  céu  e  amadurecer  as  mes- 
ses ;  algumas,  segundo  diziam,  davam  thcsouros  e  fa- 
voreciam o  nascimento  dos  meninos,  como  o  Plutoc 
a  Lucina  dos  antigos.  Cada  tribu,  cada  família,  po- 
dia escolher  a  divindadequelheconvinha;  chegavam 
a  sacrificar  victimas  humanas  a  estes  dsuses  de  p.íu, 
de  pedra,  de  cristal  e  de  bronze. 

Mafoma  nasceu  na  idolatria  ;  os  seus  aM')S,  por 
muitasgerações,  níio  tinham  seguido  outro  culto.  Ce- 
do perdeu  seu  pai.\bdala  esuamãi  Amina,  dosquaes 
herdou  unicamente  cinco  camellos  c  uma  escrava 
cthíope.  Mas  seu  avó,  que  era  um  magistrado  vene- 
rando na  Meca,  tomou  conta  na  sua  educação  ;  e  por 
morte  freste  parente,  seu  tio  .\bou-Tlialed  o  recebeu 
cm  casa.  Contava  apenas  Mahomet  treze  annos  quan- 
do emprebendeu  com  seu  tio  a  primeira  viagem  á  Sy- 
rta.  Usavam  entiio  os  de  .Meca,  ainda  os  mais  illus- 
tres,  dar-se  ao  commercío  ;  elles  transportavam  para 
Damasco  os  aromas  e  perfumes  da  índia  e  da  Ará- 
bia, recebendo  em  troca  trigo,  e  os  pannos  e  produc- 
tos  do  Occidente.  Todavia  a  pobreza  de  Mafoma  op- 
punha-se  á  sua  elevação  ;  Cadígia,  rica  viuvado  Me- 
ca, tomou  a  seu  cargo  remover  este  obstáculo,  con- 
fiando a  direcção  do  sen  commercío  ao  moço  Maho- 
met, com  quem  depois  casou.  Ihabarí,  na  sua  cbro- 
nica  árabe,  celebrou  a  niagnincencía  das  vodas  e  o 
esplendor  dos  novos  esposos.  Cadígia  estava  a  com- 
pletar então  os  quarenta  annos,  em  (juanlo  que  Ma- 
liomet  ainda  não  tinha  vinte  e  cinco. 

Mahonicl,  desde  o  momento  em  que  se  viu  senhor 
d'uma  fortuna  immensa,  premeditou,  conforme  tudo 
induz  a  crer,  a  revolução  que  em  breve  haviadeef- 
feiluar.  As  viajens  linham-lhe  esclarecido  o  entendi- 
mento, e  profunda  impressão  lhe  devera  lazer  o  culto 
dos  judeus  c  dos  chrístãos.  So  elles,  com  elTeito,  rc- 
pclliam  a  idolatria  ;  só  ellos  reconheciam  ura  Deus 
único,  a  quem  tributavam  adoração.  .Miiiiouiel,  que 
tinha  feito  lhe  lessem  os  livros  do  Velho  c  Novo  Tcs- 
tanunto,  deu  muitas  demonstrações  de  respeito  aos 
christaos  e  aos  judeus  ;  não  contente  com  admittiros 
livros  sanctos  como  base  da  sua  religião,  adoptou  ao 
princí[)io  muitas  das  suas  reremonías.  A  historia  na- 
da diz  acerca  d'esla  primeira  parte  da  sua  c.irreíra  ; 
sabe-se  comtudo  que  se  retirava  todos  osaniius  para 
uma  caverna  visiiiha  a  Meca  para  meditar  solirc  as 
cousas  celestes.  Disse-se  que  Mabometnão  sabia  li'r 
nem  ecrcvcr,  o  que  é  pouco  provável.  Talvez  qiicel- 
le  quizesse  inculcar  uma  ignotancia  completa  para 
prova  de  que  as  suas  pregações  futuras  não  podiam 
ser  filhas  do  raciocínio  do  um  homem  privado  de  to- 
da a  inslrucção,  equc  as  suas  palavras  só  deviam  ser 
consíderailas  como  inspirações  do  .Vllíssimo. 

Divulgou-sc  a  final  a  sua  falsa  niísião.  l'm  dia  que 
I,  W*Vi*  encerrado  na  caverna,  apparcccu-lhc,  scgun- 


j  do  clle  mesmo  contou,  o  anjo  C  ibríel,  e  moslrando- 
Ihe  as  insliucçõcs  qae  irazia  dus  céus,  saudou-o  com 
I  o  titulo  de  apostolo  do  Eterno.  .Mahomet  voltou  lo- 
go para  casa  e  deu  parte  dasua  avintura  aCadi^ia, 
a  qual,  sem  hesitar,  lhe  deu  credito.  Este  exemplo 
I  foi  seguido  por  Ali,  filho  de  Abou-ihaleb,  e  lambem 
por  Abou-  Bekr,  que  succedeu  a  Mafoma.  A  nova  re- 
ligião contou  em  breve  no  numero  dos  seus  discipa- 
los  Osman  e  outros  personagens  celebres.  Todos  ellftt 
tiveram  o  nome  de  musutmanos,  d'uma  palavra  ára- 
be que  significa  «  enlregar-sc  nas  mãos  de  Deus  » 
Firmava-os  Mahomet  na  sua  crença,  e  fortalecia-lhes 
o  zelo  por  meio  de  revelações,  que  dizia  receber  do 
céu  de  tempos  a  tempos.  Ao  cabo  de  três  annos  de 
occultas  diligencias  resolveu  Mahomet  apparccerao 
dia  claro  ;  convidou  para  um  banqueteos  seus  tiose 
outros  parentes  que  tinham  até  alli  persistido  no  cul- 
to dos  Ídolos,  e  expozaos  convidados  os  vicios  da  id«- 
latría  ;  provou-Uie  que  debalde  esp-rariam  bens  de 
imagens  informes  que  não  viam  nem  ouviam  :  <•  Ha 
ahi  entre  vós  alguém  que  queira  ser  meu  visir  e  meu 
inimediato,  exclamou  elle,  como  Aarão  o  foi  antiga- 
mente de  .Miiysés"?  »  Ao  ouvir  estas  palavras  o  joven 
Ali,  que  apenas  tinha  doze  annos,  respondeu  :  «  Sim, 
apostolo  de  Deus,  serei  teu  visir,  leu  immediato.  » 

Fazia  progressos  a  nova  religião.  Entre  03  prose- 
lylos  notava-se  Ilamza,  tio  de  Mafoma,  e  Ornar  que 
depois  foi  kalifa.  O  primeiro,  com  um  génio  fogoso 
e  irritável,  foi  attrahido  pelas  perseguições  que  co- 
meçavam a  suscitar  contra  sen  sobrinho  ;  aa  segundo 
tucoii-lhe  o  coração  a  leitura  d'uma  passagem  do 
Koran.  A  medida  que  o  poder  do  innovador  crescia, 
mais  se  irritaram  os  seus  inimigos  :  e  já  as  duas  par- 
cialidades se  não  encontravam  sem  travar  brigas. 
Mahomet  resolveu  dissimular,  e  esteve  algum  tempo 
escondido,  limitado  ao  tracto  dos  seus  amigos.  No 
tempo  das  ceremonias  da  peregrinação,  quando  em 
Meca  SC  reuniam  todas  as  Iribus  da  .\rabia,  appro- 
veitou-se  d'este  immeuso  concurso  do  povo  para  in- 
sinuar a  sua  doutrina  aos  estrangeiros  :  lomava-os 
de  parte,  e  rccitando-lhes  alguns  capítulos  do  Ko- 
ran, dizia-lhes  :  "  Eu  sou  o  apostolo  de  Deus  :  o  livro 
que  vos  anuncio  prova  a  verdade  da  minha  missão. 
O  senhor  vos  manda  que  rejeiteis  o  que  é  indigno 
d'ella,  e  que  o  sirvaes  a  clle  só  ;  quer  também  que 
creaes  em  mim  e  que  me  obedeçaes.  •> 

Chegaram   entretanto  a  .Meca  alguns  idolatras  de 
.Medina,    idolatras  e  judeus  da  tribu  de  Levi  occu- 
pavam  ao  mesmo  tempo  esta  cidade.  .\"uma  guerra 
que  se  acccndèra  entre  as  duas  nações  tinham  osju- 
deus  sido  vencidos  e  reduzidos  a  caplivciro  :  ora,  no 
excesso  dos  seus  males,   exclamavam  algumas  vezes  : 
<i  Sc  o  Messias  viesse,  iriamos  ler  com  clle,  e  nos  11- 
'  berlariamos  da  tyrannia  destes.  >'0s  idol.ilrasdcMe- 
I  dina,    quando  chegaram  a  Meca,  tendo  ouvido  fal- 
'  lar  d'um  novo  prophela,  disseram  uns  aos  outros  ; 
!  «  Quem  sabe  se  olle  será  o  prophrla  de  que  nos  fal- 
iam os  judeus?  \'amos  ler  com  elle,  e  chamemo-lo 
i  ao  nosso  partido.  <•  .\ppresenlaram-se  pois  a  Maho- 
j  met,  que  lhes  pregou  a  unidade  de  Deus,  e  subita- 
mente se  pozeram  ;i  sua  obediência.  Tal  era  o  ardor 
'  do  zelo  d'estes  neophylos.  que  quando  chegaram  a 
-Medina  propagaram   o   novo  culto,  (irande  numero 
de   habitantes  se  converteram  ás  suas  pregações,  c 
dentro  em  pouco  quasi  que  não  havia  casa  em  .Medi- 
na que  não  tivesse  alguns  musulmanos. 
I      EslH  vicioria  inspirou  desmedida  confiança  a  Ma- 
!  Iiomcl.    .\tê  então  linha  contindo  que  lhe  faltava  o 
I  poder  de   faier  milagres  ;  em  vão  lhe  disseram  um 
dia  os  seus  adversários  :  »  Tu  sempre  nos  estás  a  ci- 
tar os  exemplos  de  .Vbrahão,  de  ileyscs,  cdeJcsut  ; 


o  PANORAMA. 


Á49 


porque  não  fazes  lu  milagres,  como  elles  fizeram,  pa- 
ra que  passamos  «rér  em  li  ?  »  E  depois  aponlan^o 
para  um  cômoro  de  lerra  vermelha  que  está  nas  \\- 
sinhanras  de  Meca,  accrescentaram  :  «  Eis  alli  eslá 
um  cômoro  de  lerra,  muda-o  em  ouro,  e  nos  dare- 
mos por  vencidos.  »  Mahomet  conlentava-se  com  res- 
ponder-! hes  que  ainda  que  houvessem  Abra  hão,  Moy- 
sés,  e  Jesus  feito  milagres,  nem  por  isso  tinham  os 
homens  melliorado  ;  que,  alem  d'isso,  quando  o  Eter- 
no se  decidia  a  derogar  as  leis  que  eslabelèra,  não 
deixava  de  punir  com  rigor  os  que  recusavam  crer 
nos  signacs  do  seu  poder,  c  que  elle  não  queria  cha- 
mar esta  (.fesgraça  sobre  a  sua  infeliz  pátria. 

( Continua. ) 


O  iii.i;i'iiANTE  UE  Sião. 


Os  POVOS  de  Sião  e  do  Pegú  consideram  os  elcphan- 
tes  brancos  como  os  mais  excellentes  da  espécie,  quan- 


[  do  na  realidade  não  são  mais  do  que  albinos,  aberra- 
'  çccs  da  casta  como  os  pretos  branf-os  :  -xiuplh  alvu'.! 
deslavada  da  pelle,  que  entre  aquella  gente  lhes  dá 
tanta  honra,  é  o  symptoma  de  uma  frouxidão  nasci- 
'  da  de  enfermidade,  espalhada  em  toda  a  sua  eeono- 
'  mia  animal.    Os  homens,    e  certos  mamães,  princi- 
palmente os  ratos  e  coelhos,  algumas  aves,  como  os 
corvos,  gralhas  e  melros,  e  outros  muitos  animaes, 
apprescntam  esta  alteração,   ou  temporária  ou  vita- 
lícia. 

Todavia,  não  ésóa  raridade  dos  elephantes  bran- 
cos que  lhes  attrahiu  a  veneração  dos  siamezes  e  pe- 
gús  ;  idéas  symbolicas  e  tradições  fabulosas  explicam 
9  culto  d'estcs  gentios.  —  A  còr  branca  em  todos  os 
'  tempos  e  em  todas  as  religiões  foi  symbolo  da  sabe- 
i  dória  e  da  pureza.  —  A  gravura  curiosa,  de  que  es- 
I  tampámos  um  fnc  simile,  foi  aberta  conforme  um  de- 
senhodo  padre  Couplet,  jesuita,  procuradordas  mis- 
sões da  China  :  na  mesma  se  \v  impresso  na  parle 
inferi<ir  um  Icltreiro  que  diz  assim  :  —  «  Xé-Kiam, 


principe  dos  bonzos,  é  o  xaca  dos  japõcs.  Cnnta-se 
que  sua  mãi,  lendo  visto  um  elepliantc  branco,  an- 
dou gravida  dezcnove  annos  e  moiTLUi  do  parto  :  seu 
filho  ass<MitMU  que  devia  rclirar-se  do  inundo  para 
fazer  penitencia  ;  estuilou  com  ([uatro  mestres,  c  en- 
sinou [)or  (luarenta  e  nove  annos  :  entrou  na  China 
sessenta  e  Ires  annos  depois  do  nascimento  deC.liris- 
lo.  ')  — 

No  diário  da  embaixada  a  Sião  refere  o  padre 
Choisy  (jue  viu  no  meio  do  segundo  pateo  do  palá- 
cio real  um  elep!iant<:  branco,  que  custara  a  vida  a 
muitos  mil  homens  nas  guerras  do  l'egú.  —  "  íi  as- 
saz corpulento,  mui  velho,  lodo  riigoso,  e  com  os 
olhos  franzidos,  listão  sempre  ao  pé  d'elle  quatro 
inaiKlarins  (-om  ventarolas  para  o  refrescarem,  com 
cspanejadores  [lara  afugentar  as  moscas,  e  umbellas 
para  o  resgiiarílarem  do  s<d  (]U.in(|ii  [lassciíi.  /''.  servido 
cm  baixella  de  ouro  :  a  agua  que  lhe  dao  esl.i  pr(nia- 
menle  depositada  seis  mezes.  na  persuasão  de(|U('a 
mais  antiga  em  casa  é  a  mais  sadia.  Di/cin,  mas  tião 
o  vi,  (\uv  ha  um  eleplianle  bramo  pccpKiiii,  destina- 
do para  succedcr  ao  velho  (|u.luiIii  esle  morier.  h 

N'oulra  passagem  couta  o  |ia<lre  niislernios seguin- 
tes as  causas  e  conse(|uencias  ilas  guerras  do  l'egii.- 
II  Tendo  sabido  o  rei  do  Pegú  (|ue  o  rei  de  Sião  ti- 
nha sete  elephantes  brancos,  mandou-llie  pedir  um  ; 
recu8arain-lh'o  redondamente;  tornou  a  repetir  u  pe- 
dido ameaçando  vir  dcinanda-lo  á  testa  do  doismi- 


ihões  do  eombalenles  :  zombaram  das  suas  ameaças. 
Veiu  com  effeito,  assediou  por  muito  tempo  a  cida- 
de de  Sião,  levou-a  á  viva  força;  porém  não  entrou 
no  palácio  do  rei,  e  mandando  levaiil;ir  dois  tablados 
iguaes  diante  da  porta,  um  para  si,  outro  [lara  o  rei 
de  Sião,  ahi  com  grande  cereinonia  renovou  as  suas 
exigências,  que  n'aquellc  caso  eram  ordens.  Pediu 
primeiramente  seis  elephantes  brancos,  que  lhe  foram 
entregues  :  disse  depois  com  muito  alTeclo  para  o  rei 
de  Sião  que  amava  inlinito  a  seu  lilho  segundo,  e 
lhe  rogava  quizcsse  commette-lo  a  seu  «uidado  para 
o  educar  :  d'estem()do,  com  muita  cÍNÍlidadc,  lomon 
quanto  qiiiz,  e  recolheu-scao  Pegú  com  riquezas  im- 
iiiensas  e  grandíssimo  numero  de  escravos.  Não  to- 
cou nos  pagodes,  porque  a  relisião  de  ambos  os  rei- 
nos é  a  mesma  :  apenas  um  ilos  seus  siddados,  entran- 
do n'um  pugode  re;il,  eorlou  a  mão  a  uma  estatua 
d'ouro  ;  depois  lhe  pozer:im  outra,  e  eu  vi  o  signal 
■ilo  golpe.  II 

A  veneração  dos  siamezes  aos  elephantes  brancos 
não  parece  ser  hoje  menor  que  no  seculn  WTI  ;  (ri- 
biilnni  lhes  ainda  as  mesmas  honras.  —  «Cadaum 
d'eMii's  elepÍMiiles  (ili/.  um  \  iajanie  moderiuií  tem  es- 
treitaria separada,  e  dez  guardas  por  ci  ladus.  As  pre- 
zas dos  machos  são  guarnecidas  de  caiiipainh:is  d'ou- 
ro,  uma  rede  de  lio  d'ouro  lhes  cobre  o  alto  d:i  ca- 
beça, e  tem  segura  nn  lombo  uma  almofadinha  de 
veludo  bordado:  lêem  otitulodc  reis  dos  cleplianles. 


J|50 


O  PANORAMA. 


e  dilTcreiu;:iHi-n'os  [lor  subrcnomcs  liradys  da  sua  bel- 
leza  tcjaii)'.iiali\a,  lia  estatura,  ou  de  certas  qualida- 
des de  instinclo.  » — 

i\a  primeira  serie  d'este  jornal  acham-se,  acerca 
Uos  tíleplianles,  noticias  mui  curiosas  extrahidas  dos 
nossos  escriíitores  antigos. 


COLOHOA. 

Romance  da  Córsega. 

Sla  per  far  Ia  to  rendelta, 
Poderá,  orfana,  ziteila, 
Senza  cugini  cartulil  — 
Sla  siguru,  \astaanchcclla. 
Lamcnt.  fiineb.  de  Xiolo. 

II 

QcE  linda  noite,  c  qne  brando  luar  a  fugir  pelo  dor- 
so das  ondas,  era  quanto  a  briza  ligeira  assopra  nas 
velas  do  bialc  1 

.Miss  Lidia  nTio  linha  vonladedc  dormir.  Mal  sup- 
poz  todos  lieilailos,  enrolou  umclialeem  \olta  do  pes- 
coço, e  acordando  a  sua  aia,  subiu  á  tolda,  Xinguem 
lá  eslava,  á  exccprão  do  marinheiro  do  leme,  entre- 
tido a  cantar  uma  espécie  de  xacara  cm  tom  áspe- 
ro e  monótono.  Os  versos  fallavam  de  assassinos,  de 
\inganras,  c  de  uma  viclima  ;  porém  tudo  vago  e 
conliíso.  Alguns  que  lhe  ficaram  de  memoria,  tradu- 
zid(js  do  dialelico  corso,  pouco  mais  ou  menos  diriam 
«  seguinte  : 

«  No  seio  das  batalhas,  sereno  como  o  céu  do  estio, 
sem  baler  o  corarão,  nem  desmaiarem  as  faces,  af- 
fríuila  o  estourar  da  metralha  e  o  embater  do  ferro 
contra  o  peilo.  Libauso,  como  uma  crcança  para  os 
que  amava,  foi  tcrrivel  como  o  temporal  dos  mares 
para  os  inimigos.  Os  covardes  assaíSÍaaram-n'o  pelas 
costas  ;  que  de  rosto  não  ousavam  1  ...  Lá  está  pen- 
dente do  seu  leito  a  camiza  tincla  de  sangue  e  a  cruz 
honrosa  dos  fortes,  .  .  éa  hcranra  fegada  a  seu  filho, 
ausente  em  longes  terras;  por  duas  bailas  que  lhe 
romperam  o  peito,  outras  duas  o  hão  de  vingar.  Sec- 
ca  seja  a  mão  que  atirou  —  sem  luz  o  olho  que  apon- 
tava—  e  o  coração  que  meditou  o  crime,  oh  !  tam- 
bém esse  ha  de  morrer.  » 

De  repente  o  marujo  calou-se.  MissXevil  pcrgun- 
lava-Ihe  por  quenãoproseguia  ;  cjuando  clle,  abanan- 
do a  cabeça,  llie  mostrou  uma  ligura  immuvel  alguns 
passos  atraz.  lira  Orso,  o  tenente  corso. 

—  «  Por  que  não  nos  canta  o  mais?  «  insistiu  cila. 

—  «  Deus  me  livre  de  dar  okirabécco  a  ninguém,» 
respondeu  o  tritão  em  voz  baixa. 

—  «  Dar  o  que?  ...  o  ?  » 

O  marinheiro  sem  replicar  assobiou  uma  ária  sel- 
vagem. 

—  n  Tenho  a  satisfação,  minha  senhora,  de  a  sur- 
prehcnder  admirando  o  nosso  .Mediterrâneo,  disse  Or- 
so  adianland«-se  ;  espero  que  me  ha  de  confessar  que 
o  bello  luar  «reste  céu  não  se  vè  senão  aqui.  » 

—  «  Sim  ?  c  eu  que  nem  reparava  n'clle  '.  .  .  .  Es- 
tava-me  entretendo  a  estudar  o  corso,  liste  marinhei- 
ro, no  meio  de  uma  xacara  trágica,  interrompc-sc 
justamente  no  mais  interessante  o  .  .  .  » 

O  marujo  puxou  com  força  o  chalé  de  Miss  Ne- 
vil,  como  para  a  advertir  de  que  a  sua  xacara  não 
podia  ser  cantada  diante  do  tenente  Orso. 

—  «O  que  é  que  tu  cantavas.  Paolo  France?Era 
uma  ballata?  um  rorero.'  Esta  senhora  entende,  c  de- 
sejava muito  ouvir  o  fim.  " 

—  «  Não  me  lembra  mais.  Orso  Anton'.» — E  en- 
toou logo  um  cântico  á  Virgem. 


.Miss  Lidia  jurou  que  bavta  de  descobrir  ced«  ou 

tarde  a  chave  d'estc  enigma  :  ma*  a  íiia,  que  nascera 

I  em  Florença  e  não  sabia  o  corso,  era  pelo  menos  tão 

I  curiosa  como  sua  ama  ;  virando-se  para  Orso,  per- 

!  guntou-lhe  : 

—  "O  que  significa  a  palavra  rimbéeeo  ?  » 

—  «  Kinibécco  '.  redarguiu  Orso  ;  é  a  maior  inju- 
ria que  se  pode  dizer  a  um  corso  —  é  deiur-lh»  em 
rosto  não  se  ter  vingado.  Quem  fallou  de  kiiBbécco 
aqui  ?  » 

—  «  Ouv  imo-lo  hontem  em  Marselha  ao  mestre  do 
hiate,»  atalhou  immedialame-íle  .Miss  .\cvil. 

—  «  E  a  quem  alludia?  >>  insistiu  Orsp  com  viva- 
cidade. 

—  a  A  ninguém  ;  a  n.ida.  .\h  '.  era  a  antiga  histo- 
ria de  Vanina  d'Ornano.  " 

A  conversação  parou  aqui.  lliss  Lidia  retirou-se 
passados  instantes,  c  Orso  pouco  depois.  )Ins  apenas 
elle  desccia,  a  curiosa  aia  subia  ile  novo  e  fazia  um 
interrogatório  formal  ao  maruja  do  leme;  eo  resul- 
tado veiu  cochicha-lo  auouvidu  desna  amaassim  que 
o  apurou.  E.-a  o  caso: — que  a  ballata  parou  porque 
fora  feita  á  morte  do  coronel  delia  Rebia.  paide  Or- 
so, assassinado  ia  já  em  dois  aniios.  O  marinheiro 
accrcscentúra  mais  que  o  mancebo  vinha  vingar-se 
de  tVcs  pessoas  accusadas  ptlas  suspeitas  de  terem 
commettido  o  crime.  —  «  .\a  Córsega  não  ha  justiça, 
perorou  o  marujo,  c  vai  mais  uma  boa  espingarda  do 
que  seisbéeas.  Qiiando  alguém  tem  um  inimigo  deve 
escolher  de  Ires  SS  um — sc/tiupella,  stiletlo,  tirada — 
clavina,  punhal,  ou    fuga.  » 

Estes  csclarecimenlos  mudaram  inteira  mente  o  ani- 
mo de  miss  ,\evil  acerca  do  tenente  delia  Rebia.  A 
franqueza  e  indiifercnça,  que  no  principio  a  desgos- 
tavam d'ellc.  agora  attrihuia-as  a  romanesca  ingleza 
á  dissimulaçã*  profutida  de  uma  alma  cneigica,  que 
pôde  e  sabe  domar  os  mais  íntimos  sentimentos.  Or- 
so alli^urou-se-lhe  desde  esie  momento  semelhante  a 
Fiesqui,  cobrindo  com  apparentedeleixo  vastos  pro- 
jectos. S<i  então  notou  que  os  olhos  do  mancebo  eram 
vivos  e  rasgados  ;  os  dentes  d'alvura  do  marfim  ;  eo 
talhe  csbeli.o,  realçando  ludo  pela  polidez  ilo  trado. 
[As  conversações,  cm  que  depoiso  empenhou  de  pro- 
I  posito,  acabaram  de  a  convencer  ainda  mais  da  exac- 
I  lidão  da  sua  hyp<jthcse  ;   decidindo  sem  appellarão 
I  que  os  inanes  do  coronel  delia  Rebii  pouco   tempo 

mais  bradariam  debalde  por  viagnnça. 
I       No  fim  de  ires  dias   de  navegarão   descnrolou-se 
I  diante  da  vista  dos  viajantes  o  admirável  panorama 
do  gfilpho  dWjaccio,  cora  razão  comparado  á  formo- 
sa bahia  de  Nápoles.  .\o  instante,  mesmo,   em  que 
o  hiate  entrava  iio  porto,  uma  (|ueimada,  envolven- 
do em  fumoa/)i(n/a  di  Giralo.  recordava  o  Vcsu\io. 
'  .\qui  c  além   nos  topes  d.is  montanhas  em  redor  da 
'  cidade  destacavam  do  azul   do  réu  caías  brancas  e 
,  humildes,  meias  vestidas  do    niassiços   de   verdura. 
São  as  capellas  fúnebres,   os  carneiros  das  famílias. 
N'esta  paiiagem  ns   objectos   rcvestcm-se   lodos  de 
I  uma  belleza  grave  c  triste. 

.V  vida  dos  viajantes  na  Córsega  era  monótona  c 
melancólica.  M.iis  de  uma  vez  se  arrependevi  Lidia 
do  seu  projecto  ;  porém  já  não  tinha  remédio.  De 
manhã,  cm  qu.iiilo  cila  desenhava  ou  escrevia,  oco- 
riuu'1  parli.l  para  a  caç.i  com  o  tenente  Orso.  Janta- 
vam ás  seis  horas,  e  depois  a  bclla  lady  cantava  ao 
piano,  sir  Thomaz  .Vov  il  resona\a,  c  o  manc«bi>  fica- 
I  va  longas  horas  a  conversar  com  sna  filh.i. 

Uma  dVssas  manhãs,  ponco  antes  de  voltarem  os 

caçadores,  miss  Nevíl.  que  S3t'ra  a  pjsseisr  á  beír.i- 

I  mar  com  a  sua  aia,  já  se  retirava,  qnando  viu  uma 

mulher  aind.i   moça,   vestida  de   preto,  e  monlaoa 


o  PANORAMA. 


451 


n'um  cavallo  pequeno,  mas  robusto.  A  formosura 
jngeuua  do  seu  roslo  ;  o  gracioso  véu  de  seda  escura 
chamado  mezzaro,  e  as  tranças  de  um  louro  cendra- 
do  enroscadas  em  forma  de  turbante  no  alto  da  ca- 
beça provocaram  a  attenção  de  Lidia,  que  leu  no 
semblante  da  estrangeira  a  inquietação  e  a  tristeza 
luctando  com  o  orgulho. 

Miss  Neril  teve  bastante  tempo  para  a  examinar; 
porque  depois  de  fazer  algumas  perguntas  na  rua 
com  muita  viveza,  a  donzella  tocou  a  vara  no  cavai- 
lo  e  metteu  a  trote  até  lhe  colher  as  rédeas  á  porta 
da  hospedaria  do  coronel ;  e  trocando  poucas  pala- 
vras com  o  estalajadeiro,  saltou  da  sella,  e  foiassen- 
tar-se  n'um  poial  de  pedra  ao  lado  da  entrada  prin- 
cipal. D'ahi  a  breves  instantes  sir  Thomaz  e  Orso 
appareceram,  e  um  homem  velho  lhe  segredou  um 
momento  ao  ouvido,  apontando  com  o  dedo  para 
delia  llcbia.  Ella  ergueu-se  de  repente,  adiantou-se 
uns  passos,  e  estacando  subitamente  parou  immovcl  e 
irresoluta.Orsocontemplava-a  com  interesse e  pasmo. 

—  «  È  Orso  delia  Rebia  com  quem  fallo?  per- 
guntou commovida.  Um  aceno  de  cabeça  respondeu- 
Ihc  que  não  se  enganava. 

—  «  E  cu  sou  Colomba.  » 

—  «  Colomba  !  »  bradou  Orso.  Edeilou-se-lhenos 
braços,  c  beijou-a  ternamente  na  face,  com  grande 
assombro  do  coronel  e  de  sua  filha. 

—  <i  Meu  irmão,  perdoa  o  ter  vindo  sem  tua  or- 
dem—  ditseram-me  amigos  meus  que  estavas  aqui, 
e  era  tanta  a  impaciência  de  te  vêr. .  .  » 

Orso  tornou  a  beija-la,  e  virando-se  para  sirTho- 
maz : 

—  «  É  minha  irmã  — que  eu  não  conhecia  se  não 
se  nomeasse  —  Colomba,  apresento-te  o  coronel  sir 
Thomaz  Ncvil.  Coronel,  desculpe-me  :  hoje  não  pos- 
so ter  a  honra  de  jantar  na  sua  companhia.  » 

—  B  Qual !  Não  consinto.  Minha  filha  terá  o  maior 
prazer  com  a  companhia  d'csta  senhora.  » 

Fizcram-se  na  sala  os  cumprimentos  do  estylo,  e 
Colomba,  depois  de  ir  ao  toucador  de  I.idia  cuidar 
da  vestido,  entrando  no  aposento  delevc-se  a  admi- 
rar as  espingardas  do  coronel  encostadas  a  um  vão. 

—  «  Boas  armas  —  disse  ella.  —  São  tuas,  meu  ir- 
mão? I) 

—  «  São  as  espingardas  inglczas  do  coronel — tão 
perfeitas  como  certas.  » 

—  «  Muito  bom  era  teres  tu  uma  assim.  » 

—  «  E  tem  —  acudiu  o  coronel  — d'cstas  trcsuma 
é  d'elle.  » 

Orso  agradeceu,  c  sir  Thomaz,  dando-as  a  escolher 
a  Colomba,  não  ficou  pouco  adtiiir.ido  de  vrr.i  don- 
zella indicar  a  menos  orn;id,i,  e  mais  certa  das  es- 
pinganl.is. 

O  tenenlí!  soiiiii,  <■  l.idiíi,  \olt.iinli)-sc  para  Orso, 
dissc-lhe  ao  oii\iilo — •  «  I!mi  gueireiro  iiTio  ocolhia 
melhor.  » 

—  <i  Na  Corsego,  seiíhiirn,  é  preriso  que  icidossc 
familiarizem  com  asarnias.  Niiisucm  pôde  dizer  que 
não  precisará  <lo  as  empregar.  » 

Miss  Nevil  altrihoiíi  ao  pensamento  de  vingança 
estas  palatras,  e  resp(iii(ii'ii  só: 

— :"  t  nina  terra,  cnlãn,  omle  a  \iii;,'aiiçaíí  uma 
nccessidadi-  ?  n 

—  u  ,Não,  senhora,  aliillioii  Ciildiiilia  com  fiiriioza 
—  é  uma  lerni.  oiiil(!  o  cuviíide  ipie  nau  soiiliesse 
vingar  o  sanií""  innoceiíte  deir^iiiiailo,  lallana  no 
mais  sagiailo  dever  -    r  lei  ia  ^U•.  se  chcoiider  da  face 

dos   llOllK^IIS.   » 

K  olhava  eoiii  anlor  paia  .seu  irmão.  Orso,  arran- 
cando iiiii  siispiíi)  pioliiiulo  encostou  o  nisloaos  |iu- 
nlios  e  caiu  n'uiiia  sumliria  meditação. 


Era  evidente.  Uma  tragedia  ia  succeder  á  chega- 
da de  delia  Rebia  á  sua  pátria. 

í.idia  suspirou  lamuem.  .  .Porque? 

Bem  fácil  de  adivinhar  seria  para  quem  lesse  nos 
olhos  azues  e  transparentes — o  segredo  que  nem  a  si 
mesma  ella  ainda  ousava  confessar. 


Os  Templabios. 

(Continuado  de  pag.  144.) 

«Na  segunda  feira,  18  de  maio,  os  commissarios 
'  pontificius  encarregaram  o  prioste  da  igreja  de  Poi- 
tiers  e  o  arcediago  de  Oricans  de  procurarem  da  sua 
parte  o  venerável  padre  em  Deus,  arcebispo  deSens, 
e  seus  suflraganeos,  para  reclamarem  os  defensores 
da  ordem,  Pedro  de  Boulogne,  GuilhermedeCham- 
bonnet,  e  Beltrão  de  Sartiges,  de  modo  que  podessem 
ser  conduzidos,  debaixo  de  segura  guarda,  todas  as 
vezes  que  elles  commissarios  o  requeressem,  para  a 
defeza  da  ordem.» — E  tiveram  o  cuidado  de  accres- 
cenlar  :  «  que  não  queriam  de  modo  algum  causar 
impedimento  ao  arcebispo  de  Sens  e  ao  concilio,  mas 
somente  desencarregar  a  sua  consciência.  » 

«Pela  tarde,  a  commissão  reuniu-se  na  igreja  de 
Saneia  Genoveva,  na  capella  de  S.  Eloy,  e  recebe- 
ram os  cónegos  que  vinham  da  parte  do  arcebispo  : 
este  respondia  que  havia  dois  annos  que  se  instaura- 
ra processo  contra  os  cavalleiros  acima  nomeadas  co- 
mo membros  particulares  da  ordem  ;  quequeria  ter- 
mina-lo segundo  a  forma  do  mandato  apostólico ; 
que,  quanto  ao  mais,  não  intentava  de  modo  algum 
perturbar  os  commissarios  em  seu  officio.»—  Horro- 
rosa derisão !  — 

«  Tendo-se  retirado  os  enviados  do  arcebispo  de 
Sens,  conduziram  perante  os  commissarios  a  Ray- 
naldo  de  Pruin,  Charabonnct,  e  Sartiges,  os  quaes 
annunciaram  que  tinham  separado  d'elles  Pedro  de 
Boulogne,  sem  que  soubessem  o  porque ;  accrescen- 
tando  que  elles  eram  homens  simples  e  sem  expe- 
riência, além  d'isso  estupefactos  e  perturbados,  de 
sorte  que  nada  podiam  dispor  e  dictar  para  defeza 
da  ordem,  sem  conselho  do  dicto  Pedro.  Por  isso 
tupplicavam  aos  dictos  coraiiiissarios  que  o  mandas- 
sem comparecer  c  ouvir,  e  saber  para  que  fora  reti- 
rado d'clles  seus  companheiros,  e  se  queria  persistir 
na  defeza  ou  abandona-la.  Os  commissarios  ordena- 
ram ao  priDSlc  de  Poiliers  e  a  João  de  Teinville 
que  no  outro  dia  trouxessem  á  sua  presença  o  dicto 
freire.  » 

Não  corista  que  no  dia  se;,Miiiilc  eoniiinreeesse  Pe- 
dro de  Itoulogiie  ;  piirerii  iiiii.i  iMiillid;iM  de  lempia- 
rios  vieiaiii  declarar  (|iic  aliaii(li>iia>am  a  delez,!.  No 
.salibado,  a  coininissãi)  (iesaiiiparada  [lor  mais  uni  dos 
seus  membros,  addiou-se  para  3  ile  novembro  próxi- 
mo. —  Nesta  epocha,  anula  menos  numerosos  eram 
os  coinmisaarios ;  estavam  reduzidos  a  Ires :  o  arce- 
bispo de  Narbonna  liiilia  deixado  Paris  por  servi{o 
(lo  rei  ;  o  bispo  de  Bayeiix  achava  se  jiinclo  ao  papa 
ílii  parle  (lo  rei  ;  <i  arcediago  de  .Magiieloiio  eslava 
doeiíle  ;  o  bisju)  de  l.im(if.;es  pnzera  se  a  caminho  pa- 
ra assistir  á  comiiiiss/io,  miixo  rei  lhe  iiidiidiitii  ilizer 
que  iTa  preciso  proriifíar  o  caso  até  o  pinxiiiin  parla- 
iiientii.  Os  meinliriis  presentes  iiiaiulai.im  eomtodu 
peif^iinlnr  á  poMa  lia  .sala  se  liavi.i  alguma  coiisa  a 
di/.ei'  .1  piii  da  ordem  do  Tcinplo:  -  -  niii^Miein  appa- 
rcutíu. 

A  M'  de  dezembro  us  commissarios  proseguirnm 
nos  interrogatórios,  o  tornaram  u  rcclaiuur  os  dui& 


Í52 


O  PANORAMA. 


principacs  defensores  da  ordem  ;    mas  o  cabeça  de 

todos,  Pedro  de  Boulognc,  linha  desapparecido;  eo 
seu  collega,  Kaynaldo  de  Pruin,  não  podia  já  res- 
ponder, segundo  diziam,  tendo  sido  exauetorado  pe- 
lo arcebispo  de  Sens :  vinte  c  seis  cavalleiros,  quejá 
tinham  prestado  juramento  como  tcslimunhas,  foram 
retidos  pelas  justiças  do  rei,  e  não  podcram  compa- 
recer. 

É  cousa  admirável  que  no  meio  de  todas  estas  vio- 
lências e  n'um  tal  perigo  se  achasse  certo  numero  de 
cavalleiros  para  sustentar  a  innocencia  da  ordem  ; 
mas  foi  rara  esta  coragem  :  a  pluralidade  estava  sub- 
jugada pela  impressão  de  profundo  terror. 

A  perdição  dos  templários  era  por  toda  a  parte 
accelerada  com  encarniçamento  nos  concílios  provin- 
ciaes  da  França  ;  acabavam  de  ser  queimados  mais 
nove  cavalleiros  em  Senlis  :  os  interrogatórios  fize- 
ram-se  debaixo  do  terror  das  execuções  :  o  processo 
estava  suffocado  nas  chammas.  .  .  Acommissão  pon- 
tifícia continuou  as  suas  sessões  até  11  de  junho  de 
1311  :  o  rcsuUa<lo  dos  seus  trabalhos  está  consignado 
n'um  registo,  que  termina  por  estas  palavras.  — 
))  Por  accrescimo  de  precaução  depositámos  o  dicto 
processo,  redigido  pelos notariosemacta  aulhenlica, 
no  thesouro  de  .\.  Sr.°  de  Paris,  para  não  ser  exhi- 
bido  a  ninguém  senão  por  lettras  especiaes  de  vossa 
sanctidade.  »  — 

Em  todos  os  estados  da  christandade  foi  supprimi- 
da  a  ordem,  como  inútil  ou  perigosa  :  os  reis  lhe  to- 
maram as  propriedades,  ou  as  deram  a  outras  or- 
dens;  mas  os  indi\iduos  foram  poupados;  o  Iracta- 
mento  mais  severo  que  soffreram  foi  serem  prczos  em 
mosteiros,  muitas  vezes  nos  seus  próprios  conventos: 
foi  a  única  pena  a  que  na  Inglaterra  condemnaram 
os  cabeças  da  ordem  que  se  obstinaram  a  negar. 

Os  templários  foram  condemnados  na  Lombardia 
e  Toscana,  e  absolvidos  em  Uavena  e  Bolonha.  Os 
templários  d'Allemanha  justiíicaram-se  á  maneira 
dos  juizes-francos  daWestphalia  ;  appresentaram-se 
com  armas  perante  os  arcebispos  de  Moguncia  e  de 
Treves,  aíTirmaram  a  sua  innocencia,  voltaram  as 
costas  ao  tribunal,  e  retiraram-se  pacificamente.  Em 
Caslella  julgaram-n'os  innocentes  :  no  Aragão  onde 
tinham  praças  fortes  metlcram-se  n'ellas  e  resisti- 
ram, principalmente  na  suacelebre  fortaleza  de  .Mon- 
çon  :  o  rei  d'Aragão  ganhou  estas  praças  ;  c  nem  por 
isso  foram  pcior  tractados.  Em  Portugal  deram  fun- 
damento ;i  ordem  de  Christo.  IS'ão  era  por  cerlo  na 
Mespanha,  á  frente  dos  mouros,  na  terra  clássica  da 
cruzada,  que  pensariam  em  proscre\er  os  antigos  de- 
fensores da  christandade.  O  procedimcntodos  outros 
príncipes  para  com  os  templários  era  uma  salyra 
contri  Filippc  o  formoso.  O  papa  censurou  esta 
brandura;  exprobrou  aos  reis  dWnglaler^-a,  deCas- 
lella,  do  Aragão,  ede  Portugal  o  não  lerem  empre- 
gado os  tractos  ;  Filippe  o  fizera  duro,  quer  ceilen- 
do-lhe  parle  dos  despojos,  quer  abandonando-lhe  o 
julgamento  de  Uonifacio  :  o  rei  de  França  se  decidi- 
ra a  ceder  algum  lanlo  nesle  ullimo  ponto  ;  porque 
tudo  eslava  agitado  ao  redor  de  si :  os  estados  a  <jue 
eslenilia  a  sua  inlluencia  parecia  estarem  dispostos  a 
cvadir-se-lhe.  Os  barões  ingle/.es  queriam  dcrribaro 
governo  dos  validos  de  Eduardo  -2.°,  que  osabaléra 
para  com  a  França.  Os  gibelinos  da  llalia  acclaraa- 
vam  o  novo  imperailor,  Henrique  de  Luxemburgo, 
para  deporem  o  neto  de  Carlos  d.Vnjou,  o  rei  Ko- 
berlo,  grande  letlrado  c  miserável  rei.  que  so  era 
hábil  na  astrologia.  A  casa  de  França  arriscava-se  a 
perder  o  seu  ascendente  sobre  a  christandade.  O  im- 
pério, que  haviam  reputado  morto,  ameaçava  tornar 
i  vida.  Dominado  por  csles  receios,  Filippe permil- 


tiu  a  Clemente  declarar  qae  Bonifácio  não  era  he- 
rético (1),  assegurando  todavia  qne  orei  linha  obra- 
do sem  malignidade,  e  que  antes,  como  outro  Sem, 
teria  coberto  o  opprobrio,  a  nudez  paterna. .  .Noga- 
ret  lambem  é  absolvido  com  condição  de  que  ha  de 
ir  á  cruzada  (se  houver  cruzada}  e  servir  toda  a  vida 
na  Terra  Saneia  ;  no  entanto  fará  lai  e  tal  romaria. 
O  continuador  de  Nangis  accrescenla  maliciosamen- 
te outra  cendição,  e  vem  a  ser,  que  Nogarel  deixará 
por  seu  herdeiro  o  papa. — D'e5le  modo  houve  com- 
promissos :  o  rei  cedeu  a  respeito  de  Bonifácio,  e  o 
papa  abandonou-Ihe  os  lenjplarios ;  entregava  os  vi- 
vos para  salvar  um  morto  ;  porém  este  morto  «ra 
nada  menos  que  o  pontificado.  —  Feitos  estes  con- 
certos familiarmente,  restava  faze-los  approvar  pela 
igreja. 

()  concilio  de  Vienna  abriu-se  a  16  deouluhrode 
1312,  concilio  ecuménico,  em  que  tomaram  assento 
mais  de  trezentos  bispes;  porem  foi  ainda  mais  so- 
lemne  pela  gravidade  das  matérias  do  que  pelo  nume- 
ro dos  assistentes.  Primeiro  devia  tractar-se  da  re- 
dempção  dos  sanctos  logares  ;  todo  o  concilio  faltava 
n'isso,  cadauni  príncipe  tomava  a  cruz,  c  lodos  fica- 
vam em  casa  :  não  passava  de  um  meio  de  li  rar  di- 
nheiro. O  concilio  tinha  que  regular  dois  grandes 
negócios ;  o  de  Bonifácio  e  o  do  Templo.  Logo  em 
novembro  se  apresentaram  aos  prelados  nove  caval- 
leiros olTerccendu-se  animosamente  a  defender  a  or- 
dem, e  declarando  que  mil  e  quinhentos  ou  dois  mil 
dos  seus  estavam  em  Lyão  ou  nas  montanhas  visi- 
nhas,  promplosa  sustenta-los.  Eipantado  com  esta 
derlaração,  cu  antes  com  o  interesse  que  inspiravaa 
dedicação  dos  nove,  o  papa  os  mandou  prender.  D'ahí 
por  diante  não  ousou  reunir  o  concilio  ;  teve  os  bis- 
pos inactivos  lodo  o  inverno,  n'aquella  cidade  es- 
trangeira, longe  das  suas  terras  e  dos  seus  negócios, 
esperando  sem  duvida  vencè-los  pelo  tédio,  e  convcr- 
sando-os  um  por  um.  O  negocio  dos  templários  foi 
'  de  novo  começado  na  primavera  :  o  rei  apossou-se  de 
Lyão,  que  era  oasylo  d"clles.  Os  burguezeso  tinham 
chamado  contra  o  s.  u  arcebispo  ;  aquella  cidade  im- 
perial estava  desamparada  pelo  império,  e  fazia  mui- 
ta conta  ao  rei,  não  só  como  o  vincuU  do  Saone  e 
do  Rhodano,  e  a  ponta  da  França  para  leste,  e  c»- 
mo  cabeça  da  estrada  para  os  .\lpes  e  a  Provença  ; 
mas  sobro  tudo  como  asylo  de  descontentes,  e  ninho 
dos  heréticos.  Filippe  ahi  convocou  uma  assembiéx 
dos  principacs  da  terra:  depois  vciu  assistir  ao  con- 
cilio com  seus  filhos,  os  seus  magnates,  e  um  grande 
séquito  de  genlc  armada:  e  tomou  assento,  um  ,iou- 
co  mais  baixo,  ao  lado  do  pap.i.  Os  bispos  se  mos- 
traram pouco  dóceis,  obstinaado-se  em  querer  ouvir 
a  defeza  dos  tem.larios.  Os  prelados  dllalia,  menos 
um  só,  os  de  llespanha,  dWllemanha  e  da  Dina- 
marca, os  dlnglitcrra.  Escócia  e  Irlanda,  e  ale  os 
francezes,  súbditos  de  F'ilippe  (,i  excepção  dos  arce- 
bispos de  Rheims.  Sens,  e  Uuão;  declararam  que 
não  podiam  condemnar  sem  audiência.  Foi  forçoso, 
por  tanto,  que  depois  de  haver ajunctado  oconcilio. 
o  papa  se  dispensasse  d'clle  :  convocou  alguns  prela- 
dos de  mais  conli.inça,  alguns  cardeaes;  c  n°e$le  con- 
sistório aboliu  a  ordem  por  auctoridade  pontificia. 
Foi  promulgada  dopois  a  abolição  na  presença  do  rei 
e  do  concilio  ;  e  nenhuma  reclamação  appareceu. 

[Concluir-te-ha.) 

(I)  Esta  tímida  e  iiu'oni|ile(a  reparafão  não  parece  .«uf- 
fieieiíle  ao  escriplorVill.iiii;  e  acorescema,  sem  duvida  pira 
loriiar  o  assunipln  in.iis  dranialioo  e  mais  verftonhoso  para  os 
francetes,  que <li>is  cavalleiros  calalies  lançaram  a  luva  e.<e 
olfereceram  para  defender  em  coiuliale  a  innocencia  de 
Donifacio. 


20 


o  PANORAMA. 


15J 


DorairuGOS  antonio  de  sequeira. 


Domingos  António   ue  Shhueiha, 


I 


A  riNTuiit  niiiKM  llorcciMi  iiiiiiliioni  l'orlii'i:;il.  N^uinii 
ou  n\)iilr;i  epocli.i  iii.iis  mimosa  lin'aiil:ir,im-3o  pro- 
Ifclorcís  intollif;ciilcs,  e  ('st(Mi(l(.'rum  u  iiião  a  atjçuin 
laliMitii  (jiio  o.sriilciiiluu  —  mas  <;ra  osplcMidor  inomeií- 
laiioo  —  (li'|K)is  rccaliia-Hu  do  novo  na  trislc  o  invete- 
rada mediocridade,  de<|u<?  sempre  adoeceu  entre  nós 
íi  liella  arli!  de  llapliacd. 

O  niaMUHcri|ilo  de  Francisco  de  lliilhiuda,  na  sua 
prosa  eliã  massenlida,  nas  aniarfçuradas  rellexões  ipu' 
!«iila,  eomo  ^i'miilos  de  pi'ilo  e:iii(;;id<>  de  si-  eoni|>rÍ- 
inir,  uceiísa  d''isl<i  a  eidpiida  iiidilVerenea  de  ri>is  tpu; 
não  estimam  a  art<;  ou  a  não  conliecem — de  nobres 
tpie  só  linj;i'm  preza-la  por  vaidade  —  de  ricos,  ima- 
ginando pa<;;ar  com  avarenlo  salário  o  cpie  a  polida 
(lalia  recompensaria  <'om  liiiuras  e  lar<;os  lliesouros. 
N'iima  (erra  assim,  n^im  eslado  d%'sles  nriolia,  não 
podem   nascer  nem  'l'ici;inos,    nem   l'aulos  llulx^ns. 

Etpie  para  vencer  adilr  da  indilTeren^'a,  paru  des- 
VuL.  1.  —  Jankiiio   1(1,   1U47. 


prezar  o  esquecimento  e  virar  as  cosias  á  ij;noraMt  ■ 
prol,ec(j'ão  (jue  eslraí;a  em  m;z  de  eslinudar,  o  artista 
lia  de  consumir  mais  danietadi?  daslor<;as  «pie  neees- 
sita  consur\ar  inteiras  |)ara  se  formar  —  padecer  si- 
lencioso as  inai;uas  da  miséria  o  as  incertezas  »la  olvs- 
curidade  :,  s(uitir-se  maior  do  (pie  mil  <jue  o  |iizam  e 
cseanieeeni  —  e  apesar  irisso  ter  constância  para  não 
deslalleeer,  para  bradar:  —  ..Mais  um,  niiiis  (resaii- 
nos  de  provanea,  poripie  no  lim  d'ellcs  está  o  meu 
dia  e  a  minha  viní;an(;a  ! '< 

l'ara  odizer  <>  para  ocumprir,  Deus  lhe  lia  de  con- 
ceder desde  o  lii^rço  a  voca(;ão,  niãi  do  jjenio,  com  .•» 
fortaleza  tie  vontade  tpie,  por  cima  dos  i>spiuhos  da 
carri'ira  solitária,  caminha  sem  desalento :,  ipie  nos 
lances  da  extriuna  fadi;j;a,  como  ('hristo,  cáe  d<'l>aixo 
da  cruz,  eri;ue-se  iMisan^uentado,  e  não  Ireiíie  do  s,i- 
uriliiMo,  (^  nào  duvida  uma  hora  de  si  e  do  liituro. 

(■luaiitos  morriram  ja  il\'sta  hu'la  horrivid,  annil- 
iliçoaiido  na  agonia  ai-spi>iani;a  <pii'  oseui;anou,  o  la- 
leiílo  ipie  os  fez  inleiizes,  <•  a  art<'  ile  ipie  toram  ol»- 
curos  marl^res  no  meio  do  nmii<lo,  <pie  nem  scipier 
se  voltou   paru   vôr   apai;ar   ii\iipiellc  frio  ciirai,ào  o 


164 


O  PA-\ORAMA. 


ultimo  raio  de  luz,  que  n'outro  céu  melhor  seria  um 
astro ! 

Francisco  de  Hollanda  chorou  sobre  o  sepulchro, 
onde  a  indifferença  enterrava  a  pintura,  pouco  tem- 
po antes  de  se  ouvir  na  terra  o  grito  com  que  a  gran- 
de alma  de  Camões  se  despedia  da  pátria,  que  lhe 
pagava  em  afílicções  a  sua  gloria.  Singular  di^lino '. 
—  que  uniu  a  queixa  ao  exemplo  —  e  quando  uma 
arte  morre  faz  expirar  com  ella  o  primeiro  e  o  ulti- 
mo sacerdote  da  poesia,  sua  irmã  !  Mas  foram  vin- 
gadas ambas  ;  —  os  plainos  d' Alcácer,  também  no  se- 
pulchro vasio  do  moço  rei  cavalleiro,  sepultaram  a  na- 
ção, a  coroa  e  as  glorias  do  reino  de  D.  Manuel.  — 
Fizeram  um  deserto,  quebraram  todos  os  brios  da  na- 
cionalidade, e  por  fim  consummaram  a  sua  obra  pe- 
la usurpação  estrangeira  —  os  traidores! 

E  assim  succedeu  sempre  á  pintura  e  á  poesia  — 
uma  definhou,  a  outra  foi-se  enfezando.  Hospedas, 
ignoradas  e  pobres,  nenhum  dos  poderosos  da  terra 
lhes  faz  bem  senão  por  capricho,  ou  por  acaso,  até 
D.  João  ^  . 

Aquelle  D.  João  V  foi  mais  rei  do  que  muitos  a  i 
quem  elogios  comprados  incensaram,  mas  não  nobi- 
litaram. Dizem  d'elle  que  costava  de  compor  as  ac- 
ções e  o  caracter  á  Luiz  XIV;  —  a  verdade  é  que  as 
suas  aventuras  freiraticas  —  os  seus  amores  romanes- 
cos, e  os  disfarces  e  surprezas  das  suas  viagens  noc- 
turnas—  cora  que  divertia  a  soníbria  majestade  da 
etiqueta  das  audiências  —  o  tornaram  estimado  e  po- 
pular—  e  também  é  verdade  que  todos  alies  acaba- 
vam sempre  "pelo  rei  saber  ser  rei.r' 
A  respeito  das  artes  soube  menos  mal. 
£  não  soube  só  para  as  engomadas  academias,  que, 
apesar  de  terem  sido  muito  apupadas,  deixaram,  tra- 
balhos como  hoje  não  escrevem  os  seus  críticos.  —  Era 
rico,  era  munificente,  e  tinha  verdadeira  paixão  pe- 
las bellas  artes.  O  "  Salomão  portuguez  n  como  os  seus 
poetas  lhe  chamavam,  fundou  em  Roma  uma  acade- 
mia de  pintura,  e  mandou  instruir  la  os  mancebos 
em  quem  se  divisavam  indícios  de  sincera  vocação. 

D.  João  V,  sem  viver  n'este  século  de  tioradores 
por  vapor",  tinha  juizo  claro,  e  gosto.  Aprendera 
d'intuição,  ou  d'exemplo.'  Pouco  imporia ;  que  para 
ter  artistas  é  necessário,  antes  de  lhes  fazer  visitas  re- 
gias e  de  os  condecorar,  dar-lhcs  recursos  c  educa- 
ção—  cria-los  ao  ptí  dos  modelos  immortaes.  Oh  !  se 
nós  hoje  voltássemos  áquella  cegueira  anti-progressi\  a  ! 
Sua  neta  a  Sr.**  D.  Maria  1  também  quiz  ter  pin- 
tores, e  fundou  para  isso  cm  1781  a  uaula  regia  de 
desenho  e  figura  ••  —  e  á  custa  do  "  renl  btilsinho  >•  en- 
viou á  sua  academia  de  Roma,  a  completar  os  estu- 
dos e  aperfeiçoar  o  gosto,  os  alumnos  mais  distinctos 
d'ella. 

Ora,  se  não  houvesse  D.  João  V  e  a  sua  acade- 
mia de  Roma  •,  se  não  houvesse  a  Sr.**  D.  Maria  I 
com  a  sua  aula  de  pintura;  ese  faltasse  o  "  rra/  hol- 
sinho  "  com  as  suas  peças  de  7  S  .iOO  réis.  Portugal  te- 
ria tudo,  menos  Domingos  António  de  Sequeira.  Ed'a- 
hi  talvez  haja  quem  diga  :  —  i.  Pois  não  era  mais  útil 
empregar  o  dinheiro,  que  .njudou  a  croar  um  grande 
artista,  em  repuxos  municipaos  ?•'  O  artista  morro 
e  o  repuxo  fica;  pi'ide  empedr.ir  o  bordo  de  algum 
poço  artesiano  «lepois  de  velho.  E  por  que  nãoí  £ 
uma  lógica  como  qualquer  outra. 

Domingos  António  de  Sequeira,  que  nasceu  em  1768, 
desde  a  infância  tinha  manifestado  decidida  inclina- 
ção para  o  des«>iiho ;  e  nos  cinco  annos  que  frequen- 
tou a  aula  de  pintura  os  prémios  cos  successos,  rtid- 
çando-o,  mostraram  bem  que  Portugal  n'elle  ia  encon- 
trar o  talento  mais  distlncto  em  um  ramo.  no  qual 
tão  poucos  brilharam.  Apenas  acalxni  oourst»  foi  cm- 
]>regado  em  estudar  com  o  engenhoso  e  extravagante 


Francisco  de  Setúbal.  ^  arios  pannos,  usados  n'e3Se 
tempo  para  forrar  as  paredes  dos  palácios,  saíram  do 
pincel  de  Secjueira,  e  desde  lozo  fizeram  presentir 
qual  seria  o  seu  estylo  em  trabalhos  mais  elevados. 
No  anno  de  1788,  protectores  illustrados  alcançaram- 
Ihe  da  rainha  uma  pensão  do  i^bobinho  real -^ ;  aju- 
dado d'ella  é  que  Setjueira  pòdc  emprehender  a  via- 
gem de  Roma  e  matricular-se  na  academia  alli  crea- 
da,  sendo  dirigido  em  composição  e  desenho  por  Pi- 
cola,  em  pintura  por  Cavalluci ;  porém  o  seu  verda- 
deiro e  grande  mestre  foi  a  rica  e  admirável  collec- 
ção  de  primores  d'arte,  da  cidade  de  Leão  X — esse 
tliesouro  que  ainda  hoje  a  consola  do  perdido  impé- 
rio e  da  eclipsada  gloria  militar. 

Se<jueira,  como  Bocage,  tinha  a  ardente  imagina- 
ção e  a  espontaneidade  de  creaçuo  artística,  que  se 
traduzia  em  obras  acabadas,  ou  em  improviioi  rápi- 
dos e  fugiti\us.  Nas  suas  mãos  o  lápis  servia  de  ri- 
val ápasmosa  facilidade  eá  abundância  do  traductor 
d'Ovidio  e  de  Dellile.  Um  rolo  de  papel  afumadoá 
luz,  ou  simplesmente  apenna  bastavam  ao  pintor  pa- 
ra caprichosamente  entreter  a  sociedade  mais  esco- 
lhida nos  longos  serões  d'inverno.  Doestes  csbocetos 
ainda  se  conservam  muitos,  e  todos  elles  provam  até 
que  ponto,  n'um  trabalho  descuidado  e  phantastico, 
sabia  unir  a  graça  á  correcção. 

Em  Roma  as  obras  de  Sequeira  foram  numerosas. 
Entre  ellaslouva-se  pelaidéa  edesempcnho  a  pintura 
do  tecto  da  casa  de  jantar  na  vtlha  quinta  C"mtUi, 
representando  ocarro  dWpoUo,  rodeado  derefal.ulos 
lateraes,  em  que  se  via  toda  a  fabula  de  Narciso. 
Na  Academia  de  S.  Lucas  tambcni  existem  dois 
quadros  seus  —  o  do  milajre  dos  cinco  pãtt  e  dou 
peixei  —  e  o  da  degolla^uo  de  S.  João  B.ipliila.  Foi 
a  estes  últimos  que  deveu  o  primeiro  premio  da  clas- 
se de  pintura  d'aquella  academia,  e  o  diploma  de 
seu  professor  e  sócio  de  mérito.  Depois  de  percorrer 
parte  da  Itália,  examinando,  comparando,  e  copian- 
do as  maravilhas  de  todos  os  séculos,  regressou  Se- 
queira á  pátria  no  anno  de  1796.  Ahi  o  esperavam 
os  desgostos  e  os  desenganos,  que  infelizmente  nun- 
ca deixam  d''acoiher  o  merecimento  superior  n'esta 
terra.  (Continua.) 


A  substancia  d'esta  noticia  sobre  Sequeira  é  tira- 
da do  artigo  biographico  publicado  pelo  Sr.  Silva 
Leal  em  o  segundo  numero  do  jornal  das  Bellas  .Ar- 
tes de  Lisboa ;  e  das  reilexOos  disseminadas  no  livro 
do  Sr.  conde  de  Rackivnski,  intitulado  /is  artes  em 
Portugal.  Se  mais  alguma  se  podia  adiantar,  a  falta 
de  espaço  nos  não  consentiu  averigua-la. 


Mahomet  oc  Mafojia. 

(Continuado  dr  pa;.  147.) 

Mas  quando  Mahomct  viu  que  tinha  nm  partido 
formidável  em  Mfdina.  n.ão  rec»'iou  p<ir-«e  a  j»ar  dos 
patriarch;is  antigos  e  dos  anfÍ!r<"is  proplietas ;  e  até 
quiz  f;uer  um  milagre  mais  estupendo  do  qne  todos 
os  que  se  atlribuiam  aos  perstMiagens  a  que  elle  cha- 
mava seus  predeccs5»>res,  e  cora  este  intento  narroa 
a  su.T  viagem  nocturna  ao  setim»  céu.  Se  Abraltfo 
n-coliêra  frequentes  vi>it.is  dos  anjos,  se  MoT«es  pas- 
sara quarenta  dias  sobre  o  monte  Sin:ii  em  culloquios 
cx>m  o  Senhor,  se  Jesus  alcançara  de  Deus  f.ivopes 
ainda  mais  assignalados,  elle.  Mafoma,  apparecém 
na  presença  do  Eterno.  Eis-aqui  como  narrou  a  sua 
prodigiosa  ascensão. 

..  Estava  deitado,  dix  elle,  entre  as  coUinas  de  Sa- 


o  PANORAxMA. 


155 


la  e  Merva,  quando  Gabriel,  chegando-se  a  mim,  se 
deu  pressa  em  aeordar-me.  Trazia  Alborak,  jumenta 
de  pello  cinzento  prateado,  que  tem  cabeça  de  mu- 
lher, cauda  de  pa\ão,  eque  anda  tão  veloz  que  abar- 
ca tanto  terreno  quanto  a  vista  mais  aguda  pode  al- 
cançar. Brilhavani-lhe  os  olhos  como  estrellas.  Abriu 
as  suas  duas  azas  de  águia.  Cheguei-me  a  ella.  1'ozr- 
se  a  espinotear  :  «íEstá  quieta,  lhe  disse  Gabriel,  e 
obedece  a  Mahoniet.»  A  jumenta  respondeu:  "O 
propheta  Mahomet  não  me  cavalgará  sem  que  tu  ha- 
jas alcançado  d^eile  que  me  dè  entrada  no  paraizo 
no  dia  da  rcsurreição. »  Prometti-lh'o  (l).  Então 
deixou-se  montar,  e^de  repente  nos  achamos  as  jor- 
tas  de  Jerusalém.  A  entrada  do  templo  encontrei 
Abralião,  Moysés  o  Jesus;  orei  com  elles,  e  acabada 
a  oração,  desceu  subitamente  do  céu  uma  escada  de 
luz,  e  corremos  com  a  rapidez  do  relâmpago  a  im- 
inensa  extensão  dos  ares. 

iiHuando  ciiegámos  ao  primeiro  paraizo,  o  anjo 
bateu  á  porta:  "(Auem  está  ahi?"  perguntaram, 
u  Gabriel."  "Quem  é  o  teu  companheiro  ?"  "Ma- 
homet. "  «  Recebeu  a  missão  ?  »  "  Recebeu-a.  "  "  Bcm- 
vindo  seja.  r>-  A  estas  palavras,  a  porta,  maior  que  a 
terra,  gyrou  nos  quicios,  e  entrámos.  Este  primeiro 
céu  é  de  prata  pura ;  da  sua  abobada  niagestosa  es- 
tão pendentes  as  estrellas  por  grossas  cadeias  de  ou- 
ro. A  cadauma  doestas  estrellas  está  um  anjo  de  sen- 
tinella  para  evitar  <jue  os  demónios  assaltem  o  ceu. 
Veio  abraçar-me  uiTi  velho  chamando-me  o  maior  de 
seus  filhos.  Era  Adão.  Não  tive  tempo  de  lhe  lallar  : 
pri'iideu-me  a  altenção  a  turba  de  anjos  de  todas  as 
iornias  e  cores.  Do  meio  dVstes  anjos  se  levanta  um 
gallo  d''unia  alvura  mais  brilhante  que  a  da  neve,  e 
de  grandeza  tão  mjriíica  que  roça  com  a  cabeça  no 
segundo  céu,  distante  do  primeiro  quinhentos  annos 
de  caminho.  Muito  me  confundira  tudo  isto  se  Ga- 
briel me  não  dissera  que  estes  anjos  estão  alli,  sob  iis 
lormas  de  aniniaes,  alim  de  intercederem  para  com 
Deus  por  todas  as  creaturas  da  mesma  forma,  que 
vivem  na  terra  ;  que  este  grande  gallo  é  o  anjo  dos 
gallos,  e  (pie  a  sua  obrigação  principal  é  recrear  o 
Eterno  todas  as  manhãs  com  seus  cantos  e  h^ninos. 

"  Deixámos  o  gallo  e_  os  anjos-animaes  para  subir- 
mos ao  segundo  céu.  E  composto  d'uma  espécie  de 
ferro  duro  e  jiolido.  Achei  alli  Noé,  que  mo  recebeu 
nos  braços.  Jesus  e  João  se  chegaram  depois,  e  me 
cliamaram  o  maior  dos  homens.  Subimos  então  ao 
lerci:iro  céu,  mais  distante  do  segundo  do  que  este 
dista  do  primeiro.  E  preciso,  pelo  menos,  ser  pro- 
piícta  para  supportar  o  brillio  deslumbrante  d'este 
léu,  inteiramente  formado  de  |)edras  preciosas.  En- 
Ue  os  entes  immortacrs  <|Ue  o  habitam  distingui  um 
anjo  de  altura  incomparável;  governava  cem  mil 
anjos,  cada  (|ual,  de  per  si,  mais  forte  que  cem  mil 
bataliiões  ile  guerreiros  prestes  a  pelejar.  Este  gran- 
de anjo  ehama-se  o  coniidenie  de  Deus ;  tão  ])rodi- 
giosa  é  a  sua  estatura  que  do  seu  olho  direito  ao 
olho  esquerdo  vão  setenta  mil  dias  de  caminho.  Es- 
t.iva  adiante  doeste  anjo  um  imnieiiso  liofete  sobre  o 
<pial  nTio  parava  du  «.'serever.  Gabriel  me  disse  que  o 
conliilent(^  de  Deus  era  ao  mesmo  tempo  o  anjo  da 
morte,  emprigado  viu  escrever  os  nomes  dos  que  lião 
ili.'  nascer,  em  calcular  os  dias  dos  vivos,  e  em  risca- 


(1)  Sri;unilu  iilviiliii  iiii('tiiri'H  innsiiliiiMiKis,  u  Juiiwnln  Al- 
))i)ralk  iiinni  nu  |mrai/.t>,  nit  ruii)|taiiliiu  ilo  i'i\i>  ilus  ncIc  Dur- 
1111'nti'H,  liTiila  cii'11'iilnl,  ilii  ciiriiiirn  ipie  fui  siiitIIIcikIu  pur 
AltritliTto,  tia  Imrni  d'^  llalnatii,  du  raim-lln  cm  (|iii'  Miiloiiui 
fu:,'m  ili'  MiMM  para  MimIiiiu,  iln  liiirru  iin  ipic  Nosso  SiMilior 
í^iilrnu  cm  .IcniHulcnt,  tlti  cavnlln  ilc  S.  Jttrn''  c  do  lairrtt  do 
|ir<ipliclu  I<!Hdras,  l<!»la  rttsii  íU-  bicftus  ucciípu  um  tojfiir  tliij- 
íiikUí  no  ccu  ilc  Maluiiia. 


los  do  livro  á  medida  que  chegam  ao  termo  marcado 
pelos  seus  cálculos. 

"Urgia  o  tempo;  attingimos  oquarto  céu.  Enoch, 
que  alli  se  achava,  ficou  mui  ledo  de  me  vêr.  Este 
céu  é  de  prata  fina,  transparente  como  vidro;  po- 
voam-n'o  anjos  dVlevada  estatura ;  um  d^elles.  mui- 
to mais  baixo  que  o  anjo  da  morte,  tem  conitudo 
quinhentos  dias  de  altura.  O  emprego  d'este  anjo  é 
muito  triste,  ponjue  tão  somente  se  occupa  em  cho- 
rar os  peccados  dos  homens,  e  predizer  os  males  que 
elles  a  si  se  preparam.  Por  estas  lamentações  n.ão  me 
agradarem  não  estive  para  as  ouvir  por  muito  tem- 
po. Traiisportámo-nos  logo  ao  quinto  céu.  Aarão 
veio  receber-uos  e  appresentar-me  a  Moysés,  que  se 
recommendou  ás  minhas  orações.  O  quinto  céu  é  de 
ouro  puro;  os  anjos  que  o  habitam  não  riem  muito, 
e  com  razão,  porque  são  os  depositários  d:is  vingan- 
ças divinas  e  dos  fogos  devoradores  da  cholera  celes- 
te. Também  teem  a  seu  cargo  vigiar  os  supplicios 
dos  peccadores  endurecidos,  e  preparar  tormentos 
horríveis  para  os  árabes  que  recusarem  adorar  um 
só  Deus.  Este  espectáculo  doloroso  me  f<«  apressar  a 
jornada,  e  eu  subi  ao  sexto  céu  com  o  meu  guia. 
Alli  encontrei  outra  vez  Moysés,  que  se  poz  a  cho- 
rar, porque,  dizia  elle,  que  eu  havia  de  conduzir  ao 
paraizo  mais  árabes  do  que  judeus  elle  tinha  condu- 
zido. 

« Em  quanto  estava  a  consolar  !Moysés,  senti-me 
arrebatar  não  sei  como,  e  cheguei  n'um  vòo  mais 
rápido  que  o  pensamento  ao  sétimo  e  ultimo  ceu. 
Não  posso  dar  uma  idéa  da  riqueza  d'òste  formoso 
paraizo;  contentem-se  com  saber  que  é  formado  de 
luz  divina.  O  primeiro  dos  seus  habitadores  ([ue  me 
deu  na  vista  excede  a  terra  em  extensão;  tem  se- 
tenta mil  cabeças,  cada  cabeça  tem  setenta  mil  lx)C- 
cas,  cada  bocca  setenta  mil  linguas,  que  tallam  de 
continuo  e  todas  ao  mesmo  tempo,  setenta  mil  idii>- 
inas  dilíerentes  em  (|ue  celebram  os  louvores  de  Deus. 
Depois  de  ter  considerado  este  ente  celeste,  fui  arre- 
batado de  súbito  por  um  sopro  divino,  e  achei-me 
sentado  ao  pé  do  limoeiro  immortal,  arvore  niages- 
tosa plantada  á  direita  do  throno  invisível  de  Deus, 
d'este  throno  ante  o  qual  aniem  sem  cessar  quatorze 
cirios  que  teem  de  altura  setenta  annos  de  caminho ; 
os  ramos  do  limoeiro,  mais  extensos  do  que  a  distan- 
cia que  vai  do  sol  á  terra,  dão  sombra  a  uma  multi- 
dão d(!  anjos  muito  mais  numerosos  que  os  grãos  de 
areia  ile  todos  os  desertos,  de  todos  os  mares,  de  to- 
dos os  rios  e  de  todos  os  ribeiros.  Sobre  os  ramos  do 
limoeiro  pousam  aves  immortaes,  empregadas  em 
considerar  as  passagens  sublimes  do  Koran.  As  iV>- 
Ihas  d'esta  arvore  assemelham-se  a  orelhas  de  olc- 
phante;  os  seus  fruclos  são  mais  doces  que  o  li'itc ; 
um  só  d'elles  bastará  para  sustentar  um  dia  todas  as 
creaturas  de  todos  os  mundos,  (.'ada  semente  encerra 
uma  das  houris,  virgens  divinas  reservadas  ]>iira  os 
prazeres  eternos  dos  musulmanos.  Jla  quatro  espécies 
de  houris  :  umas  são  brancas,  outras  còr  de  rosa,  ou- 
tras amarellas,  e  outras  verdes) ;  são  os  seus  olhos  tão 
lindos,  cpie  se  uma  houris  volvesse  os  olhos  aterra  em 
a  ijoite  mais  tenebrosa,  dar-lhe-hia  tanta  luz  como  o 
sol  em  todo  o  seu  esplendor ;  entregar-se-hão  ás  ca- 
ricias dos  lieis  sem  deixarem  de  ser  virgens,  tluatro 
rios  saem  do  pé  do  limoeiro,  dois  para  o  paruiío,  e 
dois  para  a  terra;  os  dois  ultinn>s  são  o  Ai/o  eo 
liiiplirules,  <le  <|Ue  ninguém  aMt^■^  de  mini  iHinheeí- 
ra  a  nascente. 

i.  (ial)riel  dei\ou-me  a<|ul,  por<|iie  llie  não  era  |H'r- 
mittido  passar  adi.inle.  Kapliail  Itcou  em  seu  logar, 
e  le\(iu-me  á  casa  ill\ina  ila  oração,  ondi?  si- junc- 
tani  cada  ília,  em  romaria,  setenta  mil  anjos  da  pri- 
meira  classe;   os  i|ue  la    \àii  um.i  vci  não  tornam   a 


156 


O  PANORAxMA. 


ir.  Esta  casa,  formada  ile  jacinthos  ecercada  dclanri- 
padas  (jiie  ardem  etcTiiamerito,  assemflha-se  ao  tem- 
plo de  Meca  ;  e  se  caísse  perpendicularmente  do  sé- 
timo céu  sobre  a  terra,  como  poderá  succeder  algum 
dia,  pousaria  sobre  a  Caaba.  E  cousa  estranha,  mas 
certa. 

«Apenas  puz  o  pé  na  casa  da  adoração  um  anjo 
me  appresentou  três  taças;  a  primeira  estava  cheia 
de  vinliu,  a  segunda  de  leite,  e  a  terceira  de  mel 
Ebcollii  aquella  em  que  estava  o  leite.  Logo,  uma 
voz  forte  como  dez  trovões  fez  relximbar  estas  pala- 
vras :  i'  Oh  Mahomet !  bem  fizeste  cm  pegar  na  taça 
em  que  está  o  leite ;  se  houvesses  bebiiío  o  vinho, 
ficava  atua  naç-ão  pervertida  e  desgraçada. "  Mas 
um  novo  espectáculo  me  veio  turbar  a  vista.  Fez-me 
o  anjo  atravessar,  tão  depressa  quanto  a  imaginação 
pode  conceber,  dois  mares  de  luz,  e  um  terceiro  ne- 
gro como  a  noite  :  achei-me  então  na  presença  de 
Deus.  Apoderava-se  o  terror  de  todos  os  meus  senti- 
dos, quando  uma  voz  mais  estrondosa  que  a  das  va- 
gas agitadas,  me  bradou:  u  Proseguc,  oh  Mahomet! 
chega-te  ao  throno  glorioso!"  Obedeci,  e  li  estas 
palavras  n'uni  dos  lados  do  throno:  "Não  ha  outro 
Deus  senão  Deus,  e  Mahomet  é  o  seu  propheta.  " 
Ao  mesmo  tempo  poz  Deus  a  mão  direita  no  meu 
peito  e  a  mão  esquerda  no  meu  hombro ;  senti  um 
frio  agudo  correr-me  por  todo  o  corpo  e  gelar-nic 
ate  a  medula  dos  ossos.  A  este  estado  de  padecimen- 
to seguiram-se  dentro  em  pouco  doçuras  inexprimí- 
veis e  desconhecidas  dos  filhos  dos  homens,  doçuras 
que  me  embriagaram  a  alma.  Apoz  e.^tes  transportes 
tive  com  Deus  uma  conversação  familiar  <)ue  durou 
muito  tempo.  Dictou-me  Deus  os  preceitos  que  acha- 
reis no  Koran.  e  depois  ordenou-me  que  vos  exhor- 
tasse  a  sustentar  com  as  armas  e  o  sangue  a  sancta 
religião. 

"Quando  o  Eterno  acabou  de  fallar  fui  ter  com 
Gabriel.  Abriu  os  seus  cento  e  quarenta  pares  de 
azas,  e  descemos  os  sete  céus,  onde  muitas  vezes  nos 
demoraram  os  coiiciTtos  dos  espíritos  celestes,  que 
cantavam  os  nossos  louvores.  Mas  Deus  me  tinha 
determinado  que  fizesse  orar  cincoeuta  vezes  por  dia. 
Q.uando  cheguei  ao  céu  de  iMoysés  communiquei-lhe 
a  ordem  que  recebera.  "Torna  ao  Senhor,  disse-me 
o  eonduetor  dos  hebreus  ;  pede-llie  que  mitigue  o  pre- 
ceito :  o  teu  povo  nunca  poderá  cumpri-lo."  Subi 
ate  o  Altíssimo  e  pedi-lhe  cjue  diminuisse  o  numero 
das  rezas.  Ficou  reduzido  a  quarenta.  O  saliío  Mov- 
ses  me  rogou  fizesse  novas  instancias,  c,  depois  de 
reiteradas  viagens,  ficou  determinado  que  as  orações 
fossem  cinco.  Cheguei  a  Jerusalém,  e  a  escada  de 
luz  tornou  a  descer  da  abobada  celeste.  Alborak  me 
esperava.  Ainda  era  noite.  Levou-me  até  onde  me 
tomara,  agitando  somente  duas  vezes  as  suas  grandes 
azas.  Então  disse  eu  a  Gabriel:  "Muito  temo  que  o 
meu  povo  não  queira  acreditar  a  narraç.ão  d"esta 
viagem."  "Tranquillisa-te,  me  respondeu  o  anjo.  o 
liei  Abou-l!(kr  e  o  valente  e  sancto  Ali  sustentarão 
a  verdade  d'estes  prodígios."  (Continua.) 


O  KitEMiTKiiio   DO  Vesúvio. 

O  Vesovio  está  situado  entre  o  mar  c  os  Apenni- 
nos,  a  duas  c  meia  léguas  de  Nápoles  pouco  mais  ou 
menos,  e  separado  d'esta  cidade  |K'la  curvatura  do 
golplio  de  que  dista  obra  de  uma  légua  na  costa  orien- 
tal, ficando  sobranceiro  á  Torre  dei  (ireco,  e  a  l'or- 
tici:  n'e3ta  ultima  tem  a  corte  na[K)litana  um  bollo 
palácio  para  residência  no  verão.  Esta  montanha 
volcanica,  de  fúnna  |>vramidid,  tem  agora  umas  CUU 


toeza»  de  elevação  acima  do  nível  do  mar;  são  tan- 
tas as  variações  por  que  tem  passado  na  sua  altura 
e  na  forma  da  cratera,  que  é  difficil  dar  uma  exacta 
idéa  d'ella  ■,  o  viajante  conta  o  que  viu,  ma»  não  pô- 
de prognosticar  o  que  verão  os  que  depois  d^elle  vie- 
rem ;  d'aquí  as  encontradas  relações  que  se  lêem, 
posto  que  muitas  escríptas  no  mesmo  século.  Amiu- 
dadas teem  sido  as  sua»  erupções-,  ao  catalogo  e  cir- 
cumstancías  d^ellas,  e  á  sua  posição  na  Europa,  de- 
ve este  volcão  unicamente  a  sua  celebridade- 

O  Vesúvio  está  apartado  da  grande  cordilheira 
dos  .\pennínos,  e  é  mister  distingui-lo  do  monte  da 
Somma,  com  que  muitos  o  confundem,  dando-lhe  es- 
te nome,  e  do  monte  Ottaiano,  and>os  os  quaes  se 
levantam  a  seus  lados  sobre  raízes  ou  bases  cummuns, 
sendo  muito  de  crer  que  também  elles  furam  cm 
tempo  remoto  volcões.  Olhando-se  do  largo  do  paço 
ou  do  molhe  de  Na[)oles,  dir-soha  que  oSomma  está 
contíguo  ao  Vesúvio  e  com  elle  forma  uma  só  mon- 
tanha de  cume  bícipite  ;  ptpr  detrar  de  ambos  escon- 
de-se  á  vista  o  pico  de  Ottaiano- 

A  bacia  que  se  dilata  nas  faldas  do  \esuvio  ap- 
presenta  o  mais  amplo  e  ma'.;nílico  painel: — um 
circulo  de  aprazíveis  collínas  ordenadas  em  amphí- 
theatro,  rebaixando-se  insensivelmente  para  o  lado 
do  mar;  e  no  seu  decli\e  uma  cidade  afagada  sem- 
pre pelos  raios  os  mais  brandos,  mais  transparentes 
e  puros  do  formoso  sol  dMt.ilia;  pouco  mais  alto,  á 
direita,  avultando  nos  ares,  o  casfello  Santelmo,  as- 
sente por  cima  da  cidade  para  a  defender  ou,  o  que 
mais  parece,  para  aformosea-la,  surge  do  meio  da 
verdura  que  cm  todas  as  estações  cinge  a  eminên- 
cia; —  mais  em  baixo,  o  golpho  onde  se  reflecte  ia 
villa  reale ;  e  o  palácio  da  rainha  Joanna,  de  mvste- 
riosos  subterrâneos,  em  cujos  destroços  se  engolpham 
e  mugem  as  ondas  Por  outra  parte  a\  ísta-se  o  sup- 
posto  tumulo  de  Virgílio,  e  a  gruta  ou  perforação 
do  1'ausílíppo  (l),  beneficio  que  a  tradição  popular 
remotíssima  attríbue  á  arte  magica  do  insigne  poe- 
ta, convertido  ein  feitii-eiro;  porque  o  povo  cn.thu- 
siasta  descobrira  ii'aquelle  grande  génio  um  não  sei 
que  extraordinário  e  sobrehumano.  Os  sítios  delicio- 
sos que  os  seus  versos  viilgarisaram,  avistam-se  mais 
ao  longe,  Cumas,  os  Cam|)os  EUsios.  o  antro  da  Si- 
bvHa.  —  A  esquerda  o  Selwto.  e  Hcrculanum,  se- 
pultada debaixo  do  chão,  Porlici,  Stabbia  arruinada. 
Pompeia  em  parte  restituída  á  claridade  do  dia  (2)  : 
—  na  extremidade  do  caU>  o  convento  dos  Camaldu- 
lenses,  e  no  horisonte  Sorrento.  illustrada  por  um 
grande  poeta  desditoso  (3).  —  Aquella  cidade  que 
|)rimeíro  enumerámos  é  Nápoles,  cujas  cercanias  se 
denominam  terra  afortunada.  Cnmpagitn  Felice ;  e 
essa  iiaizagem  immens;t  é  assoberbada  pelo  mais  pic- 
turesco  dos  montes,  o  A  esuvio,  cujas  harmonias  e  li- 
nhas esquivas  não  se  acham  dignamente  representa- 
das pelo  pincel,  |Kín|ue  uma  natureia  tão  ideal  e 
tão  magica  não  pôde  pintar-so. 

Perguntam  os  habitantes  do  restante  da  Europa 
de  que  procede  o  soccgo  do  napolitano,  ameaçado  de 


(O  .\  estrada  qiic  comniunica  Nápoles  com  Poiíixolo 
pnssa  atravei  do  pequeno  monto  Pan5ilip|)0,  cuja  perforação 
já  existiu  em  lein|>o  de  Nero.  I^noia-se  |>or  que  mios  foi  ei- 
caiadu. 

(i)  Hcrcul.iniiin,  di-seolwrla  cm  171.1,  nunca  potli-râ  iln- 
oiilulli.ir-se  á  superticie  do  solo  por  causa  da  n«:i-*sid»de  ile 
poupar  os  edifícios  de  1'ortici,  dctiaivo  dos  (piars  «-stá  silua- 
da  :  quando,  inuilas  lens.  <e  acalwm  »s  c»ca>»ç<V-»  n'um 
lojar.  é  preciso  tMiliipi-l»  cmi  l'rra  cpie  se  cilralii-  de  altu- 
ma  valia  proxiiua.  Uuaiito  a  Ponipi-ia.  como  ja«  dclaixo  de 
?inlias.  nliiHiis  dos  s.iis  princi|nc»  olificio»  e  ru.i»  cflâo  já 
dl-  todo  desentulhadas. 

l^.i)     O  auclor  da  Ucrusalemme  libcrata. 


o  PANORAMA. 


157 


continuo  pelo  Vesúvio  \  este  enigma  dccifra-o  quem 
pisa  o  bello  território  de  Nápoles,  quem  tem  respi- 
rado o  ar  puro  d'aquella  suave  atmosphera.  Debalde 
cidades  inteiras,  ainda  no  século  passado  como  na  an- 
tiguidade, foram  si-pultadas  pelos  incêndios  do  vol- 
cão^  as  suas  terríveis  dcvastaç;ões  debalde  adquiri- 
ram na  historia  fatal  celebridade:  tranquillisado  pe- 
lo habito,  ou  seduzido  por  vistas  encantadoras,  o  na- 
politano dorme  socegadaniente  ao  pé  da  voragem  ; 
edilica  os  cminos  e  deliciosas  casas  de  recreio  no  cs- 
pati-o  coniprebi-ndido  entre  a  falda  e  o  vértice  da 
montanha  ignivoma,  palácios  talvez  ephemeros,  que 
insultam  com  suas  grimpas  esbeltas  as  torrentes  de 
lava  que  os  circumdam,  e  cujo  inevitável  destino  e 
desappareccrem  ou  cedo  ou  tarde  n;is  ondas  d'aquel- 
la  inundai^ão  temerosa. 

Contaremos  brevemente  a  ascensão  de  um  viajan- 
te verídico,  não  ha  muitos  annos. — 

No  principio  de  janeiro  de   1330  partimos  de  Na- 
poUrs  ás  sete  horas  e  meia  da  manliã  para  ir  visitar 
o  Vesúvio,   volcão  que   os  napolitanos   no  seu  est^  lo 
poctico  chamam   ta  tnnntagna,   como   antonomásia; 
posto   que  pelo   vulto   lhe  não  caiba,   mas   sim  pelos 
eOeitos.   Fomos  em  caleças   (l)   a  Késina,   aldeola   á 
líeiramar  pegada  com  Herculanuni,    a  mais  perto  do 
Vesúvio,  que  já  a  tem  alagado  quatro  vezes.  Apenas 
apeados  no  pequeno  largo  onde  se  acham  os  ciccrnni, 
e  os  jumentos  que   transportam   os  viajantes,   virao-  j 
nos  cercados  da  turba.    Kra  a  quem  nos  agarraria,  a 
quem   mais  alto   gritaria    para   nos  olferecerem   seu  i 
préstimo  ou  ascavalgaduras.  Dir-se-hia  que  era  uma  ' 
i>eíli(;ão.    Impacientados  mandámos   ao  demo  homens 
e  burros;  e  como  o  ultimo  dos  Iloracios  fugimos  pa- 
ra  dispersar  os  nossos  inimigos.    Partimos  sósinhos  : 
a  alguma   distancia    de  Késina   é  que  adoptámos  um  ! 
guia   que  luimuu   cm   nos  seguir.    As  nove  horas  co-  I 


meçamos  a  subida.  Ainda  bem  não  tínhamos  passa- 
do as  ultimas  casas  de  Resina,  já  pisávamos  as  lavas 
que  com  a  côr  denegrida  entristecem  a  vista.  Pre- 
cursoras das  fadigas  que  nos  aguardam,  as  pedras 
volcanicas,  as  escorias  nos  rasgam  os  pés.  Começa  a 
natureza  uu>rta,  o  elemento  de  destruição,  que  de 
súbito  transforma  um  paia  fecundo  e  ameno  na  soli- 
dão da  morte.  Tudo  mostra  um  não  sei  que  espan- 
toso e  sinistro.  Todavia  a  vista  descança  de  tempo  a 
tempo  n'algumas  porções  de  terreno  <jue  ainda  não 
foram  invadidas,  ou  que,  tornadas  á  agricultura  pe- 
la successão  das  eras,  se  recamam  de  arvores  e  vi- 
nhas, e  parecem  os  oásis  d'aquelle  deserto.  Aqui  é 
que  se  dá  o  tão  afamado  vinho  laci  ijiiia  Vlirisli.  A 
cinza  do  volcão  fortalece  a  cepa,  e  indcmnisa  assim 
de  algum  modo  dos  damiios  que  por  vezes  causa. — 
Além  de  que  (quem  o  acreditará.')  nenhuma  região 
do  globo  possuo  no  mesmo  espaço  de  território  tanta 
população  como  a  que  cerca  o  Vesúvio  .  é  rodeado 
de  vivendas  e  quintas,  propriedade  de  homens  que 
se  deslembram  do  perigo,  procurando  tirar  proveito 
da  fertilidade  do  torrão,  e  que,  terminada  a  erup- 
ção, tornam  a  levantar  a  casa  no  mesmo  sitio,  d  on- 
de a  experiência  funesta,  mas  inútil,  os  deveria  en- 
sinar a  fugir. 

Proseguimos  .  .  .  em  breve  tudo  se  vê  coberto  de 
lavas;  dislinguem-se  as  das  diversas  erupções  pela 
diflerença  de  côr.  O  nosso  guia  indica-nos  a  de  1822 
que  occupa  immensa  superfície.  O  caminho  dirige- 
se  quaii  em  linha  recta  para  o  lado  do  cone  da  mon- 
tanlia  que  ollia  ao  norte,  até  chegar  ao  piano  deite 
(jetitstre.  Esta  chan,  outr'ora  coberta  de  arbustos  de 
pcrenne  viço,  de  moitas  e  de  giestas,  não  e  agora 
senão  um  terreiro  escalvado,  onde  não  se  vê  mais 
que  as  superfícies  espumosas  de  vastas  torrentes  de 
lava  que  se  cruzaram  umas  com  as  outras. 


•.-'V/w^.i.''^'^^^ 


As  on/.i-  horas  menos  um  (|Uarlu  ehcgánu)5   ao  ere- 
mitério  de  S.   í^al\adol■,    silo    n'um    piM|ueno    plaino 


li)  I)u  uiumnii  inuilo  que  lu  goiululus  fl;;urum  eiitrc  an 
<  liriuKilliiilrs  ili-  Viiii/ii,  o  ciílcuziíio  púili;  loiílar-si-  iimu  Ohs 
kiiiKiil.iiiilmli'H  (ir*  Niipulrs.  S<;  iiilu  \  tstfii  (ilu  tiiilro  viujaii- 
Iff)  o  l>iiiiilii  iloiiiliii  ili'  Ciiilus  Vriinl,  iiiiai;iri:ii  nina  fs|ic- 
••ii!  (li!  lilliiuy  i'iii  Ilirnia  ili'  cniirlia,  ilr  a)i|iMri una  lAii  li'vc  c 
Iraífil  <|"''  (larTn  ili^vja  iHiuiitar  iMU  llll^allMa  aci  |>rjiiirii'» 
cuiliatc.  t'!iila  (:am\a  roíluiitc  <:  lutln  finlutiirraila  tlt*  duiira- 
•lo»  que  Ihr  prcxlaiii  ciTla  i'li';;aiii'ia  ;  o  );aii/,iaiii>  qiif  a  |iii.\a 
If-ii»  uncii»  ludiis  ciniailu»  ili.'  |iri7'uii  aiiiarcUus    u  na  cube^'a 


na  cxiremidaile  o<cideMlal  do  culmu  dei  Limlnuii.. 
Até  agora  a  sua  elevada  situação  o  tem  ])ri's(Tvado 
um  pciMutclit)  ilr  jiluiiias  i  uu  \rr  u  cuUu  i-i>lilii'o  tio  cavalli- 
iiliu  lilu  lii'iii  jiiii^iilu  á  ('uli-(;a,  Ciiiumniiii'iil>'  tuiliiilailu  com 
a  uiai.s  cstricta  iiarciuiDiiia,  jnlj;»ri'is  qiif  o  .sru  tlcliratUi  lii-« 
ujjiila  para  rllr  i'  suliijaiiirnli'  ptxailo.  l'.irli',  r  im  si»  «r- 
ilcir  (livura  u  i>pai;<i;  cusla  a  \i>la  a  .-r^ni-lii  pilas  larjii»  U- 
piis  ilr  la\a.s  ili-  ipif  Napulrs  v  ('al>,'ailii.  t)  ronilmior,  lr<'- 
pailii  ahaz  ila  ria;;il  iiiai'liiiia,  nm>  imia  ila.i  iiiAus  sri!Ur«  uu 
rrili  «s  piir  i-liim  ila  caliiijii  ili'S  que  i-nmlu»  f  ouui  il  oulia 
a^'ila  uiu  ciiiiipriil»  aruulu.  A  caivu  Uo  lultsíiiiu  apcliu*  rvii- 
lúii  (Jmus  puiuuni. 


1Õ8 


O  PANORAMA. 


«las  lavas,  que  sempre  se  teem  dividido  ao  pé  do  ro- 
chedo volcanico  sobre  que  dcscança.  O  eremitério, 
•jiie  data  de  1631,  contt^m  uma  capella  e  alçuns 
quartos.  —  Habita  alli  um  ermitão  (diz  M.'""  de 
Stael)  MOS  confins  da  vida  e  da  morte.  Diante  da 
sua  iiorta  estão  algumas  arvores,  ultima  despedida  á 
vegetação.  Estes  eremitas  não  são  sempre  religiosos ; 
Iiaverá  quarenta  annos,  um  d'olles,  que  morreu  n'u- 
ma  idade  mui  avançada,  era  um  antigo  criado  da 
(■amara  de  M.™«  de  1'ompadour.  (iue  contraste! 
Jíepois  de  haver  servido  as  coUaoões  de  Luiz  15.", 
preparar  a  refeição  frugal  do  viajante,  (iue  combi- 
nação!  Trianon  na  falda  do  Vesúvio! 

Conserva-se  no  eremitério  um  livro  onde  cadaum 
viajante  inscreve  o  seu  nome  e  algumas  vezes  um 
pensamento  e  uma  máxima.  Cousa  singular  1  raras 
vezes  o  Vesúvio  tem  inspirado  alguma  idéa  digna 
d'elle.  Ao  redor  do  eremitério  ha  capellinlias  onde 
vem  gente  em  peregrinação  fazer  as  estações  <la  Via- 
Sacra.  (iue  logar  mais  próprio  para  inspirar  os  seu- 
timentos  que  o  homem  deve  ter  em  relação  a  Deus  ? 
O  Vesúvio  é  o  temor  ^  Nápoles  a  gratidão ! 

(Cuntinúa.) 

Expedições  de  três  potencias  ao  poio 


IÇ 


AISTRAL. 


Os  a>-nos  de  1R38,  1839,  e  1840  farão  epocha  nos 
fastos  niaritimos ;  assignalarani-n'os  três  exjiedições 
scientific.is,  saídas  dos  portos  do  França,  d'lnglater- 
ra  e  dos  Estados-Unidos.  —  As  três  expedições,  leva- 
das de  nobre  emulação,  acham-se  nas  mesmas  para- 
gens na  estação  do  anno  que  parmitte  accesso  ás  al- 
tas latitudes  austraes  :  teem  por  objecto  os  progressos 
da  seiencia,  a  determinação  do  polo  magnético  aus- 
tral, o  estado  geológico  egeographico  do  polo  antárc- 
tico, e  verosimilmente  todas  três  o  desejo  ambicioso 
de  tocar  n'algura  ponto  do  globo  em  que  os  homens 
não  tivessem  ainda  posto  a  vista,  onde  nenhum  bai- 
xel houvesse  despregado  as  vehts. 

A  simultaneidade  d'estas  expedições,  pertencentes 
ás  três  maiores  potencias  marítimas,  é  uma  eircuins- 
tancia  que  provavelmente  não  tornará  a  dar-se ;  e  se 
rellectirmos  que  não  podiam  effcituar  as  suas  opera- 
ções senão  debaixo  de  uma  temperatura  que  varia\a 
de  zero  a  20  graus  de  frio,  e  incessantemente  entre- 
gues á  iniluencia  de  todos  os  agentes  destruidores,  a 
chuva,  a  saraiva,  a  neve,  as  tormentas,  as  trovoadas, 
as  serras  degelo  iluctuantes,  osterremoti»,  osvolcões, 
não  poderemos  deixar  do  admirar  a  resolução  dos  in- 
trépidos navegantes  chamados  á  honra  de  ascomman- 
dar^  e  esses  comniandantes  eram  VitmoiU  d^  Lh filie 
pela  França,  Jioss  pela  Inglaterra,  Jfilkes  pelos  Es- 
tados-Unidos. 

As  três  em  prezas  tiveram  resultados  differentes; 
todavia  nenhuma  foi  sem  fructo,  e  seria  temeridade 
e  injustiça  avaliar  o  merecimento  dos  conimandantes 
pelos  resultados  que  se  obtiveram.  Amais  ousada  das 
expedições  podia  ser  vencida  e  excedida  por  outra  ri- 
val ;  em  tal  caso,  e  em  paragens  taes,  depende  tudo 
das  eircumstancias  i  dois  navios,  navegando  de  con- 
serva, ]Kidem  no  mesmo  instante  experimentar  diver- 
Ha  fortuna,  ainda  que  estejam  separados  distancia  de 
poucos  centos  de  braças ;  um  passará  livremente  por 
entre  duas  numtanlias  de  gelos  Iluctuantes,  outro  se- 
rá arrebataiiamcnte  estorvado,  envolvido  e  exposto 
aos  mais  extri.Muos  perigos.  —  Se  a  ex[K'dição  ingleza 
])enetr(iu  até  o  78"  parallolo  do  polo  austral,  deve-o 
unicamente  ao  acaso  de  uma  boa  fortuna,  eesta  \an- 
tagem  nada  deve  inlhiir  na  opinião  que  se  formar 
do  mérito  dos  commandanies  c  offieiaes  das  outr.is. 
Daremos  uui  extracto  dos  traUvllios  de  cadauma  dVl- 


las.  Começaremos  pela  que  appresenla  menores  resul- 
tados, posto  que  se  dessem  pela  sua  parte  muito  mais 
probabilidades  do  que  pela  da»  suas  rivaes.  Com  ef- 
feito  a  expedição  americana  compunha-se  de  clncu 
navios,  eeada  uma  das  outras  só  contava  dois.  N 'es- 
te resumo  das  operações  de  cada  uma  pasmaremos  em 
silencio  tudo  o  que  não  tiver  directa  relação  com  a 
i  exploração  do  pulo  austral. 

Expedição  dos  Jiríadot-Uéiidof. 

O  capitão  VVilkes  tinha  ás  suas  ordens  uma  divi- 
são de  cinco  navios  e  montava  a  fragata  l  ineennet. 
Saindo  do  porto  em  1333,  tocou  na  Madeira,  d'onde 
largou  a  28  de  setembro,  e  seguiu  para  a  'l'erra  do 
Fogo,  que  deixou  para  tomar  o  rumo  do  polo  antárc- 
tico. Não  foi  Ijem  favorecido  na  viagem  ;  violentas 
tempestades  dispersaram  a  sua  esquadrilha,  a  qual 
chegou  comtudo  á  latitude  austral  de  70".  Porém, 
embaraçado  sempre  por  montes  degelo  impenetráveis, 
e  estando  já  muito  adiantada  a  estação,  \iu-se  cons- 
trangido a  abandonar  paragens  perigosas  ;  poz  a  pnJa 
ao  norte  e  ieio  deitar  ferro  a  Valparaizo  aos  15  de 
maio  de  183».  Largou  depois  esta  arribada  para  ir 
á  Nova-Hollanda,  ao  porto  de  Sidney. 

No  seguinte  anno,  a  10  de  janeiro  de  1840,  o  ca- 
pitão 'v\  ilkes  parte  novamente  de  Sidnev  para  nova 
exploração  do  polo  austral  pelos  61"  de  latitude,  ul- 
trapassa as  primeiras  montanhas  de  gelo,  mas  em  bre- 
ve a  sua  derrota  é  suspendida  por  uma  barreira  in- 
superável lia  mesma  espécie,  que  obriga  a  f  incennei 
a  tomar  para  oeste ;  a  1 9  de  janeiro  o  ponto  do  ca- 
pitão Wilkes  era  66"  2o'  de  latitude  e  154"  27  de  1 
longitude  ao  oriente  do  meridiano  de  Paris;  eé  d'es-  I 
te  ponto  que  o  capitão  \\  ilkes  teve  conhecimento  da 
terra  Adélia.  —  E  de  muita  importância  notar  que, 
n'esse  mesmo  dia  I!>  de  janeiro,  a  expedição  france- 
zaachava-se  a6.í"  39'  3.V'  delatitude  e  139"  õ  25" 
de  longitude  oriental,  isto  é,  quasi  um  grau  mais  ao 
norte  que  a  fUitcenncs,  c  15"  2l'  35''  mais  para 
oeste. 

Ora,  se  na  verdade  o  capitão  VVilkes  houve  vista  de 
uma  terra,  não  é  a  terra  Mtlia.  a  menos  que  esta  se  não 
prolongue  15  a  30  graus  na  direcção  oriental,  como 
acontece  na  parte  occidentnl.  segundo  o  verificou  o 
capitão  Dumont  d'L  rville.  Porém  sigamos  a  derrota 
da   yincennes. 

A  30  de  janeiro  acha-se  n'uma  bahia  empachada  j 
de  accumulações  de  polo  e  de  rochas  volcanicas,  acos- 
ta da  qual  parecia  alargar-se  para  o  sul  •,  o  terreno 
era  montanhoso;  asoudareza  dava  34  braças  de  fun- 
do.—  Depois  de  longos  e  baldados  esforços  para  sur- 
gir, o  capitão  é  novamente  forçado  a  prolongar-se 
com  acosta,  o  que  fez  até  os  97"  de  longitude;  n'e*- 
te  ponto.  achan(!t>-se  ;ior  64"  <le  latitude,  costeia  do 
novo  a  terra  jxir  espaço  de  57"  do  oriente  ao  occi- 
dcnte,  quasi  sobre  o  mesmo  parallelo ;  mas  n.ão^u- 
de  alx>rda-la,  e  não  oIToreeendo  o  adiantamento  da 
estação  probabilidade  ah^unia  de  exilo  á  empreza.  o 
capitão  tomou  a  resolução  de  picar  para  o  norte,  dan- 
do á  torra,  que  julgou  haver  descoberto,  o  nome  de 
continente  antárctico. 

.•V gora  estamos  em  ciroumstanrias  de  appreciar  mili- 
tei* factos  im}H>rlantes,  relativos  á  priori<lade  do  des- 
cobrimento da  terra  Adélia.  —  Mr.  le  (iuillou,  qiu' 
embarcou  com  Dumont  d'l  rville,  como  cirurgião 
niór  da  Xelrc.  tr.iotamlo  d'esta  matéria  na  obra  que 
liou  álui.  adiaula  f.iolos  que  carecem  de  precisão,  do 
concordância,  e  sobre  tudo  de  justiça.  —  .\  pag.  108 

dií  positivamente ^a  cx[H>diç."u>  franceia  te^e  vista 

da  torra  a  <a  de  janeiro,  mas  não  |>oude  toma-la  se- 
não  a  21,  • A  pai.  206  díi  —  ••  a  exj)edição  ame- 


o  PANORAMA. 


159 


ricana  teve  indícios  da  terra  a  1  9  de  janeiro,  p  pa- 
ra odiante  este;  indicio?  reconverteram  em  certeza." 
—  Por  esta  simples  exposição  das  datas  é  evidente 
<iue  o  capitão  Wilkcs  não  teve  conheeiniento  da  ter- 
ra senão  a  19,  quando  o  capitão  d'Urville  a  tinha 
avistado  a  18.  Como  pode,  por  tanto,  o  auctor,  a 
pat;.  209,  conceder  l.ão  liberalmente  a  prioridade  do 
descobrimento  á  expedi<;ão  americana?  ]Ia  contra- 
dicíjão  evidente,  e  bastava  tão  somente  o  patriotis- 
mo para  Mr.  le  Guillou  a  evitar.  Suum  cui<iue.  De- 
mais, na  discussão  d'esta  causa,  existe  uma  circums- 
tancia  pouco  favorável  ao  capitão  Wilkes  :  annun- 
ciou  ol'licialmeiit(!  <jue  na  manhã  de  19  dejaneiro  ti- 
vera conhecimento  da  terra:  então  para  quepocm  os 
jornaes  em  duvida  a  veracidade  do  capitão,  e  os  seus 
próprios  tompaniieiros  de  viagem  asseguram  que  em 
19  dejaneiro  ninguém  a  bordo  da  Fincenncs  avista- 
ra terra  !  E  esta  circumstancia,  per  si  só,  não  pode- 
ria d(!cidir  a  questão  de  prioridade  ?  .  .  . 

(Continua.) 

Os  Tempiaiiios. 

(Continuado  de  pag.  Í51.) 

K  NECESSAmo  confessar  que  este  processo  não  era 
d^aquelle»  que  se  podem  julgar  :  abrangia  a  Europa 
toda  ■,  os  depoimentos  eram  aos  milhares,  os  docu- 
mentos innumeraveis  :  os  processos  tinham  dilferido 
nos  diversos  estados.  A  única  cousa  havida  por  certa 
era  que  a  ordem  se  tornara  inútil  para  o  futuro,  e 
demais  a  mais  perigosa.  O  papa,  por  mui  pouco  hon- 
rosos que  fossem  os  seus  particulares  motivos,  obrou 
sensatamente.  Declara  na  sua  bulia  explicativa  que 
as  informa(;ões  não  são  bastante  seguras,  que  não 
tem  o  direito  de  julgar,  mas  que  a  ordem  era  muito 
suspeit.i :    ortUnem  valJe  sufpecluni, 

(Jlemeiíte  V  forcejou  por  acobertar  a  honra  da 
igreja.  Kalsifieou  secretamente  os  registos  de  Bonifá- 
cio, mas  não  revogou  perante  o  concilio  senão  uma 
das  liullas  d'<'st.e  (Ctciicis  litivusj^  a  que  não  ollendia 
;i  doutrina,  mas  que  im|i('(lia  o  rei  de  tomar  o  di- 
nlieiro  do  clero.  l*or  esta  forma  aqucUas  grandes  con- 
tendas de  idéas  e  princípios  se  fundiram  outra  vez 
na  quentão  de  dinheiro.  Os  ben»  do  Templo  deviam 
ser  applicados  á  redempeão  da  Terra  Sancta  e  dados 
nos  hospitalarios.  Até  houve  quem  accusasse  esta  or- 
dem de  ter  comprado  a  alxilieão  da  ordem  do  Tem- 
plo :  se  tal  fez  achou-se  bem  enganada:  um  historia- 
dor alTirma  que  ao  contrario  be  empobreceu.  João 
XXII  se  <pi<íixava,  em  1310,  de  que  o  rei  se  paga- 
v.i  dl'  guardar  os  templários,  apossando-sc  até  da  fa- 
'/.end.i  dos  liospilid.irios.  Em  l.íI7  der;im-se  por  feli- 
zes de  p.issar  i|UÍIai;rio  linal  aos  administradores  reaes 
du  ordiMu  do  'i'enjplo. 

Uislava  uma  triste  parti'  da  hiTança  do  Templo,  a 
mais  enibara(,'osa  :  lallo  diis  prezos  qui;  o  ri^i  conser- 
vava em  l'arí»,  parlieul.irmente  o  grão  mestre.  Ou- 
ramos sobre  este  aconticiniento  trágico  a  narra(,-ão 
<lo  historiador  .iiion^  ni<i,  euntinuailor  de  Uiiillierme 
du  J\angis. 

>i  O  grão  mestre  da  extiiicla  ordem  do  'J\"mplo  e 
outros  Ires  ti-mplarios,  o  visitador  de  Kraii(;a,  os 
mestres  da  Normandia  e  da  Aqiiilaiiia,  «-uja  senten- 
ça deliniliva  o  papa  reservárii  para  si,  i'iimp,ireee- 
ram  peranie  o  arci^bispo  de  Sens  <■  uma  assi  inliléa 
de  oulros  prelados  e  doutores  em  direito  divino  e  ca- 
nonii'o,  convoíMila  espeiialinenle  para  esle  lim  em 
l'arÍH,  por  ordem  do  pap.i,  pido  bispo  de  Albano  e 
iiuIroN  <li)is  eaid<'aes  legados.  < 'omo  os  (piatro  sobre- 
diilos  CDnfessav.im  os  erimes  que  liies  eram  iniputa- 
dii-.  publica   e  soliinnejucnle,   c  perseveraviim  u'esta 


confissão,  e  parecia  quererem  persistir  n'ella  até  o 
fim  •,  depois  de  madura  deliberação  do  conselho,  no 
largo  do  adro  de  Nôtre-Dame,  na  segunda  feira  de- 
pois do  dia  de  S.  Gregório,  foram  condenmados  a 
serem  prezos  por  toda  a  vida  emparedados.  Porém, 
quando  os  cardeaes  julgavam  ter  levado  a  cabo  todo 
o  negocio,  eis  que  de  súbito,  sem  que  tal  se  podesso 
esperar,  dois  dos  condemnados,  o  mestre  d'ultramar 
e  o  mestre  da  Normandia,  defendendo-se  pertinaz- 
mente contra  o  cardeal  que  acabava  de  fallar  e  con- 
tra o  arcebispo  de  Sens,  voltaram-se  abjurando  a  sua 
confissão  e  todos  os  seus  depoimentos  anteriores,  sem 
guardar  comedimento,  com  grande  espanto  de  todos. 
Os  cardeaes  os  entregaram  ao  prevoste  de  Paris,  que 
se  achava  presente,  para  os  guardar,  até  que  delibe- 
rassem com  mais  amplitude  no  seguinte  dia.  Mas 
logo  que  esta  novidade  chegou  aos  ouvidos  do  rei, 
que  estava  então  no  seu  paço  real,  tendo  praclicado 
com  os  seus  sem  chamar  os  leltrados  por  opitiiuo  pru- 
dente, na  tarde  d'esse  mesmo  dia  os  mandou  quei- 
mar ambos  na  mesma  fogueira,  n'um  ilhéu  do  Sena 
entre  o  jardim  real  ea  igreja  dos  eremitas  de  S. 
Agostinho.  ^Mostraram  soflrer  o  fogo  com  tal  firmeza 
e  resignação,  que  a  constância  na  morte  e  as  suas 
denegações  finaes  encherai!i  a  multidão  de  pasmo  e 
espanto.  Os  outros  dois  foram  encerrados,  como  de- 
clarava a  sentença. M 

Esta  execução,  sem  conhecimento  dos  juizes,  foi 
evidentemente  um  assassínio:  o  rei  que  em  l.ílO 
pelo  menos  fizera  reunir  um  concilio  para  levar  á 
morte  os  cincoenla  e  quatro  templários,  n'aquella 
desprezou  toda  a  appareneia  de  direito,  e  só  empre- 
gou a  força.  Para  isto  nem  sequer  tiidia  a  desculpa 
do  perigo,  a  razão  d'estado,  a  da  saius  popidi,  que 
fazia  insculpir  em  suas  moedas.  Ao  contrario,  consi- 
derou a  negação  do  grão  mestre  como  um  ultraje 
pessoal,  insulto  á  realeza,  t.ão  involvida  n'este  nego- 
cio. Fulminou-o  como  réu  de  lesa  magestade. 

Como  explicaremos  agora  as  \ariações,  do  grão 
mestre  e  a  sua  negação  final?  Não  parece  que  por 
lealdade  de  cavalleiro,  por  capricho  militar,  cobriria 
a  todo  o  custo  a  honra  da  ordem  ?  .  .  .  (Aue  a  suhirha 
do  Templo  reverdeceria  nos  seus  últimos  momen- 
tos ?  .  .  .  Glue  o  cavalleiro  ancião,  abandonado  na 
brecha  como  o  derradeiro  defensor,  quereria,  com  ris- 
co de  sua  alma,  tornar  impossível  jjara  sempre  o  jui- 
zo  dos  vindouros  sobre  esta  escura  questão  ?  .  .  .  Pôde 
dizer-se  também  que  os  crimes  imputados  á  ordem 
eram  privativos  de  tal  província  do  Templo,  de  tal 
casa,  e  que  a  ordem  era  iiinocenle;  que  Jacques  ]Mo- 
lay,  depois  de  ter  confessado  como  liomem  e  por  hu- 
mildade, poderia  negar  como  grão  mestre.  —  Porém 
ha  mais  quedizer  no  caso.  O  principal  capitulo  <laac- 
cusaçào,  o  acto  do  rírnegar,  baseava-se  n'um  equivo- 
co. EUes  podiam  confessar  (jue  tinham  abjurado  sem 
na  realidade  serem  apóstatas.   Esta  ubjurução  (l)   (e 


(1)  Kslii  ulijuraçilo,  oii  iiPía(;ili),  (ni  rodcclir  im  pulatra 
muiti  seriu  do  ijiie  |ijiii-i'i;  :  utlVlccci  a  Uciis  a  \oiísji  iiirretlu. 
liilaile. — Vcja-se  iiu  !í."  vol.  da  infsuia  tlislorla  df  Krançu 
|n'Iti  Sr.  Mii-|ii'li't  (dr  cuja  idtra  t'  tivadi),  fenio  di^^jrmus,  le- 
do csti!  iirli^u),  a  \mg,  (>:),  99,  (i.)-!,  du  I.»  cdií^-Ao,  o  ijiie 
allí  sr  ili/.  II  ri'.s|ii'ito  das  (■■Tciuniiliis  linite^cas  da  festa  doi 
idiulii»,  fiiluiirum. — ..  O  |ui\i>  IcMiuIava  a  vez:  ciiIrnMi, 
liiiiuK'1'avi'l,  tiiiiiiillimriíi,  |ii>r  ledoii  ou  iidit»ii  da  tiillinlrul, 
ciim  a  mia  iiiiiíiia  voz  oniilua»,  ;;i;,'uiilit  iiilaiile,  cuni.i  o  S. 
CliristiniV»  da  lenda,  rude,  i;;iii>raiilc,  (iiiiinado,  iiia.s  dtiríl, 
ini|di>iiindii  a  iuicliiçàu,  pidiíidu  loiíiiir  o  ('I1111.I0  teliic  >imi>í 
liiiiiiltinK  C(d()ii»Ai'H.  Kiitravn,  Iriixciíilo  |)ara  a  igreja  «i  nie<lit' 
idie  ilia^Ao  du  pccrudu  j  arraslnvn-ii,  liirlu  de  vicliialliii.«,  noa 
|i('k  do  SMlvmlor,  iiiira  n  (;i>l|ir  da  iii»i;i\(i  (|iit'  devia  iinimilu. 
III.  Al^iiin:!»  vem'!  Iiiinlieiíi,  lei-onliireiídii  i|ae  eiii  ni  pi»|>ri<> 
exliiliii  a  liriileKa,  ('\|iiuiIih  em  ■'\liiivni;iinriiiii  nyiiilielieio  a 
tiiia  nilscria,   a  aua  cnirrmídade.    A  i»to  é  í\»y  »f  cliani:iv.(    u 


160 


O  PANORAMA. 


muitos  o  declararam)  era  symbolica :  era  uma  imi- 
tação da  negativa  de  S.  Pedro,  um  d'esses  piedosos 
dramas  com  que  na  igreja  antiga  cercavam  os  actos 
mais  sérios  da  religião,  e  cuja  tradição  começava  a 
perder-se  no  XIV  século.  Ser  esta  ceremonia  algu- 
mas vezes  cumprida  com  leveza  culpável,  ou  mesmo 
com  Ímpia  derisão,  era  crime  de  alguns,  mas  não 
regra  da  ordem.  E  comtudo  esta  accusação  é  que 
deitou  a  perder  o  Templo.  —  Não  foi  a  infâmia  dos 
costumes,  ella  não  era  geral ;  aliás,  como  se  podia 
suppor  que  os  templários  fizessem  entrar  na  ordem 
os  seus  próximos  parentes?  Não  façamos  tal  injuria 
á  natureza  humana.  —  Não  foi  a  heresia,  as  doutri- 
nas gnósticas:,  verosimilmente  os  cavalleiros  tracta- 
Tam  pouco  do  dogma.  —  A  verdadeira  causa  da  sua 
ruina,  a  que  indispoz  todo  o  povo  contra  elles,  que 
não  lhe  deixou  um  defensor  entre  tantas  famílias  a 
que  pertenciam,  foi  a  monstruosa  accusação  de  te- 
rem renegado  e  cuspido  na  cruz.  Ksla  accusação  e 
justamente  a  que  foi  confessada  pelo  maior  numero. 
A  simples  enunciação  do  facto  arredava  dV'lles  toda 
a  gente  ;  todos  se  persignavam  e  não  queriam  ouvir 
mais. 

Doeste  modo  a  ordem,  que  havia  representado  no 
mais  subido  grau  o  génio  simbólico  da  idade  media, 
morreu  por  causa  de  um  sjmbolo  não  comprehendi- 
do.  Este  acontecimento  não  é  mais  que  um  episodio 
da  guerra  eterna  que  tem  entre  si  o  espirito  e  a  let- 
tra,  a  poesia  e  a  prosa.  Nada  tão  ingrato  e  cruel  co- 
mo a  prosa  quando  não  reconhece  as  antigas  e  vene- 
randas formas  poéticas  á  sombra  das  quaes  tomou 
vulto.  —  O  simbolismo  occulto  e  suspeito  do  Templo 
nada  linha  que  esperar  logo  que  o  symbolismo  pon- 
tifical, até  alli  reverenciado  do  mundo  inteiro,  se 
achava  destituído  do  poder.  A  grandiosa  poesia  mys- 
tica  do  Unam  sanctam,  que  fizera  tremer  o  século 
XII,  nada  exprimia  aos  contemporâneos  de  Pedro 
Flotte  e  Nogaret.  O  gladio  espiritual  estava  embo- 
tado. Começava  uma  idade  fria  e  prosaica,  que  já 
não  sentia  aquelle  gume. 

Porém  o  mais  trágico  d'este  negocio  é  que  a  igre- 
ja foi  morta  pela  igreja:  menos  feriu  a  Bonifácio  a 
manopla  de  Colonna  do  que  a  adhesão  dos  prelados 
e  doutores  gallicanos  á  apellação  de  Filíppe  o  formo- 
so.—  O  Templo  é  perseguido  pelos  dominicanos,  abo- 
lido pelo  pontífice  ^  os  mais  graves  depoimentos  con- 
tra os  templários  são  de  sacerdotes.  Ninguém  duvi- 
da que  a  faculdade  de  absolver  que  usurpavam  os  ca- 
beças da  ordem  lhes  creára  entre  os  ecclesiasticos  ini- 
migos irreconciliáveis. 

(Auai  foi  nos  homens  d'esse  tempo  a  impressão 
d'este  grande  suicídio  da  igreja.'...  As  inconsolá- 
veis trísturas  do  Dante  bem  claro  o  dizem.  Tudo 
quanto  se  havia  crido  ou  reverenciado ;  pontificado, 
cavallarias,  cruzadas,  parecia  que  tudo  acabava.  A 
idade  media  apparece  como  uma  segunda  antiguida- 
de que  com  o  Dante  se  ha  de  buscar  entre  os  mor- 
tos. O  derradeiro  poeta  da  idade  symbolíca  yíu  bas- 
tante para  poder  ler  a  prosaica  allegoria  do  »-om(i(jec 
da  Rosa.  A  allegoria  mata  o  symbolo,  e  a  prosa  a 
poesia.  — 

Até  aqui  o  capítulo  do  Sr.  Michelet.  Simplesmen- 


festa  dos  idiotas,  /aluornm.  Esta  imitaç?(o  da  orgia  pa:;*!,  tn- 
lera<la  pelo  christianismo,  cumo  a  despedida  do  tiofiiein  á 
sensualidade  que  alijurava,  rcproduzia-se  nx*  frslividiides  dii 
infância  de  Clirislo,  Circiimcisuo,  Reis,  cSaiiclos  Innucenle.s. 
Em  Ioda  a  iniciaçiio,  o  adeplcj  é  appresentado  cumo  sendo 
máu,  alitn  de  que  a  iiiiciaçriu  tenha  a  lionra  da  sua  rejene- 
raçào  innral.  —  Veja-so  a  inirinçíio  dos  tannriros  allftiiárs 
em  as  notas  da  íntroducçtío  á  li/storia  vnivrrstil  (pelo  mes- 
mo sahio  auctor  da  Historia  tle  França,  já  citada)  pag.  10:< 
da  1."  ediçiio. 


te  accrescentaremos  o  seguinte.  O  grão  mestre  Mo- 
lay  foi  queimado  a  18  de  março  de  1314,  e  segundo 
muitos  historiadores,  do  meio  da  fogueira  emprazou 
o  rei  e  o  papa  para  dentro  de  um  anno  perante  o 
tribunal  divino  :  Clemente  V  morreu  ao  cabo  de  um 
niez,  em  abril  do  dícto  anno  de  1314;  e  Eilippe  o 
formoso  morreu  do  resultado  de  uma  queda  a  29  de 
novembro  do  mesmo  anno.  —  Enguerrand  de  Mari- 
gny,  ministro  do  rei,  acirrado  inimigo  dos  templá- 
rios, foi  posteriormente  accusado  de  feitiçaria  e  en- 
forcado em  Montfaucon,  na  forca  que  elle  próprio 
mandara  levantar ;  outros  dos  perseguidores  da  or- 
dem tiveram  fim  deplorável. 


O    CY 


PRESTE    GIGANTE. 


Sancta  Maria  dei  Tule  é  a  mais  bonita  das  peque- 
nas povoações  do  díslricto  do  Oaxaca  no  México  :  ahi 
se  vê  o  famoso  cy preste  que,  em  grossura  de  tronco, 
somente  cede  ao  castanheiro  do  Etna,  venerável  de- 
cano da  vegetação.  —  A  seis  pés  a  contar  do  chão,  o 
tronco  tem  90  pés  de  amplitude  ou  de  curva  círcum- 
scríptai  e  tem  141  medindo-o  segundo  as  ondulações 
dos  ângulos  que  faz,  salientes  ereintrantes.  Só  aos  15 
pés  de  altura  começam  os  ramos,  e  os  mais  grossos 
não  teera  menos  de  37  pés  de  contorno;  mas  não  tem 
uma  grande  dilatação  relativa :  apenas  chegará  toda 
a  arvore  a  90  pés  d'alto,  e  a  sua  sombra,  ao  meio 
dia,  abrange  pequena  circumferencia  :  por  isso  não  cau- 
sa oeffeito  que  era  de  esperar,  e ainda  mesmo  abem 
pequena  distancia  não  parece  ser  objecto  notável.  Vi- 
mos na  provinda  de  Vera-Cruz  arvores  que,  sendo 
muito  menos  grossas,  infundiam  mais  admiração  pe- 
la altura  e  a  immensa  expansão  dos  ramos. 

Este  cypreste,  todo  elle  viçoso,  em  nada  offerece 
apparencia  de  decrepitude ;  não  tem  uma  corrosão, 
um  só  ramo  secco  ;  a  seve  conserva  o  mesmo  vigor  até 
a  ponta  :  tudo  inculca  que  ainda  pôde  ter  muitos  sé- 
culos de  duração.  —  Antigo  habitante  da  terra,  ve- 
nerável testímunha  das  revoluções  dos  homens  e  das 
cousas,  a  quem  não  teem  podido  destruir  nem  tem- 
pestades, nem  coriscos,  nem  a  successão  dos  tempos, 
esteve  por  pouco  a  ser  víctiraa  do  capricho  de  um 
rico  negociante  de  Oaxaca.  Este  homem  gabou-se- 
nos  de  ter  offerecido  uma  quantia  avultada  aos  ín- 
dios de  Tule  para  lhes  comprar  a  arvore  e  fazer  d'el- 
la  vigas  e  pranchas!  .  .  .  Felizmente  os  índios  rejei- 
taram com  desprezo  a  proposta  do  vândalo,  e  a  arvo- 
re ainda  está  de  pé  diífundíndo  a  frescura  da  sua 
sombra  balsâmica  sobre  os  que  vem  admira-la. 


Muitos  soes  e  miitas  luas. 

A  este  phenomeno  de  dois  soes  que  se  veera  no  céu 
dá-se  o  nome  de  parclias  ou  antelias  ;  os  antigos  o  co- 
nheceram. Em  !l  d^abril  de  1666  foram  vistos  dois 
cm  t-hartres,  que,  com  o  verdadeiro  sol,  faziam  a 
conta  de  três. 

Em   1629  víram-se  cinco  em  Roma. 

Ilelvetíus  diz  ter  visto  sete  cm  Dantzick. 

A  imagem  do  sol  pôde  multiplícar-se  nas  nuvens; 
mas  a  verdadeira  dístingue-se  das  outras  pela  forma. 
As  parelías  não  s.ão  tão  redondas  como  o  sol. 

Com  a  lua  dá-se  algumas  vezes  o  mesmo  phenome- 
no, (pie  se  chama  parateUncs,  Apparecem  de  ordiná- 
rio no  inverno,  como  os  falsos  soes  nas  regiões  frias  e 
temperadas.  Também  se  dá  a  cetc  phenomeno  o  nu- 
me de  corCa  uu  halos. 


21 


o  PANORAMA. 


161 


o  VXNDEDOH  DE  MELANCIAS. 


NAPotES  ■e,  o  Vesovio. 

Napoies  tom  sido  considerafla  como  a  segunda  ci- 
dade da  Itália  em  taiiiaiilio  :,  mas  talvez  <|ii(?  se  deva 
reputar  a  primeira  (|iianlo  á  belleza  da  situarão  e  bon- 
dade do  cliiiia.  10  notav('l  por  suas  muitas  e  sump- 
tuosas itçrejas,  soberlios  ])alacios,  alguns  ostabeleei- 
montos  públicos,  a  rua  de  Cbiaia,  o  tbeatro  de  S. 
Carlos,  c  o  museu  Bourbon.  Esta  colleo(;ão  magni- 
fica de  antiguidades  está  u'um  vasto  e  sumptuoso 
ediíicio  come(;ado  pelo  viei'-rei  l'edro  de  Tob^do,  e 
acabado  nV'sle  século  pelo  rei  Fernando  ;  consta  dos 
infinitos  e  curiosissinios  objectos  acluulos  em  Hercu- 
lanuiu,  l'onipeia,  l'ouzzolo,  iStc.  ,  e  da  famosa  gale- 
ria Karnesia,  fpie  tocou  ao  rei  ])or  s\icei'Ssão,  e  <|U(^ 
d'antcs  era  imia  das  preciosidades  de  lloma  :  divi- 
do-se  cm  dez  classes  distinctas,  c(uno  por  ('Xem|)lo ', 
«estatuas;,  antiguidades  egípcias :,  bnjnzis;  ipiailros-, 
bibliotbeea  ;  moveis  antigos,  «Síc.  :  —  cail.iunia  classe 
occupa  galerias  ou  salas  dillertíntes :  a  universidade  é 
um  edifício  immensu  :  é  bello  o  ai|uedueto  <|uc  da 
falda  (lo  Vesúvio  traz  agua  á  cidade^  esta  é  prote- 
VoL.  I,  —  Janeiro  2.1,  1847. 


gida  pelas  três  fortalezas,  denominadas  de  Santelmo, 
castello  Novo,  castello  do  Ovo  ^ — são  em  grande  nu- 
mero, e  algumas  sumptuosas,  as  fontes  publicas  ou 
cliafarizcs;  mas  nem  tem  grandiosas  pra^-as,  nem 
muitos  dos  atlributos  de  uma  grande  capital.  As  ruas 
em  geral  são  montuosas,  estreitas,  mal  aliidiadas, 
e  pouco  limpas  ^  a  este  respeito  observaremos  o  se- 
guinte. Este  clima,  celebre  pela  [lureza  do  ar,  é  tal- 
vez o  da  Europa  cpie  reeelx!  mais  agua  pluvial  :  é 
v<Tdade  que  isto  só  acontece  n'uma  esta<;ão,  e  pou- 
cas vezes :  na  cidade  e  nos  arredores  nunca  ha  ne- 
voeiros, nem  céu  brusco :  ha  mezea  de  calor,  ou  me- 
zes  de  chuva,  mas  chuva  dos  trópicos,  caindo  s('mpre 
u  agua  com  grandes  trovoadas,  mais  femiíros;is  |)elo 
prolongado  rebombo  «jue  motiva  a  rarefac(;ão  do  ar  o 
ainda  mais  ,'i  repercussão  nas  nxuitanhas  visiuhas. 
(-luauili)  o  réu  abre  as  cataractas,  parece  ami'.i(;ar  de 
scguiulo  diluvio  universal:  em  l'aris  era  agua  para 
dois  mezes  a  que  em  Na|ioles  cáe  em  poucas  hora». 
Depois  reuova-se  alonga  entiada  de  dias  lK)nitos;  do 
que  resulta  que  não  se  fazem  obras  para  resguardar 
do  máu    tempo,  e  não  se  vôen»  carrungeus  que  não 


E62 


O  PANORAMA. 


sejam   descobertas;   por  quanto  o  napolitano,   habi- 
tuado ao  sol  claro,  encerra-se  cautelosamente  em  ca- 
sa  nos  dias  chuvosos  •,   d'estes  grandes  af;uaceir<js  re- 
sulta,   todavia,   uin  bem  para  a  cidade,  porijue  a  la- 
vam ",  e  é  pelo  <]ue  os  habitantes  esperam  au  que  pa- 
rece, visto  que  pelas  ruas  nunca  passa  a  vassoura:    e 
comtudo  ha  um  oflicial,   il  portuluno,   incumbido  da 
policia  e  limpeza  das  ruas,   cargo   que  desempenha 
mal,  por  quanto  apparecem  immundas :  apezar  d'es- 
ta   falta  d  aceio,    é  tão  benigno   o  clima   que  não  ha 
epidemias.   Os  montes  que  circumdam  a  cidade,  nas 
ladeiras  dos  quaes  estão  edificadas  ruas  declives,  dão 
causa  a  que  as  aguas  correndo  em  cheias  para  a  par- 
le chã,   arrebatam  quanto  encontram    na  passagem -, 
d'isso   procedem   ás  vezes   graves  accidentes,   até   de 
perda   devidas.  —  Os  napolitanos,   que   faliam    sem- 
pre por  figura,  chamam  a  eslas  cheias  assim  engros- 
sadas,   a  lava,    alludindo   á   do  Vesúvio,    tiuem  dis- 
se que  no  mercado  de  Paris  se  faziam  n'um  dia  mais 
figuras  derethorica  do  que  se  acham  no  discurso  mais 
floreado,   nunca  esteve  em  Nápoles  \    ahi  é  que  acha- 
ria verdadeiramente  aterra  das  metaphoras-,  nenhu- 
ma cousa  clianiam  pelo  nomo :   os  géneros  são  apre- 
goados no  mesmo  estalo  \   quem  vende  peras  ou  ina- 
eãs  cosidas  grita  :  beato  chi  litne  latossa  :  "bemaven- 
turado  o  que  tem  tosse  ;  "  tudo  é  hiperbólico,  o  ven- 
dedor de  melancias  brada  a  esfalfar-se  :    che  yatanic- 
ria,  vero  snrbettoj  "oh  qiiebella  cousa,  é  mesmo  sor- 
vete !  "  levantando  ambas  as  mãos  acima  da  cabeça  e 
mostrando   as  duas  metades  da  melancia  que  acabou 
de  partir  :  e  com  effeito  merece  este  fructo  ser  gaba- 
do e  mostrado ;   nós,   os  portuguezes,  bem  o  sabemos 
apreciar  nos  niezes  calmosos.  A  tenda  do  homem  que 
o  vende  é  simples  (vede   a  estampa),   nem  os  uteiisi- 
lios  são  numerosos ;   basta-lhe  uma  faca  larga  e  com- 
prida, que  meneia  com  incrível  presteza ;   n'um  mo- 
mento é  partido   o  fructo,   mostrado  ao  publico,   ta- 
lhado, e  consumido  pelas  mãos,  ou  mais  correcto  pe- 
las boccas  dos  seus  afleieoados,   que  fazem  apertão  e 
se  acotovellam  ao  redor  do  apparato  da  venda ;   con- 
siste esta  n^ima  longa  mesa  um  tanto  inclinada,   na 
qual  laboram  um  ou  dois  homens,   conforme  o  gasto 
da  fazenda  :    ao  lado  está  um  vasto  armário  em  pra- 
teleiras  onde  tem  coUoc.idas   as  melancias,   partidas 
ou  inteiras,   que  pelo   tamanho   enorme  ou  pela  côr 
viva  altrahem  a  vista.    IVa  muralha,  ou  n'uma  ban- 
deira suspensa   das  ramagens  que  enfeitam  um  mas- 
tro, ha  uma  pintura  de  l'oiichiuella  trazendo  ás  cos- 
tas um  dos  fructos  com  que  parece  gemer  carregado, 
ou  outros  que  taes  borrões  :  ás  vezes  são  dois  figurões 
a  serrar  uma  desmesurada  melancia.   Kste  ttem   de 
ordinário  é  posto  ao  pé  de  uma  barraca,   chamada  a 
gruta,   guarnecida  de  bancas  e  assentos  onde  tomam 
logar  os  que  não  querem  comer  na  rua. 

6e  a  vida  sedentária  aperfeií^oa  a  ordem  social,  o 
sol  de  Nápoles,  que  perniitte  viver  na  rua,  introduz 
nos  hábitos  da  plebe  uma  aspereza  bruta.  l'arís  e 
Londres  são  duas  cidades  sem  duvida  tumultuosas: 
pois  bem,  são  charnecas,  ermos  eni^  eompara(;ão  com 
aquella  :  quem  não  tiver  visto  Nápoles  bradará  que 
isto  é  exaggerado,  quem  lá  esteve  achará  diminuta 
a  comparai;ão.  A  bulha  faz  pasmar,  e  ensurdece  até 
a  pessoa  que  pela  primeira  vez  percorre  a  cidade, 
fluo  signilicam  aquelles  berreiros?  Onde  vai  aquella 
turba  popular,  que  se  encruza,  se  embate,  e  se  pre- 
cipita em  todas  as  direcções  .' .  . .  Estará  o  inimigo 
ás  portas  de  Nápoles?  Faria  S.  Januário  algum  mi- 
lagre iioxo  ? .  .  .  Amea;;a  o  \  esuvio  •,  ou  tracta-se  de 
alguma  grande  festa  ?•¥— Nada  d'issoi  esta  bulha  e 
diária,  e  muilas  causas  a  produzem. 

Nápoles  fica  entalada  entre  unia  cadeia  do  montes 
que  lho  são  iuteirumcnto  sobranceiros ;  as  ruas,  com- 


pridas e  estreitas,  são  calçadas  de  grandes  lagens,  c 
ocas  por  baixo  :  as  casas  de  cantaria  não  teem  roeno^ 
de  cinco  andares.  Ajunetai  a  isto  mais  de  trezentas 
igrejas  e  outros  tantos  palácios,  que  íazcm  echo ;  fa- 
zei rodar  ao  mesmo  tempo  sobre  essas  lagens  retum- 
bantes dez  mil  carruagens  e  outros  vehiculos  de  todo 
o  lote  e  de  todas  as  formas,  e  carros  puxados  a  bois, 
<iue  levam  ao  pescoço  grandes  campainhas-,  junctai 
a  esta  motinada  o  estrondo  que  fazem  as  diversas 
profissões  que  todas  teem  seu  exercício  nas  ruas.  o 
carrilhão  de  setecentos  a  oitocentos  sinos,  os  gritos 
de  cento  e  cincoenta  mil  homens-,  e  talvez  podereis 
fazer  idéa  do  tumulto  d'esta  cidade  ruidosa.  —  Da 
bailia  e  do  vario  destino  de  Nápoles  falíamos  a  pag. 
31  1  do  2."  vol.  da  1.^  serie.  Deixemos,  porém,  ago- 
ra a  cidade,  e  prosigamos  cora  o  A  esuvio. 

lirup^Ses  do  Veíuvio. 

A  primeira  erupção  do  Vesúvio,  de  que  a  antigui- 
dade nos  deixou  particularisada  noticia,  foi  a  que 
succedeu  no  reinado  de  Tito,  no  anno  79  da  era 
christã :  comtudo  seria  engano  pensar  que  não  fOra 
precedida  de  outras  (1).  Dezeseis  annos  antes  acon- 
tecera, como  presagio  d^aqueUa,  o  destruidor  terre- 
moto, que  Séneca  philosopho  relatou  nVstas  poucas 
palavras.  —  «Pompeia,  aquella  cidade  celebre  da 
Campania,  próximo  á  qual  a  praia  de  Surrentum  e 
de  Stabia  por  um  lado  e  a  de  Ilerculanum  pelo  ou- 
tro formava,  pela  juncção  e  retrahindo-se,  um  gol- 
plio  agradável,  acaba  de  ser  arruinada  e  os  seus  ar- 
rabaldes mui  damnificados  por  um  terremoto  no  in- 
verno, isto  é,  na  estação  que  os  nossos  antepassados 
julgavam  isenta  de  perigos  dVsta  natureza.  .\  Cam- 
pania, que  nunca  estivera  sem  sustos,  mas  que  pelo 
menos  escapara  até  então  dos  assaltos,  foi  em  grande 
parte  assolada  por  estes  violentos  abalos  do  globo : 
uma  porção  de  Herculanum  foi  destruída ;  a  colónia 
de  Noceria  estragada  \,  a  cidade  de  Neapolis  soffreu 
mais  perdas  particulares  do  que  publicas,  sendo  leve- 
mente aecommetlida  d'csse  espantoso  tlagello  :  mui- 
tas casas  de  campo  sitas  nas  coroas  dos  montes  senti- 
ram repellões  sem  resultado.  Accresoentam  que  ficou 
soterrado  um  rebanho  de  seiscentos  carneiros;  que 
se  fizeram  em  pedaços  estatu;is ;  e  que  depois  do  fu- 
nesto acontecimento  viu-se  vaguearem  nos  campos 
homens  perdidos  do  sizo.  "  — 

IMinio  o  moço  narra  c-oni  circumst-incias  miúdas  e 
sobremodo  curiosas,  nas  suas  cartas  ^ep.  16.''  e  20." 
do  liv.  6."),  a  fatal  eru|H;ão  de  79  que  deixou  me- 
morias indeléveis.  Começa  por  contar  a  morte  de 
seu  tio,  Plínio  o  naturalista,  que  (H-Tct-eu  n"ess.i 
erupção,  victinia  da  sua  coragem  e  do  amor  á  scicii- 
cia.  Achava-se  este  em  Miseno  commandando  a  fro- 
ta romana;  curioso  de  oliserxar  de  [ktIo  tão  esp;in- 
loso  plienomeno,  e  desejoso  de  prestar  soccorro  aos 
dcsgraçadvis  ameaçados  da  morto,  niette-se  em  um 
navio,  atravessa  o  golplio.  e  passa  a  Stabia :  reina 
por  totla  a  parte  terror  e  confusão,  jKjr  toila  a  piirte 
se  foge.  Comtudo  Plínio,  para  sooegar  seu  amigo 
Poin|Kiiiiaiio,  ein  casa  ilo  qual  se  alojara.  p;issa  p<-lo 
sonuio ;  porem,  acordado  pelo  tumulto,  vè-se  cons- 
trangido a  fugir  para  a  praia,  onde,  achando  o  mar 
muito  re\olto  para|KKler  einlvircar,  para.  jhhIo  agua, 
o  faz  estender  uma  ev>berta  em  que  se  deita ;  d";dii  a 
[Kiiico,  chammas  que  cada  vex  se  nK>stra>am  maiores 
o  o  cheiro  d'enxofro  que  annuuciava  a  apprí>\iin.i- 
ção  d*ellas,  pozcram  en>  fuga  quem  o  .-icompanhava. 
L<evauta-se,  encostado  a  dois  servos  que  o  não  des- 
ampararam, c  uo  mesmo  instante  cáe  morto :  possar- 


(1)     Cuatiouailo  de  p*s>  136* 


o  PANORAMA. 


163 


tios  três  dias.  aehou-se  no  mesmo  silio  o  corpo  intei- 
ro, com  o  vestido  intacto,  e  na  jwstura  de  homem 
que  repousa. 

Decorrido  um  século,  Plutarcho  accrescenta  muito 
estas  particularidades,  e  d'ahi  a  cincoenta  annos 
Dion  Cassio  de  mais  a  mais  as  recheia  de  contos  ma- 
ravilhosos e  de  fabulas  inventadas  e  propagadas  pelo 
povo  :  diz  que  se  seguiu  uma  grande  fome  ;  que  aba- 
laram todo  o  território  tremores  espantosos  acompa- 
nhados de  estrondos  fortíssimos  e  singulares  ;  que  as 
pedras  e  os  rolos  de  fogo  e  fumo  despedidos  pelo  vol- 
cão  eram  taes  e  tantos  que  obscureciam  os  ares  e  o 
sol  parecia  eclipsado.  Verdade  é  que  todos  estes  phe- 
iiomenos  tiveram  lugar  com  grande  intensidade,  que 
as  torrentes  de  lava  incendiada  e  montes  de  cinzas 
alagaram  e  destruíram  tudo,  e  sepultaram  duas  ci- 
dades inteiras,  Herculanura  e  Pompeia,  na  occasião 
em  que  o  povo  estava  no  theatro ;  o  vento  despargiu 
as  cinzas  para  sítios  mui  allastados,  e  em  Roma  cau- 
saram grande  terror.  Gallieno  e  Eutropio  escrevem 
no  mesmo  sentido.  (Cunliniia.) 


COLOMBA. 


Romance  da  Córsega. 


Povera,  orfaiia,  zilella, 
Seuza  ctigíui  caniali  !  — 
Ma  per  far  la  lo  veiidetla, 
Sla  si^uru,  vasta  anche  ella. 

Lament.  funeb.  de  Niolo. 


III 


CoNFonMANDO-Nos  com  O  prcceito  de  Horácio  —  in 
medias  res,  —  em  quanto  dormem  os  nossos  heroes 
aproveitaremos  a  oj)portuna  occasião  d^entrar  em  al- 
gumas explicações  essenciaes  para  bem  se  colher  o  fio 
d'estanuii  verídica  historia. 

Já  o  leitor  sabe  que  o  pai  de  Orso,  o  coronel  delia 
Rebia  morrera  assassinado ;  mas  na  Córsega  não  se 
morre  assassinado,  como  nos  outros  reinos,  por  um 
fugidieo  das  galés,  ou  por  um  ladrão  de  casas.  Mor- 
re-se  da  mão  dos  inimigos;  e  a  difficuldade  toda  es- 
tá em  conhecer  o  motivo  por  que  ha  esses  inimigos. 
Famílias  inteiras  aliiniMitam  ódios  encanecidos,  e  se 
as  interrogarem  não  acertam  com  a  razão  das  suas 
discórdias. 

A  famvlia  do  coronel  delia  Rebía,  entre  outras,  de- 
testava mais  que  ncnhiinia  a  casa  dos  Uarricini.  I)í- 
zia-se  que  aorigem  da  contenda  subia  ao  século  XV I  •, 
um  delia  llcbía  sciliizíra  unia  Barrícini,  e  caíra  apu- 
nhalado pelos  parentes  dadonzella  oiri'ndída.  As  mal- 
querenças continuarani  desde  então  —  emais  de  uma 
vez  o  cadáver  dos  miMobros  de  ambas  a'j  famílias  go- 
tejara sangue  ao  limiar  das  respectivas  Casas. 

Causas  pequenas  eqnasi  vãs  provocaram,  ou,  mais 
exacto,  exacerbaram  a  antiga  aníinadversão  dos  del- 
ia Kebia  com  os  liarrieiní,  pouco  antes  daepocha  em 
que  principia  a  nossa  acção.  A  politica  veio  ajunc- 
lar-so  ás  questões  particulares,  e  envenena-las  mais. 
Delia  llebia  servira  lN.i|)olcão  ;  —  o  cabeça  dos  Uar- 
ricini era  pelos  Hourbuns.  A  mulher  do  coronel,  ao 
expirar,  pediu  que  a  sepultassem  no  mi'ii)  d'um  bos- 
que, (ju<>  em  vida  a  dístrahíra  das  graniles  niáguas 
lieía  »ua grandiosa soliilãu.  Harricini,  niaire.  ord(Miou 
que  a  enterrassi  111  por  lurça  no  riMiiilcrio  piiblito.  Os 
dois  partidos  arniaram-si-,  desaliaraiii-se,  e  juraram 
o  mutilo  extermini».  liiiareiíla  aldeões  cuin  clavinas, 
:i|>i)il(.'ran<lo-5e  doçura,  ao  sair  da  mis^a,  uliri'.;arani- 
n  o  a  aeoiiiiianliar   o  enterro  da  defiineta   e  a  Ijcnzer 


a  terra  do  bosque  onde  se  lhe  tinha  feito  a  cova.  O 
maire  com  os  gendarmes  (soldados  municipaes)  e  mui- 
tos dos  seus  clientes  acudiram  para  atalhar  este  pla- 
no. Apenas  se  avistaram,  de  parte  a  parte  romperam 
injurias,  voaram  maldicções,  e  tiniu  o  salto  do  ferro 
das  espingardas  que  se  engatilhavam,  Barricini  viu 
o  ar  tempestuoso,  e  naturalmente  prudente  deu  or- 
dem de  retirada  á  sua  gente,  que  deixou  li^Te  a  es- 
trada por  onde  os  amigos  do  coronel  delia  Rebia  se- 
guiram triumphalraente  a  sua  marcha  victoriosa. 

Como  é  de  suppor,  resultou  d'este  motim  requin- 
tarem os  ódios,  e  repetirem-se  os  desgostos  e  conten- 
das que  maus  visinhos  tanta  occasião  teem  sempre 
de  promover  ou  excitar. 

Om  processo  intentado  pelo  advogado  Barricini  ao 
coronel  estava  para  se  julgar,  quando  o  inimigo  de 
delia  Rebia  appresentou  ao  procurador  regío  uma 
carta  escripta  por  um  salteador  afamado,  em  que  o 
ameaçava  de  lhe  incendiar  a  casa  e  de  lhe  cozer  o 
peito  de  punhaladas,  se  insistisse  na  demanda.  Na 
Córsega  é  de  uso  erapre^ar  este  meio  extra-juridico 
nas  causas,  e  o  maire  já  se  lisonjeava  de  cobrir  o 
seu  adversário  do  odioso,  quando  Agustíni,  como 
salteador  de  brio.  escreveu  elle  próprio  ao  procura- 
dor re^io,  queixando-se  de  que  lhe  falsificavam  a  le- 
tra e  denegriam  o  caracter,  assacando-lhe  semelhan- 
te carta,  e  concluía  —  ose  eu  souber  quem  foi  o  cul- 
pado, protesto  puni-lo  exemplarmente."  —  Asustini 
era  homem  de  palavra  —  o  caso  ia-se  complicando 
deveras. 

Dois  mezes  depois  d'este  acontecimento,  ao  cair  da 
tarde,  ouviu  uma  mulher  de  Pietri  dois  tiros,  que 
soavam  d'um  valle  estreito,  cavado  cento  e  tantos 
passos  do  sítio  em  que  ella  ia.  Ao  mesmo  tempo  viu 
um  homem  fugir,  curvo  e  rente  com  o  chão,  por  en- 
tre as  vinhas,  e  tomar  o  caminho  da  aldeia.  O  ho- 
mem parou  instantes  e  virou-se  como  para  observar, 
mas  a  distancia  não  lhe  permittiu  conhece-lo :  com  a 
mão  elle  acenava  a  um  companheiro  occulto,  que  a 
testiniunha  nunca  apercebeu,  ed'ahi  a  pouco  sumiu- 
se  inteiramente. 

A  mulher  de  Pietri  galgou  a  encosta  a  correr,  e 
descendo-a  achou  o  coronel  delia  Rebia  banhado  em 
sangue,  ferido  no  peito  de  duas  bailas,  e  suspirando 
ainda.  Tinha  ao  pé  de  si  a  clavina  engatilhada,  co- 
mo quem  se  defendia  de  frente  quando  outros  o  ata- 
caram pelas  costas.  As  convulsões  e  o  estertor  não 
lhe  deixavam  ])roferir  palavra.  Debalde  a  pobre  ve- 
lha tentou  íiniiiia-lo,  e  fazer-lhe  perguntas  —  via-o 
abrir  a  bocca,  mas  inutilmente:  não  tinha  força  j a 
para  responder.  Notando  o  gesto  de  levar  a  m.ão  ao 
peito,  procurou  cila  no  seio  do  coronel  e  tirou  uma 
carteira,  que  lhe  ollereceu  aberta.  O  ferido,  com  o 
lápis  traçou  i'onfusainente  muitas  letras  ipie,  n.'io  sa- 
bendo ler,  a  testiniunha  não  ])odia  juToelxT.  Eiiilim, 
desfalleeido  (Peaste  ultimo  esforçM,  delia  Rebia  deixou- 
llie  cair  na  m.ão  a  carteira,  e  eiuaraiido-a  enm  estra- 
nha altenção  mexeu  os  lábios  —  parecia  dizer  —  .•  E 
o  nome  do  meu  assassino."  — 

Seguiu-se  uin  processo  intent.ido  aos  Barricini  — 
as  suspeitas  eram  contra  elles,  porém  provas  não  as 
havia.  Foram  absolvidos,  e  Cohimba,  a  |)<ilire  orphã, 
segundo  o eostume  nacional,  recitou  uma /)ii//<ií<i  dian- 
te do  atauile  de  seu  pai.  E  esta  luillnta,  piqiul.ir  em 
toda  a  Córsega,  era  u  mesma  (pu-  o  marinheiro  do 
lliate  cantava  amissLidia,  quamlo  a  chegada  de  t)r- 
so  o  fez  emmmliTi-r.  iMas  Coiomba  era  \eriladeira  fi- 
lha iraquella  ti-rra  áspera  c  iiid.iinavel.  .\  esperança 
de  vingar  uni  dia  osangue  do  pai  morou-lhe  sempre 
no  eiiração,  e  incarnou  em  tinia  a  sua  existência. 
Vendo  Orso,  esta  esperança,  tantos  annos  secreta  c 
comprimida,    lloriu  —  e  n'.iqiirlla  noite  em  que,   pe- 


164 


O  PANORAMA. 


la  primeira  vez  depois  de  largos  annos,  o  mesmo  tec- 
to abrigava  03  dois  orphãos,  tanto  tempo  separados 
—  apertando  contra  o  peito  o  calx)  do  punhal,  que 
escondia  no  seio,  como  a  aliellia  o  seu  ferrão  —  entre 
as  fervorosas  orações  de  fillia  e  a  innocencia  pura  de 
virgem,  não  sentiu  remorsos  deoíTerecer  a  Deus  tam- 
bém entre  o  incenso  das  supplicas  o  pensamento  cruel 
de  um  crime  projecta<lo.  —  41  Ao  menos,  dizia  conisi- 
go,  os  Il.irriciui  inorrcin  da    mão  <!e  um  líonicm  !  » 

K  que  seOrso  faltasse,  ella,  mulher  fraca  e  desam- 
parada, inspirada  pelo  fanatismo  do  amor  fdlal  e  pe- 
lo cnthusiasmo  dos  costumes  populares,  titdia  animo 
de  emprehender,  só,  a  obra  devingaiií^a  que  na  sua  fé 
ingénua  e  (juasi  selvagem  imaginava  que  Deus  fada- 
ra ao  tenente  Orso  delia  Uebia.  (Conlinúa.) 


Diana  caçadora. 

JoÃoGoujON,  appellidado  restaurador  da  esculptura 
em  França,  nasceu  em  Paris  no  século  XVI,  quan- 
do O  poderoso  impulso  dado  ás  artes  na  Itália  se  com- 
niunicava  á  França,  e  excitava  aquella  admiração  in- 
telligente  da  arte  antiga,  que  produziu  n'cste  reino 
tantas  obras  primorosas  em  tempo  de  Francisco  I  e 
seus  successores.  —  Da  carreira  da  sua  existência  não 
se  referem  incidentes  notáveis ;  a  historia  da  vida  de 
grande  parte  dos  homens  de  talento  cifra-se  no  cata- 
logo e  exame  de  suas  obras.  Porém  a  morte  d'este  ar- 
tista procedeu  de  uma  circumstancia  singular:  estan- 
do sobre  um  andaime  a  trabalhar  nas  decorações  do 
Louvre  velho,  foi  ferido  de  um  tiro  d^arcabuz  no  ce- 
leberrirao  dia  de  S.  Bartholomeu  (1472);  e  assim 
pereceu  mais  esta  victima  do  fanatismo  religioso;  se 
e  que  o  não  foi  da  ignóbil  inveja  ou  da  traiçoeira 
Vingança;  porque  n^esses  deploráveis  tempos  se  apro- 
veitavam, coniu  sempre,  mesquinhos  oilios  particula- 
res, para,  no  tumulto  das  discórdias  civis,  saciarem- 
se  impunemente  em  meio  da  confusão  e  desordem. 

Goujon  é  muito  popular  na  sua  pátria;  e o  cogno- 
minam 1'hiduis  IVancoz,  Corregio  daesculptura.  Ain- 
da se  admira  em  Paris  a  bella  /«/i/e  dos  imioceiíltt, 
erigida  em  15õO  de  encontro   a  uma  casa  da  rua  de 


S.  Diniz,  e  transferida  em  1788  para  o  meio  da  pra- 
ça que  actualmente  aformoseia  :  é  obra  de  mazestosa 
simplicidade,  e  os  baixos  relevos  são  tão  salientes  que 
parecem  despegados  da  mole  de  pedra  em  que  foram 
abertos.  Outra  composição  sua  n'outro  jenero,  colos- 
sal e  grandiosa,  é  a  tribuna  da  tala  dos  cem  íUÍísoi, 
no  Ijouvre. 

Henrique  II  empregou  este  artista  no  aformosea- 
mento  do  caslello  d'Anet,  que  ficou  Cíílebre  por  ter 
sido  residência  da  formosa  Diana  de  Poitiers.  Este 
castello  hoje  só  dura  nos  versos  da  Hcnriada  e  nas 
relações  dos  chronbtas :  posto  em  almocda  e  vendido 
como  pertencente  aos  bens  nacionaes  no  tempo  da  re- 
volução, foi  comprado,  segundo  se  diz,  por  particula- 
res que  pretendiam  salvar  da  destruição  as  obras  dos 
maiores  artistas  francezes  do  século  XVI,  Felisberto 
de  Lorme  e  João  Goujon  :  infelizmente  os  comprado- 
res não  podiam  ter  a  casa  sem  a  propriedade  rústica, 
e  ficaram  com  as  suas  Ixjas  intenções ;  os  materiaes 
do  edilicio  venderam-se,  eos  baixos  relevos  serviram 
para  resgate  de  prados  e  mattas  :  á  excep^-ão  do  per- 
lai d^  entrada,  de  parte  do  corpo  esquerdo  do  palá- 
cio, e  da  capclla,  tudo  foi  deitíido  abaixo.  Estava  a 
marreta  dos  demolidores  a  ponto  de  fazer  de-^appare- 
cer  de  todo  a  bella  portada  interior  do  primeiro  átrio, 
quando  Mr.  Lenoir,  fundador  do  museu  de  moou- 
mentos  francezes,  a  salvou  adquirindo-a  para  o  esta- 
belecimento que  tinha  acabado  de  crear.  O  formoso 
grupo,  dec|ue  a  nossa  gravura  dá  ideia  succinta,  obra 
do  mesmo  Goujon,  foi  também  resgatado  de  .\net  pe- 
lo zelo  de  Mr.  Lenoir ;  e  os  entendidos  o  contem- 
plam no  dicto  museu,  na  sala  dos  esculptores  france- 
zes. Esta  preciosa  esculptura  havia  sido  arrancada  da 
base,  levada  a  distancia  de  dez  léguas,  e  partida  pa- 
ra extrahircm  os  tubos  de  cobre  ou  de  chumbo  que 
serviam  decanos  aos  repuxos;  por  quanto,  depois  de 
haver  ornado,  na  sua  origem,  o  centro  do  átrio  do 
Ciístcllo,  aquelle  grupo  fora  transportado  para  o  eira- 
do do  jardim,  ao  meio  de  um  arco  de  architecfiira 
rústica,  onde  servia  de  enfeite  a  uma  fonte  de  repu- 
xo. Os  v.md  dos  ficaram  com  o  chundx),  e  a  pedra 
j>erlencen  a  Mr.  Lenoir,  que  ajunctando-a  ecompon- 
do-a  a  restituiu  á  França. 


■|;]í:i:,:,m.!,.  jii.il '1,1  !.ui;lj. 


^:iÍM.i.!!iiMiii.iiiiiiiiíiiiii|i|iuiiiUiiuJi!:'!r,.ii[Hiii.'ini,i,iiii.irni!ii 


O  artista  representou  a  caçadora  Diana  dos  jre-  [  indolência  a  um  ve;ido  niiinso,  e  acoMipiinham-n'a 
goa,  a  robusta  c  casta  lilha  do  Latona,  cujotvpo  d"es-  seus  cães  PnK-von  eSvrio:  a  caçadora  intrépida,  que 
tjlo  antigo  apparcce  cm  jardins  e  museus  a  par  do  sempre  ivrre  por  numti-s  o  solvas,  jwnni  a  tomar  al- 
Ajwllo  de  lielvudere,   A  deusa  eucostu-su  coiu  gentil  I  gum  dcscoiiço :  vc-sc  cui  todo  aquelle  corpo  feminino, 


o  PANORAMA. 


165 


tão  puramente  desenhado,  não  sei  que  enjçraçado  aba- 
timento, era  <)ue  se  reconhece  toda  a  fadiga  de  uma 
longa  excursão.  Comtudo  o  artista,  que  possuia  era 
grau  subido  o  seiitimi;nlo  da  arte  antiga  e  da  idéa 
religiosa  de  que  ella  é  sempre  representação  simbóli- 
ca, não  deixou  embrandecer  o  cinzel  no  contorno  d'a- 
quella  postura  negligente:  acabeça  da  deusa,  que  os 
antigos  poetas  figuraram  avultando  sobre  as  n)ni- 
phas  de  sua  companhia  como  a  copa  do  carvalho  aci- 
ma dos  arbustos  da  lloresta  \  a  garganta,  a  parte  su- 
perior do  peito,  manifi-slam  certa  robustez  e  energia: 
não  é  uma  parada  de  caçador  exhausto  por  cansaço, 
é  um  repouso  de  immortai,  a  trégua  de  momentos 
concedida  pela  terrível  caçadora  aos  habitantes  dos 
bosques;  pensamento  gracioso  que  parece  ter  decorri- 
do ao  esculptor  pondo  ao  lado  da  deusa  o  corpulento 
e  bello  veado,  a  quem  ella  com  o  braço  direito  abar- 
ca o  pescoço  tão  cheio  de  músculos  e  de  vigor:  este 
formoso  animal  foi  esculpido  com  infinito  esmero. 
Os  contemporâneos  de  Goujon  admiraram  extrema- 
mente n'este  grupo  magnifico  o  cc-rvo  e  os  cães,  pois 
que  o  reprehendium  de  fraquejar  n'e5to  género,  como 
parece  dos  baixos  relevos  da  capella  d^Ecouen  :  o  ar- 
tista doeu-se  da  censura,  e  applicando-se  fez  inuilo 
mais  do  que  se  esperava.  Kste  grande  progresso  é 
mui  digno  de  observação,  por  isso  que  nasceu  de  no- 
bre emulação.  15enevflniito  C<-llini,  que  passara  al- 
guns annos  na  corte  de  Francisco  I  (vid.  a  pag.  132 
d'esto  vol.),  tinha  feito  para  est(!  monarcha  um  bai- 
xo relevo  representando  unia  nyinpha  cercada  deani- 
maes  montezes  :  esla  [leça  foi  posta  de  banda  n'al- 
gum  armazém,  e  depois  da  morte  do  ri'i  deiain-lhe 
outro  destino;  era  vez  de  a  assentarem  no  castello  de 
Fontainebleau,  Síírviu  para  ornato  dode  Anet.  \  iu-o 
Goujon,  econtemplanilo  attonilo  a  perfeição  com  que 
foram  modelados  os  aniinaes  alli  esculpidos,  formou 
logo  tenção  de  imita-la;  e  não  querendo  íicar  atraz 
d'esti,'  modelo,  o  seu  talento  chegoij  ao  nivel  da  sua 
vontade:  conseguiu  igualar,  sen.ão  exceder,  o  seu 
emulo Existe  no  Louvre  o  grupo  de  Goujon,  res- 
taurado para  as  artes  por  Mr.  Lenoir. 


Expedições  nu  tues  potencias  ao  polo 

AUSTItAL. 

(Conlinuado  de  pag.  159.) 

Expedição  franceza. 

A  nxPKniç^Xo  franeeza  constava  de  duas  corvetas, 
V  Aaholahc  t:  la  Xiflif  ;  a  primeira  conunandada  pelo 
capilão  DuniDiil  iC  IJrville,  a  segunda  pelo  capitão 
Jacipiimit.  Ambos  os  navios  apparclh.irani  da  ensea- 
da de  Toulon  a  7  de  setembro  d<í  11137.  'JVanspor- 
taremos  a  expedição  á  data  de  27  de  fevereiro  de 
103»,  aos  oa"  /■)()'  de  latltud<!  sul,  e  lú)"  111', de  lon- 
gitude ao  oeeidente  do  meridiano  de  1'arís.  lí  d'e»te 
ponto  qu(;  o  capilão  ilHJrville  avislou  a  terra  a  que 
poz  noiíK!  de  liuiz  li^ilijipe.  N 'essas  mesmas  paragens 
descobriu  igualniciili' :  1."  oulra  terr.i  ao  oriente  da 
primeira,  a  <pie  chamou  Juiiirille :  2."  outras  muitas 
illias  (jiie  nas  suas  cartas  designa  p(!los  nomes  de  /li- 
liíiliiliid,  Itiiíiinii-l  e  Dtinsii:  .1."  o  braço  de  mar  imks 
separ.i  as  terras  da  'l'rlndiiile  da  terra  Ijuiz  Kilippe, 
liquedeiiomlnou  rtiital  d'()rl('aii»  :  4."  Jio  norle  does- 
te canal  descobriu  inals  as  ilhas  Jurien  <•  Dumoiilin. 
l)(!puis  (Pestas  operaçiies,  o  cajiitão  irUrville  já  não 
teve  jiossibilidnde  de  levar  por  diante  as  suas  iiives- 
tigiições  ;  adiantaiido-se  ameaç.idora  a  estação,  diri- 
giu   a  expiídição  para   a  Terra  de  \aii-l)ieineii  com 


o  intento  de  repetir  no  anno  seguinte  a  exploração 
do  polo  antárctico. 

No  I."  de  janeiro  de  1840  larga  de  Hobard-town, 
e  encaminha-se  ao  polo  austral;  a  I  8  do  mesmo  mez 
acha-se  em  64°  de  latitude  sul  e  139"  de  longitude 
leste.  D'este  ponto  descobre  na  parte  sul,  a  grande 
distancia,  uma  terra  a  que  só  ptjde  arribar  a  21. 
Então  expede  uma  lancha  que  não  toma  terra  senão 
depois  de  vencidas  inauditas  difficuldades  :  o  capitão 
dá  a  essa  terra  o  nome  de  sua  esposa,  Adélia, 

A  terra  Adélia,  por  66"  de  latitude,  estende-se 
em  longitude  dos  134  aos  140"  ao  oriente  do  meri- 
diano de  Paris. 

A  23  a  expedição  já  tinha  seguido  por  espaço  de 
vinte  léguas  a  costa  d'essa  terra  nova,  não  sem  mui- 
tos sotfrimentos  por  causa  do  estado  do  mar  e  das 
rajadas  intermittentes  do  vento,  que  precipitando  os 
navios,  ora  para  montes  de  gelo  ora  ura  para  o  ou- 
tro, tinha-os  incessantemente  expostos  aos  maiores 
perigos,  porque  em  laes  circumstancias  unia  simples 
cinta  de  duas  pollegadas  separa  o  homem  da  eterni- 
dade. Levantando-se  um  temporal,  as  corvetas  se 
d('sgarraram  pela  primeira  vez;  mas  o  vento  acal- 
mou, e  se  tornaram  a  encontrar  sem  padecerem  ava- 
ria grossa. 

A  Adélia  cerrava  á  expedição  o  rumo  do  sul,  po- 
rém o  capitão  nem  por  isso  deixou  de  proseguir  em 
sua  navegação  penosa  á  mercê  dos  ventos  e  das  cir- 
cumstancias, o  que  lhe  trouxe,  aos  30  de  janeiro,  o 
conhecimento  de;  outra  nova  terra,  a  que  chamou 
C/íiriíi,  nome  da  esposa  do  capitão  Jacquinof,  com- 
niandante  da  Xi-léc.  Acha-se  esta  terra  pelos  6õ"  de 
latitude,  e  entre  132"  o  139"  de  longitude  ao  orien- 
te do  meridiano  de  Paris. 

O  capilão  d'Urville,  depois  de  a  costear  obra  de 
cincoenla  léguas,  dirigiu-se  novamente  para  o  sul, 
(uide  se  achou  bem  depressa  involvido  nos  gelos,  e 
arrebaladamente  retido  por  uma  serra  d^elles  impe- 
netrável. Teve  ainda  a  felicidade  de  sair  doesta  posi- 
ção perigosa,  e  livre  em  seus  movimentos  tomou  ou- 
tra vez  a  direcção  do  polo,  luctaiido  trabalhosamente 
contra  os  obstáculos  com  uma  eflicacia  de  que  só  elle 
era  capaz.  Comtudo  não  poude  alcançar  a  mais  do 
que  os  G(i"  35'  de  latitude  sul,  e  137"  48'  de  longi- 
tude l('ste.  ]\''esle  ponto  não  se  notava  na  agulha 
ni.ignelica  declinação,  e  obedecia  ella  a  qualquer 
aproar  do  navio;  a  agulha  d^incllnação  toinaxa  a 
vertical :  alli  é  tpie  ])riiicipalnientc  foram  feitas  as 
delicadas  observações  do  capilão  d'Urville;  e  d\'llas 
resulta  que  o  polo  magnético  austral  .icha-se  aos  7  1" 
4.í'  de  latitude,  e  133"  40'  de  longitude  ao  oriente 
do  meridiano  de  l'aris.  —  Segundo  as  cartas  <la  ex- 
pedição é  que  o  auctor  d'este  artigo  lixou  esta  posi- 
ção.— 

Acaliada  esta  operação,  talvez  a  mais  importante 
d.i  empreza,  e  estando  as  e<|uipagens  ha  niuilo  tem- 
po cançadas  de  fadigas,  e  accominetlidas  já  de  doen- 
ças, o  coinmandante,  para  não  ser  colhido  nos  ge- 
los, deu-su  pressa  a  largar  paragens  iiiliospilas,  <■  di- 
rigiu-sc  para  o  norte. 

R.ipediçuo  inglesa, 

A  expedição  ingleza  compimha-so  de  dois  navios, 
o  liieliio  >'  o  Ttiiur:  o  primeiro  eonimandailo  jielo 
capitão  Ituss,  e  o  segundo  pelo  capitão  (\oxitr.  Es- 
tes ilois  vasos,  de  3.')0  tonelad.is  e  em  tudo  semelhan- 
tes, são  do  constriicção  particular  e  inteiramente 
adaptada  ao  serviço  di'  exploração  das  regiões  pola- 
res ;  são  leitos  em  três  divisões,  de  modo  ipie  so  iimii 
parte  do  navio  experimenta  grossa  avaria,  ou  mesmo 
se  despega  de  todo,  a  equipagem  não  llca  sem  recur- 
so, posto  que  cm  grande  perigo. 


106 


O  PANORAMA. 


Por  occasião  d'esta  expedição,  confiada  aos  capi- 
tães lloss  e  Cro7.ier,  fez-se  a  seguinte  observação  ;  — 
<iue  estes  dois  officiaes  desde  a  infância  foram  lií^ados 
pela  amizade  mais  intima ;  ambos  saíram  aspirantes, 
guarda  marinhas,  e  officiaes  ao  mesmo  tem])o ;  nun- 
ca serviu  uni  onde  não  estivesse  o  outro-,  aniVjos  fize- 
ram parte  da  expedição  do  capitão  1'arry  ao  polo 
lx)real ;  cambos  estiveram  três  annos  retidos  n^afjuel- 
les  gelos  cio  polo  árctico. 

A  expedição  ingleza  larga  da  Europa  a  15  de  se- 
tembro de  1!139,  dirige-se  para  a  terra  de  \an-Die- 
racn,  e  no  l ."  de  janeiro  seguinte,  o  Erebro  e  o  Ter- 
ror apparelham  do  Hobard-lown  ;  tempo  favorável 
os  leva  aos  círculos  polares.  A  intenção  do  capitão 
lloss  era  encainiiiliar-se  para  o  polo  pelo  sudoeste.  A 
3  de  janeiro  ultrapassa  uni  monte  de  gelo  e  conliiiiia 
a  sua  derrota  sem  experiniciitar  grandes  difficulda- 
des  i  <!in  a  manhã  de  '.)  a  expíidição  acha-se  em  mar 
perfeitamente  desembaraçado  e  segue  na  direcção  do 
sudoeste  Aos  l  l  do  mesmo  mez,  de  manhã,  pelos 
70"  41 '  de  latitude  sul  e  172"  'Mi'  de  longitude  les- 
te, a  expedição  houve  vista  de  uma  terra  na  distan- 
cia approximada  de  cem  milhas  e  direcção  sudoeste. 
Com  este  descobrimento  o  capitão  Koss  sentiu  algum 
desgosto,  porque  arjuella  terra  lhe  fechava  o  rumo  ao 
polo  magnético,  cuja  fixação  era  o  mais  importante 
alvo  da  sua  commissão.  Não  obstante  isso,  tomou 
posse  d' cila  no  dia  12  e  impoz-lhe  o  nome  da  sua  so- 
berana, a  rainha  Victoria,  e  estabeleceu  (|ue  as  im- 
mensas  montanhas  a  pique  e  nevosas,  de  que  é  to- 
talmente formada,  estão  situadas  pelos  7l"  58'  de 
latitude,  e   1159°  7'  de  longitude. 

O  capitão  Ross  calculou  que,  portando  para  o  sul 
o  mais  longe  que  lhe  fosse  possível,  ultrapassaria  o 
polo  magnético,  que  suppunha  pelos  76",  e  que  go- 
vernando depois  para  oeste  o  circularia  completamen- 
te ;  seguiu  pois  esta  terra  tão  importante,  e  ciiegou 
aos  21  de  janeiro  á  latitude  de  74",  45".  A  27  do 
diclo  mez  desembarcou  em  outra  ilha  por  76",  8'  de 
latitude:,  a  qual  é  toda  composta,  como  a  primeira, 
de  rochas  volcanicas.  A  28,  ao  despontar  o  dia,  avis- 
tou uma  enorme  montanha  de  quatro  mil  metros  d^e- 
levação,  que  vomitava  desme<lidos  rolos  d(!  fumaça  e 
labaredas:  estevolcão,  de  grande  actividade,  recebeu 
do  capitão  Ross  o  nome  de  monte  Erebio ;  6  situado 
a77°,  3á'  de  latitude,  e  167"  de  longitude  leste:  na 
parte  oriental  do  volcão  existe  uma  descompassada 
cratera,  mas  extincto  o  fogo,  e  um  pouco  menos  ele- 
vada que  o  volcão  i  recebeu  o  nome  de  tnoute  Ter- 
ror.—  Este  continente  conservava  a  sua  direcção  pa- 
ra o  sul;  eo  seguiram  até  onde,  na  tarde  do  mcsrao 
dia  28,  a  expedição  foi  estorvada  por  uma  barreira 
de  gelos  que,  partindo  do  cabo  da  costa,  proseguia  a 
les-sucste.  Esta  barreira,  de  50  a  60  metros  d';Jtu- 
ra,  deixava  vêr  para  detraz  dV-lIa  os  picos  nevados 
de  uma  cordilheira  que  corria  a  susueste  por  7!t"  de 
latitude.  —  O  capitão  seguiu  a  barreira  a  leste  até  U 
de  fevereiro,  epoclia  em  que  adipiiriu  a  certeza  de 
que  ella  se  estendia  por  espaço  de  mais  de  cem  lé- 
guas. Emfim,  a  expcMliçào  não  parou  senão  diante 
do  uma  serra  de  gelos  insuperável,  e  comtudo  estava 
de  volta  com  ella,  ese  não  viera  em  seu  auxilio  uma 
forte  briza,  achar-se-hia  prisioneira  nas  regiões  aus- 
Iraes,  como  já  tinha  acontecido  nas  boreaes  aos  dois 
commandantes  :,  n'a(|uclle  momento  os  thermometros 
estavam  a  20"  frio,  e  a  sondart^za  dava  o08  braças 
de  fundo. — Tendo  a  ventura  de  sair  de  uma  situa- 
ção tão  perigosa,  o  capitão  Koss  dirigiu-se  i)ara  oes- 
le,  c  a  1.1  de  fevereiro  adiava-so  pelos  75"  sul,  na 
impossibilidade  de  se  approximar  do  polo  magnético 
senão  a  distancia  de  cinciMMita  léguas.  —  IMovas  ten- 
tativas de  desembarque  foram  iufructuosas,  c  us  tra- 


balhos do  capitão  Ross  tiveram  de  liraitar-se,  n'a- 
quellas  paragens,  a  marcar  o  continente  que  acabava 
de  descobrir,  que  se  estende  em  latitude  dos  70"  aos 
79",  ao  qual  vimos  que  denominou  "  \  ictoria.  n  —  A 
25  de  fevereiro,  ocapitão,  tendo  reconhecido  também 
que  a  parte  boreal  d'essa  terra  acabava  abruptamen- 
te nos  70"  40'  de  latitude  e  165"  de  longitude  leste, 
tractou  até  4  d'abril  de  completar  as  suas  observa- 
ções, e  neste  mesmo  dia  poz  proa  para  Van-Diemen. 


Resumindo  os  trabalhos  das  três  cxpolições  colhe- 
se  que  revelaram  ao  mundo  scientifico  a  existência 
de  muitas  terras  de  que  não  havia  suspeita  na  parte 
austral  do  globo ;  e  a  de  montanhas  volcanicas  de 
quatro  a  cinco  mil  metros  de  elevação  nos  80"  de  la- 
titude, dá  motivo  a  que  se  admitta  um  continente 
antárctico.  Taml)em  o  capitão  Ross  diz  que  não  será 
por  via  terrestre  que  se  poderá  chegar  ao  polo  aus- 
tral. 

D'este  modo  osphysicos  de  futuro  poderão  deixar- 
se  de  estabelecer  theorias  sobre  a  possibilidade  ou  im- 
possibilidade da  formação  do»  gelos  lluctuaiites  sem 
a  concorrência  de  continentes,  j)ois  que  não  faltam 
no  polo  austral. 

Os  geólogos  devem  também  estar  perfeitamente  so- 
cegados  (juanto  ao  equilíbrio  do  nosso  planeta,  jkjÍs 
que  o  pezo  das  terras  árcticas  é  convenientemente  ba- 
lançado pelo  das  terras  antárcticas,  e  a  posição  do  ei- 
xo da  terra  é  estável  e  segura  ainda  por  bastante 
tempo. 

Os  engenheiros  geographos  em  suas  cartas  substi- 
tuirão d'ora  avante  os  rabiscos  que  empregavam  co- 
mo designação  dos  gelos  lluctuantes  nas  regiões  pola- 
res, por  desenhos  bem  contornados  das  terras  recem- 
descobertas  por  nossos  ousados  navegadores;  e quanto 
á  fixação  do  polo  magnético  austral  os  trabalhos  de 
d'Urvi!le  nada  deixam  que  desejar. 


I\Iahomet  ou  Mafoma. 

(Cunliouado  ile  pa'.  154.) 

Com  efleito,  apesar  das  asserções  verbaes  de  MaLo- 
met,  apesar  dos  protestos  d'.\li  e  d'Abou-Bekr,  os 
próprios  discípulos  da  religião  nova  ralharam  da  re- 
lação da  viagem  aeria  do  apostolo  de  Deus,  como 
chamavam  então  ao  seu  propheta.  Convém  observar 
que  Mahomet,  no  Koran,  n.ão  se  atreveu  a  explicar- 
se  claramente  a  respeito  d'uma  aventura  tão  inau- 
dita. Kis-aqui  o  que  elle  à'a  :  '^  Louvores  áquellc  que 
transportou  o  seu  servo  do  templo  de  Meca  ao  tem- 
plo do  Jerusalém  !  "  Lê-se  em  outro  logar  :  -  Elle  se 
levantou  ao  alto  dos  ares,  e  chegou  á  distanci.-i  de 
dois  arcos,  e  até  mais  perto,  do  throno  de  Deus ;  e 
Deus  revelou  ao  seu  servo  o  que  lhe  revelou,  e  o  seu 
coração  não  imaginou  o  que  elle  viu.  Ireis  vós  pois 
disputar  com  elle  acerca  do  que  viu  .'••  Ainda  que  os 
auctores  mais  graves  consideram  a  viagem  nocturna 
como  uma  visão,  e  sustentam  que  Mahomet  não  foi 
transportado  ao  céu  senão  cm  espirito,  a  tradição 
transmiltiu  este  facto  como  unia  verdade  que  os  mu- 
sulnianos  devem  crOr  sem  exame.  Nunci  deixam  de 
celebrar  o  anniversario  d'esla  viagem. 

Comtudo  o  islamismo  se  foi  propagando  pelo  in- 
terior da  Arábia.  Tendo  vindo  a  Meca  uma  nova 
caravana  de  gente  de  Medina,  abjurou  a  idolatri.! 
na  presença  de  Mahomet.  Então  o  propheta  jxu  ter- 
mo ao  constrangimento.  Até  este  momento  tinha  re- 
commendado  a  paciência  aos  seus  adeptos  ;  ..  Perdoai 
aos  vosaos  iuimigos,   llics  repetia  cUe,  aguardando  a 


o  PANORAMA. 


167 


vingança  de  Deus."  Mas  esta  victoria  lhe  fez  mudar 
de  lin''uaeein.  "Os  musulmanos  podem  combater 
com  aquelles  que  lhes  fazem  injurias,  disse  elle  aos 
seus  partidários  •,  por  certo  que  l)eus  tem  forças  para 
lhes  mandar  auxilio." 

Fez  depois  prestarem-lhe  juramento  de  fidelidade, 
e  os  mahometanos  juraram  defende-lo  como  defende- 
riam as  suas  mulheres,  filhos  e  famílias,  e  para  lhes 
inflammar  o  animo  prometteu  a  entrada  no  septimo 
céu  aos  que  por  elle  morressem.  Tomados  de  susto  os 
magistrados  de  Meca,  quando  tiveram  esta  noticia, 
resolveram  dar  morte  aoinnovador.  Mahomet  previu 
o  perigo  e  es(iuivou-se  aos  golpes.  Fez  partir  as  es- 
condidas para  Medina  os  lieis  sequazes,  e  passados 
dias  saiu  alraz  d'elles.  A  este  successo  se  chama  hetji- 
ra,  d^uina  palavra  árabe  que  signiíica  fugida,  e  de- 
pois serviu  de  epocha  para  todas  as  nações  musulmu- 
nas.  Corria  então  oanno  622  da  nossa  era,  Mahomet 
tinha  perto  de  cincoenta  annos,  e  havia  treze  que 
pregava  a  sua  doutrina. 

Mahomet,  sendo  recebido  em  triumpho  em  Medi- 
na, lançou  mão  de  toda  a  auctoridade  espiritual  e 
temporal,  e  os  seus  discípulos  o  reverenciaram  como 
rei  e  poutilice.  Tractou  logo  de  fundar  o  seu  poder 
edar  ao  culto  musulmano  formas  que  bem  pouca  al- 
teração tccm  tido.  A  primeira  cousa  em  que  cui- 
dou foi  edificar  uma  mesquita  onde  fosse  orar  com  o 
povo;  para  dar  O  exemplo  trabalhou  n'esta  obra  com 
as  suas  próprias  mãos.  "Qucniquer  que  trabaliiar 
n'esta  mesquita,  disse  elle,  edificará  para  a  vida  eter- 
na. "  Também  construiu  unia  casa  para  si,  e  outro 
tanto  fizeram  os  companheiros  da  sua  fuga.  Mahomet, 
como  o  perseguiram  violentamente,  não  curou  senão 
de  estender  as  suas  leis  á  força  d'arnias.  Vencedor 
muitas  vezes,  vencido  algumas,  attribuia  as  victorias 
ao  Kterno,  e  as  derrotas  aos  peccados  dos  seus  solda- 
dos. Durante  o  combate  de  Berd,  contra  os  de  Meca, 
batia  Malioniet  no  peito  pronunciando  esta  oração: 
"Oh  meu  Deus!  deixas  jjerecer  os  teus  servos;  fica- 
rás sem  adoradores  sobre  a  terra  !  »  Estava  tão  per- 
turbado que  chegou  a  dar-liie  um  vagado.  Cobrando 
animo  de  repente,  fingiu  (|ue  o  anjo  Gabriel  lhe  a[)- 
jiarecèra,  e  exclamou  :  "  Alegrai-vos :  Deus  nos  man- 
da soccorro  !  >i  Ao  mesmo  tempo  monta  a  cavallo,  e 
tomando  um  punhado  de  areia,  lança-a  á  cara  dos 
seus  inimigos:  níiue  as  suas  faces  sejam  confundi- 
das», bradou  elle.  Os  seus  guerreiros  tentaram  um 
ultimo  esforço,  e  ganharam  a  batalha.  1'assados  al- 
guns dias  lançaram  MalioiiKít  do  cavallo  abaixo  n'u- 
ina  escaramuça.  Cheio  de  cíjiitusõcs  no  rosto  e  com 
o  corjK)  crivado  de  feridas,  porém  traiii|uillo  nomeio 
do  perigo,  não  «ressava  de  repelir;  u  Oh  !  como  piide- 
rão  jiro.ípcrar  os  homens  que  ensanguentam  assim  a 
cara  <lo  m-u  projiliela?" 

Diqiois  (Ic  muito  sangue  derramado,  (!<■  conquista- 
das edestriiidas  muitas  cidades,  ajustaram  os  de  Me- 
ra tréguas  por  nin  anno,  durante  as  quacs  era  o  pro- 
jilieta  senhor  de  vir  em  roiiiai;('m  á  Caaba.  l'or  esse 
tempo  aconteceu  aMalioinet  um  caso  triste.  I\a  guer- 
ra (pie  susleiíluii  contra  os  judeus  de  Khaibar,  uma 
rapariga  que  perdera  o  irmão  e  lhe  ijueria  vingar  a 
morte,   envenenou    um  quarto   de  carneiro  de  que    o 

Í)ropheta  havia  de  comer.  Ao  primeiro  boccado  que 
^lalioinel  enguliu  conheceu  (pie  linha  \eiioiio,  e  ali- 
rundu  com  elle  lóra,  exclamou  :  t.  Ksle  carneiro  me 
advertem  de- (juc!  está  envenenado  !  h  Os  musulmanus 
apregoaram  i|ui'  era  milagre,  e  o  (piarlo  de  carneiro 
foi  Jior  muito  liMiipo  veiurado  ((uno  rc'lii|iiia.  Mas  o 
veneno  já  tinha  lavrado  nas  entraiilias  do  [iropheta, 
(jue  nunca  mais  ti^ve  saúde. 

Deii-ac  depois  a  pAr  em  pracliea  o  piijiilo  de  su- 
jeitar a  Meca,  sua  palria ;  ja  tinha  IVilo  a  priíiiciía 


peregrinação  esplendida,  durante  a  qual  uma  multi- 
dão de  idolatras  abraçara  a  sua  causa.  Apesar  do  tu- 
multo das  armas,  a  entrada  de  Mahomet  em  Meca 
teve  um  caracter  religioso ;  elle  se  havia  re\  estido 
(Mm  o  habito  dos  peregrinos,  e  avançou  recitando  em 
tom  solerane  estas  palavras  do  Koran  :  «  Na  verda- 
de te  concedemos  uma  victoria  insigne-.  Deus  te  per- 
d(X)u  os  teus  peccados  passados  e  futuros,  afim  de  te 
cumular  de  graça,  de  te  encaminhar  pela  via  recta, 
e  de  te  auxiliar  com  um  poderoso  soccorro.    Foi  elle 

(lue   fez   baixar   ao  coração   dos  fieis   o  descanco   e  a 

I  _  o  j 

tranquillidade  para  lhes  augmentar  a  fé  com  uma  fé 
nova.  Deus  é  grande  e  misericordioso."  i)  primeiro 
empenho  de  Mahomet  foi  visitar  de  novo  a  Caaba,  e 
orar  a  Deus  nos  logares  sanctos  •,  depois,  impaciente 
por  apagar  até  o  ultimo  vestígio  do  culto  profano, 
lançou  por  terra  os  Ídolos  que  cercavam  a  casa-<|ua- 
drada.  Mahomet  chegou  successivanieute  ao  pé  deca- 
dauma  d'estas  divindades,  e  locando-lhes  com  uma 
varinha  que  trazia  na  mão,  dizia:  «A  verdade  é  vin- 
da, seja  a  mentira  anniquilada. «  Ao  mesmo  tempo 
as  faziam  em  pedaços,  sem  perdoarem  se  quer  ás  es- 
tatuas de  Abrahão  e  de  Ismael.  Feita  esta  execu(;ão 
congregou  Mahomet  o  povo  e  pronunciou  o  seguinte 
discurso  :  "Não  ha  outro  Deus  senão  Deus,  que  cum- 
priu todas  as  promessas  feitas  ao  seu  servo,  e  poz  em 
fuga  a  seus  inimigos.  Não  adorareis  d'hoje  em  dian- 
te vossos  pais  Abrahão  e  Ismael,  que  não  eram  mais 
do  que  homens  como  vcís  "(l). 

O  nono  anno  da  hégira  ficou  sendo  famoso  pela  af- 
lluencia  dos  embaixadoresíjue  vieram  de  todas  as  par- 
tes da  Arábia  dar  os  parabéns  a  Mahomet  das  suas 
victorias;  por  isto  este  anno  foi  chamado  oanno  das 
embaixadas.  Os  auctores  árabes  comparam  o  seu  nu- 
mero com  o  das  tâmaras  que  pelo  outono  caem.  Ma- 
homet recebeu  os  deputados  com  muita  dignidade  e 
a  Arábia  quasi  inteira  se  decidiu  a  considera-lo  seu 
senhor  e  soberano.  N'unia  guerra  contra  alguns  po- 
vos remotos,  tinha  o  exercito  do  propheta  de  atraves- 
sar as  terras  dos  antigos  temouditas  :  Mahomet  apro- 
veitou esta  occasião  para  pintar  aos  seus  soldados  a 
sorte  de  um  povo  incrédulo  :  nioslrou-lhes  grutas  aban- 
donadas, moradas  desertas,  e  ameacou-os  com  o  mes- 
mo destino  se  caíssem  na  mesma  impiedade.  CAuan- 
do  chegou  ao  meio  do  valle  onde  os  temouditas  cos- 
tumavam vir  buscar  agua,  vendo  que  os  musulmanos 
se  preci|)ítavam  na  fonte  para  matar  a  sede  que  os 
devorava,  conteve-os  dízendo-lhes  :  "  Abstende-vos  de 
beber  dV'sla  agua  ()ue  serviu  a  povos  injustos;  fugi 
d'este  pouso  de  maldicção,  chorai  sobre  os  vossos  pec- 
cados, e  tymei  solTrer  iiin  castigo  tão  rigoroso!»  K 
logo  cobrindo  o  rosto  com  o  seu  manto,  esporeou  a 
mula,  e  não  parou  na  corrida  em  ijuanlo  se  não  viu 
lóra  do  valle. 

Os  árabes  de  Taicf,  únicos  (jue  tinham  conservado 
o  culto  dos  ídolos,  veiido-se  a  toda  a  hora  alvo  dos 
ata(|ues  dos  inusulinanos,  propuzeram  que  abraçariam 
o  islaiiiísino,  com  tanto  (jiie  lhes  deixassem  por  um 
anno  o  exercício  do  seu  antigo  culto  ei|iie  os  dispen- 
sassem da  oração.  Malioinet  res|Hindeu  «pie  a  verdad(> 
não  admittia  dilação,  r  que  não  ha\ía  religião  sem 
oraç(H!s.    Subinetterain-se   os  idolulras,   c   na  Arábia 

(1)  Kui  eiililu  i|ii«  Miiliumct  (|iiia  Iriioliir  rum  o»  iiinis 
pniItToHOii  reis  conin  sen  i^iiitt ;  c.irrcvtMi  a  tíxtoii  í>í  |>rliiri|ii's 
rlinstàtiM,  jiiili-ii.'<  oii  íttitlatiaA  da  Araltia  c  das  ^l-l:ll^(■^l  u»i- 
iiliJiit,  convhtaitilo-tiH  li  alirai;ar  a  sua  rch^^iilit.  A  t\>iiiiiila  itHai 
cartau  era  :  Alatitiiiirl,  a|it>slulii  i\r  l)(-ii!t.  a  .  .  .  .'i.iudr,  \c. 
Conrucs,  rei  ita  Pfisiu,  ilfii-s<'  um  l.^i»  ulTriitliilo  por  \i'r  ati- 
tcpuslii  nu  .iLMi  u  liuiiii'  ili-  um  liuiiiciii  <pir  cite  cii||»iilt'ra\.i 
«cii  csirav»,  (|Uo  sfui  ler  iiiais  iiaila,  riLiiiuii  n  cariu.  Maliu- 
iiict,  iiu  (iiivir  isto,  i-\olaiiu>u  :  u  An.tiiii  mjii  rassado  o  neii 
reino  I  ><   O»  miiauliiiiuius   iiilu   ilu\id»m   ipie  pur  isau   vieram 

II  aollier  Coiíruoa  c  eu  Deu»  eiiladoa  tuila  m  cabia  de  desiisítreit. 


168 


O  PANORAMA. 


não  ficou  povo  algum  aferrado  ás  practicas  do  paga- 
nismo. Trabalhosa  empreza  seria  a  de  seguir  Maho- 
met  em  todos  estes  passos  que  dava  para  que  o  seu 
nome  e  principies  religiosos  triumphassem  :  com  uma 
actividade  infatigável,  com  uma  ambição  sem  limi- 
tes, viam-n'o  espalhar  emissários  peia  Arabia-1'e- 
trea,  pelas  costas  do  Golpho  Pérsico,  e  até  por  entre 
as  tribus  nómades  da  Mesopotâmia.  Sendo  outra  vez 
chegado  o  tempo  da  peregrinação  quiz  Mahomet  tor- 
nar a  vér  a  cidade  onde  nascera ;  esta  romaria  pa- 
tenteou os  immensos  progressos  que  fizera  o  islamis- 
mo. Cento  e  quatorze  mil  homens  acompanharam  o 
propheta.  Tendo  chegado  a  Meca,  beijou  Mahomet 
com  respeito  a  pedra  negra  em  que  se  suppõe  estar 
encerrado  o  pacto  de  alliança  entre  Deus  e  os  ho- 
mens ;  depois  deu  as  sete  voltas  do  costume  á  roda  da 
Caaba  correndo  ligeiro;  porque  como  os  seus  inimi- 
gos mostravam  acreditar  que  a  idade  e  as  fadigas  o 
haviam  quebrantado,  quiz  ostentar  \igor  extraordi- 
nário. Saindo  depois  da  cidade,  subiu  á  coUina  de 
Safa,  e  voltando-se  para  a  Caaba  proferiu  estas  pa- 
lavras:  "Deus  é  grande;  não  ha  outro  Deus  senão 
Deus;  elle  não  tem  companheiros.  Pertence-lhe  o  po- 
der. Louvores  lhe  sejam  dados.  Elle  é  poderoso  em 
todas  as  cousas ;  uão  ha  outro  Deus  senão  Deus.  " 
IVIahomet  se  dirigiu  á  collina  de  Merva,  onde  tam- 
bém fez  uma  oração ;  visitou  todos  os  logares  sagra- 
dos, e,  quando  acalx)u,  fez  descer  do  céu  estas  pala- 
vras :  "Agora  não  ousarão  nunca  mais  os  descridos 
atacar  a  vossa  religião;  não  os  temais.  Deus  é  pode- 
roso e  sábio!  «  O  propheta  completou  piamente  o  sa- 
crificio,  immolando  pela  sua  própria  mão  sessenta  e 
três  camelos,  numero  dos  annos  que  tinha ;  fez  sacri- 
ficar mais  trinta  e  sete  pela  mão  de  Ali.  Acabadas 
todas  as  ceremonias,  dispoz-se  ^lahomet  para  tornar 
a  vêr  Medina. 

Achava-se  então  o  reformador  no  mais  alto  grau 
de  poderio;  nenhum  homem,  nenhum  povo  na  Ará- 
bia era  capaz  de  luctar  contra  elle.  Senhor  absoluto 
da  península,  tudo  faz  acreditar  que  não  tardaria  em 
levar  a  guerra  a  paizes  distantes,  quando  dolorosa 
enfermidade  o  levou  ao  tumulo.  Depois  da  traição 
de  Khaibar,  o  propheta  não  cessara  de  sentir  os  es- 
tragos do  veneno,  (iuando  voltou  a  Medina,  cresce- 
ram as  dores,  e,  a  26  de  maio  de  632,  recolheu-se  á 
cama  em  casa  de  Aicscha,  sua  mulher  predilecta  e  a 
c-onfidente  dos  seus  pensamentos.  Mahomet,  para  so- 
cegar  os  seus  partidários,  mostrava  a  serenidade  mais 
perfeita  ;  fallava  sem  cessar  de  Deus  e  da  vida  futu- 
ra. Um  dia  que  o  que  os  cercavam  mostraram  es- 
panto do  seu  padecimento,  disse-lbes :  >•  Nenhum 
propheta  antes  de  mim  soiVreu  o  que  eu  solfro ;  po- 
rém quanto  mais  viva  é  a  dôr  maior  será  a  recom- 
pensa. "  Depois  accrescentou  :  "  O  Senhor  costuma 
dar  aos  seus  servos  a  escolha  d'este  mundo  ou  do 
outro;  eu  preferi  o  que  está  juncto  de  Deus."  No 
segundo  dia  da  sua  doença  quiz  assistir  á  oração  com 
o  povo;  levaram-n'o  á  mesquita.  Depois  de  ter  cele- 
brado os  louvores  de  Deus,  fallou  assim:  "Oh  ho- 
mens I  se  eu  fiz  espancar  injustamente  algum  de  vós, 
aqui  estão  as  minhas  costas,  tracte-me  conui  o  eu 
tractei ;  se  dilacerei  a  reputaç.úo  de  alguém,  dilacere 
a  minha;  se  injustamente  exigi  dinheiro,  aqui  está 
a  minha  bolsa. "  Depois  deu  a  liberdade  a  todos  os 
seus  escravos,  e  connnnnicou  as  ultimas  vontades  aos 
seus  comp;u>heiros.  Deixou  tros  preceitos:  o  primei- 
ro paYa  que  expulsassem  da  Arábia  os  idolatras  e  to- 
dos os  que  não  professassem  o  islamismo  ;  o  segundo 
para  que  receliessem  todos  os  proselvtos,  sem  fazer 
nenhuma  differcnça  dos  musulmanos  novos  ou  velhos; 
<i  torciiro  recommend.mdo  a  oração.  AcalKui  anial- 
dijoandu  os  judeus,  cujas  perlidius  e  ódio  lhe  caiua- 


I  vam  a  morte.  Com  tomar  a  doença  um  caracter  mais 
I  grave  enfraqueceu-se-lhe  a  cabeça.  Contam  que  doi» 
j  dias  antes  de  soltar  o  derradeiro  suspiro  pediu  tinta 
e  papel  para  minutar  um  novo  Koran  ;  o  que  prova 
que  Mahomet  sabia  lêr  e  escrever,  pelo  menos  nos 
últimos  annos  da  sua  vida.  u  (iuero  deixar  um  livro, 
disse  elle,  com  o  qual  não  se  possa  roais  errar  depois 
da  minha  morte."  Estas  palavras  levantaram  gran- 
de rumor  ua  sala :  perguntaram  uns  aos  outros  se 
não  tinham  já  o  Koran,  e  se  este  livro  não  bastava 
para  esta  vida  e  para  a  outra ;  chegou  mesmo  a  ha- 
ver disputas.  Foi  tal  o  motim  que  Mahonjet,  tornan- 
do em  si,  se  deu  pressa  em  despedir  a  companhia: 
"  Não  é  decente,  exclamou  elle,  altercar  assim  na 
presença  do  apostolo  de  Deus. « 

Mahomet  expirou  a  8  de  junho  de  632,  com  ses- 
senta e  três  annos  de  idade ;  tinha  começado  a  pre- 
gar na  de  quarenta  annos,  e  havia  dez  que  habitava 
em  Medina.  O  propheta  foi  sepultado  debaixo  da 
mesma  cama  em  que  morrera;  mais  pelo  tempo 
adiante  levantaram-lhe  n^este  logar  uma  mesquita, 
onde  os  musulmanos  vêem  perigrinar.  "Sem  razão 
teem  alguns  escriptores  affirmado,  diz  Mr.  Keinaud, 
que  os  restos  de  Mahomet  tinham  sido  mettidos  n^um 
caixão  de  ferro,  e  que  este  caixão  estava  suspenso  no 
ar  por  um  grande  iman  que  pendia  da  abobada. 

Em  que  Mahomet  é  na  verdade  único,  é,  d'um 
lado,  na  prodigiosa  habilidade  com  que  preparou  o 
seu  papel;  do  outro,  na  imperturbável  firmeza  com 
que  o  desempenhou.  Mahomet  era  chão,  modesto,  e 
tão  sóbrio,  que,  quando  morreu,  ouviram  Aicica  ex- 
clamar :  "  Oh  tu  que  nem  pão  de  cevada  comias  a 
fartar !  "  Com  effeito  em  sua  casa,  as  mais  das  vezes 
tâmaras  e  agua  eram  todo  o  alimento ;  e  passavam 
ás  vezes  dois  mezes  sem  aili  se  accender  lume.  O 
propheta  não  se  distinguia  dos  outros  homens  nem 
pelos  vestidos  nem  pelo  modo  de  viver:  ao  principio 
tinha  tomado  a  liberdade  de  se  vestir  deali^odão; 
mas  achando  que  o  algodão  era  rico  de  mais.  pro- 
hibiu  a  si  mesmo  o  uso  d'clle  e  vestiu-se  de  lã. 
Aboul-feda  conta  que  elle  cosia  o  seu  calçado,  re- 
mendava os  seus  vestidos,  varria  o  seu  aposento,  e 
servia-se  a  si  mesmo.  A  maior  parte  da  cevada  e 
das  tâmaras  que  31ahomet  colhia  deisava-as  aos  po- 
bres ;  sustentava  constantemente  quarenta  pessoas  á 
sua  custa.  Mais  de  uma  vez  lhe  aconteceu  carecer  do 
necessário.  Mahomet  era  mui  zelador  dos  interesses 
dos  seus  amigos  e  confidentes,  folgava  de  os  servir 
com  o  mesmo  ardor  com  que  elles  o  serviam  ;  por- 
que lhe  parecia  ser  este  o  meio  mais  seguro  de  os 
prender  á  sua  causa;  empregava  a  maior  attcnção 
í-m  cercar  de  honras  as  pessoas  em  quem  delegava 
auctoridade.  Um  dia  que  um  dos  seus  officiaes  par- 
tia para  Meca  para  ir  governar  uma  província,  poi- 
Ihe  pt)r  sua  mão  o  turbante  na  cabeça,  c,  depois  de 
o  ter  ajudado  a  montar  a  cavallo.  acompanhou-o  por 
algum  tempo  a  j)e,  dizendo:  "Cumpre  honrar  .iquel- 
le  que  está  revestido  de  mando;  não  faço  nada  que 
não  seja  conforme  .ás  ordens  de  Deus.  •>  M.\s  t.ío  dis- 
posto estava  sempre  (wra  favorecer  os  seus  amigos, 
quanto  implacável  era  para  cvun  os  inimigus:  contra 
os  que  lhe  estorvavam  os  intentos  não  reprimia  as 
demasias  da  cholera.  E  n''isto  quinhoava  o  humor 
vingativo  dos  seus  compatrícios;  nem  mostrou  gran- 
deza d'alma  senão  quando  viu  inabalável  o  seu  {loder. 

(Couiinua.) 


OBfTACfLOS  irrrmofiveis  nuo  cUixareim  piiWíror  etie 
numero  no  iHa  propi-io.  A  Socieiiaile  do  J'anorama 
cmprtgara  porém  lodos  os  rtfiTfoi  para  qtit  a  publi- 
cação continue  com  reguiaridade. 


22 


o  PANORAMA. 


169 


PEZ.OUBINHO   J>'AI.JUBABaOTA. 


A  MEMORÁVEL  viftoria  alcançada  oiii  11  (1'agosto  de 
1 3116  |)(.'lo  valor  de  nossos  antepassados  nos  campos 
d'Aljul)arrota  immortalisou  nos  fastos  portuf^uozcs  o 
nome  d'esta  villa :,  alii  nos  legaram  mais  uni  grande 
exemplo  do  amor  da  independência  nacional  e  das 
liberdades  pátrias  n'uma  iiorliada  hatallia,  ganlia 
contra  a  superioridade  numérica  e  a  cul)i<ja  espolia- 
dora  de  inimigo»  poderosos.  Com  tão  glorioso  feito 
ficam  (íSCur<H'idas  i|Ua(rs<ju(^r  memorias' illustres  fjue 
esta  povoação  |)oderia  cNlralilr  da  aniiguidade,  se 
jiorvi  iMura  é  eerlo  estar  fundada  no  assento  d(í  uma 
<id:i(li?  d(!  largo  aml)ilo,  aArruncia  dos  romanos:  es- 
ta opinião  produz  em  seu  abono,  entre  outros  tcsti- 
inuuiios  eeoujeelura»,  a  inseripeão  de  uma  [ledra  C|ue 
ae  iiehou  servimlo  de  mesa  ao  altar  nuír  <la  antiijuis- 
•  ima  igreja  deSaueta  Mariniia,  templo  de  ipie  ja  no 
meado  do  século  passado  existiam  diminuías  relirpiias. 
Km  1'oros  do  Scjão,  logar  ilu  seu  termo,  desenterra- 
ram-se  por  v»'/.!'»  em  chão  lavradio  medalhas  romanas. 
Kntre  os  I)razões  notáveis,  dv  (juc  pôde  jaelar-se 
Aljultarrola,  sctliresáe  o  iustrumenlo  mí*elianico  ipuí 
a  desleniida  l!riles,  padilra,  converteu  em  l)ellico ; 
tradição  popidar,  senàcj  veriladeira  eiu  todas  as  suas 
particularidades,  |)el<i  menos  de  espirito  grandemen- 
te nacional  e  até  engraçada.  INo  ;i."  vol.  ilo  l'anora- 
nia  (a  pag.  '113  e  .111)  sií  indicou  o  grau  de  possihi- 
lidarle  (l(]faclo,  <•  se  transeri'veram  as  recordações  que 
os  liistoriadori'S  colligiram.  ■ — ■  Accresccularemos  o  (pie 
ainda  constava  cpiaudo  escreveu  o  padr<' Carilo/.o,  em 
17-17,  o  (pnil  diz  assim  no  tiimf^,|l  •"  : — ••  Kntr<!  »s 
cousas  memoráveis  doesta  villa  tem  o  primeiro  iogiir 
Vol.  1.  —  Fuviciiiciito  C,  Ifl-n. 


a  pá  da  forncira  ciiamada  Brites  ou  Beatrii  d'Almei- 
da,  com  a  qual  matou  sete  castidhanos  de  iim  impe- 
lo,  no  tempo  da  batalha  que  elrei  1).  João  o  I  de 
Portugal  deu  nos  campos  d'esta  villa  a  D.  João  de 
Castella  ;  et'  crivei  mataria  mais  atião  desisliicm  da 
cmpreza.  K  de  ferro,  quadrada,  e  se  conserx^a  desde 
aijuetle  tempo  sem/crrvgnn,  com  seu  cabo  de  pau. 
Está  na  casa  da  camará  iPesta  villa  •,  e  quando  por 
ella  havia  de  passar  alguma  pessoa  real  ou  de  gran- 
de finalidade,  era  costume  nuindar  o  senado  da  ca- 
mará ex])i1r  na  praça,  avista  de  todos,  adicta  ])a  na 
mão  de  unui  mulher  honesta,  padeira,  ben\  compos- 
ta. Km  seu  elogio  <oncluem  uns  distichos  que  na  pa- 
rede do  nusmo  paço  se  vêem  escriptos  e  dizem  assim: 

observetur  et  illo 

Castelhe  slimulus,  Ijusiaduiuque  deciis.  (l) 

A  dinerent<'  pr(q)osilo  ajuncta  o  mesmogcographo  : 
—  i.  ( (  grande  sino  do  relógio  d'esl<'  povo,  que  se  vA 
|K>sto  lia  torre  couligiia  ao  paço  do  coiieclho,  foi  da- 
diva do  Sr.  rei  I).  Sebastião,  eterna  saudade  d'este 
riMiio,  como  consta  da  merci'  porescriplo  (pie  se  guar- 
da no  archivo  da  camará."  —  (.'om  etVeito,  alguns 
monarehas  couccderam  graças  a  esta  pe(jui'iia  villa, 
sendo  o  donutano  d'ellu  o  mosteiro  ile  Alwilmyi,  (x>- 

(O  O  tom  (loH  tnn  ilinlidun  ('  í«'ri(^  ;  l(iniiiT(-nio9  Ilroinn, 
()(ir('ni,  (mm  verter  o  rciniili-  iis»iiii ;  —  Olli^o  |uii;i  cmc  c»- 
ciirmciilii  (Ic  cniilíllmmif,  ntlculiii  Ikiii  ii'(i>ín  luiiestni  doi 
(irloii  |>(>ilu(;uci('9. 


170 


O  PANORAMA. 


i>io  loi;()  (1  iremos.  —  Klrei  D.  IV-dro  II,  passando  á 
j)ra(;a  d'Aliiieida,  mandava  ir,  não  obstante  a  enor- 
me distancia,  a^na  da  fonte  do  Troilhe  de  Aljuljar- 
rota,  por  ser  r('pulada  excellente  e  muito  medicinal 
para  as  enfermidades  da  bocca  edos  olhos;  pelo  bem 
<jue  com  ella  experimentava  denominava-a  saneia.  A 
villa  é  muito  farta  de  aguas;  além  das  fontes  publi- 
cas ha  muitas  particulares,  etem  poços  a  maior  par- 
te das  casas. 

Aljubarrota,  fundada  n^uma  eminência,  fica  entre 
as  villas  de  Porto  de  .Moz  e  de  Alcol)aç;a,  a  uma  lé- 
gua d'esta  para.  o  nascente  e  a  duas  da  Batalha  pa- 
ra o  poente.  E  terra  sadia  e  de  torrão  fecundo. — 
Para  que  se  faja  idéa  do  vexame  dos  encargos  que 
pezavam  sol)rc  os  coutos  triliutarios  ao  famoso  mos- 
teiro, cabeça  da  ordeju  cistíírciense  em  Portugal, 
enumeraremos  as  contribuições  dos  povos  de  Alju- 
barrota ;  tão  oníTosas,  apesar  de  algumas  isenções, 
(|ne  oescriptor  acima  allegado  exprimia-se  d'estc  mo- 
do.—  "E  o  terreno  (Pesla  villa  fertilissimo  de  todo 
o  género  de  fruetos,  se  bem  que  por  ser  pouco  lavni- 
dio  não  tem  mais  pão  do  que  para  o  povo.  Ue  vi- 
jiho,  azeite  e  fructas  de  toda  a  casta  é  tão  abundan- 
te que  seria  sem  controvérsia  uma  das  mais  ricas  po- 
voações da  Estremadura,  a  não  ser  tão  opprimida  de 
tributos.  Das  fruclas  verdes  os  peros  camoezes  são  os 
melhores  de  todos  os  coutos  •,  e  das  seccas  as  ameixas 
saragoçanas,  a  qu<í  em  outras  partes  chamam  mosca- 
téis, e  as  peras  de  almíscar  aparadas  são  celebres  cm 
todo  o  n^ino.  ^^  — 

A  villa  e  termo  pertencia  a  dois  districtos  separa- 
dos por  demarcação  \  ura  dos  coutos  de  Alcobaça,  e 
outro  de  Porlo  de  Moz,  que  depois  se  annexou  aos 
coutos.  Tornaremos  acoplar  do  padre  Cardoso. — 
«  E  seu  donatário  o  I).  abbade  geral  de  Alcobaça,  a 
quem  os  moradores  dos  dictos  districtos  e  seus  coutos 
pagam  o  quarto  e  dizimo  do  pão,  e  o  quinto  e  dizi- 
jno  do  vinho,  excepto  da  uva  preta ;  porque  d'esta, 
por  sentenças  alcançadas  contra  o  mosteiro,  lhe  não 
pagam  nem  ainda  o  dizimo,  salvo  da  qu(!  lhe  sobe- 
jar do  tempero  dos  seus  vinhos.  Das  fructas  lhe  pa- 
gam até  lâ  do  mez  d'agoslo  o  dizimo,  c  d'ahi  para 
diante  o  quinto  e  dizimo;  de  linho  o  quinto,  de  le- 
gumes, cebolas  e  aboliaras  o  dizimo;  e  somente  em 
uma  pequena  parte  doeste  districto,  para  a  parti?  da 
^illa  de  Coz,  ao  prior  dVsta  pertencem  os  dizimos 
do  azeite,  legumes  <;  frucla.  Pagam  mais  os  morado- 
res dVste  districto  ao  mesmo  mosteiro  cincoenta  al- 
<]ueircs  de  trigo  por  fogaça,  seiscentos  vimes  e  unia 
gallinha  de  casaria  cada  fogo.  Do  outro  districto  de 
l*orto  de  jMoz  se  lhe  paga  somente  o  oitavo  do  p.lo, 
vinho  e  linho  <;  do  azeite  da  terra  de  lavradio,  ex- 
cepto os  clérigos  e  homens  nobres  que  por  scMitença, 
lia  pouco  temjio  alcançada,  não  são  obrigados  a  pa- 
gar-lhe  mais  que  ajugada  na  forma  que  em  Porto  de 
Moz  se  paga,  por  cuja  razão  traz  o  mosteiro  a  mas^a 
arrendada  em  quatro  mil  e  tantos  cruzados  cada  an- 
uo, em  que  se  não  comprehende  os  cincoenta  alquei- 
res de  trigo  da  fogaça  e  gallinhas  da  casaria.  —  Prc- 
.side  o  1).  abbade  sjeral  ás  eleições  dos  capitiics  does- 
ta villa  como  capitão  mor  que  é  dos  seus  coutos,  c 
das  justiças  que  lambem  por  elle  são  confirmadas.» 


TOMAUA     DE    AlCACKW. 

A  Historia  de  Portusal  jx-lo  Sr.  Alexandre  Hercu- 
lano, d<'  que  está  publicado  o  1 ."  volume,  é  um  pa- 
ilrão  lilterario  da  nossa  epoclia.  O  seu  auctor,  eiii- 
|>unliando  o  facho  da  critica  apurada  e  severa,  pene- 
tra afliiuto  o  labvrintho  das  passadas  oras,  e  dissi|Ki 
as  trevas  que  ofl\i!ica\am   a  verdade.   Era  tciinH)  de 


m(jstrar  que  havia  em  Portugal  quem  soubesse  des- 
assombrar a  historia  de  fabulas  invorosimeis,  inves- 
tigar a  origem  dos  factos,  e  ler  coragem  para  er- 
guer, entre  o  verdadeiro  e  o  falso,  alta  muralha  que 
para  sempre  os  separasse.  Fê-lo  o  Sr.  Herculano. 

A  obra  do  Sr.  Herculano,  fructo  de  aturadas  vi- 
gílias e  investigações  profundas,  em  que  reluz  uma 
erudição  vastíssima  e  bem  trazida,  dão  realce  as  Ixjl- 
lezas  do  estalo,  portuguez  estreme  e  sempre  adapta- 
do ao  assumpto.  Agradecemos  ao  Sr.  Herculano,  o 
mais  dístincto  coUaburador  do  antigo  Panorama,  a 
bondade  com  que  nos  facultou  este  trecho  importan- 
te do  2.°  volume,  que,  posto  se  ache  no  prelo,  ainda 
lerá  alguma  demora  na  publicação. 


A  frota  rlienana  composta  de  mais  de  duzentos  na- 
vios, que  em  grande  parte  h.-iviam  sido  armados  pe- 
los habitantes  de  Colónia,  era  capitaneada  por  diver- 
sos chefes,  entre  os  quaes  se  distinguiam  o  conde  de 
VVithi',  e  sobre  tudo  o  condestavel  da  gente  de  guer- 
ra, Guilherme  conde  de  Hollanda,  alliado  que  fora 
do  infante  Fernando  de  Portugal,  e  seu  companhei- 
ro de  desventura  na  infeliz  jornada  de  Bouvines. 
Com  viagem  demorada,  mas  sem  perigo,  havendo-se 
apenas  perdido  uni  navio  com  gente  de  Manheim, 
que  tocara  n^um  baixo  do  canal  d'Inglaterra,  a  fro- 
ta chegou  ao  porto  de  Faro  (Ferrol?)  d^onde  os  cru- 
zados se  dirigiram  por  terra  a  visitar  o  templo  de 
Sanctiago.  Embarcados  de  novo,  levantaram  ferro,  e 
seguindo  ao  longo  da  costa  para  o  sul,  uma  furiosa 
tempestade,  que  inesperadamente  rebentou,  fez  espa- 
lhar as  naus.  O  condest;ivel  com  uma  parte  dVllas 
entrou  na  foz  do  Douro,  naufragando,  porém,  na  bar- 
ra duas  ou  três  embarcações,  em  quanto  o  conde  de 
VVithe,  correndo  com  a  procella,  vinha  demandar  a 
mesma  acolheita  (l ).  Finalmente,  serenado  o  mar, 
os  cruzados  velejaram  até  o  Tejo,  resolvidos  a  espe- 
rar nV-ste  porlo  alguns  navios  que  ainda  faltavam, 
descançando  entretanto  de  uma  viagem  em  que  com- 
mummente  se  gastavam  quinze  dias,  e  em  que  elles 
haviam  posto  mez  e  meio,  partindo  de  Wlaardingen 
a  29  de  maio,  e  chegando  a  Lisboa  a  10  de  julho  de 
1217   (2). 

Dissemos  no  livro  antecedente  (jual  fora  o  resulta- 
do da  invasão  de  lacub  no  Al-Gharb  ix!eidental  em 
1  l!)l.  Apesar  de  reconquistado  todo  o  território  aléiu 
do  Tojo,  os  sarracenos  tinham-se  contentado  com  for- 
tificar e  guarnecer  a  forte  Al-kassr-Ibn-Al>u-Dancs 
.ibandonando  os  desmantelados  eastellos  ao  norte  eno- 
rueste  do  Chetawir.  Os  chrislãos  tornaram  enl.io  a 
oceupar  successivaniente  aqucUc  districto,  e  a  reparar 
as  fortalezas  arruinadas.  Provável  é  que  o  recu[»era- 
las  custasse  mais  de  um  recontro  com  uma  ou  outra 
parlida  de  alniogaures  musulmanos ;  mas  os  monu- 
mentos são  mudos  a  tal  respeito.  Sabemos  só  que  <» 
liellicosos  spatharios  possuíam  de  novo  P.-ilmella  no 
anno  que  precedeu   a  morte  de  Sancho  I,   c  que  ahi 

(O  Godcfr.  Mon.  I.  cil.  —  Gosuini  Cármen  v.  33  —  54, 
pin  llr.mil.lo,  Mon.  I.iisil.  P.  4Ap|i.  !>,  e  mais  corrcclamcn- 
lo  no  livro  ili- S.  Boíivonlura:  •■  Cumiuenlarla  Of  Alcobaç. 
mss.lonim  Bihliolhoca.  A(i|ii'nii.  p.  I — VU.  "  O  leito  di* 
lioilffroilo  está  n'esla  ])arlo  o»  iilcntomonle  corrupio,  e  |>»r 
"isso  oKsciiro.  Ilhislr.im-n'o.  ponm.  ns  versus  ile  tiosnino. 

(í)  O  que  ili«enio.<  rrsnila  >!a  espécie  <lc  rolciro  que  » ■ 
lè  Ra  relaçilo  de  (íoilelredo.  Na  caria  do»  prelailos  |wrliiEUe- 
zes  ao  pa|>a  (llaiuald.  .td  anu.  ^  3i)  dii-><!  que  (vscrui.ijikc 
,:,';u<lHrRni  qualro  inejos  no  caminho,  lalvei  rcíerindo-$e  ao> 
que  decorreram  desde  a  parlida  dos  primeiros  navios  de  Co- 
lónia pelo  Ulieno  ahaixo,  ale  que  Ioda  n  frola  se  reuniu  no 
Tejo.  Klles  linhain  interesse  em  exafivrar  n'cfta  parle  a  sua 
narrativa  para  cap.icilíí'  Honório  III,  de  que  a  demora  dos 
cruiados  em  Lífboa  fOra  forçada. 


o  PANORAMA. 


171 


rosidia  eiitiio  o  ca{)itulo  <la  Ordem.  Era  Palmella  o 
ponto  mais  avançado  contra  Alí-accr,  e  Alcácer  o  mais 
terrível  padrasto  contra  o  projrcsbo  das  armas  chris- 
tãs  por  aquella  parte.  Govcrnava-o  um  capitão  illus- 
tre  por  tcloriosas  façanhas,  c  encanecido  no  exerci- 
cio  da  guerra,  Abu-Abdallah-Ibn-Wasir-Ach-Chelbi, 
aijuelle  mesmo,  segundo  parece,  que  era  li  89  susten- 
tara o  memorável  assedio  de  Silves,  e  que  ajudara 
Jacub  a  reconquista-la,  sendo  depois  escolhido  porAn- 
iiasir  para  o  tão  arriscado  quanto  importante  cargo 
de  wali  do  districto  deAl-kassr,  cuja  capital  era  co- 
mo a  chave  dos  territórios  meridionaes  do  Al-Gharb, 
o  tjue  por  isso  merecera  o  nome  de  K.assr-AI-Fetah 
(castello  da  porta  ou  da  entrada)  ( l ).  Tinham  n'elle  os 
freires  de  Palmella,  e  os  outros  homens  d'armas  que 
estanceavam  entre  Sado  e  'l"ejo,  um  incommodo  vi- 
sinho,  que  não  os  deixava  repousar.  Eram  contínuos 
os  combates,  e  tão  rejjetidas  as  entradas  para  levar 
gente  captiva,  que  corria  de  plano  ser  pensão  impos- 
ta n'aquelle  castello  o  enviar  cada  anno  cem  prisio- 
neiros christãos  ao  im|)erador  de  Marrocos.  N'eàta 
situação  violenta  se  achava  a  fronteira  de  sudoeste 
quando   a  armada   dos  cruzados  veio  fundear   no  Te- 

•Sueiro,  o  bispo  de  Lisboa,  era  nao  só  hábil  nego- 
ciador, como  .is  diligencias  em  Roma,  a  favor  (VX- 
fonso  II  e contra  as  infantas,  o  tinham  provado,  mas 
lamljpm  homem  enérgico,  e  por  ventura  mais  apto 
para  envergar  a  dura  couraça  de  soldado,  que  para 
tnijar  as  vestes  do  sacerdócio.  Achav.im-se  então  com 
elle  o  bispo  d'Evora,  oabbade  d(!  Alcobaça,  e  ocoiu- 
mendador  de  Palmella,  Martinho,  além  de  muitos 
cavalleiros  illustres,  e  vários  membros  da  ordem  do 
Templo  e  do  Hospital,  provavelmente  porque  a  no- 
ticia da  chegada  d^KiuclIa  numerosa  frota  eo  pensa- 
mento commum  de  se  valerem  d'ella  contra  os  sar- 
racenos os  altrahíra  a  Lisboa.  Sueiro  fez  uma  recep- 
ção magnifica  aos  cruzados,  que  n'elle  encontraram 
franca  hospitalida<le.  Pintou-lhes  depois  a  situação 
em  que  se  viam  as  fronteiras  visinhas,  e  ponderou- 
Ihes  que,  estando  tão  adiantado  o  estio  para  a  longa 
viagem  que  ainda  lhes  restava,  ell(.'S  poderiam  evitar 
um  ócio  vergonhoso  para  guerreiros  da  cruz,  e  ao 
mesmo  tempo  cobrir-se  de  gloria,  combatendo  contra 
os  infiéis  em  proveito  da  lilH^rilade  da  Pi^ninsula.  En- 
tendiam os  prelados  e  cavalháros  portuguezes,  que  o 
cerco  d<!  Alcácer  seria  empreza  digna  de  tão  nobres 
soldados,  |)or  se  ter  aquella  ]>raça  na  conta  do  chave 
e  anteinural  de  Ui(l;i  a  nioiirisnia  de  llcspanlia;  que 
parecia  have-los  Deus  trazido  errantes  tanto  Itíinpo 
]>el()S  inan'S  sií  para  (|iie  tivessem  de  invernar  em  Lis- 
boa, e  de  contribuir  |)ara  o  dcísaggravo  (la  fé;  que, 
linalinente,  <;  era  talvez  esle  o  melhor  argumento,  se 
Alcácer  lhes  eaíssc!  na»  mãos,  com  os  despojos  não  só 
tibteriam  vitualhas,  mas  tainbein  com  que  remir  as 
<K'spezas  da  expedição.  I''izeram  abalo  laes  razões  nos 
nnimoH,  sobre  tudo  nos  dos  condes  d<;  llollaiida  i'  de 
Withe,  ante  cujos  olhos  se  representava  a  dilTieulda- 
de  do  trajecto,  ea  inutilidade  da  sua  chegada  á  ter- 
ra sancta  n'a(pielle  anno,  si-ndo  certo  rpii!  o  impera- 
dor e  os  outro»  principe»  de  Alleinanha  com  aa  tro- 
pas germânicas  e  italianas  não  passariam  ainda  ao 


(I)     V.  o  T.  1  p.  398  nota  !  —  e  T.  S  p.  -15  nota  8. 

(8)  fiuiiH  oiiiliiiiiaii  triliiiliiliunL-K  et  aiiiro^liiiH  i-x  nimiu  vi- 
ciniii  Hurrariiiiiriiiii  ....  <-v|>i>iii'liiuil  ....  Iiiiciualriiin  iii  piMi- 
HÍunir  (3.  ('Iirisliiiiiiiriiiii  sim  r<'KÍ  il>-  Miirrocli  iiíiii;uIIb  nniiÍ!i 
farr  iibll;,'aliiiii  :  (jdilrlr.  AIdii.  p.  IinS. 

CHilrmii  «iiper  omniu  cniitrn  iiociviim 

r'Miilri'iisi'Mipii-  811(1  ri';;i  diiiil  (IIKiIiIhI  iiiiiin 
Ceiíliiiii  cliriHlIcoliiH :  ikiIvíiikih  i^lii  ipiidcni. 
Qoiuiiii  funiKii  V.  (i3,  CU,  7o. 


oriente.  Resolveram  ficar.  Havia,  porém,  muitosque 
reluctavam,  eadiscordia  rebentou  entre  os  cruzados. 
Vinha  a  principal  opposição  dosfrisões,  que  insistiam 
em  seguir  avante,  e  que,  não  pcxlendo  resolver  os 
companheiros  a  continuar  a  viagem,  pela  maior  par- 
te saíram  do  Tejo  com  mais  de  oitenta  navios.  Das 
duzentas  e  tantas  vellas,  reunidas  em  Wlaardingen, 
algumas  não  chegaram  a  sair,  ou  logo  retrocederam  : 
outras  tinham  ido  a  pique  ou  dado  á  costa  no  tem- 
poral. Com  a  partida  de  mais  de  oitenta,  a  armada 
surta  no  Tejo  ficava  reduzida  a  cem  transportes.  Era, 
por  tanto,  com  o  auxilio  d'estas  forças  que  se  podia 
emprehender  a  arriscada  tentativa  de  .\lcacer  (l). 

Os  dois  prelados  começaram  então  a  pregar  a  cru- 
zada contra  os  infiéis,  'lodo  Portugal  se  agitou  a  es- 
te brado  de  guerra  nacional,  que  parecia  ter  emmu- 
d(!CÍdo  para  sempre,  afogado  debaixo  das  lousas  que 
cobriam  o  cadáver  de  Sancho  I  e  o  de  seu  pai.  Os 
mestres  das  ordens,  o  abbade  de  Alcobaça  e  outras 
pessoas  iniluontes  (2)  procuravam  pelo  reino,  e ainda 
fora  dVlle,  ajunctar  homens  (Parnias.  Não  eram  vãos 
esforços  :  muitos  corriam  a  alistar-se  tomando  a  cruz 
vermiflha  :,  eos  reis  de  Hí'spaiiha,  aproveitando  a  fer- 
mentação dos  espíritos  e  o  exenijilo  de  Portugal,  pre- 
paravam-«e  para  quebrar  a  um  tempo  as  tréguas  com 
os  sarracenos.  Entretanto  os  condes  deHoUanda  e  de 
Withe,  saindo  da  barra  de  Lisboa,  penetravam  na 
foz  do  Sado.  Desagua  aquelle  rio  no  oceano  por  uma 
profunda  bahia,  que  se  em  grandeza  não  iguala  a  do 
Tejo,  iguala-a  por  certo  em  bondade.  As  aguas  do 
mar  rompendo  pelo  rio  acima  até  além  de  Alcácer 
formam,  não  diremos  um  porto  continuado,  mas  um 
canal  ex(!ellente  ede  bastante  extensão,  por  onde  po- 
dem subir  navios  de  mediano  porte,  e  que  no  século 
XIII  devia  ser  ainda  mais  facilmente  navegável.  Ca- 
minhavam por  terra  ao  mesmo  tempo  os  bispos  de 
Lisboa  e  de  Évora,  o  commendador  de  Palmella  com 
os  seus  freires,  e  vários  fidalgos,  formando  uma  lus- 
trosa companhia  de  gente  escolhida,  posto  que  pou- 
quíssimo numerosa  (.'i).  Chegados  os  estrangeiros  as 
immedíaç(l(>s  de  Alcácer  (30  de  julho),  romperam  as 
hostilidades.  Devastadas  as  vinhas  que  rodeavam  a 
povoação,  c  repellídos  alguns  almogaures,  que  pre- 
tendiam escaramuçar,  os  cliristãos  acamparam  próxi- 
mo dos  muros,  e  alli  (esperaram  quatro  dias  que  os 
portuguezes  chegassem.  .\  3  de  agosto  estavam  junc- 
tas  todas  as  for(;as.  Cuidou-se  logo  no  assalto.  A  ar- 
mada achava-se  a  colx-rlo  dos  tiros,  e  por  isso  a  al- 
guma distancia,  mas  os  arraiaes  tínhani-se  assenta- 
do tão  perto,  que  os  musulmanos  não  podiam  sair, 
sem  grande  risco,  do  âmbito  d;is  muralhas.  Abrangia 
elle  duas  ordens  de  f()rtirica(j("ies,  ladeadas  de  muitas 
torres,  dilTiccis  de  commetler  por  cercarem  a  cortVi 
de  um  monte  despenhado,  onde  ainda  hoje  as  ruínas 
(pie  d'ellas  restam  causam  assombro  e  involuntário 
temor  a  quem  as  contempla  de  f(íra.  Marcharam  os 
sitiadores  á  escala  ;  os  llgueíraes  e  olivcdos,  (pie  ro- 
deavam a  nobre  ])ovoação  e(uiio  um  cinto  do  verdura, 
caíram  aos  «rolpes  dos  machado»,  econvertidos  em  ins- 
trumento»  de  guerra  serviram  para  entulhar  o.s  tos- 
sos.    Foi  bravo  o  combate ;    mas  os  sarnicenos  incen- 

(1)     300  niivcs  pr^parnvil,  qnariim  yiincí/niii  ríHi(iH»<TM»il  .* 

qiitiiilnm  iii  tcnip('»lal(!  piriírioil ;  scd  major  purs  pcrvcnit 
tllivlieiiain  :  Olivcrii,  llisl.  Damial.  Inc.  cil  — Mnciin  .  .  . 
cnm  riiiliim  iiiivitiiis  faccrciiuis ;  l.illcr.  Coinilis  llulland. 
Il"iiiir.  Ill,  ii|iiid  llayinild.  ad  imri.  ^.  .'t:». — Jacidi,  a  Vi- 
Iriacii,  Ihsl.  Oricnialia  I..  3  ((i.slii  Dei  piT  Tram-os  p. 
ia;il),— (liidrlV.  Mi.ii.  l.cil.  — (ioMiiiiiCariiii'»,  v.  .'>:>— !M). 

{1)  (Ir  niȒiinlilvns  ic^Mionim  piiiliicalciisia  i-l  lc;;ii>ii('iuis  : 
Lillcr.  Piaclalor.  Ilnii.  Ill,  apiid  Hiiviiald.  ad  ami.  ^.  33. 

(31  on III  nua  de  rcgiio  Pmldgaliai' csKcmu»  .  . .  pnucisíi- 
mi  :  llúd. 


172 


O  PANORAMA. 


diaram  as  fuchinas,  e  aquella  inútil  tentativa  só  ser- 
viu para  \ã  prova  de  esforço  com  mortes  de  parte  a 
parte.  Então  comejaram  a  trabalhar  as  macliinas  de 
guerra,  ao  mesmo  tempo  que  os  gastadores  christãos 
abriam  iiiinus  e  os  musulmanos  as  contrarainavani. 
Alluida  pelos  tralialhos  subterrâneos  e  pelos  tiros  dos 
engenhos,  uma  das  torres  veio  por  fim  ao  chão  :  mas 
liem  por  isso  licou  aberta  passagem,  porque  a  parede 
interior  d  ella  estava  intacta,  e  o  sangue  continuou 
a  ser  inutilmente  derramado  (I). 

Apenas  correra  voz  da  vinda  dos  cruzados  edaem- 
preza  que  se  delineava,  Abu-Abdallah  enviara  men- 
sageiros aos  outros  walis  do  Andaluz  para  que  se 
apressassem  a  soccorrer  aquella  praça,  de  cuja  perda 
ou  conservação  dependia  em  jiarte  a  sorte  futura  das 
enfraquecidas  e  cada  vez  mais  limitadas  províncias 
da  Ilespanha  musulmana.  A  defeza  do  império  e  a 
própria  segurança  incitavam  os  chefes  sarracenos  a 
darem  attento  ouvido  ás  supplicas  do  esforçado  vvali, 
e  se  acreditarmos  um  dos  mais  graves  historiadores 
árabes,  o  próprio  El-Mostanser,  a  quem  fora  commu- 
nicada  a  noticia  da  perigosa  situação  de  Alcácer,  deu 
terminantes  ordens  aos  seus  walis  echeiks  na  Penín- 
sula para  voarem  em  auxilio  d' Abu-Abdallah  (2). 
De  feito,  não  só  o  governador  do  districto  de  Bada- 
joz marchou  com  as  tropas  do  Al-Gharb,  e  o  de  Se- 
vilha, Cid-Abu-Ali,  com  as  da  província  que  regia, 
mas  também  os  walis  de  Jaen  e  de  Xerez  com  a  ca- 
vallaria  de  Córdova,  e  os  cheiks  de  Sidónia,  Ecija  e 
Carmona  (3).  Este  numeroso  exercito  avançou  ines- 
peradamente até  as  immediações  de  Alcácer,  fazendo 
alto  a  uma  légua  de  distancia  dos  sitiadores.  Calcu- 
lavam-se  as  tropas  musulmanas  em  quinze  mil  ho- 
mens de  cavallaria  e  quarenta  mil  infantes,  e  o  te- 
mor de  que  se  possuíram  os  cruzados  ao  receberem 
•iquella  nova  augmentava  a  grandeza  do  perigo.  Co- 
meçaram, porém,  n'esse  dia  a  chegar  soccorros,  e 
niais  trinta  e  dois  navios,  ou  portuguezes  ou  de  al- 
guns dos  cruzados  dispersos  pelo  temporal,  entraram 
no  Sado.  Redobrou-se  de  vigilância :  guarneceu-sc  a 
armada,  e  construiram-se  vallos  e  fossos  em  volta  do 
arraial.  Todavia  o  susto  fazia  ahi  seu  oflicio,  e  mui- 
tos propunham  a  retirada,  com  o  pret<'Xto  de  que  o 
primitivo  destino  d'aquella  expedição  fora  o  libertar 
o  sepulchro  do  Uedempfor,  e  de  que  só  na  Palestina 
30  podiam  cumprir  os  votos  que  se  tinham  feito.  Fe- 
lizmente no  meio  da  inquietação  dos  aiiimos  o  auxi- 
lio seguiu  de  i)erto  o  perigo,  e  a  contiança  o  temor. 
Toda  a  cavallaria  christã  não  passava  de  trezentos  ho- 
mens \  mas  n'essa  noite  chegaram  ao  campo  não  só 
cxcellente  peonagem,  forte  ebem  armada,  mas  tam- 
Ix;m  o  mestre  do  Templo,  Pedro  Alvitiz,  com  os  seus 
freires,  hospitalarios,  e  muitos  fidalgos  de  Portugíd 
e  de  Leão.  Eram  ao  todo  quinhentos  cavalleiros,  a 
que  se  devem  ajunctar  os  homens  d^armas  que  cos- 
tumava trazer  eorasigo  ás  batalhas  cada  rico  homem 
ou  infanção.  Cobraram  assim  animo  os  cruzados  pa- 
ra proseguir  no  cerco,  e  os  portuguezes  prcpararam. 


(1)  Godefr.  Mon.  I.  cit.  — Gosiiini  Cármen  v.  91  —  112. 

(2)  Assaloli  |>.  267. 

(3)  Conilu  P.  3.  c.  ú6 Conde  faz  do  caslollo  do  .al- 
cácer e  d.-i  siiu  tomada  dois  cnstellos  e  dois  íiiclos  diíTorcnlcs. 
—  Esta  parlo  du  Historia  tio  Domínio  Arabi ,  coordenada 
depois  dii  morto  do  aiiclor,  é  aponas  a  serio  dos  apontamen- 
tos coltiidos  por  1'lle.  A  sua  conrusrio  nasceu  provavolmoute 
de  tor  foilo  extractos  de  dons  liistoriadores  diversos,  nm  dos 
qiiaes  diMiominoii  Alcncor  hassr-.lliii-Dtmts,  e  outro  hassr- 
n/-/t7rt/i.  ApprovoitAmus,  lodiiiia,  da  sua  narrativa  ns  cir- 
cnmstancias  que  faltam  um  Assali'li,  n'ostn  parto  demasiado 
lacónico,  c  que  oní  geral  concordam  com  a  reiaçiSo  iU  mon- 
ge Godefredo,  c  com  a  carta  do»  prelados  porlujiieies  no 
l>a|ia. 


se  para  combater  os  sarracenos,  que  pretendiam  fa- 
ze-lo  acabar. 

Havia  quasi  mez  e  meio  que  Alcácer  estava  sitia- 
da. A  vinda  das  tropas  do  .\ndaluz  fora  a  10  de  se- 
tembro, e  os  auxiliares  christãos  haviam  chejado  ao 
campo,  como  dissemos,  n'essa  mesma  noite.  Na  ma- 
drugada do  dia  1  1  os  trezentos  cavallos,  que  desde  o 
principio  tinham  assistido  ao  assedio,  saíram  como 
exploradores,  e  approximaram-se  dos  arraiaes  musul- 
manos. Observaram  tudo  :  por  uma  grande  distancia 
o  solo  desapparecéra  coberto  da  multidão  d'infieis. 
Perceberam  estes  a  cavallaria  que  os  atalaiava,  e  le- 
vantando o  clamor  de  combate  correram  a  persegui- 
la.  Esperaram-n'os  a  pé  firme  os  valentes  homens 
d'arraas,  e  alli  mesmo  se  travou  uma  brava  escara- 
muça. Não  podia  ser  duvidoso  o  resultado :  eram  um 
contra  cem.  Os  cavalleiros  portuguezes  foram  obriga- 
dos a  recuar.  Lançando  os  escudos  ás  cosLas  para  se 
ampararem  dos  golpes  e  tiros  dos  sarracenos,  vieram 
á  rédea  solta  precipitar-se  no  acampamento,  perse- 
guidos pelo  exercito  inimigo,  que  immediatamente 
marchara.  Entre  tanto  os  quinhentos  cavalleiros,  che- 
gados n'essa  noite,  montavam  a  cavallo,  e  vendo  aj>- 
proximar  os  sarracenos  prepararam-se  para  romper  a 
batalha.  Deviam  ser  na  maior  parte  templários,  por- 
que esta  ordem  era  talvez  a  mais  numerosa  de  todas, 
e  porque  debaixo  do  mando  do  mestre  dos  três  rei- 
nos de  Hespanha,  Pedro  .\lvitiz,  ahi  se  achavam  reu- 
nidos aos  freires  de  Portugal  muitos  de  Leão  e  Cas- 
tella(l).  A  severa  disciplina  da  ordem,  as  solemni- 
dades  com  que  entravam  nas  batalhas  produziam  ne- 
cessariamente o  enthusiasmo  n'esses  ânimos  em  ge- 
ral esforçados,  e  n'aquelles  que  os  viam  a  seu  lado. 
Os  esquadrões  do  Templo,  ao  formarem-se  para  a  ba- 
talha, guardavam  profundo  silencio,  que  só  era  cor- 
tado polo  ciciar  do  babão  bicolor  (negro  e  branco)  que 
os  guiava  despregado  ao  vento,  e  dos  longos  e  alvos 
mantos  dos  cavalleiros  que  se  agitavam.  A  voz  do 
mestre  ura  trombeta  dava  o  signal  do  combate,  e  o» 
freires,  erguendo  os  olhos  ao  céu,  entoavam  o  hvm- 
no  de  David  :  Aão  a  nós,  Senhor,  não  a  nós .'  mat 
dá  gloria  ao  ttu  nome!  —  Então,  abaixando  as  lan- 
ç;is  e  esporeando  os  ginetes,  arrojavam-se  ao  inimi- 
go, como  a  tempestade  envoltos  em  turbilhões  de  pó. 
Primeiros  no  ferir,  eram  os  últimos  cm  retirar-se 
quando  assim  lh'o  ordenavam.  Desprezando  os  com- 
bates singulares,  preferiam  aceonimetter  as  columnas 
cerradas,  e  p;ira  elles  não  havia  recuar  :  ou  as  dis- 
persavam, ou  morriam.  .\  morte  era,  de  feito,  mais 
bella  para  o  templário,  que  a  vida  comprada  com  a 
covardia.  Bastava  que  não  attingisse  ao  tvpo  de  va- 
lor humano,  como  os  velhos  guerreiros  da  ordem  o 
concebiam,  para  ser  punido  por  fraco.  A  cruz  verme- 
lha, distinctivo  da  corporação,  com  o  manto  branco 
sobre  que  estava  bordada,  tirava-se-lhe  ignominiosa- 
mente, e  clle  ficava  separado  dos  seus  irmãos  como 
um  empestado.  Obrigavam-n'o  a  comer  sobre  o  chão 
nú  :  não  lhe  era  licito  o  desforço  das  injuri.-is,  e  nem 
sequer  castigar  nm  cão  que  o  maltract.asse.  Si>  depois 
de  um  anno,  se  o  capitulo  julgava  a  cul))a  expiada, 
o  desgraçado  cingia  de  novo  o  cingulo  militar,  para 
ir,  talvea,  na  primeira  batalha  afogar  no  próprio  san- 
gue a  memoria  de  um  anno  de  alTroutas  cde  suppli- 
cio  (2). 

Q.ual  seria  o  estado  intellectual  de  bomcus  habi- 


I 


(11  e  fueron  alia  do  Porliiiral,  c  lo.»  Frerres  de  lo»  otrv>j 
rcgnos ;   Annal.  Toloil.  I  xii  «nn.  p.  400. 

(S>  Voja-so  a  oloipionle  doscripção  doi  TompLirioí  poi 
Jncot)  do  Vilriaco  no  li\.  3."  d»  Historia  Orientsl,  q»o  os 
m.iuriensos  jnlr.im  ser  o  irrnuinú,  cm  Martene,  Theianr. 
Anecdot.  T.  3  p.  276  c  277,  e  nai  obm  de  S.  Bernardo  .-> 
Erhortatio  ad  Mililtt  Tenpli. 


o  PANORAMA. 


173 


tuados  á  exaigeração  de  tal  disciplina,  fácil  é  de 
imaginar.  As  outras  ordens  imitavam  mais  ou  me- 
nos os  templários  \  dominavam-n'as  as  mesmas  idéas, 
o  mesmo  enthusiasmo  ardente,  e  tanto  mais  arden- 
te, quanto  mais  as  instituições  que  as  regiam  recal- 
cavam todas  as  tendências  suaves  do  coração  debaixo 
de  formulas  severas  e  tristes.  No  acampamento  junc- 
to  a  Alcácer  os  freires  das  três  ordens  rivaes  —  Tem- 
plo, Hospital,  Sanctiago  —  achavam-se  reunidos:  ti- 
nham de  ser  julgados  uns  pelos  outros  ^  tinham  de 
se  julgar  mutuamente;  e  nunca  mais  op|)urtuna  oc- 
casião  se  lhes  oiferecèra  de  vencer  com  gloria  ou  de 
perecer  nobremente.  Estavam,  segundo  parece,  já 
além  do  rio  :  a  febre  dos  combates  exaltava  os  âni- 
mos até  o  delirio,  e  ao  erguerem  os  olhos  ao  ceu  pa- 
ra a  invocação  da  partida,  aligurou-se-lhes  vêr  na 
immensidão  do  espaço,  a  uns  uma  cruz  brilhante,  a 
qual  offuscava  as  estrellas  que  se  immergiam  no  al- 
vor da  manhã,  a  outros  um  estandarte  em  que  a 
mesma  cruz  se  desenhava.  Não  havia  que  duvidar 
da  victoria :  era  Deus  que  a  annunciava  (t). 

(Cot^linúa.) 


AVENTUn.£IR03  SABOIAIMOS. 


A  Saiioia,    incorporaila  no  reino  da  Sardi-idiu  é  um 

1)aÍ7,  de  aspc^ras  nKiiilanljas,  silij.ido  eiilre  a  Suissn,  a 
''rança,  eo  1'ienHiiite  ;  osscus  habilaiilc»  geralmente 
são  pobres,  porém  indnstrioHiw  e  tiabjMiadiires,  de 
condirão  pacifica,  Iractavcl  e  liiiniaiia,  i'  ilolados  de 
probidade.  Aunimlniciiliísáeni  ilo  meio d'a(|ui'llas ser- 
ras nuiitos  dos  seus  nalura(!s,  (jU((  não  piMlcni  alcan- 
çar meios  dl-  subsisliMiciu,   (!  se  derramam  pelos  pai- 

(I)  l)ii  cnrln  >l<is  pn-lniloii  edo  iidiiim  clcíiinuim)  ilrdiii- 
•1!  (|uii  iiu|i|iiirii;i1i>  Tui  ili'  initilni|;mlii,  piislii  i|ui'  n  iiiiiii^'i'(i<i- 
ili'fi'u(lo  alliriiic  liir  sulu  iia  vcMpcra  i'i  iimli'.  A>|iir'lla8  iiiiclo- 
riiliiclc»  HÍId  preliTiiri»,  iUíÍ  |iiiri|iie  irc»ai!  iiiuiiiimiIh  ilf  erisi; 
!•  lie  exi-iliiçAii  mor.il  iTii  iniii.'i  lai'il  a  llliisiíu-  O  iiiiclnr  ila 
lllatonn  Daniiulauii,  liiiiilifiii  ti'sliiiuiiiliii  ocular,  ^'iiiililu  ti- 
liriiciu  iircTca  <r<']ilr  iiiiliaTc. 


zes  circumvisinhos,  nomeadamente  pela  França,  on- 
de practicam  toda  a  casta  de  misteres  para  ganhar  a 
vida;  eesta  emigração  ou  é  periódica,  voltando  á  pá- 
tria de  tempos  a  tempos  a  repartir  com  as  familias 
o  fructo  do  trabalho,  ou  se  demoram  os  mais  afortu- 
nados tempo  bastante  para  ajuuctarem  com  que  com- 
prar algumas  courelas  na  terra  natal,  quasi  á  manei- 
ra dos  gallegos,  que  teem  em  Portugal  as  suas  minas 
para  accrescentar  ou  fazer  seu  património.  O  mais 
singular,  porém,  dossaboianos  é  que  asiamilias,  não 
tendo  alimento  nem  occupação  para  os  rapazes,  põem 
a  correr  mundo  as  creanças,  á  ventura,  e  sem  mais 
recursos  que  um  pobre  fatinho,  uma  broa  para  três 
ou  quatro  dias,  e  ás  vezes  um  pandeiro,  ou  tambori- 
nho,  uma  marmota  industriada  a  fazer  macaquices, 
pequeno  quadrúpede  dos  Alpes,  que  se  domestica 
com  facilidade  \  e  então  começam  a  vagar  pelos  po- 
vos das  planícies,  cantando  suas  trovas  e  recebendo 
as  mialhas  dacharidade.  Outros  associam-se  a  algum 
que  teve  a  felicidade  de  alcançar  um  tablado  porta-' 
til  com  titeres  ou  bonecos  dançantes,  que  embasba- 
cam a  gente  das  aldeias,  á  moda  do  polichinella,  e 
rendem  para  os  aventureiros  rapazes  o  suado  pão 
quotidiano;  iim  d'estes  grupos  representa-se  na  gra- 
vura. Os  limpa-ehaminés  são  rapazes  saboianos  ;  ou- 
tros limpam  e  engraxam  botas  em  Paris  nas  praças 
e  encruzilhadas ;  em  summa,  estas  e  diíferentes  obras 
servis  são  os  seus  empregos ;  e  como  a  Índole  é  boa, 
e  a  criação  familiar  os  fez  cortezes  e  fieis,  por  toda  a 
parle  são  acolhidos  e  bem  tractados  :  não  poucas  ve- 
zes alguns  teem  chegado  a  adquirir,  no  decurso  do 
tempo,  e  passando  a  officios  e  prolissucs  lucrativas, 
as  commodi<lades  da  vida  abastada,  e  até  riquezas. 
—  Além  de  recommendaveis,  geralmente,  por  aquel- 
las  boas  qualidades,  a  natural  esperteza  e  agilidade 
lhes  grangeia  a  bemquerença  das  pessoas  que  ser- 
vem. Voltam  muitos,  como  dissemos,  aos  lares  pa- 
ternos, e  alguns  permanecem  na  pátria  adoptiva. 


Mahomet  ou  Mafoma. 

(Couliiiiiado  de  pag.  160.") 

Muitas  pass.igcns  ilo  Koran  provam  que  .Maliomet 
tinha  o  dom  da  elo(|U<'ncia.  .\s  suas  acções  revelam 
que  elle  olhava  a  religião  como  um  meio  politico  de 
lograr  os  seus  intentos.  Km  cada  ciicunistancia  da 
vida  fazia  baixar  do  céu  máximas  (|Uo  attribuia  a 
Deus;  o  por  isso  se  pôde  formar,  só  com  o  auxilio 
do  Koran,  uma  iiléa  das  epochas  mais  imporlanii'» 
da  vida  do  |)rophefa.  Os  próprios  doutores  muçulma- 
nos sanccionaram  esta  verdade,  indicando  por  baixo 
de  cada  versículo  o  successo  em  que  se  funda,  l  ii:a 
cousa  u  que  Mahomet  nunca  laltava  era  reve^tir  lo- 
dos os  passos  <l'um  caracter  religioso;  comprazia-se 
j)rineipalm('nte  em  piW  em  seena  os  prophetas,  ile 
quem  se  dizia  successor.  Durante  uma  trabalhosa 
marcha,  como  os  simis  companheiros  mostrassem  can- 
saço, fez-lhes  repiitir  uma  oração,  o  depois  aicreseen- 
tou  :  iiOslilhos  lie  Israel  padeceram  no  deserto  as 
mesmas  fadigas  (pie  vos  padeceis,  e  faUoii-llies  o  re- 
frigc^rio  <ruma  oração  como  esta.  "  (Guando  o  seu  ir- 
mão eolhii;o  llie  veio  pedir  pi-rdão  de  se  ter  iiivlama- 
do  mais  eloijuciite  do  (|U<!  elle,  Mahomet  re^polldeu 
pelas  mesmas  palavras  que  José  disse  a  seus  irmãos  ; 
udiie  entre  mim  e  vós  não  haja  hoje  (pieixas ;  Deuv 
vos  perdoa,  porque  Deus  é  o  mais  misericordioso  dov 
miseiicordiosos.  "  Por  fim  conseguiu  fascinar  as  tur- 
bas a  ponto  (jiie  chegaram  a  crè-lo  isento  de  pcoi'a- 
dos  mesmo  os  mais  leves,  apesar  d'i'lli>  não  se  ler 
dcMMildado  de  pedir  a  Deus,    em  diversos  logarc».  do 


174 


O  PANORAMA. 


Koran,  lhe  remittisse  as  suas  faltas  •,  e,  nos  nossos 
dias,  a  opinião  da  sua  impoccabilidade  quasi  se  con- 
\<Tteu  em  doc;ma  religioso.  Maliomet,  a  exemplo  dos 
jud('us,  serviu-sn  primeiramente  de  uma  trombeta  ou 
d'uma  husina  para  chamar  os  seus  discípulos  á  ora- 
ção:,  mas  (it-pois  usou  d'uma  matraca  como  os  chris- 
tãos.  Achando  que?  nenhum  d'estes  meios  correspon- 
dia á  magcstade  do  Allissimo,  decidiu  que  só  a  voz 
humana  era  digna  d'('->te  sancto  ministério. 

Mr.  UíMnaud  puljlicou  a  versão  franceza  da  ins- 
cripção  árabe  d'uma  espécie  de  medalhão  em  que  se 
acham  traçadas  as  formas  corpóreas  de  !Mahomet. 

"Em  nome  de  Deus  clemente  e  misericordioso; 

li  EUe  era  bem  proporcionado ;  a  sua  tez  era  mui 
alva-,  exhalava  um  cheiro  agradável;  tinha  as  so- 
brancelhas bem  divididas;  os  seus  cabellos  tiravam 
para  o  branco. 

"Tinha  o  fundo  dos  olhos  azul,  testa  larga,  orelhas 
pequenas,  nariz  aquilino  e  dentes  bem  talhados. 

nOseu  rosto  c  barba  eram  redondos,  as  mãos  com- 
pridas, os  dedos  delgados,  a  cintura  grossa,  &c.  Kn- 
tre  as  duas  espáduas  tinha  o  sello  da  prophecia,  em 
que  se  liam  estas  palavras:  "\ai  onde  quizeres,  se- 
rás V  ictorioso )'  ( I ) . 

Os  musulmanos  estão  persuadidos  de  que  os  que 
trazem  comsigo  alguma  descripção  do  corpo  do  pro- 
pheta  gosarão  de  notáveis  privilégios ;  citam  as  pa- 
lavras seguintes  de  Mahomet :  4'  Aquelle  que,  depois 
de  eu  não  viver,  lêr  a  descripção  do  meu  corpo,  é 
como  se  me  visse  a  mim  mesmo ;  e  a  quem  quer 
<pje  olhar  para  ella  por  amor  de  mim.  Deus  o  livra- 
rá do  fogo  do  inferno ;  até  será  livre  da  pena  do  se- 
])ulchro,  e,  no  dia  da  resurreição,  não  apparecera  nu 
cm  pello. "  O  nome  do  fundador  do  islamismo  é  tão 
venerando  para  os  orienfaes,  (jue  era  Constanlinopo- 
la,  quando  o  estado  periga,  escolhe  o  sultão  noventa 
e  dois  musulmanos,  que  tenham  o  nome  de  Moha- 
nied,  e  os  encarrega  de  recitar  certos  capítulos  do 
Koran,  com  a  esperança  de  que  as  supplicas  de  ho- 
mens que  teem  um  nome  tão  sancto  hão  de  preser- 
var o  império  da  sua  ruina. 

Resta  considerar  o  propheta  no  seu  procedimento 
com  os  christãos.  Na  orig(!m  do  seu  poder,  Maho- 
inet,  quer  por  disposições  verdadeiras  de  tolerância, 
<|uer  por  uma  hypocrisia  fina  e  calculada,  mostrou- 
se  favorável  aos  discipidos  do  christianisnio,  e,  para 
garantir  o  exercício  do  seu  culto  na  Arábia,  con- 
cluiu com  ellcs  um  tractado.  Este  tractado,  traduzi- 
do em  latim,  foi  impresso,  o  texto  c  traducção,  em 
1050,  com  este  titulo:  Tcstametitum  et  Pacfioncs 
iiiitcv  inter  MithomeJJum  et  chtistiancc  fidei  cultores. 
E  principalmente  digna  de  reparo  a  passa<;em  se- 
guinte: i.  Prometto  proteger  os  christãos,  defeude-los 
contra  os  seus  inimigos,  conservar  as  suas  igrejas, 
templos,  oratórios,  conventos,  e  logares  onde  fazem 
as  suas  romarias,  quer  sejam  situados  nas  montanhas 
ou  nos  vallcs,  nas  cavernas  ou  nas  casas,  nos  campos 
ou  nos  desertos,  na  terra  ou  no  mar,  no  oriente  ou 
occideute,  da  mesma  maneira  que  me  conservo  a 
mim,  e  que  conservo  os  crentes  lieis v  [U).  Ah!  com 
I)  andar  dos  tempos  mudou  Jlaliomet  inteiramente 
de  linguagem  I  Fez  leis  terríveis  contra  os  christãos; 
(!  no  Koran,  no  capítulo  do  Combate,  escreveu  estas 
palavras,   que  os  árabes  sempre  lêem  antes  de  se  ap- 

(0  Vide  a  cxplicaçilu  miiitla  cresta  inscripção  no  traba- 
lho lie  Mr.  Rcinanil  ácerci  ilos  Monumentos  árabes,  persas, 
.Vc.  tom.  -.*  pitg.  77  (•  si';:iiiiiU's. 

(S)  Alfiiins  cscri|ilorcs  qiirn-m  qnp  este  Inictado  seja 
:i|iucryplio,  oiilros  historiailoros  refutaram  e,<la  opini.'to.  Rei- 
iiaud,  i|Lie  é  do  numero  dos  últimos,  pnlilicoii  o  tractado, 
acompanhado  de  multas  rellexòes,  nu  sua  Historia  do  Impe- 
lio  UttomiiJio,  tuui.  1.°  p.tg.  1U'J. 


presentarem  no  campo  da  batalha.  »  Quando  vos  en- 
contrardes com  os  infiéis  cortai-llies  a  cabeça,  ma- 
tai-os,  exterminai-os,  e  não  cesseis  de  os  perseguir 
até  que  sejam  dispersados  e  vencidos. « 

N 'outros   artigos   se   fará   a   analise   succinta   e  o 
exame  do  Koran. 


O    A  ESCVIO. 

(Continuado  de  pag.  Iõ8.) 

Deixando  á  esquerda  o  eremitério  continuámos  a 
nossa  digressão  por  um  caminho  assaz  plano,  ijne  cos- 
teia o  morro  de  Somma  ao  norte  do  Vesúvio.  Entre 
os  dois  montes  ha  um  pequeno  valle  que  tem  o  nome 
de  átrio  dei  cavatlo.  Este  torrão  criava  outr'ora  ar- 
vores e  plantas,  e  até  oíTerecia  pastagem  ás  cavalga- 
duras dos  viajantes,  porque  era  alli  que  se  apeavam  : 
depois  da  erujjção  de  I6.',0  toda  a  vegetação  desap- 
parcceu.  A  estrada,  que  seguimos,  para  assim  dizer 
não  é  senão  um  canal  formado  por  duas  correntes  de 
lava  das  etupçõcs  de  1021  e  1322  :  á  es<)uerda  estão 
dois  montículos  cónicos,  únicos  que  ficaram  dos  sei» 
formados  em  1020  (1).  A  final,  em  vinte  minutos 
chegámos  á  base  do  cabeço  do  volcão,  parto  a  mais 
difficil  da  nossa  subida.  ^lediudo  com  a  vista  a  dis- 
tancia que  nos  separa  do  cimo,  parece  que  um  quar- 
to de  hora  bastará  para  lá  chegarmos :  por  isso,  ao 
partir,  nos  apressurámos  firmando  os  nossos  liordões 
em  meio  de  cinzas.  Subimos  a  correr  os  primeiros 
dez  passos,  mas  este  fervor  estancou-se  logo :  o  morro 
é  qu.asi  a  pique;  o  chão  é  um  cinzeiro  fino  e  escor- 
regadio que  se  escoa  por  debaixo  dos  pés,  como  para 
nos  im[)ellír  longe  de  uma  paragem  inimiga  de  quan- 
to tem  vida:  para  avançar  um  passo  é  necessário  dar 
dois.  —  O  guia  recommeuda-nos  procurar  os  sitios 
onde  são  mais  numerosas  as  escorias ;  ahi  encontra  o 
pé  ura  apoio  mais  solido ;  mas  tamisem  algumas  ve- 
zes a  pedra  despega-se  e  roda  aos  saltos  até  a  raiz  do 
monte  :  desgraçado  do  que  encontrar  na  passagem  ! 
—  Em  breve  nos  cáe  da  testa  o  suor,  a  respiração  se 
torna  mais  ciirta  e  rápida,  c  entra-nos  pela  garganta 
uma  cinza  fina  c  sceca  que  no-la  difticulta  mais: 
rasgam-nos  os  pés  as  escorias  que  entram  nos  sapa- 
tos, que  tivemos  a  feliz  lembrança  de  amarrar  cora 
íitas  ás  pernas.  Esfalfados  nos  assentámos  u*um  tn>- 
ço  de  basalto  que  o  volcão  vomitara.   Abaixando  os 

(1)  Em  1820  alirlram-sc  no  toIc.Io  oito  boccos  ao  mes- 
mo tempo,  i|ue  vieram  a  ser  outras  tantas  crateras,  duas  no 
interior  do  cone  principal  cseis  no  exterior:  em  \SiÍ  abriu- 
se  nona  e  logo  uma  torrente  dirigiu-se  para  Rcsin.i.  pa.<san- 
ilo  por  cima  da  lava  de  1010.  N'este  anno  houve  duas  erup- 
çues.  ou  para  melhor  dizer  a  de  janeiro  niio  foi  m.iis  do  que 
preludio  lia  outra  em  outtdiro:  em  20  d'csle  niri  st*nliram-se 
abalos  de  tremores;  a  St  ferveu  a  lava  c  precipilou-se  em 
duas  correntes  sobre  Résiaa  ;  á  meia  noite  enormes  jorros 
de  fogo  repuxam  nos  ares  a  mais  tle  tiois  mii  |h''S  d*aUura.  A 
a  ao  meio  dia  ele\a-$o  uma  columna  de  fumo  a  desmedida 
alt\ira,  dilatanúo-se  em  fúrma  de  cliapi'ii  de  sol;  diversas 
corrente»  ile  lava  ameaçaram  Porliei  e  Bosto-trt-case.  A  S7 
torrentes  d'a;ua  carrearam  as  cinzas  e  alagaram  o  território 
visinho.  Parecia  arder  a  natureza:  caíram  em  Nápoles  chu- 
veiros de  cinz.is  duas  veies  no  inter\allo  de  oito  dias;  da 
primeira  vez  eram  vermelhas,  e  da  !ie;unda  lirancas.  Em 
Torre  delia  .■inniiniinla  os  moradores  tiveram  o  tralvilho  de 
^■arrtT  d' hora  em  hora  os  eirados  das  casas;  lao  ttasta  caia  a 
cinza.  Comtudo  nenhum  terror  se  manifestou  em  Nápoles  ; 
não  aconteceu  porém  nssim  em  Torre  rfrí  (Irrr» :  n'esla  des- 
gra<;ada  aldeia,  mais  ariiícaila  qtie  nenhuma,  os  habitantes 
eslSo  sempre  alerta  (wr.-v  fugirem  a  cada  enqiçjío  um  tanto 
ciu)sidera\el :  por  isso  n'aquella  occasiíio  emigraram  A  cra- 
tera mudou  de  forma,  e  perdeu  alguns  ccolcnares  de  pés  da 
altura  antiga. 


o  PANORAMA. 


175 


olhos  descobrimos  abaixo  de  n(>s  um  ranclio  numero- 
so de  iiif^lezes  trepando  a  pé,  os  quaes  nós  tínhamos 
deixado  na  base  do  morro  em  disposições  de  se  faze- 
rem transportar  em  palanquim,  isto  é  em  cadeiri- 
nhas com  longos  bancos :  deviam  trazer  oito  moços 
para  todas  estas  liteiras  im[)rovisadas  :,  —  mas  ape- 
nas p)stos  a  caminho  o  moço  da  dianteira  escorre- 
ga, recua  c  eáe  de  narizes  bem  como  o  viajante, 
ponjue  o  que  ia  atraz  não  recuou  \  mudam  de  posi- 
ção, e  eis  que  n'um  instante  o  inglez  se  acha  de  per- 
nas para  o  ar:  não  era  possível  andar  assim;  e  por 
isso  não  tiv(!ram  remédio  senão  pagar  aos  homens  e 
renunciar  a  um  modo  de  conducção  que  só  era  di- 
vertido para  os  espectadores,  e  para  os  moços,  que 
ao  fazer  o  seu  ajuste  sabiam  muito  bem  que  os  po- 
bres turistas  seriam  os  primeiros  a  desistir  i  fui-lhcs 
por  tanto  necessário,  por  vonlade  ou  sem  ella,  limi- 
tarem-se  a  subir  como  nós  pedestremente  sem  mais 
auxilio  que  o  bordão.  —  ftluitas  pessoas  adoptam 
amarrareni-so  á  cinta  do  guia  e  irem  como  a  rebo- 
que ;  mas  sendo  os  movimenlos  encontrados,  este 
modo  é  mais  prejudicial  do  que  vantajoso. 

Emlim  recobrámos  alento,  e  tornámos  a  trepar 
com  fervor  novo;  outras  difíiculdades  nos  esperavam. 
(jLuanto  mais  nosapproximâmos  do  cume,  mais  aque- 
ce a  terra,  e  os  pés  escaldados  não  querem  andar.  — 
Antlianio^  sigiwri,  cotugijiii :  l)rada  o  guia.  Mais  um 
esforço  .  .  .  eis  que  chegámos.  Gastámos  duas  horas  a 
trepar  o  cabeço,  e  fumos  como  a  nado  por  cinzas,  e 
com  os  pés  em  sangue  e  calcinados:  mas  ijuanlu  ficá- 
mos pagos  com  o  espectáculo  admirável  que  se  mos- 
tra a  nossa  vista  I  Que  logares  poderiam  m('liior  es- 
colher os  poetas  para  assentar  as  forjas  de  Vulcano 
ou  a  estancia  dos  demónios  '. 

Imagine-se  um  abysnio  de  í>  fia-1  pés  de  eircumfe- 
rencia  com  1  340  de  profundidade,  com  os  lados  (jua- 
si  a  pique  e  em  muita  ()arte  ])cr])en<liculares.  1)(!  Io- 
das as  bandas  sáe  uma  fumaça  ardente  ;  no  fundo  da 
cratera,  no  meio  de  uma  caldeira  de  superfície  des- 
igual ecôr  sombria,  abre-se  uma  larga  bocca  de  qua- 
si  40  pé»  de  diâmetro  (l).  Vomita  sem  cessar  rolos 
de  chammas  que  se  levantam  <|uasi  á  altura  do  vér- 
tice da  montanha,  ao  qual  o  fumo  sobrepuja  muito. 
l-)c   minuto   a  minuto  sente-se   tremer   aterra;   de- 

{)ois,  com  a  detonação  sirnielhanle  á  descarga  de  uma 
lateria,  o  volcão  despede  a  prodigiosa  altura  pedras 
avermelhadas  f|iie  tornam  a  ab^smar-se  perpeudieu- 
larm(Mit(!  no  fojo  d'onde  saíram,  ou  <iu<'  caindo  um 
]ioui'0  para  o  lado  uccrescentain  o  monticulu  que  ahi 
se  tem  formado. 

ICndirulhados  nos  capotes,  que  por  cautela  tínha- 
mos entregue  ao  guia,  pois  (|ue  o  frio  é  penetrante 
no  alto  (ia  nu)ntanha,  assenlailos  n%im  casc^ão  de  la- 
va, eont:em])lando  aíjueilc  ipiadro  infernal  (■  magico, 
cs(|ueciainos  as  nossas  fa<ligas,  saboreando  algunii.s 
botelhas  do  tticryina  Cliinli.  l'or  um  in<uni'nto  ri^ti- 
rámos  a  vista  do  ali^snio  inllammado,  i'  a  dilatámos 
pela  C'iiini>u(jtia Jelict:^  sobri'  a  (jual  como  ipie  pairá- 
irjos.  Como  faz  o  conlrasli-  sobresair  a  forujosura  do 
delicioso  golplio  de  Nápoles!  ('orno  é  sublinu!  e exac- 
ta a  expressão  do  auclor  <los  Híaityrcs:  —  K  o  parai- 
zo  vislo  do  inferno.  — 

\iWr  ao  oriente  o  promoiilcirio  (Ir  Sorrciilo,  a  pá- 
tria (lo  Tusso;    Capri,  o  nppiíibrio  ilr  'l'ilM'no  e  glo- 

(I)  ('cimo  n  prinrl|iiii  dlsHc^imia,  u  impccto  c  a  hMiiiii  dn 
cratera  iniidaiii  cm  ciidii  ciiiik;!!»  :  Íkijc  cslá  inlciíaiuciilc  cii- 
tlilliiiila,  I'  iiild  NI'  jiiídir  lú  dcKnT.  Al);iim  ti'm|iii  dr|i(iis  dn 
tiucB  i'riip(;ilii  de  llIU-t,  i|iiiiiiilii  u  Vcmiviíi  Ncarliiivii  mi  miiiiir 
•occgci,  siiliiil  ald  Cl  Sr.  visccindi'  de  Cliati-aidiníiiicl  ;  pclii  r«- 
zil»  iKíiiim  diclii  (•  Cl  IraiDlcirmi  rcfcridci  cm  a  iinecdcMile  mio 
diiliin»  a  di'acrí)i(;ilo  cpic'  «c-  Icl  iiiih  Viiii;cii»  dci  clrjjMiili'  luiclor 
do.1  Miirti/rfs  u  do  Õtnio  ilu  Chrisliunisiiio. 


ria  das  armas  francezas ;  Ischia,  volcão  extincto.  ou- 
tr'ora  digno  rival  do  Vesúvio ;  Procida  a  grega,  e 
depois  uma  c-xtensa  linha  do  mar  azulado.  Ao  melo- 
dia o  ealx)  Miseno,  Pouzzolo,  o  Pausilippo  com  suas 
niattinhas,  igrejas  e  quintas ;  na  frente  ISapoles  es- 
tendendo-se  em  amphitheatro ;  depois  aos  nossos  pés, 
Herculanum,  1'ortici,  Resina,  as  due  Torre,  Pom- 
peia, e  veigas  esmaltadas  de  llôres .  .  .  Flôtes  próxi- 
mas a  um  volcão !  Fazem  lembrar  a  creação  aprazível 
do  auctor  do  Alosteiro  (VV.  Scott)  a  delicada  e  mei- 
ga Katty,  ligada  a  Juliano  d^Avenel,  o  bandido  que 
ella  preza,  e  que  a  cada  movimento  parece  lhe  vai 
despedaçar  o  frágil  tecido  da  sua  ephemera  existência. 

Krguemo-nos ;  ainda  temos  que  concluir  penosa 
tarefa.  Não  bastava  haver  contemplado  do  alto  da 
montanha  o  volcão  bramindcj  aos  nossos  pés,  quería- 
mos sondar-lhe  a  profundidade.  Pelo  lado  a  que  tí- 
nhamos chegado  era  impossível  a  descida ;  foi-nos 
preciso  percorrer  metade  da  eircumferencia  da  crate- 
ra por  um  resalto  estreito,  desigual,  n^algumas  jiar- 
tes  não  tendo  mais  de  um  pé  de  largura,  caminhan- 
do entre  dois  abismos,  á  esquerda  uma  voragem 
abrazada,  á  direita  a  face  externa  do  morro ;  se  nos 
faltasse  um  pé,  nenhuma  probabilidade  de  salvar- 
nos,  nenhum  meio  havia  de  suster-nos.  Chegámos  a 
final  a  um  sitio,  onde  a  face  interior  não  é  tão  a 
j)rumo,  onde  a  descida  é  se  não  fácil  pelo  menos  pos- 
sível (l).  Respirámos  um  momento.  D'aqui  avalia- 
se  muito  bem  a  disposição  de  toda  a  montanha.  A 
de  Somma,  que  vista  de  Nápoles  se  afigura  tão  alta 
como  o  \  esuvio,  não  parece  d'este  ponto  senão  uma 
cireumvallação  á  roda  da  pvraniide  gigante  levanta- 
da 3  (iOO  pés  (como  dissemos)  acima  do  nível  do  mar. 
Não  pode  haví^r  cousa  que  ollercça  um  e  peetaculo 
mais  selvático  e  terrível  que  o  estreito  valle  que  as 
separa.  Com  ambas  se  agrupa  a  terceira,  a  de  ()t- 
taiano.  Ha  todo  o  fundamento  para  crêr-se  que  as 
três,  em  tempos  de  (pu;  não  ha  memoria,  não  foram 
mais  do  (jik;  uma  só  mcmtaidia;  e  que  o  valle  é  um 
vasto  barranco,  formado  por  alguma  erupçíio  violenta. 

Finalmente  arrostámos  á  cratera  ;  a  descida  é  por 
extremo  pnicipítada.  Caminhámos  em  meio  de  fu- 
mo por  cinzas  quentíssimas,  em  que  enterrámos  mais 
de  meia  perna  :  ha  logares,  onde  o  calor  é  tão  vio- 
lento que  não  pôde  alli  parar-se.  Um  companheiro 
nosso  teve  o  infortúnio  de  metter  os  pés  n'um  sitio 
d'esses,  sentiu  tamanha  dòr  (jue  se  deixou  cair,  e 
não  tendo  a  que  se  arrimar  não  conseguia  ergucr-se ; 
morreria  sulllieado  e  (pieimado  se  não  lhe  valera  o 
guia,  que  o  ouviu  grilar  o  acudindo-lhc  o  ajudou  a 
galgar  á  inontaidia,  onde  esperou  o  termo  da  IUl^^a 
perigosa  excursão. 

Kis-nos  na  baixa  da  cratera ;  o  fundo  é  tomado 
por 'lava  li(piida  e  no  centro  está  a  garganta  de  fogo, 
que  não  eessa  d(!  vomitar  cliamnias,  pedras  e  fumo. 
No  p(ígo  da  lava  sobrenada  uma  es|)uma  densa,  co- 
nnj  os  earamellos  que-  os  rios  accarretam  nos  inver- 
nos desabridos.  Sobre  os  boccados  d'essa  espuma,  um 
tanto  esfriados  pelo  contacto  do  .ir,  escorias  leves  (pie 
estalam  e  se  fracturam,  (>  que  (em  de  aventurar-so 
(piem  (juer  chegar  ao  fundo  da  cratera,  (.iuando  se 
ha  galgado  uma  talisca,  (piasi  que  sutloeam  ;is  e\li.i- 
la(;c'ies  sulphureas  e  os  vapores  ardentes.  Km  cad.i 
lenda  v('*-.s('  um  fogo  mil  \(zes  mais  ateadc 


1  (lue  o  ( 


los 
tornos  (los  vidros:  intr(iilij/.indo-se-lh(!  a  exlreinidade 
do  bcinlàd  sobe  a  chamma  (piasi  ate  o  braço.  Mas  a 
curiosidade  (lisfar(;a  tudo  e  vene(",  esóipiando  se  tem 
saído  (Paípielle  medonho  si(ío,  fora  da  cratera  e  pas- 
sada u  iiiipreaiiuu  Jiiuiucitluiicu,   ú  4UU  su  fuutemphi 


(I)     D'»M  a  Ivie  nuiioa  (IU.'t7)  nlngiiciu  ixidln  ImUur  ao 
íiindu  dn  crnlciu. 


17G 


O  PANORAMA. 


com  horror  nos  perigos  que  se  acabam  de  correr.  E 
de  tamanho  risco  que  outra  cousa  se  tira  senão  a  es- 
ti-ril  basofia  de  poder  dizer  :  —  u  eu  desci  á  cratera, 
apanhei  estas  lavas,  estes  mineraes,  estas  escorias  co- 
bertas d'enxofre  ?  .  .  .  >i  Nada  se  \ô  lá  que  não  se  ve- 
ja tão  bem  e  talvez  melhor  da  parte  de  cima. 

Trepámos  para  fora  com  assaz  de  trabalho  em  meio 
de  cinzas  ardentes ;  percorremos  de  novo  a  semi-cir- 
cumferencia  do  volcão ;  e  tornados  ao  nosso  ponto  de 
partida,  largámos  de  rota  batida  por  aquella  encos- 
ta de  cinzeiro: — em  onze  minutos  descemos  o  mor- 
ro, quando  tínhamos  gasto  duas  horas  para  trepa-lo. 
— As  cinco  e  meia  estávamos  em  Resina  :,  e  em  Ná- 
poles ás  seis  e  um  quarto.  (Coniimia.J 


COKKIDAS    SOBRE    O    GELO. 

No  puiNcipio  do  inverno  traça-se  sobre  o  gelo  o  ca- 
minho que  conduz  de  S.  Tetershurgo  aKronstadt^ 
indica-se  por  um  arruamento  de  altas  balisas.  De  lé- 
gua a  légua  acham-se  guaritas  bem  quentes  onde  se 
postam  sentinellas  que  nos  tempos  nebulosos  man- 
téem  fogos  de  distancia  a  distancia,  e  tocam  sinos 
cujo  som  alenta  e  guia  os  viajantes.  Ha  ao  meio  da 
estrada  uma  casa  de  pasto.  A  innumeravel  quanti- 
dade do  pessoas  de  toda  a  idade  e  sexo,  embrulhadas 
i,m  amplas  capas  de  pelles,  que  se  deixam  ir  com  in- 
(liílbrença  por  cima  de  uma  superfície  frágil  que  as 
separa  do  abysmo,  otterece  ao  natural  das  regiões 
nieridionaes  um  singular  espectáculo,  que  lhe  enche 
a  alma  de  um  temor  desconhecido  aos  povos  do  nor- 
te. Porém,  quando  começam  as  corridas  em  houers  é 
que  principalmente  a  enseada  de  Kronstadt  appre- 
senta  a  scena  mais  animada.  Os  bouers  são  botes 
lixos  a  duas  chapas  de  ferro  como  as  dos  chapins  ou 
patins  de  que  usam  os  que  folgam  de  resvalar  pelo  | 
gelo  ^  ha  uma  terceira  adaptada  por  debaixo  do  le-  I 
me :,  e  n'esta  embarcação  que  tom  um  ou  dois,  e  ás  ! 
>ezes  três  mastros,  ha  bancos  collocados  em  redor  pa- 
ra os  viajantes:  impellidas  pelo  vento,  que  sopra  com 
\  iolencia  n'esta  estação,  e  governadas  por  um  piloto 
hábil,  estas  canoas  ou  botes,  que  se  distinguem  por 
diflerentes  apparelhos,  e  galhardetes  de  varias  cores, 
voam  com  rapidez  incrível :  o  sol  embaciado  solta 
raios  sem  calor ;  despregam-se  as  velas,  zune  o  vento 
frio,  despedem-se  na  carreira  os  barcos,  as  tripula- 
jões  por  meio  de  manobras  acertadas  disputam  a 
dianteira,  e  em  menos  de  uma  hora  galga-se  o  espa- 
ço de  quasi  dez  léguas.  1'edro  I  folgava  muito  d'es-  ] 
tas  corridas  sobre  o  gelo  ^  o  a  sua  previdência  soulx'- 
ra  encaminha-las  a  um  fim  ulil ;  proseguindo  sem 
.ifTrouxar  no  desígnio  que  concebôra  do  crear  mari- 
nheiros, e  receando  que  durante  a  inacção  de  lohgos 
invernos  os  homens  que  educara  na  manobra  iiiari- 
tima  perdessem  o  fructo  das  lições,  cxercitava-os 
<1  aquella  maneira,  e  sobre  um  oceano  solido  os  pre- 
parava com  a  experiência  que  tinham  de  desenvol- 
ver depois  em  mares  tempestuosos. 


Paço  imperial  na  cidade  de  Pekik. 

O  PAÇO  imjwrial  admira  |)ola  grandeza  emagnil'icen- 
cia  :,  todavia,  a  bomlade  consiste  menos  no  bello  da 
sua  architectura,  do  que  na  imnionsidade  dos  odili- 
cios,  riqueza  dos  lagos,  o  variedade  dos  jardins.  Tem 
do  oriente  ao  ocoidento  três  mil  cento  e  cincoenta 
palmos,  e  quatro  mil  (piarenta  e  quatro  do  norte  ao 
sul  i  isto  é,  tom  do  frente  uma  distancia  igual  á  que 
ha  entre  o  largo  de  S.  Paulo  e  o  Terreiro  do  Paço ; 
e  dl-  fundo  a  que  Im  entre  o  Rocio  e  o  Cães  das  Co- 


lumnas.  Igual  porção  de  terreno  está  cheia  de  pórti- 
cos, galerias,  peristj'los,  torres  e  salas ;  produzindo 
tanto  melhor  effeito,  quanto  são  mais  variadas  a«qu« 
estão  próximas  á  sala  do  throno. 

Moram  n'elle  os  empregados  do  serviço  do  paço,  e 
os  eunuchos ;  as  mulheres  habitam  a  parte  mais  Inte- 
rior, com  entrada  particular.  Difficil  empreza  seria 
a  de  quem  pretendesse  descrever  todas  as  partes  com- 
ponentes d'esta  obra  grandiosa.  Tem  casas  destina- 
das á  imperatriz,  ás  três  rainhas,  e  ás  mulheres  da 
terceira  e  quarta  ordem.  GLuando  o  inif>crador  Tai- 
Tsong  subiu  ao  throno,  no  anno  626  da  era  christã, 
despediu  do  serviço  do  paço  seis  mil  mulheres,  por 
inúteis.  Taml>cm  esse  grande  numero  de  criadas  pro- 
va a  grandeza  do  paço  imperial. 

A  sala  do  throno  tem  130  pés  de  comprimento,  c 
outros  tantos  de  largura  :  o  tecto  é  de  proporcionada 
altura,  e  guarnecido  de  baixos  relevos  de  còr  verde, 
onde  sobresáem  dragões  dourados.  As  columnas  que 
lhe  servem  de  apoio  tem  sete  pés  de  circumferencia: 
as  paredes  são  alvíssimas,  sem  ornato  algum.  O  thro- 
no, collocado  no  meio  da  sala,  é  construído  com  a 
mesma  simplicidade. 

Em  torno  do  paço  estão  doze  palácios  assaz  com- 
modos,  para  a  residência  dos  monarcbas.  Além  d'e9- 
tes,  ha  outros  destinados  aos  príncipes  da  família  im- 
perial; formando  tudo  um  grande  ajunctamento  de 
edifícios,  guarnecidos  com  torres,  zimbórios,  pervsti- 
los,  balaustradas,  escadarias  de  finíssimo  mármore, 
corredores  calçados  de  rica  porcelana,  telhados  en- 
vernizados de  amarello  e  verde,  que,  na  presença  do 
sol,  parecem  compostos  de  ouro  e  esmeraldas.  As 
obras  de  ornato  são  ainda  mais  superiores.  Esculp- 
tura,  pintura,  charões,  tapetes,  vasos,  tudo  forma 
tão  sublime  espectáculo,  que  muito  custa  a  formar 
d'elle  ídéa  approxiniada  da  realidade. 

As  casas  em  toda  a  cidade  são  commodas,  aeeia- 
das,  e  ornadas  com  simplicidade.  Os  palácios  dos  co- 
láus  e  mandarins  são  mais  c"onsíderaveis  pela  exten- 
são do  que  pela  riqueza.  Provém  esta  honestidade 
mais  da  pfjlitica  do  que  da  indiflerença  que  elles  te- 
nham poio  luxo.  Juígar-so-hia  criminoso  o  funccio- 
nario  publico  que  pretendesse  distínguír-se  por  ha- 
bitar em  rico  palácio.  Seria  aecusado  pelos  censores, 
e  o  menos  que  lhe  poderia  succeder  era  ter  o  desgos- 
to de  vôr  o  seu  palácio  arrasado  ou  perder  o  seu  em- 
prego. 

Os  subúrbios  parecem  treze  cidades :  ha  n^elles 
grande  numero  de  thoatros,  onde  se  representam  far- 
ças,  comedias  e  tragedias.  Tem  hospedarias  com  ser- 
viço de  ouro  e  prata,  cam;is  com  armações  de  bnxia- 
do,  &C.  O  luxo  dVstas  casas  é  mantido  por  socieda- 
des poderosas. 

Os  que  andam  de  sege  ou  a  cavallo  cedem  alli  o 
passo  aos  que  vão  a  pé.  Não  se  vê  em  Pekiu  o  es- 
pectáculo irrisório  de  grande  fileira  de  seges,  para- 
das horas  inteiras,  e  o  imliecil  que  se  fai  arrastar, 
esquecido  de  que  tem  pernas,  lastimiUido-sc  por  não 
poder  avançar. 

Em  uma  tapada,  nos  subúrbios  de  Pckin,  onde 
reside  o  imjK-rador  tro*  partes  do  anno,  ha  grandes 
lagos,  montanhas  .irtificiaes,  e  sc»sonta  palácios  col- 
locados de  modo,  que  de  um,  qualquer,  não  se  avis- 
tam os  outros :  moram  irellos  as  niuUierrs  do  imjxv 
rador.  Ainda  assim  não  chegam  |wra  toilas  viverem 
separadas,  visto  cal>or-lhe  por  lei  121  !  O  impemdor 
ordena  ao  primeiro  eunuco  em  qual  d'elle5  pretende 
cear,  o  ahi  pernoita. 

O  que  diriam  os  scepticos,  se  amagestadc  d*aquel- 
la  grande  estructura  fosse  dcscripta  for  Fernão  Álen- 
dcs  Pinto? 

Cari. sobre  aind.  eCh.peloSií.J.  I.  dk.\nokads. 


23 


o  PANORAMA. 


177 


JGBEJA  DA  BOA   NOVA. 


A    VILLA    DK   TjillKNA. 

Na  província  do  Alointcjo  o  distrioto  aduiiiiistrativo 
d'Evora,  sele  le;^uah  a  Ichte  dV^sta  cidade,  o  duas  a 
oosle  da  villa  de  lledoiido,  c^stá  situada,  em  lo^ar 
elevado,  a  moderna  villa  de  Tereiía,  cujo  termo,  que 
comprebendi-'  seis  léguas  correndo  de  norte  a  sul,  e 
duas  contadas  do  nnscente  ao  poente,  abunda  em 
pão,  gado  c  caça,  e  acal)a  por  um  dos  lados  no  pon- 
to em  que  a  ribeira  d<!  Ijucefece  mistura  as  suas 
aguas  com  as  do  Guadiana,  (luando  o  padre  Carva- 
lho «acreveu  a  sua  Ciyriujniyhiii  era  terra  de  31)0  vl- 
sinlios,  e  em  lS.'i"J  contava  700  habitantes. 

Kxistiu  irm  (empos  remotos  no  seu  termo  um  tem- 
plo consagrado,  dizem  ijue  pelos carlhaginezes,  a  Kn- 
dov<'lico,  divindadi!  a  (pie  <«  cellibiTos  reniliam  cul- 
to, o  que  parectí  s('r  o  ('upidcj  dos  gregos  e  romanos. 
IMuitas  insiTÍp(;õ<s  e()|)iad.is  pelo  chronisla  l'"r.  Antó- 
nio da  l'uriri(a<;.'io  de  lapidasiiue  1).  'riieodosio,  ijuiu- 
to  duipie  de  Jiru;^anr.i,  li/.cra  trasladar  para  \  illa-\i- 
eosa,  ulleslani  ipie  não  só  I'aidc>\elico,  mas  lambem 
l'roser[iina  e  Marle,  alli  reci-biam  oniri'n<las  em  pa- 
ga dos  milagres  (pie  a  ceg.i  gentilidade  lhes  attri- 
buiii,  sem  i|ue  seja  hoje  |)ossivel  saber  se  no  mesmo 
l<-m)>lo,  S(>  em  templos  distiiictos  porém  proviums, 
i-m  cjuanto  o  íacenjoli-  da  deusa  do  inlerno  lhe  »a- 
erillcavu  a  be/err.i  estéril,  ou  o  du  deu»  do  amor, 
vmtido  de  alvas  roupas  talares,  que  lhe  deixavam 
comludo  diseoljerlus  a  espádua  o  u  braijO  esijuerdo, 
.diria  o  cordeiro  com  o  direito,  o  com  aquelle  lhe 
arrancava  o  coração  c  o  lanceava  no  logo,  o  do  cruen- 
Aoi..  I.  —  Fkvi:iii:iiio    13,   lS'f7. 


to  deus  da  guerra  se  aprestava  lahez  para  derramar 
ante  as  aras  d^um  nume  dcteslaNel  o  sangue  de  guer- 
reiros vencidos. 

Terena  antiga,  povoada  por  D.  (iil  Martins,  ([ue 
lhe  deu  foral  em  lá()2,  jazia  n"uma  baixa,  entre  i> 
ribeiro  do  Alcaide  e  a  riljeira  de  liuceicce.  l'or  mor- 
te do  conde  D.  Martim  {iil,  lilbo  do  fnnJador,  va- 
gou para  a  coroa,  e  elrei  D  IM.inuel  lhe  deu  oufri> 
foral  em  10  de  outubro  de  lolt.  IJo  seu  eastello 
eram  alcaides  mores  os  condes  da  1'onfe.  Os  maus 
ares  que  se  respiravam  no  primitivo  chão  doesta  vil- 
la a.  foram  despovoando,  e  obrigaram  os  habitantes 
a  mudarem-n'a  para  o  silio  onde  ora  se  acha. 

Mas  na  igreja  da  primeira  freguezia  da  invocação 
de  Nossa  Senhora  da  15oa  Nova,  situada  n'uma  des- 
cida, ainda  se  conserva  a  l>i.i  ilo  baptismo,  em  reve- 
rencia á  sua  grande  antiguidade.  LOste  templo,  como 
mostra  o  desenho  d"elle,  asscmellm-se  u  umcaslello: 
todo  elle  é  nuarnecido  de  ameias  eleito  decantaria. 
Os  próprio-,  telhados  estão  divididos  em  peipiena^ 
porções  por  uns  carris,  <|ue  serviriam  provavelmenle 
de  iacililar  aos  delinsores,  no  caso  tleatac|ue,  acudi 
rcm  aos  sitios  mais  ameaçados  e  arrojarem  du  .dlo 
iobre  o  iidmigo  peiiras,  traves,  matérias  iull.unu..i 
da»,  e  os  imtros  instrumentos  usados  na  guerra  ante-, 
lia  invenção  da  pólvora  :  a  figurada  igrcj.i,  cuja  plan- 
ta é  uma  cruz  jHTfcita,  ao  nu"smo  tempo  <pie  devii 
incitar  os  christào»  a  sacriliear  as  vidas  «'Ui  honr.i  th' 
»>nd'olo  da  redempç.lo  do  gcn<'ro  humano,  contri- 
buía para  ainda  nndé  fortalecer  ei.te  propugnacido. 

Como  quer  que  soju,   o  citado  «uctor  du  Corogra- 


178 


O  PAINORAMA. 


phia  dá  por  fundador  dVste  celebre  monumento  a  .  da  cai 
rainha  D.  Maria,  mulher  do  D.  Affonro  II  de  Cas-  j  da  mi 
tella  c  filha  do  nosso  rei  D.  Aflbnso  IV,  princeza  de  i  te.  O 
que  o  inimitável  Luiz  de  Camões  immortalisou  a  for-  ' 
mosura  e  descri (;âo  no  precioso  quadro  em  que  a  re- 
presentou, banhada  em  lagrimas,  implorando  o  auxi- 
lio paterno  em  prol  do  esposo  prestes  a  perder  a  co- 
roa,  se,   demorando-se-lhe   o  soccorro  dos  intrépidos 
portuguezes,  não  se  pozesse  cobro  á  insolência  dos  mou- 
ros, que  vieram  a  ser  desbaratados  na  famosa  jorna- 
da do  Sulado  em  1340. 

Sem  pretendermos  invalidar  o  testimuuho  do  pa- 
dre Carvalho,  temos  para  nós  que  a  fundajão  do  tem- 
plo de  Nossa  Senhora  da  Boa  Nova  é  de  origem  mui- 
to mais  remota.  Como  podia  esta  igreja,  a  primeira 
parochia  da  villa  de  Terena,  que  já  vimos  ter  sido 
povoada  em  1262,  ser  edificada  tanto  tempo  depois? 
Demais,  no  testamento  da  rainha  D.  Maria  ne- 
nhuma disposição  ou  legado  se  encontra  a  favor  d'el- 
la,  quando,  segundo  o  costume  então  geralmente  se- 
guido, não  é  de  crer  se  deslembrasse  doeste  notável 
logar  sagrado,  a  ser  feitura  sua.  Não  será  este  tem- 
plo uma  dasantiquissimas  parochias  acastelladas  que 
a  necessidade  de  obstar  ás  correrias,  primeiro  dos  ára- 
bes e  depois  dos  castelhanos,  obrigava  a  construir  nas 
terras  da  raia  ?  A  seu  tempo  averiguaremos  isto. 

A  igreja  da  Boa  Nova,  semelhante  ao  velho  cente- 
nário que,  durante  o  largo  periodo  da  sua  existência, 
viu  morrerem  em  redor  de  si  ou  deixarem  a  terra  natal 
os  companheiros  da  sua  mocidade,  acha-sc  hojen'um 
quasi  ermo,  onde  o  viajante,  que  se  compraz  de  con- 
templar as  relíquias  da  piedade  das  passadas  eras, 
pára  a  medo,  e,  saudando-asá  pressa,  segue  logo  avan- 
te, para  não  ser  victima  das  exlialações  malignas 
<|Ue  tornam  o  logar  assaz  perigoso. 


Tomada  de  Alcácer. 
(Continuado  de  pa».  170.) 


A  SITUAÇÃO  do  campo  de  batalha,  a  hora  a  que  el- 
la  rompia,  a  marcha  desordenaila  do  exercito  sarra- 
ceno, a  crença  dos  cavallciros  christãos  no  auxilio 
celeste,  sentimento  assaz  enérgico  para  lhes  mostrar 
110  espaço  uma  cruz  resplandecente;  tudo  os  favore- 
cia. Defronte  de  Alcácer,  transpondo  o  Sado  para  o 
occidcnte,  eslende-se  uma  vasta  campina,  campina 
funesla,  onde,  conu)  cm  tantos  outros  logarcs,  os  vin- 
douros terão  de  erguer  um  altar  de  expiação  ao  san- 
gue portiiguez  ahi  vertido  por  mãos  porluguezas, 
quando  o  silencio  da  morlo  tiver  pousado  sobre  nós, 
e  Deus  c  a  historia  houverem  pezado  c  condemn.-ido 
os  nossos  deploráveis  ódios  civis  (1).  Foin'cssas  pla- 
nícies, segundo  todas  as  probabilidades,  que  sarrace 


da  campina  e  os  montes  que,  a  bem  curta  distancia 
margem  esquerda  do  rio,  se  prolongam  ao  noroes- 
reflexo  metálico  das  armas  e  armaduras  ia  ba- 
ter nos  olhos  dos  infiéis,  e  dava  ao  pequeno  exercito 
portuguez  uma  apparencia   que  lhe  accrescentava  as 
dimensões.  Ou  fosse  effeito  do  mesmo  reflexo  dos  fer- 
ros polidos   e  dos  dourados  escudos,   que  multiplica- 
vam a  torrente  da  luz  oriental,  ou  fosse  oexcitamen- 
to  religioso,    capaz   de  allucinar  ainda  outra  vez   os 
espíritos,  os  combatentes,  ao  travarem-se  com  os  mu- 
sulmanos,  creram  vêr  no  ar  um  tropel  de  cavalleiros 
vestidos  como  os  templários,  que  também  feriam  nos 
inimigos.  Foi  terrível  o  embate.  O  comraendador  de 
Palmella,  Martinho,  homem  pequeno  de  corpo,  mas 
animoso  como  um  leão  (1),  abaixando  a  cal)eça,  com 
o  escudo  erabraçado  na  esquerda   e   na  direita   o  es- 
tandarte da  ordem,  arroja-se  ao  meio  dos  esquadrões 
sarracenos :  Pedro  Alvitiz,  o  mestre  do  templo,  leva 
a  mesma  dianteira  ;  eos  respectivos  freire*  seguem  o 
exemplo  de  seus  chefes.   Os  cavallos  batem  de  peitos 
uns  nos  outros,  as  espadas  faiscam  nas  espadas,  os  es- 
cudos retinem  contra  os  escudos,  e  os  elmos  e  cervi- 
Iheiras  rolam  pelo  chão  rotos  e  abollados  (2).  Osmu- 
sulmanos  titubeam  :  por  entre  as  nuvens  de  pó  con- 
fundem-se  amigos  e  inimigos,  e  uma  completa  anar- 
chia   se  derrama  pelas  fileiras  sarracenas,  já  forçosa- 
mente desordenadas   pela  rápida   e  dilatada  marcha 
que  tinham  trazido  perseguindo  os  exploradores.  No 
meio   da   confusão   aquella  numerosa  cavallaria  che- 
gou a  combater  uma  contra  a  outra,   em  quanto  os 
cavalleiros  chistãos,   por   isso  mesmo  que  eram  pou- 
cos, estavam  livres  de  cair  em  igual  erro.  Em  breve 
o   desbarato   das  tropas  andaluzes  se  tornou  inevitá- 
vel :   possuídos  de  terror  começaram  a  fujir,  e  parte 
dos  fugitivos  foram  precipitar-se  no  Sado.    Al>afados 
debaixo  dos  pés  dos  ginetes  e  até  dos  troços  d'infan- 
teria,   muilos  expiraram    sem   haver  combatido  (3). 
Perseguidos  por  espaço  de  dez  milhas  pelos  christSos, 
três  dias  durou  a  carnificina,  edois  vvalis,  o  de  Cór- 
dova c  o  de  Jaen,  ficaram  entre  os  mortos.  O  calcu- 
lo que  d"estes  se  fez,   montava  de  quatorzc  a  quinze 
mil,  .ifora  um  sem  numero  de  prisioneiros,  osquaes, 
ou  para  lisongcarcm   seus  senhores,   ou  para  se  des- 
culparem perante   a  própria  consciência  de  tão  ver- 
gonhosa   rotji,    ouvindo   fallar    do  auxilio  dado   aos 
christãos   pelos  cavalleiros  aerios.   asseveraram  lo-lo» 
igualmente   visto,   e  experimentado   a   sua   fúria,   o 
c]ue  não  podia  deixar  de  fortalecer  a  (ò  viva  da  sol- 
dadesca  na  decisiva   protecção  <)iviiia.    Entre   tanto 
uma   armada   de  trinta   galés,   que  os  s;irracenos  ti- 
nham mandado  para   a   foz   do  Sado.    nci'ommeltida 
por  horrorosa  Ixirrasca,  luct.iva  cinUildo  com  os  ele- 
mentos, eera  deslniida  sem  combiite.  Saindo  ao  en- 
contro d'ella,  a  frota  clirislã  só  achou  ante  si  as  so- 
lidões do  oceano:  as  galés  inimigas  tinham  ido  n  pi- 
que, ou  dado  áix>sla.  Ainda  em  temiK»s  de  mais  lui 


nos  c christãos  se  enco.^.traram.  Os  cruzados  do  norte 

tinham   ficado  imncdiíido   al"unia   sortida  dos  sitia-  i  tanta  fortuna  le"-itiniaria   a  crença   no   favor  celeste, 


dos  (2),  e  á  multidão  dos  infiéis  havia  só  a  oppõr  os 
freires  militares,  os  cavalleiros  leonezcs  »|Uo  vieram 
associar-se  á  gloria  ou  aos  desastres  d^aqucUa  jorna- 
da, e  os  homens  d'armas  c  peões  de  Portugal.  Mas 
uma  imprevista  circumstancia  favoreceu  estes :  o  sol 
nascia,  e  os  christãos  occupavam  o  lado  septcntrional 


(1)  Comb.ilc  civil  do  Alraror  cm  18.1,3. 

(2)  íarraroiioriiiii  iiKi\ii»n  imillitudiíio  nmtra  qiiiini  pii- 
gliavcruiit  tcinphirii  ri  s|iullwirli  riuii  iiiililia  ro^iniio  por- 
tugalon^is  :  OIímt.  Ilisl.  Díimiat.  I.cit.  A  nu>oiicia  di>- 
rruzadits  do  luirlc  na  haljilli.i,  t[iic  d*cxta  passagem  ic  de- 
duz, <■  ruiilirinadn  julo  siliiw  io  do  nion^o  liodolrrdo,  r 
polo  do  próprio  c<iiuU'  de  llullaiida,  i|uo  narrando  Oi  suc- 
rcsso*  da  sua  armada  m"  uienciítiia  o  tcrro  c  tomada  de 
Alcácer:   Ma\n.  :id  «mi.  *.  .15  cl  3i>. 


quanto  mais  n'uma  cjiocha  em  que  a  credulidade  fa- 
zia sempre  intervir  o  Omniiiotente  «"estes  cruel' 
dramas  de  matança  c  de  estr.ngos  (4), 

O  exercito  victorioso  voltou  aos  arraiaes,   onde  o 


(I)  commcndalor  I'ahnclo,  parvui  corporo,  corJc  lc«  : 
(lodofr.   Mou.  I.  cit. 

{•]  Hic  cquiiN  op|Hiuilur  cqiiis,  hic  m<ilni«  rii*is,  hlc 
cl\|>ciis  rl\|»cis,  lii»'  olinita  ca-íNidc  ca^>ÍN  :  lil.  il»id. 

(;t)     Slornilur  liio  ;   illf  |Ktlilius  ralcatnr  oinioriiiii ; 
Hic  hoiniiium  ;  c|uidoni  pr.necipil.-inlur  «<iiii>  : 
(io>uiiii  i.'ariiicii  v.  l."*i  —  I.»8. 

(4)  AA.  rit.;  In  co  prarlio  innlla  niahoniclanoruiii 
inili:i  roridcrc;  lomplnrcs  elinin  rapli,  alií  .ndiniMliiiii 
pauci  liirpitcr  fiisali :  Abti  lUkr,  \<-^ti-  oricn,  apudCa- 
siri.  Uibl.   T.  2."  iKig.  .W. 


o  PANORA3IA. 


J79 


esperavam  os  cruzados.   Aquella  sanguinolenta  bata- 
lha,   que   produziu   entro   os  habitantes   do  Andaluz 
uma  iniprossão  quasi  igual  áda  grande  rota  das  Na- 
vas  de  Tolosa  (1),  não  poude  abalar  a  constância  de 
Abu-Abdallah.   Perdidas  todas  as  esperanças  de  soc- 
corro,   o  valente   sarraceno   preparou-so   para  conti- 
nuar na  enérgica  resistência,  que  durante  mez  emeio 
oppozera   aos  sitiadoros.    Inflammadoá  ainda   com   a 
ebriedade  do  triumplio,  estes  avançaram  ao  assalto; 
mas  acharam  na  guarnição  todo   o  esforço  que  falta- 
ra  ás  tropas  dos  walis  reunidos.    Os  que  avançavam 
aos   muros  baqueavam  esmagados   pelas  traves   e  pe- 
dras arrojadas  dos  adarves,  ou  retiravam-se  queima- 
dos pelas  invenções  do  fogo,  euma  nuvem  de  frechas 
e  virotes  obscurecia  os  ares.    O  sangue  correu  larga- 
mente •,  mas  o  combate  cessou  pela  retirada  doschris- 
tãos.    Vendo  a  inutilidade   das  suas  diligencias  para 
levarem  a  praça  á  escala,  estes  voltaram  ao  anterior 
systema   das   minas.    Fora   ocioso   descrever   miuda- 
mente os  vagarosos  expedientes   a   que  então   se  re- 
corria para  reduzir  ([ualqucr  fortaleza  na  falta  de  ar- 
lillieria,   ainda  desconhecida,    posto  que  já  existisse 
uma  espécie   de  pólvora  usada  na  guerra  para  vários 
artificios  de  fogo,   e   até   para  impellir  projcclís.    O 
que  n'este  logar  poderíamos  fazer  seria  repetir  ades- 
crij)ção  da  toina<la  de  Silves.   Houve  combates  entre 
os  gastadores,  ao  toparem  umas  nas  outras  as  minas 
e  eontraminas :,   houve  baluartes   e  «juadrellas  arrui- 
nadas ;   construiram-se  torres  de  madeira,   d^onde  a 
morti!  dcíscia   inesperadarnente   sobre   os  cercados,    e 
maeliinas  de  bater,  que  alluiam  os  muros  :  empri!ga- 
ram-so,  emfim,  todos  os  recursos  do  commettiniento 
«ida  defoza,  até  que,  desenganado  de  poder  sustentar 
aquelle  montão  de  ruínas,  Abu-Al)Jaílah  foi  obriga- 
do a  reniler-se.  Mas  ;iqui  a  discórdia  não  se  espalha- 
ra entr<í  ossítiadores,  como  succedêra  em  Silves  ;  não 
lhes  fall.avam  vitualhas,    e  o  desl)aralo  compleli)  dos 
vvulis  andaluzes  tirava-lhes   todos   os  receios   de  pro- 
longarem o  assedio  prolougando-so  a  resistência.    A 
guarnição  d<!  Alcácer   ficou,    por   tanto,    prisioneira 
com    o  seu  chele,    e   os  habitantes  caíram    nos  ferros 
<la  escravidão.   Dois   mil  caplivos,   os   ricos  despojos 
do  sacco,  e  a  |)osse  d'aquella  chave  do  Al-Gharl)  fo- 
ram  para   Portugal   os  fruclos   de   tão   gloriosa  em- 
preza  (íí). 

Os  vários  successos  doesta  canipaidi.i,  desde  a  en- 
trada dos  cruzados  na  foz  do  Sa<lo  até  á  tomada  de 
Ahracer,  liavin  consumido  o  espaço  de  dois  m(!Z(!S  e 
nii-io  (;í((  de  julho  n  18  de  outubro).  Os  prelailos  de 
Ijisbo.i  e  dl'  Kvora,  o  mestre  do  Tenijilo,  o  prior  do 
Ilospilid,  e  o  cornnicMihidor  de  l'alnu'lla  escreveram 
logo  .lopontilii.'!'  relalan<lo  as  causas  qu('  tlidiam  mo- 
vido os  cruzado»  a  di'morar-se  eiu  Portugal,  e  ((uaes 
linhaiii  sido  as  felizes  consec|u<!ncias  (Tessa  demora. 
t'onoluiam  pedindo  queljuís  fosse  permitiido  conser- 
varem a  aririada  (un  Jiisboa  por  mais  um  anuo,  com 
o  que  esperavauí  pi)d(!r  destruir  inteiramente  os  sar- 
racenos da  Penínsul.i  :,  que  tanto  aos  cruzados  como 
/Is  trojias  portuguezas,  que  entrassem  no  s('U  em- 
pefdio,  se  eouce<lessem  as  mesmas  indulgências,  que 
obteriam  se  [)e»soalmelite  fossem  á  Terra  Sancta  ; 
que  o  vigessimo  dos  rendimentos  do  ch^ro  em  Ioda  a 
lli'spanha  seapplíeasse  para  a  contiiniação  da  guerra, 
na  fiírina  do  que  se  achava  eslabclecído  asiuuelhanle 
respeito;  ()ue,  finalmente,  aqueHes  indivíduos  ilaar- 
mad.T,  (|Ue,  ou  pela  excessiva  diunora,  ou  por  polirezu 
ou  cMiIrruiidade,  eslivesseui  iuhiibililiidos  para  prose- 
guir  a  efn])reza,  fosseni  mandados  Miltar  á  pátria 
loni  pieu.-i  renussão  de  seus  peecados.   Acompanhava 


esta  carta  outra  do  conde  dcHollanda,  em  que  igual- 
mente  se  expunham   as  vantagens  obtidas  e   as  que 
resultariam  da  prosecução  da  guerra.  Pedia  elle  ins- 
trucções  ao  papa  sobn;   se   devia  acceder   aos  desejos 
dos  prelados  portuguezes,  se  continuar  viagem.  A  sua 
opinião  era  que,  na  primeira  hypothese,  as  esperan- 
ças concebidas  sobre  o  desfecho  decisivo  da  guerra  se 
realisariam.  Punha  o  conde  a  sua  conljança  cm  Abu- 
Abdallah,    homem,   dizia  elle,   illustre   tanto   entre 
sarracenos  como  entre  os  christãos,  e  de  cuja  influen- 
cia esperava  tirar  immensa  vantagem.  O  motivo  por 
que   o  general  dos  cruzados  se  fiava  tanto   em  Abu- 
Abdallah,  era   o  ter  este,  depois  de  prisioneiro,   pe- 
dido e  acceitado  o  baptismo.    Enganava-se,  porém, 
n'a(iuelles  cálculos.   As  maravilhosas  apparições,  que 
deram   a  victoria  dos  christãos,   fraco  efleito  haviam 
produzido   no  coração  obdurado  do  serraceno,    ou  os 
seus   olhos  profanos   não   tinham   podido  descortinar 
das  altas  torres   de  Alcácer  as  legiões  dos  cavalleiros 
aerios  e  a  cruz  brilliante  estampada  no  fundo  escuro 
dos  céus.  A  conversão  do  guerreiro  wali  não  passara 
de  uma  sacrílega  astúcia  paru  obter   os  meios  da  fu- 
ga, o  ccmi  a  fuga  a  liberdade,  desígnio  que  logo  rca- 
lisou,  vindo  a  acabar,  annos  depois,  de  morte  menos 
gloriosa  no  ukmo  das  guerras  civis  (1). 

No  principio  de  novembro  (2)  a  armada  rhenana 
voltou  a  Lisboa  a  esperar  a  resolução  de  Honório 
IH,  que  recusou  acceder  aos  desejos  dos  prelados, 
dos  chefes  das  ordens  militares,  e  do  proi)rio  conde 
de  HoUanda,  a  quem  o  insolente  gracejo  de  Abu- 
Abilallali  devia  ter  curado  da  sua  demasiada  boa-fé 
nas  conversões  repentinas.  Segundo  o  costume,  es- 
trangeiros c  portuguezes  disputaram  acerca  da  <livi- 
são  dos  despojos,  eo  bispo  de  Lisboa  era  o  ([ue  mais 
se  queixava  de  ter  sido  gravemente  [jrejudicado.  A 
discordiii,  porém,  não  chegou  a  ronipimeuto,  eocas- 
tello  vasio  e  quasi  cm  ruinas  foi  entregue  aos  seus 
antigos  seidiores,  os  spnlharios,  (pie  outr'ora  o  ti- 
nham perdido  depois  de  conquistado  j)or  Alfonso  I. 
Foi,  lalv(«,  n'esla  conjunctura  que  o  domínio  ehris- 
tão  se  estendeu  a  .ilgunias  outras  oliscuras  povoações 
do  Alemtejo,  ao  (|ue  provavelmente  allude  um  es- 
cri|)lor  coevo  (3).  Kntrados  no  rigor  do  inverno,  os 
guerreiros  do  norte,  iniiibidos  de  proscgulr  íuinie- 
diatamento  a  sua  viagem,  ficaram  em  Lisboa  repou- 
sando lias  passadas  fadigas  até  a  volta  da  j)rima\era, 
em  que  abandonaram  as  praias  hospitaleiras  de  Por- 
tugal  (;í1   de  março  d(;  121S)    (4). 


P 


vnoxvi.iNA, 


(I)     Aisnicli  pua 
{■■!)     A,V.  dt. 


a(i7. 


