SEMANÁRIO DE LITTERATDRA E IXSTRUCCÃO
VOLUME XVI
PRIMEIRO DA QUINTA SERIE
LISBOA
TYPOGRAPHIA FRANCO-PORTUGUEZA
6 RUA DO THESOURO VELHO 6
1866
^^.
ÍB R A ^J
K 9 1964
87SI2!)
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5C
ly.i^
o PANORA
SEMANÁRIO DE LITTERATURA E INSTRUCGÀO.
DUAS PALAVRAS AO PUBLICO
Depois de bastanles annos de interrupção reap-
parece o Panorama, esse biilhante museu da lit-
teratura porlup;ueza, onde penduraram maravilhas
duas gerações de escriplores. A interrupção d'es-
te jornal foi deplorada pelos muitos assignanles
que o tinham seguido com interesse na sua longa
e esplendida carreira.
O modo como este jornal foi redigido impõe gra-
ves obrigações áquelíes que se encarregam de sa-
tisfazer um desejo do publico, c que hão de ten-
lar não deixar desmentidas as esperanças que o
titulo d'esle jornal inspiíH. Não ousariam fazel-o
se não contassem com o auxilio de algumas das
pennas mais justamente illustresdc Portugal.
Não fazemos programmas, nem tentames captar
a bene\olencia dos assignantes com promessas
pomposas. Ninguém duvidará de que não acceita-
riamos (nem pessoa alguma acceitaria) o pesado
encargo que tomamos, se não tencionássemos em-
pregar todos os esforços para nos desempenhar-
mos, o melhor que podcssemos, da tarefa que
emprehendemos.
- A SUISSA
Gostais de viajar, leitor, de mudar de sitio amiú-
de, de caçar? Gostais de perspectivas, de paisa-
gens; vera escuma das correntes, a melania dos la-
gos, os eííeilos da cerração, llorcs, arvores, roche-
dos, estreitas? Ide á Suissa! Onereis ver o rio seintil-
lante, o lago de gelo, o vai negro e fecundo, a
ponte do Diabo, a força c a belleza do mundo?
ide á Suissa?
A Suissa é a Cintra da Europa. Se estais doen-
te, curar-vos-hão as suas aguas Ihermaes ; se go-
sais sauJe, sentireis alli mulliplicarem-se-voâas for-
ças, alongar-sc-vos a vida, dilatarem-se-vos os pul-
mões. Assim como a águia das montanhas, banhar-
vos-heis n"uma nuvem, e a vossa vida se renovará.
Na alluia emque vos achardes, oh! como se tem com-
paixão das miseráveis agitações do mundo 1 Como a
alma se aproxima da Divindade! Como se lastimam
os homens, com as suas peíjueninas idéas e pai-
xões, diante dos grandes mysterios da existência!
Oh! não pode haver duvidas na presença d'aquella
natureza ! Conhece-se alli j)erfeitamente a mão do
Omnipotente. Das arvores, das torrentes, das nuvens,
dos rochedos, dos abysmos, saem mil vozes con-
fusas, errantes e meíodiosas, que vos gritam in-
o PANORAMA
cessanlemenle : Deos 1 Deos ! Deos ! A imniensi-
dade esmaga-vos, Iritura-vos, confunde-vos, an-
iiiquilla-vos, e julgais ouvir por Ioda a parle, cm
torno de vós, essas palavras que, com Ião desde-
nhosa ironia, caiam dos lábios de Montaigne :
En/h-toí, paurre /lomnie, et encorei et encore!
K depois, que de lembranças, que de grandes
nomes a j)airar por cima d'aquellas collinas,
d'aquellas cidades, d'aquelles caslellosi Primeiro,
os nomes de hcroes : Jiflio César, (íuilhermeTell,
Napoleão. Em seguida, outros nomes celebres de
enlre os historiadores do pensamento: Rousseau,
Calvin. Byron. Lavaler, Mme. Slael, Sénancourl.
Ouando, Jean-Jacques, percorria os desorlos da
Meillerie. essas escabrosas solidões inspiravam-
Ihe. sem duvida, as paginas severas onde o século
\1X eslava em gérmen. Byron ai li levou a seu scep-
licismo zombador ; também teve o seu quarto de
hora de enlhusiasmo ; e a sua vida, agitada como
as ondas do Uhodano. precipilou-se nanoile eter-
na, cxhalando csle grilo funesto: «U que sei cu?!))
Só a pupilla de Schlegel. conservou até ao lim o
seu sangue frio philosophico, os seus estudos po-
sitivos e sérios, a sua potente virilidade. Só ella
introduziu o escalpello sem perturbação e sem
commoções na organisação moral do homem.
Uma coisa que tornará a Helvécia sempre cara
aos viajantes de todos os paizes, é a novida-
de, a nmlliplicidade e a variedade das sensações
que alli se experimentam. A llalia, o berço das
artes, esse grande edifício niaimoreo, incontesta-
velmente, contém innumeras bellezas. A admira-
ção, porém, é deencommenda. Se alli fordes, lei-
tor, experimentareis as mesmas commoções que
experimentaram os que vos precederam, e que se
acham consignadas nos seus manuaes. Na Suissa
a natureza varia de aspecto a cada passo, a cada
instante. Aqui, o inverno semelhante ao da Sibé-
ria: a neve, a geada, o nordeste; voltais um ro-
chedo, eis a primavera : relva, flores, cascatas,
luxuriante vegetação. Por vezes tendes a vosso
lado o perigo, esse rude, mas precioso compa-
nheiro, que «rgue o peso da dor e que prende á
vida.
Logo, um novo espectáculo doce e consolador
se vos oflerece. Tm hospício de religiosos, cuja
caridade, mais do que os cálculos dos sábios,
vos ensina, o caminho do ceu. Oue admirá-
vel quadro o d'esses homens desconhecidos, vi
vendo a vida mais santa, não levantando o seu
melancholico olhar senão paia abençoar os que en-
contram, e mostrando por suas palavras c acções
que não vivem senão para esse Deos tão grande,
esquecido no mundo, adorado no seu deserto. Oh!
(juão i)enetrante é a voz da religião (|uc se tem
lefugiado no meio d'aquelles cimos abruptos,
d"aquell('s gelos eternos! Como ella jjrende o co-
ração do homem! Como o prejiaia para os phe-
nomenos da outra Nida !
Ainda outra mutação de scena. Atravessais um
corredor, abris uma i)orta, e entrais em um ma-
pniíico salãT), ricamente mobilado, onde estão mu
Iheres amáveis c lisonhas ; achais os costumes
elegantes, a conversação espirituosa. Por vinte e
quatro horas deixais o vosso traje de viagem; jo-
gais uma ])arlida de xadrez, ouvis um motivo do
admirável Gnil/tenne Tcll, de Rossini, folheais os
jornaes, as revistas, os álbuns, e no meio d'estc
passatempo, podeis ouvir as lamentações do ven-
to nos pinheiros rudes, as cantigas dos pastores,
os gritos dos guias, o eslampido abafado das ava-
lanchas e ao longe os surdos bramidos do espiri-
to da montanha.
No dia seguinte continuais a vossa viagem.
Numerosas caravanas de curiosos se vos deparam
perdendo-se no meio dos pinheiros, para reappa-
recerem um instante depois, parando a todo momen-
to a tim de remediar qualquer accidente sobrevindo
ás suas cavalgaduras, e preparando-se para atra-
vessarem um d'esses precipícios diante dos quaes
recuaria uma cabra. Os mineralogistas fazem sal-
tar fragmentos de rochas com o seu martello de
aço ; os botânicos andam curvados, examinando
as plantas raras que lhes apparecem era multidão;
os entomologislas perseguem com suas redes de
gase os lepidópteros ; os pintores arrastam o seu
cavallete e a sua tella ; os poetas recitam ; os
músicos tocam e cantam; as mulheres pensam.
Se quereis fazer uma idéa da Suissa, sob o
duplo aspecto que apresenta, é necessário que
vos demos o esboço de duas scenas : uma de paz,
de quietação, de serenidade; a outra de alvoro-
ço, de desolação, de morte.
Para a primeira scena, temos só a pedir-vos
que lanceis um olhar pela nossa gravura. Avis-
ta do assumpto poderíamos muito facilmente apre-
sentar-vos um idilio no gosto dos de Gessner, de
Florian ou de M. de Fonlenelle ; mas isso é re-
trogrado ; o século não se entrega a essas ninha-
rias. Hoje em dia as damas desenham, gravam,
tocam piatio, e não mungem as cabras, como a
infeliz Maria Anlonietta ; os generaes só lêem as
ordens do exercito; os padres, cn vez de ver-
sos e outras obras lillerarias, praticam a carida-
de evangélica e vivem, pobremente, soiTrendocom
resignação os revezes mundanos; a nossa aristo-
cracia ensina cavallos, farpea louros e não com-
põe charadas nem madrigaes. Não vos cansare-
mos, pois, leitor, com o (pe está fora de uso,
nem com minuciosos exames; porque o quadro,
por si só, e bastante para poderdes ajuisar. Ve-
des uma pequenina aldeia, não é verdade? e
três camponezes que se dirigem para o seu do-
micilio, a |)rocurar o descanço dos trabalhos agres-
tes do dia. Oh! mas tudo resj)ira paz, traníjuil-
lidade; tudo é risonho, |)erfumado ; é como um
êxtase da natureza sob o olhar de Deosl
Acabais de ver o agradável; vinde agora ao ter-
rível.
A avalancha ! Esta palavra tem um tanto de
assustador e de glacial. A (jueda de uma avalan-
cha produz um ruido isolado, que não se asseme-
lha a nenhum outro. Ente algum vivo lhe respon-
de com um grito de terror O mesmo eco é mudo
nas innumeraveis anfractuosidades das montanhas;
esses tortuosos dédalos, atapetados de neve, recc-
o PANORAMA
bem eiu silencio um murmufio insensível, ao qual
não succede o menor som,* O soce^o, em regiões
onde a natureza está como envolvida n'uma im-
mensa mortalha, augmenta a impressão do terror,
que produzem esses picos agudos, essas extremi-
dades inaccessiveis, esses esqueletos mirrados,
essa libré dos invernos eternos, estendida como o
veu do esquecimento sobre o tli^alro das mais an-
tigas revoluções do globo. O tocar com o pé na
borda de uma fenda, pode produzir a queda de uma
avalancha. Um tiro de espingarda, a voz dos via-
jantes, o som das campainhas dos machos, podem
causar o mesmo resultado. As avalanchas de neve
pulverulenta {staublouinrn) são mais perigosas,
poi-que abrangem ura grande espaço, e, sobretudo,
pelo movimento que imprimem no ar. O furacão
leva tudo quanto encontra em sua passagem: arvo-
res, casas, aldeias inteiras. Era menos de uma
hora, as estradas desapparecera, e a neve toraa
por toda a parte dez pés de profundidade. A
montanha treme até nos seus fundamentos ; as
arvores entrechocam-se, os ramos despedaçam-se,
os rochedos desarraigani-se, as paredes das casas
abrem largas fendas, as vigas estalam, os tectos
caem. Tudo se desmorona ! São convulsões, hor-
rores, uma agonia. Aopallido clarão da lua, os ho-
mens, as mulheres, as creanças, arrancados ao
somno, errara senii-nús, olhos espantados, boqui-
abertos, cabellos erriçados, sem se reconhecerem,
sem saber aonde enconli"ar um abrigo. Os que po-
derara escapar-se de suas casas, meio destruídas,
procuram-se, abraçam-se, reunem-se. O cura, en-
tão, cólloca-se uo meio d'elles, sereno c grave,
tendo na mão a custodia, que encerra a hóstia
consagrada. Todos ajoelham sobre a neve, fronte
descoberta, olhos levantados para o céo, com a
alma transida de terror; e logo ao ruído das lon-
giquas avalanchas, soa nos declives da montanha
a terrível e solemne melodia do J)k's irce.]
A QUESTÃO LITTERARIA
ror ZACHARIAS AÇA.
Ha ura anuo lia-se em Lisboa ura livro novo a
lodos os respeitos, novo pela forma, |)ela ídéa e
pelo nome do auctor. Ouando digo novo, cla-
ro está que me retiro a Portugal. Discutia se
o titulo e o assumpto; a forma era aquilatada pe-
los mestres, pelos cinzeladores, pelos Cellinis da
palavra; a ídéa era estudada pelos que lidara com
os assumptos históricos, com a philosophia e com
a poesia. O livro lilíava-se era alguma das esco-
las modernas da AUemanha, e punha a mira mui
alto. O tentaraen eia uma temeridade, e o resul-
tado provou que os ícaros não acabaram ainda ; nem
era isto para admirar quando vimos Victor Hugo,
que precedera n'estaemi)reza o sr. Theophilo Ura-
ga, rojar-se, elle, a águia, pela terra, indo mos-
trar nos ares, agora manchadas pela lama, as azas
outr'ora alvas e esplendidas. .lá disse o nome do
auclor ; o livro chama-se — Visão dos lempos. —
A ignorância de uns, a falta de senso critico
de outros, e a extrema e, no meu entender, crimi-
nosa benevolência da nossa imprensa, fizeram com
que esle livro occupasse oflicialmente na liltera-
tura contemporânea um togar distíncto a que de
certo não tem direito.
Visão dos tempos ! Esta reconstituição das ci-
vilisações que passaram é diflicilima, em alguns
pontos é impossível, e requer os talentos e a
sciencia de ura Cuvier, de ura Goethe. Esle titulo
,esmaga a obra de um escriplor que nasce para as
leiras, e o sr. Theophilo Jiraga, se, era vez de ser
portuguez, fosse allemão, inglez ou francez, e vi-
vesse era ura paiz onde acrítica abrangesse todos
os ramos dos conhecimentos humanos, o que en-
tre nós não succede, infelizmente, havia de estar
agora arrependido de ler publicado o seu livro.
Não bastam, para que uma obra passe á poste-
ridade, os títulos pomposos e as citações abun-
dantes, porque não é isso o que constítue a ver-
dadeira sciencia, a luzqueallumia a todos. A eru-
dição assim entendida é fácil, mas é inútil, e o
titulo, se é chamariz que altrahe o publico ao
balcão do mercador de livros, é lambem e ao mes-
mo tempo signal de leviandade ou de nimía pre-
sumpção das próprias forcas.
Escrevendo ura prologo com o titulo de «Gene-
ralisação da historia da poesia» o sr. Theophilo
Braga não podia aspirar a outra coisa que não
fosse o vulgarisar entre nós, até hoje segregados
quasí completamente do grande moviraento phí-
losophíeo, histórico e litterarío da Europa, as idéas
que se ensinara nas academias e universidades
estrangeiras. Isto e só isto podia ser, allentas as
circurastancias que se davara no joven poeta que
não poderia racíonalraenle loraar a si as funcções
de mestre e iniciador.
As qualidades, que se lequerem no vulgarisa-
dor, são em primeiro logar a sciencia, depois o me-
thodo e a clareza na exposição.
Encontram-se no prologo da Yisão. dos tempos
estes predicados?
Parece-me que não. A exposição é confusa ; as
syntheses não se ligara rigorosamente; não ha ló-
gica na deducção das idéas, e a phrase, por vezes
germânica, não tem o rigor geométrico tão ne-
cessário em assumptos d'esta ordem: em compen-
sação as citações abundam.
Isto pelo que diz respeito á prosa.
i\a Bacclianle, a maior e a melhor das com-
posições que constituem aquelle livro, foi mais
feliz o auclor, comquanto licasse aqui rauilo á quem
da perleição. Deixando de lado a parte aitistica,
a metriucação, 'que n'este assumpto devia ser mui-
to esmerada, o sr. Theophilo Braga é, n'esle poe-
meto, inferior aos poetas francezes que lera pro-
curado fazer reviver nos seusescriplosa singeleza,
a elegância, a harmonia e a serenidade da poe-
sia grega. Citarei apenas o nome de André Che-
níer e o de Leconte de Liste, e, corao a respeito
d'este ultimo escreveu Gustavo Planche algumas
observações que vera de raolde, lianscreve-las-
hei aqui*. — «O prefacio do sr. Leconte de Lísle
prova alé à evidencia que o manejo do melro e
da rima não ensina as regras mais elementares
o PANORAMA
da prosa. As idéas mais justas não podofii pres-
cindir de ser apresenladas sob uma forma clara
.' exacta ; ora o sr. Leconle de Lisle parece des-
jiresar abertamente a clareza c a e^;actidão. As
>uas ideas não se oncadeam e apreseiilam-se-nos
vanas e confusas. Habituado a falhir a lingua dos
deuses, o auctor mal se sabe exprimir na linaua
tios homens c obriga-nos a adivinhar-lhe o pen-
-amenlo.)^ «
Isto que o eminenle critico diz de Leconle de
l.isle, e como se vè. pouco mais ou menos, o que
ou disse acerca do prologo da Visão dos tempos.
Ksla, portanto, o sr. Braga em muito boa compa-
nhia, mas o caminho ò mau.
Voltando à poesia direi que aBacchanle não é,
j.ara mim. nem uma estatua, nem uma pintura
de Ilerculanum ou da grande arte da Henas-
rença, porque não len\ nem a vida exuberante c a
-raça dos contornos da esculplura grega, nem o
dorido e a expressão de Corregio ou Raphael.
Aquellas figuras são pouco accentuadas, e, se é
preciso compara-las a um objecto de arte, direi
(jue são antes um esboço do que uma obra per-
íoita e acabada. O desenho é incorrecto ainda, a
luz não está- bem distribuída, a composição, o
iigrupamento das figuras não está determinado
delinitivamente.
O sr. Camillo Castollo Branco, ■n'um dos seus
artigos crilicos sobre este assumpto, diz que
«Na contextura da Bacchante a critica não tem di-
reito a assignalar inverosimilhanças.» Mais abaixo
accrescenta; «O sr. Theophilo Braga inventou ;
dos usos gregos aproveitou as decorações para a
scena : foi a poesia mUhologica, sem duvida, que
Ufas deu. A íjrecia não era assim, de certo. »
A critica tem direito a notar as inverosimilhan-
ças, porque ellas existem no poemeto, cesse di-
reito assiste seni()re á critica.
Era preferivel (|ue o joven poct^ não invenlas-
so, j)orquc a (Irecia comj)unlia-se não de nomes,
mas de homens que tinham cosjumes e ideas
difierenles das nossas, e na emprcza do sr. Bra-
ga havia uma parle histórica importante que elle
não devia despresar.
Finalmente, sem discutir agora as outras opi-
niões da critica, aliás çxcellente em muitos pontos
do sr. Camillo Caslello Branco, e que c uma das
mais completas que ultimamente lem apparecido,
direi que o illustre romancista c^ndemnou a ]{ac-
chante quando disse (jue a íjírecia não era assim.
Das outras cí/mposiçõos, inferiores em q^jalidade
c quantidade á Baocliante, pode-sé dizer o mesmo
que a respeito d'esta escrevi.
Eis-aqui, em synlhese, o que eu penso da Visão
(los lempos, reservando |)ara mais tard(! c se fôr
necessário,- a coníirmafão anal\tica do (lue deixo
dito.
{Continrm)
tremamente empenhada, tendo recebido convite
para um baile na corte, mandou, por carta, a uma
sua amiga, mais idosa e menos bella, pedir empres-
tados os diamantes.
Esta, que n'aquelle dia não eslava de bom hu-
mor, terminando a leitura do escripto, voltou-se
para o criado, e exclamou: «Diga a essa senhora
que, SC me envia a sua cara, tleixo de fazer uso
de Iodas as minhas jóias.»
A in-.LLESA E OS ADORNOS
Ima das senhoras mais formosas e eleganlesda
arislocracia hcspanhola/my.^ cuja casa eslava ex-
OS PHÍLO-PORTUGUEZES.
rOR INNOCENGIU b\ DA SILVA.
I
Por impulso da insaciável curiosidade, que apo-
derando-se do nosso espirito em annos bem lenros,
tem permanecido comnosco até á idade madura,
lovando-nos a ler, ou antes a devorar indislincla-
-menle n'este já longo intervallo milhares e milha-
res de volumes de lodo o género, desde os
mais raros e exquisilos primores do saber huma-
no, alé as mais fúteis e minguadas producções
que os prelos de si lançam muilas vezes para ver-
gonha e descrédito de quem as engendrara : pe-
gámos ha dias de um folheio, recenlemenle im-
presso, e que por seu assumpto começou a dar
tamanho brado, que já corre, segundo se diz, em
terceira edição. Com pretenções á originalidade,
e recheado, ao que nos pareceu, de muitas e sin-
gulares originalidades, não foi sem grande ex-
Iranheza que por enlre os paradoxos, que o auctor
se comprazeu de semear a llux por todas as pa-
ginas de Ião notável obra, o vimos alludir com
ostentoso desdém ás plirases rabujentas dos
nossos lieros bolorentos chamados clássicos, e lo-
go adiante acoimar os escriptos em prosa de um
nosso palricio, (por ventura o mais vernáculo dos
contemporâneos que se esmeram em bem escrever,)
de imitações das algaravias mj/sticas de frades
estonteados !!! Assim, i)ois, se conceituam de um
rasgo de penna, c na phrase dos modernos pro-
j)Ugnadores da Jdéa (com inicial maiúscula !) os
Vieiras, os Bernardes, os Sonsas, os Lucenas, os
Arraes, os Dcitores l'intos, os Thomés de Jesus,
e tantos outros mestres do nosso formoso idioma,
que pela lluidez, energia, persj)icui(iade e elegân-
cia da linguagem lêem sido, e são ainda as deli-
cias dos que chegam a enlendei-os! A fé, que
ao ver laes palavras escriptas por homem (|uc
se diz portuguez, ou (|ue ao menos nasceu em ter-
ras de Portugal, sentimos a alma sombreada de
uma commoção dolorosa, que em vão lenlaria-
mos exprimir !
Não o pensavam assim tantos erudilos estran-
geiros, que em tempos mais antigos e até no sé-
culo actual, conseguindo vencerá força de estudo
as confessadas dilliculdades da lingua, e peneirar
os mysterios da no.ssa elocução, se apressaram a
trasladar nas suas, esses bolorentos andores, de
que tão enjoados desdenham os modernos inicia-
(lores de novas sendas. Nem Ião pouco os ama-
dores esclarecidos, (|ueem Iodas as nações compra-
vam, c compram ainda; lahcz 51 peso de ouro,
o PANORAMA
esses desprezados livros, para com elles enrique-
cerem suas fastosas e escolhidas bibiiolhecas.
O extenso catalogo que de uns e outros pode-
riamos tecer, seria talvez n'esta parte a refutação
raais azada que cumpria dar a insólitas asserções,
forjadas nos cérebros escandecidos dos que a si
se preconisam de idealistas por excellencia. Bem
feriamos esse desejo, porém lallece-noS agora mais
que nunca o tempo, e sobram-nos occupàções
que impedem realisal-o. Faremos todavia o que
podermos, e a começar pelaGran-Bretanha; coni-
memoraremos em seguida a este artigo os nomes de
cinco illustrados philologos inglezes, distinctos
por seus conhecimentos, e alguns notáveis por
sua elevada cathegoria na ordem social, que no
século corrente se mostraram enthusiasticos ama-
dores da nossa litteralura clássica, patenteando
por modos nada equívocos a estima e admiração
(jue lhes inspiravam esses auctores, que hoje vemos
indignamente vilipendiados por nacionaes com
apodos ião grosseiros.
iConlinua.)
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M. LÉON DE LABORDE
Esle illustre varão, filho de Alexandre L. Jo-
sepb, conde de Laborde, nasceu cm Pariz no
anno de 1807, e lornou-sc distinclo no mundo
lilteraiio pelas suíis iuleressantes averiguações
sobre a historia da arte, da gravura, da imprensa
e das bibliothecas. É a elle, depois de Niéburh,
Hurckardt e Mangles, (jue se devem as mais vas-
tas e magnilicas noticias sobre a Arábia, paiz ce-
leberrimo da antiguidade ecuja historia vai pren-
der nos primeiros tempos. Estudou, durante um
anno de residência no Cairo, o idioma árabe, e,
6
O PANORAMA
em 1828, á frente de uma numerosa caravana,
vestido como os liabilantes de Alepo, trajo que
adoptou para melhor poder idenlilicar-se com os
povos que queria visitar, inlernou-se pelos areiaes
do Egyplo, e atravessando a Syria. Alepo, Liba-
no. Damasco. Palmira e outros pontos igualmen-
te curmsos, subiu o monte Taurus, penetrou até
a antiga cidade de Petra.
Esta viagem não teve só por fim a contemplação
dos monumentos da antiguidade ; como se vè das
Yoyages dans rArabie Pefréc, en Asic Mineure
et enSyrie, Mr. de Laborde, estudou também as
plantas, animaes e geographia d'aquella parte do
mundo ; o que, realmente, foi um grande serviço
prestado ás sciencias.
As obras que conhecemos do intrépido viajante,
são as seguintes : Les Grandes hahitaliom fran-
raises an XVIÍ siêcle ; Yoyages dans rArabie
Pétrèe, 1830, — en Asie Mineure _ et en Syrie,
1837 ; les Ducs de Bourfjoyne, Études sur Ips
lettres, les arts, et t industrie, pendant le XV
siècle, 1819 — o{:_La fícnaissance des arts à la
eour de f rance, Études sur le XVÍ siècle, 18o0;
Aotice des émaux, bijoux, exposés au Louvre,
1853; Atliènes aux XV, XVI et XVJÍsiécles, 1855.
Mr. Léon de Laborde substituiu seu pai na
camará dos deputados e na Academia das scien-
cias moraes.
PEREZ LORENZO
(SrcnaM d» Cantitanha do IMçxico)
ror riMIElRO CHAGAS."
I
Todos conhecemos os últimos acontecimentos
do México, acontecimentos, que transformaram a
anarchica republica americana, graças á interven-
ção franceza, n'um império que por ora apenas se
esteia nas bayonetas dos zuavos, mas que, para
o futuro, se não commetler grandes erros, se des-
envolver o espirito nacional, se entrar no cami-
nho dos progressos materiaes, poderá conquistar
mais seguras garantias de solidez. Sabemos dos
insultos selvagen.s.e anli-politicos a que estiveram
sujeitos os estrangeiros, da insistência do gover-
no mexicano em responder com orgulho ás recla-
mações das potencias occidentaes, da intervenção
motivada por esse inqualificável procedimento, e,
finalmente, do celebre convénio da.Soledad, que,
isolando a politica franceza da politica ingleza e
(la hespanhola, deixou a divisão imperial em cam-
jio contra as foi'ças todas da rej)ublica.
A questão da honra da bandeira arrastou a
França talvez muito para além do ponto a (|ue
tencionara chegar. As águias victoriosas de Alma,
c de Solferino sustaram o vôo audacioso perante
as muralhas de Puebla. O general Lorencez leve
de recuar diante do indiscij)linado exercito ame-
ricano-hespanhol. A noticia d'este desastre mili-
tar deu rebates em França ao brio nacional. A
memoria da antiga expedição de S. Domingos,
em que a febre aniarella, e as balas dos atirado-
res negros dizioiaraui os intrépidos soldados, que
tinham atravessado incólumes os paúes d'Arcola,
os areiaes do Egyplo, as selvas de bayonetas aus-
tríacas de Iloheiilinden, e as escarpas dos Alpes
varejadas pelas carabinas dos caçadores tyrolezes,
a memoria d'essa expedição infeliz, eni vez de
afrouxar o desejo de vingança, ainda mais o excitou.
O novo grande exercito estava ancioso por de-
monstrar ao' mundo que as vastas planicies da
America não eram simplesmente o cemitério dos
vencedores da Europa, e que não perseguia uma
fatalidade especial as armas francezas nas regiões
tropicaes. Tratava-se de vingar a um tempo o
ataque infeliz de Puebla, e a exterminação do
exercito do general Leclerc. As águias da Gallia
tinham que ajustar contas antigas e modernas com
os condores americanos.
Um exercito de trinta mil homens, commanda-
do pelo general Forey, um dos heroes da (Iriméa,
e o vencedor de Montebello, saio dos portos fran-
cezes a bordo de uma esquadra, e singrou para o
mar das Antilhas. Desembarcou em Vera-Cruz, e,
depois de uma espécie de marcha triumphal, em
que o exercito mexicano se dissipou, ainda mais
depressa que o fumo dos canhões francezes, o ge-
neral Forey chegou diante de Puebla.
Foi então que principiou a verdadeira guerra.
Não comportam nem a Índole nem as dimen-
sões da ligeira narrativa, a que este capitulo serve
de prologo, uma discussão politica sobre o direito
da intervenção, e o caracter justo ou odioso de
uma guerra, emprehendida para tirar vingança de
uma ofi"ensa real, e que, principiando debaixo de
tão justiceiros auspícios, foi continuada por um
capricho de pundonor militar, e levada a ponto de
assumir o caracter de conquista, violando os di-
reitos das nacionalidades e impondo a um paiz
livre, um govcri» melhor ou peior do que o an-
iigo, mas irrogado á humilhação dos vencidos pela
pressão dos vencedores. Considerando a guerra
apenas debaixo do seu ponto de vista militar,
confessaremos que cesta campanha uma das mais
gloriosas para o exercito francez. Reuniam-se
contra elle dois elementos; eada um dos quaes
bastara, nas was brilhantes do consulado e do
império, para obrigar a fortuna a. atraiçoar a bandei-
ra tricolor tão sua predilecta em todos os campos de
batalha. Por um lado a infiuencia devastadora do
clima trojHcal; qile prostrara os valentes do Egy-
plo, do Uheno e da Itália, nas planuias do llaiíi.
Por outro lado a sublevação dos povos de raça
ibérica, o seusystema de guerra original e mortí-
fero que sepultara nos serros da llespanha e de Por-
tugal os heroes d'Austerlitz e de Friedland. Isola-
dos, estes dois elementos haviam saído victoriosos
da lucta. O que não fariam reunidos?
Por isso dizemos: A guerra só principiou, ver-
dadeiramente, (|uando o geneial Forey chegou
diante de Puebla. Em batalha campal era irrisó-
ria a lucta. Uma carga de Íja\oneta dos zuavos
dispersava os soldados mexicanos, como as hostes
deSoult c de Suchel alíugentavam as tropas hes-
punholas. Mas na defcza das praças contava Pue-
bla uma ou antes duas ascendentes heróicas, Sa-
o PANORAMA
ragoça, e Niimancia. Lannes e Scipião haviam es-
tacado perante as muraJhas das duas cidades. Fo-
rey parou também diante de Puebia.
Esta cidade recebeu com justiça a denominação
de nova Saragoça. Para em tudo ser notável a
coincidência, dava-se o caso de se ler o general
siliador distinguido no mesmo campo de batalha.
(3 titulo de duque de Mentcbello recompensáia
as façanhas praticadas por Lannes n'esse ponto
em 1800. Em 18o9 ganhava Forey uma batalha
em Montebello contra os filhos dos austríacos der-
rotados pelo heróico subalterno de Bonaparte.
Ambos se encontravam, cara a cara, com inimigos
da mesma raça, iguaes em denodo, e em situação
idêntica. Ortega não envergonhou Palafox. X nova
Saragoça só faltou um Byron para lhe cantar a
gloria. O que prova mais uma vez que são mais
raros osllomeros do que os Achilles.
Mas o systema de defeza da raça hespanhola
não estaria completo se faltassem as guerrilhas.
Não faltaram effectivamente. Emquanto o general
Forey abria as paralellas diante de Puebia, iam-
Ihe sendo cortadas as communicaçOes com a bei-
ra-mar pelos ataques audaciosos dos guerrilheiros,
que salteavam os comboyos do exercito. Os de-
sastres da guerra de Ilespanha ameaçavam reno-
var-se. O exercito francez, internado no México
via-se em imminente risco de se transformar de
siliador em sitiado, ou de imitar a retirada de
Massena, depoi§ dos seus infrucliferos ataques ás
linhas de Torres Vedras. Mas essas terríveis li-
ções sel-o-iam duplamente se não tivessem apro-
veitado aos vencidos. Além d'isso, as guerras de
Alger, guerras lambem de emboscadas e ardis,
haviam dado aos soldados e generaes de Napoleão
III a experiência que faltava aos veteranos do
primeiro imperador. O' general Forey poz logo o
dedo no único meio de defeza, de que podia lan-
çar mão. Combateu os mexicanos com as suas
próprias armas ; á entrada cm campo dos guer-
lilhas respondeu com a organisação das conlra-
guerrilhas.
Este corpo, que tantos serviços prestou e está
prestando á occupação franceza e ao novo impé-
rio, apresentou, nos primeiros tempos dasuacrea-
ção, o mais extravagante aspecto, que é possível
imaginar-se. Confusa miscellanea de trajos, de idio-
mas e de physionomias, parecia indicar que os
obreiros da torre de Babel haviam desembarcado
cm Yera-Cruz para auxiliarem o novo império,
que lambem linha a sua feição variegada, porque
apresentava a anomalia de ser a rcconstrucção do
Ihrono dos Aztéques emprehendida por um im-
perador francez, em proveito de um archiduque
allemão eleito por colonos hespanhoes !
Expliquemos esta confusão.
Quando os francezes, de posse de Alger, se vi-
ram obrigados a travar com os árabes e os kabi-
las uma guerra de montanhas, perceberam logo
a necessidade de organisarem corpos ligeiros, c,
se fosse possível, de indígenas, que, por conhe-
cerem bem as disposições do terreno, podiam ser
opposlos com fructo a esses intangíveis inimigos,
que appareciam e desappareciam cora a rapidez do
raio, mas deixando lambem sempre, como o raio,
vestígio da sua passagem.
Foi esse o motivo da creação dos zuavos. Uma
tribu árabe, a Iribu dos zaouas, que se havia liga-
do aos conquistadores, formou o primitivo núcleo
dos regimentos. Depois em torno d'elles foram-
se agrupando aventureiros audaciosos, a quem o
ministro da guerra, com toda a generosidade,
dava um passaporte para Alger, aíim de os livrar
das impoitunidades da policia. Já se vê que eram
só admitlidos os que tinham peccados veniaes, e
não os que tinham na sua vida macula que im-
plicasse deshonra, e que por conseguinte des-
honrasse a bandeira, que se deve desfraldar illibada
ao vento das refregas. Assim, estes regimentos
eram formados de gente um pouco turbulenta mas
decidida, folgazã e audaz, ágil sobretudo, porque
os membros indígenas estavam habituados aos fra-
guedos do Atlas, e os francezes já em Paris mos-
travam grande predilecção pelos caminhos extra-
vagantes onde se não aventura a dignidade da
gendannerie, laes como telhados, muros de quin-
tal e outras vias excepcionaes.
Os bons resultados obtidos por esta idéa inspi-
raram o desejo de a desenvolver ; a infanleria dos
zuavos perseguia nos mais inaccessiveis píncaros
da Kabyliaos atiradores árabes, eera necessário
não deixar o campo livre a esses terríveis caval-
leiros nirmidas, que foram sempre, desde Jugurlha,
o terror dos exércitos europeus. Na defeza as bayo-
netas dos quadrados francezes bastavam para apa-
rar o embale d'esse turbilhão de ginetes. Mas a re-
tirada linham-n'a os assaltantes sempre segura,
porque seria necessário que fosse cada soldado da
cavallaria franceza um Franconi, para que os po-
desse acompanhar nas penedias que elles galga-
vam como se cada cavallo tivesse azas nos pés,
em vez de ferraduras. Uemediou-se a este incon-
veniente pelo mesmo systema, que se applicára ao
outro. Um corpo de cavallaria indígena foi creado
com o nome de «spabis».
Esta dupla experiência ensinou aos francezes o
methodo de auxiliarem sempre os movimentos do
exercito regular com estas tropas irregulares, co-
nhecedoras, do terreno, e próprias para atalharem
a insurreição dos povos, quando elles tivessem a
idéa de entrar em scena. Logo na campanha da
Criméa, o marechal Saint-Arnaud, pensando nos
damnos que as nuvens dos cossacos lhe podiam
causar, ordenou a organisação dos bachi-hozouks,
espécie decossacos turcos, encarregados delivrarem
o exercito alliado das impoitunidades da selvagem
milicia moscovita. Foi quasi inútil a organisação,
porque a invasão da Uussia estacou perante as
muralhas de Sebaslopol, e não tiveram por conse-
guinte as forças alhadas de atravessar as solitá-
rias slcppcs, domínio incontestado das hordas bru-
taes do Don, do Dnieper, e do Volga.
Se havia campanha, onde fosse indispensável
o auxilio d''essas tropas irregulares, era de certo
a do México. Ahi a questão principal era a das
guerrilhas, só d'esse lado é que se podia temer
8
O PANOrxAMA
um desastre. Mas como obviar a elle? O exercilo
estava no México u'iima posição completamente
excepcional. Não tinlia alli como na Turquia um
paiz alliado, que lhe desse os seus irregulares
para os organisar : não tinha como em Alger um
núcleo indígena, a Fiança a dois passos para lhe
enviar as suas aventurosas recrutas, tempo largo
para as adestrar, e um (juartel seguro, onde a or-
ganisação se podesse fazer co*m toda a commodi-
dade. Alli o paiz era adverso em massa, urgia o
tempo, e os fiancezes não piodiam chamar seu
nem seqwr ao terreno em ijue se j)rojectava a
sombra dos seus regimentos. Havia um único
meio, foi para elle que se appellou. O México é
ainda o El-Dorado dos europeus, uu pelos pró-
prios recursos, ou por ser, para assim dizermos,
a porta do maravilhoso paraiso da Caliloínia. Fer-
vilham nas suas cidades os aventureiros de Iodas
as nações, gente resoluta, ávida de riquezas,
amiga da lucta, doida pelos acasos da vida erran-
te. Foi com esta canalha de heroes que se forma-
ram as contra-gucrrilhas.
Imaginem ja o que devia ser, especialmente
no principio, uma semelhante tropa. O allemão ta-
citurno formava ao lado do palreiro francez, do
monosyllabico inglez, do expansivo italiano, do
]»hantasioso hesjjanhol, do ávido suisso. A disci-
])lina conservava-se, graças aos esforços do co-
ronel Dupin e dos seus subalternos, mas a
muito custo. Porém o Um preencheu-se ; as
guerrilhas, se tentavam atacar os comboyos, re-
cebiam, segundo as regras grammaticaes, uma
resposta no mesmo caso em que faziam a pergun-
ta. Ás vezes esses eternos inventoi-es de em-
boscadas caiam nos mesmos laços, que tinham por
uso armar, e og;eneral Forey ponde continuai' o
cerco de Pnebla, tomal-a, e marchar sobre a
capital, sem receio de ver os seus feridos assassi-
nados, as suas bagagens roubadas, os seus com-
boyos salteados.
Um dosoni€Íaesd'essasconlra-guerrilhas, o con-
de d(^ Kéiati-y, deu na Rcvisla dos Dois Mun-
dos de 1 de outubro de \Wò uma noticia circuns-
tanciada das expedições em que tomou parte.
Interessantissimo.por qualquer lado que se consi-
dere, ou como subsidio j)ara a hisloiia militar da
campanha do Mex-ico, ou como quadro dos cos-
tumes bárbaros d'es.sas tei-ras americanas em ple-
no século XIX, abunda esse artigo em anecdolas
que podem scr\ir de base a romances altamentcí
commoveRles, se as deparar a hábil penna de
um Alexandre Dumas, ou de uoi Paulo Féval. iNão
ousamos tanto, que não são para isso as nossas
forças, e apenas tentamos esboçar, na leve nar-
rativa que se segue, um caso horroro.so sim, mas
cuja veracidade é asseverada por um ollicial fran-
cez, e confirmada, sendo necessário, |)elo teste-
munho dos seus collegas, que elle invoca, caso
í|ue pode dar aos nossos leiloro.s uma idea do(|ue
eram, ha um anno, e do íjue jjrovavelmentí! ain-
da hoje .são os costumes de um paiz. que se apre-
senta como civilisado.
(Continua)
A ESTRELLA
Like a star on eternity's ocean!
MoonE.
Por entre o raro veu, que, pouco a pouco,
Viera o céo toldar,
Eu, deslumbrado, contemplava a eslrella
(Jue via ídém brilhar.
Oh, era bella, sim ; seus raios trémulos
Sobre a terra desciam ;
Mas n'aquelle esplendor pallido e sanlo
Os lyrios se reviam.
Era bella, perdida e solitária
Em meio d'ampli(lão ;
Como um fanal d'esp'rança, radiando
Na escura cerração.
E o meu espirito evocava inquieto
Delicias que eu perdi,
\l o meu passado inteiro e redivivo
Sorria-me d'alli.
E o coração balia-me convulso
Como jamais bateu :
A rainha vida toda estava presa
Na luz d'aquelle céo.
É que a eslrella era a imagem saudosa
De um sonho d'alegrias :
Aslío consolador, raio perdido
Na treva dos meus dias I
E. A. Vidal.
O SEGREDO
Fm ofTicial, que tinha grande familiaridade com
o piincipe de Orange, por occasião de ciTta mar-
cha foiçada, dirigiu-lhe a seguinte pergunta :
— Ponjue motivo, senhor, fazemos esta marcha?
— (luardareis o segredo? lhe tornou o príncipe.
— Sou incapaz de abusar da vossa confiança!
— Fslou convencido d'isso, replicou o príncipe;
mas, se possuis o dom de poder guardar um se-
gredo, Deos lambem me concedeu igual graça.
A POSTERIDADE
— Appello para a posteridade, dizia (não nos
lembramos da época nem do logar) um poeta, a
quem acabavam de palear uma das suas produc-
ções dramáticas; despresoum publico que se com-
põe somente de analj)habelos.
— Ai, meu caro amigo, lhe tornou um indi-
viduo, (jue o acompanhava ; vò aqueilas creanças
além jogando o pião e dando cambalhotas? são
ellas que hão de representar -a posteridade. ()s
analphabetos de (|ue hoje se (|ueixa,são a posteri-
dade porquí! tanto clamaram os poetas de ha cin-
coenta annos, cujas obras lambem foram palea-
das. De maneira, f|ue, essas suas palavras: —
appello para a posteridade — equivalem a — appello
para os analphabetos do porvir.
Tyi). l''rancu-l'orliit;ucza. — llua do Thesouro Vtllio, G.
o PANORAMA
A ANDORINHA
Os Fisstroslros diurnos são algumas vezos de-
signados pelo nome commum de Andorinluis ;
não obstante, dividem-n'os, geralmente, em duas
espécies: Andorinhas propriamente ditas, e Gai-
vões.
As Andorinhas propriamente ditas [Hirundo)
teem o bico triangular, largo ria baser e um pouco
recurvado na ponta, as ventas oblongas, pernas
curtas, os dedos dos pés dispostos como na maior
parte dos pardaes, azas muito compridas e a cauda,
ordinariamente, bipartida ; procuram sempr-e as
grandes povoações, e os serviços que prestam
purgando o ar de uma multidão do insectos prc-
judiciaes, der-am logar a que, por muito tempo,
fossem consideradas como emanação divina, e por
consequência lidos por criminosos os indivíduos
que procurassem mallralal-as.
Poucas espécies teem o instincto social tão des-
envolvido como as andorinhas. Reunem-se em
familia, caçam, percorrem em bandos o espaço,
prestam-se mutuo soccorro contr^a as aves de
i"apina e edificam os seus ninhos nos mesmos
10
o PANORAMA
sitios duranle nuiilos annos conseculivos. É na
jirimavcra que as Tômos apparecer, primeiro, em
pequenos bandos, depois em grandes, e espalha-
rem-se então pelos campos e cidades, reparando
os ninhos do anno precedente ou conslruindo novos
em que empregam muitas vezes um mez de tra-
balho.
A forma dos ninlios, bem comoologar, variam,
segundo as espécies. Ora lêem a forma de um
cvlindro ou de um quarto de semi-espheroide ;
nia a de um cone troncado ; umas famílias cons-
lroem-n'os nos ângulos das janellas e nas beiras
dos telhados; outras nas concavidades dos roche-
dos, nos buracos do solo, nas fendas dos muros
e das arvores velhas. As matérias que empre
gam na construcção variam igualmente: as An-
dorinJms de chaminé e de janclla fabricam-n'os
de terra molhada e palha miúda, forrando-os in-
teriormente de cotão e de pennas; oGaivão preto
edifica o seu de bocadinhos de madeira, palha,
pennas e outras substancias semelhantes, ape-
gando-as entre si com o humor vis.coso que lhe
cobre constantemente o interior da Í30ca. A pos-
tura é de seis a oito ovos. Duranle o choco, que
dura ordinariamente deseseis dias, a fêmea não deixa
um só momento o ninho. O macho leva-lhe o pro-
ducto da sua caça, e vigia de noite a ninhada.
Ouando os fdhos nascem, os pais ensinam-lhes a
fazer uso das azas, mostrando-lhes, de longe, o
sustento; guiam-n*os em suas excursões em quanto
carecem de auxilio e depois passam a cuidar da
nova ninhada ; o que se repete Ires vezes, ordina-
riamente, em cada estação. >'o outomno, as andori-
nhas emigram Iodas, e no mez de outubro come-
çam a apparecer no Senegal. Todavia, durante o
inverno, encontram-se, algumas vezes nas grutas
ou nos caniçados, muitos d'estes pássaros, mergu-
lhados n'um torpor lethargico. As andorinhas são
dotadas de uma potencia de voo extraordinária.
Poucas espécies voam com tanta rapidez. Spal-
lanzani aífirma, que a andorinha de janella pode
andar por hora vinte léguas e que o voo do gaivão
é muilo mais rápido. Um sentido singularmente
desenvolvido entre estes pássaros, c a vista. Um
facto, de que Spallanzani foi testemunha, mos-
trou-íhequcasandorinhasdistinguem, perfeitamen-
te, na distancia de 105 melros, um objecto tal,
como uma formiga de azas.
Quatro são as espécies de andorinhas que se
acham em todo o Sudoeste da Kuropa : a Andori-
nha de janella (Ilirundo urbicaj preta pela parle
superior do corpo, branca pela inferior e no uro-
pigio, c cujos pés são revestidos de pennas até ás
unhas. Kdiiica o seu ninho nos ângulos das janellas,
nas beiras dos telhados, ele. a Andorinha de
chaminé (Ilirundo ruslica) preta pela parle su-
perior do corpo, branca pela inferior, fron-
te e garganta ruivas, dedos nus e cauda rasgada e
longa. Deriva o nome do logar que jjiocura para
a sua habitação, onde fabrica o ninho, a que dá a
íórma de um (juarto de semi-espheroide: a Ando-
rinha das praias ilfirundo riparia) mais pequena
do que as precedentes, parda pela jiarle supeiior do
corpo e no peito, branca na garganta e pela parte
inferior. Desova em buracos nas margens dos rios,
lagos e, muitas vezes, no inverno, é encontrada
n'aquelles togares n'um estado de torpor lethargico :
a Andorinha dos montes, (Hirimdo riipeslris) que
nãodilVere da andorinha de chaminé senão em ler
as pennas alvadias pela parte superior do corpo e a
cauda um pouco rasgada. Das espécies estranhas
citaremos apenasa A/íí/o/v'/?Aí( Salanf/ana. ilfirundo
esculenta) que habita nas ilhas do Archipelago
índio; é muilo mais pequena que todas as outras,
e a substancia gelatinosa com que fabrica os
seus ninhos é muilo procurada pelos chinezes,
que a consideram um excellente manjar. Os
guisados de ninhos de andorinhas llguram em
lodos os grandes banquetes do Celeste Império :
estes ninhos lambem são objecto .tle um grande
commercio, e vendem-se por preços elevadíssimos.
Os gaivões dislinguem-se das andorinhas, com
as quaes se confundem nos costumes, por terem as
pernas mais curtas e as azas muilo mais compridas.
Esta curtesa das pernas junta ao comprimento das
azas faz com que, estando no solo, tenham grande
diíTiculdade em lomar o voo ; em consequência do
que raras vezes poisam; vivem constantemente no
ar reunidos em bandos numerosos, perseguem os
insectos, gazeando fortemente e aninham-se nas
fendas dos muros e nos rochedos. Encontram-se
apenas na Europa duas espécies : o Gaivão preto
íCijpsellus apus) que tem o corpo preto, garganta
branca e que anda pelas torres e pontos elevados,
importunando os habitantes doslogares com os seus
incessantes guinchos ; e o Gaivão grande [Cypsel-
lus melba) habitante dos Alpes, que se aninha nas
concavidades dos roohedos.
Entre as espécies exóticas, a mais elegante e
notável pelas lindas cores e sobretudo pelas pen-
nas que tem sobre o bico, em forma de bigode, é,
sem contradição, o gaivão da Nova Guiné.
O homem de coração puro encontra sempre
rasões para aggravar o seu crime e não para jus-
lificar-se.
A QUESTÃO LITTERARIA
1'or ZACHARIAS AÇA
Paliarei lambem, para completar este esboço
critico, do livro que se seguio á Yisão dos tempos,
e cuja segunda parle é. Nas Tempestades sonoras
lia a mesma tendência poética e histórica, quero
dizer, o mesmo modo de manifeslação, e ainda o
mesmo intricado de phrase na prosa, e na poesia
accresce a exageração, a transferencia impossível
de allribulos, c uma falsa grandeza que, perdoem-
me a palavra que é dura, não consegue ser senão
ridícula.
Eis-aqui e em poucas palavras o que geralmen-
te se diz e pensa a respeito d'esles livros. Não é
o (jue a imi)rensa publica, bem o sabemos, por-
(|ue os órgãos da opinião, largam muitas vezes mão
da consciência c escrevem o (jue não sentem, mas
o PANORAMA
11
é o que eu penso e creio ser a opinião geral que
se não deixa levar pela opinião de escriplores lou-
vaminheiros.
As tendências que revelaram no sr. Theophilo
Braga um scismalico, scclario da religião das
trevas que luzem (a) não eram novas para nós,
infelizmente. Os que teem frequentado a Universi-
dade, e os que estudam e seguem o movimento
intellectual em Portugal, sabem que desde muito
lavra em Coimbra este incêndio obscuro, que pre-
tende substituir o sol. Todos conhecem o Raio, o
Minlio e outros jornaes em que alguns mancebos
de merecimento, porque o lêem, -coslumavam per-
der o seu tempo e transviar o espirito dos cami-
nhos luminosos para nos dizerem : «A liberdade
se não ó Deus é um estilhaço de Deos.» ccO me-
Iharuco do encephalo devora sempre a abelha da
alma» e outras coisas assim de que eu podia fa-
zer um grande estendal.
Pertenceram a este grémio, em que reinavam o
archaismo e o neologismo, o sr. Camillo Caslello
Branco, que já descendas alturas, felizmente para
elle e para nós, osr. Ayres de Gouvôa e osr. Viei-
ra de Castro quando escrevia a biographia do nosso
eminente romancista. Aqui em Lisboa ha al-
guns escriptores e não dos somenos a quem se
pôde fazer o mesmo reproche.
A critica, até hoje, tem-n'os respeitado e pare-
ce-me que pôde bem ser accusada de se parecer
com os fidalgos do antigo rbgimen, humildes nos
paços, orgulhosos nas ruas. Perante a critica,
quero dizer perante a rasãoe a consciência, todos
são eguaes.
A imitação das allucinações de Victor Hugo
tem feito com que alguns poetas e prosadores des-
presem por vezes a naturalidade e procurem á
custa do sacrilicio d'esta realisar um ideal impos-
sível. O distincto poeta, o sr. Mendes Leal, incor-
reu n'esta falta quando escreveu algumas dasestro-
phes do ^'apoleão no Kremlin.
É ainda à imitação mal entendida do grande
poeta francez, que, forçoso é dizel-o, vae na de-
cadência do seu talento, que devemos attribuir a
falsa grandeza, o procurar do efleilo, o amanei-
rado, que se nos depara nas composições poéticas
do sr. Anthero do Oucnlal; e como os imitadores
costumam exagerar os defeitos dos originaes, a
poesia cosmogonico-philosophica que tem por ti-
tulo— Fiai lux — leva a palma ás maiores extra-
vagâncias da phanlasia de Victor Hugo.
Isto liça dito por uma vez, e parece-me que
ninguém que tiver lido o Fiat lux, me pedira a
analyse d'esta composição.
Até hoje lenho escripto exclusivamente sobre
artes e é esta a primeira vez que me occupo dtí
critica litleraria. Os que me tem lido (poucos são)
na Revista do Século, sabem que sou habitual-
mente severo nas minhas apreciações, e que tra-
tei alli os professores da Ac?demiâ das Bellas Ar-
tes, que são todos meus amigos, e os outros ar-
tistas para mim desconhecidos, coma maior igual-
((') Fiat íif-x'— por Anthero do Ouciilal.
dade. Distribui os louvores e a censura conforme com
a minha consciência, e d'isto não me arrependo.
O que (ligo aqui não me é dictado pelo desejo
de agradar, de ganhar coroas no torneio. Andam
na lid«e outros campeadores a quem ellas são de-
vidas. Não sou d'esses que a troco de zumb.aias
vis procuram grangear a graça regia do um sor-
riso, d'csses a quem um grande poeta, Corneille,
se não me engano, disse — aAffaslai-vos porque o
vosso thuribulo fei'io-mena face» mas lambem não
levanto a lama para a lançar ao rosto dos que an-
dam na mesma faina e que tiveram a desventura
de nascer antes de mim, nem lhes grito» — Velhos!
curvai-vos, respeitai-me e segui-me, porque eu
sou a verdadeira sciencia, a luz e a inspiração;
forque eu sou novo e bello, e porque a aurorada
vida ainda meillumina a fronte com os seus últi-
mos clarões !
Entre o critico c a pamphlelario, enire a digni-
dade e^^a vaidade, ha um abysmo. Não entendo
que a critica deva ser insultadora,' nem tenho pa-
ra mim que seja grande o nome do que poz a co-
roa de espinhos na cabeça do Christo.
Não é nas cavernas lobregas do orgulho que
(levemos procurar a luz. O orgulho fez Salanaz,
mas não faz os eleitos.
É na consciência que está a justiça, e, como disse
o sr. Alexandre Herculano, devemos Iraze-la sem-
pre comnosco, para que não seja, fora de nos,
como uma visão tremenda que nos acompanhe,
inexorável como o olhar que perseguia o Cain da
Lenda dos séculos
(CoiUinu(i) ■
IDÍLIO
I
A Confi.x.siio
Era pelo descair de uma linda tarde de prima-
vera; hora em que o sol, ao occullar-se, tinge de mil
cores o ceo ; hora de doce e religioso encanto, em
que vaguea melancolicio o pensamento, e o coia-
ção sente indelinivel íernura. Azues se mostra-
vam, quasi sem perfis, as longiquas montanhas
por entre um vapor alvacento que, como trans-
|}arente véo as cobria. A brisa, com o seu
errante e leve sopro, agitava, graciosamente, as
copas das arvores, e silvava, branda, por entre a
ramagem, onde brilhava, e desapparecia, e tornava
a brilhar por instantes, a luz phosphorica do pyri-
lampo. O triste e saudoso canto de algumas aves
confundia-se com o prolongado estridor do grillo.
A passo lento, preguiçoso, se dirigiam os rebanhos
para o redil seguidospelos pastores que, ora os acom-
panhavam, ora se distraiam, para escutar as tar-
das vibrações de uma harmonia ao longe. Soberbo,
magesloso era o (juadi-o, que a natureza, sempre
pródiga, n'aquelle momento apresentava! Pela en-
costa do monte desciam então, em deleitoso col-
loquio entretidos. Narciso e Lilia formosa.
— Consegui fallar-te hoje, amável pastora; mas,
por estranho acaso ; porque na estreiteza do ca-
minho não podesle evitar o encontro, como o tens
42
O PANORAMA
feito na planície. Foges de mim, Lilia, e eu bus-
co-le por Ioda a parle, e a lodos os inslantos :
como o gado procura o pasto, como o extraviado
cordeirinlio a mãi alllicta. Foges-me, Lilia, que
eu amo, como as a])clbas amam o cálix das llo-
res, e como as lloros amam a luz c a frescura
da manhã. Feliz queni possue o leu carinho,
pastora, porque o prazer lhe trasborda do co-
ração. Desgraçado de mim, que o leu despreso
choro incessantemente !
— Não dnvido ; mas, a quantas pastoras lens
dilo o mesmo que oia me disseste. Narciso? Já
t'o ouvio, certamente, llina, a bella, para quem
tuas canções possuem tantos atlractivos ; a sober-
ba e altiva IJelisa a quem abrandam os maviosos
sons da tua fraula; e l'hillys, aalVectadae langui-
da Phillvs, (jue honlem ostentava uma grinalda
de rosas colhidas por lua mão. Falia a essas do
leu amor, sensível Narciso, cyie eu não troco a
minha liberdade, nem a minh^ alegria por men-
tirosas palavias.
— És injusta, Lilia ; o ceo dou por testemunha
de que não mereço me dirijas taes accusações.
Escuta-me : lia poucos dias, disputavam dous
pastores o premio do canto, na presença de muita
gente da aldeia reunida debaixo da grande azi-
nheira. Casualmente, passei j)or alli ; e ao avis-
larem-me, deteve-se o que cantava, poz-se de pé
o rival, e alguns dos jovens pastores me convida-
ram a entrar na liça. Úlina exclamou então : «Can-
ta, Narciso, (juc lua voz é grata ao ouvido e com-
move o coração.» «E senão, que acompanhe com
a fraula os cantores, porque os sons que d'elki
lira são mais agradáveis do que os suaves gor-
gcios do rouxinol.)) Isto disse Belisa. Eu respondi:
c( Amigos, como poderá cantar quem vive tão tris-
lemente? (^omo poderá tocar quem chora a todo
o momento ? lia muito que não exercito a voz e
bem sabeis que minha fraula, lambem ha bastan-
te lempo, se acha pendurada n'um ramo do ála-
mo que sombrea a minha cabana. Não me falíeis,
j)0Í5, em canções, jogos 4i danças, em quanto
aquella, (|ue me roubou o áocego, o não reslituir
ao meu peito contristado». «Roguemos a Lilia (jue o
ume; exclamaiarn, como que de mim zombando, as
duas pastoras que citei. Ao ouvir pronunciar o
teu nome, senti que lodo o sangue me aílluia ao
coração, e que o roslo se me tornava rubro... co-
mo ferro em brasa. Vès? a lodos, d'esle modo,
descobri o meu segredo.
— E a grinalda de Fhillys?
— Eu To digo: llontcm procurando um cabrili-
nho extraviado, eslava Fhillys colhendo llores
no rosal silvestre, (jue vegeta na borda mais
escarpada do monle. Ao divisal-a (e não o liz
jior fugir-lhe, foi por não interi-omper o meu
Irabalhoy torci caminho, tingindo não a ler vis-
to; porem, não havia andado muito, íjuando um
grito penclranle me chegou aos ouvidos. Era um
grilo de 1'hillyspor se ler ferido nos espiniiosao
apanhar uma rosa...
— l>ogo, esqueceste o cabritinho, corresle diici-
lo a ella, c procuraste, com solícito cuidado, es-
tancar o sangue, que lhe corria pela nivea mão...
não é verdade? Não beijaste apaixonadamente aquel-
les delicados dedos?... E a grinalda que. Ião or-
gulhosa, ostentava no prado? não foste, tu, quem
lh'a poz sobre os lindos cabellos louros?
— Lilia, não esqueci o cabritinho, nem corri,
nem. lhe beijei os dedos ; pelo que respeila á gri-
nalda é certo ; porém, não sei o que ella cm mim
notou quando lhe puz as llores ; porque na des-
pedida exclamou : «Agradeço a tua extrema cor-
iezia, geiílil Narciso; ainda (pie conheço, que não
deveras fazer um obsequio d'estes a outra paslora.
Eras tu, a quem ella se referia.
— A mim?
— A ti, sim, paslora; porque lodos da aldèa
sabwn que te amo. Sabem-n'o os bosques, a cuja
espessura lautas vezes hei confiado meus pesares;
a fonte, -cujas aguas crystallinas lêem sido um
bálsamo refrigerante para meus olhos cansados de
chorar o leu desamor; o meu descuidado rebanho;
as minhas llores que, |)elo abandono, leemmurchc-
cido ; as arvores em que lenho gravado o teu no-
me ; o dia em que te vejo tão cruel e os meus so-
nhos em que ás vezes te com templo branda a
meus rogos; lodos, lodos sabem do meu amor e
dos meus tormentos !
E se, pois, tanto amoi te consagro, formosa
Lilia, porque não me has de lambem amar? Oh!
quão felizes seriamos, unidos pelo amor em sua-
ve jugo! Para ti, só, reservaria o melodioso da
minha voz; para ti, só, osécos repercutiriam os sons
(la minha campestre fraula ; adornar-le-ia o seio
com a primeira llor da primavera, e teu seria o
primeiro cacho que amadurecesse na vicfe. Oíle-
recer-te-ia os passarinhos que apanhasse nas bre-
nhas escarpadas ou no elevado cimo das faias ;
seria a tua companhia nos bosques; e quando o
sol abrazasse a terra com os seus ardentes raios do
meio dia, á fresca sombra abrigados, fallar-te-ia
do meu amor, e procui-aria ler o leu n'esses lin-
dos olhos e no leu amável sorriso.
Ama-me, Lilia. Orphão ao nascer, não ouvi a
voz de minha mãi, não lhe adormeci nos braços,
não lhe senti bater o coração ; lambem não andei
ao collo de meu pai, nem tive irmãos que me es-
timassem c que brincassem commigo. O meu
primeiro, e único amor és tu ; por isso, talvez
nenhum airecto seja mais profundo. Ah ! parece
que n'esta afleição que te dedico, amo os ir-
mãos que a Providencia me negou, a mãi que
me deu a existência, á custa da sua, c o pai,
cuja fronte jamais tocaram meus lábios...
— Narciso, meu amigo, lambem te amo. Quan-
do choravas o meu apparente desdém, eu, julgan-
do-te inconstante, rogava aos céos (jue a minha
imagem se te gravasse no coração; porque o meu,
por li só, c só para li vive.
Ouão perigoso é o esludo da philosophia quan-
do "se não tem o entendimento são c baslanlc-
mente solido i)ara resistir ás impressões, aos so-
phismas capciosos dos falsos philosophos!
o PANORAMA
1-^
A FESTA DOS REIS
o rei lieJse de Jordàes.
Este desenho é cojiia de um quadro dcJacques
Jordães, celebre iiinlor da escola flamenga, que
nasceu em Anvers no anno loDí, e que lendo se-
guido algum tempo as lições de Rubens, chegou
a imital-o com tania felicidade que se altríbuiu a
este ultimo uma das suas melhores composições :
Jesas Christo enire os douforc-s. As obras de Jor-
dães são notáveis pelo vigor do colorido e peio
que os entendedores chamam claro-escuro; e, se
o que dizem biographos merece credito, este ar-
tista trabalhava com tanta facilidade, que poude
concluir em seis dias um quadro de grande di-
mensão, representando a nympha Syrinx, trans-
formada era canna por suas irmãs, as Nayades, no
momento em que ia ser apanhada pelo deus Pau,
que a pei-seguia.
Os leitores ainda não adivinharam qual é o as-
sumpto da nossa gravura ? É uma d'essas festas com
que ainda hoje em alguns paizes da Europa se
commemoi-a o dia da Epiphania ou dos Santos
Reis; festa celebrada com um banquete, que co-
meça pela nomeação de um rei, a quem lodos
devem obedecer e render preito e homenagem
durante o festim. Esta nomeação é feita á sorte
e do seguinte modo : Amassa-se um grande bolo,
dentro do qual se mette uma fava. Pouco antes
de começar o jantar traz-se o bolo para a meza e
corla-se em tantas partes quantas são as pessoas
presentes ; procede-se á distribuição dos quinhões;
e aquella, a quem a sorte leva o bocado que con-
tém a fava, é, immediatamente, com grandes ap-
plausos e ceremonial devido, proclamada rei ou
rainha da festa. Em seguida, o monarcha escolhe
um bobo de entre os convivas, o qual é encarre-
gado de divertir com seus gestos grotescos e ditos
chistosos a companhia. As despezas do banquete
são feitas pelo rei.
Não designaremos o papel de cada um dos
personagens do quadro ; bem claro o mostram o
seu caracter e altitude. Também não ha necessi-
dade de citar o facto religioso que se celebra no
dia da Epiphania. Observaremos, todavia, que
alguns sábios, considerando a coincidência quasi
exacta, quanto á época do anno, d'esta festa e das
antigas saturnaes dos Romanos, e julgando ao
mesmo tempo achar na realeza improvisada d'es-
le dia a dominação momentânea dos escravos nas
festas de Saturno, disseram que aquella não era
senão a continuação daí saturnaes. Alguns escri-
ptores christãos lambem se pronunciaram contra
o rei bebe, porque, diziam elles, se misturava o
divino com o profano. Mas tanto uns como outros
encontraram adversários bastante religiosos que
os combateram logicamente em seus juizos.
Parece que, não somente nas reuniões dos
estudantes e entre o povo, mas lambem na corte,
em épocas remotas, eram taes os abusos gastro-
nómicos que a fraqueza dos estômagos de hoje
não poderia'.cerlo supporlar, e que muitas vezes
u
o PANORAMA
presidia a mais completa desenvoltura a estas no-
cturnas orgias.
Antes da revolução de 1789. a festa dos reis
deu logar a que muitas vezes na corte de Fran-
ça o pVincipe aconii)anhasse os cortczãos no alc-
i^re baiujuele. Mas depois da restauração era ex-
clusivamente cm familia, que nas Tulberias se
dividia o bolo, do qual devia sair a ephemera
realeza.
N'uma época muito mais distante, os soberanos
de Inglaterra admittiam ao banquete dos Heis
ate os simples menestréis; e é notório, que foi
n"um d"estes que, sob o reinado de Eduardo 111,
caio em certo auno a sorte.
No meio-dia da Inglaterra, a designação de um
rei ou de uma rainha era seguida da nomea-
ção dos niinislros, camaristas, escudeiros, damas,
de que se rodeavam os novos príncipes ; o que
era também feito á sorte.
Seria fastidioso enumerar todas as particularida-
des d'estas festas : mas não podemos deixar de men-
cionar a circumstancia interessante que se d^va,
antigamente, em muitas d"estas reuniões, especial-
mente entre a gente do campo, de, ao repartir o
bolo dos reis, contar-se com as pessoas ausentes da
familia, guaidando-sc-lhes o seu quinhão com um
cuidado religioso, a que se juntava quasi sempre
algmna superslição; j)orque muitas vezes, via-se
a mãi saudosa consultar o fragmento d'esse bolo,
crendo ler nas alterações originadas pelo lempo,
um prognostico seguro da posição mais ou me-
nos critica do terno objecto dos seus cuidados.
Naturalmente os homens lêem mtiis inclinação
))ara quem os não contradiz do que para quem
os reprehendc.
OS PIllLO-PORTLGUEZES.
POR hNNOCENGIO F. DA SILVA.
II
Dos cinco beneméritos inglezes, cujos nomos
temos de commemorar, notáveis alguns quer ])elas
qualidades do sangue e riqueza, quer por elevadas
luncçõfs exercidas na hierarchia civil, dignos to-
dos de respeito por dotes de ingenho e sciencia,
e que cm nossos dias demonstraram mais ajjaixo-
nada predilecção pela litteralura jiortugueza, como
que sagrando-llie uma espécie de culto, ou con-
\erlendo-a cm objecto de seus particulares estudos,
abe o primeiro logar, segundo a ordem chrono-
logica, a Lord llolland. D'elle, como dos outros,
' scrcvcremosem poucas palavras, menos do que úo-
-fjaramos. attentas as dimensões do espaço (le(jne
podemos dis|)ôr.
Herdeiro e roprcsentante de uma familia dis-
lincta da Grã-Hretanha, elevada ao parialo por
lorge 111 em 1702. Ib^nriquc Ricardo Vassall Fox,
terceiro l.ord llolland, nasceu, segundo se diz, em
1773. A sua educação foi esmerada, c própria para
desenvolver seu talento e natural propensão para
os estudos. Sobrinho do eminente orador e mi-
nistro Carlos Fox, c como elle devotado membro
e servidor do partido iv/iig, cedo começou a oc-
cupar-se das coisas j)ublicas da sua pátria, toman-
do assento nas cadeiras do parlamento. Ahi pro-
fessou li defendeu as idéas e princípios do lio, cujo
collega veiu a ser no gabinete durante o curto in-
tervallo em que aquelle celebre estadista se viu
por segunda vez col locado á frente dos negócios
como primeiro ministro cm 1800. Ao cabo de vin-
te e seis annos, no de 1832, tocou-lhe ser ainda
chamado ao serviço, no importanle cargo de cl-ian-
celler do ducado de Lencastre, por occasião da
subida ao poder do ministério Grey-Melbourne.
Porem as lides politicas, e os debates da tribuna
jamais tomaram. sobre o seu espirito preponde-
rância tal, que por ellas se esquecesse do cullivo das
leiras, sobretudo de estudos philologicos, (jue
amava apaixonadamente. »
Havendo passado cm Ilespanha, e cremos que
em Portugal, uma parte da sua juventude, obti-
vera dos idiomas de ambos os paizes conhecimen-
to bastante para entender os seus escriptores e
poetas; e para apreciar nos originaes de cada um
as bellezas e defeitos. Na sua escolhida e nume-
rosa liviaria avultavam em grande copia os livros
hespanhoes e porluguezes, ditos ckCssicos. Como
fructo dos conhecimentos philologicos adquiridos
no estudo da litteralura peninsular, escreveu e pu-
blicou em Londres (1805) umas Memorias para
a vida de Lope de Ve/ja, ás quaes addiccionou,
reimprimindo-as em 1817, em dois volumes, ou-
tras acerca de Guilhen de Castro. Obra bem tra-
balhada, e de aprasivel leitura em que se contem
curiosas e interessantes particularidades relativas
aos dous poetas, e a critica judiciosa de suas com-
posições.
A liberdade dos povos peninsulares leve lam-
bem em Lord llolland um dos seus mais ardentes
campeões. Acolheu o hosj)edou cm sua casa com
fraterna e carinhosa hospitalidade vários hespa-
nhoes illuslres, (jue cm Inglaterra se refugiaram,
no lemi)o em que a península supporlava os rigo-
res da invasão franceza, ou (|uamlo as barbaras
|)erseguições de Feinando Yll forçavam os súbdi-
tos a expatriar-se jiara não cairem nas garras do
algoz. No periodo de 1828 a 1833 advogou calo-
rosamenle por mais de uma vez no parlamento
britannico a causa liberal jiortugueza, e os direitos
da rainha, e houve-se com a costumada genero-
sidade j)ara muitos dos poituguezes alli refugiados.
Seu caracter alVavel, instrucção e franca amenida-
de do Iralo faziam a sua sociedade uma das mais
agradáveis e instructivas, não só do seu paiz, mas
da Kuroi)a. Falleceu cm 18í(). F é para notar que
t<'n(lo-se elle mostrado toda a vida um ligido e
fervoroso sccjuaz do |)rotestantismo, seu lilho e
heideiro viesse logo depois de sua morte a abju-
rar laes doutrinas, lornando-se catholico, e mor-
rendo como tal cm Nápoles, ainda não ha muitos
annos
o PANORAMA
^5
Ignoramos o destino que tivesse, ou onde pára
lioje a rica livraria de LordKolland. Enlre os seus
clássicos portuguezes de maior estimação, conta-
va-se um exemplar da primeira edição dos Lusía-
das (Vòll). D. José Maria de Souza, morgado de
Malheus, que o teve presente para a esplendida
edição que do mesmo poema fez em 1817, a elle
se refere em mais de um passo, com circumstan-
cias que lhe realçavam o valor.
(ConíÍ7iua.)
PEREZ LORENZO
(^ccuns fia Cainiiaulia «lo México)
Por PINHEIRO CHAGAS.
II
No dia 3 de maio de 18G3, ao cair da tarde,
reinava em Medellin, cidade mexicana situada á bei-
ra do Rio-Jainapa, extraordinária agitação. Abriam-
se e fechavam-se portas, descerravam-se janellas,
e homens vestidos de modo extravagante, ainda
que pittoresco, davam-se pressa em correr para o
sitio, onde resoavam as notas vibrantes de uma
corneta, que locava a assembléa. Estes homens,
cuja j)liysionomia devastada indicava a maior parte
das vezes uma existência excepcional, levavam
revolveis mettidos no cinto, e punham ao hombro
a carabina moderna. Comtudo o seu armamento
era tão caprichoso como o seu traje, o que dava
azo a que alguns d'elle5'apresentassem um aspecto
de verdadeiros arsenaes d'antigualhas, e que, des-
de a frecha dosÀzteques até á carabina raiada de
Minié,* não houvesse arma que não tivesse a sua
representante n'este pouco venerável congresso.
Com estes homens cruzavam-se, trocando algumas
palavras ou alguns gestos amigáveis, outros que
mostravam, pelo uniforme, pertencer ao corpo de
infanteria da marinha franceza. Os mexicanos pa-
catos assomavam ás janellas para espreitarem cu-
riosos este buliciq, e, com uma das mãos no fecho
e a outra na tranca, preparavam-se para as cerrarem
immediatamente assim que os ares se mostrassem
turvos. Depois, quando acabavam de passar esses
n.agotes de gente armada, tudo se trancava de
novo, e as ♦ruas desertas caiam n'um profundo
silencio.
Pois não era porque a tarde não estivesse lin-
da, e porque as larangeiras, asbaunilhas, easpimen-
leiras,que rodeiam a formosa cidade com perfuma-
do cinto, não exhalassem as suas fragrâncias mais
suaves. Mas Medellin, a cidade das festas e dos
bailes, a voluptuosa creoula, que se recosta à
beira do rio, i'efrescando-se com o leque das suas
palmeiras, e balòuçando-senasua rede de lianas a
dois passos de Vera-Cruz, havia Ires dias que ver-
gava a um pungentíssimo receio. As guerrilhas
mexicanas, animadas pela impunidade, já se não
contentavam apenas em esperares viandantes nas
estradas, vinham até ás portas da cidade, e,
aproveitando a espessa verdura, e as lloridas
moitas que cercam Medellin, emboscavam-se n'el-
las e varejavam as ruas com um diluvio de bailas,
que affugentava os Iranquillos burguezes, e obri-
gava a guarnição a fazer uma sortida quasi sem-
pre infructifera, porque se bem que as guerrilhas
retiravam, retiravam sem perderem um homem só,
e voltavam d'?.hi a pouco a repetir as mesmas fa-
çanhas.
A guarnição de IMedellin compunha-se de con-
tra-gueriilhas, de uma companhia de infanteria
de marinha, e d'uns vinte soldados mexicanos,
allectos aos francezes, e commandadosporLloren-
ta. Todos estes bravos mordiam-se de raivosos ao
verem a impudência dos guerrilhas, mas tinham
de se conientar com essas demonstrações de cóle-
ra, porque o chefe dos assaltantes soubera por lai
forma dissimular o sitio do seu covil, que, por
mais diligencias que se fizessem, não era possivel
atinar-lhe com os rastos.
Comtudo n'esse dia decidira o coronel Dupin,
que, desse por onde desse, a contra-guei-rilha ha-
via de tomar a offensiva, e bater malto até des-
cobrir a caça, emboi'a ficassem estirados na es-
pessura das florestas virgens os caçadores desde
o primeiro até ao ultimo. Mais valia isso do que
supporlar-se por mais tempo que uns miseráveis
salteadores estampassem tão feia macula na ban-
deira tricolor, vindo todos os dias insultar impu-
nemente a cidade protegida pelas azas possantes
das águias imperiaes.
Por isso reinava tanta agitação na graciosa ci-
dade mexicana, e os seus habitantes, em vez de
tomarem indolentemente o fresco da tarde tão apre-
ciável n'essas tierras calienles, cuja temperatura
é sempre abrasadora, em vez de respirarem com
morhidezza os cálidos perfumes, que a brisa dos
laranjaes sacudia da túnica impalpável, seguiam
com avidez os movimentos da guarnição.
Ao pé da casa do coronel Dupin era maior o
reboliço. Os olllciaes francezes passeavam dando
o braço uns aos outros, mirando com olhos ga-
lanteadores o rosto moreno de algumas gentis me-
xicanas, cujas negras pupillas lampejavam por
traz dos vidros da janella, ou relanceando-os com
tristeza para o Oriente, cujo extremo horisonte,
já entenebrecida pelas primaras sombras do cre-
púsculo, lhes escondia a pátria, para onde a al-
ma lhes voava nas azas da saudade.
Os turbulentos soldados da conlra-guerrilha
formavam grupos pittorescos; um inglez, um hes-
panhol, e um italiano faziam louváveis, mas bal-
dados esforços para se entenderem, mais adiante a
queimada tez e o sombrio olhar de um mulato
contrastavam com a cândida pelle e o olho azul
de um allemão. Este com um chapéo de palha,
calça até meia perna, e jaqueta de veludilho sa-
fado encostava-se á boca de um bacamarte, aquel-
le de boné de tocador de realejo, comprido casa-
co, bolas rotas, e correias de côr duvidosa, revis-
, lava escrupulosamente a fecharia da sua espingarda.
Os soldados de marinha esperavam com as armas
ensarilhadas, os contra-guerrilhas de cavallo,
lendo passado no braço a rédea dos ginetes arreia-
dos a capricho, puxavam bafuradas de fumo dos
seus papelitos, ou accendiam a abrigo do vento
os seus magníficos regalias. Era um quadro pitto-
resco e digno de se observar.
>I6
O PANORAMA
Já o coronel Dupin. iiniformisado e proraplo,
apparecera á janella, e relanceara os olhos para
a Iropa variegada que linha debaixo das suas
ordens, quando" assomou ao íim da rua uni vulto
embuçado n'uma capa, que se dirigio rapidamen-
te para a casa, que servia de quartel general.
Era um hespanhol novo e esbelto, cujo Irajc
ficava escondido pela ampla capa castelhana, que
punha com garbo. A lina e pallida cabeça, coroada
de cabellos negros, e coberta com um chapéu anda-
luz, poisava-se erecta e llrme. A pallidez do rosto,
n'esse instante mais que pallido, livido, chegava a
assustar, tanto mais quanto lhe dava um grande
realce a gola de veludo negro, que contrastava
com a pallidez que aj)onlámos. Mettiam medo os
olhos, lai era a sua atonia. Não tinham nem uma
lagrima : ])arecia que o sopro queimador de uma
procella lh"as bebera uma a uma, e lhe exhaurira
as fontes d'onde ellas manavam. O seu andar pa-
recia d'especlro, rápido mas hirto. Involuntaria-
mente aflastavam-se todos d'elle, edavam-lhc cam-
po largo para passar. Gelavam-se as conversações
dos grupos ao seu aspecto ; eum vago eindelinivel
calafrio corria pelas veias dos mais valentes.
— Oue vulto de melodrama! disse um official
francez reagindo contra a impressão que sentira
como todos os outros, e voltando-se para um dos
seus camaradas.
— Isto foi comparsa da Gaite, que trouxemos
nas bagagens sem darmos por tal, redarguiu o in-
terpellado. Gosta de fazer os ensaios a alguma dis-
tancia da scena, e veio alé ao México estudar al-
titudes.
— Oual historia, homem ! Isto é o phantasma
de Fernão Corlez, que nos vem fulminar com os
seus analhemas por lermos poisado o pé sacríle-
go n'esta catholica lerra. Não acha, amigo? conti-
nuou em hespanhol, voltand,o-se para um logisla
mexicano, que, sentado á porta do seuestabeíeci-
menlfí, picava com toda a gravidade um rollo de
tabaco, e endji'ulhava o clássico cigarro.
— Oue diz tisled? perguntou o logisla, nieflen-
do a navalha nos dentes para nivellar o tabaco
picado, e enrolar a preceito o papclilo.
— pergunto se você sabe quem é este sugeilo.
— É Perez Lorenzo, tornou o mexicano dobran-
do as duas pontas do canudinho de papel, c ti-
rando da algibeira a caixa dephosphoros.
— E l*erez Lorenzo quem é ?
— E o mais rico Itacendero dos contornos de
Medellin e Vera-(>iuz, continuou o lleugmalico
americano, accendendo um phosphoro, e resguar-
dando-o com a mão do sopro da aragem.
— Bravo, lornou o oííicial. É rico e tem cui-
dados. Lembra o sapateiro de La I''onlainc. Apos-
to (jueé celibatário c se enfastia do celibato''
— E casado, a<udio o seu imperturbável inter-
locutor |)Uxando uma baforada de fumo, e apa-
gando o phos[)lioro.
— Com alguma mulher velha e feia como os
sele peccadosca|)ilaes I
— Com uma menina de dezoito annos, linda
como Nossa Senhora de Guadalupe.
— Pesle, acudio o francez, que feliz maganão !
Sendo assim, porque nos apparece o marido com
esta cara de palmo e moio? Será elle ciumento...
com motivos jusliticados?
— Cármen é virtuosa como um anjo, e seii ma-
rido adora-a.
Os dois ofíiciaes francezes olharam pasmados
um para o outro, depois desataram a rir, e, esten-
dendo os braços em altitude heroi-comica, entoa-
ram em duelto o chavão de todas as operas :
— Qucl esl donc ce mysíere ?
Entretanto Perez Lorenzo, depois de trocar al-
gumas palavras com a sentinella, entrou em casa
do coronel Dupin.
Passado pouco tempo, veio ordem para se reco-
lher a tropa aquaiteis, estando sempre em armas,
e prompta para marchar uma força de' trinta ca-
valleiros e de trinta infantes.
Á meia noite foi uma ordp""-)í}a da i)arte do
coronel Dupin buscar o paquete.
A pequena força reuniu-se, saio do quartel,
atravessou as ruas ermas e -escuras de Medellin,
e fez alto á porta da casado coronel Dupin.
'O camarada do coronel, empunhando um facho
acceso, segurava com a outra mão. as rédeas de
dois cavallos. Junto á hombreira da porta divisa-
va-se o vulto sombrio de Perez Lorenzo. Quando
a luz vermelha do archote lhe batia ."^m cheio,
tomava o seu rosto um «speclo diabólico. Eluc-
luava-lhc nos lábios um soitíso sinistro, e nos
olhos relampejavam chammas infernaes.
D'ahi a instantes poz-se a pequena tropa a ca-
minho.
{Conlinun)
O aspecto de um moribundo é sempre, para o
philosopho, o objecto mais fértil em reflexões.
Nada é Ião commum como o ler e conversar
inutilmente.
O alphabeto foi a origem de todos os conhe-
cimentos do homem e de todas as su^s loucuras.
A dissimulação é algumas vezes necessária, c
a franqueza atírae quasi sempre inimizades.
A lisonja é o sustento dos tolos.
r.m IJMboa — A'o i:srripf(jrio, Tini. Friniro-Porti({/iu'za, rua
(lo Thfsovro Vi-llio n"l\. oiulr ilrri' xrr ilinyidn toda a carrespon-
ílintcíu nnhscriídada á Kniprcza do ■•uiioriiiiia.
p„r (imo 13110) (ir.fio ?•<'/«
Soiiexirc CUii] I^stumiJillioilo j '«'i "
Trimeslre 3'.o) \ ''UO »
ISo acto (la cnlrcga e avulso 30 rcin.
Vcndc-sfí PM loiluí ag loja» do costume.
Xo porto — Assiuna-sf c vvndv-sc ciu inaa da Viuva MoriL
Typ. Franco-1'orHigueza. = Rua do Tbesuuro Vcllio, G.
OPANORAMA
•ir
A CATIIEDRAL DE LICÍIF/ELD
(oj-ano, sendo ^l^r.,^Jl%ÍZll' ,lXt
o PANORAMA
É cerlo que Lichfiekl e Covenlry eslavam coin-
preoiulidos no reino de Mercia, quefoi conqiiislado
por Oswy, e converlido por clle á fé chrislã ; no-
ineou-se, em GoO, o primeiro bispo de Liclilield e
Ceudda ou Chiul, foi o terceiro em 667. Béde, diz
il'este ultimo: cque editlcou, com suas próprias
mãos, um retiro pouco afastado da igreja, onde
tinha por costume ir ler e resar, com um pe-
([ueno numero de seus irmãos, quando os deve-
res do seu ministério lhe deixavam alguns instan-
tes de liberdade.))
O concilio de Londres reunido em 1075, trans-
feriu a sede de Liclilield para Chesler, onde este-
ve até loí2. Durante esíe periodo, os bispos es-
tabeleceram a sua residência entre estas duas ci-
dades. l)iz-se, que um d'elles, Uoger de Clinton,
em 1128, reedificou a cathedral. Wallerde Lang-
ton. em 121)3, é também citado como um dos
bemfeilores da cidade ; deve-se-lhe a construcção
de muitas ruas, o magnifico relicário de Sainl
(lliud e o palácio episcopal.
A cathedral foi devastada no reinado de Ilen-
liquc VIII e confiscadas todas as preciosidades
(|ue continha, á excepção do relicário, que foi
salvo a muitos rogos do bispo Rowland.
A historia de Lichfiekl, nenhum interesse offe-
rece até às guerias civis. Em 1642, teve Ires
cercos, durante os quaes a cathedral soítreu muito;
(' no anno seguinte lizeram-se grandes preparati-
vos de defeza, para resistir a Lord Brooke, que
avançava, para tomar a cidadella,á frente de três
mil homens. Era um inimigo zeloso do episcopado
e que estava decidido a destruirá cathedral. Quan-
do entrou na cidade, dizem, que rogara aos céos
que o castigassem, se a sua causa fosse injusta;
poucos minutos depois caiu morto por duas
bailas ; o tiro i)artira da- mão de um surdo-mudo
da nobre familia Dyolt, que do alto da igreja ob-
servava os movimentos do inimigo. A arma existe
nos archivos da familia J)yolt, c a armadura de
Lord lirooke está no castello deWarvvick. Apesar
da perda do seu chefe os rebeldes conlinuaiam o
cerco e a guarnição foi obrigada a ceder ás tropas
do parlamento. Era a primeira cathedral que, caía
em seu poder ; devaslaram-n'a com um vandalis-
mo incrível, e allisecommellei-amas maiores pro-
fanações.
No mesmo anno, 1643, o príncipe Rupert reto-
mou a cidadella, nomeando por governador o co-
ronel Hagot, (|ue recebeu n'ella Carlos I, depois
da batalha de ilaseby, lOí.j; porem, alguns mezes
depois, recaiu nas "mãos dos rebeldes, e as suas
muralhas foram arrasadas. Em lOol, o parlamen-
to mandou tirar todo o chumbo que cobria a igre-
ja, e fundir os sinos.
O serviço divino foi, durante alguns annos, ce-
lebrado na casa do capitulo; e quando .lohn lía-
cket foi nomeado bispo, a cathedral não era mais
que um montão de ruinas ; mas o zelo e activida-
de d'estc varão venceram lodosos obstáculos. Pos-
suía esla ultima qualidade em tão subido grau, que,
no mesmo dia da sua chegada a Liclifieid, mandou
começar o desentulho, prestando para is.so os seus
creados e cavallos. No curto espaço de oito annos,
conseguiu apagar todos os vestígios de devastação
e a igreja começou a funccionardenoro em 1669.
Ainda que a cathedral de Lichlield não possa
rivalisar, nem em grandeza, nem em magnificên-
cia com a de York, e algumas outras, ella não ce-
de, comtudo, a nenhuma, pelo que respeita a ele-
gância; a sua architectura ligeira é objecto de
grande admiração. Oedificio tem a forma de cruz;
a parte principal compreende a nave, a igreja, o
coro e a capella de Nossa Senhora. O seu maior
comprimento é de 403 pés e a largura de
177. A principal fachada é para o lado do oc-
cidente, e está coroada por d uns torres pyra-
midaes, havendo outra, do mesmo feitio, que se
eleva no centro do edificio. As duas primeiras
torres teem 192 pés de altura, cada uma; c a ulti-
ma 252.
A igreja contem um numero considerável de
túmulos, interessantes uns por sua antiguidade e
outros pelos personagens que encerram. Os mais
notáveis são: o doutor Johnson, lady Worlhley
Montagne, a quem a humanidade deve os beneli-
cios da inoculação, e David Garríck. Entre os mo-
numentos; que ornam o interior, admira-se, o do
bispo Hackel ; represenla-o deitado, e lé-se ao
lado esta inscripção : «Não deixarei fechar meus
olhos sem ter achado um logar para o templo do
Senhor.))
RÀ-PULANTE
I
Confesso, que nunca encontrei pessoa alguma
com tanta propensão para a facécia, como esse
rei, bravo e intelligente, cujo ultimo episodio da
vida vou narrar. Era um ente que só vivia para
a comedia; o seu principal elemento era o riso.
Ouem soubesse contar, com todos os-SS.-e-RR.
uma historia no género chocarreiro, possuía, cer-
to, todos os dons e dotes para ser recebido,
distinctamente, na corte e ganhar a estima do
monarcha exemplar. Por isto c fácil imaginar
como deviam de ser os sete ministros d'aquella
nação : os homens de niais pilhéria que tem vin-
do ao mundo; inexcediveis na sublime linguagem
do — ha! lia! ha! — expressão equivalente á palavra
portugueza — gargalhada— e Inimitáveis na narra-
ção de contos facetos, e no canto do flôce lundu
choradinho, que então se' usava com lodos os re-
quebros. Realmente, eram sete varões impagáveis;
e, o que é mais para admirar, parecia que lodos ti-
nham sido feitos pelo molde i'eal~corpolencia, obesi-
dade, olhos, nariz, bocca, desmesurado appelite,
grande (jueda para o entremez, tudo isto n'elles
realçava em tão subido grau, como no seu queri-
do rei.
Oue os indivíduos engordem com a farça, ou
que na gordui-a haja alguma cousa que predispo-
nha para o entremez, é uma questão f;ue nunca
pude decidir; mas, o cerlo c, que um galhofeiro
magro, pode, perfeitamente, considerar-se rara
avis tu lerris.
o PANORAMA
19
Livros, fossem elles de que natureza fossem,
discursos parlamentares, prelecções scienlificas,
poesias cheias de sentimento e amor, dramas,
tragedias, as próprias comedias-dramas, emíim,
todas essas producções que os da actualidade con-
sideram fiUias do talento c de um trabalho assi-
duo, eram, para o intelligente, erudito e magnâ-
nimo rei, cousas de nenhum \alor; denominava-
as, já se \è, para fazer espirito (^permitlam-me"o
gallicismo) — monumentos eternos da ignorância e
insensatez ■ da humanidade. As maneiras civis
incommodavam-n'o. Em resumo, o bom do rei
preferiria o Gargnnlua de Rabelais ao Zadig de
Yoltíiire, e acima de tudo, as hufoncrias em acção
causavam-lhe mais prazer, do que as subtilezas
na palavra.
Na epocha em que passa esta interessante his-
toria, ainda os bobos de profissão não tinham
sido, completamente, banidos da corte. Algumas
das grandes potencias continentaes ainda conser-
vavam os seus loucos; eram infelizes, vestidos á
maneira de arlequim, tendo, por gorras, bonnés
guarnecidos de campainhas, e que deviam de
estar sempre preparados para empregar, á letra,
ditos subtis e graciosos, em troca das migalhas
que caíam da meza real. Hoje, felizmente, já não
se presenceiam d'estas misérias na corte. Tudo
alli é serio, respeitável e imponente; e assim con-
vém; pois, o que hão de esperar, dos pequenos,
os grandes de uma nação, que só comem, bebem,
riem e folgam com os doudos?
O nosso rei, naturalmente, tinha o seu louco.
E o facto é que elle sentia a necessidade de al-
guma cousa que tendesse para a bobice, — quan-
do mais não fosse, para contrabalançar a pesada
sabedoria dos seteillustres varões seus ministros, —
(para não faltar do rei.)
É, porém, muito de notar, que o louco, o bobo
de proíissão, que vou apresentar ao leitor, não
era somente um loàco; tmha para o rei um valor
Iriplice; pois era, conjunctamente, anão e coxo.
JN'aquelle tempo, eram Ião communs na corte
os anões, como os coxos; e muitos monarchas te-
riam sem duvida achado o tempo ditíicil de pas-
sar— o tempo é mais longo na corte do que em
outra qualquer parte — sem um bobo para os fazer
rir, e um anão para rir d'elles. Mas, como já te-
nho observado por varias vt?zes, lodos estes bo-
bos, em noventa 3 nove casos contra cem, são
gordos, redondos e maciços, de sorte, que era para
o nosso rei um grande motivo de orgulho o pos-
suir em Rã-Pulante — assim se chamava o louco —
um triplo thesouro em um só individuo.
Julgo que o nome de llã-Pulante não era o do
baptismo, mas que lhe havia sido conferido por
voto unanime dos sele ministros, em consequên-
cia de não poder andar como os outros homens.
Eífectivamente, Rã-Pulante, não se podia mover
senão com uma espécie de passo inlcrjeccional,
uma cousa entre o salto e o torcicollo, um certo
movimento que era para o rei um perpetuo rego-
sijo e, naturalmente, um goso; porque, não obs-
tante a proeminência do ventre e a intumescên-
cia constitucional da cabeça, o rei passava aos
olhos de toda a córlcpoi um bello homem, aman-
te de toda a sorte de divertimentos.
Mas, se bem que, Rã-Pulanle, graças à sinuosi-
dade das suas pernas, não se podesse mover se-
não a muito custo, já no caminho, já em um
estrado, a prodigiosa potencia muscular com que
a natureza lhe dotou os braços, como que para
compensar a imperfeição dos membros inferiores,
tornava-o apto para executar muitos rasgos de
admirável destreza, quando se tratava de arvores,
cordas, mastros ou outra qualquer cousa aonde
se podesse marinhar. N'estes exercidos, mais pa-
recia uma harda ou um macaquinho, do que
uma rã.
Não posso dizer, precisamente,, de que paizera.
oriundo Rã-Pulante. Parece-me, todavia, que vi-
nha de alguma região barbara desconhecida, a
uma grande distancia, já se vô, da corte do nos-
so rei.
Rã-Pulante, e uma rapariguinha pouco menos
anã do que elle, mas, admiravelmente bem pro-
porcionada, e excellente dançarina, tinham sido
roubados de suas casas, e enviados de presente ao
rei por um dos seus famosos generaes sempre fa-
vorecidos da victoria.
Em taes circumstancias, não era para causar
admiração que entre estos dous pequenos capti-
vos se estabelecesse uma grande intimidade. E,
realmente, dentro em curto espaço de tempo, eram
dous verdadeiros amigos. Rã-Pulante, embora
empregasse todos os exforços, nunca poude tor-
nar-se popular, e por consequência prestar gran-
des serviços a Castanheta; esta porém, pela muita
graça de que era dotada, e pela exquisita belieza,
de anã, era geralmente admirada e respeitada ;
tendo, pois, grande influencia nos espíritos,
approveitava-a, sempre que podia, em fav^or do
seu amigo, Rã-Pulante.
Em uma occasião solerane, não me recordo
quando foi, o rei resolveu dar um baile de mas-
caras ; e, todas as vezes que na corte tinha lugar
uma mascarada, ou outra qualquer festa d'este
género, os talentos de Rã-Pulante e Castanheta eram
sempre requisitados. Rã-Pulante, particularmente,
era tão inventivo em matéria de decorações, no-
vos typos e disfarces para os bailes de mascaras,
que, sem a sua opinião cousa alguma se podia
fazer.
A noite designada para a funcção cl>egára. Ima
sala esplendida tinha sido preparada, sob as vis-
tas de Castanheta, com grande artificio.
Toda a corte anciava pelo momento da festa.
Quanto aos trajos e papeis, -cada qual escolheu
como lhe aprouve ; e muitos dos convidados de-
terminaram as cousas, com uma semana, ou mes-
mo um mez de antecedência, para não se verem
depois a braços com difllculdades. Em summa, não
havia incerteza, nem indecisão de parte alguma —
só o rei e os seus ministros hesitavam. l*orque
hesitavam elles? não posso dizel-o. Mas, prova-
velmente, pela grande dilliculdade de obter uma
idéa; porque eram muito gordos !
20
O PANORAMA
Fosse qual [fosseJXiiiolivor^o tempo fugia, e,
como ultimo recurso, mandaram chamar os dous
anões.
tConlinun'>
CARTA
Do sr. .%• F. lie Cn.sUllio no «ír. Iiiiioceiício
Frnuri«>co «ia Silva.
lll.'"'eEx."'°Sr.,e meu querido confrade: — .Muito
devemos nós a essa ijenle de malla que alii ap-
j)arecou na feira lilleraria com as anjuetas abar-
rotadas de filosoíias, de sciencias, de cosmogo-
nias, de tlieologias, de profecias, de versos a
olho em logar de metros, de lógicas escangalha-
das, e de linguagem sem grammatica ! Devemos-
Ihe realmente muito! Se não foram elles com os
seus pregões tão altos, e o séquito que levam de
gaiatos embeilecados naquellas louçainhas, o mer-
cado dos géneros sãos e fazendas de lei, já pouca
allenção chamava ; e era pena, por não ser pe-
(|ueno o prejuízo que havia de resultar d'essa es-
tagnação, se ella fosse por diante.
Vivam pois os belfurinheiros e oiapazio ! Foi a
Providencia quem os cá mandou ; ella bem sabe
quando e onde as coisas são precisas.
.Ia ouvi a um fazendeiro do Algarve, que, se não
fura certo bichinho., que dá no ligo, a fiuta amuava,
impedernia-se em logar de amadurecer, e adeus
uma das maiores riquezas d'aquella formosa pro-
víncia 1
Vivam pois, ç medrem, se puderem, tanio os
insectos dos tigueiraes, como os transcendentes da
iitleralura; e viva Deus que fez para bem toda
essa bicharia !
V. Ex.", meu querido confrade, linha despen-
dido, quasi em vão, annos largos d^amor, de zelo,
de claro entendimento e de conselho óptimo, em
prol das boas lellras e da razão : tinha. chegado a
levantar, sósinho, um monumento áí leltras .pá-
trias, d'aquelles a que só se aventurava uma cor-
poração de benedictinos ; e apesar da merecida e
reconhecida autoridade da pessoa, e do coro ge-
ral de louvores prestados á obra, os effeilos prá-
ticos, ou não appareciam, ou eram escassíssimos.
A Providencia, que também deve governar nas
coisas inlellectuaes, abençoara á nascença o seu
trabalho como agora se está vendo : faltava xjue
a inveja e a ignorância viessem conlirmar com as
suas negações as verdades confessadas pela gente
de saber e probidade. Vieram. Deixe cair chuva
e neve sobre a sementeira ; melhor ceara nos es-
pera. V. rifão velho de lavradores; até já Virgílio
o sabia.
Não quero eu dizer com isto que descance V.Ex."
na sua fadiga. Depois de desf)onla(la a messe, ain-
da íica muito que fazer ; o ceareiro entendido não
pára nunca; no mesmo Virgílio o lenho:
MU cau8aB á luvoira amcaçani indu agravos;
iadical-as convóm: damnam-Hic os [lalos bravos;
flamnam ftrymoneos i,'rous; danona a raiz amarga
dos almeirões, e damna a arvore que cinjjarga
ao sol jpassagem livre.
O pae, rei da natura_,
hem podia alhanar o tracto da cultura,
mas não quiz: preferiu, porque o mortal se adestre,
se estimule, so active, e o reino seu campestre
não viesse a perder-so um dia ao desamparo,
que o lavrar fosse atin, c industria o seu preparo.
Boa doutrinal boa de lei , apesar de nos vir da
Ualia velha, e eu não a saber fraldar com uma
dúzia de citações de livros allemães cisadas da
feira de Leipzig 1
Note V. Ex." o como vem frisando no nosso
ponto CS nomes d'aqucllas pragas : os patos bra-
vos ! (A(|ui não venha algum i)raguenlo fingindo
cuidar que alludo ao nosso excellenie confrade
Bulhão Paio : esse assigna Pato e é cisne dos
mais alvos e canoros ; eu fallo só dos que, ten-
do-se em conia de cisnes, não passam de patas e
patos bravos); os grous lambem para aqui acer-
tam : as cabeças naquelles hybridos são d"isso ;
os almeijões deixemoí-os; pojém não já assim:
a arvore que embarga
ap sol passagem livre
Estes esparaveis de quatro folhas que tèem a
presumpção de querer tapar o solj e ensombrar a
terra., é que são o peior inimigo ; e nunca as mãos
doam a V. Ex'% que já tomou o machado para os
dei lar a baixo.
Este seu artigo oom que se eslreiou o novo Pa-
norama, promelle muito, e estou certo de que
ainda ha de dar muito mais.
Pela boa doutrina queV.Ex,"vai espalhar pelos
muitos leitores d'esta acreditadissima folha, e so-
bretudo pelo insigne favor com que a sua bene-
volência ahi me trata, devia eu a V. Ex." mil
agradecimentos. Acceite-m'es nesta carta, e creia
nas veras com .que me honro de assignar-me
De V. Ex."
admirador, confrade, amigo e-servo obrigadissimo
Lisboa i de Janeiro de 186G.
■• - A. F. DE Castilho.
Oueixava-se hum requerente a oulro de que hum
seu juiz, sendo pobre, gastava como rico; e, no-
meando suas ostentações, rematava com dizer: Pois
isto, senhor, de que sahe? E outro lhe respondia:
Do que entra. Tornava o queixoso, e dizia: Senhor,
não fizeram isso seus passados ; o outro respondia:
Não, senhor, mas fazem-no nossos presentes.
D. Francisco Manoel.
Casa limpa. Mesa asseada. Pralo honesto. Ser-
vir quedo. Criados bons Hum que os mande. Paga
certa. Escravos |)Oucos. Coche a ponto. Cavallo
gordo. IMata muita. Ouro o menos. Jóias que se-
não pecam. Dinheiro o que se j)0ssa. Alfaias Io-
das, Pinturas as melhores, Eivros alguns. Casas
j)ropria"s. Quinta pequena. Missa em casa Esmola
sempre. Poucos visinhos. Filhos sem mimo. Or-
deuí em tudo. Mulher honrada. Marido chrislão;
é boa vida, e boa morte.
D. Francisco Manoel.
o PANORAMA
21
S. SEBASTIÃO
Se no mundo lêem apparecido homens que, á
sombra da frondosa e fi-uclifera arvore do chris-
tianismo, hão commetlido Ioda a sorle de crimes
invocando o santo nome do Uedempfor da huma-
nidade, cujo código é todo doçura, paz e o único
que ensina a verdadeira senda que conduz á feli-
cidade eterna; se mesmo, de entre os que enver-
gam as vestes sacerdolaes, -cuja missão deve ser
unica e simplesmente, com bons exemplos e sãos
conselhos, conduzir os povos e propagar as sa-
bias doutrinas do mar.lvr do Goigolha, al-^uns
lêem saido que, por seu procedimento allaniente
repreensivel, hão manchado essas vestes vene-
randas, só dignas de quem possue uma alma bas-
tante elevada para poder encarar, indifferentemente
as ephemeras grandezas na terra e resistir ás pai-
xões; outros muitos, que a historia nos aponta «se
hao distinguido por suas virtudes, zelo e infàíi-
navel trabalho em, por meio de palavras repassadas
de intimo sentimento religioso e rasgos, não íin-
gKlos, de verdadeira caridade evangélica, enca-
minhar para o aprisco as ovelhas extraviadas,
a. bebastiao foi um d'eslcs.
Nascido em Narbona, cidade da província de
Languedoc, e educado em Milão, domie era ori-
ginaria sua familia, este heroc, que desde tenros
annos mostrara sempre uma alma grandiosa ecégo
lespeito pela religião do Crucilicado. com a qual
o educaram seus pais, lendo completado a idade
própria de poder começar a sua santa missão, foi
constituído, pelo imperador Diocleciano, Capitão
da primeira companhia das suas guardas, chamada
ratriarcha.
iNão era, certamente, o desejo de occupar uma
posição brilhante na sociedade que o levou a ac-
ceitar semelhante cargo : a sua nobresa de carac-
ter e magnanimidade de coração não lhe inspi-
ravam taes sentimentos. Acceitou-o porque, devo-
22
O PANORAMA
lado chrislão, entendeu que, servindo o imperador,
podia, mais facilmenle, auxiliar os fieis, seus
correligiosos, que princi^)iavam a ceder ao rigor
dos tormentos.
Seria supérfluo enumerar os relevantes serviços
que desde logo este mart\ r começou a prestar ao
clirislianismo ; assaz e de sobra os conhece todo o
mundo. Diremos, apenas, que, depois de haver
salvado das mãos dos pohlheistas milhares de vi-
timas, e de ter induzido muitos gentios a recebe-
rem o baptismo, foi accusado, por um desgraçado
apóstata, ao juiz Fabião, de ser pregador da lei de
Christo e protector ellicaz dos que a seguiam.
O juiz, ao receber a nova, apezar de lh'o pe-
dir o coração, não o mandou prender, altcndendo
ao seu elevado cargo; mas cojreu a informar o im-
perador que, logo, expedindo ordens para que o
accusado fosse conduzido á sua presença, o repre-
endeu asperamente, censurando-lhe a sua ingra-
tidão, e fazendo-lhe ver que um tal procedimento
podia chamar a irados deoscs sobre todo o impé-
rio. Ao que S. Sebastião respondeu : «O maior
serviço que posso prestar-vos, senhor, é, obdecer
aos preceitos do único Deos verdadeiro e dili-
genciar quo os outros me sigam o exemplo ;
jiorque, nada vos é mais conveniente, e ao aosso
estado, do que fieis vassallos que, despresando
os falsos deoses, façam, por vosso respeito, pe-
rennes votos ao Supremo Creador.»
Irritado, Diocleciano, por esta tão inesperada,
quanto audaciosa resposta, ordenou que, imme-
dialamente, sem forma de processo, o seu capi-
tão fosse morto a tiros de frechas pelos próprios
soldados da guarda imperial.
A sentença foi promptamente executada, e o
santo deixado, por morto, no campo do marlyrio.
Mas, a devota Irene, viuva do mailyrCastulo, pas-
sando no ília seguinte por aquelle logar e vendo
ainda no mancebo signaes de vida, ajudada por
alguns lieis, levou-o para sua casa, onde, sendo tra-
tado com o maior disvélo, em pouco tempo se
achou restabelecido.
Muito o inslaiam, então, para que se retirasse
d'aquelles sitios; o santo, j)orém, não approvou a
idoa; antes apresenlando-se ao imperador, lhe disse:
«É possível, senhor, que ainda continueis a dar ou-
vidos ás imposturas e calumnias com que vos vem
todos os diaè muitos dos vossos desleaes servidores
para perseguirdes os chrislãos? Sabei, que estes,
longe de sej-em inimigos do eslado, são os vassallos
maisíieisque tendes, e a elles, que em suasorações
não cessam de pedir por vós aoKnle Supremo,'de-
veis só attribuir todas as vossas prosperidades.
Attonito, o imperador, de ouvir fallar um ho-
mem que ja julga\a morto, exclamou:
«És tu Sebastião, aquelle que ha poucos dias
mandei malar a tiros de frechas ?!
«Eu mesmo, respondeu o santo; foi o meu Deos
que me quiz conservar a vida para na vossa pre-
sença, e na de lodo este povo, dar um publico
testemunho da injustiça c impiedade (|ue commet-
teis, perseguindo os chrislãos, com tanto furor.»
Enlão, Diocleciano, era quem eslas palavras
produziram o eíTeito do raio, mandou que, sem
a minima demora, o santo, fosse levado ao circo,
e, alli, a bastonadas, lhe tirassem a existência;
mas que o não abandonassem em quauto o não
vissem soltar o ultimo suspiro.
Com eflVito, d'aquello grande supplicio passou
o Santo a receber no ceu a coroa do marlyrio, no
dia 20 de Janeiro de 288, da era chrislã.
OS PIIILO^PORTUGUEZES.
rOR INiNOCEiNGIO F. DA SILVA.
II
Daremos o segundo logar ao dislincto historia-
dor, poeta e lilterato Roberto Soulhey, nascido em
Bristol pelo anuo de 1774, e fallecido em 1843.
Deixando-se enthusiasmar ile principio com todo
0 fogo- próprio da mocidade pelas idéas democrá-
ticas inauguradas em França com a revolução de
1789, a ostentação apparatosa. que d'ellas fez em
um drama ]VV// J^/rr, que parece haver sido a sua
estreia Iheatral, allrahiu sobre elle o desfavor do
governo, intimando-se-lhe, senão ordem formal,
ao menosa insinuação para que sahisse temporaria-
mente de Inglaterra. Veiu pois para Portugal, pro-
curar a comj)anhia de um próximo parente, o rev.
Herberlo llill, a esse tempo estabelecido em Lis-
boa na qualidade de ministro daegreja anglicana.
Aqui se deu por alguns annos ao estudo das lín-
guas portugueza e castelhana, c da lilteratura penin-
sular, em que muito aproveitou ; até voltar em
1801 para a sua pátria, onde fora provido no car-
go de secretario do Chanceller do Thesouro da
Irlanda, As suas aspirações i)oliticas tinham i)a-
decido entre tanto uma completa transformação,
de sorte que o ardeu le democrata se convertera
em decidido conservador, alislando-se na bandei-
ra do partido lorfi, aò.qual permaneceu sempre
liei em todo o reslo da vida
O sr. Visconde de Juromenha, na sua novíssi-
ma edição das Obras de Luiz de Camões, tomo
1 pagina 288, pretende que Sonlhey residisse por
algum tempo entre nós pelos annos de 1811 a
1812. Ueceiamos, porém, que haja n'estas datas al-
guma equivDcação, pela carência absoluta que se nos
alligura de documentos, que possam comproval-a.
For alheio do intento, omUtir-se-ha o muito
que haveria para dizer, se tralassemosdedaraqui
uma biographia completa do illustre poeta laurea-
do. Referindo-nos unicamente (l'enlre as suas nu-
merosissimas obras áquellas que tcem tom as coi-
sas de Fortugal mais estreita intimidade, pedem
menção especial a sua llislorid do Brasil^ im-
|)ressa pela primei ia vez (1810-1810) cm três
volumes de 4.", geralmente estimada e ha pouco
vertida em poituguez e publicada no Brasil a ex-
pensas do benemérito livreiro editor o sr. B. L.
(jiarnicr em seis bellos volumes de 8.° grande : —
A Memoria ou ensaio sobre a Lilteratura por-
tuf/ueza, por elle inserta no jornal Quarter/i/ Keriew
de Londres ('Maio de 1809), cuja traducção em por-
luguez acompanhada de notas pelo académico J.
G. C. Mullcr SC imprimiu, segundo cremos, cm
o PANORAMA
23
Hamburgo, no mesmo anno: — e outra Memoria
acerca de Camões, com Xnahjse doOrienle de José
Açjostinho, publicada no tomo XXVII do sobre-
dito periódico (n.°'de abril a julho de 1822); pos-
to que o auclor ahi se mostre assas injusto com
o nosso grande épico, ao qual pouco mais conce-
de que a facilidade de esfjjloU
A livraria de Southey compreendia muitos e
valiosos livros portuguezes impressos dos nossos
auctores de melhor nota; e além d'ellesuma im-
portante e variada collecção de manuscriptos, re-
lativos á historia civil e litteraria de Portugal,
adquiridos à custa de dispendiosa e perseverante
curiosidade. Por orcasião da venda do seu espo-
lio, realisada em leilão, no mez de maio de 1845,
a maior parte d'esses manuscriptos foram com-
prados para o Museu de Londres, e ahi se con-
servam eccessiveis entre as innumeras preciosidades
d'este immensissimo deposito. Os tilulos e contex-
tos acham-se devidamente mencionados no Cata-
logo dos manuscriptos portuguezes do Museu Br i-
tannico escripto e dado áluz em 1834 pelo sr. F.
F. de la Figaniére.
^Continua)
PERES LOREXZO
(Scenas da Cainpaulia do México)
Por Pi:<HEmO CHAGAS.
III
A noite, primeiro serena e eslrellada, foi-se
turvando a pouco e pouco. No ceu, azul escuro,
conglobaram-se as nuvens, e as bafagens, precur-
soras d"esses terríveis furacões dos trópicos, prin-
cipiaram a affagar a faee dos expedicionários com
o seu hálito abrazado O capitão Viarmont, o
mesmo que vimos no capitulo antecedente arran-
cando, uma a uma, dos lábios do fleugmatico mexi-
cano, respostas que lhe satisfizessem a curiosi-
dade, marchava na testa da columna. Ao seu lado
ia Perez Lorenzo, empunhando nas mãos o facho,
que allumiava a estrada. O coronel Dupin mar-
chava na retaguarda.
O capitão Viarmont era um rapaz de vinte e
quatro annos, que sairá das escolas com. vinte an-
nos, e as dragonas de alferes, fora logo reunir-se
ao exercito de Itália, encontrara as dragonas de
tenente nas alturas de Solferino, c viera depois
procurar ao México as dragonas de capitão. Jovial,
galanieador, aventuroso, desejara servir na contra-
guerrilha, cujos movhnentos quadravam mais á
sua Índole do que as pausadas manobras do exer-
cito regular. Palrador por' natureza, não podia sup-
por que houvesse no mundo alguém que podesse
estar calado dez minutos a lio. Comludo o aspecto
sombrio de Perez Lorenzo involuntariamente ge-
lara-lhe a palavra nos lábios, e reprezara-lhe a
torrente da elocução. Mas a columna tinha já um
quarto de hora de marcha, e Viarmont, depois de
ter assobiado todas as árias do seu reportório, co-
meçava seriamente a enfastiar-se. Tirou da algi-
beira o porte-ci gares, ç, antes de escolher um ha-
vano, oflereceu charutos ao seu silencioso compa-
nheiro.
Viarmont procurara na sua memoria a mais gra-
ciosa frase castelhana, de que podesse dispor, para
formular o seu oflferecimento. Apesar d'isso Perez
Lorenzo respondeu apenas com um gesto cortez
de recusa.
O capitão soltou um suspiro de enfado, tirou
um havano, e, chegando-o ao lume do archote,
accendeu-o, e expellio uma baforada defumo azu-
lado, que se foi esconder entre a copa das arvo-
res.
— Não fuma? insislio o ofíicial francez, ainda
não descoroçoado de lodo.
— Agora não fumo, respondeu Perez Lorenzo.
— Ah ! mas costuma fumar, acudio logo Viar-
mont, ufano por ter obtido uma resposta em Ires
palavras e seis syllabas, e desejando não perder
a occasião, — o contrario espanlar-me-hia muito,
porque n'este paiz um homem, que não fuma, é
uma anomalia, uma excepção monstruosa, um
phenomenoque os naturalistas logo estudam e clas-
sificam. Um homem! que digo.^^ Um ente qualquer,
que tenha vida e lábios. Fumam as mulheres, fu-
mam as crianças, e parece-me que os recem-nasci-
dos, antes de beberem o leite maternal, accendem o
papelito. Ah! e é um óptimo costume. Nada co-
nheço melhor do que o charuto para alliviar ma-
gnas, desterrar saudades, e transportar no azulado
regaço do seu fumo os nossos devaneios para o céo a
que elles aspiram. Houve poetas que cantaram o
café e o chocolate; ainda não houve um só que se
lembrasse de entoar os louvores do charuto ! In-
gratidão tremenda que eu, se fosse poeta, havia de
remediar. Não; engano-me; se fosse poeta, can-
tava antes a cigarrilha, a cigarrilha que eu, logo
que desembarquei em Vera-Cruz, vi apertada pelos
mais formosos e vermelhos lábios, que jamais pro-
duzio a terra dos amores e das romanzeiras. Di-
zem-me que a sua esposa é uma gentil senhora,
meu caro amigo; ia apostar em como adora a ci-
garrilha.
Ao ouvir a palavra — esposa — Perez Lorenzo
parou, como se uma dor aguda o houvesse tras-
passado. Scinlillou-lhe nos olhos um relâmpago
de raiva, e a mão convulsa apertou a coronha da
caçadeira, com embutidos de prata, que levava
ao hombro. Depois, como por um esforço violento
da vontade, reassumiu o seu aspecto impassível,
e disse fria, mas corlezmente :
— Desculpe-me, senhor, o eu não sustentar uma
palestra, que n'outra qualquer occasião me seria
muito agradável ; motivos poderosos absorvem o
meu espirito n'uma preoccupação dolorosa.
E, comprimentando o joven oíTicial, desviou-se
d'elle e passou para o outro lado da estrada.
O capitão Viarmont ficou estupefacto.
— Diabos levem o mexicano ! murmurou mor-
dendo raivoso a ponta do charuto que tinha
na boca, se elle não fosse o nosso guia pedia-lhe
uma satisfação. Mas fica descançado que não per-
des por esperar.
A atmosphera ia-se tornando cada vez mais pe-
sada, e o grito do jaguar, o uivo do chacal resoa-
vam no meio do silencio agoireiro da floresta.
n
o PANORAMA
Afinal o furacão irrompeu no espaço arraslando
no redemoinho folhas e ramos de arvores. A
columna parou, sem receber para isso ordem,
mas como se uma só vonlade animasse lodos os
soldados. Comludo por entre o espantoso rugir
da tempestade ouvia-se vagamente a voz do coro-
nel Dupin: (íEn avant ! En avanl !y) Os oíliciaes
repetiram a voz de commando, c a pequena columna
tornou-se a pòr em marcha alravez de inuumeras
dilliculdades.
Para cumulo de desventuras, principiavam os
contra-guerrilhas n"esse momento a subir uma
ladeira escarpada, verdadeiro caminho de cabras,
onde a cavallaria teve de se apear e de levar á
mão os cavallos, que, assustados com o vento, ce-
gos com os relâmpagos, que fusilavam por todos
os lados, e pareciam envolver o horisonle n'um
cinto de fogo, recusavam galgar a ladeira. Os
soldados afierravam-se a tudo o que se lhes de-
parava, para assim facilitarem a subida, mas as
plantas espinhosas, que orlavam a estrada, rasga-
vam-lhes as mãos e ensanguentavam-n'as. Todos
procuravam mais ou menos resguardar-se com as
capas, e praguejavam, blasfemavam contra os
guerrilhas, e contra o clima do México. Só Perez
Lorenzo, Iranquilio e silencioso, caminhava conío
se possuisse um talisman que o resguardasse da
fúria do vendaval. Da capa servia-se unicamente
para abrigar o facho, cujachamma ondeava, louca
pelas excitações do vento, e ameaçava a cada ins-
tante extinguir-se. De vez em quando Perez Lo-
renzo agitava o archote no ar. derramando por essa
forma um jorro de vivissima luz na estrada, c se-
meando ao mesmo tempo emtorno de si uma nu-
vem de centelhas, que parecia uma constellação
lluctuando na nossa atmosphcra.
Visto assim ao fulgor avermelhado d'essa luz
vacillante, ou ao clarão sinistro dos relâmpagos,
o vulto d'esse homem, altivo e Iranqliillo, assumia
um aspecto verdadeiramente maravilhoso. Um
bretão e dois hespanhoes, que faziam parte da co-
lumna, decidiram no intimo da sua consciência
(jue o mexicano não podia ser senão o demónio
em pessoa, c; agoiraram por esse motivo um triste
lim á expedição.
Um dos hespanhoes chegou até a projectar li-
vrar-se a si e aos seus companheiros da presença
do inimigo do género humano. Approximou-se
d'elle o mais (|ue ))ôde, e beriou-lhe quasi ao ou-
vido: (f.Iesus 1j; "(loisa notável! Perez Lorenzo não
estoirou, nem sequer largou cheiro a enxofre !
A trovoada e ao vento succedeu a chuva, «m
verdadeiro diluvio. Torrentes de agua desabaram
em cima dos pobres expedicionários, c apagaram
ao mesmo tempo o facho de Perez Lorenzo. Ficou
tudo immerso na mais prolunda escuridão.
— IJom foi isto, nmrmiirou Perez Lorenzo para
junto do qual se chegara o coronel Dupin. Todas
as precauções são poucas; a luz do archote |)odia
denunciar-iios.
— Então estamos próximos do co\il.^ perguntou
o coronel.
— Ouve aqui do nosso lado direito o estrondo
de uma torrente ."^ É a voz do arroio de Canas,
que vae engrossado com as chuvas. As choupanas,
onde elles se reuniram, licam a dois passos.
Ouvindo isto, o coronel Dupin mandou fazer alto
á columna, para reformar as liteiras. Depois, sem-
pre com voz mansíssima, ordenou á infantaria que
avançasse de modo, que envolvesse as choças.
Deu o commando d'essa força ao capitão Viar-
monl. Elle, com os trinta cavallos, ia formar um
cordão concêntrico ao da infantaria para impedir
a fuga dos guerrilhas, e perseguir os que pudes-
sem escapa r-sc.
A infantaria avançou sem fazer o mais leve ruido.
Tudo era silencio nas choupanas ; não havia nem
uma luz lá dentro, nem uma senfinella cá fora.
Perez Lorenzo dava signaes visíveis de inquietação.
Afinal, á voz do capitão Viarmont, os soldados
que tinham envolvido os rr///c//o.v, precipitaram -se
sobre as casas, e entraram, arrombando portas e
janellas com simples coronhadas. Ia na frente Perez
Lorenzo. ^ ^ (ConUnua)
SAUDAÇÃO \ AURORA
Ver.so.s laUiio-iiorfiigiioze.ti, f|iie |twileni ser lidoM siiiiiil-
(iinciaiiieiite em qualquer dn^ «liinN Jinj^tiaN, seg;uin«lo
visorosaiiieiife u .syii<a\e «la |>figiioii'a.
l'i'losr. dr. António de Castro Lopds, do Hio do .laneiro.
Salve, -Aurora ! Eia, refulge.
Eia, anima valles, montes:
llymnos canta, oh philoinela,
llymnos vós, -aves insontes!
Quam pura, quam pudibunda
És tu, Auroia formosa !
Diffunde odores suaves,
Divina, purpúrea rosa!
Eia, surge, vivifica
Pendentes ramos, Aurora : .
Áureos fulgores emilte,
Pallidas messes colora !
Matutina aura, mitiga
Solares, nimios ardores;
Inspira gratos Favoíiios,
Euros, Zephyros protectores.
Eóa, Tithonia Diva,
Fecundos campos decora.
Canoras aves excita,'
Oh serena, bella Aurora !
Protege plácidos somnos,
Imiuietas mentes tempera.
Duras procellas dissipa,
Terras, fiores refrigera.
Lúcidas portas expande,
Oh sol, oh divina fiamma !
Extingue umbrosos vapores,
Tristes ânimos infiamnia !
Salve, Aurora! Eia, refulge,
Eia, anima valles, montes ;
li\mnos canta, oh philomela,
Ihmnos vós, aves insontes!
Typ. Frarico-l'ortugu(jza. = Hua do Thesouro Velho, 0.
o PANORAMA
25
||l|lll!trí:'.., ,:,;:, ;J
O PAPA lp:ão X
De todos esses grandes homens que encheram
de brilho e esplendor o século XVI, Francisco
I, rei de França, Henrique VJII, rei de Ingla-
terra, Solimão I imperador da Turíjuia, ele, é o
papa Leão X, que ao dito século deu o sou nome,
quemoccupa o primeiro logar nahisloriad'aquc]le
tempo. O importante papel que este personagem,
tão sabiamente, desempenhou no Ihealro politico
do mundo e o modo como se houve n'essa grande
revolução religiosa, de que Lulhcro foi origem,
bastaiiam para dar ao seu nome toda a celebri-
dade: outra coisa, porém, concorreu para a sua
eterna gloria e para tornal-o o alvo da admira-
ção de todas as gerações futuras: foi o grande
impulso que deu ás sciencias e ás artes, as quaes,
ao tempo, se achavam em peifeita decadência.
26
O PANORAMA
Leão X. descemlenle da celebre família dos
Médicis, nasceu em Florença, no mcz de dezem-
bro de li"o. Destinado, desde logo, por seu pai,
Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico,
á vida "ecclesiaslica, recebeu a tonsura não tendo
ainda completos sete annos de idade. ISão com-
mentamos este fado, porque o espaço de que po-
demos dispor nol-o não permilte. Toda a ambi-
ção de Lourenço de Médicis era ver seu íilho ele-
vado ao cardinalado, e baslantemenle instruído ;
por consequência, se por ura lado empregou to-
dos os esfoi-ços para a sua boa educação, já dan-
do-liie os melhores exemj)los, já enlregando-o a
mestres os mais babeis; esforços estes não balda-
dos, pois o talento de João dê Médicis era tal que
depressa conseguiu igualar os homens encarrega-
dos do seu ensino; por outro lado, não trabalhou
menos para obter-lhe, deinnocencío Vlll, o cha-
pou de cardeal, objecto principal dos seus cuidados.
Tinha, pois, João de Médicis, 13 annos, 1488,
ijuando subiu ao mais alto graúda jerarchia eccle-
siaslica; mas não podendo, pela sua pouca edade,
ser logo revestido, formalmente, da purpura, o
|)apa estabeleceu a condição de que o joven car-
deal passaria a estudar três annos na universidade
de Pisa. Assim succedeu; e, em 1Í92, recebeu as
jirimeiras ordens, indo imediatamente para Roma,
onde, por suas maneiras atraveís, talento e vasti-
dão de conhecimentos grangeou a aíTeição dos
grandes e a estima dos homens de letras.
Obrigado, bem como toda a família dos Médi-
cis, pela entrada de Carlos VIU na Itália, a sair
de LIorença, paia onde se havia retirado, em
consequência da sua opposição á eleição do papa
Alexandre VI, João de Médicis visitou a Allemanha,
França, Inglateira e por toda a parle encontrou
admiradores e amigos. No numero d'csles últimos
citaremos Erasmo, a quem o cardeal consultou
sempre nas mais diíliceís circumslancias.
Durante os seis annos do seu desterro nunca
teve ingerência nos negócios do estado; enlregou-se
unicamente ao cultivo das letras e das artes.
Foi só em loOIi, voltando a Roma, onde logo
SC fez notar pelo seu gosto pelas scienciase bellas
artes, que o cardeal Médicis, obtendo a amisade
(lo papa Júlio .11, começou a ingeri r-se nos negó-
cios do governo. Desempenhou vários cargos im-
portantes sob este ponliíicado, e, em 1513, por
morte de Júlio II, foi eleito seu succcssor, to-
mando então o nome de Leão X. A subida d'este
vaião ao Ihrono ponliíical foi magnilica e os seus
discursos cheios de graça, de bondade c de elo-
(juencia encantaram os Romanos. Kscolheu para
seus secretários os cardeaes Rembo e Sandoleti,
dois dos maiores sábios do seu tempo.
A nossa intenção não é desenrolar hoje o vasto
quadro dos acontecimentos políticos c religiosos
que assignalaiamo reinado de LeãoX. Mais tarde
tratando de Luthero e de outros homens notáveis
(lo século XVI, teremos occasião de mostrar aos
nossos leitores os eminentes servi(;os prestados
por aquellepontilice ao calholicismo e o seu tacto
e linura na politica. O que, por agora, quere-
mos, é apresentar Leão X como o protector das le-
tras e das artes, que foi isso, justamente, o que
lhe immortalisou o nome.
Em tempos anteriores á morte de Júlio lí, no-
tava-se nos povos uma impaciência, ura desejo
ardentíssimo de saírem das trevas da ignorância
e da barbárie. As cruzadas, abrindo novas estra-
das commerciaes, haviam começado esta grande
revolução, suíTocada pela allluencia, em Itália, de
um grande numero de sábios que os Turcos, vic-
toriosos do império grego, repelliram para a Eu-
ropa.
Esta tendência dos espíritos para a civílisação
não necessitava senão do auxílio dos governos para
ter todo o desenvolvimento. Procuravam-se, com
uma avidez incrível, as obras dos antigos. Era na
Itália, principalmente, que se operava esta nobre
agitação do espirito humano; mas os homens dís-
linctos, que se entregavam ao estudo das scíencias
e das artes, estavam sendo a todos os momentos
arrancados aos seus trabalhos e separados uns dos
outros pelas guerras que assolavam o paíz. A
exaltação, porém, de Leão X ao throno pontifical
foi uma barreira insuperável a todos os males que
acabamos de expor. Este homem, amante do pro-
gresso, que via, com grande pezar, a queda da lít-
teratura, procurou, immedíalaraente, reunir em
um só centro todos os raios dispersos. Restaurou,
por tanto, a universidade romana, enlregou-lhe
todos os seus rendimentos, e chamou sábios de to-
das as partes do mundo para regerem as suas ca-
deiras. A medicina, as mathematicas, o direito
civil, a philosophía moral, a rhetoiica, todas estas
scíencias alli tiveram logo os seus representantes,
bem como a theologia e o direito canónico.
Devido aos cuidados d'este pontífice, os mode-
los da lítteratura grega e latina, Homero, Platão,
Sophocles, Píndaro, Theocrito, Tácito, dos quaes
comprou por elevadíssimo preço ura manuscrípto
incompleto, saíram da obscuridade e foram im-
pressos sob a direcção dos homens mais instruí-
dos da sua corte, aos quaes, cm recompensa, con-
feriu depois altas dignidades.
A astiologia judiciaria começava então a ceder
logar á verdadeira astronomia ; Celío Calcognini
tinha já procurado provar o movimento diurno da
terra, que mais tarde foi a gloria de Copérnico cde
Calileo, e Leão X, projectou a reforma do calen-
dário; mas ahonrad'esta reforma eslava reservada
para o papa íiregorío XIII.
Duas biblíothecas, a do Vaticano c a que o papa
mandou construir por Miguel Angelo, era Florença,
sua pátria, se enriíjucceram de livros, restos da
antiguidade, c de todas as producções das bellas
artes que Leão X mandava colligir, cora grande
dispêndio c gosto esclarecido. Os leitores não
ignoram que foi sob o ponliíicado de Leão X que Mi-
guel Angelo c Raphael oi-naram com suas magnificas
pinturas o palácio do Vaticano e muitos outros dos
principaes monumentos de Roma. O pontífice com-
prehendia toda a extensão do talento (restes gran-
des mestres cvia com ura orgulho nobre elevar-se
uma mullídão de discípulos intelligenles era roda
o PANORAMA
27
d'esles dois homens, cujogcnio creador elle exci-
tava.
O brilhantismo da côitc de Leão X augmentou
em seguida ás meditlas de rigor que se vio ol3ri-
gado a tomar contra os conspiradores que quize-
ram tentar contra os seus dias. Reconhecidos cul-
pados do projecto de envenenamento, três d'entre
elles foram sentenciados á morle, e muitos outros
condemnados a penas severas. Personagens dislinc-
tos, mesmo cardeaes, tinham sido cúmplices na
conspiração, e Leão X sentiu a necessidade de
suavisar o sentimento de tristeza c de irritação
que esles actos de justiça produziram em mui-
tos corações. Fez, pois, uma promoção de trinta
e um cardeaes, c procurou encantar a aristocracia
romana com a magnificência c o bom gosto. Este
luxo bem entendido, espalhou a abundância e os
prazeres na vida de todas as classes do povo Ro-
mano.
A liberdade do commercio, e a sabedoria da
administração, augmentaram a felicidade geral, e
íizeram abençoar o nome do pontiOce pelo povo
e pelos artistas que lhe deviam uma grande parte
da sua prosperidade: assim, não houve senão uma
voz para applaudir o decreto solemne que conferiu
a Leão X uma estatua cuja execução foi confiada
ao grande Miguel Angelo, e que ainda se vê no
Capitólio.
Tanta grandeza, prazeres e prosperidade, tinham
tornado a capital do mundo calholico o ponto de
reunião de todos os homens grandes e instruídos,
no meio dos quaes Leão X goslava sempre de se
achar. Reunia-os em esplendidos banquetes, onde
mostrava, com tudo, uma grande sobriedade, e
animava uma familiaridade tal, que, provavel-
mente, escandalisaria as gentes do nosso tempo.
Muitas vezes, durante os banquetes, mandava fa-
zer leituras escolhidas, ou originava discussões de
ordem elevada sobre sciencias e artes.
Gostava das pompas do culto e procurava sem-
pre harmonisar a riqueza de seus ornamentos pon-
lificaes com a solemnidado c brilhantismo dosof-
ficios divinos.
Leão X era de nobre presença, estatura elevada,
rosto alvo e corado, olhos pardos e vivos, nariz e
bocca regular, voz agradável e sonora e manei-
ras aíTaveis, excepto nas raras occasiões em que
a caça, divertimento que amava até á loucura,
não correspondia aos seus desejos.
O inimitável Raphael traçou de Leão X um re-
trato fiel, que é uma das suas melhores obras, e
do qual ofierecemos uma copia aos nossos leitores.
Á esquerda do pontífice está o cardeal Rossi; á
direita o cardeal Júlio de Médicis, que depois foi
elevado ao pontificado, tomando o nome de Cle-
mente ML
Havia apenas nove annos que Leão X tinha re-
cebido a tiara, 1 de dezembro de 1520, quando
morreu quasi subitamente. O corpo tendo appa-
recido inchado de uma maneira extraordinária,
foi aberto, com permissão do consistório, e os
médicos declararam que o papa linha morrido en-
venenado. Foi preso o copeiro, mas depressa saiu
solto por falta de provas. Um rumor suido accu-
sou Francisco!, rei de França, que tinha lido com
o papa grandes contendas, e que acabava de per-
der, oito dias antes, o Milanez; mas não está mesmo
bem averiguado que houvesse envenenamento.
Os médicos d'aquelle tempo não estavam muito
conhecedores do-s eííeitos do veneno.
O tumulo que se elevou a este grande príncipe
na igreja de St." Maria da Minerva linha sido
esboçado por Miguel Angelo. A estatua do pontí-
fice é de Raphael Monte-Lupo.
PERES LORENZO
^Sccuas da Campanha «lo Mcxico)
Por PINHEIRO CHAGAS.
Ill
O desapontamento foi igual ao impelo. As chou-
panas estavam ermas.
— Inferno! exclamou Perez Lorenzo, os malditos
fugiram.
E correu como louco, por todos os recantos, ba-
tendo com a coronha da caçadeira nas paredes e
nos moveis, esperando encontrar algum dos ban-
didos. Os contra-guerrilhas olhavam para elle com
certa desconfiança. Lorenzo de coisa nenhuma dava
fé. Com as faces afi^ogueadas corria como um tigre
em torno da jaula, arrombando moveis, despeda-
çando fechaduras. Afligurou-se-lhe suspeito um
enxergão, cuja palha parecia que fora revolvida
de fresco. De um pulo saltou para cima d'elle, e
ia a despejal-o, quando um homem, que lá estava ,
escondido, se ergueu de súbito agitando um pu-
nhal, que lhe cravava de certo no peito se o ca-
pitão Yiarmont, a quem esse enxergão lambem cau-
sara suspeitas, e que se fora, devagarinho, chegando
para lá,* não aparasse o golpe, decepando ao
mesmo tempo a mão do bandido.
— Obrigado, exclamou Perez Lorenzo estendendo
a mão ao oíficial francez, se houvesse realisado já
o meu desejo, não lhe agradecia o serviço. Assim
agradeço-lh'o do fundo da alma. Preciso viver até
me vingar.
Os soldados lançaram a mão ao bandido, que
se debatia furioso. Novas pesquizas fizeram des-
cobrir ainda outro, que só pedia a vida, e que se
mostrou tão covarde como o primeiro se mostrara
audacioso. Não foi possível encontrar mais nenhum.
O bando dos condores deixou apenas nas mãos
do caçador aquelles dois trainards. É verdade
que eram ambos captivos de bastante importância
porque um d'elles era Juan Lopez, cunhado de
Juan Pablo, o outro Omata, primo do mesmo chefe
de guerrilhas.
N'este momento entrava na choupana o coronel
Dupin.
— Fugiram os milhafres? perguntou elle relan-
ceando para Perez Lorenzo um olhar suspeitoso.
— Fugiram ! tornou Perez Lorenzo com um modo
sombrio, mas a águia não lhes perdeu os rastos;
não conservam os ares o sulco das azas, mas a
terra denuncia o voo rasteiro dos pássaros covar-
des.
28
O PANORAMA
— Responde pelo cumprimento da sua promessa?
tornou o coronel.
— Respondo, tornou PerezLourenzo, lembrc-seo
coronel de cumpiira sua.
— A minha ? atalhou Dupin lentando recordar-se.
Perez Lorenzo não fez mais do que apontar
para os dois prisioneiros.
—Olá! exclamou o coronel, que ainda lião repa-
rara n'elles, sempre licaram alguns nas redes.
Enlendo. conlinuou, Aollandose j)ai'a o mexicano,
estes dois homens perlencem-liie, mas primeiro
consinla que os oiçamos caniar.
— Si Icur ramagc rcssemhle á Iciir plumage,
murmurou o incorrigível Viarmonl, i/s seront Ics
phènix d CS /tal es de cc bois.
A cilação de Lafonlaine fez brotar um sorriso
nos lábios do coronel, que se voltou para o seu
suballerno, dizendo :
— Se elles nos derem as informações de que
precisámos, ser-uQsha mais agradável a sua voz
ílo que o próprio canlo do gracioso colibri. Pa
rece-me, meu caro capitão, que a boa da raposa,
ao saborear o queijo, achou dulcíssimo o grasnar
do corvo.
— É escusado, interrompeu Perez Lorenzo; co-
nheço-os a ambos. Juan Lopez morre mas não
dà palavra ; e .hian Pablo não é tão tolo que vá
conliar a Omala o segredo dos seus movimentos.
— Tentemos sempie, disse o coronel.
Perez Lorenzo encolheu os liombros, e foi sen-
tar-se a um canlo da choupana. Mellia horror,
contemplar esse rosto juvenil e formoso, devastado
pela lormenla de uma dor immensa; a sua phy-
sionomia linha a immobilidade do mármore, mas
do maimore lascado pelo raio, que lhe deixou ves-
tígios indeléveis na sua lisa superfície.
Como elle o presagiava, foram infrucliferas to-
das as tentativas queosfrancezes lizeram para ob-
terem dos dois prisioneiros a revelação do cami-
nho que os bandidos haviam seguido. Juan Lopez
não descerrou os lábios, senão para dizer: Ca-
ramba! quando as supplicas e as lamentações do
seu companheiro o irritavam em demasia. O co-
ronel, vendo que não tirava fructo da sua persis-
tência, voltou-se para Perez Loienzo, e, indican-
do-lhe com um gesto que podia fazer dos prisio-
neiros o que quizesse, saio com os seus subordi-
nados.
Viarmonl foi o ullimo a sair. Ainda pôde ver
um relâmpago de satisfação infernal fusilar nos
olhos de Perez l>oreiizo, ainda o pôde ver Icvan-
lar-se, c avançar para os dois bandidos com um
diabólico sorriso nos lábios.
O próprio .luan Lopez estremeceu e descorou,
ao ver aquelle vullo sinistro caminhar em direi-
tura a elle.
A necessidade de formar os seus soldados obri-
gou Viarmonl a sair, mas a curiosidade actuava
ftoderosamenl* no seu espirilo, e, quando a con-
tra-guí-rrilha se poz cm marcha, Viaimont dei-
xou-se íicar á reclaguarda para ver o (lue resultava
d'alli.
Primeiro ouvio gritos dolorosos, depois > io abrir-
sc a parla, c sairem os dois prisioneiros, impel-
lidos pela coronha da caçadeira de Perez Lorenzo.
Devemos dizer que os francezes tinham alado com
rijas cordas os pulsos dos dois bandidos.
A avaliar pelo movimenio dos lábios de Juan
Lopez, e pelo seu sorriso irónico, o valente guer-
rilheiro insullava o seu algoz, como os índios sel-
vagens, cujas tradições de bravura impassível pa-
recia que eram conservadas lielmente por elle,
quando os seus inimigos os alavam à estaca do
marlyrio ; Omala chorava como uma creança.
Perez Lorenzo amarrou os dois a uma arvore,
volíou á choupana, trouxe uma corda, atou-acom
todo o vagar a um ramo, fez a laçada e enfor-
cou Juan Lopez. Era quanto o guerrilheiro estrebu-
chava nas convulsões da agonia, Perez Lorenzo
parecia dirigir-llie palavras zombeteiras, cujo mur-
múrio sinistro chegava muito vagamente ao ouvido
de Viarmonl.
Depois desatou o cadáver, alirou-o com um pon-
tapé para o cerrado do arvoredo, e passou a en-
forcar o pobre Omala, que desmaiara de pavor.
Esse quasi que nem senlio a morte. Os uivos dos
chacaes, que parecia prcsenlirem (pie se lhes es-
tava preparando um festim, resoavam lugubre-
mente no fundo da tloresta.
— Mordieu, exclamou energicamente e n'uai
tom de cólera reprimida uma voz por traz de Pe-
rez Loi'enzo que mirava com um prazer feroz os
dois cadáveres, julgava que se tinha extinguido a
raça dos Caraíbas. Vejo que me enganei. Se a
sua vida não estivesse garantida pela palavra do
meu coronel, e por conseguinte debaixo da pro-
tecção da bandeira franceza, havia de lhe ensinar
a corlezia e a humanidade europeas.
— Capitão, respondeu Perez Lorenzo vollando-se
e tilando n'elle um olhar que esfriou o capitão até
á medulla dos ossos apezar da sua reconhecida
bravura, não avalie o procedimento dos oulros, e
deixe que Deus peze, na sua divina balança, os
nossos merecimentos e as nossas culj)as.
E, dizendo isto, aíTaslou-se vagarosamente. A
chuva continuava a cair lorrentuosa, o trovão ri-
bombava nos ares, e os chacaes uivavam lugu-
bremente ao fundo da lloresla.
(Continua)
O INFELIZ POETA
O quadro, do qual é copia fiel a gravura que
hoje olVerccemos aos nossos leitores, foi desenhado
pelo celebre pintor e gravador AVill llogarth, a
quem as bellas artes conferem um logar eminente
entre os seus cultivadores.
Will llogarth, cuja .biographia publicaremos
opportunamcnle com o seu relrato, lornoií-se no-
tável pela sua originalidade c pela verdade com
que conseguiu exprimir as paixões e as scenas
ordinárias da vida.
Todos os seus (piadros, como disse um notável
escri|)tor, são oulias tantas comedias em pintura,
censurando os vicios dos homens, para corrigil-os;
alli tudo c acção, movimento, interesse, verdade
11
nue lendo deixado o filbinho adormcc lo e havia
assentado coslurando.cslorvada em st^"* 1'^' ''''''"^
nPb ei eira nuc,moslrando aconla.exigeapiom a
L k arin do seu credito. Atraz da leiteira, o cao
»nò dmndo se de um boccado de toucinho que a
?S esposa a troco da pequena somma nela qual
"h ompSm uma louquinba que engenhara na
de interesse para os donos da casa.
Ouanla verdade nao existe neste quaaro.
30
O PANORAMA
idílio
II
A Tempestade
— Ouves Lilia, o horrisono bramido da tompesla-
de, que nos eslà iniminenlc? Vòs os fogos que
fendem as nuvens, ouves o Irovão, e a par do
trovão o ruido medonho dos cslragos causados
pelo raio despedido do firmamento ? Na profun-
da obscuridade que nos rodèa não posso ver-le
senão á luz dos relâmpagos ; nem me deixa ouvii'
o grilo da lua angustia, o bramir horroroso e ter-
livel da tempestade. Parece que só a nós ameaça
de morte; porque estamos sós no meio dos bosques.
Sinto. ))orém, que no meio do terror, que te
anniquilla, cingiste meu corpo com os teus bra-
ços, e que leu coração, sobresaltado, palpita jun-
to ao meu. Eslreila-me ainda com mais força con-
tra o teu seio, Lilia, e abençoarei os terrores e
os perigos da tempestade.
Em breve apparecerà novamente o sol, plácido,
sereno, como um pensamento do amor divino.
Em seu refulgente carro percorrerá os límpi-
dos ceos, e o vento aquietará. As nuvens, os
montes, e os prados de luz pura serão vesti-
dos, e tornará o murmúrio do arroio a acompa-
nhar o canto das aves e a voz mysteriosa dos
bosques. Oiça eu então a harmonia da tua fal-
ia no concerto que a natureza envia á gloria do
Senhor; beije tua fronte radiante de alegria; leia
em teus olhos que confirmas na bonança os di-
reitos que me deste na tormenta ; e lembrando-me
de onde me vem tanta ventura, abençoarei os
terrores e os perigos da tempestade.
Ail o que égi vida do homem senão um temporal
desfeito ? Ê o que seriam sem elle o coração e o en-
tendimento.^ Apoz medonha tormenta e mais bri-
lhante o céo, o ar mais puro, mais alegre a campi-
na; depois do obstáculo que retarda a ventura, ou da
desgraça que d'ella nos afasta, mais funda e viva
a sente o coração. Quão sublime c o poder de
Deos quando arma o seu braço com a tempesta-
de! Assim como elle sublime, apparece a virtude
no meio dos combates do vicio. Oh! que meus
dias não findem com a alma já cansada de gosar
perenne ventura. Que cu veja azares, lides e pri-
vações na vida, e com o teu amor, Lilia, as tuas
iras ; porque o socego me intristece, e no cora-
ção, e na natureza me dão prazer, os terrores e
os perigos da tempestade.
—Cessou a tormenta, amado bem ; reconhece-
mos Deos no raio ; bemdigamol-o agora no iris.
Aqui tenso meu rosto; imprime n'elle o beijo
do leu amor... Um, um somente; que o meu co-
ração estremeceu ao contado dos teus lábios...
Deixa-me... Logo cantarei a felicidade dos pas-
tores c a sua innocente vida. Depois de cantar
reclinarei a cabeça sobre o teu peito e abraçar-
tc-hei como ainda não ha muito o fiz, quando
fechados os olhos c o peito opprimido, buscava
em ti, que f"s homem, um appoio contra a tor-
menta. Em seguida, meu bom amigo, zangar-me-
heipara que tu procures abrandar-me; mas, se
quizeres obter o meu perdão, buscarás a permis-
são de minha mãi, para jungirmos os nossos fados,
quando eu durma reclinada nos seus joelhos.
Ah ! se ella te dá o nome de filho, e se a ambas
nos prometles um amor eterno, bemdiremos,
como tu, meu querido amigo, os terrores e os
perigos da tempestade.
RÃ-PULANTE
II
Quando Rã-Pulante e Castanheta, paraobedecc-
remás ordens do rei, correram a fallar-lhe, acharam-
n^o bebendo \'m\io realmente com os sete membros
do seu conselho privado; mas parecia estar de
máo humor. Sabia que Rã-Pulante temia o vinho,
porque esta bebida levava-o á doudice — e a dou-
dice, aqui para nós, não é lá das cousas mais agra-
dáveis—mas o rei, que presava muito a sua di-
gnidade, e era bastante caridoso, tinha um prazer
inexplicável em obrigar o coxo a beber, e — usan-
do da expressão real — a ficar alegre.
— Aproxima-te, Rã-Pulanle, disse elle, logo
que o bobo e a sua companheira entraram na ca-
mará ; bebe este copo á saúde dos teus amigos
ausentes (aqui Rã-Pulante suspirou) e ajuda-nos
com a tua imaginativa. Necessitamos de lypos, de
caracteres, meu bravo ! de alguma cousa nova,
extraordinária. Já estamos cansados d'esta mono-
tonia eterna. Vamos; bebe ! o vinho ha de escla-
recer-te as idéas !
Rã-Pulante procurou, como de costume, res-
ponder ao rei com uma palavra chistosa, mas não
poude. Era justamente o dia do anniversario do
seu nascimento e a ordem de beber á saúde dos
amigos ausentes fez-lhe rebentar as lagrimas dos
olhos. Algumas gotas amargas cairam no copo ao
recebel-o humildemente das mãos do seu bom
rei.
— Ila ! ha! ha! rugio este ultimo,, quando o
anão, com repugnância, levou o copo aos lábios;
vê o que pódc um copo de bom vinho ! Ileiu !
Como já te brilham os olhos !
Pobre rapaz ! Os olhos mais depressa lhe fais-
cavam do que brilhavam; porque o vinho excila-
va-lhe instantaneamente o cérebro. Acabando de
beber pôz, todo tremulo, o copo sobre a mesa, c
passou um olhar fixo c quasi doudo pelo audi-
tório.
Todos pareciam contentíssimos do feliz successo ^
da farça real.
— Agora, mãos á obra ! disse o primeiro minis-
tro, homem muitíssimo gordo.
— Exactamente, disse o rei; vamos, Rã-Pulan-
te, auxilia-nos. Dá-nos typos, meu rapaz, carac-
teres! temos grande precisão de caracter! ha!
ha ! ha !
E, como o dito tinha pretensões a engraçado, lo-
dos fizeram coro ao riso real. Rã-Pulante lambem
rio, mas o seu riso era frio c dislrahido.
— Vamos, vamos, continua o rei, com impa-
ciência; não achas nada?
— Diligenceio achar alguma cousa inteiramente
o PANORAMA
34
nova, replicou o anão, desorientado, porque o
vinho lhe fervia no miolo.
— Diligenceias ! grilou ferozmente o rei exem-
plar. Que entendes, lu, por essa palavra? Ah !
comprehcndo. Desconfiou ; precisa mais vinho.
Toma ! bebe isto ! — e encheu novamente o co-
po e apresentou-o ao coxo, que nem podia res-
pirar deaíllicto que estava.
—Bebe, já te disse, gritou o nobre rei, vá, com
mil demónios !..
O anão hesitava. O rei eslava como um pimen-
tão. Os corlezãos sorriam maliciosamente. Casta-
nheta, pallida como um cadáver, aproxima-se do
bom monarcha, e, ajoelhando diante d'elle, roga-
lhe que poupe o seu amigo.
O rei olhou-a por alguns instantes, evidente-
mente estupefacto de semelhante audácia. Parecia
ignorar o que devia fazer ou dizer n'um caso d'a-
quelles, ou como exprimir sufricienlementea sua real
indignação. Por ultimo, sem pronunciar uma syl-
laba, repelliu-a violentamente para longe de si,
e alirou-lhe ao rosto o vinho que se continha no
copo cheio para o anão.
A pobre pequena, ergueu-se conforme poude, e,
não ousando nem suspirar, retomou o seu togar
junto á mesa.
Seguiu-se por uns trinta segundos um silencio
mortal, durante os quaes ter-se-ia sentido a que-
da de uma folha, ou de umapenna (que não fosse
de aço.) Este silencio foi interrompido por uma
espécie de cstiidor surdo, porém, rouco e pro-
longado, que pareceu rebentar de todos os cantos
da camará.
— Porque, porque... porque fizeste isso? per-
guntou o rei, voltando-se com furor para o anão.
Este, que parecia recobrar os sentidos, olhando
fixamente o monarcha, mas com tranquillidade, res-
pondeu :
— Eu, eu? Como poderia ser?
— O som, pareceu-me, que vinha de fora; ob-
servou um dos corlezãos; talvez fosse o papagaio
aguçando o bico.
— É verdade, tornou o monarcha, como bas-
tante consolado pela idéa; mas, pela minha honra
de cavalleiro, juraria que era o rangido dos den-
tes d'esle miserável.
Ao ouvir isto, o anão, soltou uma estrepitosa
gargalhada (o rei também rio, porque era um
d'estes homens que não podia conter o riso quan-
do o via nos outros) e rangeu os dentes de modo tal,
com tanta força, que seria para todos ficarem attoni-
tossenão estivessem rindo tão despropositadamente;
e depois, declarou que eslava disposto a beber tan-
to vinlio quanto lhe quizessem dar. O monarcha
Iranquillisou-se, e Rã-Pulánte, lendo absorvido um
novo copo, sem o menor inconveniente, entrou
em seguida e com enthusiasmo no plano da mas-
carada.
— Não posso explicar, — observou elle muito
tranquillo, e como se não tivesse bebido vinho —
como se operou em mim esta mudança; mas, lo-
go que Vossa Magestade bateu em Castanheta e a
baptisou com vinho; logo que Vossa Magestade
leve a inspiração, que tanto nos alegrou; e em
quanto o papagaio fazia aquelle singular ruido,
occorreu-me uma maravilhosa idéa de diverti-
mento ; é um brinquedo do meu paiz, que se in-
troduz muitas vezes nas mascaradas; aqui deve
oíferecer novidade. Infelizmente, são necessárias
oito pessoas, e...
— E nós somos oito ! — disse o rei, rindo muito
da sua descoberta;— a conta justa ! — eu e os meus
sete ministros. Vejamos ! que diverlimenlo é esse;
como se chama?
— Denominamol-o — Os oito orangotangos acor-
rentados—é uma cousa interessantíssima, sendo bera
executada.
— Bello! executal7a-hemos, disse orei, emperli-
gando-se e esfregando as mãos.
— A belleza do divertimento, continuou Rã-Pu-
lanle, consiste no grande susto que sempre causa
ás mulheres.
— Excellente ! rugiram em coro o monarcha e
o ministério.
— Eu vos caraclerisarei, proseguio o anão;
fiaivos de mim. A semelhança será tal que lodos
vos tomarão por verdadeiros irracionaes, e, natu-
ralmente, o terror deverá ser igual ao espanto.
— Oh! é surprehendente ! exclamou o rei. Rã-
Pulanle, acredita, que havemos de fazer de ti um
homem !
— As cadeias teem por fim augmentar a desor-
dem pela bulha que fazem. Todos julgarão, que
fugistes aos guardas? Vossa Magestade não pode
calcular o effeito que ha de produzir, no baile,
a entrada dos oito orangotangos acorrentados, que
a maior parte dos indivíduos tomarão por verdadei-
ros brutos, saltando e dando grilos selvagens,
por entre a multidão de homens e mulheres gar-
rida e brilhantemente vestidos! Cousa alguma se
lhe poderá igualar!
— Muito bem ! disse o rei ; e logo, porque a
hora se aproximava, lodos se levantaram para exe-
cutar o plano do bobo.
(Conclue)
Valho-me sempre das coisas naluraes, e assom-
bro-me certo n'este caso, considerando que uma
só gota de tinta que caia em uma redoma de agua
claríssima basta e sobeja para a lornar turva; e que
para aclarar e deixar limpa uma redoma de tinta,
não basta uma pipa de agua clara. Assim costuma
ser a má, e a boa fama que a muito boa não pode
acabar de purificar a ruim, ea ruim logo empece
á muito boa.
D. pRANcisco Manoel.
Sou tronco e rocha, ó bella,
Que açouta o sul, que brama,
E o mar que se incapella ;
Não lemas que do rosto a cór se mude;
Vence as rochas e os troncos
A solida virtude.
Thomas António Gonzaga.
32
O PANORAMA
BEATRIZ
—Oh tradimento I Pace
Sperar pos£'io piú mai? Quol vita orrenda
Di rimorsi, e di lagrime, e di rabbia !
ALFIEni
I
Cada qual tem seu dom; eu amo e canlo.
Sei que o fadário é mau, sei que" apoz ludo
Que exalla o coração, que o prende alegre
Em exlase ideal, q"iie lhe da mundos
Onde o deixa voar, por ecos em fora.
Não falta um dia, e breve, em que a verdade
Nos accorda, e nos diz —que diíja, emboral
Em quanto o mundo passa, revolvendo.
Cem mil questões de jota e de i romano,
Eu ergo a voz, e os anjos da Rarmonia
Vagueam junto a mim; brillia-me um rayo
De santa inspiração, minha alma accesa
Eleva-se ate Deos, ])erde-se ludo
N*um jubilo immortal; da vida as trevas,
Dissipam-se em redor, um paraiso
De elhereo amor, do fervidas delicias
Desabrocha ao meu lado; crescem rosas
Por entre os estevaes d'agra collina.
Desponta a aurora, as aves vem chilrando,
A tépida bafagem traz a espaços
O perfume subtil das larangoiras;
E eu ergo a voz, minha alma em vago anccto
Ardente anecia;— o mundo pas^a c geme
Cada qual tem seu dom; eu amo e canlo!
II
Porque abri d'esle modo o conto humilde
Que passo a relatar?.... não sei, mas penso
Qoe anda vaidade arrodo, e sem motivo,
N'este exórdio fatal; ai, se as leitoras
Soubessem, como eu sei, quanto nos cusia
Tragar a prosa vil que ondeia cm torno
De nós de nós ?— perdão, eu sou apenas
Um misero cantor, que algumas vezes
Versejo por demais, mas que não posso
Deixar de lhes dizer,' que, se a policia
Fedesse metter pé, de vez em quando,
N'esta citla dolente de escriptorcs,
E se deitasse a mão, como devia,
A quanto néscio vil ousa acoular-sc
Entre os que avultam, dilTundindo raios
De essência divinal, talvez eu fosse
(^om mais de cem, que de ouropel mentido
Parvos! se adornam ; oh, mas, sem rebuço, .
Dava tudo por bom, vendo na recua
Tanto sandeu que alrota de chibantel
III
Passado o mau humor que eslas palavras
Me fez vociferar, sem mais delonga
Entro na acção, e exponho o simples caso
Que ouvi contar ha dias, de passagem,
Mas que gravei na mente, resolvido
A dar-lhe, como dou, carta de corso.
Talvez fosse melhor para o bom nome
Que eu pretendo alcançar, deixar no escuro
A pobre narração; mas c, defeito
Que não posso perder, — mal que uma historia •
Me cai no ouvido, em quanto a não desfcixo
Sobre a primeira victima (|Uf; encontro,
Revolvo-me inda mais que S. Lourenço
Na grelha, o que cu não vi, mas oqucaíTirmam
Livros de santos padres, que egualnienle
Não vi, mas que me dizem (quanto basta),
Que são obras de truz,... louas in folio!—
IV
Desprenda-sc a voz; sumida
Já vai de ha muito a tristeza;
Aos pés de elherea belleza
Prostre-se humilde o cantor.
Do mundo as vagas impura
Jamais o locam de leve;
Em sonhos d'ouro c de neve
Contente respira amor!
Desprenda-se a voz; que imporia,
Se a tempestade rebrama?
Não brilha na mente a chamma
Que a tudo em torno dá luz?
Que importa, cpiando ante os olhos
Radiam mansões do empyrio, '
Que a turba, no seu dclirio.
Nos dé por leito uma cruz?
Deixai rugir a tormenta.
Almas que innunda a poesia;
Cantai por noite e por dia,
Erguei-vos na iVispiração.
Bem vedes que a natureza
Também de inverno se agita,
Que tudo canta e palpita
No seio da creação!
Que tendes, se acaso agora
Passais na terra -esqucciílos;
Sc os vossos cantos, perdidos.
Ninguém sequer enlendeu?
Quom sente o grato perfume
Que espira a rosa virenle.
Sc ella, á beira da correnie.
Por entre os juncaes rompeu?
Deixai que os homens blasphemem
Na sua eIVrcnc impudência;
Levai, sorrindo, a existência,
Fitai a luz semi temor.
Aves de nivia plumagem.
Cantai da vida as doçuras,
Vagai nas ondas mais puras,
Entre ribeiras em flor.
Amai sempre; o amor resume
Quanto é poesia divina;
Chamma (pie a fronte illumina
Ascende do corajão.
Amar c crcar um mundo
Em (jue arrobados vivemos,
Em que a nossa alma embebemos
Nas ondas da inspiração!
Eis, pois, o vosso destino;
Que importa qual seja a sorte?....
O cysne, mesmo na morte,
Solta gorgeios de amor.
Dissipai (pianlas tristezas
Vos podem tocar de leve:
Em nuvens d'ouro e de neve
Erga-se altivo o cantor!
(Continua.