IHILVOKA    AZOTIC.\, 
eOLVOUA. 


ot    ai.oodJo- 


EuAM  passados  muitos  séculos  depois  da  «lescoberla 
<la  pólvora,  sem  que  este  composto,  diguo  dos  tem- 
pos bárbaros,  fosse  substituído.  A  cliimica,  que  em 
tão  pouco  tempo  tem  feito  progressos  inesperados, 
que,  póde-se  dizer  sem  emphasis,  ha  dado  jjassus  de 
gigante,  que  resolveu  a  maior  parle  dos  mcthodo» 
da  industria,  nada  achara  até  agora  que  fizesse  as 
vezes  d'eslu  míxto  imperfeito  para  (pio  dev<*ra  olhar 
com  de3pr<.'Zo. 

AlguuuiK  |iesquÍ2us  fuitus  pur  Mr.  1'eloutc,  um  dos 
uuiis  saliios  chimicos  frnnce«ea,   vieram  jiôr  termo   n 


(1)     l,ill.  I'raclnliir.   cl  «'(iniit,   Hullaiiil.  ,   upiiil   Ha.v 

luilil.  ml  luui.  ^.  .'ia,  .'lli —  AInliilliili til  li  cl  l'in;« 

lilicrliUi  tonitílcm,  uíl  suu>  i-inIííI  :  Alm  llrkrl.  lit.  —  ^-l- 
Malvkail,    \ul.  i  i».  :\H),  ;ii7. 

(V)     l'"*l  fciliiiiiiunuiuniMUii  liirimi  ;  («tnlef.  Mcii.  p.  íSf" 

(3)    Kdilci-     'l',.lcl,  L.  7  .-.  C. 

(-1)  l.illciii  lliMiiuii  III  1'i'iirlat.,  Uiivu.  nilnnn.  |.  ^n. 
—  tJti^uiiiiriirui.  \.  i\)i,iH).  —  tíoiiefr.ílou.  |»  .■»«•>,  Slili. 


180 


O  PAIVORAMA. 


esto  estado  de  louías.  Annuncia-se  nVste  momento 
nina  rovolujão  completa  nos  meios  d'acção  que  pos- 
sue  aarle  militar,  c  um  novo  composto,  que  harmo- 
iiisa  mais  com  o  eslado  dos  nossos  conhecimentos, 
acaba  de  desentlironisar  a  velha  invenção  dVsse  fra- 
de, espécie  de  mjlho  obscuro  que  o  admirável  siso 
do  povo  baptisára  com  o  nome  de  Srhn-nrh,  o  Ne- 
gro (1),  como  para  dizer  que  só  a  uma  potencia  in- 
fernal podia  dever  a  origem. 

A  este  composto  se  deu  o  nome  de  algodão-polvo- 
ra,  porque  na  sua  priniitiva  foi  feito  de  algodão ;, 
mas  depois  o  fizeram  de  muitos  outros  corpos  mui 
difVerentes,  e  do  muitos  mais  poderá  fazer-se.  Cha- 
mou Mr.  l'olouzc  pyroxylina  ao  principio  que  pare- 
ce sorvir-llic  de  base,  do  grego  pyros,  fogo,  por  cau- 
sa dasua  fácil  inllammacão  ^  porém  como,  por  outro 
lado,  o  azote  so  mostra  aqui  o  que  éoin  todos  os  ful- 
minantes, um  elemento  indispensável  de  formação, 
poder-se-liia,  no  caso  de  sor  algum  tanto  difficil  de 
decorar  tal  nomo,  chamar  á  nova  pólvora,  pólvora 
axoiica. 

A  ji^roxylina  i''  mais  um  composto  de  azote,  mas 
d  um  género  inleiramente  distincto  do  chlorato  de 
potassa  e  do  fubninato  de  mercúrio  :  obtem-sc  de 
matérias  orgânicas,  de  matérias  vegetaes. 

A  preparação  da  pyroxylina  é  simplicissinia  :  to- 
ma-se  algodão  cardado,  niergulha-se  n^um  liquido 
formado  de  porções  iguaes  de  acido  nítrico  de  1,5,  e 
tle  acido  sulphurico  ;  lava-se  em  agua  ])nra,  e  secca- 
se  a  um  calor  brando.  Em  o  algodão  estando  bem 
seceo,  eslá  promj>to  para  ser  empregado.  Póde-se,  so 
acaso  se  desejar  dar-lhe  um  grau  de  força  superior 
ao  que  então  tem,  repetir  a  immersão  e  a  lavagem 
duas  ou  trcs  vezes. 

')  algodão-polvora,  depois  de  çecco,  lem  todas  as 
propriedades  dos  fulminantes;  detona  pelo  calor,  pe- 
la poi-cussão,  e  pelo  choque-,  n'uma  palavra,  substi- 
tuo perfeitamente  a  pólvora  fulminante  ordinária. 
Mr.  Pelouze,  tendo  introduzido  uma  quantidade  suf- 
ncionto  d'esta  nova  pólvora  n^uma  pistola  de  algi- 
beira, de  rosca,  poz-se  a  trezentos  passos  d'uma  pa- 
rede, e  a  baila  iicou  inteiramente  amassada. 

Na  sessão  da  Academia  das  Sciencias,  de  10  de 
novembro,  leu  I\Ir.  Tiobert  uma  noia  contendo  al- 
gumas ad\ertencias  para  o  fabrico  da  polvora-algo- 
dão ;  resulta  d'esta  communicação,  que  se  deve  soc- 
cur  o  algodão  a  uma  temperatura  assaz  baixa  para 
evitar  dcí.-.drcs,  isto  é,  nunca  exceder  80". 

Outro  relatório  UHu  .,„  ..i^sma  sessão  mostra  que 
veio  a  tempo  o  de  Mr.  l'iobert.  IMr.  Lépine  e  dois 
dos  seus  amigos,  INlMr.  Combes  e  Flandiin,  prepa- 
raram n^aquella  semana  certa  (pianlidado  de  algo- 
dão-polvora, para  a  e.\perinu'ntarem  como  pólvora 
de  mina  n'uma  pedreira  de  Ivry.  Impregnado  c  la- 
vado o  algodão,  faltava  secca-!o ;  accenderam  lume 
n  um  fogão,  cslenderam  o  algodão  ao  pé  d*elle,  ctc- 
tiraram-sc  fechando  aporta.  Wuando  \ieram  de  noi- 
te vêr  se  o  algodão  eslava  secco,  entraram  os  três 
amigos  junclos  no  quarto,  trKzendo  um  d">lles  uma 
luz  na  mão.  Apenas  entraram  houve  uma  forte  de- 
tonaç.ão :,  iluas  ])('Ssoas  foram  lançadas  por  terra  c 
queimadas,  a  terceira  sotlreu  sé)  uma  forte  commo- 
ção.  O  algodão-polvora  acal)ava  de  inllainmar-se,  e, 
alem  dos  damnos  mencionados,  abalou  fortemente  a 
casa  e  rachou-lhe  as  paredes,   l  ;ii<i  lihiti  de  algodão- 


(1)  Attribue-sc  ii  iiivciii;rio  ila  jiolvora  n:i  Kiiru|>.i  ao 
frade  francÍMauo  Bcrlliiililii  S<li«.ii'lf,  <li;imacli>  taiiilicni 
Coiislaiitiuu  AinlckMii,  iiiitinal  <lo  Kiiliourj;  na  .Mleiím- 
"lia,  cc|ue  nasceu  no  \lll  sr»  iilii.  (iiuroiii  ijuc  e»la  <lcs- 
cobcilu,  iloviílu  ao  acaso,  fosM'  IVila  <iii  l.'il>0,  o  a  jiolvora 
uj>|<lii'a>la  |iai.i  dclniir  nuu-allias  cm  IXiíS. 


pólvora  tinha  produzido  todos  este?  effeites.  O»  pre- 
juízos que  soflreram  os  amigos  de  Mr.  Lépine  Bão 
tiveram,  felizmente,  consequências  graves. 

Vamos  deixar  agora  faliar  o  próprio  inventor  (diz 
Mr.  O.  Mac  Carthy,  auctor  doeste  artigo,  que  resu- 
miremos, dando  a  equivalência  dos  pezos  e  moedas 
de  França  aos  de  Portugal)  vamos  deixar  faliar  o 
próprio  inventor  acerca  do  preço  por  que  sáe  o  algo- 
dão-polvora, admittido  que  sempre  se  faça  de  algo- 
dão, e  notar  as  vantagens  que  leva  á  pólvora  antiga. 

"Sirvo-me  das  contas  que  me  ministraram,  diz  ti- 
le, fabricantes,  que,  se  fosse  preciso,  forneceriam  ao 
mercado  ou  ao  governo  os  seus  productos  pelo  mesmo 
preço  que  eu  indico,  segundo  o  que  elles  me  disse- 
ram. 

"  O  acido  sulphurico  que  Mr.  Knopps  fez  entrar, 
com  muita  razão,  na  preparação  da  polvora-algodão, 
e  útil  por  duas  maneiras,  e  convém  emprega-lo  sem- 
pre. Concentra  o  acido  nítrico  obrando  sobre  a  sua 
agua  de  que  se  apodera ;  de  tal  sorte  que  o  acido  ní- 
trico que  não  fosse  bastante  concentrado  para  se  unir 
ao  algodão,  se  combinaria  com  elle  debaixo  da  in- 
fluencia do  sulphurico.  Comtudo,  por  grande  que  se- 
ja a  porção  d'acido  sulphurico,  al>aixo  d'um  certo 
grau  areometrico,  ecom  um  acido  nítrico  fraco,  não 
se  pode  mais  obter  boa  pólvora. 

"  Mais  outra  círcumstaucia  pela  qual  se  recom- 
menda  o  emprego  do  acido  sulphurico,  é  que,  cm 
relação  ao  acido  nítrico,  é  mui  pequeno  o  valor  por 
que  se  vende,  e  permitte  diminuir  muito  a  perda 
do  ultimo. 

"  Com  efleito,  n'estas  sortes  de  impregnações  uma 
parte  considerável  do  acido  adhere  á  matéria  ou  vai- 
se  nas  aguas  da  lavagem.  Supponha-se  uma  mixtura 
de  volumes  iguaes  de  cada  ura  d"estes  dois  ácidos,  e 
depois  de  ensopado  o  algodão,  uma  perda  de  1  litro 
(3  -j^  quartilhos)  de  mixtura,  não  se  terá  perdido 
na  realidade  mais  de  meio  litro  de  acido  azolico.  Fi- 
nalinenle  o  acido  sulphurico  dá  outra  vantagem,  a 
qual  consiste  em  reter  as  matérias  nitrosíis  que  en- 
cerra de  ordinário  o  acido  nítrico  concentrado,  e  tor- 
nar a  operação  menos  desagradável. 

"O  acido  nítrico  de  1,5  de  densidade,  niixturado 
com  igual  volume  de  acido  sulphurico,  constitue  uma 
mixtura  própria  para  o  falirico  da  polvora-algodão. 
Estas  proporções  correspondem  a  porto  de  10<l  kilo- 
grammas  (G  arrob.  :2a  ar.  ,  iScc.)  do  primeiro  acido 
para  12o  do  segundo.  •' 

O  auctor,  appreseutando  os  preços  por  que  se  ven- 
dem na  França  os  dois  ácidos  supramencionados  e  o 
algodão  cardado,  e  lembrando  que  100  partes  d*esle 
absorvem  70  partes  de  acido  nítrico,  faz  ver  que,  mes- 
mo dando-se  a  condição  mais  desfavorável,  qual  é  a 
de  se  perder  no  fabrico  oO  por  cento  d"cste  acido  c 
a  totalidade  do  acido  sulphurico,  s.iiriam  as  170  ki- 
lograinmas  (10  arrob.  9  arr.  <5ic.)  por  oOS7JO  n-is, 
não  fallando  na  mão  d"obra  ,  e  «pie  sendo  a  jwlvora 
fabricada  com  papel  c  principalmente  com  a  pasta 
í\c  pnpol,  que  é  mais  barata,  skiriam  por  1o5j20  réis 
cada  100  kílogrammas,  posta  do  parto  amâod"obra. 

.1  Esta  mjio  d"obra,  continua  o  inventor,  a  muito 
pouco  montaria,  pois  que  os  preços  acima  indicados 
suppocui  todas  as  matérias  compradas  no  mercado,  c 
que  cm  delíniti\o  o  fabrico  consiste  n"uma  simples 
imniersíio,  iruni.i  lavagem  facíl  c  numa  desM>CJçào, 
operaçM-ics  cuja  maior  parte  piltle  si^r  feita  pflas  ma- 
chinas  de  cardar  o  algod."io  e  faicr  o  |>apcl. 

"Sem  pretender  lixar  preço,  ixkIc-sc  diicr  que  es- 
ta nova  pólvora,  completamente  fabricada,  não  cus- 
taria mais  de  2**000  réis  cada  100  kilogr.nmmas. 
Concordemontc  a  consideram  toilos  Ires  vezes  mais 
forte  que   a  jKihora  boml>ardeira  •,   a  de   igual  força 


o  PANORA3IA. 


181 


não  custaria  pois  mais  de  8;^000  réis  cada  100  kilo- 
gramnias. 

ii  Isto  não  passa  d'um  calculo  approximado  ;  mas 
é  quanto  basta  para  mostrar  o  que  se  pode  esperar 
da  nova  pólvora. 

II  Não  sei  se  appresenta  na  practica  inconvenientes 
graves,  como  algumas  pessoas  parecem  receiar ;  mas 
quantas  vantagens  já  reconhecidas  não  leva  ella  á 
pólvora  ordinária  ! 

u  Uma  pólvora  branca,  insolúvel  c  inalterável  n'a- 
gua,  com  propriedades  c  composição  constantes,  que 
não  suja  as  mãos  nem  o  fato,  nem  as  armas,  três  ve- 
zes mais  leve  para  se  transportar  que  a  antiga,  por- 
que é  três  vezes  mais  forte  do  que  ella  ;  que  é  sus- 
ceptível de  soflrer  sem  a  menor  alleração  as  viagens 
do  mar  ^  luna  pólvora  que  se  pode  inundar  n'um 
paiol,  no  porão  d'uni  navio,  que  se  transporta  por 
agua  em  bom  estado  ;  reúne  muitas  qualidades  boas 
que  llie  dão  a  primazia  sobre  u  pólvora  negra,  a  qual 
sempre  suja,  c  se  deve  livrar  do  ar  que  a  altera  e 
da  agua  que  a  destroc. 

"Mas  independentemente  doestas  considerações, 
todas  em  vantagem  da  nova  pólvora,  lia  outra  que 
eu  tenho  a  peito  appresenlar  aqui. 

"  A  pólvora  de  guerra  é  formada  do  7o  partes  de 
salitre  e  23  partes  de  enxofre  o  carvão.  Quando  ar- 
de deixa  um  resíduo  lixo,  ou  em  outros  termos,  inu- 
lil  ao  ellcito  dinâmico,  c  cujo  pezo  sobe  a  mais  das 
trcs  quartas  partes  do  seu.  Os  gazes  que  entram  em 
reacção  não  constituem  por  tanto  senão  ajienas  um 
quarto  do  pezo  da  pólvora. 

"  Na  pólvora  nova,  pelo  contrario,  tudo  é  elaste- 
no,  tudo  ou  quasi  tudo  se  reduz  a  (hiidos  elásticos, 
e  ja  por  isto  se  explica  a  sua  superioridade,  em  pezo 
igual,  a  pólvora  (|ue  deixa,  quando  arde,  unia  por- 
ção enorme  de  maioria  inerte.  " 


tração  sobejamente  tola  o  que  deu  aio  a  esta  protec- 
ção e  acolheita  de  indivíduos  unicamente  privilegia- 
dos pela  liberdade  de  fazerem  momos,  visagens  e  ar- 
remedos, e  de  insultarem  com  dicterios  mais  os  me- 
nos agudos  as  pessoas  que  concorriam  na  c(^rte  de 
seus  amos.  Cremos  que  era  um  luxo  da  epocha  sus- 
tentar estes  parasitas,  que  não  poucas  vezes  prestaram 
para  secretas  malfeitorias.  —  Ha  luxo  em  príncipes 
de engaiolarem  animaes  ferozes:  que  lh"o  agradeçam 
os  naturalistas,  mas  os  naturalistas  que  espreitam  os 
hábitos  contrafeitos  do  animal  captivo.  —  Houve  prín- 
cipes que,  escolhendo  entre  as  denegações  raoraes 
da  espécie  humana,  tiveram  a  soldo,  por  alimento  ou 
paga,  miseráveis  tão  despresiveis  que  se  constituíram 
alvo  constante  das  suas  zombarias,  e  instrumento  in- 
directo para  escarneo  de  outros. 

Ao  bobo  andava  appenso  o  anão;  eram  dois  appen- 
diculos  indispensáveis  do  senhorio  feudal,  que  folga- 
va com  isso  ;  um  representava  o  abandono  das  facul- 
dades intellectuaes,  outro  a  debilidade  das  forças  phy- 
sícas ;  e  com  dois  indivíduos  degenerados  o  feudalis- 
mo symbolisava  o  poder  —  e  de  certo,  porque  nem 
era  a  compaixão  que  prestava  nutriç.ão  a  uns,  nem 
apura  generosidade  que  sustentava  outros.  Tudo  era 
fatuidade  de  poderosos.  —  Mas  os  parasitas  transfor- 
maram-se  ;  voltaram  ao  systema  dos  tempos  corrom- 
pidos do  império  romano  ;  e  avultam  por  esse  mundo. 

(Auem  ler  o  romance  deW.  Scott,  intitulado  Pe- 
veril  do  Pie  verá  um  typo  dos  anões,  deíxem-nos  di- 
zer, heróicos ;  quem  lêr  o  romance  do  Sr.  Herculano 
no  volume  de  18t3  do  Panorama  achará  uma  fiel 
pintura  de  costumes  da  epocha  da  acção,  realçada  pe- 
la vijrdade  e  inimitável  colorido  do  cstylo. 


O   ANTÃO   E   O   BOBO. 


Foi  nnligo  <()sliiiMc  (111  |i,ini^  dl-  sciibdMs  feuilaos,  c 
lainbrin  iiiisdc  |)iin(ipi's,  (|ii(!  o»  sii|i|il,iiilaraiii,  acou- 
lareiíi  bobos  c  IniãcM  que  os  <bvi'rl  Ímnciii  nas  hiM^at  de 
<'iMiidiiiMi'nlo  :,    iniis   sii|i|ioiiios   (|ui'  iiáo  <'ra  uma  dis- 


O     \   KSL\IO. 

(Coutiuiiadu  do  pag.  174.) 

As  ERUPÇÕES  do  Vesúvio  lêem  sido  amiudadas,  pos- 
to (jue  nem  todas  fossem  espantosas  por  assolações  e 
estragos  :  no  século  passado  contaram-se  vinte  e  trcs 
iiicluinilo  ado  fatal  terremoto  de  17oo.  —  Foi  teme- 
rosa a  de  1707  ;  o  cavalheiro  Haniiltou  a  descreveu 
largamcnle  •,  e  ])ara  <|ue  se  possa  formar  idéa,  pelos 
estragos  de  umas,  dos  causados  por  outras  igualmen- 
te desvastadoras,  compendiaremos  em  poucas  palavras 
a  sua  relação. 

Km  17li7  havia  s.iIm-o  a  nionlaiiha  um  acervo  de 
ISo  pés  de  alto,  que  servia  de  principal  respiradou- 
ro ao  volcão,  (Ponde  jorrava  o  fumo  tão  negro  o  tão 
denso  que  parecia  sair  a  custo.  A  todo  o  momento 
eram  arremoçadas  pedras  enormes  a  considerável  al- 
tura. Já  tinha  a  lava  chegado  ao  valle,  quando  a 
noite  com  a  escuridade  veio  augnientar  esta  scena 
horrorosa.  ()uviu-so  violenta  detonação,  e  ao  romper 
o  dia  descobriu-se  que  amonlaiiha  se  abrira  desde  o 
cume  ale  orneio,  e  que  d\'ssa  nova  brecha  saía  uma 
torrente  de  lava  incendiada.  Tremia  a  tcrru  •,  caía 
um  eliuveiro  de  pedras  pomes.  Em  menos  de  (\\\í\t 
horas  alava  já  linlia  coburlo  Ires  milhas,  eiomliulo 
era  da  largura  ili'  <|uasi  uma  Icgua  com  70  pés  de 
esjiessura.  —  Não  piídc  descrever-so  a  confusão  tPessa 
noite  em  Nápoles:  a  fuga  luicipilada  don-i,  obriga- 
do a  largar  1'orlici,  coiilriliuiu  jiara  augim-iitar  o 
terror  ;  as  igrejas  <-slavani  iMiliilli.ulas  de  gente;  pe- 
las ruas  não  se  encontravam  senão  pmcissòes.  Vassn- 
ram-se  os  dias  de  M  a  Úll  em  alleniativas  (h>  soeego 
e  de  susto.  Choveram  cinzas  cm  Na|ioles  com  tanta 
abiiiidanila  que  era  preciso  Ira/.er  ehapius  de  sol.  A 
'2i  lerniinou  felizmente  a  erupção  que  foi  il«.'>  mais 
violentas.  — 


182 


O  PANORA3IA. 


A  catastroplie  de  1794  foi  horrível.  A  12  de  ju- 
nho sentiu-sc  em  Torre  dei  Greco  uni  tremor  de  ter- 
ra intenso  :  passou-se  a  noite  em  continuos  rebates, 
e  assim  os  dois  dias  seguintes :  no  domingo  onyiu-se 
um  estrondo  quo  parecia  descarga  de  artilheria  :  o 
ruido  veio  ni5o  do  alto  mas  do  bojo  da  montanha, 
que  rebentou  do  lado  do  poente  •,  fluxos  de  lava  in- 
ilammada  rodaram  em  duas  direcc;ões ;  um  com  a 
largura  de  quait  milha,  correndo  sobre  Resina,  in- 
cendiou o  palácio  Brancaccio,  a  igreja  dos  mareantes 
<■  o  convento  franciscano  •,  o  outro  braço  tomou  para 
Torro  dei  Greco,  povoação  de  qiiasi  1,800  almas, 
que  foi  preza  da  lava,  sendo  obrigados  os  habitantes 
H  refugiarem-se  em  Nápoles.  A  8  de  julho  estava 
tudo  acabado. 

As  erupçõis  são  precedidas  de  certos  annuncios,  co- 
mo abalos  subterrâneos,  rolos  de  fumo  muito  negro  e 
denso  que  saem  da  cratera  e  tomam  a  forma  de  um 
pinheiro  :  além  d*Í5So,  os  poços  circumvisinhos  scc- 
cam-se,  o  mar  rotrahe-se  das  praias.  —  As  matt-rias 
principaes  que  o  Vesúvio  vomita  resumem-se  na  se- 
guinte lista  :  —  1."  fumo  i  2."  cinzas,  areola  negra  e 
fina;  3."  pedrisco,  areia  mais  grossa-,  4."  pedras  po- 
mes, que  são  mais  escuras  e  pezadas  do  que  as  pedras 
pomes  ordinárias ;  3."  pedras  naluraes,  que  saem  um 
tanto  calcinadas  no  exterior-,  6."  escorias:  ha-as  tão 
leves  que  parecem  espuma  do  assuear  -,  a  grossa  pa- 
rece escumilha  de  ferro  ;  7.°  as  pjrites  octaedras,  de 
duas  linhas  de  comprido  com  oito  faces  lisas  e  pre- 
tas-,  achain-se  algumas  apegadas-,  8."  o  enxofre  es- 
téril ;  acha-se  na  pedra  pomes  c  outras  no  plano  in- 
terior, é  amarello  e  tem  pouco  cheiro;  o  plano  exte- 
rior ou  ó  amarello  por  esta  causa,  ou  branco  por  via 
da  aluniina,  ou  verde  pelo  cobre  c  vitríolo,  ou  pardo 
pelo  ferro-,  9."  o  enxofre  puro  nativo;  10."  o  talco, 
que  se  acha  pegado  ás  pedras  que  lança  o  Vesúvio ; 
é  transparente  como  o  vidro  e  tira-se  em  laminas; 
11.'^  as  marcassilas;  n^cllas  se  distinguem  todas  as 
castas  do  metaes ;  o  seu  pezo  é  dcsproi)orcionado  ao 
volume;  12."  as  cristalisações  que  representam  pe- 
dras preciosas  do  todas  os  espécies;  13."  asstalagmi- 
tes  nas  grutas  e  produzidas  pelas  infiltrações  das  chu- 
vas; lo." agua  domar  misturada  com  conchas;  lo." 
niinoraes  do  toda  a  casta,  misturados,  confundidos 
n'aquello  laboratório  infernal;  10."  seixos  volcaiii- 
'■03,  de  diversas  ciíres  c  natureza  ;  17.°,  finalmente, 
as  lavns  — A.  lava  é  certa  matéria  abrazada  e  liqui- 
da, da  consision«In  Jo  vidro  derretido;  sáe  de  ordi- 
nário dos  lados  da  montanlia  n»»  ««..pçApe,  p  espa- 
Iha-se  como  uma  inundação  pelos  campos:  variam  as 
suas  còrcs  alé  o  infinito,  conforme  a  matéria  de  que 
se  compõem,  porque  todos  os  mineraes  entram  na 
sua  formação. 

A  erupção  de  agosto  de  183'f  pertence  ao  catalogo 
das  funestas.  No  dia  22  pelas  dez  horas  da  tarde  co-  ' 
meçaram  asVjecções  de  pedras,  escorias,  e  outros  ma-  : 
leriaes  inflammados,  e  assim  continuaram  toda  a  noi-  i 
te,   sendo  ainda  visíveis  nas  primeira*  horas  do  dia,  i 
nas  quaes  principiaram  a  formar  uma  po<|uena  lava  ; 
depois   do   que  saiu   da  falda   do  morro  cónico  uma 
grande   torrente   d'ella   que   se   encaminhou  para   a  | 
'ponta  chamada   dillc  croccllc,   a  oeste ;   seguiu  l)or-  1 
dando  as  alturas  de  Cantaroni,   desceu  rapidamente 
sobre  as  terras  adjacentes  á  dieta  ponta,  e  incendiou  ' 
u,ma   pequenina   matta  de  carvalhos  do  cromilerio. 
As  quatro  da  tarde,   a  lava   um  tanto  se  \  irou  para 
Kosso-Grande,  accommelteu  os  terrenos  mais  baixos 
que   u  matta,   cobrindo-os  cm  larga  extensão.  —  Es-  ; 
ta   lava,   e  outra  alluvião   que  costeava   a  ponta   dol  i 
l*aIo,   tendo  saído   Jior   uma   bocca  recem-aherla  na 
montanho,  cortaram,  ajunclando-se,  o  caminho  que 
se  tomuva  para  subir  ao  morro,    of.de  ja  se  não  po-  ■ 


dia  então  chegar  a  não  ser  voltando  para  a  gargan- 
ta dieta  d'Avena.  —  A  lava  d'esta  feita  corria  va- 
garosa ;  dir-se-hia  querer  saborear  o  bárbaro  prazer 
de  destruir ,  passeava  a  passo  e  passo  pelos  seus  es- 
tragos, e  não  adiantava  mais  de  seis  a  sete  pés  por 
minuto:  não  cessou  de  correr  durante  o  dia.  Perto 
das  oito  e  meia,  depois  de  mui  fortes  detonações, 
abriu-se  nova  bocca  a  leste,  na  direcção  de  Mauro  e 
mesmo  sitio  d"onde  rebentou  a  lava  de  1817  ;  e  che- 
gou ao  pé  da  casa  de  campo  do  príncipe  de  Ottaia- 
no  :  então  ao  impulso  de  multiplicados  abalos  viu-se 
abater-se  e  desapparecer  de  todo  o  novo  montículo 
cónico,  que  era  de  recente  formação  no  alto  do  mon- 
te, companheiro  de  outros  que  successivamente  ahi 
se  tinham  formado,  e  ou  existiam  ou  já  estavam 
subvertidos.  Ao  desabar  d"aquelle  fraquejaram  as 
correntes  da  parte  do  oeste.  —  No  dia  2o  de  agosto, 
ás  seis  horas,  sob  a  iníluencía  de  unia  terrível  deto- 
nação, rasgou-se  outra  abertura  na  raiz  do  morro 
maior,  partindo  d''ahi  uma  alagação  de  lava  que  co- 
briu a  precedente. 

No  dia  2C  uma  columna  ímmensa  de  fumocaliji- 
noso  precedeu  a  erupção  de  outra  lava,  que  se  mul- 
tiplicou por  outras  muitas  aljerturas  contíguas,  c  se 
resolveu  iruina  espantosa  corrente  que,  precipitada 
pei.is  encostas  d"aquella  parte  da  montanha,  chegou 
promptainente  a  íJauro  c  cortou  o  caminho  que  de 
Bosco-tre-case  vai  a  Ottaiajio ;  reforçada  pelos  bo- 
queirões adjacentes  que  se  abriram  em  27,  dividiu- 
se  em  três  alliientes ;  o  mais  forte  adiantando-se  pa- 
ra Mauro  invadiu  algumas  parles  do  território  na 
direcção  de  Scafati ;  outra  accommcttcu  o  chão  cul- 
tivado.sobranceiro  a  Bosco  lleale ;  a  terceira  entrou 
por  algumas  fazendas  juncto  da  igreja  dtlla  -Vifíiao- 
tclla  em  Bosco-tre-case.  Houve  quem  observasse  n"es- 
tas  scenas  de  assolação  um  phenomeno  curioso  :  isto 
é,  que  ás  arvores  antes  de  serem  Siilteadas  por  a  la- 
va se  arripiam  as  folhas  com  um  pequeno  estalido : 
e  os  ramos  se  ateiam  deitando  uma  chamma  esbran- 
quiçada logo  que  a  lava  chega  ao  tronco. 

A  30  d'agosto  a  lava  principal  continuava  a  cor- 
rer, e  saía  de  muitas  fendas  que  se  abriram  entre  o 
\  esuvio  e  Ottaiano,  atravessou  a  estrada  para  o  poen- 
te, e  continuando  a  adianiar-se  destruiu  totalmente 
a  aldeia  de  S.  João,  bem  comoade  Caposicco,  abai- 
xo de  Torzigno  ao  sul.  A  largura  da  lava  era  de  per- 
to de  meia  légua,  a  grossura  vinte  c  dois  pes,  c  a 
extensão  do  seu  curso  mais  de  duas  léguas-  Os  pre- 
juízos que  causou  foram  ímmcnsos,  <lotruiu  mais  de 
quatrocentas  geir.is  de  chão  plantado  de  vinhas  c ar- 
vores, e  sepultou  mais  de  cem  moradas  de  casas  nas 
duas  aldeias  incendiadas. 

Durante  esta  erupção  o  mar  esle\e  por  um  dia  in- 
teiro ii'uma  espantosa  agilaç.ão  na  parte  que  borda 
Uósiiia  e  Torre  delia  Annunziata.  E  toda\ía  não  es- 
tava perturbada  a  serenidade  da  atmosphera  ;  havia 
aquolle  sol  bello  e  temperatura  macia,  dote  d'eíte 
clima;  só  tumultuavam  os  dois  terríveis  elementos, 
a  agua  e  o  fo^o.  c  jxireciam  rivaes  no  furor. 

A  cratera  continuou  a  \omítar  cimeiro,  a  princí- 
pio nc^ro  e  espesso,  depois  axermclh.ado.  a  final  al- 
vadio por  um  dia  inteiro,  no  fim  da  fanle  c  que 
apenas  se  divís.avam  algumas  fagulliES  :  o  rolo  de  fo- 
ío  que  se  levantava  no  mais  intenso  da  erupção  ti- 
nha a  forma  de  um  piídieíro  gigante,  cujo  tronco  pa- 
recia de  brome  e  as  raiies  de  coral  ;  a  lua,  que  en- 
tão se  .acha\a  exactamente  perp«>ndicular,  augmen- 
tava  cora  a  sua  claridade  o  sublime  d"csla  scena  do 
horror.  Este  phenomeno,  que  já  se  oWrvou  na> 
erupções  mais  fortes,  appresentava  uma  vista  pictu- 
resca . 

t>  rei  veio  pessoalmente  a  estes  logarcs   Je  a/llio- 


o  PANORA3IA. 


183 


cão.  e  não  por  vã  curiosidade,  mas  pelo  desejo  de 
acudir  á  miséria  de  muitos  infelizes.  E  com  effeito 
foram  salutares  a  sua  preseuça  e  os  soccorros  que  fez 
distribuir  aos  necessitados.  Na  realidade  o  dia  e  noi- 
te precedentes  foram  de  grande  consternação  e  hor- 
ror em  Nápoles,  causando  lastima  as  familias  refu- 
giadas, e  terror  o  medonho  aspecto  do  vulcão,  que 
ameaçava  ainda  maiores  estragos :  felizmente  abran- 
dou a  intensidade  da  sua  fúria,  decaindo  gradual- 
mente para  o  usual  adormecimento. 


Um  convite  de  Richeliev. 

Todos,  na  fé  dos  historiadores,  vêem,  concordes,  no 
cardeal  de  Richelicu  um  grande  ministro,  merece- 
dor doesta  fama  por  alguns  dos  seus  actos.  Prestou 
na  verdade  um  assignalado  serviço  á  monarchia  fran- 
ceza  acabando  de  decepar  as  ultimas  cabeças  da  hy- 
dra  feudal  ;  abriu  ás  lettras  um  sanctuario  formando 
a  Academia  franceza  •,  e  se  eram  péssimos  os  versos 
da  sua  lavra,  pagava  algumas  vezes  com  generosida- 
de os  alheios.  Era  vingativo,  mas  nem  sempre  atira- 
va a  cabeças  altas ;  por  desfastio  divertia-se  ás  vezes 
com  gente  baixa. 

Um  ifiidfiro  por  nome  Dumont  recebeu  certo  dia 
uma  caria  datada  de  Uuellc,  nos  subúrbios  de  Paris, 
onde  o  cardeal  tinha  uma  casa  de  campo.  Convida- 
va-o  S.  Em."  para  jantar   no  dia  seguinte  com  elle. 

O  convidado,  não  podendo  dar  credito  ao  que  via, 
rel6  duas  ou  Ires  vezes  a  carta,  arregala  os  olhos  pa- 
ra o  sobrcscripto  e  convence-se  de  que  é  para  elle. 
Chama  muito  alvoraçado  a  mulher  e  duas  fdhas  pa- 
ra lhes  dar  parte  do  tamanha  honra.  Façam  idéa  de 
qual  seria  o  contentamento  e  a  vaidade  doestas  sacer- 
dotisas da  tenda.  Safam-se  muito  depressa  da  mer- 
cearia e  vão  apregoar  pelo  visinhança  a  honra  insi- 
gne que  lhes  faz  o  eminentissinio  ministro;  toda  a 
gente  graúda  da  rua  corre  adar-llies  os  parabéns.  O 
futuro  commcnsal  de  S.  Em.",  como  ébeni  de  crer, 
mal  passou  pelo  sonino  essa  noite,  gastou  parle  d'el- 
la  nos  preparativos  da  jornada,  e  ás  quatro  horas  da 
madrugada  poz-se  a  caminho  para  Ruelle,  escarran- 
chado na  sua  mulinha.  Apenas  passara  as  porias  amon- 
toam-»c  grossas  nuvens  no  Iiorisonle,  <Mim  Irovâo  an- 
nuiiciíi  <|iio  <stá  a  di'sal)ar  unia  carga  d\igua.  O  no- 
vo vali<lo  de  Uiehelicu,  que  iiSo  levava  capote,  fez 
dobrar  o  passo  íi  ejv.dgadura  i  mas  a  tempesljJc  un 
dava  mais  ligeira,  os  relâmpagos  eram  uns  atraz  dos 
outros,  —  mediam  nieih),  —  e  a  agua  caía  a  cânta- 
ros. Dumont,  pilliado  ])ela  tempi'stadc,  olirigou  a  ga- 
lopar, pela  priuwira  vez,  a  triste  alimária-,  porém, 
não  podendo  ir  para  diante,  parou  á  poria  da  pri- 
meira eslaliigcni  dcí  Nanterre.  Apeon-se,  mandou  a 
inula  para  a  estrc^liuiia,  e  encaixoii-so  n"uma  sala 
baixa,  onde  os  moços  da  estalagem  fizi-rani  uma  fo- 
gueira de  achas  ile  liiili.i  para  enxugar  a  roupa  do 
eneliarcado  viajante. 

ICni  (planto  estava  entretido  em  en\ugar-se  n"um 
canto  ao  pi'  do  lume,  outro  viajante,  Ião  ensopado 
como  eUe,  vciíi  tnin.ir  quarlc-is  de  inverno  n'oulro 
canto.  Anilios  cMliveram  cal. idos  uni  bom  pedaço,  ali' 
que  Dumont   cxciainou  : 

—  uliiie  tempo  tão  di'sal>rid() !  >' 

—  i.  lOslá  h'\a(h)  da  breca;  mas  isto  (•  chuva  de 
trovoada  ;  (bira  jimico,  si>  não  me  eng.ino.  >• 

— ..  l)i'sej(i-()  eoui  Im'111  anela,  porcpie  lenho  ijiieir 
'v  Kucli(^  ])ara  niígoeio  (h'  muita  eonsiihraçái). 
<J  segundo  viajante  ealon-si'. 

—  "Ora  esta!  replicou  Dumont,  a  borrasca,  em 
\ez  de  abrandar,   crcscí- ;   os  trovões  ubalani  a  casa', 


a  chuva  redobra,  e  eu  que  não  tenho  outro  remédio 
senão  pôr-me  a  caminho. 

—  "Para  continuar  uma  jornada  por  baixo  d'agua, 
disse  então  o  desconhecido,  permitia  que  lhe  diga, 
que  é  preciso  que  haja  razões  bem  fortes. " 

—  .1  .\s  minhas  são  de  tal  lote  .  .  .  E  para  que  hei 
de  eu  estar  com  mysterios  :  estão  á  minha  espera  es- 
ta tarde  parajantar  em  casa  do  cardeal  deRichelieu.  " 

— 11  Percebo  •,  convites  d  "estes  não  são  para  despre- 
zar \  mas  ainda  tem  muito  que  andar ;  e  como  quer 
appresentar-se  era  casa  de  S.  Em."  assim  tão  enla- 
meado ? " 

—  ii  Talvez  S.  Em ."  me  fique  obrigado  pela  promp- 
tidão.  j! 

—  u  Se  não  quizesse  passar  por  intromettido,  per- 
guntar-lhe-hia  se  já  tem  tido  contas  cora  o  cardeal. 

—  i!  Nenhuma.  Para  lhe  fallar  a  verdade,  confesso 
que  estava  longe  de  me  vir  ao  pensamento  o  favor 
que  recebi,  m 

—  4<  O  cardeal  é  muito  cioso  da  sua  auctoridade  ; 
não  gosta  que  ninguém  se  metta  com  os  actos  do  seu 
ministério;  basta  ás  vezes  uma  só  palavra  para  o  ter 
pela  proa.  Ora  pense  bem  ;  nunca  fez  cousa  que  des- 
gostasse o  cardeal ?  " 

— 11  Não  me  lembra  :  tracto  cá  da  minha  vida.  e 
não  me  importa  com  o  que  por  alii  chamam  politi- 
ca. Comtudo  cuido  que,  diante  só  de  Ires  ou  quatro 
pessoas,  ralhei  da  morte  do  duque  de  Montmorency. 
O  senhor  no  meu  logar  faria  o  mesmo,  porque  meu 
avô  foi  mordomo  n"esla  illuslre  casa.  " 

— 11  O  senhor  Icm  cara  de  pessoa  capaz,  inspira- 
me  interesso  ;  tome  o  meu  conselho,  não  vá  a  Ruelle.  " 

— 11  Não  ir  eu  a  Ruelle!  parto  já,  sem  me  impor- 
tar com  a  cliuva.  " 

—  "Mais  uma  palavra,  que  o  caso  é  serio.  Parece- 
Ihe  que  o  estão  esperando  em  Ruelle  parajantar  com 
S.  Em."?  Desengane-se ;  estão  com  etteito  á  sua  es- 
pera, mas  é  para  o  enforcarem  !  " 

—  «Ai!  Deus  meu!  que  me  diz?  não  pode  ser.;' 

—  "Repito,  para  o  enforcarem." 

Aqui  Dumont,  tremendo  de  medo,  chegou-se  ao 
desconhecido. 

—  "  Diga,  em  nome  do  céu,  como  sabe  isso. » 

—  "Sei-o  com  toda  a  certeza." 

—  "Pois  que  liz  eu  para  ir  á  dependura?" 

— 11  É  o  que  lhe  acontece,  e  posso  assegura-lo,  por- 
que sou  ou  que  eslou  encarregado  da  execufrio.  " 
Dumont  perdeu   a  còr  c  deu  Ir*-"  j-assos  para  traz. 
..  l:  t[ut...  c  «  senlior  ?  " 

—  "O  carrasco  de  Paris!  S.  Em."  mandou-me 
chamar  para  o  esganar  :  apanhou-me  a  trovoada  no 
caminho,  reiolhi-me  também  u*esla  estalagem  ;  en- 
gracei com  a  sua  cara  ;  o  cardeal,  lá  de  quando  cm 
quando,  niette-nie  em  eniprezas  d'eslas  com  que  eu 
embirro.  Jk'm  basta  ter  de  purgar  a  sociedade  dos 
maHiíilorcs  que  a  llagellani.  Ííir-llie-hei  mais,  eslou 
com  minhas  idéas  ile  largar  esle  cargo  ;  mas  tome  o 
meu  conselho,  perca  o  mi'do  á  trovoada,  e  volte  sem 
piTda  de  tempo  para  Paris.  Lembre-se  que  lhe  faço 
um  grande  serviço,  eipie  uma  palavra  que  lhe  esca- 
pe ]ióiii'  perder-me. 

Dumont  tornou  a  montar  na  mula  m-iu  d'esta  vex 
lazer  caso  da  chuva  iiue  lhe  cheg.iva  até  os  ossos,  c 
entrou  em  Paris,  mas,  em  logar  de  ir  para  sua  casa, 
loi  pedir  asvio  a  um  amigo  velho,  a  quem  contou  n 
aventura  sem  expiNr  a   pessoa  que  o  .s.dvara. 

Conseguiram  aleançar-lhe  por  dinheiro  uni  pas>a- 
port.-  faíso,  o  bem  disfarçado  partiu  uin.i  noili>  par» 
Cnlnis,  (Ponde  embarcou  para  Inglaterra,  e  la  S(j  con- 
servou ale  a  morte  do  cardeal,  (pie  aucccdou  dois  »'>- 
nos  depois. 


184 


O  PANORAMA. 


'lAGEM    AS   MINAS    DO 


Pekú.  I  tonia  do  caminho.    O  campo  é  triste  e  ando  ;  só  na 

proximidade  de  Tulancigo  se  divisam  algumas  bellas 
No  MM  de  1836  fiz  segunda  excursão  pelos  arredores  fazendas.  Esta  cidade  pequena,  a  mais  antiga  do  Me- 
da capital  do  México:,  sendo  minha  tenção  visitar  as  ^  xico,  foi  edificada  pelos  tolteques  no  melado  dosecu- 
pyramidfís  de  S.  Juan,  Regia,  e  as  minas  de  Real  i  lo  \  II  :  oclima  não  éagradavel^  aschuvas  são  mui- 
del  Monte,  tomei  o  caminho  do  norte  que  vai  parar  ,  to  aturadas  e  acompanhadas  de  ventos  frios :  porém 
á  povoação  de  Guadalupe,  onde  existe  o  sanctuario  |  todos  os  negociantes  francezes  quealli  residem  sepre- 
da  ^'irgem  milagrosa,  padroeira  do  México.  Conta-  i  caucionaram  contra  o  frio  e  a  humidade,  mandando 
se  que  poucos  annos  depois  da  tomada  da  antiga  ci-  |  fazer  fogões,  que  são  os  primeiros  que  vi  no  México, 
dade,  cabeça  doesta  vasta  região,  um  indio,  cultivan-  posto  que  na  própria  capital  e  nos  sitios  altos  sente- 
do  a  terra,  achou  aquella  imagem  pintada  n'uma  te-  i  se  muitas  vezes  a  necessidade  do  calor  da  lareira  no 
la  de  fio  de  inaguey  •,  foi  esta  circumstancia  havida  j  mez  frigido  de  janeiro.  —  Os  meus  compatriotas  (Jal- 
como  prodígio,  c  signal  da  protecção  que  a  ílãi  de  '  la  ttm  fi-ancez)  quizeram  dissuadir-rae  de  caminhar 
Christo  concedia  a  estes  logarcs  :  edificaram,  portan-  para  Regia,  expondo-me  que  a  jornada  era  attreita 
to,  á  sancta  imagem  um  templo  bellissimo,  que  do-  a  salteadores  e  que,  só  com  o  meu  criado,  corria  o 
taram   largamente,   e  creou-se  uma  coUegiada  para     risco  de  ser  roubado  e  talvez  maltractado.  Com  effci- 

to,  o  tracto  de  terreno  que  eu  tinha  de  atravessar 
achava-se  infestado  de  uma  cabilda  de  bandoleiros, 
que  não  só  salteavam  os  viajantes,  mas  também  ha- 
viam audazmente  accommettido  os  combois  de  car- 
ros, que  transportam  as  barras  de  prata  a  \'era-Cruz, 
chegando  uma  vez  a  gozar  da  conquista.  A  tenacida- 
de d"estes  ladrões  fortalecia-se  com  aafoutcza  do  seu 
capitão,  o  famoso  Andrade,  que  os  dominava  com 
poder  absoluto  e  os  sujeitava  no  calor  do  combate, 
posto  que  o  sangue  dos  companheiros  avermelhasse  o 
campo  da  peleja. 

Todavia,  passei  sem  risco  :  aquelle  temeroso  caht- 
cilha  tinha  sido  aprisionado  hana  pouco  tempo  e 
mettido  nas  cadeias  do  México,  e  o  seu  bando  disperso. 
A  fazenda  (hacicnda  de  Hegla)  acha-sc  na  mais 
picluresca  situação  que  eu  conheci  no  México.  Esta 
situada  n'um  desfiladeiro  apertado  entre  dois  cerros 
a  prumo,  escorados  por  eolumnas  basallicas  de  gran- 
de regularidade  ;  ovalle  ougargant.1  vai-se  estreitan- 
do até  que  as  duas  columnadas  seajunctem  e  formem 
uma  senii-ellipse  :  então  aos  olhos  admirados  se  ap- 
presenta  novo  espectáculo.  Imagiue-se  uma  serie  de 
eolumnas  prismáticas  de  60  a  70  pvs  de  altura,  todas 
de  grossura  igual  e  perfeitamente  ordenadas,  forman- 
do um  amphitlicatro  cortado   no  meio  para  dar  pas- 


receber  as  oflertas  pias  que  de  toda  a  parte  do  Jlexi 
CO  se  dedicam  a  Nossa  Senhora  de  Guadalupe.  —  Pa- 
ra além  d'esle  povo  começa  o  Salada,  grande  plani- 
cie  arenosa,    que  se  dilata   ao  longo  do  lado  do  Tes- 
cuco,  etira  seu  nome  do  sal  que  n^ella  depositam  as 
aguas.   Alii,  bem  como  na  outra  banda  de  Guadalu- 
pe, encontrani-se  aldeias  de  Índios,  que  >-e  occupara 
exclusivamente  cm  apanhar  o  dicto  sal  para  o  ven- 
derem nos  mercados ;  nunca  vi  cousa  tão  miserável  e 
hedionda;  os  pardieiros,  mal  fabricados  de  taipa  com 
tectos  rasos,  apenas  se  distinguem  dos  montes  de  ter- 
ra que  os  cercam  ;  de  redor  nenhuma  verdura  appa- 
rece ;    tudo   é  terra   e  de  uma  còr  uniforme  \,    ainda 
mais  penosa  se  torna   a  triste  impressão  que  este  as- 
pecto cau^a  observando-se  aespccie  de  tro2;lodytas  (1) 
que  habitam  aquellas  tocas.  —  O  Salado  ainda  se  es- 
tende seis  a  sete  léguas  mais  para  diante,    depois  do 
que   se   entra    n'um  matto   de  arvores  enfezadas  que 
vai  dar  a  S.João  de  Teotihuacan,  povo  grande  a  dez 
léguas  da  capital,  celebre  pelos  tcocallis  que  se  acham 
nas  suas  visinhanças.  Ostaes  <(Oca//!s  foram  construí- 
dos pelas  toltcíjues  no  oitavo  ou  nono  século  da  nos- 
sa era  :   o  vulgo  chama-lhes  ccrritos,  pefjuenos  cabe- 
ços ;   e  com  efieito,  actualmente  que  o  tempo  gastou 
as  arestas  d'cssas  pvramides  e  as  recamou  de  vegeta 


ção  ate  o  cimo,  parccem-se  com  os  montes  volcanicos  sagem  a  um  ribeiro  quedescáe  em  catadupa;  as  aguas 
«fue  se  divisam  nos  locares  transtornadas  em  remotos  |  por  entre  os  toros  meio  despegados  formam  milhei- 
tempos  'por  fogos  subterrâneos.  Estes  dois  templos,  j  ros  de  repuxos  em  que  se  refrangem  os  raios  do  sol. 
exactamente  orientados,  eram  coiisaírrados  um  ao  sol  j  — Este  monumento  de  basalto  é  de  certo  um  diK 
e  outro  alua.  Mr.  de  Humboldt,  que  os  mediu,  achou  |  mais  elevados  no  mundo  acima  do  nivcl  domar.  Ei- 
n  um  171  pés  de  altura,  e  64.)  de  comprimento  na  tá  na  cadeia  das  Cordilheiras  como  documento  vi»o 
base-,  o  sogunrto  lo.n  menos  30  pés  de  elevação.  O  j  das  revoluç-õcs  do  globo.  Não  sei  jx)r  que  se  falia  tão 
interior  é  do  argila  misturada  com  j^.wj>a;>,  o  o  i-o-  pouco  d"c5(e  formoso  producto  geognoslico  :  pódc, 
vestimento  com  reboco  decai,  como  ainda  n"algumas  não  obstante,  competir  com  tudo  o  que  ha  de  mai» 
partes  se  conhece:  as  escadas  que  conduziam  ao  topo  '  curioso  n"este  género. — Se  a  cakada  dos  gigauics  na 
estão  inteiramente  destruídas,  apenas  se  percebe  o  j  Europa  apresenta  moles  de  basalto,  e  grupos  de  co- 
sitio  e  ha  indícios  de  que  foram  de  cantaria.  Entre  lumnas  mais  magC5to^os,  a  cataracta  de  Regia  e'  m- 
os  dois  tcocallis  ha  grande  numero  de  pyramides  de  •  confcsta\elmeute  de  mais  gracioso  aspecto;  semelha 
1  o  a  30  pés  lie  elevação,  consagrados  aos  astros  se-  j  um  monumento  arabo  da  idade  media,  arruinado  ns 
cundarios,  ou  destinadas  para  sepulturas  dos  summos  |  verdade,  porem  ainda  cheio  de  recordaçvcs  e  i.te  de 
sacerdotes  e  dos  cabeças  das  tribus.  Estão  coUocadas  '  esplendor.  —  O  valle  se  prolonga  d"ahi  a  trcs  léguas 
por  ordem,  e  no  centro  do  grupo  nota-se  uma  pedra  ate  a  Sarranca  grande,  quediíoni  ser  também  ador- 
muito  volumosa,  coberta  de  hieroe;lypliicos.  Em  to-  nada  de  grandes  eolumnas  de  basalto.  —  Estas  colum- 
das,  e  no  espaço  circumdante  vô-se  grande  copia  de  :  nas  são  verdadeiramente  cristalis;içC>es  que  oflercccm 
íragmentos  de  Icuça  de  barro,  de  figurinhas  da  mes-  formas  de  prismas,  e  que  \<OT  impulso  próprio  re- 
ma matéria,  e  immensa  quantidade  de  |M;daços  de  |  lluem,  mas  per|>endicularmcute,  sobre  o  seu  eixo  :  o 
obsidiana,  talhado  em  bruto,  mas  pela  maior  parte  da  |  exterior  c  alvacento,  easuperficie  de  cada  secção  de 
forma  de  ferros  de  tlechas.  Estes  monumentos  são  os  |  còrdeardesia  com  manih.ns  aman-Uadas  no  centro. — 

llacienda  de  la  Regia  ]>ertoni-e  ao  cx-conde  do  ni«- 
mo  titulo,    que   a  tem  arrendado  com   .ns  principaos 


mais  antigos  dos  povos  americanos,  de  que  se  conhe- 
cem as  emigrações  ;  mas  são  os  menos  interessantes 
cm  relação  ás  artes;  não  excitam  admiração  como  os 
de  Xochicalco,  de  Papantla  e  de  Mitla. 

De  S.  João  a  Tulancigo  a  jornada  é  longa  e  fadi- 
gosa ;  não  ha  ccu.^a  que  distraia  o  viajante  da  mono- 

(1)     Duía  a  unti^iiijnilc  que  baviu  poíos  chuinados  tro- 
giudvtas,  por  murarem  debaixo  do  chio. 


minas  de  Real  dei  Monte  a  uma  comjvinhia  ingloza 
por  16:000  pcios  |x.>r  anno.  Não  é  uma  fazenda  des- 
tinada á  cultura  ;  dão  al!i  aquelle  nome  aos  grande» 
estabelecimentos  para  onde  se  condui  o  mineral  pre- 
cioso, sacado  d;i5  minas,  para  extrahir-sc  a  prata. 

(Continua.} 


24 


o  PAiVORAMA. 


185 


tO        ^ 


GESSIíER   MORTO   POR  TELL. 


A  TKADirXo  histórica,  o  romance  e  o  theatro  fizeram 
de  Guilherme  Tell,  o  Iieroe  suisso,  um  personagem 
luuilissimo  fullado.  O  grau  de  veracidade  dos  factos 
ijue  a  respeito  d'elle  se  coutam  tem  sido  objecto  de 
disputas-,  coiiitudo,  o  nome  é  venerando  na  sua  i)a- 
Iria,  e  vulgar  hoje  na  Kuropa  a  famu  de  suas  proe- 
aas.  A  pag.  loO  do  vol.  2."  do  Panorama,  sobacpi- 
graphe  Oríyt  nt  da  indiiiindincia  da  iShÍssíi,  contou-se 
quanto  geralmente  corre  da  vida  <•  feitos  de  Tell,  e 
alguniu  cousa  se  accresctrntou  a  pag.  73  do  vol.  3."  — 
Ociosa  seria  a  repetir;,*»),  quando  appresenlítnios  um 
esboceto  da  antiga  pintura,  i|UO  represenfa\a  a  ac^-ão 
du  morle  ilo  t^ranno  (íessk-r,  colhido  di-  improviso 
pela  lleclia  que  certeiramente  despedira  o  hábil  Tell 
em  sua  cmlioseada  iia  passagem  para  o  easlello  de 
Hussnach.  Demais,  como  dissemos,  asallusõesdoses- 
eriptos  inoderuos,  a  novella  ile  Fh)riaii,  a  opera  de 
Rossini,  tem  feito  sobejamente  popular  a  nomeada 
de  Tell.  —  Seguindo  a  narraeão  de  nnni  \iagem  re- 
cente diremos  onde  se  passou  aijuelle  assignalado  acon- 
tecimento. 

11  Preparemo-nos  agora  para  uma  das  mais  perigo- 
sos expedições  da  nos-ta  viagem  ^  traeta-se  de  escalar 
o  famoso  Kiglii,  ensa  montanha  tantas  ve^es  descrip- 
ta,  em  todos  <is  ivlbnns  desetdiaila,  e  nunca  diMnasia- 
damente  gabada.  Estrrii„-cei,  compaidieiras  novi<;ns 
da  jornada,  que  (íonfiais  n'essiii«i,valgadurab  muares, 
tão  eabe(,'udas  e  teimosas  na  a|>parencia  ;  rnlini  ii« 
olhos  ao  chegar  aos  precipieios  •,  temei  que  algum  frag- 
nuMito  de  r<H'li.i,  iiiopinadamenleil<-s|H-nhado,  vos  ar- 
roje com  a  aliniaria  para  o  abismo.   Porém,  nada  de 

Voi,.   1.  — KiiviiHitiHO   'iO,    l«t7. 


,  sustos  insensatos  ■,  capacitai-vos  Ixiu  de  que  os  acasos 
'  espantosos  contam-se  mais  por  tradi<,-ão  e  nosroman- 
j  ces  do  que  na  realidade  acontecem.  Fiai-vos  ccgamen- 
1  te  na  voz  dos  guias,  conselheiros  tão  expertos  e  expe- 
rientes que  não  ha  riscos  que  não  prevejam  edi-que 
vos  não  preservem  ;    deixai  ir  á  vontade  as  cavalga- 
duras,  boas  e  infalliveis,   que  toman»  <ento  bastante 
em  não  se  transviarem  por  lU^dladeiros  pouco  segu- 
ros,   pois  ipie  iii!,tin<tlvamente  conhecem   a  salvação 
própria,  que  é  também  a  vossa.  —  Gozemos,  portan- 
to,   sem  preoccupação   nem    medo,   das  belleias  com 
que  nos  convida  esta  ascensão. 

.Mas,  primeiro  (pie  tudo,  para  nos  desobrigarmos  de 
iim  pacto  de  devoção  histórica,  faremos  uma  estação 
de  alguns  minutos  <lianle  da  capell  i  comiuenu>raliv;i 
deGuilhermeTell,  edificada,  segundo  se  diz,  no  pró- 
prio sitio  onde  o  lil>ertadoi-  da  Suissii  frechou  o  Iv- 
ranno  Gessler.  t"ausa  pena  que  se  apagas,se  a  |)intu- 
ra  a  fresco  que  figurava  esle  siicci-sso,  e  de  cpie  n\v- 
nas  se  descobrem  agora  vestigios.  Tmlavia,  ainda  que 
o  nome  de  Tell  não  estivesse  grasado  na  historia  loiu 
indel('Veis  caracteres,  (|uando  jiereceriu  elle,  de|H>is 
qui-  o  sublime  compositor  nuHlerno  prestou  atpielle 
personagem  os  acientos  da  hariiioiiia,  mais  formoso* 
c  mais  pi-iielrantes  quanto  mais  se  escutam  '  Huem 
se  lembrara  de  Tell  sem  riNordar-se  tristemeiWe  d<- 
j  ([lie   Kossiui    não   inventará   iiiai»  cantos  t  .  ■  ■ 

„  Vemos,  /i  proporção <|uc subimos,  jifpresenlarem- 
iC-no.s  aos  olhos  novos  lagos,  uovan  cidades,  e  no\.<* 
colliiia»,  até  que  a  vista  não  tenha  [wr  limites  senão 
«luasi  u  iinmenaidade,  Uue  espectáculo  appreseiit.i  ,\ 


186 


O  PAjVORAMA. 


planície  a  quanto  pode  divisar-se  com  as  grandes  po- 
voações confundidas  em  ondulações  vaporosas,  e  os 
quatorze  extensos  lagos,  que  alsjuem  comparou  exac- 
tamente a  fragmentos  de  caramella,  orlados  de  relva  ! 

lí  Em  breve  a  cordilheira  dos  Alpes,  que  nos  tem 
acompanhado  constantemente  em  todos  os  pontos  de 
vista  de  nossa  viagem,  se  offerece,  e  patenteia  as  es- 
páduas resplandecentes  de  gelos,  comparados  ás  arma- 
duras de  que  Ossian  reveste  os  seus  heroes  gigantes. 
O  monte  Pilatos,  com  as  assomadas  Vjravias  e  descar- 
nadas, forma  com  o  Riglii  um  d'aquelles  sublimes 
contrastes  que  se  topam  a  cada  passo  em  meio  das 
perspectivas  da  Suissa.  Admiram-se  asaprasiveis  co- 
res doRighi  ao  mesmo  tempo  que  o  Pilatos,  sombrio 
e  carrancudo,  depende  ás  nuvens  os  flancos  devasta- 
dos, onde  o  raio  deixa  medonhos  vestígios.  —  Cha- 
mam n  estas  duas  montanhas  as  sentinellas  avança- 
das dos  Alpes  superiores^  talvez  fosse  exacto  compa- 
rar uma  á  sereia  ínnocente  que  oflerecesse  aos  viajan- 
tes a  imagem  do  repouso  e  quietação  depois  de  lon- 
go curso ;  e  a  outra,  pelo  contrario,  a  uma  d'' essas 
indomáveis  cliiraeras  que  os  poetas  situam  nas  aveni- 
das dos  palácios  habitados  por  feiticeiras. 

O  Riglii  é,  bem  se  pôde  dizer,  a  pátria  das  cabras, 
das  vaccas  e  dos  clialtU  ,•  ha  n"elle  umas  cento  e  cin- 
coenta  doestas  bonitas  casinholas  de  madeira,  que  ha 
tanto  tempo  teem  merecido  por  sua  forma  campestre 
eaprasivel  estructura  figurar  nas  paisagens  enas  pc- 
Çéis  de  theatro.  Numeram  em  mais  de  três  mil  as 
vaccas  que  pascem  n"estas  montanhas. 

Certamente  que  não  deixaremos  de  passar  uma 
noite  no  Righi,  sob  o  tecto  de  um  chalct,  onde  ad- 
mira o  achar  todas  as  branduras  e  as  elegâncias  ex- 
teriores da  existência  cidadã.  E  bello  ouvir,  ao  de- 
cair da  tarde,  o  mugido  das  vaccas,  sereno  e  melan- 
cholico,  que  se  perde  nas  profundezas  das  montanhas, 
e  adverte  de  que  o  dia  vai  sumir-se. — Do  madruga- 
da a  mesma  ária  vos  acordará,  convidando  a  subir  á 
coroa  das  alturas  a  saudar  o  sol  que  nasce,  espectácu- 
lo que  transcende  a  quantas  descripções  ha  de  poetas. 
Então  podem-se  contemplar  em  toda  a  sua  formosu- 
ra o  valle  e  o  lago  de  Scmpach,  aquellas  aldeias  tão 
viçosas,  semeadas  na  margem  do  lagode  \\aldsteltes, 
que  parece  se  aprazem  de  refleclir-se  d'aquelle  espe- 
lho admiravelmciile  christallino ;  c  depois  os  Alpes 
sempre,  que  semelham  enormes  colossos,  meio  tapa- 
dos de  véus  de  tintas  rosáceas  c  violefes,  vestidos  de 
iramensos  n.antos  de  neves,  cujas  dobras  se  confun- 
dem com  as  ondas  d»  ouro  e  azul  que  o  sol  desparge 
por  toda  a  extensão  do  horisouin. 


COLO.MBA. 


ítomanrc  da  Curscga. 


Povcrn,  orfaua,  zilolln, 
ScDZii  ciijiui  nirii.-ili  I  — 
Ma  |H'r  far  la  to  vciuictta. 
SIa  ^igu^tl,  vasta  anrhc  cila. 

Ijtinuiil.  fiincb.  de  Miolo. 


IV 


Itois  dias  depois  da  scena  que  descrevemos  cm  um 
dos  capítulos  precedentes,  Orso  e  Colomba  despediam- 
se  de  slr  Thomaz  Nevil  e  sua  filha.  \a  hora  supre- 
ma da  sep.^ração,  o  niancelio  não  poudo  reprimir  de 
todo  a  paixão  ardente  que  Ião  secreta  chorava  no  pei- 
to. Approximando-se  rapidamente  da  bella  inglcza, 
em  quanto  o  coronel  discutia  com  a  irmã  aexcellen- 


cia  das  espingardas  britannicas,  Orso  ousou  pcgar-lhe 
na  mão,   e  entre  um  suspiro  diier  : 

—  "  Miss  Lidia,  partindo  da  Córsega,  lembrar-se- 
ha  dos  amigos  que  deixou  aqui.'" 

Ella  fitou-o  com  um  sorriso.  Nos  olhos  azues,  tão 
meigos  e  transparentes,  atreveu-se  Orso  a  lér  uma 
esperança.   Diziam  tanto  calados  ! 

—  »  É  se  por  uma  fresca  madrugada  sir  Thomai  c 
eu  apparecessemos  ás  portas  do  Castello  encantado  do 
tenente  delia  Rebia  ?  •■> 

—  "Euma  crueldade  gracejar  assim,  senhora,  re- 
plicou omancelx).  Vou  ficar  só  —  entre  minha  irmã, 
que  tem  o  coração  de  um  homem,  eos  inimigos  que 
a  voz  do  povo  cobre  do  sangue  de  meu  pai  —  uma 
hora,  um  instante  podem  perder-me  .  .  .  e  o  anjo,  que 
me  havia  de  salvar  tão  longe !  .  .  .  « 

—  "Na  falta  doesse  anjo,  Tenente  Orso,  acudiu 
ella  meia  seria,  ouvi  a  razão  e  a  honra  militar.  .  . — 
e  dando  alguns  passos  cortou  uma  llòr,  accrescentan- 
do  em  voz  mais  baixa  e  breve  —  guardai  esta  ro«a 
por  amor  de  mim.   E  uma  memoria  .  .  .  r> 

—  "  Ah  !  miss  Nevil,  se  me  atrevesse  \  .  .  .n 

—  "  Oh  1   tenente  Orso,  se  nos  calássemos  '....•' 
E  já   se  retirava  quando,   virando   o  rosto,    viu  o 

mancebo  esconder  as  faces  entre  as  mãos,  e  descair  e 
cabeça  sodre  o  peito  .  .  .  Não  teve  animo  de  o  deixar 
assim.  Voltou  atraz,  e  pouzando-lhe  os  dedos,  tão  sub- 
tis que  mal  tocavam,  no  hombro,  em  tom  de  terna 
reprehensão  só  murmurou  : 

—  "  Orso  !  .  .  .  ij 

Elle  \irou-se  sobresaltado,  eraostrou-lho.  de  certo 
sem  querer,  os  olhos  roxos  e  pisados.  Depois,  por  um 
impulso  superior  á  vontade,  arrojou-sc-lhe  de  joelhos 
aos  pés  sem  proferir  palavra. 

—  "Louco!  proseguiu  miss  Lidia  no  mesmo  foni, 
e  dando-lhe  a  mão  para  o  levantar,  ajunctou  com  si- 
mulada alegria  :  (iue  vergonha  para  um  militar  !  .  .  . 
erguer-se  pelo  braço  d-unia  mulher  !...'• 

A  verdade  é  que,  dos  dois,  miss  Lidi.-i  não  era  a 
menos  commovida,  mas  venceu  primeiro  a  sua  per- 
turbação, e  com  firmeza  repetiu  : 

—  "Orso,  isto  não  se  faz.  Se  meu  pai  viesse,  se 
nos  visse  ?  .  .  .  E  de  criança !  ^"amos,  já  que  não  ha 
remédio ;  promctto  uma  visita  ao  castello  delia  Ro- 
bia,  se  até  eu  ir  houver  .  .  .  juizo ..." 

—  "  Oh  !  miss  Nevil,  só  ouv  i-lo  ..." 

—  "Este  annel  foi  de  minha  mãi.  Fica  em  penhor 
da  promessa  ...  se  a  má  tentação  da  vingança  cor>a 
vier,  lembre-se  de  quem  liro  deu  ..." 

—  >■  Juro  que  dia  c  noite  me  fará  pensar  ..." 
i  Em  que  é  uma  scmsaboria  exp<Jr-sc  a  morrer 

na  forca  I  E  sobre  tudo,  que  aflVonta  para  os  manes 
dos  respeitáveis  cabos  seos  antepassados  I  .  .  .  m 

Dizendo  isto,  largou-o,  c  correndo  para  o  sitio  on- 
de já  soava  a.  voz  do  coronel,  gritou  de  longe  : 

—  "Então,  meu  pai,  haverá  hoje  perdão  geral  pa- 
ra as"  pobres  aves .'..." 

Ao  roniber  d*alva  do  seguinte  dia,  os  dois  filhos 
da  Córsega  entravam  nas  gargantas  dos  montes,  epor 
sendas  ásperas,  fatigados  e  tristes  amlKis,  chesraram 
ao  limiar  da  casa  que  os  viu  nascer.  Os  moradores 
Siiiram  a  receI>c-los,  mas  os  seus  festejos  não  desvane- 
ciam o>  prcsentinientos  stimbrios,  que  moravam  n"al- 
ma  d*uui  e  d"outro  desde  a  saida  de  Ajacio. 

ColomKi  anuna  seu  irmão  mais  do  qiie  a  ppopri.i 
vida;  mas,  eilucada  nas  crenças  supersticiosas  da  ilha 
natal,  julgava-o  fadado  por  1V"<  para  pedir  a  rigoro- 
sa conta  do  sangue  de  <«^>i  J>i»i  aos  Barricine.  Segun- 
do asiHi'ac  d'ella  e  do  todo  o  povo,  era  um  dever  sa- 
grado; se  um  instante  só  [KHJessc  duvidar  de  o  vèr 
cumprido  por  Orso,  mulher  e  fraca,  para  salvar  a  sua 
raça  da  deshonra,   senlia-se  com  animo  de  o  tentar. 


o  PAPÍORA3IA. 


187 


A  vingança,  entrando-lhe  no  âmago  do  coração,  em- 
laudecia  os  brandos  alíectos  que  são  a  mab  linda  flor 
da  immarcessivel  coroa  da  belleza. 

E  entretanto  era  bolla  e  sublime  aquella  virgem, 
d'alvura  do  lyrio,  quando  pelo  clarão  crepuscular, 
com  uma  rosa  branca  nas  madeixas  pretas,  e  um  véu 
demagua  nos  olhos  negros,  passava  recolhida  e  silen- 
ciosa a  espargir  o  incenso  das  orações  filiaes  aos  pés 
da  cruz,  no  mesmo  sitio  onde  seu  pai  expirara  aos 
tiros  da  traição. 

O  amor  filial,  tomando-a  ao  sair  da  infância  para 
a  idade  viril,  exacerbado  pela  dôr  da  orphandade, 
tinha  devorado  todos  os  outros,  que  nascem  e  flore- 
cem  no  peito  da  mulher.  A  primeira  e  única  paixão 
que  até  alli  conhecera,  era  o  religioso  e  sancto  culto 
ás  cinzas  d'aquelle,  cujo  braço  e  ineiTavel  afiFecto 
guiaram  na  vida  os  seus  primeiros  passos. 
Pobre  orpiiã  I  .  .  . 

Pouco  depois  da  chegada  de  Orso,  o  prefeito  ten- 
tou reconciliar  as  duas  famílias ;  mas  este  passo,  cm 
vez  de  trazer  a  paz,  acccndeu  novos  ódios.  Colomba, 
na  sua  fé  selvagem,  lançou  em  rosto  ao  velho  Barri- 
cini  a  morte  do  coronel,  e  seu  irmão,  que  a  princi- 
pio o  reputava  innocente,  á  vista  do  terror  e  da  pal- 
lidcz  de  repente  impressos  no  semblante  dos  seus  con- 
trários, contra  os  próprios  desejos  sentiu  que  as  sus- 
peitas tomavam  corpo,  e  quasi  se  convertiam  em  cer- 
teza. Seguiu-se  uma  conferencia  vehemente,  e  d'ella 
saiu  a  guerra,  mais  violenta  do  que  nunca. 
-  Colomba  vendo  o  fogo  atear-se,  parecia  mais  tran- 
qullla.  D'ahi  em  diante  toda  a  sua  vigilância  se  re- 
sumiu em  impedir  (jue  seu  irmão,  como  o  coronel, 
não  fosse  morrer  do  gol|)e  covarde  di-  uma  cilada. 

Estavam  n^este  estado,  «juando  se  recebeu  uina 
carta  de  miss  Lidia.  Escrevia  a  Columlja,  partici- 
pando-llie  ijue  no  seguinte  dia  vinha  buscar  a  hospi- 
talidade corsa  ao  seu  castello.  De  dentro  caiu  um 
bilhete,  que  Orso  leu  com  sofreguidão.  Trazia  ape- 
nas vagas  palavras  (Pamizade  com  o  conselho  de  ou- 
vir só  a  voz  (lu  razão  o  da  consciência. 

A  manhã  r(jnipia  serena.  O  nevoeiro,  ondeado  pe- 
la briza,  movia-se  como  um  véu  scinlillante,  corti- 
nando aqui  os  lopes  (los  nionles,  além  as  boecas  dos 
vallcs,  que  ])or  jneio  d^ellas  se  torciam.  A  aragem 
aguda,  endjalsamada  nos  perfunies  de  uma  vegeta- 
ção robusia,  rotempciava  os  sentidos  espertando-os. 
Mal  o  sol  nascia,  Orso,  no  fogoso  cavallo  (|ue  fl^ra 
de  seu  pai,  hívando  a  clavina  de  dois  canos  dada  por 
8Ír  Tiioniaz  Nevil,  niellia  a  bom  gallopar  direilo  ao 
encontro  dos  seus  aiiigos  ingh:zi's  sem  se  quer  escu- 
tar asadverlencias  de  sua  irmã,  nem  acceitar  a  com- 
panhia lie  alguns  cli<'ntcs. 

O  ar,  o  nuivimenlo  c  o  prazer  abriani-lhe  a  alma 
a  reflexões  alegres.  Viu  na  imaginação  os  mais  pic- 
lurcscos  recantos  da  ilha.  Pouco  a  pouco  as  medita- 
ções aéreas  concenlraram-se  n'um  ponio  único.  Jul- 
gou-se  d(!  repente  ú  sombra  dos  soutos  velhos  de  sé- 
culos deOrezza.  I'"lòr(-s  azues  de  purpúreas  marcheta- 
vam o  verde-esmeralda  das  finas  relvas.  O  azul  das 
flores  uvivou-lhe  assaliras  dos  olhos  denii»>  Jjidia,  e 
logo  a  uniu  aos  outros  phantasmas  (jue  lhe  fugiam 
nu  mente,  J'^slava  assentada  ao  seu  lado.  Liires  do 
chapéu  as  tranças  louras,  assedadas  e  llexiveis,  <íram 
ouro  refulginilo  ao  sol  em  caprichosos  anneis.  A  face 
mimosa  pouzava  no»  dedos  rosados,  eabocca,  entr'a- 
bcrlii  a  sorrir  convidava  por  um  sileni'io  riíUexivo  os 
votos  d^amor,  quo  balbuciava  tremulo.  As  mesmas 
roupas  brancas,  com  «ju.-  „  vira  em  Ajacio  a  ultima 
vez,  desenhavam  o  talln.'  esbelto  r.  uu  iiirmas  delica- 
da» entre  as  niil  jiregas  i|Ucí  faziam.  O  pi-,  .irijuiMilo 
o  breve,  apparecriido  fora  do  v<.'Slido,  nnctrava-se 
d'uma  indolência  deliciosa.    Urso  ardia  tun  anciã  do 


o  beijar,  mas  a  mão  direita  de  miss  Lidia  não  tinha 
luva,  e  segurava  um  l^rio.  Elle  pegava-lhe,  cobria-a 
de  ósculos,  e,  oh  fortuna  !  .  .  .  não  o  repeÚiam. 
Até  onde  chegariam  estes  sonhos  ?  ninguém  sabe  ; 
porém  no  melhor  d'elles  o  cavallo,  estacando  por  um 
sobresalto,  acordou  o  cavalleiro,  chamando-o  do  in- 
finito das  visões  para  a  prosa  ruim  das  realidades. 
Uma  criança  estava  defronte  d'elle. 

Era  a  fdha  de  um  dos  mais  famosos  salteadores 
corsos,  protegida  de  Colomba,  e  quasi  creada  em  sua 
casa. 

Era  o  principio  da  aventura,  que  cm  poucos  ins- 
tantes ia  decidir  da  sua  vida. 


\  lAGElI    Ás   MIXAS   DO   PerÚ. 

(Continuado  de  pag.  184. ) 

Ha  dois  methodos  de  apurar  a  prata  ;  se  o  metal  é 
diminuto  faz-se  por  meio  do  mercúrio,  se  abundante 
pela  fusão  do  metal. 

A  estrada  de  Regia  a  Real  dei  ]\Ionte  é  muito 
boa,  e  custou  avultadas  quantias  á  companhia  inglc- 
za,  que  teve  de  vencer  no  espaço  de  cinco  léguas  os 
obstáculos  de  um  paiz  montanhoso.  A  uma  légua  de 
Real  entra-se  no  que  chamam  canAaJa,  valle  por 
onde  gira  um  riacho.  Na  extrema  dVsta,  pouco  an- 
tes de  Real  dei  Monte,  está  a  mina  de  IMoran  :  di- 
zem que  é  farta  -,  porém  a  inundação  cada  vez  em 
mais  augmento,  fez  suspender  o  trabalho  até  se  com- 
pletar a  nova  galeria  subterrânea,  para  onde  devem 
despejar  as  aguas  todas  as  minas  da  companhia. 

Poucas  terras  ha  na  republica  mexicana  tão  des- 
providas de  recursos  para  os  viajantes  como  Real  dei 
Monte.  Achei  n'uuia  pousada,  como  alli  chamam, 
um  quarto  de  todo  desguarnecido,  com  uma  janella 
em  franquia  ao  vento  norte,  cjue  soprava  como  pelo 
iValal  em  nossas  províncias  septentrionaes.  —  E  uma 
villa  |iequena  em  meio  de  serras,  que  não  vive  senão 
do  [jroducto  da  miner.ição,  e  tudo  lhe  vem  de  fora. 
Não  .s(?  divisa  casta  alguma  de  cidlura  nos  arredores; 
mas  alli  ])roduz  aterra  o  mcMal  que  nos  faz  gozar  do 
trabalho  alheio.  —  \'endo-se  os  grupos  de  montanhas 
amontoadas  de  entranhas  de  prata,  caus.im  assombro 
as  immensas  riquezas  ireste  j)aiz  tão  privilegiado  pe- 
la natureza.  Segundo  os  cálculos  do  sábio  lluniboldl, 
novt?  décimos  da  ])rala  que  existo  tem  sido  extrahi- 
da  das  minas  do  México  :  e  conituílo  o  que  são  as 
paragens  se])aradas  que  at"'>  «gora  se  tem  explorado 
cm  com|)araçào  i-oii>  lodo  o  México  que  se  pode  re- 
putar  uma  vasta  mina  ! 

A  massa  de  prata  exlrahida  ilas  minas  do  Ouana- 
juato,  S.  Luiz  de  Potosi,  Zacatecas,  Sondirerele, 
Heal  de  Catorcc,  &,c.,  é  um  átomo  em  relação  á 
(jue  ainda  está  enterrada  no  seio  das  montanhas  que 
cercam  estes  logares,  o  aos  iiK^xgotaveis  thcsouros  de 
Sonora  o  (."inalva,  (.'hihuahua,  Novo-Mexico,  &c. — 
Alli  não  somente  abundam  prata  e  oiiro  no  interior 
da»  serras,  mas  até  os  rios  e  as  torrentes  rarreiani 
grande  quantidade;  «restes  nu-taes  preciosos,  que  mes- 
mo nas  areias  se  encontram.  O  ouro  em  pó  é  objecto 
lie  trafico  entre  os  selvagens  eos  mexicanos  habitan- 
tes da  fronteir.i  do  deserto  ■,  uq\ielles  o  vcem  trocar 
por  armas,  nuiniçõi's,  e  aguardente. 

.Itend>ra-nie  qui;  projeclaiulo  a  minha  \iaguui  ao 
MexiiMi  fa/.ia  ás  vezes  castellos  no  ar,  bascadiw  \ut 
descobrimento  de  uma  nuna  di-  ouro  ou  prat.i.  Ali- 
gurnva-se-nie  o  (pie  provavelmente  se  alíjura  a  uiui- 
liv  f;riit<-,  <|ue  a(>  isso  bastaria  para  ler  unia  ri>|ueita 
estrondosa.  Porém,  pudein  vir  ;io  México  ciuii  a  C(!r- 
teza  duusttchur  sem  muito  custo  cm  |>iocurul-as  :  Ito 


188 


O  PANORAMA. 


milhares  abandonadas  e  que  estão  á  disposiçSo  de 
ijuem  quizer  explora-las.  E  não  porque  o  metal  d'e&- 
sas  minas  esttja  esgotado  •,  talvez  que  três  quartas 
partes  d 'ellas  encerrem  copiosas  riquezas.  Mas  é  pre- 
ciso que  o  acaso  descubra  ricos  veios  metallicos  :  até 
o  ponto  cm  que  se  acham  as  despezas  da  mineração 
lorani  dobradas,  triplicadas  e  ainda  mais  do  que  o 
producto  que  se  colheu.  As  especulações  era  minas 
suo  verdadeiros  jogos  de  parar  ;  por  mil  dos  minei- 
ros ha  um  que  enriquece. 

A  companhia  inglcza  de  Real  dei  Monte  empre- 
gou em  doze  a  treze  annos  oito  milhões  de  pezos  du- 
ros para  explorar  as  que  lhe  pertencem ;  cinco  mi- 
lhões se  consumiram  em  pô-las  em  estado  de  se  fazer 
a  exploração,  em  mandar  vir  excellentes  machinas  de 
vapor,  na  construcção  da  estrada  de  Regia,  &c.  :  os 
outros  trcs  milhões  indicam  o  excedente  das  despe- 
zas diárias  sobre  o  valor  do  metal  convertido  em  bar- 
ra. Tem-se  gasto  3o:0(IO  pezos  por  mez  para  o  costeio 
da  exploração,  quando  a  praia  extrahida  não  tem 
dado,  até  setembro  de  1836,  senão  dez  a  vinte  mil 
pezos  no  mesmo  espaço  de  tempo.  Os  veios  que  se 
descobriram  no  dicto  mez  eram  magníficos,  promet- 
tendo  grande  indemnisação  á  companhia  pelos  em- 
pates anteriores. 

As  principaes  minas  de  Real  dei  Monte  são  as  de 
Terrcros,  S.  Caetano,  Moran,  Sancta  Thereza,  Gua- 
dalupe, Dolores,  Sancta  Izabel,  Sancta  Barbara,  &.C. 
—  Desci  á  de  S.  Caetano,  ás  dez  horas  da  manhã 
com  um  empregado  da  administração,  que  me  tinha 
enroupado  do  mesmo  modo  que  elle  ia,  isto  é,  com 
caniiza  e  ceroulas  <le  ílanella,  calça  e  jaqueta  de  pan- 
no  de  linho,  barreio  á  feição  de  solideo,  e  um  cha- 
péu de  abas  largas  de  feltro  mui  compacto,  cuja  uti- 
lidade tu  logo  conheci  nas  galerias  baixas  e  tortuo- 
sas,  todas  erriçadas  de  escabrosidades  traidoras :  o 
chapéu  também  serve  para  levar  a  luz  no  acto  desu- 
nir i>\i  descer  as  escadas.  A  forma  dVstas  offerece 
grandes  riscos,  porque  não  são  mais  do  que  uma  se- 
rie d"enlalhos  feitos  u'um  tronco  de  arvore  de  seis  a 
sete  pollegadas  de  diâmetro,  os  quaos  se  empastam 
apouco  e  pouco  com  um  barro  viscoso,  que  se  apega 
ao  calçado  dos  mineiros  e  faz  a  escada  escorregadia. 
Desgraçado  do  que  põe  mal  o  pé  c  não  pode  evitar 
a  queda  abraçaiido-se  furlemente  com  o  tronco  •,  so- 
rae-se  no  abvsmo,  o  cm  cada  angulo  saliente,  em  cada 
ponta  de  rocha  lhe  fica  um  pedaço  de  carne  palpi- 
tante .  Taes  são  as  do  uso  do  paiz ;  porém  nas  esca- 
das de  verga  tli-  dírro,  adoptadas  pelos  inglezcs,  não 
é  perigosa  a  descida,  iii,:  „em  é  difficil,  posto  que  a 
posição  seja  vertical.  Em  doze  mimilos  tinhamos 
vencido  sem  fadiga  a  altura  <le  perlo  de  mil  e  du- 
zentos pés.  —  Póde-sc  também  subir  e  descer  pelo 
malacaic,  mas  é  muito  mais  perigoso.  Chamam  os 
mineiros  malacaic  a  um  apparclho  coUocado  cm  ci- 
ma do  poço  ou  bocca  da  mina,  por  meio  do  qual 
içam  o  mineral  cm  saccos  de  couro:  se  cair  uma  pe- 
dra e  tombar  um  dos  saccos,  se  o  cavallete  em  que 
ides  assentado  não  estiver  solidamente  fixo  na  extre- 
midade do  cabo,  ou  se  baterdes  com  violência  dVn- 
coiitro  aos  saccos  que  vão  em  direcção  contraria,  cor- 
reis o  risco  de  pavlir  a  calieça  ou  dar  uma  camba- 
lhota até  o  fundo  do  poço. 

Chegado  ás  iralerias,  achoi-me  no  caso  de  admirar 
a  riqueza  da  veia:  trouxe  mineral,  cxtrahido  na  mi- 
ídia  prcícnça,  que  nfio  conlém  menos  de  GO  a  70 
marcos  de  prata  por  lidha  de  30  quintaos ;  econsta- 
ine  cjue  ainda  se  aliança  mais.  E^n  geral,  é  preciso 
que  o  munle  ou  lulha  |)roduza  doz  a  quinze  marcos 
de  prata  para  i-ibrir  asdcspczas.  —  As  bct.is  ou  vici- 
ros,  que  cu  examim-i,  acham-v  em  planos  inclina- 
ílos,   formados   por  bandas  de  melai,  separadas  por 


camadas  de  quartzo  :  são  mais  ou  menos  abundantes 
e  cruzam-se  em  todas  as  direcções,  de  sorte  que  ha 
minas,  exploradas  ha  muitos  annos,  cujas  galerias 
formam  verdadeiros  labyrinthos :  a  de  Fresnillo,  ao 
pé  de  Zacatecas,  é  no  interior  como  ura  cortiço  de 
abelhas. 

As  galerias  inferiores  estão  sempre  innundadas,  não 
obstante  as  bombas  •,  é  para  remediar  este  inc-onve- 
niente  que  se  abre  o  canal  d'escoamento  ao  nivel  da 
base  da  montanha.  Em  alguns  si  tios  dava-nos  a 
agua  por  meio  da  perna,  encontros,  ainda  mais  por 
cima;  porém  esta  agua  não  causa  impressão  desagra- 
dável;  é  morna.  A  temperatura  do  fundo  actual  das 
minas  conserva-se  constantemente  a  28  graus  centí- 
grados :  o  calor  é  mais  intenso  na  Valenciana  (em 
Guanajato),  mina  a  mais  profunda  do  México. 

Depois  de  haver  percorrido  com  o  meu  guia  du- 
rante mais  de  três  horas  as  minas  da  companhia  que 
se  communicara,  dei-lhe  pressa  para  subirmos.  Ne- 
nhum prazer  me  causava  a  luz  das  lanternas  de  que 
usam  os  mineiros,  que  me  infundiam  saudades  da 
claridade  do  sol,  que  eu  deixara  tão  resplandecente, 
vendo  pouco  a  pouco  amortecerem -se  os  seus  raios  á 
proporção  que  me  internava  nas  entranhas  da  terra. 

Subimos  pela  mina  de  Terrcros.  Se  nenhuma  fa- 
diga tinha  soffrido  ao  descer,  não  foi  assim  ao  subir: 
comtudo,  cheguei  a  galgar  os  dois  terços  primeiros 
do  espaço  sem  muita  difliculdade ;  mas  d"ahi  para 
diante  faltava-me  o  fôlego,  suífocava-me,  estava  meio 
morto.  Tinha  de  algum  modo  cessado  a  acção  dos 
músculos  ■,  era  tão  somente  por  uma  contracção  ner- 
vosa que  eu  trepava  as  escadas,  e  duas  vezes  senti 
\\m  abatimento  sinistro.  O  abvsmo  estava  ao  meu 
lado  ;  roçava-me  pelo  hombro  a  Ixjraba,  que  produ- 
zia um  som  rouco  com  o  seu  movimento  compassado. 
Comtudo,  posto  que  de  vagar,  seguia  por  diante ;  a 
final  divisei  a  claridade  do  dia  penetrando  pelas  gre- 
tas da  porta  superior :  senti-me  reanimado,  e  em 
breve  pude  respirar  á  vontade  o  ar  agudo  e  puro  da 
montanha,  e  gozar  do  esplendor  do  sol,  de  que  havia 
pouco  tantas  saudades  tivera.  — 


U.M    AHNO    ENTRE    OS   MORLACOS. 

Ao  CHEGAR  a  Trieste,  ha  trcs  mczes,  tomei  para  o 
meu  serviço  um  morlaco ;  quando  digo  que  me  ser- 
via, não  me  exprimo  bem,  entendo  que  cUc  era  o 
amo  e  ou  o  servo.  Com  eíTeito,  nunca  so  viu  mais 
severo  e  inflexível  pedagogo  do  que  aquelle  velho  :  re- 
provava austeramente  os  meus  caprichos  artisliccs,  in- 
quictava-se,  como  se  fora  pai,  recolhendo-me  eu  tarde  ; 
mas,  cmfini,  tornava-se  desculpável  á  força  de  affeí- 
ção  por  aquella  auctoridade  que  arrogara.  Convcni 
dizer  que  este  homem,  antes  de  me  servir,  adoecera 
gravemente  na  visinhança  da  casa  que  eu  habitava. 
Constou-me  que  ao  pó  de  mim  havia  um  xolho  mo- 
ribundo e  desíimparado  de  lodos ;  como  lambem  me 
intrometto  na  medicina,  fui  faicr-lhe  um.v  v  isita.  L  ma 
sangria  o  algum  auxilio  pecuniário  proniplamente  o 
pozcram  em  convalescença.  Achando-se  curado.  Pedro 
quiz  a  lodo  o  custo  sor  meu  criado.  centalx>lou-se  cm 
casa  j>or  minha  vonl.ido  ousem  ella.  —  IVxlro  ropre- 
hendia  mais  que  tudo,  no  meu  proceder,  as  rcl.iç5es 
com  os  mestres  do  navios  das  ilhas  Jonias  que  vinham 

mercadejar  a  Triesfo. .  E^sa  gente  ldi"a-mc)  o  um 

I  bando  de  tratantes  efaquisl.is.  Nio  colheis  d'eÍlc5  se- 
.  não  rasgões  na  Ik)1s;>  o  no  corpo.  •• 

Não  iardou  a  r<-.ills;»r-se  a  prcdicção  donicuvrlho, 
'  >Miisinclo-mo  vivo  arropondimento  de  i>."io  haver  es- 
J  culado  os  seus  consollios.  ISào  eram  doc»írridos  mui- 
'  los  dias.  Ires  d"aquelles  homens  das  Jonias  nicindu- 


o  PA?<ORA3IA. 


i89 


firam,  depois  de  ceia,  a  jogar  com  clles.  A  sorte  obs- 
tinou-se  em  me  fazer  perder  por  tal  modo  que  me 
vieram  á  memoria  as  suspeitas  de  Pedro  :  —  quebrei 
os  dados  ;  eram  chumbadd^.  Indignado  e  furioso  de 
cholera,  lancei  em  rosto  áquellcs  vis  aladroice  Dei- 
taram-se  a  mim,  porém,  defendendo-me  animosa- 
mente, cheguei  aferir  um  d'elles.  Pude-me  escapar, 
e  recoíhi-me  a  casa  todo  ensanguentado,  porque  ti- 
nha recebido  duas  feridas  leves  na  cabeça  :  não  hou- 
ve remédio  senão  contar  ao  velho  morlaco  o  que  se 
passara. — "Pelo  nome  de  Deus!  (exclamou  elle)saí 
já,  meu  amo,  saí  já  de  Trieste  :  —  não  sabeis  com 
que  perigosa  canalha  estais  mettido.  \  ão  armar-vos 
ciladas,  cercar-vos  de  emboscadas  :  to<los  os  meios  lhes 
servirão  para  se  vingarem.  ;' 

Ria-me  eu  d'estes  dictos  quando  entrou  a  minha 
patroa  toda  assustada  :  —  u  Senhor,  os  capitães  jonios 
acabam  de  denunciar- vos  á  justiça  ;  declararam  que 
fostes  apanhado  em  trapaça  no  jogo,  eque  assassinas- 
tes um  de  seus  camaradas.  " 

Fiquei  abysmado  com  tamanha  audácia. 

—  "A  minha  justificação  será  fácil  ;  arrancarei  a 
mascara  a  esses  embusteiros.  ?' 

—  "Toda  a  equipagem  jonia  está  amotinada,  eat- 
tentam  contra  a  vossa  vida:,  eterno  que  a  justiça  il- 
lyrica,  e  a  intervenção  do  vosso  cônsul  não  possam 
proteger-vos  efficazmente  n^este  apuro.  Se  escapardes 
ao  punhal,  não  escapareis  áscolumnias.  Não  sois  co- 
nhecido em  Trieste,  onde  chegastes  sem  cartas  de  re- 
commendação.  Trinta  testinninhas  compradas  attes- 
tarão  que  roubastes  ao  jogo  e  matastes  o  parceiro : 
ninguém  vos  defenderá,  nem  provará  o  contrario. 
Ainda  mesmo  que  triumpheis  doeste  aboniina\el  en- 
redo, podeis  incorrer  em  muitas  desgraças  e  n"um 
longo  captiveiro.  Crêde-me  ^  fugi  até  que  se  dissipe 
a  tormenta.  " 

—  "  Mas  para  onde  fugirei  ? .  .  .  » 

—  n  Para  a  minha  terra,  para  os  morlacos,  "  acu- 
diu Pedro. 

Levado  pelo  voliio,  assombrado  das  sinistras  pro- 
phecias  da  hospedeira,  parti  de  noite  como  crimino- 
so, e  eis-me  entre  os  morlacos. 

Este  povo  illyrico  não  só  habita  um  limitado  espa- 
ço na  margem  septenlrional  dogolpho  adriático,  mas 
também  .se  acha  na  alfa  Dalmácia.  A  palavra  morla- 
co vem  das  duas  esclavonias  maré  ou  inur,  que  si- 
gnifica mar,  e  vhtch,  c|uc  significa  italiano,  como 
<|ucra  diz  "italianos  marilinios.  » 

A  casfi  do  meu  patr-lo,  filho  do  velho  Pedro,  é  hor- 
rendamente negra-,  aluiuiain-ii'a  cnm  achas  de  pinho 
e  de  outros  lenhos  resinosos  que  deitam  espessa  fuma- 
rada.  A  beira-mar  as  cabanas  são  de  pedras-,  e  nas 
mont.-mhas  são  miseráveis  choças  feitas  de  madeiros, 
repartidas  ao  meio  ;  metade  ])ara  a  gente,  e  outra 
mi-t.-idc  |>;ira  o  gado.  —  Poucos  progrtí»sos  tem  feito 
a  industria  entre  este  povo.  Nas  montanhas  levam 
uma  vida  puramente  pastoril-,  a  agricidtina  é  nuiito 
de»prez,ida,  não  perniiltindo  o  rigor  do  clima  espe- 
rança de  outras  colheitas  <[ue  não  sejam  centeio  c 
aveia.  A  triaijão  de  ijitdo  em  '^eral  éde  ovi^lhas  e  ca- 
bras-,  os  montes  ciicareos  produ/em  plantas  enxutas 
e  aromáticas,  que  fazi'ni  ser  a  carne  do  giido  mais  sa- 
borosa e  nutritiva.  Onde  ha  maltas,  apromptam  ta- 
buado, curvas  de  cavername,  e  outras  madeiras  ne- 
cessárias p:ira  n  construcção  das  barcas,  e  as  reinet- 
tem  par.i  os  poijueiios  portos  lia  costa.  —  Na  parle 
chã  do  paiz  culti\ai,i.v.  milhos  eoutros  grãos-,  com- 
tudo,  o  amanho  das  vinlias,  ..  depois  a  pesca  são  as 
oceupaeões  priíu-ipacs  dos  habiljintes. 

Assisti  a  uma  (H-scaria  de  atuns.  l'ara  attiahir  a 
um  ponto  graii(l<'(|iiaul  idade  (Pestes  peixes,  collocam 
a   Jiouca  distancia    da  praia  escadas    <le  seis  t)raç«s   e 


mais,  dispostas  de  tal  modoqne  se  levantara  obliqua- 
mente acima  da  superficie  da  agua :  em  cada  uma 
d'e5tas  escadas  está  um  homem  com  um  sacco  cheio 
de  pedras  grossas,  espiando  a  passagem  dos  atuns  : 
quando  descobre  algum,  atira  uma  pedra  de  maneira 
que  o  peixe  espantado  foge  para  o  lado  das  redes.  A 
situação  dos  pescadores  é  mui  critica  :  se  a  escada  se 
parte,  caem  na  agua  :,  na  verdade  que  todos  são  bons 
nadadores,  mas  a  costa  n'esta5  paragens  é  tão  erriça- 
da  de  penedia  a^uda  que  lhos  pide  succeder  muito 
mal.  (Continiia.J 


_    i!ííi{íl.S^:.;.í:'-Í!lil\^^ 


o  ARCBITECTO  DA  BATALHA. 


A  OBU.v.  mais  estupenda  do  sumptuoso  convento  da 
Batalha  é  sem  contradicção  a  casa  do  capitulo.  Diz 
o  L-hronista  :  —  i.  Sendo  quadrada  e  tendo  340  pal- 
mos em  âmbito,  a  8o  por  cada  lanço..  <i  fechada  de 
abobada  decantaria,  sem  coluiimn,  nem  esteio,  neiu 
cousa  que  a  sustente,  »cni  mais  repuxo  da  liaada  do 
fora  que  a  companhia  do  edifício  que  lhe  fiixi  nos  la- 
dos."—  Euí  uni  dos  ângulos  d'csta  casa  se  vè  obus- 
to  acima  copiado,  que  a  tradição  affirma  representar 
oarchitecto  da  Batalha  ;  masi-onio  esta  tabrica  gran- 
diosa na  successão  dos  trabalho»  não  teve  um  só,  o 
dilVieil  averiguar  de  qual  seria  imagem:  o  douto  car- 
deal Saraiva,  na  Memoria  sobro  as  obras  d"oslc  mos- 
teiro, inserta  no  vol.  10."  da  collecção  in/o/ío  da 
Academia,  escreveu  que  uera  manilosto  que  não  po- 
dia ser  dcMalh<'US  Fonianiles  como  se  tem  assevera- 
do sem  ex,iiiie  o  sem  fundamento.  "  Segundo  a  or- 
dem lios  tempos  c  da  obra  não  pôde  ser  (<liz  elle)  se- 
não de  Aflonso  Domingues  ou  de  mestre  Ouguct  (ou 
lliiet),  visto  serem  aquelles  debaixo  de  cuja  direção 
julgamos  haver  corriílo  tod.i  a  obra  primitiva.  •> 

De  todos  estes  mestres  são  esi-assissiiiias  as  inenui- 
rias  ^  comtudo  é  certo  que  o  primi-iro  ^wc  dirigiu  a 
luaravilluisa  fabrica  ireste  mosteiío  loi  AlV.mso  Do- 
mingues, lie  quem  diz  o  ehronista-mór,  l'V.  Manuel 
lios  Sanctos,  ora  natural  ile  liisbo.i,  d.v  IVegueiia  di 
Magdali'iia,  accrescentando  que  ó  — ».  merecedor  de 
eterna  memoria  pela  c»[>acissimi»  idéii  coiii  que  diU 


190 


O  PAIVORAMA. 


neou  a  fabrica. ;'  —  Aflfonso  Domingues  é  a  persona- 
(;em  importante  do  romance — a  Abobada,  —  que 
com  outros  saídos  da  mesma  penna  deu  celebridade 
ao  antigo  Panorama. — O  remate  da  casa  do  capita- 
lo  é  o  assumpto  principal  d*aquella  formosa  compo- 
sição litteraria. 


Agiotagem  de  Law. 

A  CASA  d'cste  celebre  ijnanceiro,  na  rua  Q-uincam- 
poix,  foi  o  theatro  d'unia  agiotagem  desenfreada. 
Parece  que  todos  tinham  perdido  o  juizo  :  Law  via- 
se  importunado  diariamente  por  pessoas  de  todas  as 
classes  e  de  todos  os  sexos,  que  recorriam  a  toda  a 
casta  de  extratagemas  para  que  elle  lhes  desse  um 
momento  de  audiência-  Um  dia  que  tinha  ido  jan- 
tar com  madame  de  Simianc,  madame  de  Bouchu, 
que  mandara  espreitar  a  que  hora  jantavam,  passou 
na  sua  carruagem  por  diante  da  casa  e  mandou  ao 
boleeiro  e  aos  lacaios  que  gritassem  fogo !  fogo  I  Le- 
vantaram-se  logo  todos  da  mesa  para  saberem  onde 
pegara  o  fogo,  e  n^esse  numero  entrou  Law.  Assim 
que  madame  de  Bouchu  o  viu  saltou  da  carroagem 
para  lhe  fallar  \  porém  Law,  que  adivinhou  a  as- 
túcia, esqui vou-se-lhe.  Outra  senhora  fez  que  a  le- 
vassem n'uma  carrossa  até  defronte  da  casa  de  Law 
e  que  ahi  lh'a  tombassem.  Bradou  ao  boleeiro:  — 
■í  Tomba  a  carrossa,  mariola,  tomba-a  I  "  Law  acu- 
diu era  seu  soccorro,  ecUa  então  confessou-lhe  haver 
feito  isto  de  propósito  para  poder  ter  uma  entrevista 
com  elle. 

A  agiotagem,  que  estava  pouco  á  larga  na  rua  de 
tiuincanipoix,  mudou-se  para  a  praça  Vendoma  :,  al- 
11,  diz  Duelos,  se  junctavam  os  mais  vis  patifes,  cos 
mais  nobres  senhores,  todos  reunidos  e  nivelados  pe- 
la avareza.  Apenas  se  citavam  na  curte  os  nomes  do 
chanceller,  dos  marechaes  de  Villeroy  c  do  Villars, 
dos  duques  de  Saint-Simon  e  de  la  Rochefoucauld, 
<iue  tinham  escapado  ao  contagio  .  .  .  Ao  chanceller 
incommodava-o  o  tumulto  da  agiotagem  na  praça 
^  endonia,  onde  eslava  a  chancellaria  ;  então  o  prín- 
cipe de  Carignan,  que  era  mais  ávido  de  dinheiro 
do  que  escrupuloso  acerca  dos  meios  por  que  lhe  vi- 
nha, oITereceu  o  seu  jialacio  de  Soissons,  em  cujo  jar- 
dim mandou  construir  uma  quantidade  de  barraqui- 
nhas, que  alugava  por  quinhentas  libras  cada  uma  ao 
mez  :  rendia ui-lhe  todas  quinhentas  mil  libras  por 
anno.  Iara  obrigar  os  agiotas  a  servirem-so  d^ellas, 
alcançou  uma  ordem  regia,  (jne,  com  o  pretexto  de 
estabelecer  a  policia  na  agiotagem  e  prevenir  a  per- 
da das  carteiras,  prohibiu  que  se  fizesse  qualquer 
transacção  lura  das  taes  barracas. 

As  circumstaneias  deram  logar  a  muitos  dictos  en- 
graçados. Um  dos  melhores  foi  a  resposta  que  um 
certo  Turmenios,  guarda  do  thesouro  real,  deu  ao 
duque  de  Bourbon,  neto  do  grande  Conde.  Louvan- 
do-se  um  dia  este  príncipe  de  ter  muitas  acções :  — 
«  Senhor,  lhe  disse  Turmcnies,  duas  acções  de  vosso 
avô  valem  mais  que  todas  estas.  ?'  —  O  duque  riu-se 
para  se  não  vêr  obrigado  a  agastar-se. 

As  acções   do   banco  estabelecido   na  França  por 
João  Law   no  tempo   da  regência  do  duque  de  Or- 
leans,  e  convertido  cm  banco  real  em   171S.  cliega- 
ram   a   correr   por   vinte   veres   mais   do   seu   valor. 
N'elle   se  recebiam  os  rendimentos  do  reino;  addi- 
cionou-se-lhe  uma  companhia  do  IMissisipi,  c  deu-se-  I 
lhe   o   comraorcio  do   Senegal   com   o  pri\ilegio  da! 
companhia  i\:vs  índia».    Em  171!)  valiam   os  seus  bi-  I 
Ihetes  oitenta  vtids  todo  o  dinheiro  que  podia  circu- 
lar na  França,   c  como  o  governo  p.igava  as  dividas  : 
cum  estes  papeis,  ficaram  desbaratadas   as  mais  soli-  ' 


das  fortunas,  e  \iu-3e  obrigado  o  escocez  Law  a  aba- 
lar da  França  no  anno  seguinte.  Ha  porém  quem 
affirme  que  foi  honrado,  porque  deixou  deappro>'ei- 
tar-se  deiramensas  riquez&s  que  podia  levar  comsigo. 


Reis  de  Ihglatebba  aue  fobam  ArcTOREs. 

HoBAcio  Walpole,  conde  de  Oxford,  publicou  em 
1761  um  livro  mui  curioso,  em  que  vem  a  lista  de 
todos  os  príncipes  e  nobres  da  Liglaterra  que  foram 
auctores.  Paliaremos  só  dos  príncipes. 

"Nãoquiz,  diz  Walpole,  subir  além  daconqubta, 
posto  que  o  nome  respeitável  de  Alfredo  me  convi- 
dasse com  instancia  para  com  elle  ornar  a  minha 
collecção ;  mas  em  tal  caso  não  saberia  em  que  epo- 
cha  devera  parar;  ealém  disso  receei  ter  de  me  ha- 
ver com  outro  Alfredo,  rei  de  Xorthumberland,  com 
um  Arvigarus,  com  a  famosa  Boadicea,  e  com  o  rei 
Bladud,  que  descobriu  as  aguas  de  Bath  e  a  arte  de 
voar. " 

Maravilha  achar  á  frente  dos  reis  auctores  o  feroz 
Ricardo  Coração-de-leão.  No  fim  do  reinado  de  seu 
pai,  que  elle  perturbou  com  as  suas  rebelliões,  dií-se 
que  viveu  muito  na  corte  dos  principes  de  Proven- 
ça, que  aprendeu  a  sua  Ungua  e  cultivou  a  sua  poe- 
sia, chamada  então  gaya  sciencia,  que  era  o  modelo 
da  cultura  do  século  XI.  Walpole  traz  uma  cantiga 
em  lingua  romã  que  attribue  a  Ricardo  :  esta  canti- 
ga f<ji  achada  em  Florença  na  bibliotheca  Laurenti- 
na.  —  Attribueni  a  Eduardo  II  um  poema  latino  in- 
titulado :  Lamentação  do  glorioso  rei  Eíhrard  dt 
Camavan.  composia  na  sua  prisão.  —  Sabe-se  que  o 
rei  Henrique  VIII  publicou  em  seu  nome  uma  refu- 
tação das  doutrinas  lutheranas,  com  o  titulo  de:  De- 
feza  dos  sacramenios  contra  Luthcro,  e  que  deveu  a 
esta  obra  o  titulo  de  defensor  da  fé,  que  legou  aos 
seus  successores.  Aljuns  historiadores  pretendem  que 
o  pai  de  Henrique  VlII  o  destiiurra  ao  principio  pa- 
ra bispo  de  Cantorbery,  eque  d"aqui  vinham  os  seus 
conhecimentos  theologicos.  Attribuem-se  também  a 
este  peincipe  outros  dois  livros,  intitulados  um  d'el- 
les  :  liducaçuo  do  Chrisião  •,  e  o  outro  :  Educarão  da 
Mocidade. 

Aos  nomes  d'estcs  reis  seguc-se  o  da  rainha  Ca- 
tharina  Parr,  sexta  mulher  de  Henrique  VIII;  esta 
princeza  não  só  era  douta,  também  era  protectora 
das  lettras  ;  intercedeu  pela  universidade  de  Cam- 
bridge quando  quizeram  destruir  todos  os  ciiUegios 
como  iscados  de  papismo.  Rotam  d"ella  algumas 
obras,  sem  duvida  de  mínima  im[xjrtancia,  porque 
AN  alpole  nem  se  dá  ao  traKilho  de  as  mencionar. 

As  obras  de  Eduardo  IN'  tecm  sido  citadas  por 
muitos  escriptores ;  díz-se  que  compoz  uma  comedia 
elegantíssima,  com  um  titulo  que  o  não  é  :  scorlum 
líabylonls ;  estacomedi.i  perdeu-se  descraçadamente, 
como  a  maior  parte  das  peças  d"aquelle  tempo. — 
Restam  alguns  livros  devotos  da  rainha  Maria:  Eras- 
mo diz  que  ella  escrevia  mui  liem  cartas  latinas:  a> 
suas  cartas  francezas  são  pciadissímas  e  pubrisÃima». 
O  bispo  Tanner  lhe  attribue  uma  historia  da  sua  vi- 
da e  da  sua  moríe  com  itulividxiai^iio  dos  marlyres  do 
seu  rcincuh.  Como  poudc  ella  compor  a  historia  da 
sua  morte .' 

A  rainha  Isabel  foi  verdadeiramente  douta;  tinha 
cor.íagrado  ao  estudo  o  tempo  da  advc^idadc.  i>to  c, 
os  aiinos  que  precodoram  a  sua  exaltação  ao  fhrono. 
Esta  mulher  cstraonlinari.i  tnduiia  Euripidcs,  Ho- 
rácio, líocratr-.,  e  commrut.iva  Platão:  respondia 
imniedíatamenle  com  muita  facilidade  em  grego  e 
cm  latim  ;  escrevia  cm  verso  e  prosa ;  e,  o  que  não 
é  menos  singular,   compunha  com  mui  fclLi  successo 


I 


o  PAISORAMA. 


191 


logogryphos  e  enigmas.  —  Um  grosso  in  folio  tem  o 
nome  de  Jacques  I,  e  ninguém  contestou  a  este  rei 
uma  só  palavra  da  Denvonologia  ou  do  seu  tractado 
contra  a  tabaco  :  Acottnicrblad  to  labacco.  Citações, 
subtilezas,  passagens  da  Escripfura,  erudi<;ão  arras- 
tada, superstifjOes,  vaidade,  pedantismo,  taes  são  os 
ingredientes  de  que  se  compõem  todas  as  obras  de 
S.  M.  ,  e  que  lhe  mereceram  o  incenso  d^alguns 
theologos  contemporâneos. 

As  oVjras  de  Carlos  I  foram  colligidas  depois  da 
sua  morte,  e  publicadas  em  Haya  com  este  titulo  : 
Reliqui<E  sacra  Carolincz,  ou  obrai  tanto  civis  como 
sagradas  do  grande  monarclia  c  glorioso  martyr  el- 
rei  Carlos  I.  Entre  estas  obras,  de  que  algumas  são 
evidentemente  apocryphas,  acha-se  uma  traducção 
das  lições  do  bispo  Saunderson  sobre  a  Obrigarão  do 
juramento  promissório.  —  Carlos  II,  o  único  homem 
de  talento  da  familia  dos  Stuarls,  não  foi  auctor. — 
Seu  irmão  Jacques  escreveu  memorias  da  sua  fida  e 
das  suas  campanhas  até  a  restaurarão.  'l'aiiibem  lia 
d^elle  urna  collecção  de  meditações,  solilóquios,  vo- 
tos, &c.  Um  doestes  volos  é  levantar-sc  todos  osdias 
ás  sete  horas  da  manhã.  Esta  collecção,  que  dizem 
ter  sido  composta  por  Jacques  II  em  S.  Germano,  é 
escripta  cm  máu  inglez,  foi  publicada  cm  l'arís  pe- 
lo padre  Bretonneau,  jesuíta.  O  frontispício  repre- 
senta o  rei  sentado  n'uma  poltrona,  com  ar  pensati- 
vo e  uma  coroa  de  espinhos  na  cabeça. 

Aqui  acaba  no  livro  de  W  alpole  a  lista  dos  reis 
auctores. 

Ceuemontal  da  cóhte  bvzantina. 

Ijuitpbando,  bispo  de  Cremona,  que  nasceu  no  co- 
meço do  X  scculo,  dcixou-nos  unia  relação  bem  cu- 
riosa de  muitas  embaixadas  em  <|ue  elle  foi  á  corte 
dos  imperadores  gregos.  As  p.irticulMrid;i(les  seguin- 
tes, extrahidas  da  sua  narração,  j)odcrão  dar  uma 
idéa  do  ceremonial  seguido  na  corte  byzaniina. 

A  primeira  embaixada  de  Luil|)ran(lo  foi  em  948. 
No  dia  em  que  se  a|)resi'nlou  ao  inqx-rador  Cons- 
tantino VII  levaram-no  á  sala  da  audiência  ás  cos- 
ias de  dois  (íscravos.  Otliroiio,  rpie  era  muito  largo, 
tinha,  á  maneira  de  braços,  dois  Icõí^s  de  ouro,  d(! 
grandeza  natural,  cujosolhosse  moviam.  —  Km  fren- 
te do  Ihrono  estava  uma  arvore  d(!  cobre  dourado,  e 
nos  seus  rumos  pousavam  diversos  pássaros  do  mesmo 
metal,  cantando  cada  um  d'elles  como  os  da  sua  es- 
pécie, liiiando  Luitprando  se  chegou  ao  throno  em 
que  eslava  sentado  o  imperador,  vestido  de  galas  ri- 
quíssimas, começaram  os  leões  a  rugir  e  os  pássaros 
a  <hili('ar.  Obrigaram-n^o,  caosofficiaes  cpieoacom- 
panhavam,  a  fazer  uma  zumbaia  e  a  pr<;»lrar-so  aos 
pi-s  do  Ihrotioi  por  três  vezes  tocou  com  afronte  no 
ehão.  (iual  foi  o  seu  espanto  quando,  ao  erguer  a  ca- 
beça, nada  mais  viu  diante  de  si  e  enxergou  o  impe- 
rador, cjue  nuulára  de  trajo,  içailo,  mais  o  seu  thro- 
no, )ior  meio  d'uma3  molas  escondidas,  até  o  teclo 
dn  sala.  N'esla  distancia  era  inqxissivcl  conversarem 
osdois  interlocutores  ^  por  issoo  (■mi)ai.\ador  teve  lo- 
go de  Be  retirar,  tendo  apenas  diclo  algumas  pala- 
vras uo  cliaucellcr  do  impciio. 

Dias  depois  d\sla  prime^iia  enirevisla  nuida,  cha- 
mou o  imp(!ra<lor  a  ljiul|iran(lo,  eonviTsou  com  clh', 
o  o  i)oz  á  sua  mesa  muitas  vizes,  i-nlre  oulras  dia  de 
Nalal.  O  bioi(|Ucle  fui  dado  n'u]na  sala  espaçosa  e 
inagnifici,  onde  .irjuaram  leitos;  porque  osconvida- 
dos  comiam  deilacios,  aovisii  auligo,  Aoíbsserl  trou- 
xeram fruelas  em  Ires  grandes  v.mns  de  ouro  pesa- 
ilissimos  em  cinui  de  padioliis,  e  pr(^ud(M'ani  nas  nzas 
d'eslcs  vasos  uns  ganchos,  lamlieni  de  oui'o,  jvlados  em 
cordas  douradas  que  caíam  daaliobada.  l'or  cima  do 


tecto  do  palácio  havia  uma  machina  que  fez  descer 
devagarinho  os  vasos  até  pousarem  na  meza.  Em 
quanto  durou  o  banquete  fizeram  os  truães  habilida- 
des e  exercícios  de  forças  na  presença  dos  convidados. 
Houve  um  moço  que  conservou  equilibrado  na  testa 
um  pique  de  vinte  c  quatro  pés  de  comprimento,  a- 
travessado  na  extremidade  por  uma  barra  de  dois  co- 
rados. 

Luitprando  assistiu,  além  d''isso,  a  uma  distribui- 
ção de  presentes  que  se  fez  pelos  ofliciaes  da  corte. 
Cobriram  uma  larga  e  comprida  meza  de  caixas  cheias 
de  moedas  de  prata,  com  rótulos  que  indicavam  as 
sommas  n'ellas  contidas.  O  imperador  tomou  a  ca- 
beceira da  meza,  e  um  official  foi  chamando  succes- 
sivamente  as  pessoas  para  quem  eram  os  presentes. 
O  primeiro  que  chamaram  foi  o  grão  mestre  do  pa- 
lácio. l'ozeram-lhe  não  nas  mãos  mas  aos  hombros  a 
caixa  que  lhe  eslava  destinada,  com  quatro  mantos 
que  cobriam  o  corpo  todo,  e  de  que  os  guerreiros  usa- 
vam então  em  tempo  de  chuva.  Seguiram-se  o  grão 
domestico,  que  comraandava  as  tropas  de  terra,  e  o 
grão  almirante.  Receberam  o  mesmo  presente  por 
serem  lodos  três  iguaes  em  dignidade.  Depois  d"elle 
entraram  vinte  e  quatro  mestres,  que  receberam  ca- 
da um  dVdles  vinte  e  quatro  libras  de  ouro  e  dois 
mantos.  A  estes  succederam  os  patrícios,  aos  quaes 
deram  doze  libras  de  ouro  e  um  só  manto.  Seguiram- 
n'os  os  escudeiros  eofficíaes  subalternos  que  marcha- 
ram enfileirados  e  receberam  um  presente  pro|)orcio- 
nado  ao  seu  grau.  Esta  extravagante  eeremonia  foi 
abolida  no  século  seguinte,  no  tempo  de  Constantino 
Monomaco,  que  rciuou  de  1002  a  lOoG. 

(Auem  <juiz('r  formar  uma  idéa  da  minuciosa  e  ri- 
dícula etiqueta  que  reinava  na  còrlc  byzantina  tem 
de  vêr  a  obra  escripta  a  respeito  d'esta  nação  pelo 
imperador  Constantino  1'orpliyrogueneto,  exaltado 
ao  throno  em  911. 

O  imperador  quasi  que  não  saía  a  pul)lico  senão 
cm  certas  festas  marcailas  no  kaleiídario  grego  :  os 
arautos  annunciavam  na  véspera  este  granile  succes- 
so.  Limpavam  as  ruas  e  as  juncavam  de  llòres ;  ex- 
punham ás  jaiiellas  e  varandas  moveis  preciosos,  bai- 
xellas  de  ouro  e  prata,  e  tapetes  de  seda-,  poetas  e 
músicos  assalariados  cantavam  por  toda  a  cidade  os 
louvores  do  imperador  :,  e  para  recordar  o  quanto  eram 
extensos  os  seus  domiiiios,  havia  mercenários  que  os 
repeliam,  segundo  Codiuus,  em  latim  e  na  língua 
dos  ^odos,  dos  persas,  dos  francos,  e  até  dos  inglezes. 
So  o  imperador  tinha  o  direito  de  usar  de  borze- 
guins  de  purpura  e  da  tiara,  que  os  gregos  tinham 
tomado  dos  reis  persas  :,  este  diadema  consistia  n'um 
gr.indc  barrete  piramidal  de  fazenda  de  lã  ou  seda, 
quasi  lodo  elle  escondido  debaixo  <rum  montão  de 
pérolas  e  iliamantes-,  um  circulo  horisontal  e  dois  ar- 
cos de  ouro  perpendiculari'S  ao  circulo  formavam  a 
corrta,  que  rematava  ii'um  globo  ou  cruz  com  dois 
cordões  de  pérolas  <pie  caíam  sobre;  as  faces  do  prín- 
cipe. 

Século  e  meio  depois  da  embaixada  de  Luitpran- 
do, a  arrogância  e  orgulho  dos  gregos  soiVreu  muito 
i|uando  os  cruzados  chegaram  em  chusma  aos  muros 
de  Conslantinopola  para  passarem  á  l'aleslina.  A  po- 
der dl!  astúcia  e  ardis  souIm;  o  imperador  Aleixo  Com- 
neno  livrar  os  seus  estados  tios  piMÍgos  com  «pie  os 
ameaçava  a  passagem  di-  exércitos  Ião  numerosos,  e 
até  conseguir  dos  principacs  clii'lés  ilos  líaiicos  i|Ue 
lhe  rcn<lessem  homenagiMU.  Nem  lodos,  comlodo,  se 
Hiijcitaram  a  isso,  e  eia-ai|ui  o  qui'  ri^fere  a  illh.i  do 
imperador,  Aiuiii  Coinnena,  mi  vida  de  ■'CU  pai  :  — 
..Como  os  francos  eslavam  lodos  rcuniilos  e  acaba- 
\ani  de  prestar  o  jurainenlo,  houve  uni  conde  que 
levou   u  ousadia  .ile  sentar-se  no  throno:    o  iiin)erii- 


192 


O  PAjNORA3IA. 


dor,  f(ue  conhecia  aaltivczu  dos  latino!,  ficou  calado, 
quando  Balduíno  (conde  de  Flandres)  se  chegou,  c 
disse  ao  conde  franco  puxando-o  pela  mão  :  Não  vos 
convém  sentar-vos  n'este  logar.  O  insolente  conde 
nada  respondeu  a  Balduíno,  porém  disse  em  língua 
barbara :  Ora  esteja  só  este  villão  ruim  assentado 
quando  tantos  grosseiros  se  acham  de  pé  !  Aleixo  rjue 
lhe  viu  bolir  os  beiços,  chamou  o  seu  interprete  pa- 
ra lhe  perguntar  o  que  o  franco  dissera,  e  depois  que 
o  soube  não  se  queixou  d'Í5S0.  Não  lhe  esqueceu,  to- 
davia, e  quando  os  condes  se  foram  despedir  do  im- 
perador, este  fez  demorar  ao  pé  de  si  o  orgulhoso  ca- 
valleiro,  e pcrguntou-lhe  quem  era.  Sou  franco,  res- 
pondeu clle,  <la  mais  alta  e  antiga  nobreza  ;  só  sei 
uma  cousa,  éque  na  minha  terra  ha  uma  igreja  edi- 
ficada n^uma  encruzilhada,  onde  vão  os  que  desejam 
assi"-nalar  o  seu  valor  na  li;;a,  e  onde  se  encommen- 
dam  a  Deus  em  quanto  não  apparece  competidor ; 
muito  tempo  me  demorei  aqui  sem  que  ninguém  se 
atrevesse  a  combater  comigo.  —  Aleixo  não  esteve 
para  acceitar  esta  espécie  de  desafio.  " 

Esto  altivo  conde  acabou  na  batalha  de  Dorvlea ; 
e  segundo  Ducange,  era  Roberto  conde  de  Paris  : 
Walter  Scott  fez  dVlle  o  heroe  d' um  dos  seus  ro- 


mances. 


ESCHOLA    UE   BRAVURA    TARA   MENINAS 

EM  Londres. 

Auiiif-sE  iia  um  anuo  iio  instituto  de  Sommer:!et- 
House,  em  Londres,  uma  eschola  de  gravura  em  ma- 
deira, para  meninas.  Esta  fundação  parece  ligada  a 
um  plano  geral  concebido  para  beneficiar  as  mulhe- 
res sem  bens  da  fortuna.  Persuadidos  de  que  a  misé- 
ria e  a  ociosidade,  voluntária  ou  forçada,  ainda  acar- 
retam apoz  si  mais  padecimentos  o  perigos  para  as  é 
mulheres  do  que  para  os  homens:,  persuadidos  de  que 
os  vicios  das  mulheres  são  mais  funestos  á  sociedade 
que  os  dos  homens;  querem  os  fundadores  proporcio- 
nar ás  mulheres  o  trabalho  por  niiMo  de  instituições 
gratuitas,  onde  se  lhes  ensinarão  certos  misteres  que 
convém  ao  seu  sexo. 

E  incontestável  «jue  as  mulheres,  entregues  aos 
próprios  recursos,  não  podem  competir  no  trabalho 
com  os  homens.  Con\iria  reservar  exclusivamente 
para  ellas  certos  ramos  d^artc  ou  d'industria  •,  mas 
os  princípios  de  liberdade  não  o  consentem,  o  só  por 
meios  indirectos  se  pôde  chegar  a  este  resultado  útil 
e  moral.  O  beneficio  dos  institutos  análogos  ao  que 
acaba  de  ser  creado  em  Sonimerset-House  consistirá 
em  igualar  em  aptidão,  quanto  for  possível,  os  dois 
sexos,  tornando  mais  fácil  e  xnenos  dispendioso  o  tv- 
rocinio  ás  mulheres.  Os  homens,  ainda  assim,  lhes 
levarão  muitas  vantagens,  em  razão  da  superioridade 
da  sua  força,  e  do  maior  numero  de  artes  que  podem 
exercer. 


Modo  de  destkiir  as  traças. 

Atraca,  íí»uií  (em  francez  leigne)  éum  insecto  da 
ordem  dos  lepidopteros,  família  dos  nocturnos,  tribu 
das  tineitas.  t>s  .«cus  caracteres  são  ;  anteniias  seta- 
ceas,  simples  ou  quando  muito  ciliadas,  apartadas; 
aias  liniares  enroladas  á  roda  do  corpo,  tromba  cur- 
tíssima ou  nulla ;  dois  palpos  i-vlindricos,  curtia,  e 
pelludok  ■,  um  toi)ete  de  escamas  na  fronte.  Bem  sa- 
bidos são  os  estragos  que  os  insectos  a  que  se  dá  este 
nome  fazem  no  seu  primeiro  est.ido,  isto  é  no  de  la- 
gartas, i.ão  no  inverno,  porque  se  conservam  na  in- 
Hc^Sq   fechadas   cn»   seus   casulos,    «[uo   muitas  vetes 


prendem  pelas  duas  pontas  nas  fazendas  que  teem 
roido,  ou  penduram  nos  cantos  das  paredes  ou  nos 
tectos.  No  principio  da  primavera,  porém,  transfor- 
mam-se  em  nymphas  o  assim  se  conservam  perto  de 
vinte  dias,  ao  cabo  dos  quaes  sáe  o  insecto  perfeito 
do  seu  abrigo,  e  vôa  para  ter  o  coito.  Depois  da  co- 
pula, que  dura  sete  ou  oito  horas,  vai  a  fêmea  em 
busca  de  fazendas  onde  deposite  os  ovos,  e  morre  aca- 
bada a  postura.  As  iagartinhas  saem  cousa  de  quinze 
dias  depois  d'ella. 

Réaumur  buscou  os  meios  de  nos  livrar  d'e5tes  in- 
sectos damninhos^  e  de  evitar  os  seus  estragos.  No 
fim  de  muitos  ensaios  baldados  chegou  a  descobrir 
que  o  óleo  de  therebentina,  o  espirito  de  vinho,  e  o 
tabaco  são  outros  tantos  venenos  para  estas  lagartas. 
Como  a  primeira  das  drogas  apontadas  é  a  que  obra 
com  mais  promptidão  e  certeza,  póde-se  esfregar  com 
ella  as  fazendas  que  se  querem  livrar  das  traças  sem 
medo  de  as  estragar,  porque  este  óleo  não  põe  nó- 
doas, ou,  quando  não,  ensopar  no  mesmo  óleo  pedaços 
de  j)aimo  ou  de  papel,  que  se  fecharão  nos  armários 
em  que  se  guardam  os  moveis  ou  os  vestidos  ;  dentro 
em  pouco  tempo  morrerão  as  lagartas  cm  convulsões. 
Mas  como  o  cheiro  d'este  óleo  é  muito  forte  e  repu- 
gnante, e  além  disse  as  fazendas  que  teem  ouro  e 
prata  e  as  de  cores  mimosas  poderiam  soflrer  avaria. 
convirá,  em  tal  caso,  usar  do  fumo  de  tabaco.  Para 
defumar  as  fazendas  encerram-se  n"um  lo;ar  fecha- 
do :  se  for  n'um  armário  mette-se-lhe  dentro  um  fo- 
gareiro com  brazas,  deita-se-lhe  o  tabaco  por  cima  e 
fecha-se  o  armário;  se  for  u"um  quarto  fechara-sc  as 
jancUas,  arrumando-se  as  fazendas  de  modo  que  o 
fumo  lhes  entre  por  todos  os  lados.  O  espirito  de  vi- 
nho mata  as  lagartas  com  tanta  promptidão  como  o 
óleo  de  therebentina  ;  porém  com  se  eva^ra  facil- 
mente, importa  que  as  fazendas  estejam  encerradas 
em  arcas,  &.c. ,  muito  bem  tapadas ;  aliás  faz  pouco 
efleito. 

Réaumur  indica  um  quarto  meio,  o  qual  consiste 
em  esfregar  os  moveis  com  uma  pelle  de  carneiro 
gordo,  ou  pò-la  a  ferver,  molhar  brochas  na  agua 
em  que  ti\er  fervido,  e  esfregar  os  moveis.  Tendo  o 
nosso  auctor  encerrado  lagartas  de  traças  cora  peda- 
ços de  pauno  a  que  tinha  feito  esta  operação,  ellas 
não  lhe  tocaram,  cantes  quizerani  comer  os  seus  ca- 
sulos pela  parte  de  fora.  Por  este  mcfhodo  se  podem 
matar  as  traças  em  todas  as  estações ;  comtudo  a 
mais  favorável  é  o  fim  do  estio.  jx)rque  então  já  to- 
das as  lagartas  teem  nascido.  Conheço  uma  planta 
mui  commum  no  mcío-dia.  o  rrigontim  <;i-ni-fo/<-ns, 
que  poderia,  talvez,  por  causa  do  seu  cheiro  summa- 
mente  desagradável,  produzir  boníssimo  effeito  nos 
armários  em  que  mettesscm  um  punhado  d'olla.  O 
cebo  parece  que  tamliem  afujenta  estes  insectos. 

Extrahimos  este  artigo  do  tomo  :;3."do  -Vomraii 
Dictionnairc  (/ * //ísíoíic  Htilurcllf  appliqiuc  auxarts. 
Piírís  1818,  e  exj>erímenfamos  a  acção  da  agua  rai 
sobre  traças  apanhadas  cm  estantes  de  livTos ;  ella  é 
prompta  eefticacíssíma.  Quem  quirer  verificar  o  fac- 
to metta  as  traças  debaixo  de  pequenos  copos  de  vi- 
dro borrifados  com  a  essência  de  therebentina  ou 
Com  agua  rai,  e  verá  que  lojo  camcçam  a  andar  a 
roda  u  maneira  de  ventoinhas,  e  que  ao  estado  de 
agitação  >iolcnta  succede  era  breve  a  immobílidade 
da  morte. 

.\  CALCMNIA  mata  trcshomens:  o  calumniado,  oca- 
lumni;idor  e  o  que  ouve. 

QcK.M  aprende  sem  ensinar  semelha  aomvrlo  node- 
serto  :   ninguém  gosa  d'elle. 

Kxtrahidas  do  Taltwttl. 


25 


o  PAKORA3IA. 


193 


AVZNHÃO. 


AviNnÃo  é  uma  cidailc  biiigulur,  que  lein  conserva- 
do cjiiasi  inteçralnieiito  o  sou  aspecto  nu  idade  me- 
dia-, as  muralhas  que  ainda  lhe  restam  parece  fjue 
não  existem  senão  para  protcgc-la  de  uma  surpreza 
da  civilisajão  moderna  \  nas  suas  ruas  tortuosas  a 
cada  passo  so  encontram  nichos  com  imaj;ens  nos  ân- 
gulos das  casas  •,  sombrios  palácios  fendaes  ahrem  de 
tempo  a  tempo  as  pezadas  porias  para  dar  saída  á 
sege  do  algum  cavalleirole  melancholico.  Nos  bairros 
que  não  são  animados  jicla  industria,  cresce  lierva 
pelas  calcadas.  K  a  terra  dos  penitentes,  das  confra- 
rias, dos  ascéticos,  das  ceremonias  religiosas,  tudo 
grave  e  austero  na  exterioridade.  Nos  dias  festivos 
quebra-se  o  usual  silencio  com  uma  i)ulha  de  sinos, 
que  faz  ensurdecer.  Não  ha  cm  toda  a  Franca  terra 
na  apparencia  mais  devota.  l'or  aquelle  estrondo  de 
campanários  faiilnicnt<:  se  recoidicce  a  antiga  capi- 
tal dos  pajias,  quando  o  scisina  fez  (pu'  iiouvesse  a 
um  tempo  dois  |)ohlil"ic(!>.  A  séch;  poiíliluia  esteve 
em  Avinhão  por  G8  .inuos  desde  ( 'hunciitc  V,  que 
<js  nossos  leitores  coidicccm  pelo»  artigos  acerca  dos 
liMnplarios,  atii  (Jregorio  XI,  isto  é,  dc^sde  1;105)  até 
I.'Í77.  Ainda  os  esforc;os  do  tempo  e  do  áspero  inls- 
liiil,  \enlo  assola<lor,  particular  á  1'rovcnca  e  uo 
|janguedo<-,  não  poderani  destruir  o]>alacio  torreado 
que  manilou  cdilicar  o  papa  João  Wll  ;  o  tumulo 
gothico  (Tiste  acha  m-  hoje  em  luiio  ilas  ruinas  do 
templo  de  Ao.vvíi  Si  II III» it  ilis  Dinis,  onde  entre  ou- 
tras curiosidades  se  unta  uma  capclla  il.i  S.iiicla  \  ir- 
geu),  cercada  de  soberbas  peidas  de  arcbilcctura  (|ue 
("rmam  |>,iineis  em  relevo-,  a  abobada  d'e!ila  ca|>ellu 
\'oi..  1,  —  Kkvkukiko  27,   18t7. 


serviu  de  modelo  á  do  Pantheon  de  Paris.  No  njcio 
dVsta  cidade  numacal  é  fácil  decomprehender  o  ter- 
ror de  um  viajante  do  qual  se  conta  que,  levado  a 
casa  doniaiVe  para  se  examinarem  os  seus  papeis  por 
causa  de  suspeitas,  perguntou  aftlicto  se  os  gendar- 
mes o  conduziam  aos  calabouços  da  inquisição. 

lia  comtudo  outra  parte  da  cidade,  na  qual  pare- 
ce \iver-se  sob  o  dominio  do  outras  prcoccupações  : 
vêem-se  por  toda  a  parte  botcípiins,  lojas  e  casas  á 
moderna,  n'uma  palavra  a  vivacidade  e  movimento 
da  eivilisação.  Ciccroni  esfarrapados  vos  perseguirão 
para  ir  uu)strar  a  casa  em  (pie  morou  Laura,  tão  ce- 
lebrada pelo  1'etrarcha,  ou  a  famosa  fonte  de  Vau- 
cluse,  (|ue  dista  cinco  ou  seis  léguas,  onde  parece  que 
rctiunbam  os  echos  das  canções  (raiiuellc  poeta  cele- 
bre. Nos  bairros  (Pesta  parte  da  cidade  ruas  mais 
largas  o  mais  arejadas  que  na  outra  são  hal>itadak 
por  negociantes  ricos,  porqu»'  ha  aiinos  <pie  uma  lem- 
íirança  ministerial  fez  di-  Avii\hão  unui  das  cidades 
mais  louinierciantes  do  reino,  em  razão  das  suas  vasta* 
tinturarias;  alii  tingem  as  calças  para  todo  oexercilo 
francez  :    a  granza  ou  ruiva  deu-lhe  \iila   e  rii|ueza«. 

(.)  earactir  do  provençal  de  Avinhão  pódc  dividir- 
se  em  duas  parti's  liem  ilisliuctas  como  a  cidade  que 
habita  :  uma  pertence  á  industria,  aos  institU'tos  da 
eivilisação  cousiilerad.i  em  relação  ;i  politica  ;  outra, 
talvez  a  n\ais  curiosa,  representa  aiullueuiia  ile  pas- 
sado histórico  egeographico.  Ali'Ui  de(|ue,  cslagran- 
ile  ili\isão  moral  não  «•  mais  que  a  lucta  entre  o  pre- 
sente e  o  passado,  que  se  oliserva  a  cada  pusso  e  >ol> 
mil  iJrinus  dilVercnles  cm  ti>da  a  Provença, 


194 


O  PANORAMA. 


Apesar  do  grande  numero  de  mulheres  bonitas, 
apesar  da  passagem  frequente  de  todas  as  diligencias 
do  sul,  e  não  obstante  o  movimento  de  muitas  fabri- 
cas, Avinhão  é  uma  cidade  triste.  Tara  espraiar  os 
olhos  c  o  coração  é  necessário  passear  nos  arredores  : 
pelas  margens  do  Rhódano  e  do  Durance  se  appre- 
sentani  prados  viçosos,  dilatadas  cearas,  e  ricos  po- 
mares ;  o  clima  é  benigno  c  o  torrão  fecundo. 


CoLOMBA. 


Romance  da  Corsaju. 


Poveríi,  orfana,  zitella, 
Seoza  cugini  carnali !  — 
Ma  per  far  la  to  vcií<letl:i. 
Sta  siguru,  vasta  anche  cila. 

Ldtimtnt.  funeh.  de  Niolo. 


A  RAPARIGA,   depois  de  olhar   fita  alguns   minutos 
para  delia  Rebia,  disse  : 

—  "Onde  vai,  Orso  Anton'  !  O  seu  inimigo  está 
perto,  não  sabe  ?  " 

—  "Glual  inimigo?  (jue  é  d^elle?" 

—  "  Orlanduccio  espera-o.  Volto,  volteja.)' 
Orlanduccio  era  o  filho  mais  velho  do  velho  advo- 
gado Barrieini. 

—  '1  Está  bom .   Por  (juo  lado  foi  ?  >' 

—  "  1'elo  mesmo  por  onde  vai  Orso  Anton".  '• 
— 11  Obrigado  !  .  .  .  Adeus  1  » 

Jli  chegando  as  esporas  ao  cavallo,  correu  ligeiía- 
mento  para  o  sitio  que  a  rapariga  indicara. 

A  paisagem,  no  principio,  tirava  atóaidéade  uma 
emboscada.  Era  chão  nú,  unido,  sem  moitas  nem 
balsciras.  Blas  logo  adiante  desenrolavam-se  campi- 
nas viçosas  de  cultura,  tapumes  de  sebes,  e  castanhei- 
ros colossaos,  plantados  irregularmente.  O  caminho 
aqui  trepa\a  em  ladeira  empinada.  Orso  apcou-se, 
deitou  as  rédeas  sobre  o  pescoço  do  cavallo,  c  come- 
çava a  subir,  quando,  a  vinte  passos  d^uma  sebe,  k 
direita,  viu  scinlillar  de  repente  o  cano  d^uma  espin- 
garda apontada  para  elle,  (?apparccer  alraz  uma  ca- 
neca quasi  renie  com  a  aresta  do  muro.  A  clavina 
abaixou-se,  e  Orso  conheceu  Orlanduccio  com  o  de- 
do no  gatilho.  Delia  Rebia  n\im  iiislantc  se  póz  em 
aeicza,  e  ambos,  eoin  as  armas  em  ])ontaria  e  a  mão 
pronipla  a  desfechar,  cruzaram  a  vista  acccsa  de  rai- 
va entre  pungente  comnioção,  <jue  estremece  o  cora- 
ção do  mais  valente  na  hora  suprema  do  perigo.  " 

"Covaiile!  ...»  gritava  Orso.  Ainda  não  aca- 
bara, já  a  ihamma  tinha  fiizilailo  do  cano  da  espin- 
garda de  Orlanduccio.  Ao  mesmo  tein])u  partiu  ou- 
tro liro  da  esquerda,  da  parte  opposta,  disparado  por 
homem  (jue  não  apercebera  encol)crto  com  um  pare- 
dão. Ambas  as  balas  acertaram.  A  de  Orlanduccio 
passou-llie  o  braço  esquerdo,  descoberto  no  apontar. 
A  outra  bateu  no  peito,  (|ueimou  o  falo,  o  por  feli- 
cidade achatou  encontrando  o  ferrodo  cstilclc,  fazen- 
do só  uma  leve  contusão.  O  braço  ferido  descaiu  frou- 
xo sobro  a  perna,  e  a  espingarda  dois  ou  três  segun- 
dos se  inclinou  desamparada.  IMas,  invocando  toda  a 
energia,  Orso,  segura  a  arma  só  na  mão  direita,  dcs- 
feciíou  sobre  Orlanduccio.  Acara  d'cste,  aonde  só  os 
olho»  se  divisavam,  sumiii-se  immediataiuente.  \"i- 
rando  depois  á  esipierda,  delia  Ucbia  disparou  o  ou- 
tro tiro  n"uni  homem,  ainda  rodeado  de  fumo,  que 
mal  SC  distinguia.  E>ta  segunda  figura  lambem  dcs- 
apparecou.    As  quatro  detonações  reboaram  com  in- 


crivcl  rapidez ;  e  á  ultima  o  mais  profundo  silencio 
reinou  nas  solidões  circumvisinhas.  O  fumo  subia 
lento  ao  céu,  em  quanto  detraz  dos  muros  nem  se  ou- 
via ruido  ou  signal  que  demonstrasse  vida.  Se  nSo 
tivesse  a  dòr  do  braço,  para  lh'o  lembrar,  Orso  diria 
que  eram  phantasmas  aquelles  sobre  que  tinha  desfe- 
chado. 

E  o  padecimento  crescia.  Receiando  novo  ataque 
de  inimigos  cobertos  com  as  sebes,  delia  Rebia  bus- 
cou o  abrigo  d'um  muro,  pôz  no  chão  o  joelho  direi- 
to, edeseançando  no  outro  o  braço  ferido,  approvei- 
tou  o  esgalho  d"uma  arvore  meia  queimada  para  pou- 
sar a  ajraa.  Assim  ficou  immovel  com  o  dedo  no  ga- 
tilho, os  olhos  cravados  nas  sebes,  e  o  ouvido  afiado 
á  escuta,  alguns  minutos  que  se  lhe  affiguraram  sé- 
culos. Erafim  de  longe  soou  um  grito,  e  logo  depois 
um  cão,  descendo  o  morro  com  a  velocidade  dasetta, 
parou  defronte  d' elle  alTagando-o  com  mostras  d*ale- 
gria.  Era  Brosco,  o  lebréu  dos  salteadores,  que  lhe 
vinha  annunciar  achegada  do  terrível  Brando,  o  pai 
da  rapariga  creada  por  Colomba.  Com  effeito  elle 
não  se  demorou  em  sair  d'entre  um  cerrado  de  ar- 
bustos. 

—  41  Aqui  I  sou  eu.  Brando!  >'  exclamou  o  tenente. 

—  11  Está  ferido,  Orso  Anton'  ? , perguntou  o  ban- 
dido ainda  suffocado  da  carreira.  E  no  corpo.'-' 

—  "Não.   E  no  braço." 

—  «  Ah  !  não  é  nada  então .  E  o  outro  '  '• 

—  "Creio  que  lhe  acertei.» 

Brandolaccio,  seguindo  o  cão,  foi  á  primeira  sebe, 
e  deliruçou-se  para  olhar  para  dentro.  Apenas  olhou, 
tirando  o  barrete,  exclamou  : 

—  "Boas  tardes,  Sr.  Orlanduccio! — E  voltando 
para  Orso  com  outra  cortezia  :  —  aqui  está  um  ho- 
mem que  não  se  ha  de  queixar  —  isto  chania-se  fa- 
zer as  cousas  com  aceio.  " 

—  "Ainda  vive?"  perguntou  delia  Rebia  comso- 
bresalto. 

—  "  Nada  I  D'cssa  o  livrou  a  baila  que  lhe  furou 
o  olho  . .  .  mas  vamos  ver  mais.  Oh  lá  !  .  .  .  e  esta  ? 
Dois  coelhos  da  mesma  pancada  I  .j.  .  bem  se  vê  que 
está  cara  a  pólvora,  j' 

—  "Mas  o  que  é?» 

—  (.  E  .  .  .  o  di.ibo.  Que  bonita  noite  terá  hoje  o 
velho  Barrieini  .  .  .  ambos  mortos !  '• 

1  l'ois  Nicentello  também  ?  .  .  .  " 

—  "Também.  E  morto  deveras  como  o  senhor  sou 
mano  Orlanduccio.  Ficou  de  joelhos,  a  rezar.  .  .  Sa- 
fai dois  tiros  doestes  !  Nunca  mais  pego  em  clavina.  " 

E  rasgando-lhe  a  manga  da  sobrecasaca  com  o  pu- 
nhal, Brandolaccio  principiou  acurar  Orso.  Nomeio. 
lc\antando  a  cabeça  e  no  tom  mais  natural  do  mun- 
do perguntou  : 

—  "E  agora  para  onde  \ai  Orso  Anton'  f " 

—  .1  Para  onde  hei  de  eu  ir.   Brando  '  " 

—  "Ou  para  o  matto  ou  para  a  cadeia.  Ora  como 
um  delia  Rebia  não  vai  nunca  á  cadeia,  seguc-sc  que 
fogo  para  o  matto  .  .  .  Sabe  que  mais?  de  lonje,  quan- 
do ouvi  pim  !  pim  !  disse  comigo  :  adeus ;  l.i  se  foi  o 
tenente  com  mil  ilemonios  1  mas  d"ahi  a  nada  rcfine- 
me  ás  orelhas  botim!  botim!  Ah!  então  é  outro  ca- 
so—  como  ladra  a  cadella  inglcia  sempre  quero  s>- 
ber  em  que  altura  estamos.  .  ," 

—  .1  Ellos  ó  que  atiraram  primeiro.  <• 

—  "  E  verdade.  Conheci  j>eU)  calibre  da  arma  .  . 
Naiiios  lá  ;  antes  de  partir,  Orso  Anlon",  dei(e-ine 
sempre  os  olhos  ú  sua  obra  .  .  .  veja-iiie  os  dois .  .  . 
dialx) !  " 

DoUa  Rebia,  sem  rcsjvjiider,  cravou  as  esporas  no 
cavallo  —  toilos  os  thcsouros  do  mundo  não  o  resolve- 
riam a  pO^r  a  vista  nos  infeliies  a  quem  roubiira  a 
vida. 


o  PANORA3IA. 


195 


Brandolaccio  também  se  fingia  mais  forte  do  que 
na  realidade  estava.  No  fim  não  se  poude  conter  e 
desabafou  : 

—  II  Orso  Anton',  disse  elle  pegando-lhe  na  rédea, 
quer  que  lhe  diga  o  que  sinto?  Tenho  dijd'cstes  po- 
lires rapazes.  Perdoe.  Kram  tão  moços,  tão  bellos  que 
faz  pena,  coitados !  E  verdade  que  sua  alma  sua 
palma,  mas,  emfim,  custa,  não  o  nego !  Orlanduc- 
cio  ainda  não  ha  quatro  dias  que  me  deu  um  maço 
de  cigarros  c  caçou  comigo  a  manhã  inteira.  E  Vi- 
centello,  tão  alegre  sempre  !  ?  .  .  .  Levaram  a  paga  que 
mereciam.  Sempre  foi  um  tiro  de  mestre'.  .  .  .  mas 
apesar  d''is50  .  .  .  emfim,  paciência  !  Que  se  lhe  ha 
de  fazer.  " 

E  com  esta  oração  fúnebre,  guiando  Orso,  e  pro- 
cedido pelo  seu  cão  Brusco,  Brando  principiou  a  sua 
jornada  para  o  matto. 


Dos  MEIOS  aVE  os   HOMENS  TÊEM   JULOADO    PRO- 
PniOS   PARA   SE   LIVRAREM   DOS    RAIOS. 

A  LiTTERATiHA  grega  nos  iniciou  completamente 
nas  idéas  dos  antigos  philosophos  acerca  da  causa  do 
raio  ;  porém  mui  summaria  e  imperfeitamente  nos 
indicou  dois  ou  trcs  meios  preservativos.  Uefere  He- 
ródoto no  liv.  4.",  cap.  98,  ([ue  os  thracios  costu- 
mam, quando  ha  relâmpagos  ou  trovões,  disparar  set- 
tas  contra  o  céu  j)ar."i  o  ameaçar. 

Note-se  Ijem  qu<í  o  auctor  grego  diz  para  o  amea- 
çar. N'esta  passagem  nem  se  allude  a  que  a  solta,  por 
ser  de  metal  e  t(!r  ponta,  poderia  roubar  ás  iiuvímis 
algumas  parcellas  de  matéria  fulminante-,  por  isso  o 
próprio  IJutens,  esse  admirador  fanático  da  antigui- 
dade, receiou  assemelhar  as  flechas  dos  thracios  aos 
guarda-raios  modernos,  e  subir  com  a  invenção  do 
apparelho  do  Franklin  até  os  tempos  de  Heródoto. 

l'linio  conta  que  os  clruscos  sabiam  obrigar  o  raio 
a  descer  do  céu,  e  dar-lhe  a  direcção  que  lhes  pare- 
cia, o  que  uma  vez  o  fizeram  cair  sobre  um  monstro 
chamado  Volta,  que  devastava  os  arredores  de  Vol- 
sinia  ;  (|ue  Numa  tamiiem  sabia  este  segredo,  que 
'l'ullo  Jlostilio,  por  ser  ])ouco  exacto  observante  das 
coremonias  inslilui<l.is  jk^Io  seu  predí^ccssor,  desafiou 
o  raio  por  que  fui  lulminado.  (luanto  ao  meio  de 
evocar  o  meteoro,  flinio  só  falia  em  sacrilieios,  ora- 
ções, &e.  •,  podemos  por  tanto  passar  agora  a  outro  ob- 
jecto. 

Criam  os  antigos  (Plinio  liv.  2."^.  UO)  ((UíMiraio 
nunca  entrava  mais  de  cinco  |)és  pela  terra  dentro. 
l)'a<jui  vinha  ri.'pularem  elles  asylos  seguríssimos  a 
maior  parlií  das  cavernas  ;,  d'aqui  vem  que  assim  que 
se  |)odia  |)rever  alguma  trovoada,  s(.' retirava  Augus- 
to, segundo  dizSuiítonio,  par.i  iiiii  lugar  baixo  e  abo- 
badado. 

Os  tul)o9  vidrosos,  produzidos  pelo  raiei,  ipu!  íis  ve- 
zes descem  a  ipiarenla  e  seis  palmos  a  cimlar  da  su- 
perfície lia  terra,  moslram  quanto  os  aiitig<is  se  en- 
ganavam. Ninguém  sabe,  ninguém  pud<>  dizer,  mes- 
mo hoje,  em  (pie  [irofundidade  se?  escaparia  com  cer- 
teza dos  raieis  descendentes,  e  com  mais  liirte  razão 
dii»  raios  ascendentes. 

]'ara  augnienlarem  a  garantia  resultante  da  gros- 
sura da  alvenaria,  cantaria  ou  terra  qiiií  cobre  um 
snblernineo  ou  uma  caverna  natural,  fazem  os  impe- 
radores do  ilapào,  aiiar-se  credito  ao(|nc  ilizKuMup- 
fer,  construir  um  reservatório  d'agua  por  cima  da 
gruta  onde  se  n^fugiam  ipiando  troveja;  a  agua  tem 
pcir  fim  a[iagar  o  fogo  do  raio. 

I''m  eiTtas  condições  um  lençol  d^igua  livra,  com 
lima  qnasi  certeza,    (|iianto  lhe  fica    pur  liai\o;    mus 


não  se  conclua  d'isto  que  os  peixes   não  podem   ser 
fulminados  no  seio  das  maiores  massas  d"agua. 

VVeichard  Valvassor  nos  da  noticia  fPhilosophical 
(Transacíions,  tom.  16.")  de  ter  caído  um  raio,  no 
anno  do  1G70,  sobre  o  lago  Zirkmitz  i  na  paragem 
chamada  Leuche  viu-se  logo  boiar  uma  tal  quanti- 
dade de  peixes,  que  os  habitantes  encheram  vinte  e 
oito  carros  de  taipaes. 

Em  2i  de  setembro  de  1772  caiu  um  raio  em  Be- 
sançon  no  Doubs.  Pouco  depois  a  superfície  da  a^ua 
apparoceu  coberta  de  peixes  atordados,  cjue  boiavam 
a  sabor  da  corrente. 

Era  uma  crença  muito  commum  na  antiguidade, 
que  as  pessoas  que  estavam  na  cama  c  deitadas  ne- 
nhum medo  deviam  ter  do  raio.  Esta  opinião,  ape- 
sar de  ser  muito  extraordinária,  parece  ter  conser- 
vado  partidários.  Vejo,  por  exemplo,  que  Mr.  Ho- 
ward  regista  estes  dois  factos  com  parliculcr  predi- 
lecção. 

Aos  3  de  julho  de  1838  caiu  um  raio  n'uma  casi- 
nha de  campo  (cottage)  em  Birdham,  perto  de  Chi- 
chester.  Fez  em  estilhas  a  madeira  d"um  leito,  re- 
volveu pelo  chão  os  lençoes,  os  colchões  c  a  pessoa 
que  estava  deitada,  sem  lhe  fazer  nenhum  mal. 

Em  9  do  mesmo  mez  levou  um  raio,  em  Great 
Ifonrjton,  perto  de  Duncaster,  acoberta  da  cama  em 
(jue  madame  Srook  estava  deitada,  e  esta  senhora 
não  teve  outro  mal  além  do  medo. 

A  estes  factos  opporei  outros  não  menos  authenti- 
cos.  O  volume  65  das  Fhilosophkal  Tramactiom 
contém  uma  memoria  cm  que  o  reverendo  Samuel 
Kirkshavv  dá  conta  de  todas  as  circumsl anciãs  da 
(jueda  do  raio  que  apanhou  Mr.  Thomas  Hearthle^ , 
a  dormir  na  sua  cama,  em  Hearrowgate  em  29  de 
setembro  de  1772,  e  o  matou  logo.  Madame  Hear- 
thley,  queeslava  deitada  ao  lado  de  seu  marido,  nem 
sequer  acordou.  Todo  o  seu  incommodo  foi  uma  dòr 
no  Jiraço  direito,  que  durou  alguns  dias. 

Ás  cinco  horas  da  manhã  do  dia  27  de  setembro 
de  1819,  caiu  um  raio  em  Confulens  (Charente)  so- 
bre uma  casa  onde  matou  a  criada  que  estava  na  sua 
cama.  O  corpo  achou-se  cheio  de  regos  desde  o  pes- 
coço até  a  perna  direita. 

Os  romanos  attribuiam  ás  pollcs  das  phocas  uma 
virtude  efficaz  contra  os  raios:,  epor  isso  faziam  bar- 
racas d'cstas  pelles,  onde  as  pessoas  medrosas  iam 
abrigar-se  quando  trovejava.  Suetonio  narra  que  Au- 
gusto, que  tinha  medo  de  raios,  trazia  sempre  uma 
pelle  de  phoca.  (A  ide  tom.  1. "do  antigo  Panorama 
jiag.  9i.) 

Nas  Cevennas,  onde  por  muito  tempo  houve  coló- 
nias romanas,  teem  os  pastores  o  cuidado  de  guarda- 
rem os  desjiojos  das  cobras  com  que  rodeiam,  ainda 
em  nossos  dias,  as  copas  ilos  chapéus,  porque  se  per- 
suadem de  que  isto  os  guarda  dos  raios  (Laboissié- 
re  ^  .\cad.  do  Gard.)  Está  claro  que  as  pelles  de  co- 
bra, no  conceito  do  povo,  tinham  ontr''ora  o  mesmo 
préstimo  das  pelles,  mais  raras  e  inais  caras,  das 
phocas. 

Fi  mui  licito  por  certo  criticar  a  cscollia  que  Au- 
gusto fizera  das  pelles  de  phocas,  porque  hojií  mesmo 
não  acharíamos  modo  ile  asjuslificar  nem  porl.iclos, 
iiiiii  pela  Iheoria.  A  idea,  porém,  que  não  piídc  ser 
iiiililVirente,  de  escolher  certos  vestidos  ipiando  ha 
trovoada,  em  nada  écontraria  aos  conheciínenlus  do.s 
modernos  acerca  <la  matéria  do  raio.  Podcri.imos  ale 
cilar  muitos  casos  em  <|ue  umas  pessoas  parecem  ler 
ficado  illesas  e  outras  fulminadas,  conforme  eram  m 
fazendas  do»  vestidos  oii  as  matérias  que  traíian» 
cnnisigo. 

No  dia  du  caiaslrophe  de  Chatenu-Neiir-les-Moii 
tiirs  dois  ou  trcs  jiadrcs  que  estavam    á  roda    do  ai 


196 


O  PANORAMA. 


tar  caíram  gravemente  feridos.  O  terceiro,  pelo  con- 
irario  não  sollrcu  nenhum  damno  :  era  o  único  rjue 
tinha  nas  vestes  ornatos  de  seda  (1). 

Os  factos  seguintes  suo  ainda  mais  pasmosos,  por- 
que mostram  que  um  animal  tem  mais  expostas  aos 
estragos  do  raio  certas  partes  do  corpo  segundo  a  côr 
do  pello  que  as  cobre. 

No  principio  de  setembro  de  1774  caiu  um  raio 
sobre  um  boi,  em  Swanborow  (Sussex).  Este  lx)i,  de 
côr  avermelhada,  era  malhado  de  branco.  Depois  do 
raio  notou-se  com  pasmo  adcsnudez  das  malhas  liran- 
cas;  nem  um  só  pello  conservavam,  ao  passo  que  a 
parte  avermelhada  não  tinha  soffrido  nenhuma  alte- 
ração visível.  O  dono  do  animal  contou  a  Mr.  Ja- 
mes Lambert  que  dois  annos  antes,  outro  boi  ma- 
lhado de  branco  tinha  apprcsontado  exactamente  o 
mesmo  phenomeno  depois  de  um  trovão  violento. 

Finalmente  em  20  de  setembro  de  1773,  tendo  si- 
do fulminado  cmGlynd  ura  cavallo  ruço-rodado,  no- 
tou o  dono  que  em  toda  a  extensão  das  malhas  bran- 
cas llie  caía  o  pello  quasi  sem  se  lhe  tocar,  e  que  no 
resto  do  corpo  conservava  a  antiga  adherencia. 

lí  Tibério,  quando  o  céu  estava  tempestuoso,  nun- 
ca deixava  de  trazer  uma  coroa  de  louro,  por  acre- 
ditar que  o  raio  jamais  toca  n'esta  sorte  de  folhas. » 
(Suctonio) . 

A  opinião  de  que  o  raio  nunca  deu  em  certas  ar- 
vores ainda  tem  muito  quem  a  siga. 

Rir.  Hugh  jMaxuell  escrevia  em  1787  á  Academia 
americana,  que,  pela  sua  própria  experiência,  c  pe- 
las informações  que  havia  colhido  de  grande  numero 
de  pessoas  se  julgava  com  o  direito  de  affirmar  que 
o  raio  cáe  muitas  vezes  no  olmeiro,  castanheiro,  car- 
valho, pinheiro,  algumas  no  freixo,  e  nunca  na  faia, 
Ix^tula,  o  bordo. 

O  Capitão  Dibden  não  admiltiadifferenças  tãofor- 
maes.  N'uma  carta  escripta  a  Wilson,  na  data  de 
176Í,  contentava-se  com  dizer  (|ue  nos  bosques  da 
Virgínia,  que  acabava  de  visitar  cm  1763,  os  pi- 
nheiros, ainda  que  inuito  mais  altos  do  que  os  car- 
valhos, eram  muito  menos  vezes  feridos  pelos  raios. 
Não  melemliro,  accrescentava  elle,  ter  visto  carvalhos 
crescendo  entre  pinheiros  em  sítios  onde  estes  tives- 
sem sido  fulminados.  Os  factos  seguintes  dissiparão 
muitas  duvidas. 

Criam  os  antigos  que  o  raio  jamais  cáo  no  lourei- 
ro ?  Jamais  é  uma  expressão  que  não  tem  dcfeza, 
porque  eu  aclio  nas  notas  de  Poinsinet  deSivry,  um 
dos  traduclorrs  de  Plínio,  que  Sennett,  que  \ico- 
luercatus,  que  Filippo-Jacques  Sachs,  referem  mui- 
tos casos  do  loureiros  fulminados. 

JMaxuell  coUoca  a  faia  entre  as  arvores  que  o  raio 
respeita.  N'um  folheto  de  Mr.  llericart  do  Thury, 
recentemente  distribuído  na  Academia,  vejo  eu  que 
mna  faia  aunosa,  reservada  em  18l!o,  n^um  antigo 
curte  feito  no  meio  da  matta  de  Villiers  Collerets, 
foi  fulminada  e  quasi  demolida  no  mcz  de  julho  do 
mesmo  anuo. 

.•Vlgumas  considerações  thooricas  tinham  induzido 
a  crer  que  as  arvores  resinosas  estavam  isentas  do 
raio  i   todavia  acaba  de  se  vôr  que  Maxuell  melle  o 


(1)  Toilos  os  jOiysicos  Icem  rcconhcciílo  nue  o  tafol;i 
cncenulo,  «scila,  a  lã,  sH»  menos  jiernu-avois  a  niator!a  ilo 
ralo  que  as  fazcnilas  ilc  liiilio  oii  mitra  malcria  M-golal. 
("ouror.lam  uiciios  al,i;iiiiia  musa  na  (|iirsl.'io  do  serem  os 
vesliitos  iiiolliailus  prefiTlxois  aiis  voslMos  serros  quando 
ha  trovoada.  Nollct  temo  os  vestidos  niolliailos  em  rai.">o 
Je  llie  rommiuiirar  a  a^ua  a  |ii'ojiririlade  qiio  lem  do  ser 
um  (los  eorpos  <nio  o  raio  profere  a  outros.  Kranlslii)  adop- 
ta a  opinião  roíitnuia,  ua  idea  do  «jiio  os  vestidos  molhn- 
«lo.s  devem  trausmiltir  immodialaiiioiitc  ao  solo  a  iiinteria  1 
tVdminantc  qnc  roroberoin. 


pinheiro  na  classe  d'aquellas  em  que  mais  a  miúdo 
caem  raios.  No  já  citado  folheto  de  Mr.  de  Tburv 
acho  eu  entre  as  arvores  fulminadas  : 

Um  pinheiro  marítimo  em  S.  Martinho  de  Thu- 
ry,  aos  2  de  agosto  de  1821. 

Um  pinheiro  alvar  em  S.  João  de Day  (Mancha), 
em  junho  de  1836. 

Uma  cerejeira  preta  brava  em  Anthillv,  em  acos- 
to de  183Í.  .  '  = 

Uma  accacia  em  S.  João-le-Pauvre  deThurv,  em 
setembro  de  1814. 

Um  olmeiro  em  Moiselles,  em  junho  de  1823. 

Carvalhos  e  choupos  (1). 

Os  homens  são  muitas  vezes  fulminados  em  planí- 
cies descobertas.  O  perigo,  muitos  factos  o  attestam. 
é  maior  debaixo  das  arvores ;  o  doutor  ANinthorss 
concluía  d'esta  dupla  observação,  que,  para  escapar 
aos  insultos  do  raio,  quando  colhe  alguém  d'impro- 
viso  em  raso  campo,  o  melhor  é  collocar-se  a  pessoa 
a  pequena  distancia  d'alguma  arvore  alta  ^  por  pe- 
quenas distancias  entendia  elle  todas  as  comprehen- 
didas  entre  vinte  e  dois  e  meio  a  vinte  eoito  emeio 
palmos.  Seria  ainda  mais  favorável  a  estação  que  sa- 
tisfizesse as  mesmas  condições  de  distancia  em  rela- 
ção a  duas  arvores  visinhas.  Franklin  approvava  es- 
tes preceitos.  Henley,  que  tamlwm  os  cria  fundados 
natheoria  e  na  experiência,  somente  os  modificava  no 
caso  de  haver  só  uma  arvore,  recommendando  que  se 
coUocasse  a  pessoa,  relativamente  ao  tronco  principal, 
os  vinte  e  dois  e  meio  a  vinte  e  oito  e  meio  palmos 
além  da  vertical  que  passasse  pela  extremidade  dos 
ramos  mais  compridos.  (Continua  J 


O   SAKCTO    ESTYLITA    E   O   .MEDICO  SaSCTORIO 

S.  SiJiE.vo,  O  estylita,  foi  um  anachoreta  do  V sécu- 
lo i  deram-lhe  aquella  antonomásia  de  uma  palavra 
grega,  que  significa  cohimna.  Houve  outro  do  mes- 
mo nome  no  \'I  século.  Aquelle  de  que  tractàmos 
submetteu-se  por  longos  annos  a  permanecer  assenta- 
do no  alto  de  uma  colunina  sita  n'uma  das  m.iis  ele- 
vadas montanhas  da  Syria.  —  Sanctorio  foi  ura  me- 
dico italiano  do  \\1  século,  que  passou  uma  gran- 
de parte  da  vida  pendurado  n"uma  balançii.  —  O 
amor  de  Deus  o  a  vida  contemplativa  eram  os  incen- 
tivos de  S.  Simeão  ;  o  amor  da  sciencia  e  o  bem  da 
humanidade  eram  os  de  Sanctorio. 

Simeão  nascera  perto  de  Antíochia  :  liad*clleuma 
carta  a  Basílio,  bispo  d"essa  cidade.  Morreu  cm  461. 
de  69  annos.  Thcodoro,  bí?po  de  Tyro,  escreveu  o 
resmno  da  vida  crdle.  —  Para  se  desapegar  intoira- 
mentc  das  paixões  humanas  e  das  preoccupações  ter- 
renas, para  se  libertar  complel.imente  da  escravidão 
dos  sentidos,  para  converter  o  pensamento  a  cncami- 
nhar-se  exclusivamente  a  um  ponto  único,  Deus,  n 
amor  infinito  ou  a  perfciç.'io,  para  reJuiir-sc  quantn 
possível  fosse  ao  estado  inimateri.-\l,  Siinc.MOSiijciton- 
se  expontâneo  ao  extraordinário  supplicio  de  viver 
noite  c  dia  sobre  o  acanh.ido  topo  de  uma  columna 
solitária,  exposto  a  todas  as  intemperanças  das  esta- 
ções, e  absorvido  n^uma  continua  oraç.^o.  Na  primei- 
ra idade  do  clirislianismo.  durante  os  horríveis  dcs.T-- 
tres  que  abysmarani  o  império  romano,  observou-se 
([ue  o  receio  do  mundo,  a  abnegação  dos  sentidos,  a 
propensão  para  a  mystioa  conlempl.ição  de  Deus,  se 
apoderou  de  grande  numero  de  almas,  e^ccitando-as  a 
largar  a  sociedade  dos  homens,  e  impoUindo-as  para 
a  solidão.  Sob  a  independência  é  que  se  formou  a 
Thebaida  i   os  logarts  mais  ermos,  as  cavernas  inac- 

(I)     Vid.  P«nor.imn,  >ol.  3.'\  serie  2.".  jw;.  158. 


o  PANORAMA. 


197 


cessiveis  convidavam  á  contemplação  estes  desterrados 
voluntários,  que  não  toleravam  por  testimunhas  de  suas 
austeras  penitencias  senão  os  animaes  bravios.  Al- 
guns homens  insignes,  como  S.  Jerónimo,  allumia- 
ram  com  a  luz  de  seu  génio  estes  logares  solitários. 
A  Igreja  usou  da  sua  auctoridade  para  reprimir  o 
excesso  d'esta  tendência,  que  nada  menos  importava 
que  o  retrocesso  da  civilisação,  já  tão  perturbada  cm 
seu  caminho,  para  os  extremos  limites  da  barbaria. 
Nas  suas  exhortações  insistiu  de  mais  a  mais  n*esles 
princípios  de  fé  :  — que  a  oração,  isto  é,  acommuni- 
cação  directa  com  Deus,  o  solitário  impulso  do  cora- 
ção para  a  infinidade,  não  é  bastante  para  merecer 
as  recompensas  reservadas  aos  justos.  Ha  uma  estra- 
da de  aperfeiçoamento,  de  elevação  a  Deus,  não  me- 
nos segura  e  não  menos  necessária  •,  é  a  charidade,  o 
amor  do  próximo.  Amar  a  seus  semelhante»,  tomar 
parte  nos  seus  trabalhos,  perigos  e  afílicções,  é  mul- 
tiplicar a  faculdade  de  amar  a  Deus.  O  amor  écomo 
o  fogo,  mais  se  dilata  mais  se  eleva.  —  N'aquella  re- 
ligião dos  anachoretas  entrava  muito  egoísmo  e  pu- 
sillanimidade ;  suniir-se  no  deserto  para  fugir  ás  pai- 
xões não  é  vence-las.  Os  mosteiros  foram  uma  crea- 
ção  intermediaria,  e  que  recolheu  pelo  menos  a  ccl- 
la  para  o  centro  da  sociedade. 

A  vida  de  Sanclorio  Iransporta-nos  para  outra  or- 
dem de  pensamentos;  entrámos  no  domiiiio  da  in- 
telligencia  e  das  suas  applicações,  abstrahindo  da  fé 
religiosa.  Este  sábio  medico  nasceu  em  Capo  d'Is- 
tria,  em  13G1.  Primeiramente  foi  professor  em  Pá- 
dua, c  depois  eslabeleceu-se  em  Veneza.  A  maneira 
original  por  que  mostrou  a  sua  devoção  á  sciencia 
<:ontribuiu  .-litula  mais  para  a  sua  cclel)ridade  (pio  a 
utilidade  real  de  seus  traballios.  Estava  persuadido 
que  a  saúde  e  as  doenças  dependem  muito  dos  phe- 
nomenos  da  transpiração  insensível,  (juo  se  elfcctua 
pelos  poros  do  corpo.  Ciuiz  calcular  a  quantidade  exac- 
ta do  lluido  que  se  evade  por  esta  tran'ipíração  :  pa- 
ra alcançar  isto,  punha-s(!  n'uma  halança  de  sua  in- 
venção ed<?pois  de  Iiaver  pesado  os  alimentos  e  belti- 


dii  dl'  que  carecia  para  vímI(^  (Miualro  horas,  ciiinpa- 
rava  o  pczo  com  o  das  ■•xcicçik'»  sensíveis  do  corpo  ; 
e  prelendia   «ssini  delcrmiiiai'   o  pezo   e  quanlídaih' 


da  transpiração  insensível,  e  a  sua  relação  com  os 
alimentos  quo  aaugmentam  ou  a  diminuem.  Achou, 
por  exemplo,  que  se  n'um  dia  se  comer  e  beber  a 
quantidade  de  oito  libras,  saem  perto  de  cinco  pela 
transpiração  insensível.  O  livro  onde  consignou  os  re- 
sultados das  suas  experiências  foi  traduzido  em  fran- 
cez  com  este  titulo  :  Medicina  síalica  de  Sanciono, 
ou  Arte  de  conservar  a  saúde  pela  transpirarão. 

Sanctorío  falleceuem  1636  :  foi  sepultado  no  claus- 
tro dos  servifas,  e  na  igreja  d"estes  frades  lhe  erigi- 
ram estatua.  Legou  uma  quantia  annual  ao  coUegio 
dos  médicos  de  \'cneza,  que  por  gratidão  manda  to- 
dos os  annos  recitar  por  um  de  seus  membros  o  elo- 
gio do  testador. 


Um  anno  enthe  os  jiorlacos. 

As  Nui-ciAs  dos  morlacos  têem  grande  semelhança 
com  as  dos  povos  limitrophes.  Se  n'uma  família  ha 
muitas  donzellas,  casasempre  primeiro  amais  velha, 
a  menos  que  não  tenha  alguma  enfermidade  que  a 
condímine  ao  celibato.  í)  meu  patrão  casou  umafillia 
no  tempo  em  que  fui  seu  hospede.  Eis-aqui  como  foi 
o  caso. 

Os  svati,  nome  que  dão  aos  amigos  que  acompa- 
nham o  noivo,  chegaram  acavallo  e  bem  equipados  ; 
rabos  de  pavões  em  cima  dos  liarretes  formavam  ele- 
gantes pennachos.  Armados  de  ponto  cm  branco,  co- 
mo que  estavam  de  sobre  aviso,  menos  por  necessi- 
dade que  por  se  conformarem  a  um  rito  antigo.  Em 
tiímpos  remotos,  não  eram  raras  entre  os  morlacos  as 
mesmas  contendas  quo,  segundo  a  fabula,  perturba- 
ram as  núpcias  de  Piríthúo  pelo  combate  entre  os 
centauros  o  os  lapíthas.  Se  havia  muitos  pretenden- 
tes á  mão  de  uma  rapariga,  dísputavam-n^a  por  ac- 
commettimentos  de  agilidade  e  destreza,  ou  por  vi- 
vacidade de  espírito,  e  não  poucas  vezes  resultavam 
scenas  sanguinolentas.  Sol)re  este  assumpto  <;xíste  um 
antigo  poema  íllyrico.  O  vaivodo  (caudilho)  Janco 
de  Scbigue  pedira  em  casamento  Jagna  de  Teme- 
swar :  os  irmãos  da  noiva,  depois  de  o  haverem  em- 
briagado, propuzeram-lhe  um  jogo  de  habilidades, 
com  a  condição  de  que  teria  a  concessão  da  noiva  se 
ganhasse,  e  a  morte  se  perdesse. 

—  u  Em  primeiro  logar  (reza  o  poema)  cravaram  no 
chão  uma  hmça  com  iim  pomo  na  ponta,  cdisseram- 
Ihe  sorrindo  :  Junco,  esta  maçã  te  servirá  de  alvo ; 
se  a  tua  seita  a  não  atravessar,  cairá  tua  cabeça  em 
paga  do  arrojo. — Janco  saíu-se  bem  da  primeira 
prova;  propuzeram-lhe  outras  duas.  Ordenaram-lhe 
que  galgasse  só  de  um  salto  nove  cavallos  postos 
adíantí!  (Pelle.  A  final  foi  obrigado  a  reconhecer  a 
sua  noiva  entre  novo  donzellas  col)ertas  de  véus. 
Periníttia  o  uso  ao  noivo  ser  substituído  por  alguém 
que  quizesse  siijcitar-se  ás  horríveis  alternativas  do 
mau  exilo.  íCéculo,  sol>rinho  de  Janco,  fez  as  provas 
em  logar  d'elle  ;  galgou  com  elleílo  os  nove  cavallos. 
A  terceira  era  amais  dilTicíl,  porem  o  mancebo  saíu- 
seirdla  mui  (-iigeahosameiíle.  Coniluzido  perant(>  as 
nove  donzellas,  estendeu  por  terra  o  seu  capote,  Iiin- 
çou-llu-  um  punhado  de  anileis  de  ouro,  e  disse  com 
voz  ami>açadora  ?  —  (^hega-le  e  apanha  esses  mineis, 
ó  virgem  iiiuavel,  ipie  estás  prometi  ida  a  Janeo.  Se 
outra  <|Mal(|U('roiisarestcnder  obraço,  de  um  só  golpe 
d'eslii  cimilana  lhe  deceiiarei  aeajieça.  —  Ksla  pro- 
posta nada  corlcz  inlíinidoii  oito  das  raparigas;  po- 
riMii  a  pieleiulida  de  Janeo  iiãvi  hesitou,  eollu^u  os 
anileis,  c  por  essi-  meio  arliliriosi)  loi  por  /éeulo  re- 
<'oiiliecida.  "  —  Ainda  ha  bai\os-reh'Vi>s  grosseiros  ipif 
ri'|ii'(',sciilain  crestes  usos.  \'olteiiios  ao  easiimeiílo  da 
fillia  do  meu  patrão. 


198 


O  PANORAMA. 


Depois  da  benção  nupcial,  observou-sc  uma  cere- 
monia  quo  outr^ora  os  romanos  practicavam.  Appre- 
sentou-se  á  desposada  uma  cest;i  com  amêndoas  e  no- 
zes ^  distribuiu-as  primeiro  aos  svati  ou  companhei- 
ros do  marido,  c  atirou  com  o  resto  aos  mais  cir- 
cumstantes,  para  symbolisar  que  na  sua  casa  haveria 
sobras. 

No  primeiro  dia  a  noiva  comeu  em  mesa  separa- 
da com  as  pessoas  de  seu  séquito,  e  o  noivo  n'outra 
com  seus  companheiros.  O  banquete  foi  ao  inverso 
do  í|ue  se  adopta  em  nossos  jantares  :  começaram  pe- 
las fructas  e  queijos,  e  acabaram  pela  sopa.  As  mu- 
lheres comeram  em  mesa  á  parte. 

Entre  as  viandas  accumuladas  com  prodigalidade 
achavam-se  cordeiros,  cabritos,  aves  caseiras,  e  caça ; 
porém  nada  de  vilella  :  não  usam  d^ella  os  morlacos 
que  não  teem  adoptado  usos  estrangeiros.  Tal  aver- 
são á  vitella  data  do  tempos  remotos:  S  Jeronymo, 
que  era  dálmata,  já  faz  menção  d'ella. 

Os  festejos  nupciaes  duraram  por  muitos  dias  \  em 
cada  um  doestes  appresentavam  a  cada  convidado 
uma  bacia  para  lavar-se,  na  qual  devia  deixar  algu- 
ma moeda.  Este  dinheiro  é  para  a  desposada,  que 
tem  o  cuidado  de  augmentar  o  pequeno  pecúlio,  apos- 
■■aiido-se  dos  barrotes  e  facas  de  matto  dos  assistentes, 
que  são  obrigados  a  resgate.  Cada  convidado  também 
faz  sua  dadiva  voluntária ;  e  por  tal  modo  se  dobra 
o  dote,  que  consiste  em  fato  e  cabeças  de  gado  vac- 
cum. 

Depois  da  comida  dança-se  ccantani-se  trovas  cora 
allusões  a  cortas  divindades  pagãs,  cujas  memorias  o 
christianismo  não  tem  podido  apagar. 

O  mais  extravagante  costume  precedeu  a  despedi- 
da da  noiva  da  casa  paterna.  O  pai  e  a  mãi,  entre- 
gando a  filha  ao  genro,  fizeram  a  este  uma  exagge- 
ração  cómica  das  ruins  manhas  d^aquella.  n  Não  tens 
miolos  em  levar  tãointraclavel  creatura  :,  mas  se  em- 
lim  queres  carregar  com  cila,  sabe  quo  para  nada 
presta,  ó  caprichosa,  l)irrenta,  &c.  ;>'  Mas  até  aqui  a 
cousa  não  vai  mal,  porque  tacs  cumprimentos  são  do 
estjlo:,  a  resposta  do  marido  é  que  é  pouco  edificante, 
sendo  bem  sabido  que  os  morlacos  não  são  homens  que 
faltem  á  palavra.  «Pois  sim  {diz  para  a  esposa),  se 
tens  esse  niáu  génio,  eu  te  cliamarei  á  razão,  ejá  te 
mostro  de  antemão  a  força  do  meu  pulso.  "  Segucm- 
se  gestos  de  lhe  Ijater,  eás  vezes  não  pára  em  gestos. 
Estas  maneiras  brutas  passam  entre  os  povos  iilyri- 
cos,  como  entre  os  russianos,  por  demonstrações  de 
amor:,  as  mulheres  querem  antes  levar  pancada  do 
que  vêr  que  os  maridos  fazem  pouco  caso  d"ellas. 

A  occupação  ordinária  dos  morlacos  na  tenra  ida- 
de é  pastorear  os  rebanhos  nos  mattos  e  serras  \  e 
ahi  approveitam  as  suas  horas  de  vagar  em  abrir 
diversas  csculpturas  em  madeira,  sem  mais  instru- 
mento que  uma  navalha  ;  as  quacs  se  parecem  com 
as  grosseiras  figuras  d"animaes  que  fabricam  de  lenhos 
resinosos  os  pastores  da  Suissa,  e  que  os  bufarinhei- 
ros  compram  por  atacado,  e  revendem  por  \il  preço 
até  cm  Paris.  Os  rapazes  morlacos  fazem  também 
taças  e  assobios  com  lavores  curiosos. 

O  sustento  habitual  d*este  povo  compõe-se  deleite 
o  lacticínios  de  toda  a  casta.  Fcrnienlam  o  leite  com 
\inagrc  e  obtecm  assim  uma  beberagem  refrigeran- 
te :,  o  seu  prato  mais  estimado  consiste  em  queijo 
frito  cm  maufeiga.  A  galeta  ou  bolo  chato  que  lhes 
serve  de  pão  é  fabricada  de  mistura  de  farinha  de 
milho  miúdo  e  grosso,  de  cevada,  e  de  trigo  quando 
o  podem  liaver ;  tudo  jimassado  e  cosido  debaixo  do 
borralho.  Fazem  lambem  grande  coi\5um(i  de  raiies 
e  de  hortaliças.  Decidcm-se  por  assados  de  carnes 
com  uni  gosto  que  nem  sempre  podem  f;itisf«ier. 
Teem   o  que  se  [xidc  chamar  paix.li)  por  colxiUinhas 


e  alhos ;  e  por  isso  um  morlaco  se  denuncia  de  longe 
pelas  exhalações  da  sua  iguaria  estimada.  E  fora  de 
duvida  que  o  uso  diário  d^esses  vegetaes  corrige  em 
parte  a  ruim  qualidade  das  aguas  dos  lameiros  edos 
arroios  encharcados,  onde  os  habitantes  de  muitos 
districtos  são  obrigados  a  ir  no  verão  buscar  a  bebi- 
da. Os  mesmos  vegetaes  concorrem  talvez  para  a  saú- 
de e  robustez  do  povo.  Acha-se  nos  morlacos  grande 
numero  do  velhos  ainda  frescos  e  bem  dispostos  •,  pe- 
lo que,  a  despeito  d'Horacio,  dão-me  venetas  de  pre- 
zar o  alho.  E  quem  acreditaria  que  os  morlacos,  por 
descuido  seu,  se  fazem  tributários  d'estranhos  por 
um  género  cuja  cultura  lhes  seria  mui  fácil.'  Man- 
dam vir  annualmente,  de  Ancona  e  Rimini,  as  res- 
tas d'alhos  por  milheiros  de  piastras. 

Quanto  á  idade  avançada  a  que  chegara  estes  po- 
vos Seria  difficultoso  fixa-la  ao  certo :  a  maior  parte 
ignoram  a  data  precisa  de  seu  nascimento,  que  pou- 
co lhes  importa  comprovar.  E  como,  passado  certo 
período,  a  garridez  que  inclinava  a  diminuir  a  idade 
converte-se  era  basofia  de  augmenta-la,  pôde  repu- 
tar-se  que  muitos  dos  inculcados  centenários  não  te- 
rão mais  de  oitenta  annos.  Além  de  que  não  ha  um 
só  que  tenha,  como  o  ill^rieo  Dando  citado  por  Plí- 
nio, a  pretenção  de  haver  vivido  quinhentos  annos. 

Aconteceu  fallecer  ura  visinho  nosso.  N^essa  ma- 
nhã acordou-me  o  prantear  das  carpideiras,  porque 
na  morte  dos  morlacos  paga-se,  conforme  a  riqueza 
dos  herdeiros ,  a  certo  numero  de  mulheres  para 
aquelles  lamentos.  Pela  primeira  vez  testimuuha  de 
uma  ccremonia  lúgubre  d'este  género,  informci-me 
das  qualidades  do  defuncto  que,  segundo  parecia,  ins- 
pirava tão  fundas  magnas.  «Ai,  senhor!  (rae  respon- 
deu uma  carpideira)  bem  vedes  que  era  uma  pessoa 
rica,  c  os  seus  herdeiros  não  olham  a  gastos.  " 

Porém  antes  de  descrever  as  tristes  ceremonias. 
cxarainemos  o  regimen  dos  morlacos  durante  a  doen- 
ça que  os  leva  á  cova.  Digo  a  doença,  porque  a  ro- 
bustez do  seu  temperamento  lhes  não  permitte  co- 
nhece-las  senão  de  uma  casta  \  esão  as  moléstias  in- 
tlammatorias  em  consequência  de  transpiração  impe- 
dida apoz  os  violentos  exercícios  que  esta  gente  fai 
em  seus  bailes.  Tal  foi  a  infelicidade  do  defuncto  de 
que  fallo.  Como  a  maior  parte  dos  morlacos,  não 
chamou  facultativo,  tractou  de  se  curar  a  si  próprio. 
O  primeiro  medicamento  a  que  recorreu  foi  uma 
farta  dose  de  aguardente  com  infusão  de  pimenta  e 
pólvora  bombardeira.  Nada  ommittiu  que  podesse 
provocar  abundante  suor ;  pOz  cm  cima  de  si  quanto 
fato  poude  haver  á  mão,  e  apprcsentou-se  deitado  de 
costas  á  torreira  do  sol.  Para  recobrar  oappetíte  en- 
goliu muito  vinagre;  e  a  final  applicou  sobre  uma 
ferida,  que  fizera  caindo,  um  pouco  de  ocre  a\erroe- 
Ihado.  Feito  isto  os  mezinheiros  e  os  curandeiros  to- 
maram posse  d"elle.  O  principal  remédio  foi  o  que 
lhe  serve  para  todas  as  moléstias,  assucar :  até  quan- 
do estava  já  agonis;inte  llie  fizeram  engolir  grandes 
pedaços,  afim  (diziam  elles)  de  lhe  aditar  o  amargor 
de  seus  últimos  momentos. 

Logo  que  o  morlaco  succumbiu  ao  excesso  domai, 
toda  a  sua  família,  reforçada,  como  acab:imos  de  di- 
zer, pelas  carpideiras  assdari.idas.  fci  retumbar  na 
casa  seus  prantos.  Os  amigos  do  defuncto  chcgaram- 
>e  ao  corpo,  e,  fallando-lhe  cora  toda  a  seriedade,  o 
incumbiram  de  recados  para  o  outro  mundo.  — Vin- 
da a  hora  di)  enterro,  inibrírara  o  cad.iver  com  um 
lençol  branco  e o  transportaram  a  igrrja.  Mal  o  dei- 
xaram debaixo  da  terra,  voltou  o  .acompanhamento 
a  casa  junctamcnic  com  o  cura;  ahi  se  renovaram  as 
rezas,  a  que  se  seiuiu  um  grande  banquete,  no  qual 
a  maioria  dos  conxid.idos  penloram  o  uso  da  ra>ão. 

O  biclo  dos  homens  consisto  em  d«'i\ar  crescer  a 


o  PA>ORA3lA. 


199 


barba  a  trazer  uma  carapuça  azul  ou  roxa  :  as  mu-, 
Iheres  amarram  na  cabeça  um  lenço  azul  ou  preto,  e 
escondem  com  farrapos  de  panno  preto  aquellas  por- 
ções do  vestuário  que  são  de  côr  encarnada.  —  No 
primeiro  anno  immediatoao  fallecimento,  as  mulhe- 
reâ  da  família  vão,  todos  os  dias  de  festa,  fazer  no- 
vas lamentações,  e  espalhar  sobre  a  cova  ílòres  eher- 
vas  cheirosas.  Se  alguma  imperiosa  circumstancia  as 
constrange  a  faltar  a  este  pio  dever,  teem  o  cuidado 
de  vir  depois  dar  suas  desculpas  ao  defuncto  eexpli- 
car-lhe  a  falta,  como  se  fora  capaz  de  ouvU-as.  Per- 
guntam-lhe  também  novas  do  outro  mundo,  e  fazem 
a  este  respeito  os  mais  extravagantes  interrogatórios. 
Estes  discursos  aos  finados  não  se  repetem  em  tom 
natural  da  voz,  mas  lamentoso  e  compassado,  como 
uma  lição. 

Deu-me  na  vontade  vestir-me  por  algum  tempo  á 
moda  dos  morlacos.  Eis-me,  por  tanto,  com  um  alto 
carapuço  de  felpa,  caíndo-nie  os  cabellos  sobre  o  ca- 
chaço ^  a  minha  vestia  e  as  calças  são  brancas  com 
guarnições  azucs  :,  d'uma  cinta  de  couro  pendera  uma 
faca  e  uma  Ixjlsa  de  tabaco  \  as  minhas  polainas  são 
de  lã  grosseira  e  branca,  orladas  na  extremidade  su- 
perior e  abertas  aos  lados.  Nunca  saio  sem  o  meu 
trem  militar  \  uma  espécie  de  chalé  comprido  agoi- 
ta-se  com  elegância  sobre  o  meu  hombro  esquerdo,  e 
quando  me  é  preciso  embrulho-me  n'elle  como  n'um 
cobertor. 

As  mulheres  toucam-se  com  um  lenço  branco  dei- 
xando as  duas  pontas  caídas  por  detraz,  guarnecidas 
de  laços  de  fitas  azues  e  encarnadas :  as  das  cidades 
trazem  por  toucado  um  passôlat,  que  é  de  estofo 
branco  pintado  de  flores  com  seus  bordados  de  fio  de 
ouro  ou  de  prata. 

As  solteiras  trazem  barretinhos  vermelhos  enfeita- 
dos de  moedas  c  de  conchinhas,  principalmente  da 
«ispecie  <|ue  chamam  porcelanas  (cyptra  moneía)  que 
servem  de  dinheiro  n^algumas  parles  da  índia. 

As  cuinpoiíczas  morlacas,  muito  laboriosas,  fazem 
algumas  vezes  longas  jornadas,  levando  á  cabeça  uma 
trouxa  mui  pezada,  e  ás  costas  uma  crcança  \  estes 
dois  pezos  não  lhes  vedam  de  irem  fiando  na  roca,  pa- 
ra distrahir  o  enfado  do  caminho,  ou  para  não  per- 
der tempo. 

Quasi  que  não  ha  pessoa  dos  morlacos  que  deixe 
de  acreditar  nas  almas  do  outro  mundo,  cm  lodos  os 
prestígios  de  bruxaria,  e  nos  vampiros  que  chupam 
o  sangue  das  creanças.  O  mais  inlrepido  toma  as  de 
villa-diogo  á  vista  de  qualcjucT  olycclo  que  se  lhe 
affigurar  um  espectro  ou  um  1  rasgo.  A  sua  ardente 
imaginação  e  espirito  naturalmente  crédulo  multi- 
plicam cslas  a])pariçue3  ;  o  mais  singular  é  <jue  não 
se  envergonham  de  taes  medos,  c  desculpam  a  sua 
covardia  com  um  adagio  ill^rico,  que  corresponde  ao 
verso  de  Pindaro,  que  di/. :  nO  temor  dos  phantas- 
mas  faz  fugir  ale  osfiliius  dos  numes."  —  Asmulhe- 
r(ís  muito  mais  propensas  á  superstição  do  que  os  ho- 
mens, chegain  ao  cíxcesso  de  se  capacilarom  (jue  são 
feiticeiras.  As  bruxas  altribuem  cousas  fura  de  todo 
ográu  de  credibilidade  :  ilizem  queellas  fazem  perder 
o  leilc  ás  vaccas  dos  visiiiluis  para  augnu^nlar  o  das 
suas. 

Direi  um  conto  que  mo  n  leria  Pedro,  o  meu  ve- 
lho.—  Narrava  v[\f  que  eslando  uma  noile  deitado 
na  m(?sma  alcoNa  com  um  maniclid  morlaco,  não 
liorinia  e  viu  claramente  duas  feiliíeiras  que  abri- 
ram o  corpo  <lo  moro  para  lhe  tirar  o  coração  c  as- 
•^a-io  |iara  comer.  O  rapaz,  ai-iuilando,  sentiu  o  sitio 
do  coração  vasio  :  n'esli'  miunento  di'\i:i  acabar  o 
Icitiço-,  e  as  bruxas  voaram  deixando  em  cima  das 
brazas  o  guizado.  l'i'dro,  que  ale  alli  s<'  não  bolíra, 
por((Ue  eslava  embruxado,  puude  entào  sidlar  du  ca- 


ma, e  appressou-se  o  salvar  o  coração  do  companhei- 
ro, tirando-o  do  lume,  e  fazendo  com  que  o  engolis- 
se ;  o  rapaz,  como  é  bem  de  crer,  sentiu  loso  a  vís- 
cera tomar  o  seu  logar.  — 

Os  morlacos  trazem  sempre  zappis  ou  talismans 
cosidos  nos  barretes  ;  também  os  penduram  nos  cor- 
nos do  gado.  Por  insignificante  que  seja  um  successo 
fortuito,  que  pareça  provar  a  utilidade  d"aquelle5 
amuletos,  todos  logo  bradam  que  foi  milagre.  Até  os 
turcos,  levados  do  exemplo,  compram  aquelles  bu- 
giarias ;  e  a  exportação  dos  talismans  é  para  os  pa- 
dres ignorantes  dos  morlacos  considerável  objecto  de 
negocio.  —  Attribuem  também  propriedades  milagro- 
sas a  algumas  medalhas  ou  moedas,  ou  do  Baíxo-Im- 
perio,  ou  cunhadas  em  ^  eneza  na  idade  media  :  con- 
fundem-n*as  sob  a  denominação  de  medalha  de  Sanc- 
ta  Helena.  Igualmente  veneram  muito  as  medalhas 
húngaras,  chamadas  peíiz:íe. 


BerNADOTTE,    rei    de  StECIA. 

Filho  de  um  advogado  de  Pau,  João  Baptista  Júlio 
Bernadotte  nasceu  n'aquella  cidade  a  2G  de  janeiro 
de  1764.  Seu  pai  o  destinava  á  sua  profissão,  mas  o 
animo  franco  do  mancebo  não  quadrav  a  com  as  dis- 
putas furenses  •,  o  que  ambicionava  era  o  movimento 
das  campanhas  ca  gloria  das  batalhas.  Comtudo  não 
lhe  era  favorável  a  occasião,  porque  a  nobrezii  occu- 
pava  todos  os  postos  militares,  e  chegando  a  ajudan- 
te o  plebeu  não  tinha  que  esperar  adiantamento. 

Quasi  sempre  os  homens  celebres  teem  a  consciên- 
cia do  que  hão  de  valer  no  futuro,  e  as  difficuldades 
que  lhes  embaraçam  os  primeiros  passos  não  servem 
senão  de  os  estimular  mais.  O  mancebo  Bernadotte 
fugiu  da  casa  paterna  e  alistou-se  n'um  regimento 
da  marinha,  affiançado  pelo  magistrado  de  um  mu- 
nicípio visinho.  Passou»se  isto  em  1780;  c  d"ahi  a 
nove  annos  ainda  Bernadotte  não  tinha  subido  de 
sargento:,  masd'então  por  diante  fez  rápidos  progres- 
sos, e  em  i~'J'2  foi  promovido  a  coronel.  O  exercito 
tinha  perdido  os  seus  commandantcs  ;  uns  tinham  saí- 
do do  território  francoz,  outros  tomado  armas  contra 
a  republica.  Mocidade  sem  experiência,  sem  instruc- 
ção  militar,  ás  vezes  mal  armada  e  equipada,  pela 
maior  parte  roubada  a  suas  famílias,  taes  eram  os 
defens<jres  que  a  Commíssão  de  Salvação  publica  en- 
carregara de  manter  as  fronteiras.  Em  meio  d'estc 
exercito,  levantado  apressa,  éque  Beriuulottc,  já  co- 
ronel, fezasua  primeira  cam])anlia  ásordens  deCus- 
line  :  assuas  proezas  lhe  adijuíriram  logojusta  repu- 
tação, mas  a  independência  de  caracter  o  fez  alvo  do 
resenlímento  dos  representantes  do  exercito  do  povo. 
Com  efleilo,  teve  por  vozes  deluctar  com  ellcs,  e  en- 
tão não  hesitava  em  provar-lhcs  que  cran»  ineptos. 
Depois,  arrancando  as  ilrai;onas,  só  requeria  a  espin- 
garda de  soldado  e  permis.-.ão  de  verter  o  sangue  em 
defeza  da  Krança. — A  brigada  Cioguel  amolinou-se 
contra  o  general  d'este  nonu-,  eíani  mata-lo,  porém 
Bernadolte,  indignado,  lançou-se  nomeiodosamotí- 
nailos  e  arrancou-lhcs  a  viclima.  Este  nobre  procc>- 
dinicnlo  iles.igradou  taudiem  aos  representantes,  ijuo 
o  ([enunciaram  por  aristocrata,  e  esperavam  tpu-  .i 
(Vinimi^^ào  deS.dvaçrio  publica  expedira  contra  clle 
ordem  lie  aresto  e  testilniçào.  l'"inalniente  o  inimigo 
atacou  os  postos  avançados,  e  líern.idotte,  ri'pelliu- 
<lo-ii,  fez  prodígios  de  valor  \  nTio  ousar.un  por  l.mto 
l)rincl<'r  o  vencedor.  A  coniinisvio  snUstítuiu  o  ares- 
to piir  unia  patente  de  gi^nrral  de  div  iv  i-^u» :  Iterna- 
dotle  iijcilou-a,  e  sií  dcpoi^  ile  h.iver  poderiisanunie 
eoncoirido  paru  u  vicloria  de  l''lcurus  é  «juo  ucceilou 


200 


O  PAjHORA3IA. 
í 


as  dragonas  de  general  de  brigada,  que  lhe  foram 
conferidas  no  j)roprio  campo  da  batalha. 

Entretanto  a  republica  consolidou-se,  e  os  gene- 
raes  não  tiveram  que  luctar  senão  contra  inimigos 
externos.  Bernadotte  proseguia  na  sua  gloriosa  car- 
reira :,  passou  o  Rheno,  pelejou  por  três  semanas,  e 
mereceu  pela  valentia  elogios  do  Directório.  Pouco 
depois  foi  destacado  com  um  corpo  de  20:000  homens 
para  o  exercito  da  Itália.  Então  começou  a  carreira 
politica  de  Bernadotte  :  está  ás  ordens  de  Buonapar- 
te ;  a  amizade  não  ligara  estes  generaes ;  o  bernez 
adivinhara  a  profunda  ambigão  do  seu  commandan- 
te,  e  sendo  com  todas  as  veras  affeiçoado  á  republica, 
deplora  uma  rui  na  que  reputa  imminente  e  certa. 
Como  quer  que  fosse,  Buonapartc,  que  sabia  melhor 
que  ninguém  fazer  justiça  ao  tino  militar,  confiara  o 
commaiido  da  vanguarda  a  Bernadotte.  Psãocabe  n^u- 
ma  breve  noticia  fallar  das  peritas  manobras  doeste 
general,  e  dos  brilhantes  feitos  que  fundaram  eaug- 
mentaram  a  sua  fama.  Vencedor  em  muitas  partes, 
Bernadotte,  depois  de  ter  posto  em  apuro  o  príncipe 
Carlos,  ede  lhe  haver  tirado  das  mãos  a  fortaleza  de 
Gradisca,  achou-se  encarregado  pelo  Directório  de 
instrucções  verbaes  para  o  general  em  chefe,  eotrac- 
tado  de  Campo  l>'ormio  pouco  depois  foi  assignado. 

Dissenções,  cuja  causa  émal  conhecida,  não  tarda- 
ram a  desunir  os  generaes  Buonaparte  e  Bernadotte; 
este  chegou  adeniittir-se  do  commando  que  lhe  con- 
fiara o  Directório,  e  procurou  servir  na  índia  ou  em 
Portugal  \  em  sumnia,  queria  afastar-se  do  general 
Buonapartc.  Passaremos  em  silencio  os  enfados  e  des- 
gostos com  que  largamente  mimosearam  Bernadotte 
durante  a  sua  eniliaixada  de  \  ienna  para  onde  fora 
nomeado  no  mez  de  abril  de  1798  :  muitos  auctores 
accusam  Buonaparte  de  não  ser  estranho  a  esses  me- 
xericos. Bernadotte,  ao  voltar  a  França,  casou  com 
Jl.elle  Desirée  Clary,  filha  de  um  rico  negociante  de 
Marselha.  Napoleão  Buonaparte  a  tinha  pedido  an- 
nos  antes,  quando  ainda  era  general  de  artilheria,  e 
não  a  poderá  obter,  porque  Mr.  Clary,  segundo  re- 
ferem alguns  biographos,  assentava  que  era  de  sobe- 
jo um  Buonaparte  na  sua  familia,  tendo  com  elVeito 
casado  outra  sua  filha  com  José,  irmão  de  Napoleão. 
Era  grande  o  merecimento  de  Bernadotte  para  que 
o  deixassem  muito  tempo  sem  emprego-,  foi  portan- 
to chamado  ao  ministério  da  guerra.  A  guarda  na- 
cional rcorganisada,  a  remonta  de  40:000  cavallos,  as 
fronteiras  reforçadas  com  100:000  homens  de  novas 
levas,  taes  foram  os  felizes  resultados  da  breve  admi- 
nistração de  Bernadotte.  Mas  a  republica  tocava  no 
seu  occaso,  e  dentro  em  pouco  Sieyés  podia  exclamar 
com  razão  que  a  França  adiara  um  senhor. 

Bernadotte  luctou  até  o  ultimo  momento  contra  a 
ambição  de  Buonaparte-,  porém,  quando  viu  derri- 
bado o  Directório,  cedeu  também,  e  com  prudência 
desempenhou  os  novos  encargos  que  acabavam  de  lhe 
ser  conimetlidos.  l'rincipalni(Mile  como  commandan- 
te  geral  nas  províncias  d'oestc  é  que  Bernadotte  me- 
rece estudado;  ora  guerreiro  contra  os  inglezes,  ora 
pacificador  impedindo  a  renovação  da  guerra  civil, 
triumpha  em  tluiberon,  c  com  uma  sóvictoria  segu- 
ra a  província  contra  as  invasões  do  inimigo  e  as  re- 
l»ollíues  dos  habitantes.  Então  assentou  Napoleão  que 
não  tinha  mais  a  fazer  que  encher  de  mercês  t.ão  il- 
lustre  general  e  liga-lo  á  sua  fortuna.  Bernadotte  foi 
succe5si\amente  nomeado  marechal  do  império  desde 
;\  creação  d'esta  dignidade  (l\)  de  maio  de  1S04), 
chefe  da  oitava  cohorle  da  legião  d"honra,  cgo\erna- 
dor  de  Ilannover.  Esta  commis.sãii  em  liannover  ti- 
nha dois  motivos;  arredava-se  um  homem  que  havia 
muito  tempo  se  fizera  estimado  do  exercito,  c  que 
por  tendência  republicana  não  pudera  aindu  submet- 


ter-sc  ao  despotismo  imperial ;  além  d'isso  emprega- 
va-se  o  talento  de  um  prudente  pacificador  n'um  paiz 
quasi  exhausto  pelas  guerras.  Bernadotte  partiu  sem 
pena,  porque  desesiHirava  da  França,  que,  no  seu 
pensar,  não  podia  viver  senão  sob  a  era  gloriosa  da 
republica.  No  entanto  a  sua  administração  d^Han- 
nover  deu  os  mais  prósperos  fructos  ao  império ;  e 
quando  foi  chamado  para  amemoravel  campanha  de 
180o,  Napoleão  deu  a  Bernadotte  o  mando  do  pri- 
meiro corpo  do  grande  exercito  composto  de  tropas 
hannoverianas.  Já  estes  soldados  tinham  assignalado 
o  seu  valor,  porque  Bernadotte  á  sua  frente  tinha 
feito  recolher  o  eleitor  de  Baviera  á  sua  capital,  e 
concorrera  para  a  tomada  de  Ulm,  sopeando  os  rus- 
sianos  por  três  dias  inteiros.  Na  batalha  de  Auster- 
litz  o  marechal  se  distinguiu  novamente,  e  geralmen- 
te lhe  attribuem  grande  parte  n'e5ta  victoria ;  foi 
recompensado  com  a  soberania  e  títulos  de  duque  e 
príncipe  de  Ponte-Corvo,  que  lhe  conferiu  o  impe- 
rador.         (Continua.) 

Velocidade  da  Ltz. 

A  VELOCIDADE  com  que  a  luz  atravessa  o  espaço  foi 
calculada  pelos  geómetras  em  setenta  e  nove  mil  qui- 
nhentas esetenta  eduas léguas  porsegundo  (de2:000 
toezas  cada  légua),  em  quanto  que  a  velocidade  do 
som  não  passa  de  32o  metros  ou  2o  braças.  A  velo- 
cidade da  luz  é  por  tanto  novecentas  mil  vezes  maior, 
segundo  Euler,  que  a  do  som,  e  a  faz  correr  n"uma 
hora  o  espaço  que  uma  baila  de  artilheria  andaria 
cm  perto  d"uin  século.  E  como  o  sol  dista  da  terra 
trinta  e  nove  milhões  e  duzentas  e  vinte  e  nove  mil 
léguas  gasta  a  luz  solar  oito  minutos  e  treze  segundos 
para  chegar  á  terra,  e  a  luz  das  estrellas  que  lhe  fi- 
cam mais  próximas,  mas  que  assim  mesmo  distam 
de  nós  mais  de  duzentas  mil  léguas,  gasta  quasi  qua- 
tro annos  para  cá  nos  chegar ;  de  sorte  que  eviden- 
temente vemos  os  astros  na  posição  em  que  estavam 
quatro  annos  antes.  O  mesmo  espaço  que  as  estrel- 
las mais  remotas  distam  da  terra  faz  com  que  a  sua 
luz  careça  d"alguns  milhões  de  séculos  para  chegar  ao 
nosso  plaiíeta. 

Os  políticos. 

Temtos  houve  em  que  os  demónios  fallavam,  e  o 
mundo  os  ouvia;  mas  depois  que  ouviu  os  políticos 
ainda  é  peior  o  mundo.  Vieira  —  Hcnniki. 


AEmpreza  d'csteJonial  hcàtou  por  algum  icmpo  so- 
bre se  levaria  por  diante  a  sua  publicação  além  Jo 
n."  20,  OH  se  a  suspenderia  como  ttem  feito  as  de  ou- 
tros periódicos  littrrarios  de  muito  metwr  coste amento . 
liesolvcu-se  comtudo  a  continua-la,  arriscandc-x  a 
nova  perda,  citja  ejrtcnsão  só  jxjde  avaliar  íjuem  ti- 
ver conhecimento  deimprczas  seviclhantes.  Findando 
poríni  as  assiynaturas  dcseineslre  norrferiílo  n.°26, 
os  senhores  que  quizerem  renova-los  ou  assignar  de 
jim'0  o poiierão  faxe r  na  tt/pographia  do  jiitínio  Jor- 
nal. I^argo  do  Contador-^lúr,  ii.*-'!  A.  ou  na  loja  de 
livros  da  Sr.^  f  iuva  Henriques,  rua  Augusta,  n.''l. 

.1  falta,  por  ausência,  de  um  dos  prinripaes  rtdac- 
Icres,  que  teve  togar  dc/xtis  da  publicação  do  «.**  T. 
vai  ser  sujyprida  por  outro,  a  cotdar  do  u."  27. 

-Aão  deve  a  Jimpreza  jMrnler  esta  oteasião  de  u- 
quei.rar  amargamente  <ía  protecção  ncgati\a9uc  ífm 
rtcebido  de  quem  st  acha  (ncarnyado  da  parte  lilte- 
raria  do  Diário  do  Governo,  r  que  Ião  soUicito  ha 
sido  f  III  se  approveitar  dos  artigos  do  Panorama,  quan- 
to descuidado  em  o  citar. 


26 


o  PANOUA3IA. 


201 


/V,:--:-v 


I  )■  I M   Vasco  da  ( j  a .m  A . 


Com  hcroini  tiriiic/ii, 
A  reiniituf  cmiini  o  lioroc  laiiiosu 

A  |ioi'lci)toMi  riii|»rr/ji. 
\  sí'us  |)ll^sl)S  oiii  \i"n»  lijirluira  f;('iilt', 
lloircluio'»  <i^ltn^,  s^rlrs  rvtiiiiMls, 

Sr  Uir  o|>|infiii  cspiíiiti^Mis, 
i^uc  a  »<'ii  |)i">ai-  rnli-o(i  no  ucciílto  OririiU'. 

DiMí— O./.    I." 

ArAiilvA  ilc  inurrLT  um  lioiii  rei  i;  uiii  iii.iii  liuiiium, 
liigumlu  111)  IManiicl,  (lu(|iii.'  ilc  lii^ja,  um  reino  paci- 
licado  |iili)  tuiuor  dii  lulcllo  c  do  xcucini,  c  a  f;loiia 
(la  |iiOht'cui;ão(los(lcs('i)liiimculns  maiilimus.  I')m  1  '(87 
Imvia  Jiaillujlomeu  Dias  passado  o  ( 'alaMlasToriuen- 
lai ;  iH-m  \'\m\\  ja  (slraidjas  aos  nossos  as  Icrras  (pu.- 
Iliit  tiram  alem  ua  rosla  di;  (iuiué  ate  clicuar  i|uabi 
a  Holula  (' M(i|;amliii[ue.  A  isjuTaiiija,  |ioii'm,  dcdíjs- 
('ol)rii'  a  Índia  u  ra/(.'-la  Iriliulariít  ao  pcijucno  reino 
dl'  l'orhigal,  <sp4'ran<;a  que  movera  1).  João  Jl  a  inu- 

Voi..  1.  — MAiíeo  O,  isn. 


dar  o  nome  d"ii(|Uelle  ("alio  para  o  (jiie  ainda  hoje 
conserva,  não  linlia  podido  roalisar-sc.  l'ara  perfazer 
esta  cmprczu  pòz  elrei  os  olhos  n'um  mancebo  de 
vinl<'  e  oito  annos,  lldal2;o  da  sua  casii,  enaluralda 
villa  de  Sines  noAlemtejo;  o  não  se  en^-Tion  naes- 
eollia,  (jue  eslo  manccijo  <;ra  Vasco  <laGama,  filho  de 
Kslevam  da  Gama  alcaide  m«ír  de  Sines  e  commeu- 
dador  do  Seixal,  e  um  dos  lioniens  mais  entendidos 
na  arle  da  navej;a«;ào,  a  <|uem  1).  João  II,  pouco 
antes  de  morrer,   havia  enearrenado  d'eslu  viasçem. 

\  asco  da  (Jama  pediu  para  eimipanheiro  seu  ir- 
mão l'aulo  da  (iauui,  e  lari;ou  do  siliu  de  HeU-ni  aos 
7  di^junho  de  1 't!)7,  c<im  três  naus,  além  d"uma  i|Ue 
li\a\a  uianlinxiilos  e  em  ipie  ia  Nicolau  ( 'oilho.  O 
piloto  d'esla  armada  era  l'ero  Oalanipicr.  i'\perimen- 
lado  marilimo,  <|Ue  linha  acom|>anliad'i  lt.ullu>lo- 
meu  Dias  até  ao  rio  ilo  lidanle. 

l'assou  á  vista  das  Canárias,  che-uu  em  :J1)  de  ju- 
lho ao  |ioi'tii  de  Sancta  Maria  na  ilha  ile  Sanetiai;o, 
e  ponilo  a  jinVi  a  leste  em  hnsc.i  do  Caho  de  Hoa- 
Ksperanea,  líastoii  os  meies  ileanosto  a  oululiro,.luc- 
tundo  com  tormenta'»  eventos  ponteiros,  parache;;ar 


202 


O  PANORA3IA. 


a  uma  bahia  que  chamaram  Angra  de  Sancta  Hele- 
na. Aqui  foi  Vasco  da  Gama  ferido  n'um  pé,  nabri- 
"a  que  se  travou  por  causa  diurna  imprudência  de 
Fernão  ^'eloso,  a  quem  obrigaram  a  descer  um  outei- 
ro com  mais  pressa  do  que  o  subira  (1). 

Tornou  a  frota  a  desfraldar  as  velas  no  dia  16  de 
novembro,  a  20  dobrou  o  Caíra  da  Boa-Esperança,  e 
a  2o,  navegando  sem  perder  aterra  de  vista,  chegou 
á  aguada  de  S.Braz,  sessenta  Itguas  distante  dV-Ue  : 
proveu-sc  de  mantimentos  c  agua,  e  depois  de  Vas- 
co da  Gama  ter  mandado  queimar,  por  desnecessá- 
ria, uma  náu  que  levara  viveres,  seguiram  as  ou- 
tras naus  a  sua  derrota,  não  se  demorando  alli  mais 
do  que  treze  dias,  porque  o  não  consentiram  as  de- 
savenças e  pendências  dos  portuguezes  com  os  negros  i 
sobreveio-llies  um  temporal,  mas  em  8  de  dezembro 
estavam  cinco  léguas  além  do  ilhéu  da  Cruz,  onde  Bar- 
tholomeu  Dias  pozera  o  derradeiro  padrão,  e  dia  de 
Natal  haviam  deixado  atraz  de  si  as  terras  descober- 
tas por  Lopo  Infante.  Já  não  tinham  competidores! 
Communicando,  todas  as  vezes  que  era  possível, 
com  os  habitantes  da  costa  ao  longo  da  qual  iam  na- 
vegando, entraram  as  embarcagões  no  rio  dos  Bons 
Signaes  onde  se  detiveram  32  dias,  não  só  porque 
foi  preciso  calafeta-las,-  como  por  ter  enfermado  mui- 
ta gente.  Partiram  emfim  aos  24  de  fevereiro  e  no 
1."  de  março  avistaram  a  ilha  de  Moçambique,  cujo 
xeque,  induzido  p('los  mouros,  resolveu  atraiçoar  os 
"nossos,  o  que  obrigou  Vasco  da  Gama  a  ir  surgir 
juncto  da  ilha  de  S.  Jorge,  uma  légua  ao  mar  de 
IMoçambiquo,  c  a  partir  em  demanda  da  ilha  de 
Quiloa,  onde  um  piloto  de  Moçambique  promcttia 
leva-lo,  tendo-lhc  fugido  o  outro.  As  calmarias  fize- 
ram com  que  a  armada  tornasse  a  fundear  na  illia  de 
S.  Jorge,  d'ondc  partindo  de  novo  no  1."  de  abril, 
Já  com  três  pilotos,  com  direcção  a  QLuiloa,  a  passou 
em  claro  e chegou  aTáilha  de  IMonihaça,  com  mui- 
ta gente  doente,  além  dcjá  ser  morta  metade  d^aquel- 
la  com  qne  viera  de  Lisboa.  Aqui  armaram  os  mou- 
ros a  Vasco  da  Gama  e  aos  seus  novas  ciladas,  de  que 
os  livrou  a  rara  prudência  doeste  capitão  e  o  medo 
dos  pilotos  traidores  de  3Ioçambique,  que  lançando- 
se  ao  mar  deram  a  conhecer  toda  a  perfidia.  Tão 
acerbo  era  o  ódio  dos  de  Mombaça  aos  portuguezes, 
que  vinham  de  noite  a  nado  com  terçados  e  macha- 
dinlias  para  picarem  as  amarras  das  naus,  as  quaes 
comtudo  chegaram  senidamno  a^lelinde  diadePas- 
choa  da  Rcsurreição.  No  rei  d'csta  terra  achou  Vas- 
co da  Gama  cordial  amizade  e  desejo  de  lhe  fazer 
bom  agasalho  e  de  lhe  acudir  com  todos  os  mimos  e 
regalos,  de  que  tanlo  careci.im  depois  do  uma  nave- 
gação cm  extreme  longa  e  trabalhosa. 

Deixando  um  padrão  na  praia,  seguiu  a  frota  pe- 
lo golpho  (la  costa  de  Melinde  até  a  do  Malabar,  e 
foi  ancorar  ao  18  de  maio,  duas  léguas  distante  da 
cidade  do  Calecut,  havendo  onze  mezes  que  saíra  do 
Tejo  ;  mas  porque  não  era  seguro  este  ancoradouro, 
recolheu-se  ao  porto  de  Pandaranc,  primeira  terra 
da  índia  em  que  %  asco  da  Gama  desembarcou,  dei- 
xando enconimendado  a  seu  irmão  Paulo  da  Gama 
ca  Nicolau  Coelho,  que,  se  algum  desastre  lhe  acon- 
tecesse em  Calecut  c  sentissem  que  corriam  risco  cm 
esperar  por  ellc,  fossem  a  outro  porto  comprar  espe- 
ciarias, e  lornasbcni  ao  reino  com  ellas  ecom  as  no- 
vas doquetiniiam  descoberto.  Tendo  dado  asua em- 
baixada ao  rei  deCidecuI,  quiz-lhc  oc:itual  ou  rege- 
dor impedir  a  volta  para  bonlo,  e  levou  a  ousadia  a 
pelir-lhe  as  velas  e  lemes  das  endiarcações,  c  a  pren- 
.  der  os  dois  feitores  que  ficaram  em  terra  para  mer- 

(!)•  Cam.  Cunl.  5.0  Est.  31  a  30.  — Gocs,  Chron.  de 
«cl  ici  Tt    Mmmcl. 


cadejar.  Reclamou-os  Vasco  da  Gama,  e  porque  Ih^os 
não  davam  fez  represália  em  seis  malabares  com  de- 
zenove  criados  que  tinham  vindo  a  Fwrdo,  e  foi  an- 
corar quatro  legoas  ao  mar  de  Calecut,  e  depois  ain- 
da muito  mais  longe,  cm  paragem  d'onde  quasi  que 
se  não  via  terra.  Elrei  de  Calecut  propoz-lhe  então 
a  restituição  dos  feitores,  que  elle  veio  tomar,  surgin- 
do diante  da  cidade.  Também  lhe  mandou  uma  car- 
ta para  elrei  D.  Manuel,  e  lhe  queria  restituir  a  fa- 
zenda arrestada,  em  troca  dosséis  malabares  ;  no  que 
^'asco  da  Gama  não  conveio  porque  os  queria  trazer 
a  Portugal,  e,  firme  n''este  propósito,  mandou  dis- 
parar a  artilheria  contra  as  almadias  que  vinham 
com  a  fazenda,  e  tomou  a  sua  derrota  para  Melin- 
de, promettcndo  em  carta  que  remetteu  ao  rei  de 
Calecut  tornar-lhe  estes  reféns.  Monçaide,  mouro  tu- 
nesino,  em  quem  sempre  achara  muita  lealdade,  veio 
igualmente  na  armada,  a  qual  desde  alli  até  uma 
ilheta  chamada  Anchediva  tirou  vingança  dos  que 
pretenderam  accommette-la. 

De  Anchediva  a  Melinde  gastaram  os  nossos  in- 
trépidos navegantes  mais  de  quatro  mezes,  com  as 
calmarias  c  ventos  contrários,  no  qual  tempo  morre- 
ram mais  30  homens.  Eslximbardeadas  >Iagadaxo 
na  costa  de  Ethiopia,  c  oito  embarcações  de  juerra 
saídas  da  villa  de  Patê,  renovadas  as  relações  de 
amizade  com  elrei  de  Melinde,  que  lhe  mandou  re- 
frescos, queimada  uma  das  nossas  naus  defronte  da  vil- 
la doTagata,  por  trazer  já  muito  pouca  gente,  rece- 
bidas tandjem  as  vitualhas  que  lhe  mandou  o  senhor 
da  ilha  de  Zanzibar,  etendo-se  provido  de  agua,  lenha 
e  gado  em  S.  Braz,  dobrou  Vasco  da  Gama  o  Cabo 
da  Boa-lísperança  aos  20  de  março.  Na  altura  da 
ilha  de  Sanctiago  se  desgarrou  da  sua  conserva  a 
náu  de  Nicolau  Coelho,  o  qual  chegou  aCascaes  aos 
10  de  julho  de  1490  com  as  novas  da  viagem. 

Vasco  da  Gama  foi  ter  á  ilha  de  Sanctiago,  c  por 
que  Paulo  da  Gama  adoecera  gravemente,  arribou  á 
ilha  Terceira,  onde  elle  falloccu,  e  foi  enterrado.  Fi- 
nalmente, a  29  de  agosto  entrou  cm  Lisboa,  haven- 
do já  dois  annos  c  quasi  dois  mezes  que  d"aqui  par- 
tira, c  trazendo  só  53  homens  dos  1  Í8  com  que  saíra 
a  barra. 

Estava  rematada  a  empreia  que  deu  a  Portugal  o 
commercio  da  índia,  a  ^"eneza  um  golpe  mortal,  <■ 
ao  mundo  o  poema  dos  Lusiad.-is. 

Por  este  alto  feito  concede\i  elrei  D.  Manuel  a  Vas- 
co da  Gama  o  prenome  de  Dcm,  para  si  e  seus  des- 
cendentes, mil  escudos  de  renda,  e  poder  trazer  no 
meio  das  suas  armas  as  (luinas  reacs  portugucias. 
Das  outras  mcri.ès  que  recebeu  na  volta  da  sua  se- 
gunda viagem  á  índia,  e  quando,  já  no  reinado  de 
D.  João  III,  a  foi  governar,  tractaremos  cm  artigo 
separado.  Bem  digno  era  dVUas  quem.  por  dilal.ir 
a  gloria  do  nome  portuguex,  arrostou 

No  m.ir  tanta  tormenta  e  tanto  dano. 
Tantas  vezes  a  morte  apercebida '. 
Na  terra  tanta  guerra,  tanto  engano 
Tanta  necessidade  aborrecida'.   (1) 

O  retrato  que  damos,  com  o /ac-sími7«-  daassigna- 
tura  de  D.  ^  asco  da  Gama.  reprodui  uma  pintura 
de  muito  valor  por  ser  da  cjKicha,  a  qual  hoje  jwr- 
tence  ao  Fx.'""  Sr.  Conde  do  Farrolx),  o  foi  copia- 
da pelo  Sr.  Sondim,  edada  em  lithographia  pelo  Sr. 
Luiz  Triíianzi.  D.  \'asco  da  Gama.  segundo  uma 
descrijiç.ío  que  temos  d'elle,  era  de  eslatuni  n>edia- 
na,  muito  gortlo,  de  semblante  ciírado.  e  aspecto  um 
pouco  severo,  em  que  se  reflectia  a  cholcra  que  não 

(1)    Cnni.  Im<.  Cant.  1."  K«t.  lOfl. 


o  PANORA3IA. 


203 


poucas  vezes  o  dominava.  O  retrato  não  desmente  a 
descripçãu. 

CoLOMBA. 

Romance  tia  Córsega. 

I'u^c■ra,  orfaua,  zitclla, 
Seuza  rugiui  carnali !  — 
Ma  per  far  la  to  vendetta. 
Sla  siguru,  vasta  anrbe  ella. 

Lament.funtb.  tU  Niolo. 

VI. 

Depois  de  Orso  ter  saído,  Colomba  lòra  a\isada  de 
que  os  dois  lUlios  do  advogado  Barricini  o  seguiam 
armados.  Os  seus  temores  a  cada  momento  cresciam 
mais  ese  tornavam  mais  intensos.  A  chegada  do  co- 
ronel e  de  miss  Nevil,  que  pelas  onze  horas  da  ma- 
nhã entraram  em  Pielranera,  veio  augmentar-lhe  a 
inquietarão.  Ainda  elles  se  não  tinham  apeado,  já 
Colomba  perguntava,  rtcobendo-os  :  "  \  irara  meu  ir- 
mão ?  >'  E  á  sua  resposta  negativa  a  pullidcz  substi- 
tuía as  rosas  do  rosto,  e  o  coração,  pulando  no  peito, 
queria  arrebentar.  A  despeito  da  firmeza  varonil  do 
seu  caracter  venceu  o  amor  fraternal,  e  depositando 
entre  lagrimas  o  terror  que  a  dilacerava,  accusou-se 
perante  Lidia  e  sir  Thoma/.  de  haver,  talvez,  prepa- 
rado a  catastrophe  que  de  novo  ia  cobrir  de  lucto  a 
casa  do  seu  pai. 

Esta  noticia  gelou  o  sorriso  nus  lábios  de  miss  Ne- 
vil. O  conhecimento  que  tinha  de  Colomba,  ligeiro 
como  era,  bastava  para  ella  saber  que  a  bella  lilha 
da  Córsega  não  tremia  sem  motivo.  A  sua  imagina- 
ção exaltada,  o  um  sentimento  profundo  que  só  en- 
tão poudc  appreciar,  represenlavam-lhe  o  mancebo, 
victima  do  tiro  de  um  traidor,  expirando  só  o  ao  de- 
samparo nas  solidões  funestas  da  terra  pátria.  Duas 
lagrimas  mal  sustidas  escaparam-se  dos  olhos,  e  quei- 
mando nas  faces,  foram  sumir-se  nosanneis  dourados 
das  madeixas.  Coloml)a  adi\inhou  o  preço  d'aquellc 
trilinto  silencioso,  e  apertaiido-llie  a  mão,  ouviu  com 
resigi^da  tristeza  as  consolações  que  o  coronel  balbu- 
ciava, ])ara  desempenhar  com  todo  o  decoro  o  papel 
de  animoso,  papel  que  os  estylos  sociaes  prescrevem 
aos  homens  em  circumstaneias  taes. 

Assim  passou  otenqKi.  A  \niia  hora  o  passo  de  um 
eavallo  soou  debaixo  «íasjanelias  do  quarto  aonde  es- 
tavam. IMiss  Lidia  ergueu-se  de  repente  exclamando: 

—  uE  algum  dos  mensageiros  que  se  mandaram  ?  " 
("olomba,  que  a  acompanhara  no  ninvinieiito,  l>ra- 

dou  : 

—  41  Não  é  o  eavallo  de  num  irmão  !  r  \  ciulo-o  sem 
cavalleiro,  puxado  á  rediNi  pila  rapariga  sua  prote- 
gida, \oltou  para  dentro,  e  apertando  afronte  entre 
as  mãos,  om  voz  sumida  e  eoni  nm  geiíiido  <le  espe- 
daçar  a  alma,   soluçou:  n  Morreu  —  matarain-n'o  !  " 

O  coronel,  (|ue  eslava  á  mesa,  deixou  cair  o  copo: 
miss  Nevil  deu  um  grito  agudo,  (ítoihis  ficaram  tras- 
passados de  ilór.  (  liilina,  a  sobriídia  de  llrandolac- 
cio,  apenas  poude  atar  o  corsc^l,  |>iir(|ue  já  a  aperta- 
vam com  anciã  os  braços  de  Colomba.  \  donzelhi 
vuúra  n  porta  gritando  : 

—  liCliilina,  <|ue  é  feito  i\v  niiu  irni.'io.'" 

A  creança  olhou  para  ella  e  estremeceu  No  ter- 
rível lampiijar  d"a(jUi'lla  vista,  mesmo  com  os  seus 
pouco»  ainios,  viu  ospllo  de  uma  desesperação  medo- 
nha; por  isso  as  primeiras  palavras  que  proferiu  fo- 
ram as  tão  expressivas  do  choro  de  Olello  ; 

—  ..  íVinila  \  ive  '  -1 


— 1£  E  os  outros  ? -•:  insistiu  Colomba  em  tom  forte. 
Chilina  fez  só  o  signal  da  cruz ;  e  á  paUidez  succe- 
deram  as  cores  purpúreas  no  rosto  da  irmã  de  delia 
Rebia.  Deitando  á  casa  dos  Barricini  um  olhar  ar- 
dente, voltou  para  a  sala,  e  tranquilla  e  serena  foi 
traduzindo  na  linguagem  corrente  a  embrulhada  ara- 

i  via  em  que  a  rapariga  contou  tudo  o  que  se  passara 

;  no  combate  de  Orso  com  os  dois  assassinos. 

I  Ao  acabar,  Chilina  referiu  que  o  tenente  só  pedia 
com  instancia  papel  para  escrever,  encarregando-a  de 
dizer  a  sua  irmã  que  supplicasse  a  uma  senhora  que 
lá  devia  estar,  que  não  partisse  sem  receber  uma  car- 
ta d'elle.  E,  accrescentou  a  creança,  o  que  mais  o 
afíligia,  ejá  eu  vinha  meu  caminho  e ainda  ellcm^o 
tornava  a  repetir.  Ouvindo  isto  Colomba  sorriu-se 
com  meiguice  para  Lidia,  apertando-lhe  a  mão  com 

I  força.  A  ingleza  desatou  a  chorar,  eteve  a  prudência 
de  não  traduzir  a  seu  pai  esta  parte  de  narração. 

O  coronel  só  fazia  perguntas  extravagantes  —  sua 
filha  soluçava  e  enxugava  os  olhos,  e  Colomba  prepa- 
rava fios  para  o  ferido,  quando  ao  cair  da  tarde  en- 
trou na  aldeia  a  triste  procissão  que  trazia  ao  advo- 
gado Barricini  os  cadáveres  de  seus  dois  filhos,  atra- 
vessados cada  um  sobre  seu  eavallo.  Seguia  o  cortejo 
uma  turba  do  clientes  e  ociosos.  l)'envolta  viam-se 
gendarmes,  que  sóapparecem  quando  não  são  preci- 
sos, eoadjuncto  tio  ^lairo  que,  levantando  os  braços, 
não  cessava  de  clamar  :  —  u  O  que  dirá  o  senhor  pre- 
feito ?  "  —  Algumas  mulheres,  sobresaíndo  a  ama  de 
Orlanduccio,  choravam,  arrancando  os  cabellos ;  po- 
rém a  sua  carpideira  ruidosa  eommovia  menos  do  que 
a  dòr  muda  de  um  personagem,  que  attrahia  a  at- 
tenção  de  todos.  Era  o  infeliz  pai,  que  ora  ia  direito 
a  um  dos  cadáveres,  e  erguondo-lhe  a  cabeça  mancha- 
da de  pó  e  sangue,  beijava  os  lábios  azulados  e  frios; 
ora  tenteando  aquelles  membros  já  hirtos,  os  abraça- 
va para  lhe  evitar  os  sobresaltos  do  eavallo.  De  vez 
em  quando  abria  a  bocca  para  fallar,  mas  a  voz  es- 
trangulava-se  na  garganta,  e  nem  um  ai  nem  um  sus- 
piro desabafava.  Com  os  olhos  sempre  fitos  nos  cadá- 
veres tropeçava  nas  pedras,  embatia  nas  arvores,  e 
olhando  sem  ver,  topava  em  tudo  o  que  o  rodeava. 
Os  lamentos  das  mulheres  e  as  maldieções  dos  ho- 
mens redobraram  diante  da  casa  de  Orso.  Alguns 
pastores  do  partido  u  delia  Rebia  "  ousaram  levantar 
brados  de  triunipho,  e  a  este  desafio  insolente  aeho- 
lera  dos  seus  adversários  respondeu  por  clamores  de 
vingança.  No  meio  d^uma  nuvem  de  pedras,  atira- 
das ás  jancllas,  dispararam-se  dois  tiros  de  espingar- 
da. As  bailas  entraram  na  sala  onde  Colomba  i"  os 
seus  hospedes  conversavam,  atirando  lascas  de  páu 
para  cima  da  mesa  a  que  estavam  assentados  Liilia 
soltou  gritos  de  susto,  e  o  coronel  agarrou-se  a  uma 
clavina-,  mas  Colomba,  antes  <le  apoderem  atalhar, 
voou  aporta  da  rua,  e  abrindo-a  com  ímpeto,  de  pé, 
no  limiar,  com  ambas  as  mãos  oteiulidas  para  amal- 
diçoar os  inimigos,  exclamou  ; 

—  «Covardes!  .  .  .  atiram  adu;is  mulheres  eainn 
estrangeiro!  ^  is !  que  salieru  só  ferir  |K'las  costas,  .  . 
matem-nos  ;  meu  irmão  está  longe.  .  .  ou  vão  chorar 
antes  como  crcanças,  agradecido-  por  lhe  não  pi-dir- 
mos  mais  sangue  !  " 

.\  voz  e  o  gesto  de(.'olomba  eram  terríveis.  Dian- 
te il"ella  a  nuiltidào,  cortada  d"assombro,  recuou  co- 
mo se  de  repente  sursisse  um  phantasnui.  O  adjuncto, 
os  gendarmi'<  o  diversas  pes.so;is  aproveitaram  n  oc- 
casião  para  se  nieltereni  entre  os  dois  bandos,  porque 
Os  pastore»  de  dell.i  llebia  já  carregavam  aselavinas, 
eludo  annnneiava  pro\in)a  uma  lacta  cruenta.  í'o' 
lomba,  aipienia  \ieloria  ensinava  a  moderação,  lon- 
ge de  se  op|)âr  favoreceu  estes  eíforço."!  ditondo  lu» 
seus  amisos  : 


204 


O  PA1VORA3IA. 


— 11  (Aue  chorem,  coitados  1  .  .  .  Épai,  eelleseram 
o  sangue  da  sua  alma  —  deixa-lo  ir  em  paz,  o  trbte 
velho!  .  .  .  Guidice  Barricini  I  Lembra-te  do  dia  íi 
d'agosto  !  Recorda-te  da  divida  que  os  dedos  mori- 
bundos de  meu  pai  lançaram  na  sua  carteira.  A  tua 
mão  do  falsario  apagou  a  lettra,  mas  teus  filhos  pa- 
gam-n'a  agora.  Estás  quite,  Barricini  —  vai-te  era 
paz  1  " 

E  com  os  braços  cruzados,  e  um  sorriso  de  despre- 
zo errante  na  bocca,  assistiu  á  entrada  dos  cadáveres 
na  casa  inimiga.  Depois,  quando  o  povo  se  retirava 
por  todos  os  lados,  cerrou  a  porta,  e  entrando  na  sa- 
la disse  ao  coronel : 

—  "Peço  perdão  ao  coronel  Nevil  cm  nome  dos 
corsos  —  atiraram  sobre  esta  casa,  é  porque  não  sa- 
iriam que  abriga\'a  uni  estrangeiro.  " 

O  coronel  respondeu  com  certo  enleio  um  pouco 
ridículo  :,  principiava  a  julgar  bastante  possivel  que 
as  maldictas  discórdias  da  ilha  acabassem  por  lhe  alo- 
jar um  par  de  bailas  na  cabeça  —  cousa  que  reputa- 
va muito  seria  e  digna  de  maduras  reflexões.  Mas, 
consultando  sua  filha  sobre  a  opportunidade  de  uma 
retirada  atempo,  com  desgosto  se  achou  repellido,  e 
foi  obrigado  a  capitular  de  um  modo  nada  airoso. 

A  noite  correu  agitada  para  todos.  Em  quanto  sir 
Thomaz  sonhava  que  os  Barricini  o  surprehendiam 
em  camiza,  e  o  empalavam  n'um  poste  erguido  no 
alto  da  chaminé,  sem  curarem  dos  seus  protestos  bri- 
tannicos,  miss  Lidia,  fechando  os  olhos,  via  a  ima- 
gem de  Orso,  pallido,  ensar.guentado,  em  convulsões 
atrozes.  Depois  a  memoria  representava-lh"o  de  joe- 
lhos, como  no  dia  da  despedida,  beijando  otalisman 
que  d'ella  recebera  .  .  .  Accusava-se  de  ter  sido  causa 
do  perigo  que  o  ameaçara  —  pela  vér  ura  instante 
mais  cedo  éque  se  fura  expor  á  morte  —  e  a  valentia 
heróica  da  sua  defeza  ?  Só,  e  ferido,  contra  dois  !  .  .  . 
O  amor,  a  saudade  e  a  dòr  luctavara  assim,  e  ven- 
ciam junctos  ao  mesmo  tempo  no  seu  coração. 

O  quarto  onde  dormia  era  o  de  Colomba.  De  re- 
pente, levantando  os  olhos,  viu  o  retrato  de  Orso,  em 
miniatura,  de  uniforme  de  tenente,  suspenso  na  pa- 
rede. Miss  Nevil,  hesitou,  ergueu  a  mão,  resistiu,  e 
por  fim  não  teve  forças  e  desprendeu-o.  Em  logar 
de  o  tornar  a  pendurar,  ]iousou-o  no  travesseiro,  e, 
adormecendo  já  sobre  a  madrugada,  a  primeira  cou- 
sa que  viu  ao  despertar  foi  Colond)a,  que  de  pé  ao 
lado  da  cama  esperava  que  acordasse. 

—  "Ha  noticias  d'elle  ? "  perguntou  Lidia  assen- 
tando-se ;  c  vendo  o  retrato  corou,  cá  pressa  deitou- 
lhe  o  lenço  em  cima. 

Colomba  viu,  e  sorrindo,  respondeu:  —  nJá  re- 
cebi noticias.  »  E,  tirando  o  retrato  com  a  maior 
naturalidade,  accrescentou  : — n  Acha-o  muito  pare- 
cido ?  .  .  .  Eu  digo  que  Orso  6  melhor.  » 

—  "  ^'alha-me  Deus  '.  — acudiu  miss  Nevil  enver- 
gonhada—  qucmáu  costume  que  tenlio  do  desarran- 
jar tudo  .  .  .  Mas  como  está  seu  irmão  ? " 

—  "Muito  melhor.  Veio  de  lá  Giocanlo  n  trouxe 
uma  carta.  .  .  para  vós — Orso  não  me  escreveu  a 
mim  .  .  .  porém  as  irmãs  não  são  ciosas.  Giocanlo 
dissc-me  que  Orso  mal  podia  escrever,  mas  assim 
mesmo  não  quiz  que  ninguém  liio  pozcsse  aqui  npen- 
na.  Estava  de  costas,  e  Brandolaccio  segurava  ojia- 
pel.  A  cada  instante  meu  irmão  queria  levantar-sc. 
e  com  o  movimento  eram  diíres  cruéis,  qvu'  o  alri- 
l)ulavam  .  .  .  mas  emfim  cá  está  a  carta.  >» 

Miss  Nevil  leu-a  immediatamente.  \inha  cscrip- 
ta  em  inglez  para  maior  precaução.  Eis  o  que  cila 
continha. 

—  "Senhora.  Foi  o  destino  que  me  precipiloii. 
Não  sei  o  que  dirão  os  meus  inimigos,  nem  me  im- 
porta, <;eo«não  acreditar.  .  .  Desde  o  dia  cm  que  nos 


vimos  affaguei  esperanças .  .  .  atrevidas  de  certo  e 
talvez  loucas.  Agora,  que  já  vejo  o  futuro,  e  me  re- 
signo a  elle,  sinto  que  para  mim  tudo  se  acabou  na 
terra.  Este  annel,  talisman  da  minha  ventura,  dado 
na  única  hora  ditosa  que  vivi.  .  .  já  não  o  posso  guar- 
dar .  .  .  receio  que  o  anjo  que  m'o  deu  se  arrepen- 
desse ...  ou  que  vendo-o  eu,  enlouqueça  mais.  Co- 
lomba o  entregará  I  .  .  .  adeus,  senhora,  adeus  para 
toda  a  vida.  Oh  !  se  ao  deixar  a  Córsega,  uma  pa- 
lavra só,  dieta  a  minha  irmã,  me  affiançasse  a  sua 
estima  .  .  .  ao  menos  seria  feliz  um  instante  mais.  — 
O.  D.  R  >. 

Lidia  não  ousava  nem  levantar  a  cabeça  i  Colom- 

!  ba  oflerecia-lhe  o  annel,  e  ella  nem  o  recebia  nem  o 

j  recusava. 

— 11  Posso  saber  o  que  diz  meu  irmão  ?   Está  mc- 

I Ihor  ?  " 

I  —  "  Não  sei  .  .  .  —  não  me  diz  nada  —  balbuciou  a 
ingleza,  còr  de  rosa  :  —  pede-me  que  diga  a  meu 
pai  ..." 

I  Colomba,  sorrindo  com  malícia,  assentou-se  sobre 
a  cama,  pegou  cm  ambas  as  mãos  de  miss  Nevil,  e 
fitando-a  cora  penetração : 

—  "  E  tão  má  comigo  !  .  .  .  —  Promette  responder 
a  Orso .'  Elle  ha  de  estimar  tanto  .  .  .  tive  tentaçOes 
de  a  acordar  logo  que  chegou  a  carta,  mas  tive  me- 
do!  ...  >' 

—  "Oh  !  fez  muito  mal !  .  .  .  Entretanto  se  uma 
palavra  rainha  podesso  .  .  .  i» 

—  "Tudo.  Mas  agora  não.  Chegou  o  perfeito,  e 
Pietranera  está  cheia  de  correios  .  .  .  Ah,  miss  Ne- 
vil, se  conhecesse  meu  irmão  I  .  .  .  amava-o  como 
eu  ...  " 

—  "Pobre  de  mim  —  que  o  amo  talvez  mais  I  <• 
murmurava  comsigo  Lidia  suspirando. 

Mas  oste  voto  ficou  silencioso  no  coração. 


Assassino  d'1Iemuíiie  III  de  Fr.\>ça   pkio 

FRASE   JACaCES    ClEMENTE. 

A  Fkakça,  no  desgraçado  tempo  de  Carlos  IX,  era 
preza  do  todos  os  horrores  das  guerras  intestinas,  os 
catholicos  contra  os  protestantes,  a  casa  dos  Guises 
coiitra  a  dos  Bourbons  procuravam  dcbcllar-s%  até  o 
exterminio ,  bastará  citar  a  matança  do  dia  de  S. 
Bartholomeu.  Depois  d'cslc  actoodioso  dofinalisnio 
Carlos  IX  pouco  temi>o  viveu  :,  e  seu  irmão  Henri- 
que III  largou  a  Polónia  para  acarretar  sobre  a  Fran- 
ça novas  calamidades.  No  seu  regresso  achou  o  reino 
dilacerado  por  dois  partidos :  o  dos  protestantes  re- 
formados, renascia  das  ciozas,  violento  como  nunca, 
tendo  ásiia  frente.  Henrique  oIMaguo,  que  então  era 
rei  de  Navarra.  O  outro  partido  era  n  Lirn.  facção 
poderosa,  gradu.-Jmcnte  formada  pelos  prineipes  Jo 
Guise,  excitada  polus  papas,  favorecida  da  ííespa- 
nha,  cque  de  dia  para  dia  aagmciit.-.va  por  artificio 
dos  frades :  era  capitaneada  pelo  duque  de  Guise, 
prineipe  de  estrondosa  reputação,  c  que  tendo  mais 
c;iialidades  notáveis  do  que  boas  parecia  nascido  pa- 
ra mudar  a  face  do  estado  n'aqucllc  tempo  de  dis- 
córdias. Henrique  IH,  em  vez  de  esmagar  t>stcs  par- 
tidos sob  o  peto  da  auctoridadc  real,  fortalcceu-os 
por  sua  fraqueza  :  ass<'ntou  ler  feito  um  prtxiigio  ein 
politica  dcclarani}o--e  cal-eça  de  liga  ;  o  facto  é  que 
não  foi  mais  do  que  estravo  d'esta  :  pelos  intcre»'>i'< 
do  duque  de  Guise,  que  pretendia  defxVlo.  \iu-s.- 
obri'.;ado  a  fazer  guerra  u  Henrique  de  Navarr.t,  seu 
cunhado  cseu  herdeiro  presumplivo;  porém  o  exer- 
cito quen\andou  contra  t^le  foi  desidratado  em  Cou- 
tr;>s.  (.>monarcha  de  Navarra  não  queria  outro  fruc- 
lo  da  \ictoria  scuuo  a  rocoueiliaçào  «>m  o  da  Fran- 


o  PANORA^3IA. 


205 


ça,  e  vencedor  como  era  pediu  a  paz,  mas  o  vencido 
não  ousou  acceita-la,  por  temor  do  duque  de  Guise 
e  da  Liga.  NVste  mosnio  tempo  Guise  acabava  de 
pôr  em  fugida  um  exercito  de  allemães,  e  soberbo 
com  a  sua  gloria,  forte  pela  fraqueza  do  soberano, 
veio  a  Paris  contra  ordem  expressa.  Houve  então  o 
<'elebre  dia  das  barricadas,  om  que  o  povo  repelliu 
as  guardas  rcacs,  e  Henrique  teve  de  fugir  da  capi- 
tal.—  Guise  ainda  fez  mais,  obrigou  o  rei  a  abrir 
os  Estados  geraes  do  reino  em  lílois,  o  de  lai  modo 
dispoz  as  cousas  que  chegou  a  ponto  de  tomar  parto 
da  auctoridade  real  por  consentimento  dos  que  re- 
presentavam a  nação  e  deljaixo  da  apparencia  das 
mais  respeitáveis  formalidades. — Henrique,  acorda- 
do por  tão  instante  perigo,  mandou  assassinar  no 
castello  de  Blois  aquelle  inimigo  temeroso  e  o  irmão 
d'elle,  o  cardeal,  ainda  mais  arrebatado  e  mais  am- 
bicioso que  o  próprio  duque.  —  Por  este  successo^e- 
bellou-se  Paris,  e  a  Liga  tirou  a  mascara,  pretextan- 
do que  Henrique  matara  os  defensores  da  religião. 

Henrique  IH  n''esle  apuro  viu-se  necessitado  apor 
sua  parle  fazer  também  liga,  associou-se  com  o  seu 
presumptivo  Iierdeiro  o  ri-i  de  Navarra,  cambos  vie- 
ram acampar  diante  de  Paris.  N.ío  é  nosso  intento 
referir  os  vários  successos  doesta  guerra,  em  (jue  en- 
trou parte  da  Europa  •,  a  Inglaterra  a  favor  dos  dois 
Henriques,  e  a  Áustria  e  a  corte  de  Roma  protegen- 
do a  Liga.  —  Henrique  III  estava  quasi  a  tomar  Pa- 
ris, quando  foi  assassinado  em  S.lCloud  por  >ini  fra- 
de dominicano,  Jacques  Clemente,  o  qual  estava  per- 
suadido de  que  agradava  a  Deus  o  alcançava  o  mar- 
tyrio. 


.)ac(|ues  Clfiuenle  era  um  fanalico  exaltado,  qu(! 
os  outros  sectários  da  Ijiga  excitaram,  (í  |)re[iarou-.si! 
])aia  cominei  ler  um  crime  com  todos  os  actos  religio- 
Hosque  faria  um  bom  clirislão  coiuuuttendo  imui  cm- 
prcza  arriscada  nia.s  justa  :  coMfessous<'  e  commun- 
gou  i  e  ('(imo  era  eipiado  pelos  seus  observaram,  (a- 
tando  elle  a  dormir  em  aiKjilií  precedenle  ao  delic- 
io, (ine  liidia  a  Itiblía  abi'rla  no  capitulo  do  assa.ssi- 
uio  de  llolo[)lu'rnes  por  .Imiitli. — Jacíjues  iipuiilui- 
loii   a  hua  victima   em    a  noile  de  um  para  dois  de 


agosto  de  1389.  Depois  de  justiçado  imprimiram  os 
seus  consócios  uma  relação  do  intitulado  martvrio, 
em  que  se  contam  visões  que  do  céu  ti\  era  o  miserá- 
vel frade  para  commetter  oattentado,  que  não  foi  o 
crime  simplesmente  de  um  fanático,  mas  de  todo  o  seu 
partido;  sendo  a  opinião  e  crença  de  todos  os  da 
Liga  que  se  devia  matar  orei  se  estivesse  desavindo 
com  a  corte  de  Roma  :,  assim  o  publicavam  pregado- 
res em  seus  niáus  sermões,  ese  escrevia  em  péssimos 
livros,  alguns  dos  quaes  se  conservam  como  documen- 
tos curiosos  de  um  século  tão  bárbaro  em  letíras  co- 
mo em  costumes.  —  Henrique  III  era  um  animo  fra- 
co c  um  poço  de  vicios  •,  causa  nojo  a  narração  das 
suas  torpezas. 

Dos   .MEIOS   aVE   os   UOMEKS  TÈEM   JILG.VDO    PRÓ- 
PRIOS   I'Aa.V    SE   LIVR.iREM   BOS    n.\IOS. 

(Continuado  He  pag.  184.) 

FiND.VDos  em  certas  analogias,  admitfcm  os  physi- 
cos  que  o  raio  sempre  respeita  o  vidro.  Pouca  disfan- 
cia  vai  d  esta  opinião  asuppôr  que  uma  gaiola  toda 
feita  lie  vidro  seria  um  logar  de  refugio  perfeitamen- 
te seguro  ;  e  por  isso  houve  quem  propuzesse,  e  até 
chegasse  a  construir,  gaiolas  d'esta  matéria  para  ifso 
das  pessoas  muito  medrosas  dos  raios. 

Certamente  que  estou  muito  disposto  a  crer  que 
na  occasião  de  trovoada  um  envolucro  vitreo  altenuu 
uma  pequena  parte  do  perigo,  mas  não  posso  admit- 
tir  que  o  dissipe  de  todo.  As  minhas  du^idas  baseam- 
se  no  seguinte  :  , 

O  terrível  raio  caído  no  palácio  Minuzzi,  no  ter- 
ritório de  Ceneda,  em  ia  de  junho  de  1776,  furou 
ou  quebrou  mais  de  oitocentos  vidros  de  vidraça. 

(iuando  a  Mr.  James  Adair  o  lançou  por  terra, 
em  setembro  de  1780,  o  violento  raio  <pic  matou  dois 
ou  Ires  criados  na  casa  de  East  Bourne,  estava  elle 
pordetraz  d'uma  janella  envidraçada.  Nenhum  dani- 
no  sollVeu  o  caixilho  da  janella,  mas  os  vidros  desap- 
pareceram  completamente,  reduzidos  a  pó  pelo  raio. 

Em  rigor,  é  admissível  asupposieão  de  que  a  rup- 
tura dos  vidros  é  consequência  do  abalo  do  ar,  sim- 
ples elleito  do  estampido,  da  detonação.  Vamos  a  fac- 
tos menos  duvidosos. 

Em  17deselemlno  de  1772  caiu  um  raio  em  Pá- 
dua sobre  um  casa  situada  cm  Pi-cdo  dilla  falir,  e 
lezn'um  vidro  da  janella  do  pavimento  baixo  um  liu- 
raco  redondo  e  lizo  como  faria  uma  broca. 

O  engenheiro  Caselli,  d'Alexandria,  notou  i'ni 
1778  nos  vidros  das  suas  janellas,  logodcpois  da  que- 
da de  um  raio,  Iniracos  redondos,  quasi  sem  rachas 
adjacentes. 

Tendo  caído  um  raio,  em  setendjro  de  18:21,  em 
Milton  of  CuitUHjc,  em  casa  de  Mr.  ^Villiam  líreni- 
mer,  appareceu  unidos  vidros  da  janella  com  um  bu- 
raco circular  da  grandeza  d'unKi  baila  de  espingarda  : 
no  resto  da  sua  extensão  não  appreseutavii  osto  vidro 
uma  só  racha. 

Um  buraco  sem  lascas,  perfeitamente  circular,  nSo 
pôde  .ser  elleito  do  estremecimento  quo  resulta  do  es- 
trondo. Se  necessário  fosse  poder-sc-hia  citar  m.lis  es- 
l<!  caso  para  prova  da  ra|>idez  extrema  con»  (|ue  ca- 
minlia  a  matéria  fulminante,  t)  liuraco  do  vidro  do 
IMr.  lireniuior  fortilica  us  observações  dcstacadiís  de 
J'adua  I'  de  Alexandria. 

JOstas  observações  reunidas  hão  de  desengaiuir  al- 
gumas ))essoasqueiinagina\am  serem  «s  vidraça»  b;ir- 
reiras  que  o  raio  não  ultrap.issava. 

l'or  mil  exemplos  se  aelia  provado  que  o  raio  já- 
niiiis  eác(  sobre  n  homem  nu  mulher  sem  atacar  i'iuu 
mais  empenho  as  parles  un-tidlicas  do  ^eii  vestuário. 


20G 


O  PANORA3IA. 


róil(;-í>c  pur  lauto  atlmiltir  <jue  os  metaes  auçmen- 
taiii  sensivelmente  o  perigo  de  ser  fulminado  quem 
(js  traz  comsigo.  Ninguém  negará  ahyputhese  imun- 
do setracte  demassas  metallicas  d"algum  vulto.  Em 
todo  ocaso  direi  que,  em  21  de  Julho  de  1819,  caiu 
um  raio  na  cadeia  de  Bibcrac  (Suavia)  (ífoi  ferir  na 
sala  grande,  no  moio  de  vinte  prezos,  um  capitão  de 
ladrões  já  condemnado,  que  estava  agrilhoado  pela 
cintura. 

Será  difflcil  a  defeza  da  hypothese  quando  se  trac- 
te  das  ténues  i)artes  metallicas  que  entram  nos  nos- 
sos vestidos  ordinários.  Não  poderei  eu  todavia  qua- 
lificar com  o  nome  do  prova  a  observação  curiosa  fei- 
ta em  Bróven,  em  17G7,  por  Saussnrc  e  os  seus  com- 
panheiros de  viagem  ? 

No  meio  do  tempestade,  quando  os  observadores 
levantavam  a  mão  e  estendiam  um  dedo,  sentiam  na 
extremidade  d'e!le  uma  espécie  de  formigueiro.  nMr. 
Jalabert  (nos  diz  o  celebre  viajante),  que  tinha  um 
galão  de  ouro  no  chapéu,  ouvia,  além  d^isso,  á  roda 
da  cubtca  um  zumbido  medonho.  Tiravam-se  faíscas 
do  botão  do  ouro  do  chapéu,  assim  como  da  virola  de 
metal  d'uma  bengala  comprida  que  levávamos  com- 
nosco.  " 

Dai  á  trovoada  qualquer  porçãosinha  mais  de  in- 
tensidade, o  o  leve  galão  de  ouro  eo  pequeno  botão 
de  mal  se  converterão,  em  circumitancias  semelhan- 
tes ás  de  Eréven,  em  causas  de  explosão,  e  Mr.  Ja- 
labert será  fulminado  com  preferencia  aos  seus  visi- 
nhos,  cujos  chapéus  não  tiverem  enfeites  de  galão  de 
ouro,  nem  botões  de  metal. 

O  fato  seguinte,  referido  por  (^onslantini  em  1749, 
ainda  presta  uma  prova  mais  directa  : 

Eslava  a  Irovejar,  uma  senhora  estende  a  mão  pa- 
ra fechar  ajanolla  ;  parte  o  raio,  leva-lh(^  o  bracelete 
de  ouro  que  trazia,  sem  deixar  vestígios  d'elle.  A  se- 
nhora só  ficou  ferida  muito  ao  de  leve. 

Sem  estas  observações  preliminares  causaria  admi- 
ração o  colligir  ou  aqui  a  explicação  que  o  celebre 
viajante  Eridone  dou  ao  caso  acontecido  a  uma  pes- 
soa do  seu  conhecimento,  a  Madame  Douglas. 

Estava  esta  senhora  á  sua  janclla  a  olhar  para  fo- 
ra em  occasião  do  trovoada.  Fez  um  trovão,  e  o  seu 
cliapéu,  somente  o  chapéu,  ficou  reduzido  a  cinzas. 
Na  ojiiniào  de  Mr.  Eridone  tinha  attrahido  o  raio  o 
delgado  fio  metallico  que  guarnecia  o  contorno  do 
chapéu,  e  a  que  estava  preza  a  fazenda.  Propõe  por 
este  motivo  que  se  deixem  doestas  cercaduras  do  me- 
tal, o  declara-se  contra  a  moda,  muito  seguida,  de 
■segurar  ou  enfeitar  os  cabcUos  com  alfinetes  e  tran- 
ças de  ouro  ou  prata.  Temendo,  com  justa  razão,  que 
os  seus  conselhos  não  fossem  attcndidos,  pedia  «  que 
cada  mulher  trouxesse  comsigo  uma  cadeiasinha  ou 
um  fio  de  arame  de  latão  para  prender,  quando  hou- 
vesse trovoada,  ás  partes  metallicas  do  chapéu,  afim 
de  tjuo  por  clle  se  escoasse  a  matéria  fulminante  até 
o  chão  em  logar  de  abrir  caminho  por  entre  a  ca- 
beça e  os  membros  inferiores.  ■• 

Em  resumo,  é  melhor,  quando  troveja,  não  ter  me- 
tal comsigo  \  mas  vai  a  pena  do  scismar  no  augmcn- 
to  do  perigo  quepódcm  cansar  um  relógio,  os  brincos 
das  orelhas,  odijdieiro,  as  tranças  ou  agulhas  metal- 
licas do  que  as  mulheres  us;im  .'  Esta  questão  não  i- 
susceptível  d'uma  solução  geral,  porque  cada  qual  ha 
de  encara-la  atravoz  dos  seus  preconceitos,  cdeL.\ar-se 
possuir  mais  um  menos  do  medo  quo  o  meteoro  lhe 
"'^pirar.  (Aiiago.) 


O  M 


AELSTIIOM. 


U.M.v   das   circumstancias  da   minha    vida  marítima 

não   se  pode  explicar  senão  por    um  milagre.    Como!  i;o,  ^uwiiio  «l;um  (cmpv. 


me  expelliu  vivo  a  voragem  que  me  tragou?  Porque 
prodígio  saídoabysmo  que  jamais  solta  a  sua  preza? 
Depois  de  ter  sentido  todas  as  angustias  da  morte, 
que  predestinação  me  obrigou  a  viver  para  revelar 
aos  homens  os  mjsterios  d'uma  situação  de  que  niu- 
guem  escapa  ?  Tenho  conservado  presentes  no  pensa- 
mento todas  as  particularidades  d'este  dia ;  o  seu 
terror  é  inseparável  de  mim,  a  sua  impressão  é  in- 
delével. Vejo  o  navio  impellido  pela  fatalidade  para 
a  destruição  a  quo  não  pode  esquivar-íe  \  ouço  as 
conversações  dos  homens  no  seu  agonisar  ;  çravou-se- 
me  na  memoria  a  expressão  de  seus  semblantes,  sei 
tudo  o  que  om  torno  de  mim  aconteceu.  Estas  pagi- 
nas, que  algum  valor  teeni  nos  annaes  da  humani- 
dade, vou  eu  escrc:vê-las.  E  forçoso ;  que,  a  não  ser 
eu,  nenhum  outro  tem  os  mesmos  documentos  para 
poder  dizer  o  que  é  uma  companha  attrahida  pelo 
Maelstrom  (1),  eoque  sente,  eque  tragedia  enlucta 
o  convez  do  navio,  e  como  se  realisam  esta  absorp- 
ção,  este  naufrágio  na  bonança,  esta  ruína  sem  es- 
trondo, ao  sol  claro  e  em  tempo  sereno. 

—  II E  sexta-feira  :  o  capitão  quer  largar  \  não  faz 
bem.  ■' 

Assim  fallava  a  bordo  da  Jovcn  Suzanna,  schoo- 
uer  (escuna)  escoceza,  o  contramestre  Braerigg,  de 
braços  cruzados,  encostado  a  uma  caronada  e  com  os 
olhos  levantados  para  o  céu.  No  mar  da  Norvvega  s«' 
espelhavam  esses  raios  desbotados  do  sol  do  outono, 
que  alumiam  a  natureza,  m;is  não  a  penetram  nem 
a  vivificam. 

Uma  menina  escoceza,  roais  alva  e  descorada  do 
que  os  raios  do  s<j1  da  Norwega,  repousava  um  dos 
braços  sobre  o  braço  de  seu  pai,  velho  que  no  trajo 
annunciava  pobreza,  no  rosto  inspirava  respeito,  e 
cujos  eabellos  lhe  haviam  encanecido  na  practíca  de 
todas  as  virtudes.  IMac-Read  era  ministro  da  igreja 
presbiteriana :,  a  pequena  distancia  d*cste  grujH)  es- 
tava  Helena,  filha  mais  velha  do  sacerdote,  com  os 
seus  eabellos  negros  e  feições  cheias  de  nobreza  e  cn- 
thusiasmo,  sentada  sobre  um  feixe  de  cordas,  ouvin- 
do os  contos  do  criado  Donald,  natural  de  S.tírling 
na  Escócia,  adherente  á  familia  ])or  uma  d'estas  as- 
similações que  só  por  lá  se  encontram,  e  persuadido 
de  que  as  duas  meninas,  Helena  e  Sprighthv ,  nãi> 
oram  menos  suas  filhas  do  que  dcMr.  Mac-Re.-id,  s»- 
é  que  o  não  eram  mais. 

Continuava  a  conversação  entre  o  contramesti*  <■ 
>Iac-Read. 

—  "Sim,  dizia  o  contramestre,  é  sexta-feira.  E 
vôr  como  a  nossa  gente  traballia  i  parece  que  se  não 
mechcm.   Assim  não  se  faz  nada  d'ellcs.  '• 

—  ii  Como,  interrompeu  a  fdba  mais  velha,  é  su- 
persticioso, senhor  contramestre  ?  ■' 

—  li  Oh  I  cu  não  digo  tanto,  menina.  Lii  em  ter- 
ra não  me  importa  a  sexta-feira ;  mas  quando  agen- 
te precisa  dançar  por  cima  d"es(.i5  aguas  aiues,  <■ 
manobrar  com  todo  o  tempo,  haja  Itorrasca  ou  baja 
bonança,  á  fé  de  quem  sou,  embirro  con»  a  sexta-fei- 
ra i  porque  a  maruja  ninjuem  a  leva  para  onde  quer 
quando   não   está  contente.    Est.mdo  alegres  trepam 


(i;  O  Alail-troin  oii  MaUtruiii  c  um  immenso  rcinoi 
nln>  ou  vortitt'.  a>vi:;iuiliul(i  \*v\o>  ii,»\o^:intcs  ciilroit*  ilha^ 
^^<lul'n  c  ^lorkcn,  >iln,ul;i~  unoroium  árctico  in»  riT'-'^" 
liititiule  >'.  c  11"  44'  loiípilude  I..  O  nniçúlo  <l'o>l,n  >o- 
riigcin  ouvr-sc  »  niiiitav  Ic^uns  de  di.t.inrin.  o  o  »cu  poder 
de  ])ttracção  e  lito  forto.  q\ic  os  iia\io^  que  lí.T.-aiii  pvh' 
ln.'d\'llosi'uiarr«>liido'.au'»orvcdoun>.  A  for^adU^^-lcroiiioi 
iili»,  di<  >lr.  .Malti-  lUiiii,  rro»ce  alguma-  vr/o>  |>cla  ton- 
ccrmu  ia  de  iluav  ■.»:;írt's  choiíi^  orontrari.i>,  mi  }h*I.>  ai^r»- 
!  dii>  MMito».  \rrasta  o«  na^io'•.  <lf>iH.>ita<,'a-o»  dt  ciirontri' 
ao>  roclieda^  on  o>  atiiuda,  e  di-i\n  npiwrerer  o>  dcjtro- 


o  PAINORA31A. 


207 


lestes  pelas  enxárcias,  ontoa-sc  a  cantiga  ao  som  do 
apito,  todos  os  músculos  se  reforçam,  parece  que  a 
esperança  arromba  o  coração;  despreza-se  a  terra  e 
brinca-se  com  o  mar  1  mas  d 'uma  tripulação  zanga- 
da, como  esta,  que  diabo  (|uercni  que  se  faça  ?  » 

—  it  Contramestre  I  bradou  uma  voz  estrondosa, 
onde  está  esse  cão  das  montanhas,   esse  Campbell?" 

Era  o  capitão  quem  fallava. 

—  lí  Dorme,  respondeu  o  contramestre  :,  í^ampbell 
está  doente. " 

—  i!  Dorme  ".  não  quero  cá  doentes!  n 

— 11  Tem  febre,  segundo  diz  o  cirurgião.  Ainda 
esta  noite,  capitão,  estando  deitado  na  maca,  teve 
uma  visão,  das  taes  visões  do  iiiierno  !  " 

—  «Que  o  levem  todos  os  diabos  do  poço  infernal 
ao  Campbell  mais  aos  seus  agouros  !  gritou  o  capi- 
tão, praguejando  muito  de  rijo  para  toda  a  campa- 
idia  saber  que  ocapitão  tinha  praguejado.  —  Mette- 
ram-me  a  bordo  um  mono  das  montanhas,  um  ma- 
rujo dos  tojaes,  que  me  assusta  o  deita  a  perder  a 
companha  com  as  suas  visões  !  " 

—  li  Capitão,  queria  pedir-lhc,  com  o  devido  res- 
peito, por  parte  da  marinhageni,  um  favor  em  que 
'•lies  fazem  grande  fincapé.  " 

—  a  Ah ! " 

—  «Esperam  que  não  se  faça  á  vela  senão  ama- 
nhã. AJoveii  Suzmina,  fie-sf!  em  mim,  nunca  seiez 
á  vela  á  sexta-feira.  !' 

O  capitão  não  ouviu  o  íini  da  plirasc,  voltou  cos- 
ias ao  contramestre,  vomitou  pragas  contra  a  sua 
gente,  e  accendcu-se  em  tal  chol(!ra  que  as  vozos  to- 
das suniiram-se  e  todos  os  rostos  enfiaram.  A  mano- 
bra não  se  fez  mais  rápida -,  os  marinheiros  olhavam 
uns  para  os  outros  com  um  modo  desconliado  e  tris- 
liudio.  l'artiu  aJovcii  Siizaium.  Oagastamento  rei- 
nava na  embarcação ;  ocapitão  passeava,  de  mãos 
alraz  das  costas,  proeurandcj  occasião  de  ralhar,  o 
ereando-a  quando  não  a  descobria.  Campbell,  o  es- 
<!Ocez  da  segunda  visia,  que  tinham  obrigado  a  le- 
vantar-se,  havia  saído  da  coberta,  e  fazia  .i  sua  obri- 
gação resmungando.  De  repente?,  deu-lhe  vontaiie  de 
começar  o  7va{l,  lamentação  inarticulada,  cântico  <le 
mortos  dos  escocíízes  selvagens,  ululo  modulado,  solu- 
çar sem  lim,  suspiro  prolongado  que  semcllia  ao  ge- 
mido do  vento  nas  calhedraes.  O  veliio  criado  esco- 
ecz  levantou  a  cabeça  e  reconhcci'U  o  cântico  fúnebre 
do  (ían  (tribu)  dos  Camplxill.  Helena  fez  um  gesto 
de  terror,  e  Sprightliy,  a  innocente  menina,  desfez- 
se  em  pranto.  A  lembrança  da  morte  e  da  pátria 
despertaram-se-lhes  simultâneas  no  pensamento. 

Cjunio  quer  que  seja,  estes  presagios  cedo  se  reali- 
saram.  Anniinciaram  uma  borrasca,  o  vento  saltou  á 
proa,  o  mar  cobriu-se  de  escarcéus  ;  declarou-se  em 
breve  atormenta.  A  manobra  fez-si>lenlanu-nte,  fer- 
raram todas  as  velas,  mas  com  frouxidão,  sem  dili- 
gencia, como  se  lhe»  falhcéra  a  i'sp('iança.  A  supers- 
tição, renegando  do  futuro,  matando  a  ejiergia,  an- 
iii(|UÍliou  o  sentimiMito  da  conservação.  Vacillava  (í 
estremecia  o  navio  com  o  <'mbate  das  vagas,  como 
estremece  no  seu  leilo  o  lebricitante.  Kesi-itia,  (!om 
o  auxilio  da  sua  eonstrucrão  e  da  roliuslcz  do  caver- 
name-, mas  o  rumo  (|ue  seguia  era  ojiposlo  ao  que 
ilevi^ra  seguir.  l'or  cinui  e  deredor  da  Joi\  n  Sintiit- 
iiti,  ao  longo  das  es(H)tilhas,  alvijnva  a  escuma  e  bra- 
mia o  \agalbão,  (jue  rebentava  em  llòr,  batenilo-a 
lomo  o  aricte  bale  a-í  inurallias.  Toda  a  noite  se  le- 
vou a  dar  ás  bondtas  ;  ji  ngua  entrava  pelo  porão,  e 
o  mais  que  a  tripidação  pcjude  fíizer  foi  lançar  fora 
i.'sta  agua,  e  pi\r  o  navio  em  i'stado  ile  navegar. 

Ma»  (|ue  navio!  Viu  dos  mastros  desappnreeí^ra  : 
foi  preciso  picar  ooutro.  (J  i!s(|Meh'lo  ou  o  cadáver  da 
Jíircn  Sií^Kitiia  seguia   a    sua  derrota   sobre   o  alivs- 


nio,  que  sacudia,  roncando,  os  destroços  da  escuna, 
tão  ágil  e  louçã,  tão  forte  e  veleira  ainda  ha  pouco. 
Dentro  d'este  ataúde,  arrastado  pela  tormenta,  esta- 
va uma  chusma  desanimada,  que  só  por  habito  fazia 
o  seu  dever.  O  heroísmo  dos  marinheiros  é  obedecer 
e  trabalhar,  mesmo  quando  do  heroismo  e  do  traba- 
lho nada  esperam  senão  a  morte. 

—  «Meu  pai,  ha  esperança?»  perguntava  uma 
voz  suave. 

—  .1  Oremos  junctos,  minhas  queridas  filhas»  res- 
pondeu o  ministro  presbiteriano  com  os  olhos  choro- 
sos e  o  peito  anciado. 

C)  orar  d 'esta  voz  veneranda,  o  susurro  das  folhas 
da  Biblia,  que  os  dedos  do  velho  viravam,  as  respos- 
tas das  meninas,  pallidas  e  deitadas  nas  suas  macas 
a  luz  tremula  de  uma  alampada,  nunca  me  sairão 
do  pensamento.  A  morte  bramava  no  céu  e  nos 
abysmos,  a  morte  cercava  o  navio ;  o  capitão  bebia 
rhum  para  reanimar,  não  o  valor,  mas  a  esperança  ; 
a  marinhagem  extenuada  luctava  ainda ;  e  a  embar- 
cação, com  a  ajuda  de  uma  vela  que  haviam  arma- 
do, seguia  avante,  incerta,  sem  governo. 

— 11  Então,  Donald,  exclamou  ocapitão  depois  de 
passada  esta  noite,  sempre  demos  conta  da  tarefa.  O 
vento  amainou.  Está  um  lindo  dia.  O  seu  Campbell 
áaseijunda  vida  é  um  pateta:,  não  havemos  de  mor- 
rer por  ter  dado  á  vela  á  sexta-feira.  " 

— 11  Estamos  muito  estropeados  :  >;  respondeu  Do- 
nald. 

Campbell,  que  ia  passando  rente  com  elle,  asso- 
biou pausadamente  a  sua  melodia  lúgubre. 

—  «Almoçar,  rajiazes !  gritou  ocapitão-,  um  copo 
degrog  a  cada  uni  pela  faina  (jue  tiveram!  hourra  !  » 

Ninguém  respondeu  a  este  viva  do  chefe  i  as  testas 
não  se  desfranziram,  nem  se  desgravou  dos  rostos  o 
sello  do  terror. 

—  "A  Jovcn  Suzanna  precisa  mais  da  sua  mas- 
treação (jucí  nós  do  almoço )'  niurnnirou  um  mari- 
nheiro. 

Todavia  a  névoa  da  manhã,  desfazcndo-se  grada- 
tivamente, descobria  no  liorisonte  grupos  de  ilhotes 
picturescos.  A  ira  do  oceano  apasiguára-se  -,  liso  era 
o  mar  como  um  espelho,  mudo  qual  o  tumulo,  due 
murmúrio  rompe  este  silencio  ?  que  soído  é  este  que 
parte  de  tão  longe,  indistincto,  confuso,  crescendo 
mais  e  mais,  e  semelhante  ao  zumbido  de  um  enxa- 
me de  abelhas  ?  Toda  a  campanha  subiu  á  tolda; 
nem  respirar  «nisavam.  O  capitão  ficou  immovel  ao 
pé  da  escada  da  coberta;  o  contramestre,  debruçado 
na  proa,  com  o  pescoço  estendido,  o  corpo  dobrado, 
os  olhos  sem  pestanejarem,  escuta  com  anci.dade ;  >• 
seu  ajudante,  que  levantara  a  mão  para  dar  ordens, 
licou  com  a  mão  levantada  e  suspensa.  Depois  de 
dois  minutos  d'este  silencio,  dVsta  angustia,  dVsto 
torpor,  todos  os  olhos  do  navio  enecuitraram-se,  en- 
I<índerani-se,  adivinharam-se.  O  contramestre  foi-sc 
direito  ao  capitão. 

—  «Ah!  disse-llie  elle,  estamos  perdidos  di-  todo, 
é  o  Maeistrom  !  >< 

—  «O  Maelsirom  !  - 

l'"oi  um  celio  ile  morte,  vinte,  trinta  vezes  ri-peti- 
do,  <|ue(liscorreu  lodoonavio;  depois calou-se  tudo. 

—  ..O  (pie  é  o  IMaeIstroin  ? "  perguntou  ingenua- 
meiíte  a  mi  nina  Spriglitli}'. 

Donald  ricomcçou  o  canto  dos  finados.  l'm  maru- 
jo, com  o  peito  nu,  que  acaliava  de  engolir  um  copo 
de  grog,  respondeu  :  — «  K  a  morte  !  •> 

— 11  Andar,  rapazes,  bradou  ocapitão  com  voz  de 
trovão,  míios  á  obra  eiuii  mil  raios  !  outro  mastro, 
outra  vela!  Trabalhar  I  tral>.illiar  !  ■• 

( l\iittii)iiii.) 


208 


O  PAi>ORA3IA. 


Annincio  dos  i'artos  em  Ha.vkle.m.  j 

Q.UANDO  discorria   as  ruas  de  Haarleni,    causou-ine 
grande  admiração  vúr  penduradas,   ao  pé  das  portas  , 
de  algumas  casas,  grandes  eniui  elegantes  almofadas,  i 
guarnecidas  de  rendas,  e  semelbantes  em  tudo  ás  ijue  i 
se  encontram  sobre  o  toucador  das  senhoras  de  mais  | 
tafulaTÍa.  Eslava  longe  de  adivinhar  o  motivo  de  tal  I 
liso,   e  ainda   o  ignorara,   se  uma  senhora  d'aqueUa  I 
cidade  não  tivesse   a  bondade  de  m^o  explicar,    u  O  '. 
nascimento  d'uina  creança,  me  disse  ella,  annuncia-  i 
SC  d'esle  modo-,  quando  o  chão  da  almofada  écòrdc 
rosa,  é  signal  de  que  veio  a  este  mundo  uma  meni- 
na i   se  o  chão  da  almofada  é  azul  annuncia  que  foi 
um  menino.   Estas  -almofadas  conservam-se  expostas 
quarenta  dias,  e  se  acaso  o  marido  é  perseguido  por 
dividas  não  lh'as  podem  pedir  n'este  praso.  (A  cur- 
te de  HoUanda  no  fempo  cie  Luiz  Buonaparie.  Pa- 
ris 1823.)  

Os  cAVAtios  DE  Veneza. 


£ntr£  as  obras  artísticas  que  nos  ficaram  da  anti- 
guidade, nenhuma  Jia  cuja  existência  fosse  mais 
aventurosa,  nem  por  tantas  vezes  arriscada,  como  fo- 
ram os  celebres  cavallos  de  bronze  dourado,  conheci- 
dos pela  denominação  de  cavallos  de  Vencxa. 

Quando  os  francezes  e  os  venezianos  se  apossaram 
deConsíantinopola,  em  1204,  acharam  alli  os  derra- 
deiros restos  das  riquezas  artísticas  da  Itália  e  sobre 
tudo  da  Grécia,  que  haviam  sido  poupadas  quer  pe- 
las invasões  dos  bárbaros,  quer  pelos  incêndios,  n'essa 
epocha  quasi  tão  frequentes  n'aquella  capital  como 
em  03  nossos  dias.  Porém  os  latinos,  tão  ignorantes 
como  avarentos,  fizeram  pedaços  e  venderam  a  pczo 
indistinctamentc  as  estatuas  de  bronze,  as  quadrigas 
de  metal,  que  adornavam  por  toda  a  parte  as  praças 
publicas,  e  as  suas  devastações  não  tiveram  termo  se- 
não no  momento  cm  que  o  espolio  do  saque  foi  re- 
partido entre  os  vencedores. 

Os  quatro  cavallos  de  que  fallumoí  tinham  sido  pre- 
servados dos  incêndios  pela  sua  elevada  postura  no 
híppodromo  •,  por  fortuna  escaparam  também  da  avi- 
dez dos  espoliadores,  e  llzerani  parle  do  quinhão  que 
coube  a  A  eneza,  para  onde  os  mandou  transportar 
no  seguinte  anno  opudcsiú  Marino  Zeiio.  Durante  o 
trajecto  quebrou-se  o  pé  de  ura  e  separou-se  da  per- 
na ;  Domingos  Moresini,  commandante  da  galé  em 
que  os  haviam  embarcado,  pediu  e  alcançou  guarda- 
lo  •,  o  tal  pé  foi  primeiro  assente  i^um  pedestal  em 
casa  particular,  e depois  coHocado  no  an;ulo  de  uma 
rua.  Os  cavallos,  logo  que  chegaram,  foram  mellidos 
.  no  arsenal,  onde  permaneceram  por  muito  tempo 
ignorados  e  esquecidos,  até  que  unsenibaixadoros  ilo- 
renliiios  deram  a  conhecer  o  \  alor  d'aquelhi  obra  ; 
resolveu-se  que  fossem  tirados  de  um  logar  que  lhes 
causava  estrago,  porque  de  dia  para  dia  se  despega- 
vam parcelias  da  basta  folha  de  ouro  que  os  rec^mia- 
va  •,  collocaram-n"os  então  sobre  a  portada  principal 
da  igreja  de  S  Marcos,  depois  de  terem  substituído 
o  pé  que  faltava  por  outro  do  mui  inferior  mereci- 
mento. Ignora-se  a  epocha  d"esta  disposição  ;  e  só  por 
fins  do  século  XV  se  acha  pela  primeira  vez  menção 
d"aquella  obra  nos  escriptores. 

Os  francezes,  em  1798.  tiraram  de  Venera  aquel- 
les  cavallos  de  bronze  para  os  trazerem  a  Paris,  onde 
assentaram  cada  um  em  pedestal  separado,  e  depois 
osjunclaram  a  um  carro  de  bronze,  que  foi  posto  em 
cima  do  arco  do  Carrousd.  Em  ciimprimenlo  dos 
traclados  de  ISlii  foram  restituídos  a  Veneza,  c  oc- 
cupam  actualmente  o  sou  logar  antigo  sobre  a  {wrta-  |  que  lhe  não  pa,'o 
da  do  templo  de  S,  Marcos.  baque.  •• 


Tal  é  a  parte  histórica  d'estas  escuJpturas  desde 
120Í.  Tem-se  porém  suscitado  uma  disputa,  viva- 
mente ventilada,  acerca  do  sitio  d"onde  foram  toma- 
dos para  os  levarem  a  Constantinopola .  Segundo  uma 
opinião  bastante  antiga  e  acreditada  por  muitos  es- 
criptores, tinham  pertencido  a  um  arco  de  triumpbo 
de  Nero  em  Roma,  cos  levaria  Constantino  quando 
estabeleceu  em  Bvzancio  a  sede  do  império  :  funda- 
va-se  ella  u'uma  medalha  de  Nero,  em  cujo  reverso 
se  vê  o  arco  erecto  em  honra  d'este  imperador,  co- 
roado por  quatro  cavallos  com  duas  allegorias  davic- 
toria  i  e  demais  d'isto  pretendiam  que  os  cavallos  de 
\  eneza,  carnudos  e  roliços  nas  formas,  estavam  lon- 
ge de  se  parecerem  com  os  cavallos  gregos,  que  os 
baixos  relevos  do  Parthenon  representam  seccos,  del- 
gados e  de  contornos  angulosos.  —  Para  refutar  esta 
segunda  asserção  basta  lançar  os  olhos  sobre  grande 
numero  de  medalhas  gregas  em  que  se  acha  o  t^-po 
dos  cavallos  de  Veneza ;  e  quanto  á  primeira  é  des- 
mentida por  muitas  passagens  de  escriptores  bvzanti- 
no  :  entre  outros  umauctor  anonymo  de  um  opúscu- 
lo sobre  as  antiguidades  de  Constantinopola  exprime- 
se  n"estes  termos  :  "  Os  quatro  cavallos  dourados  que 
se  vêem  sobre  os  caccci-ts  no  híppodromo  foram  tra- 
zidos de  Chio  em  tempo  de  Theodosio  o  moço  n  Ain- 
da mais  ;  Nicetas,  designando  mui  claramente  os  mes- 
mos cavallos  pela  sua  collocação  n"aquelle  circo,  os 
representa  «com  a  cabeça  um  pouco  encurvada,  vol- 
tando-se  uns  para  os  outros,  e  exprimindo  o  ardor 
na  carreira, "  o  que  se  verifica  nos  que  existem  em 
Veneza.  — Tendo  morrido  Theodosio  o  moço  em  1 450. 
vê-se  que  na  primeira  metade  do  século  \'  é  que  fo- 
ram transportados  de  Chio.  Quanto  ao  tempo  em  que 
foram  feitos  nada  se  pôde  dizer  com  exacção  :  a  mais 
provável  conjectura  é  a  que  os  attribue  a  al:;um  es- 
culptor  de  Alexandre  Magno  ou  dos  seus  primeiros 
successores.  Adouradura  que  os  reveste,  lon^e  de  in- 
dicar epocha  de  decadência,  demonstra  remota  anti- 
guidade clássica  das  artes.  Quanto  á  belleza  de  tra- 
balho, tem  sido  exaggerada  ;  no  entanto  passa  por 
provérbio  na  Itália.  \  sua  maior  notabilidade  pro- 
cede de  terem  viajado  successivamente  de  Chio  a 
Constantinopola,  daqui  para  ^  eneza,  d* esta  para  Pa- 
ris, e  a  final  de  Paris  para  Neneia. 


Mercês  desbonbosas. 


]  QvANDo  as  mercês  não  são  prova  de  ser  homens,  se- 
]  não  de  ter  homens ;  e  quando  não  significam  valor, 
senão  valia  ;    pouca  injuria  se  faz  a  quem  se  não  fa- 
zem.  Dizia  com  vertladeíro  juizo  5Iarco  Tullio,  que 
as  mercês  feitas   a  indignos  não  honrara    os  homens. 
aiVrontam  as  honras.   E  assim  é.    .\s  commendas  em 
'  semelhantes  peitos  não  são  cruz,  são  aspa ;  e  quando 
I  se  vêem  tantos  cnsíimlienitados  de  honras,    bem  vn- 
podeis  honrar  de  não  ser  um  d'elles. 

^IEInv — Si/m<J(s. 


j  .\    MEl.IIi.M-.   TUAl'A5.\. 

j  Dois  jogadores,   a  qual  d*elles  mais  velhaco,    c^nvi- 
1  daram-se  para  se  depenarem  um  ao  outro  sob  condi- 
I  ção  de  se  admíttir  no  jo^o  toda   a  casta  de  trapaça. 
I  Lm  d"ollcs  fez  quanto  sabia,  —  cnão  sabia  pouo)  — 
!  para)  desbancar  o  parceiro ;  o  outro  jojou  liso  e  per- 
deu sempre. —  "  P.igue-me  tanto  ••   bradou   o  trapií- 
ceiro. — ..Alto  la.    rospondeu-lhe  o  fsomttn  df  htm; 
vijcê  fez  quantas  trani(H>!inus  quii,  eu  dcíxeí-o,  por- 
'  que  até  o  lavar   dos  cestos  e  vindima.    .\gor.i  digo 
Esta  é  a  melhor  trap.iça.  só  bas- 


27 


o    PANORAMA. 


209 


DAVID   VSXCEOOR. 


O  MKSF.ii  do  Miirsollia  lui  riiiiil;i>li>  om  1S():i  pnr  dis- 
|iosi(,rn)  de  Itiionaparti*,  iMitãii  |iriiiii'lri>  i^misiil.  <■  da 
iiiPbinii  niiiiicir»  a  l)ilili()tli>-c,'i,  o  janliiii  bnliiiiiin  i- 
o  ga)iiiii-li-  dMiÍHlDria  nntiiral  da  iiifiiiia  cidade.  I''i- 
zeriii»  !>!'  tio  iiiilii;n  conviMilo  ilos  lliTiiardos  a»  lUíron- 
narias  acciímiuiidiíròfs  para  ri'i(dlii'r  cii  livros  r  pai- 
linis,  <•  foi  i'iii'arri';;ada   iiiDa  íMiiiuiiisHão  ilo  os  i>M'(dlii>r 

dV-lilrc  nina  i'oll ■ào  iiiiincroHa   de   nliriis   a  il  isl  icn», 

oiK'  liuraiili'  a  ri'Milni;ão  linliaiii  saído  dos  il.iuslros, 
igrojatt,  I'  i'asl(dlos.  —  [''oriíiiido  com  o  |i>'i|iii>iii)  iiu- 
mero  (It!  piíil  liras  prcIíTldas  pof  i>sla  iiMiiiinsM"io,  ii« 
dadivas  di-  al'^'iiis  iiiinislros  c  as  olVnlas  ilc  variíis 
parliriilarrs,  o  iiiiisimi  de  Marsidllrt  <(iiiipridiriiile  lui- 
je  cento  «  idiieoiMita  painéis  i  a  colloeaçiM)  é  pi<ssiinil, 
receheiído  os  oliji^elos  mal  a  liir,  o  (pie  pii'jil  liea  iniii- 
lo  o  eITeilo  ipie  di'via  causar  esla  líaleria  —  Niini 
\vi..    \    -  -^I  vr.r..   1:1.    IS':. 


local  coiisai;rado  á  arle  devcni  ter  a  arcliitcctnru,  11 
decoração,  e  solire  tildo  a  disl  riblliij-ão  da  liií  tuna 
inlliíeiicia  lai  ipie  o  curioso,  ainda  11  iniii»  previslo, 
seja  por  olle  niilijiii;ado  ;  é  nii-ler  evitar  aiis  olluis  to- 
do o  caiiçai;o,  todo  o  «iilado  :  liiilo  deve  coiioorror 
para  attr.ilnr,  encantar,  e  dcscaiiear  lirandamentn  « 
vista.  lUiia  leia  de  Uapliael  mal  colloc.ida  cm  rela- 
ção .1  111/.  piTile  inel.idc  lio  sen  prcco.  Tal  <•  o  defei- 
to dl  miisiMi  de  iMarsellia.  l'osMie  diMTsoii  ipiadro» 
das  dilVcreliles  cscholaH  ;  «■iitre  ns  da  italiaiii  merece 
parliiMilar  allenção  um  iiiiailro  do  príncipe  ilos  piii- 
lorcH  ipie  iiualiaino!!  <ie  nomear,  repre.seiilaiido  S. 
iloão  Kvain;elistii  a  escrever  o  Apocalipse;  perten- 
cia Hiiliii,ainciite  a  iiin.i  collrcção  do  ^aliiiiele  real, 
("lirislo  moilo,  sustido  por  mãos  de  anjos,  é  iimavi- 
'.;orosa  coiii[iosieão  de  l\li-iicl   .'\  mci  i^lii,  diclo  oCiV- 


210 


O  PA]NORAMA. 


Tavagio.  Para  não  cilarmos  outros,  enão  faier  cata- 
logo, apontaremos  só  dois  de  Aníbal  Carracci  ;  um, 
e  mui  gracioso,  representa  um  casamento  de  aldeia  :, 
outro  do  mancebo  David  com  a  cabeçii  do  gigante 
Goliath  laz  contraste  notável  com  aquelle.  David  es- 
tá liçurado  como  a  Biblia  o  descreve  n^esse  periodo 
da  vida,  o  mancebo  que  o  soberbo  philisteu  despre- 
zava, por  quanto  era  ndolesctns,  rufus  et  pitlchcr  as- 
pechi.  Cap.  17  do  1."  liv.  dos  Reis. 


O  Maelstbom. 
(Continuado  de  pag.  306.) 


Houve  um  reboli(;o,  que  ninguém  se  entendia.  A 
embarcação  cortava  tranquilla  as  aguas  i  o  sol  res- 
plandecia. A  tripulação,  entretanto,  ardendo  em 
inaudita  febre  de  actividade,  laiia  os  aprestos  neces- 
sários para  arvorar  outro  mastro,  apromptava  a  ve- 
la, e  andava  a  correr  por  tudo  o  navio.  Soo  homem 
«la  segunda  vista  não  quiz  trabalhar.  Douald,  pelo 
contrario,  o  que  queria  era  ser  útil;  acudia  a  tudo, 
tinha  cem  braços;  arrancava  o  niartello  das  mãos  do 
carpinteiro;  admoestava,  qual  pai,  os  negligentes,  e 
chegava  a  embaraçar  a  manobra,  querendo-a  ajudar. 
Pobre  velho,  que  nunca  vira  procellas  senão  sobre  o 
Ijoch  Newis,  nem  outros  pegos  mais  do  que  os  do 
Tweed  e  do  Clyde.  Donald  não  podia  coniprehender 
a  placidez  do  visionário  Campbrll  ;  repreliendia-o  se- 
vera e  amargamente.  Dentro  d'uma  hora  estava  tu- 
do prompto  ;  JevaiitoMse  o  mastro  postiço,  Íçou-sh- 
Ihe  uma  vela.  Baldado  trabalho!  A  vela  não  a  en- 
funava o  vento  \  balia,  enrolava-se  no  mastro  como 
uma  mortalha.  Oh!  desesperação!  a  lancha  perdúra- 
se  na  borrasca.  K  já  se  divisavam  os  pincaros  das 
rochas  lie  Lofodfu  :  \k  a  Maelstroui,  o  sorvedouro 
inexorável,  se  ouvia  de  níais  perto,  e  o  navio  a  ca- 
minhar, a  caminhar  para  ellel...  Estavam  todos  os 
olhos  pregados  no  mastro  e  na  vela,  porétn  o  mastro 
não  se  encurvava,  a  vela  não  se  movia,  (iuem  pin- 
tará o  qtie  exprimiam  todos  estes  rostos,  a  mudez  de 
toilos  estes  homens,  a  imniobilidade  de  todos  estes 
olhos,  o  abatimento  dos  mais  destemidos,  a  resigna- 
ção das  meninas,  a  atllicção  do  pai,  não  por  amor 
lie  si,  mas  de  suas  tilhas?  N'esta  calada,  um  tiel  cão 
da  Terra-Nova.  pertencente  aocapitão,  corria  li  uma 
para  outra  banda  como  para  não  vèr  este  quadro  la- 
tal,  dando  longos  <•  medonhos  uivos,  que  repassavam 
a  alma  dos  que  iam  no  navio.  iM.ic-Kead  rezava  em 
voz  alta  •,  as  meninas  estavam  de  joelhos. 

—  .lEu  bem  o  sabia"  exclamou  o  visionário,  que 
loi  o   [)riiiieiro  a  quebrar  o  silencio. 

—  .iCAue  saliias  tu  .'» 

—  "Acidá  estão  os  rochedos  de  Lofoden  !  Jaós  vi, 
conheço-os.  listavam  á  direita  como  alli  estão.  Não 
me  enganou  o  somno.  Oh!  sexta-feira,  dia  aziago! 
Oh!  capitão  malilicto!" 

—  .iMaldicto  capitão!" 

O  brado  de  guerra  dos  Mohawks,  o  bramido  car- 
niceiro  com  que  Os  1'alikars  se  arremessam  a  peleja, 
não  são  mais  tremendos  do  que  o  alarido  dos  mari- 
nheiros enraivecidos,  que,  deitando  a  correr  para  a 
popa  agarraram  no  inalaventurado,  e  sem  que  lhe 
valesse  bradar,  pedir,  luctar,  embriKkecer-se,  o  bal- 
dearunt  ao  uiar.  U  seu  cão  viu  o  cair.  Era  amigo 
tincero,  não  o  desamparou  na  hora  suprema  ,  lançou- 
»e  logo  ao  mar,  nadou  direito  a  elle,  segurou-o  pela 
golla  da  jaleca,  puxou  o  para  o  navio,  e  l.irgo  tempo 
resistiu  á  corrente  que  o  arrebatava.  Por  fim  o  capi- 
tão deitou  ambos  os  braços  fora  d'agua,  agarrou-se 
ao  cão  com  a  aucia  com  que  se  abraça  a  ultima  es- 


perança de  salvamento,  e  o  bomem  e  o  seu  leal  ami- 
go afundaram-se  para  tempre. 

Perpetrado  o  crime  cora  a  morte  á  vista,  a  inuti- 
lidade dos  esforços  humanos,  a  nenhuma  probabili- 
dade de  salvação  fizeram  desamparar  toda  a  mano- 
bra, deixando  o  navio  ir-se  ao  som  d*agua  em  direi- 
tura ao  precipício.  A  marinhagem  dispersou-se ;  o 
contramestre  sentou-se  sobre  os  restos  do  mastro,  e 
ficou  se  u  contemplar  o  suicídio  da  embarcação.  .Al- 
guns começaram  a  rezar,  outros  dançaram,  a  maior 
parte  brigaram  por  amor  do  grog  e  da  aguardente. 
Houve  alguns,  e  dos  mais  valentes,  que  se  deitaram 
ao  mar  dando  grandes  berros;  vi  muitos  que  de 
mãos  dadas  dançaram  em  circulo  como  phreneticos. 
Estes,  das  gargalhadas  passavam  de  repente  ao  solu- 
çar horrendo  da  extrema  agonia  ;  aquelles,  que  ti- 
nham ficado  como  assombradas  de  raio  e  estirados 
pela  tolda,  erguiam  se  e  davam-se  aos  últimos  paro- 
xismos diurna  alegria  insensata,  quebravam  as  esco- 
tilhas e  lançavam  a  cordoalha  ao  mar.  O  cotivezera 
um  fragmento  do  inferno.  E  toda\  ia  o  sol,  derra- 
mando luz  suave,  parecia  afagar  com  um  sorriso  as 
vagas  pacificas-  e  a  ilha  verdejante  de  Mosken.  A  Jb- 
vcn  Suzanna  já  então  voava,  qual  setta,  a  sepultar- 
se  nan  entranhas  do  abismo,  que  arreganhava  a  boc- 
ca  para  a  engolir. 

Contramestre,  bradou  o  seu  ajudante,  seja  boa  tes- 
tímunha  de  que  eu  não  fiz  mal  ao  capitão  !<i 

O  contramestre  sorriu  se  sem  responder.  O  aju- 
dante modia  a  justiça  divina  pela  dos  Iribunaes  da 
terra.  O  pobre  homem  julgava  precisar  d^uma  tes- 
tiinuuha  que  depuzesse  em  seu  abono  perante  Deus. 

—  ..Então  !  amigo  %V'ill  !  não  me  responde  ?  Ora  !.. 
que  tempo  podemos  ainda  viver,  dija  ia!..- 

O  contramestre  vultou-se  para  Tom  : 

—  .'Meu  rapaz,  lhe  disse  elle,  se  for  preciso  dar 
contas  do  que  fizemos,  conla  comigo.  Tu  tens  mais 
bom  coração  do  que  esses  que  estão  a  dançar  la  em 
baixo.  Mas,  digo-t'o  eu,  ferremos  o  panno  e  fallar 
pouco  listamos  a  dar  fundo:  temos  o  outro  mumlo 
pela  proa;  viremos  pela  ultima  vez  a  ampulheta  da 
barquinha.  Tom  I  um  homem  valente  morre  calado. 
-Adeus,  Tom!  cinco  minutos  ainda  nós  viviremos! 
mais  não !" 

—  "Contramestre,  você  vera  se  o  vento  me  laz 
adernar.  Adeus,  camarada  1  E  aquellas  duas  pobres 
raparigiiinhas  ?...  Ai  !  cortaram-me  o  coração!" 

—  "Cala-te.  com  mil  demónios!  Deus  me  perdoe 
estas  pragas'    Não  digo  mais  nada  !   Vai-te  embora  ! 

A  attracção  do  Maelstrom  crescia  a  olhos  vistos. 
O  suicidio  dos  homens  que  se  deitavam  ao  mar,  uns 
cantando,  outros  chorando,  despovoava  a  escuna.  Nas 
alturas  de  Hellsseii  enxeri^avam-se  grupos  de  homens 
e  mulheres,  que  viam  o  navio  arrastado  a  perdição, 
e  o  lamentavam  sem  o  poderem  socvorrer.  Mac-Read 
tiiiha-se  abraçado  com  as  duas  filhas,  e  Donald  toca- 
va gaita  de  folies,  em  quanto  o  pai,  com  as  duas 
filhas  cingidas  nos  braços,  murmurava  al:;umas  pala- 
vras que  mal  se  percebiam.  Lm  p.issaro,  branco  co- 
mo a  neve,  de  pennas  lustrosas  e  brilhantes,  voou 
dos  cerros  de  .\mbareem,  pairou  sobre  o  nivio,  ba- 
teu as  azas  a  pouca  distancia  do  convci  e  seguip  por 
muito  tempo  )i  levada  da  embarcação,  t)  felii  pássa- 
ro podia  viver  e  o  navio  linha  de  morrer  por  força. 
Ciuno  o  olhávamos  com  inveja  !  a  sua  liberdade  re- 
quintava os  tormentos  do  captiveiro  que  iio>  levav.T 
a  morte. 

Mhs  cheg.ivanos  nos  ou«idos  um  estrépito  medo- 
nho que  parecia  vir  do  Maelstrom  ;  scnti.imos  um 
inuçir  pavoroso  e  nivits  de  agonia,  como  se  al^uin 
monstro  gigante  se  debale-se  com  a  morte.  Com  el- 
feito,  uma  baleia  tinha  cedido  a  valentia  da  correu- 


o   PANORAMA. 


211 


te.  e  quando  chegara  ao  meio  do  sorvedouro,  luetára 
debalde  contra  a  força  irresisfivel  que  a  absorvia. 
Em  vão  batia  a  cauda  do  colosso  as  aguas  que  re- 
moinhavam :,  debalde  lançava  ao  ar  pelas  vtjiitas  duas 
colnmnas  d'agua  que  borbulhavam,  o  monstro  enor- 
me desappareceu  tragado. 

lira  a  sorte  a  <|iie  corríamos  c:ida  vez  mais  velozes. 
A  belleza  do  dia,  a  transparência  do  céu,  u  brilho 
das  aguas,  não  deixiivani  crer  a  morte  tão  propiíi- 
<jua,  o  naufragiii  tão  certo.  Um  grumete,  queleváru 
muitas  horas  a  chorar,  levantou  a  cabeça  e  disse  ao 
contramestre  : 

—  11  Não,  não  posso  crer  em  tal  ;  não  pôde  ser, 
contramestre'.  O  mar  está  tão  quieto!  que  é  do  ca- 
chopo f  queé  dj)  temporal  .'  que  é  da  morte?  São  con- 
tos de  crcanças,  e  tolos  todos  que  os  engnliMU." 

<•  contramestre  levantou  acabeça,  e  soltou  um  sor- 
riso .sardónico. 

—  A  manobra  ?  continuou  o  grumete.  I<esles  1  les- 
tes !  ...  " 

—  «Manobra  como  quizeres,  retrocou  o  velho  ma- 
rinheiro olhando  para  o  rapa/,  com  desprezo  infinito: 
d"aqui  a  fres  minutos  não  tem  a  Joveit  Sttzanna  \ rea 
tábuas  unidas.  " 

—  liâual!  quando  todos  tinham  perdido  as  espe- 
ranças e  a  borrasca  nos  levou  o  mastro,  ru  cá  bem 
íabia  que  escapávamos!  ?• 

—  "Rapaz,  prepara-te,  limpa  esses  ollios :,  engo- 
lem «e  doas  ou  três  canadas  (l'agua  salgada,  e  esta- 
mos aviados.  í)  navio  começa  a  alagar-se  :  a  atnia  es- 
tá turva.  Kapaz,  se  queres  vércomo  um  hon)em  mor- 
re como  um  homem,  fica  ao  pé  de  mim.  Mascala-te 
e  deixa-me  em  paz.  " 

Dizia  iv  verdade.  A  impetuosa  altracção  do  Maels- 
trom  augmentava  a  rapidez  da  nossa  marcha  !  Fervia 
O  mar  á  roda  de  nós-,  e  Jovm  Suzaiiiiu  rolava  para 
a  direita  e  para  a  esquerda,  feita  ludibrio  dasondas 
que  se  guerreavam,  ("onío  bei  de  repelir  a  agonia  in- 
tensa, a  di.'tnencia  atroz  crestes  moribundos  cheios  de 
vida?  O  próprio  navio,  ptdaudo  para  o  sorvedouro, 
parecia  um  ente  vivo  e  louco.  Km  br>ve,  ílespcdido 
como  a  balia  pelo  impulso  da  pólvora,  resvala,  lo^e, 
arfa,  afocinha,  faz  pião,  resalta  o  aderna.  l)s  mari- 
nheiros  penduram-se  no»  cabos  •,    Donald  atira-so  ao 

abysmo  :  levanla-se  o  brado  final  —  misericórdia  !  O 

*  _ 

contramestre  agita  o  chapéu  no  ar,  em  quanto  a  ./o- 

iicn  Siizuntta  anda  ao  redor  como  o  pião  nas  mãos 
d'uma  creança.  Nada  mais  sei.  X  consciência  d'este 
horrível  naufrágio  não  deita  adiante  do  momento  fa- 
tal em  que  só  a  pflpa  estava  fora  d^igua;,  em  que  o 
abysmo,  sorvendo,  se  assim  me  posso  explicar,  a  sua 
preza,  a  puxava  pela  pn^^a  para  o  pego  mortífero,  o 
a  conservava  m<iui<mtaneami'utH  suspensa  a    pino. 

(Quanto  a  mim  que,  esteiidi<lo  na  tolila,  mudo,  sem 
esperança,  «juasi  estúpido,  vi  o  íim  d'esta  scena  com 
resignação  desesperada,  achei-ine  ensanguentadoe  iiií 
na  cr)sta  piuihascosa  delleggesen.  Apiuias  tive  forcas 
pura  me  arrastar  at(>  um  grupo  de  i:abana8  de  mi- 
neiros. Sem  duvida,  o  vórtice  por  eUeito  da  violência 
das  correntes  contrarias  qu<'  formam  o  nnichanismo 
do  seu  turbilhão  funesto,  expelliu  para  longe  de  si 
algum  doi  destroços  que  (li'vi'^ra  tragar.  Vi  espalha- 
dos pela  areia  um  fragmento  de  tábua  quebrada  e 
um  resto  de  mmsame.  Memoria  <rhomem  não  ilava 
llotiiia,  segundo  mi-  disseram  os  pi'Scadores  (jue  mc^ 
agasalharam,  d(5  ler  oMaeIstron)  perdoailo  a  nenhu- 
ma das  suas  vielimas. 


a  luz?  Que  qualidade  mais  branda,  mais  suave  e 
mais  amorosa?  Ella  <■  a  alegria  dos  campo?,  a  respi- 
ração das  flores,  a  harmonia  das  aves,  a  delicia  dos 
olhos,  a  formosura  dos  astroí^,  e  emfim  o  contenta- 
mento de  todo  o  mundo. 

l'ois  esta  propriedade  da  luz  ha  de  ser  também  a 
propriedade  da  justiça,  porque  a  justiça  devesertão 
branda,  tão  amorosa  e  tão  benigna  como  a  luz.  Hen» 
cordieço  que  muitos  serão  de  mui  contrario  parecer; 
porque  couMi  vêem  na  mão  da  justiça  desembainha- 
da uma  espada,  tolalinente  se  persuadem  que  a  jus- 
tiça toda  devo   ser  rigores,  toda  crueldades.  .  . 

i'j  para  não  ser  crueldade  deve  temperarse  com 
brandura,  e  só  com  ella  •.erk  justiça.  E  porque  sei 
que  a  espada  da  justiça  é  a  que  obriga  a  imaginar 
que  toda  a  justiça  deve  ser  rigor,  quero  que  nos  >ir- 
va  de  prova  a  mesma  espada. 

1  ergunto  assim  :  E  para  que  se  armou  com  uma 
espada  a  mão  da  justiça?  —  Já  sabem  todos  que  pa- 
ra significar  o  seu  rigor.  Pois  porque  se  não  pinta  a 
llgura  da  justiça  com  um  cutello  senão  com  uma  es- 
pada ?  O  instrumento  mais  próprio  do  rigor  da  jus- 
tiça não  é  ocutello?  Que  razão  haverá  logo  para  que 
não  pintem  como  o  cutello  a  justiça?  l'orque  a  pin- 
tam com   uma  e>pada  ? 

Com  grandíssima  razão.  Entre  o  cutello  e  a  espa- 
da ha  e»la  diíTereTiça  :  que  o  cutello  é  inllexivel  ;  é 
tanta  a  sua  dureza  que- a  nada  se  dobra  :  e  se  por- 
fiam a  que  se  dobre  arrebenta.  E  a  enpada  ?  Toda 
pelo  contrario.  A  espada  com  sertão  rigorosa  é  mui- 
to branda.  Quanto  mais  se  dobra  tanto  tem  de  me- 
lhor espada  ;  e.  o  que  é  mais  de  admirar,  que  ainda 
que  o  vejamos  dobrar-se,  não  deixa  nunca  de  ficar 
mui  recta  :,  de  sorte  que  a  Cípada  é  branda,  a  espa- 
da (hibra  se  ;  e  comtudo  sempre  é  recta,  e  sempre  é 
espada. 

l'ois  assim  ha  de  ser  a  justiça  :  espada  sim,  mas 
que  se  dobre  ;  recta  sim,  mas  que  se  abrande.  Em- 
íim  ha  de  ser  como  raio  da  luz  :  é  raio,  mas  beni- 
gno; é  vaio,  mas  é  de  luz. 

EvsKUio  DE  íIattus  —  Sermões. 


BeRNADOTTE,    rei    de   SlECIA. 

(.CniitiDuado  de  pa^'.  199.) 


A   JVKTIÇA. 

A  ruisiiaiiA  jiropriedade  da  lux  é  ser  benigna.  Que 
Í.OUSU  11)1119  U>lii[,'na,  que  cousa  muis  fuvuruvel  docjuu 


Para  acompanhar  Bernadotte  em  todas  as  batalhas 
que  ganhou,  seria  [)rcciso  traçar  a  historia  dos  primei- 
ros annos  do  império  francez,  tão  fértil  em  acções  es- 
trondosas ;  elfectivameute  o  acharão  em  todas  as  cam- 
panhas onde  havia  perigos  a  arrostar,  louros  a  colher. 
Vencedor  cm  Schicil/.,  onde  desbaratou  a  vanguarda 
do  exercito  prussiano,  oprincifie  de  1'onfe-Corvo  per- 
seguiu vivamente  este  corpo,    o  depois   de  lho  haver 
olVerecido  batalha,   inutilmente  por  muitas  vezes,  ai 
cançoií-o    em   Lubeck.    l'oucos  feitos    d^armas  houve 
tão  brilhaiiti^s ;  (Uize  generaes,  que  eram  command.t- 
dos  pido  marechal  Illilcher  e  o  príncipe  de  Kriinswicll, 
<í  doze    mil  homens  caíram    em  poder   dos  traiicezes. 
N.i   Polónia    liiTiiadoMu  triumphoii   dos  russianos   no 
combate  de  IMoruiigen  em  2.'>  de  janeiro  delSKT.    l'ni 
leiímenlo  suspendeu  a  carreira  das  suas  victorias  o  d 
coiistrangiui    a  algum    tempo    ile  repouso.    .X   paz   de 
Tilsítt,   (]uu  pozcra  termo  a  esta  campanha,    não  foi 
de  longa  duriiÇão,  e  Dernadotte,  apenas  eomalescido 
da  fi'rida,  recebeu  ordem  dií  tomar  o  governo  das  ci- 
dades ansealieiís.    Chamado   á  Allemanha  cm  t8US, 
cominandoii  o  i-xcreito  alliado,  francez,   hespanhol  e 
hollandez,    o    nssígnalou-se    por    dislinctas  neçòes    ao 
mesmo  tempo  que  se  fazia  querido  de  suus  soldados. 
Nu  campanha  de  líJO',1  alcançou  muitas  vaiitugons 


212 


O   PAJNORAxMA 


contra  os  austriat-os,  e  assignalou-se  sobre  tudo  em 
frente  da  ponte  de  Linz:,  realisoa  depois  a  sua  junc- 
cão  com  o  '^r;imicM'xercito.  A  G  de  julho  tomou  par- 
te na  batalha  de  Wasçram  Lommandando  a  ala  es- 
querda coni  Massena  aleita  das  tropas  saxonias  ;  por 
este  lado  <■  que  o  ataque  foi  mais  vivo;  o  príncipe 
de  l'oiife(,'orvo  em  vão  fez  prodígios  de  valor,  as 
suas  tropas  sohrfcarreu;iidas  pela  nudlidão  dos  inimi- 
gos recuaram  desorilenadamente,  elle  próprio  se  achou 
cercado,  e  só  conscíi;uiu  desembara(,ar-se  por  intiode 
"uma  presença  de  espirito  c  ousadia,  que  suriani  bas- 
tantes para  firmar  a  sua  re[)uta<;ão  militar.  l'ela  tar- 
de a  victoria  estava  ^anba,  porém  os  saxonios  líca- 
ram  em  u,rande  numero  no  campo  lia  batalha,  apa- 
gando assim  a  verjjonha  de  iim  nuimento  de  temor. 
iíernadotte,  furioso  por  não  ser  auxiliado,  bradou 
<]ue  era  traição;  cjueixou-se  de  que  o  abandonassem 
e  sacrificassem  os  seus  soldados;  deu  a  demissão  do 
comniando,  e  15uonaparte,  acceitaiido-a,  parecejusti- 
licar  as  censuras  cjue  de  futuro  sefiieram.  —  Coiiitu- 
do,  o  demittido,  apenas  contava  vinte  dias  de  reco 
Ihido  a  Paris,  fci  encarregado  de  repellir  uma  inva- 
são dos  ingle/.^s  na  ilha  de  Walclieren  ;  passou  logo 
a  Aiivers.  Nada  era  mais  precisi)  do  que  a  activida- 
de do  príncipe  de  l'(Uite-C'urvo  para  organisar  ade- 
feza  ;  as  obras  de  fortificação  apenas  estavam  princi- 
piadas, nos  ars<naes  não  havia  artilheria  nem  pólvo- 
ra, e  as  tropas  fianuezas  eram  obrigadas  a  viver  de 
pilhagem  como  em  paiz  inimigo.  IJerniidotte  não  se 
desalentou  com  esta  mingua,  a  sua  inlatigavel  acti- 
vidade acudiu  as  faltas;  de  dia  paí-a  dia  se  levanta- 
vam novos  fortes  on  se  assentavam  novas  baterias. 
A  ruína  da  ilha  de  VNalchcreii  foi  a  vantagem  úni- 
ca que  tirou  da  sua  einpre/a  o  general  ingie?.,  que 
perdeu  mais  de  quatorzemil  homens.  —  Esta  campa- 
nha, que  iindou  quasí  siMii  combate,  foi  mais  funes- 
ta ás  tropas  britaiinicasdoqiie  se  tivessem  experimen- 
tado grandes  revezei.  O  príncipe  de  Ponle-Corvo,  de 
volta  a  1'arís,  recebeu  a  condecoração  da  ordem  de 
S.   Henrique,  da  Saxonia. 