E. A. Vidal.
Km IJmIxmi - Nu ]',xíriplorii>, Tjip. Fi<iit(o-l'orli(fjHcz(i, rua
(lo 'Jlicsoiiro VcIIk/ n." D, ninli; deve >í('r (lirit/ida Inda. a cvriespon-
ilcncia sul/mrijiliitld á lOiíiprexu «lo ■>uiioraiiia.
Preço?, ia assVywaVuta
Por invio 1 300 ) ( 1 'M) ri'is
Semestre... {',j()\ l^iildtnpillKido < 780 «
Trimestre ^ío) l'iOO «
No (Ido ilii inln-gn e avulso ;!0 J'éis.
Viwle-se i')n Iodas as tojas do costume.
l\'o porto — Assifina-sc e vende-se em casa da Viuva More'.
Typ. Fraiico-Porlugueza. = Rua do f besouro Velho, G.
o PANORAMA
3S
34
O PANORAMA
COSTLMES DOS TURCOS
Não é muito fácil formar uma idéa exacla do
caracter e costumes de um povo que, não obstante
visitado a miude, nos é ainda pouco conhecido,
e cuja lingua, talvez considerada como a de ura
povo bárbaro, tem sido despresada pelos nossos
sábios. Esta dilliculdade sobe de ponto em pre-
sença das exagiíeradas narrações dos viajantes. Uns
lêem elogiado "os Turcos de modo tal que, tudo
quanto em seu favor se diga, é pouco; outros, pe-
lo contrario, teem só visto n'elies os homens cruéis,
ignorantes e fanáticos, que levaram o ferro e o
fogo á decantada pátria dos Péricles e dos Demos-
llienes. Efleclivamenle, o procedimento dos Musul-
manos, para com os povos que lhes estão sujeitos,
tem sido extremamente bárbaro; mas lancemos
um olhar pelos seus visinhos lussos, pela Itália e
pela llespanha... o que vemos?
Comludo seria injustiça considerar os Ottoma-
nos debaixo do mesmo ponto de vista que os ou-
tros povos da Europa; poucas reformas tem havido
em seus costumes antigos, as sci^ncias e as artes
pouco ou nenhum desenvolvimento teem lido, eo
fanatismo e a superstição, que os dominam, levam-
os á pratica dos maiores absurdos. Os paizes, que
lhes estão submeUidos, são governados como ter-
ras de conquista e os tributos lançados sobre os
súbditos não são, a seus olhos, mais do que um
resgate Nos gregos, nos arménios e nos judeossò
vêem povos avassalados; e queinterresse poderiam
excitar-lhes homens que designam pelo nome de
cães? Altivos para com os estrangeiros, não re-
nunciam ao seu exterior soberbo senão diante
d"aquelles que recebem como hospedes; então a
hospitalidade franca e generosa que lhes dispen-
sam, faz lembrar a dos antigos palriarchas. A sua
caridade para com os pobres não tem limites; e
é d'islo uma prova ciara os numerosos estabele-
cimentos chamados Karvanserais. Os senhores
abastados empregam uma parte dos seus rendimen-
tos na edificação de hospicios, em dotes para os
mesmos, ou, na construcção de fontes em cami-
nhos áridos. Com a aflectuosa hospitalidade dos tem-
pos primitivos, teem lambem conservado a maior
devoção; nunca o Musulmano empreende um ne-
gocio importante, sem que, antes de eíTeclual-o,
dirija ao céo uma supplica; depois, cheio de confian-
ça na bondade de Deos, espera com santa resignação
lodos os acontecimentos, e ([uando a desgraça vem
feril-o, em vez de derramar lagrimas, humilha a
íronle no pó, e consola-se pensando que Allah as-
sim o quiz.
Quanlo á sua habilidade na guerra, bastantes
e gloriosos sí^o os litulos que apresentam; basta
citar as façanhas de Mahomet, Solimão e outros
muitos guerreiros, aos quaes não poderam resistir
nem os esforços desesperados de .1'ah'ologos, nem
o grandt; valor dos cavalleiros, senhores de Khodes,
iiemaaudaciadosavenlureirosilaliaL'Os,que Minotti
commandava. Se os Turcos moderno.s n'esle |)onto
estão muito longe dos seus antepassados, não é
porque a sua coragem tenha degenerí^do; hojcíjue
o sangue frio e o calculo subslituiram a coragem
ardente dos antigos, e decidem da sorte dos com-
bates, os exércitos ottomanos, mal disciplinados,
sem laclica e com um artilheria fraca e mal or-
ganisada, não podem luclar comos das outras na-
ções da Europa, que os excedem, unicamente, n'a-
quellas duas vantagens.
O seu governo em tempo de paz é ainda mais
ruinoso. Um déspota fraco, nos momentos diíTiceis,
gosando de um poder illimitado para fazer mal; a
escandalosa venalidade que cede os empregos a
quem mais oflí^rece; ministros ávidos de dinheiro,
sacerdotes ignorantes e fanáticos; laes são os can-
cros que roem pouco a pouco o império ottomano.
A sua foiça tem, de dia para dia, diminuído, e
talvez que, dentro 6m pouco, deixe de ser contado
entre o numero das nações. Os seus últimos sobe- •
ranos tentaram, é verdade, innovações úteis; mas
alguns pagaram caro a sua temeridade, e não foi
sem uma carnificina medonha, que Mahmoud con-
seguiu destruir o corpo dos janizaros, prompto
sempre a sublevar-se. Operou mesmo outras mu-
danças nos costumes dos seus súbditos; mas os
seus progessos teem sido lentos, c o fruclo será,
sem duvida, tardio.
fora dos tempos guerra o turco parece esque-
cer na tra.iquillidadedoseu retiro, as penas d'esta
longa peregrinação que se chama vida. Para ellc
a existência não é outra coisa alem de um sonho
feliz que só deve acabar no tumulo, um banquete
cujas delicias deve haver pressa emgosar. Grave
silencioso, indifferente a todos os interesses mes-
quinhos da terra, passa os dias languidamente es-
tendido sobre as macias almofadas do seu sophá,
rodeado das nuvens odoríferas que saem da sua
caixa de perfumes ou do seu longo cachimbo. Sa-
boreia obellocafé de Moka, eo ópio Iransporta-o
em dilicioso sonho ao paraiso de Mahomel onde
vivem as buris de olhos prelos.
Nos momentos de enfado as suas mulheres dan- ^
çamlhe emlorno e cantam ao som da suave harmonia
dos alaúdes. Depois de ceia faz as abluções do
costume, dirige aacéo a sua oração quando a voz do
miwzim, se faz ouvir do alto das torres das mes-
quitas e adormece entre sonhos de amor nos bra-
ços da sua formosa escrava Circassiana.
As mulheres, ainda (|ue guardadas com todo o
cuidado, não são tão privadas de liberdade, como
muitos viajantes teem aílirmado. O seu dote as-
segura-lhes uma tal ou qual independência, e o
uso da polygamia é muito raro, não obstante, o
Conm permiltir ao homem desposar qualro mu-
lheres. Além d'isso ellas sabem perfeilamenle vin-
gar-se de um marido iniiel, graças a certas mu-
lheres judias ou arménias que lêem livre accesso
nos harems. Sustentam uma correspondência amo-
rosa por meio de fiores dispostas de certa maneira
e não é muito raro o ver entrar um ou outro aven-
tureiro no recinto sagrado, a pezar dos oliios pe-
netrantes dos eunuchos. Os cemitérios lurcos,
|)lantados de cyprestes e de plátanos, são muitas
vezes testemunhas das apaixonadas declarações dos
amantes.
o PANORAMA
35
As habitações, em geral, de fraca apparencia,
por assim o determinarem os livros da sua lei, são
decoradas interiormente com grande magnificência.
Faleos espaçosos, rodeados de galerias sumptosas
sustentadas por arcos e columnas c ornados de
íontes, quartos forrados de soberbos tapeies da
Pérsia e assoalhados de preciosa madeira, pilastras,
balaustres, arcos enriquicidos de arabescos de ouro
c azul e de pinturas de tlores, uma rica salla de
banhos, onde quasi tudo é mármore, janellas, que
n'este bello clima, dão livre accesso ao vento agra-
dável e aos pássaros, varandas cheias de vasos
de flores, kiosques, boscagens onde se vecm o li-
lás, o loureiro, roseiras, larangeiras, e no sitio
mais retirado o harém; tal c a bella morada
onde o Musulmano espera o dia em que se devem
cumprir as promessas do Coran.
RÃ-PULANTE
III
A maneira de caraclerisaros nossos oilo heroes
era muito simples, sutíiciente, porém, para os de-
sígnios de Rã-Pulante. Ora, é preciso notar^ que
no tempo em que isto aconteceu, raríssimas vezes
appareciam animaes d'aquella espécie nos paizes
civilisados ; e por isso, como as imitações eram
em extremo beslíaes e hoifendas, todos accredi-
laram na semelhança.
Vestiram, primeiramente, camisolas c calças de
algodgio, em ponlo de meia. Depois foram alca-
troados desde os pés até ao pescoço. N'esta occa-
siãoumdos ministros suggeriu aapposição dcpen-
nas; mas, foi ímmedialamente rejeitada aidéa pelo
bobo, que com uma demonstração occular, depres-
sa convenceu os oito personagens de que o pello
de um animal como o orangolango, era com mais
lidelidade representado pela estopa, do que pelas
pennas.
Por conseguinte, foí-lhes applicada por cima da
camada de alcatrão, uma espessa camada de es-
lopa. As caras lambem foram untadas de uma
matéria viscosa e, bem como o corpo, cobertas
de uma camada semelhante. Estavam lindíssimos!
Todos riam a bom rir, e não cessavam de fazer
reflexões sobre o effeito que produziria a sua en-
trada no baile. Já não faltava senão a cadeia para
complemento da grande obra. Não tardou, porém
em apparecer, e com as dimensões exigidas. Foi,
portanto, em primeiro logar, lançada cm roda do
rei, e^ convenientemente, apertada ; depois em roda
da cintura do primeiro ministro e, igualmente, com-
primida ; seguiu-se o terceiro, para com o qual se
obrou do mesmo modo ; e assim successivamentc.
Terminada esta operação, affastaram-se, quanto
podiam, uns dos outros, e formaram um circulo,
dentro do qual, Rã-Pulante, para completar a
verosimilhança, achou meio de inscrever, com o
reslo da cadeia, uma cruz.
A grande sala em que devia ler logar o baile,
era uma casa circular, de grande pé direito (co-
mo hoje diria uriía notabilidade architeclonica) e
que apenas recebia a luz do sol por uma clarabóia.
De noite, (era só quando d'ella se serviam) cos-
tumava ser illuminadapor um grande e magniíico
lustre, pendente da clarabóia por uma corrente,
cuja extremidade livre sustentava um contrapeso
com o auxilio do qual o lustre podia baixar ou
elcvar-se ad libitum. Mas para não prejudicar a
elegância estava este contrapeso da parle exlerior
sobre o telhado.
A decoração da sala, linha sido confiada aos
cuidados de Casíanheta, que, provavelmente, em
certos pontos consultou o sensato juizo do seu amigo
anão; pois, foi por conselho d'esle que na cele-
bre noite do baile, o lustre não figurava no logar do
costume.. Como o excessivo numero de convidados
devia occupar todas as regiões da sala, tiveram
naturalmente em vista, com esta disposição, o evi-
tar que sobre os sumptuosos fatos dos convivas
mascarados cuspissem asvellas insultos frequentes
de cera fundida. Portanto, novos candelabros foram
dispostos cm differentes partes da sala, e ao lado
de cada uma das cariatidcs, que em torno a guar-
neciam, cm numero de cincoenta a sessenta, ar-
diam tochas, que projectavam abundantes e va-
riados reflexos sobre quanto n'ella existia.
Os oito orangolangos, seguindo o conselho de
Rã-Pulante, esperaram, para fazerem a sua en-
trada, que a salla se enchesse completamente de
mascaras; o que durou até á meia noite; mas logo
que no relógio soou a ultima badalada, irrompe-
ram com fúria tal, que, presos, como estavam pelas
cadeias, cairam rolando confusamente.
A sensação produzida por este inesperado acon-
tecimento foi prodigiosa e encheu de alegria o co-
ração do rei. Como se esperara, o maior numero
dos convidados acreditou que, estes entes de aspecto
feroz, eram verdadeiros animaes de uma certa espé-
cie ; não precisamente orangolangos. Muitas senho-
ras desmaiaram; e se o rei não tivesse tomado a pre-
caução de prohibir n'aquella noite o uso de ar-
mas, teriam pago, desde logo, com sangue o di-
vertimento. A confusão, o susto não podiam ser
maiores. Todos corriam para as portas como lou-
cos; mas em vão, porque o rei tinha ordenado que
as fechassem, logo depois da sua entrada e, con-
forme lhe aconselhara o anão, as chaves haviam-
lhe sido entregues.
Emquanlo durou o tumulto, e que cada um
pensava na própria salvação, — porque, em ver-
dade, n'cstc pânico e n^esta desordem havia um
perigo real, — ler-se-ia visto a cadeia, que servia
usualmente para suspender o lustre, descer, des-
cer até a sua extremidade, em forma de anzol, fi-
car a Ires pés da altura do sobrado.
Poucos instantes depois, os orangolangos, tendo-
se arrastado pela sala em Iodas as direcções, acha-
ram-se, em lim, no centro e em contacto com a
cadeia. Em quanto se conservavam n'esla posição,
o bobo, que os tinha seguido sempre de perto, indu-
zindo-os a attentar na commoção, apoderou-se
da cadeia na intersecção dos dois diâmetros e,
com a rapidez do pensamento, prendeo-a ao anzol.
Em seguida, como por encanto, subiu a cadeia
asuíTiciente altura para ficar fora de todo o alcance
86
O PANORAMA
econseguinlemenle levou após os oiangolangoscm
confusão reunidos.
As mascaras, duranleeslo episodio. Unham pau-
lalinamenle n-cobrado animo: e como já começa-
vam a lomar ludo islo como um brinquedo, engenho-
samente combinado, desalaiam-se a lir, despropo-
siladamenle, vendo a eslranha posição dos macacos,
— (;uardai-m"os: grilou Uã-Pulanle, com uma
voz que retumbou sobre o tumulto ; — guardai-nros
bem. parece-me que os conheço. Vou cerliíicar-me
para dizer-vos ja os seus nomes.
Então, engatinhando por cima das cabeças da
multidão ate próximo da parede, lançando mão
de uma tocha e voltando, como tinha ido, para o
centro da siila, saltou como um macaco á cabeça
do rei, tre|)ou pela corrente a alguns pes de al-
tura e aproximando achammadogrupc, como que
para examinal-o, exclamou : — Depressa descobri-
rei quem elles são !
Depois, em quanto toda a asscmbléa, — iucluindo
os macacos — ria a bom rir, o bobo soltou subi-
tamente um assobio agudo c a cadeia subio mais
uns vinte pes, levando comsigo os orangolangos,
que se debatiam atterrados. Rã-Pulanlc, seguro á
cadeia, linha também subido com ella e guardava
sempre a sua posição relativamente aos oito mas-
carados; masconlinuando a aproximar d'elles a tocha
accesa, como que j)rocurando descobrir quem eram.
Toda a assemblea licou de lai modo estupe-
facta com esta ascensão, que se mergulhou em
profundo silencio pelo espaço de um minuto, pouco
mais ou nu-nos, silencio que foi inlerromjjido
por um luido surdo e áspero, como aquelle (|ue
allraiu a allenção do rei e dos scbs respeitáveis
conselheiros, quando este atirou o vinho á cara
de Castanheta. I*orcm, no caso presente, não ha-
\ia que procurar donde partia o cslridoí; saio da
bocca do anão, que rangia os dentes como um
desesperado, e lançava dos olhos faíscas de raiva
para o rei e os seus sele companheiros, cujos ros-
tos estavam voltados para elle.
— Ah! Ahl — disse cmlim o anão, furibundo, —
ah', ah! i)rincii)io agoia me.smo a conhecel-os.
Entã(j, sob |)retesto de examinar os mascarados
demais pt-rto, chegou tanto o fogo á estojta que
a inílainiiiou. Em menos de trinta segundos os oito
(irangotangos ardiam, furiosamente, no meio dos
gritos de uma multidão (jue os conlemj)lava cheia
de horror e sem poder j)reslar-lhc o minimo soc-
corro.
Continuando as chammas a augmentar de vio-
lência, vio-sç o anão obrigado a trepar mais alto
p;ir;j licar-llus fora do alcance; e, em (luanto exe-
( iilaNa esta niunobr;», a multidão rcciíiu, poj' um
in-lante ainda, no siloncio. O bobo aj)rovcitando
o ensejo tomou novamente a palavra.
— .\i,'ora, disse elle, vejo, distinclamcnte, de
que í'siicri(! são eslas mascaras. NCjo jiin grande
rei e os seus sete conselliciíos pri\ados, um rei
que não escrupulisa em bater numa crcança in-
dcfeza e sele conselheiros que o animam na sua
atrocidade. Quanto a mim, sou simplesmente líã-
i*ulanle c esta é a minha ultima bobice I
Graças á extrema combuslibilidado do linho e
do alcatrão, ajienas o anão acabou de proferir es-
tas palavras, estava a sua vingança satisfeita. Os
oito cadáveres balouçavam-se na corrente — massa
confusa, fétida, fuliginosa, repugnante. O anão
atirou a tocha j)ara cima do grupo, trepou até ao
tecto e desap|)areceu pela clara-boia. E claro que
Castanheta, de sentinella no telhado, sérvio de
cúmplice ao seu amigo n'esta vingança incendia-
ria e que fugiram juntos para o seu paiz; por-
que nunca mais ninguém os vio.
PERES LORENZO
(^cciins An Cniiipniilia do Illoxico)
■ Por riMIEniO CIIAUAS.
IV
Passaram-se alguns diassem^que Perez Lorenzo
reapparecesse. Andava inquieto com a demora o
coronel Dupin, e aos que lhe perguntavam por-
que motivo se não punha de novo a caminho a
valente conlra-guerrilha respondia, se era mexi-
cano o pergunlador, (|ue, se Annibal se deixara
seduzir pelas delicias de Capua que se não po-
dia dizer (jue fosseum paraiso, não admirava que
elle coronel Dupin. sem ser Annibal, se deixasse
caplivar pelas delicias de Medellin, (pie era o pa-
raiso do kexico, do México que era o paraiso do
mundo.
Um dia um dos seus interlocutores, mexicano
esperto que não via com muito bons olhos a pre-
sença dos esliangeiros no seu paiz, observoú-lhe,
sorrindo-se, que Annibal, antes de adormecer cm
Capua, vencera eni Cannas.
O mexicano era um rapasito dos seus dezoito
ânuos, cuja casa o coronel Dupin fretpienlava muito,
e a quem se alleiçoára jiarticularmente.
— Deixe estar meu republicanosinho êchappé du
collófjr, disse o coronel rindo c puxando-lhe ami-
gavelmente uma orelha, deixe estar (|ue, se não
tivemos a fortuna de Annibal, tauíbem não have-
mos de ler o infoitunio d*elle. Diga ao seu amigo
.luarcz que se por acaso se está pre|)arando |)ara
ganhar a batalha de Zama, pôde mudar de ideia.
— Bom! tornou o mexicanozito, rindo-se. .lua-
rez éScipião. E (jue papel distribuo a Juan Pablo?
O de Eabio Máximo?
— Cunclalor, pois não ! Todos vocôà são uns
heroes da antiga Roma.
—Odiamos César, coronel, c ainda mais Au-
gusto, relrocou o mexicano com um fogo sombrio
no olhai'.
— Odeiem, odeiem, tornou Dupin rindo-se do
enlhusiasmo do juvenil republicano, mas diga-me,
o pa))á e a mamã estão lioje resolvidos a darem
uma chávena de chá a Varo?
—Quem é Varo?
--Sou cu, homem! Pois recusa-nie lambem esse
lilulo? (ieneral infeliz (PAugusto, mais dia menos
dia vejo as minhas legiões estiradas poi' ahi nos
|)lainos mexicanos.
— Olhe (pie a vontade é boa, tornou o mexicano
rindo.
o PANORAMA
37
— Mercês, meu joven amigo.
— Mas, emquanto não se realisa o desejo, ve-
nha Varo lomar chá, e venha hoje que lemos ter-
lullia.
— Eslá dilo, respondeu o coronel.
E despedio-se do seu juvenil companheiro.
— Coronel, grilou o moço mexicano depois de
ler dado uns dez passos, Iraga os chefes das le-
giões e principalmenle o magister eqimm Yiar-
mont.
— Todos iremos, respondeu o coronel dirigin-
do-se para sua casa a passos vagarosos a íim de
saborear a doçura e a placidez da tarde.
N'essa mesma noile em casa de D. llamon (as-
sim se chamava o mexicano) reunia-se a mais es-
colhida sociedade de Medellin. D. Ramon era rico
e as suas /er/í////aí gosavam de merecida fama. Ti-
nha a sua casa um terraço todo plantado de ba-
naneiras, larangeiras, e pimenteiras, forrado de
baunilhas, e perfumado pelas mais opulentas ílo-
les dos trópicos, e por esse fruclo, que da ílor
tem o aroma, c que se chama ananaz.
Para esse terraço fugiam os pares muitas vezes
fatigados do redemoinhar das valsas, e os cara-
mancheis e as laladas, se fossem indiscretas, po-
diam repetir bastantes frases melodiosas de amor,
que haviam sid© confiadas à larga folha das bana-
neiras, ou á alva ílor das grinaldas de noivas,
que o venlo desprendia manso e manso da ramada.
Na noite em que introduzimos o leitor nas salas
do opulento mexicano, eslava, como dissemos,
animadíssima a tertullia.
Os oíUciaes francezes, intrépidos valsadores,
tinham arrancado as creoulas á sua habitual in-
dolência. As morenas filhas dos trópicos haviara-
se lembrado da sua origem hespanhola, e os seus
languidos olhos incendera-os um reflexo do fogo
andaluz. A musica derramava na atmosphera da
sala a torrente vertiginosa das notas de uma valsa
de Strauss. As arvores do terraço entornavam pe-
las janellas abertas as suas uriías de perfumes.
Tudo dizia amor, e nada recordava as scenas de
guerra que se estavam a cada instante passando
iressas campinas, que se viam do terraço, e que
n'esse instante pareciam adormecidas debaixo do
docel de veludo azul do seu esplendido firma-
mento.
Na sala próxima d'aquella onde se dançava, a
mesa do jogo estava mais rodeada, do quê todas
as rainhas de baile que agitavam garridamente os
seus leques no salão. O jogo é a paixão dominante
dos mexicanos, ou antes e a febre do paiz, a fe-
bre do oiro, (jolden fcvcr, dizem os inglezes. E
não era o modesto voltarete que desdobrava gra-
vemente no panno verde as suas vasas disputadas,
era o monte, o monte frenético e vertiginoso, o
monte que fazia oscillar de jogador para jogador
riquezas, que dariam o bem-eslar a dez famílias.
O oiro escorria em fulgidas torrentes sobre o
panqo verde da mesa. Os olhos negros, e brilhan-
tes de esperança ou de raiva dos mexicanos se-
guiam com anciedade o seu curso variável, que
mudava de direcção a cada capricho das carias, i
Entretanto o baile agitava as suas ondas graciosas
de mulheres e de flores na sala principal.
Os ofliciaes francezes, ou mais pobres ou de
coração mais inflammavel do que os mexicanos,
preferiam apertar a delicada cintura das creoulas
a assistir, com a fronte aljofrada de suor frio, á
fluctuação caprichosa de enormes âommas. Alguns
jovens mexicanos viam, com desagrado, a interven-
ção estrangeira passar dos negócios públicos aos
namoros particulares. Elias... achavam que os
francezes valsavam admiravelmente. Pouco se lhes
dava dos desastres da pátria. Também as damas
de Paris, depois da capitulação de Fonlainebleau,
achavam os Prussianos des beaux valseurs, e de-
pois de AYalerloo morriam pelos favoris blonds dos
ofliciaes de>Yellinglon.
Vivent nos amis
Nos amis les ennemis!
dizia, em nome d'ellas, Béranger.
E o caso é que assim foi sempre. Não ha pa-
triotismo feminil que resista a uma declaração de
amor, nem espíritos de Cornélia que não entonte-
çam com uma valsa. Emquanto a mim, Brites de
Almeida nunca mereceu as attenções do mais re-
les homem de armas do exercito castelhano, elza-
bel Fernandes nunca pôde conseguir entrar no
harém de Roume-Khan.
Entre todos os valsadores, era o capitão Yiar-
mont o que mais intrépido se mostrava; de lodos
os galanteadores era elle o mais requebrado. Fa-
zia a corte á mais formosa senhora do baile, me-
xicana de tranças opulentas, e olhos de veludo,
íilha dos donos* da casa, irmã d'esse joven repu-
blicano que dava generosamente ao capitão Viar-
mont o titulo da maf/isler eqimm por elle ler si-
do nomeado, havia poucos dias, commandanle da
cavallaria da contra-guerrilha.
Findara uma poika, e a gentil mexicana (Do-
lores se chamava ella) fôrarecoslar-sen'umsophá.
Ameigava-lhe o fogo do olhar essa morbidez creoula
que invencivelmenle se apossa das filhas d'esse
paiz do sol; as paJpebras semi cerradas resguar-
davam-ihe a luz ardente das pupillas. As faces
morenas tingiam-se do rubor do cançaço. As li-
nhas fleumosas do corpo revelavam, nas suaves
ondulações, a elegância da hespanhola, e a gra-
ciosa indolência que maior realce Ihedava. Era uma
estatua, não uma d'essas estatuas produzidas pelo
génio austero de Phidias, revelando a formosura
grega em todo o esplendor da sua nobre correc-
ção, mas uma das que o génio hellenicoproduzio,
quando a decadência principiou, estatuas em que
se sente já a lasciva inspiração oriental, em que a
languidez do desenho e a moUeza das linhas, se
dão ao mármore um voluptuoso encanto, roubam-
Ihe a pureza e a correção nobre que immorlalisam
os grandes modelos.
As tranças negras flucluavam-lhe era opulentos
cachos sobre os hombros nus, que os beijos de
fogo do sol haviam coberto de uma leve côr mo-
rena. O pesinho impaciente e quasi invisível balia
dislrahidamenle o compasso da polka finda na es-'
leira do salão.
38
O PANORAMA
A mãosinha, perfeilamenle enluvada, agitava o
loque ou antes a ventarola magnifica para cujas
l)ennas haviam concorrido as mais esplendidas
azas dos pássaros americanos.
— Ksses instantes de isolamento, sr'\ D. Dolores,
são um roubo que nos faz a nós todos e es-
pecialmente a mim, disse o capilão Viarmont ap-
pro\imando-se da gentil senhora. Por onde voa
o seu pensamenlo?bhI quem me deracolhel-o nos
ares com um beijo. Parece-mo que lhe prendi as
azas. Dà-me licença que lhe diga o que o passari-
nho me disse.
—Diga, capilão, respondeu languidamente Do-
lores redobrando de velocidade no menear do le-
que, digal quero ver se é adivinho.
— Sesoul Ahi vai o que o passarinho me disse
que V.Ex." lhe tinha dito mansinho;((Acabei de pol-
kar, sinto uma commoção deliciosa, mas que não
hasla a salisfazer as aspirações insaciáveis da minha
alma. Anceia ella por fragrâncias ignotas, por igno-
tos esplendores, e as flores, (jue a minha mão co-
lhe, não teeii o perfume que eu desejo, e as noites
estrelladas da minha pátria não chovem o fulgor
que me enleva. Essa flor desconhecida, essa des-
conhecida eslrella não será por acaso o amor?»
Aqui esláo que V.Kx." [dizia ao passarinho, que
enviou depois a correr aventuras por esses ares.
—Guapo adivinhol respondeu Dolores com uma
voz melodiosa como o ciciar da brisa nos ramos
da palmeira, morria de fome, capilão, sequizesse
exercer o oflicio de feiliceiro. Sabe em que eu
pensava? N'uma .sigadilla andaluza, que me licou
honlem no ouvido. Pensava n'ella, c cantarolava-a
em voz baixa.
— Ouc lhe dizia eu! Sempre acertei! Uma si-
f/ndido hespanhola, uma sigadida andaluza! Oh!
bem conheço as pérfidas! Faliam de mil coi-
sas, da loirada, do cifjarilo, da namja, e só
uma coisa dizem — amori Amor, volupluosidade,
requebros é o que ellas respiram, as maganas com
a sua innocente desenvoUura! Senlc-se o olhar
gaiato da cantora no acompanhamento, noharpejo,
n'uma insignificante melodia, lia nas mais capri-
chosas variações um echode castanholas, um doi-
dejar de pésinhos no bolero, hdi o requebro, ha o
amor. São como a serenata do I). Jnan de Mo-
zart, acerca da (jual o meu compatriota Alfredo
de Mussel escreveu os seguintes formosíssimos ver-
sos:
Te sonvipns-tn, Icclonr de cr-tle Pérénndc,
Ouc Doii .luau di;giiis<; diante sous uii Jjalcon!
Lric mcloíiíioliqiK; et iiileusc flian£(in,
Hesjiirant la donleur, rnmour, cl la Iristesso
Maia raccompagaeiíieul pariu d"uii. aulre Uju.
E se as sifjadillas assim são na fria Europa,
como o não serão transportadas para a America?
.Não ha uma palavra só que a brisa d'eslas flores-
tas não imf)iegno em ingnolos perfumes, não ha
uma só nota, a que as vagas do mar das Anti-
lhas não accrescentem uma languida melodia! Não
pensava em am()r?e pensava em .sif/adil/as hespa-
nhas, numa noite crestas, com o seio a arfar da
agitação da poika, rodeada de nmsicas e (h; per-
fumes, asj)irando pelos lábios vermelhos todas as
desconhecidas sensualidades que expande esta na-
tureza magica, este cálido paiz...! Ai, Dona Dolo-
res, olhe que ha um provérbio na sua lingua que
diz que é muito perigoso...
— Muito perigoso o que?
— Ju(/ar com fuego.
— Jesusl que peccado que eu commetli, segundo
vejo, tornou Dolores garridamente, devo dizel-o
ao meu confessor?
— Deos nos livre de tal. Confessou-m'o a mim,
é quanto basta. Tenho plenos poderes e já lhe
imponho a penitencia.
— Que não seja muito severa, capitão.
— Oh! sou indulgentíssimo. A síf/adi/la que ti-,
nha no pensamento, e que em voz baixa cantava,
ha de a cantar em voz alta.
— Não posso, capilão, tornou Dolores vivamente,
não a sei cantar e não conheço o acompanha-
mento. Ficou-me hontem de a ouvir a uma rapa-
riguita andaluza.
— Eu me encarrego de a acompanhar, tornou o
oíTicial francez,apanho a melodia nos primeiros com-
passos, deixo-lhe a gloria toda do triumpho, se
o houver, e, se houver fiasco ^ assumo eu só a res-
ponsabilidade.
— Veja o que diz, redarguiu a formosa mexi-
cana erguendo-se, e encostando-se ao braço do ca-
pitão.
A languidez graciosa dos seus movimentos, a
encantadora indolência com que foi revelando a
pouco e pouco a riqueza do seu talho esplendido,
o gesto infantil com que arredou da fronte as tran-
ças opulentas do seu negro cabello, o modo como
poisou o pésinho aéreo no sobrado, o abandono
(\i o gallicismo) com que se encostou ao braço de
Viarmont, tudo isto entontecia, innebria o jovcn
ofíicial, que de bom grado sacrificaria a um sor-
riso de Dolores o bastão de marechal de Fran;,;a,
que tinha, como lodosos seus camaradas, em pers-
pectiva.
Assim que se annunciou na sala que Dolores
ia canlar uma sigadilla, inlerromperam-se todas
as conversações, e lodos os olhos se viraram para
o lado do piano. Se ofliciaes francezes principal-
mente tizeram roda, e o próprio coronel Dupin,
apezar das graves preoccupações que o absorviam
e que o obrigavam a cravar de vez em (juandoos
olhos na poria, como se esperasse ver apparecer
algíiem, approximou-se do piano, e prestou sor-
rindo toda a sua atlenção ao canto andaluz,
A voz de Dolores possuia não sei que vivacidade
temperada poruma certa indolência, que davaum
tom indelinivclmente voluptuoso ás notas que gor-
geiava. A harmonia do canto acabou de entonte-
cer Viarmont. O jovenoílicial, quando se levantou
do piano, estava como -íiue ébrio de harmonias,
de luz de, perfumes, de formosura e de volupluosi-
dade.
Os applausos soaram com cslrepilo de lodos
os lados da sala, lodos os olflciaes francezes rodeia-
ram a juvenil cantora, e enlearam emiorno d'ella
um hymno suavissimo de lisonjas. Dolores, ver-
melha de orgulho satisfeito e de confusão lambera,
o PANORAMA
39
agradecia modestamento os louvores que lhe pro-
digalisavam, e anciava por fugir ao seu trium-
pho.
Viarmont percebeu esse desejo, o aproveilou-se
d'elle. OlTereceu o braço a Dolores, e propoz-lhe ir
dar um passeio ao lerraço para respirar mais de-
saíTronlada ao ar livre. A joveu mexicana accei-
tou com alegria, e ambos, esquivando-se do grupo,
sairam do salão.
(Continua)
UMA ARTE 1>ERDIDA
Os sábios, ao examinarem essas gigantescas
producções dos egypcios, lêem repetido muitas
vezes: já (i/gumas artes eslão perdidnsl Mas se
tivessem lançado um olhar pelo luxo, pela magni-
ficência da mesa dos antigos, e comparassem o seu
esplendor com a miséria de hoje, com quanta
mais razão não teriam clamado:
A arte de comer acha-se inteiramente perdida!
EíTectivamente, o que são os nossos glotões á
vista dos glotões romanos? Seria preciso recordar
o rodovalho de Domiciano, os almoços de Maxi-
miano aslinguas de papagaio de IIeliogabalo?Que
immensa gloria a d'este imperador que ofTerecia
metade do seu império por um molho novo! Que
resolução a d'aquellc Apicis, de entregar-se a
uma vida cujos únicos prazeres se limitavam ao
dispêndio de alguns milhões para ter uma soffri-
vel mesa! Veja-se a multidão de manjares que
possuíam os antigos e o numero das refeições que
tinham logar durante odia,7>/í/a í(liuit,prandiii,ni,
merenda, ccenum, comessatio! Que faculdade di-
gestiva deviam possuir os romanos!...
Os homens teem, extraordinariamente, dege-
nerado: a prova acha-se mais patente n'istodo que
em todas as façanhas dos semi-deuses. Que de costu-
mes caidos em desuso! que excellentes pratos perdi-
dos! sem contar as viandas ordinárias, nas quaes se
incluem os porcos assados, ventres de javali, ca-
bras, doninhas, raposas, cobras e sobre tudo os
pardaes, pavões reaes, os tordos de Lucullor cys-
nes, porquinhos da Índia, alforrecase pão de rala!
sombra de Trimalcião, chorai; chorai, sombra de
Apicio!
E com tudo, o que era a glolonia romana com-
parada com a monstruosa gastronomia dos egyp-
cios? Leia-se Plutarco: quinze foram os porcos as-
sados para António e Cleópatra enxugarem o es-
tômago, n'unia occasião em que tinham bebido
dois ou Ires copinhos de agua antes de jantar.
Leia-se Luciano: a terra, o mar, o céo fornece-
ram os seus mais importantes productos para um
jantar que a rainha do Egypto offereceu a César.
Inda mais; Cleópatra apostando com António que
era capaz de consummir n'uma só espécie de co-
mida dois milhões de sestercios, íicou victoriosa;
porque apresentou um petisquinhode pérolas que
excedeu muito o valor da aposta!
Na verdade, repelimos, a arle de comer está
de lodo perdida!
BEATRIZ
Jacques linha perdido, liavia muilo,
Seu velho pae, íidalgo dos mais nobres,
Modelo de honradez, que lhe deixara
Senão riqueza enorme, pelo menos,
Muilo com que passar, vivendo á larga.
Tinha trinla annos; quanlo ardor na vida
Podemos ler, de cerlo é n'esle edade
Que mais vivo & sentimos, escaldando
O sangue e o coração; dava-se o caso
Com o nosso heroe: Irinla annos linha apenas;
Era genlil, loução, trigueiro um pouco,
Negro o cabelló, olhar que embriagava,
Leve sorriso lhe adejava languido
Nos lábios finos, lábios que tremiam
Á menor commoção; em quanto a espirito,
Era vivo, sarcasúco, volúvel.
Borboleta fugaz, que errante andava
Buscando o sol, e as rosas entre-aberlas,
Onde libasse o mel no doce calixl
Por tanto é de suppor que as aventuras
Não faltassem jamais, que cem donzellas,
Das mais lindas, lhe andassem como presas
Ao seduclor olhar; penso até mesmo
Que, se a lua não fosse tam discreta
Como todos o sabem, contaria
Quantas vezes o vio galgando o muro
D'algum jardim de Armida, que deixasse
O thóro conjuga], e manso e manso i iwíiA
Descesse ao parque, a dar-lhe amor e vida,»' ■ ■i»
Em transportes de jubilo fervente!
Isto são presumpções, eu não aíTirmo
Cousas de pouca 'monta, e muilo menos
Estas, que vão bater mesmo de chapa
Na sacra honestidade das famílias;
Mas lambem se a leitora não permitte
Que eu Iraga estes capítulos a lume,
Então feche o romance, antes que o pejo, ,
E mesmo a indignação lhe core as faces.
O que passo a contar é simplesmente
Uma historia de amor, da qual c Jacques
O principal heroe; verei se posso.
.\menisar o conto, e desbraval-o
De certas asperesas que se encontram
Aqui e alli no texto primitivo.
Oh, não temaii por mim! — a minha musa
É das de mais pudor que se tem visto;
Jamais roçou de leve as azas brancas.
Que o ceô lhe deu, nos lodaçaes immundos
De infames polluções; voa-nie* em torno,
Sorri d'estas loucuras innocenles
Da vida mundanal, conta-me tudo,
Inspira-se de um beijo que murmura
Entre as ramas do bosque immaranhado,
Mas foge a medo, a pomba espavorida,
Mal que o rudo bolicio das torpezas
Lhe fere, acaso, os virginaes ouvidos!
VI
Jacques era visita, e das mais intimas.
Do conde... (occulto o nome porque entendo
Que o pede a discrição), basta que saibam
Que o conde era casado co'a mais linda
E mais genlil mulher que eu tenho visto.
Chamava-se Beatriz, contava apenas
Vinte ou vinle e dois annos, quando muito.
A trança loura, a face desmaiada,
Pensati*va no oíhar, túrgido o seio,
Languido o porte, a voz meiga e sonora
Como os chilros de amor da toutinegra.
Quando súbito a cor lhe illumÍDava
lÕ
o PANORAMA
o pallido semblante, refulgia
Não sei que luz do coo n"aquclles olhos
Quasi sempre — iuda mal,— como escoiuiidos
Na carregada sombra das pestanas.
Era o Ivpo ideal dessa belleza
Que a monte esboça apenas, se d<^lira
Km namorados sonhos de poeta.
O conde amava-a co'o fervor ardente
De um nobre coração; o mundo inteiro
5esumia-se alli, n'áquplla pomba
Que arrulliava ao sou Indo, e que entre beijos
l.he pagava extremosa tanto alToclo.
Oh. como os anjos bemdiziam lodos
Aquella santa paz, doce harmonia
Em que dois corações, pulsando juntos,
Se perdiam no céô, como o |)erfunie
Que ondôa e sobe a Deos no fim da larde!
Não pensem que exagero, descrevendo
D'esta maneira a rara formosura
Da condessa, nem mesmo no que digo
A respeito da límpida existência
Que passavam no mundo os dois esposos.
Aflirmo o que aventei, como mais tarde
liei de allirmar lambem.... basta não digo,
Não quero accelerar o desenlace,
Nem roubar a leitora alguns instantes.
De pasmo e agitação, que, sem vaidade,
Ha de por força ler nesta leitura.
VII
Amor lu és o esphinge, o ser divino
Que inda ninguém na terra comprehendeu;
O teu semblante e meigo e peregrino,
Mas lens garras de tigre, que o sei eu!
Quem se inieva no magico sorriso
Que a lace te illumina de esplendor.
Quando em leu seio encontra o paraíso.
Sente que lhe entra n^alma a eterna dor.
V Nas caricias subtis cora que embriagas,
O veneno mortal coberto vera:
A pérola gentil que sai das vagas,
iSegro limo do fundo Iraz lambem.
Mas tu és sempre bello; enabora um dia
Nos rasgues fibra a fibra o coração.
Tens segredos de encanto e de alegria
Onde se perde em jubilo a razão.
Que importa o mundo? -lúgubre deserto,
Onde se Naga, á loa, a suspirar,
E onde, somente apoz o errar incerto.
Vamos na morto a fronte descançarl...
Tudo é sombra em redor, tudo é tristeza,
Nem siquer um botão [iromelle flor.
Negra saudade envolve a natureza... -
E tudo canta e brilha á luz do amor.
Chovem do sol os raios matutinos,
Heluz do orvalho o límpido crjstal,
(iorgèam pelo campo os pequeninos,
E as tenras avesinnas peto vai.
S6be o perfume cm ondas Iransparenles,
Da montanha, da balsa, o do vergel;
As abelhas, zumbindo, vão contentes
l'or entre as rosas procurando mel.
E tudo á tua voz, alma infinita.
Que vens no mundo e em lodos palpitar:
Inteira a criação febril se agita
Mal que um raio dos teus vô .scinlillar!
Amor, lu és o esphinge, o ser divino
Que inda ninguém na terra comprehendeu;
lens doce o olhar, o rosto peregrino,....
Oh, mas garras de tigre, que o sei eu!—
(Continua.
E. A. Vidal.
DUAS MÃES
Ao sr, Thoiiiax Itibciro.
por occasião do fiillecimcnlo de sna cxrollentc mãe
Uma, quando não podes inda ve! a,
os olhos te descerra á luz do dia;
(ratlectos se opulenta, e se disveía
em ser no mundo leu celeste guia.
A outra, fronte cândida singella,
ante o lilho dilecto se extasia,
os segredos do génio te revela,
c 1'cmbala cm torrentes d'harmonia.
Uma, sumindo o .seu fulgor d'eslreUa,
dos anjos busca a doce companhia,
que d'enlre os anjos Deus chamou por ella.
A oulra não te deixa noite e dia
—séculos durará, mas sempre bella...
Uma era Amália, a oulra c...a Poesia.
Vizeu, outubro de Gj.
Candibo Figueiredo.
O uso DA PALAVRA
Dizia Taileirand: A palavra foi dada ao homem
pai'a que elle possa exprimir os seus pensamentos.
Nós, porém, diremos, que ella lhe foi concedida,
unicamente, para saber apreciar as vantagens do si-
lencio.
A MORTE E O SEU MINISTRO
Quiz a morte escolher um ministro excellente :
Peste, Febre, Asma e Gola acodem de repente:
«INão, a morte lhes diz, toda a minha esperança
Fundo-a só na— Intemperança.»
Quid non mortalia pcctora cogis
Auri sacra fameè?
Virgílio.
Execranda sede de ouro! que de crimes não
inspiras aos morlaes?
Parece que a natureza que, tão sabiamente, dis-
poz os órgãos do nosso corpo para tornar-nos fe-
lizes, nos deu Inmbem o orgulho para poupar-nos
a dòr de conhecermos as nossas imperfeições.
La Rochkfolcauld.
Typ. Franco-Porlugueza. = Iluado Tlicsouro Vellio, C.
o PANORAMA
4^
O PANORAMA
A IGREJA DE SAINT-MAGLOU
O Mfelo XVI foi para a architectura uma época
detraSBíção, em que os artistas, abandonando, pouco
a pouco,* o eslylogothico, voltaram ás tradições da
arte grega^ £is porque se dá a esta revolução o
nome dereiiíJscoiça. A imaginação dos artistas
começava a cançar. As esculpturasmais vari?idas,
as formas mais^ fantásticas, mais caprichosas, ti-
nham-se excessivamente m.ultiplicado, echegara-se
a esse ponto em que o espirito, fatigado das des-
cobertas passadas, experimenta a impotência de
innovar, e a necessidade do descanço. A archite-
ctura grega foi o refugio dos artistas. Guiados pelos
grandes modelos da antiguidade, conduzidos a
princípios seguros, invariáveis e consagrados pelos
séculos, senliram-scmais àsua vontade e enlrega-
ram-se com ardor a um género esquecido durante
muito tempo e que lhes ofterecia lodos os atra-
ctivos da novidade. O seu zelo reanimou-se;
o seu enlhustasmo retomou toda a sua liberda-
de. Por isso, na maior parte dos njonumen-
tos d'aquelle século, encontram-se uma vida,
um calor, que é mui raro achar nas obras de imi-
tação, e que em vão se procurariam nas cdnslruc-
çõos posteriores. Um dos mais eloquentes escrip-
tores franc^es, Iral^ndo da renascença das artes,
diz: c(A architectura do século XYI passou, dos bri-
lhantes arrojos do estylo gothico, às bellezas clássicas
da renascença, lilha engenhosa da antiguidade, cujas
risonhas graças rivalisam muitas vezes com as de
sua mãe. -o
Entretanto, a transição não se fez rapidamente.
O capitel corinthio ou dorico não desthronou logo
a ogiva; houve no principio uma espécie de fusão
dos dois géneros, e não é raro encontrar nos mo-
numentos d'esta época os recortes, os entalhos e
os ílorões gothicos, unidos e ínlremgiados cora as
folhas do acantho, os Iriglyphos, modilhões e to-
dos esses ornamentos tão puros e symelricos dos
monumentos da Grécia.
Entre asconstmicções queapresenlatn eslemixto
de architectura e que por esse titulo são dignas
de toda a atten^ão (los artistas e dos historiadores,
citaremos, particularmente, a magnifica igreja de
Saint-.Maclou,^ em Iluão, de cuja perspectiva do
lado do Xorte* damos hoje o desenho. Ainda que
situada em uma das cidades de Franca, talvez a
mais fértil em -nwjnumentos curiosos, esta igreja
pôde sustentar, sem desvantageraj-a comparação com
ladas as que a rodeiam.
Saiiit-Maclou é notável pelo tamanho, pela bel-
la porporção no seu lodo im|)onente e pelo sedu-
clorencai]to (pie oílííieccm Iodas as suas miude-
zas. As menoix's esculpturas sãode uma perfeição
incrivel. Admiram-se sobre tudo as portas, de um
trabalho ao mesmo tempo rico c delicado, que
mereceram a honra de serem attribuidas ao celebic
João (joujon.
Mas o (pie está acima de lodos os elogios, para
o que não existem expressões, é o eíTeilo, de al-
guma sorte magico, da soberba escada que con-
duz ao orgain, E impossivel existir alguma cousa
que se possa comparar com aquelle luxo de orna-
mentos, desenhados e esculpturados com um apuro
e arte incomprehensiveis!
OS PHILO-PORTUGUEZES.
POR INNOCENGIO F. DA SILVA.
III
O terceiro logar n'esta serie dos apaixonados da
litteratura portugueza (isto é, dos nossos bolorentos
clássicos, a nos servirmos da phrase adoptada pe-
los ponlillces do moderno culto da Jdeia-JJeus, ou
do Deus-Ideia (V pertence a Carlos Sluart.
Nascera este distincto diplomata em Buthe,
ilha da Escócia, a 2 de janeiro de 1779; e de-
pois de prestar ao seu paiz importantíssimos ser-
viços, pelos quaes mereceu ser elevado ao parialo
com o titulo de Lord Stuart de Rothesay, fallcceu
cumulado de honras e condecorações a 6 de no-
vembro de 18íl>. •
Vindo para Lisboa pouco depois de realisada a
expulsão do exercito francez em 1808, com o ca-
racter de ministro brilannico acreditado junto á Re-
gência do reino, participou com ella dos actos e
resoluções governamentaes nos annos que se se-
guiram, tomando assento entre os seus membros
com voto deliberativo, que devia ser principalmente
atlendido em todos os assumptos de guerra e fazen-
da. Assim o determinara do Rio de Janeiro a su-
prema potestade do então príncipe regente ! Este
mesmo, quando reinante com o nome de D. João
VI, o escolheu para seu plenipotenciário no Brazil,
commettendo-lhe o cargo de negociar eassignar em
seu nome o tratado de 29 de*agoslo de 182J3,pelo
qual íicou deíinitivamenle sanccionada a separa-
ção, e reconhecida a independência do império. O
desempenho d'esta missão foi-lhe remunerado, em
22 de novembro do mesmo anno com o titulo de
conde de Machieo. A coníiança do pai, succedeu
a do filho D. Pedro IV, que fazendo-o portador
da carta constitucional decretada em 29 de abril de
182G, creava para elle no 1." de maio immecfiato
o titulo de Marquez de Angra.
Apontamos singelamente estes factos, csem com-
mento alguni* Ouaesquer considerações politicas
(jue elles possam suscittr nada lêem que ver com
o nosso intento.
Foi Lord Stuart homem notavelmente instruído,
e mui versado na litteratura antiga e moderna,
conhecendo e faltando todas as linguas cultas da
Eurojja. Amava com excesso os livros, ena leitura
(Telles consumia a maior parte do tempo que lhe
sobrava do exercício das funcções diplomáticas, em
que andou constantemente empregaílo; com (juanto
de preferencia se dedicasse á lição dos históricos,
por mais adeíjuados e úteis á sua profissão.
ISo período (hísua primeira residência (mi Por-
tugal deu-se ao estudolla nossa lingua : è lalalTei-
(;ão Ijie ins|)iraram os nossos cscri||lorcs antigos,
que não poupou cuidados nem dinheiro para ad-
quirir as obras impressas mais notáveis por preço
(•) Vcja-se a eiiigraiilie das cOdus modernas').
o PANORAMA
43
e raridade, e para haver copia dos manuscriptos
mais imporlanies de nossos archivos e livrarias.
Reuniu uma collecção, completa quanto era pos-
sível, das actas ou capítulos de nossas antigas cor-
tes, e fez copiar o Canceionciro original dito do
Collegio dos Nobres, que mais tarde, em 1823,estan-
por embaixador em Paris, fez imprimir n'aquella
cidade com o [úulo-.aFragmeíitos de hum Cancioneiro
inédito, que se acha na livraria do Real Collegio dos
Nobres de Lisboa. Impresso ^'i cusia de Carlos Sluart,
sacio da Real Academia de Lisboa. Em Paris, no Paço
de Sua Magestade Britannica. M. DCCC . XXI 11.
Edição de que apenas se tirou um pequeno nu-
mero de exemplares, destinados exclusivamente
para presentes (*), e da qual resultou tornar-se
Conhecido e celebre na Europa um monumento, cuja
existência era totalmente ignorada. Adquiriu pelo
mesmo tempo um exemplar do Cancioneiro geral
(impresso) de Garcia de Resende; porém mui dam-
nillcado, e até falto de folhas. O zeloso bibliophilo
fez copiar com toda a exactidão as que faltavam;
e imprimindo-as, passados annos, em Londres,
em caracteres eguaes aos da obra, conseguiu res-
taurar um exemplar mutilado, tornando-o com-
pleto e perfeito.
Finalmente, os que levados da curiosidade pre-
tenderem a descripção minuciosa de todas as pre-
ciosidades que n'esfe género conseguira accumular
em sua vasta e rica bibliotheca o illustrado diplo-
mata, podem recorrer ao livro estampado em Lon-
dres, 18oo(annoem queveiua realisar-sea venda
da livraria) cujo titulo é: Catalogue of the valua-
ble Library of the late Right Ilonorable Lord
Stuart de Rothesay... collected during many years
residence as British Ambassador at lhe Courts of
Lisbon, Madrid, the Ilague, Paris, Vienna, St.
Petersburg, and Brazil. — E um volume, que em
324 pag. no formato de 8. "grande contêm 4323 arti-
gos, encerrando estes correspondentemente muitos
milhares de volumes.
(Conlimui.)
ADYERTENCL\
. No trecho d'este art-igo inserto no n." 3, pag.
22 e 23, cumpre fazer as seguintes correcções: Na
pag. 22, linha Li, /}e/o anno:\iidi-s<i pelos annos. —
Na pag. 23 linha 2, com Anahjse: léa-se com a
Analgse: c na linha 18, eccessiveis, lêa-se acces-
siveis.
A PASCIÍOA DOS HEBREUS
A festa da Paschoa, Pessah, entre os hebreus,
na actualidade, começa no dia quinze do mez de
Nisan, Abril, dia era que seus pais sairam do
Eg\pto, edura, para os que vivem na Terra Santa
sele dias, e oito. para os que habitam nos outros
paizesdo globo. O sabbado que precede a paschoa
denomina-se o grande sabbado; n'este dia o rabi
de cada synagoga faz uma pratica explicando aos
(t) Pôde ver-se acerca desta edição c do Cancioneiro um artigo
inserto no Panorama de 1842, pag. 406; e o Dirrionario liiblio-
ijraphico Portugue:., tomo II pag. dl7, com os demais artigos que
ahi mesmo se apontam.
seus correligiosos as regras que teeni a observar
nas vésperas da festa. Durante a paschoa, os he-
breus não podem comer senão pão asmo e devem
ter todo o cuidado de que em suas casas não
exista fermento de qualidade alguma. Para esse
lim, no dia treze, os chefes de familia procedera
a um exame minucioso em suas habitações, etodo
o fermento que encontram meltem-n'o em um
vaso, que durante a noite é cuidadosamente guar-
dado, e nodia seguinte queimado com toda asolem-
nidade. O serviço de mesa e utensílios de cosi-
nha de uso quotidiano teem de ser substituídos
por novos ou por outros que hajam sido guardados
de um a festa para outra. Tudo se purifica; até as
próprias mezas de cosinha, cadeiras, prateleiras
são lavadas, primeiro cora agua quente e cinza e
depois com agua fria.
Terminada a puriíicação, passam a tratar do
fabrico da bolacha sem fermento, para substituir o
pão ordinário. A farinha é amassada pouco tempo
antes de cozedura, afim de evitar a ferraenlação.
Estas bolachas são ordinariamente redondas, del-
gadas e crivadas de buraquinhos; na sua com-
posição só entram farinha e agua; mas alguns he-
breus abastados costumam ajuntar-lhes ovos e assa-
car. Não lhes é permitido usar de licores de grão
durante toda esta epocha; só devem beber agua
ou vinho por elles fabricado. No dia quatorze, o
primogénito de cada familia é obi'igado a jejuar,
em memoria "dos primeiros israelitas que cairam
em poder dos primeiros Egypcios. Na tarde d'es-
se mesmo dia, os homens junlara-se na syna-
goga alim de, com suas orações, se prepararem
para a festa, e durante este tempo as mulheres em
casa occupam-se em dispor as mezas para o ban-
quete solemne.
Tudo o que ha de melhor no trato domestico
apparece n'esta occasião. Sobre um prato collocam
um quarto de cordeiro assado e um ovo; sobre
outro três bolachas embrulhadas em guardanapos;
e.sobre um terceiro alface eaipo. Junto d'estasher-
vas põem um copo com vinagre, e outro com sal
e agua. Vè-se também um bolo, o qual é desti-
nado a representar os tijolos que os seus antepas-
sados eram obrigados a fazer no Egypto; é com-
posto de maçãs, amêndoas, avelãs, iigos, romãs,
vinho e canella.
Disposta a mesa, como acima dissemos, assen-
ta-se toda a familia em roda e começa uma espé-
cie de ceremonia. O dono da casa pronuncia uma
benção sobre a mesa em geral e o vinho em par-
ticular; depois procurando um ar nobre, jiyorque
ha a intenção de representar a liberdade que re-
cuperaram seus pais saindo do Egypto, bebe
uma porção de vinho, e. este exemplo é se-
guido pelo resto da familia. Então cada (jual mo-
lha uma porção das hervasno vinagre ecome-as,
em quanto ochefe pronuncia uma segunda ben-
ção. Em seguida, desdobra os três guardanapos
que estão no prato, toma a bolacha que se contem no
do centro, parle-a em duas, e colloca um despe-
daces entre as duas bolachas inteiras, escondendo o
ouiro debaixo da toalha; esta ceremonia é uma
44
O PANORAMA
allusão, dizem olles. a esla circiim?;lancia refe-
rida por Moisés (Exod. XII. 3í.; (h Israel is-
lãs tomaram a sua massa antes de ser descoberta,
efufjiram, levando-a escondida debaixo dos seus res-
tidos. Pejiois o chefe da família lira o cordeiro e
o ovo de cima da mesa, e reiíniiulo-se todos os
assislcnles para segurarem no pralo (juc conlcm
as boiaclias, dizem juntos:
«Eis aíjiii o pão da poijresa e da alllicção, (|ue
nossos pais comeram no Egypfo; que todo o (jue
tem fome venba e coma; (juc todo o que n(?ces-
sila entre e coma do cordeií-o pascoal. Esto anno
eslamos aqui; no |)roximo fiiiuro, se íòr da vontade
de Doos, cslarcmos na (erra de Clianaan. Esle anno
somos servos; se Deos o pormilir, seremos livres
cm pouco.»
O cordeiío e o ovo são novamente collocados
sobie a mesa. e o pi-ato (jue continha as bolachas
o (irado alim de obrigar as crianças a pergunta-
rem o que significa esla fesla; se as não ha, uma
pessoa da família faz esla |)ergunla sob uma fórrati
regular. Eíu resposta conla-se o capliveiro, a es-
cravidão do |.ovo de Israel no Egyplo, a sua re-
dempção jior Moisés e a insliluição da paschoa
jtor esla occasião. Esla narração é segiiida de al-
guns psalmos, ehymnoscanladospoi toda a família.
Depois as bolaclias sendo noyamcnle collocadas
sobre a Inci^a dislribuem-se em pequenos bocados
j)or lodos os commensaes em lugar do cordeiro
pascoal que se comia nNniíro tempo. Os hebreus
dão por molivo d'esla mudança, (|ue não é exe-
cutar a lei o comer o cordeiro fora do paiz de
Chanaan en'uma terra estrangeira não sanlííicada.
Ema ceia abundante segite-se a esla ceremonia.a
(jual se ie|,cle, pouco mais ou menos, na segunda
tarde. Os dois j)rinieíros diase os dois últimos são
celebrados com grande solemnidade e pompa nas
synagogas; os hebreus n'estes quatro dias abslem-se
do trabalho, tão severamente, como no. sabbado.
Os (jualro dias ínlerniedíaríos não são observados
com laiilo rigor. O ultimo dia termina por uma
ceremonia bhamada Ilabdala, fluranle aqualo dono
da casa, tendo na mão um copo cheio de ^inho,
lepcle muitos cai)ilulos da escriplura, bebe uma
porção do licor e passa o copo aoreslo'dos assis-
lcnles que lhe seguem o exemplo.
A PONTE DE lUALTO EM VENEZA
Veneza, esse grande empório do commercio do
mundí», essa soI)crba Cidade, com tania justiça,
cDgnoniiuada a rainha <lo Adriático, celebre |)elo
esplendor e maiíuificencia, (|ue ostentou no deci-
mo (juinlo século, como j)elo esforço e ousadia de
seus hahilantes; Veneza, a'dominadora de jjovos
t nações, h deposito geral de Iodas as riquezas do
Oriente, de quem o no<<o inimíla\el jioela Luiz
de Camões, disse:
A s(>l)orli;i Veneza o&l.i no meio
D.'i8 ;if{ti''.s ; qiKí Ião Iftiix.i coinccon
I).'i tfrra uni lirnço voin ;io rnar, (|ue clicio
UVsforçn, nncôe.s 'variíis snjcitou,
Hr.nço forle ifc gente subliiiiíidíi,
^ ■' : '■::';.'! no.s engenhos que na espad".
Veneza, em fim, que chegou a occupar o ma-
gno sólio do poder e da opulência; apezar da sua
(jueda, sorte que espera sempre quem muito se
eleva, é ainda objecto de grande admiração para
o estrangeiro, que a \isila.
Não, porque la encontre hoje o grande commeicio,
o pasmoso luxo e costumes de outras eras: negoci-
antes de Iodas as nações do mundo, arménios, gre-
gos, índios, judeus, turcos, ele, patenteando aos
olhog do publico osíinissimos tecidos deCachemi-
ra, os diamantes de Uolconda, as pérolas da Pér-
sia, as especiarias de Ceilão; os lilhos de Veneza
com os seus trajes de seda bordada a ouro, e as
bellas occultando seus formosos rostos com masca-
ras de velludo prelo; mas, pelo maravilhoso (jua-
dro que llie olferece, cujos traços, os maisinsignili-
canles, são dignos de Ioda a altenção.
A cidade de Veneza eslá situada no meio de um
grande lago na extremidade seplentríonal do gol-
fo Adriático, e a duas legoas do continente. Sa-
nazzaro, comparando Roma e Veneza, diz que se a
primeira é obra dos homens a segunda deve ser
allribuida aos deoses. E na verdade, Veneza parece
sair do seio das aguas, com os seusmagnilicos tem-
plos, soberbos palácios, cupolas, columnas, arcos,
torres, ludo notável pela sua grandeza e variedade
dearchitecluia. Está dividida em cento e vinte ilho-
tas separadas por uma inlinidade de canaes e uni-
das entre si por quatrocentas e oito pontes, quasi
'lod?s construídas sem symetria. O canal chamado//
canalazzo, ou grande canal, semelhante a uma ar-
téria principal á qual allluem todas as ramilicações
secundarias, divide a cidade era duas parles, se-
guindo uma direcção que lhe dá a ligura de um S.
Esle canal, cujo comprimento regula j)or dois mil
e seis centos passos venezianos e quarenta de lar-
gura, é a vida de Veneza, é o seu coração; é alli
que todos concorrem para admirarem as mais raras
obras de archíleclura. A esquerda da Piazzeta,
onde elle começa, eleva-se a alfandega edilicio tão
solido como magnilico, c maravilhosamente adap-
tado ao logar que occupa. Depois \ê-se a rica e
magestosa igreja de Saneia Maria delia Salule,
ediíicada com grande disj)eudio para cumprimen-
to do voto feito pela republica na occasião da
peste de 1G30, que roubou a vida a mais de ([ua-
renla mil indivíduos. Ao lado d'este templo iiota-se
um outro edilicio, construído em 1(170, que de
1818 em diante tem servido de seminário.
A direita do canal enconlram-seos j)alaciosEini,
Coiner delia Ca (Irande e Cavalli e na margem es-
(juerda, em frente doestes, o grande palácio Dário,
incrustados de íino mainiore, os palácios Vencir,
Augarani e a aca<lemia das IJellas Artes. As |)ín-
luras que exislfin n'cste edilicio, (piasi todas da es-
cola veii(>ziana, foram' execuladas j)elos seus me-
lhores meslies. A collecção d'esivs ijuadros c de
um valor ('xlraor(l»nario,e interessa, no mais subido
grão, aos amadores.
Conltnuaiido a percorrer o.grande canal, encon-
traiii-se os palácios Contarim Dagli Sgiigní, llczzo-
nico, .Mor(»-Eiii, Cíuslinianí, Toscari, Haibi, Coiila-
rini,Moiicenigo, risani, iJarbarigo, CornerSjiiiirlIi,
o PANORAMA
45
ianuscri|)tos,elc; La-
lem excellenles qua-
dra do soculo XVI
46
O PANORAMA
obras gregas e romanas; e erafim, o palácio Cor-
niani tl'Algarolli, em cuja bibliolheca se acham Io-
das as prodiicções Ihoalraes representadas desde
1630, época doeslabelecimenlo do primeiro tliea-
tro n'a(juella cidade, alé aos nossos dias.
Veneza, como acima dissemos, possue quatro-
centas e oito pontes, grandes e pequenas, mas a
principal, a mais digna de menção, é a de Riallo,
cuja persj)Ccti,Ya se aciía representada na nossa gra-
vura. Esta ponte, collocada sobre o grande canal,
única que serve de communicação entre os dois
principaes grupos de ilhas que formam a cidade,
e uma das "mais primorosas obras de archilectura
do século \V1. Compõe-se de um só arco cuja lar-
guií tem 00 pes e a altura 20, contando do nível
da agua à parte inferior da abobada; è correm so-
bre ella três ruas estreitas, sendo a do centro guar-
necida de uma arcada elegante, em cujo meio se
eleva um pórtico de forte e magestosa eslructura.
A construcção desta ponte, uma das mais solidas
que se conhecem, é devida ao grande architeclo
António Ponli, que a concluiu em 1388, sob o go-
verno do doge Pascoal Cicogna.Nos prósperos dias
da republica, a ponte de Rialto, de todos os lu-
gares de Veneza o mais concorrido, offerecia ura
espectáculo surpreendente; duas ordens de magni-
licos estabelecimentos, nos quaes se viam as mais
raras e soberbas j)roducções da natureza e do arte-
facto, bordavam a galeria do centro; alli se encon-
travam os negociantes judeos, gregos, turcos, ctc,
trajes e costumes dos povos mais distantes da Eu-
ropa, e da Ásia, os orgulhosos filhos de Yeneza
ricamente vestidos, as altivas bellezas disfarçadas,
emlim, tudo quanto havia de mais nobre e opulen-
to n'aquella republica.
N'uma cidade, como esta de que estamos tra-
tando, que foi uma verdadeira conquista sobre o
mar, os fundadores obrigados a seguir as irregu-
laridades do solo, não poderam estabelecoruma certa
ordem, e sobretudo construir ruas largas e espaço-
sas, como se vêem nas cidades de terra lirme. A
sinuosidade, pois, das ruas, ou para melhor di-
zer, dos canaes (jue formam a cidade, dá-lhe um
aspecto inteiramente particujar e único. Em Yene-
za não ha carroagens;^ alli, as ruas são canaes; os
carros, barcos; as carruagens, gôndolas. Estas são
deveras {)ara admirar. Nada mais simples do que
a sua forma. O comprimento regula por trinta pés;
tem pouco míiis ou mencvi quatro de largura no
nifio, e formam nas extremidades duas pontas
agudas e elevadas. Na proa vè-se um ferro, com
a forma de serra, de sorte (jue na rapidez da sua
carreíia,*ameàça cortar tudo (jue*se lhe oppõe.
No meio lenrèima camará coberta, com suas vi-
draças e cortinas. A gôndola ó pintada de preto
interior e exteriormente, o que lhe dá um tal ou
qual aspecXíJ triste. O que é sobre tudo muito pa-
ra admirar é a agilidade c destreza com que os
gondoleiros dirigem o seu 'ligeiro barco; passíim
uns pelos outros, criízam-se e evitam-se com tal
ligeireza, (jue os (estrangeiros que não estão accos-
lumados a este espectáculo, experimentam um sen-
ti mento de receio.
PEREZ LORENZO
(SccnoN fia Cnnipnuha do México)
Por PINHEIRO CHAGAS.
Y
Brilhava a lua no firmamento d'utn azul purís-
simo. As llores do terraço baloiçavam a sabor da
brisa as suas urnas de aromas, e perfumavam a
atmosj>hera com as suas balsâmicas .exhalações.
As ruas de Medellin estavam desertas, e o fulgor
do astro nocturno banhava as fachadas brancas das
casas silenciosas.
A hora, o socego, as excitações d'uma vegeta-
ção luxuriante, a molle frescura da almosphera,
tudo convidava a fallar d'amor; as harmonias
dulcíssimas da natureza pareciam o preludio d'ura
canto namorado.
Estava o pensamento de Viarmonl a cem lé-
guas das pelejas, da gloria, do sangue e do fumo
da artilheria. N'esse instante nem poderia dizer
se viera ao México erigir o throno do imperador
Maximiliano, se defender a republica de Juarez.
O que sabia era que, republicano ou imperialista,
levava encostada ao seu braço tremulo a mais for-
mosa flor dos jardins do sol.
— Dolores, dizia elle em voz tão baixa que pa-
recia um murmúrio, sentemo-nos aqui. Esqueça
por um instante o baile e as suas loucas alegrias,
e pense um momento no amor e nas suas incfTa-
veis felicidades. Yeja ! a baunilha, vergando ao
doce peso do seu corpo, enche-a de inebriante
perfume; a lua, resvalando silenciosa no ceu, bei-
ja-lhe a face formosíssima com os seus raios de
prata, e desenha-lhe no rosto a expressão suavís-
sima da mais namorada languidez. A Diana, a
fria Diana phantasiada pelos antigos, deixou-se
abrasar pelas chammas d'esle clima, e sente os
ardores de Vénus. Não resista só, Dolores, ao doce
iníluxo que impera em tudo que nos rodeia, que
faz com que gema o colibri Ião doces cânticos
poisado na corolla das flores...
E mil outras lonlerias apaixonadas, que DoloVes
ouvia enlevada. A mão tremente, correspondia a
pouco e pouco ao brando a|i«rto das mãos do jo-
ven ofTicial ; a cabeça reclinava-se-lhe para Iraz,
o os olhos diziam já o que ainda não diziam os lá-
bios em que o joven ollicial ia colher com um
primeiro Ijeijo a doce conlissão... quando súbito
ergue-se um vulto deanle dos dois, e uma voz gra-
ve murmurou estas palavras :
— Senhor capitão, preciso de lhe fallar.
O capitão eriçueu-sc furioso. Dolores deu um
grito, c murmurou depois :
— O Senhor Perez Eourezo !
— Eu mesmo, minha senhora, respondeu o rc-
cem-vindo gravemente, eu (jue a V. Ex." e a este
senhor |)eço desculpa de lhes ter interrompido a
conversação, Ajas precisa Vxi immenso de poder con-
ví^rsar em particular com (|ualquer dos senhores
odiciaes, e íialiieia hora (|U(; tslou no baile, ainda
não pude encontiar-me a sós còm nenhum d'elles.
Vi-osdirigiiem-se para a(|ui, e aproveitei o ensejo,
es|)erando da discripção da Ex.""' Sr."" De Dolores
o maior segredo acerca (reste encontro.
o PANORAMA
47
— De certo, senhor Perez Lorenzo, mas... tor-
nou ella embaraçada.
— Nada tema ; versará a nossa conversação so-
bre pontos de serviço, juro-lh'o. Jura-me também
Y. Ex." guardar o segredo que lhe pedi?
— Juro.
— Queiram pois voltar á sala ; aqui espero o
senhor capitão Yiarmont.
O capitão, dando mostras visíveis de mau hu-
mor, deu o braço a Dolores e acompanhou-a até
ao sophá. Depois, voltando de sobr'olho franzido,
veio ter com Perez Lorenzo e disse-lhe:
— Meu caro, mando-o cordealmente para o in-
ferno. Que me quer? Creia que estava muito lon-
ge de pensar na sua pouco sympathica pessoa,
e que os sonhos em que me embebia distavam
bastante de certas recordações de dependura que
a sua presença me aviva. Não o esperava n'esta
casa; sempre julguei que os morcegos tinham me-
do do clarão do baile.
— Basta de palavras frívolas, e de injurias mais
frívolas ainda, tornou Perez Lorenzo com voz
grave, a hora é solemne e impõe-nos deveres a to-
dos. Faça calar os seus despeitos de criança na-
morada, senhor capitão, e lembre-se que é militar,
e que é francez. Volte á sala, procure sem alTecta-
ção o coronel Dupin, diga-lhe que esteve comigo,
que não ha tempo a perder, que faça sair todos os
seus ofíiciaes de modo que se não faça reparada a
sua saída. Lá os espero no quartel. Prudência e
discripção.
E o mexicano desappareceu. Yiarmont fitou ura
instante os olhos na baunilha junto da qual estivera
com Dolores, e soltou um suspiro. Depois entrou
na sala, e dando o braço ao coronel Dupin, pas-
seiando com elle naturalmente, disse-lhe algumas
palavras em voz baixa.
D'ahi a instantes os oíTiciaes francezes iam-se
esquivando a um e um com a maior cautella pos-
sível, e dirigiam-se a toda a pressa para o quartel
dos contra-guerrilhas.
Absorvidos pela febre do jogo ou das valsas,
cuja melodia fascinadora jorrava da brchestra em
notas tumultuosas, não repararam os convidados
na saida dos officiaes"francezes.
Só Dolores mostrou alguma inquietação, mas
nada disse, fiel ao seu juramento. Depois a volú-
vel mexicana, em dois ou três giros de valsa com
um seu joven e elegante compatriota, esqueceu a
sua preoccupação momentânea, e o homem que a
motivara. A nuvem fugio rápida, como as nuvens
do seu pátrio céo,e nos lábios vermelhos fluctuou
de novo o sorriso da mocidade e do prazer.
(Continua)
São peiores os homens que os corvos. O triste
que foi á forca, não o comem os corvos senão
depois de executado e morto ; e o que anda em
juizo, ainda não está executado nem sentenciado,
e já está comido.
Antomo Vieira.
JOAQUIM JOSÉ DOMINGUES LIMA
O nome, que serve de epigraphe a este artigo,
não pertence nem a um litterato celebre pelos seus
escriptos, nem a um guerreiro illustre pelos seus
feitos de armas. Éo de um simples caixeiro por-
tuguez, do Maranhão, que, não se distinguindo
por nenhum d'aquelles predicados, possue com-
tudo um outro de não somenos valia : — O amor
do próximo no mais subido e apurado gráo.
Bem que de um género mui diverso dos do in-
trépido Joaquim Lopes, os serviços pelo sr. Lima
prestados á humanidade merecem, como os d'aquel-
íe, as bênçãos de todos os corações generosos e
bemfazejos.
Se um, com' arrojo e valentia sobrenaturaes,
explie a própria vida para salvar a do infeliz, a quem
a mais terrível das mortes ja se antolhava certa
no medonho revolver das vagas ; outro, com uma
dedicação talvez sem exemplo, vae de porta era
poria implorar o óbolo da caridade para distri-
l3uir depois pelos indigentes e engeitados da sorte,
qualquer que seja a classe, ou a nacionalidade a
que pertençam.
Ambos, portanto, embora por diversa senda,
se encaminhara para o mesmo fim.
A par dos progressos e luzes do presente século
caminha indubitavelmente aimmoralidade e a cor-
rupção, com todo o seu cortejo de misérias ; mas
pede a verdade que também se diga, para honra
da presente geração, que nunca a caridade se os-
tentou em todas as suas variadas formas, tão bella
e radiante, como nos nossos dias.
As associações de beneficência forraigam ; os
asylos de mendicidade mulliplicam-se, e, a par
de' tão bellas instituições, apparecem ainda homens
como Joaquim Lopes e Joaquim Lima, que espon-
taneamente, e só obedecendo aos seus instinctos
philantropicos, se dedicam exclusivamente a ser-
vir a humanidade. Limitando-nos a faltar unica-
mente do sr. Lima, não procuraremos enumerar
todos os seus actos de philantropia, porque sendo
elles tão numerosos, como os dias, que aquelle
benemérito portuguez conta de existência, seria
necesssario um livro de largas dimensões para os
conter.
O misero escravo, o naufrago, a viuva sem ar-
rimo, o orphão sem abrigo, o enfermo sem am-
paro, o mendigo, emfim, todos os que precisam
de soccorro e protecção, encontram soccorro e pro-
tecção no sr. Lima.
Citaremos, pois, apenas alguns dos s^s benéfi-
cos actos, que se acham registrados no consulado
portuguez do Maranhão, e que merecidamente lhe
alcançaram o grau de cavalleiro da ordem de (abris-
te, com que o honrou o sr. D. Pedro V, e o di-
ploma de sócio honorário da Real Sociedade IIu-
nianilaria, d'esta cidade, que espontaneamente lh'o
conferiu.
• Tendo naufragado na costa do Maranhão abarca
portugueza «Linda,» e ficando a sua tripulação,
que pela maior parte se compunha de homens ca-
sados, e com filhos, reduzida á maior miséria, por
48
O PANORAMA
ter perdido, com os objectos que levava para ven-
der, lodos os seus escassíssimos haveres, osr. Lima
proraoveu logo era favor d'aque!ies infelizes uma
subscripção, que produziu um conto e quinhentos
mil réis fracos, os quaes entregou ao nosso côn-
sul alli para lhes serem, como eíTcctivamente fo-
ram, d i st ri bui d os.
O capitão do brigue-escuna brasileiro «Graciosa»
João José de Sousa, brasileiro adoptivo, e .portu-
tuguez de nascimento, foi barbaramente assassi-
nado por um negro marinheiro a. bordo do mesmo
navio, e deixou mulher e íilhos menores no maior
abandono emiseria.Acudiu-lhes. |)orem, osr. Lima,
promovendo immediatamente uma outra subscri-
pção, que rendeu mais de três contos, com ps(|uaes
lhes comprou uma casinha para se abrigarei^, e
algumas acções de um estabelecimonto bancário.
(Conclue)
PALLIDA MOPiS.
Imagem lúcida, vestal de encanto,
involvc-me nas dobras do teu jiianlo!
Murchae ; podeis murchar da terra ó ílores,
iJe variegadas cures!
Não sei que valliam folhas, viço e aroma
Que ao sol expiram quan(lo o" sol dcscae,
bo seio encantos, explendor da coma
Se, a noule. ao vento, cada dom se esvae?!
A minlia lloV que os dons, perpetua, encerra
Não é d'esics jardins! Flores da terra
Podeis murchar ; murchae !
ÍTarmonias cessae ! Parli-vos lyras
Que o sois, e sois mentiras!
Que sois hymnos, no templo, ao Deus eterno
Depois das salas cantos sem calor,
Coros de lupanar, gritos do inferno.
Trovas de orgia, e queixas de uma dor!
De vós descreio já, descrer profundo!
Que eu sei de uma liarmonia de além-mundo
Que é so e sempre amor 1
Visões, sumi-vos, que debuxa c cria
A douda phantasia !
Lúbricas fadas, festivaes bacchantes,
1'hantasmas do prazer, que a febre dá,
Beijos de foiro, lábios palpitantes,
Graciosas sombras, que vos quero eu já?!
Fugi, visões, passae ! Foge, chymera !
Que eu só n'um anjo espero que me espera
Da tumba para la!
Nos vaivéns da procella desabrida *
Do turvo mar da vida,
Lá quando o nauta da aidielada praia
.Se adasta pelas rochas a bater,
Ou (piaiido, ii'um momentí^, lhe desmaia
O plinrdT (|ue nas trevas crera vc^r,
K o desalento apoz vem da esperança ;
Só é j)rain fiel, luz (pie não cança
A ideia de morrer !
»
Fabrique o orgulho os thronos, sonhe a gloria.
Depois invente a historia !
Monumentos sem fim erga a vaidade,
l{las|)lieme, 1'romotheu, ou chore, .lob, ,
Ao erro ajuste a palma da verdade,
F'm quanto jul^M Í)eos, rasleje o pó;
Ao fniclo da silencia iieb.i o sumo;
Que tudo despiirece como fumo,
E resta a morle só!
A morle! a doce, a perfumada ideia
Por que minha alma anceia!
Alli onde ouiros vêem só matéria
E o cadáver no leito sepulchral.
Vejo eu a apparição, vivaz elherea,
De gesto encantador, voz divinal.
Que com um braço o passo nos conforta,
E com o outro nos rasga em frente a porta
Da existência immortall
A morle! aquella a que sagrei meu culto,
Que a Deos não c insulto!
A (|ue de frágil barro á terra avara
Atira o corpo vil, mas a potção,
Que (loulra essência dimanou* prepara
i'ara entrar n"oulra cxplendida mansão;
A que os laços estale em que me empeço,
A que, de vida lim, ainda é começo
E de vida rasão!
A morte, sim, a cândida lembrança,
A pomba da alliança,
A que é so verdadeira, e saiiicta, e jusla,
Que a nenhum foge, que nenhum maldiz,
Que ao triste a quem a vida pesa e custa
ÍNão dá mais dos afagos seus gentis
Do que ao louco, ao altivo potentado,
Que a nega ou a receia, ao desgraçado
Que se julga feliz!
Archanjo pensativo, clara estrella,
Como eu te creio bella 1
Pallida morte! pallidez suave,
Transparência subtil, mimo dos céus,
Transumplo, symbolo, padrão, e chave
Do (]ue se passa alem-terrenos véus,
Do que é sereno e grande, eterno aspecto
Da placidez augusta do archilecto
Dos mundos, seus trophéosl
Eu amo as rosas brancas que lu pisas,
E as formas indecisas
Do teu vago perfil; disco de lyrios
Em que, perenne, brilhas no arrebol,
E a i)urpura só dos meus delírios
Tcn impollulo, alvíssimo lençol!
Por ti a minha fé se ateia, e" lavra.
Por ti, da alma a suprema e sã palavra,
O supremo chrysoll
Que os que tremem de vèr-tc face a face.
Nem te querem o enlace,
Te pintem dcspiedada, foice em punho,
Esquii4ida (f senil, de olhar cruel;
Que para mim, (|ue só lamento o cunho
De horror cpic fimprimio falso cinzel.
Es vivida e louçã, bálsamo, essência.
Ou flor de immoredoura recendencia,
E do mais puro meti
Por isso que n'um dia breve, breve,
Em (|ue «o longe e de leve
() antegoso pedir de um teu mysicrio
Á viração que um sopro leu julgar,
Á rama" do cypreste, ao cemitério,
Ou á discreta solidão do mar,
Possa eu ceder a fronte ao somno amigo,
E dos sonhos (|uc houver, por li, comligo,
Nu leu seio acordar !
Imagem lúcida, vcslal de encanto,
involvc-mc nas dobras do teu manlo!
12 Ue janeiro ilc l8G<i
Ernesto Marecos.
I .Typ. Fratift)-l'orliiKUCZa. - lUia ilo Tlcsouro Velho, 6.
I
o PANORAMA
49
A BANANEIRA
Das vaiMas espécies em que se divide a famí-
lia das Musaceas,- a Bananeira c a. mais im-
portante. Este vegetal não é uma arvore, como
geralmente se julga na Europa, mas sim uma plan-
ta herbácea, vividoura unicamente pelas suas go-
meleiras, ecujo tronco morre logo que dá o fruto.
A sua vegetação oííerece a maior analogia com a
das Lilaceas. Uma vagem carnuda semelhante a
uma cebola de planta, espalha raizes fibrosas pela
parte inferior efoltas pela superior. Estas folhas,
de dous a três metros de comprimento e de um,
pouco mais ou menos, de largura,, sueccdem-sc ra-
pidamente, e os seus pcciolos persistentes, que se
envaginam uns nos outros, formam, em seccando,
uma espécie de tronco que attinge a altura de
3 a o metros. O fruto que d'elle sáe é um «dos
mais úteis que se encontram nos trópicos. Duas
espécies sobretudo, ^Bananeira de frnfa longa ou
Bananeira do Paraíso (Musa paradtsiacaj e a
Figueira ou Bananeira dos sabias (Musa mpieir
liiuit) fornecem aos habilíyites dos paizes onde
são cultivadas uma parle do seu Imbiluaí susten-
to. As fruías da Bananeira do P<iraiso, chama-
das Bananas, são um pouco arqueadas, lêem o
comprimento de 12 a 15 cenlimelros, e encon-
tram-se algumas vezes em numero de cem e mais
no mesmo cacho. Coihem-as um pouco anles de
amadurecerem, e se bom que a sua carne molle
seja de sabor mui doce e agradável, raras ve-
zes as comem cruas ; cozem-as no forno ou de-
baixo de cinza, o que, realmente, as torna um
alimento muilissimo assucarado nutritivo e de fá-
cil digestão. A Banana qurla, ou Figó-Banana,
pelo contrario, come-se sempre crua. A carne
d'esla é delicada, molle, fresca, excellente. As ba-
nanas verdes encerram muita fécula; maduras,
disputam o lugar á Canna pela grande abundân-
cia de assucar que conteom.
Para conserval-as, cortam-as em talhadas del-
gadas e poem-asa scccar. Outros ralam-as, cosera-
ÕO
o PANORAMA
as à maneira de mandioca, econverlem-as d'esle
modo om farinha, de que depois fazem paf>a.
As liananciías planiam-se, ordinariamenle, em
lo^^ares frescos e sombrios; ós renovos são coUoca-
dos dous ou três melros dislanles uns dos oulros.
V.-àih heclomelro quadrado |)ro(liiz* lermo médio,
2(100 kiloiírammas de--bananas; oiiiíe fornece uma
collieila mais considerável ^mu mateíjia milriliva
que nenhuma outra planta cuUrvada. () frumenlo,
em uma extensSo igual, j^ão dá mais que lo kilo-
irrammas de írrão, o a balata produz em pezo 43
vezes meno5 do que a bananeira. Entre as outras
espécies da meímaf^nilia. ciíaremos ainda a /ií/-
nanoira da China {}fum sinensis^ , qéie, talvez, não
passe de uniahrariedadc da J/«.s7í saj*/Qntinm. Não
excede dois melros de altura e produz nas nos-
sas estufas um píiaueno fruto, mas cxceTlente. Em
muitos paizes, osTiabilanles cobi'em as casas com
as gran-des folhas da J/í'.* paradisíaca e da Musa
sai)ii')iliiiiii e, fambem d'ellas se servem para fa-
bi-icar cordaii tecidos, cestos e muitas outras obras
d "arte. _^_
A C.ílAVrRA EM MADEIRA EM PORTUGAL
Por NOGUEIKA DA SJiVA.
A gravura em madeira pasceu entre nós com o
Panorawu, e %i seu primeiro cultor Bordalo Pi-
nTieii'o, aiiista èem cdlhecido pelas suas obras de
esculptura e gcnio emprehondedor.
Não são ft muito relevo para a apreciação ab-
soluta os ensaios publicados n'aquelle jornal; po-
rem, á luz da historia da nossa arte, sobresaem
pelo prandeji mérito da iniciativa, que c, ci^i Iodas
as cousas, a chave do piogresso.
Sem meslie, nem livro da especialidade, porque
não o havia então; tendo de adivinhar b systema
e os meios práticos pelo que, apenas, a sua in-
telligencia ^)odia l6r na simples observação das
gravuras estrangeiras, Bordalo* 'fez mais do (jue
seria rasoavel exigir. As suas tentativas, postoque
ettremamenie longe das estampas áoMaf/asin Pil-
/0/T.S7///P, sobre cujo molde se publicava o Panora-
ma, nãoparecem os prelúdios de uma arte que, na
presença de tã(fadveisas circumstancias,* póde-se di-
zer, apparecia entre nós, como se não existisse em
parle alguma.
E í^ie, á semelhança de Alberto Durer, IJorda-
lo Pinheiro, voando nas azas do seii engenho, rom-
pia por si só o veu (|ue em l*ortugal occultava, nas
trevas de uma completa ignorância, os segredos
do mais dillicil género de gravura.
Mas esto iriMmplio, sullicienle para glorificar o
nome de um homem n'um paiz em (|ue se soubesse
o que era art.^, e quaes as suas iniluenciasnos pro-
gressos pliysicos, moraeí a religiosos das socie-
dades, não bastou ao artista, (|ue jjictendia alcan-
çar as gravuras estrangeiras no avanço em que já
iam então.
Vendo, pela experiência, (|uc do estudo de de-
senho especial dependia o aperfeiçoamento da gra-
vura wi madeiía, resolveu entiegar-se todo a es-
sa parlicularida(h\. eonliado nas boas disposições
que tinha descoberto em Baptista Coelho, a quem
tomou por discípulo e em breve habilitou para
substitui-lo e auxilia-lo no patriótico empenlio.
Pena foi, porém, que este expediente, aliás pro-
duclivo, não fertilisasse tanto quanto havia rasoa-
velmente a esperar.
Doixando-se atterrar na presumpção exagerada
de certos obstáculos, o artista escolheu um géne-
ro que, pela sua extrema facilidade e detestável
menotoifia, paraJysava a acção variada, graciosa
e, por vezes, inicial em que deve e'xercilar-se e
ameslraV-se o bnril. Com o intento, mal funda-
do, de facilitar o ensino, desenhava tudo a traço
parallelo, e o novo gravador, habituando-se a es-
te trabalho mediqcre e viciado, não poude dar á
arte aquelle impulso' que uma vocação regular,
coftio a de Coelho, teria de certo imprimido, se
o mestre, menos medroso e míiis severo para com
a commodidade do disci|íulo, o houvesse obrigado
a encarar sem receio, nem susto* toda a cathegoria
de ditUculdades. ,*,
Depois, a estas circumstancias v(;io juntar-se a
morte, hoje por dugs tezes reconhecida apparen-
le,^do jornal. Bordalo Piflheiro*achou inesperada-
mente um dia cortaíío o lio das suas esperanças,
e olhava inc|:edulo para o illustre tinido, que, pe-
la violeílcia e fatal brevidade da agonia, não tive-
ra tempo i)ara dotar a arte nacional, no valioso
testamento que deixava, com titulo superior ás hon-
ras modestas de uma auspigo^a apresentação.
Todavia, se lhe naufragou o i^lento em tão co-
fiioso diluvio d^ fal.alidades, ficou-llie de pé a glo-
ria, immarcescivel de ha#er dado ao terreno, (|ue
o seu esforço patriótico amanhava, as dimensões
precisas j)ara, mais. tarde, oulros poderem levan-
tar, em mohmnenlos eloquentes, a realisação de
suas aspii'ações. •
JOAQUIM JOSÉ DOMINGUES LIMA
Reinando no interi^or da j)rovincia da Bahia
uma fome horrível, á qual succumbiram centenares
de pessoas, foi ainda « sr. Lima em auxilio dos
infelizes habitantes d'aquettes remotos sertões, an-
gariando-lhes uma subscripção, qne produziu um
conto e sessenta e cinco mil réis. acção pela qual
foi merecidamente louvado pelo governo e imprensa
do Brazil.
Como membio das commissões nomeadas pelo
consulado portuguez para promoverem subsci"ip-
ções em favor dos habitantes de Cabo-Verde, lam-
bem llagellados pela fome, e dos asylos (fe infân-
cia desvalida, de Portugal, ninguém mais do que
elle se esforçou para qike a jwinuMra produzisse
dois contos e oito centos mil i'éis, e a segunda
dois contos duienlos e noventa e Ires mil (|ui-
nhenlos réis.
Egual esforço empregou para se levarem a ef-
feilo as magnificas exéquias, que no Maranhão se
celvbraram pelo eterno descanço da virluosa Bai-
nha, a sr. I). Maria 2.', e do chorado Bei, o sr.
I). Pedro V, lambem como membro das commis-
sões para esse fim nomeadas. K lendo um dos so-
o l»ANOUAMA
51
cios fundadores da Sociedade portugueza de bene-
liceiíciâ, denominada — Humanitária 1." de de-
zembro — Sociedade, que se dedica exclusivamente
osporluguezesa soccorrer desvalido», e que, n'este
sentido, lem prestado grandes serviços, ninguém
mais do que o sr. Lima se tem empenhado pelo
seu engrandecimento c prosperidade.
Finalmente, são tão numerosos, cumo dissemos,
os actos de philantroj)ia praticados por*a(|ucile
generoso portuguez, que fião podemos, sem tomar
grande espaço a esta interessante i)ublicação, dar
noticia de todos elles' aos i^ossos leitores, pois
ainda não lia muito, grassando no Maranhão, com
lerrivel intensidade, a epidemia das bexigas, nma
carta, qued'8lli temos á vista nos pinta o sr. Lima
andando de casa em casa, ou antes de mansarda
era mansarda, a prestar toda a casta de soccorros
aos infelizes aLacado^s (♦'aquella lerrivel moléstia.
Sirva, porem, o que temos dito para dar idéa
dos sentimentos humanitários, » coração caritativo
do nosso benememto compatriota, e para que o
seu nome seja senipra lembrado com respeito e
veneração entre os d'aquelles, que mais se distin-
guem por acções generosas, verdadeira philantro-
pia e caridade evangeiiea.
Nasceu- o sr. Lima em Lisboa a 8 de agosto de
181Í, sendo lilho do negociante José Domingues
Lima, e 1). Joaquina Rosa do 'Livramento Lima,
ambos já lallecidos.
Foi para o Maranhão e!nl827,e alli lem exer-
cido sempi'ea prolisSão de caixeiro, servindo como
tal na casa do negociante inglez, Henrique Sea-
son, ha trinta annos. • **
Pouco auibicioso de adquirir bens da foriuna,
vive modestamente do seu parco ordenado, que
ainda frequenlesi vezes dizima em favor dos indi-
gentes, pois é em soccorrel-os que consiste todo
o seu prazer.*'
Paga também a educação e serve de pai a uma
interessante menina [fbandonatla, cuja historia ro-
mântica-não cabe ms limites d'este pequeno ar-
tigo.
J. IL d'Oliveira Samos.
preambulo a]udar-me do seu costumado estilo, era
(|uerer louvar as excellencias de V. A.co\iio elles
fazem aos senhores a quem suas ohi-as endereção,
que farei? sendo certô (|ue, ainda que fosse cm* mi
só a sua oratória tão facunda como em todos elles
e me fosse tiasjiassado o espirito de David, não
presumiria escrever de V A. a miiiima iiarle ilesua
iwagnilica bondade, de sua noblissima condição,
de sua discreta mansidade, do perfeito" zôlo* da
sua justiça, da sua paz, da sut gueria, da sua gra-
ça, gravidade, conselho, sabedoria, iiharalidàde,
pindencia, e linalmenle do seu chrisliani*simo lir-
mamento. Outro si querendo navegar pela rola do
seu exórdio d'elles, pedindo a V.A. favor e era-
paro paw que minha enferma escrij)luia não seja
ferida das linguas damnosas ; parecc-me injusta
oração pedir tão alto esteio para tão baixo ediiiciO;
([uanto mafÇ> que, ainda que digno fora de tão no-
bvQ emparo, tenho considerado que Christo lilho
de Deos sob emparo do poderio eternal dfe Padre,
e lodos seus bemavenlurados Sanctos, não passa-
rão por esta vida tão livres, que dos malditos de-
tractores não fossem julgadas siftis divinas obras
por humanas leviandades, sua saneia doutrina por
máxima ignofancia, sua manifesta bondade por
falsa malTcia. sua sanctissima graça i)or sorreticio
engano, sua excelça abstineocia, por vil hypocrisi«,
sua celeste pobreza por terreno vicio. Pois rústico
peregrino de mi, (juc espero eu.' Livro meu, (fue es-
peras tu ! Porem te rogo que (juando o ignorante
malicioso te reprender que lhe digas: se meu mestre
aqui estivera, tu calaras. Finalmente que por escu-
sar estas batalhas e por oulros*respeitos, estava
sem^iroposilo de im])rimii- minhas obras, se V.A.
mo não mandara, não por serein dignas -de tão
esclarecida lembiança, mas V. A.- haNlíMa respeito
a serem muitas d'elias de de.vação e a serviço de
Deos endereçadas, e não quiz que se perdessem
como quer que cousa virtuosa*, |M)r pctjuena (|ue
seja não lhe liça j)or fazer. Por cujo serviço traba-
lhei á copillação (relias com muila pena de níinha
velhice e g'oria» lie minha vontade, cpie foisanpre
mais desejosa de servir a V. A que cubiçosa de
outro nenhum descanso.
EPISTOLA DEI^CATORLV
de f>il-Vicrii(e a D. Joiío III
Os livros das obras que escriptas vi, Sereníssi-
mo Senlior, assi em metro, como em prosa, são
Ião llorecidas»de scientes^ matérias,, de graciosas
invenções, de dóceis eloquências e elegâncias, que
temendo' a pobreza de meu engenho, porque na-
ceo e vive sem ^)ossuiJ• nenhua destas, deteuni-
na\a leixar minhas misérrimas obras por impri-
mir, porque os antigos e modernos não dei\árão
cousa boa por (jizçr, nem invenção linda por achar,
nem graça por descujjrir. Assi q^e para passar
seguro da, pena- que minha ignorância padecer
não escusa, me fora fermosa guarida não dizer se-
não o que elles disserão, ^inda que eu ticásse co-
mo eco. nos valles, que falia o que dizem sem sa-
ber o que di-z. Porem querende eu no presente
FABl LA DE JOSÉ MARÍH DA COSTA E SILVA
o lii|>i«lario c o «liaiuautf
Um'lapidario ignorante ,
Um diamante ^ *
Comprou;
Ténue cabello lhe achou;
Mas no niíiis era excellente
Por grandeZíi, e |)oi- fultíor.
Para' til ar-lhe o defeito
Com todo o geilo
Limava; . ^
Fundamente o lapidava.
E a grandeza cerceando,
Diminuiu-lhe o valor.
52
O PANORAMA
Ohl quantos, quantos, authores,
Eiuendadores
. Eu vi,.
Que rhscando aqui, p alli,
Çoin \ãs correçOes tiravam .
Ás obras lodo o vigor.
Considerai a multidão o a lirandeza dos mnlos
que oppriíiiem as cveanças, e quão cheios de vai-
dade. ([[' Sí^lVinuMUos, de ^Ilusões, de sustos, são
os primejrtv^ aniios da sua vida;, depois qupdo
adultos, e (juando mesmo principiam a servir a
Deos, tentam-os o erro para seduzii-os, o traba-
lho c a dòr para enfiaquecel-os, a imiontencia
jiara inllaaiimal-os, a tristeza ])araabatel-os, o or-
giilho para eleval-os; e (|uem poderia rei)resenlai',
em poucas palavi-as, tantas penas diversas quejjc-
sam sobre, os lilhos de AdSo? A evidencia
d"estas jniserias tem forrado os philosophos j)a-
gãos, que não sabiam, nem acreditavam no pec-
cado do nosso j)ijmeiro jiai, a dizer que nós não
tínhamos nascitte senão para sollrer os castigos
que merecer^nos por alguns crimes commcttidos
em uma outra vida, e que por isso ae nossas almas
ha\iam sido unidas a coipos corruptitcis, pelo
iijesmo género de supplicio (juc os tyrannos da
Toscana íaziam s^flrer aos enles vivos ligando-os
a corpos mortos.
Esta opinião, poiém, (|ue as almas são juntas
aos corpos ein castigo das laltas precedentes de uma
outra vida, e rejeilat^i jielo ajioslolo. Oue secon-
clue, pois, senã<t (|ue a causa d't^leS|fnales liorri-
veis seja, ou a injustiça, ou a impotência de ^)eo5',
ou o castigo doyriuíciro peccadodo homem? Mas,
poiqiie Doi)s não é nem injusto, nem impotente,
outiik coisa se conclue que não (|uereis reconhecei',
mas que e necessário (jiie a reconheçais; e vem
d ser, que o jujo Ião pesado (|ue os lilhos de Adão
são obrigados asupportar desde ([ue saem dovcn-
tre^e sua mãi ale que entram no §eio da sua
raãi €ommum, íjue c a terra, não o leria sido, se
o não houxfssem merecido pelo crime (jue liram
da sua origem. Samo Agostinuo.
IKIGARTll
Por PI.MlEmO CHAGAS.
A caiicatura. (|uando è um j)amj)hlelo desenha-
do lem um instanlcde voga, e morre com as pai-
xões que lhe deram origem. Esse desabafo chis-
toso da veia satyrica de um pintor, quasi sem-
pre [)r()voca apenas o riso dosçonlcmpoiancos, e
não tem o minimo interesse aos olhos da posteri-
dade. Ha apezar 4'is.so um hoTiiem notável. (|ue só
caricaturisla foi, cujas graN uras hão de viver eter-
namente, admiradas, apreciadas por todos, e já de-
ram ao seu aucloi' nina reputação que os seus
trabalhos de pintura seria nunca lhe {)0(leriam as-
segurar.
É porque a íarça morre, ma.s a comedia fica ;
é porque o pamphleto desfolha-se ao vento das
paixões-, que o inspiraram, mas a salyra, quando
a traça mão de mestre, atlronta impávida as vicis-
situdes do tempo.' É porque o pamphleto verbera
este, ou aqueile homem, cuja nome até muitas
vezes se apagada memoria das gerações, e a salyra
dos mcslres fustigando derelanceasuaviclima, as-
senta o látego no homem que tem sempre os mes-
mos ridículos, os mesmos vicios, as mesmas pai-
xões. O TartulTo assentava o chicote nas coslasde não
sei já que prelado frantez, mas ainda hoje zurze
ini|)la('avel a numerosa família dos hypocritas; a
Vcna de Talião verl^erava José .\gostinho de Ma-
cedo, mas não ha um só verso d'essa admirável
salyra que jião estale magnilicamenle no dorso
da innumeravel prole litteraria do frade verseja-
dor.
As caricaturas do celebre pintor inglez, cujo
retrato apresentamos hoj# aos leili^res úo Pano-
rama, possuem esse dom preciosíssimo da sa-
lyra. A phylosoplíia galhofeira dessas bellas gra-
vuras não e só applioavel ao século \VllI,e a se-
rie que se intitula aCasammlo da moda» é de cir-
cunstancia cm lodos os tempos. Aá dillerenles se-
ijics das gravuras de llogarlh, consliluera como
os albums de Gavarni (laienlo que é da mes-
ma familia, (jue o do cai'icalurista inglez) ver-
dadeiros romances á l|alzg,c, romances onde
o phylosopho colhe uma 'opulenta messe de pro-
fundas observações sobre a natureza humana,
e o historiador jircciosissimos estudos de costumes
do século XVI II. ♦
E, nole-se mais ainda, a fama de llogarlh é in-
(lr[)endénte dt) a|)rimoiado dos seus desenhos. No-
tam os conhecedores defeitos gravissiiiios na ma-
neira do pintor e gravador inglez. O seu colorido
é péssimo, os seus quadros sio «juasi sempre
csbocelos, as suas gravuras não lêem, uma estre-
mada correcção, mas a idóa tudo tiomina e ludo
desculpa; na idéa é quese rcNcla ograiule homem.
Com dois traços rápidos evHiemenles, llogarl es-
boça uma scena. A sua. veia <inaliciosa foz cresses
dois traços um poema salyrico, do poema salyrico
um degrau para a immorlalidade.
William llogarlh nasceu em Londres cm 1008
Seu |)ai, revedor de provas ifunia typographia,
melleu-o como apreiítliz cm casa de um ourives.
Mas esse demónio familiar, que se chama génio,
desenrolava já diante dos olhos de llogarlh as
suas miragens prestigiosas. Saio de casa do ou-
rives com umas leves tinturas de desenho, de (|ue
se sérvio paia viver muito a cusl«,* e' na maior
miséria. yVssim mosmo.enti^ osvendavaes da ad-
versidíide, o lápis ia traçando no |)apel os prelú-
dios d'essa comedia, (|ue Imvia depois de lazer as
delicias (la velha Inglaterra. Ima caricatura, re-
presentando um pugilato de bêbados chamou,
para elle a altenção. O nosso Ilouarlh da pcíuna,
[Nicolau Tolenliiio, também se uãodediguou com-
memorar n'um dos seus mais chislosos soneloi
uma scena semelhante. ' *
A dona da casa, em que o píulor inglez morava,
persegiiia-o por causa de uma divida de uns vinte
schellings. llogaTlh creio que lhe não pagou os
o PANORAMA
vinte schillings, mas passoii-lhe uma ielra com
o endosse para a poslerjdado. Essa letra era a ca-
ricatura da biâonba proprielaria.
Foi então que um livrei i o o encarregou de lhe
53
lilusírar o Ifudibras da Butler. Esse trabalho de
maior fôlego assegurou a sua- reputação. Estava
encontrada a mina; o obreiro foi incancavel Todas
as physionomias do século XYIIJ c todos os gra-
ves personagens da sisuda Inglalen a desfilaram cm
procissão, evocadospelo implacável lápis do chistoso
pintor, entre as gargalhadas do publico
oilodaKíí^a de tm devam, a Feira de Soulhwark
Uma palestra moderna á meia noile, o Infeliz
pocla (de que n'es(e jornal se deu uma copia) e
os Comediantes na granja, publicaram-se com mui-
tas outras inferioies de 1733 a 1738. Em 1730
casara elle com a filha do pintor Thornhill con-
OA-
0 PANOIUMA
Ira vontade do fao, que o tinha na conta de um
valdevinos, mas que se reconciliou com eile mal
que o vio nco. Muilobom^^enro foi llçííarlli senão
poz o querido so.^rro no primeiro plano de alguma
das suas gravuras satyricas.
Uogarlli era um bom rapaz, amável, expansivo,
franco, ingenuamente vaidoso, não fazendo ifiuito
caso do seu lalente de caricaturista, e tendo a ma-
nia de se consi(*erar o primeiro pintor histórico
lio seu loiupo. Desgraçado de quem ousava allir-
niar diante d't'lle(iue Úubens (ui Van Dick seriam
dignos ffe mais alguma coisa do que de lhe moer as
tinias. Um dia lenibrou-se de provar o seu dilo^
fazendo um quadro que elleannunciou alto ebom
som que devia desbancar outro de Correggio
sobre o mesmo assumpto. Era uma Sif/isinundu.
Concluio-sc e expoz-se o miserando quadro.
Não se pôde imaginar o diluvio de jiiotejos a
que deu origem, llogarlh, furioso, voltou n'um
Ímpeto de cólera á sua -verdadeira inspiração, e
fulminou os dois principaes motejadores, CJiur-
cliill e Wilkes, com duas caricaturas, que, como di-
zem os Francezes, viirent ^es ricurs de son cole.
Eslava doente n'essè occasião, mas teve tan-
ta satisfação em se ^n^i que de puro gosto re-
cobroh a saúde. E[elle mesmo quem o conta nas
suas Aiieducles of mi/.self\i\io citado por Thacke-
rav no seu bello (^sluáo sohvn The Linfjlis/i /lumoii-
risls of l/ie cif/lileenlh eentury.
íiT/i(> pleasure ir/tích I dcrived froiii Ihese two
enf/ruvhias restored me (b as much lleulth as can
hc expeclrd ai iiiij fiine of tife.
Com tildo p sua saúde licou sempre alterada até
que morreu em ITOí.
As suas gravuras mais uplaveis além das que
ja mencionamos são: O musico damnado, O casa-
iiirnlo da moda. A industria e a ociosidade, e as
J* o lias' de Ca/ a is.
Se não juntou um nome illustre aos tantos, que
já liguiavam em torno dos grandes mestres da ar-
te italiana, llamenga, ou hespanhola, leve cm com-
pensação uma gloria maior, a de abrir uma [lagina
nova na hisl^iia das bellas artes, e de dar á sua
pátria um gene]"o.quíí ella ainda hoje cultiva com
buccesso,oda caricatura humoristica.
A UALATEA MODERNA
; Por A. OZOIUO dÉ VASCONCIÍLLOS
• Et fugil ad s.ilire?
Alfi-tnlo de .llrllo a .%iitonfo .llvaron
Meu caroT\nloni(r.— Eslou em plena cdade-mc-
dia.
Sc eu flvesse* talento descriptivo de N\alter Scoll
e o hrismo senliiiiental de ()cta\e Eeuillet pode-
la apresentar a teus olhos um (|uadro esplendido im-
pregnado do suavissimu perfume das eras cavalhei-
rosas. . •
Bem sabes (piai era o meu viver n'essa monó-
tona e aborrida Lisboa, cujo bulício mais parece
o rouí|uejar do febricilanle do (|ue o estridor do tra-
balho. Sabes que me contraia ahi em espasmos de té-
dio, farto de ouropéis enganosos, repleto de bai-
les faustosos, aonde lodos se cobromcom a. mas-
cara da opulência, e pompeiam galas m(^nlidas.
iNão nasci para esses esplendores, (jiie me ceg*am
e otTuscam. Os meus ouvidos melhor se dão com
o murmurar queixoso dos regalos, com os quebros
dos passarinhos, que saltitamMios recessos, como
rumorejar dos ra^^.
De noite mais \W apraz oscinlillar da estrella
por enUe nuvens sombrias, de que o jorro perenne
de go.z, cuja luz se relVange nos piíigeutes do
lustre. Sou rico e não lenho ambições. Com pouco
me contento, c pouco ai^peleço d'essat vaidades
mwnúdims, sombras p/iosp/iorecoiles, se me descul-
pas a expressão, atraz das quaes todys correm,
como a Ophelia do grande poeta.
iSão julgues que fallo sem conhecimento de causa.
Demasiado conheço o mundo, apezar dos meus
vinte e três annos. Hoje enverga-se a toga viril aos
dezoito annos; aos fínle somos sceplicos 'e blas-
phemamos, aos vinte e cinco desejamos síltar a
pátria periclitanle, depois alcançamos uma caria
de conselho^ que cimentaa excelleiícia embais per-
duráveis, e a linal, senão chegamos a ministro ou
não somos barão sem baronia, vamos comer esses
reditos proventosos, despojos opimos de vuia tra-
balhosa, em suave e tor|)e aposentação, até que a
morte nos arrebate da eoi-rente do egoísmo, jiara nos
arrojara sepultura, deixando logar a outros, que
seguirem o mesmo caminho.
OhlEu sinto profundo horror por este rnoderno
sybarilismo, em*(iue os próceres pela intellig*encia se
bandeiam [)ara serem os p.arasitas do povo! Ja
não ha Tácitos que os verberem com o látego im-
piedoso e lhes imprimam nas faces hedfoydtis o
ferrete da infâmia e ignominia.
Fujo d'elles como (le um ruim fermenlo. Tenho
medo (|ue me contaminem. Sigam outros o exem-
plo d'elles; eu não, que nasci n'este século com uma
abna dos velhos iempos. Sequeslro-me do mundo,
porque o mundo se corrompe. Yollo-me pira o
passado, abraço a natureza e adoro OH:reador.
Ah! Reparo agora como eu ia divagando mora-
lidades, parvoas parenesis deslocadas n'esle século.
Yolto-mejá ao principio d'esla carta.
Dizia-te (|ue estou em plena edade media. Eu le
conlo. Convidado ha muito por um fidalgo da pro-
víncia, que foi amigo de meu pai, e c parente re-
moto ila minha família, fugi um dia de Eisboa,
e vim abrigar-mc aíjui, n'esta, aldeia ignota. A
casa aondei^habito, ((|uizera dizer tecto, que me
abriga, mas os K'lhados alluidos gão m'o pcrmit-
tem), é uma das velhas honras dos saudosos leni-
pys de Egas ]Moniz,j)oi(|ue no lar dos velhos ca-
valíeiros dâ cruz,só a.iionra enlravíi' e iii^día\a.
As paredes de granito, meio dorrocadas dobram sob
o pezo dos annos. As janellas góticas, com umas
vidraças toscas, lançam uma claridadiC dúbia nos
a|)osentos sobradados de. v<!lho e negro castaubo.
A porta, da entrada, com uirs reinlilhados gros-
seiros quasi inleíramenle obliterados, suslentando
a custo umas armas cheias de musgo, mal pôde com
o PAXOKAMA
^0
as costaneiías de carvalho, que giram em quicios
empenados.
A casa eslá ,110 lopo de uma alameda estreita
longa e escura. 'Por noite de inverno, quando as
folhas caem noclião e revoluteiam impoilidas pelo
vento gelado, os cedros como que abrigam comas
ramas sombrias os braços descarnados e nodosos
dos castanheiros, ao tempo que cada cipreste me-
neando a coma esguia meio encuberla pelas outras
arvores, parece o penacho ^ um ginete phantas-
tico, que escarva no tumulo de valente guerreiro,
e agita a cabeça em signal de dó.
Era noite cerrada quando chegei ao solar do meu
parente. Ouvia-se o mar ao longe a bater nas pe-
nedias, e a brisa nocturna açoitando o arvoredo,
que projectava sombras immensas. Na athmos-
phera não havia uma nuvem; a lua brilhava lim-
pida no grande tabernáculo do universo;' Ia só. O
meu cavallo- resfolegava de medo quando uma som-
bra o cegava. De voz em quando batia com aspa-
las nas pedras, soltas, que saltitavam pelo chão,
e ceiam nas folhas seguindo um serpear rumoroso.
Chegado ao fim da alameda, entestei com o velho
portão carcomido. Quizera ler ao lado a trombeta
dos paladinos para soltar uma nola que echoasse
na solidão. E como que via homens de armas e
archeiros aprestando-se para o combate, e bestei-
ros coroando as ameias. Um tronco, que jazia em
terra, atfigurava-se-me como uma catapulta e era
tal a minha illusão, que cheguei ajulgar-me úm
mensageiro de gucira, envolto na armadura, e so-
pesando a lança e a» acha de armas.
Pouco durou o engano. Apeei-me, alcei três ve-
zes a aldrava, e logo depois abria um aldeão a
porta.
Ouerer contar-te as minhas impressões ao en-
trar na sala prinoipal fora o cumulo do impossí-
vel. O especta(^ulo era completamente novo para
mim. Imagina uma tala vastíssima toda forrada
de pannos de ariaz, já muito rolos. No fundo uma
chaminé agigantada meltidana parede, quasi sem
brazas. Assentados em dtias ,cadeifas de espaldar
antigas estavam pai c filha, *unicos habitadores
d'aquella casa.
Nos rostos de ambos pintava-se o tédio e abor-
recimento. O pai tinha umas feições de cavalleiro
antigo e respeilaCel, denotando os seus sessenta an-
nos. Os cabellos fartos e-compridos iam enbran-
quecendo, os olhos grandes e azues reflectiam
não sei que perpeUia indecisão, uma certa tibie-
za, que se traduzia em todds os gestos. A barba,
por uma coptradicgão singular, era completamente
branca, e caindo-lhe pelo peito, dava-lhe uns ares
de velho peregrino, cuja vida fora cortada de ma-
gnas e dores.
O seu todo eva emfim o retrato dos fidalgos
provincianos, que, adoí adores do passado, talvez
])0i-que nãp se sentiam com forças para seguir o sécu-
lo, agarraram-se, por instincto de conservação, ás
tradicções da monarchia antiga. Assim o cêphalo-
pode cinge os innumeros braços ao rochedo do
mar por não seguir a corrente,' que o arrasta.
Vão acabando esses represenlantes de uma fé
moribunda, que se esvae a pouco e pouco impel-
lida pelo bafejar potente das idéas modernas.
Deixemol-os em paz, na contemplação do pas-
sado, que não volta.
• Também elles tiveram a sua aurora rodeada de
esperanças; também elles souberam rejuvenescer
as tradicções herdadas; também elles respiraram
largamente no grande âmbito da actividade hu-
mana.
Eoram, a seu pezar, obreiros do progresso.
•Ouerendo reconstruir o mundo velho sobre os ali-
cerces movediços da revolução ; transformando-se
cm atalantes-de um edilicio instável, caindo em-
fim sob o pezo da cúpula, que haviam erguido a tanto
cust-oe com tanta fé, mostraram na mesma queda
aos povoí absortos que as idéas não param, que
a humanidade caminha, e que acima de tudo ede
todos, constranj^endo os mais remissos está a lei do
p*-ogresso,tão santa e divina como as tábuas do Sinai.
Respeitemos, pois, essas cariatides da realeza,
f}ue passou. Reluz-lhe na fronte a aureoki da re-
signação. Se dobraram o collo ao homem é por-
que lhe deram os attributos da divindade sobre a
terra.
Juncto do pai estava, como disse, 9 filha. Á
primeira .vista cuidei ver uma estatua, tal era a
lixidez, a frieza o tom marmóreo do seu rosto. A
sua belleza espanta e esmaga, por demasiado es-
culptural. Debalde procurei o menor indicio de
turbação depois da minha entrada. O coração
d'aquella mulher tem a profundeza do pego tlormen-
U;. A limpidez do seu olhar parece^se com a do es-
pelho, que rellecte em sala escura e silenciosa os
raios da lua. Quando a via alçar ligeiramente o
corpo para me corlejar, julguei que o mármore,
sem perder a sua frieza e correção, se transfor-
mara em carne. Meditei por um pouco na fabula
de Pygmalião e recuei involuntariamente um passo.
E comludo, ó meu caro amigo, que formosura
peregrina. Seduz, mas não-atrae; encanta mas af-
fugenta.
Não sei como dcscrever-te este iypo único, que
fizera desesperar o próprio Balzac. Se o analysa-
mos como artistas encontramos todas as perfeições
reunidas, sem uma só. discrepância.
Phidias não creara obra mais completa. Yé-se
que n'aquelle coração poderá haver vida, mas la-
tente por ora. Não me pergunfjos mais. Sou na-
turalmente curioso, mas não posso encontrar a
chave d'aquelle ènygma esplendido. Esta mulher é
indelinivel. Pertence apparenlemente a todas as
escolas, porque para todas seria modela de per-
fejçãí) physica.
Mas n'aquelle rosto tão bello ninguém procure
os oxtasis voluj)tuososdas virgens de Murillo, nem
o desi)rendimento, o desapego, esse como que ílu-
ctuar elhereo das madonas deRaphael. Nada pro-
cure, porque nada j)óde encontrar. Esse roslo é
por ora um modelo. É necessário que a paixão
lhe vibre as cordas do senlimenlo para que assom-
bras se conbinem com a luz, para que appareçam
os caracteres proeminentes. Quem será o afortu-
nado?...
5 b
O PANORAMA
Parecer-le-ba singular que logo depois da primeira
entrevista eu possa ser tão explicito, dando assim
opinião quasi segura. Ahl É que tu, ó meu caro
amigo, nunca estudaste o problema vivo, que Sc
chama — mulher— For um presentimento, ou. ins-
tincto. que não sei explicar, ha occasiões da vida,
na edade das paixões romanescas, em que somos
dotados de uma penetração admirável. Então, e
talvez porque e perigo se nos antolha inevitável,
d(C;'rram-se-nosas profundezas, illuminam-se,alar-
gam-se, vemos tudo um momento, rápido como o
laiscar do raio, e depois, quando calmos outra vez
nas li'evas, medimos já o abysmo aonde vamos
precipitar-nos. Não creias que isl^ se possa ap-
plicai-me. Longe vá o agouro. As circumslancias,
|)orem, do logar, a minha imaginação instigada
por uma viagem longa, o trajecto nocturno por
cerros e algares, as gi andes sombrai dos arvoredos,
que SC destacavam uo lirmamento iUuniinado pelai
lua. o profundo rumorejar da noite, todas eslas
impressõífs como que me atilavam o espirito, con-^
cenlramdo-o e' jjredispnndo-o à analyse.
.Mal entrei, fui iTcebido de braços abertos ^lelo
cavalheiro, meu j)arenle e amigo intimo de meu
jiai. A lilha, que se chama IX Violante da Con-
ceição, lez-me uma leve cortezia, c poz-fie ê con-
templar o brazido com uma pertinácia incrível.
Debalde ccuilei lodos os promenores da minha via-
gem: debalde mostrei o meu res|)eilo i)elo pas-
sado e nelos feitos dos nossos communsavoengos;
debalde fallei com azedume da sociedade de Lis-
boa á qual preík'0 o plácido viver campestre. Foi
tudo baldado. •
Apenas consegui alguns sorrisos de approva-
ção do lidalgo, e dois olhares distrahidos de D.
Violante.
Comecei a dcsespei'ar-me. Como poderia des-
perlar-lhe a attençãoPEu seu dos fátuos, queima-
ginam enredar logo ao principio as senhoras bo-
nitas com as arguciasíK; minha eloquência. Não lo-
grei o meu intento. As torrentes de poesia bucóli-
ca, (|ue se desprendiam, em catadupas, resvala-
vam sobre a tríplice couraça da minha ouvinte
distraída. Passado pouco, e aproveitando uma
pausa forçada, ergueu-se ella, desculpando-secom
05 deveres ile dona de casa, que carecia de deli-
near a ceia. O velho fidalgo sorriu outra vez, e co-
meçou a contar-me as suas campanhas, como co-
ronel de um regimento de voluntários, que fez o
cerco do Porto. A narcotina só acabou linda a ceia.
Chegado ao meu (|uarto o meu primeiro cuidado
foi escrcw;r-le esta cart».
Crè-me, como sempre, teu vcrdadeiít) amigo
— Alfredo de Mello.
ií^oiilinit")
BEATRIZ
VIII
Como já disse, e agora inda repilo,
Jacqups cravisila, e das mais inliiuas
Do conde,... (; d;i condes.sa ; (ora escusado
Dizer islo ao leitor, mas eu iiHo jíosIo
De escuras narrações; prefiro sempre
Pôr ludo era l)oa tuz, porque não quero
fer de anotar, em dez ou doze tomos
Três ou qualro de versos, quando muito)!*
No Icmpo em que eslas cousas succederam
O conde tinha ja, se eu bem me lembro,
Alguns annos a mais do (jue convinlia
.\ quem era casado com Iam linda
E Iam genlit mullicr; lodos sabiam
Qué ella era o hpo angélico e divino •
Da santa candidez, que "a leve sombra
De uni pensamento mau jamais viera
Toldar o puro ceu (raqgellc espirito ;
Mas (piem pode iivrar-se, lá um dia,
De ou\ir a tentação, (pie passa e cania • '
Como as scrèas de que falia Homero?
Não sei, mas acredito, (e peco venià
,\ formosa leitora que, dcce'i*to,
Não é do barro vil de (pie eu sou feito, '
Mas do cryslal de rocha mais sybidol,
Oue á voz (la tentação, não ha, não pódc
Deixar de se abalar" quem Icidia peito,
E coração, e vidn, e saneie ardente.
Deos a affasle d(í nós, (pie lí pra.i^a horrível ;
Pois SC a deixa a vontade, em pouco tempo
I.á SC vai todo o mundo a tona d'asua 1
O Lucrécia, ó virtude incomparável *
Da Roma, (picja foi, Lucrécia antif^a,
Como eu le vejo santa e luminosa
N'um turbilhão de nuvens ! — tu devias
Ter um culto enlre ncis, e, sempre acesas,
Quatro vcllas de C('ra ou de slearina !
Éii já \\ no sacrílego soneto
D'um Zappi rebelião, leu nome illuslre
Atirado ao vaivém de uns versos toscos ;
Mas vingiiei-mc d(>pois, que o próprio vale
Expurgou-se de lodo, memorando
A alroz expiação úa leve culpa.
l'or isso eu teidolalro, ó casta »lla,
.Modelo conjugal, (pie preferiste
Uasgar os seios d'alma. (embora fosse
Apoz o crime vi!;, a terna vida
(javado o acerbo espiídio do remorso.
Isto não (í sermão, caras leitoras ;
Ninguém tem. melhor fé, fé rmis siijpcra
Do que eu tenho, na extrema pudicícia
De alvas iiombas do ninho meu patcfno;
Mas não posso deixar de ergu(# meu cahto,
E de saudar a esposa incorruplivel
Do pobre Collalino ; oh, a virtude
É (pianto ha bom no mundí) ; e se índa houvesse
Conventos no paiz, «m cala (relia
Iria já, sem mais, mctler-me a frade!
E. A. VID.4L.
i
O ESPELHO MAGICO
Dizes-me tu mie as estreitas
fogem a tuz do arrebol,
e que ninguém pòde«v(7l-as
quando já dardi^ja o sol. •
Mas olha, eslás enganada,
nem Ioda a estreita ;* occuU»
mesnib depois da alvorada.
Se não— já que é dia agora —
vae, caminha, desce ao vai, ^
e inclina essa fronte lotTia
na corrente de cryslal.
E o crNstal (piô te revela ?
olha bem : no azul dag aguas
não vés sorrir uma eslrella ?
Cam>ii>o Fkjueiiif.do.
Typ. Franco-Porlngufza. — liua do Thesonro Vellio, 0.
8
o PANORAMA
57
VistH pittoivsra Mos jiaros ivaes .lo Cintrn _ (ít.senl.o . arii.,, ,|,. \,„u..ir., ,1a Silva - (Iravuia ,1. Alberto)
58
O PANORAMA
Postoque uuiilas hajam sido as investigações
sobre a origem d este nolavel e pilloresco palácio,
comludo, nenhuma d'eilas espalhou ainda uma
luz (jue penetrasse profundamente as trevas que
envolvem o nome do seu fundador. O que, ape-
nas, se pôde ver é que foram árabes os que lhe
pozeram os alicerces e levantaram as conslrucções
íundamenlaes. porque isso nos mostram o eslylo
e o jilano particular em que está moldado.
Alguns escriplores attribuem a sua fundação a
D. João 1, mas a esta opinião se oppoem as ulti-
mas palavras de um bom documento, o mais an-
tigo que para illucidação do assumpto se tem
achado, [que é uma doação que dos paços reaes
de Cintra faz aquelle monarcha, em 4 de dezem-
bro do anno da sua acclamação, 1365, a D. Hen-
rique ^lanoelde Vilhena, conde deCèa, como pro-
va de particular alfeição e premio dos muitos ser-
viços preslados por este nobre descendente do rei
de rastella,'S. Fernando; equc depois foi annul-
lada, não se sabe como, pelo próprio D. João I,
(jue, altenlando melhor nas bellezas, que fazem de
(Cintra um verdadeiro paraiso, se arrependeu
(Ia sua muniiicencia, na verdade, um p^ouco
precipitada e larga de mais.
(.) soberano que principiou a gosar das delicias de
Cintra, com freíjuencia, foi D. Allbnso III; D. Manoel
o rei que, em mais larga escala, começou a desenvol-
ver o palácio; e édo reinado d'este príncipe que data o
amalgama de estylose plantas diversas, segundo o
capricho, a moda e as commodidadesde cada monar-
cha, (|ue tanto caracterisa aquelles edilicios,
onde inteiiormente nada reina que corresponda á
luxuosa decoração exterior. N'uma época em que o
oiro chovia sobre Portugal, ceia, por assim dizer, a
aureola que esmaltava o fundo onde se via fulgu-
rar esplendida a gloria das nossas assombrosas e
inimitáveis conquistas, devia ser mui natural que
o gosto propendesse lodo para o luxo das rique-
zas maleriaes. Fazia-se gala de forrar os aposentos
de ostentosas tapeçarias, e ornamenta-los com al-
faias de custosos valores; e, apenas, para a arte,
propriamente dita, se guardavam os tectos, como
para íicar, creio eu, maisfóia do alcance da ^isla,
que mesmo assim não pude encarar sem resfriamen-
to, as linhas contr^hidas do desenho, e a pallidez ca-
davérica da j)intura.
A mais bel la das obras de D. Manoel é a sala
das armas, cujas janellas e portas, de brincados
relevos, dão exteriormente ao palácio a feição ai-
chiteclonica mais característica do f/ol/iíro-jlondo
ou manuflino, que (listingu(!m inimitavelmente as
conslrucções monumqitaesdo rei aforíiinado. ^'o
cenlro do teclo d'osta sala sobresaem aè arnfas
roaes, o, em ciiculos concêntricos, primeiro, as
armas de Ioda a familia real então existente, c
depois os escudos das famílias nobres que mais
dislinclamente gravaram coma espada oseunomc
nos fastos maravilhosos dos nossos tempos herói-
cos.
Enlre estes brazões vôem-se dois espaços onde
mal se descobrem vestígios de pintura. Ahi esta-
vam os escudos do ullimo diniue de Aveiro o dos
marquezes de Távora, justiçados em 1759, pelo
conhecido crime de attentado contra a vida dei).
José. A dignidade mandou apaga-los, deixando
d'elles, apenas, ^uma leve sombra como para si-
gnilicar a nódoa* cora que aquelles fidalgos man-
charam a honra dos grandes de Portugal.
Mandoti D. Manoel fazer as pinturas primitivas
d'estes brazõescom a idéa manifestamente politica de
premiar os serviços, ê estimular o nobiHí orgulho dos
que tanto tinham concorrido para tornar o nosso no-
me admirado e temido em todas as partes do inundo;
enão satisfeito com traduzi-la pelas cores, determi-
nou que as letras viessem ajudar os que não sa-
biam ler na plasjica do pensamento, fazendo traçar
em grandes caiá*cteres doirados, junto ao friso, os
seguintes quatro versos, correspondentes ás quatro
paredes da sala: — Pois com esforços leacs — Sc/'-
uiços foram (janhados — Com estes ^ outros taes —
Devem de ser consi-rvados. —
. lia nos paços de Cintra duas salas, cuja ex-
trema singeleza dá á memoria e consideração dos
factos que alli se passaram um tommais poqtico e
melancholico. Uma é a sala do conselho. lN'ella de-
cidiu terminantemente D. Sebastião partir para a
Africa*. Alli eccoou pela ultima vez a voz do en-
thusiasmo, que as areias africanas abafaram para
sempre. É uma sala |)equena, rodeada de simples
assentos revestidos de azulejos, e no centro dos
quaes um tem a forma de cadeira de braços, onde
o joven monarcha malfadado se asienlava. De
preciosidades apenas guarda uma chaminé de már-
more, obra, segundo boas aucloridades, do ad-
mirável cinzel de Miguel Angelo, que um papa
olléreceu a D. Sebastião.
A outra sala á aquella onde primeiramente es-
teve preso D. Anonso VI. Nada tem de notável
senão a memoria d'este facto, que os pésd'aquelle
infeliz rei assignaliiram, gastando o ladrilho do
pavimento desde o logar da cama até á janella
onde esperava o seu antigo valido Conti, que á
serra fronteira ia de vez em quando, dar-lhe
algumas esperanças de liberdade; estreito desa-
fogo que de lodo lhe fecharam, passando-o para
outro ([uarlo mais acanhado, e quasi sem respira-
ção.
Muitas outras circumslancias de nolavel impor-
tância histórica fazem do palácio de Cintra o maisi
curioso dos nossos paçoS reaes. ' 1
Alli se meditou reaíisar eraprezas qui ninguém
até então havia sequer sonhado. I)'alli partiu a
directriz que conduzio as nossas frotas ás conquis-
tas (ralém-mar. Alli existe a camafa ondí.nasceu
e se linou I). AlTonso V. Alli colheram, palmas,
o creador da nossa scena dramática, o espirituoso
(jil-Vicente, na representação dos seus autos; mar-
lyrios c saudades, (^mavioso Bernardim Ribeiro,
nos seus amores com a infanta D. liealriz.
Kis a liistoi ia resumida do monumento que a gra-
vura representa n"uma das mais piltorescas vis-
tas que, à distancia, se gosam nos frescos c llori-
dos recintos de Cinlra-
A razão é o conselheiro da alma.
o PANORAMA
59
DO MOYIMEMO
Bos«i(iejo pliilOMopliico
Por A. OSÓRIO DE VASCOiNCELLOS
1
Uma das coroas mais gloriosas, que cinge a
fronlc swcna e radiosa da sciencia, é sem duvida
essa synlhese admirável, profundamenle philoso-
pbica, pela qual, ao cabo de immcnsos trabalhos
e fadigas nem sempre incruenlas, a humanidade
galga mais um esladio no seu caminhar.
Se os heráldicos e antiquários m'o permitlem,
a sciencia é a arvore genealógica da humanidade,
é o padrão glorioso que attesla' a nobreza da gran-
de família humana, que trabalha, lida, tressua
continuamente, obedecendo a uma lei providen-
cial.
Qualquer que seja a hypolhese antropogenica,
que so adopta, ou o homem, conforme diz a bí-
blia, seja um anjo caído, um rei destronado, ou|
como* dizem outros, a transformação de um oran-
gotango, ou seja simplesmente e desde a crcação
do mundo, o que é agora, islo é, um. ser pensante,
postoque rude e bronco a principio, o que não se
pôde negar é que leve de construir desde os ali-
cerces o edilicio da sua civilisação, qual a de que
estamos fruindo.
O homem lançado na terra safara e povoada de
animaes ferozes, domou ou alTugentou estes, arro-
teou e cultivou aquclhv Trabalhou, e no trabalho
scienle lirmouo seu domínio. Grande pela inlclli-
gencia, collocado pelo destino defronte;do grande
esphingc da natureza, tratou de lhe devassar os
segredos, de lhe roubar as forças, para as apro-
veitar cm beneficio próprio. Cada conquista que
fazia, era mais um passo que andava, mais um
foro de fidalguia, mais um brazão nobliarchico.
A sciencia é pois o conjunclo de todos esses es-
forços, cm virtude dos quaes, o homem saldo de
berço humilde, sentou-se no throno da realeza.
Mas se faltasse á sciencia um nexo philosophi-
co, de que servira tanto eneelleirar, se as próprias
riquezas amea;;avam confundir-se c cair no cahos,
d'ondc as foi cxtrahindo o génio do homem?
Para que tanto esmeuçar de analyse, se a syn-*
Ihese não concluía nenhuma lei geral, nenhum
d'esses gr-d-ndes princípios, que são apoios para
novas conquistas e novos combates?
Este é o caracter distinctivo da sciencia moder-
na, como a íizeram os Descartes c Pascal e Leibnilz.
Sciencia sem phílosophía é uma luz ophemera e
repentina, 'c um fogo faluo, que pôde allumiar um
momento, rasgar as trevas, que circundam o ho-
mem, mas não é pharol brilhante, que alenta c
dirige o mareante no grande oceano do desconhe-
cido.
E este é lambera o pendor da sciencia moderna.
Hoje pouco se inventa. J)esde Copérnico atóGause,
desde Boyle até lierzelius, desde Torricelli até Eara-
day, surgiu uma tal plêiade de talentos vigorosos
e audazes, de génios investigadores e profundos,
que de tal modo alargaram e expandiram os ho-
risontes da sciencia, e devassaram tantos segredos,
que hoje é diíTicíl a observação, diflicilimos os
descobrimentos.
Nos tempos, que vão correndo, em que as ap-
plicações praticas abundam tanto, a sciencia lians-
formára-se em arte, se a philosophia não a alen-
tasse e guiasse.
D'aqui essa vastíssima synthese, que determina
as leis geraes, que residem na matéria. D'aqui
essa segunda analyse dos factos descobertos ,e dos
phenomenos já conhecidos, para cxtrahír os gran-
des princípios, que são di anima do mundo. D'aqui
essa tendência á simplicidade, á unidade, á pro-
tolypia, tendência porventura fatal, inconsciente
ale, c que pôde conduzir ao absurdo e ás vezes
á escuridão, quando galgamos as raias do conheci-
do e trilhamos o campo das hypotheses e conje-
cturas.
Entre as syntheses fnais formosas e admiráveis
da sciencia, nenhuma encontro, que mais me le-
nha prendido, do que a da força edo movimento.
lleduzir a força a um typo único, mostrar (jue
lodos os movimentos sãá) gerados por uma so causa
ou antes que ha sô um movimento, propriedade
essencial de matéria movimento que se transfoima
em todos os outros, que coisa mais para admirar
ecs|!antar!
Disse eu que esta é uma das syntheses da scien-
cia, e eslà-me parecendo que é a única, que é a
mesma sciencia.
Pois se nôs chegássemos a descoilinar, não já
a essência da /b/ra, senão o modo porque se trans-
forma nos immcnsos movimentos, que constituem
a vida na accepção mais lata e grandiosa; se alcan-
çássemos a i)rofundar essemyslerio incomprehensi-
vel da vida cósmica em lodos os seus recessos e arca-
nos mais íntimos, a sciencia houvera attingido quasi
a perfeição, e o homem fora um semi-deus. Sô
então é que o ignoto ppderíaser medido c as tre-
vas tenderiam a díssipar-se completamente: A gé-
nesis dos mundos do seio do cahos, as dillerentes
eclusões de vida em todas as ordens, todas essas
iniinilas e varias transformações poderiam ser de-
terminadas.
E seo homem, collocando-se pela intelligencia
na origem das cuisas, conhecesse todas as cir-
cunstancias da força, do tempo e espaço, veria
desfilar diante de si, como em correria phantas-
tíca, ò universo inteiro, e os mundos formando
um cortejo esplendido trazer-lhc-hiam as páreas
dos seus segredos.
Mas quem poderá conhecer essas circunstancias
de espaço, tempo e força? Qual a intelligencia,
por mais vigorosa, que não vergue perante o in-
finito da matéria?
Qual o homem que ascendendo do conhecido
para o desconhecido, não j)ára espavorido, absorto,
esmagado, e ajoelhe c adore, ou o crcador, que
deu vida ao cahos, ou a força ingcnita, que ba-
fejou a matéria?
Por mais que a sciencia caminhe, dando mes-
mo de mão ao .muito que falia para estudar, o ho-
mem não podft abarcar o universo, e ainda me-
nos a causa d'elle.
60
O PANORAMA
Acceitando porém, como inconlroversa a nossa
pequonoz, o não inlonlaiulo dolerminar a essência
da força, d"esse quid ineomprebcnsivel e intangí-
vel, a sciencia pode desde já apresentar gran-
dissinios resultados e formar uma synthese su-
blime.
Será esle se tanto j)oder o fito principal do traba-
lho, que ora entrego á apreciação dos leitores do
Panoiama.
(Continua)
A GALATEA MODERNA
Por A, OZORIO DE VASGGNCELLOS
u
D. Violante á bnrwiiezu do Alpedral
Minha querida: — Tudo d(^-me n'esle abençoado
e derrocado solar. São onze horas da noite. O si-
lencio é profundo e comj)leto. Nada interrompe a
mudez nocturna senão os ruidos soturnos emysle-
liosos da naturezJa. Que diirwença entre este viver
e o teu.
Tu, minha querida, lá vaes descrevendo a tuTi
orbita, como um astro radioso, nos salões illu-
minados, nas feslas esplendidas, cegando com o
leu brilho os bastos admiradores. Eu, pobre vio-
leta es(|uecida n'esles fraguedos, em vão abro as
pétalas aveludadas, que não encontro raio de sol
que me aqueça e acalente. Tudo dorme, só eu velo.
Ah! Alguém mais está acordado. Advinha. Não te
demores a pensar, que nada concluirás. Sabes quem
chegou hoje a esta velha casa, que ameaça desa-
bar com o primeiro temporal ? Sabes quem veio
procurar abrigo n'esleleclo alluido pelos séculos?
É o elegante Alfredo de Mello, nosso parente, no
qual me faltaste tanto, durante a tua -estada ein
Cintra no passado verão. .
Não te admires. Não rias. Agora está elle es-
crevendo no seu quarto, que apezar de niLU, é o
melhor da casa. Eslou-me lembrando dos transes,
que soílreu Uavenswood quando recebeu a bella
Lúcia na sua torre da Wolfcrag. O que dirá Al-
fredo da nossa pobreza, que mal posso dis-
farçar com uns restos de anti^^o explendor ! Tu
não sabes o triste estado a que chegámos. Não julgues
que te peço esmola. Louvado Deus podemos vi-
ver na província sem vergonha. Mas c necessário
acabar com o fausto, (|ue meu pai exige, sem se
lembrar (jue cada aiuio vae desfalcando o seu ren-
dimento.
Ahl mas como estou atreita a divagar. Perdoa...
Alfredo chegou já muito noilc, como bom pa-
ladino que se preza de ser.
Julgava elle provavelmente que vinha encontrar
j)roviuciana bonita, mashoçal. Enganou-se, fran-
camente l'o confesso e licou espantado do engano.
As luas lições, c a leitura de romances de algu-
ma coisa me serviram. Fallou muilo de poesia
bucólica, da placidez e iiinoceneia dos campos,
não sei se invocou as dryades e os zagaes de
(Ireuze. Decidiílameiíle o meu caril primo parece-
se estupendamente com o cavalleiro dC Florian,
auclor da Numa Porapilio. Fiquei-o conhecendo
por dentro e por fora.
Vèse approvas o retraio, que faço d'elle.
E bonito e cavalheiroso. Tem bom coração. Acre-
dita-se conquistador. Tinha-mc em pequena conta.
Ouer namorar-me, poripie lhe saí muilo diversa
do (jue julgara. Toma-me ^'omo o seu ideal, por-
(jue sou enigmática. Eu por mim quero fazer a
vontade de meu pai, que ha muito poz os olhos
em Alfredo para erguer a casa das ruiuas, e dar
novo lustre ao seu antigo brazão. Alfredo é rico,
possue quatro contos de renda em herdades alem-
tejanas. E já boa^ herança. Se me pergun-
tas o que diz o meu coração, nada te ()osso res-
ponder. Sinto-me inclinada para o meu primo, mas
não sei se esta inclinaftío nasce do meu profundo
horror pela» pobreza.
Oue triste futuro, me aguarda aqui «'esta aldeola
do Minho! Talvez algum casamento com um-d'es-
les morgados, cuja parvulez excede muilo a de
lodos os Osbalditones, quellguram no Uob-lloy de
Walter Scolt. Imagina a minha vida, se |)or acaso
Alfredo me não quizesse. Ligada eternamente a
algum:
Bojudo beirão morgado
A quum os cauliOes afrontam,
como diz Tolentino, seria misera caslellã de uma
casa arruinada, vestindo por uns figurinos fosseis,
e banhando-me lodos os outomnos nas ondas da
Foz, depois de visitar o Vo*-lo de braço dado com
meu marido, que se revô de vaidoso no chapelli-
nho desabado, com fitas vermelhai e pingentes
amarellos, (pie me comprou na modista mais acre-
ditada da rua de Santo António. Que horror! Ah! Se
eu puder algum dia |)isar os salões de Lisboa! Que
de frémitos, no walsar vertiginoso! Com que j)ra-
zer hei de requeimar-me nos lumes scintillantes!
Como te imitarei ó minha querida! Como heide
respirar com anciãs essa athmosiihera ignea!
Corramos o veu a tantas venturas. Perdoa-me es-
tas conlissões ingénuas. Sou uma creança. Apenas
conlo dezoito annos |7íssad(5s n'uma aldeia serta-
neja. Que loucura! Pois não ia eu dizer^ que amo
Alfredo, o eleito do meu coraçãol E quem sabe?
Vem a romper a aurora por entre as franzas
dos pinheiraes da serra.
Alfredo já apagou ha muilo a luz do seu quarto.
O que escreveria elle? l*eza-meestesilencio. Parece
^|ue a natureza também dorme antes da madrugada.
Logo lenho os olhos inchados da vigilia.
Que heide fazer !'^ Já é scv cof/ucllc, ffãoc assim?
Adcos. Se eu podesçe sonhar venturas! Pelo me-
nos o meu sonho hiT de ser dourado.
Tua do coração — Violante.
(Cunlinua.)
O VAYÃO E A CEGONHA
Pavão orgulhoso abrindo emproado
I)o leípie vistoso matiz variado,
A sua belleza se poz a miiar,
E á leve Cegonha, (jue ali vio chegar,
o PANOKAMA
61
c(Afasla-te (disse) villã e zoiípeira;
«Sem cores, sem garbo, famiiUa grosseira!.
«Desprega se podes o leque como eu!...
Prudente a cegoniia se rio do sandeu,
E rapidamente as azas abrindo,
Aos ares patentes qual seita subido,
Librando-se airosa de lá lhe bradou:
Remonta uma vez á altura em que estou,
O meu cavalheiro, que assim me despresa
Injuria seria de tanta belleza
Não poder ás vezes erguer-se do chão.
Nem mais do que um gallo, voar um Pavão,
Leitor se não gosas melhor galhardia,
Que nobre prosápia com vã ufania,
Não zombes d'aque|le que humilde nasceu,
Talvez em desconto natura lhe deu
F.ngenho, e virtude que o encham de gloria,
E só por teus vicios, tu lembres na historia.
Costa e Silva,
«iinii)iiii;iMUj;ilij;!M:i!iiiiiiilillil
62
O PANORAMA
OS CORVOS-MARLNHOS
Eslas aves aquáticas são grandes consumidoras
de peixes, especialmenle dos de agoa doce, cper-
seguem-os com extraordinária rapidez.
Logo que o corvo-marinlio avista o peixe na-
dando paciíicamenle no seio da agua, em um abrir
e fechar de olhos, mergulha, agarra a victima,
que em vão tentaria fiigir-lhe, tral-a á superíicie,
c, para engulil-a, coisa nolavell por um movimento
ágil, atira-a ao ar, de forma que venha a cair de
cabeça p^ira baixo, erecebe-a. então, sem resistên-
cia dajiarte das barbalanas, que se acamam so-
bre o coi-^o. Se algumas vezos acontece haver fal-
ta de destreza, nem por isso o peixe escapa á vo-
lacidade do seu lerrivel adversário; porque per-
segue-o de novo, torna a agarral-o e lança-o ao
ar, como da primeira .vez, ate que a queda pro-
duza o desejado ^eilo.
Eni muitos paizes tem-so aproveitado a habili-
dade dos corvos-marinhos, ensinando-os a pres-
tar ao pescador os mesmos serviços que o caçador
obtém do falcão adestrado. Esta pesca, ouír'ora
muito usada rra Inglaferra, ainda o é (vêdea gra-
vura) em alguns pontos da parte oriental áà Ásia.
O corvo-marinho domestico traz ao pescoço um
anncl muito justo; collocado na borda do barco, que
o seu o dono dirige, ao avistar o peixe, mergulha,
lanç^L-se s,obre elle e volta para o seu posto tra-
zendo a presa atravessada no bico, com uma íi-
delidade, da qual é, sem duvida, a mais segura
garantia o annel, que impede a entrada do peixe
no papo da ave.
A maior parte dos corvos-marinhos', tão bons
voadores como nadadores, procuram a sociedade
dos seus congéneres; fora da época da creação,
durante a qual estão conslanlemenle reunidos, en-
contram-«e quasi sempre em pequenos bandos. O
grande consumo do seu alimento lorna-se o fla-
gello das lagoas c dos rios e obriga-os a não se de-
terem muito tempo no mesmo logar. O peixe de
que ellcs pereten] mais golosos é a anguia; pelo
menos é o que mais se tem encontrado, no estô-
mago dos que se lêem examinado. A carne d'esta
ave, fétida e negra, é um alimento que repugna;
por isso não se faz uso d'ella senão i)or grande
necessidade. ,
O corvo-marinho pertence ao pequeno numero
dos palmij)e<l('s dotados da faculdade de se empo-
leirarem. Os seus ninhos, construídos de junco c
hervas, encontram-sc mais a miude nas arvores,
do que nas concavidades dos rochedos. A postura
ordinária é de lies a quatro ovos. Os corvos-ma-
rinhos da Clwna são de um pardt denegrido pela
parle su|)erior do corpo, esbraníjuiçados ficla in-
ferior, garganta branca, bico arnaréllo, irií azul,
pés denegridos e doze rectrizes.
A riqueza é uma rainha que dá a nobreza c a
formosura. A própria Vénus e a eloquência lhe fa-
zem corte.
PEREZ LORENZO
(Scenn.s da Cninpauhn do México)
Por PINHEIRO CH.\G.\S.
V
Entretanto formava-se silenciosamente ^conlra-
guerrilha á porta do quartel, e desfilava, sem fa-
zer o minimo ruido, pelas ruas dcMedellin.
A cavallaria fora dar uma volta maior afim de
tornear a casa de D. Ramon, para que não sentis-
sem lá o tropear dos cavallos. Viarmonl, que ia
no seu posto, passando ao longe, pôde ver o ter-
raço, onde estivera havia um instante bem alheio
a pensamentos bellicosos, e pelas janellas illumi-
nadas da sala vio perpassarem as sombras gracio-
sas dos pares que rodopiavam no trèfego volteiar
da valsa. Aquella setna de prazef, th amor, de
folguedo illuminada pelo fulgor vivíssimo dos can-
delabros, contrastava de um modo Ião notável com
o silencio da campina, o vento frio que obrigava
o capitão Viarmonl a conchegai-se nas dobras da
sua capa, o aspecto pouco gracioso dos seus ru-
des cavalleiros, e a desagradável perspeí^tiva de
um combate nocturno, que o oflicial francez não
pôde deixar de exclamar á% si para si, torcendo o fino
bigodinho, que lhe ensombrava» o lábio superior:
— Chicn de mélierl
A infanteria e a cavallaria reuniram-se fora da
cidade. Perez Lorenzo lá ia na frente, isolado e
envolvida no seu eterna manto, e respondendo
monosyllabicamerfle ás perguntas dos ofliciaes fran-
cezes.
O céo continuava a desdobrar o seu docel azul
sem mancha, onde palpitavam as eslrcllas. O vento,
esvoaçando por entre os palmares e os bananaes
da estrada, impregnava-se em cálidos perfumes,
que sacudia depois das azas sobre os soldados,
como que aconselhando-os a que não fossem per-
turbar com as suas pelejas a Iranquillidadc inalte-
rável d'essa risonha natureza.
Viarmoni scismava, e não era já o vuUo de Do-
lores o que lhe assomava na phantasia. O pensa-
mento voava-lhe para as terras da pátria, para a
quinta á bciramar junto de Bordéus, onde sua
velha mãe, com os olhos cravados no Oceano,
esperava anciosa ver surgir no horisonlc a vela
branca ou acolumna de fumo, que Iheannunciaria
a voUa do lilho querido. Via-se a si mesaio pas-
seando pelas suas terras, cujas ricas qjesses estavam
sendo ceifadas pelos segadores, c respirando com
alegria o perfume da terra natal, deliciando-se com
as bucólicas delicias d'essa campestresccna, fruindo
os gosos da i)az e da familia; e vendo-te agora
sósinho em terra estranha, devastando, |)or si-
nistro dever, o solo a que oulros se prendiam com
o mesmo afecto com que elle se aflerrava ao solo
da (juyeina, |»erturbando a tranquillidade que
outros gosavanii a(|ui como elle a gosava além,
não i)odia deixar, apesar da sua bravura, de pen-
sar nas tristezas da;íuerra, c no absurdo d'esse
dever que obriga um homem por ponto de honra,
a ser scelerado, c a obedecer ao capricho sangui-
nário de outro homem, que só d'ellc dilíere era
o PANORAMA
63
vestir a purpura monarchica em vez da farda mi-
litar.
Mas estas phylosophicas reflexões, que davam,
bem apuradas, a substancia de um discurso que
seria muito applaudido no congresso de paz, des-
vaneceram-se promplamente quando, depois de
duas horas de marcba, soou de súbito o clarim e
uma ordenança do coronel Dupin, correndo a ga-
lope sobre uma das vedelas dos guerrilhas, a
degolou sem que ella tivesse tempo de dar um
grilo que avissase os seus companheiro*.
Parecia comludo que um Mephistopheles mexi-
cano se estava divertindo a lo^\-ar os francezes
com tours depasse-passe. Ainda d'esla vez, segundo
parecia, tinham ea-apado os bandido^. Em seu lo-
gar estava um bando de mulheres Índias, em
trajes ligeiros mas, tendo cada uma d'ellas
uma esplendida crinoiine. Ufanas do seu ba-
lão, estavam as pobres mulheres immoveis nomeio
da casa, como temendo que, se dessem um passo,
transtornassem a magesladedo seu porte. Espan-
taram-se os francezes, e ainda mais do que elles
Perez Lorenzo, do extraordinário luxo* d'essas crea-
turas semi-selvagens, kixo que, limitando-se ao
balão, contrastava de um modo notável com os
farrapos que as vestiam. Com mais curiosidade
do que delicadeza picou Perez Lorenzo com a ponta
da sua espada uma das crinolines das senhoras.
Realisou-se, com pouca diíTerença, o soneto de
Nicolau Tolentino sobre os toucados altos. De um
d'estes saio um culxão; da crinoiine ádi índia bro-
tou um homem, e logo em seguida todos os ofltros
balões se achataram, dando cada um á luz um
bandido armado com punhal e pistolas e disposto
a vender cara a sua vida.
Mas os francezes já estavam preparados para
pstas surpresas; e desde a aventura dos enxer-
gões, tinham sempre o olho em saia ou colxão,
que apresentasse dimensões suspeitas. Os guerri-
lhas, que, sem terem, lido Homero, saltavam a
flux dos novos- cavalloí de Tróia, encontraram
para os apararem as bayonetas.dos francezes.
Foi breve a resistência porque se vio que era es-
cusada a lucta.
Perez Lorenzo, logo no principio do inculente,
soltara um grilo de jubilo, vendo apparecer um
hom*m de estatura elevada e de vigorosos músculos,
que parecia ser o chefe da guerrilha. Lançou-sea
elle com os dentes fincados; acceitou o bandido a
duello, e, enlaçando-se nos braços vigorosos, tra-
varam-se arca por ar«a, embebendo um no outro
os olhos em que fusilava um rancor insano.
Quizeram os conlra-guerrilhas, já vencedores
dos seus adversários, intervir na lucta e apode-
r^r-se de Juan Pahlo, que esse era o que luctava
com Perez Lorenzo. Este porém fez um gesto para
*pedirqueo deixassem desajudado .ia lucta. Arreda-
ram-se todos, como os combatentes da idade media,
quando n'alguma batalha se encontravam face
a face dois paladinos cujo duello se tornava es-
pectáculo brilhante para os membros d'essa gera-
ção cavalheirosa.
Os dois mexicanos, queluclavam corpo a corpo
no combate singular, eram espécimens diff'e-
rentes de robustez, mas inculcavam ambos vigor
acima do vulgar. A força de Perez Lorenzo era
toda nervosa, a de Juan Pablo provinha essencial-
mente de uma reforçada musculatura. A robustez
de Perez Lorenzo não lhe prejudicava a elegância
do talho, e a delicadeza das formas; Juan Pablo,
pelo contrario, linha formas verdadeiramente tau-
rinas.
Esteve por largo tempo indeciso o combate; os
conlra-guerrilhas, selvagens mal disfarçados com
uma leve tintura de civilisação, que a primeira
circunstancia, que lhe pozesse em fogo as paixões,
levava immediatamenle, davam grilos de enlhusias-
mo, como se assistissem a uma corrida de touros.
E a comparação não é das menos acertadas, por-
que eflelivamente Juan Pablo investia com a bru-
talidade cega do boi; Perez Lorenzo esquivava-se-
Ihe aos ímpetos com a destreza do capinha, não
deixando por isso de lh'os subjugar com o vigor
do homem de forcado quando se lhe deparava en-
sejo. Furioso de ver constantemente escapar-lheo
adversário, Juan Pablo, que primeiro combatera
desarmado, deu um pulo á retaguarda, e sacou
de uma navalha.
Ao verem esla infracção á lei do duello, os con-
lra-guerrilhas soltaram um grilo de desapprova-
ção, e correram para castigarem o audacioso. Mas
de novo Perez Lorenzo fez um gesto e bradou com
voz colérica:
—Ninguém se mova.
E, correndo para Juan Pablo a fim de lhe não dar
tempo dejogar-lhe afaça, com um movimento rá-
pido agarrou-lhe os pulsos, eapertou-lh'os comum
vigor incrivel. Grande foi -a surpreza dos especta-
dores d'esla scena, quando viram as mãos de-
licadas de Perez Lorenzo prenderem como n'uma
lorquez os braços vigorosos do seu adversário. E
mais espantados ficaram quando o gigante soltou
um bramido de dor, descorou, e, deixando cairá
navalha dos dedos inteiriçados, vergou e caiu de
joelhos proferindo uma blasphemia.
Um applauso enlhusiasla acolheu esla façanha
do myslerioso mexicano.
Mas este nada ouvia. Brilhava-lhe nos olhos uma
alegria feroz; pondo um joelho em cima do peito
do chefe de guerrilhas, pediu uma corda, que os
soldados logo lhe aliraram. Depois arraslou-o para
fóia da choupana, bradando:
— Emfim.
A lua esplendia no céo azul c banhava as flo-
restas com as ondas da sua luz prateada. Vm vago
c delicioso murmúrio se exhalava dos ramos agi-
tados pela cioce brisa das noites. A natureza jazia
immersa em profunda paz.
Perez Lorenzo, arrastando a sua preza, sumiu-
se nos recessos da floresta.
— Vamos, disse o coronel Dupin, por hoje eslá
acabado. Meus senhores, continuou voltando-se
para os seus oíficiaes, se teem alguma polka ou
alguma valsa proraetlida em casa de D. Ramon,
parece-me que ainda podem ir exigir o cumpri-
mento da promessa.
64
O PANORAMA
— Confesso-lhe, coronel, acudiu Viarmont, que
n'este momento não desgostava, em vez de dan-
çar, de me divertir um pouco vendo bailar este
verdugo maldito, que temos trazido agarrado anos,
no ramo de uma arvore. Nunca biclio venenoso
me causou maior repugnância do que este selva-
gem com apparencias de cavalheiro, que passa a
sua vida a encher de fruclos humanos as arvores
d'estes bosques.
— Capitão Viarmont, respondeu o coronel com
seriedade, este homem é menos criminoso do que
pensa; tem paixões selvagens c verdade, mas foi
um motivo bem justo, que lh'as soltou. Nunca es-
teve na Córsega, capitão"?
— Dois dias apenas; arribámos lá na passagem
de Toulon para Alger.
— Pois eu estive dois annos de guarnição em
Ajaccio; conheço as montanhas da ilha e os mon-
tanhezes. Jiiro-íhe que os Perez Lorenzos não são
raros por lá.
^'esle momento um gi-ilo horrível atravessou
os ares, e veio expirar no ouvido das tropas fran-
cews.
Todos se entre-olharam com espanto; mas os pri-
sioneiros pareceram perceber mais rapidamente o
que occasionára esse grito, porque murmura-
ram um: ((Caramba)), que revelava a ira impo-
tente que oi salteiára.
A tropa poz-se em marcha. Ao chegarem á orla
extrema do palmar viram um vulto negro, que se
baloiçava nos aios.
Era o cadáver de Juan Pablo.
(Continua)
Um bom cidadão nunca se vinga d'uma injuria
particular; mas arrisca, boamente, a vida pelo bem
publico.
BEATRIZ
a— Se te hei de amar sempre, e sempre?.,.
Pois lu não sal)es, querida,
Que o meu ser, a minha vida
Provem de li?
Não vis como cu sou rliloso
Quando le aljraro e te ijcijo?
Que ludo quanlo desejo
Termina aqui? —
Se le hei de amar!...— que me impoita
Senão leu meigo sorriso ?
Não m» déslc o |)araiso,
No leu amor? •
Como é possi\cl que um dia ^
Te esí|ueça, rosa innoconlo,
E le esfollie na orrenle,
Candid aílòr !
Oh, tu és a minha estro h,
O meu anjo, a providencia
Que em minha negra exislencia
Tem s(/ poder.
Quero seguir-le, eníevar-me
No leu gesto peregrino :
Não ha mais hcilo destino,
Nem pode haver 1 —
E lu vaciltas, lu pensas
Que deve alguém condemnar-le,
Porque vim cego adorar-te,
Porque te amei.
Porque me deste os lliesouros
Do leu seio palpitante,
Porque anceio a cada instante
Quanlo gosei?,..
Quem CS lu?... que lem o mundo
Que tu me íibrapes agora?
Quem ouve o mundo? quem chora?
Que mal te íiz?..,
Quem pensa que existe um crime
IVesla alcj;ria encantada
Em que a nossa alma arrobada
\&d fíliz?...
Sim lu és minha ; o teu peito
Inda convulso lateja,
Fervido raio lampeja
No leu olhar;
Sim tu és minha, que cu sinto
Que nic apertas contra o seio;...
Não penses, não, que este enteio
Possa lindar !...
Sim tu és minlia, e na vida
Outro sol nSo me illumina,
Quanto me alegra e fascina
, Provém de ti.
lia luz do ceu na minha alma
Quando agitado le beijo :
O que eu sonho, o que eu desejo
Termina aqui.
Amar-le é viver, e eu quero
Levar cantando esta vida ;
Só nos teus braços, querida,
^ Quero expirar ;
Oh, mas sentindo que o peito
Inda te anceia e lateja,
E que um rayo inda lampeja
Nd leu olhar!—» ♦
Continua) •
E. A. Vidal.
ANGÉLICA -»
Se Deus me perguntassQ, o que eu mais qVia,
ique julgas lu que a Deus cu pediria?
l, talvez sabedoria,
como a pedio oulr'ora Salomão ?
ou de Créso os innumeros thesouros
que assombraram presentes e vindouros?