IV'ão  reinou  muito  tempo  a  boa  intelligencia  entre 
o  imperador  e  o  príncipe  de  Ponte-Corvo.  Napi<leão 
I)  culpava  de  excesso  do  auctoridadi;  ii'uma  procla- 
mação á  tropa  ;  chegou  até  a  prohibir-lhe  entrar  em 
l'aris.  Kernadotte  diniíttiu-se  de  honras,  dignidades 
e  títulos,  e  depois  recusou  sujeitai  se  a  intimações 
tão  tirbilrarias.  O  ministro,  temendo  com  razão  uma 
guerra  civil  que  teria  por  cabeça  homem  tão  intluen- 
te,  modificou  a  ordem  do  imperador,  e  contentou-se 
em  escrever  ao  príncipe  de  Poiit'--Corvo  que  passasse 
ao  exercito  de  Allemanha  no  mais  breve  prazo  possí- 
vel. Díspozerani  uma  entrevista  de  ambos,  qiio  teve 
logar  em  Schoenbrun  ;  Napoleão  mostrou  esqiiecerse 
dos  aggravos  que  imputava  ao  seu  marechal,  e  até 
lhe  deu  o  governo  geral  de  Koina  ;  porém  Bernadotle 
só  acceitoii  depois  de  muitas  hesitações. 

No  entanto  aconteceu  a  revolução  da  Suécia  ;  Gus- 
tavo IV  tinha  siiecedido  a  Carlos  Xlll,  que  largou 
a  enrija  sem  víulentaH  agitações.  Gustavo  era  velho, 
<•  não  tardava  que  a  sua  morte  deixasse  vagoothro- 
1IO  d'aquelle  reniu.  Km  circiimstancías  taes,  era  pre- 
ciso um  homem  enérgico,  capaz  de  tomar  o  governo 
com  mão  firme,  de  impor  aos  inimigos  externos  res- 
peito, c  de  refrear  as  revoltas  internas.  Os  votos  dos 
suecos  recaíram  em  Bernadotte,  e  veio  a  Paris  uma 
ilcnutação  olferecer-lhe  o  titulo  e  us  direitos  de  prín- 
cipe real  da  Suécia.  Conviin  saber  que  dipoisda  to- 
mada de  Liibeck,  Uernadotte,  tendo  cercado  um  cor- 
po numeroso  de  tropas  suecas,  contentou-se  com  fa- 
zer-lhe  depor  as  armas,  admíttiu  os  princípaescabo« 
a  sua  meza,  c  tractou-os  com  Ioda  a  possível  consi- 
deri'.(,'uo.  Este  acto  de  iiiuucr:içãu  ihc  adquiriu  gran- 


de partido,  —  .Napoleão,  que  devia  a  sua  fortuna  á 
eleição  popular,  não  podia  oppòr-se  a  que  um  de  seus 
generaes  fosse  escolhido  por  um  povo  para  seu  mo- 
narcha.  Altirma-se,  porém,  que  esta  escolha  o  des- 
gostou vivanii  nte,  porque  sabia  que  entre  si  eaquel- 
le  que  os  suecos  queriam  para  príncipe  hereditário 
existia  todo  o  rancor  do  Directório,  de  quem  Uerna- 
dotte  se  havia  mostrado  sempre  o  mais  firme  susten- 
táculo.—  uCumprain-se  os  nossos  destinos"  —  disse 
por  fim  pezaroso ,  e  Bernadutte  foi  unanimemente 
saudado  tipriíicípe  herdeiro  de  Suécia,  para  depois 
do  lallecímeijto  do  rei  actual  reinar  na  Suécia  e  paí- 
zes  d'ella  dep>'iidenle«,  ser  conado  rei  da  Suécia  e 
receber  o  juramento  de  fidelidade;  emâm  governar 
o  reino  conforme  o  sentido  litteral  da  constituição 
de  li  de  junho  de  1809." 

Bernadotle  a  principio  mostrou  querer  permane- 
cer fiel  alliado  da  França,  mesmo  em  detrimento  da 
Suécia.  Tendo-lhe  Napoleão  dado  urdem  de  quebrar 
todas  as  relações  com  a  Inglaterra,  o  príncipe  here- 
ditário obedeceu,  posto  que  bem  soubesse  que  a  Sué- 
cia não  podia  subsistir  pelos  próprios  recursos.  Pro- 
hibín  o  commercio  cora  Inglaterra,  e  determinou 
que  fossem  confiscadas  as  fazendas  aprehendidas.  Era 
uma  ordem  illiísoria  que  o  governo  nem  podia  nein 
queria  executar;  pelo  que  a  fraude  substituiu  as  per- 
mutações regulares.  Napoleão,  julgando-se  mofado 
pelo  seu  antigo  logar  tenente,  enculerisouse  ;  Berna- 
potle,  por  sua  parle,  supportava  a  custo  a  arrogân- 
cia com  que  o  imperador  lhe  dictavaordens.  Por  ou- 
tro lado  o  interesse  do  seu  paiz  adoptivo  oppunha  se 
a  uma  cega  submissão  á  França.  Pa^saram-se  de  par- 
le a  parte  notas  cheias  de  acrímonia;  c  a  final  Buo- 
naparle  expediu  ordem  as  suas  tropas  de  invadirem 
a  Pomerania  e  a  íiiia  de  Kugen.  Era  a  epocha  em 
que  a  França  levava  as  suas  armas  victoriosas  até  os 
gelos,  epuclia  em  que  Napoleão,  ofTuscado  peio  seu 
poderio,  parecia  desprezar  todos  os  meios  de  asse- 
gurar o  triumpho.  A  Suécia,  descontente  cum  o 
procedimento  do  imperador,  separou-sc  da  sua  al- 
liaiiçíi,  c  a  Rússia,  approveítandu-se  destas  sementes 
<ie  discórdia,  olfcreceii  a  Noruega  áquelle  paiz  que 
tanto  tempo  a  ambícicnára.  Bernadotts,  depois  de 
bastantes  hesitações,  assignou  o  Iractado  de  S.  Pe- 
tersliurgo  a  '2%  de  niarçn  de  ISllí,  e  nomeado  chefe 
do  exercito  confederado  viu-se  constrangido  a  tomar 
armas  contra  os  seus  antigos  camaradas.  Lançado 
n'esla  carreira,  Bernadotle  marchou  rapidamente, 
em  demasia  talvez  para  a  sua  reputação.  Era  impel- 
lido,  para  assim  dizer,  por  uma  força  que  não  sabia 
explicar,  porque  não  ignorava  que  cada  uma  das  suas 
victurias  era  não  somente  uma  nódoa  na  sua  gloria, 
mas  também  um  golpe  na  individualidade  do  seu 
paiz  adoptivo;  bem  percebia  que  para  a  liberdade 
da  Suécia  conviria  oppur  o  poderio  da  França  ao  in- 
cremento invasor  da  Kussia  ;  mas  não  podia  uu  an- 
tes não  ousava  mudar  de  procedimento,  pretendia 
esconder  sob  louros  novos  a  sua  ingr.itidão  para  com 
a  França,  Um  dos  seus  mais  brilhantes  leitos  d'ar- 
mas  foi  a  batalha  de  Leí]isick,  onde  decidiu  da  vic- 
toria. e  forçou  Napoleão  a  passar  oulra  vcioRh?no. 
Debalde  os  panegvristas  de  Bernadotle  affirmam  que 
fizera  todos  os  esforços  por  mitigar asdurascondições 
npprcscniadas  ao  imperador;  debalde  díicm  quedu- 
raiite  lodo  o  anuo  de  181  1  oe.xercito  sueco  seconte- 
ve  em  neutralidade  inolVcnsiva  :  as  notas  diplomáti- 
cas provam  ao  contrario  que  Bernadotle  incitou  os 
confederados,  e  nada  tanto  de>€-j,iva  como ,i  proRi pia 
abdicação  de  Napoleão.  —  iluando  viu  a  iiivjisãoda 
França,  começtni  então  a  deplorar  a  sorte  do  homem 
extraordíiiaiio  que  tivera  na  suu  mão  muit. is  coroas, 
e  u  quem  iam  dar   por  cslduu   uuia  ilha    pi-queiia  e 


o  PAISORAMA. 


213 


»ein    recursos.    Dptde    eiilio    mostrou    não    curar    da 


guerra  europeu. 


Nap<)l»'So  subiu  de  novo   ao  throno 


imperial,  e  do  no\i)  01  moiiarcli^s  coiilra  elle  se  col- 
1  igara m  ;  d't8sa  vei  l!ernadotte  lieou  neutral.  <iuan- 
do  os  Bourbníis  recolirarani  o  poder,  abriu  a  sua  cor- 
te aos  expatriados  franee/.cs  e  llies  prestou  seguro 
as>lo. 

Julgando  se  estabelecida  a  pm  geral,  o  principe 
real  da  Suécia  voltou  as  suas  armas  contra  a  Norue- 
ga,  que  recusava  reconliecer  a  sua  noxa  sníerana. 
Finalinenti',  por  morte  de  Carlos  XIII,  a  lo  de  l'e- 
■vereiro  de  1818,  os  suecos  asradt-cidos  o  proclama 
rain  rei  de  Suécia    e  IVoriiega  sol)  o  nome  de   Carlos 

XIV. 

Exahadoao  tliruno.  Deriiaiiolfi!  rodeoii-fe  tlefran- 
ceae»,  e  com  elles  conversava  acerca  da  pátria,  lasti- 
mando os  acontecimentos  de  181  o  e  a  cega  ambição 
do  imperador.  Teve  porém  o  cuidado  de  respeitar 
sempre  o  orgullio  nacional  dos  suecos,  e  lhes  confiou 
os  principacs  cargos  do  reino,  não  obstante  toda  a 
benevolência  para  com  seu»  antigos  compatriotas. 

Bernadolle  lalleccu  a  S  de  março  de  184i,  depois 
de  uma  eiifermidafle  dilatada  e  acerba,  contando  de 
idade  oitenta  e  iim  annos,  um  me/,  e  doze  dias.  Suc- 
cedeu-lbe  Sfm  a  menor  opposicão  seu  filho  Oscar  I 
(José  Francisco)  tendo  M  annos  e  O  mr/es  :  é  geral- 
mente estimado,  eludo  inclina  a  pre-agiar  que  a  fa- 
mília de  Bernadotie,  ;^fsi'ntada  no  tlirono  da  Suécia 
pela  eleição  espontânea  do  paií,  conservará  a  coroa 
com  a  piosficridade  do  estado. 


PIA  DO  BAPTISMO  I>£  S,   liUlZ. 


A  TKK»  léguas  de  \'c  rsaillis  e  a  cinco  ao  noroeste  di) 
Turis  rsla  situada   1'iiissy,  cidad"  per|net;a,    (pie  terú 

'J'itl()  iiluins  ^  lua  na  innruim  esi|ni-rda  do  Snnii,  e 
iiz-sc  hoje  nuKncl  (niu  ■jr.iiidc  incrc.ulo  de  giidoí  de 


que  se  aprovisiona  Paris.  Gloria-se  porém  de  uma 
illustraçãu  histórica,  e  vem  a  ser  a  honra  do  pátria 
de  S.  Luiz,  o  nono  d'este  nome  na  serie  dos  reis  de 
França.  A  pia  baptismal,  onde  este  principe  recebeu 
o  primeiro  sacramento,  ainda  está  bem  conservada 
na  igreja  parochial  d''aquella  villa  :  antigamente  foi 
j  objecto  de  muita  \eneração,  e  pendentes  da  parede 
se  viamjuncto  dVUa  muitos  milagres  ;  e  dizia-seque 
i  algumas  particulas*despeí;adas  dVlla,  sendo  dissolvi- 
das n'um  copo  d'agua,  e  dadas  a  beber  aosenlerrao», 

efrectuavain  a  cura  de  quasi  todas  as  moléstias. A 

eapella  em  que  5e  acham  o  baptistério  e  mais  pecas 
que  serviram  no  mesmo  acto  é  dedicada  a  S.  Luiz 
e  sobre  o  caixilho  de  uma  grande  vidraça  que  lhe  dá 
claridacie,  liani-se  n'outro  tempo  quatro  versos  mui 
I  singelos,  que  commemoravam  o  nascimento  de  S.  Luiz 
I  em   l'oissv,  e  o  seu  baptismo  n"aquclla  igreja. 

Luiz  IX   de  França,  contando  apenas  onze  annos, 
isuccedeu  a  seu   pai  Luiz  A'!!!,  ccjgnominado  oLiuo; 
j  durante  a  menoridade  esteve  sub  a  tutela  desuamãi 
|D.  Branca,  que  fora  infante  deCastelIa,  senhora  de 
,  animo  forte  e  de  talento  governativo.  Luiz  IX,  edu- 
I  cado  piamente,  de  espirito  ascético,  eenlhusiasmado 
;  pelo  fervor  que  inspiravam  as  guerras  no  o.-ienteha> 
i  via  mais   de  um    século,   levado  além  d"isto  por  um 
■sincero  sentimento  religioso,  que  predominou  em  to- 
lda a  carreira  da  sua  existência,  intentou,  em  12i4, 
j  ir  resgatar  pessoalmente  os  sanctos  logarcs  da  Tales- 
tina  ■,  porém  só  quatro  annos  depois  é  que  ponde  pôr 
'em  pratica  o  seu  desígnio,  contra  osconselbos  desna 
inãi  e  dos  principaes  do  reino.  Foi  esta  a  ultima  cru- 
zada.   í2nibarcou-se  com  um  exercito  de  200:000  ho- 
mens em  1  ;S0O  navios,    e  tomando  terra  no  Egvpto 
ganhou  a  principio  algumas   vantagens-,    porém  a  j 
d'ahril  de  1'250  foi  completamente  desbaratado  pelos 
sarracenos  \    na  batalha  morreu    seu  irmão  Roberto  ; 
elle   e  outros  dois  irmãos,  Affonso  e  Carlos,    caíram 
prisioneiros.    Trasladaremos    aqui    algumas    palavras 
da    baroneza    de  Minutoli    nas  suas   Recordações    do 
Egypfo.  —  «1  Pennas  mais  eruditas  que  a  (nínlia  lize- 
rain,  e  continuarão  provavelmente  a  fazer  a  eniime. 
ração  das  cidades  antigas  que  se  levantaram  nntr"or« 
nas  margens  que  vamos  costeando  (viagem  do  Cairo 
a  Damieta)  e  que  não  oHerecem  agora,  como  as  mi- 
nas de  Atribis,  aos  olhos  magoados  do  viajante  senão 
acervos  de  entulho   e  algumas  coluninas  derrubadas  ; 
quanto   a    mim.    apraz-me    recordar   aqui    memorias 
mais  recentes,    fallo  d'aquella  epocha  em  que   o  eu 
thusiasmo  religioso  e  cavalleiro   de  toda   a  Europa, 
dirigido    pela  política   de  alguns   padres,   precipitou 
no»  abrazados  desertos  da  Africa  e  da  S_\ria  um  sem 
tiumero  de  valentes,  que  encontraram  a  niorle  ao  pé 
de  seu  piedoso  monarcha,   Luiz  IX,  <|iii' perinamoeu 
rei  mesmo  em  ferros.    Foi  em  Rlansourah,   silin  por 
onde  passámos,  que  Ijuiz  foi  feito  prision<iio,  depois 
de  uma  batalha  cuja  perda    se  attribuiii    ao  intrépi- 
do, porem  imprudente  ataque  dos  templários.  A  re- 
ligião  e  a   lembrança   de  uma  espos.i    adorada  ainda 
podiam  adoçar    os  revezes    dVste  principe  desafortu- 
najo  :  essa  princeza  heróica  e  virtuosa,  qni-  haviu  to- 
mado a  cruz  para    não  separar  se    de  seu  augusto  es- 
poso, preií-rindu  a  morte    á  ignominia,   lc\e   a  cora- 
gem de  exigir  de  um  cavalleiro  da  Mia  tomili\a  i|uc 
antes  lhe  tirasse    a  viila  do    i|Ue    a  deixasse    cair  nas 
mãos  inimigas.  Comtndo  o  ceii  (|ui/.  coiisirvar  tantas 
virl<i<lcs  e  animo  intrépido:    é  verdadi'    «jue  foi  pri- 
sioiwiru    próximo   á  antiga   niuiiiella,    mas  sob  con- 
dições muito  honrosas,    e  foi   tractiula  durante  o  seu 
eaplivciro  eoili  o  respeito  devido  á  sua  jerarcliia  eá» 
suas  qualidades  pe'snn)'s.  •• 

O   próprio  S.    Luit  foi   iguiilmtnlr   biin  ttachulo. 
Obtido  o  re«giitfl   por  uviíltada  quiiiili»,  rcíliluiii  se 


214 


O  PANORAMA. 


á  França  em  1254,  e  o  seu  governo  foi  regulado  pe- 
la justi<;a  e  prudência,  applicou  se  muito  á  reforma 
dos  costumes,  a  proteger  os  desvalidos,  a  soccorrer  os 
pol)re<i,  á  decência  dos  templos,  e  a  supprimir  os  tri- 
butos que  tinham  sido  lançados  para  acudir  ás  ur- 
gentes necessidades  doestado.  Não  pude  este  raonar- 
chaser  censurado  senão  por  suas  infelizes  expedições. 
Era  1270  de  novo  o  accommetteu  a  febre  de  voltar 
á  terra  Sancta ;  transtornado  em  parte  o  seu  projec- 
to, passando  a  Africa,  poz  sitio  a  Tunes;  porém,  du- 
rante este  cerco,  deu  tão  horrivel  peste  no  seu  exer- 
cito que  a  mortandade  foi  espantosa  \  o  próprio  rei 
acabou  do  mesmo  contagio  a  '2'á  d'agosto  do  dicto 
anuo,  tendo  reinado  43  annos  e  um  mez. 

Liuiz  IX.  deixou  oitofílhos,  um  dosquaes,  por  no- 
me Roberto,  casou  com  Beatriz,  lilha  herdeira  de 
Ignez  de  Bourbon,  d"onde  dimanou  a  familia  d'este 
nome,  que  d'ahi  a  três  séculos  tomou  a  corúa  de 
França  na  pessoa  de  Henrique  I\  ,  por  antonomásia 
o  Grande. — S.  Luiz  foi  canoniaado  peio  papa  Boni- 
fácio VIII. 


Os   CUALES    DE    CaCHeMIRA. 

Desoe  tempo  immemorial  fabricam-se  chalés  de 
grande  preço  no  valle  de  Cachem  ira.  Ocommereioos 
transportou  successivamente  aos  logares  do  seu  con- 
sumo por  vias  que  mudaram  de  direcção,  conforme 
as  sanações  que  a  politica  ou  a  guerra  iiupozeram 
aos  limites  dos  diflerentes  estados.  iSão  fallando  se- 
não posteriormente  á  elevação  do  poder  dosafghans, 
uma  parto  do  tributo  imposto  ao  valle  por  esta  na- 
ção consistia  em  chalés,  e  era  transportada  para  a 
Capital,  Candahar  :  o  restante  entrava  nocommercio 
directamente,  e  espalhava-se  para  regiões  longínquas 
por  diversos  mercados.  Sem  fallarmos  em  muitas  al- 
terações antecedentes,  o  commercio  de  Cachemira 
com  a  índia  tem-se  encaminhado  nos  últimos  tem- 
pos por  Juinbo,  que  em  todos  os  seus  arredores  é 
protegido  por  uma  cordilheira  de  allissimas  serra- 
nias, inaccessiveis  ás  bestas  de  carga.  —  Os  chalés 
são  conduzidos  a  Jumbo  ás  costas  de  homens,  e  vêem 
arranjados  n'um  fardo  oblongo,  composto  de  certo 
numero  de  peças,  e  de  pezn  marcado  :  o  fardo  com 
unia  capa  de  couro  de  boi,  bem  cozido  e  apertado 
com  as  correias  do  mesmo  couro,  chama-se  biddery  : 
vem  acompanhado  d"unia  factura,  e  de  raro  oabrem 
para  o  verificar:  o  portador  traz  a  carga  comoossol- 
dados  a  mochila,  e  tem  um  bordão  comgeito  demo- 
leta,  que  lhe  serve  para  auxiliar  a  caminhada,  e  pa- 
ra se  alliviar  escorando  o  pezo  pela  parte  de  traz. 
Por  esta  nova  derrota  de.Innibo  vem  esta  gente  mais 
abrigada  dos  assaltos  da  soldadesca  ;  caem  porém  nas 
garras  de  milhafres  não  menos  devoradores  que  se 
chamam  liscaes  daifandeíja.  —  De  Sirinagor,  capi- 
tal de  Cachemira,  até  Lacknau,  cidade  populosa, 
situada  entre  o  Ganges  e  o  Gogra,  ha  trinta  esta- 
ções, em  cida  uma  das  quaes  as  fazendas  estão  sub- 
tnettidas  a  taxas  arbitrarias,  que  no  dizer  do  viajan- 
te Forster  chegam  ás  vezes  a  três  cquatro  porcento. 
£stas  exacções  exorbitantes,  junetas  ás  despezas  de 
longo  e  penoso  transporte,  augmentauí  prodigiosa- 
niente  o  preço  do  género  nas  regiões  inferiores  da 
índia,  e  fazem  mui  caros  os  chalés  antes  que  deSur- 
rate  ou  de  Calcutá  wiihain  para  a  Europa.  U^aqui 
a  raridade  dos  legitiinos  chalés  de  Cacliemira,  sup- 
pridos  nos  mercados  europeus  pelo  fabrico  adulterinu 
da  França.  —  Não  acontece  assim  para  a  parte  de 
oeste  de  ('achemira,  por  onde  a  exportação  foi  sem- 
pre considerável,  pois  que  os  povos  inusulmanos  da 
Asia  Occidental  ficam  gerahnentc  ircjta  dircc^.úOj  e 


ahi  os  chalés  teem  grande  valor  e  servem  ainda  mais 
para  turbantes  e  cintas  de  homens  do  que  para  ador- 
no de  mulheres.  —  A  Africa,  onde  os  costumes  teem 
tamanha  analogia  com  os  asiáticos,  provê-se  dos  cha- 
lés por  via  de  Meca:  na  epocha  da  chegada  daí  ca- 
ravanas, a  afluência  dos  mercadores  e  dos  curiosos  e 
dos  devotos  é  tão  considerável  que  a  cidade  saocta 
do  islamismo  toma  o  aspecto  de  uraa  grande  feira. 
As  que  procedem  da  Asia  vêem  carregadas  dasmai» 
preciosas  fazendas  d'esta  rica  região  :  especiaria»  de 
Cevlão,  do  .Malabar  e  das  Molucas,  cassas  de  Ben- 
gala, estofos  do  Decan,  chalé»  de  Caehemira.  tudo 
alli  se  acha,  e  tudo  é  objecto  de  commercio  impor- 
tante. Depois,  uma  parte  d'esfas  mercadorias,  em- 
barcada em  Jidá,  porto  da  Meca,  sobe  pelo  golpho 
arábico  até  Suez,  e  d"alli  é  levada  ao  Cairo  em  ca- 
mellos  :  outra  parte  é  transportada  pelas  caravanas 
que  da  Meca  voltam  para  Alepo  ou  Damasco,  ou  p;^ 
ra  Tripoli,  Tunes,  Alger,  Fei,  e  o  interior  da  Afri- 
ca musulmaua. 

Muitos  chalés  das  fabricas  de  Cachemira  partem 
de  1'eichour  pelo  noroeste,  para  o  consumo  particu- 
lar da  Furopa  :  atravessam  o  Afghanistan,  a  Pérsia, 
e  o  Cáucaso,  para  chegar  a  Macariefl'.  —  Moscow, 
cidade  das  mais  próximas  á  .\sia,  e  de  certo  modo 
muito  asiática,  está  sempre  bem  proiida  d"elles,  e 
ahi  vão  negociantes  francezes  fazer  as  suas  compras, 
como  vão  aos  leilões  da  Companhia  das  índias  em 
Londres,  e  também  a  Constantinopola.  Quando  suc- 
cedeu  o  incêndio  de  Moscow,  prodigiosa  quantidade 
de  chalés  de  Cachemira  foi  devorada  pelas  chammas 
no  Kremlin  nas  esplendidas  lojas  do  Kitai-Gorod, 
ou  cidade  chineza.  —  Talvez  que  alguém  goste  de 
saber  como  a  antiga  capital  da  Rússia  veio  a  ser 
uma  grande  escala  para  este  género. 

Na  margem  direita  do  Volga,  defronte  de  Lisko- 
vo,  ha  uma  aldeia,  na  apparencia  a  mais  mesquinha 
do  mundo;  chama  se  Macarieff,  do  nome  de^.  Ma- 
cário, padroeiro  do  logar.  Esth  aldeia  fez-se  celebre 
pela  feira  que  alli  ha  annualmente  no  mez  dejulho. 
ou,  para  melhor  dizer,  que  alli  havia;  porque  não 
ha  muitos  annos  foi  transferida  para  Nisnei-No»oro- 
god,  por  causa  da  pequenez  do  precedente  local. — 
A  feira,  assim  mudada  a  distancia  de  alírumas  mi- 
lhas, ficou  sempre  sob  a  protecção  de  S.  Macário,  é 
feita  no  dia  da  festa  do  patrono,  e  conserva  e  prova- 
velmente conservará  o  seu  nome  ate  a  consummação 
dos  séculos.  Não  ha  pílavras  para  encarecer  o  como 
uma  pobre  feira,  em  sua  origem  limitada  a  bolos  e 
frandulagens,  veio  a  chamar  tamanha  concorrência, 
que  em  sua  comparação  as  maiores  e  mais  conheci- 
das são  reuniões  insi;niticanfes.  —  ^  crdade  e  que  a 
sua  situação  sobre  o  Volça,  quasi  ao  meio  do  curso 
d'e5te  caudaloso  rio,  no  centro  do  império  russiano. 
entre  a  Europa  e  a  Asia,  a  distancia  isual  do  norte 
e  do  sul,  offerecia  muitas  probabilidades  de  grande 
vantagem,  favorecidas  também  pela  estação  em  que 
a  feira  se  ajuncta,  e  que  pcrmitte  aos  concorrentes, 
ainda  que  sejam  das  regiões  msis  remotas,  recolhe- 
rem-se  a  seus  lares  antes  das  invernadas.  —  Ahi  se 
acham  misturados  rutsianos  de  todas  as  provindas, 
tártaros  de  todas  as  Iribus,  uma  inlinidade  de  na- 
ções, cujos  nomes  bárbaros  espantariam  os  leitores; 
ahi  acodem  çregos.  arménios,  persas,  Índios  de  As- 
traoan,  p<il,ioos.  allemães,  franceies,  etc. — Faz  ad- 
mirar que  os  iii<;leies,  que  apparecem  aos  milhares 
onde  cheira  a  negocio,  eque  os  americanos,  que  cora 
elles  correm  parelhas,  alli  se  achem  em  diminuto 
numero,  e  os  poucos  que  vêem,  só  como  curiosos.  Se- 
ria curioso  o  quadro  d"esfa  feira,  por  certo  a  mai^ 
notável:  limitar-nos-hemos,  porom  ao  que  dii  res- 
peito á  nossa  epigraphe  — os  chalé»  de  Cachemira  — 


o   PAWORAMA. 


215 


esse   fim    recorreremos  a   teítiuiunha   ocular,  i  clima  no  período  secundário,   e  os  botânicos  teem  re- 


e  para 

Mr.  Rehmon,  cirurgião  do  imperador  Alexandre. 

(  G/niinúa . ) 


BoSaVB    rBTKIFlCADO    CE   PORTLASD. 

Na  ilha  de  Portland,  ao  pé  da  costa  d^Inglaterra, 
líiicontra-se  um  dus  mais  curiosos  monumentos  das 
revoluções  do  globo  e  da  tranqiiillidade  com  que  al- 
gumas d'elias  se  efleituaram.  E  um  bosque  da  mun- 
do antigo,  cujas  arvores  ainda  se  conservam  no  seu 
jogar   coni    todas   as  raiies  cravadas  no  solo   em  que 


conhecido,  entre  os  restos  descobertos  até  hoje,  trin- 
ta e  nove  espécies  diffVrentes.  Uma  propriedade  mui 
notável  que  teem  estas  plantas  é  a  de  formarem  a 
transição  entre  as  palmeiras,  a  que  se  chegam  pela 
forma  da  insersão  das  suas  folhas  e  pela  parecença  de 
toda  a  sua  configuração  externa,  entre  as  coniferas, 
que  na  estructiira  inferna  teem  certos  caracteres  aná- 
logos, e  finalmente  entre  os  fetos,  cujas  folhas  do 
mesmo  modo  se  desenrolam   dos  gomos. 

Esta  prova  tão  manifesta  da  mudança  que  teve  o 
clima  das  regiões  em  que  vivemos,  antes  da  terra 
ser  habitada  t)fl<.s  homens,  não  é  o  único  motivo  que 
recommenda    o    bosque    de    Portland    á  attenção  dos 


outr^ora  vegetaram.    Petrificou-o  a  acção  das   aguas 

que  vieram  inunda-lo  em  epocha  remota  \   mas  cbc- 

"OU    até   os    nossos  dias  tão  bem  conservado,    que  se  j  pensadores.    í)s  troncos  de  que  falíamos,  que  appre- 

prcsta  ao»  estudos  dos  botânicos  como  os  nossos  bos-    sentam  tão  perfeita  analogia   assim    por  fora  como  por 


[ues  actuaes. 

O  solo  vegetal,  que  tem  doie  a  dezoito  pollegadas 
<ie  espessura,  descança  n'nma  base  de  rocha  calcarea  ,• 
t:  de  côr  negra  ou  pardo  escura,  e  contém  grande  por- 
ção de  matéria  vegetal  decomposta,  como  a  que  tam- 
bém hoje  se  encontra  nos  nossos  bosques:  consta  de 
;irgila  mislur.ida  com  seixo».  Aá  arvores  espalhadas 
sobre  esta  camada,  á  qual  estão  prezas  pelas  raizes, 
que  chegam  a  i-ntrar  algumas  vezes  pelo  fundo  da  ro- 
cha, distam  uma»  das  outras  o  espaço  que  de  ordiná- 
rio se  guarda  entre  as  de  uma  bem  disposta  matla. 
W-uasi  todas  estão  partidas  na  altura  de  um  até  três 
pés  i  todavia  algumas  ha  que  chegam  a  seis  pés,  e 
mais.  (Js  troços  dos  troncos  partidos  estão  espalhados 
pelo  solo  e  n'elle  mais  ou  menos  enterrados.  E  raro 
passarem  esti.s  fragmentos  de  tre»  a  (juatro  pés  ^  mas 
unindo  topo  com  topo  as  porções  correspondentes,  tor- 
na-se  a  formar  troncos  inteiros  de  vinte  e  cinco  a  trin- 
ta pés  de  comprimento  antes  da  primeira  ramitica- 
ção.  Analisados  attentamente  os  caracteres  exteriores 
e  a  estructura  interna  d'estes  troncos,  conhecese  que 
pertenceram  a  arvores  [)onco  ditlerentes  dos  [linhci- 
ros  araucárias,  que  só  medram  hoje  no  hemisphorio 
austral,  cm  clima  mais  quente  que  o  nosso  :,  ma»  a  ar- 
vores d'uma  espécie  particular,  que  já  não  seencon 
tra  entre  os  vegetaes  que  vivem  no  nosso  globo.  Ao 
pé  doestas  grandes  arvore»  se  vêem  troncos  muito  mais 
curtos  e  de  natureza  em  tudo  dillerenfe.  Se  não  co- 
nhecêssemos a  l"'lora  <le  paizes  longínquos,  admirar- 
nos-hia  a  fornia  d'i'stiis  plantas,  que  semelham,  no 
neu  todo,  a  uma  alcachofra  ou  ananaz.  Mas  conipa 
randose  com  os  tron<(js  da»  plantas  da  familía  das 
c^cadeas,  cessa  toda  a  incerteza  a  respeito  da  analo- 
gia que  Icem  com  cilas  ^  analogia  que  se  dá  não  só 
na  configuração  i^xtcriia,  m.is  no  modo  por  <|iie  nas- 
cem o»  gomos  irentre  as  escama»  qii,i  as  folhas  caída» 
deixaram  na  supcrficic  dos  tronco»,  e  na  estructura 
interna  d^cstis,  i|ui'  apprcsenta,  como  nas  e^cadeas 
actuaes,  um  circulo  de  fibras  lenhosa»  convergente», 
comprehendido  cntri-  duas  massa»  de  ti'cido  ccllular. 
Por  tanto  nenhuma  duvida  resta  de  (pie  este  é  um 
busque  antigo  di?  vrgclacs  mai»  ou  menos  análogo» 
aos  nossos  piídieiros  araucária»,  e  ás  nossas  cyca». 

A  familia  ilas  c^ca»  c  intere»sal\le  pela  parte  «jue 
teve  no  desenvol\  inicnto  da  vegetação  domuniloan- 
tigo.  Hoje  só  dois  gencr(i»  ii  repri'sentam  no  globo  : 
n  género  ziiniia,  e  o  gi'nrro  cycaa    propriamente  dic 


dentro  com  as  plantas  das  mesma»  famílias  do  mun- 
do actual,  não  teem  uma  só  parcella  de  substancia 
vegetal,  mas  estão  completamente  mudados,  nãoeiíl 
carvão  de  pedra,  mas  em  pedra.  A  sua  substancia  é 
uma  pederneira  mais  ou  menos  escura,  mas  translú- 
cida quanto  basta  para  deixar  vèr  todas  as  fibrasdu 
antigo  vegetal,  que  se  distinguem  pelas  gradaçõesda 
côr.  Molécula  por  molécula,  estes  troncos  de  arvores 
foram  realmente  desapparecendo  á  medida  que  pas- 
sava a  substitui-las  uma  matéria  silicosa,  a  qual  pou- 
co a  pouco  se  lhe  introduziu  nos  poros.  E'  este  nin 
do»  mais  bellos  exemplos  de  petrificação  que  se  pos- 
sa citar,  tanto  pela  perfeição  dos  resultados  como  pe- 
la grande  quantidade  d'elles. 

Mas  este  bosque  torna-se  principalmente  recom- 
mendavel  pelas  rellexões  que  inspira  acerca  da  va- 
riabilidade da  superficie  da  terra.  Pelos  mais  irre- 
fragaveis  testimunhos  attesta  a  variabilidade  dos  cli- 
mas e  da  geographia.  (^om  efleito,  por  ser  formado 
o  fundo  da  rocha,  em  que  elle  assenta,  de  substancia 
calcarea  marinha  e  de  conchas  do  mar,  deve-se  con- 
cluir que  antes  do  período  a  que  remonta  a  vegeta- 
ção d'estas  arvores,  estava  debaixo  das  aguas  domar 
esta  parte  do  solo  d'Inglaterra.  Km  certa  epocha  se 
alevantou  este  fundo  do  mar  ;  nVdle  se  depositou  uma 
camada  de  terra  argilosa  misturada  com  seixos,  com 
muita  verosimilhança  pelo  clleito  dos  rios  que  derra- 
mavam as  suas  aguas  lodosa»  n"este  baixo.  Por  fim 
o  alteamento  completou-se  e  a  terra  sobrepujou  o  ní- 
vel do  mari  n^ella  se  espalharam  sementes,  e  germi- 
naram, e  deram  vida  a  arvores  altaneiras,  cuja  ida- 
de é  fácil  de  medir  pelo  numero  das  suas  camadas 
lenhosas.  (íerações  de  arvores  scnielhantcs  succederani 
a  outra»  gerações  segundo  toda»  as  probabili<lades. 
Além  (Tisso  póde-se  vèr  em  alguns  pontos  que  o  ter- 
reno sollVcu  por  muitas  vezes  pequenas  oscilações,  por 
que  se  observam  três  camada»  de  terra  vegetal,  com 
tronco»  de  cycadeas  sejiarados  uns  dos  o\itros  por  ca- 
madas de  sedimentos  marinhos.  Mas  este  idtinio  phe- 
nomeno  não  leve  logar  senão  em  espaços  comparati- 
vamente r<!slriclos,  e,  segundo  se  póilc  crer,  sobre 
pontos  que  pertenciam  ao  antigo  litloral,  c  que  o  me- 
nor nn)vimento  bastava  para  põr  acima  ou  abaixo 
do  mar. 

Depois  de  ter  estado  fiíra  das  aguas  certo  espaço 
de  tcm|)i>,  esto  paiz  selvático  tornou  a  entrar  n"ella». 
Com  elVeito  observa-se  qni'  o  solo  vegetal  esta  cober- 


to.  A»  principacs  localidades  onde  »e  top.iui  este»  sin-     lo    até  uma  certa  idiura   por  um    deposito  de  mame 


;;ulare»  vcgctacs   são  a  America    meridional,    o  cabo 
de  ])oa-Espcr:inça,  IMaihigasear,  a»  Índias,  iis  Mol 


ou  marga  ciinleiído  conehn»  d'agua  doce.   Houve  por 
taiilo    um  tempo    em  <|ue  o  bosi|ue,    invadido    peia» 


ena,  c  n  Novíi- llollanda  :,  lambem  se  eni'onlram  fora  agua»,  ficou  formado  o  fundo  de  um  lago  situado 
do  hemispherio  austral,  na  ('hina  o  no  Japão.  Anti-  I  na  foz  d'alguni  grande  rio.  Esta»  iigua»  doce»,  ao  pas- 
gamtnle,  conio  se  vA  por  este  exemploe  onlru»  mui-  «o  <]ue  nutriam  a»  concha»  cujo»  resto»  se  vêem  por 
'oSj  rrcsciani  em  copni  estes  vegelac»  sob  o  ccu  da  ('ima  do»  trcuicos,  depunham  a»  tolha»  de  inarne  cnl- 
Europa.  Acham-se  com  elleito  numeroso»  vesligio»  caroo  e  »ilicoso  que  ciMittitueiii  o|lorro  lio  l«go.<"on- 
dVdlcs  nus  (lepusitus  furmudu»  nu  território  do  nosso  |«idi>remus   o  bosque  iruinu    inundação   permanente, 


216 


O  PANORAMA. 


«m  coniequencia  d'um  abatimento  geral  do  solo  :  as 
arvores  pererem  em  breve  tempo  ,  a  parte  dos  seuí 
troncos  que  ticoii  fora  d'agua  apodrece  pouco  a  pou- 
co e  vai  caindo  em  fragmentos  dentro  do  lago,  e  se 
enterra  iim  pouco  no  solo  amollecidu.  Uo  amolleci- 
mento  do  solo  do  bosque  acham-se  claros  vestígios. 
A'  roda  de  certos  troncos  está  a  terra  levantada  em 
montinhos  redondos,  como  aconteceria  a  arvores  plan- 
tadas em  terra  molle  se  acaso  lhes  abalassem  os  tron- 
cos para  todos  os  lados.  Este  abalo  produziram-n'o 
naturalmente  os  ventos,  no  bosque  de  Portiand,  quan- 
do as  suas  arvores  ainda  estavam  fora  de  agua.  Koi 
então  sem  duvida  que  se  fez  a  petrilicação  ou  trans- 
formação em  matéria  silicosa,  devida  á  natureza  das 
aguas  em  que  as  arvores  estavam  mergulhadas,  e 
que  deixavam  depósitos  de  marne  silicoso. 

iVIas  não  pára  aqui  :  o  solo  continua  a  abaixar,  as 
conchas  d'agua  doce  desapparecem  ;  osdepositos  mu- 
dam de  natureza  e  encliem-se  de  conchas  mariílhas. 
Desceu  por  tanio  o  lago  e  o  mar  invadiu-o.  O  aba- 
timento cresce,  e  as  camadas  semeadas  de  conchas 
inarinlias  se  vão  sobrepondo,  e  chegam  a  ter,  não 
qualquer  pequena  altura.  Ires  mil  palmos,  para  mais, 
de  espessura,  líaixou  pois  esta  região  toda  inteira 
mais  de  três  mil  palmos  ao  fundo  do  mar,  e  lá  jazeu 
O  tempo  que  é  fácil  imaginar  á  vista  dos  depósitos. 
K  hoje  está  o  vcu  levantado!  Parte  dos  terrenos  co- 
bertos pelos  bosque  desentulharani-n'a  as  correntes  ^ 
resurgiu  do  abvsmo,  e  patenteia  o  segredo  das  revo- 
luções pasmosas  do  mundo  antigo.  E  lacil  de  conce- 
ber que  este  terreno  sollrcu  muitas  deslocações,  e 
não  se  alteou  de  uma  só  vez:  ineontestavelfiiento  o 
prova  a  inclinação  parallela  das  arvores  e  perpendi- 
cular ao  solo,  posto  que  fora  da  linha  vertical,  de 
que  não  se  desviariam  a  ter  elle  i)rinntivanH'nte  a 
inclinação  que  hoje  tem. 

Qual  era  a  extensão  exacta  d\'ste  antigo  paiz .' 
Formava  verosimilmente  unia  ilha;  mas  é  muito 
diflicil  marcar-liie  os  liniitos,  em  razão  dos  terrenos 
que  se  lhe  soliri^pozeram,  e  que  não  deixam  chegar 
ao  solo  primitivo  senão  em  alguns  pontos.  Ciuntuilo 
recoiibecerani-so  vestijios  (l'elle,  não  só  na  ilha  de 
Portiand,  mas  na  costa  d'lnglaterra,  e  até  na  Fran- 
ça nas  visiiihanças  de  Boulos;ne.  O  phenomeno,  po- 
rém, abr.inge  um  espaço  de  valor  medíocre  em  com- 
paração com  a  siiperticie  total  da  terra;  e  pôde -se 
até  dizer  que  ainda  estão  acontecendo  outros  análo- 
gos, por(]ue,  dejiois  do  tremores  de  terra  são  muitas 
vezes  submergidas  grandes  porções  de  terreno  próximas 
do  mar.  e  outras  vezes,  pelo  contrario,  alteam-se  os 
fundos  do  mar  e  cobrenisc  em  lireve  de  vegetaes. 


CoNOKLAÍ^Õl-S    NA'»    (IKl  IAS. 

As  AOtiAS  que  contém  earlioií.ito  calcareo  em  disso- 
lução o  depositam  quando  expostas  ao  ar  eseevapo- 
ram  ;  por  isso,  (juaiRlo  su.im  ila  abobada  de  onía  ca- 
verna, formam  certas  massas  peiídenles,  como  cara- 
mellos,  qno  se  cliamam  slalactilts  :  ([uando  pelocon- 
trario  são  tão  abundantes  que  as  gotas  caem  no  chão, 
a  matéria  calcarea  se  agi.;loniera  em  p\rauiiil<'s  que 
teeiíi  o  nomo  de  slala'litiUs.  \  pedra  assim  lorinada 
por  deposito  tem  o  nome  :;eral  de  n/ofcas/io,  sobre 
tudo  quando  conserva  mei.i  transparência.  A  pedra 
da  niesina  denominação,  que  deu  logar  ao  adagio 
uhranco  cmno  alahnstio>i  é  de  outra  casta,  do  natu- 
reza gessoza  e  notável  pela  alvura.  K.slas  con5;elações 
por  particularidades  de  formas,  teem  dado  celebrida- 
de a  algumas  cavernas. 

F.m  a  serra  de  .\Knibcrta<.    em  a  no«sa    proviíicia 


da  Estremadura,  termo  da  villa  d' Alcanede,  ha  uma 

gruta  ou  concavidade  com  a  tHjcea  para  o  sul,  a  qual 
se  estende  pela  serra  dentro  um  grande  espaço.  O  pa- 
dre Cardozo  refere  o  seguinte:  —  >.No  roeio  d"esia 
gruta  esta  uma  penha  como  parede,  á  qual  5obe-*e 
por  escada  de  mão,  e  passando  para  a  outra  parte ae 
coiitiniia  a  mesma  concavidade  outro  tanto.  Por  to- 
da esta  gruta  com  as  chuvas  do  inverno  cae  alguma 
agua  coada  por  entre  as  penhas  da  mesma  serra,  e 
quando  chega  ao  concavo  da  lapa  vai  tão  fria  que  se 
congela  pelas  paredes  da  mesma  lapa  e  em  outros  pe- 
nedos d'ella,  e  fica  em  bicos  e  castellinhos  mui  ga- 
lantes e  formosos;  e  se  esta  agua  vein  pura  por  en- 
tre as  penhas  e  se  congela  sobre  oulr.is  pedras  lim- 
pas, fica  mui  branca  e  christallina  ;  porém  se  pasta 
por  alguma  terra  ou  se  congela  sobre  terra,  fica  côr 
da  mesma,  que  é  entre  vermelho  e  pardo;  e  estas 
são  as  mais  que  se  acham,  e  ainda  que  na  cór  não 
são  tão  vistosas,  os  castellinhos  são  mui  galantes,  e 
cortados  em  pedaços  com  a  pedra  em  que  se  congela- 
ram servem  para  embrechados  ;  d'estas  pedras  é  fei- 
to em  grande  parte  um  curioso  embrecliado  que  te- 
mos no  noviciado  d'eata  Congregação  do  Oratoriode 
Lisboa,  servindo  os  castellinhos  para  formar  as  gru- 
tas de  seis  grutas  ein  que  estão  alguns  sanctos  ana- 
choretas  :  e  a  mais  pedra  quadrada,  cortada  em  bo- 
cadinhos, serve  de  fazer  columnas  salomonicas,  me- 
tas, festões,  brutescos,  vasos  de  llôreí,  repreias  e  ou- 
tras galanterias,  obradas  com  grande  engenho  e  ar- 
te. Também  em  algumas  partes  d'esta  sprra  ha  uns 
bancos  de  pedra,  qne  por  si  se  partem  em  pedaços, 
ou  talhadas  quadradas,  á  feição  de  azulejos  ou  tijo- 
los, uns  mais  grossos  e  outros  ni.-»is  delgados,  uns 
mais  compridos  e  outros  menos,  e  são  mni  brancas e 
claras,  e  quando  lhes  dá  u  sol  em  chapa  lançam  uns 
rellexos  como  se  fossem  espelhos,  tem  alguma  seme- 
lhança na  alvura  com  o  christal.  Todas  estas  se  acham 
á  llòr  da  terra,  e  se  conhecem  ao  longe  pelo  resplen- 
dor e  raios  que  de  si  lançam.  São  mui  buscadas  para 
matizar  os  embrechados,  que  lhes  dão  especial  graça 
e  galanteria. 


.'VdUAULS    UOS    MOIKOS. 

Os  NOSSOS  historiadores  que  escreveram  das  cousas 
d' Africa  faliam  muitas  vezes  em  aJuaics.  Eis-aqui 
como  os  descreve  concisamente  D.  Agostinho  Manuel 
e  \asconcellos  na  fiila  de  D.  Jiuarlc  Jc  ^Iciuzts, 
3.'^  conde  de  l  iatiua,  escripta.em  liespanhol. 

iiOs  aduares  são  umas  povoações  de  cem  nu  duien- 
tas  barracas  dispostas  em  roda,  que  fatem  um  âmbi- 
to redondo,  onde  os  alarves  recolhem  os  seus  gados  á 
noite.  i>ão  de  còr  de  burel  neíro,  feitos  de  lã  ile  pel- 
lo  de  cal>ra>e  de  folhas  de  p.ilmeira,  tod.is  entrança- 
das e  tecidas,  que  rormam  um  paiino  grossoe  muito 
tezo  para  resistir  á  fúria  do  sol  e  da  agua  ;  estão  as- 
sentadas tão  junctas  ninas  ao  pé  das  outra",  que  for- 
mam um  muro  ao  redor,  e  não  se  pode  entrar  n  elles 
senão  por  duas  portas,  c  estas  fecham  n"as  á  noite 
com  estrepes,  para  qne  os  leões  não  entrem  a  faier 
damno.  Em  árabe  querem  diíer  circulo  cu  cousa  redon- 
da :  nsavam-n'os  antigamente  do  me«ino  modo  que 
os  usam  agora  os  bárbaros  africanos.  Ha  auitor  que 
alrtrma  que  d'esla  forma  eram  os  tabernáculos  e  ten- 
d.ns  dos  ismaelitas  ccdarenos,  negros  ahureiados,  con- 
forinando-se  ao  uso  da  .Vrabia,  da  mesma  cór  e  mo- 
do, mui  conformo  ao  nome  do  Cedar.  que  é  obscuri- 
dade e  trevas.  Com  a  invasão  dos  árabes  ve  introdu- 
ziram em  .'Vfrira.  \  ivem  nos  campos  e  serras,  seguin - 
do  os  pastos  melhores  para  os  seus  gados,  que  é  de 
que  se  sustentam  e  subsistem. 


28 


o  PA]\ORA3IA. 


^17 


o  CASV2:i.I.O  Dx:  bouchout. 


Nas  visinhanças  de  liruxuUas,  porto  da  deleitosa  ca ' 
sa  de  campo  dí;  Lackcti,  (|uo  c(jsliimaiii  haliitar  du- 
raiití!  o  Ixjiii  toinpo  o  ri4  c  a  rainha  dos  l)('l;;as,  avut- 
1a  iiin  «.'aslfllo  de  aspcelo  iiílciraiiitMiU'  tiudal  :  as 
suas  torres,  <iito  vezes  ceiíltr.raias,  suricein,  branquea- 
das e  majestosas,  dViitre  a  verde  alcalila  de  uma 
grande  taj)ada  :  r|iii-ni  se  aviainlia  d"es(a  fortaleza 
antiga,  a  vê  espi>lliar-se  ii'um  forniusu  e  pcipieno 
lago  quR  llie  baidia  os  alieerees.  —  K  o  eaaloUo  de 
iiuucliout. 

I. 

-■/  líiulti  ilii  fiiiiduilor . 

(•  eastillo  de  liuuclioul  foi  edificado  pidos  aniios 
ile  1121)  p<ir  (iddofrcdo  ii  liailiuilo,  duipiede  Lotliior, 

'.'Stado  <| ■íiinpreliiiudia  grande  parte   tia  Jiorenit  e 

de  lodo  o  iiraliaute.  A  lriidi(;ão  e  as  lendas  apossu- 
runi-su  triste  ptírsiuiageni,  e  o  fizeram  lieroe  de  umn 
dVssus  e|)opeas  ipie  se  coiitum  ha  t>ito  sei-ulos,  aos 
serões  juiielo  á  lareira,  e  de  ijue  apenas  lia  eseriptos 
alguns  eslio(;i)s,  ainda  inesino  nos  thesouros  nianu- 
striplds  tias  liililiotlieeas. 

Sei^uiiilo  ifflsas  Iradiíji")!»,  (jiodofredt)  o  liarliudo,  or- 
phão  em  tenra  idade,  espoliado  do»  duininios  paler- 
Voi..  1._Maiií;o  -M,   1847. 


nos,  não  conservara  do  illustre  sangue  de  Carlos  Ma- 
gno, lie  fpiem  descendia,  seniio  corayão  nobre,  gran- 
de valor,  perseverança  a  toda  a  prova,  e  o  seu  con- 
dado de  Jjovaina,  tjue  era  a  uiiiea  cidade  tio  Lothier 
rpie  não  atrai<;oára  a  causa  ilo  fillio  de  seu  senhor. — 
Huaiido  Goilofredo  chegou  A  idade  de  tlezeseisaiinos, 
I'  t)  pi.'llo  macio  e  louro  começou  a  ilourar-lhe  a  har- 
lia,  congregou  em  presemja  de  sua  mãi  os  seus  vas- 
sallos  prineipaes  na  igreja  de  Ijovaina.  ('íicgado  o 
monienlo  ilc  lt.'\aiilar  a  hóstia,  o  príncipe  maneelio 
dfsiniliaiiihou  a  cspatla  do  pai,  tjue  cingira  pela  pri- 
meira vez,  e  a  poz  solire  o  aliar;  e  ilepuis,  apontan- 
do para  a  sagratla  fornia,   e\eLiiiiou  : 

—  .i  Telo  sangue  do  llcdeniptor  u  pela  memoria 
til'  meu  nolirt!  pai,  juro  trazer  nua  li  cinta  esta  es- 
pada, è  não  pòr  navalha  no  rosiu  em  ipuinto  não  en- 
trar na  posse  di;  lodos  os  dominitis  dos  meus  antepas- 
sailos.  .  .  A  franile  e  a  \iuleneia  m'os  rouliiirain 
t|U.iinlii  era  aiiula  muito  ereança  para  ilefentlel-o» 
Afccilem  Deus  e  os  sanetos  ti  meu  jiirainenlo,  prt>- 
ti'{aiii'iiji'  par.i  ciiinpril-o,  t-  casligucm-me  se  falt.ir 
a  ".lie.  " 

iNa  *oz  e  gesto  tie  (iodofretln  niaiiili-ta\  a-se  tanta 
riisolução  e  nuducia,  tjiie  todos  os  testiinuiilias  tlu 
acto  arrane.iruill  tumbt;m  tias  espadas  e  cluinarauí 


218 


O  PANORAMA. 


—  "  Sim  !  Sim  !  Derramaremos  até  a  ultima  gota 
de  sangue,  e  daremos  até  a  ultima  moeda  para  ser- 
virmos em  tão  justo  empenho.  " 

—  íi  Não  permitia  Deus,  meus  senhores  e  meus  di- 
gnos burguozes,  que  eu  arrisque  o  vosso  sangue  de 
tanto  pre<;o,  equc  despeje  as  vossas  bokas  que  tanto 
vos  tem  custado  í  encher.  Sósinho,  sem  mais  auxi- 
lio que  a  protecção  divina,  quero  recobrar  meus  di- 
reitos e  ganhar  ainda  mais  amplos.  Se  eu  perecer, 
ao  menos  não  arrastarei  ninguém  com  a  minha  rui- 
na .  .  .  Mas  não  succumbirei,  ajunctou  logo,  porque 
uma  voz  celestial,  que  ouvi  em  sonhos,  me  inspirou 
esta  resolução  e  me  promette  feliz  successo." 

Tomou  de  novo  a  espada,  nua  a  poz  á  cinta,  e 
ajoelhou  para  se  continuar  o  sacrifício  da  missa.  Ao 
vê-lo  rezar  com  fervor,  scntiram-sc  todos  repassados 
de  coniiança  na  empreza  do  conde  manccljo,  tanto 
mais  que  do  momento  de  se  aproximar  elle  á  mesa 
da  comnmnhão,  brilhou  um  grande  clarão  na  igreja, 
e  uma  voz,  suave  como  a  de  um  anjo,  e  que  por 
certo  não  era  de  outrem,  saiu  do  sanctuario,  e  can- 
tou distinctamente  :  —  Adjidornim  nvttrum  innomi- 
nc  Domini.  —  Apenas  pronunciou  o  nome  divino, 
estalaram  trovões  com  violência;  o  castello  desvane- 
ceu-se  como  fumo  ;  e  Godofredo  achou-se  n'um  cimi- 
terio  solitário,  ao  pé  do  seu  escudeiro  que  rezava  de 
contas  na  mão.  O  mancebo  poz-se  também  a  orar, 
porque  percebeu  que  acabava  de  escapar  ás  insidias 
do  espirito  maligno ;  e  seguiu  jornada  afim  de  en- 
contrar o  imperador. 

Não  bastariam  dez  dias  com  dez  noites  para  enu- 
merar todas  as  provas  por  que  passou  Godofredo  no 
espaço  de  seis  niezes  que  decorreram  até  chegar  ao 
termo  da  sua  viagem  ■,  desconcertou,  pela  sua  pieda- 
de e  valor  <?  pelos  conselhos  do  seu  escudeiro,  todos 
os  enredos  do  demónio ;  soccorreu  oppriniidos,  prote- 
geu orphãos,  venceu  gigantes  e  monstros,  e  tão  bem 
andou  que  por  toda  a  parte  eram  admirados  o  seu 
nome  e valentia.  Afama  de  tantas  proezas  lhe  devia 
servir  de  muito  para  com  o  imperador,  que  não  po- 
dia ignora-las,  pois  que  tão  estrondosas  c  illustres  el- 
las  eram  •,  porém,  antes  de  apparecer  ao  seu  sobera- 
no, largou  as  armas  com  brazòes,  por  conselho  do  es- 
cudeiro, para  vestir  outras  que  só  tinham  por  sim- 
ples divisa  uma  cruz  singela  com  este  moto  :  Deus 
seja  cm  minha  ajuda!  A  minha  cansa  i  boa.  Estava 
o  imperador  então  mui  triste  e  embaraçado-,  rebel- 
lára-se  seu  filho  e  acarretara  á  traição  a  maior  parte 
dos  senhores  vassallos  de  seu  pai:  havia,  sobretudo, 
entre  ellcs  um  prejiiro,  por  iiome  Henrique  deLim- 
burgo,  que  nuiito  contriliuíra  para  o  fiUio  conspirar 
contra  o  pai,  e  que  dava  conselhos  scelcrados  e  funestos. 
Assim  (|ue  Godofredo  o  iiarbudo  avistou  o  acam- 
pamento do  imperador,  metteu  d\'sporas  ao  eavallo 
a  fim  de  chegar  nuiis  depressa,  e  voltou-se  para  ob- 
servar SC  o  escudeiro  o  seguia.  Com  grande  assombro 
seu  viu-o  todo  de  branco,  e  que  despelava  o  eavallo, 
e  tomava  Iodas  as  disposições  para  não  ir  por  diante, 
e  passar  alli  mesmo  a  noite  comnmdamente. 

—  >.  Então  não  queres  aconipanhar-me '.  E  lazes 
conta  de  não  ser  mais  meu  escudeiro,  pois  que  assim 
agora  me  al>anilonas? '> 

O  companheiro  sorriu-se  e  abanou  brandamente  a 
cabeça. 

—  II  1'enso  (pie  é  prudente  c  de  assizado  conselho 
passar  n'este  sitio  a  noite  jiara  /ananhã  comparecer- 
mos per.Tnte  o  imperador  vosso  amo.  " 

—  II  Amanhã  !  .  .  .  uinda  ijão  é  bem  noite  c  vamos 
perder  tempo  precioso  .  .  .   Avante  !  ■• 

iSe  o  senhor  j)ersistn  em  partir  já.   por   mim 

aqui  ficarei ;   si.-rá   o  senhor  ((ue  me  larga,   r  n.lo  eu 
que  o  .nbaiidono.  •< 


Godofredo,  sem  examinar  os  motivos  da  delioera- 
ção  do  escudeiro,  abnegou  a  sua  opinião  para  abra- 
çar aquella  :,  deitou-se  na  relva,  resoluto  a  esperar 
pelo  outro  dia. — Chegou  este  e ainda  o  conde  man- 
celx)  dormia  á  larga,  mas  os  echos  de  tromVjetas  e  os 
clamores  de  combatentes  o  acordaram  de  sobresalto. 
Montou  logo  e  subiu  a  uma  eminência  ;  d'alli  desco- 
briu que  as  tropas  do  imperador  estavam  ás  mão* 
com  as  do  príncipe  Henrique,  e  que  n*aquella  occa- 
sião  o  exercito  do  filho  levava  vantagem  sobre  os  sol- 
dados do  pai.  O  escudeiro,  conforme  o=.  seus  hábitos 
taciturnos,  metteu  o  eavallo  a  galope,  alcançou  o  cam- 
po da  batalha  e  entrou  na  refrega  :  escusado  é  dizer 
que  o  conde  o  seguiu.  Chegados  ambos  mudou  tudo 
de  face.  Os  dois  combatentes  levavam  a  victoria  on- 
de quer  que  acudiam  •,  nunca  se  viu  a  cavalleiros 
practicar  façanhas  como  Godofredo ;  quanto  ao  escu- 
deiro de  branco,  bastava-lhe  estender  o  dedo  n  uma 
direcção  para  se  postrarem  os  batalhões,  como  toca- 
dos por  força  invisível.  Brevemente  o  príncipe  Hen- 
rique se  pôz  em  fuga  com  a  sua  gente,  e  viu-se  com 
admiração  o  príncipe  de  Liimburgo,  que  até  alli  es- 
tivera de  observação,  afastado  sem  carregar  com  sua 
tropa,  cair  sobre  os  fugitivos,  soltando  ogritode  guer- 
ra do  imperador,  e  voltando  depois  a  frente  dos  seus 
e  trazendo  muitos  prisioneiros,  ajunctar-se  ao  mo- 
nareha.  —  Chegado  á  presença  do  seu  soberano,  pòi 
o  joelho  em  terra  e  disse : 

—  "Mostrei  atraiçoar-vos  p.ira  melhor  servir-vos  : 
dignai-vos  perdoar-me  um  fingimento  que  bastante 
me  tem  feito  padecer,  porque  me  produziu  a  vossa 
cholera  sem  que  eu  a  merecesse.  :• 

O  imperador  não  se  deixou  lograr  por  esta  menti- 
ra, e  bem  percebeu  que  o  conde  de  Limburgo  tinha 
manhosamente  esperado  que  se  decidisse  a  victoria 
para  tomar  o  partido  do  mais  forte.  Não  mostrou 
agrado  ao  Limburgo,  guardando  para  mais  tarde 
tracta-lo  como  elle  merecia.  —  No  entanto  Godofredo 
G  seu  escudeiro  estavam  confundidos  na  multidão  •- 
mas  os  olhos  do  soberano  os  distinguiam  maraxilho- 
samente. 

—  .4  Vinde  cá,  valorosos  incógnitos;  nós  vamos  de- 
liberar no  que  muito  nos  importa;  vinde  tom.ir  par- 
te no  conselho,  porque  vos  devemos  a  victoria.  ~ 

Obedeceram,  apearam-se,  centraram  na  tenda  di> 
imperador;  e  tendo  este  jiiiilido  a  cada  um  o  seu  pa- 
recer : 

—  "  A  minha  opinião,  é,  disse  o  conde  de  Limbur- 
go, que  se  persiga  o  príncipe  rebcUado  até  cair.  vivo 
ou  morto,  por  força  ou  astúcia,  nas  mãos  do  stibí-ra- 
no  que  olfcndeu.  •• 

tluantos  ouvirauj  este  voto  bateram  palmas  em 
signal  do  assentimento.  O  imperador  enxugou  uma 
lagrima,  e  vollando-se  para  Godofredo,  o  único  que 
não  applaudíra  : 

1  Vós,  senhor  eavalleiro.  qual  é  o  vosso  voto '.  - 

Senhor,  o  príncipe  Henrique  é  voss<i  (Uho ;  r 

o  filho  tem  juz  á  misoriconiia  de  seu  jwi.  Penso  que 
MTia  conveniente  en\iar-lhe  um  eavalleiro  para  lhe 
declarar  que  tendes  os  braç\>s  alvrtos  e  que  o  vossi» 
perilão  sií  espera  jk-Io  seu  arrependimento.  •• 

O  imperador,  eommovido,  abraçou  Godofredo  c 
lhe  disse  : 

— ..  C>  vosso  ivirect^r  prevaleoer.i  a  totlos,  porqiie 
foi  Deus  que  vo-lo  inspirou.  Eu  vosrncnrregx»  dcpri>- 
curar  meu  filho;  pjirti  já,  e  á  volta  nvelioreis  a  re- 
compensa que  pcdinles.  No  entanto  não  tendes  ipie 
requerer  de  mim  algum  galardão  .'  •■ 

—  i. Só  um,  rosi>ondeu  Godofredo;  jx>ro  a  vossi 
ma"estadc  o  favor  de  não  lev.nntar  a  minha  viseira 
e  de  não  diicr  meu  nome  até  a  minha  volta.-» 

— ..  Teri.i  grande  contonlamcnto  om  saber  quem 


o  PANORA3IA. 


219 


sois ;  porque  não  conto  entre  os  meus  cavalleiros  vas- 
sallo  mais  valoroso  c  mais  avisado  do  que  vós  ;  mas 
fa(;a-se  como  desejais.  ■■>  * 

Godofredo  se  poz  logo  a  caminho,  guiado  por  seu 
escudeiro ;  mas  no  espaço  de  duas  semanas  não  pou- 
de  alcançar  o  príncipe  Henrique,  taes  eram  os  obs- 
táculos de  toda  a  casta  que  lh'o  impediam  :  a  final  en- 
controu-o  ao  pé  de  Bruxellas,  quando  menos  espera- 
va c  vinha  de  volta  já  descoroçoado.  Inimediata- 
inente  lhe  fallou,  e  com  voz  respeitosa  mas  firme 
lhe  disse  : 

—  "  Senhor,  venho  da  parte  do  imperador,  vosso 
pai   <•  meu  amo,    exhortar-vos   ao  arrependimento  e 

'  trazer-vos  proposta  de  perdão.  " 

—  «Vindes  do  outro  mundo,  bradou  descortezmen- 
te  unia  voz,  que  Godofredo  reconheceu  ser  do  conde 
de  Limburgo  :  o  imperador  Henrique  III  morreu  ha 
oito  dias;  e  estais  fallando  ao  vosso  soberano,  Henri- 
que IV.  " 

As  risadas  da  assembléa,  a  estas  palavras,  descon- 
certaram algum  tanto  Godofredo ;  mas  o  novo  impe- 
rador fez  signal  que  se  calassem. 

—  u  Mancebo,  sois  bom  e  leal  súbdito  ;  desarmas- 
tes a  justa  cholera  de  meu  pai  contra  mini ;  aben- 
çoou-me,  cm  logar  de  me  amaldiçoar,  no  leito  da 
morte;  avíjséque  devo  esta  felicidade.  Dizei,  quem 
sois .' " 

O  anjo  branco  adiantou-se  antes  que  seuamosup- 
posto  fallasse. 

—  íi  Ksto  cavalleiro  é  o  senhor  conde  Godofredo  de 
Lovaina,  despojado,  em  sua  infância,  de  seus  estados 
pelo  conde  Henrique  de  Ijiniburgo.  n 

— "  Ah  !  .  .  .  acudiu  o  imperador  ;  estimo  ...  eu 
lhe  restituo  todas  as  ferras  do  liotiiier,  eosdominios 
que  lhe  roubou  um  traidor  que  enga(iou  successiva- 
mente  a  meu  pai  eamim.  Aiiiila  mais;  (h)U-llie  mi- 
nlia  irmã  cm  casamento.  l'reiidani  o  con<le  lie  Jjini- 
burgo,  osepidlem-n\j  para  sempre?  n'um  cárcere.  Go- 
ilofriMlo,  abraçai  vosso  cuidiado.  " 

—  u  Está  consumniada  a  minha  missão  ;  posso  vol- 
l.ir  para  occu"  —  bradou  o  escudeiro  l)ranco,  que 
despregou  duas  azas  de  oiro  e  desappareceu  por  en- 
tre as  nuvens,  porque  era  um  anjo  (pie  Deus  tinha 
fnviado  para  proteger  Godofredo.         (Continua.) 


Coi 


Romance  da  Vurseya. 


I*uvera,  orfiiiiu,  xitcilu, 
Seuza  cu^iiii  rariiali  !  — 
Ma  pir  liir  l,'i  li>  vciideltii, 
Stu  si„-iiru,  vii^ta  aii<  lu-  clín. 

Jjamcnt.  /itiub.  de  Niolo. 


Vil 


O  ciRunoiX»  <|ue  devia  fizir  a  autopsia  dos  dois  ca- 
dáveres tardou  muilo.  Nocaniiiiho  Iimm  apciíado  por 
(iiocanto< 'a.ilrioiíi,  camarada  di'  ilrandolaccio,  e  con- 
vidado ciini  a  maior  polidez  para  ir  curar  lua  ferielo. 
Levarani-n'o  ao  pé  ihí  Orso,  a  (pii'rn  a|qilicou  o  pri- 
meirrf  curativo,  i>  (lejiois  o  honrado  Caslriuiii  encar- 
reg(iu-.ie  (h-oeonihizir  alémiia  graii(h'  dislíuuia,  fal- 
lundo-lhe  lios  nuiis  afimados  prolesMores  de  l'i/a,  que 
eram,  dizia  elle,  ai-us  amigou  inliinos.  —  ..Doutor, 
neereseenlou  o  salleador-lheoiogo  á  dcsnedida  —  esli- 
nio-o  lauto  (pie  é  coiiveiiienlii  adverlir-llie  (|ue  o  se- 
gredo éualma  do  módico  c  do  confessor.  ••  M  ao  mes- 
mo lenqio  liiitia  no  cão  da  espingarda.  ..Já  iosube-. 


ver,  ouvir,  e  calar,  que  é  a  antiga  regra  de  bem  vi- 
ver. Adeus. 

Por  causa  d 'este  encontro  era  que  o  cirurgião  che- 
gava tarde  e  um  pouco  perturbado. 

Q-uasi  ao  pòr  do  sol  Colomba  e  miss  Lidia  saíram 
da  villa,  e  conversando  sobre  a  aventura  de  Orso. 
objecto  de  extremo  interesse  para  a  bella  ingleza, 
alongaram-se  insensivelmente  de  Pietranera.  No  fim 
de  um  quarto  de  hora  de  subida  por  montes  inore- 
mes  acharam-se  n"uma  assomada  coberta  demyrthos. 
Miss  Lidia  estava  muito  fatigada,  e  a  noite  ia  cer- 
rando. 

—  «Minha  querida  Colomba,  parece-me  que  nos 
perdemos.  I'ietranera  deve  estar  por  força  ali,  onde 
se  vêem,  aqucllas  luzes  ...■>■> 

— "  E  verdade,  respondeu  Colomba,  mas  a  dois 
passos  d^aqui .  .  .  nas  mattas  .  .  .  posso  vêr  e  abraçar 
meu  irmão  .  .  .n 

Miss  Nevil  recuou  sobresaltada. 
,  — «Mas   o  que  hão  de  dizer  de  mim,    Colomba? 
E  tão  tardo  !  .  .  .  E  Orso  o  que  pensará  !  " 

—  «Ha  de  pensar  que  os  seus  amigos  o  não  desam- 
param. j> 

—  "  E  meu  pai  .'...;■ 

— ..  Salte  que  saiu  comigo  ...  Então  I  .  .  .  Esta  ma- 
nhã viu  o  retrato  d'elle  e  á  noite  vê  o  original.  .  .  !■« 
ajunctou  com  um  sorrir  malicioso. 

Lidia  corou,  e  sem  dizer  mais  nada  fez  signal  de 
que  estava  prompta.  Colomba  apertou-liie  a  mão  e 
principiou  a  andar  com  tanta  rapidez,  que  a  sua  ami- 
ga mal  a  podia  acompanhar.  Cinco  minutos  depois, 
parando  de  repente,  a  irmã  de  Orso  disse : 

—  «Agora,  para  nos  não  expormos  a  algum  tiro, 
e  preciso  avisa-h)S.  "  E  assobiando  j)ur  entre  os  dedos 
soltou  um  silvo  longo  e  estridente,  a  que  immedia- 
tamente  responderam  os  latidos  de  um  cão.  Passados 
instantes  apparecxui  asentinella  avançada  dos  bandi- 
dos, o  nosso  conhecido  vellio  Brusco,  o  qual,  alVaiían- 
do  Colomba,  lhe  foi  servindo  de  guia. — Torcendo 
por  muitas  voltas  nas  estreitas  sendas  do  bosque,  fo- 
ram eneontrar-se  com  dois  homens  l)em  armados. 

—  "Es  tu,  Brandolaccio  ?  perguntou  Colomba. — 
E  meu  irmão  onde  está  ? » 

— Lá  em  baixo,  replicou  elle.  Mas  devagar  !  .  .  . 
Dorme.  » 

As  duas  mulheres  adiaiilarani-sc  com  cautela.  Ao 
pé  da  fogueira,  escondida  detraz  (Pum  muro  de  pe- 
dra solta,  Orso  repousava  deitado  n'um  feixe  de  pa- 
lha secca  e  i'uibuçado  no  seu  capote.  Estava  uniilo 
(lallido  e  tinha  a  respiração  alta.  Cidomba  assentou- 
se  juncto  d\lle,  c,  contemplando-o  silenciosa  v  com 
as  mãos  erguidas,  j)aiicia  extasiaila  cm  oração  men- 
tal. Lídia,  pondo  o  lenço  na  cara,  eneostou-seaohom- 
bro  da  sua  amiga,  ede  vez  em  (piando  estendia  a  cff- 
bcça  para  vêr  o  ferido.    Kinalnieule    Orso  aconlou  . 

Api'nas  elle  abriu  o  ollius,  Colomba  ih'ilou-llu'  os 
l>raços  ao  pescoço,  e,  sem  o  deixar  res|)ouiler,  profe- 
riu iiiil  pergiinlas  ternas  e  inipiietas.  Orso,  entretan- 
to, par(!cia  ter  um  só  peiisaiiH'iilo  na  cabeça.  No  meio 
dos  padi'cinicnli)S  atrozes  ipie  o  pungiam,  e  dos  re- 
ceios que  oalormentavam,  o  amor,  mais  forte,  (juei- 
inava-llie  no  coração,  e  persoguiu-o  ineessaniemeute 
de  esiieraiiças  e  duvidas;  aquellas,  tão  iloccs  que  as 
não  ousava  acreditar,  estas,  tão  cruéis  que  .sentia  es- 
morecer o  animo  se  acaso  .se  demorava  n  eomlutlt^-his. 
A  iiiiagciii  de  miss  Nevil  ap|iarcria-lhe  nas  solidões 
llo^  lii.-,i|iiis,  |Mir  entro  os  vultos  sombrios  dos  bandi- 
dos, sorrindo  meiga  de  saudade,  como  anjo  consola- 
dor, cujas  ay.as  eseondiam  as  duas  covas  saliiiiadas  de 
sangue,  onde  jaziam  os  dois  iniiiiigns  ila  sua  easji, 
Diaiile  «ressa  visão,  radiosa  di-  formosura  e  innocen- 
cia,   as  suukbras  do  remorso  desvaneciaiu-se ;   purijue 


220 


O  PAIVORA3IA. 


a  paz  da  consciência,  e  a  aventura  que  perdera  ao  pi- 
zar  a  terra  natal,  só  d''clla  as  ousava  esperar  ainda. 
Foi  por  isso  (jue  Orso  só  .achou  palavras  para  per- 
guntar a  sua  irmã  se  niiss  Liidia  ainda  eslava  em 
i'ietraiiera,  e  se  respondera  á  sua  carta.  Colomba, 
inclinada  sobre  o  rosto  do  mancebo,  occulta\a-llie  in- 
teiramente a  sua  bcUa  amiga,  que,  mesmo  sem  isto, 
a  obscuridade  da  noite,  quasi  serrada,  lhe  não  dei- 
xaria perceber. 

—  "  Não,  Orso,  replicou  Colomba  ^  iniss  Nevil  não 
jne  entregou  nenhuma  carta  .  .  .  Mas  tu  tens-lhe  mui- 
to amor?  ])ensas  n^elle  sempre?" 

E  em  uma  das  mãos  segurava  a  da  tremula  ingleza, 
e  com  a  outra  erguia  brandamente  a  face  do  ferido. 

—  "  Se  a  amo,  Colomba  !  .  .  .  amo-a  tanto,  que  não 
me  queixaria  de  morrer,  só  pela  ver  agora  um  ins- 
tante só  .  .  .  Mas  ella  .  .  .  que  mal  me  conhece,  ha  de 
desprezar-me  hoje  .  .  .   Esta  idóa  é  que  me  mata  '.  " 

Ouvindo  isto  niiss  Nevil  forcejou  para  retirar  a 
mão  d'cntro  as  de  Colomba,  mas  dcljaldc.  ('om  um 
sorriso  de  malicia  infantil  a  linda  fjlha  de  Córsega 
aprcssou-se  em  rcspoiíiler : 

—  "  Desprezar-le  cila  I  ...  se  soubesses  '.  .  .  .  Olha, 
Orso,  qucro-te  contar  muita  cousa  a  esse  respeito  .  .  .  >» 

A  mão  captiva  tornou  a  querer  fugir,  mas  a  de 
Colomba,  mais  firme,  cada  vez  a  approximava  mais 
das  de  Orso. 

—  u  Mas  por  qu(!  me  não  respondeu  ?  .  .  .  duas  li- 
nhas, uma  lettra  só  que  fosse  ;  .  . .  enganas-me.  Ella 
não,  poude  supportar  esta  terra,  partiu  já  I  .  .  .  ^' 

A  força  de  attrahir  a  mão  de  niiss  Nevil,  Colom- 
ba conseguiu  afinal  juncta-la  á  de  seu  irmão.  Então, 
afastando-se  de  repente,  ecom  uma  rizada  d'alegria, 
exclamou  : 

—  "Orso,  pedi  a  resposta  a  niiss  JAilia.:^ 
Aingleza,  vermelha  como  um  coral,  balbuciou  sons 

inintelligiveií.    Delia   Rebia   cuidava   que  tudo  isto 
<;ra  ainda  um  sonho. 

—  "Miss  Nevil,  aqui  !  como  se  atreveu?  .  .  .  Ah  I 
esta  felicidade  étjnianha.  .  .  que  ainda  duvido  d'el- 
la  .  .  .  " 

E  tentava  erguer-se  para  lhe  beijar  a  mão. 

—  "Acompanhei,  Colomba,  disse  Lidia,  não  que- 
ria que  suspeitassem  que  vinha  aqui .  .  .  e  depois  eu 
desejava  também  saber  .  .  .  Mas  que  mal  está  n'este 
ermo  !  " 

Colomba,  assenlando-sp  atraz  de  Orso  e  levanlan- 
ilo-o  com  cuidado,  encostou-lhe  a  cabeça  ao  joelho. 
Depois  passando-lhe  os  braços  á  roda  do  pescoço,  fez 
um  aceno  a  miss  Nevil  para  que  se  aproximasse. 

—  "\ani06,  mais  perlo,  mais  perto!  Não  obrigue 
o  doente  a  fallar  alto.  ti 

E  como  Lidia  hesitava,  pegou-lhe  na  mão,  cobri- 
gou-a  a  assentar,  Ião  chegada  a  Orso  cpie  o  vestido 
tocava  110  capote,  e  os  dedos  pouzavam  no  hombro 
do  mancebo. 

—  "  Agora  sim  —  estão  como  devem  estar,  disse 
(."olomba.  Então,  Orso,  não  se  passa  bem  nacharnc-- 
ca,  ii'uma  noile  d'esta5?" 

—  "Linda  noile,  que  nunca  ha  de  esquecer!'- 

—  "Mas  não  pode  licar  aqui,  insistiu  Lidia;  é,iic- 
cessario  voltar  a  l'i(?lranera.  Esta  /Icsgraçada  aven- 
tura não  lerá  consequências...  A  minha  partida, 
accrescentoii  suspirando,  espero  que  levarei  a  feliz 
certeza  <le  estar  reconhecido  o  seu  valor  e  lealdade.  >• 

—  "  Partir,  iniss  Nevil,  já  !  .  .  .  pelo  céu  não  nro 
diga  n'esta   hora  .  .  .  sou  tão  tlitoso  !  •• 

—  "  l'or  força  ha  de  ser!  meu  pai  não  ]>óde  caçar 
sempre  ...  o  talvez  o  mais  cedo  b«ja  o  melhor  para 
nós  ambos.  •' 

Orso  arrancou  um  suspiro  e  ilesc.aíu  a  calH-çn  so- 
bre o  peito.   Scguiu-se  um  momento  lie  silencio. 


—  "Nós  é  que  a  não  deixamos  partir,  acudiu  Co- 
lomba. Ainda  ha  muito  que  fazer  em  1'ietranera  .  .  . 
Mas  tjue  tem  Brusco  ? .  .  .  Abi  vem  Brandolaccio  .  .  . 
Vamos  vér  o  que  é  !  " 

E  erguendo-se,  deitou  sí;m  ceremonia  a  cabeça  de 
Orso  nocoUo  de  miss  Nevil,  e  correu  direita  ao  ban- 
dido. 

Envergonhada  de  ficar  assim  só  com  um  mancebo 
quasi  nos  braços,  a  Ijella  ingleza  não  se  atrevia  nem 
aarredar-se,  por  não  molestar  o  ferido,  nem  a  levan- 
tar o  rosto  por  timidez  ;  porém  Orso  arredou-se  lo- 
go e  apoiando  o  corpo  no  braço  direito,  disse  : 

—  .lOh  !  miss  Nevil,  partir  já  !  .  .  .  tem  razão,  es- 
ta miserável  terra  não  merece  que  esteja  aqui  .  .  .  e 
apesar  d'isso,  cada  vez  que  me  lembro  de  que  nos 
havemos  de  separar  é  uma  dor,  que  me  arrebenta  o 
coração  .  .  .  Sou  um  official  jiobre,  s<!m  esperanças,  e 
proscripto  hoje  .  .  .  que  momento  para  lhe  declarar 
que  a  amo  I  .  .  .  é  a  primeira,  e  de  certo  a  ultima 
vez.  Depois,  morrer  aqui,  ou  nos  desertos  da  Ame- 
rica, pouco  importa.  Em  toda  a  parte  se  acha  um 
punhado  de  terra  para  cobtir  um  cadáver.  ;- 

Miss  Lidia  desviou  a  cabeça,  como  se  a  obscurida- 
de não  fosse  bastante  para  esconder  a  sua  confusão. 
—  "E  cu  viria  aqui  —  respondeu  ella  com  voz  tre- 
mula—  se  não  fosse  ...  ■'  —  faltando  assim,  mettia- 
Ihe  no  dedo  o  annel  que  lhe  dera  em  Ajaccio.  E. 
vencendo  um  pouco  a  sua  torvação,  accrescenlou  :  — 
"Enial  feito  fallarmos  n"estas  cuusaa  n'uma  charne- 
ca, entre  bandidos  .  .  .  Aqui  não  podia,  ainda  que 
quizesse,   enfadar-me  .  .  .  como  devia.'- 

Orso,  desbriiçando-sc  para  lhe  beijar  a  mão,  per- 
deu o  equilíbrio,  e  caiu  sobre  o  braço  ferido.  A  dòr 
arrancou-lhe  um  grito. 

—  "  E  eu  éque  tive  a  culpa  I  .  .  .  -'  exclamou  ella. 
le\antando-o.  O  rosto  de  ambos  encontrou-se,  e  o 
mancebo  ousou  iniprimir-lhe  nos  lábios  um  beijo  ar- 
dente, <|ue  não  foi  repellido.  —  N"e»le  instante  Co- 
lomba, correndo  prccipit.-idaniente,  gritou  de  longe: 

—  "  Os  soldados  !  .  .  .  Orso  ;  levanta-te,  foce  '.  •■> 

—  "Deixa-nie.  Dizc  aos  bandidos  que  se  vdveni. 
Eu  fico ;  mas  pelo  amor  do  céu,  leva  d'aqui  mis» 
Lidia,  que  a  não  vejam.  ■• 

—  "Eu  é  que  o  não  deixo,'-  disse  Brandolaccio. 

—  "Nem  nós  também,"  acudiram  as  duas  mu- 
lheres. 

—  "Não,  dcixem-me.  Em  nome  de  Dous,  Colom- 
ba salva  miss  .\c\il,  ou  não  tornas  mais  avèi^mel" 

Mas  Colomba  e  Brandolaccio  toniaram-n"o  no» 
braços,  e  este  ultimo,  carregando-o  aos  honibros,  co- 
meçou a  descer  a  ladeira  no  meio  das  ameaças  do 
ferido.  Correram  assim  aliicum  tempo,  ouvindo  d*es- 
paço  a  espaço  os  tiros  dos  soldados,  a  que  respondia 
a  intervallos  a  espingarda  de  (^rso,  atirada  p»-lo  tlieo- 
logo  Giocanto  Castrioni.  l'or  fim  Brandolaccio  de- 
clarou que  já  não  ^xidia  mais,  e  deixnu-sc  cair  no 
chão,  a  despeito  das  reprehensõcs  de  Colomlía. 

—  "Onde  está  iniss  Nevil.'-'  jiorguntou  Orso. 
Disícrani-lhe  que  assust.itla  pelos  tiros,  e  detida  a 

cada  passo  pela  altura  c  nspercxa  do  roatto,  natural- 
I  mente  tinha  perdido  o  rasto  dos  fugitivos;  Brando- 
laccio assegurou  que  não  corria  o  menor  perigo. 

>  .\hi  \eni  uni  cavallo.  exclamou  Colomba,  cs- 

t.iinos  salvos  I  •• 

Elleetivamenfe  um  c.ix.illo,  espantado  pelo  estron- 
do dos  tiros,  corria  jiara  aquelte  sitio. 

.  Estamos  siilvos  I  ••  gritou  Brandolaccio.  Correr 

.10  cavallo,  segura-lo  pelas  ciiii.-is,  passar-Uie  na  lxx> 
ea  um,a  laçada  em  vez  de  freio,  foi  obra  d"um  ins- 
tante para  o  Kiiidido,  auxiliado  por  Colonilia. — 
"Agora  vamos  avisir  o  no>so  cura,  Cnslrioiíi  -  disso 
elle.    E  assobiou  duas  vezes  —  um  silvo  distante  rcs- 


o  PANORAJIA. 


221 


pondeu  ao  signal,  e  logo  depois  a  espingarda  ingleza 
emmudoceu.  Então  Brandolaccio  saltou  no  cavallo,  e 
Colomba  ajudou  seu  irmão  a  coliocar-se  diante  d'el- 
]p,  que  o  segurava  com  um  dos  braços,  em  quanto  a 
outra  mão  dirigia  a  rédea.  Apesar  do  pezo  duplica- 
do, o  cavallo,  robusto  e  generoso,  partiu  a  bom  gal- 
lopar  por  uma  mouta  empinada. 

Colomba  tornou  então  atraz,  chamando  miss  Ne- 
vil  com  toda  a  voz,  mas  ninguém  lhe  respondeu.  De- 
pois de  vaguear  cm  busca  d%jlla  algum  tempo,  foi 
encontrar  á  bocca  d'uma  senda  dois  soldados,  que  a 
mandaram  parar. 

—  "Q.uantos  mortos  trazem  da  sua  campanha,  ca- 
maradas?" perguntou  cila  rindo. 

—  «Estava  com  os  liandidos,  disse  um  dos  solda- 
dos, ha  de  vir  comnosco.  " 

—  "Decerto;  preciso  d'escolta.  Mas  tenho  aqui 
uma  amiga;  c  antes  é  preciso  saber  onde  está.  >■> 

—  "Já  foi  preza.  Hão  de  ir  ambas  dormir  á  ca- 
deia. >:, 

—  "Sim  ?  Deve  ser  curioso  !  " 

Poucos  minutos  depois  estavam  junctas  as  duas 
amigas,  c  escoltadas  pelo  destacamento  encaminlia- 
ram-sc  para  1'ietranera. 

Q-uando  chegaram,  antes  de  entrar  em  casa  do 
prefeito  para  onde  as  conduziam,  Colomba,  apertan- 
do o  braço  a  miss  Ntvil,  murniurou-lhe  ao  ouvido  : 

—  "  Meu  pobre  irmão,  como  ha  de  estar  '.  ]Mas  eu 
conheço  que  ni'o  ama,  pelos  menos  tanio  como  eu.  n 

Miss  Lidia  apertou-Uie  a  mão  sem  responder. 

—  ufAuando  a  ouvi  conversar  tão  baixo  com  Or- 
so,  entendi  logo  «jue  tinha  alguma  cousa  r|ue  dizer  a 
íeu  pai.  " 

—  "Ah,  Colomba,  que  traição!  .  .  .  E  o  que  hão 
de  dizer  ? » 

—  "  (i,uo  se  per<leu  na  charneca." 

—  "  l'"azer-me  isto,  a  mim  <|ue  linha  tanta  confian- 
ça na  sua  amizade  !  " 

Colotnba,  sorrindo,  passou-lhe  o  braço  á  roda  <lu 
cíorpo,  e  Ijeijando-a  na  fronte,  disse  em  voz  bai.\a  : 

—  "iMinli.i  querida  irmã,   perdoas-me  .' " 

—  "(lui-  remédio,  minha  terrível  irmã!"  repli- 
cou Lidia,  <l,Ui(lo-lin?  oiilro  beijo. 

(-luando  subiram,  o  coronel,  pela  vigésima  vez, 
voltava  a  buscar  noticias  de  sua  filha.  A  sua  inquic- 
lação  crescia  a  cada  momento,  ^)t)  re|)enli;  aniuincia- 
lam  ;t  appreliensão  de  duas  es[iias  dos  bandidos,  e 
d<!baixo  (Peste  honrado  lilulo  foram  inlroduzidas  na 
>iala  onde  sir  Tliomaz  Nevil,  o  pcrleilo  e  o  procura- 
dor régio  se  achavam  riMinidoí'.  E  fácil  de  sup|)(ir 
qual  seria  o  pejo  de  Lidia,  o  desafogo  de  Colomba, 
II  esjianio  do  pcrleilo,  a  alegria  e  assombro  do  ciiro- 
iiel.  O  procurador  régio,  moco  e  malicioso,  ]irocedeu 
a  uma  i'specie  de  inlerrogatorio,  «pie  terniiium  por 
elle  eonfuiiílir  de  todo   a  tímida  (í  assustada  iiigleza. 

—  II Julião,  ilisse  o  |)releilo,  que  jioileiiios  soltar 
niiibas.  1'yslas  senhoras  foram  passear,  e  (lor  acaso 
enconlraram  um  niaiicelio  amável  e  Uu-ido  —  nada 
ira  mais  nalural  do  qut-  fallar-lhe.  "  —  Depois,  clia- 
luando  Ci)l()riiba  dií  parle,  ajuntou  :  —  "  1'óde  nian- 
ilar  dizer  a  seu  irmão  (pu;  u  seu  negocio  c^slá  excel- 
('•iileiueiile  figurado.  O  (íxanu^  dos  cadáveres  e  o  de- 
poim<'iilo  do  eoriiiiil  provam  (pii!  elh;  eslava  só,  e 
não  fiz  mais  do  qui^  dcleiider-se.  Tudo  se  ha  de  ar- 
ranjar, mas  (•  necessário  ipu^  vcMiha  eiilregar-se  ájus- 
liça  !■  soliii'ilar  o  seu  livramento." 

I''.ram  on/e  limas  <|uaiido  ocoroiiel,  Colomba  e  Li- 
dia se  assenlaraiii  á  mesa.  Colomba  di^vorava  com 
appiMile,  escanieceiídii  o  |(rcH'eito,  os  advcgados  e  os 
soldados.  Sir '1'liiiiiiaz  comia  silencioso,  ollianilo  acu- 
da iiislaiile  para  sua  fillia,  que  não  levaiila\a  avis- 
la.    l'or  fim  imii  loiíi  iiieino  mas  grave: 


—  "  Lidia,  perguntou  elle  cm  inglei,  estás  com- 
promettida  com  delia  Tíebia  ?  " 

—  "Sim,  meu  pai  —  desde  esta  tarde"  respondeu 
ella  corando,  mas  com  voz  firme. 

Depois,  fitando  o  pai,  e  não  o  vendo  com  mostras 
de  cholera,  foi-se-lhe  lançar  nos  braços. 

—  "Está  bom  I  .  .  .  E  um  bello  rapaz.  Mas,  por 
Deus,  havemos  de  sair  da  sua  excommungada  pá- 
tria, ou  nego  o  meu  consentimento.  " 

—  .1  Não  sei  inglez,  acudiu  Colomba,  mas  aposto 
que  adivinhei  o  que  disseram  .' " 

—  "Dizíamos,  replicou  o  coronel,  que  a  havíamos 
de  convidar  para  vêr  a  Irlanda. " 

—  "Com  todo  o  gosto,  coronel.  Serei  a  surdia 
Colomha.  Toquemos  as  mãos.  « 

—  "O  costume  em  taes  casos  é  abraçarem-se  as 
irmãs,  e  beijarem-se  os  pais.  " 

(,"olomba  foi  collocar-se  ao  lado  de  Lidia,  e  o  co- 
ronel, despejando  o  ultimo  copo  de  vinho,  retirou-se 
rosnando  entre  dentes: 

—  "  Orso  i;  um  excellente  companheiro,  mai  não 
ha  de  viver  n'esta  amaldiçoada  terra.  " 


COSTUMES   DA  X.USACIA. 


I'/Ni  111!  as  iluas  capilaes,  Dresda  do  reino  de  Saxii- 
nia,  e  ltn>>lau  da  provineia  de  Sili'sia,  eslende-se 
uma  planiiie  ferlil  e  ondulosa,  dividida  em  duai« 
parles  chamadas  alta  e  baixa  Lusauia,  o  qui>  fslá 
nqiarlida  enire  a  Saxonia  i-  a  1'russia  :  eincoenia 
mil  habilaiites   do  lado  d.i   |irimi'ir:i,    e  du/ciilos  mil 


222 


O  PANORA3IA. 


do  lado  da  Prússia,  é  rjiianto  resta  de  uma  popula- 
ção alava,  que  no  VI  século  se  havia  derramado  polo 
meio  da  Thuringia,  do  território  de  Anlialt  e  de 
uma  parte  da  marca  de  Brandeburgo,  e  que  esfá  ao 
presente  encravada,  estreitada  n'um  acanhado  dis- 
tricto  da  AUemanha.  ]No  século  XIII  ainda  este  po- 
vo gozava  de  notável  influencia  em  muitos  paizcs  do 
norte  d'cste  império;  nas  ruas  de  Leipsick  falla\a- 
se  o  slavo,  e  bom  numero  de  aldeias  e  senhorios  con- 
servavam desde  essa  epocha  denominação  slava  ;  ac- 
tualmente este  dialecto  estrangeiro  some-se  de  dia 
para  dia  até  na  província  onde  se  refugiou  a  tribu 
nómada,  que  o  conservara  atravez  de  tantas  vicissi- 
tudes c.  por  tantos  séculos  ■,  a  linguagem  allemã  o 
substituo  nas  escholas,  púlpitos  e  actos  públicos.  Tal- 
vez que  ^brevemente  essa  tribu  derradeira  da  antiga 
raça  esclavonia,  que  amedrontou  e  subjugou  parte 
dos  paizes  germânicos,  venha  a  perder  até  a  memo- 
ria de  sua  remot;i  origem,  e  também  os  seus  usos 
tradicionaes,  para  adoptar  o  idioma,  leis  e  costumes 
da  casta  allemã,  que  a  cerca  por  todos  os  lados. 

Lma  parte  doesta  família  esclavonia  é  protestante, 
outra  parte  catholíca ;  os  estrangeiros  os  designam 
pelo  nome  genérico  de  vendes  ;  pela  maior  parte  se 
occupam  todo  o  anno  nos  trabalhos  agrícolas  e  cria- 
ção de  gado.  Antigamente,  além  do  dizimo  que  pa- 
gavam, deviam  estar  ás  ordens  de  seus  respectivos 
senhores  quando  fossem  requeridos,  com  seuscavallos 
e  carroças,  ou  para  lhes  lavrarem  as  terras,  ou  para 
lhes  prepararem  a  habitação,  e  até  para  os  transportar 
d'um  para  outro  sítio  :  libertos  actualmente  d'aquel- 
la  espécie  de  servidão,  cidtívam  em  paz  seus  campos, 
e  administram  sem  olheiros  os  seus  bens  ruraes.  O 
pai  de  família  exercita  sobre  quantos  se  lhe  aggre- 
gam  auctorídade  patriarchal  •,  rege,  determina,  e  to- 
dos lhe  devera  obedecer  :  em  quanto  anda  occupado 
fora  de  casa,  governa  a  mulher  em  seu  logar  ;  na 
verdade  é  quem  manda  na  ausência  do  marido,  mas 
quando  este  volta  deve  ser  a  primeira  a  dar  exemplo 
de  obediência.  —  Nas  laboriosiis  casas  dos  vciulcs  to- 
dos têera  suas  tarefas  e  attribuições :,  os  filhos  que 
ainda  não  são  bastante  robustos  para  ajudar  o  pai 
nas  lidas  campestres,  os  velhos  que  já  não  podem 
guiar  a  relha  do  arado,  passam  o  dia  a  liar  lã,  câ- 
nhamo ou  liidu).  lia  assembléas  regulares  de  pessoas 
que  liam  desde  a  manhã  até  á  noite  como  se  fora 
ii'uma  fabrica,  com  a  diflerença  que  cada  um  traba- 
lha por  sua  conta.  1'ara  os  que  podem  occupar-se 
n"outro  lavor  ^ó  começa  a  fiação  em  11  de  Outul)ro 
e  linda  na  (juarta-feira  de  cinzas.  Arrancha  uma  dú- 
zia de  pessoas  para  irem  de  roca  e  fuso  n'um  in\er- 
iio  para  uma  casa  e  n'outro  inverno  para  outra  :  o 
primeiro  dia  d"este  industrioso  ajuuclamento  é  de 
festa.  A  dona  da  casa  onde  se  reúnem  as  que  fiam 
aos  serões  n'uma  invernada,  appresenta-lhes  n"esse 
dia  um  ganso  bem  assado  e  um  pralo  de  vacca  :  co- 
meça a  tarefa  ás  sete  da  tarde  e  demora-se  até  ás 
dez,  excepto  aos  sabbados,  que  acabji  uma  hora  mais 
cedo.  Todos  estes  serões  são  muito  alegres  e  animados  ; 
■ora  as  raparigas  cantam  em  côio  cantigas  populares 
ou  xacaras ;  ora  uma  santa  velha  refere  as  iiislorias 
de  fadas  e  encantadores  que  aprendera  na  infância  ; 
e  de  tempos  a  tempos  inlerronípc-so  o  fio  usual  d'es- 
ses  cautos  e  narrações  com  uma  concorrência  mais 
festiva  c  ruidosa  :  os  mancebos  pertencentes  uo  ran- 
cho annuncium  que  em  tal  dia  so  apresentarão  na 
casa  da  fiação  \  c  trazem  comsigo  bilhas  de  cerveja  e 
frascos  de  aguardente  ;  então  dcpõe-se  a  roca  jKir.i 
dançarem  ao  som  dos  instrumentos  de  que  usam. 
Em  véspera  du  Natal  ha  uma  reunião  mais  grave  e 
solemne,  espécie  de  juízo  cm  que  se  examina  o  tra- 
balho das  fiandeiras,  esuú  niulctadas  usque  uão  fiam 


bem  igual  e  as  que  deixam  ir  gudilhões  de  lã  pega- 
dos ao  fato :  a  sentença  dá-se  em  meio  das  risadas 
da  assembléa,  e  as  culpadas  receljem  a  sua  amnistia 
n^uma  dança  geral.  No  dia  seguinte  festeja-se  em 
cada  casa  a  solemnidade  do  Natal  :  —  uma  donzella 
vestida  de  branco  entra  no  quarto  em  que  a  família 
está  juncla,  tendo  n'uma  das  mãos  uma  varinha  e 
na  outra  um  panno  cheio  de  nozes  e  maçãs,  e  diz  : 
— i"IIa  aqui  meninos  bons?" — Responde-lhe  :  — 
"  Ha.  >!  —  K  apparece  toda  a  rapaziada  da  casa  :  per- 
gunta-os  eUa  a  um  por  um,  e  aos  que  respondem 
mal  dá-llies  alguns  leves  toques  com  a  vara,  e  aos 
que  se  explicam  bem  reparte  os  presentes  que  traz 
da  parte  do  Menino  Jesus  :  é  um  exame  carinhoso 
mas  serio,  que  se  passa  perante  os  cabeças  da  famí- 
lia, e  que  nos  corações  da  infância  causa  profunda 
impressão. 

No  verão  festejam-se  outros  dias,  principalmente 
o  de  S.  João  e  das  ceifas.  Acabada  a  colheita  os  se- 
gadores conduzem  a  casa  o  ultimo  carro  de  trigo,  que 
no  cimo  da  carga  traz  um  molho  de  paveias  engri- 
naldado de  flores  :  bandos  de  raparigas  precedem  o 
carro  trazendo  ancinhos  enfeitados  de  ramos  e  cor- 
riolas  ou  campainhas  do  campo;  6eguem-n"as  os  jor- 
naleiros em  duas  filas  a  modo  de  procissão  cantando 
ura  hvmno  religioso.  Junctam-se  no  pateo  da  viven- 
da rústica;  os  cantos  continuam  até  a  ceia;  e depois 
doesta,  na  qual  apparecem  (raríssimo  caso!)  muitas 
garrafas  de  vinho,  começam  os  bailes ;  a  dona  da  ca- 
sa é  sempre  quem  rompe  a  dança,  e  a  festa  deita 
até  o  raiar  da  aurora. 

O  canto  é  um  dos  prazeres  habituaes  doesta  boa 
gente;  encontra-se  nas  .mais  simples  aldeias  da  La- 
sacia  ranchos  de  cantores,  todos  camponezes  mance- 
bos, que  em  certas  epochas  do  anno  andam  cantando 
ás  portas  dos  recem-nascídos,  ou  dos  que  estão  para 
casar ;  começam  o  gvro  de  ordinário  pela  meía-noi- 
te,  e  ás  vezes  ainda  se  acham  pela  madrugada  diri- 
gindo a  sua  harmoniosa  saudação  aos  que  acabam  de 
vir  ao  mundo,  ou  aos  que  pelo  casamento  vão  entrar 
em  vida  nova. 

Os  antigos  usos  dos  vendes  apparecem  sobre  tudo 
nos  funeraos  e  nas  funções  familiares,  tíuando  fallc- 
ce  um  camj)onez,  us  parentes  e  aniigos  associam  a 
sua  magua  os  animaes  de  que  elle  cuidara  qiiando 
vivo:  uma  pessoas  da  casa  vai  bater  nos  cortiços  c 
grita: —  usurgi,    abelhinhas.    le\antai-\05,    já    não 

tendes  o  vosso   bom  dono. K  um  criado  leva  ao 

gado  ração  extraordinária  de  feno  ou  de  aveia.  Não 
escarneçamos  d'esfes  hábitos  ingénuos:  ha  entre  o 
homem  do  campo  e  os  animaes  que  o  servem  emsu3 
penosa  lida  ma\  ios;is  relações.  Não  e  dotado  de  com- 
pleto sentimento  de  compaixão  aquelleque.  entcme- 
cendo-se  somente  com  as  misérias  humanas,  pódc  vèr 
sem  abalo  o  cavallo  titubantc  na  estrada  se  puxa  por 
uma  carga  de  Sdlxjo  pezada,  ou  o  loi  desfallecido 
arando  de  manhã  até  a  tarde  um  chão  pedregoso. 

Os  baptisados  solem nisiim-se  na  Lusooia  com  gran- 
de pompa:  dão  á  creança  muilus  padrinhos,  c  rt?fi- 
tani  sobre  o  berço  quantidade  ile  religiosas  e  ternas 
orações :  seus  pais  salicm  por  experiência  de  quantos 
embaraços  é  juncado  o  trilho  da  vida,  e  quereriam 
iirescrvar  das  afllicçtVs  por  que  pass,iram  a  sua  que- 
rida prole,  dando-llie  em  nome  de  (^hrislo  muíli.<s 
tutores  c  invocando  para  elle  as  bênçãos  celeste*. 


O  sABEn  sem  ríqueri  é  como  um  pé  sem  sapato,    e 
I  a  riqueia  sem  o  saber  como  um  sapato  sem  pé. 

(Extralnda  do  TalmuJ.) 


o   PANORAMA. 


223 


A    VINGASÇA    DO    HOJIEM    BRANCO. 

Secna  da  vida  dos  Índios  selvagens  da  America 
Septemirional . 


Nas  margens  do  Maria,  a  pouco  mais  distancia  da 
de  um  dia  de  jornada  do  sitio  onde  este  rio  mistura 
a  sua  corrente  com  as  aguas  turvas  do  Missouri,  ar- 
diam debaixo  das  arvores,  fjue  assombreavam  as  ri- 
banceiras do  pequeno  rio,  as  fogueiras  de  um  bando 
de  mancelK)S  ca^'adores,  da  tribu  dos  Pés-Negros,  os 
quaes  se  tinham  afastado  do  corpo  da  tribu  para  ce- 
lebrarem os  mNsterios  que  os  haviam  de  elevar  á  di- 
gnidade de  guerreiros.  A  uns  cem  passos  dVste  logar 
estava  um  wiguam  (ou  choupana  iiidia)  agudo  e  al- 
to, levantando-sp  da  terra  como  uma  pirâmide,  em 
cujo  interior  mal  podiam  penetrar  alguns  raios  de 
luz  por  entre  a  ramagem  fortemente  entrelaçada. 

No  mais  profundo  silencio  aquelles  mancebos  em 
numero  de  vinte  e  oito  tinham  os  olhos  pregados  no 
chão,  entretido  cada  um  com  osseus  próprios  pensa- 
nxentos  lúgubres,  quando  de  repente  se  ouviram  no 
interior  do  wiguam  os  sons  allos  e  compassados  de 
um  tambor.  Obedecendo  ao  chamamento  todos  suc- 
cessivamente  se  levantaram,  sem  tirarem  os  olhos  do 
chão.  O  primeiro  que  chegou  levantou  apelle  de  bú- 
falo que  ta])ava  a  entrada  estreita  e  baixa,  scguran- 
do-a  até  o  ultimo  ter  entrado,  centrando  elle  depois 
tornou  a  tapar  a  entrada  deixando  cair  a  pelle. 

O  interior,  de  forma  circular  fechando  no  alto  em 
ponta,  que  teria  trinta  pés  de  altura,  estava  ornado 
com  vários  utensílios,  armas,  mantas  e  cscalpos  (1), 
sobrcsaíndo  a  pelle  de  um  búfalo  branco,  oflcrtas  con- 
sagradas ao  Grande  Espirito  ^  e  no  centro  onde  se 
reuniam  as  varas  <|ue  sustinham  a  construcção,  esta- 
va pendurada,  ainda  ensanguentada,  a  cabeça  de  ura 
enornii'  búfalo,  Ioda  rodeada  defumo  que  não  tinha 
por  onde  sair. 

Sen>  fazerem  a  menor  bulha  todos  aquelles  mance- 
bos tomaram  os  seus  logares  em  roda  da  fogueira,  e 
o  que  tinha  locado  o  tambor  desenrolou  uma  pelle 
branca  e  macia,  e  tirou  o  cachimbo  de  paz,  com  um 
tubo  ou  pipcj  largo  a  comprido,  ornado  de  jerogliphos 
significativos,  ecom  pemias  de  aves  decores  vivas  até 
a  chaminé,  feita  de  barro  encarnado,  cncheu-o  de  ta- 
baco e  hervas  odoríferas,  poz-lhe  em  cima  uma  braza 
i?levuntou-o  com  solemniilade  :  aspirando  ofumodei- 
tou-o  pelo  nariz  •,  tomou  o  tubo  com  ambas  as  mãos, 
inclinou-se  para  diante  até  locar  com  o  cachimbo  no 
chão,  e  repetiu  a  aspiração;  pasmou  então  o  emblema 
de  união  ao  que  eslava  a  sua  dircrita,  e  d'este  modo 
.indou  em  roda,  circulando  asoflértas  f<'ilas  aoGran- 
de  Espirito,  bem  como  a  cal)eça  do  búfalo. 

Houve  uma  pausa  de  alguns  minutos,  até  que  um 
dus mancebos  se  levantou,  estendendo  o  braço  e  dis- 
se :  —  "  Manitoú  (assim  denominam  os  selvagens  o  En- 
te Supremo]  os  nossos  corações  ardem  em  desejo  de 
encontrarmos  os  nossos  inimigos;  as  nossas  armas  es- 
tão aliadas  e  as  nossas  llechas  aguçachis  —  os  nossos 
olhos  estão  claros  —  seguem  o  vi)o  da  águia  até  o  mais 
alto  j)enhasco  da  montanha,  —  descobrem  o  rasto  que 
.1  paiillii-ra  deixa  h.i  rocha  dura;  mas  feiticeiros  ma- 
lévolos se  entreuK-ttcm,  e  nus  «•ni^xiVim  a  \ista,  en- 
guimin-nus  com  rastos  tingidos  e  al'ugenlam   a   caça 

(1)  Km  falia  di' trrnw  prupriu  em  iiorlii^iicr.,  |mrccrii- 
IK»  i|iie  iinii  lijitiii  iiiriiiivciilciilc  cm  u<l<>|>liir  i'sl<',  iiiliiiil- 
tiilo  cm  ili\<>r-<jis  liii^iLis,  parji  si^iiituiu'  ii  )M-llt-  ila  cahcra 
iloii  iiinrios  cm  luitiiMiii,  iii-i-anca<lai't>iiM>^cal>t-lltts,  pm- meio 
lie  um  f;iil|M'  rirruliu*,  para  firiír  hci'\íiuIo  «Ic  troplirii  no 
vi-mciliir,  Ac^umlo  <i  csljlo  ilc  iuiiíIiih  imi;iic4  itc  imiiut 
iiiiicricaiiiis. 


do  nosso  território.  Manitoú,  estende  o  teu  braço  so- 
bre nós ;  conserva-nos  os  olhos  claros  e  os  braços  for- 
tes;  faze-nos  encontrar  búfalos  e  a  antílope  pastando. 
Manitoú,  guarda-nos  do  poder  dos  feiticeiros. 
■  Sentou-se ;  e  o  que  lhe  ficava  immediato  á  direi- 
ta, erguendo-se,  continuou  as  preces  :  —  .í  Manitoú, 
estende  o  teu  braç-o  e  salva-nos  dos  malefícios  dos  fei- 
ticeiros :  elles  são  fortes  e  poderosos ;  podem  incutir- 
nos  doenças  e  quebrantar-nos  os  braços;  mas  tu  has 
de  destrui-los.  .iVlostra-nos  o  rasto  dos  nossos  inimi- 
gos;  e  nós  te  tributaremos  ricos  despojos — escalpas 
'e  mantas  quentes ;  um  cavallo  novo  e  forte  e  uma 
Ciildeira  de  cozer  a  caça  :  Manitoú,  guia-nos  ao  rasto 
dos  nossos  inimigos.  " 

Então  se  levantou  um  dos  que  estavam  sentados 
defronte,  e  estendendo  ambos  os  braços  por  cima  da 
fogueira,  disse  :  —  u  O  fumo  do  cachimbo  da  paz  su- 
biu cora  as  nossas  preces  aos  pés  do  Grande  Espiri- 
to :  elle  sabe  que  nós  estamos  aqui  reunidos ;  não  só 
vê  o  nosso  sacrifício  e  as  nossas  offertas ;  mas  também 
ouve  o  nosso  juramento.  Os  paconis  e  kausaus,  os 
chochonis  eartapaóes  tractam  enegoceam  com  as  ca- 
ras pallidas  (1),  —  devem  morrer.  Elles  têem  medo 
dos  homens  brancos ;  espalham  a  mentira  de  que  os 
brancos  atravessaram  a  agua  grande  em  monstruosas 
canoas  com  azas,  e  que  manejam  armas  que  um  ho- 
mem não  pôde  abraçar  :  —  arrastem-se  no  pó  ;  —  nós 
os  i't's-JNcjros  queremos  vingar  o  fansue  dos  nossos 
irmãos  assiíssinados  ;  —  os  caras  pallidas  devera  mor- 
rer. Nós  amamos  a  terra  onde  os  nossos  maiores  es- 
tão enterrados  ;  nós  prezamos  as  nossas  famílias  e  os 
nossos  amigos;  eo  sol  não  ha  de  illuminar  o  dia  em 
que  voltemos  sem  termos  derramado  o  sangue  dos 
nossos  inimigos ;  e  nós  te  of!ertarcmos  o  melhor  des- 
pojo. ^ 

Depois  d'isfo  todos  se  levantaram  c  repetiram  o 
juramento  solemne ;  e,  seguindo  os  tons  reguladores 
do  tambor,  principiaram  as  danças  sagradas.  A  prin- 
cipio andaram  a  passos  apausados  cm  roda  da  foguei- 
ra ;  mas  os  sons  gradualmente  apressiidos  do  tambor 
os  animaram;  os  movimentos  foram-se  tornando  mais 
rápidos  e  enérgicos,  até  que  com  o  grito  de  guerra  na 
bocca,  cansados  equasi  desfallecidos,  caíram  no  chão 
para  então  receberem  cm  sonhos  os  conselhos  dos  va- 
lentes que  morreram  nas  batalhas,  e  as  prophecías 
das  suas  campanhas  futuras. 

Três  dias  e  três  noites  repetiram  estas  ccremonias 
agradáveis  ao  Grande  Espirito,  e  em  todo  este  espa- 
çt)  nem  comeram  nem  beberam,  nem  saíram  do  wi- 
guam ;  mas  logo  que  ao  quarto  dia  o  Sol  despontou 
no  oriente,  reunidos  aborda  do  rio  nomearam  iVeu- 
tre  si  para  seu  caudilho  o  filho  de  um  cacique,  o  qual 
na  tdtiina  caçada  se  linha  distinguido  pelii  sua  intel- 
ligencia.  Com  animo  (msado,  quando  no  ultimo  in- 
verno estavam  exhaustas  as  provisões,  e  a  caça  se  ti- 
nha tornado  escaca,  tinha  clli- entrado  na  caverna  de 
um  urso  pardo,  e  malando-o  tinha  distribuído  a  car- 
ne aos  esfomeados.  Sete  pellos  tle  panthcras  estavam 
penduradas  no  seu  wiguam,  e  suas  irmãs  repous;i- 
vam  em  pelli's  macias  de  caça  que  <'llc  m:if;ira.  To- 
dos unanimenicnle  acciam.ir.im  o  l'\iiiihii  (nome  qtic 
a  sua  astiu-ia  e  velocidade  lhe  tiitham  grangeadn)  por 
seu  capilã<i ;  e  concordaram  no  logar  em  que  p.issa- 
dos  Ires  dias  se  deviam  encontrar  para  começarem 
as  suas  operiições  de  guerra. 


Três  semanas  se  leriam  pa>-.aui«  iii[ii>i>   da  solem- 

(l)  O»  niMiiiiv  Icilorc»  não  i^nuram  ijne  i>«  índios  ame 
rit':iii(»H  »í\o  i-iir  ttr  coltrc,  c  «iiic  por  i^>o  t*Ml*iN  tis  lirtnu-tts 
hc  llic*  lí^unim  |ialliilo<* ;  il\)iiilc  nasce  a  c\|>r«"»MV>  tlrriffiis 
fiaWtltit  com  <|iic  tl<'>i^nam  os  iMiro|iciu. 


224 


O  PAJVORA3IA. 


iiiJadc  que  acabámos  <lo  relatar,  quando  uma  peque- 
na caravana  de  viajantes  ia  atravessando  a  Savana, 
planicie  ((ue  parece  não  ter  fim,  a  qual,  terminada 
da  banda  do  poente  pelos  JNlontes  de  Rocha,  e  do 
lado  do  nascente  pelos  Estados-Unidos,  corre  im- 
mensa  extensão  para  o  norte  e  para  o  sul :  voltavam 
os  viajantes  de  uma  expedição  mercantil  a  Sancta 
Fé  do  México,  e  se  lisonjeavam  de  brevemente  en- 
trarem no  território  pátrio.  Formavam  a  caravana 
quatro  carros  puxados  por  vigorosos  e  possantes  ma- 
chos, rodeados  de  nove  cavallelros  montados  em  pe- 
quenos mas  rijos  cavallos  índios,  em  quanto  outro, 
uns   cem  passos  adiante,    ia  espiando    os  contornos. 

—  í£  (iue  tal  seria,  Roberto,  se  descansássemos  um 
pouco  ?  disse  um  dos  cavalleiros  a  outro  :  os  machos 
estão  cansados,  e  os  homens  não  o  estão  menos :  des- 
de manhã  que  nem  um  boccado  temos  mettido  na 
bocca ;  e  se  temos  encontrado  rastos  de  selvagens, 
isso  não  é  motivo  para  nos  esfaimarmos. " 

7  — «Diga  isso  ao  conductor,  respondeu  o  outro, 
em  quanto  elle  anda  devemos  segui-lo :,  mas  parece- 
me  (jue  lá  está  elle  procurando  um  logar  para  des- 
cansarmos;  porque  em  quanto  nós  temos  conversado, 
tem  elle  examinado  attentaniente  aquelle  bosquesito 
que  lá  está  adiante.  AUi  também  deve  haver  algu- 
ma fonte ;  a  folhagem  parece  tão  fresca  c  viçosa  !  " 

Não  se  rí;alisaram  porém  estas  supposições,  porque 
cm  logar  de  entrar  no  arvoredo,  o  conductor  com 
um  movimento  de  braço  deu  a  entender  á  caravana 
que  o  rbdeasse,  e  que  se  não  approximasse  ás  arvo- 
res, que  tania  sombra  e  frescura  promettiam. 

—  «Maldicto!  dis^e  o  cavalleiro ;  tomara  eu  ago- 
ra saber  que  escrúpulos  tem  na  cabeça  o  conductor 
para  privar  os  nossos  pobres  corpos  do  um  pedaço  de 
descanso.  Até  onde  a  vista  pôde  alcançar  não  ha  ou- 
tras tirvores.  Roberto,  dè-me  um  boccado  de  tabaco  ; 
necessito  ter  alguma  cousa  na  bocca.  " 

O  companheiro  satisfez  o  podido  i  e  para  evitarem 
o  logar  que  parecia  suspeito  ao  conductor,  tirou  os 
carros  fora  do  (rillio  que  outros  tinliam  feito,  o  tor- 
nando a  entrar  n"elle,  quando  o  perigo  era  passado, 
continuaram  a  caminhar  até  o  sol  lançar  a  saudação 
de  despedida  sobre  o  immenso  e  ondeado  horisonto 
da  Savana.  O  bosqucsinho.  tão  cuidadosamente  evi- 
tado, se  via  já  a  uma  di-lancia  immensa,  como  um 
oásis  no  deserto  do  Sahara,  quando  em  cim.i  de  uma 
d'cstas  suaves  alturas,  que  dão  á  Savana  o  aspecto 
de  um  mar  agitado,  formaram  os  carros  em  quadra- 
do, e  no  meio  acceiíderam  um  lume  que  durou  pou- 
co tempo,  e  que  prudentemente  foi  escondido  com 
cobertores  suspensos  cm  roda,  para  que  o  clarão  não 
indicasse  que  estavam  alli  a  qualquer  inimigo  que 
podesse  estar  emboscado  na  visinhança. 

Apenas  os  viajantes  acabaram  a  sua  coia,  que  se 
limitou  a  carne  secca  de  búfalo  o  café,  apagaram  as 
brazas  que  restavam,  e  cuidadosamente  guardaram 
os  carvões  para  o  resto  da  viagem  •,  c  atando  as  ca- 
valgaduras a  estacas  cravadas  no  chão,  collocaram 
sonlinelhis  que,  deitadas  na  terra,  podiam  facilmen- 
te descobrir  inimigos  que  se  approximassem.  INo 
centro  d'esta  pequena  fortificação  improvisada  re- 
pousaram tranquillamente  os  que  não  vigiavam,  e 
encurtaram  as  longas  horas  da  noile  com  antícdotas 
e  casos  da  vida  agitada  <|ue  tinham  passado. 

—  ii  Mas,  llopkins,  disse  um  «relles  chamado  Thi>- 
maz,  porque  nos  não  deixaste  dccansar  n^aquelle  lo- 
gar que  tão  aprazível  sombra  nos  onerecia  ? " 

—  "Não  viste  os  açores  que  pairavam  por  cima, 
Thoniar?  •> 

—  li  E  verdade  que  sim,  disse  este;  mas  quetf*em 
ejlos  com  isto  !  ■- 

—  "Os  rauzaus,  curou  os  viajantes  do  Oregon  que 


antes  de  hontem  encontrámos  nos  disseram,  larga- 
ram estes  sítios  ha  apenas  cinco  dias,  e  podeis  con- 
tar de  certo  que  não  deixaram  nem  uma  só  peça  de 
caça.  " 

—  ií  Pode  bem  ser;  mas  talvez  que  aquellas  ave? 
de  rapina  sentissem  alguma  caça  morta,  r? 

—  .'E  podeis  crer  que  uma  peça  de  caça  morta 
ficasse  um  só  dia  na  Savana,  sem  lhe  serem  os  ossot> 
roídos  pelos  lobos  e  por  aquelles  mesmos  açores,  tão 
limpinhos,  que  o  resto  não  daria  comer  a  uma  for- 
miga.'  Nada  —  n'aquelle  bosquesito  ha  mysterio  ;  e 
antes  do  romper  d'alva  hei  de  estar  acordado  ...  os 
demónios  vermelhos,  no  caso  que  lá  os  haja,  não  cos- 
tumam apparecer  mais  cedo.  Gluizesse  Deus  que  el- 
les  viessem  —  para  mim  seria  uma  delicia  vêr  de  no- 
vo espirar  um  par  d'elles,  com  o  grito  de  guerra  na 
bocca  como  ursos  feridos  de  morte. " 

—  "  Dize-me,  llopkins,  que  te  índíspoz  tão  furio- 
samente contra  os  pelUs  vermelhas'  (1)  perguntou 
Thomaz ;  leve-me  este  e  aquelle  se  eu  tão  pouco  os 
posso  soffrer,  e  confesso  que  nunca  me  acho  tão 
bem  como  quando  nada  ouço  d"eUes :  mas  um  ódio 
tão  inveterado  e  profundo  como  tu  lhe  tens,  não  te- 
idio  eu.  Não  lhes  posso  levar  a  mal  que  nos  não  pos- 
sam tragar ;  porque  bem  mal  os  temos  tractado.  -•' 

Rangendo  os  dentes  exclamou  Hopkins  :  —  «  GLue- 
reís  ainda  desculpa-los  ?  Se  tivésseis  soffrido  o  que  eu 
tive  que  supportar ;  se  tivésseis  -visto  cair  nas  suas 
garras  o  que  mais  appreciaveis  n'e5te  mundo,  então 
serieis  seu  inimigo  mortal  como  eu,  e  lhe  tericís  ju- 
rado eterna  vingança  e  incessante  perseguição  até  os 
exterminar.  Mas  lon^e  de  mim  eslas  recordações  dos 
quadros  funestos  e  pungentes  de  tempos  que  já  pas- 
saram. Ainda  pisámos  o  território  d'aqueUcs  demó- 
nios vermelhos  que  não  conhecem  misericórdia ;  c 
temos  motivos  bastantes  não  s<')  para  estarmos  acau- 
telados, mas  t;inibem  para  pouparmos  as  forças  para 
a  occasiâo  do  perigo.  ^  amos  agora  descansar  para 
termos  a  vista  clara  quando  nos  tocar  a  vei  de  ve- 
larmos. 


Longevidade  dos  s.v.bio». 

Os  hábitos  estudiosos,  tis  trabalhos  da  infclligencia 
não  são  prejudiciaes  á  saúde  senão  pjira  quem  os  não 
sabe  conciliar  com  um  exercício  sufficíente  das  forças 
plivsicas  e  uma  livgiene  conveniente.  Os  exemplos 
de  longevidade  não  sào  mais  raros  entre  os  sábios  e 
os  plillosophos  do  que  nas  outras  classes  d.a  s<icíeda- 
de.  Boerhaave  viveu  70  annos  ;  Ixx-kc  73;  Galileu 
78;  Newton  83;  Fontenelle  100,  Bavle,  Leibniti, 
^"^llnev•.  Buffon,  e  muitos  homens  distinctos  do  sécu- 
lo passado,  que  virão  a  memoria  dos  noss.»  leitores. 
chegaram  a  uma  idade  muito  avançada.  Poder-se-hia 
citar  grandíssimo  numero  de  eruditos  c  doutos  allc- 
mães  quasí  centenários.  O  profess<ir  Hlumcnbach 
morreu  ha  pouco  tempo  com  88  annos  de  idade,  e 
o  doutor Olbers.  ocelebrc  astrónomo  de  lírcmc.  com 
81  annos. 


Tenho  conhecido  homens  dotados  de  boas  qualidades, 
que  eram  utilíssimos  aos  outros  «■  inúteis  parasi  :  co- 
mo um  reloíio  solir  na  fronlaria  d'unia  casa  mostr.i 
as  horas  aos  visinhos  c  aos  passantes,  mas  não  ao 
dono.  Svvii-r. 


(11  Os  leilorc  fí«iniliari<«ilosroiiiosronvanccs  de  Coojwr 
c  outru-i  c>crij>K>»  iltt  Aiiifricii  tio  .NorlcxilH-iii  i|uantuo>u 
cxprvstiiu  c  unsiÍj  |Mra  tlc>i;ii.ir  o>ínJio>aiucric.inoi,  peio 
mulivo  iodicailo  aa  nula  anterrdcnlr. 


29 


o  PANORA3IA. 


225 


PONTE  DE  CERET. 


O  RIO  Tccli,  oriuililo,  lios  l'^rciiin;iis  ceiítracs,  vem 
iicabur  no  Modilorr.iiipo  ulxiixo  de  JVTpiíilião,  entre 
Klnc,  a  atilif;,!  lIliljeriH,  i|iic-  pos-^ue  um  templo  (]o 
século  XI,  e  Argéles.  —  Da  hase  dos  l'yrennéus  até 
os  arredores  de-  (>'eret  a  vista  do  vallu  é  austera  e 
liravia  i  mus  d^alli  ale  a  foz  do  Tecfi  a  paizagem  é 
rica  i!  aprazivel  \  descobreill-sc  amenos  prados  e  vei- 
gas lert('is,  os  castanheiros,  as  oliveiras,  e  o»  so- 
breiros. 

A  ponte  de  ('i^ret  e  uma  das  glorias  do  Tech,  não 
aómente  entre  os  arelieologos  do  llussillião,  mas  até 
entro  os  ruslioos  iialutantcs,  |)ori|u<' scL;uudo  um  con- 
to jiiipular  o  atrevido  ianramcMilo  do  arco  d^atiuella 
ponlc  é  olira  do  demónio.  ScgiiMiI<i  a  opini.lo  di.'  al- 
guns (.aliios  a  oiMistruccão  [jcrleiíce  ao  limpo  dos  reis 
visigoilos.  Temos  á  vista  os  apont.imcnlos  de  um  ho- 
mem coMlii'C(.'dor  na  maleria,  ipie  a  visiloii  cm  183'l' :, 
eilu  ainda  exitte  ,  é  nuds  um  docuniciito  eiuilr»  a 
pseudo-scii'ncia  <le  alginis  eng(Mdiciros  modernos.  — 
Mr.  Merimci;,  insj>ector  ilas  obras  puMicas  no  sul 
da  I'"  rança,  diz: — ><  é  uma  einistrucri"i(i  arrojada  e 
ao  meiíno  liMnpo  immm  graça:,  nm  .-irco  de  líipésde 
alii-rlura  atravessa  um  algar  pnd'undo  .  de  Imigc  pa- 
ri;cerá  un\ii  fil.i  lançida  airavcz  de  um  precipício.  A 
Voi..    I.  — M.wiro    Zl,     1SÍ7, 


volta  d.i  abobada  no  fecho  é  extrcmamonle  diminu- 
ta :,  porém  as  guardas,  accresccntamento  nK)derno. 
não  deixam  observa-la  e  i)rcjndicam  o  eiTeilo  geral 
do  composto.  l"ista  ponte,  muito  estreita  como  ijuasi 
todas  as  de  remotissinia  data,  só  dá  i)assagem  a  nma 
carruagem,  e  mesmo  assim  é  preciso  entrar  com  pre- 
caução. O  arco  cstriba-se  em  ilois  massanies  de  alve- 
naria, na  parte  superior  dos  ijuaes  ha  rupturaií  ar- 
queadas, ([uc  não  tecm  outro  destino  senão  alli\iar 
aiiuelle  massiço,  ])or(iue  as  torrentes  nunca  lá  che- 
gam."—Alguns  centenares  de  nn-tros  agua  abaixo 
lia  ponte  acbam-se  vestigios  de  outra  que  faíia  parte 
da  via  jireloria  de  Uoma  a  Uespanha  :  e  erí-se  ipie 
lilra  dcslruida  no  século  decinn)  ipiarlo.  (\insidere-se 
o  islado  dos  povos,  nu)ral  e  intelleclind,  n''essa>  epo- 
clias  remotas,  c  vAr-sc-ha  i|ne  não  tenms  de  i|Ue  nos 
enioberbcciT  quanto  ás  nuidernas  construcçòcs  •,  a» 
obras  ni.iis  eslupei\daí  vieram  da  antiguidade.  — 
<'onslrui  pvramidcs  do  l''gvpto  ;  ignora  se  como  o» 
materiaes  torani  transporladns  r  iMlloeailo>  :  aind.» 
mais  ■,  olli:ii  para  esses  isilossacs  nn)uunn'nlos  do  pa- 
g;inisniii  nas  índias,  e  par:i  os  que  o  infatigável 
llurnboldl  descobriu  n:t  America.  I''.  isto  são  obra» 
dw    po^os    barburus ;    a  civitisação  rouuuu.   ninguém 


226 


O  PA]>ORA3lA. 


contesta-,   e  monumento!  como   o!   da  idade   media 
ninguém  sa\>e  construir. 


CoLOVBA. 

Romance  da  Córsega. 

Povcra,   orfana,  zitella, 
Senza  cu;;ini  carnali  I  — 
Ma  per  far  la  to  vandetta. 
St3  iij;urn,  vasta  anche  ella. 

lAíment./antb.  de  Aiolo. 

VIII 

(Conclusão.) 

PoE  uma  fresca  manhã  d'abril  o  coronel  sirThomaz 
Nevil,  sua  filha  cazada  de  poucos  dias,  Orso  e  Co- 
lomba  sairam  de  Piza,  de  caleça,  para  ir  visitaram 
hypogeu  etrusco,  descoberto  de  novo,  e  visitado  por 
todos  os  estrangeiros.  Apenas  se  apearam  Orso  esua 
mulher,  tiraram  os  lápis,  e  entrando  dentro  do  mo- 
numento principiaram  a  desenhar  as  pinturas ;  o 
coronel  e  Colomba,  que  professavam  a  mais  impia 
indiffcrenja  á  archeologia,  dei.'saram-n'os  cm  paz,  e 
foram  passeando  pelas  visinhanças. 

—  i;Q.uerida  Colomba,  disse  o  coronel  suspirando, 
não  voltamos  de  certo  a  Piza  a  horas  de  lanch.  E 
tens  vontade  de  comer,  aposto  eu  ?  Orso  e  sua  mu- 
lher lá  andam  com  as  antiguidades  ,•  Deus  sabe  quan- 
do acabarão. » 

— «  E  assim;  e  também  por  signal  que  nunca 
trazem  um  desenho  que  se  veja.» 

—  4.- Pois  eu  era  de  voto  que  íb?semos  áquelle  casal 
lá  em  baixo.  Ha  de  haver  por  lá  pão  e  vinho,  e tal- 
vez mesmo  leite  e  morangos.  Com  um  reforço d"esses 
já  se  espera  cora  mais  socego.  " 

—  ií  Vamos,  vamos,  coronel ;  nós  somos  as  únicas 
pessoas  de  juizo  da  nossa  casa." 

Conversando,  chegaram  ao  cazal.  Havia  leite,  mo- 
rangos e  vinho.  Colomba  foi  ajudar  a  cazcira  a  co- 
lher os  morangos,  em  quanto  o  coronel  sorvia  a  pe- 
quenos golos  o  néctar  da  Itália.  Dobrando  uma  rua, 
apercebeu  um  velho  assentado  ao  sol  n'uma  cadeira 
de  paliia  ;  parecia  doente  porque  tinha  asfacescava- 
das  e  os  oliios  mortaes  o  sumidos.  A  immobihdade, 
a  pallidez  e  a  vista  pasmada  eram  mais  de  cadáver 
do  que  de  homem  vivo.  A  irmã  de  Orsocontemplou-o 
silenciosa  alguns  minutos,-  e.  a  caieira,  reparando  na 
altenção  com  que  o  observava,  disse  : 

—  íí  Este  desgraçado  vellio  é  seu  patrício  —  é  cor- 
so. Morrcram-lhe  os  filiios  de  um  desastre,  evondo- 
se  sozinho  veio  a  Pita  para  casa  de  uma  parenta  que 
o  mandou  para  aqui.  Não  dá  trcs  palavras  no  dia; 
c  o  medico  assegura  flue  pouco  durará. " 

— 11  Xão  escapa  I  E  uma  fortuna  para  elle.  n 

—  wi  Falie-lhc  corso,  menina.  Ha  de  alegrar-se  de 
ouvir  a  sua  lingua.  " 

—  "Veremos!  acudiu  Colomba,  sorrindo  irónica, 
c  approximou-se  do  velho  até  llie  tirar  o  sol  com  a 
sombra.  Então  o  pobre  idiota  levantou  a  cabeça,  e 
encarou-a  filo.  EUa  sorria  sempre  sem  despregar  os 
olhos.  Passados  instantes  o  velho  correu  a  mão  pela 
testa,  e  cerrou  as  paiprbras,  tentanào  evitar  avista 
de  Colomba ;  depois  tornou  a  abri-las,  m.is  dilatan- 
do-asdeum  modo  incrivel ;  tremiam  os  lábios  ;  que- 
ria estender  o  braço,  porrm  fa^c^nado  pela  attracção 
dos  olhos  sempre  fitos  nVlle,  ficiiu  cravado  na  cadei- 
ra, mudo  e  entorpecido.    Ijngrimas,   como  punhos. 


principiaram  a  rebentar  caindo  pelas  faces,  e  alguns 
suspiros  e  soluços  se  quebraram  no  peito  anciado. 

—  uE  a  primeira  vez  que  o  vejo  assim,  disse  a 
jardineira.  Esta  menina  éda  sua  t«-rra  e  veio  vê-lo,  »• 
accrescentou  fallando  com  o  velho. 

—  «  Perdão  1  exclamou  elle  com  voz  rouca,  per- 
dão'. Ainda  não  basta?  Aquella  folha  da  carteira 
queimei-a  eu  ;  como  a  leste  ? .  . .  E  mataste  ambos! . . . 
Orlanduccio  não  fez  mal.  .  .  porque  me  não  deixas- 
te ao  menos  um  !  .  .  .  " 

—  li  Q.ueria-os  ambos,  respondeu  Colomba,  era  tom 
baixo  e  no  dialecto  corso.  Cortei  os  ramos,  e  se  o 
tronco  não  estivesse  carcomido  arrancava-o  também. 
Não  te  lamentes;  pouco  tens  já  que  padecer.  Eu  ge- 
mi dois  annos !  n 

O  velho  soltou  um  longo  suspiro  e  descaía  a  cabe- 
ça para  o  peito.  Colomba,  virando-lhe  as  costas,  vol- 
tou vagarosa  para  casa  e  cantava  os  versos  de  uma 
bailada  :  —  uCaíu  a  mão  que  fere.  Oolbo  que  mirou 
nunca  mais  verá;  ai  do  coração  que  trouxe  escondi- 
do no  seio  o  crime,  aquecendo-o  como  a  vibora  !...  r. 

Era  quanto  a  jardineira  soccorria  o  velho,  a  irmã 
de  Orso  veio  assentar-se  á  mesa  com  o  coronel. 

—  uGLue  ha  de  novo?  exclamou  este.  Colomba, 
esse'é  o  modo  com  que  a  vi  em  Pietranera  na  tarde 
em  que  nos  presentearam  cora  um  par  de  bailas  ao 
jantar. " 

—  íi  Lembrou-me  a  Córsega  .  .  .  pela  ultima  vez. 
Acabou-se.  Vamos  !  Do  primeiro  filho  que  Orso  ti- 
ver hei  de  eu  ser  madrinha,  não!  £  que  lindo  nome 
lhe  porei.  . .  " 

—  "  Glual ?  " 

—  "  Ghilfuccio-Tomaso-Orso-Leone.  '• 
A  jardineira  entrou  n'este  momento. 

—  "Então?  disse  Colomba  com  o  maior  socego; 
morreu,  ou  desmaiou  só?" 

—  .i  Foi  desmaio.  E  celebre  o  efieito  que  lhe  fez 
a  sua  vista  !  " 

—  "O  medico  disse  que  elle  não  vivia  muito ?- 

—  «  Nem  dois  mczes.  " 

—  "  A  perda  não  é  grande.  " 

—  "Jlas,  cora  o  demónio,  de  que  faliam?" 

—  "De  um  louco  da  minha  terra,  que  está  aqui, 
accudiu  Colomba  com  ar  de  indifferença.  De  tempos 
a  tempos  hei  de  mandar  saber  d'elle.  .  .  Coronel  Ne- 
vil, deixe  ao  mcno»  um  punhado  de  morangos  para 
meu  irmão  e  para  Lídia." 

Quando  sairam,  a  caieira,  seguindo-a  muito  tem- 
po com  os  olhos,  disse  por  fim  á  filha  :  —  vês  aquel- 
la menina  tão  liuda?  Pois  mata  com  os  olhos  !  "  —  Se 
ella  soubesse  que  ódio  fulminava  u''aquella  vista  ha- 
via de  tremer,  mas  em  silencio. 


Os    CHALÉS    DE   CaCHEMIRA. 

(Continuando  de  pi;.  314.) 

4»  Entre  os  mais  preciosos  oljcctos  da  Azia  que  se 
acham  em  Jlacaricfl".  diz  Mr.  llehman,  c4  chalés  de 
Cachemira  sem  duvida  tccm  um  dos  primeiros  lega- 
res. A  conclusão  de  uma  compra  de  ch.ileí  é  frita 
sempre  cm  presença  dealçunias  fcstimunlin?,  segun- 
do o  uso  do  logar.  que  requer  e>ta  formalidade  para 
os  negócios  importantes.  Sendo  uma  vci  convidado 
para  tcstimunha,  fui  á  feira  com  o  comprador,  as 
outras  tcstimnnhas,  e  o  seu  corretor,  que  era  armé- 
nio ;  porque  c  por  intcr\cnção  dos  individuas d"csta 
nação  que  passa  o  commercio  dos  objectos  preciosos 
1  da  .-Vzia.  Parámos  diante  de  uma  casa  sem  telhado, 
'  c  que  estava  por  acabar;   fizeram-nos  entrar  n*uma 


o  PANORA3IA. 


227 


espécie  de  cava,  e  posto  que  fosse  a  Iiabitaçãode  um 
inillionario  natural  do  Indostão,  não  tinha  outros 
moveis  senão  oitenta  fardos  mui  bem  feitos,  coUoca- 
dos  ao  longo  das  paredes.  As  partidas  mais  pr-.-ciosas 
do  chalés  vendcm-se  sem  as  vêr  o  comprador  senão 
pela  parte  exterior  ;  nem  se  desembrulham,  nem  se 
examinam;  e  não  obstante  isso  conhece-se  circuras- 
tanciada  e  minuciosamente  cada  uma  peça,  median- 
te uma  lista  parlicularisada,  que  o  corretor  arménio 
manda  vir  de  Cacliemira  com  muita  difficuldade,  e 
que  pela  marca,  tecida  nos  mesmos  chalés,  indica  com 
<í£criipulosa  exactidão  as  qualidades,  as  bellczaseim- 
perfei<;ões  de  cada  um,  o  nome  do  fabricante,  as  di- 
mensões, quaes  e  (juantas  as  Uôres  e  palmas,  as  co- 
res, &c.  —  Com  este  documento  na  algibeira,  o  co- 
mo vi  eu,  muitas  vezes  cora  assombro,  de  cór,  ven- 
dem aquelles  negociantes  as  partidas  da  fazendasem 
<|Uo  seja  examinada.  E  de  crer  que  os  corretores,  a 
<|uetn  a  lista  custou  muito  trabalho e dinheiro,  repu- 
tem caro  bastante  esta  sua  habilidade ;  segundo  o 
preyo  da  partida  de  chalés  dão-se  200  a  GOO  rupias 
por  uma  copia  da  factura.  —  Entrando  o  comprador 
tom  suas  testimunhas  e  com  os  corretores,  porque  ás 
vezes  lia  dois,  não  diz  palavra;  estes  fazem  tudo,  an- 
dam d'aqueile  para  o  vendedor  failando  a  occultas, 
i;  assim  corre  o  negocio  até  o  ajuste  ;  ainda  antes 
d'cste  vem  a  fazenda  empacotada;  o  com prailor des- 
denha, o  vendedor  gaba  ;  e  a  linal  ha  uma  confusão 
e  algazarra  de  que  ninguém  faz  idéa.  1'oréni  o  mais 
cómico  da  scena  é  quando  se  tem  quasi  assentado 
ii"um  prcíjo  conveniente,  vêr  os  corretores  agarrados 
ao  Índio  dono  da  fazenda  a  quererem  por  forga  que 
elle  tome  a  mão  do  comprador,  que  a  tem  aberta,  c 
repete  em  alta  voz  o  que  oflereceu  :  o  indiodcfeiide- 
»e,  resiste,  desembaraça-se  dos  assaltantes,  cmljrullia 
as  mãos  nas  íluctuantes  mangas  da  sua  túnica,  e  in- 
siste cm  tom  queixoso  no  seu  primeiro  pre(;i).  Dura 
muito  tempo  esta  comedia.  Separam-se ;  ha  pausa 
como  para  crcar  forças  para  novo  cond)ate ;  e  por 
fim  os  corretores  apoderam-se  da  mão  do  vendedor, 
<!  apesar  de  esforços  e  gritos  conseguem  qne  o  com- 
|)rador  a  aperte.  Seguc-se  então  silencio  absoluto  :  o 
inilio  chora,  os  corretores  fclieilam  quem  fez  a  com- 
pra :  tornam  a  tomar  assentos  para  se  proceder  á  ul- 
tima ceremonia,  a  entrega  \\o  género.  Como  disse- 
mos, tudo  é  comedia,  mas  indispensável,  ponjue  o 
Índio  quer  sem[)re  figur.ir  de  constrangido  e engana- 
do. Se  não  o  «^npurraram  e  sacudiram  bem,  se  não 
lhe  rasgaram  a  gola,  se  não  recebeu  bom  numero  de 
punhadas,  se  não  tem  o  iiraço  direito  pisado  pelos 
apeilões,  arrepende-se  do  merc.ido  até  a  feira  proxi- 
nni  ;  e  a  não  ser  assim  é  mui  dillicil  chega-lo  á  ra- 
zão. ])'estcmodo,  as  <|Ualidadesessenci.i(s  de  um  bom 
corretor  é  sabi?r  apoquentar  o  homem  Ires  lioras,  e 
piVIo  <!m  estado  de  concordar  no  que  se  i)retende. 
l'-m  summa,  o  primeiro  preço  pedido  soIlVe  sempre 
grande  reduceão.  No  ajuste  a  «pie  assisti,  o  índio  ti- 
nha exigido  tJJOrOOO  'rul)los,  u  abateu  a  180:000, 
alem  d'ibso  liavia  de  pagar  dois  por  cento  aos  eorre- 
lorei.  —  l'Vilo  o  conveido,  lodo»  os  cireumslantes  nos 
assenlánH>»  do  pernas  encruzadas  sobre  um  formoso 
tapete:  viiTam  doces  e  gelados,' e  em  vez  do  eolhe- 
re.s  nos  serx  imos  de  es|)atulas  de  madrepérola  com  seus 
cabos  de  prata,  esmaltados  com  pedras  preciosa»,  e 
não  menos  rii'as  do  qnn  rubis  eosmoralihis.  ']'omadu 
Cl  refresco  (Milregou-se  a  fizenda. 

Durante  o  liMupo  cpie  um  corretor  e  o  intitrprele 
:.^islaram  em  formular  o  acto  da  venda,  vieram  os 
fardos,  abiirum-se,  u  viram-h(^  os  ehahs  nm  por  um  : 
verificara m-sc  iis  marcas  e  tudo  se  achou  em  ordem  ; 
delerniiiiiulo  o  termo  do  pagamento,  depois  de  algu- 
ma alIercMçflo,  a  as»endil<'a  ajoi>lhuu,  «  rezou-»e.  Se- 


gui o  exemplo  dos  mais,  e  não  pude  deixar  de  me 
admirar  observando  a  diversidade  das  crenças  doa 
homens  que  alli  estavam  reunidos  a  orar  ;  eram  Ín- 
dios adoradores   de  Brahma  e  de  infinidade  de  ido- 

i  los ;  tártaros  que  confiam  seu  destino  á  vontade  de 
AUah  e  de  IMahomet  seu  propheta  ;  dois  parsios  ou 
guebros,   adoradores  do  fogo ;   um  official  kalmuco, 

1  que  reverenciava  no  Dalai-Lama  a  imagem  da  Di- 
vindade;  ura  mauritano  que  venerava  não  sei  quem  ; 
e  a  final  um  arménio,  um  georgiano,  e  eu  lutherano, 
todos  os  três  christãos,  mas  de  três  communhões  dif- 
ferentest  Exemplo  notável  de  tolerância ! 

j       Finda   a  oração,   appresentaram-uos   um   enorme 

1  vaso  de  prata,  c  uma  taça  a  cada  um  ;  a  bebida  era 
um  composto  d'agua  e  assucar  com  çumo  de  laranjas 
doces,  alguma  aguardente,  e  temperada  com  toda  a 
casta  de  especiarias ;  era  agradável,  e  com  isto  nos 
despedimos.  " 


O    CASTELLO    DE    BoUCHOVT. 

II 

Historia  do  fundador. 

Sabemos  já  as  aventuras  que  as  lendas  e  tradições 
contam  do  fundador  de  Bouchout ;  vejamos  agora  o 
que  a  historia  poude  colligir  a  seu  respeito,  e  que  se 
acha  recopilado  n'uma  chronica  velha  do  Brabante, 
impressa  em  Anvors  em  1312. — 

Godofredo,  appellidado  o  barbudo,  genro  de  Hen- 
riquíj  III  c  cunhado  de  Henrique IV,  \eioasercon- 
de  de  Lovaina  e  de  Bruxellas  e  marquez  do  Sacro- 
Imperio  em  lOttU.  Deram-lho  aquella  aleuidia,  por- 
que promettêra  a  seu  pai  não  se  barbear  sem  ter  re- 
conquistado as  suas  possessões  hereditárias,  o  Bra- 
bante e  o  Ijothier.  O  caso  passou-se  assim.  —  No 
reinado  de  llourique  III,  sogro  de  Godofredo  o  bar- 
budo, fez  a  sua  expedição  á  Terra  Sancta  o  duque 
Godofredo  de  Bulhão,  que  o  era  do  Lothierpor suc- 
cessão  dos  condes  de  Ardenno;  durante  a  ausência 
confiou  aquelle  estado  aos  cuidados  o  guarda  do  con- 
de Henrique  de  Limburgo,  seu  sobrinho,  príncipe 
de  caracter  fingido  c  desleal,  sobre  tudo  nas  desaven- 
ças que  se  suscitaram  entre  o  imperador  Henrique 
e  seu  lilho  do  mesmo  nome,  que  se  rebellon  contra 
seu  pai,  e  diligenciou  occiípar  o  sólio  do  império. 
Como  o  pai  ollendèra  o  papa  e  sé  pontificia,  o  filho 
altr.ihiu  ao  seu  partido  grande  numero  de  senliores. 
HenriíjiK!  de  Limburgo  handeou-se  também;  mas 
depois  abandonou  o  príncipe  moço  jiara  seguir  a  cau- 
sa do  imperador,  o  qual,  passado  pouco  tempo,  falle- 
ceu  em  Liegc,  de[ii)ís  de  haver  reinado  'iS  annos  e 
experimentado  bastantes  infelicidades.  Henrique  1\', 
exaltado  ao  throno,  lembrou-se  da  deslealdade  do 
conde  de  Limburgo,  e  o  mandou  prender,  |V)rém  el- 
le evadiu-se  aslulamentc:  como  herdeiro  (!<•  Godo- 
fredo e  de  IVdduino  de  Bulhão,  o  seu  poderio  vinha- 
llie  do  Ijothier,  mas  ir  novo  im]>erador  lh'o  tirara 
para  da-lo  ao  conde  de  Lovaina,  cognominado  o  bar- 
budo, seu  cunhado,  e  a  quem  por  decreto  imperi:d 
de|ioís  ereou  duque,  dando-llie  um  brasão  em  campo 
de  prata  e  outro  em  campo  de  ouro,  tal  quid  o  trou- 
xera o  deluncto  duque  de  Angys,  marido  de  Sancl.i 
Begga.  Suceedeu  isto  |ielo  anuo  da  graça  II  OS  :  ha- 
via exaelameiite  cento  e  um  annos ilepuisque  ( •ihão. 
filho  de  Carlos,  minrí^ra,  e  que  su.t  irmã  Gerberga 
fOra  despojada  do  ducado,  ficando  somentt^com  Uru- 
xillaH  e  Lovaina.  l'orém  (•odofredo  reuniu  <lo  novo 
o  Jiiilhier  o(i  Ijotharingia  ao  Brabanti!  desde  o  Mo 
sa  até   u  Escalda,    doniiiiio  que  IAr:i   tir.ulo   ao«  ieu> 


228 


O  PAINORAMA. 


antepassados,   que  comtudo  descendiam  da  raça  de 
Carlos  Magno. 

Até  aqui  seguimos  a  narração  do  cbronista,  que 
todavia  incorreu  em  notável  erro,  dando  por  mulher 
a  Godofrcdo  o  barbudo  uma  filha  ou  irmã  do  impe- 
rador, por  nomtí  Sophia,  princeza  que  parece  que 
nunca  existira  \  a  vordade  é  que  teve  por  primeira 
mulher  Ida  de  Namur,  e  por  segunda  uma  filhade 
Guilherme  de  Borgonha,  que  era  viuva  de  Roberto 
de  Jerusalém,  conde  de  Flandres. 

(iuando  Godofredo  chegou  ao  auge  que  dissemos, 
todos  o«  vassallos,  quo  o  tinham  sido  do  antigos  as- 
cendentes d'elle,  se  Ihesubmetteram  promptamente, 
á  excepção  do  mais  poderoso  eriço,  Arnaldo,  senhor 
de  Grimberghen,  que  além  d'este  senhorio  adquirira 
outras  muitas  terras.  Ajunctou-se  exercito  de  parte 
a  parte,  e  o  duque  apodcrou-se,  á  força  d'armas,  das 
povoações  e  dominios  de  Arnaldo.  Como  as  forças 
doa  contendores  eram  quasi  iguaes,  a  campanha  foi 
porfiosa,  e  o  Brabante  teve  graves  prcjuizos  com  a 
perda  de  muitos  cavalleiros.  Arnaldo,  temerário,  va- 
lente e  animoso  na  guerra,  e  da  mais  a  mais  de  Ín- 
dole sanguinária,  excitou  o  seu  povo  e  arrostou  com 
Godofredo,  posto  que  este  a  final  ficasse  victorioso, 
graças  aos  estragos  que  nos  contrários  fizeram  as  suas 
tropas :  não  obstante  isso,  até  a  morte  de  Godofre- 
do continuaram  sanguinolentos  combates. 

"Godofredo  o  barbudo  (continua  a  chronica)  era 
mui  querido  de  toda  a  nobreza  :  houve  também  mui- 
tos reis  que  cubicaram  a  sua  amizade,  porque  era 
um  príncipe  bcmfazejo,  inimigo  de  toda  a  crueldade 
e  tyrannia  :  trabalhou  sempre  mais  para  o  bem  de 
seus  fidalgos  do  que  para  o  seu  próprio.  \  clava  que 
o  seu  munieipio  podesse  dormir  sem  susto,  e  fez 
grandes  diligencias  para  que  os  seus  vivessem  em 
descanço.  Encheu  de  bcncCcios  até  os  mesmos  ingra- 
tos.—  Este  principe,  depois  de  um  reinado  de  M 
annos,  desceu  ao  tumulo  era  1 1  40,  o  fui  sepultado 
na  igreja  do  mosteiro  d'Affligen,  sito  entre  Bruxel- 
las  e  Alost.  Deixou  um  filho,  Godofredo  II,  e  ou- 
tro, Henrique,  que  foi  condo  de  Lovaina,  que  para 
o  diante  se  metteu  frade  no  sobredicto  mosteiro,  e 
bem  assim  uma  filha,  por  nome  Alcydis,  que  veio 
a  ser  rainha  d'Jnglatcrra.  —  Os  conventos  que  fun- 
dou á  sua  própria  custa  são  documentos  da  sua  pie- 
dade e  devoção;  mandou  erigir  uma  clausura,  situa- 
da ao  pé  de  Lovaina,  chamada  Ulierberk,  que  ain- 
da hoje  existe,  e  que,  graças  ás  doações  de  almas 
pias,  tem  sido  angmentada  e  adornada  cora  outras 
propriedades.  » 

A  esta  antiga  e  singela  historia,  que  também  pa- 
rece uma  lenda,  accrescenlaremos  que  Godofredo  o 
barbudo  recebeu  do  imperador  Henrique  V  em  1107 
a  investidura  do  inarquezado  deAnvers;  e  que  en- 
trando cedo  em  guerra  com  o  conde  de  Limburgo 
tomou  Aix-la-Chapelle,  onde  foz  prisioneira  a  mu- 
lher do'scu  adversarão,  a  qual  porém  romctteu  gene- 
rosamente a  seu  marido  depois  de  a  Iiriíidar  com 
muitos  presentes.  Não  obstante  ser  um  principe  pie- 
doso e  fundador  d"igrpjas,  como  reza  a  citada  chro- 
nica, foi  cxcomniungudo  pelo  papa  por  harer  guer- 
reado o  intruso  bispo  de  Liège.  Além  d'outr.is  cam- 
panhas, que  fora  ocioso  enumerar,  Godofredo,  na 
ilesavcnça  entre  Guilliernio  de  Normandia,  comlcdc 
Flandres,  com  seu  competidor  Thircry-  dWhacia, 
tomou  o  partido  do  primeiro  ;  porém,  morrcndoGui- 
Ihcrmc  emll"28,  convcnciunou-se  com  Tliicrrv  obri- 
gando-o  a  que  lhe  reconlioccsse  senhoriagem  quniito 
ao»  dominios  de  Alost,  c  que  se  submcltcsse  á  deci- 
vào  do  rei  d'Iiiglalerra  quanto  aos  mais  |iontos  da 
contenda.  Em  virtude  do  mesmo  convciiiu,  Godofre- 
do cedeu  a  villa  de  Dendermonde  em  troca  do  terri- 


tório de  Bouckaut  ou  de  Bouchout,  para  ahi  fondar 
uma  fortaleza  que  podesse,  no  dizer  dos  historiado- 
res, obstar  ás  excursões  dos  flamengos  de  Gand  e  de 
Malines  para  a  banda  de  Bruxellas.  A  construcção 
de  sete  torres  e  de  uma  triplicada  cerca  de  fosso* 
cheios  de  agua  foi  a  origem  do  castello  de  Bouchout, 
que  dêmos  em  estampa  no  precedente  numero.  — 
Porém  este  castello,  como  existe  boje,  não  tem  o 
menor  caracter  de  fortaleza  feudal.  — Os  três  fossos 
reunidos  formaram  um  lago  de  certa  extensão ;  a 
ponte  levadiça  e  a  torre  da  entrada  desappareceram. 
Uma  parte  dos  edificios  actuaes  fora  construida  no 
j  século  passado ;  as  janellas  foram  alargadas  e  postas 
em  symetria ;  a  final  a  cidadella  converteu-se  em 
vasta  e  commoda  habitação,  porém  o  proprietário 
existente,  conde  de  Beauffort,  director  das  Bellas- 
Artes  na  Bélgica,  qnerendo  conservar  a  esta  viven- 
da o  interesse  que  se  liga  a  um  monumento  históri- 
co, o  fez  restaurar  completamente  no  estyio  gothico 
do  renascimento.  Moveis  antijos,  baixos-relevos,  ar- 
maduras, quadros  também  antigos,  vidraças  de  cores 
adornam  o  castello  de  Bouchout :  as  janellas  das  sa- 
las, capella,  bibliotheca  e  galeria  estão  adornadas  de 
retratos  em  pé,  dos  duques  de  Brabante,  pintados 
no  vidro,  edos  soberanos  austríacos  e  hespanhoes  dos 
Paiíes-Baixos,  ou  dos  homens  illustres  da  historia 
belga.  Sobre  o  vasto  e  sumptuoso  fogão  da  casa  de 
jantar  acham-se  as  estatuas  de  Godofredo  obarbudc, 
de  Godofredo  de  Bulhão,  e  de  Filippe  o  bondoso. 
Uma  galeria,  no  primeiro  andar,  encerra  «Tande 
quantidade  de  objectos  raros  e  curiosos,  sobre  tudo 
painéis  antigos  que  representam  personagens  cele- 
bres, batalhas,  monumentos,  e  castellos  os  mais  in- 
teressantes dos  Paizes-Baixos :  notam-se  alli  muita; 
armas  que  serviram  em  Sempach,  I^aupen,  e  outras 
famosos  batalhas.  O  possuidor  de  Bouchout  não  se 
tem  descuidado  de  tornar  importante  para  oarcbeo- 
logico  e  o  artista  esta  bella  propriedade. 


Da  velocidade  do  som. 

NisGiEM   ha  que,   vendo  de  longe  um  artifice  que 
I  bate  com  o  martello,  ou  o  fogacho  de  uma  arma  de 
fogo,  deixe  de  conhecer  que  o  som  che:^  aosou\ido« 
,  passado  certo  intervallo   de  tempo.  Já  no  principio 
'  do  século  X^  II  Merscnne  c  Gassendi  tinham  feito 
alguns  ensaios  para  mc-dir  a  velocidade  do  som,  po- 
I  rém  as  suas  experiências,  como  as  de  outros  physicos 
1  da  mesma   cpocha,    não  podiam    produzir    resultado 
exacto  i   porque  se  desprezavam  muitas  precauções  e 
ignoravam-se  muitas  causas  de  erro  que  3  moderna 
'  sciencia  deu   a  conhecer;   as  expressões  numéricas, 
achadas  pelos  physicos  do  século  \VI1I,  também  pe- 
los mesmos  muti\os  não  concordam  uroas  com  .ns ou- 
tras. —  Longa   seria   a  historia  de  todas  essas  expe- 
riências e  tentativas,  que  desde  17JS  se  fizeram  com 
'  peças  d'arlilheria.  j>orém  como  os  tiros  nãoeram  re- 
cíprocos para   eliminar  a  infiuencia   do  vento,   e  o 
instrumento  dimensor  que   se  in\cntara   ainda   era 
um   tanto   imperfeito,   não  havia  alisoluta  confiança 
nos  resultados  obtidos.    A  sciencia  cmfim  tomou  ti>- 
das   as  precauções,   c  o  in>trnnienlo  calculador  ulti- 
mamente appresentado  por  MM.  Brèiruel  nãooflere- 
co  os  inconvenientes  que  notavam  nos  anteriores. — 
No  calculador  da  invenção  d"e»tes  babeis  machinis- 
las,  o  ponteiro  f.ii  o  gyro  do  mostrador  n"nm  minu- 
to. Kite  jwnteiro  trrmina  pv>r  ura  peqi>onino  orifício 
sobre  o  qual   assenta   um  receptáculo  a  maneira  de 
tigclinha.  que  na  segunda  ligura  se  marca    pda  lel- 
tra  g;  ahi  se  põe  uma  pinga  de  tinta.  Kepresentou- 
'.  SC  o  ponteiro  cm  separado  do  instrumento  n'cstas*- 


o  PAN011A31A. 


229 


'linda  figura  ;  vê-se  por  cima  d'elle  um  braço  cha- 
mado calibrador  l  e  que  acaba  ii'uma  ponta  perpen- 
ilicular  ao  dicto  braço  e  correspondente  ao  buraco 
lio  ponteiro,  ao  qual  segue  em  todos  os  seus  movi- 
mentos. O  calculador  é  munido  de  um  registo  ou 
descanço    (fig.  1  •''  />)■  No  momento  em  que  se  toca 


<%t/ 


tjuj.  2 


no  descanço,  abaixa-se  o  l)raço  superior  ao  ponteiro, 
atravessa  o  orifício  d'este,  e  espremendo  a  tinta 
marca  um  ponto  negro  no  mostrador  ;  o  meclianis- 
mo  do  braço  sendo  completamente  independente  da 
mola  geral  do  instrumento,  não  tem  iniluencia  algu- 
ma no  gyro  do  ponteiro  dos  segundos.  Ksles  instru- 
mentos são  mui  preciosos  para  experiências,  como 
as  de  que  lalliMnos,  que  sempre  se  fazem  de  noite. 
O  observador  v&  o  íogaclio  do  tiro  e  toca  no  descan- 
ço, depois  espera  a  chegada  do  som,  e  apenas  esto 
lhe  bate  no  ouvido  toca  de  novo  no  dicto  registo  : 
então  approxima  uma  lanterna  e  calcula  ointerval- 
lo  <|ue  separa  os  dois  pontos  negros  marcados  no  es- 
malte do  mostrador  :  não  pode  liavur  erro  exceden- 
le  a  um  decin\o  d(!  segundo.  Como  se  marca  o  ins- 
tante do  phiMiomeno  comprimindo  com  o  poUegar  o 
botão  do  registo  ou  descanço  l>,  as  demoras  relativas 
a  i.'sse  instante  teem  sempre  scnsivelmenli!  o  mesmo 
valor  (í  compcnsam-se  st^nsivelnuiiile.  Nos  instrumen- 
tos, relógio»  (eliamenios-Uie  assim),  empn^gados  por 
observadores  |jollaiiil(7.(^s  nas  experií^neiíis  de  2',i  de 
junho  de  ISá j  os  dois  pcjnlos  eram  marcados  por  movi- 
mentos dilVerenles,  o  tpic!  podia  eaus.ir  dillireneas  ; 
inconveniiMile  (|ue  não  se  dá  no  calculador  de  MM. 
Ureguet. 

1'oslo  (|ue  a  seiencia  se  não  di:va  propor  a  outro 
fim  senão  o  conhciiincnlo  das  leis  da  natureza,  tem 
eomtudo  odireilo  de  indie.ir  as  appii<:ii;õis  ulcisdos 
wnis  discobriniiiilos.  Kslando  agora  sul'lic'ieiiteinen- 
t<.'  eonheeiílas  as  leis  da  propagação  do  som,  poderá 
servir  o  calculo  da  veloeid"i|(.  d'(ísle  ]iara  medir  as 
<lislaii(Mas  horlsoulai's  ouolili<|uau  irum  grau  aproxi- 
iiiadamriile  Ijastaiile  eui  grande  numero  de  opera- 
ções geodésicas.  Todo  o  liabalho  d'eíí(e  g(!iiero  lir- 
ma-se  na  medição  de  uma  base,  operação  hmga,  mi- 
nuciosa, fatigadora,  dillliil,  e  innilas  vezes  iiupossi- 
vi|    ,\r  practiear   em   lerrilorios    monlanhusos   u  em 


certas  costas  marítimas.  A  velocidade  do  som  será 
um  meio  fácil  de  medir  essa  base,  quaesquer  que  se- 
jam os  accidentes  do  terreno.  Sobre  tudo  nos  traba- 
lhos hydrographicos  pode  empregar-se  estemethodo, 
e  um  distincto  engenheiro,  Mr.  Chazalon,  teve  essa 
idéa.  Havendo  a  bordo  dos  navios  de  guerra  os  ob- 
jectos roais  pezados  e  mais  caros,  que  para  esta  ope- 
ração se  requerem,  isto  é,  as  peças  do  artilheria  e 
05  bons  chronometros,  não  ha  que  temer  asdespezas 
e  dilficuldades  de  transporte,  que  podem  fazer  recuar 
o  geograplio  que  entra  por  terra  dentro  longe  dos 
caminhos  frequentados.  Supponhamos  um  navio  an- 
corado a  uma  distancia  que  não  deverá  ser  menor 
de  oito  kilometros  (26,6  de  milha)  transporta-se  um 
canhão  para  a  praia  ,  n"uma  noite  própria  para  ;i 
experiência  dispararu-se  vinte  e  cinco  a  trinta  tiros 
recíprocos  do  navio  e  da  praia  ^  e  depois  por  um  cal- 
culo fácil  determina-se  a  distancia  do  navio  ao  ca- 
nhão. Esta  distancia  conhecida  pode  servir  de  base  pa- 
ra a  hydrographia  de  uma  grande  extensão  de  costa. 


A    VINGANÇA    DO   HOMEM    BEANCO. 

Sccna  da  vida  dos  Índios  selvagens  da  America 
Scptemtrional . 


II. 


Embrulhados  nas  suas  mantas,  com  as  espingardas 
ao  lado  escorvadas  de  fresco,  e  as  facas  de  mato  des- 
embainhadas, estavam  os  viajantes  junctos,  deitados 
em  fileira  no  chão,  para  com  algumas  horas  de  soin- 
no  restaurarem  as  forças  dos  membros  cançados  e  so- 
nharem, em  curta  illusão,  que  já  se  achavam  respou- 
sando,  sãos  e  salvos,  soVj  os  tectos  protectores  das  ha- 
bitações das  suas  famílias.  (Auando  as  estrellas  indi- 
caram meia  noite,  os  que  estavam  velando  acordaram 
os  amigos,  para  também  elles  poderem  cerrar  as  pál- 
pebras cluimbadas  pelo  soinno. 

—  "Nada  de  suspeitoso,  Roberto?"  perguntou 
Ilopkins. 

—  "Nada  de  particular,  excepto  alguns  lobos  que 
pela  banda  do  poente  teem  rodado  o  nosso  campo  : 
varias  vezes  os  pude  vêr  contra  o  liorísonte  :,  mas  não 
(piizerain  appro.\imar-se.  .  .  O  lobo  da  Savana  c  co- 
varde. 

—  "  E  estais  bem  certo  que  eram  lobos  ?  disse  de- 
vagar, e  com  ar  significativo,  o  conductor.  Vistes- 
llies  bem  a  figura  ?  .  .  .  a  cabeça  aguda  ?  .  .  .  o  ralw 
pclludo .'  >i 

—  "  Não  .  .  .  isso  não  ,  até  me  parece  (jue  as  ca- 
beças eram  mais  redondas  do  ipie  compridas.  » 

—  "  lloberto  '.  lloberto  !  disse  o  conductor  \  esta  Sa- 
vana ha  doestar  muito  animada  antes  do  romper  ilo 
dia.  l'odereis  ler  razão:,  talvez  que  sijam  lobos  •,  não 
os  pardos  e  inuocentcs  de  Savana,  mas  os  lolnispaco- 
nis,  ou  ainda  peior,  as  pantheras  da  montanha,  os 
sanguinários  l\'s-A'<tjros  .  .  .  i5em  :,  não  nos  hão  de 
surpreudi^v  dormindo  ^  ese  as  hervas  ao  ri^dor  de  mis 
se  tingirem  de  sangue,  não  ha  de  ser  só  nosso.  To- 
mai conta  nos  bacamartes  ;  e  vamos  melter  aseaval- 
gaibiras  no  recinto  do  acampamento.  Se  o  inimigo 
não  for  muito  numeroso,  cachar  as  nossas  cousasse- 
guras,  lalvez  que  não  ataque.  Eu  coiiIu'çoesla  eiiiia- 
Iha  i  são  covardes.  Aonde  não  lia  grande  preza,  e 
onde  os  cscal|ios  lhe  correm  verdadeiramenli- perigo, 
eosluniain  sumir-se  como  o  lolio  <pie  pri>cnlc  o  ci-» 
[111  .  .  .  ([uo  os  leve  o  diabo.  •< 

fonfurnu!  as  ordens  do  iMndmIor  todas  as  bestas 
foram  recolhidas  no  acampainento  o  se  designaram 
os  logarea  onde  caila  um  dos  coinpauheiros  devia  col 


230 


O  PAINORA3IA. 


locar-se  quando  fosse  necessário;  e  logo  se  deitaram. 
Em  ponco  mais  de  meia  hora  o  tranqnillo  resonar 
dos  que  dormiam,  de  quando  em  quando  interrom- 
pido pelos  movimentos  das  cavalgaduras,  mostrou  cm 
quão  pouca  conta  estes  homens,  costumados  a  priva- 
ções e  a  perigos,  tinham  a  vísinhaiiça  dos  seus  mais 
acérrimos  inimigos;  e  que  estavam  habituados  a  dor- 
mirem com  a  faca  de  matto  na  mão  e  a  serem  acor- 
dados pelos  uivos  dos  lobos  e  pelo  grito  de  guerra  dos 
Índios  selvagens. 

Hopkins  porém  melhor  do  que  nenhum  dos  outros 
sabia  o  que  os  esperava,  se  se  deixassem  illudir  pelo 
astucioso  inimigo.  Vivendo  desde  a  infância  entre  os 
exploradores  do  oeste,  tinha-se  familiarisado  com  os 
guerreiros  Índios  e  com  os  seus  usos ;  e  tendo  pre- 
senciado a  matança  de  todos  os  seus  por  um  bando 
de  Sioux,  tinha  jurado  eterna  \inganca  á  raça  ver- 
melha. De  que  modo  tinha  cumprido  este  juramen- 
to mostrava-o  o  terror  que  nos  mais  ousados  fdbos 
do  deserto  causava  assim  o  nome  de  niuo  de  sangite, 
que  os  próprios  Índios  lhe  tinham  posto,  comoú  nun- 
ca, apesar  das  mais  bem  combinadas  emprezas,  o  po- 
derem colher  ás  mãos  ;  de  sorte  que  além  das  quali- 
dades que  o  faziam  temido,  lhe  atfribuiam  poderes 
EobrenafnraCs. 

Como  elle  sa\pia  que  ainda  que  os  inimigos  effdcti- 
vamente  se  achassem  próximos,  e  tivessem  os  seus  es- 
pias mui  perto,  não  ousariam  atacar  antes  do  alvore- 
cer do  dia,  tranquillaniente  e  sem  mostras  do  menor 
receio  ou  agitação  se  dirigiu  ao  seu  posto,  e  deitou- 
se,  como  os  outros  séntinellas  tinham  feito,  na  herva, 
que  teria  um  pé  de  altura.  Poucos  momentos  esteve 
assim  parado,  porque  logo  se  fui  arrastando,  á  ma- 
neira de  gato,  sem  levantar  o  corpo  sequer  uma  pol- 
legada  acima  da  herva  balouçada  pela  viração  da 
noite,  até  um  logar  uns  vinte  passos  maisao  poenie, 
d'onde  podia  bem  descobrir  qualquer  cousa  que  se 
passasse  de  extraordinário. 

Um  silencio  mortal  reinava  na  vasta  e  deserta  Sa- 
vana, só  de  vez  cm  quando  interrompido  pelos  uivos 
de  ul^um  lobo,  que,  desgarrado  do  companheiro  na 
perseguição  de  algum  veado,  procur.iva  os  sons  com 
que  o  outro  lhe  respondesse.  Com  a  maior  attenção 
escutava  Hopkins  eslcs  sons,  para  ver  se  entre  clles 
haveria  algum  si^nal  disfarçado.  Mas  mais  perlo  es- 
tava d'elle  o  inimigo,  do  que  os  habitantes  u^^uaes 
da  Savana  ;  porque  do  repente  quasi  ao  pé  il  elle,  a 
menos  de  dez  passos  de  distancia,  appareceu  muito 
de  vagar  e  sem  fazer  a  menor  bulha,  uma  cabeça  que 
por  algum  tempo  olhou  com  attenção  para  o  logar 
onde  elle  primeiro  se  deitara;  mas  antesqueosenli- 
nella  branco  podesse  tomar  uma  resolução,  a  cabeça 
tornou  a  desapparecer;  e  por  mais  de  uma  hora  na- 
da interrompeu  o  silencio  penoso,  cm  quanto  Hop- 
kins, vendo  confirmadas  as  suas  suspeitas,  evitava  a 
menor  bulha  com  uma  irritação  febril.  A  íinal  levan- 
tou-se  do  nascente  a  estrella  d'alva  ;  e  bem  sabia  el- 
le que  a  sua  sorte  e  a  dos  seus  companlieiros  se  ia 
agora  brevemente  detidir. 

Cora  a  espingarda  cn:;atilhada  esperou  socegada- 
mentc  que  o  inimigo  apparecesse,  e  isto  não  tardou 
muito;  porque  no  mcsniu  ponto  onde  elle  tinha  visto 
a  calieça  <lo  espia,  tornou  ella  a  erguer-se ;  prova  de 
que  nunca  se  linha  retirado  d'aquelle  logar.  Apenas 
porém  Hopkins  recoiíhcceu  a  forma  da  cabeça,  e  a 
madeixa  que  os  selviígcns  nunca  rapanj  noaltod'el- 
la,  logo  o  estrondo  da  espingarda  disparada  interrom- 
peu o  silencio,  caindo  o  inimigo  morto  na  herva  que 
o  encobria. 

Enlào  de  repente  c  como  por  encanto  se  animou 
.•<  Savana  Ioda,  e  ilc  todos  o*  lados  rompeu  o  horren- 
do grito  de  guerra  dos  Pés-Negros,  comu  se  as  regiões 


infernaes  tivessem  vomitado  outros  tantos  demónios. 
Riscos  de  fogo  vermelho  fulguravam  cm  todas  as  di- 
recções; o  estampido  das  espingardas  succedia-secom 
rapidez ;  e  figuras  negras  e  medonhas  corriam  amea- 
çadoras para  o  sitio  dos  carros.  D'entre  ellas  se  er- 
gueu Hopkins,  e  esmagando  a  cabeça  do  que  lhe  es- 
tava mais  próximo,  voou  cem  saltos  enormes  a  unir- 
se  aos  seus. 

Entretanto  os  viajantes  de  Sancta-Fé  não  estavam 
aterrados  com  a  súbita  apparição  dos  selvagens:  ca- 
da um  estava  no  posto  assignado;  e  exceptuando  o 
lado  onde  sabiam  que  estava  o  conductor,  faziam  fo- 
go em  todas  as  direcções,  de  modo  que  o  grito  de 
guerra  de  alguns  dos  guerreiros  pintados  e  ornados 
do  pennas  converteu-se  em  arrancos  de  morte,  porque 
em  quanto  levantavam  o  toraaha^vk  para  disparar 
golpe,  caíam  feridos  das  bailas. 

fcó  junctamente  com  Hopkins  dez  doestas  figuras 
bravias  e  terríveis  romperam,  sem  acharem  resistên- 
cia, até  os  carros;  mas  então  Roberto,  que  com  a 
espingarda  á  cara  tinha  finalmente  reconhecido  afigu- 
ra do  amigo,  disparou  o  tiro,  e  a  baila  atravessou  a 
cabeça  de  um  inimijo.  Xo  mesmo  momento  Hop- 
kins saltou  por  cima  da  lança  de  um  carro,  eambos 
junctos  esperaram  os  selvagens  com  as  facasde matto 
e  as  coronhas  das  espinjarJas. 

Os  gemidos"  dos  feridos  e  dos  moribundos  mistura- 
ram-se  cora  os  gritos  da  fúria  guerreira  dos  pelles  ver- 
melhas, e  por  alguns  momentos  brigaram  brancos  e 
vermelhos,  pé  a  pé,  com  coronhas,  facas  de  matto  e 
tomahawks,  em  quanto  cavallos  e  machos  espantados, 
rinchando  e  ás  patadas  augmentavam  a  confusão  ca 
bulha  infernal. 

Hopkins  repellia  a  iodos  com  a  coronha  da  sua 
pezada  espingarda;  e  tendo  já  morto  o  chefedoban- 
do,  o  astucioso  Fuinha,  a  quem  arrancou  da  mão  o 
tomahawk,  virou-se  para  um  guerreiro  de  figura  es- 
belta, que  já  tinha,  levantado  a  sua  faca  para  lh'a 
cravar  no  corpo,  quando  este,  vendo  o  seu  mortal 
inimigo  tão  perto  de  si,  fitou  os  olhos  n"elle,  ficou 
ímmovel,  e  exclamando:  Mão  de sangtic!  ...  ia  re- 
cuar ;  mas  n'este  momento,  alcançado  pelo  toma- 
hawk, que  Hopkins  tinha  na  mão,  caiu  no  chão 
«ora  a  cabeça  fendida.  Aquelle  nome  temido  operou 
como  um  encanto  nos  grosseiros  filhos  da  Savana  : 
atlonitos  procuraram  subtrahir-sc  eom  rápida  fugida 
a  um  braço  que  elles  reputavam  dotado  de  força  ir- 
resistivel,  e  de  poder  sobrenatural. 

Com  a  mesma  rapidez  e  astúcia  com  que  tinham 
vindo  assim  dcsappareceram  ;  e  um  minuto  depois 
só  se  ouviam  os  gemidos  dos  feridos  :  porém  os  bran- 
cos não  se  fiaram  inteiramente  nVsfa  retirada;  c  o 
sol  nascendo  luziu  nos  canos  das  suas  espingardas, 
tom  que,  ainda  a  cara.  esperavam  .t  cida  momento 
a  volta  dos  selvagens.  Nenhum  porém  appareceu  :  .1 
Savana  jazia  ante  elles.  silenciosa  c  deserta,  imnitr- 
sa  na  refulgente  luz  do  sol ;  e  só  a  lierva  pisada  c 
cheia  de  nódoas  de  sangue  dava  tesfimunho  que  rei- 
naram aqui  as  paixões,  o  olio  e  conjbatc  de  morte. 
i)i  Índios  tinham  levada  ct)msigo  os  seus  mortos  e 
feridos,  e  só  dentro  do  recinto  formado  pelos  carro» 
j.iziara  os  corpos  de  dois,  mortos  j>or  Hopkins;  dVs- 
Ics  elle  lo;o  escalpelou  a  sesrunda  vicliroa.  e  atando 
cÁc  tropheu  ensanguentado  a  sua  cartuxeira,  voltou- 
se  para  ojoven  caudilho,  e  entrelaçava  com  mão  ha- 
bituada a  madeixa  do  fsraípo  nos  dedos  indexe  gran- 
de, quando  o  supposto  motio  abriu  os  scusolhos  gran- 
des c  escuros  e  vazamento  os  poi  n'clle.  .\  primeira 
idéa  de  Hopkins  foi  aniquilar  o  seu  inimigo,  e  ja 
tinha  a  faca  erguida  na  mão,  quando  de  repente, 
mudando  de  tenção,  metteu  a  faca  na  Isiinba,  to- 
mou os  braços  do  selvagem  que,  ainda  atormcctado 


o  PA1N011A3IA. 


231 


da  pancada,  não  estava  capaz  do  resistência,  e  atou- 
llie  as  mãos  ás  costas. 

Pouco  a  pouco  o  caudilho  tornou  a  si,  e  conhecen- 
do a  sua  situação,  ergueu-se,  e  olhou  em  roda  de  si 
com  ar  altivo  e  de  desprezo  ! 

— 11  Ah  !  disse  Roberto  chcgando-se  ao  pé  docap- 
tivo,  de  quem  será  o  escalpo  que  este  malvado  tem 
na  cinta  ?>> 

—  "Onde  está  Thomaz  ?  vociferou  Hopkins  olhan- 
do espavorido  em  roda  de  si  :  Thomaz .  .  .  onde  está 
Thomaz  ? " 

títuatro  dos  companheiros  gravemente  feridos  ja- 
liam  ao  pé  dos  carros;  mas  nenhum  d'elles  era  Tho- 
maz. Levado  de  um  prescntimento  fúnebre,  Hopkins 
correu  ao  iogar  onde  na  noite  passada  tinha  estado 
de  sentinella.  Aqui  infelizmente  se  confirmaram  os 
«eus  tristes  receios^  nadando  em  sangue  jazia  o  ami- 
go morto  a  tomahawk,  e  (Iopu's  escalpelado.  Ran- 
gendo os  dentes,  voava  Hopkins  direito  ao  seu  cap- 
tivo  com  03  olhos  ameaçando  destrui<;ão,  quando  deu 
com  o  olhar  triumphanle  do  vencido  ,  mas  mesmo 
assim  conteve-se,  dizendo  cora  voz  fúnebre  e  que  mal 
se  ouviu  : 

—  «  Vamos  embora.  " 

—  "E  que  faremos  nós  com  este  infame,  que  tem 
no  cinto  o  escalpo  do  nosso  melhor  amigo  ?  hem  ? 
perguntou  com  gestos  raivosos  o  velho  Roberto.  Co- 
mo te  veio  á  idea  poupar  este  assassino,  que  dez 
mortes  merece?  tu,  o  que  até  agora  perseguias  tudo 
que  se  parecesse  com  unja  pdle  vermelha,  como  se 
a  tua  salvação  dependesse  d'ahi?" 

—  "Ha  de  morrer  dez  vezes,  disse  Hopkins  com 
um  riso  rouco  ;  mas  não  pelas  nossas  mãos  :  vamos 
leva-lo  ás  plantações.  )i 

—  "O  que?  ás  plantações?  disse  Roberto  gritando 
e  quasi  fora  de  si  :  para  lá  o  encarcerarem,  processa- 
rem, e  de|ujis  sollarem  com  uma  reprehensão  pater- 
nal ?  Inferno  e  diabos!  Hopkins,  já  to  não  conheço.  " 

—  "Knluoouçai  disse  o  eonductur,  cujas  feições 
tomaram  uma  expressão  venlaileiVanicnle  diabólica, 
apertando  rijamente  o  braço  de  Uolierlo.  Sabeis  (|ue 
ódio  eu  tenho  jurado  a  estes  cães  vermelhos  ,  não 
ignoraes  o  motivo  dVUe  ;  mas  de  que  me  sorve  mais 
uma  viclima,  so  cu  o  matar,  e  jiinclar  o  seu  escalpo 
aos  C5  que  estão  pendurados  na  minha  cabana  ?  é 
mais  um  só;  mas  devem  morrer  centos...  millia- 
res  .  .  .  antes  que  eu  julgue  a  minha  vingança  sacia- 
da. Olhai,  se  nVsle  único  individuo  eu  (lodesi-e  ex- 
tinguir a  raça  toda,  então  veria»,  Roberto,  então  ve- 
rias com  que  delicia  eu  o  sacrificava  ás  cinzas  de 
meus  pai»;  nias  mesmo  assim  me  ha  de  servir  para 
tm  alcançar  o  meu  fim.  " 

—  "Ah!  disse  Roberto,  presentindo  delongo  a 
intenção  do  conductor ;  é  para  elle  levar  as  bexigas 
á  sua  triliii.  i, 

—  "Adivinhaste;  disso  Hopkins sorrindo-se.  Infi- 
cionado com  esta  peslc  assoladora,  poderá  tomar  as 
suas  armas,  c  montar  n'iim  dos  meus  :Mvallos  mais 
ligeiros  .  .  .  ti.rá  liberdade  .  .  .  i;  o  esi)irilo  da  vin- 
gança guiará  os  «eus  |)assos  o  protegerá  a  sua  jorna- 
da paru  que  enj  pouco  tempo  clicgue  ao  Iogar  do  seu 
povo.  E  i|uando  o  meu  ])lano  se  realisar,  (piando  o 
veneno  ])ara  que  elles  não  coniicceiH  remédio,  lliea 
roer  as  <'nli:in|]as,  e  extirpar  famílias  e  povoações  — 
enião,  Itobcrto  —  então  direis  qu(!  teidioeumpri<lo  o 
meu  juramento,  c  (pic!  tenho  pago  ao  menos  \ima 
parle  da  divi<l.i  (pie  eonlrahi  ciim  i'stes  monstros  ver- 
m<:lhos,  t< 

Atlenio  (piiz  o  m.incilii)  indio  peneirar  o  senlido 
lias  palavras  dn  seu  iuimi;;'o;  mas  não  enlcndiMido  o 
inglez,  e  vendo  <pie  im  seus  senhores  se  |)i('paravain 
para  mareharem,    [iresuniiu  i|ue   o  huviani   ile  levar 


t  até  Bs  suas  habitações,   e  que  o  queimariam  vivo  na 

estaca  do  martírio;  mas  firmemente  resolvido  a  mor- 
rer como  um  homem,  qualidade  que  elle  acabara  de 
adquirir  pela  conquista  do  escalpo  que  ainda  tinha 
pendurado  á  cintura,  quando  o  pozeram  em  um  dos 
carros,  entoou  os  seus  cânticos  de  guerra  e  de  escar- 
neo,  relatando  o  numero  de  caras  pallidas  que  seu 
pai  matara  nus  combates,  e  cujos  escalpos  estavam 
pendurados  no  seu  wiguam. 

Os  viajantes  de  Sancta  Fé  entretanto  enterraram 
o  camarada  morto,  apparelbaram  as  cavalgaduras,  e 
accommodaram  cuidadosamente  os  feridos  nos  carros, 
confiando  a  guarda  do  indio  captivo  á  vigilância  de 
Roberto.  D'este  modo  se  poz  a  caravana  a  caminho, 
e  em  poucos  dias  chegou  ás  fronteiras  do  Estado  do 
Missouri. 

Três  mezes  depois  voltavam  os  mancebos  Pés-Ne- 
gros  da  sua  expedição.  Tinha  ella  sido  feliz,  porque 
apesar  do  terem  perdido  o  seu  caudilho  e  mais  oito 
companheiros,  a  fortuna  poucas  horas  depois  os  le- 
vou a  encontrarem  rasto  de  uma  caravana  hcspanho- 
la  que  conduzia  uma  manada  de  machos  para  os  Es- 
tados-Unidos.  Tornados  mais  prudentes  pela  perda 
que  acabavam  de  soflrer,  seguiram  os  rastos  dias  a 
fio,  espiando  de  noite  o  campo  dos  hespanhoes,  até 
que  estes  u'uma  noite  fria  e  chuvosa  se  esqueceram 
de  tomar  as  cautelas  indispensáveis,  e  pagaram  com 
a  vida  esto  descuido.  Ornados  com  grande  numero 
de  escalpos,  e  guiando  diante  de  si  os  machos  que 
haviam  tomado,  com  os  corações  alegres  e  entoando 
e.inticos  de  triumpho  chegavam  os  l'LS-yctjros  á  sua 
aldeia. 

Cânticos  fúnebres  e  vozes  de  desesperação  saíam 
dos  vviguans  onde  tinham  nascido:  innumeraveis ca- 
dáveres, empestando  o  ar,  jaziam  ao  longo  do  rio 
Alaria  :  —  todos  os.  laços  de  família  se  achavam  dis- 
solvidos: as  bexigas  grassavam  coui  irresialivel  fúria 
entre  os  filhos  vermelhos  da  Savana;  e  a  muito  cus- 
to poderam  obter  algumas  noticias  por  uma  das 
stjuaws  (nuillieros  Índias). 

Havia  semanas  que  ojovcn  caudilho  Fuinha  tinha 
chegado  á  povoação  montado  irum  cavallo  allicio,  e 
coberto  de  escuma  ;  mas  apenas  linha  força  jiara  se 
segurar  na  sella.  Os  seus  mend)ios  tremiam  e  o  san- 
gue g^rava-lhe  nas  veias  com  o-ardor  da  febre.  Nin- 
guém poudo  atinar  com  o  motivo.  uO  es])irito  máu 
lhe  tinha  deitado  o  seu  bafo,  e  lhe  tinha  crestado  a 
pclle.  " 

O  jovcn  Fuinha  havia  morrido  três  horas  depois 
de  chegar,  e  os  qUe  o  enterraram  logo  adoeceram  ;  o 
mesmo  aconteceu  em  todos  os  casos  que  se  foram  se- 
guindo, até  que  os  pol)res  Índios  começaram  a  crer 
que  era  castigo  do  Grande  Espirito  jior  terem  enter- 
rado os  mortos.  Por  isso  guardaram  os  cadáveres; 
mas  d'alii  residtou  nova  epidemia,  ijue  ameaçava 
extinguir  a  tribu  inteira.  A  isto  se  junctava  o  modo 
de  traetar  a  doença,  meltendo  os  enfermos  em  estu- 
fas, c  d'ahi  na  agua  fria  do  rio,  além  dacireuinslan- 
eia  que  as  bexigas  nos  povos  (|ue  (piasi  somente  vi- 
vem d(?  carne,  como  todos  os  selvagens  da  America 
Septcnilrional,  ijuasi  ijue  não  lêem  cura. 

Dilirio  e  pavor  se  apoderou  por  fim  dos  poucos 
que  ainda  viviam  :  fugiram  jiara  as  brenhas  da  ser- 
ra bravia,  di'i\ando  os  restos  inorlaes  dos  seus  para 
[iHslo  dos  lobos  o  dos  açores. 


l'or  mnilos  aiinos  nenhum  indio  ousou  pisar  este 
l(>riitoiio  infislado  prlos  espíritos  ináus  :  mas  quan- 
do na  primavera  logo  seguinte  a  neve  se  linha  ilei- 
rclido,    e  hervas  viçosas   e  variailas  IhUes   do  campo 


232 


O  PANORAMA. 


tinham  crescido  entre  os  esqueletos  e  os  wiguans  ar- 
ruinados, viu-se  no  centro  d'aquolle  districto  uma 
fogueira  solitária,  que  com  suas  chammas  espalhava 
um  reílexo  tremulo  e  lúgubre  sobre  aquellascena  de 
destruição.  Só  um  caçador  branco  estava  deitado, 
sem  se  mover,  ao  pó  do  lume,  com  os  olhos  nobrazi- 
do  cm  apparento  apathia  ;  movendo-se  apenas  quan- 
do, aíTrouxando  a  labareda  por  falta  de  lenha,  o 
obrigava  a  tirar  alguma  madeira  do  wiguam  que  ti- 
nha ao  lado. 

Os  olhos  d'este  homem  não  se  fecharam  em  toda 
a  noite ;  o  quando  o  sol  nascente  dourava  cm  todo  o 
seu  brilho  as  pontas  das  arvores,  elle  se  levantou, 
lançou  um  ultimo  olhar  de  exame  em  roda  de  si,  e 
parecia  querer  contar  os  montes  de  ossos  :  mas  sen- 
tindo então  como  um  calafrio  interior,  embrulhou-se 
mais  na  manta,  segura  por  uma  cinta  á  maneirados 
Índios,  poz  a  espingarda  ao  hombro,  e  dirigiu-se pa- 
ra o  lado  do  nascente. 

I'".ra  este  homem  o  mão  de  sangue. 

(Traduzido  do  allemuo.) 


Agua  doce  ko  fundo  do  mak. 

Existem  fontes  de  agua  doce  no  fundo  domar,  pró- 
ximo ás  ilhas  de  Babarem  e  de  Ared,  que  estão  si- 
tuadas nas  visinhanças  da  costa  do  sul  do  golplio  pér- 
sico. A  ilha  de  Babarem  é  pouco  alta  c  mais  fértil 
do  que  nenhuma  das  outras  do  mesmo  golpho ;  ap- 
presenta  numerosas  e  bellas  espessuras  do  palmeiras, 
e  n^ella  se  acha  agua  potável  mui  pura  n"unia  gran- 
de bacia  que  tem  a  nascente  pouco  distante  da  villa 
de  Monama.  Quando  o  capitão  Maughan  largou  de 
Babarem,  em  1828,  estavam  de  posse  da  iliia  osou- 
tobís,  tribu  árabe  do  próximo  deserto,  assaz  podero- 
sa. A  perto  do  milha  e  meia  da  primeira  acba-se  ou- 
tra iliia  pequena,  por  nome  Ared,  ilhéu  mui  razo  e 
coberto  de  areia,  só  com  raras  palmeiras  e  uma  al- 
deota de  cabanas  de  pescadores.  A  enseada,  onde  os 
navios  se  podem  abrigar,  alarga-se  entre  as  duas  illias, 
das  quaes  por  um  lado  e  outro  saem  penedias  de  mui- 
ta extensão :,  a  profundidade  da  enseada  é  de  três  a 
quatro  c  meia  braças,  com  fundo  de  areia  ao  poente 
e  ao  norte  de  Ared  ;  a  alguma  distancia  da  custa  ha 
fontes  de  agua  doce  que  sácm  de  roeliedos  submari- 
nos, sobre  as  quaes  ondeia  a  agua  salgada  até  a  pro- 
fundidade de  uma  a  duas  braças,  conforme  as  marés. 
Algumas  dVsfas  fontes  ficam  perto  da  praia,  e  os 
pescadores  alli  vem  encher  sem  difficuldade  os  seus 
odres:  ha  porem  outras  mais  arredadas  de  terra;  c 
quando  os  pescadores  portcndem  fazer  aguada  guiam 
o  seu  batel  |)ara  juncto  de  uma  d'essas  fontes;  um 
Iiomcm  da  companlia  deita-seao  mar  e  mergulha  com 
nm  odrv  ou  folie  de  pelle  curtida  de  carneiro  ou  ca- 
bra, tendo  o  cuidado  de  virar  a  bocca  d'esla  vasilha 
para  cima  da  nascente,  e  basta  a  violência  com  que 
esta  brota  para  o  encher  logo;  o  mergulliador  volta 
ao  lume  d'agua,  e,  despejado  o  odre,  continua  o  mes- 
mo serviço  em  (juanto  é  preciso.  Estes  homens,  pela 
maior  parte,  não  se  occupam  senão  da  pesca  das  pé- 
rolas, i-  estão  habituados  a  mergidhar  doze  c,  ás  \c- 
les,  ipiatorze  braças.  O  capitão  Maughan  refere  que 
existem  mais  de  trinta  fontes  como  estas  nas  cerca- 
nias d'aquellas  duas  ilhas. 

Na  Europa    nota-se    um    semelhante  phenomeno.  | 
ainda  mais  saliente.  Em  Spozzia,  um  dos  bellos  por- 
tos do  Mediterrâneo,  pertencente  ao  território  da  an-  I 
tiga  republica  gcnovcza,  ha  vima  fonte  de  agua  doce 
que  rebenta   do  meio   do  mar   a  pouca  distancia   da 
praia,   com  uma  força  tão  prodigiosa  que  fai  cachão  I 
acima  das  ondas,  e  quando  fuzbonvnçaaltcia-scqua- 


si  um  palmo  sobre  a  agua  do  mar  ;  tem  de  diâmetro 
obra  de  cinco  palmos.  Julga-se  que  procede  de  uma 
quantidade  immensa  de  aguas,  que,  não  achando  saí- 
da nas  montanhas,  se  despejam  em  alguma  grande 
cavidade  dos  Apenninos,  de  forma  afunilada,  e  pene- 
tram por  infdtração  até  por  debaixo  do  mar,  e  su- 
bindo obedecera  ás  leis  da^ua  força  e  da  gravidade. 


O  JciZO   FINAL. 

Serí  chamado  a  juizo  o  religioso,  o  sacerdote. 

li  Dá  conta  do  ten  estado :  reduzi-te  da  confusão 
do  mundo  para  o  socego  da  religião ;  communiquei- 
te  o  claro  conhecimento  do  que  é  Deus,  e  do  que  é 
o  mundo;  puz-te  no  caminho  mais  seguro  da  gloria; 
dei-te  os  auxilies  mais  proporcionados  á  tua  salva- 
ção. E  como  correspondestes  a  tanta  misericórdia  ?  •• 

Será  chamado  a  juizo  o  monarcha,  o  príncipe,  o 
senhor. 

"Sendo  igual  a  todos  por  natureza,  eu  te  fiz  a  to- 
dos superior  por  dignidade.  Como  me  agradeceste  es- 
te beneficio?  » 

Será  chamado  ajuízo  o  que  possuía  muitas  rique- 
zas, o  que  logrou  muitos  annos,  e  assim  lodosos  que 
receberam  especiaes  benefícios  da  mão  de  Deus. 

"  A  juizo  '.  Todos  a  juizo  '. 

"A  ti  te  dei  as  riquezas  que  possuíste,  vivendo  tan- 
tos visinhos  teus  em  pobreza.  A  ti  te  dei  largos  annos 
de  vida,  quando  tantas  llòres  se  cortaram  em  sua  pri- 
mavera. A  ti  telivreid'esta,  d'aquella  doença,  quan- 
do outro  acabou  da  mesma  enfermidade. 

"A  ti  livrei  da  justiça:  a  ^i  de  um  peri;o :  a  ti 
de  um  naufrágio.  A  ti  dei  a  fazenda  :  a  ti  a  saúde  : 
a  ti  a  sabedoria  ;  e  finalmente  a  vós  todos  dei  o  co- 
nhecimento da  minha  fé,  quando  por  falta  d'cste  be- 
neficio se.eondemnam  tantos  hereges,  e  se  perdem 
tantos  bárbaros  .  .  . 

"  E  como  correspondestes  todos  a  tantos  beneficíos  .' 

"(Auando  todas  estas  mercês  vos  haviam  deporem 
maior  obrigação  para  me  servirdes,  d"ahi  mesmo  ti- 
rastes matéria  para  me  uflenderdes ;  da  riqueza,  do 
valor,  da  saúde,  da  dignidade,  tomastes  occasião  pa- 
ra maiores  oflensas,  quando  o  haviam  de  ser  J»ar3 
maiores  serviços  .  .  . 

"E  assim  se  pagam  os  favores.'  Os  beneficíos  a'- 
sim  se  correspondem  '  l'ois  á  medida  das  mercês  se 
executam  as  penas,  e  os  castigos  á  medida  das  mise- 
ricórdias ..." 

Oh  quantos  estimaram  não  ter  gozado  n'csta  \  ida 
tantas  felicidades,  por  não  ter  tanto  de  que  dar  con- 
ta na  outra  vida  !  .  .  . 

EvsEBlo  DE  Mattos  —  l*racl. 


N.\o  ha  fundo  de  agulha  que  seja  mui  pequem)  par.i 
dois  amigos;  para  dois  inimigos  não  basta  a  exten- 
são do  mundo. 

O  HOME.M  é  sábio  quando  busca  a  sabedoria,  louco 
quando  crê  tè-la  encontrado. 


São  convidadas  os  senhores  cujns  tíssignaturas. 
por  serem  de  semestri'.  ucafuiram  em  o  A' "20. 
ri  renova-las  na  Typographia.  Largo  do  Con- 
t(idor-3I(ir  «."  1  .1.  piidemld  das  /'ruiiiiríus  di- 
rigir-se  em  aula  franca  á  —  UedacoSo  do  Pa- 
norama. — 

Preiy  das  Assigna(uras  por  anuo.  .  1,^200  r$. 

Dito  por  semestre ^S  G  iO  " 


30 


o  PANORAMA. 


233 


BERNABDO   JUSSIEU. 


i)  iiijsr.i  ilMiistoria  natural  de  l'arís  6  o  mais  vasto 
cstahelcciíiientij  qiiu  se  tem  consaf^rado  ú  stiiiuia  ila 
iinturcza  ,  imiierão  oxislir  (dizia  (-'iivier)  collec(,rjes 
iiiaih  <(iin|il('la»  iiiianlo  a  ocrto»  ramos,  ma»  ii<M)hii- 
iiia  |)or  ccrlo  lia  «juc  apprcsciiti!  iiin  conjiiiiclo  (i<i 
íiiiios  os  (ia  scicncia  iiicllidrori^aiiisado  c  (.■()m|)iisto.  Dc- 
iioiniiiaiii-iru  t;«ralrm'iiti'  o  Jardim  das  iMaiitas,  cm 
razão  d'csta  parti;  impcirtaiiti-  (jiic  c'om|ircli<Mid4' mais 
de  ciiicociita  ^'liras  Iranccza»,  iiaqiial,  liem  comocin 
■  ■sliifas,  •'í;iialiiii-iil<;  iiiiiiKTosaH  e  vastas,  si;  ollcreoeiíl 
á  vista  mais  di;  sotc  mil  rspecirs  di;  [)iaiitas  na  sua 
vi'^ftacão,  assiiciaiidosi;  alii  i'm  pátria  adoptiva  as 
lialiilaiiti's  dos  dillrmilcs  climas;  ti-rrrnos  <'S|)(;t'iaes 
i'»tã(i  reservados  ás  plantas  ntiis,  e  ás  arvorrs  1'ructi- 
leras  on  (loreslaes.  Um  amplíssimo  patro  de  liiclios, 
<|iie  fica  ao  lado  do  jiirdim,  conserva  «ontimiamente 
iMiii  i^ramlc  e  variada  ipiaiilidade  dcanimacs  vivos, 
transportadot  de  todasas  rei^iôcs  :  clcplianliis,  camvl- 
io»,  /clira»,  lliiimas  do  l'orú,  kaiigurnues,  fçiwellas, 
leões,  lij^res,  toda  a  custa  <l(!  pantlicras,  macacos, 
etc,  alii  purinaneccin,  8(!i\do  revezados  os  tvposi|iie 
|ierecRn\,  para  ipie,  depoiu  deterem  sido  olmervudos 
em  vida  pelos  naturalistas  relativamente  aoshaliitos, 
rorne(,'am,  i|iiando  mortos,  aos  anatómicos  oliserva- 
òcs  não  menos  imporlantes  peloi{iic  toca  á  or!;aiii- 

VoL.   1.  —  Auiiii.  II,   INlT. 


sacão  animal.  Os  fçabinctes  de  producfos  preparado» 
ap|)rcsentain  em  liellissima  ordem  (planto  lia  que  i\ 
iiatiir(;za  crie  ([ui;  possa  conservar-se.  A  collec(;ão dos 
(piadnipedes  ú  superior  a  todas  que  n^cste  Renero  se 
conhecem-,  as  outras  classes  são  da  mesma  fiirma  ex- 
tremamente ahiindantes  eriças;  os  herbarios,  viven- 
do ainda  Cuvier,  continham  acima  de  vinte  mil  es- 
pécies de  plantas.  —  Kste  jardin\  data  a  sua  origem, 
mas  ténue,  desde  o  reinado  de  Luiz  XllI.  Foi  il 
administrai.ão  do  famoso  e  eloipicnte  Jor;;e  Luíii  IjC 
(,'lerc,  mais  conhecido  pelo  sen  titulo  de  conde  de 
Hullon,  que  no  meiado  do  século  passado  deu  vÍ!;o- 
roso  impulso  a  i;ste  grande  estabelecimento,  o  (piai 
desde  então  não  fein  cessado  de  enri(inecer-se  ;  por- 
(pianto  circnmstiinci.is  favoráveis,  como  os  resultados 
das  via;.;ens  e  explorai;ões  recentes,  o  tem  elevado  ao 
duplo  depois  da  morte  d'a(pielle  homem  celebre. — 
Outro  sábio  naturalista,  fieoUVoy  de  St.  llil.iire,  hu 
pouco  fallecido,  a  (|uem  ItulVon  chamou  como  cha- 
mara Daubenton,  com  graiidissimas  dili_q;encia»  eon- 
sci;uiu  auf^meiítar  o  innseu  em  ^eral,  mas  particu- 
larmente na  curiosa  collec(;i1o  de  aninnics  vivos,  c 
na  (los  animaes  empalhados,  que  é  hoje  o  modelo 
n'esle  i;enero. 

O  ensino  das   scicncias  naturaci   ettú  distribuído 


234 


O  PAJNORA31A. 


por  tliflereiítfis  caJeirHs,  cujos  professores  adminis- 
tram em  commiuri  o  estabelecimento  sob  as  ordens  n 
a  inspecção  <lo  ministro  do  reino.  Homens  distinctos, 
"loria  da  França,  teein  pi-rtencido  a  esta  brilhante 
eschola,  e  lons^o  seria  ennmeral-os^  de  bastantes  já 
por  veies  lemos  fallado,  mais  on  menos  extensamen- 
te, nas  series  dVste  jurnal.  Os  dois  Jnssieu  não  fo- 
ram dos  menos  notáveis.  Bernardo  de  Jussieii,  de- 
monstrador de  l)i)taiiica  no  jardim  das  plantas,  e 
membro  da  Academia  dasScieiícias,  fui  um  d^es^es 
])Iiilosopboi  práticos  que  dedicaram  ávida  inteira  ao 
estudo  e  ;'i  virtude,  em  ^ilencioso  retiro  das  turbu- 
lências das  paixões  politicas  e  das  ambições  munda- 
nas. Adquiriu  salii^r  immeiísu,  fez  importantes  des- 
i.-obrimentos  ua  sciencia,  mas  deixou  poucas  obras; 
porém  a  sua  memoria  é  prezada  de  numerosos  discí- 
pulos, muitos  dos  <]uaes  se  illuslraram  na  mesma 
i-arreira,  e  que,  polo  frncto  das  lições  de  tão  conspí- 
cuo mestre,  elieij;araMi  a.eminentes  lugares  noniagis- 
terio,  —  IScrnardo  de  Jussieu  falleceu  em  1777. 

António  Lourenço  de  Jussieu,  sobrinho  e  discípu- 
lo do  precedente,  unidos  primeiros  botânicos  da  nos- 
sa idade,  é  auclor  do  iuiporlanie  livro  Famitius  na- 
turaes  das  /i/uii/as:,  elle  próprio  confessa  serdevedor 
u  seu  tio  das  primeiras  idéas  d'e»fa  obra  clássica. 


(JniO     VELUO    KÃO    CA^ÇA. 

(Ri;mance  Histórico.) 

ltdioduc£uo. 

Cura,  cbe  di  timor  ti  nutri  e  cresci. 
Petrarcua  —  SliicI. 

Abuindo  em  um  capitulo  o  Nobiliário  altrilmido 
ao  conde  1).  l'cdro,  aclui  a  tradição  do  rapto  de 
O.  Maria  l'aes,  ainanti;  de  Sancho  I,  por  Gomes 
ÍAiurenço  da  lamilia  do  faUiOio  Vie;;as  de  Uiba-Dou- 
ro.  denominado    poios  cbrouistas  o  Jispadciíu. 

Lo<;o  á  primeira  leitura  me  travou  o  sabor  míti- 
co, mas  agradável,  das  historias  populares  cantadas 
com  a  ingenuidade  dn  velho  eslylo  palriarchal.  O 
quadro  do  L,ivru  das  L/iuhngtits  lend>ra  aquelles  pai- 
néis dos  llaiin-ni;os,  amide  ciim  siniplera  e  naturali- 
dade, demasiada  as  \ezes,  as  figuras  de>tacam  [lara 
conversar  o  serão,  illuininadas  pelachamnia  que  ar- 
de nas  gotliicas  chaminés. 

Pelo  menos  |)roiiu/.iu  em  mim  etleefleilo.  Por  mo- 
mentos cuiis(dei-me,  respiraiuio  o  ar  uspcro  em  que 
foi  creada  a  infância  de  Portugal. 

O  colorido  do  estalo  é  antigo,  e  incorrecto  o  de- 
senho das  btenas.  K  verdade  ;  mas  toques  e  physio- 
numias  ha  alli  que  hoje  se  não  encontrarão,  a  não 
ser  em  alguns  retábulos  da  eschola  chamada  de  Gião- 

O  drama  c  a  noveila  histórica,  se  quizerem  a  hon- 
ra de  naciuUiies,  devem  eétudar  muitas  d'eslns  len- 
das do  Nobiliário,  e  repa^sar•se  n'eilas  do  espirito 
das  epcciías  passadas.  Aquelles  retr.itos  quasi  ap.i- 
gados  já,  aniiiia-us.ainda  um  resto  da  alma  da  vida 
e  das  crenças  dos  primeirosseculos.  Pedaços  do  gran- 
de espelho  em  que  ellcs  se  encravam  é  necessário 
ajunctal-us  c  cmbelicl-us  na  muldura  moderna  para 
tornar    a   vCr  alguns  dos  seu>  defeitos  o  bellcl.is  (\). 


'  Na  tradição  de  Maria  Paes  sente-se  isto.  A' excep- 
ção de  duas  situações,  tudo  o  mais  levou  a  torrente, 

■  que  tanto  monumento  precioso  tem   varrido. 

Também  ignorámos  quasi  todas  as  circumstancia» 
do  louco  amor  quearrojou  ocavalleiro  a  forçar,  não 
qualquer  dama  (o  que  era  então  vulgar),  mas  a  aman- 
te do  rei  Sancho  I.  Apesar  de  ter  o  corpo  agrilhoa- 
do ás  parede*  do  tumulo,  a  sombra  irritada  do  ven- 
cedor de  Silves  devia  ainda  arrefecer  a  audácia  do 
i  homem  que,  pisando  as  soascinzas  quentes,  Ihepro- 
'  fanava  as  intimas  affeições  da  vida. 

A  não  existir  uma  causa  poderosa,  afrever-se-hia 

■  o  Ímpeto  dos  sentidos  atai  evtremo?  Parece-meque 
não.  Gomes  Lourenço  em  Avellans  nada  mai>  feidu 
que  revelar  a  desesperação  de  alTectos  mal  retribuí- 
dos ou  completamente  desprezados. 

O  ndio  de  raça,  o  detdem  de  mulher,   e  o  escar- 
1  neo,  mais  pungente  que  ambus  juuclos,    bordaram 

■  de  escuro  a  tela  em  que  esses  amores  se  despregaram. 
E  o  que  indiía    a  própria    reconciliação,    depois  di> 

■rapto,  fingida,  vé-se  bem,  para  a<lormeeer  o  caval- 
!  u-jro  nos  braços  da  esperança,  earrastal-o,  enganado. 
la   morrer  da  morte  dos   traidores. 

De  que  maneira  o  coiiSe:;uiu   Maria  Paes? 
l',sle  segredo   cumeu-o   a  terra  com   as  entranhas 
I  dos  auctures  do  crime. 

Kntretantii  uma  conjectura  pouco  arrojada  oflere- 
ce  a  mais  plausível  explicação.  E  natural  que  re- 
presentando a  comedia  do  amor  que  não  sentia,  e 
embalando  Gomes  Luureuçu  com  promessas  e  jura- 


{\)  O  vel(l.i(Jeiro  cancler  i\o  I.irrn  ilns  J.inhngens  li- 
xou-o,  com  a  sua  iiislum:i'l:i  crilica  e  eru(hi,aio,  o  meu 
.imiao  o  S1-.  Alexaniire  llercul.inn  em  o  I  °  volume  J-i  His- 
torin  de  Porlugal,  moiiimiento  de  gloria  para  elle,  e  de  ufa-: 
nia  par.i  a  nussa  líileratura. 

>i  U  Liirn  'las  l.i-ihagcns,  que  aiiiil.i  hoje  existe  na  Tor- 
re do  Tonibo,  itlribuiilo  ao  coiule  U.  1'eJro,  c  que  não  é 


mais  que  um  composlode  diversas  memorias  genealógicas, 
escriptas  em  epochasdifferenles,  e  mnl  coordenadas,  pro- 
vavelmente nos  meados  do  século  XV,  estabeleceu  a  opi- 
nião, ele.  »   (Nrita  14."  pag.  47o  in  priíiclp.) 

Na  conlusão  daRabel  genealógica  (assim  lhe  chama  o  Sr. 
Herculano  n'oulra  parle)  apparecem  a  cada  pa&so  claros 
siynaes  Ue  lacunas,  ou  Dlhas  do  obscuro  narrar  dos  primei- 
ros eollectores,  ou,  o  que  é  mais  provável,  por  jí  correrem 
desfiguradas  as  memorias  oa  lembrança  dos  velhos,  archi- 
vo  incerto  e  transitório.  Se  ás  injurias  do  lempu  accrescen- 
tarnioso  descuido  dos  copistas,  pouco  admirará  que  as  no- 
tícias hebldas  em  tonles  turvas  e  lançadas  em  diversas  epo- 
chas,  alterando-se,  passassem  mutiladas  da  tradição  oral 
para  a  tradição  escripla. 

K  o  que  se  observa  no  capitulo  em  que  vem  o  raplo  de 
Maria  Paes  Ti-opeça-se  a  cada  linha  em  erros  e  difliculda- 
des  insuperáveis;  pungue  de  um  drama  completo  apenas 
recolheram  incertos fragmenlos.  Só  iluusscenas  escaparam 
inteiras,  e  a  ullima  com  evideiiie  falsilicação  :  as  circnm»- 
lancias  de  que  ali  se  reveste  o  assassinio  de  Gomes  Lou- 
renço são  inconciliáveis  com  o  caracter  <lo  rei.  com  as  leis 
d'a(|ijella  sociedade,  e  alé  com  o  senso  commuiu. 

Kpor  isso  que,  loina.ndodo.\»2>/<i()riffa  leia  já  preparada, 
nos  aparlamos  d'elle  em  quasi  ludoo  que  pertence  ao  la\or 
do  enredoe  ao  desenlace  da  acção,  respeiljudu sempre  o  que 
resta  do  primitivo  desenho  das  phvsioiiumias,  ns  vezes  adoií- 
ravel,  e  conservando  a  eôrantiya  que  em  muitas  pnrlesiesu- 
ina  das  mesmas  innovações  com  iiuh  o  fur-im  cji^tndoe  as- 
sarapintando  decimadas  de  ocre  e  vermelhão  restaurador. 
Aproveitámos  igualmente  com  reii^iosa  diligencia  loJos 
os  clarões  históricos,  quedVspaço  a  es|iaço  alegram  a  mo- 
notonia dasenfadonh-is  ladainhas  ;:ene.iliij;icas.  Ksles  cla- 
rões, infelizmenle  rarus,  são  impurlaules  para  adiinihar  o 
«  viver  e  crer  "  de  séculos  mortos. 

N'este  sentido  e  immenso  o  valor  dú  \abiii»rio.  Sem  «lie 
é  diflicultoso  que  se  eviíe  o  absurdo  'le  atlribuir  ás  ttiia  - 
ções  da  idade  media,  a  pretexto  de  lhe  polir  a  harl':i.-j3, 
I  idéas  e  cnslumes  gue  n;io  foram  seus,  e  virtude^  que  lii,, 
'  não  conheceu,  nem  po  iia  conhecer  u.i  preversao  mor  d  do 
1  existir  de  soldado  nos  arraiaes,  eda  rudera  feruz  das  clis- 
i  ses,  mesmo  elevailas.  Quem  não  pôde  fjier  d.is  anlis<!i- 
'  dades  pátrias  o  esiudo  e\oiu.<iivo  da  >idji,  acha  nu  M^hilia- 
I  ria,  expurjiando-o  ile  fahuias  insensatas,  algumas  feições 
i  dVssas  epochas,  hoje  deácouhecid.is. 


o  PANORAMA. 


235 


mentos,  oatrahiíse  aoslaro?  qiiefecíra  d'acordocom 
os  parentes,  (iuem  reflectir  no  caracter  de  Maria 
Pa^s,  esboçado  com  tanto  vigor  iw  JÂvro  das  Linha- 
gens, ha  de  concordar  com  fsfa  liy[iotliese.  Mí-btra 
na  horrível  sciencia  da  hypocrisia  e  da  perfídia,  e 
batendo-lhe  no  peito  o  coração  de  uma  raça  impla- 
cável, os  encantos  da  belleza  escondiani  o  espirito  de 
um  demónio.  Era  a  alma  e  a  formosura  da  piedosa 
rainha  Leonor  Telles. 

A'  versão  do  íitibiliario  so?)re  a  morte  de  Gomes 
Lourenço  preferin-te,  por  maisadeqiiado  á  invenção 
poética,  e  mais  conforme  aos  costumes  do  século  o 
desenlace  que  figura  neste  romance.  O  papel  que  lá 
se  dá  ao  rei  de  Jjeão,  e  a  justiça  arrebatada  attri- 
buida  a  AiVonso  II,  oppoeni-se  demasiado  aos  usos 
do  tempo,  para  ao  menos  serem  verosímeis. 

Lini  dos  Viegas,  família  enlaçada  por  allianças 
com  tantas  casas  importantes  do  reino,  não  se  justi- 
çava como  villão  a  quem  o  verdugo  coita  as  orelhas 
por  sentença  d^alvazis.  A  historia  dos  primeiros  rei- 
nos mostra,  pelo  contrario,  que  os  fidalgos,  desen- 
freados pela  impunidade,  ousavam  tudo,  sem  a  au- 
ctoridade  real  ainda    ter  força  de  os  cobibir. 

Além  d^isto,  que  havia  o  rei  de  estranhar,  seelle 
frequentes  vezes  dava  o  exemplo  das  violências? 

Nas  contendas  de  Sancho  I  e  seu  filho  com  o  clero 
e  alguns  nobres,  o  monarcba  recorreu  ao  incêndio  e 
á  oppressão,  como  a  meios  promptos  e  naturaes.  Os 
ricos-homens,  de  que  na  realidade  só  era  o  primei- 
ro, imitando-o  ou  excodendoo  na  fereza  das  Vingan- 
ças, não  seguiam  as  suas  pizudas  como  leae»  admi- 
radores do  príncipe? 

De  mais,  se  o  rapto  da  mitUicr  ile  linhagem  era 
leito  mais  arriscado  do  que  desflorar  a  iiinoceiícia 
da  filha  do  povo,  o  perigo  não  estava  no  poder  do 
rei  e  na  severidade  dosseus  tribunaes;  provinha  das 
reprezalias  sempre  rápida»  e  sempre  inexoráveis  da 
família.  (Jroubador  ficava  deante  d'ella  como  homi- 
cida de  mais  que  a  vida,  da  honra  e  orgulho  da  ra- 
ça nobre,  e  só  com  o  sangue  podia  lavar  a  nódoa  e 
expiar  a  injuria.  O  direilo  de  vindicta,  exircido 
pelos  parentes,  legitimado  nas  leis.  e  saMctilii-ado  pelos 
coslumes,  bastava  para  llageilar  de  receios  e  perse- 
guir de  remorsos  o  coração  lio  criminoso.  Knlrelan- 
to,  no  mei.)  das  ameaças  erguidas  sobrn  elle,  o  cu- 
tello  do  algo;!,  afiado  por  D.  João  II  na  cabeça  da 
fidalguia,  não  lhe  estremecia  a  alma  com  o  reflexo 
sanguíneo. 

Então  o  rei  não  tinha  ainda  aprendido  a  canoní- 
uar  BSsuHS  paixõ<-s  com  a  opada justiça,  mercadeja- 
da no  leilão  das  cubicas  humanas.  Ambições  uuvin- 
ganç/is  eram  sinceras  e  andavam  sem  mascara.  Es- 
te reipiinte  do  civilisação,  ou  de  atrocidade  legal, 
veio  su  com  ostem|)os  romanos  do  filho  dWnbnso  V, 
do  ultimo  rei  cavalleifo  ! 

'J'oilo  o  enredo  d'catH  novellu  prende  no  ódio  de 
raea,  (eição  caracterisl ii-a  da  idade  media.  A  ehro- 
iiica  das  bielas  individiiaes.  a  das  classes  e  concelhos, 
rcataurada  i oní  eonsciencia  |>(!lo  drama  ■' pelo  roman- 
ce, erii  a  pintura  exacta  das  hoei('iladi'S  semi-barba- 
ras,  que  clorim;m  ii«  urna  cineraria.  A  origlnalida- 
ili*  tragiea,  e  o  pii-t,(»res(M(  d<js  cosi  umes,  cjue  oIIimim-c, 
então  cravados  nos  episódios  Ião  admirados  da  IJi- 
»'i/ir»  (,'(>riii<li<i  doDanli',  i!  em  algumas  das  melhores 
peras   de  Shakspeari'. 

Umad'ellas,  .hiliilti  i  UotULii,  il  talvez  a  mais  hei- 
la  ccjm|iosição  do  poi;ta  inglez.  (,'ilii-a  de  propósito, 
porijue  recorda  nos  traços  geraes  algum  lanloila  Ira- 
dição  d»  IMaria  l'aes.  Ointeressi!  nasce  lambem  das 
iixns  de  iliins  fainilias,  e  UH  espadas  ernzamse  par» 
'iisopar  em  snngiin  o  ntrio  do»  paços,  e  coiiverlor  as 
,  iiieeiía»  de  iim  noivado  nos  goivos  do  sepulehru 


A  semelhança,  porém,  está  tó  na  identidade  do 
facto.  Na  fabula,  nos  caracteres,  e  nos  sentimentos 
aparta-se  completamente,  pela  opposíção  de  índole 
dos  dois  povos,  e  mais  que  tudo  pelo  abismo  que 
separa  a  poesia  do  Norte  da  poesia  peninsular. 

E  entretanto,  Shakspeare  em  nenhum  drama  foi 
menos  inçlez  do  que  em  JitíiVía  e  Romeo.  Meditou-a 
debaixo  do  til,  como  se,  á  sombra  dos  laranjaes  e  li- 
moeiros, Sevilha  ou  Granada  lh'a  ouvissem  metrifi- 
car. Sem  ser  escripta  com  choradeiras  da  pieguice 
sentimental,  é  filha  legitima  dos  aOVetos  da  natu- 
reza. Avaliada  só  pela  forma  parece  inspirada  pelo 
solda  líespanha  ^  mas  o  espirito  desconsolado  do  scep- 
tícismo  moral  esconde-se  entre  os  mvrthos  e  as  boni- 
nas que  a  vestem. 

\  endo  Romeo  eamando o,  Julieta  presenteque  o 
verme  da  morte  eslá  dentro  da  rosa  coUiida  [»elo  amor. 
E  ella  quem  prophetisa  "que  o  tumulo  será  o  seu 
leito  nupcial,  e  os  brandões  funéreos  as  tochas  acce- 
sas  110  banquete  de  vingança  das  duas  casas  inimigas.  " 
Longe  de  espairecer  no  jardim  das  illusões,  a  don- 
zella  apaixonada  geme  na  tristeza  as  horas  solitárias 
da  noite.  A  lua,  amiga  dos  amores,  caindo  mollemente 
sobre  as  pedras  do  jazigo,  parece  que  só  lhe  mostra  o 
sitio  aonde  irá  descançar  o  peito  das  anciãs  do  in- 
fortúnio ! 

Glue  diflerença  entre  a  contemplação  da  morte  no 
afTcctii,  qne  resume  a  vida,  e  os  extremos  da  paixão 
arrebatada,  que  respiram  as  peças  castelhanas  de  Lo- 
po da  Voga  e  Calderon  ?  !  Na  immensídade  do  de- 
sejo, e  no  infinito  da  phantasia,  como  que  ainda  se 
acham  apertados,  pedindo  á  esperança  azas  que  os  le- 
vem ás  regiões  nebulosas  do  futuro.  O  inglez,  pelo 
contrario,  recolhe  dejctelhos  o  orvalho  «lue  gotejado 
topo  das  cruzes  no  chão  dos  mortos,  para  regar  com 
elle  a  tenra  flor  que  nasce  para  morrer.  E  que,  se- 
gundo Shakspeare,  aexibteiicia  qne  mais  significa  do 
(pie  o  martvrío  do  homem,  p.issando  pela  terra  de 
viajem  paru  o  secreto  e  invisível  chamado  eternidade  ? 
Chorosa  no  deserto  dos  maies  e  no  conlrangir  da 
ausência,  as  duas  grandes  solidões  da  vida,  a  muia 
brilaiinica  mal  pôde  sorrir.  Tormentas  balouçam-lhc 
o  berço,  os  nevoeiros  toldam-lhe  a  luz,  e  a  luz  baça 
dos  dias  annuvia-lhe  o  resto,  .\  graciosa  ironia,  nos 
climas  da  l'eninsula,  verte  lá  o  sangue  da  inju- 
ria. A  comedia,  jovial  na  Itália  e  na  líespanha,  per- 
de o  riso  amigo  do  povo,  e.  não  sei  porque,  lembra 
as  gargalhadas  dos  coveiros  de /ídin/tí  sobre  a  sepul- 
tura á  meia  noite,  quando  os  pyrílampos  fulgem  ao 
ridor,  e  as  briza»  soluçam  nos  cypresles  ! 

A  paixão  do  Norle  ó  aj  noite  dosesponsaes  de  Ro- 
meo (aet.  2.  scen.  '2.)  conversada  ao  luar.  Glue  na- 
morada cantiga  nos  trillos  do  rouxinol  !  Os  suspiros 
da  aragem  e  a  (rigruncia  das  flores  são  harmonia  e 
perfume  enfri!  os  ipiaos  recendem  os  juramentos  e 
111  ijcis  do  primeiro  amor  !  O  coração  vive,  e  a  alma 
lib.i  o  mel  do  existir.  E  comiudo  ha  n'esla  sctína 
mais  tristeza  do  <pie  prazer.  Nn  própria  ternura  re- 
llecte-se  um  ci>mochiiãod'ahimpada  fiinebre.  .V  crii> 
da  ermida,  onde  por  fimv.-io  morrer,  negreja  desde 
o  priíuMpío  por  eiitr<.'   as  grinalilas   do  amor. 

A  musa  das  llespaníias  não  entende  assim  u  exis- 
tência. Eilhu  de  amiMiusciiiiias,  não  se  reclina  sobre 
as  ciHcatiis  nevoentas,  mas  sonha  acordada  debaixo 
das  arvores  qne  bordam  o  leito  das  eslrailas,  susur 
rando  a  beiía  dos  nos.  Não  vai,  como  o  rei  Leur, 
exposta  aos  temporae»,  voii'ando'iinprccaçõcs  nus  de- 
sertos. Como  i'llo,  não  pára,  eom  o  p^^dlo  queimado 
pura  rir  de  um  riso  louco,  t|uando  reso.tm  na  soli- 
dão as  mofas  du  Yoric,  mai.s  amargas  que  siduço».  A 
luzeosol,  iiH  flores  eii»  aguas,  alma  da  nntureica,  tam- 
bém são  aalmad^ella.  O  csliooalmososiirprchendeíi 


236 


O  PANORAMA. 


singela  e  pastora  a  Vjaiiliar-se  meio  corpo  nas  fontes,  I       Aquelle  que  entender  esta  grande  regra,  e  aaex- 
ou  pulsando  a  l^ra  ao  doce  luar  de  junho.  primir  na  lustoriaou  no  romance,  levantou  um  mo- 

Se  chora,  poucas  vezes  são  amargosos  os  prantos,  numento  lilterario  capaz  d'esmagar  a  inveja  de  todos 
Se  o  coração  suspira,  raro  geme  pelas  convulsões  da  os  torniquetes  de  phrases  quinhentistas.  Felizmente 
«lôr.  Se  a  alma  anceia,  quasi  nunca  é  de  desespera-  a  novella  e  a  historia  já  nasceram  em  Portugal,  e»e- 
ção.  Os  delirios  de  Sa|)lio,  as  saudades  que  matam,  ria  duvidar  da  gloria  doseuauctor  o  eitar-lhe  o  nome. 
■  )  amor  que  verte  sangue  em  vez  de  lagrimas,  no  tiuanto  se  tractou  este  romance  havia  o  pensamen- 
jardim  do  Minho  e  na  primavera  da  Hespaiiha,  nun-  to  de  fazer  d'elle  o  prologo  em  acção  de  obra  de  malu- 
ca se  levantam  como  os  sinistros  espectros  do  ciúme  res  dimensões,  já  riscada.  Paraalii  se  reservava  tam- 
de  Othello,  doscepticismo  de  Ilandet,  e  da  fúria  de  bem  o  corolLirio  moral  no  espectáculo  dos  remors<is 
Lear.  de  Maria  Paes.  O  castigo,  caindo  sobre  osqueerain 

As  paixões  da  Península  são  ardentes,  porque  o  sangue  da  sua  alma  até  a  segunda  geração,  cumpri  • 
sangue  jiortugucz  queima  como  africano-,  uias  a  es-  as  maldições  contra  ella  proferidas  por  Gomes  liou- 
perança,  mesmo  no  meio  das  vascas  da  morte,  apon-  i  renço  na  hora  suprema.  Se  otempo  oconsentisse,  .1 
ta  para  océu.  Padecer  é  expiação  e  não  inferno.  O  segunda  parte  da  novella  satisfaria  ás  condiçõesmo- 
que,  desfallecidc)  doptzo  da  cruz,  ajoelha  e  cáe,  não  '  raes  que  importa  combinar  com  as  invenções  do  ro- 
expira  enchendo  a  terra,  como  lijrun,  dos  clamores    mance. 

dosceplicisnio.  Acima  d<is  tempestades  do  oceano,  em         Todos  as  hipocrisias  são  immundas,    mas  a  mai» 

asquerosa  de  todas,  a  dos  Labras  litterarios,  só  nn- 
pira  dó  a  quem  não  negoceia  popularidade,  exa^ge- 
rando  as  tendências  da  epocha.  A  maiur  punição  de 
taes  homilias,  puhilhadas  com  o  gorgulho  do*  ar- 
IVa  harpa  do  IVorte  fultaesta  chnrda  de  consolação  [  chaisrnos,  está  no  ckcarneo  com  que  asOagelIa  a  sen 


que  a  vida  se  afunda  ou  sobrenada,  está  Deus  para 
estender  a  mão  de  misericórdia  tanto  a  quem  oim- 
])lora  com    a  fé,   coino  a  quem    o  chama  com  ani^r- 

iiura. 


religiosa:,  e  a  alma  enfeza  se,  mutilada  dos  mais  no- 
bres sentimentos.  O  coração,  cortado  d'espiidios,  san- 
•gra,  sem  conhecer  a  paz  que  só  dá  a  resignação  ao 
animo  conlncto. 

A  opposição  de  idéa  e  de  natureza  entre  a  poesia 
do  Norte  e  do  Meio-dia  contitue  a  originalidade 
d'ellas.  Os  cantos  de  Macphtrsun  em  Caslella  e  Portu- 
gal nem  sequer  eram  intelligiveis  para  o  povo. 

Tem-se  dicto  de  mais  para  tirar  qunlquer  suspeita 
de  semoliiançaentie  a  tradição  do  iXubiliarin  e  a  Jti- 
licla  e  Jtvmco  deSliakspeare.  Agora  seja  pcrmittido 
accresceiítar  duas  palavras  para  explicar  o  fim  quese 
teve  em  mira,  acceitaiido-a  para  ba^e  das  ficções  da 
novella  histórica. 

A  còr  antiga  do  Livro  das  Liiiliagtm  serviu  de 
fundo  ao  painel  em  que  se  tentou  debuxar  algumas 
Bcenas  do  século  XllI.  O  povoaclia-se  retratado,  de 
escorço,  nas  ondas  da  praça  publica,   aonde  ensaiou 


satã  opinião  publica.  Hoje  é  tão  nece-sirio  acatar  a 
moral  como  declinar  qualquer  de  si  a  accusação  de 
pertencer  a  seita  dos  irmãos  da  charidade  da  repu- 
blica das  lettras. 

Por  ultimo,  coroo  esta  tradição  revê  a  mais  funda 
melancholia  e  chora  sobre  vivos  e  sinceros  affectos. 
talvez  com  motivo  se  adoptou  para  epigraphe  cíIc 
verso  de  Shakspeare  em  Othello  : 

«Shewasborn  tobefair;  I  todie  for  her  love.  " 

De  certo  o  desgr.içado  Gomes  Lourenço  se  ja  exis- 
tisse no  seu  tempo,  diria  com  o  poeta  iuglez  ; 

Ella  nasceu  para  matar  d'encaiitos. 
Eu  para  amando  a  em  vão,  morrer  d^amores. 

E  que  Shakspeare,  mestre  na  sciencia  do  coração 


peito ;  V,  em  duas  palavras,  a  historia  do  martírio 
do  infeliz  cavallciro  de  Salzedas. 

O  liifinilo  padecer  d'aquelle  homem,  bastante  pa- 
ra enclior  uma  vida  de  séculos,  e->ta  resumido  n'es>» 
verso  subliiiie,  escriptu  com  lagrimas  na  alma  pura 
de  Desdomana. 


a  vida  enérgica  dos  reinados  de  D.  Fernando  e  D.  i  humano,  sondou  aferida  queeste  desespero  corta  do 
João  I,  e  esboçado  d(!  leve  nos  costumes  Íntimos  e 
menos  apparentes,  que  se  concentram  ao  pé  da  fo- 
gueira no  lar  domestico.  As  leis  conservadas  no  Fuc- 
»o  vicjo  de  Castilía,  e  os  usos  civis  e  relii;iosos,  colli- 
gidos  pelo  sábio  licrganza  nas  Jnliijuidadcs  de  IJts- 
panlia,  ministraram  tintas,  hoje  raras,  para  ás  já  ob- 
literadas [ih^sionomias  do  clero  e  da  nobreza  na  ida- 
de media.  As  virtudes  e  os  defeitos  das  classes,  (juan- 
to  era  possível  em  breve  quadro,  re.-umiram-se,  para 
melhor  rcsair  o  espirito  de  que  outr'ora  viveu  a  so- 
ciedade que  tanto  lidou  pela  gloria  do  nome  portu- 
guez. 

Em  assumptos  hisíaricos  o  dever  do  romance  con- 
siste em  expressar  o  vircr  c  crer  de  Portugal,  ou  d« 


Março  28  de  1847. 


L.  A.  Keuello  Dá  Silva 


Cárbeoaç.Xo  singular. 


ililKScbocarreiros  melteram  em  calieç.-i  a  um  t.il  Íj:i- 
outra  qualquer  nação,  n'uma  epocha  designada.   Evo-  1  rose,  guarda  roupas  de   Mr.  d"Argcnlal  emb.ii\ador 

da  França  em  Coiistaiitinopola  noanim  de  lõliU.que 
se  levasse  para  a  Tiirqui.i  boa  quantidade  de  cahel- 
leiras,  acharia  gasto  prompto  e  d'estomudo  enrique- 
ceria. O  pateta  crédulo  empregou  lodo  opccuiiodas 
suas  poupanças  em  comprar  cahclleiras  ^  ea[>enasche- 
lezse  tudo,  menos  uma  obra  útil.   Para  oscaluraniar     gou  a  Constantiiiopola  cummuiiicou  o  segreilo  a  um 


tar  o  cadáver  do  tumulo,  e  envolto  110  sudário  mos 
tra-lo  ás  gerações  prcsciitws  em  caricatttra,  ou  como 
gigante  monstruoso,  é  crear  uma  cousa  vã.  Se  não  se 
derem  aos  mortos  os  sentimentos  e  crenças  que  o»  ani- 
maram,   e  as  paixões  humanas    por  que  padeceram. 


não  vai  a  pena  assoprar-llics  as  cinzas. 

A  religião  de  scpulcliro  é  tão  sagrada  para  a  arte 
como  para  a  historia. 

Porem  a  verdade,  nos  lavores  da  imaginação,  c»la 
cm  reproduzir  a  c>»i'ncia,  e  não  em  suar  paradis^ol- 
ver  em  arengas  sonisabons  e  palavrões  torcidos  a  tin- 
ta de  cada  letra  dos  pergaminhos  velhos.    O  verda- 


negociante  traiieen,  que  des.itou  a  rir,  como  é  bem  de 
suppòr,  e  declarou  ao  parvoque  fOravictima  de  mu 
o|iio  ;  esta  rcvel.ição  põi  o  triste  Larose  em  grande 
desconsolo  e  inebiiicholÍH.  Percebeu  Mr.  dWrgental 
quanto  o  seu  guarda  roupas  andava  mago.ido,  equii 
saber  omolivo:  informado  do  ciso  não  poudedeixar 
de  rir  também  ;  mas  cuiidoendo-se  do  criado,  tallou 


deiro  espirilodus  séculos  foge  sempre  dos  copistas  que     no  outro   dia  ao  grão  \isir  a  ver  se  haveria  niciode 
u  julgam  colher  n'uina  rede  de  apanhar  vocábulos.  , tarde  ou  cedo  seexpcdir  afaieiida^  ogrão  visir,  que- 


o   PANORAMA. 


23: 


reudo  agradar  ao  embaixador,  affirmou>lbe  que  o  ne- 
gocio íinha  bom  remédio.  Com  effeito,  logo  no  dia 
immediato  um  firnian  ordenou  a  todos  os  judeus  de 
Constantinopola  trazer  cabelleiras.  Este  ridículo  abu- 
so do  poder  despótico  espalhou  terror  entre  os  judeus. 
Como  obteriam  de  proniplo  cabelleiras.'  Larose  ap- 
proveitou-se  d'esfe  apuro  dos  pobres  hebreus  e  ven- 
deu bem  o  seu  género,  e  poude,  ao  voltar  a  França, 
tombar  dos  farcístas  que  o  tinham  empulbado. 


melhanfe,  e  abi  os  depõe,  cobrindo-os  com  uns  fios 
de  còr  parda,  macios  como  seda,  que  tece  de  sua 
própria  substancia,  abandona  depois  ebte  casulo,  que 
llucttia  ao  sabor  das  aguas  até  que  saiam  as  larvas  e 
calam  no  charco  ;  estas  nadam  velozmente,  mergu- 
lham com  muita  presteza,  eexbalamum  cheirodes- 
agradavel  ;  vão  e  vêem  da  agua,  como  lhes  con\éni, 
ate  o  tempo  da  metamorphose,  que  então  alcançam 
as  margens  seccas,  cavam  a  terra  e  ahi  se  retiram 
ate  tomarem  a  forma  de  escaravelho  ^  depois  da  qual 
o  insecto  vôa  e  está  perfeito. 


O   HVOIt,OPHII.O. 


Na  cíassificação  de  insectos  chamaram  os  naturalis- 
tas colpopteros  aos  que  são  munidos  de  queixos  e  de 
duas  azas  cobertas  por  dois  el^tros,  ou  estojos,  de 
bubstancia  córnea,  deliaixo  dos  quaes  se  dobram.  Es- 
ta classe  c  mui  numerosa  e  variada,  contendo  inse- 
ctos mui  brilhantes,  e  outros  niijentos  udcpreziveis. 
Entre  os  seus  diversos  (géneros  coiila-se  odoshydro- 
philo»,  que  por  muito  tempo  foi  confundido  comos 
d^tisco»,  debaixo  da  geral  dtnomina(,-ã()  de  cscara- 
volliosa(|uateis  j  o  nome  dos  primeiros  (juir  dizer  amii- 
duics  da  atjua  •  dvlisco,  ii;ualiiifiitt'  d(?  origem  gre- 
ga, significa  jiiíit/ulliador.  Ha  uma  multid.Mi  d'inse- 
clos  d'e«lH  riiça  nos  tanques,  l.igoa,  agua»  cmliarca- 
da-,  pântano»,  e  alénos  ribeiroi.  Acham  se  grandes 
e  pe(|uenos,  pretos  e  pard(js,  «juc  lêem  o  corpo  oval 
(lu  oblongo,  convexo  e  com  bordas,  a  cal)i'(,a  chuta, 
«•  também  os  dedos  da»  pernas  ch.itos  em  fornia  de 
remos,  pelo  que  principalmenle  ok  i  uiifiiiiiliraiii  eiun 
o»  dyliscos,  que  vivem  no  meiíno  alimento.  As  lar- 
Tas  il  estes  insectos,  i«to  é,  o  primeiro  estado  ao  sair 
do  ovo,  são  uns  vermes  ac|uiiti('o»  <lc  sei»  pernas,  e 
cjueixoi  ioin[iriili(»  e  curvo»,  mui  destruidores,  e  pre- 
judici,;es  nos  taiiijues  e  viveiro»  por  devorarem  as 
desovas  lios  peixi-s  ;  esc<nidem>»e  debaixo  da  terra 
para  se  metainorpliosearcm.  O  insecto  no  seu  estudo 
perfeito  nada,  iiiergullui  ^  porém  anilumul,  esóvôa, 
ao  inodu  das  barata-,  próximo  da  noite  para  mudar 
de  agua»,  (luaiido  u  fêmea  ipier  piV  o>  ovo-,  busca 
nm  buccailo  de   ]iáii,   uma    folha  larga,    ou  cousa  se- 


DeSCIDA    ao    VOLCÃO    BE    KiRàVEA. 

Nos  ANTKios  compêndios  de  geographia  citavam  se 
i  geralmente  três  volcões  em  actividade,  o  Vesúvio  e 
o  Etnasebreo  Mediterrâneo,  eoHeclana  Islândia; 
porem  os  modernos  descobrimentos  fizeram  bem 
conhecidos  outros  muitos  em  remotas  regiões. 

O  volcão  de  Kirauea  eztá  situado  na  parte  meri- 
dional da  illia  de  Oahu  ou  Owvhee  amais  conside- 
rável do  archipelago  de  Sandwich.  Esta  ilha,  como 
outras  muitas  do  Oceano  Pacifico,  é  de  formação 
volcanica  :  dilatadas  corrente»  de  lava  cobriram  de- 
pois grande  parte  da  sua  superfície  ;  algumas,  da  ex- 
tensiio  de  oito  léguas,  vieram  precipitar  se  no  mar 
do  alto  das  ribas  de  penedia.  Em  ISOO,  uma  d'es»as 
grandes  t(jrrentes,  expulsa  por  uma  das  crateras  da 
ilha,  entulhou  uma  bahia  vasta,  e  formou  nVsta  pa- 
ragem a  co»la  actual.  A  lava  recente  appresenta  a 
superficie  inteiramente  mia,  sem  q  ue  n'ella  bote 
uma  Itívera  de  lierva,  ao  passo  que  a  mais  antiga  se 
deconipoz  e  está  recamada  de  riquissima  vegetação. 
Fora  d^isto,  o  aspecto  de  Owvhee  niostra-se  encan- 
tador, ofterecendo  por  todo»  o»  lados  vistas  admirá- 
veis ^  algumas  das  suas  montanhas  elevam-se quinze 
a  dezesei»  mil  pés  acima  do  nivel  do  mar.  Porém, 
o  Volcão  de  Kirauea  não  e  como  os  outros,  mais  no- 
meados, um  monte  truncado,  sobranceiro  ao  territó- 
rio adjacente,  e  que  de  toda  aparte  se  divisa  -,  pelo 
contrario,  occupa  o  centro  de  uma  vasta  planura, 
levantada  mas  chã,  e  é  preciso  chegar  á  beira  do 
precipício  para  se  descobrir  subitamente  o  seu  iui- 
menso  foco.  —  Ouçamos  a  relação  de  um  viajante.  — 

Na  madrugada  de  7  de  maio  de  1S43  saímos  da 
bahia  de  lord  Uyron  para  visitar  aquelle  celebre  vol- 
cão. Passada  uma  a  duas  horas  decamiiihn  por  meio 
de  uma  cinipina  deliciosa,  cortada  de  outeiros  eval- 
les,  semeada  de  bos(|ue5Ínhos  de  bellas  arvoress  che- 
gámos a  uma  tioresta  um  tanto  extensa  \  o  solo  era 
tão  espinhado  de  abrolhos,  enlaçados  por  tal  forma 
com  trepadeiras  e  outras  plantas  que  rojam  pelo 
chão,  que  muito  nos  custou  a  alrave»sal-o.  A'  saída 
d'esta  matia,  ainda  era  mais  agradável  n  paizagem  ; 
mas  d'ahi  a  (lOuco  appresentou  se  de  aspecto  sumbriti 
e  de  assolação  ;  caminhávamos  sobre  um.i  camada  de 
lava  de  perto  dedua»  léguas  de  largura  ;  era  de  for- 
mação recente,  e  tão  lisa  e  escorregadia  que  era  iliffieil 
firmar  os  pé»;  n\>utras  parles  era  Ião  escabrosa  e 
elu'ia  lio  escorias  <|ue»ó  |>odiaino<  andar  c<uu  muito 
trabalho.  Aquiiii  e  alem  surgiam  alguns  eiiletados 
arbustos  ijiie  haviam  tomado  raii  ii'aquelle  solo  re- 
qiii'iniado,  e  de  ambos  os  lados  do  leito  da  torrente 
eoriiam  iiiattas  de  arvores  anãs  o  pobres  de  rama. 
Ue»cobriam»e  ao  longtí  as  niageslosas  nssiunadas  do 
Muna -Roa  -Miiua-Kea  ;  á  direita  eá  esiguerda  perdiH- 
se  a  vista  na  immensidadu  do  Oceano,  e  ii  ciU  das 
aguas   confiiiiiiia-se  com  o  azul  dos  ceu». 

Antes  do  piW  do  sol  tinhamo»  ganhado  até  A  ori- 
gem da  lava,  maseslavaiuo»  exli.iu»los  deeaiísaço,  o 
dcinociu»    por  felizes   de  acli.ir  «brigo  para    a  noite 


23  S 


O  PANORAiMA. 


II ''uma  cho<;a  mal  reparada  q«e  o«  naturaes  tinham 
construído,  onde  dormimos  profundamente.  IVo  dia 
se<'uinte  estávamos  a  caminho  ao  romper  d'alva,  e 
não   tardou   que  descobríssemos  a  fiimarada  do  vol- 
cão  em  graciosos  redemoinlios.  Apertámos  o  passo  e 
chegámos  pelas  nove  horas  a  uma  espécie  de  lago  de 
enxofre  c  do  escorias,  d^onde  seexhalavam  os  vapo- 
res; apanhámos  algumas  crystallisações,  mas  não  nos 
demorámos.  Logo  nos  prendeu  a  atlenção  uma  longa 
abertura  que  se  estendia  de  SOO  a  (iOO  passos  para 
diante  da  cratera  :,  tinha  de  largura  30  pés  por  700 
a  800  de  comprimento,    e  d'ella  saíam  incessantes 
turbilhões  de  vapor  ião  quente  que  os  nossos  guias 
cozeram   com  elle  batatas  em  poucos  minutos.    Este 
vapor,   em  consequência  do  contacto  com  o  ar  frio, 
condensa-se,  e  perto  d'alli  formou-se  um  bonito  lago  | 
de  agua  exceilenle,  a  iinica  que  se  topa  a  muitas  lé- 
guas em  redondeza  ^  é  ensombrado  d"arvores  altas,  e 
n'elle  folgam  bandos  numerosos  de  aves  aquáticas.       | 
Eram  dez  da  manhã  ;  e  depois  de  havermos  passa-  j 
du  o  pego  de  enxofre,    caminhávamos  por  um  leito  j 
do  lava  extremamente  accidentãdo,  costeando  escu- 
ras fendas,  com  que  o  terreno  estava  todo  rachado,  e  i 
a  que  os  olhos  não  descol>riam  fundo.  A  final  demos 
com  a  principal  cratera  de  Kirauea,  que  mede  três 
léguas  do  circuito;  e  suspendemos  os  passos  á  borda 
de  um  precipício,  onde  a  vista  se  desvairava  mergu- 
lhando n'uni  escancarado  medonho  abismo  a  muitos 
pe»  abaixo  de  nós,  onde  todos  os  elementos  da  natu- 
reza pareciam   baralhados  em  lucta   uns  com  os  ou- 
tros; nada  mais  podíamos  distinguir  do  que  massas 
enormes  de  fogo  roiarem-se  como  vajas  encapcUadas. 
Este  abvsmo,    que   parecia  verdadeiro  respiradouro 
do  inferno,  estava  salpicado  de  muitos  cones  volcanl- 
cos,  do  vértice  dos  <|uaes  jorravam  de  continuo  tor- 
rentes de  lava  derretida,  chegando  nós  a  sentir  o  ca- 
lor d''estas  erupções.    Da  profundeza  se  levantavam 
amidos  siUos,   espantosos  mugidos,    e  um  como  re- 
bunibar   de  trovões,    acomp:;iihado  tudo  de  espessas 
nuvens  de  vapor,  cinzas  e  fumo. 

'Ião  grave  e  temeroso  espectáculo  bastava  para  ge- 
lar corações  os  mais  animosos;  porém,  sobejos  eram 
os  perigos  com  que  na  vida  liuhamosarrostado,  para 
hesitarmos  perante  outros  obstáculos.  Armado  cada 
uni  de  nós  de  comprido  bordão  para  sondar  o  terre- 
no ignoto  a  que  nos  aventurávamos,  começámos  a 
descer  á  cratera  ;  o  perigoso  declive  por  onde  inves- 
timos era  ás  vezes  quasi  a  pique,  e  sulcado  de  gretas 
fundas;  adianiámo-nos  com  precaução,  e  ao  fim  de 
três  quartos  d"hora  estávamos  no  fundo  da  cratera, 
^obre  o  próprio  solo  do  volcão.  Contámos  vinte  e  seis 
n;ontcs  conici»  dislinctos  que  variavam  na  altura  de 
vinte  a  sessenta  pés,  somente  oito  delles  eram  aoti 
vos.  Trepamos  a  al2:un9  dos  que  expelliam  so  vapor 
e  cinzfiro,  e  d'onde  trasbordava  material  avermelha- 
do e  ardente;  ate  que  chegamos  tão  perto  da  Iwcca 
lie  um  que  podemos  mersulhar  os  bordões  no  fogoli- 
qui.lo  ;  lançamos  n'outro  volumosos  pedaços  d'efCO- 
rias.  que  logo  foram  despedidos  para  o  ar. 

Entre  o?  objectos  de  curiosidade  que  apprescntava 
ii'aquelle  momento  o  boqueirão  ou  cratera  grande 
numeravam  se  os  charcos  lie  lava  ilerrefida  :  distin- 
s;«lain-se  M>is,  o  maior  na  direcção  de  sudoeste.  Clie- 
gadii>  u  borda,  não  podemos  contemplar  sem  admi- 
ração o  espe.laciilo  d'aqueile  mar  de  fogo  que  rede- 
moinhava a  mais  de  trezentos  pés  abaixo  do  logar 
que  (iicupavanios ;  pujantes  vagas  inflammadas  re- 
lentavam de  encontro  ás  paredi'»  do  boqueirão,  e  ao 
mesmo  tempo  repuxos  de  lava  incendiada,  atirando- 
se  á  altura  de  60a  70  pé»,  produziam  lãoiutensoca- 
lor  que  fomos  obrigados  a  retirar-nos  precipitadamen- 
te. Í'assados  alguns  minutos  a  scena  mudou  como  por 


encantamento:  abonançou  tudo,  e  a  superficiedola- 
go  não  mostrava  aos  olhos  espantados  senão  uma  in- 
forme e  negra  massa  d'e!!coria5.    Porém  a  natureza 
tinha  apenas  descançado  um  instante  para  recuperar 
forças  novas ;  em  quanto  observávamos  esta  maravi- 
lhosa mudança,  a  côdea  que  se  formara  a  superfície 
começou    a   rachar  e  despedaçar-se   de  uma  a  outra 
extremidade;  a  lava  no  estado  de  fusão,  alteando  e 
estalando  por  todas  as  partes  aquella  frágil  capa,  co- 
briu de  novo  a  extensão  do  lago,  á  excepção  de  uma 
ilhota  que  notámos  no  centro,  e  que  parecia  dar  ba- 
lanços como  nm  navio  em  mar  tormentoso.   Vimos 
reproduzir-se  muitas  vezes  o  mesmo  phenomeno,  sem- 
pre acompanhado  dos  me>mos  efTeitos.  —  .\traves«á- 
mos  então  o  fundo  da  cratera,  nezroe  desigual,  cor- 
tado de  extensa»  c  altasferidas,  ed''ahi  a  algum  tem- 
po fumos  parar  defronte  de  um  longo  dique  formado 
de  lava  endurecida  ;  depois  de  o  termo*  galgado,  e 
descido  uma  ladeira  de  obra  de  40  pés,  acbámo-nos 
n'um  plaino  que  toma  quasi  a  quarta  parte  da  su- 
perfície total  da  cratera.  Não  fardou  que  conhecêsse- 
mos que  não  podíamos  estar  alli  muito  tempo,  por- 
que a  infinidade  de  gretas  por  todas  as  direcções  des- 
cobriam o  fogo   subterrâneo  a  poucas  poUegadas  da 
superfície  que  pisávamos:  um  dos  meus  com  panhei- ' 
ros  accendeu  o  cigarro  n^umad'essas  aberturas.  En- 
contra-se  enxofre   com  abundância  no  volcão  e  im- 
mediações  ;  era  toda  d'esta  matéria  a  parede  da  cra- 
tera no  sitio  onde  estávamos,  a  qual  não  tinha  me- 
nos de  mil  pés  de  alto,  antes  teria  mais.  Andávamos 
occupados  em  colher  n^aquella  escarpa  algumas  for- 
mosas amostras  de  crvslallisações,  quando  um  gran- 
de pedaço  em  bruto  que  se  desapegou  por  acaso  ro- 
dou para  uma  das  aberturas;  foi-nos    forçoso  retirar 
a  toda   a  pressa,    e  assim   mesmo  esteve  a  ponto  de 
nos  sufTocar   a   fumaça  que  surgiu.    Havia  mais  de 
cinco  horas  que  percorríamos  a  cratera,  e  allí  esta- 
ríamos de  boa  vontade  por  mais  tempo;    porém  os 
derradeiros  raios  do  sol  a  pòr-se  douravam  a  aresta 
da  bocca  do  precipício,  e  por  isso  começamos  a  su- 
bir, operação  assas  difficil,  e  quenosco:  sumiu  nada 
menos  de  cinco  quartos  d'hora.   Dirigimo-nosá  mes- 
ma cabana  da  precedente  noite,  eem  quantoassom- 
bras  engrossavam  aviámos  uma  refeição  frugal ;  mas 
não  podemos  resolver-nos  a  dormir  sem  fazer  a  ultí- 
Uia  visita  a  cratera  de  Kirauea  ;  pozerao-nos com  to- 
do o  vigora  caminho,  e  tendo  checado,  não  sem  cus- 
to, porque  tropeçávamos  a  cada  passo,  contemplamos 
imvamente  da  beira  do  precipício  aquella  ímmensa 
voragem   allumiada   por   a  lava  incendiada  :    toda  a 
superfície  do  plaíno  que  tinhnmos  visto  cheio  de  fen- 
das  parecía-nos   agora    uma    rede   de  lava  ardente. 
I  Quando  examinávamos  este  espectáculo,  que  a  ob^ 
•  riiridade    nocturna   fazia  rt-alçiir,    transformou -se  de 
súbito  a  planura  irum  vasiu  la!;n  d>-  fogo;  a  crusta 
I  solida  liquldlfícou-se,  e  os  la.iosderrubacios  mistura- 
I  ram-se  com  a  massa  a-.;itaja.  l'ozenio-noS  emretira- 
i  da,    estremecendo  com   a   lembrança  de  que  poucas 
I  horas  .intes  estávamos  n'aquelle  nvesmo  logar.  onde 
I  agora  ferviam  cachões  de  fo>;u.  No  seguinte  dia  vol- 
I  lanios  á  cratera;  tudo  achamos  no  mesmo  estado  .  o 
novo  Jago  continuava  a  fervrr,  e  osoono»  voh-anicos 
'  despediam  aos  ares  fracnientos  de  roí-has  calcinadas, 
'  acompanhadas  de  rolos   de  vapores  que  se  evadiam 
por  entre  sibilos;  o  grande  iaçudo  sudoeste achav.-v- 
se  n.is  mesmas  crise?  convutsitas  que  na  vcper».   E 
I  por  esta  \ei  liemos  ao  volcão  a  no-sa  de5f>eilida. 


'  Não  eslejss  nunca  entreos  persegiiidores;  está  antes 
I  entre  o»  p -rs-iiiid.s. 


o  PAJNORAMA. 


239 


Seitas  religiosas  ros  Kstados-Unidos  (1). 

i)i  Estados-Unidos  do  iiorle  da  Aniorica  teein  fei- 
lo  iniiovações  na  relÍ£;ião  como  na  politica.  Asdifle- 
rentes  seitas  inglezas,  passando  do  antigo  para  o  no- 
vo mundo,  muilaram  de  caracter,  de  disciplina,  e 
ainiia  mais  de  proporções  relativas 

Nos  Ksladoi-Unidos  a  maior  parte  das  seitas  prac- 
ticam  oque  cliamam  retitix/ís  (revificações),  queteem 
por  objecto  avivar  o  zelo  religioso.  U  í-eiwiia/ consta 
de  rezas  em  cíjminiini,  sermões,  practicas,  reuniões 
prolongailas,  visitas  domiciliarias:  parecese  de  al- 
gum lijodo  com  as  missões  provinciaes dos catholicos. 

As  igreja»  americanas  a])presenlani  o  reflexo  das 
institui<;ões  politicas  do  paiz  ,  os  ministros  são  alli 
mais  depenileiites  ilos  lieis  do  seu  rebanho  do  que 
em  parte  alguma;  são  escolliidos  e  aléamoviveis  por 
ellea  :  a  dependência  é  mais  on  menos  absoluta  con- 
forme as  diversas  seitas;  é  muito  maior  entre  os  con- 
greganistas,  cujas  igrejas  são  isentas  umas  das  ou- 
tras, ao  inverso  das  outras  seitas  que  reconlieceni 
mais  ou  menos  aiictoridades  sn|)eriores,  como  por 
exemnio  os  svnodos  e  a  assenil)léa  geral  dos  presbv- 
terianos.  Os  m(.'tliodisla«,  tendo  poucos on  (|uasi  ne- 
nliuns  ministros  residcntKS,  isiju;varam-sp a» dilljcul- 
dades  que  por  onlra  parle  res^llani  da  situação  pre- 
cária dos  ministros. 

Além  dos  ministros  ou  pastores  ha  nas  varias  sei- 
tas outros  funccionarios  ecciesiasticos :  quasi  todas 
teeni  anciãos  (tWc/s)  que  tomam  parte  no  governo 
espirilu.il  das  igrejas,  e  diáconos,  especialmente  in- 
cumbidos da  administração  dos  recursos  temporaes 
das  mesmas;  estes  últimos,  entre  os  congreganistas  e 
os  baptistas,  reúnem  as   attribuições  dos  anciãos. 

E  sabido  que  na  Inglaterra  a  igreja  numericamen- 
te dominante  é  a  episcopal,  estabelecida  pelo  gover- 
no ;  na  Ksoocia,  do  mesmo  modo,  o  é  a  presbiteria- 
na ;  na  Irlanda,  a  catholici.  tolerada  pelo  gover'no. 
Alem  d. IS  igrejas  reinantes  na  liiglaterr.i  e  ICscocia, 
ha  seitas,  igualmente  protestantes,  a  que  chamam 
dissidentes,  que  compõem  mais  de  melade  da  popu 
laçãu  das  cidades,  e  as  duas  (jnintas  parles,  [)elo  me- 
nos, d,a  população  proteslante  de  t<ido  o  paiz :  as 
priricipaes  d'eslas  seitas  são,  a  denominada  presbi- 
teriana, que  se  não  deve  conlundir  com  os  presbvte- 
riaiios  da  Escócia,  a  dos  independentes,  a  dos  bap- 
tistas, e  a  dos  quakers  oii  amigos;  as  três  prinutiras 
ahsemelhani-si!  muito,  e  dirien  ni  da  inreja  estaliele- 
(.ida  ou  d<jmiiiant<^  pela  muito  maior  latitude  na  dis- 
ei|)liiia  <'ei'lesi,islica,  ciiiieediMido  lixlas  nniilo  ú  inde- 
pendi'nc  ia  indrvidual.  Os  melhodistas  inglezes,  posto 
qiK!  laçam  corpo  a  parte,  não  são  contados  eniruos 
dissidentes;  permanecem  annexos  ú  ignja  dominan- 
te ;  são  como  jansenislas  anglicanos. 

No»  Kstados-Unidos  a  igreja  episco|>al  anglicana  é 
iMuito  pouco  numerosa;  não  chega  á  vigésima  quin- 
ta ou  ir  Irigesinia  p;irle  da  população.  As  seitas  do- 
minaiiles  «ào  :  1."  melhodislas;  12."  bapi  istas  ;  li." 
pri'»byl(rianos  ;  4."  congreganistas  Al»'m  d'esla»  ha 
nma  granili;  ipianliilade  de  seitas  separadas  d'esle» 
rauMis  piinci|)aes  ou  <|Ue  vieram  da  Kuropa.  Osca- 
ihiilieos.  em  numeii)  de  cpiasi  seteceulo')  mil,  estão 
repartidos  pui  úr/.  bispados,  lia  llnalmiiite  tis  qua- 
kers, I!  outras  eotiimunhões  menos  iiniiortanles.  Os 
unilarios,  ijui'  muito  se?  chegam  iiiw/ciwnu,  >' íi  (|U<un 
lodos  os  oulriis  cliauui  iii  i/i/iV/s,  saLiam  dos  congrega 
nislas. 

Ou  melhodislas    dos   l'lslados  l'nidos  ililíerem  dos 


(I)  Kxiraein  da  iiilertiss.nilo  d  multo  ;ipplan(liilit  uhn 
ih)  Sr.  Miguel  Clievaller  sohre  a  Annirlea  d»  Norli',  ila  l," 
«eihefió,  em  IKll,  niuilu  aiii,'nieulada. 


de  Inglaterra,  assim  na  disciplina,  como  pelas  for- 
mulas que  adoptaram,  compõem  uma  seita  inteira- 
mente distincta  ;  elles  é  que  fazem  asassembléasem 
campo  aberto,  e»pecie  de  rcvivah,  que  lhes  é  parti- 
cular. O  seu  clero  consta  de  padres  ambulantes,  pos- 
suídos da  veliemencia,  actividade  e  espirito  de  pro- 
selvtisnio,  taes  como  em  França  manifestaram  logo 
depois  da  restauração  os  missionários  catholicos  :  tem 
seis  bispos  que  andam  sempre  em  visita.  Oscongre- 
ganistas  constituem  igrejas  recij>rocamenti"  indepen- 
dentes, que  não  teem  outras  relações  mais  que  as 
conferencias,  convcnruts  ou  iissociarões,  e  que  não  pu- 
blicam decisões  obrigatórias,  mas  somente  simples 
<lisposições  facultativ.is  ;  tandjeni  ha  entre  elles con- 
sel/iijs  compuslcs  de  dele2;.idos  das  igrejas  confinantes, 
e  que  só  teem  attribuições  consultalivas  ;  até  a  orde- 
nação dos  Hiinislros,  que  é  feita  em  co»ist7/iO,  proce- 
de, de  lado  e  direito,  das  mesmas  igrejas,  isto  é,  do 
povo.  As  igrejas  p^e^b^•te^ianas  estão  associadas,  for- 
mam um  corpo,  ainda  (|ue  na  verdade  mediocremen- 
te  compacto,  e  dependem  de  uma  assemldéa  geral  e 
de  sjnudos  parciaes.  Os  congreganistas  são  lambem 
chamados  HKÍcjjoiíknlcs,  nume  dos  sectários  que  na 
Inglaterra  lhe  corres|iondem  em  doutrina.  Os  puri- 
tanos creadorcs  dos  Estados  da  Nova  Inglaterra  eram 
d'esla  coinmnnhão.  A  sua  [iropria  organisação  mos- 
tra bem  que  ha  entre  ellus  muitas  gradações;  n'al- 
guns  casos  approximamse  das  opiniões  presbvteria- 
nai.  Os  baptistas,  que  não  são  mais  doipie  uma  de- 
rivação dos  congreganistas,  differeni  d'eslesem  bap- 
tisar  as  pessoas  só  quando  já  são  adultas  ;  usam  tam- 
bém de  uma  linguagem  mais  democrática,  e  mais 
vehemente  ;  em  geral  os  seus  adeptos  pertencem  ás 
classes  menos  polidas. 

Nos  Estados  da  Nova  Inglaterra  a  maioria  dos  ha- 
bitantes é  cungreganista,  seita  (jue  fora  d'esses  Esta- 
dos apenas  existe.  Os  Kstados  centraes  são  os  que 
compreliendem  presbiterianos  em  maior  proporção  ; 
o8  de  Ohio,  Indiana,  e  o  lllinez,  não  contém  lauta 
(quantidade  crelles. 

Os  melhodislas  e  baptistas  dominam  nos  Estados 
do  sid  e  de  oeste,  onde  sobre  tudo  existem  escravos ; 
além  d'isso  apparecem  em  toda  a  parte. 

10  nos  antigos  i''sladus  do  sul  que  os  episcopaes 
contan»  m.iis  adherentes:  boa  parte  das  pessoas  illus- 
Iradas  ou  ricas  da  União,  em  geral,  [)ertcnceni  a  es- 
ta communhão  ou  á  dos  unitários. 

São  numerosos  os  catholicos  na  [iui/iana  e  no  Ma- 
riland,  e  os  emigrados  irbiiulezes  engrossam  o  nume- 
ro d'(dles  no  oeste  e  in)rte. 

Acli.imse  os  qn.ikers  quasi  unicamenie  na  l'<nn- 
sylvania  e  Nova  Jcrsev.  A  igreja  relormaila  hollan- 
deza  conta  certo  numero  de  adeptos  n'esles dois  Es- 
tados e  no  de  Nova- York.  E  sal)ido  que  os  liollan- 
dczes  foram  os  primeiros  que  colonisaram  as  margens 

do    liuilsiMl. 

Acham  se  tandiem  na  União  todas  as  variedades 
do  protestantisnn)  europeu,  ou  porque  em  outro  tem- 
po ridugiados  de  Iodas  as  nações  ahi  buscassem  as\lo 
para  o  livre  exercício  de  suas  crenças,  ou  porque  a 
emigração  acarreta  [)ara  alli  prisenlemente  homens 
de  ^idas  as  sibilas.  Huanto  á  primeira  hv|iolhese,  é 
cerlo  <)ue  (hqioís  du  r('Vogação  do  edicto  lie  Nantes, 
certo  numero  de  hni;'uenoles  se  rcll^,;iaram  na  Amo- 
ri<'a  inglezii  ;  estabideci-ram-se  partlcidarmcule  na 
Carolina  do  sul,  ondi'  ainda  oHseii«discendculi'S  re- 
pii'srnlaui  enirí?  as  lamilias  mais  rcspeita\cis  do 
pai/.. 

A  seL'ninli>  lishi  é  exiridiida  de  uma  labelln  do 
.iiiiuinak  .-liiit  licano. 


240 


O  PANORA3IA. 


í^elta!l. 


Methodistas  episcopaes 

Outros  methodistas 

Baptistas,  ou  aiiubaplisins 

Outros  baptistas,  denominados  do  sétimo 

dia,  dos  seis  princípios,  do  livre  arbítrio, 

christãos,  mcnnonilns,  tunkers,  ele.  .  . 

1'rL'bbyterianos 

Outros    presbiterianos,  dictos   de  Cum- 

hcrland,  associale  church,  ele 

(^oiigreganistas 

Reformados  d'Uollaiida  e  d'Alleraaiiha, 

lutlieraiios 


Fopulasão. 

3  300  000 

300  000 

3  200  000 


700  000 
2  000  000 

300  000 
1  oOO  000 

1  000  000 


Episcopaes 500  000 

Unitários •_ 200  000 

Irmãos  unidos,  Nova  Jerusalém,  judeus, 

^.tc  300  000 

ttuakersV 200  000 

Universalistas 300  000 

Catholicos 700  000 


14500  000 


Esta  lista  mostra  approximadamente  a  distribui- 
rão da  população  americana  na  propor(;ão  das  diver- 
sas opiniões  religiosas. 


Algumas  providencias  repressivas  nos  Ebta- 

DOS-UaiDOS. 


níio  tinham  assaz  discemimenio  para  contrahir  um 
conlracln  Ião  importante.  —  Estados  ha  em  Allcma- 
iiha,  onde  as  auctoridadej  exercitam  igual  fiscalisa- 
^•ão  sobre  os  matrimónios. 

A  lei  de  muitos  Estados  \edava  antigamente  via- 
jar ao  domingo:  era  prohibido  fazer  n"esse  dia  cousa 
alguma  que  não  fosse  de  absoluta  necessidade  fqfne- 
ecssily  or  mercyj.  Cremos  que  esta  lei  foi  abrogada 
em  lodos  oj  Estados  sem  excepção ;  porém  n  alguns 
ficou  a  pratica,  e  para  grandíssimo  numero  de  pes- 
soas viajar  ao  domingo  é  uma  grave  quebra  da  lei 
religiosa. 

N 'alguns  Estados  da  Nova-Inglaterra,  no  Connec- 
ticul  por  exemplo,  e  até  n'alguns  Estados  do  cen- 
tro, como  em  a  Nova-Jersev,  expor-se-hia  a  ser  re- 
tido pela  gente  popular  qnem  quiiesse  viajar  ao  do- 
mingo; por  toda  a  parte  se  acha  interrompido  oser- 
vico  das  carruagens  publicas  e  das  embarcações  de 
transporte.  Não  ha  circula<,ão  ao  domingo,  nem  mes- 
mo entre  1'liiladelphia  e  Baltimore. 

Os  transportes  dos  correios  partem  ao  domingo, 
como  nos  mais  dias.  Numerosas  petições  se  teem  di- 
rigido ao  congresso  a  este  respeito.  Os  requerentes 
pretendiam  que  não  houvesse  malas  de  posta  ao  do- 
mingo, e  mesmo  qne  os  respectivos  escriptorios  esti- 
vessem fechados.  Comtudo  foram  rebatidos.  No  en- 
tanto, de  três  companhias  dos  caminhos  de  ferro  que 
vão  dar  a  Boston,  duas  não  abrem  a  circulação  ao 
domingo;  e  são  as  de  Lovell  e  Morcestcr  ;  tal  e  o 
respeito  ao  habito  inveterado  do  povo.  que  prescin- 
dem dos  lucros  não  pequenos  que  lhe  podiam  provir 
do  transito  n'aquelle  dia. 


Em  nenhuma  parte  o  poder  da  sociedade  sobre  o  in- 
dividuo foi  levado  a  tão  subido  auge  como  em  a  No- 
va-Inglaterra. NoConneclicut  havia  leis  para  regu- 
lar o  tempo  que  era  permittidodemorar-se  qualquer 
na  taberna  (meia  hora),  o  maxiinuni  que  podia  be- 
ber (meia  canada)  ;  depois  das  nove  e  meia  da  tar- 
de as  estalagens  e  tabernas  deviam  fechar-se.  Não  era 
permittido  aos  celibatários  ter  casa  sem  consentimen- 
to dos  habitantes  da  comniuna;  nenhum  pae  de  fa- 
mília podia  receber  na  sua  casa  um  cclil)atario  sem 
a  mesma  formalidade.  —  Era  proliibido  praguejar, 
mentir,  espalhar  noticias  falsas,  eaté  era  defeso  usar 
do  tabaco  sem  ter  auctorisação  do  medico,  declaran- 
do que  era  por  bem  da  saúde;  e  para  isso  era  preci- 
so ainda  em  cima  a  licença  do  tribunal.  Outros  re- 
gulamentos simplesmente  vedavam  fumar  em  publi- 
co. Ainda  no  aiino  de  184G  os  magistrados  de  Bos- 
tim  prohiliiram  fumar  no  passeio  publico  da  cidade 
(Mali).,  que  é  uma  cerca  muito  vasta. 

Inútil  ó  dizer  que  as  Uis  das  colónias  da  Nova-In- 
gialerra  eram  de  grande  severidade  religiosa;  todos 
eram  obrigado»  a  pertencer  a  uma  igrt-ja  congrega- 
nista,  e  iiao  |M)diam  obter  empregos  sem  esta  condi- 
ção :  os|di.,sidenles  pagavam  para  as  despelas  docul- 
1o  da  Igreja  dominantí!.  Os  judeus  e  quakers  eram 
banidos  e  sujeitos  a  pena  de  morte  se  se  apresentas- 
sem noterritorio  doestado.  —  As  Icischamadasaruts 
de  Connecticut  continham  também  prescripções  mui 
curiosas  acerca  de  matrimónios. 

Não  restou  d'esta  legislação,  que  já  caducou,  senão 
unia  forte  organisação  municipal.  Comiudo,  ainda 
hoje  acommunidadi   intervém  algumas  vezes  na  vii 


Modo  uk  nESEWFEUBiJAR  E  consertar  as  ferra- 
mentas   DOS   .MARCENEIROS    ETC. 

TiRA-sE  com  facilidade   a  ferrugem   dos  utensilÍM  e 
ferramentas  com  a  seguinte  preparação. 

Mistura-se  uma  libra  de  argila  bem  dura  com  meia 
libra  de  pode  tijolo  muito  fino,  duas  onças  de  esme- 
ril, e  igual  porção  de  pedra  pomes  moida  ;  incorpo- 
ra-se  tudo  com  um  pouco  deleite,  de  modo  que  fique 
uma  massa  rija,  de  que  se  falem  uns  paus,  com  os 
quaes,  depois  deseccos.  se  esfregam  as  ferramentas. 

Estando  o  ferro  limpo  e  polido,  é  preciso  livral-o 
da  ferrugem,  o  que  se  consegue  expoiídose  a  peça 
de  ferramenta  ao  lume,  dando-se  um  calor  algum  tanto 
forte  sem  comtudo  a  chegar  muito  perto  do  fogo, 
esfregaiulo-a  com  cera  branca,  tornando-a  a  aquecer, 
e  lin:paiido-a  n"um  pedaço  de  panno.  Para  os  ins- 
trumentos delicados  vai  mais  usar  d"um  vernit.  Os  in- 
glezcs  p reparam  n "o  derretendo  em  banho-maria,  n  u- 
ma  porção  de  espirito  de  vinho  que  baste  para  dis- 
solver tudo,  uma  onça  de  mástique,  meia  onça  de 
cainpliora,  onça  e  meia  de  sand.iraca.  e  meia  onça 
de  resina  clemi.   Este  vernii  pode-se  dar  mcsniofrio. 

Conte,  que  fei  tantos  serviços  a  industria,  empre- 
gava um  meio  ainda  melhor.  PejHjis  deter  limpado 
os  utensílios  com  uma  lixívia  forte,  usava,  para  o» 
envernizar,  deuma  mistura  doveriui  gordo,  teílodc 
resina  copal,  com  um.  dids.  e  ale  três  Lintos  de  e> 
sencia  de  therebontína.  Uuanto  maisessencia  temo 
I  verniz,  mais  transparenie  tic.i.  Ua-se  com  uma  espon- 
ja muito  lina.  molliad.i  primeiramenlo  na  essência. 


privada  do  indivíduo,  a  ponto  de  o  despojarem  de  1  espremida  entre  os  dedos,  ensopada  no  verniz,  etor- 
direílos  que  nos  parecem  os  mais  naturaes  e  inipres-  j  nada  a  espremer,  de  modo  que  tique  com  multo  pou- 
cripliv.is.  EmTauntun,  no  Massachusetts,  em  ISÍlí.  |  ca  porção  d"elle.  Corre-se  com  a  espiinja  a  peç.i.  fu- 
dois  juizes  depnzprohibiram  a  publicação  doibaiihos  gindo  de  a  tornar  a  passar  por  cima  do  mesmo  logar 
ou  dniunci.u  para  c.isamento  a  um  homem  e  a  uma  depois  da  primeira  dcmão  ter  enxugado.  Este  nie- 
iiiulher.  porque  os  futuros  cônjuges  >uio  ti iihain  meios  thodo  é  óptimo,  principalmente  pura  quem  traball.. 
Ji  subsisti  iicia  depois  de  casados,  c  por  consequência    por  curiosidade. 


31 


o  PANORAMA. 


241 


'■'^WlllilBIllililli iilIlIlIlimilllEliIllIlBI nil!IMIII|l!ÍlpillllBlllllil'^lll|illlílMÍil''  "-'   '■■■illlll 


estatVa  de  MOZAHT. 


A  «HTATiiA  er(,'L'l;i  L'iii  lioiira  ilo  iiisi^iu!  coniposilorile 
iniisioH,  IMoíiirl,  íiindidíi  oiii  lironzc  cm  Miiiiicli  pc- 
loiíwpoiliir  tio  ri'.il  liili(iríil(irii>.  Sli(íi;cliiiavi'r,  nc"ui\- 
.lu  o  iiimlclo  (1(1  proftt^Bor  Spliwiinlliiilpr,  iui  iii,iii"ii. 
N"i..    l     -    Aiiuii.   10.   1817. 


ruda  cm  SíjIl/.ljuriLjii  a  o  de  ^('ll•mll^ll  de  181á.  Mo- 
zart,  de  ciiiistiliiu^^ilo  (I(,>liil.  fiiilia  morridn  prpmatli- 
raniciitc  om  179),  contiiiido  iiptMiaH  trinta  «scisnii- 
iiciH  ,  ;(  li'imci\ni;t'iii  au  laliMilo  du  !;T:ni  It-  iiicslrc   toi 


242 


O  PANORAMA. 


tardia,  comtudo  não  o  foi  tanto  como  a  que  a  Fran-  i  ctica  do  teclado  que,  tapado  ette  com  uma  toalha,  to- 
ra em  nossos  tempos  tributou  á  memoria  de  muitos  i  ca  com  a  mesma  presteza  e  rijor.  Escrevi-lhe,  por 
de  seus  fillius  illustres,   por  exemplo,  Coriieille,  Mo-    minha  própria  mão,  um  minuete,  e  pedi-lhe  me  po- 

liére. A.  viuva  do  famoso  compositor  ambicionava  !  zesse  por  baixo  o  acompanhamento  ao  minuete.  E»' 

viver  até  o  dia  da  inauguração;    mas  seus  votos  não    ta  creansa   me  fará  virar   o  juízo   se  o  ouvir  muitas 
os  ouviu  o  c('u,  tinlia  fallecido  poucos  mezesantes,  a  !  veze» ;   conheço  que   é  impossivel   fujir   a  uma  certa 
6  de  março  de  1SÍ2.  (.)  filho  de  Mozart  assistiu  ves-  .insânia   quando   se   presenceiam   semelhantes  prodi- 
tido  de  lucto  úquclle  acto  pomposo,  q<ie  deixou  per-  I  gios.  " 
manentes    lembranças  entre   os    habitantes    de  Saltz- 
burgo.  Grande  numero  de  nobres  estrangeiros,  admi- 


Odio   velho  ^Ão  cAxri. 
(Romance  Histórico.) 

I. 
Kti  murto,  rei  posio. 


radores  do  génio  de  RIozart,  e  muitos  artistas  cele- 
bres aflluiram  de  varias  partes  da  Europa.  Os  con- 
servatórios e  academias  de  musica  de  Najiules,  Ruma, 
Florença,  JMilão,  Veneza,  \ienna.  Praga,  lierlin, 
IMunich,  Jlamburgo,  Varsóvia,  S.  Tetershurgu,  Sto- 
ckolmo  e  Copenhague  estavam  representados  n^a- 
quelle  concurso  por  alguns  professores  de  seus  gré- 
mios. Esperava-se  uma  deputação  de  Paris  ;  e  os  en- 
viados do  conservatório  francez,  que  interpreta  Mo- 
zart com  tão  rara  perfeição,  seriam  acolhidos  com  en- 
thusiasmo,  porém  não  compareceram.  A  festa  de  O 
de  setembro  ajunctou  mais  de  cincoenta  mil  pessoas.  ■ 
Gluando  ao  mrio-dia  caíram  os  pannos  que  velavam  Na  sala  d'armas  dos  paços  deCoin]bra  havia  já  dois 
a  estatua,  as  s^mphonias  de  seiscentos  músicos  se  dias  que  se  junctava  desacostumado  concurso  de  se- 
misturaram  cora    as  salvas  de  artilheria   e  com  repi-    uhores  é  cavalleiros,  d'homens  de  religião  ed'ufliciaes 


Sbe  vvas  bom  lo  be  fair ;  I  to  die  for 
lier  love. 

Sbaí^sfeare —  OtKtllo. 


quês  dos  campanários.  Á  noite  dois  mil  artistas  ecu- 
riosos  tocaram,  ao  pé  do  monumento,  illuminado  por 
fogos  de  Bengala,  um  hymno  escripto  expressamente 
pelo  conde  Ladisláu  de  Sirker,  arcebispo  d  Erlau,  e 
posto  em  musica  pelo  cavalheiro  Neukonim.  No  dia 
immediato,  pelo  meio  dia,  dois  mil  e  oitocentos  cu- 
riosos executaram  o  Iteqidem  de  Mozart. 

A  estatua  está  no  meio  de  um  mercado;  esta  es- 
colha de  collocação  tem  sido  censurada  :  alguns  críti- 
cos quereriam  que  os  monumentos  commemoralivos 
do  génio  estivessem  sempre  cercados  de  silencio  e  re- 
motos do  espectáculo  do  quotidiano  movimento  do 
vulgo.  Outros,  ao  contrario,  preferem  velos  no  meio 
do  sussurro  e  laboração  das  cidades  populosas,  afim 
de  que  mantenham  as  recordações  gloriosas,  o  culto 
do  talento,  e  uma  constante  emulação. 

A  pag.  2'J'(-  do  2."  volume  dVste  Jornal  demos 
a  historia  dos  ullimos  dias  de  Mozart,  e  do  famoso 
Reqtiicm,  sua  derradeira  composição;  poremos  aqui 
al!;umas  circiimstancias  relativas  á  sua  infância. — 
"Mozart  (luse  na  liioyraphif  Lnivci'scllc)  não  tinha 
ainda  oito  annos  quando,  em  171)3,  appareceu  na 
corte  de  Versailles.  Esle  génio  precoce  foi  ouvido  em 
Paris  em  dois  concertos  públicos.  O  seu  retrato  foi 
gravado  por  um  desenho  de  Carmontelle,  a  que  os 
amadores  deram  prompta  extracção,  de  forma  que 
em  poucos  dias  se  venderam  os  exemplares,  cncon- 
trando-se  hoje  alguns  somente  em  collecções  particu- 
lares. O  barão  de  (irinim,  correspondente  de  todo  o 


palatinos.  O  mez  de  março  do  anno  de  1211  estava 
a  expirar  por  cinco  dias.  Nos  pateos  e  oflicinas  do 
castello  não  se  teciam  cotas  nem  se  poliam  arnezes. 
Os  alfagemes  e  amieiros  não  temperavam  espadas, 
azevans,  ou  achas  d"armas.  O  silencio  era  apenas  in- 
terrompido, a  espaços,  pelo  tropel  das  roídas,  descen- 
do das  torres  e  muralhas,  ou  pelo  trote  dos  cavallos 
em  que  chegava  á  corte  mais  um  rico-homem. 

Não  se  tractava  de  novas  guerras.  O  estandarte  de 
Sancho  I  não  ia  desenrolar-se  mais  uma  vez  ao  bafo 
ardente  das  batalhas.  Os  seus  cavalleiros,  que  aos  três 
c  aos  cinco  se  apartavam  pelos  vãos  das  altas  frestas, 
ora  olhando  para  os  cabeços  além  da  ponte,  ora  cra- 
vando a  vista  u"uma  porta  grossa  de  castanho  cha- 
peado, não  vinham  á  cúria  para  resolver  entradas  na 
fronteira  dos  mouros,  ou  para  tentar  o  cerco  d"algu- 
ma  das  fortalezas,  d'onde  a  bandeira  das  luas  desafia- 
va a  sis;na  real.  A  lança  dos  combales  encostada  ás 
paredes  da  vasta  quadra,  repousava  por  bastante  tem- 
po. Outro  era  o  motivo  que  allí  os  tinha  reunido. 

.\.  porta  de  castanho  da  sala  d"armas  communica- 
va  para  o  recinto  interior,  aonde  estavam  os  quartos 
do  rei.  Por  ella  desapparecèra  o  esforçado  monarcha 
do  reino  portiiguez  na  primeira  tarde  demurço.  e  sa- 
biam já  que  por  ella  só  havia  de  sair  um  cadáver, 
restos  d'aquclle  que,  na  paz  do  tumulo,  ao  lado  d  .-M- 
foiíso  Henriques  ia  descançar  das  luctas  e  pelejas  d'um 
reinado  trabalhoso. 

Juncto  dacarcóva  exterior  ^fosso)  do  alcácer,  oslio- 


grande  rancho  dos  eneyclopedistas,  annunciava  pelo  '  mens  d'armas  e  os  homens  de  pé  da  n>ercè  dossenho- 
modo  seguinte,  no  1."  de  dezembro  do  1T(Í3,  a  che-  '  res  e  c.ivalleiros  entretinham-se  cm  grosseiros  jogos, 
g.id.i  do  tenro  Slozart  a  Paris  eos  seus  triumplms. — .  l  ou  brutescas  porfias.  De  vez  em  quando  alaridos,  ri- 
11  Liii  mestre  de  capella  de  Saltzburgo,  por  nome  Mo-  I  sadas,  e  clamores  de  cholera  rompiam  do  meio  d'cl- 
zart,  acaba  de  chegaraqui  com  duas  creanças  as  mais  le»,  soando  até  os  aptwentos  do  paço.  Por  um  vagn 
«■bbeltas  do  mundo.  A  filha,  de  idade  de  onze  annos,  boato  que  andava  no  povo,  diiia-se  que  D.  Sancho 
toca  cravo  mui  espl^-niiidamente,  executa  as  maiores  esmorecia  na  angustia  de  moléstia  dolorosa  ;  mas  niio 
peças  e  as  mais  liiflkeis  com  uma  precisão  que  as-  se  cuidara  que  a  morte  tivesse  caminhado  tão  depres- 
siimbra  :  seu  irmão,  que  completará  sele  annos  em  !  sa  como  a  tristeza  sincera,  ou  hvpocrita,  lá  dentro 
fevereiro  próximo,  é  um  pbenonicno  tãoextraorilina-  |  inculcava.  Ainda  para  fora  não  transpirara  a  nolici.i 
rio,  ipie  custa  aos  olhos  acreditarem  no  <|ue  entra  pe-  ide  que,  em  poucas  horas  talvez,  Coimbra,  poios  ge- 
los ouvidos.  Não  (•  nada  o  executar  esta  creança  com  niidos  da  sua  cathedr.il,  havia  d'annunciar  a  orphan- 
todo  o  rigor  ns  passos  mais  difficeis  com  mãos  que  dade  ao  reino. — Secundo  o  costume,  o  povo  era  o 
apenas  alcançam  a  sexta;  o  que  parece  incrivel  evè-     ultimo  a  sabel-o. 

Kl  tocar  de  cor  por  uma  hora  a  Co,  c  abandonar-se  á  j  Dous  cavalleiros,  nm  que  partia,  outro  que  chega- 
inspiração  do  seu  génio  e  iruma  infinidade  de  idéas  |  va  ao  palácio,  cruiaram-se  diante  da  ponte  Icvadiça. 
ixtasiadoras,  que  elle  sabe  fazer  seguir  uma  á  outra  .  Por  fortuna  nunca  entre  elles  se  intcrpoiera  o  ódio 
com  bom  gosto  e  sem  confusão.   Tem  tamanha  pra-  {encanecido  de  uma  rixa  de  família. 


o   PANORAMA. 


243 


—  II  Boas  tardes  >»  disseram  a  um  tempo,  e  por  mo- 
vimento simultâneo  colheram  as  rédeas  aos  cavallos. 

— 11  O  infante  ?>5  perguntou  o  que  saía. 

—  i<  KIrei  ?  "  interrogava  o  de  fora. 

—  «O  infante  sobe  agora  aquelle  cabeço.  Trescre- 
dos  mais,  e  ahi  chega  com  os  poucos  que  aturaram  a 
carreira  do  seu  tom  andaluz.  E  clrei  ?  .  ..  Ha  espe- 
ranças, 1).  Martim  Annes?" 

—  «Nenhuma.  Vi-o,  faz  quinze  dias  hoje,  e  logo 
disse  comigo  :  Não  é  este  que  torna  a  ser  homem  !  — 
D.  Sancho  ouve  já  as  enchadas  do  coveiro,  D.  Moço 
Ordonhes.  » 

—  u  Era  um  homem  !  » 

—  M  Se  era  !  " 

—  "E  está  só?  muito  desfaileeido  ?  " 

—  «1  Peior  que  só:,  os  monges  rezam-lhe  ácabecei- 
ra.  (Aue  dòr  d'alma,  I).  Moço  !  Cada  terra  que  ti- 
ram á  herança  de  seus  lilhos;  caila  punhado  de  ma- 
ravedis que  levam  das  arcas  do  thcsouro,  dizem-lhe 
que  o  lava  d"um  peccado  mortal  .  .  .  e  eirei,  tão  que- 
brado de  corpo,  tão  fraco  d'aninio,  a  dar-lhes  ainda 
niais  do  que  elles  pedem  !  .  .  .  O  infante  que  seapres- 
be.  " 

—  II  Estes  padres,  ah  !  estes  padres.  .  .  em  nos  cain- 
do a  cabeça  no  travesseiro,  fazem  o  que  querem  de 
nós  .  .  .  Mas,  ahi  vem  o  infante.  » 

("om  efleito,,  á  rédea  larga  saía  do  lado  da  ponte 
do  Mondego  um  tropel  de  cavalleiros,  galgando  en- 
costa acima  direito  ao  castello.  O  pendão  do  infante 
de  Portugal  esvoaçava  nas  mãos  deííonies  Lourenço, 
seu  collaço  e  alferes.  A  cavalgada  parou  defronte  do 
alcácer.  Seguiu-se  uma  pausa  de  alguns  minutos,  em 
<]ue  não  se  escutava  mais  do  que  o  respirar  cançado 
de  homens  e  corseis.  Com  os  ginetes  á  rédea,  os  ca- 
vallariços,  vestidos  de  saios  alvacentos,  torciam  por 
entre  os  homens  d^armas,  atacados  naslorigas  de  cou- 
ro escuro,  e  no  perpassar  evitavam  as  cotas  bordadas 
dos  pagens,  que  andavam  de  um  [)ara  outro  lado. 

Decorridos  instantes,  do  ferreiro  interior  saiu  um 
oflicial  palatino  :  atravessou  vagarosamente  o  aeanlia- 
<io  largo  que  se  rasgava  diante  da  porta,  e  foi  cur- 
var-se  na  presença  do  infante.  Kra  Suciro  Itajmun- 
<lo,  alferes  do  rei  D.  Sancho.  No»  olheis  roxos  do  guer- 
reiro velho,  filho  da  creação  d'A)lonso  Jlenriques, 
borbulhavam  lagrimas  mal  sustidas.  Pagava  assim  ao 
amigo  da  infância,  e  ao  companheiro  dos  tratwlhos, 
o  tributo  do  soldado.  Sem  vergonha  chorava  allidian- 
te  de  todos  as  primeiras  lagrimas,  talvez,  de  toda  a 
sua  vida. 

liuasi  (pie  se  sentiu  orphão  o  infante  aoencaral-o. 
Apertando  a  mão  d»;  Soeiro  it»^  inundo,  e  tão  baixo 
que  mal  se  percebia,  apenas  piiude  dizer  : 

—  i>  Meu  pai  .'  !  " 

O  alteres  niór  p6z  n  vista  no  i  hão  ;  c  pnr  mais  es- 
iorços  que  fez,  a  voz  não  se  lh(>  soltava  (la  .^aiganta. 

IJ.  Alluiiso  vendo-o,  recuou,  gemendo  n'iiina  ex- 
clamação, que  nau  ha  iidlexão  capiíz  de  exprimir: 

—  "  Meu  piíi  !  i> 

Era  o  grito  das  eiitianhas,  a  verd.idciía  d<"ir  daoi- 
phandadi'. 

O  alleres  niór  eiileiideu  ;  c  lomandolbe  o  liraíjo 
murmurem  : 

—  "  Ainda  não.  n 

O  princip(!  não  ouviu  mais  nada,  e  entrou  preci- 
pitadamente, seguido  do»  seu»  cavaMeiros. 

Chcg.iram  á  sabi  (l'armas.  No  mesiiio  instante  »e 
abria  a  porta  de  ciislanlioihcpeado,  e  uni  mongu  al- 
to de  corpo  e  grave  (raspccio,  Irazemclo  ii  cogula  da 
ordem  de  Cisler,  adianlamlo  se  pura  os(j(ie  alli  esta- 
vam, disse  : 

—  "Muito  reverendos  bispos,  reverendo  mestre  do 
'Icinplo,   e  prior   do  Jlospital,  uUi  dentro  um  mori- 


I  bundo   deseja  reconcilia r-se  com  Deus  'e  com   a  sua 
'  Igreja  antes  de  o  tomar  o  transe  d'agonia.  " 
I       O  monge  era  o  abbade  d' Alcobaça  ^  e  ao  pronun- 
^  ciar  as  ultimas  palavras,  um  sorriso d'orgulho  Ihefu- 
,  gia  pelos  beiços  grossos  e  vermelhos,  sorriso  que  logo 
mudou  de  expressão  apenas  deu  cora  os  olhos  no  in- 
fante.   O  frade  não  se  poude  conter  do  primeiro  so- 
1  bresallo,  e  deixou  que  os  mais  observadores conheces- 
j  sem  que  não  era  extrema  a  sua  alegria  pela  chegada 
j  repentina  de  D.   Aflonso.  Uma  sombra  dedesconten- 
1  tamento   carregou    furtiva    no   seraphico   semblante, 
aonde  lloj-eciam  as  rosadas  e  sadias  c(jres  dos  deleites 
I  mundanos,    em  vez   de  se  estampar  a  maceração  e  o 
abatimento  dos  cilícios  e  jejuns. 

Entretanto,  pezar  ou  desgosto,  soube  reprimil-o 
com  arte.  Approximou-se  deD.  Atlonso,  aquém  não 
tinha  escapado  a  mudança  de  phvsionoraia,  e  com  ar 
de  profunda  magua  accrescentou  : 

—  "  Bem  vindo,  illustre  infante  de  Portugal  !  Deus 
conhece  a  anciã  com  que  vosso  pai  pedia  .i  \  ir^em. 
pelas  dores  da  Paixão,  que  o  não  levasse  antes  de  vos 
abraçar  ...» 

—  uE  por  isso  que  só  hontem  me  levaram  aviso, 
muito  saneio  abbade?"  respondeu  o  príncipe. 

—  "Senhor  da  Maia,  atalhou  o  frade,  como  quem 
não  ouvira  a  pergunta  irónica,  D.  Sueiro  Raimun- 
do, ricos-homens  do  Douro  e  Minho,  D.Sancho,  pe- 
la ultima  vez,  se  quer  despedir  dos  seus  cavalleiros.  " 

E  acompanhado  do  infante,  dos  muito  veneráveis 
padres  em  Christo,  e  dos  ricos-homens,  sumiu-se  pe- 
lo corredor,  em  quanto  detraz  dV-lles  a  porta  chapea- 
da se  fechava,  e  os  dois  pagens  voltavam  a  postar-se 
aos  umbraes.  D.  Aironsodeixou-os  ir  adiante,  e  ficou 
atraz  alguns  momentos. 

O  infante  pediu  a  Deus  animo  e  resignação.  Aquel- 
le golpe  esperava-o  ha  muifo,  doia-lhe  já  havia  me- 
zes  ^  porque  a  sepultura  de  D.  Sancho  não  se  tinha 
aberto  de  repente.  Dois  annos  compridos  levou  a  mor- 
te na  viagem,  trazendo-o  pela  mão  até  Ihemetteros 
pes  e  lhe  encostar  a  face  ás  paredes  do  tumulo,  desde 
então  escancarado  para  o  tragar.  Agora  a  campa  er- 
guida, pizaiulo-lhe  o  peito,  rangia  descendo,  e  quasi 
(jue  ja  lhe  sulVocava  as  desfallecidas  pulsaçiios  do  pei- 
to. Martyrio  atroz  e  sem  nome!  A  mortalha  vestida 
110  cor[)o  do  homem  vivo  para  lhe  queimar  na  raiz 
os  desejos  e  as  illusiles;  para  sempre  vi"r  osejiulcliro. 
e  ouvir  de  dentro  d'elle  a  voz  que  o  chama,  mais  de 
perto  cada  hora,  sentindo  passar  por  cima  do  coração 
o  sopro  regelado  da  morte,  que  lhe  apaga  n'alma  a 
luz  da  esperança,  em  (juanto  o  rosto  foge  da  frieza  da 
terra  que  o  ha  de  comer  !  Um  pií  a  escapar  do  mun- 
do, aonde  tudo  o  (|ue  liça  é  saudaile,  e  o  outro  já  e 
sem  remedhj  a  despenhar-se  pela  cova  dentro! 

Esta  situação  tão  cruel  de  seu  pai  D.  Atlonso  co- 
nhccia-a,  e  tremia  d'ella.  Mas  eiiganava-se,  ou  cui- 
dava eiiganar-se,  suppoudo  todos  os  dias  afastado  ain- 
da o  momento  daseparação.  Nos  iiltiiiuis  tempos,  po- 
r(''m,  a  moléstia  correu,  e  a»  horas  loram  minutos, 
O  iiinur  costuma  temperar  assim  o  espirito,  llludin- 
do-o  cmii  a  força  de  uma  constância,  que  vem  a  lal- 
lar  só  ([uaiido  expira  o  anioriccido  lume  da  vida  no 
qu(^  e  o  objecto  delle.  A  esta  ciisi' natural  ibisgran- 
des  dores  iiioraes  deveu  o  iiilante  osahntos  (pie  o  ar- 
rastaram al(-  o  leito  de  D.   Sancho, 

Durou  o  combati!  interior  ate  darem  de  dentro  o 
aviso.  Ao  escutal-o  todiís  asduvidas  mi  desvanecer. iin. 
()  abbade  tomoiio  pelo  braço,  atravessaram  duas  ou 
três  salas  ijuasi  (escuras  d'abol>iidas  iiclialadas,  mctte- 
ram  por  uni  eorreilor  mais  sombrio  ainda,  e  pararam 
diante  do  reposteiro  d'arraz  (aeitara  ),  (pie  disfarçava 
u  entrada  dos  aposentos  ruaes.  O  monge  bateu  de 
leve,  o  reposteiro  franziuse  d'ulluab«ixo,  c  tranniui- 


244 


O  PAWORA31A 


r.erain  oi  umljraes.  Era  alli,  im  interior  cia  vasta  qua- 
dra, com  os  muro-)  iiús  «las  preciosas  tapetarias  do 
oriente  que  os  enfeitavam  d'ante9,  que  D.  Sancho  se 
preparava  para   a  tremenda  jornada   da  eternidade. 

No  recanto  da  camará,  Juliano,  o  notário  da  cú- 
ria, a  uma  mesa  coberta  de  panno  escuro  escrevia  era 
pergaminho  as  ultimas  confidencias  de  elrei  a  seu 
lilho.  D.  Sancho  receou  que  a  morte  ainda  corresse 
mais  do  que  a  saudade  do  moço  infante,  e  no  mo- 
mento supremo  diclara  ao  notário  e  ao  bispo  de  Coim- 
bra uma  carta,  aonde,  entre  palavras  de  pai  e  sup- 
plicas  de  homem,  mais  de  uma  vez  se  gravara  o  tu- 
nho  da  vontade  robusta  de  vencedor  de  Silves. 

Defronte  do  leito,  em  cima  d'um  altar,  estava  um 
devoto  Crucifixo,  trazido  como  rcliquia  da  Palestina 
pelo  conde  Henrique.  O  sol  poente,  entrando  pela 
estreita  fresta  do  aposento  ia  banhar  de  raios  lumi- 
nosos a  imagem  que,  desjiregada  dos  braços,  parecia 
querer  voar  para  o  peccador  arrependido.  JSo  lado 
opposto,  peidida  na  confusão  das  roupas,  estirava-se 
na  parede  a  sombra  do  monarcha,  desenhada  vigo- 
rosamente no  escuro  do  fundo.  Afigura  de  Juliano, 
com  a  face  encostada  ao  punho,  alvcjando-lhe  sobre 
a  garnacha  preta  as  madeixas  brancas,  c  o  vulto  se- 
vero, e  austero  semblante  lio  bispo  de  Coimbra,  com 
■A  mão  esquerda  no  espaldar  da  cadeira  doofCcial  pa- 
latino e  os  dedos  da  direita  passados  na  barba,  des- 
tacavam na  sua  atitude  melaucliulica  do  resto  dos 
grupos  que  os  rodeavam. 

O  capello  brunido,  a  cota  de  malhas  e  o  montante 
de  D.  Sancho  pendiam  dos  muros.  Despindo  as  ar- 
mas e  as  galas  de  rei,  o  monarcha  guardou  só  ura 
habito  pobre  para  seamortalhar.  As  faces  encovadas, 
os  cabellos  desgrenhados,  e  os  olhos  mortaes  mostra- 
vam que  o  corpo,  extenuado  de  fadigas,  não  existia 
já  senão  para  padecer.  Mas  lá  dentro  velava  ainda, 
até  chegar  a  sua  hora,  a  grande  alma  do  guerreiro 
da  idade  media,  resignada  com  a  vontade  de  Deus, 
despegada  das  vaidades  iiumanas,  e  apertando  a  sua 
<  ruz  sobre  o  cilicio  da  penitencia.  A  morte,  que  no 
século  actual  assenta  a  cabeceira  o  liorror  da  duvida 
e  a  ironia  do  remorso  tardio,  tinha  n^aquelle  as  con- 
solações da  expiação.  O  afiliclo  reclinava  se  no  rega- 
ço da  fé,  e  a  religião,  adoçandolhe  na  bocca  a  es- 
ponja do  fel,  com  a  vella  da  esperança  na  mãoallu- 
miava-llic  o  terrível  transe,  aonde,  depois  do  suor  de 
sangue  d"agonia,  a  carne  morre,  e  o  espirito  se  li- 
berta purificado  pela  dòr. 

Se  fosse  hoje,  os  que  vissem  o  monarcha  portuguez 
na  humildade  de  um  habito,  enrii{uecendo  do  leito 
de  morte  os  mosteiros  e  as  igrejas  com  a  herança  de 
seus  filhos,  haviam  di'  exclamar  :  —  .»  A  moléstia  sec- 
cou  o  braço,  mas  Roma  matou  o  espirito,  rei  D. 
Síincho.  Depois  de  largos  aiinos  de  resistência,  tu, 
ipie  defendeste  a  coroa  das  invasões  do  audaz  Inno- 
cencio  III,  castigand<i  com  rigor  selvageui  a  lemeri- 
ilade  de  um  clero,  que  se  dizia  só  feito  paradevoíar 
a  grossura  da  terra,  decepado  pelos  terrores  da  eter- 
nidade sentiste  o  joelho  do  clero  esmagar-te  o  peito, 
e,  curvando  a  lesta  ao  estrado  pontiliciu,  na  hora 
extrema  renegaste  o  documento  da  lua  victoria  !  •• 

(iuando  o  infante  entrou  no  aposento,  o  coinelle 
os  ricos-homens  e  alguns  dos  caxalleiros  priucipaes, 
o  rei  linha  sido  tomado  de  um  desmaio.  D.  Aflbnso 
■  IN  isinhou-se  da  e.mia  e  pe^ou-llie  no  braço.  1).  Sau- 
iho  ia  tornando  a  si,  e,  abrindo  o>  olhos,  fitava  a 
vista  pasmada  ora  n'uns  ora  n'uiitros,  sem  conhecer 
ninguém.  A  final  abaixou-a  leulamente  p;ira  ositio 
aonde  o  filho  estava  ajoelhado.  Aflirmou-se,  duvi- 
ilou,  tornou  a  aliirmar-se,  e  meio  levantado  nocolo- 
\ello  deitoullie  uiii  braço  ao  pescoço,  exclamando 
com  alegria  : 


—  «  Filho  !  .  .  .  filho  da  minha  alma '.  " 

O  infante  não  teve  forças  de  responder.  Eocoitou 
a  cabeça  no  hombro  do  pai,  e  reprimia  os  solutos, 
que  se  istrangulavaro  na  garganta. 

—  .iJa  me  tardavas,  Aflbaso,  dizia  o  rei  passan- 
do-lhe  os  dedos  pelos  cabellos.  Ia  cuidando  que  não 
tornaria  a  vêr-te,  filho  !  " 

—  «i  Estava  perto  de  Lisboa"  raurmarou  o  príncipe- 
O  monarcha,  virando-se  para  o  monge  de  Cister, 

disse  : 

—  t>  Não  cheguei  a  vêrmeu  pai  —  morreu  um  dia 
antes  de  eu  chegar.  Emfim  ouviu-roc  Deus,  ainda 
tornei  a  abraçar  meu  filho  !  —  que  peio  se  me  tirou 
d'aqui,  Jesus!...  .\gora,  quando  for  chamado  a 
contas  .  .  .  e  que  estreitas  contas,  Senhor '.  E  porel- 
le,  e  apontava  para  o  filho.  E  pelos  irmãos,  é  pelo 
reino,  é  por  todos,  pur  todos  .  .  .  Chego  a  duvidar  da 
salvação,   padre  !  c 

— 11  Pois  não  vos  haveis  de  salvar!  redarguiu  o 
abbade.  E  peecado  desconfiar  da  clemência  divina. 
O  sangue  da  Paixão  correu  para  lavar  as  culpas  dm 
que  se  humilham  diante  da  face  do  Juiz." 

—  a  Eu  sei  !  acudiu  o  rei  com  anciã  Xão  se  me 
tira  isto  d"aqui  1  " 

—  «E  preciso  tira-lo,  tornou  o  monge.  Sabeis  a 
historia  do  filho  que  se  despiu  para  tapar  a  Dudei 
do  pai,  p  appareceu  vestido  de  graça  aos  olhos  de 
Deus.  A  Igreja,  esposa  de  Christo,  é  nossa  mãi  es- 
piritual. Alli  está — ajunctou,  indicando  o  pergami- 
nho—  o  que  peza  mais  diante  da  sua  misericórdia, 
do  que  a  vida  do  maior  peccador  diante  da  suajuv 
tiça.  » 

O  pergaminho  era  o  testamento  de  Sancho  I. 

Um  sorriso  fugiu  quasi  imperceptível  pela  bocca 
irónica  do  notário,  que  olhou  ao  mesmo  tempo  para 
D.  Affonso.  O  principe,  carregando  o sobr"olho,  rcs- 
pondeu-lhe  com  outro,  que  parecia  dizer  —  u  enten- 
do !  " 

Em  quanto  o  monge  pregava  esta  bella  theoria 
utilitária,  D.  Sancho  esteve  com  a  cabeça  debruça- 
da sobre  o  peito.  Levantou  a  vista,  depois,  e  por 
muito  tempo  mirou  o  infante  sem  fallar. 

—  ií  Es  o  retraio  de  tua  mãi,  Aftonso  —  suspirou 
emiim  —  lotlo  tu  és  ella,  a  bocca,  os  olhos ,  tudo,  até 
a  voz  parecP  d'aquella  saneia  que  eu  perdi  .  .  .  que 
nós  perdemos,  filho." 

í  Oh  pai,  querido  p.ii  da  minha  alma!" 

—  1. Isto  havia  de  ser  por  força,  um  dia  autes  ou 
um  di.i  dejiols.  E  hoje  .  .  .  Aflonso,  tenho  que  te  re- 
comniendar  muita  cousa.  Estava-le  escrevendo  agtv- 
ra.  Teu  pai  pedia-te  a  esmol.i  de  o  enterrares  nn 
humildade  d'esle  habito,  ao  pé  da  sepultura  de  teu 
avô.  " 

—  .illa  de  se  fazer,  »  retorquiu  oinfantc  com  me - 
lanchuiia. 

—  «Aquelle  manto  e  aquelle  sceptro  xâoser  teus 
por  minutos.  ..  Deus  sabe  que  os  não  choro,  que 
nem  d*elles  levo  saud.ide».  Tainl>em  me  ceguei  com 
essas  vaidades,  mas  hoje!  .  .  .  não  me  enganam.  N  e- 
rás  o  que  são.  Não  se  dorme  n"uin  travesseiro  de  es- 
pinhos, molhado  das  lagrimas  do  povo,  Afibnso  .  .  . 
Eu  commettí  peccivdos  de  homem,  mas  sobre  tudo 
peza-me  das  culpas  e  dos  crimes  ne  rei.  Tenho  medo 
da  voi  que  ha  de  bradar  por  justiça  com  que  lhe  eu 
faltasse  ;  horrorisa-me  só  cuidar  que  o  sangue  dos 
que  feri  sem  causa  se  levantará  contra  mim  .  .  .  Fi- 
lho, teu  pai  as  portas  da  iteriiidade  roga  ao  herdei- 
ro da  sua  corijaque  lhe  dè  a  pai  da  consciência.  Af- 
lbnso, da-me  d'esroola  com  que  restitua  aos  que  of- 
Icndi.  " 

As  palavras  crnm  de  supplica,  mas  o  tom  de  voa 
■era  de  quem  manda  e  quer  ser  obedecido. 


o   PANORAJVIA. 


245 


—  iiO^uanto  el-rei  disser  será  cumprido,  volveu  o 
príncipe.  Juliano,  csntinuou  virando-í>e  para  o  no- 
tário, é  ess»  o  testamento?  Lí-de.  » 

O  testamento  rezava  de  ricos  legados  ao»  Templá- 
rios e  Hospitaleiros.  U.  Affonso  approvou,  dizendo 
como  para  si  :  —  "E  justiça.  Lá  andam  as  lançadas 
com  os  mouros  na  fronteira.  " 

Vinliara  doações  em  dinheiro  e  terras  ao  mosteiro 
d'Alcobaça.  A  parábola  do  venerável  abbade  de  Cis- 
ter estava  explicada.  D.Sancho  despia  o  seu  herdei- 
ro para  edificar  mais  uma  casa  aos  eremitas  do  po- 
voado. O  infante  franziu  as  sobrancelhas  e  carregou 
o  rosto,  dizendo  só  —  «adiante  !  >i  O  abbade  respirou 
vendo  pajsar  sem  gloza  a  sua  importante  verba. 

Seguiam-se  doações  a  D.  Maria  Paes  Ribeiro,  e 
aos  filho»  que  d'ella  tivera  el-rei.  Liam-se  finalmente 
copiosos  legados  de  castellos,  villas,  <lireitos  reaes  e 
tbesouros  aos  irmãos  legítimos  do  infante.  A  paciên- 
cia foi  vencida  pela  cholera,  e  o  principe,  com  o  ros- 
to escarlate  e  a  voz  estridente,  bradou  : 

—  "  Santa  Virgem  !  tluebram-mi?  a  coroa  em 
l)occados,  repartem-ira,  e  dãome  o  maior  por  mer- 
cê de  nascimento?  Enganaram-se  !  Não  a  hei  de  re- 
ceber senão  inteira  como  a  deixou  meu  avô,  e  meu 
pai  a  trouxe.  —  E  virandose  para  l).  Sancho,  cada 
vez  mais  acceso  em  indignação  ;■  — (iuantos  reis  fa- 
ieis aqui  em  Portugal.''  Em  Alemqiier  é  a  rainha 
D.  Sancha  ^  em  Montemor  é  a  rainha  D.  Thereza. 
Villa  do  Conde  a  1).  Maria  Paes!  Os  maravedis  de 
Thomar,  de  Santarém  e  de  (timbra  pspalli.uios  ao 
vento.  .  .  O  rei  que  morre  corta  o  braço  direito  ao 
rei  que  tica,  deixa-o  pobre.  .  .  oh  !  estes  monges,  es- 
tos monges  !  Não,  isso  nunca  em  quanto  eu  me  cha- 
mar Aflbiíso.  » 

O  ciume  do  poder  real,  origem  depois  das  conWMi- 
das  civis  enire  13.  Allonso  e  siiiis  irmãs,  a(al)ava  de 
se  descobrir  em  toda  a  força.  1).  Sancho  escutou  em 
uilencio  as  primeiras  palavras  do  infante  :,  depois  gra- 
dualmente se  lhe  animaram  as  feições,  -  a  linal  fuzi- 
lou nos  olhos  mortaes  a  faísca  d'aqnella  ardente  cho- 
lera, que  os  mais  valorosos  tremiam  (Farrostar.  Seií- 
tando-se  com  Ímpeto  no  leito,  e  fechando  o  punho 
coín  furor,  exclamou  em  voz  fraca  mas  distincta  : 

—  "  AUbnso,  D.  Aílbnso,  quem  é  aciui  o  rei  ain- 
da ? .. 