Oh ! não, mil vezes não !
eu calcaria as pompas da o|)ulencia,
eu fecharia os olhos á scicncia, f
e só pediria então
— como palma devida ao meu marlyrio —
respirar teus perfumes, branco lirio,
unir-le ao coração.
Cândido Figufuiedo.
Feliz o pai, de cujo filho se poda dizer: É a
imagem da- humanidade e da probidade de seu pjy.
A prosperidade atlrae amigos falsos e a adver-
sidade afugcnla-os.
A virtude deve ser sempre recompensada, seja
qual for o estado ou habito sob os quaes ella se
encontre.
Typ, Franco-Portugucza i^ Kua do Thesouro VeUio, C.
I
66
O PANORAMA
ENÉAS SALVANDO ANGHISES
(Quadro ilc Doniiiiiqniiio
A eslanipa, a que se referem as linhas que va-
mos liaçar. é copia de um dos mais bellos quadros
do celebre pinlor Domiuico Zampieri, conhecido
no mundo aitistico polo nome de Dominiquino.
Esle pinlor, discípulo dosCairaches, lloiesceu nos
jiiincipios do século XVII. Nasceu em Bolonha em
15SI, morreu em Nápoles cm IGil.
Allribue-se a morle de Dominiquino (e com seus
visos de probabilidade) a veneno ministrado pelos
seus colle^as. Não deixa de ser curiosa a tradição
que se refere a este acontecimento, por isso a con-
taremos rapidamente.
Assplára uma peste assustadora a cidade de Ná-
poles, e os Napolitanos, que já se viam assober-
l)ados com o Vesúvio e com os hespanhoes que os
dominavam, tendo ainda, para cumulo de desven-
turas, a visita da peste, andavam iramersos em
profunda tristeza, quando se lembraram de meller
empenhos com Deos Nosso Senhor, para que elle
por sua inlinila misericordfó, os livrasse do íla-
irello. Fez-se portanto o voto a S. Januário de se
Ihtí construir a capella mais magnifica da llalia,
depois da capella Sixtina, so a peste se fosse em-
bora. Acceilou S. Januário o contracto; a peste foi
espairecer magoas i)ara outro sitio, e os Napolita-
nos trataram de eomprir a sua promessa.
Ora tinham elles juiado que o dinheiro neces-
sário para a construcção sairia só de bolsas na-
cionaes. Regeilaram até a ofierta de uma quantia
considerável, que a mulher do seu vice-rei lhes en-
viara, visto ser estrangeira a devota, accresccndo
ainda o ser hespanhola, nome que principiava a
soar mal aos ouvidos dos comj)alriotas de Masa-
niello.
Mas o que elles não juraram foi que a mencionada
capella fosse piíjláda só por artistas napolitanos.
Não o juraram os votantes, mas juraram-n'o os
artistas, e declararam urbicl o//»/(juetodo c qual-
quer artista de fora de Nápoles, que acceilasse o
convite que aos pintores da Itália dirigia a com-
missão, podia contar que recebei'ia em |)aga uma
boa estocada do llespanholeto, ou (b; Laufranco,
que manejavam o ílorete pelomenos tão bem como
o pincel.
A ameaça era séria. Ouem vè hoje passar pelo
meio da rua o sr, Annunciação. ou o sr. Lu|)icom
todas as a|H)arenciasde cidadãos pacilicos, amigos
de ordem, eleitores da sua fríguesia, e respeita-
dores das leis policiaes não pode imaginar o qu(í
eram os arlistas do século XVI e do sfculo XVII.
Era tudo gente de (-hapeo á banda, capa traçada
o mão na illiarí,'a, espadim a pular na bainha,
nariz a procurar avcntui-as. lira gente da laia de
Salvator Rosa, que foi amigo d(! Masaniello, eque
fez [)aile de um corpo de voluntários da morla,
composto (juasi todo de artistas, íjue usavam car-
tucheiras em vez de palheta, arcabuz em vez de
pincel, e que desenhavam á ba'a nas cabeças dos
hespanhoes, que tinham a desgraça de lhes ser\ir
de tela. Já vêem pois que a ameaça dos pintores
napolitanos devia inspirar sérias reflexões aos ou-
tros artistas da península italiana.
Não se importaram com a ameaça alguns dos
pintores, entre outros duido que appareccu ura
bello dia em Nápoles acompanhado por dois dos
seus discipulae. Mas os ares logo se mostraram
turvos, e Guido não teve remédio senão dar às de
Yilla Diogo, Succedeu-lhe o cavalheiro de Arpino,
que era espadachim, mas que se vio obrigado
também a retirar, porque não era possível estar
em cima dos andaimes, de pincel n'unia das mãos
e espada na outra. Veio apoz elle o nosso Domi-
niquino.
Esse era um velho. Os pintores napolitanos te-
meram o odioso que cairia sobre elles se o assas-
sinassem ou á traição ou em combate, eniflm se
lizessem correr sangue. Optaram, segundo se diz,
pelo veneno, e os precedentes, que mencionámos,
authorisam-nos a supporque esta opinião não será
desliluida de fundamento.
Assim mori'eu da idade de sessenta annos esle
notável pintor, que não tem quasi rival na expres-
são das physionomias, ainda que o colorido esteja
longe de ser primoroso. Na gravura, que orna este
numero do Panorama, podem os leitores ver a
justiça do elogio que lhe fazemos.
O assumpto do quadro é conhecidissimo. É o
episodio da Eneida, em que o pio heroe foge de Tróia
levando ás costas seu pai Anchises, ao lado
seu filho Ascanio, atraz sua mulher Creusa. Estão
estes maganões lodos a sair de casa na occasião
que o pinlor escolheu. Creusa entrega ao sogro
uns bonequilos que parecem obra de capellista,
mas que são nada menos do que os deuses pe-
nates, o pequeno insiste para que se ponham a an-
dar, e Enéas, com o pai ás costas, volta os olhos
saudosos para a sua habitação.
Devo confessar-lhes, aqui muito á puridade, que
nunca me commoveu muito este episodio da Enei-
da. A idéa do velhote escarranchado nos hombros
do filho de capacete sempre me transtornou o pa-
Ihelico do lance, e não posso reler os versos do
Manluano, sem me lembrar do Virgile íravesliÚQ
Scarron, em que o malicioso poeta nos pinta o
l)ai Anchises aos pontapés ás cosias de Enéas, cha-
mandolheumas vezes «meu querido filho,» outras
vezes cão e patife, para o fazer andar mais de-
pressa, c Creusa quê se perdeu no caminho \)ov-
(|ue ficou a atar a liga da meia, e Ascanio que
berra por pão com manteiga, e Enéas, (jne vindo
bater á poita de casa para dizer (|ue está o fogo
na cidade, fica immenso tempo na rua, porque, se-
gundo elle depois conta
Un me cri:i par la funcire
Que Von n'ouvrdit jamais la nuit
E(, qiic jc falsais Irop tlc hiuit.
Em todo o caso Dominiíjuino não podia adivi-
nhar (|ue, depois da sua morte, um francez travesso
se havia de divertir á custa do seu assumpto, e
foi pintando um (|ua{lro admirável, de (|ue dá uma
boa idéa a gravura (jue apresentamos.
o PANORAMA
67
DO MOVIMENTO
Por A. OSÓRIO DE YASCONCELLOS
II
Ouando a Iradicção piedosa poz na boca de
Gafileu Galilei o celebre /• pur si muovc, como
resposta audaz da sciencia ás torvas perseguições
do fanatismo, mal diriam os homens de então,
que os discípulos do grande sábio italiano pode-
riam dizer passados três séculos: ludo se move na
natureza. Esta conclusão concisa, verdadeira, lu-
minosa, é um corollario do pensamento profunda-
mente phylosophico, que sempre dirigiu os tra-
balhos do sábio de Pisa.
Tudo se move na natureza,. dizemos nós, os ho-
mens de hoje, sem nos lembrarmos que este apho-
rismo tão simples e tão singelo, custou séculos de
observação e vigílias, noites e noites mal dormi-
das, dias de Ímprobo labor, combales mal-feridos
. contra os preconceitos herdados, e hecatombes de
"^ victimas, que se finaram em prol da sciencia, in-
terrogando a terra, cruzando-a em lodos os sen-
tidos, já nas regiões hyperboricas, já nos climas
adustos.
Tudo se move, porque não ha vida sem movimen-
to. Movem-se os mundos na amplidão, sulcando
as ondas ethereas immensas, sem limites ; movem-
se as estrellas, nos conlins da creação, tão dila-
tadas, Ião longínquas, que a nossa imaginação es-
tupefacta ao contemplar tanta grandeza, só pôde
explical-a, acceitando o infinito real.
Movem-se os cometas, essas borboletas do ceu,
essas nuvens vaporosas, que volilam com rapidez
aterradora e gastam milhares de annos a descre-
ver as suas orbitas;
A par do infinitamente grande, move-se o in-
finitamente pequeno.
O alomo, assim como o astro, gira perpetua-
mente.
Porque a vida é uma serie de movimentos que
se combinam, cruzam-se e completam-se. A vida
éafiuxão de Newton, è uma corrente continua em
que as monadas se balançam e revoluteam.
A acção que uma recebe, envia-a intacta e in-
tegra á que se lhe segue, e o átomo do phosphoro
que se fixa no cérebro do homem, resulla de uma
acção, de que o universo è participante.
Os movimentos, invisíveis ou atómicos nunca se
equilibram na grande faina do mundo.
Dois movimentos, que se combinam, produzem
sempre um terceiro movimento harmónico com
os primeiros, e como elles necessários ao íimcom-
mum.
O que Descartes dizia dos corpos é applicavel
immediatamentc aos alomos. «.Para mim tenho,
exclamava o grande phylosopho, queha uma certa
quantidade de movimento em toda a matéria
creada, que nunca augmenta nem diminue, e as-
sim é que, quando um corpo obriga outro a mo-
\'er-se, perde tanto movimento quanto éo queda
como acontece com uma pedra que se depois de cair
sobre a terra, não volta para o ar, antes fica pa-
rada, parece-me que isto provem de que a pró-
pria terra é abalada, e lhe transfere assim todo o
seu movimento.»
E?las palavras de Descartes, exprimem o que
se passa era todo o universo.
Os movimentos, assim visíveis como invisíveis
combinam-se mutuamente, mas não se perdem.
Da mesma sorte que a pedra abala a terra, o
raio luminoso ou calorífico não pôde perder-se e
acabar o seu eíleílo, para não mais se renovar.
Cada acção tem o seu cyclo fatal e necessário, c
o limite derradeiro e grandioso é a vida, que se
perpctija no universo.
Por isso, se a vida está em Ioda a parte, e se
não ha vida sem matéria, o vácuo é impossível
e repugna como absurdo.
Assim acreditáramos anligos em a sua admirá-
vel presciência, assim julgamos nós e provamos
pela explicação e permanência de certos pheno-
menos.
O vácuo não existe. Aonde não ha matéria pal-
pável, tangível ha um fluido tenuíssimo, vibratil,
que escapa a todas observações, imagem viva dos
gnomos subtis, verdadeiro sylpho da creação, por-
que penetra os mais íntimos recessos dos corpos,
enche os espaços inleralomicos e interplanelarios.
Esse fluido ou o que quer seja, cuja existência foi
adivinhada, é o ether, que alguns phylosophos jul-
gam imponderável, não se lembrando que o vá-
cuo é absurdo, eonde não ha pezo não ha matéria.
Porque o ether escapa á observação directa, não
se conclue que não tenha pezo. Desde quando a
experiência pôde substituir o raciocínio em ques-
tões de phylosophia ? Dado que o vácuo não pôde
existir, o ether, que o enche, é matéria, e por-
tanto peza.
O ether é pois o vehiculo, o meio ]3elo qual
os movimentos se transportam e combinam, da
mesma sorte que o ar transporta os sons. As ondu-
lações do elher são as vibrações do ar(l)
O que é a forra"! Se temos movimentos, e se
estes são a vida, segue-se que aquella, a forca,
é a própria vida''
Eis-nos chegados ao mysterio da natureza. A
força c a incógnita, que ninguém pôde determi-
nar. A força é tudo e é nada. Considerada como
causa primaria do movimento, a força é a alma
do universo, é a ligação providencial dos elemen-
tos, é o agente das transformações e metamor-
phoses, é o fautor d'esse camalião sublime, que
se denomina vida. Tomada como entidade abstracta
ou como idéa absoluta a força é a desconhecido,
é o ponto de interrogação perante o qual todos
estacam.
Mas a sciencia moderna, honra lhe seja, dei-
xou ha muito essas definiçõ^s e distíncções subtis,
que foram em tempos Irislissimo apanágio da phy-
losophia natural.
Quando se ignora, o melhor meio de se forrar
(1) A própria camará barométrica, o espaço comprehendido entre
a superficie dacolumna do mercúrio o a extremidade fechada do
tubo, transporta a gravidade, o magnetismo etc. e não transporta
o som. . . .
tí' jiorque existe ali ether a pezar do vácuo ser o mais perfeito
de todos que é possível obter.
68
O PANORAMA
ás difliculdades, é confessar a ignorância, c cami-
nhar ávanlc.
Assim lez a scicncia não curando das causas
primarias, que vinham a cada passo tolher o pro-
gresso e enlibiar os arliíices.
Acceilo, como principio inconlroverso que a
matéria se move, ou antes, que o movimento c
uma propriedade inherente e essencial á maté-
ria, não era necessário recorrera cada instante a
uma causa exterior c desconhecida, a uma força,
que explicasse e determinasse os phenomenos.
E lanlo isloé assim, que os maiores geómetras,
que lloresceram depois de Newton, Laplace, l.a-
grange, Plana, Poinsot.elc. até confundem de caso
pensado o movimento com a força, e combinara
uma com oulra coisa, o que seria absurdo, se com
elTeilo csía fosse a causa d'aqueile.
Cabia principalmente á sciencia mostrar, não
só que a matéria eslava em perpetuo movimento,
senão que, e isto era o principal, um movimento
quabpier, fracção da energia natural, podia gerar
outro ou outros movimentos e com ellesconbinar-
se por todos os modos.
Assim foi que Rumford, Mayer, Grove, Joule,
e outros demonstraram evidentemente que o mo-
vimento, das massas pôde converter-se em movi-
mentos de átomos, isto é que o movimento de um
corpo se tiansforma em calor, e este, jiarecendo
aniquilado, surge outra vez, como Phenix, sob a for-
ma de movimento. A acção do sculptor, que ani-
ma o mármore, é uma parcella da energia da na-
tureza, é uma fracção de calor solar, que se trans-
formou em movimento.
Pertencia e pertence ainda á sciencia posto que
este problema esteja ainda no dominio das con-
jecturas, o mostrar que, se a matéria pôde ser
una e simples, a força, ou o movimento é tam-
bém simples e uno, ou o que é o mesmo, que
a quantidade de movimento inicial não augmenla
nem diminue, não tem natureza diversa, apenas
se Iransfoinia e metamorphosca continuamente,
incessantemente.
Assim com o sol é umas vezes centro de foiça
impulsora e mantém os planetas, salelliles e co-
metas nas suas orbitas, e outras vezes emana
calor, luz, electricidade, magnetismo, c aílinidade
chimica, assim lambem nos seios da natureza ha
uma faculdade, em virtude da qual todas estas
manifestações da energia, apparenlemenie tão di-
versas, j)ódem ser oriundas do mesmo centro,
e transfoimaren^-se mutuamente, segundo as cir-
cunstancias.
Ouer isto dizer quea sciencia procura a unidade
dos movimentos e anuidade das matérias elemen-
tares pela sua correlação intima.
Km conclusão vc-se que a (hnamica (2) deter-
minou pela anal \ se e observação :
1." Ouc ao axioma de Lavoisier de í|ue a ma-
téria não se cria nem se perde, corresponde o axio-
ma de (|ueo movimento não se cria ikmii se |)erde.
2." Oue sendo a maleriauna, a força éuuaíam-
bem.
(2) Sciencia das ijrc::i.
Assentes estes principies, que vão aqui exara-
dos com a possível clareza e brevidade; conside-
rando o movimento assim nos corpos como nos
corpúsculos digamos alguma coisa á cerca d'elles
e da vida do cosmos, antes de faltar da vida phy-
siologica, como nós acomjjrehendemos mais facil-
mente.
A GRAVURA EM MADEIRA EM PORTUGAL
Por NOGUEIRA DA SILVA.
11
Em seguida ao Panorama veio a llluslrarão.
O pensamento inicial d'esla nova publicação il-
lustrada era, creio eu, radicar a arte nacional e
alargar-lhe a esphera até ás vastas proporções dos
jornaes estrangeiros do mesmo titulo.
Para realisar este milagre deram-se as mãos,
lapjs, penna, c buril, suppondo cada um que em
qualquer dos outros existia o santo. Mas, infeliz-
mente, em todos faltava a graça. O estudo e o cxer-
cicio permanentes, sem os quaes não é dado ás ^
bellas-artes convencer os incrédulos e abrir o rei-
no da gloria, tinham morrido á nascença. Não po-
dia, por conseguinte, a cadea deixar de |)arlir,
([uerendo faze-ia chegar forçadamente aos exti-e-
mos de um caminho paia que não tinha a sulli-
ei(^nte extensão. Não era possível que a vontade llo-
risse faltando-lhe a seiva da acção.
Os artistas que deviam realisar tão pretencioso
ensaio eram ainda os mesmos do Panorama. A
arte de gravura em madeira não havia, portanto,
crescido, nem em aperfeiçoamento nem em culto-
res; teria, pelo contrario, emmagrecido, porque dor-
mia; e o somno é para as artes que dependem, como
as da gravura, de uma execução aturada, o mes-
mo que o reumatismo é para a gente. Enlorpe-
ce-as, impossibilitando-as, conseguinlemente, de
poderem entrar, de prompto, em vida activa.
('omo, pois, allingir o lini com a doente tão de-
bilitada por este duplo mal? Não parecia quasi
certo o sinistro, empregando medecina tão forte e
elevada?
l^or outro lado, mais uma circumstancia, não
menos desíavoíavel, e dupla lambem, se apresen-
tava a conspirar. Era o numero maior e grande-
'sa superior das estampas que reíjueria uma publi-
cação de vastas dimensões com o titulo exigente
ÚG Illuslração, em nenhum paiz autharisada pela
|)obreza numérica e artística de desenhos e gra-
vuras. Mas este obstáculo, para mim, o inimigo
gigantesco da empreza, foi o que ninguém vio, nem
editores, nem redacção, nem artistas.
A uns vendava-lhes*os olhos o desconhecimento
involuntário de uma serie de cousas d'arte, que
as próprias iiitelligencias não sentem, e mesmo não
coiiii)rehen(lem, em as nações onde falia a educa-
ção e o habito de ver e aj)ieciar as obras mara-
vilhosas das bellas-artes. A outros cegava-os o
amor próprio, dizendo-lhes que ludo poderiam fazer.
Ninguém se lembrou (jue uma J/hi.sIrarão era já
íim, e não meio; (|ue era o resultado do desenvol-
vimento (jutisi complelo do desenho e da gravura
em madeira, e não estudo; que era academia de
o PANORAMA
6^
mestres, e não escola de discípulos; que era. pro-
fissão, e não tyrocinio. Todos disseram «sim», e
principiaram logo a fazer o trabalho que melhor
mostrava que deveriam ter dito ((não»; porque um
desenhador e um giavador não podiam dar em
uma semana a obra que, por ser mais multiplicada
e exigir successivo aperfeiçoamento, carecia, para
Ião limitado numero de artistas, de dois mezes pe-
lo menos.
Certo foi, portanto, afíogarem-se os estimules
do capricho n'este lago de diíViculdades, e cada
um tratava de salvar-se como podia. Desenhou-se
e gravou-se aos trambulhões. Bordalo remettia os
desenhos apenas alinhavados j)ara a mão de Coe-
lho, e este, mau grado sou, de tal modo se via
obrigado a aguilhoa-los comos sous buris, para os
dar esgara valados a tempo, quede todo os descosia.
IKus/rnrão com tal arte não podia agradar.
Os assignantes i-ecebiam-a mal, e, assegurando
a robustez de seus peitos, principiavam a decla-
rar que não careciam de emolaslos, remeltcndo,
em troca, pelo distribuidor, algumas pilulas para os
editores. Estes, achando-as amargas de mais, sen-
tiram a necessidade de acabar com o jornal ou de
o reformar. Pensou-se em crear discipulos; mas
estes não se decretavam em bellas-artes. Além disso
o presente corria instável, e o futuro não sorria. Para
mais ajuda o publico" não estava, como ainda ho-
je não está uma grande parte d'elle, intelligenle-
mente preparado para jornaes illustrados. Conspi-
rava tudo. Em o ecu irrevogável programma, li-
nha o destino decidido que 'Bordalo Pinheiro, e
Baptista Coelho, fossem os primeiros martyres dos
grandes esforços, em que ninguém lhes podia já of-
fuscar a realeza de heroes. O impulso que havia
de fazer sair de tão acanhada orbita a arte de gra-
vura cm madeira estava longe, e o jornal, que
não podia esperar, morreu de paralysia artística,
deixando, apenas, como o Panorama, para não
mentir ao seu estatuto litterario, um nome illus-
tre nos annaes das nossas publicações amenas.
(■("i.nlinm 1
ALCATUÀO
Dá-se o nome de Alcatrão a certos productos
empyreumaticos, que procedem da distillação de
matérias vegetaes ou do carvão de pedra. *
_ O Alcatrão ordinário, chamado muitas vezes
Alcatrão vegetal para se distinguir do Alcatrão
(te carvão de pedra ou coallar dos Inglezes, é uma
substancia resinosa, espessa, molle, negra, amar-
ga e de um cheiro forte e empyreumalico, que
se oblem do pinho em ignição; é um mixio de
resinaspyrogéneascombinadas com o acido acético,
carvão e óleo essencial empyreumalico; emprega-
se na indusliia para preservar as madeiras da de-
70
O PANORAMA
composição e usa-se d'elle lambem na medecina
e na veterinária, contra as doenças de pelle, ca-
thaiTOS chronicos, lisica pulmonar, ele. No estado
solitlo, consequência da evaporação de uma gran-
de parte dos priucipios liquides, chama-se /V:.
O alcatrão da Rússia e da Noruega é o mais esti-
mado; depois o dos Estados-Unidos, Bordéus, Slras-
burgo, Provença, ele.
Ò processo para extrair o alcatrão vegetal, é
muito simples. (Vede a gravura). Escolhe-se um
silio favorável no declive de uma montanha, junc-
to ao bosque, do qual se hade cortar a madeira,
e próximo de um lago ou riacho. Bate-se bem um
taboleiro de terreno para cada forno, sustentan-
do a terra na frente com fortes paliçadas de ma-
deira. Os fornos são covas abertas no chão, de
forma cónica, tendo as paredes forradas de argila
bem batida. No fundo pratica-se uma caldeira na
qual ha um cano ou bica, que sae fora da paliça-
da. A madeira depois de secca, reduz-se a cava-
cos, mette-se em uma espécie de dorna, que se
adapta justamente ao forno, e que descendo a este
é coberta de terra argilosa, mui balida, para evi-
tar a fuga das partes voláteis, licando apenas
um pequeno orifício para a saida do fumo. Reli-
ra-se em seguida o madeiro em forma de cruz que
eslà no centro da dorna, e no buraco que elle
deixa introduz-se o fogo. A madeira vai-se len-
tamente queimando, sem fazer chamma, e a resina
caindo na caldeira, donde passa então, pela bica,
para os barris, que depois de cheios são batoca-
dos convenientemente. A nossa estampa explica
bem todo o processo e mostra lodos os instrumen-
tos precisos para este fabrico.
O Alcatrão mineral, ou Alcatrão de carvão de
pedra é um dos resíduos do fabrico do gaz de iilu-
minação. A sua composição é excessivamente va-
riável*. Calvert achou-o composto, ora quasi ex-
clusivamente de Aapittalina, ora de Paraffma,
outras vezes de Benzina, Acido phenico e de di-
versos cartmretos de iiydrogenio. Submellido á dis-
tillaçãomoderada,oalcalrãodecarvãodepedra, pro-
duz,sucessivamente, agua, ammoniato, carburelos
leves de hydj-ogenio, e depois carburelos mais pe-
sados. Os primeiros servem para a illuminação, os
segundos applicam-se á dissolução do mixlo do
caoutchouc e ^'omma laca, conhecido pelo nome
de Visco. Estes óleos dislilkidos servem lambem
para a preparação do acido picricoA) Y('ú(\\m da
distillação do alcatrão ou hren, dissolvido em oleo,
forma com as ocres uma tinta própria para conser-
var as madeiras, mclaes^ctc.
tão pendurados de seus favores e respostas como
de oráculos; as acompanham como a coisas sagra-
das; se vestem, ornam, e enfeitam pelas agradar;
se desvelam pelas servir; se apuram para as me-
recer, no esforço, na gentileza, na galantaria, no
dito discreto, no escriplo avisado, no mole galante,
na endeixa subtil, no soneto conceiluoso; por ellas
se ensaiam para o saráo, no dançar, no fallar,
no acompanhar, e no oflerecer; por ellas se apres-
tam nas occasiões de jornadas, de criados, e li-
brés, galas e ginetes; por ellas continuam o pas-
seio á vista das janellas, atravessam as salas á
sua conta, e rodeiam o terreiru do Paço mil vezes
por seu gosto; por ellas se oíTerecem a todo o pe-
rigo; porque qual he que um servidor de damas
não ache fácil por amor d'ellas? que palavras diz'?
que extremos receia? que esquivanças não solíYe?
que riquesas estima? que quimeras não finge?
que occasiões não busca? vela de noite, não des-
cança de dia, não se entristece com a pena, não
desconíia com o desengano, não faz conla de ag-
gravos, nem estima desprezos, não cura de vin-
ganças, e emfim tudo é veneração e humildade
com que as engrandece.
Francisco Rodrigues Lobo
O decoro c primor com que as damas se tra-
tam n'esle reino, princi|)almenle as que assistem
no Paço, parece que em certo moíío conserva
aquella preeminência, qu(! os Egypcios liic, deram,
qu(í com o exemplo do bom governo d'Isis rei-
navam as mulheres, porque em prezença c auzcn-
cia os cortezãos as nomeiam por senhoras, se lhes
descobrem e ajoelham como a deusas, lhes fazem fes-
tas, jogos, justas e torneios como a deidades, cs-
A GALATEA MODERNA
Por A. OZORIG DE VASCONGELLOS *
III
jtlfredo de Mello a António Alvares
Meu caro amigo. — Correu um mez, e este lapso
de tempo, que é um zero na ampulheta do uni-
verso, inlluiu immenso na minha vida.
Vou conlar-le tudo sem rebuço e com fideli-
dade.
Arrastado pela frieza marmórea de Violante,
cuidava pressentir um vulcão coberto de gelo. A
principio sorria-me a idéa de mostrar á bella al-
deã que pouco me importava a sua isenção, que
entre ella vinha eu armado de Lisboa com o meu sce-
plicismo.... que jà agora me está parecendo pos-
tiço. Eu ([ue tantas vezes havia clamado contra
os enganos do coração mal podia arreceiar-me
d'elles, em uma aldeia perdida nas campinas do
Minho.
l^oi-se porém amortecendo a pouco c pouco a
minha contiança e comecei a temer alguma fraqueza
indigna dos meus brios de I). .hian. Bem sabes
que uma das doenças moraes do século é este du-
alismo artilicial entre o coração c í educação.
Byron e Espronceda deixaram uma escola, que
ainda hoje nos governa e allribula.
Todos queremos confessar-nos supeiiores ao
amor, c dalii essa pugna travada, que mal nos deixa
gosar a mocidade, colher os seus fructos, cultivar
as suas 11 ores.
Eu mesmo que sou tão amanledos velhos tempos
romanescos não aceitara o papel de trovador, que
suspira pela sua bella c almeja conquislar-lhe o
alvedrio.
Por isso, com senlir-me arrastado para Violante,
o PANORAMA
71
tomava-a apenas como um problema, emal cuida-
ra que a solução (Velle poderia ainda imporlar q
meu fuliiro.
(Ihegado aqui, eslou a ver-te amarrotar esta caria
com violência, bradando incendido em raiva:
— Bem le dizia eu, pobre Alfredo, desventura-
do amigo. Ninguém foge ao seu destino, e o teu
sempre foi gemer alllicto aos pés de umaserêa. Cui-
davas, que podias luctar com a sorte, e caiste em
misero engano. Amar! Pois haverá ainda alguém
que se deixe levar d'este sonho enganoso 1 Pois
a innocenciaarcadica poderá chegar ainda a tanto!
Amar é arder, ércqueimar o coração em chamma
devastadora. Ninguém pense que esse fogo não
queima. A vestal (|ue o guarda e o mantém acce-
so, manchou ha muito a túnica enconsutil no bos-
que sagrado. Ó mísero Alfredo! Porque te foste pren-
der? Porque não fugiste? Assim esqueceste os meus
conselhos? Ignoravas acaso que braços de mulher
são liames, que nos enredam e precipitam no abis-
mo undoso, contia o qual não ha luctar?
— Devagar! devagar! respondo eu. Pintas o qua-
dro tão negro, meu velho amigo, que vou lançar
luz nas nuvens, que encastellas no meu firmamen
to. Ouve e socega. Eu não amo ainda, e tenho
pena.
Vai-se-me extinguindo a mocidade, conio flor que
emmurchece com o calor do sol.
A edadc viril, como é de uso chamar ao pri-
meiro alvor de decadência, vem assomando car-
regada de desenganos. Que refrigério lenho eu
contra elles? Oue fogo para derreter os gelos, que
se amontoam? Aonde buscar alentos para os tor-
mentos da vida? Aonde, senão em um peito ado-
lado, em um seio de virgem, nessa pyra, cujo fu-
mo é incenso sacralissimo? Não escarneças. A
minha doença, a doença de nós todos está na ma-
ter lalisação úo amov . Amor sensual, exhaure; amor
espiritual, alenta. Sansão deixa que Dalila lhe cor-
te os cabellos, e rende-se; Hercules lança aos pés
de Omphalc a pelle do leão da Neméa; mas An-
teu cobra novas forças quando abraça a terra, e
Amadiz obra prodígios e gentilezas.
Se eu portanto lançar para longe o materialis-
mo, que herdei do século, poderei ser feliz. Seiíão,
que importa?
Deixa-mc porém voltar ao fio da minha narra-
tiva, se porventura as minhas phylosophias não
te cansam o espirito.
Pirme no meu sceplícismo e julgando-mc um
Achilles invulnerável comecei a dirigir a minha
táctica, com a perlidía de um conquistador, que
por satisfazer um capricho, não se arreceia de
macular o tecto hospitaleiro e preparar um futuro
de lagrimas a unuulonzclla virtuosa, que vive uma
vida tão santa c clausuialna província. Assim nos
fez este século!
Durante este tiroteio não poupava nenhuma das
artimanhas, que é uso empregar, e que aqui po-
diam dimh fazer cffei lo. Não penses que me cons-
titui um Lovelace ridículo.
Outro e mais alto era o meu fim, porque que-
ria interrogar aquelle coração.
Assim correram os primeiros dias e devo con-
fessar-te que tudo foi baldado.
A mesma frieza, sempre a mesma indifferença.
Um sorriso dcdesdem,um olhar glacial elimpido,
e nada mais E não sei porque cada vez me sentia
mais subjugado e vencido.
Á noite, junto ao fogão, quando começávamos a'
rememorar as melhores paginas dos primeiros es-
criploi-es, em que elles como que haviam deixado
uma parte de sua alma, Violante conservava-se im-
passível, rosto erecto, sem uma sombra de senti-
mento, sem uma scentelha nos olhos, sem um gesto
de enthusiasmo, e quantas vezes, depois de me
haver deixado librar nas azas da imaginação ás
espheras altíssimas do afiecto puro c immaculado,
não me precipitava ella e me deixava aturdido,
absorto, estúpido, lembrando-sederepente de uma
minúcia caseira, das horas do chá, da lenha paia
o fogão? N'esses momentos crescia-me uma raiva
coiícentrada; quizera abrir-lhe o peito e ver late-
jar-llie o coração nas minhas mãos ensanguentadas.
Outras vezes c ella quem me induz e arrasta e
obriga a conversações intimas, em que a alma se
alarga e expande e então ou sorri ou fica pensa-
tiva e suspira contemplando o brazído.
Assim continuavam os nossos serões, interrom-
pidos ás vezes pelas narrativas do velho fidalgo,
que muito se deleitava em contar as suas campa-
nhas e os feitos de seus avós.
O tempo estava chuvoso e carrancudo.
A athmosphera nublára-se com a minha che-
gada; caíamos primeiros choviscos, que succedem
ás chuvas torrencíaes do inverno e precedem o
bafejar da primavera. 'Os campos alagados não
permittiam caçadas, para que o meu hospedeiro
me andava convidando todos os dias. São terríveis
para um namorado estas clausuras forçadas frente
a frente arca por arca com o objecto amado. E
brincar^ com o fogo, que nos queima, é aguçar o
cutello,\iuc ha de decepar-nos.
E eu sinto-me cada vez mais prezo, sem poder
desatar os laços, que me enleim. Não julgulfe
que goso esses extasis sublimes do primeiro
amor. Julgo-me velho para isso. Amoíino-me,
ponpie começara por um brinquedo, o qual se
volta depois contra mim. Tal é o meu estado
digno de lastima. Não a amo por ora, como usa-
vam os trovadores, antes me rebello conlra essa
idéa, (jue ainda ha poucos dias me iázia sorrir.
Vejo porém que se aj)roxima a crise, para a qual
não estou preparado. Se Violante não se apresen-
tara tão diversa do que eu pensava, por formosa,
(jue soja, não teria poder pai-a me encantar. iVias
levado |)ela curiosidade quiz estudal-a de peito, e
afinal i)arece-me que virá a acontecer-me como a
Plínio, que para estudar o vulcão, debruçou-seda
cratera, e caiu na lava de fogo. Já me lembrei de
fugir, mas fora cobardia. Antes quero morrer no
meu posto, como soldado fiel á bandeira. Teu ver-
dadeiro amigo — Alfredo de Mello.
A prudência junta ao valor Iriumpha dos maio-
res obstáculos.
72
O PANORAMA
BEATRIZ
Escusado é dizer quem murmurava
Este canto de amor; por mais virtude
Que o leitor tenha em si, en perco tudo
Que é possi\ el perder, se não c certo
Que já desconllou de quem soltava
Estas palavras ternas e amorosas.
Fica. portanto; assente que a condessa,
A despeito de tudo amava Ja^^ques.
O que mais succedeu depois do canto
Que acabamos de ouvir, c ponto serio
Que não ouso tocar; demais a noile
Era escura c sombria, e os dois amantes
Vagavam no mais denso da espessura
De um copado jardim. Ohl quem poderá
Ouvir quantos suspiros maviosos
O vento repetiu, quantos protestos
De infinita paixão soaram brandos
Entre os ramos em flor da larangeiral—
Deixai, deixai viver quem ama e senie
Bater o coração ébrio de affeclo;
Deixai colher as rosas, que despontam
Neste duro pragal, chamado a vida;
Deixai gosar, o goso é quanto resta
Ao que tem alma, e farto (feste mundo,
Inda pode sonhar com o paraisol
Que importa o mais? Eu quero em minha fronte
Uma c'roa de lyrios, em meus braços
O meu anjo infiintil, sobre os meus lábios
Um beijo ardente e longo, e o mundo inteiro
Que desa!)e em redor: feliz e altivo
Hei de viver de amor entre as ruinas!—
XI
O certo c que a condessa amava Jacques,
E o conde nem de longe suspeitava
Esta infame paixão; verdade seja
Que a esposa encantadora .já não tinha
O mesmo agrado -e affecto como d'antcs;
Mas, que cu saiba, ninguém se atreveria
Por mudança tão leve a ter vislumbre
De uma idea ruim. Passava o tempo,
.\s visitas de Jacques repetiam-se
Cada vez mais, os ânimos alheios
Iam sentindo já de vez em quando
Seus momentos de duvida; a má lingua
Começava a grassar na visinhança.
Bealri/. pensou, viu, bem que era impossível
Viver assin), fingindo, atraiçoando,
Mentindo a cada instante; era preciso
Kemif-se, pelo menos, d'essc crime
iJa traição desleal — que lhe restava?....
O que íazia alli?...pois não temia
Que. desfeita a illusão que inda enganava
O velho conde, súbita procella
Desfechasse uos dois horridamcnte?....
Pensou, viu ludo,combinou mil casos,
Modilou largamente, e sem'i)re ao cabo
l)'essas cogitações, vinha-lhe á mente
.\ífastar-sc d'alli, fugir, roubar-se
Aos affagos do esposo, e só com Jacques
Entre arrobos de amor passar a vida.
Esta idea, de corto, era a mais prompla
Que podia acudir a (luem se visse
Na posição terrivel da condessa;
Sei que as coisas, levadas d'oiitro modo,
Podiam vir a dar n'um resultado
Muito melhor, talvez, c até mais próprio.
M;is a pobre mulher que só peccara
Cega (hí amor, que ouv:a a consciência
(>oridemn;i-l;i na voz de seu marido,
Inda tiidia a loucura imperdoável
De julgar, que, mostrar-sc a lodo o mundo
Tal qual era, dccerlo era mais digno
Do que fingir pureza, quando n'alma
A pústula da infâmia ia lavrando! —
Assim foi; certo dia, a desgraçada.
Entre lagrimas tristes, disse a° Jacques
Que era myster partir, irem sosinhos
Viver longe do mundo, não sentind»
O rumor da procella que já perto
Começava a rugir; elle,beijando-a
Na face desmaiada, disse apenas
Co' um sorriso de amor: — «Oh! sim, querida,
«É preciso partir, sou leu, és minha»
Pouco tempo depois ambos viviam
Na mais doce união, na paz mais doce
Que podemos sonhar; o ceo banhava-o.s
De luz e de prazer, e as brandas horas
Deslisavam serenas, como um rio
Entra o frescor e o cheiro das boninas.
O conde, o pobre conde retirara-se
Do bulicio do mundo; e alguém dizia
Que, pungido de magoa, ultimamente
Fora— coitado— recolher-se a Trappa,
E devorar no horror o fel da vida.
O certo é que partira; onde parava
Não posso já dizer, porem suspeito
Que a baleia da Trappa é sem verdade.
Isto é fallar de mais; eu deveria
Conservar o mysterio até às ultimas,
Cobrir com um veo de névoa as peripécias
Que lenho a relatar, baralhar ludo,
E assim ganhar terreno onde podesse
Mostrar no desenlace os meus recursos.
Isto mí^nda o bom siso, e os grandes mestres,
Que valem muito mais; mas eu não posso,
Seja dito afinal, não posso nunca
Prender-me cm grande acção, aproveilar-lhe
Quanto ella tem. lorcel-a"e reviral-a
Em trato de, polé; loco-a de leve,
Tomo apenas a flor, vou pela rama,
E acabo exhausto e farto; estou no caso
Do bom de La Fonlaine: — «As grandes obras
Nunca as pude tragar; lenho-lhes medo!»—
ConUnun.
E. A. Vidai.
PRISÃO DE AMOR
Trailiieção de iii» epigraiiiiun grego
l'm dia, cortou ella um só cabello
da longa e lina trança d'ouro bello,
e as duas mãos comelle me ligou.
lieixei lig.al-as; e sorri-me, quando
vi fácil o quebrar o laço brando,
com que a travessa minhas mãos alou.
Mas quando de Ião frágil embaraço
me quiz livrar, achei que o brando laço
n'uma dura cadeia se tornou.
Vizeií. ouLuljro de O.i,
Cândido Figueiredo.
Nilo (í haslanlc o sor justo, é pi-ociso ser bonefi-
cenlc.
É o ospirilo quo (leve, do ser a rogra do nosso
pi-occdinuiiilo o o guia das nossas acções.
Sallistiro.
A virlude é a única cousa que se não dá e que
SC iijjo recebe. Maiuus
Typ. Fraijco-1'orlugueza. = Huado Thesouro Vullio,6.
10
o PANORAMA
73
WIESBADEN E SEUS CONTORNOS
AViesbaden, celebre por suas aguas mineraes,e
aonde todos os annos concorre um grande nume-
ro de estrangeiros, é uma das mais conliecidas cida-
des de Ailemanha, Foi fundada, um século antes da
era chrislã, pelos Ubianos, pequeno povo da Ger-
mânia, que d'e!lalizerama sua capital. Não existe
historia d'est8 povo: apenas d'ellese sabe o pouco
que disseram os romanos, com os quaes havia
feito alliança.
Parece que as nascentes deagua quente de Wies-
baden eram já conhecidas dos romanos no tempo
das suas primeiras guerras no Rheno; Plinio falia
d'ellas no seu tratado de historia natural, escriplo
oitenta annos depois de christo: «a agua, diz elle,
trez dias depois delirada da nascente, ainda está
quente».
Os príncipes do ducado de Nassau, cuja capital
é Wiesbaden, descendem da antiga familia de
Laurenburgo, que reinou por muito tempo sobre
as duas margens da ribeira de Lahn. O castello
onde residiam, e que tem o mesmo nomo, ainda
existe; eleva-se no cume de uma montanha silua-
da na margem esquerda da ribeira de Lahn, qua-
tro léguas distante do Rheno.
AViesbaden contem um grande numero de anti-
guidades romanas; as mais notáveis são um muro
de quinze a vinte pés de altura, que oufrora ser-
via de cerco à cidade, e muitos banhos perfeitamente
conservados. Estes banhos teem noventa pés de
de comprimento, sobre dez de largura e cinco de
profundidade; os tanques são construídos de can-
taria, c o fundo forrado de tijolos quadrados em
muitos dos quaes se vêem asiniciaes da 22 legião
romana. Nos arrabaldes da cidade teem-se encon-
trado quasi todos annos um grande numero de
túmulos inscripções, etc.
A meia légua de AViesbadea, existe um sitio,
no meio de um bosque, onde repousam, dizem, as
ossadas dos Ubianos e dos Mattiacos: (íScpidcnim
ccspcs cr/^// (Tácito).)) Pordetraz doeste cemitério
eleva-se o Néroberg, ou monte de Nero, sobre os
flancos do qual se vêem ainda as ruinas de um
palácio í:omano. Segundo a tradição, estendia-se
um vasto parque sobrecslamo.itaniia, quecompre-
hendia em seu âmbito a floresta que cobre oTau-
nus. Ouasi todos os cumes d'este monie são co-
roados por grandes pedras, restos de forticações
levantadas pelos povos aniigos da Germânia para
se defenderem contra os a(,aques dos romanos. È
obia dos Ubianos,. ou dos povos que os precede-
ram n'este paiz? É o que se não sabe. E provável
que estas construcções fossem não somente um
meio de defeza, mas que servissem também de
limites e de linhas de demarcação. São ellas, sem
duvida, que deram aos romanos a idéa da famosa
muralha (Teufelsmaner, ou muro do diabo) e do
iramenso fosso que se estendia desde o Rheno ate
ao Danúbio.
74
O PANORAMA
W'iesbaden.deye os seus primeiros aformosea-
mentos ao duque Frederico Augusto. O Kursaai,
começado em 180S, é o mais nolavel edilicio da
cidade: exisle n'elleuma stilla que, pela sua gi-an-
deza e decoiação,- pode rivalisarcom as melhores
de 1'ariz e de Londres. O theatro, conslruido na
mesma praça em que se acha o Kursaai, não cede,
pelo goslo da sua architeclura, pela riqueza de
seus ornamentos, á nenhuma outra construcção does-
te género A grandeza do salão foi calculada sobre
o numero dos habitantes e dos estrangeiros que
aili vão passar a estação das aguas.
Ha \inte annos, a nascente principal de Wies-
baden era rodeada de uma muralha; hoje brota
cm liberdade no meio de um passeio delicioso,
cenli'o de reunião de lodos os estrangeiros e
não menos frequentado dos habitantes da terra.
Todas as manhãs, das cinco ás sette horas, uma
orchestra numerosa secolloca em um ponto qual-
quer do passeio, e, bebendo a agua quente, doen-
tes e curiosos teemo prazer de ouvir as árias mais
melodiosas de Weber, ^Veigel e Mozart, desem-
j)enhadas como só se desempenham em Allema-
nha. Esta musica e o ar fresco da manhã contri-
buem, quasi lauto, estou certo, para a cura dos
doentes,- como a enorme quantidade de copos de
agua que os fazem beber todos os dias.
Km NViesbaden ha quatro nascentes piincipaes
e onze secundarias que fornecem a agua para todas
as casas de banhos. Amais abundante é a chama-
da Kurbrunnen. A aguad'estas nascentes deposita,
como 1'linio já o havia notado, uma pedra muito
semelhante á j)edra pomes, e á qual se dá o nome
de sinler; no museo da cidade existem bellas
amostras cryslallisadas. Os elementos principaes
das aguas dè ^Viesbade^ são o carbonato de cal,
magnesia, hydrochlorato de soda, hydiochloralo
de cal e de magnesia, sulphato de soda, algum
alumínio e algum ferro dissolvido no carbonato de
soda. Comtudo, estas substancias variam segundo
as diíTerentes nascentes. E preciso um espaço de
trinta e seis horas para que, exposta ao ar, a agua
arrefeça; forma-se então sobre a sua superlicie
uma pellicula íina, branca, composta de cal puia.
Os médicos recommendam asaguasde Wiesbaden
às pessoas atacadas de rheumatismochronico, gola,
paralysia dos membros, doenjas metasticas, sar-
nosas ou herpeticas; elías lêem sobretudo muita
virtude contra os abscessos c doenças cutâneas.
Todos os estrangeiros que teem visitado ^Vies-
baden não se cansam de gabar os seus airabaldes
e, certo, que em lodo o elogio que possam faz(ír
não exageram. O que haverá mais lindo, por exem-
plo, que Dietenmuhl? B^s caminho areiado, bor-
dado de flores, que parle do passeio de Kursaai,
conduz aquelle delicioso retiro. IJn pouco mais
longe, a meia légua da cidade, eslão as ruinasdo
caslello de Sonnenberg montanha do sol) que se
elevam magcstosamente sobre um rochedo e do-
minam a linda aldèa do m(!smo nome. l)iz-sc que
nos tempos antigos havia sobre este rochedo um
templo consagrado ao sol. Seja como for, é certo
que o caslello, cujas ruinas existem, foi construí-
do pelos fins do século XII; mais tarde serviu de
habitação aos condes de Nassau, e o imperador
Adolpho engradeceu-o e fortilicou-o. Foi devasta-
do durante as guerras que o paiz leve de sus-
tentar no século XIII contra os suecos e pelos
lins do século XVH contra a França.
Riébrich, residência do duque de Nassau actual,
acha-se a uma légua de Wiesbadan. O caslello
que se eleva na margem direita do llheno, ò cons-
truído ao estylo moderno e apresenta um magni-
fico ponlo de vista. D'alli se vé o Rheno, quasi
na sua maior largura, coberto de uma multidão
d"ilhas, e de um grande numero de embarcações de
lodo "o género; ora, barcos a vapor passando com
a rapidez do relâmpago, ora ní\'ios mercantes, ora
barcos pequenos, ora grandes 'jangadas, andando
lenta e vagarosamente, que servem para o trans-
porte das madeiras das florestas de Allemanha.
O panjue de Bièbrick rivalisa com o que ha de
melhor n'este género; é um passeio deliciosamente
variado. Nola-sealli sobre tudo um pequeno cas-
lello imitando a archictelura da idade media e
edificado no meio de um lago, n'um sitio admi-
ravelmente romântico.
A aldeia de Schierslein é celebre pelg seu vi-
nho excellente, designado pelos nomes de lacrima
díaboli ou lacryma infernalis.
A GALATEA MODERNA
Por A. GZORIG DE VASCONGELLOS
IV
D. Violante ú baroncza ilo Alpcdral
Minha querida.— Eslou infernando de invejas.
Dês que li a tua ultima caria, não socégo, não
durmo, vivo em perpetua exilação. Porque motivo
descreves com tão vividas cores o ultimo baile do
club, as loili'lles explendidas, a orchestra encan-
tadora, as walsas rodopiantes, o coquetismo sen-
timental, todas essas vertigens, todo esse oceano
de prazeres, e gosos olympicos, em queluflucluas
docemente embalada pelas brisas lisongeiras? l'or-
quc motivo, infernal amiga, feiticeira encantadora,
me estás mostrando a laça de oiro, aonde te em-
briagaste, aonde sugaste com lábios voluptuosos o
licor divino, que te deu extasis de huri, sonhos
Ígneos, visões (|ueimadoras? Awalsa, a walsa! Ouem
me dera levolulear endoidada, sem tino, sempezo,
sem tocar o chão, arrastada pela orchestra que ora
freme em paroxismos agudo^, ora se desentranha
em queixumes valentes, furibundos, loucos, como
a maldição do Adamastor! Ouem me dera respirar
as lufadas ardentes do baile, sorver uma a uma as
lavas d'esse vulcão, tisnar-me sem dó nos lumes
de gaz, lucluar, lluctuar no redemoinho immenso!
E depois que me importava a morte! Mais vale
uma noile assim, do que a vida aqui, n'esles cer-
ros malditos,' ouvindo o balar queixoso das ove-
lhas, (jue pastam nas campinas. A vida bucólica'
Pois ha coisa mais monstruosa e aborrida, do que
contemplar o riacho, que corre sob os salgueiros!
Se eu ao menos podesse ser nymplia dos bosques!
Mas até as dryadas fugiram espavoridas, e já não
o PANORAMA
75
ha tenlar homens nos itcossos naniorosos! A vida
c essa, é a que vive aiii. A vicia é respiíar a
alhmospliora de fogo, é sui-gir ladiaiilc cingindo
unia auréola luminosa, e cegar os lisongeiros, que
se rojam e pcdeuv uma scenlellia, (jiie os allumie
nas trevas do scui(mor. A vida é senlir em pouco
tempo um século de gosos, é arrojar lama aos que
pas.-am e pedem a esmola de um olhar, é cami-
nhar ávanle c dar a morle em um sorriso.
A vida é a vvalsa vcríiginosa, louca arquejanle.
Oue moula morrer depois, á saida de um baile,
exhauslo de foiças, açoitado pela brisa gelada da
noite, se calcamos flores, se deliciamos na lebre
da dança, e se o ultimo passo da derradeira walsa
nos arrojou á sepultura!
Ah! mesmo n'esla solidão, aonde chegam ape-
nas esmoi'ecidosechosd'esse tumultuar de folgança,
sinto pular o coração ancioso, quando me descre-
ves os encantamentos da lua vida. Quizera acom-
panhar-te... e não posso. Que supremo desespero!
Psão posso! Que tormento santo Dcos! Pieso a este
rtc'.iedo, como Tântalo, vejo os fructos a lourejar
por entre a ramaria, e se acerto de estender a
mão, para os colher, encontro o vácuo, a solidão,
a clausura, o tédio.
Para que nasci? De que me serve ser linda,
como dizes nas luas lisonjaiias, de que me serve
o meu rosto de fada, o meu olhar languido, o meu
seio arquejante a minha cinia breve e ílexi-
vel se hei de morrer aqui n'cste cantinho do
mundo, rouxinol perdido no deserto, ílor secca
na estufa?. Oh! mas não. Venha a lucla, acceito o
repto da desgraça. Conslrange-se o coração. Seja
o amor... mercancia. Extinga-se o pranto, aca-
bem as insomnias de moça gentil, que entreve o pa-
raíso e devaneia delicias inelTaveis. Amor ! Aven-
temos para longe esse fardo pezadissimo, essa coroa
de espinhos, que nos dá a realeza na escravidão.
Sejamos mulher como o scculo afez.
A Galaléa não vive nos bosques, antes se refu-
giou nas salas Pois serei a (íalaléa moderna...
como tu, querida baroneza, queatlraesos teus ad-
miradores para os queimar depois. .Serei coquettc.
Cada sorriso meu será mordedura de cupido em
coração de homem. Reinarei, sim, mas encostada
ao braço de um escravo. E esse escravo... Cusla-
me a escrever o nome d'elle. Sinto calor nas fa-
ces. Tenho pejo. Quecreancicc! Vou ver-me no es-
pelho. Credo! Como o rubor me tingiu o rosto.
Pareço uuia ronul. E então ! Não estou a na-
morar-me a mim mesmo! Serei tão bonita, como
dizes? Como os meus olhos scinlillam nas orbitas!
São negros, negros e brilhantes, como carvões, que
chispam na escuridão. E choro e rio ao mesmo
tempo! Ora me parece que suíloco, ora julgo lUic-
luar na amplidão.
Isto é loucura! Se Alfredo me visse! Ah! Eil-o
que chega. Deixai-me esconder esta carta. Com-
batamos!
Que escaramuça! Foi guerra de guerrilhas, foi
um tirot'^io continuado e regular, em que elle fi-
cou mal ferido. Estou a ler immensa curiosidade
nos teus olhos maganos. Ouve pois:
Alfredo vinha melancólico c trazia o Dante, por-
que queria tomar-mc a lição de italiano. Travou-
se a conversação. Eu estava preparada. O thealro
re|)reseiila uma saleta arruinada, com duas gran-
des janellas no fundo, uma banca de mogno an-
tiga, de pés salomonicose gavetões cheios de per-
gaminhos velhos, que são os títulos da familia.
Eu estou assentada em cadeira enorme, com ade-
manes da heroina das cruzadas, rosto erecto e gra-
ve ligeiramente encostado á mão. Alfredo assen-
la-se n'oulra cadeira, auma distancia rasoavel sem
se atrever a passar a linha de respeito. Olha o
Dante, folheia-o com ardor, olha para mim, como
um meirinho inquisilorial dos velhos tempos, e
pei'gunta emíim:
— Já estudou a lição? Venho hoje muito rigo-
roso.
Estou por um pouco a perder oseiio, que guar-
do com muito custo, e respondo zombeteira:
— Por favor, j)rimo,-esqueceu-lhe a palmatória.
O seu Dante é de uma diíliculdade pasmosa, e
quando entendo alguma coisa do Inferno, tenho
pesadellos de noite. Prefiro Petrarca.
— ^ Petrarca, esse eterno chorão, cujas lagri-
mas ainda alimentam a fonte de Vaucluse, Petrar-
ca, ?ssa creança, que morreu senil, sem nunca
aperlar nos braços a Laura, que o inspirou! Con-
fesso, piima, que Petrarca chega a causar dó.
— Petrarca, é modelo de encantos, como eu os
comprehendo, e como o primo deve comprehen-
del-os.
— Como devo... oh! Parece-me que não ouvi
bem.
— Perfeitamente. Quem tanto se compraz na
vida campestre, não é muito que suspire debal-
de toda a vida ali'azde Galatéa. Pergunteao amor,
(juando suspirou nos bos(|ues e agitou as cordas da
harpa éolia, se s'imporlaque ossylphoso oiçam. O
vento suspira, porque é esse o seu destino.
Assim devem fazer os poetas da sua tempera,
assim faziam os trovadores nos seus queixumes do
amor, assim fez Petrarca, assim deve fazer o
primo. Ser Melihen só para comer castanhas e be-
ber leite fresco e lembrar os explendores de Ro-
ma... para isso não valia a pena esse seu rosto
sombrio e melancólico, que lhe fica a malar. Qual-
quer minhoto namorado é Melihen, quando acerta
de encontrar Galatéa esquiva e louçã.
— Com que então, segundo o que a prima diz,
eu estou uamorado.
— Isso é exagerar horrivelmente as minhas pa-
lavras. Não sei se está namorado, nem mesmo
quero sabel-o.
—Na sua idade, prima, sabel-o é causal-o, bra-
dou Alfredo erguendo-se e fitando-me singular-
mente.
— Deixe-me rir, primo. Desculpe este riso in-
tempestivo, mas estou hoje muito nervosa... Com
que então. .. Não, não quero sabel-o. O primo não po-
de estar namorado, e se o estiver, faça como Petrar-
ca. Suspire e faça sonetos, invoque as musas.
76
O PANORAMA
Imniorlalise as diyadas da fonle fresca, qiio
aguarda ha séculos o seu Petrarca. Aquella fonle
fresca, ião romântica, Ião cheia de poesia, com o
seu olmeiro carcomido pelos annos, com os (juei-
xumes da sua lympha crislallma, com os seus li-
mos verdejantes, com o seu tapete de relva, como
seu penedo de granito ao lado! Por Deus! i)rinio,
improvise um soneto á fonte fresca. Olhe. já lhe dou
u princij)io:
Formosas dryadns da fonte fresca
Vinde espreitar á beira do cristal!
Ouvi, ouYJ qui.ixumes de um zagal
Que se fina de amor, de noite a fresca.
Não. Isto assim não vae bem. Não ha rima para
fresca. Kmfim. improvise o soneto como (juizer,
e pôde começar os versos por letra pequena, por-
que não hão de confundir-se com prosa.
Alfredo íicou aterrado. Não sabia como respon-
der aos meus ataques.
O pobre rapaz estava arrependido da sua poesia
bucólica. AUnal, passado um momento rápido, ex-
clamou:
— Está enganada, prima. Se por acaso quizesse
recorrer á mytbologia grega para exprimir os meus
amores, e caísse uo immenso ridículo de tocar
a frauta pastoril ia sentar-me á beira da fonte e
mirando-me a mim mesmo, diria, como Narciso,
e em prosa «Podes fugir, Galatea, que não te sigo
nem persigo. »
— Deveras! Issoé que éter caracter.
Pois o primo havia de estar sempre a mirar as
próprias feições!
— Se encontrasse aGalatéa e vivesse nos formo-
sos teiapos, a que a prima quiz transportar-me,
preferira a parvoíce de Narcizo.
— Com que então o primo não é Melihen.
— Nem mesmo como castanha pilada.
— Aborrece portanto Petrarca.
— Petrarca é o rei dos trovadores da meia cdade.
— Logo não é trovador também.
— AhJ. Já sei! É D. .luan.
Alfredo soltou uma gargalhada, c exclamou:
— Não sou nada. Sou o seu meslrede italiano,
sou seu primo muito respeitoso. Vamos pois á li-
ção.
Eu estava zangada com Alfredo. Não podia con-
ciliar a attenção. A manhã corria chuvosa e car-
rancuda, o ceu loldava-se de nuvens negras, (pie
corriam impcUidas pelo sul gemedor. Os arvoredos
descarnados abanavam os troncos. iNão sei poríjue
caí (lerepente cm um accesso de melancolia. Sou
verdadeira. A actriz tinha desapparecído, e liíjuei
(piai sou, creatuia débil, aiijoravcl, e triste, vi-
vendo na solidão, açoitada pela desgraça, sem um
seio de niãi, aonde repousar nas horas da angus-
tia, sem ura carinho, sem um osculo de amor casto
e santo, sem uma visão consoladora, sem um echo
símpathíco no meu isolamento, sem animo para
encostar a cabeça dolorida. í>)meç('i a chorar amar-
gamenie. >ião pude conter o pranto, por mais qu<í
(juizesse. Ouizera reler os soluços^ embora o coração
ficassemorto para sempre;quízera secar opranlo ain-
da que depois me aííogasse n'elle. Ah! mas não pude.
A dor era immensa e fora exacerbada pela própria
zombaria. O sarcasmo irritante que mostrara, linha
provocado o choro, e foi em prantos, que traduzi o
celebre terceto de Dante, esse grito sublime de
um coração que se parte de saudade, e geme em
fenos de desventura: *^
Nessum ma.crprior dolore
clie ricordarsi dol tempo folice
Nella miséria.
Alfredo íitou-me outra vez. Tremia-lhe a falia,
os seus olhos também estavam húmidos. Travau-
do-me da mão, disse n'uni ímpeto :
— O que tem Violante?
Em ergui-me e tirei a mão d'enlre asd'clle. En-
costeí-me ao peitoril da janella, contemplando a
natureza nioría e nua e profundamente melancó-
lica, ciciei:
— Olhe primo, como tudo respira saudade e
tristeza. Parece que todos os ruídos das campina
se unem e formam um gemido plangente. Eu lam-
bem sinto saudade. Só lenho saudades de mi-
nha mãe. O terceto de Dante pinla o estado da
minha alma.
— Tudo tem remédio, respondeu Alfredo.
— A saudade não o tem. Pelo menos não o quero
nem o acceito.
E sai zangada da minha fiaqueza, odiando Al-
fredo do fundo da alma, e jurando vingar-me.
Agora sou outra vez o teu diabrete — Violante.
(Conlinua.)
SEPULTURA DE GIL VICENTE
o gran juizo esperando,
.laco aqui nesta morada;
Também da vida cansada
Descansando.
Pergunta me qnem fui eu,
Altenta bem para mi,
l'or(]uc tal fui coma ti,
E tal lias de ser como eu,
E pois tudo a isto vem,
O leitor, de meu consoilio,
Toma-me por teu espelho,
Ollia-me e oi!ia-te bem.
Os Athcnienses, segundo alTirma Alexandre de
Alexandro, livro 3", tinham lei, que condemnava á
morte o rei, q.ue com demasiado vinho se alienas-
se. Os índios, de (jue escreve Atlieneo, cujo rei
davam em guarda a certo numero de donzellas, or-
denaram (|ue, se alguma d'aquellas o achasse com
vinho demasiado fora do seu juizo, e o malassi, es-
ta fosse despozada com o successor a (|uem vinha
o reino. Os Maciíieiises, como o seu rei fazia al-
gum erro no governo, não lhe davam de comer
atiuelle dia. Os Imersas faziam ao seu rei estar es-
condido no interior das casas, para nem ver
mulheres, nem ser muito tratado dos homens, co-
mo conla Heródoto, livro 3°.
Francisco Rodrigues Lobo.
Acontece mui las vezes lomar-sc uma paixão na-
tural por uma virtude moral.
o 1>,\N0RAM.\
O MANNÁ
r^.^J^''''"^] (-y^'''^''«> íios calahrinus) assim cha-
sTiTneri. !t'f '"?'"' '^''''^'^ ' "^^^^^ A^i^nm
ZJZu: ""■'"' ''«^"^'-íi-^tía, laxanle, inodoi-a
d^/^eh ff'-'^"' l'"'"'-^"^'^ ^« muilas espécie
de ímxo e principalmente do />m//»/. ornus e
do y^.r/^,.,, ro/«..///W,«, arvores que vege am
n Ioda a Lumpa me/id/onal, especialmente na
Calábria e na Sicília. O manná escoa-se natural-
mente pelos poros da epiderme e pelas fendas da
casca; para obtel-o, porém, em maior abundância,
pralicam-se profundas incisões na parte superior
e sobre um dos lados do tronco da arvore ( ue se
quer explorar. ^
Três são as espécies de manná que sedistiní?uem
no commercio. O mais puro denomina-se Manná
78
O PANORAMA
em lagrimas [Manua lacrymafa, Manna canoío);
é em pedaços alongados, leves, irregulares, mui
friáveis, dé ww bianco amarellado, aspeclo crys-
tallino ou granuloso, sabor doce, assucarado, um
pouco enjoativo. O Mannà em grãos ou commum
(Manna granulosa, Manna eommunis) compõc-se
de pequenas lagrimas agglutinadas por um liquido
viscoso; tem um sabor mais assucarado que o pre-
cedente, mas o clieiro é nauseabundo. O que vem
da Sicília chama-se Manna geracg, <• o que pro-
vem da Calabiia Manna eapacg. O Manná pingue
ou inferior (Manna pinguis, Manna sórdida,
Manna spissa) lem o aspeclo de massa molle, glu-
Imosa, cheia de impurezas, laes como fragmentos
de vegelaes, terra, aieia,clc; é maisnaus/^^abundo
que omannácommuneosabor assucarado é muito
desagradável.
oManná é solúvel em agua e em álcool. Além
do assucar amorpho e da gomma, encerra uma
malei'ia branca e crystallina, a que se dá o nome
de Mannita, que c o seu principio chimico cara-
cterislico, e um principio nauseoso ao qualsealtri-
buem as suas propriedades medicas. A mannita,
não obstante o seu gosto assucarado e a anologia
da sua composição com o assucar ordinário, não é
«iusceptivel de fermentíção alcoólica. Obtem-se
dissolvendo o manná cm álcool fervente e redis-
solvendo em novo álcool o precipitado que se for-
ma pelo resfriamento. Comtudo a mannita não
pertence exclusivament')aomanná;encontra-se tam-
bém nos sucos ti'anssudados por certas cerejeiras,
macieii'as, em algumas espécies de cogumelos, al-
gas etc.
O mannà em lagrimas emprega-se como purgati-
vo doce. Entra em muitas preparações pharmaceu-
ticas taes como pastilhas de Calábria, marmellada
de Tronchin. etc. Algumas vezes é substituído pela
mannita. () manná commun applica-se maispartícu-
larmenlc em crysteis. O maná inferior não lem hoje
serventia entre nós.
Ouanto ao Manná que sustentou os Israelitas no
d'S'rlo, diz-nos iMoyses (Exod., XYI) que appare-
cia de manhã como o rocio, e quea terra se achava
(obcria d' giíos miúdos semelhando orvalho con-
gelado. Oliistoii dur sagradoaccrescenlaqueoman-
nà tinha a forma da semente de coentro branco e que
o gos'o era da mais pura faiinha misturada com
mel. Cada Israelita recolhia um gomor (pouco
mais ou menos 2 litros,; co manná derretia-sc e
dosapparecia desde o momento que o sol aquecia o
teri'('no.
Além disso, o níanná amontoado corrompia-sc no
lim de vinte e quatro horas, de sorte que era pre-
ciso renovar a provisão todos os dias. Entretanto,
na véspera do sabbado, faziam dujjlicada colheita,
alim de não trabalharem no dia consagrado aodes-
canço, e então o manná podia-se conservar j)elo es-
paço de quarenta e oito horas. I)iz-se lambem,
(jue o [)Ovo costumava pizar o manná sobie uma
pedra ou almofariz, cozia-o depois e fazia d'ell(!bol-
los, cujo sabor era de pão amassado com azeite. As
particularidades tão precisas em que entram os
livros santos tratando do m?nná, fazem ver, mui
claro, que era um sustento verdadeiramente mila-
groso enviado todos os dias por Deos ao seu povo.
Todavia uma multidão de auctores lêem procura-
do destruir a idéá de milagre altribuindo o facto
a um simples phenomeno natural. Pelo que, a
maior parte, d*esles escriptores tem identiticado o
mannà com a matéria que distillade certas plantas
leguminosas. Alguns teem avançado que o mannà
era uma espécie de musgo conhecido pelo nome
de Parmdia ou Lecanora esculenta, que nos de-
sertos do Oriente, costuma apparecer subitamente,
de tempos a tempos, sobre uma vasta extençãode
terreno. Eis aijui uma noticia curiosa publi-
cada ha annos em uma revista scienlifica:
«Alguns jornaes lêem annunciado (jue no dis-
Iricto de Jenicheher, Ásia menor, caiudocéo, no
mez de janeiro, uma grande quantidade de manná
em pedaços do tamanho de uma avelã, que sepultou
a terra sob uma espessura de 3 a 4 polle-
gadas, e que os habitantes se sustentaram durante
muitos dias. Este manná fornecia uma substancia
muito branca ; mas o pão, que d'elle faziam era
insípido. O mesmo phenomeno se tinha já dado no
mesmo logar em 1841. Por muito estranho que
pareça este facto, não pôde deixar de ser attribui-
do a causas perfeitamente naturaes. Os exemplos
da apparição repentina de uma matéria comestível,
que parece cair da athmosphera, já na Ásia, já na
Europa, não são muito raros. Todas as vezes que se
lem observado esta substancia, tem-se reconhecido
que não é oulra coisa mais do que uma espécie
de musgo, Parmelia esculenia, cujo tecido muito
succulento pôde ser comido pelos animaes. Leveil-
lé, na sua viagem áCriméa, enconlrou-a em grande
quantidade à superíicie do solo, apresentando alli
uma côr cinzenta e formando pequenos montinhos.
Observando um grande numero de espécies d'este
singular vegetal, achou-as sempre livres e separa-
das do solo, e nunca pôde conhecer-lhe pontos de
ligação de sorte alguma. Aucher Eloy, na sua
viagem á Pérsia, lambem viu e mencionou um
facto do mesmo género. Emfim, os jornaes nos tem
dado asabcrfque, no tempo da expedição do schah
da Pérsia contra Héral, osbabilantesd'esta cidade
acharam e recolheram em grande quantidade, so-
bre a superfície do solo, uma substancia inteira-
mente semelhante, que lhes serviu de alimento por
muitos dias, e a qual se resolveram a comer vendo
as cabras suslenlarem-se d'ella. M'csles dilleren-
tes exemplos, como lambem no facto recentemente
observado em .lenicheher, o maravilhoso manná não
é mais do que um*a espécie de lichcn que os ven-
tos conduzem em grande quantidade para deposi-
lal-o depois a uma distancia mais ou menos con-
sideraveb).
Seguramente, o phenomeno da apparição d'este
l.ichen ollercce uma analogia singular com a do
manná dos Israelitas; mas, ainda assim, identiíican-
do-se este ou com o manná da Tamargueira, ou com
o Parmelia esrulenia, não pôde deixar de se ad-
mitlir a intervenção milagro.sa do poder divino,
dando-se credito á narração de Moysés. Elletiva-
mente, como se pôde explicar, sem isso, que as Ta-
o PANORAMA
79
marisdo deserto fornecessem manná sufficiente para
sustentar perto de dois milhões de homens durante
quarenta annos, ou que o phenomenod'esta queda
(Ití lichen se reproduzisse exactamente seis vezes
por semana durante o mesmo periodo de tempo?
A elymologia da palavra manná, em hebraico
man é muito incerta. (íMan, diz Bei'gierj é um
monosyllabo primitivo que, nas linguas antigas e
modernas significa: alimento, sustento. A dizer a
verdade, Moyses parece applicar este nome ao es-
panto dos Israelitas que, vendo o manná pela pri-
meira vez, disseram: 3ían hu, o que é isto? Mas
o texto hebreu é susceptível de outro sentido.))
O REliSO DE DAHOMEY
O abbade Borghero, superior da missão do Da-
homey, na sua volta á Europa em julho de 1865,
forneceu as noticias mais interessantes sobre aquella
celebre região. Sabe-se, com effeito, que Dahomey
é um ponto de Africa, onde o Iraíico dos escravos
ainda hoje tem lognr em tão larga escala como nas
margens do Nilo Branco. Sabe-se igualmente que
aquelle paiz é o mais sanguinário do mundo, ge-
mendo sob ura despotismo sem limites e sem com-
paixão. Os sacrifícios humanos alli são um uso reli-
gioso, um costume nacional. Se o rei os quizesse
supprimir, os súbditos vociferariam contra a he-
resia e reclamariam a conservação das suas san-
tas tradições!
Já, em 1863, M. Borghero linha dado nos An-
naes da propagação da Fé, uma noticia cir-
cumstanciada da sua viagem à capital d'aquelle
reino bárbaro, chamada Abomé ou Agbomé, e da
sua recepção pelo rei. Começaremos, pois, por ex-
trair d'esla narração alguns dos pontos mais im-
portantes e completaremos o nosso artigo com as
communicações recentes de M. Borghero á Socie-
dade de geoyrapliia de Paris,
Para se chegar a Abomé atravessa-se uma flo-
resta de vinte léguas de largo, cuja estrada é aber-
ta a machadadas. Esta floresta compõe-se de pe-
quenas mangueiras, algodoeiros gigantescos, pal-
meiras de difl^erentes espécies. O algodoeiro, que
altinge algumas vezes uma altura de quarenta me-
tros, é objecto de um culto particular.
Os negros de Lahomey, no que diz respeito a
agua, estão em peiores condições que os habitan-
tes de Paris. Não fazem poços, mas contentam-se
com a agua lodosa e esbranquiçada que se junta
em covas pouco profundas. Mesmo na capital a agua
é péssima ecara, porque é preciso ir buscal-a muito
longe. Só o rei tem direito a beber de uma fonte
cuja agua é um pouco transparente.
Além de Aliada estende-se uma zona pantanosa
que tem perto de 100 kilometros de largura. Os
conduclores das machilas atravessando os pântanos
esterram-se muitas vezes até aos rins, o que dá não
pequeno tiabalho para se desembaraçarem. Perto
de Cana, cidade santa de Dahomey, êncontram-se
muitas aves, entre as quaes se nota uma do tama-
nho de uma gallinha, que se assemelha á pequena
águia dos Alpes; >òom-se também pombos de ra-
ra belleza, e outros pássaros de esplendida plu-
magem mosqueada de azul, verde, vermelho e
violeta.
A caravana de M, Borghero chegou a Abomé
pelas cinco horas da manhã, e parou no meio da
rua, não longe de um immenso algodoeiro, cuja
sombra formava uma barraca natur?!. O príncipe
Choudato avançou a cavallo, armado convenien-
temente, e andou três vezes com a sua escolta em
roda do algodoeiro, saudando-o respeitosamente.
Dous cabécéres (altos funccionarios) apresenta-
ram-se depois a M. Borghero ofTerecendo-lhe aguar-
dente da parte do rei. A aguardente é o verdadeiro
deos d'estes negros.
Acompanhados da sua escolta de honra, os mis-
sionários chegaram á frente do palácio real, que
não é mais do que um vasto recinto de três ki-
lometros de circumferencia, cheio de casas que
outro tempo foram coroadas de craneos humanos.
Notava-se no interior a famosa casa das conchas,
grande edifício inteiramente cobei'to de conchas,
isto é, de dinheiro, porque estas são a moeda no
paiz de Guiné. É d'este modo que o rei faz os-
tentação das suas riquezas.
Quando todos se assentaram debaixo do pavi-
lhão de parasoes em um dos pateos do palácio,
as libações de aguardente e as felicitações, sem-
pre as mesmas, recomeçaram com grande enthu-
siasmo. O rei apresentou depois a M. Borghero o
estado maior do exercito das mulheres.
Effeçtivamente, o rei de Dahomey tem por guarda
de honra um* corpo.de amazonas, intrépidas guer-
reiras, que são, especialmente, encarregadas de
cortar as cabeças nas fíleiras inimigas. O nume-
ro é, segundo M. Borghero, que as contou, de 2:500
e não de 4 a 10:000 como se tem sustentado. Jú-
lio Gerard, o caçador de leões, deixou-se enganar
na avaliação doeste numero porque, fizeram des-
filar diante d'elles três ou quatro vezes o mesmo
batalhão de amazonas, como se costuma fazer com
um exercito de thealro,
M. Borghero tomou conhecimento com as duas
generaes d'estc exercito estranho. A primeira, de
uma edade já avançada, offerecia um verdadeiro
typo militar; os seus modos marciaes mostravam
claramente que a sua vida linha sido passada nos
campos c no meio das vicissitudes da guerra. A mais
nova, era de um aspecto mais brando, mas, não
obstante, muito desembaraçada. Mostrava grande
habilidade no manejo das armas.
No dia seguinte ao da recepção, o rei deu aos
seus hospedes brancos oespetaculo de uma fanta-
sia guerreira. Mandou collocar na praça de armas
uma grande porção de molhos de espinheiro e cá-
ctus, que occupava 400 metros de comprimento,
seis de largura e dois de altura. A uma distancia
de quarenta passos, elevava-se o madeiramento de
uma casa do mesmo comprimento e da altura de
cinco metros. O telhado era coberto dos mesmos
vegetaes. Ouatorzcmetrosalém d'este edificio via-
se uma fileira de cabanas. Ouandose deu osignal
do ataque, algumas centenas de mulheres preci-
pilaram-se, com uma fnria dahouiana sobre o
80
O PANORAMA
monte de espinhos, alravcssaram-o,sallaram sobre
a casa, desceram como que procurando um rodeio
oíTensivo, alacarani-a novamente, tudo com uma
lapidez extraordinária, vertiginosa. Estas mulhe-
res subiam, rojavam-se pelas construcções de espi-
nhos com tanta facilidade como uma bailarina vol-
teando sobre um esli'ado, e portanto pisavam com
os pés nus as pontas agudas dos cactus. Quando
as evoluções terminaram, viram-se entrar no pa-
lácio com as pernas rasgadas c ensanguentadas,
trazendo cada uma um molho de espinhos. As que
mais se dintinguiram receberam coroas de silvas
e enfeitaram o corpo com o mesmo arbusto.
M. Boighero faz uma pintura horrível dos sa-
criiicios humanos que se executam anuualmente
em Dahomey. Durante a noite em que deve ter
logar o repugnante espectáculo, ninguém pode
circular pela cidade. Todo o individuo que è en-
contrado paga caro o atrevimento. ConUudo,com-
jjanhias de músicos passeiam na sombra cantando
de um tom lúgubre. Pela meia noite, uma des-
carga de mosqueteria annuncia o principio das
execuções. As victimas são conduzidas á praça, em
series de vinte e quatro ou tiinta. Tapam-lhesas.vias
respiratórias, eapertam-lhes o peito até os verem
dar o ultimo suspiro.
Uma outra maneira de immolar as victimas con-
siste em pregal-os pelos pés a um barrote, dei-
xando-os expostos ao sol, sem alimento. Ordina-
liamenle moirem ao terceiro dia, em qiianío que
a multidão curiosa, se deleita com^a horrorosa
scena das convulsões. Os cadáveres não são enterra-
dos. Abandonam-os aos cães, lobos, porcos e
abutres. "Os restos corruptos c dispersos infe-
ctam a athmosphera a uma légua em redondo.
É, realmente, um espectáculo, cujo horror excede
tudo quanto é possível imaginar.
Os paizes que conlinam com Dohomey estão de
lai modo empobrecidos, que tudo parece um de-
serto em torno d'esla desgraçada região. Por
consequência os Dahomeyanos nada encontram
pelo caminho quando vão atacar os seus visinhos;
o que resulta chegarem ex haustos de forças, es-
fomeados, incapazes de sustentar uma lucta. Isto
explica as successivas derrotas, queteem soCfrido
n'estes últimos annos.
M. liorghero dá lambem preciosas informações
sobre a topographia da Alta Guiné e particular-
mente sobre o delta do Niger. Segundo elle, a
costa de (juiné está cortada n'um espaço de SOO
kilometros pelos ramos d'aquelle rio, e estes ramos
lêem a sua origem no Sodan. Apesar de todas estas
noticias ageographia desta parte da Africa é ainda
muito obscura.
IJEATIUZ
XII
Ela, gosemos; pela flórea Iara
Beba-se o neclar de clernal 'prazer:
O goso é fumo que se esvae e passa,
Quando mais ébrios nos parece ver.
Gosemos muito; sabe Deos se agora
Negra procella vcin rugindo ao perto,
Se o puro brilho d'esta immensa aurora
I)c liorrendas trevas ficará cobertol
Somos convivas no festim da vida,
Que (em se a morte, jicrpassaíido atroz,
31iiis de uma rosa vem deixar caida,
Quando ha tão bellas em redor de nós?
Que tem, se em meio dos festivos cantos
Que ardente o goso nos inspira já,
Sussurra o ecco de abafados prantos,
Que a desventura soluçando está?..
Que tem que o mundo se airopelle e corra
A|)ós um sondo ([ue atravessa o ar?...
Que o perca, embora, que esmoreça, e morra,
Que eu só, ditoso, viverei de amali—
Vòa, minha alma, pelo espaço cm fora,
O ceo te inleva resplendendo aberto:
Gosemos muito! sabe Deos se agora
Negra procella vem rugindo ao perto!
Voa, minha alma, que (falem, do prado,
Sot)e o jierfume que embalsama o vento;
Deixa esic mundo, que, a chorar curvado,
Modula apenas sepulcliral lamento.
Eia, gosemos; pela flórea taça
Beba-se o néctar que nos da" prazer:
O goso c fumo que se esvae e passa,
Quando mais ébrios nos parece ver.
(losemos muito! da ventura breve
(>eifem-se as rosas que viçando estão;
Ceifem-se Iodas,— uma só não deve
Soltar nas brisas seu perfume em vão.
Gosemos muito! que o prazer recenda.
Em quanto a aurora mi! lampejos tem;
Deixai que a sombra do pesar se estenda
Sobre os que ficam meditando além.
Somos convivas no festim da vida,
Ergamos todos n'um só canto a voz;
Se um parle, embora! que uma llor caida
Não turba o goso que lateja em nós! —
Continua.
E. A.
Vidal.
O primeiro instrumento da pratica é a voz; e,
para essa ser engraçada no fallar, ha-de ter então
propriedades; ser clara, branda, .cheia, e compas-
sada; porque a voz escura confunde as palavras;
a áspera esecca lii-a-lhes a suavidade; a muito del-
gada e feminina faz imprópria a acção do que falia;
a muito apressada empeça e revolve as razões,
que por si podem ser muito boas; não trato das
(juc a natureza inhabililou i)ara esta perfeição, co-
mo hea voz do gago, do cicioso, e do rústico gros-
seiro; mas na do cortezão tomara eu estes altri-
bulos; porque ha alguns que faliam com a voz tão
meltida por dentro, que deixam as palavras para
si, e os ouvintes ás escuras que lhes c neces.sario
estar espreitando o que lhes quereni dizer; e ou-
tros, (jue j)ronunciam com tanta aspereza, que es-
pinham as orelhas dos que escutam; e outros que
faliam tão apressadamente que parece que levam
esporas na lingna.
Francisco Rodrigues Lobo.
Tyi). Frfinco-l'ormKUf;7.a. - Rua do Ttiesouro Vellio, C,
1 1
o PANORAMA
PALERMO
A cidade de Palermo foi bastante celebre na an-
tiguidade. Thiicydides diz que os Phenicios, por
occasião da chegada das colónias gregas á Sicilia,
no primeiro século da fundação de Roma, se re-
tiraram para Vanorinos, que os Latinos depois
chamaram Vanormus. Esta cidade foi successiva-
mente occupada pelos Carthaginezes, Romanos,
Gregos do Baixo-Imperio, Sarracenos, príncipes
normandos, Francezes da dynastia d'Anjou, Ara-
gonezes, Espa.nhoes e Francezes da raça dos Bour-
bons. Hoje, esta capital da Sicilia tem uma popula-
ção de cento e quarenta mil habitantes. O epithelo
de/"e//cefoi-lhedado muito tempo depois, por causa
da sua belleza, da actividade florescente do seu
commercio, da fertilidade do solo, da serenidade do
seu ceu, da amenidade da sua situação, e da ri-
queza e cortezia da maior parle dos seus habitantes.
Se o vento chamado scirocco, não soprasse alli, não
haveria, sem duvida, no mundo paiz mais saudá-
vel do que a Sicilia. O seu golpho não é menos riso-
nho do que o de Nápoles, e a coroa pitloresca que
formam ao longe, em torno d'clla, o monte Pere-
grino, o cabo Zafferano e as collinas da Bagaria,
semeadas aqui e alli de lindíssimas casas de cam-
po, dão a esta cidade o aspecto mais encantador,
e tornam-n'a uma vivenda muito agradável. As ruas
são largas e compridas; duas de entre ellas cruzam-
se no meio da cidade, dividindo-a assim em qua-
tro partes eguaes. A que tem por nome Cassaro,
cujo comprimento é de mil e quinhentos metros
e largura treze, prolonga-se parallelamenteá praia,
desde a porta Antoniana até á porta Maqueda; a
outra, chamada Rua Nova ou de Toledo, tem du-
zentos e cincoenta metros de comprimento; é mais
larga do que a precedente, e estende- se ^lesde a
Porta Nova até à l^orta Felice. Estas duas portas
são muito notáveis: uma pelo seu arco de triumpho
e a outra pela nobreza da sua archilectura.
A praça eslá situada justamente no ponto em
que, as duas ruas, que acabamos de citar, se en-
contram: a forma é ocíogona, rodeiam-n'a bellas
casas, ci'ja architeclura se compõe das três ordens
dórica, jónica e corinthia, artisticamente combina-
das, e está ornada com as estatuas de Carlos V,
Filippe I!, Filippe III c Filippe IV. Fora da porta
Felice, vô-sc o magniíico passeio da Marina, que
conduz ao de Flora. Este ultimo jardim é de rara
belleza. A pouca distancia ha um rico jardim bo-
tânico no qual as plantas exóticas crescem e se
multiplicam como no seu solo natal.
A porta de Palermo é pequena, mas commoda,
segura e bem fortilicada.
A praça do palácio real é bastante espaçosa, e
tem no centro a estatua em bronze de Filippe IV,
82
O PANORAMA
rodeada de outras de menor dimensão, que repre-
senlam as virtudes d'esle principe. A praça Pre-
toriana distingue-se por uma fonte, cujo desenho
e escuiplura são admiráveis, não obstante a ex-
travagância da concepção. A praça San Domi-
nico contém as estatuas em bronze de Carlos llí
e de Maria Amélia, sua esposa, e uma columna
magnifica que sustenta a estatua em bronze de
Nossa Senhora. A frontaria da igreja de San Do-
minico forma egualmenle um dos principaes or-
namentos d'esla praça. A praça de Bologni apre-
senta aos entendedores uma bella estatua em bronze
de Filippe Y.
Palermo conta um grande numero' de igrejas,
todas merecedoras de particular attenção. A ca-
thedral, diz Mr. Moret, fundada em 1170, por
Gautbier, no reinado de Guilherme II, é um vasto
edilicio de aspecto imponente, mas de um género
h\ brido; é um quadrilongo com travessas salien-
tes, terminado em cada extremidade por quatro
altas torres, elevando-se, no centro, um zimbório
de architectura italiana. Uma ponte suspensa jun-
ta ao corpo do edilicio uma outra torre de forma
diílerente, mas de altura igual á das outras. A fron-
taria principal é lateral e dá para uma praça lon-
ga que a separa da rua Nova; a entrada é de
estylo mixto, que M. Fargasse classifica, não
sem razão, de arabe-normando, assim como o
todo exterior e os campanários. O conjunclo, se-
mi-oriental e semi-europeo, é soberbo e magesto-
so ; mas ao primeiro exame, reconhecem-se logo os
retoques, variedades e mesmo, permitta-se-nos a
expressão, a hostilidade dos estylos. O interior não
é tão explendido e bello como o exterior, comtudo
tem bastantes ornamentos. A abobada está susten-
tada por oitenta columnas de granito oriental. O
altar mór é riquíssimo, e distingue-se por uma co-
lumna magnifica de lapislazuii, de extraordinária
dimensão. Notam-se também n'esta igreja muitos
mausoleos de mármore branco edeporphyro, onde
repousam as cinzas de antigos monarchas.
A igreja de S. José acha-se situada na praça Vi-
gliana ; encerra grandes columnas de mármore
turqui, jDreciosas pedras no altar mór, e uma ca-
pella subterrânea cujos ornamentos são riquíssi-
mos.
Entre os monumentos religiosos que erigiram ao
deos dos exércitos, que os fazia triumphar, os va-
lorosos filhos de Ilauteville, o estrangeiro observa
com interesso a igreja dcMartorana, uma das mais
curiosas da Sicilia, que foi edificada, dizem, por
Georgio Rozio Anticliiano, almirante do rei Iloge-
ro, pelos annos de 11 íO. Contém mosaicos, pin-
turas soberbas e alguns lraI)a!hos admiráveis de
escuiplura. Esta igreja acha-se sob a invocação
de São Simeão.
Citaremos também as igrejas, de S. Maltco ou
deirAnima, S. íiiusoppe dei Tcatini, .íesu, S. l)o-
minico, Olivella, S. Filippe Neri, a capella sub-
terrânea,«dita Capella dei Santo Crocilisso, o ora-
tório do Uozario, etc, ele, onde se encontram
magnificas pinturas e objectos de arte muito curio-
sos.
Os palácios de Palermo são numerosos e ricos.
O Palácio Real, perto da porta Nova, foi em outro
tempo uma fortaleza defendida por muitas torres,
das quaes apenas resta uma, que hoje serve de
observatório astronómico. Este palácio é a residên-
cia do lenente-rei. A capella que n'elle existe, cha-
ma-se de S. Pedro ; é obra de architectura mages-
losa c contém preciosos mármores , magníficos
mosaicos e outras muitas raridades.
O palácio do senado, diante do qual está a fon-
te, de que já faltámos, é lambem digno de admi-
ração ; possue duas estatuas antigas e muitos frag-
mentos gregos e romanos.
Entre os palácios parlicularea citaremos os dos
príncipes Brotera, Torremuzza, e os dos duques de
Gravina c de Anjou.
Palermo tem cinco hospitaes, uma universida-
de. Ires bibliothecas publicas, a Pinacoteca (gale-
ria de pinturas) para a fundação da qual contri-
buiu poderosamente o principe de Belmonte, o mu-
seu archeologico, que conlém uma grande collec-
ção de medalhas greco-sicilianas, e que todos os j
dias recebe as raridades que se encontram nas
escavações feitas em diversos pontos da ilha, e,
emíim, a fundição real.
Os arrabaldes de Palermo não são menos inte-
ressantes. Saindo da cidade pela estrada ao longo
da praia vê-se o Lazarelo e chega-se ao pé do mon-
te Peregrino, chamado pelos antigos, Ereias. Esta
montanha, durante as guerras púnicas, teve algu-
ma celebridade; depois caiu no esquecimento.
Mas, em 1624, descoljrindo-se alli, em uma gruta,
o cadáver da virgem real. Santa Rosália, começou a
adquirir novamente importância. Esta santa, fu-
gindo aos altraclivos da corte, rcfugiou-se n'aquella
gruta, onde passou uma vida solitária e contem-
plativa. O seu cadáver tendo sido transportado
para Palermo, no tempo em que a peste devastava
esta cidade, e cessando n'essa occasião o fiagello,
fez com que fosse declarada, Santa Rosália, a
protectora de Palermo, e em seguida se transfor-
masse a gruta em uma igreja, cujo aspecto é
maravilhoso. A estrada que a ella conduz, cons-
truída nas costas do monte, custou grandes som-
mas; está quasi toda assente sobre sólidos arcos
de alvenaria. Instituiu-sc lambem, por aquella oc-
casião, uma festa annual, que se celebra a 15 de
julho, c que altraho a Palermo uma grande multi- I
dão de curiosos. N'esle dia, a igreja depositaria
dos restos morlaes da santa, apresenta-se de tal
modo illuminada, que a vista senle-se oííuscada
com o brilhantismo das luzes.
São lambem notáveis dois caslellos de cslylo
mourisco ; um chamado Ziza, que se eleva na al-
dôa de Olivazza, pertencente ao principe Schcrra,
e o outro denominado Cuba, situado na estrada de
Monrealc. Estes nomos de Ziza o Cuba, são os dos
filhos de um Emir, que os mandaram construir
pelos seus árabes. A situação d'esles dois edificios
é admirável.
Avisla-se ao longe Monreale pela sua elevada
posição; esta cidade bellissima e bem edificada,
conta, aproximadamente, dez mil habitantes. En-
o PANORAMA
83
Ire os seus magníficos templos, citaremos a calhe-
dral de Sancta-Maria-Nuova, fundada por Guilher-
me o Bom, era 1174 e o convénio dos Benedicli-
nos, cujos arcebispos, pro tempore, são abbades.
A grandeza d'esle templo, a sua arcbiteclura, a
raridade dos mármores que contém, as suas por-
ias de bronze trabalhadas pelo celebre Pisan Bo-
nanni, o S. Jeronymo, do esculplor António Ga-
gini, os sarcophagos dos dois Guilhermes, o Bom
e o Mau, e outros preciosos ornamentos, tornam
esta igreja um dos melhores emais sumptuosos edi-
fícios da Sicilia. Giovanni Luigi Leilo, publicou
d'ella uma exacta discripção, cuja melhor edição
appareceu em 1702. Mas, de então para cá, o
o templo tem sido enriquecido de novos ornamen-
tos, entre os quaes mencionaremos particularmen-
te o altar mór, todo de prata, que o arcebispo
Testa, prelado não menos piedoso que sábio, man-
dou fazer á sua custa no fim do século passado.
Um incêndio, em 1811, causou a esta igreja gra-
ves perdas, que, entretanto, teem sido inteiramente
reparadas, á excepção de alguns túmulos que fi-
caram completamente destruídas O mosteiro dos
Benedictinos, possue um claustro extremamente
notável. Existe no seu refeitório uma pintura
muito estimada, representando S. Benedicto dis-
tiibuindo pão aos pobres. Este quadro é obra de
Pietro Novelli, natural de Monreale, pintor digno
de maior fama, que a de que gosa. Yô-se allí tam
bem um quadro deRaphael ; asna ricabíbliolheca
foi consideravelmente augmentada pelo arcebispo
Testa.
A cidade de Palermo tem dois portos; um pôde
pcrleitamente receber navios de grande lote; o outro
apenas admitte pequenos vasos mercantes. O seu
comniercio é limitado.
Palermo foi o theatro das famosas Vésperas Si-
cilianas, de que opportunamente fallaremos.
PEREZ LORENZO
(Sccnas «Ia Camitanha «lo IMcxico)
Por PINHEIRO CHAGAS.
VI
Não durou muito a impressão produzida por es-
te sinistro espectáculo no animo doscontra-guerri-
llias. A sua vida aventurosa habiluara-os a estas
scenas, e não havia talvez entre elles um só, que
não tivesse feito já alguma execução semelhante
n'algum recanto sombrio das florestas mexicanas,
ou dos desertos da Califórnia. A lei de Lynch im-
pera ainda n'esses ermos, onde a relê das gentes
euiopéas se despe dos incommodos fatos da civi-
lisação, e se arroja com enlhusiasmo a plena bar-
baiia. Olho por olho, dente por dente, eis a lei que
rege essas hordas de emigrados, que vagueiam ás sol-
tas pelas savanas da America.
Os oíHciaes francezes sentiram mais repugnância.
Os bravos militares, educados nas tradições cava-
lheirescas das guerras europeas, não podiam coni-
prehender estas vinganças selvagens, e ainda me-
nos a tolerância cora que o seu coronel j)arccia
cobrir estes actos indignos. Agruparam-se era torno
do capitão Yiarmont, e a conversação animada, que
travaram em voz baixa, mostrava que a disciplina
não seria já bastante forte para os reter, se esse
verdugo, que lhes servira de guia, tivesse a au-
dácia de reapparecer diante d'elles.
Comtudo o cadáver já lá ficava muito para traz,
pendurado da sua arvore, e os contra guerrilhas
caminhavam alegremente, de espingarda ao hom-
bro, atravessando as clareiras innundadas pelo ful-
gor da lua, as veredas intrincadas da íloresta, on-
de as hervas altas se curvavam ao peso das gotas
do orvalho, e onde os ramos cruzados do arvoredo
mal deixavam coarem-se alguns pallidos raios da
rainha da noite. A influencia suave d'essa noite
dos trópicos dissipara rapidamente a triste impres-
são, que por alguns momentos pairara sobre to-
dos. O desaffogo, que o espirito mais intrépido
sente, depois de uma batalha que se atravessou
incólume, abria o animo dos ofliciaes e dos sol-
dados ás brandas emanações d'aquella poética na-
tureza. A brisa da noite, impregnada nos frescos
vapores dos arroios e das fontes, acariciava sua-
vemente as faces dos conlra-guerrilhas. Uma con-
versação animada percorreu as fileiras, que antes
do combate haviam atravessado silenciosas esses
mesmos sitios. Accenderam-seos charutos e os ci-
garros, parecendo que de súbito ura bando depy-
rilampos sulcava com a sua luz palpitante a sombra
do copado arvoredo. Brotaram aqui e acolá ale-
gres risadas como um tiroteio de alegria, que se
foi reforçando cada vez mais até que a ílnal se trans-
formou n'um confuso borborinho de risos, falias,
e cantos que encheu o silencioso bosque.
Súbito ouvio-se ao longe, por entre a ramaria
das arvores, um som vago e aerio, uma longínqua
musica, que parecia exhalar-se do seio fremente
das arvores, como um canto de fadas, ou um con-
certo melodioso entoado pelos sylphos, que se baloi-
çaram na ramaria das bananeiras. Todos se ca-
laram, e, por um comraura accordo, pararam e
pozeram o ouvido á escuta. No meio d'esse silen-
cio solemne ouviu-se mais clara, mais distincla
e mais harmoniosa também essa musica distante,
cujas notas vinham, no regaço da brisa, expirar
no ouvido dos subordinados do coronel Dupin.
Enlre-olharam-se todos com expressões bem
diversas no olhar. Os soldados americanos reve-
lavam a impressão supersticiosa, que lhes salteiara
logo oscredulosespiritos, os europeus maisscepticos
mostravam simplesmente espanto, e os ofliciaes fran-
cezes, de organisação mais poética e enthusiastica,
sentiam a doce sui preza do viajante que peneira
n'um palácio de fadas, e que apenas se maravilha,
sem se espantar, dos prodígios que vão succe-
dcndo.
Não houve talvez um só d'entre elles que não
se julgasse o heróe predestinado de alguma aven-
tura de incantamenlos.
— Coronel, disse Yiarnionl approxiinando-sedo
commandanle, entrámos,-segundo me parece, nos
jardins de Armida. Ou, se estivéssemos no mar,
em vez de estarmos no centro de uma floresta, dir-
Ihe-hia que tomasse cautella porque tínhamos as
sereias comnosco.
o PANORAMA
—Capitão Viarmont, respondeu Dupin,não sup-
ponha que mereçamos ás sereias a honra de ser-
mos equiparados' a Ulysses. E de mais, ainda que
assim losse, não temeria as consequências de tal
apparição. Não seria decerto o capitão quem cede-
ria as tentações. De outras mais perigosas escapou
ha pouco, evi com jubilo a lemljrança dos seus
deveres militares arrancal-o a doce inlluencia da se-
reia, que a todos nos incantou em casa deD.llamon.
— E olhe que foi meritório o sacrilicio, tornou
Viarmont rindo. Se tivesse fugido aos laços má-
gicos do amor para me arrojar no fervido seio de
gloria; se tivesse deixado murchar a murta de Vénus
para enramar a fronte com os loiros de Bellona,
como se dizia no tempo do nosso primeiro impé-
rio; se saisse de casa de D. Ramon ao som dos
clarins da alvorada, para ir entrar n'uma pugna
brilhante como a de Solferino, em que se com-
balia á luz ardente do sol da Itália, à vista de dois
imperadores e um rei, entre as cargas magnificas
da cavallaria, o magesloso estrondo da artilheria,
o som das musicas militares, o perfume inebriante
da pólvora; inílammados além d'isso pela consciên-
cia de que defendíamos uma grande idéa, de que
dávamos a liberdade a um povo digno de a obter,
então sim, não seria muito acerbo o sacrifício. O
enthusiasmo ardente das grandes batalhas era mais
do que bastante para consolar da perda das doces
commoções do amor ! Mas sair d'um baile esplen-
dido, abandonar um terraço cheio de aromas ine-
briantes, uma mulher adorável que escuta com
certa condescendência o vago hymno namorado
que lhe murmuiámos ao ouvido, para irmos assis-
tir a uma lucla nocturna com meia dúzia de ban-
didos, |)ara nos expormos a morrer obscuramente
varados por uma navalha ou pela baila d'ura re-
volver, para assistirmos a actos de barbaria que
nos revoltam, e tudo isso ímpellidos porque mo-
tivo? Por um motivo que não podemos nem com-
prehender, nem acceitar, o de opprimirmosum po-
vo livre, o de lhe impormos...
— Capitão, capitão! interrompeu o coronel com
certa serenidade, cautella no que vai dizer! Nunca
se emenda, continuou o benévolo Dupin sorrindo-sc,
é um frondvur incorrigível.
Continua.
AS RÃS DE SARTILLY
Quando Mr. Kerengal combateu na Assembléa
constituinte de França os direitos scnhoreaes, e
citou entre outros a obrigação imposta a certos al-
deãos de bateras aguas dos tanques para fazer ca-
lar as rãs, uma parte da Assembléa indignou-se
contra um prccoilo Ião [lucril c indecoi'oso. Aclia-
va-íiC então a nação franceza em uma epocha que
obrigava a olhar para todas es coisas seriamente;
os factos, portanto, tomavam a magnitude do prin-
cipio que os produzia. Ainda se não tinha inven-
tado essa zombaria systematica, que mais tarde
appareceu nas reuniões, e que torna impossível o
pronunciar certas palavras ou tocar em certos pon-
tos, porque o sarcasmo está sempre prompto para
apoderar-se da sua presa e despedaçal-a.
Ora, se entre os privilégios senhoreaes houve al-
gum ínolTensivo foi, sem duvida, o de castigaras
tranquillas aguas dos tanques. Osvillãos olhavam-
0 mais depressa como um divertimento do que
como um encargo e nunca o levaram a cabo, diz
um auctor antigo, sem canções e sem nma sa-
raivada de ditos ef/arf/al/iadas.Coi\ser\di-iQ uma
ti'adição graciosa, consagrada por um provérbio,
quejuslitíca essa alegria sarcástica, Ião natural do
povo normando.
Sartilly, situado no departamento da Mancha,
tinha, ao que parece, na idade media grandes tan-
ques cheios de canaveaes. Formavam, e*stes, ver-
dadeiros bosques, cuja caça se compunha de rãs,
caça alvoroçadora,cuja destruição se permiltia aos
aldeãos, que, em verdade, pouco se dedicavam a
ella, porque a boa gente de Sartilly, segundo a
tradição, era mais affeiçoada a comer tripas e a
beber cidra do que a matar rãs.
Succedeu, comludo, n"um certo verão, a caslellã,
estrangeira que linha chegado da França, sedu-
clora e cof/uel(e formosura, cega por musica e dança,
achar-se lóra do sgu elemento pela incommoda vi-
sinhança dos músicos aquáticos. As rãs não a dei-
xavam dormir, pertubavam-lheo canto, moiam-lhe
a paciência (as damas ainda não tinham inventado
os nervos) em uma palavra, tanto fizeram, que a
interessante caslellã viu-se obrigada a supplicar
a seu senhor, que era seu escravo, que, a todo
transe, fizesse callar as malditas rãs.
O senhor, de Sartilly convocou, por consequên-
cia, todos os aldeãos, para que sacudissem as man-
sas aguas, a fim de impor silencioso á turba. Os
villãos reuniram-se armados de grandes cajados e
começaram a espancar o pobre tanque, não sem
soltar alguns ditinhos com relação ao capricho da
dama. Em pouco tempo o bosque de canas achou-
se transformado em um charco immundo e asque-
roso, de modo que a nobre caslellã, não podendo
supportar as suas pestilentesexhalações, adoeceu.'
Chamaram-se todos os curandeiros das cercanias,
que empregaram, durante trczmezes consecutivos,
lodos os esforços possíveis para salvar a caslellã;
mas tudo foi baldado; a pobre senhoia caminha-
va de mal para peior. Não foi, senão depois de a
lerem deixado em paz, declarando a doença incu-
rável, que conseguiu algumas melhoras. ÍSa con-
valescença appeieceu-lhe íiar, para o que mandou
buscar uma roca jerde; pois as canas de Sartilly
servem para este uso; quando, porem, trataram
de satisfazer o desejo da caslellã, viram que os
villãos, ao espancar o tanque, tinham reduzido a
fanicos Iodas as rocas. A dama não gostou dodiver-
mcnto e mandando chamar os destruidores das ro-
cas reprehendeu-os asperamente. Um, porém, dos
mais ousados, coçando na cabeça, c dando milha-
res de voltas ao barrete que linha nas mãos, dis-
se-lhe, que, no seu entender,
Oneiii ti" niu-l 'J<3 rãs .solFria,
Hoc;is iiiislcr não Iimvííi.
Esle dito lornou-se alli proverbial, ehoje appli-
ca-se a Iodas as pessoas do bello sexo, exlrema-
menle delicadas ou habitualmente ociosas, que se
dão ao trabalho por casualidade.
o PANORAMA
85
MURILLO
A grande gloria arlislica da Hespanha cifra-se em
dois nomes eternos; Cervantes e Murillo: Cervan-
tes o pintor da terra, Murillo o pintor do ceu.
Aquelle, mordaz, sul)lil, delicado, um pouco cynico,
por vezes até galanteador, (como observa um grande
espirito), encara o mundo atravez da mascara da
comedia, e ri-se d'elle com o sorriso lino do sar-
casmo. Este, crente,
espiritualista, alma
propensa ao extasi,
imaginação que ten-
de a erguer-se da ter-
ra para se engolfar
em novos mundos ,
involve as suas crea-
ções em uma atmos-
phera celestial, e im-
prime-ihes a feição
dos anjos.
Sevilha, sua pá-
tria, é boje o templo
da sua gloria. No mu-
seu, uma das salas é
completamente cheia
pelos quadros de Mu-
rillo, um dos quaes,
(S. Thomaz de Villa
nova) pôde ser repu-
tado, no dizer dos en-
tendidos,como a obra
prima do pintor, e
uma das mais notá-
veis em pintura.
Felicien Mallefille,
nas suas Memorias
de D. Juan, diz o se-
guinte, ao descrever
Sevilha : a Murillo ,
comme s'il avait
voulu laísser á sa
patrie le secret de
son génie, n' existe ré-
element et ne se révêle
qu'ici.La sallequon
lui a exdusivement
consacrée est un tresor et vaut à elle seule le voyage.T)
Vinte e três são os quadros de que esta soberba ga-
leria se compõe, galeria em que o viajante penetra
como n'um sanctuario, cora o respeito que as gran-
des obras impõem, e com o estremecimento que os
grandes nomes suscitam.
Os quadros são: — O Nascimento, S. Leandro,
e S. Boaventura, A Piedade, S. Agostinho, uma
virgem, A Annunciação, outra virgem, outro S.
Agostinho, S. Pedro Nolasco e a virgem da Mercê,
S. José, Christo e S. Francisco, outro S. Agosti-
nho, Uma visão de S. António, Uma (Conceição,
S. Félix de Cantalicio, outro S. Félix, Uma Con-
ceição, pequena, Santo António, A Conceição ul-
t-ma. Santa Justa e Uufina, S. Thomaz dê Villa
d ando esmola aos pobres, outro S. Félix, A Vir-
gem da Toalha, (í/í! laservilleta.)
A propósito d'este ultimo quadro corre, como
justificação do nome, uma certa historia, que, seja
ou não seja exacta, aceita-se, todavia, como rasgo
caraclerislico do admirável talento de Murillo. Este
pintor havia sido encarregado de fazer diversos qua-
dros para certo convento. Durante os mezes do
trabalho, um kigo virtuoso, \m\ amador tenaz, ha-
via constantemente auxiliado o grande mestre, no
pouco, no quasi na-
da em que poderia
ser-lhe ulil. A coad-
juvação limitava-se,
portanto, ao lim-
par dos pincéis e
ao moer das tintas.
Guando Murillo deu
por concluidos ostra*
balhos de que o ha-
viam incumbido, o
pobre leigo por taes
maneiras e com taes
instancias lhe pediu
uma memoria, uma
recordação, uma lem-
brança apenas, que
Muriilo, pegando da
toalha a que costu-
mava limparas mãos,
traçou, esboçou, e em
poucos dias concluio
o celebre quadro co-
nhecido pelo nome
de Virgem de la ser-
villeta.
Digamos agora
duas palavras bio-
graphicas:
Bartholomeu Este-
vão Murillo nasceu
em Sevilha em 1618.
Seu primeiro mestre
em pintura foi Juan
dei Castillo. Até os
vinte quatro annos o
espirito do que mais
tarde deveria ser uma
gloria humana, viveu, por assim dizer, circumscri-
pto e encadeado. Castillo não era para nortear o
vôo incerto d'aquella águia. Quando Pedro de Mova,
na volta de Londres para Granada, passou pelo logar
onde Murillo se achava, tra5íendo comsigo o fructo
das lições de Van-Dick, Murillo. despertado subi-
tamente, arrancado por aquellas obras ao ma-
rasmo emque se achava, sente inllaramar-se-lhe n'al-
ma uma luz nova, e parte para Madrid, a apresentar-
se ao grande pintor de Filippe IV, Velasquez, en-
tão cercado de gloria, de respeitos e de riquezas.
O que os conselhos d'este mestre lhe produziram
no animo, dil-o a rápida evolução do seu talento.
Dois annos bastaram para este noviciado; em
IGio vemos de novo Murillo em Sevilha, entregue
a si próprio, pintando, progredindo sempre, lu-
tando trinta e sete annos cora esse gigante, que
86
O PANORAMA
depois se chama a immortalidade, e a quem elle
ganhou os louros de que se engrinalda o seu tu-
mulo.
O. quadro do que a nossa gravura é copia existe
ao presente na galeria nacional de pintura de
Londres, pela qual foi comprado, em 1841, no
leilão do espolio do sr. Simon Clark, por nove
contos de reis
Repiesenla elle, como se vê, o sanlo precursor
de Clirislo. As palavras queannuuciaram arcdem-
pção liumana:
— «Eis-aqui o cordeiro de Deos por quem serão
rcdcn)idos os peccados do Mundo;» — deram o as-
sumplo para este delicioso quadro.
E. A. Vidal.
♦ A QUESTÃO LITTERARIA
Por ZACHARJAS AÇA.
II
Propondo-me escrever não um pamphlelo que
derrame nova luz sobre a questão, como porahi cos-
tumam dizer alguns araulos e pregoeiros amadores
de lilleralura ligeira, e onde se ataque accintemente
com garras e dentes um dos grupos litlerarios que
se gladiam n'esle momento, mas sim uma historia
crilica, uma apreciação rápida das idéas aventa-
das pelos contendores dos dois campos, parece-
me ter sido lógico começando pelo principio, isto
e, por um esboço crilico de algumas obras do sr.
Theophilo Braga e do sr. Anthero do Ouental,
porque foram eslas a causa occasional do sr. An-
tónio Feliciano de Castilho escrever as celebres
paginas da carta ao sr. Pereira, e (|uea seu turno
motivaram a epistola que tem por titulo Bom senso
c bom f/oslo, dirigida por um dos criticados ao
auclor da Noífe doCaslello.
Ha já tanta luz por ahi, a questão tem sido tra-
tada e visla de tal alio, na altura dos princípios
como se costuma dizerem S. Bento, que livre-me
Deus da tenlação de elucidar n'este ponto aquém
quer que seja. í^om tal pretenção faria, sem du-
vida alguma, o eíieito de um homem que em um
brilhante dia d'estio sahisse á rua com uma lan-
terna accesa na mão.
Ouando appareceu a Visão dos lempos fui um
dos que applaudiram a tentativa ])oelica. O livro
era uma promessa. Pensei d'elle o que agora penso.
Entre outras coisas, achci-o confuso e pouco por-
luguez na linguagem da Inlioducção, que, atlenia
a novidade que seu auclor nos qiíeiia dar, devia
vir mais cuidada e esmerada. Conhecendo a Índole
do nosso espirito que, desgraçadamente, nãoédado
a profundas cogitações, o sr*. Theophilo Braga de-
via doirar a pillula. ISão o fez. O resultado foi o
que era de esperar. Correndo o risco de ser con-
siderada como uma turba de ineptos a população
leitora de Lisboa declarou, una você, que o prefa-
cio do novo livro era ininlelligivel, e, rechaçada
d'aHi, lançou-se, anciosa de comjjrehender, sôbic
a Bacchante; e exaggerou o merecimento (raquella
composição porque a entendeu. Veem-se com
bons olhos as coisas que nos lisongciam.
Porque é que o publico declarou que não per-
cebia nem uma phrase da Generalisação da /tis-
toria da poesia ? Foi só porque ella não tinha aquelle
esplendor de estylo tão grato aos nossos espíritos
tão amantes da luz? ou porque a linguagem não
denunciava o convívio dos bons modelos? Não,
não foi só por isso. O publico não entendeu, por-
que em todo o casa -não i)odia entender. É esta a
verdade. E não podia entender porque não sabe.
Concorreram, portanto, três rasões, todas for-
tíssimas, para que a prosa do sr. Braga não agra-
dasse aos leitores; e vem a ser, a falta de clareza
e vernaculidade do dizer, a pouca aptidão dos po-
vos da península para os estudos phílosophicos, e
principalmente a ignorância quasi geral em que
jazemos.
O livro receberia, por certo, outro acolhimento,
se o auclor fosse mais lógico, atlentasse com
mais círcumspecção na natureza e circumstancias
do nosso publico, e fizesse, em vez de uma gene-
ralisação, um trabalho anah tico. Não digo aqui
se esta tarefa era mais ou menos dillicil do que
a que escolheu ; provavelmente ser-lhe-ía impos-
sível leva-la a cabo com a proíiciencia que ella
exige, mas, qualquer que fosse o exilo da obra,
havia já a agradecer a intenção e a louvar o senso
critico do poeta que mostrava d'esse modo conhe-
cer a atmospher? ínlellectual em que vive e que-
rer ser útil ao seu paiz.
Muitos dos livros escriptos em Allemanha não
podem ainda ser percebidos e utilisados por quem
sahio dos nossos mesquinhos estabelecimentos se-
cundários, ridículos se os compararmos com os
gymnasíos allemães, com as escholas normaes e
faculdades de lettras da França e com os institu-
tos livres da Grã-Bretanha. E depois, conviver com
i{alzac. Dumas, Musset c o p/iilosopho Henrique
lleíne, não é habilitação sullicicnte para estudar
Olfricd Muller eosescríplores da cschola histórica
allemã. O nosso publico está ainda muito innoccnte
n'estes assumptos. Os mais adiantados lêem a Re-
vista dos dois Mundos \ os outros continuam a fo-
lhear romances ; a grande maioria dos escri piores
entretem-se a fazer estylo, isto é, cobrir es(iueletos
com muitos ouropéis, isto, que é visível e clarís-
simo, escapou ao senso profundo do sr. Theophilo
Braga.
Qualquer que seja a impressão que produzam
as minhas palavras não me Iremeo a mão ao es-
creve-las, porque estou convencido da verdade
(relias, porque entendo que é necessário dar um
exemplo de consciência lílteraría, e poríjue hei de
ter sempre a audácia de dizer o que penso.
Encantoados n'este palmo de terra, communi-
cando com a Euro|)a i)elo Mediterrâneo, gosamos
de uma grande liberdade i)olílica, mas n'isso se
cifram as nossas ventuias. E muito, mas não é
tudo. As sciencias, as lettras e as artes jazem en-
tregues ao esquecimento; foram preleiídas pela
politica. Deus (jueira (jue não venha longe o dia
do seu i'enascimenlo entre nós.
Hunsen escreve a sua obra sobre o logar do
Egypto na historia universal, Layard traz das
o PANORAMA
87
suas viagens as Antiguidades de Nitiiveh, Otfried
Muller morre aos quarenta annos, victima do seu
amor á sciencia, e deixa-nos oí Etruscos, os Dó-
ricos, o Bianual d'arclieologia da arte e a His-
toria da litteratura grega,' {\) Curlius e Grote
escrevem a Historia da Grécia, trabalhos admirá-
veis, ricos de sciencia e de critica, multiplicam-
se as edições da Sciencia da falia úa Max Muller,
um dos primeiros philologos modernos, etc. mas
todos estes estudos são perdidos para nós, porque
as nossas bibliothecas não os possuem, porque os
nossos jornaes e revistas não se occupam d'elles e
mostram desconhece-los completamente, porque a
nossa sciencia em n^aleria de philologia, tomando
esta palavra no sentido allemão, conserva-se pouco
mais ou menos na altura da de Frei Bernardo de
Brito, porque, quando se discute a formação das
linguas, ainda ouvimos fallar a serio na Torre
de Babel, porque se ataca aphilosophia e a scien-
cia da Allemanha, fachos queilluminam hoje todo
o mundo pensador, sem previamente as ter lido e
estudado, e não ha por ahi basbaque nenhum que
não mofe da philosophia transcendente, indo, infe-
lizmente, achar ecco na intelligencia de homens
que teem obrigação de guiar os outros e de resis-
tir ás más paixões da ignorância e da vaidade.
Os nossos antepassados são insultados porque
vieram do Norte, são bárbaros! Para se,dizer isto
é necessário esquecer que foram esses selvagens os
fundadores das nações modernas.
Em que tempo vivemos nós? Estamos no sé-
culo XIX ou ouvimos os oradores romanos pedir
legiões para guardar os limites do império e ir
resgatar as águias de Varro sepultadas nos plai-
nos da Germânia?
(Continua)
FESTAS DOS MUSULMANOS
A sexta feira é para os musulmanos o que o
domingo é para os christãos e o sabbado para os
hebreus. Nesse dia concorrem aos templos, onde
devem entrar descalços, passeiam, dão suas reu-
niões, etc.
No dia 8 de ínaAarr«n, primeiro mez, celebram
por dez dias seguidos o assassinato de Ocein, grande
iman da Pérsia; e n'esle mez estão prohibidasas
hostilidades, pois ha suspensão de armas, não sen-
do caso de grande urgência.
Na primeira sexta feira de safar, segundo mez,
reunem-se os turcos para tratarem assumptos de
guerra e seus preparativos. No dia 11, celebram
a santa noite e festa do nascimento de Mafoma;
alguns califas fesfojam-n'a seis dias depois; e na
ultima quarta feira celebram a santa noite ou a
festa da trombeta que convocará a juizo.
No dia o de rabie, terceiro mez, tem lugar a
festa da noite santa da concepção de Mafoma. A
16 commemoram a santa noite da sua ascensão.
Em lo de schaben, oitavo mez, é a festa da
santa noiíe do exame ou acções dos homens, es-
(1) Esta obra foi recentemente traduzida etn froncez por Karl
Hillebrand.
criptas pelos anjos para serem apresentadas no
tribunal divino.
O mez santo de ramadan, e nono, é de um je-
jum rigoroso, e não comem nem bebem senão
depois do sol posto. Na tarde e véspera do
primeiro dia do mez seguinte, schabal, começam
a festejar a sua paschoa ou o grande Bisrem.
Em 2i de ramadan festejam a noite santa da
omnipotência ou revelação de mysterios de Deos
a Mafoma. Em 16 de schah celebram a victoria
ou a batalha de Gud, dada por Mahomet á sua
própria tribu. A 20 á&scahal, noite santa e festa
da partição da lua por Mafoma, a que se atlribue
o intitular-se o gram sultão senhor de meia lua.
O mez de dul-kaden é mez de descanso, e o se-
guinte (lul-kaden segundo é o das peregrinações;
pois creèm que n^eile foi determinada por Abra-
ham a peregrinação de Ismael e de Agar, pelo
que se denominam como descendentes de Agar,
agarenos, e de Sara, sarracenos. No dia 8 doeste
mez celebram a festa da apparição de Deos ao
prophela.
OS PHILO-PORTUGUEZES.
POR INNOGENCIO F. DA SILVA.
IV
(Conclusão)
Havendo de pôr termo por agora a estes apon-
tamentos, falta-nos para cumprir oproraettido com-
memorar ainda dous distinctos philologos ingle-
zes, cujo olfato senão perturbava com o bolor dos
nossos clássicos, e que no estudo da antiga litte-
ratura portugueza viam e admiravam alguma coisa
mais que as algaravias mysticas dos frades eston-
teados, de que com tamanha irrisão mofam e des-
denham estes nossos modernos innovadores por
excellencia, sublimes alvitristas âas, praias do fu-
turo, para as quaes se encaminham geifosamente,
inspirados, ou antes conduzidos
«De alguma mão feita d'amor e luz,
'A revolver' lá dentro em si nma ideia,
«Que alfim luza também no nosso fundo I! {')
Fatiaremos pois de Lord Strangford e de sir J.
Adamson.
O primeiro, não menos insigne na carreira di-
plomática que o seu compatriota Stuart, nasceu na
Irlanda, segundo se dizem 1780. Tendo sido se-
cretario da Legação britannica em Lisboa, foi no-
meado ministro plenipotenciário perante el-rei D.
João VI, a quem, na qualidade ainda de príncipe
regente, acompanhou para o Brazilem 1807. Ten-
do servido na corte do Rio de Janeiro durante al-
guns annos, passou depois a exercer eguaes func-
ções nas de Stockolmo, Constantinopla e S. Peters-
burgo, vindo emfima fallecerna sua casa de Has-
tey Street em anno que ignoramos.
Possuía excellenle bibliotheca, em que avulta-
vam os livros portuguezes: e como prova de appli-
cação e do apreço que fazia de nossas letras pu-
blicou: Poems from the portuguese of Luis de Ca^
moçns: with remarks on liis Life and Writings^
notes, etc, etc. The second edition. London 1804.
(*) Vid Odes vioderme,
88
O PANORAMA
12.° gr. de 160 pag. — E apezar de que esta ver-
são haja sido julgada com pouco favor por alguns
crilicGS inglezes,"é comtudo estimada, c tem lido
varias reimpressões.
Deve-seainda aoillustre diplomata a publicação
de um dociimenio notável, e de maior importância
para a historia de Inglaterra. Existia entre osma-
Duscriptos do cartório do mosteiro de Alcobaça,
onde fazia parte do códice n.° 473, um dos que
hoje se reputam infelizmente extraviados. Lord
Strangford, havendo solicitado e obtido copia d'esse
documento, o fez imprimir com o titulo seguinte:
Lettre í/'í//? (/endlliommc jwrlugais à nu de ses
amis de Lishonne sur iexecution d'Anne Bolem,
Lord Rochford.Brereton, i\orn's,Smeltonet Wes-
ton: publiée pou r la prirn icrefois avec une traduclion
françaisc par F. Michel, accompafjnée d\ine Ira-
duclwn auglaise parle \icomie Strangford. Paris,
chez Silvestre 1832, 4.° — Nitidamente impresso,
em Ires columnas, contendo o texto portuguez, e
as duas accusadas versões francezaeingleza. Consta
que se tiraram unicamente vinte e seis exempla-
res. Veja quem quizer o mais que a propósito
d'esla raríssima edição dizemos em o nosso i?/cf/o-
nario Bihliographieo Portuguez, tomo V, pag. 181.
De João Ádamson, nascido em Gateshead a 13
de setembro de 1787, e fallecido a 27 de egual
mez em 18oo, muito haveria que dizer, se o es-
paço nol-o permittisse; porém tendo de nos res-
tringirmos n'estas poucas linhas, rcmetteremos o
leitor curioso para o Diário do Governo n." 03 de
Í4 de março de 1856, onde achará traduzida uma
biographia*d'esse conspícuo litterato: ou para o
tomo I da novíssima e completa edição das Obras
de Camões, dada á luz pelo sr. Visconde de Juro-
menha, que de pag. 277 a 280 dá a respeito do
mesmo uma noticia assas circunstanciada.
Da sua particular predilecção pela litteratura
clássica portugueza, e das riquezas que n'esse gé-
nero possuía, é prova sobeja o volume que im-
primiu c distribuiu particularmente aos seus ami-
gos, com o titulo: Bihliotiieca Lusitana or Ca-
talogue of Books and Tracts, relating to lhe líis-
torg, Literature, and Poetry of Portugal: for-
mtng part oft/ie Library ofJolin Adamson, etc. etc.
NeNVcastle on Tyne 18'36. 8.° de lio pag. — Ahi
se com prebende a mais ampla collecção que até
áfjuellc tempo se havia reunido das obras e edi-
ções de Camões, passante de cento e vinte volumes.
Publicou também: JJ. Ignez de Castro, a Tra-
gcdy from tlie Portuguese of Nicola Luis, with
remar s on thellistorg of thal infortunale Ladij,
bg John Adamson. Newcastlc, 1808.
Memors of the Life and Writing of Luis de
Camoens, bg John Adamson. Edinbourg and Ncw-
caslle 1820. 8.° 2 volum<'S com retratos.
Lusitânia illusírata: Noliccs on lhe Jíislorg,
Antifjuities, Literature, etc. of Portugal. Lite-
rorij Department. Part. J. Seleclion of Sonnets,
with bioíjraphicalSketrhes of the Auíhors, bi/John
Adamson. Newcastle 18í2. 8." de Ml— lOi) pag.
Lusitânia illustrata etc. Pai-t U. Minstrelhj.
Ibi, 1846, 8 .« de XVII— 54 pag.
Todas estas obras gosam de geral estimação; ^
como os exemplares apenas de longe em longe, ^
só casualmente se deparam no mercado, quando
algum apparece acha logo compradores que o dis-
putam entre si, pagando-o por elevado preço.
EiiQ ignorado cani o de terra, a que ainda se cha-
ma Portugal, composto só de pequenos homens
e de pequenas cousas (na phrase dos modernos vi-
dentes que vem trazer-nos a luz!) leve sempre en-
tre os estranhos, e tem ainda hoje, quem o preze
e admire mais vantajosamente que certos nacionaes.
Colligimos n'outro tempo, e chegámos a adiantar
um extenso Catalogo bibliographico e critico das
obras escriptas e publicadas por auctores estran-
geiros acerca de Portugal e de suas cousas; tra-
balho que bem quízeramos offerecer aos nossos il-
lustres sábios, como prova do que dizemos, se as
circunstancias nos favorecessem para complelal-o
e imprimil-o. Como pouca ou nenhuma esperança
nos resta de que tal desejo se converta em reali-
dade, fique embora para ser por nossa morte, com
outras similhantes minudencias, mais utilmente
aproveitado em alguma tenda no embrulho dos
adubos!
SAUDADES
Que pela face a lagrima resvale
A quem no exílio geme.
J. DE DeOS.
Quando a noute desdobra o estreitado manto,
e emcima da monlanha a lua pallideja,
o génio da saudade em torno a mim adeja,
silencioso então dos olhos cáe-me o pranto;
o espirito revoa ás noites do passado,
e do passado evoca os l)rilhos e os fulgores:
lá, fosse dia ou noite, em tudo, em tudo amores,
amor— dizia a lua, amor— o sot dourado.
A lua!— ella bem sabe os cânticos e harpejos
que eu soltava ao clarão dos mil celestes lumes;
ella liem sabe ainda os risos e os perfumes
que a minha flor me dava em troca de meus bejos.
Que noites! que prazer! que sonhos! que ventura!
que aureola deslumbrante então nos envolvia!
N'aquella doce voz que incanlosl que magia!
N'aquelle terno olhar que luz suave e pura!
í,Recordas-te de quando a lua fascinante
cheia de luz surgiu da serra na clareira?
e uma nuvem surgiu também, lenue, ligeira,
a lua sombreou, se desfez n'ura instante?
Oh! lembras, sim, que então um intimo receio
o seio te agitou, lurl)ou-te um pouco a face;
mas, quando a nuvem ténue se esvaeceu fugace,
teu rosto serenou, calmo ficou teu seio.
E a lua proseguiu, cortando a immensidade,
c a lua inda hoje brilha, c segue o mesmo trilho;
mas, alil quanto é mais trisle e pallido o seu brilho,
visto assim através do pranto da saudade!
Vizcu, outubro de (ió.
Cândido Figueiredo.
Typ. Franco-Portugucza. - Bua do Thesouro Velho, 6.
12
o PANORAMA
89
'Mm?
WILLIAM PITT CONDR DE CHATÍÍAM
Por riNHKiaO CHAGAS.
O lalenlo é ás vezes hereditário. Parece (jue
muitas vezes o génio se vincula n'unia familia, e
passa, como um legado santo, de pais a filhos. Rara-
mente comludo deixa de acontecer que ura dos vul-
tos d'cssa tribu de homens notáveis se eleve tanto
acima dos outros, (juc brilhe umd'elles com tama-
nho esplendor que as outras liguras liquem sumi-
das na sombra, e apenas recebam um reflexo da
luz que dimana do astro principal. Bernardo Tasso,
o pai do cantor da Jmmlem Libertada, seria um
90
O PANORAMA
poeta dislinclo, se o vale deGodofiedonãoolizessG
entrar na classe secundaria dos salelliles. Napo-
leão 111 seria talvez considerado como um grande
homem, se a figura magestosa de Napoleão I
soflresse confrontos. Augusto ainda avultaria mais
na historia se o acaso o não fizesse sobrinho de
César.
Não acontece assim com o vullo, cuja biogra-
phia vamos esboçar rapidamente. Wiiliam Pill
conde de Chalham, foi pai do outro celebre AVilliam
Pilt, conhecido pelas suas grandes qualidades de
estadista, e pela energia com que susienlou uma
guerra implacável contra Napoleão. Para o dis-
tinguirem d'elledão os biograplios ao primeiro Pitl
a qualiíicação de Pitt o antigo, mas uão ousam
decidir qual dY^fes deu mais i Ilustração á sua fa-
milia, mais gloria á sua pátria.
filho de um lidalgote, que dissipara a muita
riqueza da sua casa, Wiiliam Pitt vio-se obrigado
a comprar uma pateníc de alferes de cavallaria,
atim de poder viver com a decência indispensá-
vel a um membro da alia aristocracia ingleza. Não
convinha porém nem á sua Índole nem ásua saúde
a vida militar. Uma doença grave inlerrompeu-
Ihe a carreira; ea leitura dos grandes historiado-
res e políticos da antiguidade, abrindo um novo
horisonte á sua intelligencia, revelou-lhe a sua
vocação de estadista. Ouando melhorou, íez todos
os esforços para ser eleito deputado, e conseguiu
entrar na camará dos Communs, como represen-
tante de um burgo, que fazia parte do fraquíssimo
resto dos seus domínios hereditários.
Logo revelou a eloquência, que lhe devia dar
tanto nome. Alistou-sc nas íileiras da opposição,
e guerreou sir Roberto Walpole, cuja administra-
ção perdulária lhe desagradava. O rei Jorge II e
o príncipe de Galles andavam iressa occasião dis-
sidentes um do outro. Pitl defendeu, n'um brilhan-
tíssimo discurso; o herdeiro da coroa, que, no-
meando-o gcntil-homem da sua camará lhe attra-
hio as perseguições do ministério, e com a per-
seguição a popularidade.
Tal foi essa i)oj)ularidadc que muitas pessoas
opulentas, enlre outras a duqueza de Marlbourogh,
lhe deixaram legados importantes paia recompen-
sarem o seu patriotismo.
Andava então accesaa guerra entre a Inglaterra
e aPrança. Não eram felizes as armas britannicas,
e o rei, vendo despopularisado o seu ministério,
viu-se obrigado em 17,'3G a chamar ao poder o du-
que de New-caslle, e com elle Pitt, a quem confiou
a pasta dos negócios da guerra.
A energia indomável, quecaracterisava o cele-
bre minislro,*revelou-se logo no modo como di-
rigioe activou ospn'paralivos,organisando a milícia
nacional, e projectando um desembar(|ue nas praias
francezas. Não o ajudava muito el-rei, movi-
do pelo antigo rancor; Pitt, irrílavel em extre-
mo, demíllia-se; forçado pela opinião publica, via-
sede novo .lorge II obrigado a chamal-o ao minisle-
rio. Assim andou n'eslas alternativas, mas entie-
tanto a França ia perdendo assuas mais bellas coló-
nias, e, graças à audaz iniciativa do ministro ínglez,
via a Grã-liretanha tremular victoriosoo seu pen"
dão em todos os mares, e eslender-se cada ve^
mais o immenso território das suas possessões ul-
tramarinas.
Comtudo Pilt linha defeitos graves; a mais leve
conli-adicção o irritava, e n'esses momentos não
respeitava direito das gentes, não respeitava coi-
sa alguma. Molou difierentes armistícios, e quiz
uma vez aprisionar a esquadra hespanhola por
que suspeitava que a llespanha eslava para
se alliar com a França, e para declarar guerra á
Grã-lírelanha. 0|)poz-se o resto do ministério; Pilt
irritado demilliu-se, mas teve a gloria de ver dos
bancos da opposição os acontecimentos contirraarem
as suas suspeitas.
Doente já, orou três horas na camará contra um
acto ministerial, foi de novo chamado ao poder,
nomeado visconde Burton, conde de Chatham, e
membro da camará dos lords. Voltava moribundo
á camará a defender os seus actos, até (|ue uma
vez, querendo responder a uma interpcMação do
duque de liíclimond, caio desfallecido na sua cadei- i
ra.Transporlaram-n'o, para casa onde morreu n'esse '
mesmo dia, 17 de abril de 1778.
A nossa gravura representa a scena, em que
a nalureza írahindo a energia do gi-ande orador,
lhe cortou a palavra no meio dos seus amigos e
adversários políticos igualmente consternados. A
morte, apparecendo no limiar da sala das sessões,
c riscando o nome do conde de Chatham da lista
dos vives, congraçou n'um sósenlimenlo doloroso
os homens, havia instantes, divididos entre si pelas
mais profundas animadversõcs.
O TABACO
É, realmente, obra muito ingiata iratacar um cos-
tume degenerado em paixão, e que domina por
toda a parte. Não receiamos, porem, lornarmo-nos
aqui o echo de algumas vozes authorisadas, que
de tempos a tempos se levantam, jiara advogar a
causa da verdade e do bom senso; cremos até pra-
ticar um acto de bom cidadão reproduzindo algu-
mas das considerações pelas (juaes o doutor Jolly,
membro da Academia de medecina de Paris, Icn-
lou chamar á |)rudencia os fumadores de todas as
idades e condições Os estudos hif/ijenicos e médi-
cos sobre o /í/6r/('o, publicados pelo erudito doutor
em um compendio de hygiene, despertaram a al-
lenção geral. Foram examinados pela Academia
de medecina e merecem ser lidos e meditados por
todos.
A im|)orlação do tabaco na Kuropa dala dos
annos de liJlS. Parece (pie c devida a um missio-
nário hespanhol, Fra Homano Pone, companheiro de
viagem de (Jiristovão Colombo, o (|ual teve a idèa
de enviar a Carlos V a semente do tabaco, depois
de haver observado entre os sacerdotes do Deos
Kiwasa os elleitos da embriaguez j)roduzida pelas
folhas d'esta plinia acre e venenosa.
Data d'esla epocha a cultura do tabaco na Ku-
ropa. O governo hespanhol não tardou acullival-o
o PANORAMA
9'
em grande escala na ilha de. Cuba, e nós, os
porlugiiezes, seguimos este exemplo no ]}razil. O
cardeal de Sanla Cniz, núncio do papa ein Portu-
gal, importou o Iribaco na Itália, o que IVz darem
principio á planta o nome de lierva de Santa Cruz.
Emlim, em loIiO, João Nicot, embaixador de França
em Lisboa, que linha em si i)roprio experimen-
tado o pó do tabaco contra a enxaqueca, olVereceu-o
á rainha Cathai'ina de Médicis, e assim o tornou
conhecido em França, sob a forma de tabaco de
cheiro. Foi isto que fez dizer que o tabaco,
depois de ler viajado por mar e por terra, em toda
a Europa, dera eulrada em França pela estrada
do nariz.
A rainha Calharina e seu filho Francisco II sof-
friam ambos de uma pertinaz enxaqueca; por con-
seguinte, o novo remédio teve o mais favorável
acolhimento. Mas a historia não diz se elle se mos-
trou eílicaz. Em todo o caso, se o tabaco curou as
enxaquecas d'aquella epocha, c forçoso confessar
que d'então para cá tem perdido muito da sua vir-
tude,
O tabaco de cheiro correu rapidamente por to-
das as classes da sociedade, como todas as mo-
das absurdas e excêntricas.
Longe de enfraquecer com o tempo, o seu uso
desenvolveu-se como uma verdadeira epidemia. Nos
reinados deLuiz Xill c Luiz XIV, era quasida eti-
queta apresentarem-se os nobres na corte, de rapa-
doura na mão, io/l!'ò-sal|)icados de tabaco, nariz atu-
lhado d'aquelle pó negro e os vestidos perfumados
com o seu cheiro. As rapadouras cederam o logar
ás caixas, quando a industria achou o meio de
pulverisar o tabaco de um modo mais completo,
e crè-se que o uso das rapadouras o tabaqueiras
tem enormemente contribuído a propagar o em-
prego do tabaco de cheiro.
Muitos médicos se pronunciaram contra o abuso
d'esta planta exótica. Fagon, que mais tarde foi
elevado a primeiro medico deLuizXÍV, estreiou-se
por uma thésc brilhante contra o tabaco. Desgra-
çadamente, esta opposição não suspendeu os pro-
gressos do mal. Veio depois a Igreja, mas também
nada conseguiu. Uma bulia do papa Urbano Víll
excommungava lodosos que tomassem tabaco den-
tro das igrejas. Esta ameaça não sullbcouo desejo.
0 sultão Mahomet IV prohibiu o tabaco sob pena
de morte. O grão-Duque de Moscovia, Miguel Fe-
derovitz, mandava enforcar os tomadores! Um rei
da Pérsia mandava-lhes cortar o nariz !
O tabaco, porém, saiu viclorioso de todas estas
perseguições, e quando, sob os reinados deJacques
1 de Inglaterra e Christiano IV de Dinamarca, o
castigo se limitava apenas a muletas pecuniárias,
o habito do tabaco foi olhado como um privilegio
dos ricos!
Mas ainda aqui não pára. O cachimbo já em uso em
toda axVllemanha enos Estados do norte, depressa
deu a sua entrada triumphal na corte de França.
Alli foi introduzido pelo celebre João Bart. O
exemplo foi logo seguido por muita gente. Luiz
XIV surprehendeu um dia suas íilhas fumando ás
escondidas!.
O exercito de teri-a recebeu o cachimbo das
mãos da marinha. O uso do cachimbo generalisou-
se durante o cerco deMaestrich, e d'ahi em dian-
te começaram a occupar-se quasi tanto da provi-
são do tabaco como da dos viveres. Uonhecia-se
perfeitamente que o tabaco enfraquecia o a|)petite
e retardava a digestão; mas era uma distracção
para os soldados no acampamento.
Hoje seria dilíicil dar a rasão porque se fuma.
Grandes e pequenos fumam, como se come, como
se bebe, como se dorme. Parece que o tabaco faz
parte da nossa existência. Estranho desvio! Houve
um medico, o doutor Demeaux, que ousou propor a
introducção oílicial do tabaco nas escolas, como
meio de moralisação para as creanças ! !
Nada mais próprio pôde haver para dar uma idéa
do grande desenvolvimento que oconsummo do ta-
baco tem lido em França, do que a inspecção dos
algarismos que representam o producto annual do
imposto liscal d'esle género.
No fim do século passado, o tabaco não produ-
zia ao Ihesouro mais de vinte a Irinla milhões de
francos, cujos dois terços crain altribuidos ao ta-
baco de cheiro, eum terço unicamente ao defumo.
Depois de 1810, anno em que foi restabelecido o
monopólio, o consummo augmentou rapidamente.
Eis, por períodos de cinco annos, a importância
das sommas que, durante cincoenta annos, este
svstema tem feito entrar nas caixas do estado:
1811 a 18i:j . . .
. . . 307:000:000
18iG a 1820 . . .
. . . 311:000:000
1821 a 182o . . .
. . . 327:000:000
1826 a 1830 . .
. . . 336:000:000
1831 a 1835 . . .
. . . 350:000:000
1836 a 18Í0 . . .
. . . 431:000:000
1841 a 1845 . . .
. . . 522:000:000
1846 a 1830 . . .
. . . 589:000:000
1831 a 1853 . . .
. . . 696:000:000
1856 a 1860 . . .
. . . 892:000:000
A receita de 1861 eleva-se a 213 milhões. Jun-
tando esta somma ás que produziram os annos de
1811a 1860,enconlra-se um total de 5000:000:000!
E esta somma não representa a totalidade dades-
poza feita pelos consummidores de tabaco. Pode-se,
sem receio de erio, accrescentar 2000:000:000
proveniente de tabacos e charutos entrados em
França, utensílios de fumadores e tomadores, per-
centagens a, pouco mais ou menos, 36000 vende-
dores. O total seria de 7000:000:000!
E preciso não esquecer que o decreto de 19 de
outubro de 1860, que de uma vez elevou o preço
dos tabacos a mais 25 por 100, contribuiu mui-
to para o augmento da receita n'estes últimos an-
nos. Mas estacircumstancia pouco influe ainda so-
bre o resultado geral da comparação que tentamos
estabelecer. Yè-se, pois, que o redito do lisco, que
durante a epocha comprehendida entre 1811 a
1835 era apenas de 1632:000.000, eleva-se repen-
tinamente a 3130:000:000 nos vinte cinco annos
seguintes. Como, alem disso, as estalislicas da admi-
nistração provam que o beneticio do thesouro aug-
92
O PANORAMA
mentou mais depressa do que a receita bruta, pois
que as despezas que absorviam, em 1816. iO por
10(1 da receita biuta, não excediam, em 1860, 1i
por 100, compreliende-se a altenção que o tisco
deve prestar a uma fonte de receita tão abun-
dante e productiva. Em 1861, os 215 milliões pro-
duzitlos pelo imposto do tabaco, formaram um quin-
to do rendimento dos impostos c contribuições in-
directas. O que distingue sobre tudo o imposto do
tabaco, o que (az com que o governo vigie
sempre para que seja mantido e augmentado o
mais possivel, sejam quaes forem os inconvenien-
tes e os perigos reconhecidos de uma droga inútil o
morbosa. é que a sua marcha tem sido sempre rápida
e imperturbavelmente ascendente, que nada o faz
parar, nem as guerras, nem as revoluções, nem as
fomes, nem as crises commerciaes.
Dá-se, porem, uma cousa muito curiosa; e vem
a ser que, de 1832 em diante, o consummo do
tabaco de cheiro tem consideravelmente dimi-
nuído. Em 1842, a terça parle das receitas
provinha do tabaco de cheiro; em 1863 uma sex-
ta parle somente. Póde-se aflirmar lambem que
n"aquellas províncias onde a mortalidade é maior,
o tabaco de fumo tem muito maior extracção do
que o de cheiro; o contrario tem lugar n"aquellas
em que a mortalidade é menor.
Segundo M. JoUy, em 1860, o consummo do
tabaco de fumo. foi, nas províncias do norte da
França, de l~l)o grammas por cabeça; de 1366
grammas no Fas-de Calais; de 1178 grammas no
Allo-Rheno, ele— No meio-dia, apenas 102 gram-
mas em Charente; 103 em Tarn; 144 em Lozé-
re, ele.
Tomando o termo médio, M. Jolly, calcula um
consummo annual de 8 kilogrammasde tabaco por
fumador; o que talvez seja um pouco exagerado.
Com eíTeito, as estatísticas da administração mos-
tram que o consummo, que era de 14 milhões de
kilogrammas em 1816, elevou-sc a 20 em 1852,
e a 22 em 1860, o que dá um resultado de, pouco
mais ou menos, 800 grammas por cabeça. Admitía-
mos que, em 38 milhões de habitantes, haja 10 mi-
lhões de fumadores; isso daria a media annual de
3 kilogrammas por cabeça. Esta cifra deve pare-
cer enorme se se attender a que corresponde a um
gaslo de 30 a 36 francos por anno, islo é, o equi-
valente a dois terços do gasto individual de pão,
cujo consummo se eleva á media de 3 por bocca.
Ouanlas vezes se não vè o obreiro, reduzido a
optar enliea compra do |)ãoe a do tabaco, optando
alinalpor este ultimo 1 Ouantos fumadores não ex-
cedem a media que estabelecemos!
Não nos occuparemos do quanto cuslam á França
os vinte mil hectares de excellenles terras que a
cultuia do tabaco rouba á agricultura; não entrare-
mos Ião j)ouco na analysedas coisas mesquinhas (|ue
o tabaco tem introduzido nos hábitos da sociedade
e nos da família; limitar-nos-hemos, apenas, a con-
siderar*, com M. Jolly, a queslão pelo seu lado
hygienico.
Parece estabelecido, pelas eslalislicas medicas,
que as doenças nervosas augmenlam em uma propor-
ção espantosa: as doenças mentaes, as paralysias ge-
raes e progressivas, enfraquecimentos do cérebro e
da medulla espinhal, emlim certas enfermidades
cancerosas, taes como os cancros dos lábios e da
língua, parecem caminhar em paiallelo com as
rendas do Eslado devidas ao imposto do tabaco.
Ultima coincidência ajilicliva: o movimento pro-
gressivo da ))opulação jnira ao mesmo tempo que
se eleva a cifra esmagadora do consummo do ta-
baco!
Estes eíTeitos manifestaram-se depois que o ha-
bito de fumar supplantou o de cheirar. E preciso re-
conhecer que o tabaco de cheiro, embora não seja
isento de perigo, eslá, comludo. longe de prejudi-
car a saúde geral, como o cachimbo e o charuto a
prejudicam. Podc-se allbulamenle dizer que no
dia em que a humanidade começou a fumar, co-
meçou a envenenar-se.
ÉITeclivamenle, será ainda objecto de duvida a
natureza venenosa do tabaco, quando está reco-
nhecido que as folhas d'esta planta conleem 2 a
7 por 100 de nicotina, (1) um dos mais terríveis ve-
nenos vegelaes, que a therapeulica baniu do seu
quadro, e que só o crime poude escolher para
cumprir atrozes projectos? O óleo essencial de
tabaco, muito rico em nicotina é lambem um ve-
neno fulminante: algumas gotas bastam para dar
a morte. Uma simples infusão de folhas de ta-
baco, tomada em crysteis, matou um doente. '() ce-
lebre poeta Sanleuíl foi formalmente atacado depois
de um grande banquete a (jue assistiu, por ler
bebido um copode vinhodellespanha, no qual um
dos convivas tinha deitado o rapé que se continha
na sua tabaqueira. Toda a companliia riu d'esta
engraçada travessura, excepto o jjobi-e [)oeta que
d'ella morreu! A simples applicação de folhas seccas
de tabaco sobre a pelle é suflicíenle para produzir
gravíssimos accídenles.
Tudo isto é, sem duvida, conhecido; só, por uma
estranha cegueira, se não quer comprehender que
uma substancia tão perigosa seja oflensíva, quan-
do consummida em pequenas doses, mas de uma
maneira regular e constante.
Os tabacos não lecm todos a mesma força,
pela razão da sua desigual riqueza de nicotina:
os tabacos, que conleem pouca, são muito me-
nos prejudiciaes á saúde do (|ue os tabacos fran-
cezes que conleem 7 por cento e mais, d'aquelle
veneno, segundo as averiguações dos chimicos
Henry, Barrai, Schloesíng, e outros.
Cunlinua.
A obrigação do Príncipe he lutar com este gi-
gante, que c o impossível de trazer a lodos con-
tentes; e para isso ha de ser Protèo e Achelóo,
que se transforme em leão e cm cordeiro, que se
vista humas vezes das propriedades de fogo, c outras
das de agua.
P.\DRE Amónio Vieira.
(1) Os tabacos iJo Brasil e da Havana contcnin apenas 2 por
100 de nicotina, o da Alsacia 3 por 100, do Kentuclcy 6, os de
Virginia de Lol-cl-Garonne, etc, mais de 7 por cenlo. Os taba-
cos do Levante conleem inui pouca.
o PANORAMA
93
ESCOLA MILITAR DE WOOLWIGll
A cidade ingleza, onde existe a escola militar,
que a nossa gravura representa, faz parte do con-
dado de Kent. Construída nas margens do Tamisa,
conta 25:000 habitantes, mas nem é á sua popu-
lação nem á sua grandeza que deve a sua muita
importância. Esta importância provém-llie toda de
possuir dentro dos seus muros o mais vasto e o
mais opulento arsenal da Inglaterra. Além de im'
mensos quartéis encontram-se alli todos os estabe-
lecimentos necessários ao serviço de arlilheria*»
immensas oílicinas, onde se fabricam espingardas,
canhões, etc. ; vastos depósitos d'armas, projectis
e munições de toda a espécie, tanto para os exér-
citos de terra como para os exércitos do mar. Em
parle nenhuma do mundo se encontram essas coi-
sas em tão prodigiosa quantidade. A opulentíssima
Inglaterra não poupou o dinheiro, que as suas vas-
tas possessões, o seu desenvolvidíssimo commercio
Ihegrangeíam para se abastecer exuberantemente
de tudo quanto d'um para outro momento se pôde
tornar necessário á defeza do seu território, ou dos
seus interesses, ou à sustentação da sua intluencia na
política européa. Para se fazer idéa dos recursos
de que dispõem as tropas inglezas, eque estão em
grande parte accumulados em Woolwich, bastará
dizermos que havia nos arsenaes d'esta cidade em
1849, vinte e quatro mil peças d'artílheria, e mais
de quatro milhões de balas para serviço d'essas
peças.
 numerosa marinha britannica lambem dispõe
em Woolwich de vastos editicios. Alli ha estaleiros
para a conslrucção de navios de guerra, cordoarias,
emlim, todos os estabelecimentos necessários j)ara
a conslrucção e equipamento d'essas immensas
frotas, que vão tremular em todos os mares do
globo o audaz pendão do leopardo, e que impõem
a lodos os povos o respeito do nome e da nacio-
nalidade da Grã-Bretanha.
Mesmo em tempo de paz, trabalham diariamente
em Woolwich Ires a quatro mil operários.
A escola militar, que a nossa gravura apresenta,
é uma escola especial d'artilheria. O numero dos
seus discípulos está fixado em oitenta.
A GALATEA MODERNA
Por A. OSÓRIO DE VASCONCELLOS
Y
Alfredo de Mello a António Alvares
Meu caro amigo. — A minha doença ainda não
fez crise. O estado pathologíco, como dizem os mé-
dicos materialistas da época, prosegue sem altera-
ção. Mas se o coração, considerado como víscera
importante do organismo, pulsa regularmente, olha-
do como sede do sentimento, continua no seu an-
ceiar j)or esperanças illusorías, descortinando ao
longe, em paragens distantes, um pallido alvore-
cer de nova vida e gosos novos.
E comtudo o repouso é agora relativamenle nor-
mal, comparado com as estranhesasdo principio.
Da lua ultima carta conclui, não sem um sorriso
de commíseração, que muitotearreceiavasdo meu
natural pendor para aventuras romanescas. Dizes
que devo de ser cauteloso, evitando tentações de
94
O PANORAMA
feiticeira, que almeja mais vastos horisontes para
o seu voltear trefe^^o e vertiginoso.
Tensa bondade de me chamar crearica, que se
deixa enganar com ouropéis e íallacias, que os
meus ouvidos transformam em quebros melodiosos
de rouxinol.
Acrescentas que os meus vinte quatro annos fo-
ram gastos em ler romances, os quacs lançaram no
meu coração, já perfeitamente pi-eparado, as se-
mentes d'essa poesia ruim, que enleia o homem,
enlibia-o, mostia-lhe o mundo cheio de vicios e
torpezas, enche-lhe a solidão de alTeclos e prazeres,
e a linal arrasta-o fatalmente ao tumulo.
Continuas ainda, e cada vez 'em tom mais stri-
dulo, que a harmonia esta no trabalho, e fora d'elle
o ranger dos condemnados; que a vida contem-
plativa exacerba a doença, e conduz a alma ao
sceplicismo e extasis religiosos, apanágio de faná-
ticos, ou ao idiotismo simples, o que é pertença
de Rilhafoles.
Atinai, e por encurtar mais rasões e periphra-
sessomnolentas,aconselhas-meciuesaiadaqui, does-
te cantinho do mundo, cujo maior crime é, na lua
opinião, o ser tão retirado, que nem mesmo me-
receu as honras de apparecer na carta de Portugal.
Não sei se devo tomar a serio este kyrie de
conselhos, que parecem de homem assisado, grave,
amaneirado e de muito juizo e consciência como
não devias de sei', porque nunca subiste ao capi-
tólio de S. Bento, nunca y^Pí/ /ó/f a palavra, nem
eícreveste ?rtigo de fundo; es immaculado de
todas as artimanhas politicas e sociaes, vives no
teu cenóbio, gosando os prazeres austeros e sacro-
sanlos da sciencia, adoras oXgiganleo do univer-
so, contemplas e observas de noite, quando o mur-
murar dos homens emmudece, as, estreitas, que
sulcam ethereas ondas. Pois quel És tu, em ver-
dade, o auclor da carta, que recebi? Foste tu quem
escreveu tantas necedades em tão pouco papel? Las-
timo-te, do fundo d'alma. Lastimo-te e abjurar-te-
bia, se o erro não fosse do homem. Ah! meu amigo,
quem me dera arcar com os perigos, que tu estas
antevendo com tanta perspicácia, e de que queres
arredar-me... com tanta rudeza! Prouvera a J)eus
que eu visse a meus pes, hianle, explendido,
fascinador, esse abysmo, que te alemorisa. Pjou-
vera a Deus, que me arrojara lá, ao seio das
ondas, corpo a corpo com a sereia mádida. Co-
mo ella havia de embalar-mc nos seus braços
voUi|)tuosos ao sabor das vagas indolentes, can-
tando-nu; toadas maviosas! (^omo ella havia de
allumiar as trevas da noite com o fub^or dos seus
olhos, e mostrar-me as mil pedrarias, as columnas
adamantinas, os frisos de amethysta, as (>mpenas
de esmeraldaseonyx, as laçarias de topázio e cris
tal. os rendilhados phantasiosos, as maravilhas in-
tiuitas do seu palácio encantado! K depois, (juando
farto já de tanta opulência e a sereia me dcscerras-
seas portasdo gyneceu explendido, como havia de
reclinar a cabeça no seio d'ella, e ouvir-Ihe o co-
ração a palpitar, até que a morte me arrebatasse
no meio d'a(iuelle somno de amor!
Chegando a este ponto da caria, a lua zanga to-
cou as raias do licito, e vomitas impropérios c
pragas capazes de me soterrarem nas mais intimas
profundezas do inferno.
— Sè maldicto, ires vezes maldicto, bradarás
n"um rapto de desespero e raiva. Corres á perdi-
ção, e debalde te esconjuro.
Escusas de erguera cabeça da tua retorta, 6 meu
pobre amigo. Não é mister que arredes os olhos
dos astros, que brilham no tirmamenlo, como Iam-
padarios longínquos na cupola do grande templo.
Podes seguir com a vista a lua melancólica en-
volta em veu de Ihama e que, segundo a formosa
imagem de uma poetisa franceza, parece hóstia
alevanlada por antistite invisível no tabernáculo
do universo. O leu amigo, o que le escreve esta
carta, •■ puro e immaculado de todas as torpezas c
voluptuosidades pagãs Não o tentam sereias com
os seus cantares maviosos. As Messalinas em vão
se envolvem nas suas roupagens vaporosas e pin-
tam o lindo roslo com mil cosméticos da Arábia.
Debalde entoam hymnosanacreonlicos os escra-
vos que tangem lyras em volta do Iriclinio dou-
rado. É tudo em vão, bem devias sabel-o. A cima
das mundanidades está a verdade; acima da sen-
sação o sentimento. Por isso, repito, c será esta
a ultima vez, não le arreceis de mim. Se eu delirar,
não será nos myrlaes da Grécia, libando o mel
do Ilymelo; mas sim na Scandinavia, ouvindo o can-
tar suavíssimo das virgens, que choram a morte
da Fingal e entoam o hymno fúnebre, o coronah
sentido nos basaltos sonoros das Orcades.
Por essas se apaixonara o próprio S. IJruno,
apezar dos seus extasis, porque as tomara como
visões sidéreas, como enviadas do Senhor, como
seraphins puríssimos, que cantam em chorèa
angélica o Irisagio celestial.
Ante uma dessas virgens vaporosas, cujos cabei-
los agitados pela brisa do norte se tornam em raios
de aurora polar, curvara-me reverente, como to-
cado do fogo divino,
E se ella se dignasse de baixar os olhos para
mim c sorrir-me envolta na sua auréola, amara-a
toda a vida, poiíjue Ioda a vida me fora enlevo e
perpetuo arrombamento. Ah! Aonde encontrar esse
anjo puríssimo, apezar da argila, que o reveste!
Aonde buscar esse ideal, recendendo ainda aromas
do empyreo, bafejado ha pouco pelo creador, tendo
nos olhos essa placidez profunda, que denota in-
nocencia,quasi inconsciente? Aonde? Quem poderá
sabel-o!
— Mas ahi, nesse teclo hospitaleiro, nessa Ao/?/vi
dos Viegas, prosegues tu, vive nma donzella for-
mosa, azougada tentadora, olhos húmidos, rosto
lindo, ora pensativa, melancholica e jjallida, ora
louçã, petulante, alegre. Respiras ahi o bafo, ({ue
saedeum peito aniuejanle, inebrias- te com fragrân-
cias de dezoito primaveras. E atinai, (juem pôde
resislir a um combale, cuja victoria fica ignorada
e esquecida, e custa lagrimas e arrependimentos
ás vezes?
Isto dizes, c acabas aconselhando-me a fugir por
evitar maior damno c estrago.
A lua voz é a de rasão fria, mas a rasão nem
o PANORAMA
95
sempre é rasoavel.Dado que a minha posição aqui
fosse análoga á do homem que adivinha um preci-
I)icio, e não sabe cvilal-o, ainda assim, não seria
cobardia, ou demasiada prudência fugir vergonho-
samente? Eslou na eílade, em que o coração muito
tempo comprimido por falsos sentimentos de sce-
plicismo e requintados respeitos pelo queé de uso
ciiamar conveniências sociaes, acceita a lucta travada
com as tormerdas da paixão, com esses mil nadas
que custam muitas lagrimas, muitos desesperos,
muitos suspiros dolorosos, que mais realçam os
raros momentos de felicidade puríssima.
Tu, que és homem hyperborico, mal podes com-
prehender esta attracção irresistível, que me arrasta
ao supplicio e aos exlasis. Tu, que es homem po-
sitivo, não avalias o que é soffrer aos pés da mu-
lher adorada, implorando um olhar, que muitas ve-
zes é punhal a dilacerar-nos o coração.
E queres que fuja! E ousas aconselhar-me que
saia da liça, logo ao primeiro golpe! Não, mil vezes
não!
Os homens fazcm-se assim. A vida é a lucta com
o desconhecido. E que coisa mais desconhecida
que o coração de mulher! Ah! mas todas estas re-
llexões phylosophicas, que o divino Platão não re-
negara, não tem cabida aqui... porque Violante é o
mysterio feito donzella. Ha mais de um mez que
estudo esse problema explendido, e a equação que
ha de resolvel-o ainda não houve estabelecel-a.
Violante é o camaleão mythico e incomprehen-
slvel. Umas vezes, pesquisador audaz, quando in-
tento descerão fundo do coração d'ella, encontro...
cinzas e nada mais. Violante aíTigura-se-me então
uma d'essas estatuas antigas, em que o cinzel de
Phidlas afíelçoou o mármore hellenico para lhe
collocar lá dentro, no Intimo do peito uma
urna funerária.
Outras vezes as cinzas agllara-se bafejadas pelo
sopro creador do aichanjo e a estatua fria, mar-
mórea, impassível, chora, geme, c soluça como
virgem encarcerada em mosteii'o alpestre.
A zombaria succedeo pranto; á acrimonia a do-
çura, á ironia pungente a lenldade amorosa. Em
iim não posso, por entranhados que sejamos meus
desejos, pholographar-te esta alma, que rellecte
mil cambiantes, mil gradações diversas... talvez
porque lá dentro ha muita poesia, ha muitos pran-
tos, aonde os raios de amor se refrangem e pro-
duzem esse irls encantador, que nemsemprcprecede
a bonança.
E comtudo, ó meu caro amigo, a minha situação
é, relativamente, feliz csocegada. Entre mime Vio-
lante estabeleceu-se certa Intimidade contida nos
mais estreitos limites do decoro.
Esta intimidade Ião doce, cortada perpetuamente
pelas Irritações incomprehenslvels de minha prima,
constitue um enlevo, a que não ha resistir.
Durante as nossas conversações, que se amiú-
dam cada vez mais, borboíeteamos desculdo-
samenle por todas as lltteraturas conhecidas, desde
o canto Informe e imaginoso do selvagem até
ás estancias perfumadas e sentidas de Lamartlne
€ Soares de Passos. E não julgues que a minha supe-
rioridade me serve de multo. Violante, que ajunta
bastantes conhecimentos á multa perspicácia, a qual
se traduz, ora em petulância coruscante, ora em
modéstia melancólica, Icva-me muitas vezes van-
tagem e obriga a callar o professor. Ah! É que
todas as minhas idéas se confundem quando
ouço aquella falia tão argentina e maviosa.
lá vês que o meu estado é invejável. Não pro-
curo o perigo, mas também o não evito. Estou
preparado para a lucta, se houver Inimigo que
queira Investlr-me. Desconfio porém que por ora,
e talvez, para sempre, o Idylllo só seja interrom-
pido pelas valas Innocentos de Violante... e pelas
narrativas do velho cavalleiro, cuja espada brilhou
ao sol das batalhas, como elledlzemphatlcamente.
Desnecessário é acrescentar que o velho realista
tem em mim um ouvinte attencio&o e reverente,
que nem pestaneja no discorrer mais dlcaz.
Sei applaudir, quando oapplausocae do molde,
e de tal sorte me aííiz a este seroar patriarchal,
entre o pai, a íllha e o cura da aldeia, que nem
sei como se vive no Grémio ou no Martinho, ou
como se pode ouvlf de uma feita quatro actos de
opera em S. Carlos ou de drama em D. Maria.
Vae já bem longa, e por ventura multo fastidiosa,
esta carta; mas não quero fechal-a sem responder
a uma pergunta, que me fizeste com Inexcedlvel
desplante e hombridade sem igusl.
Tomaste uns ares de inquisidor, engrossaste a
voz pedagogicamente, e disseste como o doge no
Othelo:
— Já te arriscaste a alguma declaração?
Aphrase é textual e íique-le a responsabilidade
d'ella.
Continuas logo: «Isso a que eu chamo declaração
é o maior arrojo a que pode abalançar-se um na-
morado verdadeiro. Out'rora, quando nos tempos
cavalheirosos o brio e pundonor envolviam a terra
no seu manto de delicadeza, uma declaração era
coisa simplicíssima.
«O bardo envergava o ornez e a cota de ma-
lha, brandia a acha, cavalgava ginete farfante,
derrubava na liça o contendor, e apregoava rainha
da belloza e dos amores a alvidrosa donzella, que
o enfeitiçai a.
«Assim faziam cavallelros enamorados; assim fa-
zia o rei Arthur, assim faziam os doze de Ingla-
terra. Quando porém ocynismo revolto surgiu nas
ondas da orgia, quando D. João V, ou Luiz XV
deram leis de galanteria, confundlu-se a declaração
com o beijo luxurioso, que nem mesmo era fre-
mente.
«A esses tempos de Impudicos evenaes prazeres
segulram-se os nossos de hypocrlslae falso recato.
«Ravenswood pode salvar Ires vezes a sua Lú-
cia, que nem assim lhe é licita uma declaração
senão depois de muitos rodeios saplentlssimos e
rigorosamente métricos.
«O amor é agora umasclencla positiva e exacta.
O amor é a arlthmetica do coração,
«Esta nova applicação dos números, que escapou
ao próprio Gauss, tem os seus princípios e axio-
mas, tem as suas deducções e schollos.
96
O PANORAMA
«Desgraçado de quem ignorar estas artimanhas
sociaes, qilepara logo será posto a um canto, como
soez e indigno da illustração do século.
«Uecommendo pois a todos os que se atrevem a
libar a ambrósia das Ilebes de salão, que não caiam
em patentear a chamma, que os queima, sem pri-
meiramente experimentarem se no seu tirocínio
encontram a seguinte proporção:
«A somma de sorrisos d'ella está para a somma de
suspiros nossos, assim como as herdades ou posi-
ção social do noivo estão para iguaes quantidades
da noiva.
((>i'isto se encerra o amor d'cste século.
<íÉ o amor ex-professo.
Transcrevo estes periodos, para eterna vergo-
nha tua. E ousas dizer que tens um coração!
Não quero combater esta doutrina; digo-le só,
para teu descanço, que ainda não liz declaração a
Violante... porque nada tenho que declarar-lhe.
Pois o que havia de dizer-lhe, senão que posso
amal-a um dia, que é esse o meu desejo, e que
talvez a ame já, como um louco?
Oh! Mas essas declarações fazem~n"as os olhos,
que são os mensageiros eternos do amor.
Parece-me que tenho travado com ella certas
phrases nimio-sentimentaes, mas declaração ex-
plicita pertence ao acaso, ao deus dos namorados,
em cujo numero não sei se devo incluir-me.
É alta noite. Reina a solidão n'este cantinho do
mundo. Tudo aqui é placidez e innocencia, e as
noites correm bem dormidas. Teu, ele.— Alfredo
DE Mello.
{Conlinun.)
ERRATAS
No capitulo IV (lo romance Galaíéa Moderna, deve fazer-se as
seguintes correcções;
Pag. 74, col. 2.^, onde se li'^ — luctunr .... leia-.se flartuar.
> > » » , » » — dryadas. ... » dnjades.
• 7.J, » 1.* » • • — exhausto . .. » cxhnusta.
I n n ■> » /) . — açoitado . . <> açnilada.
. . » ^ 1. » » — deliciámos.. » delirámos.
> • > > p. . » • — Prrso .... " Presa
. » • » » » » — conslrange-se ■> conslrnnia-se.
„ m » « » » » — cupido » áspide.
, . » 2." » » » — Melihen. ... » Mclibeu.
^ » — namorosos . » nemorosos.
E mais alguns erros se encontram, que escaparam por defeito
de revisão, e dos quaes pedimos desculpa aos leitores c ao auclor.
ÍIARPEJO
K vidi lagrimar clieduo bei lumi,
Gh'an faúo mille volte invidia ai sole.
Tasso
Se soul)es.';cs nuanlo peno,
miniin flor,
quando o teu olt)ar sereno,
turva a dor,
quando uníi véu de funda mágua
vejo ir
os teus olhos rasos d'agua
encobrir,
quando um ai do seio exhalas,
ílor do ceu,
e m'escondes luas falias,
anjo meu;—
e se visses que almo gosto
reina em mim,
quando alegre esse leu roslo
vojo emlim;
se meu seio examinasses,
fosses ver
quando anima tuas faces
o prazer,
e teus olhos scinlillantes
vejo a par
como dous astros amantes
palpitar;
quando corres vaporosa
para mim,
como a douda mariposa
do jardim ;
quando, longe dos abrolhos,
vejo em li
ceu d'amor, que dos teus olhos
me sorri:
ai se visses, se soubesses!...
então, sim,
ouvirias miidias preces^
cherubim.
De minh'alma doce incanto,
casta ílor,
i porque clioras? susla o pranto,
dei.va a dor.
Deixr. a dor que assim te opprime
o coração,
como o sol q°ue verga o vime
para o chão.
Vai ás flóridas campinas
resi)irar
os perfumes que as boninas
le soem dar.
Vai, que o ceu é lindo; e o prado
le sorri
com mil llores que ha guardado
para li.
E se á larde pende a coma
cada flor,
é perpétuo o saneio aroma
d'esle amor.
Vizcu.
Cândido Figueiredo.
As rosas brancas e incarnadas, os lirios roxos
e azucs, as cecéns brancas, os bcm-me-quercs e
as boninas com uma roza dourada nomeio se guar-
necem e enfeitam para os olhos dos homens; os
frutos das arvores quando chegam á sua desejada
perfeição, e as searas na fertilidade de suas espi-
gas se tornam de ouro: e as mais formosas crea-
turas humanas, com as cabeças douradas mostram
sua belleza; e a esta imitação trazem os príncipes
e monarchas do mundo o ouro sobre a cabeça; os
reis e imperadores nas coroas, os papas nas thia-
ras, ou bispos nas mitras, e as matronas illuslres
nos toucados, ao pescoço, sobre o peito, e pendu-
rado das orelhas, nos dedos, e nos braços, fazen-
do voluntárias prisões da sua formosura.
Francisco Rodrigues Lobo.
Typ, Franco-Portugueza = Rua do Thesouro Velho, 6.
13
o í>ANORAMA
97
TIIEATRO DE D. MARIA II.
ror A. OSÓRIO DE VASCONCELLOS
Singular e estranho destino persegue ás vezes as obras
do homem. Que vicissitudes! Qnc. baldões da sorte!
Quem dirá, se por ventura não for sabedor da historia,
que n'aquelle ediíicio, que hoje ó templo das artes, já
se aqueceu a fornalha, aonde ossos humanos se tisnaram
para honra e gloria de um Deos de clemência e bonda-
de 1 Quem dirá que no garrido e loução Ihealro de D.
Maria, aonde echoam risos e volilam jocos, crguia-se ou-
tr'ora um palácio torvo e sombrio, minado de cárceres,
em cujos arcanos soterrados reboaram maldições de Ire-
dos juizes e rangeram dentes milhares de*victimas. E
comtudo, esta a historia authenlica e genuina do nosso
theatro normal. Singularissimo contraste muito para pen-
sar e admirar. Rastreemos, porém, sem grandes individua-
ções a historia d'esle ediíicio. Sigamos a monographia
d'esle monumento de pedra desde a sua fundação olé
hoje. Muito havemos de aprender que o lhea*lro de
|í!la-íai/íJL uij
'If ^1 K ]f""'f ''
iníifilí |li!'Í fi
D. Maria 11 teve o condão de andar ligado, desde eras
remotíssimas, ás grandes revoluções que alteraram por
vezes mui profundamente o viv*er e crer de Portugal.
D'esses edifícios se pôde dizer afíbitamente que são ver-
dadeiros livros de pedra, porque foram testemunhas mu-
das e quedas e eloquentes dos principaes successos de
que reza a historia.
Era no melado do século XY. I). João I, o rei heróico,
liavia descido ao tumulo, envolto na velha armadura,
aonde batera de chapa o sol em mil recontros. O caval-
leiro, que conquistou a coroa e libertou o reino nos plai-
nos de Aljubarrota, o foro conquistador de Ceuta, o pri-
meiro portuguez, (jue pizou as arcas adustas da Africa e
desfraldou ao vento do deserto a bandeira do occidente,
o artista, que fundara a Batalha, esse monumento de um
povo juvenil, cônscio da própria força ; o rei popular
emíim, eleito pelo i)ovo e filho do pov"o, repousava das
fadigas da vida na crypta do seu mosteiro, e as suas cin-
zas dormiam o derradeiro somno.
A ala dos namorados e os cavalleiros ardentes do con-
destavel já se tinham csvaido a pouco e pouco, e cada
((ual por sua vez, nas sombras da morte. Nascera c cres-
cera outra geração, com outras esperanças, com diversos
intuitos. A D. João i succedera T). Duarte, á ala dos na-
morados os marítimos de Sagres. Os leões do occidente
geraram os leões do oriente, os litãcs deram o ser a ou-
tros litãcs, os quaes avassallaram o Adamastor, titão co-
mo ellcs.
D. Duarte, porém, passados cinco annos de reinado, mor-
reu da peste, que assolou por aquelles tempos o reino ;
o heróico e malfadado irmão do saneio infante finou-se
ouvindo os prantos e lamentos dos seus vassallos mori-
bundos.
Perdera um pai o reino, e (li ara-Ihe uma crcanca, té-
nue vergonlea da heróica estirpe.
Appareceu então um homem, que segurou com mão ex-
periente as rédeas da governança, e dotou o paiz de
grandes melhorias, ao passo (jue lhe dirigia os impeles e
hardimentos. Era o infante D.Pedro, um dos vultos mais
venerandos e respeitáveis d'essa época gloriosa. Era o
infante D. Pedro, soldado valente e audaz, sábio cosmo-
grapho, amantíssimo das grandes entreprezas, que por
largos annos jjreparou, já com os seus estudos e viagens,
já com a poupança dos redditos c boa direcção do espi-
rito nacional.
Era pois no melado do século XV (1) Portugália sendo
procurado pelas nações da Europa. Todas queriam a
alliança c amizade deste pequeno reino, que esbracejava
já, c intentava rasgar com as proas dos seus galeões as
névoas, (pie encoliriam o berço da aurora.
O vasto porto de Lisboa mal podia receber no seu âm-
bito os baixeis que vinham de toda a parte, e raro era o
dia em que um embaixador estranho não vinha pactuar
com o grande infante que ora geria a coisa publica.
Era forçoso dar condigna c faustosa pousada a Ião ricos
estrangeiros. Assim o pedia a grandeza própria.
l)elerminou-se D. Pedro a erguer sumptuosa fabrica,
aonde recebessem moradia e gasalhado não só os em-
baixadores senão lambem os cortezãos, que não livessem
cabida nos paços reaes.
Esta a origem dos paços dos cstaos, ou hoslaos, vocá-
bulo antigo, que quer dizer iiospedaria i)ublica.
Occupava o paço dos Estáos o laílo seplemtrional para
oesle, sendo rpie o Rocio tinha a mesma .situação de agora
com a só dilVerença de ser então muito irregular.
Serviu o palácio pela primeira vez em 14.^1, porocca-
sião das festas que hou\e em Lisboa, quando a infanla
(I) lilO, .«ognnilo o sr. Vilhena B:'.rliosa. Escreveu este sábio e
erudito iicademiro alg"ns artigos sobre o inesnio assumpto no VI
Toluniu do Arrhiro PUturesco, que rccommendaiuos aos leitores
assim como todos os trabalhos de tão ubulisado escriptor.
98
O PANORAMA
D, Leonor, filha de D.Leonor, filha de D. Duarle e irmã
de D. AlTonso V, o Africano, conlrnhiu niípcias com Ire-
dericoUI, impenidor daAllemanlia. Foram pomposamente
acolhidos' os embaixadores tudescos durante os mezes que
se demoraram na ja então florescente Lisboa.
Correram emtanto os annos. A simplicidade e rudeza
de costumes de D. João 1 cedera o passo ás blandicias e
lenidades de D.Manuel, e este, após tantos annos inin-
terruptos de venturas e .i;lorias, baixou á sepultura. Com
a morte do rei venturoso começou a decadência de Por-
tugal. A mortalha de D. Manuel deixou vastas sobras para
a mortalha do paiz. Subiu D. João 111 ao Ihrono, e com
elle assomaram de envolta os primeiros negrumes do fa-
natismo torvo e sombrio.
Se os judeus haviam sido expulsos e definhadn a in-
dustria nacional ; se a sede de ouro, que não a fc imma-
culada e os brios de cavallciros, lti*a\a os porluguezes
ao oriente, ao rei fanático e intolerante coube a triste
sorte de dar o derradeiro golpe á prosperidade publica.
Qu'imporlava que os baix"eis vergassem com o peso das
pedrarias e especiarias, e os herocs recebessem as parcas
do oriente, se as praças africanas eram abandonadas, e
se perdíamos o futuro dominio de tantas riquezas para
colonisar as plagas longínquas de Santa Cruz! Qu'inq)or-
tavam esses restos, cnd)(.ra sumptuosos, de opulências
herdadas, se a Santa Inquisição surgia d,is sombras, qual
fúria delirante, brandindo o" facho ardente, que havia de
tisnar os últimos alentos do povo?
Ou"importava o nosso poderio se o cancro nos comia
as entranhas e nos dilacerava iniplacavelmenle? Oh ! Por-
tugal era já um jiaiz moribundo. Gloriosos c para sem-
pre admiráveis eram os seus derradeiros arrancos, com
os quaes estremecia o mundo espavorido. Mas ninguém
podia dar vida ao cada\er. Cercavam-n'o as iividas som-
bras da morte, seu rei-entoara-Ure o hymno fúnebre e as
psalmodias tétricas da egreia,c no seu tumulo aniidiava-
se a inquisição como um replil gigante c roaz, qiic care-
cia de fogu*eiras i)ara se deseniorpeccr. A inquisição!
Que idéas" pavorosas não soltem á mente quando soltamos
esta palavra fatídica 1 A santa inquisição ! Não vasculhe-
mos esse paul infecto, esse lago de sangue, aonde pullu-
laram cirdumes de vermes sanguinários ! A santa inqui-
sição! Macula indelével da historia moderna, creação
hvbrida do fanatismo hespanhol, do delirio clausurai, da
vòlupluosidade ardente de homens que, na força da idade
e das paixões, sentindo os impudicos extasis dosílagicios,
sequestrando-se do mundo, que aborreciam para melhor
o dominar, arreceiando-se de satanaz, que os perseguia,
afogavam em sangue o vulcão, que lhe ia revolto e me-
donho lá dentro !
Era necessária a iníjuisição a Portugal moribundo. Kra
necessário que as fogueiras Iividas e sinistras espalhas-
-cm de cn\olta comos seus clarões o espanto, a morte,
n estrago. Era necessário que um rei fanático lhe desse
acolhida nos seus pnçns, e escondesse a purpura por
traz da negra sotaina, da medonha estamenha de S. Do-
mingos.
Assim fez D. João III, c o paço dos Esláos lornou-sc o
ergástulo immenso de um povo escravo. Nas salas aonde
pousaram tantos fidalgos estrangeiros c nacionaes ; n';:-
quellas salas, que serviram de abrigo a tantos varões
illustres, e foram lestemutdias de scenas de gloria, amor
e saudades, ergueram-se potros, accenderam-se fornalhas,
prepararam-sc tractos, forjaram-se algemas c cadeias. As
tapeçarias foram substituídas, chumbadas as grades nas
ianeílas, por onde cnlra\a oulr'ora livre e á folga ar,
luz, calor e vida. Era necessário que o aspecto do |)a-
laoio da inquisição fosse lúgubre e carrancudo, era iie-
cpssario que fosse. . . inquisilorial. Tudo sollrou com-
pb'tn transformação. Cornam estreitos passidiços pelo
meio das paredes, os cárceres abobadados liidiam mira-
douros imperceptíveis, e o desgraçado não podia soltar
um gcuiido ou uma maldição sern que os liarbaros e
implacáveis algozes o ouvissem. Fora longo descre-
ver ja o palácio inquisilorial, já as salurnaes christãs,
c|ue comoçaram no [laço dos Estáos. Assunq)to é esse de
si Ião importanio, que não cabe nas estreilezas de um
artigo. Os que forem curiosos de\em ler a lli<loria da
Inf/iiisição em I'orOi[/al, pelo profundo e sábio historia-
dor o sr. A. flerculano, e nessa ol)ra admirável, verão
como a hydra do christianismo teve artes de aninhar-se
em Portugal.
São passados mais de dois séculos e meio. Encarre-
gou-se uma grande cat:!s!rophe, o terramoto de 175o, de
derrubar o palácio da inquisição, e comquanio resurgisse
mais augmenlado e sumiiluoso das ruinas fumegantes,
dava o marquez de Pombal profundo goljte na sanguiná-
ria instituição, acabando com as differenças entre chrislãos
novos e velhos, abolindo o castigo do fogo e cortando
as azas ao abutre, que esvoaçava sinistro no firmamento
de Portugal.
Estamos em 1820. O povo sedento de liberdade e re-
conhecendo emlim (jue era mais que um rebanho, er-
gueu-se á voz dos tribunos, soltou o grilo de redempçào
e do mesmo modo que os parisienses, correram os lisbunen-
ses à bastilha do santo oíTicio, abriram portas enferruja-
das, atravessaram lúgubres salas, franquearam cár-
ceres escuros, libertaram algumas victimas, que ainda
restavam, e atinai, refugiram es|)avoridos, horrorisados,
mal podendo acreditar na crueza e ferocidade dos seus
antigos algozes. Pouco faltou que o edilicio não fosse ar-
rasado, e se as xiclimas não cscaceassem tanto em vir-
tude das sabias reslricções do grande marquez, certo que
0 povo havia de dançar tombem sobre os fundamentos
da bastilha religiosa.
Sumiu-se para sempre esse espectro mal raiou a liber-
dade, cujos clarões escureceram as fogueiras.
Quando rebentou a revolução no rocio, e a palavra
magica— liberdade,— reboou, com a velocidade do relâm-
pago nos (|uatro ângulos do paiz, foi derrubada a esta-
tua da Fe, que canqieava no alto da empena, calcando
aos pés a heresia. Foram delirantes os applausos da mul-
tidão, que se .revolvia, como as ondas do oceano.
A revolução porém, com ser popular porque apregoa-
va e sancliíi(;ava os direitos do homem, que não mais
podia ser arrebanhado á vontade de um pastor despótico,
lirdia inimigos entranhados. Entre eslcs e na vanguarda,
apparecia o vulto do general Silveira, que lamentava a
([ueda do despotismo e almejava alevantíil-o das ruinas, em
(|ue baqueara. N'este intuito intentou proclamar a cons-
liluição [hespanhola de 1012, de parceria com outros
conjugados, para á sombra crcUa crearem uma silnação
polilica, em r/iie podcssem dictar a lei ao pai:, como diz
o sr. Vilhena ISarbosa.
Ainda a revolução não eslava consolidada, e surgiam
inimigos de toda a parle; mas já o grande Fernandes Tho-
maz recebia a aiiotheose do povo, que lhe entregou, nos
paços da inquisição, as funcções governativas.
() illustre patriota pagou depois com a vida na mas-
morra, este grande acto de a alor cívico e humanitário.
Por uma d'aquellas antinomias lerriveis e inexplicáveis
da historia, acontece q;iasi sempre que os que (jucbram
os ferros dos povos, morrem em ferros.
1 A revolução de 1820 deu pois mate á inquisição. A luz
1 afugenta as somJ)ras, a vida expelle a morte.
Ós cárceres, não mais foram povoados, já não reboa-
vam nas abobadas os echos plangentes de suspiros c la-
mentos.
As fogueiras, que ainda bruxuleavam depois do minis-
Iro de D. José, foram extinclas de lodo. O crr ou morre
(los mahometanos incircumcisos ninguém ousasa pro-
leril-o n'a(|uella época auspiciosa, em (|uc os velhos romanos
como (]ue reviviam na brilhante jílciade de liberaes. Os
brandões funerários das confrarias já não allumiavam as
longas procissões de i)enilentes, e os in(|uisidores e fami-
liares em vão derrubavam o sobrecenho, que ninguém
entoava su|)plices preces.
Só restava, após tantos annos de bárbaros supplicios,
a tradição ensanguentada e lúgubre de um tribunal Icr-
rivfl, composto de algozes, (jue Iripudiaram cm uma or-
sia (lo matança e carnificina.
Em 1821 decrelaram as cíules a exiincoão da Sanla-
Jrmandadc de jiav orosa memoria. Folgaram a justiça e a
humanidade no iniillo tribunal da historia.
O povo acolheu com frémitos de alegria esse decreto
memorável.
O palácio da in((uisição soíTreu então diversas vicissi-
tudes. No seu ambilo estanciaram, desde 1820 ate 1836,
o PANORAMA
99
o governo provisório, a camará dos pares e o Ihcsouro
publico, alè que um incêndio pavoroso o dcvoroi!, dei-
xando-lhe apenas as pareilcs.
De jusliça foi que o fogo |)uriricasse aquelle edifício,
aonde correu tanto sangue innocente.
Co)iti)iU(i]
IDÍLIO
III
A nrvorc do bom pasíof
Na margem de um lio caudaloso, cujo leilo
liumilde ora rodeado de altos e escarpados roche-
dos, vegetava, solitária, robusti azinheira Cau-
sava dó vèr a gigantesca arvore, que na planície
teria elevado ate ás nuvens sua mageslosa co-
ma, crescer sem gloria em áspero e profundo
barranco. De que servia os seus ramos esteude-
rem-se a grande distancia em roda do tronco? !)e
que servia, suas ílores, soltas pelo vento, Ibrma-
i'em a seus pés macia e deliciosa alfombra? Nunca
viu pastor algum piocurar á sua sombra abrigo
conli'a o fogo abrasador do meio dia, nem jamais
ouviu o terno discorrer de dois amantes, nem os
alegres sons das danças campestres, nem a voz
grave e solemne dos anciiJos, ora em pastoril con-
curso, adjudicando o premio do canto, ora em doce
colloquio, ricos de experiência, pregando a vir-
tude: aos maus annunciando cui-la vida e cheia
de tormentos, aos justos promeltendo larga senda
de paz e de viilude. Da vereda do monte, a cujos
pés jazia a iníeliz arvore, os rebanhos lhe despiam
os ramos da sua copa e as creanças da aldeia fa-
ziam fogueiras dos seus despojos; por isso, se al-
gum estrangeiro a admirava, não obstante a sua hu-
milde posição, os lilhos d'aquella terra diziam:
«Como podesergi'andea arvore cujas lloresefructos
são colhidos pelos nossos pequeninos no seu mais
elevado cimol»
Ostente em má terra um bello coração suas flo-
res, seus fructos de oui-o um alto engenho. Ein
vãol Como troncos sem seiva mui'charão; como
as aves sem ninho morrerão sem canto e sem
plumagem; ou como tu, formosa azinheira, des-
conhecidos pela ignorância, viverão sem lustre en-
tre brenhas, sem honra entre abrolhos.
— Cortemos estaarvore inútil, disse um dia Nar-
ciso, seu dono; o seu producto dar-me-ha, pelo
menos, duas cabras e umaiovelha. Com as pri-
meiras augmentarei o meu rebanho, com a segun-
da, de ílores e íilas adornada, presentearei a
minha querida l.ilia.E alegre, ufano com tão feliz
ideia, pensando na sua pastora e cantando, começou
a desbastar a pobre arvore.
«Caiam, disia, léus ramos e teu tionco aos
repelidos golpes do meu machado, velha azinheira,
e invejem o teu destino as arvores, que nos bos-
ques e nos prados o furacão derriba, ou as que
podendo resistir aosseusfui-ores morrem velhas en-
tre injurias e aíiVontaS. Não morrerás, não, sem
recordações e sem gloria. Ouando Lilia, com seus
lindos ííraços, enlaçar o alvo collo da minha ove-
lliinha, quando, amorosa, acariciar o seu íino vello
pensando em mim, então abençoarei tua memoria,
e juntamente com o meu amor guardal-a-hei para
sempre em meu peito.
«Trinai suavemente, passarinhos que vos ani-
nhaes em sua ramagem; soprai em torno vosso
doce alento, auras embalsamadas, que dais frescu-
ra á sua sombra, voz ás suas folhas; morra o vosso
amigo enlre caricias como o menino que do regaço
materno baixa á sej)ullura.))
Assim cantou Narciso; e apenas acabava, quando
uma voz grave e sonora feriu seus ouvidos. Appro-
ximou-se para ver de quem era, e reconheceu o
pastor Cecilio, oráculo da aldeia, honia e gloria
da comarca. Assentado aos pés da azinheira, re-
clinada a venerável cabeça sobre o Ironco, levan-
tava para o céo seus olhos já amortecidos pela
idade, puros como sua alma, doces e ternos como
o sou lerno coração, e assim dizia:
«Tenho visto o fogo consumir as cidades e abra-
zar os campos; lenho \is!o a terra commovida
eslremecor com fi'agor e derribar os templos, sober-
bos palácios e as humildes cabanas; lenho visto as
guerras estrangeiras e as dissensões intestinas agi-
tar sobre os povos seus fachos homicidas e apagai-
os com sangue; e quando as innocentes creanças
brincavam com as pedras dos tectos domados e
das santas abobadas; quando os reis pereciam nos
supplicios, como se foram obscuros mal feitores; quan-
do as nações se não poupavam á morte, vi lambera,
arvore amiga, que o hospede da tua ramagem
cantava alegre e tran(|uil!o em sua guarida, em
quanto que tu crescias formosa como os lilhos das
selvas, modesta como ludo quanto e gi^ande e for-
moso.
«Vi o leu tronco em sua infância, pequeno ain-
da e llexivol, crescer com grande custo em terra
pobre; vile, solitária e som apoio, levantar para o
céo a fronte secca e sem adornos, qual oipham
abandonado. Bemdilaseja a mão que te protegeu 1
Vi-le depois forte, erguida, feliz, como se amor de
mãe te tivesse conservado, como se formosa com-
panhia houveras lido ; e ao passo que os annos
teem ido desfolhando uma a uma as tlores da mi-
nha vida, as tuas nascem mais bellas e fragrantes
de primavera em primavera. Bemdila seja a von-
tade de quem le lez formosa, e bemdito o poder
que te tornou forte, arvore querida.
«Gosto de le ver subir e crescer quando eu ve-
lho e fiaco desço e morro' Cavar-se-me-ha a se-
pultuia a leuspes e grata sombra á minha humilde
lapida darão teus ramos, e acceitarás agradecida
os últimos amores do que na vida não Ice lilhos
nem esposa! Mil annos vivas e outros mil, linda
azinheira; e o céo conceda verdor eterno a tuas fo-
lhas, ditosa liberdade ao passarinho que lormar
seu ninho em lua ramagem; zéphiros brandos á
lua copa formosa, fresca chuva e lerna amiga a
tuas raizes. Já mais o aquilão ou o sudoeste fu-
riosos le murchem, nem traidor insecto te disse-
que roendo-te o coração.»
Assim cantou o ancião. Approximando-se depois
de Narciso: «Orpham, lhe disse, conserva a soli-
tária arvore; é lua irmã. Yem comigo viver, se-
rá leu tudo quanto possuo. Eu vos adopto: a li
para a curta vida que me resta; a ella, para de-
pois da vida.»
4 00
Õ PANORAMA
O desejo de Cecilio foi satisfeito. Os restos mor-
laes do ancião foram depositados aos pés da azi-
nheira, que os habitantes da aldeia chamaram d"ahi
em diante a arvoír do bom pastor. E fama que
desde então goza a azinheira de uma constante
primavera, e que uma multidão de llores de ex-
quisita fragrância, nascidas espontaneamente á ro-
da da sepultura, embalsamam o ar, sem nunca mur-
charem. Dizem os pastores que a alma do bom
ancião, ao subir á mansão dos justos, passou por
aquellas ílores, communicando-lhes uma pequena
paite do seu divino perfume, e que no silencio da
noite se ouvem debaixo da arvore suavíssimas e
ineftaveis harmonias, que não são mais do que os
echos da sua voz celestial.
BATALHA DE POITIERS
Este nome sôa lugubremente, como o de Crécy,
como o de Azincour!, aos ouvidos fi-ancezes. Estas
três batalhas foiam por muito tempo as três ma-
culas estampadas na alva bandeira das llores de
liz, maculas que os francezes só julgai'am lavadas
com o glorioso sangue de Fontenoy. Em Poiliers,
em Crecy, em Azincourt o leoiiardo inglez tripu-
diou ovante sobre os rotos pendões dos descen-
dentes de Carlos Magno.
Longas foram as guerras travadas durante a idade
media cnli-e a França e a Inglaterra. Molivaram-
n"as principalmente e facilitaiam-n'as o possuir o
rei de Inglalei-i-a, na sua qualidade de duque de
Normandia. extensos lerritoiios no continente fran-
cez. Correram estas guerras (que deram prin-
cipio ao velho rancor, que entre si dividio as
duas naçõesj com varias alternativas. A coroa de
França, rolando da fronte frágil de Caiios VI,
o rei louco, chegou a cingir a fronte dos mo-
narchas inglezes. Voltou ella aos seus naturaes
possuidores, graças á iniciativa audaz de uma
criança verdadeiramente inspirada por Deus, .loan-
na de Are. E assim lindou a prolongada lucta,
que inimizou os dois povos durante a idade
media, lucta que se reaccendeu depois em varias
occasiões, e hoje parece quasi de todo aplacada.
Retrocedamos á época, a que nos chama a gra-
vura. Iicina Kduardo 111 em Diglaterra, Eduardo
lil o fundador da Jarreteira, o pai do príncipe Ne-
gro, d'esse vulto sublime, que brilha nas trevas da
idade media com o duplo esplendor do valor cava-
lheiresco, e do talento militar.
O príncipe de Calles, cognominado o príncipe
negro pela negra armadura que usava constante-
mente, é talvez o general mais notável de uma
época, em que, mais do que a habilidade e a estra-
tégia, decidia as viclorias a força bruta. A pe-
ricia d'este grande homem fez inclinar j)ara o lado
da Inglaterra a balança, cm cpie se pesam os lii-
umphos militares. Teve também a França um ho-
mem notável a oppor-lhe; mas esse era mais do
seu tempo, mais cavalleiro andante do (|uc hábil
general. O homem, a quem nos referimos, já de
certo os leitores o adi\inharam, era o condestavel
Duguesclin, o predecessor de Bayard em bravura
pessoal, em caracter integerrimo, c em cavalhei-
rismo immaculado.
Mas nem esse mesmo eslava na batalha de Poi-
liers. Faltava o heioe da França para disputar,
ao menos por um instante, as palmas da victoriaao
heróe da Inglaterra.
F]ra em 13;)G. Invadiam as tropas inglezas o
território da França. Eduardo líl invadia a Picardia,
seu lilho, o príncipe Negro, atravessava, pre-
cedido pela vicloria, as mais férteis provindas
fiancezas. Sam-lhe ao encontro o rei João à testa
da flor da sua íidalguia.
Contava dezeseismil homens o exercito francez,
oito mil apenas o do príncipe Negro.
Apenas o i-ei de França vio approximar-se o
inimigo, logo foi ouvir missa o commungar junta-
mente com seus íilhos, que o acompanhavam, ingé-
nua usança d'esses lemjjos, em que Deus era invoca-
do pai-a auxiliar a satisfação das paixões desenfrea-
das dos homens.
Apesar da superioiidade numérica dos francezes,
era da parle d'elles uma imprudência acceitai a ba-
talha, ([ue o intrépido príncipe lhes oITerecia. Tão
hábil (|uanlo valoroso, o pi'incipe de Galles esco-
lhera um leireno favoi'avcl, d^onde os .'íeus besteiros,
abrigados pelas arvores que lhe cobriam a frente
de batalha, espalhariam a morle nas íileiras fran-
cezas antes que estas podessem chegar a alcance
de se travarem, arca por arca, com os seus ini-
migos.
Foi o que succedeu. O rei .loão dividiu o seu
exercito em ti-es corpos, coramandados, o da van-
guarda pelo duque de Orleans, irmão do rei; o do
centro ])elo du(juedaNoimandia e o da retaguarda
pelo monarcha em |)essoa. Como a cavallaría for-
mava a máxima parte do exercito francez, e como
o terreno aonde o príncipe Negro, como con-
summado estratégico, chamara a batalha, não se
prestava ás manobras d'essa arma, o rei de França
mandou apelar uma porção dos seus cavalleiros,
e encurtar as lanças, porque previa e desejava que
fosse o combate corpo a coijjo. Avançou a linha
commandada pelo duque de Orleans, efoi recebida
por uma nuvem de frechas, que introduziram a de-
sordem nas suas lilei«s. Os cavallos feridos re-
cusavam avançar, e atropellavam os peões, que
se lhes seguiam. Muitos dos cavalleiros, arrastados
pelos coroeis furiosos, caíram no meio da segunda
linha, (jue igualmente desordenaram. Apossou-se
o pannico dos francezes, que já n'esse tempo, le-
miveis na avançada, se desmoralisavam facilmente
em sendo obrigados a fazer um movimento retro-
grado.
O corpo, commandadopelo rei, foi o único que
oppoz uma resistência seria, e salvou a honra <las
armas francezas. Pralicaram-sealli essas genlilezas
e façanhas, (|ue os menestréis cantavam com en-
tluisíasmo, e os chronislas registravam escrupu-
losamente nos seus venerandos in-folíos O rei .loão
em pessoa praticou aclosde valor, que desculpam
até certo ponto a sua imprudência de general. O
seu lilho mais novo, (jue foi depois Philíppe o Au-
o PANORAMA
•, " í- 'f í
mm 1
f/fel M
(laz no catalogo dos reis de Fiança, então apenas
de idade de treze annos, piincipiou logo d'alii a
merecer o cognome com que a historia o distinguiu.
Debalde os Inglezes insistiam com el-rei João que
se rendesse, o intrépido monarclia rcspondia-lhes
abrindo em torno de si um largo circulo com a
espada ensanguentada. Só (jueria entregar-se ao
príncipe de Galles, mas, vencido pelos rogos do
cavalleiro deArtois, que combatia nas liteiras ini-
migas, constituio-se atinai prisioneiro.
O príncipe Negro tratou-o com extraordinária
distincção; recebeu-o na sua tenda e quiz elle mesmo
servil-o á meza, não cessando de louvar o seu valor,
e procurando adoçar-lhe as amarguras do capti-
veiro e a vergonha da derrota.
A batalha de Poitiers teve para a França con-
sequências desastrosas. Além dos sacriíicios que
teve de fazer paia resgatar. o seu rei, licou-lhe no
campo de batalha a ílor da sua nobreza De 10:000
corabalenles, morreram GOOO.
Eram assim as batalhas antes da invenção da
palavra, estygmalisada por alguns philosophos que
se dizem humanitários!
PEREZ LORENZO
(iSccnaN tia CaBiiiiaiilia ilo niexico]
Por PIMIEIRO CHAGAS.
YI
Assim, conversando c rindo, tinham-se ido ap-
proximando do sitio, d'onde partiam os sons, que,
ouvidos ao longe, tanto iinham enlevado os conlra-
guerrilhas, e que se iam tornando cada vez mais
distinctos e harmoniosos. Afinal, um jorro de vi-
víssima luz inundou o arvoredo, que, rareando-se
de súbito, deixou ver uma ampla clareira, e n'essa
clareira um espectáculo, deveras próprio para ma-
ravilhar homens menos habituados do que esses
aventureiros, aos casos inesperados e extravagantes
das florestas mexicanas.
4 02
O PANORAMA
No meio da clareiía ardia um fogo, cujo clarão
avermeliiado purpúrea va as arvores immoveis, que
circumdavam a sala de baile (chamamos-llie assim
por justos molivos), e projectava sombras vacillan-
les nas ditrerentes veredas que alli iam ler, e que
até um cerlo poníoeram illuminadas pelos lampe-
jos da fogueira. Junto d'es[a, insolentemente re-
costado na relva, estava um homem, o único do
bando, dedilhando uma guitarra com toda a non-
c/ifilaiice do amador andaluz, e contemplando a dan-
ça lasciva d'uni bando de mulheres, que revolu-
teavam n'um bolero dos mais animados, acompa-
nhando-se com as inevitáveis castanholas. Entre
estas mulheres havia-as bonitas, leias e horrendas,
havia-as de todas as procedências, mexicanas, hes-
panholas, Índias até, mas todas essas nacionalida-
des se fundiam perante a iniluencia magnética do
bolero e das castanholas, da guitai'ia e do pandei-
ro, que se casavam harmoniosamente inundando
a lloresla de melodias, que tinham ido, como vi-
mos, alVagar suavemente o ouvido doscontra-guer-
rilhas.
Depois das scenas de guerra e de sangue que
tinham vindo procurar, esta scena de paz e de
serena tranquillidade não podia deixar de incan-
lar os aventurosos soldados. Todos elles estavam
muito longe de se parecerem com a Hermínia do
Tasso, mas convenço-me de que todos sentiram a
impressão que a heioina do poeta de Sorrento sen-
tio ao deparar-se-lhe a dois passos das pelejas san-
guinosas, dos combates de Jerusalém, do acampa-
mento dos cruzados, o suave idilio dos pastores.
Não foi pequeno o espanto dos dançadores, ao
verem appaiecer de súbito na clareira aquelle gru-
po inesperado, e ao verem scintillar as chammas
nos canos das espingardas, nas folhas das espadas,
enas bayonetas luzentes. Ao brado deesj)anloede
satisfação com quíí os contra-guerrilhas saudaram
esta scena tranquilla, que se lhes deparava, cor-
responderam os actores d'ella cora um grito de
terror.
Logo se lhes dissipou o susio, ainda que não
fosse senão pela impossibilidade em que estavam
de fugirem. Todas lizeram da necessidade vii-lude.
Era impossível a fuga, resignaram-se. Também, se
fugissem, parecc-me que l^ugiriara como as nym-
phas da lllia dos Amores do nosso immoilal (Ca-
mões fugiam dos aventurosos companheiros de
Vasco da íiama, paia terem o prazer de ser alcan-
çadas, pai a darem aos seus perseguidores a doce
gloria de as vcncei-em.
O (íguiiarreiroj) esse é que tentou esquivar-se
deveras. Armou o pulo, e saltou como um jaguar
para o mais cerrado do arvoredo. Mas logo deu um
grito portjue se achou nos^ braços d'um homem,
que surgia d'esse lado onde elle* não esperava ini-i
migos.
Entretanto os soldados, com o consentimento do
commandante, capitulavam com as suas mais ou
menos bellas prisioneiías, escolhiam par e prepa-
ravam-se para aproveitar o bail.', a que o acaso os
convidara. Era tanto mais justa a sua resolução
quanto, como depois conheceram, essas mulheres
e esses preparativos esperavam n'esse sitio os ban-
didos, que lhes appareciam agora manietados e
encerrados n'um circulo de bayonetas.
Só faltou o guiiari-eiro; o homem, como vimos,
no ímpeto da fuga lòia cair nos braços d'um novo
actor, que parecera surgir de propósito do centro
da lloresla para se prestar a essa tocante scena.
Quando todos perguntaram por elle, viram-no ap-
parecer rebolando junto da fogueira. O homem li-
zera a sua entrada em scenad'um modo um tanto ori-
ginal imi)eHido pelos braços robustos do recem-
chegado, que não o recebera, como vêem, com um
carinho exemplar.
Todos se riram, e o que fornecera assumpto para
as gargalhadas, approxímou-se mansamente do ca-
pitão Viarmont, que permanecia distrahido, o dis-
se-lhe, tocando-lhe no hombro:
— Capitão, preciso que me oiça. Ao deixar para
sempre este mundo, não quero que a minha ima-
gem tique gravada, como a d'um assassino selva-
gem, na memoria d'um homem de bem.
O capitão voltou-se estremecendo, e vío Perez
Lorcnzo.
(Continua.)
UM PESADELLO
Era n'um baile de mascaras: lagar da scena,
ambíguo; actores, meia dúzia de mancebos assen- /
tados em torno de uma mesa, ond^ sé viam os mais \
exquisítos manjares e vinhos de todas as ([ualida-
des. A conversação, a pi'incípio solto você, ainda
que um pouco animada, foi seguindo depois a es-
cala progressiva até chegar a um /íf///alroador, no
qual um musico poderia observar uma desalinação
crescente.
Primeiro que tudo convém dizer que eu finono-
syllabo satânico) representava uma unidade da
mencionada meia dúzia.
Ainda que não conservo mais do (jue uma idéa
confusa d'a(iuella scena, recordo-me, comtudo, que,
em quanto os meus cinco comj)anheiros, com o rosto
afogueado e os olhos faiscantes, referiam uns a ou-
tros, sem se allenderem, as conquistas d'aquella
noite e os encantos da«polka intima, a minha pes-
soa (procurarei evitar o eu tanto quanto me for
possível j cantarolava em voz baixa a Avalsa do Fausto,
batendo o com|)asso com uma faca, (jue feria si-
multaneamente um pialo, onde jaziam os restos do
esqueleto de uma perdiz. Aminlia altitude reconcen-
trada e (|uasi silenciosa no meio d'aquella tumul-
tuosa assembléa formava um contraste flagrante,
(|uc os meus amigos não podiam deixar de perce-
ber.
— Ólá, acorda! me disse um d'elles, dando-mo
com o pé por debaixo da meza. Então, não eslá quasi
a dormir estesenlioil
— Levanta os olhos, disse outro, se é que não
receias de que ifelles contemos os copos (pietens
bebido.
Parece-mc que n'este momento levantei a ca-
beça.
o PANORAMA
103
— Sabes, meu amigo, que és pássaro de mau
agoiro? exclamou um terceiro; essa caia de miserere
é imprópria da situação.
— Muito bem dito. È dissonante.
— Incongruente.
— Yá-se deitar.
— Não, não, íalle.
Procurei fazer um esforço sobre mim mesmo.
— Sabem o que lhes digo? exclamei a íinal
olhando em torno de mim; é que os vossos
rostos \'ão-se tingindo successivamente de amarello,
azul, encarnado e até de todas as cores do arco
iris.
— Safai conhecc-se quelcm bebido mais do que
um inglez.
— Isso é conforme a còr do vinho com que nos
olhas.
— É singularissimo! tornei eu, com a insis-
tência própria da embriaguez, e levando aos
lábios um copo formidável, coroado de fervente
escuma; n'este momento todas as phisionomias pas-
saram de encarnado a uma còr de ouro vivíssima.
Esta observação foi acolhida com estrondosas
gargalhadas, em quanto que eu sentia com prazer
na garganta o agradável attrito do artiíicial cham-
panlie.
Cançado sem duvida, d'aquelle esforço, ou para
melhor dizer, magnetisado pelos vapores do néc-
tar, tornei a deixar cair a cabeça, iiiostrando-me
insensível a tudo quanto me i-odeava. Julgo, toda-
via, que procurei abiir os olhos; porém, cada umJf
das pálpebras pesava, seguramente, Ires a quatro
mil kilogrammas; quiz livrar-mc d'aquelle peso
importuno, mas os braços negaram-se a obedecer-
me, e...
Estou desconíiado que adormeci.
Não, porém, com esse somno tranquillo e des-
cançado, parenthesis da vida, que com tanto afan
deseja quem padece; pelo contrario, com um d'essos
somnos agitados em que a sensação se duplica e
em que a vida moral se reconcenlra em um sen-
timento exclusivo, em um desejo supremo. Sú-
bito, vi llucluar ante meus olhos uma ligura
branca, cujos contornos se perdiam nas som-
bias: nada mais fantástico e voluptuoso que es-
ta apparição, superior ás creações de Raphael,
superior, em iim, á própria natureza. l'm véo
branco, semelhante a uma d'essas nuvens que va-
gam pelo ceu cm noite de lua, occultava suas fei-
ções, deixando transparecer o brilho abrasador de
seus olhos.
Fez-me um leve signal com a mão, como que
chamando-me, mas em vão: as pernas e os braços
negaram-se ao movimento c (iquei immovel, não
sem experimentar um inexplicável sentimento de
angustia.
Não obteve melhor resultado outro novo signal
da sylphide, até que me voltou as costas e come-
çou a caminhar. Como o aço attrahido pelo iman,
assim uma força, cuja origem desconhecia, me
arrastou em seu seguimento. Os pés não se moviam
e comtudo caminhava.
Na minha cabeça ainda havia alguma coisa que
se parecia com baile de mascaras, e por isso foi
ao salão que o meu guiamysterioso me conduziu.
Yia-a revolutear por cima d'aquelle fervente occeano
de cabeças, e seguia-a sempre com o coração
palpitante. Depois de ter percorrido todos os
ângulos do salão, desappareceu por uma das
portas, deslizando-se ao longo de um corredor
escuro e tortuoso, para o qual me senti arrastado
em seu seguimento. À medida que caminhávamos
as paredes iam-se estreitando visivelmente, e pres-
tes me achei preso entre ellas, sem poder retro-
ceder, nem avançar. Um suor frio brotou da raiz
dos meus cabellos erriçados pelo terror, e senti
a cabeça tomada de vertigem: a vista obscureceu-
se-me: fallou-me aos pés o ponto de apoio e des-
penhei-me em um chãos de trevas!
A tentadora imagem não tinha desapparecido :
vi-a circumdada por uma auréola de luz, que fazia
realçar os seus contornos no fundo escuro do espaço.
Ouiz approxiraar-me (relia: ella voltou-se e veio en-
tão para mim ; cingi-lhe com o meu braço a sua esbel-
ta cintura, cuja fria e dura superfície me gelou o
sangue nas veias. Ati-avez do seu branco véo, dois
pequenos pontos luminosos vinham ferir-me as pu-
pillas: eia sem duvida a chamma que despediam
as suas: arranquei-lhe aquella importuna venda.
Horror! Em vez de um rosto radiante de belleza,
encontrei a fria e repugnante imagem da morte!
Era uma caveira, cuja boca sem lábios, entreaberta,
tinha uma expressão de cruel sarcasmo. No fundo
d'aquellas duas escuras cavidades brilhavam duas
chispas phosphoricas, que contribuíam a dar uma
expressão ainda mais sombria ao seu espantoso
conjuncto. Inutilmente tentei arrancar-mc de seus
braços, que me agarra\am com uma força sobre
natural, e assim continuamos a rodar pelo vácuo,
sem ar, sem luz, semhorisonte. O fantasma appro-
ximou do meu o seu loslo de esqueleto: os meus
lábios sentiram o frio contado da sua boca car-
comida: no cumulo da angustia quiz retirar vio-
lentamente a cabeça, que bateu sobre uma superfície
dura, e me fez exhalar um gemido de dor ..
Accordeil
Eslava deveras cançado. Em lorno de mim tudo
era desordem; alguns dos meus companheiros re-
sonavam deliciosamentcestendidossobrcas cadeiras
e outi'os tinham dcsajiparecido. Alravez do cortina-
do das janellas a aurora tingia de uma cor lívida to-
das as phisionomias. O ruído que vinha do salão
era mais igual, porém, mais rouco e amortecido
do que quando eu e os meus companheiros de
banquete o abandonamos.
Acendi um charuto e fumei: isto screnou-me
completamente; parecia que a terrível imagem do
meu sonho fugia involla no fumo que me saía da
boca.
Enirei no salão. l'm baile de mascaras, no seu
ultimo período, tem sempre alguma coisa de ter-
rível. Então já não ha mulheres bellas. O triste
sello da orgia imprime em lodos os rostos a sua
marca infei-nal: o matiz das fac(S, o carmim dos
lábios, a voluptuosidadc dos olhares, tudo desap-
parece. Já nãohaprazer, commoções, re^Iasóofas-
i04
O PANORAMA
tio. Parece que o demónio da realidade empeçonha
com seu hálito acfnella alhmosphera pouco antes
impregnada de beijos, de queixas e suspiros de
amor.
Uma mascara approximou-se silenciosamenle de
mitti, pegando-me no braço.
— Vamos! me disse, já são horas. Tenho-le
procurado toda a noite, por toda a parte, sem te
encontrar. Receei que me tivesses esquecido.
Em i-esposla levei o charuto à bocca, fugi-lhe
com o braço, metti as mãos nas algibeiras e, vol-
tando costas, dirigi-me para a poria comum passo
vacilante, sentindo' d'ahi a bocadinho açoitar-me
o rosto o frio orvalho da madrugada.
Mais de um leitor, ao terminar a leitura d'este
artigo, exclamará:
— E que me imporia a mim tudo isto? Quem é
que não lera sonhado alguma coisa parecida'^ Es-
tes senhores fazedores de artigos, julgam que tudo
quanto lhes succede é sobrenatural.
Tranquil!ise-se. leitor. Tem rasão: os leitores
lem-n'a sempre. Lembre-se, porém, que a vida é
um sonho, que sonhou ter lido este artigo como
eu sonhei tel-o escriplo. Se o sonho lhe parece
mau, classilique-o de pesadello e d'esse modo
concorda com migo.
BEATRIZ
XIII
Beatriz eslava só; Jacques sairá.
Tinha passado nin aiino dos (juo a hclla
Commellera o dclicto imperdoável
De abandonar o condo; a providencia
Não lhe tinha, porem, como cm casligo,
Amortecido a esplendida bellesa
Do rosto encantador: anjo caido,
Inda ostentava o mimo, a graça pura
(Jiic o eco lhe havia dado, como a poucos.
Kra am.ada e feliz, toda a existência
Espraiava-se então n'um paraizo
De ventura, ideal; como pensara
Na escura cerração (]ue em torno d'ella
Sc cohdemnava *ja, (piando em sua alma
Grata aurora de amor ííenlil brilhava?....
Beatiiz eslava só; rapidamente
Um confuso Iropel lhe invade a sala.
Que foi?., quem era pois?., porque viriam
Amedrontar a pomba que arrulhuva
No seu ninho de murtas perfumadas?..
Ceos! eu a vi sem cor, sem voz, sem tino,
Rojada aos pés de um velho, que bradava
A' chusma dos algozes:— cHil-a é estai» -
CeosI cu a vi sem còr, sem voz, sem Uno,
Morta de espanto e dor, arrebatada
D'aquelle eco de paz, como a folhinha
Que o norte ajíudo arranca ao jasn)ineiro,
É a vai deitar nos a;:oaçiies immundos!.
(leos! eu a vi....- não v"i, peço desculpa,
Porém ouvi contar; um dia o conde,
Firmado cm Ires artigos cascarrudos
Do Coílif/o pntitl, foi com a justiça
Dar i)riiicipio ao cíisligo memorável
Que a lei lhe concedia; — ó Chrislo, Chrislo,
(>jmo tu eras bom, como sabias
Quanto é fácil cair no horrendo abismo
Que se nos rasj^a aos |)esl... Que alire a pedra
A mulher (pie peccou, (piem jamais leve
Ura remorso a mordcr-lhc a consciência! ..
XIV
Estou cerlo que alguém, de 'gosto e critica,
Censura esta passagem, como avessa
Ao lyrismo, ao perfume, a singeleza,
A' graça natural, e a muitas cousas
Que os versos devem ler; oh! mas se a gente
Seguir, como ovelhinha, estes pastores
Que nos estão guardando as lettras pátrias,
Tomba da serra abai.vo em pouco tempo.
Cada (jual tem seu rumo; a minha estreita
E' meu pharol,— caminho e não percebo
O canto chão dos críticos roufenhos.
É trivial o assumpto?... que me importai...
Fora melhor talvez sagrar a musa
Ao género de truz, aos grandes cantos,
]\ aos retumbantes versos que apavoram ;
Faltar no Parthenon, em Gnido, cm 1'aphos,
Nas abelhas do Hymeto; entrar no Egypto,
Conversar com as pirâmides altivas,
Dar voz ao rayo, ao vento, aos esqueletos,
As montanhas, ao pego, ao mundo inteiro,
Aos demónios cruéis; fazer um coro
De estrondo à Mayerbecr,— (jue produzisse
Três vagados morlacs, e depois d'isso,
Adormecer na gloria salisfeilo.
Talvez fosse melhor, creio até mesmo
Que este ponto é de fe; mas quem me dera
Que em togar disso tudo, um dia cedo
Eu podesse escrever Hl diablo mundol—
E. A. Vidal.
ContiiiuM
IMPROVISO
Bem sei que o gelo do inverno
s(') tristezas reverbera ;
mas se pródiga de incantos
dos annos a primavera
em tua fronte sorri,
^porcjue repellos de li
a saneia luz da alegria,
e por entre um véu de lagrimas
olhas alem no horisonte
a neve que o vento envia
ás cumieiras do monte?
^porípie íilas tristemente
com esse olhar maguádo
a(|uelle arroio gelado
que alem sustou a corrente?
Afasia os olhos do gelol
o monte, não qiieiras vel-o
nem as neves que lá vão
dependurar-se na crista
(|ue no horisonte se avista
airavez d'esla janella
açoutada do aquilão.
Nem! inclina-té em meu seio;
c, se lhe ouvireé o anceio,
contente veras então
(juo se o rigor da estação
tuda lá por fora gela,
não gela meu coração l
.laneiro de 18G...
Cândido FicuEiRnDO.
São os dous entes mais parecidos da natureza,
o poeta e a mulher namorada: vècm, sentem,
pensam, faliam como a outra gente não vè, não
sente, nã') pensa, nem falia.
Garrkít.
i
Typ. Tranco rorliigiitza, Rua (Jo Tlicsouro Velho, G.
14
o PANORAMA
4 05
CIRCASSIANOS
Fazem parte estes povos da turbulenta popula-
ção do Cáucaso, que os Russos não conseguiram
subjugar nunca, e sobre os quaes exerceram ha
pouco uma d'aquellas terríveis vindictas, que lem
feilo o nome de Russo execrando a lodos os ami-
gos da humanidade e da civilisação.
A sua historia é um pouco obscura, principal-
mente nas suas origens. Suppõe-se que aCircassia
occidenlal devia fazer parte do antigo reino da
Colchida, e, depois, doRosphoro Cimmeriano. So-
bre a parte oriental d'este paiz ainda são mais vagas
as conjecturas. Conquistou-o Milhridales, e quan-
do o grande rei leve de curvar o colio á fortuna
de Roma e á de Pompeu, entrou a Circassia na
vasta lista dos dominios romanos, fazendo parte
do impeiio do Oriente, quando se bipartio o colosso.
Coratudo os imperadores byzanlinos não foram mais
felizes do que os czares de S. Pelersburgo ; o seu
domínio n'essas regiões remotas do império foi
sempre nominal. Quando veio a invasão dos bár-
baros, coul}e aos terríveis Hunos subjugarem a
Circassia. Siiccedeiam-lhes os Khasares, contra os
quaes estes povos se sublevaram, com fortuna va-
ria, no século onze da uossa era. Depois vieram
os Turcos da Pérsia e os reis da Geórgia, depois
Tamerlão, depois os kans da Criméai depois fi-
nalmente os russos, que entiaram como allíados,
e quizeram licar como conquistadores. Nãolh'o sof-
freram os Circassianos, sempre turbulentos e in-
domáveis, e voltaram a sujeitar-se aos Tártaros da
Criméa. Mas estes principiaram a commelterexac-
ções; eis de novo os Circassianos em revolta, e
implorando a protecção da Porta Ottomana, cujo
domínio acceitaram, sem comtudo lhe pagarem o
mais leve tributo.
Como os leitores hão-de ler notado, os differen-
tes domínios estrangeiros a que os Circassianos se
sujeitaram, nunca foram senão quasí exclusiva-
mente nominaes. Quando os seus senhores que-
riam reivindicar os seus direitos, os audazes mon-
lanhezes refugiavam-se nos seus serros inaccessi-
veis, e d'ahi desafiavam impunemente os exérci-
tos, que pretendiam subjugal-os.
Mas ainda aqui não pararam as vicissitudes po-
líticas da Circassia. Em 1739 a Circassia foi pro-
clamada independente, em virtude da paz de Bel-
grado, alim de servir de baluarte á Rússia. Mas
os Circassianos, que defendem obstinadamente a
sua independência individual, porem que pouco
se importam com a sua autonomia de nação, uni-
rani-se de novo á Criméa, que, rendendo vassalagem
06
O PANORAMA
á Turquia, tornou dependentes da Porta Ottoma-
na estas populações que se llie tinham ligado.
Em 1774 perdeu de lodo o sullão, em virtude
das conquistas de Catharina da Ru§sia,a sombra
d'autboridade que exercia sobre estas províncias
monlanhezas. Em 1789 passaram ellas deliniliva-
iiiente a fazer pai te do império moscovita.
Começou então uma nova era para a Circassia.
Até ahi os povos, que a tinham dominado, só de
longe a longe tentavam ti-ansfoi-mar em realidade
essa Delicia suzerania. A Ciicassia revollava-
se, sacudia o jugo, coUocava-sc debaixo da pro-
tecção d'oulro paiz, e acabava tudo. Com a
Rússia não succedeu o mesmo; a Rússia tentou a
sério estabelecer o seu dominio, e a Rússia não
era paiz que desistisse das suas pretenções perante
a insurreição d'um povo pequeno, ainda que atre-
vido. Os Circassianos enlenderam que não deviam
alterar por caso algum o seu velho systema. I)'ahi
provieram as longas e continuadas guerras, que
ainda ha pouco terminaram... se terminaram, e
se a medida horrivel, adoptada pelo governo rus-
so, de airancar populações inteiras á sua terra na-
tal, e populações que tèem tão desenvolvido o amor
da pátria, e de as transplantar para outro solo,
para outros climas, obrigando-as a outro género
d'existencia, fez mais do que annuliar jior algum
tempo a insuireição, exacerbando comludo os ódios,
que, em chegando a occasião própria, se reaccen-
derão com nova fúria.
ESBOÇO DESCRIPTíVO DO MAR
I
É o oceano a imagem grandiosa do mysterio e
da solidão. Que espectáculo sublime o contemplar
pela primeira vez esses ])lainos líquidos, cuja su-
perlicie oia se ostenta brilhante e reluzente como
um espelho ciislallino apenas encrespado de leve
peias ondas arquejantes, ora seenturva e rebrama,
erguendo montanhas de agua que tumultuam, ge-
mem e luctam e se estorcem em vascas de deses-
pero, e alinal, tritões prostrados, beijam fremen-
tes os rochedos da praia !
O mar é o symbolo da immcnsidade e da força
ingente, louco, vertiginoso.
É no mar que a natureza é verdadeiramente
terriíica aos olhos do homem.
iNo oceano é tudo grande, c (udo gigante e res-
peitável.
Todos os phenonienos marítimos leera uma fei-
ção grandiosa e profundamenl(í mystica, e a alma
quando vôa por sobre as límpidas solidões oceânicas,
como que se flilata no sanctuario da terra.
Quem ha ahi, que não tenha contemplado o pôr
do sol no mar, em tarde límpida de estio?
O rei do universo, o astro-lampadario vae des-
cendo para o oriente. As vagas tumultuam e do-
bram docemente a íimbria es[)umosa para recíiber
no seio o planeia. Disséreis um bando de huris
arquejantes, (|ue S(! alindam e enfeitam para da-
jcm guarida ao sullão lumino.so. Eil-o emlim que
mergulha. Retingem-se as aguas com os derradei-
ros clarões. Forma-se a auréola na extrema do
horisonte. As ondas pulam e bailam e refran-
gendo a luz nos seus crystaes líquidos, enru-
becera-se, corôam-se de pedrarias. A alhmos-
phera parece um rio de fogo, as nuvens, diapba-
nas qual bafejar de archanjo, precipilam-se no
mar e seguem o rei do dia. No zeniih reina ainda
o fulgor Ígneo e relampejam reflexos brilhantes.
As sombras não surgem ainda no oriente, eraal
ousam tufar o seu negro manto.
Psão brilham estreitas. Tudo é placidez csocego.
Nem um só murmúrio. Só a brisa da tarde cicia
medrosa na espessura e os passarinhos soltam os
últimos quebros.
Vae mergulhando entanto o astro do dia. E lento
o seu caminhar. O globo afogueado deixa um
hemíspheriocom saudades, paraillumínar o outro.
K o mar continua no seu tumultuar, e as ondas
gemem e soluçam.
Desapparece emlim o asíro radioso; desfaz-se o
sulco da luz no lii-mamento, apparecem as pri-
meiras sombras, as estreitas scintillam a medo, os
pyrilampos, essas estrellas das campinas, reluzem
nas selvas e sarças, acallada da noite é interrom-
pida pelos mil rumores do estio. Yolitam inse-
ctos multicores, aninham-se pássaros nos recessos
sombrios, aílloram reptis nos relvados, grasnam
rãs nos paues, cruzam-se immensos ruídos surdos,
profundos, vilães, até que chegue a hora do re-
pouso, que é tardia nas nossas latitudes, dui-ante
o verão.
Quem não dirá então como Castilho, que pin-
tou o pôr do sol, quando escreveu após intima
c profunda elaboração aquelle cântico que começa:
«Sumiu-sc o sol esplendido
unas ondas rumurosas.
Mas quantas vezes, mal o sol se some nos plai-
nos (lo oceano, não surge alua radiante e formosa,
illuminando a terra com os seus raios pallidos!
Muda então o mar de aspecto.
Rebrilham ao longe as vagas endoidadas brin-
cando na orla do horisonte.
Os rochedos, que circumdam a praia projectam
sombras phanlasticas nas aguas, que se emba-
lam docemente e beijam i)regui70sasa areia. A imagi-
nação povoa as solidões de seiTS fabulosos, e sereias,
(jue descantam, no silencio da noite, toadas ma-
viosas c plangentes. Debalde intentam os olhos ras-
gar as profundezas do abysmo. O espectador liça
aterrado, absorto, altonilo.
Ou Iras vezes, a estes espectáculos já de si Ião
grandiosos, succede a ardenlia, essa phosphores-
cencia do mai-, esse relampejar entre partículas
de agua. Este phenomeno, que ainda hoje c revel
á sciencia, |)Oslo {|ue tenlia excitado a allenção
de lodos os grandes naturalistas, ostcnla-se mara-
vilhoso e produz não sei que suavíssima impressão
em (|uem o contempla.
Não é tilo meu, nem caberia nas eslreilezas de
um artigo, ofallar, se bem (jue perluncloriamenle,
(las mil e uma maravilhas do mar. I'ara obra de
lai magnitude, se por ventura a tanto podesse aba-
i
o PANORAMA
i07
lançar-me, carecera de escrever um livro, ou an-
tes um poema, entre os muitos que a natureza
encerra nos seios vastíssimos, cada vez mais opu-
lentos, á medida que a sciencia vae dilatando os
seus dominios.
E que bello e formosíssimo livro não seria esse
se alguém o escrevesse! (jue de tliesouros não
encerrara! Que magnificências !
Quando as vagas tumultuam e se contorcem em
ímpetos raivosos, quando erguem o collo e ondeiam
e se enroscam, como serpentes líquidas tauxiadas
de côrcs esverdeadas; quando cingem os rochedos
e os coraes madreporicos, resfolegando, gemendo
e cuspindo espuma na praia; quando no meíodVsse
coiôbate, em que a tormenta ronqueja nos ares
revoltos, se alevantam mil rumores sinistros de
estrago e morte; quando aos gritos da natureza
enraivecida respondem os gemidos dos homens,
que luctam e disputam a vida em pleito desigual;
quando a tromba se balouça por sobre a crista da
onda, e qual cetáceo invisível, sorve a agua aos
repuxões, arrastando o navio imploravelmente;
quando o bulcão estruge a athmosphera e corr^,
como visão infernal, a superfície dos mares, quando
o mareante contempla todos estes phenomenos e
escapa incólume a tantos perigos, que sublime
epopêa não traz comsigo? Da mesma sorte que Ca-
mões, esse mareante salvou um poema, bem sen-
tido, bem verdadeiro.
Mas afora estes, que de espectáculos ainda, cada
qual mais grandioso! Na zona temperada do norte
o fjulf-slream, esse rio de mar, esse Mississipi do
aliantico, vastíssima corrente de agua lépida, que
vae das costas da Inglaterra ao golpho das Anti-
lhas, passando pelas ribas de Portugal.
Mais ao norte o Maelsirom, essa corrente fa-
tídica, esse tragadouro medonho, que tem engo-
lido tantas viclimas, esse redemoinho, aonde habi-
tam, segundo é pia crença de bandinaria, os ini-
migos dos homens.
Nas regiões hyperboricas os mares gelados, os
amphitheatros e circos de neve eterna endurecida
pelos séculos, cinta fúnebre, que envolve a terra e to-
lhe a vida nas suas manifestações mais singelas.
Im pouco para o sul, em latitude menor, entestando
ainda com os coruchéus e miranetes de gelo, com
as immensasmoUes de agua solida, perpetuamen-
te íixas e quedas, estanceiam as ilhas lluctuantes,
que estalam com ruído, mal assoma o primeiro
alvor do dia de seis mezes, e vão mudando de
forma e posição correndo aos baldões, arremessan-
do-se e desfazendo-se, para se formarem de novo.
É ahi queas geleiras septemtrionaesse entumecem
e enchem o espaço de sinisti'os rumores, éahi que
esses rios de neve, moendo e triturando rochedos,
desembocam no oceano angustiado, é ahi que o
movimento desordenado e medonho começa, pre-
cedendo a vida.
Já os ursos do norte vão apparecendoepreiando
algum cetáceo, que o frio colheu de súbito, no
começo da longa noite; allloram lichens por
entre os rochedos fendidos; bandos de lobos fa-
mintos e esguios abrem as fauces, e uivam na so-
lidão; o esquímáujá estende as redes, e nos char-
cos e paues da Laj)onía mais septemtrionalexpan-
de-se a vida após tão largo somno.
Na Irlaiidia ergue-se um vulcão do meio domar
e, da mesma sorte que na llalia, voam as cinzas
para o mar, aonde caem rios de lava.
Deixemos porém o septemtríão.
Aguarda-nos o equador. É a vida ahi excessiva
e gigante. Nascem as tormentas por encanto, as
ondas entumecem-se, os furacões derribam flores-
tas e casarias depois de sulcarem o mar.
Mais além começam as correntes auslraes.
O Cabo daBoa-Êsperança, ocyclope de Camões,
estende os rijos membros, e solta os eternos la-
mentos, que echoam nos rochedos da montanha da
Meza. São medonhas as correntes que passam ao
longo do cabo; arrastam navios e deitam-n'os na
costa; engolem victimas no abysmo undoso, como.
que vingando-se da audácia humana, que ousou
devassar os segredos da solidão.
Para o oriente, no oceano indico, que os ma-
reantes chamaram oceano Pacifico, os cyclones e
tormentos girantes começam a sua carreira insen-
sata. Nada lhes resiste.
O navio, que acerta de encontrar, por desgraça,
um cyclone, um d'esses tufões medonhos, difíicil-
mente escapará ao naufrágio.
É ahi que os coraes, esses humildes archilectos
de mundos, esses artífices phanlasiosos, erguem
ilhas e archipelagos. Quantas vezes não encontra
o mareante uma bacia plaeída esocegada no meio
do oceano em fúria? Quantas vezes não topa com
um abrigo providencial, se teve a ventura de não
se despedaçar contra os gumes afiados dos coraes?
É que estes obreiros infatigáveis zombando do ocea-
no, vão erguendo desde o fundo altíssimas paredes
a pino, duras e compactas, até à superlicie! Mi-
lhares de annos levam elles em obra tão grandiosa.
Mas saíu-lhe perfeita a fabrica, e o seu destino é
construir. Venha depois um vulcão que alevanteo
banco lá do fundo, desfaça e oblitere a intempé-
rie algumas arestas mais vivas; forme-se um pouco
de pó, que se deposite em côncavos mais abriga-
dos; caíam ahi algumas sementes trazidas pelo
vento; nascem lichens e outras plantas rudimen-
tares, e teremos um principio de vida. Depois, esses
lichens, secando eapodrecendo, formarãoum terreno
vegetal, que se combina com os detritos inorgânicos;
surgirão coqueiros, palmeiras, fetos giganteosegi-
ganteas trepadeiras. A vegetação tropical cobrirá a
nova ilha de basta espessura: as chuvas tornar-se-hão
regulares, cada anno se formam novos terrenos e a
floresta irá ganhando e j)rosperando. Virão pássa-
ros canoros aninhar-se n'aquelles recessos umbro-
sos, encontrar-se-hão riquezas e thesouros e afinal
a vida só acaba, quando o europeu ou americano,
arrastado pela sede do ouro, puzer machado ao
tronco das arvores, e desnudar a terra, que só
muito tarde poderá refazer-se,sobaquella athmos-
phera abrazadora, sem chuvas que a desallerem e
refresquem.
Com o arvoredo acaba a vida.
E não param aqui as maravilhas do oceano.
>I08
O PANORAMA
Além das correntes, que cingem o globo como
demonstrou o celebre capitão 31aury, evão do cabo
da Boa-Esperança ao cabo de Horn, atravessando
todo o Pacilico; esquecendo as gélidas solidões que
se dilatam por delraz do Erebe e Terror até ao
polo austral, que nunca foram devassadas por des-
cobridor; não levando em conta lodos osplienome-
nos, que se patenteiam na superíiciedo mar, outros
e certamente mais admiráveis ainda, se verificam
no interior do oceano, n'essas moradas explendi-
das, aonde os gregos puzeram Neptuno com o seu
cortejo de deuses marinhos, naiades e uerines,
Proteu com o seu rebanho, Amphitrite com as
suas nymphas.
A natureza excedeu a imaginação. No interior
do mar expande-se formidável e opulento o diama
da vida. Ha lá florestas e sarças impenetráveis; ha
lá vegetações luxuriantes, algas immensas. Milha-
res de espécies de animaes povoam aquelles reces-
sos crystallinos desde o cetáceo gigante até ao hu-
milde infusorio.
Também lá resfolgam vulcões e arrojam lavas can-
dentes; também lá se erguem montes, se angustiam
gargantas e dilatam valles; também lá se travam
combates em que o mais fraco é viclima do mais
forte; também lá o rythmo da vida se desentra-
nha em harmonias perennes.
Mas a sciencia ainda não poude devassar todos
esses segredos.
Muito se sabejá; muito porém se ignora ainda,
e para sempre talvez Nos seios do oceano édiílicil
e muitas vezes impossível a observação, e fora ne-
cessário um cataclysmo horrendo, em que todos
houvéramos de perecer, para que o leito do mar
ficasse a descoberto.
Do que se sabe irei eu apresentando aqui o que
me parecer mais útil e curioso. Ordem e metho-
do não são de grande necessidade, quando a scien-
cia ignora ainda tanlo. Esforçar-me-hei com tudo
por ser resumido e breve, sem me tornar obs-
curo.
DiíTicil é escrever sciencia para quem deseja
aprendel-a sem trabalho.
Nem lodosos paladares apetecem estas iguarias,
que algumas vezes tem muito travo. É o caso de
illudir diííiculdades, fugindo-lhes com o corpo por
evitar desdéns de leitor indolente.
Certo que os leitores do Panorawa sâo pessoas
muito asisadas, de bom conselho eamanles dains-
Irucção. 15em o sei, e não me atrevera a negar o
que deve de ser jjiedosa fe. Mas, não c menos
evidente que o commum dos paladares prefere
prestes e iguarias, ainda que de somenos ali-
mento, comlanlo que tenham bom |)iej)aio.
Ora ahi é (jue está a diniculdade.
Preparar sciencia popular é condão dos grandes
talentos.
Em lodo o caso, são tantas e tão magnificas as
maravilhas do oceano, os espelaculos do mar são
Ião grandiosos, que faliam de persi, e estão exi-
gindo altenção e estudo dos mais remissos.
Será pois o oceano o campo das no.ssas pesqui-
sas. É imraensaa ceara. Podemos respirar á von-
tade, que não ha limites nem barreiras para a nossa
curiosidade... senão o desconhecido.
A. OSÓRIO DE VASCONCELLO
CIDADE DE PEKIM
Portn do :%'ortc
As ultimas expedições da Inglaterra c da Fran-
ça rasgaram o veu myslerioso, em que se en-
volvia tenazmente a China, refractária á luz da
civilisaçãoeuropea. Devemos confessar (jue alguma
razão Unham os chinezes para isso, porque a luz
d'essa civilisação tem-lhes relampagueado ape-
nas dos canos das espingardas, e das espadas
dos zuavos do imperador Napoleão III e dos sol-
dados da marinha ingleza. A ultima campanha dos
alliados levou-os a Pekim, eoschinezes, alíerrados
aos seus velhos hábitos, viram com horror os bár-
baros eurojjeus profanarem o sagrado recinto da
cidade santa. O palácio do imperador foi saqueado
pela soldadesca, e a China vio-se obrigada a fazer
as mais extraordinárias concessões aos estrangei-
ros. Pekim deixou de ser uma cidade quasi legen-
daria, apenas visitada por um ou outro viajante,
por um ou outro missionário mais audaz. Hoje
estão desvelados todos os seus myslerios, e, d'aqui
a um século, talvez os bigodes dos velhos chinas
se erriçarão horrorisados, vendo entrarem as lo-
comotivas fumegantes nas ruas alinhadas da sua
velha capital.
Pekim ou antes Pe-king está situada á beirado
rio You-ho, a distancia de uns cento e cincoenta
kilometros da celebre muralha. Este nome de Pc-
kinfj significa residência do norte, em conlra-posi-
ção a Nan-kinf/, residência do sul, onde os im-
peradores da China habitaram até ao principio do
século XV. Pekim tem 28 kilometros de circuito.
Compõe-se de duas cidades, a meridional e asep-
temtrional. A(|uella, denominada a cidade velha,
é habitada pelos chins de velha raça, porque,
como os leilores de certo sabem, a dynaslia rei-
nante é de origem tártara, e subiu ao throno em
consequência d'uma grande invasão d'esses incom-
modos visinhos do immenso império, visinhos con-
tra os quaes se construiu a grande muralha, que
é, como vêem, bastante imponente. A cidade se-
plemlrional denomina-se cidade dos Tártaros, é de
muito melhor construcção do que a antiga, e ainda
se subdivide em Ires bairros concêntricos, sepa-
rados uns dos outros por muralhas especiaes. Es-
ta cidade dos Tártaros contém vastissimosjardins,
pequenas ruas habitadas na sua máxima parle por
empregados da corte, negociantes, e induslriaes.
Alem (fisso alli se ergue o [)alacio imperial.
I O palácio im[)erial é um immenso quadrado,
que-lem (jualro kilometros de circuito! Rodeiam-n'o
muralhas, fossos profundíssimos, e lem, den-
tro do seu recinto, innumeros palacetes c templos,
enlremeiados de jardins e paleos, de columnalas
snmptuosií^simas (! de maravilhosas galerias. Os
aposentos da residência imperial são vastos eappa-
ralosos, e dislinguem-se por nomes campanudos.
o PxVNORAMA
i09
N'esse recinto iramenso lambera se enconlra a im-
prensa imperial, de cujos prelos sáe a Gazela do
Estado. Sabem os leitores que a imprensa é co-
nhecida pelos Chinas desde tempos immemoriaes.
mas (é este o característico mais notável das ci-
vilisações do Oriente) não deu um passo tal in-
vento, e ainda hoje é applicado na sua rudeza pri-
mitiva. Além da imprensa, maiiifesla-se o gosto
dos monarchas chinezes pela illustração na exis-
tência dentro do seu palácio d'uma rica bibliolhe-
ca, e d'um vasto museu de historia natural.
Contém a cidade tártara além do palácio do im-
perador, muitos edifícios notáveis, principalmente
mosieiros e templos bouddhislas, e algumas mes-
quitas ; mas a cidade chineza também não ficou
privada de monumentos. É alli que se admira o
famoso templo redondo do ceu, coberto por um
teclo que foima três andares, e ornado interior-
mente de columnas azues matizadas d'ouro. Exis-
tem além d'isso alli muitos outros templos, thca-
tros, estalagens, banhos públicos, e lojas brilhan-
lissimas.
. Em geral as ruas dePekim são escrupulosamen-
te alinhadas e muito largas, porém bastantes vezes
cortadas por viellas estreitas. Doze vastos ari-abal-
des rodeiam as duas parles da cidade. As casas
são baixas, e d'um só andar. J)'ahi proveio natu-
ralmente o atlribuir-se-lhe por estimativa muito
maior numero de habitantes do que o que real-
mente conta. Agora que a China está mais conhe-
cida, e que os Europeus se teem posto ao fado dos
documentos oíliciaes, póde-se ver n'uni recensea-
mento feito em 1853 que a sua população c de
l,li8,881 habitantes, inferior por conseguinte á
população de Londres c de Paris.
O syslema politico da China éuma vasta e seve-
ríssima cenlralisação; por isso a capital tem uma
importância enorme. Alli residem Iodas as aulhori-
dades superiores; é alli o centro da vida social
e politica e do movimento industrial e commcr-
cial da China. Uma das causas, que mais concor-
rem para o desenvolvimento do seu commercio, é
o estar ella em communicação com o grande canal.
Possue esta cidade um grande numero de
sociedades litterarias, e grande copia de eslabele-
cimentos de inslrucção publica, porque a civilisa-
ção da China, se bem que destituída de toda a
idéa do progresso, se bem que essencialmente con-
\0
o PANORAMA
serradora, nem por isso deixa de ser muito notável,
e em poucos paizes da Europa está tão desenvol-
vida a instrucção das ciasses populares como n'esse
grande império asiático.
Este vasto paiz, por tanto tempo cerrado aos
Europeus, abrio agora, bem que com timidez e
repugnância, as suas portas ; os myslerios da sua
civilisação extravagante vão ser revelados, e o
pobre Fernão Mendes Pinto, accusado por tantos
séculos de mentiroso, vai emfim ser rehabilitado.
Era tempo. Se a China conlinua a ser impenetrá-
vel, as Peregrinações do honrado portuguez iam
occupar um logar dislincto ao lado das Viagens
de Gulliver phantasiadas pelo malicioso Swift.
PiiVUEiRO Chagas.
OS RELÓGIOS
N'esla época, em que apenas se fixa a altenção
n'esses dous admiráveis descobrimentos, de cujas
forças nos servimos para nos transportarmos de
um extremo a outro do globo, com a velocidade
do raio, e pai'a nos correspondermos com todos
os povos, ainda os das mais longínquas regiões,
com a rapidez do pensamento; hoje, que só se at-
tende ás emprezas positivas e que produzem maiores
resultados, mais se devem apreciar as invenções an-
tigas, que à força de se haverem generalisado teem
deixado de causar-nos admiração. De outro modo
não deixaríamos de contemplar com religioso en-
thusiasmo os relógios, essas machinas que conleem
em si a resolução de um grande problema, e que
chegaram a constituir uma das necessidades da
vida. Pareceria impossível que a distribuição exacta
do tempo, a regulação fixa e invariav^ das horas
que forniam o dia se podesse fazer por meio de
umas rodas que caminham em direcção opposta c
cujo andamento se regula com a maior facilidade;
e e extremamente sensivel que se não tenha con-
seguido ateriguar quem foram os que prestaram
tão importante serviço à humanidade, para os seus
nomes serem esculpidos no bronze e até gravados na
memoria. Bastantes investigações temos feito acer-
ca d'esle assumpto, porem, nada mais temos ob-
tido do que o que consignamos n'esta resenha ou
ligeira historia d*este invento.
Desde os primeiros tempos conheceram os ho-
mens a precisão que tinham de uma norma lixa
e constante que lhes facilitasse o conhecimento
do tempo que deviam dedicar ao trabalho, do que
bastava para descanço e do que deviam empregar
nas outras occu[iações. Como as artes se acha-
vam então na sua infância, não podiam a ellas
recorrer para lhes proporcionarem o que com tanto
anhelo desejavam e, por conseguinte, atlentaram
no que mais vivamente lhes tinha ferido a imagi-
nação, que eram os astros, e d'aqui provie-
ram os relógios de sol, chamados lambem qua-
drantes. Duvidou-se por muito tempo de a quem
se devia adjudicar a gloria d'esta invenção;
l>aercio e Suida altribuem-n'a a Anaximandro,
que morreu no aiino 3157 da creação do mundo
e Plinio a Anximenes, discípulo de Anaximan-
dro. Os egypcios e babylonios disputaram a pro-
|)riedade e outros mais a foram assignalando em
diversos tempos. Com tal variedade de opiniões
não podemos acertar de uma maneira positiva quan-
do se começaram a usar; no que, porem, não ca-
be duvida é que anteriormente a 3291 já eram
conhecidos, porque vemos na Biblia, livro IV. Re-
gum, cap XX, que estando enfermo o rei Ezechias,
Isaias, o proj)hela, fez com que retrocedesse dez
linhas a sombra no relógio de Achaz, cm signal
de que convalesceria.
Algum tempo depois introduziu-se também o
medir o tempo a pés, do que achamos noticia nos
doze livros da Ré rústica de Paládio, que viveu
no segundo século, e que põe a sombra do sol me-
dida a pés em todas as horas do dia. Este modo
de contar as horas era summamenle gracioso,
e hoje, certo, prestar-se-ia a alguns fjuidproquos,
pois dizia-se: vou comer tal pé, ele.
Ambos os methodos eran\ extremamente imper-
feitos, porque necessitavam como primeiro agenle
ou único móbil a presença do sol; porem quando
este desapparccia ficavam envoltos na obscuridade
que cobria a terra. Foi preciso procurar outro im-
pulso perenne e constante, e cuja auzencianão se
podesse temer com facilidade, e nenhum se achou
mais a propósito do que a agua, que encerrada em
um vaso com um estreito cano no qual se praticava
um pequeno buraco, deslillava gota a gola, até
completar o numero das horas. Este género de re-
lógios foi introduzido em lloma no anno 59o da
sua fundação, por Scipião Nasica: e mais adiante,
em 613, aperfeiçoou-o Clesibio, construindo uma
verdadeira machina hydraulica.
Esta classe denominou-se clepsydra, e d'ella se
serviam os gregos e romanos para medir o tempo
que deviam durar as causas ; para o que distri-
buíam Ires porções : uma para o accusador,
outra para o accusado e a terceira para o juiz.
Cada clepsydra compunha uma hora, segundo pa-
rece pelo que diz Marcial, livro YIII, Epig. VII.
Na leitura dos processos e leis não corria a agua,
e isto era: Aquam suslinere, conforme se lê nos
auclores d'a(iuella época.
Os relógios de areia conlam lambem muitos sé-
culos de antiguidade; porém não é fácil assignalar
nem os seus inventores, nem a época da sua in-
troducção. Estes eram usados com preferencia nos
mosteiros, e pela noite estava a cargo dos religiosos
o cuidado de observal-os para que não parassem.
Chegámos já á perfeição da arte: vemos o in-
vento cm toda a sua latitude preslando-nos o ser-
viço de que necessitávamos, sem que seja preciso
auxilial-o senão ephemera e levemente: locamos em
lim a época dos relógios de roda, cujo auctor por
desgraça se ignora. Na opinião dcí alguns perten-
cem a tempos remotos, pois asseguram que eram
d'esla classe os que tinham lioccio, (lilberlo, o
papa Paulo II, e o (jue o califa Arão Baschil deu
de presente a (>arlos Magno em S()7.
Parecia em \ista (risto que se tinha chegado ao
complemento e (|ue não se podia dar nem mais
um passo; mas eslava-nos reservado outro novo
o PANORAMA
U]
assombro. Walindorf, monge beneclictino inglez,
que morreu em 1325, vendo que nem todas as clas-
ses podiam disfruclar d'este bcnelicio, porque era
muilo dispendioso o poder-se aproveilar d'eilo,
discorreu ogeneralisal-o etornal-o publico, e cons-
truiu os relógios de torre com sinos. Alguns allri-
buem esta invenção a Santiago D. Diniz, natural
de Pádua, celebre astrónomo, medico e matbema-
lico; mas este não fez mais do que aperfeiçoal-a
de um modo admirável; pois em 1344 coílocou
cm a torre do Palácio d'aquella cidade um reló-
gio composto de uma multidão de peças e rodas
movidas por uma só peça, que marcava todas as ho-
ras, e além d'isso o curso do sol e dos planetas.
Este prodígio e esta maravilha da arte altraiu a
Pádua uma concorrência espantosa, porque os sá-
bios de toda a Europa iam admirar aquella obra
tão perfeita, o reflexo vivo das revoluções celestes,
aquelle propheta automático, por assim dizer, e
comtemplavam-n'o com um religioso enthusiasmo.
Como era natural, depois d'isto excitou-se a cu-
riosidade dos relojoeiros das de mais nações, e em
breve começaram a apparecer relógios de todos
os feitios e qualidades.
Depois d'esta época não teem havido variações
essenciaes na arte, poisaijida que se lenham cons-
truído de maior ou de menor latitude e de tama-
nho menor, augmentando ou diminuindo as rodas,
pôde considerar-se tudo isto como aperfeiçoamento
da primitiva invenção e não eram cousa nova,
pois sempre se tem operado sobre abased'aquella.
Não ha cousa que mais quebrante ânimos elin-
goas serpentinas, que largar-lhes o campo com
silencio. Fr. Luiz de Souza
A GRAVURA EM MADEIRA EM PORTUGAL
III
No raslo luminoso que, em relação á lilteraturii, dei-
xaram o Panorama e a lUustraçao, mais dois ou Ires
jornaes illuslrados pretenderam viver. Morreram, porém,
pouco depois de nascerem, no que não fizeram mal, por-
que eram a negação absoluta da arte, e da grammatica
lambem.
É que os momentos que precedem a morte são sem-
pre tristes, e, já se vê, cm plena contraposição com as
leis da vida, A arte agonisava, e esses jornaes, não po-
dendo scrvir-lhe de médicos, fizeram-sc cargo de sim-
plices enfermeiros administrando-llie a dieta rigorosa, que,
segundo a tlieoria escholar, exigem as doenças graves.
Em presença d'islo, e não havendo, em*taes casos,
tribunal para onde appellar, pasmaram, Bordalo Pinheiro
a gastar os lápis, que ainda lhe restavam, em as notas
provisórias das despezas domesticas, e Coelho a encor-
tiçar os buris, para (pie não lhes desse a ferrugem. Em
seguida cruzaram os braços e deixaram-se dormir. . .
para a arte.
Dormiram muilo, e dormiriam elernamenle, talvez, se
o sonho, que é o inimigo mais zombeteiro dos desenga-
nos da realidade, não viesse alenlar-lhes o espirito des-
fallecido. Bordalo e Coelho sonharam. . . que estavam
desenhando e gravando para um jornal, de que cites pró-
prios eram os editores, e do qual fruiriam prodigiosas
consolações para o seu coração d'arUslas, bem como
para a sua bolsa de homens que não viviam da graça,
nem vestiam pela moda de Vénus de Canova. No quadro
lisongeiramenle colorido da sua phantasia, viam-se elles,
á sombra de um grande ramal de loiros, trabalhando
sentados sobre uma burra, não das que alimentam tísi-
cos, senão das que vivificam usurários : e tão excessiva
foi, por isso a sua commoçào, que n'este ponto acorda-
ram.
Para outros, acharera-se nas suas cadeiras de velha e
arrombada palhinha, á sombra dos curvos e carunchosos
tectos do prosaico lar domestico, seria obra para deses-
perar : para Bordalo e Coelho, que eram artistas de bom
gosto, foi objecto de galhofa. A caricatura, que a vida
positiva acabava de fazer á vida da imaginação, tinha
realmente graça, e os dois amigos soltaram uma estron-
dosa gargalhada.
D'esla gargalhada é que nasceu a realisação da pri-
meira parte do sonho.
— Não será isto um aviso da providencia ? disse Coe-
lho, rindo ainda.
Bordalo respondeu espivitando o charuto, que n'este
comenos eslava quasi apagado.
— Olha lá! continuou Coelho. Publiquemos um jornal?
— Publiquemos. . . E o dinheiro. . . e o redactor,
observou liordalo Pinheiro, puchando uma grossa fuma-
rada.
— O redactor, arranja-se já ; agora o dinheiro está na
algibeira dos assignantes, e so com o jornal poderemos
de lá saccal-o.
— Parece-me, exclamou Bordalo, rindo-se como se riam
os antigos velhos de cabelleira, que tens por cá andado
n'estas coisas, com a cabeça na lual . . . Mas. . . eslou ás
luas ordens.
Coelho aperlou-lhe a mão, e foi logo procurar o seu
amigo Pereira d'Almeida, apreciável escriptor, já por
mais de uma vez feliz na direcção e collanoração litle-
raria de diversas publicações, e, communicanilo-lhe o
intento, convidou-o a associar-se na qualidade de reda-
ctor principal. Amador, e, o que é raro em amador, en-
tendedor lambem de boas-artes ; gosando já na perspe-
cliva de ver o seu nome e o seu esforço vinculados
n'um impulso em que via os mais fecundos auspícios
para a propagação e desenvolvimento da gravura em ma-
deira, Pereira d'Almeida dispoz-se, com toda a abnegação
do apostolado, a sacrificar o interesse á gloria, e accei-
tou o convite.
Passados poucos dias, sahia á luz o primeiro numero
de um novo jornal iltustrado, com o titulo modestíssimo
de Revista Popular.
IV
Este jornal não parecia haver nascido de um longo
interregno arlislíco. Tão desenvolvida e animada se apre-
sentava agora a gravura em madeira, que ninguém diria
ser o remédio o ócio, a somnolencia e a inércia.
Posloque, vestindo ainda de franja ; não lendo perdido
o amor ao insípido e monótono syslema do paraltelismo,
o traço, até então desengraçadamente irregular e termi-
nando, umas vezes, á maneira de cabellos hirtos, outras,
como peito crestado, em forma de vírgula, ou de ponto
de interrogação, era, ao menos, mais nítido no lanço,
mais uniforme no capricho das ondulações, mais gra-
duado nas cambiantes do claro-escuro, O* desenho geral
tinha uma certa correcção, e as composições accusavam
esforço de gosto e iniciativa.
Pela primeira vez apparecia entre nós um romance
original illuslrado. Essa coroa deixou-a o destino cair,
pelo lápis de Bordalo Pinheiro, sobre as paginas viçosas
dos primeiros números da Jtevista Popular. Os dois ar-
tistas tinham elTeclívamenle dado um passo gigante no
progresso da gravura em madeira, e por tal passo mos-
Iravam que poderiam dar todos quantos precisos fossem
para chegarem ao nível das iltustrações estrangeiras d'a-
quella época, se o paiz os houv*esse ajudado era tão
comprido e íngreme caminho.
Como, porém? a fortuna, por ser cega, não pôde ler,
continuava a fugir de jornaes, e os desejados assignan-
tes, que só alraz d'ella correm, fugiam, por consequên-
cia, lambem. Apesar de não envergonhar, não tinha a po-
bre Revista quem lhe desse o braço, senão os amadores;
mas esta gente admirável, que anda em cata de tudo sem
^12
O PANORAMA
Iarp;ar o fardo immenso dos seus idolos, sempre assaz
suííiciente para susieníar um viveiro de canários, não
chega nunca para cobrir as despezas superiores ao custo
de dois ovos e um pão de ló. Para completar tamanho
desfavor, o povo não acceilava a invocação do titulo.
Era caso para desesperar. Preso por ler cão ; preso por
não ter cão.
Que fazer ? Nenhum dos emprezarios tinha corac;em
bastante para propor a applicnção da pena de morte á
innocente Bevista. E, comtudo, não parecia haver outro
expediente. As semanas succediam-se, a bolsa eslava va-
sia, e da burra do sonho, nem sequer o casco se tinha
podido comprar. O problema exigia prompta resolução.
Suspender a publicação; equivalia a declara!-a morta" Os
jornaes, suspensos são, quasi, como os reis deslhronados.
JRaras vezes voltam. No meio crestas terríveis oscillações,
lembraram-sc de passar o infeliz semanário para as ínãos
de um homem monetário. Mas os homens monetários do
uosso paiz não amam senão o toucinho c seus correlati-
vos. Letra redonda, compram-n'a só para embrulhar. Por-
tanto, uma tal idéa era, talvez, a peor de Iodas.
— Não te dizia? exclamava, de vez cm quando, Bor-
dalo Pinheiro para o seu collega, com ares de triumpho
e um certo sorriso, de que, já de ha muito, Coelho gos-
tava pouco. Não te dizia que linhas trabalhado com a ca-
beça na lua?
— E agora? perguntava Coelho, encolhendo os hom-
bros, e tomando umS grande pilada.
— Agora ? . . . Choremos, como bons pacs, \ islo pare-
cer-me que já morreu.
— Não morreu ainda, disse, apparecendo inesperada-
mente, Pereira d'Almci(la, com a accenluação inalterável
da sua habitual tranquillidade.
E assim era. Pereira d'Almeida trazia a receita iiifalli-
vel para a cura radical da enferma. Acabava de nego-
ciar a propriedade da Revisln com Fradesso da Silveira,
que, desde muito, pensava na publicação de um jornal
illustrado com gravuras em madeira.
[Concinua]
NOGUEIRA DA SILVA.
O qiiG seda pedido e rogado já cuslalantocomo
comprado. Fii. Luiz de Souza.
BEATRIZ
XV .
Jacqucs sabia tudo; a sua amante
Solfria o vil castigo, a pena infame
Que a cegueira dos homens lhe impozera.
Chorou, coitado!— o pobre amesquinhou-sc,
Quiz morrer de pesar, porém não poude.
Ella expir.Tva só,— ella, tão moça,
Tão linda, que rasgava os seios d'alma
Ve-la penar assim; nem uma lagrima
Poderá derramar, nem um gemido
Desprendera sequer; pasmada e louca,
Incerto o olhar, as faces maceradas.
Erma com a sua dor, sem voz, sem força,
Euclando peito a peito com o gigaule
Da amargura cruel, sentia apenas
Vacillar-ihe a rasão naquellc embale.
E fugio-llie, ai de mim! . . . deixai que o pranto
Corra em meus olhes tristes, que um momento
Orvalhe as rosas murchas desse a!leclo.
Que acerba magoa me lacere o peito
Costumado a bater convulso e forte
De amor, de ceo, de luz, de aroma evida,
Deixai, deixai,. . . que em breve eu torno aos cantos!.. .
Poucos mezes depois partio o conde.
Para onde foi, não sei; dizem, comtudo,
(E eu creio,, cpje, sem mais, puzcra termo
A crua dor que lhe pungia a vida.
Jacques linha perdido, a pouco e pouco,
Aquella vaga sombra de tristeza
Que lhe toldava o rosto; começava
A metler pé no mundo como d^antes,
E mais de uma a\cnlura escandalosa
Ia correndo, então de boca, em boca.
Se era ou não era fel (|ue as linguas torpes
Deitavam sobre elle, não allirmo
Porque não quero errar; mas sei, mas juro
Que alguns mezes de|)ois (Festas noticias
Terem lavrado já, quando a saudade
Dida devia ardenle compungir-lhe
Inteiro o coração, feliz e amado,
Elle contava as horas da existência.
Ébrio de amor, no seio d'outra pomba! —
XV!.
Eia, gosemos! pela floroa taça
Beba-se o néctar (relernal prazer;
A densa nuvem que troveja e passa
Nem uma sombra nos vem dar sequer.
Gosemos sempre! da ventura breve
Ceifem-se as rosas que despontam já;
Que tem, que imporia se um montão de neve
Rosaes inteiros sepultando está?...
Que tem que as faces da mulher perdida
Vão definhando na amargura atroz?...
Somos convivas tio festim da vida:
Ergamos todos n'um só canto a vozi
Voa minha alma, pelo espaço em fora,
Tu és o aroma ([ue re*spira a flor;
Deixa este mundo ([ue se prostra e chora
Voa minha alma, procurando amor!
Não falta um dia em que infernal desgraça
Azede o néctar (pie nos dá prazer:
O goso c fumo que se esvae, e passa
Quando mais ébrios nos parece ver.
Gosemos tudo! que o prazer resplenda
Em (juanto a aurora mil lampejos tem;
Basta que um dia sobre nós se estenda
A sombra elerna que divaga além!
E. A. Vidal.
As causas excessivamente intensas produzem
eíícilos contrários, A dor faz grilar, mas se he ex-
cessiva faz emmudecer; a luz faz ver, mas se he
excessiva cega; a alegria alenta c vivifica, mas se he
excessiva mala. P. António Vieira.
O engano leni denlcs alvos e mordedura vene-
nosa. Como ser|)enle, contenta pêra magoar, c
alegra pêra inlrislecer.
Francisco Rodrigues Lobo.
Tam indecente he sair da bocca de um homem
de alto lugar e nobre creação uma palavra ruslica
e mal composla, como de uma bainha de ouro ou
rico esmalte arrancar uma esj)a(ia ferrugenta.
Duarte INunes de Leão.
Se andássemos sobre aviso ligeiramente enlen-
deriamos tudo, ou parte do que nosesLí para vir.
B. HlUEIRO,
A boa fama c a melhor herança que ha no mundo.
li. RlIlEIRO.
TyjJ. Franco l'orliigucza, Rua do Tlicsouro Vfllio, G.
o PANORAMA
IMPRENSA NACIONAL
Resultado da poderosa iniciativa do celebre ministro de
D. José I, e.creada por alvará de 24 de Dezembro de 1768
com a denominação de Onicina Regia T\pop;raphica, que
mais tarde se transmudou na de Impressão Regia, «a Im-
prensa Nacional de Lisboa é hoje pela vastidão de suas
oíTicinas, pelo numero de seus operários, e pela excellen-
cia do seu Iraballio, não só um dos mais importantes es-
tabelecimentos públicos da capital, mas lambem o primeiro
do seu eenero em todo o reino. »
Com o titulo de Breve noticia histórica da Imprensa
Nacional de Lisboa elaborou ha annos o nosso prezado
amigo F. A. d'Almeida Pereira e Sousa, zeloso e habilis-
simo empregado da conladoria d"a(|uella casa, um valioso
trabalho, íjuc sahiu publicado como nppendice do RclaM-io
apresentado ao Ministério do Reino em 28 d' Abril de 1855
polo administrador geral da mesma Imprensa o sr. con-
selheiro Marecos, formando-se da reunião d'estas duas
l>eças um opúsculo de (i;5 paginas no formato de 8." má-
ximo, estampado com primor e nitidez pouco menos que
inexcediveis.
c^ã/,3 j.~f£:=::^
Moeste escripto, fructo de investigação acurada, e com-
paginado á vista dos registros é documentos oíTiciaes ar-
chivados no respectivo cartório, conseguiu seu illusirado
aucíor dar uma idéa perspicua, concisa, e quanto pôde
sor exacta da fundação e mechanismo da administração
d'aquelle magnifico estabelecimento, das vicissitudes por-
que passou, e do seu incremento em diversas epochas;
patenteando egualmente a sua situação actual, e os melhora-
mentos n'elle progressivamente realisados para attingir o
grau de prosperidade em que hoje o vc-mos.
Ao leitor que desejar inslruir-se no assumpto recom-
mendamos esse trabalho, de cujo começo foram exlrahi-
das quasi textualmente as phrases de verdade incontes-
tável com que encetámos o presente artigo.
Percorrendo com altenção as [)aginas do referido opús-
culo,ver-se-ha como por uma serie de alternativas, ora pros-
peras, ora adversas, e mediante os desvelos e sabia ge-
rência das ultimas administrações, esse estabelecimento
para cuja fundação se tomaram em 1708 d'emproslimo ao
cofre da Uni\ersidade 4O:OOO,s<lO0 réis, destinados para
aluguer da casa, e cusleamenlo das primeiras c indispen-
sáveis despezas, começando asna laboração com oito pre-
los de madeira, taes como então se usavam, servidos
apenas por dez operários ao todo, encerrava cm si pelo
inventario geral a que se procedeu no íim de 18'J.'), va-
lores excedentes a 227.000<j(JOO réis cm machinas, typos,
moveis, uíensilios, exemplares de obras impressas, "etc,
ele, sustentando a esse tempo para mais de duzentos em-
pregados de diversas classes, em que se incluíam cento
e quarenta e quatro operários, dislribuidos pelas oiricinas
de composição e impressão, fundição de typos, lilhogra-
phia e fabrica de cartas de jogar! *
Nos últimos dez annos tem-se ainda introduzido novos
e importantes melhoramentos em lodos os ramos ; mulli-
plicam-se os produclos, augmeníam-se os valores, e for-
na-se de dia em dia mais sensível o exemplo do quanto
vale a perseverança, e do quanto podem os esforços de
uma direcção acliva, e não menos zelosa que i!lu.slrada.
Perdoe-nos |)orem o digno andor do opúsculo, se ape-
sar da sincera afleição que lhe consagramos, e do eleva-
do conceito que nos merece a sua intelligencia, temos,
por honra e credito da pátria comnuim, de discrepar um
pouco do seu parecer, na parte em que, como em todas,
quizcramos estar de acordo. Foi isso o que mais nos
impelliu a traçar estas linhas. Suppõe elle que a mais no-
bre das artes (a typographica) descahira entre nós no
maior abatimento, <ão tempo em que o então conde de
Oeiras concebera o projecto de rcvalidal-a mediante a
fumlação do novo eslabelecimenío. A asserção é, quanto
a nós, inexacta, e cremos que sem maior "esforço a de-
monstraremos tal. Se é certo que pelos deploráveis estra-
gos do grande terremoto, que destruiu Lisbop treze annos
antes, ficaram sepultadas nas ruinas, ou reduzidas a cin-
zas algumas ty[)ographias, outras comtudo escaparam da
calaslrophe, e não poucas se erigiram logo dos annos se-
guintes ao do lamentável successo.
Deitando agora um lanço de olhos para os apontamen-
tos e noticias, já copiosas, que preparávamos em tempo
com o desígnio de organisar um dia do modo possível
os Annaes ti/pof/ruphicos de Portugal, empreza que, como
varias outras, a edade c desgostos nos inqjcdem de pro-
seguir, observamos que não menos de onze (ypographías
se contavam cm Lisboa precisamente no anno do 1708,
todas mais ou menos ílorcscenles, e dislinguindo-se entre
cilas algumas, que na execução dos produclos que nos
deixaram accusam em ífeus directores e operários mais
que suílicicnte habilidade c dedicação pela arte que pro-
fessavam.
4 14
O PANORAMA
D'ellas faremos resenha, posloque abreviada, c tanto
quanto baste para abonar de verdadeiro o que deixamos
dilo: servindo juntamente de commenlario corroboralivo
(la alUrmaliva do nosso illustre amigo, na parle cm que
diz que certos lypographos gosavam de privilegio para
a impressão dos documentos oíticiaes.
Guardaremos a ordem chronologica.
1. MiGLT.L Rodrigues. A sua oílicina era por aquelle
tempo uma das melhores de Lisboa, e a mais antiga de
iodas, existindo anteriormente ao terremoto na rua das
Portas de Santa Catharina. D'elle achamos memorias des-
de 1726 ale 1774, anno em que aos oitenta e dois de sua
edade faz sahir de seus prelos a nova edição das Obras
de Francisco Rodrigues Lobo, bem como dos mesmos sa-
hiram por lodo aquelle intervallo numerosas e aceiadas
edições. Era impressor do cardeal patriarcha.
2V' Domingos Gonçalves. Imprimiu pelos annosdel733
a 1780. Parece que n'esle fallecera, continuando ainda por
mais alguns a ollioina em poder dos seus herdeiros. Era
cila situada no palco da Charidade, próximo de S. Ghris-
tovão. Ahi se estamparam além de muilos livros, e rela-
ções noticiosas em prosa e verso, a maior parle das co-
medias chamadas de cordel em mui solíriveis edições.
.S. Miguel Manescal da Costa, im|)ressor do' Santo
Oflkio, e descendente de outro mais antigo hpographo
do mesmo nome. Ha livros impressos na sua bllicina de
174(1 em diante, ate que no anno de 1768 passou a ser
administrador technico da nova Typographia Regia, para
a qual passaram egualoienle a fim de servirem de núcleo os
seus prelos, caracteres e mais ulensilios. Cremos que a
ultima obra publicada sob o seu nome foi a Dcducção
chronologica e analylica. Era tido por habilissimo im-
pressor, e homem de muita probidade. Morreu no 1."
de Novembro de 1801.
4. Officina Regl\ SiLviANA, ã cssB lempo e desde 1740
em poder dos descendentes de .losc António da Silva,
antigo impressor da Academia Real de Historia, e em
cuja typographia mui bem fornecida de tudo, se impri-
miram" nos reinados de D. João V e D. José 1 (até 1768)
a maior parte das leis e documentos officiaes. Esta im-
prensa continuou ainda por largos annos, com algumas
interrupções, ale os nossos dias.
l). Francisco Luís Ameno. A sua typographia, ((ue se
honrava com a denominação de «Palriarchal» foi por
elte estabelecida segundo cremos em 1718. Comp?lia com
a de Mancscal, se é que se lhe não avantajava na belleza
dos lypos e a inhetas, e no bom gosto, esmero e correc-
ção das edições. Haja \ista a Vida do infante D. Uenri-
fjup, a Vida da Madre Tffcreza da Annunciada, as Me-
morias das providencias dadas no terremoto, e muitas
outras obras, entre a infinidade das que este infatigável
l>pographo 'que lambem era escriptor) produziu nos qua-
renta e cinco annos decorridos até o de 1793 cm que
se finou com 80 do edade. A oíTicina, que depois do ter-
remoto estivera collocada succcssivamentc nas ruas da
Procissão e do Jasmim, conservou-se ainda por alguns
annos com a mesma denominação de «Patriarchali' depois
da morle de Ameno.
6. Manuel Coelho Amado. A sua oíTicina, que lambem
pode conlar-se entre as mais consideráveis d'aquelle lempo,
existiu em diversos locaes no Rairro-Allo, já na travessa
da Estrella, já na rua da Rosa, ou da Vinha etc.,c começou
a trabalhar ao (jue parece em 17'i0. l)'ella sahiram mui boas
edições. Por óbito do proprietário cm 1775 passou para Luis
Francisco Xavier Coelho, que cuidamos ser filho, ou pa-
rente próximo de Amado. Tendo-lhc este dado a deno-
minação de "Luisiana» Iraclava de amplial-a ; porém
pouco se gosou da uosse d'ella, morrendo em 1780, Fi-
cou enlão o cslabelecimento a uma irmã, com a (|u;d
casou pouco depois o conlra-meslre, que era Simão Thad-
deo Ferreira, nome assas conhecido enlre os nossos ly-
pographos do século actual.
7. FiiANcisco RoriGES de Sous\.Esla typographia durou
ao que podemos jrdgar de ]7.')7 alé 1792, e estava nos
ullimos Ifmpos situada no Poça do P>orrateni. Era cm
verdade de menor consideração*, o mal sir\ida de l>pos,
o por muilos annos se occúpava rpiasi exclusivamente
da impressão de autos, comedias de cordel, c outros |)a-
peis similhanles, cuja execução faz pouca honra à sua
[jcricia.
8. António Vicente da Silva. Melhor que a precedente,
posto que não comi)aravel ás de Ameno ou Manescal. Im-
primiu bastantes li\ros c opúsculos no intervallo decor-
rido de 17í)9 a 1773. Não sabemos que destino levou
depois d'esle ultimo anno.
9. António Roduigues Galuardo. Temos que era pa-
rente próximo, ou genro lal\ ez de Miguel Rodrigues. Co-
meçou a imprimir por 1761, c a obra mais antiga que
temos visto de seus prelos, a serem verdadeiras as indi-
cações, é uma edição da sentença condemnaloria do je-
suíta Malagrida, nô formato de 8." pequeno, com lypos
(jue nos parece serem fundidos em França. Foi impressor
da Real Meza Censória, e por morle de Miguel Rodrigues
passou a sel-o lambem do cardeal patriarcha. Imprimiu
numerosíssimos livros e papeis avulsos. Asua ofliclna.
estabelecida de principio na rua de S. Bento, e depois
na esquina da rua de Santo Ambrósio, passou a llnal
para a rua hoje chamada da Escola Polytechnlca, com
entrada pela da Procissão. Ahl existia ainda ha poucos an-
nos, em poder dos filhos e herdeiros do primeiro pro-
prietário, que seguindo carreiras ou profissões diversas,
a deixaram ir era successlva decadência ale se extinguir
de lodo.
10. Caetano Ferreira da Costa. Encontramos memo-
rias d'este impressor enlre os annos de 1765 e 1778,
Cumpre porém confessar, que dos seus prelos não conhe-
cemos outros produclos mais que relações avulsas, e co-
medias de cordel, e algum raro livro por excepção.
11. JosK DA Silva Nazareth. Enconlram-se memorias
d'este hpographo desde 17G8 até 1786, sem comUido po-
dermos determinar se a sua ofilcina subsistia ainda depois
d'esse anno. Das multas obras (pie Imprimiu no mencionado
período, lembraremos a'^í/ísío?'áí do poio romano por José
Thomaz,d'Aqulno Barradas, tomos l.°j e "L", no formato
(b 8.". É provável que a Imprensa passasse por sua morte
para novo possuidor, cujo nome figurará talvez enlre os
de muitos cfue nos annos subsequentes a 1768 foram es-
tabelecendo novas officlnas, ou continuando com as exis-
tentes.
Poiler-se-ia tornar esta resenha mais extensa, se hou-
véssemos de addiclonar-lhe os nomes de vários outros
lypographos, que funcclonavam como laes cm annos mui
proximamente anteriores ou posteriores, mas de que não
alcançamos certeza de quo se conservassem alé ode 1768,
que tomamos por ponto tixo. Taes seriam por exemplo,
Ignaclo Nogueira Xisto e João António da Costa, (|uc exis-
tiam de certo em 1765; Pedro Ferreira em 1763; Antó-
nio Isidoro da Fonseca c Manuel António Monteiro de
Campos em 1760: José d^Aíjuino Bulhões, do qual já le-
mos obras por ellc im|)ressas em 1769, parecendo que
começara n'esse anno, ele. ele— Sem nos fazermos cargo
(Fesle^s e d'oulros, nem ainda dos que pelo mesmo lem-
po (ixlsllam em exercício no Porto e em Coimbra, cre-
mos todavia haver sallsfello de sobra ao nosso propó-
sito, que foi simplesmente o de mostrar (pic a arle typo-
graphica não eslava entre nós em 1768 em Ião lastimoso
abatimento como se pretendeu suppor.
liNNOcENCio Francisco da Silva.
OS TRÊS ESTADOS
O passado! A rcniinisccncia do passado!
Kslivéra dcniLMile, c a loucura, onuscando-mc a
inlolliííoncia, havia-me obliUcrado da memoria as
imprcs.sõos fio juclerilo, as recordações de l-oda a
minha vida?
Tinha bebido das aguas d'aquelle celebrado fio
que produziam, em quem as beiíia, o esqueci iiien-
lo de ludo quaplo gozara ou padecera alé alli?
Impossível me f()ra responder a laes perguntas,
resolver lai duvida.
O certo é, poiém, que' da mente havia-mc des-
aj)parí'cido toda a lembrança da minha vida
I
o 1»AN0KAMA
anterior, e até nem podia affirmar que linha cxis-
lido anlos. Todavia, do mesmo modo. ([uc ás vezes
rcsoam era nossos ouvidos harmonias, que não po-
demos precisamente qualitlcai', mas que estamos
convencidos já lermos ouvido; assim minha al-
ma conservava a noção de uma existência pre-
cedente, cujos fados, porém, cujas alegrias, cu-
jas dores se desvaneceram da uiemoria, como
do cryslal ou da lamina de aço se apaga o hálito
que o embaciara.
Solíreu minha alma uma metempsycose pytha-
gorica, e ao mudar de forma Corpórea olvidou o
passado? Ou viclima o m.eu espirilo de uma in-
sólila allucinação não podia j)erceber os fulgores
do que fui, nem a luz do futuro, no meio das den-
sas trevas, que o cercavam por todos os lados?
Estas idéas se me agglomeravam no pensamento;
cessando, porém^ de meditar no segredo da mi-
nha alma, olhei em torno de mim.
Acliava-me em um magnillco palácio. As pa-
redes não eram de mármore, jaspe, ou de outra
qualquer pedra que o homem arranca das pedrei-
ras. Cousa estranha ! eram de gelo! Um largo ves-
tihu'o profusamente illuminado por enormes can-
delabros d;í bionze, cada um com cem luzes degaz,
o cujo pavimento ei'a forrado de bocadinhos de
pieciosas madeiras, dava accesso a uma sumptuosa
escada, guarnecida de grandes e custosas jarras
com plantas de desconhecidos climas. No cimo d'cs-
la escada via-se uma longa e e&pacosa galeria, al-
califatia com tapetes da Pérsia, i|lumina(la á giorno
e na qual se agi"upava uma multidão de areados
com soberbas librés bordadas a oiro, e cabelleiras
empoadas. De ambos os lados da galeria as pare-
des permiíliam, pela sua transparência, admirar
a magnilicencia nunca vista, de uma serie deim-
mensos salões de baile, onde a vista se sentia
desluiiibrada ])elo brilho da luz que brolava dos
bicos das lâmpadas de oiro, e que relleclindo no
gelo das paredes adquiria nova força e intensida-
de. ]']m torno dos salões havia coramodos divaus
forrados de pelle de marlha para os pares des-
cançaiem das danças. A alhmosphera que alli se
respirava era suavemente tempeiada por occullos
caloriferos; e estranhos, porem, dulcíssimos aro-
mas deliciavam o òlfato.
Vai discorria pelas salas com uma bandeja de
ouro na mão coberta de íinissimos doces, vendo
relieclir no gelo das paredes a minha encarnada
libré bordada a oiro. Outro lacaio me seguia le-
vando em outra bandeja gelados caguadulciíicada
com essências nunca pr^adas de suavíssimo sa-
bor.
Via passar junto de mim. levadas pela volu-
|)luosa embriaguez do baile, todas as dilVerenles
bellezas da terra; poréin, cada uma d'a(p!ellas
mulheres era mais bella do que o que é dado
sel-o a mulher alguma terrena. Alli se via a lilha
do iXorte, de tez ligeiramente rosada, olhos celes-
tes, loura cabelleira, semelhante a uma aureola
dourada; junto a ella, com o seu trajo de ri(|uis-
sima cachemira de vivas cores, a brahmane
da Índia com a cútis levemente bronzeada e
os olhos fendidos á maneira dos personagens
dos leques chinos; lambem alli se encontrava
a orgulhosa mandarina do Celeste Império, com
o seu estranho vestuário e bailando enlhusiasmada,
apezar da pequenez de seus pés; nem faltavam
n'aquelIaextiaordinaria assembléaa (ilha da Abys-
sinia, assemelhando uma formosa estatua de már-
more negro, c a íilha das antigas raças ame-
licanas, meio nua, e cobertos os braços e peito de
hiorogliphios de vivas côies: chamavam, porém,
sobretudo a attenção, por sua irresistível formo-
sura, a indolente crcoula, com o seu languido c
voluptuoso coqueltismo, e a til.ha das Ilespanhas
e a da ílalia, de tez pallida, cabcllos negros,
olhos avelludados , magnéticos; irresistíveis, e
movimentos já preguiçosos, jà cheios de viveza e
elegância.
E ao lado de cada uma d'aquellas mulheres, mais
bellasdo que o natu!'al, taes como os poetas de seus
paizes as sonharam, viara-se lambem valoro-
sos guerreiros, príncipes, sábios, trovadores dos
ditlerentcs climas. O fato preto do europeo, con-
fundia se com o manto branco do brahmane, as
variadas cores do vestido do mandarim, com o
luxuoso trajo persa e os ricos uniformes cobertos
de oui"o e biilhantes contrastavam com a veslimeula
' talar dos africanos.
E, coisa estranha e inexplicável! a cada uma d^a-
quellas mulheres fallava eu, polyglola universal,
no seu idioma, ao oííerecer-lhe os doces que leva-
va na bandeja. Quando e como pude aprender
tantos idiomas? Como foi dado à minha memoria
reter tantas e tão variadas línguas? Problema dif-
ficil de resolver!
O baile durou algumas horas. A tempo notei que
as luzes começavam a empallidecer; as mulheres
parec.-am mais elhcreas e vaporosas, menos cor-
póreas ; os contornos lornavam-se mais flucluan-
tes e indecisos, e as íiguras que minha vista al-
cançava parecia como que vagueavam no ar ou
via-as alravez dos vapores de um sonho. E ao
mesmo tempo a musica invisível- que h^via diri-
gido o baile, ia pouco a pouco apagando os seus
melodiosos sons até chegar aum pianissimoapenas
perceptível. Alguns momentos depois, aquellas for-
mosas mulheres, aquelles guerreiros, príncipes e
sábios se desvaneceram couq)leiamenleiia sombra;
a musica extinguio-se n'um dulcíssimo sus|)iro, c
o palácio de gelo sumiu-se iuleiramente no silen-
cio e na obscuridade.
Não sei quanto tempo'passei sem que chegas-
sem a meus sentidos um som, ou um raio de
luz. O que é certo é, (jue decoi'rido um espaço do
temi)o, cuja duração não me é possível calcular,
a vista deveu-se-me accostumar ás trevas, ou de-
vi'rara ler sido dotados os meus olhos da faculdade
dever ás escuras, como os indivíduos da raça fe-
lina. Pelo que respeita ao ouvido, não se percebia
o menor ruído no palácio de gelo.
Eslava na grande galeria que dava entrada para
os salões de baile, antes Ião esplendidamente illu-
\ 10
o PANORAMA
minados e que n'aquelle momenlo jaziam em profiin-I rosto pallido, de porfeição divina, de linhas ma
daobsciiridade. Apalpando-me, paraccMiiíicar-mese gestosas, severas e agradáveis, e aquella bocca pe-
.-I „ «^^..,lníl,^ rvrtlni ni-ia «i iiiiiiho i-ipQ li_ fiiipim O Hii i'i rncfi rl'.i filin cni'1'in 1'filiinl lírica nií»n 1(1 nt\
estava accoidado, nolei que a minha rica li
bré bordaJa a oiro, havia sido subsliluida por
uma vesliiuenla de pelles, tal como as dos escra-
vos russos.
Ao longe, no meio das Irevas, via um raio de
luz. Aquolle pallido reliexo allraia-me e fascina-
va-me como o serpente ao pobre passarinho, para
saciar a fome, como a chamma a leve mariposa,
que n'ella vai queimar as suas lindas azas. O in-
deciso fulgor chegava-me amoriecido pela transmis-
são ao atravessar varias paredes de gelo.
Orienlei-me na obscuridade. Levantei sem ruído
um pesado reposteirode pelles, que servia deporia,
atravessei varias salas descrias e cheguei por lim
anle uma estancia em que a visla não |)odia pene-
trar. Com eITeilo, a transparência das |)nredes acha-
va-se resguardada por inagniticas pelles, brancas
como o arminho, que defendiam á vista a sanli-
dade d'tiquelle santuário; mas o reposteiro não
fechava hermelicamenle aporia opor uma fenda
deixava iilliar o raio de luz que alli me havia at-
traido.
O que existiria n'aquella habitação? Porque se
tinha procurado o segredo e fechado a porta á
curiosidade"? Eslas perguntas, que a mim próprio
fazia, unidas ao aguilhão da curiosidade, con-
trabalançavam o justo temor que aquelle mys-
terio me infundia. Por oul.-o lado, porém, o
silencio espantoso que reinava em todo o palácio
e o envolvia como um frio sudário de morte,
havia-me gelado o coração e ateri^ado a alma:
quiz vencer o pânico que me dominava e levantei
a cortina de pelles.
Como linha presumido, grandes alcatifas de
pelle de arminho, mais brancas do que as neves
do Cáucaso, fonavam aquella sumptuosa camará,
abiigando-a e resguardando-a dos olhares da indis-
cripção: |)elles semelhantes serviam de tapete, tor-
nando assim aquella estancia um ninho branco.
Do tecto pendia, sustentada por três cadeias de
oiro, uma lanijjada, cuja llamma exhalava um
suave perfume e allumiava a estancia com
os seus pallidos e trémulos rellexos; no fundo
via-se um leito abiigado por grandes cortinas
de seda azul celeste sustentadas [)or uma coroa
de ouro adornada de pérolas e esmeraldas. Sob
aquellas cortinas ouvia-se uma res|)iração suave
»' Iraiiqudhi. Atiuella estancia era o quarto de uma
piinceza.
A curiosidade lulava em meu peito com a idèa
do knot, o látego dos escravos; mas por íim a cu-
riosidade venceu o temor.
Alfaslei com cuidado as azuladas cortinas do
leito e apenas pude conter um grilo de admira-
ção.
Cma mulher extraordinariamente bella, mais
bclla do que quantas haviam passado anle meus
olhos no baile, dormia com osonino liaiujuillo da
infância. Como descrever a opulenta cxplendidez
dos seus cabcllos negros, cujas perfumadas
tranças chegavam até ao chão? Como pintar aquelle
quena eaurirosada que sorria voluptuosamente no
somno? Algum movimento indiscreto havia apartado
um pouco a roupa e podiam-se admirar um collodo
alabastro de languida morbidez e uns homhros de
mármore que as antigas Vénus teriam invejado.
Emlim, pendia descoberto um dos seus braços que
parecia o da Yenus de iMilo ou de outra quabjuer
d'essas obras monumentaes de estatuária da anti-
guidade, que são o assombro e todas as idades.
lia sensações que se não podem explicar, pois
são complelamenteinelíaveis. A vista daiiuclla mu-
lher tão bella no abandono do seu somno causou-me
uma d'essas sensações. Sem saber o que fazia ajoe-
lhei junto do leito, tomei-lhe a mão e levei-a aos
lábios.
Ao fogo ardente do beijo a . princesa abrio
os olhos. A estatua adquirio animação; aquelle cor-
po tão formoso pareceu volver á vida, o seu rosto
tomou a expressão do temor, e aquelles olhos ras-
gados, irresistíveis, magnéticos, e poi cuja punilla
de prelo velludo julgaria ver o iniinito, lixaram~sc
aterrados em mim. Por lim convenceu-se de
que não era um sonho o que via c seus lábios
deixaram escapar um grilo de angustia.
Continua
O MUSICO ENRAIVECIDO
Cariciitura de Hogarth
Já n'este jornal se esboçou rapidamenle a phy-
sionomiaarlistica (restenolavel pintor inglez, cuja
Índole observadoi-a dotou a Inglaterra de um ver-
dadeiro monumento, porque não podemos consi-
derar d'oulra forma a verdadeira «Comedia huma-
na» que as suas obras constituem.
l)'essa «Comedia humana» possuímos algumas
folhas, (|ue iremos successivamente apresentando
aos nossos leitores. Já uma appareceu n'este volu-
me do Panorama; essa gravura, que se intitulava
o Infeliz Poda, era um drama pungente, (pie pal-
l)itava sob a mascara do riso, era uma d'essas ri-
sadas á Moliéi"e que occultain profundas agonias.
Mas a vasta obra de llogarlh abrange todos os
sentimentos, todas as inspirações que podem salleiar
o poela ou o pintor cómico. Se além solta a gar-
galhada irónica, e inscreve com o buril, que tem
um não sei que da penna de Juvenal, um |irotesto
amargamente zombeteiro contra os decretos do des-
tino, aqui observa fria, Sagaz, anatomicamente o
corpo social e expõe bem visíveis as |)ustuliis que
o ulceram. Outra coisa não é essa magnilica serie,
que se intitula o Casanienio da moda, outra coisa
não c a Vida de iiiii devasso, e a Vida de iniia
devassa, comedia de observação, estudo á IJalzac,
modelo que ha de inspirar (javarni.
Outras vezes a travessa inspiração áovaudeville
vem-lhe guiar também o buril com (pie desenha
os seus |)oemassat\ ricos. Apanha em llagranteum
ridículo inollensivo, uma situação cómica; apodeia-
sc d'elle um riso inextinguível, e, malicioso já e
o PANORAMA
M7
não sarcástico, reproduz a scena, onde encontrou
a inspiração da comedia.
É este o caso da gravura, que hoje apresenta-
mos aos nossos leitores. ^
Ouem não tem sentido milhares de vezes, nesta
tuniultuosa Lisboa, a tentação irresislivel de se en-
tregar a uma d'essas fúrias, que serviram de as-
sumpto aveia cómica do satyricoinglez, quando o
realejo da esquina móe infatigavelmente as peças
de musica do seu reportório, quando a corneta de
chaves de um virtuose de praça publica matiza de
variações impossíveis as árias mais singelas, os hym-
nos menos empolados, quando o bando dos toiros
passa formando com os instrumentos ma's conlra-
dictorios o acompanhamento da parte cantante, que
é desempenhada pelo bombo, quando os pregões
se cruzam, se confundem, se atropellam vibrando
discordantemente por esses ares, qual de nós não
sentio ainda, repito, u tentação irrcsislivcl de des-
cer á rua, e de correr a chicote, em nome da har-
monia, esse coro e essa orciíestra malditos que o
próprio Satmaz repelliria do seu inferno?
Ora se isto acontece ao poeta, que ve fugir-ltie
a musa hoirorisada d'essc bulício insupportavel,
ao pensador que vò a sua meditação interrompida
por esses cdiUios plusquam infernaes, ao mathema-
8
O PArsORAMA
íico, quo corifunde a demonstração do seu tlieo-
rcnia, graças a esse charivari atroz, ao chymico,
cujas i-eacções são embaiulliadas por esse diluvio
de sons, o que não será quando a desgraçada aí-
ctima da tempestade da rua é nem mais nem me-
nos que um sacerdote d'esstí mesmo deus vilipen-
diado pelos lyricos profanos, um cultor enthusiasla
c apaixonado d'essa musica apedjeJ8da, insultada,
viclimada pelo realejo, pelo bombo, pela corneta
de chaves, e pelos pregões?
Passa-se então a scena, que o malicioso pintor
inglez estudou, e reproduzio com rai'a felicidade,
iia gravura que orna este numero do Panorama.
O infeliz corre á janeila com os cabellos em pé,
os olhos esgazeados, aterrado, fulminado, fora de
si. E elles, os amaldiçoados, os profanadores, os
Ilottenlotescontinuam, grave e imperturbavelmente,
a perpetrar aquella atrocidade musical. O clamor
da viclima é cobtMto pelo estrondo dos instiiimentos
de vento. i\ão se desintumecem as bochechas ao
assoprador doligle, não descançam os braços ver-
tiginosos do que maneja as vaquetas, não estaca
a torrente de sons, que irrompe do realejo! Parece
que é elie o profanador, parece que é elle quem
vem perturbar a celebração dos augustos myste-
rios, elle o sacerdote, elle que desejaria escorraçar
do templo da arte esses vendilhões de musica fal-
siOcada!
E o pintor, sorrindo-sc maliciosamente, repro-
duz admiravelmente na tela as diílerentes figuras
da scena cómica. Cada traço do pincel revela o folhe-
tinisla; porque, digâmol-o com desassombro o 3Ia-
sico enraivecido é um vei-dadeiro folhetim.
PlNHKlRO CUAGAS
THEATRO DE D. MARIA lí.
II
Corria o anno de 1810. Após aí guerras civis, que en-
sanguentaram a palria, reluzira por enirc tantos negru-
mes, a eslreila honançosa (i;i paz e concórdia.
As artes e as scieiírias iain colorando alentos nas niinns
fiinieganles de uma sociedade carcomida que baqueara
sol) a influição potente das novas ideas, que não com o
eslrondar dos caidiões. Havia liomens então. E que ho-
mens! Os patriotas de 20, 2õ e ;]i, esses perigrinos, pie-
dosos que haviam cliorado lagrimas de sangue nos agros
do exílio, lambem tinham visto muito, e o pranto, que
llies empanava os ollios, não podia escurecer os mit os-
plciiflores da civilisação nas grandes capitães da Europa.
Esses cruzados de uma idca, que haviam deixado pá-
tria c familia para hastearem o pendão da liberdade em
ura lieroico rocliodo do oceano, mal foram de volta ao
seu paiz, viram que o desjjotismo nem mesmo encobrira
as puslulas no manto do esplendor material. Tudo aqui
ora mesquinho, homens e coisas. IJsboa não soíTrera a
menor alteração depois que o grande marquez se afundara
nas sombras do sepulcro e da ingratidão.
Lisboa era ainda uma cidade do século passado, que
era necessário rejuvenescer.
O estrangeiro, afeito r.s maravilhas da terra natal, fica-
va pasmado o absorto desenibareando aípii, n'cstas praias
cheias de lodo e contem7?Tando osriíjssos usos e costumes
impugnados de nativa barbaria e proverbial sujidade.
Huins avenças dávamos nós a \iajanles di>tinelos, ecom
sobrada razão dizia Byron, em inqx.-tos de mal. contido
desprezo e m.-recida ironia, que estávamos na Europa e
não pertencíamos á Europa. Era necessário lazer tudo,
porque tudo fallava.
A transformação fora rápida e absoluta. Ao despotismo
succedèra a liberdade, ao silencio do cárcere o clamor
da praça publica, á Gazela censurada e tonsurada o pe-
riódico livre, libérrimo, e que cm ser desbragado ás \ezcs,
impetuoso, Iribunicio, era puramente oblata' ás novas con-
quistas.
Estes porém não se cifravam n'is!o. Um povo que re-
nasce no meio das cinzas á voz da bberdade exige muito
mais Já o não contentam procissões faustosas com os seus
renques de andores e charamellas c limbaleiros archai-
cos.
Outros espectáculos requer, mais consentâneos do pro-
gresso, mais civilisadores, mais dignos da liberdade; espec-
táculos que ao tempo que divirtam sejam de boa lição e
doutrina.
Era preciso que a transformação phisica e moral de
Lisboa acompanhasse o século^ cujas feições se iam pro-
nunciando.
Era preciso que as sciencias se desenvolvessem c as
artes encontrassem gasalhado.
Era preciso construir escolas, abrir bibliothecas, levantar
palácios, dispor muzeus, fazer estradas, melhorar por-
tos, lacililar mutuas relações decommercio e industria em
que a liberdade se espanejasse á vontade, e ao par does-
tes e outros melhoramentos polilicos, sociaes, e económicos
que os governos iam iniciando, dilfuudire espalhar luzes
pelo povo por lodos os modos, porque a liberdade assim
como as flores, definha se e morre nas sombras.
E entre esses meios tão variados, posto que desigual-
mente fecundos, um havia, que quasi nos faltava em l^or-
tugal. Era o thealro, es.sa escola de costumes, esse pal-
ladio de verdade, esse foco de luz, esse destruidor de pre-
conceitos, esse facho que brilhara nos piínlhons da Grécia
e nos circos de Roma, essa religião, que tem por patri-
archas e apóstolos os maiores génios da antiguidade:
E.sch\lo Euripedes, IMauto, Terêncio e tantos outros; o
thealro em cujo tablado se rei)resentaram na idade media so-
lemnes mysterios,dominio glorioso de histriões ejograes (pie
diziam tantas verdades aos poderosos da terra, elemento ro-
busto de renovação nas mãosda Chakspeare,Molicree Allie-
ri, campo neutro aonde as ideas fecundas se aninhavam para
depois esvaaçarem sobre a humanidade, arca santa deop-
primidos c p"hylosophos, lempio em cujas abobadas re-
tumbavam gargalhadas de folião de envolta com grandes
princípios e grandes verdades, ahnanca poderosíssima de
revolução, espelho fiel, aonde se relleclem em Ioda a
sua hediondez os vicios mal disfarçados com a mascara
da hypocrisia. Era o.theatroque nos faltava, além do nuiilo
que trinta annos de fadigas e trabalhos ainda não pude-
ram conquistar. Os brios porem de um povo, que an-
elava sair do antigo torpor, não consentiam essa macula.
Como não corar de pejo e vergonha ao entrar esse edi-
fício informe da liua dos Condes, que a nossa soberI)a
pobreza linha alcunhado de IheaVro normarí Como havía-
mos de rcs|)onder ao sorriso de commiseração c desprezo
do estrangeiro, que assistisse á representação de um dra-
ma nacional em legurio tão immundo e indigno?
Construir um edifício sumpUioso, que fosse lempio da
arte dramática era pois instante necessidade. Pertencem
as honras do commeUimenlo a .loaquim Larcher, então
governador civil de Lisboa (t8;56'iea Almeida Garrett, o
dramaturgo nacional, que ao passo (pie cuidava doedili-
cio material, não descurava o augmenlo da arte, anies
propunha e creava o conservatório real o a inspecção dos
theatros.
Começa aipii uma longa série de luctas c desenganos,
que assoberbaram outro que não lôra o restaurador das
letras pátrias e os seus não menos robustos sequazes c
amigos.
Escolheu-se o palácio da inquisição, ou antess as suas
ruínas para local do projeelado thealro, e o architecto Chiosi
fez um risco tão eeonomíco e comezinho, que não exigia
a execução (felle mais de vinte e quatro conctosde reis.
Esses 'mesmos porem faltavam, apezar de continuados
esforços.
Nomeou-se depois uma commissão (pie tinha por en-
cargo angariar uma companhia do edificação; escolheu-sc
a cerca do convento de S. Francisco, mas tantas c Ião
variadas foram as opiniões. Ião discordes os alvitres, que
não houve apaziguar os contendores.
o PANORAMA
M9
Veio enlãoa combale o sr. conde do Fnrrobo, esse pro-
tcclor convido dns arles earlislns,que hoje alii está, po-
bre e desamparado, viclima da pátria injírala e de pa-
triotas mais ingratos ainda. O sr. conde do Farrobo cujo
nome andava ligado ao Iheatro de S. Carlos, oderecia-se
a construir othoatro nacional sob certas condições. Baldo
porem foi ainda este esforço.
rsão esmoreceu comtudo Almeida Garrett, que linlia
por irmão de armas em tão santa cruzada, outro poeta
grande também, amanlissimo das coisas pátrias— António
Teleciano de Castilho.
Almeida Gairett, deputado da nação, apresentou um
projecto de lei ^6 de novembro de 18í0; (pie tinha por fim
erigir o monumento áarle nacional. Devia o governo dar
o terreno e iiarte dos materiaes- correndo as outras des-
pezas á conta de uma companhia, que só fruia os reddi-
tos da sua obra em cci lo prazo de tempo, passando de-
pois o Iheatro a ser propiiedade nacional.
Mas ainda d'esla vez venceu o mau fado, que perseguia
o nosso Ihcalro.
Correra cerca de um anno. Os caixas do contrato do
tabaco offereceram quarenta contos se porventura lhes
tirassem o encargo de empresários do thcatro lyrico.
Approvada e acceila esta proposta a esforços' de Joa-
quim Sanches, então inspector dos theatros, approvado
lambem o risco do ilaliano Fortunato I.odi e creada nova
commissão, começaram os trabalhos em julho de J8i2,e
ainda não eram cÔrriíios quatro annos, abriu-se o Iheatro
em abril de 18iG, no dia natalício da rainha D. Maria 1!, cujo
nome foi dado ao novo thealro, represenlando-se o dra-
ma Alvai'o Gonçalves, o Magriço ou os doze delnglaterra.
Querer descrever miudamente o edificio, tanto por fora
como por dentro é obra demasiado longa e porventura
mais adequada a um jornal technico do que ao PíOiorai/ia
Contenlar-me-hei pòr isso em fazer rápida descripção
lio novo Iheatro normal, indicando os tópicos principaes
que convém não ignorar.
A. OSÓRIO DE VASCO.N'CELLOS.
iConiinua-]
VIAGEM Á LUA*
Aj^ologo por ILiisgieu
Aconteceu que unia vez os sete sábios da Gré-
cia, reunidos em Alhenas, quei-endo decidir qual
ei-a a maior maravilha da creação, resolveram que
cada um porsuavezexposesse o seu parecer acer-
cado assumpto.
O primeiro que failou, sustentou que nada ha-
Tia de mais maravilhoso que as estreitas: na opi-
iiião dos astrónomos, a maior parte eram soes em
roda dos quaes giravam mundos contendo, como
a terra, plantas e animaes, mas de formas es-
tranhas e desconhecidas. Excitados por esta pres-
pecliva, os sábios supplicaram Júpiter lhes per-
mittissc visitar o planeta mais próximo, a lua.
iNão estariam lá senão três dias e viriam contar
aos homens os prodígios que vissem n'aquelle
mundo desconhecido. Júpiter deferiu-llieso reque-
rimento e marcou como [lonto de |)arlida o cimo
de uma elevada montanha onde uma nuvem os de-
via esperar. A hora indicada apresentaram-se,
acompanhados de artistas e poetas encarregados de
pintar e descrever as suas descobertas.
Depois de terem rapidamente atravessado o es-
paço ethcrco, chegaram á lua, onde achaiam um
palácio preparado para reccbe!-os. iXo dia seguinte,
estavam tão cançados da viagem que acordaraiu
ao meio dia. Foi-lhes servido, para recuperarem
forças, um succulento almcço, do qual tanto se
aproveitaram que a sua curiositlad-e diminuiu con-
sideravelmente. N'este dia entreviram atravez das
janellas um delicioso paiz, coberto da mais rica
verdura e de flores de rarabelleza; ouviram o me-
lodioso gorgeio dos pássaros c promelteram le-
vantar-se na madrugada seguinte, para darem come-
ço ás suas observações. Mas no segundo dia, quando
iam para sair de casa, um bando de dançarinos e
dançarinas embargou-lhe o caminho. Um segundo
banquete, ainda mais lauto que o primeiro, eslava
servido. Vinhos raros, musica, danças: tudo convida-
va ao prazer; íicaraiii presos. De repente, vizinhos
invejosos perturbaram a festa, prccipilando-se ar-
mados na sala do festim. Travou-se a lucta; os
sábios tomaram parte n'ella eos invasores ticaram
vencidos. A justiça teve o seu curso, c o terceiro
dia foi absorvido inteiramente pelos inquéritos,
re])licas e sentença; de modo que o tempo con-
cedido por Júpiter expirou^ e os sele sábios vol-
taram à Grécia, cuja ])opulação correu logo ao seu
encontro, ávida de noticias da lua.
O que os sábios poderam dizer é que era um
excellente paiz, coberto de verdura, matisado de
tlores, e onde os pássaros cantavam a arrebatar. De
que nalurezB eram esta verdura e estas flores?
Como eram estes pássaros? Não sabiam a tal res-
peito nem uma palavra.
DANIEL RIGHARD
Já o século XVII eslava bastante adiantado, ain-
da os bravos habitantes de Locle se contentavam
com os quadrantes solares para medir o teiupo. .
Em 1()79, porém, um curioso, que para alli foi
residir, levou um relógio de Londres. Gran-
de maravilha foi esta, para aquella gente, por-
que dentro em pouco tempo o fabrico dos relógios
tornou-se quasi que a sua única industria ! O re-
lógio desorganisou-se; o seu dono contiou-o a um
habitante de Sagne, cuja destreza e génio eiuprehen-
dedor, sem duvida, conhecia. Daniel João Richard
(não se encontra este nome nas biographias) teve
seis mezes o relógio em seu poder; mas não o
guardou inuliliuente para si e para o seu possui-
dor: n'este curto espaço de tempo, tinha estuda-
do o complicado mechanismo, e havia inventado
a serie de utensílios necessários para reparar a
famosa machina ingleza. Ainda não tinham decor-
rido, depois d'isto, outros seis mezes, já Daniel
Richard se achava habilitado para fabricar o reló-
gio mais complicado. Fez mais: tinha o génio que
jnvenla, e a paciência que aperfeiçoa; adquiriu
"grande somma de conhecimentos, e depois diri-
gio-se a (icnova, aonde estudou. Estudar, pra tra-
balhar para o bem dos seus patrícios e estes, com
eílVito, aproveilaram: pacientes como elle, como
elle se cnritiueceram. Além d'isso, Richard tinha
cinco lillios, herdeiros de seus talentos, e por quem
o ensino era dado a todos. A^m se povoou aquelle
cantão de relojoeiros.
Daniel Richard morreu eiu 1711. Mas, porque
se calam a seu respeito as biographias? E porque
se não lêem as cartas de Coxe sobre a Suissa,
onde se acham consignados, mil factos cuiiosos: é
alli que se encontra a historia d'este hábil indus-
trial.
■120
O P\NORAMA
Á MORTE DE MANUELA REY.
Permille que em soluços eu deponha
Também uma saudade, ó alma bella,
>io leu fúnebre leilo!
Se á flor da pranlos a manhã risonha,
Eu dou-le a llor, — ai I pobre Manuela ! —
Mais trisle do meu peilo 1
Nenhuma aos pés te avremecei outrora,
Em vida, quando meiga no proscénio
E ardente de paixão,
Sentia toda a luz da tua aurora,
E a suave fragrância do teu génio
Descer-me ao coração I
Nenhuma 1 Acaso pode humilde planta
Roçar com seus perfumes o empíreo,
Dos orvalhos em paga?
O verme que do pó se não levanta
O néctar retribuo ao doce lirio
Que um dia o embriaga?
As almas como a tua são um canto
De frescas, de continuas melodias,
L'm arrulho d'amor !
Orvalho solto do azulado manto
N'aridez glacial de nossos dias'
Sobre pallida flor.
Foi bello o ver-le, sim, gentil creança.
Nas azas do teu génio erguida acima
Das tormentas da sorte;
Qual a ave que num vòo se abalança
Vor entre os vendavacs, c se aproxima
Da luz que tem por norte !
Foi bello e grandioso ! Não se exprime;
Mas eterna lembrança em nossa vida
Ficou do que era teu ;
Quando o elhcrco, o intangível, o sublime,
Moldavas na palavra traduzida
Em cânticos do ceu l
Da santa inspiração o beijo caslo
Depoz-te Deus na fronte; ea luz divina,
Que cm bem poucos se ateia,
Brilhou em ti, e um horisonte vasto
Ás ambições da gloria que fascina,
Sèm veu se patenteia.
Tiveste só aurora ! mas bem raro
Tão risonha manhã ú\\n\ bello dia
iNo ceu assim reluz !
Não se diga que IJcos te foi avaro!
No leu celeste alvor se resumia
Um futuro de luz!
Aos grandes só, somente aos escolhidos
Concede n'este mundo a providencia
Tal dom e tal baptismo!
São o bello : — nós somos os sentidos.
Apenas somos pó: — elles essência.
. São o ceu : — nós o abysmo 1
Que tem que elles não tenham por cortejo
A gloria só? Que sempre lhes (lecline
O sol, quando em manhã?
Que tem que a febre estampe o ardente beijo
Cm dia em Mille^e, nVxitro cm ISellíni,
Se a luz c sua irmã ?
O génio dVsses laes, centelha errante,
Baqueia, mas apoz deixa um vestígio
De fterna claridade ;
E os crentes do ideal, a rada instante
Evocam sempre o divinal prodígio
Nas hras da saudade !
Assim, ó anjo louro e pensativo.
Aos ecos do triumpho abrindo o espaço,
Levou-le o vendaval!
Mas nós, ainda apoz o vôo altivo.
Sentimos n'alma um luminoso traço
De luz celestial I
GUILHEUIIE DE AzEVEDO.
CAUSERIES
Tersos a Angélica
—Quando às horas do sol posto
vês o dia desmaiar,
Isempre triste a meditar,
sempre as lagrimas no rostol
— Escuta, são as lagrimas
um peso que sai (ralma,
e que— celeste bálsamo —
nas ulceras se espalma...
—Mas em faces, cujo encanto
rochas pôde commover,
dóc me tanto, linda, o ver
a cair em lio o pranto!...
—Também da noule o róscio
orvalha a linda flor,
e a flor não pende languida,
nem perde a viva cor.
—Mas se a noute assim espalha
sobre a rosa o seu frescor,
^qual a noule, branca flor,
que de lagrimas te orvalha?
— Não é a noule!— volta-le
alem para o occidenie:
choro aos adeuses últimos
do astro resplendente.
- Oh! não chores, que se o astro
ao seu leito desce ja,
amanhã Ic sorrírtá,
branca estatua de alabastro.
—Mas quando sobre os píncaros
do monte repontar,
<,quem sabe se inda Angélica
tu saberás amar? !
— l\Iarchc embora o lírio na hasle,
fnja o sol, loldem-sc os céus...
6 eterno como Deus
este amor que me inspiraste.
Vizcu, 18G6.
Cândido Figueiredo.
SEM TITULO
Viste ao serão a douda borboleta
volitar descuidada,
c arder depois na luz... Tiveste pena
e disseste:— coitada!
E cu (jue a Ioda a hora ardo nas chammas
(Vvíiiío. olhar adorado,
oh! quando te ouvirei compadecida
dizer lambem:— coitado!
Vizeu 18G5.
Cândido Figueiuedo.
Typ. l'"ranro I'(jrlugucza, líua do Tliueouro VcUio, (l.
I
16
o PANORAMA
\%
CAMARÁ MUMCU'AL 1)R DERBY
M uiu (los mais nolavois cdiUcios (rcsla liiula
cidade ingleza, capilal do condado do mesmo nomo,
siluada á boira do DciwímU no moio de unia
romanlíca palzagom, de campinas verdejantes cotíi^
são Iodas as da' Iníiiaíei-ra, paiz a (lue o céu nog'^
os sorrisos do claro sol meiidional, mas onde a
leria se rcvesle, em compensarão, de um ir.anlo
de ÍVesca o viçosíssima \erdura, de (jue se nã)
122
O PANORAMA
podem ufanar as torras do sul, queimadas e rc-
queimadas pelos beijos de fogo do asiro ardenlis-
simo, que as inunda de luz.
O condado de Derby um dos do norle de Ingla-
terra e dislinga-se bem cnlre Inglalerra e (jiã-
Brelanha; porque esla ilha compõe-se de dois reinos
unidos, Escócia e Inglaterra, licando aquella ao
norle, esta ao sul, deforma que dizendo «noite de
Inglaterra», dizemos «sul da Escócia») o condado de
Derbv, pois, c um dos mais curiosos e mais o\n\-
lentosdo território inglez; fazem-n'o assim assuas
formosas paizagcns, os seus magnificos prados, as
vastas cavei-nas das suas montanhas, as numeio-
sas cataraclas dos seus rios, o desenvolvimento
prodigioso da sua agricultura, o grau elevadoaque
chegou a sua industria manufactureira. Abundam
no seu território as aguas mineraes, as minas e
as i)edreiras(le mármore; a exploiação d'essas mi-
nas, e a criarão de gcidos formam uma grande
parle da ri(iuí'za do condado; assuas manufacturas
de algodão, seda, clã completam a lista das fontes
principaes da sua opulência e importância.
A população do condado ó avaliada em duzen-
tas e sessenta mil almas, e a da sua capital em
quarenta mil. Conia eslacidadomuilosedilieiosnola-
vcis, entrcos quaescilaremosalgumas igrejas, uma
das quacs, a de lodosos Santos, otTercce um bellissi-
nio espécimen de archithecluia golkica, o hospi-
tal, a cadeia, o theatro, a sala das r( uniões pu-
blicas, e a casa da camará, odificio de nobre as-
pecto, como os leitores podem ver pela gi-avura
que lhes apresentamos
Conta esta cidade fabricas imporlanles de sedas
e algodões, e uma fabrica de porcelanas, cujos pro-
duclos rivalisam com os da China pela beíleza da
massa e vi\acidade das cores.
Nos arredoies de Derby, matizam a paízagem
magnificos palácios, habitados pelos membros da
aristocracia ingleza, residências enire as quacs
se tornam notáveis pela sumptuosidade o palácio
de Keddieston-house, e jx-la sumptuosidade ainc^
maior, e pelas recordações históricas que o illu-'
minam, o palácio de 6'Ar/.s?roW/í, residência do du-
(jue de Devonshirc,c que sérvio outr'ora de j)risão
á formosa, á sympathica, á infeliz Maria Sluart.
OS TRÊS ESTADOS
Assim como nos thcatros, a um signal dado por
um dos piincipaes personagens, a scena vè-sc ins-
tantancamenlt.' invadida pelos coros ou com|)arsas,
que es|)eram a(|uelle signal entr(! bastidores, tal,
ao rcsoar o grito da princesa, se precipitaram no
quarto un.a multidão de escravos, pagens e es-
cudeiros.
Ainda apertava a mão da piincesa, ao lado de
cujo leito me achawa ajoelhado. O meu delicio era,
pois, llagrante e o castigo não se deveria fazer es-
perar.
—O que succede? exclamou com voz imperio.sa
um velho es(|ualido envolto em um magnilico cham-
bre de cachemiia e com uma espada nua na mão.
Immedialamenle foi inteirado do successo.
— E claro, pois, continuou o velho, que esse
miserável ousou levantar os olhos para a i)rincesa
e piocurava levar a cabo seus criminosos intentos.
Vós toilos, sois testemunhas do crime. Sede lam-
bem juizes. Ouo pena merece este escravo?
Aquella turba de servidores exclamou a uma
voz, como um coro bem ensaiado:
— A morte!
— Oue morte? Empalado, enforcado, (lueimado,
esquartejado, ou morto ás [)áoladas como um
cão?
— A morte do gelo! repetio o còi'0.
— Seja! Levai-o d'aqui e cumpra-sc a senten-
ça sem dilação.
Aquelles energúmenos precipilaram-se sobre
mim e a empuxões me lizeram sair do camarim,
atravessar varias salas, depois a galeria, descer a
escada c passar o vestibulo.
Então apresentou-sc-me á vista um espectáculo
surprehendente!
Era uma immensa planície, sem limites, sem
horisonle, coberta completamente de neve, cuja al-
vura brilhava pallidamentc á luz débil do cre|»us-
culo da manhã. Nem uma pedra, nem uma arvore,
nem uma habitação interrompiam a mageslosa uni-
formidade d'aquelle quadro, sobre o (lual se es-
tendia o firmamento transparente, onde começa-
vam a empallidecer as cslrcllas ante os primeiros
raios do dia.
Os meus olhos não se cançavam de contemplar
aquelle maravilhoso panorama.
No enlrelanlo, os (jueme conduziam haviam plan-
tado na neve um grande madeiro. Terminada es-
la operação de^pa^aram-me de lodos os meus ves-
tidos e ataram-me fortemente áquelle poste. Então
deram-sc as mãos e começaram, em roda de mim,
uma dança frenética, infeinal, dando grilos des-
compassados e gargalhadas estridentes.
Eu sentia um frio horrível, espantoso!
— Agua! agua! gritaram os meus verdugos.
A estes grilos alguns da comitiva desapparecc-
ram para voltarem d'ahi a pouco com grandes
vasilhas cheias de agua.
Eoi então que lompeu o verdadeiro sujiplicio.
Começaram, com* refinada crueldade, vertendo
sobre mim. lentamente ea pouco e pouco o li(|ui-
do que, n'aquella temperatura, ao cair se con-
gelava.
E a dança, c as gargalhadas continuavam sem
interrupção.
rareci'a que a agua me abrasava as espadoas
como um ferro candente ao cair sobre ellas.
O sangue legelava-se-mc nas veias, os mem-
bros a(l<|uiriam |)aulalinamente a dureza e a soli-
dez do gelo, o cíilor abandonava-me pouco a pou-
co, a vida extinguia-se e eu sentia que ella me fu-
'"ia.
^ Ao cabo de alguns minutos d'aquellc horrível
tormento, o meu corpo assemelhava-se a um nm-
Iréco informe de gelo nauseabundo e frio.
E comtudo, minha alma conlinuava habitando
n'aquelle disforme corpo e sentia ludo o que se
jtassava em roda de mim.
o PANORAMA
'lâ3
Assim, ouvi os meus algozes, que diziam:
— MorrcuI Acabou-se-nos o diveilimenlo.
E {Icsappaioceram.
A vasla planura licou solilaria e só eslorvava a
sua monolonia o grande madeiro a cujos pés eu
jnzia convertido u'um deforme pedaço de gelo.
ISão posso dizer quanlo lempo assim eslive.
Por íim um raio de sol illuminou aquelle hori-
sonle de bruma e neve, deslumbiando a visla ao
rellcclir-sen'esla.
Quando o doce calor do aslro do dia chegou a
temperar o frio que eu tinha, experimentei um
consolo inexplicável.
A neve começava a derreler-se e a verde alfom-
bra do prado apparecia pouco a pouco.
Ima idèa desconsoladora se apoderou de mim
ao ver isto. Sou um bocado degelo, pensei, e o sol
vai derreter-me.
Ouiz mover-me. Impossível. Era uma estatua
dura como o mármore.
A neve havia formado um arroio que se desli-
sava por entre a herva.
Se me derreto, continuei pensando, irei com
esse arroio até ao rio e do rio ao mar.
Não tardou muito lempo que não augmentasse
o calor do sol. Senti que o gelo do meu corpo
começava a abrandar. Depois fui-me conver-
tendo em liquido, perdendo pouco a pouco o es-
tado solido. E, como o havia adivinhado, uni-me
á neve derretida que formava o arroio.
Oue sensação tão agradável! Sentia uma inef-
favel doçura ao ver a fácil mobilidade do meu
corpo.
— Vem cbmnosco, me disseram as aguas do
arroio. Vamos ver as margens do rio para nos per-
dermos depois na immensidade do oceano.
Com elfeilo, em pouco o arroio juntou suas aguas
ás do rio e me arrastaram pela corrente d'eslc.
Milhares de tlores desconhecidas ciesciam por entre
os juncos de suas margens e os passarinhos salta-
vam pela relva. Alguma vaca, cujo lombo parecia
nevado, ou algum cervo de grandes hastes vinham
beber ao rio. Um mancebo cantava em quanto a
corrente fazia andar o seu tosco barco; e era tão
formoso o prado, tão odoríferas as llores, tão
bello o ceu azul (|ue se retlecliaem nós, aguas do
rio, e tão agradável o calor do sol que |)arecia a-
cariciar-nos coiii os seus iaics,queme sentia feliz,
muito feliz!
— Adeos, me disseram as aguas que antes me ti-
nham fallado. Vamos correr o espaço e vaguear
sobre as nuvens. Prestes viiás fazer-nos compa-
nhia. Adeos.
E com etVeilo, evaporaram-se ao dizerem-me
estas palavras e desappareceram no ar.
Brevemente me chegou a vez. Senti que me torna-
va mais incorpóreo, mais impalpável, peidendo a
consistência, porém adquirindo mais mobilidade
e subtileza.
Tinha passado ao estado de gaz.
As lilhas do ar me receberam em seus braços
e subimos ás alturas por um raio de sol que nos
servia de escala. A sua luz os nossos vapores se
lingiiam de uma formosa cor de violeta que en-
cantava a vista.
— Nós, me diziam algumas filhas do ar, somos
os aromas que exhalam as llores dos prados.
— Nós, murmuravam outras, somos as harmonias
do espaço.
— Somos suspiros de anu)r, diziam outras.
— Do mar nascemos ao evaporarmo-nos.
E entretanto, percorríamos o Ilrmamento, len-
tamente levadas nas azas da brisa.
De repente senti um hoi-rivel sacudimento. Todas
nós estremecemos comprehendendo o pei'igo.
O furacão chegava mais furioso que nunca: os
seus braços robustos impelliram-noscom violência.
Súbito, sentimos que o fogo do raio rasgava a
nuvem que formávamos. E levadas pelo furacão,
andando mais rápidas do que o pensamento pela
immensidade do espaço, vimos ao longe outra
nuvem impellida para nós com a mesma violên-
cia que nós para ella. Tremíamos de medo, po-
rém era-nos impossível evitar a sorte.
Eram sem duvida dois furacões inimigos que
vinham ás mãos. A lucta foi espantosa. A nu-
vem contraria avançava para nós cada vez mais
rápida e ameaçadora, vomitando raios medonhos
e brilhantes centelhas que vinham ferir-nos com
o seu fogo. Nós imitando os seus rugidos de có-
lera, e seus silvos discordantes lhe lançávamos
também ardentes i'aios para deler-lhe o andar.
Tudo em vão : cada vez i)arecia mais perto, e
ameaçava deflruir-nos.
O que ia ser de nós quando as duas nuvens se
encontrassem?
Os raios mulliplicavam-se. A nuvem vinha sobre
nós com horroi'oso fragor. Um momento mais
e a espantosa catastrophe verilicava-se.
Passou um segundo de cruel agonia.
As duas nuvens combateram. Ambas se quei-
maram no fogo dos seus raios, e bramindo de cólera
se aniquilaram com a sua violência.
Senti um esp?nloso abalo, julguei arder no fogo
do raio, o Ímpeto do choque desfez os meus áto-
mos gazosos...
E acordei,
UM DIA DE INVERNO
niediluçào
A neve estendeu sobre o solo a sua pallida mor-
talha. Os alegres habitantes dos ares desapparece-
ram. O insecto já não zumbe ao sol. Parece que
a morte iuvadio a natureza.
Ouanto esla aj)parencia é enganadora, e nos
occulta, ó Deos, os mysterios da tua actividade!
No momento em que a vida parece suspensa exterior-
mente, tu, nas profundezas inaccessiveis á vista, lhe
fazes opeiar osseus milagres. Os renovos que tens
feito nascer sobre os ramos, no momento em que as
folhas seccas vacillavam sobre as hastes, intume-
cem-se lentamente sob o seu manto protector epre-
1^4
O PANORAMA
sagiam, no meio da dosohição do inverno, as ri-
quezas da priínavcia.
Assim a correnle da vida proseguc no s"io da
humanidade, nas próprias épocas em que parece
eslar cm com|)li'[a esla^nação. >'a familia, na so-
cicdailí', a obra do desenvolvimcnlo e do progi-esso
avança sem inlerrupefio. A familia renova-sc pelas
creanras, giala esi)eiança do fuluio, quando os
seus clieles abatidos pela idade e pelas enfermi-
dades se diiigem para o lumulo.
Logo que uma sociedade envelhecida, uma ci
vilisarão anliquada, que parece ler esgolado Ioda
a sci\a de um povo, soflie a decadência e a disso-
lução, uma nova sociedade, cheia de ardor e de
vitalitlade, germina e brola, e prepara em silencio
uuia nova era de piosperidade.