Tinha  razão.  A  cholera  galvanisára  um  mominlo 
I)  cadáver.  Era  outra  vez  O.  Sancho  1  antes  de  o  to- 
mar o  terror  da  morte  e  de  se  arrastar  nas  cinzas  da 
penitencia.  Era  toilo  aqiielle  soldado  de  Silves,  <|ne, 
«nitrando  pela  mina  a  golpes  d'acha,  estalava  oeora- 
SSo  das  rochas.  Era  di!  novo  aqiielh-  rei,  f|ue,  arran- 
cando pela  ni.To  dos  saiões  os  olhos  aos  cónegos  de 
(timbra,  com  o  sangue  (rillcs  <'scriplo,  atirava  um 
cajtel  arrogante   á  liara  papal  de  InnoceiKno  111. 

D.  Allonso,  |)ori'm,  tinha  nascido  iíllio  craipulh' 
pai.  Dl!  caracler  mais  eoiicenlrado  nos  lances  exln^-^ 
mos,  era  tanto  ou  mais  iiidcimavrl  cpie  o  próprio  San- 
cho I. 

—  41  Agora  o  rei  sois  viís!  cl.iniou  o  priiici[ie,  res- 
]>unileiidi>  á  piírgiinla  ameaçadora  do  monarcha.  E 
oxalá  que  Portugal  não  tenha  outro  inriitd  tempo. 
Em  quanto  assim  for  sois  o  senhor,  o  inianic  nem 
vè  nem  ouve.  >< 

—  "D.   inhinte!"   bradem  Sancho  com  ira. 

—  i.  Mas  o  r(M  D.  Allonso,  continuava  o  filho, 
qiianilo  pojiT  a  coroa  na  <ab.'ça  ha  ile  põ  la  inteira, 
ou  nfio  a  põe.  Hoje  mandais  víís  ^  «ois  rei,  <;  o  pri- 
meij-o  u  obedecer  sou  eu.  Desgraçado  ilo  que  áma- 
idiã  me  não  fizesse  outro  tanto.  .  .  u  mim  !  " 

Era  um.i  resolução  inabalável  também.  D.  San- 
cho conhecia  di^  mais  o  infanli!,  (|ue  nenhuma  força 
ou  temor  o  abalava.   Por  Íhso,  c  por({U('  la  denlro  lhe 


dizia  a  consciência  que,  5e  o  irmão  peccava,  o  rei  de 
Portugal  fazia  o  que  eile  mesmu  tinha  feito,  D  San- 
cho mudou  de  tom  : 

—  «Oh  Aironso,  (|ue  não  sejas,  que  nunca  foises 
irmão  de  teus  irmãos!  Deus  sabe  com  que  dôr  aqui 
09  levo  atravessados  —  e  apertava  o  coração  coin  ma- 
gua.  —  Elle  te  não  castigue  nos  teus  filhos.  -< 

—  "Como  rei  não  conheço  senão  vassallos.  •? 

E  caiu  tudo  n'um  silencio  constrangido.  Passado 
breve  espaço  o  rei  ergueu  a  fronte,  e  aJ'inctou  com 
tristeza  : 

—  «E  os  outros,  Aftbnso,  os  outros  que  também 
sãu  irmãos?  « 

—  uOs  filhos  de  D.    Maria  Taes  ?  .> 

—  "Deixo-lhes  honra  e  riqueza,  mas  comigo  per- 
dem o  que  se  ião  suppre  .  .  .  Alloiiso,  tu  és  seccode 
coração  :,  mas  pelo  amor  de  tua  mulher,  pela  ventu- 
ra do  teu  Sancho,  avalia  nas  tuas  entranhas  de  pai 
a  minha  aftlicção  —  dize-me,  quando  eu  faltar  has 
de  ser  o  pai  dos  meus  filhos?» 

—  "Pela  cabeça  do  meu  Sancho^  e  pela  alma  de 
minha  mãi  o  juro,  senhor.» 

—  "  Não  faltas  a  esse  juramrínto,  bem  o  sei  .  .  .  ao 
menos  a  respeito  d'elle5   morro  descans.vdo.  » 

A  pallidez  do  rosto  a  cada  instante  se  fazia  mai» 
livida.  Os  olhos  sumiam-sc,  e  a  respiração  era  curta, 
preza  e  rouca.  Mirou  muito  tempo  pela  fresta  como 
quem  se  despedia  do  céu,  das  llòres,  e  das  aguas  do 
Mondego.  D'ahi,  virando-se  para  Sueiro  Ravmundo; 
disse  com  melancholia  : 

—  "N'um  dia  como  este  lomei  Silves.  Não  bole 
folha  !  (Alie  saudade  faz  isto?  (iuem  me  havia  de  di- 
zer que  aquelles  cercos  e  combates  haviam  de  vir  a 
parar  n'islo  .'  » 

E  olhou  outra  ve/,  com  maior  tristeza  ainda. 

De  repente  arredou  a  vista,  e  como  por  um  gran- 
de esforço  murmurou  : —  «Cerrcin-me  aquella  fres- 
ta I  » 

Depois,  asseienando,  armou-sede  resolução  e  disse  : 

—  ii  D.  Allonso,  filho,  um  abraço! — e  mais  bai- 
xo:—  rei  moço,  não  te  cegues ;  toma  exemplo  de 
mim.  (juidado  com  a  velhice,  com  as  contas  finaes. 
Adeus,  filho.  E  uma  viagem,  Sueiro  Itavmuudo. 
Supponham  que  fui  á  Terra  Sancta  e  me  demorei. 
Meus  cavalleiros,  o  rei  que  fica  pagará  as  dividas 
(jue  deixa  o  rei  que  morre.  >i  E  tornou-lhe  a  mesma 
tristeza, 

—  "E  escapar  eu  ao  cerco  lie  Santarém!  Não  ha- 
ver uma  setta  que  me  varasse  em  Silves  .  .  .  Era  me- 
lhor do   que  islo  !  » 

E  que  D.  Sancho,  filho  de  um  soldado,  acalentado 
110  escudo  pali^rno  pelo  embate  das  armas,  chorava 
(icla  morte  do  guerreiro.  Uni  peíjucno  espaço  estev«> 
assim,  e,  cruzando  os  braços,    exclamou  suspirando: 

—  "  i"'aça-se  em  tudo  a  vontadir  de  Deus!» 

E  cerrou  a»  pálpebras  como  (|uem  não  queria  \èr 
mais  nada.  lUiia  sezão  do  febre,  e  com  cila  oilclirio, 
arrancavam  Ihc'  palavras  soltas  e  incuherentcs,  como 
de  Ihuiiiiii  (|ui'  adoece  mais  irafllicção  moral  do  que 
das  dores  |)li_vsicas.  A  idea  da  orphambule  dos  filhos 
vullava  Se  como  um  espinho  a  rctalhar-lhe  ocoruçào. 

—  "  hevem  essas  creanças  :,  seu  irmão  que  as  não 
veja  .  .  .  olhem  o  inianii-  !  .  .  .  Digam  ao  senhor  pa- 
pa .  .  .  oh  Allonso  !  .  .  .  » 

Diqiois,  passando  repentinamente  a  outras  lem- 
branças, fechava  o  |)unlio,  eestorcia-se  ciun  violência 
na  cama. 

—  «i  Esses  monges  eu  os  ensinarei  !  .  .  .  oh,  bispo 
do  Porlo,  liào  fazes  liiuii  em  roç.ir  a  iiiilra  pelo  lueu 
elmo,  pôde»  parti-la  I  .  .  .  Esculem  !  ii'ai|Uella  ccrvi- 
Ihcira  ha  uma  malha  ilescaiiln  .  .  .  .Ajiinetem  o  fio  A 
acha    irarmas  ;  está    embotada  iraoucllas   ruclins  do 


246 


O   PANORAMA. 


Silves...  sellem  o  cavallo  murzello  .  .  .  vamos;  é 
menos  que  uma  caçada  de  javali!  » 

A  uni  signal  do  pliysico  ou  medico  saíram  todos, 
menos  o  bispo  de  Coimbra.  O  infante  nem  mais  pa- 
lavra proferiu.  Enfiou  salas  sobre  salas,  até  ir  assen- 
tar-sc  em  uni  escanho,  com  o  rosto  entre  as  mãos. 
Fallavam-lhe  não  respondia,  tocavam-llie  não  sentia, 
nem  a  voz  amiíça  do  seu  eoliaço  Egas  Lourenço  o 
acordava  daquella  apatbia,  O  sol  escondeu  se  detraz 
(los  outeiros,  as  trevas  apertaram  até  cerrar  com  a 
noite,  e  elle  sempre  do  mesmo  modo.  A  lua  abriu 
cedo,  e  uma  golpliada  de  luz  branca  veio  tremer  um 
pallido  reflexo  na  armadura  do  príncipe,  pendurada 
nas  paredes.  A  pouco  e  pouco  o  sentido  do  ouvir  foi- 
se despertando.  Julgou  distinguir  atoada  dasorações 
da  igreja  na  agonia,  cuidou  escutar  o  dobre  lunebre 
dos  sinos  de  Saiicta  Cruz:,  imaginou  percel"r  o  cbo- 
rar  de  muito  povo.  mas  confuso  tudo,  esvaído,  sem 
ler  força  para  se  mover  d'alli,  ou  animo,  ao  menos, 
de  olhar  pela  janella  fronteira. 

A  final  empurraram  aportado  seu  quarto,  e,  sem 
saber  como,  o  infante  deu  por  sie>tacado  nonn-ioda 
casa.  Caíram-llie  as  névoas  dos  ollios.  Aljaixou  a  vis- 
ta, e  achou  ajoelhado  diante  o  mordomo  da  Cúria, 
que,  entregandolhe  o  annel  do  seu  pai,  soluçou  suf- 
focado  : 

—  4(Aqui  está,  senhor  rei,  o  sello  do  reino." 

D.  Afionso  recebeu  o  annel.  fcluando  o  passava  no 
dedo  entrou  pelo  aposento  uma  como  fumarada  de 
vozes  em  canto  religioso,  e  o  sino  dacathedrai  bateu 
uoia  pancada  lúgubre.  O  príncipe  estremeceu,  e,  le- 
vando a  mão  ao  peito,  acenou  ao  mordomo  da  Cúria 
que  se  podia  retirar.  Apenas  elle  saiu,  desafogando 
nos  braços  de  Gomes  Lourenço,  D.  Afionso  excla- 
mou a  chorar : 

—  «Ai  Egas!  sou  rei,  roas  rei  sem  pai!» 


SoBBE    O   TKAEALUO. 

JÁ  ninguém  hoje  duvida  que  o  trabalho  é  o  meio 
único  com  que  a  1'rovidencia  dotou  os  homens  na 
sociedade  para  satisfazerem  suas  necessidades,  aecu- 
mularem  bens,  e  serem  felizis.  Os  povos  que  mais 
adiantados  se  acham  na  carreira  da  civilisação  co- 
nhecem isto  perfeitamente  i  o  rivalisam  entre  si  so- 
bre o  emprego  das  suas  forças  pliysicas  e  intelle- 
cluaes  para  obterem  os  productos  agrícolas  ou  fabris. 

Os  governos  mais  esclarecidos  lêem  tomado  uma 
parte  activa  no  desenvolvimento  d'este  principio  fe- 
cundo :  tractam  de  proteger  e  honrar  o  trabalho,  ga- 
rantindo o  direito  de  propriedade,  animando  a  asso- 
ciação das  intelligencias  e  dos  capitães,  excitando  o 
génio  a  novos  inventos,  preservando  as  industrias 
menos  adiantadas  de  uma  ampla  loncorrencia  que  as 
aniquilaria,  e  linalmente  acabando  com  as  classifica- 
ções odiosas  da  antiga  sociedade  quando  u  trabalho 
era  votado  ao  desprezo,  e  a  indolência  ou  a  rapina 
títulos  recouinjendaveis. 

Mas  do  grande  desenvolvimento  d'este  principio 
nasceu  a  divisão  do  trabaWio.  Nos  antigos  tempos,  o 
cultivador  de  uni  prédio  rústico  não  somente  fazia 
os  instrumentos  agrícolas,  mas  até  l.ibricava  os  teci- 
do<i  do  (jue  elle  e  sua  família  careci.im  :  o  vestuário 
o  calçado  eram  igualmente  feitos  em  sua  casa.  Esta 
reunião  de  trabalhos  ditVerentcs  ainda  hoje  existe  em 
maior  ou  menor  estala  nas  pequenas  localidades.  ISas 
grandes  povoações,  porem,  ou  nos  grandes  focos  de 
producçâo  fabril,  a  divisão  do  trabalho  achase  esta- 
belecida de  maneira  que  um  individuo  ja  muitas  ve- 
ies se  não  appliea  a  uma  industria,  mas  a  um  ramo 
ou  a  um  trabalho  especial  d°i-lla. 


A  divisão  do  trabalho  tornou-o  mais  productivo. 
foi  um  grande  passo  para  o  bem  estar  e  civilisação 
das  sociedades,  mas  por  outro  lado  deu  origem  ás 
pretenções  de  classe  —  muitas  vezes  difficcis  de  «e 
conciliarem.  l'arece  que  as  diflereiítes  industrias  não 
são  corpos  de  um  exercito  creador,  mas  corpos  ini- 
migos e  destruídos  uns  do3  outros.  Todas  fazem  va- 
ler a  sua  importância,  todas  querem  favor  e  protec- 
ção :  e  querem  be.-n,  porque  favor  e  protecção  lhes 
são  devidos.  Mas  como  !  Deve-»e  por  ventura  a  be- 
neficio da  industria  agrícola  sacrilicar  os  interesses 
da  industria  fabril,  ou  vice-versa?  eis  a  grande  ques- 
tão. 

Assim  como  da  divisão  do  trabalho  entre  os  indi- 
víduos resultou  considerável  incremento  de  produc- 
çâo e  de  bem  estar  entre  as  nações,  assim  também 
alguns  economistas  entenderam  que  esta  divisão  de 
trabalho  se  deveria  estender  as  nações  :  que  umas  de- 
veriam exercer  exclusivamente  em  grande  escala  a 
industria  agrícola,  em  quanto  outras  a  industria  fa- 
bril ;  e  por  isso  propuzeram  a  ampla  liberdade  do 
commercio.  Este  svstema,  na  verdade  bello  e  liuma- 
nitarin,  e  para  o  qual  a  primeira  nação  industrial 
da  Europa  acaba  de  dar  um  grande  passo,  não  nos 
parece  inteiramente  adoptavel,  e  muito  menos  para 
as  nações  pouco  adiantadas  nas  ditferentes  industrias. 
Nem  temos  por  conveniente  que  uma  nação  essen- 
cialmente fabricante  despreze  os  meios  de  fazer  pros- 
perar a  sua  agricultura,  tornando  a  sua  subsistência 
em  grande  parte  dependente  da  abundância  das  co- 
lheitas dos  outros  paizes,  nem  nos  parece  acertado 
que  em  um  paiz  essencialmente  agrícola  se  despre- 
zem os  meios  de  fazer  prosperar  a  sua  industria  fa- 
bril obrigando  quasi  toda  a  sua  população  aos  traba- 
lhos agrícolas,  e  trocando  os  excedentes  do  consumo 
interno  com  as  manufacturas  estrangeiras.  A  indus- 
tria agrícola  demanda  um  determinado  numero  de 
braços,  pela  maior  parte  das  classes  inferiores  da  so- 
ciedade, e  não  é  como  a  industria  fabril  cujo  desen- 
volvimento e  variedade  de  producçâo  podem  ser  in- 
finitos com  o  auxilio  das  machinas.  Em  que  se  po- 
derão pois  empregar  grande  numero  de  braços  que, 
ou  não  são  aptos  para  os  trabalhos  agrícolas,  ou  não 
são  necessários?  E  evidente  que  segundo  este  svste- 
ma, adoptado  sem  modificação  alguma,  considerável 
numero  de  pessoas  que  pertencem  á  classe  media  te- 
riam de  emigrar,  ou  de  morrer  á  miséria,  que  uma 
nação  meramente  agrícola  se  tornaria  em  poucos  an- 
nos  um  aggrcgado  de  aldeias  e  pequenas  villas,  que 
as  cidades  ficariam  quasi  desertas,  c  que  a  civilisa- 
Ção  retrocederia  consideravelmente. 

Já  que  não  é  possível  que  todos  os  povos  sejam  re- 
gidos pelas  mesmas  leis,  formando  uma  única  fami- 
lia,  já  que  as  nacionalidades  crearam  interesses  pe- 
culiares a  cada  paiz,  é  forçoso  convir  que  os-rovernos 
devem  simultaneamente  animar  tiidas  as  industrias 
que  promclterem  bom  resultado. 

A  industria  agrioola  exerce  uma  considerável  in- 
lluencia  no  bem  estar  das  nações:  o  seu  desenvolvi- 
mento traz  cotnsigo  o  emprego  de  grande  numero  de 
braços,  e  o  barateamentu  dos  géneros  mais  necessá- 
rios á  vida',  sem  esse  desenvolvimento  nem  a  popu- 
lação augmcnta  nem  é  possível  nielhorar-se  a  condi- 
ção das  classes  jorniileiras.  A  agricultura  tem  pois 
direito  á  sollicitude  dos  governos:  é  innegavel  que 
ella  entre  nós  prosperou  nVstcs  últimos  tempos  a 
sombra  das  leis  que  a  libertaram  de  pezadissiroos 
impostos  e  alcavaias,  mas  lambem  c  certo  que  esta 
ainda  muito  longe  do  que  pode  vir  a  ser.  O  derra- 
niamente  de  conhecimentos  agrónomos  sobre  proces- 
sos e  instrumentos  mais  simples  e  perfeitos  —  a  cons- 
trucção  de  pontes  eestradas  —  a  auimação  da  iodus- 


o  PANORA31A. 


247 


tria  fabril  e  do  commercio  interno  eão  a  nosso  vêr 
condições  essenciaes  para  o  desenvolvimento  da  agri- 
cultura. 

Os  processos  e  instrumentos  agrários  quando  mais 
simples  e  perfeitos  ecuiiomisani  tempo  e  despezas,  e 
podem  taniljem  concorrer  para  a  mellior  qualidade 
da  pro(iuc<;ão.  As  buas  estradas,  e  em  geral  as  boas 
vias  de  coiiiiiiunicação  facilitam  o  transporte  dos  gé- 
neros aos  grandes  mercados,  baratcam  n^estes  o  seu 
custo,  e  acabam  com  o  i^ulamento  das  p<)Voa<;Ges  tão 
fatal  á  sua  riqueza  como  á  sua  civilísação.  A  indus- 
tria fabril,  crearido  proJuctos  necessários  ao  cultiva- 
dor, e  muitas  vezes  ale  para  a  sua  cultura,  favorece 
por  outro  lado  a  venda  dos  prcjductos  agricolas  nas 
localidudes.  K  o  commercio,  tractaiido  de  colher  das 
localidades  o  excedente  do  consumo  para  os  grandes 
mercados,  doestes  llies  leva  o  dinheiro  e  os  géneros 
que  lá  se  não  produzem. 

Se  lançarmos  os  olhos  sobre  os  principaes  estados 
da  Kurupa,  veren.os  que  em  toda  a  parte  onde  a  in- 
dustria e  as  .relações  commerciaes  prosperam  a  agri- 
cultura vai  em  progresso,  e  que  pelo  contrario  esta 
definha  n'aquelles  paizes  pouco  adiantados  na  indus- 
ria  fabril,  e  que  teem  difficeis  meios  de  communi- 
cação  para  o  commercio  interno.  Vemos  pois  a  In- 
glaterra, a  13elgica  e  a  França  serem  os  paizes  mais 
bem  cultivados^  ao  mesmo  tempo  que  nailespanha, 
na  Itália  e  na  Rússia,  onde  a  industria  fabril  está 
pouco  desenvolvida,  a  agricultura  acha-se  ainda  na 
sua  infância,  não  obstante,  note-se  bem,  ser  o  solo 
da  llespanha  e  da  Itália  muito  mais  fértil  do  que  o 
da  França  e  Inglaterra. 

A  iniluencia  da  industria  fabril  e  do  commercio 
sobre  o  desenvolvimento  da  agricultura  pode  ser  de- 
monstrada até  á  evidencia.  Figuremos  uma  aldeia 
com  terras  ferlilissimas  no  centro  de  um  paiz  agrí- 
cola, e  sem  relações  commerciaes,  ou  por  estar  mui- 
to distante  dos  grandes  mercadcjs,  ou  por  se  achar 
quasi  incommunicavel  com  elles  por  falta  de  estra- 
das, lista  aldeia  não  produzira  nem  tractará  de  pro- 
duzir senão  para  o  sustento  dos  seus  nuiradores. 

Rias  estabeleçamos  n'ella  uma  fabrica,  levemos-llie 
'|Uatrociuitiis  operários,  veremos  como  cada  cultiva- 
dor tracta  de  melhorar  a»  suas  culturas  e  de  obter 
mais  do  que  até  enião  alcançava,  eslimuladu  pela 
esperança  de  poder  Vc;ndi'r  com  lucro  os  seus  produ- 
ctos.  Além  de  que  a  accumulaçãodos  lucros  purmitti- 
rá  ao  cultivador  fazer  os  avançcjs  necessários  e  tirar 
de  suas  terras  lodo  o  partido  possível.  Ks(!  em  logar 
da  fabrica  se  abrir  uma  bua  estrada  para  uma  cida- 
de ou  villa  marilima,  ou  mesmo  para  algum  grande 
mercado  no  interior  do  paiz,  vereis  como  ocoinmer- 
<:io  irá  procurar  á  aldeia,  até  então  isolaila  c  desco- 
idiecidn,  os  producto»  quu  lhe  sobrarem  do  seu  cun- 
Hiimo  local,  ievandolhe  outros  de  que  alli  carece- 
rem :  e  esta  nova  |>rocuM  lerá  o  mesnui  resultado 
qu<!  o  estabelecimento  da  fabrica.  Assim,  se  quereis 
<'nri<|Ui'cer  um  paiz  agrícola,  dai-lhe  coiisnmid<ircs, 
daithe  fabricas,  e  abri  n'elle  boas  estradas  para  a 
livre  (!  facll  circulação  dos  priiductos. 

Por  outro  lado,  a  industria  fibril  ib^pi^nde  lam- 
bem multo  do  desenvolvimento  d.i  agriíiiltura  e  do 
commercio.  Aonde  a  agricultura  prosjierar,  o»  géne- 
ros da  primeira  iu'cessidade  serão  baratos  i  as  mate- 
rijis  primas  custarão  iiuuios,  os  »alarios  serão  meno- 
res, e  os  operários,  senilo  mais  robustos,  Irabalhiirão 
mais.  INJas  sem  a  iiilcrvenção  do  comiuereio,  a  indiis- 
Iria  labril  não  poderá  iiiinea  subir  de  ponto,  muamo 
dada  a  favorável  circiimstaiiitia  do  desciivolviíuiMito 
da  agricultura  :  os  simis  proiliiclos,  (piaiido  vendiílos 
só  na  |oeidida<le,  serão  iniMunpariivelmenlo  menos 
importantus  do  ijuc  quando  [lossum  ser  levados  com 


vantagem  dos  diSerentes  mercados  nacionaes  e  es- 
trangeiros. 

Finalmente  o  commercio  para  poder  prosperar  é 
indispensável  que  também  prosperem  a  agricultura 
e  as  fabricas,  por  quanto  sem  productos  agrícolas  e 
fabris  não  são  possíveis  as  trocas,  e  sem  boas  vias  de 
commuiiicação  tornam-se  ellas  mui  dilficeis  entre  as 
diUerentes  localidades  pela  excessiva  despeza  dos 
transportes. 

Km  suniina,  a  industria  agrícola,  a  industria  fa- 
bril e  a  industria  commercial  ligam-se  intimamente 
como  parti-s  do  mesmo  corpo.  Se  uma  vai  bem,  as 
outras  [)rosperam,  se  uma  vai  mal,  as  outras  sofirem 
também.  Kstas  três  industrias  são  igualmente  neces- 
sárias, igualmente  indispensáveis  [lara  o  bem  estar 
do  paiz;  e  assim  não  devem  ser  consideradas  e  tra- 
ctadas  como  inimigas  umas  das  outras,  mas  protegi- 
das com  igualdade,  porque  todas  concorrem  para  o 
grande  fim  da  feliridade  das  nações. 


m.vciiina  infeknal  dirigida  co.vtra 
Saint-Maló. 

Km  1G8.3,  querendo  a  Inglaterra  vingar-se  das  enor- 
mes perdas  que  os  corsários  de  Saint-iMaló  causavam 
ao  seu  commercio,  projectou  destruir  completamente 
esta  cidade.  No  mez  de  novembro  chegou  uma  es- 
quadra á  vista  da  costa,  e  para  desviar  as  suspeitas 
fingiu  ao  principio  querer  só  fazer  um  bombardea- 
mento. Deixemos  fallar  um  correspondented^um  jor- 
nal d^atjuelle  tempo  (o  IMcrcurc  yclnnt). 

u  Como  os  inimigos  viram  que  as  bombas  não  fa- 
ziam nenhum  elléito,  resolveram  fazer  rebentar  no 
dia  2'J  contra  a  cidade  a  mais  horrível  machina  de 
que  jióde  haver  noticia.  Kra  um  navio  novo  e  fabri- 
cado de  propósito,  que  pelos  destroços  parece  ser  do 
porte  de  (|uarenta  toneladas.  Kste  navio  estava  cheio 
de  toda  a  qualidade  de  fogos  d^artilicio,  de  grandes 
massas  de  alcatrão,  pez,  resina,  palha  picada,  e  toda 
a  casta  de  matérias  combustíveis,  de  mais  de  qui- 
nhentas bombas  e  carcassas',  e  tinha  quatro  buracos 
redondos,  próprios  para  vomitar  para  todos  os  lados 
h)go  e  bomba»,  de  que  ficaram  para  cima  de  tresen- 
las  sobre  a  areia  da  praia,  bem  atacidas  de  pólvora, 
sem  terem  causado  muito  damno.  Este  grande  navio 
foi  trazido  arelioi|ue,  |)ela  ineia-noite,  estando  amu- 
re cheia,  porlris  lanchas  inimigas  atéjunctodos  mu- 
ros da  cidade  o  da  porta  de  6.  Thomaz,  defronte  do 
castello.  Algumas  sentínellas  de  fora  da  cidade  bra- 
daram para  o  forte  e  para  a  ciilade,  mas  antes  que 
la  chegasse  o  aviso  bateu  a  machina  felizmente  n"uiu 
roí  hedo  a  tiro  de  pistola  da«  nossas  muralhas.  Al>riu 
com  a  pancada  e  pegou-lhe  fogo  mais  cedo  ilo  que  os 
inimigos  desejavam.  Kstavani  umas  cem  pessoas  em 
casa  lie  Mr.  de  Chaulnes.  A  priiiu'ira  cousa  que  se  ou- 
viu foi  uma  bomba  que  os  inimigos  ilispararam  para  si- 
gna! ou  |iara  o  cpier  ipie  fosse.  Todos  estavam  alten- 
tos  a  viír  ondí!  a  bomlia  cairia,  quando  de  repente, 
c(imo  se  voassem  dois  ou  três  armazéns  de  pólvora, 
sentiu  se  um  tremor  seguido  do  estrondo  o  mais  me- 
donho i|ue  ser  podia.  Pensamos  <|ne  a  casa  se  despe- 
daçava, lin  fogo  pavoroso  entrou  portodas  asjanel- 
las  das  salas  com  estilhaços  desj)i'didos  com  tal  luria 
«pie  (|iieliraram  vi<lros  <•  arrombaram  madeir.iinenlos 
com  um  cslrepitode  que  não  se  pode  fa/eridca.  De- 
vAra  de  conter  jiara  cima  de  seiscentas  e  oitenta  ar- 
robas de  pidvora  esta  machina,  que  estava  abarrota- 
da dc!  mais  d(í  «el('<'enlaH  bombas  ou  carcassas,  e  de 
mais  de  cem  barricas  di'  tmiiposíçrics  di>  toda  a  sorte 
de  arlilieíos.  Só  a  parte  dianteira  do  navio,  qiic  ^o 
voltou  para  a  banda  do  mar,  chegou  n  rebentar.  •• 


248 


O  PANORAÍttA. 


í^e  não  fosse  o  feliz  acaso  qiie  fez  naufrajar  o  na- 
\io,  ficava  a  cidade  qiiasi  toda  destruída.  Mas  só  a 
duH»  ou  três  ea^as  furam  pelos  ares  os  telhados;  nem 
um  só  homem  morreu  da  banda  dos  francezes,  em 
quanto  que  a  perda  dos  inglezes  foi  orçada  em  loO 
liiiuiens,  que  compunham  a  guarnição  das  lanchas 
que  tinham  rebocado  o  iiavio.  Entre  os  mortos  foi 
encontrado  o  engenheiro  inventor  da  terrível  maclii- 
na  ;  era  uni  refugiado,  por  nome  Fouriiíer,  natural 
'la  Rochella.  (J  duque  de  Chaulnr»,  que  governava 
a  praça,  depois  de  se  ter  certificado  do  pouco  estra- 
go cdusadif  pela  explosão,  mandou  passear  por  toda  a 
<idade  três  prisioneiros  inglezes  para  que  vissem  que 
nenhuma  casa  caíra  por  terra,  e  por  fim  maii{iou-os 
(lara  Jersey,  aCm  de  contarem  aos  seus  compatrícios 
<■  que  tinliain  visto. 

Os  inglezes  empregaram,  sem  melhor  resultado, 
uma  inachina  (|uasi  similhante  contra  Dunkerque. 


I  Julien  traduziu  do  chim  algumas  noções  acerca  d'e5- 
I  te  povo,  que  por  tal  modo  ficou  sendo  mais  conhe- 
I  eido.   A  nossa  gravura  indica  um  habitante  da  Bu- 
I  kharia  Menor  no  seu  trajo  habitual.  —  .\s  raparigas 
solteiras  d'este  paíz  trazem  os  cabellos  pendentes  pe- 
i  las  costas  abaixo,  repartidos  era  dez  tranças;  porém. 
I  um  mez  depois  de  casadas  os  desatam,  penteam-n'os 
'  e  deixam-iTos  lluctuantes,    amarrados   n"um  raolho 
por  duas  largas  fitas  de  seda,  com  borlas  nas  extre- 
t  inidades,   que  cáeiíi   até  os  calcanhares  ;    as  solteiras 
^  iiitresacliain   as   tranças  com   pérolas,    pedras  finas  e 
I  coraes  :  as  pobres  e  as  que  andam  de  luto  as  embru- 
I  Iham  com  uma  facha  de  estofo  azul  ou  verde.  —  Os 
homi  lis  não  entrançam  o  cabello  em  forma  de  rabi- 
■  cho,  ao  modo  chim,  nem  rapam  as  barbas  e  suissas  \ 
fnrtain  só  os  bigodes   para  comer  e  beber  mais  com- 
i  Miodamente  :  as  suas  túnicas  têem  jolas  compridas  e 
niaiijas  estreitas,  e  prendem  do  lado  esquerdo  a  ro- 
|da  doeste  vestido  ;  de  inverno  usam  barretes  de  pel- 
les ;    pas-,ada   a  estação  fria    cubreiii-»e  com  um  tur- 
;  baiite  pontagudo  de  feltro  vermelho  com  bandas  al- 
tas de  seda  por  diante  eatraz:  calçam  sapatos  ou  de 
sola  ou  de  marroquim  encarnado  com  saltos  de  páu. 
Os  turbantes  dos  padres  são  de  tela  branca,  estofados 
de  algodão  ;  quando  os  leigos  encontram  algum  d"es- 
tes  sacerdotes  não  costumam  prostrarse  na  presença 
d'elles  :  diante  de  tndas  as  auctoridades  e  dos  anciãos 
I  cruzam    as  mãos  sobre  o  peito  e  curvam  a  cabeça; 
quando  se  encontram  pessoas  igiiaes  saudam-se  reci- 
procamente com  um  osculo  na  bocca.   Depois  que  o 
I  Tiirkctan  está  sujeito  á  China,  os  habitantes  para 
!  ciiniprimentar  '|uae«qiier  magistrados  chins  ajoelham, 
e  perguntam-llies  pela  saúde  :  diiem  que  os  veneram 
como  o  sol  e  os  deuses. 


A  Iíli.iiaki.v  Menor,  ou  Turkestaii  china,  é  das  re- 
giões da  Ásia  central  até  ao  presente  menos  explora- 
da pelos  viajantes  •■uropous ;  a  sua  historia  é  quasi 
desiMMihecida.  Sabese  que  reduzida  em  17J8  a  im- 
plorar o  (Totectorado  da  China,  desde  então  se  tor- 
nou Iribiilatia  c  a  final  súbdita  do  império  celeste, 
liin  IHiT  foi  agitada  por  uma  robellião  violenta, 
i(ui-.  couitudo,  pance  jião  tivera  coiise(|iiencias  im- 
purtjinlcs.  Confina  pelo  poente  com  o  Tiirkestan  in- 
itepciídonle.  pelo  sul  ciun  o  Tliíbel  e  o  Kabiil  ;  tem 
ao  norte  a  Dzuiigaria  c  a  lo>te  a  China.  l)i\ide-se 
em  lie?,  prouiicias  governadas  por  priíu-ipes  hereilita- 
rios,  vassallos  lia  China  ;  tiMii  di-  população  qimsi  dons 
milhòi-s  e  meio  <ralmas.  pela  maior  parte  de  orijem 
lurca   e  que  professam   n  isjaiiiisino     Mr.   Kstuníslau 


MeTIIODO     IMUA     DISSOLVEK     *     UOMMA-HC*   ÍCA 

I  APPLICAijÃO     AOS    TECIUOS     I  .VI  rEBM  E  A  V  FIS  . 

Mn  Lemcre  de  Normandy  obteve  um  privilegio,  em 
Sd^abril  delS4o,  para  usar  d'este  methodo,  que  con- 
siste em  derreter  a  gomma-laca  ou  antes  a  laca  em 
escamas  n'uma  solução  de  cinzas  de  soda  ordinária. 
.\  cada  três  e  meia  arrolias  de  laca  junfam-se  317 
canadas  d^agua,  em  que  e~tejam  dissol»ídos  M  arrá- 
teis de  cinja  de  soda.  Depois  de  lerver  ci)a-se  por  um 
panno  grosso,  e  jmita-se  ú  laca  dissolvida  iraquelle 
liquido  certa  porção  de  acido  sulphurico.  .\  Uca  que 
if  separa  da  di-solução,  na  forma  de  massa  ou  papas, 
derrete-se  para  depois  sl  estendi-r  sobre  o  tecido  que 
se  quizer  tornar  impermeável.  Taml>em  se  yóde  em- 
pregar como  grude  para  ligar  peças  de  madeira  e  ou- 
tras materiaps. 

<f  aiiclor  indica  como  um  bom  dissolvente  da  laca 
uma  substancia  conhecida  pelo  nome  deo/<o  di  bnla- 
<(|5  fhiiàralo  (/f  pi-iitoxidit  itr  nrniyla  K  produzida  du- 
rante a  distillação  do  ulcoul  d.ts  balatas. 

.'IlrfKri.  ,.f  paUnt  initnt.) 


KosTo  a  rosto  ofloreioinos  a  verdade  a  quem  for  nos- 
so igual  ;  a  um  senhor,  so  de  perfil. 

,  l']log.  de  La  Fonlaitu.  Trad.  Jt  F.  tUysio.) 


De  hoje  cm  dinuir  iamlvm  se  x-cndc  rnttima  parac*- 
If  jornal  na  lojii  Jo  Sr.  João  l'iUilo  MaHins  iocotío, 
oiitiifo  eaij-ciro  i/o  >SV.*  /  iiirn  //iiiiíi/nrs,  csiabclecido 
na  rua  Auyiisia,  n."  8. —  .lí  corrispondcneia  e  quan- 
ijftcr  leclama^tet  fHidem  dirigir  sr  li  referida  kja. 


32 


o  PANORAMA. 


S49 


CHALONS    SOBRE    O    SAONE. 


Saíise  (que  ic  pronunciu  sí<;ií)  c  um  rio  da  Kraiuja 
que  tem  sua  orijçein  no  monlc-  de  \  os^o,  rogaosde- 
parlamcntos  do  Jura  e  do  Allo-Saònc,  separa  o  do 
lUiodaiio  do  de  Aiii,  (•■  juncla-so  ao  lUiodano  abaixo 
deLyuo,  na  exlrciiiidaíli;  do  uma  península,  (|U(:  te- 
rá d<r  eompriniento  meia  légua,  liordada  de  eiioupos, 
e  famoia  pela  tenaz  ri'sisteneia  da  niocidadt'  lyoniMi- 
se,  que  se  aeliava  entre  três  fogos  do  ext^reito  silia- 
dor  em  ÍÍD  de  setembro  de  17S)J.  listo  rio,  ([uo  leva 
as  agua»  mansamente,  comeea  a  ser  navegável  em 
Port-sur-SaAn<í :  o  canal  <|ue  o  juneta  com  o  lioiru 
atravessa  o  departamento  dononiinailo  do  SaAne  e 
lioire,  I)  i|ual  conta  perto  de  quinhentos  mil  habi- 
tantes, e  lai  seu  principal  commercio  em  trigo,  pa- 
lhas, gailo  \accum,  e  vinhos;  d"estes  us  cpii!  produ- 
zem certos  territórios  do  MAconnais  são  os  mais  esti- 
mados ;  porém  apenas  larão  a  centésima  parle  dos 
vinhos  ipie  em  l'ai'ís  se  vendem  com  onomede.Mà- 
connais.  liste  departamento  oceupa  a  parle  meridio- 
nal da  liorgonha,  e  uma  das  rineo  subprefeiluras  em 
iMie  se  divide  é  CliAlons,  cidade  ipie  a  sua  situa^'ãu 
laz  grandemente  commereianie  ^  por  acpii  sáirm  os 
p.irisienses  não  só  a  negociar,  mas  a  viajar  pelo  cli- 
ma mais  agradável  ilo  sul  da  l''rani;a,  ipii'  já  em 
< 'hàlons  se  iipmeia  a  <i)idii'eer  suHicienlenieiiti' ■,  por 
aqui  tambrin  muilus  tomam  caminho  d'llaiía  ;  mais 
ihí  trinta  carriiagiMis  publicas  o  muitos  barcos  de  va- 
por transportam  diariamiMite  nov<'Contas  pessoas,  ter- 
niii  médio;  o  camiidio  do  ferro  <!•!  l'ans  a  livào  de- 
Ne  intluir  muito  n<>  augnuMilo  do  numero.    Os  arre- 

\oL.  I.  — OiTuuiio  '2,   18^7. 


dores  de  Chàlons  são  fírteis,  de  campos  bem  cultiva- 
dos, e  d(!  maltas  abundantes,  cobertos  em  grande 
parte  de  vinhas,  conhecidas  de  tão  remota  data  n'e5- 
te  torrão  ([ue  se  refere  ser  o  districto,  onde  o  impe- 
rador romano  Probo,  repartindo  como  vencedor  o 
terreno  das  Gallias  entre  os  seus  soldados,  mandara 
plantar  videiras,  de  que  os  bárbaros  não  tinham  no- 
ticia. lndepeiident<'  do  trafico  dos  géneros  da  terra, 
o  porto  lluvial  ilo  Chàlnos  é  como  um  armazém  de 
deposito  entre  os  dois  mares:  a(|ui  chegam  os\inho5 
do  Heaujolais,  do  Rlàconnais,  do  Languedoo,  <|U0  se 
embarcam  depois  no  canal  que  une  o  SaOne  ao  Loi- 
re começando  em  Clullons  ;  aqui  vem  ter  igualmente 
grande  <|uantidado  de  ferro  das  forjas  da  Uorgouha 
e  do  Franche-Comté  ;  com  toilo  este  movimento  e 
prosperidade  mercantil,  a  cidadi»  não  possuo  odilicio» 
ou  monumentos  dignos  de  contempla(;ào. 


OníO    >  K1.1IU     .\Xo    1AM,A. 

(Komance  Histórico) 

11 

,7  lot  i/ii  /)(ii'o  n«in  ttnii>>r  »   (r  »'"i  '/<'   /Ji  ii< 

Tnts  dias  perunineceu  silencioso  oalcat;ar;  lio  ipiar- 
lo  o  novo  rei,  no  esbelto  and:ilu/,  utriivcMou  nciíla- 


250 


O   PAN011A31A. 


de  trazendo  sobreveste  d'almafega  em  cima  da  cota 
de  cavalleiro,  como  signal  de  lucto.  Os  que  o  se- 
guiam comjiuiiham-se  ao  seu  exemplo,  e  segundo 
sempre  acontece,  por  demazia  de  zelo  faziam  do  lue- 
lo  e  dòr  uma  espécie  d'arremedillio,  exaggcraiido-os. 
Os  lionicns  da  rua,  assim  chamavam  então  a  fjuem 
não  procedia  do  linliagcni  nobre,  concliegando  os  man- 
tos escuros,  e  apertando  a  cinta  em  redor  do  saio, 
diziam  entre  si  : 

—  "O  fjuo  haverá  lá  fora?  Serão  corridas  de  mou- 
ros ?  Ha  no  reino  levantamento  de  ricos-homens  ?  >' 
E  acotovelavam-se,  beliscavam-see  pisavam-so,  avul- 
tando já  em  alguns  a  gordura  succada,  as  roscas  pe- 
gadas do  duas  barbas,  e  a  veneranda  rotundidadede 
um  ventre  escrupulosamente  municipal. 

l'or  felicida'le  (rdles  não  havia  ainda  na  terra 
portugiicza  rebellião,  guerra  e  fome.  Os  porlagciros 
cobravam  sem  novidade  á  entrada  de  Coimbra  os  di- 
reitos reaes  com  a  proverbial  mansidão  de  lobos  en- 
tre ovelhas.  Os  que  haviam  do  sair  no  appellido 
(chamamenio  ás  armas)  por  foro  da  cidade,  não  ti- 
nham recebido  aviso;  o  muito  satisfeitos  estavam 
d'isso,  porijiie  três  annos  bastaram  para  não  caberem 
nos  seus  lorigões  de  couro  cru. 

—  "Mas  que  novidade  era  esta?  perguntavam  el- 
les  aos  cochichos,  ou  em  voz  baixa.  Por  que  sáe  el- 
rei  tão  cedo?"  Elle  s()  e  os  anjos  é  que  lho  j)odiam 
responder.  Mas  nada  obstava  a  cada  qual  aventurar 
as  mais  extravagantes  conjecturas,  gizadas  na  areia 
com  um  convencimento  digno  das  maiores  verdades. 

Se  elles  adivinliassem  ou  se  atrevessem  a  escutar 
o  que  ia  conversando  o  moço  rei  com  os  seus  caval- 
leiros,  caíam  das  nuvens,  ficando  menos  mal  curados 
do  arrojo  das  suas  imaginações.  D.  Aflbiíso  partia 
pelo  motivo  mais  simples  do  mundo.  Maguava-o 
aquelle  eastello,  aonde  perdera  seu  pai,  e  determi- 
nando demorar  alguns  dias  a  ceremonia  da  coroação, 
desejava  ajjprovcila-los  em  se  distraliir  fura  de  Coim- 
bra. Já  se  vé  que  nada  havia  mais  natural. 

l'ois,  arriscasse  alguém  esta  explicação  aos  honra- 
dos burguezes,  o  saberia  que  S.  João  Baptista  não 
se  fez  debalde  advogado  das  cabeças  quebradas.  O  rei 
sair  so  a  passear  .  .  .  ora  es^a !  Pois  era  a  verdade.  O 
rei  sala  a  passeio,  e  nada  mais. 

Depois  d'elrei  passar,  uma  scena  frequente  nos  cos- 
tumes da  meia  idade  veio  distrahir  a  attcnção  dos 
populares.  O  espectáculo  era  próprio  para  lhe  lison- 
jear os  inslinctos,  e  satisfazer  as  crenças  religiosas, 
vivas  e  ardentes,  n*unia  epoclia  em  que  a  politica 
do  olero  consistia   em  li'as  saber  entreter  e  exaltar. 

Tractava-se  de  um  acto  de  justiça  popular.  O  po- 
vo era  juiz  e  parte  ao  mesmo  tempo.  l'm  judeu  o 
réu  ou  a  victima. 

O  caso  succcdeu  assim. 

Havia  annos  que  D.  Sancho  I  tomara  para  the- 
soureiro  Mestre  Zacharias  2>uleima.  O  rei  morria 
por  encher  as  arcas  de  maravedis  de  ouro  e  prata,  c 
o  judeu  suava  agua  c  sangue  por  lhe  agradar,  acugu- 
lando-as.  lestes  serviços  augmentaram  o  seu  valimen- 
to, e  com  o  valimento  principiou  a  vér-se  de  mais 
perto  a  obscura  pessoa  do  honrado  thesoureiro.  Até 
alli  tinha  andailo  rente  com  o  clião,  e  o  agrado  real 
animou-o  a  levantar  a  cabeça.  Entregaram-lho  a  ad- 
ministração de  todas  as  rendas  e  terras  do  rei  cm 
Coimbra,  e  o  seu  zelo  fiscal,  se  é  possível,  ainda  ex- 
ceileu  as  esperanças  que  n'ellc  depositara  o  seu  illus- 
Ire  protector, 

Mestre  P^uleima  unia  á  raça  dos  criiciticadores  o 
sangue  africano  de  uma  furmnsa  moura,  que  seu  pai 
(que  escândalo  I)  ás  barlias  da  synagoga  elevara  da 
abjecção  de  escrava  á  graude/a  invejada  do  sou  pre- 
cioso thaUimo  pharisaico  ;  e  o  virtuoso  Zacharias  era 


o  fructo  único  dos  amores  conjugaes  da  bella  Eicha 
com  o  rabbi  Judas. 

Até  aqui  optimamente.  Mas  o  mestiço  thesoureiro 
real  parecia-se  muito  com  um  tlagello  para  não  »er 
cordealmente  aborrecido.  Se  as  arcas  da  coroa  incha- 
vam é  bom  saber  que  as  bolsas  dos  populares  achata- 
vam á  proporção.  Os  reguengueiros,  tosados  pela  de- 
salmada tesoura,  queixavam-se  de  que  ella  lhe  entra- 
va já  pela  pelle.  N'isto  é  queoSr.  ZachariasZulei- 
ma  andou  mal,   como  a  experiência  veio  a  mostrar. 

Não  resistimos  á  tentação  de  retratar  o  agiota  do 
século  XII,  muito  semelhante  em  tudo  aos  lobos  cer- 
vaes  d^agiotagem  no  século  \IX  ;  porque  atravez  dos 
tempos  e  das  distancias  o  seu  parentesco  perpetuou- 
se  intimo  e  nunca  interrompido.  .\  dynastia  dos 
miUionarios  é  a  mais  antiga  dynastia  do  mundo  i 
renasce  debaixo  de  mudadas  formas  sempre  a  mes- 
ma, para  supplicio  de  todas  as  gerações  e  de  todos 
os  tempos. 

Mestre  Zacharias  ainda  não  tinha  cincoenta  an- 
nos. Baixo  ;  antes  gordo  quo  magro  ;  cara  redonda  e 
menineira  ;  faces  cheias  o  rozadas ;  e  nos  olhos  ver- 
de-mar  um  brilho  d'astucia  e  viveza  raras,  que  per- 
feitamente casavam  com  a  finura  do  seu  habitual 
sorriso.  Vestia  aljubeta  curta  de  sarja  amarella  ;  e  o 
capuz  do  balandráu  debruado  d'encarnado,  com  man- 
gas largas  de  meio  covado,  descia  sobre  a  testa  cal- 
va, arqueada  e  luzidia. 

GLuem  ouvisse  os  populares  não  podia  vèr  D.  Zu- 
leima;  porém  o  demónio  nunca  é  t.ão  feio  como  o 
pintam.  O  ovençal  do  rei  era  dos  maiores  sabedores 
da  sua  tribu,  e  o  grande  .\nnaz,  o  Pythagorasda  s_v- 
nagoga,  não  era  maior  doutor  na  scicncia  do  Tal- 
mud.  Eui  todos  os  seus  conselhos  se  apreciava  a  ma- 
dureza de  homem  experiente;  e  os  conselhos  eram  a 
cousa  única  que  dava  de  graça.  Disposto  a  prestar 
serviço,  com  tanto  que  lh'o  pagassem,  ria-lhe  na  boc- 
ca  um  sorriso  perenne;  c  a  espinha  dorsal  nunca 
esquecera  a  curvatura  d'arco.  Máu  amigo,  o  peior 
inimigo,  o  destro  judeu  dirigia  todos  os  seus  negó- 
cios com  avareza  intelligente.  Como  o  povo  lhe  jura- 
va para  iim  dia  cedo  a  recompensa,  elle,  á  cautela, 
por  empréstimos  de  ficticia  liberalidade,  tractou  de 
comprar  poderosos  protectorss  para  a  adversidade 
entre  os  nobres  c  os  ecclesiasticos.  Esperava  que,  se- 
melhante a  Noé,  dentro  da  arca  do  seu  ihesouru  ha- 
via de  desaliar  impune   as  iras  de  todos   os  dilúvios. 

Em  quanto  viveu  I).  Sancho,  as  proezas  de  Mes- 
tre Zacharias  furam  cada  vez  a  mais.  Mas  o  medo 
atava  ot  liraços  aos  seus  inimigos.  Contentavam-se 
em  lhe  disparar  na  passagem  duas  valentes  pragas, 
e  um  ou  outro  monge  em  lhe  escarrar  na  cara,  cm 
latim  bárbaro,  as  roucas  maldições  de  um  zelo  alra- 
bilario.  D.  Zuleima,  entretanto,  era  rrspoi.savcl  por 
todas  as  desgraças  acontecidas  em  Coimbra.  As  scc- 
cas  e  as  geadas,  os  gafanhotos  e  a  peste  tudo  era  obra 
do  seu  amor  paternal.  Já  so  v."  que  era  jiopular  de- 
veras, o  judeu  ! 

Isto  dc\ia-se  mais  ao  emprego  do  que  ao  homem. 
O  ovençal,  em  contacto  com  os  homens-livres  doi  re- 
guengos, e  opprimindoos,  attrahia  sobre  si  o  ódio 
dos  maus  pagadores  e  o  dos  Ixjr.s,  quo  perseguia 
igualmente  d"inloleraveis  cxaeçòcs.  .\  consciência  de 
D.  Zuloima,  preta  como  .i  do  Poncio  Pilatos,  cr.i 
mais  dura  quo  um  penedo.  Assarapintandu  de  gara- 
tujas abomináveis  ih  livros  do  rccahah.  na  Ixilsa  do 
couro,  preza  á  cinta  da  aljubeta,  trasi.i  umcscripto- 
rio  portátil  capaz  de  arruinar  em  duas  horas  três  ca- 
sas honradas,  segundo  diziam  os  seus  admiradores  da 
cidade. 

Cluando  morreu  D.  Sancho  a  prudência  disse  ao 
ovcnç.d  :  —  i*  Zacharias   Zuleima,   pOc-lo  á  sombra. 


o   PANORA3IA. 


251 


Tu  não  sabes  quem  te  quer  bem,  nem  quemteqner 
mal;  dcixa-te  Qcar  de  guarda  ás  tuas  arcas  na  boa 
terr<í  de  (,'oimbra.  "  —  ^Jas  a  cubica  gritava: — u 
D.  Zulcínia,  amanhã  arrecadam-se  as  rendas  dos  re- 
guengos, e  o  modo  não  dá  de  comer.  Meu  amigo, 
faz  como  a  virtuosa  Uutli,  ou  vêem  os  pardaes  ele- 
vam-te  os  respigos  da  seara.  "  —  O  judeu  ainda  se 
teve  dois  dias,  mas  ao  terceiro,  o  do  prazo  da  co- 
brança, mandou  passciar  a  prudência,  e  melteu  hom- 
bros  á  empreza. 

Desceu  do  ninho,  invocando  Moysés,  e  a  toura, 
atravessou  a  levadiça,  transpoz  a  barbacan,,  e  d'ahi 
a  nada  ci-lo  já  fora  do  bairro  coutado  dos  ricos-ho- 
mens. 

Ia  respirando.  Tudo  parecia  favorece-lo ;  nem  se- 
quer o  zumbido  usual  (ias  pragas  e  maidijões  o  in- 
commodava.  l'erto  daPortagem  havia  um  estafermo 
corcovado,  verdc-negro,  com  uma  perna  um  palmo 
mais  curta  do  que  a  outra.  Este  enxalmo  tomava  a 
soalheira  do  meio  dia  e  a  fresquidão  da  meia  noite 
assentado  <lebaixo  da  alpendrada,  acaIenlai:do-seem 
coplas  trôpegas  ao  divino;  cera  fregucz  certo  de 
pragas  a  D.  Zuleima.  O  judeu,  antes  de  chegar  ao 
sitio,  espreitou  o  seu  argos,  e  viu-o  enrolado  na  es- 
buracada túnica  de  burel,  escabcceando  com  os  olhos 
fechados.  O  rouxinol  adormecera  com  a  própria  me- 
lodia. 

Animo,  Zuleima,  murmurou  o  homem  dos  mara- 
vedis-, e  passou  depressa,  o  mais  subtil  qu^'  poude, 
tomando  para  opposla  direcção. 

Mestre  Zacharias  dava-se  já  por  salvo,  eiigana- 
va-se.  EUe  a  virar  a  quina  da  rua,  e  o  heroe  da 
Portagem,  o  diabo-coxo,  que  espiava  pelo  rabo  do 
olho,  a  saltar  na  muleta  de  dois  galhos,  deitando 
aos  pulos  atraz  do  digno  official  da  fazenda  d'elrei. 
Cluiz  então  a  má  fortuna  do  judeu  que  fosse  esbar- 
rar justamente  de  cara  acara  com  o  respeitável  Vul- 
cano de  Coimbra,  o  afamado  l'ero  Brilador,  amiei- 
ro de  liombros  de  Hercules,  tez  morena,  e  pulso  ca- 
paz de  derrear  um  touro. 

Assobiava  á  porta  da  sua  forja,  acabando  de  polir 
a  folha  de  unia  ascuma.  A  Iniste  curta,  encostada 
fora  do  umbral  e  pintada  d<!  novo,  estava  a  seccar 
ao  sol.  JÁ  dentro  ia  um  inferno  de  malhos,  puxados 
por  homens  de  carões  ebam\iscados. 

ftlesíre  Zacharias  enliou.  Sabia  que  tinha  alli  um 
amigo  vellio. 

Duas  injustas  penhoras  apearam  o  illu^-lre  Pêro 
Britador  do  foro  de  cavalleiro  villão ;  e  este  obse- 
quio singular  era  devido  a  1).  Zuleima.  Jurou-llie 
pelos  osí.os  até  á  primeira  uccasião,  c  era  homem  de 
palavra.  Por  isso  o  judeu,  apenas  o  viu,  logo  lhe 
dueram   as  cuslella». 

lOntrelanto  Iraclou  de  fazer  a  retirada  .lirosa.  Co- 
seu-se  com  a  parede  fronleira,  o  muito  sorrateiro  foi 
dobrando  o  passo  sen»  olhur  para  traz. 

Pêro  liritador  deix(m-u  chegar  mesmo  á  quina 
por  oníle  su  virava  |)ara  o  terreiro  da  picota  \  e, 
(lanilo  para  denUo  da  forja  iim  assobio  agudo,  agar- 
rou na  hasle  da  ascuma  •,  em  três  ou  quatro  passa- 
<las  estava  com  ella  no  ar  sobie  tjs  malfadados  lom- 
lius  de  I).  Ziileinia. 

—  ii  l'sio  !  amigo  velho  !  .  .  .  ipio  é  isso,  vai-se  ro- 
lando sem  fallar   á  gente?» 

10  opáu  á;i  mãos  ambas  caiu,  como  uma  alavanca, 
nu  cnstailo  do  aterrado  Zuuliarias. 

Sú  então  é  i|ue  (fllu  ouviu,  si-nliu  e  viu  o  fer- 
reiro. 

Osuor  fiioescoriia-lhe  da  li-sla  em  golas;  umais 
se  assustou  ainda,  quando  do  meio  ilc  um  tropel  do 
pasfo?,  (|ue  se  ap|)roxiniava  íi  cada  insliinie,  uma 
voz  IrcniuUi  e  desiinloada  cantou  cslc»  versos  ; 


Malha,  malha,  meu  armeiro 
E  não  cesses  de  malhar ; 
Bate  o  ferro  qu"esfá  quente. 
Até  a  mão  te  calejar. 

Era  o  diabo-coxo  á  frente  de  mais  de  vinte  ga- 
leotes  do  Mondego,  couteiros,  e  moços  de  monte, 
excellentes  caras  para  figurarem  era  bruto  n'um  auto 
da  Prizuo  do  Senhor  no  Horto.' 

O  vulgacho,  altrahido  pelas  pragas  dos  galeotes, 
pelos  gritos  taurinos  do  armeiro,  e  pelos  guinchos  de 
cega-rega  do  diabo-coxo,  ajuncfava-se  em  maior  nu- 
mero. Pelas  frestas  das  casas  e  ás  portas  meio  aber- 
tas arriscavam-se  algumas  cabeças  curiosas.  D^ahi  a 
minutos  era  uma  feira.  O  povo  já  não  cabia  na  rua 
e  no  terreiro ! 

D.  Zuleiraa,  ora  branco,  ora  verde,  ora  roxo, 
cambiando  as  cores  do  medo,  batia  os  joelhos  e  os 
dentes  n'uma  verdadeira  sezão,  amaldiçoando  a  cu- 
bica, que  o  mettêra  na  bocca  do  lobo.  ' 

—  "  Deus  d'Abrahão  e  do  Isaac  I  "  gritou,  ajoelha- 
do ao  ferreiro,  com  grande  anciã. 

—  "Blasfema!  bradou  um  da  chusma.  Tubarão, 
ouves  ?  .  .  .  tu  que  estás  mais  perto,  mette-lhe  oito 
dentes  pela  bocca  dentro,  a  vêr  se  o  fazes  cuspir  o 
nome  d^esscs  ídolos. " 

—  "Altol  leva  rumor',  clamou  mestre  Pêro.  Isto 
ha  de  ser  com  todas  as  ccrcmonias,  ou  não  presta. 
Q.ue  é  dos  alvazis  da  arraia  miúda?" 

—  "Aqui  estão,  mestre  Pero"  disseram  ao  mesmo 
tempo  umas  poucas  de  vozes. 

—  "Depois  os  verdadeiros  alvazis,  os  da  cidade, 
que  venham  cá  pôr-nos  a  muleta  !  continuou,  rindo, 
o  ferreiro,  ^'amoí^,  um  banco;  alli  o  judeu  da  esqui- 
na que  traga  o  livro  d'esles  cães.  Uiabo-coxo,  upa! 
estás  arvorado  era  alvazil.  Ntjs  somos  os  homens  bons. 
Alia  Dordia  ca  tia  Ruiva  as  queixosas.  Eu  execu- 
to a  sentença  .  .  .  Ora  digam  lá  que  a  gente  cá  não 
sabe  fazer  justiça.  » 

A  medida  que  elle  fallava,  tudo  como  porencau- 
to  chegava  a  postos.  O  judeu  da  esquina  tremia  en- 
gelliado  de  medo  e  frio  •  o  diabo-coxo  encruzava-se 
no  banco.  Eaos  eni])urroes  o  atribuindo  Zuleima  era 
levado  á  presença  d'a(juellc  novo  tribunal,  cercado 
de  caras  avinhadas  no  meio  do  borborinho  dos  rapa- 
zes e  do  resmungar  das  velhas,  a  parte  mais  desin- 
quieta da  asscmljléa. 

—  "Anda  cá,  judeu,  iscariote  —  disse  a  tia  Rui- 
va, fincando  o  punho  c6r  de  lagosta  na  cinta  —  não 
me  dirás  que  mau  olhado  dJste  á  vinha  de  mestre 
Chambãu  ?  .  .  .  » 

1  D.  Znleima,    perturbado   e  fora   de  si,  ouvindo  o 
nome  de  um  dos  seus  devedores,  cliimuu  : 

—  "Não  lhe  ficou  bago  no  cacho .'  estimo  bem 
porque  ..." 

Uma  trovoada  de  gritos,  pragas  e  ameaças  caiu 
sobre  elle  apenas  dissera  isto. 

—  "  lirada  ao  céu '.  Aborto  do  inferno!  Agouroda 
cidade  I  »  gritaram  os  galeotes  e  ferieiros,  tinindo  <i 
ferro  dos  malhos,  c  batendo  as  pás  dos  remos. 

—  "E  as  maleitas,  ao  visinho  Telmo?  Não  o  lar- 
gam ha  duas  semanas!"  guinchou  u  senhora  Eva 
S.ili/:. 

—  "E  o  pobre  Estevam  do  Moinho,  não  lhe  inct- 
leu  esto  cão  uniu  penhora  em  casa?  Eslá  arrastado- 
borrava  uma  oitava  acima  a  lia  Dordia. 

A  cada  accusação  a  cara  de  D.  Zuleiínu  era  um 
arco  iris. 

•    — "  N'nnios,  judeu,  disse  o  diabo-co.vo,  lesponde; 
o  (|ue  te  fez  Ioda   esta  gente?" 

Mislre  Zacharias  e  ipie  podia  pcrgunlar  rm  que 
linha  DlVeiidido   aqucllo    respeitável    urcopiigo;    m.i* 


252 


O  PAIVORA3IA. 


iruma  convulsão  de  medo  mal  tinha  força  da  mur-  | 
murar  : 

—  "Deus  de  Moysés,   salvai-me  da  mãos  dos  na-  | 
rarenos  I  "  i 

—  iiOlbem  acara  de  Judas  I  »  grunhiu  a  tia  Rui- 
va, sacudindo  um  braçado  de  hortaliça. 

—  "  Deixem  o  caso  aos  alvazis !  n  bradavam  algu-  | 
raas  vozes. 

—  "  Sessenta  açoutes.  " 

—  "  Noventa.  " 

—  "Cem  e deveras,  ou  vou-me  embora"  concluiu 
o  diabo-coxo. 

—  "  Cem,  nem  um  de  menos!  ;i  barafustaram  todos,  i 

—  "Gluem  demónio  ha  de  cá  dar  tanto  açoute?" 
disse  o  amieiro. 

—  "  Cem  !    cem  1  »   trovejaram   de  todos  os  lados. 

—  "Pois  cem,  sejam  cem,  com  dezdemonios '.  re- 
torquiu o  ferreiro.  Lopo  Secco,  arregaçar  as  mangas 
e  malhar  !  "  (Continua.) 

Acto  de  lealdade  portuguez.4. 

E  GERALMENTE  conhecido  o  heróico  feito  do  magnâ- 
nimo e  leal  Salvador  Ribeiro,  na  rejeição  da  coroa 
do  Pegú,  e  que  mereceu  ser  cantado  pelo  Pindaro 
portuguez;  tem,  comtudo,  permanecido  no  esqueci- 
mento outra  acção  semelhante,  posto  que  não  tanto 
estrondosa,  practicada  no  sertão  do  Brazil  em  tem- 
pos mais  modernos. 

Durante  o  interregno  de  1580  a  1640  tinham-se 
estabelecido  na  cidade  de  S.  Paulo  muitos  hespanhoes, 
que  para  alli  passaram  da  Europa,  ou  que  concorre- 
ram das  índias  occidentaes  :  alii  exercitavam  avulta- 
do negocio,  possuiam  habitações  e  fazendas,  e  pela 
maior  parte  estavam  casados  e  mantinham  estreitas 
relações  com  a  gente  da  terra.  Chegada  ao  Brazil  a 
noticia  da  acdamação  d'elrei  D.  João  IV,  concer- 
taram-se  aquelles  hespanhoes  para  conservar  na  obe- 
diência de  Caslella  as  povoações  de  Serra-acima  \ 
conhecendo  porém  que,  se  declarassem  abertamente 
a  sua  intenção,  seriam  viclimas  do  rancor  geral  contra 
»  jugo  estranho,  traçaram  valer-se  de  artificio  e  ma- 
nha. Lembraram-sc  que,  seduzindo  os  paulistas  para 
se  desmembrarem  da  metrópole  e  erigirem  qualquer 
governo  em  separado,  cedo  ou  tarde  seriam  forçosa- 
mente aggregados  ás  índias  da  coroa  de  Ilespanha, 
supposto  a  communicação  lluvial  entre  as  villas  de 
herra-acima  e  as  províncias  da  Prata  e  Paraguay. 
N  este  presupposto,  inculcando-se  mui  zelosos  do  bem 
commnm  da  terra  em  que  se  haviam  naturalisado, 
propozcram  a  seus  amigos,  parentes  e  alliados,  e  a 
todos  em  geral,  a  eleição  de  um  rei  paulista,  não  lhe 
esquecçndo  apontar  logo,  como  digno  da  coroa,  Ama- 
dor Uueno,  ])essoa  mui  estimada  de  todos  os  seus  pa- 
trícios pelas  circumstancias  de  qualificada  nobreza, 
da  opulência,  do  respeito  de  que  era  credor  poios  car- 
gos que  honro.sanicnte desempenhava,  pela  numerosa 
clientella  de  indivíduos  com  elle  vincnladus  por  san- 
gue ou  amizade,  c  pelas  allianças  de  seus  nove  filhos 
e  filhas,  duas  das  quacs  eram  casadas  com  dois  irmãos 
fidalgos  liespanhoes,  que  vieram  ao  Rrasil,  cm  ItilJj, 
lui  arm.ula  hespanhola,  destinada  á  restauração  da 
Bahia.  —  \aleram-sc  os  dasizania  de  todasas  razões 
especiosas  convenientes  a  seu  propósito,  expondo  áquel- 
la  gente  sincera  e  pouco  instruída,  que  o  acto  a  que 
os  instigavam  de  nenhum  modo  seria  taxado  de  re- 
beldia, porque,  rolo  o  domínio  intruso  de  Castella, 
estavam  no  jus  de  reconhecer  ou  não,  conforme  seus 
interesses,  um  soberano  a  (]uein  não  haviam  juradj 
preito  e  obediência.  Para  lisonjear  as  paixões  exal- 
tavam o  mérito  dos  paulistas,  allcgando  que,  pela 
nobreza  de  muitos  cariqucia  e  capacidade  de  muitos 


mais,  podiam  crear  um  estado  forte  e  independente  ' 
que  alistariam  exércitos  entre  o  grande  numero  de 
Índios  seus  administrados  e  escravos;  que  era  defen- 
sável a  posição  de  S.  Paulo,  mais  vantajosa  ainda 
porque  para  os  portos  marítimos,  d'onde  haveria 
que  recear  algum  accommettimento,  não  exbtia  se- 
não a  ruim  estrada  de  Paranaapiacaba,  que  bastaria 
despedir  penedos  pela  serra  abaixo  para  derrotar  os 
invasores.  Este  enredo  esteve  a  ponto  de  ir  por  dian- 
te, e  os  hespanhoes  lograriam  seu  intento,  se  não 
fora  a  lealdade  acrisolada  do  próprio  homem  que  pro- 
curavam para  instrumento  de  seus  desígnios.  —  Eis- 
aqui  como  refere  o  facto  o  historiador  daprovincia, 
Fr.  Gaspar  da  Madre  de  Deus  : 

«  Eram  sinceros  os  moradores  deS.  Paulo,  c  ainda 
que  fieis,  bem  poucos  entre  elles  teriam  a  instrucção 
necessária  para  conhecerem  o  direito  incontestável 
da  sereníssima  Casa  de  Bragança  ao  sceplro,  e  para 
perceberem  os  laços  e  as  funestas  desgraças  em  que 
aquellas  machinações  os  iam  precipitar.  Além  d'isK>. 
a  plebe  em  toda  a  parte  é  fácil  de  mover-se  edear- 
rojar-se  a  excessos.  Os  hespanhoes  conseguiram  sedu- 
zi-la eajunclar  um  grande  numero  de  pessoas  de  to- 
das as  classes,  que,  acclamando  unanimemente  por 
seu  rei  a  Amador  Bueno  de  Ribeira,  concorreram, 
cheios  de  alvoroço  e  cnthusiasmu,  á  sua  casa  a  con- 
gratular-se  com  elle.  Pasmou  Amador  Bueno  de  Ri- 
beira quando  ouviu  semelhante  proposição;  elle  de- 
testou o  insulto  dos  que  a  proferiram,  e  com  razões 
efficazes  procurou  dar-lhes  a  conhecer  sua  culpa  >■ 
cega  indiscrição.  Lembrou-lhes  a  obrigação  que  ti- 
nham de  se  conformarem  com  os  votos  de  todo  o  reino, 
e  a  ignominia  de  sua  pátria  senão  se  reparasse  a  tem- 
po, com  voluntária  e  prompta  obediência,  odes;icer- 
to  de  tão  criminoso  attentado.  ^LlS  a  repugnância 
do  eleito  augmenta  a  obstinação  do  povo  ignorante; 
chegaram  a  ameaça-lo  com  a  morte  se  não  quizes- 
se  empunhar  o  sceptro.  Vendo-se  n'esta  consterna- 
ção o  fiel  vassallo,  saiu  de  sua  casa  furtivamente,  e 
com  a  espada  nua  na  mão,  para  se  defender  se  ne- 
cessário fosse,  caminhou  apressado  para  o  mosteiro  de 
S.  Bento,  onde  intentava  refu^iar-se.  .Advertem  o* 
do  concurso  que  havia  saído  pela  porta  do  quintal  ; 
e  todos  cortem  apoz  elle,  gritando :  —  Tiva  .amador 
liucno,  nusso  rei.'  ao  que  elle  respondeu  muitas  ve- 
zes era  voz  alta  :  —  T  iva  o  Sr.  D.  Juuo  II',  iioí<i 
rei  c  senhor,  pelo  i^iial  darei  a  viJa. 

Chegando  Amador  Bueno  de  Ribeira  ao  mostei- 
ro, entrou  e  fechou  rapidamente  as  portas.  Como  os 
paulistas  antigos  veneravam  summamcnlc  aos  sacer- 
dotes, principalmente  aos  regulares,  nenhum  indul- 
tou ao  convento,  e  todos  pararam  da  parte  de  fora. 
insistindo,  porém,  na  sua  indiscreta  prctenção.  Des- 
ceu á  portaria  o  D.  abbadc,  acompanhado  d.i  sua 
communidade,  ecom  attençiKJs  rntretexe  a  multidão 
em  quanto  xVmador  Bueno  de  Ribeira  mandou  cha- 
mar com  pressa  os  ecclesiasticos  mais  respeitáveis,  c 
alguns  sujeitos  dos  príncipsics  que  se  não  achavam 
no  concurso.  Vieram  logo  uns  c  outros,  e  todos  uni- 
dos ao  díclo  Bueno  úcerani  comprehonder  aos  cir- 
cumstantes  que  o  reino  pertencia  á  sereníssima  Casa 
de  Bragança,  e  que  dVIle  se  acharia  esta  em  posse 
pacifica  desde  odiada  morte  docardeal  rei  D.  He; - 
riquc,  so  a  violência  dos  nionarciias  hcsjíanhoes  nã 
liouvera  suflbcado  o  seu  direito.  Nada  mais  foi  ne- 
cessário para  se  conduzirem  aqu»-lles  fieis  portngue- 
rcs  como  deviam  ;  todos  arrvpendídosdoscu  dcsacor- 
ilo  foram,  cheios  de  gosto,  acclamar  solemnemcnte  o 
Sr.  D.  João  1\,  com  magua  dos  hespanhoes,  os 
(juaes,  para  não  perderem  as  conimodídades  que  tí- 
nliani  vindo  procurar  em  S.  Paulo,  prestaram  tam- 
bém ojuramcnfo  de  fidelidade  ao  mesmo  soberano.- 


o  PANOR7I3IA. 


253 


Este  facto  é,  como  dissemos,  mui  pouco  sabido : 
um  amigo  nosso  o  tomou  para  assumpto  de  um  dra- 
ma que  tem  coricluido,  porém  ainda  não  vulgarisado. 


O    GEMO    DO    BEM. 


Ao  VASTissiMO  império  da  Rússia,  povoado  por  tan- 
tas e  tão  diversas  nações,  pertence  a  grande  penin- 
sula  de  Kamtschatka,  que  demora  ao  nordeste  da 
Ásia  entre  03  i)2  e  61  graus  de  latitude  scptemtrio- 
nal,  e  entre  o  golpiío  do  mesmo  nome  c  o  mar  do 
Japão  na  extremidade  sueste  da  Rússia  asiática  ;  tom 
nlira  de  7o  léguas  na  sua  maior  largura  •,  asua  extre- 
midade ao  sul  é  o  cabo  Lopatka  ;  de  norte  a  sul  cor- 
re uma  serrania  de  altos  que  a  dividem  quasi  em  par- 
les iguaes,  ed^ella  nascem  vários  rios  que  se  lançam 
no  (Jceano  e  no  mar  de  Okotsk.  Da-lhe  o  nome  o 
Kamtschatka,  que  tem  seu  manancial  na  falda  de 
um  monte  volcanico,  corre  ao  norte  por  terra  dentro, 
edespeja-se  no  mar  depois  de  um  curso  de  70  léguas 
de  áO  ao  grúu.  Os  russianos  só  tiveram  cnniiocimen- 
to  d'ella  por  fins  do  scculo  XN  II  ^  porém,  em  171 1 
é  que  alli  se  estabeleceram  e  foi  recordiccida  a  aucto- 
ridado  do  Czar,  a  cujo  império  os  Kamtschadaes  pa- 
gam tributo  em  pelles  finas  i  sendo  ocommercio  dV-s- 
te  género  o  que  tem  feito  mais  frequentada  esta  pe- 
nínsula. O  clima  é  áspero  e  pouco  tolerável  para  ou- 
tros povos  que  não  sejam  os  russos;  dizem  estes  (jue 
o  torrão  é  fértil  •,  porém  as  arvores  que  tem  são  aca- 
nhadas ;  dá  alguns  vegetaes  no  estado  silvestre,  taes 
como  alhos,  cebolas,  aipo,  o  também  excellentes  na- 
lios  em  alguns  silios  nos  valles.  Esta  região,  comtu- 
do,  não  tem  o  frio  tão  rigoroso  como  indica  a  sua 
situarão;  o<|n(!  procede  das  montanhas  onde  ha  três 
volcões,  e  de  certa  temperatura  que  o  mar  conserva 
por  meio  de  densas  névoas  :  o  inverno  é  longo  e  cons- 
tante, c  n'esta  estação  não  se  pede  viajar  senão  em 
trenós"  janeiro  é,  como  na  Kuropa,  o  niez  mais  frio; 
.1  primavera  é  curta,  e  posto  que  chuvosa  tem  alguns 
dias  bonitos,'  o  verão  não  é  comprido,  mas  muito 
inconstante  :  a  approximação  do  bom  tempo  é  peri- 
gosa para  os  moradores  por  causa  do  derretimento 
dos  gelos  ;  e  ás  vezes  se  vêem  obrigados  a  refugia- 
riMii-se  Uiis  copas  das  arvores  para  não  serem  subver- 
tidos. 

Os  babilanles  pôde  dizer-se  que  são  de  Ires  raças, 
kamlsibadacs,  nativos  do  ])aiz,  e  russos,  e  cossacos, 
«em  fallar  nus  mestiços  d\:stes  povos  :  construem  trcs 
castas  de  habitações;  as  (pie  chamam  yiiríts,  para  o 
inverno,  parecem  exteriormente  um  outeirinho  re- 
dondo, com  um  buraco  ao  meio,  que  serve  de  cha- 
miné, de  porta  ede  janella;  as  sogunilas,  chamadas 
halaiKjanas,  habilam-11'as  de  verão  ;  as  terceiras,  qu<! 
ileiíoiiiiiiam  loijuziis,  introduzidas  pelus  russos,  são  as 
vivendas  da  gente  mais  graúda.  ()s  verdadeiros abo- 
rigenira  aão  de  estatura  abaixo  da  mediana,  de  cara 
larga  e  redonda,  oliios  peijiienos  e  encovados,  maçãs 
<lo  rosto  proniinentes,  nariz  esborrachado,  calíellos 
jireliis,  e  (e/,  iiaea  ;  o  seu  caracter  é  brando  e  hospi- 
lalijiro;  são  grandes  preguiçosos,  e  asua  inaiordita, 
depois  da  eniliriaguez,  é  a  ociosulade  :  veileMi-sed(! 
pelles  de  lolxis,  de  ursos,  ilu  rangiferos,  e  ile  argalis 
(carneiros  selvagens)  :  a  necessidade  os  obriga  a  dar 
eaça  a  v>,[m  e  aos  animaes  (pie  tcem  as  peljes  tinas, 
poripu!  n'est(!  ramo  consistem  Iodas  as  suas  rii|nezas. 
lia  n\'sla  região  castores  d(í  tamanho  exlraordina- 
rlo  ;  o  lanibeiii  inaila»  ezibelinas;  as  rapcisiis  de  va- 
rias cures  são  mais  fi)iiu(i-.as  (jiie  as  das  ilhas  de  les- 
te. A  pesca  é  ninllo  .ibiindaiile  nas  cosias,  onde  se 
.leliam  salmòes  c  hul;i->,  e  se  caça  o  lobo  marinho. 
Aniinacs  domésticos  nàu  ha  senão  alguns runglleros, 


eo5  cães,  que  são  da  maior  utilidade,  porque  os  can- 
gam aos  trenós  em  numero  impar,  e  assim  transpor- 
tam pelo  gelo  seu  dono  com  a  bagagem.  —  Esta  gen- 
te parece  que  não  tem  culto  fixo;  eomtudo  reveren- 
ceiam  de  algum  modo  certos  animaes,  e  invocam 
differentes  génios  sobrenaturaes,  crendo  que  ha  mui- 
tos que  ordenam  o  mal,  por  isso  que  são  mais  os  ma- 
les que  os  gozos  da  vida,  e  que  ha  um  que   é  causa 


do  bem,  e  ipie  representam  pela  imagem  brutesca 
que  mostra  a  precedente  gravura.  —  Os  casamentos 
elVcctuam-se  de  um  modo  notável  :  uma  rapariga 
pretendida  para  mulher  é  como  uma  fortaleza  que 
se  ha  de  tomar  por  assalto;  é  defendida  jielas  outras 
mulheres,  as  <]uaes  se  atiram  ao  pretendente,  dão- 
Ihe  muita  pancada  e  muitos  lioléus,  arranham-iro  e 
puxam-lhe  pelos  cabellos  ;  é  necessário  ([uo  elle  tri- 
uniphe  dCsles  obstáculos,  aliás  não  casa  :  porém  se 
vence,  leva  a  sua  noiva,  e  então  os  dois  partidos  se 
reconciliam,  e  tracla-se  da  boda  em  casa  d'ella. 


CuLTUnA    K    SBiMENTEIUA    DAS     UVTATVS. 

No  DiAiiio  doGovorno,  n."  G7,  publicaram-se  Ins- 
truc(;ões  convenientes  para  dirigir  a  cultura  das  ím- 
iittus,  com  as  precauções  necessárias,  afim  do  evitar 
((  prevenir  o  mal  (pie  alem  contaminado;  apontan- 
do logo  a  providencia   de  sementeiras. 

Entre  as  causas  provavirl»  de  tão  funesto  mal  ligu- 
ra,  no  seu  tanto,  o  enfrac|Ueclinento  e  degeneração 
do  ijiiiiiv  iliis  hitliitíis,  o  (piai,  por  melhores  (pie  se- 
jam, enlraípiece  c  degenera  em  menos  de  vinte  ân- 
uos; (•  por  isho  (|ue  os  bons  agrónomos  não  teem  ces- 
sado de  rccomnielidar  a  stitunltint  d'ellas  ouno  \  ia 
iialural  e  providente  de  lhes  restaurar  o  prineiplo  de 
reproilueeâo  feiíinda,  perieita  e  sã:  inleli/niente  es 
sas  reeommeiíd.KjVes,  e  outras  mais,  teem  sido  des 
prezadas,  ate  (|Ue  agora  a  gravidade  do  mal  obriga 
a  empregar  todas  as  cautelas  e  meios  de  o  evitar,  e 
de  o  prevenir  para  o  fiiluro,  recorrendo  as  semen- 
teiras, cujo  mctliodo  praclieo  jnlg.imos  opportuiio  in- 
dicar. 


254 


O   PAINORAMA. 


Como  porém  as  tementes  devam  snrsãs  r  perfeitas, 
c  colhidas  como  taes  de  planta  sã  e  perfeita,  estaob- 
\ia  consideração  auçmenta  ainda  o  cuidado  especial 
com  que  se  deve  proceder  na  plantação  etractamen- 
to  das  batatas  no  presente  anno,  afim  de  produzirem 
fructos  sãos  e  perfeitos  para  as  necessidades  e  usos  da 
>ida,  e  sementes  próprias  para  a  reproducção. 

Finalmente  a  escacez  de  cereaes  cora  os  seus  cíTei- 
los  do  carestia  do  pão,  fendo-se  de  atravessar  assim 
os  mezes  que  decorrem  até  as  colheitas,  e  colheitas 
que  se  hão  de  resentir  dos  muitos  trabalhos  agrário» 
que  se  teem  deixado  de  fazer  por  causa  das  perturba- 
ções da  guerra  civil,  conduzem  a  lançar  mão  da  cul- 
tura das  batatas  como  objecto  iroportanlissimo  de 
siiljsistencia  publica  e  como  supplemenfo  das  lavou- 
ras que  se  não  fizeram  em  tempo.  E  cora  o  intuito 
de  contribuir  para  ííhs  f 3o  ponderosos,  que.  insistin- 
do na  doutrina  das  citadas  Instrucções  publicadas  no 
•Diário,  resumimos  os  seguintes  apontamentos  para  a 
cultura  e  tracfamento  das  batatas,  suas  sementes,  e 
sementeiras. 

1."  A  batata  quer  terrenos  leves,  soltos,  enxu- 
tos, c  arecutos:  e  aborrece  os  argilosos,  tenazes,  com- 
pactos, e  húmidos  :  em  geral  os  bons  terrenos  para 
centeio  são  os  melhores  para  as  batatas :  ns  terrenos 
inclinados  ou  elevados  produzem  melhor  batata  do 
que  os  planos:  e  os  de  exposição  ao  nascente  ou  melo- 
dia favorecem  particularmente  a  producção  têmpora. 

:2.°  Kntre  as  espécies  ou  variedades  de  batatas, 
as  brancas  são  em  geral  mais  volumosas  e  producti- 
vas  ;  as  vermelhas  admittcni  terreno  mais  forte  ecoD- 
siitente,  produzem  um  terço  menos,  conservam-?e 
melhor,  e  amadurecem  mais  tarde;  asamarellasteem 
a  polpa  mais  fina,  são  de  boa  producção,  e  as  mais 
têmporas. 

3.°  Para  a  plantação  de  qualquer  cspetie  de  ba- 
tata prepara-se  o  terreno  cora  uraa  cava  ou  lavra  de 
doze  a  quinze  pollegadas  de  profundidade;  deixando 
o  mesmo  terreno  perfeitamente  destorroado  e  limpo. 

4."  No  terreno,  a^sim  preparado,  se  faz  a  plan- 
tação;  ou  a  braço,  o  que  é  mais  dispendioso,  ou  á 
charrua  ou  arado,  o  que  é  mais  económico  e  expedi- 
to, e  se  practíca  pela  maneira  seguinte  :  —  a  charrua 
ou  arado  vai  abrindo  um  rego  sufficienfemente  pro- 
fundo e  largo,  e  o  mais  direito  possível  —  seguem 
duas  mulheres,  uma  rom  um  peneiro  de  batatas  que 
vai  plantando  no  meio  do  rego  aberto,  guardando  a 
distancia  de  palmo  e  meio  entre  cada  uma;  a  outra 
mulher  vai  lançando  o  estrume  sobre  as  batatas  as- 
sim dispostas. — Plantado  d'esla  forma  o  primeiro 
rego,  a  charrua  na  vclla  cobre  as  batatas  plantadas  — 
e  assim  se  prosegue  na  pl.infação  dos  outros  re^os, 
guardando  entre  uns  e  outros  a  distancia  de  dois  pal- 
mos e  meio.  Convém  oliservar  que  a  plantação  deve 
ser  mais  espaçada  nos  terrenos  ricos  do  que  nos  ma- 
gros;  roais  profunda  nos  fracos  e  areentos  do  que  nos 
fortes  e  consistentes;  e  sempre  mais  espaçada  nas  es- 
pécies brancas  do  que  nas  vermelhas. 

6.^  A  balata  que  se  plantar  deve  ser  sã  o  perfei- 
ta, e  havida  com  escolha  de  sitio  cm  que  não  tenha 
app:;recidu  o  mal  ;  deve  plantar-se  inteira,  e  ter  vo- 
lume razoável,  pois  que  a  sua  polpa  édestin. ida  para 
nutrir  o  germo  na  primeira  idade:  todavia,  aonde 
forem  raras  e  caras  as  batatas,  poderá  praclicar-sc  a 
economia  de  partir  as  mais  volumosas  em  IxiccaJos 
grossos,  cada  um  com  trcs  olhos  c  com  a  maior  por- 
ção possivel  de  polpa;  esses  boccados  plantan\-se  um 
a  um  como  as  batatas  inteiras;  advertindo,  porém, 
que  devem  ser  partidos  um  ou  dois  dias  antes  da 
plantação  o  expostos  ao  ar  para  apertar  c  s«'ccar  os 
poros  das  superfícies  cortadas,  c  lhes  servir  de  pelle 
do  modo  possível;  e  na  sua  plantação  não  «e  lança  o 


'  estmme  ímmediatamente  sobre  elle;,  mai  sim  co- 
brem-se  primeiro  com  uma  pollegada  de  terra  elan- 
ça-se  então  o  estrume  por  cima. 

Convém  aqui  observar:    1."  que  deve  sempre cul- 
tivar-se  e  plautar-se  em  separado  cada  especiede  ba- 
tatas :  2.°  que  se  não  devem  cmprejar  na  plantação 
I  de  qualquer  terreno   as  batatas  que  tiver  produzido, 
'  mas  sim  as  melhores  e  roais  perfeitas  de  terreno  diverso. 
j       tít."     .\  plantação  das  batatas  requer  estrumes  bem 
curtidos  e  apurados  :  os  chamados  compostbi  e  os  vc- 
getaes  são  preferíveis  a  todos  os  respeitos. 

7.°  Desde  que  a  planta  tiver  três  a  quatro  polle- 
gadas de  altura,  precisa  ser  sachada  cora  uma  enxa- 
da pequena  para  extirpar  todas  as  hervas^  mover  e 
amaciar  a  terra,  e  facilitar  a  extensão  das  raizes  fibro- 
sas que  hão  de  produzir  as  batatas;  esta  operação  re- 
novar-se-ha  segundo  a  terra  for  mostrando  a  necessi- 
dade de  ser  limpa  de  hervas,  movida  e  amaciada. 

aP  Ijogo  que  as  plantas  estiverem  próximas  a 
lançar  llòr,  deve  junctar-se  em  roda  de  cada  pé  uma 
sufficienle  quantidade  de  terra,  tomada  de  ume  ou- 
tro lado:  esta  operação  se  irá  repetindo  successiva- 
mente  até  que  a  força  e  lançamento  dos  pés  éramos 
intercepte  a  passagem  nos  intervallos ;  e  se  aperfei- 
çoará ainda  mais  deitando  na  terra,  assim  amontoa- 
da, os  pés  e  ramos  da  planta,  afim  de  provocar  no- 
vas raízes,  e  com  ellas  novas  batatas.  Concluída  esta 
operação,  nada  mais  se  precisa  fazer  até  se  acharem 
maduras  as  balatas,  o  que  se  conhece  pela  mudança 
da  càr  verde  dos  pés  e  folhas  em  Amarella  e  marcha, 
ate  seccarem  completamente  :  e  desde  então  chegou 
a  cpocha  de  proceder  á  colheita  das  mesmas  batatas, 
e  necessários  cuidados  paraseapproveitarem,  conser- 
varem, e  usarem  era  toda  a  extensão  do  seu  préstimo. 

9."  Se  durante  a  vegetação  das  plantas  apparece- 
rem  em  alguns  pés,  ramos,  ou  folhas,  manchas  ou  nó- 
doas pardacentas,  que  são  indicativas  domai,  devem 
ser  ímmediatamente  cortados  bem  rentes  esses  pés 
com  todos  os  seus  ramos  e  folhas ,  e  depois  queima- 
rem-se,  e  lançar  as  cinzas  na  terra. 

10."  As  espécies  mais  têmporas  de  batata offere- 
cem  um  recurso  de  subsistência  publica,  particular- 
mente benéfico  e  providente  nos  annos  de  carestia  e 
fome:  pois  que,  para  acudira  taes  necessidades,  vão- 
sc  colhendo  as  batatas  maiores  apartando  geitosamen- 
t€  a  ferra  que  as  cobre,  e  tornando  a  conchegar  a  ter- 
ra em  roda  dos  pés  da  planta,  e  sobre  as  o,!tras  ba- 
tatas, que  continuam  a  crescer  e  aperfeiçoar-se  aft 
de|>ois  de  seccarem  os  pés  e  ramagem  das  mesma' 
plantas. 

Scrr.cnirs. 

I       11-"  .  As   sementes   da  batata  são  -    e  re- 

I  doudas,  e  formam-se  dentro  de cap^u  ■.  que 

'■  a<  contem  em  muitas  cellulas.  listas  c; -^ul.;'.  pen- 
I  dentes  da  planta,  colhem-sc  quando  •se  acham  bem 
I  maduras,  o  que  se  conhece  pela  sua  niollcza  e  cOr 
;  branca;  cspalham-so  ás  camadas  cm  caixas  entre ca- 
1  madas  de  areia;  conscrvani-se  assim  ate  o  IJmdoín- 
I  verno;  então  rsmagam-se  entre  as  mãos  p«ra  cxtra- 
!  hir  e  separar  as  sementes  por  meio  d»"  n^ua  c  uma 
'  peneira,  di^pois  do  que  seccam-sc  perfeitamente  an 
i  ar,  e  ficam  promptas  p.-ira  <cnie,ir, 
'  Cabe  aqui  ,i  rcct)mmenda<:ão  fundamentaldcesco- 
llier  as  capsulas  mais  perfeitas  das  plantas  mais  pcr- 
;  feitas  de  cada  espécie  de  balat.is ;  c  de  cons*r»,nreiM 
I  sopnrado  as  sementes  obtidas  de  cada  uma  da»  nicr 
!  ni.is  espécies,  pw-írascsonvearcm  t.imlx"m  emsot^^r  .1 

.  Scmcn'cirn% 

I 

I       lá."     Esta  soroenlcira  fi2-»c  nos  princípios  da  pn- 
I  n)averii,  em  terreno  Iwm  preparado;  cpralica-sepe- 


o   PAjNORA31A. 


SoD 


la  maneira  seguinte  :  —  mistura-se  a  semente  com 
areia  fina,  ou  com  terra  secca  reduzida  a  pó  —  lan- 
ça-se  em  regos  Leiíi  alinhados,  que  tenLauí  de  duas 
a  três  poUegadas  de  profundidade  —  cobre-se  ligeira- 
mente com  terra,  e  espallia-se  por  cima  uma  media- 
na iwrção  de  estrume  do  melhor  e  mais  bem  curti- 
do—  e  assim  se  prosegue  na  sementeira  dos  outros 
regos,  guardando  entre  uns  c  outros  a  distancia  de 
palmo  e  meio. 

13."  Desde  quQ  a  no\a  planta  ti\er  três  a  qua- 
tro poUegadas  de  altura,  applicam-se-lho  as  operações 
de  sacha,  e  de  se  lhe  junctar  successivamente  a  ter- 
ra era  roda  dos  pús,  como  fica  apontado  para  a  cul- 
tura ordinária.  Quando  a  planta  se  mostrar  comple- 
tamente aniarella  e  secca,  coUiem-se  então  as  novas 
batatas,  que  são  do  tamanho  de  avelãs,  asquaes,  de- 
pois de  bem  limpas  da  terra,  e  enxutas,  se  espalha- 
rão folgadamente  em  logar  secco  e  arejado,  e  sobre 
caniços  aonde  for  possível,  moveiido-as  de  tempos  a 
tempos,  e  catando  as  que  appareoam  defeituosas, 
doentes,  ou  imperfeitas;  e  assim  se  conservarão  até 
a  prinxivcra  seguinte,  em  que  se  plantam  :  esta  pri- 
meira plantação  deve  já  produzir  batatas  assaz  volu- 
mosas, mas  a  do  seguinte  anuo  é  que  ha  de  appre- 
senfar  plena  producção  de  batatas  com  todo  oseu  vo- 
lume e  perfeição. 

Luiz  Antomo  Rebello  da  Silva. 


A  importância  tio  artigo  precedente,  importância 
absoluta  eui  si  e  que  o  estado  das  subsistências  em 
Portugal  torna  ainda  muito  maior,  é  fácil  de  avaliar. 
O  auctor  d'este  escripto,  pessoa  distincta  nasciencia 
agronómica,  é  cinihecido  assaz  para  que  os  nossos  elo- 
gios servissem  de  grangear-lhe  a  confiança  dos  leito- 
res acerca  do  Ijoni  êxito  que  devem  tirar  da  applica- 
ção  dns  suas  doutrinas.  Kllc  .ijuiictou  n'um  breve  e 
iutclligivel  quadro  tudo  o  que  ha  essencial  acercada 
renovação  das  batatas  pelo  sistema  das  sementeiras, 
c  ainda  sobre  a  sua  cultura  pelo  methodo  ordinário. 
Nós  accrescen taremos  aqui  aigun)as  idéas  que  nos  pa- 
recem vir  a  propósito  de  uma  «juestão  gravíssima  pe- 
la situação  em  que  se  acha  à  agricultura  no  paíz.  Se- 
guiremos nas  seguintes  observaçues  a  ordem  dos  pa- 
ragraphos  cm  que  o  auctor  dividiu  a  matéria  do  ar- 
tigo- 

1.0  E  incontestável  que  as  batatas  preferem  os 
terrenos  soltos  c  areentos  :  mas  não  deixam  de  pro- 
duzir nos  argilosos,  uma  vez  (pie  não  sejam  extrenia- 
menti!  compactos.  iVa  verila<le  o  producto  não  é  tãó 
abundante-,  mas  paga  o  trabalho  do  agricultor.  A 
possibilidade  de  progredir  a  carestia  dassubsístenci.".s 
(porque  as  colheitas  ainda  <!stão contingentes,  e  por- 
que em  cons<'qucncia  das  perturbações  jiublícas  mui- 
tos campos  fic.iram  por  cultivar)  é  um  incentivo  pa- 
ra (|ue  SC  |>roceda  á  scnionteíra  da  batata  nos  terre- 
nos deixados  de  ])oiisio,  embora  furtes,  ou  mcdiana- 
mciile  compactos. 

O  "  A  propósito  (1(15  estrumes  e  compostos  mais 
convenienli's  para  a  cultura  da  batata,  aconsclhariu- 
mos  a  mistura  do  uslnime  do  gado  vaccuni,  que  é  o 
<juc  abunda  mais,  com  a  marga,  onde  a  houvesse,  o 
que  se  verifica  jiistamenle  nus  terrenos  fortes  (terras 
avermelhadas)  ciii  cujo  subsolo,  muitas  vezes  iipuims 
u  Ires  ou  inialro  palmos  de  profiimlidade,  se  encon- 
tram bancos  de  marga  calcarea.  N'uiii  terreno  húmi- 
do, plano  e  lortíí  um  coin[)osto  de  ;  de  c^lriime  de 
gado  vaccum  e  '  de  marga,  empregado  .na  seineii- 
teiru  de  um  batatal,  sabemos  ter  dado  o|>timo  rcsiil- 
ladu. 

O  que,  sobre  tudo  nas  torras  mais  fortes,  u  ainda 
nas  fruciis,  nos  parcw;  que  deve  contribuir  paru  ulu- 


.  Ihar  os  eíTeitos  terríveis  da  doença  que  vai  accommet- 
I  tendo  as  batatas,   é   o  demorar  a»  sementeiras  para 
]  mais  tardo  do  que  geralmente  se  faz.  Um  batatal  se- 
meado depois  do  meado  de  abril  de  lS4tí,   produziu 
I  excellentemente  e  sem  vestígios  de  doença  em  terre- 
i  no  forte,  raarg.ado.  As  chuvas  que  vem  ordinariamen- 
te  ainda   na  primavera  bastaram  para   o  fazer  pros- 
perar.  Suspeitamos  que   a   moléstia   d'esta  preciosa 
planta   se  deva   ú  demasiada  humidade   a  quo  estão 
sujeitas  as  sementeiras  têmporas.   Pedimos  aos  agri- 
cultores praclicos  (jue  repetindo  as  experiências  acer- 
ca d'ísto,  busquem  estabelecer  por  meio  d"ellas  as  epo- 
chas  mais  convenientes  de  semear,  o  que  nos  parece 
fazer-se  ordinariamente  demasiado  cedo. 

11. o  A  semente  das  batatas  pode-se  extrahir  das 
capsulas,  logo  que  estas  estejam  bem  maduras,  pelo 
methodo  ordinário  que  se  emprega  para  apurar  a  se- 
mente do  tomateiro,  e  guardar-se  era  logar  secco  sem 
mais  prevenções.  Também  se  podem  guardar  os  gló- 
bulos que  a  contém  para  a  empregar  do  modo  que 
abaixo  se  verá. 

12."  Em  França  faz-se  a  sementeira  lançando  a 
semente  nos  regos,  do  mododiscrípto  pelo  Sr.  Rebel- 
lo da  Silva.  Era  Allemanha  usa-so  de  methodo  di- 
verso. Colhidos  os  glóbulos  que  contém  a  semente, 
completamente,  enterrara-se  v.o  principio  do  inverno 
em  terra  bem  preparada  e  iVifa,  em  linhas  de  distan- 
cia de  palmo,  e  com  ii;ual  distancia  entre  os  glóbu- 
los. Com  a  primavera  as  batateiras  nascem  aos  gru- 
pos nos  logares  onde  se  enterraram  os  glóbulos.  Quan- 
do as  plantinhas  teem  duas  ou  três  poUegadas  de  al- 
tura arrancara-se  cuidadosamente,  para  se  transpLnn- 
tareni  para  regos  com  as  distancias  convenientes.  Ca- 
da planta  leva  já  uma  ou  mais  batatinhas  do  tama- 
nho de  ervilhas,  que  é  preciso  não  e-magar  nem  se- 
parar do  pé,  porque  d"elles  se  formarão  os  futuros  tu- 
bérculos. Depois  pro5egue  a  cultura  segundo  o  me- 
thodo descripto  pelo  Sr.  llehello  no  artigo  13."  Am- 
bos os  metluidos,  experimentados  entro  n>js,  deram  o 
resultado  pretendido.  Houve )a  dillerença  ile  semear 
tanto  a  semente  como  os  glóbulos  nos  lins  de  feverei- 
ro, posto  que  ao  abrigo  do  norte,  attendendo  a  ser  o 
nosso  clima  mais  brando  no  in\erno  o  menos  húmi- 
do no  verão  do  (jue  a  França  central,  onde  a  semen- 
teira se  faz  em  abril. 

13."  Para  maior  clareza  advertiremos  que  as  plan- 
tas, ainda  da  semente  semeada  a  rego,  vem  muito 
junctas,  o  que  por  isso  na  occasião  ila  primeira  sa- 
cha cumpre  desbasta-las  de  modo  que  fiquem  na  mes- 
ma distancia  de  pé  a  pé  que  ha  de  rego  a  rego.  As 
plantas  que  se  tiram  no  desbaste,  uma  vez  que  tra- 
gam a  batatinha  inicial,  i>lanlam-se  em  no\us  regos, 
esperando  para  esta  transplantação  que  ou  a  terra 
esteja  sufticíenteniente  húmida,  ou  ijue  haja  signaes 
de  chuva  ínimincnte. 


O    K.'U1GU.\I>0    IlICO    K  o   KMIUltADO    rOUItE. 

A  sK(iiiSTK  anceildla  é  exlrahida  de  um  livro  mui- 
to engraçado  o  instruclivo,  escripto  por  Mr.  Ij.-lí. 
Picard,  da  .\cademia  franceza.  O  livro  chama-se  (rií 
Iliiiti  da  Jlcroliíçiiu  :  de\('ra  ser  lido  <•  meditado  por 
muita  gente.  De^d(í  Jacob,  que  icliali-  a  Ksaú  o  di- 
reito lie  primogenitura  por  um  prato  de  lentilhas  cm 
occasião  lie  fome,  nlé  o  dia  de  hoj(r  ainda  não  muda- 
ram OH  pensamentos,  palavras,  e  obras  do  usurário. 
Quer  enri(|U(C<í»se  no  vergonhoso  e  arriscado  trafico 
da  escravatura,  tpier  enthcsoura^se,  estirado  nos  mol- 
les  siifds  d(!  gomma-elaslíea,  sem  outro  trabalho  mais 
que  o  de  recolher  o  tpic  os  outros  semearam  e  ceifa- 
ram suando  suor  c  sangue,  é  sempre  o  homem  i|ue. 


256 


O  PATSORA3IA. 


ainda  quando  o  convidem  para  salvar  aseupaid*ain 

incêndio,  perguntará  primeiro:  u  Com  quantos  por 
cento  de  desconto?"  —  "Tomara,  dizia  um  d'estes, 
vêr  todo  o  género  humano  bem  desgraçado  .  .  .  para 
lhe  valer  com  o  meu  dinheiro.»  —  Como  porém  o 
mal  já  vem  muito  de  traz  e  é  quasi  sem  remédio, 
vamos  ao  nosso  conto,  o  qual  mostra  que  o  usurário, 
como  vulgarmente   se  diz,    nunca  dá  ponto  sem  nó. 

Mr.  Dervilé,  que  fura  juiz  e  conselheiro  d'um  par- 
lamento, tinha-se  preparado  para  emigrar  desde  o 
principio  da  revolução.  Reduziu  a  dinheiro  os  seus 
prédios  rústicos,  estabeleceu-se  em  Stuttgard  e  havia 
leito  especulações  Ião  vantajosas  com  capitães  que 
mettêra  nos  bancos  de  ^'ienna,  Londres  e  Hambur- 
£;o,  que  estava  muito  mais  rico  do  que  em  França, 
onde  tinha  fama  de  onzeneiro. 

Chegou  um  dia  á  ebtalagcm  onde  eu  morava  um 
homem  que  fora  soldado  razo  da  minha  companhia 
110  principio  da  campanha.  Era  Mr.  Darnal,  ex-con- 
selheiro  do  mesmo  parljmcnto  a  que  pertencera  Mr. 
Dervilé.  Depois  de  ter  gasto  todo  o  seu  pecúlio  para 
poder  emigrar,  e  de  pelejar  com  denodo,  ia  agora 
para  ^  ienna,  onde  esperava  valcr-se  de  uma  paren- 
ta de  sua  raullier ;  e  como  fora  insigne  dançante  nas 
assembléas,  fazia  tenção  de  dar  lições  de  dança.  Re- 
novámos o  nosso  conhecimento.  ^Ir.  Darnal  vinha  na 
maior  penúria,  e  não  sabia  como  havia  de  continuar 
a  sua  jori:ada.  Conversando  eu  com  elle,  dei-lhe  a 
noticia  de  que  estava  em  Stuttgard  Mr.  Dervilé,  o 
rico  Mr.  Dervilé. 

—  "  Ciue  ventura  !  o  meu  antigo  collega  !  um  ami- 
go velho  !  j! 

Ei-lo  livre  de  cuidados ;  não  duvida  de  que  Mr. 
Dervilé  lhe  acuda  á  pressa;  dão-lhe  a  morada  do  seu 
opulento  collega;  corre  a  procura-lo. 

—  ii  Ai  I  que  é  o  meu  prosado  Darnal,  amigo  cer- 
to e  verdadeiro  I  exclama  Mr.  Dervilé  apertando-o 
nos  braços,  (iuem  havia  de  dizer,  quando  nos  sentá- 
vamos nas  cadeiras  do  nosso  tribunal,  que  nos  havía- 
mos de  encontrar  assim  na  AUemanha,  ambos  des- 
terrados .' " 

E  começou  o  sensível  Dervilé  a  amaldiçoar  a  re- 
volução e  os  jacobinos,  e  a  inquirir  com  o  maiorin- 
teresse  o  estado  do  seu  constante  e  velho  amigo.  Es- 
te, conimovido,  muito  esperançado,  narra  as  suas 
aventuras,  explica  os  nioti\os  da  sna  jornada  a  ^  ien- 
na, a  miséria  extrema  cm  que  se  acha,  a  gratidão  a 
que  o  obrisa  tão  cordeal  acolhimento,  eporfimaba- 
lança-se  a  pedir  emprestados  vinte  e  cinco  luizes,  de- 
clarando não  poder  dar  em  penhor  senão  a  sua  pala- 
vra e  as  suas  esperanças.  Em  quanto  isto  dizia,  tinha 
Mr.  Dervilé  posto  os  olhos  no  céu  ;  cheg;tram-lhe  a 
correr  as  lagrimas;  cortou  o  discurso  do  collega  com 
exclamações  que  ainda  continuavam  depois  de  Mr. 
Darnal  se  ter  calada. 

—  ií\  alha-me  o  céu  1  um  conselheiro  do  parlamen- 
to obrigado  a  andar  de  espingarda  ás  costas  '.  <|ue 
desacato  I  corta  o  coração  I  E  agora  vai  para  Vienna 
implorar  a  compaixão  (l'unia  parenta  ?  >• 

>  (Aue  remédio  tenho  eu  1  " 

— ..  E  faz  tenção  de  dar  por  lá  lições  de  dança .'  >« 
iSiin.  '• 

—  li  Um  magistrado  antigo  I  obrigado  asndar  em 
cala  de  bilhetes  de  lições  de  dança  I  Eeslá  no  maior 
aperto  por  não  poder  continuar  a  jornada?" 

—  xSIm. )» 

—  II  E  queria  que  lhe  eu  cmpresfa5>e  vinte  e  cin- 
co luizes .' " 

iSim,  seiscentos  francos. 

—  .i  E  não  me  pinlc  dar  oulrj  h\  nollu-ca  senão  es- 
peranças e  a  sua  palavra  '• 

r-T- "  Nada  mais.  •• 


I      — u  Oh !  ea  não  duvido  de  que  o  meu  amigo,   «e 
,  acaso  se  visse  algum  dia  n^um  estado  mais  prospero. 
;  correria  logo  a  pagar-me.  Aqui  tem,  todavia,  a  que 
'■  está  reduzida  uma  multidão  de  fidalgos,  de  magistra- 
dos, de  prelados,  deabbades,  de  pessoas  decentes,  qne 
'  se  viram  constrangidas  a  deixar  os  seus  palácios,   os 
seus  tribunaes,   ou  as  suas  dioceses.   Tome  lá,   veja, 
leia,  meu  caro  amigo,  meu  presado collega,  corra  os 
olhos  comigo   por  cima  d"e5ta  lista,   que  prouvera  a 
Deus  não  fosse  authentica.  " 

Dizendo  isto  abriu  uma  secretaria  e  tirou  um  ca- 
nhenho,  cujo  titulo  deu  a  lêr  a  Mr.  Darnal.  O  titu- 
lo dizia  assim  :  Lista  dos  infelizes  emigrados  qtu  fie- 
}am  valer-se  (lo  conselheiro  Denilé. 

— «  ^  eja,  veja,  meu  querido  amigo;  começam  os 
pedidos  em  17'J1  ;  veja:  o  conselheiro  de  •  •  •  mil 
escudos;  o  senhor  bispo  de  s  •  *  quatro  mil  francos : 
o  senhor  duque  de  •  *  •  seis  mil  francos;  o  senhor 
marquez  de  *  •  •  mil  e  duzentos  francos ;  e  vai  por 
ahi  fora.  ..  Tome  sentido,  vá  vendo,  vá  vendo:  os 
nomes  mais  illustres  da  França  !  obrigados  a  pedirem 
emprestadas  umas  quantias  insignificantes,  como  se 
fossem  ahi  uns  pobres  fieis  de  feitos. 

Mr.  Darnal  sentia-se  desopprimido  de  nm  peso  ■. 
admirava  o  génio  serviçal  e  a  prodigalidade  bêmfa- 
zeja  do  desinteressado  Mr.  Dervilé,  a  quem  tinham 
ousado  accusar  de  avarento  e  usurário,  e  principiava 
a  dirigir-lhe  os  mais  vivos  e  sinceros  agradecimentos. 
—  «Espere:  veja  asomma,  diste-lhe  Dervilé,  no- 
venta e  oito  mil  e  quatrocentos  francos  ;  sim.  senhor, 
noventa  e  oito  mil  e  quatrocentos  francos.  Que  tal  I 
amigo  do  coração,  accresceutou  elle,  pegando  de  no- 
vo nas  mãos  de  Mr.  Darnal  ;  sempre  quero  que  me 
diga  o  que  seria  feito  de  mim  se  eu  tivesse  empres- 
tado aos  njeus  queridos  compatrícios  a  somma  de  no- 
venta e  oito  mil  e  quatrocentos  francos.  Doeu-m<r 
n  alma  não  os  soccorrer,  e  pareceu-me  convenientt 
tomar  nota  dos  seus  pedidos  para  me  premunir,  pa- 
ra me  armar  contra  as  fraquezas  do  meu  coração,  con- 
tra os  conselhos  imprudentes  da  minha  compaixão, 
assim  como  cá  vou  tomar  nota  do  seu,  que  leva  a  to- 
talidade á  conta  redunda  de  noventa  enove  mil  fran- 
cos. V 

o  infeliz  Darnal  ficou  aterrado.  Levantou-se  em 
quanto  M.  Dervilé  escrevia,  e  lançando-lhe  um  olhar 
de  indignação,  deixou-o  sem  diíer  palavra. 


A   CRITICA. 


A  LKiTii.v  ê  um  tributo  que  todo  o  candidato  á  ce- 
lebridade tem  de  pajar  ao  publico:  querer  subtra- 
hir-se  a  ella,  por  mui  subido  merecimento  que  haja. 
é  loucura;  não  poder  tolera-la  é  fraquez.1.  t)5  mais 
insignes  personagens  da  antiguidade,  e  pixlemos  ac- 
crescentar  que  os  de  tutlos  os  séculos,  estiveram  íb- 
jeifos  á. critica.  Contra  cila  stí  na  oliscuridade  ha  re- 
fugio. E  uma  espécie  de  condição  inevitável  de  tod.i 
a  preeminência,  quasi  como  as  invectivas  eram  en- 
tre os  romanos  uma  ]v.rte  essencial  do  Iriumpho 

.■\ddiso> 


Descoberta. 

Vm  egresso  de  uma  Ordem  respeitável,  dedicado  ii:- 
teiramcntc  ás  sciencias,  c  votado  ao  ensino  da  gr;ini- 
matica,  arithmelica,  !:oo;raphia,  geometria,  histo- 
ria, &.C.,  per;unfando-lhe  um  seu  discípulo,  de  cin- 
co annos  de  idade,  aonde  se  creavam  a*  castanhas  do 
Maranhão,  respondeu  com  arltiagistral  : — ..  Criam- 
»e  dentro  dos  cucos.  - 


33 


o  P ANGRA 31  A. 


257 


niiiiiii iiiJii||,iiiiiiMiiiiiiiiTiTiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii(jiiii "11,1,"^ 


O   DESCOBníMENTO    DA    AMERICA. 


I'^M  1'.  Riiipi»  ili:  inarmoro  íiij:;iu('IiI>mi  cm  l.S}4  <iiui- 
iiieri»  dl"  riíMh  <^S(iil|)tiir.'is(|iioi'\l(;rii)iim;n((.'ilL'i'i)riiin 
n  (';i|iiliiliii  (la  riilailu  loilirnl  ila  iiiiiãii  .'iiiiiTicanii, 
\Viii|]iiiji;li)ii  ;  ciiròij  o  porlicD  il.i  Imiiihi  do  iiinccnlo. 
O  llicnia  <•  o  ilrsciihriíiiciilodo  l\(JVO-.Mi)niii).  Cliria- 
liiviiin  ( 'i.IiiiiiIjii  i'Iu1uii  |>Ími  a<|iii'lliM'iiiiliiiciilc  utlivi- 
iili:idi>  |ii'lo  !i(!ii  oii^ciiIki  :,  vollii-.sc  parn  a  Kiirujiii  c 
musIra-Uii'  iiiii  gloln),  «.'inljliMiiii  d»  linunida  Irrrii,  que 
.<  i'^iu>rai>ulii  ('  11  inveja  m>  (ilj»tiiiarani  a  coiihidurar 
'iiniii  (ima  cliiiiicrica  li^  |iiiIIm'.i(.'.  Km  ijiiantinc  ciitit'- 
V;a  iniuiratiiuiitc  aos  iiuii.iamciitii»  (jiic  llic  iiiiiiidam  a 
jIiiiu  de  i^ravt' i'iilliii:iiii'>iiio,  uma  ímliaiia  ut'uiili'iii|ila 

\oi..    I.— OiTiuiio   '!,    IStT. 


mm  adiiiiraião  r  a<i  iiicmio  Icmpo  Lom  (cnior ,  ao^ 
ollios  d'i'sla  inullior,  ('olomljo  >■  uma  vi^ã>)sullr^•uatu- 
ral,  uui  semideus;  vé-se  <|Uo  ella  iu-sita  se  <l<'»or;i  fu- 
gir, bu  prostrar-be  respeitosa.  A  dilVereiíi;»  da  ei\di- 
saeão  entro  as  duas  raens,  está  expressa  nos  eontor 
nos  uuiciíis  o  nlú  em  a  nudei  da  selvai;em,  lonlras- 
tando  eom  o  ar  varonil  e  nobre  atlituile  ilo  iieroi' eu- 
ropeu. Os  jornaes  dos  Kstados-riiidos  liíoram  »uliidi> 
eloijio  iCesla  eoinposi(;ão,  <|ue  seria  dilVuil  asaliarpor 
um  simples  i'slioi;o.  l;ouva-9e  unaniuienli  na  pli> 
sionomia  de  ("ulondio  a  exi)ress,'io  ila  fui'crioriJaili- 
iiitelleelual   e  da  divriíidade  nior.il  ,   oljser\aiii>c  n.< 


•258 


O  PA>ORAi>IA. 


moça  Índia  todos  os  caracteres  distinctivos  da  raça 
que  representa.  Em  Nápoles  d  que  o  Sr.  l'ersico es- 
culpiu este  grupo,  ao  qual  consagrou  cinco  annosde 
trabalho.  O  trajo  de  Colombo  é  de  uma  rigorosa  fi- 
delidade, -segundo  afGrmani  :  o  artista  copiou  uma 
.nrmadura  pertencente  áquelle homem  insigne,  a  qual 
os  seus  descendentes  conservam  em  Génova.  O  már- 
more foi  extrahido  das  pedreiras  do  la  Palia  em  Si- 
ra-Verra  entre  Pisa  e  Garrara.  O  Sr.  Pérsico  tinha 
sido  encarregado,  precedentemente,  de  duas  figuras 
para  a  decoração  do  capitólio  de  Washington  :  a  Paz 
e  a  Guerra.  K  citada  também  como  obra  magistral 
uma  estatua  colossal,  que  foi  inaugurada  no  mesmo 
edifício  ha  dois  aniios  : — o  Jorge  ^^  ashington  pelo 
csculptor  Greenougb. 


Ódio  veluo  são  cança. 

(Romance  Histórico) 

{Conimuarão  do  Cap.    II.) 

A  EuLfiA  crescia  entretanto;  os  apupos  c  as  palma- 
das retuinljavam.  Kra  unia  assuada  verdadeira.  De 
quando  em  quando  iam  ao  ar  toucas,  gorros  e  som- 
breiros ,  choravam  creanças  ;  as  velhas  altercavam  ; 
e  choviam  bofetadas.  Gargalhadas  grosseiras  mistura- 
vam-se  com  impropérios  ,  murrose  pontapés  retiniam 
cm  cheio,  e  o  rosuUado  da  horriveí  matinada  era  re- 
dobrarem  as  pragas   e  ameaças  contra   o  padecente. 

]N'uin  abrir  e  fechar  d^olhos  o  judeu,  despido,  ras- 
gado e  arrastado,  com  o  rosto  negro  de  punhadas,  a 
bocca  cheia  de  sangue,  e  os  cabellos  arrancados  sem 
do,  revolvia-se  com  gemidos  pungentes  entre  dois 
membrudos  cyclopes  da  forja  de  Pêro  Britador. 

Dos  degraus  da  picota,  no  meio  das  matronas  se- 
nhoras visinhas,  a  tia  Dordia  açulava  as  iras  popu- 
lares com  exclamações  furibundas. 

—  "  Fel  e  vinagre  a  esse  cão  tisnado  '.  » 

—  41  Lopo  Secco,  bradou  o  amieiro,  açouta  o  ju- 
deu, mas  não  lhe  deixes  tocar.  Isso  é  matar  '....« 
exclamou,  vendo  sobre  a  cabeça  do  pobre  D.  Zulei- 
ma  alçado  o  remo  d^um  galeote 

—  u  Assem-iro 
Uuiva. 

—  u  Olha  a  vasjoura  do  monturo!»  disse  oarmei- 
ro  para  o  diabo-coxo.  —  nOh  tia  Uuiva,  muito  tou- 
cinho ha  lá  ])or  casa  »  gritou  elle. 

A  setta  bateu  no  coração.  A  inalrona  crasuspciiu 
de  parentesco  com  a  raça  pharisaica. 

—  «Não  te  calarás,  excommungado  ?  fote  brazas 
te  sequem  as  guelas,  chaniiço  do  inferno  I  "  rclor- 
ijuiu  a  fúria  investindo  para  o  ferreiro. 

—  i' Simão  Ferro,  trazes  a  tua  cntella?  Corla-me 
uma  vara  de  lingua  áquoUa  serpente  de  clérigo !  " 
acudiu    Pêro  Britador,    virando-lhe  as  cosias. 

A  segunda  injuria  foi  peior  que  a  primeira.  A 
honesta  Kuiva  linha  f.mia  d'ah.'grara  vida  jionilcnie 
d^um  scr\o  de  Deus.  Accesa  em  raiva  ia  replicar  di- 
gnamenle,  quando  Simão  Ferro  com  os  dedos  callo- 
sos  lhe  aportou  os  gorgomilos  como  cm  uma  lenaz, 
obrig.indo-a  ;i  ficar  sem  resposta,  o  que  niima  até 
aqncllc  dia  lh'acontecêra. 

O  motim  aiigmeulaxa.  Os  improvisados  algozes 
iam  principiar  a  execução.  O  judeu,  supplicante, 
com  os  olhos  torvos  de  lagrimas  estendeu  os  bruços 
para  o  povo. 

—  "Cruzes,  demónio!"  rogougaram  as  velhas. 

—  '.Leva,   cão!...  Peior   liicsle  tu   a  Christo. » 
Era  um  arcliaÍMno  de  mil   e  duzentos  annos  pago 

fm  açoutes  por  mestre  Zacharias. 


n'uma   grelhai»  guinchou    a    tia 


—  "Façaip-lhe  traçar  um  porco  vivo  !  «  disse  uma 
voz  aflaiitada  de  monge  ou  clérigo  moço. 

— "  Kefresquem-ii'o  alli  no  rio"  csclarooii  um 
besteiro  torto. 

Esta  idéa  obteve  a  unanimidade.  Mil  vorcs  estou- 
raram a  um  tempo,  gritando  ; 

—  "  Ao  rio  I   ao  rio  !   Mata  I  » 

Nem  o  diabo-coxo,  nem  o  armeiro,  nem  os  vul- 
canos da  forja  no  meio  da  açougaria  se  entendiam  cu 
eram  escutados.  A  revolta  já  deixava  atraz  os  cabe- 
ças. As  turbas  a  cada  instante  remoinhavam  mais 
impetuosas.  Em  mó  cerrada  os  populares  começaram 
a  encurtar  o  espaç^o  que  os  separava  da  picota.  Lm 
furacão  de  milhares  de  vozes  saía  do  meio  d'elle-. 
Entalado  e  sacudido,  mestre  Pêro,  Ião  possante  e 
corpulento,  volteava  no  meio  do  tropel,  como  a  plu- 
ma d  um  cavalleiro  ao  sopro  do  vento.  Já  se  ia  sen- 
tindo desfallecer  no  apertão  encontrado  das  ondas  do 
povo. 

N'este  momento  o  armeiro,  a  custo  abrigado  no 
ultimo  degrau  do  pelourinho,  e  perdida  já  de  todo 
a  esperança  de  poder  salvar  o  judeu,  descobriu  as  as- 
cumas  dos  besteiros  do  concelho,  que  desciam  a  Ín- 
greme ladeira  trazendo  no  centro  Sueiro  Gundes.  al- 
vazil  da  cidade.  Os  aniotinadog  taml)em  o  apercebe- 
ram, e  como  tigres  recuaram  para  melhor  armar  o 
pulo.  Esperaram  todos  por  elle  em  profundo  silencio. 

O  alvazil  e  a  escolta  fizeram  alto  ao  pé  do  pelou- 
rinho, mandando  recado  ao  mordomo  para  que  nc 
apressasse  em  lhe  acudir.  Sueiro  Gundes,  de  altur;: 
de  um  rapaz  de  doze  annos,  abaulado,  pernas  lorla» 
e  curtas,  nariz  grosso  e  arrebitado,  suava  por  toHcs 
os  poros  o  ridículo  orgulho  da  sua  dignidade  muni- 
cipal. O  silencio  com  que  o  recebiam  parecia-lhe  um 
tributo  de  respeito,  e  a  vaidade  crassa  desenhoa-«e 
no  sorriso  boçal  com  que  principiou  a  subir  em  pas- 
so d  enterro  os  degraus  de  uma  escada  que  ia  ter  á 
espécie  de  varanda,  saccada  fora  da  porta  d'uma  ca- 
sa mourisca.  De  lá,  assoprando  de  cançado,  acenou 
ao  povo  que  ia  fallar.  Assobios,  gargalhadas  c  mofas 
rebentaram  então  de  toda  a  parte  \  porque  fora  do» 
outros  alvazis,  o  Sr.  Sueiro  Gundes  era  olhado  como 
o  animal  mais  estúpido  de  Coimbra,  com  costclla  de 
mouro  ainda  por  cima. 

—  "  Burgiiezcs  e  homens  villões  I  .  .  .  » 

—  "llim  !  him  !  gritaram  os  rapazes,  imitando  o 
desesperado  fahcte  do.. h.izil.  Him!  lera  o  marrão  !  •• 

Marrão,  ou  bacorinho,  era  a  alcunha  popular  do 
eloquente  Sueiro. 

— ..  Meus  amigos  ...»  continuava  cllc. 

—  "Adiante  !  "  berrou  um  sj.deote. 

—  "Fora  o  sermão  1  »  barafustava  o  povo. 

O  alvazil  arregalou  os  olhns  piscos,  laml>eu  os  bei- 
ços, tossiu,  e  inlcrionnenlc  dava  tudo  para  fc  vèr 
muito  longe  d'alli  e  diante  d*um  pralodcappelitosa 
dobrada. 

—  "  Em  nome  dos  alvazis  ..." 

—  "  Morram   os  al\azis  I  .  .  .  r.  respondia  a  turba. 

—  "Soceguem.  Deixem  sair  o  honrado  thesonreiro 
d  oirei,  senão  justiça  e  exemplo  haxerá  ...  ai  I  » 

Lm  repolho  pei|ueno.  de-ipcdido  pornião  dc^-alma- 
da,  Uitendo  na  cara  roliça  do  orador,  poi  em  fugida 
lodo  o  discurso,  cnchendo-lhe  a  Ixicc»  de  dentes  que- 
brados. Ao  mesmo  tempo  a  cbolera  [Hipular.  ileqiio 
era  terrixel  annuncio  aquell.i  violenta  inlerpclação. 
com  crie  n-se  na  mais  compicla  e  eslrondo>a  i.ir:;a- 
lliada.  As  mãos  que  apanhavam  |>odr:is  largaram- ii'as 
para  ajíertar  as  illiarg.is.  Por  cim.n  do  púlpito  de 
Sueiro  Gundes,  iim  di.ibrelc  ilo  s<>to  para  novo  an- 
nos, enrolado  no  bal-iiidráu  de  D.  Zuleiíiia.  acabava 
de  depor  solemncmento  na  c-ilt-çii  do  Dcmoslhcnes 
municipal  a  tuuca  do  judeu,  enfeitada  de  duas  medo- 


o  PANO  II  AM  A. 


259 


r.lias  orelhas  de  burro.  Depois  d'esta  gentileza,  ora-  1 
paz  desceu  pelo  muro  por  onde  trepara  no  meio  de 
applausos  numerosos. 

A  touca  pharisaica  eaquellas  orelhas  asininas  oram  i 
(luas  insolentes  allubije<,  como  diríamos  hoje,  uma  ao 
sangue  mouro,  e  outra  á  fraqueza  d'enfendimentodo 
digno  alvazil.  Ksle,  atormentado  da  pedrada  nos  quei- 
xos, efuluiinado  pela  coroação  em  plena  f)ra(;a,  fez-  | 
se  verde-fulo  de  raiva,  e  desceu  precipitadamente  ao  j 
tom  d'uma  acougaria  infernal, 

A))onas  recolhido  ao  centro  dos  seus  besteiros,  mes- 
tre Gundcs,  afoçado  em  ira,  em  suor,  eemgordura, 
mandou  immediatamente  alimpar  o  terreiro  d'aqucl- 
la  villanagem.  Isto,  porém,  era  muito  mais  fácil  de 
dizer  do  que  d'executar.  Dos  frecheiros  unsencurva- 
ram  os  arcos,  outros  sopezaram  as  ascumas,  mas 
olhando  sempre  para  todos  os  lados.  K  que  elles  per- 
cebiam perfi'i  ta  mente  que,  se  os  amotinados  empre- 
gassem a  for(;a,  liaviam  de  pagar  com  a  cabeça  o  pri- 
meiro tiro  disparado  contra  o  povo. 

Um  do»  couleiros  de  Lorvão,  velhote  fresco,  in- 
corpado  e  baixo,  saiu  de  um  tropel  de  gente,  e  vi- 
rando-se   a  rir  para  o  adail  do  troço,  gritou  : 

—  11  Sabes  (|Ue  mais,  vai  aprender  apegar  n^uma 
liésta.  Ksse  arco  não  faz  nada,  homem.  Mandas  o  vi- 
rote de  presente  ás  ameias  da  torre.  Mais  alto ;  não 
repuxes  a  corda,  o  abaixa  o  tiro  ao  vento.  .  .  " 

—  uSe  não  bcijeres  melhor  a  tua  vez  de  vinho  do 
que  jogas  a  ascuma,  dizia  um  galeote,  morres  a  be- 
ber agua   fria,    veliio.  " 

—  "  Andar,  besteiros!  "  exclamava  mestre  Suciro 
enfurecido. 

Mas  os  besteiros  tinham  excellenfes  razões  para 
não  andar  —  queriam  levar  as  orelhas  para  casa.  A 
rapazia<]a,  pulando  diante  do  alvazil,  batia-lhe  as 
palmas,  guinchando: — n  Puni  !    l'ah  !  prrr!..." 

Os  mesteiracs  também  faziam  a  segunda  aos  rapa- 
zes com  injurias  mais  pczadas. 

—  II  Fogo,  tavoleiro  !  olha  que  ficas  varado  pelo 
cavalleiro-conego  !  » 

— 1<  Viva  o  alvazil  Mafamede  !  «  gritavam  os  ra- 
|)azes. 

—  "Sua  mercê  já  veria  a  cara  aos  mouros.'" 
'  —  íi  Aos  de  casa,  aos  de  casa  !  » 

—  "Viva  o  alvazil!  Vai  á  guerra  a  cavallo  no 
cão  do  monlomo  !  " 

Kra  um  cscanieo  desaforailo,  capaz  irendoudecer 
um  honwni  i\o  jiiizo.  Sueiro  tiundes  não  ondoudfícia 
porqiK.'  nãi)  tinha  juizo,  mas  tremia  de  cholera  edc 
nii:d<j   no  centro  da  sua  eoliorle  pretoriana. 

—  ..()  judeu    ao  rio  1  "  bradou  uma  voz. 

—  iiO  judeu  eoalvazil-,  são  parlo  da  mesma  vac- 
ca  !  "  rcipimileu  outra. 

—  "Mata,  mala  !  " 

Vê  a  gimtalha  difu  um  rcpiilão,  que  fi.z  recuar  os 
bi".teir(js  I'  cair  sulire  oi  joelhos  o  pol)re  Sueiro  (iundes. 

Pcro  lirilaíhir  viu  bem  que  a  lucla  não  jindia.ser 
hmga  se  ciiegasse  a  travar-se,  avaliando  as  funestas 
consiíqtienci.is  (la  victoria  <hjs  populares.  Por  issodo 
alto  do  pehmrinhi),  aonde  se  conservava,  em  grande 
voz  exclamou  : 

—  "  A  mim,  homens  da  forja  da  1'iirlagem  I  fia- 
Icotes  de  S.   CuciiCiite  .' •> 

—  II  A  mim,  arraia  miúda  dei).  Velaça  !  "  accu- 
iliii  com  i'll(.'  (I  diabo-cdxo. 

O  hcisma  já  iirdia  no  campo  dos  grcL^w.  Nomeio 
lios  massiçoH  ilc  povo  nisgaram-su  di>  rípcnle  duas 
l"ila»  largas  e  tortuosan.  I';raui  algun»  galcole.i,  mu- 
ços  du  monie,  e  ferreiros  iju(í  rouipiatu  á  força  viva. 

— 11  A  elles!  ao  rio  !  ■>  vozeava  a  gentalha. 

—  "O  primeiro  (pie  der  um  passo  nãose  i]Ueixe  !  n 
gritou  o  amieiro  estenih.Mido  o  braço 


As  companhas  de  Pêro  Britador  unidas  aos  bes- 
teiros esperaram  firmes  o  Ímpeto  do  povo.  Um  ins- 
tante o  conteve  aquelle  valor  frio,  e  a  distancia  en- 
tro uns  e  outros  não  se  alargou.  No  meio  d'esta  es- 
pécie de  trégua  uma  pedra  soou,  e  faíscando  naco- 
lumna,  lascou-a,  ferindo  lume  quasi  diante  dos  olhos 
do  armeiro. 

—  «O  teu  arco!  gritou  elle  a  um  frecheiro.  Por 
alma  de  meu  pai,  não  torna  aquelle  a  atirar  outra." 

K,  enfezando  o  arco,  elevou-o  e  soltou  o  tiro.  Um 
gemido  agudo  quasi  que  se  misturou  com  o  silvar 
da  setta  ao  partir  da  besta.  Rolou  no  chão  um  cor- 
po, duas  mãos  convulsas  arranlsaram  aterra,  e  mur- 
múrios abafados  sussurraram  por  entre   a  multidão. 

—  "Voltem  cá  outra  vez!"  bradou  o  armeiro  eu- 
costando-se  ao  arco  desarmado. 

Este  sangue  frio  susteve  a  plebe  minutos ;  mas 
passando  o  assombro,  a  reacção  rebentou  mais  feroz 
do  qnc  nunca. 

—  "Morram  os  traidores!"  Repetiram  mil  vozes 
estalando  a  um  tempo,  em  quanto  todos  de  tropel 
se  arremessavam  contra  a  picota  e  os  seus  defensores. 

—  "Animo!"  gritou    Pêro  Britador. 

—  "Firmes!"  repetiu  odiabo-coxo,  e  um  comba- 
te cego,  furioso  e  tremendo  se  começou  entre  o  povo 
e  elles.  Era  ferir  corpo  a  corpo,  braço  a  braço.  No 
meio  do  avançar  e  recuar  d^aquellas  ondas  de  gente, 
avultava  o  amieiro  descarregando  a  duas  mãos  a 
acha  d'armas,  c  abrindo  largos  claros  pur  onde  pas- 
sava. 

dual  seria  o  êxito?  Era  muito  desigual  o  partido. 
Pêro  Rritador  o  os  seus  bem  n^o  sentiam,  mas  ti- 
nham f(;  no  auxilio  que  esperavam,  e  já  pelejavam 
como  desesperados   para  salvar  a  própria  vida. 

N^esta  agonia  o  falsete  dcSueiro  (jundes,  que  ao 
lado  do  judeu,  apenas  se  principiara  abriga,  repre- 
sentava o  papel  de  espectador,  retiniu  acima  do  ala- 
rido das  pragas  e  do  reboliço  do  eonliicto. 

—  "O  soccorro  !  .\hi  vem  o  soccorro  !  " 

Eera  verdade.  Já  se  ouvia  da  banda  da  /Meaçova 
a  tropeada  de  muitos  cavallos.  Todos  olharam.  O 
sol  batia  de  chapa  nos  capellos  brunidos,  escintíllava 
nas  pontas  das  lanças  ilos  homens  d'armas. 

—  "Fujam,  fujam!"  exclaniaram  de  toda  apar- 
to j  eem  um  momento  o  terreiro  e  as  ruas  conliguas 
ficaram  limp.as  de  povo. 

Instantes  depois  esvoaçava  na  praça  o  pendão  de 
Gomes  Lourenço,  colla(;o  <relrei  I).  AtVonso,  e  da 
sella  do  fogoso  cavallo  o  moço  cavallciro  ouvia  a  his- 
toria do  motim  contada  pelo  armeiro,  commentada 
por  Sueiro  (íundes,  e  glozada  em  suspiros  eais  pelo 
moído  D.  Zuleinia.  t)  mancebo  fechou  os  diíliates 
por  nm.i  seiílença  própria  da  cabelleira  de  Salomão: 

—  "  INIesIre  Zacharias,  deixai-vos estar  uns  tempos 
á  sombr.i  na  torre  das  arcas.  Em  (ornando  elrei  iia- 
vemos  d'eiisinar  cortezia  a  esta  villanagem  .  .  .  por 
Deus!  fui  atrevimento!  ...  E  lu,  meu  armeiro  de 
não  sei  (pie  diga,  não  <e  ia  saindo  cara  tambeu)  n 
lolia?  Torn.i  a  tocar  aos  ursos,  verás  como  dan- 
çam !  .  .  .  Melte-te  a  temperar  montantes  c  azevana, 
e  deixa-te  de  fazer  justiça  por  tuas  mãos,  homem  !  " 

—  Tudo  se  faz,  Sr.  D.  Gumes,  mas  com  gente 
que  le  entenda...  " 

—  "Adeus!  Nãij  mo  caias  n\iiilra  1  (juarda-te 
para   a  ])rinieira  arrancada." 

l'],  dizendo  isto,  deu  (l\.'<poras  ao  ginete,  (|Uel.ir 
gou  u  todo  o  gallopc  direilo   á  piuite. 

—  Ouvi  cá,  D.  J'".sl(!vlnho,  acudiu  o  armeiro  se- 
gurando um  pagem,  (pie  abelha  mordeu  em  D.  Gu- 
mes  lioureiíço,  ipie  Vai  (pie  nem  um  corisco.'" 

—  "  l'ergunlai-lli"o  a  elle"  respondeu  alio  o  mo 
ço  ;^  e,  iiielinando->e  du  cavallo.  murmurou  uouhtí- 


260 


O  PAIS  ORA  31  A. 


(Io  ílo  armeiro   umas  palavras,    (juc    não   firam    Ião 
liaixas  que  as  niio  ouvisse  o  juJeu. 

—  11  Nossa  Senhora  o  ajude  '.  " 

—  li  Deus  de  Isaac  !  E    D.  ligas,  o  irmão,  aonde 


jiara  ;  >' 

—  11  Em  Monleiíiór,  com  elrei  .  , 


ide 


]i  opaj;eiii  desappareceu  pelo  caminlio  (jue  levara 
o  ca  vai  lei ro. 

—  II  K  uma  loucurn  !  :'  dizia  oarmciro  sem  levan- 
tar a  cabeça. 

— 11  Sem  a  boa  espada  do  irmão  !  "  rosnava  o  ju- 
deu com  ar  contristado,  olhando  para  l'ero  Britador 
com  quem  a  adversidade  o  reconciliara. 

—  II  A  gente  de  Riba-Douroé  vingativa  e  cruel..." 

—  "Como  ncidiumaii  respondeu  mestre  Zaclia- 
rias. 

—  11  Jlas  Deus  proverá.  Vinde  comigo,  D.  Zu- 
leima.   Temos  pazes  até  o  S.   João.  .  .  " 

—  II  Por  toda  a  vida,  ])or  Ioda  a  vida"  acudiu  o 
judeu,  que  soubera   avaliar  aquella  auiisade. 

— 11  l'ois,    toda  n  \iila  n'y.i\  .  .  .    mas  lião  de  )ne 


dar  outra  vet  o  meu  foro  de  cavaliniro  villão  —  por 
arte  vossa  o  perdi,  e  por  arte  vossa.  .  .  " 

— 11  O  haveis  de  ter  —  juro  pelas  tábuas  da  L»ci. — 
Mas  aquelle  nazareno  vai  mcfter-se  n'uina.  .  .  n 

— 11  Peior  do  que  a  brija  de  que  nos  tirou  I  Pa- 
receis amigo  de  D.  Gomes  Lourenço  !...'• 

— 11  Oh,  muito'....  Deve-me  cem  maravedis- 
replicou  Zacharias  com  ingenuidade. 

— 11  E  devedor  morto,  credor  perdido.  Entendo. 
Veremos,  veremos!  O  melhorsempre  éireu  a  Mon- 
temor dizer  tudo  ..." 

—  II  A  Egas  Lourenço  .'...» 

— 11  Justamente.  " 

E  os  dois,  em  perfeita  harmonia,  encaminharain- 
se  para  o  sitio  da  forja  do  honrado  Pêro  Britador. 

Meia  hora  depois,  se  tanto,  uma  cavalgada  de 
pessoas,  entre  as  quaos  ia  uma  formosa  dama  rica- 
mente  vestida,    partiu,    vindo  do  lado  de  S.   Crui. 

Era  D.  Maria  Paes  Ribeiro,  que  se  recolhia  com 
seu  irmão  D.  Martim  ás  terras  legadas  por  D.  San- 
cho, c  confirmadas  por  Aflbnso  II. 


MÓNACO. 


EsT.\  cidade  é  cabeça  doliniitadissimo  principado  do 
mesmo  titulo,  sito  entro  o  Mediterrâneo  eaprovin- 
cia  de  Nice  nos  estados  sardos.  —  No  século  decimo, 
o  im])crador  da  Alemanha,  Olhão  I,  cleu  a  investi- 
dura d'este  principado  a  uni  nobredacas;i  Grinialdi. 
Achando-se  extinela,  em  Itiol.  a  descendência  varo- 
mil  doesta  família,  afilha  do  ultimo  priíicipe  levou, 
por  casamento,  |)ara  a  casa  franceza  dos  Alalignons  o 
l>rincipado  do  IMoiiaco  eo  nome  dos  Grinialdi.  Em 
JGil,  tendo  recebido  Honorato  Grinialdi  guarnição 
IVanccza  em  Mónaco,  o  coUocando-sc  debaixo  do  pro- 
tectorado da  França,  Luiz  XIII  lhe  dera  para  elle 
e  sua  progénie  o  ducado  do  ^'alelltinoi4.  Aos  1  ide 
fevereiro  de  17!)I),  a  Eraiiça  ajunelou  aquelle  pu'- 
quenino  domínio  ao  território  francez,  o  Mónaco 
passou  afazer  parte  do  departamento  dos  Alpes  Marí- 
timos até  os  tractados  do  1811,  que  o  icslituiraiu 
a  seus  [iriíieipes  sob  a  protecção  da  Sardenha. 

A  capital,  Mónaco,  povoada  por  mil  c  duzento!. 
habitantes  pouco  mais  ou  menos,  está  construída  na 
extremidade  de  uma  península  nas  duas  vertentes  do 
um  outeiro.  No  meio  da  cidade  aclia-se  uma  grande 
praça  quadrada,  ocastcllo  occupa  umdosladoj,  e  dos 
outros  ficam  os  tribuiiaes  e  as  prisões:    trcs  ruas  se 


I  estendem  parallelamcnte  para  o  pontal  do  cabo,  a 
I  igreja  está  no  fim,  e  por  detrai  da  igreja  um  tcrra- 
I  do  sobranceiro  ao  mar.  Sobc-se  ú  cidade  por  uma 
!  rampa  calçada;  seis  portas  vedam  a  entrada,  abrin- 
I  do-se   c  fechando-se  a  horas  prefixas,  por  ordem  do 

commandanio  da  praç;i. 

:       Todo  o  território  de  Mónaco,  abrigado  dos  \enli  - 

do  norte  pela  corda  dos  Alpes,  o  patente  ao  meio  di^  . 

desfrucla  nnia  loniperalura  mui  favorável  a  todas  .i- 

producções  dos  climas  quentes ;  n"ellc  se  c-ulheui  com 

abundância  azeitonas,  laranjas,  limões  \c.  Asdivcr- 

'  sas  escarpas  das  montanhas  estão  profusamente  s;ilpi- 

cadas  de  vorgcis  defriicta  d"espin!io,  e  de  cactos,  que 

[  niinistraiii    a  paítagom   iiin  aspecto  assaz  picturcsco. 

I  Ao  cahir  da  noite  mvriadas  devagalumcs  reluzem  s«)- 

brc  as  ramadas,  c  fazem  scíntillar  Iodas  as  cmincn- 

j  cias  como  i'spclhos. 

Mónaco  )>re5umc  fofamente  remontar  a  stia  funda- 
ção a  Hercules,  quar.do  este  nume  veio  a  Ibéria  omi- 
b.ilcr  Gervão.  Hercules  para  iii\erlir-$e  cavou  o  (>or- 
tode  Monao.  E  c«>rlo  (pie  houve  aUiuulr\ira  um  tem- 
plo dedicado  a  Hercules,  onde  o  reverenciavam  s>  ' 
o  nome  de  liluiiacut.  e  fi)ra  tahci  a  única  divinda 
de  dV-slc  pait. 


o  PAXORAMA. 


261 


Antes  da  revolução  de  1789  o  soberano  de  Mónaco 
tinha  sua  corte  permanente  :  passava  na  sua  capital 
metade  doanno;  davam-se  alli  muitos  bailesefunc- 
ções  ;■  e  durante  o  verão  toda  a  ciirte  se  transferia  a 
Carnoletto,  o  St.  Cloud  do  principado,  pequena  mas 
bonita  casa  campestre,  edificada  no  cimo  da  serra  no 
meio  d'um  vasto  pomar  d'espinho.  O  príncipe  fazia 
da  sua  bolsa  as  despezas  todas,  pagava  todo  o  custeio 
entrando  os  dos  seus  empregados;  e cumprido  tudo, 
ainda  podia  pòr  de  reserva  (diz  um  historiador  do 
paiz),  annos  maus  por  annos  bons,  uns  trinta  mil  fran- 
cos. O  príncipe  hoje  reinante  despediu  aqueila  peque- 
na corte,  permanece  o  maisdo  tempoem  1'arís,  e  go- 
verna os  seus  estados  por  procurafjão.  —  Orçam-lhe 
os  rendimentos  líquidos  em  trezentos  mil  francos. 


Os    TEE»     KKTEKnOS      DE    UM    tONOlIST ADOR. 

Guilherme  o  bastardo,  conquistador  da  Inglaterra, 
adquiriu  nos  últimos  annos  da  sua  vida  umatalgor- 
<iura,  que  Filíppe  I,  de  França,  príncipe  inclinado 
á  jovialidade,  disse  um  dia  por  gracejo: — atinan- 
do parirá  Guilherme  .'  "  —  O  que  sabendo  este  respon- 
deu :  —  "Brevemente,  e  acabado  o  regimento,  de- 
pois da  appresenlação  na  igreja,  eu  irei  ofierecer  a 
Kilippe  em  vez  de  círios  tantas  lanças  que  o  farei  ar- 
repender da  sua  chocarríco.  >!  —  Com  elVeíto  não  tar- 
dou em  abrir  a  campaiiiia  com  exercito  numeroso, 
assolou  o  território  de  Aexiii,  tomou  Slantes  eare- 
liuziu  a  cinzas;  mas  também  aqui  pararam  as  suas 
proezas  e  a  sua  gloria,  lim  certo  passo,  indo  a  saltar 
um  fosso  acavallo,  deu  com  o  peito  tão  violenlamen- 
te  de  encontro  ao  arção  da  sella  que  licou  mui  gra- 
vemente ollendido.  .Mandou  primeiro  que  o  transpor- 
tassem ;i  Uuão,  cabeça  do  seu  ducado  de  Norman- 
dia, e  depois  para  IlermentruvíUe,  terra  doada  por 
seu  avò  Ricardo  á  abbadia  de  1'écamp.  l'or  mais  de 
um  mez  soffreu  excessivos  padecimentos,  e  a  tinal 
succumbiu  a  9  de  setembro  de  1087. 

Apenas  Guilherme  exhalou  o  ultimo  suspiro,  to- 
dos os  que  o  rodeavam,  prelados,  barões,  e  ofltcíaes 
<ia  corte,  foram  accomuiettídos  de  uma  vertigem  tão 
inaudita,  que  o  historiador  Orderico  Vital  a  quali- 
fica como  loucura;  correu  cada  um  a  fechar-secni  seu 
castello  e  a  preparar-se  ádefcza,  como  se  a  Norman- 
dia estivesse  ameaçada  de  uma  invasão  ou  de  qual- 
quer outra  calamidade  inevitável:  até  dentro  de  Ruão 
i-ntrou  ínstanlaneamenle  o  terror,  e  tamanho  e  tão 
geral  (pie  a  maior  parle  dos  habitantes  fugiram  para 
mui  longe,  e  os  que  ficaram  foi  por  não  saberem  on- 
de achariam  mais  scguiança  ;  todos,  pelo  menos,  es- 
conderam quanto  de  mais  precioio  tinham,  siippon- 
do-se    ameaçados   d:is  mais    tremendas    inf<'licidades. 

Diqioia  da  lolal  dispersão  da  còrle  de  (iuillierme, 
os  indivíduos  das  classes  baixas,  que  lambem  (inham 
fugido,  voltaram  ;  e  achaiido-se  á  'olla  sem  sujeição 
practicarani  desordens  de  toda  a  casta.  O  caslellode 
llerni<fnlruvillcconverleu-sen'um  monienloem  Ihea- 
lii)  lie  absoluta  devastação:  osa(|U(í  da  liaixella,  dos 
movei»  e  rou|i:is  fui  Ião  atrevido  e  completo  (pie até 
o  corpo  do  falleciílo  monareha  foi  achado  semí-nu  e 
despojado  do  \i-ur,i\  em  (|uo  f(Va  ínvolvido. 

No  meio  d'e»la  vertigem,  de  que  ii  historia  não 
appresítnia  outro  exenipío;  quando  todos  não  cuida- 
vam senão  em  prcn>uuir-se  contra  uma  ínfulicidadu 
imiiginaria,  ninguém  podia  Iraclar  (tiem  i^M)  lho  im- 
portava) de  uma  obrigH(;ão  rostriela,  ofuiieriil  do  rei; 
ealev(?,  por  tanio,  o  corpo  kmu  sepultnrii  dur:inleal- 
Runs  dias,  nlé  (pie  cmfiiii  um  genlillioiiiiiii,  por  no- 
me ilerbiino  de  ( 'onlcvílle,  movido  a  pr.ielicaresle 
acto,  como  80  exprime  um  liisloriudor  cuiilemporaiicu, 


por  sua  natural  bondade  se  encarregou  d" elle  corajo- 
samente por  amor  de  Deus  e  pnr  honra  da  nação ; 
porque  não  estava  ligado  com  o  rei  por  vinculo  de 
parentesco.  Procedeu,  pois,  ao  funeral  á  sua  custa, 
ajunctando  no  castello  de  Hermentruville  os  eccle- 
siasticos  dispersos  pelo  terror  pânico  geral.  Mandou 
transportar  o  corpo  a  Ruão  para  o  priorado  de  S. 
Gervásio ;  e  o  arcebispo  dVsta  cidade  presidiu  aos 
officios  religiosos:  tendo,  porí-m,  ordenado  este  pre- 
lado que  o  corpo  fosse  trasladado  para  Caen  afim  de 
se"  lhe  dar  jazigo  na  abbadia  de  S.  Estevam,  funda- 
da pelo  defuncto.  nenhum  official  da  coroa  se  appre- 
sentou  para  cumprir  esta  disposição  ;  efoi  mister  que 
o  generoso  líerluino  carregasse  com  mais  esta  desptfza, 
que  era  considerável.  —  O  préstito  fúnebre  foi  por 
terra  at(^  o  sitio  onde  se  edificou  posteriormente  a 
cidade  do  Ilavre ;  e  tendo  embarcado  alli,  dirigiu-se 
para  a  foz  do  Orne.  A"  noticia  d'esta  trasladação,  a 
Úòr  da  fidalguia  normanda  e  todos  os  prelados  da  pro- 
vinda acudiram  a  Caen  para  tributarem  ao  rei  de 
Inglaterra  as  derradeiras  honras,  e  repararem  quan- 
to n'ellcs  cabia  a  desairosa  impressão  que  deixara  nos 
ânimos  ascena  extraordinária,  passada  em  Hermen- 
truville. Chegado  o  dia  aprazado  para  o  desembar- 
que, o  abbadc  de  S.  Estevam,  acompanhado  de  todos 
os  seus  religiosos,  e  dos  prelados  el)arões,  foi  proces- 
sionalmente  encontrar-se  com  o  fúnebre  cortejo,  que 
os  es[)erava  no  arrabalde  de  Vauxelles  á  borda  do 
rio.  Postos  a  caminho  com  segurança  e  com  a  gravi- 
dade própria  do  acto,  estavam  quasi  a  chegar  a  S. 
Estevam,  eis  que  um  súbito  e  violento  incêndio,  di- 
que nunca  se  descol)riu  a  causa,  manifesta-se  siniul 
taneo  em  muitos  bairros  da  cidade,  eos  consome  em 
tempo  breve.  Lemlira  então  (pie  semelhante  desastre 
succedi"ra  em  ^^  estminsíer  durante  a  ceremonía  da 
coroação  do  mesmo  rei  Guilhornie,  eque  grande  nu- 
mero de  habitantes  foram  vielimas  das  chammas,  e 
outros  muitos  foram  esmagados  pelas  ruínas  das  ca- 
sas; e  esta  recordação  origina  instantaneamente  ou- 
tro distúrbio  como  o  de  Hermentruville;  ao  menos 
para  esla  segunda  scena  houve  motivo  ap|);irente  e 
de  algum  modo  natural.  Todos  correm  sem  saber  por 
onde  vão;  param  uns  na  veiga  de  Louvigny,  outriis 
nas  terras  lavradias  ;  todos  procuram  salvação  na  fu- 
ga ;  e  em  pouco  tempo  a  deserção  é  completa.  Só  os 
religiosos  se  congregam,  só  elles  chegam  á  igr(>jn,  e 
só  elles  são  testimunhas  doenterramenlo,  como  antes 
os  padres  de  Westminster  foram  testimunhas  da  co- 
roação do  monareha.  No  entanto,  um  dos  resultados 
da  confusão  foi  impedir  que  o  ultimo  aelo  da  cere- 
monia  fúnebre  se  practicasso  n'a(|uelle  (li;i.  Os  re- 
ligiosos limitaram-se  a  depositar  o  esquife  no  pri- 
meiro degrau  do  carneiro,  <pie  estava  ao  meio  do  co- 
ro, afim  de  deixarem  para  os  prelados  a  honra  de  lhe 
fazerem  as  exéquias,  conforme  a  igreja  prcscri'\e, 
constando  do  officio  solemne  e  do  encerramento  for- 
mal no  caixão. 

N'essu  dia  não  foi  menos  numerosa  a  eoncurroncia 
do  que  na  véspera  :  havia-se  apagado  oincendío,  ti- 
nham V(dtado  os  fugitivos,  e  se  resfabeleciVa  asegu- 
raiKja.  1'odia  suppor-su  que  e.slavam  acabados  us  in- 
cidentes:  errado  calculo!  Sem  querer,  Gisleberlo, 
bispo  d'Evreux,  suscitou  um  de  novo  e  mui  singu- 
lar. Esl(!  prelado,  que  o  historiador  \  Ital  iip|M'llida 
nxnjito,  priíuipiou  a  oração  fúnebre,  primeiro  exem- 
[»lo  em  Franíja  (Pestes  discursos  de  pompa,  sendo  o 
segundo  300  annus  depois  (IjSit)  nas  exe(piiai  de 
l)iiguesi:liii.  Gisleberlo,  na  sua  oração,  exaltou  a» 
magnânimas  (pialidudes  do  rei  Guilherme,  oseu  va- 
lor na  guerra,  asua  jusli(;a  na  paz,  easua  piedade 
em  tiiil.iH  as  occusiues ;  porem  concluiu  por  uma  íii- 
terpelhKjão  singular  na  bucca  de  iim  iiiiiiisliu  daru- 


262 


O  PANORAMA. 


ligião,  fallando  da  cadeira  d;i  verdade;  —  «Appre- 
senfe-«e  (disse)  r^ualqiier  que  >e  persuaila  poder  ac- 
ciisar-me  d'cxa!;ger.ifão  ou  falsidade."  — 

A  principio  algumas  vozes  attestaram  quo  o  bispo 
lallára  certo  c  com  verdade;  em  seçiiida  ouviu-se 
iini  sussurro  geral  de  assentimento,  e  por  fim  toda  a 
assemlfléa  licou  em  profundo  silencio.  Ia  consummar- 
se  oenterrarnento,  quando  um  burgucz  deCaen,  As- 
celino,  fdiío  de  Artliur,  rompendo  peia  multidiío, 
sustou  a  ceremonia  com  uma  allocução,  Ião  vehe- 
iiiente  quanto  inexperada,  contra  um  acto  arbitrário 
do  rei. 

— 11  Aqui  da  justiça!  (clamou  com  vozretumban- 
te)  A<)ui  da  justiça  !  Declaro  perante  Deus  ()ue  a 
tcriM,  onde  querem  depositar  esse  corpo,  me  pertence 
legitimamente.  lira  nm  campo  que  o  rei  (juiilier- 
me,  sendo  ainda  duque  de  Normandia,  usurpou  a 
meu  pai  por  abuso  de  poder:  não  lhe  pagou  o  valor 
(piando  edificou  esta  abbadia.  Reclamo  este  campo 
por  embargo  da  justiça,  e  vos  inhibo  de  enterrar  o 
corpo  do  raptor  na  minha  lierança."  — 

Imagine-se  o  assombro  de  quantos  testimunharam 
este  enérgico  e  ousado  protesto.  l'ouco  faltou  que  não 
Iiouvesse  nova  deserção ,  mas  ao  menos  a  ceremonia 
ecclesiastica  foi  outra  vez  impedida  ;  e  o  longo  si- 
lencio da  anciedade  seçuiu-se  á  primeira  explosão  do 
espanto.  Nenlium  dos  íillios  do  rei  estava  presente^ 
nem  sequer  o  príncipe  Roberto,  que  Ilie  devia  succe- 
der  no  ducado  de  Normandia,  podéra  cbeicara  tem- 
po d']nglalerra,  onde  andava  occupado  em  enredos 
para  tirar  a  eoròa  a  seu  irmão  Giiilliernie  o  ruivo. 
Ninguém  o  representava  nas  exéquias,  por  conse- 
(juencia,  segundo  o  estalo,  ninguém  podia  em  seu 
logar  prometter  o  preço  do  clião  usurpado.  1'íspcra- 
vam  todos  inquietos  que  saída  teria  acção  por  tal 
modo  inaudita.  No  entanto  Ascelíno  nãosoarreda- 
va  da  entrada  do  carneiro,  mui  resolvido  a  não  o 
deixar  encerrar  sem  ter  obtido  reparação.  l'or  fim, 
os  bispos  e  Ijarões,  lendo  conferenciado,  IheoHerece- 
ram  em  nome  d'el!es  sessenta  soldos  pelo  direito 
da  cova,  f;:zendo-lli(!  promessas  de  que  feriam  depois 
attendidos  os  direitos  oriundos  da  propriedade  do  ter- 
reno. Rendeu-se  a  esta  proposta  o  ousado  burguez  e 
consentiu  que  se  fechasse  ojazigo;  porém  como  tudo 
tinha  de  ser  extraordinário  no  enterro,  não  bastou 
isto  para  que  se  conchiisse.  Descem  o  dcfiinclo,  e  os 
que  o  baixavam  tralialhosamcnte  chegam  aos  degraus 
últimos,  porque  o  corpo  do  rei,  não  obstante  liaver 
diminuído  na  moléstia,  ainda  conservava  pozo  e  vo- 
lume consideráveis:  escorrega  um  dos  homens,  esca- 
pa-lhe  das  mãos  o  caixão,  que  estoura,  bem  como  o 
cadáver,  no  fundo  do  jazigo.  Um  raio  rpie  passasse 
pelas  grossas  abobadas  do  templo,  no  ni<>mento  da 
oração  dos  líeis,  não  os  faria  fugir  mais  amedronta- 
dos, (iual  seria  a  causa  de  tão  desusado  elleito?.  .  . 
<-)  simples  estrondo  não  a  explica.  K  venlade  que 
não  :  porém,  d"aquellòs  caixão  roto  exhalou-se  um 
fétido  tão  horrível  que,  apezar  de  Ordorico  \  il)d,o 
elironisl.i,  reíerir  que  o  corpo  de  (iuilhernie  fora 
preparado  poios  embalsamadores,  polliuduru:,  u  to- 
dos os  que  alli  se  acharam  pareceu  que  aspiravam  a 
morte.  Debalde  o  incenso  subia  ao  ar  em  cohininas, 
e  os  periunies  corriam  em  enchentes,  era  forçoso  fu- 
gir ou  morrer  sullueadi) ;  pelo  que,  nem  a  deserção 
de  llernientruville,  nem  o  abandono  motivado  pelo 
incêndio  da  véspera,  podiam  eomparar-sc  á  evasão 
que  occasionou  este  acontecimento  extraordinário. 
Terceira  vez,  depois  da  sua  morte,  Guilherme  foi 
abandonado  pelos  grandes  e  pido  povo.  Até  o  clero, 
demorado  por  mais  tempo  om  razão  do  seu  dever  e 
caracter,  a  final  se  viu  constrangido  a  seguir  a  geral 
corrente-,  abbroviou  as  orações  que  ainda  faltavam  a 


rezar,  e  dejappareceu  da  igreja  por  todas  as  saídas  e 
em  completa  desordem. 

(iuando  o  tempo  fez  perder  ao  máu  cheiro  sufD- 
cientemente  a  intensidade,  voltaram  •,  assentou-se 
sobre  o  jazigo  acampa,  etudo  ficou  consummado. — 
"  D'cste  modo  (dizem  os  historiadores  do  conquista- 
dor da  Inglaterra)  um  monarcha  poderoso  e  temido 
foi  deixado  nu  sobre  o  pavimento  da  camará  onde 
acaljára  de  expirar,  o  foi  despojado  da  mortalha  do 
lençol  por  aquellcs  mesmos  a  quem  dera  sustento. 
Um  dos  reis  mais  opulentos  da  Europa  deveu  a  se- 
pultura á  charidade  de  um  súbdito  seu.  Ao  senhor 
de  um  grande  império  faltou  chão  para  receber  sen 
féretro,  ou  pelo  menos  Ih^o  disputaram.  Finalmen- 
te, um  corpo  que  cm  vida  fora  objecto  de  desvelos, 
conduzido  á  igreja  por  um  cortejo  atemorisadoatra- 
vez  das  chammas  de  um  incêndio,  só  toma  logar  na 
sua  derradeira  morada  depois  de  ter  sido  de  alzum 
modo  deshonrado  pelo  acaso  mais  inaudito  e  oppro- 
brioso.  Lições  memorandas  para  aquelles  que  prezam 
as  vantagens  materiacs  e  precárias  doeste  mundo  em 
mais  do  que  realmente  valem,  e  que  não  procuram 
alcançar,  refreando  os  appefites  sensuaes  e  as  paixões 
desregradas,  bens.mil  vezes  superiores  ás  delicias  do 
corpo,  que  já  em  vida  é  corrupto,  e  que  depois  da 
morte  só  deixa  poeira  vil  e  insensível,  n  — 

IMostrando  o  corpo  de  Guilherme  por  três  veze^ 
abandonado  antes  do  seu  definitivo  enterro,  traça- 
mos a  historia  de  três  grandes  humiliaç-ões ;  resta  es- 
boçar em  poucas  palavras  a  dos  três  grandes  vilipên- 
dios que  sofiVeu  depois  da  morte.  —  Ricardo,  seu  fi- 
lho, lhe  tinha  levantado  na  abbadia  de  S.  listevam 
um  monumento  fúnebre,  que  consistia  n"um  sarco- 
phago  de  schisto  preto,  collocado  sobre  quatro  pilas- 
tras  de  mármore  branco,  e  rematado  pela  estatua  do 
duque,  deitada  como  era  do  uso  nos  túmulos  d'essa 
epocha  ;  era  todo  o  mausoléu  adornado  de  obras  de 
lavor  d^ourivcs  as  mais  preciosas.  Este  monumento 
foi  três  vozes  profanado-,  e  da  primeira  (notável  cou- 
sa!) por  ministros  da  religião. 

Conlase  que  um  cardeal,  um  arcebispo,  e  outros 
muitos  ecclesiasticos  de  alta  jerarchia,  visitandoa  ci- 
dade de  Caen,  em  152-2,  tiveram  a  desassisada  vel- 
luidade  de  examinar  o  interior  do  sarcophago,  e ob- 
tiveram permissão  para  isso;  que  acharam  o  corp»» 
do  monarcha,  que  mostrava  forra  c  grandeza  extraor- 
dinárias, e  estava  perfeitamente  conservado! — Se  a 
circumstancia  da  completa  conservação  é  verdadeira, 
confirma  o  que  escreveu  Orderico  Vital  a  respeito 
de  ter  sido  embalsamado,  mas  não  concordo  com  a 
putrefacção  que  presiippne  a  ultima  scen.-i  do  enter- 
ro. Fosse  como  fosse,  achou-se  no  tumulo  uma  lami- 
na de  cobre  com  uma  inscripção  em  verso  francei, 
que  pelo  estvio  se  pó<le  reputar  po»terior  ao  monu- 
mento ;  n'ella,  depois  de  comparado  Guilherme  a 
Carlos  Magno,  f,iz-se  cmphaticanientc  o  elogio  d.i 
conquista  d'Inglalorra  ;  e  concluindo  dii: — A  mor- 
te me  desfez;  que  sou  eu  agora.'  Nad»  mais  do  que 
cinza  vil,  &c.  " 

Depois  dVsta  primeira  quebra  da  par  do  sepul- 
chro,  desculpável  até  rerto  ponto,  porque  só  leve  por 
motivo  um  simples  ineenli\o  de  curiosidade,  sobre- 
veio outra  muito  mais  criminosa.  Em  lotii,  os  hu- 
guenotes,  que  andavam  destruindo  por  toda  .1  Fran- 
ça os  monumentos  mais  sagrados  da  religião  e  oi 
mais  caros  á  gloria  nacional,  devastaram.  c<im  espe- 
cialidade quanto  havia  de  precioso  na  igreja  e  mor- 
teiro deS.  Estevam -.  eofijoram  com  tamanho  furor 
que  ficTo  ficaram  tcsliyios,  stnão  ilos  muros,  diz  um 
auto  lavrado  nm  mei  de|>ois da  profanação.  Olumu- 
lo  doGiiilherme  foi  feito  ped.nços,  oscu  ferefroaber- 
to  novameulc.  e  a  sua  ossada  dispena.  Dobras,  auc- 


o  pa>orama. 


263 


tor  contemporâneo,  fjuo  foi  feslimiinha  dVstes  hor- 
rores, só  03  relatou  cm  parte  —  ii  porque  {Ah)  se  eu 
pretendesse  enumerar  e  descrever  pelo  miúdo  todas 
as  cousas  de  estimação  que  foram  demolidas,  despe- 
daçadas ou  queimadas  nos  dictos  templos,  não  basta- 
ria um  mcz  bem  puxado."  —  Debras  viu  um  osso 
da  coxa  da  perna  de  Guilliorme,  que  era  mais  com- 
prido quatro  dedos  de  travez  do  que  outro  de  qual- 
quer bomein  da  mais  alta  estatura.  K  indubitável 
que  a(|iielle  osso  fazia  parte  dos  que  se  poderam  coU 
ligir  depois  d*aqucl]e  successo,  e  que  foram  guarda- 
dos n"um  monumento  singelo,  erecto  de  novo,  c  que 
tubsistiu  até  o  nosso  tempo. 

Veio  a  tormenta  politica  de  1793;  terceira  vez  foi 
violada  a  jazida  do  illusfre  duque  de  Normandia; 
mas  foi  esta  a  derradeira,  porque  fizeram  tão  abso- 
luto destroço  que  tudo  acabou  para  sempre,  mármo- 
re, caixão  e  ossos.  —  Aqui  termina  a  historia  do  cor- 
po de  (Juilbormeoconquistador.  l'ergunta-se,  —  ha- 
veria algum  que  fosse  mais  agitado  durante  ávida  e 
ainda  dejwis  da  morte?  Haveria  algum  que  desap- 
jjarecesso  pelo  concurso  de  circumstancias  tão  culpo- 
sas?.  .  .  Nenhum — crcinosque  responderá  a  historia. 


I< 


AlISTO    DA    MESA     1)03    ROMANOS. 


Não  poderemos  recusar-nos  á  admiração,  se  reflec- 
tirmos na  quantidade  e  qualidade  fie  géneros  estran- 
geiros que  os  romanos  mandavam  buscar  com  enor- 
mes despezas,  e  nos  cuidados  mui  especiaes  com  que 
procuravam  aclimatar  vegetaes  exóticos,  e  com  que 
Iraetavam  de  engordar  mimosamente  os  animacs  des- 
tinados para  as  mesas.  Tinham  tapadas  onde  susten- 
tavam javalis,  cabritos  inontezes,  veados,  três  castas 
lie  lebres,  &c.  •,  e  estes  animaes  eram  nutridos  com 
alimentos  próprios  da  scui  natureza  e  reílcctidamenle 
escolhidos;  d'esto  feitio,  os  lirõe»,  espécie  de  ratos, 
que  eram  então  estimada  galosina,  e  cuja  carne  pa- 
rece que  no  gosto  se  assemelhava  á  do  porco  da  ín- 
dia, eram  criados  a  bolotas  e  castanhas  em  cercados 
á  parte  ;  até  os  caracoes  tinham  seu  recinto  guarne- 
cido de  vasos  para  se  recolherem,  aonde  os  engorda- 
vam com  farinha  cosida  e  amassada  com  viidio,  de 
modo  que,  segundo  l'linio,  chegavam  a  extraordiná- 
rio volume:  cslcs  niiillus(!(is  eram  tão  procurados  <|ue 
os  mandavam  vir  da  Africa  e  da  Jlíjria.  O  gosto 
por  esla  iguaria  não  parecer.!  extravag.inte  a  quem 
souber  que  um  famoso  eapilão  IVancez  dos  nossos  dias 
uão  deixa  de  engolir  ao  almoço  uma  dúzia  de  cara- 
coes, que  lho  são  ap])re^cnla(!os  n'uii)  paralhdogram- 
liio  de  |)ra(,i,  cheio  de  l)iirai'(is  em  rada  um  tlosquaes 
vem  uma  ((jucha  com  seu  c;iraeol  cosido  e  tempera- 
do com  nullho  appeliloso  de  h<!rvas  aromáticas.  Pa- 
rece que  era  d'esle  modo  qnc  os  romanos  os  prepa- 
ravam ;  porque  as  receitas  dadas  por  Apiciu  ((/(•  ob- 
ioiiiis  <<  í-ondimcidu  lih.  7,  cap.  10,  jimj.  212  da 
edirão  de  AmUirdam^  de  170!))  são  as6i'guintes  ;  — 
•iKiizei  c|ue  os  cara<oes  larguem  a  baba  ])rinieiro  em 
leito  salgado,  depois  em  l(.'ite  ])nro  ;  frigi-os em  azei- 
te ;  e  Bervi-os  (|Uenles  com  molho  ikias^d-fctida'  i>'r- 
menla,  «ubsianeia  de  carnes  e  azeite  ;  ou  do  outro 
modo,  grelhni-os,  borrifando-os  sempre  com  um  mo- 
lho de  substancia,  pimenta  o  cominhos."  —  (^■«■moa 
que  II  iis.sa-1'elida  não  é  a  gomma  (pie  hoje  cunliece- 
mos   por  esl('  nome. 

llorlensio  não  dcMMi  .i  cclclirld.idi'  unii-aiMeiíleao 
seu  laleiílo  oralorio  ;  coulie-lhe  o  meiecinicnio  deser 
o  primeiro  (pie  regalou  os  seus  convidailos  com  um 
piivao  assado,  ser\ido  coiii  tod.is  ;is  pennas,  no  ban- 
quete qu(?  deu  para  celebrar  dignamente  a  sua  ad- 
missão no  coll''gii)  dos  auguics -,  este  novo  assailofoi 


'  então   havido  por  grandíssimo  luxo  :   mas  em  breve 
se  fez  d''elle  uso  tão  geral  que  seria  ridículo  dar  um 
I  jantar  sem  pavão  assado;  era  como  hoje  sem  um  pe- 
I  rú  bem  corado.  Por  este  modo  o  tracto  de  engordar 
I  pavões  tornou-se   muito  lucrativo:    cita-se  um  certo 
'  Ophilio  que  por  este  misteç  adquiriu  um  rendinien- 
i  to  maior  que  os  salários  modernos  de  três  emprega- 
dos da  maior  cathegoria  no  Estado. 
I       Sobre  tudo,   os  peixes  eram    em  Roma  objecto  de 
mui  notável  predilecção.  Ajunctavam-iros  em  vivei- 
ros em  quantidade  extraordinária,  e  nada  se  poupa- 
va para  lhes  alcançar  agua  salgada  ;  Lucullo  mandou 
cortar  um  monte  a  Cm  de  trazer  agua  do  mar  «sua 
tapada  :    alguns  romanos  chegaram   a  encana-la   dos 
esteiros  para  a  casa  do  jantar,  onde  abertos  os  regis- 
tos  os  convidados  colhiam   ás  mãos   os  peixes  vivos, 
por  não  duvidarem  de  que  estivessem  frescos.   César 
mettia-se-llie   ás  vezes   em  cabeça  dar  de  jantar  aos 
cidadãos   romanos,    que   se   envergonhariam   de   re- 
ceber tão  mesquinha  pitança  como  eram  os  comestí- 
veis que  se  distribuíam   á  plebe  de  Paris   em  certas 
festas   publicas;    era   mister   haver   peixes   raros;    e 
n*uma   oecasião   César  viu-sc  obrigado   a  recorrer   a 
empréstimos  para  completar  o  seu  banquete.  Foi  Mi- 
rio  Irrio  que  lhe  forneceu  moreias;  e  não  Ih  asquiz 
dar  nem  vender,    porém  exigiu  C|ue  César  lhe  desse 
palavra  do  restituir-lli'as  em  numero  igual. 

Seria  para  sentir  uma  immensa  lacuna  na  arte  de 
cosinba  dos  romanos  se  ellcs  não  tivessem  conhecido 
as  tubaras  da  terra,  porém  elles  as  conheceram  e 
apreciaram  :  para  guizar  este  succulento  tubérculo 
tinham  pelo  menos  seis  modos  dilferenles,  alguns  dos 
quaes  se  parecem  com  as  receitas  de  cosinha-las  á 
franceza. 

A  invasão  dos  bárbaros,  as  trevas  da  idade  media, 
e  principalmente  o  costume  que  tinham  os  frades  de 
raspar  os  inanuscriptos  antigos  para  escreverem  as 
suas  lendas,  causaram  a  perda  de  muitas  obras  pre- 
ciosas da  antiguidade.  Porém,  Deus  louvado,  a  fra- 
daria  respeitou  o  tractado  de  Apicio  sobre  a  boa  me- 
sa, no  qual  explica,  com  um  desvelo  digno  de  elo- 
gios, a  arte  de  lazer  as  conservas,  as  maneiras  de 
preparar  os  diveríos  guizadus,  e  os  condimentos  pró- 
prios para  cada  um  dVlles.  Três  individuos  se  conhe- 
cem do  nome  de  Apicio,  todos  três  famosos  pela  [)ro- 
p(M)são  á  gula,  que  parece  hereditária  n'aquella  feliz 
iamilia  :  um  viveu  em  tempo  de  SvUa,  outro  nos 
reinados  de  Augusto  o  Tibério,  e  o  terceiro  impe- 
rando Tiajano  ;  o  segundo  foi  o  que  compoz  a  obra 
(|Ue  cilàmos,  e  para  se  vêr  que  escreveu  no  seu  ra- 
mo, e  caracterisa-lo,  assim  como  o  f  nisto  d. i  mesa  do 
seu  tempo,  basta  a  seguinleanccdota.  —  Ouvira  elle 
dizer  que  env  certo  porto  do  Adriático  se  comiam  ca- 
marões mais  cheios  e  saborosos  doqiie  osqiie  vinham 
nos  mercados  de  Uoma.  Era  tão  apaixonado  de  bons 
boccados,  que  não  socegoii  cm  quanto  não  fretou  de 
propo«ito  um  navio  para  ir  pessoalmente  verificar 
aqiielle  facto  importante.  Quando  a  embarcação  che- 
gou á  vista  do  porto,  pesradores  informados  pela  fa- 
ma lio  nome  do  celebrado  viajante  deram-se  pressa 
em  ir  a  bordo  ollereccr-lhe  os  maiores  camarões  (|ue 
tinham  podido  colher  :  porém,  Apicio,  depois  deaf- 
tento  exame,  não  os  achou  preferíveis  aosijueecuni.i 
em  Uoma;  e  vciido-se  enganado  na  sua  expectativa, 
fez  virar  de  bordo  sem  digniir-so  sequer  pi^r  jié  em 
terr.i. 


Da 


rlMI-INUMA     lO.MO    CASTO. 


Nada  devemos  desprezar  ])iira  aiignicnlarmos  os  ri'- 
ciirsos  das  pastagens,  que  são  sempre  u  lado  fraco  dai 
cNplor.içõcs  ruracs.  Se  os  cultivadores  dessem  lod.i  n 


264 


O  PANORA31A. 


importância  tlevi<ia  ao  emprego  <re5tcs  recursos,  po-  ■  — n  Repito-vos,  senhores,  que  vos  devo  diíer  com 
(luriani  approvcitar  as  pontões,  appareiítomente  mais  quem  esfacs  fallando  :  eu  sou  o  carrasco  de  Paris-,  ca- 
citorcis,  do  terreno  confiado  aos  teus  cuidados  :,  por  ;  sei  minha  filha  e  festejamos  o  casamento, 
quanto  nenliunia  lorra  ha  tão  má  onde  não  possa  Os  mancebos  hesitaram  se  entrariam  ;  uma  forja 
crescer  uma  planta  para  pastagens,  podendo  concor-  j  occulta  parecia  puxar-lhes  os  pés  para  a  porta  da  rua, 
rer  pela  producgão  dos  estrumes  para  a  prosperidade  j  mas  d^aíii  a  pouco  recomeçaram  a  rir  c-  a  zombar,  e 
de  toda  a  explorarão.  A  pimpinella,  desde  muito  i  aUororados  com  a  lembrança  de  poderem  dizer  nas 
tempo  conhecida,  contenta-so  com  terrenos  os  mais  ,  salas ;do  paço  de  Vcrsaillcs  :  u Dançámos  em  casa  do 
áridos,  principalmente  <juando  elles  são  mais  leves  j  carrasco  de  País"  foram  logo  tirando  para  pares  as 
!o  que  compactos  :  as  expericncias  seguintes,  publi-    mulheres  mais  bonitas  que  alli  estavam,  e  principia 


radas  por  um  cultivador  allemão,  são  a  todos  os  res- 
peitos dignas  da  attenção  do  leitor. 

"Tendo  os  jornaes  agrícolas  recommendado  a  cul- 
tura da  pinipiíicHu  dos  prados  [pclorium  santjnhor- 
lia)  como  niuilo  própria  para  pastagens,  alcancei  a 
semente  d'esta  ])!anta,  e  em  Ij  de  abril  do  corrente 
anno  semeei  meia  geira  de  terreno  arenoso,  e  um 
(juarto  de  geira  do  terra  forte  e  húmida.  O  primei- 
ro campo  teve  uma  cava  profunda,  e  o  segundo  foi 
lavado  com  enxada. 

As  sementeiras  seguiu-se  um  tcmposecco;  fiz  pas- 
sar o  cylindro  de  rolar  sobre  o  campo  arenoso:  as 
sementes  rtobenlararn,  mas  a  vegetação  era  fraca.  So- 


ram  a  dançar. 

O  conde  de  Lally  ficara  só  ao  pé  do  dono  da  casa. 
que  interrogava  com  curiosidade. 

—  íi  Não  sois  vós  que  fazeis  as  execuções?" 

—  «Do  ordinário  não  sou  eu-,  tenho  ajudantes; 
não  sou  obrigado  senão  a  assistir  a  ellas.  Mas  toda 
a  vez  que  o  condemnado  for  al;;ura  fidalgo  da  pri- 
meira grandeza,  por  dever,  e  até  por  honra  minha, 
hei  de  eu  mesmo  fazer  a  execução.  » 

Um  riso  sardónico  entreabriu  os  lábios  de  Lallv, 
o  qual  se  retirou  d^ahi  a  pouco. 

O  conde  era  valente  e audaz;  tinha-se  distinguido 
no  campo   de  batalha   de  Fontenoy   á  vista  de  Luiz 


^llllUlil^J        II,  IftllltiKHlJ)        •1IU'J       H       »».çj*-n.»-^>«*'      v,l«     ■■.ti...  P       —. w  .      --  [ —  - —      — — ^f  —         ......._       —  — 

brevindo  porém  as  chuvas,  as  plantas  lançaram  gran-    XV,  e  ousara  ir  a  Inglaterra  formar  uma  conjuração 


des  folhas  de  iim  verde  escuro,  e  a  vegetarão  tornou- 
se  ião  forte  e  Ijclla  que  causava  admiração.  Tendo 
cada  semente  lançado  três  ou  quatro  ramos  coroados 
(ie  flores,  mandei-os  segar  cm  á  de  julho  para  sus- 
tento do  gado  :  as  vaccas  os  comeram  com  avidez,  e 
notaram  que    este  sustento  lhes  augmentára  o  Ifite. 

Depois  do  primeiro  curte,  a  pimpinella  repiodu- 
ziu-se  com  mais  força,  e  dou  tamljeni  um  pasto  mais 
abundante  ;  o  terceiro  corte  foi  ainda  mais  rico  que 
o  segundo:,  mas  sobresindo  as  nebrinas  tive  de  de- 
sistir de  outro. 

O  segundo  campo  (terra  forte)  alimentou  a  planta 
muito  bem,  mas  não  obtive  uma  collieifa  Ião  abun- 
dante porque  dera  ajjcnas  um  corte.  Desde  lo  de 
outubro,  os  dois  campos  semeados  de  pimpinella  ser- 
viram de  pastagem  durante  trcs  semanas  a  três  bois 
de  trabalho,  e  os  sustentaram  perfeitamente.  >' 


A     MSITA     Dl;    MAU    AGOURO. 


para  restituir  o  Ihrono  aos  Stuarfs.  Depois  de  des- 
empenhar uma  missão  na  Rússia  obteve  o  posto  de 
coronel,  e  com  pequeno  intervalio  o  de  tenente  ge- 
neral, com  o  governo  das  possessões  francezas  nas  ín- 
dias orientaes.  Nas  primeiras  acções  que  teve  com  os 
inglczes  favoreceu-o  a  fortuna;  perdida  porém  a  ba- 
talha de  ^ladras,  viu-se  obrigado  a  cnlregar-lhes  a 
praça  de  Poudicberi,  onde  se  recolhera  e  que  elle^ 
arrasaram.  Um  sem  numero  de  pessoas  a  quem  a  so- 
berba e  más  palavras  do  conde  haviam  indisposto  o 
accusaram  então  de  se  ter  vendido  aos  inglezes,  que 
para  o  salvar,  o  transportaram  a  Madras,  e  de  lá  pa- 
ra Inglaterra.  Q.uiz  tornar  para  França  e  escreveu  ao 
duque  de  Choiseul  :  aqui  trago  a  minha  ccUn-^a  e  a 
minha  imwccicia ;  espero  as  vossas  orJetxs.  Enccrra- 
ram-n'o  na  Bastilha,  e  depois  de  longa  detenção  uro.-» 
sentença  de  (j  de  maio  de  1769  o  condemnou  a  mor- 
rer degoUado,  por  haver  trahido  os  interessfs  do  rei. 
do  estado,  e  da  companhia,  e  cummcttido  abusos  de 
uuctoridade,  vexames  e  exacções. 

Estava  culpado  ou  innocenfe.'  Esta  sentença  con- 
dcmna-o,  outra  de  17TS  rchabilitou-lhe  a  memoria. 
O  certo  é  que  ao  cabo  de  quinze  annos,  contados  qua- 
si  dia  u  dia  desde  aquellu  em  que  teve  logar  o  dia- 
logo que  repetimos,  o  mesmo  carrasco  decepava  a  ca- 


U.vi  bando  de  mancebos  nobres  e  estouvados  corria, 
alta  noite,  as  ruas  de  1'arís.  Tinham  bebido  bem  e 
vinham  investindo  as  pessoas,  que  ainda  áquellas  ho- 
ras se  aventuravam  a  andar  por  fira  no  fim  da  pri- 
meira metade  do  século  passado,  eque,  poracaso,  to-  i  beça  de  Tliomai  Arthur,  conde  de  I>allv  e  barãode 
])avam  no  caminho.    Capitaneava   o  bando  Thomaz  |  lolleiulal. 

Arthur,  conde  deLalh,  fidalgo  gentil,  casquilho,!  G.ueni  fosse  ha  dez  annos  ú  rua  de  Marais,  por 
amigo  de  se  divertir,  ebiillienío  como  ))odia  ser  um  |  dotraz  do  Diorama,  e  batesse  á  porta  de  uma  ca«.^ 
miiço  escudado  com  a  impunidade  inherenl.!  a  um  i  de  bonita  apparencia,  seria  recebido  por  um  homem 
nome  respeilavel.  Ao  entrarem  na  estreita  rua  de  S.  |  muito  parecido  na  cara  com  Luiz  \VI.  Esfebomem 
João,  de  ordinário  muilo  sueegada,  ouviram  tocar  !  tractaria  com  civilidade  o  visitador  e  rcípondoria.is 
contradanças;  olharam  para  ciina,  e  viram  imia  ca-  '  suas  perguntas  sem  a  menor  repugnância.  Sem  se  f. 
sa  coin  niuitas  luzes  if  um  terceiro  andar.  ■  zcr  muilo  rogado  lhe  mostraria  oscu  museu,  comp  - 

—  ..É  aqui,  disseram  todos  aumavoz;  dança-se  ;  ;  to  d"uma  pequena  guilhotina  de  mahogoiio,  e  d"u: 
subamos  e  dancemos.,"  i  '•"'S''  '•'"'ello.  A  guilhotina  foi  o  primeiro  modelo  q>: 

—  Dielu  e  feito;  puxam  pela  campainha  :  nmho-  '  se  fez  d"csle  instrumento,  o  cutcllo  o  mesmo  c 
mem  que  no  rosto  inculcava  franqueza  e  sinceridade  '  que  eram  degollados  os  fidalgos  que  n'outro  tciiii 
veio  rcccbe-los  á  c-cada.  tiidiam   o  privilegio   de  não  morrer  enforcados.    D' 

Somos  pessoas  capazes,  lhe  disse  o  conde;   te-    l'»Í5  de  lhe  mostrar  uma  grande  bocea  na  parte  in: 

inoi  paixão  ]>ela  dança;  viemos  por  acaso  tor  ao  vos-  rior  do  cutello,  dir-Uie-hi.i  :  ..No  tempo  de  nn-u  p. 
hu  bairro,  e  não  pudemos  resistir  á  idéa  dcvospcnlir  ■  gosavam  os  fidaljos  da  côrle  d.i  prero^ativa  de  is! 
licença  para  dançar  em  vossa  casa.  ••  '  '<"'">  sobre   a  pl.ita-forma  do  cadafalso  cm  quanto  - 

— '..De  muilo  boa  vontade  vo-la  concedera;  mas,     f.niam   as  execuçõc*.    tiuando  cortaram   a  cabeça 
senhores,  aiiles  de  entrar  bom  é  saberdes  cm  casa  de     -Mr.   de  LalK.    um  fid.ilgo  moço  empurrou   o  br.i. 
quem  «ntraes.  »  do  ii;cu  pai,  desviou  o  golpe,  e  a  folha  d'oste  cuti ; 

—  "Glue  temos  com  isso'.  Sois  um  homem  bem  lo  nbriu  uma  l^jcca  batendo  n"uni  dente  do  jus' 
criado  L  q':c  mal  cstarcinus  cm  vossa  casa.'-  ç:ido. 


34 


o  PAI\ORA3lA. 


265 


^gmv^^^si 


VISTA   I>£   CAPai,    DO   I.ASO   S£   NÁPOLES. 


As  EMEROicAS  paginas  de  Tácito,  descrevendo  as  dls- ' 
solu5<7os  de  Tibério,  deram  nomcaotu  [)L><|ucMa  ilha,  j 
laii^'ada  na  iMitrada  meridional  do golplio  de  Nápoles,  | 
ein  face  do  cabo  de  Sorreiíto. 

Auiçu^to  César,   antes  d'af|iielle  tvranno  babitára  ' 
Cajiri  ;  e  a  linha  rpe<;l)ido  dos  na|)olitanos  em  cambio 
du  ilha  de  Iiehia,  que  lhe^  lia\ia  toniailo  c  (|nel!ics  ; 
restituiu  por  isle  prec-o.  J')ni  (|Uanlii  os  magnates  ro- : 
manos   c<jmp<'iidia\aiii    as  suas  dilieias    nas  lillas  ou  ' 
<|iiinlas  espalhailas  nu  costa  fronteira  do  golphonea-  ' 
polilano,  em  Jlaias,   l'uu//olu,  e  nu  amenissimo  l'au- { 
bilippo;    Au;;usto    foi  postar-se  diaiile  d'elles,    como 
para  \ij;ia-los,  da  outra  banda  da  extensa  bailia,  n\'s- 
la  illia  aprazível  csoce-çadii,  «pie  o  promontório  Atlic- 
iieu,  boje  cabo  de  Si*rreiilo,  resi^uarda,   no  inverno, 
dm  ventos  inipeluosos,  e  ijue  a  brisa  do  mar,  duran- 
te o  verão,  tempera  com  agradável  frescura.  Alii  re- 
tiiliu  (pialro  aiinos,  paru  o  fim  da  sua  vida,  e  levan- 
tou obr.iH  de  <pie  ainda  vestijjios  existem,  i)  aspecto 
radiante  e  bunaneoio  (Pesla  ilha  formosa  parecia  us- 
ni^nala-lii  para  liabita(,-ão  predestiuaila  de  Au!;usto, 
e  todavia  é  o  nome  terrível  do  Tibério  (|ue  painiací- 
niu  de  suas  recorilaeões,  e  (jue  não  cesiam  ij<' re|ielir 
cum  horror  os  liabilantes  de  suas  praias  afortunadas. 
'J'iberio  mandara  eonslruir  no  illieu  di?  Capri,  <|ue 
não  tem  mais  de  du.is  lei;mis  <le  eomprimcnto  por  uma 
de  lar;;iira,(lo/e  palaeion,  ipie  deiliciia  aos  do/.e  nu- 
mes superiores.    .Mal  se  ilisliiii;iiem  boje,  pela  maior 
p.irle,  os  residuíjs  desses  edilicios;,  subsistem  apenas 
ilii'erees,  ipie  lei.ni  sido  poui'o(r\cavados,  ealór.iisso 
|].'io  se  leni  deseuberlo  mais  do  cpie  alu;umas  camarás 
subterrâneas,    rr.i;.;meiitos   de    mosaico,    e    medallias, 

\oL.   l.— Oinr.iiu    IG.   1SÍ7. 


em  sítios  avulsos.  A  incúria  tem  deixiidous abrolhos 
|)aciricamente  cobrirem  os  despojos  da  magnificên- 
cia imperial  ;  o  ferro  do  arado  é  o  instrumento  úni- 
co, (ju(!  de  luní;e  a  longe  e  ao  acaso,  busca  na  terra  , 
os  monumentos,  testiniunhas  de  uma  notável  epo- 
cha  da  historia  romana. 

Em  (pie  ]iiTÍodo  se  desfizeram  em  pó  os  palácios  de 
Tibério  í  —  t)  pharo,  situado  no  pontal  da  ilÍKi  [xira 
o  lado  do  promontório  Atlioncu,  desabou  poucoantes 
da  morte  do  imperailor,  como  núncio  dos  futuros  es- 
trug(js.  ^  inte  e  seis  annos  depois  i!e  Tibério  haver  dado 
o  derradeiro  arianeo,  um  espantoso  terremoto,  que  om 
toda  a  região  itálica  se  sentiu,  e  que  >ião  era  mais 
<|Ue  o  precursor  de  mais  terrível  calamidade,  derribou 
a  melhoria  dos  monumentos  de  I'oii>[)eia,  que  se  tem 
achado  cerculns  do  lodo  o  .ippar.ito  da  reedifua(,ão  :, 
porquanto,  d"alii  a  deteseís  annos,  no  71)  da  craehrís- 
làa,  reinando  Tilo,  a  iiiaxíma  erupç.lo,  (|ue  rasgou  a 
i  cratera  do  \'esu\io,  e<pie  submergiu  l'ompeia  e  llet- 
culano,  luuilou  largamenie  a  fóriíia  do  eontiiiente  v 
fias  ilhaii.  l'arece  que  antes  (Pesla  c.ilastrophe,  fapri 
tivera  un>  esteiro  que  abrigava  as  embarca(;ões  neces- 
sárias li  segurança  de  Tibério,  e  de  que  boje  nfio  hii 
indicio.  L'ina  convulsão  que  «ssimdeii  á  ilha  aspecto- 
novo  devia  forçosamente  derribar  os  palácios.  (Inait- 
do  no  século  segundo,  a  mulher  e  a  irmã  doimpura- 
diw  ('tiinmodoesliviTam  di'sterrad.is  em  ("iiprí,  sodv- 
\eriam  achar  os  enlulbos  d. is  moradas  <le'l"ibcrio.  A 
idade  medí.i,  que  arremeeou  os  sarrneeiíos  jiuraestii» 
cosias,  pouco  trabalho  leria  par.i  lompli^lar  ,i  dvvasta- 
eão  iliis  edifícios  (|ue  por  ventura  uinila  subsísiissciii . 
l'ui  imperador,  ipiu  suílenl.iva  ciilão  com  «splmduv 


2G6 


O  PAiNORA31A. 


o  nome  augusto  dos  antigos  romanos,  Frederico  Bar- 
ba-rdxa,  quiz  ter  um  palácio  na  mesma  ilha  que  Ti- 
bério habitara,  e  o  fez  construir  no  mais  alto  píncaro. 
Flavia  muito  (era  no  século  duodécimo)  queascons- 
trucções  dos  césares  tinham  sido  arrasadas. 

A  ilha  tem  a  figura  de  uma  grande  barca  prolon- 
gada, e  duas  agulhas  oppostas  marcam,  como  dois  mas- 
tros, as  extremidades.  Entre  estas  montanhas  pedre- 
gosas de  cada  uma  das  pontas  ha  uma  faxa  de  terre- 
no chão  que  atravessa  a  ilha,  equeconstitue  um  dos 
mais  agradáveis  sitios  que  se  podem  imaginar  ;  é  to- 
da coberta  de  murtas,  oliveiras,  amendoeiras,  laran- 
geiras,  figueiras  vinhas  e  terras  de  semeadura,  que 
te  mostram  de  uma  bellezaefresquidão  encantadoras, 
Ahi  está  sita  a  cidade  de  Capri,  com  dois  ou  três  con- 
ventos, o  paço  episcopal  e  perto  de  1:800  habitantes. 
No  vértice  da  parte  occidental,  a  qual  não  é  mais 
que  uma  rocha  continua,  por  extremo  elevada  eiiiac- 
cessivel  da  banda  do  mar,  tem  assento  a  povoação  de 
Anacapri,  com  1:700  habitantes.  O  montechama-se 
Solaroi  e  sobe-se  a  ella  por  uma  rampa,  talhada  no 
rochedo,  e  que  não  tem  menos  de  ÒOO  degraus.  Che- 
gando-se  ao  cume  da  base  do  castello  de  Barba-ròxa 
desfructa-se  a  mais  linda  vista  que  pode  haver  u^este 
paiz  admirável.  —  Para  o  sul  a  vasta  extensão  do  Me- 
diterrâneo ;  ao  poente  asilhasdelschiaeProcidaque 
guardam  a  outra  margem  do  golpho  de  Nápoles,  a 
enseada  de  Baias  e  Pozzolo  que  lhe  aformosea  a  en- 
trada;  ao  norte  o  golpho  em  todo  o  seu  brilho,  a  ci- 
dade estendida  na  falda  das  collinas,  o  Vesúvio  que 
fumega  sobranceiro  á  bella  praia  d'onde surgiram  as 
cidades  que  engulíra,  substituídas  por  cidades  novas  : 
no  oriente  o  promontório  de  Sorrento,  de  que  parece 
ter  sido  Capri  um  prolongamento,  separada  talvez 
por  algum  fortíssimo  abalo  era  remotas  eras:,  além 
do  cabo,  novo  golpho,  maior  que  o  de  Nápoles,  que 
com  este  forma  contraste  severo,  o  de  Salerno,  nas 
duas  praias  do  qual  dormem  duas  cidades  arrazadas 
pelos  séculos ;  P;estum,  scpulchro  magnifico  da  ar- 
te grega  ;  Amalfi,  tumulo,  não  menos  curioso,  do 
commereio  e  da  liberdade  da  idade  média.  —  Taes 
são  as  recordações  que  suscitam  as  diversas  perspec- 
tivas que  se  avistam  do  cimo  do  monte  Solaro ;  po- 
rém, para  reproduzir  a  magia  das  cores  e  das  linhas 
d'este  espectáculo  único,  seria  inefficaz  e  nuUo  o 
mais  hábil  expressivo  pincel. 


Ódio  velho  s.vo  casca. 

(Romance  Ilistorico) 

111 

A  mão  direila  ou  a  esquerda  ' 

A  CAVALGADA  de  D.  Maria  Paes  entrou  n*um  val- 
le,  apertado  entre  outeiros  viçosos,  os  pampanosdas 
vinhas  penduravam-se  sobre  um  regato,  que  fervia  á 
sombra  de  grossos  castanheiros.  A  traz  desdobrava- 
se  a  perder  de  vista  a  charneca  lisa  e  árida  ;  aqui 
e  além  rangia  a  copa  esguia  do  pinheiro,  erecto  no 
meio  das  urzes  e  murtas  bravas,  como  senti ncUa  per- 
dida na  solidão.  Adiante  o  sol,  no  occaso,  dourava 
de  pallidos  rcUrxos  as  ameias  negras,  e  a  torre  agi- 
gantada do  paço  acastellado  do  uma  honra.  O  sopro 
da  aragem  ciciava,  brincando,  nas  largas  preças  do 
pendão.  Aquella  fortaleza  era  o  castro  d'A\ellans, 
dcado  por  Sancho  I  a  Gomes  Lourenço,  o  alferes  o 
amigo  de  seu  filho,  D.  Aflonso. 

Chegando  defronte,  todos  colheram  as  rédeas  por 
movimenio  simultâneo-,   D.  Marlini  Paes  levautou- 


se  noj  estrlbof,  e  mirou  em  roda.  Virando-sedepoi» 
para  um  homem  já  de  idade,  coberto  da  loriga  tran- 
çada de  tiras  de  couro  cru,  perguntou  : 

—  «Tello  Ervi^iz  de  quem  é  aquella  torre  ?  si 

—  "A  honra  d'Avellans  '  .  .  .  r> 

—  «Sim!  Não  a  deram  a  Gomes  Lourenço?» 

—  "Dizem  que  deram." 

—  "  Glue  vos  parece  —  accrescenfou  o  cavalleiro, 
olhando  para  um  monge  de  Cister  que  levava  a  e»- 
querda  —  atrever-se-ha  o  de  Riba-Douro?" 

—  "A  raça  do  Espadeiro  tem  fama  de  não  dobrar 
o  joelho  senão  a  Deus»»  respondeu  o  frade. 

D.  Martim  sorriu-se  ironicamente.  Depois,  rol- 
tando-se  para  sua  irmã,  continuou  com  apparentc 
tranquillidade  : — "D.  Maria,  é  perigoso  este  passo. 
\  oltae  atraz;  e  Ervigiz  com  dois  homens  d"arma» 
que  vos  acompanhe,  n 

—  «Não  irei  -,  nunca  dirão  que  uma  dama  de  La- 
nhoso fugiu  do  pendão  dos  Viegas  de  Salzedas.  r> 

—  "Mas  se  elles  vierem,  minha  irmã?  ...  o  qne 
havemos  de  fazer  d'estas  creanças,  que  não  podem 
com  uma  lança,  com  estes  velhos,  que  já  deram  o 
que  podiam  dar?  .  .  .  Melhor  é  tornar  ao  conto  de 
D.  Nuno.  Faz-se  amanhã  a  jornada,  n 

— ..  Que  vergonha  !  .  .  .  Quereis  que  o  nos^  no- 
me seja  a  fabula  de  Coimbra  ? .  .  .  liei  de  ir  para 
diante,  só  que  vá. " 

—  .1  E  Deus  comnosco  !  "  murmurou  o  monge. 

—  ".Amen!  reverendo  nono,  respondeu  o  caval- 
leiro. Adiante,  vamos!  Não  quero  que  se  gabem  os 
de  Salzedas  que  Martim  Paes  da  Ribeira,  fugisse 
da  sombra  do  mais  moço  dos  Viegas.  Não,  por  Sanc- 
ta  ?laria.  Ainda  que  ahi  nos  esperasse  Egas  Moniz, 
o  velho  I  I» 

O  frade  perguntou  com  timidez  :  —  «  Dura  ainda 
a  guerra  entre  vós  c  elles .'  >» 

Antes  de  responder,  D.  Martim  passou  a  mão  pe- 
la testa  com  tristeza. 

—  «Pizastes  a  terra  de  Sancta  Maria,  e  repousas- 
tes á  sombra  dos  carvalhos  do  meu  solar  de  Lanho- 
so, e  perguntaes-m^o  ainda  !  r> 

—  «  Q.ue  ódio  tão  velho  !  .  .  .  " 

—  «Como  o  sangue  que  nos  corre  nas  veias.  Des- 
de que  houve  solar  era  Riba  Cavado,  e  forre  na  ca- 
sa dos  ^  iegas,  abriu-se  uma  cova  entre  elles.  •• 

—  »E  assim  se  perde  a  ílòr  òcs  bons  cavalleiros  ! 
Se  querem  morrer,  se  tecm  pressa  d"acabar,  não  es- 
tá aberta  ahi  a  fronteira  dos  mouros?.  .  .  por  qu* 
não  morrem  pela  fé  ?  " 

— «  Primeiro  linipae  o  sangue  que  rcssuma  das 
pedras  dos  nossos  castellos,   acudiu  o  cavalleiro  com 

j  viveza.  Tirae-nos  a  memoria  c  o  coração  d'aqui  .  .  .r> 

•  E  dizendo  isto  loxava  a  mão  ao  peilo  cá  cabeça  cora 

!  ar  maguado. 

I  Houve  então  uma  pausa  longíi,  durante  a  qual  os 
dois  caminhavam  sem  proferir  palavra.  D.  Martim, 
passados  instantes,  ergueu  a  fronte,  c  com  um  sus- 
piro exclamou  : 

—  «Ai,  padre!  Muito  sangue  tem  Iwbido  aquella 
terra  do  Minho.  .  .  e  do  melhor  de  Portugal.  >■ 

O  monge  niio  resjiondcu.  nem  levantou  04  olhos. 
O  cavalleiro,  pondo-lhe  a  mão  no  honibro,  prosejuiu  : 

—  "Já  ouvistes  contar  .ilfuma  vei  a  historia  da 
torre  velha  de  Saneia  Olaia?  Não  a  sei  íx-m  ru.- 

—  "Tenho-a  de  còrtod.i.  replicou  o  frade.  E  uni.i 
historia  que  fax  esfriar  de  horror.  " 

—  "D''ahi  vem,  dizem,  a  rixa  com  os  de  Riba 
Douro." 

—  "E  ódio  que  envelheceu  com  os  socuK^.  •♦ 

—  «E!  c  diz-sc  que,  na  n)c»mn  taça  mi>tiirado,  o 
sangue  d'uns  coui  o  sangue  d"outr«  não  se  une.  Nè- 
de  lá : " 


o  PANORAMA. 


267 


Tornaram  a  calar-se ;  e  ainda  foi  Martim  Paes 
quem  rompeu  o  silencio.  Como  se  respondesse  a  um 
pensamento  interior,  e  cruzando  os  braços,  o  caval- 
leiro  exclamou  : 

— 11  E  ha  de  se  esquecer  tudo  ...  lia  de.se  per- 
doar istp  !  " 

O  frade  olhou  para  elle  pasmado.  D.  Martim  per- 
cebeu que  era  uma  interrogação  silenciosa. 

—  «Tendes  irmã?^'  perguntou  de  repente. 
TJm  aceno  de  cabeça  negativo  foi  a  resposta. 

—  «  Abençoac  o  céu.  Nunca  soubestes  então  que 
amargura  ó  não  se  atrever  um  cavalleiro  a  dizer  al- 
to o  sou  nome,  sem  divisar  na  bocca  do  todos  um 
sorriso  que  lhe  enterra  a  infâmia  pelo  coração,  como 
iirn  punhal.  " 

O  monge  fitava-o  com  espanto.  Não  entendia 
nem  as  palavras  que  ouvira,  nem  a  tristeza  com  que 
furam  dietas. 

—  u  O  solar  de  Lanhoso  estaria  deslionrado,  sancto 
monge,  continuou  o  cavalleiro,  so  houvesse  n'elle 
um  covarde.  SIas  Marlim  Paes,  o  descendente  de 
reis  godos,  o  neto  do  conde  Oseiro,  soube  guardar  a 
herança  de  seu  pai,  soube  vinga-la  !  .  .  ." 

E  nos  olhos  pretos  e  rasgados  do  irmão  de  Maria 
Paes  reluziu  uma  faísca  de  cholera.  Tinha  feições 
mais  bellasdoqnede  ordinário  costumam  ser  as  dos  ho- 
mens ;  masfaltava-lhe  a  expressão  viril,  que  dá  o  va- 
lor seguro  de  si  o  confiado  na  sua  força.  Notava-se  na 
sua  physionomia  o  que  quer  que  era  de  carregado  e  in- 
quieto. A  vista  do  observador  nada  bom  e  generoso 
podia  divisar  n''olla  ;  c  momentos  havia  cm  que,  re- 
bentando n^um  relâmpago  a  raiva  do  coração,  illumi- 
nava  as  paixões  más  que  lá  dontro  bramiam  vingativas. 

Kr.  Miinio,  cedendo  ao  Ímpeto  natural,  sem  saber 
o  que  dizia,  exclamou  : 

—  "  E  se  não  soubesse,  e  se  deixasse  manchar  da 
calumnia  iini  nome  noijre,  sem  cravar  de  pese  mãos 
o  traidor,  merecia  que  lho  cliamassem  covarde.  " 

—  «Obrigado,  reverendo  nono,  obrigado!  bradou 
o  seu  comp.inhciro.  Não  se  dirá  com  verdade.  Meta- 
de da  divida  ostá  paga,  e  a  outra  .  .  .  pouco  lia  de 
»iver  quiMn  não  a  ajustar.  " 

—  «  jUtíi  culpa,  mca  culpa!  nmrniurava,  caindo 
em  si,  o  |)()l)r<.'  frade.  Preguei  o  orgulho,  eu  quodc- 
»ia  ensinar  a  humildade!" 

—  "Está  p;iga  !  proseguiu  arrcljatadanicnte  o  ca- 
valleiro. Uma  filha  do  solar  de  Lanhoso,  a  mulher 
que  ch.imam  minha  irmã,  atraiçoando  o  sangue  de 
|>ai  e  mãi,  vendou  o  nome  ao  inimigo  da  nossa  ra- 
ça .  .  .  nem  ella  nem  quem  lh'o  comprou  se  riem 
já  I  .  .  .  Deus  lho  perdoe,  porque  morreu  \  c  a  mim, 
»i!  ajustei  de  mais  a  conia  .  .  .  não  me  restam  remor- 
ios.  O  (|ue  iiz,  hoje,  outra  vez,  tornava  a. .  .  .  n 

—  «  101  la  morreu  ?  » 

—  «Como  havia  de  viver,  padre,  ilepois  d'aquil- 
lo .'  .  .  .  mas  demais  filiámos  n'oslas  cousas.  " 

Eiilr<;tidos  n'e'ila  conviirsação,  linhani-se  insensi- 
Yolmcnle  approximado  do  castro  dW\cll.iiis.  O  ca- 
minho, cavado  entre  ralicços,  ia  fichar  a  uma  cla- 
reira, onde  dois  freixos  allos  e  nodosos  sobre  a  liinlc 
ninurinca  chamada  (Pm/iius  daccs,  curvavam  os  ranjos 
«i  li-ciam  uma  espécie  do  toldo  vireiíle.  l)'alli  partia 
a  ladeira  enipinada,  que  se  enroscava  em  vollas  si- 
nuosas alé  a  poria  do  easlello.  O  vnllo  niassii;o  do 
alcaçar,  chboç.ido  no  clarão  duvidoso,  avultava  a  dis- 
tancia \  e  na  aresta  das  ameias  esmorecia  cada  vei 
muil  o  filele  .'ilaranjado  do  sol  poiMili-. 

— "  Ei-1<),  o  pendão  dos  sciberbos  invalleiros  do 
Salzcdas!  liraduu  Marlini  l'ai'».  Viegas  de  Sal/.cdas, 
os  tcut  parentes  lia/eiii  iini  iioint»  muito  pe/adu  pam 
«liei  —  nãu  ha  uni  que  piissa  aluvantar  o  moiilaiilc 
tio  Eiipaduiru  !  >< 


E  o  rico-homem  de  Lanhoso  sorria  com  desdém 
para  a  torre,  no  alto  da  qual  o  vento  desdobrava  a 
bandeira  quarteada  de  vermelho  e  branco  cora  o  açor 
voando. 

O  monge   não  abriu  a  bocca. 

—  «Cedo  virá  o  dia,  proseguiu  o  cavalleiro,  em 
que  os  homens  não  fallem  d^aquella  raça  orgulhosa 
sem  chorar  do  dó  pela  sua  queda.  Os  mesmos  inimi- 
gos hão  de  chegar  a  ter  compaixão  d'ella.  E  o  açor, 
accrescentou  rindo,  o  açor  sem  garras  irá  esconder- 
se  entre  os  penhascos  nataes  :  então  os  filhos  de  Salze- 
das  hão  de  procurar  pelo  ninho  paterno  .  .  .  e  o  mais 
pobre  ha  de  abençoar  a  sorte  por  se  não  chamar 
d'aquellc  nome  !...?• 

Kvoltando-se  para  o  f:ade  perguntou  com  voz  rou- 
ca : 

—  «  Como  tracfaveis  o  homem  que  fizesse  de  vossa 
irmã  uma  cousa  vil,  e  do  nome  de  seu  pai  o  escar- 
neo  do  ultimo  villão .'  " 

• —  "  Malava-o  !  »  replicou  o  monge,  fazendo»se 
branco. 

—  «E  deixei-o  viver,  eu!  respondeu  Martim 
Paes.  —  Mata-lo!  .  .  .  pedia-m'o  de  joelhos,  elle!  .  .  . 
Estes  homens  de  Salzedas  não  lêem  medo  do  morrer, 
padre  ...  a  allronta,  o  desprezo  é  que  os  decepa.  " 

—  «  GLuc  lhe  fizestes  vós  então?" 

— «  Ceguei-Ihe  os  olhos,  c  com  um  ferro  cm  bra- 
za  escrevi-lhe  na  testa  o  que  se  põe  no  hombro  do 
captivo  fugidiço  :  escravo  de  Lanhuso.  " 

—  «  Jesus  !  »  bradou  o  monge,  tremulo. 

—  u  Oh !  aquelle  não  torna  mais  a  ser  homem  I 
Matei  o  cavalleiro,  c  quiz  que  vivesse  o  serviçal  pe- 
dindo esmola  ao  soalheiro  da  praça,  encostado  ao 
bordão  de  mendigo  . .  .  Aflbnso  o  lidador,  querido  de 
Sancho  I,  pagou-nie  com  mil  mortes  a  allronta  .  .  . 
oh  que  chaga  para  o  orgulho  da  sua  raça  .  .  .  um  ri- 
co-]iomem  escravo  de  Lanhoso  !  " 

Ia  a  responder  o  indignado  monge,  quando  se  avis- 
tou, descendo  do  cabeço  fronteiro,  um  tropel  do  ho- 
mens d'armas.  Vinha  adiante  uni  cavalleiro  com  a 
vizeira  do  capello  levantada.  Era  Gomes  Lourenço. 

—  «Homens  de  Lanhoso,  aqui!  bradou  Martim 
Paes,  que  logo  o  conheceu.  Ervigiz,  aminhal.inea  e 
o  meu  escudo.  Maria,  Fr.  Munio  ficai  n"este  sitio.  » 

E  largando  as  rédeas  ao  cavallo,  foi  cncontrar-sc 
com  o  alferes  do  rei.  (iomes  Lourenço  viu-o  vir,  e 
estacou  o  ginete.  Encostou  ao  eoxole  direito  o  cabo 
da  lança  de  monte,   e  nem  desceu  a  vizirira. 

—  «D.  Martim,  disse  elle  com  mclaiicholia  c  di- 
gnidade, não  venho  fazer  uni  rapto.  Peço-vos  vossa 
irmã  D.  Maria  em  casamento,  c  acabemos  por  uma 
vez  estas  rixas,  que  nos  matam  sem  razão.  " 

Martim  P.ies  olhou  para  elle  cora  assombro.  Não  en- 
tendia aquella  proposta,  nem  sabia  a  que  a  attribuisse. 
(Cuidou,  por  fim,  que  era  o  temor  que  a  inspirava. 
Uni  sorriso  irónico  fiigiu-lhe  nos  beiços,  ao  responder  : 

—  «So  teu  pai  le  ouvisse  agora,  Gomes  Lourenço, 
amaldiçoava  a  hora  em  que  to  gerou.  » 

—  «Talvez!"  replicou  tri>teinciite  o  mancebo. 

O  cavalleiro  de  lJanho^o  lornou-o  açucarar.  O  ar 
magoado,  e  a  hesitação  <lo  amigo  de  .MVonso  IK  ca- 
da Vez  mais  o  persuadia  de  ipie  eram  devidos  auiur- 
dl)  da  sua   vingança. 

—  «Por  lleiís !  exclamou  com  iiin.i  risnd.t  cslron- 
doia,  isto  p;iicce  um  conto  de  fula>.  ...  l'<  um  de 
Sal/cdas.  ou  uma  mulher  qui!  cslii  iliaiilc  ilo  mim  T  •• 

—  «Martim  Paes,  trago  a  cspaila  na  bainha,  não 
m'a  fiiçaes  de%einbainhar  "  retrucou  o  nianoclio  com 
tranquillid  ide. 

—  «Saneia  Maria,  e  a  hiniiiUIadi' (l'niii  :u\.irhore- 
ta  !  .  .  .  Ueveivndo  ca\;dlcirii,  que  sindo»  pedir  cimi 

I  cs>a  cara  ili'  pciiitentu  '  " 


268 


O  PANORAMA. 


—  «A.  paz,  e  a  inuo  de  tua  irmã»  respondeu elle 
sem  se  alterar. 

Marliiii  l'aes  desatou  a  rir. 

—  Maria,  minha  irmã  —  gritou,  virando-se  para 
traz  —  mal  sabes  que  fortuna  nos  espera.  Aqui  está 
uma  pomba  sem  fel,  tão  namorado,  que  te  pedeem 
casamento  '  " 

D.  Maria  sorriu  contrafeita.  Gomes  Lourenço  ia 
desmaiando  visivelmente  daeôr  escarlate  da  corrida. 

—  "Acabemos  isto,  e  deixa-nos  passar"  disse  o 
senhor  de  Lanhoso,  em  tom  secco,  ao  seu  contrario. 

—  ii  Dás-me  a  mão  de  tua  irmã?"  insistiu  o  mo- 
ço alferes  com  firmeza. 

—  41  Não,  mil  vezos  não  !  Eeu  te  digo  porque.  A 
raça  d'onde  descendo  nunca  teve  covardes;  e  tu  és 
covarde.  Demais,  quando  o  meu  sangue  se  unir  ao 
teu,  has  de  vér  o  mar  era  Coimbra.  Deixa-nos  pas- 
sar, " 

—  "  Recusas?  " 

—  uMette-te  frade,  e  larga  a  espada." 

—  "D.  Martim  1  " 

—  "Já  que  o  queres,  aqui  tens  a  resposta.  " 

E,  descalçando  o  guante  ferrado,  atirou-o  ás  faces 
do  mancebo.  O  sangue  espirrou  na  cota  matizada 
decores.  Gomes  Ltjurenço  não  disse  nada.  Vibrando 
a  lança  curta  arremessou-a  direita  ao  peito  de  D.  Mar- 
tim. Este  siu  o  tiro,  e  es<|UÍvou-se.  O  venablo,  sil- 
vando nos  ares.  passou-llie  uma  linha  distante  do  la- 
do, e  foi  cravar-se  alé  meio  cabo  no  tronco  do  pri- 
meiro freixo. 

—  "A  pé,  fraco  villão  I  "  bradou  elle,  saltando 
abaixo  do  cavallo.  D.  !Marlim  fez  o  mesmo.  Os  ho- 
mens d'arnias  de  ambos  encontraram-se  lambem, 
mas  os  de  Lanhoso  pouco  tempo  disputaram  o  com- 
bate. 


Continuava  o  duello  dos  dois  caralleiros.  Emfim, 
de  um  golpe.  Gomes  Jjourenço  desarmou  a  D.  Mar- 
tim, ferindo-o  no  braço.  A  espada  caíu-lbe  da  mão, 
em  quanto  o  ferro  inimigo  descia  como  o  raio,  e, 
falseando  no  arnez,  assentou  o  frio  gume  mesmo  so- 
bre o  coração.  O  rico-homem  de  Lanho?o  sentiu  fu- 
gir a  luz  dos  olhos,  vergou,  desfalleceu,  c  ajoelhando 
uniu  as  mãos.  Foi  um  acto  de  fraqueza. 

Gomes  Lourenço  sorriu-se.  Abaixando  apontada 
espada,  disse  socegadamente : 

—  "  .Agora  estás  á  minha  mercê  ^  perdoo-te  a  vi- 
da. 1'údes  apanhar  aquella  espada,  que  é  mais  curta 
que  a  tua  lingua.  " 

Era  uni  desprezo  frio;  uma  vingança  nobre  e ge- 
nerosa como  a  alma  de  quem  a  tomava. 

D.  Marfim  íaa  levantar-se.  O  mancebo  surteve-o, 
pouzando-lhe  a  mão  no  hombro  : 

—  «Espera.  Oflereci-te  a  paz,  e  tu  escolheste  a 
guerra.  Vencido  como  estás,  ainda  te  digo  om^smo. 
Dá-me  tua  irmã,  e  fiquemos  amijos.  n 

—  "  l'<jdes  leva-la,  mas  eu  dar-t'a,  nunca  !  n 

—  "Obrigado  então;  queria-a  para  mulher,  e  tu 
entregas-m"a  sem  condiç<-)es.  D.  iSlartim,  o  teu  or- 
gulho precisa  de  melhor  lança  que  o  sustente,  n 

O  moço  Gomes  Lourenço  cumprimentou  então  o 
cavalieiro  inimigo  c»m  ar  de  escarneo,  e  partiu  pa- 
ra o  seu  castello,  levando  D.  Maria  Paes  no  raeio 
da  cavalgada. 

D.  Martim  ficou  immovel  por  alifum  tempo.  De- 
pois, livido,  com  os  olhos  roxos  de  fúria,  quebrou  a 
espada  em  duas.,  e,  fechando  o  cabo  no  punho,  gri- 
tou : 

—  .' Lembra- te.  Gomes  Lourenço,  de  que  ííiestc 
um  punhal  d'esta  espada  '.  " 

O  alferes  d"elrei  ja  o  uão  ouvia. 


AUMADURAS  NO  XIV  SÉCULO. 

O  TiiLATno  c  romance  modernos,  roubando  á  traça  |  mento  os  prrg.nminhos  das  tradições,  lerdas  c  feitos 
o  teu  património,  e  desenterrando  dopo  do  esqueci- 1  da  idade  media,  poicrara  cn\  scena  a  vida  publica  e 


o  PAINORAJIA. 


269 


a  vida  intima  dVssea  séculos  em  que  se  travou  a  luc- 
ta  da  barbaria  com  a  civilisação,  de  que  brotou  a  po- 
licia e  cultura  dos  nossos  tcn][)os.  A  guerra  era  então 
estado  permanente  da  sociedade,  e  por  isso  as  mini- 
mas  circumstancias  que  llie  dizem  respeito  tecm  sido 
exploradas  e  explicadas  para  completa  jntelligencia 
dos  dramas  e  narrações  em  que  figuram  usprincipes, 
os  paladinos,  e  os  malfeitores  da  epocha.  As  armadu- 
ras era  ponto  importante  para  taes  investigações,  e 
de  sobejo  estão  descriptas  as  dos  cavalleiros  e  outros 
guerreiros  principacs,  sem  escaparem  as  dos  povos  se- 
ini-barbaros,  que,  de  origem  septentrional,  se  acha- 
vam estabelecidos  nus  climas  mais  brandos  da  Euro- 
pa, nem  as  do  árabe  buliroso  e  mais  culto,  que  tem- 
perou a  rudeza  dos  costumes  das  nações  peninsulares. 

Tendo  já  tractado  por  vezes  este  assumpto  nos  pre- 
cedentes volumes,  damos  agora  um  specimen,  copia- 
do de  um  antigo  deseiího,  das  armaduras  das  classes 
inferiores  dos  exércitos.  Não  entendemos  por  estas  a 
inilicia  feudal,  composta  de  quantos  liomens  havia  nos 
senhorios  em  estado  de  pegar  em  armas.  Esses,  ar- 
rancados dos  trabalhos  rústicos  e  ordinários  da  vida 
para  os  campos  de  batalha,  não  tinham  de  ordinário 
outros  resguardos  e  armas  defensivas  mais  que  seus 
grosseiros  trajos,  e  o  capacete  e  colete  de  couro,  vin- 
do d'cste,  talvez,  o  notne  da  C(iura<^<i. 

Os  senhores  feiídaes  tinham  reconhecido  o  inconve- 
niente de  tropas  tão  mal  e<|uipadas,  ecomecarain  de 
alugai-  mercenários,  (jue  mantinham  em  seus  solares 
epresidios,  e([ue,  servindo  assalariados,  tiveram  a  de- 
nominação latina  de  scivienits,  da  <|ual  ofrancezfez 
a  palavra  scrytnls.  Eoi  esta  a  tropa  a  quem  seus  amos 
•proveram  de  armas  defensivas,  e  que  combatia  a  pé 
usando  do  arco,  béíta,  danlo,  adaga,  c  partazana.  A 
nossa  estampa,  desenho  contemporâneo  de  slniilhan- 
tes  militantes,  da  sufliciente  ideia  de  seu  equipamento. 


Ebcilla  e  Camões,    julgados  pok  A.    de 

IIUMBOLDT    COMO    I-INTOIIES    DA 

NATUREZA.     (1) 

Os  DEscoiiBiMENTos  dos  paizes  remotos,  além  dos 
diários  dos  navegantes,  produziram  mais  de  um  poe- 
ma épico  entre  as  naçõesque  primeiroentraram  n'es- 
ta  brilhante  e  ousada  carreira.  E  não  eram  aqui  ex- 
cedidas |)cla  realidade  as  licções  dos  antigos  poemas 
de  cavallaria.'  J'or  isso  os  aventureiros  hespanlioes 
tiveram  a  sua  Jliada,  a  Aiawana.  E  uma  extensa 
epopéa  histórica  de  um  poeta  guerreiro,  U.  .Monzo 
de  lOrcilIa  e  /íuniga,  o  qual,  no  reinado  de  Car- 
los V,  serviu  no  l'eru  e  no  Chili,  e  cantou  os  leitos 
em  que,  longe  da  sua  pátria,  tinha  tomado  parte  glo- 
riosa. Acha-se  em  todo  elle  um  nobre sentimcMilode 
liatriolismo  :  a  pintura  dos  coslumcs  d<!  umpovosel- 
Vageni,  que  suecumbe  nas  nKuitanhas  daAraucade- 
((•ndendo  contra  (js  hespar\boes  .a  independência  da 
sua  i)atria,  não  é  falta  d(.'  interesse,  n(!m  de  vida  : 
especialmente  os  condiates  são  pintados  com  uma  ver- 
dade, que  mostra  sempre  que  o  poeta  teve  parte  n'el- 

(I)  O' iiii|iiiiliuile  artigo,  ipie  loiíi  r>le  litul»  oITcre- 
ccinos  uo-í  lutsMiS  leitores,  *•  uui  ÍVaj;uii'nt(>  fio  .'i.o  volume 
tio  ailiiiiravcl  fb<i'i|tl(t  que,  <-oiii  o  nome  th*  CnsmoSy  eslu 
plililiiiniilo  o  (elelire  Al,  i .  ilr  l liiiiilm/i/t,  /;loiiii  ilii  A|- 
leniaulia,  iissiiii  |ielii  elevHi;ào  e  };raiiili'/a  ilos  seus  laleií- 
tus,  como  pelo  seu  innneiixo  e  |H'ol(mtlo  salier,  ijuasi  Nem 
e\ci-|ti^ào,  tni  todos  os  1'JUmos  dos  roíila-t  imnitos  liuiiuuios. 
l'ediliHis  uits  nossos  leitores  ipie  allend.iln  ji  i|ti<*  ooliieeto 
do  JIU4  lor  t^í\^^  e  la/er  mo  |tií/.o  eiitieo  dos  dois  jioenias 
epieos  mais  <  elehnk  ila  r<'iiinsula  liis|i.iiiicii  ;  iini.s  sonien- 
to  avaliar  a  inflnein  ia  (|ne  no  seu  mérito  iteseriplivo  ti- 
veram os  tiesetdtriínenlob  dtis  |>urtnv,ne/eH  e  dos  tiukpa- 
nlioei,  u  e>i>ucialiiU'iile  u  do   Auv.j  Mniiih. 


les ;  mas,  em  sumina,  é  unia  composição  histórica, 
onde  abundam  as  digressões  frias  :  a  dicção  épezada, 
e  quasi  sem  mostras  de  inspiração  poética.  Por  isso 
admirariam  os  elogios  que  Cervantes  faz  a  Ercilla 
na  espirituosa  revista  satírica  da  bibliotheca  de  D. 
(Auixote,  se  se  não  attendesse  á  emulação  apaixona- 
da que  reinava  então  entre  a  poesia  italiana  eahes- 
panhola.  Esemduvida  estejuizo,  muito  parcial,  que 
tem  induzido  a  erro  a  Voltaire  e  a  outros  muitos  crí- 
ticos modernos  sobre  o  merico  d'esta  obra.  Uma  cou- 
sa mais  que  tudo  admira  n'este  poema,  e  é,  quen"eE- 
le  Novo  Mundo  o  cscriptor  esteja  ainda  inteiramen- 
te preoccupado  de  recordações  clássicas,  e  queaquel- 
la  natureza  maravilhosa  lhe  não  inspire  nada  :  que 
nem  o  espectáculo  do  volcòes  cobertos  de  neves  eter- 
nas, nem  a  vista  de  formosos  valles  cobertos  de  ar- 
voredo, ou  aquelles  braços  de  mar  que  penetram  no 
interior  do  paiz,  nada  lhe  desse  occasião  a  umades- 
cripção  viva  e  original.  Nas  marchas  um  soldado  dis- 
corre sobre  Virgílio  e  a  morte  de  Dido,  sem  dar  at- 
tenção  ás  grandes  sccnas  que  o  rodeiam.  Se  o  poeta 
se  lembra  um  instante  de  descrever  o  paiz,  é  para  fa- 
zer um  árido  catalogo  de  nomes  geographicos,  sem 
lhe  accrescentar  um  epitiíeto  que  os  caracterise. 

O  poeta  portugucz,  Camões,  foi  mais  feliz  que  Er- 
cilla; e  com  verdade  eu  não  pusso  dizer  o  que  se  de- 
ve admirar  mais  na  sua  grande  epopéa  nacional,  se 
a  riijuez.i  da  imaginação  do  poeta,  se  a  singular  ver- 
dade das  descripções.  Não  é  a  mim,  por  certo,  que 
compete  confirmar  com  a  minha  opinião  o  juizo  do 
Frederico  tíchiegel,  que,  quanto  á  vivacidade  das  co- 
res e  á  maravilhosa  riqueza  daphanlasia,  põe  os  i/ií- 
siadna  muito  acima  do  poema  de  Ariosto;  mas  por 
certo  me  é  dado  accrescentar,  na  qualidade  de  ob- 
servador da  natureza,  que  nunca  houve  poeta  mais 
exacto  na  pintura  dos  phenomenos  naturaes  ,•  c  que 
em  neidiuma  parte  da  sua  obra,  nem  oenthusiasmo 
de  cantor  inspirado,  nem  oornato  da  sua  linguagem, 
nem  os  seus  melancholicos  pensamentos  o  fizeram  um 
só  instante  infiel  a  esta  espécie  de  verd.ide  [di^sica. 
A  sciencia  pude  acceitar  as  suas  descripções,  ao  mes- 
mo tempo  que  a  imaginação  é  arrebatada  pelas  suas 
pinturas.  E  realmente  o  céu  da  índia-,  sãoos  varia- 
dos aspectos  do  oceano.  Sente-se  em  todos  estes  can- 
tos, ou  já  escriptos  na  gruta  de  Macau,  ou  já  no  des- 
terro das  Molucas,  um  cheiro  endiriagante  de  fiores 
dos  trópicos.  O  auclor  viu,  ou  antes  observou,  e  ob- 
servou como  poeta.  l'or  isso  não  é  possível  ileixar  de 
notar  em  toda  a  ])arte  a  viva  phvsionomia  dos  gran- 
des quadros  da  natureza,  pintados  por  elle.  .Mas  on- 
de Camões  é  particularmente  inimitável,  é  nas  pin- 
turas do  mar  :  nunca  ningn<-ni  soube  melhor  perce- 
ber, nem  pintar  melhor  estas  mvsleriosas  harmonias 
«pie  reinam  entr(!  a  atmosphera  e  o  mar,  entre  as 
mil  coidormações  variadas  (|ue  tomam  as  nuvens  no 
céu,  na  successão  dos  seus  phen(uneiun  meteorológi- 
cos, e  os  diversos  aspectos,  ipie,  retiectimio-os,  appre- 
senla  a  superficie  do  oceano.  Ora  e  uma  doce  bri- 
sa (pie  lhe  encrespa  a  superficie,  enchendo-a  como 
de  carneiros,  o  destas  peipienas  vagas  ijuebradas  fax 
sair  brilhantes  faíscas  de  luz  que  alli  parece  mover- 
se  :  ora  é  a  tempestade,  com  lodos  os  seus  horrores, 
c|ue  se  levanta  em  roda  das  naus  de  Coelho  e  de  l'au- 
lo  lia  («ama,  u  solta  os  elementos  enfurecidos.  Toiio» 
estes  quadros  são  de  uma  verd.ide  palpável.  Camões 
tinha  poditiu  cstnilar  pausadamente  os  pheiíomiMios 
do  mar.  Soldado,  tinha  feito  a  guerra,  não  «lao  pt- 
do  Atlas,  no  iuteriur  de  I\larroe<'S,  iii.is  também  nai 
margens  do  Mar  \'ernn'lho  e  dotiolplio  l'er»ico  :  duas 
vezes  dobrou  o  Cabo  ilas  lurini-iitas,  e  eoiii  a  NUa  pai- 
xão tão  viva  jiela  natureza,  linha  podido,  em  «lo»e- 
seis  aniioa   de  soliilãu  nas  costas  dii  índia  u  da  (.'hi- 


270 


O  rAlSORA3IA. 


na,  observar  as  alternatives  do  oceano.  Nada  lhe  es- 
capa :  em  um  logar  descreve  os  pennachos  eléctricos 
do  fco  de  Santelmo,  que  os  pilotos  da  Grécia  cuida- 
Yam  ser  Castor  e  PoUux,  mas  a  que  elle  chama 

o  lume  vivo 

tiue  a  marítima  gente  tem  por  santo 
Em  tempo  de  tormenta  :  (1) 

n"o>itro  logar  é  a  tromba  assustadora  com  as  suas 
successivas  transformações  ^  e  se  vê 

levantar-se 

No  ar  um  vaporzinho,  e  subtil  fumo 

E,  do  vento  trazido,  rodear-se  : 

De  aqui  levado  um  cano  ao  polo  summo 

Se  via  tão  delgado  que  enxergar-se 

Dos  olhos  facilmente  não  podia:  i 

Da  matéria  das  nuvens  parecia. 

I 
la-se  pouco  e  pouco  accrpscentando,  i 

E  mais  que  um  largo  mastro  se  engrossava  : 
Aqui  se  estreita,  aqui  se  alarga,  quando 
Os  golpes  grandes  de  agua  em  si  chupava  : 
Estava-se  co'as  ondas  ondeando. 
Em  cima  d'elle  uma  nuvem  se  espessava, 
Fazendo-se  maior,  mais  carregada 
Co'o  cargo  grande  d'agua  em  si  tomada, 


Mas  depois  que  de  todo  se  fartou. 
O  pé  que  tem  no  mar  a  si  recolhe, 
E  pelo  céu  chovendo  emfrm  voou. 
Porque  co*a  agua  a  jacente  agua  molhe; 
A"s  ondas  torna  as  ondas  que  tomou. 
Mas  o  sabor  do  sal  lhe  tira  e  tolhe  ; 
Vejam  agora  os  sábios.   .   .    . 

a.ccre3centa  o  poeta 

GLue  segredos  são  estes  da  natura, 

I 
palavras  com  que  parece  dirigir-se  ainda  aos  sábios  ' 
de  boje,  que,  fundados  só  na  sua  inteliigencia  e  no  i 
seu  saber,  não  duvidam  tractar  de  visões  as  cousas  I 
que  ouvem  contar  ao  navegante,  que  só  tem  por  si  a 
experiência .  i 

!Mas  se  Camões  ésupcriormenteadmiravel naspin-  i 
turas  do  mar,  as  scenas  terrestres  não  lhe  chamaram  ! 
tanto  a  sua  attenrão.   Já  Sismondi  notou  com  razão  i 
que  em  todo   o  poema  se  não  acha  nenhuma  verda- 
deira pintura  da  vegetação   dos  trópicos,   e  da  phy-  ] 
tionomia  particular  das  plantas  d'aquellcs  novos  cli- 
mas. O  poeta  apenas  mencionou  algumas  plantas  nro- 
niaticas,  producròes  que  eram  objecto  decommercio.  ' 
O  episodio   da  illia  encantada  cnc"rra   um  delicioso 
quadro  de  paizagem,    mas  quadro  commum  e  clássi- 
co, (iuc  se  acha  n"elle  além  das  plantas  banaes,  com  i 
que  forçosamente  se  ha  de  ornar  uma  iUta de  lenus, 
murtas,    cidreiras,   limoeiros  odoríferos,  romeiras,  e  I 
outras  arvores  selvagens  na  Europa  meridional,  eaín-  i 
da   mais   nas   poesias   pastoris   d'aquella  epccha .'    0| 
poeta   n'este  logar  julça-se  infelizmente  oirrigado   a 
entrar  na  natureza  de  convenção   da  poc^ía  contem-  I 
poranca.  (2)  Uuanto  não  ba  emChristovam  Colom- 

(1)  Estas  palavras  acham-sc  nu  Connos  citadas 
em  porluguez. 

(2)  Sem  pretendermos  combater  as  opiniões  do 
illustrc  sábio,  e  ao  mesmo  tempo  sem  pretendermos 
achar  nos  Lusiados  perfeições  que  lá  não  haja.  de- 
vemos aqui  declarar  que  tondo  muílas  vezes  notado, 


bo  com  uma  observação  exacta  das  formas  da  ve^e- 
tacão  estranha  que  se  offerecia  aos  seus  olhos,  um 
sentimento  muito  mais  verdadeiro,  e  um  enthusias- 
mo  mais  francamente  p<jetico,  em  v  ista  de  nova*co5- 
tas  cobertas  de  bosques !  Mas  o  almirante  escrevia 
um  diário  de  viagem,  onde  consignava  diariamente 
as  suas  vivas  impressões,  ainda  mh  o  império  da  sua 
imaginação  abalada,  e  Camões  compunha  um  poema 
épico  para  immortalizar  os  feitos  dos  portuguezes, 
juntando  aos  factos  as  maravilhosas  creações  da  phan- 
tasia  poética.  Que  pintasse  o  oceano,  é  natural.  Os 
navegantes  luctam  com  o  mar;  é  um  combate  de  to- 
dos os  dias;  e  demais,  em  toda  uma  viagem  sempre 
ha  tempo  para  estudar  os  phenomcnos  mais  ou  me- 
nos terríveis  do  mar ;  mas  chegados  a  terra,  a  lacta 
é  quasí  só  com  os  homens;  a  zcção  que  se  trava  não 
deixa  ver  a  natureza.  A  paizagem  torna-se  um  fun- 
do de  quadro  a  que  se  i.ão  dá  importância,  quadro 
em  que  os  guerreiros  ou  os  mercadores  portuguezes 
animam  a  parte  principal.  Ainda  mais:  e  não  falta- 
vam as  palavras  para  pintar  a  natureza  nova  da  ín- 
dia? onde  buscaria  comparações  ou  epilhetos?  Adop- 
tará o  poeta  os  nomes  das  plantas  novas,  do  idioma 
bárbaro  dos  naturaes  do  paiz.'  Uma  dcscripção  labo- 
riosa, formas  singulares,  cousas  sem  nome,  não  po- 
diam deixar  de  repugnar  a  um  poeta  costumado  á 
sonora  harmonia  da  sua  língua  natural. 

Comtudo  não  deixou  Camões  de  ter  algumas  ve- 
zes singulares  ousadias  nas  grandes descripçues  pictu- 
rescas,  no  seu  tempo  muito  originaes ;  nem  deixou 
de  esboçar  em  linhas  ousadas  a  phvsionomia  geral 
dos  continentes.  E  assim  que  no  3."  canto  faz  uma 
pintura  rápida  de  toda  a  Europa,  desde  as  mais  frias 
regiões  do  norte  até 

Onde  o  sabido  Estreito  se  ennobrece 
Co*o  extremo  trabalho  do  Thebano. 

Mas  é  especialmente  aos  costumes  e  á  policia  do» 
povos  do  Meio-dia  que  elle  dá  raais  attenção ;  em 
breve  passa  pela  Prússia  e  pela  Moscovia,  nações  sep- 
tentrionacs, 

que  o  Rheno  frio 

Lava   (1) 

Para  chegar  ás  deliciosas  regiões  da  Grécia 

Que  creastcs  os  peitos  eloquentes 
E  os  juízos  de  alta  phantasia. 

No  10.°  canto  o  espectáculo  é  ainda  maior.  Tethys 
conduz  o  Gama  a  um  alto  monte  para  lhe  descobrir 
os  segredos  da 


crande  macbína  do  mundo. 


e  o  curso  dos  planetas  segundo  o  svstema  de  Ptolo- 
meu, que  então  reinava.  K  unia  vi>no  no  estvlo  do 
Danle.  Depois  de  ter  dcscripto  o  todo  do  universo, 
o  poeta  torna  ao  globo  terrestre  que  lhe  fica  no  cen- 
tro, e  expõe  então  tudo  o  queses;ibiados  paizesn*»- 
quelle  tempo  já  descobertos,  e  das  suas  producçõcs  ; 


como  Ilumboldt,  que  todas  as  plantas  que  aformc- 
seam  a  ilha  dos  amores,  se  encontram  em  Portugal, 
nos  tem  sempre  parecido  que  n*istn  houvera  um.v  in- 
tenção patriótica  no  pensamento  di>  poeta ;  conjec- 
tura que  não  será  inverosímil  para  quantos  titerrin 
admirado,  (e  certamente  são  lodos  os  que  teem  lido 
us  IjUsiadas)  o  extremado  amor  da  pátria  rmquesc 
abrazava  o  peito  di-  Camr.cs ;  c  que  ainda  maii  »« 
confirmará  com  a  explicação  que  se  \c  nas  estancias 
com  que  termina  o  cinto  U.°  do  poema. 

(1)      Tambcm  estas  p.nlavras  se  acham  cm  portu- 
guei  nu  (wtmos. 


o  PATSORA3IA. 


271 


aqui  já  não  é  súmente  um  mappiípicturesco  da  Eu- 
ropa, como  no  3."  canto;  é  um  quadro  de  todas  as 
partes  do  mundo,  sem  exceptuar  a  terra  de  Sancta 
('rua  (o  Brasil),  e  a  costa  descoherta  por. 

.   .  Magalhães,  no  feito  cora  verdade 
Portuguez,  mas  não  na  lealdade. 

Camões,  po^ito  (|ue  se  eiiceirasse  em  um  quadro 
clássico,  foi  um  dos  primeiros  que  abriu  caminho  a 
uma  poesia  nova:  o  seu  génio  percebeu  alguns  dos 
maravilhosos  recursos  que  um  inundo  novo  ainda  vi- 
nha dar  ú  poesia. 

Cabtas  ineuitas  de  Alexandre  deGismão. 

KitTBE  OS  nossos  cscriptores  políticos  occupa  logar 
distincto  Alexandre  de  (íusmão,  o  secretario  parti- 
cular de  D.  João  V.  l'ul)licaram-se  diias  collec(;ões 
das  suas  obras,  impressas  no  Torto,  uma  em  18il 
pelo  Sr.  J.  I\I.  T.  de  C,  e  a  outra  cm  18H.  Na 
primeira  vem  as  Itejlexõis  d^aquelle  illusire  brasilei- 
ro contra  0(jue  escreveu  o  brigadeiro  António  Pedro 
de  Vasconcello»,  que  havia  governado  a  Colónia  do 
.Sacramento,  a  respeito  do  Tractado  de  Limites  da 
Atnerica.  A  segunda  re|)roduz  a  IÍ.xpcsi'juo  dos  mal 
remunerados  serviços  de  Alexandre  de  Gusmão,  im- 
pressa no  1."  vol.  do  antigo  Panorama,  pag.  155  e 
IGG.  Compreliendo  também  esta  cullccíjão  uma  .//)o- 
logia  do  mesmo  Tractado,  publicada,  pela  primeira 
vez,  no  7."  vol.  do  Panorama,  com  os  elogios  cor- 
respondentes ao  valor  liltcrario  e  politico  d'ebte  dis- 
curso. 

Lê-se  no  prefacio  da  1  .^  Collecção  ;  u  A  resposta 
ao  brigadeiro  António  Pedro  de  Vasconcellos,  relati- 
vamente á  conveniência  dos  Tractados  dos  Ijiniites 
da  America,  que  vieram  pôr  termo  ás  continuas  desa- 
venças entre  Portugal  e  a  nação  visinha,  é  obra  do 
muito  primor,  &e,  Ahi  apparecem  grandes  conheci- 
mentos topograpliicos  do  paiz,  do  seu  commercio,  das 
•uas  relações,  das  suas  vantajosos  posições,  dos  seus 
futuros  melhoramentos,  e  de  tudo  quanto  importava 
á  prosperidade  e  quietação  da  sua  pátria." 

Tildo  isto  6  certo,  o  prova  o  grandíssimo  talento 
"ioauetor,  que  assim  sobrosaía,  defendendo,  no  ulti- 
mo quartel  da  vida,  opiniões  contrarias  á  sua,  que 
«dle  desejou  revelar  á  posteridade,  já  que  o  não  po- 
dia fazer,  sem  perigo,  aos  con1eni|)oraneo3. 

Chegou  o  tempo  d'cste  louvável  desejo  ser  cum- 
prido, de  SB  fazer  uma  revelação,  talvez  não  inútil 
a  nossa  historia  diplomática. 

Entra  na  eollccção  manuscripta  que  temos  de  al- 
gumas das  obras  de  Alexandre  de  Gusmão,  a  Apolo- 
gia do  Tractado  de  lyimit(ís  :  uma  nota  marginal  de- 
clara ter  si<lo  feita  por  ordem  do  governo.  Segue-íe- 
llie  a  iin|nignação  do  papel  do  brigadeiro  V.-sconeid- 
los  com  esl\)utra  nota  no  fim:  n  Gusmão  foi  obriga- 
do a  fazer  eslis  piipeis,  e  os  fez  contra  sua  vontade, 
i!  por  isso,  poílo  (jiie  em  segredo,  desabafou  coin  a 
seguinte  caria,  que  logo  depois  escreveu.» 

I'^is-a(|ui  acarta,  copiada  da  minuta  por  leltrade 
-Mcxandie  do  Gusmão,  o  as  outras  a  (jue  allude. 

Sr.  1\1.<I  l'.r.''  de  K.^ 
Ill'  bem  verdade,  que  fiz  bua  tal,  ou  (piai  Apolo- 
gia ao  Tractado  di'  Limiles  da  America,  e  lambem 
liila  refutação  ao  Piip(!l,  contra  o  nii'smo  Tracliiilo, 
<piu  escreveu  António  l'eilto  de  Vasconcellos  goviT- 
naihir  (pi«í  foi  daCoUonia  :  nunca  escrevi  niaisinvo- 
lunl.irio,  mas  como  foi  por  ordem  superior,  estou  per- 
suadido, (pie  não  devo  ser  easligailo.  1)  que  não  oba- 
tante,  logo  mo  desforcei,  escrevendo  «  esse  res[)eilo, 


o  que  se  achará  nos  meus  Papeis,  se  acaso  houver 
quem  os  lêa  :  reporto-me  a  Jl.r  Lapin  (»),  que  sa- 
tisfará a  V.  M.,  mas  digo  finalmente,  que  se  não  ti- 
vera m.'  e  f.os  nunca   passara  por  este  trabalho. 

Logre  V.  m.  boa  saúde,   e  toda  a  sua  casa,  e  te- 
nha-me  sempre  na  sua  graça,  porq.  sou 


O  portador  leva  a  co- 
pia da  carta  de  mimo 
de  agradecimento  da 
Apologia,  e  também 
a  minha  resposta. 


De  Vra.ce 
Adj.°  m.to  obrig.°  em. to  v.or 
A .  de  G . 


Copias  dtis  carias  concernenlei  ás  Memorias 
sí  cretas . 

(Carta  de  ÍSuno  da  Sylva  Telles  para  Alexandre 
de  Gusmão.) 

Síír.  Alexandre  de  Gusmão. 
Ainda  hoje  chegarão  a  esta  casa  as  copias  dos  dois 
Papeis,  que  V.  S.'^  doutamente  escreveo  em  defensa 
do  Tratado  de  Limites,  Tratado,  que  tantos  desgos- 
tos nos  tem  causado.  E  como  V.  S.'^  com  esta  sua 
Apologia,  c  defensa  do  Tratado,  defende  ao  mesmo 
tempo  a  honra  da  nossa  familia  :  eu  lhe  rendo  as  gra- 
ças, eolfereço  em  nome  de  toda  ella  esse  annel,  que 
se  deo  ao  embaixador  por  brinde  da  negociação  do 
mesmo  Tratado,  afíiançando  a  ousadia  desta  minha 
oflerta  com  a  fé  da  nossa  antiga  amizade.  Desejo  a 
V,  S.''  a  mais  feliz  sa^de  e  estimarei  ter  muitas  oc- 
casiões  de  poder  empregar-me  em  servir,  e  dar  gosto 
a  V.  S.''  Deus  guarde  a  Pessoa  de  V.  S."'  muitos 
aunos.  Casa  em  10  de  Maio  de  1750. 

De  V.  S.-' 

Ven  .or  Cap.to  c  fiel  Servidor 

Nuno  da  Silva  Telles. 

(Resposta  de  .\lexandre  de  Gusmão.) 

111."'"  e  R.ni"  Sfir. 
Pelo  mesmo  portador  da  Carta  receberá  V.  S.^o 
annel  imprópria  caixinha  em  que  elle  vinha  :  líu 
não  quero  dar  a  V.  S."  a  resposta  que  merecia  esta 
sua  olferta  ;  considere  V.  S.'^  com  attenção  os  moti- 
vos (jiie  me  farião  lembrar,  pois  cu  sei,  <jue  os  não 
ignora,  e  persiiada-sc  V.  S."  que  ma  embargou  a  nos- 
sa antiga  amizade,  olirigando-me  a  fazer-llie  este  sa- 
crifício. Fico  para  S(;rvir  a  111.'"''  Pessoa  de  \.  S.", 
a  quem  dez<'jo  saúde  com  felicidades. 

Deus  guarde  a  V.  S.''  escrita  em  10  de  Maio  <lc 
1750. 

]leija  as  Mãos  de  V.  S." 
Seu  m.lu  Veii.or  c  alfect."  Crd." 

Alexandre  de  Gusmão. 
(  Continua.) 

\\i   miiiTo   no  \ivo  AO  1'iNrAno. 

(ii'\Ni>o  O  melodrama  reinava  no  tlieatro  do  Pano- 
rama Draniatico,  que  já  não  existi',  lembraraiii-sio 
di:  põr  em  scena  u  acção  estupenda  d'um  pastor  ciiainn- 


(«)  ntuiMiel  Cwelliu<lel,iimir»uliiihu,  dr)|neiii  hcrtl-H- 
itius  viiIcH  pnpeis.  ,\lt'\,  th'<>.  falia  nelle  iiii  ^l.'*  r;irl«  díri- 
(;iila  II  Mialiiiho  Vellio  iluUeihu  Oliioul^er,!;.  1."  fullff.. 


272 


O  PAJNORAMA. 


mado  Pourril,  o  cjiial,  por  alguma;  moedas  de  ouro, 
se  confessou  riu  d'iim  crime  que  não  commettêra. 
1'ara  í|ue  a  illusão  fos^e  perfeita  queriam  fazer  tudo 
ao  livo,  e,  desprpzaiidi)  os  polires  carneiros  de  pape- 
lão esarapilheira  pintada,  que  até  alli  tinham  feito 
tão  bom  servi(;o,  foram  em  cata  d'um  rebanlio  de 
carneiros  de  carne  c  osso,  que  obedecesse  ao  som  da 
gaita   capadcira. 

Lmas  vinte  crcaturas  lanzudas,  mansas  como  bor- 
regos que  eram  ou  tiidiam  sido,  foram  cscripturadas 
(já  se  sabe,  por  intervenção  d'nm  emprezario,  que 
sempre  esta  gente  acode  quando  ha  lã  que  se  possa 
tosquiar)  para  realçarem  o  espectáculo  ^  com  a  obri- 
gação de  comaijrarem  crclinivamenlc  o  seu  taludo 
ao  thcatro  a  que  se  ligavam. 

O  cuiprczario  metleu  na  algibeira  o  diuheiro  do 
sjusle,  deu  ao  seu  lobanlio  uns  !;rãos  de  milho,  di- 
íem  as  más  línguas  que  avariados,  ctrouxe-o  ao  en- 
kaio.  fiue  docilidade  nos  iJíbiiiaidcs .'  iam  para  onde 
os  loVavam.  O  contra-regra  não  cabia  em  si  decon- 
lente. 

Chegou  o  dia  ou  a  noile  da  primeira  representa- 
ção (no  theatro  faz-se  da  noite  dia  c  do  dia  noite)  ^ 
o  rebanho  saiu  detraz  dos  bastidores  n"uma  desor- 
dem que  parecia  reconimendada,  ensaiada, /tíía  de 
propósito.  Balou  em  choro  sem  desaliuar  muito,  e 
formou  um  j)icturcsco  tahlcciu  á  roda  do  pastor. 

Os  animacá  sempre  sãoapplaudidos.  Uma  trovoa- 
da de  )>almas  abalou  as  paredeõ  da  casa.  Ninguém 
tinha  ])revisto  o  elleito  que  podia  produzir  oestron- 
do  da  (jrididCiO  do  respeitável  em  miolos  de  carnei- 
roí  O  (jue  ó  o  dcscíjstumc '.  As  fileiras  da  carneira- 
da  desordenaram-se,  do  meio  d'ellas  saiu  o  balido 
de  —  sahe-se  quem  jioder  —  e  o  corpo  pòz-se  em  de- 
bandada. O  carneiro  mais  iíitrepido  na  fuga  chega 
á  bocca  da  s;;ena,  e  atira  comsigo  acima  da  orches- 
tra  ;  os  outros  enfiam  atrazd'elle.  Não  ha  pincel  que 
descreva  o  reboliço  que  este  assalto  fez  n\ima  frisa 
cheia  de  senhoras.  IVão  ha  expressões  que  pintem  as 
j;argalhadas  dos  espectadores,  os  gritos  dos  cercados, 
as  pragas  dos  músicos,  quo,  armados  de  rabecões,  d\ar- 
cos,  de  rabecas,  de  trombones  e  de  fagotes,  defcn- 
iliain  a  orchestra  da  invasão,  a  todo  o  transe. 

A  peleja  durou  mais  de  duas  horas  ^  á  guarda  do 
theatro  e  mais  dois  ou  três  moços  do  açougue  deu- 
Ihe  agua  pela  barba  para  conduzirem  o>  sublevados 
ao  curral. 

No  dia  seguinte  não  tiveram  outro  remédio  senão 
tornar-se  aos  papelões,  que  sempre  prestaram  para 
muito. 

I'vii0^  V  LIN-V    ou    ALCOD.to-rOLVOllA. 

Depois  do  1.*^  artigo  (inserido  no  Panorama,  pag. 
179)  fizerani-se  á  Academia  das  Scií-ncias  de  l'ari5 
importantes  cominunicaçõcs  acerca  da  preparação, 
ofleitos,  o  inconvenientes  da  nova  pólvora,  de  que 
vamos  (lar  uma  nolicia  succinta. 

l'riparii(^uo.  —  Não  é  necessária  a  immersão  repe- 
lida do  algod.u)  na  mistura  de  acido  nitrico  esulpliu- 
rico,  que  se  tinha  indicado,  nem  quo  elle  fique  um 
quarto  de  liur.i  dentro  ilo  liquido,  t)  celebre  chinii- 
co,  Mr.  l'a^cn,  estudou  a  maneira  de  exitar  os  dg- 
itastrcs  <|Ue  podem  iicontecer  na  preparação  da  pyro- 
xylina,  piincipalmenle  quando  as  quantidades  são 
grandes,  e  parece  que  resolveu  este  problema.  No 
seu  relatório  assignala  os  perigos  que  resultam  de  não 
ficar  o  algodão  bem  coberto  do  acido,  e  rccommen- 
da  que  a  iuimersão  seja  completa,  assegurando  que  não 
l;a  inconveniente  em  que  o  algodão  sv.  conserve  no 
lirpiido  quarenta  c  oito  horas.  Conhecendo-sc,  po- 
rúm,  que  nem  temprc  dava  bom  resultado  a  prepa- 


ração da  pyroxylina  feita  com  a  mistura  dosdoisaci- 
dos,  aconselhou  ^Ir.  Milton  a  Mr.  Gaudin  que  pu- 
zesse  o  algodão  de  molho  n^uma  mistura  de  porções 
determinadas  de  acido  sulphurico  edeazotato  de  so- 
da ou  de  potassa.  A  praclica  provou  que  se  não  ti- 
rava proveito  do  azota  to  de  soda,  e  as  experiência» 
de  Mr.  Gaudin  habilitaram-n'o  para  publicar  um 
processo,  que  a  elle  lhe  parece  infallivel,  para  pre- 
parar a  nova  poKora,  com  toda  asua  força,  nosmail 
pequenos  locaes. 

u  l'ulverisai  salitre  refinado  ordinário  (desseccado 
ou  não  desseccado),  mas  yuc  não  esteja  himido,  e 
de[iois  de  o  metter  n'um  vaso  de  vidro  ou  de  porce- 
lana, junctai-llie  bom  acidosnlphurico  concentrado  do 
commercio  (acido  monohydratado)  mexendo  a  mis- 
tura com  uma  vareta  de  vidro  ou  de  pau,  de  modo 
que  forme  umas  papas  raras;  passados  alguns  minu- 
tos, quando  a  mistura  tiver  outra  vez  engrossado, 
junctai-lhe  mais  acido  sulphurico,  até  que  o  todo, 
bem  misturado,  tenha  a  consistência  d'um  xarope; 
depois  deita-se-lhe  dentro  o  algodão,  o  papel,  o  tra- 
po, &c.,  conchegando-o  bem.  Q.uasi  sem  demora  se 
fará  em  massa,  e  ao  cabo  de  um  quarto  de  hora  melte- 
reis  o  vaso  dentro  d'agua  para  dissolver  o  sal  adhercn- 
to-,  por  ultimo  lavareis  em  muita  agaa,  eseccaicomo 
é  costume.  " 

O  algodão  curto  é  mais  barato  e  dá  melhores  pro- 
dnclos  que  oalgodão  comprido,  segundo  o  parecer  de 
]\1M.  Combes  e  Flandia. 

Enxtigo.  —  Esta  operação  é  muito  perigosa,  e  re- 
quer por  tanto  que  haja  muita  cautela,  quer  se  tra- 
cte  do  algodão  pólvora,  quer  do  papel  azotJco ;  não 
convém  que  se  accelere  aquecendo  o  ar  por  meio  de 
brazeiros,  mas  pede  a  prudência  que  se  faça  era  es- 
tufas cuja  temperatura  seja  constante  e  muito  mode- 
rada. Mr.  Piobert  fez  ver  que  uma  corrente  de  ar 
quente  inllamma  muitas  vezes  o  algodão  azotico  em 
menor  temperatura  que  adelOU".  Por  estaoccasião 
expoz  Mr.  Paven  que  existiam  talvez  muitas  causas 
de  inílammação  accidcntal,  mas  que  estava  provado 
que  as  correntes  de  ar,  mesmo  aquecido  com  mode- 
ração pelos  caloriferos,  fogões,  ou  brazeiros,  podiam 
inflammar  o  algodão-polvora,  em  quanto  que  a  py- 
roxylina,  posta  em  contacto,  no  seu  laboratório,  com 
paredes  delgadas  de  metal  ede  porcelana,  aquecidas 
pelo  vapor  d'agua,  nunca  se  inllammou.  Nuvasex- 
periencias,  feitas  por  este  chimico  em  companhia  de 
alguns  dos  seus  collegas,  confirmaram  queascorrcn- 
tcs  de  ar,  aquecidas  por  meio  de  chapas  metálicas 
ou  partdes  de  alvenaria,  inllaromam  oalgodão,  por 
mais  cautela  que  haja  em  que  a  temperatura,  ter- 
mo médio,  não  passe  de  2o  a  30"  ;  o  que  nunca  suc- 
cedeu  toda  a  vez  que  a  dessrccação,  aliás  mais  prom- 
l)ta,  se  fez  em  temperatur.i  próxima  á  de  100",  trau»- 
mitlindo-se  o  calor,  produzido  pelo  v-^jpor  ou  pela  agu.t 
a  ferver,  ás  superlieeis  metálicas  ijue  elevam  a  tem- 
peratura do  ar  ou  do  algi^dão. 

l'arecia  por  tanto  que  uHia  estufa  de  corrente  de 
ar,  aquecida  a  30  ou  36"  pela  circulação  d*agua  ou 
do  vapor,  preencheria  as  condições  de  segurança; 
com  tuilo  Mr.  tiandin,  j»ersuadido.  cum  raíão,  que 
do  fabrico  do  algodão-|>oKora  se  deve  proscrever  «' 
emprego  de  todo  o  calor,  procurou  descobrir  um  moio 
de  seccar  de  prompto  e  a  frio,  em  uma  camará  fe- 
chada, cheia  »le  cal  viva  pisivda,  c  a  que  exirahe  c 
ar  um  ventilador  helicoide  :  oalgodão  que scjwrleo- 
de  seccar,  mclte-se  dentro  d'umn  mangueira,  i-ons- 
truida  de  modo  que  ojlra\e««a  uma  corrente  conti- 
nua de  ar  secco,  a  qual  lhe  vai  tirando  ahumid.-vde 
em  porporção  do  augmenio  da  temperatura  ambien- 
te, ato  SC  converter  to«la  a  cal  viva  em  hydraío  pul- 
verulento. t'u;iiinua.) 


35 


o  PANORAMA. 


273 


o  FUAROL  SE  BREBAT. 


A  coNftTniTfjÃo  <!os  |)liíiroc8  em  iios§os dias  tom  che- 
gado a  i;r;iiiiíe  iiii'^e  de  a[)errei<,'uanienl() ',  seiulo  unia 
iiecesiidadc!  rccoiiliecida  para  licncficio  d^  iiavegaí^ão, 
prodigiosiltntiiti'  se  Um  inu!ll|ilicadi)  em  Iodas  as  cos- 
tas iiiaiiliinas  ainda  as  iiiait  liravids  e  af.istadas.  N'at- 
giiiiias  il"eslas  i.'oiistruc(,ò(S,  icí|Ucrcndo  Ioda»  ellas  so- 
lidei, (te  leni  |ioilii  unia  cerla  niai^nilieencia  ailapla- 
úa  á  iialiiieza  de  sirniilianlcs  obras  :  dos  inai)  notá- 
veis que  iit  devem  á  urle  moderna,  acliar-sc  hão  no- 
ticias e  dfsenlios  em  as  nossas  precedentes setic»,  co- 
mo o  de  ('ordoiian,  o  du  Hcllrock,  o  de  Kdd^btone. 
A  gravura  cjne  aduriia  o  fronlispitio  do  presí-ule  nu- 
mero, rcprescnia  o  pliaruj  provis<irio,  li'VHiitail()  na 
illia  dellréliat,  eusla  lie  l'"ran(;u,  eas  acconunodarõts 
(jue  se  rueriim  para  os  operários  «jue  trabalharam  nu 
pliarul  permanente,  já  concluido  e  que  disputa  pri- 
maria a  liidiis,  pilas  dinicniilaiiis  nascentes  da  Mia 
posição,  e  por  ninit.is  parlicLdaridadcs  na  con^true- 
eão  do  edifirio.  .lu^lamiMitc  se  dirá  ijuo  não  tem  ri- 
val, poripie  os  dl'  Iblle  rock  e  Kddjstone,  acima  mrn- 
eiunados,  de  ipie  se  jactam  os  in'j;lt  /.is,  estão  lon.;e  d'a- 
(JUellas  propiirçiics  luonumenlaes.  l'"oi  o  seu  en^eniiei- 
ro  M.  Ui'^naii<i,  depois  nomeado  pror('>»iir  da  esclio- 
lil  pol^  leclinica.  —  'r<'m  esta  simples  inscripeão. — 
Kflf  cilificU,  cuwiriitiu  im  íbHiJiii  aciihiulo  I  III  IbijQ, 
rtmaiiiío  //iiii   Vilijijie.  — ■ 

O  illieu  de  Hrilial  é  um  penhasco  em  siliiaeão  tem- 
pcttuoia,  tituudo  ijuasi  u  trei  léguas  Jui  rovhusc  rei- 

Tomo  I.  — Ouhuuo  2í,  1857. 


tinj^as  t/fs  licnxix.  —  Eram  assai  reconhecidi)5  os  pe 
ri|;os  e  difficuldades  qne  ollerece  a  navec;ajão  nacosln 
do  norte  da  Bretanha,  ao  desembocar  do  !;olpho  im- 
portante que  se  dilata  entre  esta  península  e  a  dj 
Cotenlin.  Tractando-se  de  obvia-los  procedeu-sea  uru 
inquérito  para  conhocer-se  qual  deveria  ser  a  locali- 
dade do  phanil,  se  ao  norte  ou  ao  sul  do  passo  estrei- 
to que  os  navios  iVequentam  entre  os  cachopos  de  Uo- 
quedouve  e  os  de  lléaux  de  Bréhaf.  t>  resultado  de 
um  nttcnto  e  prolongado  exame  foi  preferirse  csli» 
ultimo  local. 


Oní 


>    VGLIIO    N.VO    CA  JCri  . 


(RotDince  Ilinorioú  ) 

IV 

Suvtm  e  ettreUa. 

I'"ii\  .1  tarde  do  terceiro  dia  depois  <jue  liomes  Iioo- 
reni;ii  comniettèra  o  rapto  de  Mana  Vm-  l''.iicerri- 
da  n'iiin  aposento,  guardada  com  vii;ilancia,  mu> 
cercada  de  respeitos,  em  todo  este  tempo  a  altiv.i 
ilania  cada  \it  sentia  maior  pciar.  K.m  vei  do  dimi- 
nuir aii;;meiilava  a  sua  djr. 

D.  Maria  linhn  aindu  tuda  o  vi^oto  lustre  da  mo- 


274 


O  PANORAMA. 


cidade.  Não  era  a  flAr  tenra,  (]iie  de  mimosa  se  des- 
pega',   era    a    roía    feita,    aberta,    e  luxuriante,    que  ' 
nasceu  helia,    cresceu  forte,   e  sente  a  vida  e  ama  a  j 
lur..  As  formas  airosas,  o  talhe  esbelto,  o  corpo  flexi- j 
vel  como  haste  de  junco  novo,  realjavam  pela  graça 
a  imiuensa  nobreza  da  phisionomia.  Os  cabellos  pre- 
tos,  ora   em  espiras  ondadas  fugiam   da  rede  d'ouro 
e  seda,   ora  soltos,  folgavam  brincando  com  o  seio  e 
pelos  hombros.    Era  uma  belleza  regular,  mais  seve- 
ra que  branda,  como  a  representa  ás  vezes  a  esculp- 
tura  grega.   Os  olhos,  lambem  negros,  e  tiio  negros, 
que    cegava    o    brilho  delles:,    na  rara  transparência 
da   sua  chíunma,  quando  queriam,   sabiam  dizer  tu- 
do—  ou  lhes  luzisse  a  rápida  faísca  das  paixões,  ou  a 
languida  esperança  chorasse  n'elles. 

Ninguém  diria,  vendo-a  —  "Assim  foiaformosu- 
ra  da  antiga  Vcnus  Idalia.  "  —  A  elegância  n'ella 
era  viril,  e  o  garbo  soberano;  e  o  que  recordava  era 
o  typo  da  fragueira  virgem  dos  bosques.  Uni  roma- 
no que  a  apercebesse,  gallopando  com  as  tranças  li- 
vres ao  duudejar  da  aragem,  falcão  em  punho,  e  as 
pregas  do  saio  verde  inchando  na  carreira,  excla- 
maria logo  —  11  E  Diana  —  a  deusa  caçadora!  " 

E  linda  como  Diana  c  que  ella  p:'ssava,  acct-sas  as 
faces  no  ardor  da  caça,  levando  a  buliçosa  alegria 
de  pagens  e  donzellas  atraz  de  si  ;  o  latir  das  mati- 
lhas, o  vozear  da  inoularia  adiante ;  e  d^espaço  a  es- 
paço reboando  o  som  da  buzina  de  prata,  ora  pela 
coroa  dos  montes,  ora  pelas  quebradas  do  valle. 

E  foi  assim  que  o  moço  Gonies  Lourenço  a  viu 
correr  ao  lado  de  Sancho  I,  uma  tarde  de  maio, 
d'aquellas  risonhas  tardes  que  dá  o  céu  da  Penínsu- 
la, e  se  respiram  ás  margens  do  Mondego.  D'esse 
dia  em  diante  nunca  mais  a  poude  esquecer.  Alli 
nasceu,  e  d'alli  medrou,  banhado  de  lagrimas,  o  in- 
feliz amor  lio  amigo  do  infante  D.  AíTonso.  A  ini- 
mizade que  bebera  com  o  leite  da  infância  \  o  ódio 
que  lli^ensinaram  a  balbuciar  com  as  primeiras  pa- 
lavras ;  o  orgulho  da  sua  raça,  que  entrava  com  o 
sangue  das  veias  no  âmago  do  coração,  fundiram-se 
para  sempre  á  luz  d^aquelles  olhos,  um  momento 
fitos  n'elle,  no  perpassar.  O  homem  de  Riba  Dou- 
ro, o  neto  dos  Viegas  de  Salzedas  acabou  alli.  Na 
alma  só  lhe  morou  um  desejo  único  —  o  de  apertar 
ao  peito  o  anjo,  que  fugira  como  visão  celeste,  e  com 
elle  nos  braços  perder  o  nome,  a  família,  e  Deus 
até. 

De  noite,  em  sonhos  que  enlouqueciam,  appare- 
cia-lhe  de  rejiente.  Na  vista,  como  llie  sorria  a  mei- 
guice do  amor!  tiue  doce  balia  nas  faces  a  respira- 
ção suave!  Sentia  arder  nos  lábios  o  primeiro  beijo, 
sentía-o  di^pois  queimar  na  alma.  (Aue  dòr  atroz, 
quando,  passando  os  dedos  convulsos  pelo  rosto,  hú- 
mido dos  seus  prantos,  a  verdade  lhe  dizia  que  a 
imagem  dos  seus  desejos  se  reclinava  no  seio  d'ou- 
tro  tão  feliz!  Então  o  ciúme,  assentando-se  á  cabe- 
ceira, insitiuava-lhe  o  veneno  d'iiqiielles  olhos,  es- 
trangulava-lhe  os  suspiros  no  laço  dos  cabillos  pre- 
tos, e  cortava-lhe  a  alma  com  inveja  de  tanta  bel- 
leza, que  era  d'outro,  de  quem  nem  sequer  ousa- 
va proferir  o  nome  nu  segredo  mesmo  das  veladas 
noites. 

Assim  correram  os  mezes  e  pasmaram  o"  aniuts, 
sem  descatiço  ii'aquella  fadiga,  nem  retrii;erio  a  ta- 
manho martvrio.  .\  amizade  dd  Egas,  seu  irmão, 
tinha  sido  até  alii  um  culto  para  a  sua  .ilma  ',  des- 
pi'gou-se  também  essa,  como  a  nltinui  folha  cáe  á 
llòr  morta.  Condemiiado  a  recolher  silenciosamente 
no  coração  as  lagrimas,  a  fi'char  n\'lle  o  amor.  .1 
desespernção  e  o  ciiime,  entre  os  humens  e  no  mun- 
do, era  sombra  do  que  fi^ra.  No»  olho,  só,  n'esse 
verdadeiro  espelho  do  espirito,  é  que  ainda  não  mor- 


rera. Lá  vivia  concentrada,  indomável,  a  fatal  pai- 
xão que  o  consumia.  O  que  elles  fallavam,  mudos  ; 
o  que  choravam,  enxutos  ;  o  que  no  rápido  fuzilar 
d'um  momento  sentiam  e  revelavam  ;  nunca  o  sou- 
beram entender  os  que,  vendo  o  cavalleiro  deSalte- 
das  tão  diflerente,  perguntavam  se  alguma  fada  lhe 
dera  encanto,  para  elle  envelhecer  de  quarenta  an- 
nos.  A  amizade  de  Egas  talvet  suspeitasse  a  desgra- 
ça do  cavalleiro  —  o  que  não  adivinha  o  coração  de 
um  irmão?  Mas  se  adivinhou  fui  di»creta  —  soube 
occulta-la. 

E  D.  Maria  Paes?  também  essa  a  perceljeu.  Não 
é  possível  ser  mulher,  e  por  muito  tempo  ignorar  o 
amor  que  nos  acompanha  a  toda  a  parte.  Por  ios- 
tincto,  a  irmã  de  Martim  l'aes  foi  a  primeira  a  de*- 
cobrír  a  lunda  melancholia  do  mancebo,  e  a  pene- 
trar o  motivo  d"ella.  Leu-a  nos  olhos,  que  a  fitavam, 
se  cuidavam  escapar  aos  seus,  e  esmoreciam,  tími- 
dos, apenas  »e  cruzava  a  vista.  Viu-a  nas  faces  pal- 
lidas,  que  se  affrontavam  de  vivas  cores  ao  encontra- 
la  de  repente.  Em  tudo  a  lurprehendia  ;  —  na  ter- 
nura da  NOZ,  na  hesitação  dos  olhos,  na  incoheren- 
cia  das  palavra».  Em  vez  de  reprimir,  a  dama  alti- 
va animou  por  leves  favores  o  incêndio,  em  que  se 
gastava  a  vida  do  triste  cavalleiro.  Era  orgulho,  ou 
era  calculo  vingativo?  Se  foi  um  ou  se  foi  outro,  o 
segredo  a  ninguém  o  disse  —  mas  bem  cedo  teve  de 
se  arrepender.  O  primeiro  fructo  culheu  o  nocastel- 
lo  d'Avellans-,  o  segundo,  o  mais  amargo,  custoo- 
llie  lagrimas  e  remorso»  eternos. 

Tudo  isto  a  opprímía  de  terror  no  alcaçar  de  Go- 
mes Lourenço.  Nas  mãos  do  homem,  de  quem  es- 
carnecera o  amor,  convertcndo-o  em  recreio  das  ho- 
ras vagas,  D.  Maria,  ofTendida,  ultrajada,  mais  da 
uma  vez  resistiu  a  tentação  de  se  precipitar  no  leito 
de  pedras  do  valle  que  se  torcia  em  baixo.  Não  me- 
nos altivo,  o  cavalleiro  de  Salzedas  contínha-se,  dí»- 
farçando  a  sua  paixão.  Nas  breves  e  curtas  palavras 
que  tinham  trocado  distinguiu  ella  a  vontade  impe- 
riosa da  aborrecida  casa  de  Riba-Dourn.  Por  instan- 
tes uma  duvida  cruel  passava-lhe  pela  ídéa,  fulmi- 
nando-a.  Aquelle  amor,  de  que  tinha  imaginado 
zombar,  seria  um  laço,  como  o  falso  ajrado,  o  trai- 
çoeiro rizo  de  que  ella  o  embalara?  A  vingançave*- 
tia  as  cores  da  paixão  para  ferir  mais  certa  ?  Suppo- 
lo  era  enlouquecer.  Lm  rapto  só  para  infamar  a 
nobreza  de  uma  dama,  era  a  injuria  mais  atrut  da 
todas. 

Sombrias  como  estas  eram  todas  as  suas  reSexõet 
nos  dias  que  durou  o  captiveiro.  Na  tarde  em  qua 
estamos,  antes  do  pòr  do  sol,  ouviu  descantar  debai- 
xo da  torre.  Com  que  alvoroço,  ao  debruçar  se  da 
janella,  conheceu  o  escravo  mouro  de  seu  irmão! 
Não  a  tinha  esquecido.  La  fora  havia  quem  traba- 
lhasse para  lhe  restituir   a  liberdade. 

D.  Maria  repeliu  as  ultimas  palavras  da  c.inti;a, 
e  o  pagem,  olhando  p.ira  cima,  mostrou  um  rami- 
Ihele.  Creaiios  por  uma  velha  africana,  os  dois  ir- 
mãos aprenderam  d'elU  a  puelici  língua  dos  jardins. 
O  ramílhelc  subiu  por  umaeurdão,  ceom  as  me«m.i» 
llòres  se  coinpoi  a  resposta  ao  recado  svmbolico.  O 
escravo  upanhou-as,  e  desappareceu.  Momentos  de- 
pois as  sombras  cresciain  no  valle,  c  só  de  vei  em 
quando  se  a\ísta\a  ao  lon^e  o  vulto  du  pastor,  enca- 
iníiibanilo-se  a  pressa  prlo  trilho  das  montanhas. 

Desfolhadas  nos  dedos  as  violetas  o  os  Ivrios  jun- 
cavam o  chão,  ao»  pés  da  d.iiiia  de  L.inho'",  enleva- 
da em  meditações  prufuiid.is.  No  ro«to  immovel,  ii.i 
vista  pasmad.1,  a  vida  p.irccia  |Mr.-il_\«ad,t.  Apenat 
um  sorri/o  apag.nio  tremia  110»  lábios,  onde  os  sons 
temiam  str  iiuliscrctoí.  O  que  ia  la  dentro  era  mui- 
to  intimo   para    te   desaff-igar    era    palaNras.  —  Nu» 


o  PANORAMA. 


27b 


olhos,  ás  vezes,  fuzilava  um  relâmpago  de  ódio,  de 
esperaiif^a,  ou  de  terror  —  e  depois  amorteciam-seas 
pálpebras  sobre  as  pupillas  negras  e  sem  brilbo. 

Ainda  estava  suspensa  no  vago  reflectir,  quando 
»e  abriu  a  porta  do  aposento,  e  Gomes  Lourenço  ap- 
pareceu  aos  unibraes.  Um  grilo  d'ella,  um  suspiro 
d'elle,  e  d'ahi  o  mais  completo  silencio  —  disseram 
tudo  o  que  ambos  tinham  sobre  o  coração. 

O  saio  escuro,  o  cinto  e  a  capa  da  mesma  cor  es- 
tavam em  harmonia  com  a  pallidei  do  mancebo.  Che- 
gando ao  meio  da  vasta  quadra,  ergueu  a  vista  e 
fitou-a  em  D.  Maria.  Era  lento,  doce,  e  profunda- 
meute  triste  o  seu  olhar. 

Porque  tremia  ella  ?  Pedia  ha  pouco  a  Deus  que 
o  tocasse  a  vir  alli,  e  agora  não  tinha  animo  para  o 
receber?  —  Ella  que  tão  de  perto  estudara  as  pai- 
xões e  as  fraque^ías  de  muitos  homens  —  que  o  mun- 
do chamava  grandes  —  porque  não  se  atrevia  a  lír 
na  alma  de  um  mancebo  que  a  não  sabia  conter,  que 
a  não  queria  fingir,  e  tinha  só  no  coração  e  na  buc- 
ca  um  sentimento  e  uma  palavra  —  amor! 

D.  Maria  receiava  mais  o  fogo  d'aquella  paixão 
do  que  os  cálculos  pacientes  do  ódio.  De  tudo,  o  que 
mais  custa  a  simular,  é  o  amor,  quando  os  olhos  que 
nos  vêem  o  faliam,  o  choram,  e  o  adivinham  ! 

E  ella,  para  sair,  precisava  fingir  que  amava  mais, 
tanto  pelo  menos  como  o  infeliz  mancebo. 

Por  isso  tremia  e  vacíllava.  Escapou  lhe,  quasi 
envergonhada,  uma  lagrima,  e  \eio  queimar  nas  fa- 
ces. O  seio  anciado  arfava  que  fazia  ranger  as  rou- 
pas, (iuiz  levantar  se,  e  os  joelhos  descaiam  ;  quiz 
fazer  um  signal  com  a  mão,  e  o  braço  estava  mortal. 
Abria  a  bocca  para  fallar,  e  as  palavras,  sullocadas, 
não  se  articulavam.  —  Um  deslumbramento  repenti- 
no cegoulhe  a  vista. 

Entretanto  conteinplava-a  Gomes  Lourenço  com 
orna  ternura  ineflavel. 

Sem  luz  nos  olhos,  sem  còr  nas  faces,  verdadeira 
imagem  da  afllicção,  U.  Maria  era  ainda  maisbella 
do  que  no  orgulho  de  todas  as  galas  da  sua  formo- 
sura. 

Depois  de  a  estar  contemplando  grande  espaço,  o 
mancebo  ajoelhou,  e,  pousando  um  beijo  na  mão  que 
pendia  fria,  com  um  suspiro  alio  exclamou  : 

—  II  Meu  Deus,  que  immensa  d<5r  é  amar  assim  !» 
Q.uandu  este  grito  saía   da  alma  do  cavalleiro,    ia 

cila  tornando  a  si  ^  e,  abrindo  frouxamcnie  os  olhos, 
deixou  cair  sobre  elle  a  \ista  turva,  onde  o  alvoroço 
da  esperança  brincava  radioso.  Depois  um  véu  de 
timidez  empanou-lhe  o  brilho,  e  uma  lagrima  furti- 
va pendeu  das  pestanas  assedada».  Lin  sorrizo,  ao 
mesmo  tempo  meigo  «triste,  aihjou,  sem  asdesabo- 
toar,  pelas  rozas  d\i'juella  bocca,  de  que  o  mancebo 
esperava  (juvir  bem  severos  (|Ueixumes. 

(»ome»  Lourenço  fez-se  crtr  de  purpura,  e  depois 
branco  com  um  lyrio.  Subjugado  pela  adorável  fas- 
ciMução  d'ui|uelles  olhos,  nem  deu  mais  uma  passa- 
da, nem  disse  uma  palavra,  nem  ousou  despregar  a 
vista  dVdlcis 

Nenlium  d'elles  fallava.  O  mancebo  porque  não 
podia,  a  dama  porque  aiiul.i  não  ousava.  Uucria  as- 
terenar  o  espirito,  e  medir  os  gestos  e  as  palavras; 
uma  He  mais  era  bastante  para  a  perd.r.  —  Einfim, 
com  ar  magoado,  correndo  os  dmlos  afilados  u  rola- 
dos pc-lii  testa  : 

—  i.  (liii!  mal  faria  ou,  fraca  mulher,  para  chegar 
n  esta  diir  !  .  .  .  exclamou  ella,  e.  nem  esperar  res- 
posta, accrescenlou,  não  fitando  «'elle  a  receiosa  vis- 
ta : —  Oh,  (juein  me  dissiTa  isto  n\iquille  ília  á  noi- 
te !  .  ..  —  e,  virauilo-se  pura  o  cavalleiro  subitauien- 
te,  perguntou  ;  —  Não  vos  lembraes  d'ellr,  nem  do 
sitio  onde  foi  '  ■• 


—  «Lembro,  tenhora.   Aquella   tarde  de  março. 

na  coutada  de  Lorvão,  como  havia  d'esquece-la  ?  .  .  . 
Os  felizes  só  é  que  se  esquecem.  Oh  se  eu  a  podesse 
tirar  d'aqui  ? !  n 

—  «Era  talvez  melhor  para  ambos n  acudiu  ella 
entristecendo. 

O  mancebo  corou.  D.  Maria  insinuava-lhe  que  o 
seu  amor  só  na  apparencia  fora  desprezado.  Dava- 
Ihe  a  entender  que,  similhante  aod'elle,  gemera  di- 
lacerando-se  em  silencio  nos  laços  do  dever,  ou  do 
receio.  A  vista,  que  então  encontrou  a  sua,  dizia 
tanto,  que  as  palavras  eram  nada  ao  pé  d'aquelle 
fogo.  Gomes  Lourenço  accreditou-a.  Podia  lá  duvi- 
dar da  única  esperança  que  lhe  promettiam  no  fim 
de  tantos  annos?  Se  a  experiência  e  a  suspeita  lhe 
diziam  II  não  cedas,  olha  a  realidade"  o  coração,  can- 
çado,  apegava-se  ásillusões  para  não  morrer.  De  que 
tinha  horror  era  de  viver  sem  fé. 

—  "Melhor?  !  .  .  .  Ciuem  não  amou  sabe  lá  o  que 
é  a  vida?.  .  .  Não  é  verdade ;  melhor  era  não  ter 
vivido,  que  viver,  como  eu,  sem  esperança,  sem  mo- 
cidade, sem  nada  ?  u 

—  "E  se  vos  dessem  esperança  tinheis  fé?» 

—  "Oh,  se  m'a  de;sem  1  .  .  .  Mas  a  esperança  a 
mim  ninguém  m'a  pôde  dar,  senhora.  » 

—  "  Ninguém  ?  >i 

«Hoje  ninguém!» 

—  "  Nem  Deus  ?  I  » 

—  «Nem  vós,  senhora!   Já  não  creio.» 

Houve  outra  pausa  então,  em  que  ambos,  com  a 
vista  no  chão,  se  conservaram  ímmoveis.  D.  Maria 
cortou-a  de  novo,  dizendo: 

—  "Vou-me  queixar  de  vós,  cavalleiro.  —  A  uma 
dama  tractaes  como  inimiga?" 

O  mancebo  tornou  a  corar  da  expressão  doce  com 
que  lhe  diziam  estas  palavras. 

—  "Inimiga?"  murmurou  elle. 

—  "Hospedaes  então  os  amigos  n'unia  torre?" 
perguntou  sorrindo. 

—  "São  os  paços  onde  moro,  senhora  D.  Maria.  Se 
estaes  nos  aposentos  da  torre  —  é  que  os  não  tenho 
melhores  aqui. « 

—  »Dizei-me,  cavalleiro:  sou  livre  ou  estou  cap- 
tiva  ?  .  .  .  Não  respondeis  ?  Juro  accusar-vos,  desleal, 
aob  mais  bellos  olhos  de  toda  Hespanha." 

—  "Sou  condemnado  então  —  replicou  o  mance- 
bo, sorrindo  lambem  — seos  vossos  me  não  perdoam.  ■• 

—  "Lisonjas  e  prizões,  D.  cavalleiro?" 

—  "  \'erdades  e  rogos  por  alguma  belladama.  .  ." 

—  «E  meu  irmão,  que  tãocara  Ihecustou  aaven- 
tura!  "  proseguiu  ella  mudando  de  tom. 

—  "  De  quem  foi  a  culpa,  senhora?  A'  lança  res- 
ponde a  espada.  Talvez  D.  ftlarlim  cuidasse  que  não 
havia  em  Salzedaa  casa  paru  receber  uma  dama  de 
Lanhoso  ? " 

—  «E  como  entrava  ella  lá,  cavalleiro?" 

—  "Como  mulher  de  Gomes  Lourenço  —  como 
dama  dos  seus  pensamentos  —  como  senhora  onde  el- 
le mandar.  " 

—  «E  cada  passo  para  o  aliar  a  faier-nos  um  ac- 
cusador.  O  mundo  a  elannir  ..." 

—  "O  mundo  I  ...  Só  conheço  o  temor  de  Deus. 
Abaixo  d^elle  nada.  » 

—  "  Desarrazoaes  como  um  trovador.  Com  asm.i- 
guas  estaes  peior  <jue  (ionçnlo  Uormiguet,  o  nion- 
ge-eavalleiro.  " 

—  "Ambos  padecemos  da  mesma  pena,  senhora. 
A  elle  curouo  «eova.   A  mim.  .  .   Deus  sabe  <|uem.  " 

E  olhou-a  COMI  receio  e  esperança.  Ella  sorriu. 
Oh,  se  o  mancebo  adivinhasse  ?  ! 

—  "E  eu  sei  lambem  ser  Deus,  senhor  cavalleiro, 
Mai  oquedarieii  vós  »«;  o  coração  de  uma  duma  '  .  .  .  " 


276 


O  PANORA31A. 


—  II  Tudo  ^  não  tenho  que  dar  depois  da  vida,  e 
essa  .  .  .  não  é  niiiilia.  Mas  o  coração  de  que  fallaes 
é  frio  como  pedra.  JJe  que  serve  per^untar-lh'o  ?  " 

—  ii  Jiilçou  o  vosso  tanto  tempo  inimigo,  que.  .  .  » 

—  .í  Inimigo,  eu!  de  mim,  da  honra  do  nome  que 
tive.  (Auando  diíserem  : — olha  D.  Gomes  Louren- 
ço, seu  pai  mataram-lh'o  á  traição,  smi  mãi  morreu 
de  dòr,  e  o  íraco,  o  vil  não  teve  uma  lança  que  es- 
talar no  peito  dos  de  Lanhoso!  .  .  .O  que  ha  de  res- 
ponder o  vosso  inimigo,  senhora?  Mezes,  ânuos  sem 
erguer  o  braço  I  l'or  que  solTre  tudo  isto  como  um 
escravo,  como  um  villão,  como  reféce  ? !  íoi  por- 
que o  sangue  dos  que  eram  meus  inimigos  me  doia 
mais  do  que  o  meu  .  .  .  para  poupar  lagrimas  a 
olhos  .  .  .  que  as  chorariam  de  alegria  ...  se  eu  caís- 
se na  sepultura  !  E  verdade,  Martim  l'aes.  O  mon- 
tante do  Espadeiro  está  nas  mãos  d'uma  mulher. — 
Hoje  não  ha  em  Portugal  appellido  mais  infame  do 
<]ue  o  meu,  o  de  Salzedas.  O  sangue  dos  \  iegas  aca- 
bou com  o  ultimo  que  se  chamou  do  seu  nome  !  .  .  . 
Chorai  por  elle,  cavalleiros,  que  era  um  nome  velho 
como  as  Hespanhas  —  e  morreu,  sepultou-se  com  o 
])ai  de  Gomes  Lourenço,  o  covarde  !  " 

D.  Maria  percebeu  que  fora  imprudente  escaldan- 
do aquella  chaga.  Mudando  logo  para  outro  assump- 
to, com  os  olhos  baixos  c  a  voz  commovida,  excla- 
mou : 

—  «  Pague-se  agora  a  divida!  .  .  Aqui  tendes  uma 
de  Lanhoso  —  mulher  e  como  é,  talvez  baste  ..." 

—  II  Sr.''  D.  Maria  Paes,  os  de  Salzedas  vingam- 
se  como  homens  .  .  ..ou  não  se  vingam.  Ca!a-te,  or- 
gulho antigo  !  .  .  .  E  a  tua  bocca  que  o  pode  dizer, 
Gomes  Lourenço?  Covarde,  que  fizeste  do  nome  dos 
Viegas?  .  .  .  murmurava  o  mancebo,  soluçando. — 
Por  compaixão  não  me  deitem  em  rosto  o  que  fui... 
Cavalleiro,  nienli  ao  meu  juramento  I  Filho,  rene- 
guei o  sangue  de  meu  pai !  Irmão,  vendi  a  herança 
de  outro  irmão  !  Rico-homem,  arrastei  o  pendão  e 
manchei  as  armas  de  meus  avós,  para  até  os  servos 
se  rirem  d'ellas  !  .  .  .  Gomes  Lourenço,  era  melhor 
amortelhar-te  n^ura  mosteiro  —  ao  menos  as  faces 
não  te  curavam  diante  dos  teus  escravos !  » 

E  ao  soltar  estas  palavras,  quebradas. na  garganta 
pela  anciã  do  peito,  fechava  o  punho  e  media  o  apo- 
sento a  passos  largos.  O  semblante  carregouse  de 
amargura,  e  os  olhos  accenderam-se  em  terrível 
chamma.  Parando  de  repente  diante  d'ella,  o  man- 
cebo, en)  tom  prezo  e  rouco,  exclamou  : 

—  «  Morreu  tudo  aqui,  senhora.  Diante  de  Deus, 
diante  do  meu  sangue,  na  presença  dos  homens  sou 
um  traidor,  que  me  vendi  pelo  teu  amor,  Maria  ... 
mas  se  me  enganasses,  se  me  enganasses !  » 

E  tapou  o  rosto  com  as  mãos,  desatando  a  chorar 
como  uma  creança. 

Só  então  conheceu  bem  ella  o  abysmo  d'aquclla 
alma  —  a  dòr  insolVrida  da  sua  paixão.  (Auantos  sa- 
crifícios se  podem  fazer  todos  o  desgraçado  cavalleiro 
tinha  consummadu  por  sua  causa.  Familiu,  ódio, 
gloria,  vingança,  quanto  o  seu  tempo  estimava  em 
mais,  tudo  i)  <jue  por  assim  dizer  temperava  o  espirito 
do  guerreiro  da  meia  idade,  tudo  lhe  depozera  aos 
pés.  Um  inslantu  teve  dó  d'aquclle  delírio,  c  pela 
mente  adejou  uma  idéa  generosa.  Foi  um  momento 
apenas.  Veio  logo  o  ódio,  veio  alraz  a  soberba  risca- 
la  para  sempre,  e  gravar  em  sangue  outro  pensa- 
mento immutavel.  K  deram-lhe  a  força,  e  emprcs- 
taram-lhe  a  astúcia,  necessárias  para  continuar  na 
scena  de  dessimulação  que  até  alli  representara. 

—  li  E  nunca  a  esperança  de  agradecerem  sacri- 
fícios tacs  vos  adoçou  a  magua?"  —  perguntou  cila, 
illuminaudo-u  com  o  ruiu  de  luz  que  faiscava  dos 
ulLos. 


—  ii  Nunca.  O  escravo  chorou  e  ninguém  Ihelim- 
pou  as  lagrimas.  Talvei  se  rissem  d'ellas  ainda  em 
cima  !  " 

—  u  E  se  não  rissem  —  e  se  dissessem  : — Gomes 
Lourenço,   outra   alma  houve  que  penou  com  a  tua 

n'esse  martírio  —  que  chorou  e  padeceu  cnmtizo 

e  por  mais  d'uma  vez,  no  fundo  do  coração,  bradou 
a  Deos  : — Senhor,  quebrae-me  estas  pniões  d'oucu, 
que  ferem  como  ferro  ?  » 

—  uSe  m'o  dissessem,  se  fosse  verdade  ...» 

—  "O  que  fazíeis?" 

—  t.Morria  d'aleçria  aqui,  como  tenho  morrido 
de  dòr  sempre  ...  Se  houvesse  .  .  .  e  o  ouvisse  da  sua 
bocca  ;  se  o  coração,  batendo  com  o  meu,  o  repetis- 
se ^  se  os  olhos,  ardendo  em  fogo,  m'ojurassem  .  .  ." 

—  "  \  ós  o  que  juráveis ?  .  .  .  " 

—  "  De  joelhos,  com  as  mãos  postas,  dizia  :  —  por 
ti  perdi  o  nome  de  meus  avós  e  a  honra  da  minba 
espada.  O  sangue  de  meu  pai  é  uma  nódoa  no  meu 
rosto  —  o  único  irmão  que  tinha  passará  por  mim 
como  estranho  —  o  mundo  ba  de  cbamar-me  vi),  ha 
de  chamar-me  tudo  o  que  envergonha  as  íaces  c  fai 
pular  o  coração  de  raiva  —  abençoada  a  hora  em  que 
fiquei  assim,  se  tu  me  amas  !  Estrella,  que  nas  tre- 
vas me  deste  a  luz  da  esperança  —  por  te  seguir  morri 
na  flor  da  vida  —  e  bcmdita  sejas,  que  me  salvaste  !  •• 

— 1<  Ama-la-heis  a  ella  s<5?" 

—  «Não  se  adora  mais  que  ura  Deus." 

—  íí  Oh  Gomes  Lourenço,  também  eu  direi  alvo- 
ra :  —  Por  ti  chorei  em  silencio  trabindo  a  paixão 
d'outro,  tremendo  de  remorsos  e  de  ciúme  —  por  ti 
esqueci  pai,  irmão  e  sangue  —  abençoado  sejas,  que 
enches  de  um  amor  immenso  o  vazio  que  o  affectn 
d^elles  me  deixou  no  coração  !...  também  eu  fico  sem 
parentes  e  sem  nome. " 

E  proferindo  estas  vozes,  D.  Maria  derramava  so- 
bre elle  o  fogo  dos  olhos  pretos,  aonde  no  delírio  áo 
aHecto  faiscava  a  mais  ardente  paixão: 

O  mancebo  ajoelhou,  exclamando:  —  u  Oh  Maria, 
Maria,  porque  me  não  disseste  isto  senão  ai;ora. 

E  julgava-se  tão  feliz,  que  alli  queria  morrer  df 
alegria  aos  pés  da  primeira  e  única  esperança  quc 
lhe  colheram  ao  cabo  de  tanto  padecer. 

E  ambos  assim,  largo  tempo  sem  fallar,  estive- 
ram a  ver-se,  a  beber  pelos  olhos,  e  na  alma,  adoce 
alegria  d'aquclle  instante.  Elle  de  joelhos  ^ — ella. 
sorrindo,  amorosa,  meiga,  como  em  sonhos  o  man- 
cebo a  vira  esteuder-lhe  a  mão,  e  eDXu>;ar-lhc  o 
pranto. 

Por  fim  D.  Maria,  erguendo-o  e  pousando-lhe  a 
mão  no  hombro  com  doçura  : 

—  u.\gora,  que  sois  o  meu  cavalheiro,  disse  ella, 
quero  pedir-vos  um  dom. — Concedeis-m'o  '  >• 

—  «tiue  te  hei  de  eu  negar,  Maria  ?" 

—  i.  Nas  horas  em  que  rogavaaDeus  que  nos  aci- 
basse  este  martvrio,  fiz  voto  de  atar  esta  alliançnem 
Sancta  Olaia,  sobre  o  tumulo  de  minha  mãi.  Aquel- 
la  que  tantas  vezes  me  embalou  ao  peitu,  e,  ainda 
creança,  me  deixou,  quero  que  abençoe  do  céu  csle 
amor,  que  tão  triste  nasceu  e  chegou  aqui.  " 

Uma  nuvem  se  estendeu  de  repente  pelo  rosto  de 
Gomes  Lourenço. 

—  uE  tão  pouco!  respondeu  elle.  Não  bei  de  ter 
segredos  para  ti,  Maria  :  não  sei  o  que  me  dito  cora- 
ção. .  .   Sinto  que  me  espera  lá  desgr.iça  grande." 

—  t.  E  a  alma  de  Inigo  Lopes  ?  >•  acudiu  cila,  rindo. 

—  41  Não;  quem  sal>e  o  que  é?  Pelo  amor  do  céu, 
Maria,  escolhe  outro  sitio.  —  Não  agoure»  «te»  amo- 
res com  a  sina  do  castello  maldicto.  '• 

—  .1  Que  visões  !  " 

—  ..TaKci  —  e  são.  Mas  o  segundo  casamento óe 
meu  pai  fei-se  lá.  Alta  noite,  no  dia  do  noivado,  oo- 


o  PANORAMA. 


277 


briu-se  de  lucto  a  armadura  de  Inigo  Lopes.  A  has- 
te do  pendão  de  Salzedas  quebrou,  e  não  assoprava 
aragem  de  vento.  A  essa  hora  sonhou  meu  pai  que 
o  enterravam  alli  mesmo  com  cervilheira  e  espada.  ,  . 
e  —  tremo  de  o  lembrar!  —  alli  se  enterrou,  no  mes- 
mo dia,  quasi  a  mesma  hora,  passado  um  anno. 

—  li  Acaso  I    E  o  meu  voto.'" 

—  "(iueres  t  ...  cumpra-se,  e  Deus  seja  comnosco.  » 

—  ií  .'Vmeu  I  Es  um  leal  cavalleiro.  Gluando  par- 
timos ?  '•   . 

—  "  Era  tu  dizendo.  » 

—  "  Ijogo  ?  J> 

—  lí  Já.  )* 

E  duas  horas  depois  saía  da  honra  de  Avellans  a 
rica-dona  de  Lanhoso  com  Gomes  Lourenço.  Ella 
com  o  seu  falcão  no  punho,  esbelta  no  fogoso  corsel, 
que  escarvava  o  chão,  mordendo  o  freio.  Elle,  pro- 
curando espairecer  o  máu  presentimento,  montado 
na  possante  «mula  do  corpo  n  ,  sem  armas,  e  só  com 
a  espada  sobre  o  saio.  Poucos  homens  d'arrças  o  se- 
guiam. Dentro  em  pouco  os  atalaias  perderam-n'o5 
de  vista  no  meio  d'um  rolo  de  poeira. 

Sobre  a  madrugada,  ura  cavallo  a  toda  a  carreira 
galgou  a  empinada  encosta,  e  o  som  da  buzina,  pu- 
xado com  anciã,  accordou  os  echos.  O  villico  chegou 
ái  ameias. 

— 11  D.  Gomes  Lourenço?"  perguntaram  de  fura. 

—  II Saiu  sobre  ocaír  da  tarde." 

—  K  So  ?  Jí 

—  "Gluem  é,  que  tanto  pergunta?» 

—  "D.  Egas,  seu  irmão.  Foi  só.'" 

—  II  Levou  D.  Maria  Paes  a  Sanefa  Olaia.» 

—  "Abri  então.  Perdi  a  jornada." 

O»  alçapões  ferrados  rangeram  ;  a  levadiça  caiu  \ 
p  pelo  portal  de  volla  bai.xa  entrou  o  cavalleiro  ao 
clarão  dos  fachos. 


OARXOATDIIA   BOLI.AI(rDSZ&. 

KoLi.it^u,    irunia  cpinloja,    representou    »  llollandn 
mui  nobrumrnle  pcrionilicada  debaixo  dus  feiçuoidu 


uma  divindade  marítima,  o  deus  Rheno,  aui^usto 
velho  de  barba  limosa,  e  que  da  verde  pupilla  do» 
olhos  despedia  húmidos  fulgores.  Porém  a  malícia 
franceza  teve  também  as  suas  ficções,  e  no  tempo  da 
famosa  passagem  do  Rheno  não  escaceavam  as  repre- 
sentações burlescas  ou  caricaturas  d'aquelleexcellen- 
te  povo  llamengo,  bebedor  de  cerveja,  taciturno  co- 
mo o  seu  príncipe,  todo  vestido  de  lã  parda,  e  que 
todavia  pelejava  pela  sua  liberdade,  pela  pátria,  era 
quanto  o  sangue  francez  se  derramava  para  servir 
principalmente  a  ambição  de  um  homem. 

A  figura  brutesca,  acima  estampada,  é  transum- 
pto  de  uma  d'es£as  caricaturas  internacionaes,  hoje 
obsoletas.  Será  a  Hollanda,  entrincheirada  atraz  da 
sua  enorme  balsa,  em  vez  da  urna  clássica  de  Boi- 
leau,  e  prompta  a  innundar  as  campinas  com  a  sua 
beberagem  estimada,  oceano  de  cerveja  onde  seaffo- 
garíam  os  francezes?  Nada:  os  francezes  d'essa  epo- 
cha  tinham  sulíieiente  esperteza  e  finura  para  não 
empregarem  o  pincel  em  desenhos  vagos,  e  como  as 
novidades  suscitam  vulgarmente  irrisão,  é  uma  no- 
vidade que  deu  assumpto  á  caricatura;  posto  que  a 
cousa  não  fosse  nova  na  Europa,  algum  sabor  parti- 
cular Itie  achariam  em  respeito  á  Hollanda.  A  figu- 
ra representa  um  gazeteiro  hollandez.  A  lloUauda, 
paiz  livre,  contou  entre  os  primeiros  fructos  da  sua  li- 
berdade a  gazeta.  Olhai  paraaquellas  formas  d'Eso- 
po;  o  enorme  cangirão  onde  mergulha  a  vista  não 
será  o  emblema  áasua folha,  d'onde  sáe  a  inesgotá- 
vel innndação  que  ameaça  cobrir  o  mundo.  É  o  te- 
mível novellista  que  semeia  por  toda  a  Europa  os 
boatos  assustadores ;  que  falia  dos  turcos  como  se  as- 
sistisse ás  deliberações  do  divan,  e  ameaça  com  cem 
mil  janisaros  Belgrado,  o  baluarte  da  christandade. 
ftlas  onde  viu  tudo  isso?  No  fundo  da  sua  dorna.  .  . 
"Com  05  braços  arregaçados  (dizia  Beaumarchais) 
até  os  cotovellos,  pescando   o  mal  em    agua  turva.  " 

Oh  que  terrível  homem,  o  segredo  dos  embaixa- 
dores corno  a  sorte  das  nações  está  na  sua  mão  :  ve- 
de  como  sáe  armado,  mas  de  espada  do  cana  I 

PoréiM  a  gazeta  d'esses  tempos  transformou-se  nu 
jornal  moderno.  Parce  sepultis.  Os  francezes  contem- 
porâneos é  que  lhe  não  perdoaram. 


Taiti  em  1S42. 

O  CELEUUE  navegante  hespaidiol,  (lueiroz,  descobriu 
em  IGOlj  a  ilha  de  Taití,  que  esta  situada  próximo 
ao  trópico  de  Capricórnio:  dcram-lhe  primeiro  o  no- 
me dtíSagittaria  ;  depois  ocipitão  N\  illis.  em  IGbC, 
a  chamou  ilha  do  rei  Jorge,  e  Bougainville,  que  to- 
mou posse  d'ella  pela  França,  a  intitulou  Nova  Cv- 
thera:  d'ahi  a  um  anno,  era  17G'J,  Couk  ao  visitar  es- 
ta região  fértil  restifuiu-llie  o  nome  (juo  llie  liavi.im 
posto  seus  naluraes,  isto  ú  Taílí.  —  l'",s.ta  ilha  appre- 
scnta  n  ligiira  de  uma  cabaça  .  um  grupo  denuiiita- 
nhus  ver<lej.iiilts,  torneado  ao  sul  por  uni  furnui>o  la- 
go, ecercado  de  um  lilloral  fecundo,  fúrnia  a  ilha  de 
Taítí  prupriamiiile  ilicta,  a  qual,  por  um  i>thmodf 
légua  de  largo  ipiando  muito,  pega  com  a  p<'uinsul.i 
dcTahia-llabií  i  estafai  uni  dos  seisdistriclos  em  «[U* 
todo  o  território  «ediviílc.  !>ú  o  littoral  é  habitado; 
lis  montes,' (|ue  conslitucni  o  centro  da  ilha  s.T(H|iia- 
si  atidos  noi  cumes,  posto  ciue  as  encostas  cst.Jam  per- 
feitamente «libertas  ilematt;is.  Ilccífes  de  coraes  n  ro- 
d.'iain,aervindo-lluMledii|ue.s,  e  formaudo  muitos  por- 
tos, seguros  <•  ronimodos  ;  são  iis  ipie  de  iinlin.iri.i  ir 
frequentam,  a  balii.i  du  Tunoa  lui  distriífo  de  Mal«- 
vó/.,  e  «  de  PcpiMti  no  districlo  de  Pari'. 

'laiti   se  piidi!  considerar  como  n  cubeçd  das  ilha* 
du  Sociedade,  de  que  todas  as  mui«d'cittt  archipeli- 


278 


O  PAJNORAMA. 


CO  dependem.  A  rfligião  da  terra  é  o  protestantismo  j  taculo  que  torna  a  pronunciação  da  sua  língua  mui 
mie  para  la  levaram  milionários  inglezes,  e  que  foi     difficil  para  europeus. 

abraçado  pelo  rei  l'oniaré  I.  Os  iialuraes  mostram-  A  dança  nacional  consiste  n\ima espécie  de  mimi- 
te  de  boa  índole,  brandos  e  affaveis;  gostam  dos  e»-  ca  que  se  practica  com  os  braços  ;  os  que  fazem  a  pan- 
trançeíros  e  os  procuram  com  alegria  e  amizade:  os  tomína  assenlamse  no  chão  em  meio  circulo  para 
homens  são  altos  e  bem  parecidos,  posto  que  a  pelle  imitar  os  geitos,  e  sons  gutturaes  de  um  que  está  de 
seja    muito   acobreada  ;    as  mulheres,    de  cutis  mais    pé  no  centro  da  roda. 

branca,  parecem  baixas,  e  senão  bellas  bastante  altrac-  i  O  governo  taitiano  consta  de  um  rei  ede  ama  es- 
tivas, o  que  teem  de  mais  notável  são  olhos  vivos,  pre-  pecie  de  parlamento  a  que  todas  as  povoações  do  ei- 
tos, è  rasgados,  e  dentes  de  estremada  alvura.  Os  cos-  tado  mandam  deputados:  o  seu  código  não  passada 
tumcs  estão  corrompidos  no  maior  auge:  os  missiona-  summa  das  leis  feitas  pelos  missionários,  cujas  disposi- 
tíos  in!;lezes  com  seu  absur.lo  svstema  de  intimida-  ÇÕes  penaes  reduzem-se  a  muletas  em  proveito  d^aquel- 
lão,  te^èm  conseguido  fayprem-sê  temidos,  porJni  não  le  ávido  clero.  —  Os  francezes  rezidentes  em  Taítí, 
fazer  respeitada  a  reli-iao  que  ensinaram.  No  Taití  principalnfente  os  missionários,  por  vezes  soffreram 
fallar.^o  a  cada  passo  em  inferno,  ein  penas  eternas,  perseguição  indirecta  dos  padres  protestantes.  Já  em 
enas  coimas  que  os  missionários  inglezes  exigem  dos  1838  Mr.  Dupetit  Thouars  teve  de  exigir  reparações 
peccadores  colhidos  em  llagrante:,  mas  ninguém  fará  da  parte  da  rainha  Ahimata  l'omaré  Ouahiné  I, 
menção  de  Christo  eda  sua  missão  de  amor  edecha-  !  então  reinante,  por  causa  dos  insultos  feitos  á  Fran- 
TÍdade,  da  sua  lei  de  perdão  e  de  indulgência.  ,  Ça  na  pessoa  de  seus  missionários  a  instigação  deMr. 

O  clima  de  Taili  é  de  incomparável  salubridade,  Oritchard,  cabeça  da  missão  protestante.  Posterior- 
iiunca  o  thermometro  sobe  acima  de  28  graus  Réau-  mente  o  mesmo  oflicial,  promovido  a  almirante,  acbou- 
mur,  nunca  desce  abaixo  de  15  ;  por  isso,  também,  '  se  obrigado  a  fazer  respeitada  no  Taítí  a  bandeira 
o  terreno  é  de  pasmosa  fertilidade.  As  canas  de  as-  franceza.  Depois  da  expedição  ás  ilhas  .Marquezas  .Mr. 
sucar  que  lá  se  dão  reputam-se  pelas  melhores  emais  [  Uupetit  Thouars  dirigiu-e  á  de  Taítí,  e  deitou  fer- 
bellas  do  mundo:  a  arvoredo  fruotopão  encontra-se  1  ro  no  porto  de  1'apeitia  30d'agosto  del8i2:,  gran- 
por  toda  aparte,  acada  passo:  as  goiabeiras,  as  mau-  ;  de  quantidade    de  francezes   que   habitavam    na  ilha 


gas,  as  bananeiras,  os  coqueiro»,  as  larangeiras,  os  li- 
moeiros, alli  se  acham  em  quantidade  prodigiosa  :  o 
café,  o  tabaco,  a  batata  doce,  o  anaiiaz,  eiicontram-se 
na  mais  rica  vegetação;  e dizemos  rica,  porque  bella 
seria  termo  impróprio.  Os  habitantes  de  Taiti,  sen- 
do excessivamente  preguiçosos,  cuidam  pouco  da  cul- 
tura :  filhos  mimosos  da  natureza  mui  fecunda,  so  trac- 
tam  da  colheita  ede  al:;uns  leves  trabalhos  indispen- 
sáveis. Boa  quantidade  de  cavallos,  de  cabras,  de  car- 
neiros, de  buis,  e  um  estupendo  nninerode  porcos,  ha- 
bitam os  mattos  no  estado  bravio:  não  haveria  mais 
trabalho  do  que  agarra-los  para  alimento  da  gente,  se 
os  missionários  inglezes  não  tivessem  encerrada  gran- 
tle  porção  d^elles  em  seus  curraesafim  de  fazerem  ne- 
gocio. 

N^uma  palavra,  Taítí  é  um  paiz  extremamente  ri- 
co em  vpgctaes,  em  aiiiniaes,  em  nácar,  cm  coral  \  e 
poderia  fundar  umcommercio  de  permutação  com  as 
ilhas  do  Oceano,  se  os  missionários  se  não  tivessem 
apossado  de  toda  a  casta  de  expeculação.  Sob  o  pro- 
tectorado da  França,  este  bello  paiz  não  pôde  deixar 
de  ser  restituído  em  poucos  annos  ao  seu  antigo  es- 
plendor, por  quanto  outrVira  contava  uma  população 
queCook  avaliou  em  mais  de  cem  mil  almas,  e  Pos- 
ter em  mais  de  cento  fc  cincoenta  mil,  numero  que 
hoje  esta  reduzido  a  seis  ou  sete  mil.  —  A  aniquila- 
ção da  população  também  éobra  dos  missionários  in- 
glezes ;  e  as  causas  são  as  guerras  por  elles  suscitadas 
contra  os  infiéis  idolatras  que  não  queriam  converter- 
»e  ao  protestantismo,  e  depois  ireste  o  rigor  de  suas 
leis:  a  guerra  civil  reduziu  a  metade  o  numero  dos  ha- 
bitantes. O  infaiiticidio  também  se  converteu  iruiua 
espécie  de  habito  entre  este  povo  ainda  meio  selva- 
gem, e  11  sua  origem  é  a  pobreza  que  os  missionários  !  provisório. 
temmoli\aHo  á  força  de  se  apoderarem  de  tudo:  qiia- 
si  que  se  não  eiicontr;ini  cri"anças  n'esta  bella  região. 
A'  linguagem  doTailí  émuitosuave  e  pronuncia- 
se  com  graiitie  facilidnde  ;  a  abundância  de  \ogaes  nas 
lalavras  a  torna  harmoniosa:   f.iltnmlhe  muitas  let- 


vieram  logo  a  bordo  queixar-se  do  mau  tractamento 
de  que  acabavam    de  ser   victimas,    e   requereram    a 
protecção  do  commandante.  — Com  a  noticia  da  oc- 
cupação  das  ilhas  Marquezas  a  rainha  1'omaré  »e  pe- 
netrara de  grande  temor   e  se  retirara  para  £iméo  : 
os  missionários  pretestantes  se  haviam  approveitadoda 
sua  ausência  para  amotinar  os  naturaes  contra  os  fran- 
cezes, expostos  doeste  modo  á  perseguição  dos  bárba- 
ros,  que   subornados   os  tr.ictavam  como  a  inimigos 
sem  saberem  porque  :    o  agente  consular    da  França 
não  tinha  poiler  para  favorecer  os  seus  compatricios, 
e  até  elle  correra  o  risco  de  ser  assassinado.    Cbegoa 
a  cousa  a  ponto  de  derribarem  as  moradas  dos  fraD- 
cezas,   e  talaremlhe   as   cultivações.  —  O   almirante 
gastou  uma  semana  a  reunir  as  provas  de  todas  aquel- 
les  malelicius,  e  logo  que  as  obteve  convidou  os  côn- 
sules estrangeiros  a  proverem  á  segurança  de  seus  na- 
cionaes,  quer  na  residência  respectiva,  quer  a  bordo 
da  fragata  delle  almirante:   ao  mesmo  tempo  man- 
dou intimar  ao  governo  taitiano  que  se  não  lhe  en- 
viassem a  bordo  dentro  em  quarenta  eoito  horas des 
mil  piastras,    por  iiidemnisação  devida   aos  francezes 
moradores  na  ilha,  começaria  as  hostilidades  apenas 
expirado  a<iuelle  praso.  —  Reuniu-se  oconsclhoa  to- 
da a  pressa,    e  depois  de  bastante  discussão   resoWeu 
que  se  não  pagaria  a  quantia  exigida,  masque  se  po- 
ria o  estado  debaí.xo  da  protecção  da  França  ;  a  rai- 
nha prestou  immediatamente  assentimento  a  delibe- 
ração do  conselho,  csubmetteu  aá  decisão  do  almiran- 
te.  Para  este  foi  de  contentamento  a  proposta,  eae- 
ccitando-a,  mefteu  a  França  de  posse  d'aquellel)ello 
e  fértil  território  ^    a  bandeira    fr.inceza  tluctuou  por 
cima  da  de  Taití,    e  o  almirante  nomeou  o  governo 


pai 

trás  do  alphabelo,  oc,  os,  o  </,  o^.  os  etc 


Toda 


(EDITAS   DE   AlkSANDRK   DK   GvSMÃO. 


OiTKA  carta,   de  que    possuímos   o  authographo,    e 

que   vai  aqui    fnluienle  transcripta,    mostra    quanto 

de  Alexandre   de  Gusmão    três  annos 


as  palavras  terminam  em  vogal  :,  os  verbos  empregam-     rendia   «  casa    de  Alexandre   de  í.usmao    três  annoi 
se  somente  no  infinito:  não  se  usa  dos  pronomes  pes-  |  ant.s  do  de  1741).  cm  que  podemos  aflirmar  fora  es 


soaes  senão  nos  casos  de  absoluta  necessidade.  Ostai- 
tiaiios  fazem  preceder  a  muitas  palavras  uma  emissão 
de  ar  que  se  parece  ao  som  de  c  e  á  aspiração  do  h, 
e  que  neiu   uma  neiu  outra  cousa  é:    é  o  un-co  ob»- 


cripta  a  exposiçãa  dos  seus  serviços,  peU  declaração 
que  elle  fez  de  estar  ser\  indo,  haviaperto  deselean- 
nos,  o  logar  de  conselheiro  ultratn.irino.  pura  oqusl 
linha  lido  despachado  em  tTl"J. 


o    PA^ORA>IA. 


279 


Meu  am."  e  meu  Sr.  do  Coração.  A  carta  com  que 
Vm.  me  fet  favor  em  '2'2  do  passado  não  me  foi  eu- 
tregue  logo,  e  depois  mediarão  dous  correios  em  que 
me  foi  impossivel  responder.  Agora  o  faço  dando  a 
Vm.  mil  agradecimentos  pelos  cordeais  parabês  com 
qne  me  felicita  pelo  nacimenfo  de  meu  fiiho,  q.  se 
■»ai  criando  muito  bem,  e  hum  destes  dias  terá  a  hon- 
ra de  ir  á  pia  debaixo  dos  auspícios  de  SS.  MM  ^  e 
permitta  D'  q  algum  dia  vetiha  a  fazer,  q.  seja  de 
hum  Santo  o  nome  de  \  iriato,  q.  ja  foi  de  hum  fa- 
moso Capitão  Portuguez.  D.  Isabel  (1)  a  quem  fu 
prei"  a  attenção  de  Vm,  e  q.  m.'"  estima  por  fé  as 
suas  virtudes  também  lhe  rende  as  graças,  e  \  m.  as 
dará  da  minha  parte  ao  M.  R.  P.  Cónego  Sebastião 
de  Prada  Lobo  pela  continuação  com  que  nie  favore 
ce.  Ao  Sr.  Dez."'  e  ás  P."*  dessa  casa  oferecerá  Vm. 
o  roeu  obsequio  e  reconhecimento  pela  sua  lembrança. 

O  recommendado  de  Vm.  ja  o  foi  por  mim  a  Dom."* 
Pires  Band.",  que  com  toda  a  bizarria  prometeu  que 
a  ele  recorreria  nas  ocasiões  que  se  oferecessem. 

Graças  a  Deos,  que  chegou  este  encantado  prazo 
da  sua  renuncia,  e  me  deixou  esta  no\a  cheio  de  re- 
gozijo pela  esperança  de  o  ver  finalmente  docança- 
do,  e  a  mim  gozando  da  sua  amável  companhia,  que 
me  faz  cerlameiíle  mais  saudades  do  que  a  ^  ni.  faz 
a  minha.  Tudo  está  muito  bem  ajustado  cumo  cuuza 
do  seu  juizo,  que  a  tudo  soube  atender,  e  até  para  lhe 
não  esquecer,  ainda  o  desnecessário,  vejo  o  cumpri- 
mento com  que  Vm.  encerra  a  sua  narração,  que  he 
bem  digno  da  sua  generosidade,  e  me  deixa  obriga- 
djssinio;  mas  tomara  eu  poder  concorrer  par.i  algum 
maior  cómodo  seu,  ou  dos  seus  parentes,  que  só  isso 
me  lembrara  em  tal  cazo  ;  e  pelo  serem  de  Vm.  eu 
os  reputo,  como  .se  tivera  a  honra  de  serem  meus.  e 
ettimo  todo  o  seu  bem  como  se  fora  próprio.  So  liua 
condição  peço  a  meu  favor,  e  desta  quero  que  \  in. 
rae  dô  palavra  infalível,  e  he  que  Vni.  hade  vir  pa- 
ra a  nossa  conip.'',  e  uzar  desta  caza  rm  tudo  e  por 
tudo  como  sua.  Da  gente  que  nella  achara  espero  se 
não  hade  desagradar:,  porque  não  ha  nuiis  que  hua 
•uma  quietação  e  união  perfeitíssima  de  génios  todos 
dóceis,  excepto  o  meu,  que  Vm.  já  se  tem  costuma- 
do a  sofrer;  e  todos  o  hão  de  tratar  com  amor  e  sin- 
ceridade delrinãus,  osu|)iislo  nãotemos  decaza  (|uem 
jogue  xadrez  temos  quem  toque  quatro  sonatas  Sofri- 
velmente. 

No  papel  que  restituo  tudo  está  certo,  ainda  o  ul- 
timo ponto,  sem  embarg»  de  parecer  que  tem  algu- 
ma contradição  com  o  penúltimo.  A  expre»sã()  pre- 
tente  ha  de  ser  ainda  de  todos  os  frutos,  ao  que  eu 
posso  entender  ,  porque  o  Uenefaicio  aluda  se  conser- 
va inteiro  ;  mas  a  paga  da  anata  me  parece,  que  ha- 
de ser  somente  da  ametade  que  resta  ao  Coadjutor, 
e  a  componendu  da  Coadjotoria  levará  outro  tanto. 
Isto  depende  essencialmente  da  capacidade,  e  zelo  do 
correspondente  de  Konia  ;  porque  se  for  aeli\o  e  liei, 
liao  lhe  faltão  rezões  com  que  sustentar  que  a  anata 
•e  uão  deve  pagar  senão  da  pro|)orção  do  (|ue  fica  ao 
•ucessur  de  cujo  priivimenlo  se  trata,  nialiirnieiite  es- 
tando expreB^o  na  Bula  que  para  o  futuro  se  expedi- 
ra esse  IJcnelicio  por  ametade  do  que  tinha  ;  mas  se 
o  correspundente  não  for  esperto,  dir-lhe-hào  que  o 
Heneficio  ainda   s(r  n.To  diwilc,    e   a^sim  hade  pagar 

como  inteiro,  (luauto  ao  i de  morto  pareei  ine,  (|ue 

«  seu   tempo   d'aqui  a  eem  aunus    ic  hade  p,i..;ar  pro 
rata  pelo  »ueeSM>r  e  pela  l'alriarclial,  purijue  o  direi 
to  estava   ailipiirido    a   \in.    antes   da    graça    <la   l'a 
'•'archal. 
V  1  • 

'>n.  me  da  conta  de  um  praso  que  está  p.ira  clie 

(<)  I).  Is.iiiti  Maria  Teixeira  C.liaves,  lillia  do  Krancisco 
Teiíeira  Chaves,  ljiiuH;o  da  casa  real. 


gar,  e  eu  lha  dou  de  dous  que  já  chegarão.  O  t  .'^  foi 
despachar-me  S.  M.  nas  mercês  que  estavam  prometi- 
das, isto  he,  Comenda  de  S.  Comba  dos  Vales,  Al- 
cajdaria  Mor  de  Piconha,  a  tença  dos  Portos  seco», 
tudo  pertencente  a  minha  mulher  ou  por  vida,  ou 
pelos  serviços  de  seu  pai. 

O  2.*'  praso  he  um  que  foi  da  casa  do  Conde  de 
Vilaílor  por  espaço  de  200  annos,  e  pondo-se  agora 
em  praça  para  pagamento  das  dividas  do  Conde  que 
Deos  tem,  o  arrematei  eu  em  quarenta  mil  cruzado» 
e  ciuco  mil  réis  ;  e  comlaudemio  &e.  chegará  aper- 
to de  50.  He  silo  junto  á  Azambuja,  e  ao  Tejo,  tem 
boas  terras  de  Liziria,  e  cazaes  com  excelentes  pastos. 
Cliamase  pelo  nome  genérico  de  Corte  da  Vila,  que 
comprehende  uma  e  outra  couza.  Anda  mal  aprovei- 
tado ;  mas  nesse  estado  rende  por  arrendamento  já 
de  muitos  annos  vinte  moios  de  trigo,  vinte  de  ceva- 
da, três  barcos  de  palha  dos  maiores,  ÍO-S  r.^  em 
dinheiro,  oO  alqueires  de  legumes,  e  alguns  porcos 
com  outras  achegas,  salvo  o  foro  que  hede  hummoio 
de  trigo,  e  8^  r.*  em  dinheiro.  A  con)pra  não  foi 
das  mais  baratas,  mas  eu  a  dou  por  bem  empregada 
por  não  estar  desembolsando  para  palha,  cevada  c 
trigo,  que  he  hum  roubo,  e  sempre  governado  aquilo 
melhor,  poderá  darnie  fartur.i  jj  caza,  como  a  dava  á 
do  Conde  de  \  ilatlor  em  quanto  opossuio.  Faltame 
agora  comprar  quatro  pés  de  oliveira,  que  me  dem 
o  azeite  necessário  para  o  ga-to  de  caza,  e  ficarei  li- 
vre de  muitas  pontadas. 

O  3.°  praso  que  he  o  da  minha  satisfação  ainda 
não  chega  ;  porque  eu  confio  na  sua  bondade,  qu« 
ainda  não  eslá  exhaurida  a  sua  paciência  para  comi- 
go. Verei  o  que  posso  fazer  antes  da  partida  da  fro- 
ta :  porque  nela  não  me  veio  nada  a  respeito  da  ou- 
tra fazenda  que  tinha  arrematado  nolBrazil  meu  Tio 
obrigando-se  a  dar  de  primeiro  pagamento  lOS  cru- 
zados e  900;^  T.^  por  ano  até  completar  o  preço  de 
i3^^  cruzados,  e  como  me  fazia  grande  conta  man- 
dei lançar  mão  dela  por  haver  muitos  toureiros,  e  o 
Procurador  acudiu  com  o  primeiro  pagamento  menor 
do  que  meu  Tio  se  linha  obrigado  por  estar  a  fa- 
zenda deteriorada  ;  mas  esta  parcela  com  a  de  algu- 
mas letras  que  passei  absorbeu  toda  a  remessa.  K  o 
certo  he  que  por  estes  primeiros  quatro  ou  cinco  anos 
heide  meter,  coiiui  dizem,  agulhas  por  alfinetes,  até 
me  alimpar  da  carepa  das  dividas,  que  em  quanto 
as  ha,  não  lenho  descanço.  Porém  hua  vez  que  me 
veja  livro -dei. is;  terei  com  que  passar  decentemente, 
porque  ja  conto  1'J;^  cruzados  de  renda,  e  se  conse- 
guir algumas  cousas  que  estuo  pendentes  e  não  pen- 
dem de  muita  demora,  passarei  dos  20.  Permita  Deos 
darine  lui  para  saber  fazer  bom  emprego  de  tantos 
favores  seus.  Conserveme  \m.  o  seu  amor,  que  hea 
minha  maior  riqueza,  e  mandeme  em  que  o  sirva;  e 
quando  se  vir  com  o  nosso  Prelado,  me  ponha  ao* 
seus  pés  com  mil  amorosas  lembranças. 

1).^  g."  a  Vm.  ni.'  a.''  Lisboa  li)  de  Fevereiro  de 
Í7i'j. 

M.   K.  P.  João  Monteiro  Bravo. 


De  Vi 


Hestituo  a  carta  de  Alexan- 
dre Urandãi),  ea  minuta  da 
resposta,  que  de  bem  guar-   Ain."  do  Cor.°  e  obr."'" 

dadas  não  uparcciãu.  ,  ,  ,       ... 

'  Alexandre  de  Uusmau. 

As  partieul.irid.ides  da  vida  intima  do  secretario 
e  eoiilideiile  de  D.  João  V',  que  a  presente  carta  nos 
di'sei)bre,  nus  obrigaram  a  piiblii-al.i  com\o  um  sul>- 
sidio  importante  para  a  bioi;r.ipbia  de  .-Vlexaiulre  de 
(iuMiiào,  t|ue  tem  siilo  etciipl.i  ate  agora  muito  eiu 
resumo,  em  cuiisequcncia  da  escacet  de  noticias. 

(Ji.  F.) 


280 


O  PANORAMA. 


PrRoxvLiNA   OU  AluodXo-polvora. 

Força  baíiílica.  —  Mr.  A  veros,  coronel  tie  arlilhc- 
ria,  fez  varias  experiências  com  um  pêndulo  balisti- 
co,  rmprcçando  em  concurrencia  a  pólvora  vulgar  e 
i>  fiilmi-ólíodiio.  Deraiu-llu;  os  rpi.iiltados  sejuintffs : 


1  gram. 
'2.  .  .  . 
3.  .   .    . 


VELOCIDADES    TRODliZlDAS 


Pela  pólvora 


Met. 
9i..2(i,S 
1G8,8',»7 
23  í, 091 
28i,95l> 
320,153 


Pelo  fulmi-algodâo 


Mel. 
1  '(9,3  í  2 
280,433 
400,349 
447,732 
518,393 


Cinco  çrammas  de  fulmi-algodão  produzem  pois  o 
mesmo  efleito  <]ue  treze  para  quatorze  gramraas  de 
pólvora  de  espingarda. 

.MM.  Combes  e  C.  Handin  fizeram  alguns  ensaios 
sobre  a  extracção  da  pedra  das  pedreiras  por  meio  do 
algodão  azotico.  Estes  ensaios,  com  bcrem  iusulicíen- 
tes  e  não  darem  a  medida  exacta  dos  eflWitos  da  no- 
va pólvora,  mostram  que  ella  pode  ser  empregada  na 
exploração  das  minas,  sem  exigir  precauçíJes  ditticul- 
tosas.  A  propriedade  que  tem  de  arder  quasi  sem  fu- 
mo nem  cheiro,  lhe  assegura  que  será  preferida  á 
pólvora  ordinária  em  todas  as  excavações  subterrâ- 
neas, sendo  igual  o  custo  de  uma  e  outra. 

Efeitos  pyrotcchnicos.  —  O  papel,  preparado  pelo 
methodo  de  Mr.  1'elouze,  e  embebido  em  dissoluções 
de  nitrato  de  strontiana,  de  sulphato  de  cobre,  de 
nitrato  de  baryta,  produziu  lindos  fogos  vermelhos, 
verdes  e  brancos.  Os  papeis  azotados,  como  era  dVs- 
perar,  poderão  também  ser  úteis  á  p^rotechnica.  A 
pequena  demora  com  que  ardem,  devida  a  terem  si- 
do mergulhados  na  dissolução  dos  saes  metálicos,  fa- 
vorece muito  a  duração  das  vistas  que  se  pretendem 
faier  com  os  fogos  de  cores. 

Anahjse.  —  Mr.  Dumas  concluiu  da  analvse  do  al- 
godão-polvora,  que,  se  a  sua  explosão  nas  armas  ou 
nas  escorvas  deste  os  productos  gazosos  que  eiie  adia- 
ra, estragaria  as  armas  dentro  de  pouco  tempo  ■,  mas 
depois  de  outras  considerações,  que  não  são  para  aqui, 
admittiu  a  possibilidade  de  que  o  algodão  fulminan- 
te, empregado  nas  cargas  das  armas  de  fogo,  não  cau- 
sará os  damnos  ()ue  promeltiam  os  produefos  ácidos 
da  sua  explosão  ao  ar  livre,  sustentando,  comtutio, 
que  lhe  parecia  inevitável  a  formação  du  acido  ni- 
troso nas  escorvas. 

f^antagcns  c  iitconvcnitutes. — As  vantagens  que 
apresenta  o  fulmi-algodão  em  relação  ao  serviço  mi- 
litar, diz  o  coronel  .\veros,  são  oaceio,  a  combustão 
prompta  e  sem  residuo  solido,  o  nãodeilar  máu  chei- 
ro, a  leveza,  e  ser  possível  manusea-lo  sem  perigo,  lon- 
ge do  fogo,  bem  entendido  i  não  largar  poeira  nem 
ter  precisão  do  ser  peneirada,  uma  força  incontestá- 
vel, e  que  se  podo  avaliar  (por  agora)  cm  três  nrcs 
a  da  pólvora. 

Entre  os  inconvenientes  aponta  Mr.  Averos  o  gr.in- 
dc  volume,  e  por  conseguinte  a  difficuldade  do  fa- 
brico c  transporte;  finalmente  a  producção  de  gran- 
de quantidade  de  vapor  da  agua.  Accrescenla-se a  is- 
to a  formação  do  vapores  capazes  do  estragar  as  ar- 
mas, 8  de  vapores  nitrosos,  ilos  que  i\Ir.  l)uiu^\s  se  re- 
ceia ;  ainda  que  o  longo  uso  da  pólvora  fulminante 
ou  aramoniureto  de  mercúrio  nas  escorvas  dovc  ter 
dissipado  o  medo  du9  vapores  mercuriae;,  pro>enicn- 
tes  da  combustão. 


A  practica  deveattenuar  estes  inconvenientes-,  de 
outros  mais  graves  houvera  a  chimica  contemporânea 
accusado  a  pólvora  vulgar,  se  assistisse  ao  seu  nasci- 
mento com  os  apurados  niethodos  Ja  analise  deque 
hoje  dispõe  :  por  exemplo,  de  deixar  srande  porção 
de  resíduo,  e  de  deitar  um  fumo  que  incommoda.  E 
a  chimíca  a  nenhum  d"estes  defeitos  poude  até  ago- 
ra dar  remédio,  e  ha  perto  de  cinco  seculoi  queeste 
informe  producto  está  na  posse  de  auxiliar  os  ódios 
dos  homens  e  dos  governos. 

De  resto,  os  inconvenientes  que  appreseuta  o  ful- 
mi-algodão feem  muito  pouco  valor  compurailos  com 
as  suas  vantagens,  e  bem  fazem  <is  que  continuam  a 
estudar  o  modo  de  o  applícar  áí  armas  de  guerra.  Os 
progressos,  que  se  teem  feito  na  prpp.iração,  já  res- 
pondem as  principaes  arguições  de  que  foram  alvo  o» 
primeiros  productos.  As  commissões  de  artilheria  que, 
na  Prússia  e  na  Inglaterra,  não  quizerani  adniitliru 
fulmi-algodão,  mais  por  orgulho  nacional  que  por 
motivo  serio,  terão,  a  sua  pezar,  ile  reformar,  dentro 
de  pouco  tempo,  um  juízo  precipitado. 

Ninguém  pode  prever  o  futuro  a  re>()''ito  da  nova 
pólvora  :,  está  dado  o  primeiro  passii  n'utDa  carreira 
nova,  seguida  com  ardor  pela  curio>Ídade  impacien- 
te de  uma  multidão  de  indagiidores.  Talvez  que  no- 
vos compostos  venham  fazer  esteesquccid».  Eeni  to- 
do o  caso  elle  carece  de  passar  pelas  provas  do  tem- 
po e  da  critica;  e  a  sua  preparação.  Se  não  puder  ser 
simplificada,  deve  adquirir  ocaracter  de  unilurmida- 
de  indispensável,  para  que  grandes  porções  de  pólvo- 
ra azotica  possam  ser  fabricadas  com  presteza. 

MM.  Aubert,  Pellisier,  e  Gav-Lussac,  no  fim  do 
seu  relatório  sobre  a  pólvora  e  escorvas  fulminantes, 
perguntavam,  se  havendo  uma  guerra  geral,  a  Fran- 
ça, que  não  tem  minas  de  mercúrio,  poderia  obterá 
quantidade  d'este  metal  necessária  para  fabricar  as 
escorvas  para  o  exercito.  Actualmente,  que  a  pvro- 
xvlina  deixa  muito  atraz  de  si  ofulminato  de  mer- 
cúrio, porque  serve  ao  mesmo  tempo  de  carga  e  de 
escorva,  a  questão  não  será  ociosa,  visto  que  o  algo- 
dão é  um  género  exótico.  Conviri.i  por  tanto  que  os 
chimicos  fizessem  ensaios  encaminhados  a  substituir 
o  algodão  por  outras  matérias  textis  dos  nossos  cli- 
mas, como  são,  por  exemplo,  o  linho  c  o  canamo. 

A'  questão  daiiiateria  prima  segue-se  anão  menos 
urgente  da  conservação.  Terá  a  p\  roxvlina  a  pecha, 
commum  a  todos  os  tulminantes.  de  se  alterar  com  fa- 
cilidade, de  custar  a  conservar  ?  lia  razões  para  o  crer. 

Que  meios  se  poderão  empregar  em  tal  caso  para 
fazer  grandes  provimentos  sem  perigo,  já  que  a  pre- 
paração da  no\a  pólvora  não  é  tão  fjcil  e  rápida, 
que  baste  ter  a  mão  as  matérias  indispeniaveii  para 
fabricar  grandes  porções  d'ella.' 


As     NAIADES. 


Intgktando  aformoscar  com  ura  chafarii  a  praça  (Je 
Luii  15.0  Napoleão  incumbiu  um  architeclo  deapre- 
sentar  o  desenho.  Feito  este,  viu  o  imperador  queo 
monumento  se  compunha  de  quatro  iiainde»  que  dei- 
tavam a  agua  pelos  peitos  ;  achou  a  lembrança  pouci» 
decorosa,  e  disse  para  o  riscador  d,i  obra. — ..Tirai 
d'aqui  estas  amas  de  criar;  as  naiades  eram  virgens 


Co.M  aspisfoUas  cng.itilhadas.  pergunto»  uma  patru- 
lha a  Pocage  :  —  Uuem  e  .'  d'unde  vem  f  p^ra  oode 
vai.'  .\  resposta  foi  prompta: 

E  o  poeta  Bocaçe  ; 

Vem  da  loja  do  Nicola  , 

^'ai  para  o  outro  mundo. 

S«  lhe  dispara  a  pislolla. 


36 


o  PANORAMA. 


281 


UMA  COCIMODA  DO  SÉCULO  XVI. 


Os  trastes  caseiros  dos  séculos  passados  começaram  a 
ser  prociiradiis  a  par  do  moviíiionto  (juo  inculiu  álit- 
toratura  moderna  o  romance  extraliido  dos  factos  e 
vida  intima  dos  nossos  maiores.  A  ric|uc'7.a  da  mobi- 
lia,  já  pelo  preço  da  matéria,  já  pelo  primor  c  mi- 
nuciosidadc  do  trabalho,  não  tem  sido  ij^ualada  pela 
pom|)a  deslumliranle  da  arte  moderna.  São  portanto, 
cid)i<;ado»  por  dois  motivos-,  valor  intrinseco,  e  amos- 
tra do  gosto  i:  hábitos  da  sociedade  antii^a.  Sobem  mui- 
lo  de  valia,  ounãoteem  preço  assignavel,  alguns  d'es- 
«os  trastiís  (jiie  recordam  memorias  hisloricas. — JN'es- 
te  ulliino  caso,  riMinindo  em  alto  gráii  todas  as  do- 
mais «jiialidades,  está  uma  com  moda  ou  pa|)elleira  Cjuc 
perlenceu  a  Maria  dir  Medicis,  oeslá  li^iirada  node- 
«enlio  prrcediínte.  No  anuo  próximo  passado  loi  ella 
vendida  em  i'aris  junctamentc  com  um.i  si.'cr(.'taria  do 
rei  |>opnlar  Ilenrii|ue  IV,  dtsaiortuiiailo  i'sposo  de 
Maria  lie  Mwlicis,  — São  duas  pi'('.is  d'obra  lormosis- 
simas  noseu  g(,'n<'ro,  conslruidas  intiir.unenle  deéba- 
no  com  veios  de  Ideies  iTouro;,  dois  moveis  ile  n)a- 
■^nificencia  verdadeiramente  regia.  Allirina  Mr.íioz- 
lan  (jue  ao  mais  h.iliil  artista  dos  nossos  contempora- 
noo.H  não  b.islariani  de/,  annos  de  tr.ibaiho  assíduo 
para  concluir  lodos  os  marchetados  eendiulidos  só  da 
■'ommoiia,  (pn;  é  i>bra  ilclicadissima  (i  ile  pcrleilo  la- 
vor. Uma  prani'iia  inleiriea  de  ébano,  eiun  o  mesmo 
ornato,  cubie  esla  i'ommoda  (|u<í  tem  por  timbre  os 
escudos  d'ai'mas  de  l>"raiiea  i^  Florença,  reuiatado»  pi'- 
la  corda  ila  grã-dui|uez,i  ■,  o  (|u<í  provav<'lnii'nle  in- 
dica haver  sido  esla  peça  algum  presente  <logrão-du- 
que,   Kraneisco  11  a  sua  filha,  a  rainha  Maria. 

Uma  singularidade  preciosa  dá  incalculável  apreço 
Voi.   I,  —  Otiiiitui   30,     1«17. 


histórico  á  secretaria.    C)  escudo  de  Henrique  l\  foi 

arrancado  do  uma  das  almofadas,  e  substituído  ti— 
merarianienle  pelas  armas  de  Concini.  l'arece  fpic 
este  movei  fora  dado  pela  rainha,  depois  da  morte 
de  Henrique,  ao  marechal  d'Ancre,  pois  cpie  depois 
de  assassinado  também  o  marechal,  o  seu  espolio  foi 
engrossar,  como  é  sabido,  a  casa  do  Luynis.  iixacla- 
menle  próximo  á  pcipiena  vilia  de  Lu^iies,  na  Toií- 
raine,  foi  descoberto  este  tliesouro  arcluíologico. 

A  comniuda  e  a  secretaria  são  por  tanto  dois  mo- 
veis inestimáveis  para  os  amadores  ilos  tempos  anti- 
gos; provaveimenie  n'elles  se  recostaranj  a  infeliz 
llenriípieta  d'Inglalerra,  Luiz  \I1I,  e  (jastão  d'()r- 
léaiis.  Além  d'islo  re|iulam-se  dois  prodigitis  artisli- 
cob  do  século  decimo  sexto,  vísio  que  serviram  a  Ma- 
ria de  M<'dicis  e  seu  marido  logo  no  começo  do  sé- 
culo X\ll.  Mr.  liozlan,  <|ueiXando-se  ilecpionu- 
nnmenliis  assim  portáteis  e  de  lai  preço  histórico  não 
sejam  adipiiridos  pi  lo  <:stado  para  ornamentar  o  mu- 
seu de  uma  grande  nação,  dá-us  coinliido  por  muíK> 
bem  em|iregados,  \  isto  t|U(?  foram  comprados  |>or  um 
lilleralo,  o  celebre  romaiicisl.v  Mr.  de   iSaltae. 

No  próximo  numero  daremos  uma  curiosa  noiiei.i 
de  Mana  de  Mediei»  e  das  jicssoas  mais  ligadas  a 
sua  historia. 

A    KOCII  \    l>n    iiuAuAu. 

I.emla  i  lu  uitna. 

As  suTic  montanhas  (pie  na  mnrgciii  direita  4I0  Itlie 
nu  levanluin  [lurti  as  ntiveni   os  mugostoaus  ciiutcs,    .- 


2S2 


O  PANORAMA. 


ocastello  de  Roldão,  outr'ora  magnifico  e  forte,  cam- 
peando sobre  uma  eminência,  dão  lot!;o  na  vista  do 
viajante,  fjuí-  visita  o  formoso  valle  do  Klieno,  ao 
subir  ])(ir  este  rio.  Alli  cessa  como  por  encanto  auni- 
Ibrmidade  das  [)lanieies  ;  e  qualquer,  avista  (Peste  es- 
pectáculo prestigioso,  coidiece  que  com  justiça  foi  cha- 
mado o  itlieiio  o  pai  <las  lendas.  —  O  viajante,  que 
trans[)ortado  pelas  verdes  aguas  do  rio,  se  adianta 
para  o  norte  atravezd'csteparaizo,  divisa  ao  longe  mon- 
tes piclurescos  com  as  assomadas  verdejantes  coroadas 
de  minas  de  caslellos  antigos  ;  sente-se  attrahido  por 
lima  irresistível  força  para  aquellas  alturas  i  pelo  me- 
*  nns  apressa-se  a  ir  ver  o  Urachenfels ;  é  o  nome  que 
tem  aquella  aggregação  coUossal  de  rochedos  na  mar- 
gem direita,  que  com  suas  cavernas  escuras  e  a  fron- 
te guarnecida  deruinas  sealttia  á  beira  do  rio.  A  pe- 
quena e  aprazível  cidade  de  K.-cnigswinter  encosta-se 
a  parte  sepfentrional  d'este  monte,  o  qual  com  o  la- 
do do  sul  abriga  contra  o  vento  do  norte  a  bonita  al- 
deia de  I{lia;ndorf;  os  pâmpanos  viçosos  e  grupos  de 
arvores,  picturescaraente  espalhados,  embcllezam  a 
raiz  e  a  parte  meridional  da  montanha. 

N'uma  das  cavernas  que  d'esta  parte  se  mostram 
ao  esj)eetador  existia  n'uma  era  remota  um  dragão 
monstruoso  ;  os  habitantes  do  cantão  o  reverenciavam 
como  divindade,  e  tinham,  em  razão  d'elle,  chamado 
as  rochas  que  lhe  serviam  de  acolheita  Diavlicnftla, 
rochedo  do  dragão.  As  tribus  d'este  districto  eram 
cruéis  e  selvagens;  comliates  e  saques  eram  seu  úni- 
co passatempo.  A  esperança  de  rico  espolio  os  enca- 
minhou certo  dia  para  a  margem  esquerda  do  Kheno 
onde  raptaram  uma  virgem  christã.  Dois  caudilhos, 
dos  mais  poderosos  d'aquellas  iiordas,  sentiram-se 
abrazados  do  fogo  de  amor  brutal  á  \  islã  da  casta 
donzella,  e  a  quizeram  para  mulher,  mas  nem  o  ar- 
rebatado IJarwisck,  nem  o  astuto  Rinbold  consegui- 
ram mover-lh(^  o  coração.  Tal  resistência  redobrou  a 
violência  fios  desejos ;  e  rebeniou  entre  os  dois  rivaes 
eiume  terrível:  resolveram  levar  pela  força  oque  por 
instancias  não  tinham  podido  alcançar:  por  tanto  a 
discórdia  sacudiu  seus  fachos  em  meio  d^aqucllas  tri- 
bus barbaras  que  divididas  em  dois  campos  inimigos 
traclaram  de  decidir  a  contenda  á  mão  armada.  En- 
tão os  anciãos  surgiram  e  clamaram  : — "Que  oppro- 
brio  para  a  nossa  gentc",  se  os  mais  nobres  fizerem  cor- 
rer sangue  por  causa  de  uma  rapariga,  que  nem  se- 
quer tem  a  honra  de  pertencer-nos  !  Os  numes  sem 
duvida  escolheram  esta  victiina  para  lhes  ser  offe- 
recida  :  obedecei  á  voz  da  divindade  :  immoie-se  a 
lilha  do  estrangeiro,  entregue-se  ao  dragão  do  lUie- 
no.  "  —  Os  dois  cabeças  viram-se  obrigados  aceder 
dos  .seus  desejos  pela  vontade  dos  deuses,  que  os  an- 
ciãos proclamavam. 

No  seguinte  dia,  ao  romper  d'alva,  a  virgem  foi 
conduzida  e  agrilhoada  a  um  penedo,  por  cima  da  gru- 
ta do  dragão,  para  ser  pasto  do  monstro.  —  A  don- 
zella, ])iamente  resignada  á  vontade  do  Allissimo, 
lom  os  olhos  fitos  no  oriente,  nãocxhalou  um  só  quei- 
xume, o  povo  apinhado  na  cliapada  da  niontanlui  es- 
perava impacieiíle  a  consumação  do  sacrifício,  li  dra- 
gão acordou  aos  primeiros  raios  do  sol,  desenrolou-se 
fora  da  caverna  cm  longas  roscas  e  preparou-se  para 
se  apossar  da  preza.  l'arecia  chegado  o  momento  fa- 
tal;  já  odragão  deolho  tlammejante  e  fauces  inflam-  I 
maihis  ia  arrenieller  á  victinia,  ipiando  esta,  tirando 
doseio  um  crucilixo,  oappresentou  ao  monstro.  Avis- 
ta dosignal  daredempção,  que  faz  tremer  os  próprios 
espiri(os  malignos,  o  dragão  se  enroscou  n'iim  feixe  , 
e  precipitoií-se  por  uma  abertura  da  rocha  no  fundo  | 
do  rio,  onde  desapp:ireceu  |)ara  sempre.  j 

A  turba  pagã   ficou  tomada  de  assombro  e  admi- 
ração na  presenç:i  do  milagroso  successo  i  custava-lhe 


a  crer  no  testimunho  de  seu»  olhos.  Apenas  aquelles 
tornavam  a  si  do  pasmo,  quando  viram  nomeio  d'el- 
les  a  donzella  que  Rinbold  transportara  nos  braços  ro- 
bustos, tendo-lhe  despedaçado  as  cadeias.  Ix)go  se  fez 
ouvir  a  voz  da  innocencia  e  abrandou  aquelles  peitos 
endurecidos;  a  tribu  se  converteu,  o.  Rinbold,  feito 
christão,  foi  o  ditoso  consorte  da  virgem. 

Erigiu-$e  para  o  novo  casal,  no  cume  de  Drachen- 
fels,  uma  habitação  que  recebeu  o  non:e  de  Drochen- 
burg  (castello  do  dragão).  As  ruínas  que  actualmente 
se  descobrem  no  cimo  da  montanha  pertencera,  na 
verdade,  a  epocha  mais  recente;  porém  o  viajante 
não  deixa  por  isso  de  trepar  ao  rochedo,  conv  idadu  pela 
vista  enlevadora  que  d^aquella  altura  se  desfructa ; 
no  primeiro  plano  mostra-sc  o  ameno  paiz  que  se  es- 
tende ao  sul ;  mais  além  das  ilhas  de  tiraífen  e  Non- 
nen-Werth,  nas  quaes  se  descortinam  atravez  da  ra- 
mada dos  arvoredos  edos  tapumes  florentes,  as  bran- 
queadas muralhas,  resto  de  um  convento  de  religio- 
sas ;  finalmente,  na  margem  esquerda  apparccem  as 
ruínas  do  antigo  castello  de  Roldão.  Era  elle  habi- 
tado, ha  muitos  e  muitos  annos,  por  um  cavalleiro 
chamado  Rolando  ou  Roldão  quegosava  da  amizade  de 
todo  aquelle  districto.  Viam-n'o  muitas  vezes  no  castel- 
lo de  Drachenfels ;  de  dia  para  dia  mais  se  amiuda- 
vam as  suas  visitas;  a  amável  Ilildeiriinda,  única  fi- 
lha do  conde  d^aquelle  titulo,  era  o  objecto  que  oat- 
trahia  áquelle  velho  domicilio.  Em  breve  se  entende- 
ram os  corações  d'aquellas  jovens  jMjssoas  ;  e  com  vi- 
va alegria  o  pai  de  Hildegunda  ouviu  Roldão  dar-lbo 
parte  de  seu  amor  e  do  desejo  deligar-se  á  sorte  does- 
ta menina.  Ja  estava  aprazado  o  dia  nupcial ;  eis 
que  um  amigo  de  Roldão  implorou  o  seu  auxilio  no 
perigo  instante  emque  se  achava;  o  generoso  cavallei- 
ro não  hesitou  em  obedecer  ;i  invocação  do  brio  e  da 
amizade.  —  Assomaram  as  lagrimas  ás  pálpebras  de 
Hildegunda,  quando  oseu  querido  se  despediu  promet- 
tcndo  voltar  promptamcnte  :  não  achava  termos  para 
explicar  a  amargura  e  terror  occulto  que  lhe  repassa- 
vam a  alma  :  não  ponde  fer-se  que  não  caísse  de  joe- 
lhos, lastimando-sc,  c  supplieando  ao  noivo  que  não 
partisse.  Estí»  a  ergueu  carinhosameníe,  sorriu-se  de 
taes  sustos,  e  deu  o  signal  da  saída.  Hildegunda  o 
chamou  de  novo  para  rogar-lhe  com  instancia  que  não 
arriscasse  imprudentemente  a  vida  nos  eomliatcs,  c 
que  se  poupasse  pelo  amor  d'ella.  —  RoKLão  fci  ásoa 
adorada  todos  os  promeftimentos  que  lhe  exibiu,  e 
deixou-a  com  o  coração  não  menos  opprimido  de  car- 
regados presentimeutos.  Era  distante  a  arena  das  li- 
des a  que  o  chamava  a  honra:  fez  distincto  o  seu  va- 
lor por  brilli.intcs  feitos  d'armas,  e  parecia  que  o  amor 
o  protegia  no  meio  dos  maiores  riscos.  No  entanto 
proloiígaram-se  as  hostilidades;  e  não  okstante  o  de- 
sejo intenso  de  lornar-se  ás  margens  do  Kheno,  jicr- 
niaiieeeu  Roldão  liei  á  palavra  cpie  .a  seu  amigo  de- 
ra.—  l'orém,  assim  que  se  restalx-leccu  a  piiz,  sem  es- 
perar agradecimentos  do  soeeorrido,  c  nem  se  quer 
passar  pelo  seu  prtiprio  castello,  tomou  o  caminho  de 
Drachenfels.  Chegou,  finalmente,  ao  p<'  d'cste,  ja 
alta  noite:  \im  rumor  aliafado,  o  tinir  d'arinas,  vi>- 
zes  de  eomb;itentes,  subitamente  lhe  entraram  pelos 
ouvidos;  ajHTta  com  o  seu  ginete;  o  o  que  elle  lo«^ 
suspeitara  era  verdade.  L'm  di>s  eavalleiros  malvadi», 
que  n"essa  epocha  aviltavam  a  cavallaria,  aLicára  de 
improvi.-o  Drachenfels;  ainda  nos  ]>ate«s  andava  re- 
nhida a  peleja  ;  mas  tuilo  indicava  o  próximo  Iríum- 
plio  do  bandoh-iro.  Roldão,  veU>i  cx>mo  o  relâmpago, 
lanç;i-se  no  meio  da  refrega,  nenhum  dos  inimigos 
poudc  resistir  contra  asna  valente  impada.  Em  pouco 
tenuio  re|K-lliu  os  assaltantes  para  fora  da  cerca  exte- 
rior, e  o  sou  exemplo  reanimou  nos  homens  d''arnias 
do  castello  a  corag«'m   c  vigor,   que  estavam  quati  a 


o  PANORAMA. 


283 


abandona-los.  Obrado  de  guerra  de  Roldão  foi  repe- 
tido pelos  echos  das  montanhas  e  incutiu  terror  no 
[)eit<)  dos  inimigos.  NV'bt<!  momento  se  appresenta 
um  cavalleiro  entre  os  <jue  ainda  pelejam  completa- 
mente envoltos  nas  trevas  da  noite ;  o  recem-chegado 
ilerribado  por  uni  vigoroso  talho  d'espada.  ia  a  cair 
jior  t('rra,  tjuando  iini  punhal  lhe  poz  termo  á  vida. 
Os  salteadores  eseaj)arani-so  tumultuariamente,  e  os 
clamores  da  gente  de  Drachenfels  retumbavam  pelas 
fracas  dos  montes.  Roldão  perseguiu  vivamente  os 
fugitivos  .  .  .  mas  rjue  espectáculo  o  esperava  á  volta. 
Os  homens  (Parnias  do  Drachenfels  estavam  abysma- 
dos  em  profundo  etriste  silencio  eHildegunda  atroa- 
va os  ares  com  gemidos  que  lhe  arrancava  a  dor  pe- 
la morte  de  seu  pai,  de  quem  abraçava  o  ensanguen- 
tado cadáver.  Roldão,  esquecido  de  tudo  o  mais,  pre- 
cipitou-se  parasoccorre-la  ;  mas  ficou  passado  de  mor- 
tal assombro,  quando  á  luz  das  tochas  reconheceu  pe- 
la armadura  no  cavalleiro  incógnito  que  derrubara  o 
pai  da  sua  noiva.  l*or  um  engano  fatal  o  matara  no 
tumulto  da  refrega.  —  E  sou  ou  o  seu  assassino!  (bra- 
dou no  auge  da  exasperação).  Meu  Deus,  perdoai-me  ! 
Ena  tua  presença,  Hildegunda,  achará  o  meu  delicto 
perdão  ? . .  . 

—  "  Foste  tu  o  assassino  de  meu  pai !  —  E  ao  fin- 
ilar  esta  exclamação,  llildegunda  desmaiou  totalmen- 
te.—  Não  era  porém  cheu;;»lo  o  momento  de  arrebatar 
a  morte  tão  formosa  jircza.  Hildcgunda,  restituída  á 
vida  também  o  foi  á  dor  pela  perda  do  que  mais  pre- 
zava no  mundo :  copiosos  j)rant(is  lhe  manaram  dos 
olhos,  temperando  os  jirinieiros  transportes  da  sua  de- 
sesperação ;  intensa  pena,  [lorérn  muda,  lhe  tomou  as 
potenci.is  d'alma,  e  a  ri'Solveii  a  abandonar  o  século 
e  seus  prazeres,  e  até  a  mão  do  seu  futuro  esposo. — 
Roldão,  ao  saber  ila  sua  pro|)ria  bocca  tão  funesta 
deliberação,  poz  em  practica  todos  os  meios  para  dis- 
suadi-la des(;u  projxisiloi  mas  suas  diligencias  e  sup- 
plicas  não  impediram  que  Jlildegunda  fosse  buscar  á 
sombra  do  claustro  de  Nonniíwerlh  o  socego  da  alma 
V  a  consolação  única  que  podia  achar  na  terra. 

—  Jjcmbrar-nie-hei  de  ti  em  niinhas  orações  (lhe 
disso  Hildcgunda);  esquecer-me-hei  porém  dequeme 
estavas  destinado;  na  cella  pacifica  que  me  aguarda 
encontrarei  o  que  não  pôde  o  mundo  dar-me  •,  implo- 
rarei Deus  que  te  perdoe  ocrimc!  involuntário,  como 
eu  pro|)ria  te  p<!rdòo.  " 

Viu  então  o  misero  cavalleiro  desvanecer-se  Cjuaii- 
la  íélicidade  lhe  promeltia  o  futuro  ;  os  muros  do  claus- 
tro e  uma  cella  ucuihada,  encerravam  quem  ])odia 
realçar-llie  ávida;  depuz  armas,  largou  instrumentos 
de  caça  ;  luctuosa  trisl('za  cobriu  o  seu  castello,  iPan- 
tes  th(?alro  di-  alegria  e  divertimentos.  Desde  que  a 
aurora  desdobrava  no  orienti^  seu  vou  per|)urino  até 
<pje  o  erespueulo  iiidiíMVa  a  volta  da  noite,  o  viam 
ussent.ido  n'iima  sacada  (Ponde  avista  profundava  no 
hocegado  asylo  qu('  a  piedade  abrira,  na  ilha  de  Non- 
iiewerth,  ásconti^mplativasilonzellas  que  renunciaram 
oseculo  ])ara  consagr.uem-se  ,i  Deus  :  um  rápido  sen- 
ti mento  ile  |iraz<'r  lhe  vislumbrava  noseiiilil.inti',  quan- 
do alcançava  enlrevir  lliidegunda  que  ap|)ar(ícia  en- 
tre as  suas  companheiras,  como  o  l^rio  descorado  em 
meio  das  llores  do  jardim.  —  Assim  decorret-am  me- 
«es  ;  c  n'iim  dia  o  som  funéreo  e  coiii|)assado  do  sino 
do  nio6t(!Íro  veio  bater  em  stMis  ouviílos;  sombrio  e 
occulto  presentimi'nto  lhe  revelou  que  nqu(>lla  ])or 
amor  do  <|uem  ainda  linha  iipôgo  áexistencia  cessara 
de  pertciii'er  ao  numero  dos  vivos.  Nuvamente  as  la- 
(Çriínas  lho  huinede<eram  us  pal[)ebras,  ha  muito  tem- 
]]<>  enxutas  pela  amargura,  quando  viu  depositar  no 
seio  da  terra  a  que  tanto  amara.  Desde  <!sse  momen- 
to, a  sua  vista  eonstanti-meute  se  dirigia  para  o  tumu- 
lo silencioso  (|ue  ;i  amizade  das  compaiih<'iras  de  Jlil- 


degunda cercara  de  ameno  jardim,  ornado  das  flores 
mais  lindas.  Finalmente,  Deus  teve  compaixão  do 
soIVrimento  do  triste  cavalleiro,  e  n^nm  dia  o  acha- 
ram inanimado,  com  o  rosto  voltado  ainda  para  a 
parte  d'aquelle  tumulo. 

Os  castellos  de  Drachenfels  e  Rolandteck  de  ha 
muito  que  estão  destruídos;  só  asruinas  attestam  sna 
passada  existência.  No  cume  de  Rolandseck  subsis- 
tem todavia  os  restos  de  um  sobrearco  da  janella,  to- 
dos forrados  de  heras,  onde  Rolando  passou  horas  tão 
melancliolicas,  contemplando  o  tumulo  da  sua  queri- 
da ;  porém  a  chronica  e  a  poesia  celebram  sempre  e 
transniittirão  a  remota  posteridade  osleaes  amores  de 
Rolando. 


O    DOBRAR    UOS    SINOS. 


Considérée  comine  harmonie,  laclorhe  a 
indiibilableinent  une  beaulé  ile  la  pre- 
niiéresorle:  celle  que  Icsartistesap- 
pellent  le  grand. 

CnATEAcr.niiND. 
1'kzado,  lúgubre  sino, 
Em  vaivém,  qual  o  da  sorte, 
Desprendes  sons,  que  recordam 
Lembranças  tristes  da  morte. 

Ha  n^esse  dobrar  singello, 
Mil  torrentes  d^harmonia  : 
Sublimes  notas,  que  ferem, 
tifexcitam  melancholia. 

Essa  fúnebre  toada 
Vibra  n'alma  do  christão, 
Como,  o  raio,  quando  estala ; 
Como  os  gritos  d'aflição. 

O  coração  dos  t^'rannos 
\  ergas,  como  brando  vime  : 
Ao  peito  d'esposa  adultera 
l'ezar  levas  do  seu  crime. 

Soltas  do  mão  homicida 
l'iiiihal,  ébrio  de  vingança; 
A  culpa  dizes  :  —  remorso  1 
Ao  innocente  ;  —  esperança  ! 

J'assado  e  futuro  a  todos  ; 
A  lodos  a  eternidade! 
Tormentos,  <|ue  não  acabam  ; 
( )u  elhérea  felicidade. 

lluando,  triste  som  começa 
RraiiiliiuKMite  compassado, 
E  veloz,  segue  troando  ; 
E  morto!   E  morto!   E  linado ! 

Como  s'imitar  (piizesse 
Lenta  vida  agonizanle, 
(l\>ni  mortal,  ultimo  arranco 
S^esvaíra  dcdiranle  ; 

Se,  mil  coraçõi's  divi-rsos 
O  escutam:  —  n'esse  momento. 
'I'odos  elles  |ialpitaram. 
Em  aeeorde  Mantimento  ! 

Som  d'eslraidia  melodia  I 
(  >  teu  (iregão  é  fatal 
Oue  são  vaiilades  ilo  mundo. 


(iuando  viizi^a 


mortal  ! 


284 


O  PANORAMA. 


Mortal  !  — íolcmnc  epitaphio, 
De  nossa  cominum  jazida  : 
Vigia,  fjuo  nos  despertas, 
Do  sonho  falso  da  vida  ! 

—  Oii  !  n'csse  dobre  singcllo 
Ha  iiiixlo  de  céu  e  inferno  : 
Um  tal  seqiredo,  um  mistério  .  .  , 
]la  n'elle  um  poder  eterno  I 


Em  dia  de  Finados  de  13  16. 


C.  Cascaes. 


O   TIMBAI.EIBO. 


O  INSTRUMENTO   conliecido  na  musica   marcial  polo  i 
jioine  de  iimhalcs  veio  d^Allcmaulia.  [ 

Os  primeiros  <|ne  apparcccram  cm  França  foi  cm 
1457,  no  séquito  da  embaixada  que  Jjadishin.  rei 
de  Hungria,  mandou  a  Carlos  \  II  podiudo-Uic  a 
inão  de  sua  fdlia  Maçdalcna.  Este  ruidoso  instru- 
mento, que  convém  não  cr.iilimdir  com  o  cifinbalum 
ou  atabales,  os  ijuacs  são  de  remotíssima  anti;riiida- i 
de,  c  mui  commum  entro  os  orientaos  o  até  outre  os 
negros  de  Africa,  posto  (jue  grosseiro  como  ellcs. 

Carlos  ^  H,  grande  amigo  de  festas  o  folguedos,  a 
jionlo  de  ])or  amor  d'clles  desprezar  <is  cuidados  da  ! 
realeza,  devia  vôr  com  muilo  goslo  um  instrumento  ■ 
novo,  que,  atroando  os  ouvidos,  convidava  ao  mesmo 
tempo  os  olhos  á  contcmpla(;rio  da  magnificência  de 
lima  embaixada  que  havia  de  lisongear  a  sua  vaida- 
de. Ciuasi  tudo  o  que  é  novo  agrada,  ainda  que  não 


seja  senão  como  estimulo  de  curiosidade ;  felizmente 
a  d"este  rei  levava-o  a  amar  a  verdade,  talvez  tam- 
bém como  objecto  curioso  e  raro  de  enconlrar  nos  pa- 
ços dos  raonarchas.  "Onde  eslá  cila,  exclamava  al- 
gumas vezes,  a  pobrcsita  deve  de  ter  morrido,  e  mor- 
rido sem  confissão.  " 

Caindo  alzuns  dos  timbales  allcmães  em  poder  doi 
soldados  no  fim  do  WH  século,  então  fui  permitti- 
do  pelo  rei  de  França  usarem  d^esses  instrumentos 
os  corpos  militares  cjue  os  haviam  tomado  ao  inimi- 
go. De  futuro  foram  concedidos  ás  companhias  da 
guarda  real  e  aos  regimentos  de  cavallaria.  Tamlicm 
para  estes  se  adoptaram  em  Hespanha  e  Portugal. 

(,'onla-se  que  certo  maniaco  pela  musica  instra- 
mcntal  queria  cercear  a  paga  de  um  pobre  timba- 
leiro,  porque  o  via  estar  parado  em  quanto  os  seus 
companheiros  desengonçavam  os  braços.  Custou  mui- 
to a  despersuadi-lo  de  que  o  limbaleiro  não  era  man- 
drião, e  merecia  o  salário  do  seu  trabalho,  que  não 
consistia  em  tocar  muito,  mas  em  tocar  a  propósito. 

Quantos  homens  que  lêem  mando  sobre  outros  ad- 
quirem, caindo  em  faes  parvoíces,  a  fama  de  zeloso* 
e  activos.  Mas  deixemos  ir  o  mundo :  nada  de  mora- 
lisar  sobre  uns  timbales.  que  são  muito  chocalheiros. 

A  estampa  representa  um  timbaleiro  fardado  • 
montado  á  moda  do  século  passado. 

Ódio  telho  xão  cavça. 

(Romance  Hislorico.) 

V 

o  castello  de  Sancta  Olaia. 

Em  quanto  Gomes  Lourenço  ao  lado  de  3Iaria  Paes, 
refreando  o  fogoso  corsel,  se  distrahe  d.as  idéas  tris- 
tes, chegaram  a  Sancta  Olaia  D.  Martim.  e  pouco  de- 
pois o  monge  de  Cister.  O  castello  tinha  a  voi  de 
elrei,  co  alcaide  D.  Nuno,  amigo  e  parente  do  ric«>- 
homem  de  Lanhoso,  reeebendo-o,  ouvia  a  historia  do 
rapto  commeitido  em  iVvellans  pelo  mais  moço  dos 
Viegas. 

O  castello  de  Sancta  Olaia  já  então  n.^o  era  ascn- 
finelia  de  Coimbra,  levantada  no  alto  para  annun- 
ciar  as  corridas  dos  ar.ibcs.  Diante  do  braçii  victo- 
rioso  de  Aflbnso  Henriques,  os  esquadrões  do  Islam 
recuando  de  Leiria  até  Santarém  abrigaram-sc,  por 
fim,  á  sombra  dos  muros  de  Lisboa,  aonde  se  pelejou 
a  batalha  cm  que  perderam,  com  a  sultana  doTejo, 
as  ferieis  várzeas  da  Estremadura. 

Desde  esse  dia  Coimbra  despiu  a  couraça,  e  de 
guerreira  tornou-?e  corteiã.  Já  não  e.Trecia  d'enganar 
o  somno,  recost.ida  ao  escudo ;  nem  do  afiar  o  ouvi- 
do, no  silencio  da  noite,  para  da  erguida  atalaia  to- 
car i>  rebate.  .\o  castello  de  Sancta  Olaia,  seu  com- 
panheiro d'armas,  foi  igualmente  livre,  então,  depor 
a  lança  e  respirar  da  lucta  de  meio  século.  Deixara 
de  ser  o  gladiador  prompto  a  aparar  .is  primeiras 
freclias  despedidas  ao  peito  d,i  rainha  da  lleira.  As 
iras  dos  mouros,  accesas  no  intento  de,  jior  cima  do 
seu  cadáver,  baterem  ás  jxjrt.as  da  .Vlmedina,  amor- 
Ircidas  com  o  tempo,  e  poios  acontecimentos  da  guer- 
ra, nem  o  (xnliani  seipier  ameaçar.  Clucbradas  pelos 
revezes  tiiiham-se  froí-ado  no  desalento,  que  precede 
as  derrotas. 

O  árabe,  escravo  do  destino,  curvando  a  fronte, 
submcllia-se  resignado.  Depressa  reconheceu  i|ue  nun- 
ca mais,  envolto  no  albornoz,  dorniirá  á  sombra  do» 
pomares,  acalentado  polo  Mondego,  que  a  briía  cm- 
|v>lr. .  t^sol  do  imjKrio  dcTarik,  apagando-sc  uo  oc- 


o  PANORAMA. 


285 


caso,  só  um  ou  outro  raio  podia  antes  golphar  mais 
puro  ^  porfjiin  as  trevas  da  agonia  principiavam  pa- 
ra elle.  Descendo  ao  tumulo,  ainda  vivo,  ouvia  ran- 
ger a  canij)a,  em  (]ue  u  historia,  gravando  um  nome 
illustrc  e  uma  grande  lição,  legava  n'elles  o  exem- 
plo c  a  herança  do  futuro. 

Na  terra  consagrada,  em  que  o  rei  soldado  descan- 
sou de  oitenta  annos  de  fadigas,  acabava  de  se  erguer 
oreino  portuguez.  O  leão  do  occidente,  íjlho  do  ocea- 
no e  da  guerra,  como  Alexandre,  estava  fadado  |>ara 
devassar  pela  gloria  á  Europa  os  mares  e  as  regiões 
além  do  misterioso  Indo. — A  America,  mundo  bal- 
buciante, e  irmã  mais  nova  do  antigo,  alli  esperava 
desde  si-culos  a  hora  em  que  o  dedo  de  Deos,  arran- 
cando-a  á  solidão  moral,  a  arremessasse  ainda  vir- 
gem pela  estrada  do  ])rogredir  humano  ! 

Os  tempos,  correndo  sobre  o  castello  de  Sancta 
Olaia,  crestaram  as  pedras.  As  raças  conquistadoras, 
íuicidando-se,  estamparam-lhe  na  fronte,  cadauma  a 
sua  pagina  ^  mas  oodiocivil,  mais  feroz,  não  se  pejou 
de  destruir  o  que  ellas  poupavam.  Muito  antes  do 
conde  Henrique  vinganças  de  faniilia  poderosas  des- 
locaram as  quadrellas,  e  demoliram  as  torres,  que 
nem  o  temporal  dos  annos,  nem  as  devastjções  dos 
bárbaros  tinham  prostrado  !  O  incêndio  acabou  o  res- 
to;  CO  monumento  que  assistira  de  pé  á  marcha  trium- 
phal  das  cohiirlcs  romanas  e  das  tribus  do  norte  \  que 
não  vacillava  ao  embater  doscavalleiros  dWfrica  nas 
hostes  godas,  succumbiu  em  uma  noite,  victimad  obs- 
curo encontro. 

Aonde  os  rozaes  em  latadas  enramavam  viçosas 
ruas  \  heras,  cardos,  e  arbustos  silvestres,  eriçando-se, 
apregoaram  a  loucura  das  vaidades  do  homem.  A  as- 
solação, assentada  nos  vergéis  em  que  o  mouro  can- 
tou o  Éden,  pelo  silencio  das  ruinas  ensinava,  que 
prazeres  e  belleza  o  sol  os  abre,  e  a  noite  os  leva. 

Foi  no  remanso  da  paz,  ou  na  pausa  breve  da  ten- 
da de  guerra,  queAdonso  lienriques  tornou  a  coroar 
d'ameias  o  arremessado  monte,  aondí;  o  alcácer  cam- 
peava.—  No  tempo  em  que  passa  esta  historia,  as 
cearas  ondeando,  os  pomares  recendendo,  e  as  noras 
(comedoras  mostravam  que  a  vida  de  novo  volvera  a 
visitar  aquelles  sítios.  As  casas,  antes  raras  o  aninha- 
das ao  abrigo  das  torres,  sem  temor  se  penduravam 
pela  encosta  Íngreme.  Com  a  guerra  fugiram  os  re- 
ceios. Asehammas  ateadas  pelas  correrias  nunca  mais 
hão  de  morder,  em  espiras  roxas,  a  loura  cabeça  das 
paveias,  nem  cnroscar-se  pelas  vigas  de  castaidio  dos 
tectos,  em  quanto  ao  perto  e  ao  longe  osanalis  do  ára- 
be entoam,  feros  d^alegria,  o  liymno  das  ruinas. 

Esses  dias  de  lucto  passaram,  para  não  voltar  .  .  . 
ii)  se  for  na  dextra,  pezada  de  crimes,  da  lucta  civil  ! 

Entretanto,  arrazanilo  tudo,  a  raiva  tios  homens  e 
.1  furía  eh)  incêndio,  tinham  respeitado  uma  antiga 
torre,  preta  como  a  face  do  elhio|)e,  scinlilhindo  pe- 
lo» dois  óculos  rasgados  na  testa  o  luzeiro  vivo  que, 
na  escuriílrio,  fulgia  como  os  olhos  reluzentes  do  um 
ilemonío,  C4uem  amassara  oeimenio  ipie  lhe  unia  as 
juncturas?  (Aue  segredo  lançou  n'esses  cantos  de  ro- 
tdieilos  desíguiies  o  archileito,  para  os  não  corroiT  o 
hálito  dos  iiecuhis  f  Aondi'  estava  a  sciencia  capaz  de 
loletrar  n'ai|Urlla  folha  de  pedra  o  pensamento  da 
giTaeão  que  escrevera  as  piimciras  linhas.'  —  Em  ro- 
ila  tutlo  caíra  ^  porque  mistério  só  ella,  salv.i  da  es- 
pada, dos  séculos  e  do  fogo,  sobrevivia,  eli-vando  a 
negra  fronte  cjue  topetava  com  as  nuvens,  de  cima 
dus  quaes  a  aguía  a  contemplava,  arfando  as  azas ! 
Os  andan's  achatados  e  massudos,  subindo,  <>streita- 
Tam-ae  )iara  rematarem  no  eirado,  aonih;  se  abria 
um  circidn  a  bocca  da  escida  interior.  l*or  baixo  do 
chão,  nus  entranhas  da  rocha,  gyravam  corredores  e 
kalaii.   Era  lú  que   a  superstição  do  povo  collucavu   a 


scena  das  maravilhosas  lendas  da  sua  m^thologia  \ 
porque,  na  realidade,  sobre  aquella  torre,  que  o  vul- 
go appellidava  niatJicta,  nas  horas  de  tempestade  pa- 
recia alçar-se  o  spectro  gigante  do  primeiro  homici- 
da. Os  monges,  por  isso,  ou  por  outra  razão  hoje  des- 
conhecida, deram-lhe  o  nome  de  torre  de  Caim. 

O  mais  estremado  cavalleiro,  ao  passar  perto  d^el- 
la,  no  breve  espaço  que  foge  entre  o  ultimo  raio  de 
sol  e  o  aportar  das  sombras,  olhando  as  estrellas  tre- 
mulas, invocava  a  \  irgem,  que  ellas  coroam  de  glo- 
ria immarcescivel. — De  noite,  fora  de  huras,  os  agu- 
lheiros das  abobadas  subterrâneas  accendiam-se  n'um 
clarão  lívido,  transudando  harmonias  de  harpas,  me- 
lodias de  cânticos,  pragas  e  rizos,  como  os  que  se  ou- 
vem á  mesa  de  festim  dissoluto.  Quem  vira,  quem 
escutara  ?  Ninguém  !  Mas  dizia-se,  era  voz  do  povo. 

Asseguravam  mais,  que  em  certos  dias  os  senho- 
res e  seus  convivas,  ha  tantos  séculos  enterrados, 
saíam  da  cova,  e  despindo  os  sudários,  por  minutos 
atavam  o  fio  <la  vida,  espantando  o  inferno  com  as 
imagens  d'antigos  crimes. 

No  anno  de  lail,  e  na  tarde  em  que  estamos,  a 
torre  de  u  Cain  "  foi  comtudo  visitada  por  hospedes, 
que  nada  tinham  de  sobrenatural  — A  grade  de  fer- 
ro da  ermida,  que  não  se  abria  ha  quarenta  annos, 
rangeu  nos  enferrujados  gonzos:,  e  a  claridade  baça 
do  lampadário  de  bronze,  estremecida  bateu  nos  cor- 
pos d^armas,  capellos  e  pendões,  de  feitio  desusado, 
pendurados  das  columnas.  Outra  vez  pés  de  homem 
e  tinir  dVsporas  soaram  nos  degraus  partidos  da  es- 
cada, enredados  de  hervas  e  musgos.  Breves  instan- 
tes, no  terraço,  bojando  curvo  de  ruinas  para  o  tecto 
da  sala,  se  divisaram  dois  eavalleiros  e  um  monge, 
que,  depois  de  mirarem  em  volta,  e  sobre  tudo  pfira 
a  parte  de  Coimbra,  voltaram  á  igreja,  continuando 
a  conversação  principiada  l.i  em  cima. 

.\o  entrar  na  ermida,  esperava-os,  entre  portas, 
um  homem  de  robusta  estatura.  \  estia  loriga  tecida 
de  tiras  de  couro,  e  por  cima  saio  branco  e  verme- 
lho, cores  do  solar  de  Lanhoso.  O  casco  de  ferro  liso 
carregava  nas  sobrancelhas  hirsutas.  As  barbas  e  ca- 
bellos,  do  ruivo  aguado,  enrissados  como  a  juba  do 
leão,  encrespavam-sc  ásperos  sobre  o  peito  e  pelos 
hombros.  Os  olhos,  pequenos  e  sumidos,  luziam  com 
brilho  esverdcíado.  Encostando-se  deleixadamente  ao 
cabo  de  um  machado,  que  lampejava  em  veios  azues- 
ferretes  como  as  boas  folhas  de  Damasco,  ergueu  a 
cabeça  quan<lo  Martim  l'aes  chegou,  c  boliu  os  bei- 
ços ;  porém  a  um  aceno  d'este,  volveu  á  primeira 
postura  o  licou  immovel. 

A  escada  por  onde  descoram,  no  patim  da  sala 
d'arnias  dívidia-si;  em  duas.  Uma  ia  ter  ao  eirailo ; 
a  outia  á  capella,  construída  de  forma  que  as  pala- 
vras pronunciadas  n''ella  se  escutavam  distinctamente 
nos  aposentos  de  cima.  Na  igreja,  colgaduras  escuras 
disfarçavam  os  rombos  das  paredes.  No  altar  de  már- 
more, a  pressa  ornado  de  tVunt.d  custoso,  mas  desme- 
recido, tinham  livaiilado  a  cruz  do  descinuMilo  com 
a  toalha  sobr.içada.  O  alanipad.trío  pendia  sobre  tr<'> 
túmulos  ih-  lavor  grosseiro.  O  monge  ahí  ili'>cobriu 
lelreinis  (jue  lh'estrenieceram  o  coração.  ..  .Vnsur  Lo- 
pes-' em  uui.  4i  D.  jNloço  Ansures"  defronti-.  K  ,10 
lado  do  altar,  com  o  galgo  aos  pés,  a  ligura  de  um 
guerreiro,  o  >>  conde  Ordiudio." 

l'or  <!ntre  montes  de  caliça,  debalde  andou  |>ri>iu- 
lando  outra  sepultura.  l*or  lim,  examinada  nnllior 
a  dl!  Moço  Ansures,  nas  ap:ig.idas  lei  trás  rastreou  o 
nome  (|ue  buscava,  nume  querido  di-  mtdher  —  ..  .\u- 
zenda  !  ■< 

Escapuli, iin  lhe  ni.d  sentidas  lagrimas  soltri'  aquel- 
les dois  punliailos  de  pó,  qm-  até  a  urna  cineraria  te- 
ve dó  dt'  sep.irar.    O»  íamos  de  arvore  oriental,  des- 


286 


O  PAx\ORAMA. 


cabcUando-se,  dcl)riif;avam  sobre  metade  da  campa 
um  docel  de  palmas  vectjantes  e  estrellas  gredelins. 
A  M-rbena,  os  -goivos,  e  os  lyrios  sylvestres,  frescos 
(la  agua  ([ue  estilavam  as  junctas  rotas  das  abobadas, 
arqueando-se,  envolviam  em  viçosa  alcatifa  a  triste 
morada  dos  dois  noivos.  Recostada  assim  no  berço 
dos  amores,  a  morte  nada  tinha  de  pavorosa. 

Km  quanto  o  frade  se  inclina  para  a  c:impa,  em 
(jue  pelos  olhos  da  imaginação  vê  passar  chorosas  as 
sombras  dos  amantes,  Jlartim  Paes,  chamando  o  ho- 
mem d'armas,  arredou-se  com  eilc  para  um  lado. 

D.  IVuno  passeiava,  reflectindo.  Adiantado  em  ân- 
uos, carregado  de  semblante,  e  sem  calor  nos  olhos 
pardos,  a  sua  vista  fria  c  lenta  gelava-se  em  fitando 
alguém.  Respondendo  aos  pensamentos  Íntimos,  um 
sorrizo  desmaiava  nos  cantos  da  bocca,  motcjador  ou 
feroz,  segundo  era  d'escarneo  ou  de  crueldade  a  idca 
que  o  suscitava. 

—  «Telo  Ervigiz,  dizia  Marlim  Paes,  aonde  foste 
nado  e  manteúilo?» 

—  ii  No  solar  de  Lanhoso  n  respondeu  o  homem 
d"armas  com  singelleza  rude. 

—  "Sabes  o  que  me  deves  fn 

—  "O  corpo  pelo  sustento,  a  alma  pelo  baptismo, 
e  o  sangue,  que,  sem  vós,  teria  escorrido  das  varas 
do  carrasco. » 

—  "Pediste-me  abrigo  e  protecção.  Neguei-t'a  al- 
guma vez? » 

—  «Nunca. » 

—  ii  Nasceste  servo.  Quem  te  fez  livre??' 

—  4t  \  os .  " 

1  Quem   te  deu   a  mulher  que  amaste,    a  casa 

cm  que  vives,  a  terra  que  lavras,  e  o  berço  de  teus 
iilhos  ? » 

—  íí  Vos.  " 

—  «Telo  Ervigiz,  o  solar  de  Lanhoso  foi  deshon- 
rado  I  " 

Todas  as  perguntas  até  estas  ultimas  phrases  ti- 
nham sido  feitas  no  mesmo  tom  rápido  e  natural; 
mas  ao  proferir  a  palavra  dcshonra,  a  voz  do  caval- 
leiro  tornou-se  vibrante  c  aguda.  Ouvindo-a,  o  sola- 
rengo pulou  para  traz,  como  mordido  devibora,  epor 
Ímpeto  instinctivo  floreou  a  hacha,  exclamando  rouco  : 

—  «  Deshonrado  !  ?  •' 

—  iiDeshonrado  para  sempre.  Hoje  vai  mais  o  teu 
nome  que  o  do  senhor  dos  paços  em  que  te  creastes. " 

O  rosto  de  Tclo  Ervigiz,  ora  branco  ora  afoguca- 
<Io.  retratava  a  dòr  e  a  sede  de  vingança.  O  assom- 
bro pintava-se  nos  l>ciços  entreabertos  e  nos  olhos  di- 
latados:,  a  cholera  nas  pupillas  encandeadas  como  as 
do  tigre,  e  nas  alvas  amarelladas,  que  o  furor  injec- 
tava de  veios  sanguíneos. 

—  II  Infame  ...  o  solar  de  Lanhoso  !  .  .  .  " 

Eram  duas  palavras,  que  em  toda  a  vida  não  sa- 
beria ajunctur  nunca. 

—  4iA  filha  de  meu  pai,  continuou  D.  Martim,  a 
lilha  de  teu,  amo,  Ijcará  viuva  sem  ter  marido  .  .  . 
entendes?  E  o  appcllido  da  nossa  casa  cscripto  com 
II  lodo  das  prostitutas  !  .  .  .  Quem  sabe  ?  Amanhã,  ao 
tecto  em  ([ue  moras  chegará  o  homem  de  Riba-l>ou- 
ro,  e,  arrancando  o  filho  do  peito  ú  mãi,  com  ella 
nos  braços  rir-se-ha  de  ti,  como  riem  de  mim,  os 
covardes  !  . .  .  v 

O  solarengo  não  rpsjxindeu.  jMas  os  cabellos  e  as 
barbas  pareciam  espinhos,  e  os  dentes,  alvos  e  agu- 
çados, rangeram  uns  nos  outros.  Com  um  revci  da 
liacha  lascou  a  aresta  da  campa  visinlia. 

—  ti  KÍ7.-fe  livre  como  o  ar,  Telo  Erviçii;  p  nas 
luas  mãos  ponho  a  honra  de  Lanhost).  ^"inga-a.  Que- 
res apagar  a  aíTronta  da  face  de  leu  amo?" 

Telo  Er\igÍ7,  sem  o  entender  bem,  largando  a 
hacha  ajoelhou-se. 


—  "  A  mim  essa  pergunta  ?  I  ••  disse  elle  chorando. 

—  u  Então,  interrompeu  Martim  Paes,  erguendo-o, 
farás  o  que  mandar  ?  " 

—  «Tudo.  r" 

—  "O  homem  que  nos  dcshonrou  charaa-se  Gomes 
Lourenço,  n 

—  «Onde  está?»  gritou  o  solarengo  dando  um 
passo. 

—  «Aqui  perto.  \  em  caminho  do  castello.  Quero 
que  morra  da  tua  mão  como  traidor." 

—  "Apesar  de  velho,  não  erra  setta  do  meu  arco. 
e  gol[>e  do  meu  braço  entra  ate  os  ossos .  .  .-• 

O  senhor  de  Lanhoso  despregou,  ao  ouvi-lo,  um 
sorrizo  de  mofa  e  crueza. 

— « Não  me  entendes.  Essa  Diorte  não  a  sentia 
elle !  Ha  de  vêr  cavar  a  cova,  coser  a  mortalha,  e 
afiar  o  cutello .  .  .  Morrerá  justiçado  por  ti.  « 

—  "  Por  m  i  m  I  ?  .  .  .  >i 

E  ao  proferir  estas  palavTas  recuava  de  horror  uns 
poucos  de  passos.  A  falsa  e  grosseira  idéa  dos  devere« 
do  homem  d^armas,  tirava-lhe  o  escrúpulo  de  matar 
com  a  apparencia  de  combate;  porém  só  ao  nome  de 
algoz,  a  vergonha  e  a  anciã  cortavam-lhe  a  alma. 

—  «Telo  Ervigiz,  bradou  D.  Martim,  levei  dei 
annos  a  fazer  um  ingrato?  —  e,  vendo-o  immovel. 
uniu  as  mãos,  exclamando: — Meu  Deus,  ainda  me 
faltava  este ! " 

O  homem  d^armas,  com  a  cabeça  descaída  e  o» 
braços  hirtos,  continuava  sem  dizer  palavra. 

—  «Se  não  ha  outro,  murmurou  emfim,  seja  ;  mas 
os  meus  filhos  hão  de  chama-los  filhos  do  carrasco.  •• 

—  «  Ninguém  o  sabe"  acudiu  o  cavalleiro. 

—  «E  Deus?"  interrogou  uma  voz  atrai  d"elle. 
Olharam  ;  era  o  monge  de  Cister. 

—  "Deves  a  Marlim  Paes,  disse  o  frade  virando- 
se  para  Telo,  o  corpo  e  a  liberdade.  Que  te  lance 
ferros  e  te  mate,  se  quizer;  mas  que  não  tente  per- 
der-te  a  alma.  Pelo  sangue  de  Christo,  não  vendas  «> 
que  é  do  céu  I  " 

—  "Sancta  ^  irgem  !"  soluçou  o  solarengo. 

—  «Não,  homem  temente  a  Deus.  vende  antes  a 
teu  amo,  acudiu  D.  Marlim  com  amargura.  Casti- 
ga-o  da  loucura  de  acreditar  que  podia  haver  leal- 
dade no  peito  d'um  villão." 

Era  tão  pungente  o  ar  com  que  disse  isto,  que  vin- 
te punhaladas  doíam  menos.  Telo  Ervigii  não  resis- 
tiu mais  -,  e,  abaixando  a  cabeça,  murmurou  triste- 
mente : 

—  «Serei  verdugo.  . .  tudo  o  que  quizcrem.  ^las 
depois  ..." 

—  «Espera  pelo  inferno!"  bradou  o  frade,  amea- 
çando-©. (  CotUinúa.) 

Os  COLOCBOS. 

Nas  costas  do  noroeste  da  America,  entre  os  40  c  CO 
graus  de  latitude,  e  nas  fronteiras  das  colónias  rus- 
s;ís,  vive  um  jv)VO  desconhecido  ate  uma  ejK)cha  rs- 
ccnlc.  Chamam-lhe  o  povo  dos  colochos. 

Os  colochos  são  de  estatura  mediana,  espertos  o 
destros  \  tcem  cabellos  compridos  e  negros,  e  a  pellc 
parda  escura,  pintam  t-.xlavia  o  rosto  com  diffcrente» 
cores,  oapplicam  um  jh-Io  branco  sobre  os  seus  áspe- 
ros calwllos.  As  mulheres,  na  menenice  rasgam  o  bei- 
ço debaixo,  que  estendem  por  meio  de  um  j>edaço  de 
madeira  até  descer  abaixo  da  barba  :  dos  homrnt  os 
pnions  ou  anciãos  são  os  únicos  que  seguem  esta  mo- 
da. Avaliam  a  bclloza  pelo  maior  ou  menor  oimipri- 
mento  do  lábio  inferior.  O  seu  %estu«río  consiste 
n'uma  manta  branca,  feita  de  lã  doctrneiro.  en'uma 
jH-lle  ou  n'um  grande  panno  quadrado  que  lançam 
sobre  os  horobros. 


o  PANORAMA. 


28: 


Oscolochos  não  gostam  da  guerra  declarada;  com- 
tudo  mostram  muito  valor  quando  sSosalleadoj.  Dão 
torturas  e  morte  cruel  aos  prisioneiros,  principalmen- 
te sendo  europeUs,  que  muitas  vezes  sobrecarregam 
de  trabalhos  penozos  a  que  as  victinias  succurabem. 
Algumas  vezes  vem  os  navios  dos  Estados- Ln idos  per- 
mutar n'estas  costas,  p)r  pclies  de  lontras  pequenas 
peças  deartilheria,  espingardas  epunhaes,  que  osco- 
lochos preferem  ás  lanças  e  flechas  de  que  usavam  an- 
tigamente. Costumam  por  um  modo  systematico  fa- 
zer o  corpo  insensível  ao  frio  e  á  dor.  Os  rapazes 
abrem  toda  a  cana  do  braço  com  uma  concha  agu- 
çada, egabam-se  d'este  acto  de  heroísmo,  sem  solta- 
rem um  gemido.  Andam  descalços,  mesmo  quando  o 
frio  é  de  vinte  graus  ;  saem  d' um  banho  quente  e  met- 
lera-se  no  mar,  onde  licam  parados  cousa  de  meia 
hora.  Depois  d'este  refresco  alguns  colochos  querem 
ser  açoutados  até  deitarem  sangue,  e  assim  adquirem 
o  direito  de  escolher  mulher  entre  as  beldades  colo- 
chas,  sem  que  de  nenhuma  d'ellas  possam  soffrer  re- 
pulsa. 

Os  habitantes  não  crêem  &'um  ente  supremo.  \  êem 
no  homem  umserai-deus,  e  no  corvo  o  dispensador  da 
vida.  Vamos  dar  um  extracto  á  sua  mjthologia. 

O  primeiro  habitante  do  nosso  mundo  chamava-se 
Kitch-Usin-Si  ;  matou  os  filhos  de  sua  irmã  para  que 
I)  género  humano  não  multiplicasse.  Comtudo  ainda 
na  terra  existiam  outros  homens  independentes  do  seu 
poder:  intentou  destrui-los  com  uma  grande  inunda- 
ção, porém  alguns  d'ellcs  salvaram-se  nas  suas  bar- 
cas, retiraram-se  para  as  altas  montanhas  onde  a  agua 
não  podia  chegar,  e  amarraram  os  seus  bateis,  que 
ainda  lá  estão.  A  irmã,  com  medo  dos  tormentos 
eternos,  se  apartou  do  irmão  e  fugiu  para  a  beira- 
inar  onde  construiu  uma  cabana.  \  iu  brincar  as  ba- 
leias nas  ondas  douradas  pelos  raios  do  sol,  chamou-as, 
e  dcterminou-lhes  que  lhe  trouxessem  alimentos  pa- 
ra não  morrer  á  fome.  As  baleias  não  lhe  deram  res- 
|X)sta  e  desappareceram  ;  mas  de  noite  veio  um  ho- 
mem de  agigantada  estatura,  e  a  interrogou  acerca 
do  seu  infortúnio,  Contou-lhe  a  mulher  que  seu  ir- 
mão lhe  matara  os  fdhos,  que  o  med»  a  obrigara  a 
fugir,  e  ijiie  viera  ler  a  esta  paragem  onde  padecia 
fome.  Kiitão  o  homem  mandou  a  um  escravo  que  o 
acompanhava  que  fosse  buscar  uni  seixinho  redondo 
a  um  banco  de  areia  que  estava  no  meio  do  mar  •, 
deitou  o  seixo  no  lume,  e  quando  o  viu  em  braza  dis- 
se á  mulher  que  o  comesse  eretimu-se  proferindo  es- 
tas palavras:  «Tu  darás  á  luz  um  filho  que  ninguém 
poderá  matar.  " 

J'^Ua  teve  um  filho,  ao  qual  cliaiiiou  El-rieh,  eque 
todos  os  dias  banhava  no  mar.  Cresceu  o  filho  e  a 
mãi  fez  e  eiitregou-lhe  um  arco  e  flechas  com  que 
Kl-rich  nialiMi  niuitDS  piea-llorts,  de  cujas  pennas 
ella  fez  veslido-i.  Elri-t-h,  tendo  morto  um  dia  uma  ave 
branca  inuifo  grande,  tirou-lhe  a  jjalle  e  vesliu-a,  e 
percebendo  que  o  pássaro  st;  servia  das  azas  para  voar, 
disse  conisigo :  utiuem  me  dera  voar  como  um  pás- 
saro !  »  Voouap<-na»  soltara  estas  ]>alavras,  mas  como 
ainda  não  sabia  fazer  Ixuii  uso  das  azas,  vagava  no  ar 
como  tonto,  e  exclamou  dando  um  suspiro;  i>Ah! 
(juem  me  ch^ra  tornar  para  o  pé  de  minha  mãi!»  No 
mesmo  inslanl<'  se  achou  ao  lailod\-lla  na  sua  cubana. 

Certo  dia  narrou  a  mulher  a  «eu  filho  a  maneira 
com  ijue  Kitcli-L  siii-Si  a  Iractára,  e  porque  moti\o  vi- 
via n'esle  ermo  ;  a  narração  enfurcci'u  o  iiiaiici-lx) ;  as- 
segurou á  mãi  que  liavia  de  vinga-la  e  punir  otliio. 
Mas  amai  não  queria  consentir  em  lai,  teiiieiKli>que 
não  saisse  \iv(i  da  eiiipreza-,  ludavia  cedeu  p<ir  fim  ás 
suas  supplicas.  (•«■Iji-  partiu,  eehegando  á  uiorada  de 
seu  tliio  soube  pi-hjs  rM'r;n  os  iPcsto  qiii-esta\a  ausen- 
te. \  iu  o  muiicebo  uma  grande  arca  u  pergunlandu  o 


que  continha,  respondcram-lhequeo  thio,  cioso,  n'el- 
le  encerrava  a  sua  formosa  e  joven  consorte  todas  as 
vezes  que  saía  do  casa.  Entretanto  expulsou  El-rich  os 
escravos,  abriu  a  prisão,  tirou  para  fura  a  rapariga. 
e  com  ella  viveu  vida  alegre  e  deleitavel.  Dias  de- 
pois, estando  os  escravos  na  praia,  como  enxergassem 
a  barca  de  seu  senhor,  apoderaram-se  de  súbito  da 
mulher  e  a  fecharam  no  caixão.  El-rich  metteu-se  iia 
pelle  do  pássaro  e  trepou  para  o  telhado  da  casa. 

Informado  Kitch-Usin-Si  pela  bocca  dos  escravos  do 
que  acontecera  na  sua  ausência,  irou-se  ao  ultimo 
ponto,  reuniu  todos  os  seus  servos  em  torno  de  si,  e 
\  conjurou  a  agua  para  que  afogasse  toda  a  gente,  ex- 
cepto elle  e  os  seus ;  mas  seu  sobrinho  entrou  a  rir. 
I  desceu  do  telhado,  fechou  a  porta  da  casa  e  coui  pa- 
;  lavras  magicas  obrigou  a  acua  a  voltar  para  o  sou  lei- 
to; depois  d'isto  voou.  Com  tudo,  de  cançado,  caiu 
em  cima  diurna  pedra  agudíssima,  que  o  feriu  gra- 
vemente, e  d'aqui  provieram  todas  as  enfermidades 
que  afiligem  a  raça  humana.  O  pobre  mancebo  jazeu 
muitos  dias  no  mesmo  logar  sem  se  poder  mexer, 
porém  uma  manhã,  estando  a  dormir,  ouviu  uma  voz 
que  lhe  dizia:  u  \  era,  que  te  chamam."  Como  não 
via  ninguém,  cuidou  ser  sonho,  mas  a  voz  soou  de 
novo.  Então  ergueu-^e  e  foi  ter  á  praia  onde  viu  lon- 
tras marinhas,  e  perguntando-lhes  se  o  tinham  cha- 
mado uma  d'ellas  lhe  respondeu  :  3Ionta  r.o  meu  dor- 
so para  que  eu  te  transporte  ao  logar  onde  desejam 
ver-te.  «Tenho  medo  de  me  afobam,  lhe  tornou  o 
mancebo,  u^em,  e  nada  temas,"  disse  a  lontra.  Sen- 
tou-se  pois  no  lombo  do  animal,  fechou  os  olhos  e  via- 
jou assim  por  muito  tempo ;  quando  os  abriu  acha- 
va-se  ao  pé  d'uma  costa  coberta  de  gente;  a  lontni 
lhe  disse  então :  «  Agora  vai  para  a  praia  e  lá  acha- 
rás tua  mãi  e  teu  lliio.»  Encontrou-os  com  efleilo. 
e  todo  o  povo  o  recebeu  com  ^;rande  contentamento. 
Foram  para  a  mesa  :  os  convidados  eram  muitos;  mas 
El-rich  não  podia  comer.  Outro  tanto  não  acontecia 
a  um  dos  commensacs,  que  tinha  duas  barrigas  e co- 
mia por  dois.  Este  homem  contou  a  El-rich  a  histo- 
ria seguinte:  Tinha  um  dia  encontrado,  lhe  disse  el- 
le, um  corvo,  o  qual  lhe  mandou  cortar  a  pelle  que 
lhe  forrava  os  pés  pela  parte  debaixo ;  feito  o  que. 
saiu  grande  quantidade  d^agua  dos  pés  do  corvo,  e 
lieou  este,  dejKiis  da  cura,  com  o  poder  de  crear  to- 
dos os  animaes.  Keferiu  o  homem  que  n'esse  tempo 
tinha  perdido  a  vontade  de  comer,  e  que  pediu  ao 
corvo  lha  restituísse.  O  pássaro  lhe  disse  que  comes- 
se a  parte  dos  seus  pés  (|ue  acabava  de  cortar;  obe- 
deceu o  homem  e  d'alii  a  nada  tinha  duas  barriga> 
e  dobrado  appetite.  El-rich,  depois  que  ouviu  esta 
narração,  alcançou  tomar  conhecimento  com  este  vo- 
látil potente,  que  se  fez  seu  amigo,  restituiu-lhe  a 
vontade  de  comer  e  obteve  do  mancebo  o  direito  de 
se  chamar  jiai  dos  eoloclios.  Entre  as  dillerentes  tri- 
bus  dos  colochos  ainda  ha  uma  chamada  a  tribu  do 
Corvo,  que  reputa  El-rich  seu  fundador,  e  as  outras 
tribus  menos  nobres  do  ijue  ella. 

Oscolochos  em  geral,  crêem  nos espiritoi  malignos, 
que  atormentauí  os  homens  com  moléstias.  Os  laes 
espíritos  estão  dentro  d^agua  e  comuiunieam  as  mo- 
léstias aos  homens  |ior  via  dos  peixes.  Contava  uiu 
cliaiiitiii  ou  sacerdote,  que  ii5;irenques  tinham  peiiido 
aos  1'spirilos  lhes  entii'gassem  KabatihaLolV,  empre- 
gado d.i  companhia  russiana  que  perseguia  o>  areií- 
<|ue»  sem  lhes  dar  folga;  a  pilição  foi  deferida:  Ka- 
liatcliakolV  afogou-se  indo  a  pesca. 

Uuandci  morre  algum  inlutlio  qiieiuiaiii-lhe  o  cor- 
po, e  erigeui,  aos  que  são  ricos  monumentos  de  pe- 
dras ninontoudas.  Este  jiovo  erè  lirineuiente  na  ini- 
morlalid.iile  da  alma.  mas  não  da  nenhum  credito  .los 
prémios  e  castigos  d^umu  vivia  futura.    As  aluiu»  sãv> 


288 


O  PANORAMA. 


no  outro  mundo  ofjue  eram  n'este  :  o  senhor  ficasen- 
flo  senhor,  o  escravo  fica  sendo  escravo.  Depositam  o 
corpo  n'um  caixão  e  levam-n'o  para  a  fogueira  entre 
prantos  e  gritos  dos  parentes  e  amigos.  Ouso  de  quei- 
mar escravos  com  o  sou  senhor  cessou  desde  rjue  hou- 
ve tracto  os  entre  colochos  e  os  europeus. 

Em  signal  de  lucto,  usam  os  parentes  do  defuncto 
de  cabellos  curtos,  e  pintam  as  canis  com  certa  côr 
negra  luzidia,  por  espaço  d'um  anno  completo. 

As  moléstias  mais  communs  entre  esta  gente  tão 
robusta  são  as  de  olhos,  de  cabeça,  e  de  estômago. 
As  moléstias  de  olhos  e  de  cabeça  provém  sem  duvi- 
da do  fumo  de  que  estão  cheias  as  suas  choças^  as 
moléstias  de  estômago  originam-se  das  comidas  pesa- 
das e  indigestas.  Accomeltem-n'os  ás  vezes  febres  ar- 
dentes que  por  falta  de  soccorros  apropriados,  de  or- 
dinário vem  a  sor  mortaes.  As  bexigas  fizeram  taes 
estragos  em  1770,  que  não  ficaram  mais  de  uma,  ou 
duas  pessoas  das  famílias  que  habitam  o  districto  li- 
mitado ao  sul  por  Stachin  c  ao  norte  por  Sitcha. 
iVesta  epocha  andavam  a  guerrear-se  muitas  tribus, 
e  se  deram  pressa  em  fazer  pazes,  persuadidos  de  que 
o  corvo  lhes  mandara  este  flagelo  para  castigo  das 
suas  dissensões.  Os  chamõcs,  seus  sacerdotes  não  se 
dão  á  medicina  como  fazem  os  de  outras  povoações  se- 
melliantes  a  estas  •,  mulheres  velhas  é  que  curam  os 
eolochos  doentes,  com  remédios  extrahidos  de  diffe- 
rentes  raizes  ou  plantas-,  comtudo,  consultam  oscha- 
niões  para  saberem  se  oinfermoniorre  ou  não  morre. 

(Continua.) 

Essência  de  rosas. 

A  piiEciosA  essência  de  rosas  falia  gotil),  tão  celebre 
em  todos  os  paizes  do  mundo  civilisado,  é  feita  deflo- 
res de  que  ha  grande  copia  nos  arrebaldes  de  Ghazi- 
pour,  cidade  da  provinda  de  Bengala.  Já  o  leitor  es- 
tará imaginando  um  paraiso  encantado  e  recendente, 
taboleiros  de  jardim  matizados  de  todas  as  cores,  la- 
tadas em  que  as  roseiras,  enlaçando-se,  casam  as  de- 
sabrochadas flores  que  respiram  aromas  com  o  deli- 
cado botão  purpúreo,  enlevo  dost)lhos.  Ficção!  Ima- 
gem sem  realidade  !  A  cultura  das  rosas  em  Ghazi- 
pour  é  um  negocio  como  outro  qualquer,  uma  espe- 
culaçjlo  comniercial.  Os  vastos  campos  todos  cotwrtos 
das  flores  mimosas  dos  nossos  jardins  não  offerecem  a 
vista  mais   do  <)ue   um  quadro  vulgar   e  sem  poesia. 

A  rosada  índia,  posto  que  oseu  nome  in<li<juequeé 
diversa  dadaKuropa,  pódecompetir  nasuavidadedo 
sou  aroma  com  as  dos  nossos  climas.  Mão  lhe  falta  a 
formosura  \  mas  qual  é  a  rosa  que  não  a  tem  !  Kxcep- 
to  em  Agra,  não  cresce  tanto  como  na  Inglaterra,  e 
dá  muito  menos  variedades.  Os  cultivadores  Índios 
contentam-se  com  as  producções  espontâneas  da  natu- 
reza ;  não  sccançam  em  as  melhorar  com  a  arte  para 
o  deleite  ou  para  o  lucro.  Na  rosa  não  vêem  senão 
um  género  de  grande  valor,  e  parece-lhes  desacerto 
o  cultiva-la  só  para  recreio  dos  sentidos  ^  e  para  a 
extracção  da  essência  acham  «pie  bastam  as  rosas  que 
assim  medram  sem  nenhum  desvelo. 

Kis  aqui  porque  no  Oriente  a  mão  de  hábil  jardi- 
neiro não  dispõem  as  roseiras  para  que  trejwm  e  cu- 
bram caramanchões,  e  teçam  latadas,  ese  aggreguem 
em  espessuras.  Os  rosaes  ile  Cíhazipour  n."io  passam  de 
nm  pouco  demallo  rasteiro  jior  entre  oqual  brilham 
raras  flores  apoucadas,  ijuc  mostram  doer-se  da  fouce 
tiesapiedada  ;  as  rosas  que  \ão  abrindo  são  cuidadosa- 
mente colhidas  todas  as  manhãs. 

.As  roseiras  são  plantadas  eon>  regularidade,  em 
alinhamento,  eoccupani  nuiilos  centenares  de  geiras 
do  terreno  á  roda  da  cidade.  Quando  as  rosas  pur- 
púreos desabotoam  ao  sol  nascente  e  esmaltam  o  ver- 


de tapiz  da  campina,  apresentam  um  aspecto  qur 
muito  agrada.  Se  algum  dia,  porém,  os  mogõrs  vo- 
luptuosos celebravam  n'estes  sitios  a  famosa /es(a  Jat 
rosas,  nem  tradicção  nem  vestígios  restam  detãogra- 
taceremonia.  âuandochega  acstação  da  colheita  não 
vão  os  Ijandos  de  rapazes  e  raparigas  encher  alegres 
os  cestos  de  vime  com  os  ricos  productos  da  ceifa ; 
nem  enlaçam  ramilhetes  nas  tranças  descabello?,  nem 
cingem  as  frontes  de  coroas  fragrantes.  A  colheita  faz- 
se  debaixo  de  regra  por  mãos  de  pobres  jornaleiros 
que  trabalham  com  a  idea  íixa  no  ténue  salário,  e 
em  nada  mais  cogitam. 

A  distillação  das  rosas  ( noulaahie  pannie)  é  a  pri- 
meira operação  que  se  faz  para  fabricar  a  essência. 
A  que  se  extrahe  é  recolhida  em  grandes  vasos,  que 
ficam  de  noite  expostos  ao  ar  livre.  De  tempos  a  tem- 
pos escumam  estas  jarras,  e  o  óleo  essencial  que  so- 
brenada tira-se,  e  constitue  a  essência  concentrada, 
cujo  aroma  os  amadores  reputam  por  um  preç-o  tão 
subido.  São  precisas  duzentas  mil  flores  para  produ- 
zirem o  peso  d^uma  rupia  de  essência  a  que  os  da 
terra  chamam  aita.  Esta  quantidade,  quando  é  pu- 
ra e  sem  mixtura  de  óleo  de  sândalo,  vende-se  alli 
mesmo  por  cem  rupias  (equivalerão  a  40$  000  réis)  ; 
preço  exorbitante,  e  que  assim  mesmo  dizem  que  dei- 
xa pouco  lucro. 

A  agua  de  rosas  privada  do  seu  óleo  essencial  pas- 
sa por  inferior  á  que  o  conserva  e  vcndc-se  em  Gha- 
zipour  por  um  preço  também  mais  baixo.  Asseguram 
comtudo  muitas  pessoas  que  a  differença  mal  se  co- 
nhece. 

O  uso  da  agua  de  rosas  na  economia  domestica  é 
geral  entre  os  Índios.  Empregam-n'a  nas  abluções, 
na  medicina  e  nas  cosinhas.  Antes  de  abolido  o  uso 
dos  presentes  (nuzíurs)  figurava  entre  as  cousas  que 
ofl"ereciam  as  pessoas  de  poucos  teres.  Costumara  dei- 
ta-la em  cima  das  mãos  quando  se  acaba  de  jantar, 
e  na  grande  festa  chamada  houlic,  alagam  com  cila 
os  hospedes.  Os  europeus  atacados  do  prurido  .-irden- 
le  sentem  grande  allivio  usando  d'esta  agua;  os  natu- 
raes  da  terra  bebem-n'a  como  remédio  para  todas  as 
moléstias,  e  efficacissimo  para  as  lesões  internas. 
IVuma  palavra  a  agua  de  Colónia  não  é  mais  po- 
pular na  França  doque  éua  índia  agoulaabiepaauie. 


GRATIFICAÇÃO. 


Nkm  sempre  as  feridas  são  documentos  irrefragaveis 
de  valor.  A  seguinte  anedocta  l)em  o  prova,  ao  mes- 
mo tempo  que  serve  para  confirmar  o  nosso  rifão:  os 
homens  não  se  medem  aos  palmos. 

Poucos  dias  depois  da  famosa  batalha  de  ^^  agram, 
querendo  Napoleão  dar  aoexercilo  um  no>o  testimu- 
nho  da  sua  satisfação  promulgou  um  decreto  cm  vir- 
tude do  qual  concedia  mil  eduientos  francos  de  gra- 
tiflcaç.ão  ao  soldado  mais  valente  de  cada  regimento. 
Um  coronel  appresenlou  o  candidato  do  corpo  do  seu 
commando  de  tão  n)es<]uinha  e  enfezada  apparoncia, 
que  em  nada  mostrava  dever  aspirar  áquella  gr.iça. 
Napoleão  disse-lhe.  —  Pois  na  veniadc  es  tu  o  mais 
Valente  do  teu  regimento.'  —  Senhor.  i>elo  menos  as- 
sim o  dizem.  —  t)nde  fiíste  ferido.  —  Em  parte  ne- 
nhuma senhor.  —  Q.ue  dizes!  Não  foste  ferido  e pre- 
tendes ter  direito  á  gratificação  que  concedo  a  teu» 
camaradas  (jue  já  derramaram  sangue  pela  jvitria  ?  — 
•Mii  está  !  (acutliu  o  soldado  s»-m  jvrturbar-so)  |H>rqur 
não  me  piíile  suceeder  o  mesmo  que  a  \ossa  mages- 
tade  .'  a  honra  de  ser  ferido  ?  E  comtudo  não  deixa 
por  isso  de  ser  nmito  e  muito  valente? 

Giwtou  o  inijM-rador  do  descmliaraço  do  soldado,  e 
niandou-lhe  pngar  cm  ouro  »  gratificação  promettida. 


37 


o  PANORAMA. 


289 


MINISTÉRIO  I>'INSTnUCÇAO  PUBLICA  NO  CAIHO. 


Q.i!»Ni>o  a  ex j)C(l irão  de  Buonaparteocciípou  o  Egy|)- 
t.o,  o  cdilicio,  cuja  1'rente  intorior  s<!  representa  na 
gravura,  servia  <1(!  (juartel  general  aos  irancezes,  de- 
pois <la  tomada  <lo  Cairo  :  intitulava-se  então  o  pa- 
lácio de  Jílfy-Ley.  A  direita  no  jardim,  próximo  da 
ultima  janella  doesta  casa,  havia  n'essa  epoclia  um 
cumprido  eirado,  colierlo  de  parreiras,  quecomniuni- 
eava  do  alojamento  do  clxíle  do  estado  maior  para  o 
ipiartel  í;i'neral.  Foi  n'esse  terrado,  no  sitio  que  aca- 
lianios  deiuílicar,  ijue  foi  assassinado  o  valente  gene- 
ral Klelier,  aos  M  de  jiiniio  di!  lUdU.  Ksle  delicto 
teve  a  sunuinte  ori;;em. 

Soleynião-el-lvalel)y,  de  idade  de  vinte  e  cinco  ân- 
uos, natural  de  Alepo  e  lillio  de  um  mercador  de 
manteiijas,  tinha  visitado  a  IMeca  c  Meilina,  as  ci- 
dad(fs  sanctas  ])ara  a  sua  crencja  ;  tinha  estuilado  no 
Cuiro  na  mesipiila  lOI-Atçhar,  e  cpieria  ser  admilti- 
do  ao  numero  dos  íliinlurta  da  lei.  O  seu  rancor  con- 
tra osiiijiiis  «(•  exaltara  recentemente  a  vista  ilos  IVaj;- 
inentus  do  exercito  do  };rão-visir  Jussul,  desharala- 
<lo  (!in  llcjiopolis,  ipie  atravessaram  a  l'alestina  na 
occasião  em  ipie  S<ileynião  allí  estava.  ()  ai;á  dosja- 
idsaros  o  incitou  ainda  maia,  e  persuadiu-o  a  inten- 
tar iíviímliale  íiiijrtido,  que  consiste  i'm  matar  iiiniii- 
fii:t.  O  mancelio  lanatieo  pensou  nal  uridni<'nle  no 
'''}íyi''"i  entào  <ieiiqiado  jiclos  francizes,  e  no  u;enernl 
Ihionaparle,  >>  o  sultão  <lerogo><  como  lhe  chamavam 
os  arali<'s. 

(iuanilo  o  nu;á  o  viu  bem  1'irnie  mi  sua  resolução, 
mandou-lhe  dar  um  dronii^dario  e  uma  |iei|uena  ({uan- 
tiii  de  dinheiro  pira  a  viagem.  Solcymão  partiu  pu- 
VuL.   1,  —  NoviiMUiio   (i,    lU-17. 


ra  Gar.a,  onde  comprou  o  seu  kamljar  ou  punhal, 
atravessou  o  deserto  e  chegou  ao  Cairo.  Ketlcctindo- 
se  na  data  da  sua  jornada  ei|ue  elle  devia  ignorar  o 
regresso  precipitado  de  liuonaparte  para  a  Kuropa, 
está  claro  (pie  asna  intenção  não  era  malar  ao  acaso 
o  primeiro  suliuu  (/os  iiificisque  topasse,  e(|uc,  sedesie- 
chou  o  golpe  sobre  Rleber,  i'oi  na  lalta  ile  liuonaparte. 

No  Cairo,  Soleymão  enccrrou-se  por  muitos  dias 
na  mesijuita  do  Sultão  Ilassan,  (^  até  ahi  passou  em 
rezas  a  noite  da  véspera  do  seu  attentado.  Tinha  des- 
coberto o  seu  designio  aos  (|uatro  ulemas  da  mesqui- 
ta; estes  o  dissuadiram,  mas  não  avisaram  os  gene- 
raes  IVancezezes  :  Ires  foram  prezos,  e  o  quarto  fugiu. 
O  processo  foi  rapidamente  comluido;  e  a  17  de 
junho  os  funeraes  do  desvenlui-.ido  Klibir  foram  se- 
guidos d(>  <|uatro  supplicios. 

Os  r"stos  niortaes  do  general,  conduzidos  a  .Marse- 
lha depois  d,i  evacuação  do  l'lg_vi)to,  cons<Tva\ani-so 
no  caslello  de  l'lf,  <iuando  cm  I  !1 1 II  Lui/.  W  111  o» 
mandou  transportar  e  encerrar  n'uni  monumento  eri- 
gido cm  memoria  de  Kleber  n.i  sua  cidade  natal, 
Slrasburgo. 

Diqiois  <his  importantes  reformas  ilo  actii.d  pacha 
do  l''.gyplo,  o  pal.nio  de  Klly-liey  foi  destinado  .is  re- 
partiijòis  lio  ministxrio  ila   instrucçào  publica. 


IMvalA     1>K    MeUICII    K    bUVll    VALIDO». 

Maiiia  de  .Medicis,  que  foi  siicccssuamcnle  r.unh.i  e 
regente  de  Frttii(,-a,  eru  liUiu  de  Francisco  11  de  I\l^^- 


2Í)0 


o  PANORAMA. 


dlcls,  grão-duquc  da  Toscana,  e  de  Joanna,  archidu- 
ijueza  d'Austria,  rainlia  dt?  Hungria  e  de  Jínlicniia. 
Loío  que  Hcnriíjiie  1\  ()l)teve  do  papa  dissolver  o 
matrimonio  com  Margarida  do  ^  alois,  man<l()U  [)or 
seus  embaixadores  pedir  a  mão  de  Maria  de  Medieis. 
lista  união  foi  feiizuKMite  concluída  e  pomposamente 
celeltrada.  Fernando,  irmão  o  suecessor  de  Francisco 
II,  recebeu  a  procuração  do  rei  pelo  duque  de  IJelle- 
Garde,  estribeiro-múr  da  casa  de  França,  e  celebrou 
os  esponsaes  com  sua  sobrinha  em  nome  deH<!nrique 
1\ ,  aos  .5  de  outubro  de  1600.  Aceremonia  foi  pre- 
sidida pelo  cardeal  Aldrobrandini,  sobrinho  do  papa 
Clemente  \  III.  A  narração  das  festas  que  se  lhe  se- 
guiram justifica  a  magnificência  attribuida  aos  du- 
ques de  Toscana  :  só  a  representação  de  uma  comedia 
custou  mais  de  sessenta  mil  escudos. 

Q.uando  a  raiidia  chegou  a  Lvão,  orei  que  estava 
occupado  na  sua  lide  com  o  duque  de  Saboya,  veio 
enconlra-la  a  esta  cidade ;  e  no  mesmo  dia  dachega- 
da  se  concluiu  o  casamento.  A  cidade  festejou-a  com 
o  fausto  de  uma  recepção  magnifica. 

li  notório  que  a  1.5  de  maio  de  1610  o  punhal  de 
KavaiUac  fez  viuva  Maria  de  Medíeis.  Na  véspera 
d  esse  dia  fatal  Henrique  I^',  antes  de  a  deixar  para 
a  consummação  de  um  grande  projecto,  tinlia-a  de- 
clarado regente  de  França  e  como  tal  a  fizera  coroar 
solemnemente. 

Foi  confirmada  a  regência  de  Maria  do  ^Medíeis 
durante  a  menoridade  tíe  Luiz  Xlll,  seu  filho;  e  foi 
então  que  começaram  as  desgraças  pelo  valimento  e 
privança  de  Concino  Concini,  e  deElconor  Galigai, 
sua  mulher.  Eslas  duas  pessoas  são  os  exemplos  mais 
assombrosos  do  capricho  da  sorte  e  da  ingratidão  das 
eòrtes. 

Concini,  oriundo  da  classe  ínfima  da  sociedade,  na- 
tural do  condado  dePenna  em  Toscana,  tinha  acom- 
paniiado  Maria  de  Medíeis  á  França  na  condição  de 
lacaio.  Leonor  Dori,  appellídada  Galigai,  sua  mu- 
lher, não  se  lhe  avantajava  pelo  que  respeita  ao  nas- 
cimento e  bens  da  fortuna.  Filha  de  um  pobre  mar- 
ceneiro de  Florença  occupava  mui  humilde  emprego 
na  casa  domestica  da  rainha:  porem  o  que  sobretudo 
se  conta  como  extraordinário  é  ser  ella  mulher  mui 
leia  e  maltiactada  no  quinhão  dos  dotes  naturaes.  l*ois 
apesar  de  todas  estas  desvantagens,  Leonor  era  a  po- 
derosa valida  de  Maria  de  Medíeis,  e elevou  seu  ma- 
rido á  jerarchia  de  marqui-z  d^Ancre,  governador  de 
Amiens  e  da  Normandia,  marechal  de  França,  equ.a- 
si  primeiro  ministro.  De  facto,  Concini  governou, 
.sob  o  nome  da  regente,  nos  primeiros  annos  de  Luiz 
^HI "(.'onío  adquiristes  tanto  império  sobre  vos- 
sa ama?  (perguntavam  um  dia  á  manchala  dWiiere) 
(iuu  philtro,  que  sortilégio  empregastes  ? "  Ne- 
nhum (respondeu  ella)  mais  que  o  ascendente  dasal- 
nias  fortes  sobre  as  almas  fracas  "  —  Aphrase  era  pro- 
lundamente  exacla.  Leonor  possuía  em  grau  siililime 
a  firmeza  de  vontade  e  a  energia  dV-spirito.  Maria  de 
^Medíeis  não  tinha  senão  p.iixões  eteím.is.  Esta  ulti- 
ma qualidade  moslrou-a  defendendo  os  seus  <lois  vii- 
lídos  até  á  ultima  extremidade.  l)'ahi  provieram  as 
maliciosas  prevenções  das  memorias  contemporâneas 
que  atlribuir.im  ao  marechal  d'Ancro  um  titulo  mais 
intimo  <|ue  o  de  amigo.  A  parle  esta  asserção,  que 
nunca  foi  provada,  o  caso  é  que  Concini  se  apossou 
do  go\erno  de  forma  que  constrangeu  os  ministros  a 
receberem  d'elle  ínstrucçijes.  Sully  foi  o  único  que 
lhe  resistiu,  resgatando  as  finanças  da  inspecção  d^el- 
Ic  :  toilavia,  Concini,  ou  para  melhor  dizer  sua  mu- 
lher dilapidou  o  Ihcsouro  do  estado  pelas  próprias 
m.ãos  da  regente.  Leonor  vendeu  as  graças  e  os  pri- 
vilégios, traficou  corn  a  sua  influencia  por  toihis  os 
modos    imagiiiavei-í,   c  accumulou    uma  riquem  im- 


mensa ;  alem  dos  rendimentos  dos  empregos  que  lhe 
foram  dados  e  a  seu  marido,  que  monlavam  a  um 
milhão  de  libras  francezas,  cada  um  dVUes  tinha  igual 
quantia  nos  seus  cofres,  muitos  milhões  na  Itália,  e 
dois  milhões  em  moveis  e  jóias,  sem  contar  o  que 
tinham  extorquido  ao  povo. 

Um  privado  de  Luiz  XIII  derribou  os  validos  de 
sua  raãi,  Maria  deMedicis;  foi  Alberto  Luvnes,  ho- 
mem/i7Ao  ãashcrvas  como  seu  rival;  hábil  como  el- 
les  em  captar  a  confiança  de  seus  amos.  Luynes  al- 
cançou a  do  joven  monarcha  nos  divertimentos  d.i 
exercício  da  caça,  e  de  adminístr.ador  da  falcoaria  de 
sua  magestade  passou  aseu  ministro  intima  e  instru- 
mento pérfido.  Ameaçado  quanto  ao  seu  poderio  sem 
limites,  Concini  atreveu-se  aodelirio  que  mais  tarde 
se  attríbuíu  a  Fouquet;  fortificou  as  suas  praças  e 
castellos,  subornou  as  tropas,  e  organisou  uma  guar- 
da tão  numerosa  e  mais  respeitável  que  a  de  Luiz 
XIII.  Foi  então  que  o  rei  o  abandonou  a  Laj-nes,  e 
este  a  \itry,  capitão  das  guardas  rcaes. 

N'uma  stígunda  feira,  24  de  abril  de  1617,  indo  o 
marechal  d'.-\ncre  a  entrar  no  Louvrc  para  o  conse- 
lho, \  iUy  se  lhe  approxima  e  ]iede-!he  a  espada.  Con- 
cini fez  um  movimento,  ou  jjara  resistir  ou  para  en- 
tregar-se ;  no  mesmo  instante  recebeu  fres  tiros  de 
pistola  na  cabeça  e  peito ;  e  cáe  rL-<londamenfe  mor- 
to sem  proferir  palavra.  Viu-se  então  oqiie  é  alcal- 
dadc  doscortezãos  !  .  .  Luiz  XIII  apparcccu  na  varan- 
da do  palácio  para  approvar  com  a  sua  presença  o 
assassino  do  marechal;  todos  os  amigos  d'estc  se  afas- 
taram do  cadáver,  e  foram  tomar  logar  á  roda  de  Al- 
berto de  Lu^nes,  no\o  sol  que  despontava!  .  .  ôual 
d'elles  a  quem  mais  praguejaria  Conciíii,  e  mais  de- 
pressa correria  a  prender-Ihe  a  mulher,  e  a  deter  a 
regente  no  seu  aposento. 

O  povo,  pronipto  sempre  a  insultar  os  seus  próprios 
ídolos,  excedeu  em  vilezas  os  cortezãos.  Tinham  pri- 
meiro deitado  o  corpo  do  marechal  d'.\ncre  nas  la- 
trinas; depois  foi  enterrado,  de  noite  e  secretamente, 
em  S.*  Germain-1'Auxerrois.  Lm  de  seus  amijos  da 
véspera  descobriu-lhe  a  sepultura  c  denunciou-a  á 
gentalha  amotinada.  Então  todos  esses  homens  que 
havia  pouco  beijavam  os  pés  do  valido,  caem  de  cho- 
fre como  vampiros  sobre  asua  jazida,  arrancaind'al- 
li  o  ensanguentíido  cadáver.  arrastan>-no  pelas  ruas 
e  praças  publicas;  aqui  o  enforcam,  mais  adiante  t> 
esquartejam,  e  por  lim  o  dilaceram  omplctamente. 
Os  horríveis  pedaços  foram  pnstos  cm  leilão,  e  tive- 
ram muitos  compradores;  e  o  mesquinho  Luii  XIII 
vendo  todas  estas  infâmias  persuadiu-se  que  fizera 
bem  mandando  matar  um  homem  tão  detestado  de 
toda  a  gente. 

A  queda  e  o  desterro  de  Maria  de  Medíeis  segui- 
ram-se  immedíatamcnte  á  morte  de  Concini.  Ao  sa- 
ber tal  noticia,  o  assombro  da  recente  *<>  ]iodia  eqni- 
parar-se  .i  sua  dor.  Chorou  muito  e  amargamente, 
pondo  a  si  a  culpa  de  sedeixar  ludibriar  por  dois  ra- 
pazes, Luiz  XIH  c  Alberto  Lu\iu>s.  Depois,  lison- 
geando-se  de  ainda  dominar  o  primeiro,  rest^lveu  ap- 
pellar  para  o  amor  tilial  :  mas  era  apjíellar  para  o 
!\ada,  [Kircpie  simillianle  amor  não  existia  nocoração 
de  LuizXlII.  Ordenando  o  desferro  de  sua  mài,  re- 
cusou-lhe  o  aileus  da  desjH-dida  '.  S<'  a  muito  custo 
obteve  s;iuda-lu  em  meio  dos  inimigos  que  a  expul- 
savam. No  acto  da  (urtida,  o  rei  foi  .t  camará  da  nv 
gente  :  tudo  o  que  deviam  dizer  de  parte  a  p;irte  esta- 
va antecipadamente  regulado,  até  as  mais  iiisigniíi- 
cantes  palavras  c  os  mínimos  gestos.  Maria  de  .Medí- 
eis, depois  de  balbuciar  por  entre  soluços  algum.ts 
queixas,  quiz  pedir  por  Leonor,  presa  dep»iis  da  mor- 
ft!  de  seu  marido ;  o  rei  olhou  para  ella  <le  um  modo 
irresoluto,   e  refirou-se  sem  lhe  dar  r-sposta.   A  rai- 


o  PANORAMA. 


291 


nha  deu  um  passo  para  reter  Luynes  qne  saía  com  I      INIartim  Paes  tinha-os  escutado  silencioso,   traçan- 

stii  amo ;  mas  o  roi  chamou  trc-s  vezes  o  tão  império-  I  do  com   a  ponteira  da  espada  figuras  na  terra  move- 


saiiieiito  o  seu  valido,  íjue  este  voltou  as  costas  a  rai- 
nha, a  fjual,  suflbcada  pela cholerae choro,  entrou  pre- 
cipitadamente para  o  coche,  e  cobrindo  a  cabeça  com 
o  manto  partiu  para  oexilio  que  devia  abhreviar-lhe 
velhice.  .  .   Luiz  aconipanliou-a  com   os  olhos,   pos- 


diça.  Erove,  ouvindo  o  monge,  ergueu  a  cabeça,  per- 
junlandu  coni  ar  d'e6carneo : 

—  li  Wuando  fallaes  verdade  vós  outros,  padres?" 

—  "(iuando  pregamos  a  lei  de  Deus." 
O  cavalleiro  de  Lanhoso  emmudeceu,  e  D.  Nuno, 


suido  da  alegria  de  estudante  que  se  vê  livre  do  pe-    encaniinhando-se  para  a  jKirta,  rosnava 


dagogo,   e  apoiando-se   no  bra^o  de  Ln^  nes  passou  o 
dia  todo  em  divertimentos! 

D'ahi  a  poucos  dias  a  marechala  dWncre  foi  con- 
demnada  á  morte,  degoUada  equeimada  na  praça  de 
(iréve.  Diremos  pelo  alto  que  os  bens  que  lhe  loram 
eonliscados  passaram  para  o  duque  de  Luynes  !  .  .  ,  e 
entre  a  rica  mobilia  a  famosa  commo<la,  quo  no  pre- 
cedente numero  appresentámos  desenhada. 


Odio  velho  não  cança. 

(Romance  Histórico,) 

(Contiiwaplo  do  Cnp.  f.) 


Sem  lhe  responder,  D.  Martim  pnxou  de  lado  Telo 
Ervigiz,  o  fallou-lhe  (|uasi  ao  ouvido  por  algum  tem- 
po.  Insensivelmente  foi  levantando  a  voz,   de  forma    por  suas  mãos"  respondeu  seecamente  o  frade 


—  «  Estes  monges,  braucos  ou  negros,  ninguém  os 
entende  !  » 

Pegando  então  no  brajo  de  Fr.  Munio,  Martim 
Paes  exclamou : 

—  i.  Esta  aftronta  é  tamanha,  padre  .  .  .  Gluem  me 
fará  justiça?" 

— !.«Já  t'a  negaram,  mancebo?  redarguiu  o  mon- 
ge. Elrei  e  a  sua  cúria  não  sabem  .  .  .  queixa-te ! « 

—  u  Contem  isso  a  outros,  atalhou,  rindo  cora  des- 
prezo, o  cavalleiro-,  e,  batendo  o  pé  com  fúria,  ac- 
crescentou  :  —  Não  querem,  reverendo  nono.  Depois 
de  feito  dizem :  não  ha  remédio,  ou  se  eu  soubera  I  .  . 
O  rei  ? !  .  .  .  tomara  elle  mais  tempo  para  lançar  os 
faleões  e  correr  os  javalis .  .  .  era  quanto  os  seus  vali- 
dos entram  pelos  solares  a  tleslionrar  donzellas  nobres 
como  lilhas  de  mesteiraes  .  .  .  Justiça  d'elrei  ?  1  .  •  • 
(iuando  a  houve  n'csta  terra,  padre  ? !  " 

—  "  lAuanilo  tu   e  os  teus  i<i;uaes  a  não  tomavam 


que   perguntas    e  respostas   ouviaui-n''as   1).    Nuno   e 
Fr.  I^Iunio  no  logar  aonde  estavam. 

—  II  Na  ermida?"  interrogava  Telo. 

—  uSim.  AUi  :  "  respondia  o  cavalleiro,  apontando 
um  espaço  entre  os  três  túmulos. 

—  «  E  a  tumba  ?" 

—  "  Ao  pé.  " 

—  íi  O  cepo  ?" 

— 11  Do  outro  lado." 

— 11  E  na  casa  de  cima  ?" 

—  «Nada.  K  para  cila.  ti 

—  II  O  signal  ?" 

—  íiTres  repiques  de  sineta." 

—  «Deus  me  perdoe!  .  .  .  Depois?" 

— 11  Na  barbacan  os  eavallos  enfreados;  e  de  pe 
no  estribo  os  homens  d'armas.  " 

—  II  Ficae  descançado." 

KTelo  Erviniz  saiu  com  os  olhos  arrazados  d'agua, 
a  fronte  curva,  c  os  braços  encruzados  no  peito.  D. 
Martim  seguiu-o  com  a  vista  até  elle  transpor  a  por- 
ta; e,  encostando-sc  á  espada,  licou  silencioso  o  pen- 
sativo alguns  momentos. 

— 11  Até  este  homem  tão  leal  !  .  .  .  (lue  me  impor- 
tam os  remorsos  dv  um  villão?  Não  me  queima  a 
vergonha  na»  faces,  e  o  odiu  no  coração  ?  .  .  .  E  de- 
pois ?  .  .  .  " 

(.'omo  algumas  vezes  acontecia  aos  ijue  scisniam,  i's- 
qui.-c"eu-se  de  si  i;  do  que  o  rodeava,  pronunciando 
cm  voz  alta  as  ultimas  palavras.  Ijc-vando,  por  aca- 
so, (Mitão,  a  vista,  achou,  cravados  em  si,  os  olhos 
escrutadores  do  mongi-  de  (.'ister. 

—  uE  verdadt-,  Martim  I'aes,  atalhou  Fr.  Munio 
i?m  tom  brando;  a  vingança,  ao  provar,  é  iloce  de 
mel ;  mas  di;pois.  .  .  é  lél.  " 

—  «Não  ha  fel  quando  nos  íiea  um  inimigo  de 
nxMios  :  "  acudiu   I).  JNuno,  que  se  a|ipi'o\iinára. 

—  "EnganaCB-vos,  I).  Niiinp,  lieani  ns  lemursos  de 
mais. " 

— 11  Visões  !   respondeu 


hombros.    Ainda   não   morreu    piMrador   <pie  vds 
monges,    não  absolvêsseis    por  bons    testamentos. 


eavidleiro,  encolhendo  os 
os 
Nn 
pia  dos  moslíMros  lu\am-se  as  mãos  do  sangue," 

—  iiDi'US  não  tome  contas  a  quem  vae  abrir  lei- 
lão á  porta  do  seu  templo.  Os  hunieiis  perdoam,  nuis 
l'-llc  eundeinna.  >' 


—  11  Não  temos  outra  .  . 

—  u  Mentira  "  murmurou  Fr.  Munio. 

—  «EUes  não  sabem?  proseguiu  Martim  Paes,  co- 
mo se  o  não  ouvisse.  Ensine-os  a  cabeça  dos  traidores, 
levantada  no  alto  das  torres.  Se  não  vêem,  abram- 
se-lhe  os  olhos.  Ah  !  fazem-se  deslembrados?  Nós  os 
acordariimos.  " 

—  "  Bem  se  conhece  que  morreu  elrei  D.  Sanclio  ! 
replicou  o  monge  amargamente.  O  leão  velho  na  co- 
va já  não  mettemedo.  Guarda-te  das  garras  do  novo, 
D.  Martim." 

—  u  D.  AlTonsolI,  o  Leproso  !  .  .  .  oh  !  esse  não  ha 
de  morrer  de  lança  nem  de  frecha  I  "  exclamou  o  ca- 
valleiro, rindo. 

— 11  Mancebo,  cholera  de  rei  é  acholera  de  leão.  " 

—  «Falias  do  seu  valido  padre? .  .  .  Pois  não  I  Go- 
mes Lourenço,  o  coUaço,  o  amigo  de  D.  AlTonso. 
ninguém  seja  ousado  a  molesta-lo.  .  .  ainda  que  nos 
roubo  irmãs  e  filhas.  Aonde  aprendeste  a  paciência, 
salicto  monge  ?" 

—  11  Na  desgraça  !  " 

Era  tão  verdadeiro  esinccro  o  tom  em  que  foi  da- 
da a  resposta,  que  o  senhor  de  Lanhoso,  estacando 
no  passeio  precipitado,  com  os  ])uiihos  ainda  fecha- 
dos de  raiva,  fitou  o  frade  com  ailiniração. 

—  .1  Martim  Paes,  filho,  disse  este  meio  severo,  já 
alguém  te  amou  —  ia<lizer  tanto  —  mais  do  que  eu  ?  " 

— 11  Não.  Mas  a  honra  está  acima  de  tudo!.,." 
O  monge  sorriu,  sacudindo  a  cabeça  com  ar  incré- 
dulo. 

—  «  A  honra  !  .  .  .  Ah!  Martim  Paes,  manci-lH» ! 
não  se  enganam  assim  os  v<>lhos  1  Para  que  mentes  a 
Deus  e  a  mim  ?" 

—  «Olha  o  (jue  dizes,  padre.  Falias  de  mentira  a 
um  eavalleiro  !  ■' 

—  11  Fallo.  Se  o  eavalleiro  ineiile.  que  remiMlio  se- 
não dizer-lli'o  1  acudiu  ofradesem  scalter.ir.  Depoii, 
toeanilii  nas  barbas  brancas,  efllando-o  com  Ião  agu- 
do olhar  que  elle  o  não  podia  soIVrer,  ajunctou  cm  vo/. 
severa  : 

—  «lia  quantos  niinos  choro  ou  u'esle  vallc  de  la- 
grimas, mancebo?!  Julgas  tu,  e  os  que  nasceram  luin- 
lem,  que  as  amarguras  da  vida  n."io  dão  expcrien- 
eia.'.  .  .  —  E  mudando  para  um  tom  áspero:  —  E  a 
honra  de  I).  Maria  ipie  aeeendc   a  tua  sOdc  de  saii- 


292 


O  PAx\ORAMA. 


gue  ?  Responde ;  atreve-te  a  dizer  que  sim  I  Por  que 
não  acceitas  então  o  nome  de  Gomes  Lourenço  para 
ella  ?  .  .  . 

—  u  Porque  é  um  covarde  ...» 

—  "Tu,  ou  elle  ?  exclamou  omon^e  com  indizna- 
ção.  ^  i-te  de  joelhos,  pedir-lhe  a  vida  por  mercê,  e 
o  de  Salzedas  perdoar-t'a  .  .  .  diante  de  mim,  Mar- 
tim  Paes,  chamar-lhe  fraco  ?  !  n 

—  í.  Padre  !  "  bradou  o  cavalleiro  irado. 

i  O  covarde,  o  traidor,  onde  estará  ?  n  continuou 

o  monge  friamente. 

—  «Padre!»  rugiu  D.  Martim,  dando  um  salto 
para  elle  com  a  mão  no  cabo  do  punhal. 

—  .íElstá  em  ti,  proseguiu  no  mesmo  tom  o  frade. 
Eu  te  digo  por  que.  Tu,  o  valido  de  D.  Sancho, 
aborreces  o  homem  que  vai  succeder-te  na  privança 
do  rei  novo.  Os  infantes  descontentes  saem  do  reino. 
As  infantas,  a  quem  negam  as  heranças,  defendem- 
n'as  em  seus  castellos.  Os  cavalleiros  moços  correm 
a  florear  as  lanças  debaixo  do  pendão  das  damas.  O 
senhor  de  Lanhoso,  atirando-lhe  a  cabeça  de  um  dos 
Viegas,  do  coUaço  de  D.  Affonso  o  Leproso,  não  se 
vinga  a  si,  não  os  vinsa  aelles?  pjde  ser  bem  accei- 
to?  errei  n'islo,  D.  Martim  ?;j 

O  cavalleiro  de  Lanhoso,  qusisi  succumbido  por  se 
vêr  descoberto,  pasmou  a  vista  no  rosto  do  monge,  e 
pallido  como  um  defuucto,  nem  teve  animo  de  o  des- 
dizer. 

—  .i  A  ambição  sempre  foi  irmã  do  crime,  .disse 
Kr.  Munio.  Não  te  fies  nVila,  Martim  Paes.  £uma 
Judith.  Olha  que  namorado  nenhum  deitou  a  cabe- 
ça no  seu  regaço,  que  Ih'a  não  cortasse  ao  primeiro 
som  no. )' 

D.  Nuno.  que  já  tinha  voltado,  ouvindo  isto,  tro- 
cou uma  vista  rápida  e  desalentada  com  o  senhor  de 
Lanhoso-,  e  essa  vista,  que  não  escapou  ao  frade, 
queria  dizer  :  u  estamos  perdidos.  "  Depois  todos  três, 
caiados  e  contrafeitos,  mediram-se  por  algum  tempo. 
O  monge  adivinhara  o  negro  abysmo  d'infamia  em 
que  soçobravam  aquelles  dois  homens.  Colhidos  de 
Eobresalto,  ambos,  sem  se  arrependerem,  estavam  co- 
mo assassinos  na  presença  do  cadáver,  que  tremem 
de  vêr  levantar  uma  accusação  pelos  lábios  de  cada 
ferida.  De  repente  Fr.  Munio,  travando  da  mão  a 
^Martim  Paes,  lovou-o  com  impcto  ao  pé  do  tumulo 
deMoço.\nsures,  e  mostrando-lh'o  com  o  dedo,  bra- 
dou : 

—  u  Sabes  a  historia  d'este  homem,  Martim  Paes?» 
O  cavalleiro,   acenando  com  a  cabeça,   respondeu 

que  não. 

—  li  Sabes  em  que  dia  estamos  ? 

—  «Sei." 

—  uFaz  hoje  mais  de  um  século  que  este  sepulchro 
foi  o  leito  nupcial  de  dois  amantes,  e  que  la  em  ci- 
ma, na  sala  d^arra.is,  se  travou  um  combate  tão  me- 
donho, que  Deus  aflastou  os  olhos  da  terra,  e  o  mes- 
mo inferno  teve  horror.  Marfim  Paes,  o  cadáver  das 
victimas  descança  entre  aqueUas  Úòrcs,  mas  odelni- 
goLopcs(l),  o  amaldiçoado,  não  pôde  ter  repouso." 

—  "Padre,  o  braço  que  feriu  o  coração  e  derra- 
mou o  sangue  do  inimigo  foi  um  braço  nobre.  Inigo 
Lopes  —  exclamou  estendendo  a  mão  com  força  —  nas 
azas  da  tormenta,  ou  nas  voragens  da  terra,  ou\e  o 
juramento  que  faço,  de  accender  as  tochas  do  enter- 
ro no  dia  da  tua  vingança. » 

—  u  Não  blasphemes,  atalhou  o  frade  com  impé- 
rio. Insensato,  não  acordes  os  mortos  que  repousam.  ^^ 

(I)  A  hisloria  tle  Inijo  Lopos,  com  n  mararilhoso  tlamy. 
tholojia  popular  publicou-se  no  faitorcma  n"  S  i-3  da  no- 
va cniprcia.  NVsle  género,  percorrenju  as  Initlas  pa(ría$,  e 
as  que  narram  M.itheuj  Paris  eoulros,  cumpunha-se  um  livro 
trio  novo,  como  agradável  e  raríado. 


'Aquelle  soube  ser  homem.  Lavrou  em  três  se- 
pulturas a  historia  do  seu  ódio. " 

—  "  Não  chames  por  Inigo  Lopes,  disse  o  monge 
com  alsum  tremor  na  voz.  Gomes  Lourenço  é  sangue 
d'elle.  O  alcácer  em  que  estamos  era  de  parentes  teus. 
O  conde  Ordonho,  tronco  da  tua  casa.  foi  o  pai  d'.\u- 
zenda,  a  noiva  do  S.  João  .  .  .  Desafiaste  o  inferno ; 
guarde-te  Deus  que  elle  te  levante  a  luva." 

—  u  \  ivo  ou  morto  venha  quando  qaizer.  .Ajino  e 
dia  prometto  esperar  o  repto. » 

—  u  Jesus  !  "  bradou  o  frade,  branco  como  o  pilar 
de  pedra  a  que  se  encostava. 

Ou  fosse  acaso,  ou  fosse  mysterio,  o  guante  ferra- 
do d'uma  armadura  preta  desprendeu-se  e  veio  ba- 
ter nas  lageas,  aos  pés  de  D.  Martim.  O  cavalleiro 
estremeceu,  mudando  de  cõr ;  mas  ergueu  a  mano- 
pla. No  canhão,  em  lettras  doiradas  qaasi  comidas 
do  tempo,  leu  o  terrível  nome  de  Inigo  Lopes. 

Um  instante  o  mirou  calado,  tremendo-lhe  os  de- 
dos convulsos.  Na  fronte  pallida  o  snor  frio  borbu- 
lhou ás  gottas.  Entretanto,  vencendo  as  cummoções 
interiores,  com  apparencia  tranquilla  virou-se  para 
o  frade,  dizendo  : 

—  u  Pelo  que  vejo,  os  mortos  acordam  aqui  . .  .  é 
um  duelo  com  Satanaz  '...." 

—  "Martim  Paes,  gritou  uma  voz  que  parecia  sair 
do  fundo  do  sepulchro  de  Moço  Ansures ;  acceito  o 
repto  !  De  boje  a  sete  dias,  á  hora  da  meia  noite, 
responderás  perante  Deus.  Prepara-te  I  " 

D.  Nuno,  dobrando-se-lhe  os  joelhos  de  terror  caiu 
de  bruços;  e  D.  Martim  acontecia-lhe  o  mesmo,  se 
não  se  encostasse  acampa  do  conde  Ordonho.  Fr.  Mu- 
nio, tremulo  e  perturbado,  exclamou,  estendendo  pa- 
ra elle  o  braço  : 

—  "  Estás  satisfeito  ?  O  inferno  empraiou-te  para 
o  dia  de  juizo.  " 

Uma  risada  convuba  e  estridente  resoou  nas  abo- 
badas, e  repetida  nosecfaos  foi  morrer  lá  em  cima  na 
sala  d'armas. 

O  monge  não  disse  nada,  mas,  arrojando-se  ao 
chão,  começou  a  orar  com  fervor.  Os  dois  cavalleiros 
tinham  um  nó  na  garganta,  que  os  não  deixava  fallar. 

Sem  dizer  palavra,  todos  três  se  encaminharam  pa- 
ra aescada,  que  se  torcia  até  a  sala  d*armas.  Os  pés 
trémulos  escorregavam  nos  degraus ;  e  era  tão  pro- 
fundo o  silencio,  que  se  podia  quasi  ouvir  a  pancada 
do  coração,  pulando  atropellado  contra  o  peito. 

Cluando  chegaram  á  sala  d^armas.  assentaram-se, 
e muito  tempo  estiveram  sem  fallar.  Por  fim,  viran- 
do-se  para  o  monge  Martim  Paes  disse  : 

"  Ha  de  ser  terrível  a  historia  de  Ini^  Lopes !  n 

"£.  E  o  povo  ainda  a  conta  com  mais  terrores. 
Nunca  a  ouviste .'  n 

"  Nunca. " 

"  Eu  vo-la  digo,  como  a  ouvi  da  ama  que  me  criou. 
Depois  soube  que  nem  tudo  acontecera  como  asaucta 
velha  acreditava." 

"  Principiai,  Fr.  Munio.  n 

E  debruçando-se  para  elle,  os  dois  cavalleiros  fita- 
ram-n"o  com  curiosidade  de  quem  deseja  saber,  em 
quanto  o  frade  se  recolhia  c  prvx-urava  ordenar  na 
memoria  as  quasi  obliteradas  tradições.  Decorridas 
alguns  instantes,  Fr.  Munio  come^u  assim  (1). 


Presbtterio  db  Bolleville. 

o  VI4JANTK  que  dcíonhou  esta  vista  do  ppcsbytcrio 
e  igreja  rural  explica-se  d"este  modo. —- Atra vcssan- 


( 1  >     Esta  lenda  é  a  qae  já  foi  pnblirada  em  os  ao 
i  e  3  do  Panorama  de  1846. 


o  PANORAMA. 


^93 


do  recentemente  a  aldeia  de  BoUeville  não  pude  sub- 
trahir-ni''  a  certa  cotnmoção,  reOectindo  que  n'este 
humilde  e  socegado  retiro  se  tem  concebido  e  con- 
summado  tão  excellcntes  trabalhos,  e  considerando 
taiNb<>m  nas  lições  do  modéstia,  que  emanam  da  vi- 
da do  illustre  erudito,  Uicliard  Simon,  cuja  presen- 
<'a  faz  celebre  aquella  pequena  povoação.  Não  só  pelos 
retratos,  que  mostram  as  fctições  do  rosto  se  dão  a  co- 
nhecer os  homens  notáveis,  mas  também  pela  fiel  pin- 
tura dos  sitios  que  preferem  o  habitam  :,  o  que  nos 
adquire  oconhecimcnto  familiar  doseumodo  deexis- 
tir.  •' 


Esto  desenho  ele^ianto  não  só  agradou  muito  em 
França,  pela  idéa  associada  que  expomos,  inas  tam- 
bém é  pela  nuísiiia  rasão  em  AUemanha  onde  Ricar- 
do Siinoii  é  muih)  conlieeido,  c  o  seu  nome  reputado 
nas  universidades  e  priíicipai^s  eschulas  eouio  uma  das 
;;lorias  rranei;/.as.  —  A  sua  mansão  valida,  liolleville, 
é  uma  tiTra  pequena  no  departamento  do  Sena  in- 
ferior. 

Os   COIOCIIOÍ. 

(roíiUntiail.)  (li-  iiiii;.  iOÍÍ.) 

(ii/ANíio  |)are  al);iima  mulher  colocha  fica  do  cama 
por  um  mez ;  expirado  este  praso,  lava  o  menino, 
lava  o  seu  próprio  corpo  e  a  sua  roupa,  e  ataviada 
cuni  o  melhor  ipie  tem  convida  todos  os  parentes  pa- 
ra uirui  lesta  esjiiendiíla.  Duranlí'  a  refeição  põe  a 
llliíi  o  nome  ao  luriiiho,  (■  eosluuia  ser  o  de  al!;;uin 
parenti'  já  fallecido.  A»  mài»  amametitaiii  os  filhos 
até  andariMu  ;  o  vestuário  d'esles  é  í'i>il,o  de  pelles 
macias  de  (juadrupedes  ou  ili'  aves.  Depois  de  des- 
mamados e  ante»  de  lhes  nascerem  os  denles,  susteii- 
lam-n'os  as  mais  min  peixe  sicco  (pie  in.isli'^am  pri- 
meiro.  Assim  ipic  o  meiíiiiu  princiíiia  a  fallar,   liãu- 


Ihe  todas  as  manhãs  um  banho  no  mar  ou  no  rio, 
quer  faça  bom  quer  raáu  tempo.  Para  que  os  gritos 
das  ereanças  não  movam  os  pais  a  ter  compaixão 
d'ellas,  é  encarregado  de  pôr  em  practica  este  uso 
espartano  algum  primo  ou  tio,  que  faz  calar  o  pade- 
cente com  uma  chibata.  O  respeito  dos  filhos  a  seus 
pais  á  para  os  colochos  um  dever  sagrado,  assim  co- 
mo os  carinhosos  desvelos  com  que  costumam  tractar 
os  velhos  e  os  enfermos.  Nota-se  unia  particularidade 
n'esfe  povo,  que  é  herdarem  sempre  os  parentes  do 
lado  materno  com  preferencia  aos  do  lado  paterno. 

O  colocho  que  quizer  casar  ha  de  ter  a  robustez 
necessária  para  poder  com  os  trabalhos  mais  rudes, 
e  ser  destro  no  manejo  das  armas,  principalmente 
da  espingarda.  Munido  de  uma  prova  de  idoneidade 
que  os  pais  lhe  entregam,  dirige-se  á  aldeia  onde 
mora  a  noiva  e  a  manda  pedir  por  um  amigo.  Se  a 
rapariga  e  o  pai  dão  o  seu  consentimento,  vai  o  man- 
cebo em  pessoa  ter  com  a  noiva,  troca-a  pelos  presen- 
tes que  trouxe  eomsigo,  e  recebe  cm  retorno  do  pai 
da  rapariga  outros  presentes  de  maior  valia  do  que 
os  que  lhe  fez.  Kslas  dadivas  consistem  em  pelles  de 
aniniaes,  mercadorias  da  Europa,  armas,  «k.c.  ;  as 
pessoas  ricas  junctam  a  isto  alguns  escravos.  Falha - 
muitas  vezes  u  negocio  por  não  querer  ou  não  poder 
o  mancebo  cumprir  as  condições  que  lhe  impõe  a  ra- 
pariga :  houve  uma  que  exigiu  de  Nanch  Ket,  o  an- 
cião, o  repudio  da  sua  primeira  mulher;  o  pagão 
negou-se  a  isto,  e  desfez-se  o  projectado  casamento. 
Os  matrimónios  fazem-se  sem  sacerdote,  nem  saerifi- 
cios,  nem  ceremonias  religiosas  de  qualidade  alguma. 
Os  colochos  da  classe  mais  elevada  casam  com  muitas 
iiuillicres,  para  enriquecerem  com  os  presentes  que 
ellas  lhes  trazem,  e  augmeutareni  o  seu  poder  e  in- 
fluencia por  meio  de  uma  parentella  numerosa.  Os 
caudilhos  das  liibus  casam  os  seus  filhos  quando  ain- 
da são  meninos.  As  mulheres  do  mesmo  homem  teem 
eonimumente  muitos  ciúmes  umas  das  outras,  e  as 
fre(|uentes  rixas  que  provém  d'estes  zelos  costumam 
acabar  em  mortes.  O  marido  que  apanha  em  sua  ca- 
sa um  extranho  inata-o,  e  mata  também  a  mulher, 
sem  receio  do  resentimento  dos  parentes,  aquém  faz 
alguns  prisenti'S  de  valor  a  titulo  dedesculpa  ou  con- 
ciliação-, mas  se  o  homem  (jue  o  olVeudeu  é  seu  so- 
briídui,  não  tem  o  marido  o  direito  do  o  malar  e  só 
pôde  obriga-lo  a  tomar  conta  da  mulher.  Acontece  a 
miude  qiK!  homens  brandos  e  indulgentes  n."io  fazem 
muito  caso  d.is  suas  espozas  de  mais  idade,  e  em  tal 
caso  concedem-lhes  que  tomem  para  o  seu  serviço  um 
rapaz  que  é  obrigado  a  fazer  o  trabalho  da  casa.  Os 
colochos  jamais  casam  com  assuas  parent;is,  escolhem 
sempre  as  suas  mulheres  nas  outras  tribus.  'J"oJavia, 
esta  regra  tem  uma  excepção',  ponpie  quando  morre 
luu  colocho  oseu  sobrinho  tem  obrigação  de  casar  com 
a  niulliiT  lio  lio,  seja  qual  fòr  adillereuça  das  idades. 
As  mulliires  não  são  isentas  do  traliallio  ;  pelocon- 
Irario  tem  obrigação  de  ir  buscar  lenha  c  agua,  e  de  sal- 
garem o  peixe,  dl!  fazerem  cestos,  vestidos  de  lã,  >\.c.  , 
cm  quanto  <pie  seus  maridos  se  conservam  em  ócio. 
Os  homens  não  se  mexem  em  quanto  lhes  duram  em 
casa  os  mantimentos;  ao  acaso  se  enfastiam  de  atu- 
rar as  mulheres  vão  e«tirar-se  na  areia  das  pr.iias, 
e  até  sobre  as  aguas  geladas  do  mar.  Teem  um  amor 
ilesordeiiado  a  um  jogo  nacional  qiic  se  joga  com  umas 
varinhas,  no  qual  muitas  vezes  penlein  quanto  pos- 
suem entrando  até  as  suas  mulheres. 

t>  peixe  !■  II  principal  maiitluu-uto  dos  habitantes. 
Os  an-iiques  vem  em  grandes  e.irdumes  desovar  no 
mez  de  março  iio  estreito,  ao  pe  d.i  fortalcxu  de 
Sileha.  N'esso  tempo  os  colochos  cortam  arvores,  car- 
rei';aMi-ii.iH  de  piMlriis,  e  metteiii-uas  deb.iixo  do  mar 
ao  pe  lia  costa.  Tiram  il'agua  a  desova  que  seajH-gou 


294 


O  PANORAMA. 


aos  ramos,  seceam-na  ao  sol  ecomem-na  mais  tarde. 
l'esca-sp  no  mcz  dejunho  uma  espécie  de  salmão  ('sa/- 
7110  ijihbosus)  que  i;  secco  ao  fumeiro  depois  de  st-  lhe 
tirarem  as  espinlias.  Os  rodovalhos  apanham-se  tan- 
to no  verão  como  no  inverno,  e  comem-se  frescos  ■,  edos 
ovos  de  solho  misturados  com  os  dos  arenques  também 
fazem  os  colochos  certa  comida.  Na  primavera  tiram 
íle  diversas  arvores  um  liquido  que  depois  de  fermen- 
tar embebeda.  Os  phocas  e  as  baleias  que  o  mar  de 
vez  em  quando  arroja  acosta  são  paraelles  umac;ulo- 
dice ;  porém  preferem  a  tudo  o  azeite  doestes  peixes, 
(jue  bebem  com  o  maior  gosto  nos  seus  banquetes. 
São  amigos  das  carnes  de  alce  e  carneiro,  mas  des- 
prezam a  de  urso.  Comem  com  boa  vontade  todos  os 
pássaros  indistinctamentc,  excepto  o  corvo  que  para 
elles  é  sagrado. 

Os  colochos  não  devoram  a  carne  dos  seus  prisio- 
neiros;  contam  que  existe  por  de  traz  dasmontanlias 
sí'ptontriona('S  uma  nação  diUerente  da  sua  nalingua 
(■maneira  de  viver,  eque  foi  em  tempo  de  grande  pe- 
núria, obrigada  a  comer  carne  humana.  Kstea  ho- 
mens, chamados  Connaquos,  vem  ás  vezes  á  aldeia  do 
TcUilchatou  trazer  aos  colochos  pelles  de  martas-zibi- 
linas  e  de  rajjozas,  e  pedaços  de  cobre  bruto,  em  tro- 
co de  armas  o  pólvora. 

(Estrah.  da  Revista  do  Norte.) 


Dos   TRABALHOS   GEOLÓGICOS. 

O  MELHOR  modo  decomprehender  bem  a  serie  natu- 
ral das  ideias  relativas  á  geologia  consiste  em  acom- 
panhar com  o  pensamento  os  viajantes  geólogos  nas 
regiões  que  não  submeltidas  á  observação  enasquaes, 
por  conseguinte,  tudo  está  porfazcr.  Achar-se-ha que 
são  obrigados  atractar  de  innumeravcis  objectos,  que 
se  encadeiam  intimamente,  taes  como  o  calculo  das 
latitud(!S  o  longitudes,  a  medição  das  alturas,  a  de- 
terminação dos  elementos  do  clima,  a  topographia  do 
solo,  das  suas  formas  picturescas,  das  suas  produc- 
ções  &c.  Km  nenhuma  parte,  porém,  este encideamen- 
to  se  observa  mais  claramente  edeum  modo  mais  in- 
teressante doqiio  na  America.  Os  geólogos  são  os  ver- 
dadeiros arroteadores  por  conta  dacivilisação,  que  se 
vai  propagando  tão  rapidamente  ])or  aquelles  rios  e 
fecundos  desertos.  Por  isso  se  começou  a  trabalhar 
al!i  geologicamente  nas  proporções  mais  vastas  ecom 
lima  extraordinária  actividade.  Os  governos  que  com- 
prchendem  perfeitamiMite,  quanto  á  riqueza  publica, 
a  utilidade  de  obrar  cm  toda  a  parte  conforme  o  co- 
nhecimento exacto  da  natureza  dos  territórios,  ani- 
mam com  superior  intelligencia  todos  os  trabalhos 
d'estc  género;  e  ])or  isso  os  listados  do  norte  da  Ame- 
rica estão  munidos  de  cartas  geológicas,  mui  bem  de- 
sempenliadas,  pelas  quacs  se  regulam. 

O  problema  projwsto  aos  geólogos  americanos  con- 
siste em  organisar  um  quadro  completo  dopaiz.  Não 
teem,  como  os  seus  collegas  da  Kuropa,  o  auxilio  de 
cartas  topographicas  já  publicadas.  Devem  levantar 
ou  polo  menos  completar  o  rnappa  geographico  e  phv- 
sico,  medir  a»  alturas,  calcular  as  correntes  d\iguas. 
determinar  a  composição  do  terreno.  Suo  ao  mesmo 
tempo  encarregados  de  explorações  relativas  ás  ques- 
tões de  utilidade  publica,  que  nascem  da  natureia  do 
solo,  relativamente  á  agricultura,  ás  vias  dcconiniu- 
nicação,  á  abertura  das  pinlreiras  c  das  minas;  nem 
hão  de  siniplrsu\enle  conlentar-se  com  o  ter  indicado 
.•i  existência  (Festas,  c  mister  que  designem  ao  mí!s- 
mo  tempo  os  melhores  meios  de  se  priKvdcr  ásua  ex- 
ploração. Da  mesma  maneira  pelo  que  respeita  a  agri- 
cultura ;  tem  de  examinar  a  flora  e  a  fauna  pr».)prias 
de  cada  districto.  para  d"ahi  deduzir  túUos  os  esclare- 


cimentos possíveis  soVjre  ascondições  da  economia  ru- 
ral, que  é  chamada  a  substituir  o  seu  império  ao  da 
natureza  livre.  «O  trabalho,  a  que  as  cartas  geoli»- 
gicas  dão  causa  (diz  M.  Klias  dcBeaumont.  dequeiu 
tirámos  estas  informações)  é  uma  investização  ency- 
clopedica  década  estado.  São  funcções  importantissi- 
mas  as  doestes  naturalistas  pensionados  pelos  governos, 
(geologist  to  the  sfate)  como  lhes  chamam  nos  Kita- 
dos-Unidos.  Verdadeiros  batedores  da  sciencia  e  da 
industria,  teem  uma  commissão  muito  mais  ampla  pa- 
ra desempenhar  do  que  a  dos  engenheiros  de  minas 
em  França,  até  mesmo  dos  que  são  incumbidos  das 
operações  das  cartas  geológicas,  eda  inspecção  da  mi- 
neração e  officinas  dependentes." 

Certamente,  (diz  um  escriptor  francez)  que  seria 
para  desejar  que  a  França  ton)asse  a  este  respeito  al- 
gumas lições  dos  americanos,  jxjr  muito  extraordiná- 
rio que  fosse  vêr  uma  nação  de  administração  vigo- 
rosa, procurar  modelo  n^outra  onde  a  administração 
em  geral  é  mais  frouxa.  Mas  é  innegavel  que  resulta- 
riam grandes  vantagens  de  possuir  em  cada  departa- 
mento um  svstema  de  noi-ões  scienlificas,  Ijem  orde- 
nadas era  relação  a  todas  as  condicções  naturacs  do 
território,  não  somente  pelo  que  toca  á  exploração 
suV)terranea,  mas  sobretudo  no  concernente  á  explo- 
ração agrícola,  mais  essencial  ainda.  Mui  importan- 
tes esclarecimentos  se  obteriam  para  a  economia  ru- 
ral do  paiz,  estando  em  bons  map^vis  representadas 
as  varias  zonas  do  solo  vegetal,  segundo  as  suas  di- 
versas qualidades  constitutivas,  da  mesma  maiíeim 
que  as  cartas  geológicas  propriamente  ditas  marcam 
os  dilTerentes  maciços  do  que  podemos  chamar  o  ma- 
deiramento mineral  dos  terrenos. 


3I1CCEI  Paibologo. 


1253. 

Vestido  de  habito  religioso,  deitado  cm  cinza  cconi 
as  mãos  postas  sobre  o  peito,  o  imperador  Thcodon» 
Lascaris  eslava  a  expirar. 

Reconciliado  com  Deus,  preparado  para  este  mo- 
mento solemne;  e  enojado  mais  que  tudo  das  grande- 
zas humanas,  estendera  alegre  os  braços  á  morte,  st- 
não  fosse  o  pensamento  de  seu  filho  João.  pobre  crea- 
turiuha  de  nove  annos  apenas,  cuja  cabeça  ia  talvez 
esmagar  cobrindo-a  com  o  pesado  diadema  deNicéa. 

O  imperador  chorava. 

Porque  era  mister  mão  fiel  para  suster  o  diadema 
por  cima  da  cabeça  de  João,  e  o  desgraçado  pai  uão 
via  em  torno  de  si  sen.ão  inimigos. 

Jorge  Acropolita  não  podia  ter  esquecido  que,  por 
ordem  do  imperador  fôr.a  nagelladocomo  um  escravo. 

Musalon  fflra  expulso  do  conselho  aos  jK>nta[x-s. 

Miguel  Paleologo .  .  .  Oh  I  se  elle  pixlessc  desleiu- 
brar-se  de  uma  noite  funesta  . .  .  talvez  se  ileslcmbre, 
porque  só  esta  vez  foi  o  imperador  cruel  par.i  com  r.l- 
le  :  ^liguei  será  generoso.  Ide  chamar  Miguel  Pa- 
leologo, dai-vos  pressa. 

Saiu  um  dos  guardas,  c  voltou  logo,  prccc<lcudo 
Miguel  Paleologo. 

Sobreviera  a  noite,  uma  só  alamp.ida  allumiava  a 
tenda  do  im|«-rador,  e  embalada  de  continuo  pelo 
vento  derramava  uma  luz  tremula.  Du.is  mulheres  o 
um  p.vdrc.  ajoeULidiu  ao  pé  do  leito,  velavam  ao  lado 
do  enfermo.  Assim  qucThcodoro  viu  appareccr  o  .igi- 
gantado  Miguel,  fez-lhc  signal  para  se  retirarem,  c 
estes  dois  homens  ficaram  mudos  defnmte  um  do 
outro. 

O  imperador  foi  quem  quebrou  o  silencio. 


o  PANORAMA. 


295 


—  «Miguel,  lhe  perguntou  elle,  tu  odeias-me?» 

—  ii  Sim. " 

—  "  E,  todavia,  mando-te  chamar  a  ti  para  juncfo 
d'esto  leito  damoilc,  |K)rf]ue  quoro  que  me  facas  um 
beneficio  immeiíso.  •' 

—  íí  É  porque  não  achas  outrem  que  to  faça.» 

—  «iMigiiel,  eu  sempre  te  amei,  tu  liem  o  sabes,  n 
Um  sorriso  amargo  c  irónico  enrugou  os  lábios  do 

l'aieologo. 

—  II  Oli  !  Miguel,  não  sejas  severo  juiz  «lo  meu  pro- 
ceder |)ara  eointigo  !  Se  reinares  algum  dia  {Ueus  e 
os  sanctos  te  guaniem  de  semelhante  desgraça)  sabe- 
rás quanta  d(^scul|)a  mereço  por  te  haver  feito  encarce- 
rar \  porque  me  diziam  :  elle  cubiça-te  a  coroa,  cons- 
pira contra  ti,  é  moço,  eloquente,  amado  dos  solda- 
dos .  .  .  Mas  deixa-me  acabar  que  os  instantes  são  pa- 
ra mim  preciosos. » 

Escuta:  estou  a  morrer  e  deixo  um  filiio,  uma  po- 
I)re  creança  sem  soceorro  nem  amparo.  Nomeio-te 
seu  tutor  conjunetamente  com  jMusalon.  Acceitas  es- 
te titulo  ? 

—  "  Acceito.  >' 

—  "Ejuras-me  no  meu  leito  de  morte,  e  diante  de 
Deus  que  nos  ouve,  que  meu  filho  ha  de  achar  em  ti 
um  pai  terno,  extremoso  ?  .  .  >i 

—  ií  Escuta  : 

"  A  manhã,  quando  fores  a  enterrar  farei  matar  BIu- 
salon  e  todos  os  seus,  para  eu  licar  sendo  o  unito  tu- 
tor de  leu  filho. 

uD\iqui  a  oito  dias  farei  lançar  teu  filho  n'um  cár- 
cere á  beira-mar. 

"  l)'aqui  a  um  anuo  mandar-lhe-hei  tirar  os  olhos 
com  um  forro  em  braza.» 

O  imperador,  concentrando  as  poucas  forças  que 
lhe  restavam,  arrastou-se  para  fora  do  halo  até  os  pés 
do  l'alei)logo. 

— "  ['erdão,  lhe  bradou  elle  !  pc^rdão  para  a  pobre 
creança  !  \'inga-te  em  mim,  alravessa-nie  com  atua 
espada,  mas  tem  d<í  (l'cll(,> !  n 

—  «  l'assar-lo  com  a  minha  espadai  morres  dentro 
iPuma  hora.  " 

—  II Oh!  piedade,  peço-te  pela  tua  alma!" 

—  íiTheodoro  Ijasearis,  Deus  é  justo.  Na  masmorra 
em  que  teu  filho  ha  de  ser  sepultado,  sepultaste-me 
tu  três  annos.  O  ferro  em  braza  que  lhe  ha  de  tirar 
os  olho»  empregaste-o  tu  para  assanhar  os  galos  bra- 
vos, que  devoravam  minha  irmã  encerrada,  por  tua 
ordem,  ii'um  saeeo  cheio  d'elles. 

—  "  Ma»  é  um  menino  innocciíte  !  )i 

—  «Era  uma  mulher  innocente.  " 

— 11  tílual  fui  o  crime  que  elle  commetleu  .'» 

—  uHual  era  ocrimc  deminha  irmã?  Nãoquerer 
dar  sua  filha  jiara  mulher  de  iMusalon  teu  valido. 
Jlasgasle  nni  conição  il(!  mãi,  9('rá  rasgado  o  leu  cora- 
ção de[iai  !  Mataste  uma  nmlher,  morrí^rá  uma  crean- 
ça i  é  a  pena  d(^  talião:  ('justiça. 

(*  Ah  !    aind.'i  sfiu   imncrjirlnr  I 

(luardas !  n 

Miguel,  pondo  o  pé 
fou-lli<!  as  vozes  \ 

—  liSileneio,  eadaviT  !  não  sabes  (pie  um  impera- 
dor moribimdo  já  não  nrina  ?  Mas  poiquí'  ti!  não  hei 
de  diMxar  grilar,  accrcsrentou  lirando  o  pé  :  ninguém 
vir/l,  ningu<'m  accudirá  aos  sihis  gritos,  e  se  alguém 
viesse,  u  um  signal  da  minha  mão,  escarrava-lhe  na 
cara.  " 

Depois  senlon-se  á  br'ir;i  cio  Icilo  chi  iiii|iiT.i(lor. 

i'assou  ijuia  hora  si'm  »e  ouvir  sciiáo  o  cslcrlor  do 
nini'iliuii<l(>. 

I)r  repcnle,  cessou  o  títortor,  e  um  movimento 
convidsivo  agitou  o  habito  de  frade  em  cjue  'J"heodo- 
ro  se  amortalhara. 


asou  imperador!  exclamou  Lascaris. 
ir^anla  ilc 'Vlieoduro  alia- 


Miguel  inclinou-se  sobre  o  cadáver,  e  lhe  tirou  do 

peito  oediclo  do  imperador,  que  nomeava  tutores  de 
seu  filho  a  Miguei  l'aleologo  e  a  Musalon. 

—  ií  Soldados,  bradou  elle,  o  imperador  éfallecido. 
e  deveis  obedecer-me,  porque  sou  regente  do  imp<;rio 
de  Nicéa.  Aqui  está  a  derradeira  vontade  do  impe- 
rador. " 

— 11  Viva  Miguel  Paleologo  !  bradaram  milhares 
de  vozes. 

ISo  dia  seguinte  foi  morto  Musalon  no  enterro  do 
imperador. 

E  passado  um  anno,  n'uma  fortaleza  á  beira-mar. 
tiravam  os  olhos  a  um  pobre  menino,  que  nem  se 
quer  luctava  com  os  seus  verdugos. 

(Traduzido  de  3/.  Jicrthoud.) 


D 


AS   SEMENTEIRAS  RALAS    OU    BASTAS. 


Poucas  questões  são  na  agricultura  mais  interessan- 
tes do  que  a  da  quantid;ide  de  sementes  que  convém 
empregar  para  se  obterem,  em  igualdade  deeircums- 
tancias,  as  mais  vantajosas  colheitas.  Ha  ainda  mui- 
tas experiências  para  fazer  a  este  respeito;  e  ainda 
não  temos  uma  taboa  exacta  das  quautidades  de  ca- 
da espécie  de  sementes  as  mais  appropriadas  ásdifié- 
rentes  naturezas  do  solo. 

Um  agrónomo  inglez  avalia  em  Ires  milhões  de 
(juarters  (24  milhões  de  alqueires  approximadamente) 
a  quantia  dos  eereaes  que  (se  empregam  de  mais  do 
que  é  necessário  nassementeiras  da  Grã-Bret;mlia.) 
Segundo  o  preço  médio  doscereaes  n'aquelle  paiz  pi>- 
de-se  calcular  em  .')4  milhões  de  cruzados  a  economia 
que  se  poderia  fazer  na  produção  dos  mesmos  cereaes. 
se  se  limitassem  a  empregar  nas  sementeiras  a  quan- 
tidade estrictaniente  necessari;i,  ed'aqui  se  pode  in- 
ferir que   o  objecto  \al  bem  a  pena  de  ser  estudado. 

As  sement(!S  ridas  augnienl;im  a  altura  doscereaes, 
são  favoráveis  ao  desenvulvimcnlo  da  haste,  da  espi- 
ga e  do  grão;  ])rol(Uigam  a  duração  da  vegetação,  e 
retardam  ])or  conseguinte  a  epocha  da  madureza. 

As  sementes  bastas  produzem  o  cUeito  contrario ; 
diminuem  todas  as  dimensões  das  plantas  que  se  tor- 
nam individualmente  menos  produetivas,  abbreviam  a 
duração  da  vegetação,  e  apressam  por  conseguinte  a 
epocha  da  madureza.  Assim  quando  semeamos  ralo. 
ceifamos  tarde;  e  quando  semeamos  basto,  ceifamos 
cedo. 

Dada  a  igualdade  do  estrume,  e  da  fertilidade  do 
solo,  uma  ixí<iuena  (|Uiintidade  de  semente  produz, 
dentro  de  um  periodo  ni;iior,  uma  colheita  i>;ual  á 
que  pode  dar  uma  (juautidade  mais  a\ultad;i  de  -e- 
nienle  lun  um  [leriodo  ui<'uor. 

t)  segundo  ;inianho  (biitatjv)  doscereaes  é causa  de 
se  retardar  a  mailureza  do  grão,  mas  dispõe  as  plan- 
tas para  deilar  rebentos. 

As  sementi^iias  em  liniui  a]iressani  :i  madureza  dos 
cereaes,  m:is  liiuiiuueui  a  sua  disposição  para  deitar 
rebentos. 

Além  d\'st<-s  jirincipios,  as  eircumstanci:is  loeaes, 
isto  e,  a  natureza  e  a  i'xposieão  do  terreno  iniluem 
puderusamenli'  nos  resultiidos  de  uma  semeiílelra  r.i- 
la,  basta,  ou  minlLana  ;  a  temperatura,  e  sobre  tudo 
o  urau  de  humi(lad<'  do  elima  devem  determiiuir  o 
cultivador  no  ijui'  diz  respeito  a  esta  p;irte  ile  seus 
Iriíballios.  J'au  geral,  as  ijuaniiilades  ile  sementes  re- 
conhecidas como  uiais  adaptadas  :ios  climas  aimulla- 
neamenle  brandos  e  húmidos  e  ás  terras  onde  a  ve- 
giliiçuo  e  muito  vigorosa,  d<'\eiu  ler  eonsideruduii  co- 
mo insulfici<'nt<'s  pura  as  terras  menos  ferlei.s  e  paru 
os  paize»  mais  elevados  ou  mais  septentrioinies,  que 
tecm  invernos  inuis  longos,  o  estios  mui  curtos. 


296 


O  PANORAMA. 


Se  o  terreno  não  tem  as  condições  necessárias  de 
cultura  e  de  fertilidade,  não  produzirá  abundante- 
mente, quer  lhe  prodigalizem  quer  economizem  as  se- 
mentes. Mas  se  o  terreno  for  bom,  poderemos  espe- 
rar unia  boa  colheita  de  uma  pequena  quantidade  de 
grãos  semeados  ornais  cedo  possível,  isto  é,  no  outo- 
no, depois  de  amiudadas  cavas  profundas,  muito  prin- 
cipalmente se  a  sementeira  for  feita  em  linhas  assaz 
espaçadas  para  que  a  grade  de  desterroar  possa  tra- 
balhar pelos  intervallos. 

O  cultivador  de  um  grande  prédio  deve  ter  o  cui- 
dado de  não  semear  todos  os  seus  campos  nem  muito 
basto  nem  muito  ralo,  preferindo  variar  a  densidade 
das  sementeiras  tanto  quanto  a  natureza  dos  terrenos 
Ih  o  permittirem.  Com  este  processo,  evitará  o  in- 
conveniente, muitas  vezes  gravíssimo,  de  lhe  amadu- 
recerem ao  mesmo  tempo  todas  assearas  faltando-lhe 
braços  para  a  ceifa  em  tempo  opportuno. 

(Auanto  uma  sementeira  de  trigo  succede  aumdes- 
torroamento  ou  vem  apoz  uma  cultura  de  raizes,  co- 
mo cinouras,  betarraba?  &c,  que  tenha  revolvido  o 
interior  do  terreno,  podemos  ter  a  certeza  de  que  a 
colheita  se  fará  pelo  menos  oito  ou  dez  dias  mais  tar- 
de do  que  nas  outras  culturas.  Se  n'estas  circunstan- 
cias semearmos  ralo,  as  plantas  já  dispostas  pelo  es- 
tudo da  terra,  para  prolongarem  a  sua  vegetação, 
achar-se-hão  ainda  mais  demoradas,  e  corremos  o  ris- 
co de  ceifar  muito  tarde,  o  que  acontece  frequente- 
mente aos  cultivadores  que  não  attendera  a  esta  par- 
ticularidade. Se  pelo  contrario  semearmos  tão  basto 
e  tão  cedo  quanto  o  comportarem  a  natureza  do  solo, 
e  o  estado  da  temperatura,  apressaremos  o  momento 
da  madureza  do  grão  de  maneira  que  ficará  compen- 
sado o  effeito  do  destorroamento  do  terreno,  e  consegui- 
remos assim  fazer  chegar  a  ceifa  á  epocha  opportuna. 
Os  axiomas  que  acabamos  de  expor  são  conhecidos 
de  muitos  cultivadores  practicos  :  temos  visto  muitos 
velhos  aldeões  a  quem  a  sua  longa  experiência  prati- 
ca dá  a  justa  consideração  de  oráculos  entre  os  seus 
visinhos,  quando  consultados  sobre  este  ponto  delica- 
do, decidirem  onde  e  quando  convém  semear  ralo  ou 
basto,  mas  sem  darem  as  rasões  d'islo,  se  bem  que  a 
observação  seja  indubitavelmente  a  base  de  suas  de- 
cisões. Em  quanto  o  uso  dos  sementeiros  (l)  se  não 
tornar  mais  geral,  um  bom  semeadorserá  sempre  um 
homem  raro  e  precioso,  disposto  a  prevalecer-se  de 
uma  aptidão  a  que  os  practicos  só  com  muita  diflicul- 
dade  conseguem  chegar.  Com  os  sementeiros  ecom  .1 
applicação  judiciosa  dos  princípios,  o  resultado  das 
sementeiras  não  dependerá  já  da  dextreza  de  um 
bom  semeador,  e  todos  podem  esperar  uma  excellen- 
le  vegetação  quando  empreguem  bons  instrumentos, 
e  não  anteponham  a  rotina  aos  princípios  bebidos  no 
estudo  do  progresso  da  vegetação. 


Algdms  alienados. 

Jíntre  os  loucos  que  estavam  reclusos  em  Bicítre  em 

183(5,  distinguia-se  um  pelas  suas  manias. 

Tinha  sido  liabil  musico  da  orchestra  da  Opera 
o  compositor  de  merecimento,  e  empregava  o  seu 
tempo  na  educ.ição  (Pum  pardal  armado  de  todas  as 
peças  como  um  cavalleiro,  e  na  de  um  idiota  de  de- 
zoito annos,  a  quem  ensinara,  com  indizível  paciên- 
cia, a  cantar  um  iiynuio  iin  lou\or  tie  Jesus.  Kste 
infeliz  alienado,  falla(h)r  e  vaidoso,  e  inimigo,  co- 
mo é  de  crer,  da  prisão  a  que  vivia  condemnado, 
mostrou  ser  cscraro  da  honra,  conforme  elie  dizia  em- 
))halicamente,  voltando  para  o  captiveiro  dVuide  o 
deixaram  sair  uma   vei  sob  sua  palavra  para  tractar 

(1)  Machinn  invcutada  para  semear  melhor  ecom  menor 
ilcspcrdicio  o  Irigo. 


de  certo  negocio.  Comprazia-se  em  contar  anecdotas 
da  sua  vida  artística,  sendo  uma  das  mais  interessan- 
tes a  cura  do  pai  do  actor  Gavaudan,  que  perdera  o 
juízo  por  ter  tomado  um  remédio  violento.  —  u  Estava 
doudo  varrido,  dizia  elle,  nu,  furioso,  não  consentia 
ninguém  ao  pé  de  si ;  quebrava  todos  os  moveis  a  que 
podia  chegar."  —  "Este  homem  tem  cura,  disse  eu 
aos  seus  parentes,  e  se  estiverem  peloquecudijo,  em- 
pregarei um  remédio  infallivel.  "  —  l)eram-me  cre- 
dito. Junctei  logo  doze  ou  quinze  músicos^  csconde- 
mo-nos  debaixo  das  jauellas  de  Gavaudan,  e  dou  o 
signal.  Eis  que  começa  uma  s^'rophoniamelancholica 
e  suave.  Gavaudan  levanta-se,  escuta  attento,  lança 
os  olhos  ároda  desi^  conhece  que  está  demente;  de- 
bulha-se  em  lagrimas  -,  chama  a  família ',  acodem  to- 
dos, lança-se  nos  braços  de  seu  lilbo.  . .  Chama-me 
seu  salvador.  .  .  Tínha-o  curado. 

Este  caso  é  verdadeiro,  um  louco  foi  curado  por 
um  homem  que  havia  de  enlouquecer. 

Outras  vezes  Schn.  .  .  (era  o  seu  nome)  contava  as 
maiores  extravagâncias,  como  por  exemplo  que  en- 
cantara um  elephante,  tocando-lhe  trompa,  a  ponto 
de  o  animal  pegar  n'elle  com  a  proboscide  e  leva-lo 
em  triumpho;  eque  ensinara  musica  a  um  burro  que 
ja  cantava  maravilhosamente. 

A  loucura  parece  que  nunca  se  declara  instanta- 
neamente, e  se  acaso  se  manifesta  de  repente  n'al- 
guns  indivíduos,  interogadas  as  suas  famílias,  desco- 
bre-se  que  elles  ja  teem  dado  indícios  de  demência. 

Mr.  CuTÍer  alcançou  para  um  moço  de  muito  me- 
recimento e  ínstrucção,  eque  vivia  em  pobreza,  olo- 
gar  de  mestre  de  dois  príncipes  allemães  com  seis  mil 
libras  de  ordenado ;  e  dou-lhe  a  noticia  d'esta  fortu- 
na sem  o  dispor  para  recebe-la.  O  mancebo  deu  sig- 
naes  do  mais  despropositado  jubilo,  e  perdeu  logo  o 
juizo.  Soube-se  pela  gente  da  casa  em  que  morava 
que  era  sujeito  a  ataques  de  misanfhropia  que  duravam 
semanas  inteiras  \  outras  circumstancias  comprova- 
ram alguma  falta  de  siso. 

Um  d'esses  histriões  rafados  que  vão  de  tempos  a 
tempos  cardar  as  províncias,  um  tal  Lagardiére  pa- 
rodiava grotescamente  Talma  no  theatro  de  Cam- 
brai ;  e  de  certo  fazia  dó  ver  a  sua  cabelleira  russa, 
e  os  seus  joellios  cambaios  ;  e  ainda  mais  dó  faiia  ou- 
vir-lhe  a  declamação  empolada,  e  a  voz  enrotiqueci- 
da  pelas  continuas  libações  de  agua  ardente.  Um  ho- 
mem, que  estava  muito  quieto  a  ver  esta  borrachei- 
ra, salta  de  repente  para  o  palco,  vai-se  direito  ao 
histrião  e  proga-lhe  o  mais  bem  puxado  murro  que 
elle  nunca  levara  na  sua  vida.  E  fácil  de  imaginar 
o  reboliço  que  faria  este  assalto ;  tanto  mais  que  o 
homem,  sem  cessar  de  servir  de  pancadaria  o  farrou- 
piliia,  o  alagava  n^unia  torrente  de  nomes  injuriosos, 
repetindo  muitas  vezes  o  de  taJrCio. 

Separam-n'os,  fazem-lhes  perguntas,  mas  oaggres- 
íor  não  se  cança  de  gritar  :  ■.  Houl)ou-me  !  »• 

—  >i  E  o  que  vos  roubou  ?  pergunf.i  alguém.  " 

—  "  KoulHJU-me  um  gesto  I  .  .  este  gesto,  disse  o 
doudo,  coçando  o  nariz,  n 

Lagardièrt"  usava  muito  d'este  gesto  trágico. 

Levaram  d'alli  á  força  o  homem  queixoso  de  o  te- 
rem roubado,  o  qual  desde  este  momento  deu  .is  pro- 
vas mais  decisivas  de  demência.  Tiraram-se  informa- 
ções, e  Deus  sabe  o  que  este  acontecimento  deu  que 
fallar  na  pequena  cidade  de  Cambrai,  e descubriu-se 
não  ser  este  o  primeiro  acto  de  demência  pr.'ícticado 
por  J.  .  .  'let,  o  qual.  de^Kiis  de  melhorar  veio  mo- 
rar para  l'arís,  e  publicava  thcurias  solares  cum  esta 
epigraphe : 

São  ha  senuo  um  Deus  ,■ 

^^ão  ha  icnCto  uma  iheoria  solar. 

-Yuo  ha  senão  um  /.  .  .  Tet,  cnpat  Je  a  t.rplicar. 


38 


o  PANORAMA. 


297 


o  DEMÓNIO  DO  JOGO. 


Appiiesentamos  copia  do  uma  estampa  antiga,  para 
i|ue  se  veja  o  j^osfo  da  invenção  e  desempenho  d'este 
jçenero  de  desenhos,  ha  quatro  ou  ciiieo  séculos.  Ser- 
vir.! lamheni  de  prova  de  fjuão  desenfreada  domina- 
va a  paixão  dojoi^o  entre  os  nossos  maiores,  <iuealém 
das  declaniarões  vulgares,  deu  oceasião  a  diversos  li- 
vros, lioje  raros  e  escjuucidos.  A  par  da  censura  dos 
auctori's  ap|)arece  a  severidade  das  h-is,  fulminando 
penas  contra  os  jogadores,  reforçadas  com  a  auctori- 
dade  canónica. 

A  opinião  j;er.il  reconheceu  os  damnos  d^essa  pai- 
xSo  devastadora,  (jucr  começou  pelas  pirturhações  e 
ruinas  entre  osi;randes,  esemeou-as  depois  nosdomi- 
(■ilios  dos  p.irli<ularc3,  roubando  a  p:iz  e  ,i  fazenda  de 
innumeraveis  famílias.  Sempreeste  vicio,  fonte  de  ou- 
tros muitos,  tão  fatal  eonio  a  guerra  intestina,  foi  fu- 
nustissiino,  e  ainda  em  nossos  dias  é  causador  de  bas- 
tantes estragos,  (pialilicadoeomo  uni  flus  males  niorae» 
da  sociedaile  :,  porém,  nunca  se  manifestou  Ião  solto  c 
contaniinailor,' como  na  i.'poeha  a  <|Ue  alludimos,  c  a 
(jue  ])ertence  aipiella  estampa,  poslo  dedala  um  lau- 
to inirertit.  l""oi  mister  re|)resentar,  então,  este  Uagel- 
lo  da  eomniuiiidade  social  sol>  a  allegori.i  de  um  en- 
te inidelico,  ri'vr'sli(lo  deforma  monstruosa  !■  horrida- 
respirando  incêndios  e  toda  acasta  de  assolações,  em- 
polgando palácios  e  Ioda  a  espécie  de  propriedatles. 
Se  a  invenção  da  allegoria  |ióde  parecer  exlrataganle, 
u  fundo  do   |ietisamento  é  assar,  vurdaileiro. 

<iue  o  jogo  <'stava  em  muita  voga  entre  nós  nos 
VoL.   I.  —  Novit.MUiio    1.1,    1817. 


dois  precedentes  séculos  niostra-se  pelas  passagens  rps- 
peclivas  dos  nossos  escriptores  ascéticos  e  moralistas. 
Uepr<;hendciido  o  jogo  nos  dias  sanetilicados,"  e  para 
mostrar  a  observância  dodomingo  entre  os  heteredo- 
xos,  o  nosso  \  ieira,  no  sermão  de  domingo  de  lia- 
mos, pregado  no  Maranhãoem  IfiSli.  c\priine-sed"es- 
la  maneira.  ' 

—  tinero-vos  contar  o  rjue  me  succedeu  em  In- 
glaterra. Iam  comigo  dois  portuguezes,  os  ipiaes  em 
um  domingo  se  puzeram  a  jog;ir  as  lalK)las  em  uma 
eslalagi'm  i  saiu  o  hospedi'  muito  assnslailo,  e  como 
fiíra  de  si  :  e  bem  senhoris,  (piereis  «pie  ine  venham 
<|ueimar  a  casa.'.  .  tiueimar  a  casa.  .  .  e  poripie  f  .  . 
Poripie  é  esse  um  jogo  ipie  se  pode  ouvir  fora,  e.sc  o 
ouvirem  ou  soulxTem  os  magistrados,  sou  perdido. 
Assini  o  dizia  este  hiunem,  v  assim  havia  de  ser.  K 
jiara  <pie  mais  vos  admireis,  a  cidadi-  ou  vdia,  er.i 
Doiivres,  porto  e  escala  marilima,  onde  todos,  sem 
exceplinr  nui  sií,  são  hiTeges.  t)h  >ergonha  dos  t|ue 
tanto  nos  prc/amos  do  nome  de  calholicosl 


CuNSOL\çXo    PARA  aUKM    MOHHIC    I>K    MOUTK 
VIOLKNTA. 

Na  sentença  lia  piuico  tempo  profiTÍda  em  Ijondros 
sobre  um  processo  de  desafio  fazse  notável  a  seguinte 
l)hrase  no  acto  da  accusaçào  ;  Oaccusailo  matou  o  seu 
adversário  com  uma  pistola  (yiie  eu/   10  uhtlliiHjs. 


298 


O  PANORAMA. 


Perguntarão  alguns  f|Uo  importa  o  valor  da  arma 
II  uma  causa  tio  (lucilo?  Gluer  a  pistola  custasse  um 
ou  C(fiii  sliilliiiçs  noni  jjor  isso  deixou  dehaver  morte 
de  homem.  INirein  os  inglezes  toem  uma  lei  particu- 
lar e  rara,  a  lei  do  Jeodand^  isto  é  riue  qualquer  oh-  \ 
jccto  que  houver  causado  a  morte  de  um  homem  fi- 
ca conliscado  em  proveito  do  estado.  Assim  é  confis- 
cada a  pistola  com  que  se  eíTeifua  um  desafio;  acar- 
roagem  que  atropella  alguém  é  também  confiscada; 
a  casa  que  desaba  soljre  os  viandantes  é  também  con- 
fiscada. Com  esta  lei  dá  a  entendí^r  o  fisco  quanto  se 
interessa  na  vida  dos  cidadãos.  Perde  um  d'elles  a 
existência?  Para  consolar  e  applacar-lhc  os  manes  des- 
cubriu  o  estado  um  meio  inlallivel  :  é  herdar  o  ins- 
trumento homicida. 


()i)IO  VELHO   >-Ã0   CANÇA. 

(Rumance  Histórico.) 


VI 


Só  o  coração  não  morre! 

títoANDO  os  dois  cavalleiros  e  o  monge  entraram  na 
sala  d'armas  o  sol  escondia-se  no  poente. 

A  manhã  tinha  sido  calmosa,  e  o  céu,  embaciado 
de  vapores,  ao  cair  da  tarde  desmerecia  em  azul-li- 
vido,  e  em  branco-azulado  mais  para  o  longe.  Dotraz 
das  serras  iam  levantando  a  cabeça  torreada  nuvens 
grossas  e  pardas,  diante  das  quaes  outras  mais  leves 
e  alvas  esvoaçavam,  fugindo.  O  sol  vermelho  de  fogo 
despedia-se  mergulhado  na  barra  cinzenta  do  poente, 
tingindo  de  reflexos  de  ouro  erosa  as  arestas  dos  mu- 
ros e  o  vértice  dos  montes. 

Como  cincto  que  se  alarga,  dos  horisontcs  despon- 
tava o  cerrado  negrume,  que  a  intervallos  sulcam  de 
veios  chammejantes  os  relâmpagos,  fuzilando.  Depois 
surdos  e  prolongados  rebombos  de  trovão  repetiam-se 
de  echo  em  eclio  no  espaço. 

O  silencio  era  profundo.  No  ceu  as  aves  fugiam 
aos  bandos;  ena  terra,  árida  com  o  calor  da  tormen- 
ta, tinh.i-se  calado  até  o  sussurrar  das  arvores,  e  o 
murmúrio  das  aguas;  que  são  as  vozes  do  hymno  con- 
solador, que  aaurora  na  fresquidão,  c  na  sua  melan- 
cholia  ocrepuscido  da  tarde,  entoam  a  Ueus,  saudan- 
do a  luz  e  a  noite,  svmbolos  da  fadiga  c  do  repouso. 

De  quando  em  quan<lo  scuitia-se  passar  lenta  e  ge- 
mida a  rajada  do  sul  nas  gargantas  dos  serros.  Assea- 
ras acamavam  tremulas  ao  açoite  da  sua  cliolera.  Es- 
ta lufada  breve  c  sceca  era  a  nuncia  do  temporal. 
I)(!ntrc>  em  pouco,  na  sua  pompa  tremenda  ve-lo-hão 
chegar  coroado  de  raios,  e  vestido  de  chammas.  No 
esteiro  do  INloudego,  perto  do  alcácer,  as  ondas  estor- 
ciam-se  no  leito,  e  gemendo  tornavam  a  adormecer, 
como  enfermo  que  as  convulsões  largaram,  o  se  afa- 
diga  depois  cm  somno  agitado. 

Entre  tanto,  dos  trcs  homens,  reunidos  na  sala  de 
armas,  nenhum  levantara  ainda  a  vista  para  Kí.  A 
historia  de  Inigo  Lopes  tinha  prendido  toda  a  sua 
attenção,  sem  modificar  os  seus  planos. 

Entregue  a  pensamentos  de  vingança  é  que  Mar- 
tim  Paes  alli  vii'ra.  llcspondendo  á  mensagem  do 
mourisco,  D.Maria  proniettòra  trazer  aSanctaOlaia 
o  ilhuiido  cavalleiro  lU-  Salzedas.  Um  recado  do  se- 
nhor de  Lanhoso  aos  parentes  da  sua  casa,  que,  em 
Coimbra,  ajunctára  a  festa  da  coroação,  avisava-os 
para  acudirem  ao  castello,  onde  eram  chamados  pa- 
r.i  se  resolver  um  caso  de  vida  ou  morte  para  to- 
dos.   Tentando,    debalde,  conciliar  com   o  crime  a 


consciência,  o  irmão  de  D.  Maria  Paes  prf)Curava 
imputar  a  outrem  a  principal  responsabilidade  do 
acto  de  crueza  e  pcrfidia  que  estava  determinado  a 
practicar.  Os  costumes  do  século  concediara-lhe  ser 
quasi  juiz  no  seu  pleito;  e,  approvcitaudo-os,  suppu- 
nlia-se  absolvido  da  infâmia  de  covarde  matador, 
uma  vez  que  desse  ao  assassínio  a  sancção  de  muitos. 
O  desgraçado  esquecia  que  o  homicida  «piebra  os  la- 
Ços  de  pátria  e  familia,  e,  sobre  o  sorriso  dos  filhos 
e  o  amor  da  mulher,  pela  mão  do  remorso  espalha 
as  roxas  agonias  do  terror  e  do  castigo ! 

A  voz  que,  da  capella,  acceitou  o  seu  desafio,  at- 
tcrrando-o,  não  lhe  mudara  a  tenção.  Similhante  a 
todos  os  criminosos,  imaginava  que  os  olhos  de  Deus 
o  não  seguiam  pelos  tenebrosos  desvios  do  seu  crime. 

Taes  eram,  na  hora  cm  que  estamos,  assuas  refle- 
xões: encostado  ao  mainel  da  fresta,  <■  olhando  os 
campos,  por  onde,  como  fita  tortuosa,  colleava  a  es- 
trada que  havia  de  pisar  Gomes  Ijourenço. 

Do  outro  lado  D.  Nuno,  dobrado  sobre  os  joelhos, 
scismando,  comparava  a  aspereza  dos  antigos  tempos, 
em  que  eram  aço  as  almas,  á  debilidade  do  seu,  em 
que  os  homens,  por  fracos,  dizia  elle,  já  não  abriam 
uma  c<jva  á  porta  de  cada  solar,  e  não  respondiam 
com  punhaladas  ao  mais  leve  doesto.  Degenerado  sé- 
culo !  . . , 

Para  este  adulador  do  passado  a  cultura  dos  cos- 
tumes era  perversão.  Não  via  o  caminho  da  socieda- 
de, e,  tapando  os  ouvidos,  não  escutava  a  palavra  de 
esperança,  que  as  gerações  presentes  repetem  áã  ge- 
rações futuras.  Com  as  costas  para  o  porvir,  cegava 
os  olhos  no  crepúsculo  da  noite,  sem  força  para  os 
fitar  no  romper  da  aurora.  Para  elle  o  berço,  d^on- 
de  o  scculo  novo  se  ergue  triumphaute,  era  o  tumu- 
lo cm  (jue  dorme  o  século  findo. 

Homens  assim,  andam  cegos  com  os  olhos  abertos. 
E  qucixam-se,  e  calumniara,  e  perseguem  I  Secta- 
rios-sonambulos,  matam  e  morrem  em  nome  de  poli- 
ticas proscripfas,  de  idéas  cadavéricas,  e  de  crenças 
nioriliundas,  julgando  resuscitar,  pela  intolerância,  o 
predomínio  que  passou. 

D.  Nuno,  sem  o  valor  heróico,  verdadeira  coroa 
da  cavallaria  da  epocha,  fora  accusado  de  fraque- 
za em  occasiõcs,  cm  que  cila  se  torna  indesculpaveL 
—  Cruel  e  vingativo,  não  esquecera,  nem  perdoara 
os  motejos.  No  fundo  do  coração  assentou,  como  di- 
vida sagrada,  a  memoria  de  todas  as  injurias.  Os  ca- 
valleiros moços,  menos  prudentes  que  os  velhos,  cra- 
varam-lhe  o  punhal  do  escarneo  diante  do  rei,  uos 
saraus  da  corte,  e  na  presença  das  damas;  c  para 
\ingar  as  ofTensas  rticebidas,  D.  Nuno  sabia  que  uma 
existência  de  séculos  não  chegaria !  Por  isso,  ferindo 
na  cabeça  o  mais  estimado  dos  soldados  moços,  esco- 
Ihia-o  para  victima  do  seu  des.iggravo.  e  exemplo  dos 
motejadores.  Quem  era  mais  apta  do  que  Gomes 
Loureiu.Kj,  para  realisar  este  |^«nsamenlo  vil  e  atroz? 

De  pé,  no  \imbral  do  b.ílcão.  descnhav.»-sc  a  figu- 
ra de  Kr.  Munio,  destacando  d.is  outr.is  duas  pela 
mansa  e  resignada  expressiio  do  rosto.  .\o  passo  que 
assombras  do  crime  carregavam  na  phvsionoinia  d"a- 
quelles  homens  feroics,  a  sua  respirava  pai  c  miseri- 
córdia. 

A  testa  elevada ;  os  olhos,  aonde,  ap.igado  o  ardor 
das  )>aixõps,  brilhava  a  serena  luz  da  rellexão ;  e  os 
cabellos  brancos,  caindo  oiulados  pi-los  hombros.  assi- 
milhavam-n^o  ao  vulto  de  granito,  em  que  a  tradi- 
ção esculpiu  a  saccnlotal  niagestade  dos  prviphetas. 
N.is  feições,  allumiadas  de  uma  melancholia  mansa 
e  nol)re,  estava  escripta  a  vietoria  do  espirito  sobre 
a  carne,  e  a  lucta  siH:reta  (quem  salio  so  mais  nobre, 
tio  que  n\uitas  estrondosas)  do  orgulho  do  soldado 
c-om   a  humildade  do  claustro,    .\quclla  grosscir»  es- 


o  PANORAMA. 


299 


tamenha,  em  que  apertava  o  cilicio  ao  peito,  conhe- 
cia a  historia,  talvez  terrivcl,  do  a;;oiiias,  de  sauda- 
des, e  de  aíléctos  clioradoa  na  solidão.  Era  a  morta- 
lha das  paixões  que  viviam  e  queimavam  no  corarão 
do  cavalleiro,  mortas  ou  vencidas  no  coração  do 
inon^te. 

Pastor  <ie  homens,  lierdeiro  da  mansidão  do  pri- 
meiro mestre,  era  risonha  a  sua  virtude  e  consolado- 
ra a  sua  fé,  como  filha  da  esperança.  Austero  só  com- 
sijo,  trazia  no  semhlunte  a  alegria  do  céu,  a  hu- 
mildade dojusto,  e  a  charidade  do  apostolo.  Masquan- 
do  a  sua  voz,  hranda  como  Chrislo,  não  era  escutada 
no  tumulto  do  mundo,  então,  elevando-a  ameaçado- 
ra, como  Jeremias,  evibrando-a,  pezada  de  exemplos 
o  lições  nos  paços  e  mosteiros,  algumas  vezes  semea- 
ra nas  cinzíis  dos  vicios  as  llores  do  arrependimento. 

A  historia  da  sua  mocidade!  era  um  segredo.  iNas- 
cido  em  berço  illustre;  cavalleircj  dos  últimos  tem- 
pos d'A(ronso  Hciiri(|ues,  e  dos  primeiros  de  seu  íilho 
1).  Sancho,  altriliuiam-lhe  rasgos  de  valor  heróico. 
Derepenti!  di'sappareceu,  e  ninçuem  soube  mais  d'el- 
le ;  diziam  uns  que  lòra  peregrinar  á  Palestina-,  di- 
ziam outros  que  partira  para  i-horar,  longe  da  terra 
natal,  a  mulher  de  quem  oamoríòra  para  elle  a  única 
luz  da  vida,  eciija  morte  prematura,  envolta  em  mys- 
terio,  se  ignorava  se  proviera  do  ciúme,  ou  do  pesar 
d'oecultas  penas. 

(Jluando,  «lecorridos  doze  annos,  voltou,  já  o  co- 
tdieceram  com  aquelle  habito  e  aquellas  feições  •,  ve- 
lho antes  de  tempo,  e  sobretudo  admiraram  o  refle- 
xo de  serenidade  celestial  que  as  dourava.  Das  pai- 
xões do  soldado  ou  do  amante  nem  o  menor  vestígio! 
—  Se  em  algumas  oecasiões  a  memoria  ou  a  saudade 
se  ergueram  na  solitária  enxerga,  as  suas  lagrimas 
c  soluços,  sudocados  na  cella  da  penitencia,  nunca 
transpiraram  para  fora  d'ella.  O  nome  por  que  se 
tinha  cliani.ido  no  século,  eseondeu-o,  como  se  recor- 
dasse quebra  ou  desdouro.  Hecordava-lhe  elle  acaso 
uma  vida,  de  que  vivera  instantes,  e  aliciava  esque- 
cer, nas  austeridades  monásticas,  inúteis  ijuasi  sem- 
pre para  curar  as  dores  da  alma  ?  tituem  sabe  !  l're- 
sumir  investigar  taes  segredos  é  vaidade,  (iuando  o 
ititerrogavam  sobre  o  passado,  respondia:  u  O  homem 
novo  despiu  as  vaidad<'S  do  homem  velho.  O  (pie  é  o 
nome,  quando  quem  o  teve  morreu,  e  se  amorta- 
lhou ?  )i 

Os  curiosos  ficavam  iUudidos,  c  o  monge  com  ose- 
gredo.  Cançaram-se  jior  fim  de  indagar,  acostuman- 
do-se  a  ver  em  l'"r.  Muiiio  um  frade  como  os  outros. 
A  sua  historia,  os  seus  trabalhos,  e  a  constância  com 
que  os  ]>ade<<"r;i,  revelados  sob  o  sigillu  da  confissão 
ao  abbade  de  Cister,  tiravam  ás  vezes  do  illustre  di- 
^iialuriu  da  igreja  esta  sentença  moral: — u  Ha  vir- 
tudes, assoprad.is,  que  luzem  muito  e  valem  pouco. 
Os  bons  não  são  os  (pie  choram  sempre,  mas  os  que 
andam  risoidios  <!staiido  trist(!s,  e  consolam  preci- 
sando d(.'  Ser  consolados.  Vejam  Kr.  Muniol  .  ,  .  n  O 
abbade  parava  Beinjire  n(]ui. 

Em  (juanio  dêmos  ao  leitor  esta  breve  noticia  do 
enracter  das  pessoas  que  entram  na  scena  (Pesta  his- 
toria, do  lado  de  Coimbra,  e  no  alto  de  um  tezo  ain- 
da distante  do  eastello,  reiíKjiidi.iram  rolos  d(?  poeira, 
o  aos  raios  do  sol  poente  scinlillaram  capellos,  lan- 
ças e  arnczen.  Os  sons  da»  trompas  relumiiavam  no 
iir,  e  eslendi.iin-a(í  ao  longe. 

—  wE  (iomes  |jouren(jo .'  brailini  1).  Nuno.  'rãn 
cedo  !  ? " 

—  «Não,  atalhou  IMarliin  1'ais  ;  hão  ser  os  de  Ci- 
ina-Cavndo  ^  é  (Telles  o  l()i|ue  de  Irimqias  á  mouris- 
ca. Vamos  ver.  •■> 

O  monge  o  os  dois  car-illeiros  subiram  .lo  eirado, 
A  cavalgada  linha  cheirado  u  um  cabe(;oj  d"ond(>  era 


faeil  aos  do  alcaçar  contar  os  homens  e  conhecer  os 
indivíduos;  d'alii  o  caminho,  rtxleando  os  montes, 
torcia-se  até  a  barbacã.  No  centro  do  (squadrão  tre- 
mulavam  pendões,  (juarteando-se  as  cores  dos  ricos- 
homens. 

O  frade  voltou  a  cabeça  com  tristeza.  Pelo  contra- 
rio, a  vista  do  cavalleiro  de  Lanhoso  tinha  um  bri- 
lho estranho  ao  cravar-se  em  D.  Nuno. 

—  "São  elles  1  exclamaram  ambos  a  um  tempo. 
São  elles !  D.  Nuno,  vede  1).  Frojlas  !  Glue  airoso 
que  vem  o  bom  do  velho  no  seu  (avalio  fouveiro?  !  '• 

—  "São  setenta  annos  do  idade  para  envergonhar 
os  trinta  e  os  vinte!  >' 

—  "E  bom  aço,  que  não  parte»  atalhou  o  monge. 

—  "GLue  oscavalleiros  moços  tivessem  metade. .  .» 

—  "Os  cavalleiros  moços!  .  .  .  disse  D.  Nuno,  rin- 
do. São  para  dançar  na  corte,  á  roda  das  damas,  co- 
mo liorboletas ;  e  os  velhos  para  pelejar  !  Com  o  ulti- 
mo d'elles  adeus  Portugal." 

—  "Não,  ainda  ha  cavalleiros  moços,  D.  Nuno; 
acudiu  iMartim  l'a(?s.  Olhai,  aquelle  que  D.  Froylas 
traz  á  sua  esquerda.  .  .  » 

—  "Não  é  Tructezindo  Ramires?"  perguntou  o 
frade,  ntsguardando  a  vista  com  a  mão  curva. 

—  "Esse.  Com  vinte  annos,  não  os  terá  ainda  com- 
pletos, o  moço  Ramires  é  a  melhor  lança  de  Lima  e 
Cima-Cavado !  j> 

1).  Nuno  fez  que  não  ouvia;  e,  apartandose,  des- 
ceu á  sala  d'armas  para  gritar  do  balcão : 

—  "  Erga-se  o  rastilho!  abaixo  a  levadiça  !  honra 
aos  ricos-liomcns  de  Lima  e  Cavado  !  » 

Em  quanto  elh;  gritava,  o  monge,  pondo  a  mão  no 
hombro  ihí  Marfim  Paes,  dizia: 

—  "  Este  homem  é  máu  e  covarde,  Marfim  Paes  !  " 
O  cavalleiro  de  Lanhoso   não  respondeu.   O  frade 

accr(.'Sceulou  : 

—  "  Ouve-me  agora  :  —  Pelo  sancto  nome  de  Deus, 
pela  alma  de  teu  pai,  pelo  amor  de  tua  irmã.  .  .  não 
faças  tal  !  >i 

—  "  Pareces  parente  de  Gomes  Lourenços,  padre  I  " 

—  "No  amor  sou  teu  pai,  mancebo." 

—  "  E  fallaes  de  perdão  ?!..." 

— "  Fallo,  porque  acima  da  allronta  está  a  fé,  u 
honra  do  cavalleiro.  Teu  pai,  se  fosse  vivo,  gritava  : 
Martim  Paes,  é  (lesj)iipie  de  mulher.  .  .  E  o  mundo 
não  dirá  :  O  senhor  de  jjanhoso,  —  olha  !  — como  se 
não  achou  com  valor  para  morrer  de  uma  lançada  .  .  . 
fez-se  carrasco!  !  (iueres  (jue  digam  isto  de  ti,  man- 
celjo  ?" 

—  "Frade,  não  me  tentes!  .  .  .  exclamou  a  caval- 
leiro, cerrando  o  punho  com  raiva.  Não  peças  im- 
possíveis. " 

—  "0.iiein  t'os  pede.  ])igo-le  o  ()ue  ha  de  succe- 
der.  .  .  O  nome  d(í  "Ribeira"  fica  deshonrado,  por 
ti,  o  filho  d'a(jnelle  pai.  Pelos  thesouros  da  terra,  se 
tal  ousares,  aafVronta  do  teu  nome  será  a  maior  com 
(pie  se  pcjssa  injuriar  alguiMii." 

—  "t-lue  te  não  ouça  outra  vez  isso,  padre!" 

—  "Ameiu^as  a  mim,  1).  cavalleiro.'!" 

—  "l)eixa-le  (l(M';ii(la(les,  nono.  (iiie  falias  ahi  (K> 
brios,  tu  !  .'  .  .  .  Deixa  isso  ,i  (piem  pôde  com  nina 
haste  como  essas  que  estão  pelos  laiiceiros.  " 

Nos  olhos  do  monge  relampejou  o  fulgor  de  seve- 
ra indignação. 

— ..  E  foi  |>ara  isto  (pie  eu  te  criei  !  A  (piem  aca- 
bou para  o  inundo  chamas  covarde  .  .  .  e  não  te  pejas 
de  pisar  os  mortos,  homem  de  orgulho  c  soln-rba  ? 
Aonde  estão  os  (-ides  de  hoje,  mancebo  f " 

Envergonhado  da  reprehensAo  D.  Martim  n.lo  ros- 
poiídeii.   Fr,  IMunio  proseguiii  : 

—  ..No  meu  tempo  o»  en\aUeiros,  no  Andaliii,  fe- 
riuin  três  contra  doxe.  e  não  >  iravam  rotto  .  .  .  Imvia 


300 


O  PANORAMA. 


muitos  \  chamava-se  um  D.  Sancho,  infante  de  Portu- 
gal. O  segundo  ora  Lourenço  Viegas  —  o  espadeiro  I — 
e  o  outro,  o  terceiro.  .  .  esse  rezemos-lhe  por  alma! 
morreu  para  o  mundo  !  .  .  .  As  lanças  rjue  vergam  o 
braço  aos  cavalieiros  d'agora  eram  canas  de  torneio 
para  nós.  " 

K  pegando  na  mais  grossa  meneou-a  ligeira  como 
um  vime.  D'alii,  retrahindo  o  corpo,  despediu-a  de 
arremesso  contra  um  escudo,  em  'lue,  vibrando,  se 
enterrou  duas  poUegadas. 

A  côr  do  pejo  assomou  ás  faces  do  rico  homem  de 
Lanhoso,  (]ue  não  levantava  avista  do  chão.  Seguiu- 
se  longa  pausa. 

—  "I3sto  braço,  D.  ]\Iartim,  assim  mesmo  velho 
ainda  jogava  duas  lançadas  .  .  .  aos  mouros.  " 

Dizendo  isto,  o  frade  sorria-se  com  brandura,  mas 
o  cavalleiro  não  o  ouviu.  Com  os  fjoiços  brancos  e  tré- 
mulos, e  semblante  torvo  media  o  eirado  a  passos  lar- 
gos e  precipitados.  Lá  dentro  ia  uma  tempestade  me- 
donha. 

O  monge,  pouzando-lhe  a  mão  no  hombro  para  o 
deter,  dizia  era  tom  insinuante:  —  "Vamos,  é  ser 
homem  I  "  quando  de  uma  barca  pequena,  navegada 
alii  perto  no  esteiro,  entoaram  estes  versos  de  uma 
cantiga  conhecida. 

São  frescas  noites  de  junho 
Noites  de  meigo  luar  ; 
Estão  a  arder-me  no  jieilo 
Amores  que  fui  queimar. 

A  medida  que  a  voz  cantava,  a  mão  do  frade  es- 
corregando confrangida  apertava-se  contra  o  peito:,  e 
no  rosto,  sempre  tão  sereno,  passou  a  sombra  d'uma 
saudade,  ou  correu  uma  nuvem  de  pezar.  —  A  canti- 
ga continuou,  mais  distante  já  : 

Fonte  moura,  fonte  d'ouro, 
Bem  chamada  de  Atamhar, 
l'or  que  sendo  d'aguas  doces, 
Como  pranto  has  de  amargar? 

A  voz  do  rio  ]>er(leM-se  ao  lons;e  \  mas  do  outeiro 
próximo  o  pastor  respondeu,  eaminl.andoparao  valle  : 

Minhas  galas  são  as  armas, 
Meu  descanço  o  pelejar; 
K  no  São  João  á  noite 
Meu  dormir  só  c  velar  ! 

lím  quanto  uma  iiola  suspirou  nos  echos,  Fr.Mu- 
nio,  debruçado,  parecia  beber  a  toada  da  melopea 
popular  com  o  ar  da  respiração.  Uma  das  mãos  no 
peito  como  que  sustinha  o  coração  —  a  outra  na  fron- 
te, sobre  os  ollios,  queria  dizer  á  memoria  e  ao  pen- 
samento: "Fugi!  "  Tinha  a  vista  pasmada  c  extáti- 
ca;  os  beiços  ontr'abortos  ■,  e  as  feições  na  dolorosa 
suspensão  da  mágua  e  da  saudade.  Escutava  com  a 
alma  toda  ■,  o  corpo  nem  sabia  que  existisse. 

Depois  que  os  últimos  sons  expiraram  conservou- 
so  assim  por  minutos.  A  vida  intensa  do  espirito, 
solta  dos  sentidos,  xciava  livre  pelas  illusões  do  senti- 
mento. A  jiouco  e  pouco  a  realidade  apagou  a  visão, 
atraz  da  <|ual  a  idéa  v.nueava  louca;  e  tornando  a 
existência  positiva,  os  olhos  deFr.Munio  arraiaram- 
se  d'agua.  Os  suspiros  e  soluços  (jucriam  romper,  e 
comprimidos  sulTocavam-sc  na  garganta.  Que  inlini- 
lo  paileccr  (Palma  não  accumulou  aquelle  só  momen- 
to .'  l*or  liin  não  as  poude  conter;  dois  rios  de  lagri- 
mas r<'lienlaram  judias  faces  do  infeliz. 

D.  Marfim  contemplava-o,  admirado  da  repentina 
mudança,  Minutos  antes,  via  noscu  rosto  a  serenida- 


de do  céu  ;  que  versos  eram  pois  esses  que  desafia- 
vam a  tristeza  ou  o  remorso  ?  !  (iue  m  vstcrio  encer- 
rava a  canção  do  rio?  O  cavalleiro  sabia  vagamente 
que  uma  desgraça,  dasque  são  incuráveis,  tinha  met- 
tido  nas  ausleridades  do  claustro  um  homem  que,  na 
robustez  da  idade  e  na  sede  da  gloria,  ainda  se  quei- 
xava de  ser  estreita  para  elle  a  terra  do  seu  berço. 
Como  o  tinha  prostrado  a  desventura,  arquejante 
d'ancia,  sob  o  joelho  ?  por  que  serie  d'agonias,  fu- 
gindo do  arruido  dos  arraiaes,  da  morte  breve  do  sol- 
dado, buscara  o  abrigo  do  ermo  ?  Mysterio  era  este 
que  o  senhor  de  Lanhoso  ignorava  como  toda  a  gen- 
te. (Auando  pela  vez  primeira  conhecera  o  monge  de 
Cister  contava  doze  annos,  e  já  com  as  neves  do  in- 
verno na  fronte,  o  esparto  cingido  ao  corpo,  e  o  riio 
da  paz  na  bocca  para  não  lhe  escapar  do  peito  o  se- 
gredo que  lá  guardava. 

Os  prantos  que  ardem  nas  pálpebras  dos  velhos 
desatara-se  agros  e  sombrios  como  tempestade  que 
são.  Guando  virdes  as  lagrimas,  a  uma  e  uma.  bor- 
bulharem nos  seus  olhos,  inclinae-vos '.  E  a  dòr  em 
toda  a  solemne  grandeza  da  sua  elevação.  Inclinae- 
vos.  N'aquclle  seio  as  fontes  do  pranto,  para  mana- 
rem depois  de  seecas,  rebentaram  d'uroa  chaga,  das 
(jue  matam  em  poucas  lioras ! — A  infância  chora 
juncto  dos  amores  e  dos  rozaes  •,  a  velhice  quasi  sem- 
pre rega  com  as  suas  lagrimas  o  sepulchro,  aonde 
jazem  os  affectos  que  a  consolavam  do  martvrio  da 
vida ! 

Pobre  monge  I  A  força  de  enganar  as  saudades, 
chegaste  a  enganar-te  a  ti.  Julgaste  que  as  paixões 
se  extinguiam?  Vê!  bastou  uma  d'ellas,  bastou  a 
voz  apenas,  e  acordaram  todas,  e  inorderam-te  na  al- 
ma mais  incisivas  do  que  nunca.  E  que  só  dormiam. 
O  teu  coração,  macerado  com  os  cilicios  e  Jejuns, 
sangrado  dos  espinhos,  como  o  escravo,  aprendeu  a 
amar  mais  a  liberdade.  Despega-lo  da  carne,  e  con- 
verlc-lo  em  vaso  purificado,  para  só  arder  com  o  in- 
censo da  penitencia,  era  victoria  de  anjos ;  as  forças 
do  homem  não  podiam  tanto,  ^'eio  ochamar  domun- 
do,  e  o  captivo,  similhante  ao  corsel  da  Numidia,  foi 
buscar  os  silios  da  primeira  vida.  Monge,  o  teu  co- 
ração de  esposo  e  de  soldado  não  cabe  na  estreita  cel- 
la  do  mosteiro. 

Fugiu-to!  procura-o  nas  ruinas  do  mundo,  aonde 
sonhou  a  gloria,  provou  da  alegria,  e  enterrou  a  ven- 
tura', —  mundo  destruído,  de  que  tu  ficaste  só,  larva 
errante,  para,  no  vago  scismar  da  noite  e  das  sau- 
dades te  consolares ;  porque  a  noite,  eomo  a  alma 
gemedora  do  poela,  é  um  mvsterio  insondável .  .  . 
pobre  monge  !  Os  prantos  não  aquecem  cinzas  frias  ; 
os  aflectos  mortos  não  os  reverdecem  lagrimas;  o  ca- 
lor dos  suspiros  não  abre  olhos,  nem  anima  peitos 
mortos  e  áridos  do  sepulchro.  A  tua  mortalha  arque- 
ja com  o  soluç.-ir  do  remorso,  mas  o  sudário,  sobre 
a(iuclh'S  ossos,  não  se  levanta  mais.  Tem  o  peio  da 
eternidade. 

E  que  se  erguesse  ...  os  teus  votos  esmagam-te  o 
coração  como  a  louza  de  uma  sepultura,  ealcaudo-o. 
(iuizeste  morrer  em  vida.  e  os  mortos  não  tecm  von- 
tade, nem  esf>erança,  nem  memoria!  Choras?!  As 
lagrimas  são  o  alivio  do  que  vive;  nas  tuas  faces 
queimam  com  o  ardor  do  crime.  Amas?!  Monge.  » 
aiiior  do  solitário  é  um  sacrilégio,  quando  se  não  en- 
trega todo  ;i  Deus. 

Assim,  do  fundo  d'alma,  clamava  a  consciência  de 
Fr.  Munio.  Era  amargosa  a  reprehensão ;  mas  o  rc- 
iiuxlio  que  diH>  q>iasi  sempre  cura.  Limpando  os 
olhos  com  as  costas  da  mão,  o  frade  disse,  virando- 
se  para  Marfim  Paes  : 

— "  \  carne  é  que  chorou ;  o  espirito  está  ale- 
gre . .  .  resignado  !  n 


o  PANORAMA. 


301 


—  u  Mas  esta  cantiga  ?!..." 

iiLembrou-mc  que  duas  horas  de  felicidafie  hou- 
ve na  minha  vida.  Glue  de  cousas  veio  recordar  !  >» 

—  w  Amores  ? .  .  . " 

—  uQlue  amores,  D.  Martim  ?  !  Eram  do  céu  •,  por 
isso  Deus  os  levou  tão  cedo.  Véspera  de  S.  João  can- 
lou-sc  esta  cantiga  ...  a  bocca  a  quem  a  ouvi  não 
torna  a  abrir-se.  Estavam  alli  uns  olhos  '.  .  .  .  já  os 
comeu  a  terra. " 

—  «  Morreu  ?  » 

—  "  Mataram-n'a  !  »  respondeu  o  frade,  pallido  co- 
mo cera. 

—  "Ah!...  E  vús?...» 

—  «Eu!  ?  Para  que  m'o  perguntaes  ?  Este  habito 
não  é  o  sudário  de  um  innocente. 

—  II  Uesignaste-vos  depois  !  ...  51 

—  «Altos  juizos  de  Deus  !  n 

E  cruzou  as  mãos  no  peito.  O  cavalleiro  não  insis- 
tiu em  o  interrogar,  porque  viu  que  seria  inútil. 

—  "Martim  Paes,  proseguiu  o  monge  com  vehe- 
niencia,  pela  hóstia  sagrada,  não  mates  Gomes  Lou- 
renço. Esta  cantiga  ainda  a  não  ouvi  senão  quando 
está  para  vir  desgraça  grande  !  » 

—  «  Agouros,  padre  .' " 

—  "Avisos,  filho.  Deus  falia  por  todas  as  boccas." 
Sem    responder,    o   mancebo   apertava-lhe    a   mão 

com  força. 

—  "  Promettcs  ? " 

—  «E  tarde,  já  não  posso.  " 

—  «Ainda  agora  viste  se  eu  padeço;  pelo  amor 
de  tua  tnãi,  arreda  de  ti  o  meu  destino  .  .  .  Casti- 
gue-o  Deus  ! » 

—  «  E  juiz  que  mora  tão  longe,  padre  !  « 

—  "  E  que  te  ha  de  v2r  de  lá  mesmo,  filho. » 

—  «  Q.u<?  veja  então  se  eu  sei  vingar-me.  " 

E  sem  querer  ouvir  mais  nada,  desceu  a  escada  o 
foi  receber  os  ricos-homens  de  liima  e  Cavado.  O 
frade,  em  vez  de  o  acompanhar,  entrou  na  ermida. 
Ahi,  ao  relampejar  do  céu,  de  mãos  erguidas  ajoe- 
lhou em  fervorosa  oração.  Instantes  depois,  o  ruido 
das  vozes  e  o  tinir  das  armas  na  sala  por  cima,  an- 
nuneiaram-lhe  a  chegada  dos  parentes  de  I/anlioso. 

Já  lie  noite  o  inont^e,  ainda  di>  bruços  na  lageni, 
sentiu  tropeada  e  relinchar  de  corseis.  Ouviu  per- 
guntar de  lura,  e  D.  JNuno  responder  de  dentro. 
Atraz,  os  alçapões  rangeram  nas  cadeias,  e  caíram 
de  pancada  surda  nos  apoios  de  pedra  da  ponte. 

—  «E  ninguém  te  diria.  Gomes  Lourenço,  excla- 
mou o  frade,  que  as  portas  d'este  castello,  como  as 
da  ctiTnidadc,  não  se  aljreni  mais?  Seja  feita  a  tua 
vontade,  Senhor  ! 

E  levantou-se  sem  aecrcscentar  mais  nada. 


SoLBAnO    I)K    CAVALl.O    1'llOSSI ANO. 

E  sAiiiDO  que  o  rei  da  Prússia  estima  apaixonada- 
menti.'  a  idade  nx^dia.  A  principio,  desenvolveu-se  o 
seu  di'SVelo  pela  imitação  il'i'sta  epoelia  por  meio  de 
impulso  e  favor  prestado  ás  artes,  <■  restauração  de 
monumentos:,  ixirem  ainda  não  ha  bem  diiit  annos 
estetideu-se  aos  unirnrnu's  ilo  ex<,'rcilo.  Supprimiu  o 
moderno  firdaniento  para  todas  as  armas,  assim  de 
cavallaria  e  infanteria  de  linlia,  como  ihis  regimen- 
tos da  lanilvvlier,  ou  segunda  niilicia.  S<')  os  lanceiros 
e  os  hussares  eonservarani  seus  unil'ormi's,  cjuií  tli-no- 
lam  a  sua  origem  estrangeira. 

Uma  siilaina  .viu\  para  a  infant<'ria,  a/.ul  clara  pa- 
ra os  dragões,  branca  para  os  guardas  de  rtirpo  e  os 
i'ourai.'eiros,  subslitue  arar<la:,  faz  lembiar  pelo  feitio 
a  sobreidta  da  idade  media:,  émuilo  curla  e  dá  qua- 
hÍ  jiela  curva  da  perna. 


O  shakó,  ou  barretina  de  pelles,  é  substituído  cm 
todos  os  corpos  por  um  capacete  de  forma  bastante 
singular,  que  recorda  as  celadas  ou  elmos  do  século 
Xl^'  i  guarnecido  de  uma  larga  viseira  quadrada,  e 
pela  parte  de  traz,  de  um  comprido  resguardo  da  nu- 
ca, é  uniformemente  coroado  por  uma  ponta  de  cobre. 
A  infanteria  tem  este  capacete  de  couro,  e  o  da  ca- 
vallaria é  de  ferro  polido ;  os  guardas  de  corpo  tra- 
zem no  alto  do  mesmo  capacete  uma  águia  douraua. 


Convém  observar  que  se  esta  reforma  de  fardamen- 
to na  l'russia  não  satisfaz  inteiramente  o  bum  gosto, 
ao  menos  o  antecedente  não  deixa  saudades  :  no  an- 
tigo, os  soldados,  afogados  por  enormes  gollas  acolche- 
tadas,  silhailos  com  as  fardas,  presos  com  as  calças  es- 
ticaihis  por  baixo  das  solas,  parecia  (|ue  faziam  cuii- 
linuos  c-sforços  |iara  suster  em  e(|ullil>rii)  os  longos  <■ 
ásperos  ])ennachos  de  clina,  arvorados  na  frente  ilas 
barretinas-,  o  fardamento  actual  á  primi'ira  \  ista  mo- 
ve o  riso,  in;is  é  fora  de  duvida  que  ilá  muita  mais 
facilidade  ao  movimento  do  soldado. 


As    KLEIÇÕES    KM    InGLATKURA    (l). 

Sk  os  homens  conhecesiem  a  fundo  epor  exame  pró- 
prio tudo  qu:intoamam  ou  admiram,  ashossns  ou  pro- 
iuberancias  do  .imor  e  da  admiração,  como  iliria  uu> 
plirenologista,  não  occupariam  no  seu  cr;in<'o  o  tama- 
nho de  uma  leiítillia  ;  porém,  a  da  inililVeriMiç.i  eli-- 
var-se-hia  ao  volume  di-  um  lobinho  monstruoso.  Ku 
sou  o  prinu'iro  que  applico  a  mim  mesmo  esli'  .dllic- 
tivo  aphorismo.  Todos  os  objintos  qui'  anu-i  e  admi- 
rei, á  excupção  de  um  sd,  bem  depii-ssa  p<  idi-ram  os 


(1)     Artijo  Je  Mr.  ('liiiri>«iilior  i» 


Mus 


iWi  l''*millo«. 


302 


O  PANORAMA. 


direitos  áquelles  dois  scntinienlos,  loi;o  que  os  coUo- 
quei  em  Irenlu  do  pribiiia  attcuuannto  que  se  cliania 
ob9erv;i(;no. 

Na  priíDoini  linha  cl'csscs  objectos  que  só  me  dei- 
xaram o  pesar  de  os  liaver  conhecido,  entra  a  Iiigla- 
lerra  !■  a  sua  constituição  politica.  Q-uanto  eu  tinha 
lido  e  ouvido  d'este  paiz  me  tinlia  apaixonado,  exal- 
tado, quando  eu  era  maníaco  de  angloniania  furiosa. 
O  mais  intimo  e  o  melhor  dos  meus  amigos  aflligia- 
f,e  muito  de  ver-me  n'este  estado;  e  vinte  vezes  esti- 
vemos a  ponto  de  ficarmos  mal  avindos  para  sempre 
em  as  nossas  continuas  e  ardentes  discussões  sobre  a 
preeminência  da  Inglaterra  sobre  a  Krai)(;a  evicever- 
sa.  Eu,  sustentava  sempre  que  aciviljsar.^o  nalnj^la- 
terra  andava  a<liantada  meio  sc^culu  ao  rosto  da  Jiu- 
ropa  ;  porém  o  meu  amigo,  homem  de  juizo  e  pru- 
dência, achou  o  meio  de  cortar  o  mal  pela  raiz.  Acon- 
selhou-nio  uma  viagem  a  Inglaterra  na  epocha  das 
eleições,  e  muniu-me  de  cartas  de  recommendacão 
para  um  rico  negociante  hoUandez,  estabelecido  em 
Londres,  havia  trinta  annos,  e  chamado  M.  Van- 
Kroocck . 

Aqui  estou  eu  na  capital  dos  três  reinos  unidos,  na 
cidade  de  um  milhão  e  setecentos  mil  habitantes,  no 
empório  docommcrcio  do  mundo  inteiro,  no  asvlo  in- 
violável e  sagrado  da  liberdade  humana.  Este  ultimo 
privilegio  me  enthusiasmava  de  maneira  que,  pas- 
seando nas  amplas  ruas  de  Londres,  scntia-me  livre 
e  leve  como  um  homem  que  se  acha  solto  de  grilhões 
que  lhe  pesavam  nas  mãos  e  lhe  peavam  os  pés. 

No  terceiro  dia  da  minha  chegada,  o  hollandcz  a 
quem  eu  estava  recommendado  conduziu-me  ás  elei- 
ções na  City.  Como  ellc  habitava  na  extremidade  op- 
posta  da  cidade,  tínhamos  que  andar  longo  caminho  ; 
o  que  elle  quiz  approveitar  para  dar  principio  ás  suas 
observa<;ões  e  á  minha  instrucção  sobre  os  inglezes  e 
a  Inglaterra. 

—  «Todos  esses  homens  que  vedes  tão  tczos  e cala- 
dos por  esses  largos  passeios  (me  disse)  trazem  impres- 
sa no  rosto  a  expressão  do  sentimento  que  é  a  origem 
dos  seus  vícios  e  das  suas  virtudes,  o  orgulho,  imnien- 
so,  sem  igual,  espantoso.  O  inglez  ama  o  seu  rei  co- 
mo um  seu  amigo  i  mas  não  quer  reconhecer  outro 
senhor  senão  as  leis,  para  a  confecção  das  quacs  con- 
tribue.  O  inglez  professa  <lesprezo  profundo  daquelles 
povos  que  il."io  a  um  homem  licen<j-a  illimílada,  para 
viverem  depois  todos  escravos  ás  ordens  d^elle." 

— 11  (\)m  elfeito,  é  curiosa  posição  (observei  eu)  a 
das  nações  que  teem  governos  absolutos:  inspiram  ao 
seu  dominador  um  terror  continuo,  e  ao  mesmo  tempo 
estremecem  sob  o  poder  que  julgam  didegação  do  céu.  " 

—  "  Essa  contradição  c  de  facto  Ião  veriiach^ira  co- 
mo singular;  mas  acha-se  em  Inglaterra  debaixo  de 
outro  as|>ecto.  Aqui,  o  nome  de  liberdade  retuuiba 
em  todas  as  asscmbleas  \  estão  promplos  a  morrer  por 
esta  palavra  milhares  de  homens,  da  qual  apenas  al- 
guns eomprehcndem  o  sentido.  Alem  d'isso,  a  liber- 
iladc  aqui  é  privilegio  do  rico,  e  só  do  rico  ;  o  pobre 
operário  falia  como  um  Catão  ou  um  Uruto,  é  a  vigi- 
hmte  guarda  d'e3sa  liberdade,  mas  nunca  a  conhece- 
rá. O  dia  único  em  que  a  póile  exercitar  éo  daselei- 
çõcs,  dia  em  que  se  vende  por  alguns  cangirões  de 
cerveja  e  algumas  postas  de  vatta,  ou  por  meia  dú- 
zia de  schellings." 

—  iíl'ois  esso  indigno  mercado  é  tão  efTcctivo,  tão 
geral  como  dizem  !  —  liradeieu,  olhando  attentamea- 
te  |iara  o  meu  interlocutor." 

—  "Muito  elVtM'tivo  e  muito  geral  (me  tornou  el- 
le, sorrimkvsc).  Msis  não  crimineis  i>  jhjvo  in:;lei  ;  no 
intervallo  da»  eleiei">es  elle  tem  o  pnucr  politico  àe 
f.dlar  da  sua  liberdade;  mas,  na  epocha  das  eleições 
tem  uma  fartadetla,  que  épruxcr  muito  mais  :>oUdo.  ^ 


Passávamos  exactamente  por  diante  de  uma  taber- 
na, onde  havia  eleitores  abancados,  de  listas  nas  mãos. 
entre  vasilhas  enormes. 

—  "Olhai,  (me  disse  o  meu  cicerone)  aqui  esta 
guapa  gente  que  joga  o  seu  voto  com  Ixjlelhas  de  cer- 
veja. » 

Chegamos  bem  depressa  a  um  vasto  e  sombrio  edi- 
fício, que  me  parecia  uma  prisão. 

—  "Não  vos  enganais:  (disse  M.  Van-K.rooeck)  é 
a  prisão  dos  devedores.  Vede  aquelle  infeliz  que  con- 
versa, atravez  das  grades  dajanella  rente  docbão.  com 
dois  homens,  que  se  mostrara  muito  agitados.  (Aue- 
reís  escutar  por  alguns  instantes  a  sua  conversação? 
Ha  dez  que  apostar  contra  um,  que  estão  faltando  de 
eleições,  e  discutem,  segundo  a  sua  opinião,  as  pro- 
babilidades e  os   merecimentos  de  cada  candidato.  t> 

—  "De  boa  vontade,  (repliquei  eu)  mas  para  não 
perceberem  que  osescutamos,  paremos  aqui  n*estecs- 
tendal  de  gravuras  velhas,  conuj  quem  quer  vér  e 
comprar  alguma  d'essa  fazenda." 

Lni  dos  dois  interlocutores  do  devedor  preso  era 
um  moço  de  fretes,  outro  era  um  soldado  de  marinha 
com  uma  desmarcada  cicatriz  no  rosto;  o  que  desco- 
brimos pelos  ganchos  pendurados  noshombros  do  pri- 
meiro, e  pelo  fardamenloum  tantosafado  dose^undo. 

—  "iMeus  amidos  (dizia-lhe  o  preso,  por  entre  as 
grades)  cu  não  tenho  receio  senão  pela  nossa  liberda- 
de;  daria  o  meu  voto,  se  podesse  sair  por  uma  hora 
somente  dVsta  prisão  para  ir  votar;  e  o  daria  aquel- 
le dos  doi»  candidatos  que  expozesse  as  opiniões  roais 
decididas  quanto   á  liberdade  do  povo." 

— '"E  contais  sair  tão  breve  da  prisão?  —  Pergun- 
tou-lhe  o  soldado. " 

—  «Sim  (tornou  o  prisioneiro)  :  porque  sirColing- 
broke,  que  sabe  a  minha  opinião,  deve  a  estas  horas 
ter  pago  a  divida  que  me  retém  aqui.  Oh  !  sirColing- 
broke  é  um  fervoroso  radical,  um  amigo  da  liberda- 
de ;  aflirmo-o  eu  ;  e  por  isso,  o  roeu  voto  é  d'elle.  n 

—  "  Gluanto  a  mim,  (disse  o  homem  dos  fretes)  eu 
quero  o  bera  do  povo;  e  como  eu  e  minha  filha  per^ 
tencemos  ao  povo,  quero  o  bem-ostar  de  nós  ambos. 
Ora  o  concorrente  de  sir  Colingbroke  éMr.  Larker, 
negociante  rico,  como  vós  sabeis;  prometteu  a  Uary 
Jeus-Kjns,  o  pretendente  de  minha  filha,  o  logar  de 
guarda  de  armazéns  na  sua  casa,  oque  rende  [>or  an- 
no  cincoenta  libras  esterlinas,  com  o  que  passaremos 
todos  conimodamente.  .'\gora,  deixo  ao  vosso  juizo. 
meus  amigos,  se  eu  hei  de  deixar  de  votar  com  Mr. 
Larker,  bemfeitor  do  povo  e  da  minha  família  .'jj 

—  .i  Bello  !  (exclamou  o  soldado)  eis-ahi  está  oque 
é  fali:ir  estupidamente !  Eis-ahi  o  que  é  nunca  ter 
queimado  uma  escorva,  nem  amolgado  uma  espad.i 
na  cabeça  calva  de  um  china  ;  se  o  soulx"sscm  não 
iriam  dar  voto  em  dois  paisanos,  antes  que  n'uni  va- 
leiíli'  militar.  A  quem  compete  fazer  as  leis,  pergun- 
to eu,  senão  áquolles  (jue  as  defendem  !  O  meu  coro- 
nel, lord  Leveuson,  era  nniíto  mais  digno  de  ser  elei- 
to ;  elle  que  deixava  o  soldado  saquear  á  discrição  as 
cidades  tomadas  de  ass;ilto.  Dix-se  que  detesta  o  povo 
e  (|uer  a  todo  o  custo  a  lei  dos  cereaes ;  mas  é  esli- 
mudo  do  soldado  pela  liU-rdade  que  lhe  permitte  fu- 
ra da  veUia  Inglaterra.  N  ivaellc  '.  liuando  se  lhe  met- 
ter  em  cabeça  ser  candidato,  gritarei  t.'io  alto  que  o 
meu  voto  valerá  por  dez:  agora  não  voto  em  nin- 
guém. •» 

N'este  ponto,  o»  três  políticos  sepnraram-se.  bem 
con\encidos  da  sinceridade  c  desinteresse  dos  seus  prin- 
cípios. 

—  u  Acabais  deappreciar  (disse-me  então  obollan- 
der.)  em  toda  a  sua  luidci  o  prxfundo  coah«oimeulo 
lios  plelH'Us  inglezes  em  matéria  de  lilitrilade.  O  de- 
putado  liberal   é  para  esse  devedor  iusolvivel   o  que 


o  PANORAMA. 


303 


lli(?  abrir  as  porias  dii  cadeia;  o  moço  dos  fretes  e  o 
outro  coiii[)aiilieiro  não  tem  outra  l)alaiiça  para  pozar 
o  mérito  do  earidiíiato  de  sua  escoliia." 

Teslimuiihei  a  Mr.  Van-Krooeck  áminha  extraor- 
dinária admiração  no  tocante  ao  que  acabava  de  ou- 
vir. 

—  «Senhor,  (disse  eu)  estes  três  homens  são  uns 
pobres  diabos,  a  <|U(.'ni  a  oppressão  da  miséria  parece 
menos  insup])ortavel  (jue  a  da  aristocracia  :  asuaopi- 
nião  não  passa  de  uma  excepção.  K  d'(?sperar  mais 
elevação  e  delicadeza  de  sentimentos  na  massa  geral-, 
não  será  assim,  senhor.'" 

—  "  Ureve  o  podereis  julgar.  —  Respondeu  o  hol- 
landez. " 

Com  elTeito,  depois  de  um  fjuarto  de  iiora  de  ca- 
minho, ouvimos  unia  algazarra,  ainda  ao  longe  nias 
formidável^  de  vozes  de  iiomens.  A  proporção  (jue 
íamos  c:iu'í;ando,  augnientava  de  iiiti.-nsldade  a  buliia  ; 
distinguia-se  o  riso  desordenado,  a  dòr,  a  impreca- 
ção òLc.  —  Mas  <jue  espectáculo  se  me  olfereceu  aos 
olhos  desvairados. 

—  "1'orém,  senhor,  (disse  eu  para  o  meu  explicador 
neerlandez)  não  é  uni  acto  politico  que  se  prepara 
nVste  logar ;  estamos  no  campo  de  um  mercado,  no 
meio  de  feirantes  impando  de  cervejas,  que  seaçulani 
uns  aos  outros,  não  sei  porque.  Confesso  (jne  esta  scena 
nada  tem  do  divertida." 

—  «Mas  é  instructiva,  meu  senhor  francez.  " 
Entrámos,  mas  com  muito  custo,  n'um  d'cssesim- 

mensos  cafés  —  estalagens,  e  casas  de  comida  ao  mes- 
mo tem]>o,  <|ue  lá  chamam  «  taliernas.  " 

Comprid.is  mesas  estavam  atulhadas  de  ossadas  de 
diversidade  de  animaes,  empilhadas  como  jKídras  de 
uma  casa,  que  se  vai  construir.  Nunca  ca  tiulia  ob- 
servado uma  destruição  tão  considerável  <le  entes  ani- 
mados, nem  tão  variada,  nem  t.lo  capaz  de  tirar  com- 
pletamente oappetlite  aqualqucr  homem  (jue  não  se- 
ja inglez. 

—  "A()ui  tendes  oulra  face  dos  cuslum(;s  do  jiaiz 
(me  disse  l\Ir.  Van-KrooecU).  Não  ha  em  todo  o  mun- 
do povo  mais  comilão:,  i-  não  ha  festa  em  que  se  co- 
ma tanto  como  [lor  occasião  das  eleições.  O  boi  gordo 
é  realmente  aqui  o  primeiro  elemento  ])olitico.  lia 
trinta  annos  que  resid(j  no  paiz:,  e  n.'io  cesso  de  pas- 
mar avista  dos  ban(|uete3  monstros  d'esta  gente.  Ain- 
da que  eu  tivesse  ciii('oenla  cabeças,  ecada  uma  d'el- 
las  iMuiiiila  da  competente  inlelligencia,  ser-me-hia 
impiwsivcl  computar  o  numero  de  vaccas  e  bois,  de 
porcos,  ganços,  e  perus,  que  desde  esta  maniiã  morre- 
ram para  o  bem  da  velha  Inglaterra,  sua  jiatria  coiu- 
mum.'>  ^Co/iíi/iiía.J 


Os    MÉDICOS    KALSIDKOS. 

Os  tjtiiíiiiKji,  ou  sacerdotes  kaliiuikus,  accumulam 
do  oniiiiario  asftincções  sacerdotais  com  asile  ciiilsthi 
ou  nieilido;  Iractam  ao  mesmo  t('iii|io  do  coiqio  e  da 
alma  do  doen(<,-. 

C'(]|ili<'ceiii  pelo  |)ulso,  c,  as  mais  das  vezes,  tam- 
bém pelo  exaiiH!  das  ourinas,  a  natureza  e  intiwisida- 
de  da  moleslia,  e  depois  eomeçaiii  o  curativo  em  que 
adoptam,  como  princii>io  •;eiMl,  qiii'  o  doente  deve 
soflVer  uma  dieta  rigorosíssima.  Mesmo  <|uando,  a 
olhos  vistos,  se  vai  reslabelecendo,  não  llie  dão  por 
duas  semanas  senão  agua  cpiente. 

Conipõeiil-sí'  os  seus  mcMlicamenlos  de  dillrreiíles 
hervas  que  idles  vão  colher  por  suas  mãos  aos  sUppct 
de  Asiracan,  ou  (pie  niand.iin  vir  de  diversos  pontos 
da  Ásia,  e  ali'  da  índia.  lUn  ilos  seus  priíiripaes  re- 
médio é  o  (Itic  ou  alniisiar  do  animal  chamado  larga. 

Alfirinam  oskulmukoa,  ena  buufií  os  russos  quv  ha- 


bitam as  steppes,  que  um  cozimento,  chamado _/a-ori, 
é  um  sudorilico  excollente,  melhor  que  todos  os  re- 
médios análogos  da  medicina  europea. 

Se  algum  d'elles  tem  a  dcsgraç-a  de  ser  picado  pe- 
las tarântulas  ou  aranhas  negras,  ajunctam  os  médi- 
cos certo  numero  d'aquelles  animaes,  mettem-n'os 
em  azeite  ou  ccbo  de  vacca,  e  esfregam  com  esta  es- 
pécie de  untura  forte  não  só  aferida,  mas  todo  o  cor- 
po do  doente,  que  toma  ao  mesmo  tempo  remédios 
internos,  tiuando  não  se  applica  logo  este  remédio 
corre  o  enfermo  grande  perigo.  Os  symptomas  da 
mordedura  manifestam-se  immediatamente  :  são  um 
aperto  de  coração,  e  um  delirio,  que,  se  os  soccorros 
não  forem  promptissimos,  só  acaba  com  a  vida.  Os 
couvaloscontes,  muito  tempo  depois  da  cura,  conser- 
vam a  amareliidão  do  rosto,  sentem  estremecimentos 
])or  todo  o  corpo,  e  mal  podem  ter-se  em  pé.  Para 
sarar  de  todo  é  indispensável  ter  a  maior  cautela  em 
tudo  e  por  tudo,  e  uma  sobriedade  completa. 

Taes  são  as  idéas  dos  kalmukos  pelo  que  toca  aos 
medicamentos-,  ha  todavia  muitos  casos  em  que  os 
guehmg%  ou  crntschis,  receitam  aos  doentes  bebidas 
escandecentes,  e  enormes  quantidades  de  carneiro  gor- 
do para  alimento. 

Julgam  incuráveis  as  bexigas,  e  por  isso  lhes  feem 
o  maior  horror  possível ;  de  sorte  que  se  alguum  kal- 
muko  se  chega,  por  descuido,  a  sitio  onde  haja  pes- 
soas com  ellas,  apanha  um  susto  mui  grande,  com  que 
fica  mais  sujeito  ao  contagio.  Para  evitarem  as  con- 
sequências perigosas  do  medo  que  rapa  o  seechthts 
(aquelle  que  julgam  iscado  do  mal)  accusam-i/o  de 
algum  crime  que  não  commetteu ;  por  exemplo,  de 
um  roulio.  O  réu  supposto  é  agarrado,  quando  me- 
nos o  espera,  e  convencido  por  testimunhas  falsas ; 
amarram-lhe  as  mãos,  e  dão-lhe  uma  roda  de  chico- 
te. O  novo  teri-or,  a  impressão  inesperada  do  ver;;a- 
liio  no  lombo  da  victima  doesta  cruel  hygiene,  fai 
com  que  elle  se  i'squeça  das  bexigas,  e  mata  a  in- 
lluencia  desfavorável  causada  pelo  terror  d'uma  ima- 
giiiaç-ão  exaltada. 

K  certo  que  muitos  <jiichtn^s  mostram  grande  ha- 
bilidade no  traclanieulo  das  doenças,  e  que  teein  co- 
nhecimentos prolundos  das  virtudes  das  plantas.  E 
provável  que  d'um  bom  exame,  feito  nas  steppes,  re- 
sultasse mais  de  uma  descoberta  útil  á  saúde  da  es- 
pécie humana. 

Oigiieiu7iyi  ajudam  com  orações  a  acção  dos  remé- 
dios, e,  por  consequência,  exigem  dos  seus  doentes 
oflertas  de  grande  valor  para  os  hourouls  ou  templos 
de  Ídolos.  O  kalniuko,  suiiersticioso  ao  ultimo  pon- 
to, ostenta  geneiosidade  n'estas  occasiòes,  ecomnium- 
meiíle  o  homem  rico  não  consegue  livrar-sc  da  moléstia 
sem  licar  reiiuziílo  á  imiigcnoia  ou,  pelo  menos,  deixa 
a  sua  íaniilia  a  pedir  esmola.  Osgtiiluixjs,  que  tam- 
bém tuiiiani  o  nome  ili-  jiiiii/iiíc/ií,  ou  astrólogos,  pe- 
la sua  erudição,  teem  a  habilidade  irapoular,  como 
causa  da  moléstia  de  que  Iractam,  a  propriedade  de 
algum  objecto  de  valor  i-onsiiler.ivel,  que  o  enfermo 
[lussue,  e  qui-,  seguiiilo  os  tjiuliiiKjs,  se  oppòe  a  (pie 
recobre  a  saúde.  Tanto  que  o  siiiiy/m/c/ii,  de  quem 
iiaila  se  esconde,  fiz  esta  interessante  descoberla,  co- 
meça a  persuadir  o  ilocnte  que  se  desfaça  do  tal  olv- 
jecto,  doamiij-ii  ao  templo,  e  o  conselho  é  logo  segui- 
do como  se  fosse  uma  ordem  do  céu. 

l'oem  outro  nome  aoenrermo,  oqual,  depois  d'esles 
actos,  (ua  certo  de  que  em  breve  cori\  aliscera.  ..  N\i- 
m.i  aldeia,  refere  um  historiador  russo,  um  certo  Sei- 
saiig-Zezenc-Dorchi,  que  il'anles  se  ehaiinna  Tatu- 
I\a/.ane,  me  contou  que  só  fiUa  curado  por  este  me- 
thoilo,  depois  lie  ti;r  esguiado  todo»  usoiilrus  meios.» 

A  religião  dos  kalmukos  obrigu-i»  n  crer  «pio  o 
causador  de  todas  uit  desgraças  que  lhes  acontecem  i^ 


304 


O  PANORAMA. 


um  gonio  máu,  chamado  Erlik,  ou  o  diabo,  o  qual 
carrega  com  todos  os  moribundos.  Assim  que  o  esta- 
do do  doente  não  deixa  haver  esperança  de  vida,  re- 
correm os  gueliingt  ao  expediente  do  resgate,  appre- 
scntando  a  Erlik,  que  teima  em  não  apparecer,  uma 
lx)neca  de  barro  como  oITerta,  para  que  elle  conserve 
a  vida  d'um  kan,  ou  d'algum  outro  homem  de  con- 
sideração ;  c  se  a  obstinação  da  moléstia  prova  clara- 
mente que  Erlik  está  deliberado  a  empolgar  o  doen- 
te, procuram  entre  os  homens  seus  dependentes,  al- 
gum que,  por  affeição,  queira  sacrificar-se  j)or  elle. 
Aquclle  que  se  decide  a  salvar  das  garras  de  Erlik 
algum  caudilho  desenganado  de  que  morre,  recebe  o 
nome,  os  vestidos  mais  ricos  e  a  armadura  comple- 
ta do  doente,  para  que  no  exterior  se  pareça  com 
elle  o  mais  que  fôr  possível;  cavalga  no  seu  cavai- 
lo  mais  estimado,  coberto  de  uma  sella  brilhante,  e 
ao  som  bellicoso  do  clarim  e  outros  instrumentos,  es- 
coltado por  todo  o  povo  e  pela  cleresia,  que  repete  as 
orações  prescriptas  em  tal  caso,  fazem-lhe  dar  uma 
volta  á  roda  do  houroul,  e depois  perseguem-n'o  com 
uma  berraria  como  andyno,  ou  expulso  para  sempre 
da  sua  aldeia.  O  andyno  pode  todavia  naturalisar-se 
ii'outra  povoação,  e  até  casar;  mas  é  obrigado  a  vi- 
rer  solitário,  e  conserva  o  nome  de  andyno,  que  trans- 
niitte  aos  seus  descendentes.  Nos  nossos  dias  se  vai 
perdendo  cada  vez  mais  este  uso,  e  hoje  substituem 
andj-nos  feitos  de  barro  ou  de  farinha  aos  and^^nos 
vivos. 

Independentemente  d'estes  artifícios,  usam  osgue- 
lungs  de  outros,  que  provam  o  charlatanismo  impu- 
dente com  que  procedera,  e  attcstam  a  superstição  e 
a  incrível  cegueira  dos  kalmukos. 

l'ara  satisfazerem  a  sua  insaciável  cubica,  chegam 
algumas  vezes  a  persuadir  ao  doente  que  a  sua  alma 
já  está  separada  do  corpo,  eque  se  ainda  sente  e  res- 
pira, só  o  deve  attribuir  aos  vãos  esforços  da  força  vi- 
tal. Todavia,  não  tiram  de  todo  ao  doente  a  espe- 
rança de  ser  ainda  possível  tornar  a  unir-lhe  a  alma 
ao  corpo,  e  é  então  que  o  desgraçado  ofTerece  quanto 
possue  para  que  lhe  dilatem  a  vida,  e  pede  ao  medi- 
co com  as  mais  vivas  instancias  que  lhe  restitua  a  al- 
ma. O  yuehmg  finge  fazer  esforços  para  a  revocar, 
tocando  primeiramente,  para  esse  fim,  um  instru- 
mento de  vento.  Saindo  depois  da  barraca,  faz  mui- 
tos bichancros  á  alma  que  foge,  e  a  convida  a  vol- 
tar, bradando-lhe  :  "Debalde  partes;  torna  atraz  se 
não  queres  que  os  lobos  te  comam,  &c. "  O  pobre 
doente,  perplexo  entre  o  medo  c  a  esperança,  per- 
gunta-Uie  ancioso  pelo  resultado  dos  seus  esforços,  e 
o  guclnnij  llie  responde  :  "Tudo  vai  bem  ;  a  alma  já 
appareceu  lá  ao  longe,  e  dá  mostras  de  querqr  vol- 
tar."  Continua  assim  a  cmlialar  o  doente  com  esta 
esperança  até  que  elle  morre  ou  se  restabelece.  N^es- 
te  ultimo  caso  dá  os  paral)ens  ao  doente  pela  feliz 
volta  da  sua  alma  ;  mas  se  a  morte  põe  termo  á  far- 
ça,  asssegura  aos  parentes  dodefuneto  que  a  alma  es- 
tava a  ponto  de  voltar,  quando  o  perverso  Erlik  em- 
pregou unia  astúcia  inesperada,  que  elle  conta  mui- 
to por  miúdo,  para  não  perder  o  direito  ao  premio 
proniettido. 

Se  a  uma  moléstia  grave  sobrevem  o  delirio,  e  o 
doente  profere  palavras  inintelligivcis,  não  deixam 
ns  circumstanfes  de  acreditar  que  Erlik  lhe  está  dan- 
do tractos  cquer  roubar-lhe  a  alma.  Fazem  ent.ão  uma 
bulha  nu<donha  não  só  na  barraca,  mas  também  (6- 
ra  ;  quantos  estão  ao  pé  do  enfermo  armam-se  com 
tudo  <iuanto  acham  á  mão,  correm  d'uma  banda  pa- 
ra a  outra  dando  grandes  berros,  e  briçando  com  o 
ar,  para  expulsarem  o  génio  ilo  mal,  animados  pelas 
exhortações  e  j>elo  exemplo  do  guclung. 


Escolha  das  EKCAnERNA^ÕEs.  Co.vservação 

SOS   LIVROS. 

Mn.  Sebastião Lenormand,  na  ia.* secção  doseuMa- 
nual  do  Encadernador  (edição  de  184U),  consideran- 
do o  encadernador  consócio  do  bibliophilo,  ou  guia 
dos  amadores  que  querem  fazer  livrarias  sem  terem  a 
experiência  ou  os  conhecimentos  necess.irios,  dá  os  se- 
guintes conselhos  para  este  fim,  tirados  quasi  todos, 
segundo  confessa,  das  /niírucjõci  tobre  a  dáposifão. 
conservação  e  administração  dal  bibliolhccai,  porMr. 
Constantin. 

Sortimento  e  qualidade  das  diversas  encadernações. 

A  encadernação  orna  e  conserva  os  livros  ao  mesmo 
tempo ;  mas  cumpre  que  seja  escolhida  e  graduada 
pela  natureza  e  importância  das  obras ;  porque  tão 
mal  caberia  a  capa  debello  marroquim  dourado  n'um 
folheto  ephemero,  como  a  de  carneira  ou  cartonagem 
n'uma  ol)ra  prima  de  sciencia  ou  d''artes.  Tenha  o 
rico  amador  na  sua  livraria  certo  numero  de  volumes 
embellezados  com  as  mais  primorosas  e  elegantes  en- 
cadernações, mas  que  sejam  livros  merecedores  d'este 
ornato;  o  resto  da  livraria  seja  encadernada  para 
durar. 

Quando  o  amador  dos  livros  duo  pôde  dispender  o 
necessário  para  que  a  riqueza  da  encadernação  cor- 
responda ao  mérito  de  certas  obras,  deve  contentar-se 
com  uma  encadernação  muito  singela  para  todos  os 
seus  livros ;  pois  vai  muito  mais  isto  do  que  ter  al- 
guns livros  com  encadernações  de  luxo,  e  outros  em 
brochura,  que  pareçam  desprezados  e  desagradem  á 
vista. 

A  encadernação  mais  ordinária  é  de  carneira  ou  de 
bezerro  com  doirados  e  cores  diversas  :  convém  ás  pes- 
soas de  muitos  ou  de  poucos  teres,  a  todas  as  livrarias, 
e  a  todas  as  obras.  Das  encadernações  de  jiergamiuho, 
de  marroquim,  de  moscovia,  de  fazendas  ondeadas, 
de  veludo  &.C. ,  só  se  deve  fazer  uso  em  casos  d'ex- 
cepção. 

Um  género  mui  conveniente,  e  adoptado  por  mui- 
tos amadores,  éo  da  meia-encadernação  com  lombada 
de  bezerro  ou  marroquim,  não  aparada,  com  margens. 
Postos  nas  prateleiras  os  volumes  assim  encadernados 
são  tão  elegantes  como  os  livros  com  encadernação  in- 
teira ;  e  teem  a  mesma  solidez.  Esta  encadernação  reú- 
ne de  mais  a  mais  a  vantagem  da  Iwrateta  e  da  lar- 
gura das  margens;  cousa  de  muito  valor  aos  olhos  dos 
bibliophilos,  que  apagam  por  alto  preço,  e  fazem  todo 
o  empenho  por  cila.  Alguns  d'ellcsteem  tanto  a  peito 
a  conservação  das  margens,  que  fazem  as  vezes  cobrir 
com  a  mais  bclla  encadernação  um  livro  por  aparar, 
eaté  sem  ser  tosquiado.  Cumpre  ao  encadern.-idor  res- 
peitar e  satisfazer  esta  pretenção,  que  tem  bom  fun- 
damento, não  obstante  tornar-se  ás  vezes  ridicula. 

O  conhecimento  technico  da  encadernação  (diz,  in- 
sistindo muito  n\'ste  p<into,  o  i-stimavel  auctor  da  Bi- 
bliothccnomia)  é  indispensável  para  evitar  jx-rdas 
reaes.  E  preciso  saber  escolher  um  Ixjm  encadernador, 
poder  avaliar  o  seu  trabalho  eapontar-lhe  os  defeitos, 
aliaz  ter-se-hão  lixros  mal  encadernados,  ornados  som 
gosto,  e  pouco  fortes;  e  cm  quanto  estas  encaderna- 
ções defeituosas  hão  de  ir  valendo  menos  de  dia  para 
dia,  encadernaçõ»^  boas  de  não  maior  custo  conserva- 
rão, adesp<'ito  dosannos,  todo  o  seu  valor.  Uma  pro- 
va de  que  o  trabidho  bem  feito  é sempre  estimado,  e 
que  as  antigas  encadern,ições  dos  Dusseils,  IX-romes, 
1'adcloup  e  outros,  ainda  hoje  siio  tão  procuradas  co- 
mo os  primores  d'arle  dos  encadernadores  do  l'arís  e 
Londres  de  maior  voga. 

(Continua.) 


39 


o  PA>OR\31A. 


30.; 


INUNDAÇÃO  NA   ITAX,IA. 


A  csTnADA  iIp  Alr>\Tinlii:i  ]i,Tr.n  IMacmcia  iilravpssa 
iiiii.i  iiDiiiciis.i  <'aMipin.i-,  M,i  «11,1  mirada  «'slão  nilua- 
<laB  Ircí  iildi^ai  ii)d<.ailtis  de  ai\iiic,s  o  di>  jardiíi».  A 
|i»iii'a  ilisUiiiiia  da  do  meio  coni!  um  rio,  e  acima 
d'rsli'  um  ril)firo  tjuo  ih-  coiivcrl"'  ciri  («ireiílc  Ciim 
a  infiior  Icmpcsladc.  Ksli-  riliciro,  ciiírossado  pelas 
alHinrlaiiliwiinas  <-liuva»  da  |iiimavpra  dr  18W,  sníu 
do  seu  ]i-il()  n  2.'1  de  março,  (iiiaiulo  menos  so  líspr- 
rava.  ICiilrr  os  iidrlincs  (|uf  n  iiiundarão  Mirjirelien- 
dcu  iio<t  caiiiiios  nihava-si!  uma  família  d'a(|Uellas 
cercanias-,  era  um  paisano  piomontor.,  sua  mãe,  sua 
inullii!!-  c  sfu  lillio.  Ao  arrnidi)  das  aj^uas,  o  oní  pro- 
«'•n(;n  da  morte  ipio  se  acercava  Ircmonda.  cada  um 
«•iculou  u»  impulvi\  do  hiMi  corar;flo.  O  lillio  iti;upu 
hiia  mãe  mihrr'  os  rolnislos  liondiros  ^  a  mulher  Irjivou 
'la  mào  dl'  mmi  lillio.   c  amliot,   alcnlando  so  mutua- 


nionio,  1  uirciaiii  a  ponlc  ijiir  atra\fMava  o  rihriro. 
Avalie-se  <|ual  seria  o  sru  de5c<.pero  «piando,  ao 
chocarem  ali,  doiiois  de  iuerÍM'is  esforeos,  \irnm  a 
ponio  diíslaíer-í.í>,  o  sumir-se  iia  corrente  !  Krcuarani 
c  poderam  ainda  suhir  um  comorosiuho  «pio  a  a'^ua 
todavia  galçava  com  rapidci,  e  cPali  eoiitcniplaraiu, 
atlerrados,  as  ondas  ipie  niuf;iam,  ns  lures  da  aldè». 
onde  parecia  cpie  ninf;uem  sp  lemlirava  d^elles,  ncéu 
aonde  está  Aipielle  ijuc  t/i  os  jxxlia  salvar  ;  r  os  coi- 
tados soltavam  grilos  <le  desespero  cortados  ile  mmiIí- 
dus  deprpen^'ões  a  Deus,  aos  santos  e  a  Nir^em.  Ma-, 
a  a^ua  continuava  a  crescer,  anoile  lo^lla^a-^e  enda 
vei!  mais  medonha,  e  o  peri';o  alliíurnva-se  tão  eiui 
neute,  ipip  nie  a  csperan<;«,  essa  ultima  das  illii»õc» 
<los  homens,  in  a  n[ia';;nr-se-llie  no  coração. 

N^■^lc  inoincnlu   de  air^uslia  inexplicável,    vir«m 
t».-ix.MUKu  2j,  ISòJ, 


;306 


o  PAiNORAMA. 


'.nii  jiniilii  liiiiiiiiiiw)  (|ue  parecia  lluctuar  sobre  as 
nguas,  Í-.  !iccri:ir-so  il'clles.  Bradaram  com  (lol)rada 
lorr^a.  Atjiiollc  jionto  ia  au;;mentaiido  c  aproximan- 
(lu-se  rapidamente,  p  em  brcvo,  ao  clarão  avcriiK!- 
Ihado  iIp  um  archote,  que  se  reflectia  n'agua,  viram 
um  ancião  do  barl)as  brancas,  que  seguro  na,  outra 
niargeiri  aos  fragmentos  da  ponte,  esguardava  cora 
ancicilade  a  margem  direita. 

Os  inundados  soltaram  um  único  brado,  uma  so 
palavra  se  lhe  despegou  dos  lábios  —  o  pae  '.  E  não 
se  enganavam  \  quem  senão  um  pae  affrontaria  com 
tanta  decisão  os  j)origo3  d'aquella  noite  temerosa  ! 
Infelizmente  o  seu  valor  tornava-se  em  taes  circum- 
stancias  inútil.  Ao  sinistro  rumorejar  das  aguas  pres- 
tes a  engolir  :ls  suas  victinias,  todos  sentiam  que  após 
a  dita  de  se  tornarem  avêr,  não  lhes  restava  senão  a 
cruel  certeza  de  perecerem  juntos  i  e  coratudo  a  voz 
do  ancião  ergueu-se  rija  e  tirme  : 

—  Animo,  meus  filhos!  animo!  Ainda  nos  pode- 
mos salvar  ! 

— ^  Ai !  nós  estamos  perdidos  !  responderam  da  ou- 
tra margem. 

—  Não!  não!  Ueus  é  grande  e  misericordioso! 
Ah  !  se  eu  tivesse  vinte  annos  !   Mas  que  ouço  ! 

—  São  as  aguas  do  la  Bormida  que  vêem  talvez 
buscar-nos  !  Adeos,  adeos,  meu  pae  I 

Este,  porém,  não  lhe  podia  responder  então.  Com 
o  archote  erguido  para  o  lado  do  rio,  olhava  fito,  e 
escutava  attento,  immovel  como  uma  estatua. 

De  repente  os  olhos  arrasaram-se-lhc  de  lagrimas, 
ergueu  a  veneranda  cabeça  para  o  céu,  (piiz  fallar, 
mas  apenas  pôde  proferir  estas  palavras  —  Graças, 
meu  Deus ! 

De  feito  uma  barca  guiada  pela  luz  do  archote 
vogava  em  liidia  recta  para  os  inundados,  junto  dos 
quaes  clicgou  dentro  de  pcjucos  minutos,  para  os  ar- 
rancar  a  uma  inorle   tão  horrorosa  como  inevitável. 

Eis-aqui  pouco  mais  ou  menos  o  pequeno,  mas  in- 
teressante e  terrível  episodio  ([ue  o  hábil  pintor,  o 
sr.  Schnetz,  pertendeu  representar  no  seu  quadro, 
que  se  acha  ilepositado ,  com  outras  muitas  preciosi- 
dades artísticas,  no  museu  ile  Luxemburgo,  e  que  na 
nossa  ,  aliás  bem  acabada  gravura,  se  procurou  re- 
produzir com  a  maior  exactidão  c  primor. 

As  linhas  que  precedem  são  o  sufficiente  commen- 
tario  d'e5t;i  tão  formosa  composição.  O  artista  eom- 
prehend(íu  o  assumpto,  no  nosso  entender.  O  terror 
que  se  vê  debuxado  nas  feições  dos  infelizes  campo- 
nezes,  nora  é  exagerado,  nem  tão  pouco  está  abaixo 
da  situação  •,  aquella  creancinha,  que  do  mundo  st? 
conhece  as  alegrias  no  meigo  sorrir  de  sua  mão,  dor- 
mindo serena  nas  azas  da  morte,  (jue  paira  tremen- 
da sobre  as  cabeças  das  differentos  figuras,  não  pode 
deixar  do  impressionar  profundamente,  e  constituo, 
se  nos  não  enganamos,  uma  ilas  (|ualidades  mais  emi- 
nentes doeste  quadro.  As  diflcrontes  figuras  estão 
agrupadas  com  muito  disccTiiimonto,  arte  c  natura- 
lidade. O  desenho  é  correcto  e  severo  como  convi- 
nha, sem  deixar  de  ser  rasgado  e  elegante.  A  pai- 
sagem está  em  perfeita  harmonia  cora  o  pensiimon- 
to  geral  da  composição  \  as  aguas  ruem  furiosas  por 
toda  a  parte,  galgam  sobre  as  casas,  as  arvores,  as 
encostas ;  e  o  céu  carregado  e  negro  serve  de  fundo 
a  este  quadro  de  desolação,  e  parece  conservar-sc 
surdo  aos  clamores  dos  infelizes.  Finalmente,  pelo 
que  nos  dizem  os  periódicos  de  donde  extraímos  es- 
ta noticia,  e  pelo  (pie  se  iióde  dizer  em  presença  da 
nossa  giavura,  cremos  que  nada  falta  a  excellcnte 
eomposição  do  sr.  Schnetz  para  ser  uma  obra  acaba- 
da o  digna  a  todos  os  respeitos  da  maior  attcnção  e 
elogio. 


ARCIIEOLOGIA  POKTLGLEZA. 

InBTHVCÇÕES    dadas    ao    COAUJITOR   DE    BEKGAMO, 
MSCIO    EM    rOETLGAL   NO  TEMPO    DE  D.   JOÃo   III. 

O  sEGLi.VTE  documento  curif»o  é  traduzido  do  ori- 
ginal italiano,  existente  entre  os  códices  da  bibliothe- 
ca  do  Vaticano,  com  o  seguinte  titulo  :  Insiruzzione 
piena  dcUc  cose  di  Portutjallo  in  tempo  dei  re  Gio  : 
.3."  daia  a  monsiijnor  coadjutort-  di  Jíergamo,  nún- 
cio apostólico  in  <jucl  rcgno,  per  ordinc  di  I^tutlo  3." 


uRev.'"«  e  Ill.nio  Sr.  —  Tendo-me  V.»  S.^  pedi- 
do que  em  uma  memoria  lhe  apontasse  as  cousas, 
(jue  para  o  presente  julgasse  mais  conveniente  recor- 
dar ao  núncio,  que  vae  a  Portugal,  obedecendo  a  es- 
te desejo,  depois  de  me  informar  primeiro  com  mui- 
tas pessoas  d^aquelle  reino,  e  depois  com  outras,  que 
lá  estiveram  na  companhia  dos  núncios  antecedentes, 
notei  aqui  o  que  reputo  mais  importante  e  necessá- 
rio que  o  núncio  saiba,  para  falLir  e  responder  segu- 
ro a  tudo  o  (jue  lhe  possam  perguntar,  e  não  ser  no- 
vo em  nenhuma  espécie,  sobre  tudo  que  prenda  com 
interesses  da  Sé  Apostólica  e  serviço  de  nosso  amo. 
e  não  confundir  ou  equivocar  os  negócios,  nera  s« 
assustar  com  objectos  que  o  não  mereçam  :  —  para  isso 
bom  será  saber  : 

(E  um  péssimo  resumo  da  historia  portugueta  até  a 
pag.  25  em  que  diz:) 

"No  tempo  da  suppressão  dos  Templários,  as  ren- 
das e  terras  d"aquella  ordem,  que  eram  immensas, 
foram  concedidas  pelo  papa  a  uma  ordem  no\a  em 
Portugal  creada,  que  chamaram  de  Chrislo.  Os  Pon- 
tificcs,  em  épocas  (iiffercntes,  confirmaram-lhe  as  mer- 
cês de  muitos  benelicios,  decimas,  e  depois  as  ilhas 
da  Madeira  e  todas  as  mais  descubertas em  seguimen- 
to ;  tle  motlo,  que  já  valia  no  tempo  de  D.  Diogo 
irmão  do  rei  D.  Manoel  somente  a  raezadom«'>trado 
láO,^000  ducados  d'ouro  annuaes. 

«A  este  mesmo  mestrado  concederam  depois  os 
papas  a  decima  das  navegações  da  índia  eElhiopia. 

ii  O  papa  Leão  (X. .')  conc-eídeu  mais  á  onlcm  20*000 
ducadtis  de  renda  em  parochias  donde  as  ditas  rendas 
se  tiravam:  por  erro  ou  incúria  dos  p.idresv.Tjem  ho- 
je mais  de  SO^^ODO  dvicados  as  que  estão  vagas,  ou 
a  vagar,  e  pela  letra  da  mencionada  bulia  se  hão  de 
unir  ao  dito  mestrado,  e  são  de  collação  regia. 

u  O  mestrado  da  ordem  possuia-o  o  duijue  D.  Dio- 
go, o  depois  d'cllo  foi  d'el-rei  D.  Manoel  seu  irmão 
antes  de  ser  rei, 'c  quando  subiu  ao  thronoincorporou- 
so  na  coroa,  e  é  agora  possuído  pelo  rei  D.  João  seu 
filho,  tudo  com  conces.sões  e  auctoridado  desta  Se  &.c. 

..  lia  mais  duas  ordens  em  Portugal,  adeS.Thi.i- 
go,  e  a  de  Aviz  que  devem  ser  de  305000  ducados 
de  renda  mensal,  c  possuem  Iwllissim.is  terras,  o  gran- 
des commendas  e  benefícios.  E  hoje  mestre  d*ellas 
1).  .lorge,  filho  do  rei  D.  Jo,ão  (II). 

.i  Estas  três  onlens  sendo  Iodas  Ires  elecliv.is  e  de 
grandíssima  importância,  tanta  que  se  lhe  deveu  a  vi- 
cloria  de  todo  o  reino  em  re[)etidas  guerras,  ti  jKips 
Leão  concedeu  ao  rei  do  Portugal  faicl-as  depadnia- 
do  real  íii  solido,  c  apresentação  rt^ia  íd  /Hi-ftelua 
rii  memoriam  ;  e  eonviíulo  <»  rei  em  pag.ir  uma  co- 
piosi>sima  composição  pelo  dito  padroado  opap;»  con- 
cedeu a  graça  livre. 

..Item  a  Sé  .\|H>stoliea  eoiicoileu  ao  rei  de  Portu, 
g.il  a  naveg.içiio  da  Índia  e  Elhíopia,  e  mais  terras 
descidierlas  de  novo,  debaixo  de  ccrt.T  liiih.i  divi.^o- 
ria  do  mundo  entre  o  rei  do  Portugal  »•  o  de  Cis- 
tella.    E  com   a   Lulla   d'esfa  concosMo  >«•  defende- 


o  PA\ORA31A. 


3or 


não  menos  do  que  com  ;!•»  armas,  o  direito  adquirido 
contra  francezes,  e  outros  que  pcrtendcm  poder  na- 
vegar n'aqueilaí  paragens,  e  negociar  também. 

"  Item  o  papa  Leão  concedeu  ao  rei  D.  Manoel  uma 
cruzada  em  todos  01  seus  reinos,  que  ha  quem  diga 
que  Uie  rendeu  por  perto  de  41)0^000  ducados. 

u  Item  o  mesmo  papa.  concedeu  ao  rei  de  Portu- 
gal a  terça  parte  de  todas  as  rendas  ecclesiasticas  ad 
instar  honoruin  Castctli  et  Lcgionis  non  perpetuo.  E 
[wrque  o  clero  moveu  lide  para  se  defender,  e  a  ques- 
tão se  tornava  perigosa  para  o  rei,  e  odiosa  para  o 
papa,  sendo  o  clero  poderosissimo,  o  rei  D.  Manoel 
conipoz-se  com  o  clero  por  153^000  ducados  d'ouro, 
obrigando-se  por  instrumento  publico,  e  contracto  de 
juramento  solemne  ])or  si  e  seus  successores  de  não 
wUicitar,  nem  acceitar  mais  decima  de  nenhuma  es- 
pécie do  papa.  Ajiesar  d 'isto  a  santidade  de  nosso 
padre  l'aulo  III  concedeu  depois  ao  actual  rei  duas 
decimas  em  Portugal,  que  custaram  mais  ao  clero. 
E  sua  santidade,  podendo  entender,  que  já  o  clero  es- 
tava  obrigado   por   promessa    da  sua   resi>ectiva  or- 


dem, e  que  tudo  montava  a  100^000  ducados,  com- 
poz-se  por  30*000  ducados,  e  o  rei  os  arrecadou. 

"Item  a  Sé  Apostólica  por  pacificar  o  rei  D.  Ma- 
noel no  reino,  fazendo-o  rei  de  Castella  ainda,  con- 
cedeu-lhe  dispensa  para  casar  com  a  filha  primogé- 
nita do  rei  catholico,  sua  parenta  era  grau  mui  pró- 
ximo, viuva  do  principe  D.  Affonso  de  Portugal, 
seu  primo,  princeza  e  herdeira  de  tantos  reinos  ;  c 
morrendo  esta  de  parto,  como  as  cousas  do  reino  fi- 
cassem revoltas,  deu-lhe  dispensa  para  segundo  ma- 
trimonio com  a  outra  filha  do  rei  catholico  a  rainha 
D.  3Iaria,  mãe  do  actual  rei  D.  João,  e  irmã  da 
primeira.  E  tendo-lhe  imposto,  quasi  em  penitencia 
da  dita  dispensa,  (que  era  em  grau  de  tão  estreita 
affiuidade)  de  passar  pessoalmente  a  Africa  com  o 
exercito,  o  desligou  d'isto  depois  sob  condição  de 
enviar  soccorros  determinados  contra  os  turcos,  no 
que  lhe  fez  assignalada  mercê.  E  ultimamente  o  dis- 
pensou para  poder  casar  com  a  sobrinha  das  ditas 
duas  irmãs,  a  (|ual  hoje  é  rainha  de  França. 

(Continua.) 


FEBJKTIMORE   COOFER. 


Nii  Dl*  qualoríH  dr  si'|einl)ri>  110  «mio  de  ISjI  cx- 
lialava  o  nllimo  nuspiro  na  ri'<idencia  di-  ('oo])er- 
stown  o  famoso  cvriplof,  <|in'  IlUislrou  a  pátria  de 
V\  ashiii'.;!iin  com  iinu  paljii.i,  rival  do  Imiro  <lo  bar- 
do KsciiiTZ,  Wallcr  ScnK,  t)  auctor  do  ,,  Piloto '<  e 
do  ■.,  Ihirítdiiro  1/(i/i/V(i»i) "  ^  oporia  que  deu  Yoz 
<•  alma  /is  (loresl.is  virgens  da  \mrric,i  ^  o  pintor  <|ue 
deneniiou  as  plll^lonollll.^s  dos  jieroes  das  selvas  em 
lurla  1'oni  a  civilis.ição  :,  animando  a  c\lstenoia  ma- 
c  lio  inlerc->se  rni  laiilos  quadro»  ; 


dcs  opn-l.uulos  da  naliire/.a,  e  ;'is  maiores  scenas  do 
coração,  ofiererendo  na  tela  dnimalica  coslunie»,  ca- 
rccItTcs,  r  sítios,  apenas  aperii-bidos  de  longe,  anlc^ 
do  caiiliio  nielanroliio  dos  Nalclirs  c  di' Alala.  l'Vn- 
niniore  Coopcr  foi  reunir-se  á  sombra  de  (Vrvantc>, 
e  descançar  ao  lado  do  auclor  <le  W  averlev  I 

•V  grande   voz  calou-se  ,    o  ob-ervador   que  \iu  l.io 
fundo   no   seio   da   sociedade    iiovn,    e  nos  inslincto- 
confusos  das  tribus  selvagens-,  o  inlerpreli-  rioquenlc 
I  d.Ts    harmonias   íla  solidão,    nada  mais  dirá    no  berço 


rilinia    da  pnixã 

o  liomi-iii.   i|iie  nos   f.;z  assistir  em  c^pirilo  aos  grau-  |  natal,    objecto   do  seu  amor,    apar    da  arte.    da  n-li- 


308 


O  PA>ORAMA. 


glão  de  todos  o»  instantes  !  Longos  annoi  hão  de  pas- 
sar antes,  que  outra  mão  ouse  continuar  na  obra  in- 
terrompida as  M-ena*  ijue  immortalisam  o  mestre. 
A  rara  Anglo-araericana,  tão  soberba  das  íuíis  con- 
t|UÍ8tas,  tem  razão  de  se  cubrir  de  lucto.  As  gerações 
não  costumam  ser  fet-undan  em  vultos  doesta  altura. 
Como  o  romancista,  íjue  perdeu,  Ião  cedo  não  torna 
outro  a  ilinstral-a. 

A  liistoria  da  vida  de  Fennimore  é  a  historia  de 
ura  homem  modesto  nos  des<'jo5,  irrcpreliensivel  no 
oarac-ter,  e  vivendo  mais  com  a  intelligencia,  do  que 
uo  mundo,  que  pouco  o  maguou  no  seu  contacto. 
Filho  do  magistrado  (Jooper,  descendia  de  uma  fa- 
mília inglcza  natural  do  condado  de  Buekingham, 
c-stabelocida  na  America  no  anno  de  l(i79.  >iascido 
jia  casa  paterna,  no  meio  de  uma  lavoura  opulenta, 
formada  por  seu  pae,  abriu  os  olhos  no  Estado  de 
Xew-York,  em  Burlington,  ás  margens  do  Dela- 
Avare,  tantas  vezes  calebrado  nas  suas  descripíjões. 

Começou  a  educação  no  collegio  de  Yale  (New- 
Hav€sn)  aondtí  bebeu  as  noções,  que  ampliadas  de- 
pois, cultivaram  o  espirito  e  enriciucceram  a  imagi- 
nação. Como  aconteceu  com  outros  talentos  raros,  a 
disciplina  escolar  parecia  comprimir,  oin  logar  de 
desenvolver,  as  propensões  littorarias  do  mancebo. 
De  1802  até  1805,  em  que  entrou  no  serviço  da 
marinha,  nenlium  indicio  revelou  o  auspicioso  futu- 
ro, que  o  esperava. 

Imjjetuoso,  robusio  e  indócil,  oppunha  a  tenacida- 
de e  a  resistência  ás  advertências  e  aos  estimules  da 
severidade  coUegial.  EUe  mesmo  ainda  ignorava  as 
forças  intcllectuaes,  de  que  era  dotado,  e  não  aspi- 
rava senão  ao  movimento  e  ás  commoções  da  traba- 
lhosa carreira  do  mar,  entre-  os  perigos  da  tormenta, 
c  ás  vezes  o  con flicto  dos  combates.  A  vocação  dor- 
mitava \  o  a  phanta-sia  apenas  disperta  procurava  na 
acção  o  alimento  necessário  ao  seu  ardor.  Mais  tar- 
de é  que  dcscubriu  a  verdadeira  estrada,  e  a  pisou 
••omo  triumphador. 

Aos  treze  annos,  accedendo  ás  supplicas  repetidas, 
seu  pae  deu  o  consentimento,  deixando-o  satisfazer  o 
inquieto  desejo  de  firmar  o  pé  no  conver  de  um  na- 
vio de  guerra,  debaixo  do  pavilhão  da  sua  pátria. 
A  influencia  ifeste  pericnlo  nas  qualidades  do  seu  es- 
pirito foi  indelével.  Seis  annos  de  continuo  serviço 
fortificaram  a  imaginação  adolescente,  deram  vigor 
ao  engenho,  e  gravaram  na  alma  as  primeiras  ima- 
gens dos  dramas  maritimos,  que  desenrolou  depois, 
«■  serão  sempre  a  admiração  da  arte. 

Nas  scenas  tão  exactas  e  amiudadas  que  retracta, 
quem  poderá  dizer  até  que  ponto  o  poeta  foi  actor? 
tluando  debruça  da  amurada  a  figura  grandiosa  de 
Tom  Jones,  com  os  olhos  fitos  no  deserto  das  aguas; 
quando  levanta  os  cachões  da  vaga,  f.izendo  pular  no 
<Iorso  a  í|uilha  e  gemer  o  costado  no  embate-,  quan- 
do colloca  o  homem  liiioico  pela  serenidade  no  meio 
do  temporal  e  da  guerra,  dominando  a  morte  que  o 
ameaça  dos  abysmos,  quem  sabe  se  as  manobras  que 
descreve,  se  os  perigos  que  huniillia,  se  a  anciedade 
que  representa,  é  só  ficção  apenas,  ou  se  une  a  rea- 
lidade, o  episodio  terrível  de  \ima  cirn-ira  fértil  em 
lances  e  em  rasgos  sublimes  f 

\  saudade  dos  trabalhos  náuticos  transluz  nasdes- 
'TÍpções,  cm  que  o  romancista  sentado  ao  lar  domes- 
tiro  se  compraz.  í)s  personagens,  que  nos  apresenta, 
pouca  perspicácia  v  no«'.*suria  para  perceber,  que  não 
foram  sempre  puras  formas  intellecluaes ',  sentc-se  no 
■  uídado  com  que  os  segue,  no  disvello  com  que  os 
tracta,  que  o  poeta  os  conheceu  e  acompiínhou. 

A  bella  creacão  ile  Tom  Longo  no  /'i/oío,  é  uma 
recordação  visível.  A  arte  só  não  adivinha  tanto. 
Antes  lie  oonsuljstancijir  a  existência  com  a  da  esiu- 


na,  objecto  da  sua  idolatria,  o  pobre  Tom,  bem  af- 
faslado  de  prever  a  gloria  de  servir  de  trpo  á  Síia 
classe,  mastigou  o  rolo  de  tabaco,  afiou  o*  barpões, 
e  tocou  o  apito  de  contra-meítre  a  l>ordo  de  um  na- 
vio ;  e  foi  de  certo  no  exercício  regular  de  tão  cons- 
picuas  funeções  que  o  pincel  veiu  colhel-o,  e  o  seu 
retracto  passou  da  vida  real  para  os  vastos  domínios 
da  imaginação. 

Era  o  processo  de  Waltcr  Scott ;  e  em  grande 
parte  também  o  de  Cervantes ;  e  ha  de  ser  eterna- 
mente o  dos  interpretes,  que  desejarem  sondar  os  se- 
gredos do  coração,  e  o  destino  da  humanidade.  Nas 
manifestações  da  arte  entram  sempre  c-omo  elemen- 
tos essenciaes,  a  observação  objectiva,  c  a  revelação 
interior.  Não  ha  quadro  grande,  aonde,  como  nos  at- 
tribuidos  ao  Gran-\  asco,  o  auetor  se  não  veja  a  $i 
e  ás  imagens  familiares  do  seu  espirito.  A  invenção 
está  no  desenho  e  na  collocação ;  o  bello  na  verdade, 
e  o  sublime  no  estvlo. 

Cooper  saiu  da  armada  no  anno  de  1810  para  se 
unir  á  esposa,  que  hoje  deplora  a  sua  falta,  e  que  é 
filha  de  Pedro  Lancev.  Depois  de  habitar  pouco  tem- 
po em  \%  estchester  nas  cercanias  de  Nevv-York,  pas- 
sou a  fixar  a  sua  residência  em  Cooperstovvn,  aonde 
consagrou  inteiramente  todas  as  faculdades  aos  estu- 
dos litterarios  e  á  composição  d'essa  longa  genealo- 
gia de  personagens  ideaes,  a  quem  deu  a  gloria  do 
mesmo  modo  tjue  ^^'alter  Scott  á  sua,  de  invocar  a 
paternidade  do  auetor  do  "  I'ilolo  ••  como  titulo  de 
nobreza  nas  jerarchí.-is  da  arte.  Entretanto,  não  se 
creia  que  o  romancista  americano  se  repousou  á  sí- 
milhança  do  Titiro  de  Virgílio  nos  ócios  do  Idílio, 
sentado  á  sombra  copada  das  arvores,  vendo  gemer  e 
fugir  as  aguas,  e  tosar  as  relvas  pelo  dente  dos  re- 
banhos. 

A  necessidade  de  acção,  que  o  levava  na  adoles- 
cência a  preferir  as  commoções  violentas  domar  .i  ou- 
tra vida  mais  pacifica  obrígou-o  na  idade  da  reflexão 
a  visitar  o  continente,  aonde  se  demorou  bastantes 
annos,  sobre  tudo  em  1'arís.  As  notas  d'estas  via- 
gens, lançadas  com  rapidez,  e  mais  inclinadas  á  apre- 
ciação politica,  do  que  ao  exame  artístico,  mostram 
um  dos  aspectos  curiosos  d'este  caracter,  que  feria  o 
orgulho  britannico  pela  austeridade  dos  princípios  re- 
publicanos, e  pela  expressão  rude  e  sincera  das  idéas. 
A  tendência  crítica  tornou-o  nos  últimos  annos  um 
censor  íncomraodo  para  os  costumes  menos  severos  já 
dos  seus  compatriotas,  aos  quaeã  tão  pouco  disfarça- 
va a  verdade,  como  aos  estrangeiros. 

A  obra  litteraría  de  Coop<'r  forma  um  monumen- 
to :  e  pikle-se  dizer  que  a  existência  lhe  deu  espaçv> 
para  a  não  deixar  inc-omplcta.  Nos  últimos  meres, 
em  que  a  saúde  debíl  o  avisou  de  que  era  tempo  de 
descançar,  depoz  a  pt-niia,  e  foi  procurar  áfresi-ura  e 
á  serenidade  das  caippina».  que  pintava  com  tão  ale- 
gres cores,  o  remédio  ou  o  engano  das  forças  que  $uc- 
cumbíam.  Era  tarde.  Os  dísvellos  tornaram-sc  inú- 
teis ;  a  moléstia  zombou  da  scicncia  e  da  ternura  de 
tantos  amigos ;  e  a  extrema  esperança  fugiu  com  o 
derradeiro  suspiro  do  jxx-ta,  que  cerrou  os  olhos  pou- 
co antes  de  prefaier  so^-íonta  e  ilous  annos  de  idade. 
Durante  a  sua  lucfa  com  a  morte,  a  .Vmeríca  ancio- 
sa  pendia  do  exíto,  c  recebia  <xini  avidez  tixlas  as  no- 
tícias, ora  reanimada,  ora  abatida  pelas  crítos  que  se 
;dtern.ivam.  Em  fim  chegou  a  ultima,  e  cvim  ella  o 
lucto  nacional  de  um  grande  j>ovo  digno  de  se  ajoe- 
lhar na  magua  viril  da  admiração  perante  o  sepul- 
cro de  um  dos  reis  da  íntelligemía,  depois  de  se  ter 
levantado  em  presença  do  throno,  e  de  respi>iider 
com  a  espada  ao  golpe  do  sn>plro,  e  á  intimação  das 
armas '. 

O  numero  dos  romances  compostos  por  Kennimo- 


o  PANORAMA. 


309 


re  rivaliza   com  a  fecundidade   de  Walter  Scolt.    O 
priítifiri)  ensaio,    muito  inferior  ao  cunho  magistral, 

}ue  fei  pasmar  a  Inglaterra  lendo  as  paginas  de 
faverlcy,  foi  publicado  antes  do  poeta  se  estabele- 
cer em  Coopersiown.  A  Precaução,  no  enredo  frou- 
xo e.  embaraçado,  no  dialogo  balbuciante  muitas  ve- 
ies, e  no  traço  indeciso  do»  personagens,  estava  lon- 
ge da  rasgada  e  fecunda  invenção,  e  do  correcto  de- 
senho do  bardo  Escocez.  Ninguém,  examinando  a 
primeira  novella  de  (Jooper,  ousaria  ajuizar  que  a 
mão  do  pintor  ganhasse  a  firmeza,  e  achasse  o  segre- 
do, que  tornam  immorlaes  tantos  dos  seus  quadros. 
Ua  Precaução  ao  Espia  (o  segundo  romance  de 
Kennimore)  vae  uma  distancia  Ião  grande,  que  só  a 
omnipotência  do  génio  era  capaz  de  a  vencer.  Etfe- 
ctivamente  o  protogonista,  Harvey  Sirch,  é  uma 
creação  poderosa  pela  originalidade  e  pelo  interesse 
dramati<-o.  O  sacrifício  não  da  vida,  mas  da  honra, 
que  é  mais,  á  victoria  da  pátria,  era  um  rasgo  épi- 
co, digno  das  virtudes  antigas  de  Sparta.  A  concep- 
ção de  um  homem,  que  tira  a  sua  gloria  da  maior 
infâmia  social,  e  so  resigna  a  humilhar  a  fronte  ao 
opprobrio,  não  a  podendo  erguer  com  orgulho  senão 
diant('  de  Deus  e  da  consciência  de  outro  homem, 
iguala,  pela  novidade  e  pela  grandeza  moral,  o  que  se 
conhece  de  mais  nobre  e  heróico  na  historia  do  sen- 
timento e  da  abnegação.  Não  contente  deluctarcom 
as  difficuldades  do  assumpto,  Fenniuiore  atreveu-se 
a  outra  empresa  não  menos  arriscada,  pondo  na  mes- 
ma tela  a  figura  severa  e  patriótica  de  Washington, 
idealisada  com  raro  talento.  Desde  esse  dia,  a  Ame- 
rica primeiro,  e  a  Europa  depois,  saudaram  no  au- 
ctor  dos  Mohieaiios  um  dos  príncipes  da  arte. 

Os  Pionncm  (rotcadores),  seguiram-so  ao  Espia 
confirmando  .i  reputação  do  poeta,  que  o  Derrculci- 
ro  Mohicauu  coroou  de  um  louro  inunarcescivel.  Foi 
depois  de  (aes  triumphos  que  em  18:20  Cooper  fez  a 
siia  viagem  á  Europa,  e  visilando  os  povos,  e  obser- 
vando os  costumes,  continuou  sem  se  interromper  na 
obra  lilteraria.  (J  Alrjoz  de  licnie,  o  Corsário  Vir- 
mellio,  c  a  Campina  j)ertcncem  a  este  periodo,  em 
que  a  sua  fama  se  consumou.  Finalmente  o  Filolo, 
lalvcz  a  mais  perfeita  das  suas  creações,  apesar  da 
deelinaç.Mo  de  outras  novellas  eivada»  de  intenção  po- 
litica, e  despidas  do  interesse  original  das  primeiras, 
cujo  thealro  era  uma  naluresa  quasi  virgem,  atles- 
lou  (|iie  a  iiunginação  do  mestre  subia  com  o  assump- 
to, alumiando  de  magico  ('xplendor  assccnasdo  mar, 
os  affectos  da  alma,  e  as  luctas  da  •lil)erdade. 

Antes  de  Washington  Irving  e  de  (Viopcr  a  ori- 
ginalida<le  da  lilteiatura  americana  não  existia.  El- 
les  é  (pie  a  icvelaram,  dourando  com  a  lui!  ila  in- 
venção e  do  estalo  l besouros  de  poesia,  até  então des- 
presado».  Irving,  niiiis  liniido  ilo  (juo  Fenniniore, 
e(U'riiclo,  apraslvcl  <•  <lelie.ido,  tinha  pouco  ódio  u 
<lepeiidencia  4I0  taliiito,  e  11  cada  iiislanti;  revê  nos 
•  scriplos  a  transparência  da  antigii  escola  ingleza.  A 
sua  imilução  graciosa  e  ligeira,  assemelha-se  a  uma 
copia  tir.ida  cru  p.ipel  de  seda  do  g(jslo  de  Addison, 
<le  Stceli'  i'  de  Svvin ,  eoino  observa  l'hilarete  ( 'luis- 
le».  Mesmo  no  J.ivru  dos  Eshoroa,  na  í.'(i!i<i  i/c  Jtra- 
cebrulijc  o  no  melhor  de  todo»  elies,  o»  Ctmtus  du 
f^iiijuiiti',  transluz  de  uiuio  a  recordação  de  Addison, 
c  Síínlu-se  uma  certa  inollisa  na  |)hiase  e  110  ponsa- 
ménto. 

Nn  segunda  maneir.i,  <|iu'  ailoplou,  a  empliane, 
e  a»  illuminuras  a|icnas  disf.irçam  csle  ih'i'('ilu.  Koi 
preciso  A  sua  volla  da  embaixada  de  llcspanba,  <|ue 
.1  imaginação  e  o  espirito  hc  relempenissem  no  cspe- 
claculo  daii  cascata»  ilo  Niagara,  nus  lagos  Cliamplílin 
<'  l'ilie,  e  na»  margens  do  Obio  ,  foi  necessário  galo- 
])ar  ao  latiu  do^  mtcadoruji,  <•  correr  <'i)iii  rllcs  o  imjI- 


dro  selvagem  pelo  interior  das  tribus  Pawnies,  de- 
vassando as  florestas  e  assentando-se  k  fogueira  do 
campo,  ou  sob  o  tecto  do  wigwam  dos  Índios,  para 
o  engenho  inspirado  pela  naluresa  se  elevar  á  origi- 
nalidad(í  das  scenas,  que  os  olhos  admiravam,  e  rom- 
per com  a  imitação  elegante  ma»  fria,  deixando  esca- 
par da  penna  as  paginas  aeductoras  da  mais  beUa  das 
suas  obras,  a  Campina  .' 

Cooper  destingue-se  pelos  toques  vigorosos  e  ori- 
ginaes,  e  pela  frescura  transatlântica  que  respira  tu- 
do o  que  descreve.  Associa-se  pelo  coração  e  pela 
idca  á  naturesa  grandiosa  do  seu  berço,  e  pinta-nos 
a  lucta  das  industrias,  das  artes  e  do  pensamento  do 
mundo  velho,  encontrando  a  apathia  da  vida  selva- 
gem, e  a  resistência  do  instincto  contra  o  progresso, 
obrigado  a  domal-as,  ou  a  succumbir. 

A  estrada  rasgava-se  diante  d'elle,  infinita,  varia- 
da e  desconhecida.  Eram  painéis  sem  quadro,  scenas 
sem  theatro,  tudo  novo,  tudo  raro,  fácil  de  ligar  pe- 
lo interesse  moderno,  mas  árduo  de  exprimir  nas 
formas  estreitas  da  imitação.  O  povo,  que  lhe  serve 
de  actor,  levanta-so  gigante,  saindo  ai)en;iâ  da  infân- 
cia. Os  heroes  da  sua  gloria  repnxluzem  o  heroísmo 
sereno  o  perseverante  de  Washington  e  de  Frank- 
lin. Florestas  carregadas  de  séculos  formam  o  fundo. 
Os  apóstolos  do  novo  mundo  em  contacto  com  os  fi- 
lhos do  deserto ;  o  wigwam  e  o  cachimbo  do  selva- 
gem ao  lado  das  artes  da  Europa  no  meio  de  soli- 
dões rara  vez  penetradas :,  o  combate  das  raças  de 
avós  a  netos,  entre  os  oppressos  e  05  oppressores  ;  que 
variedade  de  situações  e  de  affectos  ^  que  novidade 
de  perspectivas  e  de  cores  ;  (jue  immenso  problema 
para  a  íntelligencia  do  philosopho  e  para  a  imagina- 
ção do  poeta  !  ? 

O  mérito  do  romancista  de  (Jooperstown  é  ter  sa- 
biilo  aproveitar-se  de  elemento»  tão  diverso»,  nãolhea 
corrompendo  a  candura,  nem  a  ingenuidade,  por 
meio  da  imitação  bastarda.  Os  personagens  são  hu- 
manos, as  scenas  possíveis,  e  a  linguagem  própria  do 
caracter  e  dos  costumes  que  representam.  A  natu- 
reza gigante  das  bellas  regiões,  j-efleete-se  no  drama, 
como  em  um  espelho.  E  ])or  isso  q>ie  os  seus  compa- 
triotas celebram  em  Fenniniore  o  Homero  america- 
no,  o  bardo  das  glorias  naciouaes.  Os  defeitos  da  sua 
maneira,  o  excesso  de  analise  e  de  descriptivo  ;  a 
minuciosa  exactidão  da  pintura',  o  cuidado  enfado- 
nho com  i|uo  insiste  no  mais  insignilicantt  acccssorio, 
ou  na  menos  importante  cir<'iiiiistancia,  nascem  da 
intima  analogia  ilo  auclor  com  a  terra,  e  com  a  re- 
ligião que  professa.  Calvinista,  o  estylo  e  a  oliserva- 
ção  do  poeta,  deniiticiain  a  austeridade  da  seita,  e  o 
escriqniloso  culto  da  verdade.  Nos  painéis  «pie  dese- 
nha não  ap[)arcc<'m  a»  massas  do  liu  e  de  escuro  que 
deslumbram  em  Chateaubriand  \  mas  acha-sc  a  vida 
do  homem,  o  silencio  <las  aguas,  da  campina,  da  flo- 
resta, e  a  immensiílade  dode.serlo.  A  crenção  opulen- 
ta do  outro  heiiiis|iherio  em  toda  a  graiiihsa.  Com 
elle,  diz  l'liiliiri'te  Chasles,  osoUio»  docupirito,  quasi 
tão  bem  como  os  scntiilo»,  vfiem  i-  conhecem  os  bos- 
<|ues  viçosos,  os  jilaino»  ari^entos,  os  robles  antigos, 
as  solidões,  imagem  do  infinito,  os  lagos  (|ue  parecem 
iiiare»,  e  a  grainlií  sombra  d'cssaí  matas  gigantes, 
aondi'  a  sombra  foi  seinpro  cternn  '. 

OI)servae-o  quando  ascena  é  sobre  as  aguas.  Lide 
o  1'Hoio,  Iradiiíido  cm  porluguez,  a  obr»  prima  du 
sua  iniagiiiação,  cujo»  heroes  são  o  mnr  e  o  navio. 
Noiae  a  iiuiibule  <•  o  vigor  com  que  a  «içào  procede 
íhi»  c.irai'lí'res,  v  os  lanei'»  nascem  ilo  t*nredo.  v*  a 
apiilb<'os<'  do  lioinem  dtuuinaiulo  o  oecenuo,  como  ii 
cavalleiíd  subjuga  o  corci'l,  exclama  um  critico  fran- 
cez.  Oiie  ciitliiisinsmo  e  que  vida  no»  <|Uiuiios.  l*»re- 
(C  <p'e  iiv  ondas  ilii'  (ib«  (l<  cem,    lauta  e  u  bcllci'.-»  c  o 


.'310 


O   TANORAMA. 


fprror  das  sceiías,  que  oflerec».  O  Corsário  Verme- 
lho, oPilolíi,  ;i  Fcitircirn  das  Ayuas,  <|iic'  ailmiravfl 
iiiterprrtarão  ilas  paixões  do  coração,  do  sublime  da 
naturesa,  c  (los  coslumes  náuticos  I  Como  o  pittores- 
eo  abraça  o  positivo,  <:  a  realidade  exalta  a  magesta- 
de  do  <'sp(a'taculo  1  Não  são  pliantasmas  de  navios 
correndo  sobre  ondas  fingidas ;  embarcação  e  vagas 
falsas^  dentro,  e  á  roda,  está  a  acção  e  ávida,  o  ca- 
racter e  a  poesia  do  assumpto.  As  velas  ição-se  e 
amainam-sc  ■,  os  cabos  rangem  ^  as  vergas  gemem ;  a 
maruja  canta  ^  e  o  roUo  do  mar,  coroado  de  espuma, 
vem  quebrar  o  dorso  esverdeado  no  costado  da  escu- 
na, que  Tom  Colfin  ebamava  a  sua  pátria. 

i\as  pliisionomias  femininas,  Cooper  ostenta  uma 
finura  de  observação  comparável  ao  lápis  de  Shakes- 
jieare.  Não  as  disfarça,  não  as  exagera,  inostra-as  o 
que  são,  e  o  «jue  devem  s(!r,  mulheres;  mas  revesti- 
das das  graças,  da  boudad(>  meiga,  e  do  pudor,  que 
as  torna  sedn(-toras.  Por  esta  alliança  do  sentimento 
moral  com  a  belli^za  phjsica,  e  a  serenidade  da  al- 
ma, as  suas  heroinas  sustentam  uma  virtude  alegre 
que  não  fatiga  ;  são  verdadeiras,  e  fazem  que  tudo 
respire  ao  pé  d'ellas  o  aroma  dos  mais  puros affectos. 
Kntre  os  seus  romances,  que  montam  a  trinta  e  qua- 
tro, sendo  o  uUinio  publicado  em  1830,  ha  mais  de 
uma  figura  delicada,  pensativa  e  cheia  de  ternura, 
como  Ijucia  llardinge,  que  pouca  inveja  tem  á  Des- 
demona  de  Shakespeare  e  á  Flora-Mac-Ivor  do  \Val- 
ler  Scott. 

Dos  romances  de  Fennimore  apenas  três.  que  nós 
saibamos,  se  encontram  vertidos  em  portuguez.  São 
o  Piloto,  o  Espia,  o  o  Jhrradtiro  31ohicano,  admi- 
rável elegia  épica,  cuja  scena  é  o  novo  mundo,  cujo 
actor  é  o  génio  primilivo  da  raça  humana.  Assim  de 
todos  os  grandes  vultos,  que  eram  o  brazão  do  sécu- 
lo, nenhum  resta  de  pé.  Napoleão,  o  César  moder- 
no, o  poeta  d^acção,  tem  chamado,  uns  atraz  dos  ou- 
tros, os  grandes  nomes  da  época.  Bvron  primeiro, 
Wallcr  Scott  depois,  Chaleaubriand  após!  ("ooper, 
o  ultimo,  acaba  de  adormecer  no  meio  das  laci-imas, 
que  o  sou  coração  merecia,  e  das  saudades,  que  o  seu 
caracter  inspira.  Entrou  n^esse  grande  estádio  das 
sombras  aonde  o  espaço  é  longo,  o  a  luz  ardcnti-,  de- 
nominado posteridade;  mas  como  os  bardos,  que  o 
pr<'ce(leram,  o  monumento  pôde  com  o  nome,  o  o 
l«niro  da  memoria,  longe  de  se  consumir  ao  sol  da 
gloria,  cada  dia  reverdece. 

li.  A.  Kebello  n.\  Silva. 


E  é  o  que,  talvez,  eu  hei  de  conseguir  a  respeito  do* 
hospitaes. 

.\  outra  razão,  porque  acceitei  o  convite  do  meu 
amigo,  é,  que  considero  o  apparecimento  d'um  pe- 
riódico uma  romaria  ou  festa  popular,  onde  ordina- 
riamente se  dispensam  etiquetas  e  dislincções  hierar- 
chicas ;  onde  o  erudito  e  o  illitterato,  mov  idos  do 
mesmo  sentimento  ou  enthusiasmados  pela  mesma 
idéa,  e  nivelados  no  mefo  da  multidão  exultante  se 
podem  abraçar  fraternalmente  ;  uma  festa,  sim,  onde 
até  o  pobre  es<iuecendo  as  trisfuras  do  seu  alvergue. 
e  desvestindo  os  andrajos  que  o  tornam  repugnante 
aos  felices  da  terra,  vae  folgar  entre  elles,  e  deixar 
á  p<jrta  do  templo  o  óbolo,  que  porventura  deveu  á 
caridade  de  algum  devoto. 

Ora  aqui  tem  as  razões  porque  o  meu  nome  havia 
de  apparecer  duas  ou  três  vezes  nas  columnas  da  6ra- 
zcta  </os  Hospitaes,  e  porque  anniío  agora  ao  seu  pe- 
dido niandandi>-lhe  o  primeiro  artigo  que  destinava 
para  aqucUe  periódico,  o  qual  por  difliculdades  que 
não  se  podem  perdoar  facilmente,  ainda  não  appa- 
receu  nem  apparccerá  talvez. 

J.    M.    NoulEIRA. 


Sr.  Redactor.  —  Ahi  llie  remetlo  o  artigo  que  te- 
ve a  bondade  de  me  |Hxlir,  e  que  eu  escrevi  ha  mais 
de   me/,   e  miio,    quando  estava    para  licar  collocado  | 
na  cont.idoria  do  Hospital  de  S.  José. 

Lin  dos  collaboradores  da  Gazeia  dos  Hos/iHacs, 
meu  amigo,  ha\ia-me  convidado  para  assistir á  inau- 
guração d^aquelie  periódico,  pelo  ((ual  desgraçada- 
mente se  espera  ha  tanto  tempo. 

Sem  ine  accusar  ii  consciência  de  ir  como  preten- 
sioso, ou  mettediço  assentar-me  a  nenhum  banquete 
litterario,  acceitei  o  convite  \  e  acceitei-o  por  duas 
razões.  A  primeira  :  porque  um  escripto  ile  jK-iina 
incompetente,  como  a  minha,  nem  sempre  faz  um 
grande  mal,  antes  produz  ás  vezes  um  grande  bem. 
<.)s  defeitos  d'est_ylo  e  a  inexactidão  dos  factos  são 
um  meio  imlirecto  de  obrigar  as  suinmidades  litte- 
rarias  a  desallronlar  as  latiras  e  a  sciencia.  Ou  se 
irritem  contra  o  cscreviídiador  por  o  \èr  meller  foi- 
ic  cm  sr.ira  alheia,  ou  se  contristem  da  sua  iiie)KMa 
e  lemcriíl.idc,  quasi  que  não  tèeui  mais  remédio  do 
que  vir  á  iinpr.Misa  expor  na  sua  verdadeira  luz,  v 
restabelecer  tiiunipiuintcmcnle  a  \crdadc  dos  factos. 


DcAS     P.\LAVRAS    SOBBE    HOSPITAES. 

I. 

*'  .4  piedade  pt>rliij:iirM,  acrettilada 
era  todo  u  mundo,  com  rr|irtidak 
e\|H:riencias,  sc  oMiirriiii  com  maior 
fervor  dentro  das  espheras  deste 
reino,  na  crerr.~io  de  rico-,  c  ^raiidio- 
<os  hospilac',  j)ara  Iodas  a,  cnfer- 
niidadcs,  com  tão  regulada^  disjio- 
siçõcs.  que  serviram  |>or  varias  ve- 
«•>  d'idea  e  exemplar  aos  de  outros 
reinos.  " 

{Padre  F.  lU  Sitnía  .VnHa.  — 
Historia  n.4s  Sagradas  Co>cri> 

GAÇÕKS.) 

Km  matéria  de  iH-nelicencia  publica  não  pode  dar-se 
novidaile.  Tudo  está  discutido  e  assent.ado.  Não  ha 
escola,  nem  svstcma  nem  alvitre,  que  se  não  s.iiha, 
e  de  que  n'alguma  parte  não  se  hajam  feito  ali^uns 
ensaios. 

E  grande  to<lavia  entre  nós  o  numero  de  pessoas, 
que  não  cogitam  da  infância,  ou  da  velhice  enferma 
e  desamparada. 

Não  pertendo  form.ar  I  Ibi-llos  injuriosos  contra  iiin- 
guein.  l)es.igradar  não  foi  nunca  meio  de  persuadir; 
nem  o  declamar  meio  dVmprebender  e  realisar  o* 
benefícios  e  melhorameiífos.  que  as  classes  infelie»~» 
demandam  a  este  nosso  século,  tão  orculhoso  easso;»- 
Ihador  da  sua  illustraçiio  e  caridatle.  Menos  quero 
doestar  a  civilisiição  dos  nossos  tempos.  Mas  creio 
que  não  devo,  i|ue  não  deve  ninguém  tributar-lhe 
culto  que  dcsiiuctorise  e  rebiiixe  a  pennadoescriptor. 

Li  não  ha  muito,  citada  com  applauso  do  llausset- 
Uo(|uefort,  uma  proposição  de  Wafteville,  que  vem 
agora  ao  meu  propósito:  ..  Km  nenhinna  ep<icha,  dii 
este  escri|itor,  >e  cuidou  com  mais  intelligeiícia,  nem 
com  mais  caridade  das  classes  soflredoras.  " 

Eu  n.ão  soi  SC  ^^atteville  de  feito  disse  ou  não 
disse  o  que  Rtxpiefort  lhe  attribue  ;  o  que  sei  í  que, 
relativamente  a  hospitaes  eliospicios,  omosmoWat- 
le\ille  duvidou  n"um  relatório  da  exactidão  do  cal- 
culo de  Necker,  <)uo  dava  a  França  só  870  d'aquel- 
les  i-slalielecimentos  no  anno  de  1780;  e  ,i  raião  ila 
su.i'  duvida  é,  que  havendo  n*aquelle  p.ii»,  até  ha 
pouc-o,  1270  hos|)itacs,  não  julg;i\a  |vivsi\el  que  d'a- 
<|ueUa  ejKJcha   |vira  ca  se  tivessem  fundado  -iOO,  E 


o  PAiNORA3IA. 


311 


VVatteville  diz  mais :  "  O  numero  de  liospitaes  em 
França  não  í  assas  considerável  principalmente  nas 
cidades.  Ha  íiO  anuo*  ])oucos  estabelecimentos  doeste 
género  se  têem  fundado.  » 

Ora,  se  de  al^iini  modo  não  deixa  diminuído  o  va- 
lor da  citação  de  Rorjuoforl,  esta  circurastancia  acon- 
selha um  certo  escrúpulo  em  acreditar  asserções,  que 
parece  terem  sido  lançadas  ao  papel  voluntariosamen- 
te. Não  é  de  certo  com  pennadas  de  capricho,  que 
se  devem  fazer  parallelos  diílicilinios,  senão  impossí- 
veis, entre  epochas  tão  diversas  e  remotas. 

Km  rslampando  nos  jornaes  ou  nos  relatórios  a 
receita  e  despesa  das  juntas  de  beneficência,  e  dos 
estabelecimentos  de  caridade  existentes,  o  numero 
de  soccorridos  e  outros  dados  estatísticos,  importan- 
tes sim,  mas  colligidos,  ás  vezes  sabe  Deus  como, 
exultam  logo  alguns  escriplores  fão  cheios  d'orgulho 
e  enthusiasmo,  que  é  impossível  não  os  aecusar  de 
puerilidade.  A  estatística,  ainda  enfaxada  no  berço 
em  que  a  vão  acalentando,  não  tem  cifras  completas 
e  methodicas,  que  nos  revelem  o  passado  com  todos 
os  factos  e  cinunistancias  que  o  deixem  apreciar 
exactamente  i  nãn  jiódc  dar-nos  testeniunlio  autlien- 
tico  dos  sentimentos  que  distinguiram  muitas  gera- 
ções, que  não  raras  vezes  mais  souberam  obrar  do 
que  escrever.  Careciam  ainda,  ou  não  sabiam  apro- 
veítar-se  do  auxilio  da  imprensa,  d'tb«e  sentido,  e.isa 
faculdade  Twvaj  que,  na  bella  phrase  de  Lamartine, 
remoçou  a  humanidade.  K  que  a  tivessem,  quando 
mesmo  a  sciencia  de  colligir  e  exprimir  os  factos  pe- 
la linguagem  dos  números  lhes  fosse  muilo  familiar, 
como  poderiam,  se  ninguém  o  pode,  subordinar  o  es- 
pírito e  os  aflectos  a  nenhuma  expressão  de  algaris- 
mos ! 

Deletreando  n'alguma  ínscripç.ão  de  templo  abati- 
do pela  acção  destruidora  dos  séculos,  ou  decifrando 
em  pergaminho  iMigellia<lo  e  pulverulento  alguns  gre- 
gotins  importunos,  p(í(le  colher-se  para  a  historia 
muit.i  revelação  imporlanle  de  factos  ignorados,  mas 
é  impossível  apreciar  perfeitamente  o  passado.  Nem 
basta  ir  a  esses  cartórios  compulsar  os  seus  livros  e 
papeis  :  é  impossível  coutar  exactamente  todos  os 
testamentos,  os  legados,  as  instituições  com  que  a 
caridade  (Poutros  teuqíos  enriquecia  o  património 
dos  pobres,  nem  os  livros,  as  escripturas  e  documen- 
tos que  os  incêndios  consumiram,  que  o  desmaselo  e 
a  inépcia  deixaram  [)erder,  ou  que  a  má  fé,  a  vena- 
lidade e  a  rabulice  subtraíram,  (-luem  terá  arte  de 
calcular  o  valor  das  propriedades  <()m  que  milhares 
de  famílias,  no  successivo  perpassar  dos  tempos,  se 
lêem  ido  locu|)Ietan(io  á  custa  <lns  classes  deslierda- 
das  i"  (rluem  adivinhará  todas  as  quantias  que  se  es- 
crtaram  pelas  mãos  impuras  da  avareza  e  hipocrisia? 
Como  poderemos  graduar  as  intenções  e  as  crenças 
jiara  as  podermos  comparar.' 

IC  certo  <|u<;  ha  sessenta  annos  se  toem  discutido  o 
resolvido  com  mais  inlclligencia  a»  <|uestõ(íS  da  be- 
neficência e  organisae.'io  social  •,  mas  custa-me  a  crer 
que  as  geraçòi^s  m()<li'rnas  lenham  tido  mais  carida- 
ile  lio  que  ai|uellas,  (jiic  levantaram  por  lodo  o  orbe 
milhares  e  milh.iies  cPas^his  e  rccolliinuMitos  para  a 
infância  desvaliila,  hospitai\s  <>  alln-rgarias  para  os 
enlermos  <•  peregrinos.  I<'irm<'uiente  creio  <|iu' me  não 
engano,  pelo  menos  no  <pie  Inca  ao  nosso  paiz. 

(^luem  não  lerá  ctuii  prazer,  cpie  ha  V.lll  e  tantos 
annos  (três  séculos  ipiasi  antes  de  S.  \'icente  de 
Paulo  iiisliluir  em  l'arís  o  hospital  dos  expostos),  já 
entre  nos  se  erigi.im  casas  para  a  cre.ição,  e  educa- 
ção dos  meniuijs  e  meninas  eiigeitadas,  uiandando- 
sc-lhes  dar  nieslies  jHint  linhi  lUjuiUu  i^iu-  lln^  fosse 
Ilidis  fiiiiviiiiriil'',  ponfiii-  sciiilti  tu  lu  tw^intiduí,  po- 
í/i  «c/M  li  r  Imii  rt  iiliiin  ! 


Gt-uem  não  admirará  a  rapidez  prodigiosa,  com 
que  a  piíssima  obra  dos  conselhos  e  esforços  do  ve- 
nerável Miguel  Contreiras  se  propagou  a  <juasi  todos 
os  concelhos  do  reino  ?  Gtue  redactor  do  Código  de 
Beneficência  Publica  estabeleceria-  agora  provisões 
mais  caridosas  e  humanitárias  do  que  as  do  Com- 
promisso da  Misericórdia  de  Lisboa  ?  Onde  se  pres- 
taria mais  sincera  homenagem  aos  dois  grandes  prin- 
cípios da  —  associação  e  eleição  —  fundamento  das 
sociedades  livremente  constituídas? 

Se  entre  nós  não  houvesse  esfriado  o  zelo  da  ca- 
ridade, que  antigamente  caracterísava  o  po\o  portu- 
guez,  estaríamos  ainda  sem  as  creches  (presépios)  e 
as  escolas  maternaes  para  as  creancínhas  pobres,  eas 
officinas  industriaes  e  as  colónias  agrícolas  para  os 
adolescentes  ?  Como  se  explica  esta  lenteza  injustifi- 
cável, com  que  procedemos  na  reformação  dos  insti- 
tutos de  beneficência  ?  Glue  melhoramento  relevante 
temos  nós  feito,  em  que  nossos  avós  não  tomassem 
uma  nobre  iniciativa? 

Esses  hospitacs  que  por  ahi  vemos  são  obra  sua. 
Monumentos  magestosos  de  caridade  ahi  hão  de  fi- 
car para  attestarem  aos  vindouros,  como  nosattesta- 
ram  a  nós,  que  só  são  duráveis  as  instituições  que 
assentam  na  uníca  e  eterna  base  de  toda  a  felicida- 
de :  o  amor  a  Deus  e  aos  homens.        (Contínua.) 


Com  o  presente  numero  39  enceta  o  JPanorania 
uma  nova  epocha  —  começa  uma  vida  nova  e  inde- 
pendente, em  quanto  á  parte  económica,  que  não 
em  quanto  á  parte  litteraria  e  artística  que  o  editor 
deseja  conservar,  pelo  menos,  na  altura  em  que  a 
opinião  íllustrada  collocou  este  tão  utíl  semanário,  por 
ventura  o  que  melhor  comprehendeu  entre  nós  a 
sua  elevada  missão,  e  sem  duvida  o  que  conseguiu 
ser  mais  geralmente  lido,  estimado  e  querido  de  to- 
das as  classes. 