Cousa alguma podei ia, pois, ó Pai lodo podero-
so, abalar a nossa confiança no fuluro. Como a
iunocenle andoiiiiha nascida sob as nossas telhas
parlio esle oulomno, dirigindo-se para regiões que
nunca ^io, mas onde a conduzio o insliísclo que
lhe desle, onde achou um sol mais agiadavcl e
suslenlo mais abundanie, nós lambem queremos
caminhar, sob tua palernal direcção, para uma or-
dem mellioi- de cousas, certos de atlingir e de
achar ahi uma compensação superabundante a
nossos esforços, a nossas fadigas, a nossos soflVi-
menios.
A NATUREZA
O espectáculo da natureza não c a prova única
da vontade e do poder divinos; mas é a mais evi-
dente para o maior numero dos homens: allen-
tando nas maravilhas da creação, os seus olhos.
assim como a sua inlelligencia proclamam o Deos
creador.
As oi)jecçõcs cmbolam-se, os sophismas dcspe-
daçam-se contra um argumento sensível e palpá-
vel, (jue não exige esforço algum de abstracção.
Kis aipii a obra: acredilo no obreiro. A obra e
cunho de giaiideza, bondade e pi-evidcncia: creio
que o obrei IO e todo podei-oso, todo sábio, todo
bom.
^.Us céos, onde a (li\ina mão tem suspensas
niilliões de estrellas, onde collocou, como sob uma
abobada reluzente, o sol (|ueallumia o nosso mun-
do; a terra, nuliix bemíVilora, amiga cuidadosa,
que esparge os thesouros do seu seio em íloies
odorileras, cm f:utos deliciosos; o mar, elemento
lerrivcl e enganador, que faz \ãos esforços paia
aricndjar a sua prisão, que b.ame agitado pela
loiíiHMíla, ou SC nioslia lizo cfnío um espelho;
tudo isto, cm lim, não nos está a todo o momento
patenteando o Supremo l'oder, caniando ;í sua
gloria, obrigando-nosa reverenciaro Deos occullo?
K se, commovidos d'(ste grande esi)eclarulo,
jiroruramos estudar-lhe o machiiiisuio, com (jue
admiração não notamos nós a oídem (jue susl>'nla
o univer.sol O astro, sempre o mesmo c sempre
novo, como vem lodos os dias mimosear-nos com
os brilhantes raios da sna luz fecundai Como o
oceano, escravo subnntlido, a\ança e se ii-lii-a ás
horas que lhe lixa uma lei mysteriosa! Como a lerra,
para produzir o trigo, sustento do homem, recebe
annualmente os thesouros do ar, chuva e calor,
alimenta a semente que o lavrador lhe confia, fal-a
s:ibir em herva, em espiga, em dourada ceifai
Air. maldito o.coi-ação rebelde (jue se nãoabi'issc
a jirovas tão claras; maldito o liomem que não
dobrasse os joelhos diante do aulhor(l'esIas mara-
vilhas e que não rendesse homenagem ao Cieador,
ao Conser\ador do uiiiversol ^ ■
IXSTRUCÇÃO NA LNOIA
lia alguns annos a esta pai-le que os índios se
mostram ávidos de inslrueção. As creanças fre-
íjuentam assiduamente as escolas c os colleiíiosde
Calculla, VounsM, Dellii, Agra cBénarés. Um ha-
biíanle de Surale deu ti-inla contos de reis pai a a
creação de um collegio n'esta cidade; um Paisi
oífeieceu vinte e quatro contos, para seiem appli-
cados na educação de cinco Índios em Inglaleira;
Piema-Chodra deu noventa contos para o eslabc-
lecimento de uma bibliolheca em líombaim; Mo-
hamed-llabil-Bhay legou cento e treze contos para
a fundação de uma escola na mesma cidade. Em
Lacknau, Labore, Barhampur, Bombaim, Allaha-
bad, efe, todos os dias apparecem novas casas de
intiucção. Lmfim, parece que o mundo velho ac-
coidou do profundo lethargo em que jazia e quer
tomar jiarte na grande obia da civilisação.
VOLTAIRE
Voltaire é um d'essos vultos gigantes que á pro-
porção que os séculos decorrem vão 'patenteando
novas bellezas. Como as estatuas colossaesquc, vis-
tas ao perto, feiem pelo (jue se nos aíligura incor-
recção c rudesa, mas que a distancia deslumbiam
e avassallam |)ela mageslade do porte e j)ela har-
monia das formas, assim elle hoje se nosaj)resenla,
giandioso e sublime.
V. Hugo veibeiou-o aos vinte um annos, jiara
a( s sessenla^odivinisar. O (|ue lhe dera mostras de
um iconoclasta, Iransliguiou-se-lhe em apostolo;
o que lhe pareceia vibrar na dextra o camarlello der-
rubador das crenças, revelou-se-Ihe mais tarde
como obreiro do piogresso, do bem, da liberdade
na justiça, da ledempção social.
A posleiidade quando observa 'eslas creaturas
prodigiosas, não tem que altenlar nas leves ma-
culas ([ue |)od('m emi)anar-lh(>s o semblante; deve
só ver a maior ou nieuor intensidade do rayo lu-
minoso (jue lhes dardejou na fronte, e (|ue sérvio
de farol e de estrella aos peiegrinos do mundo.
Francisco Maria Arouel, celebre pelo nome de
Voltaire, nasceu quando o muudo illuslrado come-
çava a respirar 1ím-( mente á sombra de Loeke e
de Newton, noiiiiiíbrokc popularisara a philoso-
pliia de Sliaftersbui y, l{a\le ainda não esfriara na
sua cova. o norte agitava-se o indagava o porque
das cousas, com a severidade da razão inflexível,
e a França vergava sob a iiilhieneia jesuilica.
K preciso insi^lirmos no esj)irito do século XVIll
o PANORAMA
i25
Voltaire
para podarmos comprehendcr a missão de Vol-
taire.
O século AYIII está enlallado enlie Luiz \1V
e liuonaparle. É uma quadra de formenlação, de
elaboração vasíissima e profunda, em que as fezes
sobrenadam, em que as ioi'pozas abundam, em que
os ânimos periclilam, em que vemos ouzados os
mais robustos espíritos; quadra, emlim, de gesta-
ção, cujos symplomas são em tudo análogos aos
que a historia do século XV nos apresenta muitas
vezes.
A sua face politica é esta: — «Escandiílos da Re-
gência, ignominias de Luiz XV, despotismo no mi-
nistério, violência nos paikimenlos, pertlida a for-
ça, a corrupção moial descendo da cabeça ás en-
tranhas, da nobreza ao povo; os prelados cortozãos,
os abbades galanteadorcs; a velha monarchia, a
sociedade velha cambaleando sobre esta base com-
mum ))
Arouet, nascido com todo o talento dos pre-
destinados, sentiu a necessidade de uma recoiis-
trucção social. O génio dera-lh'o Deos; moldou-lh'o
o século.
O que fazer em meio da degeneração e
da crápula? o que fazer, quando a loriente la-
vrava desenfreada c caudalosa? deixar-se arrastar
cu pòr-lhe dique? Lrgueu a voz, |)roclamouos di-
reitos humanos, lidou pela veidade, soIlVeu [lor
cila, fez d'ella a sua dama, e defendeu-a com a
galhardia de um campeador esforçado, levantou o
homem pela razão, e para elle fundou o grande
monumento da civilisação moderna.
A encyclopedia devia de ser um marco milia-
rio; as suas quatro faces mostravam os quatro
pontos cardeaes do j)rogresso; de cada uma d'el-
las partia o seu defensor c operário.
É como diz V. Hugo n'uma synthese eloquen-
tíssima : — c( Diderol caminhava para o bello,
Turgot para o util, Voltaire para o verdadeiro,
liousseau para o justo ! »
Este é que era o verdadeiro grupo philosophi-
co. Quem grasnava, quem vociferava, quem apedre-
java, quem se apregoava atheu e retorcia o bigode,
eram os sophistas, os especuladores, os escrevinha-
dores diffamalorios, os que saíam do lodo, ainda
sujos, para manchar o edilicio a que indignamente
se acostavam.
Os (jue haviam protegido e amparado o Jornal
de TvévouJí^ e a Gazeta Ecdesiastica, os (|ue ha-
viam dado missão a Pompignan ea.Palissol para
insultarem na academia e no thealro os philoso-
phos da Kncyclopedia, esses taes, quando vi-
ram succumbir a grande obra, tripudiaram
no cumulo da sua alegria pharisaica. Depois
veio a revolução, e esses mesmos humanitários,
esses tonsurados de todas as épocas, foram sen-
tar-se no adro das suas ermidas milagrosas, e pra-
gu(jaram contra a 93 que era o parlo damnado
da philosophia voUaireana. Coitados! Mal sabiam
elles que a 93 era o fruclo d'aque!la arvore gran-
diosa, amadurecido ao sol de Deos para alimento
de lodos. O tempo encarregou-se de mostrar esta
verdade; e o sangue do ultimo rei comprou bara-
to a civilisação e a liberdade.
Isto é ao que me parece, o verdadeiro sentido
philosophico do século XVII I. Naquella época ou
pensador ou jansenisla, ou luz ou sombra, ou fogo
ou lodo. Ouem se não chama d'Alembert appelli-
da-se Frèron ; quem não c Helvécio c Patouillet.
Boileau e Racine haviam sido os poelas da Côrle;
Voltaire devia de ser o poeta da humanidade.
l*oeta quer dizer apostolo, no sentido remon-
tado.
Lis o poder dos tempos, eis a necessidade dos
acontecimentos. Nenhum liomem apparece com o
seu caracter definido; detinem-llfo as circumslan-
cias. (íoldsmith diz graciosa e profundamente: «Cé-
sar, nascido hoje, seria sargento de niilicias; Crom-
well, talvez regedor de parochia.»
A philosophia vollaireana e a lilha legitima do seu
século. As torpezas da Regência criam a Revolu-
ção, como as iniquidades dos Rorgias originam a
Reforma. Voltaire c a grande linha de união lan-
çada entre aquelles dois extremos, como Savona-
rola a havia sido entre estes dois últimos.
Tal é, se eu não me engano, a face politica ou so-
cial de \oltaire. O seu primeiro grito de guerra
cifra-se n'estes dois versos memoráveis:
«Nos prèires ne sont pas cn qii'un vain pciipie p nsc.
N(jlrc crúiluliló Tail tuulo luur scicnce."
D'ahi resultou a lucta que se estendeu por tan-
tos annos, e que veio terminar, ao cabo. pelo trium-
pho completo da razão sobre os mantenedores do
obscurantismo.
Tiacemos agora rapidamente as principaes li-
nhas da sua physionomia litleiaria.
(Continua.)
E. A. ViD.\L
426
O PANORAMA
PEREZ LORENZO
(Sccnas úa Camiiaitlin «lo México)
(Conclusão )
VII
o capitão Viaimonl franziu o sobi"ollio.
— Senhor, disse eile, não lhe aconselho que me
escolha para seu coníitlente. Se Alexandre Dumas
viesse na expedição, era provável que elle accei-
tasse com mui lo gosto o |)apel, que me quer ver
desempenhar. As suas aventuras de corto seiviriam
para um romance em vinte volumes, e, altendendo
a isso, Alexandre Dumas ouvil-o-liia coiifsummo in-
teresse. Eu, que não preciso de fazer romances, con-
fesso-lhe que de bom grado dispenso as conliden-
cias dos carrascos.
Perez Lorenzo não moslrou resenlir a injuria.
— É breve a minha historia, tornou elle, e pre-
ciso de lh"a contar, É um moribundo quem lhe
falia, capilão Viarmont.
Eslss palavras produziram no official francez uma
profunda impiessão. O mexicano possuia o con-
dão especial de exercer umaiiicomprehensivel in-
lluencia em todos quantos se approximavam d'elle.
Os grandes infoi-lunios lêem eslas propriedades,
paia assim dizermos, magnéticas.
Silencioso, o capitão Viarmont seguio o mexi-
cano. Os soldados francezes, com licença do co-
ronel, e com o génio aventureiro que os caraclerisa,
tinham debandado, escolhendo pares entre as gentis
mexicanas, que facilmente se consolaram da inespe-
rada substituição. O guilarreiro, recobi'ando-sedo
susto, e percebendo que era inviolável, graças á
sua qualidade de trovador, e á precisão que os
dançadores tinham crelle, recostou-se de novo junto
da fogueira, e continuou a musica interrompida.
Só os guerrilhas, acorrentados e guardados á visla
por quatro ou cinco senlinellas, devoravam em
silencio a sua ira, e, vendo a facilidade com que
as mexicanas os tinham olvidado, pensavam na-
turalmente de si para si o que Francisco I escre-
via nas paredes de Eonlainebleau:
Síjnvcnl lemnic v.iric
iJiea íol L'st qui s'y lie.
Enlrelanlo Perez Lorenzo c o capilão Viarmont
tinham-se aííaslado da claieira illuminada, e, in-
lernando-se no bosque, tinham-se ido senlar junlo
de uma pimenteiía, (|ue entornava sobre elles a
sua urna de penetiantes aiomas. A melancólica
musica da guitaiia, assim ouvida ao longe, re-
soando no meio da ineílavel serenidade de uma
noite dos trópicos, casava si; de um modo suavíssi-
mo com a doce melodia da brisa, sus|)irando bran-
damente nas folhas doai Noiedo. A lua, resvalando
no azul do ceu, envolvia a paizagem no seu manto
de cândido fulgor
Perez Lorenzo relanceou cm torno de si um olhar
saudoso, e como ()ue paieecu (lueicr impregnar-se
bem na poesia immensa da sua palria, í|ue elle
ia trocar pelas desconhecidas regiões da eterni-
dade.
Depois, passando a mão pela lesta, como para
aflugenlar esse pensamento, voltou-sc para o capi-
tão, e disse-lhe ex-abrupto:
c(A minha vida resume-scem duas palavras só
«Amor e vingança.» Não leva tempo a narrar. Nasci
ifesla formo.^a terra, que tão dilaceiada tem sido
pelas facções. Conservei-me estranho sempre á
agilação revolucionaria. iNão podia mesmo com-
prehender a frenética loucura, que as vaidades da
polilica accendiam no aninio dos meus patrícios.
Lu iirefeiia apenas as doces loucuras do amor.
Ouem me diria que havia de chegar um instante
em que teria de me arrojar a esse mar das revo-
luções, cujas tempestades me apavoravam, cujos
sorrisos mentirosos me não -conseguiam allrahír?
Ah! quando a procella ruge embravecida, quando
as ondas quebram furiosas nos fraguedos, despe-
daçam juntamente o navio que as alíronla, e o
pobre barquinho fundeado, que se abriga no porto.
aAmei quasi desde criança uma formosa meni-
na, minha visinha. Cármen se chamava ella. Era
linda como os anjos, casta e meiga como a Virgem
da Guadalupe, liequeslava-a também esseJuan Pa-
blo, cujo cadáver se baloiça agora ao sopro das
auras; masjá então era conhecido pela sua Índole
sanguinária, e dizia-se que a sua carabina não estava
immaculada. Vingativo e dissimulado, a mais leve
injuria, que lhe fosse dirigida, fuava para sempre
registrada na sua memoria; mas sorria-se para
aquelle que o injuriava, até que chegasse o ins-
tante em que podesse traiçoeiramente, emboscado
por trás de uma sebe, atravessar o peito do inimi-
go, que o olvidara já, com duas bailas da sua ca-
rabina, certeira como se o demónio mesmo lhe di-
rigisse a pontaria.
«Cármen despresava completamente o seu ga-
lanteador. Seus pais preferiam vel-a morta a vel-a
unida a tão vil creatura. Eu, pelo contrario, era
acceiío com muity gosto por toda a família. Não
houve por conseguinte a mínima opposição ao nosso
casamento. Mas, no dia em que nos recebemos em
Medellin, Juan Pabloesperou-nos ásaida da igreja,
edeu-nos os parabéns, sorrindo-seamavelmente com
esse sorriso, que para tantos signilicara a morte.
cOs meus amigos empallideceram ao verem-n'p,
e um d'elles, apj)roxímando-se de mim, disse-me
em voz baixa. «Acautella-le, I'erez Lorenzo !ln-
Iroduzio-se a víbora nas llores do teu dia nupcial.»
Lu encolhi os hombros, e relanceei um terno olhar
para a minha des|)osada. Ao vel-a Ião bella com
a sua grinalda de llores de larangeira, com Ião doce
sorriso nos lábios de romã, com Ião nacaradas ro-
sas nas faces levemente morenas, quem havia de
dizer que Ião cedo m'a havia de roubar Deus! Ai!
(luandí» o ceu eslá azul, e as eslrellas scintillam,
como fruclos de oiro, por enire a folhagem das
arvores, quem se lembra (jue ha de vir o bulcão
tuivar essa augusia serenidade?»
Perez Lorenzo inteirompeu-se por um inslante
e duas lagrimas deslisaiam-lhe dos olhos, lanto
[empo esbrazeados pelo sopro das nuís paixões. A
proximidade da morte sollava as lagrimas repre-
zadas, que lavariam, quem sabe! aos olhos de
Deus misericordioso, os crimes da sua existência.
o PANORAMA
\TÍ
Viarmontouvia-ocom inlerossc, singular influen-
cia (lo amor! Essa palavra só basla para levantar
na nossa eslima o criminoso mais vil. O amor e o
palriolismo tiansformam n'um lieroe um assas-
sino.
«Correram os primeiros mezes do num casa-
menlo na mais inalterável tranquillidade. Todo
entregue ás inebriantes delicias d'esse amor, que fo-
ra a minha vida, nem pensei uma vez só nas amea-
ças, (jue o sorriso de Jnan Pablo encerrava em
si. Os meus pioprios amigos, se bem (|ue mais caulel-
losos chegaram comtudo a pensar que o meu vinga-
tivo rival linha olvidado, ou pelo menos adiado indi-
linidamente a sua vingança.
«Foi por este tempo que rebentou a guerra en-
tre o México c as três potencias européas. Não lhe
contarei as particularidades d'ella. Sabe-as melhor
do que eu, a quem, devo confessa-lo, eiam com-
pletamente indiíTerentes esses grandes abalos polí-
ticos. Uma noticia me preoccupava muito mais do
que o desembaíque do exeicito francez, inglez, e
hespanhol, do que o convénio da Soledade, do
que o desastre do general Lorencez, do que a
chegada do general Forey. Essa noticia, pela qual
eu olvidava lodos os desastres do meu paiz, essa
noticia que me fazia exultar quando a pátria es-
tava em lucto, essa noticia ineílavel dera-m'a Cár-
men, havia pouco tempo, com as faces affbgueadas
nas rosas do pudor; ia ser pai! A imagem d'esse
anjo alvoe loiro, :)endui-adodo seio malei-nal, como
uma abelha do cálice de um lyrio, não me dei-
xava ver a imagem do México vertendo sangue pelas
largas fendas, que lhe abiia a espada do estran-
geiro. Casligou-me Deus talvez poi- essa culpável
indiflerença.
«Juan Pablo, desde o princij)io da lucla, ce-
dendo aos seus inslinctos de rapina, lançara-se,
acompanhado poialguns da sua laia, nas florestas,
onde reunio denlio em breve uma forte gueriilha.
Os incendios,as devastações começaram a assignalar
a passagem d'esse teirivel bando. Ouando de sú-
bito se via o ceu avermelhado das bandas do norte,
do sul, ou do oriente, quando uma lingua de fogo
brotava nas [)lanlações, e, coriendo com a rapidez
do relâmpago lambia os cafezaes, ou os canaviaes
do assucar, já se sabia que n'essa noito vaguea-
ra Juan Pablo, com o seu facho falai, nas campi-
nas dos arredores de Medellin.
«Mas uma coisa se notava, Juan Pablo escolhia
escru|)ulosamenle as plantações a que deitava fogo,
c o raio da sua ira caía sempre sobre aquelles
que se tinham ligado ao cslrangeiío. Juan Pablo
não queria por forma alguma tirar aos seus actos
mais terríveis a cór patriótica. Nisso estava a sua
segurança. Se o não fizesse não tardaria muito em ser
entregue nas mãos dos Eiancezes. Mas o astuto
bandido linha as sympalhias da população, (juc
via n'elle o heroe e o vingador da sua naciona-
lidade.
«Por isso eu estava seguro. Ainda que indif-
fercnte aos negócios políticos, a marcha Iriumphal
de Forey linha produzido em mim uma profunda
impressão. Acordou no meu espirito com certa vi-
vacidade o sentimento patriótico, ao ver para
sempre destruída a republica mexicana. Não oc-
cullei as minhas sympalhias pela causa nacional,
.e cheguei a dizer que, se me não retivessem minha
esposa e meu lilhofjá fallava n'essa querida crian-
ça como se a tivesse nos braços) iria alislai'-meno
exercito da independência. Estes sentimentos ex-
pressos em voz alta coUccavam-mc até debaixo da
severa vigilância da policia franceza. De Juan Pa-
blo, o patriota, que podia eu lemer?
«Uma noite eslava eu junto da janella conver-
sando com minha esposa e fazendo mil projectos
sobre a futura sorle do nosso filhinho, quando os
ladridos desesperados dos cães nos revelaram que
havia alguma coisa de novo. Cármen descorou, e
chegou-se para mim, relanceando em torno de si
os olhos, em que se relleclia um vago terror.
«As porias da herdade eslava m abeilas. Como
disse, nada julgava ler que recear. Mas, conhecen-
do a inlelligencia dos cães,suppuz que eram fran-
cezes os visitantes. Os meus cães consagravam
um ódio mortal ao uniforme fiancez.
« — Alguma visita domiciliaria da policia! disse
eu, encolhendo os hombros.
«E dirigi-me para a poria, a fim de a abrir cu
mesmo.
«Mas Cármen cingio-mc com os braços, e, toda
tremula como se um estranho presontiraenlo a assal-
tasse, não consenlio que eu desse um passo, e,
escondendo a cabeça no meu peito, desatou a cho-
rar.
«Os cães linham-se calado de súbito. Pieinava
na habitação um profundo silencio, mas um d'es-
les silêncios que precedem as tempestades.
ccRfleclivamente não duiou muito a calmaria.
As portas da sala abriram-se com fracasso, e vi
luzirem na sonbraas pupillas de tigres dos guer-
rilhas mexicanos, que se afíaslaram |)ara deixarem
passar um homem, que avançou, sorrind»-se gi'a-
ciosamente, até ao meio da sala.
«Cármen soltou um gi-ito horrível, eu brami um
rugido sufíocado. Esse homem era Juan Pablo.
«Soara emlim a hora da vingança. A chamma,
que eu julgara abafada debaixo das cinzas, fora
lavrando, lavrando, ate irromper medonha, fatal,
na própria accasião em ([ue seriam mais pungentes
para mim as agonias da desgraça.
«Oue lhe hei de eu dizer mais, capitão? conti-
nuou Perez Lorenzo com voz sulTocada. Adivinha
de certo que, a pezar da minha resistência, fui
agariado, prezo a uma arvore, e que tive de as-
sistir lugindo de furor ao incêndio da jilanlação.
Mas o (|ue não adivinha de ccilo é que, jior um
requinte inaudito de barbaridade, tive de assistir
á deshonra, á jjrofanação da casta companheira do
meu leito, que a vi csto'rcer-se, louca de desesj)ero,
nos biaços dos infames, c que elles, possuídos
verdadeiramente da embriaguez do ciimc, depois
■de terem saciado os seus torpes appetiles, a sua bru-
ta sensualidade, rasgaram o ventre de Cármen, e ar-
rancando das lépidas entranhas, santo ninho onde
|)alpitava ainda implume essa cândida avesinha
(jue havia de ser a pomba da nossa arca, arrancan-
i28
O PANORAMA
do o feio informe, arrojaram-m'o ao roslo, rindo
com um riso na realidade satânico. (1)»
— Horrorl exclamou o capitão Viarmonterguen-
do-se convulso e pallido.
«Abl compreiíende agora capitão, continuou
Porez Lorenzo n'um l>)ngo c angustioso soluço,
comprehende a inllexibiiidade, a tenacidade, a cruel-
dade com que cu persegui os assassinos, o de-
leite amargo que eu senti cm assistir a cada uma
das suas torturas, em os vei- eslorcerem-se lambem,
blaspliemando, nos biaços da morte? Alil mas
nem lhes paguei a millesima parle das agonias,
que me lizeram soflVer. Km compensação abri-lhes as
portas do inferno, e, se esta vingança cruel m'as
abre lambem, consolai-me-liei (kischammas eter-
nas, vendo-os soIVrerem a meu lado.
ff A minba missão está cum|)rida no mundo, capitão
Viarmont, continuou Perez l.orenzo levanlando-se.
ISão me considere como um assassino vulgar. Pen-
se alguma vez em mim, e se o fazer, reze um
padre-nosso por alma d'esle desgraçado, que
o acaso lhe atravessou no caminho, como um pássa-
ro agourei 10».
E, deixando ficar o capitão Viarnionl ainda de-
baixo do pezo da sinistra confidencia, desappare-
ceu nos recessos da floresta.
D'ahi a pouco ouvio-se um liio do pislola. Pe-
rez Lorenzo cumprira a sua palavra. Depois de
ler terminado a sua vingança, deixava o mundo,
e ia, coníiado na misericórdia divina, navegar no
sombrio oceano da eternidade.
Y.armonl limpou o suor, que lhe escorria em ba-
gas pela fronte, depois, como os coi^nelas fi'ance-
zes tocavam já a reunir, dirigiu-se vagarosa-
mente para a clareira.
l)'ahi a meia iioia entravam em Medellin. Ain-
da durava o baile em casa de 1). Ramon
• Muitos oíliciaes, lomaiulo apenas o cuidado de
escoviu-em o falo rapidamente, A ollaiam, com a /«-
ó-oMCíVí/ícc do caracter fiancez a lançar-se no turbilhão
das valsas. Mas, com grande espanto do coronel
iJupin, o capitão Viarmont, em vez de seguir o
exemplo dos seus camaiadas, vcio-llie pedir licença
para dispor de oito soldados n'uma peíjuena ex-
j)edição, que nada linha de guerieira.
— E D. Doloios (jue o espera? disse Dupin de-
pois de saber que se tratava de dar se|)ullura
a Perez Lorenzo, cuja histoi ia clle conhecera ainda
antes do capitão.
— Qualquer dos meus camaradas me subslituiiá,
coronel, respondeu. Viarmont encolhendo os hom-
bros, Dolores lembra-se tanto de mim, como a
borboleta se lembra da poeira inipaljjavel (jue lhe
poisa nas azas.
D'ahi a uma hora, Viarmont, acompanhado por
oito soldados c um padre, chegava ao sitio em (jue
Perez Lorenzo se tinha suicidado. Seria impossí-
vel conhecel-o, se o não Iraliissí; o fato; o infeliz
fizera saltar os miolos com um tiro de pislola. .
Ouando o corpo foi enterrado n'uma cova, (pie
os soldados alli mesmo abriram, e que o padre
começou a psalmear as suas orações sobre a ler-
(1) Não (ihanUaio Lorrorcs. Lsle fuclo c Icituol.
ra remechida de fresco, Viarmont affaslou-se um
pouco, e, deixando descairá cabeça sobre o peito,
tilou os olhos no ceu azul, onde as eslrellas co-
meçavam a desmaiar com a approximação da ai-
voiada.
Kntão das pali)ebi;as do valente deslisou uma
lagrima silenciosa. É porque n"esse momento via
a guerra debaixo do seu aspecto hediondo, e em
vez das pompas da ovação, do esplendor do sol
das batalhas, dos gritos davicloria, do enthusias-
mo das cargas, via a dois passos de si a cova hu-
milde de um homem, a quem as vinganças hor-
ríveis, a que o demónio da guerra dá latitude,
tinham arrojado para fora do seu lar Iranquillo,
e tinham ensanguentado a vida, que podia ser
para elle uma benção do Deus bom.
E depois o penscimenlo voou-lhe para as terras
da (iuyenna, c vio o ninho immaculado da familia
onde só elle faltava, c pensou que um dia podia o
sangue manchar as alvas corlinas do L-ilo de sua
irmã, o incêndio passeiar os seus fachos rúbidos
pelos tectos das granjas, pelas loiras messes dos
campos, e o i)unhal (Jo guerrilha lampc^jar furioso
sobre o peito indefezo de sua velha mãi, como o
punhal lampejara sobre o peito de Cármen, como
o incêndio devoíara as plantações de Perez Lorenzo,
como o sangue manchara as cortinas d'esse Ihala-
mo, doce asylo de um casto amor.
\\ |)or isso a lagrima silenciosa deslisava dos
olhos do valente!
NOTA
Transcrevo em seguida o [lacho da P.eiisla dos Dois
Mundos, qiio sorvio de iiasc para este romance.
(i|,c 8 mars ISG.'}, iiii Rspap;iio!, dti nom de 1'crez Lo-
renzo, SC prcsenlail á la ii;raiid'gar(ie. l)c íirosses larmcs
coulaicnl de. ses yeus.; sa lijíiirc pàlc el maigrc accusait
la duuieui;. II demanda á elrcí reni en i)arlictilier par te
colonel. Á peine inlroduil dans lactente: Veux-lu nic ven-
ger? lui di[-il,
.Favais une maisonellc en!our('C (!e jardins, donl je por-
tais les fruils á Vera-Cruz cl á Meilellin; j'a\ais une
jeiínc femme de di\-Iiuil aiis, (|iie j'a\ ais aiinéc el éi)oii-
sée á La I!a\ane; elle ('liiil eneeinle de six móis. Ilier
ta puíMMlIa eommand('C par don .liian Palito, lieuleiíatil des
l)an(les de .lamapn, esl enlrec dans nia maison, m'a ada-
elié á un pofeaii, ils onl viole' ma remnic, el,aprés lui
avoir onverl Ic ventre, ils nronl jeii^' à la face mon
enfant à peine fornu». (",omprends-ln cnlonel, pnur(nioi
je ne me snis |);;s Ine? "licciíila dos dois mvudos, 1 de
outubro de 18(j.') pag, (i!)7.
D'islo SC fez o romance. Era escusado dizol-o. A ima-
ginação dos romancistas não ousa plianlisiar esles iior-
rorcs.
ri-MIElUO CII.VG.VS.
ííum milhão de arrobas de gloiias temporais
não faz meia onça de bemaventurança eterna.
P.t' Amomo ViriRA.
Pelo meio da prodigalidade c avaieza, corre a
liberalidade, (|ii(; dis|)en(le e guaida com a mode-
ração devida, e por isso he virtude.
P/^ António Vikika.
Typ. Friíiico l'or(ngueza, Rua do Tlictouro VcUio, G.
17
o PANORAMA
i29
HONG-KOxXG
Esla pequena ilha, siliiada a uns scsscnla kilo-
mclros a leste do eslabelecimenlo poiliigucz de
Macau, no golpho, que a embocadura do' rio de
Cantão forma, c que se denomina Bocca-Tigris, c
uma das provas mais notáveis da energia e da ac-
tividade inglezas. Tem esla pequena ilha apenas
li kilometros de comprimento c 7 de largura. Foi
cedida á Inglaterra pelo governo chinez no tra-
tado de paz de 1812.
Logo os iuglezes alli fundaram uma cidade a
que deram o nomo de Vicloria-Town, segundo a
velha usança britannica de darem, na sua nomen-
claluia geographica, tanlas provas de respeito ao
nionarcha reinante, que se torna cmbrulhadissimo
líong-Kong-.
O csludo das suas possessões coloniaes, pela repeti-
ção incessante dos nomes das cida^.ies e das pro-
\incias.
Mas cmíim, fundou-seesla nova Vicforia-Toivn,
e lornou-sc o deposito principal do commercio in-
glez na China. Os indígenas, attrahidos |Kdas van-
tagens, que lhes oíleiecem as leis europeas, porque
os livram do intolerável despotismo dos seus man-
darins, vieram abrigar-se á sombia da bandeira
britannica, c tal foi a actividade desenvolvida pe-
los governadores da nova colónia (juc esla cidade,
fundada em 1812, já em 1850 linha trinta c lau-
tos mil habitantes.
A sua impoilancia deve ler diminuído com a
abertura d'oulros portos do celeste impciioao com-
mercio estrangeiro, c com a fundação de novas
colónias. Por outro lado, se perdeu o monopólio
do commercio inglez, lucrou decerto com o d(>senvol-
\í mento dos eslabelecí mentos europeus lia Chi na e no
Japão. Actualmenlejá ha carreira de barcos de vapor
de um para ouiro império, e o tubo dos sfeamers ar-
roja desassombradamente as suas espiraesde fumo
negro ás paredes de porcelana das torrei chinezas.
Decididamente la Chine s'en va.
A BOCCA DO INFERNO
I
Um dos espectáculos mais para ver em Cascaos
é o oceano n'um dia de temporal, revolto, enca-
pellado, açoitando a costa, como querendo saltar
fora dos limiles(|iie lhe foram marcados pelo crea-
dor dos mundos. E soberbamente magnílico aquellc
quadro, observado do píncaro mais alio dos ro-
chedos; c a primeira idéa que atravessa a mente,
como o relâmpago que assombra, ó a idéa de Deus,
do poder grandioso da sua mão omnipotente, que
assim revolve os abysmos, e diz ao oceano: pára!
quando elle parece querer ongulir a leria, corren-
do impetuoso sobre a sua superfície.
30
O PANORAMA
E quem sabe?! Talvez um dia a voz do Senhor
emnuulcça; o o monslro, que ruge no immenso
leilo, querela esleiulor mais longe os braços, e,
arcando com as montanhas em arremessos gigan-
tes e infrenes, subir a anancar-lhcs a coma! Tudo
desappaieceiá enlão no calaclysmo; co mar, exe-
cnlor lalvez da Providencia nos destinos da hu-
manitlade. apagará sobi-e os continentes os vestí-
gios dos homens, como já porventura antigos po-
vos, n'outras erasenguliu!
O mar! lu es a verdadeira imagem da omnipo-
tência divina!
— O homem conseguiu encaminhar o raio aos
seios da leria; cortar as serranias, abi'indo estra-
das atravez dos alcantisdos Alpes; zombar do tem-
po, realisando o instantâneo nas communicações
do pensamento: só tu licaste o que eras!
A sciencia iiumana abre sobre ti caminhos que
logo se apagam; construiu umedilicio de madeira
que lluctua no seu dorso; mas se uma vez estre-
meces, como o leãodeNumidia saccudindo a juba,
edifício e homens desapparecem nos abysmos
infinitos do leu seiol Eo homem, átomo impercep-
tível ao pé do gigante, geme de raiva e dôr; cos
seus gemidos são, ó mar, o leu hymno de viclo-
rial
O mar inspira-me respeito, como tudo quec gran-
de e superior, (joslo de vel-o quando está sereno e
pacilico; mas admiio-o, se o vejo furioso, c lhe
ouço os rugidos. Cada onda que se levanta im])0-
iiente, e vem, vem, cieando corpo á proporção que
caminha, até, desdobrando-se sobre si, estenderão
longe um lençol de espuma, produz-mo uma sen-
sação que mal posso explicar.
Km Cascaes ha tudo isto para ver. A costa eri-
çada de rochedos recebe o embate das ondas, que
SC arremessam furiosas contra ella, i)ara depois
se levantarem em columnas alvacentas a grande
ai lura.
Kra n'um dia lemposluoso (juando fui senlai-
mc ao pé da /forra do infníio a observar o ocea-
no, a que o vendaval acordara as fúrias. Caia a
tarde, e eu estava só ao pé'do abysmo. A Bocca
í/o inferno cuma furna medonha, espécie de poço
profundo, cujas paredes estão eriçadas de rochedos.
Lá em baixo existe uma ab('ii"ia natural (|ue
communica com o mai-. A onda entia rugindo por
ahi, saltando sobre os cachopos, e elevando-se de-
pois, para rociar de espuma as paredes do abysmo.
É um especlaculo medonho (djservar d'àlli o
oceano (|uando vae o temporal. Os cabeços da ro-
cha, negros e agudos, o mar a estorcer-sc como
desespciado entre elles, apresentam um asj)eclo
infernal, cheio de horrorosa mageslade. l.enibia
a cova dos campos 6'/;/? /;í (?/•/(/ /ío.ç da Ody.sstki, on-
de as sombras iam beber o sangue.
K tudo isto é bello, por (|iie é grande, admirá-
vel, sumptuoso! São atiuellas as galas do oceano.
Quando está socegado c manso, dorme — quero
antes vel-o acordado, ufanando-se da sua belle-
za com os paramentos da lempeslade. Kstoure lá
em cima o trovão; aclare o relâmpago os pincaios
da rocha; desça o raio cortando os ares; -e li-
caià enlão completo o quadro! A belleza do lago,
que juncaes e salgueiíos bordam, é a serenidade
do espelho; a do oceano, marginado de escalvada
rocha, c o movimento, o arremesso, a fúria. É assim
(jue elle é complelamenle bello.
Debruçava-me sobie a Bocca do inferno para
observar melhor o elíeilo que sobre os cachopos
produzia o mar, quando a meu lado, de entre as
rochas, vi sui'gir um vulto. Era um velho que
viera pescar, c voltava desanimado para a villa,
porque o mar não lhe permitlira aproximar-sc da
extremidade da costa.
— Tome tento não caiai— disse-mc o velho.
Retrocedi, c dei a andar para elle. Tinha uma
physionomia franca, como costuma ser a dos ho-
mens do mar, c os cabellos brancos como a neve.
As rugas profundas do rosto, toslado pelo sol,
moslravam a acção dosannos e dolrabaMio, posto
que o corpo robuslo c direito reagisse conlia o
pezo da velhice.
— Que grande temporal se cslá fazendo! — ex-
clamou elle quando eu me aproximei. Deus se
amerceie de quem anda sobre as aguas do mar!
E pelo Iremor dos lábios do velho suppuz que
murmurava alguma oração.
— Não é bom chegar-se muito á beira dos ca-
beços— tornou elle dirigindo-se para mim — Pode
resvalar-lhe um pé, eacuda-lhe Deus! Já ninguém
de lá o levanta com a vaga que faz. Ainda não
ha muitos annos que aqui houve um desgosto, na
villa...
— Caiu alguém?
— Ai senhor, nem quero lembrar-mc de tal!
— Pois ha de lembrar-se, e conlar-me o que
houve.
Tem muito que contar...
— Não importa. O sol vai alio— temos duas ho-
ras antes que seja noite.
A historia que o velho me narrou, com a sua
rude linguagem de marinheiro e pescador, vou eu
contal-a á lei!oi'a. Não acredilai-à lalvez n'ella;
mas ha acontecimentos. (|ue desenvolvidos, sobre o
palco, ou no romance, passariam por ficções, por
creações phanlaslicas de alguma imaginação de
poeta, e que são, todavia, realidades tristíssimas
da vida.
E qual é o homem (jue lá no extremo horisonlc
da existência, volvendo os olhos para o seu |)as-
sado, não enconlra ahi e|)isodios, que aproveitados
fariam um romance ou um drama rico de lances?
Ilealmente a vida não e mais (lue isto — peri-
pécias encadeadas, (iue lêem por desfecho a morte.
Drama, cujo primeiro ado é o berço, e o ulti-
mo o tumulo. Os acontecimentos principaes, cnlre
os dois extremos da vida, foimam os actos inter-
médios. Os e|)iso(lios dão o romance, cujos lypos
por mais cxageiados (iue|)areçam encontram sem-
pre proloty|)0 na vida real. Hasta saber rcconhe-
cel-os alravez da mascara. Hasgae-lh'a, e vereis
(|ue a realidade alcança a licção.
Depois do que deixo dito, perguntarei á leitora —
acredita na \erdade da minha historia?
Oodnn.i.) \. |»'Ol.iVI'IR V PlIlES.
o PANORAMA
13
VOLTAIRE
(ContinunçAo.)
Vollaire rcpi'osenlí\ a inlclligencia Iiiimana na
sua vasla comploxidile.
Os espirilos alhlolas são como os cryslacs de
inniimeias faces, iTÍleclem simullaneameiUc myria-
das de imagens; são como o lai'go oceano, abraçam
lodos os conlin.íntes.
Alguém disse a respeito do escrijjlor sobre que
traçamos eslas linhas: Vollaiie desmedrou-se pela
universalidade. Se o seu lalenio se concenlrasse
n^esle ou n'aquelle ponio dos conhecimenlos hu-
manos, se as suas tendências se diiigissem exclu-
sivamente a um determinado ramo litlerario, se o
Iheatro, por exemplo, fosse o único objecto dos
seus amores, e applicasse n'elleloda a actividade,
toda a força da sua intelliiíoncia, Voltaire sobre-
levaria a liacine, e empaielhariacom o bravo Cor-
neille.
Na prosecução d'esla noticia leremos de ava-
liar Voltaire em relação aos seus predecessoras na
tragedia; por em quanto diremos apenas, que, a
reslricção, que a dieta a que muitos críticos querem
subjeitar o génio nos parece destituída de bom
senso.
Voltaire foi o que a sua natureza quiz que elle
fosse. lia naturezas multíplices. Os troncos robus-
tos bracejam varas para lodos os lados; são esses
ramos innumeros, ílorenles, flexíveis mas vigoro-
sos que constituem a belleza, a magestade da ar-
vore que os alimenta. Voltaire passa da Zaira
para os Elementos da philosophía dciNewton, como
o Dante sae do Inferno para escrever o seu trata-
do De Vnlyari eloqnentia. Nisto não ha Iransvía-
mento, ha repouso. O espirito cansado das gran-
des luctas, cxhausto pelo voar constante, sentin-
do as azas fraquejarem pouco a pouco, descende,
pousa, espairece, e readquire no\as forças para
se elevar a maiores alturas. N'esles períodos de
descançq pode transiijir com as puerilidades mun-
danas. E como a ave arrojada, que viesse lá de
cima, das visinhanças do sol, e que ao abater o
vôo no seu ninho de fiagas se dislrahisse em es-
picaçar os insectos. A mão que desenhou os
maiores c os mais bellos vultos da scena mo-
derna diverte-se em tracejar FalstaíF; o poeta
do Adamastor escreve os disparates da Índia.
La force, cc n'est pas Protée, cest Júpiter p
dizem ainda os que censuram a multiplicidade de
assumptos de que Voltaire se preoccupou toda a
vida; a imagem é graciosa, mas, ao que me pa-
rece, falsa, desde a raiz até á copa. Júpiter e a
força, e ao mesmo tempo ametamorphose. O Deus
do rayo, é o cysne de Leda, e o touro da Europa;
transmuda-se perpetuamente, e em caria uma das
formas de que se reveste imprime o cunho divino.
Concedo que em Vollaiie não haja aquella ve-
hemencia, aquella energia que se admira em Cor-
neille, que as suas creações não lenham aauslera
severidade que muitas vezes demandam, que a
palavra inflammada e ardente não caia em meio
das grandes scenas ou dos elevados quadros épi-
cos; mas a paixão sem exagero, a paixão natural,
alíecluosa, pathetica, docemente aquecida ao fogo
interior, essa é a que nós encontramos nas suas
tragedias, como talvez em nenhumas d'oulro
poeta da França. E mais, note-se o século em
que Vollaire vivia, século de frivolidades e
de descrenças, sem aspirações, sem grande-
za, sem a hombridade altiva que robustece o
poeta que em meio (relie se move, e que por elle
se inspira. É esta a razão por(|uc na Henriada
escasseam os traços e|)icos, por(|ue lhe faltam os
arrebatamentos da epopca. O canto heróico não
apparecc inditíerciUemente eniquabjuer época; ha
paia elle uma quadra em todas as nações. Se essa
quadra passou sem que os poetas quizessem ou
podcssem embocar a tuba homérica, debalde pro-
curarão ao diante preencher o grande vácuo litle-
rario. « — O século XVIIL diz Edgar Quinei, —
adverso ás Iradicções, e tentando isemplar-se d'cl-
las, era o contrario dos tempos épicos; as guer-
ras da regência não poderiam reacender o heroís-
mo exlincto. Por um esforço de génio, puramente
individual, Voltaii'e conseguio elevar-sea brilhan-
tes imitações da poesia alexandrina c romana.
N'esle género de poesia, inútil é, porém, o traba-
lho de um homem; se o pensamento e a vontade de
lodos não contribuem de metade para a sua obra,
tal obra será impossível. — úl nos princípios da
[vida litteraiia de um povo que as ejiopeas appa-
recem de facto. Se a França do meio dia e do
norte produzio na edade media alguns monumen-
tos épicos, como ao presente se assegura, não o
sabemos nós, nem nos parece mesmo que as rha-
psodías do século XII e XIII possam merecer o
verdadeiro nome de epopèas. Foi de certo no sé-
culo XVI, no grande fervor das luctas religiosas,
no grande embate das crenças e das paixões su-
blimes, quando o povo no seu viver tempestuoso
e poético respirava o cnlhusiasmo cavalleíroso ea
nobreza dos puros affeclos, foi então que soou
para a França a hora d'ella dar ao mundo a Epo-
pea. Ilonsaid, o maior de todos os poetas da Plêia-
de, atravessou a onda popular, sem lhe entender
os profundos rugidos, ou sem descobrir na sua al-
ma, naturalmente lyrica, um único accento que
podesse consagrar às soberbas mageslades he-
róicas. Depois, em seguida, veio a escola dura,
secca, empertigada emethodica, d'aquelleMalher-
be frio e coríaceo, de quem Boileau fez um Deus
e a posteridade uma múmia. Começaram os gram-
maticos a aggredir os poetas; ii goiva, o prumo,
a lima eterna da pedanteria poz-se a fazer o seu
oílicio contra a inspiração e contra o génio. Dis-
cutiam-se os solecismos emetrilicava-se por bitola;
as musas tinham quebrado a lyra, e andavam de
régua e compasso.
Ouando alguém sahia do carril pizado e recal-
cado, tinha sobre si a ferula dos mestres, e a im-
precação dos aslhmalicos.
«Enfin Malhciim vint qui le prcniior en France
Fil sentir dans Ics vcrs une justo cadence;
n'un mol mis cn sa place cnseií^iia le pouvoir,
Et rcduisil ]a rause aui roglss du devoir.
Não eram, pois,similhanles poelas que podiam
3â
O PANORAMA
crcar a cpopòa. Os que lhos siiccodoiam, oncon-
traiani abonança, a Iranqiiillidado, a modorra do
povo que pieíei-o o somno solío ás ruidosas con-
llaiiraçõcs da praça publica. O poema épico pres-
ci'e\ei'a de (otlo. Vollaire, na sua anc'a de agii-
cuUar em lodos os campos, de provar a mão om
lodos os assumplos, liavou da cyliiara vir-
iídiana, e acoixlou ' os eccos da sua paliia
com o som de um canio novo. Embora a lícn
riada não lenha o caracler épico, a virilithide
heróica, a fur/a grande c sonorosa (hn vcM(hi(içi-
ras epopèas, t(>m, comhub), quadros, descripções,
trechos de lai eloquência que em nada cedem ao
que a anli^iuidade possa apresentar de mais subi-
do. A fada de l'olier aos Kslados da Ii^a é justa-
menle posla por Marmonlel ao \)nv dos mais no-
táveis ras.sos poéticos. Quando csle ou aquclle
heroo se lhe ai)resenla, com que correcção de li-
nhas o não deixa elle desenhado na leia? — Vede
Çoligny. llenii de Guise, Mayenne e dWumale,
llichelieu, Cionnvell. immensa galeria (jueadmira-
mos sempre, c aonde Vollaire revelou toda a lii-
meza dos seus traços e Ioda a riqueza do seu co-
lorido deslumbrante. O (juc íalla nesse poema, que
é o tom varonil eseveio, que éa serena dignidade
do comi)oslo, que é linalmenlo esso ar olympico,
esse rumor sagiado de heroes c de numes, (lue
nos confrange ou nos ergue, que faz com que Mi-
guel Angelo se sinta maior quando acaba de ler
a llliada, e com que Chaleaubiiand diga que a
Jerusalém paiecc íei- sido escripla em um campo
de batalha, o que ilie falta, re()ilo, jirocedeu, de-
rivou logicamente das condições do século em que
foi escripto. Agrando gloiia de Vollaii'e é ter po-
dido, de ceito modo, Icvanlar-se ao de cima d'es-
sas paixões pequenas que i\'ferviam e tumultua-
vam, e insj)irar-se j)oi- vezes, encontrando o veibo
sublime, c a forma digna econ-ente. Este impeto,
esta vontade enérgica, este remontar impetuoso,
este arrancar o espirito das contendas triviaes, e
das lides inglórias para o embeber cm conlem[)Ia-
ções mais bellas, este quebrar um dia com asf/;/ro
])r(iposirô('s de Jansenius, e voltar cestas a toda a
cainçada dos Desfontaines, para estender a mão á
deosa que sorri no limiar da historia, isto ésem
duvida alguma o génio.
C-umpie allenlai-cm Iodas ascircumstancias que
expozemos, reparar bem nos tem|)os em (jue Vol-
laire viveu, nas mundatiidades (|ue o cercaiam, e
nas guerras infames que lhe j)i'omoveram. Ouando
apezar de tudo vemos suigir a llcnriada, quando
ouvimos a nota e|)ica resallar do nozcío alioz de
uma multidão de vidgaridiidcs pilias e razas, é então
(jue calculamos Ioda a pujança, Ioda a seiva, Ioda
a llexibilidade (raí|uelle lalenlo iiicom[)aiav('l.
Entarandoa physionomia lilteiaria de Voltaire,
fomos insensivelmente levados a aprecial-o em
primeiro logar sob o ponto de visla ej)ico; eslude-
niol-o agoia em relação ao Ihealro, onde innior
luz o illumina. E ahi í|ue Vollaire palenlea em
maior copia as forças da sua inlelligencia, é ahi
que melhor poderemos medir a sua grandíssima
estatura.
Racine, eCorneille terão por vezes de ser citados
em confi'onlo; quanto a Crebillon penso que não
será preciso remechel-o na cova.
Conliiiua
E. A. YlDAL.
CASTELLO DE KEMLWORTll
Não é esli'anho esle nome aos leitores de Wal-
ler Scoll; logo lhes acode de ceilo á memoiia o
magnifico i'omancc que tem esle titulo, romance ad-
mirável, que se baseia na sombria tradição da
moile da condessa de Leicestcr, e em que o gran-
de esci'iplor escocez soube pintar com Ião largos
l raços os esplendores e os myslerios (la còrlc de Isabel
de Inglaterra, eo caracter a um tempo varonil ea|)ai-
xonado, austero e alfeclo á lisonja da enérgica rai-
nha, que regeu com mão tão hábil c Ião tirme os
destinos do seu paiz, mas sobre cujo reinado pro-
jecla uma sombra inimensa a morte da infeliz Ma-
ria Stuait.
O sangue da formosa e estouvada cscoceza macu-
la de um modo que a historia não pôde deixar de
registar, o alvo manto da rainha que tanto folga-
va com que lhe dessem o cognome da rainha vir-
gem
O romance de Waller Scolt lem por assumpto,
como disse, a morte da infeliz condessa de Lci-
cester, sacriíicada por seu marido, elegante minis-
tro de Isabel, que aspirava a partilhar o Ihalamo
eo throno da rainha, á ambição, (]ue fora desper-
tada pela manifesta tei^nura que a enérgica rainha
sentia por elle.
No (|uadro da narração entram naturalmente, e
descri |)tas como Waller Scolt sabe descrever, as
magnilicas festas dadas pelo conde á i'ainha n'esse
o|)ulenlissimo palácio, que e hoje o que a gravura
o mostra, uma luina.
Fica situado no condado de Warwich. O que
elle era no tempo do seu esplendor, será o mesmo
Waller Scolt quem nol-o diiá quando no seu
b'.'llissimo romance descreve a chegada da infeliz
condessa ao palácio, (Tonde seu marido a queria
afastar por lodosos modos, j)or(jue não confessara
á rainha o seu casamento, e convinha-lhe que Isa-
bel o consideiasse livre dos laços malrimoniaes. Ce-
damos a palavra ao grande i-omancisla.
((I']mlim siir^Mo o caslello magnilieo de Kenilwor-
Ih; para o embellezar epara melhorar os dominios
{|ue (Telle dependiam, gastara o conde de Leices-
t(>r, segundo se diz. sessenta mil libras esteilinas,
somma (jue nV.sse temjK) equivalia a meio milhão
de libras na actualidade.
«Os muros exteriores d'esse eíMIicio soberbo e
gigante abrangiam seleacres, uma (larle dos quacs
era occupada por vastas cavallariças e um jardim
de recreio com eleganles malas, c canteiros cheios de
llores; o leslo forma\a o primeiro paleo ou palco
externo.
aO ediíicio construído no meio (Eeste espaçoso
recinto com|)unha-se de muitos |)alaceles magni-
licos, que |)areciam ter sido conslniidos em dilfe-
renles épocas, e que rodeavam um paleo interno
i
o PAiXOHAMA
i33
"'\Vii h\
besse ouvir, daria u.na li,-ão „i/; a/oP^u í" ó , 'Lli^^ n ao houvcss.- noiícia alguma, ,l,gna ,le cre-
1.^0 ,uo.ad,„irira o au„.i,o„,ara o.sc;'^tr,i;iÍ'''':Tit'Vn:r;,;Co^ la'lvor';:;;'';tsa da
i34
O PANORAMA
sua parecença com a cidadella do mesmo nome que
so vè na Torre de Londres. Aííirmavam alguns
anli(|uaiios que lôi"a esle foile elevado ])or Kenel])Ii,
rei saxonio de Meicia, que dera o seu nome ao
caslello. e ouiros que lòia conslruido pouco lempo
depois da conquisla dos Normandos. Nos muros
exteriores campeava o brazão dos Clinlon, que
os linham fundado no lempo de Henrique 1 da
mesma forma que o brazão de Simão de .Alonifoil,
vullo ainda mais lemivel, que, nas íjueiras dos
barões, defendera muilo lempo Kenilworlh con-
tra o rei Henrique Hl. Morlimer, conde de March,
famoso pela sua elevação c a sua queda, alli dera
feslas e lorneios, emquanlo o seu soberano des-
llironisado, Eduardo 11, delinliava nas próprias
masmorras do caslello. O velho João Ganul, da
anliga raça dos Lancasler, augmenlara muito esle
edilicio, construindo a aza, que ainda hoje tem o
nome de palácio de Lancasler; mas Leicesler ven-
cera os seus predecessores, apezar d'esles serem
bem ricos c bem poderosos, erigindo uma immen-
sa fachada, que desappareceu debaixo das suas
próprias ruinas, monumento da ambição do seu
fundador. Os muros exleiioiTS dY^la residência
verdadeiramente regia eram banhados por um lago,
em parte aililicial, sobi'e o qual Leicesler mamla-
ra construir uma [)onle magnifica, a tlm de que
Isabel podessc enti-ar no caslello por um caminho,
feito para cila só. A entrada habitual era pelo lado
do norle, onde Leicesler erguera, para delVza do
caslello, uma lorre altíssima, que ainda existe, e
que vence, pela sua extensão e pelo eslylo da sua
arcliileclura, muitos caslellos de alguns chefes sop-
lemlrionaes.
Do outro lado do lago havia um parque im-
nienso, povoado de gamos, cabritos, veados, e Io-
da a eíipecie de caça. Ksle bosque era plantado
de arvores soberbas, do meio das (juacs a fachada
do caslello e as suas torres macissas pareciam sair
mageslosamenlc. Não podemos deixar de accrescen-
lar agora que este nobre palácio, que recebeu nionar-
chas,e (|ue foi illuslrado por guerreiros que alli de-
ram sérios e. sanguinolentos assaltos, e por justas ca-
valheirescas cm (|uc a belleza distribuía os prémios
obtidos pelo valor, não oííeiece hoje senão uma
scena de ruinas. O seu lago Iransformou-se n'um
|)rado húmido, onde os juncaes veccjam, e as suas
immensas ruinas servem só pai'a dar uma ideado
seu aniigo esplendor, e para fazer a()i(ciar melhor
ao viajante (jue reflecte sobre a vaidade das ri-
quezas do homem, aventura dos (|ue desfrutam a
sua mediocridade com um virtuoso contentamento.
O ESTUDO DA HISTORIA
— Ouoreis saber, dizia um índio a um Europeu,
como eu í|U('reria (|ue se iniciassem as creanças
na historia dos homens?
Observai esle punhado de lodo apanhado no
leito do Aracan. Oue numero iníinilo de molécu-
las, e comludo quão poucas partículas do metal
precioso que procuramos' Que trabalho tão longo
e dillicil para descobril-as c separal-as do lodo em
que estão enlerradasl
Pois bem, o mesmo se dá com a historia das
geiações que se lêem succedido úi^iúc a creação
do mundo. Oue de acontecimentos! mas os, ver-
dadeiramenle, dignos de memoria, que derramam
luz sobre a natureza do homem, sobre a sua mis-
são cá na terra, que lhe oílerecem exemplos no-
bres, (pie lhe desenvolvem o coração c a inlelli-
gencia, esses são raros e só a vista do sábio os
pode discernir.
Ensinai unicamente ás creanças os fados pou-
co numerosos e escolhidos. Poupai-os á fadiga de
revolverem inteiramente a montanha de fragmen-
tos pulverulenlos aggiomerados pelo lempo, para
procurarem alli algumas raras partículas de ouro,
Guiai-0s logo ás fontes do verdadeíi-o saber, ao
Ihesouro que a phílosopfiia tem obtido da expe-
riência de milhares de gerações exlinclas.
THF.ATRO DE D. MARIA H.
Ill
lí o llicniro de D. Miiria II uni dos mais formosos edi-
fícios de Lisboa, c no seu geueio, pode compelir comos
de maior nomeada, não só na decoração e riqueza de or-
natos, senão lambem na distribuição interior.
A ordem arcliileclonica adoptada é a jónica, como es-
tão mostrando as cotumnas do perislylo, as pilastras das
facliadas, as molduras e volulas.
Seria esta de feito a ordem arcliileclonica, que mais con-
\inlia?
Não se deveria antes, seguindo as bellas (radicçõcs her-
dadas, ronslruir um edifício no gosto dos Jeronymos ou
da Halailia?
Esta opinião aventada por alguns críticos pouco sabe-
dores e demasiado patriotas, não Icm fundamenlo na
nrlf.
K necessário ignorar profundamente os mais singelos
preceitos do gosto para defender a arte romântica em edifício
d'esla ordem.
Encantadoras e sobre todas formosissimas, são emver-
daffi^, as arcliilccluras clirislãs, Ijrincadas, floridas, ar-
rendadas, com as suas craslas silenciosas e poéticas, com
as suas arcarias mudas c melancólicas.
Nada mais admirável do que um velho mosteiro, no
pendor da serra, illuniiuado pela lua, cercado de arvore-
do remaiiçoso, la dentro o claustro com as suas ogivas,
com as suas jiortas sobrejioslas, com as suas columnalas
rendilhadas, com as suas fikií^ranas de mármore, com
as suas estatuas, e bruteseos meio sondireados.
Nada mais poético do que esse perfume religioso que
se alevanla em ondas, do silencio do templo, todo laçarias
imaginosas, (|ue irrompem ardentes em feixes, c se des-
dobram até se espalharem nas abobadas, como as cren-
ças redivivas dos fundadores e dos artistas, crenças pos-
santes, fervidas (|uc se crfiuiam da terra e iam atiraçar
o ceu, enramando de grinablas c festões o throno da Vir-
fíem. Que architecturas sutilimes! Como a alma se ex-
pande em elUuvios de harmonia, c a prece sac frc-
menlel E depois aquellas janellas escondidas e docemen-
te \oiadas, c os vidros corados, em (pie a luz bruxulea
formando auríiolas celestiaesl E acima de tudo, involvendo
tudo, um manto de santidade e candura, casto csingelocomo
as crenças d'a(piellas eras relif^iosasl
Oh! .Mas (|uem ousaria profanar os sacrosanios mysle-
rios do mosteiro transportando jiara a praça publica, para o
Ihealro essas arcliilecliiras nnsliras (pie so convém aos
penelraes em cujo seio se aninharam os (pie litavam
olhos piedosos no ceu? Para os Ihealros e para todos
os edifícios de egual natureza, Roma e Athenas, Augusto
I
o PANORAMA
i35
e Péricles, legarnm-nos modelos eternos, que é força imi-
tar, porque ninguém excede a perfeição.
Uepresenla a architcclura grega uma grande idéa e a
pujança e força de um povo, .que chegou à maturi-
dade,* ao apogeu da gloria e cxplendor, ao acnmcn
da riqueza.
As linhas severas c harmónicas, rectas c inflcxiveiscomo
o destino, soi)re|)ondo-se parallelamenlc, não coidiecendo
limites, aquelles frontões carregando soljre columnas,que
se conservam erectas e orguliiosas, as columnatas robus-
tas, os festões evoluías, os hypogriphose caduceus, lodos
os symbolos e hierogliphos, os niclios, os vasos,
os balaustres os acanthos, tudo nos está mostrando
que a architectura clássica, empregada no Farlhenon eno
templo da Paz, era a que mais convinha a dois povos,
cuja civilisação correra o mundo, cujas ideas se haviam
espalhado pôr toda a parte, cujos exércitos tinham, cada
qual segundo a si, esmagado Dário e Xcrxes, ou ven-
cido o oriente e o occidente.
Em Vilruvio dev'a pois encontrar o archilecto a norma,
que o guiasse na traça do edifício.
E assim foi. O the^atro dei). Maria, apezar dos seus
defeitos, é explendida amostra da architectura clássica,
é um monumento formoso eriço, é um edifício nobre, que
não desdourara Paris e Londres.
Tem este edifício quatro fachadas, symetricas duas a
duas, deitando cada <|ual para o seu largo, o (pie produz
óptimo eíTeito e mais realce dá ao monumento.
Para a praça de I). Pedro olha a tachada |)rincipal, que
é a do sul, para o larçjo do lletjedor a do norte, para o
larrjo do Camões a de oeste, para o largo de S. Do-
miníjos a de leste.
Representa a nossa gravura a fachada principal e a de
oeste, e deixa ver o largo de Camões eo de S. Domin-
gos em cujo topo se divisa o pal.icio dos condes de Al-
mada, aonde se reuniram os heróicos c gloriosos conju-
rados de IGíd
A fachada principal, assim como as de mais, são de
mármore, sendo róseo o do liso das paredes e superior-
mente ao andar nobre, e lios o resto.
É o perisl\lo assente em seis columnas jónicas; no
vértice do frontão campeã a estatua de Gil Vicente e nos
acrolerios as estatuas de Melpomene e Thalia.
Sobrepostos ás janellas e no altico do andar nobre,
vèem-sc quadros allusivos, bustos de poetas, e outros
ornatos, osquacs, assim como as estatuas, muito honram a
Academia das liellas Artes.
A frente scptemtri;)nal c similhante a esta e só dillere
em não ter peristylo e nas esculpturas.
As fachadas (|ue deitam para oeslc e lesle são em tudo
idênticas, e ambas tem o seu vestíbulo com arcada de
cantaria, sendo o vestíbulo occidenlal serventia dos espec-
tadores, e o oriental dos adores, empregados e artistas.
Em frente do vestíbulo occidenlal e quaíi no mesmo
nivcl está o salão da entrada, cujo tecto se apoia cm
quatro columnas de mármore sem soco, como era de la-
são, para não emi)ecrr a passagem.
lyiede o salão dcze.-cis metros de comprimento sobre
dez de largura. No andar superior e occupando a mes-
ma posição, eslá o salão nobre, ricamente decorado, ro-
deado de duas ordens de galerias em sacada c sustenta-
das por columnas. O pa\imcmlo todo de mosaico cor-
responde aos camarotes de primeira ordem, e as duas or-
dens de galerias communicam com as outras ordens de
camarotes.
Do salão da entrada sobc-se a uma galeria, que cir-
cumda a platea, e permittecommunicaçòes com os diver-
sos andares.
Conta a sala setenta camarotes distribuídos em (lualro
ordens, contando as frisas. lia uma tribuna real c uma
galeria. Aípiella é rica c perfeitamente ornada, tendo as
l)arcdes revestidas de espelhos, e sendo o tecto cm for-
ma de cúpula de oir(» e azul. Toma em altura duas ordens
de camarotes; contíguas á tribuna real ha duas salas, que
dão para um gabinete, uma copa e um vestíbulo sendo
(jue cada camarote tem uma sala especial e um gabinete
de toucador.
A área da plaléa c de cento c oilenla e dois melros
quadrados. O palco mede vinte metros de largura e vinte
e Ires de fundo, e em volta d'clle, encontram-se os ca-
marins, gabinetes, arrecadações, sala do commissario, da
ilirecção, foyer ele.
Tal é mui resumidamente, sem minúcias prolixas a des-
crípção do actual Iheatro de D. .Maria, que ja foi modi-
licado em 1858, porque a principio contava mais uma or-
dem de camarotes, em forma de galeria, o que, sobre
desfeiar o Ihealro, lira va- lhe todas as propriedades acús-
ticas, porque havia uma resonancia, que não permitlia
ouvir.
Diminuiu-se lam])em a plaléa, avançando o palco, abrl-
ram-se camarotes no proscénio, frisas na galeria inferior,
diminuiu-se o fundo dos camarotes esepararam-se por deci-
pimentos.
Com serem grandes estes melhoramentos, que eram
ha muito requeridos, outro havia, de não menos necessi-
dade, qual era mudar a cobertura do teclo, feita de fo-
lhas de ferro galvanisado.
Quiz-se experimentar o ferro que era muito encarecido
por architeclos estranhos, e a experiência custou-nos ca-
ra, por(|uc deu péssimos resultados.
Não são as folhas de ferro para o nosso paiz, e muito
menos para um Ihealro de declamação.
Quando chovia, e lodos sabem quê as chuvas em Portu-
gal são lorronciaes, era tal o ruído, que ninguém ou-
via os actores. Ajunta\a-se a este defeito a ruina prema-
tura e rápida dos madeiramentos, porque asagoasescoa-
vam-se pelas junctas, e orifícios dos pregos. As folhas esta-
lavam e enrugavam-se no verão e fazendo saltar os pre-
gos de tal sorte aqueciam, que queimavam as madeiras,
listas alternativas continuadas da secca e humidade acar-
retavam a ruina do madeiramento.
Em virtude d'eslas ponderosissimas rasões foi substi-
luida a cobertura de ferro pelas chamadas lelhas hollande-
zas. chatas, acinzentadas, que removeram lodos os incon-
venientes.
A. OSÓRIO DE VASCO.NCELLOS.
As unlias, que iisurpão o titulo de bentas, são
aquellas, que empclgaiido piedades, fazem a preza
em lattocinios. !'"• Amomo Vieira'.
INVOCAÇÃO
Em (juc recesso le escondes,
Ó anjo da minha paz?
Não me escutas? Não respondes?
Onde existes? Onde estás?
Que espesso sendal te vela
A serena fronte bella
Que gruta escura te encerra,
E te occulta aos olhos meus?
Já baixasli' acaso á terra,
Ou inda moras nos céus?!
Formosa imagem sonhada.
Um dia vem, outro apoz,
E tu, ó niNstica fada,
Sempre muda á minha voz!
Nas leves nuvens le embalas?
Nas densas ílorcslas falias
Pela voz do rouxinol?
Junto ao sol, n'elle le abrazas?
Ou libraste as brancas azas
Para os mundos de alemsól?
Quanto mais le julgo perlo
I'ara mais longe tu vaes,
E é mais árido o deserto
Que se fraiupieia a meus ais!
(*:a(la inslante, novas formas:
N'uma estrella te transformas
E eis-le no espaço a brilhar!
Ora CS a flor que perfuma.
Ora passas sobre a espuma
Que orla a túnica do mar!
36
O PANORAMA
\cm das plagas do iiifinilo!
Desce, diega, ó anjo, vem;
Que cu sei que não és um myllio,
Que cu sei que \ ives tambemi
I>ão; não es uma cl)ymera.
Ks a eterna primavera,
í>s a esperança louçãa,
És a luz, o riso, a fesla,
Para a vida que me rcsla
És a percnnc manliãa!
Sei-o. Senli-o. No berço
Adivinhci-le, e, de cnião,
Tara mim todo o universo
Resumiu esta paixão.
^ão mente o sonho. Sonhci-le
Al\a, pura como o leite
Da so \irgem que foi mãe,
Radiante do lirillio immenso
(Jue, por entre ondas de incenso,
Da ideia de Deus nos vem!
O sonlio encantado cu posso
Traço a traço repetir.
Vi-le eu mesmo. Que alvoroço!
Como houvera a fé mentir?
Embora de extranha essência,
Pulsa-me a tua exislciicia
Nas minhas veias, bem vês,
Arfa-te o seio em meu seio,
Penso, sinto, vivo, c creio,
Porque tu vives c crês!
Vm dia cm que na vereda,
Que percorro |)or te achar,
Kntrc a sondaria ahimeda
Me sentei a descansar,
Suppuz cliegado o momento
De atlenlar iresse portento
Que a minha alma aidichi c quer.
Jurara (pie o paraíso
I\íe acciia\a no sorriso
Dos lal>ios de uma mulher!
Irrisãol Tremi, corri-mc,
A lace verguei ao pó:
Respirava a infâmia, o crime
A falsa deiíladtí só.
Ai, deb:dde te imil.nal
Krgui-me, parti, a escrava
Deixei do mal sem i)udor;
Pedi-tc perdão do insulto,
E vohi para o teu culto.
Caminhei ao teu amoi!
Exhausio de força, o ermo
l\Iais tarde sem Vim pensei,
E dentro do peito infermo
Toda a agonia pczci.
Como (]uc pensei,— perdoa— ,
Mentida a lua coroa,
Que eras um brinco infernal,
E tentei buscar o olvido
E o descanso no ruido
Infrene da bachanal!
Jorrava o viidio nas laças
Os topasios, os rubis,
Amei-o, e, com elle, as graças
Das Messalinas mais \is!
Mas eis de rc|)cnle, cm meio
D« festa devassa, o seio
Freme em doce estremecer;
Nova crença cm li surgia!
E o facho apaguei da orgia,
Corri longe por le v(5rl
Sempre tu, a mesma, aquella
Que eu não \i, mas de quem sou,
A mesma lúcida estrella
Que o futuro me rasgou!
Dia c noute, n*um deserto,
No baile, em sonhos, des[)erto
Sempre aquella (juc não \i!
Seaiprc este aspirar constante
Ao bem ignoto, distante,
Ao desconhecido, a til
Como pois a li voara
N'eslc anceio que seduz,
Se o Senhor Ic não creara
De um raio da sua luz?
Eòras illusão, mentira,
E dentro em mim não sentira
Os divinos dons da fél
Quando um falso Deus se adora,
Qual das crenças não descora?
Qual a que fica de pé?!
Oh, existes, sim! Já'gora
Não tardas, não le deténs!
No-expicndor \irás da aurora?
Nos raios da lua vens?
Quero amal-os, quero vel-os.
Os teus ondados cabellos,
Teu jdiant.islico sorrir,
Quero fartar os desejos
De prelibar em teus beijos
Toda a \entura por vir!
Oh, existes, sim! Das veias
I*ercel)o-o nas pulsações:
Assomas, pairas, volteias,
Entre lúcidas \isõcs!
Extasis de puro goso!
E no dia venturoso
Que me surgir onde eslãs,
Por seguir-tc os aéreos traços;
Deixa eingir-te em meus braços,
O anjo da minha paz!
Mal n'estc canto se fixar o amado,
O teu sonhado olhar a cujo encanlo
Estes versos sagrei.
Oh! d'oiide quer (pie estejas, rasga o manto
Que assim te encobre, solta ao longe um brado,
E aos pés te cahirci!
Vac longo o caminhar! Afrouxa o passo!
Que mais lo não procure, anjo, debalde!
Por não morrer, 6 flor,
Da magoa de não ver-te, ou de cansaço,
Consente emlim que a fronte le engrinalde
Com rosas d'eslc amor!
fevereiro, 18GG.
En.NESTO Maiiecos
Hum animo nobre, mais se obiiga da coílcsia
allièa, que da vonladc pi-opiia.
FnANCisco RouniGUES Lobo
fii-andc remédio liccnnlraos niale.s desviar (rel-
les o senliílo, c oriípal o em ciii(lailo.s dilícren-
los. I'^ poslo, (|ue o íjue niiiilo se senle não dá Jo-
gar nem liberdade ao pensamento para se enlre-
gar a oulra cousa, (omludo,como a nalureza ap(^-
Icce novidades, sempfe em algum bieve espu(;o
lhe dá ouvidos.
FnANCISCO RODRIGLTS LoBO
Typ. Franc(j*l'ijitiigucza, Rua c!o Tliesouro Velho, '1.
o PANORAMA
^37
ILHA DA BARBADA
Esla ilha foi uma das muitas, que a audácia dos
navegadores portuguezos revelou á Europa, e foi
também uma das ultimas. Quando nós a descobri-
mos estava já Portugal em plena decadência, e o
leão de Castella empolgara nas suas garras as
quinas portuguezas. Com tudo, devemos dizer
que está demasiadamente desprezada a historia de
Portugal durante os sessenta annos em que fez
parte do reino das llespanhas. Os filhos da Lusi-
tânia, mesmo reconhecendo como seus monarchas
os três Philippes, moslraram-se dignos dos heroes
de quem descendiam. Será bom que reivindique-
mos a gloria que é nossa, e que os hespanhoes
chamam a si, porque a historia universal, não
-'4'Vmv''^'^»--
Ilha da Barbada
distinguindo n'csses sessenta annos Portugal da
Hespanha, lhes allribue as grandes acções cmpre-
bendidas pelos nossos antepassados.
Assim, por exemplo, o grande navegador Pedro
Fernandes de Oueiroz, que descobrio uma grande
parte das ilhas da Oceania, c considerado pela
historia como hespanhol, quando elle era porluguez.
Esta ilha da Barbada também os porluguezes a
descobriram alii por IGOO, sem que se saiba ao
cei'to nem o anno, nem o nome do descobridor,
nem o motivo porque lhe deu esse nome visivel-
mente porluguez. Mas, nós já n'esse tempo não
fundávamos colónias, c, depois de a termos desco-
berto, deixamol-a desamparada, sem aproveitar-
mos ou sem conhecermos a riíjueza dessa jóia,
uma das mais brilhantes, da grinalda das Antilhas.
Em 1605 alli arribou um navio inglez, cm 162i
alli os inglezes se cslabeleceram, e em 1628 fun-
daram a cidade de Bridgetown; a ilha estava en-
tão coberta de bosques de madeira tão rija, que
houve um trabalho immenso para os deceparem,
a lim de estabelecerem a lavoura. Venceu todos
os obstáculos a perseverança dos colonos, teimo-
sos como inglezes que eram. Em poucos annos
prosperou incrivelmente a Barbada. Quando re-
bentou na mãi pátria a guerra civil, que terminou
com a morte de Carlos 1 no cadafalso, alli se re-
fugiaram muitas famílias realistas, que, conservan-
do-se fieis á causa dos Stuarts, recusaram reco-
nhecer a authoridade de Cromwell, proclamado
protector. Eoi necessário que este enviasse uma
esquadra, que a reduzio á sujeição em 18.j1, não
sem dilliculdade. Para a punir d'isso prohibio-lhe
Cromwell o commercio com o estrangeiro. Esta
1 38
O PANORAMA
circumsíancia fez parar o desenvolvimento rápido
da Bai-bada. que iinia grande parle da sua popu-
lação abandonou para ir liabilar nas oulras ilhas.
(Aislou-Ihe depois a rccobrar-se das consequências
d'eslc golpe.
A Baibada óamaisorienlaldas Anlilhas; tem 22
milhas de comiirimenlo, e 10 na sua maior lar-
gura. O seu aspeclo e formosíssimo, o seu clima
quenie, mas saudável, coisa rara nas Anlillias. Um
recife de coral, que a orla pelo lado do norle e
de leste, não permille que se approximem d'ella
navios de mais de oO toneladas; as oulras praias
são prolegidas'por boas forliiicações. A sua piin-
cipal producção é a do assucai-. A sua população
tem sido muilo variável. Augmenlou com incrivcl
rapidez, mas depois diminuio sensivelmente. Era
1()28, quando os inglezes fundaram BridgeloA\n,
havia na ilha uns cem habitantes. Km 1070 cons-
tava de cincocnla mil brancos e de cem mil ne-
gros e mulatos. Em 172 í já havia só uns dezoito
mil brancos, cem 1780 uns dezeseis mil. O recen-
seamento de 1832 deu o seguinte resultado: oi-
tenta c um mil e quinhentos escravos, doze mil se-
tecentos e noventa e sete brancos, seis mil sete-
centos c quatro homens de côr livres.. De 18.] i
para cá havia de diminuir a população, porque
n'essa época foi abolida alli a escravatura.
A capital da ilha, Bridgetown, Uca situada á
beira da magnifica bahia de (larlisbjf: único porto
bom da Barbada. E uma linda cidade, d'uns cinco
mil habitantes, c que possue alguns bonsediíicios,
entre os quaes se notam a cathedral, cujooragoé S.
Miguel, que tem uma torre que pouco so eleva
acima do tecto, por causa dos tufões periódicos,
que assolam a ilha, e cuja violência ò enorme; o
palácio do governador, o tribunal, os quartéis, o
forte de SanfAnna, quasi inconquislavel, e um ar-
senal bem fornecido de armas c munições. Esta
cidade possue alem d'isso algumas bibíiothecas e
uma sociedade lilleraria.
Não sei que invencível tristeza se nos apodera
do espirito ao descrevermos a prosperidade (festa
ilha, descoberta pelos i)0i-tuguezes, e possuída pela
Inglaterra; comparamola involuntariamente com o
estado miserando das nossas colónias, c não po-
demos deixar de sentir que, para bem da huma-
nidade, não fossem parar lambem a mãos (|ue os
soubessem tratar esses vastos e ferlilissimos ter-
ritórios, que a nossa incúria deixa estar por essa
Africa sem cullura nem civilisacão.
Muilas senhoras sacrificam a saúde ao excessi'
vo amor pelas llores.
DESCONFIAI DAS FLORES Dl RANTE A NOITE
Na obscuridade c dui'anle a noite, as plantas
cxhalam um gaz venenoso, o acido carbónico. É,
pois, mui contrario á hygiene conservar de noite
e de dia ílores dentro dos quaitos de dormir: as
llores querem sol e \asta liberdade deathmosphe-
ra; captivas, castigam os seus ii)ij)rudenles admi-
radores viciando o ar que ellesi-esjiiram: d'alii do-
res de cabeça, vertigens, e, mais cu menos, uma
indsposição, uma languidez, cuja verdadeira causa,
muilis v 'Z('S está lon;-C d' ser coiiheeida.
HENRI BARTII
Esboço Siiogrnphico
Uma das perdas que as sciencias geographicas
e históricas cxperimentai'am duiante o anuo de
Í80j, a do dr. Barlh é, seguramente, das maiores
e mais dolorosas.
O grande viajante, o inlrei)ido & sabio explo-
rador da Africa central morreu em Berlim no dia
25 de novembio, cheio de vigor c vida, ferido
por um d'esles golpes tão rápidos e certeiros, que
matam sem ameaçar.
llenri Barlh nasceu cm Hamburgo, cm 18 de
abril de 1821. Seu pac era abastado negociante;
porém Barlh ainda bem novo manifestou a mais
invencível repugnância por aquella carreira. Mos-
trou desde verdes annos para o estudo rara as-
siduidade c admirável aptidão. Era para elle o
trabalho da escola antes vivíssimo goso, do que
afanosa tarefa
Em roais de um escriplor lemos, que desde os
12 annos havia traçado o plano de uma leitura
melhodica de todos os auclores da antiguidade, c
este plano seguio-o com surprehendcnle constân-
cia, ampliando-o de todas as acquisições subsidia-
rias, bebidas na edade media c tempos modernos,
que são próprias para foililicar e desenvolver fiuc-
luosamenle as noções aprendidas nos valiosos li-
vros, que a antiguidade nos legou.
U-om similhanle (lisj)osição de espirito e tal
ordem de estudos, Barlh no século WI ou XVI l
havia de ser um laborioso erudito: n'esla época o'
saber sério e solido d'ellc impellio-o para as in-
vestigações activas, e produzio um dos viajantes,
que Sjcrão honra e gloria d'este século.
Em 1830, Barth vai a Beilim para ali cursar
as aulas universitárias. Coração impetuoso, ima-
ginação impacientemente ardente, quiz beber em
todas as fontes. A archeologia grega c romana,
as antiguidades germânicas, a historia de todas as
épocas, a philosophia anliga e a escholaslica, o
direito allemão c o direito romano, tudo abrangeu
simultaneamente: coisa raríssima, senão única, ti-
nha tempo para devorar tanlas sciencias!
As sciencias physicas, parece que o occuparam
menos; aprendia, porém, escutando as lições do
mais eminente geographo do presente século, Karl
Riltcr, a encarar o estudo da terra nas suas rela-
ções elevadas e fecundas, e a não separar esle es-
tudo do da historia da iiumanidade.
Receiava-sc que a allenção disseminada não lo-
casse senão mui de leve na superlicie das coisas,
deixando por isso de profundal-as. Um pensamento
predominante produzia felizmente a unidade n'esta
multiplieidade de investigações, e encaminhava-as
|)0i- uma diiccção commum, sem a (piai não c
íruclifero (|nal(|ner estudo.
A idéa constante a que alludimos, era a anti-
guidade clássica.
As lições de BffcKh conlribuiiam muilis'^imo
o PANOPxAMA
139
para fazel-o presislir ii'aquelia idóa. O illiislre
philclogo havia promplanieiiledislinguitlo c loma-
do grande alRMção aojovcii csludante, no qual trans-
parecia, a par d'esla lara aptidão para as scien-
cias liisioi-ioas, uma cnoi-gia de voniade (pic mais
tarde havia de raanifcstar-se biilhanlemenle.
Ao encerrar o seu primeiro anno da universida-
de, IJarlh sentioo veherucnle desejo de ver uma
j)arte, pelo menos, dos paizes ([uc foram o Ihealro dos
glandes aconlecimenlosdo mundo antigo.
Seu pae forneceu-Ihe os meios de emprehender
uma viagem á ílalia. Passou 4 mezes em lioma c
muitas semanas na Sicilia. Ainda impressionado pe-
las solidas lições de Iiiller, Barth abraçava com
a vista, cm presença dos monumentos das suas ci-
vilisações mortas, lodo otheatro onde cilas se de-
senvolvoi'am. Desde então concebeu o tenladoí'
projecto de uma longa viagem, a qual, todavia, só
decorridos i annosse verilicou.
Queria executar o périplo do Mediterrâneo, ver
os Togares que foi'am os lócos da chamada, talvez
impropriamente, civilisação antiga, Tyr, Cartlia-
go, Cyrenc c Alexandria e as plagas tão admirá-
veis e formosamente recortadas, onde o génio hel-
lenico, manifestando-se debaixo de suas múltiplas
faces, mostrou ao mundo, pela primeira vez, até
onde pode chegar o espirito humano na poesia,
arte c liberdade. Esla excursão de Barth a Roma
e a Syracusa teve no destino d'elle uma influição
decisiva. Abriu-lhe as portas de um explendoroso
futuro.
Regressando, a Berlim prosogue os estudos uni-
versitários, e continua-os ainda durante 3 annos,
até 18ÍÍ. Na Ihese latina para o doutorado dedi-
cada ao seu excellente professor e amigo Boeckh,
na qual toma poi' assumpto a historia de Coryn-
Iho, vè-se estampado o cunho da sua preoccupação
dominante. O pensamento da grande viagem ás
extensas, poéticas c históricas ribas do Mediter-
râneo não o abandona, pelocontraiio, havia ama-
duj-ecido e fortiíicado com a reflexão.
A ausência devia ser mui longa e a despeza
crescida; pouco mais ou menos 9 contos de réis
da moeda portugueza. Não o faz, porém, sustar
esta consideração na execução do poríiado empe-
nho.
No fim de janeiro de 18io dirige-sc a Londres;
passa dois mezes curvado sobre as ricas collecções
do museu brilannico, ao mesmo tempo que ence-
tava o estudo dos primeiros elementos da lingua
árabe, cujo uso lhe era essencial. D'ali parte para
França. Atravessa este paiz e a líespanha, como
viajante que lera um lim, que parece lhe tarda
alcançar, não, comtudo, sem lançar um golpe de
vista sagaz e curioso por sobre os interessantes
logares onde passa e, essencialmente aíiuelles
que accordam uma emoção poética, ou lembram
um facto notável.
Em 7 de agosto saltava em terra africana.
Era ali que começava realmente a viagem, (los-
leia Marrocos; peneira cm Ai-gel, onde o impres-
siona o trabalho activo da transição, que se opera
sob a inlluencia da civilisação europea; corta em
diversos sentidos as regências de Tunis c Tripoli;
contorna as Syrtes; visita a Cyrenaica, cuja con-
templação desperta na alma recordações históricas
tão antigas; costeia a ilha deChypre o a Ásia Menor,
toca em Constantinopla, lança um olhar por sobre
o que foi Gi"ecia centra na Allemanha peio Adriá-
tico.
Tal foi, pois, o seu itinerário. A relação d'este
devia abranger dois volumes, dos quaes um ape-
nas se publicou, c é esse que leva o leitoras por-
tas do ]']gypto. Inlilula-se, «Excursões pelas re-
giões litoraes da Africa cailhagineza cCyrenaica,»
Wandennujen durchdas Piinisc/ie und Kyreuacis-
c/te A'ust('u/and; é essencialmente pelos detalhes
geographicos que se assignala a discussão da si-
tuação das localidades antigas. A idéa primitiva
do viajante talvez comporte algumas pesquizas mais
dilíusas c sérias acerca do estado das populações,
dos destinos históricos d'ellas e da inlluencia do
desenvolvimento do estado social, nas suas rela-
ções com as condições physicas d'esta zona meri-
dional do Mediterrâneo; considerações de que Vol-
ncy deixou tão exccllentes modelos para o Egypto
e Syria. Talvez que Barth houvesse reservado para
a segunda parte, que devia terminar a obra, os
desenvolvimentos que suggerc aquelle vasto ebello
assumpto do papel do Mediterrâneo na historiada
humanidade.
Tma circjimslancia imprevista vem surprehen-
der Barth em meio d'aqueile relevante trabalho,
para novamente o arrojar na carreiía activa das
explorações.
Pieparava-se em Londres uma expedição des-
tinada ao interior do Sudan, expedição cujo plano
havia traçado James Bichardson e que teri?, como
a d'Oudney eClapperlon, em 1821, ou, com mais
propriedade, como Iodas as expedições inglezas,
um caracter conjunctamentecommercial e scienli-
fico.
James Bichardson escassa scicncia possuia; ur-
gia, pois, aggregar-lhc bons observadores. Por
instigação do eminente sábio Bunsen, n'aquella
conjunclura embaixador da Prússia em Londres,
foi á douta e admirável Allemanha que a Ingla-
terra os requereu. A respeitablissima sociedade de
geographia de Berlim indigitou o doutor Overweg,
naturalista distinclo, grande especialista em geo-
logia, o qual, sendo oriundo de Hamburgo, deter-
minou o seu compatriota llenri Barth a reunir-sc
á expedição.
A posição dos dois mancebos allemães era a
principio inteiramente subalterna; todavia o des-
envolvimento imprevisto que adijuirio aquella
memorável emj)rcza, os descobrimentos famosos
que a illustraram, o vivíssimo c persistente inte-
resse (pie todos lhe ligaram, o echo (pie produzio
na Euro|)a ea resplandecência ([uea coroou, ludo
isso é devido ao impulso que lhe imprimiram os
dois jovens eruditos desde o inicio d'ella, á di-
recção que lhe deram, á actividade sobrehumana
([ue manifestaram, .c, talvez ainda mais, á fria e
perseverante energia que nem um instante sequer
afrouxou n'aquelle grande espirito de Barth, no
40
O PANORAMA
meio das duras privações que durante cinco annos
houve a cortir.
Os companheiros d'elle caem um após oulro,
extenuados com a fadiga e corroídos pelo clima.
Ollia em i'edor, e vè-se sósinlio.Em uma occasião
quasi sem recursos, no coração d'aquellas regiões
iirdenles, é cercado por povos ignotos, em paizes
onde a cada passo se topa com um j)erigo, onde
cada relancear da vista é uma suspeita ou uma
ameaça, e sem nieio^ilgum de communicar com
a Europa. Durante mezes a vida d'elle está de-
pendente de uma única palavra, de um acaso, de
uma imprudência ou cajiriciío. Mas que imporia?
Nada o desvia da sua mira. Observa e estuda.
Desde a região do lago Tchad até á mysleriosa
Timbucklu , onde consegue i)enetrai-, de toda a par-
le colhe uma quantidade incrível de infoi^mações,
110 meio dos perigos, como nos momentos da maior
tranquillidade.
Tem fe em Deus e em si próprio, e as suas fa-
gueiras esperanças não deverão de ser frustradas.
Foi o único dos desditosos membros da expe-
dição que tornou a ver apatiia após cinco longos
annos de trabalhos, fadigas c perigos inauditos !
As acclamações com que o saudaram no regresso
inesperado d'elle, pagaram cm um dia cinco annos
de martyrio.
Foi a elle que coube o pezado cargo de desen-
rolar perante a Europa a longa narrativa d'aquella
prodigiosa exploração, sem duvida a mais com-
pleta de quantas a nossa época lia produzido. E é
por isso que a relação d'ella se estende por cinco
grossos volumes, (1) e ainda estes cinco volumes não
foram suííicienles para conter tudo. Barth i)ubli-
cou em separado, de 18G2 a 1803 uma collecção
de vocabulários colhidos em toda a extensão do
Sudan. (2) Esta collecção subministra preciosos
subsídios á elhnologia africana. Em uma terceira
parte, que havia de complelal-a, Ijarlh propunha-
se a submetler o alludido conjuncto de documen-
tos linguisticos a uma elaboração comparativa, ([ue,
indubitavelmente, projectaria grande luz sobre a
clhnographia do norte da Africa.
A morte ferio o escriptor antes que elle hou-
vesse imprimido a conclusão dosou trabalho; mas
assegui-a-seque o manuscripto está completamente
acabado, e que a sciencianão lerá a deplorar uma
nova perda além da do illustrc viajante.
15aith, depois de regressar á Europa, havia
lixado a sua residência em IJerlim, onde a sociedade
de geographia o escolheu para presidente.
Havia elle conlrahido o habito de fazer cada
anuo uma excursão scientilica em qualquer parle,
pouco visitada, dos paizes clássicos. Eslas explo-
rações annuaes eranirt.ç suas férias; uns pecjuenos
passeios em seguida ás suas longas joi-nadas.
D'<'sta sorte visitou o norte da Ásia Menor, a
Thracia, a Macedónia e o I>piio. Eslas excursões,
que foram succcssivamente publicadas, são, debai-
(1) Com o titulo de Traveis and ÍJisrovcrirs in Norlh and Cintral,
Africa, 18'iO— lífiO. Lond. 1857— 18Õ8. A-chaiii.-ida edição fr.iiicezu
ó uma mim traduído de um resumo aUfimâo em 2 volumes.
(2) Summlnng imU JJearhcirluny Ccnirol — Alril^atuxclnr Yoca-
butarien. Uolha, 18G2— 03, 2 vol.
xo de uma forma modesta, mui interessantes e
úteis acquisições para a sciencia.
Barth, por isso, fui tão grande que mesmo nos
seus ócios soube servir a sciencia alé á morle.
Alfredo May
UTILIDADE DOS CYCLO?sES
Se os cyclones devastam os paizes que se acham
direclamente em sua passagem, se fazem correr
os navios os maiores perigos, são elles lambem
que fértil isara as regiões (|ue visitam espalhando
ahi benelicas chuvas. Parece que estes terríveis
tlagellos teem uma missão a cumprii', e (pie o seu
ulíl elVeilo excede muito os desastres que causam.
A estação invernosa seria a ruína das messes da
zona lorrida, mirradas pelo ardor de um sol im-
placável, se frequentes chuvas não temperassem
o clima (raquellas abrasadoras regiões. É preciso
pois que as aguas vaporísadas nas regiões do equa-
dor vão ser derramadas nos paizes ínlerlroi)ícaes. Os
cyclones são os motores destinados para este trans-
porte: é á sua passagem que se devem as grossas
chuvas que fornecem as grandes massas de saes
ammoniacaes, d'acido carbónico e de electricidade
tão favoráveis á vegetação; chuvas benéficas, cuja
acção salular chega muitas vezes a reparar os es-
tragos causados pelo furacão.
COMO SE FAZ O GELO EM BEiNGALA
Nunca a temperatura em Bengala desce a ponto
de se congelar a agua. Mas, obtem-se alli o gelo
artíticial, procedendo do modo seguinte: Abrem-
se covas pouco profundas que se enchem em parlo
de palha; sobre a palha collocam, ao ar livre, al-
guidares cheios de agua a ferver, A agua tem, como
e sabido, uma grande força de i-adiação; espalha
abundantemente na athmosphera o calor que
contem: ora, o calor perdido d'este modo não
pôde ser substituído pelo da terra, porque os al-
guidares estão se|)arados do solo por meio da i)a-
Iha, que c mau conduetor e detem-lhe a passa-
gem. Antes mesmo do sol nascer, a agua dos algui-
dares está convertida em gelo. Dizem, que para
obter esta congelação devem-se escolher noites
claras e serenas e durante as quaescaia mui pou-
co orvalho E preciso lambem observar que a pa-
lha não esteja húmida, porcjue o vapor (|ue (Telia
sairia ese elevaria ao de cima dos alguidares, sus-
penderia a dissipação do calor da agua, ou jjor ou-
tros termos, a sua radiação.
(;ALERL\ NACIONAL DE LONDRES
A ímmensa caf/ítal da (Jrã-Brelanhaéa cidade
que talvez possue maior numero decollecções par-
ticulares, de galei-ias, de museus, de edilícíos des-
tinados a aichivarem os prodiiclos da arte, e os
exemj)lares zoológicos, cmlim tudo quanto chama a
allen('ão, e atlralie a curiosidade dos viajantes.
Os' mais notáveis eslal)elecímenlosd'esle género
são: 3/iis('a inulcz, ediíício enorme, talvez sem ri-
o panora:\ia
MA
vai no^undo, que possuía lamanha quantidade de
objeclos relalivos a sciencias e arles, liltci-aluia,
archcologia, cIc. que uão baslaram Irinla annosa
uma sociedade de sábios pa:'a organisar o catalo-
go; o Soane's museum destinado exclusivamente
para objeclos archeologicos, que alulliam vinle e
quatro salas, o entre os quaes se distingue um
celebre savcophago de alabastro encontrado nas
142
O 1'ANORAÍMA
minas de Tbebas; o museu de medicina; o museu
de cirurgia; o museu ideológico de Saull; o mu-
seu de anliguidades de Londres, rico em meda-
lhas que sobem até à época do domínio romano;
o museu entomológico; o museu zoológico; o mu-
seu da Academia Real que possuía cai iões de Ra-
j)liael, telas de Rubens e da maior parte dos pin-
tores; a (jialeria Vermon que possue principal-
mente quadros inglezes, e linalmenle a Galei-ia
nacional, que a nossa gravuia lepresenla, e cujo
edilicio SC dislingue pela sua nobre archilectura.
Já vêem, por esíe leve espécimen meu, que não era
exaggerado o nosso suavíssimo poeta João de Le-
mos (juando exclamava, saudoso da sua iialria e
mirando os esplendores da opulenla cidade in-
gleza:
Ânsias serras de tijolo,
Eslaliias, praças sem lim,
Retalham, cobrem o solo...
Mas não me encantam a mim.
Tinha rasão o grande poeta. Fica-le embora; ó
Londres gigante, com a lua Galeria Nacional, os
teus museus, os lius palácios c lemi)los que...
Na minha terra uma aldeia
Em noites de lua cheia
L Ião beila, c Ião feliz!
Amo a casiiilia da serra
Co a lua dá minha lerra
Ka terra do meu paiz.
A BOCCA DO LNFEKNO
II
Que s(l Ião Irilhanic! (|ue lym|)ida allimos-
])heia 1 Como oníre as arvores gorgeiam contentos
os pas>aros! Como a natureza sorri ! E um lindo
dia de agoslo, que convida a viver e amar!
Mas a noite esteve ventosa, eo mar está crespo.
Os navios que passam diante de Cascaes vão ao
largo e parece que se arreceiam da barra, por cau-
sado vagalhão que alli rebenta sobre os chopos.
Lá se avista um lindo brigue com o j)anno
solto ao vento. Como se cmballa sobre as ondas
revoltas! Está muila gente na praia observando o
brigue, que ora se levanta allerosono largo dorso
de uma vaga, ora parece descer ao abysmo. De-
manda a embocadura do Tejo, j)ára, observa, he-
sita e volta de bordo, obedecendo ra|iido c ligeiío
á manobra. O mar na foz referve em cachões; es
lá a maré \n\\'à o a vaga é immensa. Que procu-
ra o navio? Navega para a enseada de Cascaes.
Aproxima-se; pára; ouve-seo apito do ollicial ma-
rinheiro: o panno ferra-se. Seguc-se um ruído
surdo. É a amarra que passa veloz pelos escouvens;
é o brigue (pie dá fundo!
A população de Cascaes corre quasi Ioda á praia
para reconhecer o navio. De bordo larga uma
lancha, bnada a oito remos, e trazendo, sentado
a ré, um ollicial de miiiinha.
O sol retlectellie nos galões de ouro da farda e
do bonel. Na |)r<jia, alguns corações /'emeiínios
balem de curiosidade e anciã j)or ver de perlo
o oílicial que traz os cordões do leme, guiando
tão bem a frágil embarcação sobre as ondEjA furio-
sas, sereno e intrépido, como valente marinheiro
que é.
A lancha abicou, e um gentil moço de 2i a 2o
annos saltou em lerra. Era segundo Icnenle. Na
physionomia linha esses traços severos que reve-
lam energia e denodo. A cabeça era de um bello
perlil grego. Tinha o roslo loslado pelo queimor
do sol imenso dos Iropicos.
Os olhos eram negros e grandes; a barba prela
e bem talhada. Por baixo do bigode alvejavam-lhe
magnilicos dentes, cuja brancura faria inveja ao
mais i)uro marlim da Elhiopia.
Entre as diversas famílias que n'aquella época
se achavam cm Cascaes, havia uma que constava
somente de Ires pessoas, c cuja descripção vou
rapidamente esboçar.
D. Thereza de Brito era viuva de um velho fi-
dalgo, admiiiislrador de vinculo, c morto havia
Ires annos. Eicára com um lilho, que por direito
de varonia herdara o morgado, e uma linda lilha
de 21 annos, com quem Deus fora pródigo em
graças. Christina era o seu nome — Christina Ade-
laide, se não me engano. Havia no seu roslo uma
suavidade melancólica que encantava. Advinhava-
se-llie no olhar languido um mundo de myslerios.
A boca, da còr vermelha do cravo, sorria esses
sorrisos meigos que enfeitiçam. Os cabellos pre-
ciosos coiiplelavam aquella linda imagem de mu-
lher, que representada na tela, os apóstolos da
arle tomariam porlicção, por sonho, por alguma
inspirada visão de Cimabué, Rembrandl, ou Ra-
fael.
Na fronte de (Uirislina havia, alem da belleza
altraenlc da forma, esses reflexos de luz superior,
que são o poder falidico da fascinação, e (pie pa-
rece lerem sido o segredo dos liiumi)hos de Cleó-
patra, de Aspasia, c de lady Ilamillon, a celebre
amanlc de Nelson.
A formosura do roslo juntava Christina a per-
feição esculplural da ligura. Realisava na suavidade
dos contornos e na harmonia das proporções o
bello ideal da plaslica, (]ue na antiguidade pagã
celebrara o Júpiter de IMiidias e a Vénus de
Praxileles. Tinha d'aquelle a mageslade, desla a
formosura. No porte o ar de soberania do rei dos
deuses — nas feições a languida ternura da amanlc
de Mavoíle.
Quando Christina passava, com a sua ligura de
rainha, nos saraus de Lisboa, lodos a admiravam
como um grande astro que não se podia lixar sem
deslumbramento.
I']u gosto de ver na mulher bella esse ar de su-
pcriodidade, de soberania, que Ião bem (piadra á
realeza da formosura. Clirislina do alio da sua
magnilicencia olhava como por favor para as tur-
bas dos cortesãos que aos pés lhe moviam Ihuri-
bulos, envolvendo-a no fumo do incenso. Não
eram esses Ihiiribularios (b; prolissão (pie podiam
caplival-a. Alma elevadíssima, aspirava a go-
zos superiores, (|iie não esses que lisonjeiam a
vaidade sem darem ao cora(;ão verdaileiros
prazeres. Sonhava com o omor, mas na paz, no
o PANORAMA
U3
remanso, na solidão. Esse que se manifesta, qua-
si sempre falso, no lumiilto dos l)ailes; que se ex-
prime com phrasesparvuinlias e vulgares, aquefal-
lam inspiração eenlliusiasmo; que se declara calçan-
do as luvas, endireilando os coliarinhos, ou compon-
doas pulseiras, esse, repugnava-lhe. Coração forma-
para comprehejj^er ludo que é grande e superior,
não poderia nunca impressionar-se pelos sentimen-
los vulgares e melhodicos dos pretendentes de salão.
Chrislina contava por este tempo 24 annos.
Alguns pães se tinham apresentado a requerer
para seus lilhos a mão da donzella, mas elfa re-
geitára lodos; e quando a morgada um dia lhe
perguntou se lenciunava íicar solteira, Christina
respondeu:
— Não sei ainda, mamã. O ([ue posso dizer-lhe
é que só casarei com o homem que o meu cora-
ção escolher. Dos que tem ate hoje pretendido a
minha mão nenhum me agrada. Que quer?
ISão posso tolei'ar estas creatui-as que apenas
sabem fallar dos seus cavallos, e cuja linguagem
ás vezes importuna mais do (|uc deleita as mu-
lheres, dotadas quasi sempre deinstinctos delica-
dos, que elles não comprehendem... Aquelle que
quizer ser meu marido ha de amar-mc de outi'0
modo.
— Ora ahi está o que se chama ser creança.
Ci'eio que o amor foi sempre a mesma coisa em
lodos as épocas.
— É verdade, mas em todas as épocas houve
tolos, e houve homens superiores. Se soubesse
. como os tolos me enfastiam!
D. Therezanão comprehendeu bem oque Chris-
tina quei'ia dizer. Fez um trejeito, e rctirou-se
dando graças a Deus por ter uma lilha com tanto
juizo.
É que á morgada faltava o que Christina possuia
em alto grau — irihlligencia e imaginação. Se é
bom ou mau dote, não tento eu discutir. Para a mu-
lher ci"eio que é sempie presagio de desventura.
As imaginações vivas são ricas de visões. Chris-
tina leve muitas, visões cândidas, que povoam a
mente dos adolescentes e ari-astam muitas almas
para precipicios, em busca da felicidade que o
mundo não pode realisar.
As vezes são eslns as imaginações que a socie-
dade chama desregradas. Christina pertencia por-
ventura a ellas — oh! mas bemdita a mulher que
se deixa viver nas regiões doiradas da phantasia,
e foge de cair no charco das vilezas e das aber-
rações moraes, que na linguagem do mundo se
chamam conveniências da razão, e similhantes.
A. u'Oliveiua Pjííes
{Conliima.)
O QUE ACONTECEUIA SE O MOVIMENTO
DA TERRA GESSASSE SUJilTAMENTE
Supertluo seria dizer que procurando nós res-
ponder a esta curiosa questão, lhe não damos por
isso mais importância do que cila deve ler. Que
o nosso globo cesse um dia subitamente "de
girar, é o que nós podemos sem receio declarar
impossível, e isto com toda a aucloridadc que
pertence aos princípios da mechanica celeste. Da
parte do nosso mundo não lemos a esperar,— a
receiar— essa phantasia. A receiar, porque, com ef-
feito, eis as consequências inevitáveis que resul-
taiiam de semelhante phenomeno.
Convém, porém, antes de tudo, dizer que a ve-
locidade de um corpo situado na superíicie da
terra compõe-se de dois elementos: movimento de
rotação diurna do globo á roda do seu eixo c mo-
vimento de translação á roda do sol. Em virtude
do primeiro, os corpos collocados no equador ter-
restre percorrem 417 léguas por serjumlo. Esla
velocidade diminue do equador', aonde ella é má-
xima, {)ara os poios, aonde é nenhuma, porquan-
to os corpos teeni natiiialmenie tanto menos ca-
minho a percorrer quanto menor for o circulo de
latitude. Pelo que diz respeito ao segundo movi-
mento da terra, da sua revolução no espaço á roda
do sol, lodos os seus pontos indistiuctamente per-
correm il)() léguas por minuto, ou 7 7,0 léguas por ^í*-
fjuudo. Poder-se-ha fazer uma idea d'esta veloci-
dade se se rellectir que um comboio expresso,
expedido com Ioda a força, não anda mais de IG
melros por segundo, e que uma bala de 24 ape-
nas percorre na mesma unidade de tempo 390
metros.
Todos os pontos, que pertencem a um systema
material em movimento, sendo animados do mes-
mo movimento, se, por uma suspenção repentina
este systema cáe subitamente em repouso, os pon-
tos que se podem descollocar na sua superíicie
continuarão, em consequência da velocidade ad-
quirida, a mover-se na direcção primitiva. É em
virtude d 'este principio que, quando succede um
cavallo atrellado a um carro cair de improviso na
sua carreira, os indivíduos que elle conduz, sal-
tam desastradamente por cima da cabeça do pc-
gaso; é ainda em virtude d'estc mesmo principio
que e preciso tomar certas precauções quem des-
ce de uma carruagem em movimento, a íim de,
pousando subitamente no solo immovel em quanto
que o corpo está ainda animado da velocidade
adquirida, não ir beijar os rastos do vehiculo.
A terra é, como lemos visto, uma carruagem
mais rápida do que os omnibus, caleches, wagons.
Se parasse de repente, escusado é dizer que, todas
as precauções, para evitar uma morte instantânea,
seriam inúteis. Todos os objectos que não estão
implantados e fixos no solo, que só adherem á
superíicie pela lei da gravidade, seriam immedia-
tamente e de um só jacto lançados no espaço, com
uma velocidade inicial de 8 léguas por segundo,
rapidez de que somos dotados presentemente. Os
jiasseantes Iranquillos, os trabalhadores e os in-
dividuas em repouso, os animaes domésticos e os
(pie vivem nas florestas, os pássaros, as nossas
carroagens, machinas, em fim, tudo isto se preci-
pitaria de um salto na direção do movimento da
lerra.
Quanto ao oceano, que cobre os dois terços do
globo, a sua massa li(iuida, beijando as praias, sub-
mergiria, em um abrir e fechar de olhos, as ilhas
c conlinentes, coroando o edilicio da morte; de-
444
O PANORAMA
pressa galgaria as mais elevadas montanhas e faria
passar o nosso globo por uma transformação de
superfície como "nenhuma das antigas revoluções,
que o teem atormentado.
Os theoricos que se (eem entretido em procu-
rar no diluvio bíblico uma causa natural não teem
deixado por vezes de por cm scena essa causa
poderosa c de afllrmar que o choque de ura co-
meta podia facilmente operara suspensão de mo-
vimento e as suas pesadas consequências. Hoje
sabemos que um cometa poderia passar sobre a
terra sem que nós déssemos por tal.
Outro fado muito curioso, que se seguiria ao
anniquilamcnto da velocidade da terra, è este. A
força centrípeta, que attrahe os planetas para o
sol* deixando de ser contrabalançada pela força
centrífuga, a terra cairia em linha recta no sol.
Sc houvesse ainda sobre o globo outros seres alem
dospeixes poderiam então ver o astro brilhante, que
Ião pequeno nos parece, crescer, crescer, cres-
cer g-ganleamenle. A terra chegaria láCí dias de-
pois da sua sahida do lugar que occupava e de-
sappareceria na superfície do planeta ardente, como
um aerólílho sobre aquclla.
O nosso globo não é uma excepção á regra ge-
ral; a mesma sorte estaria reservada aos pulios
planeta^,' se se achassem no mesmo caso. Assim,
se a velocidade de Mercúrio, de Yenus, de Júpi-
ter, ou de Saturno fosse anni(|iiiia(la, estos planetas
iriam também, immedialamente, dar um passeio
até ao sol, o primeiro em lo dias, o segundo em
40, o terceiro em 767, o ultimo em 1900.
Mas, eis-aqui uma cousa ainda mais curiosa.
Está reconhecido que o movimenlp não pode
deixar de existir, assim como átomo algum de
matéria; pode combinar-se, dividir-se, perder-se
em uma certa somma de forças parciaes, mas
nunca anníquilai-se. Pode, e c este o ponto im-
portante, transformar-seem calor; o transforma-se
enectivamento todas as vezes que paiccc perdcr-sc
como força motriz. Assim, dando-se repetidos gol-
pes sobre um prego cravado e por consequência
iinraovel; o movimento do motor, não se commu-
nicando ao prego, transforma-se em calor: isto
facilmente se percebe pelo lado. Sem multiplicar
exemjjlos, lodos teem aílirmado por experiên-
cias esta transformação nicchaníca do movimento
cm calor.
Ora, se por uma causa qualquer parasse instan-
taneamente o movimento miiltiplo que anima o
nosso globo, este movimento soIlVeiia a transfor-
mação, de que acabamos de fallar. A tei-ra aque-
ceria de rej)cnte; — c quer saber, leitor, em (\[\(\
grau? — A quantidade de calor gerado pela sus-
pensão, equivalendo a um choque colossal, basta-
ria não somente para fundir toda a terra, mas
ainda para reduzir a sua maior parte a vapor.
i'.sla consequência domina todas as precedentes
c absorve-as. A terra deixaria de ser um planeta;
a sua massa, o seu volume, a sua densidade, in-
leiramenle mudados, não mais perniitliiiam as
applicações fpie acima assignalamos, sobre o mo-
vimento desordenado dos corpos na sua superílcie,
a eílusão dos mares, e a queda no sol; lodos es-
tes elementos dados pela mechaníca seriam mo-
dificados segundo o modo mais ou menos rápido
com que se tivesse operado o phenomeno.
Se a suspensão em vez d'instanlanea fosse
um afrouxamento ju-ogressivo, cujo complemento
demandasse da duiação de algunsjiiinutos, a terra
poderia lornar-se tão que.ile que^todos os seres
vivos que existem na sua superficie perecessem
subitamenle.
Terminamos estas reflexões como as começa-
mos, dizendo que a questão é mais curiosa (jue
importante, e que, com toda a certeza, podemos
dormir tranquíllos, c sem os mais leves indícios
dos temores imaginários que ella momentanea-
mente poderia fazer nascer em nosso espirito.
MONUMENTO ERIGIDO À MEMORIA DE
UENÉ CAILLÉ
A colónia fi-anccza do Senegal, quiz, segundo
consta, prestar um testemunho da sua sympalhia
á memoria de Renè Caillé, ao qual se devem as
príméíi'as noções positivas relativas á Africa cen-
tral, mandando levantar em Deboké, assente no
rio Nuncz, um poípieno monumenlo em cuja cons-
tiucção a admínislração da colónia gastou íOOO
flancos, (OiOOOO réis prox.)
A inseri j)ção gravada cm uma das faces é da
forma seguinte:
«Este monumento foi levantado á memoria do
illustre viajante Renc Caillé. Tendo partido d'esle
logar em 29 de abril de 1827, chegou em 7 do
setembro de 1829 a Tanger, havendo passado por
TimLuktu »
A. May
SONETO
Os poda?, que o são de raça fina,
Eiilonderain (iiic c ler jírande (inura
FJcvar o mhlimc a tal allura
Que o mundo não perceba patavina.
E sua linguagem tão divina,
Que llic não mellc dciile acrealura;
K cuida, ao escutar coisa tão pura,
Que ella aos deuses.do olijmpo se úcslindi:
Cliama-sc a islo f/onio transcendente,
Que, Iradnzindo idéíts sinf/ularcs,
ISão lhe é dado lallar linguadc gente:
Estes são da poesia os luminares;
Deixam o mundo, c devem, certamente,
INo 1'arnaso habitar quintos andares.
J. I. d'Akaujo.
Não ha cousa que traga mais certo o som no ás
moças, que a dòr grande: c ás velhas, tira-lho.
B.UlBElItO
Bemavenlurado se pode chamar nesta vida quem
lem dòr que se suporte; pois segundo parece não
se pode viver sem ella, assim, ou assim.
B. UlDI-IKO
Ty|). Franco-Porlguozi, Rua do Tliesouro Velho, G.
19
o PANORAMA
^45
O LEOPARDO
A paníhera e o leopardo são duas espécies que
pertencem á rara /'í7/;ía e que se confundem muitas
vezes uma com a oulra. O leopardo (Felis leopar-
dus, do lai. leo leão, pardns panlheia) habita na
Africa e na Ásia; a panthera [Felis par dm) sós^
enconlia na índia e nas ilhas da Sonda, Ó pri-
meiro c maior que a segunda e allinge por vezes
1 melro 30 de comprimento, não comprehendida
a cauda. A côr do pello do leopardo é de um lou-
ro claro com 6 a 10 fileiras de manchas pretas
o Leopardo
em forma do roseta, islo é formadas do Ires a
quati'o laivos simples, sobre cada flanco. A da
panthera é de um amarello cai^reiíado, com um
grande numero de manchas igualmente em forma
de roseta, porém mais próximas umas das outras.
Estes dois animaes vivem nas lloreslas, e sobem,
dizem, ás arvores cora extrema agilidade perse-
guindo os macacos, aos quaes fazem uma caça
aclivissima. Os seus costumes são muilissimo se-
melhantes aos dos outros animaes felinos de gran-
de corpo.
Existe na ilha de Java uma espécie d'esla mes-
ma familia, que se chama Melas o Arimaii [Felis
melas,) poi'ém mais comniummenle Paníhera ne-
gra, que excede algumas vezes, as espécies de
que falíamos, em tamanho- mas, ordinariamente
tora o corpo e a forma geral da jjanthera, e a
côr do pello negra deixa ainda distinguir signaes,
jomo os d'esla, de um preto mais carregado. Mui-
tos andores olham este animal como uma espécie
jislincta, e outros consideram-n'o sim|)lesmente
jorao uma variedade da panthera vulgar. Seja
como fòr, é impossível existir um animal mais
cruel, e de aspecto mais feroz. Durante o dia, não
sae do covil; mas, logo que a noite cobre com o
seu negro manto a terra, torna-se um objecto de
teiror para lodos os entes vivos.
O leopardo tem logar entre as figuras heráldi-
cas.
O TABACO
(Conclusão )
A maneira de fumar o tabaco está também lon-
ge de ser indiííerenle.
Os cachimbos tuix'osouhollandezes leema vanta-
gem de despojar o fumo dos seus óleos empyreuma-
ticoscde lorna!-o menos prejudicial. Ocharuto, pelo
contrario, colloca os fumadores na posição de mascar
eenguliro sueco do tabaco, oque dá lugar a elleilos
de irritação local, assim como a elleilos de absorpção
muito incommodos. Os fumadores lêem os beiços e
as gengivas inllamniadas, os dentes amarellos, fuli-
ginosos e com o esmalte alterado. Emlim,oabuso do
tabaco pôde gerar o cancro nos lábios, doença
41)
O PANORAMA
tenivel, que do anno para aiino se tem tornado
mais frequente. Segundo uma estatística devida a
M. Leroy. oeaiicrodos lábios ligura apenas';,, en-
tre a nuiíher, em quanto que no liomem eleva-sea
mais de '/.,,;. O cancro da lingua poderia, como o dos
lábios, merecer o nome de cancro dos fumadores ;'à
sua causa é quasi sempre o abuso do cacliimbo, espe-
cialmente do cacliimbo curto, dito rjuciriia-f/uclas,
cujo fumo enira quente e agro na bocca. Também,
por uma estatística de M. Jíoi-gerou, o cancro do
estômago c mais freípiente no Immem do que na
mulher, e a causa devc-se procurar nos funes-
tos eíVtítos do tabaco de mascar. O celebre ptiilo-
soplio fiancez .Mallebranchc morreu d'esta terrível
moléstia: tínha-se habituado a mascar tabaco.
Passemos agoi'a a fallar dos elVeitos do fumo
do tabaco, o qual, segundo M. Melsens, contem,
pouco mais ou menos, 7 por cento de nicotina.
É sabido que niim espaço cheio de fumo de
tabaco, não se podem reunii- muitas pessoas cde-
morarem-se alli algum tempo sem experimentarem
dores de cabeça, náuseas e mesmo syncopes. Eis
um caso dos mais frisantes. Um mancebo de dc-
zesele annos ;linha ido ^visitar seu tio, que oc-
cupava, em uma casa de campo, um quailo pe-
queno e pouco arejado. O lio entrou próximo das
Ave-Marias em companhia de dois amigos e todos
Ires estiveram fumando ate á meia noite. Logo que
os amigos se retiraram, o lio quiz deitar-sc ao pé
do sobrinho; mas, qual não foi a sua admiração,
quando, ao entrar na cama, encontrou o mancebo
inleiramente fiio. Pediu soccoi'ro, mas já era tarde.
O joven linha succumbido a uma congestão cere-
bral determinada pela asphyxía.
E nas fabricas do tabaco, "especialmenie, que os
peritos podem fazer as suas observações. A maior
parle dos operários são obrigados a suspenderem,
de vez cm (]uando,os seus trabalhos, por causadas
dores de cabeça, náuseas, dyspepsía, etc. Ainda
não ha muito tempo que um infeliz, que linha
adormecido na casa da fermentação, morreu as-
phyxiado. Os oj)erai'ios acostumados a esta alh-
mosphera, conservam sempi-e um ar de soílrimenlo,
com certos caracteres physicos de velhice pi'ematura;
lêem má còi-, soíírem da cabeça e do cslomago,
emmagrecem, icem tremores, ele.
A maior parle d'esfes symplomas, com especia-
lidade as dores de cabeça e digestões diíliceis,
observam-se lambem nos fumadoies de jjrolissão.
Experimentam habitualmente uma s<\le mais ou mo-
nos viva, alternativas de prisão de ventre c de
diarrhca. A estes symptomas juntam-seo cmbota-
menlo dos sentidos, à denmra da concepção, o enfra-
quecimento da memoria, a falta de preci'são nos mo-
vimentos museu la r<>s, o tiemor dos mend)ros; n'uma
palavra, tudo o que denota um estado mórbido dos
centros nervosos. Os órgãos do ouvi(h) c da vista
sonVem lambem com o abuso do tabaco, como o
provaram M. Bonnafont, Sichel, líutchinson c
oulros médicos.
^ Segundo as avei'iguações expiírimentaes de M.
Claudc Bernaid e do doutor Decaisne, o tabaco
exerce principalmonie os seus elTeilos sobre os
centros nervosos, com especialidade sobre a fibra
motriz. Ultimamente citou-se o exemplo de um es-
tudante ainda novo, que linha chegado a um es-
tado de idiotismo epiléptico, resultado da embria-
guez permanente de tabaco. Sir Charles Pastings
observou um caso de epilepsia muito grave cm
um menino de doze annos, que fumava em excesso
havia dois annos, c que se achou curado logo que
conseguiu abandonar este funesto habito. M. Mi-
chéa, encontrou muilos exemplos de alaxia loco-
motiiz entre os fumadoiTs incorrigíveis. O Doutor
llilVelsheim contou na í/;??(íoJM//ca, um caso úede-
lirinm Ircmens sem delírio, devido ao abuso do
cachimbo, e que desappareceu com a causa do
mal.
iMas o que sobre tudo é muito grave, é a parle
evidente que o tabaco toma no desenvolvimento
das doenças menlaes, e especialmente d'esta for-
ma de alienaftio mental, que se designa sob o no-
me de gei-al e progi'essiva. Dois médicos belgas,
Gaislan e Ilagon, foram os primeiros a mostrar
a inliuencia do tabaco o das bebidas alcoólicas
sobre o desenvolvimento quasi inaudito d'estas
doenças. Por uma estatística do doutor Rubio, ve-
se que o numero relativo de alienados é muito mais
considerável nos paízes do Norte, onde o consummo
das bebidas alcoólicas eo do tabaco é muito maior,
que nos paizes meridionaes, muito sóbrios e pou-
co fumadores. Segundo M. Moreau, de Tours, não
se encontra um só caso deparalysía geral na Ásia
Menor, onde se não abusa das bebidas, e onde se
fuma um tabaco quasi isento de nicotina. Pelo
conlraiio, as doenças menlaes mullíplicam-se de
uma maneira espantosa na Europa, á meditla que
o consummo do tabaco augmcnta.
Já se viu que de 1830 a 18G2, o rendimento do
tabaco, ao thesouro de França, elevou-se de 30 a
200 milhões de francos. Oia, durante o mesmo
peiiodo, o numei'odos alienados elevou-se, alli, de
8000 a iiOOO. Eslas cifras não comprehendem,
além d'isso, senão os alienados sequestrados; porque
se se Ihé ajuntasse a dos (|ue são tratados cm seus
domicílios, chegaria provavelmente a (iOOOOl
Era suFiima, contando as outras doenças dos
centros nervosos, que testemunham uma etio-
logia communi e que não figuram nas eslaliscas,
seria preciso escrever — 100:000 — para mos-trar
o numero dos indivíduos que, em França somen-
te, sotírem os elTeilos tóxicos do fumo do tabaco.
M. Jolly pi'ocurou nosasylos públicos e particula-
res documentos j)ropríos para esclarecer a ques-
tão de que estamos ti-alando, e assim poude con-
vencer-se de que nos homens é sempre a parai}/'
sia nnisrnfar ou nicolica íjue domina, a ponto de
constituir ella só por si o excedente da cifra nor-
mal dos alienados, ([uando as outras formas dei
alienação mental soIlrem apenas fracas variações [j
de ^numero. Nos asylos das mulheres alienadas, |!|
pelo conli-ario, não se encontram senão as formas
antigas e poi- assim dizer clássicas da loucura, c
as paralysias geraes raras vezes apparecem.
Poderão objectar que ludo islo não passa do
simples coincidências. Mas quando as coinciden
i
U l»ANOKAMA
47
cias se mui li plica m, equivalem a uQia demonslra-
ciio. Vemos a principio que a paralysia geral a-
ítica de preferencia os indivíduos que fazem uso
de labaco mais ou menos saUii-ado de nicotina.
Os mililarcs, os marinheiros sobre ludo, que ex-
cedem o resto da população no uso do ca-
chimbo e do charuto, liguram sempie em pilmei-
j-a linha na cifra dos alienados parah ticos; pelo
contrario, as mulheies são quasi isentas d'esla
doença. As populações que não fumam, ou que fu-
mam um labaco sem nicotina ou outras jdantas, laes
como lúpulo, chá, ele. gosam da mesma immuni-
dade.
Objeclou ainda M. Joilyqueo abuso das bebidas
alcoólicas associa-se muito a miude ao abuso do
labaco, para que se ])ossain sepai^ai- os elíeitos
d'eslas duas causas. Sem negar os elíeitos perni-
ciosos do absinlho, da aguai-denie e de ouli^as be-
bidas alcoólicas, W. Joily crè lei' demonstrado que
o abuso do labaco deve ser considerado como sede
principal das causas da paralysia geral dos aliena-
dos, e eisa(|ui a razão: i)l. .lolly viu (e outros mé-
dicos lêem já confirmado esta observação) paraly-
licos bebendo apenas agua, mas fumando desme-
didamente. M. Grisolle observou um doente que,
muito sóbrio nas bebidas, fumava uma parte do dia
e da noilee que tinha caido em um estado quasi de
demência paralylica. Achou-se pronq)tamenle cura-
do logo que, avisado da causa da sua doença, renun-
ciou o labaco. O doutor Maillot, presidente do con-
selho de saúde militar, aíTirmou que entre o gian-
(le numero de paralyticos, que se oITerece annual-
menlc á inspecção, encontram-se muitos que se
distinguem j)ela sua sobriedade no que diz respeito
ás bebidas alcoólicas, mas que abusam do cachim-
bo e do charuto. Emlim, em certas províncias da
França, Saíntonge, Limousin, Bretanha, aonde se
fuma muito pouco, mas é'grande o consummo da
aguardenle, a paralysia geial é quasi desconhe-
cida.
Este concurso de fados e lestemunhos é mais
que suflicíenle para provar que é, especialmente,
ao abuso do labaco, que se deve atlribuir a causa
essencial da paralysia geral, doença que ligura hoje
cm França por dois terços na cifra tolal dos alie-
nados.
Um lai fado não pôde deixar de ler influencia
iio movimento da j)opulação. Elleclivamente, as
eslalislicas provam que a população em vez de au-
gmenlar lem diminuído.
Antes de 18íí, o excesso annual dos nas-
cimentos sobre os óbitos era de liJOOOO almas.
Km 18Í7, nolou-se, pela primeira vez, um exce-
dente na mortalidade de 107000 sobre a cifra dos
nascimentos. Em IHoi, coníirmou-seumexcedenle
de ()l>000 óbitos; o que, sommado com a cifra
loOOOO, (pie tanto foi o de ISoS, dá uma perda
de 211)000 almasem dois annos. l']m vão se lem i)ro-
curado explicar estes Irísles resultados pela carestia
dos víveres, pelas guerras, epidemias, causas Io-
das eslas que, geralmente, produzem fracas oscil-
lações no movimento da população; c não se
lem allendido ao numero crescente dos alienados
e |)araplegicos, com os quaes senão pôde contar
para a roproducção da espécie. Além disso está
provado que o labaco actua como um anaphrodisia-
co, e M. Légalas citou ultimamente um exemplo
frisanle. O abuso, pois, d'esla planta prejudica
não sómçjpte as forças musculares e intellecluaes,
mas ainda a conservação da espécie.
O exame dos mappas de mortalidade n'estes id-
limos vinte annos, inostra também (jue, de Irinla
a cincoenia annos, os, óbitos são muito mais nu-
merosos nos homens do que nas mulheres; de sorle
que o numero {Fesías que, anles d'esla época,
era inferior ao (Fatjuelles, hoje é supeiíor. Este re-
sulíado, decididamente, não pôde conli-ibuir para
o augmenlo da população. Frocurando a causa
(Tesse vácuo ímmensoque se opéi^anas lileirasdos
homens na é|)()ca mais llorescente da sua vida, a
estatística da mortalidade diz-nos que o maior nu-
mero d'eslcs óbitos é devido ás doenças dos cen-
tros nervosos, ás dillerentes formas de doenças
menlaes e de |)aralysias. Ora, como lemos de-
monstrado que o abuso do labaco vem em pii-
meíio lugar entre as causas d'estas alíecções, não
se poderá contestar que este veneno não lenha uma
influencia manífesla no nenhum augmenlo da po-
pulação, mostrado pelas estatísticas. O labaco
viria da America paia esgotar as fontes da vida'?
Uma vez que o mal chegou a um tal grau de
gravidade, é tempo de s& lhe procu!'ar remédio.
Eis aqui as dilTerentes medidas que M. Jolly pro-
põe:
Em primeiro lugar, substituir no commercio os
tabacos mais ou menos saturados do nicotina, |)e-
los do Levante, Gi^ecia, Arábia, Havana, Faraguay,
Brazil, quasi isentos d'a(|uelle alcalóide. Ao mes-
mo lempo dar-se-ia á agricultura essa grande por-
ção de terreno que França está empregando na a
cultura de uma jdanla venenosa.
Infelizmente, não é provável que um tal pro-
jecto possa ser realisado. Mas n'eslecaso, M. Jolly
propõe outra medida, que consiste em des-
pojar os tabacos indígenas do seu excesso de ni-
cotina. Díflicilmente se chegaria ao desejado íim,
mas nada impede o introduzir bolinhas de algodão
nos tubos dos cachimbos e nas boquilhas [)ara
não poder passar a nicotina. Em todos os casos os
chimicos deveriam díiígir os seus esforços para
este lado, isto é: a eliminação da nicotina; fariam
com isso um verdadeiro serviço á humanidade.
O que lambem é necessário é esclarecer o pu-
blico sobre o valor relativo das diversas espécies
de labaco no ])onlo de vísla hygíenico, e sobre as
doenças (|ue devem a sua origem ao abuso de tal
planta. Dever-se-hia cmlim proscrever severamente
o labaco cm lodos os estabelecimentos de ínstruc-'
ção |)ublica, e prohibir a venda d'esla j)lanla aos
indivíduos (jue contassem menos de dezeseis an-
nos de idade. Estas medidas prohibílivas impedi-
riam bom numero de crianças de se habituarem a
uma cousa Ião funesta, n'uma idade cm (jue não
podem prever as consequências, e arruinarem o
seu temperamento e força antes de lerem acabado
o seu desenvolvimento physico.
a.8
o PANORAMA
UM BAILE DE ESTRELLAS NO
SÉCULO XVII
>'o anuo 1012, por occnsião do casamonlo de
Isabel de Inj:lalerra com Frederico V, houve em
Londres íeslas magnilicas, (|ue lerminaram pela
re|)resenlação de uma esj)eeie de baile ao qual se
jukou mui acertado dar o nome de Moralidade.
Or|)héo appareceu primeiro seguido de um ca-
mello, de um tigre e de um leão, aos quaes fascinava
com os melodiosos sons da sua lyra. Cousa surpre-
ln-nilenlel mas a idea uão era nova; em li72 já
havia iigurado no Ihealro o Orfco (le Ange Toli-
lien, peça áqual a Itália iiavia dado o nome de
Irageília, e que foi representada diante do cardeal
Erancisco de Gonzaga. O Orphéo do Ihealro inglez
eslava ualuralmenle submellidoao j)oder do gran-
de .luj)iter. Oi'a, (juando cmsegíiiu amansar os
animaes ferozes que se achavam reunidos á roda
d'clle, um mensageiro divino, Mercúrio, veio pc-
dir-lhe da parte do lei dos deuses oulro mila-
gre: convidou-o a fazer dansar as esli-ellas pro-
longado os sons da sua lyra. Immedialamenle as
cslrellas se agitaram nos céos e dansaram uma
giga niuilissimo animada; cavalleiros armados de
lanças negras guiavam csles astros, c quando dan-
saram sullicienlemente no Olympo, desceram á
lerra para divertirem os morlaes. Mas, súbito, as
cslrellas femininas desceram do céo c, depois de
lerem ligurado entre as nuvens, não desdenharam
vir procuiar os dansadores e executarem com elles
nma sarabanda. Eram as almas das íieis damas
(jue provavam d'este modo a sua constância aos
bellos cavalleiros com os (piaes haviam promeUido
unir-se. .N'ist(i, sem duvida, e que estava a mora-
lidade.
Allirma-se que esle baile, que não c mais ex-
Iravaganle que muitos outros^ leve uma fama sur-
prehendenle, não diremos voga: estas peças mis-
turadas de canto, apenas tinham uma represenla-
ção e não serviam senão para a solemnidade que
as havia feito nascer.
TASSO
BoDKincJo biograflco
Torqualo Tasso nasceu cm Sorrcnlo, ali de
de março de loíí. Descendente de uma das mais
illuslres famílias de Itália, recebeu em Nápoles uma
educação esmerada.
pf.- Oiiando Carlos V desterrou de Nápoles os par-
tidários do príncipe de Salerno, foi enti'e elles
Bernardo Tasso, j)ae de Torqualo. A cslrella fu-
nesta, que, não sei poique mofino sestro, acom-
panha sempre os grandes génios |)oelicos, atlribuiu
l^crnardo Tasso um especiai iiilliixo nas suas des-
venturas; e |)ara logo resolveu tolher a oxlraordi-
naria vocação para a poesia que em seu lilho se
manifeslára desde a idade de sele annos, man-
dando-o estudar direito em Pádua.
Mas o génio reagiu; e, por entre as agruras
da jiirisjHudencia, cresceu breve a ílor da poesia
que— magesloso florão — engrinaldou depois o ins-
pirado cantor da (íierusaleinmc liberala.
Logo aos dezesete annos publicou um poema,
sob o Ululo de Reinaldo. Mas o Reinaldo, como
nota Voltaire, não passa de uma imitação de A-
chilles, com quanto desperle mais interesse. To- ■
davia a estreia do joven poeta leve um acolhi-
mento bastanle lisongeiro, que o animou a cnce-
lar aos vinlc e dois annos a Jerusalém. i
Tasso procurou um Mecenas, e alcançou o pa- *
trocinio do duque Afíonso II, sendo bem recebido
na còrle de í errara.
Allirma-se que Torqiuito Tasso se apaixonara
proíundamente por D. Leonor, irmã do duque.
Alíonso II, breve foi iniciado nos suavissimos mys-
lerios d'aquelles dois corações, e o poeta começou
a ser mal tratado na corte.
Sem bens, sem pao nem paíria, mal visto jxdo
(lu(iue, e conhecedor da impossibilidade de reali-
sar as suas mais intimas aspirações. Torqualo Tasso
lornou-se extremamente melancólico, caindo por
vezes n'um lai furor, que o fazia passar por louco.
i)'estes accessos momentâneos lançou mão AlVisnso
11, para o afastar do seu jialacio, encarcerandc-o
no hospital de SanfAnna, que era então o hos[)i-
tal dos doudos.
Dejiois dp alguns annos de prisão, ponde tornar
a ver a luz do dia, não para entrar de novo na
exi)len(Uda còrle de Ferrái'a, mas para ir a Sur-
reiílo ])edir a uma irmã algum allivio para assra
desventuras; porém o poeta voltou |)ara Ferrara
coberto de andrajos, e de novo foi encarcerado!
Ao cabo de vinle annos de penas e piivações,
os inimigos de Torqualo Tasso curvaram-se dianlc
da auréola do génio, c o poeta foi arrancado aos
braços da miséria.
d cantor das crusailas foi mesmo chamado a
Roma por Clemente VIU, para receber a coroa de
louro, que n'a(|uelle lempo era uma grande honra.
Porém, adoeceu durante os pre|)aralivos da cere-
monia; e, ao romiier do dia, em que havia de ser
coroado no caj)itolio, foi receber da mão de Deus
a coroa iramarcessivel da gloria eterna.
CaNDIUO FlGCEinEDO.
lia chorar com lagrimas, chorar sem lagrimas,
e chorar com riso: chorar com lagrimas é signal
de dôr moderada; chorar sem lagrimas c signal de
maior dôr, c chorar com riso é signal de dòr sum-
iu a e excessiva.
A dòr moderada solta as lagrimas, a grande as
enxuga, as congela e as seca. Dòr, que pôde sair
pelos olhos não é grande dor.
1'.'' Amomo Vii;ÍRA
LIVERPOOL
(íiNa lia r<i[n«is'a
í], (lo])f)is (Ifí i.oiidrcs, ;i cidade mais commcrcial do
Rciíio-Uiiido. l''az |)arl(! do condado do l.aiicaslor, c de-
jjruça-sc no ospollio críslallino do rio Mcrsov, (|iio lom,
no silio cm (ino a l)anlia, nma lar^íiira do dois Ivilomelros,
(í (|iio, tros Jviloiiiclros mais nl)ai\o,.sc vni lançar no mnr
da Irlanda. K uma formosa cidade, conslruida om nmplií-
o PANORAMA
449
Ihealro não poisada em collinas Íngremes como a Liver-
pool nôrliigueza, a cidade do Porto, mas espraiada por-
um plano suavemente inclinado. Cinge-a uma formosa laxa
do lindas casas j:le campo que matizam os prados relvo-
sos em que ja se presente a viçosíssima verdura da Ir-
landa que lhe fica fronteira. _ ,• „.
Conta esta cidade trezentos mil habdanies, e podíamos
até da.r-lhe quatrocentos mil se raellessemos n'esle numcio
a população dos arrabaldes, e os marinheiros do seu por-
to. As principaes occupações d'esta população numerosa
são o coDimercio c a navegação; mas a industria não está
por isso menos desenvolvida, c não deixa de occupar
uma grande quantidade de braços na construcção dos
navios, no fabrico dos chronomelros, dos pannos para ve-
las, das ancoras, dus amarras, dus artigos d'aço, das ma-
cbinas de vapor, dos cristaes, do assucar, clc.
m\
,iiii
eiro'-
iõO
O PANORAMA
Não soffrcu esta cidade, como a sua rival Mancheslor,
c como o resto do seu condado {o de Lancasler'! com a
guerra americana, que produziu a crise do algodão. A
única manufaclura d'es(c género, que alii se eslal.>elecera,
arrazou-a um incêndio em 18o3.
A nalureza e a arte ligaram-se entre si para fazerem de
Liverpool uma das mais imporlaiílcs cidades commcrciaesdo
mundo. A sua posição no occidenie da Inglaterra lorna-a
mais própria do que Londres para o commercio da Ame-
rica, ponpie esta lhe fica a muito menor distancia ; es-
tando defronte da Irlanda é naturalmente o centro de lo-
do o commercio enire as duas ilhas, que formam o reino
de S. M. a rainha Victona. Accresce a isto o ser esta ci-
dade o porto natural dos ricos condados manufactureiros
de York e Laiicaster.
Serviços regulares de paquetes a vapor põem Li\erpool
em communicação com os portos mais importantes da
(irã-llretanha eVie Irlanda, do resto da Luropa. das duas
Américas, das Índias e da China ; com as cida(ies manu-
factureiras do interior ligam-n'a caiiaes c caminhos de
ferro. Caminhos de ferro \ão alli parar cinco; um (jue
foi o primeiro (jue se conslriiiu om Inglaterra, liga-a com
Manchester, e não so este caminho de ferro, mas tandjem
um canal põe em comnuinicação estas duas importantes
cidades. Um outro canal, que é o mais grandioso de lo-
dos os canaes inglezes, une esta cidade com a de Leeds.
Por lodos os motivos mencionados e Liverpool o grande
centro da importação dos produclos americanos ; a tonela-
gem sommada dos navios que entram annualmenlc no seu
porto c maior do que a dos na\ios que entram em Lon-
dres. Por aquella porta cnlra também na Inglaterra a seda
e o chá da China, o gado, o pez, as carnes salgadas, as
farinhas, e os pannos d'lrlanda; e tudo isto é tanto mais
prodigioso quanto Liverpool se pode dizer que não tem
porto, ou que o não teria se a actividade ingleza não ope-
rasse verdadeiros prodígios.
Com eíleito Li\ erpool, situada junlo da foz do Mersey,
iião ollerece o minimo abrigo aos navios, que ficavam ex-
postos aos furacões, e que, na vasante, se enterraNam no
lodo. Estas dilliculdades fariam desmaiar qualquer povo;
não trepidou diante (relias a Inglaterra; o génio dos seus
melhores engerdieiros hydraulicos começou a procurar o
meio de obviar a todos' estes inconvenientes creados pela
natureza, e encontrou... encontrou as í/oA«5, esses mara-
Nilhosos portos arlificiaes, que obrigam as ondas a esta-
carem perante obstáculos, que a mão dos homens, e não
ja a mão de Deus, lhes poz diante como barreira insupe-
layel. A primeira doka foi conslruida em Kiílfl, depois se-
guiram-sc-lhc outras e outras, e o desenvolvimento do
commercio de Liverpool é em grande parle devido a essa
causa.
As dokas de Liverpool são de cerlo os mais curio-
sos e mais notáveis monumentos d'esla grande cidade.
K em geral accusada a nossa época deburgueza, chata, mes-
quinha, incapaz de comprehender o grandioso, de erguer
essas moles gigantes, que airrontam os evos, e em (pie a
nião dos Homunos gravou os poemas dasua gloria. A esta
accusação respondem Iriumphantemenle asdokasde Li\er-
pool contras construcções semelhanles. Oue imjtorta que
não ergamos ColNseus, "templos erguidos áTerocidadede|)ra-
vada d'iim povo corrupio egaslo, llicrmas colossaes, (pie
não atleslam senão a \ oluptuosidade, indolência e desenfrea-
do amor do luxo dos degenerados nelos dos Calões e dos
(íracchos? Que imporia, se em troca (fisso, erguemos
nioniimentos (jiic mais valem, dokas imponentes cm cujos
diques de granito, em cujas muralhas agigantadas queíwa
o mar com respeito as suas ondas espumanles? Lslcs ('
que são os vordadciros monumentos d'uma ci\ilisação illu-
minada |:(1) fulgor do Evangelho, mil \ezes su^periores
aos monumenlos erguidos pelo fútil e depravado scnsua-
lismo pagão da de( repila llon)a.
São doze as dokas úc, Li\erpool, e prolongam-sc pelas
margens do rio duraníc mais de Ires kilomelros; não fal-
lando nas dokas giganies, começadas a conslruir em 18íi
a cusia d'uma sociedade (raccionislas, dokas (|uc liveram
já por feliz resultado transformarem a aldeola de Jiir-
kenhcadc n'uma cidade de mais de (juarenla mil habitan-
tes. As n)ais bellas dokas de Liverpool são as de Cla-
rence. de Wellington e sobretudo a do príncipe Alberto,
cuja conslrucção custou um milhão de libras. Junto das
dokas ba formidáveis leliíeiros e armazéns, alguns dos quaes
chegam a ler doze e quinze andares. Entre as muralhas
das dokas c o rio correm uns pequenos cães que servem
de passeios públicos.
A cidade apresenta o aspecto gernl de Iodas as cidades
inglezas modernas, um conjunclo de magnificência c de
miséria, vastas ju-acas, ruas largas e bem arejadas, e \iel-
las estreitas e imnuuidas, onde uma po|)ulação misera\el se
roja nos Iremedaes mais asípierosos da pobreza e do \[-
cio. Ruas como a de Escócia [Scolldnd-road] (Puma ex-
tensão de perto de Ires kilomelros, orladas de lojas sump-
tuosas, e becos infeclos onde os indigentes se accuQiulam
em palcos escuros e doenlios.
A parle mais bella da cidade é ainda assim a parle orien-
tal, onde se admira o lindo passeio í|ue se intitula Mount
pleas(int,úo qual sedesfiucla um a(lIllira^el panorama que
abrange a cidade toda, o porto c as casas de campo dos
arrabaldes.
Liverpool debaixo do ponto de vista arlistico pouco
offerecedenolavel ao viajante: osseus monumentos são frios
e|H'sados.Ha n'esla cidade cenio e sessentae dois templos,
capellas, igrejas, e synagogas, tudo edificios extremamente
sinqiles. Os mais consideráveis são a igreja de S. Paulo,
(pie tem um portal, que se esteia em formosas coluninas, a
igreja de S. Jorge, cuja nave é Ioda il'.' ferro fundido, extra-
vagância perfeitamente inglezal A alfandega, a praça do com-
mercio, os mercados da carne e do peixe, manteiga, legumes
ele, reunidos n'um edificio que se denomina o mercado de
S.João, o mercado do trigo, os diííerentes Bancos, a caixa
económica, e a casa da camará que a no.'si gravura repre-
senta, são os edificios mais notáveis da cidade.
Ha em Liverpool a mania das grandes edificações. Para
se conslruir um grande deposito na rua de Watcrloo foi
necessário demolirem-se cento e cincoenla casas; para se
conslruir a estação de um caminho de ferro tornou-se
necessária a demolição de cincoenla casas e uma igreja.
Apezar de se entregar toda ao commercio, não seima-
gine (pie a cidade de Liverpool desdenha o movimento
scientifico e lillerario, ou que presta menos altenção á
beneficência c á inslrucção publica. As classes illuslradas
da Inglaterra fazem os mais louváveis esforços para ar-
rancarem o ])rolelariado á situação terrível, em que se
acha por muitas causas que seria longo enumei'ar. Em
Liverpool abundam as instituições de beneficência c os
asylos de crianças |)obres. Ima dasinsliluicões inaisuleis
e mais originaes que lá se encontram é o asjjh noclur-
no para os pobres srm casa. São alli recebidos os pobres
e os estrangeiros que não Icem onde (içar. Ha lambem
hospilaes íliictuanles jiara marinheiros; um d'elles é de
inválidos, e recebe junclamenle com os marilimos,(pic
não podem continuar a sua trabalhosa \ida. suas mulhe-
res e seus filhos. Li\erp()ol possue lambem muitas insti-
luições lillerarias e scienlilicas, entre outras o Mcchank íns-
lilulc, cujo jardim botânico passa por ser o mais rico de
Inglaterra.
A historia de Li\erpool conla-se em poucas palavras.
Como a da maior parle das cidades inglezas, moslra-nos
um rápido e incessanlc desenvolvimento. Em ISlil era
uma aldeia de pescadores (|ue possuia uns cenIo e (pia-
renla habilanles, senhores de uns'doze ])arcos. JáemlCii
('; uma cidadesinha rodeiada de muralhas. Em Kií)!) cons-
Iroe, como dissemos, a sua primeira doka. Em J7(l() con-
ta cinco mil habilanles; em 17.'{(i doze mil, em 17(i0 vin-
te e seis mil, em 1T";{ Iriíila e quatro mil, em 17!)() cin-
coenla e seis mil, em 1801 sclenia e sele mil, em 1821
cenlo e dezenove mil, em 18íl duzentos e vini,e c cinco
mil, actualmente conta mais de trezentos mil. E maravi-
Ihosoi
Esta prosperidade (If\eram-ira os habilanles de Liver-
pool ao trafico iniipio da escra\alura, c a guerra da suc-
cessão de Carlos II de llespaiiha que, iiniiediíido os ne-
gocianles hespanhoes de traficarem impiiiiemenlc, entre-
gou aos pouco escru|)uIosos navios da cidade ingleza o .
mono|)olio d'esse commercio odioso. Sua muito sangue j
o oiro que se empregou no dcscnvoUimenío de Liver-
|)00l.
l'iMii;iiio Cu A CAS
o PANORAMA
45
INVOCAÇÃO
Vontade sublime e viva que nome algum pôde
exprimir, que idéa alguma pôde abraçar, cu posso,
comludo, elevar a ti o meu coração; poi-que tu c
eu não estamos separados' Dentro de mim a tua
voz faz-se ouvir; em li, o incomprehensivel, a mi-
nha própria natureza e o mundo inteii'o tornam-
se-rae intelligivcis; lodo o enigma da minha exis-
tência eslá resolvido e uma perfeita harmonia reina
em minha alma. Diante de ti velo o meu rosto e
ponho a mão sobre os lábios. O que tu és real-
mente, o (|ue te mostras a ti mesmo, é-me tão
impossível vel-o como chegar a ser teu semelhante.
Depois de mil vidas iguaes ás dos espíritos supe-
liores, eu estaria tão j^oiico no caso de comi)re-
hender-te como hoje o estou no fundo da minha
prisão d'ai'gila. () (jue eu compi'e!iendo, segundo
o meu próprio entendimento, eiinito, e |)or pi'0-
gressão alguma poderia transfoiniar-se em iniini-
to; porque tu dilíeres dolinito, não em grau, mas
em espécie.
Não emprehendei'ei, pois, o que a minha natu-
reza finita me impede de emprehender; não pro-
curarei conhecer a essência e a natureza do ser.
Comludo, as tuas relações comigo e ludo o que
é linilo acham-sc patentes a meus olhos. Creasle
em mim a consciência do meu dever, a do meu
destino na série dos seres i'acionaes; ^como? igno-
ro-o; ^mas tenho necessidade de sabel-o? O que
é certo, é que tu conheces os meus pensamen-
tos e acceilas as minhas intenções, e a con-
templação de tuas lelações com a minha natu-
reza linita basta para tranquillisar-me e tor-
nar-me feliz. De mim mesmo não sei o que devo
fazer; operarei simples, tranquillamente e sem
nialicia, porque é a lua voz que m'o ordena, e a
força com a qual cumpro o meu dever é a tua pró-
pria. Não tenho medo algum dos acontecimenlosd'es-
te mundo porque este mundo é o teu. Todo aconteci-
mento fazparte do plano do universo elerno e da bon-
dade. 0(iuen'este plano, é positivamente bem, ou so-
mente meio de evitar o mal, ignoro-o, fVo teu
universo, ludo acabará bem; ó suíTiciente para
mim, e n'esta fé estou íiime. Que importa que
eu não conheça o que é puro gérmen, ílor ou fructo
perfeito! A única coisa para mim importante é o
progresso da rasão e da moralidade atravéz das
iileiras dos seres racionaes. Ah! quando o meu co-
ração se fecha a todo desejo terrestre, como o uni-
verso me apparece sob um aspecto glorioso! As
massas mortas eincommodas que servem somente
para encher o espaço des\anecem-se, e, em seu
logar, uma eterna onda de vida, de força e de
acção, dimana da giande fonte de vida pi'imordial,
da tua vida, ó lu, eterna unidade!
A BOCCA DO INFERNO
III
Luiz de Mello, o segundo tenente do brigue,
pertencia a uma distincta família poriugueza. Ti-
nham-no deixado seguir a carreiía de niarinha
para lhe contrariar a vocação.
Luiz gostava do mar, porque, dizia elle, eraalli
que sentia a alma desligar-se das cadeias da ter-
ra. Sonhara desde criança com a gloria e com
o amor, copula abençoada enlre uma aspiração e
um sentimento, da qual resultam muitas vezes he-
roísmos. Creio mesmo que andam sempre ligados.
A ambição dos triumfos que levava os heroes da
cavallaria, os soldados da media idade aos campos
da Palestina, ás plagas inhospilaleiías do Oriente,
não era apenas ateada pelo fervor religioso — havia
talvez o desejo voltar á I-lurojja podendo depor os
elmos laureados aos pés da caslellã promettida.
A inspiração que na alma do Dante creou os se-
gredos sublimes do Inferno, insuíllou-a IJeatriz, a
quem coube colher as palmas do génio da poesia
moderna. Quando o lasso concebia a conquista de
Jerusalém, ea imaginação fervente de enthusiasmos
creava Tancredo, e produzia Armida,^ — o anjo dos
seus sonhos, a^/íf/Zíí Eleoitora, hwpvmh talvez com
um osculo na fronte do poeta o condão dos seus
destinos immorlaes. Quando Rafael de Urbino, tra-
çava na tela esses buslos inspirados das suas wfíc/o-
nas, Foi'narina prestava ao génio da pintura os
encantos do seu rosto e a ternura da sua alma
apaixonada.
Que glorias não tiveram o incitamento do
amor?
Luiz, que sonhava com os triumfos ganhos nas
lides da intelligencia, estudava e escrevia; mas no
meio das suas justas aspirações, sentia elle as
vagas anciedades do coração, que anhela por sen-
timentos mais suaves e não menos bellos — Luiz
desejava, precisava amar.
As ligações occasionaes, que forçosamente deve-
ra ter tido durante a vida, não lhe satisfaziam as
necessidades da alma, que pedia os gozos superio-
res do alfecto.
Passara no mar o melhor lem])0 da mocidade— dos
14 annos aos 2o, e no mar nãoapparecem dessas
creaturas formadas por Deus de uma parte do ho-
mem, para serem d'elle eternas companheiras.
Correra os oceanos; visitara quasi toda a Eu-
ropa; vivera muito tempo nas regiões tropicaes;
passara mais de uma vez o equadoí; e de mar em mar,
de tormenta em tormenta gastara, esses bellos
annos da vida. Se nos curtos inlervallos d'esta
existência passada sempre sobre as aguas, acerta-
va de encontrar alguma mulher bella a quem po-
derá amar — a visão desapparecia rapidamente,
passava-lhe de relance deante dos olhos — e elle
continuava a seguir a sua sorte, velas largas pelos
oceanos!
Depois de alguns annos de ausência da pátria,
Luiz de Mello voltava a Lisboa, e como o tempo
não permitlisse a entrada sem risco no Tejo fun-
diava defronte de Cascaes.
Quando Luiz desembarcou, muitas das pessoas
((ue estavam na pi'aia vieiam otlerecer-lhc servi-
ços. O mancebo agradeceu cordialmente, e per-
guntou onde podia fallar ao capiíão do porto.
Acom|)anharam-no alguns homens, cnti"e os quaes
foi o irmão de (^hristina.
Pedro de Brito, que assim se chandava o lilho
452
O PANORAMA
da sr.'' morgada, conhecia quem enlão exercia as
funccões decapilão do porlo e apresentou-llie Luiz
de Mello. Acabada a conferencia entre os doisof-
ficiaes, Pedi'0 saiu com Luiz e convidou-o a des-
cancar em sua casa. A morgada, fiel aos deveres
da íios[)ilalidade, recebeu o tenente cora acorlezia
que lhe era peculiar.
O enlhusiasmo com que o mancebo fallou das
suas viagens; as descripçOes cheias de verdade e
poesia que fez do oceano e das tempestades, fas-
cinaram Christina. O extraordinário principiava a
produzir seu efloilo no espirito da donzella .
Luiz não sentira menores imj)ressues quando
Pedro de Brito o apresentou a sua irmã, e poude
ver uma bella physionomia de mulher, que íixou
n'elle um languido olhar.
Durante a conversação Christina mostrou os
dotes de espirito que possuia, e revelou ([uc a par
d"a(iuella oj)ulenla natureza, existia um coração
cnlhusiasla, e uma intelligencia disTincla.
O accaso,ou a providencia, aproximava aquclles
dois entes tão irmãmente organisados!
P ara que hei de demorar mais uma confissão que
a leitora perspicaz já adivinhou?
Luiz amou Chrisíina, e foi cori-espondido.
A. d'Ohveira Pjres.
(Conlinua.)
SOMBRAS
.4 iueiii<H-ia de Jl. E3. Cciiz Liiua 'I)
I
Vai a ííenie vivendo n'oste miiiulo
como hiiixci sem rumo no oceano,
ale que enilim um dia (lí>sça ao fundo,
myslerios d'alcm-lii!)iulo a sondar...
ISõ cnlanio, as illusftes passam e correm
—falsas miragens, qiic nossa alma prendem;
mas passam! c com cilas lambem morrem
aqucllos que no pó vão descansar.
A morlc! a morlc é o ómcga da Aida,
selo que fecha o livro da exislcncin;
anjo, que ao fim de senda dolorida,
nos conduz ao repouso tumular;
nuvem ignca que vem a este inferno
lagrimas enxugar, queimar abrolhos,
c levar-nos lá acima aonde o eterno
os marhres da vida sóc c'roar.
A vida, curto epilogo das dores
que alanceiam as almas dos precitos,
?quem a pode chamar jardiu) de llores,
quem ha dos homens que inda a possa amar?
l'or isso, o nosso coração duvida
se ha purgalorio (pie não seja o mundo;
c os (pie eslalam os vínculos da vida
é sorrindo que o mundo vão deixar.
E pois que aqui se pena e além se gosa,
VpVa que chorar (piem (reste vai de lagrimas
sobe entre risos á mansão ditosa,
onde não ha nem sondira de pe/.ar?
Mas, viajor no dc.^-erlo da existência,
cu choro um com[)anIicirõ de viagem,
não sei se jior sentir a sua ausência,
se por o não poder acompanhar !.,.
(I) Foi nin ])Of'ta rle basLinle morccimenlo, rjiic clicgiiria a sor
uma disliiicia j^loria (Jc Vizeu, fc o não arrtli.ieisfe a niorlo no
verdor dos aiiuof. l'ut)lifou algumas |if)(«ias na (irinulda Oo I'(jrto,
e noutras foUias periódicas; e deixou niuilas, iiiédit-is, (|iip, se
não iiit! engano, breve seião oírere<^idas ;i aprcciaeão do imhlico.
II
Eu vi-lhe na fronte pálida
o estigma do soíTrimento;
e da dòr a pobre viclima
não soltava um so lamento:
curvado já para o tumulo,
á desgraça o vi sorrir,
e com as flores do génio
os espinhos da existência
encobrir...
Da elernidade ao vestíbulo,
inda enlão vinha involvel-o
com as suas azas cândidas
da poesia o archanjo bello;
mas em sua fronle lívida
breve o riso feneceu,
e o fenecer d'esse jubilo
foi transição momentânea
para o ceu.
Depois... ao ceu subia uma alma pura,
c um cadáver baixava á se|)ullura.
m
Ás horas do crepúsculo,
(piando desmaia o ília,
e o sol, involto em purpura,
um triste adeus envia;
e quando além suspira
a brisa; e a luz da lua,
na campa fria e nua,
da cruz a sombra estira;
quando o cipreste Irèmulo,
(ins auras agitado,
entorna sobre os lunvjlos
um canto dolorido:
irei verter meu pranío,
soltar tristes endeixas;
e do cipreste ás queixas
irei casar meu canto.
Na lápida ?iiarmórea,
á noilc a sós proslrailo,
segredarei aos túmulos
meu canto magoado,
que ao ceu, o subtil bando
das auras, erguer hade,
as vozes da saudade
no espaço murmurando.
E lu ha>de escular-me, ó alma pura;
e hasdc pedir a Deus, saudoso amigo,
que eu \ença en)fim o mstl.e entre comllgo
na partilha do bem que sempre dura.
Cândido Figukuiedo.
RESPOSTA A UM TOLO
Um lí)lo exprobando a um lord o ler sidoaj)ren-
diz de barbeiro, o giande personagem respondeu-
Ihe:
(cA differcnça que ha entro vós c cu, é que, se
tivésseis sido aprendiz de barbeiro, ainda hoje o se-
rieis.»
Typ, I'ranr,o.pnrUiguc'za — Rua do Tlicsoiiro Velho, G.
2CL
o PANORAMA
^53
GIBRALTAR
Esla notável cidade, a fortaleza mais temível do glo-
bo, e uma das mais importantes possessões da Grã-Bre-
tanlia, está situada na extremidade meridional daílespa-
nlia, a beira do estreito do mesmo nome que liga o Me-
diterrâneo com o Oceano Atlântico. A natureza fizera o
rochedo, em que a cidade está construída, de diflicil ac-
cesso; a arte lornou-o inexpugnável. É um promontório
que está ligado ao continente por uma estreitíssima lín-
gua de terra de perto de 900 metros de comprimento. A
cidade conta 17000 habitantes. No tempo do ultimo cerco
foi completamente reduzida a cinzas, mas das cinzas re-
nasceu mais pomposa, senão mais bella, porque seoppõe
a isso a particularidade que vamos mencionar.
Todas as casas são pintadas de preto, em parte para
que os olhos sintam menos a reverberação dos raios do
sol, em parte para, em caso de ata*que tornar mais
dillicil ao inimigo o vel-as dislinclamente. Em Gibralta^r
reina o clima mais quente da Europa. Um calor africano,
temperado pelos ventos refrigerantes do mar, consente
que alli se cultivem todas as plantas meridiouaes. Não é,
como se poderia suppòr, um rochedo mi e estéril. Pelo
contrario, nas suas anfractuosidades, as cabras e os car-
Gibraltar.
neiros achara alimento sempre verde, e nâo ha uma pol-
legada de terra que não esteja coberta de arvores de fruc-
to de toda a espécie, umas crescendo espontaneamente,
outras pertencendo a espécies aperfeiçoadas pela cultura.
Gibraltar é também o único ponto do novo continente,
em que se encontram macacos; e quer a tradição que
para alli viessem pela Gruta de S. Miguel, profunda ca-
vidade toda coberta de stalactites, situada ao pé do cume
do rochedo, de que se não encontrou o fundo, e que se
julga que forma uma via de communicação submarina
icom o continente africano.