Julgando-se  uma  impropriedade  o  apparecimento 
de  um  novo  prologo,  (|uando  o  volume  vae  já  em 
mais  de  metade  da  publicação,  e  querendo  o  editor 
que  a  todos  ficasse  bem  patente  a  sua  boa  fé,  enten- 
deu-se  conveníenle  repetir  a(|ui  o  programma,  des- 
Iribuido  avulsanuMite,  o  ipial  foi  redigido  de  accôrdo 
com  os  antigos  collaboradores  e  protectores  lio  Pano- 
rama, o  que  assim  representa  como  uma  obriga- 
rão que  o  mesmo  editor  faz  perante  o  publico  de 
bem   e  fielmente   cumprir  as  condições  ali  exaradas. 

O  fim  do  editor,  iMnpregando  n'esta  empres;i  co- 
mo empregou,  avultados  cabedaes,  é  principalmente 
restituir  á  litteratura  portugueza  um  dos  seus  mais 
illustres  representantes,  e  á  causa  da  instrução  um 
dos  seus  mais  esforçados  campeões,  pois  (pie  é  iune- 
gavel  (pit  nenhuma  publicação  perioilica  nacional 
tem  concorrido  tanto  e  tão  efficazmente  para  o  der- 
ramamento dos  úteis  conhniineutos  como  o  l'aini- 
raiiia, 

l\'este  sentido  o  <tlilur  está  resuUido  ,t  empregar 
todos  os  meios  .10  seu  alcance  para  que  o  l'aiioniiiia, 
não  sil  não  seja  inferior  á  sua  antiga  e  bem  mereci- 
da nputaeão,  mas  si-  torne  cada  \ez  mais  prestante 
e  digno  da  santa  missão  ipie  vae  proseguir  com  igual 
l'é  e  preserverança  ■,  contando,  como  tiesde  já  conl.i, 
com  a  protecção  dos  ipie  prezam  as  nosi-as  cousas, 
sem  a  qual  é  impossivi'1  <^^nsogui^-se  resultado  algum 
de  \  ullo. 

(I  l'ANOU.\M.\.— CoMl'l.l5MKNTO  UO  D  .*'  VOI.I  M  K. 

( 'oN  riNe  ,\c\o  KM  ISIiU. 
.> 

I(;i  Al.  ao  alvoroço  com  ipic  o  publico  acolheu  a  reap- 
pariçâo    do   /'«íie/díiKi  em    1810  foi  o  (le/ar  p«(hi  sua 


312 


O  PANORAMA. 


suppressão,  motivada  por  «mia  fatal  coiicurreiícia  de 
causas  imprevistas  e  pelas  difliculdadcs  d^essaepocha. 
A  predilecção  do  geral  dos  leitores  por  este  Jornal 
litterario  e  iiistructivo,  o  consumo  que  ainda  hoje 
tem  a  collecção,  explicam-se  pela  utilidade  e  varie- 
dade das  matérias  n"elle  tratadas  clara  e  amena- 
mente era  boa  linsçuagem  portugueza.  O  panorama 
ú  um  re|)Obitorio  das  cousas  que  mais  cumpre  saber  : 
n"esse3  ramos  dos  conhecimentos  humanos  que  são  de 
immediato  interesse  para  a  maioria  da  sociedade, 
nos  assumptos  de  erudição  escolhida,  nos  que  se  refe- 
rem a  moral,  bem  como  em  as  noyjes  das  sciencias 
ao  alcance  de  todos,  será  sempre  consultado  com  pro- 
veito,  e  lido  com  gosto. 

Poucas  são  as  pessoas  que  frequentaram  estudos 
regulares  na  teura  idade,  menos  ainda  as  que  se  lhes 
dedicaram  na  idade  adulta,  c  raras  as  que  occiípa- 
das  no  trato  da  \  ida  dispõem  de  tempo  para  estudar 
seguidamente  obras  volumosas,  por  mais  fáceis  e 
agradáveis  que  sejam.  Por  outra  parte,  ha  muito 
quem  deseje  lêr  cousas  úteis,  que  fecundem,  ador- 
nem ou  recreiem  o  espirito  sem  «  fatigar,  e  sem  o 
desvairar  ou  corromper. 

A  Europa  culta  attesta  com  a  multiplicidade  de 
publicações  periódicas,  mais  ou  menos  no  género  do 
Panorama,  que  estes  jornacs,  veliieulos  da  civilisa- 
ção,  são  o  mais  poderoso  elemento  da  cultura  intel- 
Icctual  do  povo,  quando  os  redigem  escriptores  que 
sabem  unir  a  correcção  e  elegância  da  plu-ase,  de- 
cência e  mais  condições  necessárias,  á  proficiência  e 
clareza  no  ensino.  Escriptores  taes  iorani  os  que  sus- 
tentaram a  redacção  do  antigo  Panorama ;  e  d"ahi 
o  constante  apreço,  a  continuada  extracção  de  suas 
coUecções,  que  par:i  actualmente  se  preencherem, 
afira  de  satisfazer  numerosos  pedidos,  é  mister  im- 
primir muitos  números  de  toda  a  serie. 

Sendo  innegavel  que,  se  o  paiz  tem  dado  passos  no 
caminho  do  progresso  malcriaJ  e  moral,  o  Panora- 
ma não  foi  alheio  a  este  movimento,  que  enraizou 
entre  nos  o  gosto  pela  leitura  e  o  converteu  em  ha- 
bito, quasi  n"uma  necessidade ;  que  os  seus  exem- 
plares são  mui  procurados  e  dentro  em  jiouco  tem- 
po serão  raros  ^  a  emprcza  qjie  tomar  a  tarefa  de  ! 
reimprimir  os  números  que  faltam,  completar  o  vo- 
lume que  ficou  por  concluir  no  2."semcslrede  1S47, 
c  proseguir  com  a  publicação  no  futuro  anuo  sob  o 
mesmo  svslema  da  antiga  redacção,  fará  um  serviço 
mui  prestadio  ás  pessoiis  que  procuram  na  leitura  a 
iiislrucção  e  a  recreação  ulil.  j 

Possuído  doesta   idca,    tendo   consultado  a   maior  i 
parte   dos  collaboradorcs  do   Panorama   que  funda- 
ram e  mantiveram   a  celebridade  do  Jornal,   e  mui-  1 
tos  dos  escriptores   dislinctos  que  encetaram  a  sua  i 
gloriosa  carreira  depois   que  este  foi  sus])enso,   certo 
da  sua  cooperação  litteraria,  e  guiado  pelos  seuscon-  | 
selhos,   não  hesitei,  de|)0Ís  de  tomad;is  as  convenien- 
tes disposições  para  este  lim,  em  oflerecer  ao  publico 
o  presente  prospecto,  ciimo  eilitor  do  l'anorama  em 
seu  complemento  e  continuação,  emprezii  inteiramen-  | 
te  distiiicta   e   separada  das   precedentes  do  mesmo  > 
Jornal  \    podendo  affianear   o  cumprimento  das  eon-  : 
dições  que  em  seguida  vão  exar.-idas,    no  caso  de  ter 
obtido  o  numero  necessário  de  assignaturas. 

Os  nomes  dos  senhores  A.  Oliveira  Marreca,  Luii 
Augusto    Rebello   da  Silva,    Mendes    Leal  Júnior, 
José   Maria   Ij.Ttino  ("oilho.   J.  J.  Casoaes,   F.   A.  1 
\  arnhagen,    Palmeirim,    Serpa,   são   .ilxmadores  se-  ' 
guros  do  credito  <|ue   ha   de   merecer  esta  (lublica-  [ 
ç.ioi   espirramos  obter   do  sr.    A.  Herculano  algun*  i 
;irtigos,   e  do  »r.    A.  V.  Caílillin,   e  contamos  com 
a  coUaboração  de   muitos  litteraUis  <jue  deixamos  de 
mencionar    {x)r  ora.  —  As  gravuras    jwío  buril  do 


sr.  Coelho,  e  de  outros  hábeis  gravadores  não  des- 
dirão da  belleza  das  que  adornavam  a»  primeiras  »f- 
ries  do  Jornal;  itcualmentc  jctb  nítida  a  imprrswo,  c 
o  papel  da  melhor  qualidade. 

As  pessoas  que  não  possuírem  os  38  n."*  que  saí- 
ram em  1846  e  1847,  poderão  ubtel-us  com  abati- 
mento, isto  é,  a  20  rs.  cada  numero,  no  caso  de  que 
subscrevam  para  a  continuação  do  Panorama  :  tam- 
bém se  fará  algum  abatimento  no  custo  da  coUecrão 
antiga  aos  senhores  que  assiçnarem  para  a  continua- 
ção do  mesmo  Jornal.  Avubãment»  vendcr-se-ha  pe- 
lo preço  de  9^600  rs. 

Assignatura  por  um  anno  ou  52  n."'  a  começar 
em  Janeiro  de  1853  —  1^300  rs.  ,  por  semestre  ou 
26  n."*  —  700  rs.  .Numero  avulso  30  rs. 

Os  14  n.°*  que  faltam  ao  9.'-"  volume  serão  pu- 
blicados nos  sabbados  a  contar  da  ultima  semana  de 
Setembro  próximo;  com  a  mesma  regularidade  sai- 
rão á  lui  os  números  da  nova  serie  em  1853. 

Os  senhores  que  residirem  nas  províncias  do  reino 
ou  no  império  do  Brazil,  e  desejarem  subscrever  para 
o  Jornal,  poderão  fazel-o  por  meio  dos  seus  corres- 
pondentes em  Lisboa ;  e  os  das  províncias  também 
por  meio  de  remessa  do  preço  da  subecripção  pelo 
Seguro  do  Correio  ;  toda  a  correspondência  será  fran- 
ca de  porte.  As  assignaturas  são  pagas  ailiantado ;  e 
lecebem-se  tão  s<5mente  no  armazém  de  li\n>s  do 
emprerario  e  editor  do  Panorama,  Aiitonw  JvU  F*r- 
natidei  Lopes.  —  Rua  .-íurca,  ii.°'  227  c  228. 


Presença  Jt  espirito  de  um  Árabe. — El-Uadjaje, 
governador  de  uma  província  de  Africa,  saíra  um 
dia  com  os  seus  grandes  officiaes  a  caçar,  e  como  se- 
guisse tenazmente  uma  rez,  aúastou-se  dos  que  o 
acompanha\am  a  ponto,  que  não  sabia  depois  como 
voltasse. 

Quando  estava  a  meditar  no  que  de\ia  fazer  viu 
um  árabe  velho,  era  um  próximo  campo,  a  miral-o 
muito  .ittento. 

—  De  donde  es  tu  .'  disse  o  governador. 

—  D"aquella  cabana  que  v.Ji  além. 

—  Não  CS  dos  de  Beni-Adjel .' 

—  Tu  o  disseste  :  este  campo  pertence-lhe. 

—  Ora  conta-rae  cá  bom  velho,  que  s«  diz  por 
aqui  dos  agentes  do  governo  ' 

—  Diz-se  que  são  homens  sem  bonra,  sem  fé,  e 
sem  vergonha,  que  roubam,  perseguem  e  opprimem 
os  habitantes. 

—  K  tu  formas  d'elles  a  mesma  opinião  ' 

—  .V  mesma  exactamente. 

—  K  que  me  dizes  de  EU-Hadjaje  .' 

—  Digo  quo  é  o  pcior  de  todos.  Deus  o  faça  tão 
negro  como  um  carvão,  e  amakiiçue  o  Califa  qua  llie 
confiou  o  mando. 

—  Sabes  ctmj  «[uem  estás  f.iliando.' 

—  Km  verdade,  não  sei. 

—  Pois  cu  sou  El-Hadj.ijc. 

—  Folgo  de  conhecer-tc,  dis;e  o  ancião  sem  per- 
turbar-se.  E  tu  sabes  quem  eu  sou  .' 

—  Não,  respondeu  o  governador  maravilhado. 

—  Chamam-me  Zeid-lien-.\,imer,  e  sou  o/owcodo 
Beni-Adjcl.  Todos  os  dias,  um  pouco  antes  do  sol 
|x>sto,  ptrr»"»  a  razão.  São  quatro  horas  talvci  ^  nio 
me  jxíde  tanlar  muito  o  aece^so. 

O  governador  não  priKtxleu  contra  o  pi^bre  do  ho- 
mem, e  depois  de  lhe  perguntar  pelo  caminho  que 
devia  seguir,  dcu-lhe  algum  dinheiro,  e  abalou. 


—  .\  rducaç.~io   tem  |>or  fim  descnvol\cr   cm  cad.t 
individuo   a    j>erfcirSo   de   que  clle   lòr   sui^ceptivel . 

K»KT. 


40 


o  rAAORA3IA. 


313 


A    VIDA    HUMANA  — POR    £ICHTHAL. 


O  UEap-NHii  cli-  que  n  mo^h.i  !í;i';i\  iir.n  «•  (('jiiia  fii-l,  foi 
ni>r<"S('iilaili)  iin  cxpusirão  ilo  Loiívrc,  já  iresliNiiiiio, 
c  iiiiTcccii  ser  (•niisidciaili)  cuiii  a  maior  di-stiiitrào  <; 
ni>ri!(;o.  Kis  coiiiu  o  ii!.|i(il  i\(i  calaloiío  se  cxiiriíue  a 
»ou  rcspcilo  : 

..  RcprcsiMilar  a  viila  rrcprcscnlar  a  a(  lis  idadf  .li- 
>f;rsa,  an  rclai/jcs  iniilua»  dos  dois  si'\iis  !■  dascdiujcs. 

"  (J  iiiaiicM>iio  r(';j;i'f>.f(aiido  da  sua  |iriiiiiiia  \  iancm 
no  imiiido,  lari;a  a  sua  liarca,  o  miIic  á  iiraia.  O  lio- 
niciii  (•  u  lliullicr,  no  pciiodo  ilc  nialiiiidadr,  o  cs- 
|)obo  r  a  opina,  <s)>(rani-no  di-  pi'  |iro\iiiLo  do  aliar, 
o  oflerer<'in-llic  o  pão  c  o  vinho,  syndiolos  anliijosda 
aljundancia.  A  inidiur  Ifui  nu  iv.in  (vM|U(rda  o  dia- 
Vi)L.   1.  —  ;i'''  SiiHiit. 


paȈr>,  o  lioninn  n  rcc;im,  fonlos  da  harmonia  o  da 
mi'dida.  O  ancião  indica  com  um  gvslu  no  inancclxi 
o  par  no  ipial  n^idi'  ai;oni  a  vida  no  maior  uraii  ilo 
dcscnvolv  iiociili'  \  velha,  com  itroliinda  <'miK;i1o, 
cs|>cra  o  succcisor  ila  '^cra^vio  ipic  >uhsliluc  u  >un. 
A  domudla,  ainda  protegida  pela  capa  de  ^ua  avó, 
coulcnijila  com  inicrcsse  »■  curiosidade  o  espivlaculo 
(jue  SC  llie  anlolha.  A  pai«a!;em  reprodiii  o  coalras- 
le  c|uc  SC  dá  na  vida  ilos  dons  soxo».  Do  lado  do  liu- 
mcm  v<^-se  o  espaço  sem  limites,  o  occeano  com  lo- 
dos os  icus  |ieri^'os  ;  do  la<lo  da  i\ndher,  o  valle  Coui 
seu  circuniscriplo  horisonle,  o  hosipn',  a  cidade,  o 
liimiilo.  •' 

i>i'  ri  HHo  2,  ISJJ. 


31 


O  PANORAMA. 


Esta  descripíão  Ião  clara  e  concisa  não  deixa  ne- 
iiliuma  duvida  sobre  o  caracter  do  desenho.  A  scena 
íiue  se  nos  offerec-e  é  o  resumo /íf/rt/Wo  de  uma  dou- 
trina philosopliica  sobre  a  vida  humana,  e  particu- 
larmente sobre  a  família :  é  um  symbolo. 

O  desenho  do  sr.  Eichthal,  quando  não  fosse,  co- 
mo é,  a  expressão  de  uma  grande  idéa  philosophicd, 
teria  ainda  assim  um  valor  real  como  ol>ra  de  arte. 
Agrada  á  vista,  antes  de  excitar  a  meditação.  Oty- 
po  das  figuras  é  nobre  ■,  graciosas  e  correctas  as  atti- 
tudes  \  as  phjsionomias  tem  um  caracter  grave  e  se- 
vero, temperado  de  serenidade,  e  de  ternura  i  e  tu- 
do isto  enimoldurado  em  uma  paizagcm  tão  sóbria  co- 
mo variada. 

A  composição  symbolica  do  sr.  Eichthal  deve  ser 
apenas  considerada  como  o  frontespicio  de  um  livro 
em  que  a  theoria  ha  de  ser  exposta  com  todos  os  seus 
desenvolvimentos.  Nós  não  nos  atrevemos,  pois,  mais 
que  a  indicar  o  que  julgamos  entrever. 

Sup()unhamos  que  um  pintor  pertendia  dar  uma 
idéa  da  constituição  da  familia  nas  primeiras  edadcs 
da  historia  humana ;  é  provável  que  o  seu  quadro 
oífereccsse  pouco  mais  ou  menos  o  aspecto  seguinte : 
—  Como  figura  principal,  e  sobrepujando  todas  as 
outras,  vêr-se-ía  um  ancião  exprimindo  no  porte  e 
feições  austeras  a  authoridade  absoluta.  A  sua  di- 
reita, mas  em  posição  inlerior,  estaria  o  seu  primo- 
génito, e  os  outros  filhos,  e  irmãos  d\'ste,  todos  in- 
clinados cm  sÍ!;nal  de  humildade  e  de  obediência.  A 
esquerda,  mas  muito  mais  abaixo,  vêr-se-íam  repre- 
sentadas as  inulhens,  sem  exceptuar  a  esposa  do  an- 
cião, sentadas  no  chão,  ou  antes  prostradas,  resignan- 
do-se  sem  lutar  ao  dominio  inílexivel  do  ciíefe  da  fa- 
milia, e  acceitando  sem  se  queixar  a  inferioridade 
<io  seu  sexo. 

Tal  foi  com  eíleito  a  familia  por  espaço  de  muitos 
séculos.  O  pae  tinha  o  direito  de  vida  e  de  morte 
•íobre  os  filhos.  A  lísposa,  comprada  como  uma  escra- 
va, ou  uma  serva,  podia  ser,  a  arbitrio  do  seidior, 
repudiada,  re])ellida  do  seio  da  familia,  expulsa  de 
casa.  Si)  o  filíio  priniogeiíilo  herdava  a  authoridade 
do  pae.  O  nascimento  de  uma  lillia  <?ra  eonsider.ido 
como  uma  desgraça  ou  uma  infâmia. 

Insensivelmente  foi-se  modificando  este  sondjrio 
quadro.  A  dominação  paterna  despiu  o  caracter  de 
despotismo  militar.  A  mullier  rehabilitou-se.  A  pro- 
tecção deixou  de  ser  opprcssiva  ;  a  submissão  de  ser 
abjecta  •,  o  medo  de  prevalecer  sobre  o  amor ;  as  re- 
lações, na  familia  e  na  sociedade,  tornaram-se  mais 
humanas  e  aflectuosas. 

Assim  estudada,  desde  as  suas  origens  até  ao  nos- 
so século,  a  vida  humana  offerccc  \nna  serie  de  mo- 
dificações que  facilmente  |)odiam  sor  representadas 
em  quadros  symbolicos  análogos  .ao  ilo  sr.  Eichthal. 
Estes  quadros  constituiriam  d'cste  modo  a  historia 
philosophica  da  humanidade.  INão  é  isto,  de  resto, 
suppor  o  <pu'  existe .'  não  se  encontraria  esta  histo- 
ria se  a  quircsseni  jirocurar  ?  A  arte,  tenha  ou  não 
consciência  da  sua  obra  ince.s,santc,  symbolisa,  sécu- 
lo por  século,  geração  por  geração,  a  marcha  vaga- 
rosa, mas  senq)re  progressiva,  do  género  Iiumano. 

Se  bem  conqirehendcmos  o  jiensamento  do  sr.  Ei- 
chthal elle  não  [lertende  indicar  nem  predizer  mo- 
dificações novas  no  .seio  da  familia  ;  propõe-se  unica- 
mente conhecer  e  interpretar  as  <\i\c.  o  desenvolvi- 
mento natural  da  moral  e  ilos  costumes  jjroduziu. 

A  velhice  amada,  respeitada,  honrada,  superior 
pela  sua  larga  exp<'riencia,  pelos  seus  beneficios,  pe- 
los seus  direitos  á  gratidão,  repousa,  recorda,  e  es- 
pera. 13encvolenle  e  carinhosa,  querida  da  infância, 
ella  anima  conx  a  sua  approvaçâo  c  fortifica  com  os 
seus  conselhos  as  gerações  que  precedeu  na  vida. 


A  resolução  e  a  actividade  pertencera  á  edade  ma- 
dura. E  então  que  a  vida  attinge  o  mab  alto  grau 
de  desenvolvimento  e  de  poder ;  relações  mais  nu- 
merosas e  deveres  mais  difticeis  impõem  maior  6om- 
ma  de  responsabilidade.  N'esta  communhão  activa 
de  sabedoria  e  de  amor,  a  esposa  não  tem  um  qui- 
nhão inferior  ao  do  esposo ;  o  seu  papel  é  diflerente, 
mas  não  é  menos  útil  nem  menos  santo.  Da  harmo- 
nia das  duas  vontades  dependem  a  moralidade  e  a 
ventura  da  familia. 

A  adolescência,  confiada  e  submissa,  inicia-se, 
amando,  nas  severas  provações  do  futuro.  O  cons- 
trangimento dos  antigos  tempos  influe  menos  dura- 
mente sobre  a  alma  do  mancebo  repleta  de  esperan- 
ça. Com  os  olhos  respeitosamente  erguidos  para  esses 
entes  que  Deus  poz  no  mundo  para  serem  seus  pro- 
tectores e  guias,  toma  alegre  a  vereda  alumiada  pelo 
exemplo  das  suas  virtudes. 

Não  terminaremos  este  artigo,  que  já  vae  longo, 
sem  mencionar  uma  circumstaneia  que  torna  ainda 
mais  notável  a  composição  copiada  na  nossa  gra- 
vura. 

O  sr.  Eichthal  não  é  desenhador,  nem  pintor  tão 
pouco :,  foi-lhe  mister  buscar  dois  artistas  para  lhe 
realisarem  no  papel  o  quadro  que  concebera  na  men- 
te ;  e  eonseguiram-no  com  a  maior  felicidade.  Esta 
espécie  de  collaboração  é  talvez  um  exemplo  único, 
no  tempo  presente,  da  maneira  porque  se  salie  que 
um  considerável  numero  de  pinturas  foram  executadas 
luis  grandes  epochas  de  fé,  e  mormente  na  meia  edade. 
Era  assim  que  os  religiosos  faziam  representar  nas 
paredes  dos  claustros  as  imagens  que  se  Ihei  affigu- 
ravam  em  suas  meditações  e  extasis. 


ARCIIEOLOGIA  PORTUGUEZA. 

Instkccções   dadas   ao   coadjutor  de  bergamo, 
scscio  em  portcoal  no  tempo  de  d.  joão  iii. 

"Item.  Da  Sé  Apostólica  dispendcm-se  em  Portu- 
gal, a  saber :  de  mestrados,  bispados,  mosteirtis,  e 
outros  benelicios,  logares  religiosos  e  comniendas  de 
Uhodes,  para  mais  d'um  milhão  d*ouro  de  renda, 
do  qual  quasi  o  total,  ou  por  inna  ou  por  outra  via, 
pode  dispor  e  dispõe  de  fado  o  mesmo  papa. 

"  liem  os  bispados  antigos  e  grandes  não  são  do 
padroado  real  como  alguém  pensou,  e  totlos  os  mos- 
teiros são  do  provinuínto  do  papa,  assim  como  a 
maior  parte  dos  bi-neficios.  E  somente  são  do  pa- 
droado real  alguns  pequenos  bispados  novos  nas  re- 
giões da  índia  e  em  algumas  ilhas,  como  o  do  Fun- 
chal, S.  Thomé,  S.  Thiago  e  diversos.  E  os  referi- 
dos mestrados  e  todos  os  outros  beneficios  o  são  por 
graça  recente  da  Sé  .'\  postolica .  E  posto  queospajias 
muitas  vezes  costumam  dar  os  ditos  bispados  asuppli- 
cas  do'rei,  é  todavia  obra  de  mera  liberalidade,  por- 
que quando  quizeram  fazer  o  contrario  sempre  o  fi- 
zeram como  verdadeiros  padroeiro,s  de  todo  o  cccle- 
siastico  d'a(iuelle  reino. 

ultem.  Todas  as  abbadias  de  S.  Bento.  S.  Ber- 
nardo e  Santo  Agostinho  de  cónegos  regulares  sem- 
pre a  Sé  Apostólica  as  dou,  aquém  aproiive  ao  papa. 
sem  contrariL^dade  alguma,  reservando  c  impondo 
|)eusòes,  e  dando  reservas  e  acccssi  ad  vac<íttira,  a 
M-u  prazer  e  liberalmente,  e  são  de  summa  importân- 
cia e  valor. 

i.  t^  prior.ido  de  S.  Jo.*io  de  Jerns;»lem  é  do  infan- 
te D.  Luix,  que  o  jKissue  em  cominenda  com  dero- 
gnçiio  de  todos  os  privilegitis  da  ordem  da  religi.Hode 
Khodes,  e  sendo  proviíki  p''la  r>'b\'iâo  vale  mais  de 
105000  ducados. 


o  PANORA-IIA. 


315 


41 A  cidade  de  Braga  no  temporal  e  espiritual  tem 
o  mero  e  niixto  império  da  igreja,  e  arcebispo  de 
Braga  com  pactos  jurados  pelos  reis  de  Castella  an- 
tigos, para  que  o  rei  não  seja  juiz  em  nenhuma  con- 
tenda, levantada  contra  o  arcebispo  e  elle  acerca  de 
jurisdicção,  e  somente  o  seja  em  taes  casos  o  arce- 
bispo de  Compostella,    e  a  Santa  Sé  por  appellajão. 


M  O  infante  D.  Henrique  é  arcebispo  d' Évora  e 
inquisidor  mor  de  Portugal  por  acto  de  uma  nomea- 
ção inquisitória  in  defectu  dos  nomeados  na  bulia. 
Mas  diz-se  que  tal  faculdade  não  se  estende  a  poder 
nomear  quem  não  tiver  a  determinada  edade  pelos 
sagrados  Cânones,  e  sabe-se  que  elle  não  tem  dispen- 
sa do  papa,  exercendo  apezar  d'isto  o  ofCcio. 

"O  filho  natural  do  rei  chamado  D.  Duarte,  é 
arcebispo  de  Braga,  tem  Santa  Cruz  de  Coimbra,  e 
muitas  outras  ricas  e  bellas  abbadias. 

"  O  arcebispo  de  Lisboa  é  velho,  nobre,  e  paren- 
te do  rei,  e  seu  capellão  mor.  K  um  prelado  de  boas 
qualidades,  que  indica  ser  bom  ecclesiastico  e  lem 
bastante  entrada  com  o  rei.  Parece  conveniente  que 
o  núncio  llie  leve  breves  de  N.  S.  com  brandas 
palavras,  misturadas  porém  d'auctoridade,  e  m  vir- 
lulc  ubeãicntia: .  E  como  é  respeitosíssimo  e  tiniido, 
fará  quanto  o  núncio  determinar.  Ainda  é  preciso 
lamijmn  que  se  possa  tirar  pretexto  e  razão  do  que 
fizer  e  disser,  porque  pode  ajudar  muito,  e  essencial- 
mente nas  cousas  que  parecer  proveitoso  dizerem-se 
ao  rei  secretamente  com  advertência  paternal,  e  elle 
para  isto  é  mui  apto. 

«  O  bispo  de  Coimbra  é  o  bispo  mais  antigo  tal- 
vez da  cliristandade,  o  foi  eleito  no  oitavo  anno  de 
Xisto.  E  homem  muito  bom,  porém  inteiramente 
f<5ra  do  giro  da  curte.  Porém  não  falta  ás  cousas  do 
papa  e  da  consciência,  sendo-lhe  re(.'ommendadas  de 
modo,  (pic  tema. 

II  O  Egitanense,  que  se  chama  da  Guarda,  é  ho- 
mem de  não  boa  vida,  e  muito  desobediente  ás  cou- 
sa» de  Roma,  c  além  d'isto  anda  ausente  da  corte. 
Não  importa  este  para  nada,  a  não  ser  para  o 
amoeslar. 

•<0  infante  1).  Henrique  arcebispo  d^Evora,  e  ir- 
mão do  rei  faz  taes  demonstrações  de  si,  que  ainda 
que  não  seja  senão  para  se  conformar  com  ellas,  se 
vi  obrigado  a  obedecer,  queira  ou  não.  Será  útil, 
dissinmlando  o  seu  niúu  animo  nas  cousas  da  Sé 
Apostólica,  eliamal-o  a  ellas  o  mais  possível,  unindo 
n  brandura  á  aspereza.  E  não  se  lhe  levando  o  ofii- 
eio  d(.'  inquisidor,  por  convir  ao  nu^nos  forral-o  a  ti- 
rar a  dispensa  da  idade,  absolver-se  do  peccado,  e  ra- 
lificur  ou  annuUar  os  processos  passados,  que  eslão 
tiec  íj:  dignitate  udis  ApoiloUcie,  nec  Sanciissimi  l)o- 
mútí  JVos/ri. 

"  O  bispo  do  Porto  é  frade  carmelita,  pregador  e 
confessor  da  rainha-,  não  ti"m  mui  boas  opiniões  acer- 
ca das  cousas  de  Hunia,  e  dil-o  e  prega-o.  E  de  mais 
muito  tímido,  e  reputado  h'viano,  fallando  com  o 
rei  e  rainha  a  miudu.  E  essencial  que  o  núncio  o 
não  perca  de  vista,  e  sentindo  du  pcirebendo  cousa 
pul)lii'a  iiu  hcerela  <|uo  srja  má,  lhe  fall(>  com  liber- 
dade |)or  ser  liomem  que  subitamente  iiiuilará  para 
o  que  se  qiiizer. 

«D  bispo  du  Lamego  é  religniso,  li(jniem  muito 
simples,  lie  pi)Ui'as  letras  e  de  boa  Indoli!.  (í  que  se 
lliii  recomuii'nd.ir,  com  tanto  ([U(!  enlenda  que é cou- 
sa de  eons<'ieii<iii,  p(Kle-Mí  ter  |)or  cerlo  i|ue  o  fará 
logo.  E  iipli)  |i,ii;i  iiii|iiisid(ir  agora  em  .ilfjuiiia  par- 
le do  reinii. 

"O  rei  e  a  seu  exenqilo  a  nobri'za  Inda  que  o 
••erca  dá  ;;i'iin<le  credito  aos  frades;  ou  seja  pela  acti- 


vidade e  immensa  ambição  d'eUes,  ou  pelo  descuido 
dos  prelados  e  sua  negligencia,  se  apoderam  do 
animo  d^aquelle  rei  por  via  do  púlpito  e  do  confes- 
sionário. O  que  importa  proxer  a  este  respeito  dir- 
se-ha  quando  se  tratar  n'este  capitulo  do  que  pode 
e  deve  fazer  o  núncio  de  Portugal.  Por  em  quanto 
vão  nomear-se  as  pessoas  importantes  para  que  as 
conheça. 

"  Na  ordem  de  Santo  Agostinho  ha  três  frades 
principaes ;  Fr.  João  Soares,  confessor  d'el-rei,  ho- 
mem de  poucas  letras,  mas  de  extrema  audácia, 
de  infatigável  e  immensa  ambição,  de  péssimas  opi- 
niões, e  abertamente  inimigo  da  Sé  Apostólica,  que 
não  faz  profissão  ;  e  para  dizer  tudo  n'uma  palavra, 
herege  no  ultimo  ponto.  E  conhecido  do  geral, 
que  tentaria  dizer-lhe  a  verdade,  mas  não  pode  fal- 
lar-Uu;  muito,  porque  saiu  da  religião  por  breve  de 
N.  S.  c  da  Penitenciaria,  e  o  seu  mosteiro  é  o 
palácio.  Todos  o  conhecem  por  hereje  menos  o  rei, 
por  cujo  motivo,  e  porqut?  o  frade  negoceia  em  tudo 
sob  pretexto  de  confissão,  ninguém  o  vigia  ou  con- 
ta :,  é  de  péssimos  costumes  e  perigoso,  c  sempre  que 
podesse  ser  apanhado  em  algum  laço,  ou  retirado 
do  lado  do  rei,  se  conseguiria  grande  vicloria.  E 
mesmo  attrahil-o  a  nós  por  qualquer  meio  seria  gran- 
de serviço  a  Deus  e  a  N.  S. 

ulia  outros  dous  frades  de  Santo  Agostinho,  de 
reputação,  que  lá  estão  agora  commissarios  do  geral, 
e  confessam  grande  numero  de  pessoas,  e  occupam 
um  logar  grande  ao  lado  do  rei,  e  são  os  padres  VUla- 
Franca  e  Montoza,  ambos  hespanhocs.  Pregam  sem- 
pre, e  o  Villa-Franca  com  grande  concurso.  O  Mon- 
toza é  reputado  como  homem  de  melhor  vida,  ecom 
verdade,  porém  é  governado  pelo  outro.  O  rei  e 
grandes  personagens  ouvem-no  muito. 

(CotUinúa.) 


l)l'A4     I-At.WRAS     SOBHK    HOSIMTAKS. 
II. 

Os  1'itiMKiKos  christãos,  antepundii  ao  rico  o  pobre, 
ao  forte  o  fraco,  á  prepotiMicia  o  <lireilo,  á  gloria  a 
humildade,  e  os  celestes  gosos  do  espirito  aos  gros- 
seiros prazeres  do  mundo,  seguiam  e  pregavam  uma 
doutrina  contraria  á  Índole  e  orgauisação  ila  socieda- 
de pagã.  Malerialisada  pelos  hábitos,  pelas  ligações 
physicas  e  imperativas,  mal  podia  ella  eomprehcn- 
der  e  estimar  a  idealid.ule  eliristã,  os  laços  suasivos 
c  sympatliicos,  por  que  o  Evangelho  unia  os  homens 
e  os  povos  na  sujeição  espontânea  e  gratíssima  d^um 
amor  reciproco  e  universal. 

A  doutrina,  ijue  proclamava  a  unidade  de  Deu» 
e  a  do  género  humano,  eoiisiderando-o  conui  uma  só 
família  com  ]iae  e  <lestinos  eiuiimuns,  foi  nos  seus 
primiMros  tem|)os  inna  utopia  aceusada  <ranarehíca 
e  subversiva  ',  e  leve  de  refugiar-se  nas  solidões  dos 
bos<pu's,  ou  nas  fraguras  dos  n\ontes.  1)\u|ui,  o  nio- 
niU'hato.  Mas  (pie  tem  o  nionacluito  com  os  hospi- 
taes.'  me  perguntará  alguém.  l'i«le  não  tornada, 
luas  eu  penso  (pie  deve  ler  muito. 

As  solidões,  para  onde  os  p(<rs(>guidos  e  os  descon- 
tentes se  refugiavam,  deviam  ser  visitadas  por  gran- 
de Miiniero  de  correligionários,  (pie  não  raras  ve»e» 
cliegariíini  extenuados  de  (lUiçHsso  e  privações,  pre- 
cisados de  soccorro  e  gazalliado.  C(U'reiido  os  tempo», 
e  aflluiiido  aos  eremitérios  miiilos  sectários  do  eliris- 
liiiiiismo,    a   pojiulasAo    havia    de  crescer  alii.    ou  nu* 


316 


O  PAjNORA3IA. 


visinhanças  infalliTelmente.  Era  impossível  então 
não  empregar  meios  fjue  produzissem  uma  cxibteu- 
cia  e  lioupitalidade  mais  commoda. 

dualqner  que  fosse  o  systema  que  os  gregos  e  ro- 
manos tivessem  adoptado  para  soccorrer  os  proletá- 
rios e  desgraçados,  parece  natural  que  emanaria  do 
principio  em  que  assentava  a  sua  organisação  social, 
e  que  a  centralisação  politica,  a  acção  do  estado  dis- 
pensaria a  acção  individual.  A  policia  e  a  philantro- 
pia  haviam  de  ter  mais  cuidado  dos  vadios  e  mendi- 
gos válidos,  que  pudessem  aitentar  contra  a  proprie- 
dade e  a  segurança  dos  cidadãos,  do  que  dos  polires 
desvalidos,  das  creanças  e  vellios  sem  amparo,  que 
não  pudessem  servir  o  Estado. 

Facilmente  se  coinprehende  quanto  o  divino  pre- 
ceito que  manda  a  cada  um  amar  o  seu  próximo  co- 
mo a  si  mesmo,  alentado  pela  communhão  de  cren- 
ças e  de  infortúnio,  havia  de  concorrer  para  a  abo- 
lição da  formula  politica  e  administrativa,  que  regia 
a  sociedade. 

GLuando  a  idca  clirLslã  já  tinha  conquistado  lias- 
tante  numero  d'lntelligencias  e  corações,  quando  já 
havia  alargado  bastante  a  sua  esphera  d'acção,  era 
impossível  que  não  quízesse  ir  acabar  nas  cidades  o 
que  havia  ensaiado  nas  furnas  dos  rochedos,  ou  en- 
tre as  palmeiras  do  deserto.  E  raro  que  as  cidades 
não  preponderem  sobre  os  campos ;  c  tanto  o  enten- 
deram assim  os  Apóstolos,  que  elles  procuravam  ga- 
nhar para  a  fé,  com  preferencia,  os  grandes  centros 
de  população. 

Assim  apparcceni  logo  S.  Izidoro  (d' Alexandria) 
S.  João  Chrisostomo,  e  outros,  dirigindo  hospitaes 
em  cidades  populosas. 

Cumpre,  porém,  notar  aqui  uma  cousa.  Não  di- 
stante o  que  deixo  ponderado  relativamente  á  con- 
centração politica  da  sociedade  pagã,  e  apesar  da  au- 
ctoridade  d^escriplores  altamente  reputados,  os  pri- 
meiros christãos  não  podiam  ser,  de  todo,  innovailo- 
r(>s  no  que  respcMla  a  liospitaes  e  albergarias. 

Pondo  agora  de  parte  o  que  a  historia  ou  a  tradi- 
ção podia  dizer-lhes  sobre  a  fundação  do  hospital  de 
S.  João  Baptista  em  Jerusalém,  attribuida  a  Judas 
Machabeu,  e  bem  assim  sobre  a  fundação  do  hospi- 
tal, que  S.  Bazilio  edificara  em  Cesárea  no  anno 
374,  á  imitação  do  que  se  diz  que  Moysés  já  havia 
feito  nos  arrabaldes  da  mesma  cidade,  é  muito  pre- 
sumível e  pro\avel,  que  os  primeiros  christãos  vives- 
sem das  tradições  lilterarías  e  politicas  de  itoma  e 
Athcnas. 

Nenhuma  doutrina  teve,  jamais,  poder  bastante 
para  apagar  os  vestígios  dos  s\stemas  que  a  precede- 
ram. A  acção  das  idéas  e  do  tempo  desmorona  im- 
périos, mas  não  pode  abolir  absoluti>simamente  to- 
das as  suas  leis  o  costumes.  Por  muitos  séculos  se  de- 
vísam  na  nova  ordem  de  cousas,  praticas,  ainda  as 
mais  absurdas  e  abusivas,  da  sociedade  exfincta.  Os 
christãos  dos  primeiros  séculos,  calumniados  e  perse- 
guidos Ião  encarniçadamente,  não  tinham  tempo  de 
sobejo,  nem  proporções  para  meditarem  e  crearem 
t\ido. 

Q-uanilo  se  vê  q>ic  elles  foram  mendigar  ao  Grego 
palavras  para  significarem  os  dillerentes  estabeleci- 
mentos de  caridade,  que  iam  fundando,  ehega-se  a 
duvidar,  se  tand>ein  iriam  ali  Ivix-r,  além  da  ex- 
pressão, a  idéa.  Eis-aqui  as  denominações  dos  mes- 
mos estabelecimentos ; 

Ihphotroiihium.  —  Casa  onde  eram  recolhidas  e 
sustentadas  as  creancinhas  de  peito,  não  so  e\[)Ostus, 
mas  quacsquer  outras. 

Gtfoutocoiiiiuin. — Asvlo  dos  xclhos. 

\osocomunn. — Jlospital  dos  doentes. 

Urphanoirophium.  —  Asjlo  dos  orphãos. 


I      Ptochoirophium.  —  As}  lo  geral  para  todot  os  po- 

I  bres. 

,       Xenodochium.  —  Hospedaria  para  os  estrangeiros  : 

'  propriamente  hospital  ou  casa  d"ho5pitalidade. 

I  Ora,  na  Grécia  efTectivamente  houve  diversos  in- 
stitutos de  pliilantropia,  como  o  dos  soldados  inváli- 
dos, ou  mutilados  nas  campanhas,  que  foi  obra  de 
Pisistrato.  Se  estes  institutos  não  podiam  servir  de 
modelo,  podiam  ao  menos  suscitar  a  idéa  de  erigir 
outros  melhores,  e  mais  conformes  ao  seu  fim  huma- 
nitário. 

Porque  havemos  de  admirar,  por  exemplo,  o  cos- 
tume que  tinham  muitos  bispos  e  ecclesiasticos,  de 
dar  pousada  aos  peregrinos  mandando  lavar-lhes  os 
j)és,  e  não  havemos  de  admirar  esse  mesmo  costume 
entre  alguns  povos  pagãos?  Se  S.  Luiz  faz  uma  boa 
obra  mandando  formar  roes  dos  seus  súbditos  mise- 
ráveis para  lhes  distribuir  soccorros,  porque  se  ha  de 
dissimular  que  a  fizeram  também  o  senado  e  os  im- 
peradores romanos  na  distribuição  dos  cereaes  aos 
proletários  ? 

As  re-idencias  dos  bispos  e  os  mosteiros  foram  de 
certo  modo  hospitaes,  ou  casas  d'hospilaIidaJe,  queé 
isto  o  que  na  sua  origem  significava  hospital.  Mas 
também  as  hospedarias  gratuitas  da  Grécia  (icnodo- 
chiaj  o  eram.  liergier,  ou  La  Croix  —  não  me  lem- 
bra agora  qual  d"elles  —  fallando  d"e5tas  hospedarias 
com  algum  desfavor,  diz  que  as  pessoas  de  bem  (hon- 
nítes  gcns)  não  se  aproveitavam  d"ellas,  porque  iam 
hospedar-se  cm  casa  dos  seus  amigos,  quando  >iaja- 
vam  d"unia  para  outra  cidade.  Eram  os  ricos  (que 
em  toda  a  parte,  e  em  todos  os  tempos  se  chamam 
pessoas  de  bem)  que  não  acceitavam  ao  Estado  um 
soccorro,  de  que  não  tinham  precisão.  Mas  é  n"eíta 
mesma  circumstancia  que  eu  vejo  uma  razão  de  pa- 
ridade com  as  all)ergarías  chrislãs,  aonde  d"ordina- 
rio  só  os  romeiros  e  caminhantes  pobres  se  iam  re- 
colher. 

As  casas  levantadas  no  Peloponeso  em  honra  d*Es- 
culapio,  e  servidas  p<ir  certa  chisse  de  sacerdotes  que 
exercitava  a  nu-dicina,  eram  institutos  similhantes 
aos  nossos  hospitaes  d"agora  Tenho  esta  persuasão, 
não  obstante  dizer-nie  o  sr.  •  » •  que  não  ha  ne- 
nhuma similhaiiça.  jwrque  n*aquollas  casas  só  so  ap- 
idicavam  meios  puramente  hxgienicos.  Para  mim  é 
essa  uma  <|uestão  secundaria.  Creio  (|ue  posso  pre- 
scindir de  averiguar  e  discutir,  se  os  ascUpiadcs  co- 
nheciam ou  não  a  medicina  clinica  O  que  importa 
saber  é,  se  taes  casas  existiram,  e  se  os  doentes,  af- 
trahidos  pela  repulaç.ão  íIos  padres,  ou  levados  pela 
fé  que  punham  nos  oráculos,  ian>  ali  curar-so,  c  ef- 
fcctivaincntc  se  curavam  sob  a  inspecção  d'aquelles 
sacerdotes. 

Não  perfendo  sustentar  que  ha  identidade,  ma» 
similhança.  TandK>m  não  devo  cntender-se  que  com- 
paro o  chrislianismo  com  o  gentilisino  alhcnienscou 
romano.  Deus  me  lixre  de  desconhecer  a  sublime,  a 
divina  espiritualidade  d'iim,  e  a  grosseira  materiali- 
dade do  outro.  Eu  n.ão  ]HHlia  e<|uij>arar  a  força  ao 
direito,  a  guerra  á  paz,  nem  faier  jwrallelo  entre  a 
luz  o  as  trevas.  Não  jidgo  porém  dcsairadiis  os  pri- 
meiros christãos  por  saberem  dar  nova  fornia  a  in- 
stituições, (|ue  a  rudeza  dos  teiu|Ki$  que  os  precedo- 
raiu  não  podia  multiplicar  nem  aperfeiçoíir. 

O  gentiliMno  poilia  ter  fundado  asvios  o  cosas  de 
hospitalidade,  mas  dar-lhc»  este  caracter  de  pemia- 
i.ciici.i  e  perpetuiiladc,  que  agora  ItVni,  sií  o  chris- 
lianismo o  podia  fazer  o  o  fel. 

(Cotittnúa.) 


o  PANORAMA. 


317 


INSTRUMENTOS    DE    MUSICA.  —  TROMBETAS    DOS    HEBREUS. 


O»  IIf.rkevs  tomaram  de  certo  dos  Egypcios  aí 
froinbclas,  (|m'  rrprcsoritavam,  de  resto,  um  papel 
imporlanie  uns  «•iTenioniu»  relÍE;iosas  dVsse  povofor- 
maliíla.  A  llihlia  menciona  em  iimilas  passaíçons  es- 
te itislriiniPiilo.  A  origem  das  trombetas  do  templo 
»]ue  se  eonitervavam  como  a  arca,  ocaiid(ílabrodeset<' 
braços,  ctc.  é  referida  na  Kscriptura  polo  seguinte 
modo ; 

11  Ka liou  mais  o  Sfoliiir  a  Moysés,  o  lho  disse: 

~  I'"a7.i'  para  li  duas  Irombetas  de  praia  f/iníso/s- 
follis)  l>alidas  ao  inarlélo,  das  (jiiacs  le  |>ossas  servir 
[lara  convocares  lodu  u  INivo,  (piando  se  li(jiiver  di' 
Icvaiilar  o  campo. 

•'(luando  lu  tiveres  Icilo  soar  eslas  Irondielas, 
todo  o  povo  HO.  njunlará  ao  pr  de  li,  á  entrada  do 
'rabernaciilo  do  conccrlo. 

u  Se  til  não  locar<'S  senão  uma  vez,  virão  a  li  os 
J'riiicipcs,  e  os  ClieCcs  do   1'civo  di-  Israel. 

ujMas  se  o  som  tiW  mai-i  dilalado  i'  mais  conciso, 
os  <pi('  eslão  para  a  baiid.i  An  <  (liiiile  serão  os  ])ri- 
meiros,  cpie  di'scaiiipcm . 

.*  Ao  segundo  loi|ii<'  da  Ironibela,  simlllianle  ao 
primeiro,  os  (jiie  eslão  para  o  IMcio-diadeilarãoaliai- 
xo  (]s  seus  pavilliiíeji:  e  o  mesmo  farão  os  oiilro»  no 
soniiji)  duti  liinnbelas,  ipie  .loirarão  .1  partir, 


4.  Mas  ijiiando  fòr  necessário  somente  ajuntar  o  Po- 
vo, farão  as  Ircjnibetas  um  som  mais  miúdo  i;  mais 
simples,  o  não  aípielle  som  conciso. 

.1  A»  trombetas  tooal-as-hâo  os  Sacerdotes,  riliiosde 
Arão  :  o  esta  Lei  será  guardada  para  sempre  pelos 
vossos  vindouros. 

u  Se  vós  sairdes  do  vosso  paiz  para  a  guerra  con- 
tra os  inimigos  que  vos  atacam,  fareis  com  as  Iroiii- 
betas  um  som  <pu.'  retumbe,  e  o  Senlior  vosso  Dous 
se  lembrará  ile  vós,  para  vos  livr.ir  das  mãos  ile  vos- 
sos inimigos. 

..(luando  fizerdes  algum  l)ani|ucle,  c  celebrardes 
os  dias  do  festa  e  os  primi'iros  dias  do  met,  locareis 
cslas  troinlielas,  ollcrccendo  os  Missos  liolocausios,  e 
as  vossas  hóstias  pacilicas,  afuil  de  (pu"  o  vosso  Deus 
se  lemliri"  de  viw.  " 

Kis-aipii  taiiii>em  como  a  liitilld  nana  a  loniaila 
dc>  .leri<hii. 

4.  Mas  no  ília  sétimo  os  Sacerdotes  tomem  as  sele 
troinlielas,  de  que  se  usa  no  anno  do.lubili'0,  i- mar- 
chini  adiante  da  Arca  do  concerto  i  ''  roíii-areis  sele 
vc/.es  a  ciilade,  e  iis  Sacerdotes  tocarão  as  I roínbclas. 

..  K  cpiando   as  trombetas  fi/crem    \im  sonido  mais 

largo,  c  p( Iranle,  e  este  vos  ferir  os  ou\  idos,  todo 

o  Tovo   a   uma   vox   dará  uni  grande  ^giito,   <•  então 


318 


O  PANORA3IA. 


cairão  os  muros  da  cidade,  alé  o  fundamentx),  e  ca- 
da um  entrará  por  aqiielle  logar,  que  lhe  ficar  de- 
fronte. »  (Bíblia  Sayrada,  Números,  Cap.  X.Jo- 
sué, Cap-  VI.  Trad.  do  PaAre  A.  Pereira.) 

Contam  os  Gregos  uma  historia  analoça  de  um 
combate  entre  os  Spartanos  e  os  messenienses  \  estes 
atterrados  pelo  som  da  trombeta,  novo  para  elles, 
foram  vencidos  quasi  som  combate. 

Deve  notar-se  que  as  trombetas,  a  que  se  refere  o 
ultimo  logar  da  BiUia  citado,  não  eram  direitas  co- 
mo as  hatsohroths,  que  correspondem  ás  iubae  dos 
Romanos :,  eram  feitas  dos  cornos  de  carneiro  ou  boi, 
como  mostra  o  seu  nome  hebreu,  e  o  latino  comua, 
bvccinae. 

Não  conhecemos  monumento  algum  em  que  te- 
nham sido  representadas  as  trombetas  curvas  dos  Ju- 
deus :,  mas  possuímos  dois  transumptos  authenticos 
das  trombetas  sagradas  do  templo.  Depois  da  toma- 
da de  Jerusalém,  Tito  voltou  triumphante  a  Roma. 
Ao  uso  romano,  foram  apresentados  na  solemnidade 
triumphal  os  despojos  dos  vencidos  \  entre  estes  des- 
pojos figuravam  os  dois  haisoUroihs  ordenados  pelo 
Senhor  a  I\Ioyse'3.  O  arco  de  Tito  ainda  existe  em 
Roma,  e  nos  baixos-relevos  de  que  é  ornamenta- 
do acha-se  figurada  a  solemnidade  triumphal  cuja 
memoria  este  monumento  devia  perpetuar.  A  nossa 
gravura  é  cópia  de  um  dos  grupos  d'essosbaixos-rele- 
vos.  Três  escravos  laureados  conduzem  aos  hombros 
uma  espécie  de  padiola,  no  qual  estão  postos  o  altar 
das  propiciações  e  as  duas  trombetas.  Vê-se  que  são 
direitas  e  muito  compridas,  a  boca  não  é  mui  lar- 
ga,  e  não  tem  ornato  algum.  Um  personagem  vesti- 
do de  toga,  e  com  um  ramo  de  loureiro  na  mão,  ca- 
minha ao  lado  dos  trcs  escravos.  O  segundo  monu- 
mento em  que  apparccem  as  trombetas,  é  uma  moe- 
da de  prata  cunhada  em  Jerusalém,  de  que  também 
damos  gravura. 

Esta  moeda  tem  de  um  lado  um  cacho  de  uvas,  e 
em  hebraico  Schitneoti ;  ó  o  nome  de  Simão  Maclia- 
beo,  grão-sacerdote,  general  cm  chefe  o  princii)e  de 
Israel,  da  dynastia  asmonéa,  que  imperou  desde  o 
anno  líi  até  ao  anno  13o  antes  de  Jesus  Christo. 
No  reverso  vêem-se  as  duas  trombetas,  similhantes  ás 
do  arco  de  Tito,  c  lê-se  igualmente  em  hebraico : 
Laherout  Jerouschalim.    (Libcrtição  de  Jerusalém). 


Esta  medalha  não  c  contemporânea  do  valoroso 
Simão  Machabeo,  que  restituiu  a  independência  a 
Israel,  porque  foi  feiia  em  um  dinheiro  doTrajano^ 
mas  o  sr.  C.  Lenormanl  resolveu  recentemente  esta 
diíficuldado,  mostrando  que  os  judeus,  em  reconhe- 
cimento dos  grandes  feitos  de  Simão  Machabeo,  per- 
petuaram em  sua  moeda  o  nome  doeste  lieroe  e  a 
memoria  da  libertação  de  Jerusalém,  em  quanto  con- 
servaram a  sua  nacionalidailo. 


Viagem  Á  1'ai.esti^a   i-nn  A!r.  ok  Sai  h  \ . 

Sarcophayo  de  David.  —  ií.r;i/(i|-njuo  do  Mar-Morlo. 

De  todos  os  estudos  históricos  sol>rp  a  antiguidade 
sacra  ou  prophana,  os  mais  notavcu  e  os  mais  fecun- 
dos FHO  incontejtavelmcnte  03  que  resultam  da?  ex- 


plorações feitas  pelos  auctores  nas  próprias  localida- 
des. A  maior  parte  dos  sábios  privilegiados  preferem 
dilucidar  tranquillamente  no  gabinete  as  arriscadas 
investigações  dos  mineiros  da  sciencia,  ou  examinar 
códices  inintelligiveis,  a  irem  passar  incommodos  e 
correr  perigos  para  estudar  per  si  mesmos  os  logares 
e  os  monumentos.  Comtudo,  ha  honrosas  excepções, 
entre  as  quaes  cumpre  contar  Mr.  de  Saidcy,  cuja 
viagem  recentisiima  á  Palestina  tem  merecido  a  at- 
tenção  dos  sábios,  do  clero,  e  das  pessoas  instruídas. 
Ao  dar  os  primeiros  passos  na  terra  santa,  na  ci- 
dade fr(;quentada  annualmente  pelos  piedosos  pere- 
grinos, fez  Mr.  de  Saulc>-  importantes  descobrimen- 
tos. Paliaremos  s<5  de  um  monumento  grandemente 
interessante  para  a  arte  e  para  a  sciencia,  mais  uma 
preciosidade  que  adquiriu  o  museu  doLouvre.  £um 
sarcophago  extrahido  dos  sepulchros  dos  reis  de  Ju- 
dá,  que  segundo  as  provas  colUgidas  pelo  sábio  aca- 
démico encerrou  os  despojos  mortaes  do  santo  rei 
David. 

Próximo  de  Jerusalém,  obra  de  22o  a  270  braças 
distante  da  porta  de  Damasco,  á  direita  do  caminho 
de  Naplusa,  divisa-se  n^um  sitio  entre  ruínas  uma 
catacumba  sepulchral,  conhecida  desde  tempo  im- 
memorial  pelo  nome  de  Kobour  d  Salathin,  Ko- 
bmir  el  Melouk,  ou  jazigo  dos  reis :  é  aberta  na  ro- 
cha com  admirável  arte  :,  o  aspecto  singelo  e  jrandioso 
appresenta  as  príncipaes  linhas  e  algumas  particula- 
ridades de  monumentos  gregos  \  o  plano  e  distribui- 
ção assemclham-se  aos  hipojeus  esvpcios;  mas  o  to- 
do tem  um  caracter  particular,  que  não  égre^o  nem 
egypcío.  E  uma  architeclura  hybrida  que  recorda  as 
imitações  de  outros  paizes,  feitas  por  um  povo  que 
pereceu  antes  de  haver  chegado  á  edade  viril,  antes 
de  ter  desenvolvido  toda  a  sua  individualidade. 

A  fachada  couipõe-se  de  duas  columnas,  hoje  par- 
tidas, e  duas  pilastras  embutidas  nas  paredes  lateracs 
da  rocha  :  uma  rica  grinalda  de  folhagens,  de  fructas 
e  de  pinhas  corre  ao  largo  da  architravc,  e  pende, 
em  angulo  recto,  de  cada  lado  da  entrada.  O  enta- 
blamento  apresenta  também  um  largo  friso,  cujo 
centro  é  occupado  por  um  cacho  de  uvas,  emblema 
da  terra  da  promissão,  e  typo  das  moedas  asmodeas. 
A  direita  e  esquerda  doeste  emblema  estão  coUoca- 
das  svmetrieamente  imia  coroa,  depois  um  florão  de 
três  palmas  e  por  ultimo  triglyphos  alternando  com 
pateras  repetidas  tros  vezes.  Sobre  este  friio  come<,'a 
uma  formosa  cornija,  formada  de  numerosas  moldu- 
ras, elegantes  e  variadas,  clevando-se  até  a  altura  da 
rocha. 

A  porta  d'entrada  doeste  hypogeu  abre  sobre  um 
poço  fundo,  hoje  cego,  destinado  n'oulro  tempo  a 
vedar  o  accesso,  e  tragar  o  temerário  que  se  atreves- 
se a  prophanar  este  ultimo  asylo  dos  reis  de  Judá.  A 
boca  era  cerrada  com  uma  porta  maciça  de  pedra 
que  se  podia  abrir  exteriormente  por  meio  de  um 
mcchanismo  simples  e  engenhoso,  m:is  que  era  im- 
possível mover  da  parte  interior,  como  para  indicar 
que  s<5  a  morte  devia  habital-a.  Esta  jxirla  da  para 
um  vestíbulo  quadrado,  artisticamente  talhado,  e 
cova  três  portas  que  dão  entrada  p.ara  outras  (antas 
naves  sepulchraes.  A  primeira  ciuitén»  seis  túmulos 
abertos  na  rocha  em  lisura  de  forno,  vendo-sc  no 
fiuido  um  pequeno  rcducto  quadrado,  para  conter  o 
sarcophago  e  provavelmente  para  guardar  ihesourose 
objectos  preciosos.  A  direita  uma  abertura,  occulla 
com  ornatos,  conduz  por  um  corredor  inclinado  a  imia 
camará  sepulchral  mais  Ixiixa  que  as  demais,  á  qual, 
|x>rcuj,  parece  subordinado  todo  o  monumento :  esta 
camará,  pr.iticada  exactamente  no  eixo  doh>p<>çou, 
occupa  no  mausoléu  dos  reis  de  Judá  o  log.ir  hoi>o- 
rifico,  que  parece  ter  sidu  reservado  a  Da\id. 


o  PANORA3IA. 


319 


N'csta  sala  ha  um  sarcophago,  cuja  parte  superior, 
de  trabalho  magnifico,  foi  trazida  porMr.  deSaulcy, 
que  conseguiu  apossar-so  dY-Ua,  ajudado  de  seus  com- 
panheiros de  viagem,  ft]r.  Ed.  Delesset  e  o  abbade 
Michon,  e  depois  de  infinitas  diffieuldados  logrou 
apresental-a  no  Louvre,  onde  ha  pouco  foi  exposta 
ao  exame  dos  curiosos. 

A  cobertura  <•  dividida  em  cinco  faxas  longitudi- 
naes,  que  representam  parras,  cachos  d'uvas,  romãs, 
folhas  d'enzinho  e  bolotas,  pinhas  e  grinaldas  de  oli- 
veira. Todos  os  adornos  emblemáticos,  de  que  é  co- 
berto o  sarcophago,  são  tomados  do  reino  vegetal,  se- 
gundo a  lei  judaica,  e  são  os  mesmos  que  a  Jiiblia 
menciona  descrevendo  a  ornamontayão  do  templo  de 
Salomão. 

A  mencionada  cobertura  do  sarcophago  é  dividida 
em  duas  partes,  e  ainiia  que  lhe  falta  uma  das  ex- 
tremidades a  sua  largura  total  é  hoje  de  perto  de  no- 
ve palmos.  A  pedra  é  um  calcareo  mui  duro,  pelo 
que  devia  ser  bastante  difficil  o  lavor  do  ornato.  As 
palmas,  flores,  fruçtos,  toda  esta  filagrana  delicada 
foi  feita  a  cinzel.  E  o  único  monumento  notável  da 
arte  judaica  que  possue  a  Europa. 

As  outras  camarás  ou  naves  sepulchraes  contém 
uma  nove  túmulos  e  a  outra  seis :  da  primeira  d'es- 
sas  camarás  desce-se  á  sala  inferior  onde  parece  que 
estivera  o  corjjo  de  Ezechias,  filho  e  successor  de 
Achas,  que  restabeleceu  o  verdadeiro  Culto  Divino 
e  derrotou  os  pliilisleus.  Todos  os  túmulos  completos 
perlencerani  aos  réis  de  Judá,  que  segundo  a  Bihlia 
foram  sepultados  ii'este  jazigo  de  família.  Cada  tu- 
mulo por  concluir  corresponde  a  um  rei  que  não  foi 
depositado  na  se[)ullura  de  seus  antepassados,  uns 
porquí!  levados  ein  captiveiro  a  líabylonia  ou  ao 
Egypto  por  lá  morreram,  outros  portpie  tiveram  se- 
[)ulluia  particular  como  Manasses  e  Amon  :  quanto 
Íl  usurpadora  Alhalia  de  certo  não  foi  depositada  en- 
tre os  principes  da  ra(,a  que  pertcndêra  exterminar. 
Tal  é  o  precioso  monumenlo  que  Mr.  Saulcy  fez  co- 
nhecido. (Continua.) 

SILENCIO. 

Toul  tlort. 
V.HtGo. 

GLue  noite  sombria  1 
duc  triste  mudei ! 
De  lenta  agonia 
(iue  sello  profundo 
Na  fac(!  do  mundo, 
Rliiih'alma,  náo  vis  ' 

Um  nsiro  doirado 
Não  brilha  no  céu  ^ 
D(í  negro  loldndo 
O  lúcido  império 
Em  crepe  funéreo 
A  terra  «•n\olveu  ! 

LJin  som  não  «o  escuta^ 
Não  61!  ouve  um  só  ai  ;, 
De  concava  gruta 
No  fundo  retiro 
Perdido  suspiro 
Da  brisa  não  Hai. 

An  agua»  não  gemem 
<  !oireudo  no  elião  :, 
As  folliMN  não  tremem 
Nos  I roncos  frondoso» 
l-luc  mudos,  chiu'osu> 
IniniiiMMs  cBlào. 


Sem  frémitos  d 'ira, 
Sem  queixas  d'amor, 
Apenas  expira 
Na  riba  fragosa 
Da  vaga  espumosa 
Confuso  rumor. 

Em  paz  dorme  tudo, 
Jaz  tudo  sem  voz  \ 
O  pego  sauhudo, 
A  folha  ligeira, 
A  brisa  fagueira 
E  a  lympha  veloz  I 

Contente,  e  sem  medo 
Eu  goso  esta  paz  ! 
Ao  que  ama  em  segredo 
Soffrendo  isolado 
O  mundo  calado 
E  quando  lhe  apraz  I 

Silencio  !  sublime 
Linguagem  de  Deus ! 
Ella  única  exprime 
O  imnienso,  o  eterno, 
As  anciãs  do  inferno, 
E  os  gosos  dos  céus  ! 

Silencio  !  eu  bemdigo. 
Eu  amo-lhe  a  paz, 
Q-ue  é  elle  o  amigo 
O  sócio  discreto 
Do  ultimo  tecto 
Glue,  ó  terra,  nos  dás  '. 


A.  Lima. 


LENDAS  HISTÓRICAS. 

O    Demónio    do    Lago. 

I. 

O  Tumulo  c  o  Ber^o . 

Poii  meiado  do  mez  de  dezembro  de  1j'(2  lazia-se 
um  grande  tumullo  no  castcllo  de  Falkland,  em  Es- 
cócia. Achava-se  ahi  reunida  parte  da  nobreza,  na 
cxpccLaliva  de  uma  grande  desgraça,  e  de  uma  boa 
nova.  A  desgra(;a  ia  consuinar-be  no  próprio  castello 
cm  que  o  rei  Jaques  V  se  tinha  recolhido  dei)oÍ3  da 
denota  do  seu  cxercilo  jjelos  inglezcs,  em  Solway- 
iVIous:,  a  boa  nova  esporava-se  do  castcllo  de  Lin- 
liliigow,  onde  residia  a  raiiiiia  d'Escocia,  Maria  de 
iiorraiuc,  llllia  de  Cláudio  de  liorraine,  primeirodu- 
<jue  de  Ciiiise. 

lOra  <!sla  para  a  Escócia  uma  ipiadra  de  tristeza  e 
(■s|icraM<;a  ao  mesmo  tempo.  Acabava  um  rcÍMa<lt>. 
aniiuiiciava-se  oulro.  Em  quanto  o  pobre  Jaipics  N 
lurlava  com  os  plianta>uias  que  o  lorluravani  em  sua 
a'4<)iiia,  a  raiidia,  com  grande  seutiuienlo  de  nàojMJ- 
dir  acompanhar  seu  esposo  muito  amado,  esperava, 
longe  d'elle,  o  priuu'iro  vagido  da  crean<;a  que  devia 
subsliluir  o  seus  dois  filhos  nuirtos  no  l)cr(,o.  Final- 
mente, a  S  de  dezeud)ro,  um  cavalleiro  partiu  a  to- 
da a  brida  do  castello  ile  líinlithgow  para  u  residên- 
cia de  Falkland,  <'s|ialhaudo  pelo  caminho  u  feliz  no- 
ticia do  nascimento  de  uuiii  menina,  que  devia  ter 
o  nome  di>  sua  uiài<,   Maria. 

N'esle  di.i  mesnui  entrara  o  rei  Jaques  iruui  ni'- 
denlissiino  delírio.   F.siierou-se  iiue  lhe  sobrcvies-icnl 


320 


O  PANORAMA. 


gum  momento  lu(;i<lo  para  o  informar  do  acontecido  ; 
11)33  a  razão  parecia  têl-o  abandonado  para  sempre. 

A  Escócia  era  então  um  paiz  bem  terrível,  cheio 
de  ignorância  c  de  bruteza.  Os  fidalgos  exerciam  ali, 
fjuando  lhes  convinha,  o  mister  de  assassinos  e  de 
ladrões.  O  assassinato  era  a  ultima  razão  politica. 
Jaques  V,  organisacão  poética  c  delicada,  não  nas- 
cera para  este  paiz  svlvestrc,  e  para  esta  epocha  bar- 
bara;  fòra-lhe  muitas  vezes  necessário  renunciara 
suas  illusõcs,  aos  seus  passeios  aventurosos,  á  sua  vi- 
da de  galanteiar.  Calliolico  sincero,  e  justiceiro  im- 
placável, sacriiicando  os  interesses  da  sua  dvnastia 
aos  princípios  da  fé,  combatera  rijamente  o  presbj- 
terianismo  de  seu  tio  Henrique  Mil.  Mas  em  vão 
aHbgára  os  seus  generosos  instinctos  ■,  em  vão  appellá- 
ra  para  a  espada,  para  o  cutelo,  para  a  fogueira  \ 
al)andonado,  pela  ambição  dos  nobres  e  pela  indiíle- 
rença  do  povo,  duas  vezes  vencido  por  Henrique  VIIT, 
lamentando  a  vergonha  das  suas  armas  e  a  inutilida- 
de dos  seus  rigores,  consumido  pelos  remorsos,  pela 
áÒT  e  pela  febre,  não  estava  mesmo  em  estado  de  re- 
ceber a  consolação  que  a  Providencia  lhe  enviava. 

Com  os  olhos  ardentes  e  encovados,  os  cabellos  dis- 
persos, os  lábios  contraídos,  as  ventas  dilatadas,  as 
mãos  estorcidas,  Jaques  luctava  desesperado  com  as 
temerosas  visões  que  lhe  tumultuavam  em  torno  do 
quarto. 

Umas  vezes  afíjgurava-se-lhe  que  todas  as  victimas 
da  sua  intolerância,  escapando  á  fogueira,  vinham 
arrojar-lhe  á  cama  a  lenha  e  as  chainmas  do  suppli- 
cio :,  e  então  o  infeliz  inonarcha,  bradava  que  havia 
fogo,  queria  saltar  do  leito,  fugir,  e  dizia  que  o  in- 
cêndio lhe  requeimava  os  ossos.  Se  os  criados  e  os 
gentis-homens  se  atreviam  a  aproximar-se  e  lhe  pe- 
gavam dos  braços  para  o  segurar,  o  moribundo  des- 
maiava de  terror,  tomando  aquellas  mãos  oflicíosas 
por  tenazes  sanguentas.  Espectros,  que  elle  nomeava, 
vinham,  ora  escarnecêl-o,  ora  chamal-o.  Um,  dizia 
elle,  tinha-lhe  cortado  os  braços  c  as  pernas,  o  jura- 
ra cortar-lho  a  cabeça.  Outro  enipuxava-o  para  um 
lago  cujas  aguas  eram  avermelhadas,  e  pertendia  af- 
fogal-o.  Era  um  espectáculo  horrível  a  agonia  d"cste 
moço  rei,  n  aos  menos  sensiveis  arrasavam-se  os  olhos 
de  lagrimas  de  o  vêr  assim. 

A  14  de  dezembro,  pela  manliã,  a  paixão  de  .La- 
ques V  pareceu  tocar  o  seu  termo.  Depois  de  uni  le- 
thargo  de  algumas  horas,  o  rei  aceordou,  socegado, 
mui  fraco,  mas  no  uso  pleno  da  razão.  Sentou-se  na 
cama,  esguurdou  tudo  em  roda  com  aquelle  olhar 
pasmado  de  homem  que  acaba  de  ter  um  pezadélo, 
fez  signal  jiara  que  abrissem  uma  janella,  aspirou 
longamente  o  vento  do  hvnverno  que  açoutava  as  ar- 
vores nuas  •,  depois  descaiu  a  cabeça  sobre  o  traves- 
seiro, murmurando  : 

—  Wue  terrível  somno  me  destes,  meu  Deus  I  E 
que  ^ào  triste  accordar  ! 

Cercaram  todos  então  o  leito  real,  e  reconhecen- 
do, no  triste  sorriso  com  que  o  monarcha  saudava  os 
cortesãos  da  morte,  que  elle  estava  mais  tranquíUo, 
um  laird  «rEscocia  ajoelhou,  travou-lhe  da  mão  hú- 
mida que  o  rei  llie  apresentava,  beijou-Ura,  e  an- 
nunciou  a  .la(|ues  A  o  nascimento  de  Jlaria,  sua  ti- 
Iha. 

Esta  nova,  como  rocio  divinal,  por  um  instante, 
spagou  o  fogo  que  consumia  o  infeliz  Jaques.  Cer- 
rou os  olhos,  de  goso  celeste.  Oseu  pobre  coração  tão 
entumecido,  tão  niartvrisado,  pulou-llie  n'um  suspi- 
ro de  alegria  e  de  triuniplio  ;  o  inferno  desapparcceu  ; 
abriu-se  para  elle  o  c(!u  ;  o  rei  deu  I.T^ar  ,u>  pae,  e  estas 
palavras: — uma  filha  1  repclliram  nas  trevas  os  es- 
pectros horríveis  (jue  liuviam  velado  junto  do  leito 
rei'-  —  Lina  lillia  !  nnirmuruu  o  enfermo,  c  osollius 


arrasaram-se-lhe  de  doces  lagrimas ;  depob  recaiu 
n'um  ineflavel  extasís,  e  via-se,  pelo  mecher  dos  bei- 
ços, que  a  sua  alma  franqueara  o  espaço,  voando  pa- 
ra Linlithgovv,  e  íluctuava  reconciliada,  por  sobre  o 
berço  de  sua  lilha.  1'obre  rei!  pobre  pae'.  E  julga- 
va-se  feliz  de  pensar  na  débil  creancínha  que  nascera 
ao  pé  dos  cadafalsos ;  é  que  o  tumulo  alx?rto  dos 
seus  dois  filhos  tornava  a  fechar-se  •,  o  horisonte  tão 
triste,  tão  desencantado,  tão  negro  illuminava-se,  e 
de  longe,  e  através  dos  nevoeiros,  elle  imaginava  vêr 
uma  loura  caljeça  de  creança  a  sorrir-lhe  I  Kepresen- 
tou-se-lhe,  como  em  um  relâmpago  toda  essa  epocha 
indiscríptível  de  alegrias,  de  affagos,  de  mimos,  de 
folgares  da  infância.  Era  bálsamo  de  vida  e  de  es- 
perança que  se  lhe  entornava  no  coração. 

Ai '.  as  tréguas  foram  breves,  e  a  miragem  desap- 
pareceu  presto ;  a  consciência  de  uma  morte  próxi- 
ma veiu  de  novo  afíligir  o  rei.  A  testa  eubriu-se-lhe 
de  suores  \  vieram-lhe  as  convulsões ;  tornou-se  a  fe- 
char a  janella,  e  reanimou-se  o  fogão ;  mas  o  vento 
do  tumulo  não  cessou  mais  de  açoutar  aquelle  espe- 
ctro real. 

—  Uma  filha  I  repetiu  Jaques  ;  pobre  creança  '. 
vaes  tomar  lucto  por  teu  pae  e  pela  Escócia '. 

Esta  idéa  evocou  os  esquecidos  phantasraas.  o  rei 
tapou  os  olhos  com  as  mãos,  como  para  não  vêr  hor- 
ríveis quadros,  e  disse : 

"  Os  que  não  respeitaram  o  cardo  real,  que  man- 
"  charam  a  coroa  d'Iíscocia,  e  que  profanaram  cíta 
i>  coroa  na  minha  fronte,  hani  de  arrancal-a  da  sua.  ?• 

Depois  de  ter  proferido  estas  palavras  propheticas. 
o  moribundo  virou-se  no  leito,  e  soltando  um  gran- 
de grito,  expirou. 

Os  gentis-homens  acercaram-sc,  um  após  outro, 
do  leito  fúnebre,  deram  um  ultimo  adeus  .t  majestade 
morta,  depois  desceram  silenciosos  ao  paleo  do  cas- 
tello,  montaram  seus  cavallos,  e  abalaram-se  para  o 
castello  de  Linlithgovv.  Iam  saudar  a  sua  rainha  de 
seis  dias,  JMaria  Stuart. 

A  prophecia  do  rei  parecera  preceder  este  sinistro 
cortejo,  e,  apesar  da  sua  rudesa,  os  nobres  com- 
prehendiam  que  o  tumulo  aberto  era  muito  vasto 
para  uma  só  víctima,  c  que  a  Escócia  ia  entrar 
ii"uina  larga  e  sanguiiio>a  viuvei. 

fCuntiitúa.) 


—  Q.uanto  dariam  ás  vezes  os  ricv»  e  os  feliie*  e 
poderosos  para  comprarem  ou  imporem  essas  affciçõcs 
invsteriosius,  que  o  cscriptor  pobre  e  desvalido  vae 
despertar  }ior  uma  acção  invisível  no  seio  das  multi- 
dões.' A  consciência,  que  vos  assegura  que  tendes  isso' 
em  grau  mais  ou  menos  subido,  reconipeiisa-\  os  d<  s 
vossos  esforç-os  intellectuaes.  \'aidade  ou  orgulho  Ile- 
gítimo, essa  persuasão  é  um  goso,  c  o  goso  é  a  causa 
final  de  todas  as  ambíçi">es,  de  t(xlo  otrakdho  huma- 
no. São  na  verdade  diversas  .is  utilidades  que  provém 
lia  riijueza  das  que  provém  do  engenho.  Predominam 
n"aquellas  os  commodos  niateriaes,  n*esta5  a  satisfa- 
ção interior ;  mas  por  isso  mesmo,  tanto  n'umas  co- 
mo n*outr;is  ha  a  homogeneidade,  a  harmonia  entre 
os  esforços  e  as  recompensas. 

.•\ .  H KRCv  lASO.  —  .4  Propríetlade  LiUrrnria . 


—  .\  idca  moral  da  antiguidade  era  o  amor  da  pa- 
tria.  Todos  os  prodígios  das  antigas  repulJica»  as.-<-n- 
tam  n"eàl;i  Ikisc  vígorv>sa.  mas  limitada. 

.V  idéa  moral  ik>s  t«'m|>os  mmlernos,  é  o  amor  do 
género  humano.  .-V  iKMievolencia  universal,  que  <• 
o  espirito  do  Evangelho,  abrange  a  liumanid.ide 
inteira.  .Vi.mi:-M.vbtin. 


41 


o  PAiNORA3IA. 


321 


Voi..     1.— J.-'    Sl,UlK. 


oiTiMui..  ".),  is;í-j. 


322 


o  PANORAMA. 


(JRI  ro    EM    MÁRMORE,    PUR    M.    EtEX  . 

TarÍs,  a  capital  do  mundo  moderno,  a  cidade  mo- 
numental por  excellcneia,  vae  perpetuar  a  memoria 
tle  uma  das  maiores  calamidades  que  tem  aifligido  a 
humanidade,  erigindo  em  uma  das  suas  praças  o 
grande  e  S(?vero  grupo  que  a  nossa  gravura  repre- 
senta. 

Q-uem  SC  não  recorda  com  angustia  d'esses  dias 
horrorosos  enj  que  a  morte  feria  rápida,  sem  tré- 
guas, a  cada  hora,  a  cada  minuto,  todas  as  classes, 
Iodas  as  edades.  GLiicm  não  sentiria  então  rebentar- 
Ihe  no  seio,  mais  abundantes  e  fecundas,  as  fontes 
santas  do  amor  do  próximo,  e  do  temor  de  Deus  ! 
Vergando  aos  golpes  do  íiagcUo  invisível,  cada  um 
de  nós  comprchendc  mellior  a  sua  fraqueza,  a  ne- 
cessidade de  amar,  de  soccorrer  os  seus  similliantes, 
e  de  confiar  só  no  Su[)remo  Redemptor  '.  J''sla  cari- 
dade, esta  piedade  lêem  em  si  a  própria  recom- 
pensa, como  todas  as  virtudes ;  porqui;  confortam  ! 
a  nossa  coragem  c  alimentam  a  nossa  esperança. 
Q  artista  idealisou  unia  c  outra  na  figura  principal 
do  grupo,  que  representa,  até  certo  ponto,  todos  os 
habitantes  sob  a  personificação  da  cidade  de  l'arís. 
Como  carinhosa  mãe  ella  abraça  as  duas  mais  fra- 
cas d'cnlre  as  victimas ;  o  velho,  cujos  olhos  meio 
cerrados  procuram  o  céu,  e  o  adolescente,  que  fita 
na  terra  uiii  derradeiro  olhar  de  saudade.  O  senti- 
mento da  dòr  na  figura  da  cidade  de  Paris  é  simples 
e  digno ;  não  altera  a  bolleza  das  linhas :,  um  movi- 
mento da  cabeça  e  do  pescoço  bastou  ao  arlista  para 
exprimir  a  idéa  moral,  na  proporção  permittida  pe- 
las regras  sublimes  da  arte.  Uma  dór  como  csla  po- 
de viver  eterna  no  mármore ;  contorsões  do  corpo, 
refrangimonto  no  rosto,  teriam  apenas  produzido  a 
imagem  do  -«lesespero,  que  nunca  é  de  larga  dura,  e 
i|ue  dlfficilmonte  se  presta  a  uma  bella  expressão. 
ti  velho,  de  (jue  na  gravura  apenas  se  vê  a  cabeça  e 
uma  pcijuena  parte  do  corpo,  v<Tga  sob  a  violência 
da  moléstia  •,  para  esto  a  morte  é  a  maior  mercê  que 
lhe  Uciis  piíile  fazer.  O  adolescente  cede  sem  luctar. 

O  ]iedcblal  é  de  uma  forma  e  côr  severas,  quaes 
convinham  ao  objecto.  —  Finalmente  esta  obra,  que 
foi  concebida  em  Roma,  pelo  illustre  aucfor  do  gru- 
po d(!  Caim  e  Abel,  é  digna  dos  melhores  leinposda 
eseulptura,  na  opinião  unanime  dos  entendidos. 


A lU  IIEOLOGl A   rOHTl  (U  V/A \ . 

J^ÍSTniUíjÒKS     DADAS     AO     COAD.1VTOR    1)E    BERUAMO. 
NÚNCIO   EM    l'ORTl-GAL  NO  TEM1'0    DE   D.  Joio   ÍII. 

..  .\a  ordem  de  S.  Domingos  ha  um  frade  também 
de  Caslella,  que  se  chama  o  1'adeglior,  pregador  c 
litterato,  homem  de  má  vida  e  audaz.  Este,  refor- 
mando o  convento  de  Lisboa,  incorreu  publicamen- 
le  na  liulla  in  Cana  IJomin!,  recusando  obedecer  ás 
provisões  do  papa,  fazendo  despojar  o  Notário,  oex- 
lorquir-lbe  as  letras  Apostólicas  pelos  ofl\ci;H-s  rt-aes ; 
os  <|uaes  depois  com  elle  mostraram  alisolvição  jxir 
penitencia,  e  mesmo  excommungado  continuou  a 
pregar.  O  que  sendo  publico  o  núncio  de  N.  S.  e 
outros  muitos  nunca  mais  o  \  imitaram,  nem  ouviram 
como  «ranies  costumavam.  Diz-se  que  elle  vem  a 
Koma  ao  Capitulo,  se  cá  não  está  a  esta  hora. 

.4  Na  ordem  de  S.  Jeronvino  ha  um  frade  de  V"a- 
lencia,  chamado  Kr.  iVliguol,  com  reputação  de  ópti- 
ma vida-,  é  liberalissimo  e  proccilo  isentamente 
com  os  seus  confessados,   cous.i  rara  em  frade  ;  tunto 


que  por  não  querer  absolver  o  rei  uma  \et,  não  foi 
mais  chamado  para  o  confessar,  e  por  isso  o  substi- 
tuiu o  referido  Fr.  João  Soares. 

«  Ao  pé  do  rei  nas  cousas  grandc-s  fem  sumnna  in- 
fluencia o  infante  D.  Luiz,  por  auctoridade  que  as- 
sumiu sobre  elle  quasi  violentamente ;  e  o  cunde  da 
Castanheira  por  extrema  aíTeição,  que  o  rei  lhe  con- 
sagra. Este  é  homem  malvadíssimo,  mas  louva-se  de 
delicadesa,  de  crmsciencia,  e  de  santidade,  afim  de 
por  este  caminho  se  introduzir  na  intimidade  d(^ 
frades  que  não  largam  as  ilhargas  do  rei.  O  pae  do 
conde  foi  traidor,  e  desterrado ;  e  o  irmão  mais  ve- 
lho pelo  mesmo  crime  foi  publicamente  esquarteja- 
do. O  conde  de  \'iraioso,  flUio  do  bispo  d"Evora, 
também  tem  credito  com  o  monarcha.  Ambos  elles 
possuem  muitos  bens  ecclesiasticos  jjor  via  dos  frades. 
JPóde-se-lhes  insinuar  a  vontade  de  N.  S.  o  papa. 

"  Os  doutores  da  Relação  têem  muita  valia  com  o 
rei,  e  de  ordinário  são  insolentíssimos  nas  cousas  ec- 
clcsiasticas  ;  se  os  deixam,  fazem  todo  oníal  possivel. 
nada  respeitando.  A  estes,  diz-se,  que  é  necessário 
que  o  núncio  feche  a  boc^  empregando  a  sua  aucto- 
ridade 

í-O  rei  e  seus  irmãos,  ou  por  causa  dos  frades  com 
quem  tratam  a  miúdo,  e  de  cujas  letras  e  consciên- 
cia se  fiam,  ou  por  causa  de  alguns  homens  maus. 
de  quem  ouvem  conselhos,  não  mostram  l)om  animo 
pelas  cousas  de  Roma,  elevando-as  p<irém  ás  nuvens, 
sempre  que  requerem  d^ella  alguma  graça.  E  o  mo- 
tivo porque  tanto  se  temem  dos  núncios,  diz-sc  que 
é  por  metterem  a  mão  de  boa  vontade,  sempre  que 
podem,  nas  cousas  da  juristlicção  da  igreja,  não  tan- 
to para  a  expoliar,  como  para  go\ernar,  nomeando 
priores  e  abbades,  clevando-os  por  considerações  par- 
ticulares, e  chamando  ao  seu  tribunal  os  clérigos,  e 
outras  similhantes  usurpações.  Mas  sempre  faiem  pro- 
fissão de  proceder  em  tudo  segundo  o  conselho  do^ 
religiosos,  em  serviço  de  Deus  e  de  S.  S.  Aomesmt» 
tempo  todo  o  povo  portuguez  por  Índole  se  mostra 
obedientíssimo  á  Sé  Apostólica,  sendo  religiosissimo  ; 
e  nuo  convém  diverfil-o  do  modo  algum  da  sua  de- 
voção, não  o  deixando  nunci  sair  do  caminho.  Em 
se  tendo  o  caracter  de  núncio,  e  exercendo  a  aucto- 
ridade apostólica,  esta  contém  a  todos,  e  não  a  con- 
testa ninguém,  principalmente  desde  o  tempo  do  pa- 
pa Paulo,  salvo  algum  dos  que  se  .icolhem  aos  que 
estão  ao  lado  do  rei,  c  é  preciso  comprimil-os,  aliát 
ham  de  apanhar  quanto  puderem  colher. 

"A  nobreza   e  grande  parte  ilo  jwvo  não  se  pôde 
'  apartar  de  forma  alguma  da  inlluencia  da  Sé  Apos- 
I  tolica,    nem   niover-se  fora  d"ella,   porque  todos,   ou 
por  causa   das  coinmendas,  ou  dos  beneficias  com  o 
I  habito,   ou  da  emplivteusis,   ou  de  p.ircntes  clérigos 
!  vivendo  dos  bens  da   igreja  com  bulias  e  provis<">cs 
'  apostólicas,  se  inclinam  a  Roma ,  e  som  ella  nenhum 
I  se  crê  seguro,  como  podem  altesfar  os  núncios  ante- 
riores e  a  Penitenciaria,  e  não  ha  difTunildade  ou  du- 
vida,  por  mininia   que  seja,   que  não  desejen)  resol- 
vida por  favoráveis  provisõ<-s  de  Roma. 

»i  As  cous.as  em  que  o  rei  de  Portugal  (e  este  so- 
bre tudo  pareei>-me  cpie  não  fará  nada  sem  a  Sé 
.Vpostolica)  é  fácil  em  incorrer  i-ontinu.-unentc  en» 
censuras,  acrose<>ndo  outras  di\idas  á  Camará,  são  as 
seguintes : 

«•As  commciidas  nomeam-se  sob  condição  doscoin- 
nu-ndadores  dentni  de  oito  incies  serem  obrigados  n 
tirar  noAa  provisão,  p;ig,indo  os  ri-siíectiv os  din-it<>« 
á  Camará  Apostólica,  r  passaiulo  o  dito  tcmpti  sem 
a  tirar,  as  commcndas  ficam  A.i;ras  e  os  fructos  per- 
tencem á  Camará  .\[>ostolica  pelo  temixi  <|Ueoseom- 
nuiidadorcs  se  obstinam  n.i  contumjci.i.  São  tantos 
os  <|ue  as  ii.lo  têrni  lirailn,  e  fruem  as  rendas  depois 


o  PANORA3IA. 


323 


dos  oito  inozcs,  que  se  julga  certo,  que  a  sua  divida 
á  Camará  Apostólica  excede  a  100^000  escudos! 

li  Logo  que  se  faça  a  revogação  da  união  perpetua 
que  não  teve  elleito,  de  propósito,  e  que  seja  revo- 
gada a  bulia  das  comincndas  por  vagar,  não  se  jul- 
gando obtida  a  rivalidajão,  existe  quasi  um  terço 
d'ellas,  que  precisa  de  nova  concessão. 

íí  A  mercadoria  principal  que  o  rei  manda  ás  ín- 
dias para  resgatar  especiaria,  consiste  em  immensas 
carregações  de  cobre  e  bronze,  que  todas  são  vendi- 
ilas  aos  infiéis,  os  qiiaes  fazem  d'elle  arlilheria  bel- 
lissiina,  havendo  na  índia  regulo,  que  possue  maior 
copia  e  melhor  do  que  toda  a  que  o  imperador,  ou 
o  rei  de  França  possuem.  Isto  é  expressamente  op- 
posto  á  letra  da  bidla  iit  Cccna  Domini.  Isto,  se  con- 
seguíssemos cvital-o,  cortaria  metade  das  contesta- 
ções, porque  da  sua  continuação  é  indubitável  que 
resulta  sumni»  prejuizo  á  christandade. 

"  Entre  as  leis  do  reino  muitas  existem  contra  a 
liberdade  ecclcsiaslica,  e  os  sagrados  cânones  ;  e  en- 
Ire  ellus  uma,  que  manda  a  todos  os  prelados,-  ou 
protonotarios  e  outros  similhantes,  cuja  isenção  de- 
fendemos, e  que  não  lêem  no  reino  juizo  ordinário, 
<iue  sejam  obrigados  a  responder  perante  o  juiz  se- 
cular, cjianiado  corregedor  da  corte.  De  forma  que 
está  em  muito  melhor  situação  o  mais  pobre  e  bai- 
xo clero,  do  que  os  isentos  por  bulia  pontifícia ; 
visto  aquelles  irem  ao  foro  ecclcsiaslico  do  seu  pre- 
lado com  ap[iellação  para  o  papa,  e  estes  responde- 
rem perante  o  juiz  secular,  naturalmente  inimigo  dos 
padres  p.  dos  núncios,  sem  appellação  alguma.  K  por 
causa  d'esta  Uú  incorrem  de  continuo  nas  censuras  e 
morrem  fulminados  por  ellas.  Este  abuso  só  por  si 
bastava  para  haver  sempre  núncio  em  Portugal,  ao 
menos  para  os  escusos  terem  o  seu  juiz. 

II  Os  comniendadorcs  e  cavalleiros  na  milicia  do 
reino  são  freires  professos,  e  como  ta(!S  proliibitlcjs  de 
julgarem  causas  crimes,  e  de  tocarem  em  cousa  de 
sangue:,  mas  usualmente  quasi  todos  são  juizes,  e  ra- 
ro será  o  juiz  criminal,  que  não  traga  ao  pi-ito  acruz 
de  alguma  ordem,  fado  em  estremo  escandaloso,  sa- 
bido eaponl;iilo  de  lodos,  que  não  se  remedeia,  quan- 
do por  tíjdo  o  direito  ficam  nullas  as  suas  sentenças. 

li  Ordinarianienle  cjuando  um  juiz  ecclcsiastico  faz 
cousa  ijue  ch^sagrada  ao  rei,  ou  alguma  sentença  dos 
seculares,  por  injustíssima  e  violenta,  é  desobedecida 
dos  padres,  de  repente,  a  reiíueriniento  de  quem 
quer,  se  faz  inna  carta  regia  clianiando-o  á  sua  pre- 
sença para  ser  ouvido  <'m  matéria  de  seu  serviço.  A 
estas  cartas  ch.imani  carias  ila  ('amara  real.  Se  o  pa- 
dre vem  ao  paço,  o  n-i  nem  lhe  falia  nunca,  nem  o 
deixa  partir  da  cõrt<',  fazendo-o  gastar  quanto  pos- 
sue, morrendo  ii'ella.  E  necessário  que  o  que  deseja 
relirar-se  revogue  a  sentença  ou  obedeça  ás  ordens 
dos  seculares.  Aos  ipie  recusam  vir  sequestram-lhe 
as  rendas.  O  (pie  é  uma  servidão  cruel  expressamen- 
te atli-ntatoria  da  liberdade  ecclesiastica  e  da  aucto- 


rid 


(la 


aile  (la  Igreja. 

i.  I)escubriu-se  agora  em  1'orlugal  um  novo  meio 
lii'  usurpar  a  jurisdicção  ecciesiaslica  i  e  consiste  cm 
t)  rei  erear  um  audilorio  ou  parlamenlo  cliamado  — 
Mez/i  da  eonscieiícia  —  eonipitolo  de  padres,  secula- 
ICH,  frades  e  prelados,  para  conhecerem  de  tudo  com 
tanto  (|iie  se  diga,  «jue  é  cousa  de  consciência  \  e  a 
pretexto  d'esta  consciência  mandam,  liuiilam,  fa- 
iem o  desfazem  cousas  gravissiiiias  conlra  os  prelados 
e  outros  ecciesiaslicds,  •iiiu  jurisdicçàn  iienliuiua  do 
pupa  nem  dos  ícus  legadcjs,  sendo  aliás  iiicoiiipeleií- 
tisaimos  os  juizes  em  ludo  o  ijiic  scnleiíceiam,  A  ori- 
gem e  a  côr  com  ([Ue  se  fuiidim  foi  a  piclexto  do  rei 
((uerer  <|ue  esla  Meia  du  i;oiiaciencia  por  ser  de  pes- 
Mii*  litloruluv,    liunraduii   u  ruli^ionu»,    lhe   luuibrastu 


as  cousas  de  consciência.  E  quando  alguém  reque- 
resse ao  rei  alguma  cousa  de  satisfação  ou  de  divida 
por  caso  de  consciência,  que  houvesse,  onde  eUe  apre- 
sentasse as  razões  da  sua  pretensão  ordinariamente. 
Em  taes  casos  a  iMeza  limita-se  a  dizer  ao  rei,  so- 
bre aquillo  em  que  é  consultada,  que  a  consciência 
o  não  obriga,  ou  por  consciência  não  fxíde  permittir. 
E  o  fim  d'isto  é  sabido  e  censurado  de  alguns,  e 
d'aqui  provém  grave  damno  á  liberdade  e  jurisdic- 
ção ecclesiastica. 

(■•  O  rei  entregou  nas  mãos  dos  mouros  e  infleis 
duas  ricas  e  importantes  terras.  Uma,  que  era  bis- 
pado, e  se  chama  Zafãn,  e  a  outra  sujeita  a  este 
bispado  e  com  igrejas  consagradas,  em  que  se  cele- 
bravam os  officios  Di^•inos  continuamente.  E  ma- 
chinando  já  d'outras  vezes  fazer  isto  mesmo  achou 
resistência  em  todos,  dizendo  que  a  fazer-se  se  não 
podia  consumar  sem  auclorisação  da  Sé  Apostólica  e 
causas  justilicadissimas.  Agora  fez-se  em  uma  e  ou- 
tra, e  diz-se  que  só  com  provisão  da  Penitenciaria. 
E  o  mesmo  se  falia  da  questão  do  cobre  e  bronze, 
que  vão  para  a  índia ;  porque  sabe  que  prohibindo- 
se  como  é  rasoavel,  leria  elle  de  pagar  uma  grossíssi- 
ma composição,  por  ser  matéria  de  summa  impor^ 
tancia.  (  Continua.  J 


Dias   i>alavras   sobke  hospitaes. 

III. 

Eu  desejava  apresentar  n'este  artigo  algumas  consi- 
derações, que  pudessem  servir  para  a  historia  dos  hos- 
pitaes  do  nosso  paiz.  Mas  os  elementos  para  esse  tra- 
balho são  tão  escassos,  ou  andam  tão  dispersos  pela» 
chroiiicas  das  ordens  religiosas,  por  bulias  e  breves 
pontifícios,  por  insliluiçôes  de  capellas,  por  testa- 
mentos de  bemfeilores,  por  estatutos  de  diversas  con- 
gregações e  irmandades  -,  e  eu  tenho  tão  poucas  pro- 
|)orções  de  os  ler  e  estudar,  e  além  d"isso,  seria  em- 
presa lanlo  acima  dos  meus  recursos,  que  é  forçoso 
resignar-me,  e  emittir  apenas  algumas  proposições 
conjecluraes,  algumas  opiniõ(?s  sem  nexo,  sem  appli- 
caíjão  nem  fundamento  talv(?z,  e  certamente  sem  ne- 
nhuma casta  de  mérito.  Ninguém  [jóde  dar  mais  do 
quií  tem.  Eesla  impossibilidade,  uo  meu  caso,  é  uni 
verdadeiro  suj)[)liiio. 

A  i(h!a  d'erigir  hospitaes  e  .dbergarias,  de  neidui- 
nia  parte  creio  que  nos  veio  directamente,  senão  da 
Itália,  que  fora  ])or  muitos  séculos  o  grande  centro 
de  luz  e  verdade,  (jiie  o  chrislianismo  derramava  si>- 
bre  o  mundo.  Foi  d'ali  <[ue  todos  os  povos  modernos 
re('eberam  um  iiiijxilso  de  piedade  religiosa,  (pie  nem 
o  fanal  ismo  e  In  pocrisia  clerical,  nem  o  philosophit- 
mo  incrédulo  e  apaixonado  puderam  destruir  de  to- 
do. Foi  da  Itália  que  vieram  ao  nosso  paiz  os  mon- 
ges de  tí.  lieiílo,  (pie  levanlaram  os  |)riineiros  miis- 
leiros  (|U(í  houve  em  Portugal.  Mandados,  segundo 
se  diz,  ]ielo  jiroprio  Santo,  seu  [)alriarclia,  não  po- 
diam ignorar  ipie  em  Jerusalém,  junto  ao  templo 
destinado  a  ora(j'ão,  e  na  dependência  (rum  mosteiro 
da  sua  ordem  (o  de  Santa  Maria  dos  hatinos)  se  ha- 
via erigido  um  Im^pital  para  re('olher  os  peregrino» 
e  os  enfermos. 

K  um  facto,  (|ue  só  per  si  fiVra  baslaiile  pura  sup 
piirmos  os  monges  animados  do  e>pii'il«  (rimitação  e 
pni|iag.inda,  a  (|ue  .se  di^veu  a  maior  parte  dos  esla- 
belecimentos  de  caridade.  hMlllcaudo  as  suas  vuMis, 
ii."ici  e  |iro\a\el  (|\ie  es(|uecessc'm  o  dever,  (|Ue  a  reli- 
gião lhi'!í  impiinliii,  dagasalhar,  ifassistir  e  íoccor- 
rui-   1.1»  iwcussilado»  i  e  muito   luvno»  pro\aM'l  me  pa- 


324 


O  PANORAMA. 


rKX  íjue  ãáxaMem  d'acon»eihar  aen-cão  d^zlberga- 
ría»  í:  }iV»pilaet. 

A  historia  d'e«te»  «*ab«rle<3m»!iitc«  prfrriíle,  decer- 
lo  modo,  iia  das  diíjorse»  e  aM^ía<.  Kín  tíxlz  a  par- 
te írt  lÁiyji  *■-  <»  inonçe»  tinbam  f/w  cosíaine  reco- 
JI»CT  e  traclar  o»  fyA/ri^  t  t^<íTm<>ii-  S.  Fructuoso. 
n'un)  dm  capitule*  da  »ua  re^ra,  U^ni/rz  a/j  pastor, 
<iue  jiiardava  o  jado  do  in'*t*riro  de  Ooin';,  'jue  da 
sua  industria  dí-pendia  <;  rtyilo  fjk/t er^errriof,  ocrto- 
"lo  'fcf  mcrãn/jt,  «  «  'juniUfid/j  'i/n  hmfjt^A.  Tra- 
tando da»  («usa»  qu^r  p<xJia/n  prcnar  o  7fi»Tí-';i mento 
•líj  abWJ'-,  diz  ']U'-  é  uma  d'dlas  ret-eW  Kmjrrt:  á 
toa  in/;ví  <A  jitrfjriruji  tjut  vunern  ivj  miiAi^ir<j.  Ao 
prior  iinpiji  a  oí^çaf^j  de  dar  'xirita*  ao  abbad^, 
?MÍM  o»  nutztt.  para  que  a  íazeijda  do  irioítriro  /kí</ 
(iíúaaie  tic  vy^ci/rrer  os  i»ec»fl*ito»oí. 

IC  «n  tampos  muito  ant^w/r»;*  a  S.  Fruduouoíno 
*<%-ulo  S/')  t5o  píTih-uhinnetríii;  itc  d«di'a>arn  <»  >/i»- 
po»  ao  Mirvifco  df^  pi/oreí,  «jue  não  podiam  cumprir 
iriuitai  da»  »ua?i  altriíwiçõefc,  parte  da»  (jijaw  incum- 
biram a  un»  viíari'ys,  <ni  eÍKirejÀiief^/ot,  'joe  faziam  at 
tuai  ve?/-»  na»  a)'i<^«. 

(A-uaífi  fijwiero,  piarem,  não  digo  as  jjríincira»  c^ka* 
d'bo»pitaJJdade,  Mfuão  «/s  priííifáro*  Ijwpitae»  fjue  t« 
•-ríçiram  in  Portij;;al,  destinado»  principalmente  ao 
tratamento  dot  enfermo»,  nSo  o  poívj  eu  saber.  Ewia 
averiguação  'njmpre  que  a  faca  pesíioa  competente. 
Alj^uns  d*aquel)e»  /ne»mo»,  cuja  íundaí^o  110»  é  co- 
iiljfcci'la,  tiveram  origem  em  era»,  que  não  é  powsi- 
vel  íiçnalar  prexi»amen1*f.  Por  exemplo :  o  )io»pitíi] 
da»  ÍJaida»  da  Kai/iba.  Adiarei»  em  iiiuhiji  livro», 
que  foi  obra  da  piedoia  rainha  D.  Ijeonor,  mulber 
dVl-rei  I).  João  II,  a  qual,  jxn-  vér  ali  alguns  po- 
Iwes  eníermo»  m':r1tido»  em  presa*,  e  *er  informada 
«la»  roaravilhoía»  cura»  produzida»  jxiraquejlaia-rij:  ■ 
le  reyjveu  a  mandar  cont-truir,  á  «ua  custa,  o  «' 
if/iyitul.  Ma»  \:asi))M:m  é  certo,  poíto  que  nã<j  >■ 
tãíj  »abido,  que  ali  em  tírmpo»  muito  re/noto» —  /  ■ 
do»  rojnanoí,  provavelmente  —  linlism  esi»1ido  um 
iiotpital  e  baiilio».  l>uravam  ainda  '/»  veirtiírioe  d"<-l- 
le»,  q«ando  a  be;jL'íra  D.  Ytt^ntor  maudou  Ifwt  r 
siqoelle  e»tab<;)ecim'iito,  'j»>mo  te  >/>tí>t  da»  pals;'.r;-i 
do  re^íectivo  breve  ymiifu-io,  e  da*  do  aívaiá  d« 
«ea  f.«po»o,  au>^jrí«aijdo  a  o}^«. 

K.U  já  me  'X/nten1ava,  »e,  pretermilfirtdo  ffrxiiz*, 
para  mim  tão  cercada»  de  treva»,  pudesv;  levar  o 
ír»eu  e»1«do  ai*  o»  priw.-ijwj»  da  mojiarciíia,  e  partir 
«Talii  para  fixar  a»  data»  da»  primeira»  f uíflaçfV:» díj» 
rio»»íí»  Jwtpit.aí'»,  «em  o  espirito  (*  jf>e  enredar  em 
duvida»,  e  á»  vase»  lamU^m  iialg^uma  anMidola  J«»- 
iriolíea  e  in'ilíf^T</nt,  c^nw  a  do  If^wpital  de  l'"<ir<j 
Ktcvro,  ou  do  JO.iJ/iiruj/J/jr  »-;n  Kantar<-in, 

I>j   que   Kr.    Agoítinho   d"   Kanta    Alaria   dií   no 
Snnduurvt  Mnriíjranj,  Ái^nn  d'j«  '•rfifiitu'  ■ 
K»-nh<«'a  'le  H'«)i;i-amador,  p<'«Je  inferir-»e  • 
1eniy>  il  rei  d<-  I'ortugal  'I>.  Kai, 

via    iio  ;  .!■  j/Kiwro   d»-  (i<>i(Hj.< 

tara  quem  Ifcjiiia  j>or  <■ 
1<»  *■  r«Tr?  r.otrtr,  fitic  r 


Ora,  ke  Iiavia  mnit/jt  iiotpítae*  e  aJber^ría»  uo 
r^no,   perg^untará  alçueoi ;   j,  '  'tf-ioplou    IJ. 

f^ancho  no  »eo  txtamento  uu  ■  .-i»? 

.Não  qu<'ro  affirmar  que  tiavia  m--j:':'f.  nem  poueo», 
roa»  pareí-e-me  que  do  t^rttaawnto  d«-<-larar  ví  tá» 
fíão  pode  c>ncl'jjr-»e  que  não  havia  muit'>  rnai*. 
H.ue  '•'^>clijiriamfys  eritã»  do  t>r»1aa>eDto  de  ÍJ.  Aí- 
fonv.!  II,  onde  {'mm  ojiiUrmylaifji  tairto»  movteiro», 
e  i>e  nãíj  /r»encion'/u  e«  prr-w-jtwnte  nenfaum  l^/tp»- 
tal  ?   Kis-aí^ui   a»  única»  ■  'o  r«-i,   ooe  ytÁKm 

Tt^KTlT-^^  áqo«ll«»  eifta.b'  ~  ti  <v>  q«*!:  re>- 

fíir  d"e!!ta  minha  terça  npb.».<io  que  repartaiii  e  des- 
pendam 'y^n  a»  igreja»  p'>bre«  do  meu  reiíyj,  yjtAt^ 
e  fcy/rotoi,  í-oroo  mait  Uie  parwaer  eonTeni»-ut*.  <» 
Ninguém,  t/yiavia,  aríruinentará,  que  no  tenipo  d* 
D.  Afloiiyj  II  não  tiavia  em  Portugal  uenhum  ht»- 
pital  nem  all<ergaria.  por»^ue  no  O-tí.a/neiit/j  du  rei 
/ião  fce  faz  d'elle»  menção. 

Aão  v^  não  prjMO  dizer  quae*  foram  o>  yúwm  iro» 
ho»pit4ie»  que  houve  eiri  fortuçaL  senão  tam>>iD. 
quanto»  exúfíiam  no  fwincípio  da  Mouar<.-bia.  Kctn!- 
tant»,  não  deixarei  de  pn^tefiir  no  ineu  intíutt», 
que  é  tirar  'Iíj»  pou'íi»  í;"i'-  ■  ■-  pude  •fMiçii.  al- 
guma» iilaçíie»,  que  nâ''  la»  tAí-itt,  e  da  ín- 
dole da  antija  vxifáaák  j^^í     .  ^-líí. 


ti'>[.i 


ei»- 
jWO 


»i  <J'     •  "Ul 

\ac^>,    «/\<lliii,   t-yn»'..  berda»)»»,  pof  ,  * 

oma  part*  do  reru;  r  ■  ri^    'Io    ■   •'■/  •    k  •■.'.- 

ra;  e  o  de  Galo».  ■  l<-  - 

'la  ma  arca,  u»!  ai  •    r»-. 

<lí»,  «leixando  »'»»  )e[)r<.i.'.i  fl";,qiíHla    cidade  (ad<»  «i«  j 

rouKM  riii  twi  rrj»-'!"'"     •'•• •"    .r.i..,t..     «... 

■-.arlatji»,   l*tiçor,  ■ 
M......^..„  i  rainha  í;.      ...  . 

<  dito  1**lameiito,   > 

•   .Ml   ■.  irt-nl'"*    "T»,   «..;■■ 

uma-,  ao  ''<•'■  '•Minnn' 


.  VIlfCZAS   VA»COaCA»AS. 
(KoTtria  Mi«ioBirji.} 


'>    »'OTO 

«:... ,. 


referem  r»^<' 


<    um  d"»  majf  «n 
i.ind»  na  Kurvp». 
Horn.  tuutitr- 


''m  TrmttKttM.  -  VcL  V«  da 


o  PANORA3ÍA. 


325 


mementfí  com  as  tradições  que  os  vascongados  e  irlande- 
les  receberam  de  seus  maiores,  os  primeiros  passaram 
a  Irlanda,  dois  séculos  depois  da  chegada  de  Tubal 
á  Hespaidia,  e  a  povoaram.  A  siiiiilhaiiça  de  caracter 
e  as  sympatbias  que  entre  vascongados  e  irlandezcs 
se  tem  sempre  notado,  o  confirmam  até  certo  pon- 
to; porque  não  podo  unicamente  ser  efleito  do  ca- 
sual coincidência. 

Entre  os  acontecimentos  remotos  que  quasi  to- 
cam o  dominio  da  fabula,  encontramos  uma  gran- 
de secca,  que  parece  ter  durado  não  poucos  annos, 
deixando  ermas  as  comarcas  de  Ilespanha,  á  exce[>- 
ção  das  montanhas  septentrionacs,  que  não  experi- 
mentaram, pelo  menos  em  grau  tão  elevado,  aquel- 
le  ílagello.  As  pessoas  que  não  foram  victimas  da  fo- 
me, e  das  muitas  enfermidades  que  por  essa  occasião 
se  desenvolveram,  trataram  de  acolher-se  ao  único 
porto  de  salvação,  retiraiido-se  ás  províncias  vascon- 
gadas.  Copiosas  chuvas  succederam  a  tão  larga  ede- 
vastatlora  secca,  e  pozeram  em  estado  de  ser  cultiva- 
das as  terras  que  a  falta  de  agua  tornara  estéreis. 
Então  saíram  pela  segunda  vez  do  paiz  \  ascongado 
as  famílias  que  foram  povoando  a  superfície  da  pe- 
nínsida,  e  se  confundiram  com  os  estrangeiros,  que 
a  fama  da  fertilidade  c  riqueza  do  solo  hespanhol  at- 
traíra  de  longes  torras. 

Dos  largos  períodos  que  a  mingua  de  noticias  nos 
obriga  a  passar  por  alto  sú  diremos  que  estamos  de 
accôrdo  com  os  que  julgam  que  em  Ilespanha  não 
havia  um  soberano,  uma  auctorídade  central  cujas 
ordens  se  cumprissem  igualmenle  em  suasdítferentos 
regiões,  c  que  caila  uma  se  governava  per  si,  não 
estando  sujeita,  nem  querendo  sujeitar-se  ás  demais. 

Ninguém  ignora  <lu<^  os  celtas  por  uma  parle,  e 
os  phenicios  por  outra,  invadiram  ardilosamente  o 
território  hespanhol,  o  que,  com  quanto  lhes  fosse 
mui  faeil  enganar  os  seus  singelos  habitadores,  não 
puderam  reduzil-os  por  forea,  ((uando,  largando  a 
mascara,  descubriram  seus  perlidos  intuitos.  Nem  dos 
mencionados  povos,  nem  dos  gregos,  e  carthaginezes 
soUreram  os  vascongados  aggressão  alguma,  servindo- 
Ihes  de  baluarte  o  seu  valor,  a  fragura  das  suas  mon- 
tanhas, e  ainda  mais  a  pobrexa  d\'stas,  em  que  os 
inva-sores  não  podiam  encontrar  luetaes  preciosos  com 
que  satisfazer  sua  insaciável  cobiça. 

Na  cpocha  a  <pi<!  nos  referimos  eram  já  conheci- 
dos sob  a  denominação  de  cantabros  e  vasconços,  os 
povos  (jne  viviam  nas  montanhas  situadas  á  esi|uer- 
da  do  Kbro.  lOra  a  Cantábria  uma  região  vastíssima 
que  comprehendia  as  nu)ntanhas  de  Santander,  as 
três  província»  Vaseongadas  (■  a  llíi'ja;  ao  (íríente 
da  ('aniabria  ficava  a  Vascoiiía,  <|ue  iioje  chamamos 
Navarra. 

()«  moradores  iPeslas  regiões  eram  homens  robus- 
tos e  bellicosos,  a  intempérie  de  ncnliiiiii  modo  os 
molestava,  e  despiesavam  a  vida  qiiandu  a  edade 
avançada  lhes  não  permiti  ia  tomar  jiarl»'  nos  cumiia- 
tes.  Ali^laralil-se  uiuílos  cantabros  e  vasconços  no 
eiceriilo  de  Annibal,  e  distiugiiirain-se  mui  particu- 
larmente, marcliando  siiiipi-e  na  vanguarda,  (t  poe- 
ta Silio  Itálico  faz.  menção  honrosa  de  uns  e  outros, 
n  reCfre  ikiI.ivcís  círcumslancias  que  manifestam  o 
proceder  d^iquelies  em  a  segunda  guerra  |iuiii>'a. 

Knire  tantas  o<'casiòes  que  oshespanhoes  derraina- 
rnm  o  seu  sangue  por  causas  t|ue  na  verilade  lhes 
liuo  lieviam  iiiliT<rssar,  não  fallarain  algumas  em 
que  coinmaiidados  por  capitã»'»  valorosos  pelejaram 
pcli»  sua  índ<-pendeiicia,  o  para  arrojar  da  península 
estrangeiros  aniliicioMis,  ipie  com  siKvessivas  guerras 
IITa  disputavam.  \  nobre  l<-ntaliva  de  \  iríatoacliou 
erlio  eiilrw  os  ranlabriis  qm-  seguiram  suas  bandei- 
ra»,   e    posleriormenie   ^occorreram    o<   nimiantiiioii. 


I  obrigando  o  general  ruiiiunu  Caio-Hostilio  alevautar 

'  o  sitio  da  sua  heróica  cidade.  Uniram-se  também  os 

cantabros  a   Pompeio  acompanhaiido-o  á  Grécia,   e 

como  s«'inpre   deram    provas  ue  inimitável  valor  na 

celebre  batalha  de  1'liarsalia. 

Temo»  referido,  posto  que  succintameute,  os  suc- 
cessos  mais  notáveis  <|ue  tem  relação  com  opai^^'as- 
congado  nas  epochas  que  pr<M;tHjeram  a  guerra  can- 
tabrica  ;  c  n;is  minguadas  e  confusas  uotiiúas  que  d'el- 
las  nos  restam,  acha-se  mais  do  uma  ve:  indicado  o 
caracter  dos  primitivns  cantabros,  mui  similhanteao 
dos  actuaes  vascongados.  Firmeza  no  cumprir  a  sua 
palavra,  resignação  admirável  em  tudo  menos  naliu- 
mílhaçâo  e  na  deshonra,  otlío  a  toda  a  casta  de  no- 
vidades e  mudanças  repentinas.  Eis-aqui  indicador 
os  princípaes  pontos  de  similhança  entre  o  cantabro, 
que  ha  mais  de  vinte  séculos  habitava  aquellas  mon- 
tanhas, e  o  <[ue  presentemente  as  cultiva. 

Ha  uma  circumstancía  que  ainda  faz  sobrcsaír  mais 
a  observação  ([ue  acabamos  de  fazer  ;  e»ta  eircuuistan- 
cia,  a  muitos  respeitos  notável,  é  a  religião.  Os  can- 
tabros não  prestavam  culto  aos  Ídolos,  adorando  uni- 
camente um  deus  desconhecido,  ao  qual,  diz  Slra- 
bão,  festejavam  sempre  tie  noite,  o  mui  particular- 
mente nos  plenilúnios,  ftuem  introduziria  esta  reli- 
gião entre  aquelles  montanhezes .'  Seria  porventura 
alguma  tias  numerosas  phalanges  de  aventureiros, 
que  seilentos  de  riqueza  invadiram  o  território  da 
península  ibérica  ?  Cremos  que  não,  e  antes  o  attri- 
buimos  ao  respeito  com  que  os  vascongados  con.serva- 
ram  sempre  as  crenças,  as  instituiçvcs,  tudo  final- 
mente que  herdaram  de  seus  maiores.  i\""e.sse  culto 
do  que  faliu  Strabão,  achamos  o  que  sem  duvida  pra- 
ticaram os  primeiros  habitadores  d'aquellas  moiila- 
nlias. 

Entrelauto  esta  nobre  tenacidade  não  garantiu  os 
cantabros  dos  ataques  de  um  homem  soberbo,  que 
não  podia  tolerar  que  no  mais  obscuro  e  remoto  canto 
da  terra  deixassem  de  ser  obedtH'iJas  as  suas  ordens. 
Augusto  entendeu  que  nada  valeria  quanto  eiu  du- 
zentos annos  se  liav  ia  feito,  se  os  cantabros  e  os  as- 
turianos continuassem  gosaudo  os  seus  foros,  e  apar- 
tados das  outras  gentes.  A  conquista  d"aquelle  pe- 
queno território  julgou-a  digna  de  sua  pessoa,  e  reu- 
nindo um  [loderoso  exercito,  «  cercando-se  ilos  mais 
afamados  generaes,  deu  princípio  á  guerra  cantabri- 
ca,  na  qual,  em  vez  <\e  louros,  só  encontrou  pezare» 
c  amarguras  sem  couto.  Foz  seus  arraíaes  em  Sogui- 
sarna,  e  dividindo  as  forças  em  três  corpos,  entrou  n 
Cantábria  por  dillerentes  pontos,  ao  mesmo  tenifw 
que  Agri|)pa  bloqueava  os  portos  e  ivnduzía  em  sua 
armada  um  exercito  (pie  dev  ia  aj>oderar-sc  do  lit- 
toral. 

Surpresos  os  cantabros  com  tão  inesperado  succes- 
so  e  vendo  «pie  o  inimigo  enviava  numerosiis  legiões 
(pie  assolavam   tudo,   tomaram   o  uníiv   partido  que 
lhes  restava,  retirando-se  aos  mais  fragi>sos  logares,  e 
luftlílisaudo  irali  os  ^eus  contrários,  «pie  a  cada  yui» 
so   se  viam   sem  víveres,   investidos  e  mortos.    Cinco 
annos  durou  a(piella  guerra,  suceuiubimlo  muitas  ve- 
zes  as  mais  aguerridas   hosles  dos  nunanos,  já   á  (6- 
ine,  já  ao  cansaço,  já  aos  contínuos  ala(iues  parcíae<>. 
l'Vítos  singulares  de  valor,    inimitáveis  rasgos  de  hc- 
roisuio   deveram   de  succeder   n'u<piella  larga  o  sau 
greiíta   guerra  ;   como,    porém,   os  cantabros   não  ti 
nliam   ipiem  as  escrevesse,   suas  fiiçaiihtts  llcaram  w 
pnltadas  em  perpeluo  olvido. 

As  não  interrompidas  fadigas  que  uvexavum  o  C» 
sar,  as  suus  marchas  de  noite,  e  o  tenu)r  (pieem  uma 
d'estas  lhe  causou  um  raio,   «pie  matou  a  seu»  IK-S  o 
escravo   que   o   alumiava,    foram    causi   de  perder  « 
saúde,  e  de  retirar  se  a  'rarragon.i,  deixando  a«  »uus 


326 


O  TAiXORAMA. 


Iropas  sob  o  comniando  deCayo-Antistio.  Continua- 
ram as  facíjões  militares  depois  da  retirada  de  César, 
f  conseguiram  suas  hostes  apoderar-se  de  alguns  pon- 
tos importante?,  com  o  que  se  deu  por  terminada  a 
guerra . 

Fez-se  |Ki/.  em  todo  o  mundo,  v.  apparceeu  no 
Oriente  aquella  sublime  doutrina  (jue  devia  regene- 
rar o  homem.  A  somljra  d'este  grande  successo,  os 
nossos  intrépidos  montanhezes  emprehenderum  nova- 
mente a  guerra  e  com  maior  arrojo,  rccujK.rando  os 
pontos  que  nas  luctas  anteriores  haviam  perdido,  e 
desbaratando  completamento  as  forças  que  íe  lhes  op- 
pozeram.  Encarregou-sc  ao  celebrado  Agrippa  a  árdua 
tarefa  de  sujeitar  os  cantabros  e  asturianos.  Foi-lhe 
adversa  a  fortuna,  chegando  á  cruel  extremidade  de 
ver  os  seus  soldados  negartm-sc  ao  accomeftimento. 
Com  exemplares  castigos,  e  extrema  actividade,  e 
com  os  soccorros  e  reforços  que  de  contínuo  lhe  che- 
gavam, piído  tomar  a  iniciativa,  e  á  custa  de  rios  de 
sangue  conseguiu  algumas  vantagens,  que  exagera- 
damente se  consideraram  como  um  triumpho. 

As  relações  entre  os  cantabros  e  romanos  eram  fre- 
quentes nos  períodos  der  Iranquillidade  que  oecur- 
riam  n"aquellas  horríveis  guerras,  e  o  que  não  pôde 
a  força,  <^ue  não  remedeia  males,  conseguiu  a  cor- 
dura, a  tolerância  e  o  respeito  ás  crenças  e  hábi- 
tos do  vencido ;  meios  que  empregados  com  franque- 
ia, sem  doble/.,  nem  Iiy|)ocrisia  sempre  surtiram  ad- 
mirável etTcilo.  Surtiram-o  igualmente  então,  c 
aquellcs  que  tinham  acendido  ao  combate  quando 
viam  que  se  lhes  queria  inrpôr  ura  jugo  duríssimo, 
tornaram-se  depois  nos  mais  fieis  amigos  dos  roma- 
nos, quando  estes  se  contentaram  com  ser  seus  allia- 
dos  e  protectores. 

(Continua.) 


\    I\GEM     \    fALE^TIN.V     POR    Mk.    DE    SaILI  V. 

iiarc(q>lin(jo  de  J)avid.  —  Jijrploracuo  do  Alar-^Iorio. 

■Os  DEScoiuiiMEXTOs  do  sabío  académico  na  ^iagem 
ao  Mar-Morto  não  são  menos  interessantes.  Os  tra- 
balhos e  perigos  d'csta  excursão  rctrahiani  os  mais 
"intrépidos  exploradores,  e  alguns  pagaram  com  ávi- 
da a  ousada  empresa.  Mr.  de  Saulcv,  homem  tanto 
de  acção  como  de  sciencia,  deeidiu-se  a  perscrutar 
aquellas  paragens,  e  executou  seu  projecto  a  despei- 
to de  riscos  o  obstacidos.  Acho\i  com  o  auxilio  dos 
textos  hihlicds,  da  tradição  árabe,  e  pela  inspceção 
dos  logares  as  ruínas  de  Codorna,  de  Gomorra  e  das 
outras  cidades  da  1'enlapolis,  o  descrcvcn-as  como 
archeologo  experiente.  Colligíu  sobre  o  Mar-Morto, 
o  valle  que  o  rodeia,  a  constituição  gefilogica  das 
montanhas  projtimas,  a  natureza  de  suas  aguas,  c  o 
curso  do  Jordão,  particularidades  tão  exactas,  expli- 
cações tão  evidentes,  desenhos  tão  authenlicos,  queé 
impossível  hoje  não  se  render  o  mais  incrédulo  ante 
a  concludente  círrteza  dos  factos. 

Ao  primeiro  aspecto  d'aquplle  mar  ou  grande  la- 
!;o  sertanejo,  onde  Mr.  de  S;iuley  e  seus  companhei- 
ros chegaram  pelo  valle  de  Cedron,  agradável  ad- 
miração os  tomou  do  súbito.  A  vegetação  maravi- 
lhosa por  aquelle  lado,  um  verdadeiro  bosque  de  ca- 
naviaes  de  vinte  pés  de  altura,  os  Kindos  de  adens, 
os  pássaros  <|ue  avi>ejavam  e  subníergiani-se  no  lago 
maldicto,  causaram-lhes  a  primeira  sensação  de  as- 
sombro :  prestes,  acercaiido-si!  da  praia  recamada  de 
roateriaes  sulphur(~os  e  bituminosos,  colheram  um 
peixinho  morto,  levado  pela  corrente  do  Jordão  ao 
M&r-Asphaltite,   cujas   aguas   não   aduiiUaii:    svr  vi- 


vente. Rectificaram  também  outro  facto  :  a  depres- 
são incrível  do  Mar-Morto  abaí.xo  do  nível  do  .^le- 
diterraneo.  —  Esta  depressão,  calculada  porMr.  Ber- 
tu  mediante  observações  barometricas,  é  para  mais  de 
mil  metros.  —  A  agua  é  de  estremada  transparên- 
cia •,  porém,  mui  salgada  e  amarga  ao  mesmo  tem- 
po ;  está  saturada  de  saes  em  dissolução,  e  o  fundo 
do  lago  é  coberto  de  uma  crusta  cristallisada. 

Seguindo  a  beira  do  lago  encontraram  succestiía- 
mente  bosques  espessos  de  canas,  tamarindos,  e  bo- 
nitas mimosas,  onde  cantavam  centenares  de  pássa- 
ros, e  plainos  áridos,  queimados  e  desertos;  cami- 
nharam trabalhosamente  pelos  flancos  de  ladeiras  for- 
madas de  rochas  calcinadas,  que  representavam  exa- 
ctamente jactos  de  pedras  arrojados  por  uma  mina  : 
estas  projecções  se  dirigiam  para  um  centro,  onde  í« 
divisava  unia  cratera  apagada. 

(aluando  chegaram  próximo  a  Avii-Djedy,  vestí- 
gio cNÍdente  do  nome  bíblico  Engaddi,  reconheceram 
as  ruínas  de  uma  cidade  considerável,  próximo  das 
margens  de  um  ribeiro,  cobertas  de  formosas  arvores. 
Ali  viram  pela  j)rímeíra  vez  o  fructo  cuja  estruetura 
deu  logar  a  tradição  das  maçãs  ou  pomos  de  Sodo- 
ma,  d  essa  fructa  maldícta  que  se  converte  em  cinza 
e  fumo  quando  se  llie  toca.  Estes  pomos  são  de  duas 
plantas  differentes  :  uma,  asclcpias  proccra  dá  um 
fructo,  que  os  árabes  chamam  borlu-kan-esdum.  la- 
ranja de  Sodoma ;  estando  maduro  abre  quando  o 
apertam  com  os  dedos,  e  mostra  milhares  de  pevides 
sustidas  por  um;is  plumas  setosas,  que  se  desvanecem 
como  fumo.  A  outra  planta  é  uma  salúnca  magnifi- 
ca de  flores  rosadas,  cujas  pequenas  maçãs  abriudo- 
se  apresentam  uns  grãos  denegridos  que  parecem 
cinzií. 

De  Ayn-Djedy  passaram  aMassad,  ultimo  baluar- 
te da  independência  judaica,  atravessando  uma  pla- 
nície cheia  de  montinhos  de  cinza  arrojada  pelas  tor- 
rentes do  inverno.  Reconheceram  muitas  crateras 
bem  caracterisadas  e  uma  larça  corrente  de  lava ; 
descançaram  depois  em  ^laíel-limbareheg.  onde  tam- 
bém se  vêem  ruínas  eonsitleravcis  c  um  pequeno  cas- 
tello  romano,  ainda  cm  iMjra  estado  de  conservação, 
junto  de  uma  deliciosa  campina,  cuja  vegetação  n>- 
bubla  fiizia  notável  contraste  com  o  paiz  devastado 
{jue  acabavam  de  j)ercorrer. 

l'roseguindo  a  jornada  examinaram  novas  crate- 
ras e  chegaram  á  montanha  do  íal.  Mesmo  no  flan- 
co da  rocha  salina  se  desctibrem  as  ruínas  de  uma  ci- 
dade ímmcnsa  que  as  tríbus  nómades  dononiinani 
Klitibtt-Ksdiím  ;  e  Sodoma:  nuús  longe,  no  flanco  do 
lado  do  noroeste,  acham-se  os  restt»  de  Xoar,  a  Se- 
gor  da  BibUa.  «Só  um  forti^imo  rcpellão  (diz  o  sa- 
bío viajante)  podia  fazer  surjlr  esta  mole  salina  de 
três  léguas  de  comprimento  e  quarenta  e  cinco  bra- 
ças de  altura  ;  neste  sacudimento,  oricinado  pela 
erup;.lo  volcanica  que  di'>truiu  simull.ineamcnte  to- 
das as  cidades  de  l'entap<ilis  seria  aniquilada  Sodo- 
ma cora  todos  08  seus  habitante?.  •■  Intinidade  de  en- 
tulhos envoltos  em  escorias  c  cimas  é  o  que  se  vê  on- 
de foi  Sodoma. 

A  memoria  da  destruição  das  cidades  do  Pentapo- 
lis  conscrvou-sc  até  o  presente  entre  us  habitantes  du* 
terrenos  próximos  ao  Mar-Morto. 

A  chapada  que  se  otende  pela  montanha  do  sal  <c 
mui  perigosii  em  raião  da  natur«^za  do  s<.>lo  qucafúr- 
m;;.  As  vezes  a  arei:i  impregnada  de  sal,  logo  qu«' 
csle  se  desprende  <•  ilissolve  «>m  as  aguas,  perde  to- 
da u  sua  conbistenci.i  e  falta  debaixo  dos  pes;  então 
não  ha  que  esporar  salvação  \  o  infclit  que  esta  ii*e»- 
s,i  paragem  afunda-sc  nos  abvsuios  e  perece  abafado. 
Os  nossos  viajantes  correram  risco  de  acabarem  U'»»- 
sc  modo,  por  teu  amor  á  scicacia. 


o  PAl>iORAMA. 


COT 


O  Sabkhab  é  uma  planura  lodosa  e  sem  vegeta- 
ção que  cobre  a  ponta  meridional  do  Mar-!Morto  : 
«fite  rios  bastante  «audaes,  entre  elles  um  como  o 
Jordão,  regam  essa  planicie  •,  porém,  logo  que  d'ella 
se  sáe  encontra-se  uma  verdadeira  floresta  dos  trópi- 
cos com  suas  pantheras  e  seus  colibris.  Os  viajantes 
atravessaram  umas  ruinas  parecidas  ás  de  Sodonia  \ 
eram  os  vestígios  de  outra  cidade  de  Pentapolis,  Se- 
boín.  D'ahi  passaram  ao  paiz  de  ISIoab,  onde  visi- 
taram os  fragmentos  de  cidades  edificadas  em  moles 
de  lava,  e  que  por  assim  dizer  cobrem  todas  as  ver- 
tentes dos  xailes.  Na  ponta  do  norte  visitaram  Sclii- 
l)an,  ruina  desamparada  de  todos  os  lados,  e  como 
<jue  apegada  á  cúspide  de  um  pincaro  soljranceiro  á 
planície ;  o  seu  nome  recorda  quasi  sem  alterarão  o 
do  rei  de  Bassan,  que  foi  o  conquistador  do  paiz  de 
-Moab. 

Visinho  d'este  ponto  os  viajantes  examinaram  os 
restos  de  templo  magnifico  dedicado  ao  sol  na  epo- 
dia  romana  •,  é  construído  sobro  as  ruinas  de  outro 
lemplo  moabita,  edificado  com  pedaços  de  lava.  Su- 
bindo para  o  norte,  ]\Ir.  de  Saulcy  e  seus  compa- 
nheiros viram  muitas  localidades  bihlicas,  entre  ou- 
tras Adamali,  cuja  catastrophe  e  nome  nao  se  tem 
apa;Ta<lo  da  memoria  dos  árabes.  Depois  está  Quasr- 
Jladjlab,  convento  arruinado  da  opotha  das  cruzadas, 
que  tem  as  paredes  cobertas  de  pinturas  do  século  13.*^ 

\a  extremidade  septentrional  do  IMar-Morto  rc- 
lonheceram  um  ilhote  bem  pequeno  cheio  de  entu- 
lhos, a  que  os  árabes  pozeram  nome  Jiedjom-Liuih, 
morouço  de  Loth.  1'or  ultimo,  costeando  a  praia 
atravessaram  uma  espaçosa  cratera,  ao  pé  da  qual  ha 
ruinas  de  bastante  vulto  que  os  beduínos  chamam 
Knhil-ÍTumram  ^  são  os 'vestígios  de  Gomorra,  des- 
triiida  pela  eholera  celeste. 

A<|ui  termina  esta  interessante  viagem.  A  catas- 
trophe terriv<4  (juc  aniquilou  as  cinco  cidades  po- 
leiítes,  criminosas  entre  todas  as  cidades,  e  que  for- 
mavam a  ]'enlapolls,  a  saljor :  Sodoma,  Gomorra, 
Adamali,  Sel)uín,  e  Segor,  é  hoje  um  facto  incon- 
I estável.  Ksta  nova  exploração  é  tanto  mais  pr<'cíosa 
quanto  mais  confirma  todas  as  itarrações  da  Biblia. 


LENDAS  HISTÓRICAS. 


O     Dk.monio    DU     li.VUO. 


II. 


S\o  p.iiia<h)S  seis  annos.  Ajoven  .Maria  leni  desabro- 
chado, qual  rústica  fiôr,  nas  margens  do  lago  de  Mon- 
tx-ith.  Educada  no  most(íiro  de  Inch-Mahome,  stí  co- 
nhece do  mundo  os  rochedos  esc;ilvados,  as  estevas 
^3'lvestres  <;  as  ribas  verdejantes,  testemunhas  dos 
«eus  passeios  e  dos  seus  folgares. 

licvantii-se  .-lo  romper  do  dia  :  alegre  <•  doiuh-jaii- 
te  os  H(?us  passatemp<js  são  as  eorridxs  pi'lus  veri'das 
fragosa»,  semeadas  «h;  [«'iiedos,  (jue  até  ás  vezes  lhe 
rasgam  o  plaid  de  selim  preto,  .icolehetado  com  um 
(iruclie,  em  (pie  estão  es(Mil|)i<las  as  annxs  di'  Lor- 
rainc  o  da  Escócia.  O  seu  ci>raç.'io  lambem  n.'io  co- 
nhece outras  coiumoções  que  as  que  llie  despertam 
.w  lendas  e  as  bailadas,  e  a  musica,  e  a  dansa. 

Maria  i'  a  gr.iciosa  Bylpliíd(!  d'aqui'IKT.  jilagas,  e 
nit  pescadores  suiríein  satisfeilos  quanclo  a  viVtii  cor- 
rer ou  .iritcs  (liiiidcjar  por  entre  o  m.illo:,  é  o  duen- 
de tulcllar  d'.i(|Uilhi  região.  Oseu  seiuliliiiite  Ião  al- 
vo e  ('('irado,  i>  seu  olhar  Ião  lirilhante  e  Ião  lím|)i(lo, 
(|iic  ((inieça  (Ic  ensaiar-se  n\i(|uelle  fascinar  de  (|ue 
depois  lanto  jibusou  ^  os  louros  eabellos  ;i  beijar-lhi^ 
fiii  unneis  o  deljcadi)   pcMVMjo  ■,  a  vo7  iiisiiuianle,  (pie 


ora  toma  uma  intonaeão  imperiosa,  ora  eiprime  a 
mais  refinada  garridice  ^  tudo  n^eUa  encanta,  seduz, 
arrebata . 

Os  monlanhezes,  na  estação  formosa,  àeixair.  sem- 
pre ficar  a  porta  de  suas  cabanas  aberta  •,  porque  sa- 
bem que  a  filha  de  Jaques  V  ha  de  ir  alguma  ver 
podir-lhes  um  bocado  de  pão  negro,  e  ouvir-lhes  as 
suas  canções  poéticas. 

Outras  vezes  vê-se  no  lago  a  vogar  graciosamente 
uma  barca,  de  donde  partem  risadas  estridentes,  e 
ditos  chistosos,  em  espirituoso  tiroteiar  :  é  a  formosa 
herdeira  de  Elscocia  a  divertir-se  com  as  suas  com- 
panheiras. !Maria  tem  uma  pequena  corte  composta 
de  meninas  todas  da  sua  edade  e  do  seu  nome.  A 
rainha-mãe,  como  mui  devota  que  era  da  Virtjem, 
quiz  que  todas  as  que  acompanhassem  sua  filha  ti- 
vessem as  mesmas  razões  para  buscar  a  intercessão  da 
Mãe  de  Deus.  Por  consequência  todas  se  chamavam 
Maria :,  e  esta  corte  em  miniatura  era  consagrada  ao 
mesmo  culto. 

íluitas  vezes,  pois,  todas  as  pequenas  Marias met- 
tiam-se  n'uraa  barca  com  a  sua  jovenil  rainha,  e  la- 
ziam-na  vogar  sobre  o  lago  de  !Monteilh  ^  e  as  aguas 
esverdeadas  e  profundas  serviam  de  cspellio  aos  seus 
rostosinhos  gaiatos. 

Um  dia  soube  a  joven  rainha  que  ia  partir  para 
França.  Em  sua  fronte  tão  meiga  e  tão  pura  punha 
Deus  duas  coroas;  e  promettiam-lhe,  em  S.  Germa- 
no, um  esposo  da  sua  edade,  o  delphim  Francisco. 
Com  quanto  a  idéa  de  viajar,  de  mudar  de  clima, 
de  sair  d^aquelle  mosteiro,  que  tinha  sido  para  ella 
um  tão  triste  berço,  fizesse  arfar-lhe  o  coração,  nem 
por  isso  tinha  menos  saudades  do  seu  formoso  la^o, 
e  das  verdes  estevas,  e  dos  tristes  campos  (juc  ale- 
grara com  os  seus  folgares.  Ia  ver  .i  j)atría  de  sua 
mãe,  o  dos  seus  tios  de  Guise,  (jue  lhe  mandavam  tão 
lindos  presentes,  e  lhe  escreviam  tão  bellas  palavras ; 
ia,  arreiada  de  gentis  galas,  tomar  um  logar  eminen- 
te na  côrle  de  S.  Germano ;  mas  era-llie  mister  re- 
nunciar á  liberdade.  A  pequena  nionlanheza  ia  lor- 
nar-se  uma  verdadeira  rainha  \  isto  é,  não  poderia 
jamais  sair,  e  correr  á  sua  vontade  ■,  até  o  delphim 
Francisco,  esse  futuro  sócio  de  brinquedos,  a  atterra- 
va.  Se  elle  tinlia  de  ser  um  dia  seu  marido  1  l'or  isso 
Maria  (]uiz  dar  um  ultimo  jiasseio  pelo  seu  (|uerido 
lago,  e  as  suas  quatro  com[)anheiras  ordinárias  Ma- 
ria Fleming,  Maria  Seaton,  Maria  llivínglon,  .ala- 
ria Ueatouii,  comluziram-na  á  barca  que  a  esperava. 

N  este  dia  estava  o  céu  carregado  e  triste  como  o 
coração  da  joven  rainha.  A  Escócia  parecia  tomar 
lucto  ;  o  lago  agilava-se  como  a  murmurar  uma  (|uei- 
xa  sentida  ;  os  pescadores,  que  tinham  accorrido  pa- 
ra assistir  ao  derradeiro  passeio  ila  sua  fada,  con- 
templavam calados  as  cinco  Marias,  sem  soltar  as 
costumadas  aeclamaçõcs;  A  rainha ,  sobre  (piem 
pesava  toda  aquella  tristeza  exterior,  tentou  rir, 
excitar  as  suas  amigas,  e  não  ccmseguimlo  distraí- 
las  (piíz  comcç"ar  uma  bailada;  mas  a  sua  voz  não 
era  agora  tão  pura,  n(;m  tão  clara  ;  não  se  atreveu 
a  continuar,  c  ao  primeiro  estribilho  caloii-se ;  de- 
pois deitou  os  braços  ao  pescoço  (h?  IMaría  Fle- 
ming, (pie  estava  aupéd\<lla,  e  parecia  a  mais  triste, 
e  dísse-lhe  : 

—  Olha,  minha  (lueridinlm,  não  ni(>  faças  chorar; 
ponpie  não  pensaremos  nós  nas  terras  (|ue  vamos 
vf-r  > 

—  Ah  !  respondeu  Maria  Fleming,  pôde  lá  haver 
terras  lionitas  sem  este  lago.' 

--  l'()br(í  lago!  acudiu  a  rainha,  bi-m  (|ui/.era  po- 
der |c'\al-o  comigo!  E  iiiclinando-se  |iara  fora  da 
borda,  nietteu  i\  rósea  mãosinha  nu  iigiia  esvcidea- 
da,  eiicheu-ii,  (>  levou-a  á  boca. 


328 


O  PANORAMA. 


—  Tumae  seutidu,  miuha  rainha,  disse  uma  das 
meninas,  não  vos  inclineis  tanto,  queoKelpy,  o  de- 
mónio do  lago,  pode  agarrar-vos  I 

O  Kclpv  !  replicou  3Iaria  Stuart,  esse  é  um  de- 
mónio bom,  (jue  sempre  se  sorriu  para  mim,  e  sem- 
pre me  quiz  muito !  não  me  ha  de  fazer  mal ! 

—  Se  vos  quer  muito,  mais  rabões  deveis  ter  pa- 
ra vos  arrccciardes  d'elle. 

—  Minhas  amigas,  disse  então  a  rainha,  digamos 
adeus  ao  demónio  do  lago,  a  esse  \  clho  companheiro, 
que  nos  não  pôde  seguir,  e  que  nunca  mais  ha  de 
ouvir  as  nossas  canções. 

Kntão  Maria  Stuart  ergueu-se  na  barca,  que  as 
vagas  eiinovelladas  começavam  de  balouçar,  e  a  jo- 
\en  feiticeira  dirigiu-se  n''estes  termos  ao  mvsterioso 
tyranno  do  lago. 

—  O  velho  Kelpy,  tu  que  es  negro  como  a  noite, 
e  que  tens  os  compridos  braços  cobertos  de  limos,  e 
galopas  sobre  as  vagas  qual  fogoso  corsel,  c  mostras  a 
humana  cabeça  aos  affogados,  e  com  as  geladas  mãos  j 
affundas  as  barcas  perdidas ;  demónio,  que  sempre 
me  aâagaste  —  adeus  —  e  cm  lembrança  da  tua  mui- 
to amada  Maria,  rcceb-e  este  broche  com  as  armas  de 
EíCúcia  e  de  Lorraine,  que  tem  estadojuntodo  meu 
peito,  e  vac  tocar  o  teu. 

E  arrancando  do  plaid  o  broche  que  o  acolcheta- 
va,  Maria  atirou-o  ao  lago  ^  depois  po^-^e  de  joelhos, 
e  mergulhou  a  vista  na  profundeza  das  aguas,  espe- 
rando \ér  o  Kelpv.  Todas  as  suas  Loniprinheiras  a 
imitaram,  ede  tal  modo  fizeram  tombar  abarca  que 
as  vagas  solevantadas  pdo  vento  quasi  lhes  beijavam 
us  rostos. 

De  repente,  ou  fosje  porque  es  remadores  atterra- 
dos  de  tão  imprudente  brinquedo,  e  desesperados  de 
não  terem  feito  algum  caso  das  svias  recommecda- 
ções,  quizessem  obrigar  aquellas  estouvadinhas  apôr- 
Ihe  termo,  ou  fosse  porque  tiv  esse  augmentado  o  tem- 
poral, ou  fosse  finalmente  porque  o  demónio  quizes- 
se  tornar  a  Maria  Stuart  agouro  por  despedida,  sen- 
íiu-íc  um  grande  abalo  nos  costados  da  barca,  e  ele- 
vou-se  uma  forte  columna  de  agua  que  as  alagou  a 
todas.  lalaria  soltou  um  grito,  e  caiu  pallida  e  semi- 
morta de  susto  nos  braços  das  suas  companheiras, 
murmurando  que  vira  perfeitamente  o  Keípv",  eque 
o  Centauro  a  travara  dos  braços,  e  a  quizcra  levar 
conisigo. 

Forcejaram  por  a  socegar,  sem  comtudo  esta- 
rem isentas  de  medo  \  tanto  que  se  não  atreviam  a 
encarar  o  lago,  rocoiaiido  vér  os  olhos  verdes  do 
monstro,  esses  olhos  terri\cis  que  trazem  infallivel 
quebranto,  e  que  ate  agouram  a  morle  a  quem  os  en- 
contra, alaria  Stuart  essa,  ora  entraxa  n'um  tremor, 
ora  corria  a  mão  pela  cintura,  como  para  cxperi- 
uíentar  o  tiTcilo  do  aperto  que  dizia  ter  sentido.  El- 
ia  vira  mui  distinctamente  o  demónio  agarrar  abar- 
ca e  sicudil-a  •,  e  asseverava  que  no  momento  em 
que  soltara  um  grande  grito,  cnconimendando-se  á 
Virgen),  de  quem  era  mui  devota  tamhcm,  o  mons- 
tro, que,  pelo  c-ontrario,  tem  grande  temor  da  Mãe 
de  Deus,  mergulhara,  deitando-lhe  comtudo  um 
olhar  terrÍNel. 

A  barca  cm  breve  chegou  perto  do  mosteiro.  Ne- 
idiuma  se  a(re\cu  a  contar  o  incidente  do  seu  pas- 
seio. \  rainha  Cí^a  tinha  o  coração  ainda  mais  com- 
primido. O  presenlimcnlo  acabou  de  agourar  aquella 
viagem  i!e  França,  com  i|ue  debalde  tentavam  fascl- 
na!-a.  Quando  a  deitaram  linha  febre,  e  em  ftxla  a 
noite,  (que  esle\e  iim  temporal  di-sfcito)  cila  julgava.  . 
no  assobiar  do  vonto.  o  no  n\ugir  das  a;;uas.  ouvir  | 
as  voios  »io  Kc!p\-  a  cham.il-a,  o  a  reclamar  a  sua 
joven  noiva. 

.\  sua  aiu,  que  uão  eslava  pouco  assustada  com  n 


perturbação  da  kua  real  pupilla,  velou  toda  ,a  noi- 
te junto  do  leito,  c  ouviu-a  murmurar :  u  O  meu 
Deus,  que  me  tendes  destinado  para  marido  o  for- 
moso delphim  Francisco,  não  consintaes  que  eu  fi- 
que aqui  sendo  a  noiva  do  demónio  de  Monteith.- 
Pela  madrugada  o  somno  affugentou-lhc  os  terro- 
res ;  mas  a  partida  para  França  devia  ter  logar  n'€í»- 
íe  mesmo  dia,  e  quando  deu  a  hora,  Maria  deixou- 
te  condiuir  macliinalmente,  e  fechou  os  olhos  assim 
que  chegou  á  vista  do  lago. 

f  Contínua.) 


RtiiuJio  pura  o  morrão  das  searas.  —  Acontece 
serem  muitas  vezes  as  searas  de  trigo  acommettida'; 
de  uma  terrivel  moléstia,  a  que  os  lavradores  chi 
mam  morrão,  e  que  não  só  acalxi  com  a  espiga  ata- 
cada, mas  aifecta  toda  a  colheita,  destruindo  a  boa 
apparencia  do  grão  ou  da  farinha. 

l'or  vezes  se  havia  tentado  curar  cala  ;ra»issima 
enfermidade,  sem  que  se  colhesse  das  diligencias  r 
disveUos  empregados  pelos  práticos  um  resultado  de- 
cisivo. O  sr.  commendador  Marques  Rodrigues,  cu- 
rioso e  opulento  lavrador,  achou  um  processo  que  com 
ser  mui  simples,  económico,  e  da  mais  fácil  execu- 
ção, cura  radicalmente  aquella  doença. 

Recommendamol-o  aoa  agricultores,  podendo  af- 
fiançar-lhes  o  bom  resultado  da  receita  do  sr.  Mar- 
ques, que  tem  já  a  saucção  da  experiência  de  seis 
aunos. 

Eis  a  rccciia  : 

<..  Dissolvc-sc  uma  porção  da  sal  em  agua  fria,  de 
modo  que  n"ella  aboic  um  ovo. 

"  Lave-se  o  trigo  n"csta  salmoura.  Todos  os  grãos 
doentes  sobrenadam  iramediatamentc,  c  lanjam-se 
fora. 

».  Relira-se  o  trijo,  e  deita-se  para  o  lado,  conti- 
nuando com  o  mesmo  processo  até  que  toda  a  semen- 
te cístcja  Lvada. 

í.  Depois  de  estar  quasi  sácca,  envolve-se  cm  cal 
cm  pó,  e  temeia-se  n'este  estado.  " 

O  processo  do  sr.  !Marques  tem  ainda  a  pr«nosa 
vantagem  de  affucentar  «las  sementeiras  os  pássaros 
damninhús,  que  lhe  não  tocam  sendo  as  sementes 
assim  preparadas. 


—  Não   receeis  seguir   o   verdadeiro  progresso   do 
:  espirito   humano,   que  confia,   não   a  exércitos  com- 

manJados  por  capitães  mais  ou  menos  peritos,  não 
á  força  bruta,  mas  aos  nobres  combates  do  espirito, 
ás  lutas  da  intcUigencia,  o  destino  c  a  direcção  dis 
sociedades.  Bkkrver. 

—  Ao  poder  absoluto  chamou  um  politico  ani- 
mal desbocado,  que  corre  »  prccipitar-se  sem  o  freio 
da  razão,  tem  ns  rédeas  da  politica,  entendidas  na 
vara  da  justiça,  c  sem  os  e>tnlios  cm  que  se  dove 
so-nirar  a  prudência,  e  assim  não  devem  o<  p<HÍc- 
rosftt  ter  jxir  dita  o  i-onscrvar  tudo  o  que  intentam. 

Desgraçado  e  o  poder,  quando  o  podero?o  cuida 
que  tudo  úo\c  e  pode  obrar;  o  Demónio,  em  quan- 
to não  teve  todo  o  poder  de  Deus,  respeitou  as  vir- 
tudes do  íol,  e  nem  fo  lhe  atreveu  ",  e  corao  se  viu 
com  poder  absoluto  logo  o  destruiu. 

1'apke  A.VicjR.v,  cariaaoccítãcdcC.  MMor. 


—  O  reino  de  Deus  não  consiste  em  uma  escrupu- 
losa observância  de  lH-<;ueuas  fonnalidadi-N ;  consiste 
par.v  cida  um   t;a^  \irl«des  propHas  do  seu   estado 


42 


o  PANORAMA. 


329 


SACAVÉM. 


A  I)i;as  Irf^uas  rio  Lisboa,  na  estrada  r^uc  dVsta  ca- 
liilal  (joiuliiz  á  cidade  do  Porto,  osfá  assentada  Saca- 
vém, ficando  ao  norlo  do  ribeiro  de  Kriellas,  ou  pa- 
ra nielliur  dizer,  di-  uni  braeo  do  Tejo  (|ue  entra  lar- 
go esi)aeo  pelo  leito  d'a(juellc  ribeiro. 

Não  se  distingui!  Sacavém  nem  pela  sua  impor- 
tância coniinercial  ou  agrícola,  nem  pela  sua  popu- 
la^'.ão,  (pie  ascende  apenas  a  umas  1,.'!()0  almas,  em 
uina  única  parocliia,  a  de  Nossa  Senliora  da  Purifi- 
c.ição,  nem  por  f^loriosas  Irailifj^ões,  nem  por  veneran- 
dos monumentos,  nem  finalmente  por  a;;Tadaveispai- 
."iaj^ens  :  care<'e  até  ({'(íssas  preciosas  ijualidades  ([ue 
se  eiieonlrani  nos  arrabaldes  de  Lislioa,  em  {;eral  ^  a 
frescura  e  salubridade  di?  ares,  (pie  llio  roubam  a  pro- 
ximidade de  l(^rr(íii(js  encliarcados,  e  de  valias  ipie  a 
incúria  e  o  desleixo  tem  conservado  meio  entullia- 
du». 

1)ivide-s(!  a  |)i)Voa(;ão  ejii  alia  <■  baixa  ;  aipiella  (' 
mais  lavada  d(!  nrm,  e  mais  vistosa  u  alegre-,  esta  é 
menos  salubre,  mas  um  pouco  mais  aceiada. 

( 'onslnieijões  (pi(!  mere(^'am  mencionar-se  a[)eiias 
ite  contam  em  Sacavém  a  cereja  e  convento  de  Nos- 
sa Senliora  dos  Mártires,  i^  a  ponte  de  i|ue  lallan- 
mos  dep(jis. 

Ib-iies  (la.  Cosia,  iiiiiUier  de  Mi^^oel  de  Moura, 
seerelaiio  (Testado  iTel-iii  I).  Si'basl  i,"io,  e  depois  da 
batallia  de  Alcacer-Kiliir  um  dos  f^overnadores  do 
reino,    lendo  sido  iiiiracidosaiiicnle  saha,   por  inter- 

VoL.     1.  —  S.'"*    SltldU. 


cessão  da  ^  ir'j;eni,  dentre  a<  ruinas  da  sua  jiropria 
casa,  fjue  saltara  ])elos  ares,  cm  consequência  de  uma 
terrivel  explosiio  de  pólvora  n"uiis  armazéns  á  l'ani- 
pullia,  (jbtcTe,  pelo  valimento  de  seu  marido,  a  pos- 
so de  uma  ermida,  com  a  invocaíjão  de  Nossa  Senho- 
ra dos  Martvres,  (jue  ficava  contigua  a  uma  (juinta 
(pie  possuia  em  Sacavém.  No  logard'esta  (>rmidafoi, 
])ela  referida  J?rites  da  Costa  e  seu  marido  Miguel 
de  Moura,  fundado  em  157('>  o  convento  da  uiesmu 
denoiniiKKjão,  tal  (piai  ainda  lioje  existe. 

Diz  IWandào,  na  S."'  1'arte  da  Moitarcliin  l^usi- 
laiia,  Jiivro  \,  Ca])itiilo  X  Wll,  cpie  aipiella  ermi- 
da ou  oratório  mandara  ali  erigir  I).  AlVonso  Hen- 
ri(pies,  em  inemoria  de  uma  milagrosa  vicloria  que 
alcançaram  os  cliristãos,  em  numero  de  mil  e  qui- 
nbentos,  de  cinco  mil  musulnianos,  ipie  de  Aleni- 
ipier,  <  )bidos,  Tliomar  e  outras  terras  da  Kstrema- 
dur.i,  liiibam  aecorrido  em  soccorro  de  Lisboa  sitia- 
da então  pelo  jirineipc  porliigiiez.  l)(>pois  da  batallia 
foi  entrado  ocaslello  (pie  existia  u'um  /«'.vo  proNiiiio, 
fii-íiutl'>  I  iitnijit  iVilli-  (I  iilitiuli-  niKtiio  <•  i/iKil  s<'  lor- 
iioit  vlirlslàii  ]><»•  líjMK  )M((riii'i7/i(i!(i  i'ís<7<)  (/kc  /iI'<-,  e 
foi  o  primeiro  erniilão  ipie  cuidou  d\iipielli-  orató- 
rio (Ml  eriíiida. 

Iiilili/nieiite,  porem,  para  os  apai\oiiadiis  da  os- 
ciila  milagreira,  a  liisliuia  do  lai  \\vr.\\  Zavde,  (as- 
sim se  clianuiva  o  alcaidiO  <p""  se  coiiverl('^ra  á  fe  de 
cliristo,  c  íe  fiiera  depois  ermitão,  e  a  du  grande 
OuTunRo  Itl,  \H'J1. 


330 


O  PAIVORAMA. 


peleja  travnda  junto  do  ribeiro  de  Friellas  entre  os 

guerreiros  <lo  I^lanl  c  os  batalhadores  de  Ibn-Errik, 
não  apparoceni  mencionadas  sequer  em  documento 
algum  contemporâneo,  c  só  se  lêem  n'um  ccrio  livro 
dt:  privikyios  do  século  16.°  Brandão,  que  parece 
inclinado  a  acreditar  o  facto,  c  assevera  existir  o 
mesmo  livro  no  árcliivo  da  Torre  do  Tomlw,  confessa 
todavia  que  ellc  confim  ali/uns  erros,  conio  cm  o  an- 
uo do  cerco  de  Lisboa,  no  asscnio  dos  exércitos,  em 
tlizer  que  iodos  os  csirangciros  eram  intjrczcs,  e  cm 
outras  cousas  accidcniaes,  cie. 

Os  curiosos  podem  consultar  a  este  respeito  a.  His- 
toria de  Portugal  do  sr.  A.  Herculano,  nota  a  pa- 
ginas ÒOS  do  primeiro  volume. 

Já  no  volume  IV  da  1."  Serie  do  Panorama  fal- 
íamos da  ponte  de  Sacavém,  cuja  construcgão  se  en- 
cetara n'esse  tempo,  particularisando  com  louvor  os 
arcos  de  ferro  que  aguentam  o  pavimento  da  ponte, 
fundidos  no  nosso  Arsenal  do  Exercito  com  uma  per- 
feição notável. 

Essa  ponte  aclia-sc  inteiramente  concluida  vaeem 
dez  annos,  c  realmente,  pela  sua  solidez  e  até  ele- 
gância, justifica  os  elogios  que  havíamos  prodigalisa- 
do  a  quem  traçara  e  dirigira  tão  importante  obra. 

Em  tempos  remotos  existiu,  no  mesmo  sitio  da 
actual,  uma  boa  ponte  de  cantaria,  que  veiu  a  cair 
em  ruinas,  por  faU^  dos  indispensáveis  reparos :  as 
necessidades  do  transito,  que  é  sempre  considerável 
n'aquclla  estrada,  foram  escassamente  suppridas  por 
uma  barca,  e  depois  por  uma  ponte  de  madeira.  No 
reinado  da  sr.'"'  D.  alaria  I,  sendo  secretario  d'esta- 
do  o  célebre  José  de  Seabra  da  Silva,  planisou-se  a 
edificação  de  uma  outra  ponte  de  três  arcos,  que  foi 
de  feito  delineada  pelo  architecto  franccz  José  Auff- 
diener,  sendo  avaliado  o  seu  custo  era  tresentos  mil 
cruzados. 

Nos  principies  doeste  século  tentou-se  novamente 
uma  siniilhante  construcção,  que  a  invasão  dos  fran- 
cezes  não  permittiu  reulisar. 

Finalmente,  por  contracto  com  uma  empresa  par- 
ticular, começou-se  e  eoncluiu-se  em  breve  tempo  es- 
ta tão  necessária  pont<',  que  se  compõe  de  três  arcos 
de  ferro  fundido,  firmados  sobre  quatro  pegões,  c 
com  rodizio  no  centro  para  a  passagem  das  embarca- 
ções, que  hoje,  em  consequência,  de  estar  mui  entu- 
lhado o  leilo  do  rio,  apenas  podem  vogar  até  S.  An- 
tónio do  Tojal,  a  uma  légua  de  Sacavém. 

Ha  em  Sacavém  muitas  quintas  e  hortas — c  pela 
Paschoa  do  Espirito  Santo  faz-se  ali  uma  importante 
feira   de  gados,    á  qual  afflue  immensa  concurrencia. 

O  camiidio  de  ferro  de  Lisboa  a  Santarém,  de  que 
SC  fez  concessão  pro\isoria  á  comp;ii\hia  representa- 
da pelo  sr.  H.  Hislop,  cm  13  de  agosto  do  corrente 
anno,  deve  atravessar  Sacavém,  onde  termina  a  pri- 
meira secção,  começando  em  Arroios,  segundo  o  ira- 
rado  dos  hábeis  engenheiros  inglezes  encarregados  da 
direcção  d'esta  gnuidiosa  obra.  Se  cila  se  realisar, 
como  esperamos,  Sacavém  de\e  melhorar  considera- 
velmente de  situação,  apesar  de  algumas  das  suas  des- 
fa\ora\eis  condições. 

Pertencia  este  logar  ao  termo  de  Lisboa  ;  por  um 
decreto  de  setenibro  ultimo,  liça  fazendo  parte  do 
novo  concelho  dos  Olivaes. 


POETAS  DA  ARCADL\. 
\. 

PEnno  António  Corkka  Garção. 

J\'o   Menalo  —  Corydon    Erimanthfo. 

No   vouME   quarto    do   i'nnor<im<i    encontrarão    os 
nossos  leitores  a  noticia  completa  da  fundação,  e  pro- 


gresso da  sociedade  litteraria,  cuja  memoria  se  honra 
com  os  primores  do  Garção,  do  Quita,  e  do  Diniz. 
.\ão  repetiremos,  pois,  o  que  está  dito ;  mas  servir- 
nos-ha  de  base.  Posto  que  de  curta  duração,  o  pe- 
ríodo que  abrange  a  escola  dos  árcades,  exerceu  gran- 
de influxo  no  futuro  da  arte,  vingada  por  elles  da 
baixeza  do  estvlo  e  da  corrupção  inveterada  dos  imi- 
tadores da  decadência  estranha. 

A  Arcádia  fundou-se  no  anno  de  1756,  sendo  os 
mezes  de  agosto  e  setembro  empregados  em  compor 
e  discutir  os  estatutos,  confiados  á  redacção  de  .An- 
tónio Diniz  da  Cruz  e  Silva,  o  auctor  do  Hyssope,  e 
das  Odes  Pindaricas  c  Anacreonticas.  O  objecto  da 
nova  instituição  era  restituir  aos  diversos  géneros  de 
poesia  a  severidade  de  formas,  a  correcção  clássica, 
e  a  perfeição  imitativa  dos  séculos  de  ouro  da  litte- 
ratura  dos  antigos,  e  das  melhores  obras  nacionaes. 
A  degeneração  tinha  envilecido  tanto  a  lingua,  e  es- 
tancado por  tal  modo  as  fontes  dos  bons  estudos,  que 
SC  tornavam  indispensáveis  os  conselhos,  e  os  exem- 
plos de  uma  associação  dotada  de  forte  vontade  e  de 
esclarecido  talento,  para  com  ^■anta^em  luctar  con- 
tra a  corrente,  e  salvar  da  obscura  inundação  os  mo- 
delos primorosos  do  gosto  romano,  e  da  primeira  re- 
nascença portugueza. 

A  existência  da  Arcádia  não  foi  longa  nem  tran- 
quilla.  Na  ultima  epocha  esse  resto  de  vida,  que  de 
longe  manifestava  ainda,  emprestavam-lh"o  os  esfor- 
ços de  um  ou  outro  sócio,  sobre  tudo  os  de  António 
Diniz ;  e  ao  cabo  de  vinte  annos  exhatava  o  derra- 
deiro suspiro,  em  1776,  pouco  chorada  e  quasi  nada 
conhecida  do  po\o,  com  quem  não  quizera  nem  sou- 
bera congraçar-se,  descendo  ao  meio  d"eUe. 

O  defeito  principal  dos  pastores  do  Menalo  foi 
preoccuparem-se  de  mais  com  a  fidalguia  das  letras, 
julgando  que  uma  grande  revolução  no  gosto  é  pos- 
sível, e  pode  consuramar-se,  resumindo  em  poucos 
apóstolos  o  ensino  e  a  propagação  da  nova  lei.  A 
Arcádia,  nunca  saiu,  (e  julgar-se-ia  sacrílega,  sain- 
do!) do  circulo  restricto  da  imitação  antiga.  No 
theatro,  na  poesia,  e  nos  outros  géneros,  em  que 
exerceu  as  suas  reformas,  os  modelos  eram  sempre  os 
livros  dos  auctores  mortos,  e  a  reflexão  constante  de 
idéas  e  costumes,  que  a  mão  do  tempo  tinha  encer- 
rado na  urna  dos  séculos. 

Nenhum  rasgo  original,  similhante  aos  que  ale- 
gram a  veia  jo\ial  de  Gil  \  icentc -,  nenhuma  inter- 
pretação larga  e  profunda  do  sentimento  humano. 
Todas  as  paixões,  todos  os  quadros  da  >ida  e  da  na- 
tureza, repro<luzem.  na  máxima  parte,  as  recordações 
do  l>ello  antigo,  e  rara  vei  a  expressão  exacta  das 
sensações  do  poeta,  s;uidando  o  sublime  na  verd.ide 
actu;U.  No  sentido  da  lil>crdade  regrada,  mas  neces- 
sária, da  arte,  a  sociedade  arc.adica  nada  adiantou  ^ 
continuando  a  crer  e  a  ensinar  os  dogmas  da  religião 
immovcl,  mantida  pelos  sectários  de  Aristóteles  e 
Boileau. 

.\  inspiração  nacional  pouco  lhos  sorriu ;  e  bem 
escass;i  lui  conseguiu  metfer  no  cárcere  voluntário, 
aonde  estes  admiradores  do  passado  sepultaram  fa- 
culdades, que  em  \tVi  alto  e  menos  preso,  os  teriam 
elevado  aos  amplos  horisontes  da  revolução  moderna. 
O  povo,  amando  as  suas  tradiç\Vs.  os  seus  usos,  e 
as  fu.ns  lendas,  viu  pass;ir  por  tanto  a  Arcidia,  e 
não  achou  n"ella  i-ous;i  <|ue  lhe  attrahisse  as  sjinpa- 
ihias.  Ouvia-a  f.illar  em  lingua  correcta  dos  amores 
de  Ovidio  e  das  lagrimas  da  es[K>sa  de  Sichcu  ;  es- 
cutava dcsoripções  de  tormentas,  e  bosquejos  de  pai- 
sagens, que  não  eni-onlra\a  no  céu  e  nos  sitios  mais 
plftorescos  da  terra  natal  ;  cantavam-lhc  os  marty- 
rios  da  alma,  .as  n\aguas  e  as  desventuras  de  perso- 
nagens que  lhe  eram  indiflcrcntcs,  porque  pertenciam 


o  PANORA3IA. 


331 


á»  saudades  de  civilisações  cxtinctas.  Os  feitos  dos  he- 
roe»  portuguezes,  mesmo  celebrados  na  lyra  orgulbo- 
aa  de  Piíidaro,  ou  na  casta,  inas  para  nós  ja  fria 
imitação  de  Horácio,  esmoreciam  do  calor  e  davive- 
»a,  que  em  rudes  melros  e  imperfeitas  formas,  sabia 
dar-lhes  a  cantiga  nacional,  ingénua  e  sincera,  bella 
naturalmente,  e  mais  própria  para  fazer  estremecer 
o  seu  coração  com  o  gemido  do  coração  de  seus  ir- 
mãos, pintando  o  enthusiasmo  da  gloria  áquelles  que 
o  sentiam  c  o  presavam  como  ella  ! 

Entretanto  as  razões,  que  separaram  o  povo  dos 
Arcados,  não  roubam  a  estes  o  louvor  merecido  pela 
renovação  clássica,  que  emprehenderani  e  assignala- 
ram  com  o  engenho.  Se  não  alcançam  além  da  sua 
epocha,  se  não  levantam  o  espirito  acima  das  regras 
criticas,  postas  no  seu  tempo  como  as  estremas  do 
império  intellectual,  seria  ini<|uidade  negar-lhes  a 
palma,  que  lhes  cortou  a  fama,  e  que  ainda  rever- 
dece na  sua  campa.  Ha  factos  que  excedem  as  pos- 
ses de  um  século  \  e  que  outro  realisa  sem  fadiga. 
Voltaire,  o  engenho  mais  vulgarisador  da  Europa, 
regeu  como  déspota  o  gosto  no  largo  período,  que 
abraçam  as  suas  obras ;  e  apesar  d'isso  viveu  sujeito 
á  severa  desciplina  decretada  na  Academia  doRiche- 
lieu,  e  fui  o  executor  fiel  dos  ])receitos  aristotélicos, 
na  máxima  parte  dos  seus  escriptos.  As  innovações, 
que  introduziu;  os  arrojos  a  que  se  abalançou,  fazem- 
iios  sorrir  hoje  \  e  com  tudo  eram  arrojos  e  innova- 
ções rcaes  para  a  epocha  em  que  se  atreveu  a  com- 
mettel-os.  O  poeta  cortesão  e  esmerado,  que  accusava 
de  barl>aro  o  estro  de  Shakespeare  e  se  compadecia 
da  sua  arte  informe,  não  estaria  bem  longe  de  pre- 
ver o  futuro  próximo,  qui!  devia  proclamar  a  supre- 
macia do  grande  trágico  inglez :,  jiondo  abaixo  dos 
dramas  immortaes  do  auctor  de  Oihcllo  c  Julieta,  as 
peças  regulares,  castigadas,  e  cheias  tle  elegantes  de- 
clamações do  dictador  de  Ferney  ? ! 

A  Arcádia,  mesmo  no  circulo  a  que  se  limitou, 
fez  serviços  reh^vantes  ;is  letras  pátrias.  Se  não  reno- 
vou no  sentido  lato  da  palavra,  purificou  a  poesia  d:is 
maculas,  qu(!  a  escureciam,  e  exaltou-a  pelo  respeito 
da  sua  origem,  o.  pela  castidade  das  fornias,  tiran- 
do-a  da  decadência  em  que  veiu  aehal-a  precipitada. 
A  frequência  e  a  imitação  dos  Ixjns  modelos  resla- 
beleceii  o  gosto,  que  túmidas  e  obscuras  cópias  ti- 
nham depravado.  A  lingua,  corruida  do  cancro  das 
locuções  viciosas,  tornou  a  mostrar  a  riqueza,  a  lou- 
çania,  e  os  brios  da  lingua  de  Sá  de  Miranda,  v.  de 
('amões,  additada  com  o  pecúlio  dos  séculos  seguin- 
tes. Estudos  variados  diívassaram  os  íissumptos  mais 
aptos  para  a  fecundarem  \  variados  poemas  de  uma 
correcção  altica  <;  de  um  lavor  incomparável,  prova- 
ram quií  o  exemplo  podia  jiislilicar  a  doutrina.  Até 
onde,  na  esphera  das  idéas  do  tempo,  era  possível 
levar  a  restauração,  foi  ella  h^vada  \  e  ha  no  seu  ca- 
minho mais  de  um  monumento  que  lujs  obriga  a  ve- 
ni.Tar  os  homens,  que  o  ergueram.  Em  (pinnto  a  lin- 
gua portugui'za  fõr  sabida,  e  as  gallas  do  estjlo  e  da 
imaginação  forem  estimadas,  a  Ijra  clássica  do  Gar- 
ção, e  os  versos  pastoris  do  (luita,  hão  de  ser  admi- 
rados como  um  dos  mais  hellos  rasgos  do  engenho, 

O  Sr.  I),  José  I,  (|ue  lauto  desejava,  ou  mais  exa- 
cto, o  si;u  ministro  do  despacho  universal,  qiu-,  em 
nome  d'elle,  lautas  providiuicias  loiíioii  |)ara  aper- 
feiçoar o»  estudos  su])eriori>s,  e  diiriiudir  o  ensino  ele- 
mentar, arraiK-ando  aos  Jisiiitas  o  in(>iio[iolio  dains- 
tnicção,  for.Mii  hcm  tristes  Mcceiícis  p,uM  iis  cultiu°es 
das  leiras.  Excepliiniiilo  António  Diniz,  cuja  musa 
mais  llexivel  tinha  caíilo  em  graça  ao  iM.ir(|ue/,  de 
(Vimlial,  os  outros  Árcades,  nu  exprriiui'nlar;im  os 
rigores  dii  sua  vingança,  ou  esfriaram  sol>  o  gelo  ilu 
•ua   indiflerença.   Se  ao  principio  pareceu  ueolhel-os 


a  boa  sombra,  se  os  frequentou  até  algumas  vezes,  é 
certo  que  pouco  depois  esta  benevolência  se  conver- 
teu em  desagrado.  IVão  ha  memoria  de  mercê  ou  de 
premio  concedido  a  homens,  que  Luiz  XFV  se  não 
esqueceria  de  inscrever  no  seu  livro  das  pensões  lit- 
terarias,  como  auxiliares  do  grande  século,  que  abriu 
e  encerrou  o  seu  longo  reinado.  A  Arcádia  susten- 
tou-se  por  si  mesma,  e  caiu  enfraquecida  pela  morte 
dos  sócios  mais  notáveis  ;  não  nos  consta  que  o  mi- 
nistro omnipotente  se  lembrasse  de  a  proteger,  nem 
tentasse  dilatar-lhe  os  dias.  O  Garção  serve  de  exem- 
plo para  provar,  que  nenhuma  espécie  de  mérito  po- 
dia eximir  da  iramediata  repressão  domarquez  áquel- 
les que  julgava  adversos  ou  pouco  affectos  á  revolu- 
ção monarcliica,  em  que,  similhante  a  Richelieu,  e 
sem  o  querer,  trabalhou  mais  a  favor  da  liberdade, 
do  que  era  proveito  do  poder  absoluto,  cujos  esteios 
demoliu,  arrancadas  as  pedras  angulares,  que  eram  a 
sua  base. 

O  homem,  que  pelas  qualidades  do  talento,  e  pe- 
la consciência  da  erudição,  melhor  caracterisou  a 
Arcádia,  e  o  seu  espirito  foi  o  Garção.  Nenhum  dos 
outros  sócios  o  igualou  no  acabado  do  lavor  poético, 
e  na  forma  sóbria  e  correcta  dos  assumptos.  Debaixo 
dos  seus  dedos  a  lingua  opulenta  e  dócil,  presta-«e 
com  propriedade  a  todas  as  exigências  do  pensamen- 
to, revendo  com  graça  e  transparência  os  modelos  da 
imitação  clássica.  Menos  imaginoso  do  que  Bocage, 
faltando-lhe  aquella  veia  fogosa  (irada  ou  terna),  que 
fazia  do  cantor  de  Hcro  um  prodígio,  quando  o  Ím- 
peto divino  o  arrebatava,  o  auctor  do  Thtutro  Novo 
e  da  Cantata  de  JJido,  se  não  tinha  os  raptos  do  es- 
ti-o,  e  as  grandes  visões  do  génio,  se  não  subia  tão 
alto  com  o  vôo  lyrico,  também  era  isento  dos  lapsos 
e  das  quedas,  que  tantas  vezes  precipitam  a  Elmano, 
desfeiando  as  formosas  inspirações  de  poesias  inesgo- 
táveis na  sensibilidade  e  no  ardor. 

Se  uma  comparação  pudesse  dar  a  idéa  da  ditfe- 
rente  Índole  d'eslis  dous  grandes  poetas,  IJocage  se- 
ria a  torrente,  que  se  despenha  por  alcantis,  toucada 
de  nebulosos  vapores,  cheia  de  estrondo  e  de  gran- 
deza, mas  volvendo  com  as  aguas  troncos,  ramos  e 
limos,  tudo  a  um  tempo  !  O  Garção,  assimilhar-se- 
ía  a  essas  ribeiras  fundas  e  claras,  tão  próprias  da 
nossa  paisagem,  que  gemem  por  entre  a  fresca  som- 
bra dos  arvoredos  inclinados  para  as  beijar  ;  (]ue  en- 
grossando lambem  se  enchem  de  ])oder  e  de  niages- 
tadc  :,  mas  cuja  belleza  mais  consiste  na  graça,  do 
que  na  força  ;  arrastando  antes  flores  e  palmas  na 
corrente,  do  que  os  cadáveres  dos  antigos  cedros  que- 
brados pela  fúria  da  sua  cheia  ;  e  deve  confessar-s<! 
<|ue  um  não  atlralu?  menos  pelo  enlevo  e  serenidade, 
do  (jue  o  outro  pelos  rasgos  audazes,  e  os  relâmpago» 
de  imagens  arrojadas  ! 

As  noticias  qut?  nos  restam  da  vida  do  Garção  pou- 
co satisfazem  a  curiosidade  qu<!  excita  o  seu  nome, 
e  a  memoria  de  infortúnios  siipportados  <'om  gran- 
deza d'alnia,  e  vontaiK'  firme.  Pouco  se  >abe  d'elle, 
e  esse  pouco  anda  confuso  na  tradição  oral.  Auste- 
ro, dotado  da  rigidez  de  carai'ter,  e  da  isenção  de 
(■s|iirito,  que  rara  vez  deixou  de  provocar  os  rigoro» 
da  fortuna,  se  lhe  não  requestou  o  fivor  dobrando  o 
joelho,  taiubem  se  não  curvou  ao  açimti.'  da  sua  ira, 
liem  derrinioii  as  lagrimas  de  uma  di^r  eoliarcle.  Co- 
mo clii'  próprio  diz  em  uma  ode,  não  ceili'ii  nem  se 
fez  pallido,  sentindo  a  mão  da  desdita  >ola-e  si;  af- 
Inuitou-a  sem  recuar  ; 

Asnim,  assim  a  misera  pobreza, 

.\  coiilraria  forliiiia 
Deve  iiiimovel  sotlVtr  uma  alma  gr.iiide 

Oh,  Sousa  esclarecido  '. 


332 


O  PANORAMA. 


Varra  o  credor  soberbo  a  pobre  casa 

Co  desabrido  Alcaide  \ 
Dormo  no  duro  clião  Ião  dcscançado, 

Como  no  leito  brando, 
O  intrépido  varão,  que  do  destino 

Prova  os  fataes  re\ezes. 

A  reminiscência,  apropriada  ao  seu  destino,  de  uma 
das  mais  famosas  odes  de  Horácio  é  o  quadro  moral 
do  seu  espirito.  Constante  no  infortúnio,  acha  ainda 
o  sorriso  de  outro  lempo  e  as  saudades  deannosmais 
felizes  para  chasquear  a  pnlida  caha  do  padre  Del- 
fim e  a  sua  caseira  relx^ca  deixada  em  penhor  com  a 
loba  <•  o  Iwrdão  campestre.  Convida-o  a  que  volte, 
promettendo-lhe  o  cheiroso  lombo,  e  a  fogueira  da 
chaminé,  aonde  estala  a  lenha,  e  silva  a  chaleira, 
fervendo  a  agua  para  o  ponche.  N'estiis  pinturas 
cheias  de  graça  natural,  era  que  respira  o  conchego 
do  lar  domestico,  acham-so  toques  que  só  o  pincel  do 
Tolenlino  foi  capaz  de  vencer  depois. 

O  sr.  Trigoso,  na  sua  Memoria  sobre  o  estahcleci- 
menlo  da  Arcádia  e  sita  injluciicia  na  lillcraiura 
porturjucza,  assegura  em  uma  nota  que  Garção  nas- 
cera a  29  de  abril  de  172'í  e  fallecêra  a  10  de  no- 
vembro de  1772,  depois  de  jazer  encerrado  para  ci- 
ma de  anno  e  meio,  expirando  justamente  na  occa- 
sião,  em  que,  reconhecida  a  sua  innocencia,  se  lhe 
espedíra  a  ordem  de  soltura.  Sendo  exacto,  bem  cur- 
ta e  atribulada  foi  a  sua  vida  nos  últimos  annos  i  so- 
bre tudo  desde  que,  arrancado  aos  braços  da  esposa  e 
dos  ijlhos,  que  tanto  estimava,  e  tinha  tão  mimosos, 
»e  viu  de  repente  longe  d^elles  c  sepultado  com  a 
nota  de  crimes  que  se  ignoram,  e  que  elle  próprio 
tdlvez  ignorasse  como  nós,  porque  o  braço  do  mar- 
quez  do  Pombal  em  ferir  era  tão  prorapto,  como  a 
suspeita  cm  despontar  no  seu  coração. 

Pelo  que  se  deprehende  das  suas  obras,  o  auctor 
do  Thcatro  ]\ovo  não  viveu  sempre  na  estreiteza  de 
iiens,  a  que  alhidem  muitos  dos  seus  versos.  Houve 
uma  epocha,  em  que  não  sentiu  os  cuidados  da  in- 
digência, e  se  pôde  entregar  mais  desassombrado  ao 
estudo  dos  poetas,  que  fizeram  as  suas  delicias  mes- 
mo quando  caiu  na  maior  pobreza.  Comparando  cer- 
tas passagens,  c  aproximando-as,  parece  rasoavel  a 
conjectura,  de  que  uma  demanda  perdida,  c  as  pe- 
nhoras resultantes  d'ella,  o  trouxeram  á  penúria, 
deixando-lhe  apenas  (se  deixaram)  a  sua  casa  da 
Konte  Santa,  que  era  o  ermo  Tibur  aonde  o  Horá- 
cio põrtuguez  corregia  com  lima  frequente  as  pagi- 
nas pouco  numerosas,   mas  acabadas,  que  nos  legou. 

Casado  e  rodeado  de  filhos,  é  fácil  prever  as  amar- 
guras e  inquietações  que  lhe  perturbavam  o  espirito, 
vendo-se  com  escassa  renda,  e  oom  as  obrigações  ca- 
da dia  mais  aucmcntadas.  Alguns  dos  sonetos  c  das 
odes,  em  uma  zondiaria  sem  fel,  descrevem  os  em- 
baraços domésticos,  c  os  meios  engenhosos  adoptados 
pelo  poeta  para  es  remediar.  (Imas  vezes  quem  o 
declara  é  uma  letra  c/n  verso  sacada  sobre  um  ami- 
jro  abastado  \  outras  o  medo  ao  rol  dos  pedreiros  e 
'■arpinteiros,  oecupados  no  concerto  de  uma  escada, 
«  quem  (diz  elle)  o  bloqueia  dentro  de  casa.  As  ca- 
beças do  alcatrão,  e  os  busca pcs  da  noute  de  Santo 
António,  fazem-no  tremer,  porque  se  acha  com  a 
bolsa  cxhausta,  o  não  tem  animo  de  o  confessar  aos 
filhos '. 

Q.UC  motivo  deu  origem  á  prisão  do  Garção,  c  aos 
rigores  do  niarquez  de  Pombal '!  Ha  diversas  tradi- 
ções, mas  inconsistentes  ou  fuleis,  a  nosso  vér.  As 
que  se  fundam  n^um  enredo  amoroso,  c  na  traduc- 
ção  de  uma  carta,  imputjim  ao  ministro  severidade 
mais  que  monástica,  e  essa  não  era  da  su.i  Índole. 
As  que  se   referem   a   segredos  de  estado  revelados, 


esquecem  que  não  consta  que  houvesse  nunca  intimi- 
dade entre  o  marquez  c  o  poeta  para  occorrer  a  in- 
confidência d"este,  e  a  indiscripção  d"aquelle.  Uma 
opinião  mais  sisuda,  e  que  julgamos  mais  em  harmo- 
nia com  as  probabilidades,  quer  que  a  perse-niicão 
do  Garção  fosse  devida  a  allusões  dos  seus  versos  con- 
tra o  despótico  governo  do  ministro :  e  talvez  que 
ainda  era  cima  exacerbadas  com  menos  prudência 
pela  indignação  natural  de  uma  alma  nobre  contra 
a  tyrannia. 

Cita-se  até  a  Falia  do  Infante  D.  Pedro  aosFor- 
iuyuczes  como  corpo  de  delicto,  que  o  marquez  apre- 
sentava contra  o  poeta,  afim  de  prolongar  a  sua  pri- 
são. Efiectivamente  o  assumpto  era  melindroso  para  a 
e[>ocha  •,  a  recusa  de  uma  estatua  feita  pelo  duqde  de 
Coimbra  em  presença  da  estatua  equestre  de  cl-rei 
D.  José  I,  e  da  medalha  do  seu  ministro,  já  em  si 
equivalia  a  uma  satyra  desfarçada,  ou  pelo  menos  a 
uma  censura  indirecta.  Ijendo-se  e  meditando-se  di- 
versos trechos  d^aquelle  discur-o,  acha-se  fundamen- 
to bastante  j)ara  acreditar  que  o  marquei  de  Pom- 
bal visse  n"elle  a  reprebensão  clara  dos  seus  actos. 
Mais  de  uma  phrase  acerada,  mais  de  uma  sentença 
austera  devia  excitar  o  seu  resentiniento,  porque  era 
a  critica  do  ministro  e  do  monarcha.  Um  poema 
aonde  se  acham  versos  como  estes,  podia  «alvar  o  au- 
ctor das  iras  do  poder .' 

Não  queiraes  olTuscar  minha  memoria, 
Provocando-me  a  collocar  no  sólio 
Um  injurioso  exemplo  da  vaidade, 

Um  padrão  de  lisonja 

Fora  imprópria 

A  gloria  que  me  dacs,  se  n"esía  e>tatua 
Descubrissem  os  séculos  futuros 
As  maculas  horrendas  da  vangloria. 

Mas  haja  quem  se  lembre  d'cste  caso, 

E  quem  diga,  que  rejeitei  modesto 

\s  honras  de  uma  estatua  ■,  eque  estas  houra>, 

(-luem  chega  com  justiça  a  merccel-as. 

Também  sabe  atrever-se  a  dcspresal-as. 

tiue  paralldo  I  Que  terrível  e  fulminante  allusão  I 
O  duque  de  Coimbra  de  uma  parte  rejeitando  a  es- 
tatua, porque 

E  mui  pc^ada 

A  sujeição  do  sccptro ;  c  quem  domina 
Não  tem  a  seu  arbítrio  as  leis  sagradas : 
Fiel  executor  deve  cumpril-as  ; 
Mas  não  pôde  altcral-as  '. 

O  marquez  de  Pombal  da  outra  levantando  a  .Me- 
moria, e  antepondo  a  scUncta  certa  e  o  poder  atito- 
luto  á  execução  fiel  das  leis,  alteradas  a  m-u  arbitrio  I 
tiue  mais  era  preciso  para  aquella  voz  censora  ser 
obrigada  a  calar-se ;  para  o  iniprudenfc,  que  ousava 
chegar  o  espelho  tão  perto  do  nisto  contrahido  do 
orgulho  e  do  despotismo.  s»t  tirado  d  "entre  os  ho- 
mens, e  sumido  nas  entranhas  de  uui  cárcere!  Por 
muito  menos  se  povoaram  as  prisões  do  Fort«t  da 
Junqueira  I 

•.)  mari]uez  condoeu-sc  por  fim,  e  consentiu  era 
deixar  voltar  o  piiota  para  a  sua  pohro  morada  f  Fci 
merc-ê  cspiinfanea  d"clK',  ou  ordem  particular  do  so- 
berano.' A  ullinni  \crí.";o  jvin-cc  mais  natural.  Sc- 
Ivistião  Jost-  de  Carvalho  o  Mello  rara  toi  [x-rdoou 
aos  que  o  offendcram  ;  c  a  coincidência  do  a\  iso  de 
soltura  com  a  morte  do  G-.irção,  deixa  sobn-  a  me- 
moria do  ministro  uma  sombra  de  crueldade  c.ílcu- 
!ada,  que  i6  provas  irresistivei»  hão  de  destruir.  ^•- 


o  PAINORAMA. 


1,  -^  'í 


ria  acaso,  mas  no  govorno  Jo  «pcretario  do  despacho 
universal  estes  acasos  são  muito  frequentes.  A  siini- 
lhan<,'a  <lo  cardeal  de  Kichelicu,  s.  ex."*  não  tinha  boa 
lerabrai!(;a  senão  para  castigar '. 

A  morte  do  Garção  privou  a  Arcádia  .lo  seu  es- 
teio principal,  (iuatro  annos  depois  acabava  a  so- 
ciedade, apenas  entretida  coino  unia  apparencia  de 
vida  pelas  diligencias  de  Diniz,  que  debalde  procu- 
rou ebaniar  sobre  ella  a  protecção,  que  o  ministro 
estava  resolvido  a  não  conceder.  Os  dilhvrambos  em 
honra  (do  marquez,  recitados  em  casa  do  morgado  de 
í)liveira,  serviriam  só  de  fazer  estremecer  as  cinzas  de 
Corydon  no  tumulo,  se  podessem  ouvir  a  boca  dos 
seus  pastores  torcendo  em  lisonjas  a  magua  sincera 
que  experimentaram  pelos  rigores,  de  que  fora  vic- 
tima. 

Para  Sebastião  José  de  Carvalho  ainda  era  cedo  \ 
a  apologia  do  que  ha  de  verdadeiramente  grande  no 
seu  governo,  a  posteridade  encarregou-se  de  a  fazer, 
e  tal  que  vive  nuiis  do  que  os  elogios  esquecidos  dos 
yatcs  i  para  a  Arcádia  era  tardo,  porque  o  seu  logar 
não  era  aos  pés  do  poder,  o  a  sua  missão  estava  con- 
kummada  ;  a  essa  também  o  futuro  já  fez  justiça. 

1'assemos  agora  á  apreciação  litteraria  do  engenho 
c  das  obras  do  Garção.  Será  o  objecto  do  seguinte 
iírtigo. 

L.  A.  Hebello  d.4.  Silva. 


'^íi^^i^ 


AS   I'IU»VI.\('1AS  \AS((»N(;AI).\S. 

(ko'1'icih    MmroKMA .) 

í-lrAKDo  n»  barbaroí  do  Nofle  se  derr.ininrani  V\>- 
nio  imp(<tuusa  lorrenie  pelos  j)ai?es  iiiiTcdiniiiics  du 
l'4irii[ia,   os  caiilubroH  pcvtunnccerauí   flein    ;ios  rouiu- 


nos,  e  sustentaram  rijos  combales  com  os  invasores, 
os  quaes  não  poderam  sujeitar  os  esforçados  monla- 
nhezes  que  estanceavam  entrí!  o  Ebro  e  o  Oceano. 
Conservaram-se  independentes  largo  tempo,  ainda 
cjue  expostos  aos  repetidos  aiaques  dos  godos  ;  até 
que  Leovigildo  emprehendeu  a  conquista  d'aquelle 
agreste  pai/..  Resistiram-llie  os  seus  naturaes  com  » 
ordinário  valor,  e  detiveram  o  Ímpeto  dos  godos, 
que  não  puderam  penetrar  na  parte  central  d'eile, 
contentando-se  em  occupar  e  fortificar  vários  pontn;< 
fronteiros  para  evitar  atrevidas  correrias. 

Unidos  alUm  os  cantabros  e  godos  pelos  vínculos 
da  religião,  porque  uns  e  outros  abraçaram  o  chris- 
tianismo,  angregaram-se  as  províncias  vascongadas  ati 
vasto  império  ([ue  a  desmoralisação,  a  cobiça,  a])erli- 
dia,  e  o  total  esquecimento  da  honra  e  do  dever 
(flagellos  que  são  a  ruina  das  nações)  fizeram  suc- 
cumbir  nas  margens  do  Guadalete. 

São  conformes  todos  os  historiadores  em  asseverar 
que  os  bárbaros  não  puderam  jicnetrar  no  território 
vascoiigado,  defendido  generosamente  pelos  seus  vir- 
tuosos moradores,  e  por  muitos  outros  que  futcindo 
aquella  ilcsfeila  tempestade  que  a  justiça  Divina  ha- 
via desencadeado  sobre  a  desventurada  Hespanha, 
foram  buscar  nas  cordilheiras  septontrionaes  a  sua 
salvação,  e  a  do  glorioso  nome  hespanhol. 

Começam  depois  d^aquelles  tristes  successos  as  du- 
vidas sobre  o  estado  do  paiz,  que  é  o  objecto  d'esta 
resenha  histórica,  siippondo-o  uns  independente,  e 
outros  como  formando  parte  do  reino  que  se  erigiu 
em  Covadonga :  opinião,  segundo  nosso  entender, 
mais  pro\a\cl  e  fuiidaila. 

Temos  fallado  até  aqui  das  províncias  vasconga- 
das em  geral,  porque  de  feito,  os  referidos  successos 
são  communs  ás  três  •,  e  ainda  que  em  todas  as  epo- 
clias  se  hajam  distinguido  com  denominações  parti- 
culares, é  sd^ido  que  seus  habitantes  constituíram 
sempre  um  único  povo,  sendo  conhecidos  nos  tem- 
pos antigos  pela  designação  de  cantabros,  e  pela  de 
vascongados  nos  modernos. 

Entre  a  historia  de  Alava  c  a  de  Guipiizcoa  [wu- 
ca  diflerença  se  nota,  jk)Ís  não  só  correram  a  mesma 
sorte,  senão  lambem  que  o  nome  da  primeira  das 
mencionadas  províncias  se  tornou  extensivo  á  se- 
gunda. 

1'erteiiceram  piu'  algum  ttiiipo  .;s  pro\iiu-i.is  de 
Alava  e  (juipnzcoa  ao  reino  de  Navarra,  e  no  anuo 
de  1:200  da  era  eliristã  se  encorporaram  definitiva- 
incnte  á  coroa  de  (\istel!a.  Não  assim  a  Biscayn, 
que,  durante  alguns  séculos,  teve  seus  senhores  par- 
ticulares, dignid.ide  (|ue  se  considera  dirivada  do  fa- 
moso du<pie  iji!  Cantábria.  Era  possuidor  do  referido 
doiuinio  por  lins  do  s<'culo  9.^  D.  lA)po  Zuria,  a 
([ucin  succederam  D.  .Munio  Lopes,  que  alguns  chn- 
mam  D.  Manso,  D.  íjope  Nunes,  D.  IMiinio  Lopes, 
D.  Lojie  Mome^  ou  I\u[ies  e  D.  Tnigo  ]iopi-s,  por 
antonomásia  o  Suiilo,  o  qual  vivia  no  principio  do 
século  11.'',  e  é  reconhecido  como  senhor  deUiscayá 
por  lodos  os  historiadores,  honra  que  pouco»  outor- 
garam aos  seus  cinco  predecessores,  cuja  existência 
se  t<'m  poslo  em  duvida. 

Seguindo  os  senhores  de  Biscaia  o  costume  geral 
da  sua  epocha  davam  iio  succcssor  o  nome  de  seu 
avó,  e  assim  vemos  altenuir-ae  por  largo  tempo  na 
chronologia  d'a<|uelle9  os  nomes  de  Ijope  Dia»  e  Dio- 
go Lopes. 

Como  ,-1  hisliiria,  fadm  iii<-xtinguível  dn  verdade, 
n>"io  eslá  por  desgr.iça  i>  coberto  da.s  paixões  dos  ho- 
mens, que  desejam  escudai -s<'  ciun  ella,  para  sntisla- 
ier  seu  orgulho  e  seus  o<lios,  não  é  par»  estranhar 
que  inimi'J:os  incoiiciliavci''  <io  pai".  VHseongado,  que 
de    certo    iicmIuiui    damiio    \\\fn  te;.,    lenliauí    qneriílo 


334 


O  PANOR :V3IA. 


provar,  ou  para  melhor  dizermos,  assentar  como  cou-  ' 
SA  certa,  que  o  Eonhorio  ou  condado  de  Biscava  c  1 
suas  duas  irmãs  têem  conslanlemeiílc  soflVido  estra- 
nho jugo.  l'ara  o  conseguirem  derani-se  tratos  ás  pa- 
lavras dos  chronistas  e  historiadores,  inverteu-se  o 
vcntiiio  de  muitas  passagens  históricas,  e  olvidou-se 
a  critica. 

E  incontestável  (jue  os  senhores  de  Biscava  exer- 
ceram algumas  vezes  uma  auctoridadc  independente 
dos  reis  de  Navarra  e  Caslella,  que  coadjuvaram  nas 
guerras  com  os  musulraanos  e  contra  os  quaes  de- 
fenderam em  alçuns  casos  com  as  armas  ósseas  direi- 
tos e  a  integridade  do  seu  pequeno  território. 

(Cmitinúa.) 


ARCHEOLOGIA  PORTUGUEZA. 

Ikstbccções    dadas    ao   coadjutor  de  bekgamo, 
xuncio  em  rortlgal  no  tempo  de  d.  j0.\o  iii. 

"O  REI,  sem  O  dar  a  saber  a  N.  S.,  em  tempo  ur- 
gentíssimo para  nós  e  apropriadíssimo  para  si,  diz-se 
ter  concluído  um  tratado  de  paz  com  o  Turco,  polo 
qual  cm  cida  anno  lhe  paga  cem  mil  ducados  d'ou- 
ro  ou  mais.  No  tratado  não  se  faz  a  menor  menção 
da  Sé  Apostólica,  nem  de  terras  e  cousas  da  igreja, 
e  affinnam  que  somente  ahrange  as  do  imperador, 
sendo  toda  aquella  negociação  com  concessão  da  Cú- 
ria \  contam  que  o  imperador  ficou  muito  desgos- 
toso. 

"As  cousas  de  que  parece  que  se  pode  tirar  de  Por- 
tugal grande  utilidade,  e  para  isso  encarregar  o  nún- 
cio de  as  esclarecer  com  informações  profundas  e 
sensatas  ,   são  as  seguintes  : 

^. Primeiro,  na  matéria  de  christãos  (novos?)  caso 
não  queira  S.  Santidade  revogar  absolutamente  a 
Inquisição  extraordinária,  conimeltendo  o  Santo  Of- 
ficio  aos  ordinários,  segundo  a  razão  canónica,  em 
que  não  faria  cousa  que  não  fosse  santa  e  justa,  e 
muito  pedida,  até  porque  animaria  assim  os  prela- 
dos a  ter  sempre  officiaes  da  n  Eretica  pravidade" 
sendo  o  meio  e  a  forma  do  os  cercar  de  homens  li- 
dos, podendo  cada  um  na  sua  diocese  fazer  melhor  jus- 
tiça, c  (irando-se  o  confisco  dos  bens,  reduzindo  tu- 
do a  castigar  os  maus,  e  a  deixar  aos  hons  a  fruição 
pacifica  dos  seus  bens,  só  com  o  encargo  de  pagarem 
uma  boa  composição  e  subsidio  para  a  guerra  dos 
infleis;;  e  os  tristes  não  sairiam  da  pátria,  nem  iriam 
fazcr-se  judeus,  nem  en>inariam  aos  infiéis  todos  os 
artifícios  que  sabem,  como  armas,  artilhoria,  e  simi- 
Ihantes  cousas  ;  é  então  mais  conveniente,  segundo 
parece,  reger-sc  isto  antes  por  provisões  particulares, 
do  que  por  bulias  com  a  concórdia  e  limitação  que 
80  fez;  em  o  núncio  tendo  faculdade  ampla  de  pas- 
sar o  breve  a  quem  o  pedir,  pagando  ainda  que  seja 
pe<)ucna  quantia,  o  rendimento  niontari;i  a  muito 
pelo  numero  das  pessoas  exceder  a  cincoenta  mil. 

"Item.  Os  mosteiros  e  bispados  tèem  grandíssimo 
numero  do  pensões  e  bons  eniplivteuticos,  e  estes  cos- 
tumam-se  dar  em  prasos  tle  três  ou  mais  vidas.  E 
são  tão  desejados  e  cubicados  dos  seculares,  que  se 
N.  S.  03  quizer  conceder  in  pcrptiuo  a  quem  ospos- 
íue,  ou  a  outrem,  não  os  <|uerendo  o  possuidor,  ain- 
da que  seja  com  grande  an'.;nu-nto  para  as  igrejas,  se 
tirará  muito  dinheiro  •,  e  pondo  por  condição,  que 
se  as  igrejas  os  quizcreni,  deverão  remir  ou  comprar 
a  S.  Santidade  a  isenção  para  ficarem  como  estão, 
se  arrecadará  ainda  grande  somina  ;  o  que  seria  por 
estremo  vantajoso  por  S.  Santidade  colher  a  compo- 
sição e  os  bens  ficarem  livres  como  d"antes  ás  igre- 


jas. E  esta  negociação,  tratando-a  o  núncio,  não  em 
geral,  mas  segundo  caísse  á  mão,  não  seria  fora  de 
propósito  para  não  confiar  a  ninguém  o  segredo  d*ella. 

"Item.  (iuerendo  S.  Santidade  conceder  licença 
ás  igrejas  para  trocarem  d'estes  bens  por  outros  de 
igual  valor,  seriam  obrigadas  a  pagar  a  mesma  pen- 
são, o  que  permittiria  receber  ainda  alguma  couia, 
porque  muitas  existem  a  quem  bto  conviria,  e  que 
de  boa  mente  pagavam. 

"A  composição  dos commendadores  de — frucHbui 
male  pcrccplis  —  pelos  motivos  acima  indicados,  éde 
grande  importância,  e  estão  obrigados  a  iiizel-a,  ou 
o  rei  por  elles,  como  se  prova  em  direito  :  e  dit-se 
que  muitos  a  teriam  já  feito  se  o  rei  se  não  oppo- 
zesse  por  cuidar  n'uma  convenção  com  S.  Santidade, 
similhante  á  das  decimas,  para  depois  haver  dos  com- 
mendadores um  agradecimento  valioso. 

"Item.  Gluerendo  o  papa  revogar  a  bulia  das  com- 
mendas,  (que  de  todo  o  modo  no  Concilio  será  a  pri- 
meira a  revogar,  pois  que  quem  possue,  possua  em 
quanto  vivo,  e  depois  de  morto  volva  a  propriedade 
ao  seu  antigo  estado)  affirmam  que  o  clero  pairará  ao 
rei  toda  a  composição  que  se  deu  ao  papa  Leão  e  a 
S.  Santidade,  tanto  que  poderia  ser  uma  grande  par- 
te das  despezas  da  Hungria  com  summo  serviço  de 
Dcos,  e  em  seu  louvor.  Mas  não  querendo  tirar  na- 
da ao  rei,  do  que  obteve  do  papa  Leão,  e  se  contém 
na  bulia,  se  quizer  reduzir  as  ditas  commendas  aos 
vinte  mil  ducados  de  rendimento,  que  são  os  concedi- 
dos ])elo  papa,  e  que  o  que  excede  volte  ao  estado 
primitivo,  c  não  se  dêem  mais  commendas ;  ainda 
por  isto  o  clero  pagará  uma  justíssima  composição, 
e  accrcsce  não  ter  de  repartir  nada  com  o  rei,  fican- 
do a  S.  Alteza  o  que  lhe  foi  concedido  na  bulia. 

"Item.  Se  o  núncio  levar  faculdade  para  conceder 
aos  padres  licença  de  test;ir  qualquer  quantia,  com 
uma  taxa  de  tantos  por  cento,  se  tirará  bastante  di- 
nheiro sem  o  menor  damno  da  Sé  .\postolica,  por- 
que ali  não  é  como  em  Castella,  aonde  a  Camará 
Apostólica  herda  o  espolio,  e  de  toda  a  maneira  os 
bens  são  abafados  e  roubados,  e  sempre  vão  aos  suc- 
cessores :,  e  quem  os  houvesse  por  licença  tel-os-ía  de 
direito  e  os  padres,  de  Iwa  mente,  para  se  livTarcm 
de  mil  obstáculos,  e  beneficiarem  os  seus,  haviam  de 
estar  pelo  prompto  pagamento  da  composição. 

"Item.  Julgando-se  conveniente  permittir  ao  rei 
os  contratos  sobre  mctaes  para  uso  bcllico  ciim  osin- 
lieis,  como  até  agora,  e  absol\el-o  do  peccado,  se  ti- 
rará por  isto  uma  grossa  corajHJsição,  como  atrai  no- 
tei, porque  elle  o  não  fará  tranquíUo  sem  ella,  e  o 
mal  e  escândalo  da  cliristandade  é  graudissimo  e  ma- 
nifesto. 

"  Não  seria  fora  de  propósito  lembrar,  se  fosse  ser- 
viço de  Deus,  que  o  núncio  levasse  faculdade  para 
dispensas  matrimoniaes  de  —  conlraciu  imtium  — 
com  os  limites  que  pudesse,  e  terrores  do  futuro, 
que  suscitasse,  pois  ha  immensos  que  para  vir  a  Ro- 
ma gastam  o  ((uc  tiVni,  e  lá  ]iagariam  voluntaria- 
mente para  saírem  do  peccado.  t)u  então  fazer  no- 
tificação geral  para  ninguém  ir  a  Roma  sem  infor- 
mação do  núncio,  e  quem  devesse  vir,  viríaomi  cla- 
resa  e  de  mudo  que  não  tivesse  mais  do  que  apre- 
sentar-sc  a  S.  Santidade  e  ser  dcsjvichado,  s<^indo 
sua  justiça. 

"O  que  o  núncio  deve  faicr,  c  a  maneira  de  se 
reg\dar  na  direcção  dos  negócios,  depende  mais  da 
vontade  de  S.  Santidade,  do  que  de  outra  cousa 
qualquer  •,  porém  attendeiido-so  aos  teni|xis,  c  ás  ne- 
cessidades d\-iquellcs  reinos,  á  honra  c  serviço  de 
N.  S.  seria  op|Hirtuiio  andar  com  mais  actividade 
que  .1  costuinaila,  porque  os  negócios  d'.di,  e  s«)bpe 
tudu   o  dos  christãos  novos,  exige  brevidade,  c  ni3Í> 


o  PANORAMA. 


33i 


ainda  porque  d'ella  se  concluirá,  que  principalmen- 
te vae  á  corte  por  matérias  de  publico  interesse,  o 
que  lhe  auginentará  a  auctoridade  e  acceitaçuo. 

u  Deverá  levar  comsigo  algum  homem  lido  em  di- 
reito e  um  hábil  extractor,  porque  estes  dois  ofticios 
«ão  sufíiticntes. 

"  l'arece-me  que  o  núncio  deverá  deitar  a  fama 
aqui,  c  pela  jornada,  de  somente  ir  para  os  liiis,  e 
com  as  bulias  do  Concilio,  e  cousas  do  Turco  e  pe- 
rigos da  christandade  como  é  conveniente,  sem  des- 
cobrir o  resto  da  sua  missão. 

"Também  me  parece  bom  que  passe  pela  corte  do 
imperador,  e,  podendo  ser,  pela  de  Franca  sem  lon- 
;;a  demora,  para  chegar  depois  com  maior  auctorida- 
de a  Portugal,  vondo-se  que  fallou  antes  com  os  mais 
príncipes;  e igualmente  não  seria  máu  ao  serviço  de 
S.  Santidade,  que  elle,  em  geral,  recommendasse  os 
negócios,  porque  o  envia,  e  a  pessoa  do  seu  núncio 
ao  imperador,  pedindo-lhe  que  escreva  ao  seu  embai- 
xador para  ajudar  as  cousas  de  Roma,  o  que  lhe  ha 
de  dar  valia  e  força,  correndo  a  negociação  unida, 
c  podendo  além  d^isso  o  núncio  com  destresa  deixar 
suppor  muito  maior  intimidade  do  que  na  realidade 
exLsta. 

« l'or  nenhum  caso  deverá  o  núncio  fazer  entender 
a  sua  chegada,  (salvo  tendo  chegado)  para  não  mos- 
trar em  nada  que  duvidou  de  o  receberem  ou  não ; 
porque  aquella  gente  em  vendo  um  receio  ou  hesi- 
tação logo  se  ensoberbece,  o  que  n'este  caso  não  acon- 
tecerá \  mus  sempre  6  melhor  andar  de  longe  e  não 
criar  difficuldades  aonde  as  não  ha. 

"  l'are((!  que  deverá  trazer  })reves  aos  infantes  D. 
Fili|)pc,  I).  Henrique!  e  D.  Duarte,  e  ao  arcebispo 
de  Lislioa,  e  que  os  breves  para  os  prelados  sejam 
escriptos  com  auctoridade,  e  nVlles  S.  Santidade 
discorra  —  iamquani  poUslakni  Itabtus.  —  Assim  é 
preciso. 

"Seria  bom  imprimir  a  bulia  das  faculdades  para 
em  tempo  poder  ser  publicada  em  todo  o  reino, 
posto  qu(!  parece  não  ser  opportuno  publical-a  senão 
depois  lie  encetadas  as  duas  negociações  principaes, 
a  do  Concilio  e  a  das  cousas  do  Turco. 

(Continua.) 


Duas   palavras  sobke  hospitaes. 

IV. 

As  CAusAn  que,  desile  o  anno  1097,  tornaram  indis- 
pensáveis i'm  toda  a  líuropa  os  lii]sj)ilaes  e  ailjerga- 
rias  (fallo  das  cruzadas)  creio  <|ue  deveriam  actuar 
entre  nós  cnm  niuilo  menos  iniensidade,  pi)r(|ue 
envulvidos  em  crua  guerra  contra  os  musuluianos, 
eram  poucos  lodos  os  liarões  e  villões,  todo  o  eslurço 
e  hondiri<!ade  (!<■  nobres  e  popidares  se  r('qu<'i'ia  en- 
tão, para  expurgar  o  território  da  raça  inli<'l  <jue  o 
povoava,  e  firmar  a  na<'iiiiiali<lad('  |)orlugueza,  tão 
«•onlrariada  cPobsIaculos  poderosissinios,  c  ciuKpiista- 
da  á  força  de  persevc-ranea  e  sagacidade  |iiililica,  e  a 
troco  de  innuMicrosos  sacrifícios.  l\ão  faltava  aqui 
inccMitivo  de  gloria  ás  amliiçries  guerreiras,  nem  ri- 
q\ie7.a  d'agari'nos  |iara  saciar  a  cobiça  de  cliristãos. 
Não  podianuis  nem  precisávamos  de  ir  combater  ou 
j)eregrinar  á  Paleslina,  e  recdlher  ao  paiz  milal  cheios 
de  Uqira.  Km  1'orlugal,  di!  feito,  nào  houve  alista- 
mentos pani  expiclieòes  de  cruzados  ;  anies  vieram 
osles,  de  tiTriis  longiiiíjuas,  auxiliar-nos  iiaexpugna- 
ção  de  Lisboa,  Silves  e  Aleaeer,  rendi<lii'(  di^pois  de 
longa  e  h((roica  resislencia  dos  sarr.iieiidb, 

Dcviaiuuí  ter,    creio  eu,    nieno»  Icprulos  do  c|ue  a 


França  e  outros  povos  do  Norte,  onde  a  paixão  das 
romagens  á  Terra  Santa  chegou  a  tocar  o  delirio,  e 
onde,  segundo  alguns  escriptores,  o  maior  numero  de 
hospitaes  e  albergarias  foi  devido  áquella_/è6re  Tno- 
ral,  como  lhe  chama  o  sr.  A.Herculano.  Parece  que 
a  França  contava  2,000  d^aquelles  estabelecimentos 
no  anno  de  122C,  e  que,  logo  que  o  fervor  das  per- 
egrinações esfriara,  se  fechou  uma  grande  parte  d'el- 
les,  porque  não  havia  já  romeiros  que  albergar. 

Não  digo  que  não  houve  leprosos  no  nosso  paiz, 
nem  que  similhante  enfermidade  não  obrigasse  a  eri- 
gir hospitaes  em  Portugal.  E  sabido  que  antigamen- 
te se  construíram  muitos  da  invocação  de  S.  Lazaro 
(gafarias,  como  lhes  chamavam)  os  quacs  eram  en- 
tão edificados  fora  das  povoações.  Estou  persuadido 
porem,  de  que  não  se  deram  entre  nós  as  mesmas 
causas,  que  n^outros  povos,  para  que  tão  cruel  e  re- 
pugnante mal  se  propagasse  na  mesma  extensão,  e 
no  mesmo  grau  d'intensidade. 

A.  chamada  ;jes<e  negra,  que  em  1348  matava  em 
Paris  oOO  pessoas  por  dia,  e  outros  contágios,  que 
por  aquelles  tempos  aflligiam  e  desfalcavam  horri- 
velmente a  população  europea,  creio  também,  que 
não  intluiram  entre  nós  tanto  como  n'outros  povos, 
para  a  fundação  dos  hospitaes ;  porque,  se  é  exacto 
o  que  diz  o  padre  Francisco  de  Santa  jMaria,  rara 
vez  houve  peste  em  Portugal  antes  da  tomada  de 
Ceuta,  c  depois  da  perda  de  el-rei  D.  Sebastião,  ha- 
vendo-a  quasi  sempre  no  tempo  intermédio.  Diz  po- 
rém o  mesmo  chronista,  que  algumas  foram  tão  ex- 
traordinárias, que  lhes  deram  os  antigos  o  titulo  de 
grandes  ;  titulo  com  que  elle  achou  nomeadas  três 
em  ditferentes  memorias:  a  primeira  (1438)  «pie  fez 
tanta  mortandade  em  Lislwa,  que  esta  citlade  pare- 
cia um  ermo;  a  segunda  (1493)  (pie  se  ateara  espe- 
cialmente na  cidade  du  Porto;  a  terceira  (1569)  que 
foi  tcrribilissima,  e  se  desatou  furiosamente  por  to- 
do o  reino,  morrendo  d'ella,  só  em  Lisboa,  oitenta 
mil  pessoas  {.'.')  ;  a  quarta  (1379)  na  qual  se  dizia 
também,  que  em  Lisboa  chegaram  os  mortos  a  (yiía- 
renfa  íiiíV(.'). 

Ora,  eu  bem  sei  que  no  periodo  que  decorre  do 
senhor  D.  João  I  até  a  fatal  batalha  d'Alcacer-Ki- 
bir,  é  que  os  hospitaes  mereceram  maiores  cuidados 
aos  monarchas  portuguezes,  e  parf^ce  isso  infirmar  a 
minha  opinião,  ou  antes  a  siipposição  que  ha  jiouco 
manifestei  relalivamente  á  iidliiencia  da  ])esle. 
Deve  porem  notar-se  : 

Em  priíiuiro  logar  :  (liie  já  em  tempo  muito 
anterior  a  D.  João  1  havia  grande  numero  <le  hos- 
|iilai's  no  n'ino.  No  3."  voliinw  da  Historia  de  l'or- 
liiijid  <liz  o  senhor  A.  Hertulani),  <pie  o  bispo  do 
Poilo  e  outros,  se  ipicixaram  ao  papa,  de  <pie  D.  Af- 
lonsd  111  lhes  usurpasse  a  administração,  c  os  lH'ns 
dos  liiis|iilacs  e  albergarias.  I)'cste  facto,  cpie  teve 
logar  cento  e  (piarenta  e  tantos  aniios  antes  da  to- 
mada de  Ceiíla,  iniiro  eu  «pie  deviam  ja  ser  mui- 
tos aipu-lles  inslitiilos  e  iiiiporlaiiles  as  suas  ren- 
das, para  <pie  os  bispos  alli'gasseiii,  como  fiiiida- 
menlo  digno  de  ser  pi>iuUrado,  a  siip|u)s|;i  usurpa- 
ção.^ 

Fi  i'ni  segundo  logar  :  (^ue  as  provideiici.is,  jKir 
que  nos  reinados  des  senhores  D.  Juão  U,  O.  Ma- 
noi'1  e  I).  João  111,  se  reformaraiu  aipielles  esi.;!»-- 
|eciiiH'iilos  e  s(!  regulou  o  seu  serviço,  provam,  aiitvs 
<l<'  linio,  o  propósito  ile  cenlralisar  a  respectiva  ad- 
ministração, c  lalvrz  dirigir  vaiilajosamente  o  i-i^lo 
religioso,  (|ue  miilliplicava  os  hospitaes  sem  sabir 
aproveitar  C(uivenii'iili'ineiile  os  i('<ursos  «la  caridade 
|)arliciilar.  l'in  zl^lo  sincero,  mas  iiie\|ierienlc,  l.uia 
então,  pelo  que  ri'speila  aos  luispitaes,  o  ipie  ai;ora 
um  zi''lo  irrcllectido,    >e  nào   c  mu  egoísmo  de  cUiiwc 


3.3Ô 


O  PANORAMA. 


indesculpável,  está  fazendo  pelo  que  respeita  aos 
inonte-pÍ05,  que  mais  cedo  ou  mais  tarde  têein  de 
morrer  áiiiingoa  de  recursos,  porque  são  já  soui  con- 
to, ao  passo  que  o  numero  de  sócios  em  cada  um 
dV-Ues  é  limitado,  c  não  pode  com  os  encargos  cres- 
centes da  associação. 

Tela  Vjulla  de  Sixto  l^  ,  que  começa:  a lix  debilo 
snliciUuIuiis  officii  pasto)  alist'  se  vê  que  ainda  D. 
João  II  não  reinava,  c  já  o  papa  lhe  concedia  am- 
plos poíkrcs  para  fundar  o  hospital  de  Todos  os  San- 
tos, e  para  encorporar  n'ello  todos  os  outros  hospi- 
taes  de  Lisboa  C(jni  os  seus  rendimentos.  Foi  effecti- 
vamente  levantado  o  liospital  do  Todos  os  Santos, 
refundindo-se  n'elle,  além  de  outros,  o  de  Santo 
Eloj',  que  havia  sido  fundado  pelo  Vjispo  D.  Domin- 
gos Jardo  no  aiino  do  12S't,  sob  a  invocação  de  S. 
JPaulo  o  Apostolo.  Vinte  annos  depois  do  terremoto 
de  1753  foi  o  dito  hospital  real  (ou  de  Todos  os  San- 
tos, como  lhe  chamavam)  transferido  para  o  coUegio 
novo  dos  Padres  da  Companhia,  onde  hoje  existe 
com  a  denominação  de  S.  José.  ])'esta  pequena  di- 
gressão verá  o  leitor,  que  o  hospital  de  S.  José,  com 
quanto  .seja  o  maior  e  mais  rico  de  Portugal,  não 
pode,  ainda  remontando  até  a  sua  origem,  recom- 
niendar-se  por  uma  alta  vetuslidadc. 

A  bulia  de  Sixlo  IV,  a  que  me  referi,  é  de  agosto 
de  147D,  e  d"il!a  se  deprehende  que  foi  solicitada 
com  o  fundamento  e  sob  condição  de  1).  João  II 
»_i  construir  lun  hospital  com  amplas  e  commodas  of- 
"  ficinas  para  a  varilalha  htispiUdidaãcdos  pobres,  per- 
iíegrinos,  inválidos  (laiKjiiidorum,  diz  a  bulia)  cn- 
iifermos  c  outras  pessoas  miseráveis.^-:  ICm  iòíó,  rei- 
nando já  o  mencionado  príncipe  foi  expedida  outra 
bulia  de  Innocencio  A'III,  com  os  mesmos  amplos 
poderes. 

Na  presença  do  tão  calamitosos  insultos  da  peste, 
que  o  nosso  paiz  já  havia  solirido,  parece  que  nem 
levemente  se  allude  a  elles  no  pedido,  como  se  não 
allude  na  concessão. 

E  é  cousa  notável,  que  nos  poucos  livros  e  papeis, 
que  pude  folhear,  não  deparasse  eu  senão  com  algu- 
mas raras  provisões  do  governo  relativas  á  peste,  e 
encontrasse  noticias  sobre  noticias  de  preces,  e  fun- 
dações d'ermidas,  para  aplacar  a  fúria  do  contagio. 
Por  exemplo  :  o  go\  orno  da  cidade  e  o  povo  de  Lis- 
toa,  atemorisados  pelo  incêndio  do  mal,  correram  a 
igreja  de  S.  Domingos,  e  tomaram  JNossa  Senhora 
do  Rosário  por  sua  advogada,  obrigando-se  com  voto 
a  solenuiisarem  as  suas  festas.  D.  Manoel  nos  prin- 
cípios do  seu  reinado,  confiando  na  intercessão  c  va- 
lia de  S.  lloque,  manda  pedir  á  Senhoria  de  \  enc- 
za  algumas  relíquias  do  corpo  do  Santo,  as  quaes  lo- 
ram  recebidas  <um  grande  applauso  e  consolação  de 
todo  o  povo.  Manda  depois  levantar-lhe  uma  ermi- 
da, que  foi  começada  em  março  de  lòUG,  e  sagrada 
pelo  bispo  D.  Duarle  em  fevereiro  de  lalo.  Insti- 
tuiu-se  logo  uma  confraria,  em  «jue  o  rei,  a  rainha, 
os  infantes,  e  muitos  nobres  e  populares  se  inscre- 
veram . 

São  muitos  os  fados  <|ue  poisuadom,  (pie  n'aquel- 
le  tempo  havia  mais  confiança  no  poder  da  oração 
do  que  nos  recursos  da  sciencia.  L  in  ou  outro  alva- 
rá, que  me  citem  do  tempo  de  D.  Manoel,  não  dcs- 
truc  a  minha  asserção.  Setenta  e  tantos  annos  de- 
pois da  primeira  grande  invasão  da  prsle,  e  quaren- 
ta o  tantos  depois  da  segunda,  é  que  se  proliibiu  que 
saijibcm  dos  navios  as  pessoas  que  vinham  a  Lisboa 
de  logares  impedidos  do  contagio. 

Dizem-me  que  posso  juntar  a  isto  o  silencio  dos 
dois  registos  geraes,  que  se  acham  no  cartório  do 
liospital  de  S.  José,  e  que  abrangem  os  reinados  de 
D,  João  II,   D.  Manoel  c  D.  João  III.  Não  posso 


verificar  o  facto  i  mas  nos  alvarás  e  provisões  que  re- 
busquei pude  notar  alguns  respectivos  a  certo  mal, 
que  não  obstante  pertencer-lhe  logar  dislincfo  na 
historia  das  enfermidades,  que  têem  afilicido  o  gé- 
nero humano,  não  devo  suppor  que  fosse  mais  digno 
da  consideração  e  cuidados  dos  nossos  reis  do  que  a 
peste,  a  respeito  da  qual  o  silencio  dos  registos  ar- 
guiria  menos  solicitude. 

A  oração  pode  ser,  e  é  um  preservativo  grato  á 
Divindade  \  mas  á  sciencia,  que  é  de  Deus,  deviam 
também  pedir-se  com  igual  fervor  e  confiança  as  pre- 
venções, e  os  remédios  necessários  para  debellar  ou 
evitar  os  calamitosos  effeitos  do  cont^"io. 

Talvez  me  digam  que  o  propósito  de  centralisar  a 
administração  e  serviço  dos  hospitaes  era  suggerido 
pela  necessidade  d'acudir  com  providencias  efficaies 
ás  invasões  da  peste,  e  que  era  uma  das  mais  impor- 
tantes, porque  assim  se  proporcionavam  a  maior  nu- 
mero de  doentes  os  meios  de  se  curarem,  facilitando 
aos  empregados  o  traUimento  das  enfermidades.  Se 
assim  foi,  sinto  que  não  me  fosse  possível  encontrar 
expressa  menção  de  um  motivo  tão  justo  nos  diplo- 
mas que  consultei,  e  que  das  differentes  pessoas  a 
que  recorri  nenhuma  pudesse  indicar-ra^os  como  eu 
precisava. 

E  certo  porém,  que  D.  João  11  encorporou  vá- 
rios hospitaes  de  Lisboa  no  de  Todos  os  Santos.  De 
quinze,  que  pelos  annos  de  li83,  havia  em  Santa- 
rém, fez  elle  um  só  (o  de  Jesu-Christo)  por  aucto- 
risação  de  Innocencio  \  III.  D.  Manoel  em  1501. 
obteve  de  Alexandre  M  um  breve  para  encorporar 
no  hospital  de  Todos  os  Santos  os  mais  hospitaes  que 
se  achavam  dispersos  por  dillerenfes  partes  do  reino. 
Este  breve  que  o  padre  João  Baptista  de  Castro  diz 
<|Uc  começa  :  u  Ferentes  in  dcsidcriis  cordis  yiosiri,  ui 
hospitaliay:  não  sei  porque  não  existe  no  cartório 
do  hospital  de  S.  Jo^é,  nem  certidão  ao  menos.  En- 
tretanto, em  occasião  mais  opportuna,  se  me  não 
faltar  tempo  c  paciência,  tenciono  fallar  a  respeito 
d"elle  e  de  outros  diplomas,  para  averiguar  até  que 
ponto  são  justas  ou  injustas  as  disposiç-ões,  porque 
em  17  de  janeiro  de  18ol  a  commiisão  administra- 
tiva da  Santa  Casa  da  Misericórdia  regulou  a  ad- 
missão dos  doentes   nas  enfermarias  do  dito  hospital. 

IVlo  <|ue  respeita  á  cidade  de  Coimbra  havia  ali 
grande  numero  de  hospitaes  e  ;dbergarias,  que  em 
tempos  anliíjos  tinham  sido  erectos  p»>los  fieis  para 
soccorro  dos  pobres  enfermos,  peregrinos  e  desampa- 
rados;  D.  >lanoel  impetrou  de  Julio  11  concessão 
para  fazer  de  todos  aquelles  institutos  um  só,  e  para 
esse  fim  edificou  o  hospital  de  Kossa  Senhora  da 
Conceição. 

N "outras  cidades  e  villas  do  reino  teve  logar  a 
mcsuui  refundição.  (Contínua.) 

—  Falsas  lend;is  religiosas,  f;dsas  ou  verdadeiras 
lendas  humanas  nunca  s;il\aram  um  paiz,  quando  a 
podridão  penetrou  no  âmago  da  arvore  social.  t)nde 
e  quando  o  homem  renega  da  sua  origem  divina, 
venile  a  liberdade  a  troco  de  delicias,  e5<iuecc  que  o 
elevar-se  acima  de  viciosas  paixões  traz  um  gost)  in- 
terior que  vale  l)em  todos  os  que  dão  os  sentidos, 
não  é  lisonjeando-lhe  vaidades,  que  nem  se  quer  res- 
peitam a  magestade  de  Deus,  que  o  havemos  de  r«- 
vocar  ao  sentimento  da  dignidade  e  do  dever. 

A.  Hkbcilaso.  —  Solcttuiia  I 'eròa . 


—  Não  se  intriíiluziu  a  iliijnidade  no  mundo  se- 
não para  abrigo  d'aquellcs,  «jue  a  não  logram.  Ad- 
virta o  privado  .lo  priniii>e  o  que  deve  a  todos  cm 
conimum.  e  a  cada  um  em  particular. 

ri.UHK  A.  ViKIBA. 


43 


o  PANORAMA. 


3n-f 


CUABALAJAUA, 


A  ciUADB  de  Guadaliijara  está  silu.ida  a  10  léguas 
de  IMadrid,  solirn  a  mari^iim  esquerda  do  llciiarcs. 
Uma  ponte  antiga,  inoiíiiineiitos  em  niiiias,  r  al'4'11- 
iiias  iii^crilMyjes,  provam  «pie  os  romanos  liiiliaiii  fuii- 
dadu  iTaipic^lle  «ilio  uma  povoaeãodc  haslaiilc  impor- 
Laneia.  'l"(jdavia  a  liisloria  (rirstaeidadedala  verdadei- 
ramente tia  eonipiisla  dos  aralies,  (pje  llu-  [)ozeram  o 
nome  de  (ruwtdl/iiiclinrit,  rpM'  é  o  <jue,  com  pcípie- 
na  corrupeão,  tem  lioji-. 

(inailalajara  no  eoniejo  do  secido  nllinifi  eliei;ou  a 
nm  i;Táii  d(.'  riipieza  e  de  actividade  ailmira\eis.  C) 
cardeal  Alljeroni,  mara\  illia<lo  de  \êr  a»  lãs  de  su- 
perior «puiliilade,  ipie  a  llespaniia  produz  em  tão 
içrande  abundatieia,  saírem  do  reino  ])or  vil  preeo, 
voltando  depois  eonvcrlidas  em  maçnifieos  pannos 
miiMuraclurados  no  estran!;eiro,  resolveu  sulitraldr  a 
llospaidin  a  i'sle  impost-o  pesadissinio,  <|ue  assim  es- 
lava pairando.  IMandou  vir  de  llollanda  alguns  ia- 
Ijricantes  expiTimentados,  !•  numerosos  tecelões  esco- 
lhidos enlre  os  mais  lial)eis,  e  eslalieleceu-os  cuin  ils 
nua»  ofliciuas  nos  suljurliios  de  Araujuez.  Um  anuo 
ilepoi».  em  17111,  tornou  se  indiipensaul  liral-os 
d^uiuellc;  sitio,  <pie  tivera  inna  iullueni'ia  lalai  na 
saúde  de  operários  liaMiuados  a  \iver  i-m  rei;ioi's 
Irias,  e  Ibi  escolhida  (luad.d.ijara  pela  biui  saluliri- 
dade.  Crearani-se  aip\i  (grandes  laluicas,  e  em  pouco 
Inujio  chegaram  a  Iralulhar  na  ciilude  mil  t<'arei. 
%  tu..  J.  —  3."  ÍMUilii. 


Km  1757  cedeu  o  governo  hespanhol  estas  fabri- 
cas á  cor|)ora(jão  tios  nujrcadores  de  ])annos  de  Ma- 
drid, pelo  tempo  de  dez  annos,  conctídendo-lhe  mui- 
tos privile!;ios  ^  mas,  ou  ]>or  incapacidaile.  ou  ))or 
má  gerência,  o  residtailo  d"cbta  operação  foi  ilesas- 
trono. 

(>  e^lailo  reassumiu  a  admiui^l ra(;ão,  sem  i|U>' 
acpiellas  manufacturas  ileixassem  di.>  ileclinar  eonti- 
nuameute.  A  iu\a^ão  ile  18l)S  tleu-lhes  oídtimn  gol- 
pe. \']m  18:21)  alguns  espccidailures  eslr.ingeiros  ten- 
taram restaurar  aipudlas  solicriia'- manutacluras  ;  ni;;-> 
o  resultado  foi  a  rtdna  de  suas  fortunas.  Desde  en- 
tão têem  estatlo  inleirauuMite  aliantionadas. 

lia  em  (iuatlal.ij.ira  con^lrlU(;òes  mui  notáveis, 
lias  ipiaea  meuciíuiarcmos  as  prineipaes.  O  pautheon 
tia  casa  do  infantado,  ipn-  contem  :i7  umas  sepul- 
ehraes,  é  digno  pela  sua  magnilieencia  <la  altençà'> 
tios  entendidos,  fustou  esta  ohr.i,  jirimor  tia  arte 
do  Iti."  século,  1.800:707  reales  de  velou,  tiu  ri'-i> 
«1:0;i1.SK.iO  da  nossa  moeda. 

.Mas  o  monumento  de  (iuadalajara  mais  curioso  a 
lodos  tis  respeitos  t''  o  celebre  palácio  tia  casa  dt>stlu- 
(jues  do  infauludo. 

Secundo  alguns  t.Tudilos  este  palácio  foi  eonslrui- 
<lo  pelo  cardeal  IMeniloi.i.  d.i  casa  tio  infantado,  ^^\u^ 
nasceu  e  morreu  em  (iu.iihdaj.ir.i.  t>  i-stvio  geral  tio 
edilicio  parucf  juslilicar  t>sla  tipiniào.  A  faehaila  «pro- 


;338 


o  PANORAMA. 


senta  um  desenvolvimento  considerável  ^  c  podem 
ainda  distinguir-se  na  ornamentação  vestígios  das  tra- 
dições fcudaes  :  a  galeria  que  coroa  o  edifício  é  cor- 
tada em  ameias  destinadas  á  defesa,  as  duas  torri- 
nhas, que  acompanham  o  portal,  figuram  as  torres 
que  outr'ora  se  edificavam  á  entrada  das  fortalezas 
para  a  defender.  São  estes  os  caracteres  preciosos  que 
marcam  perfeitamente  a  transição  da  archilectura  da 
meia  edade  para  a  da  renascença. 

No  interior,  o  palácio  soífreu  importantes  modifi- 
cações;  mas  o  pateo,  que  a  nossa  primorosa  gravura 
representa,  é  o  que  mais  profundamente  contrista  os 
artistas.  Glue  desagradável  efleito  não  produzem  as 
columnas  tão  frias,  tão  lisas,  que  sustentam  aquella 
V(-rdadeira  renda  de  pedra  '. 

Admiram-se  n^este  palácio,  soberbos  tectos,  repar- 
tidos em  taboleiros,  enrequecidos  de  pinturas  e  orna- 
tos delicados  •,  as  paredes  guarnecidas  de  soberbos 
azulejos ;   e  vastas  chaminés,  ricamente  insculpidas. 

O  salão  chamado  a  sala  das  linhagens,  porque  as 
pinturas  que  o  ornaram  representavam  os  brazões  da 
maior  parte  das  famílias  nobres  de  Hespanha,  éuma 
peça  curiosíssima.  Oceupa  inteiramente  um  dos  la- 
«los  do  edifício ;  mas  a  sua  largura  não  corresponde 
ao  comprimento.  A  diaminé  colossal  collocada  em 
uma  das  suas  extremidades  é  um  verdadeiro  prodí- 
gio de  esculptura. 

Hoje  esta  sala  serve  de  deposito  de  antigos  mo- 
veis, e  está  coberta  de  pó  o  de  tèas  de  aranha. 

Conta  Guadalajara  0,736  habitantes  apenas,  com 
ijuanto  seja  capital  da  provincia  do  seu  nome,  e  por 
<!onsequencia  onde  residem  as  respectivas  auctorida- 
des. 

Os  edifícios  das  antigas  fabricas  foram  cedidos  ao 
corpo  de  engenheiros.  No  primeiro  está  a  academia 
do  mesmo  corpo,  e  quartel  espaçoso  para  parte  da 
força  do  regimento.  No  segundo  projecta-se  fazer  ac- 
conunodações  para  o  resto  do  regimento,  e  conslruiu- 
se  um  quartel,  com  o  nome  de  Santa  Izabel,  para 
serviço  das  tropas  que  por  ali  transitarem. 


POETAS  DA  ARCÁDIA. 

1'edro  António  Cobrê.^  Garção. 

Ao   Menalo  —  Coit/don   Erimanikío. 

II. 

(At  ando  a  Arcádia  se  fundou  as  leiras  porluguezas 
tocavam  o  ultimo  periodo  da  sua  edade  de  ferro. 
Verso  e  prosa,  decaindo  da  graça  viril,  e  da  casti- 
gada abvindaiicia,  tão  estimadas  dos  bons  auctores, 
serviam  de  moro  jirctexto  a  talentos  pueris  para  sab- 
batiiias  pedantcscas  do  trocadilhos  e  couccifos,  de 
que  a  I^ltcntx  Ucnastida  nos  conserva  curiosos  exem- 
plares. 

Abram  ao  acaso  essa  collecção  volumosa,  corram 
algumas  juiginas,  e  julguem  depois  se  a  lingua  que 
ali  se  escreve  foi  a  luigua  de  Ferreira,  Camões  e  Sá 
de  Sliranda ;  ou  se  ora  o  portuguez  de  \'ieira  c 
U.  Francisco  Manoel.  Digam  Re  ns  poesias,  que  se 
<-nrodjim,  desfeiam  e  retorcem  nos  gongoricos  /«afcf- 
liiiihus,  nos  presumidiis  AcrosUcoi,  e  n.is  Silvas  cn- 
tenenadas  com  a  quinta  essência  da  aílcclação,  re- 
cordam ao  menos  sequer  a  c:\sta  Mus;i,  que  laiifo 
honrou  os  tempos  clássicos  do  Parnaso  Lusitano ! 

Pois  o  livro  c  o  retrato  da  civilisação  litteraria ! 
A  esta  baixcsa  edescom|X)stur.i,  descendo  degrau  em 
tlegrau,  a  trouxera  a  prcvetsão  do  gosto   e  a  estul- 


ta imitação  de  uma  escola  bastarda  e  falsa,  que  tan- 
tos annos  dominou  a  arte  e  tão  grandes  estragos  dei- 
xou atrás  de  si.  Desde  que  Marino  introduziu  em 
França  a  lepra  das  imagens  bombásticas,  e  da  ob- 
scuridade emphatica,  e  que  D.  Luiz  Gongo ra  (o  di- 
vino) lhe  abriu  as  portas  da  Hespanha,  tudo  decli- 
nou. Se  a  renascença  grega  e  romana  nos  tinha  suf- 
focado  os  primeiros  ensaios  da  poesia  nacional ;  esta 
segunda  e  funesta  invasão,  varejando  flores  e  fructos, 
creou  uma  seita  de  rimadores  insulsos,  jurados  ini- 
migos da  verdade,  servis  aduladores  das  invenjOcs 
dos  Euphoistas. 

O  contagio  propagou-se  depressa  \  e  appareceiam 
logo,  como  svmptomas  da  corrupção,  essas  innumera- 
veis  Academias,  palestras  patentes  á  ociosidade  ver- 
sificatoria  dos  vates  sem  Miner^■a  \  era  d"estes  púlpi- 
tos rhctoricos  que  eUes  frechavam  sem  dó  a  arte,  os 
modelos  do  bello  antigo,  e  até  a  razão  e  ojuiio.  Re- 
nasciam umas  das  outras,  e  no  seu  zelo  deplorarei 
não  esgotaram  só  o  ridículo  na  escolha  dos  assumptos, 
apuraram-no  também  na  túrgida  linguagem,  com  que 
ainda  em  cima  completaram  a  obra,  assassinando-os. 
Houve-as  de  todas  as  datas  e  invocações ;  e  algumas 
ciosas  da  gloria  posthuma  nem  se  esqueceram  de  re- 
commcndar  a  sua  desgraçada  memoria,  dando  as  hon- 
ras da  estampa  as  indigestas  composições,  aonde  a 
inchação  forceja,  entumecendo-se,  por  chegar  á  altu- 
ra do  sublime,  e  ás  dimensões  do  bello !  Diniz,  zom- 
bando, queria  que  a  pátria  de  taes  monstros  fo->so  o 
paiz  das  bagaictlas.  Ainda  era  humano :,  mereciam 
menos. 

Façamos  um  rápido  inventario  d''estes  seminários 
dignos  da  veia  satírica  de  ôuevedo  \'illegas.  Elxis- 
tiu  a  Academia  das  Confcríiicias  Eruditas,  erecta 
em  1G9G  na  livraria  do  quarto  conde  da  Ericeira 
D.  Francisco  Xavier  de  Menezes:,  a  dos  Sinyidarct 
de  Lisboa  creada,  ao  que  parece,  antes  de  lb*J2;  a 
dos  Instaniancos,  no  paço  do  Bispo  do  Porto ;  a  dos 
Generosos,  restaurada  em  1624  pelo  Trinchante  de 
el-rei  D.  Pedro  II  •,  a  dos  Eruditos,  a  dos  .ifidicn- 
dos,  a  dos  Anonymos,  celebre  pela  Arte  dos  Conceitos 
primor  do  género,  e  filha  dilecta  da  prosa  alambica- 
da do  seu  ApoUo  o  doutor  Leilão  Fca-reira :,  a  do» 
Humildes  e  Ignorantes  e  outras  ainda,  que  ou  se 
eclipsaram  esquecidas,  ou  trabalharam  jnir  captar  a. 
posteridade,  que  não  quiz  vêr  n'ellas  com  justiça  se- 
não a  ironia  do  gosto  e  a  corni[)ção  das  letra». 

A  Academia  de  Historia,  creação  dosr.  D.  João  ^' 
em  17áO,  em  virtude  do  plano  do  Theatino  D.  Ma- 
noel Caetano  de  Sousa,  e  graças  aos  varões  cora  que 
se  formou,  destingue-se,  é  preciso  dizel-o,  da  plebo 
dos  amotinadores  de  glos;is  e  colcheias.  Muitas  das 
oliras  que  nos  legou  são  credoras  de  louvor  em  rela- 
ção á  epoclia ;  o  se  a  critica  tem  bastante  que  notar 
nos  escriptos  dos  académicos;  se  a  recente  escola  his- 
tórica pôde  sorrir-se  das  idé:i$  o  da  cretlulidade,  que 
respiram  alguns  dos  livros,  á  verdade  cumpre  igual- 
mente acrescentar,  mesmo  depois  de  rigoroso  exame, 
que  os  principaes  trabalhos,  ((Mllecção  de  Memorias 
de  17:21  —  1734)  não  cnver^oidi.un  o  seu^e^.•ulo,  an- 
tes exaltam  a  erudição  dos  sábios,  a  quem  se  de- 
'  \em. 

Entretanto   a  esphera   do  acção   da  Acadeniia   de 

Historia  foi  limitada  dcxle  o  começH>,  c  a  in(luenci.-i 

:  que  e\erceu  ainda  mais.   Os  zelosos  escriplores  desa- 

i  tavam   as  dissertações   naquelles  peri"xlos  cheios  de 

!  pompa  asiática,   ouriçados  de  citaçõ»"^  c  de  reminis- 

ccncias  latinas,  c  abundantes  nos  m.iciços  de  phrascs, 

•jue   tornam    nu>tlianamente   dcleilavd   o   seu  estylo 

para  o  vidgo  dos  leitores.  Hubita%'am  na  região  quasi 

inaccessível  dos  estudos  eruditos,  e  9c  ás  veres  Iviixavani 

á  terra  era  p;ira  lerem  a  D.  João  V,  e  a  família  real. 


o  PAjVORA.MA. 


339 


na  sala  da  Gallé,  em  conferencia  aulica,  algum  dos 
apparatosos  elogios,  em  que  foi  primoroso  o  marquez 
de  \'al(;ni;a,  coUosso  de  eloquência  apologética,  a 
quem  tocou  a  missão  voluntária  de  censurar  o  Cid 
de  Corneille,  réu  de  lesa-poetica,  segundo  as  orde- 
nações de  Aristóteles  1 

Os  poemas  ^'otantcs,  os  sonetos,  as  decimas,  as 
espinellas  e  siniilhantes  futilidades,  estavam  muito 
abaixo  do  lavor  scientifico  dos  sacerdotes  da  Historia 
para  lhes  concederem  um  momento.  Sc  algum  poe- 
tava, se  adoecia  da  enfermidade  commum,  distrahia- 
se  cm  linhas  desiguaes,  c  fazendo  pouco  apreço  da 
obra  chamava-lhe  recreio  fugitivo  I  Como  haviam  de 
familiarisar-se  com  os  metros  a  não  ser  em  epopeias, 
ou  em  voos  líricos,  (e  para  isso  era  curta  a  sua  res- 
piração) homens  enlaçados  na  doce  intimidade  dos 
herocs  de  Homero,  e  dos  patriarchas  da  latinidade, 
que  sem  descanço  queriam  fazer  pães  e  fundadores 
de  Ul^  ssea  ? 

Assim,  em  quanto  Barbosa  Machado  edificava  la- 
boriosamente o  seu  vasto  archivo  da  litteratura  pá- 
tria, as  rãs  do  l'arnaso,  impunes  e  audazes,  saíam 
dos  viveiros  das  Academias,  e  vinham  coaxar  para  o 
sol  enxames  de  versos  chilros,  travando  soporiferas 
polemicas,  ou  adormecendo  em  requebros  infantis, 
tudo  diluído  nas  paginas  da  sua  prosa  miserável. 

Os  Costas  Corrêas  nos  Sinrjulares  de  Lisboa,  en- 
tre uma  nuvem  de  trocadilhos,  saudavam  os  Pimen- 
teis,  e  louvando  obscuros  destichos,  exclamavam  com 
seriedade  : 

\'on(lo,  oh  raro  l'inientel, 

^  ip^ilio  que  a  tua  alteza 

Humilhou  sua  grandeza, 

Te  poz  aos  pés  o  laurel  ! 

Os  Serrões  de  Castro  faziam  romances,  que  prin- 
cipiam : 

Com  um  cajado,  senhores, 
Dous  coelhos  mato  agora. 
Satisfazendo  um  Romance 
A  assumpto  de  prosa  e  verso. 

Km  fim  o  padre  ])rior  de  S.  Lour<?nço  de  Lisboa, 
o  doutor  Francisco  de  Castro,  perseguia  uma  infeliz 
Narcisa  em  versos  peiorcs  que  vespas,  declamando  de 
dentro  da  sua  loba  : 

<íppoz-»o  o  sol  á  bellcza 

1)(!  Narcisa  (alma  do  prado) 

Klle  nos  raios  fiado. 

Fiada  ella  na  dureza  ; 

('upido,  que  n"esla  empresa 

\  iu  Narcisa,  reforçou 

Seu  peito,  com  que  mostrou 

(iui-  Narcisa  defendia, 

K  coin  o  mesmo  sol  ijueria 

(Auebrar,  como  em  fim  quebrou  I 

ULui-  mais  é  preciso  para  se  fazer  uma  idéa  exacta, 
quando  por  outro  lado  está  put<'nli;  o  corpo  de  de- 
licio na  J'litni.c  Itiniísciíld,  nos  incrixcis  íViris/iícs 
W/Hmn,  ^;  no  AHviít  c/i'  Tildraf  O  (pie  suiredia  nos 
Sinijuhiiia  era  com  leves  alli'rai;òes  o (jiie  passava  nos 
IluiiUlilm  f  JijiKirdiitcs,  e  nos  .Inuinjiniis ;  adifleren- 
Ça  consistia  mI  «;m  ser  a  prosa  a  sua  língua,  e  o  pe- 
dantismo a  sua  feição.  Os  tratados  de  [ihihnopliia  o 
dl!  erudição  das  faliies  coUecções,  que  nos  transniit- 
tiram,  não  são  niciios  fertins  em  papoulas  do  (jiie  os 
niotrus  assassinos  do  prior  de  S.  Lour<-iiço,  que  Deus 
lein  t 

K  os  Piíiiunleis  e  os  ('ustas  CurrAas  ila  prosa  não 
incoininodain  menos  do   que   us  luuruudos  d'/Vpullu  ! 


Tudo  vem  do  mesmo  cacho,  e  nasce  da  mesma  vide  I 
Para  apreciarmos  a  que  ponto  a  corrupção  tinha 
chegado,  para  avaliarmos  o  despreso  da  razão  e  dos 
bons  modelos,  é  preciso  examinar  a  collecção  dos 
poetas  do  sr.  D,  João  V,  conservada  na  Bibliothe- 
ca  da  Ajuda  em  volumes  manuscriptos ;  lendo-a  ha 
de  pasmar-se  do  divorcio  quasi  completo  d^aquelles 
vibradores  de  rimas,  d'aquelles  engenheiros  de  pue- 
rilidades com  o  verdadeiro  gosto,  com  a  imaginação 
cultivada,  e  com  o  iustincto  do  medíocre,  não  dize- 
mos ja  do  bom.  Tirando  poucos  poemas  (curtos)  do 
doutor  Caetano  José  da  Silva  Sotto  ^laior,  por  an- 
tonomásia o  Camões  do  Rocio ;  e  bastantes  versos  fu- 
gitivos e  satyricos,  que  uma  veia  fácil  e  natural  ins- 
pirava em  assumptos  críticos  a  Thomaz  Pinto  Bran- 
dão, comicamente  denominado  o  Pinto  Renascido. 
(grande  freguez  do  bolsinho  particular  do  sr.  D. 
João  V,  antes  de  devoto,  e  do  secretario  de  estado 
Diogo  de  Mendonça  Corte  Real,)  o  resto,  com  mo- 
tivo, e  salvas  raríssimas  excepções,  serviria  de  ludi- 
brio a  uma  aula  de  ensino  secundário,  edeopprobrio 
ao  próprio  José  Daniel,  o  vate  menos  escrupuloso  na 
(lualidade  do  Pégaso,  em  que  rastejavam  os  voos  da 
sua  mais  que  modesta  musa  ! 

A  arte  dramática  não  tinha  escapado  também .  Os 
padres  da  Companhia  de  Jesus  recreavam  os  seus 
amigos,  convidando-os  para  assbtirem  aos  autos  gram- 
maticaes,  as  vezes  latinos,  era  que  os  discípulos  dcs 
coUegios  de  Santo  Ignacio  figuravam  de  Gerúndios 
e  Supinos,  chegando  a  extravagância  ao  auge  das  Fi- 
guras da  Dicção  dançarem  minuetes  umas  com  as  ou- 
tras, segundo  conta  unisatvricodaepocha  !  Nosthea- 
tros,  a  Opera  Italiana  principiava  a  introduzir-se, 
attrahindo  a  corte  e  a  fidalguia.  A  devota  casa  do 
Hospital  de  Todos  os  Santos  dava  a  comedia  hespa- 
nhola  e  a  farça  de  chocarriees,  entremeiadas  de  árias 
e  coros,  cm  virtude  do  seu  privilegio,  concedido  no 
reinado  de  Filippe  II  de  Castella,  c  o  reportório  era 
já  avultadíssimo,  (juando  fr.  Lucas  de  Santa  Catha- 
rina  e  Thomaz  Pinto  Brandão,  parodiando  os  enre- 
dos inverosímeis,  c  escarnecendo  os  diálogos  rebom- 
bantes  das  peças  mais  em  voga,  tocaram  ao  primeiro 
rebate,  (?  romperam  a  guerra,  que  o  Garção  depois, 
e  Manoel  de  Figueiredo  na  sua  cauda,  declararam  á 
Thalia  vagabunda,  ídolo  dos  Saramagos  e  Perrexis 
tão  festejados  pelo  applauso  publico. 

Os  dramas  de  fr.  Lucas  de  Santa  Catharina,    que 
só  lemos  manuscriptos,    intitulam-se :    Amor  sem  pés 
nem  eahv^a,  comedia  famosa  •,   c  os  Amantes   de  Es- 
picha,  fabula  jocosa   em  (jue  entram,    garganteando 
duetos   e   cavatinas,    Priamo   rei   de   Trova,    Tisbe, 
Diana  caçadora,  Cupido  frecheiro,  e  vários  deuses  e 
heroes  !    A    farça   de  Thomaz   Pinto  reduz-so  a  uma 
satura  contra  os  irmãos  do  hospital,   por  delinearem 
despedir  a  companhia  bespanhola,   na  fé  (pie  de  \'a- 
lença  vinha  o  Garcez  com  outra  mais  \lstosa.    K  in- 
significante  como  composição  :,    porém  ollereee  gran- 
de  interesse   nas   frequentes   ijllusões   aos  títulos  das 
comedias,    que    ii'a(]uelle    tempo   estavam    mais    em 
scena,  e  vt^-se  por  ella,  que  o  reportório  Ineluia  mul- 
tas obras   de   Lo|)e   da  Vega,    Calderon,    e  Tirso    de 
Moliiia.     Para    não   omittir   um    rasgo  característico 
ajuntaremos,    que   os   amadores   da   opera   do  sr.  D. 
João  V    não   eram    menos   ardentes    em    ovações  de 
prosa   e  verso  do  ipie   os  legítimos  dilelt<i)di  dos  nos- 
sos dias.  Acliam-se  nas  coUeeções  repetid, is  poesias  no 
cantor  fllnei,   o  á  eomodiaiite   castelhana  Rosa,   que 
pelo  que  parece  foi  um  ussonibro   de  gent ilesa  e  um 
enlevo  de   melodia.    No    meio   de   tantos  triumplios 
alheios  e  do  tanta  oliseuridade  pro]>rla,    cpiein  deeai.i 
a  ponto  do  não  ser  posilvel  declln.ir  mais  era  othea- 
lio    nucioiíul.    (:luiisi    ipic    nem   existia    senão  |k>Io'» 


.340 


O  PANORAMA. 


cliulos  ciilrcmczoa  (lr>  vpía  dissoluta,  vergonha  da  ar- 
te o  escândalo  da  moral.  1'ara  compensação,  em  logar 
da  coroa  arrancada  a  Gil  \'icente  pelos  dramáticos 
liespaniioes,  o  povo  tinha  para  se  consolar  os  carpi- 
dos Madrigaes  da  nobilíssima  Academia  das  Olarias  '. 

(Cuntinún.J 


DtAS    1'ALAVnAS    SOEKE    HOSPITAES. 


V. 


o  i'£NsAiME.\To  ceutralisador  que  presidiu  á  refun- 
diçSo  dos  hospitaes  do  nosso  paiz,  olleituada  desde 
D.  João  II  até  D.  João  III,  seria  hoje,  guardadas 
as  diílerenças  dos  tempos  c  das  luzes  em  matéria  de 
bcnelicencia  publica,  perfeitamente  coadunavel  com 
a  Índole  e  jjrecisões  da  sociedade  actual. 

Os  inconvenientes  e  vantagens  dos  systemas  de 
succorros,  que  uns  pertcndem  realisar  pelo  cxercicio 
da  caridade  individual,  outros  pelas  praticas  da  ca- 
ridade legal,  estão  mais  que  discutidos  e  demonstra- 
dos, relativamente  ás  enfermidades  do  pobre.  Para 
lhe  alliviar  ou  extinguir  os  padecimentos  que  acom- 
panham a  sua  miséria,  quem  não  verá  que  são  in- 
suilicientes  os  soccorros  levados  á  sua  própria  mora- 
da .  (Auantas  horas  não  consumiriam  dous  médicos, 
por  exemplo,  a  visitar  cem  doentes,  se  os  não  tives- 
sem reunidos  em  duas  ou  trcs  enfermarias  contíguas  ? 

A  questão,  se  a  pudesse  haver,  deveria  unicamen- 
te versar  sobre  o  numero  e  grandeza  dos  estabeleci- 
incntos.  JMas  esse  ponto  mesmo  não  deve  reputar-se 
indeciso.  A  multiplicidade  de  hospitaes  com  poucos 
leitos  requer  pessoal  numeroso,  e  augmenta  sem  uti- 
lidade as  despezas  de  administração.  Levantar  asy- 
los  e  hospitaes  de  dimensões  enormes,  e  agglomerar 
ala  grande  numero  de  necessitados  e  enfermos,  é  o 
sv'stema  opposto,    tão  \icioso  como  o  primeiro.   Um 

contraria    os     tirinrinins     nnnnnn-iíí^nc  ■      n  nntrn       trifl;ic 


os   princípios   ecoiionucos  ^ 
as  máximas   e  coudiçõos  hygienicas, 


o  outro,   todas 
;i  que  deve  su- 


bordinnr-se   o  serviço  interno  das  casas   de  hospitali 
dade  e  tratamento  dos  jiobres. 

<Auando  affirmei,  pois,  que  o  pensamento  ccntrali- 
sador,  que  dictou  as  reformas  de  D.  João  11,  seria 
coadunavel  com  a  Índole  e  necessidades  da  nossa 
epocha,  não  quiz  de  nenhum  modo  conformar-rae 
com  a  monstruosidade  de  certas  edificações,  que  são 
Sorvedouros,  ao  mesmo  tempo,  das  vidas  e  do  patri- 
mónio das  classes  desgraçadas,  (iuiz  só  indicar  a  con- 
veniência de  supprimír  muitas  confrarias,  sem  exce- 
ptuar algumas  casas  de  misericórdia,  c  de  commutar 
a  maior  parle  dos  encargos  pios,  conj  que  estão  gra- 
vados iniproiliictivamcnte  os  rendimentos  de  quasi 
todos  os  institulos  de  caridade,  afim  de  se  lhes  po- 
der dar  uma  ajiplicação  mais  conforme  aos  bons  de- 
sejos dos  instituidores.  A  supprcssão  ecomniutaçàode 
que  trato  são  medidas,  que,  mais  cedo  ou  mais  tar- 
de, so  hão  dV-mprchender  ínfallivelmente,  porque  as 
reclama  a  sciencía  (que  assim  se  lhe  pôde  hoje  cha- 
mar) de  bim  querer  c  bem  fazer.  A  reforma,  como  se 
ella  precisa,  ha  de  levantar  muitos  clamores,  talvez  do 
boa  fé,  talvez  interesseiros  e  apaixonados.  Mas  mui- 
to mais  alto  do  que  esses  clamores  todos,  bradam  os 
sentimentos  da  humanidade,  os  interesses  legítimos 
do  pobre  o  desvalido,  que  nos  j)ede.  pelo  monos, 
que  não  fechemos  os  olhos  por  ni.iis  tempo  aos  abu- 
sos e  díiapí<laçõos,  que  tèem  dado  cabo  dos  estabele- 
cimentos de  caridade. 

Não  temos  hospitaes  especiaes  iralgumas  localida- 
des, onde  a  frequente  romagem  de  enfermos,  e  ou- 
tras condições   e  circumstancius  favora\eis  os  pcdeiu 


de  ha  muito.  Não  temos  as\los  e  hospitaes  centraes, 
adetpiada  e  convenientemente  regulados,  nas  calcas 
de  dístricto  administrativo,  e  na  dos  municípios  mais 
populosos,  com  hospitaes  e  albergarias  dependentes 
nos  concelhos  e  povoações  menos  importantes.  Enão 
havemos  de  eonu-çar  um  trabalho  de  reformação  pa- 
ra não  desgostarmos  meia  dúzia  de  de\ofos,  que  es- 
tão, desde  tempo  iminemorial,  na  posse  de  deixarem 
perder  todos  os  rendimentos  que  lhes  entregam,  ou 
para  não  fazermos  a  outra  meia  du2Ía  de  economis- 
tas onzeneiros  a  grave  injuria  de  lhes  tirar  das  gar- 
ras a  fazenda  dos  pobres ! 

Não  desconheço  que  erigir  e  dotar  os  hospitaes 
centraes  de  que  precisamos,  é  empresa  para  largos 
dias,  por  mais  fervorosos  que  fossem  o  zelo  e  a  cari- 
dade do  povo  portuguez,  e  a  dos  nossos  legisladores 
e  governantes.  Os  estabelecimentos  d'esta  natureza 
são  obra  de  séculos,  porque  as  instituições  não  se  im- 
provisam :  nascem,  vingam,  florecem  e  fructificam 
em  períodos  admiravelmente  regulares  e  successivos. 
Mas,  por  isso  mesmo  que  é  este  um  dos  srrandes  la- 
vores sociaes,  que  as  gerações  tèem  de  ir  legando 
umas  ás  outras,  para  que  no  seu  acabamento  coope- 
rem todas,  é  que  urge  começar  quanto  antes. 

Tenho-me  alargado  mais  do  que  queria  n'um  in- 
cidente alheio  do  assumpto,  que  me  propuz  n"estas 
duas  palavras,  e  que  é  uma  rápida  vista  sobre  a  ori- 
gem dos  hospitaes.  ^'ou  por  tanto  rematar  o  meu 
escrípto,  resumindo  as  minhas  idéas  a  este  respeito. 
Nas  diflerentes  phasos  porque  têem  passado  aquel- 
les  institutos,  desde  os  primeiros  tempos  do  christia- 
nismo,  dístinguera-se  três  períodos,  que  talvez  pode- 
ríamos chamar :  religioso,  civil,  administrativo. 

No  primeiro  período  prevalece  quasi  exclusiva- 
mente a  Ciiridade  evangélica.  Os  bispos  e  os  mon- 
ges, ou  são  fundadores  ou  directores  dos  hospitaes  e 
albergarias. 

No  segundo  período  começa  a  ter  vulto  na  ordem 
politica,  civil  e  religiosa  a  classe  que  chamavam 
mechanica.  Alguns  estatutos  expressamente  admif- 
tiam  gente  plebca,  rústica,  sem  tetras  e  $«m  isfima- 
f;uo.  O  mestre  d"ofricio,  ou  como  membro  d"um 
grémio  industrial,  ou  como  confrade  de  alguma  ir- 
mandade, afaga  na  sua  alma,  rude  mas  crente,  a 
ídéa  d^um  hospital,  em  que  seus  irmãos  de  tra- 
balho, inválidos  ou  enfermos  possam  tratar-se.  E 
um  sonho  que  lhe  não  esquece  \  sonho,  que  á  porfia, 
todos  procuram  realis;ir.  Nem  se  refira  a  outra  cau- 
sa o  grande  numero  de  hospitaes,  que  os  ourives  da 
prata,  os  carpinteiros,  os  tecelões,  os  hortalãos,  os 
pescadores,  e  varias  outras  corjwrações  tinham  em 
Lisboa  e  por  essas  cidades  e  villas  do  reino.  Se  o  es- 
pirito de  caridade  evangélica  piVle  n'esto  facto  equi- 
vocar-se  com  o  egoísmo  de  classe,  as  tendências  de 
aquella  epocha  não  o  deixam  apreciar  deliaixo  d"ou- 
Iro  aspecto,  que  não  seja  o  da  fraternidade,  em  que 
o  sentimento  religioso,  a  lei,  o  trabalho — e  a  com- 
mum  desconsideração,  talvez,  —  uniam  totla  a  famí- 
lia operaria. 

No  terceiro  perioilo  apparece  muito  prtmunciada 
a  idéa  da  centralisaçâo  administrativa,  ou  antes  a 
centralisação  politica  jirocura  manifostar-se  sob  todas 
as  formas.  Reduz  o  numero  dos  hospitaes  c  alberga- 
rias, e  ii'unias  partes,  como  em  França,  o  governo 
tira  a  direcção  o  administração d'i'stesestaljoleciracn- 
tos  aos  ccclesíastiois,  [>orque  eram  dríiiiasolados,  e 
dislrahíam  os  rendimentos  da  sua  piedosa  applica- 
ç.ão ;  n'outras,  como  em  Portugal,  algumas  \eies  s* 
procura  entregar  a  governança  e  regimento  d".iquel- 
las  casas  aos  s.icenlotes,  |x>n]ue  os  seculares  não  se 
mostravam  entendidos  nem  zelosos  no  manejo  da  fa- 
xenda  dos  pobres. 


o  PA>ORAMA. 


341 


Não  attribuo  os  hospitaos  a  uma  causa  anica;  mas 
na  concorrência  das  (liflcn.-ntes  causas,  avulta  sobre 
tudo  o  espirito  religioso.  A  caridade,  esse  sentimen- 
to, esse  principio  de  eterna  moral  havia  de  forçosa- 
mente converter-se  em  institutos  sociaes,  vitíssem  ou 
não  as  lepras,  as  pestes  e  oulras  calamidades  afervo- 
rar o  zelo  e  a  piedade,  que  o  Evangelho  ensina.  Fo- 
ram, quando  muito,  meras  causas  particulares  e  oc- 
casionaes :,  mas  a  geral,  a  verdadeira  c  eífetiva  causa 
estava  na  própria  energia  e  efíicacia  do  principio  re- 
ligioso e  humanitário. 

Ainda  quando  na  sociedade  antiga  não  achasse  tra- 
dições que  estimulassem  os  seus  primeiros  propaga- 
dores, o  Evangelho  fazendo  os  povos  menos  sedentá- 
rios, e  mais  communicalivos  e  afiectuosos,  necessa- 
riamente liavia  de  multiplicar  o  aviventar  as  dille- 
rentes  relações  moraes  c  conmierciaes,  (|ue  tinham 
de  manter  entre  si.  As  casas  de  liospitalidade  o  en- 
fermaria para  recolher  e  tratar  os  pobres  e  peregri- 
nos, eram  e  serão  sempre  uma  necessidade  lógica, 
uma  consequência  forçosa  do  principio  chrislâo. 


A  religião,  que  define  o  amor  do  próximo  pela 
paralx)la  do  Samaritano,  curando  as  feridas  do  vian- 
dante, que  os  ladrões  deixaram  por  morto,  e  pre- 
stando-lhe  os  soccorros  que  o  sacerdote  e  o  levita  lhe 
não  haviam  dado  ^  a  religião  que  manda  ao  rico 
agazalhar  e  soccorrer  o  pobre  como  seu  irmão  ;  cjue 
manda  fazer  o  bem  até  áquelles  que  o  não  merecem, 
porque  também  o  sol  allumía  o  bom  e  o  máu,  e  o 
orvalho  do  céu  cáe  tanto  sobre  o  justo  como  sobre  o 
peccador  \  a  religião  que  prescreve  ao  abastado,  qui; 
venda  o  que  possue  para  soccorrer  os  pobres,  promet- 
tendo-lhe  um  thesouro  na  outra  vida,  tinha  em  si 
mesma  a  virtude,  o  principio  de  actividade  necessá- 
rio para  levantar  em  toda  a  parte,  e  muito  princi- 
palmente em  Portugal,  essas  casas  que  admiramos,  o 
que  a  religiosidade  de  nossos  antepassados  nos  legou, 
sob  a  denominação  de  hospitaes. 


Lisboa,   20  (/<,•   ninio  de  1832. 


Jovo  Makia   Nogueira. 


•  lEni;')  da  antiga  civilisação,  o  Egypto  ainda  liojc as- 
sombra o  viajante  pela  graMiicsa  e  mai;cstadir  dos 
v:us  monumentos.  VMt:  [juiz  foi  por  largos  siiculos 
um  enigma  ])ara  a  scieiícia  ^  —  as  suas  instituições,  os 
seus  costumes,  a  sua  litti^ratura,  a  sua  liistoria,  fi- 
nalmente, estavam  cobertas  de  um  véu  impenetrá- 
vel e  misterioso  como  as  sph^ngcs  collocadas  á  en- 
trada dos  seus  templos.  No  lini  <l(i  século  jmssaiio  é 
<|ue  se  começiir.im  sérios  Iraballios  di>  invesi  igiiç,"i(i 
archeologica  no  hlgypto  —  e  iid  presente  se  li'm  pu- 
liliiado  j.'i  pela  imprensa  inqioitanies  <'sliidos  sobre 
ai|uelln  curiosa  parte  do  mundo  antigo.  I''.nlre  outros 
•  ficriptos,  dc!  maior  ou  menor  valia,  púdcm  consnl- 
tar-w  com  J)ruveili),  pi>npii'  l.inçam  inuila  luz  na 
hivloria,  ])oueo  i'onli<TÍda,  das  cousiis  (i\ii|uc'lle  cele- 
bre povo,  as  Ki;/ii«  de  Savarj',   a  I  iuijiiii  á  SijrUi  c 


ao  1'lfjypto  de  \'olney,  a  Ai(r»'(/(,õ<>  </<(  /  itiíjc  m  de 
Th.  Legh,  os  trabalhos  de  ("hanipollion  o  moço,  e 
o  relatório  da  grande  expedição  scientitica  franceza. 
Deve  tambeni  It^r-se  acerca  do  Egvpto  o  1."  volume 
da  olira  venhuleiranienle  monumental  de  t"esar  Can- 
tu  —  a  llisliiriíi  í  íiíct ;s(i/,  ili;  que  está  saindo  uma 
Iraihicção   portugueza. 

Desde  a  publicação  ira(pielles  livros  t'  que  datam 
os  esloreos,  que  se  tem  conlinuado  com  louvaxelper- 
»i'verane:i,  para  colligir  na  Europa  vastos  museus  de 
anliguidailes  egypi-ias,  pondo-as  ao  alcance  dos  cu- 
riiiMis,  <pn'  poderão  assim  estudal-as  sem  os  riscos  de 
uma  excursão  perigosa  por  meio  ili'  tribus  scmi-bar- 
baras. 

(•  museu  de  similh^nites  antiguidades,  qui-  existo 
em  l'aris,  no  palácio  do  Louvre,  e  ipic  idtimameuti' 


342 


O  PANORAMA. 


Inii  recebido  consideráveis  melhoramentos,  assim  na 
disposijão  interior,  como  no  numero  e  raridade  dos 
monumentos  ali  collocados,  é  um  dos  mais  ricos,  se- 
não o  mais  rico  da  Europa,  sem  exceptuar  mesmo  o 
de  Turim .  lí  lá  luo,  entre  outras  muitas  preciosida- 
des archeologicas,  se  vê  o  pequeno  grupo  copiado  na 
nossa  gravura,  e  que  representa  dous  personagens 
desconhecidos,  de  mãos  dadas,  (dous  esposos,  talvez) 
como  o  indica  também  uma  pequena  figura  em  pé, 
que  apresenta  todos  os  caracteres  da  infância.  O 
homem  tem  a  cabeça  rapada,  e  parece  ter  sido  pin- 
tado de  vermelho.  Vê-se  que  não  são  divindades, 
nem  indivíduos  de  estirpe  real,  porque  lhes  falta  o 
caracter  essencial  da  distinccjão  egypcia,  a  magre- 
za ^  e  parece  que  se  não  privavam,  como  os  reis  c  os 
sacerdotes,  da  excellente  agua  do  Nilo  só  pelo  re- 
ceio de  engordar  ;  a  sua  physionomia  [não  é  intei- 
ramente desagradável,  mas  um  pouco  ordinária ;  o 
homem  occupa\a  provavelmente  algum  emprego  ci- 
vil. Ha  outros  grupos  na  galeria,  representando  tam- 
bém duas  pessoas  de  sexo  difierente,  já  um  sacerdo- 
te, c  uma  sacerdotiza,  já  um  perceptor  e  sua  mu- 
lher, ou  sua  irmã,  consagrada  ao  culto  de  um  deus. 
Em  geral  os  homens  eram  pintados  de  vermelho,  e 
as  mulheres,  umas  vezes  de  amarello,  e  outras  de 
ròr  de  rosa. 


ARCHEOLOGIA  PORTUGUEZA. 

Instbucções   dadas   ao   coadjutor  de  bebgamo, 
kuxcio  em  portugal  no  tempo  de  d.  jo.ão  ih. 

«AcEucA  do  Concilio,  depois  d'apresentar  a  bulia 
e  dizer  quanto  S.  Santidade  lhe  encarregar,  parece 
que  bom  seria  supplicar  a  S.  Magestade  que  queira 
inspirar  aos  seus  letrados  o  que  mais  conveniente  fòr 
n'estcs  tempos  para  se  promover  no  dito  Concilio  o 
bem  da  igreja  e  da  christaudado,  defensão  da  fé,  e 
remédio  das  heresias,  e  aucloridade  apostólica,  que  é 
um  dos  principaes  argumentos  dos  herejes,  sendo  tão 
conjunta  com  o  serviço  dos  reis  christãos,  especial- 
mente de  S.  Alteza,  e  instar  súbito  pela  partida  dos 
pi-elados,  empenhando-se  com  clle  para  os  fazer  ir 
mais  cedo. 

"  Mandar  aos  prelados  a  cópia  authentica  da  bulia 
(•  escrever  a  todos,  (jue  costimiam  ser  chamados  ao 
Concilio;  isto  corre  pelo  ordinário. 

ii  FaUando-lhe  das  cousas  do  Turco  e  dos  perigos 
da  christandade,  c  subsidio  que  N.  S.  manda, 
não  ol)stante  os  perigos  domésticos  do  estado  ec- 
dcsiastico,  parece-nie  que  será  bom  lamentar  com 
bom  modo  ao  rei,  e  reprehendcl-o  paternalmente  do 
aceôrdo  e  paz  feita  com  o  Turco,  n'este  tempo,  e  so- 
bre tudo  sem  comnuinicar  nada,  sendo  um  negocio 
tão  importante,  e  accroscentando  (assim  o  diz  a  ra- 
tão) com  similhantc  acti^rdo  o  poder  e  o  orgulho  do 
Sultão,  que  ha  de  dizer,  que  desde  o  cabo  do  oo- 
cidente  enviam  os  reis  á  sua  corte  a  pedir-lhe  paz  e 
a  pagar-lhe  tributos  \  que  segundo  a  sua  natureza 
immana  e  barbara  serão  estas  palavras  as  mais  hu- 
manas que  puder  proferir;  e  indagar  ao  mesmo  tem- 
po se  S.  Alteza  se  reconla  ao  menos  na  reflorida  paz 
da  igreja  e  cousas  ccclesiasticas  e  da  Sé  Apostólica, 
porqiie  tudo  isto  eonciirrerá  para  elle  (o  rei)  se  Im- 
milhar  nas  demais  negociações,  vendo  claramente 
que  errara  n'csta,  tanto  como  na  realidade  errou. 

í.  Parece  ser  necess,irio  pela  mesma  causa,  e  por 
«cr  dever  de  S.  Santidade,  ])edir  intornuiçõesdoniõdo 
porque  S.  Alteza  desamparou  duas  terr.is  tão  nobres, 
e  as  entregou  aos  iiilicis.    estando  la  l)ispo  pela  San- 


ta Sé,  e  tendo  sido  tomadas  aos  mouros  com  tanta 
dcspeza,  e  sustentadas  por  seu  pae,  e  por  elle,  e  pe- 
los bons  christãos  -,  não  se  occultando  o  pesar  de  se- 
rem desamparadas  depois  incontuUo  romano  ponti- 
Jice  contra  a  consideração  devida  para  com  a  Sé 
Apostólica,  c  contra  a  lei  e  serviço  de  Deus !  AfBr- 
mam  pessoas  praticas  d"aquelle  reino,  que  um  dis- 
curso assim  confundirá  tanto  a  cdrte,  que  nunca 
mais  saberá  onde  está ,  e  talvez  se  descubra  então  se 
porventura  o  fez  por  auctorisação  da  Penitenciaria, 
o  que  seria  estranhíssimo. 

"  Sobre  o  negocio  do  bronze  e  do  cobre  admoes- 
tal-o  para  que  o  não  torne  a  mandar,  mostrando-lhe 
o  grande  erro  passado,  e  o  damno  presente  e  futuro 
da  christandade ;  e  que  vendo  e  sabendo  isto  de  al- 
guém o  excommungará  solemnemente ;  que  um  rei 
tão  catholico,  despresando  a  censura  e  trans<Tedin- 
do-a,  dá  aos  outros  péssimo  exemplo,  e  aos  bons  gran- 
díssimo escândalo.  E  considerando  a  natureza  d'' aquel- 
la  gente,  o  que  deseja  parecer,  e  as  fraquíssimas  for- 
ças d'ella,  julgo  que  tocar  estes  pontos  c-om  auctori- 
dade  servirá  muito  para  a  dispor  a  não  recusar  ne- 
nhuma cousa  razoável,  ou  a  recorrer  a  vagas  lamen- 
tações. 

"  Na  matéria  dos  christãos  novos,  o  que  soube  de 
pessoas  sensatas,  é  que  a  buUa  feita  cm  favor  d'eUes. 
limitando  a  outra  de  certo  modo,  foi  ajustada  com 
D.  Pedro  Mascarenhas,  e  tão  discutida  que  não  fal- 
ta senão  publical-a  •,  e  não  creio  que  convenha  fallar 
ao  rei  de  licença  ou  de  outra  cousa ;  mas  sim  fazer- 
Ihe  perceber  as  causas  porque  se  não  tem  feito  ale 
agora ;  c  com  toda  a  brevidade,  sem  mostrar  de  ne- 
nhuma forma  que  se  espera  resposta,  notifical-a  ao 
infante  D.  Henrique,  porque  parece  que  n"elle  está 
tudo,  dizendo-lhe  da  parte  de  N.  S.,  que  aquella  é 
a  forma  que  se  ha  de  guardar  na  mencionada  inqui- 
sição d'ora  em  diante.  E  a  qualquer  objecção  que 
faça,  responderá,  que  tal  é  o  theor  da  buUa  e  a  von- 
tade deN.S.  Que  se  S.  Alteza  quer  sobre  isso  escre- 
ver a  S.  Santidade,  elle  (núncio)  não  pódc  suspen- 
der a  execução  dos  preceitos  de  S.  Santidade,  que 
são  rigorosos;  mas  fora  d^isto  está  prompto  aservil-o 
em  tudo,  que  assim  lhe  é  expressamente  orden.ido. 
Depois  d'este  oflicio,  c|ue  eu  desejaria  brevíssimo,  e 
com  jialavras  mui  resolutas,  porque  ha  de  fazer  as- 
sim grande  impressão,  deve  dar-se  aos  christãos  no- 
vos a  cópia-,  e  a  quem  a  quizer  authentica  p.ira  a 
levar  ajuízo,  conceder-lh"a  ;  e  não  affixar  annuncio» 
nas  portas  das  igrejas,  nem  apregoar  a  bulia,  nem 
fazer  outras  demonstrações,  que  talvez  des<'jasscm  o? 
christãos  novos,  como  homens  muito  tímidos,  porque 
ás  realidades  do  negocio  pouco  importam,  e  ao  ca- 
racter do  rei  e  do  seus  irmãos  pó<le  prejudicar  bas- 
tante ;  talvez  suppozcssem  que  haveria  tenção  de  af- 
frontar  o  povo ;  e  isto  não  se  deve  f;i7cr  sem  grande 
causa  ;  e  para  os  christãos  novos  é  suflicíente  o  ofTei- 
tu,  c  não  se  proceder  contra  elles  scuãu  pela  forma 
determinada. 

..  Este  negocio  dos  christãos  novos  diz-so  que  in- 
teressi  muito  o  rei,  e  que  tanto  elle  como  o  infante 
D.  Henrique  bem  quereriam  que  n.ão  houvesse  re- 
vista nos  processos;  por  isso.  vendo  elles  ^eito  de  mi>- 
ver  o  núncio,  hão  de  tental-o  :  é  ncix-ssario  pv^is  que 
este  obre  e  falle  rcsolutanuiile,  e  vá  munido  da  f.i- 
culdade  de  suspender  <u/  ii  mpus.  e  re\ogar  in  toium 
a  dita  Inquisição,  podendo  mostrar  a  auctorisação  a 
quem  convenha,  períUadindo  os  ínlervss,->do5  de  que 
está  na  sua  ni."io  almlir  inteiramente  o  tribunal,  que 
tanto  estimam. 

'.  Kom  é  que  o  i.umio  saibs.  que  se  dii  do  infcin- 
te  D.  Luiz,  que  se  .-jcha  muito  indignado  contra  es- 
ta relorma  da  Inquisição,  tendo  inspirado  n'ikto  peio 


o  PAINORAMA. 


343 


imperador,  e  devendo  trabalhar  quanto  puder  em 
I'ortuzal  contra  ella  por  diversas  causas,  entre  as 
quaes  ;is  principaes  são  estas  : 

ai.''  Temer  que  o  exemplo  de  Portugal  sirva  pa- 
ra lhe  reduzirem  a  Inquisição  de  Hespanha  aos  mes- 
mos termos,  como  ia  acontecendo  no  tempo  do  papa 
Leão,  e  para  o  atalhar  deram-sc  em  Nápoles  ao  du- 
que Alexandre  aquellas  rendas,  porque  os  christãos 
novos  de  Castella  promettiam  e  davam  muito  dinhei- 
ro effectivamente. 

iíá.''  A  segunda  razão  do  imperador  é  que  a  In- 
quisição de  1'ortugal  tira  aos  castelhanos  o  refugio 
<juc  tinham,  quando  eram  maltraiados  em  Hespa- 
nha i  e  ao  mesmo  tempo  quantos  fogem  de  Portugal, 
todos  por  um  modo  ou  por  outro  caíam  no  poder  do 
imperador  e  dos  seus,  e  na  Flandres  existe  grande 
numero  d^elles,  que  pagam  boas  sommas  quando  se 
precisa. 

ii  Por  iíso  o  núncio  sailia  que  ha  de  ser  tentado 
por  todos  os  meios,  e  deverá  fallar  a  todos  com  isen- 
ção, irias  sempre  com  reverencia  :  obrando  assim  não 
«.■ncontra  difficuldades. 

(Continua.) 


AS  províncias  vascongadas. 

(noticia  histórica.) 

KiGUKA  entre  os  senhores  de  Biscaya,  no  ultimo 
quartel  do  século  12."  epriíicipios  do  seguinte,  D.  Dio- 
go Lopes  de  Haro,  chamado  o  hom,  o  qual  chegou  a 
romper  com  seu  cunhado  el-rei  de  Leão,  e  com  ode 
(.'astella,  veado-se  obrigado  n^uiuella  lucla  desigual 
a  relirar-se  a  Navarra.  Fizeram-so  pazes  entre  os 
reis  de  Navarra  e  Aragão,  e  D.  Diogo  buscou  aco- 
lheita na  província  mourisca  de  Valência,  de  donde 
leve  (|ue  fugir,  por  haver  dado  o  seuoavalloem  uma 
bataliia  ao  rei  de  Aragão  para  í|Ue  se  salvasse. 

Ileconciliado  com  AlVonso  Vlll  de  Castella  e  re- 
«•obrando  o  governo  que  antes  da  sua  desgraça  exer- 
<'êra  nos  mais  importantes  pontos  d*aquelle  reino, 
mereceu  que  Uio  fosse  confiado  o  cominando  do  exer- 
cito alliado  dos  christãos  na  grande  liatalha  dasNa- 
vas  deTolosa.  (1)  Scpullaram-se  no  real  mosteiro  de 
Nájera  os  restos  desle  insigne  varão.  A  santa  igreja 
n>etro[)olitana  de  Toledo  iioiirou  a  sua  memoria,  col- 
locando-llie  a  estatua  no  coro,  em  reconhecimento 
das  doações  que  adita  igreja  iizera,  e  a  ter  ali  pos- 
to os  Iropheos  ganhos  na  batalha  das  .Navas  Jle- 
recft  tamhem  noiar-se  qiic!  a  cidade  de  Nájera,  desde 
.'.  morte  de  D.  Diogo  até  os  nossos  dias,  tcni  consi- 
derado nulla  toda  a  eleição  de  junta  provincial  (ayun- 
tamienlo)  (jui;  não  seja  pulilicada  diante  do  s(m  se- 
|Mjl<'hro. 

Continuou  gosando  eni  Castella  das  mesmas  pre- 
rogativas  <?  dislincçòes  (jue  o  ineiuionado  D.  Diogo, 
seu  lilho,  e  successor  no  scniuirio,  D.  liope  Dias  de 
Jlaro,  iiiiilwrtibntx^a  por  antonomásia.  Fez  serviços ila 
maior  ini|iorlancia  ao  santo  rei  D.  Fernando,  e  íál- 
b-Tcu  em  12i!!).  Não  viveu  em  tão  boa  liarinoniacom 
o  soberano  de  Castella  D.  Diogo  Jiiqies  d(í  llaro, 
duodécimo  senhor  de  Jtiseaja,  nem  deixou  de  ter 
serias  desavenças  com  os  biscaynhos,  cujos  loros  in- 
fringira. 


(1)  Vcja-w  II  ilcM ri|ii;.*i(i  il'<'sli'  iiiiiicirlaiili^Kliiui  suc- 
ri-iJi)  iiu  liiOlii  <■  rciciilc  lialialliii  iln  «r.  O.  Moileslo  Im- 
liiciílc —  lliílui  iíf  (•inrfiil  <lt  /'.'7«i/i«. —  .Miiilrid  — 
lUil,   IIU):!. 


Assignalou-se  a  Biscaya,  armando  a  esquadra  com 
que  o  almirante  Ramon  Bonifaz  contribuiu  para  a 
rendição  de  Sevilha. 

E  mui  notável  entre  os  senhores  de  Biscava  D.  Lo- 
pe  Dias  de  Haro,  já  pelo  grande  {xider  qiíie  adqui- 
j  '■i"?  j^  P^lo  consorcio  de  sua  filha  com  o  infante 
D.  João,  irmão  do  rei,  já  pela  trágica  morte  que 
i  teve,  no  momento  em  que,  afiTrontado  por  uma  res- 
posta desagradável,  puxou  da  espada  contra  el-rei 
D.  Sancho  o  bravo.  A  successão  no  senhorio  ou  con- 
dado de  Biscaya  começou  a  ser  origem  de  discórdias 
civis  por  morte  do  decimo  quarto  senhor  D.  Dio<'o 
Lopes  de  Haro.  Obteve-o  por  força  d'armas,  e  aju- 
dado da  vontade  dos  biscaynhos,  outro  D.  Dio^o, 
tio  do  ultimo ;  sendo  pouco  tempo  depois  despojado 
pelo  infante  D.  Henrique  d^aquella  dignidade,  que 
todavia  no  anno  seguinte  lhe  foi  restituída.  Dispu- 
taram-lhe  com  tudo  os  seus  direitos  até  a  sua  morte, 
que  occorreu  no  sitio  de  Algeciras ;  succedeu-lhe  o 
infante  D.  João,  por  ser  casado  com  D.  Maria  Dias 
de  Haro,  que  alguns  auctores  contam  como  decima 
sexta,  e  outros  como  decima  sétima,  no  catalogo  dos 
senhores  de  Biscaya. 

Sendo  já  viuva  renunciou  esta  seus  direitos  a  fa- 
vor de  D.  João  de  Haro,  o  iorto,  que  apesar  de  ser 
fdho  de  um  infante  de,  Castella,  tomou  o  appeliido 
de  sua  mãe,  D.  JMaria,  circumstancia  que  prova  a 
alta  importância  dos  senhores  de  Biscaya.  Morreu 
D.  João,  assassinado  com  outros  em  um  banquete, 
por  ordem  de  Allbnso  XI,  cuja  tutella  exercera ; 
sua  mãe  reclamou  a  posse  do  senhorio,  que  depois 
vendeu  á  coroa. 

D.  João  o  iorto  deixara  uma  lillia  casada  com  o 
senhor  de  Lara,  D.  João  Nunes,  que  valendo-se  do 
seu  poder  e  inlluencia  conseguiu  que  o  mesmo  se- 
nhorio fosse  restituído  a  sua  mulher.  As  serias  dis- 
sensões qu(!  sobrevieram  entre  D.  João  de  Lara,  e 
el-rei,  obrigaram  este  a  entrar  por  Biscaya,  fazendo 
reconhecer  a  sua  auctoridade  nas  juntas  de  Guerni- 
ca,  e  tomando  posse  de  todas  as  povoações  e  castel- 
los,  excepto  do  de  S.  João  de  Gastelugaclie,  situado 
na  costa,  e  de  alguma  outra  fortaleza.  Ao  mesmo 
tempo  invadira  D.  João  alguns  logares  de  Castella, 
cuja  restituição  foi  concertada  com  el-rei. 

Uma  creança  de  dous  annos  herdou  o  condado  de 
Biscaya,  e  como  D.  Pedro  de  t^astella  se  declarasse 
inimigo  da  casa  de  Lara,  perseguiu-a  tenazmente. 
A  morte  dV-sta  creança,  que,  com  o  nome  de  D.  Nu- 
no de  Lara,  se  conta  como  o  decimo  nono  senhor  de 
Biscaya,  deixou  os  seus  estados  expostos  aos  desas- 
tres de  uma  guerra  civil,  pois  que  havendo  casado 
sua  irmã  mais  velha  D.  Joanna  com  D.  Tello.  ir- 
mão do  rei,  e  a  mais  nova,  D.  Izabel,  com  D.  João, 
infante  de  .Vragão,  ambos  os  esposos  pretenderam  o 
senhoi-jo,  fuiid.ido  o  primeiro  nos  direitos  de  sua  es- 
posa, <!  o  s<!guiuio  na  protecção  de  D.  Pedro. 

D.  Tcllo  desbaratou  completamente  as  tropas  au- 
xiliari's  (pie  D.  Jofio  connnandava.  Novamente  en- 
trou eí,te  por  Biscaya,  aciunpanhado  do  rei  D.  Pe- 
ilro,  que  anciava  por  arrancar  a  vida  a  D.  Tello. 
<|Ui!  deveu  a  salvação  a  fuga.  O  infante  D.  João, 
que  ilevia  conhecer  perleitamenie  o  ipie  se  jicide  es- 
perar dl'  um  eoraçiio  ambicioso,  julgara  que  D.  Pe- 
ilro  não  tiidia  ouiro  objecto  em  mira  <pie  o  impos- 
sal-o  na  diguidade  a  qiii-  aspirava,  e  loui  pueril  sin- 
(■iTÍilade  llie  pediu  em  Bermeo  ipie  o  seiítavie  no  só- 
lio dos  M-nhores  d.>  lliseayii.  Uedar';,uiu-llie  o  rei  que 
só  esperava  ipie  elh>  fosse  reeoidicviílo  pela  junta  ge- 
ral, empregando  ao  mi<smo  tempo  ([uantiks  meios  llie 
lembrar.im  para  ipie  na  referida  junia  se  deciílisse 
(pie  Uiscaya  nilo  uduiilliriu  outro  s(>nhorio  senão  o 
(ie  el-rei. 


344 


O  PANORA3IA. 


Conseguido  o  snu  intpiito,  c  tendo  passado  a  Bil- 
liao,  ordenou  ao  incauto  infante  que  se  apresentasse 
nos  seus  paços:,  mandou-o  matar,  determinando  fjue  o 
seu  corpo  fosse  lançado  á  praça,  e  disse  ao  povo  :  isAlii 
lendes  csíc  que  queria  ser  vosso  senhor."  Foram 
igualnienie  victimas  da  crueldade  de  D.  l'edro,  a 
inãi'  do  infeliz  infante,  D.  Leonor,  e  as  já  mencio- 
nadas 1).  Izabel  e  D.  Joaniia  :,  que  não  tinham  outro 
crime,  além  do  de  serem  parentas  d'aquelle  mons- 
tro que  manchava  o  throno  de  Castella. 

Sollrcu  Hiscaya  por  alçum  tempo  o  jugo  do  feroz 
D.  l'edra,  c  quando  á  Providencia,  que  nunca  de- 
sempara  as  nações  se  ainda  conservam  algum  fundo 
de  honra,  aprou\e  que  uma  desastrosa  morte,  segui- 
da da  publica  execração,  acabasse  com  aquella  exis- 
tência funesta,  recuperou  D.  TcUo  o  senhorio  que 
legitimamente  tinha  possuido  como  esposo  da  des- 
graçada D.  Joanna,  porém  que  já  lho  não  pertencia, 
por  ter  sido  assassinada,  como  fica  ref<?rido.  \  aleu-se 
de  algumas  fraudes  para  se  apossar  d^aquelle  estado, 
(■  assim  não  é  para  estranhar,  que  o  disfructasse  mui 
pouco  tempo,  pois  morreu  antes  de  um  anno  da  sua 
chegada.  Foi  jurado  então  (1371)  sob  a  arvore  de 
Guerniea,  o  infante  D.  João,  filho  de  D.  Henri- 
que II,  tendo  por  essa  occasião  treze  annos.  (Auando 
succedeu  a  seu  pae,  com  o  nome  de  D.  João  I,  in- 
corporou na  coroa  o  senhorio,  mandando  que  o  titu- 
lo de  senhor  de  liiscaya  o  usassem  os  reis,  entre  os 
mais  diclados  de  soberania,  o  que  assim  se  tem  pra- 
ticado até  hoje. 

Incorporado  na  coroa  o  senhorio  continuou  sendo- 
liie  tão  leal  como  o  ha\ia  sido  aos  seus  primitivos 
-senhores,  distinguindo-se  mui  particularmente  pelas 
esquadras  que  cm  varias  occasiues  armou  e  pozá  dis- 
posição dos  mouarchas  hespanhoes.  Foi  theatro  o  se- 
nhorio de  scenas  lamenta;  eis  não  poucas  vezes,  mui 
particularniente  quando  os  conhecidos  bandos  Oneci- 
no  e  Gainboino  derramaram  por  largos  annos  em  to- 
do o  paiz  vascongado  a  desolação  e  a  morte.  No  prin- 
cipio do  presente  século  foi  occupado  militarmente  o 
senhorio  cm  consequcncia  dos  movimentos  que  n'el- 
le  occorroram  o  da  valorosa  resistência  <jue  oppoz  a 
Napoleão. 

IMui  gloriosos  feitos  de  armas  otTcrece  a  historia 
das  tros  províncias  Vascongadas,  porém  são  ainda 
mais  dignas  de  eterna  memoria  as  suas  empresas  na- 

V  aes.  l)edicarani-se  os  quipuscoanos  e  os  l)iscaynhos  á 
pesca  da  Ijalêa,  o  era  tanta  a  importância  que  da- 
vam a  este  ramo  de  industria,  que  mui  raro  será  o 
porto  do  paiz  vascongado  (juo  não  tenha  cm  seus  es- 
cudos de  armas  uma  balèa.  O  famoso  foral  de  S.  Se- 
bastião menciona  muitos  olyectos  de  importação  e 
exportação,  c  por  elle  se  pôde  formar  idéa  do  exten- 
so comniercio  (pie  se  fazia  n'aquelta  cidade  por  meia- 
<lo  do  século  12." 

O  caracter  activo  e  cmprehendedor  d"estcs  mon- 
lanhezes,  acostumados  desde  a  mais  tenra  idaile  aos 
perigos  do  tempestuoso  mar  que  banha  as  suas  praias, 
c  a  at)undancia  de  madeiras  de  conslrucção  <pie  otle- 
rccia  o  paiz,  toriiou-lhes  fácil  augmentar  considera- 
velmente o  numero  de  seus  navios,  e  emprchendcr 
C(Uii  (lies  largas  viagens  no  século  14.";  o  resultado 
«restas  foi  o  descubrimento  da  ilha  e  l)anco  da  Tcr- 
ra-iSova,  a  prepomlerancia  (|uc  ti;eram  os  vasconga- 
dos  nas  costas  occidentaes  da  Europa;  o  pingue  com- 
niercio  (]ue  faziam,  assim  nos  portos  da  noss;i  penín- 
sula, c  110  interior  da  nu'*ma,  como  cm  os  portos  de 
França,  Taizes-liaixos  e  Inglaterra;  e  finalmente  te- 
rem sido  os  que  est.d)clcceraiii  na  cidade  de  iiriixcl- 
las,  imporio  então  do  comniercio,  a  celebre  bolsa  da 
ihta  cidade,  nnlecipando-íc  aos  inglezis.   venezianos, 

V  outros  po\os  mercantis. 


O  poderio  dos  vascongados  começou  a  causar  ciú- 
mes á  nação  ingleza  a  quem  aquellcs  disputavam  o 
commercio  das  lãs.  Dec)arou-se  finalmente  a  guerra, 
e  deu-se  um  combate  naval  em  que  os  vascongados 
perderam  26  navios  de  alto  bordo,  sendo  os  restan- 
tes obrigados  a  fugir.  Não  foram  mui  felizes  para  os 
inglezes  os  resultados  doesta  victoria,  por  isso  que  as 
hostilidades  continuaram  ;  e  para  pôr  termo  a  uma 
tão  exterminadora  guerra,  assignaram-te  em  Lon- 
dres tréguas  por  vinte  annos  entre  vascongados,  fran- 
cezes  e  iiiglezes,  tendo-se,  para  este  effeito,  reunido 
n'aquella  cidade  os  representantes  das  praças  de  San- 
tander.  Biscava  e  Gluipuscòa. 

Continuou  era  maior  progresso  a  marinha  dosva»- 
I  congados,  e  por  fins  do  século  lo."  os  quipuscoanos 
I  fizeram  um  tratado  de  paz  com  a  Inglaterra,  noqual. 
I  entre  outras  cousas,  se  estipulou  que  os  navios  do> 
t  vascongados  não  hostilisariam  os  dos  iiiglezcs,  nem 
í  receberiam  d'estes  damno  algum,  ainda  que  as  na- 
ções ingleza  e  hespanhola  andassem  travadas  em 
guerra. 

Muitos  e  mui  assignalados  serviços  prestaram  aos 
reis  de  Castella  os  ;ascongados  com  os  seus  navios. 
A  esquadra  que  o  almirante  Boniiaz  comraandava 
por  occasião  do  cerco  de  Sevilha,  armou-se  e  csqui- 
pou-se  nos  portos  das  províncias  vascongadas,  e  dos 
mesmos  saíram  também  grande  parte  dos  navios  que 
formavam  a  invencivií  armaJa  de  Filippe  II. 

Doesta  costa  saíram  também,  o  primeiro  homem 
que  deu  a  volta  do  mundo,  (o  portugucz  Fernaudi. 
de  ^lagalhães,)  o  imraortal  Oquendo,  e  os  celebres 
navegantes  Mitzarredo  e  Churruca. 

Esta  curiosa  notícia,  extraída  do  Manual  dellw- 
gcro  cn  las  l^ruvincias  lascongadas.  obra  excellen- 
te,  mas,  como  é  natural,  pouco  conhecida  em  Por- 
tugal, junta  aos  bellos  artigos,  que  citámos,  e  foram 
impressos  na  1  .'^  Serie  d'este  semanário,  constituem 
um  trabalho  completo,  e  habilitarão  o  leitor  a  for- 
mar uma  idea,  quando  não  jierfeita,  pelo  menos  suf- 
ficicntemente  exacta,  de  tão  interessante  parte  da 
monarchia  hespanhola. 

llesta-nos  declarar  que  as  duas  gravuras  que  se 
acham  estampadas,  nos  N."*  4l  e  42,  á  frente  d"cs- 
te  artigo,  representam,  a  primeira  três  biscav  idios  de 
um  e  outro  sexo,  e  a  segunda,  um  camponíõ  al.tvex. 
acompanhado  de  sua  mulher :  são  ambas  notáveis 
pela  singularidade  dos  costumes  que  u''ellas  se  acham 
fielmente  representados. 


—  Nos  luzimcntos  se  dei.xam  vêr  melhor  as  som- 
bras ;  aos  raios  do  sol  se  divisam  os  mínimos  arcuci- 
ros ;  o  pinlornal  com  a  mesma  faísca  com  que  relui: 
mostra  melhor  o  áspero  e  tosco  da  sua  matéria,  níf- 
forentc  prespectiva  f.izem  as  acções  dos  grandes  na- 
attcnçues  dos  olhos;  irestes  com  as  sombnís  se  dei- 
xam melhor  vêr  os  claros,  «"aquellcs  com  os  claro» 
.^e  di\isani  melhor  as  sombras. 

Padbe  a.  ^  ikira. 


'  — dual  é  pois  a  verdadeira  sciencin  das  inullip- 
res  ?  A  da  moral  ;  eis  o  único  Cítudo  cpie  llie>  con- 
vém, que  lhos  é  necess,irio,  e  pelo  qual  púdcni  in- 
fluir sobre  a  virtude  dos  homens. 

Madame  Bcrmsr. 


—  .\s  mulheres  que  bcin  comprehendcm  os  direi- 
tos e  deveres  de  mãe  de  família  n.'io  tem  do  certo 
<|iie  se  queixar  do  seu  destino.  Se  existe  desigualda- 
de entre  os  meios  de  felicidade  concedidos  aos  dons 
sexos,  tila  é  a  favor  das  mulheres. 

Madami;  SiRL»  . 


\ 


44 


o  PAINORA3IA. 


345 


A   CIOABE   SO   PORTO. 


liAKUAMP;.NTr.  tratou  da  segunda  cidado  do  roiíio  o 
Paniirama  nin  suas  series  iinleriores.  Aeha-se  unia 
(los(;ri[)i;uo  gorai  no  vol.  3."  pag.  :ÍS1,  o  noticias  es- 
pcciues  solire  ViUa  Nova  o  a  Sorra  do  l'ilav  no  vol. 
4."  pag.  líjl,  sol)r(-  a  Torre  dos  Ck-risíos,  museu 
Allon  c  o  coinniorcio  do  l'orto,  a  paíç.  lí.ílí  do  vol. 
I)."  Acerca  de  Cedofeita  consultc-S(-  o  vi>l.  ("i."  pui;, 
lt)'J,  e  de  Mira^aya  o  vol  7."  pag.  81.  Uospi-ctiva- 
uienlt!  ao  rio  Douro  pódeni  vôr-se  os  artigos  insertos 
no  vol.  J."  pag.  177  e  vol.  8."  pag.  ."I.i 

'l"eni  decorrido  alguns  annos  depois  <|uc  se  publi- 
caram essas  noticias,  illustradas  com  osdcscnlioscom- 
petenliís  •,  por  iíso,  para  acompanhar  a  i)resenle  es- 
tampa, e  para  <pie  se  eoidu-e.i  como  descreve  <■  ava- 
lia o  Porto  um  ilesliiiclo  escriptor  estrangeiro,  reco- 
pilaremos o  i|ue  se  lê  n.i  oiir.i  [luMicada  em  Turim 
em  1850,  p<.'lo  cavalhcíiro  Ijuiz  filirario.  —  Jlicordi 
U^ttnit  missioiíf  in  l'í>rl<i<jiill<i  til  iv  Curln  .■ítlitilo. 

Kis  o  deseidiii  «pie  la/,  do  conspecto  geral.  ..  (^uer 
|«'ln  via  l(!rrcslre  cheguemos  da  deli<'i<isa  província 
da  Hejra  as  margens  ilo  Douro,  <pier,  deixando  o 
Oceano,  vi'ncitl(is  os  Ijancos  de  areia  <pie  olislruein  a 
fo7.,  remontc^mos  lireve  espa(,'o  do  curso  do  rio,  sum- 
inamenle  inagi's(osa  e  picluresca  é  a  vista  ila  cidade 
du  1'urlo,  a  cpial  <'ampeia  snhre  duas  altas  collinas, 
colire  com  seus  variados  edilicios  lodo  o  d<'clive,  alé 
vir  hanliav  ipiasi  u^agua  a  extrema  casaria.  l'or  isso, 
conlcmplando-se  do  miMo  do  Douro,  vtVm-sc  uinnt 
i.a^a»  surgindo  de  \v»r.  iPoulvas  ale  maii  a  cima  ilos 
\  III,.   1.  —  ;j."  Sicuiii. 


dous  montes  conVidos  pela  Sé,  o  jialacio  do  liiapo.  a 
porta  do  Sol,  e  a  lorre  dos  clérigos  que  serve  de  ba- 
lisa  aos  navegantes.  Em  certos  togares,  onde  mui» 
Íngreme  é  o  declive,  os  edilicios  <pie  so  levantam  a 
varias  alturas  uns  a  cima  dos  outros  parece  forma- 
rem um  corpo  só,  tle  propor(;ões  tlesmesur.idas.  de 
altura  gigante.  Junte-se  a  isto  um  rio  caudal  entu- 
lado  nas  margens  e  fundo,  sulcado  ile  navios  e  bar- 
cos de  Iodas  as  nat;0e5,  atravessado  pela  ponte  pên- 
sil <|ue  liga  a  cidade  á  povoação  de  Villa  .\ova  de 
(iaya;  aggregueiii-se-lhe  as  quintas  espalhadas  pelas 
encostas  de  ambas  as  margens  em  meio  das  mais  cx- 
cellentes  e  robustas  arvores  que  ha  no  mundo  ■,  u 
('onvento  da  Serra  cpie  se  eleva  solitário  a  esquerd;» 
do  Douro;  o  céu  ora  avivado  pelos  esplendores  do 
;  sol  nieridioLial,  ora  ofluscailo  pelo- nevoeiros  do  Ocea- 
no, os  <|uaes  (piando  n.'io  se  condensam  muito  ii.m  lu- 
llieui  a  loniiosura  das  scuiias  tia  nature/.a,  revestin- 
d(i-as  dl-  tintas  melancholicas  ;  ora  estumando  leiílu- 
I  menie  as  laileiras  dos  montes,  ora  afogando  os  pi- 
I  nheiraes  solitários,  em  parte  occullando,  eiu  parte 
escurecendo  apenas  os  objectos,  multiplicam  o»  pai- 
néis (pie  a  vista  procura  e  em  qui-  si-eompraí  uiiua- 
giiiaeão,  priii<'ipalnieute  quando  pensaiiientos  triste» 
e  iiitiiuos,  tructo  de  amargos  desengaiios  e  previsue» 
sinislrits,  agitam  a  mente,  e  parei'e  que  a  magoa  se 
mitiga  se  aclia  eorrespoiíileiicia  no  melancholico  as- 
pecto da  iinture/.a.  •• 

No   capitulo    <iy    eiii   que   o  uuclor  Uiais  aspneial- 
OurvuHU  3U,  t8õ'i. 


346 


O  PANORAMA. 


mente  trata  do  Porto,  menciona  as  obras  devidas  ao 
zelo  do  benemérito  provedor,  Francisco  d' Almada  c 
Mendonça,  <jiio  deixou  no  Porto  pelos  fins  do  século 
passado  honrada  o  popular  memoria,  taes  como,  as 
ruas  -de  S.  João  e  Almada,  a  rua  nova  dos  Inglezes, 
a  praça  do  S.  Rorjue,  a  cadeia  da  relação,  o  passeio 
das  Kontaiidias,  o  bello  diafariz  f|ue  adorna  a  praça 
de  D.  l'edro,  o  theatro  de  S.  João,  os  quartéis  de 
Santo  Ovidio. 

u  Não  faltam  ruas  largas  c  regulares  entre  muitas 
estreitas  e  tortuosas;  bella  é  a  que  vac  da  torre  dos 
Clérigos  ú  Ratalha,  e  assas  opulenta  a  rua  das  Flo- 
res -,  suflicientcmentc  largas  e  direitas  são  as  de  Ce- 
dofeita, da  Princeza,  dos  tluarteis,  ele.  Amena  em 
muitos  sitios  é  a  margem  do  rio.  Não  faltam  praças 
espaçosas  e  regulares  ;  citarei  as  de  D.  Pedro,  da  Ra- 
talha, dos  Ferradores,  e  também  a  vastíssima  da  La- 
pa. As  casas  cm  certos  bairros  são  altas  e  tão  corta- 
das de  portas  e  janollas,  que  apenas  se  vícm  peque- 
nos intervallos  de  parede  solida.  Os  palácios  são  ra- 
ros;  o  principal  é  o  do  bispo,  construído  no  século 
passado ;  senhoreia  a  cidade  toda,  e  d'ali  se  gosam 
dilatadas  vistas.  Oex.'""  D.  Jeronymo  da  Costa  Re- 
bello,  digníssimo  bispo  actual,  melhorou  e  adornou 
a  ampla  escadaria.  Dignas  do  nome  de  palácio  são 
também  a  feitoria  ingleza  e  a  casa  onde  habitou 
D.  Pedro  na  rua  dos  Q-uarteis.  O  banco  e  a  bolsa 
de  construcção  moderna  são  casas  elegantes,  porém 
não  palácios.  " 

O  auctor  censura  as  ruas  dos  bairros  mais  baixos, 
[)orque  em  ruas  estreitas,  tortuosas  e  Íngremes  não 
pôde  circular  livremente  o  ar,  e  tendo  feito  algumas 
observações  sobre  a  limpeza,  que  já  hoje  é  muito 
maior,  continua  dizendo  :  uÓ  clima  do  Porto  é  tem- 
perado ;  os  calores  raras  vezes  são  intensos ;  o  ar  é 
húmido ;  o  céu  com  frequência  se  cobre  de  névoa 
até  três  e  quatro  horas  de  sol  fora.  Não  faliam 
exemplos  de  extraordinária  longevidade.  As  doen- 
ças que  predominaram  no  anno  de  1843  foram  as 
tysicas  pulmonares,  as  hemoptyses,  as  broncbites  e 
gastrites  :  a  mortalidade,  segundo  a  Gazeta  31i<Hca 
do  Porto,  foi  de  •í:08tj,  a  saber  990  homens  e  1:090 
jnulher<'s,  comprehendidos  em  o  numero  total  208 
expostos. 

-  "Adornam  o  Porto  muitos  chafarizes-,  ao  todo  são 
112  fontes,  quasi  todas  construídas  de  pedra,  1'2  de 
agua  potável.  A  melhor  agua  é  no  passeio  das  Fon- 
tainhas, e  brota  de  uma  rocha  sobre  a  ribeira  do 
Douro  :,  corre  j)or  quatro  bicas  \  a  da  praça  de  D.  Pe- 
dro tem  cinco. 

«  O  principal  estabelecimento  de  beneficência  é  a 
Santa  Casa  da  Misericórdia  erecta  em  lSo5  na  rua  ] 
das  Flores,  com  uma  bella  igreja.  O  auctor  louva, 
como  é  de  justiça,  a  piedosa  instituição  das  casas  de 
Misericórdia.  Antes  do  século  16."  havia  no  Porto 
i|uinze  iiospitaes  petjuenos  e  mal  administrados,  re- 
li(|U)as  da  idade  media ;  el-rei  D.  Manoel  quiz  que 
SC  construísse  no  1'orlo  um  hospital  geral.  Pelo  mes- 
mo tempo  iguaes  transformações  succediam  em  Fran- 
ça, na  Itália  e  iroutros  paizes ;  o  mundo  saía  dos 
iperVados  círculos  e  mcsqninhezas  da  idade  media,  e 


avultava   em 


proporçoi's    menos  municipaes,    porem 


uuiís  nacionaes.  Não  tardou  que  se  estabelecessem 
no  Porto  asvlos  i-  hospitacs  além  dos  que  já  exis- 
tiam. A  Santa  Casa  administrava  c  ainda  admi- 
nistra o  hospital  geral,  que  se  chamava  hospital  real 
(na  rua  das  Flores)  e  ora  é  o  hospital  no^vo  de  San- 
to António  na  praça  da  (.'ordoaria  ;  e  mais  sole  hos- 
pitacs, isto  é,  dos  expostos,  e  das  velhas,  dos  entre- 
vados, lios  leprosos ;,  e  alén>  d"isso  dá  dotes  a  orphãs, 
veste  pobres,  <■  soccorro  os  surdos-mudos. 

i«  Outros  hospícios  valem  aos  desgraçados  nas  diver- 


sas misérias  humanas.  O  collegio  de  Nossa  Senhora 
da  Esperança,  fundado  em  1724,  sustenta  orphãs  des- 
de os  8  até  os  2o  annos.  O  recolhimento  da  Madre 
de  Deos,  vulgarmente  chamado  do  I<\rro,  asyla  ra- 
parigas pobres  que  vivem  do  trabalho  de  suas  pró- 
prias mãos  e  de  esmolas.  O  recolhimento  das  meni- 
nas desamparadas,  os  de  Nossa  Senhora  do  Res"ate, 
e  da  Senhora  das  Dores,  para  mulheres  idosas,  com- 
pletam o  sistema  de  beneficência  portuense  no  que 
respeita  o  bello  sexo. 

"  O  coUegio  dos  meninos  orphãos,  o  seminário  dos 
meninos  desamparados  provêem  ao  sustento  e  educa- 
ção de  outras  duas  classes  infelicíssimas  da  polireza. 
O  dos  orphãos  foi  fundado  no  anno  de  1631  pelo  ve- 
nerável sacerdote  Balthasar  Guedes,  sob  a  invocação 
de  coUegio  de  Nossa  Senhora  da  Graça,  e  com  tão 
boa  ordem  se  governava  que  d"clle  saíram  muitos  sa- 
cerdotes e  religiosos,  muitos  doutores  eatéum  bispo.  »• 

Passa  o  auctor  a  elogiar  a  bella  e  útil  instituição 
das  casas  d^asjlo  da  infância  desvalida,  de  que  dá 
resumida,  mas  exacta  idéa,  e  depois  de  mencionar 
outros  estalielecimentos  trata  dos  monumentos  sacrr» 
dignos  de  memoria. 

"  Comecemos  pela  Sé  ou  cathcdral  que  campeia  ma- 
gcstosamente  coroando  um  monte.  A  fachada,  é  um 
grande  arco  entre  duas  torres  :  o  interior  não  é  des- 
tituído de  magestade.  (iuerem  que  este  templo  foss<> 
fundado  pelo  primeiro  rei  de  Portugal,  e  sua  esposa 
1).  Mafalda  de  Saboya  (que  o  auctor  por  encano 
chama  D.  Mathílde).  Como  n^estas  comarcas  foi  o 
berço  do  reino  de  Portugal,  não  admira  que  em 
Braga,  aqui,  e  cm  Coimbra  se  encontrem  as  primei- 
ras provas  da  liberalidade  de  seus  principes.  Sabe-se 
que  a  capolla  mor  foi  construída  no  século  17." 

"Outra  igreja  antiga  é  S.  Francisco ;  o  abside  que 
é  do  século  lo."  está  muito  bem  conservado.  A  da 
Lapa  é  vasta  e  bella.  3Iuitas  outras  igrejas,  entre 
ellas,  a  do  Carmo  e  a  dos  Clérigos  são  a^radavek  c 
ricas  de  douraduras,  ornatos  e  pinturas  de  ima£:ens ; 
no  que  em  Portugal  como  em  Hespanha  ha  supera- 
bundância. Mas  são  pequenas  e  não  contéem  cousas 
notáveis;  (1)  todavia  o  aspecto  exterior  da  dos  Clé- 
rigos é  monumental,  especialmente  era  razão  do  lo- 
gar  onde  se  eleva,  e  da  elegantíssima  torre  que  a 
acompanha  e  serve,  como  dissemos  de  balisa  aos 
mareantes. 

"  .\  duas  horas  de  caminho  da  cidade,  na  direcção 
de  Braga,  é  digna  de  vcr-se  a  igreja  de  Leça  do  Ba- 
lio,  que  dizem  ter  pertencido  aos  templários,  do 
que  não  ha  vestígio,  e  veiu  depois  ao  poder  da  or- 
dem de  Malta.  A  igreja  é  de  três  naves  com  srande 
abobada  golhica  sustentada  por  feixes  de  quatro  co- 
lunnias.  O  baptistério  é  lindamente  lavrado  nootv- 
lo  gothíco  ;  na  capella  lateral  do  altar  mor  do  lado 
do  evangelho,  se  vê  um  tumulo  com  cslalua  jacen- 
te, e  a  inscripção  que  diz  estar  ali  sepultado  D.  Fr. 
João  Coelho,  prior  do  Crato,  clianceller  morde  Rho- 
dcs,  bailio  de  Negroponte,  do  conn-lho  d"el-rei.  etr. 
1314. 

"A  fachada  dVsta  igreja  éum  nobre  cpuro  cxem- 
pl.ir  do  bom  ostvlo  gothico ;  mas  sobre  tudo  notável 
é  a  grande  e  alta  forre  quadrada,  com  boslciras  c 
ameias,  o  que  antes  da  invenção  da  pólvora  devia 
ser\ir  de  podcroM  defes;i.  •' 

O  auctor  termina  mm  uma  brevissiniaro*onh«dos 
est.ibelocí mentos  liller.irios  o  algumas  noticias  sobre 
o  commercio  c  industria  do  Porto,  que  não  tem  o 
merecimento  du  novidade. 


(1 )     tTii  (lissenKvo  qnr  oxpuuhiunos  MopIoiOei  <lo  andor 
rouiu  cllo  as  cuiittiu. 


o  PANORA3IA. 


347 


POETAS  DA  ARCÁDIA. 

Pedro  António  Corrêa  Garção. 

Ao   Menalo  —  Corydon   Krimanihêo . 

III. 

N'b8tas  indignidades  tinham  caído  as  musas,  quan- 
do a  Arcádia  veiu  luctar  contra  os  corruptores  do 
gosto,  combatendo-os  com  a  critica  e  com  o  exem- 
plo. C)  (juȒ  resta  dos  seus  poetas  e  censores,  e  o  que 
se  sabe  dos  seus  trabalhos,  basta  para  attestar  o  zelo 
<:  o  engenho  com  que  vindicou  os  foros  da  lingua,  e 
cultivou  as  verdadeiras  letras,  cujo  formoso  seio  os 
escravos  da  imitação  não  se  can<;avam  de  rasgar  com 
repetidos  ultrages.  N'esta  empresa  o  Garção  era  o 
homem  talhado  para  supportar  o  maior  pezo,  trazen- 
do sempre  a  par  a  censura  da  baixesa,  e  as  regras 
severas  da  arte,  cujo  amor  foi  a  paixão  da  sua  alma. 
Austero  e  inflexível  nos  juízos  que  compunha,  ne- 
nhuma atten(;ão  estranlia  o  amaciava.  Com  os  olhos 
em  Roma  antiga,  e  em  Alhcnas,  só  n'ellas  via  a  per- 
feição, n  esforçava-SK  para  que  os  outros  a  sentissem 
como  elle.  A  magoa  do  abatimento  em  que  jazia  a 
poesia,  tão  opulenta  um  século  antes,  ainda  fazia  o 
seu  espirito  mais  rígido,  e  a  sua  opinião  mais  in- 
exorável. A  divisa  dos  Árcades  a  Jnutítia  irintcal" 
applicada  por  elle,  se  poccou  ás  vezes  foi  por  exces- 
so de  justiça,  nunca  por  indulgência.  Os  seus  amigos 
quando  se  assentava  na  cadeira  de  censor  já  sabiam 
que  só  verdades  iam  ouvir  da  sua  boca. 

Na  famosa  disputa  sobn;  a  thcoria  da  arte  moder- 
na, o  Garção,  e  ao  lado  d^elle  José  Caetano  de  Mes- 
quita criminavam  de  incestuosa  a  alliança  damytho- 
logia  o  das  risonhas  liccijcs  do  jiaganismo  com  o  sen- 
tido moral  d.i  inspiração  catholica.  Assim  a  these, 
<]ue  diclou  a  Chateaubriand  capítulos  admiráveis  no 
Génio  do  Christianismo,  era  ventilada  com  menos 
expleudor,  mas  com  bastante  erudição  rtiuilos  annos 
antes  na  Arcádia. 

Pouco  accessivcl  ao  exagerado  escrúpulo  dos  pas- 
tores seus  sócios,  e  mais  ecléctico  nas  tendências,  An- 
tónio Diniz,  (Klpino  Noií.icriense)  advogou  a  liber- 
dade do  Parn.aso  com  galhardia.  A  seu  vêr  dester- 
rar as  musas  gregas  de  todos  os  assumptos,  significa- 
va nada  menos  do  <\ur  proscrever  nuiitas  obras  ex- 
coUentes  do  engenho  humano,  cc)uqiriiiiin<lo  a  piían- 
lasia  ■,  ([uando  era  suflicienlc  excluir  a  imitação  pa- 
gã dos  poemas  religiosos  em  (|ue  a  mistura  das  duas 
escolas  só  havia  d<'  produzir  absurdo  e  desliarinonia. 
lista  contf^ida  suscitada  pelo  Garção  no  exame  da 
primeira  écloga  de  Diniz,  deu  origem  ás  disserta- 
ções do  auctur  do  Ilyssopv,  que  não  licou  vencido  no 
certame. 

O  cxercicio  fre((uenle  dVsla  censura  austera  foi 
unia  das  armas  poderosas  da  Arcádia:,  o  devc-se des- 
culpar aos  sócios  em  muitas  occasiões  o  abusoda  eru- 
dição, ipiando  a  ignorância  era  geral  e  o  desprcso 
dos  bons  diclanics  (■<unph'lo.  De  certo  nem  o  Garç.ão 
«:  Diniz,  nem  Valladares  e  o  (.'andido  liusilano  su- 
biam com  os  estudos  critii'os  além  do  principio  imi- 
tativo', a  sua  Ihcoria  não  exprimia  a  reacçãi>  ilo  pro- 
gresso, descubrindo  i<léas  novas,  e  lormulanihj-asciim 
u  doutrina  e  com  o  exemplo:,  resumia  apenas  um 
progresso  menos  ambicioso  <■  mais  a<'anhado,  ({ue  se 
contentava  com  a  restauração  das  tr:iib<;ões  da  re- 
nascença, não  crendo  (|U('  lóra  d  ellas  piidissc  eucon- 
trar-be  o  bello  eo  sublimi'  no  peusiimenlo  ou  na  for- 
ma. As  disseriaiMics  de  (iari;ãu  sol)re  n  Irageilia,  ea» 
de  Figueiredo  sobre  a  comedia  não  se  apartam  de  tão 
reatriíla  inlelligencla.    Nenhum   d\'llc»  Irilliu  dusoo- 


nhecidos  caminhos  ou  os  suspeita;  nenhum  julga  pos- 
sível mesmo,  que  o  drama  saia  do  molde  greco-ro" 
mano,  e  das  ultimas  correctas  apropriações  da  Tha- 
lla,  e  da  Melpomone  franceza. 

Discutiam  o  caracter  e  a  importância  da  manifes- 
tação dramática,  mas  sem  anteverem  que  a  liberda- 
de fora  o  espirito  vivificante,  que  tinha  infundido  a 
alma  e  o  sentimento  da  sociedade  grega  nas  grandes 
creações  de  Sophocles,  de  Eurlpides  e  de  Aristopha- 
nes.  Os  rasgos  de  Shakspeare,  a  poética  de  Lope  da 
\'ega  e  de  Calderon,  a  comparação  da  arte  do  norte 
com  a  do  meio-dia,  e  o  gérmen  da  futura  renovação 
depositadas  n'ellas,  nunca  o  entenderam  e  nunca  se- 
quer o  presentiram  ! 

O  Garção,  que  é  quem  symbolisa  mais  o  lavor  in- 
tellectual  da  Arcádia,  expressou  claramente  o  senti- 
do da  reforma  nos  preceitos  impostos  á  imitação  da 
antiguidade,  e  do  renascimento  portuguez.  Nem  ad- 
mitte  o  despreso  das  máximas  do  Parnaso,  nem  per- 
doa a  servidão  da  cópia  quando  até  os  vícios  quer 
adorar!  Diniz,  condemnando  o  insulso  e  rústico  esty- 
lo  da  poesia  pastoril,  de  que  Pina  e  Mello  eraovul- 
garlsador,  se  não  poupa  as  setas  ao  Corvo  cio  Mon- 
dego, (assim  lhe  chamavam  por  Ironia)  também  nun- 
ca excede  o  circulo  dos  reparos  Imlfatlvos,  não  ante- 
vendo nem  as  primeiras  imagens  da  admirável  poe- 
sia, que  tira  todos  os  quadros  da  natureza  viva,  c  os 
enriquece  com  as  cores  e  as  maravllh.as  da  creação. 
A  tala  e  Waverley,  os  painéis  de  Cooper,  e  as  des- 
cripções  de  Byron,  vieram  depois  ;  n^aquelle  tempo, 
se  apparocessem,  é  mais  que  provável,  que  pela  sua 
temeridade  excitassem  a  desconfiança  dos  pastores  do 
Menalo.  Haviam  de  julgar  a  realidade  poetisada 
forte  de  mais  para  a  sensibilidade  da  sua  critica. 

O  sentido  que  domina  todas  as  censuras  e  disser- 
tações dos  Árcades,  encontra-se  com  a  mesma  inten- 
sidade nas  obras  <pie  apresentam  como  tvpos  da  sua 
theorla.  A  fórmula  não  varia  ;  a  interpretação  poé- 
tica não  se  ilesvia  dos  modelos,  os  Arcádias  conhecem 
os  autos  de  Gil  \  Icente  e  louvam-nos,  leram  as  co- 
medias <le  (,'alileron,  Jjopo  da  ^  ega  e  Tirso  de  Mo- 
lina  ;  mas  se  o  primeiro  nada  lhes  indicou  para  a 
creação  de  uma  escola  nacional,  os  segundos  deviam 
ser  (|Uasi  um  objecto  de  horror  para  ellcs,  como  pre- 
cursores da  inundação  decomposições  hy bridas,  que 
enchiam  de  visagens  e  de  chascos  a  scena  do  seu  tem- 
po. O  inimigo,  (|ue  mais  se  empenhavíiin  em  debel- 
lar,  saíra  da  Imitação  dei)r:ivada  dos  auctores  hespa- 
nhoes  do  século  17.";  as  nuvens  de  i)aprlão,  os  dia- 
bretes, os  sacatr.ipos,  os  carros  de  phaetonte,  as  se- 
renatas e  mais  accessorios  obrigados  das  magicas  e 
operas  estrangeiras,  traduzidas  ou  dadas  no  original, 
com  o  sabido  cortejo  ile  bobos,  barbas,  amorosas  e  ga- 
lãs, tiravam  a  genealogia  e  deduziam  os  mascavados 
brasões  d'essa  fonte  <|ue,  no  seu  odlo  Implacável,  os 
Garções  eus  Figueiredos  de  certo  accusavam  de  ser  u 
causa  |)riiielpal  (l;i  corrupção  ilo  gosto  o  dos  preceitos 
salutares. 

Assim,  vcj;i-s(M(>moa  veia,  de  (M'diiiarío  serena,  ilo 
(i;in;íio  corre  agitada  na  comedia  salvric;i  intitulada 
(í  '1'liiittru  Aovu.  O  enredo,  na  sua  simpli<'ldade, 
siTVe  apenas  d<'  pretexto  ao  rúlleulo  Jiara  disparar 
seta  sobre  seta  aos  eslragadores  da  escohi  severa.  A' 
V(.'zes  a  '/.omliaija  azechi-.se,  e  o  (hirdo  Irónico  sente-se 
ferir  tocado  de  fel.  Apparece  a  cada  passo  a  cabeça 
do  piieta  por  cima  do  huinbro  do  Interprete  da  suu 
critica  no  personagem  liil  Liintl;  são  fustigados  e 
i'nvih'i'idos  os  apologistas  do  drama  th'  espectacuh', 
da>  niacliinas,  e  dos  lurots  c/ioiims  no  personagem 
i'ond<'mnado  du  llnií,  liiccniiiidn.  .\  surriada  sus- 
lenla-se  continua  ocruel,  o  verso  i'aniin:ido,  :i  phr» 
»c  fulu,  tf  u  uiilylu  próprio     At  iiiugicus  do  desdltout 


348 


O  PAKORA3IA. 


António  José,  Os  Encaiiios  de  Ahdeia,  Os  1'rLCÍpi- 
cios  de  l'haclonlc,  e  o  Alecrim  c  Jilangirona,  pa- 
gam por  todus  os  desvarios  da  ITialia  plebea,  expos- 
tas a  uma  irrisão,  que  nada  esquece  para  as  lacerar. 
A  indignarão  da  austera  critica  desata-se  em  Ijellos 
trechos  ^  a  censura  arma-se  de  uni  açoute,  que  doen- 
do, não  estanca  o  riso;  mas  quando  cessa  a  parte  ne- 
gati\a  :,  <juando  as  tramóias,  os  dragos,  e  as  irans- 
Jorma^õcs  de  roldana  se  derreteram  ao  calor  da  ira, 
e  os  Eneaa  e  Theseos  cantantes  se  sumiram  pela  vo- 
ragem do  ponto :  o  que  põe  o  reformador  no  loMr 
d'elks?       "^  ^       ^ 

De  que  mudo  promette  curar  o  publico  da  baixe- 
la de  um  <;enero  falso,  etrazel-o  ao  (rosto  de  uma  es- 
cola  seria,  lilferaria  e  isenta  de  abjectas  truani- 
ces?  voltaiido  aonde  ficou  o  génio  original  e  portu- 
ijuez  de  Gil  \'icente  ?  Ponderando  o  uso  da  sensata 
liberdade  com  a  observância  das  regras,  que  hão  de 
ser  eternas  em  quanto  houver  thcatro?  Não'.  Cego 
pelo  espirito  de  reacção,  levado  pelo  pendor  imitati- 
vo, entregue  á  especulação  clássica,  perde  a  realida- 
de de  vista,  e  quer  a  regeneração  da  arte,  converten- 
do as  plateias  em  academias,  e  o  povo  ein  Árcade  \ 
substituindo  ao  péssimo  estylo  da  prcvertida  imita- 
ção uma  escola,  rigida  sim,  elevada  de  certo,  mas 
nao  menos  falsa,  não  menos  opposta  á  fundação  da 
verdadeira  sceiía  nacional.  Contra  o  veneno  das  ma- 
gicas propõe  como  triaga  efficaz  as  traducções  de  So- 
phocles,  de  Euripides  e  de  Terêncio !  Contra  as  co- 
medias de  enredo  e  os  entremezes  destemperados, 
receita  a  comedia  francoza  e  a  tragedia  de  caracter, 
ou  traduzidas  ou  pauladas  pelo  decálogo  rigoroso  das 
unidades  e  seus  gloíadores.  Appliea  a  mordaça  ao 
judeu  c  ás  snas  cerces,  para  dar  largas  á  verbosida- 
de erudita  do  reverendo  à'' Aidiignac  '. 

.Manoel  de  Figueiredo,  um  santo  homem,  oflieial 
de  secretaria,  e  poeta  de  martello,  batia  entretanto 
na  incude  dramática  os  versos  forrecs  c  gelados  das 
suas  peças  \  e  ofiendido  da  solidão  em  que  gemiam 
os  Ocdij.os,  os  T  irialos  e  as  Osínias,  mais  estrangei- 
ras e  antipathicas  ao  povo,  do  que  os  sacatrapos  que 
o  luziam  rir,  c  os  Iwbos  hespanhoes  que  o  divertiam, 
vingava-se  da  negação  trágica  do  seu  talento,  eruci- 
neando  no  Dramalico  .(fitiado,  e  nos  Ct?i!iort.<;  de 
Jfícalro,  as  ingratas  plateias  (jne  dcser1a^am  da  sua 
musa,  bocejando,  para  irem  bater  as  palmas  e  aspa- 
teadas  ás  operas  do  Judeu.  O  Cfin)ilr<  das  Alagoas, 
personagem  ridículo  e  presumpçoso,  servo-llie  de  bo- 
de emissário;  n'ellc  representa  ecasfiga  mais  doque 
em  nenhum  outro  os  peccados  dos  detractores.  Se  é 
entidad(!  purainenie  ideal,  o  aucfor  faria  melhor  cm 
aparar  a  penna  cómica,  dotando  a  sccna  de  obras  que 
hombiea.^scni  com  os  modelos  immortaes  de  IMolière, 
que  tanto  ciia,  e  que  nas  suas  versões  se  metteu  a 
corrcgir.  Se  é  allusão  a  pessoa  certa,  esqueceu-se  de 
que  a  ousadia  jjoelica  de  comettcr  os  arrojos  da  Xh/ii- 
tiada,  exige  a,  força  e  a  estatura  de  um  l'ope. 

Figueiredo  luctava  com  Minerva  adversa.  Feliz  e 
abundante  nas  idéus  capitães  dos  dramas,  cnredan- 
do-os  com  arte,  a])enas  pega  no  pincel  e  principia  a 
encher  o  quadro,  empasta  c  perde  tudo.  O  Avaro 
iiissipador,  O  Fiduhjo  de  sua  Casa,  O  Indol^-ide 
Mscraixl,  c  tantos  outros,  oram  assumptos  «juc,  sus- 
tentados os  caracteres,  animado  o  dialogo  e  travadas  as 
situações,  dariam  nome  a  um  auctor.  .Nas  mãcísird- 
le  gela-se  o  iiitere>se ;  adormece  a  conversação;  ajvi- 
gaui-se  as  phisioiiomias,  e  aborrece  a  fabula.  Como 
<lueMa  Figueiredo  com  ossens  treze  volumes,  inacces- 
sivcis  a  curiosidade  mais  aecêsii,  tviii\erler  o  publico, 
mudar  o  gosto  e  renovar  a  arte.'  l'm  \erso  hirto  e 
contrafeito,  um  esl^lo  árido  e  somnolcnto,  a  phrasc 
parecendo   torneada   para  a   gineta,   foram  nunca  os 


dotes  de  um  engenho  cómico,  cujo  êxito  consiste  na. 
!  intenção,   no  propósito  espirituoso,    e  na  veia  fácil  c 
I  transparente  ?  A  Musa  jovial,  que  ensina  com  o  riso, 
podia  acaso  conhecer-se   na  rabugenta    e  soporiíera 
]  Thalia  do  pobre   Licidas  Cynthio,   emp.ipelada  nas 
j  toucas,  pejada  de  advertências  moraes,  e  preciosa  era 
impertinências  cançadas  ?  O  povo  não  riu  com  as  co- 
medias, riu-se  d^ellas  e  deixou-as  ;  a  posteridade  con- 
firmou  a  sentença,   e  esta  tentativa   lembra  só  para 
assignalar  a  queda  de  mais  um  ícaro,  ao  qual  enga- 
naram  as  azas,   precipitando-o  quando  siippunha  de 
fácil  alcance  a  altura  do  verdadeiro  engenho ! 

(Cuniinúa.) 


GUXRMICâ. 

Xo  SITIO  mais  desafogado  e  formoso  da  Biscava, 
a  distancia  de  duas  Icguas  c  meia  de  Bcrmco  e  qua- 
tro de  Durango,  enconlra-se  uma  povoação  que  ape- 
nas consta  de  sete  ruas  c  uma  praça.  No  tú(xid"csta 
levanta-sc  a  sumptuosa  casa  consislorinl.  ronstriiida 
de  lioa  cantaria,  cuja  espaços;i  galeria  serve  de  oim- 
inodo  passeio  nos  dias  de  chuva.  No  einpodramen- 
to  da  j)raça  c  ruas  ha  todo  o  esmero,  e  conserva- 
se  o  maior  ac«io ,  como  acontece  cm  quasi  toda* 
as  povoações  das  proxineias  vasconjadas.  Esta  a  que 
nos  referimos,  e  que  e  jM-qnena,  mas  apralivel,  v  a 
vilia  de  tínernica,  fuiiilada  p>ir  P.  Tello.  irmão  do 
rei  n.  J'edro  tlc  t^HstelIa,  e  senhor  de  liiscava  por 
sua  espos;»  1).  Joannu,  em  virtude  do  privilegio  ex- 
pedido no  anuo  de  13lit).  e  que  fv>i  confirmado  pos- 
teriormente jH>r  \arios  »ol>eranos. 

•  )  monumento  mais  nota\el  de  tlnemii-a  «■  a  igre- 
ja da  invocação  de  Nossa  Senhora  la  .-hitigua,  que. 


o  PA>ORA3IA. 


349 


principalmente,  por  estar  contigua  á  famosa  e  vene- 
randa arvore  sob  a  qual  se  tem  reunido  os  biscay- 
nhos  desde  tempo  immcmorial  para  celebrar  os  seus 
congressos,  e  receber  o  juramento  aos  seus  senhores, 
de  guardarem  religiosamente  os  seus  foi-os,  bons  usos 
«  coslumes,  é  mui  digno  de  ser  visitada  pelos  estran- 
geiros. 

Este  templo  cuja  antiguidade  se  crê,  com  algum 
fundamento,  remontar  ao  século  3."  da  igreja,  el.° 
da  iutroduc<;ão  do  cliristianismo  entre  os  vasconga- 
dos,  foi  reedificado,  por  princípios  do  século  lo.'',  a 
expensas  do  célebre  doutor  Gonçalo  Moro,  primeiro 
corregedor  de  Biscaya.  Escolheu-se  o  seu  recinto  pa- 
ra n'clle  se  celebrarem  as  juntas  que  d'antes  se  reu- 
niam sob  a  arvore  sagrada  ;  e  em  1826  começou-se 
a  construcfjão  de  uma  soberba  iyrcja,  com  igual  in- 
vocação, e  para  o  mesmo  fim,  que,  por  virtude  das 
guerras  civis  de  que  a  Hespanha  tem  sido  theatro, 
uão  se  aclia  ainda  inteiramente  concluida. 

Cluem  tiver  lido  os  artigos  que  demos  no  Pano- 
rama acerca  das  províncias  vascongadas  poderá  ima- 
ginar a  veneraç.uo  em  que  os  biscaynhos  guardam  a 
gloriosa  arvore,  monumento  sempre  vivo  de  honra- 
das tradições. ,  Com  cUeito  sob  aquelle  roble  magos- 
loso  infinitas  gerações  tem  sido  verdadeiramente  li- 
vres, sem  que  essa  liberdade  tenha  custado  sangue, 
nem  lagrimas,  porque  é  intimamente  identificada 
com  o  sentimento  religioso  e  monarchico,  e  com  os 
costumes,  com  o  caracter  e  com  as  necessidades  dos 
singelos  e  virtuosos  moradores  d'estas  montanhas. 

O  espectáculo  que  Guernica  ostenta  por  occasião 
das  juntas  geraes  é  realmente  interessante.  Ao  be- 
nigno clima,  ^o  formoso  prospecto  das  deliciosas  vei- 
gas que  se  estendem  ao  Norte  e  ao  Sul,  reune-se  a 
alegre  concorrência  que  a  obrigação  e  a  curiosidade 
ali  attrahein.  As  juntas  duram  ordinariamente  dez 
dias.  Durante  a  guerra  civil  enj  IS.Ji)  estiveram 
suspensas,  faltando  a  Guernica  o  que  lhe  dá  interesse 
r  importância.  J'ailccou  em  18.'ií'  um  considerável 
incêndio. 


A    JjEITlKV. 


Í-OM  razão  se  dá  o  nome  de  arle  á  de  csarcver ;  a  do 
lêr  merece  em  nosso  conceito  a  iiKiSma  ((ualificação. 
Adornar  as  idéas  com  elegância  e  bom  gosto  é  um 
aclo  do  enlendinicnlo,  superi<jr  sem  duvida  ao  d<í  re- 
ceber a  imprc^ssão  que  produzem  no  aiiinin;  porém, 
acolher  com  aceito  i^slas  idéas  em  nossa  inlclligcíiicia, 
e  elleilo  (lo  bom  gosto  jmilo  a  lona  pralica  illus- 
trada. 

IC  ineonleslavel  que  o  bom  gosto  não  basta  per  si 
«o  para  conseguir-se  na  leitura  o  fim  app<'l<-<'ido.  A 
leilura  do  mesmo  livro  piído  produzir  sensações  mui 
diversas  em  duas  pessoas  d(!  goslo  igual  e  dtrafleições 
simtlliaiit<.'S.  Uma  si:  imbuirá  com|)lelamente  das  idéas 
do  auctor  ^  u  obra  despertará  no  seu  cnlindimento 
nova  serie  <U-  emoções  qiuí  até  ali  desconliecia  :,  ao 
jiasso  que  a  outra  pessoa  só  terá  conseguido  distrac- 
ção agradável  (pie  não  deixa  mais  vestígio  do  (pie 
um  Irojiel  lie  sensações. 

l'ara  explicar  cbIis  díHerentcs  n  ^ull.iilos  (•  preciso 
recorrer  a  uma  disliiicijão  idiuilogiia,  (|ue  parece  re- 
velar um  dos  grandes  mistérios  da  arle  de  l(^r.  A 
lógica  estabelece  dilléníiiça  entre  a  |)erce|ieào  e  as 
idcns.  Cliania-se  percep(;ão  á  faculdade  do  entendí- 
iU(;nlo  peia  qual  compreliendcmos  a  simples  im- 
pressão dos  objcclos  ,  porem,  <|uando  eslcs  objeelos 
exislcni  já  no  enlendimenio  enllnsoiirados  e  orde- 
nadu»   como  maleriaes  [)ara  Uío    da  reUiíxão,    damoí- 


Ihe  o  nome  de  idéas.  Podemos  comparar  a  percepção 
a  um  raio  de  luz,  tibio  e  fugaz,  que  alumia  momen- 
taneamente um  objecto,  sem  deixar  apoz  si  luz  ou 
calor  :  pelo  contrario,  a  idéa  é  como  o  raio  ardente 
do  sol  (jue  derrama  luz  fixa  e  poderosa  sobre  o  ob- 
jecto que  illumina. 

Alguns  leitores  singelamente  e  a  miúdo  se  quei- 
xam de  ruim  memoria  e  de  tirar  escasso  fructo  de 
seus  estudos.  De  ordinário  procede  isso  de  acharem 
maior  satisfação  em  se  entregarem  aos  fáceis  praze- 
res da  percepção  do  que  ao  laborioso  habito  de  trans- 
formar as  percepções  em  idéas. 

A  percepção  requer  unicamente  sensibilidade  no 
gosto,  sendo  os  prazeres  que  proporciona  continuados, 
delicados  e  laceis.  Não  assim  (pianto  ás  idéas,  que  são 
uma  espécie  de  combinação  ou  de  esforço  do  racio- 
cinio,  um  trabalho  mental  •,  por  consequência,  é  in- 
justo que  os  aborrecidos  do  lavor  se  lamentem  de 
metter  o  arado  á  terra  e  não  colherem  depois  uma 
só  espiga. 

A  leitura  tem  segredos  encaminhados  a  facilitar 
seu  intuito,  ora  auxiliando  a  memoria,  ora  augmen- 
fando  o  cabedal  enthesourado  no  entendimento.  !Mui- 
tos  d"estes  segredos  inventa-os  o  nosso  próprio  enge- 
nho, e  é  de  suppor  que  cada  leitor  tem  seu  modo 
especial  de  estudar,  assim  como  cada  tachvgrapho 
tem  seu  sistema  peculiar   de  transcrever  suas  notas. 

l'línio  o  velho,  que  além  de  ser  infatigável  com- 
pilador, devia  ter  grande  experiência  da  arte  da  lei- 
tura, observa  que  não  ha  livro,  por  máu  que  seja,  que 
não  contenha  alguma  cousa  boa.  Lêr  todos  os  livros 
seria  perjudicial  á  maior  parte  dos  leitores:  também 
não  é  necessário  para  qualquer  se  instruir  Iít  um  li- 
vro do  principio  ao  cabo.  De  muitas  obras  basta  to- 
mar idéa  do  plano,  ou  examinar  uma  parte.  Poucos 
leitores  percebem  toda  a  utilidade  do  pequeno  sup- 
plemento  coin  (pie  geralmente  costumam  terminar  os 
livros  :  todavia,  alguns  escriptores  eminentes  foram 
consummados  na  arte  de  lèr  os  Índices,  (iuanto  a 
mim,  posso  diz(T  que  venero  o  inventor  dos  índices 
a  tal  ponto  que  não  sei  a  quem  dar  preferencia,  se 
a  Ilyppocrates,  que  foi  o  primeiro  anatómico  do  cor- 
po iiiiMiano,  se  o  desconhecido  génio  que  primeiro 
poz  patentes  os  nervos,  as  art(írias  de  um  livro. 

iSlontaigne  costumava  notar  no  fim  de  qualquer 
obra  que  não  tratava  de  l('r  de  novo  o  tempo  que 
dedicara  á  sua  leitura,  o  um  lacónico  juizo  do  seu 
merecimento  upara  recordar  (dizia)  a  idéa  geral  que 
receb("ra  do  auctor  e  de  sua  obra.  " 

K  sabido  que  o  poeta  Young,  chegando  a  uma 
passagem  digna  de  atten(;ão,  fazia  uma  dobra  na  fo- 
lha, de  maneira  que  por  sua  morto  acharam-se-lhe 
na  bibliolh(!ca  infinitos  livros  que  não  podiam  fe- 
cliar-se.  Este  metiiodo  é  mais  comniodo  (|ue  útil, 
porque,  se  bem  o  examinannos,  veremos  que  passa- 
do algum  tempo  é  necessário  l(''r  outra  vez  para  ave- 
riguar porque  se  dobraram  as  folhas.  Evitam  alguns 
o  inconvenicnie,  apontando  n"uma  folha  ein  branco 
as  paginas  a  (pie  pcriendeni  r(íferir-sc,  com  duas  ou 
três  palavras  de  analise  ou  critica. 

E  não  se  lenham  cslas  minúcias  por  iiuligiias  de 
inlfllígencías  su|i('riorcs  :,  por  ta("s  meios,  sem  iinpor- 
tancia  no  (|ue  parece,  consegue  aiictoridade  .-i  erudi- 
(  ão,  c  combina  suas  ideas  a  íuiaginacàn  maíi>  exal- 
iad.i. 

(•  liiliir  dl'  plllli^^^lo  lievír  dividir  oliiiipo  entre  .■! 
leilura  (|ne  dcnoniínaicmo»  de  i.obrigação"  que  e 
mais  Milislancíal  e  mais  ulíl,  c  a  de  ..  devoi;ào"  tpie 
|ini|Mirii(>ii:i  inslructivo  recreio.  Guído  l'alín,  celn- 
bre  inedico,  diz  (pie  lia  diariamente  ll_\  p|»H'ral(S, 
(ialeno  c  outros  mestres  ín>igncs  da  sua  proliss."»),  ao 
(pie  chamava  a  sua  leitura  de  proveito;  e  c(un  aljju- 


350 


O  PA>ORA3IA. 


ma  frequência  lia  Oviílio,  Juvenal,  Horácio,  Tácito, 
<•  era  esta  a  sua  leitura  de  recreio,  ('unipre  fazer  es- 
ta difleren<,'a,  porque  succede  ás  vezes  um  juriscon- 
sulto, um  medico,  um  engenheiro,  mui  laboriosos  c 
afeiçoados  ao  estudo,  darem-se  áquellas  leituras  va- 
riadas, descuidando-se  das  que  devem  ser  sua  appli- 
cação  continuada. 

Pode  em  muitos  casos  considerar-se  o  leitor  como 
um  caplivo  atado  ao  carro  triuraphal  de  um  auctor 
de  celebridade:,  então  não  costuma  julgar  per  si  mes- 
mo, e  quando  lê  as  obras  inditterentes  de  um  es- 
criptor  famoso  imagina  que  o  cansaço  e  fastio,  que 
sente,  nasce  da  sua  falta  de  bom  gosto.  3Ias  tenham 
presente  que  os  melhores  escriptores,  quando  são  de- 
masiado volumosos,  já  tem  muito  de  mcdiocres. 

Por  outra  parte,  o  leitor  não  deve  figurar  na  ima- 
ginação que  todo  o  prazer  que  llie  produz  uma  com- 
posição provém  exclusivamente  de  seu  auctor,  por- 
que sempre  o  leitor  tem  de  púr  alguma  cousa  do  seu 
para  que  lhe  agrade  o  li\ro.  O  escriptor  não  pode 
dar  certo  appelite  litterario  que  é  indispensável,  co- 
mo o  mais  hábil  cosinheiro  não  pôde  dar  vontade  de 
comer  ao  commensal  sem  appetencia. 

O  estado  accidental  em  que  se  encontra  o  animo 
do  leitor  inllue  ás  vezes  desfavoravelmente  na  apre- 
ciação que  faz  de  uma  obra  :  e.Kemplos  temos  de  juí- 
zos mui  erróneos  emittidos  por  grandes  escriptores,  c 
que  s<5mcntc  podem  atlribuir-se  áquella  circunistan- 
cia.  O  animo  Iransmitte  a  sua  má  disposição  ao  li- 
vro, e  o  infeliz  auctor  tem  que  pagar  uão  só  pelas 
suas  culpas,  mas  também  pelas  alheias. 

Um  obstáculo  mui  frequente  para  a  leitura  é  a 
antipathia  do  animo  cm  lixar-se  n'um  assumpto-, 
yistigados  por  idéas  diílerentes  e  achadas  com  difli- 
culdade  acolhemos  as  do  auctor.  Applicando-nos  com 
graciosa  violência  á  leitura  de  unia  obra  interessan- 
te, conseguimos  em  breve  consubstanciar  o  entendi- 
mento com  o  assumpto.  I 
Os  leitores  ])ódem  dividir-se  em  um  numero  inii-  ] 
iiito  de  classificações,  em  quanto  que  o  niisero  auctor 
é  um  ente  solitário,  que  pela  razão  de  agradar  a  uns, 
desagrada  por  consequência  a  outros. 

O  talento  veheniente  em  demasia  6  mais  prejudi- 
cial á  própria  celebridade  do  que  o  talento  mediano, 
porque  devemos  observar  que  as  obras  mais  popula- 
res não  são  as  mais  profundas,  mas  sim  as  que  ins- 
truem o  que  carece  de  instrucção,  e  deleitam  os  que 
não  tcem  sufficicnte  para  gostarem  de  sua  novidade, 
ílontaigne  queixava-se  de  que  os  seus  leitores  eram 
sempre  ou  demasiado  iiislruidos  ou  demasiado  igno- 
rantes, de  sorte  que  só  podia  agradar  a  certa  classe 
mediana,  que  possuia  a  instrucção  strictamente  ne- 
cessária para  entendcl-o. 

Congrèvc  diz  que  u  ha  na  verdadeira  belleza  certa 
cousa  que  as  almas  vulgares  não  podem  admirar. " 
Balzac  queixava-se  amargamente  dos  leitores.  •■■  Um 
periodo  (exclama)  ter-nos-ha  custado  o  trabalho  de 
>im  dia  inteiro;  teremos  dislillado  n"um  trecho  toda 
a  essência  de  nosso  entendimento  •,  temos  conseguido 
fazer  um  modelo  da  arle ;  e  pensam  que  são  indul- 
gentes quando  declaram  que  o  livro  tem  cousiis  bo- 
nitas e  que  o  estslo  não  ó  máu  '.  "  Ha  um  não  sei 
(jue  nas  coinposiçries  mimosas  c  delicadas  que  o  vul- 
go dos  leitores  não  alcança  comprehendcr. 

Os  auctores  são  \angloriosos,  mas  os  leitores  são 
caprichosos.  Uns  Só  querem  livros  antigos,  como  se 
não  houvera  verdades  de  muito  preço  nas  publica- 
ções modernas;  a  outros  agradam  somente  as  obras 
novas  como  se  não  houvera  cousas  de  mtiilo  preço 
nos  livros  antigos.  Muitos  não  lerão  um  livro,  por- 
que conliecem  o  auctor,  no  que  pude  perder  mais  o 
leitor  do  i|ue  o  auctor;  outros  não  >ú  U-riam  olÍTro, 


mas  até  leriam  e  interpretariam  o  homem,  no  que 
o  escriptor  de  maior  engenho  pode  perder  mais  do 
que  o  leitor  mais  impertinente. 

( Kxíraclo  das  obras  de  I.  D' Israeli. ) 


ARCHEOLOGIA  PORTUGUEZA. 

Ikstri'cções  dadas   ao  coadjctob  de  bzbgamo, 
nlncio  em  portugal  iso  tempo  de  d.  joão  iii. 

"Ha  em  Portugal  continuadamente  infinitas  ques- 
tões matrimoniaes,  e  de  outras  espécies  ecclesiasticas. 
E  havendo  núncio  auditor,  está  o  reino  todo  nas  suas 
mãos  pela  causa  principal,  ou  por  outras  dependên- 
cias. Porém  é  necessário  ter  o  núncio  auditor,  e  fa- 
zer justiça ;  o  que  muito  concorre  para  a  sua  aucto- 
ridade,  e  para  ser  respeitado ;  e  os  irmãos  do  rei,  e 
outras  pessoas  grandes,  precisam  d'elle,  a  ponto  que 
lhe  apresentam  supplicas,  e  lhe  reconhecem  poder 
aquelles  mesmos  que  mais  lh'o  contestavam. 

"Como  o  rei  é  muito  governado  por  monges  e  fra- 
des, e  por  isso  todos  os  dias  carece  de  dispensas,  creio 
que  será  oportuno,  que  o  núncio  traga  faculdade  par- 
ticular sobre  frades  e  monges,  não  usando  d"ella  se- 
não em  casos  importantes,  de  que  lhe  resulte  aucto- 
ridade  perante  o  rei,  e  com  que  incuta  temor  ao» 
frades,  attendendo  sempre  a  que  elles  são  poderosís- 
simos em  Portugal. 

"  l'or  isso  e  para  concluir  muitas  cousas,  que  dr 
outro  modo  se  não  acabam,  é  preciso  que  o  núncio 
leve  breves  para  os  frades  mencionados  ha  pouco,  e 
credenciaes,  dando-lh'os  com  preceito  de  os  não  pu- 
blicarem. 

"Também  é  conveniente  trazer  o  núncio  três  ou 
quatro  breves  credenciaes  sem  sobrcscripto  para  os  po- 
tíer  entregar  a  alguns  frades  cm  circumstancia  grave. 
em  que  produzam  grande  cffeito. 

«lE  necessário  que  o  "núncio  traga  expressa  cora- 
missão  e  ordem  de  defender  a  liberdade  ecclesiastica. 
e  os  padres  que  vir  opprimidos  ])or  seculares,  fican- 
do por  isto  todo  o  clero  seu  escravo;  e  o  clero  forma 
aparte  mais  poderosa  do  reino;  assim  attrahirá  á  Sc 
Apostólica  muitos  amigos  que  se  calavam  por  não 
haver  para  quem  recorressem  ;  c  castigando  os  cléri- 
gos culpados  com  justiça,  dará  satisfação  também  ao» 
seculares. 

"  E  preciso  saber  o  núncio  quem  são  os  pregado- 
res c  confessores  das  personagens  da  corte,  e  assim 
que  descubrir  na  sua  doutrina  qualquer  opinião  ma. 
acuda  cora  o  remédio  em  tempo,  e  usando  deauclo- 
ridade  sem  contemplações,  que  c  o  modo  de  cur.iro? 
males  sem  violência,  evitando  chegar  á  extremidade. 

"Como  os  males  da  igreja  principalmente  nascem 
de  se  deixar  perder  a  obediência,  dissimulando  as 
cousas  por  considerações  particulares.  chcg:indo-5c  por 
negligencia  á  ruina  total,  com  perigo  eminente  de 
derriljar  tudo  }>or  terra ;  attendendo  e  reflectindo  na 
imj)orlancia  d"islo,  os  príncipes  passados  sabia  c  san- 
tamente estabeleceram  a  ixcommunhão  publica  da 
i|uinla  feira  s;uita,  e  ainda  no  tempo  de  Leão  e  de 
Clemente  se  costumava  mandar  a  dita  bulia  aosprr- 
lados,  afim  de  se  publicarem  nas  respectivas  dioo- 
les  como  cila  determina;  o  «jue  vejo  que  hoje  se  nâ.' 
I  faz.  .\ftirmam  todos,  com  quem  me  inlormci.  que.-<- 
ria  couç;i  religiosíssima  e  de  óptimo  etTeito,  c  levan- 
taria iinmcnsos  olistaoulos,  trazer  o  núncio  a  bulia  c 
en\ial-a  aos  pr«-lados  e  preg.idores.  com  prix-eito  de 
a  publicarem  ao  povo,  visto  ser  cila  uma  d;is  3rma> 
principaes  da  igreja  para  vonserrar  a  união  dos  fiei». 


o  PAAORA31A. 


351 


e  a  sua  auctoridade.  Faz-se  uma  ceremonia,  voem 
que  não  passa  da  praga  de  S.  Pedro,  em  quanto  na 
Hespaniui  são  raros  os  que  saljcm  o  seu  conteúdo, 
e  o  que  significa,  e  os  confessores,  ou  porque  a  não 
lêem,  ou  porque  a  dissimulam,  absolvem  dos  casos  re- 
servados, ficando  tão  cxcommungados  como  os  peni- 
tentes, e  causando  grande  prejuizo  á  Sé  Apostólica 
por  se  notar,  que  assim  como  se  deixa  de  cumprir 
unia  bulia  d'esta  importância,  de  que  depende  mui- 
to a  auctoridade  da  santa  Sé,  menos  se  deverá  temer 
a  desoljediencia  a  outros  preceitos  ordinários  do  papa 
e  da  igreja.  K  posto  que  isto  jjarcça  fútil,  os  que 
conhecem  a  Índole  d'aquelles  povos,  asseguram  queé 
importantissimo. 

"Em  os  negócios  da  Inquisição,  que  vieróm  ex- 
pressamente ao  núncio,  o  em  que  elle  ti\er  de  se  en- 
contrar com  os  actos  do  infante  D.  Henrique,  deverá 
acautelar-se  muito,  para,  sem  consentir  quebra  no 
que  pertence  ao  seu  officio  e  a  justiça,  obrar  efallar 
sempre  com  sunima  reverencia,  porque  os  irmãos  do 
rei  querem  ser  tratados  quasi  como  iguaes  do  monar- 
clia.  Sejam  livres  as  acções  e  decididas  na  auctorida- 
de ;  nas  palavras  porém  guarde  sempre  maneiras  cor- 
tezes  e  respeitosas,  porque  assim  não  terão  pretextos 
a  que  se  peguem,  e  as  cousas  substanciaes  irão  por 
diante. 

"Deverá  visitar  o  infante  algumas  vezes  sem  ou- 
tro motivo  senão  o  de  o  comprimentar ;  e  do  mesmo 
modo  acompanhar  o  rei  sempre  que  elle  sair,  assis- 
tindo ás  festas  e  ceremonias  publicas,  a  que  S.  Alte- 
za concorrer  com  a  corte. 

u  Não  deixará  trazer  ou  ter  comsigo  nenhum  por- 
tuguez-,  porque,  por  amor  da  pátria  ou  por  amiza- 
des particulares,  poderia  revelar  o  que  visse  ou  escu- 
tasse cm  casa  do  núncio,  cousa  perigosissima,  que 
além  de  o  tornar  suspeito  cm  tão  delicada  negocia- 
ção, viria  a  ser  origem  de  graves  inconvenientes  dan- 
do que  fallar. 

"  Bom  será  travar  estreitas  relações  com  algum 
prelado  para  lhe  puder  confiar  algumas  das  cousas 
que  quizer  que  se  saibam  ;  e  entendo  que  uind'clles 
seja  o  arcebispo  de  Lisboa,  prelado  maior,  jiarenie 
do  rei,  e  seu  capellão-mór  \  creio  que  elle  ha  de  ser- 
vir bem,  sabendo  com  tudo  que  foi  recusado  pelos 
chrislãos  novos,  que  o  não  quizerani  para  inquisidor. 
E  muito  tímido.  O  núncio  fallar-lbe-ha  sempre  isen- 
to e  firme,  como  homem,  que  executando  o  seu  de- 
ver, segundo  avonta(l<'  de  seu  amo  e  serviço  do  Deus, 
não  teme  nada,  com  Deus,  o  papa,  e  a  Sé  Apostó- 
lica da  sua  parle.  D\.'ste  modo  os  medos  que  lhe 
inettercm  hão  de  cair  sobre  elles. 

"Item.  Como  os  l'ra<les  n^aijuclle  reino  (já  o  dis- 
m)  gosam  de  grandi;  favor,  e  muitos  cortczãos  por 
verem  <|U0  é  este  o  caminho  de  se  intnuiuzirem  no 
valimento  do  rei,  faliam  econver^am  muito  com  elles, 
julgo  essencial  (pie  o  núncio  faça  o  nieinii) ;  visitan- 
do de  j>roposito  os  mosteiros,  tratauilo  amiside  com 
os  íieus  prirhidos,  nuistrando  confiança  n'i'lli's  e  pe- 
ilindo-lhcs  conselho  ;  com  esta  táctica  siicccderá  que 
fallem  d"<'llc  -.iti  rei  :  i-  em  (planto  pessoalmente  fiz(>r 
«aber  a  S.  Alteza  inil  cousas  agradáveis,  (lor  via  de 
outrem,  fará  que  lh(!  cheguem  outras  mil.  E  é  fací- 
limo scdiizll-os,  porque  a  iiiaiur  paile  cuidam  mais 
do  miinijo,  (lo  (jiK!  (la  clausura.  K  pura  servir  bem  a 
Deus  e  a  N.  S.  c  jiislo  aconimoilar-se  a  lodos  sem 
pcccado  ,  por  csIí-  caminho  hão  de  concluir-se  mais 
cuusns  (lo  (|ue  á  |iriineira  vista  parece. 

•lO»  porlugiiczcs  espiam  muito  as  famílias  dos  es- 
trangeiros, especialmente  iis  dos  núncios  e  padres, 
que  naturnlni(?nle  desejam  caluinniar.  K  indispensá- 
vel (|ue  o  núncio  lenha  grande  vigilância  na  vida  e 
costumes   (hm   seun    fâmulos,    pori|Uc    de    outra  cousa 


não  fallo  •,  eisto  é  facílimo,  vivendo  como  se  sabe  que 
vive,  e  com  a  família  honestíssima  que  tem. 

( Continua.  ■ 


LENDAS  HISTÓRICAS. 

O  Demónio  do  Lago. 

lU. 

Duat  t  iayens. 

Embarcaiiam  em  Dumbarton  ;  mas  apenas  a  frofa 
(jue  combo>ava  a  rainha  de  Escócia  se  aflastou  da 
costa,  começou  de  ^soprar  o  vento  rijamente,  e  os  na- 
vios, combatidos  pelas  vagas,  estiveram  prestes  a 
abrir-se  e  fazer-se  pedaços. 

A  rainha  occorreu  logo  a  medonha  visão.  Eviden- 
temente o  demónio  do  lago  perseguia-a,  e  as  ondas 
deviam  de  ser-lhe  funestas.  Com  as  mãos  postas,  e 
orando  fervorosamente,  a  filha  de  Jaques  V  suppli- 
cou  ao  genib  máu  de  Monteith  que  poupasse  os  seus 
companheiros,  e  a  ferisse  a  ella  só.  Esta  prece  de  um 
coração  puro,  remontou  ao  céu  atravez  as  acastella- 
das  nuvens.  Um  vento  favorável  impcUiu  a  esquadra 
para  as  costas  de  França,  e  uma  segunda  feira,  20 
d^agoslo  de  1548,  o  navio  (|Ue  conduzia  Maria  Stuart 
abordou,  ou  para  melhor  dizer,  foi  encalhar,  na  pon- 
ta da  bahia  de  Morlaix,  em  uma  furna  de  contra- 
bandistas e  de  corsários,  no  porto  de  Roscoff. 

A  influencia  do  Kelpy  parecia  perseguir  Jlaria 
ate  na  terra  em  que  devia  reinar.  Quando  saía  em 
grande  estado  da  egrcja  de  Nossa  Senhora  de  Mor- 
laix, onde  se  havia  cantado  um  solcmnc  Tc  Dcum, 
e  ao  passar  a  porta  da  cidade,  chamada  Porta  da 
Fiisuo,  a  ponte  levadiça  quebrou-se  e  caiu  no  rio. 
Os  escocezes  gritaram  (jue  havia  traição.  "Mas  (diz 
o  ciironista)  o  senhor  de  llohan,  que  ia  a  pé  junto 
da  liteira  de  Sua  Magestade,  relroquiu-lhcs  severo  ; 
(iue  um  bretão  era  incapaz  de  allraiçoar alguém.  E 
de  feito  nos  dous  dias  que  a  rainha  se  demorou  ali 
para  descançar  das  fadigas  do  mar,  estiveram  abertas 
todas  as  portas  da  cidade,  e  ás  pontes  foram  corta- 
das as  cadéas.  » 

Em  S.  Germano  Maria  Stuart  breve  esqueceu  os 
adeuses  do  demónio  de  Monteith  e  os  agouros  da  sua 
viagem.  l'assou  ali  alguns  annos  felizes  «"um  conti- 
nuo lid.ir  de  ca(;adas,  de  festas,  de  dansas,  de  con- 
certos. A  rainha,  enllni>iasta  como  o  era  já  no  mos- 
teiro de  Incb-Mahome,  cnticgava-se  a  todos  estes  fol- 
gares com  um  prazer  inaudito  Toda  a(|uella  corte 
fastiiosa  dos  \alois,  de  (pie  Catliarína  de  Medíeis,  era 
a  sombra,  e  <jue  Maria  Stuart  fazia  esplender  com  a 
sua  mocidade,  lorinosiira  precoce  e  superior  espirito, 
cmbriegava-a  ao  niesmo  t('in])i). 

iloaipiiin  de  JSelav,  llonsard,  Jamvn  la/^iam  repe- 
tidas excursões  bucólicas  ao  l'arnas(),  forcejando  por 
atapelar  de  I v  rios  e  rosas  a  estiada  da  vida  á  gra- 
ciosa rainha,  que  a  trilliava  dc.>cui(losa  e  a  rir. 

.\  gélida  e  nevoenta  Kscucia  era  cs(|uccída  por  ve- 
zes; e  (piaiido  dos  eirados  de  8.  liermano  ella  coii- 
teniplava  a  larga  laxa  do  Sena,  ou  iiuaudo  percor- 
ria, em  uma  barca  dourada  e  empavezada,  o  lago  de 
l'"tuilaiiiebleaii,  a  tilha  de  ihupies  \'  nem  se  lenilira- 
va  seipier  do  lúgubre  Kelpv  'J"ambem  (|iicm  hav  i.'v 
de  agora  pensar  nas  aguas  prorondas  do  iMontcith, 
teiiilii  diante  dos  olhos  as  nayades  de  França,  e  umtt 
Ivmplia  chrjstaliiui .'  Se  algum  génio  se  esc(Uuliasob 
iis  ondas  argênteas  dos  ribeiros,  era  aenipre  alguni.i 
iliviíidadu   formosa   e  moca,   assentada   eiit  nacarada 


352 


O  PANORAMA. 


concha,  o  não  de  certo  nenhum  centauro  horrível 
como  o  cseoeez. 

E  esquecerani-o  '.  Mas  elle  é  que  nuo  ha  de  es- 
queccr-se,  não  !  A  filha  de  Jaijues  A  fòra  abenf'oa- 
da  |(or  seu  pae  no  meio  de  uma  dolorosa  agonia  ^  o 
clarão  das  fogueiras  aluiniára-llic  o  berço  i  a  ventu- 
ra, ])ois,  só  podia  ser  para  ella  uma  excc[)(;ão.  De 
feito  apenas  completara  11)  annos,  roubou-lhe  amor- 
li'  o  seu  muito  amado  esposo  Francisco  II,  e  uin  cor- 
tejo illustre  o.  lirilhante,  mas  coberto  de  luto  e  tris- 
tesa,  se  dirigiu  para  o  litoral,  reconduzindo  aos  seus 
navios  a  coitada  de  Maria  Stuart,  que  desafogava  a 
sua   dôr   em  fervorosas  preces   e  versos  harmoniosos. 

A  la  d'agosto  de  lotíl,  duas  galeras  e  dous  na- 
vios de  transporte  largavam  de  Calais.  Em  um  does- 
tes navios  ia  Maria  Stuart  sentada,  contemplando 
as  costas  de  Franga,  que  começavam  a  minguar 
no  horisonle.  A  historia  revelou-nos  o  coshtmc  da 
rainha  n'esse  dia  :  trajava  um  vestido  de  veludo 
branco,  <jue  então  se  usava  para  o  luto  carregado 
das  rainhas  de  França  ■,  um  grande  cabeção  guarne- 
cido de  preciosas  rendas  no  pescoço  \  o  véu  engom- 
mado  formava  uma  curva  por  cima  de  cada  hombro -, 
as  mangas,  de  tela  de  prata,  eram  estreitas  em  bai- 
X(J  è  tufadas  em  cima ;  o  cabello,  liso  na  testa,  era 
riçado  junlo  das  fontes,  e  prezo  na  nuca  com  fitas  ; 
uma  ioiwa  leve  descia-lhe  em  feitio  de  coração  sobre 
a  testa,  c  cobria,  sem  os  esconder  inteiramente.  Ires 
fios  de  bcUibsinias  pérolas;  no  pescoço  esplendia-liie 
um  collar  lamliem  de  pérolas,  que  cila  preferia  a  to- 
das as  suas  jóias. 

1'obre  Maria!  A  medida  que  se  aflastava  das  mar- 
gens, sentia  inexplicável  angustia  apertar-lhe  o  co- 
ração •,  i;  que  deixava  em  França  um  tumulo,  no 
<jual  jaziam  com  o  seu  joveii  esposo,  todos  os  seus 
sonhos,  todas  as  suas  illusões,  e  ia  encontrar  na  Es- 
cócia fogueiras  de  pouco  tempo  apagadas,  cadafalsos 
ainda  sanguentos;  abandonava  uma  còrle  folgasã, 
peitos  abrasados  de  amor  ;  e  ia  tratar  súbditos  me- 
lancholicos  e  desconfiados,  e  uma  nobreza  soberba  e 
ciosa.  Em  França  amavam-na,  adoravam-na.  E  cm 
Escócia  apenas  a  conheciam,  e  já  começavam  a 
odial-a. 

As  viagens  eram  funestas  a  Maria.  Desde  o  dia 
em  que  o  demónio  do  lago  de  Montcith  lhe  appare- 
cêra,  não  puzera  o  pé  em  navio  que  não  succedessc 
algum  desastre.  Estando  já  a  distancia  da  terra,  dous 
barcos  que  conduziam  aos  navios  gente  do  cortejo, 
viraram-sc,  e  sois  homens  sumirain-se  nas  ondas;  a 
agua  espadanou  até  á  cabeça  de  Maria  Stuart,  cjue 
bradou  por  soccorro,  mas  em  vão  ;  o  mar  não  resti- 
tuiu o  holocausto,  e  depois  de  inauditos  esforços  vie- 
ram aniuinciar  á  rainha  (jue  a  ccpiipasem  perdera 
seis  homens. 

Duas  lagrimas  se  deslisaram  pelas  faces  da  real 
viuva,  que  disse  para  as  suas  damas,  ([ue  a  haviam 
rodeado,  e  forcejavam  por  a  consolar  ; 

—  A  minha  fé  inhilie-me  do  accrcdilar  om  sorti- 
légios ;  o  meu  coração  rcpell<>  loucos  terrores  ;  mas, 
a  despeito  do  meu  coração  e  da  minha  fé,  decla- 
ro que  vi  o  demónio  do  lago  travar  d\u|Uollcs  bar- 
cos c  atlundal-(is. 

—  Minha  rninlia,  acudiu  Maria  Kli-ming,  deixae- 
vos  de  illusões;  demónio  de  Monteilh  é  cousa  que 
não  existe;  existe,  porém,  a  cólera  do  Oceano,  c,  lá 
cm  cima,  Dous,  que  permitte  a  morte. 

—  Oh  !  eu  creio  cm  Deus,  replicou  Maria  Stuart 
com  exaltação;  mas  não  posso  ser  superior  ás  supers- 
tições que  me  embalaram  na  infância. 

E  largando  as  suas  fieis  conniaiihciras,  foi  para  um 
canto  do  navio,  meditar  c  chorar  á  sua  vontade. 
Ouviam-na  .1  espaços  dirigir  uiolaiicholico»  adeuses  á 


França ;  enviava-lhe,  n'aza  dos  ventos,  os  mais  ar- 
dentes votos ;  depois  orava  pelos  infelizes  que  o  na- 
vio deixara  em  sua  esteira ;  e  quando  lhe  occorria  á 
idéa  o  demónio  do  lago,  evocando  todas  as  recorda- 
ções da  sua  infância,  comparava  a  triste  rainha,  re- 
gressando viuva  á  Escócia,  com  aqucUa  alegre  me- 
nina que  fòra  a  França  buscar  fugitivas  ale^rrias  e 
pezares  eternos. 

A  rainha  acreditava  na  eternidade  da  sua  ddr: 
mas  Maria  Stuart  era  d"estas  naturezas  excepcio- 
nacs,  ((ue  absorvem  as  lagrimas  como  a  arí-a  arden- 
te do  deserto  aViSorve  o  orvalho  do  céu,  e  em  quem 
nunca  acabaram  as  tentações  da  terra,  e  os  delírios 
do  coração.  Era  sincera  a  sua  dòr.  N'aquelles  deli- 
ciosos versos  que  todos  conhecem  —  Adieu  pUiisani 
pays  de  Francc,  etc.  ,  julgara  exhalar  quanto  lhe 
restava  de  paixão  na  alma  ,  em  presença  d'aquella 
terra  que  abandonava,  para  sempre,  após  a  scena 
de  luto  que  tão  profundamente  asensibilisára,  julsa- 
va  de  boa  fé,  que  não  tornaria  a  recuperar  o  seu 
sorrir  de  rainha,  e  a  sua  isenção  infantil.  Mas  esta- 
va escripto  que  ella  tivesse  de  passar  ainda  muitas 
vezes  pelas  violentas  alternativas  de  insensatas  ale- 
grias e  incomportável  anciedade. 

A  viagem  passou-se  pois  tristemente.  Maria  cho- 
rou muito,  e  disse  ao  timoneiro  que  a  accordasse  ao 
romper  do  dia,  se  ainda  se  avistassem  as  praias  do 
França.  O  velho  marilimo  não  esqueceu  esta  ordem, 
e  Maria  Stuart  pôde  saudar  pela  ultima  vei,  ao  cla- 
rão da  alvorada,  as  costas  da  sua  pátria  adoptiva : 
depois  tudo  despareccu  ;  o  horisonte  tornou-se  infini- 
to, c  a  rainha  achou-se  sósinha,  com  os  seus  desgos- 
tos, entre  o  céu  e  a  terra.  Chegaram  á  vista  da  Es- 
cócia no  domingo  pela  manhã ;  mas  um  nevoeiro 
cerradissimo  impediu  o  desembarque,  que  só  se  ef- 
fectuou  no  dia  seguinte,  19  d"ag05to  de  lotíl. 

(Continua.  I 


Processo  facílimo  para  gravar  cm  a^o  com  i/nio 
pciina.  —  Aquecc-se  uma  lamina  de  aço,  conxcnicn- 
temente  preparada,  esfrega-se  com  cera  branca,  d. 
modo  que  sobre  o  aço  fique  uma  camada  bem  dcs- 
tribuida,  mas  de  pouca  espessura  ;  depois  escreve-s».- 
sobre  a  cera  com  uma  pcnnn,  tendo  o  maior  cuida- 
do em  ([ue  os  traços  penetrem  até  o  aço ;  concluída 
a  escripfa  ou  desenho  lança-se  sobre  os  traços  que  se  fi- 
zeram um  pouco  de  vinagre  forte,  que  se  Sídpicará  com 
o  bichlorureto  de  mercúrio  (sublimado  corrosivo)  ; 
passados  dous  011  tre»  minutos  cx]>onha-se  a  jauiina 
ao  calor  para  lhe  tirar  a  camada  de  cera,  e  appare- 
cerá  a  gravura  bem  visível,  e  prompta  para  qualquer 
applicação  que  se  lhe  queira  dar. 


—  f )  (|uc  nasceu  para  o  trabalho,  como  boi,  não 
se  lhe  dí-em  azas,  com  que  queira  ou  possa  elevai^sc 
fora  da  sua  esphcra  ;  o  que  e  aíuia  navivpz,i,  parti- 
cipe mais  dos  raios  do  sol,  |Hiis  lhe  sio  mais  natur.vr^ 
seus  resplandores ;  o  que  é  le.ão  no  valor  adnnnistn 
as  operações  da  valentia,  jxirquc  lhe  guardara  respei- 
to a  mesma  fortuna;  e  o  que  é  homen\  noninsclho. 
governe  elle  os  mesmos  conselhos,  jH>rque  sejam  acer- 
tadas as  re,soluç"òcs  nas  matérias;  jxir  isso  succedrni 
muitas  vezes  mil  desastres  no  carro  da  monarclii.-i . 

Padrk  a.  N'isika. 

/ícr/ific<jç<io .  —  No  artigo  sobre  hospifacs.  publi- 
cado a  pag.  33ò,  lin.  32  do  N.**  42.  oi'''«-  *<■  l-"'  — 
134j  «Ivve  ler-iic  lUí.'). 


45 


o  PA]VORA3IA. 


353 


XHEATaO  SO  X.TCEO  EM  BARCELONA. 


G.LANUO  a  pag.  288  do  3."  vol.  da  1.'' serie  do  Pano- 
rama, liemos  AviiUi  ijeral  de  liarcflniia,  euma  noti- 
cia iTesta,  [Kir  todos  os  titidos,  ini|)ortaiitis'>ima  ci- 
dade, Ião  cireuiiisl aliciada  <{iiaiito  o  permiti  iam  osele- 
n\<>iitoí  de<|<ie  podianios  dispOr,  meiKJonámos  de  pas- 
sagem o  seu  tlieatro  como  um  dos  mais  notáveis  mo- 
numentos <pie  ornam  nquella  povoação,  aliás  opulen- 
ta de  eoiistruo<;ões  magestosas  c  oleiçantes. 

K  esbo  bídlo  e  vasto  edifício  o  que  ;i  nossa  gravu- 
ra representa  com  a  maior  exactidão. 

n  cavalheiro  Cilirario,  distincto  escriptor  italiano 
que  o  leitor  já  conhece  pelo  extracto  (pie  da  sua 
olira  publicámos  no  N."  M  d'este  volume,  fazendo 
justiça  ao  caracter  pundonoroso  dos  catalães,  e  men- 
cionando muitas  das  riquezas  que  encerra  a  capital 
lio  principailo,  di'cUra  <|ue  o  tlieatro  do  liVcéo  e  um 
dos  mais  espli-ndidos  que  lem  vislo,  e  |)orvcntura  o 
lie  maior  capacidade,  incluindo  mesmo  o  famosíssi- 
mo da  Si.nlii  em  Milão 

O  testemunho  insuspeito  de  um  cscriptor  tão  es- 
timável, appnrece  confirmado  jeralnienle  pela  opi- 
nião de  todos  os  que  tem  visitado  Barcelona.  De 
foito,  a  fachada,  que  a  nossa  estampa  ri'))resenta,  e 
que  não  pode  considerar-se  irreprelien-ivel  a  luz  dos 
]>iepi'itos  severos  da  arte,  npn.-senla  eoinludo  um  !;ran- 
dedrsenvolvimenlo,  é  apparatoía.  decorada  com  Ihis- 
lanle  profusão,  e  proilui  em  çeral  um  honi  efleilo, 
A  sua  archileclura.  como  a  da  máxima  parle  do  in- 
lerior,  pertence  á  rpocha  do  renascimento.  As  |ior- 
\oL.   I.  —  3."  Si.mt. 


las  do  edifício  abrcm-sc  dentro  de  três  bem  lanhados 
arcos.  O  vestíbulo,  maj.;niíico  sal.ão  quadrado,  termina 
em  tros  esc.idarias,  duas  lateraes  cpie  communicam 
jiara  os  pavimentos  inferiores,  e  a  do  centro,  de  for- 
moso mármore  branco,  que  dá  para  o  (inJar  mihri . 
N"este,  á  direita  e  á  esquerda  da  escad.i,  ha  duas 
sumptuosas  portas  que  abrem  para  uma  rica  e  .ampla 
sala  de  descaneo.  E  um  p.irallelogrammii,  leniio  u 
clião  de  mosaico  de  uiarmore,  e  ;is  paredes  estucadas 
em  arabescos,  medalhões,  retratos,  ijrinaldas  de  llò- 

I  res  e  outros  adornos  do  melhor  pislo.    Alumiam-mi 
cinco  lustres,  com  cerca  de  cem  lumes  cada  um. 
O   palco  scenito   é  vastíssimo,    e  o  prosceido  oons- 

i  truido  se>.;undo   os  pri.'ceihis  da  iqitica  e  da  acústica. 

I  O  tliealn)  tem  cinco  ordens  ilecimaroles,  ecadaum 
iTestes  commodos  aposentos  jiara  desal'o;;o  dos  espti-- 
tadores.  O  tecto  t  primorosamente  pintado;  repri'- 
senlam-sc  nVlle  quatro  alle'.;orias,  ;i  INIusica,  a  l)an- 
sa,   a   (.'omedia   e  a  Tra;jedia,    inlerpolailas   com  os 

I  retratos  de  falderon,  Lopc  de  ^  e^a,  Aloreto  ele. 
l'or  cima  do  proscénio,  e  no  meio  das  armas  de  H.ir- 

I  celona.  \i''em-.se  pinl.tdos  em  dons  miilalhõcs  os  ri-- 
I ralos  de  Soplioeles  e  Schiller.  O  i^rande  luslre  feito 
em  Taris  não  é  das  cousas  menos  notáveis  d"esle 
lliealro,  pelo  seu  delicado  ;;oslo  e  imnieliso  Iralxa- 
Iho. 

Os  camarins  dos  actorei,    que  excedem  a  cem,    as 
i:m>rdas-roupas,    a  Sida  de  pinturas,    tudo   e  formoso 
no  Iheatro  do  hvcêo  e  iIílIio  de  ser  ("xainin.ido  pelo 
No\  KMnuu  (i,  18o'J 


354 


O  PAINORAMA. 


viajante  curioso.  Para  o  serviço  e  comodidade  dos 
concorrentes  lia  três  cafés,  providos  com  a  maior 
aVjundaiicia  de  ludo  íjuaiito  pode  desejar-se. 

O  tlioatro  de  Barcelona,  que  tem  custado  avulta- 
dos cabedaes,  como  deve  imaginar-se,  pode  admittir 
até  qudiro  mil  cxpectadores  ! 

Desde  que  escrevemos  o  artigo,  já  citado,  acerca 
de  Barcelona,  esta  grande  cidade  tem  crescido  con- 
sideravelmente em  opulência  e  importância ;  á  som- 
bra de  uma  protec^-ão  racional  e  moderada,  as  suas 
extensas  manufacturas  têem  prosperado  largamente; 
os  seus  meios  de  communicajão  interior  augmenta- 
ram  pelo  melhoramento  das  estradas  e  caminhos ;  o 
seu  amplo  porto  recebe  navios  de  todas  as  partes  do 
mundo  ;,  e  todos  estes  elementosjuntos  á  natural  acti- 
vidade e  intelligencia  dos  catalães,  que  não  é  infe- 
rior ao  seu  conhecido  esforjo,  e  amor  de  indepen- 
cia,  constituem  Barcelona  a  primeira  praça  commer- 
cial  da  Hespanlia. 

Cabe  ainda  a  Barcelona  a  gloria  de  uma  generosa 
iniciativa,  na  adopção  dVsse  grande  e  maravilhoso 
vehiculo  da  civilisação  moderna,  os  caminhos  de  fer- 
ro. Com  efleito  o  ferro-carril  de  Barcelona  a  Mata- 
ró,  (medindo  cinco  léguas)  aberto  á  circulação  em 
28  d'outubro  de  1848,  e  por  onde  transitam  diaria- 
menle  2, SOO  a  3,000  pessoas,  foi  o  primeiro  d'este 
género,  que  se  construiu  em  toda  a  peninsula  I 


ARCHEOLOGIA  PORTUGUEZA. 

Instrucções   dadas   ao  coadjvtor  de  bergamo, 
núncio  e.m  portugal  no  tempo  de  d.  jo.ão  iii. 

it  As  COUSAS  principaes  que  me  lembra  recordar  ao 
núncio  são  estas  : 

"  !.■'  GLue  tudo  o  que  desejar  que  tenha  êxito,  se 
puder,  o  faca  sem  pedir  licença,  como  quem  acredita 
que  são  ordinárias ;  porque  os  porluguezes  em  notan- 
do duvida,  ainda  nos  negócios  de  maior  interesse, 
levam  tanto  tempo  a  deliberar,  que  a  occasião  se 
perde. 

'í  2."  Nas  cousas  de  summa  importância,  de  que 
convenha  avisar  a  N .  S.  com  diligencia,  ou  praticar 
qualquer  acto  a  tempo,  não  se  prenda,  esperando  a 
resposta  do  rei,  porque  é  iiiorosissimo,  e  arruina  os 
seus  próprios  negócios  por  indeciso  e  irresoluto , 
(juanto  mais  os  alheios,  se  para  caminhar  se  espo- 
rar a  resposta  dVlles.  Em  tal  caso  é  sempre  pru- 
dente avisar  secretamente,  e  em  quanto  corre  a 
posta,  esperar  a  resolução  do  rei,  de  outra  forma  o 
núncio  seria  enganado. 

"3."^  Quando  o  rei  prometter  que  fará  uma  cou- 
sa d'ahi  a  tantos  dias,  ou  disser  que  em  dia  certo 
responderá,  não  conte  o  núncio  que  o  cumpra,  mas 
creia  ijue  será  d'ali  a  dobrado  ou  mais  tempo.  Por- 
que isto  é  no  modo  de  fallar.d^aquelle  rei,  e  é  pre- 
ciso accommodar-se  a  elle.  Mas  no  praso  marcado 
deve  comparecer  ou  mandar  pedir  a  resposta,  mas 
sem  se  irar,  porque  não  faria  outra  cousa  em  todo  o 
tempo. 

"  4.^  Na  sua  linguagem  seja  suave  sempre  e  reve- 
rente ;  nas  obras  d<!cidido  e  firme,  trazendo  de  ordi- 
nário na  boca  o  serviço  de  Deus  e  de  N.  S.  ,  ca 
auctoridade  da  Sé  Apostólica,  da  qual  está  crrtissi- 
mo  que  S.  Alteza  é  c  será  sempre  o  maior  defensor 
entre  os  reis  christãos. 

"S.-*  liouvar  em  puldico  os  actos  do  rei.  e  espc- 
cialmcnle  certas  reformas,  a  que  c  mui  inclinado,  e 
mostrar  que  approva  todos  estes  actos,  não  scudu 
contra  o  serviço  ile  Deus  c  do  papa,   porque   assim 


ganhará  a  affeição  dVlle,  e  o  disporá  a  senil-o  na 
occasião  própria  ;  o  mesmo  pratique  a  respeito  dos 
frades  ou  das  pessoas  influentes,  diante  dequemlh'o 
possa  ir  contar,  deitando  sempre  os  defeitos  que  ou- 
vir notar  á  culpa  dos  maledicentes. 

"  6.^  Fallar  sempre,  e  principalmente  com  os  fra- 
des do  paço,  acerca  da  santidade  e  religião  do  rei,  e 
recommendar-llie  que  o  estimulem  sempre  a  conti- 
nuar, repellindo  as  linguas  maledicas,  e  prometten- 
do  avisar  N.  S.  das  obras  d"elles.  E  a  cada  um  em 
particular,  segundo  o  caracter,  o  modo  e  o  tempo, 
o  quG  só  lá  pode  apreciar-se,  fallar-lhe  para  lhes  dar 
esperanças,  ou  para  os  admoestar  com  rigor.  Não 
perdendo  nunca  de  vista  o  seduzir  os  frades,  e  tel-os 
da  sua  parte,  declarando  que  N.  S.  será  informado 
de  tudo.  E  em  cousas  de  consciência  e  censura  fa- 
zel-as  dizer  primeiro  em  segredo  ao  rei  pelos  frade», 
meio,  segundo  dizem,  que  muito  lhe  apraz. 

"  Está  era  Portugid,  embaixador  de  França,  um 
l)ispo  chegado  de  novo,  e  outro  que  se  chama  Hono- 
rato de  Caen  ali  residiu  muito  tempo.  O  do  impe- 
rador é  um  cavalheiro  chamado  Diogo  Sarmento. 
Parece  que  será  a  propósito,  e  até  necessário  entrar 
na  sua  intimidade,  se  N.  S.  outra  cousa  não  man- 
dar. Porque  quanto  maiores  e  mais  secretas  relaçSes 
o  núncio  provar  que  ligou  com  elles,  tanto  mais  te- 
mido, respeitado  e  despachado  ha  de  ser.  Mas  nisto 
não  se  pode  dizer  cousa  certa,  por  depender  dus  ne- 
gócios públicos,  e  do  modo  que  N.  S.  quiíer  que  se 
tenha  por  motivos  estranhos  a  Portugal ;  principal- 
mente estando  em  lucta  os  seus  principes,  e  sendo 
neutral  o  papa. 

"De  Honorato  de  Caen,  embaixador  de  França, 
nada  se  fiara  os  francezes,  nem  parece  que  o  núncio 
se  deva  fiar  n'ello  de  modo  nenhum. 

"  Diz-se  que  a  rainha  de  boa  vontade  se  arroga 
influencia  nos  negócios,  e  quer  ostentar  que  inÚue 
muito  n"cllcs.  E  senhora  mui  reli;:iosa.  Convém  fi- 
gurar-se  muito  seu  dedicado,  e  encommendar-lhe  as 
cousas  de  N.  S.  e  da  igreja,  como  a  pessoa  que  além 
da  rainha,  se  conhece  s<!r  temente  a  Deus.  E  sobre 
tudo,  quando  se  lhe  fallar  reduzir  os  negócios  ornais 
que  puder  ser  (como  em  verdade  se  deve)  ao  serviçt> 
de  Deus,  ao  bem  da  igreja,  sempre  com  menção  da 
consciência,  do  outro  mundo,  e  do  perigo  da  heresia 
e  das  censuras  da  igreja  \  em  summa  aquillo  que 
apavora  as  mulheres  religios;is ;  o  que  n"ella  ha  de 
produzir  copioso  fructo.  E  este  meio  e  maneira  é  o 
que  mais  convém  aos  ministros  do  papa  cm  todo  o 
tempo,  logar  e  r;izão. 

"  Direi  por  idtiino  o  que  devia  dizer  ao  principio, 
eoque  o  núncio  nunca  deve  esquecer  para  negociar 
com  mais  vigor  e  animo.  Presentemente  Portugal 
está  reduzido  a  um  estado  débil  e  fraquíssimo  de 
forças ;  e  o  rei,  além  de  pobríssimo,  com  dividas 
dentro  e  fora  do  reino,  c  enormes  e  lessivos  juros 
d"ellas,  acha-sc  mal  olhado  do  jx.>\ii.  o  com  a  nobre- 
za mais  desconccituado  ainda,  não  por  má  imlolc 
sua,  porque  se  se  governasse  elle  próprio  obraria  me- 
lhor, mas  pelos  ruins  conselhos  e  e\ccssos  dos  que  o 
rodeiam.  As  cousas  de  Portugal  por  contestação  com 
a  França  sobro  as  navegações,  e  por  causa  da  irmã 
filha  »la  rainha  de  França,  que  os  fraui-eies  podem  . 
o  também  cm  virtude  das  dissidências  com  o  impo- 
I  rador,  o  outras  secrot.is  paixões,  decaíram  a  {xinto  de 
I  se  riH.-eiar  total  ruína,  ainda  que  n.ão  parece  que  S 
]  .Mteza  a  veja  ou  a  toma,  ijuando  .is  calamidades  fu 
turas  estão  previstas  jmr  muitos  discretos  o  s,ibio?  ;  c 
]W)r  mais  receios  que  lho  moltnm  não  muda  do  cami- 
nho, o  cuiila  que  com  p;ilavras  e  ordens,  o  a  poder 
de  ameaças  poderá  faicr-sc  tcuicr.  Por  Ís5<i  é  neces- 
sário nunc.1  perder  timílhantc  estado  do  \ista,  eman- 


o  PANORAMA. 


355 


ter  firmes  os  bons  propósitos  :    assim  o  effeito  será 
óptimo,  como  dirão  os  núncios  anteriores. 

«  E  sobre  tudo  assentar  por  cousa  decidida  cjue  o 
caracter  da  nação  e  do  povo,  o  numero  e  o  poder  do 
clero  não  soflre  rjue  a  Sé  Apostólica  ceda  {no  todo 
ou  em  parte)  salvo  se  nós  para  temer  o  que  não  as- 
susta, ou  por  descuido,  ou  por  despreso  do  que  o 
não  merece  nos  maltratarmos  a  nós  mesmos  e  como 
se  diz — Bona  nomina,  nun  appcUant,  deteriora  fic- 
rent  —  o  que  Deus  tal  não  queira,  e  o  papa  Paulo, 
guiado  por  Ueus,  não  consinta  !  " 


POETAS  DA  ARCÁDIA. 

Pedho  António  Cobrèa  Garção. 

IV. 

Ao   Menalo  —  Corydon   Erimanihío. 

Nas  comedias,  que  são  duas,  O  Hicairo  Novo,  e  A 
AssembUa,  o  Garção  mostra,  como  em  todas  as  suas 
obras,  que  nasceu  poeta,  e  que  sabia  repassar  de  côr 
e  de  phisionomia  nacional  os  seus  assumptos.  Os  ca- 
racteres não  se  desmentem  ;  carrega-os  por  vezes  com 
exageração ;  e  de  certo  estão  lonçe  da  profunda  ana- 
lise e  da  critica  íina  de  INIolièrc,  que  nas  suas  pc;- 
ças,  e  na  intenção  profunda  dVUas,  tende  sempre 
a  retratar  o  homem  e  a  humanidade  ao  mesmo  tem- 
po ;  mas  quem  cheirou  a  igualar  o  mestre  nos  acaba- 
dos quadros  (jue  deixou?  Q.ue  ])incel,  depois  do  seu, 
tornou  a  descubrir  a  correcção  de  desenho,  eascien- 
cia  do  coração,  tão  admiráveis  no  Tarliifo,  nas  Frt- 
eiosai,  e  em  tíortje  Dandim,  imitado  por  Alexandre 
de  Gusmão  com  o  titulo  do  Marido  Confundido,  e 
representado  a  roços  de  lord  Tirawlej  em  1737  no 
theatro  de  Lisboa ! 

Pelos  lineamentos  das  figuras,  pelo  calor  do  dialo- 
go em  algumas  situações  e  pela  exacta  interpretação 
tios  costumes,  a  Assembléa  deve  ser  collocada  entro 
os  bons  ilramas  da  escola  clássica  portugueza.  A  in- 
venção é  pou<'a  ,  o  enredo,  frouxo  n^umas  partes, 
confuso  e  precipitado  n''outras,  carecia  de  mais  pau- 
sa ;  os  caracteres,  tirando  dous,  o  de  Braz  Carril  e 
sua  mulher  Urraca  Azevia,  peccam  por  falta  de  i'X- 
pressão  individual,  e  pouca  originalidade  mostram., 
mas  a  mania  liilalga  em  plebeus,  e  o  ridículo  de  fi- 
gurar sem  posses,  achaques  da  sociedade  do  sccidodo 
auctor,  e  ainda  do  nosso,  estão  pintados  com  vivesa, 
e  ha  toques  i\f  perfeição  em  varias  scenas.  Asjiarti- 
das  de  curiosas  de?  árias  e  di?  cravo  ;  as  altas  eomlii- 
nações  de  um  chá  de  mofo  :,  a  rivalidade  feminina  das 
preciosas;  e  os  repciílistas  do  Parnaso  caseiro,  vivem 
e  ali'Kram  a  acção  iTcste  rápido  (juadro,  ipu'  tem  o 
defeito  de  ser  curto  para  o  desenvolvimento  da  fabu- 
la (;  dos  caracteres.  O  personagem  de  (íil  Tustote,  que 
apenas  apparece  de  escorço  duas  ou  três  vezes,  re- 
presentaiiilo  o  juizo  grosso,  mas  são  do  povo,  ganha- 
ria em  ser  iasi;adaruenl<!  <l<'senhado.  (lue  excellente 
Ivpo  sendo  aproveitado  !  E  na  Assemhlia,  que  a  ce- 
lehrada  Ciiiilitla  de  JJido,  pagina  rara  e  ]irimorosa 
da  nossa  poesia  clássica,  foi  sepultada  na  scena  XIII 
enire  as  sonetadas  e  as  impertinências  dos  verseja- 
dores Jofre  e  Picote  !  liCndo  este  ensaio,  e  apesar 
dos  lapsos  que  se  lhe  notam,  ví^-se  que  o  Garção,  se 
quiiesse,  eia  de  todos  os  Árcades  o  único  dotado  <le 
engenho  cómico,  i\  ai|uelli'  a  (|Uem  a  musa  teria  mos- 
trado um  Síjrriso  e  entregado  ii  palma.  Infeii/nuMite 
purou   no  ]iriu<'ipio  ! 

Mas  aonde  o  <iaii;.1o  se  levauloii   niais  alto,  foi  nn 
|Hiesia  Ivriea,    pari  iciil.uiiienle   no  género  horaciano. 


Poucos  conversaram  tão  de  perto  com  o  amigo  de 
Mecenas,  e  souberam  como  elle  colher  no  trato  in- 
timo de  suas  obras  a  ilòr  e  o  perfume.  Seguindo  o 
seu  modelo  não  esperem  o  vòo  imaginoso  e  Ímpe- 
to atrevido  que  em  tantas  occasiões  approxima  a  al- 
ma inquieta  e  ardente  de  Bocage  do  génio  de  Bv- 
ron  —  não  \  o  verso  de  Coridon  nunca  sobe  a  essa  al- 
tura, nem  se  deslumbra  n"ella  para  cair.  Cultor  das 
musas  castas,  teria  horror  de  si  e  da  arte  se  Ihedes- 
cabellasse  em  fervidas  imprecações  a  compostura  di- 
vina, ou  desvairasse  em  gritos  de  desesperação  o  seu 
canto  suave  e  puro.  Tudo  o  que  saiu  d'aquelle  pin- 
cel respira  o  gosto  correcto  e  o  tacto  delicado  de  um 
talento,  que  tinha  poder  em  si,  que  sabia  conter-se, 
e  não  se  esquecia  nunca  de  se  alumiar  da  critica. 
Naturalisando  com  primor  a  arte  latina,  evestindo-a 
das  gallas  de  um  estylo  digno  delia,  na  interpreta- 
ção imitativa  do  bello  antigo  não  foi  igualado,  nem 
será  excedido  por  ninguém. 

Não  arde  nos  raptos  pindaricos  de  Elpino  .,  não  fer- 
ve em  enthusiasmo  como  Elmano  ;  é  sóbrio  em  erear, 
e  lento  em  fundir  na  forma  as  imagens  e  as  idéas ; 
mas  em  compensação  que  delicadeza  de  traço,  que 
ingenuidade  vernácula  na  plirase,  que  admirav  el  per- 
feição em  todas  as  partes  !  ftue  somma  de  bellezas, 
e  que  pequena  sombra  de  defeitos,  ás  vezes  parecen- 
do esquecidos  de  propósito  para  realce  !  Quando  mes- 
mo o  seu  engenho  não  houvesse  dado  se  não  o  Cân- 
tico de  IKdo,  bastava  esta  coroa  para  não  morrer. 
Esforce-se  a  critica,  apure-se  a  lima,  e  n'este  com- 
posto de  graças  e  perfeições  da  musa  clássica,  não  en- 
contrará um  lapso  de  estylo,  de  idéa,  ou  de  sentido; 
não  descubrirá  uma  queda  só  na  sublimidade,  quedo 
principio  ao  íim  não  cessa  de  a  inspirar.  Como  a 
scena  abre  magestosa  n'estes  versos  : 

Já  no  roxo  Oriente,   branqueando 
As  prenhes  vellas  da  Troiana  frota 
Entre  as  vagas  azues  do  mar  dourado 
Sobre  as  azas  dos  ventos  se  escondiam. 

A  misérrima  Dido 
Pelos  paços  reaes  vaga  ululando, 
Cos  turvos  olhos  inda  em  vão  procura 

O  fugitivo  Eneas. 

Como  cada  palavra  pinta,  e  cada  verso  dii  o  sen- 
timento natural,  ou  descreve  otpiadro  próprio!  Ve- 
ja-sc  depois  como  a  dõr  que  delira,  e  o  amor  que 
mata,  <'stá  traduzido  em  rasgos  de  mua  forca  e  de 
um  acabado  dignos  do  Livro  I\    da  Eneida  : 

i 

Frenética  delira ; 

{'allido  o  rosto  lindo, 
A  mailí  ixa  siditil  desentrançnda  , 
Já  com  tremulo  pé  entra  sem  tiiK' 

No  ditoso  aposento. 

Onde  do  infido  amante 

Ouviu  enterncciíla 
Magoados  suspiros,  brandas  quei.\as. 


Com  a  convulsa  mão  sul)ilo  arranc.i 
A  lamina  fidgente  da  bainha, 
E  sobre  o  duro  ferro  penetranti', 
.\rroja  o  tenro,  clirvstaliiio  peito  . 
E  em  borliotòe.s  de  espmna  niuruuir.indo 
O  (pu"nte  sangue  du  ferida  salla 
!)<•  ri^xas  espadanas  rociadas 
'ricniem  ila  sala  as  iloricas  column»». 

Três  veies  lenta  erguer-se. 
Três  vezes  desmaiada  sobre  o  leito 
O  lorpo  revolvendo,  ao  céu  levanta 

O  macerados  olhos. 


356 


O  PAIVORAMA. 


Seria  preciso  transcrever  tudo  para  não  omittir 
nenhuma  das  bellezas  que  n'esta  obra,  uma  das 
mais  acabadas  que  saíram  da  mão  do  homem,  (se- 
gundo nota  um  grande  escriptor  contemporâneo;  es- 
tão espargidas  com  rara  profusão.  Podem  observar 
que  o  assumpto  estava  em  \'irçilio,  e  que  d'elle 
eram  os  rasgos  capitães  :  de  certo  ^  mas  em  entender 
e  sentir  assim  a  antiguidade  quem  imitou  ou  ven- 
ceu o  Garção  entre  ni^^,  e  talvez  no  estranzeiro  ? 
GLuando  Goethe  lucta  com  a  Melpomene  de  Sopho- 
cles  e  Euripides,  mareou-se-lhe  a  coroa  poética,  por- 
que vae  pedir  á  tragedia  grega  a  cór  e  fúrma  do 
Ijello  clássico  ? 

O  Garção  detestava  a  rima,  e  parece-nos  pouco  fe- 
liz no  seu  uso.  Os  sonetos  peccara  por  ella ;  encer- 
rando alguns  apesar  d*isso  pinturas  finas,  e  quadros 
de  interior  incomparáveis  pela  graça  famUiar,  e  f)ela 
discreta  jovialidade.  Nas  queixas  ao  padre  Delfim 
riem-se  a  miúdo  os  penates  domésticos  com  uma  in- 
genuidade, que,  attrahindo  sempre,  elogia  o  coração 
e  a  sensibilidade  do  poeta.  Mas  as  odes  horacianas 
é  que  hão  de  ser  o  seu  monumento  na  posteridade. 
O  amor  não  vem  n'ellas  molhar  as  cordas  da  Ivra 
das  lagrimas  tão  doces  e  amargas  ao  mesno  tempo 
de  Desdemona,  de  Hydé,  e  de  Julietta ;  mas  a  ami- 
sade  aíFectuosa  e  a  gratidão  sem  baixesa,  fal-as-hão 
resoar  com  brio  pouco  sabido  antes  d^elle.  A  sua  mu- 
sa, abrindo  as  cândidas  azas  e  coròando-se  do  vapor 
luminoso  de  uma  inspiração  christã,  não  subirá  ás 
regiões  da  contemplação,  suspirando  pelo  ideal  do 
bello  aos  pés  de  Deus  como  Lamartine ;  mas  os  de- 
dos irementes  do  vate  acharam  o  segredo  d'essas  no- 
tas raras,  que  foram  o  seu  canto  á  ^irtude.  e  o  seu 
gemido  de  saudade  ás  tradições  da  pátria.  O  desalen- 
to, e  a  imprecação  desgrenhadas  e  ululando,  não  al- 
çaram ao  céu  em  verso  audaz  o  grito  impio  da  al- 
ma, que  não  cabe  em  si,  e  se  gasta  com  o  fogo  dos 
desejos  á  similhança  de  Byron  i  mas  a  suave  ternura 
da  esperança,  e  a  serena  confiança  do  espirito  dirão 
em  metros  admiráveis,  que  o  justo  não  se  curva  ao 
açoute  da  ruína,  mas  vaÚdo  e  firme  ergue  o  rosto,  e 
ferido  ainda  desafia  o  infortúnio  ! 

Se  a  poesia  não  é  uma  vaga  melodia ;  se  a  aspira- 
ção e  a  ídéa  são  o  espirito  immortaJ,  que  a  levanta 
superior  aos  séculos,  e  aos  impérios,  com  os  pés  cal- 
cando as  urnas  do  passado,  com  a  fronte  tocando  as 
estrellas  do  empjTeo,  a  lyra  do  Garção  vi  virá  nos 
tempos,  porque  ninguém,  igual  a  elle,  soube  nunca 
unir  a  pureza  da  arte  á  elevação  do  sentimento,  nem 
traduzir  em  carmes  mais  viris  o  destino  sublime  do 
homem,  que  a  fortuna  não  espanta,  e  s«j  á  mão  de 
Deus  se  dobra  I  Não  é  só  enlevo  e  agrado  o  que 
attrahe  nos  cânticos,  que  legou ;  é  a  interpretação 
moral  da  vida,  e  a  revelação  do  segredo  das  grandes 
almas,  cuja  passagem  na  terra  assignala  não  a 
gloria  estrepitosa  das  conquistas,  mas  a  victoria  pa- 
cifica da  resign.ição  e  da  constância.  E  estes  heriícs 
eram  os  Régulos  antigos,  e  são  os  martjTes  catholi- 
cos! 

Q.ucm  ir-r  a  Ode  ^'  á  Virtude,  e  a  comparar  á  de 
Horácio — -Jusium  tt  tcrtacem  proposili  vinim  —  a 
quem  dará  a  palma,  ao  latino,  que  esfria  do  pri- 
meiro impoto,  ou  ao  cantor  moderno,  que  de  estro- 
phe  cm  estrophe  cada  vez  se  arremessa  a  maior  al- 
tura ?  As  bcUezas  do  segundo  parecem-nos  superio- 
res a  correcta,  porém  menos  concisa  c  mais  débil  as- 
piração do  pfiefa  romano  :  aonde  o  Garção  o  recor- 
da, as  duas  línguas  luctam  como  irmãs,  e  nenhuma 
vence ;  .londe  a  ídéa  do  lyrico  jxirtuçucr  so  separa  c 
TÔa  so,  a  que  distancias  não  deixa  o  ieu  modelo  ? 
Ouçamo-loi,   e  ajuiic-íe  : 


O  constante  varão,   que  justo  e  firme 
Da  difficil  virtude  segue  os  passos. 
O  pesado  semblante  do  tjTanco 
Não  teme,  não  estranha. 

E  uma  reminiscência  clássica:  mas  com  ',ue  va- 
lentia de  estylo  e  de  phrase  expressa  !  Como  sentia 
o  génio  antigo,  e  o  revelava  I  Na  Ode  romana  toda 
a  vantagem  da  opulenta  versificação  latina,  e  toda 
a  elevação  do  pensamento  poético,  bastam  apenas 
para  se  manter  a  igualdade.  E  veja-se ;  a  Incta  é 
com  Horácio. 

Justum  et  tenacem  propositi  rímm, 
Non  civium  ardor  prava  jubentium 
Non  vultus  ínstantis  tvTanni 
]Mente  quatit  solida  :  neque  Auster, 
Dux  inquieti  turbidus  Adria 
Nec  fulminantís  magna  Jo^is  manus. 
Si  fractus  illabatur  orbb, 
ImpaWdum  ferient  ruinae. 

Agora  escute-«e  o  Garção,  e  diga-se  que  elle  não 
era  digno  de  se  medir  com  o  primeiro  Ivrico  do  sé- 
culo de  Angusto ! 

V  eja  ferver  o  chumbo,  erguer  as  cnues : 
Ouça  afiar  na  pedra  o  curvo  alphange ; 
Soffra  no  potro  aspérrima  tortura  i 
Não  perde  a  cór  do  rosto. 


Com  pavoroso  estrondo  se  desatem 
Em  vermelhos  coriscos  as  estrellas  ; 
Brote  volcões  a  terra ;  da  ruína 
Impando  não  foge. 

Até  aqui  o  certame.  D'esta  estrophe  em  diante 
os  deus  separam-se ;  e  quem  conhece  e  meditou  a 
famosa  Ode  de  Horácio  sabe,  que  desmaia  em  di- 
gressões, e  abate  da  grandeza  quasi  épica  do  primeiro 
rapto.  O  Garção  não.  A  musa  sorri-lhe  até  ao  fim  ; 
o  seu  enthusiasmo  ferve  de  cada  vez  com  mais  ar- 
dor ;  e  subindo  sempre,  expira  só  o  canto,  quando  o 
sentido  moral,  e  a  grande  ima<;em  poética  estão  per- 
feitas ;  quando  disse  tudo  como  não  toma  a  diicr 
outro ! 

Assim  Mário  subiu  ao  Capitólio 
Entre  Ajuias  e  Lictores  conduzido, 
Com  aspecto  sereno ;  ainda  que  atada> 

As  ròx.TS  mãos  em  ferros. 
Na  presença  de  César  e  Conscríptos 
Fui,  disse,   fui  fiel  a  Galha,   e  a  Roma  , 
Confesso  o  meu  delicio,  se  delicio 

A  TÍrtude  se  chama. 
.\s  legiões  romanas  testemunhas 
Poderão  ser ;  vós.  Cônsules.  Tribunos. 
.\  verdade  dizei.  Dizei  se  Mário 

Foi  amizo  de  Galba  .' 


Eu  vi  o  triste  velho  descorado 

A  garganta  offerecer  ao  duro  golpe ; 

E  indo  da  pátria  o  nome  repetindo 

A  grande  alma  fugir-lhe. 
Oh  César  I   Aqui  tens  de  Mário  Celso 
O  crime  e  a  confissão :  Romanos,  Mari'* 
Foi  a  Gallu  fiel  !  Vamos,  aonde 

Está  o  cadafalso. 
Acabou  de  fallar :  Cônsules,  Padres 
.\ttonitos  ficaram  ;  porém  César, 
Dl-  tão  rara  constância  namorado. 

Nos  braçiís  o  rccel)e. 


o  PANORAMA. 


357 


E  foi  este  o  homem,  que  em  quanto  as  graças  cho- 
viam sobre  obscuros  legulejos,  e  douravam  a  fátua 
estulticia  de  lisonjeiros  aguerridos  no  impudor,  um 
aviso  despótico  e  camerario  arrancou  ás  musas  e  aos 
braços  amantes  da  esposa  a  dos  filhos,  sepultando-o 
sem  culpa  conhecida  em  um  cárcere,  de  que  só  a 
morto  devia  abrir-lhe  as  portas  !  Até  essa  mesquinha 
mercê  da  redacção  da  Gazeia  não  tardou  que  lh'a 
tirassem,  vingando-se  do  moralista  austero,  e  do  poe- 
ta isento,  que  não  arrastava  carmes  servis  pelas 
festas  dos  poderosos !  Como  elle  os  conhecia,  quando 
exclama  na  Ode  IV  : 

O  Lisonjeiro 

Elstudando  o  segredo 
J)e  agradecer  despresos,   não  se  afiaste 

Da  sala  do  ministro. 
Ali  dourando  o  sol  os  altos  montes 

Na  madrugada  veja  ; 
Ali  o  deixe  a  lua,   que  vermelha 

No  horisonte  mettida 
Estende  os  frouxos  raios  pelas  ondas  \ 

Se  com  publica  fraude 
Ao  miserável  orphão  a  capella 

Sonegar-lhe  pertende. 


Aspire  á  becca  o  julgador  iniquo, 

Gl,"aos  olhos  da  justiça 
Roubou  a  santa  venda,  que  equilibra 

Nas  vendidas  balanças 
Os  dourados  delictos  '. 

As  poesias  do  Garção,  que  se  conhecem,  foram  im- 
pressas e  formam  dous  tomos.  Consta-nos  que  houve 
quem  possuísse  outro  volume  inédito,  que  talvei  a 
esta  hora  esteja  perdido.  Uma  edição  expurgada 
dos  erros  que  desfeiam  as  que  existem,  e  augmenta- 
da  com  o  precioso  pecúlio  das  obras  ainda  não  pu- 
blicadas, seria  um  serviço  relevante  ás  letras,  e  um 
documento  valioso  para  a  historia  dVUas.  Masquem 
se  occupa  hoje  de  versos,  e  sobre  tudo  de  versos  do 
Garção  ?  Eram  rabugens  de  um  velho  clássico,  e  não 
vale  a  pena  de  se  lhes  lançar  os  olhos  '.  Animem-se 
entretanto  ;,  folheem  essas  paginas,  infelizmente  tão 
curtas,  de  uma  perfeição  quasi  irreprehcnsivel  ■,  e  di- 
gam depois  se  fomos  parciacs,  se  fomos  excessivos, 
assegurando  que  era  uma  grande  alma  aquella,  e 
um  nobre  engenho  !  Julgae  com  as  suas  bellezas  dian- 
te da  vista,  e  estamos  certos  que  sereis  do  nosso  voto. 

L.  A.  Rebei.lo  da  Silv». 


FK.    nSICUEI.   CONTREIRAS. 


Kh.  Miguel  f!onlrc-iras  nasceu  em  Valência  de  Hes- 
paiiha,  i)U  cMi  Segóvia,  como  quereni  outros,  a  2'J 
de  sclcímbro  ilr  H'M  .  Passados  os  primeiros  annos, 
iromeçou  de  cursar  os  estudos,  nivelando  <h'sde  logo 
singular  talento,  e  unia  ilrcidiíla  inclinação  para  a 
solidão  e  o  rc<olliinieiito,  inclinação,  ou  antes  aspi- 
ração ar<lenti.ssima,  ((uc  Ião  funilo  se  lhe  enraizou 
n^ahna,  que,  api^sar  de  dcsccndcT  da  nobre  casa  ilos 
('ontreiras,  de  <|ue  foi  progenitor  o  famoso  conde 
Kernani  (ionçidves,  díuide  procedem  niuilos  nionar- 
crhas  de  llespanha,  e  [xirvenlura  <'onlra  a  vontade  ih' 
seus  pães,  i|ue  sinn  duviíla  iulgariani  que  elle  abra- 
çasse imiR  carreira  brilhante  i>  condigna  da  sua  illus- 
Irc  prosaiiia,    jinfiiin,    depois  ile  contluidos  aquellcs 


estudos,  a  obscura  vida  numastica,  entrando  na  or- 
dem lia  Saiitissiina  Triíid.nle,  onde  professou. 

Já  sacerdote  e  adiantado  em  annos,  pediu  licen- 
ça ])ara  vir  residir  no  convento  da  sua  ordem  eru 
Lisboa,  e  obleiíilo-a  passou  a  IVirtugal  cm   HSl 

()  motivo  que  l"'r.  Miguel  Contreiras  tivera  para 
abaiidimar  a  sua  pátria  é  mui  dillicil  de  averiguar, 
niiii  vale  a  )ieiia  finel-o  :  o  que  e  certo  e  qiu"  soube 
em  Portugal  susienlar  dignaiiieiite  a  reputação  que 
hl  tora  liavia  grangeado,  e  que  o  povo,  concorrendo 
em  iiiiiiliilào  a  escutar  os  seus  sermões,  repassado». le 
veidaileira    unção    christã,    ciimei;oii    de    appellidal-o 

11    (l/l(ls/(l/o. 

K  era    de  feito   um   MTiladciro    .looítolo.     No  l<Mi\- 


358 


O  PANORAIVIA. 


pio  a  sua  palavra  eloquente  convertia  os  impiedosos, 
roborava  a  fé  ;ius  tibios,  mostrava  aos  justos  o  cami- 
nho do  céu  \  o  SI!  sabia  ilestribuir  com  mão  genero- 
sa o  alimento  do  espirito,  a  sua  caridade  não  era 
menos  fervorosa,  menos  sincera,  e  menos  solicita  em 
promover  o  bem  temporal  de  todos  os  desvalidos. 

Conliecia  Fr.  Miçuel  por  essa  capital  muita  viuva 
sem  pão,  muito  enfermo  abandonado,  muito  orphão 
sem  amparo,  muitas  donzellas  que  a  miséria  expu- 
nha de  contínuo  ás  mais  perigosas  seducgões ;  abra- 
sou-o  um  santo  zelo,  e  tomado  da  compaixão  de  tan- 
tos infortúnios,  que  a  sociedade  descuidosa  não  só 
não  curava  de  evitar,  mas  nem  sequer  forcejava  por 
diminuir,  deitou-se  a  pedir  pelas  ruas  e  casas  para 
os  pobres. 

Deus  abençoou  a  sua  obra ",  e  fez  largamente  fru- 
ctificar  os  seus  esforços ;  não  só  a  corte,  e  mormente 
a  virtuosa  rainha  a  senhora  D.  Leonor,  de  quem  fo- 
ra nomeado  confessor,  e  cujo  nome  anda  vinculado 
á  fundação  de  alguns  dos  nossos  principaes  estabele- 
cimentos de  caridade,  mas  também  o  povo  concorre- 
ram a  ajudar  com  suas  esmolas  o  venerando  sacerdo- 
te, que  assim  pôde,  pobre  e  humilde  frade,  enxugar 
muita  lagrima,  attenuar  muito  infortúnio,  acabar 
com  muita  miséria. 

Entretanto  o  seu  zelo,  com  quanto  fervoroso  e  ar- 
dente, não  podia  acudir  com  a  necessária  regulari- 
dade a  muitos  enfermos,  que  ou  por  serem  estran- 
geiros, ou  por  não  terem  quem  os  recebesse  em  casa, 
andavam  recolhidos  pelos  adros  das  egrejas  e  pelos 
arcos  do  Rocio. 

Incansável  no  serviço  dos  pobres,  e  não  recuando 
perante  qualquer  difficuldadc,  pediu  instantemente  á 
Camará  de  Lisboa  lhe  quizessedar  uma  casa  que  esta- 
va junto  a  Santo  António  da  Sé,  onde  antigamente  se 
faziam  as  audiências  do  eivei :,  a  Camará  não  pôde 
resistir  ás  solicitações  de  Fr.  Miguel,  que  obteve 
a  concessão  pedida,  e  entendeu  immcdiatamente  em 
mandar  fazer  nas  referidas  casas  as  accommodaçues 
necessárias  e  indispensáveis ;  recolhendo  ali  pouco 
depois  os  enfermos,  e  assistindo-lhes  com  todos  os 
soccorros  corporaes  e  espirituaes.  (1) 

Fi  tradição  corrente  <|ue  el-rei  D.  Manoel,  tendo 
noticia  d"esta  caridosa  fundação,  entrara  um  dia, 
sem  que  fosse  esperado,  pela  enfermaria  dentro. 

Como  é  natural  os  devotos  que  andavam  curando 
os  doentes,  e  fazondo-lhes  as  camas,  perturbaram-se 
com  a  presença  do  rei,  e  largaranj  tudo  para  o  re- 
ceber, porém  este  dissc-lhes  :  u  Fazei  a  vossa  oí»-ijn- 
juo,  "  e  continuando  elles  o  rei,  pegando  em  um  co- 
bertor pela  ponta,  disse  :  .'  Eu  tambcm.  "  (2) 

(Cvittinúa.) 


THOMAZ  AMELLO  (MASANIELLO.) 

(Revolvção    de    N.\rOLK5   EM   1647.) 

I. 

A  HISTORIA  da  repentina  elevação,  e  da  trágica  c 
precipitada  queda  do  famoso  pescador  de  Amalfi 
Thomaz  .\nicllo  tem  constantemente  servido  dcthc- 
ma   !i  inspiração  dramática,   desde   a  Iwlla  opera  da 


(1)  Kxjunc  critico  c  lii^íoriío  soi»re  os  diroilo-»  c^tabe- 
icciílo»  |)cla  lci;i>larHO  nutisiti  o  niotlrni.i,  rcl.iti\aineulo 
.no'.  K.xposlos  c  Kii^citados.  |ior  António  Joaijniiii  ilcGou- 
Ti-a  l'iiito  — Lisbo.i,  T\|i"^ra[>hia  tia  A<aOt^niia  ilj>  Scicii- 
cias. 

(!)     Veja-te  o  referido  Eramr  cri/iru,  etr. 


Muda  di  PoHici  até  í  ultima  peça  castelhana  de 
um  auctor  contemporâneo.  Pela  sua  origem  e  pro- 
gresso, e  pela  grandeza  da  catastrophe,  o  assumpto 
mereceu  até  hoje  a  predilecção  dos  compositores,  eo 
applauso  do  povo  \  e  de  feito  poucas  scenas  iguaes  a 
esta  crearia  a  imaginação,  tão  férteis  em  lições  mo- 
raes,  tão  agitadas  de  vivo  e  profundo  interesse '.  A 
verdade  aqui  desafia  a  arte,  e  vence-a.  O  drama 
nasceu  perfeito  ^  os  caracteres  saíram  da  realidade 
sem  nada  deverem  invejar  aos  typos  mais  acabados 
da  invenção  poética. 

O  vulto  do  concitador  popular  que  uma  rajada 
tempestuosa  da  praça  publica  atira  ás  eminências  do 
poder,  e  uma  onda  não  menos  rápida  logo  enrola  e 
despedaça  aos  pés  da  multidão  volúvel,  acclamado 
chefe  e  réu  quasi  ao  mesmo  tempo ;  esse  vulto  cheio 
de  movimentos  dramáticos,  fadado  com  a  predesti- 
nação singular  dos  entes,  que  o  dedo  de  Deus  mar- 
cou para  serem  os  exemplos  da  Providencia,  domi- 
na tudo,  atterrando  o  espirito,  e  fazendo  vacillar  o 
animo.  Masaniello  é  o  retrato  de  todos  os  tribunos. 
As  suas  qualidades  e  os  seus  defeitos,  a  sua  exalta- 
ção e  a  sua  morte,  resumem  a  dolorosa  paixão  do 
homem  e  da  humanidade  ;  e  explicam  em  algumas 
letras  uma  parte  do  tenebroso mjsterio da  vida.  Foi^ 
te  e  omnipotente  para  desencadeara  tormenta,  quan- 
do tenta  suspendel-a  sente-se  débil,  e  acha-se  só ;  a 
lucta  sofToca-o  I 

A  noticia  dos  acontecimentos,  que  levantaram  nos 
braços  populares  do  século  17."  este  rei  ephemero, 
corre  na  versão  vulgar  confusa  e  inexacta.  Nas  pa- 
ginas mais  serias  dos  livros  históricos  encontram-se 
mais  bem  caracterisadas  a  acção  e  o  agente  \  porém 
as  particularidades  escapam  ;  os  costumes  faltam ;  e 
a  própria  phisionomia  do  protagonista  apparece  apa- 
gada por  acaso  ou  de  preposito.  O  homem,  sim  pin- 
tou o  leão,  mas  pintou-o  prostrado.  Os  castelhanos, 
que  o  braço  do  pescador  de  Amalfi  obrigou  a  cede- 
rem, e  acceitarem  por  algum  tempo  o  jugo  que  ti- 
nham imposto,  eram  juizes  suspeitos;  e  a  sentença 
que  lavraram,  na  sua  estudada  concisão,  é  a  primei- 
ra a  accusar  a  parcialidade  do  amor  próprio. 

Cita-se  a  miúdo  o  episodio  da  revolução  de  Ná- 
poles :  e  entretanto  apenas  se  conhecem  d*elle  ge- 
ralmente os  lineamentos.  As  meias  tintas,  o  que  o 
drama  tem  de  intimo,  as  causis  que  produziram  os 
eHcitos,  debalde  se  procuram;  um  véu  espesso  co- 
bre-as  ;  e  tanto  a  arfe  como  a  historia,  para  as  suas 
manifestações,  carecem  de  abranger  tudo.  O  quadro 
comido  pelo  tempo  como  está,  só  deixa  aperceber 
esmorecidas  e  desbotadas  algumas  figuras ;  e  assim 
mesmo  não  passa  de  uma  ciípia.  infiel  ás  vezes.  Dcs- 
cubrindo  outro  painel,  que  nos  parece  mais  original, 
e  mais  verdadeiro  do  (jue  a  narração  vulgar,  enten- 
demos que  devia  ser  visto  com  go>to,  o  que  os  ]x>c- 
tas,  que  o  assumpto  tem  sempre  convidado,  nos  le- 
variam abem  a  exfwsição  de  um.i  pintura  extensa  e 
bem  conservada.  De\omol-a  a  documentos  filhos  da 
epoclia  ;  c  a  mão  que  os  tmçvm  aport.iva  talvez  a 
mão  calosa  do  plelieu  rebelde,  e  os  deilos  macios  e 
deb^jados  do  fidalgo  hespanhol.  um  in>tantc  súbdito 
do  seu   V  assa  lio  '. 

Huauto  se  vae  referir  é  tirado  das  relações  con- 
temporâneas do  successo,  e  traz  o  cunho  especial  de 
uma  narração  com  informação  copiosa,  e  as  veies 
apurada  pelo  testemunho  ocular.  Inserimos  igual- 
mente no  locar  mais  adequado  os  capítulos  acconia- 
dos  entre  o  vice-rei,  o  duque  dos  Arcos,  e  o  povo  de 
Nápoles  para  se  pôr  termo  a  revolução,  c  se  firmar 
a  concórdia.  E  um  tratado  ncgvH-iado  de  igual  a 
icual ;  c  attcstado  pelos  nomes  mab  illiutres  da  fi- 
dalguia de  Nápoles  e  de  Castella  \ 


o  PANORAMA. 


359 


A  conquista  e  a  posse  das  possessões  de  Itália  fo- 
ram sempre  infiuietas  e  amargosas  para  aHespanha; 
c  a  oppressão,  que  arrancou  da  sua  coroa  os  Paizes 
Baixos  e  Portugal,  desmembrando  a  vasta  monar- 
chia  de  Carlos  V,  produziu  em  Nápoles  os  fructos 
venenosos,  que  sempre  tem  produzido.  O  episodio, 
que  estudamos,  é  mais  uma  demonstração  fecunda 
do  erro  de  se  retesar  de  mais  o  arco  em  matéria  de 
governo.  A  corda  estala,  e  fere  a  mão  inexperiente 
que  ousou  brincar  impunemente  com  o  perigo.  Co- 
meçaremos pelas  causas  que  provocaram  os  tumultos, 
e  depois  exporemos  o  seu  desenvolvimento,  e  as  va- 
riadas scenas  <Mn  que  figuram  de  um  lado  os  plebeus, 
e  do  outro  os  senliores  humilhados.  E  a  maneira 
íimples  e  clara  de  ollerecer  o  quadro  no  melhor  pon- 
to de  vista. 


O  reino  de  Nápoles  tinha-se  conservado  pacifico, 
obedecendo  ao  império  da  casa  de  Áustria  desde  a 
entrada  de  Carlos  V  c:m  1503  :,  alguma  alteração 
parcial  no  tempo  de  I).  Pedro  de  Toledo  (ío47)  e 
o  caso  notório  do  Starace  (I080)  foram  rápidas  e  le- 
ves excepções.  Enlretanto  os  impostos  onerosos,  suc- 
cessivamente  lançados  pela  imprudência  insaciável  do 
fisco,  com  varias  denominações,  traziam  o  povo  des- 
contente, e  mais  de  uma  vez  ameaçaram  coníliclos 
e  tumultos.  í)  duque  de  Ossuna,  desviado  da  còrle 
pelo  ciúme  do  conde  duque  de  (Jlivares,  eacceitando 
do  valido  no  vice-reinado  de  Nápoles  um  desterro 
brilhante,  achou  a  irritação  aggravada  pela  nova  ta- 
xa sobre  as  fructas,  e  usando  do  seu  poder  para  sua- 
visar  os  vexames,  aboli  u-a  com  geral  applauso.  Este 
exemplo  de  humanidade  e  de  sabia  administração 
«(!rviu  só  de  incentivo  aos  suecessores  para  a  restabe- 
lecerem apenas  elle  decaiu :,  e  apesar  dos  factos  re- 
centes de  Palermo,  (aonde  a  crueza  dos  supplicios  de 
Horácio  Strozzi,  Krancisco  Angalone  e  José  Amato 
dera  osignal  da  rcbellião)  edos  carteis  anonymosaf- 
fixados  nos  logares  públicos,  contra  a  promulgação 
de  mais  tributos,  ()du(|ue  dos  Arcos,  allucinado  e  pre- 
potente, mandou  outra  vez  arrecadar  a  laxa  das  fiu- 
ctas,  e  decretou  outra  de  vinte  por  cento  sobre  os 
vinhos.  Os<!ainor(!saugmentaram  :,  oodioexacerbou- 
se  ^  c  pouco  tardou  que  a  explosão  não  rebentasse, 
<;onvenccndo  os  oppressores  da  tcMncridade  com  (jue 
desafiavam  de  sangue  frio  a  paciência  dos  súbditos. 

No  dia  7  de  julho  de  lt)Í7,  um  incidente,  que 
»eria  insignitic.intc  se  a  mina  não  estivesse  carrega- 
da, e  a  menor  fiiisca  não  bastasse  para  a  fazer  voar, 
veiu  desenfriar  as  iras,  principiando  uma  lucta  (pie 
fez  arrepi'nil(r  os  provocadores  da  sua  obslinatla  con- 
tumácia. Era  domingo.  O  merc.ido  estava  ajiinha- 
do,  e  havia  ordem  para  se  arnicadar  o  imposto  das 
fructas  chegadas  á  praça.  Os  compradores  negavam- 
ic  a  pagar  a  laxa,  exclamando  contra  as  extorsões 
dos  exactores,  (?  sustentando  ipie  o  valor  iPella  ha- 
via de  ser  satisfeito  jielo  vendeilor.  Durava  e  crescia 
a  contestação  entre  uns  e  outros,  quando  o  magis- 
trado do  povo  João  Jiaptista  Naderio,  st:  apresentou 
ordenando  com  ameaças  aos  compradores  (pie  liívas- 
sem  as  friiclas,  e  aos  veiiih(bires  (pie  as  pesassem, 
entregando  as  ipiantias  relativas  ao  tributo.  De  am- 
bas as  (i.irtes  recusaram  aeccíhr  ^  e  por  tini  os  ([uiii- 
teiros  de  fora  da  cidade,  i!xaspei;idos,  h^vaiitaram  os 
logariís,  laiiçar.iiii  os  fructos  ao  (rhão,  e  (jiiiziTam 
sair.  l'iil  bando  de  creaiiças  acudiu  em  enxame  a 
recolher  os  dcspujos  da  liiela,  e  no  ardor  do  motim, 
i|ue  ia  siibiihlo,  eonverleram  os  figos  em  projecleis, 
.iliraiido-os,  ciiiii  inofa»  e  doestos,  ao  riislo  do  magis- 
trado; .itraz  (bis  figos  voaram  as  [)e(b'as  :,  e  Naderio, 
eonheceiído  tarde  a  sua  loucura,  salvou-si?  do  martí- 


rio, fugindo  no  meio  das  vaias  e  dos  arremessos  do 
vulgacho,  que  o  perseguiu  até  cheio  de  terror  che- 
gar á  praia  e  entrar  n'uin  bote. 

Apenas  o  magistrado  desappareceu  a  indignação 
publica  voltou-se  contra  a  casa  da  Gahdla,  e  incen- 
diou-a  com  os  moveis  e  livros  que  tinha.  Passando  a 
mais,  e  apparecendo-lhe  a  estimular-lhe  a  cillera  o 
pescador  de  Amalli  Thomaz  Aniello,  a  multidão  le- 
vando na  frente  as  creanças,  e  arvorando  uma  can- 
na  verde,  como  haste  de  bandeira,  dirigiu-se  ao  pa- 
lácio do  governo,  engrossando  em  cada  rua,  e  ani- 
mando-se  progressivamente  com  o  numero  e  com  as 
exhortações  reciprocas.  Quando  chegaram  diante  do 
paço  o  bando  era  já  um  exercito,  e  o  motim  uma 
revolução.  Romperam  vivas  á  casa  reinante  e  mor- 
ras aos  tributos.  A  guarda  quiz  dispersar  as  mangas 
de  povo,  que  forçavam  a  entrada,  e  em  um  instante 
viu-se  desarmada  depois  de  curta  resistência.  Subi- 
ram acima  ;  deitaram  pelas  janellas  os  moveis,  que- 
brando e  rasgando  quanto  encontravam.  O  vice-rei 
assustado,  e  ignorando  as  circumstancias  da  repenti- 
na novidade,  desceu  pela  escada  falsa  e  retirou-se  a 
S.  Francisco.  No  caminho  a  plebe,  apejar  do  ouro 
e  prata  que  lhe  atirava,  faltou-lhe  ao  respeito,  gri- 
tando :  —  a  Não  queremos  dinheiro,  queremos  o  pão 
barato  '.  " 

Do  palácio,  Masaniello  e  os  populares  partiram  a 
arrombar  as  portas  dos  cárceres  de  Santiago,  guar- 
dadas por  um  posto  de  soldados  hespanhoes.  Depois 
foram  abertas  as  outras  prisões,  restituindo-se  á  li- 
berdade duzentos  e  quarenta  presos.  Os  ferrolhos, 
cadeados,  c  livros  eram  queimados  em  auto  festivo  ; 
os  processos  lançados  ás  chammas ;  e  em  roda  das  fo- 
gueiras as  creanças  e  as  mulheres  dajisavam,  can- 
tando em  triumjiho.  S(j  exceptuaram  a  ^'icáTia  por 
ser  o  cárcere  real.  Tudo  isto  tinha  sido  obra  de  um 
Ímpeto;  o  motim  tomara  as  proporções  de  uma  re- 
volução sem  ])lano,  sem  cabeça  vísíacI,  e  sem  meios 
de  êxito  combinado.  O  tumulto  levantou-so  de  re- 
penttí  no  mercado,  varreu  tudo  diante  de  si,  e  cres- 
cendo com  a  própria  fori;a,  ganhou  a  victoria  antes 
mesmo  de  cuidar  em  combater.  As  rebelliõcs  prepa- 
radas falham  muitas  vezes,  porque  si?  fundam  na  am- 
bição, e  tomam  o  desgosto  ou  os  rancores  de  alguns 
Iiomens  pela  causa  do  paiz ;  as  grandes  revoluções, 
pelo  contrario,  l'azem-se  a  si  mesmas;  ninguém  as 
inspira,  ninguém  as  dirige,  e  ninguém  as  delata, 
porque  a  idí-a  está  na  mente  de  lodos,  a  injuria  é 
commuiii,  e  o  esforço  reciproco,  líni  Nápoles,  ao 
rom|ier  do  dia  7  de  julho,  nenhum  dos  actores  da 
s('eiia  do  mercado  ao  sair  de  casa  era  capaz  de  pre- 
ver os  acontecimentos,  cm  que  devia  figurar.  A  me- 
dida estava  cheia;  uma  gota  de  fel  mais;  c  trasbor- 
dou ! 

A  rapidez  e  a  iíspontaneid;ide  da  explosão  atou  as 
mãos  aos  governantes,  e  fpz  crescer  os  brios  da  cida- 
de e  dos  arredores.  l'areceu-lh(!  que  era  chegada  a 
occasião  do  se  libertarem  dos  impostos  e  de  abatera 
nolireza,  causa  da  sua  oppressão.  Por  um  syslema 
tenaz  e  imiilacavel,  os  lidalgos  gningeavam  os  tribu- 
tos, exliaurindo  a  substancia  publica,  e  despojando 
as  outras  classes  dos  seus  privilégios.  Desde  o  tempo 
de  el-rei  ('"nnlerico  (pie  ]iendia  o  litigio  entre  o  po- 
vo e  os  senhores  ;  veiu-se  ao  acci^rdo  de  eseollier  o 
monarcha  para  arbitro;  e  as  decisões  da  con^a  dtTam 
a  razão  ao  jiuvo.  Os  soberanos  hespanhoes,  fáceis  em 
promessas,  e  intieis  no  ciiniprimeiílo  d'elias,  repí^ti- 
das  vezes  protestaram  riístiliiir  á  cidade  aa  isenções 
UMirpailas;  mas  os  abusos  permaneciam,  e  cm  lognr 
(lo  siiipiradii  alivio,  lodos  os  dia.s  reciMites  vexames 
s<'  accmiiulavam  aos  ,iiiliu;os,  carregando  de  taxas  os 
mercadiires,  os  vendilhões,  e  os  cHlraiigeiro*  ;  u  con- 


.360 


O  PANORAMA. 


vertendo  o  fisco  em  uma  prenaa  para  extraírem  até 
ao  ultimo  ceitil  tia  substancia  dos  pobres,  esmagados, 
<;m  quanto  a  nobreza,  livre  de  impostos  pelas  suas 
prerogativaB,  disfructava,  á  custa  do  suor  do  traba- 
lho alheio  e  da  indigência,  as  delicias  do  fausto  edo 
luxo.  A  tyrannia,  dosenfreando-se  com  a  paciência 
dos  oppressos  e  a  impunidade  quasi  certa,  chegou  a 
perder  até  as  ultimas  apparencias  do  pudor.  As  ta- 
xas lançadas  serviam-lhe  de  machinas  para  novas  ex- 
torsões, negociando-as  com  publico  escândalo,  a  pon- 
to de  não  esquecer  mesmo  o  odioso  trafico  do  con- 
Irabaiido  no  calculo  dos  seus  lucros.  O  excesso  subiu 
ao  ponto  de  arrematar  tributos  a  vinte  cinco  por 
cento,  por  um  praso  que  equivalia  á  perpetuidade, 
tirando  ila  sua  administração  mais  de  trinta  aoannol 

(Continua.) 


BIBLIOGRAPHIA. 


A  traducqão  de  Lucrécio,  pelo  Dr.  Lima  Leitão. 

A.  LiTTERATUBA  portugucza  rica  em  poemas  épicos, 
riquíssima  em  poesia  lyrica,  bucólica  e  elegíaca,  e, 
cumpre  confessal-o,  pobríssima  em  traducções  poéti- 
cas. 

Portugal  é  a  única  nação  civilisada  que  não  pos- 
sue  traduzidos  na  sua  língua,  já  não  digo  todos  os 
poetas  gregos,  que  não  são  muitos,  mas  nem  ao  me- 
nos um  poema  de  Homero. 

Quanto  a  poesia  latina,  possuímos  apenas  uma 
parte  das  poesias  de  Horácio,  os  primeiros  livros  das 
Metamorphoses  de  Ovídio,  e  uma  única  versão  com- 
pleta de  Virgílio  pelo  sr.  Lima  Leitão,  a  da  Enei- 
da por  João  Franco  Barreto,  e  a  das  Georgicas  e 
Éclogas  por  Leonel  da  Costa. 

De  que  provirá  este  phenomeno  tão  notável  ?  aca- 
so da  falta  de  gosto  no  publico  ?  da  falta  de  aptidão 
nos  poetas  para  este  género  de  trabalhos.'  da  falta  de 
recompensa  que  dVllos  se  espera .'  Talvez  que  não 
seja  por  nenhuma  d"ellas  só,  mas  por  todas  juntas. 

Na  verdade  é  cousa  bem  para  descorçoar  aídéade 
empreliender  um  trabalho  de  annos,  com  a  desagra- 
dável certesa,  de  que,  depois  de  publicado,  nem  se- 
quer dará  para  a  despesa  da  im[)ressão. 

Para  aggravar  estes  inconvenientes  vem  ainda  a 
preocírupação  vulgar  de  que  ha  pouco  mérito  em  tra- 
ducções, como  se  a  traducção  poética  de  um  poema 
não  demandasse  quasi  tanto  génio  como  o  do  auctor 
original ;  como  se  em  tal  trabalho  não  houvesse  a 
vencer  obstáculos  e  difticuldades,  que  demamlam 
grande  força  de  talento  ;  como  se  um  bom  interpre- 
te de  Homero,  e  de  Virgílio  não  fosse  mais  bene- 
mérito da  litteratura  pátria  do  que  muitos  auctores 
de  poemas  originaes. 

Por  isso  em  nosso  entender  grande  louvor  merece 
o  Dr.  António  José  de  Lima  Leitão,  que  tão  utilmen- 
te emprega  o  tempo,  que  lhe  fica  livre  dosestudosda 
sua  profissão,  edo  magistério,  que  dignamente  exer- 
ce, em  traducções  poéticas  de  poemas  anti;os  c  mo- 
dernos, ])rocurando  assim  preencher  a  grande  lacu- 
na, que  existe  na  nossa  litteratura,  tão  inferior  n"es- 
ta  i)arte  a  dos  italianos  e  francezes,  que  |>ossuem 
muitas  traducções  em  \erso  de  todos  os  poetas  gre- 
gos e  latinos,  e  de  todos  os  modernos  auctores  de  li- 
vros de  gr.inde  reputação. 

Devemos  ao  sr.  Dr.  Lima  lieitão  a  versão  com- 
l)ieta  lie  ^'írgilio,  a  do  Paraíso  l'erdido  de  Milton. 
a  da  Arte  Poética  de  Horácio,  e  de  algumas  trage- 
dias de  Racine. 

EsLas   versões   são    na    verdade    de    merecimento 


superior,  e  de  grande  trabalho,  porém  de  mais  traba- 
lho, e  de  muito  maior  importância  é  sem  duvida  a 
que  emprehendeu  ultimamente,  e  de  que  já  publi- 
cou um  volume. 

(iueremos  fallar  da  traducção  em  verso  do  poema 
da  Natureza  das  Cousas  de  Tito  Lucrécio  Caro,  um 
dos  mais  insignes  poetas,  que  produziu  a  antiga  Roma. 
Pela  bellesa  da  poesia,  pelo  vigor  da  expressão,  e  pe- 
la natureza  das  matérias,  de  que  se  trata  n^aquelle 
poema,  é  este  talvez  o  mais  difficultoso  de  traduzir 
em  verso,  de  todos  os  que  nos  legou  a  antiguidade, 
e  apesar  d'isso  elle  apparece  reproduzido  em  portu- 
guez  cora  uma  louçania  de  estylo,  facilidade  e  for- 
ça de  metro  superior  a  tudo,  que  pode  imaginar-se  •, 
parece  a  cada  passo  que  estamos  lendo  uma  compo- 
sição original,  tão  pouco  é  o  constrangimento,  que  te 
vislumbra  na  sua  brilhante  execução. 

Interessados,  como  na  verdade  somos,  na  gloria  da 
poesia  pátria,  não  podemos  deixar  de  manifestar  aqui 
a  nossa  approvação  a  tão  útil  trabalho,  e  de  exhor- 
tar  o  digno  traductor  a  não  abrir  mão  de  tamanha 
empresa  ;  e  a  emprehender  outras  de  igual  importân- 
cia, como  o  Astronómico  de  Manilio,  a  Thebaida 
de  Stacio,  os  Amores  das  Plantas,  e  o  Templo  da 
Natureza  do  Dr.  Erasmo  e  Darvvin  e  a  Sphocsa  de 
Bucbanan. 

J.  M.  D.\  Costa  e  Silva. 


Grude  de  arroz,  ou  cimento  do  Japão.  —  Dissol- 
ve-se  em  agua  fria  a  farinha  do  arroz,  e  coie-se  afo- 
go brando  até  se  tornar  consistente.  Esta  colla  ou 
grude  é  muito  branca  e  seccando  fica  quasi  transpa- 
rente •,  a  sua  força  é  tal  que  os  papeis  grudados  com 
ella  rasgara-se  as  mais  das  vezes,  ainda  que  com  cui- 
dado se  queiram  separar :,  assim  é  com  preferencia 
empregada  para  todos  os  objectos  de  cartonagem  que 
exigem  aceio  e  solidei,  taes  como  caixinhas,  casas, 
templos,  c  outros  objectos  ílc  toucador. 

Este  grude  é  muito  superior  ao  da  farinha  de  tri- 
go, ou  pós  de  goniina,  e  convém  especialmente  para 
as  obras  dos  encadernadores  de  livros,  para  lijar  có- 
pias de  manuscriptos,  ou  os  próprios  manuscriptos,  e 
gravuras  C|ue  se  pretendem  conservar  em  livros. 

Empregando  menor  quantidade  de  agua  na  pre- 
peração  d'esla  colla,  pode  dar-se-lhe  bastante  con- 
sistência para  modelar  estatuas,  bustos,  bai.^ios  rele- 
vos, e  outros  siinilhantes objectos,  que.  seccando.  to- 
mam um  bello  polido  e  são  susceptíveis  de  se  con- 
servarem por  muito  tempo  mediante  algumas  pre- 
cauções, taes  como  livrar  da  humidade  os  objectos 
formados  com  esta  massa.  etc. 

No  Japão  fazem  d"ella  enfeites  que  imitira  tão 
perfeitamente  a  madrepérola,  que  che;am  a  equivo- 
car os  compradores. 


—  Mais  gravemente  enferma  o  que  logra  melhor 
disposição,  que  o  que  nunca  deixou  deter  achaques. 
E  a  razão  é  porque  a  enfermidade,  que  pôde  vencer 
disposição  tão  lH>a.  teve  muito  de  p.xlerosa  ;  ignorân- 
cia (|ue  não  alumia  o  diíOur>o  mais  disperto.  firoti 
a>  esperanças  ao  remeiiio. 

Padre  A.  ^'IKlXA. 


j       — .\  caridade  é  uma  divida  eterna  c  sem  limites. 
—  .\  paixão  fai  com  que  muitas  veies  condenine- 
I  mos  em  uns  o  que  approvamos  em  outros. 
j       — .\.  verdade  e>candalisn  ortlinariamcnte  aqucUe* 
que  não  esclarece  nem  converte. 

I  UtCSNEL. 


46 


o  PANORAMA. 


361 


PRAÇA-MAIOR   DE   LIMA,   P£RU. 


O  Per6,  cortado  do  iiorlo  ao  sul,  por  dous  ramaes 
parallelos  da  cordillicira  dos  Andes,  modo  i-m  coni- 
primento  do  Kiiu.idor  nu  fhili  crrca  do  'M'ó  lrt;iias, 
p  cm  iari^ura  t-tún:  Ho  o  15  loiçiias,  da  corddlicira 
ao  mar.  Todo  o  Icrrilorio  liaidiado  pelo  Oihniiio  l'a- 
«íilioo  i:  cm  gorai  agroslc,  inuiillo  o  despovoado,  |ior 
<'oiis(Mpi('iicia.  Os  [)riiici|)a('s  jiorlos  na  cosia  são  os 
<)(!  Lariil>a^(M|iii',  ('alláo  (porto  de  Jjiiiia)  Tslay,  Ari- 
i,a,  l'ayla,  lluancliaco  <^  S.  .(osé.  A  parl(-'  mais  rica 
naluralinrnte,  c  a  menos  coidiecnda  (■  a  vertente  da 
•'ordillieira  (jue  descí'  para  as  famosas  campinas,  lizi- 
rias,  do  Maranhão  ou  rio  das  Amazonas,  e  seus  ai- 
llnenlcs.  l'or  este  lailo  couliua  o  l'ení  com  o  impé- 
rio do  lirasil.  ("Inando  os  peruvianos,  voilando  Ioda 
a  sua  energia  e  inl(;iiii;-eueia,  até  hoje  gastas  em  dcs- 
f;raea(his  hielas  idvis,  derem  a  atlen<;ã<)  necessária  e 
(h'vi(hi  a  este  (grande  o.  nuii^estoso  rio,  o  ])rocurarnni 
lornal-o  navcfçavei  em  toda  a  sua  extensão,  empresa 
<]ue  aliás  não  apresenta  ilifliculdadc^s  (pie  possam  eon- 
siderar-se  insuperáveis,  não  só  o  mesmo  riosetorna- 
ríí  um  dos  principaes  meios  de  comnuinica(;ãod'a(|uel- 
le  piiiz  com  os  europeus,  mas  tandiem  se  consej^uirá 
povoar  de  penle  valida  e  laboriosa,  re[;iòes  de  uma 
lerlilidade  e  ri(|ueza  iiieriveis,  até  ai;ora  ipiasi  iu- 
li'irameu(e  ileha|iniveila(las. 

Ao  sudoesle  o   l'erú  é  separado  da    Ituliiia  pelo  rio 

l)i'saf;iiadero    e   o  hu;!»   t\i'  'l"ilieaca.    IN  as  suas  vaslas 

••ampinns  iucullas  paslorAa   o  indio  iiçnorante   e  ch's- 

ciiidoNo  MunierosoH  relianhos  di^  la|uas  (^  alpnens,  ani- 

Voi.  I.  — J."  Siiiiii... 


mães  utilissimos,  que  talvez  conviesse  naturalisar  em 
Poriuçal,  j)orque  produzem  uma  lã  finíssima,  muito 
superior  a  todos  os  respeitos  a  lã  de  carneiro,  i;'eral- 
menle  cnijireíçada  nas  fabricas  de  lanificios.  Os  tcr- 
ri'nos  cultivados  jiroduzem  alu;odão,  lrij;o,  milho,  ba- 
tatas e  vinho.  A  populai;ão  pi;ruviana  eleva-sc  a 
1  ..'{7;J:7o()  habitantes,  segundo  o  Gu!<i  tle  Fiiruslfnts 
il(t  Rcpiildicd  J'irniniti,  dosr.  Ciiiriisvn.  v  :\  1  .'tOO.OOO 
segundo  o  AiiiiiKirio  tios  Dnis  Aliiiidns. 

Ksla  po])ulacão,  insignilicmlissima  em  relação  u 
imuu'nsa  arca  do  território,  cumi)õe-se  d(!  brancos, 
descendentes  dos  con(piistadorcs  hespanhoes,  de  ín- 
dios e  de  negros,  e  é  ri-partida  por  11  departamen- 
tos, divididos  em  (ij  províncias,  e  estas  subdivididas 
em  dislrictos  e  ])arocliias.  Os  deparlanieutos  distin- 
guen\-se  pelas  seguiuli-s  denominações:  Amatonas, 
liíbertad.  Anchas,  Junin,  Lima,  Iluaucavelica,  Ayii- 
cuciío,  Cuzeo,  l'unlio,  Arccpiipa,  'Mo(|uegua.  Cada 
deparlanuMilo  é  governado  por  >im  prefeito,  que  n<v 
cumula  as  func<;oes  civis,  administrativas  e  milita- 
res. 

AtilliiiKi  constituição  politica  do  1'erú  foiapprova- 
da  e  |)ulilica(la  em  lluancavo,  a  10  de  novembro  ile 
1H:H».  Ksla  eonstilui(;ão  eslabi^lece,  os  tves  poderes, 
c.i<<  ii/íeo,  IiijÍhIíiUvo  e  /i((/iV(((/,  c  garante  a  s\ia  in- 
dependência n'laliva.  O  poder  i'\cculivo  é  exercido 
por  um  presidenie  el<'ito,  pelo  suIVragio  universal, 
p(U'  lempo  de  seis  aunoi,  qm-  nouu'ia  os  seus  delegu- 
ilos  ui»s  qu.ilro  ministérios  si'guiuli"S  :  —  iii/c  i-ioc,  iiis- 
NovKMUiio  1j,  18j'J. 


362 


O  PANORAMA. 


írucção  publica  e  beneficência^  exterior,  justiça  e  ne- 
t/ucios  ecclesiaslicos;  guerra  e  marinha;  fazenda.  O 
puder  legislativo  é  confiado  a  um  congresso  formado 
de  duas  camarás  —  deputados  e  senadores  —  cujos 
membros  siio  eleitos  igualmente  pelo  sufíragio  uni- 
versal. O  poder  judicial  é  exercido  por  um  tribunal 
supremo,  estabelecido  era  Lima,  por  triljunaes  supe- 
riores, ou  do  tippcllariío,  existentes  em  cada  uma  das 
capitães  de  departamentos,  por  juizes  de  primeira 
instancia,  e  por  juizes  de  paz  nosdistrictos.  Ha  tam- 
bém tribunaes  especiaes  de  commercio,  de  minas,  de 
aguas,  de  prezas,  e  dos  dizimos. 

A  religião  do  estado  é  a  catholica  apostólica  ro- 
mana, e  a  ordem  ecclesiastiea  no  1'erú  comprehendc 
um  arcebispo,  o  de  Lima,  cinco  bispos,  os  de  Tru- 
jillo,  Chachapoyas,  Ajacucho,  Cuzco  e  Arequipa,  o 
clero  secular  para  o  serviço  das  parochias,  e  o  clero 
regular,  que  ainda  é  bastante  numeroso.  Todos  os 
proventos  ecclesiasticos  toem  origem  nos  dizimos. 

A  força  militar  compõe-se  do  exercito  activo,  ou 
de  linha,  e  da  guarda  nacional.  O  exercito  de  linha 
é  formado  de  nm  estado-maior  de  29  generaes,  e  de 
ti  batalhões  de  infantaria,  3  regimentos  de  cavalla- 
ria,  e  uma  brigada  de  artilheria.  O  modo  por  que 
este  exercito  tem  sido  recrutado,  a  pouca  instruc- 
ção  da  sua  officialidade,  e  a  insaciável  cubica  de 
muitos  dos  seus  generaes,  constituem-no,  em  vez  de 
um  elemento  de  paz  e  segurança  publica,  o  principal 
movei  de  quantas  revoluções  tem  dilacerado  aquelle 
paiz. 

O  actual  presidente  é  o  general  D.  José  Rufino 
Echenique,  homem  estranho  a  todas  as  luctas  civis ; 
diz-se  ser  dotado  de  superior  intelligencia,  e  outros 
dotes  que  o  tornam  digno  da  tão  elevada  magistra- 
tura que  03  seus  concidadãos,  quasi  unanimemente, 
o  chamaram  a  exercer. 

A  capital  da  republica  é  Lima.  Esta  bonita  cida- 
de está  edificada  na  margem  direita  do  rio  Riniac, 
e  a  nove  milhas  da  sua  foz ;  na  outra  margem  vê-se 
o  arrabalde  de  S.  Lazaro,  que  se  communica  com  a 
cidade  por  meio  de  uma  bem  construída  ponte  de 
cinco  arcos.  A  cidade  tem  duas  milhas  de  compri- 
mento, c  apenas  uma  e  um  quarto  desde  a  ponte  até 
as  muralhas  ^  estas,  que  medem  doze  pés  de  altura, 
e  dez  ile  espessura  na  l)ase,  são  construídas  de  uma 
espécie  de  aJòhís;  no  seu  recinto  abrem-sc  sete  por- 
tas, e  comprehendem-se  três  baluartes,  terminando 
na  extremidade  sudoeste  pela  pequena  cidadella  de 
Santa  Calharina. 

A  antiga  cidade  dos  reis,  fundada,  em  loSl,  por 
Pizarro,  em  dia  de  Epiphania,  foi  outr'ora  o  prin- 
cipal empório  da  America  no  Oceano  l'acifico,  gra- 
ças ao  seu  porlo  do  ("alláo,  construído  em  i779  de 
uma  maneira  singular.  Mandou-se  encalhar  um  vc- 
llio  navio  de  grandes  dimensões,  que  foi  clieiode  pe- 
dras, de  arèa  etc.  ;  depois  cravaram-sc-lhe  em  torno 
estacas  de  mangueira,  que  não  apodrece  na  agua. 
mandadas  de  Guayaquil,  e  assim  se  conseguiu  for- 
mar uma  segura  e  excellcnte  base  sobre  a  (|ual  se 
levantou  o  respectivo  molhe. 

O  clima,  mais  temperado  e  agradável  que  o  de 
Carthagena  e  da  Bahia,  na  costa  fronteira  da  Ame- 
rica, a  formosura  das  paizagens,  e  o  trato  urbano  e 
ca\alheiroso  dos  habitantes,  constituem  Lima  uma 
das  mais  aprasiveis  cidades  do  Novi>-5Iundo. 

.\  nossa  primeira  estampa  representa  a  Praça- 
]\ltiii>i-.  E^tá  situada  a  mais  de  quatrocentos  jh-s  do 
nivol  do  mar,  e  n'ella  vem  deseudiocar  alguu)as  das 
principaes  ruas  da  cidade.  \  l'ra<:a-Maior  serve  ao 
mesmo  tempo  de  passeio,  de  bazar,  de  mercado  ede 
ieira.  i\o  pavimento  inferior  do  palácio  dos  antigos 
vice-rcis.  que  se  vê  em  frciíte,  estão  estabelecidas  lojas 


de  diversas  mercadorias,  e  ao  nivel  do  andar  nobre 
corre  uma  bella  galeria  ou  varanda,  onde  o  povo  pode 
passeiar  nos  dias  de  regosijo  publico ;  a  este  da  pra- 
ça levanta-se  a  airosa  cathedral,  e  no  centro  admira- 
se  a  bellissima  fonte,  constnuda  em  16o3  por  dili- 
gencia do  vicc-rei  conde  de  Salvateria. 

A  nossa  segunda  estampa  (pag.  36o)  representa 
um  pastor  indio  vestido  com  o  célebre  puncAo,  espé- 
cie de  manta  de  cores  brilhantes,  que  se  usa  como 
pôde  vêr-se  da  referida  estampa  ;  dá  uma  idéa  apro- 
ximada dos  cobi-ejões  ou  mantas  castelhanas,  muito 
estimados  entre  nós. 


INSTRUCÇÃO  PUBLICA. 

IiLf  STBAçXo  DO  Exercito. 

Convidados  a  escrever  algumas  linhas  n'este  albunt 
popular,  cujos  fastos  estão  tão  inteiramente  ligados 
a  nossa  historia  litteraria  contemporânea,  com  quan- 
to hesitássemos  de  principio,  obedecemos  por  duas 
razoes.  A  primeira,  e  por  certo  a  mais  attendivel,  o 
objecto  sobre  que  tiidiamos  de  escrever ;  pois  hav«- 
mos  por  verdadeiro  que  a  boa  semente  ha  de  sempre 
produzir  bom  fructo,  ainda  que  também  não  desco- 
nhecemos que  a  proporção  do  frucfilicar  está  na  ra- 
zão do  cultivo ;  apezar  d'isso,  não  nos  fez,  nem  fará 
jamais  recuar,  o  aventar  uma  boa  idéa,  só  porque 
poderia  ser  mais  bem  tratada  por  outrem ;  o  óptimo 
é  inimigo  do  bom  •,  e  já  no  seu  tempo  lamentava 
Séneca  estes  intermináveis  adiamentos  em  que  se  es- 
coa a  vida. 

A  segunda  razão  parecerá  sem  duvida  do  género 
d'estes  clássicos  preâmbulos,  em  que  o  auctor  se  vol- 
tava para  o  seu  publico,  implorando  a  indulgência 
do  leitor  benévolo,  e  a  absolvição  de  todas  as  incor- 
recções, que  já  de  antemão  e  artisticamente  exage- 
rava. 

Todavia,  fallando  desapaixonadamente,  a  duas  se 
se  reduzem  as  espécies  de  relações  que  ha  entre  jor- 
naes  e  collaboradorcs  : —  quando  aquelles  se  ornam  com 
nomes  conhecidos  e  apreciados  pelo  publico,  e  n"el- 
les  estabelecem  sua  principal  recommendação  ; — ou 
quando  apresentam  artigos  firmados  por  nomes,  cuja 
principal  recommendação  é  a  boa  companhia  em  que 
se  encontram.  Sem  duvida  alguma,  estávamos  no  ul- 
timo caso,  e  seria  ini[)erdoavelraente  descortei  o  re- 
jeitar convite  para  terreiro  em  que  se  ia  apparecer 
tão  bem  acompanhado. 


E  do  exercito  que  vamos  fallar ;  e  ao  soldado,  e 
do  soldado  que  \amos  dizer  algumas  poucas  palavras 
com  a  mão  na  consiiencia,  e  com  a  consciência  tam- 
l)em  de  que  não  haveremos  por  perdido  o  nosso  tem- 
po, nem  cUe  o  siui.  Não  e  ao  soldado  a  quem  uni 
dos  maiores  guerreiros  e  e^criptorcs  d"esta  idade,  e 
a  maior  de  todas  as  mulheres,  marcaram  com  o  fer- 
rete epigrammalico  do  sarcasmo,  que  traduzia  a  amar- 
ga opinião,  que  aind.i  um  dia  por\cntura  se  ha  Je 
dissipar  de  todo  da  face  da  terra. 

Com  elTeito  o  soldado  c\>mo  ni<7rAí«<-  à  ftail.  ou 
como  dt  la  chire  à  raiion,  ja  moralmente  não  pt-de 
existir  hoje.  Frederico  o  grande  e  Madame  de  Stael 
quando  \iam  o  militar  a  uma  lui  tão  pallida  e  so- 
turna, não  encaravam  a  questão  com  as  propriaN 
idéas  ;  Ir.iduziain,  fazendo  tspirito,  uma  triste  con- 
dição que  não  |Hxtia  durar  ja  muito.  Ambas  aquel- 
las   intelligencia*  superiores   não   puderam   de  certo 


o  PANORAMA. 


363 


vér,  sem  se  condoerem,  o  mocinho  imberbe  que  dei- 
xa pae  «•  mãe  por  tarimba  e  rigores  de  estranhos; 
raais  tarde,  o  instrumento  cego  de  machinajões,  que 
o  mais  das  vezes  nem  chega  por  longe  a  conhecer ; 
ora,  symbolo  venerando  de  abnegajão  absohita,  mu- 
tilado, nadando  no  próprio  sangue,  que  vae  mistu- 
rar-se  com  o  do  camarada  a  quem  já  tributava  aflectos 
de  irmão ;  ora  arrojado  á  valia,  erma  de  lagrimas  e 
orações,  e  cifrado  n'um  algarismo  commum  que  ex- 
plica a  sorte  de  uma  campanha  ganha  com  a  morte 
de  mil  victimas  obscuras,  a  quem  sumiu  o  mesmo 
ferro  que  Ibj  plantar  uma  arvore  também  perece- 
doura muitas  vezes,  e  não  quantas  criminosa  ! 

O  soldado  pasio  de  canhões,  o  soldado  machinadc 
malar,  é  já  agora  impossível ;  é  anachronico  no  se- 
«■ulo  dos  caminhos  de  forro;  na  epocha  em  que  se 
apertam  de  dia  para  dia  as  relações  entre  todos  os 
povos;  n'este  viver  das  nações  d'hoje,  onde  a  diplo- 
macia e  não  a  estratégia  decidem  dos  seus  destinos ; 
n^este  mundo  que  já  não  promette  nem  tolera  con- 
quistas; n'esta  véspera  do  grande  dia  da  civilisação, 
em  que  a  inlelligencia  tem  de  dominar  (ísplendida, 
em  que  o  pensamento  ha  de  ser  coniniungado  por 
todos,  quasi  no  próprio  instante  em  que  brilhar  n'um 
canliiilio  (la  terra ;  em  que  as  idéas  hão  de  tornar- 
se  propriedade  commum,  ora  tão  breve  como  o  va- 
j>or  que  as  escreve  e  arrebata  para  distancias  incrí- 
veis, ora  tão  momentaneamente  como  a  electricida- 
de que  as  atira  para  outro  hemispherio. 

E  o  soldado  será  porventura  o  desherdado  n'este 
farto  banquete  do  entendimento !  Ha  de  ser  por  ac- 
caso  o  fdho  pródigo,  a  chorar  com  íome  e  sede  in- 
tellectual  entre  as  asperezas  do  mister  para  que  o  ar- 
rancaram ? 

O  soldado,  que  foi  legado  ás  sociedades  modernas 
pelas  convenções,  ou  antes  desconvenções  d'outr''ora, 
não  ha  de  participar  do  mesmo  pão  do  (espirito  que 
com  todos,  pequeninos  e  grandes,  se  reparte  ?  não 
tem  de  gosar  da  nuísina  luz  e  calor  <jue  para  todos 
arde  e  resplandece .' 

Deve-s<!-lhe  dar  muito  d''cste  calor,  que  longo  ha 
sido  para  ollo  o  inverno;  as  geadas  tem-lhc  bran- 
<|ueado  as  cai)eças  iia  muitos  sccuios  estéreis,  não  por 
natureza,  mas  por  mingua  de  um  eslio.  Deve  ale- 
grar-so  com  a  mesma  luz  (jue  brilhar  para  lodos, 
ponjue,  entre  os  gclus  de  tantos  ânuos  de  peregrina- 
ção, havia  muitas  Irévas.  O  soldado  vem  de  muito 
longe;  tem  visto  muito,  mas  C!ntre  o  barafustar  de 
aríetes  em  goljihãos  de  pó,  c  através  <lc)s  nevoeiros 
da  pólvora  ;  tem  ouvido  muita  cousa,  mas  tudo  con- 
fundido no  troar  de  artilhcrias  e  arcaliuzes.  Carece 
de  luz  mais  suave  e  creadora  em  que  lhe  repousem 
os  olhos  deshimbrados  pelos  clarões  i|ue  vomita  o 
bronze  ;  ])recisa  di!  calor  mais  l)rando  e  restaurador, 
<|ue  lhe  rcífoeille  os  mendiros  exhaustos  ]>elas  fadigas 
das  marchas,  abrazados  nus  lides  e  fraguas  da  guerra. 
A  historia,  essii  arca  onde  se  vão  guardando  al- 
faias d'avós,  e  aonde  lillios  e  netos  revolvtun  á  von- 
tade, lá  res(írva  os  exércitos  com  todos  os  seus  attri- 
bulos  de  violência  e  força.  K  (longe,  e  bem  longe!) 
ainda  ha  de  vir  um  dia  em  (pie  eruditos  e  anli(|ua- 
rios,  ao  |)rociirarem  n'essa  espii(;osa  arca  (h'  desaven- 
ças jiassaíhis  docunuMitos  de  antigas  auiunallas,  hão 
d(!  admirar  o  soldado  como  objecto  de  ( iiriosi>lad(,'. 
Jlão  de  ])erguiilar  eulrc  si,  jiara  (|iu'  serviam  ex(M- 
«ritofl,  (.'(inu)  nós  hoje  perguntamos  para  ipie  se  levan- 
taram )>yraHiides,  ou  levamos  á  coiil;!  ilc  riliiihi  as 
lendas  (l.i  ('avaliaria  and.inle. 

Jíjspirilos  allanienle  hiimauitavios  tem  concebido 
a  formosa  iilo|iia  da  aboli(;ào  dos  exércitos  em  nos- 
sos diiiH.  Cremos  Ião  lirmemeiíli'  em  (|lic  o  congres- 
»()  (hl  paz  tem  de  S(T  um  dia  lodo  o  género  humano, 


como  cm  que  por  largo  tempo  continuarão  a  morrer 
sem  triumpho  quantc»  esforços  fizer  n"esse  sentido. 
Mão  muda  assim  uma  organisação  inveterada,  posto 
que  antiphilosophica.  Hoje,  é  utopia  innocente,  e 
com  que  todos  svmpathisam  ;  mas  utopia  que  não 
bastam  para  realisal-a  os  sinceros  desejos  dos  que  lhe 
dão  cultos.  Resume  em  si  a  maior  de  todas  as  revo- 
luções sociaes,  a  revolução  da  paz ;  e  essa  não  ama- 
durece sem  longa  transição,  e  sem  incalculável  con- 
curso de  elementos  civilisadores  que,  directa  ou  in- 
directamente, a  fomentem. 

iMas  o  que  não  é  utopia,  e  se  já  alguma  vez  o  foi, 
hoje  é  recebido  como  idéa  corrente  em  toda  a  par- 
te, (Í  a  máxima  illustração  dos  exércitos.  Florecem 
as  escolas  polytechnicas,  multiplicam-se  as  escolas  espe- 
ciaes,  mautem-se  collegios  militares  por  essa  Europa, 
temol-as,  e  possuímos  estaVjelecimentos  d'estes  em 
Portugal ;  porém  o  que  desejaríamos  cá,  como  lá  o 
são,  e  melhores  ainda,  é  as  humildes,  mas  importan- 
tíssimas escolas  regimentaes. 

As  escolas  superiores,  os  institutos  militares  não 
são  para  o  soldado  plebeu,  para  o  soldado-povo.  Per- 
doe-se-nos  a  novidade  do  termo,  mas  ninguém  pode 
conceder  que  soldado  e  povo  não  seja  uma  e  a  mes- 
ma cousa.  A  dilferença  não  constitue  género  diverso. 
Soldado  e  povo,  são  duas  entidades,  que  a  infância 
e  adolescência  reuniram,  e  que  a  velhice  e  a  idade 
madura  hão  de  igualar.  Um,  adquire  e  augmenta  a 
proprí(;dade  ;  outro,  guarda-a  e  mantem-lhe  o  respei- 
to dos  estrangeiros.  E  só  quando  o  universo  formar 
uma  única  família,  só  quando  não  houver,  por  as- 
.sim  dizer,  estrangeiros,  quando  as  relações  entre  to- 
dos os  povos  forem  de  conterrâneos  e  irmãos,  se  esse 
doirado  sonho  se  verilicar,  é  que  o  soldado  tem  de 
ser  uma  reminiscência  e  nada  mais. 

Porém  o  soldado  d'estas  eras,  é  o  hom(>m  dos  cam- 
pos, a  quem  deu  um  porte  mais  distincto  o  tirocí- 
nio da  recruta  ;  é  o  operário,  que  deixou  a  ferra- 
menta para  pegar  n^uma  arma,  j)orque  a  pátria  lh"o 
exigiu  ;  é  o  lllho  do  juíseador,  que  largou  r(*des  e 
Ijarco  para  guarnecer  fortalezas;  é  o  servo,  que  foi 
servir  a  nação;  é  o  nuxjo  sem  arrimo,  a  (|uem  a  far- 
da otlereceu  um  pão  honrado  ;  é  o  adolescente,  qu(! 
enc(!tára  uma  vida  criminosa,  obrigado  pela  miséria, 
e  a  (|uem  a  iia(;ão  educou,  perdoando-lhe  o  primei- 
ro delicto  ao  pedir-llie  um  juramento  solemne,  (|Ue 
para  logo  o  constituiu  cidadão  ])ortuguez. 

J'<,  altente-se  bem  n''isto,  a  estes,  e  a  todos,  espe- 
ra-os  nas  armas  uma  vida  com  muitos  ócios ;  um 
desterro  sim,  porém  na  mesma  terra  da  pátria.  São 
alguns  aunos  de  (juasi  ab.solutas  ferias  de  suas  anti- 
gas [)rolissões ;  é  um  marco  a  dividir-lhes  a  carreira 
começada,  mas  que  d'ella  os  não  separa,  e  para  (jue 
se  lhes  permitte  voltar,  se  era  honesta.  Foi  creado 
(Milre  as  lidas  tia  industria,  o  soldado  para  ellas  tor- 
nara mais  (íxperienl(!  pelos  amios,  (<  pelo  trato  txmi 
os  outros  honu'ns  com  (piem  conviveu  em  communi- 
dade  ;  terá  aprendido  a  obeihicer,  e  por  eonsenuiute 
n)ais  apto  será  para  se  fazer  respeitar  ;  deram-lhe  va- 
lor (pie  não  eonheci,!,  e  a  lodo  o  tempo  o  fará  valer, 
se  o  bem  da  sua  terra  reclamar  (pie  IriKpie  o  arado 
ou  II  martelo  pela  espada  ou  pela  bayonela.  Ijcvará 
hábitos  (rordeui,  (pie  lá  lhe  hão  de  aproveitar (|uaii- 
di>  tornar  a  entrar  na  oflicina,  ou  (piaiiiio  lõr  chefe 
de  lainlli.i.  1'ailroii  para  o  serviço  com  (plantas  ver- 
duras llii>  sopravii  a  idade  dos  deseoneertos,  irii  lli>- 
meiíi  leilo  abraçar  os  vullios  da  sua  aldiVi,  beijar  as 
iiiàos  (pie  (I  embalaram,  reconhecer  os  campos  onde 
primeiro  viu  nascer  o  sol;  irá  renovar  na  igreja  do 
seu  casal  as  praticas  religiosas  (pie  a  vida  militar  lhe 
iiào  deixou  esipiecer  ;  e  eoiilrahir,  lalve/,,  junto  ao 
mcumu  allur  uiid(;  lhe  pu/.eram   u  nome  e  o  literam 


364 


O  PANORAMA. 


christão,  novos  laços  mais  indissolúveis,  novo  jura- 
mento, para  servir  a  pátria  como  Ijom  cidadiio,  co- 
mo bom  esposo,  como  bom  pae. 

E  a  que  vem  tudo  isso  a  propósito  das  nossas  es- 
colas reçimcntaes  ?  —  Muito. 

Como  tereis  o  soldado  educado  ?  Pela  violência  ? 
pelo  constrangimento .'  pelos  exemplos  de  respeito 
hierarchico  ?  pelo  inexorável  das  ordens  ?  pela  abso- 
luta necessidade  de  se  ellas  cumprirem?  Tudo  isso 
produz  a  subordinação.  D'isto,  e  d^outros  elementos 
de  ordem,  de  decisão,  de  disciplina,  resulta  o  desen- 
volvimento physico  e  moral  d'onde  dimanam  tantas 
virtudes  militares;  com  tudo  a  educação  do  espiri- 
to, que  é  a  instrueção,  e  a  do  sentimento,  que  é  a 
subordinação  e  disciplina  moral  do  coração,  não  se 
adquire  na  milicia,  só  com  o  ambiente  que  ali  res- 
pira a  alma. 

E  nas  escolas  regimentaes  que  se  pode  belier ;  é 
ali  que  se  completa  o  que  o  quartel  jamais  poderia 
dar. 

Teríamos  nós  conduzido  o  discurso  até  aqui  para 
pedir  a  cri^ação  d(.'  escolas  regimentaes,  como  (juem 
recommendasse  uma  novidade  que  se  devia  introdu- 
zir? Não  foi  esse  o  nosso  intento.  Escolas  regimen- 
taes liavemol-as  nos  corpos  do  exercito. 

(Auizcranios  demonstrar,  se  porventura  carece  de 
demonstração,  que  tem  tanto  alcance  as  simplices 
escolas  primarias  dos  regimentos,  como  as  que  para 
paizanos  sustenta  o  estado  por  todo  o  reino. 

Ainda  para  estas,  como  para  todas,  é  inteiramen- 
te applicavel  a  sentença  immortal  de  lord  Brougham  : 
íiITora  cm  diante^  é  o  meslrc-cscola,  e  jamais  o  ca- 
nhão, (jue  ha  de  ser  o  arbitro  dos  destinos  do  mun- 
do. " 

O  professor  é  a  escola,  é  o  gérmen  das  mil  appli- 
caçõcs  úteis  que  os  seus  alumnos  ali  forem  ganhar 
para  si,  para  o  estado,  para  a  familia,  para  a  mora- 
lidade publica,  para  a  civilisação.  O  professor  épara 
a  escola,  o  que  a  alma  é  para  o  corpo  ;  o  professore 
<i  metliodo;  é  a  boa  execução  do  systoma  d'ensino 
adoptado  ;  é  a  continuação  das  praticas  de  subordi- 
nação e  disciplina,  que  ainda  ali  se  devem  manter, 
mas  despidas  de  rigores ;  o  professor  é  o  bom  conse- 
lho;  é  o  respeito  mantido  não  só  pelo  posto,  porém, 
mais  e  muilo  mais,  pelo  amor,  pela  gratidão;  é  o 
mcrecinionlo  a  premiar  merecimentos  e  aptidões, 
propondo  e  apresentando  como  dignos  de  promoção 
e  recompensa  os  discípulos  mais  applícados. 

A  escolha  do  mestre  é  portanto  muito  attendi- 
vel. 

E  por  certo  dos  quadros  maisbellos  o  que  apresenta 
unia  escola  regimental  bem  dirigida.  A  docilidade,  tão 
própria  da  iiinocencía  e  da  infância,  vê-se  ali  com- 
binada com  a  austeridade  do  viver  marcial,  com  a 
roliusloz  e  vigor  dos  movimentos.  Os  sorrisos  da  me- 
ninice a  assomarem  oin  lábios  e  rostos  crestados  de 
trabalhos.  E  o  complemento  da  educação  militar. 

t-iuizeranios,  e  comnosco  todas  as  pessoas  sensatas 
que  tiverem  reflectido,  ao  menos  uma  vez  na  sua  vi- 
da, i\a  impi>rlancia  que  tem  eslas escolas,  que  osme- 
thodus  mais  expeditos,  sejam  ali  os  preferidos,  (1) 
para  que  o  aprender  não  aborreça  a  homens,  o  que 
acontece  com  n>othodos  pesados  e  ronceiros ;  jxira 
que  essas  horas  que  o  soldado  destine  ao  estudo, 
dêem  para  as  muitas  applicaçòes  úteis  do  lèr ;  por- 
que l)em  claro  está  (pie  saber  lér  só  por  si  e  meio  c 
não  lim. 

Huizeramos  que  as  escolas  ri'gimentacs  não  fossem 
facultativa»,    mas   obrigatórias;   saho   aos  que  tive»- 


(1)     \  ejíi~sc  a  nota  no  tini  d'o:í(e  arlig*». 


sem  mais  de  30  annos,  para  quem  seriam  facultati- 
vas então. 

Quizeramos  que,  além  das  primarias  elementares 
em  cada  corpo,  houvesse  também  as  primarias  supe- 
riores, para  officiaes  inferiores,  e  para  todos  os  alum- 
nos que  não  carecessem   de  frequentar   as  primarias. 

Quizeramos  que  umas  e  outras  fossem  reguladas 
convenientemente,  pois  que  mal  avisado  é  deixar  ao 
arbitrio  dos  mestres  o  regular  cada  um  a  sua  escola. 
A  uniformidade  do  ensino  produz  a  das  idéas ;  esta. 
a  unidade  nacional,  de  que  é  congénita  a  opinião  pu- 
blica ;  e  se  isto  é  uma  verdade  em  instrueção,  não 
são  as  escolas  militares  de  diversa  natureza  para  que 
não  deva  ter  para  com  ellas  a  geral  interpretação. 

Ninguém  nos  levará  a  mal  ousarmos  dizer  tão 
francamente  o  que  sentimos  acerca  doeste  ramo  de 
ensino  publico. 

Repetimos  :  instrua-se  o  soldado-povo,  e  uma  gran- 
de massa  popular,  e  em  breve  a  maioria  da  nação, 
])ossuirá  aqueUes  conhecimentos  elementares  queuão 
é  licito  ignorar. 

O  exercito  é,  e  ha  de  ser  sempre,  em  quanto  hou- 
ver exércitos,  como  um  lago  entre  dous  rios,  alimen- 
tando-se  d"um,  e  engrossando  e  alimentando  tam- 
bém o  outro. 

DV'ntre  cem  homens,  escolhei-me  vinte  que  não 
tenham  ainda  mUitado  ? 

l'rosiga-se,  insista-se  n^esta  idéa ;  e  o  soldado  não 
deve  ser  mais  o  obscuríssimo  pasto  de  canhões  (de  la 
chèrc  á  cânon)  porém  a  gloriosa  machina  de  civi- 
lisar,  o  apostolo  do  progresso. 


Nota   final. 

Estíi  preferencia  já  hoje  não  faria  hesitar  pessox 
alguma.  Decididamente  a  superioridade  do  mcthodu 
de  leitura  do  sr.  A.  F.  de  Castilho  está  comprova- 
da até  á  evidencia.  Já  não  era  recommendação  para 
desattender-se  um  nome  como  o  do  seu  auclor ;  po- 
rém elle  exigiu  de  si  mesmo,  e  da  invenção  que  of- 
ferecia  ao  seu  paiz  as  ultimas  provas ;  porque  se  tra- 
tava d'iim  objecto  muito  serio  emuitissinio  positivo. 
Contraprovou-a  em  escolas  de  todas  as  idades,  e  de 
ambos  os  sexos,  e  finalmente  em  escolas  militares. 

Q-ucm  ignora  hoje  em  Lisboa,  e  em  todo  o  reino 
o  que  são  os  ./si/Zos  de  Infância  dcsi-alida  desde  que 
a  leitura  repentina  ali  foi  introduzida  e  praticada  ? 

tiuem  não  sabe  o  que  é  u  escola  regimental  de 
lanceiros  da  rainha,  donde  copiamos  o  nosso  profes- 
sor soldado  do  benemérito  alferes  Dias  da  Silva,  c 
os  nossos  alumnos  militares,  dos  d*aquelle  corpo? 
Na  guarda  municipal  de  Lislxja  lá  está  outro  modi- 
lo.  e  outro  modelo  de  commandantes,  bem  como  o 
sr.  coronel  ^Maldonado  de  lanceiros,  o  sr.  i>aruo  de 
Francos,  que  emprega  tinlo  o  género  de  seduc^>es  pa- 
ra obrigar  por  nobre  emulação,  o  que  ainda  não  é 
j  obrigatório.  O  regimento  Iti  a  estas  horas  esta  c«>- 
meçando  trabalhos  que  lhe  não  hão  de  ser  menos  hon- 
rosos que  os  de  uma  campanha. 

E  a  guerra  contra  a  ignorância  d"aquellas  ultimas 
camatlas  sociacs  tl"onile  se  tirou  o  soldado-jKivo. 

Na  praça   de  N  alença   o  sr.  governailor  Frederico 

;  Leão  Cabreira,  e  na  d"Elvas  o  sr.  brisadeiro  BaUly 

]'ertilharam  o  .yjctkcdo.l\ist:lho.  Em  Coimbra,  ajuu- 

j  tani-se  as  praças  de  intaiitoria  9  com  os  |vobres e  des- 

I  validos,    para  quem   liomens  philantliro|>oi   abriram 

uma  escola  gratuita. 

O  exercito  é  sem  duvida  a  maior  garantia  d'um 
svstema  d"ensino  que  se  lun^h»  no  ritlimo.  e  na  cer- 
teza dos  movimentos,  som  f.iicr  authomalv>s  «>mo  o 
do  Knsino  mutuo.   Em  compensação,   c  este  metho- 


o  PANORAMA. 


365 


do  ameno  <|ue  falia  á  imaginação,  e  que  liberta  o 
espirito,  solida  garantia  também  da  illustração  do 
exercito,  tornando  appetitoso  o  que  d'antes  era  mo- 
nótono, e  dando  horas  de  útil  recreio  para  mestres  e 
discipulos.  Nos  quartéis  d'ora  avante,  o  clarim  ou  a 
trombeta  que  annunciar  a  escola  é  o  signal  da  reu- 
nião cubi<;ada,  do  verdadeiro  folgar,  e  para  melhor 
dizer,  da  libertação  do  espirito,  e  das  centenas  de 
espiritos  que  ali  se  vão  fortificar  e  robustecer  n'aquel- 
la  gyniiiastica  do  entendimento. 

Consta-nos  que  o  nobre  marechal  duque  de  Sal- 
danha (que  ha  dias,  bem  como  todo  o  ministério, 
honrou  com  a  sua  presença  as  provas  publicas  que  o 
sr.  Castilho  deu  do  seu  methodo)  tenciona  mandar 
<|ue  na  escola  do  lanceiros  se  forme  uma  espécie  de 
escola  normal  militar  para  todo  o  exercito. 

fluem  não  vê  n'isfo  um  grande  passo  para  a  nos- 


civilisaçãi 


Luiz  Fiupi-e  Leite, 


Director  da  Escola  Normal  Primaria  de  Lisboa. 


PASTOn.  PERUVIANO. 

(l  ijd-si:  (I  jjrimeiru  arliijo  d\íU-  A.",  nu  fim.) 

ai'ontami:ntos  uk  m.\(íki\i. 

Ima    iiistuiiia  nu  I>i;>)\<u. 

(  11  mi  (imos  ií  fonte  fria.  Kra  o  itilio  apra»udo  jHira  u 
iiieii  poeta  mi-  contar  a  liinturiu  que  luiilu  excitara 
;i  iijiiiha  curiosidade, 


De  um  recôncavo  em  rocha  viva  rebenta  a  veia  ne- 
vada e  chrystalina  d'agua,  que  vae  derivando  por 
um  encanamento  de  pouca  extensão,  e  caindo  depois 
mais  rápida  pelo  declive  da  montanha  até  o  fundo 
do  valle. 

Repousar  á  sombra  d'aquelle  arvoredo  gigante  e 
espesso,  depois  de  se  terem  caminhado  quatro  léguas 
a  cavallo  pelo  sol  ardente  de  um  dia  de  maio,  é  das 
cousas  mais  agradáveis  que  na  ^ida  se  podem  expe- 
rimentar. 

Um  agiota,  ou  um  homem  politico,  que  são  os 
entes  mais  semsaborões  e  mais  positivos  d"este  mun- 
do, se  se  encontrassem  n'aquelle  logar,  estou  certo 
que  haviam  de  sentir  um  raio  fugitivo  de  poesia  il- 
luminar-lhes  as  almas  devastadas  e  enegrecidas  pelos 
cálculos  repugnantes  da  usura,  pelas  abjecções  e vila- 
nias que  por  ahi  se  alcunham  de  luctas  politicas. 

Dos  políticos,  dos  agiotas  e  de  todo  esse  bando  de 
fastidiosos  animaes,  que  estamos  condemnados  a  sup- 
portar  e  a  vêr  todos  os  dias,  nos  não  lembrávamos 
nós  n'aquelle  momento. 

—  "A  historia,  a  historia  do  frade"  —  exclamei 
eu  assim  que  chegámos  ao  logar  aprasado. 

—  "Espera,  deixa-me  descançar  um  instanti-,  c 
accender  este  cigarro  .  .  .  Olá,  camarada,  tem  lu- 
me ?  "  disse  elle  para  um  veterano  que  nos  servia  de 
cicerone. —  «Prompto,    meu   patrão,    ahi   vae  já.  >' 

—  Gluando  nos  veiu  dar  a  isca  accesa,  o  santo  velho 
levou  a  mão  ao  boné  perfdando-se  respeitosamente. 
O  meu  amigo  respondeu-lhe  por  um  gesto  que  mos- 
trava certo  conliecimento  das  etiquetas  militare;-. 
Eram  reminiscências  do  tempo  da  Maria  da  J*on/t, 
durante  o  (|ual  elle  cxero^Ta  honrosamente  o  posto 
de  major  de  voluntários. 

— "  Isto  são  pouco  mais  de  dez  horas  .  .  .  até  as 
quatro,  temos  tempo  :  conta-sc  a  historia  e  ftima-se" 

—  disse  eu,  arrancando  com  toda  a  anciã  uma  longa 
fumaça  de  um  máu  cigarro  do  contrato.,  mas  que 
n'esse  momento  me  estava  saljendo  melhor  do  (jue 
um  iegilinio  havano. 

—  "E  verdade,  conta-se  a  historia,"  —  respondeu 
o  meu  amigo  rccostando-se  voluptuosamente  soljre  o 
musgo  que  vestia  as  raizes  carcomidas  e  seculares  de 


uni  agigantado  cedro. 


I. 


11  Na  minha  aldêa,  no  anno  de  1S2  .  .  .  havia  duas 
f.imilias,  ambas  de  illustre  ascendência,  <■  que\i- 
viam  ali  com  o  modesto  rendimento  de  alguns  pré- 
dios ruraes  que  tinham  escainulo  ás  extravagâncias 
dl'  seus  maiores. 

Uma  das  famílias  era  realista,  a  outra  constitucio- 
nal. A  realista  compunha-se  de  mãe  e  de  um  lilho. 
O  siíu  chefe  iierrcèra,  assassinado  [)elos  liberaes  no 
meio  dos  tumultos  civis  (pie  precederam  a  reacção  de 
1821!.  l'ae,  mãe  v  uma  lilha  conslituiam  a  ouirti. 
Houvera  ahi  também  um  filho;  mas  e>se  morrera en- 
fuicado  por  se  .•u-liar  cúmplice  ii\inia  eonspiraçuo  li- 
beral. 

•lá  \ês  que  nenhuma  tTellas  podin  deixar  de  ter 
1111  fundo  do  coraçãci  grandes  ódios  ao  parliilo  con- 
trario. Diante  d"iiiiia  erguia-se  a  imagem  do  cadá- 
ver de  um  pae  ;  diante  da  outra  a  do  caihuer  tie 
um   fiilio.' 

.\iubas  as  famílias  conheceiído-se  de  nome.  >i>en- 
do  vizinhas,  \rndo-,ve  a  lodos  os  iiislaiiles,  vieram  por 
fim  a  contniir  relações,  1'aii  politica  e  <|Ue  n."io  fiil- 
lavam  nunca,  nem  podiam  fallar.  i).  .Mlonso  de  M«- 
iiczcs  era  o  nome  do  homem  a  quem  tinliiim  en- 
forcado o  lilho  por  sir  constitucional ,  l'aulo  o  do 
mancebo   a  quem    luniauí  »»s«MÍn»do   o  pae   por  ser 


.366 


O  PANORAMA. 


realista.  Quando  Henriqueta,  mulher  de  D.  Affon- 
so,  via  1'aulo  ao  lado  de  sua  mãe,  levando-a  a  pas- 
sear á  tartle  por  aquelles  campos,  amparando-a  com 
o  seu  braço,  aftagando-a  com  as  suas  pala\Tas ,  re- 
prescnta\  ii-se-lhe  a  querida  imagem  do  filho,  crean- 
ça  ainda,  vindo  alegre  e  descuidado  arremessar-se- 
Ihe  nos  braços,  cobrindo-a  de  beijos,  enchendo-a  de 
caricias ;  e  \'ia-o  depois,  homem  feito,  subindo  as 
escadas  do  patíbulo,  com  a  alva  vestida,  encaran- 
do orgulhosamente  as  turbas,  e  protestando  em  no- 
me de  Deus  e  das  idéas  contra  aquelles  que  o  sa- 
crificavam. O  extremo  arranco  da  agoiúa  do  filho, 
parece  que  o  escutava  n'aquelle  instante  o  atribu- 
lado coração  da  mãe.  Oh  !  então  despregava  os  olhos 
d'aquelles  dous  entes,  porque  nos  desvarios  da  sua 
afflicção  como  que  se  lhe  representava  n^elles  o  par- 
tido que  levara  seu  filho  ao  cadafalso. 

Era,  porém,  momentâneo  isto,  e  a  sua  alma,  rica 
de  abnegação  e  de  bondade,  reagia  contra  aquelles  te- 
Jiebrosos  pensamentos.  Tornava  a  cravar  n"elles  os 
olhos,    e  não  raro  exclamava  banhada  em  lagrimas  : 

—  "Também  a  ella,  coitada,  lhe  assassinaram  o 
marido :,  também  a  cite  o  deixaram,  tão  moço,  sem 
pae.^'  —  E  assim  ficava  até  que  Luiza,  a  sua  filha 
querida,  lhe  vinha  saltar  ao  pescoço,  e  derramar, 
com  feiticeiras  caricias,  bálsamo  consolador  na  larga 
ferida  que  lhe  traspassava  o  coração. 

II. 

■'  Luiza  .  .  .  Oh,  se  eu  te  pudesse  fazer  o  retrato  de 
Luiza  !  Imagina  uma  creança  de  quatorze  para  quin- 
ze annos,  alta,  elegante,  proporcionada,  flexível  co- 
mo a  liastea  tenra  de  arbusto  novo.  Pallida,  mas  não 
de  certa  pallidez  que  re\ela  uma  saúde  débil  :  pelo 
contrario,  o  seu  rosto,  da  alvura  particular  e  avelu- 
dada da  camellia,  animando-se  cora  amais  leve  sen- 
sação, denunciava  que  um  sangue  puro  girava  por 
aquellas  veias. 

Se  a  visses  doidejar  como  uma  creança  travessa 
por  a(]uellas  luxuriantes  várzeas  da  minha  aldêa,  in- 
nocentc,  risonlia,  fresca,  cheia  de  vida  '  Se  a  pudes- 
ses contemplar  ao  bater  das  Avc-Mai-ias,  resando  a 
poética  oração  nos  degraus  d'aquella  cruz,  que  se  ele- 
va a  meia  encosta,  junto  da  qual  estiveste  já  ;  se  a 
pudesses  contemplar,  com  as  mãos  erguidas,  com  os 
olhos  azucs  puríssimos  fitos  no  céu  bclla,  bianca  vcs- 
tiia,  como  diz  o  Dante,  cuidarias  ter  diante  de  ti 
realísada  uma  das  visões  encantadoras  <|ue  Shak- 
speare  nos  fez  conhecer  pelos  doces  nomes  de  Ophelia 
ou  do  Miranda. 

Paulo  fora  educado  na  ccirto ;  seu  pae,  membro 
de  uma  das  mais  illustres  faniilias  de  Portugal,  con- 
sumira nos  des\aries  do  grande  mundo  quasi  toda  a 
sua  imniensa  fortuna. 

Paulo  tinha  quinze  annos,  cpiando  seu  p.ie  fOra 
assassinado ;  n"esse  mesmo  anuo  sua  mãe  viera  com 
elle  para  a  província,  e  ali  viviam  os  dous  desafoga- 
damente com  (IS  bens  «pie  lhes  restavauí. 

(■luando  o  vi  pela  primeira  vez  era  cu  uma  crean- 
ça apenas ;  mas  ficou-me  tão  vivamente  impressa  na 
imaginação  a  figura  d'a(|uelle  homem,  que  ainda 
hoje  me  parece  que  a  estou  vendo  diante  de  mim. 
Os  ollios  eram  negros  e  seintillantes  como  os  de  um 
árabe  dolledjaz  ou  doVcmeu,  atesta  larga  opromi- 
nente,  as  sobrancelhas  curvas  e  bastas,  o  perfil  gre- 
go, a  hòc.i  graciosa  e  grave  :  pallido,  excessi\  amcnte 
pallido,  com  uma  grande  expressão  do  melancho- 
lia  derramada  pelo  semblante.  Até  hoje  não  tornei 
a  vêr  outra  phvsionomia  tão  nobre  como  nquella. 
Nas  linhas  regulares  do  seu  rosto  quaesquer  olhos 
descubririam   á  primeira  vista  os  dotes  de  vasta  in- 


telligencia,  de  vontade  inabalável,  de  nobreza  de 
caracter  em  grau  difficil  de  encontrar.  Sluando 
Paulo  ^^u  Luiza  pela  primeira  vez,  era  ella  uma 
creança  ainda.  Tinha  onze  annos.  fiuatro  annos  de- 
correram sem  que  entre  ambas  as  famílias  existissem 
outras  relações  que  não  fossem  as  de  simples  delica- 
deza. 

Uma  noute  que  D.  AíTonso  de  Menezes  recolhia 
para  sua  casa,  foi  assaltado  por  um  bando  de  ho- 
mens, agarrado  sem  que  pudesse  resistir-lhes,  e  ia  a 
ser  assassinado  no  momento  em  que  Paulo,  pas- 
sando a  cavallo,  \eíu  como  ura  relampajo  sobre  eW 
les,  e  conseguiu  salval-o.  D.  AfTonso,  que  era  um 
nobre  caracter,  votara  agradecimento  eterno  a  Pau- 
lo ^  comtudo  ha^ia  momentos  em  que  elle  quita- 
ra antes  ter  morrido  do  que  dever  a  vida  ao  braço 
de  um  realista. 

Desde  essa  noute  as  duas  famílias  principiaram  a 
viver  nas  mais  estreitas  relações.  Luiza  tinha  quinze 
annos  então. 

III. 

O  coração  de  Paulo  alimentava  dous  poderosos 
sentimentos,  a  amizade  e  o  odío ;  a  amizade  a  sua 
mãe,  e  o  odío  aos  homens  que  tinham  apunhalado 
seu  pae,  embora  elle,  livido,  banhado  de  sangue,  no 
meio  dos  paroxismos  da  morte,  lhe  houvesse  implorado 
perdão  para  os  que  o  tinham  cobarde  e  cruelmente 
assassinado. 

Mas  Paulo  não  perdoara  :  o  sentimento  da  vin- 
gança lá  lhe  estava  no  mais  fundo  do  peito,  e  elle 
esperava,  apparenteraente  tranquillo,  a  hora  de  o 
poder  satisfazer,  porque  sabia  qual  era  a  mão  que 
descarregara  o  golpe  sobre  o  coração  d'aquelle  que 
lhe  havia  dado  o  ser. 

De  outros  quaesquer  sentimentos  estava  a  sua  al- 
ma virgem.  O  amor.  .  .  oh  !  esse  existia  para  elle 
em  sonhos;  apparecia-lhe  nas  formas  de  creaf  ura  hei- 
la,  de  olhos  languidos,  de  sorriso  angélico,  de  vestes 
brancas,  que  vinha  seutar-se-lhe  ao  pé  horas  e  horas, 
olhando  para  elle  meigamente,  dizendo-lhe  palavras 
íncomprehensiveis,  mas  arrel»atadoras.  O  amor,  como 
todos  nós  o  sentimos  aos  quinze  annos,  sentia-o  elle 
já  depois  dos  vinte  cumpridos ;  isto  c,  vago,  mvste- 
rioso,  phantastico,  como  tudo  quanto  sonha  a  nossa 
imaginação. 

O  ente  que  realisasse  n'este  mundo  os  seus  sonhos, 
cora  que  energia,  com  que  virgindade  havia  de  ser 
amado  por  aquelle  homem  I 

IV. 

Quando  Luira  encontrava  Paulo  faiia-se  verme- 
lha como  a  romã.  Elle  scguia-a  largo  tempo  com 
os  olhos,  en>  quanta  cila  corria  por  aquollas  vaneas. 
jiulava  pelas  margens  d"aquelle  rio,  ligeira  como  a 
gazi'lla,  virente  cvmo  ol_\rio,  candiíla  ivmo  a  jKimtia. 

L  ina  tarde  Luiza  e  sua  mãe  foram  com  a  mãe 
de  Paulo  até  a  igreja  de  Nossa  Senhora  do  Monte, 
que  se  abre  para  dar  a  festa  dos  tralvdliadores,  e 
que  lica  a  meio  d'aquella  grande  encosta,  como  tu 
sabes. 

Era  na  prinuivera  :  não  havia  um  talho  de  terra, 
que  na  minha  abcnçojfda  aldèa  não  estivesse  coberto 
de  relva  e  de  llor<>s. 

A  madre-silva  jh-Io  vallado.  a  murta  florida  |K'Io 
mato.  a  ros;i  agn-ste  j>elas  campina>.  cxhalav.iiii 
aquelles  suaves  perfumes,  que  aspirad»»  na  bris,i  fn-s- 
ca  de  uma  lK>lla  tarde  do  abril  nos  ombriaíam  sua- 
vcuiente  os  sentidos,  p  nos  traicm  á  imaginação  as 
sccnas  ni.igicos  da  nossa  inf.incia,  e  os  dias  felijet  da 
no^s;i  mocidade. 


o  PANORA3IA. 


367 


Paulo  fhegára  mais  tarde  á  igreja,  e  sentado  no 
adro  esperava  por  ellas,  contemplando  o  firmamen- 
to que  SC  esmaltava  para  o  lado  do  poente  de  nu- 
vens caprichosas  e  variamente  coradas  pelos  últimos 
resplandores  do  sol. 

Sentiu  um  lii^eiro  rumor  de  roupas  ao  pé  de  si  : 
voltou-se.  Era  Luiza. 

Ambos  ficaram  por  momentos  calados ;  depois  el- 
la,  tremula,  vermelha,  perturbada,  disse-lhe : 

—  í; Porque  e^tá  triste.'  Não  gosto  de  o  vêr  as- 
sim ...  já  nos  conhecemos  ha  tanto  tempo  e.  .  .  " 

—  »i  E  afflige-a  a  minha  tristeza,  Luiza  ?  -•' 

—  "  Se  soubesse.  .  .  " 

—  II  O  que?  " 

—  u  Nada  ..."  respondeu  ella,  fazendo-se  escarla- 
te como  uma  rosa  de  cem  folhas. 

N'este  momento  vinha  saindo  a  gente  da  igreja  : 
Luiza  foi  a  correr  para  dentro  \  Paulo  deixou-se 
cair  sobre  os  degraus  da  cruz,  pallido  e  vacillante 
como  se  uma  vertigem  o  tivesse  deslumbrado. 

(Continua.) 


R.  A. 


Bt 


IÃO  Pato. 


THOMAZ  ANIELLO  (MASANIELLO.) 

(Revolução  de  Nápoles  em  1647.) 

Ek.\  sob  a  pressão  de  tantos  males,  e  estimulada  pe- 
la dòr  de  constantes  violências,  que  a  multidão  to- 
mava as  armas,  e  levantava  em  fim  a  voz  imperiosa. 
Asslomerando-se  no  mercado  e  fazendo  conselho  en- 
tre  si,  os  populares  elegeram  para  seu  capitão  a 
Auiello  Petrone,  homem  de  grande  séquito  e  de 
animoso  espirito.  Este  começou  por  soltar  os  bando- 
leiros, que  estavam  em  ferros  ^  mas  apesar  da  boa 
vontade,  que  aparentava,  as  desconfianças  sobre  a 
sua  lealdade  tornaram-se  veheraentes,  e  os  mesmos 
que  o  tinham  elevado,  depozeram-no  como  parcial 
conhecido  do  duque  de  Matalona.  Foi  em  seu  logar 
qu(!  entrou  Tliomaz  Aniello  de  Amalfi,  auctor  do 
movimento,  mancebo  de  vinte  e  dous  annos  e  po- 
lirissimo  pescador  á  linha,  que  não  possuía  nem  um 
valor  Ínfimo  de  que  pudesse  tirar  dous  palmos  de  re- 
de 1  Investiram-no  depois  de  nomeado  nas  faculda- 
des precisas  para  governar  as  armas,  e  deliberar  a 
eitecução  das  cousas  essenciaes  ao  serviç-o  da  cidade, 
<•  promelleratn-lhc  auxílio  e  obediência. 

Maaaníello,  sem  despir  os  trajos  vis  que  o  cobriam, 
congregou  o  povo,  e  em  assembléa,  dictarani-se  di- 
versas ordtrns,  assumindo  elle  i|uasí  a  auctoridade  de 
capitão  general.  A  mais  importante  das  suas  provi- 
dencias foi  a  pena  de  morte  decretada  contra  quem 
matasse  ou  roubasse,  valendo-se  da  publica  agitação. 
Seguiu-sc  dirigir  aviso  e  convocação  ás  terras  próxi- 
mas, p^nlindo-lhes  ajuda,  favor  e  correspondência. 
Por  ultimo,  considerando  que  agente  era  muita  e  as 
armu4  poucas,  resolveu  ajioderar-se  das  da  cidade, 
investindo  o  posto  de  S.  Lourenço,  aonde  se  guar- 
davam. Debalde!  A  nobreza  tinha-o  reforçado  com 
cincoenta  soldados  hespanhoes,  sob  o  conmiando  de 
iiiagio  de  Kusco,  logar  tenente.  O  combate  foi  bre- 
ve, e  a<<sim  mesmo  custou  u  vida  a  um  plebeu  e  u 
dous  frades  de  S.  Lourenço.  O  povo  retirou-se,  e  o 
suu  chefe  passou  a  piir  em  pratica  outras  medidas. 
Mandou  pois  que  se  buscassem  as  armas  pelas  casas 
dos  cidadãos  e  mercadorias  d'cllas  \,  e  assim  colheu 
muitas  proinptíiniciite,  sobre  tudo  nos  armazéns  de 
João  .Vndré  .Ma-sollo.  genovez,  aonde  acharam  para 
i-iiiiu  de  Ires  mil,   com  todos  os  adereços  perteuceu- 


I  tes  ao  fornecimento  real,  e  que  não  estavam  já  en- 
I  tregues,  porque  o  negociante  recusava  dal-as  antes 
I  de  receber  o  dinheiro.  Apenas  Masaniello  se  viu  pro- 
vido de  armamento,  repartiu-o  por  companhias  que 
formou,  nomeou  os  cabos,  e  entendeu  em  todas  as 
outras  disposições  de  guerra,  que  podiam  concorrer 
para  a  segurança  da  defesa,  e  para  estimular  os  brios 
á  revolução.  O  applauso  e  a  estimação  que  soube  ga- 
nhar grangearam-lhe  a  maior  influencia.  t>  povo, 
que  em  mangas  de  pé  e  de  cavallo  discorria  pelas 
ruas,  executava  as  suas  ordens  fielmente,  e  vendo-o 
cuberto  como  andava  com  os  andrajos  da  pobreza, 
reverenciava-o,  como  se  a  cori5a  de  rei  lhe  cingisse  a 
cabeça  em  vez  do  barrete  vermelho  dos  pescadores  de 
Amalfi  ! 

O  duque  de  Matalona  tinha  sido  preso  logo  no 
dia  8  de  julho  pelo  governo,  como  suspeito  de  fau- 
tor ou  de  cúmplice  nos  tumultos  da  cidade.  Este  ri- 
gor pareceu  grande  erro  a  alguns  dos  conselheiros  do 
vice-rei,  e  instaram  para  que  o  soltasse  na  certeza 
de  ser  o  único  homem  capaz  de  desarmar  a  rebellião, 
destruindo  o  chefe,  por  meio  das  intelligencias  que 
trazia  no  mercado,  e  do  poder  que  Petrone,  seu 
cliente,  conservava  entre  a  gentalha,  contando  mais 
de  tresentos  bandoleiros  e  outra  Ínfima  relê,  que  o 
seguia.  O  duque  dos  Arcos  accedeu ;  propoz-se  o  pa- 
cto ao  preso  d'estado  \  e  Matalona  não  hesitou  em  o 
acceitar.  Passadas  algumas  horas  o  fidalgo  italiano 
passeava  solto  pela  cidade  no  meio  do  pasmo  de 
quantos  sabiam  o  aperto  do  cárcere,  em  que  jazia, 
e  ignoravam  a  secreta  convenção,  com  que  obtivera 
a  liberdade,  Gluasi  ao  mesmo  tempo  os  populares, 
indo  tirar  a  pólvora  de  um  deposito  perto  da  praia, 
descuidaram-se,  o  fogo  pegou,  e  houve  uma  explo- 
são, em  que  morreram  perto  de  sessenta  pessoas,  a 
maior  parte  curiosos,  que  estavam  admirando  a  no- 
vidade. 

Solicito  em  agradar  ao  governo,  e  em  preencher 
as  clausulas  do  pacto  secreto,  o  duque  de  Mata- 
lona veiu  no  dia  9  ao  mercado,  com  o  pensamen- 
to de  mandar  assassinar  a  Masaniello,  e  achando  a 
facção  perigosa,  de  embaír  o  povo,  socegando-o  com 
falsas  concessões.  Para  esse  fim  muniu-se  de  um  pri- 
vilegio apocrvpho,  que  fingia  ser  de  Carlos  V,  pe- 
dido pela  cidade.  Apresentou-se,  e  fallou  no  senti- 
do de  aplacar  as  discórdias  com  elle.  Mas  os  crédu- 
los foram  poucos.  O  maior  numero  receioso  de  cila- 
das, advertido  pela  experiência,  e  justamente  des- 
confiado da  brevidade  da  soltura  do  duque,  repelliu 
o  diploma,  tratando-o  de  mentira,  e  guardando  á 
vista  por  todo  o  dia  o  emissiirio,  i|ue  já  principiava 
a  arrepender-se  do  encargo  (|ue  tomara;  m>  pilo  de- 
clinar da  tarde  é  que  o  deixaram  livre,  intimaiido-o 
para  ijue  saísse  e  não  voltasse  com  >ímílliaiites  men- 
sagens, se  queria  evitar  maior  desgosto.  .\  cssii  hora 
mesmo  entrava  na  praça  CarralV.i,  prior  da  Hocella, 
e  alguns  fidalgos  a  cavallo,  tra/.endo  um  Iromlwlado 
vice-reí,  e  offereccndo  landuMu  outro  privilegio,  de- 
clarando ser  o  verdadeiro  privilegio  di'  ("arlos  V'. 
Chegando  ao  sitio  aonde  Tliomaz  .\nicUo  estava  com 
os  principaes  do  povo,  a  cavalgada  teve  de  >o deter; 
e  o  ])ajiel  examinado  e  convencido  de  fal.H»  serviu  de 
corpo  de  delicto  contra  a  má  fé  do  governo  e  dos 
agentes,  que  enviava.  \  simplicidade  do  pescadorde 
.\nialfl  ainda  uma  ve<  humilhou  a  asiuci.i  dos  con- 
selheiros aidí<'os,  dando-lhes  liç-õe>  severas, 

Adiaiilando-se  com  aspi'i'to  carregado  e  gesto  no- 
bre, Masaniello  exclamou  :  >•  Não,  vos  lulo  sois  emu- 
sarios  doviíf-rei;  sois  a]H'nas  faUarios  e  i'ml>aido- 
res  pagos  para  trair.  Não  i-  pos>ivi'l  que  o  governo 
commctfesse  u  infâmia  tic  vai  m.indar  mentir  e  en- 
ganar cm  seu  nume  1   N.io  vos  conheço  I  ••   Dito  isto. 


368 


O  PANORAMA. 


voltou-lhes  as  costaj,  e  ordenou  que  o  trombeta  fos- 
se apeado,  assim  como  os  fidalgos,  que  não  se  esca- 
param pouco  maltratados.  O  prior  deveu  ao  seu  ca- 
racter conciliador,  e  a  sua  conhecida  probidade  na 
questão  da  yaheUa,  a  segurança  com  que  o  deixaram 
retirar.  Desfeito  o  primeiro  trama,  mas  descuberto 
por  elle  o  plano  do  governo,  o  chefe  dos  populares 
redobrou  de  vigilância,  e  preparou-se  para  sustentar 
a  lucta  com  vigor. 

Algumas  das  freguozias  do  termo  eram  vagarosas 
om  se  mover,  dominadas  pelo  temor  dos  hespanhoes, 
ou  dirigidas  pelos  avisos  da  nobreza.  Thomaz  Aniello 
jutimou-as  para  que  se  armassem  immediatamente  e 
acudissem  ao  mercado,  assegurando  que  a  sua  deser- 
<;ão  seria  punida  com  o  incêndio  das  casas  e  das  lo- 
jas de  venda.  Como  o  bairro  deChinya,  apesar  d'' es- 
ta ordem,  por  ser  distante  parecia  disposto  a  não 
cumprir,  enviou-lhe  um  recado  em  termos  grosseiros 
e  cheios  de  ameaças.  Dentro  de  duas  horas  tinham 
obedecido  todos,  e  perto  de  três  mil  marinheiros  e 
pescadores  vinham  engrossar  as  forças  da  rebellião. 
Seguiu-se  a  proscripção  dos  argcntarios  cúmplices  nas 
extorsões  dos  impostos.  A  gentalha  sedenta  de  vin- 
gança exigia-a  em  altos  brados,  e  o  seu  cabeça,  ru- 
de e  devorado  de  iguaes  paixões,  nem  queria  nem 
podia  conter  o  Ímpeto  á  torrente.  Formou  por  tanto 
uma  lista  de  cento  c  vinte  casas  condem  nadas  a  ser- 
virem de  exemplo,  por  se  terem  enrequecido  com  o 
sangue  dos  pobres  \  e  dadas  as  instrucções,  e  distri- 
buídas as  companhias,  na  seguinte  noute  soltou  a 
cadéa  ao  tigre  popular,  e  deixou-o  cevar-se !  As 
chanimas,  levantando-se  ao  mesmo  tempo  de  difle- 
rentes  partos,  os  clamores,  o  ruido  das  armas  e  do 
estrago,  offereciam  um  espectáculo  tremendo.  As  fa- 
zendas e  os  moveis,  que  se  encontraram,  foram  quei- 
mados ou  atirados  pelas  janellas  fora  ;  entretanto  pa- 
rece que  nenhum  roubo  manchou  de  mais  sombras 
as  atrocidades  doesta  scena  lastimosa.  O  vento  sopra- 
\n  fresco,  e  sacudia  pelo  ar  as  faíscas  \  os  tectos  desa- 
bavam com  fragor  i  o  clarão  sanguíneo  dos  incêndios 
avermelhava  as  ruas  e  o  céu,  rellectindo-se  longe. 
Era  tudo  horror,  estrépito  e  luto.  JMuilos  julgaram 
que  tinha  chegado  o  ultimo  dia  de  Nápoles! 

Os  religiosos  saíram  em  procissão,  de  cruz  alçada, 
pedindo  em  penitencia  a  JDeus  que  mitigasse  a  sua 
cholera,  socegando  as  commoções.  Os  homens  abas- 
tados, trémulos  epallídos,  ajuntavam  á  pr(«sa  os  ob- 
jectos preciosos,  procurando  fugir  de  uma  cidade  so- 
bro a  qual  o  braço  armado  do  povo  fazia  pesar  in- 
distinctamente  o  castigo  e  a  vingança,  a  ruina  e  a 
assolação.  Mesmo  os  mais  innoccntes  nos  contratos  c 
nos  rigores  fiscaes  suppunham-se  expostos,  c  calcula- 
vam com  anciodade  o  momento,  em  que  Ihcs^ocaria 
o  seu  quinhão  na  desgraça  commum.  Nas  casas  dos 
principacs  gcnovczos,  que  ainda  não  eram  pasto  das 
chainmas,  não  se  ouviam  senão  lamentos  c  gemidos. 
Implicados  nas  arrematações  dos  tributos,  e  assigna- 
lados  como  baiuiueiros  do  governo  a  preço  de  grossa 
usura,  os  monetários  amaldiçoavam  já  tarde  os  lucros 
exorbilaiiles,  e  dariam  de  bom  grado  a  metade  da 
sua  iorluna  por  salvar  a  outra  e  as  pessoas  do  riseo 
ominenlo.  E  com  ra/.ão.  (Auebrado  o  freio  das  leis, 
r  solta  a  pedra  da  funda,  "quem  poderia  di:'.er  o  sitio 
onde  elhi  iria  bater? 

( )  povo  agora  era  o  soniior  ;  mas  um  senhor  cruel 
e  ini|)hicavel,  ulcerado  <■  olVendido,  que  se  compen- 
sava do  passado  solVrimenlo  com  as  iras  da  \icloria. 
Nem  o  palácio  de  CorneJio  Spínola,  cavalheiro  ijua- 
liticado,  e  \ali(h>  dos  vice-roís,  homem  honrado  c 
estranho  aos  abusos  dos  impostos,  foi  isento  da  bar- 
liara  devastação.  Apenas  leve  tenqio  para  salvar  as 
alfaias  mais  ricus  dentro  do  caslcUo,  ucolhcudo-se  as 


suas  torres.  A  multidão  logo  dépob,  rufando  tambo- 
res e  levantando  gritas,  arremetteu  dbposta  a  pra- 
ticar o  que  fizera  ás  outras  habitações.  Uma  ordem 
de  Masaniello  chegou  porém  ainda  a  tempo  de  im- 
pedir que  lhe  puzessem  fogo,  mandando-a  respeitar. 
O  mesmo  succedeu  com  a  de  Navarreta,  a  quem  o 
povo,  por  um  dos  seus  caprichos  usuaes,  passando  do 
ódio  ao  enthusiasmo,  acclamou  por  thesoureiro.  com 
maior  assombro  d'elle,  que  dos  próprios  vozeadores. 
O  núncio  da  cidade  e  o  visitador,  diante  da»  terrí- 
veis represálias  da  revolta,  soltaram  os  presos,  e  man- 
daram reunir  as  milícias  ;  encerrando-se  com  o  mais 
precioso  que  tinham  dentro  dos  muros  da  cidadella. 
A  obra  da  assolação  consummou-se  sem  obstáculo ., 
e  ao  outro  dia  as  paredes  requeiroadas  e  os  montões 
de  ruinas  no  logar  aonde  eram  as  opulentas  moradas 
dos  potentados,  como  padrões  de  horror,  contavam  a 
historia  da  tyrannia  passada,  memorando  a  catastro- 
phe  da  tyrannia  recente.  A  medida  dos  crimes  e  da 
demência  começava  a  encher-se  contra  o  povo.  como 
trasbordara  pelas  extorsões  e  violências  da  nobreza. 


L.  A.  R 


EBEILO   DA   bllVA. 


Aperfeiçoamento  nos  matcriaes  que  se  empregam 
pai-a  conservar  os  navios.  —  Este  processo  consiste 
em  fabricar  e  preparar  composições  ou  tintas  para 
preservar  c  proteger  o  forro  dos  navios;  e  para  se 
conseguir  este  resultado,  pode  empregar-se  qualquer 
dos  seguintes  moios  : 

Primeiro  processo. — Tomem-se  8  a  10  partes  de 
fel  de  Víicca  ;  accresccntem-se-lhe  30  libras  de  carbo- 
nato de  ferro  ou  de  plombagina ;  mistureni-se  esta» 
duas  sulisfancias  até  se  converterem  em  pó ;  e  ajun- 
tem-se-lhe  4  g;dlões  de  agua  do  mar. 

Seyumlo  processo.  —  Tomem-se  30  libras  de  car- 
bonato do  ferro  ou  de  plombagina  era  pó,  e  cerca  de 
3  libras  do  arsénico  branco ;  juntem-se-lhe  2  gallões 
e  meio  de  alcatrão,  de  naphta,  ou  essência  de  te- 
rebenthina,  e  12  ou  14  libras  de  pez  de  Suécia,  dis- 
soh-idas  n'uma  quantidade  igual  de  espirito  de  vi- 
nho ;,  místurem-se  depois  até  tomarem  a  consistência 
da  tinta. 

Terceiro  processo.  —  Para  conservar  o  forro  ou  o 
zinco  emprega-se  um  preparado  de  gutta-pcrcha,  que 
se  dissolvo  no  alcatrão,  ou  naphta,  de  modo  que  se 
lhe  dê  a  consistência  necessária  para  poder  applicar- 
se  com  um  pincel. 

Qtiario  processo.  —  Tomem-se  10  libras  de  carbo- 
nato de  ferro  ou  de  plombagina  pulvorisadas,  e  1  li- 
bra de  arsénico  branco ;,  misturom-sc  estas  duas  sul>- 
stancías,  e  ajunte-se-lhe,  ai]uecendo-o,  o  cobo  neces- 
sário para  as  ligar  intimamente ;  depois  piíde-se  ap- 
plicar  o  mixto  obtido  sobre  aquelles  objectos  que  se 
i|uizcrom  conservar. 

(  Rqieriory  of  paicni  inveniions.) 


Maneira  de  firar  ás  i'asilhas  o  chcint  de  Mor.  — 
Díluem-se  duas  partes  do  acido  sulfurio'  em  dei  di- 
tas de  agua  doce  :  lavaui-se  as  vasilhas  ciun  esta  mis- 
tura ;  c  passadas  duas  ou  Ires  horas  ropet«^M>  a  lava- 
gem com  diversas  aguas,  ate  s;i\rem  jM-rfeitamcnte 
limpas  c  claras. 

Conseguc-se  o  mesmo  result.id»,  queimando  den- 
tro das  vasilha»  uma  mistura,  om  partes  iguaes,  de 
nitrato  de  potassa  (salitre)  o  enxofre. 

l'sando  d 'esto  segundo  meio,  doixa-se  fanilwm  de- 
correr o  espaço  de  duas  ou  trcs  lioras,  e  procedc-s»» 
por  líni  ás  lavagens  com  agua  duce. 


47 


o  PANORAMA. 


369 


BARCOS   Bi:   SALVAÇÃO. 


O  DESASTROSO  naufragío  do  vapor  portugucr  Porto 
será  liímhrafli)  soinprf  como  uma  das  maiores  catas- 
Iropliiví  a<.'í)nli"('i(l:i»  iia  t('iii<'riisa  harra  do  Douro,  \'o- 
ragom  fcrrive),  i|ut'  toiíi  engulido  nuiitos  centos  de 
victiiiiaH  '. 

Não  Ijaslava,  porétn,  a  graiidi  za  do  desastre,  ae- 
CTCseitu  ainda  a  falia  <|uasi  alttoiuta  de  soecorros  ef- 
fieaze»,  e  a  eoiiseieiíeia  <!(•  <jiie  tantos  infelizes  pere- 
ceram vietinias  da  re[)reheiisivel,  e  não  só  reprelien- 
bivel,  eriniinosa  incúria  e  desleixo  dus  governos,  pa- 
ra tiirnar  niuis  profunda  a  dAr  sincera  (jue  pungiu  o 
lorayão  di-  i|uanl(js  tiveram  noticia  iraiiuelle  lucluo- 
»o  acontecimento  com  t(idos  os  >eus  liurronisos  pro- 
iiieiiorcs, 

Se  oesladi)  da  liarra  do  l'orlii  é  ou  não  suíccpti- 
yel  de  se  nielliorar,  mio  o  podemos  nós  ilizer  \  nem 
o  logar  é  próprio  para  tratar  uma  nialiTia  tão  im- 
portiiiile,  nem  pela  varieilade  de  opiniões  dos  homens 
mais  eompelcnics  nn  nmicria  sujeita,  e  possível,  á 
falta  dos  dados  e  lial)ilila<;riea  inilispensa\eis,  formar 
juizo  seguro.  K  <'crlo,  porem,  lpu^  o  problenui  não 
pariM.c  irri'.soluvil,  fin\>  <pianlo  para  sua  renolução  se 
encontrem  difficulilades  do  maior  vultu. 
VoL.   I.  — J."  Skiuh. 


Luii  Gomes  de  Carvalho  escreveu  uma  extensa 
memoria,  impressa  no  volume  9."  das  da  Academia, 
sobre  o  estado  daquella  iiarra,  e  trabalhos  necessá- 
rios, (pie  na  opinião  do  liabil  engenheiro  podiam  nic- 
Ihoral-a ;  esses  trabalhos  começaram  de  feito,  mas  a 
barra  peiorou.  Knganar-se-ia  o  nosso  engchlieiro  na» 
suas  prcvisõ<'S,  ou  dependeria  o  nulhorainento  defi- 
nitivo cia  barra  da  inteira  conclusão  das  obras  pro- 
jccladas  ,'  K  o  ipie  não  pcúle  averiguar-se. 

Outros  meios  tem  lendirado,  sem  si-  obter  resulta- 
do algum  •,  eontralou-se  o  «piebramenlo  dos  rochedo» 
ipie  obstruem  a  barra  ;  nus  esta  obra  nem  chegou  a 
conieçar-se  ,  íueram-se  outros  estudos,  e  a  barra  cada 
vez  a  peior '.  Kinalmente  o  naufrágio  do  vapor  /*<r- 
to,  sobre  muitos  outros  desastres,  e  o  nenlnini  pro- 
veito d'es5CS  p(iui'us  meios  empregados,  lei  lembrar 
a  conslrueção  de  um  porto  artificial,  no  logar  (juf 
se  julgasse  mais  próprio,  ligando-o  á  cidade  |Hir  meio 
de  earris-ferreos  ■,  i-sta  obra  dispeiidiosissima  li^i  man- 
daibi  estuilar  en>  concorrência  com  as  da  luvra,  por 
uniu    comniisião    nomeada  por  portaria   de  ;!  d'abrU 

de  íh:>-2. 

lim   nome  da  luimanidade  perniilla-se-nos  cjue  le- 
NoMíMiiuo  -M,  18;í<2. 


370 


O  PANORAMA. 


vanlemos  a  nossa  débil  voz  para  reclamar  de  quem  com- 
petir, o  cumprimento  de  promessas  feitas  tantas  vezes 
e  tantas  Vezes  esquecidas .  Melhore-sc  a  barra  se  é  pos- 
sível, ou  coiibtrua-se  o  porto  artificial  ^  mas  empre- 
guem-so  todos  os  meios  e  diligencia ;  sigam-se  os 
trabalhos  com  actividade  e  perseverança ;  se  os  en- 
genheiros nacionaes,  pela  falta  quasi  absoluta  de 
pratica  de  trabalhos  hidráulicos  de  certa  magnitude, 
não  satisfazem,  convideni-se  engenheiros  estrangeiros 
convonicntenicnle  halnlitados  \  empenhem-se  todos 
em  estudar  este  difficil  problema,  de  cuja  resolução 
depende  o  futuro  de  um  povo  laborioso,  e  de  uma 
cidade  grande  pelo  seu  commercio,  pela  sua  indus- 
tria epelo  caracter  generoso  e  leal  dos  seus  habitan- 
tes. A  barra  como  se  acha,  é  um  crime  de  lesa-hu- 
manidade,  e  uma  vergonha  para  esta  nação. 

Se,  porém,  não  é  possível  desde  já  prover  de  re- 
médio ao  estado  da  barra,  se  quaesfiuer  trabalhos 
que  se  emprcliendam,  ainda  que  executados  com  a 
desejada  rapidez,  tem  de  consummir  muito  tempo:, 
cremos  ser  íacil  ter  ao  menos  os  meios  para  que  da- 
da a  eventualidade  de  um  sinistro,  aliás  infelizmen- 
te frequentíssima  na  nossa  e.vtensa  costa,  se  possa 
acudir  aos  tristes  náufragos  conservando-lhes  sequer 
a  esperança  de  salvação. 

Estes  meios  devem  dcstribuír-se  pelos  pontos  mais 
perigosos  da  costa,  e  nao  só  limitar-seá  fózdoDouro. 
A  efficacia  dos  barcos  de  salvarão  está  provada,  c 
o  seu  emprego  é  facilimo.  A  nossa  primeira  estampa 
representa  um  grande  navio  de  vela  soccorrido  por 
um  dos  excellentes  barcos  de  salvação  de  Joseph 
Francis  (lift-%%irf-lmuis)  que,  apesar  da  braveza  das 
ondas  vae  estabelecer  a  eommunicaç.no  do  vaso  per- 
dido com  a  torra  —  n'outra  parte  damos  os  desenhos 
de  outros  barcos,  deumaconstrucção  e  applicação  dif- 
ferentes  (lifc-carsj;  mas  mui  prestadios  no  transjKjr- 
te  dos  náufragos  depois  de  estalieleeido  um  fac-vcm. 
O  digno  ministro  de  Portugal  cm  Nova-York,  o 
sr.  Joaquim  César  de  Fíganière  Mourão,  de  cuja 
curiosidade  c  lítteratura  existe  honroso  testemunho 
em  um  artigo  publicado  a  paginas  78  do  l."  volu- 
me doesta  coUecção,  assim  que  leve  noticia  do  nau- 
frágio do  vapor  l'i)rto,  oflieiou  ao  go\erno  em  datas 
de  28  de  abril  e  11  de  maio,  recomnicnilando  no 
primeiro  ofílcio  o  processo  do  professor  Maillefort, 
por  meio  do  qual  esse  engenheiro  francez  conseguira 
c(uebrar  e  remover  os  cachopos  que  obstruíam  a  na- 
vegação do  porto  de  Nova-York  \  e  no  segundo, 
dando  noticia  dos  barcos  de  salvação,  construídos  ])or 
.r<)seph  Francis,  e  que  declara  cslarem  em  uso  nos 
vários  pontos  da  costa  dos  Estados-L'nidos.  Em  l!(i 
de  maio  escrevia  o  mesmo  diplomata  o  seguinte  : 
i.  A  casa  de  Oslioru  cV.  Spencer  de  Nova-'^'ork  (Os- 
born  &  Irmão  do  l'orto)  tendo-mc  consulfadi-,  com- 
prou e  carregou  a  bordo  da  barca  (hiiljord ,  de  que 
são  proprietários,  um  dos  li/c-surf-hoati  e  ///t-c((»sde 
f''rancis,  com  o  louvável  fim  de  os  otlercccr  á  Socie- 
dade Humanitária  do  Porto,  pelo  custo  primitivo, 
<•  livre  do  frete.  >• 

Não  nos  consta  que  o  governo  tenha  alteudido 
convenientemente  ás  representações  do  nosso  distín- 
cto  representante  nos  Estados-Unidos,  e  mais  são  já 
passados  alguns  mezes  desde  que  succedeu  aipu-llo 
horroroso  sinistro  !  Porém  a  Sociedade  Real  Huma- 
nitária do  Porto,  associação  respeitável,  que  tem 
prestado,  apesar  da  sua  recente  fundação,  importan- 
tes serviços,  essa  recebeu  os  dous  barcos  referidos,  e 
duas  vezes  fez  experimentar  o  lifi-hoat,  com  o  mais 
extraordinário  successo,  em  presença  de  um  nume- 
rosíssimo concurso.  Toda  a  imprensa  |)criodíea,  ap- 
plaudindo  os  esforços  da  associação,  registou  o  resul- 
tado das   mencionadas  experiências,    «pie  não  podia 


ser  mais  favorável.  O  barco  de  salvação  que  possue 
a  Sociedade  Real  Humanitária  do  Porto,  construído 
em  Nova-York  pelo  systema  do  sr.  Joseph  Francii, 
dcnomina-se  Falentc;  é  todo  de  ferro  galvanisado. 
A  proa  e  á  popa  tem  duas  camarás  de  ar,  tão  for- 
temente construídas  que  resistem  aos  golpes  mais 
violentos.  Não  tem  leme,  bastando  um  remo  para  o 
governar  com  a  maior  facilidade.  Demanda  mui  pou- 
ca agua  \  e  não  ha  mar  que  o  afunde,  sobrenadando 
sempre  com  a  maior  galhardia  :  é  guarnecido  em  to- 
da a  borda  de  um  forte  chumaço  de  cortiça,  e  assim, 
ainda  que  vá  de  encontro  a  um  penedo,  dífiicílmen- 
te  soflrerá  algum  pequeno  damno.  Póde-se-lhe  lan- 
çar ura  grande  pezo,  e  de  grande  altura,  ao  meio  do 
porão,  sem  que  o  barco  padeça.  A  todas  estas  qua- 
lidades preciosas  que  o  tornam  de  uma  vantagem 
ímmensa  na  salvação  dos  náufragos,  reúne  ser  de  um 
preço  relativamente  módico,  e  não  carecer  de  repa- 
ros de  consideração,  estando  sempre  prompto  para  o 
serviço  que  se  requerer. 

A  casa  de  O^born  &  Irmão  do  Porto  tem  annun- 
ciado,  <jue  se  encarrega  de  quaesquer  encommcndas 
de  simílhantes  liarcos,  cuja  utilidade  é  incontestá- 
vel. Porque  não  ha  de  o  nosso  governo,  applicar  al- 
guns meios  á  acquisição  de  barcos  de  salvação  deste 
sistema,  desfribuindo-os  pelos  pontos  perigosos  da 
costa  ?  Porque  não  hão  de  as  nossas  companhias  de 
seguros  influir  para  que  se  adoptem  estas  e  outras 
providencias  igualmente  necessárias.'  Porque  não  ha- 
vemos de  imitar  o  exemplo  dos  americanos  do  nor- 
te, cujo  governo  obriga  todos  os  navios  de  guerra  e 
marcantes  a  proverem-se  de  barcos  de  salvação  ?  Por- 
que se  não  presta  um  apoio  enérgico  ás  diligencias  e 
generosos  esforços  da  Sociedade  Real  Humanitária .' 
Entregamos  á  consideração  das  auctoridades  compe- 
tentes estas  ligeiras  considerações,  confiando  que  não 
serão  dcsattendidus. 


ARCHEOLOGIA  PORTUGUEZA. 


A      l'ARTinA 


iNKASTE   U.   Manoel. 


Começamos  a  publicação  das  curiosas  carf.-is.  cscrip- 
tas  no  anuo  de  171  j,  reinando  el-rei  D.  João  \', 
acerca  da  saída  do  infante  D.  Manoel  sou  irmão. 
Este  incidente,  pouco  conhecido  ach.i-sc  descrípto 
com  extensão  na  primeira  correspondência  do  secre- 
tario de  estado  Diogo  de  Mendonça  que  hoje  trans- 
crevemos. .\crescentaremos  algumas  noticias  que  o 
podem  esclarecer,  explicando  os  verdadeiros  motivos 
que  inlluiram  no  animo  do  infante  para  dar  estr 
passo  temerário  contra  as  ordens  do  sol>orano. 

Em  officio  do  embaixador  de  França  cm  Portu- 
gal ao  niíníslro  dos  negócios  cstraugelros  M.  deTor- 
cy  reforc-se  o  projecto,  que  tinha  formado  o  infante 
D.  Manoel  de  ir  viajar  pela  Europa  jKir  tempo  de 
dous  annos.  Estava-se  oin  setembro  de  171o,  e  pare- 
ce que  a  idéa  de  seu  irmão  não  era  desagradável  ,i 
1).  João  \,  por  isso  que  não  se  observa  da  parte 
d"elle  o  menor  indicio  de  rf^istcncia.  Pelo  contrario 
designou-se  o  séquito  do  principc  que  devia  constar 
dl-  trinta  e  s<'is  pcssivis,  sendo  doze  dos  primpirasfa- 
uiilias  do  reino;  determinando  o  infante  principiar 
pela  Andalur.ia  e  mais  províncias  de  Hcspanha  até 
ao  Rus.-ilIião  ;  entrar  no  Languetloc  ;  e  seguir  d"ali 
para  Itália  c  .Vliemanha,  voltando  depois  jior  Fran- 
ça, com  o  cuidado  jxjréní  de  não  se  nprescnt.ir  nas 
capitães,  aonde  residisse  a  cOrlc  dos  sol<CTanos,  jwra 
evitar  o  ceremonial. 

Foi  no  meio  dVstcs  planos,  que  de  repente  se  de- 


o  PANORAIIA. 


371 


clarou  a  intenção  de  el-rei,  que,  a  pretexto  de  uma 
promessa  pia,  resolveu  fazer  a  romaria  de  Nossa  Se- 
nhora do  Loreto  viajando  por  terra.  O  conde  da 
Ericeira,  encarregado  pelo  nionarcha  de  dar  aviso 
d'esta  resolução  aos  diplomatas  das  dillercntes  na- 
ções, não  encubriu  a  nenhum  d'flles  o  pesar  que  lhe 
causava.  O  sr.  D.  JoãoVlinlia  lixado  para  4  de  ou- 
tubro o  dia  da  partida,  querendo  achar-se  pelo  Na- 
tal no  Loreto,  dicedido  a  i)crcorrcr  depois  a  Itália, 
a  AUemanha,  a  Hollanda,  a  Inq;laterra  e  a  França, 
por  espaço  de  um  anno,  le\ando  na  sua  companhia 
seus  irmãos,  o  secretario  de  estado,  os  condes  de  As- 
sumar,  de  Unhão,  da  Ericeira,  e  o  marquez  de  Ma- 
rialva. A  regência  ficava  entregue  á  rainha,  augmen- 
tando-se  o  numero  dos  ministros  ordinários  com  a 
nomeação  dos  marquezes  de  Alegrete  e  de  Frontei- 
ra, c  com  a  do  conde  de  Castello  Meliior,  que  de- 
pois de  largos  annos  de  desterro  c  desagrado  tornava 
a  ser  bem  visto. 

Não  é  para  aqui  individuar  os  enredos  postos  em 
pratica  pela  politica  dos  diversos  gabinetes  da  Euro- 
pa, uns  procurando  estorvar,  outros  desejando  ani- 
mar a  projectada  viagem  ^  nem  nos  cumpre  alargar 
csla  rii[)ida  informação  relatando  os  apreslos  do  es- 
tado com  que  o  ostentoso  monarcha  se  propunha  roa- 
lisar  incógnito  a  sua  peregrinação.  Talvez  consagre- 
mos um  artigo  especial  a  esle  facto,  for  agora  basta 
insistir  nos  pontos,  <iue  toem  intima  relação  com  a 
fugida  <hi  infante. 

A  rainha  amava  seu  esposo  e  era  cslremosa.  Ape- 
nas lhe  constou  o  plano  da  romaria,  e  a  ausência  de 
nm  anno,  a  que  no  fundo  tudo  o  mais  servia  dodis- 
farcíí,  declarou-se  contra,  e  não  ondltiu  meio  algum 
para  despersuadir  el-rei  da  jornada,  já  com  instan- 
cias próprias,  já  (-om  avisos  indirectos  dos  (embaixa- 
dores d(!  França  e  Inglaterra,  já  pelo  voto  dos  mais 
auclorisados  conscUieiros.  Rias  os  seus  esforços  não 
produziram  outro  eílcito  mais  do  que  confirmar  o 
monarcha  na  sua  idéa.  Achando  diante  da  sua  von- 
tade maior  rcsist<!ncia,  do  que  imaginava,  pela  sua 
índole  tenaz,  e  orgulhosos  espíritos,  1).  João  V  ce- 
gou-se  sobre  os  inconvenientes,  e  a  nada  altendcu. 
Expunha-sc  a  tudo,  com  tanto  (pie  provasse,  que  as 
suas  decisíTics  uma  vez  tomadas  não  se  alteravam, 
nem  cediam  aos  (jbstaculos. 

N'(;3l('  apuro  occorreu  á  rainha,  (piií  o  modo  úni- 
co de  (!mbaraç'ar  os  desejos  de  seu  marido,  cuja  par- 
tida fiira  transferida  para  març'o  de  171  ti,  consistia 
em  lhe  imr  diaiile  dos  olhos  o  exein[)lo  de  nm  prin- 
ci|)(',  (|iie  por  dever  da  cor(ja  elle  houV('Sse  de  estra- 
nhar. Para  isso  dirigiu-se  aoinfanlc  D.  IMano(,'l,  mo- 
ço ambicioso  e  impiieto,  ardendo  em  desejos  de  se 
moslrar  e  de  ganhar  fama,  cubicando  vêr  o  inundo, 
desvinculado  da  lulella  da  C(')rte  de  s(MI  irmão.  Oin- 
fanlc  ai-hava-se  d('Sconl(;nle  por  se  lhe  fruslrar  a  sua 
viagem  em  virtude  da  romaria  real;  e  ouviu  com  a 
maior  facilidade  as  sugestões  da  rainha  |irestando-se 
u  auxilial-:i.  Tralou-se  o  negocio  com  o  mais  fecha- 
do segredo,  e  uma  manhã  a  eilrt('  accordou  sabendo 
que  o  |irinci|)e  d(!sapparecêra  sem  licença,  e  que  se 
ignorava  ainda  a  sua  diree(;ão.  (-'omo  sua  esposa  pre- 
via, I).  João  V  foi  obrig.ido  a  desa|q>rovar  publica- 
nicMile  o  |n()Ccdiinento  do  infante,  susiicndcndo  u 
jornada. 

D  iiifunie  passou-sc  depois  á  Alhnianh;!,  e  tonlou 
serviço  nos  exércitos  imperiaes.  l'"oi  um  dos  capitães, 
(|U(í  assistiram  á  famo'.;i  balallia  de  llelgrado,  ganha 
em  ItJ  de  agoslo  de  1717  pelo  príncipe  Eugénio 
contra  os  'l'urcos. 

Eis  u  primeira  eorrcspondenci.i  expeitiila  ai>enas 
SC  soube  da  sua  fugida. 


Honteni    4  do  corrente  pelas  duas  horas  de|)ois  do 
meio  dia  se  deu  conta  a  Sua  Magestade  de  que  osr. 
infante  D.  Manoel  não  estava  no  seu  quarto,    e  que 
havia  saído  muito   de  madrugada  com   o  sr.  Manoel 
Telles  da  Silva,  lilho  de  v.  s."  (o  conde  de  Tarouca) 
e   um   reposteiro   levando   alguns   baús   do  seu  fato. 
Logo  deu  cuidado  a  Sua  Magestade  a  sua  falta,  por 
(jue  não  costumava  sair  o  sr.  infante  do  paço  sem  sua 
licença  ;  c  dej)ois  se  soube  que  fijra  em  uma  sege  com 
o  lilho   de  V.  s.''  e  o  reposteiro  á  Cartucha  (de  La- 
veiras.')    e   ali   se  embarcara   em  um  patacho   inglez 
chamado  Tanij,  capitão  Slarshani,  que  ia  para  A m- 
slerdam.  Como  se  teve  tão  tarde  esta  noticia,  quan- 
do  os   avisos  foram   ás  Torres  já   o  na\io  ia  fora  dos 
cabos  segundo  referiram  alguns  pescadores.  E  porque 
as  fragatas  da  coroa,   que  estavam  apparclhadas,  an- 
dam tora  esperando  a  frota,  e  no  rio  se  achava  uma 
de   guerra   ingleza,    que   veiu   buscar  D.  Paulo  Me- 
thwen,    me   ordenou   Sua   Magestade   lhe  escrevesse 
para   que   ordenasse  saísse  a  dita  fragata   em  segui- 
mento  do  navio,    o  que  elle  executou   com  tão  bons 
termos,    que  veiu  ao  paço  pedir  a  Sua  Magestade  o 
deixasse   ir   na   fragata.    E  com  elfeito   se  embarcou 
logo  pelas  10  horas  da  noutc  com  o  marquez  de  Ma- 
rialva,  (|ue  se  achava  de  semana,  que  foi  com  carta 
da  própria  mão  de  Sua  Magestade,  para  o  sr.  infan- 
te para  (jue  voltasse  para  esta  C(jrte  na  dita  fragata-, 
e  tambíMU  se  ordenou  ao  capitão  de  uma  das  nossas, 
(jue  anda  cruzando  nV-sles  niari-s,  que  fizesse  a  mes- 
ma diligencia  :,  por(|ue  além  do  grande  dissabor,  que 
causou  a  Sua  Magestade  a  inconsiderada  resolução  de 
Sua  Alteza,    lhe  dá  grande  cuidado  o  receio  de  que 
o  passam   apresar   os  mouros,    (]ue  tècni  tomado  dez 
prezas  inglozas  ha  pouco  tempo.    I'orém,  sendo  con- 
tingente enconlrar   o  tal  navio,    havendo  tantas  ho- 
ras, que  havia  saído  com  um  vento  rijo,  ('  mui  pro- 
vav(d  que  o  sr.  infante  vá  aportar  a  Amsterdam  para 
onde   ia   o  mencionado  patacho,   e  para  onde  levava 
um  credito  de  dezesseis  mil  cruzados  passado  por  IMa- 
noel  de  ('astro  Guimarães,  ao  qual  o  sr.infanti?  per- 
suadiu  ser-lhe  necessária  aquella  (juantia  para  man- 
dar pagar  uma  cama,  (pie  nVssa  còrle  tinha  manda- 
do fazer  por  via  do  sr.  Thomás  da  Silva  Telles.  N'cs- 
te  caso   ú  Sua  iMagestade   servido,    que  chegado  (pie 
ahi  seja  o  sr.  infante,  v.  s.''  Ihie  entregue  a  caria  de 
Sua  Magestade,  e  lhe  aconselhe  faça  o  que  o  mesmo 
senhor  llu;  ordena,  i-  (pie  vá  para  casa  de  v.  s."  eali 
esteja  inc(jgnito,   como  costumam  praticar  os  princi- 
|)es    dosou    alto  nascimento    nas  (òiles  estrangeiras ; 
!•  que  na  nu'sina  forma  s(!  poderá  recolher  a  este  rei- 
no ou  por  terra  ou  por  mar.  Espera  Sua  iMagestade 
da  grande  prudência  di:  \.  s."  e  do  seu  grande  amor 
e  zilo,   ipie  procurará  persuadir   a  Sua  Alleza  que  o 
(jue  só  lhe  convém  é  (executar  o  (pie  Sua  Magestade 
llu!   ordena.    K   esta   diligencia   fará  v.  s."  rcpíetidas 
vezes,  aluda  que  ache  sempre  grande  repugnância  no 
sr.  infaule,  difricullando-lhe  todos  o->  meios  para  po- 
({(■r  continuar  a  jornada,  e  dizcudo-lhe  ipie  não  tem  or- 
dem para  assislir-lbe  com  iliiiluiro,  antes  ■-im  para  em- 
baraçar o  (pie  lhe  [)uderi'iii  empreslar,  e  ainda  a  co- 
brança  dosdezesseis  mil  cruzados  do  credito  de  Manoel 
de  Castro  Guimarães,  mostra ndo-lhe  a  ordem,  eiii  (pie 
elU;  o  revoga,  da  (piai  v.  s.''  se  servirá  paru  nll)^tl•ar- 
lh'u,  inas  não  para  a  pôr  em  execução.  Alcançiiii  do  \ . 
s."  do  SI',  infante  a  resolução  de  tornar  para  (•^le  reino 
por  mar,  pedirá  v.  »."  em  nonu^dieSua  Magestade  nos 
estados  dous  ou  Ires  navios  de  guerra  para  transporta- 
rem uSuu  Alt(>i!a,  «ssislindo-llie  com  o  necessiirio  pa- 
ra o  seu  apresto.   E  quando  se  revdva  a  \ir  por  terrn 
poderá  vir  coin  Sua  Alleja  o  sr.  Thomasda  Silva^Vl- 
le»,  dando-lhi'  v.  s."  us  hlnis  n«>ces.Mn-i«s  |win  asdcs- 
pczns  da  joniivdii.    E  (pwndo   o  sr.  Tliomas  da  Silva 


372 


O  PA^ORA3IA. 


Telles  esteja  já  em  Allemanha,  virá  v.  s.''  com  o  sr. 
infante  até  parte,  em  que  o  encontre  a  v.  s.^  pes- 
soa ou  pessoas  que  Sua  Magestade  mandar  ;  para 
cujo  effeito  me  despachará  v.  s.''  postilhão  antecipa- 
damente, remettendo-me  o  roteiro  das  villas  e  cida- 
de» por  onde  destina  vir,  para  que  as  pessoas  que  fo- 
rem sigam  o  dito  roteiro.  Porém  se  não  obstante  as 
representações  de  v.  s.^  o  sr.  infante  persistir  em 
passar  a  Allemanha,  como  se  entende,  sempre  v.  s.^ 
trabalhará  que  se  detenha  até  que  cheguem  alguns 
criados  e  meios,  e  que  possa  ir,  ainda  que  incógnito, 
com  a  decência  conveniente.  E  para  a  despeza  que 
ahi  fizer  Sua  Alteza  se  poderá  v.  s.^  valer  das  licen- 
ças dos  estados,  ou  passar  letras  sobre  o  thesoureiro 
da  casa  de  Bragança.  E  no  caso  que  o  sr.  infante 
não  queira  ahi  esperar,  ou  passe  por  rssa  republica, 
sem  que  v.  s.''  o  saiba,  e  vá  em  direitura  a  Allema- 
nha, remetto  a  v.  s.''  essa  carta  de  Sua  Magestade 
para  o  sr.  imperador,  de  que  vae  cópia,  para  que 
tendo  V.  s."*  certeza  do  que  o  sr.  infante  passou  a 
Vienna  mande  a  mesma  carta  ao  barão  Tioztti  para 
a  entregar  ao  sr.  imperador.  E  será  conveniente, 
que  V.  s.*^  avise  ao  dito  barão,  que  no  caso  de  ali  se 
achar  osr.  infante  lhe  assista  com  as  quantias  de  di- 
nheiro, que  lhe  parecerem  precisas,  sacando  da  sua 
importância  letras  sobre  o  thesoureiro  da  casa  de  Bra- 
gança •,  e  n'este  mesmo  caso  escreverá  v.  s.'^  ao  sr. 
infante  remettendo-lhe  a  carta  de  Sua  Magestade 
para  que  lhe  conste  o  que  o  mesmo  senhor  lhe  or- 
denava, aconselhando-lhe  v.  s.''  que  volte  para  essa 
republica  para  d'ahi  tornar  ao  reino  em  execução  da 
ordem  de  Sua  Magestade. 

Bemetto  as  duas  cartas  do  próprio  punho  do  dito 
senhor,  de  que  acima  faço  menção,  uma  para  o  sr. 
infante,  e  a  outra  para  osr.  imperador.  —  Deus  guar- 
de a  v.  s."  —  Lisboa,  6  de  novembro  de  1715. 

Devo  acrescentar  ao  sobredito,  que  Sua  !Magesta- 
de  é  servido  que  v.  s."'  procure  persuadir  ao  sr.  in- 
fante, que  se  não  executar  o  (|ue  o  mesmo  senhor 
lhe  ordena,  nem  o  sr.  Manoel  Telles,  nem  o  repos- 
teiro o  hão  de  acompanhar:,  isto  mesmo  deve  v.  s.'' 
dar  a  entender  ao  sr.  Manoel  Telles  para  que  cUe 
seja  quem  o  persuada  a  que  vultc.  Porém  no  caso  que 
isto  não  basle  para  Sua  Alteza  mudar  de  resolução, 
e  persista  na  de  seguir  a  jornada,  não  embaraçará 
V.  s.''  o  acompanharem-no  os  sobreditos.  Também 
devo  dizer  a  v.  s.''  de  ordem  do  mesmo  senhor,  que 
o  sr.  Manoel  Telles  piíde  voltar  com  o  sr.  infante  na 
certesa  de  que  não  tara  demonstração  com  cUe  por 
haver  finito  esta  jornada :,  e  espera  Sua  Magestade 
que  elle  instruído  por  v.  s."  procure  persuadir  ao 
sr.  infante  o  que  na  carta  do  próprio  punho  ordena 
ao  sr.  infante,  e  lhe  adverte  diga  o  que  v.  s.''  lhe 
disser.  —  Diogo  de  3/t  ndotwa  Curte  Real. 


De  Sua  Magestade  para  o  sr.  infante.  —  Meu  ir- 
mão. Recebi  a  vossa  carta,  e  fico  com  grande  sentimen- 
to de  que  não  iizes-seis  a  vossa  jornada  por  este  reino 
como  me  havíeis  so2;urado  •,  mas  os  vossos  poucos  ân- 
uos dosculpan»  esta  falta,  a  qual  espero  emendareis, 
considerando  que  nenhuma  acção  vossa  vos  estará 
Ião  bem  como  fazeres  o  que  vos  mandar ;  pois  não 
hei  de  ordenar-vos  cousa  alguma,  que  vos  esteja  mal. 
Como  agora  vos  achaes  n'essa  cOrfe  procurae  són\en- 
te  fazer  o  que  for  vontade  do  sr.  imperador,  meu 
bom  irmão  e  primo,  a  quem  peço  queira  encami- 
nhar as  vossas  acções  no  |x)uco  teinpo  que  ahi  vos 
íietiverdes.  Ao  conde  de  Tarouca  ordeno  vos  parti- 
cipe a  minha  resolução  sobre  os  vossos  particulares. — 
Deus  vos  guarde  como  desejo.  —  Lisboa,  i  ile  abril 
de  1710.  —  Vosso  irmão  —  Juuo. 


De  Sua  Magestade  para  o  imperador. — Sereníssi- 
mo senhor,  meu  muito  caro  e  amado  irmão  e  primo. 
Logo  que  o  infante  D.  Manoel,  meu  muito  amado 
e  presado  irmão,  saiu  d 'esta  corte  participei  a  Vossa 
Magestade  a  sua  inconsiderada  resolução,  previnin- 
do  o  caso  de  poder-se  encaminhar  a  e^sa  ;  e  sendo- 
me  agora  presente  que  assim  o  executara  tendo-in« 
segurado  se  restituiria  de  Haya  a  esta  corte,  tomo 
a  pedir  a  Vossa  Magestade  o  queira  persuadir  a  que 
se  recolha  ao  reino  na  forma  que  tenho  ordenado. 
E  como  isto  é  o  que  lhe  convém,  estou  certo  de  que 
Vossa  Magestade  se  empenhará,  em  que  elle  assim  o 
execute  ■,  e  que  o  infante  se  não  apartará  das  pru- 
dentíssimas persuasões  de  A  ossa  Magestade,  porque 
só  segui ndo-as  poderei  dissimular  o  desgosto,  que  me 
tem  causado  as  cireumstancias  da  sua  ausência  ;  e  não 
duvido  que  os  poucos  dias  que  se  detiver  n"essa  cor- 
te, Vossa  Magestade  dirigirá  as  suas  acções  para  que 
sejam  conformes  ás  obrigações  com  que  elle  nasceu, 
e  que  eu  fio  do  que  lhe  merece  o  meu  amor,  e  pe- 
dem os  apertados  vínculos  do  nosso  parentesco. — 
Nosso  Senhor  guarde  a  \  ossa  Magestade  como  de- 
sejo.—  Lisboa,  4  de  abril  de  1716 Bom  irmão  e 

primo  de  Vossa  Magestade  —  João. 


Carta  para  o  imperador,  a  que  se  refere  a  antece- 
dente. —  Sereníssimo  Senhor,  meu  muito  caro  e  ama- 
do irmão  e  primo.  A  inconsiderada  resolução  do  in- 
fante D.  Manoel,  meu  muito  amado  e  presado  irmão, 
saindo  d'este  reino  sem  licença  minha  em  uma  em- 
barcação pouco  segura,  me  deixa  com  o  cuidado,  que 
pede  o  amor  que  sempre  lhe  tive ;  e  porque  se  en- 
tende que  o  infante  ia  com  animo  de  encaminbar- 
se  aos  dominios  de  \  ossa  Magestade,  me  pareceu 
participar  a  Vossa  Magestade  aquella  resolução  para 
que,  inteirado  das  cireumstancias  d'ella,  procure  N  os- 
sa Magestade  persuadir  ao  infante  se  recolha  a  este 
reino,  na  certesa  de  que  o  dissabor  que  me  causou  a 
sua  ausência  se  desxaneça  na  consideração  de  que 
n'csta  jornada  lhe  resultou  a  fortuna  de  vèr  a  ^  os- 
sa Magestade ;  e  espero  que  com  os  seus  prudentes 
conselhos  moverá  Vossa  Magestade  o  infante  a  que 
execute  o  que  lhe  convém,  que  é  restituir-sc  á  mi- 
nha companhia.  E  os  estreitos  vínculos  da  nossa  ami- 
sade  e  parentesco  me  facilitam  escrever  a  Vossa  Ma- 
jestade com  esta  carinhosa  sinceridade.  —  Nosso  Se- 
nhor guarde  a  pessoa  de  ^  ossa  Magestade  como  de- 
sejo.—  Lislioa.  o  de  novembro  de  1713.  — Bom  ir- 
mão e  primo  de  \  ossa  Magestade  —  JoCio. 


O  infante  resistiu  a  todas  as  diligencias,  e  como 
dissemos  tomou  parte  na  gloriosa  campanha  contra 
os  turcos,  em  que  a  victoria  de  Bels^rado  immorta- 
lísou  com  mais  um  brasão  o  nome  ja  famoso  do  prín- 
cipe Eugénio  de  Sabova.  Mas  o  obji-cto,  que  a  rai- 
nha do  Portugal  se  propunha,  excitando  a  ausência 
do  príncipe,  ficou  plenamente  satisfeito.  Depois  da 
publica  e  solemnc  desappmvação  d.ida  a  partida  de 
seu  irmão,  o  sr.  D.  João  N  viu-se  obrigado  a  desis- 
tir dos  seus  projectos  de  viagem  ;  o  que  fez  com  re- 
pugnância, e  custando-lhc  o  dissalx>r  uma  aguda  e 
loiíja  doença.  Consolou-se,  pon-m.  oon\  os  recreios  e 
distracções,  que  a  tradição  e  a  historia  são  c«nfor- 
nies  em  indicar  quando  so  trata  do  Salomão  portii- 
guez. 

L.    .\.    KkBKLLO    Dl    SitTA. 


o  PAXORAMA. 


373 


SAi:.VA.VIDAS. 


riG.  1 . 


Aí  ESTAMPAS  (figuras  lo  2)  ropresentam  fielmente  o 
salva-vidas,  a  que  nos  referimos  no  primeiro  artigo 
doeste  numero,  e  (jue  se  destina  especialmente  ao 
transporte  da  tripulação  (!  passageiros  dos  navios  pa- 
ra terra. 

O  salva-vidas  (life-car)  assemelha-se  a  um  peque- 
no barco  •,  é  construído,  pelo  systema  de  Joseph 
Francis,  de  ferro  ou  de  cobre  •,  superiormente  tem 
uma  espécie  de  coberta  convexa,  com  uma  porta  ou 
escotilha,  pela  qual  se  introduzem  os  infelizes  que 
tem  de  ser  conduzidos  para  terra,  fechando-sc  de- 
pois hermeticamente  e  com  a  maior  segurança.  Po- 
de acommodar  de  cada  vei  quatro  a  cinco  pessoas. 
Concluída  a  operação,  expcde-se  o  salva-vidas  por 
meio  do  vae-vem,  que  deve  ter  sido  previamente  es- 
tabelecido. 

A  construcção  ireste  salva-vidas  obrigava  os  in- 
divíduos, qu('  d^elle  tinham  de  se  aproveitar,  a  man- 
ter-se  n^uma  posição  difficil  c  incommoda. 


FIO.   3. 


O  inventor  Ir.ilou  de  remediar  este  ineonvcnien- 
Ic-,  e  parece  (ri-o  conseguido  no  ícu  novo  salva-vi- 
das, cujo  diísiMiiii)  dainos  (figuras  3  e  I). 


Apontamektos   para  a  Biograpkia 


Do 


u."'"  sr.  Inspo  resignaiario  de 
Cabo  Verde. 


Nasceu  o  sr.  D.  Fr.  Jeronymo  do  Barco  da  Sole- 
dade, no  logar  do  Barco,  do  bispado  da  Guarda,  em 
o  anno  de  1774,  e  recebeu  de  seus  pães  Manoel  Ra- 
mos Alves  e  D.  Maria  Antunes,  que  não  proceden- 
do de  nobre  geração  pertenciam  á  honrada  classe 
de  lavradores  abastados,  aquelta  esmerada  educação 
christã  e  moral,  que  tanto  concorreu  para  as  herói- 
cas acções  de  nossos,  maiores.  Mostrando  o  sr.  D.  Je- 
ronymo, desde  verdes  annos  decidida  vocação  para  o 
sacerdócio,  vestiu  o  habito  da  ordem  seraphica,  pro- 
fessou no  convento  de  Franqueira  da  província  da 
Soledade,  e  concluindo  os  estudos  com  reconhecido 
aproveitamento  e  geral  applauso  de  seus  superiores, 
foram-lhe  conferidas  as  ordens  sacras,  e  mereceu  exer- 
cer pela  sua  capacidade  a  honrosa  missão  de  orador 
evangélico,  e  reger  as  cadeiras  de  theologia  e  phi- 
losophia. 

Contando  46  annos  de  idade  em  23  de  Fevereiro 
de  1820,  e  dirigindo  o  leme  da  barca  de  S.  Pedro 
o  SS.'"''  padre  l»io  %'II,  foi  elevado  á  suprema  di- 
gnidade episcopal,  que  não  sollicitára  eque  acceitou 
com  repugnância.  Trocando,  por  obediência,  a  paz 
do  claustro  pelas  espinhosas  e  árduas  funcçCes  do 
eminente  cargo,  que  tão  dignamente  soube  desem- 
penhar com  verdadeiro  zelo  apostólico,  logo  que  to- 
mou posse  do  bispado  visitou  os  sitios  mais  remotos 
da  sua  jurisdicção,  e  n'estas  visitas  consagrou  pelo 
niatrinioiiio  muitas  uniões  illicitas  ■,  e  tratou  tam- 
bém, como  bom  pastor,  de  promover,  quanto  em  vi 
coube,  a  felicidade  do  rebanho  que  a  Providencia 
confiara  aos  seus  disvellos.  Tsão  menos  diligente  na 
instrucção  do  clero,  por  ser  a  fonte  da  qual  dimana 
a  civilisação  e  nicralidadí.-  <l(is  povos,  concebeu  o  lu- 
minoso pensamento  de  fundar  um  seminário  ;  e  de- 
pois de  vencer  todos  os  olislaculos  com  que  teve  de 
luctar,  e  que  se  oppunliani  á  execução  do  seu  pro- 
jecto, mandou  construir,  .'i  sua  própria  custa,  na  ci- 
dade da  llibcira  tirandr,  iini  cdilicio  adaptado  áquel- 
le  fim. 

N^esta  ol)ra  de  tamanha  con\enioncia  despendeu 
este  venerando  bispo  avultadas  sonimas,  apesar  da 
txiguidade  da  sua  côngrua,  pela  parcimonia  com 
que  se  tratava,  e  sem  deixar  de  distribuir  aos  des- 
validos valiosos  soccorros  cm  dinheiro  e  vestuário. 
Mas  não  teve  o  prazer  tie  vêr  realisados  seus  mais 
ardentes  desejos,  porque  soube,  já  em  Portugal,  que 
a(|Uelle  edifício  não  se  completara,  nem  chegara  a 
eer  liabitado  pelos  mancebos,  <|ue  tendo  fre(|uenta- 
do  as  auhis  externas,  se  destinavam  para  seguir  a 
vida  ecclesiastiea,  e  começava  a  arruinar-se.  Para 
SC  saber  o  estado  em  que  estará  actualmente  o  se- 
minário, bastará  vêr  o  (juc  d'elle  diz  o  sr.  Chelmi- 
<lil  cm  IS.t":  .1  Este  edifício  de  dons  andares,  e 
umas  trinta  janeiias  lie  frente,  nunca  ficou  acabado, 
mas  o  bicho  comeu  toda  a  madeira,  que  é  do  pinho, 
e  em  bn'Ve  caindo  eui  pedaços  augmenlará  o  cahos 
<las  ruínas.  "  ( I) 

l'lsti>  infausto  snccesso  contristou  jirofiind.inirnle  o 
magnaniiUí)  coração  do  sr.  1).  ,lerou\mi>,  por  fica- 
rem sem  elVeilo  os  gnindi's  sacrificios  ipic  fizera  para 
levar  ao  cabo  uma  obra  de  tanta  utilidade;  porem 
superiíu'  a  lo<los  us  revezes,  supportou  mais  este  gol- 
pe i'om  sua  iiiiniilavel  risií;n.u;àii ;  e  estamos  con- 
M'llciilos,    (jiie    SC    tivesse    \,i|l,iilo    piíra    Cillui  ^'er<le 

'     (!)     Churograpliin  Ciiliu-Vonliniiii.  —  Tom.  I,  i'iig.  (>7. 


374 


Q  TANORAMA. 


não  deixaria  de  concluir  tão  nobre  empresa.  Acre- 
ditamos, que  íjuando  a  poderosa  mão  do  tempo  im- 
primir nos  últimos  restos  d*aquelle  edifício  osêlloda 
sua  total  destruição,  aíuda  os  seus  vestígios  serão  um 
padrão  eterno  que  recorde  ás  gerações  futuras  o  Ín- 
clito nome  do  seu  fundador. 

Durante  a  sua  residência  no  bispado,  conser%'oa 
sempre  a  melhor  harmonia  com  o  governador  mili- 
tar e  auctorídades  civis  •,  e  mereceu,  por  sua  mode- 
ração e  sbudesa,  a  estima  e  respeito  dos  habitantes 
d^aquelle  archipelago.  Teve  igualmente  o  sr.  bispo  a 
satisfação  de  converter  á  santa  religião  que  professa- 
mos ama  sr.^  protestante,  que  ouvindo-o  pregar, 
vendo  a  unção  de  suas  palavras  tão  repassadas  de  fe 
e  caridade,  e  tanto  era  harmonia  com  o  seu  modo 
de  viver,  sentiu-se  abalada,  e  teve  cora  elle  diversas 
conferencias  em  casa  do  sr.  conselheiro  Manoel  An- 
tónio Martins,  onde  estava  hospedada,  de  que  re- 
sultou pedir  o  baptismo. 

Eleito  deputado  ás  cortes  de  1827,  regressou  o  ve- 
nerando prelado  ao  reino  ;  pobre,  porém  acompanha- 
do das  benoãos  dos  seus  diocesanos  que  o  presavam 
pelo  saber,  justiça  e  prudência  com  que  os  dirigiu 
espiritualmente  por  espaço  de  sete  annos.  A  longa 
distancia  que  o  separava  d^aquelles  povos,  não  o  fez 
nunca  esquecer  do  paternal  amor  que  Ihesconsagra- 
va,  e  foi  na  respectiva  camará  um  constante  advo- 
gado  dos  seus  direitos  ecclesiasticos  e  interesses  tem- 
poraes,  como  seu  digno  representante,  e  conhecedor 
das  necessidades  locaes  d"aquella  provincia.  Da  sua 
vinda  para  a  metrópole  resultaram  no  decurso  dos 
annos  graves  prejuízos  á  diocese  \  pelo  desleixo  do 
clero,  soltura  dos  costumes,  e  relaxação  introduzida 
nas  ceremonias  mais  augustas  da  religião  -,  como  lar- 
gamente expende  o  nosso  amigo  e  insigne  auetor  dos 
EíiuJos  sobre  Cabo  Verde,  a  pag.  lo"  do  vol.  IV 
da  Revista  Popular. 

Em  1829  resignou  o  sr.  D.  Jeronymo  o  episcopa- 
do, para  tratar  de  sua  saúde,  já  então  deteriorada 
pelo  insalubre  clima  africano  ;  repousar  de  suas  fa- 
digas, e  olvidar  no  retiro  os  dissabores  inseparáveis 
do  homem  proijo  e  lionesto,  que  só  cumpre  as  suas 
obrigações,  e  não  se  afasta  jamais  do  camúiho  da 
honra  e  do  dever.  N"este  periodo  cmprcgou-se  na 
continua  meditação  das  santas  doutrinas  c  máximas 
consisnadas  no  código  do  Divino  Mestre  :  na  rigo- 
rosa  observância  dos  austeros  preceitos  da  regra  de 
sua  ordem,  que  xião  deixou  de  executar  em  quanto 
suas  forças  physicas  o  não  abandonaram,  e  no  exer- 
cício das  mais  bellas  virtudes,  principalmente  as  da 
humildade  e  caridade,  que  possuiu  em  subido  grau, 
as  quaes  sendo  as  firmes  columnas  do  niagcstoso  tem- 
plo do  christianismo,  estão  hoje  formando  os  mais 
brilhcuites  florões  da  radiante  coroa  de  immorlal  glo- 
ria que  lhe  cinge  a  fronte.  Taml)em  não  se  uceou  a 
ser  útil  ao  estado,  quando  suas  moléstias  o  não  im- 
}iediam,  e  na.s  commissõcs  de  que  foi  membro  pres- 
tou sempre  o  seu  consciencioso  voto  e  conselhos  pro- 
fícuos sobre  os  importantes  negócios  cm  que  era  con- 
sultado polo  governo  por  suas  luzes  e  experiência. 
Serviu  zelosamente  a  religi^P,  conferindo  o  sacramen- 
to da  ordem  a  grande  numero  de  sacerdotes,  e  o  da 
confirmação  a  inimensos  ílcis,  no  seu  oratório  e  va- 
rias ()arochias  desta  capital  ;  c  sagrou  a  máxima  par- 
le dos  actuaes  prelados  da  igreja  lusitana,  incluin- 
do os  de  Braga  e  Torto,  que  foi  sagrar  ás  suas  com- 
petentes cathedracs. 

Foi  presidente  da  socit-dade  catholica,  e  da  asso- 
ciação da  propagação  da  fé,  da  qual  era  estrénuo  pro- 
tector, c  deixou  depois  da  sua  morte  evidentes  pro- 
vas de  quanto  presava  esta  respeitável  corporação. 
Nomeado  deputado  da  junta  geral  da  bulia  da  Cru- 


zada, por  decreto  de  23  de  outubro  de  1831,  publi- 
cado no  Diário  do  Governo  N.°299,  requereu  a  ex- 
oneração d"esite  emprego  pelo  seu  estado  \  aletudinario 
(e  ainda  mais  por  nimio  escrúpulo  de  fruir  o  orde- 
nado de  um  logar,  que  não  podia  já  servir  com  sua 
usual  diligencia),  e  obteve  a  sua  demissão  por  decre- 
to de  18  de  dezembro  do  mesmo  anno,  estampado  no 
Diário  .N."  302. 

Com  a  paciência  do  perfeito  christão,  soffreu  osc- 
raphico  bispo  com  inalterável  conformidade  por  mais 
de  três  annos  os  cruéis  effeitos  da  dolorosa  enfermi- 
dade de  que  fora  acconmiettido,  e  que  progredindo  e 
aggravando-se  tomou  inúteis  os  recursos  da  medi- 
cina \  baldados  os  esforç-os  de  seu  intelligente  medi- 
co, e  frustrados  os  assíduos  cuidados  que  sempre  lhe 
prodigalisára  um  dijno  religioso,  seu  leal  amigo  e 
antigo  companheiro.  Vendo  próximo  o  termo  da  sua 
existência,  preparou-se  com  os  auxílios  espirituaes 
para  a  ultima  jornada,  e  pelas  sete  horas  da  tarde 
do  dia  30  de  junho  de  1832  expirou  o  ex.™°  e 
jgy  mo  5f  jj  pj.  Jei-onvmo  da  Soledade,  deixando 
registados  nas  paginas  do  livro  da  sua  vida  —  ot  ser- 
viroi  c  actos  de  beneficência  —  que  praticara  em  mais 
de  quinze  lustros  e  dous  annos.  E  nossa  crença  que 
sua  alma,  soltando-se  dos  ténues  laços  que  a  liga- 
vam, subiu  á  região  celeste  para  ir  gosar  do  premio 
dos  justos ;  e  agora  ante  o  refulgente  throno  do  Al- 
tíssimo é  um  activo  patrono  dos  que  o  amavam  cá 
na  terra,  e  têem  fé  na  efticacia  das  suas  preces.  Prasa 
a  Deus  attender  os  rogos  do  seu  servo,  e  ouvir  lá 
do  céu  nossa  débil  voz.  .  . 

A  seu  semblante  agradável,  estatura  alta,  porte 
grave  e  modesto  juntava  este  venerando  prelado  um 
génio  dócil,  urbanidade  e  maneiras  affaveb,  que  lhe 
grangearam  as  sympathias  das  pessoas  de  todas  as  clas- 
ses da  sociedade ;  e  recebeu  sempre  dos  caracteres 
mais  conspícuos  do  paiz,  e  dos  seus  numerosos  amigos 
diversas  demonstrações  de  apreço  e  consideração  pelas 
suas  raras  virtudes,  que  mais  distinctamente  se  ma- 
nifestaram nos  seus  últimos  dias.  Ordenou  em  testa- 
mento, que  os  paramentos  de  seu  uso  se  repartissem 
pelas  igrejas  mais  pobres  de  Cabo  V  erde  ;  e  humilde 
por  convicção,  determinou  que  seu  funeral  se  liiesse 
sem  apparato.  A  sua  ultima  vontade  teve  ciimpn- 
mento,  sendo  o  seu  cadáver  conduzido  na  tarde  do 
1 .°  de  julho  por  seis  sacerdotes  pobres,  para  a  der- 
radeira morada.  Acompanharam  o  iUuslre  finado  o 
rev."  padre  thcsoureiro  da  freguezia  do  Sacramento, 
no  impedimento  do  respectivo  parocho,  o  corpo  cle- 
rical da  mesma,  e  alguns  dos  seus  amigos,  dosde  o 
palácio  dos  ex.'""*  duques  do  Cadaval,  onde  esteve 
íiospedado  dezoito  annos,  até  á  igreja  de  Nossa  Se- 
nhora da  Conceição  da  Carreira,  pertencente  ao  pa- 
çNj  da  Bemposta,  c  outr"ora  hospício  dos  religiosos 
da  provincia  da  Conceição,  que  também  habitou,  e 
de  que  fura  um  dos  mais  brilhantes  ornamentos. 
Ni'^.  que  lízemos  a  mais  ininima  parte  d"aquclle  lu- 
íiibre  préstito,  fomos  testemunhas  da  compunção, 
que  uma  scena  tão  edificante  pnxliiiiu  no  sou  tran- 
sito, e  so  divisava  nos  rostos  dos  expect  adores. 

No  dia  2  do  referido  mci  ficaram  depositados  os 
dc->ivijos  mortaes  do  decano  dos  prelados  portugucics 
na  mencionada  capella.  com  permissão  regia,  obtida 
pelo  nobre  duque  de  Saldanha,  tendo-se  celebrado 
antes  as  exéquias  solemncs  devidas  a  sua  jerarchla. 
officiando  o  ex."'"  sr.  arcebispo  de  Palmira,  e  assis- 
tindo a  este  acto  religios-j  muitos  ca\  .alheiro*  d"tsfa 
corte. 

Honrados  com  a  estima  d'este  respeitarei  prelado. 
faltarianics  a  um  dever  de  gratidão,  se  não  fôramos 
deplr  sobre  a  campa,  que  encerra  suas  venerandas 
cinzas,  este  mesquinho,  mas  sincero  tributo  Jo  nosso 


o  PA>ORA3IA. 


375 


profundo  respeito  e  saudade ;  sentindo  que  a  aca- 
nhada csplicra  da  nossa  intelligencia  nos  nãopcrmit- 
ta  poder  lecer  em  sublime  estylo  o  seu  merecido  Cflo- 
^io.  1'orém,  confiados  na  imparcialidade  de  nossos 
illustrados  leitores,  temos  esperança  de  que  hão  de 
relevar  as  incorrecções  próprias  de  quem  não  está  ha- 
bilitado para  tratar  assumptos  doesta  naturesa,  e 
conceder  á  nossa  publicação  a  sua  benigna  indulgên- 
cia, na  certesa  de  que  não  fomos  exagerados  no  im- 
perfeito esboço  que  fizemos  dos  dotes  ph^sicos  do 
sr.  D.  Jeronymo,  nem  nos  desviámos  da  verdade  na 
apreciação  das  suas  qualidades  moraes,  como  podem 
confirmar  todos  que  tiveram  aventura  de  o  conhecer. 
Escrevendo  estes  apontamentos,  e  ampliando  o 
artigo  publicado  na  Imprensa  N.'-'133,  realisánios  a 
idéa,  que  já  haviamos  premeditado,  pedindo  infor- 
mações a  pessoas  competentes,  ás  quacs  agradcicemos 
a  bondade  com  que  nos  coadjuvaram  n^esta  empre- 
sa, sem  outro  interesse  senão  o  de  perpetuar  ainda 
mais  a  memoria  de  um  varão  l)enemerito,  que  ad- 
quiriu por  sua  justa  reputação  incontestável  direito 
á  veneração  da  posteridade. 


INI. 


Paiva  R.   e  S. 


LENDAS  HISTÓRICAS. 

O  Demónio  do  Lago. 

IV. 

O  Ijoíji)  de  Jjocli-Jjcvcn. 

.São  passados  alguns  annos.  A  donzella  descuidosade 
Inch-Mulioine,  toniou-se  uma  mulher  enérgica  c  vio- 
lenta. A  paixão  substituiu  cm  sua  fronte  e  oní  seus 
olhos  o  limpido  arraiar  da  primitiva  iiuiocencia.  A 
aureola  que  a  rodeava  perdcu-a  a  g(Milil  fada  diílNlon- 
teith  ;  amam-na  ainda,  hão  de  aiiial-a  sempre,  mas 
com  um  amor  fatal,  frenético  e  cheio  do  remorsos,  com 
um  amor  i(ue  deslionra  e  mata  ;  ainam-iia  porque  é 
formosissinia,  porque;  não  ha  resistir  a  um  olhar  seu, 
porque  o  seu  faiiar  enfeitiça  ,  mas  já  lho  não  consa- 
gram aquclla  veneração,  aqui'lle  cullo  religioso  que 
a  fazia  ailorar  dos  monlanheziis  e  pescadores.  K  cjue 
Maria  Sluart  não  é  .só  a  viuva  (le  Krancisco  l]  ;  ó 
ijue  6  tand)em  a  viuva  de  Darnley,  sacrilieado  jiim- 
oUa  e  ])or  sua  causa  ;  é  (|ue  o  saiigm;  de  Riceio,  o 
cantar  italiano,  apunhalado  no  seu  aposento,  lhe 
manchou  os  vestidos;  é  ipie  Chastelard  moir<'u  em 
um  ca(hifalsi)  por  .i  ter  amado  o  so  julg.ir  an)a(h)por 
ella  ;  ó  qui',  depois  do  derramado  laiilo  sangue,  sr. 
eutn^gou  vobintariainente  a  llolliwell  o  |(irala,  llo- 
lh\M'll  s(Mi  tí.Tceiro  marido,  o  assassino  de  l)arnh'_y  ; 
<•  i|ui'  a  liiha  (h-  tiaquos  V  não  foi  sunieiile  iuqilaea- 
vel  como  seu  i)ae  (^)iilra  a  heresia,  ma»  iandiom  me- 
receu ser  ainaldiruail.i  c  dcspresada  |H)r  João  Knox, 
o  iMveníivel  aposlolu  do  pii'sb_\  lirianismo,  o  unieo 
homem  <|ue  dcbahle  pn)i'urai;i  >.eilu/.ir  e  fascinar-,  é 
c|U(!  Diogo  IMurray,  simi  irmão,  que  cumulara  de 
honras  e  Ihíiis,  encontra  a  gliu'ia  na  ingratidão  •,  é 
i|ue  a  desgraça  e  a  infanda  seguem  [por  Ioda  a  parte 
esta  rainha  ih's,iforluna(lM,  cheia  de  génio  e  resplan- 
dccenle  de  formosura  ;  r  (|iir  a  pudii  il.'  caprichos 
•inguhires,  (h'Megr.imeiilos  o  iriíues,  loinar-se-ía 
odiosa  á  historia  se  Deus  não  pernntlissi'  (|ue  a  ex- 
piação conu-çiísse  para  ella  na  terra.  l''oi  esposa  des- 
euidosa,  será  mãe;  olviíhida  ■,  foi  rainha  iuqirudente, 
v;i'a  aliaiidoiiada  o  IraiMa  ■    c  líualuieiile  irmiiá  coiii 


o  próprio  sangue  tanto  sangue  precioso  que  fez  der- 
ramar. 

Agora  que  a  tornamos  a  encontrar,  Maria  Stuart, 
vencida,  mas  infatigável,  foge  do  castello  de  Loch- 
Levcn  onde  a  havia  encerrado  a  nobreza  rebellada, 
para  recomeçar  uma  vida  de  luctas,  de  guerra,  de 
violência,  e  de  paixões. 

Era  a  2  de  maio  de  I068:,  a  rainha  esperava  im- 
paciente, havia  algum  tempo,  o  signal  que  lhe  ha- 
viam promeltido  Jorge  Douglas  e  João  Beatoun, 
dous  dos  seus  mais  fieis  e  verdadeiros  amigos. 

Jorge,  parente  do  senhor  de  Loch-Leven,  não  pu- 
dera vêr  Maria  sem  ser  tocado  dos  seus  encantos. 
Encarregado  de  a  vigiar,  quizera  favorecer-lhe  a 
evasão  •,  mas  descuberto  o  seu  intento  e  constrangido 
a  fugir,  congregara  fora  alguns  partidários  da  rai- 
nha, deixando  um  dos  seus  parentes  mais  moços,  de 
idade  de  10  annos,  cognominado  Vuiit/las  o  pojuc- 
nu,  encarregado  de  abrir  as  portas  da  prisão  á  sedu- 
ctora  e  fatal  beldade. 

O  pequeno  Douglas  desempenhara  com  tanta  maior 
alegria  a  missão  de  que  fora  incumbido,  quanto  tam- 
bém se  sentira  mo\ido  de  terna  compaixão  pela  lin- 
da feiticeira.  Com  efVeito,  a  i2  de  maio,  depois  de 
Maria  se  ter  retirado  ao  seu  aposento,  bateram  á 
porta,  e  o  pequeno  Douglas,  ajoelhando  na  presença 
da  rainha,  annunciou-lhe  que  estava  livre,  porque 
tinha  em  seu  poder  as  chaves  do  castello. 

—  "Livrei"  bradou  a  raiidia  ■,  ..  abençoados  se- 
jaes  vós  que  tivestes  compaixão  d"a(juella  que  o  seu 
povo  abandonou.  " 

—  u  Senhora,  o  tempo  urge  ..."  acudiu  Douglas, 
perturbado  com  estes  testemunhos  de  gratidão. 

—  íi  Estou  prompta"  respondeu  Maria  Stuart,  le- 
vantando-se ;  e  alguns  momentos  depois,  de  braço 
dado  com  o  seu  joven  libertador,  franqueava,  disfar- 
çada, as  portas  do  castello.  Uma  barca  estava  amar- 
rada perlo.  As  aguas  do  lago  do  Loch-Leven,  ne- 
gras e  caladas,  balouçavam  o  frágil  baixel.  A  lua, 
cum])liee  na  fuga,  cubría-a  negro  véu.  Era  uma  nou- 
le  admirável   para  o   intento. 

Anl(}.s  do  líndjarcar  rocordou-se  do  lago  de  Mon- 
leith,  (los  folgares  da  sua  infância,  e  talvez  também 
do  Kelpy,  porque,  tocando  no  braço  do  Douglas, 
que  curava  com  afan  de  preparar  a  barca,  disse  : 

—  u  Nunca  embarquei  que  me  não  acontecesse  al- 
guma desgraça  ■,  e  as  aguas  (|ue  tenho  cursado  sem- 
pre receberam  os  meus  prantos  !  " 

—  lí  As  aguas  do  Jjoch-Leven  j)rimeiro  receberão 
o  meu  sangue  <(ue  uma  só  lagrima  vossa-  redarguiu 
com  energia  o  jov<'n  Douglas.  ..Si;  não  conseguir 
restituir-vos  á  liljcrdado,   malar-me-hei.  " 

—  iiCalae-vos,  por  quem  sois!"  exclamou  Maria 
Stuart. 

E  viran<lo-se  para  as  negras  muralhas  que  tinliani 
sido  (^^(^«'las  conlldenles  dos  sousdo^go^los,  a  rainha 
do  Kseocia  dirigiu  ao  cou  uma  fervorosa  prece.  Cou- 
sa singular  '.  (juanto  mais  o  fogo  das  paixões  munda- 
nas lhe  requeimava  o  poilo,  tanto  mais  cUo  so  lho 
abria  aos  consolos  da  religião. 

E  que  a  (ilha  do  calhulico  <la<|Ues  \\  consumma- 
do»  todos  os  desvarios,  experimentava  uma  síklo  inex- 
plicável (|U0  só  o  orar  fervente  podia  apagar. 

Depois  Maria  saltou  [>ara  a  barca,  que  impellida 
vigorosamente  pelos  remos,  deslisou-se  como  mu  al- 
cvoíi  por  sobre  as  aguas. 

i\  algumas  braças  da  margem,  olhou  a  rainha  pa- 
ia a  hm  quo  d<'ixára  110  sou  cpiarto  para  servir  ilo 
signal  aos  seus  amigos  oMOiididos  por  aquellc.s  eou- 
lornos.  (>  peijuono  Doui;las  ouviu  tiiu  stispiíx). 


—  i.  Tendos  .saudados  do  ai, 
iiiidamonlo  o  mancebo. 


pei 


'iiutou   li- 


376 


O  PANORA3IA. 


—  ;<  Não  tenho  saudades  ;  tenho  medo  "  disse  Ma- 
ri;i  Stuart.  íi  Aquella  luz  avermelhada  é  uma  ruim 
estrella  ,   parece  tòr  de  sangue  I  " 

u  Aquella  luz  é  a  liberdade,  6  minha  sobera- 
na !  " 

—  ti  Sim,  a  liberdade,  para  combater,  a  liberda- 
de para  castigar  rebeldes !  Sangue!  sempre  sangue! 
Douglas,  Douglas,  eu  não  nasci  para  esta  vida  terrí- 
vel que  tenho  levado  !  » 

Douglas  largou  os  remos,  e  vendo  Maria  Stuart 
pensativa,  poz-se  a  contemplal-a  muito  triste. 

1'arece  que  era  esta  hora  azada  pára  o  meditar. 
Loch-Leven  esquecera  •,  os  perigos  haviam  desappa- 
recido  :,  Maria  olhava  para  as  ondas,  Douglas  olhava 
para  Maria,  e  o  silencio  era  apenas  cortado  pelo  ru- 
morejar da  agua  batendo  no  costado  da  barca. 

N'aquella  noute  tranquilla  a  rainha  fugitiva  dava 
largas  ao  coração,  e  aspirava,  nos  perfumes  da  pri- 
mavera, os  perfumes  da  sua  \ida  passada.  Lerabra- 
va-lhe  o  bello  tempo  que  passara  em  França,  o  seu 
trbte  regresso,  os  seus  crimes,  as  suas  faltas,  os 
seus  remorsos,  e  no  meio  d'esta  immensa  serenidade 
sentia  a  alma  desprender-se-lhe  pouco  a  pouco  das 
pungentes  angustias  que  a  aflligiam. 

—  "Douglas"  disse  afinal,  u  não  ameis  nunca  I 
conservas  o  coração  tão  puro  como  o  esplender  dos 
vossos  olhos.  E  o  único  conselho  que  eu  posso  dar- 
vos   em  premio  da  liberdade  que  vos  devo.» 

— « E  tarde,"  respondeu  Douglas,  com  voz  cor- 
tada, «quando  jurei  salvar-vos,  jurei  também  con- 
sagrar-vos  um  eterno  amor.  '• 

—  ii\ós  também,  pobre  mancebo!" 

Fez-sc  largo  silencio.  A  lua,  até  então  toldada  de 
nuvens,  descubriu-se  repentinamente,  innundando  a 
barca  com  o  seu  paltido  clarão.  O  pequeno  Douglas 
avistou  na  corrente  um  lyrio,  tocante  emblema  para 
uma  rainha  de  França.  Debruçou-se  da  barca,  e  com 
o  auxilio  de  um  remo  pôde  apanhar  a  graciosa  ílòr, 
que  oftereceu  a  Maria  Stuart.  No  cálice  refulgia  uma 
pérola  ;  era  uma  gota  de  agua,  ou  uma  lagrima  .' 

—  "Vossa  Magestade  fez  que  o  lago  ílorejasse,  e 
que  o  demónio  de  Loch-Leven  vestisse  galas  para 
:i  vêr  passar.  " 

—  a  O  que?  pois  também  u"este  lago  ha  algum 
génio  ? " 

—  «Se  ha  !  referem  as  baladas.  .  .  " 

—  «  Oh  I  não  me  falíeis  de  baladas,  Douglas  ;  já 
gostei  muito  d'ellas,  já  as  cantei  muitas  vezes  .  .  O 
demónio  de  Loch-Leven  não  \al  mais  que  odeMon- 
teilh,  e  de  certo  não  será  mais  propicio  á  rainha  do 
que  aquelle  o  foi  á  donzella.  " 

E  Maria  Stuart,  sorrindo  triste,  e  escarnecendo 
da  superstição  de  que  todavia  não  se  julgava  isenta, 
contou  o  seu  passeio  no  lago  de  Monteith,  os  seus 
esponsaes  com  o  Kelpy,  e  as  lúgubres  viagens  que 
fizera  depois. 

Apenas  acabara.  Douglas  exclamou  : 

—  "Sei  que  ha  uma  olforta  agradável  ao  génio  de 
Loch-Leven  ;  "  e  tirando  do  seio  as  chaves  do  cas- 
tello,  atirou-as  á  agua. 

Ainda  bem  as  aguas  não  as  haviam  recebido,  ouviu- 
so  um  tiro  de  fuzil.  Tinham  dado  pela  fuga  da  rai- 
niia. 

Douglas  fei-se  muito  pallido ;;  Maria  Stuart  soltou 
utn  grito,  e  a  barquinha  retomou  o  seu  caminho  ou 
antes  o  seu  vôo  para  a  margem  opposta.  O  trajecto 
passou-se  silenciosamente,  e  ao  abordarem  dijse  a 
rainha  ao  guia  : 

—  "Bem  vedes,  Douglas  os  la2;os  da  Elscotia  re- 
pellem-me,  e  a  morte  até  n'elles  me  persegue.  " 

A  curta  distancia,  o  ji  ven  Douglas  apanhou  uma 
iJòr   de  cardo,    e  ollerecendo-a  á  rainlii,    que  trazia 


na  mão  o  lyrio,   disse,    alludindo  aos  eiqbleinas  que 
representam  : 

— "  Rainha  de  França  e  de  Escócia,  os  vossos 
súbditos  vos  esperam.  " 

Depois,  de  um  clarim  que  trazia  suspenso  ao  cin- 
to, tirou  alguns  sons.  Jorge  Douglas,  João  Beatoun, 
e  Cláudio  Hamilton,  que  esperavam  escondidos  nas 
moitas,  accorreram  a  saudar  a  fugitiva. 

Maria  viu-se    em  breve    cercada  da  sua  nobreza 
fiel.  A  esperança  reentrou-lhe  no  peito,  julgou-se fi- 
nalmente senhora  da  sorte,    e  exclamou,   abraçando 
os  seus  amigos : 
—  «  Estou  salva  1  " 

E  estava  perdida.  O  atravessar  do  lago  de  Loch- 
Leven  precedeu  pouco  tempo  o  seu  largo  e  cruel  ca- 
ptiveiro  ,  e  no  dia  8  de  fev  ereiro  de  1 58",  a  filha  de 
Jaques  V,  a  viuva  de  Francisco  II,  a  rainha  de 
França  e  de  Escócia,  após  desoito  annos  de  ancieda- 
des  e  de  prisão,  realisando  a  prophecia  paterna,  pòz 
a  cabeça,  sempre  viçosa  e  bella  sempre,  no  patíbulo 
mandado  levantar  por  Isabel. 

O  carrasco  tremeu  quando  lhe  ordenaram  que  des- 
carregasse o  golpe,  que  teve  de  repetir.  A  alma  de 
Maria  soltou-se  das  prisões  terrenas  reconciliada  com 
Deus  pelo  arrependimento  e  pela  oração.  Todos  os 
nossos  leitores  conhecem  os  pormenores  d"esta  subli- 
me catastrophe. 

Talvez  que  antes  de  subir  ao  cadafalso  de  Fothe- 
ringay,  n'essas  horas  dolorosas  que  consagrou  ao  exa- 
me da  sua  vida,  Maria  Stuart  se  lembrasse  das  su- 
perstições da  sua  infância,  e  dos  sinistros  agoiros  do 
demónio  do  lago. 

Ou  lembrasse  ou  não,  o  génio  das  aguas  apodcrou- 
se  da  sua  memoria,  encarregando-se  de  a  perpetuar; 
porque,  nas  margens  do  Men,  que  corre  perto  de 
Fotheringay,  colhem-se  umas  pequenas  florinhas  ver- 
melhas que  (segundo  a  legenda)  tomaram  aquellacór 
do  sangue  da  infeliz  Maria. 

(Trad.)  L.  IIilb.^ch. 


O  bcy  e  o  louco.  —  No  tempo  de  um  bcy,  cujo 
nome  se  não  declara,  um  habitante  de  Constantina 
endoudeceu,  ou  fingiu  ter  endoudecido,  puis  que  ali 
e  este  um  meio  excellente  de  conciliar  o  respeito  e 
attrahir  as  dadivas  dos  fieis.  A  sua  mania  era  consi- 
derar-se  como  sendo  o  próprio  Deus  Todo  Poderoso. 

O  bey  mandou-o  chamar,  e  em  presença  dos  offi- 
ciaes  da  sua  corte,  disse-lhe  com  voz  terrível. 

—  "Não  iia  muitos  dias  trouxeram  á  minha  pre- 
sença um  homem  que  se  intitulava  o  propheta  en- 
viado por  Deus.  Mandei-o  metter  cm  um  cárcere,  e 
como  sustentasse  tenazmente  o  seu  dito,  ordenei  que 
fosse  decapitado. 

O  doudo  ficou  silencioso. 

—  ..Wue  dizes  a  isto.'"  perguntou  o  \te\  . 

— ..  Digo  que  lizcste  muito  bem  castigando  o  im- 
postor. " 

—  "O  que?  pois  não  era  o  enviado  pi>r  IX-us  .' " 
acudiu  o  l>cy. 

.Como  o  podia  ser,  se  eu  lhe  não  tinha  outor- 
gado o  doiu  da  prophecia .'  ••  respondeu  o  doudo  com 
a  maior  presença  de  espirito. 

O  bcy  desatou  a  rir,  e  determinou  que  o  jolta»- 
sem. 


—  Os  homens,  em  geral,  são  mais  propensos  a  la- 
zer perguntas  ociosas,  ou  fiibas  unicamente  de  uma 
curitsidade  vã.  e  muitas  \c:eb  reprehcniivel.  dot|u>- 
solícitos  em  procurar  adquirir  noções  úteis  e  neces- 
sárias. 


48 


o  PA1VORA3IA. 


•3/ , 


BILBAU  — HOSPITAL   ClVII. 


KiLRAD  <•  a  povoarão  mais  iinporlanlc,    iiiaii  apriísi- 
vt'l  <•  |)()ivi"iilurn  iiinis  Diml-nla  ilf  Hitca^a. 

O  leu  |>ros|><cto  é  suiiiiiiaiiictilc  ai;railavel  :,  asmas 
ião  liradat  a  oonlel,  <•  csmiriadamoulií  calijaiiaí,  aí 
i«-,ai  Im'111  lonstiuiihts,  iis  passeios  vastoi.  o  ameno»,  e  I 
IJicilmfiili',  por  loila  a  ])arte  seolisiTva  omaioraccio 
<•  ('iii(lu<l(i,  o  (|iiii  muilo  concorre  para  tlcsile  hv^o  se 
formar  a  mais  lisont^iira  idiía  da  leira  e  do»  mo- 
radores, 

Muilo  lia  (pw  \<'r  ii'<'»Ih  povone3o,  limitar-iioí-lio- 
mos,  porém,  a  indicar  o»  edilJcios  e  cousas  miiil  lio- 
lavi'is. 

V<ii..  1.  —  3."   Suitiu. 


Knlre  i.s  templos  sohresáe  a  insi-^ne  lianiiica  di« 
Santiaf;o,  a  mais  antiga  dai  parocliiaa  de  liilliaii.  E 
de  ftindaeão  imnieinorial,  e  consta  quu  no  ultimo 
([iiartel  ilo  século  It."  Wra  melhorada  e  ampliada, 
conalruinilo-se  posteriorii\eiile  o  eôro,  o  ntrio  e  u 
claustro  lio  Anjo.  (  ompúe-so  de  Iro»  navps  e  Ireio 
capellas.  t)  presliyterio  é  de  mármore  e  o  frontal  e 
taliernaeulo  do  alinr-mór  ile  praia.  Devem  tambcui 
\i.Mtar-se  n  parochia  de  Santo  António  AUwde,  fun- 
dada nosecidola.'-',  «jue  consta  de  Ires  naves,  a  ii;r»- 
jade  S.  João,  com  uma  boa  lacliada  i;reco-roman», 
e  a  deS.  Nicolau  de  llari. 

NOVMAIUIU)  úl,  1I1j'J. 


378 


O  PAJNORA3IA. 


o  hospital  civil,  que  a  nossa  gravura  representa, 
é  talvez,  é  de  certo,  o  monumento  cjue  faz  mais  hon- 
ra a  Bilbau,  e  de  que  esta  villa  mais  deve  gloriar- 
se.  Deu-se  principio  á  sua  edificação  cm  1818,  sen- 
do o  risco  da  obra  traçado  pelo  haLil  architccto  D. 
Gabriel  Benito  de  Orbegozo.  E  uni  parallclogram- 
mo  rectângulo,  e  consta  de  quatro  frentes,  tendo  a 
fachada  principal  em  um  dos  lados  menores.  Com- 
põe-se  o  pórtico  de  quatro  columnas,  qu<!  sustentam 
nma  cornija  com  triglifos  e  outros  adornos  próprios 
da  ordem  dórica.  No  friso,  sobre  ointercoliimnio  do 
centro,  ha  uma  lapida,  com  a  respectiva  inscripção, 
coroada  pelo  escudo  das  armas  da  villa.  A  fachada 
que  acompanha  a  rua  direita  mede  23o  pés  em  com- 
primento. A  destribuição  interior  corresponde  ao<jue 
deve  esperar-se  do  severo  aspecto  do  monumento. 
As  enfermarias  são  bem  ventiladas  e  a  todos  os  res- 
peitos excellentes.  O  amphitheatro,  a  capella,  a  bo- 
tica, são  dignas  de  particidar  exame  ^  e  segundo  a  ' 
opinião  dos  que  tem  visitado  Bilbau,  é  impossível  j 
exceder-se  a  solicitude,  o  disvello,  a  caridadf  com 
que  os  enfermos  são  ali  tratados  e  assistidos  de  todo 
o  necessário.  Custou  este  edifício  a  avultada  somma 
de  100:000,^000  réis.  A  administração  dos  conside- 
ráveis fundos  dVste  hospital  está  encarregada  ajun- 
ta da  caridade. 

ISão  menos  digno  de  mencionar-se  como  estabele- 
cinio  de  caridade,  é  o  hospício  ou  casa  da  Miseri- 
córdia. Expulsos  os  jesuítas,  por  alvará  de  Carlos  III, 
foi  supprimido  o  collegio  de  Santo  André,  que  per- 
tencia aos  ditos  padres,  e  onde  se  dedicavam  á  edu- 
cação da  mocidade  que  ali  concorria  em  grande  nu- 
mero. Tratou-fe  de  tirar  o  partido  possível  do  aban- 
donado edifício,  o  que  de  feito  se  conseguiu,  conver- 
Icndo  o  templo  em  parochia,  e  o  coHegio  em  hospí- 
cio, fazendo-sc-lhe  as  obras  indispensáveis.  Esta  casa 
conserva-se  em  óptimo  estado,  e  nV'lla  recebem  ali- 
mento e  soccorros  abundantes  muitos  pobres,  sendo 
considerável  o  numero  dos  que  na  mesma  residem,  e 
se  empregam  em  vários  misteres,  para  o  que  se  cons- 
truíram e  organisarani  as  convenientes  officinas.  As 
creanças  de  ambos  os  sexos  recebem  ali  educação  es- 
merada e  cliristã,  destinando-se  os  varões  ao  exercí- 
cio dos  differentes  officios.  lia  também  uma  sala  de 
expostos  ou  engcitados,  onde  estes  são  recebidos  e  de- 
pois entregues,  para  serem  criados,  a  amas  de  fora  : 
todas  asdespezas  correm  por  conta  da  municipalidade. 

Passando  aos  espectáculos  públicos  encontramos 
apenas  em  Bilbau  digno  de  parlicularisar-se  o  thea- 
tro,  que  se  começou  cm  1833,  concluindo-se  no  sc- 
gumle  anno.  E  decorado  com  bastante  gosto,  c  reú- 
ne todas  as  condições  desejáveis  em  estabelecimentos 
d(!  similhante  natureza  n'uma  torra  de  provincia. 

A  junta  provincial  (ayuiúamiodo)  reunj-se  em 
um  vasto  e  soberbo  palácio.  ísa  sala  das  delibera- 
ções admira-se  uma  excellente  i)intura  que  repre- 
senta a  Conceição  de  IMaria  Santíssima.  No  resto  do 
edifício  acham-se  estabelecidas  a  junta  e  tribunal  de 
commercio,  os  archivos,  e  uma  extensa  galeria  com 
os  retratos  dos  reis.  O  grande  terreiro  interior  serve 
<le  mercado   de  cereaes. 

.\  praça  nova  principiou-se  a  edificar  em  31  de 
dezembro  de  18áí).  Tem  de  comprimento  iii  pés  c 
hm;  de  largura.  E  formada  de  graciosas  arcadas, 
apresentando  em  cada  um  dos  lados  maion^s,  18  ar- 
cos e  1  'c  nos  menores,  de  forma  e  dimensões  iguaes. 
todos  sustentados  por  columnas  dóricas.  Em  um  dos 
edificios  que  circumdam  esta  formosa  praça  funccio- 
na  a  corporação  municipal. 

A  praça  \clha  é  scímcnte  notável  por  ser  onde  se 
faz  o  mercado  de  comestiveis,  ijue  ali  se  encontram 
de  uma  abundância  c  liaratesa  incríveis. 


A  ponte  de  Santo  António  é  antiquíssima,   e  dis- 
tingue-se   peia  sua   solidez,   e   atrevida   construcção. 
O  cemitério  não  é  dos  menos  curiosos  monumen- 
tos de  Bilbau;   concluiu-se  em  1830. 

Um  portal  adornado  de  columnas  dóricas,  sobre- 
pujado de  uma  cruz  e  outros  emblemas  próprios  do 
logar,  dá  ingresso  ao  mencionado  cemitério,  que  é 
um  vasto  parallelogrammo  rectângulo  de  232  pés  de 
comprido  sobre  180  de  largura,  comprehendendo  ex- 
tensas galerias,  alguns  sepulchros  de  merecimento,  e 
um  deleitoso  jardim  no  centro.  Em  frente  da  entra- 
da vé-se  a  capella,  que  é  de  uma  architectura  serera 
e  elegante. 

Poucas  povoações  haverá  na  península  que  conte- 
nham tão  grande  numero  de  vistosos  passeios  públi- 
cos como  Bilbau.  O  do  Areal  abrange  sete  ruas  lar- 
gas e  compridas  e  três  menores,  todas  orladas  de 
frondosos  robles,  acácias,  plátanos,  e  outras  arvores  •, 
três  jardins  engradados ;,  e  é  íiluminado  á  noite  com 
candieiros  de  reverbero  sustentados  por  airosos  can- 
delabros de  ferro.  O  de  Santo  Agostinho  não  é  me- 
nos aprazível  ■,  começa  nas  ruinas  do  convento  d'esta 
invocação,  e  segue  pela  margem  do  rio ;  tem  uma 
rua  de  quatro  mil  pés  de  extensão,  guarnecida  de 
um  lado  e  outro  de  Ixinito  e  copado  arvoredo.  Além 
doeste  conta  Bilbau  outros  passeios  propriamente  di- 
tos,  e  algumas  ruas  arborisadas. 

Os  habitantes  de  Bilbau  dbtínguem-se  pela  sua 
cortezia  e  generosidade ;  são  honrados,  activos,  la- 
boriosos e  emprehendedores.  A  sua  bravura  nunca 
se  desmentiu,  c  ninguém  ama  com  maus  sinceridade 
a  sua  pátria.  As  mulheres  são  extremamente  aceia- 
das,  e  cuidadosas  no  arranjo  de  suas  casas  e  famílias. 
Religiosas  e  castas  observam  no  seu  trajar  a  maior 
compostura  e  decência. 

Não  é  Bilbau  desprovida  de  institutos  de  publica 
instrucção ;  além  de  uma  escola  de  latiiiídade,  exis- 
tem estabelecidas  cadeiras  de  mathematíca,  línguas 
vivas  e  desenho,  afora  as  cadeiras  sufficientes  de  ins- 
trucção elementar,  que  são  bastante  frequentadas. 

O  commercio  d''esta  importante  povoação  em  ou- 
tro tempo  iinmenso,  quando  alimentado  por  uma 
poderosa  marinha,  acha-se  em  bastante  decadência, 
para  o  que  não  tem  concorrido  pouco  as  circurastan- 
cias  geraes  da  Hespanha  quasi  constantemente  lace- 
rada pelas  guerras  civis :  comtudo  ainda  é  bastante 
considerarei,  sendo  o  principal  género  da  sua  expor- 
tação a  lã  ;  importa  ferro,  sedas,  tecidos  de  algodão 
e  bacalhau. 

Eneontram-se  em  Bilbau  algumas  manufacturas 
interessantes  ■,  mas  a  sua  principal  industria  é  a  de 
construcções  navaes,  que  ali  se  fazem  iMm  a  maior 
perfeição  e  solidez,  sendo  também  a  que  se  acha 
ii'uma  situação  mais  vantajosa. 

Bilbau  deve  a  sua  fundação  ao  senhor  do  Biscava 
D.  Diogo  Lopes  de  Haro,  que  no  primeiro  anno  do 
Século  I  i."  expediu  um  privilegio  a  favor  dos  mora- 
dores de  algumas  cas;is  que  existiam  sobro  as  mar- 
gens do  Nerbion  ou  Ibaizabal,  para  que  fundassem 
uma  povoação.  Confirmou  e  ampliou  aqnella  car- 
ta de  privilégios  o\\  foral  1).  Fernando  o  rmpraxn- 
(A),  devendo-se-lhes  por  const-quencia  o  principio  da 
formosa  villa  que  descrevemos.  Conservou  €-lla  o  no- 
me de  Bilbau  por  que  era  conhecido  desde  temjwim- 
niemoríal  o  sitio  em  que  foi  e<lific.id.T,  c  onde  se 
achavam  a  ponte  do  Santo  António  e  a  igreja  de 
Santiago.  O  primeiro  monareha  qoo  a  visitou  fui 
1>.  Aflonso  \l  em  1331,  o  qual  ordenou  que  n.in 
■]iudesse  nunca  sor  alienada  da  conia,  c  que  se  lhe 
fizessem  muralhas,  destinando  para  isso  l.iiOO  ma- 
ravedis em  cada  anno  até  prefaicr  a  somma  do 
T.oOO. 


o  PANORAMA. 


379 


Dos  transtornos  que  em  tudo  e  por  toda  a  parte 
Be  observavam  no  século  14."  não  foram  isentas  as 
províncias  vascongadas,  nem  tão  pouco  Bilbau.  De- 
sencadeadas as  paixõi-s,  S(!nhore3  os  poderosos  da  for- 
(;a,  o  povo  sem  amparo  e  prolec<;ão,  viam-se  por  to- 
da a  parte  incêndios,  assassinatos,  roubos,  quantos 
crimes  é  capaz  de  commelter  o  homem,  quando  se 
olvida  das  santas  máximas  do  chribtianisino,  ou  quan- 
do não  ha  para  liie  reprimir  os  excessos  uma  aucto- 
ridadc  cora  verdadeiro  prestigio  e  inílucncia.  Corria 
o  sangue  abundaniemente  dentro  e  lóra  das  muralhas 
de  Bilbau,  pois  ás  causas  que  ai-abamos  de  indicar, 
e  que  eram  communs  ás  três  províncias  e  a  toda  a 
nação,  accresciam  n'esta  villa  os  distúrbios  suscitados 
por  occasião  das  eleições  para  a  junta  provincial, 
ttuiz  el-rei  D.  João  11  pòr  termo  a  tantos  escânda- 
los e  horrores,  e  expediu  um  privilegio,  approvando 
a  concórdia  que  entre  os  diUercntc~s  partidos  se  ha- 
via tratado,  e  impondo  severos  castigos  a  quem  quer 
que  levantasse  novas  discórdias,  aos  que  n'ellas  to- 
massem parle,  e  aos  que  se  introduzissem  armados 
na  villa. 

Não  foram  as  domesticas  discórdias  os  únicos  ma- 
les que  affligiram  esta  villa.  No  mesmo  século  em 
que  60  fundara,  e  no  principio  do  seguinte  fizeram 
extragos  da  maior  consideração  as  inundações.  Rc- 
petiram-sc  eslas  de  uma  maneira  espantosa  no  sécu- 
lo 16.",  causando  danuios  incalculáveis,  e  sendo  des- 
truídos muitos  edifícios  e  até  ruas  inteiras. 

Entretanto  a  prosp(>ridade  de  J5ilbau  foi  em  au- 
gmenlo,  e  cresceu  de  ponto  sob  a  protecção  dos  reis 
calholicos.  Melliorarain-se  as  suas  ruas,  construiram- 
se  novas  casas,  c  alargaram-se  os  limit<'S  da  po\oa- 
ção,  demolindo-se  para  esse  fim  a  antiga  cerca,  ijue 
a  diflerença  de  tempos  e  costumes  tornara  desneces- 
sária. 

1'erlurbaram  a  paz  d'esta  villa  desagradáveis  oc- 
correncias  no  decurso  dos  séculos  10.",  17."  e  18.", 
procedidas  de  se  pertendcírem  levar  a  eflbito  certas 
disposições  contrarias  ás  isenções  e  fraiiqu(,'zas  de(jue 
sempre  gosaram  os  vascongados. 

Declarada  a  guerra  com  a  republica,  fui  ebta\illa 
occupada  [iclas  tropas  francczas  no  anno  de  17'JG. 
Livre  IJilbau  do  domínio  estranho  em  consequência 
do  tratado  de  S.  Ildefonso,  viu  d'ali  a  poucos  an- 
nos  atear-se  a  discórdia  dentro  dos  seus  muros  com 
o  pretexto  de  ter  querido  o  si^nhorio  impor  direitos 
sobre  alguns  artigos  ile  importação,  que  cniiu  ap[)li- 
cailos  para  íi  conslrucção  d<^  um  novo  porto  que  em 
obsequio  a  Godoy  se  devia  diainar  da  l'az.  Este  mo- 
tim |>0)mlar,  é  conhecido  no  paiz  pelo  nome  de  Za- 
macoladu,  por  chamar-se  Zamacóla  o  (pie  o  promo- 
vera. 

Rebentando  a  gloriosa  guerra  da  iuilependencia, 
armou-se  e  levantou-stí  ]5ill)au  em  defesa  de  tão  sa- 
grado objecto.  Caiu  S(il)re  ella  o  exercito  Iraneez,  cu- 
ja sup(?rioridade  numérica  piVle  mais  que  a  valorosa 
rcsis(i'ncia  dos  (pie  derramaram  o  seu  geui^roso  sangue 
em  defesa  da  pátria,  sendo  por  (íonse(piencla  occu|)a- 
da  a  villa  mivameiíti'  pelas  tropas  IVaiicezas,  (pie  a 
saquearam   deíapieiladainenle. 

Este,  (iesiislre,  poriMU,  não  é  [)ara  comparti r-s(í  com 
os  (pie  lhe  provieram  da  prolongada  e  terrível  guerra 
civil  em  nossos  dias.  llm  ciiiitiniiado  bloijueio,  a  per- 
da de  tantos  habitantes  mortos  nus  eiimbates,  três 
circos,  enlrií  os  (piaes  se  distinguiu  pela  sua  largadu- 
raíjão  e  fiineslus  elleilips,  o  de  ISliti,  piizeraiii  a  villa 
de  Rilluiu  n'uma  situação  embaraeuia,  de  ipic  lho 
lem  custado  a  levaiitar-se. 

Está  silii.ida  Hilliaii  sobre  as  margens  du  rio  Ner- 
bion,  ipie  os  naluraes  channim  Ibiiizabal,  ao»  4I>" 
l.'i'  de  latitude  de  l>"  ií'    c  longitude.   tJosa  de  be- 


nigno clima,  e  eleva-se  apenas  12  pés  sobre  o  nível 
das  aguas.  Tem  900  casas  e  13,000  habitantes,  pou- 
co mais  ou  menos. 


FR.  MIGUEL  CONTREIRAS. 

Cresciam  as  necessidades  da  pobreza  ao  par  da  di- 
ligencia e  charidade  de  Fr.  Miguel  Contreiras :,  mas 
nem  as  difficuldades  que  o  cercavam,  nem  a  multi- 
plicidade de  cousas  a  que  linha  de  attender  no  exer- 
cício de  tão  santos  deveres,  lizeram  soçobrar  o  animo 
do  venerando  sacerdote  ;  já  então  muitas  pessoas  cha- 
ridosas  o  acompanhavam  nos  seus  generosos  esforços 
em  prol  dos  desvalidos  :  cumpria,  porém,  centralisar 
esses  esforços,  organísar  para  assim  dizer  a  beneficên- 
cia, de  sorte  que  os  soccorros  so  tornassem  mais  pro- 
fícuos, e  mais  regular  a  administração  do  património 
dos  necessitados.  Estas  circumstancias  obrigaram  de 
certo  Fr.  Miguel  a  pensar  nos  meios  de  remediar  os 
transtornos  inevitáveis  provenientes  da  falta  de  uma 
organisação  conveniente  ;  nem  descansou  sem  ter  le- 
vado ao  cabo  o  sou  intento,  creando  em  agosto  de 
1  'l!)8,  sob  os  auspícios  da  rainha  D.  Leonor,  a  ir- 
mandade da  IMísericordía  de  Lisboa,  modelada,  em 
parte,  pela  que  existia  em  Florença  desde  13o0. 

A  Misericórdia  de  Lisboa,  a  primeira  de  l'ortu- 
gal  e  das  Hespanhas,  é  um  glorioso  monumento  da 
piedade  esclarecida  de  nossos  maiores,  e  o  testemu- 
nho mais  íncontrastavel  de  que  o  coração  d'esses 
guerreiros  robustos  que  arvoraram  o  estandarte  da 
cruz  nas  muralhas  de  Ceuta  i;  Tanger,  que  depois 
dobraram  o  calx)  das  TornUMitas,  abrindo  á  cívilisa- 
ção  uma  nova  e  ampla  estrada,  (pie  finalmente  eter- 
nisaram  o  seu  nome  e  o  nome  portiiguez,  por  feitos 
do  incrível  audácia,  nos  inarci  e  terras  do  oriente, 
qu(!  o  coração  d^esses  homens,  que  Voltaire  ap|ielli- 
doii  de  illtístns  pinitas,  não  era  insensível  ás  lagri- 
iii.is  do  pobre  sem  amparo,  da  viuva  desvalida,  da 
órfã  abandonada,  do  enfermo  tolhido  de  dores. 

Se  a  Misericórdia  de  Lisboa,  se  as  demais  Mise- 
ricórdias espalhadas  por  toda  a  monarchia,  não  pres- 
tam hoje  á  humanidade  os  serviços  que  podiam  e  de- 
viam jircslar-lhe,  attribui  isso  aos  homens  e  não  á 
instituição,  que  a  não  podia  haver,  attendendo  á 
epoclia  em  que  foi  creada,  nem  mais  previdente, 
nem  mais  presladía,  nem  mais  repassada  do  verda- 
deiro espirito  do  ehristíanismo.  Lede  os  seguintes  elo- 
(paentistinujs  trechos  do  relatório  que  precçde  o  de- 
creto de  2ti  de  novembro  de  1851,  que  modificou  a 
legislação  por  que  se  regulavam  os  (ístabelecimenlos 
de  caridade  em  Lisboa  desde  183o,  e  dizei-iios  de- 
pois se  não  coneorthuís  cmnnosco  em  que  a  inslllui- 
eão  das  Misericórdias,  a  obra  do  singelo  frade  da 
Trindade,  foi  a  mais  gloriosa  herança  <|ue  o  século 
líi."  legou  aos  \  indoiiros  : 

li  lia  séculos  já  (diz  o  relatório)  ([ue  a  primitiva 
instituição  do  hospital,  da  gafaria,  e  da  albergaria 
dos  tempos  fcudaes  ('<\ra  aperfeiçoada  pela  eivilisação 
christã  progressivamente  illiislrada,  e  a  linnl  se  for- 
mulava na  mais  completa  de  (odasas  instituições  clin- 
ritativas  —  a  Misericórdia  portugueza  —  irmandade, 
cujo  compromisso  ira  um  modtMo,  e  cuja  populari- 
dade em  liveve  tempo  a  ler  espalliar  desde  a  ciipilui 
a  Iodas  as  províncias  do  reiiu>. 

li  Forte  pela  protecção  real,  animada  pelo  faTor 
das  leis,  rica  pelos  legados  de  milliares  >U'portuguo- 
zes,  (pie  de  Iodas  lis  partes  do  mundo  lhe  aiiiili.im, 
essa  admirável  e  veneranda  conlr.iria  Hcoinpaiiliou 
t.iuiÍHMn  depois  u  cspuda  cuntpiiiitadoru,   e  o  iiatrulu- 


380 


O  PAIVORAMA. 


bio  descobridor  da  Liusitania  aos  mais  remotos  con- 
fins da  terra  -^  levando  com  a  palavra  do  Evangelho 
as  obras  que  não  desmentiam  da  palavra,  e  que  dei- 
xaram, ainda  nas  mesmas  conquistas  em  que  já  o 
dominio  portuguez  se  perdeu,  a  memoria  indelével 
da  nossa  pit^dade  e  da  nossa  misericórdia. 

11  Nenhuma  instituição  social  lez  ainda,  nem  fará 
jamais  tanto  para  remediar  as  inevitáveis  desigual- 
dades da  sorte,  e  para  fazer  irmãos  o  iguaes  diante 
de  Deus  e  do  Evangelho  a  todos  os  homens.  Aqui 
não  6  a  administração  publica  ou  a  municipal  que, 
pelos  princípios  da  economia  politica  vae  cm  auxilio 
dos  que  não  possuem,  do  órfão  c  do  desvalido,  para 
que  o  estado  tire  maiores  vantagens,  para  que  o  nu- 
mero de  contribuintes  se  augmente,  não  é  a  policia 
que  manda  velar  nos  indigentes,  curar  os  enfermos 
e  enterrar  os  mortos. 

"O  pensamento  portuguez  é  todo  outro,  todochris- 
tão,  todo  evangélico  :  são  os  irmãos  mais  afortuna- 
dos que  se  juntam  em  redor  do  altar  do  Deus  das 
misericórdias  para  ir  em  soccorro  de  seus  irmãos  in- 
felizes •,  é  o  rico  dando  o  braço  ao  pobre  para  o  am- 
parar;  é  o  proprietário  repartindo  com  o  proletário  ^ 
é  o  nobre,  o  grande,  o  dignitário  do  estado  lavando 
os  pes  ao  mendigo  plebeu,  curando-lhe  as  chagas, 
deitando-o  em  seu  leito ;  é  o  pae  de  famílias  aqui- 
nhoando o  pão  de  seus  próprios  filhos  com  o  engei- 
tado  que  não  tem  pae,  adoptando  o  órfão  para  o  edu- 
car, levando  o  alimento  e  os  remédios  ás  casas  da 
miséria  envergonhada,  que  não  ousa  mendigar,  for- 
necendo traballio  ao  operário  sem  recursos,  acompa- 
nhando piedosamente  o  próprio  criminoso  até  aos  tri- 
bunacs  para  o  defender,  aos  degraus  do  throno  para 
supplicar  mercê  por  elle,  ainda  depois  de  convencido 
e  condemnado,  não  o  desamparando  em  fim  até  ás 
escadas  do  patibulo  para  o  confortar,  com  a  imagem 
do  Rcdemptor,  com  a  promessa  do  eterno  perdão, 
no  momento  sujiremo,  em  que  a  justiça  dos  homens 
não  pode  já  apicdar-se." 

Não  se  pode  dizer  mais  nem  melhor  da  piedosa 
fundação  do  liumilde  frade. 

Outro  estabelecimento  de  beneficência  da  maior 
inilinrtancia,  que  lhe  deveu  incontestavelmente  a 
existência,  recebendo  d'elle  os  mais  (íflicazes  servi- 
ços, recommenda  á  veneração  da  posteridade  a  me- 
moria de  Fr.   Miguel  Contreiras. 

E  o  utilissinio  liospilal  das  Caldas  da  Rainha,  que 
ainda  hoje  felizmente  existe,  mandado  edificar  pela 
virtuosa  rainha  a  senhora  D.  Leonor  por  conseliio  c 
exhortações  do  seu  illusire  confessor. 

O  magnifico  templo  da  Alisericordia',  que  o  terrí- 
vel terremoto  de  ITiJo  sumiu  nas  minas,  e  que  era 
situado  junto  da  Uibeira  A  eliia,  foi,  a  seus  rogos, 
começado  por  el-rei  D.  ISIanoel,  concluindo-o  D. 
iloão  111  no  anuo  de  liiSt;  a  grandiosa  fabrica  do 
Jiospital  do  Rocio,  começado  por  D.  João  11  a  lo 
cie  maio  de  1 4-92,  no  (jual  mandara  incorporar  todos 
os  hos|>ítaes  disjiersos  pela  cidade,  estava  jior  con- 
eluir.  l).  Manoel,  solicitado  instantemente  por  Fr. 
INliguel  Contreiras,  cuja  influencia  era  immensa  as- 
sim na  corte  como  em  a  cidade,  ordenou  que  se  re- 
matasse a  obra  com  a  grandeza  própria  do  generoso 
.•mimo  d'nquello  monarcha. 

Em  quanto  a  ardente  charidade  do  venerando  sa- 
cerdote amparava  os  desvalidos,  creando  os  pieílosos 
iíistitutos  que  eonlieccmos  o  enumeramos,  a  sua  jxi- 
lavra,  e  sem  duvida  o  exemplo  de  Ião  esplendidas 
virtudes,  trazia  ao  seio  da  igreja  christã  muitos  dos 
que  baviam  nascido  c  perseveravam  na  religião  de 
Moisés,  e  que  eram  então  uma  parle  considerável,  e 
porventura  a  mais  industriosa  e  opulenta  da  popula- 
ção de  Lisboa. 


Chegou  o  mez  de  janeiro  de  ISOo,  e  o  que  não 
puderam  trabalhos  proseguidos  com  tão  incansável 
zelo,  acabaram  os  annos  e  as  enfermidades  suas  inse- 
paráveis companheiras.  A  '29  d'esse  mesmo  mez  a 
morte  do  confessor  da  rainha  a  senhora  D.  Leonor, 
o  instituidor  da  Misericórdia  de  Lisboa,  o  amigo  e 
o  protector  dos  abandonados  da  fortuna,  foi  annun- 
ciada  pela  cidade  e  geralmente  considerada  e  senti- 
da como  uma  calamidade  publica.  E  foi  de  feito  \ 
que  homens  como  Fr.  Miguel  Contreiras  não  appa- 
recem  com  muita  frequência  no  succeder  dos  tem- 
pos. 

Sepultaram-no  na  capella-mór  da  igreja  da  Trin- 
dade, em  sepultura  rasa,  sem  letra  ou  epitaphio. 
O  convento  da  Trindade,  pela  extineção  das  ordens 
religiosas ,  foi  vendido  em  basta  publica ,  e  pro- 
vavelmente as  cinzas  de  Fr.  Miguel  achara-se  con- 
fundidas no  alicerce  de  alguma  edificação  burgue- 
za  !  .  .  . 

Ijogo  depois  da  sua  morte,  ordenou-se  qne  o  s«u 
retrato  fosse  debuxado  nas  bandeiras  da  Misericórdia  :, 
e  por  accordão  de  15  de  setembro  de  1376,  sendo 
provedor  Ruv  Lourenço  de  Távora,  que  n'esse  an- 
no  serviu  device-rci  da  índia,  determinou-se  que  se 
pintasse  com  o  habito  da  sua  ordem,  e  com  as  letras 
F.  M.  I.  Fr.  Miyutt  Instituidor.  Esta  louvável  pra- 
tica foi  ampliada  a  todo  o  reino  e  conquistas  por  al- 
vará de  Filippc  III,  passado  em  Lisboa  a  26  de  abril 
de  1627. 


PORCELANA   I>E   SEVHES. 

/  aso  i<i/ríformc.  jior  ]U.  H.  Rrifiiicr. 

A  NOSSA  gravura  representa  uni  liello  spccimcn  dos 
magnificos  productos  das  celebres  mamifacturas  de 
Sòvros,   cuja  reputação  pôde  hoje  n-pular-se  ujiivcr- 


o  PA:^0RA3IA. 


381 


sal.    É  notável  principalmonte   pela  elegância   e  no-  | 
vidade   da   frfrma.    Recoinnicndamol-o,    assim  como  ' 
outros  modelos   igualmente  preciosos,   que  tenciona-  j 
mos   publicar,    á  atteiição   dos   nossos  fabricantes  de  | 
porcelanas,   cujos   trabalhos  já  obtiveram  na  grande  ' 
exposição  de  Londres  honrosa" menção.  Accusam  ge-  [ 
ralmente  os  nossos  operários   de  falta  de  gosto  :    mas  ■■ 
com  a  maior  injustiça  :    o  gosto  artístico  cria-se  pelo  1 
estudo  dos  bons  modelos,   guiado  por  uma  esclareci- 
da theoria.  Como  podem  exigir-se  dos  nossos  operários 
estas  habilitações,  se  até  a  maxJma  parte  d'elles  ca- 
rece da  mais  vulgar  instrucção  technica   e  do  conhe- 
cimento essencialissimo  do  desenho  ?    Fizeram-se  as 
pautas  para  proteger  a  industria  nacional :  mas  a  par 
das  pautas  devera  apparecer   a  instituição   das  esco- 
las professionaes,    sem   as   quaes   as  pautas  são,    em 
muitos  casos,    um   vexame   inútil.    O  Conservatório 
cias  artes  e  officios  nem  prestou,  nem  podia  prestar, 
talvez,  á  industria  os  serviços  e  o  impulso  de  que  ella 
carece. 