Foi em Gibraltar que embarcaram os Vândalos para
irem invadir a Africa, alli, em paga, desembarcaram os
Árabes para virem invadir a Hespanha. Tarik fundou uma
fortaleza, que teve o nome de Geb-al-Tarik, etymologia
do nome actual. Em 1302 tomou-a aos Moiros Pernando
II de Caslella, reloraaram-iva elles em 1333; mas, durante
o reinado de Henrique IV de Castella, lomou-lh'a defi-
nitivamente o duque de Medina Sidónia.
Carlos V foi o primeiro que percebeu a importância
d'esta praça, e que principiou a fortifical-a formidavel-
mente.
Corremos ligeiramente por estes primórdios da historia
de Gibraltar, porque queremos dar circumstanciada noti-
cia aos nossos leitores dos cercos, que fizeram a sua
reputação, e que são eíTeclivamente das paginas mais in-
teressantes da historia militar. Para isso traduzimos uma
porção do artigo, que a este respeito escreveu o sr. A.
Tardieu na Encijclofedxa moderna.
«Não daremos, diz o distinclo escriptor francez, um rol
exacto das fortificações que, nos tempos modernos, senão
tem deixado de atcumular desde Carlos V cm todo os
pontos d'esle rochedo, posição militar talvez única no
mundo. Mas, como nos fallao espaço, limilar-nos-hemos
a fazer conhecer o estado em que os trabalhos successivos
do illustre Daniel Specke, do príncipe d'Hesse, d'Hornec,
e do coronel Monirésor pozeram o lado seplemtrional,
quer dizer a parle mais inaccessivel; por ahi se poderá
•154
O PANORAMA
avaliar a força do rcslo. Sem fallar cm casamatas llan-
queadas por* canhões do mais grosso calibre c ligadas
t-iilre si i)or galerias coberlas, e uma linha dentada
dfe baterias dispostas em escalão sobre diversas alturas,
entre as formidáveis baterias WiUis, c a do liocli-Morlar,
com que se coroa o vértice da montanha, ahi vai cm
scguiila a enumeração das obras, que dominam a com-
mònicaçâo única aberta entre a cidade e o continente,
calçada\le seis para sele metros de largura, apertada cn-
lre*o mar e essa lagoa ou inundação artilicial de que o
principe de Ilesse teve a primeira idea, e que foi acaba-
da pelos seus successores. De frente csla calçada é de-
fendida por uma cortina, chamada a grande' bal cria, c
por dois baluartes, (pie se apoiam um no mar outro no
escarpado do rochedo. Esla frente, que cobre a cidade
pelo lado do norte, é precedida por um grande fosso sem
agua, por um caminho coberto, por uma praça de ar-
mas, e por esplanadas minadas. Á direita da calçada e
por cima da inundação, o escarpado, dividido na sua al-
tura em muitas parles, forma outros tantos degraus ou
terraços inaccessiveis, que se chamam linhas do Kei, li-
nhas da Rainha, c linhas do Príncipe. Por outro lado, á
direita da grande cortina, asseie baterias do caslello dis-
postas em escalão segundo o traçado das linhas dentadas,
e as baterias de Jlanovcr, e da rainha Carlota á esquerda
do baluarte do norte, o cavalleiro da montanha, e a ter-
rível bateria do Velho xMoIhe, que entra pelo mar, á ílor
(Kagua, cruzam sobre o mesmo ponto fogos por tal for-
ma fulminantes, que no grande cerco de 1779, os hes-
panhoes deram a esta entrada da cidade o nome de boca
de fogo.
<' Todos sabem que foi em 1704, quando eslava mais
accesa a guerra da successão da llespanha, que a cida-
della de Gibraltar caio nas mãos dos inglezes, alliados
do archiduquc Carlos. Mas o facto foi contado de dtíTe-
rentes maneiras. Uns dizem que o almirante sir Jorge
Rook, envergonhado de ainda nada ler feito com a bella
esquadra que commandava, reunio próximo de Teluão
um conselho de guerra, no qual, lendo sido proposta uma
nova tentativa sobre Cadiz, e regeitada como impraticá-
vel, por falta de tropas de desembarque, se decidio ata-
car-se (librallarque se sabia que tiidia n'essa occasião uma
guarnição insuíTicienle. Por conseguinte, no dia 21 deju-
Iho, ai)resentava-se dianle de Gibraltar a esquadra com-
binada da llolhinda e da Inglaterra; o príncipe d'IIesse-
Darmsladt desembarcava com mil c oitocentos homens no
isthmo arenoso para cortar toda a communicação entre
a cidade c o continente, c intimava o marquez de Salinas
governador para eniregar a praça ao archiduípic; re-
cusando o marquez, o ataque, demorado dois dias por
causa do vento contrario, principiava no dia 23; os ca-
j)itãcs Ilick, .lamper, c V\'hitaker apoderaAam-sc das for-
liíicações do No\ o .Molhe, abandonadas pelos hes|)an!ioes, e
Salinas, vendo o inimigo senhor de uma i)arle dos fortes
do sul, aceitava a capitulação olíerccida. Mas, segundo ou-
tra versão muito mais cs*palhada, depois do bombardea-
mento, alguns marinheiros ébrios tinham ousado desem-
barcar, do lado da ponta da Europa, n'um sitio (pie se julga-
va inacccssivel. Ilidiam conseguido escalar o rochedo e fazer
prisioneiras todas as mulheres da cidade, que haviam saldo
para irem a uma pequena capella dedicada á Virgem da
Europa; o (pjc decidira Salinas a capitular. Eouvillc, nas
suas Memorias, acciísa formalmente o go\erno hespanhol
<le não ler feito caso do aviso (pie o duque de (iram-
mont, embaixador de França, IIk; dera de uma próxima
tentativa da Inglaterra sobre Gibraltar.
"Fos.se como fosse, dcfiois de lomada a cidade, deve-
mos prestar justiça aos hespanhoes dizendo que fizeram
todos os seus esforços para a relomarcm. Logo, no dia
11 de outubro de 17iií, o marquez de \illadarias abria
a trincheira diante de (iibrallar, á lesta de forças IVance-
zas e hespanholas, mas sem ter podido impedir (pie a
praça fosse abastecida jiorsir .lohn íj-ake. Foi neste pri-
meiro assedio, no dia . 'ti de outubro, (pie uns voluntários,
debaixo das ordens do coronel Figuerra, e, guiados por
um cabreiro do sitio, chamado Simão Fusarle, |)assando
pela Ovcbradiira, proxiaio da Care-Guard, conseguiram
;ilojar-se, sem terem sido vislos, na espaçosa caverna de
S. -Miguel, d"onde tornando a sairtpiandofoi noite fcciía-
da, escalaram a muralha de (".arlosV c mataram a guarda de
Middle-hill desde o primeiro al(> ao ullimo soldailo; se
são sustentados conseguiam iiifalli\elmenle tomar a pra-
ça; mas espalhou-sc o alarma na cidadclla, e os assaltan-
tes foram repellidos com perda de cento e sessenta ho-
mens.
»N"uma segunda teníaliva, no dia 12 de janeiro de 1705,
quinhentos a seiscentos granadeiros francezes e walões,
sustentados por mil hesiianhoes, ás ordens do tenenlo
general Tuy, tomaram d"assalto duas brechas, uma cha-
mada da Torre //cí/oju/íí, na extremidade das linhas de Fi-
liei, a oulra mesmo no entrincheiramento da montanha,
que Yilladaria sabia que e.-lava quasi abandonado acerta
hora do dia. la ser tomada a cidade (piando uma carga
de.-esperada (Puns qualrocontos ou (piinhentos homens,
commandados pelo tenente coronel Moncal, repellio os
inimigos para fora das fortilicações. Depois d'esle segundo
assalto Villadarias foi substituído pelo marechal de Tessí?,
que, apezar do poderoso concurso de Ponlis, encarregado
lie bloquerr o ])orto com a sua esquadra, nada pôde em-
preliender por causa do máo tempo, e teve ali', depois
de sir John Leake abastecer pela segunda vez a praça,
de retirar as suas tropas para fora das linhas, e de se redu-
zir, mesmo por terra a um simples bloqueio. Assim terminou
o primeiro cerco, que custou aos alliados mais de dez
mil homens.
«Depois interveio o tratado d'Ulrechl, cujo artigo 10."
cedia á Grã-Brelanha, sem a minima reserva, a plena e
inteira propriedade da cidade e do castello de Gibraltar
conjiinctainente com o porto, e com as defezas c fortifi-
cações que lhe pertencessem. Mas, como (^natural, esla ces-
são custara muito á Hespanha; e cm 1720, cerlo de que
0 seu governo lhe não recusaria o apoio moral, o mar-
quez de Leda, sob pretexto de soccorrer Ceuta, cercada
pelos Moiros, reunia uma força importante, na intenção se-
crela de surprehcnder.Gibrallar. Ainda (Festa vez foi esse
projecto descoberto, e a praça abastecida e soccorrida a
lem|)o pelo coronel Kane, gcívernador de Miiiorca,
«Por essa mesma occasião esteve a diplomacia quasi
para restituir á Hespanha o que* a força e a astúcia não
tinham podido enlregar-lhe. Disse-se, e* iiarece certo, que
Fhilippe V só consenlio em entrar na Quadrupla Alliança
depois do regente de França lhe ter assegurado (jue Gi-
braltar lhe seria restituída proximamente; ab^. existe, nos
Archivos da Coroa em Madrid, uma caria d'el-rei Jorge
1 de Inglaterra, em que essa restituição é formalmente
promellida. A aulhenticidade d'essa carta, bem que seja
atacada na Inglaterra, é hoje reconhecida geralmente, e,
se no duplo Iralado de 13 e 14 de Junho de 1727 senão
faz allusão alguma a essa |)romessa real, sabc-se, por o
ler dito o próprio lord Stanhope embaixador em Madrid,
que fora recommendado o silencio a esse rcs[)eilo ao ga-
binete hespanhol, para seu próprio interesse, afim de
não sobrcsalíar a nação ingleza. Philippe V reclamou;
mas não se fez caso*(ressa reclamação; e ali; cm 17'Z8,
depois de um inquérito solemne do parlamento de In-
glaterra, as duas camarás unanimemenlií intimaram el-rei
Jorge, para nunca, nos seus tratados ulteriores, abando-
nar os direitos incontestáveis da nação ingleza sobre esta
preciosa conquista. Não tinham os hes|)anlioes pois outra
esperança que não residisse na força das armas. Em 1730,
sendo governador de (jibrallar o general Sabine, princi-
piaram os hespanhoe? a construir os fortes de S. Fhilip-
pe do lado (la baliia, e o de Santa Itarbara do lado do
mar, ligados entre si |)or essas formidáveis linhas (pie apenas
íicam a uma milha de di.slancia do rochedo; por occasião
do grande cerco e do bombardeamento da cidade (1781)
sentiram os inglezes o erro (pie haviam commeltido cm
não impiieíar e impedir a conslrucção d'eslas linhas.
«Temos pressa de chegarão assedio memorável que fez
a reputação mililar de (id;rallar; por isso não insistimos
na conspiração de Reed, soldado do 7;{ de linha, (jue,
movido por um desconlenlamenlo ipiahpier, tentou en-
tregar a praça aos hespanhoes, e (piasi (pie oconseguio
(17li(lj. Emqiianlo a guerra (le 17(i2, rebentou e acabou
Ião de repente, ipii; nem os hespaidioes tiveram tempo do
preparar uma e\|)(>diçã() s(}ria contra (iibrallar, mas a guer-
ra da independência (ia America ingleza, cm que o gabinelo
hesjianhol |)odia contar com unia diversão poderosa ecom
o PANORAMA
0 0
o aclivo concurso da França c da IloIIanda, pareceu com
r;i/ão uma occasião única de Icnfar um supremo esforço
(lo lado do rochedo inexpugnável. Tendo o maríjuez de
'\lnn)du\al, no dia IG dejunlio de 177!), apresentado acorle
de Londres a declaração da guerra, cessou, no dia il do
mesmo mez, toda a communicação eníro (libra.llar c a lies-
l)anha, e no dia o de julho principiaram as lioslilidades.
«Constava cnlão a guarnição do seis mil Irezenlos e
oilcnla e dois homens, eiilrando olliciaes; mas o go-
^ ernador Jorge Augusto Llliott, que linha sido nomeado
para esse posto importante por causa de uma ferida re-
cebida na batalha de Detlingen, e por ser\iços eminentes,
que prestara como engenheiro em 1777 no cerco de Ha-
vana, era um prodígio de bravura, de sangue frio, e de
abnegação. No dia 10 de julho l)loqueiam os hespaidioes
o |)orto; no dia 2G estabelecem os seusarraiaes na planí-
cie de S. iloque. No principio de outubro o corpo dos
cercadores consistia em quatorzc mil homens, commanda-
dos pelo tenente general D. Martin Alvarez de Solo Mayor.
os (piaes liidiam já soflVido muito com uma iincnção riova
do capitão inglez Mercier, que vinha a ser umas granadas
e uns balazios ocos de cinco pollegadas e meia munidos
de um foguete, bellico artificio que durante o cerco todo
os assaltantes procuraram imitar, sem nunca o consegui-
rem. Os Ir.ibalhos tios hespanlioes avançavam vagarosa-
nieníe, tanto mais quanto os inglezes, do cimo de uma
plataforma acabada liavia pouco e chamada Rock Morlar,
descobriam os seus mais leves movimentos tanto nas li-
nhas como nos arraiaes. Com o anno de 1780 a fome, em
consequência do rigor do bloqueio, declarou-sena cidade;
mas no dia 18 de janeiro, o almirante sir Jorge Roduey,
depois de ter batido a esquadra hespanhola e de ler feito
prisioneiro o almirante D. Juan de Langara y Uuarte,
que a commandava, conseguio abastecer a praça. I*arle,
e logo no dia 27 o almirante hespanhol IJarcelo reforma-
\a o blocpieio. Todavia não se limitava a isso a actividade
tios marinheiros hespanlioes, e o diário do cerco falia de
frequentes tentativas nocturnas, que, mais do que tudo,
fatigaram a guarnição. A primeira, na noite de G para
7 de junho, compunha-se de nove brulotes dirigidos, seis
em forma de crescente contra os navios fundeados no
Molho Novo, e Ires contra a náo Pantlwra, que se achava
luiideada na Bucnavisla. Na dala do 1." de outubro de
1780, a guarnição achava-se n'uma .situação deplorável;
atacada pelo escorbuto, falta de viveres, e"dizimada todos
os dias pelas canhoneiras e bombardas, teria talvez suc-
cumbido se então se tivesse lenlado um vigoroso ataque;
masemvez de atacarem, entretinham-se os hespanhoesa fa-
bricarobrasd'assedio e a continuar um bloqueio inútil. No
dia 12 de abril, estava a praça de novo abastecida, e a occa-
sião perdida de vencer os sitiados pela fome não se lornava a
encontrar. Depuro despeito, os hespanhoes bombardearam
a cidade, que logo foi convertida ifum montão de cinzas,
sem f[ue uma só casa ficasse de pe. Ao mesmo tempo as
tentativas nocturnas das canhoneiras e bombardas lorna-
\am-se mais frequentes e ameaçadoras, até porque o ge-
neral Elliott, para poupar as suas munições de guerra, pro-
hdiira que fizessem fogo sobre ellas; mas, como avançavam
cada vez mais, lembrou-sc de mandar fundear a meio tiro
d"espingarda da frente do Novo Molhe um Iirigue raso,
i!i'pois de collocar cm frente do Molhe Velho um morteiro de
treze pollegadas, atraz seis canhões a 42." de elevação. Ora
no dia 28 de junho, quando pela primeira vez se ensaiou
esie novo meio de defeza, houve susto geral no acampa-
mento dos hespanhoes; e um batalhão, que se achava em
armas, foi dispersado Ires vezes,
«Desde esse dia todas as vezes que as embarcações fa-
ziam fogo para a cidade o Molhe Velho rcsiiondia para o
acampamento, hespanhol ; mas se o bombardeamento,
no dia 1 de jullio, tinha (|uasi completamente cessa-
do em compensação eslreitava-se sempre o blo(pieio;
por isso os sitiados recorriam mais vezes ás sortidas.
No dia 27 de novembro principalmente, ás Ires horas
menos um quarto da manhã, houve uma muito felizmen-
te dirigida pelo brigadeiro Uoss, a quemilLlliotl se
I untara como simples voluntário, e que assombrou os
hespanhoes; as obras avançadas foram completamente dcs-
Iruidas pelo fogo, encravados dez morteiros de dezoito polle-
gadas e dezoito canhões de calibre vinte e seis.
«Emquanto os siliadores trabalhavam em reparar o estra-
go o mais depressa possível, Elliott multiplica\a-se, prepa-
rava melhores abrigos aos artilheiros, mandava ensaiar um
novo reparo inventado pelo tenente deartilheriaKohler,com
cujo auxilio se jiodia apontar em todos os ângulos, entre
'20." acima e 70." abaixo do horisonte, o que permiltio
varejar com favorável succèsso as obras avançadas do
inimigo, sobretudo a bateria de S. Carlos. No "principio
de abril de 1782, correndo a noticia que se approximava o
momento critico c que se faziam enormes preparalivos
em Cadiz e nos portos do Mediterrâneo, que ia chegar
o du(|ue de Crillon com o conde de Artois e o diupicde
Bourbon, e um celebre engenheiro de Arçon de quem se
espcra\'am maravilhas, Elliott mandou distribuir pelas ba-
terias da praça fornalhas para pôr em braza as lialas, e
no dia (1 de "setembro um fogo de balas rubras, jjom di-
rigido pelo general Boyd, segundo commandante da pra-
ça, reduzia a cinzas a bateria Mahon, a do llanco, e a
parallela adjacente, e arruinava gravemente as baterias
de S. Carlos e de S. Martinho. Ora altribuio-se a esto
desastre inesperado a precipitação com (pie foi ordenado
e distribuído o ataque geral, eque deitou a perder sem re-
curso algum todo o succèsso do cerco. Consta com elleito
que, no dia 1) tlc setembro, quando o duque de Crillon
mandou abrir o fogo, muitas das suas baterias esla\am longe
de estar acabadas. Seja como fòr, o apparato bellico de-
senvolvido pelos assaltantes ainda era formidável; do lado
da terra, obras admiravelmente executadas, armadas com
duzentas c cincoenla bocas de fogo, e defendidas por qua-
renta mil homens, commandados por um general, até
então habituado a vencer, e animado pela presença de dois
príncipes da familia real de França; do lado do mar qua-
renta e sele náos de linha e uma quantidade innumera-
vel de fragatas; brigues, canhoneiras, bombardas, e cha-
lupas flucluantes, e coroando isto as dez baterias lluctuan-
les de Arçon, insubmergivcis e incorabustiveis, laes
eram os jioderosos meios de destruição que iam ser
emj)regados para subjugar uma guarnição de seis mil ho-
mens, prostrados pela fome e pelo cançasso.
«As cortes de ílespanha e de França, cancadas de verem
prolongar-se indelinirlamenle o inutif bloqueio de Gibral-
tar, com que se divertiam a Europa e os próprios sitia-
dos, tinham, havia muito tempo, pensado seriamente em
tomar esta fortaleza por algum meio extraordinário, con-
tra o qual a sua posição inaccessivel, asna formidável ar-
lilheria, e a habilidade do general Elliott fossem insulTi-
cientes. Houve então uma como que aposta entre os en-
genheiros a ver qual inventava planos mais audaciosos e
extravagantes. Propunha-se formalmente construir na frente
das linhas de S. Roque um enorme cavalleiro, que, le-
vantando-se ainda mais alto do que Gibraltar, lhe tirasse
o seu principal meio de defeza. O aulhor calculara a quan-
tidade de loezas cubicas de terra que ahi se deveriam
amontoar, o numero de braços que eram precisos, os dias
que se deviam gastar., e provava que esse prodigioso traba-
lho seria menos dispendioso e menos mortífero do que a
continuação do cerco do modo como fora principiado. Outro
imaginara as bombas asphyxiantes. O projecto de Arçon,
engenheiro natural do Franco-Condado, fixou mais seria-
mente a attenção do governo hespanhol; mas esse projecto,
tão bem concebido, foi mal executado, e gorou por um
concurso de circumslancias que o génio de Arçon não
podéra prever.
«Dez galeras tinham sido conslruidas de modo que apre-
sentassem aos fogos da praça um costado coberto de uma
blindagem de trcs pés de espessura e conservado n'um es-
tado continuo de humidade por um mecanismo muito en-
genhoso |)ara (pie as balas rubras se apagassem no mesmo
sitio em que peneirassem. Primeira medida que só foi
executada imperfeitamente; a falta de geilo dos calafates
impedio o jogo das bombas que deviam alimentar essa
humidade- Só a bordo de umad'ellas, aTallapiedra, é que
isso se realisou. Em segundo logar as posições, designadas
a cada uma das galeras depois dese ler sondado escrupu-
losamente, não foram observadas; e D. Ventura Moreno,
marinheiro valente, mas incapaz de combinar e de exe-
cutar um plano, mettido cm brios por uma carta em que
o general franccz Crillon lhe mandava dizer no dia 12 de
setembro á noite: «Tel-o-hei por covarde se não dér
156
O PANORAMA
começo ao ataque >- não tomou tempo de concertar bem
as su*as medidas, nem sobretudo de bem calcular as dis-
tancias. O que resultou doesta precipitação? Só duas galeras
poderara collocar-se na distancia convencionada, a duzentas
lo^zas da frente da praça, a Pastora, commandada pelo
próprio Moreno, e a TÍilfa-Pjcdra, dirigida pelo príncipe
de xNassau, e onde estava Arcon; e de mais a mais (i-
caram expostas á bateria mais temível, a do l)aluarlcreal,
emquanto no projecto de Arçon deviam estar todas
asrupadas defronte do Velho Molhe e receber só de lado
os fogos d"esta bateria. D'este modo essas duas galeras
soíTreram mais do que olTenderam. A Talla-Picdra, .sobre-
tudo recebeu um golpe mortal. A despeito da blindagem
uma bala rubra penetrou na parle secca do navio. O seu
eíTeito foi vagarosíssimo. A galera rompera o fogo pelas
dez horas da manhã; a bala cravou-se-lhe no costado das
três para as cinco, e o incêndio só rebentou de um modo
irremediável à meia noite. Ao lado a San Juan teve a
mesma sorte. Parece averiguado que as outras oito fica-
ram intactas. Para cumulo de desventuras faltaram a um
lempo todos os recursos; ancoras de soccorro, chalupas
para receberem os feridos, ele. O ataque devia ser apoiado
por dez navios de guerra, e por mais de sessenta chalu-
pas, canhoneiras e bombardas; nem canhoneiras, nem
chalupas, nem vasos de guerra appareceram. Emíim Arçon
contara, para reduzir a silencio a arlilheria da praça com uma
superioridade de mais de duzentas peças. No momento
do ataque, os assaltantes não tiveram senão sessenta para
setenta peças a oppôr ás duzentas e oitenta dos si-
tiados. Além d'isso a esquadra combinada conservou-se
espectadora immovel do combate. Guiché, commandante
da esquadra franceza, mandar propor a Moreno suslen-
tal-o; este recusou.
«Voltemos á scena de desordem e de horror, que se
seguio ao incêndio da Talla Piedra. No dia 14 de setem-
bro, áuma hora da manhã, estava essa galera devonida
pelas chammas; a o fogo como dissemos, pegára-se aba-
teria próxima, a 5fiíi /hoíí; ás quatro horas oito ílucluantes
estavam a arder. O capitão inglez Curtis parlio então com
as suas embarcações para ver se salvava uma porção das
tripulações; mas a explosão de duas das ílucluantes,
que até fez sossobrar um dos seus barcos, interrompeu-o
n'essa missão de humanidade, esó pôde levar para terra
nove ofiiciaes, dois capellães e trezentos e trinta e quatro
soldados e marinheiros. Ás onze horas mais três baterias
vão pelos ares, e outras ardem à flor d'agua. Ainda res-
tam duas ílucluantes, pega-se o fogo a uma, e os Ingle-
zes, não podendo capturar aoutra, incendeiam-n'a. Na tar-
de do segundo dia já nada existia d'essas terríveis machi-
nas de destruição. A perda dos alliados, n'esle funesto
dia 13 de setembro passou de dois mil homens, emquanto
que os inglezes contaram apenas ao todo um oílicial e
quinze soldados morlos e sessenta e oito feridos. Houve
por occasião d'este desastre um jogo de amaríssimas re-
criminações entre as quaesserá custoso reconhecer a ver-
dade, d duque de Crillon, nas suas memorias, procurou
justificar-se. e attribuir ao conde de Florida-Hlanca a res-
ponsabilidade de uma precipitação, que não permiltira
travar o combate como elle merecia travar-se. Arçon,
pela sua parte, publicou, além das Memorias para servi-
rem á historia do cerco de Gibraltar uma jusliíicaçãoem
regra do sou projecto c do seu procedimento, debaixo
do titulo de Conselho de fjurrra privado sobre os aconte-
cimentos de Gibraltar em 1782; mas o que os justifica
melhor a um e outro é essa nova actividade que elles de-
senvolveram para continuarem o cerco de Gibraltar se-
gundo um novo pbino que a imaginação viva e fecunda
de Arçon de novo concebera. Conseguira elle abrir uma
entrada no próprio rochedo do lado do Mediterrâneo, fa-
zendo ir pelos ares as baterias baixas da fortaleza, depois
fizera uma segunda abertura na entrada da vereda que se
estreita entre 6 sopéíla montanha e o Mediterrâneo, e (|ue
vai ter á ponta da Europa; mas não llies foi dado ver o
eíTcilo d'estes novos trabalhos, que fizeram, segundo .se
diz, estremecer Ellioll quando, depois de levantado o
cerco, os vio pela primeira vez, porípie no dia .'{ de fe-
vereiro de 17S.'{ o duque deOillon informava Eliiol que
estavam assignados os preliminares da paz geral, e, Ires
dias depois, que eslava levantado o bloqueio marilimo.
Em fim no dia 10 de março trazia a fragata Theiis a no-
ticia oflicial da paz; e no dia 13 Crillon e Elliott tinham
uma entrevista a meio caminho dos entrincheiramenlos
hespanhoes e da base da penedia.
«Assim terminou, depois de Ires annoséele mezes edoze
dias de duração, um dos cercos mais memoráveis dos
tempos modernos, e que assegurava para lodo o sem-
pre a Inglaterra a posse d'esla chavo do Mediterrâneo.
KARL CIIRISTIAN RAFN
Celebfe antiquário e philolo.iío dinaniarquez.
Nasceu no dia 16 de janeiro de Í79o em Braborg
na ilha de Funen; morreu em 20 de outubro de
1864 em Copenhague. O trabalho ao qual Rafa
deve, principalmente, a sua notoriedade europea,
foi a grande obra d'elle acerca das antigas nave-
gações dinamarquczas e noroeguezas na Groenlân-
dia e nas plagas N. E. do continente americano,
obra que foi publicada, em Copenhague em 1837,
em um grosso volume em i.° com o titulo de An-
tiquitates Americanae, seu Scriptores septentrio-
nales rerumanlecolumhianarum in America. kM^m
d'este importantíssimo estudo, muitos outros tra-
balhos, lodos relativos ás antiguidades históricas
e geographicas das altas regiões do norte, occupa-
ram a longa carreira d'este laborioso sábio. Tra-
balhos d'aquella natureza haviam-se tornado para
elle um verdadeiro culto; foi, pois, para lhes im-
primir maisunidadee actividade que em 1825 pro-
moveu e organisou a fundação da celeberrima Socie-
dade dos Antiquários do AW/e de quefoi secretario
perpetuo e alma d'ella até ao fim da sua vida.
lia poucas sociedades na Europa, que hajam
assignalado a sua existência por trabalhos tão nu-
merosos como di Sociedade dos Antiquários do Nor-
te. Além de uma serie já considerável e sobeja-
mente importante de volumes de memorias, deve-
se-lhe uma coUecção em 3 volumes das «Historias
heróicas do Norte ou dos Sagas mylhicos ou de
imaginação»; uma «Colleção dos Sagas históricos do
Norte» egualmente em 3 volumes; o Livro das tra-
dições de Fceroe (Fícreyinga Saga) com commen-
tai*ios críticos; os «Monumentos históricos da Groen-
lândia,» em 3 volumes; as «Antiguidades russas;»
em dois volumes; etc. etc. Todas estas obras, tex-
to ou traducções são em dinaniarquez; algumas,
porém, são acompanhadas de traducções latinas, ou
teem sido vertidas 'para allemão.
Aquella lista é muito incompleta e Rafn colla-
borou prodigiosamente na maior parte de todas
essas publicações.
Alfredo May
Que esta (jualidade tom a virtude, todolos
trabalhos estimar pouco e os vícios muito menos.
Francisco de Moraes.
Do homem, que é mau do berço á sepultura,
Uma íl coisa á natureza deixam
Os hábitos ruins que não pervertam;
Do coração é o ])rimeiro impulso.
Garrett
o PANORAMA
4 57
Gibraltar (fortaleza)
A BOCCA DO INFERNO
IV
D. Thereza deixou Cascaes, passou o inverno e
verão em Lisboa, e no outono voltou a tomar ba-
nhos. Luiz de Mello, que durante todo este tempo
continuara as suas apaixonadas relações com Chris-
lina, vinha vel-a a Cascaes muitas vezes. A sr.**
morgada é que não podia conformar-se com a lem-
brança de sua filha se apaixonar por um homem
que, sobre não ter capitães, andava habitualmente
mar em fora, e devia por tanto ser um péssimo
marido; ella, que se não cançava de contar
os seus amores com o morgado, que vivera sem-
pre junto delia, sem embargo, accrescentarei eu,
de lhe fazer por fora suas infidelidades, segundo
era voz publica.
Era uma santa creatura D. Thereza de Brito!
Revia-se nos filhos, porque ambos, dizia ella, lhe
recordavam o defunto marido. Tinha um os olhos
do morgado, outro a bocca, cambos a alma! Como
ella fazia esta ingénua partilha da alma do morga-
do, que talvez eslava então dando contas a Deus!
No seu amor de mãe sonhara um dia com o fi-
lho embaixador e a filha viscondessa. D. Thereza
achava immensamente eufonica a palaíS'ra viscon-
dessa, titulo que lhe parecia fácil de adquirir,
tendo Christina, além dos alimentos que lhe per-
tenciam, um bom dote em bens livres, que o de-
lunlo morgado adquirira e não quizera encorporar
no vinculo para deixar a filha em melhor situa-
ção.
Ora ver D. Thereza que Christina desprezara
óptimos casamentos para agora se apaixonar por
Luiz de Mello, causava-lhe grande desgosto.
Por algum tempo a sr.^ morgada contentou-se
em dirigir a sua filha mil exclamações de espanto.
Depois passou a um monologo quotidiano de ex-
probações. Finalmente, como visse que nem con-
selhos* nem boas razões afastavam de mau trilho
o coração da donzella, procurou obstar por todos
os modos á continuação das suas relações com Luiz
de Mello.
Christina, firme no meiod'esta lula, sugeitou-se
ás deliberações de sua mãe, ofTerecendo a melhor
de todas as resistências, a resistência passiva.
Amando Luiz como ella o amava, podiam ati-
çar-lhe paixões ruins de ambição e soberba, que
iodo o empenho seria baldado. Esta é, se não a
maior, uma das grandes virtudes do amor, n'este
século em que tudo se sacrifica ao interesse e ao
egoismo.
Mais do que as considerações de D. Thereza valia
o amor de Christina, que se alimentava de espe-
ranças, como todos os amores, esperanças muitas
vezes irrealisaveis, mas que teem o dom precioso
de enganar. É o mel com que Deus adoça as bor-
das do cálix de absynthoquc o pobre amante che-
ga aos lábios, e no qual, como disse o Tasso no
4 58
O PANOiLVMA
primeiro canto do seu poema, vae enganado be-
bendo a vida:
Surchi amari ingannato in tanto ei beve,
E clall'iDg.mno suo vita riceve!
Tso entanto, estas contrariedades constanleraenle
levantadas por D. Thereza faziam soíTrer muito
Chrislina, e arrancavam-Iiie lagrimas, t{ue era vez
de destruirem o sentimento parece que mais vigor
lhe dão.
Digam embora os felizes, os que do amor sú
provaram o mel, que são tolos os (jue lhe haurem
o absvntho, e consentem que o coração se lhes
esmigalhe debaixo do pezo dos soíTrinientos. Ouanlo
não valem mais; que myslico encaiito não tem
mais as lagrimas do amor verdadeiro e santo,
que os risos e as alegrias buliçosas do amor frá-
gil e vulgar!
Os que só tem sentido o coração pelas aíTeiçOes
ardentes e desinteressadas, os que no regaço da
mulher adorada teem chorado com cila as perse-
guições do mundo, esses comprehendcrão o amor
de Luiz e Christina, grandioso como todos os sen-
timentos sancliíicados com o baplism.o das lagri-
mas.
Oh, amor! amor! mysto da alma edos sentidos,
como te chamou Chateaubriand, de que a amizade
ê a parte moral, como ainda hoje fluctuas grande,
virginal, á superticie d'este oceano de paixões sór-
didas'em que se precipita a humanidade, impel-
lida talvez pelo destino da sua comdemnaçãol Só
tu, amor, no calaclysmo que arrasta para o abys-
mo tudo quanto é nobre e bom,e vae produzindo
uma subversão monsti'uosa na alma humana, sólu
não foste ainda envolvido! Surges, como o génio
da poesia e da saudade no meio das solidões, co-
mo o anjo que aponla para o futuro sobre as mi-
nas de um mundo que desaba, bello, grandioso,
imponente de magestade!
Digam embora os (|ue hoje sacriiicam só ao
bezerro de ouro, sem receio de que sobre elles
caia a cólera de um novo Moysés — que o amor foi
vencido pelo calculo, que a criança débil e meiga
ficou para ahi moribunda n'alguma encruzilhada.
É falso. O dinheii-o, estendendo por toda a i)arle
as suas garras de abutre, procuiando emi)olgar
ludo, até a consciência, ainda não chegou ao co-
ração. Está ahi a scenlelha divina, que Salanaz
não pôde apagar.
Digam embora que o amor passou com o mundo
antigo. >ão. Ouando aos pés da cruz victoriosa
expiravam as salurnaes da impudica Vénus, oamoi-
acompanhou o mundo moderno convertido em
culto do coração, em aspiração de uma alma para
outra. Foi um raio da luz sublime que illuminava
a fronte do Chrislo qucconverteu na alma de Mag-
dalena o amor maleiial e |)agão que comdcmna,
no amor espiíitual que salva eieg(!nera!
Eteino companheiro da humanidade, nasceu com
Adão no Paraizo, para só morrer com o ultimo
homem. Henrique Kleist apunhalando-se obede-
cia á sua inlliiciicia; liuckinghdm sanilicando um
exercito, e talv(.'z a |)ropria liiglateria, curvava-se
ao seu império; Nelson traindo a capitulação de
Nápoles ajoelhava, elle o vencedor, elle o he-
róe, aos pés de Emna Hamilton, que era para elle
a pe!'sonilicação do amor.
ccOuand Tamour — disse Madame Cottin — n'esl
pas une flamme qui cchaufl",', mais un feu qui
brule, qui consume, qui devore, il eloulfe toul,
tout, jusqu a la conscience!.»
(Continua.) A. d'OuveIRA PlKES.
APPLIGAGÃO DO BELLO AS SGIENCLVS,
As LETRAS E AS ARTES
As proporções e as relações reciprocas dos sen-
dos immateriaes são a base das dilferenças que
distinguem as sciencias, as leiras e as artes, assim
como as suas diversas escolas e os génios que as
teem i Ilustrado.
As sciencias, laes como a geometria, astro-
nomia, historia natural, geographia, etc, teem
por tim a aveiiguação do verdadeiro e dependem
quasi exclusivamente do sentido lógico.
As leiras teem por íim a imitação da natureza
ou a combinação dos factos naturaes, em uma nova
ordem, sob a inspiração do verdadeiro, do útil,
do sentimento da forma edo bello. Dependem dos
quatros sentidos intíiUectuaes; mãs, propoem-se
particularmente á união do sentido moral e do
sentido poético, isto é, o bello moral. Collocadas
entre as sciencias e as artes, comprehendem dois
géneros de trabalhos: sciencias lilterarias e artes
litterarias.
As sciencias litterarias, taes como a historia, a
philosophia, procuram o verdadeiro e o ulil, e de-
pendem especialmente do sentido lógico e do sen-
tido moral.
As artes litterarias, eloquência, poesia, arte
dramática, etc, buscam o verdadeiro, o útil, a forma,
o bello e particularmenteo bello moral. De|)endem
dos quatro sentidos intellecluaes, mas sobre ludo
do sentido poético.
As artes lambem, como a pintura, aesculptura,
a musica, a dança, ele. , teem por objecto a imita-
ção da natureza ou a combinação, em uma nova
ordem, das formas naturaes. Dependem dos (|ua-
tio sentidos intellecluaes e procuram o verdadeiro,
o útil, e o bello, mas com especialidade o bello plás-
tico.
Assim as letras, que unem as sciencias ás ar-
tes, dilVerem das primeiras, porque ajuntam á inves-
tigação do verdadeiro a do ulil, da forma e do bello;
das ultimas, porque dão á parle moral do bello
a preferencia, em quanto que estas a concedem á
parle i)laslica.
A jiropoição do sentido lógico, que caraclerisa
o pensador, com o sentido |)laslico, (jue caraclerisa o
arlisla, estabeleci! duas classes dislinclas em cada
ramo da artee da litleralura. Lns cingem-se mais
ás idéas; outros á forma; estes à força, aquelles à
graça. () mais j)ioximo da perfeição c o que, em
lugar de apresentar esse antagonismo eterno da
forma e do fundo, reúne, no mais subido grau o
em justa proporção, os dois elementos do bello.
o PANORAMA
4 59
É, applicaiulocs[c principio, que se poderá, com
algum resullado, comparar e apreciar os grandes
espirilos que, no mesmo género, são liabilualmenle
opposlos uns aosoulros: Homero c Virgílio, Aris-
loleles c IMalão, Tliiicydides e Xenophonle, Zeu-
xis e Pliidias, Tacilo e Tito Livio, Demoslhenes
o Cicero, Danie e Tasso, Miguel Angelo c Ra-
l)Iiael, Corneille e Racine, Glucke Piccini, e, en-
tre os contemporâneos, Hugo eLamartine, Cousin
e Villemain etc.
As relações do sentido poético com os senlidos
lógico, moral e plástico, ou do sentimento dobello
com o do verdadeiro, do ulil eda forma, dão con-
ta das diílerenles escolas artísticas e litterarias.
O fim geral da arte é a procura e a imitação
do bello que a intuição nos revela na natureza.
O fim da arte clássica é o ideal, isto é, a investiga-
ção de um bello um pouco excepcional no verdadeiro,
do útil edas formas naturaes. Exagerandoo seu prin-
cipio e afastando-se muito do real á procura do ideal,
pinta-se uma natureza de convenção.
O Romantismo c o nome da revolução que^quiz
conduzir a arte ao sentimento da realidade. Mas
foi alem do fim; e, em vez de procurar o bello no
real, julgou encontral-o no commum, que levou
até ao trivial, e ornal-o pelo extraordinário, que
perseguiu até ao desagradável, isto é, até ao con-
trario do verdadeiro, do útil e da forma natural.
Esta revolução produzio duas escolas românti-
cas, que ora se separam, ora se prestam mutua-
mente os seus erros: são o Realismo e o Fanla-
sismo.
O Realismo faz consistir o bello na imitação
pei feita do ri>al e na pholograpliia, por assim di-
zer, da natureza. É o Romantismo prosaico.
O Fanlasismo comparte com o Realismo o de-
feito de multiplicar as individuações e as descrip-
ções estudadas a uiicroscopio, e distingue-se por
uma afiectação de independência, pelo gosto do
extraordinário e pelo descommunal das proporções,
elfeito de óptica devido ao processo.
A arte néo-classica é uma escola de conciliação que
colloca u bello na alliança medida do real e do
ideal.
BAZIN
Sinologo fiancez, nasceu em Sainl-Crice (Scine-
et-Oise) em 26 de março de 175)9 efalleceuem Pa-
ris nos principies de 1803. Desde 18i3 professava
o curso de chinez vulgar na escola das linguas
orientaes vivas. Publicou no ISonvean jourual
asíal/f/ue numerosos trabalhos acerca da lingua e
liltcralura moderna da CJiina; entre outros muitos
um estudo importante intitulado le Siécle des Youcn,
ou Tableau hislorique de la_ liUeraiure chinoise
(18o0 — 18'>2.j No Univcrs píltoresque da livraria
Didot, a Cliine moderne de Bazin, que loi'ma o com-
plemento da Cliine andennc de Pautliier, é um
dos mui raros volumes que podem dar algum va-
lor serio áquella vasta compilação.
A. M\Y
ESCRÚPULOS HONROSOS DE DOIS HOMENS
ILLUSTRES
Mungo-Park, o primeiro c talvez ainda hoje o
mais interessante dos exploradores da Africa, li-
nha o costume de contar a miude, em intima so-
ciedade, muitos incidentes curiosos c engraçados
da sua celebre viagem à procura do Niger, inci-
dentes que havia omiltido na obra que imprimio.
Um dos seus amigos admirando-se d'isto, per-
guntou-lbc um dia a rasão.
— Sabe, replicou Mungo-Park, que fui a Africa
com a missão expressa de explorar certas regiões;
ora, importava muito que não somente as pesqui-
zas fossem feitas com consciência, mas que os re-
sultados dados ao mundo fossem Ião criveis como
exactos.
— De accordo, tornou o amigo; mas uma vez que
nas muitas historias que nos tem contado, coisa
alguma se nota que não soja Ião real como tudo
quanto publicou; i porque, sem motivo, privar o
publico de factos interessantes e tirar ao livro um
exilo ainda mais feliz?
— Não andei de levante no negocio, respondeu
o viajante. É possível que a narração d'essas aven-
turas dessem á obra uma voga ephémera; mas eu
punha a mira mais alto. Entendi que havia sido
chamado a cumprir um grande dever. Encarrega-
do de um trabalho importante, desempenhei-o con-
forme a minha capacidade o permiltio, e, cum-
prida a tarefa, senli-me ligado pela obrigação, não
menos grave, de dar á minha narrativa um tal ca-
racter de authenticidade, de boa fé, de que pessoa
alguma podesse suspeitar a menor parte. Se me
abstive de contar, aos que não me podem conhecer
senão pelo meu livro, as anecdolas que se afastam
do curso ordinário das coisas, e que não me atrevo
a dizer senão aos meus Íntimos amigos, é porque
temi que um fado estranho, por mais averiguado
que tivesse sido, fosse enlYaqrecer a auctoridade
do todo; não (jueria correr esse risco. <; Deveria
eu, pelo fútil prazer de fazer i-ir alguns ociosos,
ou fazel-os abrir muito os olhos, comprometter a
minha reputação de veracidade, da qual sou res-
ponsável perante o publico, que me elegeu seu ser-
vidor e delegado no vasto campo das descobertas?
Depois da morte de Mungo-Park, um escriptor
que preparava uma biograpliia d'este consciencioso
e perseverante viajor, dirigio-se a um dos seus
amigos, dotado de uma memoria das mais felizes,
e pediu-lhe a communicação d'essas anecdolas cu-
ja fama havia transpiíado fora do pequeno circulo
d'escolhidos.
Este amigo, que não era outro senão Waller
Scott, refiectio -um momento c disse:
— Não, não repetirei uma só palavra, embora
me estejam bem presentes, e eu convencido da sua
yeraciílade. Uma vez (|ue o meu honrado amigo
Mungo-i'ark, não julgou acertado, depois de ma-
duro exame, dal-as á publicidade, eu faltaria á sua
memoria contribuindo a fazel-as conhecer depois
da sua morte.
4 60
O PANORAMA
IMAGEM DA VIDA
...Embarquei de noite... Coisa alguma se po-
dia distinguir... Pouco a pouco foi apparecendo a
aurora; os objectos que me rodeavam tomaram a
principio formas confusas, depois foram-se tor-
nando mais claras, até que em fim o dia moslrou-
se inteiramente. Este foi cheio de peripécias e
de interesse: diversas perspectivas no horisonte;
ora borrascas, ora bonança e bom tempo; uma
companhia distincta, conversações variadas, A
viagem, que no momento da partida me pare-
ceu devia ser longa, não o foi. O tempo desap-
parecia com o rápido andar do navio... De-
pressa declinou o sol; as risonhas cores apagaram-
se e d'ahi a pouco apenas se divisava no espaço
essa infinidade de estrellas que nos enviavam de to-
das as partes a sua mysteriosa luz... Mas eu sa-
bia que o porto não estava longe, tinha confiança
em quem nos guiava, e fatigado, do dia, adormeci
em paz. — Tal é, me parece, a historia de uma
vida.
O JANOTA LITTERATO
Do janota lilleralo
Eu vou tentar a pintura ;
Se ficar bom o retrato
Heide comprar-lhe moldura,
Obra de laltia em ornato.
Não faltarão estrangeiros
A pasmar dos meus pincéis;
Conto já com bons dinheiros,
E vencer os Raphaeis,
Que em lojas pintam letreiros.
Um janota bem pintado
Enfeita sempre uma sala,
Na parede pendurado;
Toda a bella se regala
Em lhe gabar o frisado.
E se ajunta este idiota
Ser esbelto ao ser la fui,
Como prodígio se nota.
Porque c ouro sobre azul,
Luz da testa até á bota.
Comecemos: — bigodinho
Nas guias enserolado,
O cabello frizadinho,
O gargalo levantado
A saltar do colarinho.
Chapellinho posto á banda
Em ar de certo desdém,
Camiza de fina hollanda,
CoUete, que mostra bem
Quanto nos bolsos chalo anda.
Casamiirilio aprimorado,
Botirina de polimento,
Um charuto desmarcado,
Que lança fumos ao vento...
E eis o janota esboçado.
Mas janota— e litterato —
E tão chistosa figura,
Que se requer fino lacto
Em quem fizer a pintura
Desle sábio carrapato.
Comtudo para pintal-o
N'um botequim vou entrar :
Eis lá vejo um a camllo
N'uma cadeira, a fumar
Monstruoso, havano talo.
Falia d'um drama, portento
Que saiu da sua penna:
«Original pensamento 1 »
Diz, sem ver que á lusa scena
Tem ido eguaes mais d'um cento.
Eis surge um severo crilico
A castigal-o, sem dó;
Fica o auctor paralytico,
Afoga as magoas n'um grog,
Tacha o censor d'impolUico.
Outro apregoa o seu chiste
Por diversos botequins,
Diz que n'elle o sal existe,
Que leiam seus folhetins,
E acaba tudo que é triste.
Este com grande ousadia
A um bom auctor faz offensa.
Outro mui parvo elogia...
E os aprendizes da imprensa
Corrigem-lhe a orthographia !
Aquelle em phrases mui ricas
Louva as modas invasoras,
Gaba das bellas as nicas,
E para agradar ás senhoras
Faz o papel de maricas
Descrevendo uma soirée
Aquelfoutro estraga a tinta;
Um grande sábio se crê...
Mas em loleima requinta
Cuidando que alguém o lê!
Fiz um péssimo retrato...
É bem grande a minha dor!
Trabalhei por ser exacto,
Mas não pude ser pintor,
Nem fingir de lilteralol
Quiz pintar... e causei dó
Por não estudar cm Roma!..
Dá-me ó Marrarr um lirò,
Que hei-de guardal-o em redoma,
E polo sobre um tremo.
J. I, D ARAÚJO
— Um tyranno.
Quando deixa de o ser, c sempre escravo.
Garrett
A vingança é viriudc e c peccado;
l*eccado (;m(|uanlo mal a executamos,
Virtude emquanlo só por zelo honrado
As afTronlas do próximo vingamos.
Braz Garcia de Mascarenhas.
Typ. Franco-Portugueza. Rua do Tlicsouro velho, C
21
o PANORAMA
i61
UMA RUA DE ALBANY
Os Eslados Unidos acabam de passar por uma
longa e dolorosa crise. A republica fundada por
Wasliinglon, que alé aqui era aponlada como o
modelo dos governos republicanos, e a demonslra-
ção evidente da bondade d'essas insliluiçOes, sér-
vio por alguns annos de argumento aos monar-
chislas, que, sorrindo-se com desdém, aponta-
vam Iriumphanles para a guerra titânica, em que
se debatiam os estados da America, e diziam; Ve-
de o fructo das vossas Iheorias, vede-o no próprio
paiz, que a])iesentaveis como exemplo da suapro-
iicuidade.
INão acreditamos que essa deplorável guerra quo
inundou de sangue os leríeis plainosdo novo mun-
do abale por forma alguma as convicções dos de-
mocratas; parece-nos que pelo contrario as deve
Uma rua do Albanj'
robustecer. A republica americana atravessou ura
periodo doloroso, como todos os eslados podem
atravessar, como todos atravessam quando no seu
seio se levanta uma questão a que esteja ligada a
sua existência polilica Ouando uma monarchia
absoluta se transforma em monarchia constilucio-
nal, ha lucla inevitável; ha lucta muito maior (juan-
do se lenia a abolição de direitos feudacs, de pri-
vilégios seculares de uma classe, ^como não have-
ria uma lucla de gigantes quando se lenlou abo-
ir a escravatura n'um paiz cheio de força e de
vitalidade, a escravatura essa instituição seculai',
que estavam ligados tão poderosos interesses?
Quem se pôde espantar, por conseguinte, de que,
no momento de se operar essa grande reforma,
louvesse lucta? Quem se pode espantar de que
essa lucla foãse terrível, sabendo quaes siío osim-
mensos recursos d'cssa tão prospera republica?
Quanto mais vigorosos são os combatentes, tan-
to mais sanguinário c o combate! Mas o que
devemos admirar ó como, no meio d'essc formi-
dável calaclvsmo, se conservou o respeito da le-
galidade, não havendo mais do que uma scissão
na republica! O que devemos admirar é não ter
ido cair o poder nas mãos de algum soldado fe-
liz! O (jue devemos admirar é a magestosa sere-
nidade com que a republica, linda a lucla, voltou
ao seu eslado normal, sem (|ue uma só das suas
insliluicões i)oliticas perecesse no naufrágio!
Oescidpem-nosa digressão; eradillicil de evitar.
Vamos já ao assumpto a que a gravura nos
chama.
4 62
O PANORAMA
A gravura representa uma rua de Albany, cida-
de das mais anligas da União, eséde do governo
do mais poderoso Estado do Norte, o de Nova-
York.
A cidade de Albany liça situada na margem
direita do nudson,no meio de um território fér-
til e bem cultivado. O lludson, que vai desembo-
car no Oceano junto da populosa e commercial
cidade de Mova- York, c accessivel até Albany a
barcos de vapor, que põem em communicação a
cidade que deu nome ao estado com a cidade
que foi escolhida para capital. Um caminho
de ferro liga Albany com Boston; duas estra-
das commerciaes, uma que é a via terrestre, ou-
tra maiitima, o canal Erié, ligam-n'a com Buffalo,
centro do commercio, com as regiões de Oeste e
com o Canadá. Por isso Albany e o ponto de pas-
sagem obrigado de todos os emigrados europeus,
que vão tentar fortuna n'esses vastos ermos ainda
inexplorados.
Esta cidade, fundada em 16Uí pelos Hollande-
zes, conta actualmente perlo de 50000 habitantes.
Os seus edilicios mais notáveis são o Capitólio,
ou palácio do governo, feito de mármore branco,
um Iheatro e um museu.
D. JORGE DE MASCARENHAS, GOVERNADOR
DE MAZAGÃO
Os nossos chronistas habitualmente, e mesmo
os nossos modernos historiadores, deslumbrados
pelo esplendor da nossa grande época, pelo bri-
lho das façanhas de Duarte Pacheco, do génio mi-
litar de Affonso de Albuquerque, só consideram
como digno da sua attenção esse glorioso cyclo
que, abrindo-seno íim do século XV, no momen-
to em que Vasco da Gama põe o pé na tão alme-
jada praia do Indostão, se fecha no llm do século
XVI no lúgubre instante em que os valentes
portuguezes perdem de vista o doirado elmo de D.
Sebastião no meio das ondas de mourisma, que,
tlagelladas pelo veflto da sua espada, de lodos os
lados o piocuravam subverter.
Comludo e necessário jiensarmos que a gloria
portugueza não se resume Ioda n'essa época; é
necessário não nos dei\ai'mos por tal forma ce-
gar pelos esplímdorcs da boa fortuna que só con-
sideremos conm dignos da immortalidade os gran-
des feitos dos nossos maiores no tempo em que
um destino propicio bafejava as quinas portugue-
zas. Não supponhâmos que o vasto império lusitano
se desmoronou sem lucta,c que os lilhos dos Cas-
tros e dos Atiiaydcs renegaram logo a herança da
gloria que seus pais \\m haviam deixado. Nãol
Portugal luctou por grande espaço de tempo con-
tra a má fortuna, e a historia da sua (pieda he-
róica não é menos digna da nossa attenção do que
a historia do seu glorioso desenvolvimento. L(!van-
temos o negro veo, que nas nossas chronicas es-
conde os sessenta annos do captivciro hespanhol,
como na galeria dos retratos dos doges cm Vene-
za esconde um véu igualmente negro o sitio em que
devia estar o retraio de Marino Ealiero, decapita-
do por traidor. lia razão para isso; Portugal tam-
bém fora decapitado, e decapitado por ter traí-
do, em benelicio de uns frades perversos e fa-
náticos, a alta missão civilisadora, que a Pro-
videncia lhe coníiara.
Levantemos pois esse véu, e convençàmo-nos de
que a lista dos grandes feitos dos portuguezes não
linda na segunda deléza de Dio; convençàmo-nos
até de que talvez fosse necessário mais desespera-
do heroísmo aos soldados de então para caírem
com gloria, do que aos seus antepassados para
lançarem os fundamentos do seu immenso impé-
rio. Se estes tiveram que luctar com os índios,
que defendiam a sua pátria e a sua religião, com
os valorosos Musulmanos, que eram n'essa época
o terror da Europa, tiveram aquelles que luctar com
esses mesmos Musulmanos, e além d^isso com essa
raça enérgica, forte, e obstinada dos IloUandezes,
com os valentes soldados, que fizeram recuar os
velhos terços hespanhoes, com os companheiros
heróicos do conde de Egmont, do conde d'Horn,
de Maurício de Nassau, de Guilherme o Taciturno,
de Marnix de Sainte-Aldegonde; e em que cir-
cumslancias emprehendiam essa lucta! quando es-
tavam sujeitos a um domínio estrangeiro e odiado,
quando viam a sua pátria enluclada, quando ti-
nham de combater pelos oppressores d'elles, quan-
do os seus mais valentes irmãos de armas lhes
eram arrancados para irem ensopar no seu sangue
as terras frigidas de Flandres, quando a politica
hespanhola parecia tender unicamente a sacrifi-
car, a enfraquecer o reino, (jue approximára Fi-
lippe II do sonho doirado da monarchia universal.
Contaremos um dia algumas das façanhas com que
os nossos antepassados se oppunham ao desenvol-
vimento do poder hollandez; hoje evocaremos ape-
nas das trevas do passado um dos vultos heróicos,
que, nas nossas praças africanas, continuavam as
tradições dos heroes de Ceuta e Arzilla, e vinga-
vam nos mouros o desastre de Alcacer-Kebir, que
fora origem de tamanhas desventuras.
Em I()16 era governador da praça de Mazagão
um valente lidalgo porluguez, D. Jorge de Mas-
carenhas, que foi depois conde de Castellonovo.
Era homem da velha raça dos combatentes da Africa,
pelejador inlrepido, (jue só folgava de viver no
meio do ardor das batalhas, que tinha o cheiro da
pólvora pelo mais delicioso perfume, e as corre-
rias contra os árabes pelo festim mais deleitoso.
Elle é que podia dizer com a bailada antiga
Miiilias galas são as armas
Meu tlescaiiço o pelejar
Durante o seu governo pouco descanço tiveram
os mouros. Não esperava elle que o viessem ata-
car; mas tomando a iniciativa, ia á testa dos seus
cavalleiros, mal assomava no céu a estreita d'alva,
espalhar o terror nos aduares dos lilhos do deser-
to. Sempre de espada cm puuho, sempre armado
de ponto em branco, i)arecia aos seus compatrio-
tas o espectro gigante de uma época já extincta,
o ultimo dos com|)anheiros de D. João I, o ulti-
mo dos bravos pelejadores de Aljubarrota, o dos
intrépidos conquistadores de Ceuta.
o PANORAMA
63
No dia 5 de julho, pois, do anno de 1616 qui-
zeram os beduínos tomar vingança da constante
inquietação em que D. Jorge os linha, e j)rocla-
niando os seusmarabuíos de novo a guerra santa,
invocando as recoi-dações de Aicacer-Kehir que
liceu sendo para lodo o sempre a grande gloria
nacional dos marroquinos (1) vieram em grande
numero e em grande grila insultar as muraliias
de Mazagão. Não era I). Jorge de Mascarenhas ho-
mem que suj)porlasse muito tempo essas [)rovo-
cações, abrigado por traz dos muros da sua ci-
dade. Poz-se á testa de um j)unlKido de portu-
guezes, e saio a planície rasa a combater com os
mouros. Esperavam-n'o elles bem apercebidos, e,
deixando-o avançar levado pelo seu ardor impe
luoso, descobriram de súbito grandes forças em-
boscadas, por entre as quaes se viram os porlu-
guezes obrigados a retirar. Mas D. Jorge de
Mascarenhas, todo alíbgueado pelo ardor da pele-
ja e levado pelo seu ardor cavalheiresco, despre-
sando os soldados que fugiam e vollando-se para
os poucos fidalgos que o acompanhavam, bradou-
Ihes:
— Pelejai, cavalleiros, que se perdem os solda-
dos e aquella bandeira de el-rei; voltai-vose vede
como o vosso capitão morre.
E, cravando as esporas no fino murzello, arre-j
messou-se nos moiros, sem ver se alguém o se-
guia. Ninguém o pôde acompanhar na impetuosa
carreira, e só, a pouca distancia d'eHe, mas ten-
tando debalde pôr-se-lhe a par, galopava o adail
IJraz Gonçalves, que lhe dizia! «Senhor para que
quereis morrer?»
Não o ouvia D. Jorge, e, com a lança em riste
entrava no mais cerrado da brava turba dos árabes,
derrubando, ferindo e dispersando os cavalleiros do
deserto, que revoluteavam emtovnod'elle, espanta-
dos de tanta audácia. Com uma lançada derribou um
moiro, mas, acudindo outro, recebeu o valente ca-
valleiro uma lançada no peito; já a este tempo se
haviam approximado alguns cavalleiros |)orlugue-
zes; com elles rompeu o governador, continuando'
a fazer proezas dignas d'esses heróes dos roman-
ces de cavallaria, de que Cervantes zombara ha-
via pouco tempo. Guando voltou para junto dos
seus cavalleiros trazia cinco lanças no corpo,
quatro espetadas nas roupas, por baixo das quaes
n'essa época se escondia a armadura, e a oulra
quebrada na mão. Julgavam os porluguezes que
vinha linalmenle dar a ordem da retirada; enga-
navam-se. 1). Jorge vinha apenas procurar oulra
lança porque a sua lhe licára embebida no corpo
de um moiro. Armado de novo, tornou a entrar
no mais acceso da peleja. Defendiam-se vigorosa-
mente alguns cavalleiros, entre os quaes o alferes
que hasteava a bandeira, contra os aiabes que for-
cejavam por lh'a arrancar. (^Ihegou D. Jorge, como
um raio, em auxilio dos seus compatriotas, mas
(1) Conta Lcon PIl'C na sua historia das guerras rlc Algur,
que na bataUia d'Isly, ganha pelo marechal Bugeaud coiit.ia as tro-
pas do imperador de Marrocos, andavam os n)araljutos percor-
rendo as lileirns mnsiilnianas. animando os soldados ( om as lera-
l)ranças da batalha d'Alcaçer-KeLir. Perto do trcssecuios depois ain-
da as' tradições populares conservam a memoria d'aquella terrível
batalha.
os inimigos já o temiam tanto, que não ousaram
esperal-o. Abrindo um largo circulo em lorno
d'elle, arremessaram-lhe pedras, uma das quaes,
bateu na cabeça do cavallo, e matou o Uno cor-
cel. Caio 1). Jorge em pé, e assim aparou o em-
bate dos árabes, que o assaltaram com novas pe-
dradas, uma das quaes, dando-lhe no elmo, lh'o
deitou ao chão, porque o trazia desatado. Assim com-
bateu de cabeça descoberta, i'eccbendo duas feri-
das na mão esqueida, até que os porluguezes,
caindo em massa sobie os inimigos, livraram o
seu capitão, e voltaram com elle para dentro dos
muros da cidade, onde lodos os receberam com o
enlhusiasmo, que estas façanhas dignas da idade
d'oiro da cavallaria deviam facilmente inspirar.
Estas façanhas conta-as xVnlonio de Sousa Ma-
cedo no seu livro intitulado Flores do Espana,
Excellencias de Portiifjal, livro escriplo em hes-
panhol, dedicado a D. Filippe IV, e publicado em
1630. Tudo isto parece indicar que b seu auclor,
que linha n'êsse tempo a idade de vinte e dois
annos, era adherenle ao jugo hcspanhol, eque es-
tava resignado á união. Pois apezar d'isso n'esse
livro dedicado ao rei de Ilespanha, se percebe o
ódio latente que animava os porluguezes contra
os seus dominadores, e o bom do escriplor, ao
passo que enumera os grandes feitos de 1). Jorge
de Mascarenhas, não se esquece de dizer que eram
elles tamanhos, e tão assombrosas as forças do
inimigo que, estando era Mazagão um soldado hes-
panhol, e vendo a grande quantidade de ára-
bes, que se apinharam em torno da cidade foi
para casa e morreu de medo. (1) Isto é dito sem
a mais leve reflexão, e com a mais perfeita inno-
cencia. Mas eu estou vendo o sorriso magano,
que se havia de desenhar nos lábios dos leitores
porluguezes, quando chegavam a este ponto, e as
bulhas que haveria, nas ruas de Lisboa por causa
do fado mencionado pelo travesso escriplor.
Não nos despedimos ainda d'este nobre vulto de
D. Jorge de Mascarenhas, d'este heróe da nossa
decadência. No segundo capitulo veremos que o
valente governador de Mazagão não era menos ler-
rivel no mar contra os corsários argelinos, do que
na terra contra os cavalleiros bereberes.
(Conlinua.)
PlNUEinO CUAUAS
VOLTAIRE
Continuação
O theatro francez começa em Pedro Corneille;
antes d'elle encontramos apenas o cahosdo poema
dramático. Racine fez o elogio d'esle grande ho-
mem, indicando a sua alta signiticação lilleraria.
A apotheose do auclor do Cid c notável na bocca
do poeta da Al/ialia:<í Quelles obUgalions ne lui
a poinl nolre poésic l Dans qnellc élat ne se Irouvoít
{{) Otras vitorias muy grandes o sefialadas tuvo Mnga/au mien-
tras D. Jorge Masearenas la governo, entro las qiiales fueron contra
lãn gran numero de Moros. que hallando-se ali un Gastellano do
Olva, y llegnnilo ai muro, vii iido tantos enemigos, y el desigual
partido de los nnestros, que eun ellos amiavan poleando, se fuo para
su casa, y murio subitamente, parece que con ânsia de dcsconhar ae
la vitoria, y loner-se yá por cativo ó muerto.
FLOliES DE ESPANA PAG. 223.
-164
O PANORAMA
la scéne françoiselorsqu'il commeuça à travaillcr!
Que! (lesordre! qucl írrc(ju(arilé\ .\iU f/ouí, niille,
co)uioissa)ice dcs véritables beauiés du {hcàfir.y>
Corneiile apparcce, c com elle a aiic dramática
enlra no veicladeiro caminho da razão, para subir,
cercada de pompas, ale á elevada allura en\ que
depois a conlemplamos. Corneiile é a força, o ím-
peto, a vehemencia nas paixões, a niageslade, a
magnilicencia no eslylo. Nascido em um sé-
culo eivado pelo mau goslo, lucia conlra elle,
e consegue quasi leval-o de vencida. A mor-
dacidade e o fel dos émulos que desbaratara,
cae-lhe em cliuva sobre os louros nascentes, mas
os louros reverdecem mais viçosos ainda, e na larga
sombra que projectam occuítam os Scudérys rai-
vosos. A llespaniia é o jaidim opulento onde elle
colhe as mais bellas ílores, para depois fabricar
os favos do seu mel delicioso. Guillen de Castro
inspira-o. D'este volver de olhos constante para
alem dos Pyrenéos, d'esle amor cego pela iiyper-
bole castelhana, procede, logicamente, o principal
defeito de Corneiile; a allectação. Eulendamo-uos
sobre esta palavra.
A aíTeclação, nas admiráveis creações do poeta
dos Jloracios, não consiste na frivolidade elegante,
110 dizer amaneirado, no porte cortezãoe delambi-
do, ao contrario; rezide na bravata enfollada, no
tom de mata moiros com que se expressam os seus
heroes.
Por vezes sentimos nas suas tragedias um certo
rumor de farruscas, e uma parlenda guttural de
asturianos façanhosos. Camillo, imprecando con-
tra Roma, tem versos de um exagero manchego.
Eis ao que eu chamo a allectação de Corneiile, e nada
mais.
D'este ponto em diante o Ihealro francez pro-
gride. Não è o nosso íim acompanhal-o no seu
andamento constante, e estudar-lhe as suas phazes
diversas. Citámos o iniciador do poema dramático
em França, por nos parecer impossível deixar de
commemoral-o n'um estudo d'esta Índole. A nossa
missão é, proseguindo na apreciação litteraria
de Voltaire, deitar sobre este vulto a luz que lhe
é divida.
Voltaire forma, com Racine e Corneiile, uma
das mais bellas trilogias. Collin-d'narleville gru-
pou-os em alguns versos memoráveis. No poeta do
Cinna encontramos a altivez cavalleirosa; no de
Andromaca a suavidade amoravel, no de .Mcrope
o calor santo dos nobre allcctos, achainma do en-
thusiasmo, (Jvivo manancial dasscenaspalheticase
das commoções profundas rebenta n'elle vigoroso.
// a passionné Ic diafofjue et les situai ions, — diz
Emile Deschamps com extrema verdade.
Educado nos bellos modelos antigos, Voltaire
soube lirar-lhes o mimo, o beijo dos seus primo-
res. Por isso n'uma das representações do Orcslc,
vendo o publico levaiitar-se e proromper em bra-
vos, elle, levado pelas generosas eífusões da sua
alma, levanlou-se também, gritando: Apjilandi,
applaudi atlienicnscs; isto é o jmro Sojihoclcs!))
De todas as suas tragedias a Zaira e aíjuepara
nós realça mais brilbanlemenle. lia n'ella a ner-
turbação, o movimento dramático, natural sempre,
caloroso sempre, agitado, eloquente, cortado p-elos
estremecimentos do terror ou da esperança; as
phrazes saem í\ú coração espontâneas, simples,
graciosas, com todo o perfume dos íntimos aíTec-
tos, com lodo o fogo das paixões violentas. O se-
gundo acto é ínexcedivel. Lusignan, velho, cap-
livo, oppresso pela desgraça, vergado pelas recor-
dações mais atUiclivas, vendo de um lado caluda
a religião j)orque elle combatera tantos annos, c
do outro perdidos os íilhos que idolatra, Lusignan
respira um não sei que de sobrenatural e de ce-
leste. Zaira entra, com o rubor nas faces, e os
olhos inundados de lagrimas. Ohl como esta scena
rivalisa com (pianlo o Iheatro francez possue de
mais gabado; como ella nos impressiona com toda
a sua sim|)licidade all^ecliva. Zaira confessa ludo;
a momentânea alegria do velho será trocada pelas
mais lancinantes angustias:
— «Sous les lois (l'Orosmane,
«Punissez volre lille... elle tlait iiiussulmane!
É então que resôao famoso brado de Lusignan,
aquelle assombroso trecho em que as lagrimas do
velho se misturam com es arrebatamentos da in-
dignação, Irecho ({ue por si só bastaria para dar
a Voltaire um dos primeiros logaics entre os poe-
tas de França.
— i'Oue la foiídre en éclats ne tomhc que sur moi!
Ali! nion flls! à ces niols j"ciisse cxpiíú saiis toil*
Mon Dieu, J'ai comljatu soixaiUe aíis ])our ta gloire,
J'ai vu toiíihtT tun templo, et. perir la iiiéiiioire;
Daiis un caeliot aíTrenx abandoiiiié vingt ans,
Mt'S kiraies t"iniploraient pour mos l.ristos enfans;
Et. lorscjue ma íamiile e&t par toi réinie,
Quaud je trouve une íille, elle e;t lon ennéniiclu
Coníessemos francamente, em Racine ou em
Corneil'xi não ha situação onde o palhelico sobre-
leve ao do segundo acto de Zaira. Aquelle, te-
ve, por ventura, em Jphigcnia um momento de
inspiração egual; foi quando escreveu o dialogo
entre ella e Agamemnon; Corneiile, no Pclijeude,
c inferior na verdade do coração humano.
O assumpto da Zíí/Va deu ao Iheatro inglez uma
quasi que Iraducção da tragedia franceza. O seu
auctor é Aaron liill. Esq.
Depois da Zaira, a Mérope c a Sémiramisi^io^m.
immedialo logar. N'esta ultima ha uma scena
moldada nas puras formas eschylanas. Ião simples
e tão vigorosa é ella; reíiro-me ao dialogo do (|uar-
to acto, entre a rainha e Arzace. A(|ui-, Voltaire
conseguio trazer para a scena a simples grandeza
dos Cliocplíoros. A phrase cortada iiatuialmente,
a paixão |)recipilando-se em hemystichios abruptos,
tudo isto dá á situação um fervor, um tumultuar
grandioso.
Urutus e César são tragedias onde em algumas
scenas achanios o aspeio sabor de CiOineille. lia
n'ellas a força, a altivez do Cinna, mas a pompa
é mais esplendida e fastosa.O canto da liberdade
sem nada perder da sua feresa íngenita,c ao mes-
mo tempo harmonioso e persuasivo. Ma/ioniet é
uma das tragedias onde os lasgos sublimes se en-
contram mais freí|uenles. lia irdla uma l_al origina-
lidade de bellezas, uma tal abundância 'no eslylo,
um tamanho orientalismo na dicção, que Racine
o PANORAMA
4 65
se acaso a lesse, deveria dizer d'ellaoque Voltai-
re disse um dia ao acabar de ouvir o monologo
da P/iedra.
A falia duMahomelaZopiro, sobretudo, tem lan-
ços dci uma elevação prodigiosa.
— nVois quel est Maliomct; nous sommes ?euls, ccoate:
Je suis ainbilicui, tout huiiiffic Test saiis doute;
II faiit im novean culte, il faut <le nonveaux fors,
11 faut un uouveau Dieu pour 1'aveuglu univers.
Rousseau, faltando d'esla scena na sua lellrc
sur Ics speclaclcs, íWz não conhecer no theatro fran-
cez outra alguma em que mais sensivelmente se
manifeste o cunho do génio. Foi esla mesma tra-
gedia, Mahomet, que Crebillon repellio dez annos
e que só ao cabo d'elles foi dada a publico, em
vi^ta da approvação de d'Alembcrt.
Eis, resumidamente, alguns dos pontos mais sa-
lientes no theatro de Voltaire. Todos os assump-
tos lhe são familiares, todas as boUezas lhe são
próprias. Passa do OEdipo para Zaira, como do
Brutus para o Orphãoda China. Quando a rajada
do furor o impelle, ergue-se coruscante e ílamme-
jadas nuvens; quando os sentimentos maviosos o
assaltam, expande-se em verdadeiros arrulhos. O
coração do homem é ao que elle mira piincipal-
mente; conhece todos os caminhos que vão dar a este
abysmo, eé por ellcs que conduz o seu talento Sem
ter aquella rudeza que nos confrange, tem aqueila
variedade que nos deleita. Não é um promontório
nu e alpestre, cortado a prumo, e severo nas suas
rectas enormes; é um monte ?rrelvado e llorido,
onde as rosas se baloiçam, mas aonde também se
erguem as arvores seculares e possantes.
[Conlinuu)
E. A. Vidal.
AS FLAUTAS DO GRAxNDE FREDERICO
O principal entretenimento do rei da Prússia, Fre-
derico 11, consiste em locar flauta; mas é tão es-
crupuloso, tem tanto receio de commetter faltas
em musica ou enganar-se, que, quando ensaia
uma nova peça, fecha-se no seu gabinete muitas
horas para estudal-a. Apesar d'esta precaução, tre-
me todas as vezes que se trata de começar com
os ajiompanhamentos.
Possue uma excellente collecção de ílautas, e
presta-lhes o maior cuidado.
Um homem, que não trata d'outra coisa, está
encarregado d'ellas, a tira de preserval-as, se-
gundo a estação, da seccura ou da humidade. São
todas do mesmo auclore paga-as ale cem ducados.
Na ultima guerra, quando elle a todos dava di-
nheiro falso, diligenciava sempre que o seu fabri-
cante de tlautas fosse pago em boas peças de ouro,
com medo de que este, por Si'U lado, o não en-
ganasse na qualidade dos seus instrumentos.
O mundo assemelha-se a uma loleria na qual
um ganha e mil perdem.
A SALAMANDRA
O género Salamandra de Cuvier, que foi cons-
tituído em família pelos erpétologistas modernos
sob o nome Saíamandridas, pei'tence á secção doS
Batraciosurodélos. Os reptis que o compõem teem
o coi'po allongado, quatro pes e uma comprida
cauda; o que lhes da a forma geral dos Lafjartos;
mas apresentam além disso todos os caracteres dos
Batracios. A cabeça é achatada, as orelhas estão
occultas sob as carnes e não teem lympanos; os
dois queixos são guarnecidos de dentes numerosos
e pequenos, a lingua disposta como a das rãas, o
esqueleto oflerece elementos de costellas e teem
quatro dedos nos pés de diante e cinco nos detraz. Os
seus embryões respiram por uma espécie de guelras,
em forma de i)Oupa, no numero de três de cada lado
do pescoço e lluctuantes, que depois se obliteram.
Os membros apparecem successivamenle; mas os
pés de diante desenvolvem-se prlmelio que os de
traz. No estado adulto, as Salamandras respiram
como as rãs. Dislinguem-n'asem/í'/7-e.y//ri-e aquá-
ticas ou Tritões.
As Salamandras terrestres ou Salamandras pro-
priamente ditas (Salamandra) teem, no estado
perfeito, a cauda redonda e não se conservam na
agua senão durante o estado deen.byrão ou quan-
do (|uerem desovar. Os pequenos nascem no ovl-
ducto e executam piomplamente as suas metha-
morphoscs. O lypo d"esle género e a Scfamandra
commum ou maculada, [Sal. maculosa) tem 10
centímetros de comprido, ea cor éde um |)reto luzi-
dio levemente llnctoderosa, com grandes manchas
de um amai-ello vivo. Pelos lados teem fileiras de tu-
bérculos, dos quaes ressumam no perigo um li-
quido lácteo, amargo e de um cheiro activo. E
esla parliculnridade (|ue deu lugar a fabula esi)a-
Ihada na antiguidade, e que chegou até aos nos-
sos dias, que não somente o fogo não matava a
Salamandra, mas ainda ({ue este replil tinha afa-
66
O PANORAMA
culdade de apagal-o. Um outro proconceilo popu-
lar quer que estes animaes sejam muito venenosos:
é um erro. Etleclívamente, não teem glândulas
salivaes de veneno eus dentes são muito pequenos
para poderem oilender a pelle. Só o liquido que
ressumbram os tubérculos de quefallámoséqueirrita
um |)Oueoos olhos quando se lhes chega com os de-
dos depois de haver tocado em algum d'estes reptis,
llaainda duas outras esj)ecies chamadas Salaman-
dra negra que se encontra dos Wpçse Salamandra
de occulos, negra pele parte superior, e aniarella
com manchas pretas pela inferior. Este animal,
que se acha nos Apenninos, só tem (jualro dedos
em cada pé. As Salamandras vivem em lugares
húmidos e nos buracos subterrâneos; sustentam-se
de lombrigas, insectos e pequenos molluscos. To-
das são de pequeno corpo.
Os Tritões ou Salamandras aquáticas, lêem a
cauda comprimida verticalmente e passam quasi
toda a sua vida na agua. Estes reptis são oviparos e
não ovoviparos como as Salamandras terrestres.
Encontram-se frequentemente nos nossos climas
em aguas estagnadas, onde são tão ágeis e vivas
quanto lentas e embaraçadas na superfície do solo.
São sobretudo notáveis pela facilidade com que
reparam as mutilações do seu corpo: a cauda e
mesmo as patas lecrescem muitas vezes depois de
terem sido cortadas, e isso com os ossos, múscu-
los etc. Teem além disso a singular faculdade de,
no gelo, poderem viver muito tempo, D'estc gé-
nero encontram-se muitas espécies: conlentar-nos-
hemos com o mencionar a Salamandra de crista
que apresenta as cores laranja, branco e prelo.
No numero das espécies exóticas citaremos a Gran-
de Salamandra do Japão que tem o comprimento de
um metro. As suas cores são as mais sinistras; a
pelle sobre a cabeça e as costas é colheria de protu-
berâncias e de tubérculos que, fora d'agua, res-
sumam um humor viscoso e fétido. Lembramos
também a celebre Salamandra fóssil de OEningen,
que durante algum tempo foi tomada por um es-
queleto iiumano.
NECESSIDADE DE UMA MONOGRAl^HIA ACERCA
DA província de 1'ERNAMBUCO
Debaixo do ponto de vista commercial a pro-
vinda de I'einambuco é hoje a segunda do impé-
rio brasileiro, posto que não seja a mais extensa
e poNoada.
A situação feliz d'ella, em virtude da sua pro-
ximidade relativa da Europa, devido aos vapores
transatlânticos, é lai que da nossa Eisboa a|)enas
dista U{ a lo dias, e lhe dá por isso certas van-
tagens commerciaes, de íjuenão gosam as demais
províncias íraí|ucll(' \astissimo estado.
A população e alli abundante e acliva. (irande
numero de estrangeiros tem-se estabelecido
n'clla. A cultura do algodão e da cana de assucar
tem ail(]uirido immenso desenvolvimento; tudo,
linalmente, na província em (juestão progridi! con-
sideravelmente, apesar de estar ella situada na
zona tórrida, desde o 7" até ao 15° de latitude
sul, visinha do mar, sobre o qual tem duzentos
kilometros de costas, e não obstante, desde 18;30,
haver sido visitada pela febre aniarella e cholcra,
desconhecidas alli antes da mesma data fatal.
Considerada geographicaraente, toda a parle
próxima do oceano Atlântico está perfeitamente
estudada. As costas teem sido examinadas sobejas
vezes pelos navegadores portuguezes, hespanhoes,
inglezos e francezes. São muito apreciáveis os tra-
balhos do almirante Uoussain acerca do alludido
assumpto, e é sabido que Mouchez, dislinclo olíi-
cial da marinha franceza, ha executado, recente-
mente, um novo reconhecimenlo.
Com as regiões sertanejas não suecede oulio
tanto. A configuração das cadeias de montanhas,
que cortam a província de norte a sul e de leste
a oeste, não é bem conhecida, ignora -se a sua
altitude, posto que não pareça exceder U200 a 1500
melros. \ sua composição geológica é parcialmen-
te desconhecida, e diminuías pesíjuizas mineraló-
gicas se tem n'ellas executado.
A parte septemtrional da província apresenta lar-
gas planícies ferieis, em ([uanlo a região austral é
atravessada de norte a sul por uma longa ca-
deia, que limita ao occidente o grande rio de S.
Francisco, o qual separa esla província da da lia-
hia.
O curso do S. Francisco está perfeitamente re-
produzido em um bello atlas especial consagrado
áquelle rio, e que foi, ha alguns annos, lithogra-
phado no Rio de Janeiro. Tudo, |)orém, que demo-
ra ao occidente d'esle rio carece de ser reconhe-
cido geographicamenlo, pois não existe ainda ne-
nhuma boa descripção topographica da província.
A ultima obra publicada em francez, sobre o
Brazil, a de Eahure, não fornece senão uma sim-
ples nomenclatura dos rios, cordilheiras, cidades,
villas e aldeias que se encontram n'esla parle do
Brazil, sem descer a particulai-idades algumas.
Pelo que respeita á bella obra em dois volumes
de Eallemand, fícise diirch nord Brasllien, {xlnúdi
não foi vertida para francez.
A escriplura d'estes aponlamenlos foi-nos, em
parle, suggerida pela recente noticia da nomeação
de um homem intelligentissimo e de provada il-
luslração, Osmin Eaporle, para o cargo de côn-
sul francez em Pernambuco. Visto que esla pro-
víncia não possue ainda uma monograjjhia, a(|uelle
cavalleiro |)or certo a fará com Ioda a j)roticiejicia,
estudando acuradamente os elementos (pie ainda
estão desconhecidos não só porque quahjuer das
províncias brazileíras, em geral, é mais extensa
(pie o nosso paiz, e algumas íncomparavelinenlc
inuilo mais, mas tamlxMn porque o Hrazil cum paiz
(|ue nasceu honteni, o (piai inuilo tem progredido em
relação ao seu clima ardente, na máxima |)arle da
sua extensão, e ao sangue porluguez, (pie não é
do mais apropriado para rápidos desenvolvimen-
tos na senda do j)rogresso. Deixemos as digressões,
e vamos reatar o lio das considerações (|ue lemos
a fazer, despertadas pelas leituras dispersas (jue
hemos feito em muitas obras francezas, ínglezas e
algumas brasileiras, relativas ao lirazil.
i
o PANORAMA
^67
Defeito, assim como indicamos precedeiUemen-
to, exceptuando alguns pontos, nenhuma posição
de localidade foi provavelmente determinada por
observações directas. O sr. Osmin poderá, pois,
com alguma vantagem, fazer uma descripção do Rio
de S. Francisco, cuja regimen é conhecido pelas ob-
servações do botânico viajante, A. Saint llilaire,
que percorreu uma parte do seu valle desde 1820
a 1825.
É também mui ulil estudar a parte montanhosa,
região a mais despovoada d'esta provincia, onde
restam ainda algumas Iribus indianas de lupis,
ananés e c/^acriabas, pertencentes á raça guaríni.
Estes restos da anliga população indígena dimi-
nuem lentamente, tanto pela mortalidade própria,
as bexigas, a escassa fecundidade das mulheres,
como pela sua fusão com o resto dos brasileiros.
Por emquanto não podémosobter esclarecimen-
tos com respeito á cifra a que esta população pôde
hoje chegar. Quanto á população brazileira pro
priamentc dita, compõe-se ella de descendentes
de poi'tuguezes, emigrados durante três séculos e
meio para a provincia de Pernambuco, de grande
quantidade de outros europeos que ali tem ido
estabelecor-se, desde 1820, e linalmenle dos ne-
gros, e mestiços de todos os grãos, elemento que
ora é considerabilissimo. Uma porção d'estes negros
e mestiços são ainda escravos; porém ha já uma
outra egual porção d'elles que são livres e consi-
derados cidadãos brasileiros. É muito imporlante,
a nosso ver, o saber-se qual é a lei da progressão
d'esla população tão diilerenle d'origem, e que
mostra crescer com rapidez, a despeito das doen-
ças Iropicaes, da febre amarella e da cholera. Le-
mos em Lahure que aquella população, era segun-
do o recenseamento de 1860, de 9o0:000 indiví-
duos; no dizer de Warden, em 1831, era apenas
de 550:000 1
Allirma-se, que a provincia de Pernambuco, ape-
sar da situação d'ella ser na zona tórrida, e mui
salutifera, sobretudo na porção nordeste que con-
fina com a provincia de Piauhy. É muito impor-
lante haver conhecimento da proporção em que os
brasileiros e os europeus emigrados tem sido ac-
commettidos pela febre amarella, introduzida na
capilal em 1850. Desde essa época tornou-se en-
démica, apesar de ser desconhecida ali anterior-
mente, exceptuando talvez uma epidemia passa-
geira em 1688, sobre a qual ha informações muito
incompletas. Jísia doença, tão mortifera paia os
brancos om geral, tem sido benigna para os ne-
gros e mulatos, ao passo que todos os que tinham
sangue africano nas veias pagaram avultado tri-
buto á cholera.
Qual é a medida da emigração europea ha meio
século? Além dos nossos com|)atriotas, que são os
mais numerosos emigrados, entrando n'essa classe
já se vê, os açorianos, qual é o numero aproxima-
do dos allemães, inglczes, norte-americanos, fran-
cezes, hespanhoes que vãoestabelecer-se n'aquellas
plagas? Regressara para o seu paiz natal, casam
com brasileiras e, consequentemente, ostabele-
cem-se indeíinidamenle no paiz? Qual c o seu
estado de saúde habitual, a sua longevidade? Con-
servam as suas forças physicas e intellectuaes?
Tudo que diz respeito a esta parle da biologia
humana é altamente curioso.
Carece-se lambem de detalhes relativos á sua
posteridade, á nova geração que se forma da mis-
tura do sangue europeu, introduzido no Brasil,
com o dos portuguezes, este mais ou menos impre-
gnado do dos indígenas ou dos africanos, importa-
dos durante os Ires precedentes séculos.
Uma questão mui imporlante, e que não pode
ser elucidada senão por fados, é a de estabelecer
delinitivamenle se é verdade que, apesar das ori-
gens e misturas diversas, o sangue caucasiano vai
lentamente, porém d'um modo seguro, predomi-
nando entre os habitantes do Brasil; em outras
palavras, se cada recenseamento dá ura numero
cada vez mais considerável de brancos, o dos ne-
gros puros ou o dos mestiços conservar-se-ha es-
tacionário ou mesmo diminuirá ? Precisa-se final-
mente saber, se colónias agrícolas, á maneira das
que hão sido fundadas nas províncias do Rio
Grande do Sul, S. Calharina e S. Paulo, tem sido
estabelecidas na provincia de Pernambuco, e qual
é o seu estado actual.
Todos os que tomam a peito o progresso geral
dos conhecimentos geographico-;, como essenciaes
para o desenvolvimento commercial, asseveram
que ha muitas noções uleis a beber d'uma região,
sede de transacções tão extensas. Além da pro-
ducção do algodão, do café, do assucar e tabaco,
culturas industriaes principaes, que constituem a
fortuna da província, quaes são os objectos d'um
verdadeiro valor que a agricultura ali produz?
Em que estado se acha a industria manufactureira,
e pode-se pri;ver a época em que verdadeiras fa-
bricas possam ser estabelecidas no paiz, senão
para exj)ortação, pelo menos para piover ás ne-
cessidades locaes ? Qual é o estado das vias de
communicação ordinárias e dos caminhos de ferro ?
São perguntas cujas respostas não, por certo, dão
as folhas dos livros que ha nas línguas mais usuaes,
acerca d'aquella inteiessante provincia brasileira;
e por isso o mundo geographico espera ancioso
que o sr. Laporle elabore a monographia de Per-
nambuco, que seguramente vem preencher uma
deplorável lacuna existente na geographia do
Brazil.
É sabido que a agricultura brasileira solTre
muitíssimo na presente hora j)ela carência de bra-
ços. O commercio da escravatura suspenso desde
1850 não fornece mais os escravos, sobre cujo
trabalho se estribava a producção agrícola. A
morte, as alforrias em grande escalla, deduzindo,
todos os annos, o numero dos trabalhadores de
cor, ((ue oulr'ora formavam o pessoal das planta-
ções, com.o pode a agricultura brasileira sair d'es-
ta crise? O solo de Pernambuco é baslanlemente
salubre para que os brancos jiossam, apesar do
clima tropical, dedicarem-se á culluia.'^
Estas e muitas outras observações c pergun-
tas servem, apenas, para demonstrar exuberante-
mente a necessidade urgente d'uma descripção
4 68
O PANORAIMA
geographica, applicada essencialmente ao com-
mercio (ruma província Ião imporlante do Brazil,
como é a de Pernambuco, com a qual toda a Ku-
ropa, parlicularmenle Portugal, tem intimas liga-
ções mercanlis.
As communicações do antigo com o novo con-
tinente mulliplicam-so diariamente.
A máxima parle dos estados e das províncias
da America do Sul são pouco conhecidas ; tudo
que pôde contiibuir pois, paia mostrar à Europa
os seus recursos infinitos, a sua riqueza nativa,
que só espera por braços, para ser fructuosamente
explorada, é um verdadeiro benelicio para a hu-
manidade.
Interessemo-nos, pois, nós, portuguezes, que
demos o ser àquelle colossal império, i)ela sua
prosperidade e engrandecimento moral, intelle-
clual e maleriai.
Alfredo May.
Aon semper arciim tcndit ApoIIo IIoracio
Apollo nem sempre arma o seu arco; isto é,
nem sempre a desgraça nos acompanha.
A BORBOLETA
A ExcelIenUssiina Scuhorn B>. íèyiiii Piííllips
(no sed alblm)
Eli conheço-íi, oh! se a conheço!
sempre volilaiulo anciosa,
esl)elUi, fiiiiaz, airosa,
esquiva, amaule, esquecida;
olenio enigma na vida!...
Eu coidioço-a, oh! se a conheço!
Eslimo-a;*eslimal-a c gralo;
(piero ci)lendcl-a... endoideço!
Paira a mirar-se na fonle;
bale as azinlias subtis,
desce ao prado, solte ao monte,
requesta, endoidece as flores,
e engeila-as! Procura achamma,
illude-a, foge... Não ama!
Dei\ae-a fingir amores!
são ludo ancoios leijris;
eu conhero-a, oh! se a conheço!
Dizem as dores do monte:
—('Sabeis por(]uc cila nos foge?
«somos serranas e pobres!
«ella è fidalga e vaidosa;
«lá qucr^rnores mais nobresl
«a lisongcira da fonte,
«moslrou-lhe o espelho o, prendeu-a
«só com dizer-lhe:— És formosa.» —
Diz a fotdc co'um suspiro:
— "Vão lá fiar-sc das bellas!
«eu, tão pura em meu retiro,
«e tão recatada e amante,
«eu, (|ue rogeilo asestrellas
«o amor í|uc em seus raios leio,
«cu, que lhe disse atdielante:
— <'I)esce! bfbe do meu seio
«lodo o néctar peregrino!... —
«pobre de mim! que fiz eu?
«julgou-mc lodosa c insossa!...
«.Só bba néctar divino,
«golas do orvalho do ceol" —
E diz a gota do orvalho.
— «Uesci, desci toda a noite
«para a verde madrugada,
«foi bem pago o meu trabalho!
«sorriu-me, e ])assou! mais nadai
«Ella quer lá gotas d'agua
«tremula, fria, incolor?!
«quer lume, incêndios! (e é magoa!)
«quer chammas vivas no amor!» —
— «Porque me foge a inconstante?
murmura trémula a chamma;
«será que um delirio amante
«a altrae ao regato?... ás llores?...
«carinhos de maior preço?...
«cores de novo matiz?..* —
Nada! nada! eu sei: não amai
deixae-a fingir amores!
são tudo anceios febris;
Eu conheço-a, oh! se a conheço!
Engana-se o orvalho e a fonte,
íi chamnta e as flores do monte.
E varia, como os matizes
das suas azas doiradas;
não pôde lançar raízes;
quer liberdade sem meta;
ir, sem saber onde vá;
timbra de ser borboleta!...
não ha prendcl-al não ha!
Não lia?... quem sabe? Os segredos
das formosas mais esquivas,
teem românticos enredos
que o mundo nem sempre vê.
l*elos caminhos da vida
o amor sabe armar uns laç^)s,
e ás vezes... prende-se uni pc!
depois prende-se a cintura!
lucta-se e... prendcm-se os braços;
e eis rendida a formosura!
A flor, essa, de innoccnle,
ama, deseja. ..mais nada;
apenas sente... que sente!
nào sabe fazer-se amada!
IMas a chamma queé ladina,
á formosa que a re(|uesta
e a afaga co'a ponta (faza,
rouba a innocenc.ia divinal
co'o fogo as azas lhe cresta;
com beijos de fogo a abraza!!...
Nada! cu volto á minha idéa:
esta borboleta é intrépida,
não teme laços nem chamma;
não ha paixão que a submetia !
SC a amarem, sorri sem do!
se finge amores, não ama,
que o juro aqui! vende só
desdéns por subido preço.
Ha de morrer borboleta.
Eu conheço-a, oh! se a conheço!
Lisboa, 21 demarco de 18(50.
Thomaz RiBEino.
O am3r do dinheiro nunca foi paixão do ver-
dadeiro sábio.
O vicio c a pobreza levam o homem á praclica
de toda a sorte de crimes.
Typ, franco-Porlugucza == Rua do Tliesouro Velho, G.
00
O PANORAMA
69
STOGKOLMO
Apezar do seu céo nebuloso, apczar do seu cli-
ma IVigido e um lanlo insalubre, a capiial da Sué-
cia é uma das mais formosas cidades do Norte.
VA{\ conslruida nas margens seplemlrioual c me-
lidional do lago i^ieiarenno ponío em ([ue esle
confunde as suas aguas com as do Haltico. Com-
põem-n'a muilas ilhas formadas pelos golphos do
Melai-en e peio mar, e que se ligam entre si e com
as margens por numerosas pontes, o que dá á ci-
dade um aspecto muito semelhante ao que apresen-
ta a rainha do Atlriatico. Por isso Stockolmo tem
merecido dos viajantes estrangeiros, deslumbrados
por essa foi-mosa apparição italiana que lhes surge
de subilo do meio das aguas do Báltico, debaixo
d'um céo carregado de nuvens, o nome de Ve-
neza do norte.
Hockolmo.
Efleclivamenle, a cidade, piincipalmeníc quando
evô do rochedo de^íosebacko, apresenta um ma-
çniOco panorama. PaUa-lhe só o esplendor do sol
l'Ilalia, que beija amorosamente as marmóreas fa-
chadas dos i)alacios da cidade dos doges, as gran-
les recoiiiações que enlevam o mundo inteiro e
]ue pullulam a cada passo do seio da formosa pc-
insula, c a seductora hai^monia das vagas azues
lo Adriático beijando os degráos dos cães.
Mas ainda assim esse panoiama c encantador.
U casas, quasi todas de tijolos, ei-guem-se em
mphilheatro, alinhando-sc cm formosas ruas, as
nais noiaveis das quaes são a da Rainha c a da
legcncia, e formando seis bairros, que se chamam:
i cidade, que se compõe de Ires ilhas, o bairro do
\orle, em terra lirme, Ladiif/oras/aiulcl, que se
grupa n'um promonlorio em que termina a leste
ssa terra lirme, a iUia d'El-IU'i, a il/iado Alini-
anlado, a que oulias duas, a ilha da Cidadclla
í a iUtn de S. Braz se ligam por meio de pontes
lucluantes, e cmtim o bairro do Sul.
INo bairro da cidade encontra-se o i)a(;o, ediíicio
uadrado, construído n'uma eminência etotlo cer-
ado de jardins. As ruas d'este baii-ro são quasi
iodas sombrias e ii'regulares, exceptuando com tudo
a rua de Skcppsbron, que se deseni'ola ao longo
do cães c em que eslá concenli-ada toda a acti-
vidade commeicial. IN'esse bairi'o lia Ires igrejas:
a sé, onde se nota um órgão magnilico e uma bel-
la coliecção de quadros de i)inlores suecos, a igreja
allemã, e a igreja linlandeza. Os outros ediíicios
notáveis d'este bairio são a praça do commercio,
a casa da ca ma ia, o correio, o banco, a moeda,
c o palácio dos nobres, onde se reúne a nobreza
durante a dieta, e em cuja fachada campeiam os
brazões de todas as grandes famílias da Suécia.
N'uma das ilhas, que formam este bairro, vê-se
lambem a igreja, onde estão os túmulos de lodos
os reis enire cinco mil estandartes, que dão teste-
munho irrefiagavel da gloria militar que a Suécia
soube conquistar, dirigida, no século XVII, no sé-
culo XYIÍI e no século XIX, porgeneraes tão dis-
lindos como foram Gustavo Adolpho, Carlos XII,
e Rernadolle o general francez, que por tão estra-
nho acaso pôde subir ao thi-ono sueco, e fundar
dynaslia. Debaixo (Kesle glorioso docel dormem o
seu somno eterno os herdeiros de (luslavo Vasa.
Passemos agora ao bairro do Norte. Alli encon-
470
O PVNORAMA
liaremos oiilio palácio rogio, defionle do qual se
erirue o edilicio da Opera, mandado construir por
fíuslavo III. Atravessando d'esle bairro para a ilha
do S. Bi-az, com a qual eommnnica dii-eclamente.
veremos um irrande numero de ))alacios sumjiluo-
sos; d^essa ilha iremos por uma das ponles jluc-
luanles á ilha do Almiranlado, atravessando por
uma longa alameda e onde scaccumulam arsenaes,
estaleiros, casernas, e (fahi passando á ilha da
Cidadella encaniar-nos lia o seu pi|[oiescoasj?ecto.
Um enorme rochedo de granito lorma toda a massa
da ilha, e nas suas ladeiras vicejam arvores, ta-
boleiíos de relva, tapetes de musgo, por entre os
quaes serpeiam lamedas. Um dos píncaros do roche-
do domina a entrada do poilo; n'oulro crgue-seo
observaloi-io.
Slockolmo tem vinte praças amplas, sendo a
mais bella a que se chama Sfollshackoi. For-
mam-n^a d'um lado o palácio real, do outro uma
íileira de formosas casas; n'um dos topos está a
calhedral e um obelisco de granito. A praça vem
descendo cm amphithealro, e alargando-se até ao
cães onde se ostenta uma estatua de bi-onze de
Gustavo III. As estatuas não faltam em Slockolmo.
ISa praça da casa dos dobres campeia a de Gus-
tavo í, na de Gustavo Adolpho a d'esse grande
Loraoni, na praça darmas a de Gaiios XII. Tudo
isto contribue para embellezar a cidade, em cujo
porto se vê sempre uma selva de mastros, por(|ue
o seu commorcio, tanto de exportação como de im-
portação, está desenvolvidíssimo. Em I80I a sua
população ora de noventa e Ires mil almas.
Eis o que é em rápido esboço a cidade, que a
nossa gravura mostra aos leitores, a Veneza do
Norte, a capital da monarchia sueca.
A BOCCA DO INFERNO
\
Fj-a por uma linda taide de outono, á hora em
que o sol, meio envolto no manto de nuvens, es-
parge sobre a leria libios reflexos.
Creio que não é esta a lioia dos amanles; mas
íiel, como devo ser, á chronica, cumpie-me pôi'
de parle todo o eíleito scenico que poder colher
do ceu cravejado de esl relias, eda luz meltincoli-
ca da lua, paraconlaraoleilora verdadeem Ioda a
sua puieza.
Mn^uem crê mais do íjue eu na magia de uma
noite de estio, cheia de segredos e niNStcrios! 0'it'
encanto, o d'essas noites claras de agosto, íjuando
a lua caminha cx[)lendida no céo, aseslrellas scin-
lillam na abobada azul, o rouxinol trina melodias
cnlrc as ramadas do bosciue, c as llores toem mais
perfumo, mais frescura a rosa, mais pureza o ar!
(',omo n'cssas noites voluptuosas do Meio Dia o co-
ração se inspira de santo enlliusiasmo e pulsa ávi-
do de ternura! Como então são maviosos os sus-
piros! como é brando o susurrar dos beijos!
Mas não foi, rej)ito, á hora dos amanles que
Euiz c Uhrislina combinaram encontiar-se nos ro-
chedos da Jiocra (lo lnfciuo. As rochas soltas,
fendidos, ajirosenlam largas voragens, poiondena
obscuridade, é fácil cair: o caminho é, além d'isso,
escabroso por pouco trilhado, e se aqui se encon-
tra uma lagoa lisa e espaçosa, além teremos de
saltar sobre agudas ponlas de rochedo com diíTi-
culdade de sustentar o equilíbrio.
1). Thereza julgava ([ue Luiz de Mello estava
em Eisboa. Era assim ; mas no dia aprazado
para o encontro, que ellc próprio designara para
communicar a Chiistina noticias graves e impor-
tantes, chegara o mancebo sol nado á villa, e não
appareccra em parle alguma até á hora convencio-
nada.
Ao cair da tarde saio Christina de casa e foi
caminho da costa. Quando lá chegou já Luiz a es-
lava esperando.
Christina empregara n"aquelle dia mais esmero
na sua lui/dlc. Ia esjjlendida de graça, elegância e
formosura. Vestia de branco. Na garganta trazia um
grosso lio de contas pretas. Os cabellos magnili-
cos, que eram n'ella, como a juba no leão, um
soberbo ornamento, caíam-lhcem ondadas spiraes
sobre as espáduas. Cobiia-lhe a cabeça um bonito
chapou de palha com grande pluma branca.
Luiz de Mello estava sentado na base dos roche-
dos, á beira mar, olhando de quando em quando
para o cume dos cabeços que lhe íicavam a caval-
leiro.
Uc repente o vulto de Cliristina alvejou sobre
os negros alcantis. Se a |)Iiolographia podesse
n'aquelle momento reproduzir a imagem deChris-
lina, far-se-ia um bello quadro.
Immovel sobre as escalvadas penhas; flucluando-
Ihe ao venio as brancas roupagens; destacando a
lórma regular e bem modelada no íundo azul dos
horisonles; batondo-lhe no rosto um raio fugitivo
do sol que se atufava ao longe nas aguas; lixando
a immensidade do oceano que lhe bramia aos pés
em fiocos de espuma — parecia o anjo das tempes-
tades repoisando na penedia, |)ara dej)ois, baten-
do as azas, seguir nos seus voos alravez dos espa-
ços, em demanda de outros mares.
Mas se não era o que a íicção podia conceber;
era um anjo de amor, era a mulher convertida
pelo sentimento cm anjo de consolação.
— Christina! — exclamou Luiz vendo-a.
A (lonzella sorrio um d'esses sorrisos de mu-
lher que toem o (juer (|ue é do céo, porque resu-
mem a esperança e a felicidade.
Luiz de Mello galgou n'um instante pelas ro-
chas até aos pés'(le Christina. Aperlou-lhe con-
vulsivamente a mão, que levou dejiois aos lábios.
O beijo foi sôfrego c ardenle, como se lhe fora
irelle a alma.
— Oh Christina! foste Ião boa em \\i\ E vieste
só-?!...
— Do (piem precisava ou mais? Alé aqui o meu
amor ser\ia-me deguaida — aqui basla-me Luiz...
— I5asta-te sim, C-hiislina. O nosso amor acoiii-
panha-nos!
Poupe-inc o leitor á Iranscripção das apaixona;
das scenas que se seguiram. Sentados um ao pé
do outro, conversavam de seu amor e das espe-
ranças (juc oiiiieviam no futuro. Eram sonhos doi-
o FAiNOliAMA
171
lados aquclles, que um mau fado não quiz realisar.
O mar fervia espadanando espumas na /iocca do
Inferno: ouvia-se o mugir suido do oceano (jue-
lirando-se em longes praias. Luiz eClirislina ollia-
liim por um insíanle para a garganla do despe-
nhadeiro, como que possuídos de resj)eilo.
(llirislina poisou o bi'aço nu e formoso sobi-e o
liomhio de Luiz; depois reclinou sobre elle a ca-
beça. Luiz linha as mãos d"ella enlaçadas nas
suas.
Era assim que Paulo e Virgínia deviam eslar
em S. Domingos na véspera da partida d'ellapara
a Europa, contemplando o oceano, (|ue ia sepa-
lal-os, e o sol que baixava nooccidenle marcando
o seu ultimo dia de venluiM.
Luiz solíria lambem como elles. Sabia que lhe
era necessário separar-se de Ciiristína, e não li-
nha coragem para lh'o dizer.' lia hesilações que
iiiarl\ rí^sam. e esta era uma (Pellas.
— Ves além aquella galeia'?— exclamou Luiz in-
dicando as velas brancas de uma embarcação que
jiassava ao largo. — Como vae empavesada c ele-
gante! Oue linda mastreação! c como se leva li-
geira!...
Nos olhos do marinheiro passava um raio de
enthusiasmo — era um lampejo d'essa paixão que
na infância o condiiziía ao oceano!
— Gostas ainda muilo do mar? — perguntou
Cbristina.
— Oh, muilo, Chrislina! muito! —
— Mais do que de mim! — tornou ella triste-
mente.
— Não; isso não. Quero ao mar e quero- te a ti.
Atlrae-me para elle uma fascinação diabólica, de
que ás vezes tenho medo. Creio que o mar me
! lia de servir de tumulo. O que eu agora desejava
era levar-te comigo por esse oceano fora, onde
o mundo se resumisse em nós, Mas o mar para
1 mim é a vida, é o espaço...
Í— E o meu amor o que é, Luiz?
— Oh! — exclamou elle tristemente — o leu amor
é tudo! Mas é necessário voltar para o mar, é ne-
cessário deixar-le.
— Deixar-me! — exclamou Chrislina mais pallida
que uma defunta.
— Deixar-le sim, e denlro de dois dias.
Cliristina não respondeu. Eslava trémula e a
voz licára-lhe preza na garganta. Passava-lhcatra-
vez do coração uma angustia excruciante. As la-
grimas sollaram-se-lhe lentamente dos olhos; de-
pois vieram grossas, abundantes.
—Oh! não chores! — dizia elle acariciando-a.
-É uma separação curta. Volto depressa, e se-
remos um do outro.
— E se me achares morta quando voltares?...
— Não digas isso, Chi istina— redarguiu (>llemeio
desvairado — Não vês como solíro? Oue queres lu
que eu faça? Recebi ordem para sair paraí^abo
Verde; mas volto depressa, Chrislina, j)romelto-le,
|ainda que tivesse de fugir. Agora, i)oiém, que
ixiges de mim? Oue deixe o serviço? Obedecer-te-
^a se fosse possível — mas não é tempo... amanhã
"evo sair inevitavelmente.
— Parte, pois.
— E esperas me resignada?
— Hei de esf)erar-te. Quem tanto te tem amado,
não ha de saber sacrilicar-se? Vae!... esperarei
por li, se tiver foiças para resistir á ausência; se
as não tiver... irei procural-as alli!
E apontou i)ara o fundo do abysmo, onde os
rochedos agrupados e fendidos pareciam mil gar-
gantas da morte.
—Que dizes?! — bradou Luiz empallidecendo.
— Já não parto, Chrislina.
— lias de partir.
—Não, sem jurares que esperas por mim.
— Juro.
— Por Deus?
— Por Deus e por meu pae.
— Um beijo, Chrislina!
E o osculo concedido legitimou o juramento.
No dia seguinte, ao pôr do sol. Chi istina estava
no mesmo sitio, vendo passar um brigue que ia
ao largo pelo oceano. Luiz ia n'esse navio. Ema
tentação, um poder diabólico arraslava-o para o
mar.
A infeliz estava debulhada em lagrimas. Na mão
esquerda tinha uma medalha, com o retraio de
Luiz, que levava sofregamente aos lábios.
Quando nos horisontes se sumiram as velas bran-
cas da embarcação, Chrislina exclamou com as
mãos erguidas para o céc:
— Dai-me forças para soffrer, meu Deus!
E o vento silvava pelas quebradas da rocha! e
o oceano rugia, como o leão nos últimos arran-
cos! e os milhafres passavam guinchando e ro-
çando a aza negra pelo rochedo! e a este conceito
infernal juntava-se um rumorejar de agua, como
que despenhando-se de uma cascata!
Era a onda que fugia lá em baixo pela abertu-
ra da Bocca do Inferno.
A. d'Oliveira Pires
[Continua.)
LOUIS DUBEUX
orieutaILs(a
Nasceu em Lisboa de pães francezes, em 2 de
setembro de 1798 e falleceu em Paris a í de ou-
tubro de 1863. O pae era armador de navios. A
sua primeira educação foi inteiramente porlugueza,
e enlão é que elle se iniciou no estudo da lingua
hebi^aica.
Tendo 20 annos, a familia passou a residir em
Paris. (Continuou ali os estudos orientaes, que, no
tempo de Luiz Philippe, lhe deram |)ossc da ca-
deira de turco na escola de linguas vivas, e cm
18.')8 a successão |)rovisoria de Qualremère na
cadeira da mesma lingua no Collegio de França.
Seus trabalhos, dos ([uacs grande quantidade foi
dada no Nouveau Journal Asialique, pertencem
á lilteratura da Ásia; ligam-se á historia e á
geographia pela sua traducção da chronica de Ta-
bari, emprehendida por conta da Sociedade das
Iradueeòcs de Londres, cuja 1." parte, apenas,
saio a himc (Loud 1836, em i.'), e por 2 volu-
>I72
O PANORAMA
mes oscriplos para o Univers pillorcsque da li-
vraria Didol, a Pcrse, 1840, o o Atgbanislan (cm
collaboração cora Vaimonl), 18i8.A iiolicia sobre
as Hcscarches in p/u'losop/tical and comparalivn
])hi/ohgij de Ra^-iig é parlicularmcnle inleressan-
le para a alhenologia philologica da Ásia cenlral.
Esse esludo cnconlra-se no Nouvcau Journal
Asiatique t. 1 de I80O (I. XVÍ da 4." serie) pa.
283—309.
Alfredo May
APONTAMENTOS GEOGRAPIIICOS ACERCA
DA PROVÍNCIA DE PARANÁ
A provincia de Paraná é uma das mais ferieis
do impeiio do I5razil.
O seu clima doce e temperado reúne as vanta-
gens do clima dos trópicos ás do clima de Porlu-
gal e Ilalia.
O Paraná produz lodos os vegetacs dos i)aizes
inlerlropicaesdos do sul da Europa. Todavia aquel-
la provincia tão fértil não expoita ainda senão ma-
deiras de construcção, para queimar, c o chá do
Paraguay [herva wak'),([UG produz em abundância
e que é objecto de immenso compiercio com as
republicas hispano-americanas.
A arvore que produz o clià do Paraguay Y^^cj-
paraguaycnsis) dá-se uuicameníe no Paraguay e
na provincia de Paraná, e excepcionalmente em
alguns pontos da provincia doRio-Grande do Sul.
ElTeclua-se a collieita quebrando os ramos novos
cumulados de folhas; em seguida submellem-se a
uma ligeira torrefacção e reduzem-os a fragmen-
tos, ou a pó mais ou menos grosso. As folhas são
permanentes e não caem mesmo no inverno; a
forma d'ellas éelliptica; tem uma cor verde muito
carregado e são espessas e Insidias. As flores são
dispostas em ramalhetinbos de trinia a quarenla
flores cada um; teem quatro pétalas e egual nu-
mero de pistillos, collocados nos inlervallos.
A herva mate é usada como uma bebida de pri-
meira necessidade para os indigenas que, assim
como os hispano-americanos, o subsliluem com
proveito ao chá das índias e mesmo ao café.
Colonisarão — A provincia de Paraná possue
uma enorme quaniidade de terrenos incultos, de
excellcnte qualidade, que .são oííerecidos aos co-
lonos, quer graluilamenie, quer pelo preço de meio
decimo de real. proximamente, a bi-aça quadiada!
liiclio de .src/íi— O Paraná é, de lodos os j)aizes
da America do Sul, o que se presla mais á cul-
tura do bicho de seda, principalmenie íIo Homhij.r
arrindia que se alimenta de folhas do riciíio,
e que produz cinco a seis colheitas annuaes de
casulos.
Café, assvrar, tabaco— i) café c a canna deas-
sucarvingam perfeilamenlc na j)rovincia em (jues-
tão; f)roduzem magniíicas colheilas.
O tabaco do Paraná (em sirio reconhecido como
superior aos tabacos da Rahia, epelo menos egual
ao de Havana.
Bamiilhn — A baunilha cresce esponianeameníe
nos arredores de Paranaguá cem todas as localida-
des da provincia. O perfume d'el!a não o cede ao
das melhores baunilhas de Venezuela c do Méxi-
co.
Clíà — O arbusto de chá da índia prospera no
clima do Paraná; porém os fabricanies indigenas
ignoram os processos de preparação, e a especula-
ção ali encontraria facilmenie um ramo de com-
mercio que ainda não foi explorado.
Alf/odão—0 algodão produz duas boas colheilas
por anno.
Lefjumes — Os arrozaes, milho c lodos os legu-
mes farináceos cuUivam-se com bom exilo no Pa-
raná.
Madeiras — A provincia de Paraná abunda em
madeiras excellenles para construcção e n.arcenaria.
É preciso, principalmente, assignalar -a Arariva
vei-melha, amarella e preta; 6'«?ír//í/ainarella e ne-
gra; 6'o/7('/>///cí, o 7\{/iiba, (|uasi Ião duro como o
ferro oJc(ji(iliba, o Peroba encarnado, o Sassafras
branco, encarnado e prelo.
3Hucracs—0 Paraná eslá litleralmenle coberto
de mármores, poi-phyros, agathas, minérios de
ouro, de ferro e de galena argcnlilera.
Em uma das extremidades da cidade de Para-
naguá existe uma jazida de mei-curio tão abun-
dante, que na época das chuvas o mercúrio se
escoa caindo de um talude na borda do mar.
Diamantes e pedras preciosas — A máxima parle
dos rios d'esla provincia são auríferos; alguns, as-
sity como o Tybagy, encerram biilhanles, esme-
raldas, topázios, amelhisles, lurquezes e rubis.
Ouasi todos os dias, negros ou os camponezes
vendem por inlimo preço os diamantes que en-
contram nos rios.
Plantas medeeinaes — A ipecacuanha, a quina,
a salsa pariilha Japecanga abundam n"este paiz;
acha-se ali igualmente o Cambara antisyphilitico,
muito superior a todos os vegetaes conhecidos, da
mesma es|)ecie a C arroba emj)regada nas mesmas en-
fermidades, o bálsamo de copahiba, a Jahopha cur-
cas, a Qtiassia amara, o ant/uro cuja resina e a casca
são reputadas no paiz como antidolo da phlysica.
Peixes — A bahia de Paranaguá, uma das mais
vastas e seguras do globo, tem 12 léguas de pro-
fundidade e 00 de circumferencia. Abunda em
peixes. ()ulr'ora os hal)ilanlesda provincia de que
se li ala forneciam o jjcixe salgado a todas as re-
giões da America hespanhola.
Alfredo Mav
beduínos
E esla a denominação dos árabes, que adopta-
ram a vida nómada. Sãoelles os habilanles aborí-
genes da Arábia. A signilicação do seu nome em
lingua aiabe é «lilhos do deserto.»
I^, essa com eííeilo a sua verdad(Mra pátria, c o
silio em que elles folgam de usufruir a sua selva-
gem in(le|)en(lencia. Partindo do deserto da Ara-
i)ia, as suas Iribus csj)alharam-so pelos deserlos
da Syria c do Egypto, e quando essas primitivas
civilisações se deslizeram, arrojaram-se elles ás
vastas j)la!iuras da Mesopolainia e di (ihaldèa.
Como os pássaros sinistros, que só nas minasse
o PANORAMA
ns
comprazem, os Boduinos esperam que a mão do
tempo reduza a esquelelos as cidades i;iganles,
para se irem enlão senlar nos fustes pailidos de
Palmyra, nas moles derrocadas de Balbek. O
viajante, que percorre essas immensas solidões on-
de se agitaram nuIi-'ora innumcros povos, sonle
uma lúgubre impresí-ão ao ver alvejar por enlreas
i-uinas carcomidas o branco albornoz do Beduino,
como qualquer de nós não pode deixar de eslre-
mccer quando no claustro musgoso do convento
solitário sente o vôo pesado e ti-iste do morcego.
No soptimo século os Beduínos, caminhando
sempre em dii-ecção aos silios onde sentiam ir a
velha civilisação Laqueando, coníjuislaiam toda a
Africa seplenitiional, e ahi se estabeleceram da
mesma forma que no Grande Deserto, entre o Mar
Vermelho c o Oceano Allanlico, território que
ainda hoje occupam. Nas \mWs d'essa vasta zona
Eoduinos
onde é possível a cultura, encontram-se os Beduí-
nos misturados com outros povos, mas no deserto
são ellos sós os dominadores.
D'ahi proveio, como era natural, a necessidade
de lerem uma vida errante, e de tratarem só de
criar gados, e de roubar os viandantes. Ksla vida
solitária cheia de perigos, nómada fez d'elles um
povo essencialmemte bellicoso, exti'emamen[e hos-
pitaleiro, intrépido e frugal. O seu caracler tem
também uma vaga c selvática poesia. O deseito,
da mesma forma (jue o mar, poetisa os ânimos
mais prosaicos. Aquellas duas immensidades en-
sinam aos que as frcíiuenlam não sei que grandiosos
pensamentos.
Esta vida independente é também propiia para
desenvolver e levar ao excesso as qualidades pre-
dominantes de uma raça. A voluptuosidadc c a
vingança naturaes á raça semítica, Iransformam-se
nos beduínos em |)aixões impeluosíssímas.
Os beduínos são uma bella raça de homens. A
fadiga e as privações, a que andam expostos, aca-
nham-lhes um pouco a estatura, c emmagrecem-n'os;
apezard'isso são vivos, enei"gicos, e pouco suscep-
tíveis de se deixarem pi'ostrar j)elo cançasso. Os
seus olhos ai'dcnles revelam uma cxliema linura.
As feições caracterislícas, o nariz ordinaria-
mente aquilino denunciam uma cerla altivez.
Como lodosos nómadas dos desertos, os seus senti-
dos, especialmente o da vista, são levados a um acu-
mc. raríssimo.
A excepção de algumas liibus que iiabitam a
Syría e uma das quaes até se diz que professa o
i74
O PANORAMA
chrislianismo, os beduínos são niusiilmanos. As
funcçõos sacerdotaes são desempenhadas por ma-
rabuios, homens a quem as suas occupaçõcs ascé-
ticas e Iheologicas asseguram uma grande inllucn-
cia.
A sua cultura inlelleclual oslá pouco adianlada;
comludo lêem muilo bom senso natural, espiriío
vivo e imaginação ardente. Os seus costumes lêem
a dupla marca da sua religião e do seu género de
existência. São hospitaleiros e vingativos.
Ha mais liberdade nas relações entre os dois
sexos, do (|ue é habitual entre os Orienlaos se-
dentários. As suas mulheres não estão sujeitas a
uma reclusão severa, e a polygamia não e usada;
em compensação mudam frequenlemenle de espo-
sa. Os seus diveilimentos jiredilectos são o jogo
da i)ella c a caça. Piimam em montar a cavallo.
Adoram a dança, gostam de ouvir contar histo-
rias, de beber caie, c de fumar indolentemente o
seu cachimbo. Sustcnlam-se dos productos vegetaes
(|ue se lhe deparam, do leite dos seus rebanhos, e
da caça. Veslem-se com estofos de lã, que elles
mesmos fabricam. Tsam uma túnica branca longa
e amj)la a ([ue chamam ((haik)^ que ao mesmo tempo
llies cobre a cabeça, em torno da qual liça alada com
uma corda de pello decamello. Í*or cima do haik,
trazem um manto branco lambem, a que chamam
albornoz. Os mais nobres e os mais ricos c que
trazem calças e camiza por boixo do haik.
A sua industria limila-se ao fabrico dos uten-
sílios e dos estofos que lhes são mais indispensá-
veis; e oscucommeicio á venda dos productos dos
seus rebanhos, que lhes serve pai'a comprarem ar-
mas e munições. O seu eslado social e politico é
ainda o da vida patriaichal. Uma ou muitas famí-
lias, cujo chefe toma o titulo de .sc/icick fói-ma o
centro da Iribu, e constituem com os marabutos
uma espécie tie nobreza. Entre elles ó que se es-
colhem os cadis, que são os chefes superiores da
tribu. Estes são generaes em lem|;o de guerra, e
magistrados ejuizes em tempo de |)az. (Tada tribu
comprehendc muitos aduares ou aldeias moveis,
(|ue a maior parle das vezes só consislem em len-
das fabricadas simplesmente, com pelles de camel-
lo c dispostas ciiculainiente, no meio das (|uaes
de noite SC mettem os i^ebanhos. Os seusprincipaes
animaes domeslicos são o camello e o cavallo, o
jumento, o carneiro, c a cabra.
A GALATEA MODERNA.
VI
l>. ^ioltiiilc n liiifoiícxii <■(> .%l|>o«li'al.
Oh ! É indesculpável o pobre Alfredo. Não ha
forças que vençam a sua mania romântica, a
qualj pelos modus, o accommetleu com maior
intensidade n'cslas campinas minholas. Ecm-
bras-lc de l\omeo Montaigu ? I>cml)ras-tc d'cssa
creação inímilamenle poética, poelica de mais,
para ípic [)Ossa existir no prosairo mundo, que
habitamos V 1'nis o nieii Alfredo itníla, (oh! tem
mão, por Dcos ! NTio te coulorsas cm espasmos
de riso !) o pobre Itomeo. E o peior é íjue qu(!r
fiir.cr de mim a sua Julieta, que de certo já liio
houvera descantado o derradeiro gorgeio do rou-
xinol moribundo :
É forçoso ]inrtir, e viver.
Ou ík-ar junlo a mim... c morrer!
com accento profundamente melancólico, como
de quem vê, com olhos d'alma, os negrumes do
tumulo cm não bmginquo cemitério.
Mas não! N'esta" época de prosa vil e chã,
quando os próprios passarinhos da floresta como
que cantam, só para que lhes não derrubem as
arvores, em cujos ramos se aninharam, encontrar
um Romeo. Oh! querida baroneza ! Já alcançaste
um triumpho assim? As viclimas que has ceifado,
nada são em parai leio com este pobre vencido,
que me segue, qual sombra p.langenle e eterna-
mente amorosa. Não píjdes phantasiar, se bem
que a tua phanlasia seja capaz dos maiores ar-
rojos, o que por aqui vae de sentimento. Toda
eu sou ás vezes, ora uma elegia, tão triste como
o ruído que se alevanta dos campos, por noite de
outono, ora um ponto de admiração por esses lon-
gos amores da edade media em mil cantos, co-
mo um saga scandinavo, amores que os bardos
da língua d'oe começavam a titubear no berço,
e quando morriam ainda lhes faltava muito, o
principal talvez.
Aqui me tens, poi.=, minha querida baroneza,
em perpetua meditação anftrosa, vendo lavrar o
incêndio, que eu própria accendi, desviando-me
porém, por me não queimar.
E olha que estou cercada de perigos, que só a
minha vasta sabedoria e profundíssima prudência
poderiam evitar. Alfredo ama-me loucamente,
digo-t'o sem rebuço, sem louca vaidade. Ama-me
como um perdido, porque lhe causei uma im-
pressão, que annos e desenganos nunca jamais
poderão obliterar, listou certa d'isto. Assim o
estivera da minlia felicidade. Vè pois que cuida-
do não hei de ler, para domar os ímpetos, os
delírios, as impaciências de um amor que irrom-
peu súbito, como a lava de um vulcão, que ac*
corda, após longo somno? Como dizer á lava que
se desenijanha em chispas de fogo : não vás mais
longe, que me queimas a orla do vestido?
E depois, quando succedc a melancolia do
amor, e o vulcão já não estruge; quando Alfredo
me enleia n'um olhar, e intenta rasgar até ao
coração, como obrigai o a calar? Como deter as
mil conlissões, que estão saltando a ílux? Como
não ouvir a palavra, que, segundo o poela, que
lanlas vezes hei lido,
.... Lip|íni.s rinq mille nns
];e .=;usi)eii(l cliiKiue nuil aiix Irvres dcs amanis !
Como lograr tudo isto, no meio de tantos peri-
gos, quando o inatrimonio acode em soccorro do
coração ?
Ai! tenho medo de mim! Nasci para a lucta.
Quero luctar, c não sei se me sairei bem. Chamas-
mc louca e romanesca. Eu, romanesca? Eu, que
sou tua discípula ? Eu, que tenho por gloria se-
guir os teus exemplos?
Deus m(! livre de amar Alfredo, que seria esse
o castigo eterno, o ])erpctuo flagício da minha
vida! Amal-o, seria fi;gír d'elle, e para semi)rc.
Amal-o, fora a solidão do convento i)or compa-
nheira constante. Amai o fora a eslamonha da
monja, fora o cilício doloroso. Se eu o amasse,
adeiis mundo, que sonho, oslriumphos que ante-
I
o PANORAMA
^175
y vojo, os oxplendores, que descortino. Se eu amasse,
não poderia desposal-o. Não le admires, minha
querida. Põe os olhos cm ti. Amas apaso o pobre
barão? Amas o teu marido, esse servo fiel e obe-
diente dos teus caprichos. .Não. E por isso reinas
despoticamente, imperas no baile, redopias na
walsa, acorrentas escravos, dominas o mundo,
vives em íim a vida dourada, senão a vida do
oiro. Mas imagina por um pouco, que amavas o
teu barão. Trocavas o sceptro pela roca, torna-
vas-fe submissa, como uma matrona romana,
não tinhas vontade, não surgias radiante toda luz,
toda brilho, no meio dos festins. Pois comigo,
aconteceria peior ainda. Sou pobre, devera tudo
a Alfredo, e o meu amor confundir-se-ia com a
gratidão. Os transportes da alma lornar-se-iam
um dever de esposa agradecida e respeitosa, que
só tem olhos para o seu marido. A paixão morria
afinal n'essa athmosphcra plácida e socegada. Os
arroubos de um amor intenso, os extasis que nos
- lançam em timido pélago de sensaçcMís ignotas, os
mil soíTiimentos, conqjensados por mil venturas,
todos esses combales, que são a vida do amor, cs-
vaecer-se-iam perante esse viver tranquillo e mo-
nótono, como o caudal se some nas aguas soce-
gadas do lago.
Os meus sonhos mais queridos, as minhas es-
peranças mais arreigadas desfolharaas o casamen-
to por amor 1
Por isso, ó minha querida, não queiras que eu
ame Alfredo, e desejes ver nos unidos pelos sa-
grados laços do hymeneu, como se dizia outr'ora.
Mas deixemosdivagações. Queres ouvir Alfredo?
Queres assistir a uma dias nossas conferencias phy-
losophico-scntimentaes, em que nós discutimos,
não sem alguns suspiros de Alfredo, os themas
mais abstractos do coração? Eil-o que vem con-
vidar-me para passeio. A tarde vae fresca e ame-
na. Estamos na primavera. A brisa atufa as nu-
vens, que são o gaze dos espíritos aéreos. Os pas-
sarinhos enchem a solidão, com os seus quebros
melodiosos. As folhas do arvoredo espargem-se,
húmidas ainda, aos últimos raios do sol. E' a
hora da melancolia
{ConUnua)
A. Osouio DE Vasconcellos
LIÇÃO A UM LISONGKIUO
Um dia, nos Pnizos-Baixos, acliando-se o bravo
coronel escossez Edmunds ahnoçando com muitos
dos seus oliiciaes, um dos seus compalriolas en-
trou e dirigio-lhe estas palavras: (cMylord, vosso
nobre pai c iodos os cavalieiros e fçenlishomens
seus filhos c primos, estão de porfeila saúde.» O
coronel sorrio-se e encolhendo os iiombros disse:
«Senhores, não acrediteis uma palav;a úo que
acabais de ouvir. Meu pai é um pobre padeiro de
Edimburgo, cujo liabalho mal lhe dá para viver.
Em Ioda a minha família não se enconlra um no-
bre. Este homem queria lisongear-mce fazer acre-
ditar que eu nasci em algum castello. Enganou se,
meu camarada, nasci em uma loja, e não coro por
isso.»
A ambição e a cobiça não allentleiu nem á jus-
lica, nem *á razão.
OS ESCRÚPULOS
O grande moralisla .lacques-Josoph Duguel,
escreveu pelos annos de 1717 um tratado dos es-
crúpulos. iN'aquellc tempo, a palavra escrúpulo
não tinha o sentido que hoje se lhe dá. «O es-
crúpulo, diz Duguel, é uma duvida em matéria
de moral, que não tem fundamento ou se o tem
é mui leve, ainda (|ue vá algumas vezes até á per-
suasão, e encha a consciência de inquietação e
perplexidades.»
Escrevendo o seu tratado, tem por fim levarás
almas timoratas <ío socego e a paz esclarecendo-
as, c de conservar á virtude o privilegio de tornar
o liomem feliz, o que só convém a ella, rasgan-
do-lhe o véo lúgubre com que o espirito das tre-
vas procura cobril-a a miude. O nome de escru-
puloso, accrescenla elle, tem o quer que seja de
liumilhante na opinião do mundo; mas o mundo
é injusto. lia muita gente aquém melhor fora sof-
frer d'essa doença que os faz sorrir, do que viver
na falsa Iranquíllidadee perfeita confiança em si,
que só veera da sua muita ignorância e do que
ha de mais denso e obtuso no sentido moral.
Nada mais perigoso do que o não guardar fi-
delidade para esse grito da consciência, que é a
regra pessoal de cada parlicular, e que dá a cada
uma das suas acções a applicação das regras ge-
raes da lei natural. Quando se procura abafar essa
voz secreta, merece-se nada mais ouvir, e expõe-
se a andar toda a vida nas trevas (|ue se lhe hão
preferido. O homem de bem, sabe isso, e é muito
para lastimar quando a sua consciência o adverte
iora de tempo, e que lhe faz, sobre acções descul-
páveis, ou mesmo innocentes, reproches tão vivas,
Ião assustadoras como se essas acções foram cri-
minosas. Porque não se lhe pode dizer. «Não es-
cuteis nunca a vossa consciência.» Nem Ião pou-
co: «Esculai-a sempre.»
O meio entre estas duas extremidades é diíTi-
cil, e é preciso uma razão sã e esclarecida para
conservar-se n'elle. Se se pende nuiilo para o la-
do opposlo ao que insinua a consciência, cáe-se
no risco de habiluar-sea não ter bastante len'ella.
Se SC abandona ao escrúpulo, é para temer que a
causa não seja «uma fraípieza natural do espirito
ao qual tudo faz impressão, que, como a cera, to-
ma de lodos os pensamentos uma espécie de cu-
nho, e í|uc recebe de (juasi lodos os objectos um
ceilo abalo que o inquieta. Esla disposição, (juan-
do é levada ao excesso, limila muito a liberdade
c a razão, ou mesmo e\lingue-as complelamenle.^)
Outra causa da IVa((ueza do espirito é a sua
pouca extensão, incapaz de comparar o que pode-
ria esclarecer o escru|)ulo com o que o produz,
o es|)irilo não vê as causas senão por este, único
lado, e é de oídinario o mais afiliclivo. É uma
fonte inesgotável de falsos raciocínios, de falsos
receios, de falsos preconceitos, o não considerar
mais do que um ponto e n'elle lixar-se.
Se o espirito é confuso, se não distingue coisa
alguma com precisão, se conserva no discurso a
/b
O PANORAMA
desordem e o embaraço de pensamenlos, senle-se
uma grande dilliculdade cm socegar os escriipu-
los. Não ha oulro meio senão procurar-lho dis-
linguic claramenie as diflerenles parles do que
concebe e confunde, edemonsli-ar-ilie(iuanlo cada
ponlo sepai-ado comporia de exageração.
Muilas vezes senlimo-nosperhirbados pela nos-
sa imaginação, que nos apresenla visões assusíadoras
c que nos indignam, i^ías nós devemos pensar que
a nossa imaginação não é o eu; é a nos^o res-
peilo conui um ptulercslranho; não somos obriga-
dos a impular-nos os seus impolos, c não respon-
demos senão pelo nosso pioprio coi'ação. Ouanlo
menos nos deixarmos alemorisar pela imaginação,
menor será o seu império sobre nós: ó o medo que se
lem irellaque rodobra a violência e a assiduidade,
em (pianlo que o despreso é o i'emedio.
Não deveiiamos formar uma ideia muilo alia
da virlude: ò preciso somente que cila esteja em
relação com as condições cssenciaes do nosso es-
tado n'esta vida. Por isto torna-se essencial uma
união perfeila da delicadeza da consciência c da
rectidão do juizo. E necessário conciliar todos osseus
deveres. Somos escrupulosos na má accepção da
palavra se vemos que, para satisfazer a um só d'en-
tre cUes, se sacrificam os outros que lêem os
mesmos direitos c não importam menos á perfeita
honestidade. íla virtudes que se exj)õem a serem
suspeilas equasi odiosas, por esta pi-eferencia que
injustamente se lhes dá, e pelo pouco zelo que se
mostra para o resto das leis moraes.
(cUma attenção mui grande a examinar-se ca ob-
servar todas as suas acções e todos os seus motivos
degenera algumas vezes em inceileza. Ouanlo mais
de perlo e mais tempo se olham, menos se conhecem.
E precisoum certo pontode vista para discernir os
objectos e quando estão muito próximos, tornam-se
Ião confusos ou mesmo tão invisíveis como se esti-
vessem muilo distantes. Não ha ainda mais do que
o meio entre as duas extremidades, ou ver-se
sempre, ou nunca ver-se, quem for esclarecido.
«E preciso tanta equidade para si como para os
outros; ser humilde, mas iccloe sincero; não cair
na ingialidão para evitar o orgulho; c preferir
uma quietação, (|ue conduza á conliança, a um de-
sassocego duvidoso que não faz mais do que con-
servar o receio c que leva ao desalento.»
Enlrc 03 remédios que Dugiiet aconselha para
a emenda dos escrúpulos desarrezoados ou exces-
sivos, o trabalho entra cm primeira linha: recom-
menda estudos im[)ortantes, o exercício da caii-
dade fora de casa, a conveisação com pessoas de
uma razão superior. l)e[)ois empichende um exa-
me das esj)Ocies particulares de escrúpulos, e
enlra em uma oídem de reílexões que se referem
espccialmcnle á religião.
A Verdade se acolheu, á unha de cavallo, dos
conselhos e Iribunaes, lemendo algum desacato, e
deixou nas cortes seuíilhoo Ódio, a (piem os gran-
des casaram com a Príni/ira, jjrimeiro logar n'('llas;
de cujo ajuntamento nasceu o Dcsfiu/a no. o (\ud\ os
corlczãos ciiaramcom todo o apaialo que se pode
imaginar: porém como chegou a uso da razão, c
quiz exercitar o seu oíUcio, determinaram acabal-o.
Elle que presenliu o pouco que parecia gentil-
homcm, ))erigrinou grande parle do mundo, até
dar comsigo na Tliebaida, onde \'\\c apartado de
toda a conservação. Ó santo Desengano, quantos
naufrágios tendes passadol M. Affonso de Miranda
[Tempo de agora)
IMMENSÍDADE
Ali! SC a nossa visla fosse lai qiic podesscmos dcsco-
lirir, íilli, onde npoiíns dislingiiimos i)oiilos luminosos no
fundo negro do céu, os soes resplamieconles que gravi-
tam na extensão c os mundos haijilados que os seguem
em seu curso; se nos fosse dado abraçar cm um olIiaV ge-
ral essas myriadas de syslcmas solares; se, avançando
nós com a velocidade da luz, atravessássemos duranlc sé-
culos esse numero illimilado de sócs e de esphcras, sem
nunca adiar termo a essa immcnsidaflc onde Deos fez
germinar os mundos c os seres; voltando para traz os nos-
os olhos, mas não sabendo em que ponlo do iniinilo pára
esse grão de |)ò (pie se chama Terra, licaiiamos fascinados
e confusos por um (ai es|)eclaculo e unindo a nossa voz
ao concerto da natureza, diríamos do fundo da nossa al-
ma: ('Deos lodo poderoso! quão insensatos éramos em
julgar que natia havia além da terra, e que só a nossa
pobre morada tinha o privilegio de fazer reíleclir a lua
grandeza c o leu poder!»
ILÍÍAS DE GELO
Encon!ram-sc ilhas de gelo flucluantcs de 3 a 8 Ivilo-
metros de extensão e de 30 a CO metros de altura. A
parte coberta jielo mar de\e ser (conforme as densidades
relativas do g('lo e da agua) seis ou oiio vezes mais con-
siderável, que a i^arlc visível. A espessura lotai pode ser,
de 500 a COO melros.
L'AMOUR, CEST LA YIE !
1
Um dia, vi-te só ! eslavas triste,
])cnd:da a frente, c os olhos rasos de agua ;
c, ao ver (pie te opprimia funda rnágua,
l)ergunleí-te jiorípiè, mas não me ouviste.
Ceilo, o (piadro da vida contemplavas,
e, saudosa do céo d'onde vieras,
cm leu seio arcbangelico anhelavas
por deixar (reslc ntundo as primaveras.
Tinhas rasão ! E eu perguntei-le ainda
se na terra um incanlo não achavas
que Ic levasse alli\io ao coração.
Ergueste a fronte iiáilida, mas linda,
c respondeste — não !
II
Mais tarde... quando o amor, em doce calma,
em azas de ouro e neve te envolvia,
e na fronte gonlil Ic entretecia
a c"roa de raiidia da miidfalma ;
(piando o amor, seus s(urisos entreabrindo,
veio fechar depois nossos abraços ;
e, sobre a terra (h)res espargindo,
por llórea senda nos guiou os passos:
logrei um ceu em cada teu sorriso,
li a ventura no leu rosto lindo,
\í te ditosa, e perí;,untei-lc emlim,
se este mundo não era um paraíso,
c respondeste — sim 1
Vizcu 9 (lu maio, ISOG.
Cândido riOUKinEDO.
Tyii'. iMiuico-l-oriugUfKa. llua do Tlicsouio vellio, O
23
o PANORAIMA
77
Pi-aça de Luiz de Gamões.
Ha de muita gente julgar fora de propósito a
publicação d'esta estampa, por figurar uma scena
que já vae bem longe; e, comtudo, vale mais a
presente gravura, do que outra que desenhasse o
estado actual do meio alinhavado monumento de
Camões.
Quando sua magestade, el-rei D. Luiz, foi lan-
çar a primeira pedra da suspirada memoria, tudo
tinha, até esse jubiloso momento, corrido com tanto
fogo, que a todos pareceu resolvido o insolúvel
problema de completar, nos prasos marcados, as
obras começadas; e muitos chegaram a suppor que
teríamos inauguração antes do termo das condi-
ções.
Esse acto do nosso monarcha foi, portanto, uma
revelação de confiança, de alegria e de enlhusias-
mo patriótico, que o seu luzimenlo inspirou, ro-
bustecida pelos precedentes auspiciosos que a ti-
nham definido.
E hoje?
Hoje, ha mais alguma coisa. Certamente. Ha o
pedestal completo, que se compõe de muitas pe-
dras, de muita cal, de muitas quinas, de muitos
ornatos, de muita terra, e pó também. É mais
alto do queum homem, c. Todos o vêem. Porem...
ninguém se lembra d'elle.
Tal é o lapso de tempo, carregado de irrisórias
peripécias, que attesta aquella representação |)las-
lica do slalu qno, e que tão desapiedadamente nos
ameaça com um novo galheteiro, mais delicado,
mais janota, mais pomjjoso, e verdade, do (jue o
extincto galheteiro do Rocio; mas... um galhe-
teiro.
Portanto, a estampa que figurasse este novíssi-
mo, correcto e augmentado galheteiro seria uma es-
tampa... para rir, ou, se (luizerem, para chorar;
e o nosso fim não é fazer rir das coisas sérias,
nem entrar na complicada tarefa de phanlasiar
portuguezes que, á semelhança de Scipião, chorem
sobre as ruinas da pátria.
Eis a,rasão porque a nossa gravura tem mais
valor. E uma recordação de passadas alegrias,
sempre bem vinda n'este mar procelioso de an-
gustias em que, desde muito, navegamos.
Já lá vão os tempos em que o génio nos des-
pontava rápido e viçoso, e as diíTiculdades econó-
micas e l)lasticas se apagavam instantaneamente ao
sopro da vontade, da confiança e da energia.
Morreram- com o reinado dê D. Maria I,"" e, ao
menos, consolemo-nos por terem morrido religiosa-
mente.
Quando cortaram as azas ao ministro de D. José
I, marquez de Pombal caio das maiores alturas da
gloria, a que o seu vòo seguido e rápido o havia
elevado. A sua queda estremeceu o paiz, e desde
então nunca mais o infeliz Portugal logrou saúde.
Ninguém se mostrou culpado em tamanho delicto;
mas o convento da Estrella foi, talvez, uma ma-
nifestação piedosa movida pelo remorso, um voto
nascido de um erro politico, que só a Deus se
revelou.
Hoje, que não podemos resuscitar os mortos;
que não é possível restituir á vida aquelles polí-
ticos estacionários c despóticos que animaram o
mármore em vultos gigantescos, e fizeram brotar
das cinzas ainda lépidas uma cidade explendida;
([ue acharam e ciiaram sabias e arlistas que não
tropeçavam em qualquer difficuldade, nem, co-
bertos com as vestes da fama, dormiam embria-
gados pelo perfume dos loiros ; hoje tomámos o
l)arlido de importar a cultura do progresso.
Porém, como?
•178
O PANORAMA
Esquecerao-nos de que nos faltava o eslrumc; e
eis o proíresso. planta de eterna e crescente bel-
leza, conveilido em uma espécie de caranguejo:
andando mais paia traz, de cada vez que o im-
purram paia diante.
Proclamam-se Machados do Castro, como quem
apregoa laianja da China; SebasliõesdeCarvalho...
Minto. Hoje, ninguém quer ser Sebastião de Car-
valho... l)eci'ctam-se Colberls, como quem olle-
rece piladas de rapé; semeam-se artilices, como
quem annnncia charutos Zamacoes. Depois, mãos
ás obras. Kspera-se, espera-se... até que se de-
sespera. Que será, que não será... Espreita-se o
caso, e encontia-se ;
Os Machados de Castro a scismarem sobre o mo-
do porque de um bocado de pedra em bruto ha
de sair uma figura que não venha torta; uma li-
gura direita, perpendicular, aprumada; tendo, ape-
nas, a liberdade simi)Ies de poisar um pé adiante
do outro, ou de apalpar a i-egião do coração;
Os Colberls... a scismarem sobre a causa de
tudo lhe sair negativo, empregando constante-
mente o signal de mais;
Os artilices... a scismarem sobre a razão por-
que se lhes partiiam as formas, e, em lugar de
uma figura de Camões, lhes saio uma cascata.
Vae para um século que, em o nosso paiz, dei-
xaram, pouco a pouco, cair completamente as
obras d'arte nos braços da infelicidade. Quasi to-
dos os projectos ficam nos traços do tira linhas,
ou no modelo; e os que, por acaso, conse-
guem vingar, accusam sempre na phisiòuomia
contrahida os bons tratos que a economia, o mau
gosto, a parcialidade da compadrice, e o myslerio
lhes deram.
O theatro de D. Maria II é uma triste victima
de todas essas coisas. Devia ter nascido dos traça-
dos de Pedro Monteiro, e saio dos mal engendra-
dos plagiatos de outro architeclo, que nemtalento
linha paia fazer d'aquelles traçados tima parodia
feliz. Houve dinheií-o para consliuir um Ihealro
de lapis-lazuli; mas a economia cortou e o mys-
teiio ainda mais.
O pensamento que deu oiigem ao celebrado ga-
Iheleiro do Uocio foi outra victima. O génio que
se pro])oz eternisar pela plástica os feitos do im-
morlal imperador, dormia lá fora. A tuba pre-
goeira do concurso accordou-o, e elle, abrindo as
azas, voou para nós. ISão esperando, porem, en-
contrar em paiz Ião pequeno, tão grande e alto
monumento, como é a estatua eqiieslie de D..Iosé
I, n'ella esbarrou, partindo o nari:'., poiíjue assim
pode dizer-se de quem ousou collocar cm a mes-
ma terra, e á curla distancia da rua Augusta, uma
parodia da obra prima de Machado de Castro,
ainda mais infeliz do (jue os j)Iagiatos feitos aos
planos de Pedro Monteiro.
Os resultados dCsla comedia todos os leitores
conhecem bem.
Depois de levantaífo o pedestal, a estatua não
quiz subir; e disse-se que era porípie, faltando-
Ihc dinheiío para comprar abafos, não eslava re-
solvida a ir expor-se permanentemente á chuva.
Mais tarde, desmenlio-se esta desculpa e attribuio-
se-lhe outra. A estatua tinha vergonha de desem-
penhar o papel de aigola de galheteiro. D'esta se
convenceu o senado, e, achando-lhe razão, man-
dou arrazar a estulta cassoada.
Assim é que morreu o desgraçado galheteiro do
Rocio; e é assim que muila gente principia já a
desconfiar que morrerá o galheteiro da moderna
praça de Luiz de Camões.
Terá o destino marcado no seu livro mysterloso
a realisação de tão endiabrado agoiro?
Nogueira da Silva
A BOGCA DO LNFEKNO
Vi
Luiz vae encostado á amurada do brigue com
os olhos filos nas aguas e o pensamento muito
longe d'alli. Nem sequer se lembra de que está
no seu querido oceano, que fora outr'ora a sua
paixão.
Atlásta-te da borda, e observa como o brigue é
veleiro! A barquinha marca muitas milhas; as ve-
las vão empavezadas, e tu immovelahi, quando n'ou-
tro tempo passeavas na loldacom os olhos ora nas ver-
gas ora na proa do barco; na agulha, ou nos horison-
tesl Então no rosloqueimadolransverberava o inti-
mo prazer, nos lábios saltava um sorriso! Porque
estás agora triste e pensativo, fazendo o quarto
silencioso, quando outr'ora a tua voz. cheia de
enérgico vigor, retumbava de popa a proa dirigin-
do a manobra? É que ha solTrimentostaes, que absor-
vem todo o ser moral.
Já não encontras Christina ateu lado. Se a cha-
mas, responde-te o gemido lúgubre do oceano.
Oh! deve ser horrível esse soffrimentol
p] o oceano estendia-se em redor agitado, cres-
po, rugidor! e o vento susurrava nas enxárcias,
fazendo ranger os moitões! ea agua formava bran-
cos cachões na proa do brigue! — Era um quadro
magnifico, anle o (piai oulr'ora a alma de Luiz se
extasiava. Agora, porém, tudo passava desaperce-
bido para elle. Já não achava poesia nas ondas,
nem já a voos largos deixava subir o pensamento
aos seios da immensidade!
Encostado á borda, olhos fitos nas aguas, o co-,
lação retalhado de saudades, c a ideia na pátria,
ia-se o pobre mancebo pelos mares fora, deman-
dando outros portos, que não os do seu querido
paiz, onde, se ouiroia o prendia o ninho pátrio,
hoje o i)rende ainda mais o consorcio do coração!
Se vos recordaes, leitora, do mancebo (jue en-
contrastes na praia de (>ascaes, hesilarieis agora
em afliimar que era o mesmo. Então represenlava
o marinheiro que não lera paixão maior do que
aquella (|ue o ocí^tuo alimenta no remanso da bo-
nança ou no rugir da lem|)esla(le, paixão queal-
trae o homem para elle por um diabólico poder,
paixão que nem o naufrágio cura, i)orque o nau-
frago, que um milagre salvou da morle, vae ain-
da outra veziançar-seanciosonos braços do ocea-
no, sem já se lembrar de que esteve |)ara ser por
elles esmagado! —Agora o que ahi vedes a bordo
o PANORAMA
479
do brigue, costeando o archipolago de Cabo Ver-
de, é outro, magro, pallidu, como quem soílVe
I do mal das saudades. É que ésó para os espíritos
superiores abi'açarem-se com a dôr, e como que
alimenlarem-se d'ella. Não são para as vulgarida-
des os grandes soUVimenlos, Deus só trava as lue-
las gigantes do espirito e do coração nas organi-
sações elevadas, onde o combale pode ser heróico.
Por isso lambem o génio, disse Clialeaubriand,
usa depressa o corpo que o encerra: as almas gran-
des, assim como os grandes rios, tendem a de-
vaslar as suas margens.
Havia doisannos que Luiz de Mello e Chrislina
se tinham despedido em Cascaes. N'esta já longa
ausência, o que a ambos consolava, o que a am-
bos amparava na beirai resvaladia do tumulo,
era a esperança, a vara magica da esperança,
único arrimo dos desfortunados da terra.
Nas carias de Christina havia a resignação evan-
gélica de quem aceila tudo das mãos de Deus e
só d'elle espera o remédio. Por isso as suas pala-
vras eram todas de consolação, e n'este mister
sanlissimo da mulher, em que eíla se converte em
anjo de piedade, ia Chrislina dando coragem e
vida ao desgraçado.
Um dia Luiz pensou seriamente em voltar a
Portugal quanto antes.
Imaginou para isso uma doença e a necessidade
de ares pátrios.
Tomada deíinilivamente a resolução, não hou-
ve considerações que o demovessem do intento.
Vil
A senhora morgada, D. Thereza de Brito, habi-
tava em Lisboa uma casa grande e de veneranda
velhice. D. Thereza tinha ódio a reformas e me-
lhoramentos. Amava as suas antigas cadeiras de
c>paldar, as mesas de pau santo, o contador e a
papeleira; enão havia fazel-a acreditar na elegan-
( ia da mobilia moderna, e das decorações do tempo.
Agarrada às suas opiniões, como o berbigão se
agarra ao rochedo, atacassem-na, combalessem-
na, ou pretendessem convencel-a, que era embal-
de. Tinha um respeito religioso á antiguidade, e
não admitlia alteração nos seus usos e costumes.
Deduz-se d'aqui que D. Thereza vivia muito
concentrada. Se não tora o irmão, Chrislina não
conheceria as soirées e os bailes, e teria de su-
jeilar-se á companhia eífectiva do parocho e do
velho procurador da casa, que costumavam vir á
noite lazer a part'da do cassino ou do vollarcle
com a senhora morgada.
De dias a dias acontecia apparecerem algumas
senhoras, correligionárias de D. Thereza nas ideias
e nos usos. Eu não dispenso o leitor de ouvir a
descripção de uma das frequentadoras, mais as-
isidua.
Era uma donzclla de cincoenla e sete annos,
que debalde se esforçara nos tempos da sua mo-
cidade por encontrar um coração que compre-
iicndesse o seu. Isto dizia ella. Agora eu direi que
ninguém quiz adivinhar o tal mysterio incompre-
heusivel do coração. Os cabeiros, que, segundo
diziam asmas linguas, eram já todos brancos, ap-
paieciam da cór do azeviche, graça ao inventivo
progresso que, aj)ezar de lhe aproveitar, ella
tanto guerieava. Dentes, preslara-Íh'os a arte de
Vitry. As faces desbotadas, rugosas, pareciam ás
vezes incendiadas com os laivos carregados do car-
mim: outras levemente rosadas como o enrubecer
de innocenle donzella. Era este um dus arrebiques
em que D. Ca|)itulina mudava frequentemente:
errava sempie, apezar da pratica (juolidiana, a
porção do carmim. O que ainda illudia um pouco
eram os olhos. Deviam ter sido bellos aos vinte
ou vinte cinco annos, ardentes aos trinta— e se
lhes faltava hoje o brilho d'esse tempo, a luneta
lixa suppria a falta, porque atravez do vidro chris-
lalino, brilhante parecia o christalino dos olhos.
Da moda colhera D. Capitolina todas estas excre-
cencias insupportaveis— o que não acceitou, po-
rem, foi justamente o elegante delia. Os seus tra-
jes não soíVriam alteração; e ao ver a refolhada
touca da decrépita donzella, a manga juslinha, o
comprido espartilho, os grossos caiacóes, e a por-
çilo dos anneis, transporlava-se o observador a trinta
annos atraz. Para os que gostam de estudar o
passado tinham alli a imagem viva d'elle.
Respeito a velhice; lamento a caducidade; mas
detesto a velhice pretenciosa. Era este o defeito
de D. Capitolina. Gostava ainda de fatiarem amor,
e nas novellas do seu tempo, em que dois aman-
tes eram perseguidos pelo rigor da sorte, ou por
algum tyranno escondido, para virem casar e vi-
ver felizes, com muitos filhos, na ultima pagina
do livro. E tanto sympathisava D. Capitolina com
os nomes floridos e apollineos das suas novellas
mais queridas, que a um afdhado pozera o nome
de Valdemiro. Supponho que assim se chamava
algum amante liei.
E era esta a sociedade de D. Thereza de Brito.
Quando Pedro levava a irmã a um baile, ou trazia
um amigo a jantar, tornava-se caso estranho na
familia. Chrislina chegava mesmo a pedir-lhe que
trouxesse sempre alguém. O procurador não sabia
fatiar se não em negócios do foro: o parocho nos
negócios da Igreja.
Quando Christina perguntava ao primeiro:
—Que novidades ha, sr. Mathias?
—Está o juiz de lai vara com uma grande cons-
tipação— respondia o pobre homem.
Se Christina se dirigia ao padre, ouvia:
— Festeja-se tal dia o dogma da Conceição...
E era a isto que as novidades dos dois interro-
gados se cingiam.
Se havia, pois, visita nova, Christina e Pedro
aproveitavam a occasião para ridiculisarem todas
as antigualhas o que desagradava sumraamente
a D. Thereza.
Quero que o leitor tenha a condescencencia de
segui r-me aos paços da senhora morgada, em noite
que D. Capitolina se achava presente. Pedro de
Brito licara lambem em casa, tendo anteriormente
convidado um amigo para o acompanhar. A quin-
quagenaria donzella vinha essa noite mais rubicun-
da e graciosa. Quando divisou o amigo de Pedro,
80
O PANORAMA
que era um rapaz elegante e amável, D. Capitolina
estudou um sorriso, que se esforçou por tornar ten-
tador; deitou-llie um olhar meigo, grata recorda-
ção do seu tempo de rapariga; IVz um requebro,
o mais gracioso que poude, e cortejou o mancebo.
Chrisiiua estava j)resente. Contra o costume,
apresentava o semblante risonho. Apropria mor-
eada estranhou muito sua tilha. Parecia que lhe
illuminava o rosto o raio de algum prazer occiíllo.
O jiarocho. o procurador, 1). Thereza, e 1).
Capitolina senlaram-se ao jogo. J^edro de Brito e
o seu amigo Noronha foram collocar-se ao pé da
nieza. Jogou-se o Cassino. D Thereza quiz mudar
de parceiros.
— Faz mal — acudio D. Capitolina — Devemos
ser constantes por isso que a constância c natural
nas senhoras.
— E porque não será nos homens'^ — atalhou
Noronha.
— Ohl não! nos homens não!
— Minha senhora — redarguio Noronha, atiçado
pelo lllho da morgada — peço em nome do meu
sexo que seja mais indulgente com elle.
— Indulgente I Merece elle indulgência ? oh I
não!... os homens!... os homens!...
— São maus, não he verdade?
• — Muito maus! oh! muito maus!
D. (Capitolina aprendera nas novellas esta se-
rie inlinita de exclamações. Quando pronunciou
muilo maus, foi tal o doce requebro que deu á voz e
aos olhos, e tamanha a distracção que as cartas lhe
caíram das mãos sem que o sentisse.
— Por Deus! Mostra o jogo, parceira?! gritou-
Ihe o padreprior— olhe, làlemumaz... e émão...
perde-o por força...
A donzella recolheu pressurosa as cartas. Noro-
nha tornou com a mesmaaíTabilidade.
— V. E\". não imagina quanto me custa vel-a
apreciar tão mal os homens. Foi algum injusto
com V. Kx.'?
—Oh! sim! todos são injustos e ingratos. Oh
infelizes as mulheres que se deixam illudir! Oh
os homens não teem coração!
procurador gritavam, um contra o outro, sobre se
o jogo devia ou não proseguir, apezar dos desa-
certos de l). Capitolina.
Kram estes os episódios extraordinários da vida
monótona da moi^gada e sua família: e valiam de
muito para Cliiislma não morrer de aborrecimento.
A noite continuou interrompida com alguns
(Pestes graciosos episódios, que Chrislina achava
agora muito mais interessantes.
E que o estado do seu espirito era outro. A
saudade tinha já uma consolação, que era a es-
perança.
Uecebera carta de Luiz em que lhe dizia que
voltava brevemente a Lisboa.
D. Capitolina é que se retirou mais triste,
porque empregara delfclde toda a arte de
seduzir, que por recordação lhe licara dos tem-
pos juvenis, para ver se Noronha adivinhava
a esphynge; isto é, se possuia um coração capaz de
comprehender o seu, e d'este modo realisar a fe-
licidade, como ella muilo modestamente dizia.
[Continua)
A. d'Ouveiu\ Pires
DOUTOR JENNER
Entre os muitos flagellos, que opprimem a hu-
manidade debaixo do nome de doenças, um dos
mais terríveis, o que infundia sustos maiores aos
nossos antepassados do século XVIlIera o que re-
cebera o noaie do bexigas. O vago terror que se
apotléra de nós quando ouvimos pi-onunciar o no-
me de febre amarella, de cholera, que são na Eu-
ropa actual, os dois mais activos auxiliares do
anjo da morte, não pôde dar idéa da profunda
imi)ressão, que o terrível nome de bexigas, nos lem^
pos anteriores á descoberta da vaccina, |)roduzia. É
poríjue esseflagello não se limitava ati-avar com a
humanidade uma lucta suprema, em (pie matasse
ou fosse vencido, mas, no requintado ódio que
votara á espécie humana, não passou nunca atra-
vez de um povo sem deixar vestígios horrorosos da
sua passagem nos cadavei-es de que juncava oso-
'o, ou na face dos vivos que conservavam, ainda
— Eu creio que teem de mais... eê talvez esse que saissem Iriumphantes da pugna fatal, o esly-
0 seu mal — redai-guio Noronha sorrindo. gma indelével do combate. O algoz linha n'uma
D. Capitolina completamenie dislraida e não sei | (las mãos o culello, na outra o ferro em braza.Se
se já suavemente impressionada não vio mais o
jogo, nem as cartas.
— Lá deitou o cassino\ exclamou o piocurador.
Aproveite D. Thereza. Dos descuidos comem os
escrivães...
— Ponho iinftedimenlosl o jogo assim não con-
tinua!— gritou o |)rior esbaforido, i)or ver que a
parceira o le\ava diíeito a um cajiole.
— E eu agravo! — retrucou o piocurador com
nm sorrisinho de rábula nos beiços esbranqui(;a-
dos.
I). Capitolina estava passada. Que quciiam?
Não era senhora de si a pobre mulher (juan-
do ouvia um rapaz novo e bello a fallar-lhe
de amores. Noronha levanlou-sc, deu o braço a
Pedro, o saíram com elle da sala. Chrislina' ria
nmilo. D. 'iliereza estava pasmada, e o padie c o
a voz de Deus lhe dizia «Perdoa» o cutello des-
truidor pendia inoífensívo, mas o ferro llamme-
java, e, maicandoorosloda victimaquesejulgava
salva, abria-lhe largos sulcos nas faces, ensanguen-
lava-lhe as pálpebras, desligiirava as feições mais
correctas, amortecia o esplendoí- dos olhos mais vi-
vidos. Ao j)eslifero halílo dVsse anjo máo, perdia
a llor o p(>rfume c o coloi-ido, se não*miirchava de
iodo; dissi|)ava-se a belleza, senão se extinguia a
vida.
l'or isso as bexigas inspiraram tamanho horror
aos nossos anle|)assa(los. As mães, contemplando
as faces rosadas, os olhos azuesdos lilhos, aperta-
vam ao peito as criancinhas, temendo a cada ins-
tante sentir o vòo pesado da epidemia, c ver ao
sopro maléfico desbolar-se o viço (Fessa ílorinha
(juerida, (|ii(' protí^gera contra os frios agrestes do
o l\\NORAMA
8
inverno, e contra as calmas abrazadoras do estio!
A noiva gentil, vendo ajoelbar-lbe aos pés, enle-
vado na sua formosura, o enamorado moço que
não via outro sol senão o dos seus olhos, empal-
lidecia de súbito se um pensamento atroz llie sal-
teava a mente. O que faria esse eleilo do seu co-
ração se a esplendida belleza, que o ca!)livara,de um
instante j)ara o ouli'o se apagasse? E era essa uma
hypothese gratuita? um d'esses vagos terrores que
o amor phantasia, terrores sem causa, nuvens sem
motivo que a imaginação forma no ceu azul da
mocidade só para que um sorriso as dissipe, ca-
prichos como o de Polycratesque temia a supera-
bundância da sua ventura? Não! a hypotliese era
bem fundada, o terror era juslilicado, o pe-
rigo era real; porque esse demónio cruel, que pai-
rava nos ares, não pou|)avanem sexo, nem idade,
nem formosura, ou antes fazia uma selecção atroz,
Doutor Jenner
porque envenenava de preferencia os cálices mais
doces da existência, entenebrecia os dias mais lu-
minosos, cortava os lios da vida mais doirada,
murchava as mais ridentes primaveras, maculava,
como o caracol, as rosas mais radiantes de formosu-
ra e viço.
Foi então que appareceu, como um verdadeiro
enviado da Providencia, o homem cujo retraio
apresentamos hoje aos nossos leitores. O doutor
Jenner nasceu no dia 17 de maio de 1749 em
Berkeley, cidade do condado de Glocester na Grã-
Bretanha. Principiou a estudar medicina com um
chirurgião de Sudbury j)rovincia de {{ristol, depois
foi para Londres, onde continuou os seus estudos.
Na grande metrópole tomou conhecimento com o
doutor John Ilunter, celebre chirurgião e anato-
mista (listincto, a cuja amizade deveu ser escolhi-
do para classilicar os objectos d'historia natural,
([ue o afamado Cook trouxera da sua primeira via-
gem á roda do mundo. Precedido de grande re-
putação, como medico e naturalista, voltou Jenner
para a sua pátria, onde em breve adquirio nume-
rosa clientela, que, apezai-delhe dar grande tra-
balho, sempre lhe deixava alguns instantes livres
que elle consagrava aos seus estudos predileclos
d'hisloria natural.
Em 177o pi'inL'i|)iou a entrever a descober-
ta, que lhe devia dar tanto nome e ser paia a hu-
82
O PANORAMA
inanidade de tamanho proveito. Principiou n'essa
época a germinar no seu espirito o que alguns
caraponezes lhe tinham dito acerca da força pre-
servati\a que tinliam contra as bexigas esses botões
que se forniam no ubre das vaccas atacadas d'epi-
zooíia. Oiiantas vezes o instincto popular precede
as descobertas da sciencia ! Louco, bem louco é o
sábio orgulhoso que despreza as praticas singelas
d'esses rudes conlidentes da nalmeza! .lenner não
as desprezou, esludou-as. Depois d'um trabalho
assiduo de 13 annos, convenceu-se aíinal em 1788
da ellicacia do cow-pox contra as bexigas. Com-
tudo só em 1796 ousou fazer a primeira experiên-
cia. Proporcionou-lhe ensejo para ella uma epi-
zootia que então grassou no gado. No dia
11 de maio d'esse anno inoculou a vaccina n'um
rapazito chamado James Phipps. Depois inoculou-
Ihe as bexigas, ecom que tremor o não faria! mas
que jubilo não seria também o seu quando vio a
moléstia impotente! Estava subjugado o monstro,
estavam decepadas as cabeças da hydra, estavam
arrancados os dentes e as garras a esse tigre ávido
de sangue juvenil.
Como sempre, a sciencia oíTicial recusou reco-
nhecer o novo invento. k% Philosopliical Trans-
aclions, espécie de encyclopedia medica, recusa-
ram publicar a memoria que elle escreveu a esse
respeito. Vio-se então obrigado a publicar a sua
imporlanle descoberta n'um escripto a que deu o
titulo de Inquirynlo the causes and effects of
lhe variole vaccine. Acolhida admiravelmente na
Europa e na America, o seu auctor mereceu o no-
me de bemfeitor da humanidade. INão lhe es-
cassearam as recompensas. Em 1802 recebeu dez
mil libras, e em 1807 vinte mil a titulo de recom-
pensa nacional. Depois da sua morte, que succe-
deu no dia 26 de janeiro de 1823, a Inglatera
erigio-lhe estatuas.
i^oisa notável! quando Jenner n'um obscuro can-
to da Inglaterra fazia a sua primeira experiência,
despontava também na Itália entre os resplendo-
res da victoiia o sol napoleónico. Pouco depois
d'este se extinguir em Santa Helena terminava
também Jenner a sua carreií-a benelica. Aos olhos
da jjosteridade imjiarcial qual das duas glorias se-
rá maior? a gloria deslumbrante do guerreiro,
ou a gloria modesta do medico? a que se ergue
n'um pedestal de cadáveres, ou a que sobe para
os céus enti'e as bênçãos dos convalescentes? Não
sei; mas, se para a humanidade deslumbrada vale
mais a auréola que cinge a fronte do conquista-
dor, não será esse igualmente o juizo de Deus.
O Omnipotente presta mais attenção á oração sin-
gela da mãe jubilosa, (pie vè já sem medo llores-
cerem as rosas da saúde nas faces do lilho querido,
do quo aos cânticos enlhusiasticos dos povos que
saúdam os Osares. Hemdito mil vezes aípielle cu-
ja apotheose é feita j)ela simples lagrima de reco-
nhecimento que deslisa d'uiis olhos mateinaes !
Triste do triuniphador que, no seu carro ovante,
escuta, em vez dos insultos do escravo, a maldi-
ção das mães!
PiNnEuio Chagas.
LENDAS INDIANAS
Por Mathews (I)
A Cstrella da manhã.
Eni tempos, que foram^ pereceram todos os
habitantes de uma aldca, A excepção de uma
donzellinha, e de um rapazinho que era ain-
da de berço. Dormiam ambos quando pai c
mni se finaram. A donzcUinha, que era mais ve-
lha, accordou primeiro; mas como não visse se-
não o irmàosinbo, que dormia entre sorrisos,
vollou-sc no leito, começou novo somno.
Dez dias eram passados, quando o innocente
estremeceu no berço, ujas não abrio os olhos.
Corridos outros dez dias, mudou de posição e
continuou a dormir, e certo que sonhava lindos
sonhos, porque quando a irmã o contemplava,
via rebrilhar um sorriso celeste no rosto da crian-
ça, cuja cabeça era cingida por aureola luminosa,
que illuminava também a choça.
A donzellinha foi crescendo' e era já mulher
feita, a tempo que o rapazinho augmentava mui
pouco de estatura. Levou muito tempo para que
podesse icbolar no chão, e passaram annos c
annos, que não havia suster-se de pé. Mal poude
caminhar, a irmã deu-lhe aljava e frexas, e pon-
do-lhe uma concha no pescoço, disíc :
— De hoje em diante serás Dais-Imid, ou o
Anão da Conchinha.
Desde enlão Dais-Imid começou a caçar passa-
rinhos. Foi um melharuco a sua primeira victima,
e a donzella para influir brios no irmão, fez-
Ihe uma ceia opípara. No dia seguinte ma-
tou uma harda purpurina, que comeu lam-
bera á noite, e no terceiro dia apanhou um*
perdiz, com que os dois se regalaram á iripa-
íorra.
Pouco a pouco foi-se Dais-Imid animando c
afaslou-sc mais e mais da choça ; cada vez era
mais dextro, e afinal caçador já experiente não
temia atacar as bestas-feras da floresta. Repartia
sempre com a irmã as páreas da caça. Com ser
porém entrado na idade madura, era pequeno de
corpo, e tanto que recolhia a casa, logo lhe brilhava
a aureola em volta da cabeça c illuminava a choça.
Por um dia de inverno chegou á beira de uma
lagoa, toda gelada, e vio um gigante a caçar
castores. Em comparação d'aquelle homem, Dais-
Imid parecia um insecto; assentou-se porém na
praia, e seguio alícnfo os gestos do caçador.
Este, apoz grande matança, carregou as viclua-
Ihas em um carro, que puchou com uma das
mãos, c poz-se a caminho de casa. Dais-Imid
brandiu a conchinha maravilhosa, cortou a cauda
de um castor e fugio de arrancada para a choça.
O gigante ficou muito espantado ao ver que
um dos seus castores linha a cauda cortada.
No dia .'^eguinle o no.^^so herocsiuho voltou á
lagoa e poz-se á socapa. O gigante já linha car-
reí,^ado o carro e ia-sc embora, (luaudo Dais-Imid
lhe foi no encalço, e cortou a cauda de um castor.
Mal cliegou a casa o gigante bradou raivoso :
«Quem me dera conhecer o ladrão, que havia sa-
ber o comprimento da minlia garrocha.» Não .se
lembrava que os castores habitavam n'um la-
(li o viiijantí! M.ill](!\vs collicu oiilrc ns trihiis da Aniorina, alpii-
mas Í(!ii(las, qiiií piililimii, e rpK! Iilo .'iido tradii/.iilns oiii f|iiasi todas
as liiiguascullas. (joiíio amostra du jioesia iiojiiilar enire os pcaux-
7-uiirjrs, traduzimos esta lenda qnc nos |)areceu das mais caracturisli-
cas, porque explica poeticamente am phenomeno da natureza.
o PANORAMA
183
go, que pertencia ao anão e a sua irmã. No outro
dia voltou á lagoa: mas andou tão vidareiro,
que Dais-Imid só poude apanhai o quando
cruzava já os hombraes da casa.
O gigante encheu-se de raiva e desespero, e o
que mais o enraivecia, era não descortinar ini-
migo, por isso que o anão da conchinha podia á
vontade tornar-se invisivel.
Blasphemando e jurando lá ia o gigante na
pegada do anão ; baldo porém era o seu empe-
nho, que não encontrava o mais leve vestígio.
Determinou emfim para se vingar do igno-
to inimigo, partir de madrugada; e tão presto
andou, que o anão teve de procural-o em casa,
aonde o encontrou a estripar os castores.
Ao passo que Dais-Imid, sempre invisivel^ o
contemplava, disse para si: é de justiça que o
gigante possa ver-me uma vez.
31eu dito, meu feito, e mal o colosso, (que era
o celebre Manabnzho) ergueu a cabeça, vio oi
anão, a quem faltou assim:
— Quem és tu, traquinas? Estou vae não vae
a esganar-te.
— Não te acobardes ; que não conseguirás teu
ruim intento.
Palavras não eram ditas, estendia Manabozho os
braços, mas quando abrio os dedos^ já Dais-Imid
se havia escapolido.
— Aonde estás agora, traquinas? rouquejou
Manabozho.
— No teu cinte, respondeu o anão.
E o gigante cuidando esmagal-o, deu em si
com toda a força; desenrolando porém o cinto,
não encontrou o anão.
— Aonde te escondeste^ diabrete? gritou Mana-
bozho, incendido em raiva
— Na tua venta direita, disse o anão. Manabozho
apertou o nariz, mas como ouvisse a dois passos
de distancia a voz do seu inimigo convenceu-se
que o seu nariz fora quem tinha pago as custas.
— Muito bons dias, Manabozho, gritava o invi-
sivel adversário. Conta as caudas dos castores, e ve-
rás que levo uma para minha irmã; porque, mes-
mo brincando, o anão lembra-se da fada do seu
lar. Até á vista, caçador de castores.
E ao tempo que se apartava, o anão tornou-se
visivel ; e a sua aureola resplandecia em volta da
cabeça e illuminava o espaço, coisa que Mana-
b ozho não poude explicar, porque era de natureza
muito bronco e soez.
Quando Dais-Imid entrou em casa,, disse áirmã
que era chegado o tempo de se separarem.
— Eu de mim, acrescentou^ vou-me embora.
Ninguém foge ao seu destino. Tu deves também
deixar esta morada. Aonde queres habitar?
— Quizera eslancear nos plainos, aonde nasce
o sol, aonde fulguram os primeiros clarões do
dia, aonde os esplendores do céo são mais for-
mosos. Quando eu estiver lá, ó meu irmãosinho,
e vires nuvens retinctas brilhar no firmamento,
cuidarás que tua iimã está pintando as faces com
o carmim do céo.
— E eu, disse o anão á irmã, viverei nosalcan
tis, e poderei ver-te mal surjas do seio do mar.
Nos píncaros o ar é puro e as torrentes espada-
nam aguas transparentes. Esta luz bi^ilhante cin-
girá a minha cabeça e serei chamado Pusk-Inince,
ou o anão das montanhas. Antes, porém de nos
separarmos para sempre, é força que conheças
quaes são os manilus, que governam a terra, e
os que nos serão favoráveis. O anão deixou a ir-
mã, correu toda a superfície do mundo, e desceu
até ás entranhas do globo. Recebeu boa acolheita
em toda a parte. Chegado á morada de um gi-
gante, que era parente de Manabozho, foi mal
recebido a ponto de ser lançado *na enorme cal-
deira que fervia em cachão. Dais-Imid envolveu-se
na conchinha milagrosa, vasou n'um abrir e fe-
char d'olhos a caldeira, e fugio são e escorreito.
Voltou á choça e contando á irmã todos os
seus trabalhos, acabou assim:
— Minha irmã, ha um manitu em cada canto
da terra ; por sobre elles, e nas profundezas do
céo, habita o Ente Supremo que a todos governa.
Ha também um ente mau, que rasteja nos seios
do mundo. Havemos de escapar ambos ao seu
poder. Quando os ventos soprarem dos quatro
cantos da terra, levar-te-hão ao sitio, que esco-
lheste. Eu de mim ascenderei ás montanhas, que
sempre aprouveram aos meus similhantes.
Dais-Imid tomou de um bordão, e começou a
galgar a montanha ; cingia-lhe a fronte uma au-
reola, e cantava assim :
«Soprae, ventos, soprae! minha irmã suspira
na mansão celeste, aonde a manLã, com os seus
róseos dedos, lhe pintará as faces com o carmim
do céo. Para ella se voltarão os meus primeiros
olhares; os seus sorrisos, reflectidos nas nuvens,
ser-me-hão guia e fanal nas aguas ou nos reces-
sos das florestas, quando vaguear nos alcantis,
ou me esconder nos valles verdejantes, aonde
florece a roseira junto á fonte queixosa.»
Os ventos começaram então a soprar assim como
Dais-Imid havia predito, levaram nas azas invisí-
veis a virgem para o oriente, aonde viveu até
hoje com o nome de Estrella da Manhã.
A. O. DE Vasconcellos.
O centro de lodos os males é o jogo, e morada
de todas as maldades, blasfémias, juramentos fal-
sos, furtos, e os mais que a este se agregam.
M. Affonso de Miranda.
DE QUE VIVEM AS PLANTAS
As plantas compõem-se de carvão, agua e de uma gran-
de quantidade de hydrogenio; alem d'isso conleem um
quaiio corpo simples, o azote, que se encontra em dimi-
nuta proporção, mas cuja presença é essencial á vida. A
allimosphera" fornece abundantemente o carvão; as cliu-
vas, a agua ou o oxigénio e o liydrogenio; a terra, o
azote, mas que, por ser raro, se llie introduz sol) a forma
de estrume: é esla a grande preoccupação do agricultor;
éa mais avultada, a mais inevitável e a mais producliva
de todas as suas despezas.
A CRITICA LITTERARIA
O espirito da critica c um espirito de ordem; conhece
os delidos contra o gosto c leva-os ao tribunal do ridí-
culo; porque o riso é muitas vezes a expressão da cólera,
e os que o censuram não relleclem que o homem de
gosto antes de fazer uma ferida recebeu vinte. Diz-sc que
o homem tem o espirito da critica quando recebeu do
eco não somente a faculdade de distinguir as bellezas e
os defeitos das producçOes que julga, mas uma alma que
se apaixona por umas e se exaspera com outras, uma
alma a qual o bello arrel)ata, o sublime transporta, e que,
furiosa contra a mediocridade, esmaga-a com os seus des-
déns, c opprimc-a com os seus enojos.
i84
O PANORAMA
PROVÉRBIOS ARARES
—A melhor scicncia é a que oíTercce ulilidado.
— b que foi mordido por uma serpente tem medo de
uma corda.
—O corvo não.tira os olhos a seus irmãos.
— iNão se mellem duas espadas na mesma bainha.
—Se a gallinha tivesse dinheiro, não se lhe cortaria o
pescoço.
— A morte do burro c uma festa para os cães.
—Não ha scentelhas na cinza.
—As doçuras do mundo são paraaquellequeo não co-
nhece; as 'amarguras para o homem esclarecido.
—O tanque forma-se gota a gota.
— O sábio em sua pátria o como o ouro em sua mina.
—O que dá é mais feliz do que o (juc recebe.
—A mão de cima vale mais do que a de baixo.
— Aquelle, cujo termo e chegado não tem mais a fa-
zer do que estender as pernas.
—Os dias do homem estão contados; porque receiar a
morte? , ,..,,.
—Todo o cão ladra à sua porta, lodo o leão e altivo
na sua lloresla.
—O que sobe ao carro da esperança tem por compa-
nheira a pobreza.
—Quem te disser mal de outrem diz mal de ti.
—O sábio conhece o ignorante, porque o foi, mas o
ignorante não conhece o sábio, porijue nunca foi sábio.
-No paiz das palmeiras sustentam-se os burros com
tâmaras.
—Se lodos os homens se entregassem unicamente a
meditação, a terra tornar-se-ia inculta.
— To"dos os que andam vestidos de pelle de tigre não
são corajosos.
—Aquelle que se aquece ao fogo conhece-lheo calor.
—O leão sustenta-se somente da sua caça.
—Se a lua é brilhante, o sol ainda o é mais.
—Se os homens procedessem bem, o cadi cousa alguma
—O que dá aos outros a beber é sempre o ultimo que
hebe. ,^ „ , ,
—Na frente, espelho; por detraz tesouras, (fatiando do
hvpocrita).
"— Allumia os outros e queima-se.
Tres partes hade ler o que quizer louvar algum
sujoilo; verdade na língua, autoridade na pessoa,
elegância no modo
M. ArioNso DE Miranda,
NA PRIMAVERA.
Je suis la íleur dus miirnilles,
Donl avril est, Ic seul hien.
II sulBt que tu l'en ailles
Pour qu'il ne reste plus rien.
V. liUGO.
Desfez-se a névoa do inverno.
Começa a vir o calor ;
No campo despontam rosas.
No seio palpita amor.
As andorinhas fugaces
Chilrando alegres já vem ;
Sorriem-se os pequeninos
Nos ternos braços da mãe.
O sol beija com sfMis raios
Os cimos dos alcantis ;
Desdobra a relva um tapete
Do mais gracioso matiz.
O vento suspira e brinca
Nos ramos da larangeira ;
O cysne canta e deslisa
Pelas aguas da ribeira.
Tudo é luz, tudo perfumes,
Tudo alegrias singelas ;
De manhã vicejam flores.
De noite brilham eslrellas.
Como a vida corre amena
N'esla florida estação 1
Quando a sombra foge aos campos,
Foge a magoa ao coração.
Aqui rcspira-se a vida,
A(iui traga-se o prazer.
A nuvem d'uma tristeza
Não vem lurbar-nos, sequer.
Oh, dá-me o braço, querida,
É nossa a quadra do amor :
O sol c grato aos amantes.
Como ao campo e como à flor.
Vem, não temas, divaguemos,
Não íiíiues, não i)enses mais.
Como os beijos são tão doces
A sombra dos laranjaes !
E cu quero aspirar comligo
Todo eslft aroma subtil.
Em teus braços reclinado
Contente saudar abril.
Sim, eu amo a primavera,
Os vivos clarões do sol,
De noite as brandas endeixas
Que modula o rouxinol.
Amo tudo o que scinfilla.
Tudo ([ue é raio e explendor ;
O canto que vem das aves,
O cheiro que vem da flor.
Mas sem teu meigo sorriso
Nada me encanta e seduz;
Nas rosas perde-se o|viço,
Nos astros desmaia a luz.
Que tem que o sol encha a terra
Com seu fulgente clarão,
Se escura noute sentimos
Toldar-nos o coração?
Que importava a primavera,
Que engrinalda a terra e o ceo,
Se os teus olhos não dissessem
Que CS minha como eu sou teu?
Vem, pois, comigo, querida,
Gosar do campo o frescor ;
O campo é grato aos amantes,
Como o sol é grato á flor.
Vem, não temas, não vacillcs,
Não fiques, não penses mais:
Que doces beijos daremos,
Á sombra dos laranjaes !
E. A. Vidal.
A mentira é salteador que rebuçado ao meio dia
nos rouba não nas estradas e charnecas, mas nas
cidades e praças, e de (juem os mais levantados
inlendimentos e honrados sujeitos não poderam es-
capar. Por esla se perderam imi)erios, se deslrui-
ram monarchias, se entregaram cidades, se odia-
ram reinos, esc desunem e descompõem as maiores
amizades e se dividem os mais ligados |)arentescos.
M. Affonso de Miranda.
Typ. Fianco-Portguezii, Rua do Thcsouro Velho, 6.
o PANORAMA
^85
O CAPITÃO CORAM
lia para mim não sei que indizível allraclivo na
i;loiia modesta d'esses bemfeiloresda humanidade,
(jiie passaram no mundo sem que a historia ofilciaí
se dignasse registrar-lhes o nome no seu livro de
liii-o. Sinto um doccpiazer em me debruçar sobre
essas campas quasi de todo olvidadas, eVm fazer
surgir á luz do futuro os vullosd'esses obscurosobrei-
rosda civilisação, cujo nome até se foi rapidamente
obliterando da memoria das gerações. l)iz-sc que
a hora da justiça sôa ao mesmo tempo que a hora
do passamento; nem sempre. Ás vezes a posteri-
dade é tão injusta como os contemporâneos. A
pjsleridade deixa-se deskunbrar pelo clarão de-
vorador dos grandes meteoros da histoi'ia, c des-
preza a luz serena e modesta das cstrellas, que
brilharam n'um canto do céo azul, e cujos raios
o Capitrio Corain.
tranquillos e viviíicantes choveram consolações c
aliivios sobre os tristes d'este mundo.
Folheiem os diccionarios biographicos, o encon-
trarão alli registrados os nomes dos mais obscuros
gcneraes divisionários de Napoleão, dos mais in-
signiíicantes chefes das esquadras inglezas, do
Biais insulso romancista, do dramaluigo mais es-
palmado, do jioeta mais prosaico. E no meio d"essa
plêiade de eleitos da celebridade, de aristocratas
da gloria, os quaes muitas vezes dillicilmentc
aprescntani documentos que lhe jusliliquem o
foro de nobreza, não encontrarão o nome do ho-
mem, cujo retrato apresentamos hoje aos nossos
leitores, do homem que foi um dos mais tenazes,
um dos mais zelosos applicadores da doutrina da
caridade, do homem que toda a sua vida consa-
grou ao allivio das misérias dos seus semelhan-
tes!
Thoniaz Coram, capitão de navios na marinha
mercante ingleza, naseeu-em Londi'es no annode
J()()8. A sua vida resume-se n'uma breve pagina,
mas que immoital não devia ser essa pagina de
gloria que não humedecem outras lagrimas que
não sejam as lagrimas de gratidão dos infelizes,
de quem elie foi o amparo constante! Nunca de-
sempenhou cargos imj)ortantes, nunca representou
um grande pajjcl na historia do seu paiz. Viveu
paia fazer bem, c só paia fazer bem sem que os
86
O PANORAMA
seus actos de caridade Ibe servissem de degrau
á aQibição. Os seus rendimentos, ou herdados ou
írrangeados na vida commercial, despendcu-os
até a ultima m-ailia para allivio dos pobres.
Kssa abnegação extraordinária, porque o capitão
Coram nunca fci nem sequer empregado pelo go-
verno como dispensador da benelicencia publica,
nem teve uma só das honras que em geral as na-
ções reconhecidas volam aos homens, que se con-
sagram á Ímproba tarefa, em que Thomaz Coram
consumia a sua existência e os seus liavcres, essa
al3negação extraordinária é principalmente assom-
brosa n'um marinheiro rude, educado antes para
alTronlar as tempestades, do que para enxugaras
lagrimas, n'um homem cuja educação religiosa se
limitava á leiluia assídua da sua Biblia, ir"um ho-
mem, emlim, a quem o seu ministério não impu-
nha, nem sequer moralmente, os deveres que o
sacerdócio impõe aos ministros de Deus, deveres
que elle a impulso do seu coração desempenhava
com jubilo, ao passo que os que lêem eslricta
obrigação de os cumprir só desempenliam essa
obrigação tanto quanto baste para não produzi-
rem escândalo.
No tempo em que vivia esle benemérito de Deus
ainda não havia em Londres a instituição que
Portugal se ufana de ter possuído primeiro que
todas as outras nações europeas, que a Ilespanha
deve ao zelo religioso da sua rainha Isabel a Ca-
tholica, que em França teve origem graças á podero-
sa iniciativa de S. Vicente de Paula, um hospício
dos expostos. Debale-se hoje muito a questão se
estas instituições caridosas são úteis ou não á mo-
ralidade social, Diz-se que muitas vezes mais pro-
tegem o vicio do que alliviam a miséria, que
antes servem para favorecer a indifierença crimi-
nosa de algumas mais do que i)ara alliviar as do-
res excruciantes d'outi'as, asquaes sem a roda, essa
muda conlidenle das suas agonias e dos seus re-
morsos, veriam seus lilhosexpií^ando ao desampa
ro, ou vergando ao peso do eslygma estampado
por uma sociedade hypocrila na fronte innocente
do anjo, que nasceu do peccado, como do pecca-
do lambem nasce o ari-ependimento. Ma-; o arre-
pendimento acollie-o um sorriso meigo de .lesus,
o fruclo do amor peccaminoso acolliom-n'oos des-
prezos dos homens, e as Magdalenas trementes
não encontram pés divinos sobre que possam der-
ramar o nardo das suas angustias, enxugando-os
com as suas tranças, banhando-os com as suas
lagrimas. As peccadoras tremem d'a(|uelles que,
não receando encontrar o olliai' límpido do Filho do
homem, não receariam lambem ajjcdrejal-as e in-
sullal-as- Por isso, caminhando de noile, com o
fardo precioí^ escondido- sob o manlo, vão entre-
gar á caiidade jiublícaa criança banhada das lagri-
mas matei naes, e abençoam em voz baixa o desco-
nhecido santo, que prevendo as suas angustias, abrio
primeiro os biaços misericordiosos para receber
no suave amplexo os íilhos do amor e os íillios
da miséria.
Pallidas peccadoras aquém o remoi'so |iersegue!
mais anciosas que tremeis de ver delinhart-m-sc-vos
nos braços ao sopro da miséria essas floi-inhas
tenras que vos bi'olaram no seio, e que alimen-
taríeis cora o vosso próprio sangue, se o sangue
podesse dar vida aos mimosos botões, abençoai
também esse obscuro marinheiro, cujo retrato hoje
apresentamos! O pobre Thomaz Coiam, o singelo
capitão de navios, foi o primeiro que fundou na
opulenta Inglaterra um hospício de expostos. Esse
não dísculío friamente se iria auxiliar o vicio ou
favorecer a AÍrtude, vio as crianças abandona-
das no chão gélido de Londres, e levantcu-as nos
braços, vio as pobres avesinhas implumes a tre-
merem de frio n'essas manhãs brumosas de um
inverno inglez a um canto das ruas silenciosas, e
o marinheiro, cora as lagrimas nos olhos, aqucn-
tou-as no peito, deu-lhescaloi-, abrigo, e vida. De-
pois foi ao canto da sua aica,onde estavaaccumu-
lada talvez a quantia que destinava pai-a liar d'ella
o repouso, a tranquillidade, oagazalho, obem-es-
lar da sua velhice, e com uma singeleza sublime,
sem vãs declamações, sera ostentação alguma, ar-
rojou a pesada bolsa aos pés de um architecto, e
disse: «Erga -se um asylo para as ciianças aban-
donadas.» E emquanlo os opulentíssimos proprie-
tários da Grã-Bretanha despendiam loucamente os
seus dinheiros, uns a prepararem conspirações paia
o restabelecimento dos Stuaits no tlirono, outros
a serem o escândalo do povo nas orgias, que fi-
zeram a corte dos primeiros reis da casa de lla-
nover digna rival da côrle de Luiz XV e de Phi-
líppc d'Orleans, o pobre capitão, sem auxilio de
pessoa alguma, lançava os fundamentos do seu
monumento caridoso, e gastava até o ultimo pen-
ny dos seus haveres, grangeados honestamente com
o seu trabalho, em levar a cabo a realisação da
sua tão evangélica idéa.
E não se supponha que falíamos no figurado
dizendo «alé ao ultimo penny». Tocante facto que
vale por si só o mais pomposo panegyrico! O ho-
mem, que fora a providencia dos pobres, o ho-
mem que erigira o primeiro hospício dos expos-
tos na Jnglalerra, vio-se no lira da sua vida obri-
gado a recorrer á caridade publica 1 Não lhes faz
lembrar isto aquelle bispo fiancez da Fcsla e ca-
ridade de Thomaz Ribeiro, acerca do qual o no.sso
glande poeta escreveu estes dois magníficos ver-
sos:
E filiando aelinn vasia a sua mão tão nobre
jiilgou-se mais luliz, ora o primeiro pobro?
Foi necessário que o |)rincipe de fialles e al-
guns dos seus amigos se colisassem entre si para
lhe dar uma jiensão até á sua morte, (juc succe-
deu em 1751, lendo elle de idade oitenta e Ires
annos.
O que diria o honrado homem se resuscitassc
e assistisse á discussão (juo no nosso século phi-
lantropico se Irava ác(Mca da utilidade dos esta-
belecimentos, de (jue elle foi um dos fundadores.'
Duvidaria da sua obra? Não; diria talvez, llu-
ctiiando-lhe nos lábios o mesmo sorriso meigo
com que acolhia as criancinhas desamparadas, di-
ria (|ue, perante ura facto dilacerante, não se traia
de disculir, Irala-sc de remediar, que quaesqucr
o PANORAMA
87
que sejam as culpas das mais, a criancinha inno-
cefito é irresponsável por cMas, e que o logar no
banquete da vida, que os seus labiosinbos imploram,
não pôde a sociedade recusar-ih'o sob pretexto al-
gum; diria mais ainda, diria que, se os legislado-
les legislassem de vez em quando mais com o
coração do que com o espirito, o quede cei'to lhes
não faria mal algum, comprelienderiam que as
mais que repellem seus íilhos sem necessidade
pungentissima e fatal são excepções monstruosas,
e que as leis sociaes da mesma forma que as leis
(la natureza não se curvam ante a existência das
aberrações; diria, emíim, que os homens de Esta-
do que ousam discutir o amor maternal são uma
espécie d'eunucos, que, mil vezes mais infelizes
do que os guardas do serralho,* nem sequer com-
prehendem a paternidade pelo lado do sentimento
moral, e que, não comprehendendo a paternidade
que illumina com um raio de luz celeste a figura
grotesca de Triboulet, ainda menos comprehende-
rão o amor de mãi que inunda de esplendor o
vulto hediondo de Lucrécia Borgia.
E, depois de dizer isso, o honrado capitão Co-
ram esvair-se-hia como uma sombra que hoje é,
e voltaria ao paraíso dando o braço a S. Vicente
de Paula, causando assim grande estranheza ao
Summo Pontiíiee, quede certo não comprehenderá
esta ligação Ião intima entre ura santo esiim pro-
teslante. Pixheiiio Coagas.
A verdade é uma saúde que nunca enferma, uma
vida que nunca morre, uma mesinha que a todos
sara, um sol que nunca se põe, uma lua que nun-
ca se eclipsa, uma porta que a ninguém se fecha,
e um caminho que a todos descanca.
M. AfFONSO de MIRANDA.
AMOR Á PÁTRIA
Indubitavelmente, entre os povos antigos, os gre-
gos e os espartanos eram osque possuiam em mais
subido gráo, em Ioda a sua nobre pureza, o amor
á pátria de que tanto hoje debalde se blasona. Ve-
jam-se alguns notabilissimos exemplos que a his-
toria nos legou.
Condemnado injustamente, por inveja dos seus
concidadãos, o celebre Phocio, um dos mais famo-
sos personagens da antiga Grécia, eslava já para
beber o fatal veneno, quando lhe perguntaram se
desejava despedir-se de seu íilho,e fazer algumas
disposições. (cTrazei-m'o aqui,» respondeu; e ao
vel-o, íhe disse : ccOuerido íiiho ! INão te recom-
mendo outra cousa senão que sirvas sempre a tua
pátria com o mesmo zelo e lealdade com que eu
a servi, e que olvides que o premio dos meus ser-
viços foi uma morte injusta!»
Em Esparta, sobretudo, o amor á pátria era ge-
ral.
Homens, mulheres, crianças, emíim, individues
de todas as idades e condições disputavam-sc a glo-
ria de fazerem pela pátria os maiores sacrilicios ;
o ambos os sexos, animados do mesmo zelo, con-
sagravam-se sem reserva á salvação, ao bem-eslar
e á gloria do Estado. Alguns rasgos que a histo-
ria tem conservado, darão a conhecer o génio pa-
triótico d'aquellcs famosos republicanos,
Uma mulher de Eacedemonia dizia a seu íilho
no momento em que o eslava armando, e enti'e-
gando-lhe o escudo para marchar ao combate : «Vol-
ta com elle ou sobre elle;» alludindo ao costume
de trazer os mortos nos seus escudos.
Outra fazia perguntas a seu íilho que acabava
de chegar da guerra, e como este lhe respondes-
se : «Todos os meus companheiros morreram,»
cheia de indignação agarrou em uma telha e ar-
remessou-lh'a con» fúria e modo taes que o matou,
e ao vel-o cair, disse : «Mandaram-te a ti miserá-
vel, para nos annunciares as suas desgraças?»
Outra ao receber a noticia de que um dos seus
íilhos tinha morrido gloriosamente em um comba-
te, exclamou : «iSão me causa estranheza, era meu
íilho.» E dizendo-se-lhe no mesmo momento que o
outro havia fugido cobai-demente : «Não era meu
filho !» disse com viveza aquella generosa mãi.
Outra, tendo sabido que seu filho havia escapado
do combate, escreveu-lhe, dizendo-lhe: «Levantou-
se um murmúrio injurioso á tua honra; falo ces-
sar, ou morre.»
Outra ao ouvir seu filho relatar-lhe a morte glo-
riosa do irnuío, que tinha sido traiçoeiramente
morto em quanto combatia, lhe disse*: «^Porque
não o acom|)anhaste desgraçado?»
Outra que tinha cinco íilhos no exercito, estava
ouvindo contar os promenores da batalha, e diri-
gindo-se a um escravo que n'aquelle momento che-
gara, este lhe disse : «Os vossos cinco filhos mor-
reram.»— Vil escravo, replicou a mãi, é isso que
te pergunto? — «Ganhamos a victoria,» tornou o
escravo ; e a mãi dirigio-se immediatamente ao
templo a dar graças aos deoses.
Outra, vendo, no assedio de uma cidade, seu filho
primogénito cair morto a seus pés, exclamou : «Cha-
mem seu irmão para subslituil-o.»
Quando- chegaram a Lacedemonia os que deviam
annunciar a perda da famosa batalha de Leuctra,
estava-se celebrando na cidade uma grande fesla,
á qual havia acudido uma infinidade de estrangei-
ros, altraidos pela curiosidade. Os coros de jo-
vens de ambos os sexos celebravam seus ritos em
pleno thealro segundo as instituições de Licurgo.
iN'aquelle momento chegaram a Esparta os porta-
dores da triste nova; porém não se interromperam
os jogos, nem houve mudança noapparatodafesta.
Unicamente se mandaram a todas as casas os no-
mes dos mortos que lhes pertenciam. Ao amanhe-
cer do seguinte dia já se sabia de lodos os que
haviam escapado ou morrido ; os pais e parentes
dos que deixaram de existir iam á pr-aça publica,
abi'açavam-se csaudavam-se com semblante alegre,
assim como os pais e parentes dos que se tinham
salvado do ferro inimigo, se occultavam cm suas
casas. Se algum d'elles se via obrigado a sair á
rua para os seus negócios, apresentava-se com
semblante, voz e olhar que bem denunciavam a
88
O PANORAMA
sua tristeza e abalimenlo ; e na desgraça commum
da pátria, não havia goso doraeslico.
A BOCCA DO INFERNO
YIll
Fair drfcrt of nature ! — ú\z Millon da mu-
lher. E todavia é a cs?{i erro formoso da natureza
que nós levantamos altaiTs ! Tirae do mundo a mu-
lher e desapparecerão muitos desvarios, muitas con-
tendas, e ate muitos crimes, é a opinião do alguns;
mas então o mundo diz um dos nossos esciiplo
res, seria um ermo melancólico, os pi-azeres ape-
nas o preludio do tédio.
Um inferno íòia ellc, penso eu, sem a muliíer,
esse ser abençoado que tem bálsamo para todas
as desgraças na só meiguice de um í)li)ar. Se aqui
faz um m"art\ r, puriíica alli um coração, regenera
além uma alma. Pôde malar com o desprezo, mas
tem o poder de resuscilar com um sorriso.
Deus que vos fez bellas, que vos concedeu a
fascinação soberana do olhar e do gesto, foi por-
que quiz coliocar no mundo quem podesse abater
os fortes, exaltar os humildes, consolar os des-
graçados, incitar emíim todas as virtudes e enxu-
gar todas as lagrymasl
Sois fracas, e a vossa força é immensa, porque
a tiraes do próprio desvalimenlo. l*ergunlac á
sombra de Anua d'Austria (já que as exhumações
de S. Diniz lhe dispersaram os ossos') pergunlae-
Ihe se não era muito mais rainha quando Bnkin^
gham Ihesacrilicava um exercito, do que quando,
envolta nos arminhos da realeza, se sentava no
Ihrono da França! Perguntae á sombra de Cleó-
patra se não se julgava muito mais soberana, do-
minando o coração de César ou vendo quebrar-se-
Ihe ás plantas a espada laureada de Marco-Anto-
nio, que quando o Kgypto inteiro lhe prestava vas-
salagem? Diga Joanna de Nápoles se não era mais
despoticamente senhora quando com o olhar, que
prometlia um mundo de venturas, fazia do duque
de Tarento um regicida.^!
As vossas glorias, a vossa grandeza, ioda a vos-
sa supremacia eslá ahi. Na cabeça da esposa de
Luiz XIII a coroa era quasi irrisão: — ura cardeal
torcia-a entre os seus dedos de ferro. A íilha de
Ptolomeu vio como o sceptro era frágil — c como
lhe era mais fácil dominar um coração, do que
dominar um povo. A esposa de André da Hun-
gria sabia que o reinar em Nápoles, soba inlluen-
cia de uma favorita, valia bem menos que diclar
despoticamente a lei nos Iribunaes d'amor !
K que sobre vossos cabellos formosos fica me-
lhor a coroa de rosas, perfumadas :le cândidos
aromas, que os diademas querejjresenlam a sobe-
rania dos estados ! A mulher nasceu para domi-
nar pela blandícia dos sentimentos carinhosos,
ou pela sceníelha ardente das paixões. Todo o
poder que não seja este deveeslalar-lhe nas mãos
como \idro frágil e quebradiço. Dominio pela
influencia do coração, esse sim que o e\ei'ce ella,
que o exei-cia Chrislina sobre Luiz.
Era curvado a essa influencia que Luiz de Mello
desprezava a sua carreira, sacrificava o seu futu-
ro, punhado parle osatTectos que o prendiam á vida
aventurosa do mar, e vollava a Lisboa.
No jirimeiro navio que de Cabo Verde saio para
Portuga! embarcou o mancebo com a esperança
de volver depressa á pátria. Com o olhar cravacío
nos horisontes, anhelava ver surgir os montes das
cosias de Portugal — e á noite, quando a lua es-
pai'gia sobre o dorso movediço das vagas os seus
pallidos lampejos, conlava-lhc ellc conlidencias e
segredos, que o vento levava nas azas. A alma
generosa, como é sempre a alma dos poetas edos
;ti'tislas, abria-se n'aquellas evocações ao amor c
á saudade, á mulher e á pátria, cantos de um
l)oema sublime em que se resumem todos os sen-
timentos do homem na idade inspirada da juven- .
tude!
A. d'Oliveir.v Pires
{Continua)
DA UTILIDADE DE UMA LÍNGUA
UNIVERSAL o
É inconlostavct que lodos os povos cnniinliam liojc
para uma organisação commum, paia uma sociedade uni-
versal. A religião, "a politica, a |)iiilosophia, as artes, as
sciencias, a industria, o commercio conduzem ip;ualmente
a esla conclusão. Mas se lai é o futuro, o ])ro\imo futu-
ro, talvez, da humanidade, a primeira consequência cres-
te grande acontecimento (leve ser o eslaholecimento d'uma
língua commum, cuie, deixando subsistir os idiomas na-
cionaes, tcstemualio da indi\idualidade dos povos, seja
comtudo o iucúhnn das relações inlernacionaes entre os
po\ os e entre os indivíduos; que sirva ao mesmo lempo
para a ex|)ressão d'essas supremas verdades que são o
laço commum das sociedades e por cujo titulo devem por
toda parle reveslir uma forma ideutica e universal.
. PORTSMOUTIl
Já aqui n'este volume do Panorama dêmos no-
ticia de Woohvich, o primeiro arsenal da Ingla-
terra; isso levou-nos naturalmente a apresentar-
mos aos nossos leitores a gravura e a (lescri|)ção
do seu principal porto militar. Com eíTeito assim
podemos considerar a cidade de Porlsmouth.
Fica situada esta cidade no condado de líam-
pshire; está construída n'uma ilha paludosa,
(pie se chama Portsea c que fica n'uma bahia do
canal de S. Jorge, Divide-se em duas cidades dis-
tinclas, a íle Portsmoulh propriamente dita e a de
Porl!-:ea, que íica para o norte, que soem 1792
recebeu essa denominação, e que hoje ó muito mais
considerável, c c Ires ou quatro vezes mais po-
voada do que a sua rival. As duas cidades reuni-
das contam setenta elres mil habitantes
O seu porto ó o mais vasto c o mais seguro de
todos os porlos oiienlaes da (iiã-Urelanha; formi-
dáveis forlilica('ões lhe defendem a enliada, e tan-
to a ilha de Portsea como a cidade de J'orlsmouth
estão por lodos os lados rodeadas de magni liças
obras de defeza. (Comtudo ultimamente os baluar-
tes da cidade foram cm grande parle transforma-
dos em |)asseios.
Os estabelecimentos de mais imporlaneia que
alli existem são os estaleiros, o arsenal, a escola
(1) Esludo pratico da linrjua (jrefjn, por M. Uiislave d'líiclitlial.
o PANORAMA
i89
de marinha, e o celebre e vasto hospital que pôde
jccober Ires mil marinheiros. Ao sul de Porls-
iiioiilii, na extremidade noidesle da ilha\Vight, íi-
ca a magnifica enseada de S])ilhead, ponto de
leunião habitual das esquadras inglezas.
Na celebre festa maiitinia, que ultimamente de-
monstrou as estreitas ligações politicas da Fi-ança
e da Inglaterra, festa em (jue se rcuniiam com
grande ajiparato as esquadras dos dois paizes, fui
Portsmoulh o ponto escolhido pela íiiglaierra ])ara
Poitsmouth.
receber os seus hospedes, como foi Cherbourg o
ponto escolhido pela França para fazer honras iguaes
aos Inglezes.
Realisa-se actualmente a hypolhesc que tanto
assustava o nosso grande Bocage, quando o poeta
exclamava:
Um triumpha no mar, outro nn terra!
Stí as iiiãas se dértim que seni do mundo?
Os triumphadores deram-se as mãos, e o mun-
do não soflVeu com isso grande abalo. Bocage, se
resuscitasse, havia de íicar eslranhamenle sur()re-
hendido. Apezar da famigerada alliança, a Dina-
marca é roubada escandalosamente nas barbas
das esquadras de Cherbourg e de Portsmouth pela
Prússia e pela Áustria, e a Polónia continua a ten-
tar erguer em vão o triplico peso que a esmaga.
Ouem tal diria!
D. JORGE DE MASCARENHAS, GOVERNADOR
DE iMAZAGÃO
II
Promettemos, no precedente capitulo, contar
as façanhas marítimas d'"esle homem, que em ter-
ra sustentava com tanto denodo e brio a honrada
bandeira portugueza. Vamos cumprir a promessa;
parece que mais folgamos em ver estos relâmpa-
gos de heroísmo no meio das trevas da nossa de-
cadência, do que mesmo em contemplarmos o es-
plendor da glande época da nossa historia.
Mas, apressemo-nos em dizel-o, feliz ou infeliz,
a bravura dos nossos maiores nunca sedesmentio.
Erros de governantes, fatalidade, corrupção social
motivaram a rápida degeneração da nossa patiia,
mas os seus íilhos mostraram-se sempre dignos,
mesmo na desvenluia, do nome glorioso que ha-
viam sabido conquistar em épocas de mais pros-
pera fortuna.
Digamos comtudo que uma verdade para nós
axiomática é a seguinte; «são os generaes que fa-
zem os soldados»; o italiano, o portuguez, o hes-
panhol, o fi^ancez, o allemão, o inglez, o russo
podem ter uma bravura diílerente; aqui mais eu-
Ihusiastica, além mais tranípiilla, mas o brio mi-
litar não os deixa recuar diante das balas, quando
teem chefe que saiba arrastal-os á peleja. Sui)pôr
o contrario seria entregar á força bruta os desti-
nos das batalhas, quando pelo contrario é sem-
pre a intelligencia que as decide. Ouem havia
de dizer que os fiancezes, esses vencedores do
mundo inteiro no principio d'eslo século, eram
os mesmos que haviam soíTrido em Bosbach uma
das mais vergonhosas derrotas de que ha memo-
ria nos annaes militares? Quem havia de suppòr
4 90
O PANORAMA
também que os pnissianos, esses vencedores de
Rosbacb, haviam de ser os mesmos Ião miseravel-
menle destroçados em lena? É porque uão foi o
valor cego dos soldados quem ganhou as batalhas
de Rosbach, e d'Iena, foi Frederico, foi Napoleão,
foi o génio dirigindo as massas, foi a inlelligen-
cia guiando a força bruial.
Assim lambem os nossos soldados deram pro-
vas sempre de um valor incomparável, mas na
época da nossa grandeza tinham por generaes os
membros d'essa plêiade brilhanlissima que for-
mou a corte de D. Manoel, generaes que se cha-
mavam D. Francisco de Almeida, Aflonso de Al-
buquerque, Duarle Pacheco, Vasco da (íama e
quantos! No tempo da nossa decadência as cam-
panhas dos Paizes Baixos absorviam a ílor dos
nossos guerreiros, e só nos licavam para defen-
dermos as con(|uislas contra os aia((ues dos líol-
landezes, e contra a sublevação dos |iovos con-
quistados, o refugo das nossas valentes legiões,
refugo, que, ainda assim, desanimado e indeciso,
sustentava, senão com a pratica da guerra e a
experiência militar, pelo menos com o denodo e
a intrejjidez tiadicionaes a honra do pendão das
quinas.
Em 1G19 regressou T). Jorge de Mascarenhas,
já enlão conde de Castello Novo, do seu governo
de Mazagão. Trazia comsigo sua mulher e seus
quatro lilhos, sendo os dois mais novos ainda
crianças. A esquailiilha, (pie elle commandava,
compunha-se apenas de Ires navios. No dia 21 de
outubro sobreveio uma forte ventania, que os dis-
persou, scjtarandoos dois navios, que navegavam
de conversa, da capitania onde eslava D. Jorge.
Ouiz a fatalidade que fosse exactamente n'essa
occasião que appareceram de súbito no borisonte
três velas barbarescas, (jue se dirigiram a todo o
panno para o navio portuguez, assim que o viram
isolado na liquida arena do oceano.
Seria talvez fácil ao navio portuguez, tão próximo,
como eslava, das costas da península hispânica,
fazer força de vela, c demandar um dos porlosda
Andaluzia, Cadiz ou (jibrallar, aonde chegaria
talvez a tempo de se pôr a abrigados insultos dos
piratas. Mas I). Jorge, que não estava habituado
em terra a virar as costas aos esquadrões bereberes,
não quei-ia no oceano tomar o máo costume de
dar a popa aos navios dos iniieis. Pensava que,
na decadência em que ia a sua pátria, esses actos
de louca temeridade serviam ao menos perante a
historia para dar magestade su{)i-ema á queda d'esle
grande povo. A sua Iripulação compunha-se ape-
nas de cincoenia homens; eiam três as náos ai-
gelinas, uma linha trinta e seis peças de artilhe-
ria e trezentos iiomens de peleja, outra vinte e
seis peças e duzentos c cincoenia homens, a ter-
ceira em íim vinte peças e cento o sessenta ho-
mens. I). Jorge deu o signal da investida.
A excepção das Ires velas baibarescas, eslava
ermo o vasto plaino do oceano. No horisonte não
surgia ornais leve ponlo alvejante, que annuncias-
se uma das velas da esquadrilha de D. Jorge. Tal-
vez o valente portuguez esperasse que o Iroar do
canhão allrahisse os outros navios, que, appare-
cendo de súbito, tornariam de certo a peleja me-
nos desigual.
la-lhe saindo o calculo certo. Feliz no primeiro
impele, e arrojando-se ás duas naus argelinas
(luc vinham na frenle, como um volcão flucluante,
vomitando ferro efogo por Iodas as baterias, con-
seguio repellil-as com perdas graves, e obrigal-as
a alTaslarem-se da proximidade do lerrivel navio.
Mas o terceiro vaso moiro, que era o mais pode-
roso, caio, com a sua tripulação fresca e intacta,
sobre o navio portuguez bastante avariado e so-
bre a sua tripulação diminuidn. O combate era ex-
tremamente desigual. Três \'ezes entraram os moi-
ros no navio de D. Jorge, trez vezes foram
repellidos. Deram um quarto assalto os argelinos
e foram, como era de esperar, mais venturosos.
A extenuada tripulação porlugueza, dirigida pelo
valente conde, vio-se obrigada a refugiar-se na
praça da arlillieria, deixando os inimigos senho-
res doscastellosde prôaede]i.í[)a. Masnão se ima-
gine que pensaram em se render; o combale con-
tinuou cada vez mais encarniçado.
Animava-os n'islo uma esperança, que viram
fiusliada com profundíssima dor. Tinham surgi-
do alinal no horisonle os navios portuguezes, mas,
ou porque o vento lhes fosse contrario, ou por
qualíjuer outro motivo desconhecido do historia-
dor, conseivaram-se imraoveis espectadores da
peleja! Os Argelinos, vendo surgir este refor-
ço inesperado, não se linham atrevido a con-
centrar todas as suas forças no sitio onde se de-
fendiam com intrepidez sobrenatural esses pou-
cos leões das aguas. Mas, notando a estranha im-
mobilidade dos recem-chegados, perderam o susto,
e conservando em observação um dos dois navios,
que D. Jorge primeiro repeilira, chamaram o outro
para domarem com a superioridade do numero
essa lenacissima resistência.
Já a este tempo estavam reduzidos á ultima ex-
tremidade os jíortuguezes da coberta, mas não
recuavam um passo, animados sempie pelo exem-
plo do seu valenie capitão. Fsse é que parecia in-
vulnerável; verdadeiro Achilles dir-se-hia que as
balas o temiam ou que não passavam junto d'elle
senão para prestarem homenagem ao seu nobre vul-
lo.Já muitos projeclis lhe linham balido na arma-
dura, quando uma bala de aitilheria lhe levou a
espada da mão, sem lhe fazer a mais leve ollensa,
mas deixando-o desarmado. Deu-lhe oulra espada
seu lilho, D. Francisco de Mascarenhas, o qual no
mesmo instante caio fei-ido gravemente, mas bra-
dando: «Meu |)ai, morramos, sem nos rendermos. J)
Dir-se-hia que o mesmo espirito animava Ioda
aquella valorosa familia.
Havia um poder magico que parecia proteger
D. Jorge ; pcnsaiieis que eram iiicanladas as suas
armas como asdosheioes dos romances decavalla-
ria. l*osliado |)ela fadiga e peia dor de ver os seus
dois lilhos mais velhos, um fei-ido gravemente como
dissemos, o outro, D.João de Mascarenhas, já morto,
D. Jorge, inclinando a cabeça sobre o peito, dei-
xou-se cair sentado n'um tambor. Vem oulra bala
I
o PANORAMA
^9
de ?rtillierir), atravessa o (auihoi-, do um ao oiiíro
lado, deixando íicar incolumeo inlropido cavalloiro.
Não lendo já arlilheifos, dirij^e-se, acompanhado
|)or um fidalgo chamado Manoel da Fonseca a uma
])eça que lhes rcslava e cujo fogo queria dirigir
contra o inimigo. Caminham amÍ)os lado a hido,
uma bala paite ao meio Manoel da Fonseca, sem
tocar em 1). Jorge; a mo: te, como de costume,
esquivava-se ao hei'oe que a procurava; mas,. dei-
xando ficar de pé o altivo roble, decepava-lhe as
raizes que o prendiam ao solo, os filhos que ellc
estremecia.
Afinal D. Jorge vio que a resistência era inútil
e uão pensou senilo om procurar gloriosa morte,
(luc o livrasse dos ferros de Alger. Voltou-se fria-
mente para os poucos portuguezes que o ouviam
consternados, e disse-lhes; «Pieparemo-nos para
morrer com gloria, mas antes preciso de degolar
n.inha mulher e meus filhos.» Sublime ferocidade
que lembra os grandes rasgos da primitiva Uoma,
ou a celebre resolução dos habitantes de Numancia I
Mas depois, vol laudo os olhos paia a bandeira
porlugueza que ainda tremulava ufana ao vento
do combate, salteiou-o um outro pensamento, e
exclamou:
«Pois ha de caii- nas mãos de infiéis aquelle
pendão sagrado? INão! deitemos fogo ao navio.
A ordem, dada com esía simplicidade, foi com
não menos singeleza executada por Luiz de
Lomba.
Eram perto de cinco hoi'as da tarde, e pelejava-
se desde as oito da manhã.
Eslava-se fatigado de um e d"ouli-o lado, e os
moiros contemplavam com assombro o punhado
de heróes, que por tanto tempo haviam ousado
resistir-lhes. Era em outubro, como dissemos, c
a noite \inha próxima. Não mandando Itgo deitar
fogo ao paiol da pólvora, o que abreviaria a ca-
tastrophe, e a tornaria terrível para os argelinos
accumulados nos castellos da proa e popa, o conde
de Castello Novo abria uma ultima poria á ultima
possibilidade de salvação. Os navios barbarescos ar-
vcdar-se-hiam de certo; talvez podessem então os
poucos portuguezes, que restavam, metter-sen'uma
chalupa, e ir procurar os dois outi'os navios, que
não tinham querid'» tomar parte no combate. A
noite cobriria a reinada com o seu manto de trevas.
Aconteceu ao principio o que D. Jorge previra.
Logo que os moiros viram as chammas lamber os
mastros, c enroscar-se em torno d'elles como rú-
bidas serpentes, recuaram em desordem e lan-
çaram-se ao mar jjara fugirem á explosão.
D. Jorge contemplava sereno este espectáculo,
mas alguns dos porluguezes, commovidos pela in-
nocencia dos dois lilhos infantis do seu general,
D. Pedro e 1) Simão, e, não podendo ver a san-
gue frio a morte horrorosa d'essas cândidas victi-
mas da guerra, e da exaltação pundonorosa do
conde, que n'csse instante iazia calar a voz do
amor paternal, tomaram nos braços os dois pe-
queninos, e chamaram os escaleres argelinos, que
andavam salvando os seus, bradando-lhes que se
rendiam. Vendo os seus filhos em poder dos moi-
ros, e ouvindo ao seu lado os i)ranlos da aíílicla
mãe, D. Jorge sentio vergar o seu oi-gulho deguer-
i-eiro, vencido pelas angustias do pai. Chamou
lambem os botes, e entregou-s3 cora sua mulher,
c com seu filho D. Francisco de Mascarenhas, que
mal SC podia arrastar.
I)'ahi a pouco ia pelos ares o navio, averme-
lhando o ceo e o mar com os hórridos clarões da
ex|)losão. Os navios barbarescos navegavam para
Alger, levando a sua presa preciosa, "da qual ti-
raram um valioso resgate.
Eis em rápido esboço a historia militar de um
vulto que, na época dos nossos grandes infortúnios,
ainda se ergue como o representante de uma ge-
ração cxtincta, da geração de heróes, cujo valor
fundara o iminenso império Lusitano.
Pinheiro Ciiagvs.
A TERRA
Çiie {»i-ovu.<! pn.tiitivns e\i>;íeíu do «jíie é roíionda^ que
S'i*'íi ^oiirv si e á rofla d» .sol !
Conheci um certo numero de indivíduos de mui-
to boa fé, excellentes pessoas, na verdade, que,
todas as vezes que me encontravam, depois de me
perguntarem pelo meu estado desande, passavam
immediatamente a dirigirem-me mil questões de
astronomia; c ainda não haviam recebido as mi-
nhas respostas, já riam com a maior ingenuidade
do mundo. A seus olhos os sábios eram visioná-
rios, que julgavam saber, mas que, na realidade,
não se avantajavam ao commum dos mortaes a
ponto de acharem a solução do enigma da nalure-
zu. Conheci outros, um pouco mais instruídos que
os precedentes, que estudavam durante odiaalic-
ção que á noite haviam de dar no botequim a ou-
tros tão instruídos como elles, c que só passavam
carta d'intelligente e erudito ao homem que se
apresentava faltando com muita facilidade em tom
bombástico c empolado, empregando um infinito
numei'o de imagens colhidas aqui ealli em campos
de diversos donos, que não citavam ; conheci ou-
tros, digo, que, talvez para me desfiuctarem, con-
siderando as (lilferentes phases da historia das
sciencias, os seus successos bons e maus, diziam
que andávamos em um circulo vicioso, que não
tínhamos o verdadeiro conhecimento das cousas e
que os nossos systemas, por mais solidamente fun-
dados que parecessem, nunca deviam ser recebidos
senão a titulo d'hypolheses.
A questão cosmographica que nos toóa mais de
perto, a do isolamento c do movimento da terra
no espaço, tein particularmente o piivílegío de le-
vantar as duvidas de que falíamos. Aos ((ue as lêem
(juerido formular e (|ue nem sempre tem tido em
mãos provas irrefr-igaveis a fornecer, aqui lhes
damos os pontos fundamentaes sobre os quaes se
apoia este elemento do novo systema do mundo.
Dizemos primeiro que a terra é redonda, que
tem a forma de uma esphera achatada nos pólos.
O primeiro fado que allesta isto é a convexidade
da iinraensa extensão d'agua que cobre a maior
parte do globo. A observação de um navio no mar
basta para mostrar esta curvatura. Chegado á li-
192
O PANORAMA
Ilha azul que parece formar a separação do céo e
das asnas, o navio que se afasta parece n'csscmo-
menlo collocado no horisonte. Um pouco mais
tarde, drsapparc'ce, não pela parle superior, mas
pela inferior. O mar cleva-se a principio enlre o
convez e o observador ; depois vão-se escondendo
as velas pouco a pouco ; os lopos dos maslros ó a
ultima cousa que deixa de se avistar. Tm plieno-
meno similhanle gosa o observador collocado no
navio: somem-se primeiro as cosias baixas; os
cdilicios, as tonas elevadas e os pliaróes são os
objectos que mais se demoram sobro a linha de
visibilidade. Este duplo fado demonstra evidenlc-
menle, a convexidade do mar. Se, polo contrario,
fosse uma superfície plana, só a distancia faria
perder de 'ista o navio, e, n'este caso, desappa-
receria tudo ao mesmo tempo, tanto as velas su-
periores como as infeiiores.
Resulta mais d"esta mesma ordem de observa-
ções que a curvatura do oceano é a mesma cm to-
das as direcções : ora, esta propriedade só pcrlence
á esphera.
A convexidade do mar estende-se em terra fir-
me. Apezar das desigualdades do terreno, a su-
perficie dos continentes não diíTere essencialmen-
te da-superficic dos mares, porque está conhecido
que as mais elevadas cadeias de montanhas eslão
longe de produzir sobre a superficie geral da ter-
ra, protuberâncias cojnparaveis ás rugosidades da
casca de laranja. Ora, a superíicie dos rios que
cortam a terra fiime cm todo o sentido para se
reunirem ao oceano é pouco superior ao nivel does-
te, c pôde ser considerada como a superficie pro.-
longada do mar em toda a extensão dos continen-
tes. As medidas barometricas sobre a altura das
montanhas tcem, por outro lado, cuníiimado csle
fado. O solo dos continentes, pois, afasta-sc pouco
d'esle nivel, e apresenta no seu todo uma conve-
xidade inteiramente similhanle á das aguas. Km
fim, lanlo em tetra firme como no mar, os obje-
ctos mais elevados são sempre os primeiros e os
últimos que o viajante avista.
As viagens de circumnavegação lêem, por outra
parte, dado uma prova palpável da esphcricidade
da terra. O primeiro dos navegadores que com-
metteu a grande e arriscada empresa de dar a
volta em roda do mundo, o nosso Fernão de Ma-
galhães, que por ter recebido a recompensa que
os governos d'esla terra cm todos os tempos hão
dado a quem por sua infelicidade bem os serve
passara ao serviço de llespanha, partio d'alli no
anno de DJIO, dirigindo-se sempre paia o orr/í/rí/-
Ic. Sem mudar a sua direcção, um dos seus navios
chegou á Kuropa Ires annos depois, como se ti-
vesse yindo do Oriente. As numerosas viagens de
circumnavegação feitas desde essa época até aos
nossos dias, teem superabundanlcmente confirma-
do esta verdade : A terra é redonda em lodo o sen-
tido.
Ima nova prova da convexidade da terra é for-
necida i)ela mudança de aspecto que apresenta o
céo durante as viagens. Ouer nos dirijamos para
o polo, quer nos approximemos do equador, des-
cobrem-se incessantemente novos astros, assim co-
mo se perdem de vista os das latitudes de que nos
afastamos. Este facto não pôde concordar senão
com a redondeza da terra ; se esta fosse plana, es-
tariam sempre visíveis os mesmos aslros.
A sombra projectada pela terra sobie a lua e
sempre circular, seja qual fòr o lado que o disco
terrestre apresente ao disco lunar nos diversos quar-
tos e eclipses. Esta sombra arredondada, observada
universalmente, é mais uma prova a favor da es-
phcricidade da terra.
Taes são os factos vulgares que demonstram de
uma maneira positiva a verdade a que temos avan-
çado. Se quizessemos entrar na geodesia ou mecâ-
nica racional, apresentaríamos considerações ain-
da mais rigorosas ; mas as provas precedentes são
l)astanles para aqui. Vejamos agora sobre que só-
lido fundamento se apoia a questão de que a terra
eslá isolada e se move no espaço.
A dilficuldade que certos espirites lêem mani-
festado em acreditar que a terra está suspensa
como um balão no espaço e completamente isola-
da de toda a espécie de ponto de a]H)io, provém
d'uma falsa noção das forças da natureza. A his-
toria da astronomia antiga rnostra-nos uma ancic-
dade profunda entre os primeiros observadores, que
começavam a conceber a realidade d'este isolamen-
to, mas que não sabiam como impedir a (pieda
d'esle globo tão pesado sobre o qual andamos. Os
pi'imeiros chaldéos lizeiam a terra oca e similhanle
a um bole; podia tluctuar sobre o abysmo dosares.
Outros suppunham que se estendia indefinilamen-
te abaixo dos nossos pés. Todos estes syslemas
eram concebidos sob a impressão d'uma falsa idéa
do peso. Para fugir a esla antiga illusão, é preci-
so saber que o peso é um phenomeno constiluido
pela attra^ção de um centro. Um corpo cáe só
quando a attracção de outro corpo mais importan-
te o sollicila. As imagens de alto e de baixo não
se podem applicar senão a um sysl(>ma material
determinado, no qual o centro atlradivo será con-
siderado como o baixo : fora d'isto cousj alguma
significam. Quando, pois, suppomos o nosso glo-
bo isolado no espaço, não fazemos com isso cousa
alguma (jue possa dar imporlancia á objecção que
acima notamos ; temer que a terra caia não se sabe
onde.
A terra pôde, pois, estar isolada no espaço. K
não só o pôde, que o eslá na realidade. Se se achas-
se apoiada sobre um corpo qualquer, este apoio,
que necessariamente deveria ter enormissimas di-
mensões, seria visto cerlamenle quando d'elle se
approximassem.. Ver-se-ia sahir da terra c perder-
se no espaço. E escusado dizer (pie os viajantes
que teem dado a \oUa em roda do globo nunca vi-
ram similhanle apoio : a superficie da terra está
inleiíamenle desligada de tudo quanto possa exis-
tir á roda d'ella.
{Conlinua)
O rosto não é sempre o verdadeiro espelho do
coração. M. de Tlrenne.
Tyii. Franco-Portgucza, Hua do Thcsouro Veibo, G.
o PANORA!\IA
4 93
EURENBREITSTEIN
Podemos chamar a esta fortaleza a Gibraltar do
llheno. Construída na margem direita d'esle rio,
defronte de Cobleniz, liga-se por uma ponto de
harcas com esta cidade, cujo systema de defesa
completa. Está edilicada pelo systema Monlalemberl,
e o seu forte principal compõe-se de duas e Ires
fileiras debaterias casamatadas, abobadadas e so-
brepostas umas ás outras. A cidadella pode receber
uma guarnição de quatoize mil homens. Nos seus
immensos armazéns cabem provisões de todo o
género, sullicientes para abastecerem á farta
uma guarnição de oito mil homens por espaço de
dez annos.
Segundo todas as probabilidades, o sitio em
EnrenlDreitstein
que esta fortaleza campeia era no tempo dos Romanos
um ponto fortificado. Se o era effectivamenle, só no
século XIII foi roconstruido pelo arcebispo deTreves
Herman, d'onde lhe veio o nome de Ilermanstein. No
decorrer do tempo foram-se-Ihc desenvolvendo as for-
tificações, de forma que já na guerra dos trinta
annos era uma posição importante. Em 1798 esta
fortaleza foi investida pelos francezes, emquanto
principiavam as negociações no congresso de Uas-
tadt, que terminou, como é sabido, pelo assassí-
nio dos ])lenipotenciai'ios de França. Desfeílas, por
conseguinte, as esperanças de paz, que o tratado
de Campo-Formio imposto por Bonaparte aos
Austríacos inspíiara á Europa, continuou o blo-
queio da fortaleza de Ehrenbreitstein, que no fim
de quatro mezes se rendeu por falta de subsistências.
Ainda então não existiam os famosos armazéns de
viveres em que faltámos. Em 1801 desmantelaram-
n'a os vencedores.
Emlorno das fortificações da cidadella espraia-se
uma cidade do mesmo nome, centro de um grande
commercio, que principalmente consiste em vi-
nhos. No século XVII era esta cidade conhecida
pelo nome de Miilhcim in Thall. Depois chamou-
se Philippsthal. Hoje tem o nome de Ehrenbreits-
tein. Possueuma nascente de agua férrea, e um
palácio que foi cm outros tempos residência dos
eleitores de Treves, e que hoje está convertido em
armazém militar •
Ora em 1803, quando se tralou de serem secu-
larisadas as possessões ecclesiaslicas da Allemanha,
|)araserem distribuídas como indemnisação aos prín-
cipes, privados dos seus territórios pela invasão
da França consular que chegara aos seus tão am-
bicionados limites do Uheno, em 1803, pois, foi
esta cidade de I']hrenl)reilsleincom a sua fortaleza
dada como indemnisação ao príncipe de Nassau-
Weilbourg. Em 181') o congresso de Yienna en-
194
O PANORAMA
trogou-a à Prússia, que mandou reconslriiir asfor-
tificaL-ões, e que as levou ao estado de apcrfeiçoa-
menlõ em que hoje estão. Essas obras empreliendi-
das em Elireiíbreilslein desde 181.') custaramao go-
verno prussiano mais de dezoito milhões de francos.
Mas o que mais deve agradar ao pacilico (ou-
riste do que este apparato guerreiro c saber que
do alio dos baluartes da cidadella se desfruta a
vista de uma das mais esplendidas paizagens do
KhenOj que é n'ellas tãò fértil.
A PENiNA D'AÇO ("
A penna d'aço é a causa final dos males que
opprimem actualmente a sociedade inteira. lia
não sei em que poeta uma eloquente imprecação
contra o primeiro que açacalòu o ferro, e que fez
uma espada d'essa massa inerte, mas por Deus !
maldito seja e cem vezes mais maldito o primeiro
que fez do ferro uma penna! Quem fabricou a
])rimeira espada concorreu apenas, por íim de
contas, para malar corpos, quem fabricou a penna
d"aço matou a alma, assassinou o' pensamento!
Vil scelerado que armou a espécie humana com
um estylete mais formidável do que lodos os pu-
nliaes envenenados da Itália!
Basta comparar a penna d'aço de que actual-
mente nos servimos com a benévola penna de
pato, de que se serviam os nossos bons e amá-
veis avós. A penna d'aço, essa invenção moderna,
produz-nos immedialamente uma impressão desa-
giaiiavel! Tem uma incrível semelhança com um
punhalsinho imperceptível molhado em veneno.
() bico é aguçado como uma espada ; lein dois
fios como a lingua de um calumniador. A esse
bico junta-se um cabo, um pedaço de madeira
sècco, disforme, e iiú, que nos magoa a face cm-
quanto a nossa mão se trilha cruelmente á força
de carregar n'esse ferro, que em torno de nós
range, escarrando no papel o nosso pensamento.
>"a penna d'aço tudo è rude, triste, severo, c faz-
nos frio na vista c na mão.
Mas a penna de pato. pelo contrario, essa c
que é uma fácil c í|ue!-ida conlidenle dos nossos
mais predilectos pensamentos! Associa-se a mil
felizes e benévolas recordações. Vimol-a cspane-
jar-se brandamente no cristal do lago ou cnxu-
gar-se ao sol, resplandecendo com a luz de mil
pérolas; essa penna é prima -co- irmã da macia
pluma em que recostámos á noite a cabeça; o
animal d'un(le saio deu-nos os seus ovos e os seus
lilhinhos; não nos pôde cila Iraír. Que diílerença
no duplo aspecto d'esses dois instrumentos da
idéa, que sem razão lêem o mesmo nome. A
penna de pato c aha, nítida, leve! O seu canudo
ilexivol freme de prazer entre os dedos que anima.
A .sua rama aííaga ligeiramente a face; o bico dó-
cil presla-sc a todas as combinações do estylo;
caminha de manso, sem esforços, sem um só cl'es-
ses horríveis escarros e grilos da penna d'aço. A
travez d'esse lin:pido canal parece- nos (|iie \emos
Ml Ksto formoso arligo, este delicio.so c cirto folliídim, ciij:! tra-
fJucção aprescnUmos aos nossos leitores ó <Ja penna illutirc do ce-
lebre escriptor franccz Ju';o .Inin.
as nossas idéas descerem devagar c em boa or-
dem, como devem brotar d'uma cabeça bem for-
mada.
O menor inconveniente da penna d'aço é estar
sempre e a todos os instantes prompta a escrever
sobre todos os assumptos. Não agarrámos nós a
penna d'aço, c ella que nos agarra; segura-nos
pela rédea, obriga-nos a seguil-a. É andar, correr
para a direita e para a esquerda, por montes e
por valles. É a machina de vapor do pensamento!
Á medida que a nossa mão se cança e se irrita
por ter de segurar n'estc horrível estylete, o nosso
espirito irrita-se lambem c exalla-se involuntaria-
mente; fica sendo a um tempo mais irreflectido,
e mais despiedoso. Perguntamos porque é que fu-
lano, de génio Ião meigo e amável, é terrível e
sem piedade com a penna na mão"^ Escreve com
penna d'aço! Porque é que aquelle pobre homem
(jue outr'ora se entrelinha em pescar á canna, c
em tomar banhos decalçolas, hoje se compraz em
escrever obscuras e ignóbeis calumnias, que não
divertem pessoa alguma, _e o horrorisam e lhe re-
pugnam a elle mesmo'? É a influencia da penna
daço! Faliam da pólvora, dos fogueies ácongréve,
das carias conslilucionaes! ludo isso são insigni-
ficâncias comparadas com a penna d'aço.
Mas a penna de pato ! a penna de pato, pelo
contrario, é a penna que gera as obras primas.
Devemos-lhe os mais bellos livros que lêem hon-
rado o espirito humano; é a mãi da reflexão.
Graças á penna de pato, era o homem outr'ora
obrigado a escrever o seu pensamento com pru-
dente vagar, e esse vagar era a origem de mais
apurada belleza de estylo. A penna de pato, longe
de estar prompta sempre como a penna d'aço,
exige mil pequenos preparativos. Em primeiro
lugar temos de a aparar com as nossas próprias
mãos, e ó esse um momento solemne no nosso
trabalho. Emquanlo aliámos o bico da penna, o
nosso pensamento alia-sc também ; vamos procu-
rar a idéa no fundo do cérebro, assim como va-
mos procurar a medulla da penna ; quando a penna
está aparada, precisámos de a experimentar an-
tes de começai-mos a escrever, e é mais uma j)e-
quena demora de que o nosso pensamento se apro-
veita, se o nosso pensamento ainda não está bem
nilido, se não vemos d'um relance, o que é a pri-
meira condição d'um cscriplor, o principio, o
meio, c o fim do nosso discurso.
Bem sei o que alguns espíritos me podem objec-
tar em favor da penna d'aço. Descende, dirão el-
les, do estylete antigo. Scepc slylnm vertas. Mas
(jue péssima e fallaz defesa ! O estylete antigo tra-
çava as letras n'uina camada de cera, que lhe
amortecia a fúria, a penna (Kaço não encontra o
mínimo obstáculo ; obrigado a abi'ir caminho n'essa
camada resistente ia elle a passo; ella corre a ga-
lope. Com muito custo gravava elle algumas li-
nhos, que eia fácil apagar voltando contra as le-
tras o outro bico da jienna; a penna d'aço grava
no papel, como se gravaria em cobre, e nunca
retrocede. É uma improvisação que não .sabe nem
apagar-se, nem corrigir-se, nem suspender-se;
o PANORAMA
95
lem de caminhar, sem altender aos erros, aos
crimes c ás calumnias que deixa pela estrada.
Dizem-me que grandes génios (que mereciam
um liro) se estão occupando de aperfeiçoar a
j)enna d"aço! Aperfeiçoar a penna d'açp, Deus do
céo ! Oh! desgraçados, com que !im? Consistiria
esse aperfeiçoamento em encontrar uma penna,
que levasse comsigo c dislillasse a tinta, Por esse
meio uma nova rapidez se ajuntaria a esta rapi-
dez já assustadora; a mão do escri|)tor llcaria
constantemente pregada no papei, sem que o es-
pii'ilo podesse dispor sequer do pequeno inter-
vallo, que ainda sopaia a penna d'aço do tinteiro
onde se embebe. Se caímos n'esse progresso, aca-
l)0U-se! está próximo o iim do mundo, o espirito
humano fica sem defesa contra os seus próprios
excessos, e a sociedade, invadida de súbito por
uma improvisação sem Iim, sem termo, e sem
eontrapezo, voltará á grande confusão de liabel 1
i\a verdade não conheço perigo mais terrível do
que o progresso!
ACADEMIA DO CACHIiMBO
Com este nome se designava a roda das pessoas
mais da intimidade de Frederico lí da Prússia
que se reuniam quasi sempre depois das cinco
horas da tarde nos quartos particulares de Sua
Magestade em Berlim, em Potsdam ou em^Viester-
hausen. A Academia corapunha-se, dos oíTiciaes
do estado maior de Frederico, dos sábios que pas-
savam por Beilim, de alguns fidalgos, e lambem
de plebeus honrados e instruídos. Não mettcmos
em conta os bobos da corte, ou os que consen-
tiam em serem tratados como taes. Os estatutos
da Academia obrigavam os seus membros a fu-
marem eraquanto duravam as sessões ou pelo me-
nos a terem um cachimbo na boca.
Cada membro tinha diante de si um jarro de
cerveja; de quando em quando circulavam fatias
de pão com manteiga, e para o fim da noite ser-
via-se vinho, que se podia beber á vontade. N'essa
extravagante Academia liam-se e commentavam-se
os jornaes, faziam-se rellexões sobre os aconteci-
mentos políticos do dia, e contava-se quantos boa-
tos andavam pela cidade. As vezes transforma-
va-se a Academia n'uma assembléa de senhoras
visinhas; os ditos mordazes, as chalaças grossas
cruzavam-se no ar sem que el-rei com isso se es-
candalísasse.
Os estatutos da Academia não permilliam que
membro algum se levantasse á entrada de qual-
quer pessoa, ainda que fosse cl-rei. Os únicos jo-
gos permittidos eram o xadrez e as damas. Esta
Academia linha uma grande importância, porque
era no seu seio que el-rei e os ministros fallavam
com mais desaflbgo dos negócios políticos. Os
embaixadores das cortes estrangeiras procuravam
sempre saber o que se dizia, para informarem
com exactidão as suas cortes.
Acabaram as sessões d'esta Academia, porque
um dos seus membros esqueceu-se uma vez dos
estatutos, e levanlou-se vendo entrar o príncipe
real. El-rei enfureceu-se tanto que logo saio da
sala, e nunca mais os Académicos do Cachimbo
tiveram licença para se reunirem nos seus apo-
sentos.
Não era esta uma das menores extravagâncias
d'esse jei a quem a hisloria deu o titulo de grande.
CERVANTES
Km (i|iu' rii-eeigiiis(n3iciiss f«l ooinjso.xt» o ruiiiiiiicc ile
Uou <6tsgc!io(e
Não c de hoje que se pergunta por(|ue motivo,
entre tantas aldeias hespanholas, Argamasílla foi
a escolhida por Cervantes para ahi coliocar o do-
micilio do immorlal Don Ouichotc. Com suas ruas
limpas e regulares, seus encantadores arrabaldes,
Argamasílla devia inspírar-lhe lembranças agra-
dáveis. Não disse elle na sua obra que queria es-
quecer aquclla risonha terrinha? O grande ho-
mem era um ingrato; foi Argamasílla que o im-
mortalísou ; mas em compensação elle eternizou-
Ihe o nome. No nosso século de investigações,
tudo se descobre com os annos; c é a um poeta
muitas vezes inspirado, que é lambem um sábio,
Eugénio líarlzenbusch, que devemos o saber em
que circumslancias foi escriplo o livro illusti"e que
fez rir até Philippe III.
Apertado pela pobreza, Cervantes aceitara um
lugar na administração militar; era fiscaUdo exer-
cito; mas nem tudo ei'a rosas n'aquellas funcções:
via-se obrigado muitas vezes a usar de certos
meios de violência para os pagamentos andarem
em dia. Devem-se desculpar algumas distracções
a um homem tal como Cervantes; a verdade, po-
rém, força-nos a dizer que, usando contra certos
habitantes de Argamasílla, nem sempre redigira
com bastante regularidade as sentenças de execu-
ção. A justiça do lugar valeu-se de algumas d'es-
tas faltas para mandar prender o pobre Cervan-
tes, que, no momento, não passava de um auclor
de comedias pouco conhecido. Foi, pois, agarrado
pelos alguazis da villa e encerrado na casa de uni
certo Medrano, que, á falta de outra mais pró-
pria para alojar os presos, servia então de cadeia.
Ora, o que por muito tempo se ignorou, é que o
principal motor d'esta prisão fora um tal Don Ro-
drigo Pacheco, cavalleíro mui dislincto (segundo
elle se dizia) cuja modesta habitação estava cheia
de brazões por lodos os lados, e que se havia
extremamente irritado por Miguel Cervantes, des-
presando as considerações que se deviam a um
fidalgo tão fidalgo como elle, ler feito um reque-
rimento contra uma sua irmã ou uma de suas
primas. N'esle ponto, os biographos não estão to-
dos de accordo. Navarrete allribue a vingança de
Pacheco a uns chascos que o fiscal leve a ousa-
dia de dirigir-lhe. Todos, porém, são unanimes
em dizer que Don Rodrigo não linha o juízo muito
são, (pie houve mesmo uma é|)Oca em que elle
andou coai o cérebro muitíssimo desorganisado.
No coro da igreja parochial de Argamasílla, do
lado do evangelho, vè-se ainda um altar com o
seu rcldbulo dourado, obra de marcenaria remon-
96
O PANORAMA
tando,sein duvida alguma, ao tempo de Philippe lII,
retábulo cujo fundo, formado de uma tela i)in-
tada a óleo, mostia uma Nossa Senhora subindo
ao céo entre os anjos. Na parle inferior do qua-
dro, estão uma dama e um senhor, ao que pa-
rece, nobre: ella, joven ; elle, de idade um j)ouco
mais madura, tendo o rosto comprido e estreito,
olhos esgazeados, bigode com grandes guias, e a
quem não iria mal o nome de eavalleiro da triste
figura. Na parte superior, em um ornato que
apresenta o retábulo, lè-se, cm caracteres pretos
sobre fundo dourado, a seguinte inscripção, que
facilmente se decifra, não obstante muitas letras
estarem a cavallo umas nas outras:
«Nossa Senhora aj)pareceu a este eavalleiro,
«quando foi atacado de uma gravíssima doença e
«abandonado pelos médicos, no dia de S. Matheus
ffdo anno 1601. Tinha-se encommendado á Yir-
cgem, e promettera-lhe uma alampada de prata,
«acclamando-a de noite e de dia, em razão da
«grande dòr, que sentia no cérebro, proveniente
«de um resfriamento.»
Era talvez este eavalleiro anonymo (Don Ro-
drigo Pacheco) que Cervantes transformou em li-
dalgo^da ^lancha; o resfriamento (jue lhe caíra
no cérebro era naturalmente a insigne doudice
(gravíssima doença, na verdade) da qual o pade-
cente se achava atacado. Além d'isso, existem
ainda na extremidade da villa certas ruínas de
antigas habitações onde se elevam unicamente al-
guns restos de paredes: era alli que se achava a
morada de Don ilodrigo, ou, se o (juerem, a casa
de Don Ouiehote. cMostra-se mesmo ainda a aber-
tura da janella do quarto onde Cervantes dej)osi-
tou os livros do digno lidalgo. Mas sé o tempo,
ao qual nadaresísle, destruio a casa do genlillio-
mem a quem Cervantes ollendeo, a que a este
sérvio de prisão existe ainda de pé, se bem que
o corredor que conduz ao pateo esteja maltratado
e quasi que em ruina. O resto da construcção
subsiste e parece duiavel.»
Alli, em um lugar obscuro, a cuja minuciosa
descripção pouparemos os nossos leitores, foi con-
cebido o Dou (Jiiic/tolc; alli foram creados os per-
sonagens tão vivos que animam este immortal ro-
mance. Para lodo o hespanhol um pouco zeloso
das glorias litterarias do seu pai/., a triste casa
de Argamasilla tornou-sc um lugar veneiado, e
quizeram prevenir a sua desliuiçâo, como ultima-
mente preservaram das injuiias do tempo o pe-
queno convento da Arrábida, lembrando-se (\\\v.
Chrislovam Colombo, opprimido de cançaso, alli
fora pedir uma gota de agua para seu filho, e
onde achou, graças ao grande coração do bom
Marchena, uma nova porta aos seus vastos pro-
jectos.
O infante Don Gabriel tornou-se possuidor da
pobre casa de Argamasilla. Auxiliado por um dos
escrij)lores mais estimados da iicsjianha, Itivado-
neyra fez transportar jiara a antiga casa de Me-
(Irano todo o material de uma imprensa, e, na
Ijeíjuena camará obscura onde acordou o génio de
Cervantes para illuminar repentinamente o mundo
da fantasia, fez-se uma edição do seu livro. Este
Don Quic/iotc, revisto por llartzenbusch, é um
primor typographico, e pôde mesmo dizer-se um
primor de critica.
Sabe-se,que três edições primitivas saíram, em
vida de Cervantes, dos prelos deCuesta. A primeira
de todas, a de Madrid 1005, não pôde ser vista pelo
auclor, que ao tempo residia em Yalladolid, e
saio com muitíssimos erros; a segunda, publicada
igualmente em IGO.") por Cuesta, não foi melho-
rada ; o illustre escri])lor não havia deixado a sua
antiga residência, e além d'isso eslava dolorosa-
mente preoccupado com os mil cuidados da sua
vida para se dar ao trabalho da inversão de tal
ou tal capitulo, ou do nome escripto de dous mo-
dos dilTerentes que elle dá á mulher do malicioso
Sancho. O elíeilo fôia súbito; a hilaridade fora
completa entre um povo que ri pouco; o successo
não jjodia ser duvidoso. Foi para a terceira reim-
pressão que Cervantes reservou os seus melhora-
mentos no texto, e e esta a que llartzenbusch e
Uivadeneyra reproduziram.
OS BUGIOS OU SÍMIOS
Os bugios ou siinios consliluem a primeira e a mais
numerosa secção da grande família dos Quadrumanos.
São de lodos os animacs os que mais se approximam do
homefii, já pela forma, já pela estatura; comtudo, dif-
ferem d'elle esscncialmeiíle, mesmo no ponto de vista
anatómico. Os bugios teem o focinho um tanto prolon-
gado, o nariz um |)ouco saliente, o corpo ordinariamente
refeito e os membros habitualmente delgados. A face,
quasi sempre nua, é às vezeí colorida de prelo ou de
vermelho, ou malhada de branco, encarnado, azul. O petto
que lhes cobre o corpo tem um fades particular, c dis-
linguc-se em muitas espécies do dos outros mamiíeros. As
cores são, ora elegantes e vivas, ora tristes e uniformes
e ennegrecem com a idade. Entre muitos, estes pellos
fornecem ornamentos variados simulando crinas, cabel-
leiras, pennachos, coroas, barbas, ele: os da cabeça dos
orangolangos teem a mesma implantação que os do ho-
mem. O craneo c quasi sempre arredondado, c o an-
gtdo facial, muito variável, está longe de exprimir com
exactidão o seu grau de inlelligencia. Alem (l"isso, a gran-
deza d'cste angulo varia muito entre a idade nova e a
adulta ou velha. A face curta nos novos, é muito mais
proeminente cnlre os adultos. O cérebro dos Chimpanzés
e dos Orangotangos c o que, pela sua forma, mais se ap-
proxima do cérebro liumano; mas, se l)em que melhor
organisado (juc o de certos idiotas, c comiudo muito in-
ferior, pelo volume e pela disposição, ao da nossa espé-
cie. Os bugios teem (pialro mãos, Iodas com o pollegar
op|)osto aos outros deiios, e servem-se de todas com cx-
Ircma facilidade. Apezar (rislo, os pollegares das mãos de
diante nunca são tão desenvoUidos como no homem,
c as próprias mãos estão muito longe do lerem a mes-
ma hal)ilidade. Em algumas espécies, o pollegar es-
ta reduzido a um simples lid)erculo, ou não cxisle. Todos
os dedos teem unhas, clialas nos bugios superiores, mas
que se vão tornando ar(|ue;idas á medida que se desce
na série. A dis|)Osição das mãos inferiores, (|ue não pou-
sam no solo senão pela extremidade exterior, a eslreilesa
da pelvis, c a frouxidão da articulação dos joelhos não
lhes |)ermitlem conservar por muilo tempo a posição ver-
tical: lodavia,'podem, es[)ecialmente ajudados por um páo,
andar algum tenq») n'esla jjosição, ainda (|ue d'nm passo
mal seguro. São, pelo contrario, admiravelmeide t)rgani-
sados i)ara trepar, graças á flexibilidade de seus mem-
bros c ás suas mãos po"steriorcs, (pie scr\em para agar-
rar os olijcclos do mesmo modo que asanleriores. A cauda
é ou nenhuma. 011 nirla, ou longa, ou niuila longa. iJillere
igualmente na forma, segundo a sua fraqueza ou força. Os
o PANORAMA
^97
Bugios ou Simios
bugios de cauda forte on prchensil, servem-se deste orgam
como (ie uma quinia mão, com a ajuda da qual se sus-
pendem nos ramos, equilibram-se e formam o salto; ap-
poiam-se também sobre ella quando se assentam. Os bugios
são essencialmente frugívoros; todavia o seu systema den-
tário approxima-se muito do nosso. Em cada queixo teem
quatro incisivos direitos; os molares só teem, como os
nossos, tubérculos obtusos e variam em numero dos si-
mios do mundo antigo para os do novo. Quanto aos ca-
ninos excedem os outros dentes, e tomam um tal desen-
A'olvimen!o, em algumas espécies que exigem um es|)aço
entre os dentes correspondentes da maxilla opposta para
se alojarem quando a bocca se fecha.
Os bugios habitam nas lloreslas, onde vivem ordina-
riamente em bandos, e estão quasi sempre sobre as arvores.
As fem.eas teem de cada vez um ou dous filhos que criam
com grande ternura.
A intelligencia d'estes animaes é geralmente muito no-
tável ; mas varia em extremo de um género a outro na
mesma tribu, de uma espécie a outra no mesmo género,
assim como de uma idade a outra na mesma espécie e no
mesmo individuo. Em idade tenra, a maior parte são dó-
ceis, intelligentes e fáceis de domesticar. Envelhecendo,
perdem todas as suas boas qualidades e docilidade. Esta
mudança manifesta-se sobretudo entre os mais intelligen-
tes, laes como os Orangotangos, Chimpanzés, Magos.
Tornam-se tão turbulentos, tão |)erigosos, (pião submissos
e obdientes haviam sido até alli. É tandjem muito para
notar a variedade, a inconstância, a linura dos seus ins-
tincto.^í, as manhas que costumam empregar para se apo-
derarem do que lhes agrada, a sua curiosidade e a ten-
dência para a imitação que os leva a reproduzir os nos-
sos gestos e as nossas acções.
Os simios estão espalhados pelos paizes quentes e cs-
pccialmeiíle pelas regiões intertropicaes dos dous hemis-
pherios. Mas as espécies (jue habitam no antigo conti-
nente differem das que vivem no novo mundo. For con-
sequência estes animaes estão divididos em duas grandes
secções: Ihi(/ios do antigo continente e Ihujios do novo
continente. Ós primeiros denominam-se Ciithurrinios, por-
que teem as ventas abertas abaixo do nariz, e levemente
separadas uma da outra. Alem d'isso o seu systema den-
tário é composto, como no homem, de 32 dentes a saber:
'' ; incisivos, - j caninos e '"/,„ molares. A cauda não é
preheusil e apresentam quasi sempre callosidades ischia-
ticas. Em fim, teem muitas vezes faceiras ou covas nas
faces, communicando com a bocca. Os segundos pelo
contrario receberam o nome de Plalj/rrhitiios, porque teem
o nariz achatado com as vénias espessamente separadas
uma da outra. O seu systema dentário compõe-se de 32
ou 36 dentes, mas conruma formula diflerente da do ho-
mem, mesmo quando idêntico o numero. Os dentes mo-
lares são em numero de 12 em cada queixo. Finalmen-
te, nunca teem callosidades nem faceiras, era quanto que
na generalidade a cauda é prchensil.
Os bugios do antigo continente formam cinco grupos
ou famílias, a saber: Oranfjotanrjos, Semnopitecos, Cer-
copilecos, Macacos e Cijnoccphutos. Os do novo conti-
nente comi)õe-se unicamente de três grupos: Uelopitécos,
(Jélopilecos o /íapalinises.
O desenho que ollerecemos aos nossos leitores repre-
senta um (los animaes que formam a quarta tribu dos
Quadnnnanos catarrliinios ou Bugios do antigo continen-
te, chamada dos Cynocephalos. A maior parte (festes
pertencem á Africa; algumas espécies, porem, são pró-
prias da Ásia meridional.
A sua estatura, em geral, é, pouco mais ou menos, a
de um cão grande. As pernas são pesadas e refeitas, pe-
lo que teem menos agilidade que os bugios das tribus
superiores. Os seus membros são fortes e vigorosos, a
parelha anterior um pouco mais curta que a posterior e
as pernns não teem barrigas pronunciadas. O focinho c
muito allongado e como que cortado na extremidade, o
que lhes valeu o nome genérico sob o qual se designam.
A face tem faceiras notáveis pela sua amplidão, e é co-
berta de pellos pouco espessos, cujo colorido varia se-
gundo as espécies. \^ns apresentam cauda e outros não,
e lodos teem nas nádegas grandes callosidades. O seu
aspecto é feroz.
Os Cynocephalos não habitam somente nas florestas ;
muitos preferem as montanhas ou collinas semeadas de
rochedos ; pois, o modo de andar dos quadrúpedes lhes
c muito familiar. Cada espécie parece circumscripta em
regiões dislinctas.
Estes animaes vivem em bandos bastante numerosos que
defendem pertinazmente, mesmo contra os homens, o ac-
cesso dos togares em que teem fixado o seu domicilio.
Se bem que os caninos destes bugios sejam tão longos
como os do tigre, nem por isso são carnívoros ; o seu ali-
mento é quasi inteiramente vegetal, e são um verdadeiro
flagello para os pomares e jardins junto dos quaes habi-
tam e que devastam com a mesma táctica dos cercopi-
tliecos. Einfim, a julgar pelos indivíduos em prisão, o seu
caracter é assaz dócil ale á idade da puberdade, a partir
da qual se tornam de uma extrema maldade, que os cas-
tigos não podem reprimir. A sua lubricidade adquire ao
mesmo tempo proporções que se não encontram entre as
outras espécies de bugios.
A tribu dos CynOLé|)halos divide-se muito naturalmente
em Ires géneros, cujos trataremos em um dos próximos
números: Cynocépitéco, Théropitheco & Cynophalo propúà-
menle dito.
A FAMÍLIA DOS SAXE-COBURGO-GOTHA
Lisboa, ou antes os nossos reis acabam de ser
visitados pelo duque Augusto de Saxe-Coburgo-
Gotha e por sua esposa a princesa do Brazil D.
Leopoldina Theresa. Foi uma visita de família,
porque os augustos viajantes são parentes dos
nossos monarchas.
A historia dos Saxe-Coburgo é uma historia
curiosa, e para não largar mão do assumpto vou
conlal-a em resumo ao leitor do Panorama: po-
der-se-lhe-ia chamar a uistoria de im pequeno du-
cado E DE TRES COUÒAS.
Desdobrai um mappa da Allcmanha c procu-
rai attento um ducado microscópio, perdido nas
fronteiras da Ua viera. Tão pequeno é elle que o
nome de Saxe-Coburgo o cobre em toda a sua
extensão. Vivia ali no fim do decimo oitavo sé-
culo um soberano allemão, que se presaya de
reunir debaixo do mesmo sceptro o principado
de Coburgo, o principado de Saalfelde e um pe-
dac^o do condado de llcnneberg. Cincoonta legoas
quadradas, uma populaí^ão de sessenta mil ha-
bitantes (exactamente a quinta parte da popula-
ção de Lisboa), duzentos e setenta mil crusados
198
O PANORAMA
de rendimento, e um exercito de duzentos ho-
mens, tal era o território, o numero de vassal-
los, a receita e por ultimo a força armada deste
soberano.
Devemos confessar, para sermos verdadeiros em
tudo, que o duque parecia á primeira vista o
rei de um conto de fadas. Mas o favor das fadas
é precioso e vale bem tomur a coisa ao serio :
aquellas concederam ao duque de Saxe-Coburgo-
Golha uma existência feliz e numerosa prole. O
que cu não sei é se cilas lhe promel leram lam-
bem deslumbrante futuro para seus filhos. Seja
como fur, ahi vac o que succcdeu.
O duque teve um lilho chamado Ernesto que
soube agradar a uma princesa das visinhanças,
á fillia do duque de (Jotha. Casou com ella cm
1817, hcidou o dominio de seu sogro e reinou
n"um ducado com o nome de Ernesto I, duque
de Sa\e Coburgo Gotha.
O velho duque teve outro filho de quem foi
herdeiro o rei artista. Ião querido sempre dos
portuguezes, o e.sposo d'uma rainha constitucio-
nal, o pai de dois reis braganlinos, sua mages-
tade el-rei D. Fernando : assim passou á pequena
casa allemã a primeira coroa.
O velho duque teve terceiro filho que se cha-
mava Leopoldo e que também soube agradar á
princesa ingleza Carlota Augusta. Casou com ella
em 1810, e como Carlota fosse filha do príncipe
regente, depois Jorge IV, rei de Inglaterra, d'aqui
se pôde inferir os destinos que esperavam Leo-
poldo.
«Esta alliança, dizem, as chronicas da época,
não tem nenhuma relação com a poUlica ; a
escolha da princeza foi unicamente determina-
da pela sympathia. O príncipe Leopoldo, com
pouco mais de cinco lustros de idade, chamou a
altenção em Londres, ha desoito mezes, pela dis-
tincção da sua pessoa e dignidade das suas ma-
neiras. E' bastante instruído, não só na sciencia
militar, mas lambem na da economia politica. At-
Iribuem-se-lhe mesmo diversos escriptos de mui-
ta valia. O seu exterior produzio uma impressão
favorável no publico inglez.o
Infelizmente a princeza Carlota morreu de re-
pente cm 1817, um anno depois de casada, sem
deixar filhos. O príncipe Leopoldo parecia, pois,
perder aquella protecção da sorte que se esten-
dia a todos os njcmbros da sua familia. Bem lon-
ge d"isto, estava-lhc reservado ser escol iiido por
outra mulher e eleito por outro povo. Casou com
uma filha do rei Luiz Philippe, e quando este so-
berano recusou a coroa da IJeígica para o duque
de Nemours, os belgas acclamaram rei o prínci-
pe Leopoldo ; assim passou á casa allemã a se-
gunda coroa.
O velho duque também tinha uma filha, e esta
chamada Víttoria, casou na idade de dezcsele an-
nos, em 180:», com Érico Carlos de Línange, prin-
cipe allemão, que nunca devia ser rei. U destino
não reservava, i)ois, os seus pródigos favores á
princeza Victoria: sucredeu o contrario, viuva
em 181'i casou em 1818 com o duque de Kent,
quarto filho do rei Jorge III. de (juem os liliios
viriam a ser os herdeiros presuuiplivos do tlnouo.
Quando morreu o duque de Kent, em :2:í de
janeiro de 1820. deixou uma lillia. Mas em In-
glaterra as nmlheres sobem ao throno: esta fi-
lha foi por conseguinte a rainha Victoria. Ainda
raais, estava escripto que a casa de Sa\c-Coburgo
reinaria ali; um novo príncipe chegou da Alle-
manha para casar com a soberana, e este foi seu
primo, o príncipe Alberto, filho do duque Er-
nesto I.
Em 18't0 escrevia-se em Londres que o príncipe
«chamara a altenção dos inglczes pela distíncção
da sua pessoa e dignidade de suas maneiras.» Ui-
zia-se mais: «é instruído e tem muito discerni-
mento; o seu porte é decente e reservado; lam-
bem soube impressionar favoravelmente o publi-
co iiiglcz; a joven rainha distinguio-o entre um
grande numero de pretendentes e dá-lhe a pre-
ferencia.»
Assim passou á casa allem^í a terceira coroa.
Portugal, a Bélgica e a Inglaterra teem ou tive-
ram reis ou rainhas desta família, e os filhos
destes, por meio de novas allíanças, vão esten-
dendo por toda a Europa a dynaslia pacifica e
amada dos Saxe Coburgo-Gotha.
Mas como, sem ter produzido nem grandes ho-
mens de Estado, nem grandes homens de guerra,
esta casa conseguio similliante exilo com tanta
constância? r)evel o-hemos alliibuir ao acaso, di-
zendo que elle preside a tudo n"este mundo?
Não!
«A casa de Saxe-Coburgo, diz um escríptor,
deve a sua elevada fortuna á duqueza de Kent,
de quem a grande influencia foi habilmente se-
cundada pelo rei Leopoldo da Bélgica.
('Do que não é possível duvidar, é que a casa
de Saxe-Coburgo proseguio na sua elevação, des-
apercebida, sem commoções, sem auxilio estran-
geiro, sem que grandes é variados acontecimen-
tos a fizessem conhecida. O que adquirio deve-o
ás qualidades sensatas e apreciáveis dos seus mem-
bros, á sua acção pessoal, á sua perseverança in-
fatigável, á sua atlenta previdência, á sua gran-
de arte de agradar e seduzir, ao seu tacto ins-
tructivo de nunca offetider ou irritar alguém, li-
vre sempre de sobrancerias que aíTugenlam a
estima dos pequenos, e que nunca são bem vis-
tas da aristocracia.
«Foi com estas qualidades solidas que a du-
queza de Kent e o rei Leopoldo alcançaram para
sua família, em poucos annos, tão prodigiosos
resultados, que apenas são criveis com relação
ao ponto de partida.»
A duqueza de Kent morreu em Londres ha
seis annos, sendo universalmente chorada. Toda
a cidade manifestou solemnementc a sua estima
por meio de inequívocos signaes de respeito e de
pesado luto. O conimercio suspendeu as suas tran-
sacções, fecharam se as lojas; a Inglaterra tinha
perdido uma parente querida. Não menores fo-
ram as provas testemunhadas pelo povo de Lon-
dres por morte do príncipe Alberto, ou pelos bel-
gas no recente trespasso do rei Leopoldo, ambos
elles da felicissima c sempre adorada dynaslia dos
Saxc-Coburgo-Gotha.
SOBRK O ESTYLO
Escrever neglií?enlemente, c coHfessar que não se da
grande valor aos i)eiisanioiiios, poniiiodaconvici-ão que
nós lemos da verdade e da iinporlaiicia das nossas ideas,
nasce um enlliusiasnio sullicienle para impor ao nosso
espirito um cuidado iiifali^Mvel na escoltia das expressões
mais claras, mais Ijellas, mais enérgicas ;— tal como o que
se emprega n'cssas reli(|uias, n'esses preciosos objectos
de arte dos receptáculos de ouro e de prata.
o PANORAMA
499
A BOGCA DO INFERNO
IX
Chegara o oulono, e a senhora mor.aada não
se esqueceu dos baii!iosdo mar. Foi para Cascacs,
como era velha usança na família.
Chrislina gozava melhor saúde. É que a espe-
rança lhe doirava os dias. Tinha fé profunda no
fuluro, que ella enxergava em róseos horisontes.
Aquelle coração ainda não esterilisado pela in-
fluencia dos desenganos, cria e esperava, c a ima-
ginação enlhusiasla rasgava um campo illimilado
aos projectos de felicidade futura.
Era assim que ella ia contando os dias da au-
sência, entregue toda á sua namorada fantasia,
aos magniíicos esplendores da sua brilhante con-
cepção, que levantava palácios de oiro e crystal
para morada dos seus amores; que pi'oduzia cân-
ticos suavíssimos para lhe deliciarem a vida toda
passada ao pé de Luiz. Em torno d'aquella fronte
intelligente adejavam a fé e o enthusiasmo!
Fossem lá desnoivar-lhe o coração d'aquellas
illusões! Fossem lá dizer que a separação d'ella e
Luiz era possivell Rejeitaria esta idéa, porque o
amor lhe faltava de presentimentos deliciosos.
E todavia o mau fado devia inutilisar esses pre-
sentimentos; apagar violentamente aquelle enthu-
siasmo; arrancar pela raiz todas essas flores de
poesia e de esperança que lhe enchiam a alma de
perfumes !
Havia mais de quinze dias que a morgada fora
para Cascaes. O mez de setembro eslava tempes-
tuoso, como se o inverno estivera em todo o seu
império. Nas altas regiões onde se geram as tem-
pestades, durara muitos dias essa lucta de tilães
que se trava ao som do trovão.
As elegantes, que costumavam nos annos ante-
riores ir banhar-se na praia á luz de um sol vi-
vificante e convidativo, que vinha affagar-lhes com
ura raio as húmidas tranças, estranhavam muito
os luctos de um prematuro inverno. Nem uma só
d'essas manhãs claras, em que o oceano se estende
como uma planície esverdeada até aos horisontes,
e a onda vem lamber de manso as areias da praia!
nem uma só d'essn'-^. noites mysteriosas, cm que a
lua surge do seio das vagas, para se levantar de-
pois, como a deusa do amor e da melancolia, na
vastidão lympida e infinita do-es|)aço! Era tudo
feio, era tudo triste. Já debaixo dos pés lhe es-
talavam as folhas seccas do outono, varridas pelo
sopro do norte: as ruas dos prados estavam en-
xarcadas, frias, incommodas!
Eaquellas almasinhas, frescas como a relva dos
jardins, puras como a agua dos lagos, tinham de
viver encerradas nas suas habitações, olhando
atravez dos vidros para o céo nebuloso, para o
oceano encapellado, como se fossem rouxinoes
presos na gaiola, para os quaes a falta de liber-
dade é a tristeza, e a morte!
D. Capitolina fora este anno para Cascaes na
companhia da morgada. Esta sympatisava muito
com a robusta donzclla. Chrislina era-lhe lambem
affeiçoada. D. Capitolina como não conseguia já
fazer-se heroina de aventuras próprias, dera em
protectora dos amores dos outros. Gostava de fal-
tar ás raparigas nos namorados, e n'essas conver-
sações saia-lhes ás vezes do peito um suspiro.
Kram saudades do seu tempo, eram as sombras
do passado que deslisavam em cortejo por deante
dos olhos, mas já com formas vagas e indecisas.
Sabendo que Chrislina amava, insinuou-se facil-
mente na alma da rapariga, fallando-lhe de Luiz.
No isolamento era que Chrislina vivia, o encon-
tro de um coração alíavel e amigo, que lhe rece-
besse confidencias e desafogcs pareceu-lhe uma
ventura que Deus lhe deparava. Aproveilou-a e D.
Capitolina (aparte a monotonia das exclamações)
sabia ler palavras consoladoras para taes soffri-
menlos.
— Olha, minha filha, dizia-lhe às vezes — nós,
mulheres, nascemos para amar e soífrer ! Ah ! foi
a nossa sina cá no mundo! Ah! resigna-te que não
ha outro remédio! Ah! foi lambem o meul...
Um dia estavam ambas sentadas ao pé da ja-
nella. Chovia muito. O sul soprava violento e
tempestuoso , fuzilava para diversos quadrantes.
Nenhum barco sairá ao mar, e até os homens que
costumara ir pescar á linha para a borda dos ro-
chedos não haviara podido approxiraar-se da ex-
tremidade da costa.
Chistina com a cabeça encostada aos vidros
olhava para o céo; as lagrimas corriam-lhe abun-
dantemente.
— Pensas no teu Luizinho ? murmurou D. Ca-
pitolina.
— Peço a Deus pelos que andam sobre as aguas.
— Ah ! não te aíTIijas, Deus bade Irazel-o a por-
to e salvamento.
— Deus a ouça !
E a pobre rapariga ficava do mesmo modo immo-
vel e muda, invocando a misericórdia divina. Cho-
rava. As lagrimas nos olhos da mulher revelam
dór ou sentimento ; porque ou a elevam á subli-
midade da maityr, ou a levantam até a nivelarem
com os anjos — fazem d'ella, a imagem pungente
do solTrimento, como a Virgem aos pés da Cruz
do Filho; — ou a imagem do amor celestial, co-
mo a Magdalena abrindo o coração aos sentimen-
tos duros!
De repente entrou um criado na sala dizendo
que da Guia se avistava uma galera correndo des-
mastreada e sem rumo, a sabor do oceano ; que
de bordo se havia lançado uma lancha ao mar, e
que parte da tripulação demandava terra no pe-
queno bai'Co.
Chrislina fez-se livida como uma defuncta: o
coiação déra-lhe um sallo no peito.
Duas horas depois chegaram outras noticias e
mais aterradoras. Havia ura naufrágio e viclimas
a contar d'elle.
iConlinua.)
A. d'Oliveira Pires
O mundo é um circulo que passa da guerra á
paz e da paz à guerra.
200
O PANORAMA
SENSIBILIDADE DE CONSCIÊNCIA
Thomaz Curson era um amieiro muilo conheci-
do na cidade de Londres. Morava perto de Bis-
hopsgate. Um dia, um actor pedio-lhe emprestada
uina' espingarda velha que estava misturada com
muitas outras, já fora de uso, a um canto da loja.
Este actor, ordinariamente, não entrava senão em
peças cómicas ; por excepção, tinha de ligurar em
um* drama como soldado. A noite, appareceu em
scena, e, como pedia o papel, disparou um tiro; mas,
infelizmente, a arma achava-se carregada com baila,
havia muitos annos,eo homem que devia lingir-se
morto caio, na realidade, ferido mortalmente. Tho-
maz Curson, ao receber tão triste nova caio em
um violentíssimo accesso de desespero, e desde
logo se considerou responsável por esteaccidente,
no" qual a sua vontade não tinha tido parte alguma,
e que havia sobrevindo fora da sua presença de
uma maneira inteiramente imprevista. No dia se-
guinte dirigio-se á casa da camará e declarou que
dava metade da sua fortuna, muitas centenas de
libras, aos pobres, querendo expiar a morte de
um homem ajudando a viver o maior numero pos-
sível de famílias indigentes.
CASTA DIVA
Era no tempo cândido,
Vivaz, risonho e iimpido,
Em (pie o sol surge esplendido
Dourando as illusôes!
A primavera ílórida
Rescende auras Ijalsamicas:
Passam no ar murmúrios,
Notas de mil canções!
Elliereo c casto juhito
Me transportava o espirito;
Era o exalçar d'um exlasis!...
Era um voar ao oeo! !
Lii)rava as azas limidas
Tclos espaços lúcidos 1...
Sorria a vida plácida,
Envolta era róseo veo!
Sentia o enlevo intimo!...
—Infinda e alma \olui)ia! —
Hauria o alento vivido
Da csp'rança festival!
E a alma desprendia-se,
Pela amplidão cerúlea
ISo (lucluar diapliano
De um sonlio virginal!
E então no sancluario
Dos Íntimos antiélitos
Vibrava ardente c enérgica
.\ voz da insiiiraçãol
Vinlia outras vezes languida
Como um segredo ingénuo,
Nas lioras do crepúsculo,
Fallar-mc ao coração 1
Mas, oh!... passou bem rápido
Da aurora o róseo id\llio,
Como é furtivo o hálito
Da flor do laranjal!...
Qual (la toada o frémito
Kesoa apoz o cântico,
Saudade melancholica
Exhala o ideal I
Sumio-sc a visão fulgida
Deixando a sombra pallida,
Como o luar seguindo-se
Á luz de sol vivaz!
Desfez-se o encanto magico,
Bem como a es|)uma férvida
Que á ílor da vaga túmida
Rebenta, e se desfaz 1
Cessou a alegre musica...
E da alma a branda cytliara
Soltou vago preludio;
Mas logo emmudeccu:
Em vez dos liymnos módulos
Veio o silencio lúgubre...
E então, não sei que angustia
Meu peito confrangeu.
Por que fugiste pudica,
O mensageira sylphide
Dos vividos eniuvios
Do deus revelador?!
Triste na ausência... evoco-te...
Oh! vem, de novo, próvida,
Fazer-me as confidencias
Do matutino alvor!
Trazendo a esp'rança myslica
Do peito ao tabernáculo
Desce, qual pomba incólume
Voltando da amplidão!...
Ou vem outra vez languida,
Suave e melancholica,
Nas horas do crepúsculo,
Fatiar-me ao coração 1
João M. Tedeschy.
Abril de 18G6.
DIVISÃO DO TEMPO
Os chinos contam por cyclos de 60 annos co-
meçando três séculos antes de J. C, época em que
se ado|)tou este systema.
Os annos compõem-se do mesmo numero de
dias que os nossos. Este anno de 1806 é o 63 do
cyclo "i").
" Também computam o tempo como alguns povos
da Eurojía ; isto é, escrevendo, que tal successo
teve lugar no terceiro dia da segunda lua do anno
27 de Kien-Lung.
O dia c dividido em 12 parles e cada uma d'es-
tas em 8 mais pequenas, cíiuivalentes ao nosso quar-
to de hora de 15 minutos.
Geralmente servem-se dos relógios europeus.
Os seus relojoeiros fabricam-n'os de madeira.
Os homens trazem os relógios suspensos da cin-
tura. A moda é usar dois, um de cada lado; isto
explica o motivo porque n'a(iuelle paiz se vendem
sempre os relógios aos pares.
Também possuem quadrantes solares. Parece que
aprenderam a construil-os com os missionários
europeos.
Desde tempos muito antigos lêem relógios que
marcam as horas jjor meio da agua, como nós te-
mos os de arèa ; porém não ha semelhança alguma
entre uns c outros.
O modo mais geral de marcar as horas consis-
le em t|U('iiiuir uma espécie de vara de incenso,
posta per|)en(lirularmente em um castiçal. O peda-
ço de vara queimado indica o tempo que se pas-
sou.
Typ. Fninco-Portguoz:), l\u;i do Thusouro Velho, 0.
26
o PANORAMA
201
Arco da Rua Augusta
A gravura, que boje o Panorama apresenta aos
seus leitores, lem por lim justificar o nosso século
perante a posteridade. Quando os historiadores
futuros tratarem de mytho o arco da rua Augusta,
quando asseverarem que essa conslrucção existio
apenas na cabeça dos estadistas portuguezes, a
nossa gravura responderá liiumpbantemente asse-
verando aos nossos netos que existio um plano,
que houve um desenlio, que a porta sumptuosa ^da
cidade chegou a viver completa, pelo menos, no
papel.
O arco da rua Augusta ha de ser, estamos d'isso
convencidos, um monumento de séculos. Cada ge-
ração ba de liazer uma pedra, accresccntar um
festão, bordar um lavor, juntar uma estatua, ren-
dilhar uns cinzelados, prolongar um entabla-
mento, tecer uma nova grinalda. Em quanto exis-
tir Portugal, lia de estar em via de construcção o
arco da rua Augusta, ^"um romance de Alexandre
Dumas ba uma noiva, que, esperando a volta do
esposo, borda o seu vestido nupcial, calculando o
trabalho do maneira que dè o ultimo matiz no dia
202
O PANORAMA
eni*que deve chegar o escolhido do seu coração.
Demora-se o noivo e o bordado ooiiliinia, cnlrc-
meiando novas flores, enchendo a tela, que ainda
licàra desoccupada. Parece-nos que não havemos
de errar egualiuente, c que a ullima pedra do arco
lia de ser posta na véspera do Juizo [mal.
O arco da rua Augusta tem tido etíectivamenle
uma existência legendaria. Pesa sobre elle a mal-
dição que fulminou outr'oi'a a egreja de Santa
Engracia. Como esta sua irmã mais velha, já deu
origem a provérbios. «O relógio da rua Augusta»
ligura tantas vezes nas palestras populares como
as (cobras de Santa Engracia» e a lenda ainda ha
de vir a apoderar-so d'aquelle monumento fabu-
loso, que, da mesma forma que os palácios das
fadas, os jardins dWrmida, ou o caslello de Bella
e da fera, só parece existir na imaginação dos
poetas do ministério das obras publicas.
Em um dos próximos números daremos aos
nossos leitores a historia d'este monumento. Por
hoje, limitar-nos-hemos a explicar resumidamente
o projecto apresentado pelo dislincto artista fran-
cez, o sr. Calmeis, que era, como se vô na gra-
vura, digno de ter apparecido um século antes, e
de haver sido comprehendido por Sebastião José
de Carvalho, o ultimo homem que soube em Por-
tugal executar grandes cousas.
O grupo, que domina o arco, forma a parle al-
legorica, e representa a Gloria coroando o Génio
e o Valor. D'este grupo, cuja execução foi confia-
da ao sr. Calmeis, auctor do plano, estava o mo-
delo na exposição internacional do Porto, onde foi
objecto da admiração de todos os que o contem-
plaram. O sr. Calmeis, com quem o governo por-
tuguez tem zombado em todas as obras que lhe
contiou desde o monumento a D. Pedro IV até ao
arco da rua Augusta, empregou n'cste grupo co-
lossal todos os recursos do seu notável talento, e
fez effectivamente d'elle uma obra prima, digna
de se fitarem logo n'ella os olhos do estrangeiro,
que desembarca nas praias da nossa formosa Lis-
boa.
As quatro figuras inferiores representam Vi-
riato, Nuno Alvares Pereira, Vasco da Gama e
Marquez de Pombal. Os dois vultos lateraes são
ainda allegoricos, e figuram o Tejo e o Douro.
A TERRA
Que provaM positivaN cximtom Uc iinc v redonda, imo
giru Nolirc Mi e ú roda do isol
Vamos agora ao terceiro ponto d'csta noticia,
ás provas positivas do movimento da Terra.
Notemos primeiramente que as apparencias dos
objectos exteriores serão para nós identicamente
as mesmas, ou seja que, estando a Terra cm rc
pouso, estes objectos estejam em movimento, ou
que, estando estes objectos em repouso, a Terra
esteja cm movimento. Se a Terra em seu curso
arrasta todas as cousas que liie pertencem, as
aguas, a alhmosphera. as nuvens, etc, n(js não
poderemos ter consciência d'cste nio\imento, cujo
participamos, senão pelo aspecto vario do céo
immovel. Ora, sendo em um e outro caso as
apparencias sempre as mesmas^ a hypothese do
movimento da Terra explica tudo, e sem ella
cae-se em uma inaceitável complicação de sys-
teraas.
Se a Terra gira sobre si em vinte e quatro
horas, podemos vêr immediatamente que, sendo
o seu raio mcdio de 1432 léguas, e a sua cir-
cuinferencia de 9000, um ponto situado sobre o
equador percorrerá um decimo de légua por segundo.
Esta velocidade, que parece considerável, tem
sido olhada como uma objecção contra o movi-
mento da Terra. Mas vejamos agora de que ve-
locidade sem igual, seria necessário animar as
espheras celestes para fazei as percorrer cada
uma a circumfereneia do céo no mesmo lapso
de vinte c quatro horas.
Em primeiro lugar, o Sol estando afastado
da Terra 23000 vezes o raio terrestre, na hypo-
these da immobilidade da Terra aquelle astro
descreveria uma circumfereneia 23000 vezes maior
que os pontos do equador, o que dá uma velo-
cidade de 2300 léguas por segundo.
Júpiter está pouco mais ou menos cinco vezes
mais longe: a sua velocidade seria de 11500 lé-
guas por segundo.
Neptuno., trinta vezos: deveria percorrer 69000
léguas por segundo.
Taes seriam as diversas velocidades de que os
planetas deveriam estar animados para girarem
á roda do nosso globo, como parecem fazel-o.
Vé-sc, pois, que a objecção contra o movimento
da Terra de um decimb de légua por segundo
nada é comparativamente com o que resulta de
semelhantes números.
O que seria se considerássemos as estrellas fi-
xas?! A estrella oc do Centauro, deveria percor-
rer 520 milhões de léguas por segundo. E, gra-
dualmente, até ás estrellas longínquas, chega-
ríamos ao infinito sem encontrarmos um numero
que podesse exprimir a velocidade dos astros
para girarem em torno d'este ponto invisivcl
que se chama Terra.
Accrescentemos a isto que estes astros são, um
1400 vezes mais volumoso que a Terra, outro
1400000 vezes, outros ainda maiores; que não
estão reunidos entre si por laço algum solido
que podesse ligal-os a um movimento das abo-
badas celestes; que estão todos situados em mui
diversas distancias; e esta medonha complicação
do systcma dos céos testemunhará por si mesma
da sua não existência — poderíamos dizer da sua
impossibilidade mechanica.
Mas não somente pela admissão do movimento
da Terra em roda do seu eixo se pódc com-
prehender o movimento diurno da csphcra ce-
leste; os movimentos dos planetas no zodiaco,
as suas estações c as suas retrogradações, recla-
mam com o" mesmo rigor o movimento da Terra
á roda do Sol. Para explicarem as apparencias
planetárias, suppondo a Terra immovel, os anti-
gos imaginaram vinte c quatro círculos mettidos
uns nos outros, círculos sólidos ou céos de cris-
tal cuja complicação nada podia igualar, c que,
se podessem existir um instante^ immediatamente
seriam feitos em pedaços pelos cometas vaga-
bundos ou pelos aérolitíios que girassem no es-
paço.
Por outro lado ainda, a analogia vinha confir-
mar singularmente a hypothese do movimento
da Terra e mudar a vcrisimilhança em certeza.
O telescópio mostrava nos planetas terras analo-
o PANORAMA
203
gas á nossa, com um movimento de rotação á
roda do seu eixo, movimento de rotação de vinte
e quatro horas para os planeias mais próximos
c de menor duração para os mundos distantes
do nosso systema. Assim a simplicidade e a ana-
logia são a favor do movimento da Terra. Ajun-
temos também que este movimento é rigorosa-
mente exigido e determinado por todas as leis
da mcchanica celeste.
A grande difficuldade que se tinha avançado
contra o movimento da Terra, e que foi aceita
durante algum tempo era esta: Se a Terra gira
debaixo dos nossos pés, elevando -nos no espaço
e achando o meio de conscrvar-nos alli alguns
segundos ou minutos, deveríamos cair, depois
d'este lapso de tempo^ em um ponto mais Occi-
dental que O ponto dê partida. O individuo, por
exemplo, que, no equador, achasse meio de
sustentar-se iramovel na athmosphera durante
trinta segundos^ deveria cair três léguas ao occi-
dente do lugar donde tinha partido. — Excel-
lenle maneira de viajar. — Alguns sentimenta-
listas, Buchanan entre outros, deram á objecção
uma forma mais aííectuosa, dizendo que, se a
Terra girasse, a rola não ousaria sair do seu ni-
nho, porque depressa perderia inevitavelmente
de vista os seus filhinhos. — É de uma grande
innocencia.
O leitor já respondeu a esta objecção reflec-
tindo que tudo quanto pertence á Terra parti
cipa, como em um artigo o dissemos, do seu
movimento de rotação, e que, até aos últimos
limites da athmosphera, o nosso globo arrasta
tudo em seu curso.
A observação directa de diversos phenomenos
tem confirmado a theoria do movimento da Terra,
e tem-na confirmado com provas materiaes irre-
cusáveis.
Se o globo gira, desenvolve uma certa força
centrífuga; esta força será nenhuma nos poios,
terá o seu máximo' no equador, e será tanto
maior quanto mais distante se achar do eixo de
rotação o objecto ao qual ella se applica. Será
cm ponto grande o que existe em ponto pe-
queno, em uma funda ou em uma roda livre
em movimento rápido. Ora, supponhamos que
se fixa um prumo no cume de uma torre, c que
o pezo que o estende desce até á superficie do
solo. A direcção d'este prumo para o centro da
Terra, isto é, seguindo a perpendicular ao nivel
da agua, será um pouco modificada pelo effeito
da força centrífuga resultante da rotação do
globo, ínedida ao pé da torre. Se igualmente se
lixa no cume da torre, a uma pequena distan-
cia a leste do primeiro, um segundo prumo
muito mais curto, cujo pezo fique situado um
pouco abaixo do ponto de partida; este segundo
prumo não terá inteiramente a direcção do pri-
meiro, porque a força centrífuga devida ao mo-
vimento da Terra, sendo maior no cume da torre
que na sua base, fará desviar o cordel um pouco
mais a leste. — Esta observação minuciosa tem
sido feita e repelida com o maior cuidado: é
portanto, mais uma prova do movimento da Terra.
As oscillações da pêndula de segundos confir-
mam o precedente facto. Não é somente, pelo
raio equatorial ser maior que o raio polar, que
as oscillações são mais lentas no equador que
nos poios; a diíTerença é muito grande para ser
atlribuida unicamente a essa causa. No equador.
a força centrífuga attenua em parte o effeito do
pezo. Uma observação curiosa é, que no equa-
dor esta força regula ',5,^ do pezo. Ora, como o
pezo cresce proporcionalmente ao quadrado da
velocidade de rotação, e que 289 é o quadrado
de 17, se a Terra girasse 17 vezes mais rápida^
os corpos collocados no equador não pezariam:
uma pedra lançada no espaço não cairia.
Eis outro facto, não menos positivo que os
precedentes, e mais fácil a apreciar em suas
consequências, a favor do movimento da Terra.
Se a Terra fosse immovel e que a esphera estrel-
lada girasse em torno d-ella cm 24 horas, os as-
tros nunca passariam pelo meridiano, e nunca
nasceriam nem se poriam, no instante em que
o indica a linha da sua longitude no céo. Os
raios luminosos que nos enviam, havendo inter-
vallos desiguaes, segundo as suas distancias re-
ciprocas, fariam uma extrema confusão nas ho-
ras da sua passagem apparente. Tal astro que,
na realidade, passa agora pelo meridiano, está
situado a uma tal distancia que a sua luz de-
mora seis horas para chegar até nós ; não appa-
recerá, pois, senão seis horas mais tarde, isto é
no momento do seu occaso. Tal outro astro le-
vará doze horas para se mostrar; tal outro, me-
zes, annos, etc. Eis uma nova prova material de
que não são as espheras celestes que se movem,
mas sim a própria Terra.
Os movimentos próprios annuaes das estrellas
no céo, de que opportunamente fallaremos, for-
necem igualmente uma prova positiva do movi-
mento da Terra em roda do Sol. O mesmo se
dá com o phenomeno da abherração da luz.
A physica do globo tem, também por seu lado,
fornecido um bom contingente de provas á theo-
ria do movimento da Terra, e péde-se dizer que
todos os ramos que se prendem, de perto ou de
longe, à cosmographia, acham-se unidos para a
confirmação d'esta theoria. A própria forma da
espheroide terrestre mostra que este planeta foi
originariamente uma massa fluida animada de
uma certa velocidade de rotação, conclusão a
que os geólogos teem chegado nas suas averi-
guações pessoaes.
Outros factos, como as correntes da athmos-
phera e do oceano, as correntes polares e as
monções, teem sua causa igualmente na rotação
do gíobo.
AZARIA
Foi uma rude luta a que os nossos avós trava-
ram com os mouros. Não foi uma serie de guer-
ras, separadas por tratados de paz, foi um com-
bale constante, de cada dia, de cada hora, sem
um minuto de descanço. As praças fronteiras
estavam conslantemente em pé de guerra contra
as correrias dos mouros, e lambem para irem le-
var ás cidades, aldeias, c campos inimigos o
mesmo terror e o mesmo sobrcsalto que elles tra-
ziam aos nossos. D'abi provinha a formidável or-
ganisação militar da idade media, os almogavares
com o* seu adail, as alalayas, os csculcas, os ar-
ricaveiros e vigias a cujo cargo estava a defensão
das cidades, ou a aggressão dos mouros, que an-
davam sempre á espreila rcceiando ver accen-
der-se ao longe o fogo das almenares mouriscas,
204
O PANORAMA
temendo senlir de súbito o galope dos cavallos
inimif^os, e divisar por entre a escuridão da noite
os alvejantes albornozes dos árabes. Não havia
tréguas, nem repouso, nem inlervallo para aquelle
combater frenético, raivoso, e incançavel.
Os liabi (antes das povoações fronteiras não ou-
savam aíTastar-se um instante desarmados da som-
tra dos seus muros, e para prevenir as conse-
quências sempre fataes d'algumas imprudências,
os nossos reis haviam providenciado de diversos
modos prohibindo a saída de um bando qualquer
de chrislãos sem que fossem acompanhados de
gente armada.
Uma das occupações mais perigosas da lude
vida dos habitantes* da raia era o irem cortar le-
nha. Não havia lloresta, que se não assemelhasse
ao incantado bosque do Tasso, e que não esti-
vesse cheia de perigos, emboscadas, e traições.
Cada arvore podia esconder um inimigo, e ao
som da cúspide do machado lascando o carvalho
podia responder de súbito o grito de guerra dos
corredores mouriscos. Por isso era expressamente
prohibido saír-se das praças fronteiras para cor-
tar lenha nos mallos sem ir o bando dos racha-
dores acompanhado por um troço de gente ar-
mada.
Era raro por conseguinte que se fizesse provi-
são de madeiras sem que o sangue tingisse o solo :
emquanto as ardores caíam decepadas pelo ma-
chado dos portuguezes, revoluteava a pel(^"a a
pouca distancia, e o montante christão, e o al-
fange mouro abriam largos sulcos nas fdeiras dos
combatentes.
Estranho destino o dos nossos antepassados!
Estranha existência essa que contava uma peleja
sanguinolenta no numero dos seus mais vulgares
incidentes! E que heróica geração! que espirito
de bronze não era necessário para alTrontar com
serenidade esses perigos de cada instante, essas
tribulações, essas angustias pungentes, esse tremer
de cada momento pela sorte do esposo, e dos fi-
lhos, quando a própria vida lhe fosse indifíerente.
Com tudo isto não dissemos ainda como as pe-
lejas travadas no acto de irem os nossos antepas-
sados cortar lenha se ligam com o titulo que dê-
mos ao nosso artigo. Vamos dizel-o agora. Esses
combates já previstos, á força de se repetirem,
recebiam o nome de azarias, e a distribuição das
prezas que n'elles se faziam eslava sujeita a uma
legislação especial.
A etymologia d'esta palavra Azaria dá-a Santa
Rosa de Viterbo no seu Elucidário da seguinte
maneira.
O nome do machado n'esse lempo, na infantil
linguagem portugueza, era aza. Ora, como n'esse
serviço de cortar lenha c o machado o instru-
mento que se emprega, ficou a essas expedições
(assim lhes podemos chamai'; o nome de Azarias.
Nus foraes antigos de algunuis villas se encon-
tram as leis que regiam, como dissemos, a dis-
tribuição das prezas feitas n'essas escaramuças,
prezas que consistiam quasi unicamente em cavai-
los. Assim se os corcéis tomados chegavam ape-
nas para que cada homem da expedição ficasse
com um cavallo, nada reclamava o senhor da
terra; se a preza era mais abundante pertencia
então a este a quinta parte do valor da preza to-
tal.
MOZART
Porque motivo apparecem na musica, mais do
que em qualquer outra manifestação da intelli-
gcncia humana, essas crianças prodigios, que, na
idade cm que as outras apenas balbuciam a nos-
sa linguagem^ conhecem já todos os segredos da
grande arte, e transformam o teclado sonoro do
piano, as cordas vibrantes da rebeca n'outras
tantas vozes cheias de lagrimas e palpitantes de
commoçao, que vão despertar no auditório estu-
pefacto sentimentos ainda desconhecidos dos pró-
prios que os excitam? Porque motivo a historia
da musica inscreve nas suas paginas os nomes
gloriosos de Liszt, de Mozart, d'Artlmr Napoleão^
em quanto a poesia e a pintura, limitando-se a
apontar o talento precoce d'alguns dos seus cul-
tores mais notáveis, nunca se ufanaram de con-
tar nos seus fastos crianças rivaes de Virgílio,
pintores infantis rivaes de Raphael?
É porque os entes privilegiados para quem a mu-
sica tem de vir a ser a linguagem sublime, cm
que hão de traduzir as concepções do seu génio,
aprendem-n'a, como nós, crianças vulgares, apren-
demos o idioma banal, o idiorna de todoSj o idio-
ma que, segundo formos ou não fadados para as
grandes coisas, nos bastará para as necessidades
vulgares da existência ou com o qual luctaremos
corpo a corpo, frementes de raiva ao sentirmos
a coramoção, a poesia, o elevado pensamento es-
vair-se ao contacto das frias palavras da lingua-
gem humana. Esta linguagem aprendemol-a nós
dos lábios malernaes, e se é ainda musica na voz
suave 'da infância, é porque não teve lempo de
se esvair a fragrância de poesia, com que a per-
fumou o coração das mais, se ainda então é gor-
geio, é porque a nossa alma, passarinho exilado,
conserva umas vagas lembranças das melodias
do céo. Depois vem a prosa da vida, c s() a
alma dos poetas saberá conservar, no meio do
turbilhão social, as doiradas reminiscências da ce-
leste pátria.
Mas os poetas da musica, os poetas sobre todos
os outros filhos dilectos de Deus, se tiveram, co-
mo nós, o anjo maternal para lhes suavisar a ru-
de lingua da terra, tiveram um outro anjo, que
lhes apparece c lhes falia em sonhos, e n'essas vi-
sões luminosas lhes ensina uma outra linguagem,
uma linguagem do céo, um idioma privilegiado
c immaculado, que lhes poisa nos lábios o mel
fragrantissimo da poesia, que os baptiza com os
orvalhos do Empyreo, que lhes abre de par cm
par a port i, para nós cerrada a sete chaves, d'essc
mundo prestigioso intermediário á terra c ao pa-
raizo, mundo todo povoado de sylphos e fadas c
duendes, mundo de visões sublimes, mundo de
harmonias mysleriosas, escada de Jacob por onde
os anjos descem a visitar os homens, e por onde
o pensamento humano sobe enlevado c emi)evc-
cido a contemplar de perto as maravilhas do olym-
pico fulgor.
Esse mundo sublime, essa escada myslcriosa ó
a musica.
o PANORAMA
205
Um cVesses escolhidos, uma d'essas crianças
predestinadas foi Mozart. Nascido em Salzburgo
a 27 de janeiro de 1756 já em 1762 arrebatava, em
Wunich e em Vienna, lodos quantos o ouviam, com
as torrentes de melodia que os seus dedos peque-
ninos sabiam fazer jorrar do piano e com a sua
maravilhosa e magistral execução. Seu pai, mu-
sico dislincto, principiara a ensinar-lhe a sua ar-
Mozart.
te quando elle tinha quatro annos. Na idade em
que as outras crianças alinham em ordem de ba-
talha os soldados de chumbo das caixas de Nu-
remberg, em que espreitam curiosos a cauda do
piario, ou despedaçam, se podem, o bojo das re-
becas para verem que rouxinol mystcrioso des-
canta lá dentro essas ineífaveis melodias^ o loiro
allemão debruçava-se pensativo sobre as teclas,
e dava com as alvas raãosinhas voz ao desconhe-
cido passarinho, que os seus companheiros de
brinquedos phantasiavam.
Uma das originalidades d'aquella criança origi-
nal era o não querer tocar senão diante de en-
tendedores. A sua deUcada organisação de sensi-
tiva parecia que se assustava com os applausos
inconscientes do vulgo, como o seu ouvido finís-
simo estranhava a mais leve desharmonia. O ju-
venil Ganymedes adivinhava nos seus presenli-
mentos que o génio, essa águia de Jupiler, o ha-
via de empolgar nas garras e transportal-o ao céo,
c não podia já contentar-se com o licor inebrian-
te do elogio banal, desejava só o néctar que cir-
cula na meza dos immortaes. Em Vienna pedio
com todo o desembaraço ao imperador Francis-
co que mandasse chamar o celebre musico AVa-
genseil. Veio o grande liomem, e a criança de
seis annos, sem a mais leve hesitação, tocou um
dos concertos que elle já compunha, e acolheu
com modéstia^ mas com jubilo^ os applausos do
mestre.
Até então exercitara-se elle apenas no piano ;
acompanhava-o sua irmã, criança também, que
possuia ura raro talento de executante. Mas no
piano não linlia mais que aprender; estava tão
senhor do instrumento, como o poderia estar um
velho pianista. Tentou-o então a rebeca, e, ape-
nas empunhou o arco, mostrou logo n'essa nova
lingua a mesma superioridade. Seu pai, louco
de contentamento, e, vendo na torrente de har-
monia, que jorrava dos dedos de seu filho, um
verdadeiro Pactolo, decidio aproveital-o empre-
hendendo com elle viagens artísticas. Aos sete
annos deslumbrou Paris, aos oito annos Londres.
Começava-se já também a revelar o génio do com-
positor. Na capital da França publicou sonatas
para piano, na capital da Inglaterra, nos concer-
tos que deu, só tocou symphonias da sua com-
posição. Tinha nove annos quando percorreu a
lloUãnda, onde esteve perigosamente enfermo.
Voltou de novo a Paris, atravessou a Suissa, e
no fim do anno de 1766 entrava em Salzburgo,
não contando ainda onze annos de idade, e com
a fronte ornada de mais loiros, do que os que
habitualmente conquista um grande homem no
decurso d'uma longa vida.
É uma estranha biographia esta de MozarI ! Os
annos da infância, que n'um rápido esboço bio-
graphico habitualmente se passam em claro pa-
ra depois se ir tomar o heroe no momento cm
que verdadeiramente nasce para a immortalida-
de, são exactamente aquelles que o biographo de
Mozart deve narrar mais circumstanciadamente.
Parecia que o grande espirito do maestro alle-
mão, sabendo que pouco tempo havia de habitar
no frágil corpo que escolhera para morada, tinha
pressa de viver, e de deslumbrar o mundo. O fo-
go, que aos trinta e seis annos havia de consu-
mir Mozart, não brotava primeiro n'uma frágil
scentelha que se ia a pouco e pouco aclarando,
que lavrava em silencio alé se revelar em pleno
fulgor. Não ; a chamma irrompia logo abrazado-
ra c esplendida, o sol assomava no horisonte,
quasi sem ter aurora, subia ao zenith, illumina-
va novos e mais vastos horisontes, e depois des-
cia rapidamente também, esmorecia no occaso,
atufava-se no oceano da eternidade, mas deixa-
va no mundo um longo 'rasto de luz.
Era 1768 vamos encontral-o em Vienna, com
doze annos, compondo por ordem do imperador
José uma opera intitulada La finta simplice, ope-
ra, que nunca se representou, mas que obteve
os applausos do maestro Hasse, e de Metastasio,
o poeta cesáreo, o grande lyrico, o companheiro
d'ovações de todos osgrandes músicos da época.
Pouco depois na inauguração d"uma igreja, é
o Offerlorio composto por elle, e é a criança de
doze annos quem rege a orchestra formada dos
primeiros executantes de Vienna.
Fallava-lhe ainda percorrer a Itália, a velha
raatriarcha das artes, a soberana do mundo, que,
deixando rolar aos pés dos estranhos o seu dia-
dema de rainha, conservou sempre incontestada
a coroa de flores que a proclamava soberana artís-
tica. A varinha branca do génio de Mozart pro-
duzio na formosa península as costumadas ma-
ravilhas, c os Italianos, soberbos desprezadores
da musica estrangeira, tiveram de se curvar pe-
rante o bárbaro germânico, e de presentir n'elle
um mestre, mais do que um mestre, um inicia-
dor.
206
O PANORAMA
Em Milão, no fim d'oiitubro de 1770, contan-
do pouco mais de quatorze annos, compoz a ope-
ra de Mithridatcs, que foi representada pela pri-
meira vez no dia 2(i de dezembro d'esse anno c
que obteve grande numero de representações.
Em 1771 temol-o de volta a Salzburgo, onde
compõe para o casamento do archiduque Fer-
nando uma serenata tbeatral, intitulada Ascanio
in Alba. O compositor tem quinze annos.
Em 177:2, para a sagração do novo arcebispo,
compõe a serenata 11 sogno di Scipioue. Tem de-
zeseis annos o auctor.
Em 1773 compõe a opera Lúcio Silla, que se
representa vinle e seis vezes seguidas. Sóbc ao
capitólio o triumpbador aos dezesete annos, quan-
do os outros ainda nem fizeram as primeiras ar-
mas.
Em 177,'), com dezenove annos escreve a opera
cómica La finta Giardiuiera. Depois duas missas, e
uma serenata II Be pastore. Chamam-n'o de Pariz
os Francezes curiosos de verem o prodígio, que
tanto avultara depois que elles tinbam assistido
ao balbuciar do seu génio. Prende-se Mozart bas-
tante tempo na corte juvenil de Maria Antonieta,
que ainda nem sequer presente o seu triste des-
tino, e quando volta a Vienna em 1779 é nomea-
do compositor da camará imperial.
(Continuo )^
A BOGCA DO INFERNO
X
- No dia seguinte entraram em Cascaes onze ho-
mens rolos, com os roslos macerados, implorando
compaixão. Eram os tripulantes que se haviam
salvo do naufrágio da galera.
A morgada, que era esmoler e possuia excel-
lenle coração, pedio para que lh'os trouxessem á
sua presença porque desejava soccorrel-os. In-
quiridos por 1). Thereza, os náufragos conlaram
que haviam saido de Cabo Verde para Lisboa;
que a lenipeslade os assaltara já á visla das cos-
tas de Poilugal, rasgando as velas ao navio c
desarvorando-o. O mar levàra-lhc depois o leme
e as bilaculas. Quando se avisinharam da cosia,
impeliidos á mercê das ondas, o navio fazia já
lanla agua, que as bombas não podiam esgolal-a.
O capitão mandara-os enlão arriar a lancha, que
o mar ainda respeitara, ordenando-lhes que em-
barcassem neiia e se salvassem. Elle, o piloto, o
contramestre, e um segundo lenente da marinha
real que vinha de passagem reservaram-sc para o
lim. Eram bravos marinheiros aos quaes a idéa
da morte não amedionlava. Os onze lrij)ulanles
— quantos a barca i)odia conter — lizerani-se de
remos procurando salvar-se. O oflicial, contava
um, licàra agarrado a um resto da amurada com
os olhos lixos em terra. Depois, diziam elles tris-
temente, a galera tremeu n'nina convulsão pro-
longada, como o eslorcer da agonia, jtrincipiou a
redemoinhar, estoirou, c desapparcccu. O tenente
descera firme para o fundo.
Chama va-se Luiz de Mello.
Ouando este nome saio dos lábios do um dos
naufiagos, gelaram lodos de e.sj)anlo. Chrislina
caio desam|iai;)da no chão... como a açucena
que o tuíão pende na haste.
Depois de recuperar os sentidos pareceu cair
n'uma perigosa excitação mental. Passava as mãos
pela fronte, d'onde manava suor frio, como se
quizesse arrancar de lá uma imagem dolorosa. Os
que sentem como ella arder no cérebro o fogo de
uma imaginação exaltada, fujam de o atear, por
que no incêndio pôde ir-lhes o entendimento.
Torturava o coração observar a mudez insen-
sata de Chrislina, a pallidez que lhe cobria as fa-
ces, o espesso véo que lhe entenebrecia as fei-
ções. O infortúnio passara por aquelle rosto a sua
mão destruidora ; a angustia saccudira as negras
azas sobre a fronte virginal, (Kaíiuella que talvez
hoje cinge, reluzente de divinos resplendores, a
coroa dos predestinados de Deus!
A este estado de excitação seguio-se a atonia
profunda. Era impossível arrancar-lhe uma pala-
vra, provocar-lhe um movimento.
No dia seguinle a alvorada invadindo com seus
mágicos clarões o aposento de Chrislina, veio en-
contral-a mais repoisada das lutas do espirito em
que duianlc a noite se debattera. No seu rosto
pallido havia uma doce serenidade, como se a es-
perança animasse aquelle pobre coração! Parecia
resignada. Por entre os lábios saia-lhc o susurro
das orações. Dir-se-ia que uma inspiração divina,
provocada pela fé viva d'aquella alma, descera
sobre a infeliz para lhe fazer encontrar remédio
nas consolações religiosas dos que recebem o in-
fortúnio das mãos de Deus, e se lhe curvam sub-
missos, como a decretos da Providencia, cujas in-
tenções não é dado á crealura discutir, nem ave-
riguar !
A resignação, porém, era apparenle.
Aquella serenidade exterior repousava no de-
sespero de uma resolução tremenda.
Pedio que a deixassem só porque, dizia cila,
queria chorar livremente; mas quando horas de-
pois voltaram ao quarto já não a encontraram
Tinha saído sem ser vista, e foi debalde, que
D. Thereza expedio criados em busca d'ella.
Um pescador que pelo cair da tarde se approxi-
mou da costa e olhou para a Bocca do inferno,
vio um pedaço de vestido branco preso a uma
ponta da rocha. Lá em baixo não havia mais ves-
ligios — a onda varre quanto lá encontra.
Mas na madrugada foi visto passar distante da
praia um cadáver boiando à mercê das ondas.
Lm barco tripulado por quatro homens foi ao
alcance do cadáver. 1'^ra já noite cerrada quando
volveram á praia. As vagas estiravam-se espumo-
sas sobre a areia, e o desembarque foi diílicil;
mas á luz de alguns archotes os quatro homens
levantaram nos braços um vulto de mulher, en-
volto em roupagens brancas, com os loiros cabei-
los soltos c alagados.
Era o cadáver da pobre Chrislina.
E a tempestade não seienára ainda; c o mar
rugindo na sua cholera tremenda por entre os ro-
chedos da Jiovra do inferno, preludiava um hymno
de morte, hymno solemne e lerrivcl, á |)obre mar-
t\r (pie U)\i\ no seio d'ellc procurar um tumulo,
A. I)'0l1VEIU.V PlRIíS
o PANORAMA
207
o SOMNO DAS PLANTAS
Quando a luz do eco tinge de uma côr pura
c brilhante as flores da terra ; quando os prados
se desenrolam ante nossos olhos com o rico ador-
no da sua verde relva e das suas flores; quando
os insectos alados zumbem por cnlrc estas c a
leve mariposa lhes rcvokitea em torno ; então
sentimos pezar que a noite estenda o seu negro
manto sobre este vasto quadro da natureza c que
divida por um entreacto mysterioso o grande
drama do mundo.
O homem destinado a assistir a este sublime
espectáculo descansa apenas desapparece o sol
no horisonte, do mesmo modo que aquelles se-
res; deixa suas sensações para o dia seguinte e
dorme tranquillo ou agitado por ambiciosos de-
sejos.
Não turbemos o seu socego; vamos^ porém^ aos
campos em uma noite de estio: corramos as col-
linas e os prados cobertos de flores, que antes
tanto nos haviam chamado a attenção, ou va-
mos debaixo da abobada sombria dos bosques
seculares, que durante o dia servem para resguar-
dar do ardor do sol. Não temamos cousa algu-
ma n'este passeio, pois de noite não são os sen-
tidos que nos produzem as impressões: a alma
é que sente e julga ; a estas horas parece que os
espíritos celestes se aproximam da terra e exer-
cem sua intluencia sobre os vivos. Ah ! porque
não havíamos de reconhecer esses seres incorpó-
reos destinados como nós a considerar os prodí-
gios da creação I Porque não nos havíamos de
entregar aquelles presentimentos que tão raras
vezes nos enganam e que nos são suggeridos por
seres superiores ? Se cada alma pura tem um
anjo da guarda que a conduz por entre os es-
colhos^ n'esse caso nada receiemos e emprehen-
damos o nosso passeio nocturno.
O influxo religioso da noite^ começa no mo-
mento em que o sol diz «Adeos» á terra, quan-
do o mundo animado lhe envia a sua sublime
despedida.
Então já não c Ião puro o azul do céo ; os va-
pores condensam-se formando leves gases, que
o zéphyro conduz a seu capricho em tiras ílu-
ctuanles, e que se reúnem formando um espes-
so véo para occultar o astro resplandecente no
momento mesmo em que termina a sua car-
reira; porém durante algum tempo inunda de
luz o horisonte mostrando tftdas as cores desde
a purpura até á roza. Ligeipas nuvens semelhan-
tes a rolos de algodão, desprendem-se da massa
geral c correm em direcção ao zenith para alcan-
çarem alli o ultimo raio do astro moribundo, e
o crepúsculo estende suavemente suas sombras,
cujos contornos passam velozes como o tempo e
fugazes como a vida. N'este instante cessa o ruí-
do do dia e não resôa a voz sublime da nature-
za em suas distínctas acclamarõcs^ que se elevara
até á divindade. A ave que poisa sobre os ra-
mos flexíveis da madresilva ou se occulta nos
ramalhetes de flores do espinheiro branco, ces-
sou os seus cantos de amor; os insectos dobra-
ram as suas azinhas debaixo da coberta dourada
que as occulta e embalados docemente no cálix
odorífero da flor descançam sob uma cortina de
purpura e saphira. O eco já não repete os can-
tos dos pastores; tudo dorme na natureza; nós,
porém, velaremos junto das flores que se acham
sob a influencia do somno.
No campo, no bosque, junto ao arroio, no pra-
do, seja qual for o lugar que visitarmos, por to-
da a parte encontraremos as plantas adormeci-
das; a tempestade falas vergar sem acordal-as ;
o trovão estrondea sem perturbar a sua tranquil-
lidadc, a chuva humedece-as sem interromper o
seu repouso. A delicada sensitiva dorme profun-
damente todas as noites; reúne as suas peque-
ninas flores, dobra as suas largas folhas e espe-
ra immovel que a luz novamente a desperte. Se
a agitam^ se a movem, se o vento sopra com vio-
lência, tudo isto serve só para prolongar a sua
immobilidade ; o socego, porém, torna-a á vida.
No trifolio da Índia, descoberto em 1777 por la-
dy Monson era Bengala, em um dos pontos mais
ardentes e húmidos do grande delta do Gan-
jes, a noite parece exercer uraa influencia ainda
raaior.
Cada ramo d'esta sensível leguminosa tem três
folhas como o nosso trevo ; no centro a folha
maior, e as duas menores aos lados ; durante o
dia, a do centro conserva-se horisontal e immo-
vel; de noite inclina-se sobre a haste como se o
cansaço a convidara ao repouso ; esta folha per-
manece sempre immovel em quanto que as duas
dos lados se iCncurvam e endireitam com uma
mobilidade incessante e incrível, sem empregar
em qualquer d'estes movimentos mais de ura
minuto. Agitam-se, elevando-se ou abaixando-se,
como uma imagem d'esses seres atormentados
que nunca encontram tranquillidade desde que
nascem até que morrem ; são inquietas na sua
juventude^ como nós, e moderam os seus movi-
mentos quando a velhice chega, quando a mor-
te as ameaça. No curso do dia apenas ha um ins-
tante em que uma folha está parada em quan-
to a outra continua o seu movimento. O vento
suave dobra o talo da planta sem perturbal-a
na sua agitação^ porém a tempestade torna-a
immovel. A's° vezes o calor suffocante d'aquel-
les paizes fal-a descansar ura raomento como
SC fora uma sesta e então ambas as folhas flcam
tranquillas. O hedysarjim gyrans conserva uraa
parte da sua actividade era nossas regiões du-
rante o inverno; longe, poréra, do sol abrasa-
dor da sua pátria, longe do ar húmido d"aquel-
les pântanos, os seus movimentos são mais len-
tos e menos regulares e teem-se visto ás vezes
no seu desterro entregarera-se a largas horas de
somno.
Tudo é prodigioso debaixo do lindo céo da ín-
dia ; alli também se encontra uma arvore gran-
de da mesma família da sensitiva, cujas flores e
folhas dormem e velam alternativamente, como
se entre arabos os órgãos existira uraa espécie de
aversão a agitarera-se e a viverem ao mesrao
tempo.
Mas não necessitamos ir ião longe para buscar
exemplos de phenoraenos tão estranhos ; visite-
raos de noite os nossos bosques e os nossos pra-
dos; vamos á selva silenciosa quando está allu-
niiada pela luz prateada da lua, que penetra por
entre a folhagem, e prestes veremos como ha mu-
dado o aspecto de todas as plantas.
Os trifolios uniram as suas folhas, que dormem
em seus largos talos; a terna oxalida inclinou
as suas, que dormem cansadas da sua actividade
diurna. As folhas da armoles reclinam-se sobre
os seus renovos e descansara ; as onágras tão
comrauns nas margens dos rios^ unem pela noi-
208
O PANORAMA
te as suas folhas superiores formando uma espé-
cie de docel debaixo do qual a flor pôde dor-
mir ou velar a seu gosto ; as malvaceas, com as
suas flores de um dia, adormecem e abandonam-
se descuidadas sobre a sua hasle e no dia seguin-
te levantam-se novamente.
Em outras partes vemos enrolarem-se as folhas
das malvas com as suas bellas flores de còr de
lilaz c aproximarem se d"estas ao tempo do re-
pouso.
Quando ao anoitecer as ervilhas de cheiro dos
nossos jardins despedem as suas aromáticas ema-
nações, então unem as suas folhas umas ás ou-
tras e no meio d'aquelle perfume delicioso caem
em profundo somno.
A colutea tem folhas que pela noite se separam
das flores e que descansam, como as sensitivas
unindo a parte exterior. Em uma multidão de
plantas vè-se que as folhas servem como que de
resguardo ás flores e que estas não dormem em
quanto se não acham protegidas por aquelle abri-
go: assim succede com o formoso loíits oníilltopo-
díoides, no qual Linneo observou pela primeira vez
o somno das plantas e vio que as trcs folhas que
formam o seu involtorio se levantavam quando a
planta dormia para protegerem completamente
as suas três flores finaes. Em outras plantas, pelo
contrario, as folhas elevam-se scparando-se da
flor, voltam-se e dormem deitadas sobre o re-
verso. No lupinus albus, vô se esta singular dis-
posição em algumas partes dos Pireneos onde
esta "planta e o" trifolio roxo se cultivam juntos
formando preciosos quadros em que as flores
brancas do lupinus estão entrelaçadas com as
ílores carmineas do trevo ; mas de noite tudo
muda; o lupinus parece ter perdido as suas fo-
lhas e o trifolio não mostra ílòr alguma; o rico
matiz que anies apresentavam não se conhece
quando dormem.
[Continua)
O SECUIO XVIII
Alguns homens denominam scculo das riiinas o século
passado; cu cliarmar-lhe-ia anles o século do mau rjoslo
c deixaria fallar os que d'elle dizem mal, não percebendo
que mordem no seio da sua nulrix. Jocão Raplisla ^'ic-
colinc dizia um ília a um d'ep«es vaidosos e ingratos íillios
do século ultimo: <> Vós fazeis como o pigmeo que, depois de
ler suliido aos hombros do gigante, para ver mais longe,
balc-llie na cabeça, grilando-llic;— Vejo melhor do que tu.
— Ao que o giganlc poderia responder:— ISão dirias isso
se te não tivesses empoleirado nas minhas costas. v
CONTO INDIANO
Em uma cidade situada nas mai'gens do Gan-
ges vivia iim religioso mendigo (jiie linha feito
publicamente o voto de nunca fallar. Um dia pe-
dindo esmola á porta de um negociante abastado,
a filha d'cste veio pessoalmente lrazer-lli'a. O
mendigo deslumbrado jiela belleza d'esla menina,
disse comsigo :
— Eis aijui a espo.sa que os deuses me deveriam
ter dado.
Uelirou-se mui perluibado. Ouiz expcllir csle
pensamento da imaginação ; mas não ponde. Fi-
nalmente, exclamou :
— Um enle de Ião rara formosura, de qualida-
des tão distinctas, não é, certo, para um miserá-
vel como eu ; mas se podesse conduzi l-a ao tem-
plo ! obieria facilmente dos brahmanes a cerimo-
nia que a uniria ])ara sempre á minha sorte.
Aferrado a tão abominável desígnio, foi nova-
mente pedir esmola á poria do negociante, e saindo
este na occasião com sua lilha, o mendigo come-
çou a. grilar, apezar do seu volo :
— O desgraça ! ó desgraça !
E afastou-se.
O negociante, impressionado deveras, seguio-o,
e logo (jue se acharam sós :
— Porque faltaste ao teu voloe pronunciaste pa-
lavras tão aterradoras?
O mendigo respondeu :
— Tua lilha veio ao mundo sob oinlluxod'uma
desgraçada esírella. Logo Cjue ella casar, lu, lua
mulher e teus íilhos morrerão. Onando a vi e co-
nheci o seu destino experimentei tal dor (tens sido
tão caritativo paia comigo !) (jue não pude conter
a voz. Faltei ao meu voto por tua causa. Queres
fugir ao perigo que le ameaça? Esta noite, melle
tua lilha em uma caixa, sobre a qual poiás uma
tocha accesa, e abandona-a á corrente do Gan-
ges.
O negociante muito assustado promelteu de se-
guir o conselho ; e, logo que veio a noite, esíe pai
crédulo fez, derramando uma torrente de lagrimas,
o que o mendigo lhe dissera.
Entretanto o hypocrita disse a dois homens da
sua casta, que lhe eram dedicados :
— ide ás margens do Ganges. Alii vereis fluc-
luar uma grande caixa com uma luz em cima. Tra-
zei-a diante da poria do templo; eu vos precede-
rei ; mas, não vos atrevais a abril-a, ainda mesmo
que de dentro vos fallem.
Antes d'esles iiomens chegarem ao lugar indi-
cado pelo mendigo, um mancebo, que linha ido
tomar banho no rio, vendo brilhar uma luz so-
bre as aguas, ordenou aos seus servos que fossem
examinar o caso un. pouco estranho. Piesles veio
a caixa para leria ; e o mancebo abrindo-a, qual
não foi a sua admiração ao ver a(|uelia encanta-
dora menina, que afíula respirava 1 Sem mais re-
flexão mandou ineller na caixa um macaco selva-
gem, accendeu o archote, e lançou-a no rio. A
menina, recobrando vida, respondeu ás perguntas
do mancebo, que a conduziu immediatamente a
casa de seus pais
Chegam depois os dois homens. Avistam a luz,
agarram a caixa e apresenlam-na ao mendigo que
se apressa a abril-a. Logo, sae o macaco furioso,
e lança-se ao mendigo, rasgando-lhe o nariz e as
orelhas com as unhas e os dentes.
No dia seguinte Ioda a genle da cidade sabia
d'esla estranha aventura c ria gostosa do castigo
que, por ser mau, o mendigo havia soíTrido. De
outro lado, o negociante foi muito feliz: a sua que-
rida lilha, denho em pouco tempo, casou com o
joven G nobre indio que a linha salvado.
Typ. Franco-Pottugueza. Rua do Thesonro velho, C
27
o PANORAMA
209
O PALÁCIO DAS CORTES
De todas as ordens religiosas do Occidente, a
mais importante, a que maiores serviços prestou
ao christianismo foi, indubitavelmente, a ordem
dos Benedictinos. A sua fundação devc-se a S.
Bento de Nursia, varão de raras virtudes, que
pelos annos 529 mandara construir no monte
Cassino, em Nápoles, ura convento, que logo de-
nominou dos Benedictinos.
A regra d'esta utilíssima instituição era uma
escolha dos melhores regulamentos observados
nos mosteiros do Oriente ; tinha por fim prin-
cipal prevenir os inconvenientes da vida pura-
mente contemplativa e fazia do trabalho um de-
ver. Esta regra foi considerada de modo tal su-
perior a todas quantas até então haviam regido
o clero regular, que os frades não quizeram ou-
tra; d'ali em diante, as abbadias tornaram-seem
verdadeiras colónias agrícolas, e, se nos permit-
Palacio das Cortes
tem a expressão, verdadeiras colónias intelle-
ctuaes, disseminadas nos paizes os mais selva-
gens para ahi ensinarem o trabalho e derrama-
rem todos os fructos da civilisação christã.
Não se prolongou, porém, por muito tempo
essa dedicação, esse exemplar procedimento com
que os monges benedictinos penetraram os um-
braes do mundo christão, que deram lugar a que
a sua ordem attingisse o mais elevado grau de es-
plendor e opulência e se tornasse a mais respei-
tada de todas as instituições monásticas; infeliz-
mente, como quasi todas as outras ordens reli-
giosas, a de S. Benlo começou a proceder tão ir-
regularmente, a commetter abusos taes, que des-
caio muitíssimo do conceito em que a tinham
todos os povos ; e, apezar das diversas reformas
que depois sofireu, nunca mais poude readquirir
o seu antigo credito e grandeza.