Cabe  também  á  illustre  cidade  do  Porto  a  inicia- 
tiva na  fundação  de  uma  escola  industrial,  que,  a 
julgarmos  pelo  quadro  das  disciplinas,  deve  ser  cx- 
cellente.  Honra  pois  aos  portuenses,  sempre  distinc- 
tos  pelo  patriotismo  e  pela  dedicação  :,  honra  e  gloria 
á  benemérita  e  respeitável  sociedade,  que  desinte- 
ressadamente poz  por  obra  tão  nobre  e  fecundo  pen- 
samento. 

Em  artigo  especial  trataremos  mais  extensamente 
da  associação  industrial  portuense. 


O  TROVÃO. 


Era  noite.  Noin  bafeja 
Leve,  branda  viração  •, 
Nem  pios  d'ave  agoureira, 
Nem  esses,  ouvidos  são. 

Valles,  montes,  céu,  e  mares, 

Negro  véu  todos  enluta  \ 

A  natureza  disséreis 

Ampla,  escura,  hórrida  gruta. 

Ou,  gigante,  á  luz  \cdado, 
Sul)t<Tr<M),  fundo  hypogiMj, 
r)'essc's,  ondo  a  prisca  idado 
Mortacs  restos  escondeu 

Nem  uma  estrolla  no  céu, 
Noni  ond.i  no  ininicnso  lago  ^ 
Sinistro  |)a\or,  rni  ludo. 
Núncio  de  visinlio  estrago. 

Só,   frouxo,  jiallido  rnnijx'. 
Dl-  qu.inili)  <'Mi  quando,  r)  luar  ■-, 
Cdiiii)  lâmpada  nixturna. 
Junto  d\ira  lunuilar. 

Só,  d'horu  a  hiir»  ilísiante, 
Na  torre,  irantigii  templo, 
O  bronze  trrta,  mais  iillo, 
Só,  da  vida,  agora  exemplo. 

Mas  liigo,  cm  fundo  lelh«rgo 
De  MOVO,  torna  a  cuír  : 
Silencio,  trevas  é  tudo, 
Nem  uma  folha  a  bollr; 


Nem,  d'ermo  casal  longínquo, 
S^escuta  o  canto  distante, 
©'essa  —  qtial  vivo  relo^o, 
Sentinella  vigilante. 

Silencio,  trevas  é  tudo, 
Nem  bafeja  viração  \ 
Nem  pios  d'ave  agoureira, 
Nem  esses,  ouvidos  são. 

Nem  da  lua  um  só  reflexo, 
Nem  já,  da  visinha  aldêa. 
Um  som,  confuso,  s'escuta. 
Um  só  lume  bruxulêa. 

Como  fúnebre  ataúde, 
Vestido  de  negra  cdr, 
Occulta-se,  o  immenso  espaço. 
Em  mais  espesso  vapor. 

D'iniproviso,  accordam  euros ; 
Como,  em  calado  deserto, 
Bramira,  leão  faminto, 
D^incauta  presa  já  perto. 

Fugaz  relâmpago  sulca 
A  cerúlea  immensidão  •, 
Como,  nocturna,  brilhante, 
Agoureira  exhalação. 

Dispara  canhão  gigante ! 
E  o  projéctil,  sou,  eléctrico. 
Eis  desce  rápido ;  e  perto 
O  trovão  ribomba  tétrico 

E  desperta  a  natureza 
De  sua  inércia  mortal  :, 
Tornando,  de  novo,  á  vida, 
A  vida,  por  maior  mal. 

Já,  humana  voz  s^escuta, 
O  piar  d\ivo  innoccnte. 
Das  feras  medonho  ululo, 
O  bater  da  onda  fremente. 

Vibram,  mil  diversas  cordas. 
Sons  crestranha  afinação; 
E  todos  —  Poder  Supremo  — 
Accordes,  dizendo  estão  I 

—  Que  sccnas  d"assombro  —  estas! 
.\bvsnia-sc  o  pensamento, 
1'erdida  a  razão,  nas  trevas, 
Brilha  a  luz  do  sentimento ! 

Mafra,  18  de  outubro  de  1852. 

J.  DA  ('.  Cascaes. 


TIIOMAZ  ANIELLO  (MASANIELLO.) 

{HuNOI.litjXo    DE    NaPOLBS    EM    l()i7.) 
II. 

Um.\  vez  sollu  da  funda  i|uem  é  lapni  de  prrxcr 
nonde  irá  acertar  o  seixo  .'  As  grnndesrommoçtVs  po- 
pulares siio  o  mesmo.  Os  pnilecinienlos  públicos  pr<>- 
parani-nas :,  as  repressões  violeutiis  exacerbam  o»ani- 


382 


O  PA1NORA3IA. 


mos-,  e  um  dia,  qualquer  cousa  iiu.igiiificante  Jeter- 
inina  a  explo&ão.  Foi  o  que  succedeu  cm  Nápoles. 
Antes  das  aucforidade»  atcordartm  do  pasmo,  que 
as  tolheu  de  repente,  o  motim  engrossando  a  cada 
hora,  estav;i  senhor  da  cidade,  e  aclamava  na  praça 
como  rei  da  plebe  o  pe»c-ador  de  Amalfi,  salvo  ar- 
rastar depois  o  Ídolo,  e  vingar-se  n^elle  da  ol>edien- 
cia  que  lhe  prestara  '.  O  incêndio  das  moradas  dos 
monetários  e  o  armamento  das  companhias  tinham 
assegurado  temporariamente  o  império  do  povo,  o 
primeiro  pelo  terror,  o  segundo  pela  força.  Aprovei- 
tando estes  elementos  Thomaz  Aniello  cuidou  em 
continuar  a  lucta,  e  em  consolidar  a  victoria. 

ttuando  appareceu  defronte  do  posto  militar  de 
S.  Lourenço,  donde  a  disciplina  das  tropas  regula- 
res havia  repellido  as  mangas  desordenadas  do  vul- 
gacho  no  anterior  assalto,  levava  um  corpo  de  dez 
mil  homens  armados,  e  o  ataque  foi  dirigido  com 
acerto,  occiípando-se  as  casas  visinhas  c  o  convento. 
A  guarnição  desfallecida  pela  fadiga  dos  repetidos 
rebates,  e  tão  estreitamente  bloqueatia,  que  não  pu- 
dera receber  viveres,  rendeu-se  sem  combate,  entre- 
gando as  armas  c  artilheria  do  deposito.  E  justo  di- 
zer <jue  (IS  vencedores  não  abasaram  do  triumpho, 
portando-se  com  humanidade,  e  concedendo  a  livre 
saída  dos  soldados  hespanhocs,  depois  de  no  merca- 
do llies  saciarem  a  fome  que  os  devorava. 

Conse^^uida  esta  vantagem  divulgaram-se  as  per- 
tensões  do  povo  •,  e  eram  ellas  ;  extincção  dos  im- 
postos lançados  a  contar  do  tempo  de  Carlos  V^  res- 
tabelecimento do  privilegio  original  do  imperador; 
amnistia  para  os  implicados  na  revolução  de  7  de 
jullin:,  eleição  de  um  popular  com  tantos  votos, 
quantos  eram  os  assentos  da  nobreza  i  entrega  da  for- 
taleza de  Santelmo  em  pcndior  da  boa  fe'  do  governo, 
e  final  ratificação  de  cl-reí  de  Hespanha,  conservan- 
do-se  1)  povo  em  armas  até  ser  publicada.  A  par 
d"estas  condições  nada  suaves  para  o  orgulho  da  au- 
ctorídade,  os  vencedores  ainda  propunham  mais,  que 
no  caso  de  se  faltar  a  qualquer  das  clausulas  doeste 
accòrdo  fosse  licito  em  lodo  o  tempo  aos  do  merca- 
do tornarem  a  sublevar-se  sem  incorrer  por  isso  nas 
penas  do  crime  de  rcbellião,  insistindo  para  que  de 
tudo  se  lavrassem  quatro  dísticos  em  mármore,  que 
ficassem  erguidos  como  padrões  de  perpetua  memo- 
ria. É  claro,  que  do  lado  dos  fidalgos  e  do  governo 
lacs  propostas  encontravam  a  máxima  resistência. 
Concedel-as  equivalia  a  abater  na  praça  a  coroa,  e 
a  assetUir  á  própria  abdicação.  A  derrota  completa 
que  mais  podia  arrancar-lhes,  obrigando-os  a  tratar 
de  potencia  a  potencia  com  o  vulgaeho,  e  a  pòr  nas 
suas  mãos'  como  reféns  tantos  privilégios,  e  sobre  to- 
dos a  posse  da  cidadella .' 

Servia  então  de  consultor  em  Nápoles  Júlio  Ge- 
novino,  velho  de  87  annos,  ecclesiastico  douto,  e 
um  dos  políticos  mais'cstíniados  pelo  duque  de  Os- 
suua  durante  o  seu  governo.  O  conde  de  Clivares 
detestava-o  pela  sua  amisade  leal  ao  antigo  vice-rei, 
e  caindo  o  duque  não  se  esqueceu  de  lhe  dar  provas 
do  seu  ódio,  pucarcerando-o  injustamente,  c  dester- 
rando-o  depois  para  Oran  na  l?arberÍ3.  Dotado  de 
um  caracter  severo  e  rígido  Júlio  Geno\ino  uão  se 
desraenliu  nos  traballius,  nem  se  humilhou  com 
fraqueza.  A  perseguição  acrisolou  ainda  mais  as  ra- 
ras e  singulares  virtudes  do  seu  animo.  No  lim  de 
vinte  e  dous  annos  cansuram-sc  de  o  opprimil- •,  mas 
elle  é  que  nunca  se  fatigou  do  oppòr  o  mesmo  rosto 
inteiro  á  fortuna.  Voltando  á  pátria,  na  idade  cm 
que  se  destempera  ordinariamente  em  todos  a  força 
d'alma  e  a  agudeza  das  faculdades,  aohiva-se  tão 
perspicaz  do  entendimento  e  tão  forte  de  consciên- 
cia, como  na  epocha  em  que  o  seu  coaselho.  igual  á 


acção,  eram  tão  profícuos  ao  vice-rei,  amigo  quenãu 
trahiu  nem  denegou  apesar  das  exacções.  í^te  con- 
sultor era  auxiliado  nas  suas  funcções  por  oito  dou- 
tores anciãos,  e  tinha  por  secretario  a  Marco  Vitale, 
natural  de  Nápoles,  e  não  só  não  foi  estranho,  mas 
suppõe-se  que  protegeu,  dirigiu  em  parte  e  estimu- 
lou o  movimento  popular. 

As  cousas  peioravam  entretanto  a  cada  instante ; 
os  tumultos  cresciam,  e  noute  e  dia  não  se  ouvia  nas 
ruas  senão  tambores  e  arruidos  populares.  O  negociu 
paralisou-se,  o  despacho  ficou  suspenso,  até  o  da  ca- 
mera  real  e  do  conselho,  e  a  própria  .vicária  civil  t 
crime  fechou-se  com  receio  da  voz  da  justiça  ser  me- 
nos respeitada.  Entre  outros  elementos  de  anarchia, 
formou-se  um  bando  de  tresentas  mulheres  armadas, 
e  é  inútil  accrescentar  que  nada  concorriam  para  so- 
cegar  as  inquietações.  NVste  estado  não  admira, 
que  sabendo  Masaníello  que  600  soldados  walões  de 
Capua  e  Aversa  vinham  guarnecer  ocastello  de  San- 
telmo, mandasse  marchar  contra  elles  algumas  das 
suas  tropas  ;  estas  obrigaram  os  castelhanos  a  metter- 
se  dentro  da  igreja  de  Nossa  Senhora  de  Constanti- 
nopla, e  cercando-a  e  deitando  fogo  ás  portas,  for- 
çaram os  soldados  a  abrir,  e  a  deixarem-se  desarmar, 
indo  depois  d"ali  para  o  mercado  ao.nde  se  alistaram 
ao  serviço  do  povo. 

O  idtiino  revez  experimentado  pela  companhia 
vvalona  acabou  com  as  indecisões  dos  governante> 
receiosos  de  levarem  o  mal  a  t.il  extremo,  que  depois 
não  pudesse  remedíar-se.  No  dia  11,  o  cardeal  arce- 
bispo Filomarino,  tomou  a  iniciativa,  edeintelligen- 
cia  com  o  duque  de  Arcos,  principiou  a  negociar  a 
paz,  mostrando  desejos  de  a  obter.  No  conselho  do 
governo  foi  exposto  o  perigo  sem  disfarce,  e  lembra- 
do o  que  succedeu  em  Flandres  por  causa  do  duque 
de  Alva,  o  qual  pelos  seus  rigores  metfeu  a  Hespa- 
nha em  noventa  annos  de  cruelíssima  guerra,  derra- 
mando-se  tanto  sangue  (dizia  o  cardeal.)  que  seria 
bastante  para  fazer  um  rio  navegável,  e  díspenden- 
do-se  tanto  ouro,  que  excedeu  o  quo  produziram  as 
minas  de  ambas  as  índias.  Estas  razões  e  outras  mui- 
tas persuadiram  o  vice-rei,  que  auctorisou  o  prínci- 
pe da  igreja  a  prometter  a  sua  appro\ação  aos  capí- 
tulos do  povo,  ainda  que  alguns  lhe  custassem  como 
funestos  ú  dignidade  do  poder  c  ao  esplendor  da  clas- 
se nobre.  O  accòrdo  tratou-se,  e  concluíu-sc,  retira- 
da a  clausula  relativa  ao  perdão  da  revolta,  porque, 
observou  o  povo,  era  imprópria,  visto  nunca  ter  sido 
victoriado  senão  el-reí  de  ETespauha.  O  vice-rei  man- 
dou então  chamar  ao  paço  Thomaz  Aniello  para  se 
firmar  o  concerto",  e  oppondo-se  os  amigos  d"cstc 
com  temor  de  alguma  cilada,  o  chefe  declarou  que 
iria,  uma  vez  que  ficassem  como  reféns  da  sua  pes- 
soa dous  dos  filhos  do  duque  d*Arcos.  Tão  apMtada 
era  a  necessidade  que  o  vice-rei  sujcitou-so,  não  op- 
pondo  a  menor  duvida  I 

A  maior  questão  consistia  em  não  se  poder  descu- 
brír  o  privilegio  original  de  Carlos  ^  ,  que  se  tinh.i 
perdido;  o  cardeal  arcebispo,  confes«ando-o,  pej-gun- 
tou  a  Masaníello  como  se  havia  de  substituir .'  Eui 
quanto  se  não  acha,  ponham  en>  vigor  o  anteceden- 
te de  el-rei  Fernando  \  sei  aonde  está  !  respondeu  o 
caudilho.  Como  ainda  era  mais  amplo  do  que  o  do 
imperador,  o  cardeal  sorriu-se  accresccntando  :  não 
são  teus,  mas  de  Deus,  taes  accvWos '. 

Mu»  no  fundo  da  app-ircnte  submissão  do  poder 
estava  a  cilada.  A  nobreza  rcsscntid.i  via  nascipitu- 
lações  ajustadas  a  oflensa  e  o  .ilxitímento  da  sua  ín- 
tluencia.  Abolidos  os  im(>ostos,  reícindíd,-is  ficavam 
desde  lo;o  tand.iem  as  arrem.-it.-íPõcs  conlrafadas  so- 
bre elles ;  e  seccava-se  a  fonte  copiosa  dos  seus  ren- 
diiuentos.  Accrescia,  que  se  achava  coniprehemlida  nas 


o  PANORA3IA. 


383 


penas  cominadas  aos  negociantes  de  tributos  em  vir- 
tude do  privilegio  de  Carlos  V,  estendendo-se  a  ac- 
ção igualmente  aos  monetários  nacionaes  e  aos  capi- 
talistas forasteiros.  A  consequência  da  reforma  das 
contribuições  era  ficar  a  fidalguia  despojada  da  sua 
principal  riqueza :,  e  a  cidade,  que  no  tempo  do  im- 
perador devia  apenas  duzentos  mil  cruzados,  acliar- 
se  de  repente  onerada  com  uma  divida  de  oitenta  e 
sete  milhões,  tinha  por  isso  jus  a  negar-se  ao  paga- 
mento de  outras  soinmas,  visto  o  engano  com  que 
fora  opprimida  !  Assim  a  aristocracia  perdia  os  vin- 
te mil  ducados,  quo  formavam  o  património  de  cada 
uni  dos  seus  membros,  quando  alcançava  o  grau  de 
eleito  '.  Depois  d'isto  é  claro  que  o  ódio  entre  ella  e 
o  povo  devia  augmcntar-se,  e  as  duas  facções  nada 
esqueciam  para  se  hostilisarem,  procurando  supplan- 
tar-se  á  custa  do  todos  os  sacrifícios. 

O  governo  vivia  de  interesses  iguaes  aos  da  nobre- 
za, e  era  natural  por  isso  que  em  quanto  o  obriga- 
vam a  mostrar  bom  rosto  á  má  fortuna,  empregasse 
occultamente  os  seus  agentes  e  recursos  para  semear 
a  discórdia  e  a  desconfiança  no  seio  da  coUigação  po- 
pular. O  vice-rei  tratava  com  ella  i  mas  os  factos 
provaram  que  a  sua  boa  fé  tinha  muito  de  equivo- 
ca. No  coração  jurava  a  ruina  dos  atrevidos  peões, 
que  ousavam  eiirval-o  á  sua  vontade,  e  prender-lhe 
as  mãos,  fazendo-o  passar  por  baixo  do  jugo  de  con- 
dições ailrontosas.  Um  homem  era  a  alma  c  a  intel- 
ligencia  da  revolução  ^  destruído  elle  a  cabeça  caía, 
e  o  tronco  sem  direcção  depressa  se  desmembraria. 
For  isso  tanto  a  auctoridade,  como  a  fidalguia  j)U- 
zorain  o  seu  odiú  em  Thomaz  Aniello,  nísolveixlo 
immolal-o  ao  reslaljeleciíiiento  do  seu  império. 

A  reação  [)riiicipiou,  teninndo-se  o  povo  com  pei- 
tas \  a  corriijjção  |)orém  encontrava  resistências.  Os 
plebeus  recusavam  o  ouro,  res[)ondendo  que  com  três 
earlins  (120  réis)  tinha  cada  napolitano  a  subsistên- 
cia diária.  Da  sua  ])arle  o  chcle  não  se  mostrava  me- 
nos intx-iro,  rejeitando  as  promessas  com  esta  bella 
resposta  :  "façam  justiça  ao  povo,  a  (luem  obedeço, 
a<|uiele-s(!  elle,  e  darei  o'meu  cargo  por  lindo,  vol- 
tando alegre  á  vida  que  sempre  tive.  Tornarei  a  pes- 
car com  a  minha  caiina."  JVVsles  termos  os  inimi- 
gos da  reforma  decidiram  que  não  havia  remédio  se 
não  ferir  lun  golpe  audaz  ;  escolhendo  para  odescai- 
regar  a  occ.isião  em  que  o  duque  de  Arcos  vinha  ao 
mercado  jurar  as  capilulaçõcs.  Urdiram  o  |)lano,  dis- 
pozeram  os  insIruuK^iilos,  e  debignaram  para  cabeça 
da  empresa  o  mesmo  1'errone,  quo  por  ciúme  a  Ma- 
saniello,  e  devoção  á  casa  de  IMatalona  se  ollerecêra 
já  para  assassinar  o  chele  jjopular  no  sitio  mais  pu- 
blico. A  recompensa  promellida  eram  dez  mil  duca- 
dos, uma  coijipanhia  de  infaiileria,  e  o  perdãode  lo- 
dos os  seus  crimes.  líis  a  lealdade  com  que  o  duque 
•icceitava  o  pado,  e  o  ia  Urinar  ! 

Thomaz  Aniello  ilesculiriu  a  conspiração  e  jjreve- 
iiiu-.se.  Os  liaiidoleiroi  apostados  p.ira  o  matarem  es- 
tavam i'mlius(;idos  no  ( 'armo,  irmiile  saíram  a  si- 
gnal  dado,  desfechando  sobre  elh;  dez  arcabuzes,  <|ue 
não  lhe  ac(-rtaram.  I''ini  Um  momento  os  liandos  do 
mercado  envolveram  os  sicários,  crivaram  de  feridas 
;i  l'en'oii(;  <«  ao»  seiít  se(piazes,  e  eoni-mio  ao  mostei- 
ro de  Santa  Maria  a  Nova,  aonde  José  Carralla  e 
muitos  d.i  Mua  l.icção  r^speravam  o  exilo  ilo  homici- 
dio  para  ronquTeiii,  puzcnam-lhe  circo,  e  ciilheram 
um  emissário  que  expcdijim  aovii'e-rei,  piidiudoque 
mandasse  di.spnrar  para  o  ar  a  arlilheria  do  caslello. 
Carralla  liiiínu  fugir,  mas  foi  preso  e  (li'capilailo  no 
mercado,  aitsiiii  como  o  saigenlo-inór  líeniiirdiíu) 
(«rnssn. 

(fiiiiliiinit.) 


A    ISSTRUCÇIO    PRIMARIA   NA   InGIATEBRA. 

O  sysTE.ví-i  de  instrucção  primaria  adoptado  cm  In- 
glaterra é  inteiramente  diverso  do  de  todas  as  ou- 
tras nações.  A  Portugal  não  podemos  referir-nos, 
porque  infelizmente  não  temos  instrucção  racional- 
mente organisada. 

E  uma  vergonha,  que  todo  o  escriptor  lamenta, 
mas  que  não  deve  occultar,  porque  em  sua  missão, 
toda  civilisadora,  não  pode  ser  indifferente  ao  aper- 
feiçoamento moral  d'um  povo.  Vamos  dar  alguns 
esclarecimentos  sobre  o  methodo  porque  na  Gran- 
Brctanha  se  acha  organisado  o  ensino,  que  tem  por 
fim  promover  o  desenvolvimento  intellectual  e  mo- 
ral das  massris. 

Insistir  sobre  a  necessidade,  e  a  importância  da 
instrucção,  é  uma  d'aquellas  banalidades,  que  enfas- 
tiam por  demasiado  repetidas.  Nos  paizes,  em  que  o 
governo  repousa  á  sombra  e  sob  a  salvaguarda  da  so- 
berania popular,  é  essencialmente  indispensável,  que 
o  povo  seja  illustrado,  moral  e  religioso.  Não  é  só  o 
interesse  da  humanidade,  que  o  reclama,  é  também 
uma  garantia,  uma  necessidade  da  ordem  publica. 
Na  Inglaterra,  aonde  não  existe  o  suílragio  univer- 
sal, não  é  tão  palpitante  a  defficiencia  do  ensino,  no 
ponto  de  vista  politico.  Todavia  na  Inglaterra  mul- 
tiplicam-se  cada  dia  os  esforços  para  a  sua  mais  lar- 
ga proj)agação  \  a  igreja,  as  corporações,  a  beneficên- 
cia particular,  o  estado,  finalmente,  rivalisain  nos 
meios  que  empregam  para  <jue  cada  vez  mais  se  de- 
senvolva, e  em  maior  escala  o  ciisího  j)o[>ular. 

Duas  sociedades  pnncipaes,  (1)  exercem  uma  in- 
lluencia  decisiva  sobre  o  desenvolvimento  da  instruc- 
ção primaria  no  Reino-Ciiido :,  a  sociedade  nacional 
(Ndlional  Soclciy)  e  a  sociedade  ingleza  e  estran- 
geira (Jiritislt  <ind fiirciijn  Socictt/).  Ambas  prose- 
guem  com  o  íélo  mais  incansável  nNste  grandioso 
pensamento,  —  a  diUusão  da  instrucção  pelas  clas- 
ses pobres  ;  mas  entre  estas  duas  grandes  associações 
ha  uma  dillerença  fundamental  na  applicação  •,  uma 
é  inlriramcntc  ligada  com  a  igreja,  e  a  outra  recu- 
sando Ioda  a  formula  dogmática,  não  se  restringe 
ao  limitado  circulo  de  um  symbolo.  A  primeira  não 
admittc  escolas  mixtas;  é  uma  poderosa  arma  nas 
mãos  do  aniilicanismo.  l'ara  a  segunda,  a  instrucção 
é  simplosmenlc  unia  propaganda  social',  não  é  só  um 
meio,  é  um   lim  . 

A  sociedade  nacional  é  ilirigida  {lor  um  conselho, 
que  SC  compõí!  exclusivamente  dos  altos  dignitários 
do  anglicanismo,  e  que  se  corresponde  com  os  dilVe- 
rentcs  conselhos  diocesanos  estabelecidos  nos  dille- 
rentes  pontos  dopaiz.  Escolas  normaes  formam  mes- 
tres i!  mestras.  As  escolas,  (|ue  depeiiilem  da  socie- 
dade são  frequentemente  visitada»  por  inspectores, 
cspeciaes.  l''inalment<>,  um  jornal,  o  Moittlili  y  popi  r, 
de  «jue  .se  tiram  ipiatro  mil  exemplares,  representa 
as  idéas,  expõe  os  deveres,  e  detende  os  direitos  de 
associação.  Em  I8.'i0  o  numero  de  escolas,  sujeitas  a 
iniluencia  da  sociedade  nacional,  excedia  o  do  i20,000, 
e  o  dos  alumnos  elevava-se  a  I  ..'iOO:OlK>. 

Já  vimos,  ipie  esta  sociedade  obedece  complela- 
inente  á  direcção  da  igreja  anglicana,  só  abre  as  suas. 
escolas  aos  lillios  de  uuui  «cria  religião,  de  uma  sei- 
ta determinada,  porque  o  .seu  lim  principal  e  sus- 
tcular  a  unidade  e  iut<'gridade  da  igreja  «'stabeli'- 
i'ida. 

Ijiiuilada  a  <'ste  circulo  eslreitissimo,  não  pode  evi- 
dentemente  satisfazer   ás   nci-i>ssidades    da  iusInicç.HO 


(I)     Mr.    KuKcnc    llcmlu  —  Um>|''»l''   «"   "'«■"■•l<<'   ''•• 
riuslnirliou  ciu  Krimcf, 


384 


O  PAIVORA3IA. 


popular.  A  sociedade  ingleza  e  estrangeira,  pelo  con- 
trario, investida  na  propaganda,  e  representando  um 
papel  grandioso,  recebe  alumnos  de  todas  as  seitas, 
de  todas  as  escolas,  de  todas  as  comraunhões.  Segun- 
do as  informações  de  mr.  Hautute,  possue  em  Lon- 
dres e  arrabaldes  ál3  escolas,  cjue  contam  para  ci- 
ma de  300,000  rapazes,  estende  as  suas  operações  ao 
estrangeiro,  e  tem  estabelecido  escolas  nas  mais  re- 
motas colónias 

Independente  das  escolas  normaes,  sujeitas  á  ín- 
lluencia  directa  doestas  duas  grandes  associações,  cu- 
jo fim  e  caracter  explicamos,  uma  associação  espe- 
cial estabelecida  em  1836  sob  a  protecção  da  rainlia 
e  do  principe  Alberto,  fundou  em  Gray's  inn  road 
um  sala  d'asvlo  e  uma  vasta  escola,  destinada  a  for- 
mar mestres,  e  sobre  tudo  mestras  hábeis  c  perfeita- 
mente instruídas.  Esta  sociedade  cliama-sa — i<'Ao- 
mc  aiul  colonial  school  Socicty  —  e  adniitte  jovens  de 
ambos  os  sexos,  como  alumnos  internos  e  externos ; 
e  até  faniilias  inteiras  \  lia  simplesmente  exclusão 
dos  homens  celibatários.  A  educação  é  dada  gratui- 
tamente, e  na  mesma  sala,  aos  educandos  de  ambos. 
05  sexos. 

Esta  sociedade  tem  sido  objecto  de  sérios  estudos 
para  muitos  curiosos  e  pensadores.  O  facto  parece 
extravagante;  se  se  fallar  na  educação  promíscua, 
todos  se  espantam,  e  alcunham  a  idéa  de  immoral. 
Mas  um  homem  de  talento,  e  que  merece  inteiro 
credito  por  sua  imparcialidade,  mr.  Eugénio  Rendu, 
que  por  ordem  do  governo  francez  foi  a  Inglaterra 
estudar  e  analisar  as  vantagens  e  os  defeitos  d'' este 
systema  professional,  aflirma  que  isso  fora  objecto  da 
sua  mais  seria  attenção.  Este  costume  não  é  pecu- 
liar da  sociedade  (irmfs  inn  road.  porque  se  encon- 
tra em  outras  muitas  escolas,  e  com  excellentos  re- 
sultados. 

(  Coniinita . ) 


líIBLIOGRAPHIA. 

Sohre  algtimas  obras  do  padre  Francisco 
José  Freire. 

Entre  os  mais  fecundos  e  primoro.sos  escriplores  dos 
nossos  modernos  tempos  cabe  um  distincto  locar  ao 
padre  Francisco  José  Freire,  da  congregação  do  Ora- 
tório de  Lisboa,  mais  conhecido  pelo  Anagranima 
de  Cândido  Lusitano. 

Este  douto  padre  foi  um  dos  que  com  as  suas  dou- 
trinas e  o  seu  exemplo  mais  trabalharam  para  a  res- 
tauração do  bom  gosto  e  da  boa  poesia.  A  sua  Arte 
Poética,  em  que  refundiu  o  melhor  da  de  Aristóteles, 
e  quanto  melhor  haviam  expendido  os  críticos  moder- 
nos, as  suas  Dissertações  e  outros  escriptos  sobre  l)el- 
las  letras,  as  suas  annofações  á  Poética  de  Horácio, 
as  suas  orações  académicas  e  panegvricas  tiveram  in- 
fluencia directa  no  espirito  dos  seus  contemporâneos, 
e  assim  pôde  ajudar  os  trabalhos  de  Garção,  de  An- 
tónio Diniz,  de  tluil;'.,  e  muitos  outros  Árcades, 
que  como  elle  lizeram  guerra  de  extermínio  ao 
gongorismo. 

Com  a  sua  vida  do  infante  D.  Henrique  se  collo- 
cou  a  par  dos  nossos  mais  afamados  historiadores. 

Seria  ocioso  insistir  niais  nas  suas  obras  de  prosa 
todas  escriptíis  em  estvlo  puro,    farto  o  harmonioso.  | 

Sem  que  seja  um  jx)eta  do  génio  tem  na  |K>csia 
um  talento  não  nicdiocre  que  Uie  deu  grande  consi- 
deração entre  oj  .\rc.vdc9.  Os  seus  versos  latinos 
iMOitram  o  ponto  de  perfeição  a  que  levava  oconhe- 
cimer.lo  da  lingua  do  antigo  Lacio. 


O  padre  Francisco  José  Freire  estava,  e  quanto  a 
mim  com  muito  juizo,  persuadido  de  que  o  meio 
mais  eftjcaz  para  restaurar  entre  nós  o  bom  gosto  em 
poesia  era  a  traducção  na  linguagem  pátria  dos  me- 
lhores poemas  gregos  e  latinos  i  e  comA  praticava  sem- 
pre o  que  ensinava,  deu-se  a  essas  árduas  tarefas,  e 
traduziu  em  verso  portuguez  quasi  todas  as  tragedias 
de  Sophocles  e  Euripedes,  a  Eneida  de  \'irgílio,  e 
as  Metamorphoses  de  Ovidio,  além  de  outras  obras 
menos  importantes,  e  outras  dos  modernos  como  a 
Athalia  de  Racine,  a  Merope  de  Maffei,  etc. 

Desgraçadamente  estas  obras  não  foram  publica- 
das, ficando  a  Eneida  e  a  Merope,  segundo  dizem, 
na  livraria  da  casa  de  ^  imieiro,  e  as  outras  na  bi- 
bliotheca  de  Évora,  até  que  haja  algum  zeloso  da 
gloria  litteraria  d"este  reino  que  de  lá  as  desenterre, 
para  as  dar  á  luz,  como  aconteceu  ás  poesias  de  An- 
tónio Diniz  da  Cruz  e  SUva  que  tamisem  jaziam  na 
livraria  vimieirense. 

E  chegará  esse  dia  de  resurreição  poética .'  Talvez, 
porém  muito  o  duvidamos.  E  tal  a  inércia  dos  nos- 
sos impressores  e  livreiros  que  muito  difficil  será  que 
a  tal  empresa  se  abalance  algum  d"elles. 

Consta-nos  que  por  mão  de  alguns  curiosos  exis- 
tem cópias  da  traducção  das  Metamorphoses  feita  por 
este  douto  padre,  e  essa  traducção  era  a  que  convi- 
nha publicar,  sequer  para  nos  remirmos  da  vergo- 
nha de  sermos  a  única  nação  europea  que  não  tem 
em  sua  lingua  uma  traducção  em  verso  das  Meta- 
morphoses de  Ovidio. 

£  não  será  uma  vergonha  para  a  litteratura  por- 
tugueza  o  termos  traduzidas  as  melhores  tragedias  de 
Euripides,  de  Sophocles  e  de  Séneca,  por  uma  há- 
bil mão,-  e  não  correrem  impressas,  como  convinha 
aos  mancebos  que  se  applicam  a  escrever  para  o 
theatro,  e  que  não  sabem  grego,  já  que  dessn^açada- 
mente  tão  pouco  cuidado  se  põe  cm  que  os  mance- 
bos se  appliquem  ao  estudo  do  mais  bello  dos  idio- 
mas da  antiguidade,  e  sem  cujo  conhecimento  nãoé 
possiv  el  saber  bem  latim .' 

Também  fora  muito  para  desejar  que  se  impri- 
misse o  poema  didáctico  original  do  padre  Francis- 
co José  Freire,  que  tem  por  titulo  o  Mentor  Fktol- 
/o,  em  que  se  encontram  os  mais  judiciosos  preceitos 
de  critica,  e  valiosas  rellcxões  sobre  a  arte  de  bem 
escre\er  em  prosa  e  verso,  expressados  em  culto  es- 
trio e  florida  e  corrente  versificação. 

D''esta  obra  não  faltam  cópias  pelas  mãos  dos  cu- 
riosos, e  por  isso  não  offereceria  grande  difltculdadc 
o  descubrir  uma  para  por  ella  se  fazer  uma  edição, 
que  não  seria  dispendiosa,  pois  que  o  manuscripto 
pouco  mais  excede  a  mil  versos. 

Temos  perdido  tantas  preciosidades  litterarias  p«v 
la  pobreza  ou  preconceitos  dos  seus  auctores,  pela 
incúria  e  desleixo  dos  seus  herdeiros,  que  nunca  ces- 
saremos de  clamar  pela  impressão  de  ti.>d.-is  as  que 
appareçam.  ainda  que  estamos  persuadidos  de  que 
serão  baldados  os  nossos  esforços. 

J.  M.  D.\  Costa  e  Sil\  v. 


—  Muitos  confundem  a  vaid.#e,  o  amor  próprio 
e  o  orgulho.  O  amor  próprio  ó  necessário  ;  c  do  amor 
próprio  bem  entendido  que  provôem  a  honra,  a  de- 
cência, a  honestidade.  .\  vaidade  nada  ptide  produ- 
zir de  útil  ;  o  do  or-julho  não  espereis  senão  vicio*. 

J.    B.    KOVSSSAV. 


—  Pi-nle  definir-se   o  vicio  :   o  sscrificio  do  futuro 
.10  presente. 

J    B.  Say. 


49 


o  PANORAMA. 


38i 


o   BOM   AMIGO   E   FREFERIVEI.   AS   RIQUEZAS. 

Qiuidrv  di.   Othovínius. 


AoLKi.Lii  ijiie  ircsln,  ora  brovo  ora  lari;M,  mas  sem- 
pre! aliorrceida,  faslicnla,  c  por  vez<'s,  e  (]uantas  ve- 
zes !  amarmirada  ])erogriiiai;ão  da  vida,  tiver  encon- 
trado <|uetn  liio  enxuj;;a6se  os  pranios,  (juandu  o  al- 
trll)idarani  os  desp;oslos,  <|ui!in  o  atompanliasse  sin- 
cííraiiKMile  na  aieij;ria,  se  a  fortuna  Ilu'  correu  favo- 
r.-ível,  (|uem  liie  lossc!  leal  e  o  não  dcsanijiarasse,  se 
porventura  u  adversidade  o  i'oi  visitar  ^  i|Uein  o;^uias- 
se,  <jueni  o  dirigisse,  (|uem  o  eonlorlabse,  <|neni  lhe 
ilispensasse,  (;eneroso,  consolações  e  protecção,  dis- 
vollos  e  carinhos  d(!  irmão',  a<iuel)e<|ue,  linalmente, 
houver  «•oídiecldo  um  verdadeiro  ami[;o,  dirá  com- 
nosfo,  dirá  com  todos  ipie  tiverem  sentido  c  expe- 
rimentado as  doçuras  da  amizade,  d'esse  sentimento 
i]\ie  a  l'rovIdi'neia  cravou  proAuidamente  no  cora- 
«jãu  d<j  homem  como  para  u  compensar  de  todiíii  as 
amarguras  do  viver,  não  srf  (|uu  o  hum  om/y»  <'  prc- 
firivvi  (ís  riijKtiti»;  mas  f|ue  constilue  per  si  só  a 
nniior  de  todas  as  riijuexas. 

l)'esli!  pensar  era  sem  duvi<la  o  liimoso  pintor  al- 
lemãc)  Othoveniut,  nuctor  do  bello  quadro  de  (|uo  a 
nossa  gravura  é  um  transumpto  tilo  liei  quanto  po- 
de desejar-se. 

Voi..   I.  —  .'J.''  ámii  t:. 


A  composição  do  quadro  de  <  tllioveiiius  é  simples 
como  o  sujeito,  o  o  sentido  moral  d'elle  acha-se  in- 
dicado perleitamcnte  n'a<|uella  coriza,  svndiolo  do 
mando;  n'aquellas  moedas,  derramadas  por  solire  nhui 
antiija  mesa  ',  n^esses  louros,  ima^enl  das  i;lorias  do 
mundo,  e  que  o  mundo  soe  muitas  vezes  arrancar  nu 
dia  seguinte  da  fronte  ilos  seus  escolhidos  de  hon- 
tem  :  e  o  mando,  e  as  riijuezas,  e  ai^loria,  cousas  to- 
<las  inu'  lanlo  se  prosam,  e  pelas  quaes  tem  porccidu 
tantos  milhões  de  victimas,  eil-as  abandonadas  n'uni 
doce  apertar  de  mão ',  mas  é  que  esta  é  a  inãoileum 
anMv;o,  de  um  companheiro  de  trabalhos,  de  um  ir- 
mão '. 

A  postura  das  duas  únicas  i\);uras  do<]uailri>  e  no- 
bre e  expressiva,  o  deseidio  irreprehensiv<lmenle 
correcto;  os  accessorios  de  unnt  solirleilade  apreciá- 
vel. O  colorido  1'  as  demais  (pialidides  ircste  helln 
trabalho  não  podemos  nós  avaliar.  Comtuilo,  a  jul 
j^arinos  pelo  q\ie  temos  ouvido  e  lido  do  auclor  i'm 
varias  das  mais  bem  conceituadas  publicações  eslniu- 
jjeiraí,  este  quadro  é,  pela  execução  artística,  dij;no 
lio  pens.imento  (|ue  o  inspirou,  e  da  eseolii  allvmà 
medernu. 

I)K/.t:Miino  \,  l8i>'J. 


386 


O  PAjNORA3IA. 


INSTRUCÍjÃO   PUBLICA. 

TiLrsTRAfjío  DO  Exercito. 

II. 

Como  apostolo  do  progresso  imagináramos  nós  o  sol- 
dado, e  fora  um  sonho,  e  tel-o-ía  de  ser  sempre,  se 
não  houvéssemos  em  nossas  mãos  os  meios  de  conver- 
tel-o  em  realidade  ^  se  não  possuíssemos,  verdade  se- 
ja que  quasi  sem  darmos  por  isso,  o  poderoso  talis- 
man,  que  tem  a  virtude  de  transformar  em  machina 
rivilisadora  o  mais  obediente,  o  mais  enérgico,  o 
jiiais  activo,  o  mais  prompto  de  todos  os  reagentes 
de  que  a  nossa  sociedade  pode  dispor.  E^te  sonho, 
repetimol-o,  nunca  passaria  de  sonho,  e  até  seria  pe- 
sadelo, de  que  assim  mesmo  era  bom  não  acordar, 
se  a  Pro\  idenfia  não  tivesse  derramado  já  as  ben- 
<;cíes,  que  sobre  a  cabeça  respeitável  do  soldado  de- 
vem ir  lançar-se,  quando  para  a  sua  nova  missão, 
em  nome  da  mesma  Providencia,  o  enviarem. 

E  o  soldado,  apostolo  do  progresso,  não  deporá  as 
armas  como  Saulo,  para  ser  o  Paulo  do  apostolado  •, 
não,  que  as  armas  não  as  empunha  contra  a  palavra 
de  Í)eu3^  se  as  tomou,  foi  com  um  fim  santo.  Con- 
servc-as,  estime-as,  respeite-as,  faça  d^ellas  o  seu  bra- 
zão ,  mas  que  por  cima  d'essebrazão  campeie  um  fa- 
cho, que  uma  luz  vivíssima  lhes  sirva  de  timbre, 
que  esse  clarão  lhe  dirija  a  elle  os  passos  na  senda 
da  gloria,  lhe  ateie  o  fogo  do  amor  da  pátria,  o  cons- 
titua farol,  não  d'invejas,  mas  de  emulações  nobres 
e  do  amor  dos  seus  irmãos  a  quem  não  coube  igual 
sorte  i  e  que  essa  luz  afinal,  depois  de  lhe  esclarecer 
a  vida,  <jue  tanto  semeou  por  crepúsculos  e  névoas, 
que  tanto  alumiou  os  outros,  que  tão  bem  soube 
manter  o  fogo  sagrado  do  patriotismo,  da  honra,  da 
abnegação  e  da  virtude,  que  essa  luz  seja  também  a 
aureola  com  que  o  soldado  apostolo  se  ennobreça  ",  que 
essa  luz  torne  mais  refulgente  a  coroa  do  martyrio, 
se  a  missão  lh''o  tornar  inevitável  •,  que  as  lagrimas, 
que  porventura  humedecerem  essa  coroa,  brilhem  co- 
mo gotas  d"orvalho  em  alvorada  santa  ;  que  essa  luz, 
se  pelos  seus  e  pelo  dever  tiver  dado  a  vida,  seja 
lima  estreita,  a  guiar  pelo  exemplo  e  pela  fé,  a 
((uantos  o  conheceram  \  um  conforto  que  para  os 
corações  amigos  do  seu,  lhes  adoce  a  saudade-,  uma 
gloria  para  a  torra  onde  nasceu,  e  por  quem  tiver 
vivido  c  morrido  1 

Uma  supplica  fazemos  desde  já  a  todos  que  lerem 
estas  paginas,  uma  supplica  sincera  e  ardentemente 
pedida  \  não  as  tomem  como  rasgos  do  pretcnciosa 
aflectação.  Seriam  já  hoje  tentativa  niallograda.  Ho- 
je, quem  não  escrever  para  ser  lido  de  boa  fé,  isto 
é,  quem  de  boa  fé  não  escrever,  malbarata  o  ocu  pa- 
pel, e  o  que  ainda  épeior,  faz  um  papel  tristíssimo. 
Ha  porém  uma  cousa  em  que  cremos  muito,  c  é  na 
necessidade  de  oonununicar  aos  outros  o  que  deveras 
*e  sente,  aquillo  em  que  deveras  se  acredita,  embo- 
ra não  tenha  lodo  o  cunho  da  novidade  ;  e  n"este 
easo,  tanto  melhor  ainda,  por  assegurar  mais  svm- 
palliias  para  o  que  se  diz,  mais  boas  vontades  para 
o  que  se  pede,  c  talvez  um  echo  fa\ora\el  para  oquc 
não  era  se  não  palavra,  ou  um  desenvolvimento  cm 
bom  terreno  para  o  pobre  gcrmen  de  idéa  que  se 
manifestou. 

.\inda  o  repetimos,  a  inslrucção  primaria  para  o 
exercito  acha-se  decretada  ha  mais  do  quinze  an- 
nos ;  (1)  a  superior  e  a  especial  está organisada.  Não 


(1)  Horrcto  de  4  e  l.t  ilc  Jaiiiir..  de  103",  (Ir.l.  10 
r  14  (lo  janeiro  dv  1B.T7,  números  J  c  4,  Or<l.  ilc  10  de 
m.iig  de  1030  niuiicru  40. 


é  portanto  para  convencer  da  neceisidadc  de  secrea- 
rem  escolas  regimentaes  simpleímente.  que  nos  de- 
cidimos a  escrever^  porém,  insistimos  n  "alguns  pon- 
tos, que  devem  servir  de  base  para  as  mesmas  serem 
reformadas,  e  permittir-se-nos-ha  o  apresentarmos 
a  final  um  projecto  de  regulamento  para  a  sua  or- 
ganisação  e  pratica. 

Todavia,  esta  insistência  é  fundada  era  mil  raiõ«* 
de  publica  utilidade. 

Cada  um  de  nós,  é,  e  deve  sel-o  do  coração,  um 
enfermeiro  doeste  nosso  Portugal.  Feliz  o  que  tam- 
bém é  medico,  porque  pôde  ajudar  muitíssimo  a  na- 
tureza nas  sua^  tendências  reparadoras  \  mais  feliz  o 
que  para  o  resuscitar  pudesse  dizer-lhe  :  levanta-te  e 
caminha  ! 

Mas,   ao  enfermeiro   a  quem  lhe  doe,   será  licito 
abandonar  o  leito   dos   soffrimentos,   em  quanto  lhe 
fica  uma  esperança  ?   E  quando  em  vez  de  fraca  es- 
perança, e  tão  débil  como  os  restos  de  vida  d"aquel- 
'  le  por  quem  vela,   lhe  sorriem  esperanças  verdadei- 
[  ras,  e  entrevê  essa  convalescença  tão  cubicada  I  .  .  . 
Fomentar  a  instrucção  elementar  no  povo,  tomar- 
lh'a  convidativa,  dal-a  nocturna  aos  adultos,  diurna 
e  sem  rigores  á  infância,  para  todos  amena,  para  to- 
dos gratuita,   é  um  pensamento  fecundo  e  regenera- 
dor. Porém,  não  basta. — Do  povo  que  em  trabalhos 
penosos  dispendeu  o  dia,  irá  uma  parte  recrear-se  na 
escola  nocturna  ;  mas  para  que  vá  a  maior  parte,  não 
são  sufflcientcs  todas  as  seducções  do  aprender.  Ain- 
da  nas  povoações  ruraes  irão  muitos,   mas  nas  cida- 
I  des  onde  a  maioria  d'essa  ultima  camada  social,  que 
1  é  mister,   que  é  urgentíssimo  educar,   se  compõe  de 
'  operários  a  quem  os  serões  impedem  metade  do  an- 
no  de  frequentar   a  escola,  (porque   as  horas  do  re- 
pouso não  as  pôde  roubar  á  madrugada  que  os  espe- 
.  ra  na  oflicina,)  e  de  servos  que  não  dispõem   de  si, 
nunca.   Em   tudo  nos  referimos  agora  aos  adultos. 
E  serão  só  esses  homens,  que  podem  frequentar  bancos 
I  de  aulas,  ainda  que  muitos,   poucos  todavia  compa- 
1  rados  com  os  muitissimos  que  é  instante  p<jr  a  saber 
j  lêr  e  escrever,  serão  elles  a  fiança  da  nossa  transfor- 
I  mação?   De  certo  que  não.    E  as  creanças.'    E  essas 
I  escolas  nacionaes  mantidas  pelo  estado,   cujas  portas 
estão  abertas  todo  o  anno  e  todo  o  dia  para  fijhosde 
pobres  e  ricos  por  todo  o  reino?  Fechal-as,  seria  lou- 
cura  pensar  em  tal.    Reformal-as  no  que  respeita  a 
,  methodos  d  "ensino,  tornal-as  mais  appeteci\  eis,  mais 
,  obrigatórias   pela  convicção  da  sua  bondade,   multi- 
plical-as,  protegel-as,   livrar  essas  barcas  de  salvação 
de  maus  timoneiros,    compensar  os  mestres  d"essas 
barcas,  que  navegam  jiara  o  futuro,  com  mãos  largas, 
examinar  bem   o  mantimento   que  se  lhes  mcttcr  a 
bordo,  folgar  de  as  vêr  com  \cnto  em  pt>pa  levar  es- 
ses colonos  dopor\ir  contentes  e  instruído*,  alegres  c 
ensinados,  esperançosos  e  infelligentespromptos  a  ser- 
vir sem  terem  experimentado   a  escravidão,   nem  os 
tratos  das  galés  negreiras,  ousados  e  francos  sem  des- 
pejo nem  maus  hábitos,    isso  é  o  que  quer,   é  o  que 
iaz,   c  o  que  dcsoja  fazer  Itxlo  o  governo  sensato. 

E  lá  vae,  ou  lá  promettc  desferir  vela  essa  frota, 
que  um  dia  ha  de  sor  a  geração  que  nos  succeda. 
Esse  exercito  grande,  pois  é  toda  a  infância  da  na- 
ç."u),  que  tem  de  ser  o  magistrado,  o  combatente,  o 
marinliciro,  o  lavrador,  o  operário,  o  legislador,  <> 
artista,  o  ministro,  o  sac>'rdote,  o  mostre  também,  c 
mais  que  tudo  o  pae  c  a  mãe  de  famílias. 

O  povo  tem  preconceitos,  e  quando  os  nio  tora  ? 
lia  ainda  muita  gente  que  não  quor  que  seus  filhos 
aprendam  o  que  ella  ignora.  E  o  svstema  dos  mis- 
teres hereditários  na  Chiua,  applicado  á  ignorância 
e  á  rudez;i.  Por  isso  ficam  tantos  quo  não  s;il>om  lèr. 
Ficarão  porém  de  futuro,  se  a  infância  o  a  .idolesccn- 


o  PANORAMA. 


387 


cia  de  hoje  tiver  sem  excepção  cursado  as  escolas  ele- 
mentares .'  Não  o  cremos. 

Porém  releve-se-nos  o  egoístico  do  argumento  ;  com- 
ludo,  é  egoísmo  onde  o  eu,  é  collectívo,  e  se  pode 
traduzir  por  quatro  milhões  d'almas.  Mas  dizía- 
mos nós,  apparelhar  essa  grande  e  pacifica  armada 
para  as  regiões  do  futuro  assegura-nos  a  felicidade 
actual,  que  pela  instrucção  se  pode  e  deve  conse- 
guir. 

E  um  legado  que  entregamos  em  vida  ;  e  a  heran- 
ça de  nossos  filhos.  E  nós,  que,  sem  lhes  prejudicar 
os  direitos,  sem  lhes  diminuir  os  bens,  poderíamos  em 
vida  nossa  gosar  d^ellcs,  usofruil-os,  sem  que  o  uso 
os  alienasse,  antes  que  lh'os  augmentava  e  melhora- 
va i  nós,  que  somos  os  administradores  doesse  morga- 
do era  que  se  ciphra  a  maior  felicitação  da  pátria, 
se  temos  a  certeza  de  que  antes  o  administramos  me- 
lhor, e  lhe  damos  maior  valor,  dispondo  d'elle  já 
hoje,  já  para  nós,  porque  não  o  faremos  ? 

Expliquemo-nos.  —  A  instrucção  elementar  será 
de  todos  para  a  geração  nova,  se  dispozermos  dos 
meios  que  tomos  sem  outro  esforço  mais  do  que  uma 
pouca  de  fé.  E  a  fé,  que  ainda  é  tibia,  virá  de  per 
si  firme  e  bem  firme  quando  se  vir,  quo  se  não  gas- 
tam seis  ou  sete  annos  para  aprender  a  lôr,  escrever 
e  contar. 

A  instrucção  elementar  será  de  lodos,  com  rarís- 
simas excepções,  na  geração  presente,  em  nossos  dias, 
se  dispoz(!rmos  dos  meios  (|ue  temos  com  muita  fé, 
sem  outro  esforço  mais  do  que  uma  vontade  firme, 
abrindo  escolas  para  adultos,  nocturnas  e  gratuitas, 
nas  cidades  para  os  operários,  para  os  aprendizes,  para 
os  criados  de  servir,  e  para  todos  que  careeer<?m  de 
instrucção,  tendo-as  de  instrucção  primaria  superior, 
e  technologicas,  (1)  para  quem  souber  lêr  ;  abrindo- 
as  também  nos  campos  ih;  lér  e  escrever,  de  princí- 
pios de  agricultura,  de  velerinaria,  de  higiene,  etc. 
Dêem-lhcs  outras  denominações,  tirem  os  foros  gre- 
gos aos  nomes  das  cousas  úteis  <|ue  convém  ensinar 
a  essa  boa  gente,  s^porventura  iõr  necessário,  mas 
ensínem-lii'as.  Não  lhe  ciiainem  cursos  i  conversem 
com  ella,  aprendam  lodos,  mestres  e  discípulos,  que 
se  uns  levam  para  casa  o  saber,  os  preceptores  leva- 
rão índelevc^iiuente  gravada  a  doce  convicção  de  que 
o  numero  dos  ingratos  não  é  o  maior  •,  de  ([ue  o  ro- 
eonhecimento  é  moeda  corrente  entre  gente  sincera, 
para  pagar  até  o  mínimo  do  (jue  por  amor  de  Deus, 
e  com  amor  sincero  se  lhe  der. 

Está  bem  demonstrado  que  existe  ainda  muito  fer- 
vor pura  que  esta  grande  obra  se  erga  desassombrada 
lia  l(MTa  (jue  está  pedindo  um  monumento  condignodo 
século.  l'ara  .trabalhar  nV-Ua  não  lia  governantes  nem 
governados.  E  nossa,  suem  lodos-,  as  pedras  serão  Tiíe- 
bas,  por()ue  as  harmonias  são  muitas  achainarcm-nas  ;, 
cada  liouieiu  de  bem  é  um  Orplieu',  todo  ac[Uclle 
que  ainda  não  tiver  cruza<l<)  os  bra(;os  pchi  desespe- 
rança poderá  ser  um  Ampliião.  Animcm-se  reeipro- 
eamenle,  csles  descobridores  ila  nossa  índia,  da  ín- 
dia que  já  agora  é  possivel  para  nós,  (\uf  o  bom  pro- 
pósito é  contagioso,  e  o  cabo  não  é  das  lormenlas, 
mas  sim  da  lioa  esperança  Os  A(himailores  vão  tles- 
npparcíciniK),  como  fantasmas  di'  Irivas  á  biz  ilo  no- 
vo dia.  I''i\ra  iinpcnloavolinciile  purril  i>  jiiii^ar  que 
os  governos  iião  de  fazer  tu<lo,  e  o  povo  nada.  (ío- 
verno  epino  eompõi-m  a  nação.  Os  esforços  são  recí- 
procos. A   polilicu  é  unia,  é  o  bem  ger.d.    Trabalhe- 


(I)  Cuilio  a  l'i*S|M-i(jtvrl  A^snriarrui  liiilu%ll  i.il  tio  Puí- 
lo  vue  fíiiter,  tíMii  iti|iu-lla  L■ln-r^ia  t-  M-rit-tlailr  (|iic  ja  ca 
ractcri^u  tuilui  us  kctu  ucluk  l-  ilelibrriivõr^.  O  ^ru  juriiul, 
>»  per  li,  jú  cru  mu  fjriuiile  servk-u. 


se  no  monumento  d'esta  era,  e  cada  um  dos  operá- 
rios levará  um  passaporte  para  a  posteridade.  O  Le- 
thes  mudou-se  em  Jordão,  e  as  suas  aguas  são  de 
apagar  sftdes,  e  santificar  sequiosos.  O  simples  parti- 
cular, como  o  alto  funccionario,  todos  podem  ajudar 
ainda  mesmo  com  a  approvação  e  louvor,  que  mais 
não  seja,  esta  reedificação,  nãojá  de  uma  cidade,  mas 
de  todo  o  reino. 

Prosigàmos  com  o  argumento  egoístico  se  assim 
lhe  quizernios  chamar.  Não  temer  que  o  fructo  se 
perca,  por  lhe  querermos  apressar  a  maturidade. 
Não  é  solipsismo,  porque  os  filhos  lá  andam  nas  es- 
colas, mas  entretanto  que  os  pães,  e  os  irmãos  roais 
velhos  as  encontrem  abertas  por  toda  a  parte.  Com 
que  prazer  não  as  vimos  nós  já  em  terra  que  não  é 
menos  portugueza  do  que  esta,  (1)  apesar  das  soli- 
dões do  Oceano  que  a  estão  cercando,  com  que  pra- 
zer e  unção  se  não  viam  ali,  chegada  a  noute,  corre- 
rem para  a  escola.  A  luz  que  deslisava  alegre  e  fes- 
tiva d^aquellas  casas  evangélicas,  parecia  a  que  en- 
tre os  rigores  de  dezembro  solta  a  igreja  em  noute 
de  natal.  Era  noute  de  natal  todas  as  noutes  I 

Faça-se  isto,  que  já  temos  andado  muito. 

Abram-se  escolas  nas  cadêas  para  os  presos,  que  a 
conquista  irá  mais  adiantada.  (2) 

Abram-se  porém  como  deve  ser  nos  quartéis.  Eis 
o  ponto  que  convém  ferir. 

O  enfermo  precisa  de  que  se  lhe  empreguem  to- 
dos os  meios  therapeulicos  para  que  a  cura  seja  ra- 
dical. Não  é  ídylío.  E  positivo,  e  tão  positivo  como 
os  cálculos,  como  os  algarismos,  como  o  pão,  como  a 
vida  real,  como  a  felicidade  publica,  sobre  que  não 
é  licito  romancear. 

Das  escolas  populares  podem  fugir  muitos  por  má 
vontade,  por  desleixo,  por  más  suggestões,  por  ne- 
cessidade de  dar  ordem  á  vida,  porque  os  filhos  que- 
rem pão,  c  ás  vezes  nem  um  salário  de  quarenta  e 
oito  horas  de  traballio  daria  para  sustentar  n"um  dia 
uma  família  proletária. 


(!)  A  ilha  de  São  Miguel  que  já  conta  doze  d'estas 
escolas  gratuitas  c  nocturnas. 

(2)  Não  é  nosso  o  alvitre.  O  mesmo  fundador 
das  escolas  gratuitas  em  São  Miguel,  o  sr.  Castilho, 
impetrou  do  governo  de  Sua  Alagestade  o  crear  na 
cadèa  do  Limoeiro  uma  escola  de  leitura  e  escripta 
pelo  seu  niethodo.  O  pensamento  foLdevidamentu 
acolliido.  A  portaria  do  ministério  da  justiça  do  29 
de  setembro  (Peste  anno,  assignada  pelo  sr.  Rodrigo 
da  Kiuiseca  Magaliiães,  é  um  documento  que  para 
o  avaliar  basla  haver  coração.  —  Leia-se  :  —  Cói'iA. 
—  Jtc]iíirtir<~ii)  ilu  jiisti{;u.  —  Sendo  presente  a  Sua 
Mageslade  a  Itainha  o  officio  do  procurador  régio 
da  relação  de  Lisboa  de  10  d'este  niez,  com  a  repre- 
sentação em  qu(;  o  exímio  escriptor  António  Feli- 
ciano de  Castilho  se  olVerece  a  crear  na  cadèa  da  ci- 
<lade  uma  escola  de  leitura  e escripta  repentina,  com 
mestre  gratuito  da  sua  escolha  e  approvação  :  A  mes- 
ma Augusta  Senhora,  reconhecendo  os  proficuos  re- 
sullailos  <pie  devem  provir  ihi  instrucção  dos  pri-sos, 
por  meio  Ião  f.icil  e  pruniplo;  Manila  declararão 
rereriílii  procurador  régio,  ([Ue  piide  acceilar  aqiielli- 
generoso  olVereciníenlo,  .i  liin  de  ler  logar  o  ensino 
de  cpie  SC  trata,  mas  sil  de  dia  e  separadamente,  em 
i-ada  iiiiia  das  respcciivas  prisões,  dando  cm  seguida 
as  providencias  adequadas,  para  que,  iiiiinlida  rigori'- 
hamenle  a  observância  do  rei;ulaiiieiili>  de  l(i  de  ja- 
neiro de  IHí;1,  nào  se  perturbe  a  policia  da  c.idéii, 
nem  se  arrisque  n  segurança  dos  presos.  —  l'«eo,  em 
2t)  Setembro  de  18.S2.  —  Uodrigo  da  Fonseca  »a- 
galiiiJIat. — K»tú  eoufornie  — José  Maria  llorge» 


188 


O  PANORA3IA. 


Das  escolas  das  cadéas,  oxalá  que  fugissem  todos ; 
inas  do  mal,  o  menos.  O  LasciaU  ogni  sperama 
do  Dante,  já  ali  se  não  poderia  repetir  com  ver- 
dade. 

]Mas  da  milicia,  pelas  rasões  que  apontámos  em  o 
nosso  capitulo  precedente  (1),  quem  fugirá?  (iuem 
não  paca  este  tributo?  GLueni  ao  solver  a  divida  da 
pátria  não  encontrará  bemaventurangas  nas  riquezas 
que  d^ali  trouxer  .'  Mais  do  que  um  pobre  capote  de 
munição,  e  algumas  alfaias  que  acompanham  a  bai- 


I  xa,  lhe  aproveitará  ao  soldado  a  leitara  tomada  em 
I  necessidade,  e  o  préstimo  que  houver  adquirido  no 
,  serviço. 

As  escolas  que  existem  para  o  nosso  exercito,  fa- 
'  zera  do  homem  soldado.  As  que  sinceramente  dese- 
I  jariamos  melhoradas,  devem  fazer  do  s<jldado  ho- 
mem. 

Voltaremos  ao  assumpto. 

Luiz  Filippe  Leite, 
JJirecior  da  Escola  formal  Primaria  de  lÀtboa. 


(1)     Veja-se  o  N."  40  (Peste  volume. 


SANTO   IGNACIO  DE  I,OTOI.A. 


A  BAINHA  D.  ]Maria  Anna  do  Áustria,  \iuva  de 
D.  Filip]>e  IV,  desejando  que  na  casa  cm  que  nas- 
cera Santo  Ignacio,  celebre  fundador  da  companhia 
de  Jesus,  se  erigisse  um  coUec/io,  procurou  obter  e 
conseguiu  a  cessão  do  palácio  de  Lovola,  situado  a 
légua  c  meia  da  \illa  de  Ascoitia,  em  Hespaidia, 
cessão  que  llic  foi  feita  pelos  seus  proprietários  D. 
Luiz  Henriques  de  Cabrera  e  1).  Theresa  Henriques 
de  Velasco,  n)ar(]U<-zes  de  Alcanizas  e  de  Oropcsa, 
por  oscriptura  de  Úi  de  maio  de  1G81,  lavrada  na 
(■idade  de  Toro,  com  a  expressa  condição  de  que  se 
não  demolisse  parede  alguma.  Carlos  II  approvou 
esta  escriplura,  aos  14  do  julho  do  mesmo  anuo,  e 
a  19  de  fevereiro  seguinte,  cm  nome  da  rainha,  to- 
mou posse  do  edifício  1).  Manuel  de  Arcc,  correge- 
dor de  Guipuzcoa,  acto  que  se  celebrou  com  a  maior 
solcmnidade,  e  na  presença  de  um  numeroso  con- 
curso. 

Achando-se  no  Bvm-rttiro  a  rainlia  D.  Maria, 
firmou,  aos  '21  de  maio  de  1GS2,  a  escriptura  de 
fundação  d"cslc  coUogio,  c  pediu  a  seu  fillio  que  lhe 
concedesse  as  mesmas  jirecmiiiciKias,  prcrogativas  e 
isenções  de  que  gosava  o  mosteiro  do  l'2scurial,  e  os 
conventos  das   Descalças  e  da   Encarnação  do  Ma- 


drid. Carlos  11  acccdeu  a  este  pedido,  approvando 
a  fundação  do  collcgio  em  todas  as  suas  partes,  por 
decreto  de  á3  de  niarw  de  1683. 

Kntrada  a  companhia  de  Jesus  ua  posse  do  palá- 
cio do  Lovola,  tratou  desde  logo  de  tomar  as  neces- 
sárias providencias  para  a  edificação  docollegio,  en- 
carregando de  fazer  os  respecti\os  planos  e  desenhos 
ao  architccto  Carlos  Fontana,  illustre  pelas  muitas 
c  .soberbas  consIrucçOes,  a  que  presidira  nos  pontifi- 
cados de  Innocencio  \II  e  Clemente  \I.  Não  cons- 
ta qual  fosse  o  primeiro  artista  encarregado  da  exe- 
cução do  difficil  risco  de  Fontana  ■  no  primeiro  quar- 
tel, porém,  do  século  18.''  enlcndia  nas  obras  Igna- 
cio de  ll>ero,  succedeudo-llie  \;í\ier  Ignacio  de 
EclicNarria,  que  ainda  as  dirigia  em  lT(i7,  quando 
foram  expulsos  os  jesuítas.  A  primeira  poilra  do  edi- 
fício coUocou-se  em  2S  do  março  de  1689  ;  mas  des- 
de 1767  não  proseguiram  os  tratxdhos,  ficando  por 
consoquencia  a  \asla  fabrica  incompleta.  De|>ois  d.-» 
expulsão  dos  jesuíta*,  inissaram  os  cónegos  de  L  r- 
dax  ])ara  o  antigo  collcgio,  e  jwla  exiincção  das  or- 
dens religiosas,  licou  a  Ciirgo  da  municipalidade  de 
Aspeilia,  que,  honra  lhe  seja  feita  !  tem  emprega- 
do todos  os  meios  para  preservar  o  etlificio  dos  es- 


o  PAIS  OR AMA. 


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tragos  do  tempo,  faiendo-lhe  os  necessários  reparos. 
Em  1846,  discutia-se  a  opportunidade  de  estabelecer 
no  collegio  de  Loyola,  que  a  nossa  estampa  repre- 
senta no  estado  actual,  um  museu,  e  o  archivo  pro- 
vincial. Muito  convirá  que  tão  cxcellente  idéa  se 
realise,  porque  assim  fica  garantida  a  existência  de 
um  monumento,  que  segundo  a  opinião  dos  enten- 
didos, apesar  de  não  estar  concluído,  não  tem  supe- 
rior em  Hespanha  exceptuando  o  mosteiro  do  Escu- 
rial. 


Cedendo  aos  desejos  de  muitos  dos  leitores  do  Pa- 
norama, reproduzimos  nas  suas  columnas  o  romance 
histórico  —  Odio  Velho  —  do  qual  um  fragmento 
se  publicou  já  em  os  n.*'*  2.*^  e  'i.^  do  presente  vo- 
lume. Não  ignoramos,  que  a  edição  que  se  fez  d'el- 
le  lhe  rouba  o  interesse  da  novidade  ;  nem  agora  ten- 
taríamos a  reimpressão,  apesar  de  decorridos  alguns 
annos,  se  não  nos  julgássemos  obrigados  a  satisfazer 
os  assignantes  que  o  pedem. 

O  que  está  <la  nossa  parte  é  corresponder  da  ma- 
neira conveniente,  revendo  cuidadosamente  a  novel- 
la,  e  expurgando-a  dos  defeitos,  que  o  tempo  e  a 
reflexão  lhe  descubriram.  N 'este  sentido  sujeitámol-a 
a  um  exame  severo,  e  podemos  afíiançar  que  no  es- 
tylo  e  nas  scenas  mais  importantes  apparece  quasi 
completamente  refundida,  não  se  poupando  a  lima 
nem  o  trabalho  para  tornar  claras,  fáceis  e  agradá- 
veis essas  paginas,  que  mais  pelo  assumpto,  do  que 
pelo  mérito  litterario,  obtiveram  da  benevolência  pu- 
blica um  acolhimento,  que  em  toda  a  imparcialida- 
de somos  os  primeiros  a  conhecer,  que  excedeu  mui- 
to as  esperanças  do  auctor,  e  o  mérito  intrínseco  da 
obra. 

N^esta  correcção  tomou-se  por  empenho  verter 
quanto  possível  na  linguagem  de  hoje  as  idéas  e  os 
factos  da  sociedade  no  século  XÍII.  Procurou-se  ti- 
rar á  phrase  e  ao  ))eriodo  a  rigidez  e  a  cilr  antiqua- 
da, que  faziam  bastantes  vezes  obscura  pelo  uso  de 
vocábulos  obsoletos  a  intelligencia  do  texto.  Sn  o 
fnn  seconseguiu  acrítica  odirá;  que  sedesejou,  que 
se  lidou  para  o  alcançar,  esperamos  que  o  alteste  a 
comparação  mais  supi^rficial  da  jjrimeira  edição  com 
«actual.  Su[)priram-se  igualmcnie  todas  as  omissões, 
que  suspendiam  a  idéa,  ou  deixavam  imperfeita  a 
expressão  dos  o.iracteres  e  das  paixões.  lia  scenas, 
que  foram  esrriplas  de  novo,  e(|ue  ainda  assim  des- 
(.•ontentam  o  auctor  \  mas  não  dependia  (rdle  agora, 
sem  alterar  o  plano  do  livro,  dar-lhes  o  cunho,  que 
no  flíMi  pensaincnlii  er.i  preciso  <|ue  tivessem. 

í)  juizo  dos  enUindidos  fará  justiça,  avaliando  as 
di('li<'ul(lades  e  os  esforços.  .Si;  esh;  ensaio  fiír  feliz, 
em  seguida  ao  romance  —  ()i>io  Velho  —  publicará 
o  Panorama  outra  novella  —  A  1'kn/V  iikTaliXo  — 
em  que  a  deposição  eh?  Sancho  II  e  os  seus  desgra- 
çados amores  com  a  bella  Meeia  d(?  llaro  formam 
o  fundo  da  arção.  Um  episodio  d'este  quadro,  tal- 
vez  o  mais  dram.itico  <ra(|uelle  peiiodo  liislorico,  já 

«aíu  na  Itvvhla   Ihiivirsnl  roni  otilulo  di Uauso 

i'Oii  Omizio  —  cujo  desenho  e  coloriílo  coidessa  o 
aiielor  em  toda  a  sincoridadi-  «pie  estão  lojige  das 
condições,  que,  ii  seu  vôr,  (íxige  unia  oln'a  »l'arte, 
que  (leve  piiiulpi.ir  por  wr  agradável  na  leitura,  não 
»e  enriMl.iiiilo  o  eslylo  ile  phrasi's  arcliaislic.is,  nem  se 
prendendo  a  ra(l:i  pnsso  coiu  locoiòcs  estiiiiiiilaMiciilc 
obscuras. 

Se  o  favor  qui-  acolheu  os  piimeiros  ensaios  da 
Hua  iinaginiieão  inexperiente  conlinuar  a  prolegel-o, 
fii-ain  salisleilos  os  seus  desejos,  e  mais  do  (pie  pagas 
<piaes(jucr   fadiga»,   applicadas   a   não   o  desiuei-eccr. 


De  resto,  torna  a  declarar  que  não  poupou  diligen- 
cias para  que  a  segunda  edição  d"este  romance  saia 
digna  do  pubUeo,  e  em  estado  de  supportar  a  nece?- 
saria  severidade  da  critica. 

L.  A.  Rebello  da  Silv.4. 


ODIO  VELHO  NÃO  CANC\. 

Romance  Histórico. 

Iniroducção. 

Abrisdo  em  um  capitulo  o  Nobiliário,  attribuido 
ao  conde  D.  Pedro,  encontrei  a  tradição  do  rapto 
de  D.  Maria  Paes,  amante  de  Sancho  I,  por  Gomes 
Lourenço  da  família  do  famoso  Viegas  de  Riba  Dou- 
ro, denominado  pelos  chronistas  o  espadeiro. 

Logo  á  primeira  leitura  acha-se  o  sabor  rústico, 
mas  agradável,  das  historias  populares,  contadas  ao 
pé  da  fogueira,  com  a  ingenuidade  do  velho  estvlo 
patriarchal.  Os  quadros  do  JLii-ro  das  Linhagens 
lembraram-me  os  painéis  flamengos,  aonde,  com  mui- 
ta naturalidade  quasi  sempre,  as  figuras  se  destacam, 
parecendo  viver  «conversar  ao  serão  allumiadas  pela 
chamma,  cuja  labareda  affogueia  as  gothicas  chami- 
n(?s. 

Pelo  menos  produziu  em  mim  este  effeito  o  Nobi- 
liário. Lendo-o,  por  momentos  meilludi,  figurando- 
se-me  que  respirava  o  ar  áspero  c  livre,  em  que  se 
cre(5u  a  robusta  infância  de  Portugal. 

E  antigo  o  colorido  do  estylo  bem  sei ,  é  incor- 
recto o  desenho  das  scenas  não  o  ignoro  \  porém  os 
toques,  eas  physionomias  que  ha  n'elles  hoje  não  se 
imitam,  mesmo  de  louge,  nem  se  encontrara,  a  não 
ser  em  algum  retábulo  da  escola  chamada  de  Gran 
fiasco. 

Se  a  novella  histórica  c  o  drama  quizerom  deve- 
ras fazer-se  nacionacs  hão  de  aprender  ahi  muito  no 
Nobiliário-,  porque  o  espirito  pôde  ter  a  intuição  da 
sociedad(!  passada,  e  aclivinhar  a  existência  intima 
de  epochas,  que  talvez  não  seja  erro  denominar  as 
eras  heróicas  da  nossa  historia.  Um  resto  da  vida  e 
das  crenças,  que  eram  a  alma  dos  primeiros  séculos, 
ainda  anima  aqnelles  retratos  meios  apagados.  Peda- 
ços do  grande  espelho,  aonde  se  reflectia  o  século,  é 
necessário  ajuntal-os  e  embebel-os  na  moldura  mo- 
derna para  tornarmos  a  \òt  alguns  dos  seus  defeitos 
e  bellezas. 

Isto  percebe-se  na  tradição  de  Maria  Paes.  A  ex- 
cepção de  duas  situações,  a  torrente  (pie  levou  tan- 
tos monumentos  preciosos  gastou  o  resto.  A  acção  fi- 
ca suspensa  i  os  episódios  estão  confundidos  •,  os  ca- 
racteres apparccem  em  meio  cslx)ço.  O  nexo,  a  uni- 
dade e  a  lornia  debalde  se  buscariam  ali ;  mas  em 
compensação  acha-se  o  que  nada  pode  supprir  ta>n- 
bem  ; — a  verdade  dos  costumes  e  cLis  paixões,  se- 
gundo o  >i  viver  p  crer"  d'aquelle  tempo. 

O  Nobiliário  entra  na  acção  sem  prologo.  Gomes 
Lourenço  espera  Maria  Paes,  rouba-a,  e  depois  met- 
le-se  com  ella  nas  terras  do  rei  de  Leão.  Ponpie .' 
O  piedoso  collector  deixa-nos  ignorar  as  eircunistati- 
cias  do  louco  amor,  ([ue  arrojou  o  cavalleiro  a  for- 
çíir,  não  (pialquer  dama  (o  que  era  então  \ulgar), 
mas  a  amante  de  Sancho  1  !  Apesar  de  encerrado  no 
liiniulo.  a  sombra  irritada  do  \eneedor  de  Sil\es  de- 
via arreleeiT  a  ousadia  do  homem  ipie  pisava  as  suas 
cinzas,  profaiiaudu  a  alli  ieão  mais  aitientt'  da  sua 
vida. 

Sem   poderosa  ciiusn   atrover-sc-ía    o  iiiipelo  dos 


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O  PANORAMA. 


sentidos  a  tal  extremo?  Parece  quR  não.  Em  Avel- 
lans,  roubando  Maria  Paes,  Gomes  Lourenço  não  fez 
mais  do  que  revelar  a  dcsesperajão  de  affectos  mal 
retribuídos,  ou  completamente  despresados.  Como  se 
preparou  o  desenlace  da  tragedia  ninguém  sabe  \  é 
provável,  que  o  ódio  ilus  duas  raças,  o  desdém  de 
mulher,  e  p<5de  ser  até  q\ie  o  escarneo,  mais  pun- 
gente do  que  todos  cUcs,  bordassem  a  tela  em  que 
esta  paixão  negreja.  —  Eis  o  que  indica  a  falsa  re- 
conciliação depois  do  rapto  •,  vô-se  bem  que  foi  fingi- 
da para  adormecer  o  cavalleiro  e  arrastal-o,  engana- 
do, ao  precipício. 

De  que  maneira  o  conseguiu  Maria  Paes  ?  Comeu 
a  terra  o  segredo,  e  jaz  com  os  seus  auctores.  Entre 
tanto  ha  uma  conjectura  plausi\el  para  a  explicação 
de  tudo.  E  suppôr,  que  a  dama  representando  a  co- 
media de  um  amor,  (jue  não  sentia,  e  attrahindo  Go- 
mes Lourenço  com  promessas  e  juramentos,  o  trou- 
xesse ao  laço,  armado  de  accôrdo  com  os  parentes. 
Quem  reflectir  no  caracter  de  Maria  Paes,  vigoro- 
samente desenhado  no  Livro  c/os  Linhagens,  pouco 
hesitará  em  acccitar  a  h^pothese.  Mestra  na  arte  da 
hypocrisia  e  da  pcȒidia,  batendo-lhe  no  peito  o  co- 
ração de  uma  raça  implacável,  as  seducções  dabelle- 
za  eram  n'ella  um  perigo  mais-,  debaixo  estava  a  al- 
ma inexorável  da  famosa  Leonor  Telles. 

Por  isso  se  preferiu  á  versão  do  Nobiliário  sobre 
a  morte  de  Gomes  Lourenço,  o  desenlace  figurado 
n^este  romance.  Pareceu  mais  adequado  á  invenção 
poética,  e  talvez  mais  conforme  aos  costumes  do  sé- 
culo. A  tradição  do  Uvro  dns  Linhayctis^  n'esta 
parle,  figura-se-mc  visivelmente  corrompida.  O  pa- 
pel attribuido  ao  rei  de  licão,  e  a  justiça  violenta 
imputada  a  Ailunso  II,  oppõe-se  aos  usos  do  tempo, 
e  são  pouco  verosimeis. 

Um  dos  Viegas,  família  por  alliança  de  sangue 
unida  a  tantas  casas  imporlanles  do  reino,  não  se 
justiçava  por  acto  verbal  e  summario  como  o  villão, 
que  os  ofliciaes  do  municipio  sentencia\ani,  e  o  ver- 
dugo açoutava.  Para  tocar  assim  na  cabeça  de  um 
rico  homem  do  século  doze  o  braço  real  ainda  não 
era  bastante  forte.  Pelo  contrario  a  historia  dos  pri- 
meiros reinados  moslra,  que  os  fidalgos,  desenfreados 
pela  impunidade,  ousavam  e  podiam  tudo,  sem  a 
auctoridade  soberana  se  atrever  a  cohibil-os. 

Além  d'isto,  como  ousaria  o  rei  estranhar  as  vio- 
lências, de  que  frequentes  vezes  era  o  primeiro  a  dar 
o  exemplo?  Gk.uem  estudou  de  perto  as  contendas  de 
Sancho  I  e  do  seu  filho  com  o  clero  e  com  alguns 
dos  nobres,  conhece  que  esles  monarchas  recorreram 
ao  incêndio  e  áoppressão  sem  o  menor  remorso.  Ex- 
cedendo-os  na  crueldade  das  vinganças,  os  ricos  ho- 
mens seguiam  as  suas  pizadas,  e  compunham-se  pe- 
lo modòlo  do  príncipe. 

Se  o  rapto  da  imiMcc  </<,•  liithaficm  era  feilo  mais 
arriscado  do  que  manchar  a  innocencia  da  filha  do 
povo,  o  perigo  não  consistia  na  severidade  do  rei-, 
provinha  das  rcprezalias  inevitáveis  e  terríveis  da  fa- 
niilia  ultrajada.  O  roubador  ficava  diante  d"ella  co- 
mo homicida  de  mais  que  ávida,  como  algoz  da  hon- 
ra e  do  (.Tgulho  de  uma  raça  nobre  i  e  injurias  taes 
nunca  deixavam  de  verter  sangue.  O  direito  de  vin- 
dicta, exercido  pelos  parentes,  legitimado  nas  leis, 
e  santificado  pelos  costumes,  era  sufficicnte  para  fla- 
gellar  amargamente  as  vigílias  do  criminoso.  O  re- 
ceio, aguilluiaiido  o  remorso  c  tornando-lhe  .acerbo  o 
prazer,  f.izia-lhe  de  espinhos  o  leito  da  insomnia.  En- 
tre tanto,  sem  temor  é  licito  dizer  que  no  meio  das 
ameaças  que  o  podiam  perseguir  o  cutello  alçado  por 
D.  João  II  sobre  a  cabeça  da  fidalguia  não  lampeja- 
va diant<!  da  sua  vista. 

O   rui    ainda   uio  aprendera   a  caoonisjir   as    suas 


paixões,  vestindo-as  com  a  oppa  da  justiça,  e  com- 
prando o  sangue  a  preço  de  honras.  As  vinganças  e 
as  ambições  eram  sinceras,  e  não  punham  mascara. 
A  atrocidade  legal  veiu  depois,  como  requinte  de  ci- 
vilísação,  nos  tempos  do  filho  de  Affonso  \  ! 

Por  estas  razões  é  que  a  tradição  do  Nobiliário 
pareceu  corrompida,  e  se  adoptou  a  hypotheíe  figu- 
rada no  romance.  O  enredo  vive  do  ódio  de  raça, 
feição  característica  da  meia  idade.  A  chronica  das 
luctas  individuaes,  e  do  conílicto  das  diversas  classes 
e  localidades,  se  fosse  restaurada  cm  consciência  pelo 
drama  e  pelo  romance,  seria  a  pintura  exacta  das  so- 
ciedades semibarbaras,  que  dormem  na  urna  da  his- 
toria. 

A  originalidade  da  acção,  a  grandeza  trágica  dos 
aíTectos,  e  o  pittoresco  dos  costumes,  que  offerece, 
são  dados  preciosos  para  a  arte  aproveitar  nas  sua* 
manifestações.  O  Dante  nos  mais  admirados  episó- 
dios da  Divina  Comedia,  e  Shakspeare  nas  melho- 
res peças,  colheram  a  vaga  tradição,  e  a  ella  aque- 
ceram o  raio  luminoso,  que  é  a  alma  das  suas  bellas 
creações . 

Uma  d^ellas,  Julieta  e  Jiotneo,  talvez  a  composi- 
ção mais  delicada  do  auctor  de  Othello,  indica  uma 
apagada  similhança  com,  a  tradição  do  Nobiliário, 
thema  doeste  romance.  E  também  uma  rixa  de  fa- 
mília, e  um  noivado  que  vêem  expirar  dentro  das 
paredes  do  sepulcro. 

Mas  a  similhança  está  só  na  identidade  do  facto. 
A  fabula,  os  caracteres,  e  os  sentimentos  apartam-se 
depois  completamente  pela  diflferença  da  índole  dos 
dous  povos,  e  mais  que  tudo  pelo  abysmo  que  sepa- 
ra a  poesia  do  norte  da  poesia  peninsular. 

Entre  tanto  em  nenhum  drama  foi  Shakspeare 
menos  inglez,  quanto  á  forma,  do  que  em  Julieta  c 
Romeo.  Meditou-a  debaixo  do  til  como  se  vivesse  no 
seio  de  Granada  e  Sevilha,  entre  os  laranjaes  c  li- 
moeiros. GLuem  apreciar  a  sua  obra  só  pela  apparen- 
eia,  dirá  que  foi  inspirada  pelo  sol  das  Hesjvinhas  . 
quem  descer  porém  a  mais  seria  analyse  descobre  lo- 
go o  desconsolado  scepticísmo,  que  envenena  os  affe- 
ctos,  degenerando  o  coração  porque  lhe  rouba  a  es- 
perança em  Deus. 

Vendo  Romeo,  e  amando-o,  Julieta  pressente  que 
o  verme  da  morte  está  dentro  das  rosas  do  amor. 
Ella  mesma  é  quem  prophetisa  :  ..  que  o  tumulo  se- 
rá o  seu  leito  nupcial,  c  os  brandões  fúnebres  allu- 
miarão  a  vingança  das  duas  ca^as  inimigas!  "  Longe 
de  sorrir  a  illusões  futuras,  a  apaixonada  doniella  ge- 
me na  tristeza  as  solitárias  horas  da  noite.  E  a  lua. 
amiga  dos  amantes,  caindo  branda  e  clara  sobre  as 
pedras  d'um  jazigo,  parece  indicar-lhe  o  sitio  aonde 
o  infortúnio  acaba  '.  ^ 

(iue  difíerença  entre  esta  contemplação  perennc 
da  morte  mesmo  no  amor,  e  a  paixão  arrebatada, 
que  respiram  as  peças  casteUnULis  de  Ixtpo  da  \  ega 
e  Caldcron  ? '.  No  infinito,  por  onde  \òa  a  phantu- 
sia,  e  na  immensidade  do  desejo,  por  que  se  alarga  o 
coração,  ainda  escrava  a  inspiração,  e  abrindo  asara*, 
eleva-se  acima  do  universo,  e  rompe  ate  ás  nebulo- 
sas regiões,  além  das  quacs  estão  os  segredos  do  por- 
vir. 

Absorvido  no  exame  do  niystcrio  da  existência,  o 
iiigloz  rcsolve-o  pela  duvida,  quando  o  castelhano  o 
ilhimina  com  a  ic.  De  joelhos,  no  chão  dos  mortos. 
ShiiKsjiearo  deixa  p.is>ar  a  alma  alguma  cousa  do  co- 
lido orvalho  (]ue  goteja  das  cruzes,  e  cresta  a  flor 
que  só  viverá  um  dia.  1'ara  elle  a  existência  sígnili- 
ca  a  pass.agen>  dolorosa  do  homem,  saindo  do  dei- 
torro  do  mundo  para  o  invisível  e  ignorado  abisma 
que  está  além  do  sepulcro,  e  que  a  >oi  do  mundo 
chaiua  eternidade  ! 


o  PANORAMA. 


391 


Creada  entre  as  dua!  maiores  solidões  da  vida,  o 
mar  e  a  ausência,  a  musa  britannica  é  triste  e  seve- 
ra como  ellas.  As  tormentas,  que  lhe  balouçam  o 
berço,  os  nevoeiros  que  lhe  toldam  o  sol,  e  a  luz  ba- 
ça e  triste,  que  lhe  allumia  os  dias,  concorrem,  com 
a  melancolia  do  clima,  para  a  fazer  chorosa,  reflexi- 
va c  sceptica.  A  paixão  do  norte  ó  a  noufe  dos  es- 
ponsaes  de  Romeo  (acto  2."  scena  2.'')  conversada 
ao  luar.  Os  suspiros  da  aragem,  a  fragrância  das  flo- 
res, c  o  murmúrio  das  folhas,  harmonias  c  perfumes, 
entre  os  quaes  recendem  os  beijos  do  primeiro  amor, 
enganam  o  coração  deixando-o  gosar  em  um  minu- 
to uma  vida  inteira  \  a  alma  antevê  o  céu,  estreme- 
ce com  os  doces  affectos,  e  apesar  de  tudo  isto  por- 
ijue  não  ha  n'esta  scena  senão  tristeza  ?  Porque  se 
reflecte  na  admirável  ternura  dos  dous  amantes,  co- 
mo um  clarão  da  lâmpada  fúnebre,  que  aclara  o 
desenlace  trágico  ?  Desde  o  principio,  a  cruz  da  er- 
mida, onde  no  fim  ambos  vão  morrer,  apparece  de 
toda  a  parte,  e  até  mesmo  entre  os  myrthos  do 
amor  I 

A  musa  da  Ilespanha  não  entende  assim  a  exis- 
tência. Filha  dos  vergéis,  não  se  reclina  a  vêr  do- 
bar nos  ares  as  nevoentas  cascatas;  não  vae  pela  bei- 
ra dos  rios  aspirando  afresquidão,  apanhando  o  fructo 
com  a  ílôr,  nos  ramos  que  se  debruçam  em  toldo  vi- 
çoso sobre  a  estrada.  A  luz  e  o  sol,  as  flores  e  as 
aguas,  alma  da  natureza,  também  são  a  aln]ad'ella. 
O  estio  calmoso  colhe-a,  ingénua  e  pastora,  banhan- 
do-se  meio  corpo  nas  fontes,  ou  ])ensativa  e  namora- 
da pulsando  com  os  dedos  distrahidos  a  thiorba  ro- 
mântica. Se  chora,  poucas  vezes  verte  prantos  incon- 
soláveis ;  se  o  coração  arqueja,  raro  é  em  convulsões 
ilc  desesperação.  Os  delírios  de  Saplio,  as  saudades 
que  matam,  e  o  amor  que  verte  sangue  em  vez  de 
lagrimas,  rara  vez  levantam  os  sinistros  espectros  do 
c'iume  de  Othello,  do  scepticismo  de  Ilandet,  e  da 
demência  de  Lear  no  temperado  e  suave  clima  da 
Ilespanha. 

As  paixões  na  1'eiiinsula  são  ardentes,  porque  o 
sangue  hespanhol  <|ueima  como  sangue  árabe;  mas, 
nos  trances  do  infortúnio,  a  esperança  não  foge  ao 
afllicto,  antes  lhe  aponta  para  o  céu.  l';idecor  é  ex- 
piação, não  é  destino.  Vergado  á  sua  cruz,  aipielle 
que  descac,  não  ex[)ira  enchendo  a  terra,  tomo  \iy- 
roíi,  dos  clamores  da  desesperação.  Acima  das  tem- 
pestades em  que  a  vida  se  aflunda,  está  Deus,  a  fé, 
e  o  dogma  consolador  da  remissão  divina.  Na  harpa 
do  norte  ha  de  menos  a  corda  suave  de  esperança 
níligiosu. 

A  opposição  de  idéas  c  de  indohí  entre  a  poesia 
dl)  iiorlir  e  a  do  meio-dia,  constituir  a  respirctiva 
originalidade.  Km  Caslella  e  Portugal  os  dramas  de 
Hainlii,  e  do  rei  hcar,  iinitando-se,  arriscavam-sc  a 
passar  mal  <.Mitendidi<s. 

Tem-scí  dito  bastant(>  para  descnvcjlver  a  difleren- 
ça  entre  a  tradição  do  ISiiliiliarin,  e  a  versão  italia- 
na, que:  inspirou  a  Slialíspear<!  o  drama  de  itomooe 
.luliela.  Seja  licito  agora  accre.scentar  duas  palavras 
.linda  para  explicarmos  o  lim  que  o  aiirtor  se  pro- 
j)oz,  acceitando  o  condi  pcipuhii-  cnuio  base  das  fic- 
ções da  novella  histórica. 

A  eòr  antiga  do  Uvro  dns  l.iiiliiiijnm  serviu  de 
fundo  ao  painel,  em  (|ue  se  debuxaram  estas  acenas 
do  século  1!)."  O  povo  está  retratado,  de  escorço  ape- 
nas, nas  ondas  da  praça  publica,  aonde  <>nsiiia  a  vi- 
<la  enérgica  dos  reinados  ilcl -n-i  I).  Kirnaniln  e  D. 
•loão  J;  o  levíMuenle  eiiiioçiiilo  noscoslumes,  que  não 
resaem  bem  si'não  na  intimidail(>  do  lar  domestico. 
As  li'Í8  conservadas  no  Fiu  iti  I  icjo  ilr  Ctistiltti,  e  os 
usos  civis  o  religiosos,  colligidos  pelo  erudito  Her- 
ganza    n.is   .■liiUijniJadr^   dr  Íl<fjiiiiili(i,    niinisliaram 


j  tintas  hoje  raras  para  se  restaurar  um  pouco  das  ob- 
literadas physionomias  do  clero  e  da  nobreza  na  ida- 
j  de  media.  As  virtudes  e  os  defeitos  das  classes,  quan- 
]  to  possível,  resumiram-se  em  um  quadro  breve  para 
deixar  sobresaír  melhor  o  espirito,  de  que  vivia  a 
sociedade,  que  tanto  lidou  pela  gloria  do  nome  por- 
tuguez. 

Em  assumptos  históricos  o  de\er  do  romance  con- 
siste em  cunhar  com  a  verdade  mais  aproximada  a 
expressão  fiel  do  viver  e  crer  de  Portugal,  ou  de  ou- 
tra qualquer  nação,  n'uma  designada epocha.  Senão 
prestarmos  ás  gerações  extinctas  os  sentimentos  e  as 
crenças,  que  as  animaram,  e  as  paixões  humanas, 
que  as  inspiraram,  tudo  se  fará  menos  entender  e 
applicar  a  historia  na  sua  essência  mais  philosophica. 
Para  calumniar  um  século  e  os  homens  d^elíe  não 
vai  a  pena  levantar  do  tumulo  o  seu  cadáver.  A  re- 
ligião do  S(!pulcro  deve  ser  sagrada  para  a  arte,  como 
o  é  para  a  historia. 

Nos  lavores  da  imaginação  o  mérito  está  em  re- 
produzir idéas  exactas  colhidas  pela  analyse  das  in- 
stituições e  dos  factos  sociaes.  O  desenho  das  physiono- 
mias e  o  relevo  dos  costumes,  dependem  d"ellas  \  ou- 
tra cousa  equivale  a  consummir  as  forças  na  ingrata 
fadiga  de  adversa  Minerva,  dissolvendo-se  a  tinta 
dos  velhos  pergaminhos  em  arengas  insípidas,  e  es- 
tolidamente  falsas.  O  verdadeiro  espirito  dos  séculos 
escapa  á  rede  de  apanhar  vocábulos  dos  copistas. 

E  a  razão  porque  este  romance  é  escripto  e  falla- 
do  na  língua  de  hoje,  e  não  torcido  por  torniquete 
quinhentista.  A  historia  reside  nas  cousas. 

Por  ultimo,  como  a  tradição,  que  escolhemos,  « 
das  poucas  i-m  que  se  revê  a  funda  e  quasi  inconso- 
lável tristeza  da  musa  do  norte,  adoptou-se  para  epi- 
graphe  este  verso  de  Shakspeare  em  Othello  : 

She  was  born  to  be  fair;  I  lo  die  for  her  love ! 

De  certo,  Gomes  Lourenço  podia  dizer  com  o  poe- 
ta inglez  : 

EUa  nasceu  para  matar  irencanlos 

Eu  para,   amando-a  em  vão,  morrer  d^amores. 

t)  padecimento  immenso  do  cavalleiro  portuguez, 
bastante  para  encher  d^amargura  a  existência  toda, 
está  resumido  no  verso  de  Shakspeare.  Desdemona 
tiiiha-o  gravado  na  memoria  com  as  suas  lagrimas 
antes  de  o  soluçar  na  harpa;  e  atravez  das  epochas, 
no  infinito  da  eternidade,  a  amante  do  mouro  de 
N CiKíza,  e  o  neto  dos  V  iegas  de  Salzedas,  dão  as 
mãos,  confundindo  no  mesmo  suspiro  a  dõr  que  os 
dilacerou.  Ambos  ri-pousani  n'um  sepulcro  ensan- 
giunlado ;  ambos  do  amor,  ([ue  foi  a  sua  vida,  co- 
lheram apenas,  ella  o  espinho  do  ciúme,  elle  o  des- 
engano da  traição  ! 

O  IíkIo  severo,  que  os  levou  a  brincar  cou\  a  mor- 
te, e  em  premio  devotarem  a  alma  a  um  alleclo,  só 
lhes  deu  tornuMitos  e  desesperação,  é  o  mysterioso 
cunho,  com  qiu-  o  di-do  da  l'r<)\ideneia  assignala  os 
iiiarlyres  do  sfutimenlo,  escrevendo  a  predestinação 
da  poesia  na  fronte  de  tiamòes,  e  debaixo  da  corOa 
d'espinhos  ile  Uernaiilim  lliheiro  1 


VIACKNS. 

U.M   i'\ssnio   \   Moiíiiai  V. 

Kiíi-.Mio   outra    ve/.   em    norgen.   recolhendo   de  uin<i 
excursão   a',  inoulauha-'.    Direi  duas   palavras  áeevcii 


392 


O  PANORAMA. 


d'esta  cidade  e  seu  commercio  antes  de  te  dar  con- 
ta da  minha  jornada. 

Dizem  <|ue  a  fundara  cm  1069  ou  1070  o  rei  Ola- 
vo Kjrre,  que  a  elevou  á  cathegoria  de  segunda  ci- 
dade do  seu  reino  i  em  1)reve  veiu  a  ser  a  primeira 
pela  vantajosa  situação  de  seu  porto  e  pelos  privilé- 
gios que  Uie  concedeu  a  liga  hanseatica,  (1)  pondo 
aqui  uma  feitoria.  Até  ISl-i  conservou  esta  supre- 
macia. O  congresso  de  Vienna  separou  a  Noruega 
da  Dinamarca  para  unil-a  á  Suécia  em  recompensa 
da  cooperação  que  o  gcnieral  Bernadolte,  coroado  rei 
Carlos  João,  (2)  prestou  para  a  queda  de  Napoleão, 
e  por  indemnisaeão  da  Finlândia  e  daBothnia  orien- 
tal com  que  ficou  a  Rússia.  Desde  então  é  a  capital 
da  Noruega  Christiania,  que  só  fora  fundada  em 
1624,  mas  que  -augnienta  annualmenle  em  impor- 
tância, commercio  e  prosperidade.  Todavia,  Bergen 
continua  a  ser  a  cidade  mais  commerciante  e  mais 
povoada  :  monta  a  sua  população  a  23,000  habitan- 
tes, e  soube  conservar  no  seu  porto  os  depósitos  das 
grandes  pescarias  das  ilhas  situadas  na  extremidade 
da  província  do  Northland. 

Estas  ilhas  situadas  entre  68  e  69  graus  de  latitu- 
de, de  solo  geralmente  pedregoso  e  estéril,  e  de  pou- 
co âmbito,  porque  as  maiores  apenas  tem  oito  a  no- 
ve léguas  de  circuito,  formam  ura  pequeno  archipe- 
lago  n'um  mar  extremamente  piscoso,  onde  se  jun- 
tam todos  os  annos  os  pescadores  do  norte  para  a 
pescaria  de  inverno  :  aqui  concorrem  aos  centos,  aos 
milheiros  tanto  de  Bergen  como  do  Finmark  e  Dron- 
theim,  não  obstante  o  dilatado  e  espesso  véu  que  en- 
luta estas  aguas,  e  as  temerosas  tempestades  que  as 
agitam 

Mr.  X.  Marmier,  (3)  infatigável  e  verídico  via- 
jante, publica,  segundo  documentos  officiaes,  o  se- 
guinte quadro  da  pescaria  em  um  anno  ordinário  : 
2,910  barcos  e  15,480  pescadores,  tripulando  cada 
barco  geralmente  cinco  ou  seis  pescadores,  apanha- 
ram em  dous  mezes  16.4o6;620  peixes,  de  que  fize- 
ram 21,530  cascos  d^azeite  e  6,000  d^ovas  de  peixe  ^ 
o  azeite  produziu  a  quantia  de  758:530  francos,  o 
peixe  salgado  1 .371:388  c  as  ovas  30:000 ;  total  em 
francos  2.159:938  francos,  istoé,  mais  de  343  contos. 

Comtudo  isso  os  pescadores  de  Bergen  não  colhem 
lucros  correspondentes,  porque  vendem  muito  bara- 
to o  seu  género  ■,  o  ganho  reverte  em  beneficio  dos 
negociantes  c  especuladores. 

A  cidade  exporta  annualmente  o  valor  do  dous 
milhões  de  spccics  (um  spccie  dollar  vale  perto  de 
900  réis)  de  bacalhau,  20,000  toneis  d"azeite  de  ba- 
calhau de  1.",  2  c  3."  qualidade,  e  400,000  a 
600,000  toneis  de  arenques  salgados.  O  bacalhau 
vende-se  em  grande  parte  nos  portos  do  IMediterra- 
neo  \  os  arenques  consommcm-so  qtiasi  todos  na  Hol- 
landa ;  o  azeite  de  bacalliau  vae  para  toda  a  parte. 
Nos  mezes  de  abril  c  maio  é  que  se  pode  vir  Ber- 
gen, quando  os  grandes  hiates  (jocgis)  chegam  car- 
regados de  pescaria  •,  contam-se  então  no  porto  600 
a  700  embarcações  de  70  a  200  toneladas,  além  dos 
navios  estrangeiros  de  mais  forte  tonelagem  que  ali  | 
esperam  ou  lomani  suas  carregações. 

^C'o»i/i)ii(a.^ 

—  t)  primeiro  passo  para  o  bem  é  nunca  faicr 
mal  J.  15.  UoissK.*.i-. 


—  Se  o  vosso  inimigo  tem  fome,  dae-lhe  de  co- 
mer ;    se  elle  tem  sede,   dae-lhc  de  beber. 

Salomão. 


(1)     Voja-so  o  que  é  a  Iaj;a  Ilunseatirn  a  pag.  349  do  \ 
2.'^  voliiiiio  lio  Piinnianm.  j 

(-)     ^  oj;i-io  a  biogr.iplii.T  de  Bcrii.-idottc  a  pag.  199d'es-  ■ 
te  \ulunic.  I 

(3)     Viagcus  a  Scamliuavia.  Lapoiua,  Spitiberj,  e ilhas 
ilf  Keroi-,  aa>  auiios  Jc  lt>31J  a  1340. 


No  próximo  mez  de  janeiro  de  1853  co- 
meçará a  publicar-se  o  10.°  volume  do  Pa- 
norama, Annunciando-o,  o  Editor  aproveita  a 
occasi3o  para  agradecer  a  protccrio  que  o  pu- 
blico illustrado  lhe  tem  dispensado,  e  a  sym- 
pathia  com  que  foi  recebido  geralmente  o  pen- 
samento de  continuar  um  semanário  t3o  illus- 
tre  nos  fastos  da  litteratura  pátria.  DiRiculda- 
des  inevitáveis  na  organis^rOo  do  uma  empre- 
sa desta  ordem,  que,  como  todos  sabem,  é 
inleiramenle  dlslinita  das  anteriores,  obstaram 
a  que  a  nova  serie  do  Panorama  correspon- 
desse inteiramente  aos  seus  desejos.  O  pa- 
pel, que  nos  fornecem  as  nossas  fabricas,  e 
que  ainda  não  reúne  as  condições  necessárias 
para  uma  edição  nítida,  faz  principalmente 
com  que  as  excellentes  gravuras  que  temos 
dado,  todus  devidas  ao  delicado  buril  do  sr. 
Coelho,  não  sobresaiam  tanto  quanto  era  para 
desejar.  Esiienlmos  obter  melhor  papel,  e  con- 
tinuaremos solicitos  a  empregar  todos  os  meios 
para  que  o  Patiorama  venha  a  ser  também 
um  specimcn  dos  progressos  da  arte  typogra- 
phica  entre  nós.  Em  quanto  á  redacção  o  Edi- 
tor não  duvida  apresentar  os  números  publi- 
cados como  uma  prova  insuspeita  de  que  não 
sabe  faltar,  nem  faltará  jamais  ás  condições 
exaradas  no_  seu  programma. 

Assigna-se  para  este  semanário :  em  Lis- 
boa, no  armazém  de  livros  do  Editor,  rua 
do  Ouro,  n."'  227  e  228,  e  nas  lojas  dos 
sr."  Lavado,  rua  .\ugusta,  n.°  8,  Bravo,  rua 
do  Ouro,  n."  212,  Zeferino,  rua  dos  Capcl- 
lislas,  ele. 

São  correspondentes  do  Panorama  no  Por- 
to, o  sr.  A.  R.  da  Cruz  Coutinho;  em  Coim- 
bra, o  sr.  A.  H.  Dardallion  ;  em  Braga,  o 
sr.  Freitas  Guimarães ;  em  Santarém,  o  sr. 
José  Firmino  dAzevedo  Pereira;  em  Setúbal, 
o  sr.  ^Manoel  José  Ferreira ;  na  Ilha  de  São 
Miguel,  o  sr.  M.  C.  dAlbergaria  e  Valle ;  e 
na  Ilha  da  .^ladeira,  o  sr.  .\.  J.  de  .\raujo. 

Preços:  —  Por  anno  ou  o2  n.°'  15300  rs. 
Por  semestre  ou  26  n."'  TOO  rs.  Numer.' 
avulso  30  rs. 

Os  sr.'"'  que  dcs^jarom  subscrcNor  para  o 
anno  de  1833  queiram  dec!aral-o  quanto  an- 
tes, em  Lisboa,  aos  destribuidorcs.  ou  nos  lo- 
gares  acima  citados,  e  nas  pro>incias  aos  cor- 
respondentes, ou  ]ior  caria  franca  Jf  porlr, 
dirigida  ao  Editor,  e  acompanhada  de  uma 
ordem  da  respectiva  imporlanca. 


50 


o  PANORA3IA. 


393 


PASSEIO  PUBLICO   DE  HAVANA. 


A  itiiA  (lo  Cuba  ó  iiicoiílcstavolmente  a  mais  rica, 
a  mais  clvilisaila  o  a  mais  imporlaiil<;  colunia  de 
llosjiaiilia.  1'olilitameiilo  i'  repartida  cm  duas  pro- 
víncias: Havana  o  Sanliago  de  Cuba^  militarmente 
iomprcIii'nd(r  Ires  grandes  divisões.  í)  poder  judicial 
c  exercido  pela  riul  lualunciu  da  Havana  e  l'orto- 
Principe.  ()  capilão-general,  governador  da  colónia, 
é  o  presidente-,  os  teus  delegado»  nos  dislriclos exer- 
cem igualmente  a»  fiineções  de  magistrados.  Onde 
nHo  lia  cominandanlcs  militares  la/em  as  suas  vezes 
os  alcaides.  Nas  povoações  ruraes  ha  tandiem  y^tccs 
pcdancos,  (pie  suo  igualnicnle  nomeados  pelo  gover- 
nador. A  admiiiistraijão  das  linaii<;as  ('•  leila  sob  a 
inspecjjão  das  três  intendências  di;  Ilavaiia,  Matan- 
za.s  e  Sanliago;  pelo  (|iic  respeita  á  partia  iiiaritima, 
e  a  illia  de  (,'ulja  repartida  em  cinco  proviíicias  ou 
departamentos,  cujas  capitães  são  Havana,  'rriuidad, 
Sanliago,  S.  Juan  de  los  llemedius,  Nucvitas.  I''i- 
nalnuMile  si-  ii  eonsidcrarinus  na  biia  divisão  eccle- 
siastira,  comprelicnde  um  arcebispado,  o  de  Sanliago, 
e  um  bisjiado,  sen  suIlVagaiíeo,  o  de  Jlavaiia. 

A  popula(;rio  (la  illia  de  Cuba  era  em  1S.'i(>  de 
8'J8:75'J  liabilaiilcs,  iL>U;7G7  branco»  e  ■'("■J;!l8;i  de 
C(")r,  lios  ipiaes  i!'J't:7Ii!)  eram  escravos  ,  a  população 
Ihictuante  ori;ava  por  ■'(0:000.  l'',m  IS21  a  populai;ão 
da  ilha  de  Culia  era  de  G!10:',IS0  alinas,  (oiuprcheii 
Voi..    I.  —3."  SiciiiH. 


dendo  i!90:0L'l  brancos;  o  em  1823  de  700:000.  iu- 
cUiindo  317:000  brancos. 

A  ilha  de-  Cuba  tem  -03  léguas  de  comprimento, 
e  em  largura  entre  10  a  tO.  A  sua  extensão  terri- 
torial foi  ultimamente  avaliada  em  2,81 1 :0i8:9()0 
ares.  Destes  súiiicnte  um  decimo  se  acha  em  esta- 
do de  perfeita  cultura  ;  o  resto  ou  está  inculto,  ou 
cuberto  de  soberbas  llorestas,  (pie  fornecem  ao  eom- 
mcreio  excellentes  madeiras  deconstruc(;ão.  Os  prin- 
cipaes  estabelecimentos  agrícolas  são:  í2o:292  herda- 
des; 9,102  vcijas  de  tabaco;  l:G70  de  eatV  ;  1 :  H2 
engenhos  de  assucar.  Em  1827  continlia  apenas 
1.3:000  herdades,  .';:000  i<;/(/s  de  tabaco,  e  510  en- 
genhos. Esta  ilha  ('  abiiiidantissima  de  minas  de  co- 
bre, de  (jue  não  se  tem  tirado  todo  o  partido  possí- 
vel, mas  de  cpie  todavia  já  se  recolhem,  termo  mcilio, 
9'í(i:'J30  (juiiitaes  aniiualmeiíte. 

Cuba  produz  cni  cada  anno  proxiniaiuciile  a-su- 
car  I7.839:i2l  arrobas;  1  .i70:7o()  arrobas  de  cnfc  ; 
lli8:09i  volumes  de  tabaco  em  folha,  etc.  A  sua 
proibicçào  agrícola  total,  incluindo  o  Mílor  esliiua- 
llvo  dos  gadcjs,  calcula-se  em  .''K  mil  conto»  de  rei»! 

A   siui   import.i<,ão  foi,   cm  18l7,   de  31  mil  coii- 

toí,  e  a  exporta(;àc)  de  27  mil  contos.   O  connnereio 

da    metro|iole   foi    rcpnscnlndo  n'esle  grande  movi- 

meiílo  pel.i  •.niiiin:i  d.-  (I   mil  eiintos.    l'or  este  resu- 

l)t:.'KMUHo  1  1 ,  1852. 


394 


O  PANORA3IA. 


mo  póde-se  fazer  uma  idéa  da  immcnsa  importância 
coinmercial  da  ilha  de  Cuba,  e  coniprehende-se  fa- 
cilmente o  motivo  porque  os  americanos  indirecta- 
mente tem  promovido  a  s\ia  incorporação  nos  esta- 
dos da  republica. 

A  energia  das  auctoridades  hespanholas,  a  disci- 
plina e  bravura  das  suas  tropas  iizeram  malograr  as 
tentativas  que  se  tem  realisado  u''e6sc  sentido  :  mas 
é  certo  que  a  Hespanha  lucta  com  um  poderoso  ri- 
val, e  que  só  promovendo,  como  até  aqui,  com  a 
maior  solicitude  o  bem  estar  d^aquelles  povos,  c  au- 
gmentando  a  sua  marinha  de  guerra,  poderá  conser- 
va hasteado  nas  muralhas  de  Havana  o  estandarte 
de  Castella. 

Desde  1834  construiram-se  em  Cuba  300  milhas 
de  caminhos  de  ferro  \  e  80  acham-se  ainda  em  cons- 
trucção  ;  as  principaes  linhas  férreas  são  a  de  Hava- 
na a  União  (88  milhas)  ;  a  de  Matanzas  a  Isabel 
(47  milhas)  :,  a  de  Nuevitas  a  Porto-Principe  (30 
milhas)  ^  e  a  de  Cardenas  (29  milhas)  1 

A  capita!  de  toda  a  colónia  é  a  cidade  de  Hava- 
na, com  um  dos  melhores  portos  da  America.  E po- 
voação de  aspecto  triste,  c  ruas  estreitas  e  tortuosas, 
com  cerca  de  loO:000  habitantes  ^  os  edifícios  mais 
notáveis  são  a  alfandega,  o  palácio  do  capitão-gene- 
ral,  a  grande  fabrica  do  tabaco,  e  o  theatro  de  Ta- 
con.  A  nossa  estampa  representa  o  passeio  publico, 
que  é  situado  exterior  e  parallelamente  ás  muralhas. 
As  suas  frondosas  ruas  são  adornadas  de  lindas  fon- 
tes, sendo  mais  notáveis  a  dos  Icues,  a  rudica,  e  a 
da  índia,  em  frente  do  campo  militar.  Esta  vdti- 
ma,  realmente  sumptuosa,  é  adornada  de  uma  esta- 
tua colossal  de  formoso  mármore,  languidamente  re- 
costada em  uma  espécie  de  carro,  com  a  cornuco- 
pia  e  outros  emblemas  ao  lado,  s}  nibolisando  o  typo 
mas  perfeito  da  raça  india.  Do  seu  magnifico  pedes- 
tal saem  quatro  largas  bicas,  que  derramam  em  um 
bello  tanque,  grande  cópia  de  e.xcellente  agua.  Esta 
fonte  monumental,  como  se  pôde  observar  na  gravu- 
ra, é  cercada  de  um  elegante  gradamento  de  ferro, 
dentro  do  qual  fica  um  pequeno,  mas  bem  disposto 
jardim.  No  centro  do  passeio,  e  entre  a  porta  de 
Monserrate  e  o  theatro  deTacon,  ostenta-se  o  busto, 
em  bronze,  da  rainha  D.  Isabel  11,  que  actualmen- 
te preside  aos  destinos  da  Hespanha. 


A   INSTRUCÇÃO   PRlMAni-V   SA   IxCLATElinA. 

Parece  um  paradoxo  á  primeira  vista,  o  avançar, 
que  não  ha  uni  caso  que  deponha  contra  o  sjstema. 
Mas  o  motivo  é  claro.  O  contacto  e  a  familiaridade 
começam  logo  n'uina  idade  mui  tenra,  e  na  casa  de 
asjlo  aonde  a  moral  é  severíssima,  a  civilidade  a 
primeira  exigência,  e  aonde  finalmente  se  observam 
todas  as  regras  c  bons  costumes  que  se  aprendem  no 
seio  das  familias,  e  tahez  mais  exemplarmente.  O 
systenia  de  separação  adoptado  nas  escolas  ruracs  de 
França,  tem  a  experiência  mostrado  ser  deficiente, 
ao  passo  que  se  tornaria  inexcquivel  no  asyloinglez, 
porque  seria  absurdo  sustentar  uma  separação,  que 
liesapparece  ao  abrir  a  porta  da  aula.  O  que  é  certo, 
repetimos,  cquc  os  meslres  das  escolas  primarias  na 
Inglaterra,  não  tem  apontado  um  único  inconvenien- 
te contra  o  systema.  Concorrerá  para  este  resultado 
a  superior  moralidade  do  povo  inglez  ?  Creio  que 
não.  , 

As  escolas  abortas  para  cxpeculação  particular,  as 
escolas  catholicns  e  ffeshyaunm,  e  as  escolas  de 
inanh.T,  concorrem  poderosamente  para  a  diflusãodo 


ensino  primário.  Todos  sabem,  que  o  principio  de 
associação  na  Gran-Bretanha  se  presta  com  tanta 
vantagem  ás  combinações  engenhosas  da  philanthro- 
pia  e  da  caridade,  como  aos  cálculos  ávidos  do  inte- 
resse. Nem  mesmo  a  sociedade  poderia  exigir  outra 
cousa  na  minha  opinião. 

As  escolas  de  manhã  foram  instituídas  pelos  âns 
do  século  18."  Apesar  dVxistir  uma  lei  que  obriga 
os  mancebos  e  creanças  empregadas  nas  fabricas,  e 
estabelecimentos  de  todo  o  género,  a  ir  á  escola  um 
certo  numero  de  vezes  em  cada  semana,  aindaasbini. 
as  escolas  de  manhã  são  muitíssimo  frequentadas  ; 
eursam-nas  alumnos  de  todas  as  idades,  ii^êem-* 
ali  —  diz  mr.  Hantute  —  homens  de  trinta  annos,  < 
mulheres  de  quarenta  ,  que  assistem  regularmente 
ás  lições.  .  .  Nota-se  muitas  vezes,  que  as  pessoas  en- 
carregadas de  ensinar,  pertencem  ás  classes  mais  ele- 
vadas da  sociedade  ingleza.  A  aristocracia  mesmo 
não  se  envergonha  d'isso.  Em  casa  do  reitor  de 
Saint-Martin  em  Londres,  encontrei  eu  um  velho 
membro  do  parlamento,  que  gasta  parte  do  seu  tem- 
po a  ensinar  na  escola  de  manhã,  e  que  na  semana, 
concorre  com  os  seus  esforços  ás  lições  dadas  aos  po- 
bres no  ragrjcd-schools.^1  E  uma  boa  acção,  um  exem- 
plo edificante,  que  raro  se  pratica  fora  da  Inglater- 
ra, aonde  todos  comprehendem,  que  sem  instrucçãi 
não  é  possível  um  governo  livre. 

Em  tudo  o  que  temos  observado  n'esse  quadr' 
de  uma  sociedade,  que  corre  para  a  escola,  con 
mais  anciã  do  que  na  Roma  antiga  o  povo  para  ■ 
circo,  não  se  divisa  a  minima  influencia  directa  d. 
estado.  .\  Inglaterra  não  tem  ministério  de  instruc- 
ção  publica,  nem  o  precisa.  A  lei,  sempre  em  re- 
lação com  os  costumes  e  Índole  do  paiz,  deixa  tod.i 
a  latitude  á  iniciativa  individual,  que  se  exerce  li- 
vremente sem  protecção,  e  sem  restricções.  Este  é 
o  principio  absoluto.  No  entanto,  em  1818,  .ippare- 
ceram  no  parlamento  numerosas  reclamações  contra 
o  systema,  que  revelava,  da  parte  do  governo,  uma 
completa  indifferença  pela  inslrucção  publica.  Esta» 
reclamações,  vigorosamente  combatidas  então  polo 
espirito  anglicano ,  prevaleceram  pouco  e  pouco. 
Em  1839  instituiu-;e  o  CumiUcc  of  council  i/n  ecltt- 
caiion,  conselho  encarregado  da  educação  popular. 
Desde  então  a  acção  do  estado  tcni-se  tornado  mai? 
sensível,  e  manifesta-se  por  subsídios  concedidos  pa- 
ra a  fundação  e  manutenção  das  escolas,  e  por  um 
methodo  d'inspecções,  que  vigorando  na  metrópole, 
se  estende  a  todos  os  districtos  do  Reino-Unido. 

A  inspecção  não  governa  na  escola ;  não  entra 
n^ella,  sem  que  se  prestem  a  admittir  o  seu  auxilio 
Não  dá,  nem  recebe  ordens ;  limita-se  a  registar  f  - 
factos,  c  dar  conta  d'ellos.  Respeita  religiosamente 
a  susceptibilidade  dos  costumes  inglcies,  que  instin- 
clivamcnte  rcpellcm  a  intervenção  governamental, 
porque  elles  mesmos  tèem  a  iniciativa  c  força  bas- 
tante para  operarem  sem  o  governo. 

Por  outro  lado,  como  o  conselho  sui>erior  nSodis- 
Iribuc  fundos  do  estado  senão  aos  cslabelecimenlcx. 
que  excitam  a  sua  visita;  comprehcndc-se  que  o  es- 
pirito de  independência  tende  a  tornar-se  nicncs  fer- 
rivel,  porque  enfraquece  na  espectativa  de  lun  sub- 
sidio. 

Em  1846,  o  credito  annu.il  votado  pelo  parlamen- 
to, c  posto  á  disposição  do  conselho  superior,  não 
excedia  a  100:000  libras  esterlinas  (I30:OOOSOO(> 
réis)  e  hoje  monta  a  "iOtOOOÇOOO  riMs.  Por  esta  ci- 
fra avalia-sc  a  influencia  ascendente  do  estado  nos 
progressos  da  instrucção.  Mas  é  preciso  notar,  que 
essa  influencia  não  se  tem  operado  sem  protestos.  O 
\eMho -espirito  anglicano,  oiofo  d.ns  suas  prcrogativas. 
tcm-se  espantado   c   iudisn.-ido,    de   vèr   oi  agcnt'  s 


o  PAINORAMA. 


39õ 


officiaes  penetrar  nas  escolas ;  a  maior  parte  do  clero 
repplle  um  systema,  que  julga  uma  usurpação. 

Eml8oO,'um  numeroso  mte/mj,  reiuiido  em  Lon- 
dres, votou,  segundo  o  uso,  resoluções,  pelas  quaes 
era  severamente  estranhada  a  influencia  do  estado 
nas  cousas  do  ensino.  Não  é  sem  interesse  notar, 
que  ha  hoje  em  Inglaterra  uma  tendência  pronun- 
ciada para  uma  espécie  de  centralisação  administra- 
tiva ;  começa-se  a  comprehender,  que  a  sociedade 
não  deve  ahandonar-se  a  si  mesma. 

Em  França  a  centralisação  tem  sido  bastante  útil 
ao  descnvoh-imonto  da  instrucção  primaria.  Entre- 
tanto convirá  não  perder  de  vista  a  Inglaterra,  pelo 
que  respeita  ao  seu  systema  de  associação,  que  seria 
um  auxilio  poderoso  aos  esforços  doestado  n'este  im- 
portanlissimo  ponto  da  governação  de  um  povo. 

Não  appresentamos  este  systema  para  ser  applica- 
do  no  nosso  paiz ;  póde-se  colher  delíe  alguma  cousa, 
eprova-se  no  Cm  de  tudo,  que  as  classes  superiores  da 
nossa  sociedade  poderiam  dar  um  grande  contingen- 
te para  o  desenvolvimento  da  instrucção  primaria  em 
Portugal,  a  mais  necessária  por  certo.  E  verdade, 
que  os  hábitos  e  costumes  da  Inglaterra  divergem 
absolutamente  dos  nossos-,  a  religião  que  os  inglezes 
professam,  é  di\ersa  tanibem,  e  deve  notar-se  que  a 
religião  é  a  verdadeira  origem  d'essa  independência, 
que  o  povo  inglez  sabe  manter  diante  da  iniciativa 
governamental. 

Não  nos  pronunciámos  pois  absolutamente  pelo  sys- 
tema inglez,  antes  votámos  pela  inlluencia  directa  do 
<*tadii  na  instrucção  publica,  porque  d'ella  depende  a 
lioniogeneidade  de  ensino,  e  sem  esta  nunca  se  con- 
seguirá educar  as  sociedades  para  os  elevados  desti- 
nos da  civilisaçãc. 

Ejitendemos  porém  que  não  devemos  despregar 
os  olhos  da  Inglaterra,  onde  o  principio  de  associa- 
<fio,  largamente  desenvolvido,  tem  obrado  maravi- 
lhas, forcejando  para  que  a  nossa  pátria,  por  meio 
<raquelle  poderosíssimo  agente,  já  que  a  acção  do 
governo  eslá  provado  f>or  iiisufficiente,  saia  doeste 
«ístado  de  marasmo  intellcitiial  (|ue  nos  envergonha 
perante  a  Europa  fivilisad;i. 

.í.   C  Haucoprt. 


THOMAZ  ANIELLO  (MASA-MELLO.) 

{RevoluçXo  de  Nápoles  em  1G'(-7.) 

JIasammllo  lançou  bando  c  pregão  contra  os  no- 
bres, condemnando  á  morte  os  que  fossem  encontra- 
dos nas  ruas  da  cidade  ^  enviou  ordens  eimtra  o  du- 
que de  Matalona,  alim  de  lh"o  trazerem  morto  ou  vi- 
vo, e  mandou  eoUocar  a  cabeça  e  um  pé  de  José  Ca r- 
ralla  dentro  de  gaiolas  de  ferro  suspensas  sobre  apor- 
ta <l(!  S.  Jennaro.  A  entrada  das  gallés  reaes  (pie 
a|)ortaram  ireste  meio  leinpo,  ainda  veiu  augmen- 
lar  as  suspeitas  e  a  confusão.  O  aspecto  da  capital 
lornou-ae  medonho.  O  castello  em  som  de  guerra 
ameaça\a-a.  As  aucloriílades  cheias  de  receio  não 
transpunham  o  seu  recinto.  <>  |'aÇo  estava  forlilica- 
do  i:  com  guardas  dobradas  do  cavallaria.  As  ruas 
com  tranqueiras  feitas  <le  pipas  e  saccos  de  turra  ^  o 
p3o  e  ns  subsistências  embaratircernin,  temendo  os 
nçougnes  o  padeiros  as  xioleneias  do  povo.  Os  parti- 
eularei  ricos  escaparam-so,  c  procuraram  salvar  as  fa- 
zendas na  cidadella  (i  nos  conventos.  K  nem  nhi 
mesmo  fuarnm  seguros;  ponpio  o  ilictailor  ilo  mer- 
«ado,  ordenou  aos  mosleini'-  (pie  os  i?xpulsassem  den- 
tro de  rpiatro  |i(ir;c.  soli  pena   de  os  (pieiínar  até  llo^ 


alicerces.  O  terror,  a  expoliação  e  o  sangue,  cortejo 
ordinário  da  anarchia,  seguiam  de  perto  a  malogra- 
da tentativa  da  aristocracia,  preparando  ao  mesmo 
tempo  pelo  horror  dos  excessos  e  iniquidade  das  vin- 
ganças do  po\o,  a  sua  queda  desastrosa.  De  ambos 
os  lados  se  despenhavam  cegamente  no  abysmo. 

Não  havia  senão  um  meio  de  apaziguar  os  alvo- 
rotos e  de  pôr  fim  a  um  estado  intolerável.  O  car- 
deal recorreu  a  elle.  Tornando  a  avistar-se  com  o 
pescador  de  Amalíi  convenceu-o  a  dirigir-se  ao  pa- 
ço para  ter  uma  conferencia  com  o  vice-rei.  Thomaz 
Anicllo  assentiu,  e  tendo  disposto  em  companhias  ar- 
madas pelas  ruas  de  Nápoles  o  seu  exercito  (cento  e 
quator/.e  mil  homens '.)  foi  ao  largo  do  castello  fallar 
ao  povo  e  publicar  as  condições.  No  fim  levantando 
mais  a  voz  perguntou  :  estaes  contentes  ?  Sim  !  sim  ! 
exclamaram  todos  em  um  grito  unisono.  Ellesorriu- 
se  com  tristeza,  apertou  a  mão  no  peito,  e  com  os 
olhos  arrasados  de  lagrimas  que  não  envergonham  o 
homem  forte,  redarguiu :  Sei  que  hei  de  morrer  por 
este  feito  \  o  perigo  começa  hoje  para  mira .  Promet- 
íeis em  recompensa  do  que  vos  tenho  servido  resar 
uma  Ave  Maria  pelo  descanço  da  minha  alma  ?  A 
multidão  tornou  a  victorial-o  estrepitosamente,  ju- 
rando defcndel-o  e  sustcntal-o.  Eram  as  exéquias  da 
sua  popularidade,  e  elle  sabia-o.  Rude  de  instrucção, 
mas  dotado  da  vista  rápida  e  profunda,  que  só  dá  o 
génio,  percebeu,  que  esta  paz  era  uma  trégua,  eque 
o  segundo  c  verdadeiro  combate  não  se  havia  de  dar 
senão  sobre  o  seu  corpo.  Assim  aconteceu .  A  essa  ho- 
ra mesmo  tudo  se  preparava  para  o  precipitar. 

Meia  hora  depois  d'csla  scena,  pelas  Ave  Marias 
entrou  no  paço,  deixando  no  largo  vinte  mil  homens 
armados,  e  não  consentindo  que  ninguém  o  acompa- 
nhasse subiu  á  sida  aonde  o  duque  de  Arcos  o  esta- 
va esperando  ^  beijou-lhc  as  mãos,  apesar  d 'elle  o  le- 
var nos  braços,  c  ambos  á  janella  \iram  destilar  o 
povo.  A  um  signal  de  Masaniello  as  grossas  e  nome- 
rosas  filias  gritavam  três  vezes  —  viva  el-rei  de  Hes- 
panha  !  —  a  outro  aceno  as  vozes  calavam-sc,  e  o  si- 
lencio tornava-se  profundo.  O  vice-rei,  notando  tão 
admirável  obediência,  abraçava  cada  vez  mais  o  pes- 
cador, sorrindo  muito,  c  ostpie  oviamsaudavam-no. 
julganilo  que  na  pessoa  do  chefe  abraçava  a  revolu- 
ção. Engano  '.  Estava  tomando  a  raeiUda  do  coUossii 
para  não  errar  o  segundo  tiro,  como  errara  o  primei- 
ro. Repetia  o  abraço  do  monte  das  Oliveiras. 

Tliomaz  Aniello  não  o  desconhecia.  O  seu  Iriuni- 
pho  fa/.ia-o  pallido  c  bnniilde.  Wuando  saiu  do  pa- 
lácio, a  alegria  que  representava  no  rosto  era  falsa. 
e  as  providencias  severas  c|ue  adoptou  e  poz  em  exe- 
cução, provam  que  achara  excessiva  a  benevolenciíi 
do  duque,  e  se  acautelava.  O  supplicio  de  diversos 
partidários  tio  duque  de  Matalona  teve  por  fim  lan- 
çar o  freio  do  lirrror  á  facção  da  nobreza.  l)s  impos- 
tos decretados,  e  (pie  tanto  o  desconccituarauí,  leva- 
vam em  vista  preparar  os  meios  precisos  para  su»- 
tentar  a  nova  lucta,  porque  a  julgava  eminente;  as 
('h'i(;i~ies  ipie  ins[>irou  tenderam  a  eolloc.ir  osseusaiiu- 
gos  lieis  nos  logarcs  de  conliança,  e  o  st^picslro  de 
grandes  fazendas,  tpie  fel  em  casa  de  Pedro  liiiiirn- 
no,  João  de  Cevallios,  o  outros  muitos  arreinalaiiles 
de  impostos,  encnbriíim,  sob  pretexto  de  justiça  popu 
lar,  a  necessidade  de  crear  alguns  rendimentos,  (pu.' 
o  liabilitassem  a  sustentar  as  companhias  armadas,  o 
nervo  o  esteio  da  revolução.  Estas  prov  i(lei\cÍHs  go 
ravam  ódios  e  inquietações,  e  elle  não  o  ignor.^vva  : 
inas  tinha  chegado  no  ponto  em  (|uc  nào  lhe  restado 
senão  aeseulha  do  modo,  por  (pie  havia  de  succumbir. 
Não  o  fjiiendo  caía  sem  defexa,  inlcnlando-o  arri» 
cavn-se  ao  golpe  de  nin  punhal,  ou  ú  baila  do  um 
arcabuz,    disparado   ale   d"tntre   os   seu»  «uxilinre* ' 


396 


O  PA1NORA31A. 


EíToetivamente  a  traição  já  os  minaTa,  e  os  descon- 
tentes não  occultavaiii  as  queixas  e  murmurações.  A 
latastrophe  avisinhava-se  a  passos  rápidos,  tendo  por 
guias  a  invtya  c  a  venalidade. 

NVste  meio  tempo  éque  se  affixou  o  edital  do\i- 
ce-rei  estabelecendo  os  privilégios  da  cidade,  abolin- 
do os  impostos  das  subsistências,  e  declarando  réus 
de  pena  capital  os  perturbadores  da  paz  do  povo. 
Seguiu-se  a  grande  festa  dada  em  Pausilippo  a  Ma- 
saniello,  aonde  lhe  prodigalisaram  attenções  c  rega- 
los, propinando-lhe,  dizia  o  povo,  uma  bebida  inve- 
nenada,  de  que  enlouqueceu.  O  fundamento  d'csta 
versão  foi  a  incolierencia  ca  melancholia,  que  depois 
d'este  dia  se  notava  no  caudilho.  Aproximava-se  a 
sua  hora,  e  é  de  crer  que  mesmo  no  meio  do  ban- 
quete, e  entre  as  danças,  lhe  viesse  o  prcsentimento 
da  funesta  sorte  que  o  aguardava.  Talvez  percebesse 
no  sorriso  de  muitos  dos  convivas  o  mesmo  ódio,  que 
lera  na  benignidade  do  duque  dos  Arcos.  É  certo, 
que  depois  da  sua  ida  a  Pausilippo,  a  mento  a  miú- 
do se  lhe  desvairava,  c  que  alguns  fumos  de  ambi- 
ção lh'a  offuscavam.  Entretanto  a  conspiração  pro- 
gredia melhor  planisada,  e  amadurecendo  caminha- 
va para  o  desenlace.  Tudo  estava  disposto  para  o 
desthronar,  e  as  medidas  tomadas  com  tal  acerto  que 
nenhuma  falhou.  A  contra-revolução  rebentou  no 
dia  16  de  julho,  junto  do  paço,  por  ordem  do  vice- 
rei,  como  tudo  parece  comprovar,  no  posto  das  guar- 
das de  serviço.  Intimando  os  soldados  da  parte  de 
Thomaz  Aniello,  para  se  retirarem,  responderam  ne- 
gativamente e  mataram  o  mensageiro,  esublevando- 
se  discorreram  pela  cidade,  gritando  que  o  governo 
do  mercado  tinha  acabado,  o  que  ninguém  obedecia 
ao  pescador. 

Um  trombeta  e  um  tambor  á  frente  de  alguns  dos 
insurgidos  levaram  a  noticia  ao  duque  dos  Arcos,  que 
a  recebeu  como  homem  que  a  esperava.  Logo  depois 
o  paço  fechou-se  e  poz-se  em  armas,  e  o  resente  da 
ícana,  em  uma  liteira,  saiu  as  ruas  com  grande 
acompanhamento,  dando  vivas  a  el-rei  de  Hespanha. 
A  sorte  estava  lançada.  Se  o  povo  illudido  se  voltas- 
se contra  Masanielío  o  seu  poder  e  a  sua  vida  fica- 
vam nas  mãos  da  aristocracia.  Foi  o  que  succedou. 
Os  populares  entregaram  o  seu  chefe,  esquecidos  de 
que  na  queda  cUe  os  arrastaria  comsigo  infallivel- 
mente. 

Pelas  seis  da  manhã  Thomaz  Aniello,  que  não 
Ignorava  inteiramente  o  que  se  dispunha,  entrou  no 
i^armo  e  fez  um  esforço  para  commovcr  o  povo  com 
discursos,  em  que  lhe  manifestou  que  era  chegado  o 
quarto  dia  das  capitulações,  o  que  estava  certo  de 
que  nVUe  o  haviam  de  matar.  Depois,  exaltando-se, 
protcstou-lhes,  que  a  perda  communi  seguiria  a  sua, 
começando  a  contra-revolução  por  subir  o  preço  ilos 
alimentos,  e  concluindo  pelo  restabelocimenio  das  an- 
tigas taxas.  Esla  allocução  pouco  clleito  fez,  sondo 
ouvida  até  com  alguns  murmúrios.  A  saída,  o  cau- 
dilho encommendou  a  sua  alma  a  Deus,  c  pediu 
que  orassem  a  favor  d'ellc.  I)'ahi,  dcsviando-se  do 
concurso,  desceu  os  degraus  do  adro,  e  dera  apenas 
curtos  passos,  quando  caiu  morlalnienle  ferido  de 
«lous  tiros  do  arcabuz,  disjiarados  do  uma  embusca- 
da.  Os  assassinos  eram  José  Ardissone  o  Salvador 
Catanco,  parciaos  ambos  da  casa  de  Matalona  e  seus 
criados.  Arrastando  o  cadáver  pelos  cabcllos  e  levan- 
tando vozes  cm  nome  do  vice-rci,  cortaram-lhe  aca- 
I)eça,  e  levaram-na  ao  iviço,  seriam  sete  horas  da  ma- 
nhã. Ahi  levanfaram-na  om  mu  pique,  que  o  povo 
iiHlignamcnte  convertido  já  para  a  facção  da  nobre- 
za, passeou  por  toda  a  cidade  entre  vaias  e  ullrages. 
O  irmão  de  Masanielío  salvou-se,  fugindo.  Sua  mu- 
lher o  irmã,  presas,   foram  truiidus  ao  paço,   c  mal- 


tratadas nos  mesmos  sitio»,  aonde  o  duque  dos  Arcos 
honrara  na  pessoa  d'eLlas  o  vencedor  de  seu  governo '. 

Assim,  em  poucos  dias  elevou-se  e  decaiu  afortu- 
na do  pescador  de  Amalfi,  mais  do  que  um  rei  em 
Nápoles,  e  depois  tão  infeliz,  que  o  seu  corpo  torna- 
do era  ludibrio  serviu  de  joguete  ás  infâmias  da  vil 
gentalha  !  Para  ser  completo  o  exemplo,  não  fidtou 
a  apotheose.  A  mesma  plebe  que  lhe  vendeu  o  san- 
gue aos  hespanhoes,  desenganada  de  ter  perdido  n"el- 
le  a  sua  força,  rebentou  em  novos  tumultos,  procla- 
mando a  innocencia  do  chefe  assassinado,  e  pondo  o 
seu  corpo  e  cabeça  em  um  estrado  cuberto  de  panno 
branco  do  Carmo,  com  uma  espada  na  mão,  e  o  bas- 
tão de  commando,  saiu  em  procissão  com  elle,  acom- 
panhado de  duzentos  padres  e  tochas,  e  seguido  de 
três  mil  soldados  arrastando  vinte  bandeiras  ao  som 
de  caixas  destemperadas.  Iam  no  séquito  innumera- 
veis  mangas  de  povo,  quinhentas  mulheres  choran- 
do, e  outras  mais  recitando  psalmos  e  chíunando-lhc 
bemfeitor  da  pátria.  A  razão  d"esta  súbita  mudança 
era,  logo  no  diaimmediato  ao  da  morte  de  Thomaz 
Aniello,  (17  do  julho)  haver  encarecido  o  pão,  vol- 
tando aos  antigos  preços.  Já  se  vê  que  o  povo  não 
se  arrependia  senão  porque  tinha  fome. 

A  uma  hora  da  noute  o  cadáver  conduzido  com 
esta  pompa  chegou  ao  paço.  O  vice-rei,  encerrado, 
estremeceu.  Das  suas  janellas  via  arder  os  fornos  do 
pão  e  os  depósitos  de  farinhas  do  Espirito  Santo  e 
dos  Bancos  Novos,  a  que  os  populares  acabavam  de 
lançar  fogo.  Para  desviar  a  tempestade  mandou  alu- 
miar o  palácio,  imitando  as  casas  particulares,  á  me- 
dida que  o  préstito  ia  passando.  As  exéquias  cele- 
braram-se  no  Carmo,  aonde  Masanielío,  simples  pesca- 
dor, foi  sepultado  com  as  honras  não  só  de  capitão 
general  do  po\o  de  Nápoles,  mas  com  o  estado  e  gran- 
deza de  um  rei  coroado.  Os  sinos  de  todas  as  i-Tejas 
dobravam  por  elle,  nos  mosteiros  sem  excepção  pré- 
gou-se  o  seu  elogio  fúnebre,  dizendo-se  mais  de  duas 
mil  missas,  e  a  eleição  de  Palombo  para  capitão  do 
povo  pareceu  o  único  meio  de  distrahir  a5  commo- 
ções  causadas  pela  queda  de  Thomaz  .\niello,  que  pa- 
receu tão  ameaçadora  ao  governo  como  a  sua  própria 
exaltação.  O  que  é  indubit.ivel  é  que  os  aconteci- 
mentos posteriores  confirmaram  todos  os  prognósticos 
feitos,  uma  hora  antes  de  expirar,  pelo  chefe  assassi- 
nado. 

L.  \.  Rebello  d.%  Silva. 


INSTRUMENTOS  S£  MUSICA.  TROMBETAS. 

liyijpcivs.   (I) 

1)evf.-se  presumir  que  os  cgypcios  conheceram  as 
trombetas  nos  tenip<is  mais  remotos,  por  isso  quecer- 
los  auctores  attribuiram  a  invenção  d"cstc  instru- 
mento aOsiris.  .\pullcio  falia  de  uma  espécie  de6n- 
síiiíi,  (juc  annunciava  a  passagem  da  deusa  Svria, 
quando  os  sacerdotes  conduziam  a  imagem  cm  pro- 
cissão pelos  campos.  O  sr.  la  Fago.  na  sua  noticiosa 
historia  da  musica,  suppõe  que  esta  trombeta  era  o 
instrumento  que  os  gregos  conheciam  pelo  nome  de 
kuotic,  de  que  se  serviam  para  chamar  o  jvjvo  ás  ce- 
remonias  religiosas,  r  que,  segundo  Plutarcho,  ate- 
morisava  os  Uusiritos,  os  Lvcopolites  o  Abvssinios, 
por  caus;i   dos  seus  sons  estridentes,   que  so   assimi- 


(I)     Vid.  o  N."  40  d'cJtc  vulumc,  pug.  317. 


o  PANORAMA. 


397 


Ihavam  ao  turrar  do  burro.  Aquelles  povos  tinham 
aversão  a  este  animal,  porque  o  consideravam  como 
representante  de  Typhon,  o  génio  do  mal. 


riG.  1    E  2. 


As  figuras  1  c  2  moslrani,  a  primeira  um  egypcio 
<le  joolhos,  cmbocando  uni  instrumento  que  parece 
ser  a  trombeta;  a  segunda,  tirada  dos  Monnmcnios 
<U>  Eijypto  do  Champollion  o  moço,  (illustre  auctor 
da  grammatica  egypcia),  um  egypcio  tocando  troni- 
Vjcta,  lendo  outra  debaixo  do  braço  esquerdo.  Estas 
são  da  lorma  mais  simples,  porque  apenas  consistem 
oní  um  tubo  continuado  até  ao  bocal,  que  abre  de  re- 
ponte á  maneira  de  funil.  Nas  figuras  3  e  4  damos 
oiítras  similliantes  reproduzidas  do  atlas  do  sr.  Fage. 


na.  o  V.  i. 


Kiilrc  OH  lígypciíis  as  Iroiubctns  snviaai  para  re- 
gular a  marciía  de  tropas,  ()rd<nar  o  crimbíili',  diri- 
gir 08  inovimontu.s  militares,  e  para  reunir  o  povo, 


VIAGKNS. 


Um  fAssKii)  Á   NoiítJuuA. 


KsTA  cidade  foi  variíiH  vezes  assolada  pela  peste  o 
devastada  pelos  incêndios.  O  ulliino  fogo  succeileu 
"•111  ISJI)  c  destruiu  a  terça  parti;  dacidadi'  ;  cm  cuil- 


scquencia  d'este  desastre  o  conselho  municipal  deci- 
diu que  todas  as  novas  construcções  fossem  de  pedra 
ou  de  tijolo,  porque  até  ali  a  maior  parte  das  casai 
eram  edificadas  de  madeira.  Um  pontal  bojando  para 
o  sul  forma  o  porto,  aberto  ao  noroeste,  guarnecido 
de  casaria,  e  quasi  de  uma  milha  de  comprimento  \ 
duas  fortalezas  á  entrada  do  mesmo  dominam  a  ensea- 
da ;  a  mais  importante,  construída  por  Olavo,  o  fun- 
dador da  cidade,  foi  antes  da  união  da  Dinamarca  e 
da  Noruega  residência  dos  reis  noruegos,  que  fize- 
ram Bergen  sua  capital. 

Antes  da  reforma  Bergen  possuía  trinta  igrejas, 
hoje  restam  só  cinco  c  nenhuma  merece  visita ;  os 
demais  edificios  públicos  também  não  são  interessan- 
tes. Em  compensação  vi  na  galeria  do  Kunst-Fore- 
ning  (sociedade  das  artes)  muitos  quadros  bellos  de 
pintores  norueguezes ;  entre  elles  merece  primeira 
menção  o  de  Jensen,  domiciliado  agora  em  Muni- 
ch  ;  representa  o  rapto  de  uma  grega  [xir  um  pirata 
norueguez.  Agradaram-me  muito  os  paizes  deDunt- 
ze,  artista  que  reside  em  Bergen. 

Um  dia,  saindo  do  museu,  vi  muitos  criados  que 
espalhavam  follias  d'arvorcs  na  testada  de  uma  casa. 
Cheguei-me  a  um  homem  da  policia  que  os  obser- 
vava, tendo  líu  mão  a  sua  esírtlla  da  manhã,  que 
logo  direi  o  que  é.  ^las  se  elle  percebeu  a  pergunta 
que  lhe  fiz  por  gestos,  foi-me  impossível  entender  a 
resposta  que  deu  na  língua  pátria.  Devolta  .í hospe- 
daria soube  que  a  maior  parte  dos  noruegos  costumam 
de  tempo  immemorial  espalhar  folhas  d'arvores  dian- 
te das  casas  onde  acaba  de  fallccer  alguma  pessoa. 
Os  parentes  e  os  amigos  do  defunto  apressam-se  a 
praticar  o  mesmo  logo  que  são  informados  da  triste 
noticia.  Q-uanto  á  isirelta  da  manhã  dos  policias,  é 
um  globo  de  cobre,  quasi  do  tamanho  de  uma  laran- 
ja, solidamente  fixo  na  extremidade  de  um  grosso 
bastão  de  cinco  palmos  de  comprido,  e  erríçado  de 
puas  de  ferro  ;  é  uma  arma  mui  perigosa. 

Vamos  de  camíniio  agora,  não  para  as  deliciosas 
vivendas  campestres  que  circumdam  Bergen,  nem 
para  as  apniziveis  montanlias  [liirgin)  que  canipeam 
soljro  ella  e  lhe  deram  o  nome  :,  mas  para  a  cataracta 
do  Voriíig,  uma  das  cem  maravilhas  do  inundo. 

1'artiiiios  de  liergen  a  cavallo,  mas  prestes  muda- 
mos de  lraiis])orto.  Em  Lyse,  bonito  logarejo  sito  á 
entrada  dos  golphos  Somnager  e  Bjuriic,  tomámos 
um  batel  (lue  nos  conduziu  em  quatro  horas  á  boca 
do  fiurd  de  Jliirdanger  que  tiiihainoa  de  seguir  em 
toda  a  sua  extensão.  Quando  ali  chegamos,  o  dia  es- 
lava a  findar;  saltamos  em  terra  para  passarmos  a 
noule  n^uiiia  cabana  de  pescadores  picturi'scaiiieiite 
assentada  lui  alio  (funi  [)eiicdo  de  i3  a  li  braças; 
no  outro  dia  emljaicaiulo  cedo  navegamos  poraquei- 
Iffivnl,  de  que  tanto  ouvira  lallar  em  Bergen,  eque 
muito  <;xcitára  a  minlia  ciiriosiilade.  Em  outras  mui- 
tas regiões  do  nosso  glolio  acliam-se  montanhas,  val- 
les,  chapadas  de  serras,  lagos,  catadupas  \  poréiu  u 
Noruega  é  a  iiiiíca  (pii-  olVcrece  aos  viajantes oa/ieíiii 
e  os/ii)C(/s. 

A  Noruega,  curiosa  metade  da  piMiiiisula  scandí- 
nava,  esteude-se  de  57"  '61'  di-  latitude  até  71'^'  e 
11'  entre  i  e  29"  de  loiígiludeorieiítal  ;  tem  de  nor- 
te a  sul  l,í)8t»  kiloinetroH  (;120  léguas  de  IS  aograu), 
too  Ivilomelros  de  largura  media  no  sul  e  de  100  ii 
ilOO  eiii  o  norte.  Os  IKifríiias,  formailos  dos  montes 
Kiiileii,  l)ovi>r  e  Sevory,  a  s<<paraiii  da  Suécia.  Es- 
ta corilillieira,  cujos  píncaros  niaiselevailos,  coberto» 
dc!  neves  que  iiuiiea  se  derretem,  passjini  de  2,000 
melros  (DIO  braças),  é  parallela  ao  mar  (ilaeial  emi 
mar  ilo  Norte,  nos  quaes  niergullia  quasi  ii  piqm'  a 
sua  vertiMile  oecídental,  ao  passo  que  a  orií-nt.d  re- 
b,uxa-sc  em  laileiras  succcssi\aii  para  o  lado  ila  Sue- 


398 


O  PANORA31A. 


cia,  do  golpho  tle  Bolhnia  c  do  mar  Báltico;  entre 
estas  duas  vertentes  se  estendem  vastos  platós  ou  cha- 
padas (]U0  se  denominam /iVWs  oujjeljs;  aliçumas  si- 
tuadas a  mil  metros  e  mais  acima  do  nível  do  mar 
tem  12  <!  18  milhas ;  dominadas  pelos  mais  altos  pi- 
cos do  systema  scandinavo  são  cobertas  de  lagos  e 
as  regam  numerosas  correntes  d'agua. 

De  todos  os  viajantes  6  mr.  Adalbert  de  Beau- 
mont  c|uem  melhor  explica  a  origem  dos  fiorcfs. — 
.1  Imaginc-sc  (diz)  oOO  léguas  de  serrayias  cobertas 
de  neve  no  espaço  de  oito  raezes,  e  depois  o  sol  que 
brilhando  de  súbito  não  cessa  de  apparecer  sobre  o 
horisontc  noute  o  dia,  sol  abrasador  e  aturado  a  lu- 
ctar  com  os  gelos  de  imi  inverno  interminável.  Fácil 
é  de  comprehender  quão  grandiosos  espectáculos  nas- 
cem d'este  combate.  Então  os  rios  represados  reco- 
bram a  sua  violência  ■,  quebram,  derrubam,  arrastam 
tudo,  e  formam  essas  cataractas  gigantes  de  que  ne- 
nhuma região  do  nuindo  appresenta  idéa.  Os  abis- 
mos e  algares  fundos,  onde  agora  se  perde  a  vista, 
entupem-se  então  de  agua  ;  os  rochedos  que  as  tão 
poderosas  forcas  da  mechanica  não  fariam  abalar, 
loda-os  a  agua  como  grãos  d'areia ;  e  os  vastos  sor- 
\edoiiros  que  se  poderia  presumir  abertos  pelas  con- 
Aulsòos  do  globo  escavou-os  a  agua,'  mais  poderosa 
<(ue  a  pólvora  e  o  aço,  porque  a  sua  força  é  a  cons- 
tância, e  a  constância  6  o  tempo  que  tudo  con- 
summa. 

"Assim  rasgados  nas  entranhas  por  essa  devasta- 
ção interior,  por  esses  rios  que  saídos  das  cimas  ge- 
ladas se  dirigem  todos  parallelamonte  ao  mar,  os 
alpes  scandinavos  dão  acccsso  ás  vagas  do  Oceano  fu- 
rioso que  os  minam  no  sentido  contrario. 

«Vê-se,  portanto,  de  um  lado  o  mar  açoutando 
sem  descanso  o  seu  adversário  inerte  e  avançando 
victorioso  ■,  do  outro,  as  cascatas,  producto  das  im- 
ujcnsas  accumulações  de  neve  do  inverno,  que  se 
despenham  dos  píncaros,  se  ajuntam  e  engrossam  nas 
chapadas,  formam  as  torrentes  que  escavam  os  val- 
les,  arrastam-uos  comsigo,  e  vão  reunir-se  carregadas 
de  despojos  ao  Oceano,  que  as  attrahe.  Assim  estes 
dous  inimigos,  luctando  pela  mesma  causa,  breve  se 
ligam  e  depois  invadem  todos  os  legares  chãos,  sul>- 
stittii'ni  os  valles  o  dão  origem  a  esses  corredores  es- 
treitos, essas  ruas  tortuosas  que  tornam  sem  igual 
esta  região. 

"  Estes  cannaes,  profundados  até  o  âmago  das  mais 
altas  montanhas  e  <pio  tem  por  origem  e  causa  as 
catadupas  e  o  mar,  tomam  o  nome  de  fwrd  ou  fjoríl. 

"De  todos  os  fiords  norueguezes,  ode  Christiania 
V  o  mais  largo,  o  de  Sogne  o  mais  comprido,  tendo 
para  cima  de  iiO  léguas,  e  o  llardanger-llord  o  mais 
formoso.  A  maior  parte  se  dividem  cm  muitos  ra- 
mnes,  e  á  proporção  que  por  elles  subimos,  as  suas 
bordas  vão  apparecendo  mais  escarpadas  c  picturos- 
eas ;  quasi  todos  terminam  n\uua  eataracta.  Abun- 
dam em  salmões,  pelo  que  ali  fazem  os  curiosos  da 
pesca  excursões  tão  interessantes  como  as  dos  artis- 
tas. Os  caçadores  matam  igualmente  muita  caça,  so- 
bre tudo  do  ar.  nas  costas  e  cumes  das  serras,  cujas 
fald;is  banham  as  aguas  dos  fiords.  Para  dar  idéa  da 
qviantidade  de  peixe  que  se  apanha,  citarei  um  fac- 
to. Air.  Lasseis,  de  Liverpool,  pescou  em  Boen,  no 
llardanger-fiord.  de  oO  de  junlio  a  1'J  de  jullio  de 
1841,  áltí  sidmòes,  pesando  todos  Í2,l  4o  libras  •,  o 
mais  pequ(>no  tinha  quatro  c  o  mais  volumoso  30 
libras.  •' 

^í  '»'///ifiiíír . ) 


ÓDIO  VELHO  NAO  CANÇA. 
RoMA?tCE  Histórico. 


CAPITULO  I. 

O  Filho  e  o  Pae. 

EUa  nascen  para  matar  d''encatitos 
Eu,  amando-a  em  vão,  para  morrer  d'amore». 


Shakspeare  —  Otkclh. 


Havia  dous  dias,  que  na  sala  d'arraas  dos  paços  de 
Coimbra  se  juntavam  em  grande  concurso  os  senho- 
res e  cavalleiros,  os  homens  de  religião  e  os  officiaes 
da  corte.  O  mez  de  março  do  anno  de  1211  estava 
a  concluir,  e  era  fácil  observar  que  o  motivo,  que 
chamava  tão  numerosa  companhia,  era  um  motivo 
triste.  Nos  pateos  o  officinas  do  castello  não  se  te- 
ciam cotas,  nem  se  lustravam  arnezes.  Os  alÊinge- 
nies  e  armeiros  não  temperavam  espadas,  nem  po- 
liam achas  d'armas.  De  vez  em  quando  o  tropel  das 
rondas  descendo  das  torres  e  das  muralhas  apenas 
interrompia  o  silencio  interior,  apesar  da  gente  reu- 
nida ;  como  só  o  trote  dos  cavallos,  em  que  checava 
á  corte  mais  um  rico  homem,  cortava  o  silencio  ex- 
terior. 

Eífectivamente  não  se  tratava  de  novas  guerras. 
O  estandarte  de  Sancho  I  não  se  desenrolava  outra 
vez  nos  campos  de  batalha.  Os  seus  cavalleiros,  que 
aos  três  e  aos  cinco,  se  mettiam  pelos  vãos  das  altas 
frestas,  olhando  impacientes  para  os  cabeços  alem  da 
ponte,  ou  inquietos  cravando  a  vista  n'unia  porta 
grossa  de  castanho  chapeado,  não  tinham  vindo  para 
resolver  uma  entrada  na  fronteira,  nem  para  tentar 
o  cerco  de  qualquer  das  fortalezas,  d'onde  a  bandeira 
árabe  se  hasteava  em  desafio  ao  estandarte  real.  A 
lança  do  rei  encostada  ás  paredes  do  vasto  aposento 
descauçava  para  sempre. 

Aquella  porta  de  castanho  da  sala  d*armas  abri.i 
para  o  recinto  interior,  aonde  eram  situados  os  quar- 
tos de  Sancho.  Por  ella  entrou  o  fdho  de  Aflbnso 
Henriques  na  primeira  tarde  de  marjo,  o  já  sabiam 
que  não  tornava  a  sair  senão  um  cadáver,  soccgando 
na  paz  eterna  do  tumulo  a  sua  alma  ao  lado  do  fun- 
dador da  monarchia,  das  luctas  e  combates  de  um 
reinado  trabalhoso. 

Junto  do  fosso  exterior  do  castello,  então  chama- 
do carc6i-a,  os  homens  d'armas  c  os  homens  de  pc 
da  bandeira  e  mercê  dos  cavalleiros,  entrelinhani-sc 
com  grosseiros  jogos,  e  brutas  porfias.  De  vei  em 
ijuando  os  alaridos,  as  risadas,  e  os  clamores  rom- 
piam do  meio  d'ellcs.  e  iam  so;ir  nas  s,ilas  do  paçn«. 
l'm  rumor  vago.  que  andava  no  fiovo.  dizia  que 
D.  Sancho  succumbia  á  antiga  e  dolorosa  moléstia  ; 
mas  não  se  cuidava  que  a  morte  caminhasse  tão  de- 
pressíi  como  a  tristeza  sincera  e  hvpocrita  inculca- 
va na  ci'>rle.  .\inda  para  fora  n.lo  tinha  transpirado 
a  noticia  de  que  cm  poucas  horas  Coimbra  com  lU 
gemidos  levanlailos  no  dobre  fúnebre  da  sua  catb«- 
dral  havia  de  annunciar  a  orphandade  ao  reino,  l' 
povo  segundo  o  costume  era  o  ultimo  a  salx;l-o. 

l>jus  cavalleiros,  um  quo  partia,  outro  qnc  che- 
gava ao  palácio,  cnizaram-sc  na  ]>onle  lov.idiça.  Por 
fortuna  não  existiam  entro  elle<  os  o<lioi  das  rixas 
de  familia. 

—  .1  Boas  tardes!  "  di«5cram  a  um  tempo,  colhen- 
do as  rcdcas  aos  cavallos. 

—  "O  infante?-'  perguntou  o  que  mu. 


o  PANORAMA. 


399 


—  nEl-rei?»  interrogou  o  de  fora. 

—  ii  O  infante  agora  sobe  aquclle  cabeijo.  Em  três 
credos  mais,  aqui  o  tendes  com  os  que  puderam  atu- 
rar a  carreira  do  seu  cavallo.  E  el-rei  ?  .  .  .  Ha  es- 
pirauças,  D.  Martim  Annes?" 

—  u  Nenhuma'.  Q.uando,  faz  hoje  quinze  dias  o 
vi,  disse  logo  :  Não,  este  não  torna  a  ser  o  homem, 
que  já  foi  I  1).  Moço  Ordonhes,  D.  Sancho  I  ouve 
as  euchadadas  do  coveiro.  " 

—  «  Pois  era  um  homem  '.  y> 

—  K  E  verdade.  " 

—  i<  Está  só  ?  Dosfallecido  ?  n 

—  u  Peior  do  que  só  ;  os  monges  não  lhe  largara 
a  cabeceira.  Glue  dòr  d'alma  I  Cada  terra  tirada  á 
herança  de  seus  filhos ;  cada  punhado  de  maravedis 
apanhado  das  arcas  do  thesouro,  dizem-lhe  que  o  la- 
va de  um  peccado  mortal.  E  el-rei,  quebrado  de 
corpo,  fraco  tle  animo,  ainda  lhes  dá  mais  do  que 
clles  pedem  !  .  .  .  O  infante  <|ue  se  apresse.  j> 

—  ií  Os  padres,  os  padres !  Em  nos  caindo  a  cabe- 
ça no  travesseiro,  fazem  de  nw  quanto  querem  !  .  .  . 
Ahi  vem  o  infante.  » 

Com  eíleito,  do  lado  da  ponte  do  INIondego,  vi- 
nha á  rédea  larga  um  tropel  de  cavalleiros,  galgan- 
<lo  a  encosta  direitos  ao  castello.  O  pendão  do  in- 
fante de  Portugal  esvoaçava  nas  mãos  do  Gomes 
Lourenço,  seu  collaço  e  alferes.  Defronte  do  alcaçar 
a  cavalgada  parou.  Seguiu-se  uma  pausa  de  minu- 
tos, em  que  se  escutava  só  o  respirar  cançado  dos 
homens  e  corseis.  Com  os  ginetes  áredoa,  os  serven- 
tes vestidos  de  saios  alvacentos  torciam  por  entre  os 
homens  d^armas,  cubertos  de  lorigas  (1)  de  couro 
escuro,  evilandt)  na  passagem  as  cotas  (2)  Iiordadas 
dos  pagens,  que  giravam  de  um  para  outro  lado  com 
a  petulância  dos  verdes  annos. 

Decorridos  instantes  saiu  do  terreiro  interior  um 
oflieial-raór,  atravessou  vagarosamente  o  pequeno  lar- 
go rasgado  diante  da  porta,  e  foi  inclinar-se  na  pre- 
sença do  infante.  Kra  Sueirn  llaymundo,  alferes  do 
rei  D.  Sancho.  Nos  olhos  do  guerrc^iio  velho,  filho 
da  creação  de  Afionso  Henriques,  borbulhavam  as 
lagrimas.  Assim  pagava  ao  amigo  da  infância,  ao 
«•ompanheiro  dos  trabalhos,  o  tributo  do  soldado. 
Hem  vergonha  chorava  diante  d(!  todos  os  primeiros 
prantos  talvez  da  sua  vida. 

O  infante,  (piasi  que  se  sentiu  or|)hão,  encaran- 
<lo-o.  Aperlaiidu-lbc  a  mão,  e  tão  baixo  que  mal  se 
percebia,  disse-lhe  ap(;nas  : 

—  "  IMeu  pae  !  \  n 

O  alferes  [kV,  a  vista  no  clião,  e  por  mais  esfor- 
ços, a  voz  não  se  lhe  soltava  da  garganta. 

D.  Aflbnso  recuou,  gemendo  n^uma  exclamação, 
que  nenhuma  ijillexão  é  capa/,  de  exprimir  : 

—  "  McMi  pae  !  " 

Era  o  grito  das  entranhas,  a  verdadeira  lii^r  da 
orpliandaile, 

<>  oiricial-uiúr  ciilcndeu,  c  pondo-lln!  a  mão  no 
braço,    murmurou  : 

—  "  Aiiidíi  não.  " 

S(Mn  ouvir  mais  nada,  o  |)iiucip(!  entrou  pi'oci[)i- 
tadamente  sc;;uido  dos  cavalleiros. 

Chegaram  á  sala  (rarnias.  N'esse  instante  abria- 
se  a  porta  úw  castanho  cli.ípcado,  e  um  monge  de 
alta  estatura  e  grave  aspeclo,  com  o  habito  da  or- 
dem d<' Cister,  adiantou-se  para  os  (pii;  estavam,  di- 
ziMido  : 


(1)  Hniii  raljridiilo  ilc  lorcK  do  rnuro  cni.  Km  a  arinu- 
(Inra  dctfiisivu  íIoh  Iidiiu-iih  tCnriniis. 

(2)  Vfslhitt-.  (1)1)1  o  lini/ài)  (fariiiiis  linnliulo  Ko1)re  t» 
peito,  mais  ciii  Id  <I<)  i(m'  as  v<st<'s  ailiiucs  dos  iiruutua  e 
passuvunlcs. 


—  íí  Reverendos  bispos,  venerável  mestre  do  Tem- 
plo, e  prior  do  Hospital,  ali  dentro  está  um  mori- 
bundo, que  deseja  reconciliar-se  com  Deus,  e  a  sua 
igreja  antes  de  comparecer  no  tribunal  da  consciên- 
cia. » 

O  monge  era  o  abbade  d^Alcobaça;  e  pronuncian- 
do estas  palavras,  fugiu-lhe  pelos  beiços  grossos  e  ver- 
melhos um  sorriso  equivoco,  sorriso  que  logo  mudou 
de  expressão  assim  que  deu  com  os  olhos  no  infan- 
te. Não  se  poude  conter  do  primeiro  sobresalto,  e 
deixou  que  os  observadores  conhecessem  que  lhe 
agradava  pouco  a  chegada  repentina  de  D.  .\ffonso. 
A  sombra  de  descontentamento,  que  passou  como 
um  relâmpago  pelo  seraphieo  semblante,  aonde  flo- 
reciam  rosadas  e  sadias  as  cores  da  saúde  e  da  força, 
em  vez  de  se  estampar  apallidez  dos  cilícios  e  jejuns 
foi  bastante,  apesar  de  rápida,  para  revelar  o  des- 
gosto e  o  receio  com  que  via  o  herdeiro  da  coroa. 

Entre  tanto,  soube  reprimir-se  depois  com  arte. 
Aproxiniando-se  de  D.  Affonso,  a  quem  não  escapa- 
va a  mudança  de  physionomia,  com  ar  magoado  ac- 
crescentou  : 

— 11  Bem  vindo,  illustre  infante  de  Portugal  1  A 
vossa  presença  socegará  a  inquietação  com  que  el-rei 
pedia  á  Virgem,  pelas  dores  da  Paixão  de  Chrislo, 
que  não  o  levasse  antes  de  vos  abraçar.  .  .  " 

—  «  E  por  isso  só  hontem  ó  que  me  levaram  aviso, 
santo  abbade  ? »  respondeu  o  príncipe. 

—  «Senhor  da  Maia,  atalhou  o  frade,  como  se  não 
ouvisse  a  pergunta  irónica,  D.  Suciro  Raymundo, 
ricos  homens  de  Douro  e  Minho,  D.  Sancho  quer 
dospedir-se  dos  seus  cavalleiros.  " 

E  acompanhado  do  infante,  dos  veneráveis  padres 
em  Christo,  e  dos  ricos  homens,  sumiu-se  pelo  cor- 
redor, em  quanto  atraz  dVllcs  a  porta  chapeada  se 
fechou,  e  os  pagens  voltavam  para  os  umbraes.  D. 
Aflonso  deixou-os   a  lodos  ir  adiante,   e  demorou-se 


alguns  momentos. 


(Contimia.) 


As  ABELU.1..S  E  AS  Colmeias.  (1). 

O. MODO  ordinário  de  crestar  as  colmeias  destr(5e  um 
grande  numero  de  abelhas,  e  por  isso  alguns  apia- 
rios  intelligenles  toem  estabelecido  outro  methodo 
de  exlrahir  o  mel  e  a  cera,  sem  prejuiso  do  insecto, 
<;m  maior  quantidade,  e  de  melhor  (jualidade. 

Este  methodo  consiste  ent  deixar  int.icta  a  pri- 
meira colmeia  :  logo  que  está  cheia  de  mel  e  de  ce- 
ra, o  que  acontece  no  mez  de  junho,  encosta-se-lhe 
outro  cortiço,  ou  culineia  vasia,  com  a  entrada  de- 
baixo junto  da  entrada  da  outra,  de  modo  que  as 
abelhas  achem  franca  passagem  de  uma  para  outra 
colmeia 

E  então  mister  conservar  uma  temperatura  uni- 
forme na  colmeia  vasia,  sem  diminuir  a  temperatu- 
ra da  colmeia  lialiitada  ,  a  vintilação,  n<'('essiria  pa- 
ia conseguir  este  fim,  oblem-se  por  meio  ile  um  tu- 
bo de  folha  de  Flandres  perfurado,  «pie  passe  desde  a 
tampa  até  a  abertura  do  fundo,  a  ipial  se  fechará 
mais  ou  m<Mios  com  unia  corrediça  da  mesma  folha, 
|iara  niodifi<'ar  a  elreulação  do  ar,  e  graduar  a  tem- 
peratura. O  grau  iPesta  temperatura  será  70"  no 
barómetro  ile  l'"alireiilieit,  ou  Í7"  lliMUmur,  porque 
é  a  temperatura  natural  de  uma  colmeia  no  princi- 

(1)  Vijii-se  liceroa  Au*  Aliellias  o  excellenie  iirtij;o  |iii- 
liiinidi)  II  pa^.  ■''-',">  do  .'!."  M)l.  dii  1."  serie  dii  l*u/m('«»i«, 
lio  i|tiid  esl.ii  liiilias  |iodeiii  servil'  do  coiitiiiiiai;."»)  e  iimi 
pleiíieiitu. 


400 


O  PANORA3IA. 


pio  lios  trabalhos  ^  mas  na  colmeia  cheia  é  necessá- 
ria uma  temperatura  de  90"  F.,  ou  de  26"  R.  para 
a  incubarão  da  rainha,  e  para  a  preservação  da  cria. 
Esta  colmeia  primitiva,  ou  paterfamilias,  é  pois  a 
residência  da  rainha,  e  o  viveiro  da  prole,  ao  mes- 
mo tempo  que  as  colmeias,  que  se  lhe  aggregam  ao 
lado,  apenas  são  armazéns  para  deposito  do  mel  su- 
perabundante, que  se  pôde  extrahir,  sem  deixar  as 
abelhas  privadas  do  alimento  para  o  inverno. 

GLuando  o  fhermometro  na  colmeia  ultimamente 
aggregada,  s(5l)o  a  90"  ou  100"  F.  2G"  ou  30"  R.,  é 
signal  evidente  de  haver-se  augmentado  a  familia, 
devendo  por  tanto  preparar-sc-lhe  uma  nova  habita- 
ção, o  que  facilmente  se  consegue,  collocando  outro 
cortifjo,  ou  colmeia  vasia  no  lado  opposto,  como  se 
disse  respectivamente  á  primeira.  Achando  entjo  as 
abelhas  uma  nova  casa,  vão  habital-a,  e  começam  lo- 
go os  seus  trabalhos. 

Para  se  evitar  o  methodo  destructivo  da  cresta, 
póde-se  extrahir  o  mel,  tomando  um  folie,  ou  ven- 
tilador, e  introduzindo  por  um  orifício  praticado  na 
tampa  o  ar  exterior  da  athmospliera,  antes  que  se 
recolham  as  abelhas  á  tarde,  as  quaes,  sentindo  um 
frio,  que  não  poderiam  supportar  durante  a  noute, 
se  retiram  todas  para  a  colmeia  intermédia  mais 
abrigada  ■■,  o  colmeieiro  então  fecha  a  communicação 
entre  as  duas  colmeias,  e  leva  a  que  foi  desampara- 
da pelas  abelhas  por  causa  do  frio,  cheia  de  favos,  e 
sem  perecer  uma  só  abelha.  Limpa  a  colmeia  de  to- 
dos os  favos,  repõe-sc  no  mesmo  logar,  como  se  fez 
da  primeira  vez,  e  voltando  as  industriosas  abelhas 
no  dia  seguinte,  ainda  que  deplorando  o  roubo,  con- 
tinuarão a  trabalhar,  inípcllidas  por  um  instincto, 
a  que  não  podem  resistir.  Seguindo-se  este  processo, 
sempre  os  enxames  se  conservam  no  colmeial. 

O  mel,  extraliido  segundo  este  systema  de  mane- 
jo apiario,  á  mui  superior  em  qualidade,  e  dobrado 
em  quantidade  do  que  se  obtém  por  qualquer  outro 
methodo  ;  exhibindo  a  alvura  do  assucar  refinado, 
assim  o  mel,  como  a  cera.  A  causa  da  qualidade  su- 
perior d"cste  mel  é  devida  á  igualdade  do  tempera- 
tura com  que  se  fúrraa,  e  preserva  o  armazém  ;  e 
talvez,  com  especialidade,  á  carência  de  matérias 
animacs  e  vegetaes,  que  as  abelhas  são  obrigadas  a 
recolher  para  a  incubação,  e  creação  da  prole,  o  que 
apenas  praticam  na  colmeia,  que  serve  de  viveiro. 
A  causa  da  maior  quantidade  é  proveniente  da  ex- 
cellente  disposição  dos  armazéns,  exclusivamente  es- 
tabelecidos para  o  abastecimento,  sem  paralisar  a  in- 
dustria das  abelhas,  que  recolherão  mel  e  cera,  em 
quanto  houverem  fructos  e  llorcs  nos  arredores. 


—  Não  ames  o  somno  para  que  não  empobreças : 
abre  teus  olhos,  e  te  fartarás  de  pão. 

SalomXo  —  Pkovebbios  . 


Itcmcdio  para  disiruir  a  irara.  —  O  espirito  de 
terel)enthina  é  o  melhor  remédio  contra  o  bichinho, 
que  vulgarmente  se  denomina  traça ;  este  mesmo 
espirito  serve  também  para  destruir  todos  os  outros 
insectos.  Se  collocarmos  um  vaso  no  qual  se  encerre 
un\  pouco  d'esto  espirito  em  uma  guarda-roupa  ou 
gaveta  que  contenha  panuos  ou  artigos  de  lã.  pellcs 
etc.  ,  este  destruirá  imniediatamente  qualquer  larva 
de  insecto. 


—  O  que  escarnece  do  polirc.  alTroiita  o  Crcador ; 
o  que  se  alegra  da  calamidade  não  ficará  innoccnte. 


—  O  preverso  do  círaçno  nunca  achará  o  Ijem  :    e 
o  que  revolve  com  sua  lingua  virá  a  cair  no  mal. 


No  próximo  mez  de  janeiro  de  1853  co- 
meçará a  publicar-se  o  10."  volume  do  Pa- 
norama. Annunciando-o,  o  Editor  aproveita  a 
occasião  para  agradecer  a  protecção  que  o  pu- 
blico illustrado  lhe  tem  dispensado,  e  a  sym- 
pathia  com  que  foi  recebido  geralmente  o  pen- 
samento de  contintiar  um  semanário  tão  ilius- 
tre  nos  fastos  da  litteratura  pátria.  Dificulda- 
des inevitáveis  na  organisaçDo  de  uma  empre- 
sa desta  ordem,  que,  como  todos  sabem,  e 
inteiramenle  dislincla  das  anteriores,  obstaram 
a  que  a  nova  serie  do  Panorama  correspon- 
desse inteiramente  aos  seus  desejos.  O  pa- 
pel, que  nos  fornecem  as  nossas  fabricas,  e 
que  ainda  não  reúne  as  condições  necessárias 
para  itma  edição  nítida,  faz  principalmente 
com  (juc  as  exccllcntes  gravuras  que  temos 
dado,  todas  devidas  ao  delicado  buril  do  sr. 
Coelho,  não  sobresaiam  tanto  quanto  era  para 
desejar.  Esperámos  obter  melhor  papel,  e  con- 
tinuaremos solicites  a  empregar  todos  os  meios 
para  que  o  Panorama  venha  a  ser  também 
um  specimen  dos  progressos  da  arte  t^pogra- 
phica  entre  nós.  Em  quanto  á  redacção  o  Edi- 
tor não  duvida  apresentar  os  números  publi- 
cados como  uma  prova  insuspeita  de  que  nã<> 
sabe  faltar,  nem  faltará  jamais  ás  condiçõe» 
exaradas  no  seu  programma. 

Assigna-se  para  este  semanário :  em  Lis- 
boa, no  armazém  de  livros  do  Editor,  rua 
do  Ouro,  n."'  227  e  228,  e  nas  lojas  dos 
sr.^'  Lavado,  rua  Augusta,  n.°  8,  Bravo,  rua 
do  Ouro,  ii.°  212,  Zeferino,  rua  dos  Capel- 
listas,  etc. 

São  correspondentes  do  Panorama  no  Por- 
to, o  sr.  A.  R.  da  Cruz  Coutinho :  em  Coim- 
bra, o  sr.  A.  II.  Dardalhon :  cm  Braga,  o 
sr.  Freitas  Guimarães ;  em  Santarém,  o  sr. 
José  Firmino  d  Azevedo  Pereira  :  em  Setúbal, 
o  sr.  Manoel  José  Ferreira ;  na  Ilha  de  São 
Miguel,  o  sr.  M.  C.  d  Albergaria  e  Vallc ;  c 
na  Ilha  da  Madeira,  o  sr.  A.  J.  de  Araújo. 

Preços:  —  Por  anuo  ou  o2  n.''  1^300  rs. 
Por  semestre  ou  2(5  n.*"  700  rs.  Numero 
a\ulso  30  rs. 

Os  sr.'*  que  desejarem  subscrever  para  o 
anno  de  lSo3  queiram  declaral-o  quanto  an- 
tes, em  Lisboa,  aos  deslribuidores.  ou  nos  lu- 
gares acima  citados,  e  nas  proviucias  aos  cor- 
respondentes, ou  por  carta  franca  de  porte. 
dirigida  ao  Edilor.  e  acompanhada  de  uma 
ordem  da  respe(.t;>a  imporlancia. 


51 


o  PANORAMA. 


401 


VISTA  INTERIOR  DA  PRISÃO  D£  TOLEDO. 


Cdukia.  o  anuo  1()14.  N'umH  poljrc  casa  de  Tole- 
do, cuj;i  única  niobilia  consistia  (•ni  mu  leilo,  algu- 
mas cadeiras,  uni  chapéu  de  plumas,  uma  espada  e 
uma  pistola  penduradas  na  parede,  eslava  um  sujei- 
to de  leia  catadura,  sentado  ao  pé  de  uma  velha  me- 
sa cuberta  de  carias  e  de  livros.  Ksle  sujeito  era  U. 
Miguel  Cervantes,  enl.Ho  comniissario  de  viveres  do 
exercito  de  Filippe  Hl,  enqirego  (|ue  obtivera  por 
inlervenijão  du  seu  protector  o  conde  de  Lemos,  a 
i|ueni  unieanienlí!  devia  não  ler  já  morrido  de  fome. 

Mas  o  auclor  do  I).  (-luixole,  pensando  agora  só- 
incnli!  no  sem  livro,  considerava-se  o  mais  feliz  de 
todos  os  homens.  K  <|ue  acabava  de  receber  cinco 
traducíjêes  em  varias  lingnas  da  Kuropa  ,  e  sabo- 
reava trinta  carias  em  ipnr  os  mais  illuslreseseripto- 
res  da  AUemanha,  da  llalia  e  da  França  o  coUoea- 
vain  a  par  de  llonu^ro,  de  Virgilio  e  d(!  Ovidio. 

Es(pieecndo-su  ale  de  (|ue  estava  a  tiritar  de  frio,  e 
lie  ((ue  nem  sequer  tinha  almoçado,  end)Uçou-se  ufa- 
no na  sua  capa,  um  pouco  amoldada.  .  .  de  boracos, 
poisou  o  braço  aleijado  na  vellia  durindana  de  Le- 
paufo,  e  |)oz-se  a  medir  o  aposento  com  unui  arro- 
gância tal  corno  se  estivesse  já  no  cume  do  Parnaso. 

J)'ali  a  pouco  entrou  uma  mulher,  formosa  ainda, 
apesar  da  tristeza  i|ne  lhe  annuviava  o  senil)lant<', 
(t  (|ue  s(í  fazia  prlncipalnuMite  notar  pelo  seu  lindo 
eabello  negro  ondi^ado,  pelo  colar  ile  pérolas  (pie  lhe 
ornava  o  |)escoço,  e  pelo  vestido  di;  lã,  i'iireil;ido  de 
selim,  (pie  trazia. 

—  iiUlhii,  Caliiarina,  aipii  está  a  nossa  gloriai" 
exclamou  o  piuMa,  aprcaenlando  a  sua  esposa  (pois 
era  cila)  cartas  e  livros. 

—  i.  A  nossa  gloria  .' »  respondeu  1'atliarina.  des- 
viando Vi  olhos  arrasados  de  lagrimas:  i.  a  nossa  glo- 
ria u(|ui  t'a  apresento  .  .  .   do  avesso.  " 

l'i  entregou  ao  marido  três  nova»  carias.  A  pri- 
meira era  do  seu  editor  de  Madrid,  conuuunicando- 
]h(í  que  ningueni  (jueria  comprar  o  1).  (-luixolc,  e 
podilldo-lhc  o  einboltasse  da  ipiantia  de  'iiOOt)  rcale» 
'pie  lh(!  empriísláru. 

Voi..    1.  —  :{.■'  ShKii.. 


—  u  Cega  c  ingrata  pátria!"  disse  Cervantes,  ati- 
rando-se  prostrado  para  cima  de  unia  cadeira.  "Tra- 
duzido, admirado  em  toda  a  Europa  ,  desconhecido, 
ludibriado  no  meu  paiz  !  A((ui  está  como  me  pagam 
o  sangue  que  derramei  em  dez  campos  de  batalha, 
e  o  captiveiro  de  seis  annos,  que  soHVi  cm  terra  de 
mouros.  " 

Na  segunda  carta  prevcnia-o  o  conde  de  Lemos, 
de  que  os  seus  inimigos  o  accusavaiii  de  conciissiona- 
rio,  o  que  por  pouco  estivera  para  ser  demittido  do 
empregíi  qui?  exercia. 

—  li  É  outro  golpe  do  meu  zoilo  Avellancda  I  •• 
exclamou  o  poeta,  (•ncolhendo  os  hombros.  o  abrin- 
do a  terceira  carta. 

J'-sta  er.i  do  proprietário  da  casa,  intimando-o  pa- 
ra que  pagasse  a  renda,  ou  saísse  do  prédio. 

— "  I'or  estas  e  outras  <•  ([iic  eu  venho  com  as 
mãos  abanando,"  disso  (^alharina,  corando  de  ver- 
gonha. .4  O  tendeiro,  como  está  prevenido,  não  me 
qu(!r  vender  nada  a  credito.  Tens  pois,  ó  grande  ho- 
mem,"  accrescentou  l'orct>jaiido  por  sorrir,  .ide  con- 
lenlar-t(!  para  o  almoço  com  este  bocado  de  pão.  •• 

K  (pu-  importava  isso  ao  soldado  do  Lepaulo,  ao 
auilor  do  1).  liuixote?  O  que  a  elle  o  imngiu  era  o 
csipieeimenlo  em  (|ue  tinham  o  seu  priniiu'  (farte; 
nem  curava  agora  senão  no  meio  de  o  lazer  conhe- 
cido. 

—  ■•  Lma  idía  !  "  exclamou  de  repinle,  dejHiis  de 
eineo  minutos  de  rcllexâo.  .  .  «^  liei  de  obrigara  lies- 
panha  e  o  próprio  rei  a  inleressar-se  pelo  cmtilleiy 
í/it  Mtmvha,  •• 

Su.i  mulher  olhou  es[iant.ida  para  elle  sem  o  (><>- 
der  eoniprehender.  ('ervantes  abrai;ou-a  n  iiimi  es- 
pécie de  deiirio,  t  sentou  se  u  trabalhar  iiiendo  uo 
mesmo  lenijio  no  seu  pedaço  de  pão. 

Dons  dias  e  duas  noules  não  cr:;ueu  a  peiína  do 
papel,  excepto  noa  breve»  inlerMillos  em  (|ue  se  le- 
vantava par»  rir  ás  bandcir.is  despregadas,  ou  paru 
pular  de  alegri;i,  eonu>  se  tivesse  dcseuberto  um  Ih''- 
soiiro. 

Dk/umiiiio  is,  I8j-. 


402 


O  PANORA3IA. 


D'ahi  a  três  semanas  publicava-se  em  Madrid  um 
folheto  anonymo  intitulado  o  Buscapé,  e  quarenta 
p;oitohoreisdfpoÍ5tinham-se  vendido  tresentos  exem- 
plares do  D.  Quixote. 

Como  se  operara  este  milagre  ?  O  conde  de  Le- 
mos, entrando  severo  e  triste  em  casa  do  seu  prote- 
gido, no'lo  vae  communicar. 

Cervantes,  fatigado  de  trabalhar,  estava  na  cama. 
Sua  mulher,  largando  a  guitarra,  Icvantou-se  assim 
que  viu  o  fidalgo. 

—  "  Fugi !  ^^  disso  cste,  offerecendo  a  bolsa  ao  es- 
criplor,  "fugi  immediatamente,  antes  que  os  algua- 
zis  vos  venham  prender.  " 

— "  Prender-nos  !  51  exclamou  Catharina,  assus- 
tada. 

—  «Sim.  Publicou-se  em  Madrid  um  folheto  que 
acaba  de  vos  perder,  demonstrando  que  o  D.  Qui- 
xote é  uma  satyra  pungente,  cm  que,  debaixo  do 
nome  de  heroes  imaginários,  são  fustigados  o  rei  de 
Hespanha,  c  os  primeiros  personagens  da  corte. 

—  "Ah  !  pois  o  tal  folheto  fez  bulha?"  perguntou 
o  poeta,  pensativo  e  irónico. 

—  "Fez  imia  biiUia  infernal." 

—  "E  então  toniprnm  o  livro  para  verificar  a  mal- 
dade ?. " 

—  «Não  ha  duvida  \  por  isso  é  que  foi  ordenada 
a  vossa  prisão .  » 

—  "Maravilhosamente!"  disse  Cervantes:,  «até 
que  afinal  consegui  o  que  desejava  !  Quando  o  D. 
Quixote  era  apenas  uma  boa  obra,  nem  lhe  pega- 
vam ;  agora  que  se  tornou  cm  uma  acção  má,  todos 
o  querem  ler  !  Falta  a  palma  do  martjrio  ao  auctor 
para  chegar  ao  apogeu  da  gloria.  Podem  vir  pois 
prender-me.  Fui  cu  que  fiz  o  JBuscapé ! 

—  «  Vós  I  "  disse  o  conde,  compungido  do  deses- 
pero do  seu  amigo.  «  Então  aqucUe  folheto  é  apenas 
nm  artificio,  e  eu  posso  salvar-vos,  confessando  tudo 
ao  rei  !  " 

—  «  De  maneira  nenhuma  !  "  bradou  o  poeta. 
"Isso  equivaleria  a  lançar  110  olvido  o  meu  livro  ! 
Deixae-nos  a  ambos  a  fama,  pelo  escândalo  e  pela 
perseguição.  Se  o  crime  tem  mais  valia  que  o  ta- 
lento,  a  culpa  não  é  minha,  nem  vossa  tão  pouco.  " 

O  conde  admirou  aquella  sulJime  resolução,  cpro- 
inetteu  guardar  silencio. 

IS 'essa  mesma  nouto  Cervantes  foi  conduzido  á 
l)risão  de  Toledo. 

Mas  a  cegueira  publica  o  o  rancor  de  odientos  ri- 
vacs  puderam  mais  que  o  seu  génio.  Após  alguns 
dias  de  curiosidade,  o  D.  Quixote  foi  esquecido  por 
innoflensivo  ^  e  Avellaneda  descarregou-lhe  o  ultimo 
golpe,  pela  audaciosa  publicação  de  uma  segunda 
parte  do  Cavallciro  da  Mancha,  rapsódia  grosseira 
e  monótona,  na  qual  Cervantes  era  apodado  de  ve- 
lho maneia,  pohrcião,  tabiKjenIo,  iagarcUiiro  c  ca- 
/ifHiiiiWoí-,  com  applauso  do  todos  os  mestres  da 
'■ritica  d'aquella  epoclia  ! 

O  ccho  d  "estes  insultos  chegou  ao  cárcere  do  poe- 
*''  i  pegou  da  pcnna,  v  debaixo  das  loljrcgas  aboba- 
das, que  a  nossa  estampa  representa,  á  triste  clari- 
dade de  muitos  dias  de  Miflrimonto,  e  ao  talincardos 
ferrolhos  cpie  o  separavam  do  mundo,  Ccr\ antes  es- 
creveu a  \erdadcira  continuação  do  D.  Quixote, 
essa  segunda  parle  ainda  mais  admirável  que  a  pri- 
meira. 

Foi  então  visital-o  o  conde  de  Lemos,  q>ie  havia 
ideado  um  plano  exccHcnle  de  desforra  para  o  seu 
amigo. 

Atacado  de  uma  teimosa  ophthalmia,  e  condem- 
nado  a  um  mez  de  escuridão,  Filippe  III  pedira 
aquelle  fidalgo  que  lhe  procurasse  um  bom  leitor 
para  o  distrabir,   e  mostrara  desejos  de  ouvir  por  es- 


ta occasião  o  D.  Quixote  de  Avellaneda,  que  ainda 
não  conhecia. 

Lma  manhã  pois  o  escolhido  do  conde  de  Lemos, 
conduzido  por  eíle,  começou  a  sua  tarefa  ameia  cla- 
ridade de  uma  luz  fraca,  no  escuro  aposento  do  neto 
de  Carlos  V,  do  filho  de  Filippe  II,  d'es>S€  rei  que 
nunca  tinha  rido  era  sua  vida. 

A  primeira  sessão  correu  fria,  apesar  da  profunda 
eloquência  do  leitor,  que  accentuava  e  variava  ain- 
tonação,  como  se  estivesse  improvisando.  O  rei  en- 
tretanto declarou-lhe  que  ficara  satisfeito. 

No  dia  seguinte  ja  se  interessou  mais.  O  leitor 
estava  tão  inspirado,  que  Filippe  III  julgava  assis- 
tir a  uma  comedia.  Via  e  ouvia  D.  Quixote,  San- 
cho, todos  03  personagens,  como  se  estivessem  e  fal- 
lassera  no  régio  aposento.  Dignou-se  sorrir,  e  disse  : 
Muito  bera. 

A  terceira  sessão  essa  acabou  com  a  indifferença. 
O  rei  encantado  esqueceu  as  horas,  e  riu  a  bom 
rir.  O  leitor  cheio  de  enthusiasmo  redobrou  de  gra- 
ça, e  Filippe  III,  soltando  em  fim  uma  estrepitosa 
gargalhada,  exclamou  como  se  fora  um  simples  mor- 
tal. "  E  delicioso  I  E  um  primor  d'arte  I  " 

Esta  noticia  fez  grande  bulha  no  palácio  e  em 
Madrid.  «O  rei  riu!  o  rei  riu  ás  gargalhadas '  — 
Foi  o  D.  Quixote  de  Avellaneda  que  fez  este  mila- 
gre !  Honra  e  gloria  ao  Avellaneda  I  » 

E  este  começou  de  gabar-se  do  seu  triumpho  na 
corte  e  na  cidade.  Via-se  em  perspectiva  felicitado 
pelo  rei  no  primeiro  beija-mão,  elevado  a  todas  as 
dignidades  da  gloria  e  do  génio.  O  pobre  Cervantes 
esse,  coitado  !  não  havia  insultos  e  epigrammas  que 
lhe  não  dirigissem. 

O  único  pesar  de  Avellaneda  era  não  poder  co- 
nhecer e  abraçar  o  leitor  que  tanto  fizera  sobresaíra 
sua  obra.  .  .  ílas  este,  dirigido  pelo  conde  de  Le- 
mos, esquivava-se  a  todas  as  ovações  com  incorrupti- 
vel  modéstia. 

As  sessões  continuaram,  cada  vez  mais  longas  e 
mais  animadas.  O  rei  não  tinha  ouvidos  senão  para 
o  D.  Quixote  e  para  o  seu  interprete.  Elsquecia  as 
Hespanhas  c  as  índias,  os  seus  avós,  a  etiqueta,  os 
seus  aborrecimentos  e  desgostos,  pelas  façanhas  do 
bom  cavalleiro,  pelos  provérbios  de  Sancho,  pelas 
aventuras  de  Dulcinéa,  e  pelo  governo  de  Barata- 
ria. .  .  Eram  accessos  de  hilaridade  contínuos,  pas- 
sagens relidas,  bons  ditos  repetidos  c  applicados  aos 
cortezâos  pelo  augusto  enfermo.  Em  fim.  Sua  Ma- 
gestade  era  agora  tão  feliz  como  o  mais  pobre  dos 
seus  súbditos ! 

O  resultado  foi  abreviar-se  a  cura  do  rei.  A  sua 
reentrada  no  palácio  e  o  beija-mão  çeral  annuncia- 
ram-se  uma  semana  mais  cedo.  Madrid  mostrou  a 
sua  alegria  com  grandes  festejos,  e  A\ellancda  em- 
penhou-se  para  comprar  os  esplendidos  fatos  com  que 
pretendia  aprescntir-se  a  Filippe  III 

Chegado  o  grande  dia,  uma  immensa  multidão 
enchia  as  salas  do  palácio.  Conduzido  |>elo  duque  de 
Lerma,  primeiro  ministro,  vestido  como  um  grande 
senhor,  e  com  um  niagnilicvi  exemplar  do  sou  D. 
Qui.xote,  Avellaneda  ajocliia  diante  de  Sua  Mages- 
tade,  e  lhe  oflerece  o  li\  ro  que  teve  a  gloria  de 
divertir. 

Dizei   antes  de  me  curar."   res|>ondeu  o  rei. 

.i  pedi-nic  pois  o  que  quiíerdcs.  " 

A\ellaneda  julgou  a  propósito  pedir  o  logar  de 
enervantes,  com  um  gr.ui  su|H'rior.  e  soldo  dobrado. 
Filippe  III  conccdcu-lh"o  immedialauu-nte.  Eis  que 
apparece  o  condo  de  Lemos,  condurin<Io  um  homem 
poíiremenle  vestido,  a  cujo  apparccimcnto  rompe- 
ram brados  de  indignação. 
— ..  Cervantes  aqui  I  •' 


o  PANORA3IA. 


403 


—  «Sim,  Cervantes"  redarguiu  o  conde,  «o  au- 
ctor  e  o  leitor  do  verdadeiro  D.  GLuixote,  d'aquelle 
que  tanto  vos  divertiu  por  espaço  de  vinte  dias,  c 
ao  qual  o  sr.  Avellancda  é  completamente  estranho. 
Perdoe-me  Vossa  Magestade  ter  soltado  sob  palavra 
uni  dos  vossos  presos,  aj)roveitando  esta  occasião  de 
revelar-vos  um  talento  calumniado.  " 

Ao  mesmo  tempo  Cervantes  entrega  ao  rei  o  ma- 
uuscripto  que  lhe  lera  no  seu  aposento,  e  que  Filip- 
pe  III  reconhece  por  certas  passagens,  que  ainda 
agora  o  fazem  rir. 

Rir  assim,  era  perdoar.  Cervantes  confessou  então 
que  fora  elle  próprio  que  escrevera  o  folheio  intitu- 
do  Buscapé,  declarou  que  no  D.  Quixote  não  ha- 
via nada  de  oflensivo ;  e  finalmente  que  o  seu  crime 
único  era  ter  sido  denunciado  pelo  sr.  Avellaneda, 
(•  seus  amigos. 

—  "Muito  bem  !  »  disse  o  rei,  abrindo  finalmente 
os  olhos,  li  como  me  restituís  duas  vezes  avista,  dizei 
<i  que  pretendeis  de  mira." 

—  .lA  impressão  do  meu  livro  á custa  doestado,» 
respondeu  modestamente  o  poeta,  «com  as  notas  e 
os  commentarios  dos  estrangeiros  que  souberem  co- 
nhecêl-o  antes  que  os  meus  compatriotas. " 

— « Eu  vol-o  prometto, "  disse  Filippe,  dando- 
Ihe  a  mão  a  beijar.  «  Ao  senhor  Avellaneda,  a  esse 
que  roubou  a  vossa  obra  .  .  .  pertence-lhe  o  vosso  lo- 
gar  ...  na  prisão  do  'J"oledo.  " 

Assim  foi  vingado  Cervantes,  e  punido  o  seu  pla- 
giário. Mas,  infelizmente  o  rei  esqueceu-se  da  sua 
promessa,  e  em  quanto  Avellaneda  vivia  rico  c  fe- 
liz, o  homem  do  génio  recaía  no  olvido  c  na  misé- 
ria. E  só  século  e  meio  depois  é  que  a  llespanha 
pagou  a  divida  de  Filippe  III,  publicando  uma  edi- 
ção magnifica  ((^m  quatro  volumes  de  4."  com  es- 
tampa») do  D.  Gluixote  de  Miguel  de  Cervantes. 


ÓDIO  VELHO  NÃO  CANÇA. 

RoMANCfi  Histórico. 


CAPITULO  1. 

O   Pilho    t   o   l'ar. 

Kila  iiiiíteu  paia  matar  ironcaiito» 
lOii,  aiiiuiiilu-a  riii  vãu,  |>ara  morrer  <l^amurt's. 

SlIAKSfUAUí:  —  Ollii/lo. 

O  iNr.iNTE  pediu  iinimii  (resignação  ulJeus.  Aquel- 
le  golpe  ha  niezes  (|ue  o  esperava,  porque  a  sepidlu- 
ra  de  I).  Sancln)  não  se  tinha  cavado  de  repinte. 
Hous  aniius  gastou  a  morte  Irazendo-o  peja  mão,  até 
lh<!  nietter  os  pés  dentro  do  tumulo,  aberto  para  o 
receber.  Agora  é  que  a  campa,  pizando-lhií  o  peito, 
rangia  descendo,  c  sunbcanilu  quasi  as  deslallccidas 
|)uisações  do  peito.  Saliendo  que  os  seus  (lias  exilavam 
contados,  mesmo  com  a  força  (ralnia  lU-  lun  caracter 
robusto,  o  moiiari  ha  não  sentiu  a  mortalha  sobre  o 
corpo  vivo  sem  liorror.  JOste  martírio  (|UiMmavaliie 
na  raiz  ot  desejos  e  as  llbis(")es  •,  mobtrava-lh(í  sempre 
o  sopuichro,  e  de  dentro  (TcUe  ouvia  a  voz  (|Ue  o 
ehainuva,  mais  próximo  a  cada  hora,  seiítiiiíbi  por 
cima  do  uoraç.ln  o  si'ipr()  da  morte  apagando  a  luz  da 
esperança,  em  (pianlo  o  rosto  recuava  do  Iraxesseiro 
couio  »e  já  fosse  a  terra  fria  da  sepultura  !   Tm  pi^  a 


escapar  do  mundo,  aonde  o  que  fica  é  saudade  •,  ou- 
tro sem  remédio  a  despenhar-se  pela  cova  '. 

D.  Affonso  conhecia  esta  situação  cruel,  mas  en- 
ganava-se,  ou  cuidava  enganar-se,  suppondo  ainda 
affastado  o  momento  da  separação.  Nos  últimos  tem- 
pos, porém,  a  mcjestia  correu  ;  e  as  horas  foram  mi- 
nutos. O  amor  costuma  temperar  assim  o  espirito ; 
illude-o  de  propósito  até  esperar  o  amortecido  lume 
da  vida  no  objecto  d'elle.  O  ultimo  desengano  por 
isso  é  que  doe  mais.  A  crise  natural  das  grandes  af- 
flicções  de\eu  o  infante  o  alento,  com  que  se  arras- 
tou até  ao  leito  de  D.  Sancho. 

O  infante,  tendo-se  armado  do  valor,  que  n^estas 
crises  presta  o  próprio  extremo,  decidiu-se  a  vêr  pe- 
los seus  oliios  um  espectáculo,  que  só  imaginado  lhe 
cortava  a  alma.  Deram  de  dentro  por  fim  o  aviso, 
e  escutando-o  todas  as  suas  duvidas  se  desvaneceram . 
O  abbade  tomou-o  pelo  braço,  atravessaram  duas  ou 
três  salas  quasi  escuras  d'abobadas  achatadas,  mette- 
ram  por  um  corredor  mais  sombrio  ainda,  c  para- 
ram diante  do  reposteiro  depanno  d"arraz  (acitara), 
que  estava  corrido  diante  da  porta.  O  monge  bateu 
de  leve,  o  reposteiro  franziu-se  d'alto  abaixo,  e  am- 
bos entraram.  Ali,  no  interior  da  vasta  quadra,  com 
os  muros  desornados  das  preciosas  tapeçarias  do  Orien- 
te que  d'antes  os  enfeitavam,  é  que  D.  Sancho  se 
preparava  para  a  jornada  da  eternidade. 

No  recanto  da  camará.  Juliano,  o  notário  da  cú- 
ria, diante  de  uma  mesa  coberta  de  escuro,  escrevia 
as  ultimas  confidencias  de  el-rei  a  seu  filho.  D.San- 
cho, receando  que  a  morto  corresse  mais  do  que  a 
saudade  do  infante,  dicliava  no  momento  supremo  ao 
notário  e  ao  bispo  de  Coimbra  uma  carta,  na  qual, 
cntrí!  palavras  de  pae  e  supplicas  de  homem,  mais 
de  uma  vez  apparecia  a  vontade  robusta  do  vencedor 
de  Silves. 

Defronte  do  leito,  em  cima  do  altar,  eslava  um 
devoto  crucifixo,  reliquia  trazida  da  Palestina  pelo 
conde  Henrique.  O  sol  poente,  entrando  pela  estrei- 
ta fresta  do  aposento,  banhava  de  luz  a  imagem,  que, 
despregada  (.los  braços,  parecia  V(jar  para  o  pcccador. 
No  lado  opposto,  na  confusão  das  roupas,  eslirava-se 
na  ])arede  a  sombra  do  monarcha,  desenliada  no  fun- 
do. A  figura  de  Juliano,  com  a  face  recostada  no  pu- 
nho, alv(;jando-l!ie  sobre  a  garnacha  preta  (espécie 
de  bécca)  i  as  madeixas  brancas,  e  o  austero  semblan- 
te do  bispo  de  Coimbra,  com  a  mão  esquerda  no  es- 
paldar da  cadeira  do  olficial  palatino  e  os  dedos  da 
direita  passados  na  liarba,  destacavam  pela  melan- 
cholica  posição  do  resto  dos  grupos,  (jue  os  rodea- 
vam. 

O  capello  brunido,  a  cota  de  malhas  e  o  montan- 
te de  Sancho  pendiam  dos  muros.  Despindo  as  ar- 
mas e  as  galas  reaes,  o  monarcha  guardou  unicamen- 
te um  habito  para  se  amortalhar.  As  faces  encova- 
das, os  cabellos  e  a  barlia  em  desalinho,  e  os  olhos 
mortaes  indicavam  (pie  o  corpo  extenuado,  já  não 
podia  emn  os  padecimenl(is.  Mas  dentro  velava  ain- 
da a  grandi'  alma  do  guerreiro  da  idade  media,  re- 
signada com  a  vontade  de  l)eu>,  despegada  das  viii- 
dadis  humanas,  e  apertando  a  cruz  sobre  <•  cilicio  d.i 
p('nileiu'ia. 

A  morte,  (pu'  iriste  século  assenta  á  cabeceira  o 
horror  da  duvida  e  o  remorMi  tardio,  n\npi('lle  li- 
nha iij  consii|aç<'ies  da  expiação.  O  alllu-to  rccliiiava- 
se  nu  rega(;o  da  fé  ;  e  a  religião,  adoçando-lhe  a  es- 
piiiija  do  ti'l,  com  a  vela  da  espiiançH  alIunii.tN.i  lho 
li  lerrivel   transe. 

Se  fosse  hoje,  os  (pie  \issiin  o  monanh.i  (HirUl- 
;;iicz  na  humildade  de  um  habito,  enriípieccudo  •» 
mosteiro»  e  as  igrejas  com  n  hertin(;a  de  seus  filho», 
haviam   de  exclamar  : — "A  mololiu  kvccou    o  br^- 


404 


O  PANORAMA. 


ço,  jnas  Roma  matou  o  espirito,  rei  D.  Sancho.  De 
pois  de  tantos  annos  de  resistência,   tu,   tjue  defen- 
deste a  coroa  das  invasões   de  Innocencio  III,   casti-/ 
gando  a  temeridade  do  sacerdócio,  que  se  dizia  feito 
para  devorar  a  grossura  da  terra,  decepado  pelos  ter-  j 
rores  da  eternidade,  sentiste  em  fim  o  joelho  do  cie-  | 
ro  sobre  o  peito,    e  com  a  fronte   aos  pés  do  estrado  j 
poiílificio,  renegaste  o  documento  da  tua  victoria  na  j 
hora  final  !"  De  feito,  Sanchol,  diante  da  morte,  bu- 
milhou-se   a  Roma,    abnegando  os  actos  de  resisten-  ! 
tia  muitas  vezes  feroz,  com  que  reprimiu  as  invasões 
de   um   sacerdócio   mais  ambicioso   e  audaz,    do  que 
devoto  e  exemplar. 

O  filho  de  ÁíTonso  Henriques,    herdando  o  cora- 
i;So  esforçado  de  seu  pae,  não  foi  dotado  com  talen- 
tos militares  iguaes.    Nas  batalhas   e  combates  paga- 
va com  a  sua  pessoa,   mais  do  que  o  dever  de  capi- 
tão, era  soldado.  Em  Silves,  dizem-nos  os  documen-  ! 
tos,   entrava  na  mina  com  os  engenheiros,   e  mcltia  i 
o  alvião   ás  rochas   como  um  simples  gastador.    Mas 
na   historia  do   seu  reinado  debalde   se   buscarão  as  1 
concessões  atrevidas,   c  os  planos   bem  urdidos,   com 
que   o  vencedor  de  Santarém  e  Lisboa  soube  arran- 
car aos  chefes  agarenos  as  jóias  mais  preciosas  da  con- 
quista. 

O  chanceller  Juliano,  ministro  estimado  de  Af- 
fonso  I,  foi  sempre  o  conselheiro  do  seu  successor,  c 
apesar  de  velho,  tinha  o  animo  bastante  moço  ain- 
da, para  ser  a  alma  que  omonarcha  portuguez  oppoz 
<  om  arrojo  aos  desenhos  de  predominio  e  usurpação 
temporal  do  irritável  e  cubiçoso  Innocencio  III.  As 
cousas  chegaram  a  ponto,  que  o  papa,  não  podendo 
já  conter  a  sua  ira,  desce  da  cadeira  de  S.  l'edro,  e 


não  duvida  medir  a  sua  cholera  com  a  firmeza  do 
chanceller,  que  fulmina  directamente,  mandando  em 
uma  bulia  aos  commissarios  apostólicos,  que  a  façam 
lèr  ao  rei  pela  pessoa, 'que  lh'a  entregar,  porque  sa- 
be que  as  suas  palavras,  ou  não  lhe  são  repelidas,  ou 
suo  desfiguradas  por  alguém.  Este  alguém,  indigita- 
do como  falsario  das  letras  de  Roma,  era  o  notário 
da  cúria,  nome  com  que  n'aquelle  tempo  se  desi- 
gnava o  cargo  de  chanceller,   occupado  por  Juliano. 

A  morte  de  Sancho  foi  o  resultado  de  uma  enfer- 
midade lenta,  que  o  levou  pela  mão  até  o  prostrar 
de  todo  no  leito  da  dòr.  No  fim,  desfallecido  de  cor- 
po pelos  padecimentos,  descorado  de  animo  pelos  ter- 
rores da  eternidade,  habilmente  incutidos,  não  ad- 
mira que  o  soberano  procurasse  a  paz  da  consciência 
na  submissão  ao  poder  espiritual,  quando  o  orgulho 
dos  maiores  philosophos  modernos  se  dobrou,  abra- 
çando na  agonia  a  cruzque  tinham  escarnecido.  Tal- 
vez não  fosse  unicamente  mesmo  o  desejo  exclusivo 
da  salvação  o  que  levou  um  rei  soldado,  sem  cultu- 
ra, a  beijar  o  pó  diante  do  estrado  dopontiCce.  N"a- 
quelle  século  de  armas  e  de  lucta,  o  braço  da  igreja 
era  o  mais  poderoso,  e  a  sua  influencia  moral  a  me- 
nos contestada.  Sancho  I  curvando-se,  quando  a  fra- 
queza era  desculpável,  podia  ter  o  pensamento  de 
implorar  da  igreja  não  só  o  perdão  das  suas  culpas, 
mas  a  paz  do  throno  e  o  silencio  daj  discórdias  para 
o  seu  successor. 

Depois  doesta  explicação  necessária  entremos  com 
o  infante  para  assistirmos  aos  últimos  momentos  do 
vencedor  de  Silves.  Talvez  do  homem  que  foi  nos 
appareça  ainda  a  somljra  I 

(('oniinúa.) 


SANTA   ISABEL  — RAINHA  DE  PORTUGA!. 

A   MR-rfos.i   rainha  D.  Isabel,   que  hoje  o  mundo     nem  o  mei  nem  o  dia  çin  que  se  verificira  este  suc- 

naholico  venera  nos  altares,  nasceu  no  anno de  ld71,  j  cesso,  o  que  aliás  pouco  jmj>orta. 

cm  Saragoça,  como  dizem  muitos  cscriplorcs  e  chro-  I       Foran>   sc<is   pai-s   1).  Tcln)  III,   o  grande  (X  da 

nistas,  ou  em  Barcelona,  como  pretende  demonstrar     corAa   de   Aragão)   e  a  rainha  D.  ^  lolanto,   sua  sc- 

1).  José  Barliosa   no  catalogo   das  rainhas  de  l'ortu-  i  gunda  mulher. 

gal ;    uns  e  outros,   porém,   não  puderam  averiguar  I      O  nascimento   de  Isal>ol   foi  precovlido   e  acompa- 


o  PANORA3IA. 


405 


nhado  de  «uccessos  felizes  e  até  certo  ponto  tão  ex- 
traordinários, fjue  a  fé  d'aquelles  tempos  os  lançou  á 
conta  de  milagres  ■,  não  sendo  o  menos  importante 
terminar  por  esta  occasião  a  grave  desintelligencia 
<im  que  viviam  seus  respeitáveis  pae  e  a\ô,  e  que  ás 
circumst anciãs  de  que  apparecia  revestida  se  julgava 
com  fundamento  ser  interminável. 

Desde  os  mais  tenros  annos  revelou  Isabel  os  su- 
blimes quilates  do  seu  generoso  coração,  aquelle  en- 
traiihavel  amor  dos  pobres,  que  a  acompanhou  e  glo- 
rificou depois  no  llirono,  e  aquella  serenidade  e  igual- 
dade de  animo  que  nunca  desmentiu  em  sua  larga 
yida. 

Já  então  todo  o  tempo  que  liie  sobrava  das  suas 
devoções,  c  das  leituras  religiosas,  que  frequentava, 
com  particular  vocação,  e  que  preferia  aos  romances 
de  cavallaria,  na  voga  então,  aos  saraus  da  corte 
de  seu  pae,  e  aos  folguedos  próprios  dos  verdes  an- 
nos, emprega-o  disveludamonte  em  exercícios  de  cha- 
ridade. 

A  fama  de  tão  singulares  prendas  e  virtudes  der- 
ramou-se  pela  líuropa,  e  muitos  príncipes  solicita- 
ram a  sua  mão.  Entro  os  que  forniularam  claramen- 
te estas  pretensões  figuravam  Filippc  de  França, 
Duarte,  príncipe  de  Galles,  e  l'alcologo,  imperador 
de  Constiintinopla,  que  a  pedia  para  seu  íillio  An- 
dronico. 

A  Providencia,  porém,  parecia  ter  reservado  esta 
suprema  felicidade  para  o  salão  D.  Diniz,  o  nosso 
famoso  r(;i  lavrador. 

João  Velho,  Vasco  Pires,  e  João  Martins,  todos 
do  conselho  d^el-rei,  e  pessoas  de  muita  auctoridado 
<;  distincção,  furam  os  encarregados  de  manifestar  a 
D.  Pedro  as  intenções  do  monarclia  portuguez.  A 
reputação  de  prudcnda  e  saljcdoria  (|ue  este  soubera 
grangoiír  tornava  a  sua  ailiança  mui  desejada  :  como 
era  pois  de  suppor  a  mão  de  Isabel  foi-lhe  immedía- 
ta  o  gostosamente  concedida,  caos  embaixadores  por- 
tuguez coube  a  honra  de  a  conduzir  a  Portugal,  ce- 
lebrando-se  as  bodas,  com  extraordinária  pompa,  cm 
Trancoso,  onde  a  esperava  I).  Diniz,  a  '2i  de  junho 
de  128a. 

A  magestade,  que  para  tantos  tem  sido  perdição, 
foi  para  Isabel  chrysol  com  que  se  apura r.im  em  mais 
subidos  quilates  as  suas  eminenles  virtudes. 

Rodeada  de  uma  córle  esplendida,  na  primavera 
lia  vida,  ainda  formosa,  d'essa  formosura  que  pede 
adorações,  a  modesta  Isaind  só  mostrava  ser  raiidia 
na  magnaniiuidadi'  do  coração. 

(Coniinúa.) 


Aliium  Italo-Poutdoue/.. 

No  ruiNcino  do  seguiiilo  anuo  piibiicar-sc-ha  um 
exccllenlo  livriniio  com  o  lílulo  <|u<'  j)ri'C(ile  estas 
linhas:,  ó  uma  eoHecção  selecla  <li'  primorosas  poesias 
escrij)la«  no  opulento  «^  harmonioM)  idioma  do  'Passo 
|)(do  nosso  amigo  e  tlislinclissiino  poeta  e  ()rofessor 
de  declamação  o  sr.  A.  (iaHeano  llavara  ;  muitas 
<1  elhis  são  acompanhadas  <l,i  Ir.ichicção  porlugueza 
diívida  .1  algumas  das  nossas  sumniidadcs  lil  liTarias. 
A  lingua  ilaliana,  que  oiilr\iiM  foi  fiimiliar  aos  nos- 
sos escriplorcs,  e  piiniipalinenle  aos  nossos  poetas, 
lloje  é  por  inf(liii(la<le  qiiusi  dcsconhi'ci(la  entre  nós. 
O  sr.  Uavara  veui  dispcriar  as  agradaviis  tradições 
dos  melhores  li'm[ios  chi  lilleratura  nacional,  o  por- 
ventura o  seu  livro  é  o  núncio  de  futuras  e  mais 
aperlailiis  relações  entro  os  idiomas  qu<í  o  Dante  e  o 
<'amõ(!s  immorlaliaaram  nos  seus  cantos.  I''ste  não  é 
o  menor  serviço  <[W.  temos  de  agra<l<'cer  ao  sr.  lla- 


vara. Em  quanto  ao  merecimento  essencial  do  livro, 
o  leitor  poderá  avalial-o  pelo  artigo  seguinte,  que 
cxtrahimos,  com  especial  permissão,  do  raasnifico 
prologo,  de  que  vae  precedido  o  interessante  livro 
do  sr.  Ravara,  escripto  em  cstjlo  florido  e  eloquen- 
te, por  um  dos  mais  illustres  representantes  da  nossa 
moderna  litteratura. 

Recomm.endar,  pois  o  Álbum  Halo-Poriugu€z, 
quando  o  juiz,  sem  contestação,  mais  competente 
que  temos  em  matérias  de  poesia,  assevera  ser  obra 
de  relevante  merecimento,  e  muito  digna  de  se  lêr 
e  estudar  até,  seria,  sobre  inqualificável  pretensão, 
fazer  injuria  ao  bom  senso  do  publico  illustrado.  E 
nós  esperámos  que  este  corresponda  aos  desejos  do 
illustre  vate  italiano,  tornando-lhe  menos  amargas 
as  saudades  da  pátria,  e  dando  assim,  ao  mesmo 
tempo,   uma  prova  de  que  sabe  apreciar  o  talento. 

F.  P. 


A  riBLicAçÃo  de  ura  livro  é  sempre  em  nossa  terra 
uma  novidade  ^  a  de  um  livro  de  poesia  duas  novi- 
dades ;  a  de  um  livro  de  poesia  italiana,  e  excellen- 
te  poesia,  três  novidades,  ou  antes  um  acontecimen- 
to sem  precedente.  O  Alhuin  do  sr.  Ravara,  de  que 
eu  me  ufano  de  ser  apresentador  ao  nosso  publico 
illustrado,  não  deve  ser  de  modo  .ilgum  confundido 
com  os  outros  indivíduos  da  família  mais  numerosa 
e  mais  fatal,  que  a  de  Agamemnon,  a  família  dos 
álbuns. 

Os  outros,  que  de  toda  parte  nos  perseguem,  nos 
toucadores,  nas  jardineiras  das  salas,  nos  indispensá- 
veis das  mamans  officiosas,  no  bolso  dos  servidores 
de  damas  ^  que  nos  assaltam  no  meio  dos  trabalhos 
mais  síírios,  pedindo-nos  a  contribuição  forçada  de 
um  louvor  insípido,  ou  n'um  passeio  ocioso,  impon- 
do-nos  a  mais  afUictiva,  a  mais  inglória  c  a  mais 
inútil  de  todas  as  tarefas ;  os  outros,  escândalo  dos 
poetas,  e  descrédito  dos  prosadores,  mereceriam  per- 
feitamente o  seu  titulo  de  livro  em  branco,  se  o  lá- 
pis, o  pincel  e  a  penna  se  não  tivessem  encarregado 
de  o  desmentir  materialmente. 

Não  assim  este  <jiio  ides  folhear  talvez  por  desen- 
fado e  distracção,  ao  prinei[)io,  mas  que  logo  vos 
convidará  a  seguíl-o  da  primeira  linha  até  á  altura, 
e  depois  de  líila  ell.i^  a  recomeçal-o. 

O  .ílbuiií  Jltih)-I'oiítKjtui  é  uma  obra  do  coração 
para  o  coração.  Dizer  ()\u!  é  poesia  não  é  dar  idéa 
d'<'lle ;  é  o  sentimento  melancliolico,  são  os  aflcctos 
mais  delicados,  revestidos  da  mais  luxuosa  forma ly- 
rioa.  E  imjMJSsivel  não  amar  a  alma  que  vem  do 
fundo  do  labyrintho  das  suas  penas  reaes  ou  imagi- 
narias, mas  ainda  ipiando  imaginarias,  semi>re  reaes 
para  quem  as  ceva,  laiiçar-se,  cuberta  do  seu  luto, 
no  seio  ás  almas  compassivas  que  não  conhece,  mui- 
tas das  quaes  estão  ainda  jior  nascer,  e,  com  a  coi\- 

I  fiança  de  irmã  para  com  irmãs,  as  inunda,  iis  repas- 
sa das  suas  lagrimas,    e,  logo  (jue  um  suspiro  allieio 

I  Ihií  esvoaçou  sobre  ellas,   gosu  toda  a  \oluptuosidado 
do  martírio. 

Tal  é  o  caracter  iPeste  opuscido,  o  o  do  auctor, 
|>orque  aqui  o  auclor  c  o  livro  são  um  só.  Os  seus 
versos  não  são  invi'nlados  por  elle,  são  por  ello  vivi- 
dos ;  concebe  o  mundo  assim-,  não  ori^  cm  prazeres 
ipie  não  conlenliam  em  gérmen  desenganos;  anteví 
no  baile  o  cansaço,  na  infâmia  as  cãs,  na  llõr  o  pO, 
na  formosura  o  esqueleto,  (iue  de  malogros  de  de- 
sejos, (pic-  de  mentiras  da  for! una  não  foi  necessário 
haver  passado,  para  <|ue  aos  trinta  annos  se  cliegnssn 
con»  um  soberbo  lalenti>,  e  uma  1_\  ra  magnillca  anão 
cantar  si'nào  magoas,  n  iiAo  acreditar  senão  na  dõr  ! 


406 


O  PA1VORA3IA. 


Mas  esses  segredos  são  os  sens  ^    não  pensemos  em 
sondal-os. 

Glue  importa  uma  bioçraphia?  O  que  importa,  o 
que  interessa  é  o  estado  de  um  espirito  e  de  um  co- 
ração. Saudades  da  pátria,  sobre  tudo  quando  a  pá- 
tria <■  a  Itália;  saudades  de  mãe,  sobre  tudoquando 
o  amor  filial  arde  era  poeta  ;  saudades  dos  silios  em 
quo  voou   a  infância;   saudades  também,   por  certo, 


de  algum  objecto  doestes  que  se  adoram  com  a  alma 
de  joelhos  e  sem  ousar  proferir-lhe  o  nome.  Sauda- 
des, sempre  saudades ;  eb,  debaixo  de  mil  formas, 
o  assumpto  percnne  do  seu  canto,  como  amelancho- 
lia  e  a  doçura  constituem,  por  entre  as  amenidades 
da  noute,  todas  as  meditações  religiosas  e  namoradas 
do  rouxinol. 

A.  F.  DE  Castilho. 


NOBREZA  DE  PORTUGAL  EM  1736. 


Reis  avz  COTS- 

TiTrLos. 

APPEU.IOOS   DAS   CASAS 

CED£RAM     os 

TITCLABES. 

TITCLOS. 

DiacEs. 

]). 

João  III. 

Aveiro.  —  (extincto  no  reinado  de  D.  José)  duques  de  Tor- 
res  Novas,   por   D.  Filippe  I,    marquezes   de  Montemor, 
pelo  mesmo,  condes  de  Penella,  pelo  mesmo. 

Lancastros. 

D. 

João  IV. 

Cadaval.  —  Marquezes  de  Ferreira,  por  D.  Manoel,  condes 
de  Tentuçal,  pelo  mesmo. 

Alvares  Pereira  de  Me!lo. 

D. 

João  V. 

Lafões. — Marquezes  de  Arronches,   por  mercê  de  D.  Pe- 
dro II.  condes  de  Miranda,  por  D.  Filippe  II. 

MABarEZES. 

Braganças. 

D. 

João  V. 

Abrantes.  —  Condes  de  Villa  Xova  de  Portimão,  marquezes 
de  Fontes,  por  D.  Aflbnso  VI,  (extiucto). 

Sãs  Menezes. 

D. 

Pedro  II. 

Alegrete .  —  Eram  condes  de  Tarouca ,  condes  deVillar-maior, 
por  D.  João  IV,  (extincto). 

TeUes  Silvas. 

D. 

João  V. 

Angeja. — Condes  de  Villa  Verde,   por  D.  João  IV,   (ex- 
tincto). 

Noronhas. 

1). 

João  IV. 

Cascaes. — Condes  de   Monsanto,   por   D.  Affonso  V,    (ex- 
tincto). 
Fronteira.  —  Condes  da  Torre,  por  D.  Filippe  III. 

Castros. 

D. 

Pedro  U. 

Mascarenhas. 

D. 

João  V. 

Gouveia. — Condes  de  Santa  Cruz,   por  D.  Filippe  I,    (ex- 
tincto) . 

Mascarenhas. 

U. 

Aílbnso  VI. 

Marialva.  —  Condes  de  Cantanhede,  por  D.  Affonso  V,  (ex- 
tincto). 
Minas. — Condes  do  Prado,  por  D.  João  III. 

Menezes. 

D. 

Pedro  II. 

Sousas. 

D. 

João  IV. 

Niza.  —  Condes  da  Vidigueira,  por  D.  Manoel. 

Gamas. 

D. 

Pedro  n. 

Távora.  —  Condes  de   São   João,   por  D.  Filippe  III,   (ex- 
tincto no  reinado  de  D.  José). 

Tavoras. 

1). 

João  "\  . 

Valença.  —  Condes  de  Vimioso,  por  D.  Manoel. 

CoXDE*. 

Portuçal  e  Castro. 

1). 

João  V. 

Alva.  —  (O  actual,  filho  do  marquei  de  Santa  Iria,  c  da  ca- 
sa Monteiro  Paim). 

Ataides. 

D. 

Pedro  II. 

Alvor.  —  (extincto). 

Tavoras. 

D. 

Filippe  II. 

Arcos.  ,— 

Noronha?. 

D. 

Pedro  11. 

Assumar.  —  Marquezes  d"Alorna. 

Almeida». 

D. 

Filippe  I. 

.\tulaia.  —  Depois  marquezes  de  Tancos. 

.^Ianoei^. 

D. 

Affonso  V . 

Atouguia.  —  (extincto). 

Ataides. 

D. 

Filippe  ni. 

Aveiras.  —  (Marquezes   de  Vagos,    alliança    com    os   Noro- 
nha s). 

Telles  Silva. 

D. 

Affonso  VI. 

Avintes.  — Marquezes  e  condes  de  I^avradio. 

Almeidas. 

o  PA1NORA3IA. 


4o: 


I 


Ikstbucção    PoriLAR. 

I. 

GliEM,  percorrendo  os  monumentos  escriptos  dequa- 

bi  todos  os  povos  modernos  da  Europa,  comparar  os 
sons  como  elles  verdadeiramente  são  articulados,  com 
a  sua  representação  pelos  signaes  graphicos,  mal  pen- 
sará, que  a  escripta  tem  por  fim  significar  rigorosa- 
mente os  diíTerentes  sons  de  que  constam  as  pala- 
vras, e  de  que  se  compõem  os  idiomas.  E  para  nós 
matéria  quasi  de  fé,  se  bem  que  somente  conjectu- 
ral, queaescriptura  primitiva  devia  representar  uni- 
camente os  sons  que  entravam  nas  palavras;  posto  que 
a  verdadeira  pronuncia  das  linguas  orientaes  não  te- 
nha podido  até  hoje  ser  verificada  por  antiquários 
e  pliilologos,  tudo  leva  a  crer  que  no  principio  hou- 
ve um  caracter  phonico  distincto,  para  representar 
cada  som  fundamental. 

Muitas  letras  do  alphabeto  grego,  por  exemplo, 
que  nós  hoje,  na  nossa  ignorância  da  linguagem  at- 
tica,  confundimos  no  mesmo  som,  o  0  e  T,  que  nós 
pronunciamos  indistinctaniente  como  t,  o  "  e  O, 
a  que  damos  coUoctivamente  a  pronuncia  do  o,  é 
claro  que  serviam  na  orthographia  grega  a  distin- 
guir sons  differeiíles,  que  nós  hoje  não  podemos  dis- 
criminar, e  que  todavia  não  soavam  do  mesmo  mo- 
do aos  ouvidos  delicados  —  terdes  et  riliyiosae  aures 
do  cultíssimo  povo  d'Athenas. 

Herdeiros  na  linguagem  de  litteraturas  mortas  c 
.idullcradas  pelo  Ijarbarismo  da  meia  idade,  copiá- 
mos para  as  palavras  corrompid.is  dos  idiomas  que 
hoje  falíamos  na  Europa,  uma  orthographia,  que  em 
muitos  pontos  se  torna  alwurda  á  forca  de  ser  escru- 
pulosa. Na  reconslrucção  clássica  das  linguas  moder- 
nas, c  princij)almente  nas  que  chamam  iico-ronianas, 
ou  nas  do  meio-ilia  da  Europa,  esqueccmo-nos  de 
'jue  á  ortliographia  andava  ligada,  como  j)arte  essen- 
cial, a  orlhoópia  c   a  prosódia  dos  idiomas  clássicos. 

Cousa  notável,  é  desde  o  renascimento  das  letras,  é 
desde  o  tempo  em  que  mais  escrupulosamenlf;  nus 
afadigamos  a  cojjiar  do  antigo,  <jue  a  nossa  ortlio- 
graphia é  mais  absurda,  mais  disparatada,  niaiscou- 
tradictoria,  á  for(;a  de  ser  mais  correcta,  maisiiolida, 
mais  cortezã   e  mais  clássica. 

Nas  origens  da  língua  europi'a  não  foi  ao  casto 
idioma  de  Iloiacio  e  de  Virgilio,  (jue  os  nossos  avoen- 
gos  foram  bclicr  os  elementos  do  nosso  fallar  moder- 
no :,  ])rovavelmente,  quando  as  linguas  neo-romanas 
(•ome<;avam  de  projiagar-se  na  Europa  meridional, 
lorauí  as  iiivasu(;s  dos  nossos  antigos  dominadores, 
(juem  forçou  os  nossos  antepassados  a  a<'ceilari.'ni  em 
parle  a  lingua  d 'estranhos,  presente  infausto,  tpicsi- 
gnilica  sempre  a  ruina  (l'uni  povo,  c.  o  sacrilício  da 
sua  nacionalidade. 

Na  primeira  elaboração  dos  idionnis  europeus,  é 
provável,  ó  qnasi  certo,  (|u<!  foram  o  latim  rústico, 
o  latim  do  povo,  e  piin('i()Mlmi  iite  os  dialectos  pro- 
vinciai's,  (|ue  evidentcmiMile  os  havia  em  grande  nu- 
mero pelas  varias  regines  do  niuiiilo  romano,  as  fon- 
tes d'ou(le  jorriíram  om  priniilivos  c.iutlais  da  nos- 
sa linguag<'m  niiKhfrna.  Não  lui  aoprinci|ilo  a  ninsa 
grcrco-romana,  (|uc  na  decadência,  na  ridna  do  im- 
pério despiu  as  suas  vestes,  o  se  despojou  dos  seus 
attribuliis  para  enri([U(ícer  (•  adornar  com  elles  a  mu- 
sa lias  lilliTaliiriis  primilivas  dos  [jovos  chrislãos  na 
1'luropa. 

Não  lui  sobre  a  castiça  (•  opulcnla  lingniigcm  de 
V  irgiliii  !■  de  'ribullo,  (pic  se  calcaram  os  rlemeulos 
das  noY.is  linguas  barbaras,  com  cpie  mis  lanio  hoje 
nos  v.MMgluriamoH.  O  hilim  (faiiuellas  epochas,  cor- 
rompido,   e  iiH^icliiiJo  lie  barliarismos  pela  sua  união 


adulterina  com  as  linguagens  do  norte,  mal  podia 
conservar  a  pronuncia  correcta,  elegante  e  harmo- 
niosa, que  não  se  coadunava  com  a  laringe  grossei- 
ra e  com  a  intonação  barbara  das  hostes  septentrio- 
naes. 

Palavras  latinas,  copiámol-as  é  verdade  para  os 
idiomas  romano-gothicos,  mas  copiámol-as  desfigura- 
das na  pronuncia,  c  escrevemol-as  então  como  soa- 
vam a  ouvidos  pouco  delicados,  omittindo  letras  inú- 
teis, e  seguindo  em  tudo  a  sirnplicidade  das  regras 
de  uma  primeira  construcção.  E  por  isso,  que  a  or- 
thographia portugueza  dos  primitivos  tempos,  é  sem 
duvida,  posto  que  imperfeita,  muito  mais  racional, 
e  musicalmente  mais  correcta,  que  a  dos  tempos  ci- 
vilisados.  Muito  tempo  andaram,  como  todos  sabem, 
em  quasi  total  esquecimento  as  genuínas  leiras  clás- 
sicas, só  desenterradas  do  pó  em  que  jaziam  quasi 
em  fins  da  meia  idade.  Latim  que  então  se  escrevia 
e  deletreava,  sabe  Dens  a  custo  de  quantos  sacrifí- 
cios para  a  boa  grammalica,  e  de  quantas  offensas 
ás  austeras  musas  romanas,  era  latim  de  frades  ou 
de  legistas,  que  pouco  iniluxo  podiam  ter  no  aper- 
feiçoamento das  linguas  ouropêas.  Veiu  a  renascen- 
ça, e  conheceu-se,  que,  com  as  linguagens  barbari- 
sadas  e  incompletas  como  estavam,  pequeno  vôo  po- 
deriam tomar  as  litteraturas  modernas.  Era  chegada 
a  vez  de  educar  era  exercícios  viris  os  idiomas,  que 
ale  então  haviam  crescido  nos  incunabulos  da  in- 
fância. 

Os  primeiros  que  tentaram  crear  na  Europa  lit- 
teraturas com  sabor  e  gosto  clássico,  reconheceram, 
que  a  lingua  dos  trovadores  c  menestréis,  não  podia 
attrever-se  ás  empresas  gigantes  da  imitação  dos 
grandes  modelos  antigos.  Os  idiomas  primitivos 
eram  como  palhetas,  em  «[UC  havia  cores  vivas, 
mas  grosseiras,  lom  que  esboçar  os  quadros,  por  as- 
sim dizer  de  género,  as  satvras,  asfal)ulas,  os  contos, 
os  romances,  a  xacara,  as  baladas,  e  todos  os  mais 
géneros  poéticos  em  (jue  se  copiam  as  sccnas  familia- 
res. 1'ara  quadros  históricos,  para  a  tragedia,  para  a 
e|)opéa,  para  a  alta  lyrica,  a  lingua  era  deficiente, 
e  urgia  procurar  em  fontes  alheias  os  elementos  da 
nova  maneira  de  fallar. 

Todas  as  riquezas  c  ponqias,  todas  as  superlluida- 
dcs  oratórias  e  poéticas  da  antiguidade  clássica  esta- 
vam patentes  e  coidieeidas  aos  modernos  cultores  da 
lilloratura  clássica.  \  irgilio,  cpie  s_\  nd)olisava  aepo- 
péa  romana,  ipu'  era  um  modelo  obrigado  de  todos 
os  épicos  modernos,  nllerecia-lhes,  a  par  da  invenção 
eda  fabula,  um  Ihesouro  inexgotavel  de  estalo  e  de 
linguagem.  Era  rasoavel,  <pie  para  enriquecer  <• 
adornar  as  linguas  neo-romanas,  filhas,  ainda  qut! 
bastardas  e  ingratas,  da  lingua  do  Lacio,  se  fossem 
pedir  as  alfaias  e  as  jóias  á  opulenta  mãe,  de  quem 
haviam  lierdado  os  seus  prinu'iros  haveres.  O  latim 
entrou  pela  segunda  vez  nas  linguagens  modernas, 
não  imposto  pelo  direito  de  coiii|UÍsla,  senão  invo- 
cado pelos  a|)iTfeiçoadores  das  litteraturas  meridio- 
naes.  E  cPeutão  que  data  a  segunda  camada  de  pa- 
lavras latinas  no  nosso  iilioma  |iatrio ;  i'  desde  então 
(pie  nós  vi'^nios  o  notável  phenomenu  de  «pparecer  a 
misma  iih^a  reiíresentaila  \wr  duas  palavras,  ambas 
ellas  similhanles,  and)as  ellas  originalmente  latinas; 
uma,  |iorém,  cíurompida  e  contemporânea  <los  pri- 
nu'iros  lineamentos  da  lingua  ;  aoulra,  genuinamen- 
te clássica  i^  sem  ilillerença  alguma  orlhographiia 
em  relação  á  palavra  romaiui. 

Da  palavra  latina  fiicliihis  fez-se  pehi  corrupç.u), 
Ml  primiMra  elaboração  da  lingua  porlugue».a,  ./li/ít;»». 
IMas  a  palavra  romana  lã  a|ii>an'te  depois  no  remo- 
delamenlo  eullo  da  linguagem,  aporluguciada  nu 
|)alavra  JUvIUw^   lioj.>   nacionidisadu  nos  nosstw  lexi- 


408 


O  PANORAMA. 


COS.  Posição,  derivada,  cora  a  corrupção  indispensá- 
vel da  desinência,  da  palavra  latina  posiiio,  só  deu 
entrada  no  idioma  poituguez,  com  a  segunda  inva- 
são, ou  com  a  invasão  litteraria  e  culta  da  latinida- 
de  nas  leiras  pátrias,  Foúura  foi  o  termo  que,  cor- 
rompido do  latim  vulgar,  entrou  nos  primeiros  es- 
boços da  nossa  linguagem  nacional.  O  mesmo  se  po- 
de dizer  áe  feito,  palavra  corrompida,  e  fado  pro- 
miscuamente  latina  i  auto  da  idade  primitiva  da  lín- 
gua, c  acio  de  sua  idade  philosophica,  mctaphysica, 
raciocinadora  e  litteraria. 

A  existência  das  duas  invasões  romanas  a  modifi- 
car o  elemento  celta,  púnico  ou  árabe,  que  forma- 
ram, porventura,  o  esqueleto,  já  hoje  quasi  desfeito, 
da  nossa  antiga  lingua  indígena,  o  facto  da  deriva- 
ção barbara  e  da  appropriação  litteraria  dos  termos 
e  dos  modos  de  dizer  romanos,  levain-nos  a  coniir- 
inar  o  que  dissemos,  de  que  nas  idades  primevas  da  nos- 
sa litteratura,  a  orlliographia  teve  de  ser  mais  sin- 
gela, mais  plionica,  mais  consonante  á  prosódia  e  á 
ortlioépia  nacional,  do  que  nos  tempos  cm  que  tra- 
támos de  estabelecer  filiações  theoricas,  e  confrontes 
philologicos  do  idioma  latino  á  lingua  matriz,  de  cu- 
jos despojos  se  enriqueceram  as  linguas  neo-romanas. 
Se  os  primeiros  tro\'adores  da  idade  heróica  da  rao- 
narchia  souberam  traduzir  nos  caracteres  graphicos 
da  epocha  as  suas  composições,  se  Gonçalo  Ilermi- 
gues  e  os  seus  confrades  litt  erários  do  nosso  alvore- 
cer poético,  souberam  escrever,  não  se  prenderam  de 
certo  com  os  escrúpulos  de  uma  rigorosa  etymologia, 
e  não  respeitaram  nos  seus  códices  os  direitos  do  y 
grego,  nem  as  prerogalivas  iraperiaes  da  orthogra- 
pliia  romana. 

J;  M.  Latino  Coelho. 


As    HONKAS    DEVEM    SER   CONFERIDAS    A 
aVEM    AS    MERECER. 

K  necessário  ter  respeito  aos  merecimentos  de  ca- 
da um,  porque  se  não  lc\ein  os  favores  por  respei- 
tos. Desgraçada  foi  sempre  a  republica  onde  se  al- 
cança a  pretensão  sem  merecimento.  Os  mesmos  mé- 
ritos hão  de  ser  o  tribunal  aonde  se  ha  de  requerer 
e  achar  o  ])rcmio. 

Gluando  os  dous  irmãos  pretenderam  lugares  com 
Christo,  lhe  respondeu  o  mesmo  Senlior,  que  não 
estava  na  sua  mão  o  dar-lh'os :,  pela  razão  de  que 
estes  logares  estavam  apparelhados  para  quem  os  me- 
recia ;  como  dizendo,  que  os  primeiros  eram  mais 
próprios  dos  beneméritos  que  os  mereciam,  que  do 
mesmo  Christo  que  os  conimunicava. 

Contra  si  mesmo  esgrime  o  castigo  quem  lionra  ao 
incapaz  de  honra.  Não  ameaçou  Deus  a  serpente  se 
não  com  a  própria  mulher  a  quem  persuadia  comes- 
se da  arvore,  porque  lhe  disse  que  ella  havia  de  ser 
que  lhe  daria  na  cabeça  ;  consequência  foi  esta  assas 
forçosa,  porque  como  a  serpente  quiz  subir  ao  ser 
que  lhe  não  era  devido  quem  llie  havia  de  dar  o 
castigo,  senão  quem  immeritamcnte  ella  queria  hon- 
rar. O  uicsino  sol,  quando  levanta  os  vapores  da  ter- 
ra, elle  mesmo  se  torna  nublado,  quando  os  escu- 
rece. rADIU:  .\.   \  lEIRA. 


—  o  que  opprime   ao  pubre  ])ara  se  augmentar  a 
si,  e  da  ao  rico,  certamente  empobrecerá. 


—  O  ornato  dos   mancebos  é  sua   fortaleza;,   e  a 
formosura  dos  velhos  as  cans. 


—  Doce  é  o  somno  do  trabalhador,  quer  coma 
pouco,  quer  coma  muito  :  porém  a  fartura  do  rico 
não  o  deixa  dormir. 


No  próximo  mez  de  janeiro  de  1853  co- 
meçará a  publicar-sc  o  10."  volume  do  Pa- 
norama. Annuiiciando-o,  o  Editor  aproveita  a 
occasiao  para  agradecer  a  protecç^io  que  o  pu- 
blico illustrado  ILc  tem  dispensado,  e  a  sym- 
pathia  com  que  foi  recebido  geralmente  o  pen- 
samento de  continuar  um  su-manario  tão  illus- 
tre  nos  fastos  da  litteratura  pátria.  Difficulda- 
des  inevitáveis  na  organisaçuo  de  uma  empre- 
sa desta  ordem,  que,  como  todos  sabem,  e 
inteiramente  dislincta  das  anteriores,  obstaram 
a  que  a  nova  serie  do  Panorama  correspon- 
desse inteiramente  aos  seus  desejos.  O  pa- 
pel, que  nos  fornecem  as  nossas  fabricas,  e 
que  ainda  não  reúne  as  condições  necessárias 
para  uma  edição  nítidn,  faz  principalmente 
com  que  as  excellenles  gravuras  que  temos 
dado,  todas  devidas  ao  delicado  buril  do  sr. 
Coelho,  não  so!)resaiam  tanto  quanto  era  para 
desejar.  Esperámos  obter  me'hor  papel,  e  con- 
tinuaremos solicitos  a  empregar  todos  os  meios 
para  que  o  Panorama  venha  a  ser  também 
um  specimen  dos  progressos  da  arte  t\pogra- 
phica  entre  nós.  Em  quanto  á  redacção  o  Edi- 
tor não  duvida  apresentar  os  números  publi- 
cados como  uma  prova  insuspeita  de  que  não 
sabe  faltar,  nem  faltará  jamais  ás  condições 
exaradas  no  seu  programma. 

Assigna-sc  para  este  semanário :  em  Lis- 
boa, no  armazém  de  livros  do  Editor,  rua 
do  Ouro,  n."'  227  e  22S,  c  nas  lojas  dos 
sr.'*  Lavado,  rua  Augusta,  ii.°  S,  Bravo,  rua 
do  Ouro,  11.°  212,  Zeferino,  rua  dos  Capel- 
listas,  etc. 

São  correspondentes  do  Panorama  no  Por- 
to, o  sr.  A.  R.  da  Cruz  Coutinho ;  em  Coim- 
bra, o  sr.  A.  H.  Dardalhoii ;  em  Braga,  o 
sr.  Freitas  Cuiimarães ;  em  Santarém,  o  sr. 
José  Firmino  d  .\zcvedo  Pereira  ;  em  Sottibal. 
o  sr.  Manoel  José  Ferreira ;  na  ilha  de  São 
Miguel,  o  sr.  M.  C.  dAlbergaria  e  Valie ;  e 
na  Ilha  da  Madeira,  o  sr.  A.  J.  de  .^raujo. 

Preços:  —  Por  anno  ou  52  n.*"  1^300  rs. 
Por  semestre  ou  2G  n."'  700  rs.  Numero 
avulso  30  rs. 

Os  sr."  que  desejarem  subscrever  para  o 
auiio  de  1S."53  t|ueiiam  dedaral-o  quanlo  an- 
tes, em  Lisbiia.  aos  deslribuidores  ou  nos  lo- 
gares acima  citados,  e  nas  províncias  aos  cor- 
respondentes, ou  por  carta  franca  de  porle, 
diiicida  ao  Editor,  e  acompanhada  de  uma 
ordem  da  respectiva  impi>rlanc:a. 


52 


o  PA1VOUA5IA. 


409 


o  PANDANUS   NA   ILHA   DO   PRÍNCIPE. 


Voi..  I.  _.;.;i  SuuiE, 


nK.KMir.i.)  'II,  I8.'l-i, 


410 


O  PANORAMA. 


Os  pRiMEinos  exploradores  das  terras  africanas,  de- 
pois de  haverem  lonieado  as  plagas  desertas  e  incul- 
tas do  Saraiiah,  soltaram  um  brado  de  admiração  ao 
formoso  prospecto  fjue,  de  uma  e  outra  margem  do 
Senegambia,  lhes  oftierecia  a  natureza.  A  \egetaeão 
mais  luxuriante  succede  sem  transição  á  mais  com- 
pleta aridez,  e  em  vez  dos  árabes  bronzeados,  ma- 
gros, c  de  pequena  estatura,  encontram-se  homens 
negros,  altos,  robustas  e  bem  proporcionados. 

"  Nunca  vi  nada  que  se  lhe  pudesse  comparar, 
apesar  de  ter  navegado  largo  tempo  nos  mares  orien- 
taes  da  Europa"  dizia,  em  14Í6,  o  veneziano  Cada- 
raosto,  quando,  depois  de  ter  dobrado  o  Cabo  Ver- 
de, costeou  as  praias  do  Senegambia  ;  u  a  terra  aqui 
é  baixa  e  povoada  de  grandes  e  bellas  arvores,  que 
nunca  se  despem  totalmente  de  folhas,  porque  as  no- 
vas desenvolvem-se  antes  de  caírem  as  antigas  fo- 
lhas, e  nunca  esmorecem  nem  seccam  como  na  Eu- 
ropa. " 

Vinte  o  sete  annos  depois  da  viagem  do  venezia- 
no, descubrirara  os  portuguezes  mais  ao  sul,  a  pouca 
distancia  das  alagadiças  terras  de  Guiné,  quatro  ilhas, 
que  devem  ao  seu  solo  volcanico  uma  vegetação  ex- 
cepcional. 

Fernando  Pó,  a  mais  septentrional  de  todas,  con- 
serva ainda  o  nome  do  primeiro  capitão  portuguez, 
que,  absorto  de  admiração  ao  vêr  as  suas  graciosas 
collinas  arborisadas,  lhe  chamara  Formosa.  Na  se- 
gunda, a  ilha  do  Príncipe,  situada  a  trinta  horas  da 
costa  de  Guiné,  c  a  1°  37'  latitude  norte,  é  que  se 
encontra  o  siiigularissimo  exemplar  da  faniilia  das 
pandaneas,  que  damos  era  a  nossa  gravura.  Do  alto 
mar,  a  ilha  parece  um  ponto  verde  no  Oceano  :,  fo- 
gos subterrâneos  juntaram  as  gigantes  massas  de  que 
se  compõe,  e  que  levantando-se  desde  a  margem, 
vão  crescendo  de  socílco  em  socalco  até  formarem 
um  grande  cabeço  circular  que  se  esconde  nas  nu- 
vens. O  solo,  rico  conjuncío  de  lavas  decompostas,  e 
de  despojos  vegetaes  que  incessantemente  se  renovam, 
produz  as  niáis  maravilhosas  plantas,  e  as  arvores 
mais  esplendidas  <|ue  se  conhecem.  Vaporosas  coluni- 
nas  de  fumo  erguem-se  das  virentes  collinas,  reve- 
lando a  existência  do  algumas  crateras  no  seio  d'a- 
quelles  cerrados  bosques.  Debaixo  das  soberbas  abo- 
badas formadas  pelas  grandes  arvores,  crescem  nu- 
merosos arbustos,  que,  por  sua  vez,  dominam  vma 
immensidade  de  plantas  que  alcatifam  o  terreno.  O 
ar  aspira-se  impregnado  de  activíssimos  perfumes. 

A  par  do  baobab,  doesse  colosso  do  reino  vegetal, 
e  das  arrogantes  tribus  das  nialvaceas  e  das  niclia- 
ceas  tropicaes,  cujas  ramagens  são,  áquem  e  alem, 
sobrepujadas  ])ela  elt>gante  copa  dos  coqueiros,  osten- 
fam-se  os  arbustos  do  café,  de  purpúreas  folhas,  os 
ananazes,  as  líliaceas,  as  extravagantes  irideas,  as 
airosas  campanulas,  os  graciosos  con%olvuliis,  as  lo- 
belias,  e  milhares  de  llores,  sem  nome  ainda,  que 
tornam  a  nossa  ilha  do  Príncipe  um  verdadeiro  jar- 
dim sem  igual  no  mundo. 

Um  official  da  marinha  franceza  que  a  visitou  des- 
creve assim-  o  pandanus,  reproduzido  na  nossa  gra- 
vura : 

"  Uma  corrente  que  procede  dos  escarpados  cerros 
da  illia,  dcspenhando-se  de  «juebrada  em  cpiebrada, 
mantém  constante  humidade  u"inn  citreito  valle  em 
que  se  concentra  o  calor  produzido  pelos  raios  do  sol 
reflectidos  sobre  os  llancos  ile  duas  montanhas  mui 
próximas  uma  da  outra.  A  elevada  temperatura,  d»-- 
vida  a  estas  causas,  alimenta  no  fundo  do  valle  a 
mais  vigorosa  \eg(?taeão.  O  pandanus  ergue-se  no  si- 
tio em  que,  espraiando-se  n'unia  límpida  angrasi- 
nha,  as  aguas  da. corrente  vão  cncontrar-se  com  as 
ondas  do  Oceano,  que  se  ouve  rugir  perto. 


íi  A  um  quarto  da  altura,  que  na  ilha  do  Prínci- 
pe, chega  a  IG  metros,  a  haste  principal  mede  cer- 
ca de  3o  centímetros  de  diâmetro  ^  d"ahi  para  baixo 
diminue  gradualmente  de  grossura,  e  quando  chega 
á  agua,  onde  está  mergulhada,  não  a  tem  maior  que 
uma  raiz  ordinária.  O  tronco  é  todo  em  anneis,  e 
d'onde  começa  a  adelgaçar  sáem-lhe  varias  raízes, 
formando  já  ângulos  agudos,  já  curvas  ogivaes,  que 
igualmente  mergulham  n'agua.  Sobre  estas  raízes, 
de  estructura  e  disposição  singular,  ergue-se  a  arvo- 
re, qual  monstruoso  reptil,  divídindo-se,  a  dous  ter- 
ços de  altura,  em  cinco  ou  seis  pernadas,  coròada« 
no  fim  de  folhas  compridas,  carnudas,  e  de  ríjissimcn 
bordos. » 

Para  artigo  especial  reservámos  dar  uma  noticia 
mais  circumstanciada  doesta  e  das  outras  preciosas 
possessões  que  Portugal  ainda  conserva  na  .\frica. 


SANTA  ISABEL. 


EsTBANH.t  absolutamente  ás  cousas  do  Estado,  a  rai- 
nha Isabel  conservava  no  throno  uma  austeridade 
quasí  claustral ;  se  lh'a  notavam  respondia  .*  que  a 
mortificarão  era  tanto  mais  necessária  sol>re  o  thro- 
no, quanto  sobre  eUe  eram  as  paixões  mais  fivas,  e 
os  perigos  maiores.  A  sua  corte  ei-am  os  pohres  c  os 
desvalidos ;  os  seus  saraus  o  visitar  de  enfermos  em 
albergarias  c  hospítaes ;  n"estes  charidosos  exercí- 
cios, e  no  regimento  da  sua  casa  era  incansável,  me- 
recendo por  taes  títulos  o  nome  de  rainha  santa,  já 
em  vida.  Nem  por  isso  as  tribulações  deixaram  de  a 
visitar  cruelmente. 

As  primeiras  foi  seu  próprio  marido,  que  amava 
tão  estrcmecidamente,  quem  lh"as  proporcionou.  D. 
Diniz,  arrastado  pelo  seu  caracjer  ardente  e  génio 
galanteados,  travara  e  conser\ára  por  largos  annos 
relações  indigiias  da  sua  dignidade ,  soube-o  a  rai- 
nha, sabía-o  toda  a  còrle ;  havia  d"essas  criminosas 
relações  provas  irrecusáveis.  Isabel,  porém,  calou  no 
peito  a  dòr  profunda,  que  lhe  devia  causar  tão  re- 
prehei!si\el  procedimcnio ;  escondeu  de  todos  as  la- 
grimas, que  síinilhaníe  aíTronía  lhe  ha\ía  de  forçosa- 
mente arrancar  :,  não  soltou  uma  queixa  ;  não  mostrou 
no  trato  com  seu  marido  a  mais  pequena  alteração  ;  era 
sempre  o  mesmo  rosto  de  anjo,  a  mesma  serenidade 
de  animo  ;  sempre  o  mesmo  carinho  ■,  o  mesmo  amor 
sempre:  fez  ainda  mais:,  recebeu  e  tratou  os  filhos  de 
D.  Diniz  como  so  filhos  foram  das  suas  ciiiranhas! 

O  rei  soube  comprchciíder  tão  rara  abnegação  e 
virtude;  e  corrigiu-se  depois  de  uma  falta,  que  Ibe 
acarretou  não  poucos  desgostos  no  seu  reÍDado. 

A  intervenção  de  Isal)cl  de\eu-se  terminarem  a» 
alterações  cÍMs  promovidas  pelo  infante  .\fi'on*o  Di- 
niz, íraião  do  niouarcha,  >ob  pretexto  da  jllegítí- 
niidade  dos  direitos  d"este  á  coroa  de  Portugal.  D. 
Diniz  tinha  a  parte  sã  da  jKipulrçao  do  seu  lado 
n''e^ta  desgraçada  contenda;  mas  o  infante  contava 
tandieni  grande  numero  ."e  ,  art'aes,  e  a  lucla,  com 
quanto  não  pudesse  ter  resultado  funestop,ira  D.  Di- 
niz, acarretaria  sem  duvida  uma  serie  de  desastres, 
que  tarde  se  remediariam,  o  cubríría  certamente  o 
paiz  de  devastações  e  ruinas. 

t>3  dous  partidos  achavain-se  já  cm  campo,  em 
fronte  um  do  outro,  prom[>»os  a  ferir  uma  decisiva 
|H'loja.  A  rainha  apparcco  a  c;ivalli>  entrt>  os  comlia- 
tiuites,  lembra  a  sou  niarido  que  c  monarcha  para 
perdair,  ao  infante  que  é  vassullo  para  oI)0<lec<>r,  e 
tàii  ardentes  foram  os  seus  rogos  c  intercessões,  qu«- 
conseguiu  que  os  dous  irm.los  fiicsscnj  pazes,  dcspo- 
jando-se  voluntariamente  de  uma  parle  das  suas  ter- 


o  PANORAMA. 


411 


ras  para  com  ellas' satisfazer,  de  algum  modo,  a  mal 
joHrida  ambição  do  infante. 

Novas  e  graves  alterações,  com  mais  nobres  intui- 
tos, e  mais  alto  caudilho  á  frente,  vieram  perturbar 
a  tranquillidade  fjue  o  reino  disfructava,  e  annullar 
uma  par^e  dos  benefícios  que  deviam  provir  das  re- 
formas eraprehendidas,  corajosamente  e  em  larja  es- 
cala, por  D.  Diniz. 

Estas  reformas  assim  como  haviam  creado  pode- 
rosos interesses,  e  protegido  efficaznienle  o  melhora- 
mento das  classes  populares,  garantindo-as  das  exac- 
ções  e  tropelias  das  privilegiadas,  fizeram  também  um 
grande  numero  de  descontentes  nas  ordens  da  nobre- 
za e  do  clero,  (iuizeram  estas  reagir  \  mas  quem  as 
dirigiria  nas  suas  tentativas  revolucionarias?  quem 
seria  o  chefe  da  arrojada  empresa?  que.-n  havia  de 
capitanear  as  hostes  lidalgas  contra  os  liomcns  bons 
dos  concelhos  e  os  cavalleiros  de  mercê  de  D.  Diniz? 
As  ciicumstancias  depararam  aos  despeitados  um 
óptimo  ensejo,  e  um  corajoso  cafdilho,  o  príncipe 
D.  Aífonso,  o  próprio  herdeiro  do  ihrono,  que  se 
suppunha  aggravado  por  seu  pae  nas  mercês  que  este 
íizera  a  Aífonso  Sanches,  e  que  ardia  em  desejos  de 
manifestar  publicamente  o  seu  aliás  pouco  rasoavel 
e  pouco  justo  resenlimento. 

A  colligação  foi  proposta;  o  jiacto  acceite  e firma- 
do de  uma  parle  e  outra;  e  o  negro  pendão  da  guer- 
ra civil  cgucu-se  audaz  c  sinistro  pelas  províncias  do 
reino,  levando  a  toda  a  parle  or.do  encontrava  resis- 
tência a  desolação  e  a  morte.  Knipregou  D.  Diniz 
todos  os  niejos  para  desviar  o  principo  da  sedição ; 
mas  deljaldí! ;  tinahnenle,  decidido  a  castigar  seve- 
ramente a  temeridade  dos  levantados  o  de  seu  pró- 
prio llllio,  travou  das  armas  e  marchou  para  a  cam- 
panha. 

No  isolamento  cm  que  vivia  soiibe  Santa  Isabel 
d'esles  tristiís  successos,  e  da  perturbarão  geral  (pu; 
elles  haviam  motivado. 

Tien'eu  pelo  filiio,  que  de  sobra  conhecia  ella  o 
caracter  de  sca  marido ;  e  por  isso  não  despresou 
meio  algum  de  acabar  tão  terríveis  dissensões  que 
ameaçavam  ao  reino  a  ultima  ruina.  Attribuiu  1). 
Diniz  a  parcialidade  pela  causa  do  príncipe  o  que 
eram  apenas  extrcimos  de  mãe  cavinliosa,  e  ordenou 
que  a  rainha  se  retirasse  para  a  sua  villa  de  Alem- 
quer.  Santa  Isabe?!  obedeceu,  resignada  perante  a  in- 
justiça de  seu  marido,  mas  continuou  incansável  nos 
seus  esforços,  tendo  a  satisfação  de  os  vêr  coiòados 
d(!  meljior  rcsuUado,  pcdindo-lho  depois  seu  marido 
[)erdão  da  atfronia  que  involuntariamente  fizera  ás 
suas  egrégias  virtudes. 

1'oucos  niezes  depois  da  convenção  de  23  de  feve- 
reiro de  Dtiii,  qucí  pu/.era  ter<no  á  giu;rra  civil,  en- 
tregou el-rei  I).  Diniz  a  alma  ao  ereador ;  e  Santa 
Isabi;!  que  Ijie  assistira  com  disvéio  e  entranhavel 
amiir  até  os  últimos  momentos,  declarou,  por  acto 
suieDMK!,  (H'(!  d'ahi  em  diante  viviria  e  morreria  no 
babili)  de  'JVrecira  de  S.  hVaneisco ',  <;  assim  o  cum- 
priu, veslindo  o  sa^al,  ein";índ<)  a  corda,  e  usando  o 
véu  liranco. 

Dr'ix<iu  Sania  iNaliel  ilbistr<'s  niiinumenlos  da  sua 
nuiila  religião  (^  (liaridade.  I<'iind(>u  o  mosteiro  das 
rirligiosas  de  Santa  ('Iara  tU:  ("oimbra,  onde  residiu 
a  maior  jiarlc!  do  leuipo  da  sua  viuvez;  o  mosteiro 
de  religiosas  eish-rcienaea  de;  Almoster;  a  igrija  ilo 
Ksjiirilo  Santo  de  Aleuiipier;  e  o  hos|)ital  d<'  Lei- 
ria. IMas  em  nosso  entender  a  olira  qui'  mais  reeom- 
menda  á  veneração  dos  vindouros  ii  mem(U'ia  da  san- 
ta rainha,  é  a  fundação  do  huspilal  dos  innoceules 
na  villu  de  SanlariMU,  para  o  recolhimeulo,  uuuiten- 
çã(i  e  educação  de  creuncitdias  engeiladaa  de  um  e 
outro  sexo. 


Este  hospital,  fundado  em  1321,  e  largamente  do- 
tado, incorporou-se  no  de  Jesus  Christo  por  bulia  do 
Sumrao  l'ontiíice  Innocencio  \III,  expedida  em 
14S5,  a  pedido  de  D.  João  o  segundo. 

Pena  é  que  o  padre  Ignacio  da  Piedade  e  Vas- 
concellos,  erudito  auctor  da  Historia  de  Santarém, 
que  nos  apresenta  curiosas  noticias  d'este  hospital, 
nos  não  transmiícisse  a  integra  do  compromisso,  or- 
denado pela  santa  rainha,  e  pelo  bispo  da  Guarda, 
D.  Martinho,  que  não  transcreve,  diz  elle :  ti  por 
não  trasladar  um  portuguez  tão  antigo  e  tão  extenso 
que  poderá  causar  fastio  aos  leitores.  " 

Assim  conheceu  Portugal,  como  observa  o  nosso 
escrupuloso  collaborador  o  sr.  Nogueira,  três  séculos 
antes  de  S.  Vicente  de  Paulo  instituir  em  Paris  o 
hospital  dos  expostos,  um  asylo  para  creação  e  edu- 
cação dos  engeitados. 

Recolhendo  da  peregrinação  deS.Thiago,  aquan- 
do deliberava  pòr-se  a  caminho  para  reconciliar  el- 
rei  de  Portugal  seu  lilho  (Affonso  IV)  com  el-rei  de 
Caslclla,  seu  neto,  enfermou  mortalmente,  e  passou 
a  melhor  vida  a  4  de  julho  de  1'ò'òii. 

No  testamento  que  tinha  feito  cm  19  de  abril  de 
1319  ordenara  que  a  sepultassem  junto  de  seu  ma- 
rido em  Alcobaça ;  mas,  como  el-rei  D.  Diniz  esco- 
lhesse, em  suas  ultimas  disposições,  para  sua  ultima 
morada,  o  convento  de  Odivellas,  por  elle  fundado, 
ordenou  que  a  levassem  a  Santa  Clara  de  Coimbra. 
Foi  beatificada  por  breve  de  loltí,  pela  santidade  de 
Leão  X,  concedendo  seu  culto  em  Coimbra ;  esten- 
deu-se  este  até  ao  logar,  onde  estivesse  a  corte  de 
Portugal,  por  breve  do  núncio  Pompeo  Zambicario 
em  1552;  e  pouco  depois  a  todo  o  reino  por  mercê 
de  Paido  IV,  <jue  mandou  celebrar  a  sua  festa  em 
4  de  julho  :  foi  canonisada  com  grande  pompa  pelo 
pontifico  Urbano  VIII,  a  23  de  maio  de  Hi23  ;  e 
a  sua  trasladação  fez-se  com  extraordinária  solenini- 
dade,  a  3  de  julho  de  1G9G,  do  antigo  mosteiro  de 
Santa  Clara,  «je.e  fundara,  e  estava  arruinado  pelo 
3Iondego,  para  o  que  começou  D.  João  IV,  e  aca-  ' 
bou  D.  Pedro  II,  no  alto  da  montanha  fronteira  á 
cidade. 


ÓDIO  VELHO  NÃO  CANÇA. 

KoMANCK    liisroilUO. 

CAPITULO  11. 

Suu  Víi  itiiuht ! 

A  scKN.*,  a  que  o  leitor  vae  assistir,  apertava  o  co- 
ração aos  que  a  presenceavam.  Os  ulliinos  instantes 
ili;  Sancho  I  apro\iuiavan>-se ;  e  n'esta  hora  supre- 
ma, ([uandii  uin  rein.ido  linalisiiva,  e  o  outro  podia 
diz('r-se  (pie  ia  começar,  o  ultimo  adeus  ilo  pae  e  do 
monarclia  ao  herdeiro  da  corrta  oflcrecia  um  espectá- 
culo de  il(\r  para  quantos  o  presenceavam. 

(luandii  o  infante  entrou,  e  antes  d\'lle  i>s  ricos 
homens  e  eavalli-iros  prini'ipaes,  o  n-i  liidia  caldo 
em  desmaio.  D.  AlVinisn  ap^oxi^ulu-.^e  da  cama  « 
|ie'j;oti-lhe  no  braço.  Sancho,  tornando  a  si  e  abrindo 
os  olhos,  fitou  a  vislii  pasmada,  ora  n'uns,  ora  n  ou- 
Iros,  mas  niío  (Hinhei^eu  ninguém.  l'or  l"iiu  abaixou-.-» 
Iei\tamenl<'  para  o  sitio  aonde  eslava  ajoelluido  o  li 
lho.  Allirmou-se,  iluvidoii,  tornou  ii  aflirmar-se,  i- 
meio  levantadu  sobri'  o  colovello  ileiloii-lhe  o»  bru- 
ços HO  iieseoço,  excliinmndo  com  alegria  : 

—  iili'illio!  .  .  .  filho  da  minha  iilma  !  •• 


412 


O  PA]>ORA3IA. 


o  infante  não  levo  forras  de  responder.  Encostou 
1  cabeça  ao  hombro  do  pac,  e  a  custo  reprimiu  os 
soluços,  que  lhe  estalavam  na  garganta. 

—  "Já  tardavas,  Aflbiíso,  dizia  o  rei  passando-lhe 
os  dedos  jielos  cabellos.  Ia  cuidando  que  não  torna- 
va a  vêr-le,  filho  !  » 

\'irando-se  para  o  monge  de  Cister  o  monarcha 
accrescentou  : 

—  "Não  cheguei  a  vêr  meu  pae ;  niorniu  um  dia 
antes  de  eu  chegar.  Em  íim  ouviu-me  Deus,  ainda 
lornei  a  abraçar  este.  Agora,  quando  fòr  chamado  a 
contas  ...  o  que  estreitas  contas,  Senhor !  E  por  el- 
•Jle  ^  e  apontava  para  o  filho :,  pelos  irmãos :,  pelo 
reino  •,  é  por  todos.  .  .  Chego  a  duvidar  da  salvação, 
meu  padre  !  " 

— "  Duvidar  da  clemência  divina  !  redarguiu  o 
abbade.  O  sangue  de  Christo  correu  para  lavar  as 
culpas  dos  homens,   purificando-os  diante  da  face  do 

Juiz.  !' 

—  «Eu  sei!  acudiu  o  rei.  Não  se  me  tira  isto  da 
idéa. " 

—  "E  preciso  tiral-o  :,  tornou  o  monge.  Sabeis  a 
historia  d'aquelle  filho  que  se  despiu  para  cubrir  a 
nudez  do  pae  ;  eappareceu  vestido  de  graça aosolhos 
de  Deus  ?  A  Igreja,  esposa  de  Christo,  é  nossa  mãe 
e,spiritual.  —  Aquillo,  ajuntou  indicando  o  pergami- 
nho—  poza  mais  perante  a  sua  misericórdia,  do  que 
a  vida  do  peccador  diante  da  sua  justiça.  ^» 

O  pergamiidio  era  o  testamento  de  Sancho  I. 

L'm  sorriso  fugiu  quasi  imperceptível  pela  liucado 
notário,  que  olhou  para  D.  Aftbnso.  O  príncipe,  car- 
regando o  sobr''olho,  respondeu-lhc  com  outro,  que 
parecia  dizer  —  "  entendo  '.  >i 

Em  quanto  o  monge  pregava  a  sua  theoria  utili- 
tária, D.  Sancho  conservou  a  cabeça  pendida  sobre 
o  peito.  Levantou  depois  a  vista,  e  mirou  por  muito 
tempo  o  infante  sem  fallar. 

—  «Es  o  retrato  de  tua  mãe,  Aflbnso ;  suspirou 
elle.  Em  tudo  se  parecera,  na  boca,  nos  olhos,  até  na 
voz :,  és  a  imagem  sauta  que  perdi .  .  .  que  perdemos 
ambos ! 

—  «  duerido  pae  '.  " 

—  «Havia  de  ser  por  força  uin  dia.  E  hoje... 
Affonso,  tenho  que  te  recommendar  muita  cousa.  Es- 
tava-te  escrevendo.  Teu  pae  pedia-te  a  esmola  de  o 
pjiterrares  na  humildade  d'este  habito  ao  pé  da  se- 
pultura de  teu  avô.  " 

—  «  Ha  de  fazer-se,  »  retorquiu  o  infante  com  me- 
lancholia. 

—  u  A  coroa  e  o  sceptro  são  teus  d'' aqui  a  pou- 
co. .  .  Deus  sabe  que  os  não  choro  \  nem  levo  sauda- 
des do  mundo.  Ccguei-mc  com  as  vaidades,  mas  ho- 
je. .  .  Njo  se  dorme  n'um  travesseiro  de  espinhos, 
molhado  das  lagrimas  do  povo,  Aflonso  !  .  .  .  Com- 
nietti  peccados  como  homem  •,  mas  sobre  tudo  o  que 
rae  peza  são  as  culpas  e  os  erros  como  rei.  Tenho 
medo  da  voz  que  possa  pedir  a  justiça  com  que  eu 
faltasse-,  horrorisa-me  cuidar  que  o  sangue  dos  que 
feri  sem  causa  ha  de  levantar-si;  contra  uiim.  .  .  Fi- 
lho, ás  portas  da  eternidade  teu  pae  roga  ao  herdei- 
ro da  sua  corl^a,  que  lhe  dê  a  paz  da  consciência. 
AfTonso,  dá-me  de  esmola  com  que  restitua  aos  que 
oflendi. " 

As  palavras  eram  de  supplica,  mas  o  tom  era  de 
quem  manda  e  conta  ser  obedecido. 

—  «Q.uanto  el-rei  mandar  será  cumprido,  volveu 
o  ])rincipe.  Juliano,  continuou  virando-se  para  o  no- 
tário, está  ahi  o  tcstameuto  .'  Lede  I  '> 

O  testamento  reza\a  de  legados  pios  aos  Templá- 
rios e  Hospitaleiros.  D.  Affonso  approvou,  dizendo 
para  si:  —  «E  justo  ^  audain  ás  lançadas  cora  os 
mouros  na  fronteira. " 


Seguiam-sc  doações  em  dinheiro  e  em  terras  ao 
mosteiro  de  Alcobaça.  A  parábola  do  venerável  ab- 
bade de  Cister  ficou  explicada.  D.  Sancho  despia  o 
seu  herdeiro  para  edificar  uma  casa  mais  aos  eremi- 
tas do  povoado.  O  infante  franziu  a  testa  e  carregou 
o  rosto,  dizendo  :  —  «  adiante  !  "  Vendo  passar  sem 
gloza  a  importante  verba  o  abbade  respirou. 

Depois  vinham  doações  a  D.  Maria  Paes  Ribeiro, 
e  aos  filhos  que  cl-rei  tivera  d^ella.  Liam-se,  afinal, 
copiosos  legados  de  castellos,  villas,  direitos  reaes,  c 
thesouros  aos  irmãos  legítimos  do  infante.  A  paciên- 
cia vencida  pela  cholera  escapou  ao  principe  ^  com  o 
rosto  escarlate  e  a  voz  estridente : 

—  «Santa  Virgem  ! —  gritou  elle.  —  GLuebram- 
me  a  coroa,  repartem  os  bocados,  e  deixam-me  o 
maior  por  direito  do  nascimento  ?  Enganam-se  1  Não 
a  recebo  se  não  inteira  como  a  teve  meu  avô,  emen 
pae  a  trouxe.  E  virando-se  para  D.Sancho,  cadavei 
mais  acceso  em  ira :  ôuantos  reis  ha  em  Portugal  T 
Alemquor  é  da  rainha  D.  Sancha  ;  Montemor  é  da 
rainha  D.  Thereza  •,  villa  do  Conde  fica  a  D.  alaria 
Paes.  O  dinheiro  de  Thomar,  de  Santarém  e  de 
Coimbra  é  espalhado  ao  \  cnto  I  O  rei  que  morre  cor- 
ta o  braço  direito  ao  rei  que  deixa  I  Ah  I  os  mon- 
ges, os  monges  1  !Mas  eu  os  porei  no  seu  logar.  Não 
hei  de  cumprir  senão  o  que  fòr  justo  I  ;? 

O  ciúme  do  poder  real,  depois  origem  das  conten- 
das civis  entre  Aftbnso  e  suas  irmãs,  dcscubria-se  já 
em  toda  a  força.  D.  Sancho  escutou  cm  silencio  as 
primeiras  palavras  do  infante-,  depois  as  feições  ani- 
maram-se  gradualmente-,  e  nos  olhos  amortecidos  fu- 
zilou aquella  ardente  cholera,  que  os  mais  valorosos 
temiam  arrostar.  Sentando-se  com  Ímpeto,  e  fechan- 
do o  punho,  exclamou  em  voz  fraca,  mas  distincta  : 

—  «Aflonso,  D.  Affonso,  quem  é  o  rei  ainda.'»' 
Tinha  razão.  A  ira  jalvanisou  um  momento  o  ca- 
dáver. Era  outra  vez  Sancho  I,  antes  do  terror  da 
morte  e  sem  as  cinzas  da  penitencia.  Era  o  soldado 
de  Silves,  entrando  pela  mina,  e  a  golpes  d'acha  es- 
talando o  coração  das  rochas.  Era  de  novo  o  antigo 
monarcha,  arrancando  pela  raão  dos  verdugos  os  olhos 
aos  cónegos  de  Coimbra  para  com  o  sangue  d*elles 
mandar  escripto  o  seu  cartel  contra  a  auctoriílade 
pontifícia  de  Iiniocencio  III. 

Mas  D.  Affonso  tinha  nascido  filho  d''aquelle  pae. 
IMais  concentrado,  nos  lances  extremos  era  tão  indo- 
mável como  o  próprio  Sancho  1. 

—  «O  rei  sois  vós '.  redarguiu  o  principe,  respon- 
dendo á  pergunta  ameaçadora  do  monarcha.  E  oxa- 
lá que  Portugal  nunca  tenha  outro.  Em  quanto  as- 
sim fòr  sois  senhor  -,  o  infante  não  sabe  e  não  vê.  » 

— «  .\ffonso  !  "  exclamou  Sancho  ean  voi  som- 
bria. 

—  «Mas  o  rei  D.  Affonso,  continuou  o  filho,  quan- 
do puzcr  a  coroa  ha  de  pòl-a  inteira,  ou  não  a  põe. 
Hoje  mandaes-,  sois  rei  ;  o  primeiro  a  ol>edecer-> os 
é  o  infante.  Desgraçado  porém  d'aquelle  que  ama- 
nhã me  não  fizer  a  mim  o  mesmo  I  •• 

Era  uma  resoluçiio  inabalável  tan)l)em.  D.  San- 
cho conhecia  bem  o  infante,  e  sabia  que  a  força  cu 
o  temor  erão  inúteis  para  o  mover.  Por  isso,  c  por 
que  Uie  dizia  a  consciência,  que  se  o  filho  peccava, 
o  rei  de  Portugal  fazia  o  que  elle  tinha  feito,  D. 
Sancho  mudou  de  tom  : 

—  «Affonso,  por  que  não  és,  nem  serás  nunca  ir- 
mão de  teus  irmãos .'  '.  Deus  conhece  a  dòr  com  que 
os  levo  atra\ess;idos :  e  a|K>ntava  o  coração  com  ma- 
gna. Elle  te  não  ciístigue  nos  teus  filhos!  >i 

—  «  Como  rei  vejo  só  vassallos.  !< 

Tudo  caiu  então  n'um  silencio  constrangido.  Pas- 
sado algum  tempo  o  rei  ergueu  a  cabeça,  e  ajuntou 
com  tristeza : 


o  PA^ORA3IA. 


413 


u  E  05  outros,  Affonso,  os  outros,  que  também 

são  teus  irmãos  ? » 

—  u  Os  filhos  de  D.  Maria  Paes  ? » 

—  líDeixo-lhes  honras  e  riquezas,  mas  comigo  per- 
dem o  que  não  se  suppre.  .  .  Aílonso,  pelo  amor  de 
tua  mulher,  pela  ventura  do  teu  Sancho,  avalia  pe- 
las tuas  entranhas  a  miiiha  afilicjão  :  dize-nie,  fal- 
tando eu  servir-lhes-has  de  pae  ?  " 

u  1'ela  cabeça  do  meu  Sancho,   e  pela  alma  de 

minha  mãe,  o  juro. 

—  uDescanço  no  teu  juramento  ^  a  respeito  dV-l- 
les  morro  tranquillo.  " 

A  pallidez  do  rosto  a  cada  instante  se  fazia  mais 
lívida.  Os  ollios  sumiam-se,  e  a  respiração  era  curta 
e  rouca.  Olhou  muito  tempo  pela  fresta  como  quem 
se  despedia  do  céu,  das  flores,  e  das  agu;is  do  Mon- 
dego. D'ahi,  virando-se  para  SueiroRajmundo,  dis- 
se com  melancholia : 

—  uN'ura  dia  como  este  tomei  Silves.  Não  bole 
folha !  Gluem  me  havia  de  dizer  que  aquelles  cercos 
e  combates  haviam  de  parar  n'isto  ?  " 

E  tornou  a  olhar  com  maior  tristeza. 

De  repente  desviou  a  vista,  e  com  grande  esforço 
murmurou  :  —  "  Cerrem-me  a  fresta.  " 

Assereuando,  e  armando-so  de  resolução,  disse  de- 
pois : 

—  «D.  AfTonso,  um  abraço  !  Emais  baixo  :  — rei 
moço,  não  te  cegues  ^  toma  exemplo  em  mim.  Cui- 
<lado  com  a  velhice,  com  as  contas  finaes.  Adeus ! 
.Sueiro  Raymundo,  é  uma  viagem  :,  suppõc  que  fui  á 
Terra  Santa  e  me  demorei.  Meus  cavalleiros,  o  rei 
novo  pagará  as  dividas  do  rei  que  morre.»  E  tor- 
iiou-lhe  a  tristeza. 

—  "  E  escapar  ao  cerco  de  Santarém  !  Não  haver 
uma  setta  que  me  varasse  cm  Silves  I  .  .  .  Era  me- 
lhor !  " 

D.  Sancho,  filho  de  soldado,  embalado  no  escudo 
paterno,  chorava  pela  morte  (Ío  guerreiro.  Um  pe- 
queno espaço  esteve  assim  i  d^ahi  cruzando  os  braços, 
exclamou  suspirando : 

—  "  Kaça-sc  a  vontade  de  Deus  !  " 

E  cerrou  as  pálpebras  como  quem  nTio  queria  vêr. 
Uma  sezão  de  febre,  e  com  ella  o  delírio,  arranca- 
ram-lh<!  palavras  soltas  e  ineoherentes,  próprias  de 
<iuem  ainda  adoecia  mais  da  alllícção  moral,  do  que 
das  dores  do  corpo.  A  idéa  da  orpliaiidadc  dos  filhos 
como  um  espinho  não  cessava  de  lh(!  retalhar  o  co- 
ração. 

—  II  Levem  essas  creanças  :,  não  asvija  seu  irmão! 
Olhem  o  infante  !  Digam  ao  pa])a.  .  .  AIlbuM) !  .  .  .  " 

Depois,  passando  de  repente  a  outras  lembranças, 
Icchava  o  ])unlio,  e  estorcía-se  com  violência. 

—  "Os  frades  eu  os  ensinarei  !..  .  ah,  bispo  do 
Torto  fazes  mal ;  não  roces  a  mitra  pelo  meu  elmo, 
podes  partil-a'  N'a(|uella  cotta  ha  uma  malha  caí- 
da. Asscrntem  o  fio  á  acha  cParmas  i  está  cheia  de 
brteas  das  pedras  d(!  Silveis!  Selleiii  o  ni<'U  eavallo  ; 
Vamos  \  i'  menos  que  uma  caçada  de  javalis.  " 

A  um  signal  do  ineilico  loilui  saíram  menos  o  bis- 
po de  (Joimhra.  O  ínfanti!  eiiliou  salas  Milire  salas, 
até  ir  assenlar-se  em  um  cscaiih"  deiilro  lUiseu  apo- 
sento, com  o  nisto  eseouilido  eiilre  as  mãos.  I'"alla- 
vam-llie,  não  rcíspondia  ;  tdiavaiiiilie,  não  «eiitia  ^ 
nem  a  voz  amiga  do  seu  eollaçu  (ioiuis  lioureiíeo  o 
acordou  da  apalliia.  O  sol  escondeu  se  (h^traz  ilos  ou- 
teiros:, asirevas  apcriarauí  ali-  cerrar  a  iioule,  (í  elle 
seinjire  d(i  nieMino  modo.  A  lua  abriu  cedo  :,  umagol- 
pliada  de  luz  lirauia  veíu  liemer  o  si'U  pallidii  ela- 
Tão  sobre  a  ariuadura  do  piiiiripc,  peu(lur;ida  iia  pa- 
rede. A  pouco  e  piiuci)  o  sentidi)  do  ouvidd  ilesper- 
lou-.se  •,  julgou  disliiigiiir  a  Inada  ilaMoraçues  da  igre- 
ja  nu  agonia  \  cuidou   escutar  o  dobre  fúnebre  dos 


sinos  de  Santa  Cruz  -,  imaginou  "perceber  o  choro  de 
muito  povo,  mas  tudo  confuso,  esvaído :,  e  faltando- 
Ihe  n'este  pezadello  invencível  até  a  força  e  animo 
de  se  mover  para  olhar  pela  janella  que  tinha  de- 
fronte. 

A  final  abriu-se  a  porta  do  seu  quarto,  e  sem  sa- 
ber como,  o  infante  levantou-se  e  deu  alguns  passos. 
Abaixando  a  vista  achou  ajoelhado  diante  de  si  o 
mordomo  da  Cúria,  o  qual  entregando-lhe  oannelde 
seu  pac,  murmurou  suffocado  : 

—  "Senhor  rei,  este  é  o  sello  do  reino  I  " 

D.  AfTonso  recebeu  o  annel.  Quando  o  passava  no 
dedo  entrou  pelo  aposento  unia  toada  de  vozes  reli- 
giosas, e  o  sino  da  eathedral  bateu  duas  pancadas  lú- 
gubres. Le\ando  a  mão  ao  peito,  o  príncipe  fez  si- 
gnal ao  mordomo  que  se  retirasse.  Apenas  elle  saiu, 
desafogando  nos  braços  de  Gomes  Lourenço,  D.  Af- 
fonso a  chorar  exclamou  : 

—  M  Gomes  Lourenço,  já  não  tenho  páh  !  " 

(Coniiniia.J 


1'uosckipí;.\o  do  Diello. 

O  auE  é  o  duello  ?  —  Ultraje  da  phílosophía,  e  cri- 
me contra  as  leis  sociaCí.  Absurda  relíquia  pagan. 
Feição  (mesquinha  pelos  abusos  herdados)  dos  com- 
bates singulares  dos  bárbaros.  Invocação  caricata  ao 
supposto  juízo  de  Deus:,  pregada  pelo  fanatismo  ru- 
de, e  conveniências  de  outras  eras^  acceita  pela  igno- 
rância e  ferocidade  de  outros  ódios,  e  de  outras  pai- 
xões ruins,  que  o  melhoramento  da  vida  social  e  da 
espécie  humana  tem  de  todo  banido  e  relegado. 

Homens  do  dia  e  da  eivilisação  humanitária,  por 
que  santilicaes  o  absurdo  pagão.'  Porque  vos  appare- 
Ihaes,  com  os  bárbaros,  parallclo  deshonroso  .'  Porcjue 
confundis  Deus  com  o  acaso,  rebaixaes  a  philosophia 
a  preconceitos  pilios  e  hypoerítas,  e,  affectando  sa- 
crificar em  aras  santas,  fazeis  holocaustos  a  Baal ! 

E  mais  (jue  tempo  de  chamar  a  razão  e  o  bom 
senso  a  eampii  di;  reflexão,  para  que  d'uraa  vez  dís- 
pareça  a  [lalavra  e  idéa  de  (liidlu,  e  se  separe  do 
consorcio  irrito  (•m  que  tem  vivido  com  a  palavra  e 
idea  sacramental  e  elástica  de  ponto  de  honra.  Nãa 
se  perca  a  memoria  das  reparações,  nem  se  siinccio- 
n<!  a  impunidade;  mas  legísle-se,  com  mais  cohereu- 
cia  e  mais  justiça,  sobre  o  processo  a  seguir  n'esses 
casos,  que  até  aciui  tão  erradamente  fingiam  não  t(!r 
remissão  possível,  fora  do  infausto  e  bárbaro  assassi- 
nato de  convenção,  fora  do  baptismo  sanguinário  do 
duello. 

O  uso  do  duello  foi,  com  a  successão  dos  tempos, 
degenerando  dos  altos  e  solemnes  pretextos  a  (jue 
por  nuiílo  tempo  só  parecia  servir,  e  acabou  por  nu-- 
recer  a  execração  máxima,  desfeando  a  sua  própria 
fealdade  nos  pretextos  corriqueiros  e  iiifaiilis,  a  que 
veíu  alliar-se,  e  dar  vullii,  (|Ue  nào  iiuMCilaiu  nem 
cousas  nem  pessoas.  Se  ouIrVira  o  iluello  era  sempr<> 
l>aibaro,  agora  é  geralmente  ridículo.  l'\>í  jogo  Iran- 
i'o  na  Europa  da  idade?  meilia,  porque  a  cívílisaç."io 
mal  alviueeia  pelas  franças  ila  arvore  social  \  a  igno- 
raiieía  era  apanágio  da  multidão,  o  fanatismo  bár- 
baro a  etílica,  que  descia  a  doiitrinal-a.  Cria-se  nu 
suiiremo  jubj-ameiílo  da  l.iiiea,  da  acha  iParmas,  do 
jalagaii.  Cria  .si-  nas  prova»  iragiui  e  logo:  e  a  liu- 
iiianicbiili',  eorrompeuilu-si-  de  m:iis  em  mais,  i.i  com 
jorros  de  síiiigue  apagando-se  ilo  coniçào  os  vagos 
tiaeos  il.i  iiiiu-.didadii  univeihal  i'  iiiliata,  <|ue  o  dedo 
lie   Deus  lhe  esculpira. 

I''elí/iiieiile  esse  l<-iupo  acabou.  A  clvilisiiç.'io  fei- 
90  hu  de  muito»,  v  «guru  sol  para  todos.  O  império 


414 


O  PANORAMA. 


da  razão  e  da  philosophia  restaurou-se.  Cumpre,  que 
esta  sublime  confjuista  da  humanidade,  esta  aspira- 
r;ão  do  progresso,  não  soja  uma  chiméra.  Não  dei- 
xemos que,  como  no  engenhoso  quadro  do  Florenti- 
no, apparcça  o  denunciante  pé  de  bode,  por  debai- 
xo da  orla  dourada  e  deslumbrante  do  \osliào  de 
Satanaz,  assim  desfigurado  para  vir  mais  a  salvo 
em  suas  tentações.  Não  sejam  os  novos  ditames  da 
sciencia  social  e  moral  uma  mentira  maldita,  sobre- 
dourada  de  muita  fé  postiça,  e  protestos  ocos,  em 
occasião  de  fazer  veniaga  e  mercancia.  Haja  fé  e  con- 
vicção, para  que  a  cousa  medre,  e  dê  de  si  os  bons 
fructns,  que  deve  e  se  annunciani :,  mas  sobre  tudo 
isto  haja  cohcrencia,  harmonia  de  parles  e  deriva- 
ções, assim  como  se  crê  ou  aífecta  crer  na  harmonia 
dos  principies. 

Como  cousa  seria  é  o  duello  bárbaro  e  irracional 
de  mais  •,  para  brinco,  revestido  de  formulas  preten- 
siosas, de  pragmáticas,  de  regras,  de  prescripçóes  e 
cerimonial,  é  a  suprema  caricatura  do  mundo,  ul- 
traje do  bom  senso,  opprobrio  de  <]uem  podendo  não 
levantou  caldeira  e  pendão  a  pregar,  por  beccos  e 
pragas,  cruzada  dVxterminio  contra  esta  momice 
pcccaminosa  e  absurda. 

Fúteis  ou  relevantes  que  possam  ser  os  pretextos, 
o  repto  é  sempre  iuenieaz  como  reparação,  e  fre- 
quentemente injusto.  Nas  grandes  pendências  não  é 
o  resultado  de  um  duello  satisfação  que  contente, 
senão  a  quem  vergonha  ejuizo  tudo  perdeu  ^  nas  pe- 
quenas desintelligencias  é  escusado  e  estúpido,  âuan- 
do  para  altas  e  baixas  questões  de  honra  o  pundonor 
não  haja  satisfações  mais  racionaes,  mais  intimas, 
nunca  cousa  alguma  pode  o  duello  ir  corrigir.  Para 
as  altas  conílagraçõcs,  em  que  a  reparaç.vo  ou  sa- 
tisfação é  denegada,  ou  impossivel,  queremos  cousa 
maior  que  o  duello,  queremos  o  cas!  igo  do  culpado, 
como  legitima  consequência  do  maldizer,  ou  do  mal 
fazer  :  para  os  desaecordos  frívolos  c  o  duello  cousa 
mui  subida  e  arriscada,  que  em  taes  eircumstancias 
só  a  idiotas  ou  jograes  pode  convir. 

As  absurdas  leis  do  duello  eqiiilibram,  na  mesma 
balança,  o  réu  e  o  auctor,  o  fraco  e  o  forte,  a  sem- 
razão  o  a  razão,  a  destreza  e  o  desastre.  IMais  um 
quilate  de  sangue  frio,  mais  um  favor  do  acaso,  mais 
um  ])onto  de  dextcridade  sobre  o  contrario,  etrium- 
phará  o  criminoso  do  innocente ;  ficará  castigado  o 
resentimento  o  aspiração  virtuosa  ;  e  o  culpado,  o 
delinquente,  salvo,  radiante,  impune!  lia  de  o  es- 
padachim, criminoso  ou  insolente,  passear  ovante  ■, 
em  quanto  o  homem  honesto  e  commedido,  cujo  era 
a  eausa  da  justiça,  lá  jaz  no  campo  homicida,  dei- 
xando após  si  muita  orpliandade  de  familia  e  ami- 
gos!  Q-ue  juizo  de  lleus  foi  esle  tjue  se  pronunciou  ? 
Q.ue  reparação  se  deu  ?  Que  satisfação  lavou  a  pas- 
sada oflensa  ?  (iual  mancha  pode  o  sangue  do  ho- 
mem apagar  ? 

E  haverá  cegueira,  obstinação  tão  ferina  e  rebelde, 
que  recuso  abrir  os  olhos  d'alma  a  estas  verdades, 
que  são  pai"a  o  velho  repto  uma  condeninação,  que 
a  sociedade  nova  lhe  está  de  toda  a  parle  fulminan- 
do, o  ])ara  a  no\a  doutrina  de  reparações  uni  rebate 
vehemente .' 

Homens,  c|ue  fazeis  as  leiras  e  a  politica  i  homens, 
<[iie  dominaes  nos  primeiros  degraus  da  escala  social, 
e  sois  dos  mais  altos ;  liomens,  que  na  mão  tendes  a 
imprensa  e  a  tribuna;  |)orque  não  lev.nnlaes  pregão 
contra  o  erro  assassino,  que  tem  zomb.ido  do  discur- 
so de  tanta  genfi;  de  alluciuação  faeil  ? — Pré^aes  c 
])romoveis  a  reforma  do  individuo,  da  famjlia,  ilo 
grémio  social  em  fun  •,  fomcntaes  eoni  a  palavra, 
com  o  eonsellio,  com  a  acção,  a  associação  que  dá 
forças,  que  illustra,  que  propag;!.  Jdéas  de  engrande- 


cimento e  felicidade  •,  e  este  engrandecimento  da 
abatida  realeza  da  razão  humana,  esta  felicidade  da 
espécie,  porque  não  armaes  a  propaganda  da  associa- 
ção para  ir  a  favor  d'ella3,  e  contra  lodos  esses  bar- 
bados, deshumanos  preconceitos,  que  um  resto  de 
quixotismo  transplantou  e  tem  mantido  na  socieda- 
de nova,  que  vive,  ou  se  propõe  viver  pelo  philoso- 
phia humanitária,  que  é  luz  da  verdade  e  do  bem 
estar?  —  O  homem,  que  fatiando  ou  calando  parece 
crer  no  duello  como  cousa  admissível,  tolerável,  ou 
de  algum  préstimo  no  mundo,  avilta  a  sua  razão,  e 
a  qualidade,  o  scUo  de  racionabilidade,  qne  lhe  a 
natureza  imprimiu.  O  que  podendo  i<ão  emprega  a 
palavra  e  a  influencia,  para  extirpar  e  apagar  todos 
os  vestígios  d'esse  crime  velho  e  nefando,  cuja  he- 
diondez se  tem  pretendido  disfarçar  com  o  apparato 
de  negociações  e  palavras,  tão  inúteis  como  insensa- 
tas, com  praxes,  tão  ridículas  como  vans,  é  homem 
criminoso  de  lesa-philosophia,  e  lesa-human idade. 

Sacerdotes  da  imprensa !  Propagae  todos  esia  (pa- 
ra nós  talvez)  nova  doutrina  sobre  as  reparações,  em 
pontos  ditos  de  honra  ou  pundonor.  Levemos  con- 
vicção a  todos  os  peitos,  e  a  moralidade  soc-al  ga- 
nhará muiio  com  derrubar  a  razão  indecente  do  aca- 
so dos  combates  singulares,  que  quer  armar  a  preemi- 
nências e  altos  foros. 

E  não  venham  os  susceptíveis,  ou  apaixonados,  di- 
zer que  em  se  descopceiluar  e  proscrever  o  duello 
ficam  muitas  reparações  impossíveis  oj  frustradas. 
Não  '.  Vós  outros,  que  louvaes  e  muilo  pugnaes  pelo 
duello  apparatoso,  (mas  que  não  provastes  ainda  o 
goslo  do  liatcr  a  serio)  considerae,  que  a  razão  hu- 
mana tem  muitos  recursos  para  legislar  d"outro  mo- 
do, e  melhor,  sem  ultraje  da  origem,  sem  vergonha 
nem  traição  do  fim  appetecldo. 

Por  força,  ou  o  duello  não  tem  motivos  plausíveis. 
ou  os  que  a  elle  costumavam  conduzir,  favorecem 
mais  uma  do  que  outra  das  parles.  .Acaso  não  pare- 
ce isto  estar  aconselhando,  que  ambos  os  dis.<iden- 
tes  batam  primeiro  á  porta  d'um  supremo  tribunal, 
const;tu'do  (onicialmente,  e  em  quanto  assim  rão  fòr, 
particularmente  pelos  interessados)  arbitro  de  ques- 
tões de  honra  e  pundonor,  para  que  estude  o  ponto, 
e  decida  a  que  lado  pende  a  r.azão  e  a  justiça  .'  E 
seja  a  decisão  sentença  sem  appello  nem  a:;gravo, 
que  obrigue  a  parte  decaída  ás  salisfaçiHís  ou  repa- 
rações que  a  cousa  pedir,  e  ninguém  haja  que  ouse 
rc\oltar-so  contra  o  julgamento,  e  provocar  a  cor- 
recção, não  só  da  parte  vencedoi-a,  mas  taanbem  do 
tribunal'.  Aí  d'elJe,  que  llie  seria  então  o  cjistigo 
certo  e  ínfaman'e,  sem  p-climinar  de  nenhum  dot 
aliMirdos  equilíbrios,  que  lhe  dava  a  proscripta  lei  do 
duello  ! 

Fora  assim  que  a  razão  e  a  conscícncia  triumphára 
sem  baixeza  nem  cobardia  ! 

Fora  assim  que  a  boa  causa  so  protegera  e  fiíera 
boa  ! 

Fora  assim    que  se  castigara  a  culpa,    c  a  ol»tiii.-- 
ção  irracional  I 

Que  melhor  triumpho  do  «juc  oljlor  rcp3niçâop,v 
cifica,  ou  satisfação  pronipla,  deixando  a  couKrien- 
cia  e  amor  jiroprio  do  cidpado  altatidos  pela  convic- 
ção e  confissão,  uma  levada,  outra  arrancida  pol,i< 
armas  do  raciocínio .' 

Seja  a  reparação,  ou  satisfaç."H>.  particular  ou  pi. 
lilica,  como  d'um  ou  d"outro  modo  í\'it  a  ofTens-n  ;  e 
restabelecendo  assim  o  império  da  raiãv)  ultrajada, 
eon>eguir-se-ha  com  mais  pn>mptidào,  inais  cabal- 
mente e  sem  perigii  de  reíulladcs,  injustos,  não  me- 
recidos, a  reparação  (|U0  o  ducUo  não  dava  nem  jk)- 
dia  dar,  porque  innoconie  e  culpado  amlx)s  cqiiili- 
i  brava  e  confundia. 


o  PANORAMA. 


415 


Gluem  delinquiu  seja  convencido,  e  dê  reparação 
ou  5atisfa;;ão  de  si. 

Quem  a  uma  ou  outra  cousa  se  negue,  depois  de 
prévio  convencimento,  soffra  as  penas  e  castiço  da 
sua  faita,  não  já  só  fulminadas  pelo  offendido,  raas 
ainda  pelos  que  julja-am,  e  n'este  caso  úcaram  sen- 
do partes  a  bem  da  execução  \  mas  sem  que  espon- 
taneamente se  dÊem  ao  culpado  garantias  de  comba- 
te ou  reacção. 

Taes  são  as  doutrinas  de  muita  gente  boa,  a  res- 
peito do  ponto.  Fazemos  votos  por  que  se  preguem  e 
propaguem,  e,  como  devem  em  obsequio  á  razão  hu- 
mana, calem  em  todos  os  ânimos.  A  ellas  nos  pro- 
metteraos  sujeitar  sempre.  Por  ellas  unicamente  pro- 
testamos fazer  obra,  no  caso  imprevisto,  e  que  Deus 
não  dê,  do  sermos  a  isso  constrangidos. 

A  nenhum  duellista  pretérito,  presente,  ou  futu- 
ro queremos,  ou  é  intenção  nossa  irrogar  offensa. 
Htjeitamos-lhe  a  má  doutrina:  propomos  outra  mais 
equitativa  e  racional :,  e  cremos  firmemente,  que  á 
nossa  se  apparelha  um  grande  triumpho.  De  ura  ou 
de  outro  modo  o  numero  dos  AcLilles  ou  niersites, 
nem  augmenta  nem  diminuo.  Os  que  furam,  e  suo, 
serão.  Só  a  causa  da  justiça,  assente  cm  bases  mais 
solidas,  e  menos  arriscadas,  servirá  a  esporear  melhor 
os  ânimos  nobres  e  imparciaes. 

(iuanto  aos  outros  pensamos  assim. 

(iuanto  a  nós,  o  que /òmos,  so7nos,  c  scrcjnos,  se 
próxima  paralisia,  ou  quejanda  afiecção,  nos  não 
desconcertar.  .  .  isto  é,  somos  apóstolos  da  philoso- 
phia,  e  escravos  da  razão  no  que  ella  podo  e  deve 
alcançar,  e  no  que  discussão  e  meditação  bastam  a 
illuniinar. 

José  de  TpuRES. 


BIBLTOGRAPHIA. 

Sobri   a  publicação  de  clássicos  poriuguezes. 

Koi  na  verdade  um  pensamento  grandioso  c  civilisa- 
dor  a  fundação  de  uma  sociedade  com  os  meios  ne- 
cessários para  publicar  pela  imprensa  as  obras  dos 
nossos  clássicos,  tanto  jirosadoros  como  poetas,  cujas 
edições  eslaxam  lia  muito  complolan-ciite  consumi- 
das, sendo  ncccbsarios  annos,  trabaliio  e  diligencia 
para  alcançar  po,-  preço  exhorbitanto  um  exemplar 
de  alguns  d'clies. 

Esta  soci(ídade  re;i1isou-se,  e  por  sua  diligencia  já 
possuímos  novas  edições  do  .lícrnardini  llilioiro,  Gil 
Vicente,  ( 'amõcs,  o  em  breve  Içaremos  tan\be.n  o 
{'alnicirim  ile  Iriirlalcrra  do  elefante  iMoracs.  Estas 
edições  são  con>pl<Mas,  som  as  mui  ilações,  que  llies 
haviam  sido  feitas  pela  censura  fradesca  o  a  Inqui- 
sição. 

A  sociedade,  seguindo  o  louvável  exemplo  (!<!  ou- 
tras de  igual  género  eslabelocidas  em  França,  na  IJel- 
gica  e  na  Allcmanha,  (.uidou  muilo  não  só  na  exac- 
tidão, ebclleza  typograiiliica,  masque  as  suas  edições 
tivessem  unia  condirão  mui  atleiídivel  n^estcs  casos, 
isto  ó,  serem  baratas,  único  meio  de  as  fazer  pere- 
trar  nas  classes  pobres,  o  menos  iiislruidas,  jiarapcla 
lacil  acquisição  dos  bons  livros  poderem  grangear 
certo  grau  de  .inslrucção,  e  aprenderem  a  fatiar  a 
lingua  pátria  com  a  pureza  e  elegância  <|Ue  tão  ra- 
rameiíle  se  encontra  entre  nós  no  povo,  <M'iitre  mui- 
tos individuos  (|ii('  não  são  jiovo  ! 

Nada  mais  virgoiihoso,  <•  ipii'  mais  ciilailanieiiln 
cnuse  rpjo  ouvir  barbarisar  e  <'stropiar  a  lingua  ma- 
terna :,  e  este  di  Ic  ilo  m:  observa  a  cada  passo  entre 
n(«,  (í  muito  priíiilpalmente  no  8(>xo  feminino.   Não 


acontece  assim  nos  paizes  em  que  os  bons  livros  an- 
dam nas  mãos  de  todos,  e  se  alcançam  com  pouco 
custo  e  pouco  dispêndio. 

Temos  pois  para  nós  que  os  homens,  que  se  asso- 
ciaram para  ifo  nobre  empresa  fizeram  um  grande  ser- 
viço á  litteratura  pátria,  e  á  boa  educação  dos  seus 
conterrâneos.  Oxalá  que  esta  benemérita  sociedade 
persevere  com  constância  no  seu  propósito,  e  possa 
vencer  os  obstáculos,  grandes  sem  duvida,  que  se 
atravessam  em  seu  caminho. 

Uma  empresa  similbante  não  pode,  é  verdade,  ser 
mui  producliva  em  seus  principies,  especialmente  em 
1'ortugal,  onde  o  gosto  da  leitura  existe  em  tão  gran- 
de atrazo;  é  necessário  por  ora  empatar  algum  ca- 
bedal, e  isso  desgosta  de  ordinário  os  emprehendedo- 
res  de  todo  o  género  de  industria  i  mas  lá  vem  o  fu- 
turo, que  indemnisa  bem  de  todas  as  perdas,  e  en- 
tão esse  terreno,  agora  árido  e  estéril,  começa  afruc- 
tiCçar  com  abundância. 

E  sobretudo  da  boa  escolha  de  exemplares  para  a 
reproducção  lypograpbica  que  depende  no  principio 
o  credito  da  empresa.  Tomaremos  por  isso  a  liberda- 
de de  indicar  áquella  associação  alguns  livros ;  e  co- 
mo me  consta  queseoccupa  com  a  publicação  do  Pal- 
meirim de  Inglaterra  de  Moraes,  lhe  lembrámos  que 
deveria  ser  acompanhado  do  segundo  D.  Duardos,  e 
D.  Clarisol  de  Bretanha,  que  de  alguma  sorte  fa- 
zem parle  d'este  livro,  porque  são  a  continuação  do 
mesmo  assumpto,  e  nada  inferiores  ao  Palmeirim  na 
pureza  e  elegância  da  lingua,  pois  até  a  Academia 
Real  das  Sciencias  os  allega  muitas  vezes  noseuDic- 
cionario  como  textos  da  lingua. 

Lembraremos  mais  a  Historia  da  Abvssinia  do  pa- 
dre Alvares,  obra  clássica,  e  tão  rara  ijue  é  mais  fá- 
cil encontral-a  em  manuscripto  que  impressa,  e  é 
obra  que  os  estrangeiros  tem  mencionado  com  lou- 
vor. 

Igual  attenção  merece  o  igualmente  raro  Tratado 
da  Pintura  por  Filippe  Nunes,  algumas  das  nossas 
chronicas,  c  as  Investigações  sobre  os  Celtas  do  de- 
sembargador António  Ribeiro  dos  Santos. 

Quanto  a  poetas  lembramos  em  primeiro  logar  o 
Primeiro  Cerco  de  Dio  por  Francisco  de  Andrade, 
obra  mui  recommendavel  jiela  bellcza  da  linguagem, 
e  da  versificação,  e  pelos  excellentes  trechos  do  poesia, 
que  n'elle  se  encontram,  os  Cancioneiros  de  Resende 
e  o  do  ("ollegio  dos  Nobres ;  posto  que  o  primeiro 
fosse  publicado  em  Allcmanha,  entre  uma  collecção 
dos  livros  raros  de  todas  as  nações,  e  o  segundo  por 
lurd  Stuart  :  como  aquelle  se  não  vende  em  separa- 
do, c  o  segundo  só  foi  impresso  para  brindar  ami- 
gos, e  presentear  alguma  livraria,  é  evidente  <jue 
existem  como  d'antes  lura  da  circulação. 

Recommendamos  igiialment(;  as  l'roezas  de  Duar- 
te Pacheco  e  o  S.  (ionçalo  <r.\marante,  poemas  ma- 
nuscriplos  de  Uligml  Cer<|ueira  Doie,  os  Trabalhos 
de  Hercules  de  ÍManoel  de  Sousa  Moreira,  o  Cancio- 
neiro deJorge  deMonteinaior,  hoje  rarissiuio,  a -Ma- 
laca conquistada  de  Sá  de  ílenezes,  e  as  obras  de  Sá 
e  Miranda,  juntandu-lhe  as  suas  comedias,  mas  na 
sua  integra,  e  não  mutiladas  horrivelmente  coino  o 
foram  pila  Inquisição. 

E  ponpie  não  chamaremos  nós  a  afleiíçãniPaqucl- 
la  benemérita  soiiedadi'  sobro  a  eonvcnieiuia  de  pu- 
blicar-se  a  traducção  da  Eneida  ile  ^  irgilio  e  das 
IMelamorphoses  ile  Ovídio  pelo  pailre  Francisini  Jom- 
l'"reire,  da  primeira  das  «piaes  consta  existir  uma  co- 
pia na  Academia  Keal  ilas  Sciencias,  e  o  aulogra- 
pho  da  segunda  na  Bibliotlicca  <le  F.voni,  havendo 
além  d'isMi  algumas  cilpi.is  pelas  nulos  tios  (•urio>osf 
E  tal  a  nossa  pobreza  eiu  Iraducçõri  pnctíca'- dos  poe- 
mas gri'gos  e  romanos  que  não  seria  po.viivcl  deixar 


416 


O  PA]\ORA3IA. 


<le  considerar  como  beneméritos  das  leiras  pátrias  os 
(lue  dessem-  á  luz  pela  imprensa  duas  obras  tão  aca- 
badas. 

Não  ó  nossa  intenção  dar  conselhos  á  illustre  asso- 
ciação editora  dos  clássicos  portuguezes,  nem  ensinar- 
llie  o  caniinlio  que  deve  trilhar :  sabemos  perfeita- 
mente (juo  ella  não  necessita  dos  nossos  auxílios ,  o 
cjue  fiizemos  é  lembrar  cousas  que  nos  parecem  pro- 
veitosas, e  fazemos  isso  pelo  muito  zelo  que  nos  ani- 
ma pela  gloria  das  letras  nacionaes,  e  para  exprimir- 
mos o  pesar  que  nos  causa  vêr  perdidas,  ou  quasi  in- 
teiramente perdidas,  tantas  obras  de  merecimento, 
que  infallivelmente  desapparecerão  se  o  patriotismo 
de  alguém  llic  não  acudir  com  remédio. 

J.  M.  DA  Costa  e  Silva. 


(JURSO   DE  língua  ITALIANA,    PELO  CAVALHEIRO 

A.  Galleano  Ravau.\. 

Aknlsciando  um  curso  da  lingua  mais  poética  da 
Europa,  dado  por  um  dos  mais  extremados  cultores 
da  poesia  e  litteratura  canonisada  pelo  Dante  e  pelo 
Tasso,  julgamos  levar  uma  boa  nova  aos  leitores  does- 
te semanário.  O  auctor  do  Albiim  Halo-Poriugiie:, 
é  ja  devidamente  conhecido  n'esta  cidade  para  que 
ieja  mister  recommendal-o.  E  desnecessário  tamljem 
seria  repetir,  que  não  6  licito,  que  deixem  perder, 
os  que  presam  este  bello  idioma,  occasião  tão  favo- 
rável, para  em  breve  espaço  de  tempo,  e  sem  as  te- 
merosas inclemências  d'abhorrimentos  pedagógicos, 
aprenderem  a  manejar  como  sua  a  linguagem  da 
Itália. 

Eis  as  condições  com  que  este  sr.  vac  abrir  o  seu 
curso  : 

O  professor  A.  Galleano  Ravara  vae  abrir  um 
curso  de  lingua  italiana  em  sua  casa  no  Largo  de 
S.  Carlos  K."  5,  3."  andar.  As  lições  terão  logar 
todas  as  quintas  feiras  ás  7  horas  precisas  da  tarde  •, 
e  n'ellas  empregará  um  metiiodo  pratico  de  ensino 
que  habilitará  «jualquer  pessoa  a  aprender  a  fallar 
ajuellu  lingua  no  breve  espaço  de  três  mczes. 


O  AVARXNTO. 


No  próximo  moz  de  janeiro  de  18o3  co- 
meçará a  publicur-se  o  10.°  volume  do  Pa- 
noramu.  Aniiunciando-o,  o  Editor  aproveita  a 
occasião  para  agradecer  a  protecção  que  o  pu- 
blico illustrado  lhe  tem  dispensado,  e  a  svm- 
pathia  com  que  foi  recebido  geralmente  o  pen- 
samento de  continuar  um  semanário  tão  illus- 
tre nos  fastos  da  litteratura  pátria.  J)ifficulda- 
des  inevitáveis  na  organisação  di-  uma  empre- 
sa desta  ordem,  que,  camo  todos  sabem,  e 
inteiramente  distincla  das  anteriores,  obstaram 
a  que  a  nova  serie  do  Panorama  correspon- 
desse inteiramente  aos  seus  desejos.  O  pa- 
pel, que  nos  fornecem  as  nossas  fabricas,  c 
que  ainda  não  reúne  as  condições  necessárias 
para  uma  edição  nítida,  faz  principalmente 
com  que  as  excellentes  gravuras  que  temos 
dado,  todas  devidas  ao  delicado  buril  do  sr. 
Coelho,  nào  sobresaiam  tanto  quanto  era  n^.a 
desejar.  Esperámos  obter  melhor  papel,  e  con- 
tinuaremos solícitos  a  enípregar  todos  os  meio- 
para  que  o  Panorama  venha  a  ser  lambem 
um  specimen  dos  progressos  da  arte  tvpogra- 
phica  entre  nós.  Em  quanto  á  redacção  o  Edi- 
tor não  duvida  apresentar  os  números  publi- 
cados como  imia  prova  insuspeita  de  que  não 
sabe  faltar,  nem  faltará  jamais  ás  condições 
exaradas  no  seu  programma. 

Assigna-sc  para  este  semanário :  em  Lííí- 
boa,  no  armazém  de  livros  do  Editor,  run 
do  Ouro,  n."'  227  e  228,  e  nas  lojas  dos 
sr.'"'  Lavado,  rua  Augusta,  n."  S,  Bravo,  ru  i 
do  Ouro,  n.°  212,  Zeferino,  rua  dos  Capel- 
ITstas,  etc. 

São  correspondentes  do  Pitnurama  no  Por- 
to, o  sr.  A.  R.  da  Cruz  Coutinho ;  em  CÀ>im- 
bra,  o  sr.  A.  il.  Dardaihon ;  em  Braga,  o 
sr.  Freitas  Guimarães :  em  Saniarom,  o  sr. 
José  Firmino  d.Vzevedo  1'ereira ;  em  Setúbal, 
o  sr.  Manoel  José  Ferreira :  na  Ilha  de  S.V) 
Miguel,  o  sr.  M.  C.  d.Mbergaria  e  Valle :  e 
na  Ilha  da  fiadeira,  o  sr.  .\.  J.  de  Araújo. 


Preços  :  —  Por  amio  ou 
Por  semeslie  ou  2()  ii." 
avulso  30  rs. 


.S2  n."  1  j300  r^. 
700    IS.   .Numei 


Os  sr."  que  disijnrem  subfrre^er  para  o 
nnno  de  1833  queiram  declaral-o  quanto  an- 
tes, em  Lisboa,  aos  destribuidoro*.  ou  nos  lo- 
gares  ncinia  citados,  e  nas  provincia»  ao»  cor- 
re>i|íi)ndentes,  ou  ji»r  carta  fraiua  de  porlf. 
dirigida  no  Editor,  e  atom]ianhaJa  «Ir  »i"t' 
urdem  da  respectiva  importância. 


KiiuÇtí.  — .\  pafe.  405  lin.    4 J  — onde  csU   ai 
lura  — lèi!-ío  —  idtinia. 


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'os   do  Editor,   ru.i 
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