Mas, o nosso fim, não é escrevermos a his-
toria d"esla ordem ; e se acerca d'ella traçamos
meia dúzia de linhas, é porque tem toda a rela-
ção com o assumpto de que, mui resumidamen-
te, vamos fallar.
A primeira casa conventual que os Benedicti-
nos tiveram em Lisboa foi edificada no sitio cha-
mado hoje Largo da Estreita. Concorreu para a
sua construcção o cardeal infante D. Henrique,
a quem o abbade geral e reformador da ordem,
frei Pedro de Chaves, propoz a fundação de um
mosteiro de S. Benlo, em Lisboa. Até então os
monges d'esla ordem, que tantos conventos ti-
nham edificado nas províncias de Portugal des-
de o século onze, não possuíam casa na capital.
Levou dois annos a fabricar a egreja com acom-
modações para trinta monges; e foi na noite
de Natal de lo7;^ que n'ella se celebrou a pri-
meira Missa.
Em lo97, porém, resolveram os benedictinos,
em capitulo geral, fundar um outro convento
que mais próximo ficasse da cidade, e em sitio
mais benigno que não o da Estreita, por ser con-
tinuadamente mui castigado pelos ventos que ali
li circulam. Não dista muito o lugar escolhido
l>ara esta segunda fabrica ; mas, não obstante,
avantajava-sc ás condições da primeira, porque,
por uma parle se pode' dizer que ficava no cam.
po, condição requerida pela profissão da vida
monachal ; e por outra, como estava assas pró-
ximo da cidade, mais facilmente podiam os ha-
bitantes visitar a egreja, e procurar os padres
do convento. Tomou conta da obra o celebre
architecto Balthazar Alvares, que tanto se tinha
já distinguido em muitas obras de vulto ; e le-
vanlou-se o edificio de S. Bento, tal como o ve-
mos, e não como deveríamos vér, porque uma
parte ficou em desenho. Foi superintendente o
210
O PANORAMA
padre frei Pedro Quaresma, o qual, sendo geral
da congregação o mui reverendo frei Balthazar de
Braga, deu principio á obra no anno de 1598.
Tudo parece, pelo menos para a cpocha d"es-
ta grandiosa fundação,, apropriado e previdente
na traça geral do edifício, em cuja frente se es-
tende um vasto largo., para dar lugar a muitas
carruagens, cercado n"esse tempo de um muro
com duas portas, que de noite se fechavam euma
das quacs olhava para o frontcspicio da egreja^ e
a outra, coUocada a um lado da frontaria, olha-
va para o sul.
Todos conhecem o edifício de S. Bento, por
isso achamos prolixo e supérfluo' descrevcl-o.
Este edifício foi um dos raros que o horrível
terramoto de 17oo respeitou completamente. As
modificações que hoje apresenta são poucas e
datam ác 1834, em que pela extincção das or-
dens religiosas se destinou o convento para pa-
lácio das cortes, arborisando-se parte do largo,
que em 1852 se terraplenou, e fazendo-se-lhe a
bella cortina, que hoje vemos, com os dois largos
e magestosos lances de escadaria de pedra^ para
a rua de S. Bento.
No extincto mosteiro, também se acha o ar-
chivo nacional ou torre do tombo, que^ do Cas-
tello de S. Jorge, para ali se mudou em 1755;
e modernamente a repartição geodésica e topo-
graphica do reino, de que é dignissimo director
o sr. Filippe Folque.
A nossa estampa dá, pouco mais ou menos, uma
idéa d'esle notável e histórico edifício. Em quan-
to ás obras recentemente principiadas na parte
de oeste nada diremos, porque a opinião que te-
mos acerca do modo porque a sua fabricação
correu não poderia deixar de ser inconveniente
para a Índole e programma d'esta folha.
VOLTAIRE
(Conclusão)
Procurámos mostrar em rápidos lineamentos as
principaes feições do poeta da Zaira; sendo a
nossa missão consideral-o, principalmente, em re-
lação ao papel que lhe coube na litleralura fran-
ccza do século 18.% indicámos de leve o j)cnsa-
menlo salutar da sua philosophia, a sua influen-
cia, e os resultados (jue derivaram d'ella, por nos
parecer que a apreciação de um escriplor, como
Voltaire, ficaria incompleta se lhe não buscásse-
mos, primeiro, as verdadeiras crenças e os Ínti-
mos intuitos. Agora pouco mais nos resta. Não é
n'uma tentativa humilde que podem caber as lar-
gas considerações e os profundos raciocínios; de-
mais, o espirito de Voltaire abrangeu uma tão
grande área de conhecimentos, produzio um ta-
manho numero de trabalhos diversos, que mal os
poderíamos apresentar em catalogo, lia muito
que a boa critica se occupa d'este vulto eminente;
os doestos de sacristia, as imjjrecações fi^adescas,
as excommunhões que os synodos de beatas ve-
lhas e de ii'mãos-terceiros haviam lançado sobre
o auclor do Diccionurio p/iilosoji/iico, leeni-se su-
mido de lodo. Hoje em dia, a razão dos povos,
mais esclarecida c mais lúcida, principia a com-
jjiehender o nue ha de respeitável n'esles revolu-
cionários sublimes, c a saber que a única benção
de que a humanidade carece é d'aquella que o
próprio Voltaire deitou ao neto de Franklin: nGod
and Libcrlij!)-)
Terminaremos, pois, este bosquejo relanceando
o olhar pelas obras históricas do grande homem ;
convém mesmo averiguar se Voltaire, couio historia-
dor, pôde entrar na primeira linha dos que tra-
balham em laes assumptos, ou se apenas foi um
compilador, sem a agudeza, a lógica, o largo tra-
ço, a concalenação nas idéas, tudo, emfim, que
deve ser allribulo de quem ousa afastar a sombra
dos séculos do vasto edifício do passado.
Chaleaubriand disse d'elle as seguintes pala-
vras: (c — Voltaire, c'est pcut-éfre encore, après
Bossuet, le premicr hislorien de la France.-» —
Semelhante gabo na bocca de um homem tão in-
suspeito como o auclor do Génio do Chrislia-
nismo, bastaria de per si para firmar os credilos
d^aquelle que o recebe; é bom, comludo, descer-
mos um pouco á analyse, e vermos ainda o que
o après Bossuet pôde significar rigorosamente.
O que é o Discurso sobre a historia universal?
O próprio Chaleaubriand que se encarregue de
nol-o dizer: — «A primeira parle d'elle é admi-
rável pela narração, a segunda pela sublimidade
do eslylo e elevado alcance das idéas, a terceira
pela graviéade das reflexões moraes e politicas.»
— Eis o conceito, eis o juizo, eis a sentença do
mestre. Quando se trata da exposição dos fados,
conhece-se n'esse livro a segura facilidade do ho-
mem para quem os successos remotos são como
que aconlecimenios presentes ; ((ue os relata com
aquella fluência que só vem das íntimas fonles
do saber e do talento. Depois, o eslylo levanla-se;
o que era apenas esboço converle-se em mages-
foso quadro; os olhos recream-se pelas magnifi-
cências de um colorido harmonioso, e o espirito
começa a j)rofundar as secretas disposições ([uc
prepararam as cousas. Mas, porque ha de avultar
sempre, em meio dos maiores impérios e dos
maiores succedimenlos, uma raça de homens er-
radios e pequenos? Porque ha de voltear em tor-
no d'elles, como em torno de um grande princi-
pio, ludo o que foi mais nobre e mais sublime!
Eis a macula capital de Bossuet; eis o defeito
que lhe aponla V. Cousin. Na historia da huma-
nidade não se pôde encarar exclusivamente um
simples elemento; é preciso tratar de lodos que
formaram, pelo seu conjuncto, a harmonia social,
e que levaram os homens alravez de lodos os sé-
culos e de todos os aperfeiçoamentos.
Bossuet, pelo seu caracter, pelo seu século,
pela sua posição especial, vio a historia sob o
ponto Iheologico, fez reflectir sobre elía a acção
constante de Deus, agruj)ou em volta da religião
lodos os acontecimentos, dando, por este modo,
ao seu trabalho um optimismo incessante. Er-
gue-sc o povo judeu, e na pcnumbi-a do seu vulto
pcrdemse todas as nacionalidades; apparece o
mosaismo, e nas j)aginas dos seus livros escon-
(lem-sc todas as i-eligiões, mais ou menos vaslas,
que formam o cullo do universo; espraiam-se os
olhos procurando a iramensidade, e os olhos pa-
o PANORAMA
214
ram nos curtos limites d'Israel ! Bossuet escreveu,
não uma historia universal, mas a historia do
povo judeu, considerada em relação com a hislo-
ria dos outros povos. Sei-o, sim, sei que. esse
povo foi maravilhoso; mas n'um quadro geral,
n'um quadro de todos os homens, o que é elle
jiara os Assyrios, para os Persas, para os Egyp-
cios, para os (li egos, para os Romanos? Como
poderá absorver e eclypsar esses impérios gran-
diosos onde ao lado da força brutal e da ostenta-
ção fastosa radiam as alvoradas eternas dos des-
cobrimentos?
No quadio dos povos, o hebreu deve apparecer
como lodos; mas não erguer em meio d'elles a
milagrosa columna do deserto, para se collocar a
si do lado em que a luz brilha, deixando o resto
da humanidade coberta pela escuridão da noite.
Voltaire firmou a historia no seu verdadeiro
terreno; deitando a vista pelos largos horizontes
das nações, vio-lhes os costumes, o espirito, as ar-
tes, as sciencias, as leis, a administração pu-
blica, tudo o que conslilue a vida dos povos, e
sem o que não poderá ser útil a historia. Do seu
Ensaio é que, até certo ponto, proce:le a escola
ingleza, a cuja frente se inscrevem os nomes de
Jíume, de Gibbon e de Robertson. Accusaram-no
então de frivolo como diz Condorcet, por ser cla-
ro ; de inexacto, porque este ou aquelFe erro de
data se encontrava em lavor de tamanho fôlego;
de parcial, porque soube assentar o látego sobre
os enormes feitos do despotismo sacerdotal.
— <íL'auteur n\i pcut-êlre à se reprocher que de
n'en avoir pas asse:- dit;sj — escrevia elle n'uma
replica graciosa a não sei que fanático da época ;
a posteridade fez justiça, e entre os maiores his-
toriadores modernos deu lugar honroso ao auctor
do Ensaio e do Século de Luiz 14.° Antes d'elle,
Bossuet, como já dissemos, havia traçado com o
seu admirável eslylo de propheta a historia do
povo de Deus, mas historia circumscripta, sem a
profunda obseivação philosophica, nem o estudo
do intimo viver dos povos; no Discurso, o que
prepondera é a eloquência. Voltaire veio, e sem
roubar á historia as galas da elocução nem tam
pouco as florescencias imaginosas, tornou-a mais
(Mitranhadamente observadora, fel-a apreciar me-
lhor os factos, confiou-lhe um poder mais amplo.
Os povos, desfilando ante esse juiz perscrutador
e recto, sentiram-se inundados pela viva luz do
seu olhar; os cancros e as torpezas tiveram de
ostentar a sua hediondez repugnante.
Tal foi em resumo Voltaire, o maior génio do
século 18.° Espirito de uma vastidão incalculável,
lucta com Euler,cria, por assim dizer, em França
o poema épico, corôa-se com os louros de Racine
c de Corneille, dá a mão a Diderot e a d'Alemberl
para levantarem o templo da redempção social,
escreve o Diccionario p/iilosophico, esse soberbo
repositório de todos os conhecimentos, trava da
lyra horaciana e desfere-lhe os sons mais melo-
diosos, escreve Cândido, esse modelo de humo-
rismo, estende uma das mãos a Frederico da
Prússia e outra a Parny, isto é, encaminha a
realeza com a auctoridade do seu conselho, c
educa a poesia com a delicadeza do seu gosto,
porfia em dotar a humanidade com as obras mais
valiosas, ate que em fim, prostrado pelos seus
trabalhos hercúleos, descança na immorlalidade.
Na vida de Voltaire, sejamos em tudo justos,
ha duas maculas capitães, duas maculas de que o
próprio V. ITugo não ousa ainda hoje remil-o, e
que lhe hão de ficar indeléveis : o seu poema a
Pucelíe, e as suas affrontas a Shakespeare. A
gargalhada do sarcasmo pôde ser bella em face
do jesuita Nonotte, do poeta Rousseau, de la
Beaumelle, ou ainda mesmo do bárbaro Crébillon ;
mas é sempre imperdoável, quando com ella se
lenta aviltar o génio e menoscabar a virtude.
E. A. Vidal.
O SOMNO DAS PLANTAS
Mas, ^em que consiste essa grande differença
entre o liipiniis c o trifolio? ,;, porque tendências tão
dislinctas entre duas plantas da mesma familia?
(í, porquê essa anlipathia ? A uma delias fal-a cres-
cer o orvalho ^ poderá prejudical-a tanto á outra
que tenha necessidade de resguardar-se d'elle ?
Se em os nossos paizes é tão grande a differen-
ça entre o dia e a noite no estado das plantas,
esta diíTerença é muito maior nos paizes inter-
troplcaes; pela tarde começam já seus movimen-
tos regulados pelo astro que desce, cujos últimos
resplendores allumiam ainda no curto crepús-
culo o momento do seu breve adormecimen-
to. As miraosas e os tamarindos da America (plan-
tas que dormem muito) fecham as folhas 25 ou
30 minutos antes do pôr do sol e não as abrem
senão muito tempo depois da apparição do bri-
lhante astro do dia.
Em S. Jeronymo e outros pontos da America
meridional enc"ontram-se nos campos, entre a
herva, uma multidão de plantas da familia das
sensitivas que, abatidas pelo calor do dia, ador-
mecem de tarde antes do sol posto, pelo que se
lhes deu o nome de dormideiras. Os animaes que
frequentam aquelles lugares procuram com ardor
aquellas plantas. Se durante o dia alguma delias
é destroçada por algum animal faminto, deixa-se
cair por' terra em seguida e communica a sua
sensação ás visinhas,. de modo que annuncia o
perigo ; e vêem-se então as pobres flores agita-
rem-se c cairem sem poderem fugir á morte.
Vêem-se também plantas dormir como os
animaes e este somno põe-nas em um estado mui
próximo do da sua infância. O renovo recorda con-
fusamente como estava dobrado quando, antes de
abrir, jazia no somno lethargico do invernOjin-
vollo suavemente e resguardado do frio pela sua
impenetrável capa, e todas as noites trata de
procurar a sua antiga postura, como se sentira
ter perdido a tranquillidade e quizesse recobrar
a posição da sua primeira idade ; ha, porem, ou-
tras plantas de maior semelhança com os ani-
maes, que na sua juventude dormem muito e
cujas folhas, á medida que envelhecem, velam
mais e vão dormindo pouco até chegarem a não
dormir e vir a morte cm lugar do somno.
Esta propensão ao somno na infância é mui
notável na acácia de Santa Helena (Acácia pêndu-
la ) Esta planta dorme todas as noites, como a
212
O PANORAMA
sensitiva^ elevando as suas folhas; durante al-
guns mezes apresentam-se eslas folhas que dor-
mem ; mas depressa apparecem as verdadeiras fo-
lhas, que não dormem e se conservam sempre na
mesma posição.
Tudo na natureza se toca e encadêa; na folha
de uma pequena planta vemos a imagem da
nossa própria existência : a debilidade da infân-
cia e a frescura da juventude; o largo somno dos
primeiros annos: logo a actividade constante, a
falta de llexibilidade e de somno na velhice, e a
íranquillidade na morte.
Ha flores cujo somno começa muito cedo e
acaba muito tarde ; outras teem um somno que
nada o interrompe c do qual lhes custa a sair
quando está nublado ; e algumas vezes não saem
do seu estado de somnoícncia em quanto a
athmosphera não se acha completamente pura e
desembaraçada.
A chicória silvestre fecha as suas formosas flo-
res azues ás onze horas da manhã e permanece
no mais profundo somno até ás Ires ou quatro
horas da larde.
A myosotis, com a sua dourada flor, abre a co-
rolla áluz, porem fecha-a durante a força do sol
As rosas d'agua, com a sua coroa de folhas pol-
pudas.dormcm sobre as ondas, como as aves aquá-
ticas e não despertam em quanto não sentem a
viração da manhã. Yèem-se como açucenas flu-
cluantcs, estendidas nos arroyos e nos lagos es-
perando a luz do dia, para levantarem as suas
hastes, abrirem os seus cálices e mostrarem lodo
o seu esplendor.
Não é só em os nossos paizes que dormem as
rosas d'agua: também o loto e o nelumbo que se
dobram aos ventos nas planícies do Nilo e do
Ganges e a magnifica nymphacea chamada Vi-
ctoha regina, que adorna o Amazonas, dormem
durante a noite sobre as mansas ondas do rio ou
se submergem n'elle, como o loto egypcio, até que
o sol fira a superficie da agua e acorde o inse-
cto que dorme no leitocôr de rosa, de alabastro
e de purpura, formado pela flor. Estes insectos
sabem instinctivamente que o mysterioso meca-
nismo que lhes subministra uma morada tão pra-
senleira debaixo d'agua, lhes dará a sua liberda-
de ao sentir o ar da manhã.
Os rainunculos, que muitas vezes vemos nos
tanques ou nos lagos e que se estendem sobre a
agua semelhantes a estreitas brancas como a ne-
ve, cobrem de noite a espécie de vaso que con-
tem a sua semente com uma parte da mesma
flor, como se fura com um véo de gase ou de li-
mão.
Por isto, não devia parecer que durante a noite
ludo seria silencio e tranquillidade, como se a
natureza inteira tivesse monido, como se tivesse
cessado o movimenio do mundo? Porem nada
d'isto ha; a obscuridade da noite está tão ani-
mada como a manhã com o sol ; a noite tem as
suas luzes, seus actores e sua vida ; a scena mu-
dou, mas o espectáculo não foi interrompido.
As estrellas brilhantes da noite, as constellações
zodiacaes e a lua allumiam com a sua luz pra-
teada os mysíerios de amor das flores; velam
lhes o somno em quanto o zéj)hiro as eujbala
suavemente, até que a aurora as desperte e se nos
apresentem pela rnanhã com toda a sua frescura
e aspecto agradável. As flores dormem, porem o
amor das plantas continua quando csfão acor-
dadas, como uma espécie de somno cuja imagem
enganosa o dia em vão procura apagar.
Durante a noite é precisamente que a maior
parle dos vegetaes exhalam os seus aromas que
embalsamam o ambiente nas noites de primave-
ra e de estio e que o vento leva a grande distan-
cia. De tarde as flores preparam os ricos trajos
que as vestem para celebrarem o resplendor da
luz da noite, os mysterios cujo cumprimento lhes
impoz a natureza. As chamadas mirabitis esten-
dem os fios do seu cálix para se abrirem ao cair
da tarde e verem afundar-se o sol no oceano. O
geranium triste começa a abrir as suas flores escuras
c cheirosas á hora em que a maior parle das plan-
tas da sua espécie caem no somno ; a fumaria
vela aberta até ao crepúsculo da manhã. As ro-
sas silvestres dos campos, as ervilhas silvestres dos
bosques, as chamadas onágras, que vegetam nas
margens dos rios. Iodas florecem nos mysterios
da noite.
Nunca na ausência do sol ha uma calma com-
pleta ; pelo contrario, durante a noite o ouvido
percebe e distingue mil sonidos que nas horas
do dia se confundem e ouvem juntos; a natu-
reza quasi que não conhece o silencio. Zumbe o
insecto no cálix meio aberto de algumas flores,
agitam-se no ar essa multidão de moscas brilhan-
tes, que se vcem de noite nos paizes meridionaes,
quando já no Oriente apparece uma facha de ro-
sada côr, indicio da aurora, que traz comsigo a
agitação e o ruido da vida, que Ycin dominar o
suave murmúrio da noite. Pouco depois eleva se
magestosamente o astro que allumia o mundo; as
pérolas do rocio nocturno dissolvem-se no oceano
do ar, o perfume das flores e o canto dos pás-
saros com o hymno da natureza inteira sobem
como a homenagem da terra até ao ihrono do
Eterno.
Então as plantas nocturnas inclinam-se ou bus-
cam algum abrigo para dormirem resguardadas
do ardor do dia ao passo que as outras acordam
e se adornam com seus ricos matizes.
Assim, cada vegetal tem suas horas de repou-
so e actividade; porem a natureza em todas ci-
las manifesta a sua vida e seu incessante traba-
lho, ainda que este se ache algumas vezes invol- *
to no véo de um profundo mysterio que a scien-
cia acaso poderá penetrar algum dia.
TRÊS LADROES
Trcs ladrões, lendo roubado uma mala-postae achando-
sc possuidores de uma somma considerável, resolveram di-
vidir cnire si este dinheiro c de abandonar para sempre a
sua criminosa profissão. Mas, anlcs de se separarem, (jui-
zeram fazer juntos uma festa. l'm d'elles foi á cidade pró-
xima buscar provisões. Os outros dois, na sua ausência,
assentaram (pie seria mais agradável dividir a somma em
duas parles do (pic em Ires, e porlanto (juando o compa-
nheiro chegou, m;»laram-n'o ; mas este, lendotido o mesmo
pensamento qne cllcs, l)a\ ia envenenado as provisões: co-
meram-n'as sem desconfiança, o no dia seguinte foram
encontrados mortos os Ires iiiiseraveis.
Entre múos não é possivcl liavcr coníianf.a.
WINDSOR
Junto da pequena villa d'este nome, situada
no condado de Hcrks cm Inglaterra, a trinta c
dois kiloniclros de Londres, na margem meridio-
nal do Tamisa, ergue-se um magnifico palácio
^0 PANORAMxV
2i3
real, cuja origem remonta a Guilherme o Con-
quistador. Pouco tempo depois de ter tomado
posse da Inglaterra, o audacioso normando cons-
truio esse castello que Henrique I escolheu para
sua residência depois de o ter reconstruído por
um novo plano. Carlos II concorreu também muito
para o erabellezamento d'esse palácio, que, d'essa
época era diante, passou a ser a habitação pre-
Windsor
dilecta dos reis de Inglaterra, e sua residência
habitual durante o estio. Jorge III principal-
mente consagrou a Windsor (onde se lhe erigio
uma estatua colossal) um affecto muito particu-
lar.
Os paços de Windsor merecem essa predilec-
ção, porque, além de serem uma residência ver-
dadeiramente deslumbrante, pela magnificência
dos seus aposentos onde se admiram óptimas pin-
turas, estão rodeados por uma vasta e magniíica
tapada. Âdmira-se n'elles um terraço, único do
seu género, que tem seiscentos e vinte e três me-
tros de comprimento, c uma largura proporcio-
nada. A vista, que d'alli se gosa, é soberba. Além
o Tamisa serpeando por enlre a planicie, se-
meada de lindas casas de campo, de brancas
aldeias, mais perto a floresta com os seus um-
brosos retiros, os seus lagos encantadores, e os
seus graciosos pavilhões.
A nossa gravura representa um dos sities mais
pittorescos d"essa tapada. È aquellc onde o pas-
seiante encontra de súbito o lago mais formoso e
mais amplo da floresta real.
A GALATEA MODERNA.
YI
D. Tioinnfe «"i baroueza ilo Alpoilrnl.
Minha querida. Torno a alar o fio d'esla caria,
que a vinda súbita de Alfredo cortou Ião fura de
geito. Foi-me necessário algum tempo de repouso
e solidão para socegar e descançar da lucta.
Era ao pôr do sol. As campinas matizadas de
relva resplandeciam osculadas pelos derradeiros
bruxuleios do sol. As encostas, mosqueadas de es-
pessura, ostentavam a sua belleza magestosa e
piltoresca. A brisa do crepúsculo começava os
seus gemidos maviosos, as suas toadas plangen-
tes, os seus rumores angustiosos.
Que magesloso espectáculo! Estávamos senta-
dos junto á fonle. É um sitio ruslico e alpes-
tre, com sua formosura serena. Imagina um mon-
te granítico escalvado e ermo, com rochedos apru-
mados sobre o abysmo e encaslellados uns sobre
os oulros. Parece que a natureza arrojou das en-
tranhas, em hora de angustias, aquelles granitos
formidáveis, que ameaçam os valles e as campi-
nas, que Yicejam ao longe.
Quando as sombras da noite se alargam e vão
cobrindo a amplidão com o seu crepe de triste-
zas; quando nenhum ruido interrompe a calada
profundamente ascética d'esta-Thebaida, julgamos
que os granitos são craneos de gigantes, os quaes
em tempos primitivos, ali combateram e deixa-
ram as suas ossadas.
Mais para baixo, em um recôncavo formado
por uma lapa agigantada, serpeia por entre limos,
214
O PANORAMA
um Ycio de agua, que se ajunta em uma bacia
granítica, para correr depois, irriquieto e louco,
se^^uindo ondulações caprichosas, pelos fraguedos
e ^selvados, até 'desembocar n'uma ribeira, que
banha o valle.
Tal é a fonte fresca, a minha fonle de Are-
tbusa. a minha Castalia, tosca e humilde e per-
dida n'eslas fragas, tão distantes do bulício. Tal
é a minha fonte sob cujo olmeiro, que a ensom-
bra, venho sentar-me, em horas de melancolia,
dando largas à minha imaginação, que se recreia
cm illusões e enganos! Deixal-a, a ])obrinha, se-
guir o arroio nos seus meandros, c |)erder-se com
clle no mar dos destinos! Deíxal-a bater as azas
c folgar livre á tardinha, que e a hora dos lou-
cos pensares, e do scísraar undivago.
Ah! Que extasis não tenho sentido ali, sob a
copa do^velho olmeiro! Quantas vezes ai! quan-
tas, mal podendo soflrer as tristezas da solidão,
não lenho passado ali, horas e horas, cravando
bem fundo o punhal no peito, cingindo o cilicio
doloroso, sorvendo, com acre volupluosidade, as
lagrimas, que me caiam a jorros e me orvalha-
va"m o rosto ennegrecido ! Quantas vezes, ven-
do-me só, desamparada, Agar intemerata d'esle
deserto, não tenho invejado o destino das pasto-
rinhas, que levam, rindo e cantando, o fardo da
vida que pouco lhes peza. Para ellas, mil vezes
hei pensado, é ligeira a vida n'estes fraguedos al-
cantilados. São como as ílôres selvagens que des-
abroxam e se espanejam nos estevaes. Que im-
porta que o vento sopre e o trovão estrondeie em
fúria? Abriga-as o rochedo inabalável, e passada
a tormenta, o sol ha de voltar e algum raio as
aqueceiá. Tudo olvidam então. Secca-íhes o pran-
to a brisa, que as embala. As pétalas abrem-se
outra vez e exhalam os seus perfumes, que ha-
viam escondido no seio. Quando vier o inverno,
já passaram a primavera em sorrisos, já se des-
entranharam em sementes no estio. Que importa
a morte agora?
Mas eu o que sou? Violeta perdida nas fragas
temo a tempestade, que pôde derrubar-mc. Em
vão cxhalo mil fragrâncias, que se perdem no pi-
nheiral sombrio. Como posso encontrar encantos
na solidão? Falla-me um abrigo. Se o vendaval
attentar em mim, quando desencadeiar as suas
fúrias, não hei resistir. Serei levada ao longe, e
macerada, quasi desfeita em pó, lá irei revolu-
teando ao sabor do vento até desapparecer no es-
paço.
Mas se alguém me colher, não emmurchecerei
logo? Não serei esquecida, mal perder o frescor
e o viço campestre' Assim tenho pensado mil ve-
zes, c não podes medir as angustias, que hei sof-
frido. Outras vezes, porém, em horas mais pro-
picias, deixo-me embalar nas ondas do esqueci-
mento. Como o rouxinol, que entristece na gaiola,
que mão traidora lho teceu, se acerto de (picbiar
os grilhões, que me algemam, abio as azas, ele-
vo-me ás alturas, pairo nas nuvens, e vejo o
mundo a meus pés, como uma esj)liera de ouro
que me segue submissa. Goso enlão momentos fu-
gazes de ineíTavel ventura. Todos os ruins senti-
mentos se esvaecem, como fumo, Desprendo-me
da vida, esqueço os enredos do mundo c os lia-
mes que me tolhem os movimentos. Nada pôde
conturbar enlão os esplendores, que a minha phan-
tasia arranca do cahos.
Remonto ás edades primitivas, quando a terra,
joven ainda, rangia nos eixos, e se desentranhava
em seres fabulosos.
Tudo é serena e pura harmonia nas alturas,
aonde me libro. Tudo é límpido e azul. Mas eis-me
sentada junto de Alfredo, sob as ramas do ol-
meiro, ouvindo o chilrear dos pássaros na espes-
sura, e o doce murmúrio da limpha, que se des-
penha no granito.
Estamos silenciosos. Como que em vão quere-
mos ouvir o pensar mutuo. Derepenle Alfredo fi-
ta-me e exclama:
— Que tarde ! Que esplendores lançados a flux
por todas essas veigas, que se desenrolam no sopé
das montanhas como listões viridanles! Que pro-
fusão de lindezas com que a terra se arraia nos
seus dias felizes ! Que ornatos e enfeites 1 Na cu-
meada debruçam-se os gigantes de pedra, na en-
costa agila-se a ramaria, nos valles espaneja-se a
relva. E a agua, a limpha cristallina a fecundar
tudo isto ! E as flores a matizarem as campinas,
a desabroxarem aos raios do astro ! E os fructos
a irromperem já por entre flores! E a brisa a ge-
mer, a soluçar, e a sacudir os ramos do arvoredo
umbroso! Ê além no fundo o mar, relincto com
os últimos raios do dia. E no extremo do hori-
sonle, na orla afastada, o sol que mergulha e
sorri para a terra. Tudo isto, Violante, exclamou
Alfredo travando-me da mão, são frémitos de
amor. Tudo ama no mundo, porque o amor é a
harmonia. A terra é um altar immenso, sobre
cuja ara sacrosanta tudo se liga pelo amor. O
próprio rochedo é sympalhico com a agua. O pe-
rilampo, que voeja em raios de luz, arde em an-
ciãs amorosas. O insecto que zumbe, a chrysalida
que se transforma, a agua que corre, o vento que
geme, a floresta que murmura, os pássaros que
cantam, os campos que se adornam, os rochedos
que se desfazem, o ar que se agita, o trovão que
rouqueja, o i-aio que fulgura, o mar que ondèa,
a própria terra, que gravita cm torno do sol, como
que namorando-o, e a lua, que segue a terra, c
os planetas que cortejam o astro, e as estrellas
que sulcam a amplidão, e as nebulosas, que se
desenfloram em mundos, tudo isto ama, tudo isto
é a paixão, é o concerto único c melódico do
amor, é a orchestra divina da harmonia, cujas
modulações inflndas, ferindo as ethereas ondas,
convergem para a derradeira e perfeita harmo-
nia ! l*orque a vida é o liame sympalhico, que
une em intimo consorcio a creação e o creador.
Porque o movimento é a melodia perenne e eter-
na, é a musica suavíssima, é o frémito d'essa
harpa, cujas cordas são os nmndos, e cujo rythmo
é o amor, cujas modulações são os cânticos, que
se alevanlam do seio dos* mundos. Nenhuma noia
se perde, nenhuma discorda. A alinação é per-
o PANORAMA
215
petua. Ob ! quem me dera amar também! Quem
me dera ajuntar o meu hymno de amor á harmo-
nia do universo I Quem me dera erguer-me e
exclamar: eu amo, e no conccrlo suavissimo da
natureza, achei eco do meu amor! Ouem me dera
encontrar um peito de mulher, um peito de anjo,
aonde repousar das fadigas, aonde contar as pul-
sações do meu coração! Porque n'essc peito esta-
ria* eu lodo, a minha alma, a minha vida. Esse
peito seria o meu tabernaculO;, o meu altar.
E depois....
— Como o sol mergulha no oceano! interrompi
eu, senlindo-me arrastada, perdida, quasi louca
ao ouvir as palavias inspiradas de Alfredo, que
d'esta vez se me aligurava um vidente, um verda-
deiro poeta, c não um homem mesquinho e vul-
gar. E era necessário interrompel-o. Eu seguia as
suas palavras pasmada, absorta, como que vendo
descerrarem-se novos mundos e horisontes novos
nas trevas, que me circumdavam. Mas a vida, a
vida real, negra, pobre, e misera! Ao lado d'a-
quelles esplendores via o derrocado solar de meus
antepassados, que era forçoso reconstruir. Ao lado
da poesia de Alfredo via o meu caracter derran-
cado pela educação, pela pobreza, e por ti, mi-
nha querida e pelos teus pérfidos conselhos. Ah !
Esta é a tristíssima verdade. Sou incapaz de ele-
vações. Como o passarinho ferido na aza, em vão
([uero alçar o voo, que logo caio dolorida, raste-
jando nas sarças e silvados da vida. Mas era tal
o meu enlevo, que não me atrevi a interromper
Alfredo com uma observação fútil ou zombeteira.
— Eil-o, exclamou logo Alfredo erguendo -se
como o propheta sobre as ruinas de Cabylonia.
Eil-o, o rei do universo, a pátria da suprema luz.
Lá parece mergulhar nas ondas entumecidas, que
enlouquecem de amores. Lá precipita no oceano
o seu rio de fogo, que se espraia em jorros fer-
vidos na athmosphera incendiada ! Lá parece re-
clinar-se por entre franjadas de mil cores purpu-
rinas, no throno real! Mas não! Mais altos são
os seus destinos. Outras regiões o chamam, que
de todos é vida. Todos os planetas o querem,
todos o cortejam. Se eu pudera seguir-te, ó sol,
no teu caminhar radioso! Sc eu pudera bater as
azas, como a borboleta, e volitar humilde e contente
a cegar-me na tua luz! Se eu pudera levar nas
azas aquella que eu amasse! Como me engolphara
nas tuas ondas, ó sol! Como arquejara ventu-
roso! Com que prazer eu deixara a terra! Vira
tudo a meus pés ! tudo me parecera pequeno e
desprezível!
Embalado nas ondas luminosas, circumdado de
mundos, cujo fragor não me assustara, eu fôi-a o
mytho eterno do supremo anceiar da poesia hu-
mana.
Ah! mas sou apenas homem, sou fraco, e por
mais que nade no infinito oceano, jamais chega-
rei á terra da promissão.
E Alfredo, como se a vida lhe houvera faltado
derepente, encostou-se ao tronco do olmeiro, 'e
ficou pensativo e mudo. Eu estava assentada á
beira da fonte. Taz-me a contcmplal-o! Como
aquelie homem era digno de amor! Que thesouro
de poesia não encerrava aquelie coração ! Que fe-
licidade immensa para quem podesse colhel-o!
E era eu, tão moça, era eu, com os meus dezoito
annos, que assim pensava! Eu, sim, porque de-
sejo a minha felicidade e a de Alfredo, porque
não quero amal-o nem devo ser amada.
Iam entanto as sombras da noite invadindo a
terra. No valle já não se divisava a casaria senão
fossem os clarões, que brilhavam de quando em
quando. Ergui-me e toquei no hombro de Al-
fredo, o qual como que accordou de profundo le-
thargo, em que a lembrança do presente se es-
vaecesse perante o devaneiar da phantasia.
— Amanhã, disse-lhe, responderei.... poetica-
mente.
— A resposta é simples. Ama-me, ou não me
ama? Sim ou não !
— Se eu soubesse ! Amanhã á tardinha aqui se-
remos. Venha armado de ponto em branco, que
a liça hade ser de respeito. Temem mim um adver-
sário terrível.
— Já estou vencido. Pertence á rainha da bel-
leza o premiar-me.
— Eu sou apenas campeador.... por emquanto.
Quem sabe aonde está a rainha da belleza? Tal-
vez bem distante. O futuro a Deus pertence. Va-
mos, vamos. Meu pai já hade estar impaciente, á
espera do chá.
E pusemo-nos a caminho. Felizmente a distan-
cia é pequena, e passados dez minutos estávamos
em casa.
Agora minha querida baroneza, que estou mais
socegada, não sei como me ponde sair do com-
Ijate. Foi rude, não é assim? Mas como heide
vencer Alfredo? O que heide fazer? Seriam vãos
todos os meus projectos, e acabaria por amal-o,
como qualquer caraponeza? E as minhas juras?
Não serei tão má, como me julgo? Serei capaz de
uma grande paixão? Não quero pensar nem estu-
dar. Entrego-me à sorte. Proteja-me o acaso.
Envia-te um beijo pelas auras a tua — Violante.
A. Osório de Vasconcellos
{Continua)
MOZART
Temos o grande maestro chegado ao apogeu
do seu talento. Em 1781 escreve o Idomeneu, que
foi representado em Munich. Esta opera indica a
transição dos fructos precoces da sua infância e
da sua adolescência para os fructos sasonados da
sua mocidade. As formosas, mas de certo mais
ou menos incorrectas^ composições dos seus pri-
meiros annoB transformam se n'esta opera na
belleza perfeita, grave e clássica. Engana-se com-
tudo quem suppozer que Mozart parou n'este pon-
to, em que se completa o desenvolvimento rapi-
dissimo do seu talento. A águia implumou-se ra-
pidamente, subio de fraga em fraga, de alcantil
cm alcantil, attingio finalmente o pincaro subli-
me, onde só vô em torno de si raros companhei-
ros, e onde pôde sentir uma vertigem ao con-
templar nos degráos d'essa escada de fraguedos^
que elle subio velozmente, Impellido pela febre
do génio, os talentos de segunda ordem, que o
216
O PANORAMA
viram passar aterrados como que envolto n"um
turbilhão ; a seu lado, os velhos mestres, os pa-
triarchas da arte do seu tempo, contemplam com
espanto o moço de vinte e cinco annos, cheio de
ardor e de enthusiasmo, que se lhes vem reunir
no sitio aonde elles só chegaram depois de Ímpro-
bas fadigas. Mas Mozart nada vé do que o rodeia ;
levanta os olhos, e divisa a immensidade azul,
a vastidão dos desconhecidos horisontes, o sol
radiante em que os outros não ousam cravar os
olhos. Foi então que elle se sentio deveras águia,
e que se arrojou com um grito d"enlhusiasmo a
esses espaços não sulcados.
Foi o amor quem lhe deu o arrojo, foi o amor
quem o ensinou a pairar n^esse ambiente lumi-
noso. Casara n"esse anno de 1781 com a celebre
cantora Lange. Noivo ainda, em toda a eííerves-
cencia da sua paixão, na flor do seu aílecto, com-
poz, por ordem do imperador José II, a opera Bel-
monte c Conslancia. Esta opera, representada em
178:2, foi o primeiro passo dado por elle na nova
carreira.
 musica, até ahi, seguindo o exemplo da poe-
sia, e moldando-se pelo espirito acanhado do sé-
culo, tomara por ideal a correcção, a frieza clás-
sica, e não ousara eximir-se das regras, que pres-
creviam a raagestade serena, que obrigavam a
instrumentação a não passar de simples e pobres
acompanhamentos, que dividiam cautelosamente
os géneros pondo para um lado o cómico, o trá-
gico para outro. O espirito allemão, ainda que
mais livre do que o espirito das outras nações,
agitava-se comtudo apenas nas abstracções da
phylosophia, e na litteratura esperava ainda a
palavra emancipadora de Goethe. Na musica a
Allemanha reconhecia submissa a preeminência
da Itália, e recebia as licções dos seus mestres.
Mozart não era ainda o homem que havia de
emancipar o espirito nacional ; o seu génio fo-
goso, doirado por um reflexo do sol italiano, que
vai, reverberando nos gelos dos Alpes Tyrolezes^
illuminar no sul da Germânia a linda cidade de
Salzburgo, não perceberia talvez o génio scisma-
dor de Beethoven, e a vaga e immensa melan-
colia do auctor d'EurYantho. Mas o de que elle
era muito e muito capaz era de revolucionar a
arte, introduzindo-lhc a paixão, de ceder aos ca-
prichos da sua inspiração, sem alterar muito sen-
sivelmente as velhas formas, porem fazendo cir-
cular por baixo do tecido marmóreo da formosa
mas fria estatua, que symbolisava a antiga arte,
um sangue juvenil c ardente. O seu papel na
musica corresponde ao que Bocage desempenhou
entre nós na litteratura, ao que André Chénicr
desempenhou em França. Depois Wcber e Bee-
thoven na Allemanha, Rossini na Itália comple-
tariam a transformação.
Em 178.->j continuando o caminho encetado,
escreveu o David Penitente^ c as Bodas de Fújaro.
Esta opera, que era a sua predilecta, assustou o
publico de Vienna, que costumado a farças mu-
sicaes, não podia comprehendcr este novo géne-
ro d'opera cómica com tanta vida, tanta ampli-
dão, tão brilhantes melodias. Era a predeces.sora
e a rival do Barbeiro de Sevilha de Uossini. Ainda
hoje SC representa tom successo igual, ao que
obtém a obra prima do maestro de Pesaro.
Finalmente em 1787 escreveu a sua grande
obra, a que só por si lhe poderia dar a immor-
talidade, o b, Juan. Era a final um verdadeiro
poema cheio de paixão, de elegância, de senti-
mento, e ao mesmo tempo de alegria fina c li-
geira. Para se avaliar a que distancia arro-
jara já o leão as velhas correntes das regras,
basta lér-se o conto d'Hoffmann D. Juan, e as
cstrophes, que Alfredo de Musset no seu poema
Namouna consagra á serenata d'essa opera. Pedi-
mos aos leitores que leiam ou releiam os tre-
chos que indicamos.
Mas o homem caminhava para o occaso da
existência, sem que o génio perdesse um só dos
raios da sua coroa. Tudo são obras primas d'ahi
em diante: Cosi fan tulli, composta em 1790; em
1791 a Flauta encantada, a Clemência de Tito, e o
famoso Requieni a que não poudc dar a ultima
demão, e que sérvio para as suas próprias exé-
quias. No dia 5 de dezembro d"esse mesmo an-
no, morreu d'uma hydropisia cerebral, em todo
o vigor do seu génio, não tendo ainda comple-
tado trinta e seis annos !
Vendo desapparecer tão cedo da scena do mun-
do este vasto génio musical, o maior talvez de
todos os tempos, occorre-nos o pensamento, que
nos occorre também, vendo morrer Bocage, com
quem já o comparámos, na mesma idade, lam-
bem no vigor do seu génio, e deixando também
um Bequicm sublime — os sonetos, que diciou no
leito do moribundo.
Esse pensamento é o seguinte : O que fariam
estes grandes homens, se a morte os não arre-
batasse, quando ainda a sua intelligencia, em
pleno sazonar, promettia tantos fructos? Quem
sabe ? Sairam talvez a tempo. Estes audacio-
sos Titães, cuja fronte sublime topeta no Olym-
po, devem sair da scena antes que os esma-
guem os montes que sobrepuzeram. Deus, que
não quer vingar-se como o phanfasiado Júpiter,
não consente que os audazes Prometheus che-
guem a tocar no fogo sagrado. Le cid^ diz Al-
fredo de Musset
. . .ressemble á Váme humaine.
II s''y trouve une sphêre óu Vaigle perd haleine,
Oú le verlige prend, oú Vair devient dii feu,
Et Vhomme doit mourir oú commence le Dieul
PiNUEiRO Chagas.
RESPEITO À INFÂNCIA
Respeitaes a velhice, miiilo bem ; mas respeilac
lambem a infância ! respeilac n'essa alma, apenas
emanada do seio da natureza, a imagem de Dcos,
que o halilo corrompido da sociedade ainda não
embaciou ; respeilac os desígnios providcnciaes
que repousam n'essc berço.
Essa criança j)oderá ser um Homero, um Ca-
mões, um Descartes, um Wasliinglon, um Miguel
Angelo; c se não é nada d'islo, não é já para vós
a lembrança viva dos exlasis do amor, o pcnhoi*
e como que o sorriso da vossa immorlalidadc ! ?
....Porque para dar, e não para se guardarem
as riquezas mundanas se hão de desejar.
Francisco de Moraes
Typ. Franco-Porluguoza. Rua do Tliesouro velho, C
28
o PANORAMA
2i7
A CATARACTA DE CORRA-LINN
É o Clyde um dos rios mais pitlorescos e mais
consideráveis do sul da Escócia. Nasce csle das
montanhas de Lanark^ banha as cidades de La-
nark, Hamilton, Glasgow, Renfrew e Dumbar-
ton, e lança-se, depois de um curso de perto de
cem kilometros, no mar de Irlanda, próximo do
castello de Dumbarton. O Clyde, navegável até
Glasgow para navios de grande tonelagem, forma
nas montanhas muitas cataraclas celebres; ci-
tam-se entre outras a de Corra-house que leni
vinte e oito metros de altura, a de Stonetyren
que tem perto de vinte e sete, e a de Corra-Linn,
A cataracta de Corra-Linn.
que a nossa gravura representa, e que, não com-
petindo com a? outras na elevação, d'onde as
suas aguas se despenham, as vence no pittoresco
da situação.
O rio Clyde dá o seu nome ao golpho de Clyde,
formado pelo mar da Irlanda no sitio onde esse
rio desemboca, e ao canal do Clyde ou de Glas-
gow, que o liga com o Ford. O paiz, que as suas
aguas banham, é um dos mais românticos, dos
mais férteis e dos mais povoados d'essa parle
da Grã-Bretanha. Um pouco acima de Glasgow
enconlram-se as forjas e as officinas de ferro do
Clyde, que são as mais consideráveis da Escócia.
PALESTRAS IIYGIENICAS
o pào
O pão é hoje considerado o principal alimento,
não só pelo motivo da extrema ditíusão do seu
uso, como lambem por conter em si todos os
princípios nutritivos que a physiologia considera
indispensáveis para a reparação e conservação
das forças: fécula de assucar,' matérias gordas,,
substancias azotadas, principalmente glúten. É
um alimento completo, no sentido que a hy-
giene liga a esta palavra; isto c, que empregado
como sustento exclusivo, oíTerecc, senão elemen-
tos de uma soberba reparação, pelo menos um
mantimento suíYiciente para a dilação de algum
modo indefinita da vida. N'este caso pode tor-
nar-se insufficiente por monotonia do regimen,
mas não por falta de recursos alimentarios que
apresente. Os gregos exprimiram esta idéa fa-
zendo derivar a palavra pão de um verbo que
significava alimentar. Denominavam o pão, pa-
nos, o alimento, como chamavam ás escripturas
santas, Biblos, o licro por excellencia. Assim o
uso do pão enconlra-se no berço das mais anti-
gas civilisações, A descoberta recente das aldeias
lacustres ou aquáticas na Suissa fornece -nos
uma nova prova do que avançamos. Effectiva-
mente, achou-sc no lago de Constância, um an-
tigo armazém contendo cem medidas de cevada
e de trigo em espiga, e um pão, meio consu-
mido pelo fogo, feito de cevada moida grossei-
ramente. Ora, esta civilisação lacustre, embora
nos não tenhamos detido em calcular o numero
de séculos ao qual é licito fazcl-a remontar, não
podemos, comtudo, deixar de a considerar como
muito antiga. Depois, o peccado do nosso pri-
meiro pai, pelo qual foi condemnado a ganhar
o pão com o suor do seu rosto, consagra ainda
melhor que outro qualquer testemunho histó-
rico a antiguidade do uso d'£ste alimento, c,
em quasi todas as linguas, exprime mcthapho-
ricamente, não só a alimentação no seu todo,
218
O PANORAMA
mas ainda lado o que constitue as necessidades
essenciaes da vida.
Entre os povos mais antigos^ o pão propria-
mente ditOj isto é, o pão preparado por fermen-
tação, não existia: o grão era simplesmente pi-
zado ou pulvcrisado de um modo grosseiro; fa-
ziam depois a massa com agua e coziam-na em
fornos ou debaixo da cinza, como o indica a sa-
grada Escritura. Este primitivo syslema de fa-
brico existe ainda lioje entre certos povos, prin-
cipalmente entre os Árabes do norte da Africa.
O desejo ardente, entre alguns homens erudi-
tos, de saber se os mais antigos povos conhe-
ciam e ulilisavam a arle de fazer pão fermen-
tado, tem dado lugar a calorosas questões. Pa-
rece-nos, porém, que o facto do emprego do
pão asmo em certas ceremonias religiosas im-
plica necessariamente a idéa de que aos Hebreus
não era estranho o pão de levadura. Os pães
depositados todos os sabbados sobre as mczas
de ouro do sanctuario e a festa dos Asmos, in-
stiluida em memoria da saída do Egyplo, são a
prova. Emfnn, uma passagem do Êxodo levanta
toda e qualquer duvida a este respeito: «Come-
reis, diz o Senhor, pão sem fermento durante
uma semana. Desde o primeiro dia, não consen-
tireis fermento de qualidade alguma em vossa
casa. Todo o que comer pão levedado durante
os sele dias será expulso do reino d"lsrael.»
Quanto á origem do emprego da levadura, não
se pôde determinar, e é muito provável que
esla descoberta, tão importante no ponto de
vista hygienico, seja, como muitas outras, re-
sultado do acaso.
Os gregos faziam uso do pão com mais parci-
monia do que nós, e é muito de notar que Ho-
mero, tão prolixo quando descreve os banquetes
dos seus heroes, esquece quasi sempre o pão no
meio da enumeração das comidas e bebidas de
que usavam. Comtudo, este alimento acha-se in-
dicado em dois pontos da Odyssea: na descrip-
ção do festim dado por Euméo a Ulysses e do
óíTerccido por Mcnelau a Telemaco.
O uso do pão espalhou-se, pelo contrario,
muito entre os Romanos, que adquiriram a arle
de fabrical-o com uma cerla perfeição e cujas
formas e aspectos variaram com uma tal fertili-
dade de imaginação que as nossas padarias de
luxo, certo, não desdenhariam. O pão de pri-
meira qualidade era feito de trigo de Campania
(Macrobio, Salyrkon, lib. 11, cap. XII). O pão de
rala (pauis aulopyrus ou panis sccundarins) fa-
bricavam-no de farinha grossa da qual não se-
paravam o farelo. Augusto preferia-o a qualquer
outro, e os Romanos conheciam perfeilauientc
as suas propriedades laxantes, restituídas cm
honra dos nossos dias. O lictor, llabinnas, no
banquete de Trimalcião, descrevc-as em lermos
que mostram que o latim neni .sempre aífronta
impunemente a honestidade. É provável que o
puntíi rjruditiSj que se distribui.') publicamente
em nome dos imperadores nos dias de liberali-
dade, não passasse de pão di; rala. O pão (!ia
redondo e sobre o comprido. Na padaria {jiiilri-
num) descoberta em í'ompeu, aíliaram-.se nnii-
tos pães d'esta forma, lendo pouco mais ou me-
nos 0"',2'; de diâmetro, c cuja parte superior
arredondada apresentava um lavor grosseiro. Um
d'esles pães tinlia em relevo a marca siligo qraui
(farinha de liumcnlo), c os outros é ciccra Hari-
nha de chicharos). Esta precaução, tomada para
garantir a fidelidade da venda, valia, certa-
mente, a pena de ser renovada em nossos dias. O
arlopíicus era um pão cozido em uma pequena
forma. Os Romanos coziam o pão em um vaso
de barro esburacado {clibanus) ou em uma espé-
cie de forno de campo {arlopla). Faziam uso
lambem do pão sem levadura, já como alimento
de appetile [desplicius panis), já para a prepara-
ção dos biscoitos {artos dipuros) inteiramente
análogos á nossa bolacha de embarque e que os
soldados levavam nas suas longinquas expedi-
ções.
£ uma das necessidades da nossa inlelligencia
o procurar a origem de todas as cousas; certa*-
menle, não digeriremos melhor um bocado de
pão por sal)ermos donde elle vem e quaes as
successivas transformações porque passou o grão
na viagem da terra ao estômago; porém, dige-
ril-o-ha com mais dignidade a crealura que obe-
dece ás necessidades physicas, mas que as racio-
cina. Vamos entrar no dominio da chi mica, mas
de uma chimica que pôde ser inlclligivel sem
deixar de ser exacta.
Dá-se um pouco impropriamente o nome de
pão a lodo o alimento preparado pela cozedura
de uma farinha ou anles de uma fécula amas-
sada com agua; taes o pão de fiumenlo, de mi-
lho, de mandioca, de batata,, ele. Numerosas
lentativas, lendo por fim reduzir a pão a maior
parte das féculas, hão sido feitas c ainda conti-
nuam a fazcr-se; mas os seus productos, no
ponto de vista do aspecto e sobretudo das qua-
lidades hygienicas, não merecem o nome de pão.
Este nome deve estar reservado só para o reíul-
tado da cozedura das massas de cereaes que
passam por um principio de fermentação. O ver-
dadeiro pão é csle; os outros todos são imper-
feitos.
[Conlinua.]
O CONDE ALLAMISTAKEO
O symposiuin da noite precedenle bavia-me de-
veras fatigado os nervos. Sentia uma horrível en-
xaqueca e Morphôo perseguia-me Ião fuiiosa e te-
nazmente, (|ue me obrigava, bem contra minha von-
tade, a cortejar amiúde minha mulher, que, depois
de ler fallado as eslopinhas, viera assenlar-se de-
IVonlc de mim com as contas na mão, dormindo
e resando ao mesmo lempo. Em vez, pois, de
sair de casa como tencionava, occorreu-me que o
mais prudente era ceiar e, logo cm seguida, mel-
ter-nie na cama.
Naluralmenle uma ceia lem. Eu adoro as lorra-
(linhas com manteiga. Ora, comer mais de uma
em certas occasiões, não será muito i-asoavel. Com-
ludo, não jjóde haver objecção material no nume-
ro dois. E, na realidade, entre dois e Ires existe
apenas a insignilicanlissima dillerença de unia
unidade. Av(ínlurei-mc lalvez a comer (juatro. Mi-
nha nuilher leiíiiou (jue foram cinco; mas, eviden-
Icmenle, coiiliindio duas cousas bem dislinctas. O
numero abstracto cinco, estou disposto a admil-
lil-o; mas no ponlo de vista, concreto refere-se ás
garraíinhas do iniro CoJlnres, sem o adubo do
(jual as lorradiníias ])odeni causar gravíssimos in-
commodos.
o PANORAMA
219
Escusado é dizer que a minha cara metade, du-
ranle a ceia, não esteve caliada um minuto. — Vês,
1110 dizia cila, assim é que procede todo o liomem
que, como tu, tem a felicidade de possuir uma
mulher das mais nobres e distinclas qualidades.
Deixa-le de noitadas, meu íilho, e de acompanha-
res com esses que se dizem teus amigos. Os ami-
gos nunca deram liom pago. Hão de ser a tua
desgraça! Tu conhecerás o erro. Eu, aqui, feila
uma escrava, e o senhor sempre, sempre em' di-
vertimentos ! Mas eslá muito enganado comigo.
Julga uma cousa e ha-de-lhe sair oulra. — E foi
seguindo uma escala progressiva até chegar á mais
solemne descompostura que tenho levado em dias
de minha vida. Foi este o resultado do meu bom
procedimento.
Eu, já se vè, não proferi uma palavra. Con-
cluído o banquete, entrei logo no meu quarto,
puz o barrete da noile com a lirme esperança de
gozar d'elle até ás onze horas, polo menos, do dia
seguinte, deitei a cabeça sobre o travesseiro, e,
graças a uma exccUentc consciência, caí prestes
em profundo somno.
Mas quando se realisaram completamente as es-
peranças do homem? Não linha talvez concluído
0 terceiro ronco (o leitor não imagina o barulho
que eu faço dormindo) quando uma furiosa cam-
painhada relinio na poria da rua e logo impacien-
tes argoladas, que me acordaram sobresallado.
1 tu minuto depois, e como eu ainda esfregava os
olhos, minha mulher, a minha santa mulher, di-
rigindo-me, como sempre, as palavrinhas mais
doces que ó possível imaginar, verdadeiras las-
quinhas de ouro, pespegou-me mesmo em cima
do nariz um bilhete do meu amigo doutor
Alexandre, que dizia assim :
(( Logo que receba este bilhete, meu amigo, dei-
(( xe tudo e corra a esla sua casa. Venha partici-
c( par do nosso jubilo. Finalmente, graças a uma
(( pertinaz diplomacia, obtive o assentimenlo do
<r director do museu para o exame da minha mumia ;
ff sabe de qual se trata. I)eu-se-me licença para
" desenfaixal-a e mesmo para abril-a, se o julgar
(Uiecessario. Só alguns amigos estarão presentes:
(( supérfluo c dizer que o lenho n'essa conla. A
«- mumia está em minha casa, e o exame deverá
«começar pelas onze horas. — Seu amigo — Alc-
jandrc,~»
Antes de chegar á assignalura, conheci que es-
lava perfeitamenle acordado. Saltei da cama n'uni
estado de delirio, remexendo tudo quanto linha
no quarlo, vesti-mc com uma ligeireza verdadei-
ramente milagrosa c dirigi-me a toda pressa para
casa do doutor.
A sociedade que fui ali encontrar reunida não
podia ser mais animada nem mais dislincta. Esta-
va tudo impaciente pela minha chegada. A mumia
achava-se sobre a meza da casa de jantar; e logo-
que enlrei, começou o exame.
Esla mumia era uma das que linha trazido,
havia alguns annos, o capitão Arlhur, primo de
Alexandre. Achou-as em uma sepultura perlo de
Elelhias, nas montanhas daLibya, a uma distancia
considerável de Thebas. N'aquellas paragens, os
carneiros, ainda que não Ião magnilicos cemo os se-'
pulchros de Thebas, são comtudo de mais alto
interesse , porque oirerecem um numero infinito
de iUustraçõcs da vida privada dos Egypcios.
A sala d'onde havia sido tirado o nosso specimen
passava por ser uma das mais ricas em documen-
tos d'esla natureza ; as paredes eram completa-
mente cobertas de pinturas a fresco, e de baixos-
relevos; estatuas, vasos e um mosaico de riquís-
simo desenho altestavam os grandes teres dos de-
funtos.
Esla raridade havia sido depositada no museu
exactamente no mesmo estado em que o capitão
Arthur a achara, islo lS o alaúde íicára intacto;
e durante oito annos, assim esteve exposla á cu-
riosidade publica, somente o que diz respeito ao
exterior. Tínhamos, pois, a mumia completa á
nossa disposição, e os que sabem quão raro é
chegarem antiguidades a nossas regiões em bom
eslado, poderão julgar das razões forles que tí-
nhamos para nos felicitarmos da nossa boa for-
tuna.
Approximando-me da meza, vi uma grande
caixa de sele pés, pouco mais ou menos, de com-
primenlo. Ires de largura e dois e meio, talvez,
de altura. Eia oblonga, mas não em forma de es-
quife. A principio suppozemos que era de madeira
de sycomoro ; mas, dando-se-lhe um golpe, reco-
nhecemos que era de cartão, ou para melhor di-
zer, de uma espécie de massa muito dura feila de
papyrus. Era ornada grosseiramente de pinturas
representando scenas fúnebres o diversos as-
sumptos tristes por entre os quaes serpeava uma
linha de caracteres hieroglyphicos, dispostos em
todos os sentidos, que, sem duvida, significavam,
o nome do defunto. Felizmente, o padre Gilber-
to fazia parle da companhia, e traduzio-nos sem
custo os signaes, que eram simplesmente phone-
licos, e formavam a palavra AUainistakeo.
Deu-nos algum trabalho o abrir a caixa sem
causar-lhc prejuízo ; mas, logoque o conseguimos,
encontrámos uma segunda em forma de féretro,
cujas dimensões eram muito inferiores ás da pri-
meira, mas, em tudo o mais, semelhante. O inler-
vallo entre as duas caixas estava cheio de resina,
que, até cerlo ponto, tinha deteriorado as cores
da interior.
Depois de abrirmos esta, o que fizemos facil-
mente, achámos uma terceira, egualmenle em for-
ma de caixão, e não dilTerindo em cousa alguma
da segunda, senão na matéria, que era cedro, e
exhalava o cheiro fortemente aromático que cara-
clerisa esta madeira. Entre a segunda e a tercei-
ra caixa não havia inlervallo ; esta adaplava-se
exactamente áquella.
Abrindo a terceira caixa, descobrimos, em lim,
o corpo e levanlamol-o. Esperávamos achal-o, co-
mo de costume, rodeado de muitas fitas, ou liras
de linho ; mas, não succedeu assim : eslava raet-
lido em uma espécie de bainha, feita áo papijru.s,
e revestida de uma camada de gesso toscamente
pintada e dourada. As pinturas represenlavam va-
220
O PANORAMA
rios assumptos com relação aos diversos deveres
suppostos da alma e á sua apresentação a dilTeren-
les divindades; depois um grande numero de figu-
ras humanas, — provavelmente relralos de pessoas
embalsamadas. Í)a cabeça ate aos pés eslendia-se
uma inscripção columnaria ou vertical, em hiéro-
gliplios i)honelicos, dando novamente o nome e
os lilulos do defunto e os nomes e os títulos de
seus pacs.
À roda do pescoço, que nós facilmente tirámos
do seu 'envoltório, tinha um collar de contas
de vidro cylindricas, de dilVerenles cores, e dis-
postas de liiodo que figuravam imagens de divin-
dades, a imagem do Scarabéo, e outras cora o
globo alado. >'a cintura via-se um collar seme-
lhante.
Levantando um pouco o papyrus, encontrámos
as carnes perfeitamente conservadas e sem cheiro
algum sensivel. A cor era avermelhada; a pelle dura,
lisa e Insidia. Os dentes e os cabellos mostravam-se
em bom estado. Os olhos, aa que parecia, haviam
sido tirados e substituídos por outros de vidro,
magníficos e simulando admiravelmente os natu-
raes; salvo a sua fixidade um pouco pronunciada.
Os dedos e as unhas estavam dourados brilhante-
mente.
Da côr avermelhada da pelle, o padre Gilberto
inferio que o cmbalsamento havia sido praticado
unicamente pelo asphalto; mas, raspando-se-lhe a
supLTlicie com um instrumento de aço e lançando
no fogo os grãos de pó obtidos d'este modo, sen-
timos desenvolver-se um perfume de camphora e
outras go'mmas aromáticas.
Examinámos cuidadosamente o corpo, para
acharmos as costumadas incisões por onde se ex-
Irahem as entranhas ; mas, grande surpreza! não
podemos descobrir o menor signal. Nenhum dos
da sociedade sabia ainda que não é raro encontrar
múmias intactas, sem incisões. Ordinariamente
os miolos liravam-se pelo nariz, os intestinos, por
uma pequeníssima incisão no fianco, e o corpo
era em seguida rapado e salgado ; deixavam-n'o
ii'este estado algumas semanas e depois, por assim
dizer, é que começava a operação do cmbalsa-
mento.
Como se não podia encontrar signal algum de
abertura o doutor Gilberto jjroparava os seus ins-
trumentos de dissecção, quando lhe fiz ver que
eram já mais de duas horas. A vista •d'islo, con-
cordámos todos em deixarmos o exame interno
para a seguinte noite; c estávamos já para nos
separarmos quando alguém suggerio uma ou duas
cxjjericncias com a |)ilha de Daniel.
A applicação da electricidade a uma múmia que
tinha pelo menos os .^eus três ou quatro mil ân-
uos era uma idéa, senão muito sensata, sufiicien-
lementc original, e por tanto a!)raçamol-a sem
luais reílexões. Para este magnifico projecto, no
qual entrava uma pailc de serio (; nove boas par-
tes de brincadeira, dispozemos uma bateria no
gabinete do doutor c transportámos paia ali o
Egypcio.
Não foi sem grande custo que conseguimos des-
cobrir uma parte do musculo temporal, que pa-
recia de uma rigidez menos marmórea que o resto
do corpo, mas que naturalmente, como bem es-
perávamos, nenhum indicio de susceptibilidade
galvânica apresentou quando o pozemos em con-
tacto com a corrente. Este primeiro ensaio pare-
ceu-nos decisivo ; e desatando todos a rir do dis-
parate, já reciprocamente nos desejávamos uma
feliz noite, quando os meus olhos enconlrando-se
por acaso com os da múmia ficaram presos com
espanto. De facto, o primeiro olhar foi sunicienle
para assegurar-me de que os globos, que nós to-
dos tínhamos julgado serem de vidro, e que a prin-
cipio se distinguiam por uma certa fixidade sin-
gular, estavam agora tão naturalmente cobertos
pelas pálpebras que só uma pequena porção da
conjunctura era visivel.
Dei um grilo, e atlrahi a altenção sobre este
fado, que- immediatamente se tornou manifesto
para todos.
Não diiei que estava ntcmorisaão pelo pheno-
meno, porque a palavra atemorisado, no meu
caso, não seria precisamente a paluvra própria, e
até estou persuadido que, sem a minha provisão
do Collares, o facto não me teria causado a mais
leve admiração. Mas, os outros personagens da
sociedade! esses c que não poderam occullar o seu
terror. O doutor Alexandre fazia dó vel-o. O pa-
dre Gilberto, não sei porque processo particular,
tinha-se tornado invisível, e o barão de Sousa não
pôde negar que fez de quadrúpede debaixo da
meza. O caso, na verdade, não era para menos.
(Continua.)
O CHACAL E A RAPOSA
OLeãoachando-se doente, lodos os animaes cor-
reram a visital-o, excepto a Raposa. O Chacal, que
desejava compromettel-a, approxímou-se do rei das
feras, c disse-lhe:
— Senhor, todos os vossos súbditos vieram ver-
vos; só a raposa faltou a este dever. Um tal es-
quecimento é uma oflensa a Vossa Mageslade.
Diformado d'este caso, a astuta Raposa dirigio-
sc immediatamente á morada do Leão.
— O que te prendeu? lhe perguntou este.
— Senhor, respondeu aquella, sabendo da vossa
doença, tratei logo de procurar um remédio para
curar-vos; corri i)or montes e por valles, até que,
felizmente, o descobri.
— Qual c, pois, esse remédio? lornou o Leão.
— Lm especifico que existe na pata do chacal.
O Leão, logo que isto ouvio, lançou-se ao (Uia-
cal e |)artio-llie a perna; escusado c dizer que tal
especifico não encontrou.
Quando o traidor saio, a Raposa foi-lhc na pista
e dirigio-lhe as seguintes palavras:
— Olá! meu nobre cavalheiro, de hoje em dianlc
(juando vos adiardes na presença do rei, aconselho-
-vos a que ponhais um freio na língua. A boa fé
deve presidir a estas asscmbléas. (1)
^1) Compíire-sc cora a fuhula de Lafoiítítino, jiv. vm, fabula Hl
o PANORAMA
221
WESTMINSTER-HALL
Defronte da sumptuosa abbadia de Westmins-
ter erguc-sc um edifício, que se denomina Wesl-
minslcr-HaU, ou sala de Westminster, nome que
lhe vem de uma sala magnifica, mandada cons-
truir por Guilherme 11, fiUio de Guilherme o Con-
quistador. Esta sala é a maior da Europa, de-
pois da do palácio de justiça de Pádua, e da do
theatro dOxford. Tem trinta metros de altura,
noventa c dois de comprimento, sessenta e trcs
metros e trinta e três centímetros de largura. O
tecto abobadado, feito de nogueira artistica-
mente lavrada, esteia- se em magníficos pilares.
\Vestminster-Hall.
Foi construída para n"ella se celebrarem festas
da corte, e na coroação de Ricardo II deu-se ai li
um jantar a dez mil convidados. Ha multo tempo
que serve para os grandes processos políticos, e
para os julgamentos da camará dos pares. Mas
acima de tudo tem esta sala uma triste celebri-
dade. Ali se pronunciou a sentença do Infeliz
Carlos I.
No vasto edifício, onde este magnifico salão
existe, reunlam-sc também as duas camarás do
parlamento e os tribunaes superiores de Lon-
dres. Mas no dia IO de outubro de 1834 um ter-
rível Incêndio destrulo a parte de Weslminster-
Hall que servia para as sessões da camará dos
communs, e em consequência d*lsso tratou-se
de se erigir um novo edifício, destinado espe-
cialmente ao parlamento. Este novo e sumptuoso
palácio, cuja construcção foi dirigida pelo archl-
tecto Carlos Barry, principiou a ser edlíicado
em 1840 e já no dia lo de abril de 1847 ali se
reunia pela primeira vez a camará dos pares.
O actual edifício do parlamento denomina-se
Westminster- Palace. Westminster- Hall pertence
agora exclusivamente aos tribunaes superiores.
Omnia vincit amor.
O amor nada acha invencivel.
Virgílio.
O POLYPIIEMO DOS RUSSOS
O leitor, sem duvida, conhece, pelo episodio
que o grande Homero introduzio no nono canto
da Odijssea, o Polypbemo dos Gregos, esse gigan-
te com um só oltio no meio da testa, que vivia em
um antro e devorava os desgraçados que lhe caiam
nas mãos. Lembra-se, como o astuto Ulysses con-
seguio enganal-o, piival-o da visla e escapar-se-lhe,
emlfm, com mui los dos seus companheiros. Pois,
nem só a antiga Grécia conheceu este mytho. «Foi
igualmenlc popular, diz o erudito Grimm, entre
os Persas e os Tártaros ; c ainda hoje ouvireis
d'eilc fallar em regiões mui distantes umas das
outras: entre os povos da Transylvania, na Es-
thonia, entre os Finlandezes, nas montanhas da
Noruega e mesmo em Allemauha. Mais do que
outro qualquer parece poder ser proposto como
um exemplo da maneira como se espalham e se
conservam as tradições poéticas. No momento em
que pela primeira vez nos apparece, esconde-nos
logo a sua origem c faz-nos presumir que teve uma
existência anterior. Moslra-se em paizes afastados
uns dos outros, conserva-se atravez dos séculos, e
desappareco para renascer forte e vivaz. Longe de
prender-se ao solo em que nasceu, percorre diíTc-
rentes regiões, mudando por toda parte de forma
9^)9
O PANORAMA
e de côr, desenvolvendo-se ou compriniindo-se,
mas deixando sempre adivinhar a sua grandeza
primiliva no meio d'eslasincessanlesmelamorpbo-
ses »
É na memoria, d'onde cslas linhas foram extraí-
das, lida na Academia do Rorlim em 18o7,' que
c preciso seguir as curiosas li-ansformações que o
mylho soíTreu, passando de idade em idade e de
]iovo em povo. Comludo, n'esle estudo o celebre
(irimm não esgotou todas as fontes ; conlenlou-se
com reproduzir, para comparal-as, um cerlo nu-
mero de narralivas que oíTereciani traços mui
dislinctos e caracterislicos. Eis aqui, pois, uma de
que elle não fez menção, e que foi publicada de-
pois de sua morte na colíecção allemã daslnlaná.
Esta narração barbara, que contrasta com a fabula
ornada jjoIo espirito brilhante e engcnhozo da
Giecia, approxima-se por diversos rasgos das lendas
conservadas em alguns paizes, especialmente na
Servia e na Eslhonia ; mas encerra outros que lhe
são próprios e que se não encontram em outra
parle.
.% pnpn-g;eii(e. o ferreiro e o nlfaiafe
co>'TO nusso
Era uma vez um ferreiro, que disse comsigo :
— .Nunca ale hoje experimentei o mais leve des-
gosto. Conla-se, não obslante, que o mal existe :
quero lambem conhecel-o.
E logo se poz a caminho, com o seu martello,
à j>i"Ocura de aventuras. Encontrou um alfaiate.
— Deos le abençoe, lhe disse
— Aonde vais? respondeu o alfaiate.
— Dizem, amigo, que ha mal no mundo; eu
não o conheço, e portanto vou cm busca d'ellc.
— Enião, viajemos juntos, tornou o alfaiate;
tenho sido sempre feliz, e procuro lambem a des-
graça.
E partiram ambos. Depois de algumas horas de
caminho, acharam-se em um bosque espesso e
sombrio ; seguiram por um pequeno atalho e che-
garam a uma casa de bella appaicncia; como fosse
já noite fechada resolveiam parar.
En(rai'am : não iiavia ninguém. Assenta ram-se.
J)'ahi a pouco viram appareccr uma mulhct de
grandíssima estatura, magra, c que só linha ura
olho.
— Vejo que lenho hospedes, disse ella ; sèdc
bem vindos.
— Hoa noite, mãesinlia ; vimos pcdir-le agasa-
lho.
— Muito bem; terei ao menos de que ceiar.
Os dous avenlureiros não licaram com este dito
muito senlioics de si.
A velha foi buscar um grande braçado de lenha
e lançou-lhe o fogo para aquecer o forno ; depois,
examinando um e outro dos seus hospedes, agar-
rou o pobre alfaiale, degolou-o, assou-o, e co-
meu-o.
O ferreiro, logo que vio o seu companheiro
devorado pela velha, disse :
1 foi iniduzida na hcvhin Gf-rmimicit cie 31 de Março de l8G(i
— Mãesinha, eu sou ferreiro.
— Que sabes tu fazer?
— Sei fazer tudo.
— IS'esse caso, quero que me forjes um olho.
— De muito boa vonlade ; mas, tens uma corda?
Porque é necessário que eu te ligue, aliás nunca
poderia satisfazer o teu desejo.
A velha foi buscar duas cordas, uma delgada e
outra muito grossa.
O ferreiro ligou-a primeiramente com a mais
fraca.
— Vejamos mãesinha, faze ura movimento com
o corpo.
A velha mexeu-see a corda partio.
Tomou então a corda mais grossa e atou a ve-
lha fortemente.
— Move-te agora, mãesinha.
A velha agilou-se, mas a corda resistio. Logo, o
ferreiro pegou em uma barra de ferro, pol-a ao
fogo, e, em seguida, api)licando-a em braza sobre
o único olho da sua viclima en[errou-lh'a coiu to-
das as suas forças, auxiliado pelo martello ; mas,
a velha atormentada pela grande dôr, sacudio os
membros de modo tal, que partio a corda e correndo
immediatamenle a collocai--se diante da porta, ex-
clamou :
— Espera, espera, malvado, não me has de cs-
caj)ar.
O ferreiro vio outra vez os seus negócios muito
malparados. Pensava no que faria, quando os
carneiros vol (avara do campo. A velha, conforme
o costume, deu-lhes entrada em casa para passa-
rem a noite. Na manhã do dia seguinte, quando
estavam para sair, o ferreiro lançou mão da sua
pelliça, feito de peites de carneiro, e cobric-secom
ella, tendo o cuidado de voltar o pello para fora ;
depois, andando com os pés e as mãos, seguio os
carneiros. A velha fazia-os passar a um e um,
agarrando-os pelo lombo e atirando-os j)ara fora
da porta. O ferreiro, felizmente, lambeiu saio, e
logo que se vio fora de casa, poz-se de pé e ex-
clamou :
— Adeos, velha excommungada ; bastante nic
fizesle soffrer ; mas agora não tens mais poder so-
bre mim.
-—Espera, espera, disse a velha; ainda não se
te acabaram os trabalhos.
O ferreiro seguio o atalho que o linha condu-
zido à casa da gigante. Avistou uma arvore onde
estavar enterrada uma machadinha, cujo cabo era
de oiro ; (|uiz apoderar-se (Pella ; mas a mão li-
cou-lhe presa e não poude dar nem mais um pas-
so. A velha corria airaz d'el!e.
— Vês, patife, lhe disse ella, não me escapas-
te.
O ferreiro, não vendo boas nem más lirou o mar-
tello da algibeira c partio cora cUe o braço ; foi
por este preço que o infeliz conseguio liberlar-se.
E quando chegou á sua lerra, poude então di-
zer :
— Agora conheço o mal. Vedes o meu braço
mulilaílo? Apenas perdi a mão, mas o meu cama-
lada perdeu a vida.
o PANORAMA
223
CimONICA GEOGRAPHICA
Duchaillu no rio Fernando Vaz — O paiz Ashira e o rogulo Olin-
da— Os territórios de Bekelai, Komba e Avia — E\plica-se
a verdadeira causa porque Duchaillu não atravessou a região
dos Apingi — As hexigas attribuidas a Duchaillu — O que é
o aliDubi — Os Apono — Negros anões — Mulheres de 4 pés
d'altura — O paiz accidentado dos Ashango — Incidente fu-
nesto— -Aggrava-se a situação — Lucta — Duchaillu é ferido
— Observações de Owen, Edwin, Head, Harris e Crawfurd
relativamente á viagem de Duchaillu.
Uma das viagens que iillimamenle prenderam
mais as altenções de lodos os que se interessam
pelos progressos da civilisação foi, por cerlo, a de
i)uchaiilu pelas regiões marginaes do rio Fernando
^az na costa occidontal da Africa.
Aquelleviajanteíoi recebido com inequívocas de-
monstrações de sympathia pelos indígenas : des-
graçadamente, porém, perdeu a embarcação que
encerrava a maior parte dos instrumentos d'ob-
servação. Em quanto esperava a remessa d'outro3
empregou o tempo a colligir specimens da fauna
e flora do paiz.
Vencidas muitas dííllculdades para a organisa-
ção da partida, chegou â aldeia do regulo Olinda,
situada no paiz d'Asbira : pelo caminho que levou
o explorador, aquella aldeia demora a 110 milhas
(177 kilom.) da embocadura do rio Fernando Vaz.
Olinda acolheu perfeitamente Duchaillu, o qual,
em breve comprehendeu que tão magnillca recep-
ção era interesseira, e tinha apenas em mira os pre-
sentes que o regulo esperava obter do viajante.
Deixando o paiz d'Ashira, atravessou os terri-
tórios dos Bekelai, dos Komba e dos Avia para
vêr as cataraclas de Samba-Nagosbi, ás quaes elle
não havia podido chegar na sua primeira viagem.
Tendo alcançado e descido durante algumas ho-
ras o rio Ovigui, o viajante e a sua comitiva de-
sembocaram no grande Rembo que ia mui cauda-
loso pelas chuvas.
Finalmente entrou na aldeia de Suba, que per-
tence á tribu dos Avia. As regiões que atravessou
tem muitas aldeias abandonadas, que lhes dão um
aspecto monótono e melancholico.
Regressando Duchaillu para junto d'01inda pro-
poz-lhe internar-sc no paiz dos Apingi; Olinda,
porém, observou-lhe que aquella viagem não era
possível, por isso que, breves dias apoz a sua pri-
meira visita aos Apingi, Rcmandji, o chefe da tri-
bu, havendo morrido, o povo attribuio a sua morte ao
estrangeiro que o linlla assassinado para viajar
com o seu espirito. Em presença d'este facto, re-
solveu, pois, Duchaillu passar pelo território dos
Olanda, ura pouco ao sul dos Apingi.
- Em quanto Duchaillu fazia os preparativos de
viagem uma aterradora epidemia de bexigas se
manifestou; augmentaram, conseguintemente, os
perigos e as dilllculdades da sua situação. Olinda
succumbio ao ílagello, e o viajante foi âccusado de
o haver feito moi'rer i)or artes magicas.
Conseguio finalmente deixar o paiz dos Ashira
pelo dos Olanda. Ainda ali as bexigas grassavam
por toda a tribu ; apenas o chefe d'ella não linha
sido ainda acommcllido : recusava, porém, receber
Duchaillu, porque aífirmava elle, o homem branco
para toda a parte por onde caminha leva comsigo a
morle o mala o chefe, e d'isso eram testemunhas
Remandji e Olinda. A fatalidade quiz que, 4 dias
depois da sua chegada a Mayolo, o regulo Olanda
caísse doente, e que a vida d'ellc fosse ameaçada
com a morte.
Emlim reslabeleceu-se e o explorador preparou-
se para continuar a viagem.
Mayolo não era máU; porém sim muito interes-
seiro.
Duchaillu em pouco tempo descobrio que Mayolo
se propunha exercer sobre elle um estratagema
aconselhado pela superstição, que se denomina o
a/timhi. Eis aqui em que consiste : quando morre um
regulo, corta-se-lhe a cabeça e colloca-se em um
vaso no meio d'uma massa d'argila ; todas as parles
molies e as liquidas são absorvidas e o craneo é
conservado na casa d'alumbi ; o chefe, por essa
occasião penetra ali e raspa uma certa quantidade
de pós dos ossos, que se misturam com o alimento,
e que se dá ao hospede sobre o qual se pretende
operar o encantamento.
As suspeitas de Duchaillu nasceram da pontua-
lidade com que lhe era remeltida uma comida já
perfeitamente preparada. Com o tempo havendo
sido avisado da existência d'este costume, recusou
tocar nas comidas que lhe mandavam.
Depois de ter deixado a aldeia de Mayolo situada
a áO milhas (64 kilom.) E. S. E. da aldeia d'Olin-
da, capital dos Ashira, marchou quasi directamente
para o lado de leste atravessando o paiz dos Apono,
onde os indigenas lhe suscitaram mil embaraços
temendo a invasão das bexigas. Uma vez lançaram
fogo ás florestas para impedir a marcha d'elle.
Os Aponos tem o singular costume d'arrancarem
dois dentes incisivos superiores. São muito guer-
reiros, porém excessivamente dados á embriaguez.
Internando-se mais para leste, foi entre elles que
Duchaillu achou a ultima noção dos objectos ou
armas de fogo dos europeus.
Desde ali entra-se nos dominios das tribus pri-
mitivas.
Aos Apono succedem os Ishogo, população be-
nevolente, que prima na fabricação dos fatos com
a epiderme das folhas de palmeira.
Foi ali que encontrou uma tribu errante de ne-
gros de pequena estatura. Nunca trabalham, levam
uma vida vagabunda, residem pouco tempo no
mesmo lugar, e parecem constituir o typo inferior
dos seres humanos. Apanham a caça em armadi-
lhas e laços e Irocam-na por outros objectos nas
tribus cm que residem.
A pelle d'elles apresenta uma leve coloração es-
cura ; ainda que sejam de pequena estatura são
bem conformados, geralmente cabelludos em grande
parte do corpo. Os cabellos são mais curtos que
os dos negros d'esta região.
As mulheres, das quaes elle médio algumas, teem
de 4 pés a 4 pés e o pollegadas d'altura,
Aparlando-sc dos Apono entrou no território
dos Ashango. A medida que caminhava achava o
paiz mais montanhoso e cortado d'accidentes que
demoram consideravelmente a marcha. A estrada
224
O PANORAMA
era uma vereda eslreitissima, alravez da espessura
da floresía : a escolla do viajante era obriííada a
marchar a um de fundo, transpondo as collinas e
os valles, os rochedos, e as arvores derrubadas,
que obstruíam o caminho.
i\a aldeia de Mongon pertencente aos Ashango
a 2Go milhas (42G kilom.), peia estrada, da foz
do Fernando Vaz, o barómetro aneróide deu uma
altitude de 2472 pés (733 metros). Para a frente
appareciam, inlervalladamente , os cumes d'uma
cadeia de montanhas mais elevadas ; não ha, porem-
planuras elevadas ; tudo são subidas e descidas. O
ceo n"aquella altitude, era geralmente encoberto
por nuvens, e um ténue vapor pardacento velava
os topos das collinas revestidas de frondosos arvo-
redos.
Para faltar com propriedade, diz o viajante, não
ha estação secca n'aquella região accidentada, on-
de chove mais ou menos durante lodo o anno. As
111 aiores chuvas que Duchaillu observou foram de
G 7, poUegadas (0'",1G5) em 2i horas.
Os Ashango mostraram-se mais hospitaleiros,
posto que sejam um povo bellicoso. As suas al-
deias, assaz consideráveis — ha algumas de 300 ca-
banas— são afastadas uma das outras; communi-
cam-se por caminhos abertos nas florestas.
A viagem parecia dever continuar com egual
felicidade ; porem Duchaillu foi demorado muitos
dias na aldeia de Monaou-Korabo a 4í0 milhas do
rio Fernando Vaz pelo chefe da Iribu, o qual lhe
disse que uma povoação collocada á beira da es-
trada estava resolvida, a oppôr-se á passagem d'elle.
Decorrido pouco tempo, chegavam á aldeia 4 en-
viados d'aquella povoação, e o chefe Monaou-Kom-
bo deu de conselho aos homens da comitiva do
viajante que atemorisassem aquelles emissários
atirando tiros. «A espingarda d'um homem dos
meus, — diz Duchaillu — tinha accidentalmente, fe-
rido mortalmente um indígena, que morreu sem
estrcbuxar.» Os natui-aes fugiram em todos senti-
dos, e, julgando a posição grave, Duchaillu procu-
rou reconduzil-os e apazigual-os oílerecendo-lheso
preço de vinte homens. Estas negociações teriam
provavelmente proseguido se a balia, que havia
feito uma jjrimeira victima, não houvesse |)ioduzido
uma segunda, peneirando atravez das paredes d'uma
cabana : a segunda victima era a irmã do indígena
que mais propenso estava para a reconciliação.
O tambor de guerra retumbou j)or Ioda a parte;
os viajantes foram forçados a operar, atravez da
aldeia, uma retirada, em a qual fui abandonada a
parttí mais piedosa das bagagens ; em torno d'el-
íes cho\ia uma saraivada de flechas; Duchaillu e
um dos d'elle foram feridos; tendo chegado os
homens da escolta aos caminhos das florestas, ati-
raram fora tudo que levavam, |)ara fugirem mais
rapidamente; Duchaillu, rjue guardava a recla-
guarda com o homem que linha causado aíiuelle
accidenle, soífreu o dolojoso desgosto de ver os
seus instrumentos, colleccOes, pholographias, ca-
dernos de nolas juncarem o terreno e perdidos
irremediavelmente. Ao reliiar recebeu uma nova
ferida, feita com uma flecha envenenada a (jual,
felizmente, resvalou pelo cinturão do revolver. Apoz
estes successos e varias oulras peripécias, a expe-
dicção chegava no lim de setembro do anno pas-
sado ao rio Fernando Vaz.
Ahi íica pois a noticia resumidissima da ultima
exploração do intrépido viajante. É um extracto
do que ha poucos mezes a Sociedade de geogra-
phia de Londres escutou attentamentc. Em segui-
da á leitura da descripção da viagem houve as se-
guintes observações por parte de homens muito
notáveis. Por isso aqui as registramos.
O professor Owen, em particular, recordou que
o Dritish Museum devia a esta segunda viagem
de Duchaillu interessantes specimens de pelles de
gorillas, um lagarlo de escamas, animal de sangue
(juente do género Munis, que se alimenta com as
térmites, tão numerosas n'aquella parle da Africa,
um ninho de chimpanzé, ele, ele. — O presidente
observa que Duchaillu tinha trazido d'esta ultima
viagem uma harpa dos naturaes do paiz ; as cordas
são feitas de libras herbosas, e todavia podem pro-
duzir sons musicaes. — M. Edwin Dunkin dá in-
teressantes detalhes acerca das observações astro-
nómicas do viajante ; são estas muito numerosas
e a posição de Mayolo, particularmente, foi deter-
minada em longitude por 30 observações de dis-,
tancias lunares. — Winwood llead, que em 1862,
percorria os paizes dos Fans allirma que estes po-
vos são. canibaes, assim como Duchaillu osuslenla.
— Ilarris confirma o dizer de Duchaillu, quanto á
harpa indígena, que lambem é usada na Serra-
Leôa. Um costume análogo ao do alumbi se en-
contra no districto de Sherboro; ali, não se con-
servam os restos dos antepassados na casa ; porém
fazem-lhes sacrifícios quando parlem para viagem
ou emprehendem negocio importante, Ilarris en-
controu uma Iribu canibal, os lUishy, que levam
em cestos a carne dos seus prisioneiros e susten-
tam-se d'ella durante muitos dias. — Cra^vfurd não
admille que os anões de quem faltou Duchaillu
formem uma tiibu separada; não seriam, porven-
tura, individues pertencendo á mesma raça que os
indígenas da visinhança, e expulsos por causa da
sua pequena estatura? — Duchaillu observa que
os indígenas da Africa equatorial occidental lêem
cabello comprido, ao passo que estes anões lêem
cabello curto no alto da cabeça. Assimilham-se aos
Bushmen da Africa austral.
Alfredo May
Silencio! deixa
Ao coração do triste o seu segredo
Espreitar indifl"renle os pensamentos
Oue os lábios do infeliz feixam no peito,
Curiosidade é van, mal generosa
E de animo insensível: não exijas,
Se o podes consolar, preço Iam duro
Por teus confortos. Pouco vale a dextra
Oue não inxuga as lagrimas do allliclo,
Sem lhe rasgar i)rimeiro os seios d'alma
Para lhe es(|uadrinhar do peilo a causa.
(lAIlRETT.
Typ. l""raiico-rorlgucza, Uua Uo Theaouro Velho, G.
29
o PANORAMA
225
MONUiMENTOS NACI0NAE3 ANTIGOS
I
Igreja de Sauta Maria dMgtias iSantas;
IloJG em mosteiros, em igrejas,
em calhedracs teriamos inestimáveis
monumentos, so n'csta terra tivesse
havido um vislumbre de gosto puro.
Sr. Alexandre Herculano, no vo!
2." do Panorama; pag. 208.
Verdadeira, e algum lanio a propósito vem a epigra-
phe. Em Portugal, c principalmente nas provindas do nor-
te, em geral, são os nossos templos anteriores ou pouco
posteriores à fundação da monarchia. Mas, a não o di-
zer a historia, quern seria capaz de o reconhecer pela sua
actual architeclura? Quem não lamentará a maneira pou-
co delicada com que desagradecidos temos adulterado as
obras de nossos maiores? Mas passemos ao assumpto,
porque nossas queixas nada podem já remediar, e vamos
dizer algumas palavras a res-
peito da antiquíssima igreja
de Santa Maria d'Aguas San-
tas, da igreja digo, porque
(lo mosteiro nem ruínas jà
existem.
A mui pouca distancia da
cidade do Porto encontram-
se três igrejas nota\ eis prin-
cipalmente pela sua anti-
guidade — Leça do Balio,
Santa Maria "d'Aguas San-
tas, e S. Veríssimo de Pa-
rnnhos. Esta ultima, tirada
sua muita antiguidade, nada
tem que na actualidade a
torne notável, senão o ser
nuiito frequentada por oc-
casião de suas procissões.
(1) Leça do Balio é monu-
mento sumptuoso, e de re-
cordações históricas. (2) A
igreja d'Aguas Santas, no
Concelho da Maia, não tendo
sumptuosidades de edifício,
é com tudo mais rica em
recordações históricas, que
a de Paranhos, e d'ellas va-
mos fazer resumida menção,
em harmonia com os lim"ites
concedidos pelo Panorama.
Sahindo do Largo da Af/ua
Ardcnle, na cidade do Por-
to, meltendo-nos em a ex-
tensa rua do Costa Cabral,
eiilramos no fimd'esta naEs-
liiida da Travagem. A meia
IcLMia aproximadamente do prmcipio d'esta estrada, de-
iVonlc da casa coidiecida vulgarmente pelo nome do Bra-
zileiro, (3) ha um comprido atalho, que nos leva á Igre-
ja (VÁfjuas Santas, nome que parece dcrivar-se d'uma
fonte próxima do templo, da qual lambem o Mosteiro be-
I bia. (4) A proximidade do templo é assignalada por al-
gumas cruzes de pedra, e pela capella de S. Miguel o
Anjo, a qual exteriormente mostra antiguidade. A pou-
cus passos d'aqui vamos entrar n'um pequeno largo, do
; qual enxergamos extensos campos, quintas, e as alvas
; paredes da igreja de S. Thiago de Milheiros.
(DA procissão de Passos em Paranhos 6 a mais concorrida das que
^' tazcin nos arrabaldes do Porto. Vá de passagem— as procissões uo
lo e seus arredores são em tudo muito superiores ás de Lisboa c
;s contornos.
i.) lia uma boa descripção d'o3la igreja feila pelo seu abbadc An-
i"iMo do Carmo Velho de liarhosa. O interior da torre d'cste templo,
fluiidesLí descobrem extensos horizontes. act)a-sen'umesiado tal, (|ue
; e um verdadeiro precipício para quem a subir. No largo d'esta igre-
ja ainda em janeiro so representam os autos do Nascimento, fazendo
recordara inCancia rio tlieatro. U mesmo se faz em S. Salvador de
Moreira, o em outras igrejas.
(3) Nas províncias do norle dá-se em geral o nome de Brci:ih'iro a
um linniem, que esteve no Brazil. embora seja Portuguez.
(i) Não averiguei, so esta fonte ainda existia, quando visitei a igre-
ja cm 18^3.
A frente da igreja de Santa Maria d'Aguas Santas, pelo
esguio da porta, antiga torre de sinos ao lado, e carco-
mido do seu granito, mostra veneranda ancianidade.
No lado do norte ha uma pequena porta, que leva á
Sachristia, e a poucos passos encontra-se a porta traves-
sa da igreja, e dois sarcophagos antigos.
Do lado do Sul ha também seis sarcophagos, ou antes
caixões de pedra, dos quaes os três primeiros e o quin-
to não têem inscripção alguma; do quarto apenas se po-
dem perceber palavras, que designam estar ali enterra-
do um certo Manoel, da casa da Maia, e as do sexto es-
tão jà inintelligiveis por se acharem a maior parte das
palavras inteiramente apagadas.
Nada oíTerece de notável o interior, da igreja alem dos
vestígios de sua muita antiguidade. É templo pequeno,
mas de duas naves, o que não é vulgar em Portugal^
tendo cinco capellas, e dois pequenos altares no cru-
zeiro.
No tempo, em que Luiz Cardoso (S) escrevia o seu Diccio-
nario geographico, era es-
ta igreja Commenda da Re-
ligião de S.João Baptista de
Malta, e o parocho Vigário
perpetuo apresentado pelo
Commendador, e coitado pe-
lo Vigário Geral da mesma
Ordem, e tinha quatro be-
nefícios simples, cada um
com sua casa de residência,
e pertencendo a todos em
commum a terça parte dos
dízimos e renda aa igreja,
e as outras duas partes ao
Commendador, para quem a
commenda rendia Ires mil
cruzados.
É antiquíssima a funda-
ção d'esta igreja,
A existência d'ella no tem-
po de D. Thereza é authen-
ticamente conflrmada pelo
livro da demanda do Bispo
D. Pedro (6), onde se encon-
tra uma carta regia pela qual
a Rainha D. Thereza dá ao
Bispo D. Hugo e successores
da Sé qualquer herdade, que
Aguas Santas tivesse até
esta data na nova demarca-
ção do Couto do Porto. Era
1138, dia da Paschoa, em
Abril, isto é, aos 14 das ca-
lendas de Maio, anno 1120
(7). Também d'ella nos faz
menção Viterbo (8) como
existindo com moradores em
1120, por ser uma das expressamente nomeadas [De aqids
Sanctis) na Bulia de Calixto II, às quaes se manda, que
obedeçam e paguem direitos áCathedral do Porto confor-
me sc"vè no Censual d'esta Sé (9).
Em 1130 havia n"este Mosteiro cónegos com seu Prior,
como se vé pelo contraio feito n'este anno, e do qual
nos dá noticia D. Rodrigo da Cunha, (10) entre D. Hu-
go, bispo do Porto, e o prior e clérigos de Santa Maria
d'Aguas Santas, no qual este bispo cede do direito, que
linha, de receber annualmente um jantar do referido Mos-
teiro, recebendo em compensação toda a terra, que o
Mosteiro possuía na villa de Pai*amos, assim em reguen-
go, como em ganância, e seis bragaes em cada anno.
A respeito doesta igreja e Mosteiro existem ainda no
cartório da camará municipal do Porto os seguintes do-
cumentos.
(")) I,)iccionario geographico de Portugal, vol 1." pag. 85.
(li) K uma obra inédita das mais preciosas c autlienticae para a
historia doa primeiros tempos da nossa monarchia. Existe muito benx
conservada no Cartório da Camará Municipal do Porto.
(7) Livro da Demanda do bispo D. Pedro, pag. 3G. E* um vol. em
foi. máximo.
(8) Elucidário pag. 314 do vol. 2.» da 1." edição.
(9) J. Pedro Ribeiro. Dissertações vol. 5." pag. 7.
(10) Catalogo dos bispos do Porto, part. 2.", pag. 13.
226
O PANORAMA
1 « Inquirição porque se julgou ser do padrondo real a
i-^reja e que' o luaar de Paramos abrangia IG casaes,
sendo' um de herdade, foreiro ao Hospil.d, que era pri-
vilegiado; os outros pertenciam a militares e a ordens, d el-
les se pagava ao rei o lerco da colheita, não havendo re-
guen"-o algum; era couto, e demarcava, a saber, principian-
do eíii fonte de D. Froie, por íim do monte Arroio desce
a preíra dos Campos, daqui a pedra do Palácio do Fun-
do, depois pelo lim do Vallo de Vergai ás Lagens de
Soutello, c das Pedras do Voval, c a pedra do Covello,
depois as pedras Medianas, d'aqui a Pedras de Barreiro,
d"aqui a \al Máo, vai a foz do Avenszo, por agua do
Avenszo até Ossos, daqui a fim do Comaro, depois a Pe-
dras Covas, e a Cova, d'aqui a Mirauci, a fonte de D.
Froie a onde principiamos. De IG Maio. Era 1296 (11).
2.* Inquirição porque se julgou que o lugar de Pedro-
cos na dita freguezia (Aguas Santas; abrangia, 19 casacs,
todos pertencentes á igreja da freguezia, não se pagando
d'elles nada ao rei, nem no mesmo lugar havia reguengo
aliium. Que o lugar de Sangimir abrangia 11 casaes lam-
bem da mesma igreja (12,. De IG Maio. Era 129G.
3.^ Inquirição porque se julgou que o lugar de Arde-
pães na dita' freguezia abrangia 20 casaes, pertencentes
11 ao Hospital, 8 a herdadores. e um á igreja d'essa fre-
guezia, não havendo no lugar reguengo algum, nem el-
rci n'ellc linha cousa alguma (13).
4.° Inquirição porque se julgou que o lugar de Rcvor-
daos da mesma freguezia abrange mais casaes, todos da
igreja, porem que cada casal linha sua leira do Couto, no
termo do Castello da Maia, e d'cssas leiras tinha el-rei a
terça parle dos frutos. Que no caslello da Maia havia
quatro casaes, c d'elles lem el-rei a lerça parte dos fru-
tos, c cada casal paga alem disso 1 frango, 1 cordeiro e
(Tez ovos, ctc. De Maio. Era 1296 (14).
l)." Inquirição julgando-se que a dita igreja possuia no
Lugar de Trás Leça, Freguezia de S. Vicente de Queima-
della no sobrcdito'julgado 2 casaes, que obtivera por tes-
tamento, nos ([uaes el-rei não tinha cousa alguma. De IG
Maio. Era 1296 (lo .
C.^ Inquirição julgando-sc possuir o mosteiro 1 casal
no Lugar da Cruz, que obteve dos Gulfaros, mais 3 ca-
saes no Lugar de Agua Longa, que comprou, tudo na
freguezia de S. Julião, julgado de Rcfoios. Era 1296 (16).
7." Inquirição julgando possuir alguns casaes na fre-
guezia do Safvador de Penamaior, julgado de Refoios, na
qual não havia reguengo. De 16 Maio. Era 1296 (17).
8.' Inquirição que mandou ficasse, como estava, com-
posta de 2c(*ulos c 1 honra, a saber Aguas Santas, cou-
to, Parada, couto, Ardegaes, honra: que não havia na
freguezia Juiz, pois que quando precisavão, vão a Maia.
De 2 Outubro. Era Í3'i;j (18).
9. Sentença jiorque se julgou pertencer a el-rei e a
suas justiças *da Maia a jurisdicção civil c criminal, e não
ao prior do convénio do dito Couto. De 26 d'Agoslo. Era
1377 (19).
10.' Inquirição declarando-seque os lavradores que ira-
zião terras do Convénio pagavão de lavradio o terço c o
quarto e do sorteado de novo o quinto da colheita, e
lambem a geira. Que este convento demarcava por mar-
cos, e começando na agua do Rio Leça vai a Ponto Ca-
vallar, nome que lem uma pedra, quê ahi está entre o
dito con\ ento c Ardegaes, d aqui vai a outra pedra (jue
cslá entre S. Lourenço c líecandaos, c d'ahi outra pedra,
que está entre o dito convénio e as herdades do rei no
caslello da Maia,d'ahi a pedra de Granja, (jue parle com
Rio Tinto, d'ahi por S. Romão, e vai aos Mormoiracs,
com quem parle o Ilospilal e Aguas Santas a dcveza da
Rainha ;iO,.
(11) Livro grande da camará municipal do Porto. foi. %. Deveria
tnriihprn íer publifado, quanto arílcs.
(12) Idem foi. %.
(l:;) líj(,-iii idem.
(14) Livro ííraride foL 97.
(lã) lileiíj fui. IíjO.
(lU) Mern lol. m.
(17) I(li;ifi lol. 1Í9.
)18) Idem foi. 00.
(19) Idem lol. 2:..
(20) Idem foi. liD.
11.^ Inquirição porque se julgou devassos c não hon-
ras os lugares" que pagavão direitos ao Hospital, a saber
Villa Nova, Alpedrados, e Carcavellos, todos na fregue-
zia de S. Thomé no julgado de Reíoios de Riba Ave,
e que ficasse n'elles d'ahi por diante entrando o cobrador
d'el-rei. De 2 d"Oulubro. Era 13io (21}.
Eis quanto me occorre actualmenle a respeito d'Aguas
Santas.
E notório que nas províncias do norte de Portugal quasi
cada freguezia tem seu vestuário próprio, c algum bem
engraçado. Os homens d'Aguas Saiilas nos dias festivos
costumam andar embuçados em grandes capotes, (jue lhes
locam os pés, trazendo na cabeça chapeos redondos com
abas d'um tamanho extraordinário.
MvNOKL Bernardes Branco.
O CONDE ALLAMISTAKEO
Passado esle primeiro espanto, resolvemos ten-
tar uma nova experiência. l)irií,nmos então as nos-
sas operações contra o dedo grande do pé direito.
Fizemos uma segunda incisão na parte inferior do
scsnmoideiini poUicis pedis, c chegámos d'estG
modo ao ponto onde nasce o musculo abdudor.
Ajustando a bateria, ai)j)licámos novamente o tinido
aos músculos descobeitos, (piando, com um mo-
vimento mais vivo do que a própria \ida, a mú-
mia levanta o joellio direito, como que para
aproximal-o o mais possível do abdómen, e lo-
go, sacudindo a perna com uma força inconce-
bivel, raimosea o doutor vVlexandre com um pon-
tapé, que teve jior eíTeito mandar este cavalheiro,
qual projéctil d'uma catapulta, por uma janella
que se achava aberta, medir a altura do andar á
rua.
Corremos logo lodos, como loucos, para trazer-
mos os restos mutilados do infeliz ; mas tivemos
a satisfação de o encontrarmos já na escada, su-
bindo apressadamente, fazendo as suas rellexões
philosophicas, e, mais do que até então, resolvido
a proscguir nas experiências com zelo e rigor.
Foi, pois, por seu consellio que lizemos em sc-
scguida uma ijrofiinda incisão na ponta do na-
riz do tal Allamislakeo ; e o doutor lançando-se a
elle, iminedialamentc o poz em contacto com o
lio metálico.
Moral c |)hisicamente, metliaphorica e litteral-
menle, o eíTeilo foi eléctrico. Primeiro, o cadá-
ver abrio os olhos e piscou-os com extrema rapi-
dez durante alguns minutos, como o actor lsi(Jo-
ro em quanto andou pelos Iheatros de segunda or-
dem ; depois, espiri'ou ; espriguiçou-se ; esfre-
gou as mãos e fez um movimento, que se o dou-
tor Alexandre não foge precipitadamente, apanha-
va um formidável soco ; o que, na verdade, não
era muito peitoral em cima de um pontapé ; em
tim, voltando-se para o padre (i liberto e barão de
Sousa, dirigio-lhes no mais |)uro egípcio, de que
não percebi j)atavina, o seguinte discurso:
a — Devo confessar-vos, meus cavalheiros, que
estou Ião surjireso, quanto desagradado do vosso
pi-ocedimento |)ara comigo. Do doutor Alexandre
não podia esperar oulra coisa ; é um i)obre tcjlo
que apenas sabe jogar as carambolas e mais não
disse. Tenho dó d"elle, perdoo-lhe. Mas o senhor
(21) idem foi. 50.
o PANORAMA
227
padre Gilberlo c V. Sr.% senhor barão de Sousa!
(aqui o barão moslrou-se um lanlo oflendido no seu
amor próprio) que tem viajado e residido no Egy-
plo, a ponto que muitos o tomarão como natural
das nossas terras — Y. S.% (o barão de um pulo)
digo, que viveu tanlo tempo entre nós, que falia
o egypcio tão correctamente, como, estou conven-
cido, escreve a sua lingua materna, (o barão fez
uma careta) — V. S.% (outro pulo) a quem eu me
linha acostumado a olhar como o amigo mais des-
interessado das múmias, — com franqueza, esperava
da sua parte mais alguma delicadeza do que a que
metem dispensado. ^Oque hei de cu pensar d'essa
sua impassível neutralitíaJe, quando sou tratado
tão brutalmente "? <, O que hei de eu suppor, quan-
do Y. S.** (outro pulo) consente a Pedro e a Paulo
que me tirem d'onde eu estava tão tranquillo e
me despojem da minha vestimenta n'este terrível
clima degelo? ^Como hei.de considerar, final-
mente, o facto de Y. S/"" (outro pulo) ajudar e
animar esse miserável pailapalão, o doutor Ale-
xandre, a |)uxar-me pelo nariz?»
O leitor julgará, sem duvida, que, ouvindo nós
um discurso d'estes em laes circumstancias cor-
remos espavoridos para a porta, ou caímos em
violentos ataques de nervos, ou ficámos olhando
uns para outros boquiabertos, sem podermos pro-
nunciar uma palavra. Qualquer doestas três cousas,
eflectivamente, podia muito bem acontecer; porque,
na verdade, eram as mais legitimas. E, sob pala-
vra de honra, não posso comprehender o motivo
que nos levou a não seguirmos alguma d'ellas. Tal-
vez que a razão esteja no espirito d'este século, que
procede inteiramente pela lei das contraiias, consi-
derada hoje como solução de todas as antinomias
e fusão de todas as contradiclorias. Ou, pôde ser,
emfim, que concorresse para isso o modo exces-
sivamente natural e familiar da múmia, que ti-
rava ás suas palavras todo o poder terrilico. Fosse
o que fosse, os factos são positivos; nenhum mem-
bro da sociedade se mostrou assustado, nem tão
pouco pareceu acreditar que se tinha passado al-
guma cousa irregular, extraordinária.
Pela minha parte, estava convencido de que
tudo era muito natural, e o que fiz unicamente,
foi procurar uma posição fora do alcance da mão
do amigo egypcio. O doutor, que já se conservava
a respeitosa distancia, metleu as mãos nas algi-
beiras das calças, olhou para a múmia de certa
maneira exquisita, e fez-se encarnado como um
rábano. O padre Gilberto, attenlando em uns c
outros, ora puxava o collarinho, ora se esticava e
puxava o coílete. O barão de Sousa, esse, abaixou
a cabeça e metteu o pollegar da mão direita no
canto esquerdo da boca.
O egypcio olhou-o com seveia physionomia du-
rante alguns minutos c por fim disse-lhe em ar
de chacota :
— Porque não falia, senhor barão de Sousa?
Ouvio, ou não, o que eu ha pouco disse? Ora, por
quem é, tire o dedo da boca ; isso parece-me de
criança !
O barão estremeceu ; tirou o pollegar direito do
canto esquerdo da boca, e em compensação met-
teu o pollegar esquerdo no canto direito da sobre-
dita.
Não podendo obter uma resposta do barão, a
múmia voltou-se para o padre (iilberlo e pedio-lhe
peremptoriamente lhe dissesse o que nós quería-
mos.
O padj-e respondeu immediatamente em phone-
tico ; e se não fosse a ausência completa de cara-
cteres Itierofjhfp/iieos nas nossas typographias, le-
ria o prazer inexplicável de transcrever integral-
mente e na lingua original o seu excellente specch.
Aproveito esta occasião para observar ao leitor
que toda a conversação subsequente, em que to-
mou parte a múmia, teve lugar em egypcio pri-
mitivo, servindo de interpretes para mim c para
os de mais da sociedade, que não tinham viajado,
o padre Gilberto e o barão de Sousa. Estes cava-
lheiros, ao que parecia, fatiavam a lingua mater-
na da múmia com uma graça e uma abundância
inimitáveis; mas não pude deixar de nolar que os
dois viajantes, — sem duvida, por causa da introduc-
ção de imagens inteiramente modernas e, natuial-
mente, novas para o estrangeiro, — eram algumas
vezes obrigados a empregar formas sensíveis para
traduzirem o sentido das palavras. Houve um mo-
mento, por exemplo, em que o padre Gilberto
não podendo fazer comprehender ao egypcio a
palavra — Politica — teve a feliz idéa de desenhar
na parede, com um bocado de carvão, um ho-
mem muito baixo e muito magro, com o rosto pi-
cado de bexigas c um nariz de descommunal ta-
manho, collocado sobre um pedestal, perna es-
querda á reclaguarda, mão direita estendida para
diante, punho fechado, olhos esgazeados levanta-
dos para o eco, boca aberta formando um angu-
lo de 90 gràos ; e de roda do pedestal muitas ca-
rinhas, em algumas das quaes se notava o des-
contentamento, em outras a admiração, o espanto,
e em outras, finalmente, grande alegria e enlhu-
siasmo.
O mesmo aconteceu ao barão de Sousa, que ja-
mais conseguiria traduzir-lhc com fidelidade a pa-
lavra modeinA P/iilan(ro])ia, se lhe não occovresse
o desenhar igualmente na parede um homem gor-
do, bem vestido, que denominou Paulo, rodeado
de muita gente, que pelo trajo parecia pobre, e a
quem fazia menção de dar alguma coisa; e ao lado
uma espécie de jornal no qual traçou em caracte-
res hyerogliphicos as seguintes palavras : — O phi~
lanlropico Paulo continua praticando os seus cos-
tumados actos de beneficência e de caridade evan-
gélica.
O discurso do padre Gilberto, como era natu-
ral, versou principalmente sobre as immensas van-
tagens que a sciencia podia tirar do desenfaixa-
mento c do exame das múmias; meio subtil de
justificar-nos de todos os desarranjos que lhe ha-
víamos causado, a ella em particular, múmia cha-
mada AUamislakeo; e concluio insinuando — por-
que não foi mais do que uma insinuação, — que
uma vez esclarecidas todas as pequenas questões,
era tempo de começar o projectado exame. Aqui,
228
O PANORAMA
o doutor Alexandre preparava os seus instrumen-
tos.
Relativamente ás ullimas suggeslões do orador,
parece que AUamislaliGo tinha cerlos escrúpulos de
consciência, sobre a natureza dos quaes não fui
claramente informado ; mas, moslrou-se satisfeito
com a nossa justificação e, descendo da meza, cm
todos deu locarolias e abraços mui aperlados.
Terminada esta ceremonia, occupamo-nos im-
mediatamenlc de reparar os damnos que o escal-
pello llie tinha causado. Curamos-lhe a ferida que
tinha na fonte, ligamos-lhe o pé, e applicamos-lhe
um parche de seda prela sobre a ponla do nariz.
iSolámos então que o conde — lai é, ao que
parece, o titulo de Allamislakeo, — sentia alguns
arripios — por causa do clima, sem duvida algu-
ma. O doutor dirigio-se logo ao seu guarda-roupa,
e trouxe um casaco preto, uma calça de casimira
côr de flòr de alecrim, um collele de velludo azul,
um raglan, uma camisa, umas ceroulas, um par
de meias de linha e outro de lã, um par de bolas
do Sllelpflug, uma bengala de cana da índia, um
chapéu alto, luvas de casimira, nma lunela azul,
um par depolainas, uma gravata e um collarinho.
A ditlerença de estatura entre o conde e o doutor,
• — a proporção sendo como dous para um, — deu
causa a lermos tido não pouco trabalho para
ajustarmos o fato ao corpo do egypcio ; mas ter-
minada a tarefa, não se pode dizer que ficou mal.
O padre Gilberto deu-lhe o braço e conduzio-o
para um sophá junto do fogão ; e o doutor man-
dou vir charutos e vinho.
A conversação logo tomou calor. Escusado é di-
zer, que todos mostiavamos grande curiosidade
relativamente ao facto ura pouco singular da re-
surreição de Allamislakeo.
— Confesso-lhe conde, disse o barão de Sousa,
que o julgava morto ha muito tempo.
— Como! replicou o conde muito espantado;
não posso ter mais de setecentos annos ! Meu pai
viveu mil, e morreu cm seu perfeito juizo !
{Continua. )
ABORÍGENES DA AUSTRÁLIA
Este immenso continente, para onde agora se
dirige de preferencia a corrente da emigração
curopéa, está destinado a desempenhar um gran-
de papel na historia da civilisação futura. Des-
coberto em 1000 por um navio hollandez o Diiy-
tlicn, que partira do Aniboinc, recebeu primeiro
o nome de Nova-llollanda. Principiavam então
os nomes d'esses audazes republicanos^ c das
terras da sua pátria a substituir nas cartas geo-
grapliicas as denominações porluguezas. Os va-
lentes hoUandezcs (prcslcmos-lhes essa justiça)
não tinham conquistado a nossa lieranca a be-
neficio de inventario, tinliam-n'a acccilado com
todos os seus encargos, e linham-se proposto a
subslituir-nos nOo só nos proventos que auferia-
mos das nossas conquistas indianas, mas lam-
bem no descmpenlio da missão que tínhamos
tomado de descobrir novas terras, c de alargar
a cada passo o campo da gcographia.
Apenas tinham assentado o seu domiin'o nas
índias Orientaes, apenas se tinham visto de posse
das Molucas, apenas nos tinham arrancado dos
horabros a purpura imperial, matizada com es-
sas pérolas do mar indico_, pensaram logo os
Hollandezes em sulcar as ondas quasi virgens do
mar do sul. Já o nosso Magalhães na sualamosa
viagem de circumnavegação dera uma vaga idéa
dos numerosos archipelagos que povoam esses
longínquos mares. Depois de descobrirem a Nova
Guiné pensaram os nossos successores em pro-
scguir o novo rumo das descobertas. Em 1000,
como dissemos, aportavam ao continente austra-
liano.
Pouco depois um acaso conduzio a essas para-
gens o navegador hespanhol Torres. Mas, por
um estranho descuido, as suas participações e
os seus relatórios acerca d'essa navegação ficaram
sepultados nos archivos das Philippinas d'onde
saíram apenas, graças aos Jnglezes, quando es-
tes conquistaram Manilha em llQií. Foi então
que se prestou homenagem á sua memoria^ dan-
cto-se o seu nome ao eslrcilo de Torres!
Entretanto os IIoliandez<^s haviam continuado
as suas descoberlas. Em 1010 o acaso c a força
das correntes n'estcs mares levaram á costa Occi-
dental da Austrália o navio Eendracht, cm 1019
o navegador lidei, e pouco depois Wítt; por isso
a costa Occidental recebeu o nome de terras de
Wilt^ de Eãe\, e de Eendracht. Em 1022 o navio
Leciiwin divisou a ponla do sudoeste, que rece-
beu o nome d'esse baixel. Em 1023, dois navios,
o Pêra e o Amhoine foram de propósito com a
missão de intentarem novos descobrimentos, e
a uma grande extensão da costa seplcmlríonal,
onde aportaram, denominaram Carpcntaria em
honra de C. Carpenler, n'cssa época governador
geral das índias hollandezas. Em 1021 Peler
Nuyls percorreu uma porção das margens do
golpho cenlial, e á terra que descobrio deu o
seu nome. Em 1030 o governador Yan-Diemen
enviou uma nova expedição, que deu cm resul-
tado a descoberta da terra que por isso se chama
de Van-Diemen, Nos últimos annos do governo
d'cste illustrado hollandez, o celebre navegador
Abel Tasmau descobrio novos territórios a que
também se não esqueceu de dar o seu nome. .
Ah! como os nossos piedosos chronistas se indi-
gnariam com o orgulho d'estes hereges, que não
tinliam, como os descobridores portuguezes, a
modéstia de baptizarem as terras que encontra-
vam com os nomes da religião, c de fazerem
dos mappas geographicos uns verdadeiros kalcn-
darios I
Vão entrar em sccna os novos dominadores
dos mares, e nomes ingiezes vão principiar a fi-
gurar na lista dos grandes navegadores. Ainda
em 1090 o hollandez Vlaming, c em 1099 o fran-
ccz Dampier se assignalam por novos desco])ri-
mentos; mas cm 1770 as (piilhas^dos navios de
Cook sulcam as vagas do Oceano austral, e esse
vasto continente surge da obscuridade, d'ondo o
não tinliam podido arrancar até ahi as ligeiras
informações dadas pelos primeiros descobrido-
res. N'cs'se anno aportou clle a IJolany-IJay c deu
á costa meridional o nome de Nova-Galles do
sul. Immcdialamenlc se revelam os inslinclos
essencialmente colonisadores do povo que entra
na liça abandonada por n(')S c pelos líollandc-
zes. Em 1788 o governador Philipp funda a co-
lónia de Sydney. As exj)lorações do interior suc-
ccdcm ás cx])loraçues mariíimas, mas logo se
o PANORAMA
229
volta ao estudo mais apurado das costas, c n'es-
sas novas investigações distinguem-se os navega-
dores Flinders, Giánt, e Bass. Depois succede-
Ihes em 1801 o francez Boudin, e linalmcnte os
inglezes Kmg de 1817 a 182á, e Stokes de 1837
a 1843 levaín ao seu auge esses trabalhos de
exploração.
Começou então uma nova era para a colónia;
escolhida primeiramente para residência dos de-
gradados, a Austrália revelou aos que lhe explo-
raram o interior um território tão vasto, tão sa-
lubre, tão fértil que a emigração voluntária
acudio a esses novos territórios, e começou a ar-
roteal-os, e a desenvolver ahi a creação dos ga-
dos, para que eram eminentemente próprios pela
riqueza e vastidão das suas pastagens.
Do território da Inglaterra saem todos os ân-
uos milhares de navios conduzindo emigrados
que a miséria expulsa da mãi-patria. Esses emi-
grados correram quasi lodos para a Austrália,
Aborígenes da Austrália,
assim que se lhes abrio esse novo campo á sua
actividade. É fácil de perceber com que difficul-
dades leve de luctar o governo da colónia, ven-
do-se a braços com esses dois grandes elemen-
tos de dissolução, o crime exacerbado, e a mi-
séria ávida. Os inglezes são, mais do que ne-
nhuns outros, próprios para sustentarem uma
lucta. A ordem cstabeleceu-sc a ponto de se po-
der seguir ali o systema dos parlamentos colo-
niaes adoptado em toda a parte pela Inglaterra.
A descoberta das minas de oiro conduzio uma
nova torrente de emigrados, e uma nova causa
de dissolução. Veio a raça dos aventureiros. Fi-
nalmente os acontecimentos políticos de 1848
arremessaram para ali a massa dos refugiados
políticos francczes, allemães, e italianos. Estes
eram os agitadores.
Pois d'estes elementos heterogéneos consegui-
ram as instituições inglezas, c a hábil energia
dos seus funccionarios formar uma raça forte,
civilisadora e trabalhadora, que tem elevado a
Austrália a um ponto inaudito de prosperidade.
que tem aproveitado as inexhauriveis fontes de
riqueza do seu solo, e que tem desenvolvido as
explorações scicntificas d'esse^Jerritorio virgem.
E entretanto o que é feilo dos indígenas? Assus-
tados como sempre por esta actividade febril
das raças europcas, oíTuscados pelo fulgor da ci-
vilisação teem ido cedendo o passo aos conquista-
dores,' tem-se ido estiolando, definhando, e con-
centrando nos sitios, que lhes parecem mais
inaccessiveis, da sua pátria. Fazer-lhes compre-
hendcr o beneficio do trabalho é completamente
impossível. Cada vez mais selvagens, não mos-
tram ser susceptíveis de civilisação, como o tcem
sido os habitantes da Polynesia^ Yão-se retraindo
sempre, sempre diante dos inglezes que, deve-
mos confcssal-o, não os tratam com a brandura,
que os poderia captivar. Os pobres selvagens são
caçados, como bestas feras, c conduzidos depois
para a ilha de Bass, onde tentam civilisal-os
n'imia espécie de colónia penitenciaria. Esta phi-
lanthropía violenta não dá, como se pode sup-
pòr, bons resultados. Os indígenas esquivam-se
230
O PANORAMA
aos seus bemfeitorcs, e voltara para as suas flo-
restas, por onde vagueiam tristes e desanima-
dos, e cada vez comprehendendo menos as van-
tagens da civilisação.
Os aborígenes da Austrália dividem-se como
todos os habitantes da Oceania cm dois grupos,
o dos negros, rara abjecta que só diftcre da raça
africana na conformarão do craneo, c a dos ma-
laios polynesios, raça dominante, que impera
principalmente na parte occidental, e que c a
única que tem opposto alguma resistência ao?
colonos europeus. D'aqui a pouco infelizmente
esta raça, que, como se tem visto nas ilhas
Sandwich e de Taiti. é muito capaz de se civili-
zar, terá desapparecido, e a raça colonisadora
européa terá inundado esse novo e vastíssimo
território.
IMA OBRA DO SÉCULO IX
De entre os curiosos monumentos litterarios que
nos trazem á memoria os tempos antigos e os suc-
cessos dos passados heroes, escolhemos para apre-
sentar aos nossos leitores o muito apreciado C/iro-
wiVoM intitulado Albddense, escripto no século IX,
Porque foi o primeiro que appareceu em llespanha
depois da formaçcão da monarchia christã de As-
túrias, e o que rasgou o denso véo que cobria a
historia dos primeiros dias da gloriosa restaura-
ção nacional começada em Covadonga. O nome
com que se distingue este notável escripto, proce-
de de ter-se encontrado inserto em um velhíssimo
códice do mosteiro de Albelda (1), que se conserva
h#je na bibliotheca do Escuriaí. Dois são os an-
dores que n'ella tomaram parte : em quanto ao
primeiro, embora uns designem um certo reli-
gioso chamado Romão, e outros o presbytero lo-
Icdano Dulcidio, ignora-se o seu verdadeiro no-
me e sú por suas palavras podemos colligir que
escreveu nos estados de AíTonso III, o Magno, e
provavelmente em Oviedo, sendo, sem duvida, ura
dos laboriosos monges que n'aquelles tempos de
sangrentas e continuadas guerras eram os únicos
depositários das artes e das sciencias. O segundo
auctor. um século depois, que copiou o Clironi-
con e lhe addicionou os factos mais importantes
Decorridos até o seu tempo, é conhecido: cha-
mava-se Vijilo, e era monge do mosteiro de Albel-
da. Além da simplicidade e clareza que costu-
mara reinar nos escriptos d^aí^uelles tempos re-
motos, são muito de notar no Chronkon Albcl-
(lensc as curiosas noticias geographicas e histó-
ricas que nos apresenta como exórdio. Em quanto
ao latim craque está redigido, écomo o de todos
os documentos da época : grosseiro, corrompido,
desalinhado, (^aunedo, escriptor hespanhol, pro-
curou fazer uma Iraducção a mais liltcral possí-
vel, conser\ando os nomes próprios antiquados
e barbíiros de que usa o chronista^para não ron-
bar a originalidade a este interessante trabalho
hislorico.
CUUONIGON AIJ5HLDE.\SIÍ
DoMcriprilo «Ic (otio 6 iiiiiimIo
I — Todo o mundo está descriplo, desde o tempo
de Júlio César, por varões sapientissimos, como
(\) Sanclio-Abarca, rei de Navarra fiin<l<ni.o clolnii-o cm 'J2^, na vil-
a íJo rncsmo noriiL-, a riiias léguas tle Lo^jrofio. HojccxisU; coiivcrlido
m coilegiada, e sob u sua antiga invocarão de S. Martinlio.
Nicodoso, Didimito, Teodolo e Policlito. Empre-
garam para medir o Oriente XXI annos, II me-
zes e VIII dias ; o Occidente XXYI annos, III me-
zes e XVII dias ; o Septemlrião XXIX annos, lí
mezes e III dias, c o Meio Dia XXII annos, 1 mez
e XXX dias.
II — O Oriente tem VIII Mares, VIII Ilhas, VII
Montes, VII Províncias, LXXV Cidades, XVII Rios,
e XL Nações. O Occidente consta de Vlll Mares,
XIX Ilhas, XV Montes. XX\ÍI Províncias, LXXV
Cidades, XVI Rios e XXV Nações. NoScptemtrião
ha XII Mares, XXV Ilhas, XÍII Montes, LVIII Ci-
dades, XVIII Rios, XXIX Nações e XVII Provín-
cias. No meio dia contam-se 11 Mares, XVII Ilhas,
VI Montes, XIII Províncias, LXll Cidades, VI Rios
e XXIV Nações. No lempo de Júlio Augusto con-
tavam-se em todo o mundo XXX Mares, LXIX
Ilhas, XLI Montes, LXIV Províncias, CCLXX Cida-
des, LVII Rios e CXXIII Nações.
Dcscripção fic Spnuia
III — Primeiramente por Ibero se chamou Ibé-
ria ; depois por Ispalo, Spania. Também se diz
Hesperia pela estreita Occidental denominada Es-
pero. A sua situação é entre a Africa e a Gallia :
Ao Septemlrião estão os Montes Pyreneos, e por
lodos os outros lados está rodeada de Mares. É
fecunda em todo o género de frutos e riquissiraa
de toda a sorte de metaese pedras preciosas. Tem
VI Provindas com Sedes Episcopaes. Os Rios de
Spania IV. O Betis corre CCCGX milhas, o Tagus
corre DCII, o Minius CGCXIII c o Ibcrus CCGIV.
As sete niaravilhas il» mundo
ÍV — I O Capitólio de Roma. II o Farol de Ale"
xandria. Ill o Belerophonte de Esmirna. IV o Thea-
tro de Ileraclio. V o Colosso de Rhodes. VI o Tem-
plo Quicio. VII Tetrapulum-Emetis ou a Igreja. de
Santa Sophia em Constantinopla.
I>roprioflafl<>o< dns iiaçòcN
V — I Dos Gregos a sabedoria. II dos Godos a
força, III dos Chaldeos o conselho. IV Dos Roma-
nos a soberba. V Dos Francos a fereza. VI Dos
Bretões a ira. VII Dos Escocezes a sensualidade.
Vill dos Saxonios a dureza. IX dos Persas a co-
biça. X dos Judeos a inveja. Xí Dos Elhiopcs a
paz. XII dos Gallos o commercio.
1'ouMnei celebres de Spania
VI —Trigo floreai de Narbona. — Vinho de Vilarz.
— Figos de Beatia.— Trigo dos Campos Godos. —
Machos de llispali.—Cavallos de Terra de Mouros,
— Ostras de Manearso. — Lampreas de Tantiber.
— Lanças da Gallia.— Escandea de Astúrias. — Mel
de Galieia.— Disciplina e sciencia de Toledo. —
Estas eram as cousas prineipaes no lempo dos
Godos.
Ontt IctvnH
Vil — As letras A, E, I. O, U, chamara-scvogacs
porque se emillem sem violência e formara a
voz i)or um impulso natural da gaiganta.
São semi-vogaes F, N, L, M, S, R, porque co-
meçam com o E vogal e produzem ura som
suave.
As letras B, C, D, T, P, O, G, são mudas, por-
que não se podem pronunciar sem o auxilio das
vogacs.
(Conlimia)
o PANORAMA
23
JOHN IIARISSON
Da descoberta «Ias longitudes iio uiar
Antes da invenção dos chronometros, os nave-
gadores podiam facilmente, por meio da bússola^
dirigir-se para o norte ou para o meio dia, para
leste ou para oesíe; mas estavam na impossibili-
dade de conbecer^ de uma maneira precisa^ as
distancias que tinham percorrido^ o que os expu-
nha a graves incidentes ou a perdas de tempo,
prejudiciaes tanto aos homens como ás mercado-
rias.
Philippe Ulj rei de Hespanha, convencido da
importância das longitudes no mar^ prometteu
uma recompensa de cem mil escudos a quem fi-
zesse a descoberta. Os Eslados da Hollanda imi-
taram breve o exemplo d'este príncipe, e propo-
zeram ura preço de trinta mil florins para este
objecto.
Os inglezesj tornados no principio do século
XYIll os primeiros navegadores, deviam natural-
mente preoccupar-se da sciencia das longitudes;
assim^, a 30 de junho de 1714, o parlamento no-
meou uma commissão para o exame d'esla grave
questão. Ne\vtonj Clarke e Wisthon assistiram a
ella. Newton apresentou uma memoria na qual
expoz diíTerentes methodos próprios para se achar
a longitude no mar, bem como as diíficuldades
de cada um. Para honra da relojoaria, o primeiro
meio proposto pelo maior homem que tem ap-
parecido na carreira das sciencias foi o da me-
dida exacta do tempo. Muitas conferencias tive-
ram lugar entre os commissarios, e, por seu pa-
recer, foi apresentada uma proposta ás commu-
nas, pela qual a rainha Anna prometlia vinte mil
libras sterlinas a quem satisfizesse ás condições
do programma. í^sta proposta foi unanimemente
approvada; e, a contar doeste momento, um gran-
de numero de sábios de todas as nações europeas
pozeram mãos á obra^ com a esperança de obte-
rem bom êxito.
O relojoeiro Sully, que vivia sob a poderosa
protecção do regente, foi o primeiro em França
que, entrando atrevidamente na liça^ tornou-se
notável pela invenção de um relógio cujo anda-
mento pareceu muito regular ; mas, desgraçada-
mente^ este relógio tinha defeitos: desorganisou-se,
e o artista não foi ao concurso.
N'esta época, Londres possuia muitos relojoei-
ros de fama; taes como Barlon, Elhcoot, Graham,
Thomaz Mudge^ ele. : todos fizeram tentativas,
que não produziram o resultado que esperavam;
mas tiveram por eíTeito enriquecer a relojoaria de
muitas invenções uteis^
A honra dá descoberta da longitude no mar,
estava reservada para John Ilarisson, de cujos
trabalhos nos vamos occupar : mas convém pri-
meiro dizer algumas palavras sobre a maneira
como se opera, depois da invenção dos chrono-
metros, para achar a longitude a bordo dos
navios.
É sabido que, partindo um navio do equador^
e dirigindo-se constante e directamente para o
norte ou para o meio dia, nunca muda de meri-
diano, e que era todos os lugares em que se ache
tem o meio dia no mesmo instante. Não acontece,
porém, o mesmo dirigindo-se para o occidcntc
ou para a oriente, porque então muda a todo
momento de longilude ou de meridiano, e em
tal caso seria impossível apreciar as distancias se
faltasse, como outr'ora, um relógio marítimo.
Hoje, verificada a hora do lugar em que se na-
vega tomando a altura do sol ou d'uma cstrcUa
com o auxiHo do sextante, que dá a latitude,
basta, para ter a longitude, conhecer exactamente
as horas que são no ponto d'onde se parlio. Sup-
ponhamos que este lugar é Lisboa e que o navio
se dirige para a Martinica: estar-se-ha ú vista
d'este ponto de mar quando, marcando o chro-
nometro 3 horas e 28 minutos da tarde, não for
mais de meio dia no lugar da observação; por-
que ter-se-ha percorrido um arco de oS" 15' para
o occidente, o que dará a longitude, se o chro-
nometro não tiver variado ; é este o ponto ca-
pital.
John Harisson, cujo nome anda ligado a esta
bella descoberta, nasceu em Barrow, cantão de
Lincoln, cm U)94. Exerceu a profissão de marce-
neiro até á idade de dezoito annos ; mas já havia
notado cm si um gosto muito pronunciado para
a mechanica, e os biographos inglezes asseguram
que, na idade de dezeseis annos, sem mestre c
sem o soccorro de livro algum, construirá um
relógio de madeira de um trabalho admirável.
Aos vinte annos^, tendo a consciência das suas
felizes disposições para a relojoaria, Ilarisson di-
rigiose a Londres para ahi exercer a sua nova
profissão e adquirir, pelo estudo e frequentação
dos melhores artistas, os conhecimentos de que
carecia. Em 1720, já tinha nome em Londres pela
excellencia da sua mão d'obra, e principalmente
pela sua magnifica descoberta da pêndula de
compensação, de que ainda hoje se faz uso.
Foi em 'consequência d'estes successos vários,
que Harisson emprehendeu a construcção de ura
relógio próprio para achar a longitude no mar.
Trabalhou durante muitos annos com uma co-
ragem e uma perseverança inexcediveis ; e acre-
ditou que havia conseguido os seus fins, porque
o seu relógio tendo sido submetlido á approva-
cão da Sociedade real de Londres, em 17'i9, Fol-
kes, presidente d'esta sociedade, agraciou-o com
a medalha de ouro queaillustre companhia con-
feria publicamente todos os annos a quem hou-
vesse feito a descoberta mais curiosa c mais útil
nas artes industriaes.
Ilarisson julgou, comtudo, que o seu relógio
era susceptível de aperfeiçoamento ; quiz sobre-
tudo diminuil-o de volume; em pouco, depois de
ter executado successivamente quatro relógios, c
havendo dado a preferencia ao terceiro, o qual
apenas occupava um pé quadrado com todos os
seus accessorios, julgou dever dirigir-se á cora-
raissão das longitudes, que, depois de diversas
detenças, conscntio que a prova do relógio fosse
feita conforme o acto do parlamento. Ilarisson
filho foi designado, a pedido de seu pai, para
fazer a viagem á Jamaica. Escolheu-se este desti-
no porque, para ali chegar, a machina tinha de
passar por temperaturas mui diíferenlcs.
O relógio foi embarcado no navio DeplforJ, que
partio de Portsmouth cm 18 de novembro de
1701. Os promenores da viagem são muito inte-
ressantes. Dezoito dias depois da saida, a O de
dezembro do mesmo anno, os pilotos do navio
julgavam-se a 13° 50' de longitude lesle de Por-
tsmouth, em quanto que a machina dava ib" 19';
uma diíTerenca de gráo e meio ; de sorte que já
condemnavam o relógio como inútil e mau. Mas
232
O PANORAMA
Harisson affirmando que se a ilha de Porlland
estava bem marcada na carta, no dia seguinte
tel-a-hiam á vista, o capitão teimou em não mu-
dar de rumo: e. com eíTeito, no dia seguinte, ás
7 horas da manhã descobrio-se esta ilha, o que
restabeleceu Harisson e o seu instrumento na es-
tima de toda a equipagem do Deplford, que, sem
a exactidão do relógio, não abordara á ilha de
Porlland, e assim, durante toda a viagem ler-
Ihe-ia faltado os refrescos de que necessita-
va.
O reconhecimento da Desirada, uma das An-
tilhas, foi para Harisson um novo triumpho; por
que, por meio do seu relógio, annunciou esta
ilha, assim como todas as que se encontram até
á Jamaica. O navio chegou, finalmente, a Porlo-
Real.
A volta de Harisson a Portsmouth não foi me-
nos favorável para o seu instrumento. Logoque,
obteve os ccrtilicados necessários das verificações
feitas na Jamaica, embarcou cm um navio muito
pequeno para a Europa e entrou em Portsmouth
cento e sessenta e um dias depois da partida. Fi-
zeram-se então as necessárias observações para
vcriíicar a hora que marcava o relógio depois de
um intervallo de tempo tão considerável, eachou-
se que a tinha conservado a 1' 5" aproximada-
mente, o que dá um pequeno erro de 18 milhas
inglezas ou menos de um terço de grau, na via-
gem de ida e vulta. Não deixaram comtudo os
homens da commissão de levantarem algumas dif-
ficuldades tendentes a enfraquecer as vantagens
do relógio. Harisson respondeu a estas diíficu Ida-
des de uma maneira satisfatória; mas a commis-
rão arrastada pelas suggestões do artista, ou
com o fim de melhor verificar a descoberta, de-
clarou que a primeira viagem não era suíficienle
e exigio uma segunda mais decisiva. Harisson
annuio a esta preten.ão; desejando, porem, mu-
dar algumas peças, pedio uma espera de quatro
a cinco mezes, que lhe foi concedida. A commis-
são, n'esse momento, deu-lhc por conta a soinma
de duas mil quatrocentas e sessenta libras sterli-
nas promettendo-lhe o resto da recompensa se a
segunda viagem tivesse um succcsso completo.
Harisson filho partio, pois, segunda vez para
a America, em 2S de marco de 17Gí : o termo da
sua viagem foi a Barbada, aonde chegou cm 13
de maio; a 18 de setembro do mesmo anno che-
gava de volta a Inglaterra. Fornecido dos docu-
mentos que justificavam o bom resultado, apre-
sentou-se aos comrnissarios, que reconheceram
unanimemente que tinha determinado a longi-
tude da Barbada, mesmo nos limites prescriptos
pelo acto da rainha Anna para a recompensa in-
teira.
Recebeu enlão cinco mil libras slerlinas; o
resto devia ser-lhc pago quando elle ensinasse a
conslrucção do seu relógio e pozesse os artistas
ao alcance de os fabricarem. Harisson satilez
igualmente a estas condições; mas fallava se
ainda, antes de ser pago completamente, em im-
põr-se-lhe outras novas: o artista reclamou, os
comrnissarios não insistiram. Harisson, recebeu,
finalmente, a totalidade da recompensa promel-
tida : linha então setenta e cinco annos. Quatro
annos mais tarde escreveu os princípios do seu
relógio em uma memoria que produzio cm Londres
profunda sensação.
Este grande artista, de que se honra ainda hoje
a Inglaterra, morreu em 1776, tendo oitenta e
dous annos de idade.
REPOUSO
Quis dabit milú penuas sicut columbce? Vo
labo et requiescam.
David.
Já uão canto ; minh'alma abatida
Vac perdendo a alegria passada,
Em vão sonho, ao romper da alvorada,
Inspirar-mc do anligo fervor ;
Em vão sonho ; que um dia d'invcrno,
ror mais luz de que inflanimc o horisoDte,
Não dissipa os rcgèlos do monte,
Nem dos campos inllora o verdor.
Que me serve lembrar o passado,
De venturas tão rico e Ião cheio,
Se a saudade que enluta meu seio
Trislemenle me obriga a scismar?
Quando o ninho em que alegre vivemos
Yae nas ondas á loa levado,
O que fica na praia exulado
Como pódc aos seus cantos tornar?
Como pôde sorrir ás delicias
De uma vida, que foge, Ião bella,
Quando ao perto vem negra a procella,
E lhe ruge o tremendo escarcéo?
Ai, quem ha de ensinar-lhe de novo
O seu canlo das noules formosas,
Se não senle a fragrância das rosas,
Sc não brilha uma eslrella no céo?
Ser poela, cantar em delírios
De prazer ou de magoa insoffrida,
Divagar pelos campos da vida
Innundando-a de vago esplendor,
Abrasar-se por tudo e por todos,
Levantar sobre as turbas a fronte,
É ter fé no que esconde o horisonte,
É ter crença, ter sonhos d'amor.
É sentir dentro d'alma os prcsagios
D'essa gloria que accende c (jue inspira,
Distinguir nos accordcs da lyra
Uma voz ([ue do cmpyreo desceu,
Entender-lhe o murmúrio das falias,
Escular-Ihe entre notas supremas :
—«Vem comigo, não pares, não lemas,
Que o futuro, que a gloria sou cu!»
—«Ergue o vòo, que um raio celeste
lia (le cm breve moslrar-tc o caminho;
Sc adormeces no florido ninho
Ai, da vida sonhada por li!
Ergue o vòo, desprende-te c sobe
D'essa treva cm (juc vives prostrado ;
Vem comigo, que um mundo encantado
Suspirando te aguarda c sorri !«
E eu não creio ; que esfaima abatida
Já perdeu a alegria passada ;
De saudades agora rallada
Nom sequer me i)rdpila de amor.
É (jue o sol quando aponta no inverno,
l'()r niais luz de (|ue inllamme o horisonte,
Não dissipa os regclos do monte,
Nem dos campos inflora o verdor l
E. A. Vidal.
Dff/rncres ânimos llmor arf/uit. Virg.
O temor Irae os corações piisillanimo.s.
Typ, Franco-PortugueEa = Uua do Tlicsouro Velho, C.
o PANORAMA
n%
íWW--^^
Monte Sinai.
Quem. não conhece esle nome? Quem não co-
nhece a magnifica tradição bíblica que cinge de
iTlampagos a coroa grani liça d'esle serro arábico
para queDcos possa communicar a Moysés as suas
leis divinas? iloje a lerra onde se realisou a tre-
menda entrevista conipõe-se de Ires montes, um
a que a tradição dá especialmente o nome de Sinai e
que se chama Gehel-Musa, (o monte Moysés) ou-
tro ao norte um pouco mais baixo, que c o Ilo-
reb, C; finalmente, o monte de Santa Calhai'ina si-
tuado a sudoeste e 350 metros mais elevado do que
oGebel-Musa. P]sla tradição piincipiou ai)enas com
a era chrislã, e robusteceu-se pelo facto de ter o
imperador Justiniano mandado ali construir em
527 um convento fortiíicado, que se chamou de
Santa Calharina de Monte Sinai, com uma igreja
da Transfiguração de Jesus-Chrislo onde lambem
se mostram algumas relíquias de Santa Calharina.
Comtudo,esla tradição tem sido impugnada por
alguns sábios, que mostraram claramente, pelo exa-
me attento das localidades, que a scena bíblica não
se podia ter eíTecluado senão no monte Ilorcb. As-
sim parece estar hoje demonstrado. Comiudo o con-
vento do Monte Sinai lá subsiste, tal como a nossa
gravura o representa, e esse nome santo continua a
ser dado ao monto Gehel-Musa.
Antigamente n'estc monte, agora quasi deserto
e escalvado, existiam capellas e ermidas, e alguns
mosteiros, entre outros o dos Quarenta Marlyres,
que ficava situado no valle occidental.
A GALATÉA MODERNA.
YIII
Totiia o aue(oi* a palarm
Se o leitor me perguntasse os motivos porque
tomo a palavra, houvera de escrever grosso trata-
do das faculdades psychicas, da maneira porque se
exercitam e produzem effeilos diversos segundo os
estados da alma. Dissera, entre muitas cousas aí-
534
O PANORAMA
lamente philosophicas, que o entendimento e a
vontade formam um dualismo nem sempre har-
mónico, em virtude do qual se produz a activida-
de do espirito. Depois de muito discretear e alvi-
drar dahi supremacias para as ingenitas faculda-
des, acabaria por onde devera ter começado, e
dir-lhe-ia à puridade, que narrando eu uma his-
toria muito verídica e singela, e antepondo a ver-
dade a quaesquer outras considerações do bello c
deleitoso, publiquei, sem individuações e rebuços
de cstylo, as primeiras cartas dos meus heroes,
porque d'esta maneira mais fácil me era apresen-
tal-os quaes são em verdade, e desenhal-os na
tela.
Esta a grande vantafem da correspondência
epistolar, que dispensa preâmbulos, e permitle
que a narrativa corra livre e natural.
Mas se taes são as vantagens da correspondên-
cia epistolar, porque rasão interrompel-a, e tomar
a palavra, quando estava promellida uma carta de
Alfredo ao seu amigo ?
O leitor minaz, e ainda não conheci algum
que o não seja, raciocina perfeitamente e foi, de
certo, inspirado pela lógica mais subida. Lembre-se,
porém, que no trafico do mundo nem os vendi-
lhões vendem o que não tem, e só as mulheres
dão amor que nunca sentiram.
Recorra á Arfe de Furtar do Padre Vieira e
lá achará explanado e explicado este ponto.
Estava eu uma noite em S. Carlos, ouvindo não
sei já que harmonias de um dos grandes maestros
italianos, que souberam alanccar-sc no rythmo às
sidéreas regiões da harmoniai||
Todo eu me embebia com ifnmensa voluptuosi-
dade nos cânticos que reboavam n'aquella athmos-
phera asphixiante e cálida, que acura esobreexcita
a sensibilidade. Eia um enflorar nn^lodias a voz
de Mongini n'aquella noite. Ainda não estávamos
acostumados ao viço, ao frescor, á valentia, ao
vibrar cristallino d'aquella voz melódica, cujo
timbre tem ás vezes a sonoridade metallica do alu-
minium.
Eu estava no sétimo céo. O meu espirito corria
longe, longe, alraz das notas que se esvaeciam no
ar c morriam na amplidão.
As harmonias, que ouvia, traziara-me á lem-
brança outras mais superiores, archangelicas, ce-
lesliaes, e a phantasia lá ia buscal-as, endoidada,
perdida, fiemenle, nas ondulações do othrr.
^0 meio d'aquelle embevecimento abstiaira do
mundo, do mundo que me cercaNa, c nem linha o
sentimento da vida, da existência material e palpá-
vel. Vivia, mas uma vida interior, toda ideal, ca-
taléptica. Era um d'aqueiies momentos em que a
alma se separa docemente do corpo, para seguir
mais altos destinos. Se a morte assim fosse, seria
a liberdade. J)e repente voltei à vida real. Acor-
dei do sonho. Era António Alvares, meu amigo
intimo, e intimo amigo de Alfredo, que me ba-
teu no liombro.
— O que ('? disse mal acordado.
— Muito ou nada, como quizeres, icspoiídeu
apontando o binóculo para um camarote de pri-
meira ordem. Segui com a vista a mesma direc-
ção € topei com a baroneza do Alpedial, que í^e
encostava esplendida e scintillante, dominando
com os olhos a multidão, que enchia a platéa.
— É uma formosura peregrina, não achas? con-
tinuou António.
— Demasiado plástica. Foi vasada no molde da
velha Grécia. E correcta como uma filha de Ileli-
conia. Pôde dominar como Vénus na sua corte ;
mas eu prefiro Psyche á creação de Milo.
— Que de cousas amontoaste para nada. Ter-
rível gente a geração moderna. Prolixa, palrado-
ra, sem opinião. Era melhor dizeres que não gos-
tavas da baroneza por ser demasiado adiposa,
porque faz um formoso refego na barba, porque
tem uns olhos chammejanles, porque o nariz pare-
ce dilatar-se haurindo fogo, porque, emfim, é uma
natureza potente.
— Raciocinio de naturalista.
— Raciocínio de homem que preza a verdade.
— Será o que quizeres. Dize-me, porém, o motivo
porque me interrompeste nas minhas meditações?
— O molivo é simples. Quero prestar-te um
serviço
— Não percebo. Que relação tem a baroneza
com tudo isto.
— Já te não lembras de Alfredo e Violante?
— Eu lenho a memoria do coração.
— Que é de todas a peior. Más, vamos adiante.
Sabes da vida da baroneza?
— Sei que, lhe apraz perder-se nos bosques,
para que o deus travesso lhe vare o coração com
uma seita hervada.
— Deixa-le de mythologias, e falia com rigor e
em linguagem commum. Lembra-le que estamos
em Portugal, n'eslc recanto do occidente, aonde
todos adoram Victor Hugo e o arremedam. O pró-
prio Byron eLamai'tine, eo Goethe e o Espronceda
já não ha quem os leia. De Mazoni ninguém falta.
Ora Victor Hugo nunca provou o mel do llymetlo.
Sè pois nebuloso, se quizeres, invoca o próprio
Hegel, c a perfectibilidade, mas não falles na Gré-
cia, n''esse berço das leiras, porque liças grego.
Ninguém te entende. E depois, meu caro, o ridí-
culo persegue os árcades. Acabaram os pastores.
Fallar de Cupido e da sua aljava é suicidar-se.
Está proscripto o género infantil da arcádia. E o
peior é que de envolta com essas velharias lá se
nos vae o sabor porluguez, o conceiluoso, a clare-
za, a fidalguia da boa dicção. A águia de Viclor
Hugo empolgou nas garras aduncas os nossos po-
bres rouxinoes, e deixou por cá as corujas c os
mochos que piam nos escombros.
— Menos fúria, meu caro António.
— Tens razão. Não. comprehcndo o progresso.
Adiante. Sabes por tanto que a baroneza...
— É um pouco leviana, como a caslellã da ida-
de media que por horas mortas da noite contava
as estreitas nos olhos de um pagem ladino e lindo
como um sylpho.
— Es incoi-rigivel. Passas da Grécia para a ida-
de media sem mais reparo, como íjuem pula de
Lisboa para Cintra.
o PANORAMA
235
— De que modo heide enlão definir a baroneza ?
— Dize primeiro que ó formosa.
— NâgO.
— A formosura é uma qualidade relativa, que
varia de objecto para objecto, de sujeito para su-
jeito.
— Deixa-le de philosophias, com que malsinas
o teu caracter de homem assisado. Pelos modos
também divides a formosura em objectiva e sub-
jectiva ! Honor ! Mulher formosa é a que rende o
maior numero e não se rende a ninguém.
— Logo a baroneza é formosíssima porque agra-
da a todo o mundo.'
— Agrada, mas não rende, seja dito sem ca-
lemburgo. Não subjuga ! Mas por Deus ! Acabou
o primeiro acto. Perdi esta musica divina do di-
vino Donizetti, por tua culpa e da tua baroneza.
— Já agora ouve, que has de agradecer-me. E
pois que encontras tanta diíficuldade em definir a
baroneza, prosigamos o nó gordio.
— Vamos, pois, adiante, mas não fiquemos no
mesmo sitio.
— Sabes que fui o melhor e talvez único amigo
de Alfredo.
— Perfeitamente.
— Não ignoras que o amparei em todas as tribu-
lações da sua vida, nos desenganos, que lhe cava-
ram a rui na, nos desalentos que lhe compungiram
horrivelmente aquella alma de poeta, nas immen-
sas dores que elle curtio, quando se revolvia vo-
lupluosamente nos espinhos que lhe juncavam o
caminho. Sabes tudo isto, porque foste testemu-
nha dos meus baldos esforços em lançar bálsamo
na ferida sanguinosa, em levar um raio de luz ás
trevas do cárcere em que elle gemia chumbado á
própria dor. Muitas vezes has desejado estudar esse
problema chamado Alfredo de Mello, não como
um ornato vulgar, como um Desgrieux insulso,
que corre atraz de uma Manon devassa, senão co-
mo o symbolo de um homem que gira perpetua-
mente em volta de um ponto fixo até cair re-
dondo no chão, para depois se erguer como Anteu
e exclamar : homo sum. Esse Alfredo que arrojou
a todos os ventos a vida, a alma, o coração ; esse
louco para quem o mundo era pequeno âmbito
aonde expandisse as lavas da sua actividade vul-
cânica; esse homem que foi maispoelado que Es-
pronceda, porque saio impolluto da orgia; esse ho-
mem que tu tantas vezes contemplaste pasmado e es-
tático, proque não lhe comprehendias o sorriso de
múmia galvanisada; esse semi-deus bi-froute como
Jano, que oraarremettia comum mundo, ora fugia
espavoíido de uma creança ; esse complexo de
qualidades e defeitos, argilla e ether a um tempo,
demónio e archanjo, umas vezes seraphico como
S. Agostinho, outras sceptico como Fausto, aqui
topelando com as nuvens, acolá infirao e desprc-
zivel chafurdando no lodo, confundindo Magdalena
com Aspasia, e Patmos com a ilha de Chio, a ambró-
sia com o phajerno; esse mortal, emfim, que qui-
zera que todas as mulheres fossem Artemisas, para
que todas lhe elevassem um mausoléo, podes estu-
dal-o completamente, analysal-o, dissecal-o como
um exemplar exótico da espécie humana, como
um ser monstruoso, leralologico, informe, ante-
diluviano, representante de uma fauna oblilterada,
naufrago de um cataclismo aniigo, fóssil de uma
paleontologia desconhecida.
— Como? bradei eu a final.
— Simplesmente. Olha-me com allenção para a
baroneza. É uma formosura potente, luxuriante
como ura feto arborescente, e não sei se diga lu-
xuriosa como um demónio ou como um hippopo-
lamo.
— E depois? Estou farto de contemplar a baroneza.
— Só ella te pôde dar a chave do enigma, ella,
a companheira inseparável de Violante, ella o anjo
caido que a tentou e oITuscou com ouropéis enga-
nosos, ella, a pagã, que nem mesmo é idolatra,
porque ousa conculcar os penates e vilipendiar o
marido, ella, a mulher-carne, a Vénus Adipo-
sa, o vicio esplendido, a incansável, a insaciável,
a verdadeira Aspasia que não se vende nem se
entrega, porque domina e compra. Essa mulher,
borboleta que ao sair da chrisalida para logo quei-
mou as cândidas azas no brazeiro das jiaixões, guar-
da como um thesouro as carias de Violante, que
foi o único e verdadeiro amor de Alfredo.
■ — E como queres que eu arranque esse thesou-
ro de mãos tão avaras e aferradas? Como con-
vencer a baroneza?
— Não sei. Aventura-te n'esse vulcão de lodo,
a que .ella chama consciência.
— Ó Tântalo, imagem eterna e eternamente jo-
ven do homem, Vejo o fructo e não posso colhel-o.
Desde que conheci Alfredo sempre foi desejo meu
mais intimo e entranhado o seguir passo a passo,
com a sonda na mão aquelle viver insólito, aquelle
despenhar de loucuras, aquella catadupa de grandes
esforços e grandíssimas fraquezas. E agora que
seguro e palpo o extremo do fio, que havia de
guiar-me no labyrintho, quebra-se-me nas mãos
de encontro a um rochedo inabalável.
António Alvares olhou fito para mim.
— O teu desapontamento parece-me verdadeiro.
— Ainda duvidas, bárbaro?
— Eu duvido sempre, porque fui muito crédu-
lo. Felizes tempos! O papel de sceptico não é já
agora da moda no drama da vida, porque o dra-
ma volveu-se comedia. Assentámos todos cm nos
rirmos das próprias e alheias fraquezas, como
Demócrito e Diógenes. É o cynismo e o estoicis-
mo. Ha, porém, uma cousa tão santa c pura, um
sentimento tão elevado e divino, que é sacrílego
quem se ri d'elle. Ninguém escarneça da amisade
e das oblatas, que no altar d"ella depõem os fieis
Acredito, pois, na luadôr. Conlio do teu coração.
Foste amigo de Alfredo ; de razão c que desejes
saber-lhc a vida.
— Agradeço e admiro a lua rara agudeza. Pa-
recc-me que não c necessário ser OEdipo para
adivinhar isso. Invocar a amisade em crise
tão natural, qual éa curiosidade de peneirar um
enigma, é sobejidão a que tu és muito atreito.
— Desculpo-te as imprudências. Vamos ao caso.
Eu posso contar-te miudamente a vida de Alfre-
236
O PANORAMA
do, para a romanceares à vontade. Sei, porém, que
a baroneza guarda com especial carinho as carias
de Vioiante."ja vòs a vantagem de obter esses do-
cumentos de alta valia. Como? Mo sei. Quando?
Ignoro. Taclèa e espreita a occasião azada. Isso
te pertence.
—Amanhã hei de ter as cartas de Violante, ex-
clamei ergueu dc-mc com uns modos inspirados,
dignos de um vidente.
— Es dotado de dupla vista?
— >ão. Conheço as mulheres em geral, e a ba-
roneza em especial.
— E depois ■?
— Cá tenho a minha láctica. Amanhã á noiti-
nha serei em tua casa, continuei com um tom fa-
tídico, como quem dá um aprazamento fatal.
— Amanhã te aguardarei o verei se foste o
Alexandre d'esle caso intricado.
— Adeos.
— Aonde vaes?
— Ao camarote da baroneza.
— Tem mão. Não te percas.
— Infelizmente já não estou na idade de per-
der-me 1 Quem dera ! 1-cram tempos que não vol-
tam, ainda mal !
— \ae pois. Guie-le Mercúrio, o deus dos la-
drões.
— E o mensageiro dos carnacs amores da côrle
olvmpica.
"E sai.
António Alvares eslava boqui-aberto. Era a
imagem do espanto. Estava erecto com a cabeça
levemente pendida, olhos semi-vclados, sorriso
algum tanto sardónico e incrédulo Parecia-me
um ponto de admiração seguido de uma reti-
cencia mysteriosa.
{Continua.)
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O CÉREBRO
O cérebro do cão não excede o do carneiro e é
mais pequeno que o do boi. O cérebro do elephan-
le pesa Ires vezes mais que o cérebro humano. A
baleia c muitos outros cetáceos teera lambQin o cé-
rebro superior ao do homem.
Sc se compara o jieso do cérebro com a massa
do corpo, acliarse que o cérebro do homem é, re-
lativamente, infeiior ao de muitas espécies de bu-
gios, do pardal, do melharuco e do canário. O cão,
relativamente, lambem Unn o cérebro mais pequeno
que o morcego e o cavallo menor que o coelho.
Comparando-se igualmente as circumvoluções ou
pregas variadas e irregulares que se voem no cére-
bro de alguns animaes, e que certos auctores lecm
consideríiiJo como signaes de superioridade, nola-
seque o burro tem muitas circumvoluções e que o
ele[»hante tem mais do que o homem
Geralmenle admitle-se que um homem, cujo cé-
rebro pese menos de lOOOgrammas, é, necessaria-
mente, pri\a(lo d'ii)telligencia. E ponto contro-
verso, qual a idade ein (|ue o cerehio allinge o
seu peso máximo eseha alguma ejjoca em que elle
diminue. Sei/undo o dislinctonaKiralisla e elegan-
te escriptor, Pedro Gratiolet, il) «o cérebro cres-
ce sempre, pelo menos nas raças caucasianas, des-
de a infância até a decrepitude.
Diz-sc que o cérebro de Cromwell pesava 2238
grammas, o de Byron 2238 e o de Cuvier 1829;
mas estas cifras, que não são incontestáveis, nada
provam. Raphael, Descartes, Voltaire, Napoleão,
Schiller e outros muitos homens illustres, tinham
cabeças pequenas, e os seus cérebros não podiam
exceder muito o peso médio, que varia entre 1328
e 1421 grammas.
A CONTRADANÇA RIDÍCULA
Já n'este volume do Panorama figuraram duas
gravuras do Ilogarlh. A primeira, denominada o
Infeliz Poda, era uma d'eslas gargalhadas, que
occultam lagrimas, um drama contado com voz
ligeiramente irónica; a segunda, intitulada o J/w-
sico enraivecido, considerámol-a como um verda-
deiro folhetim, como a producção espontânea de
uma hora de bom humor. A que hoje se apresen-
ta aos nossos leitores póde-se tomar como o lypo
mais perfeito da caricatura humorística ingleza,
como o exemplo mais notável d'esse cómico phan-
laslico, peculiar das nações septemlrionaes, que
produz na litteralura os Conlos exlravat/aníes de
Achim d'Arnim, e as Historias exlraordinarias
d'Edgar Poe.
Os inglezes e os allemães, até mesmo nas ho-
ras em que soltam as suas gargalhadas /'^«//A/o^caí
(pcrmilta-se-nos o termo) revelam as tendências
idealistas, que deram á sua lilleratura o cunho
original, que a fez prevalecer sobre todas as ou-
tras, quando a Europa, fatigada d'uma longa crise,
e vendo-sc no meio das ruínas das suas velhas
instituições, sentio um vago desejo de peneirar
n'esses mundos desconhecidos e nebulosos, por onde
esvoaçava a musa melancólica dos poetas do nor-
te. Ofrancez tem menos tendência para se despe-
gar da realidade, e o seu culto pelo bom senso,
(jue formou sempre a physionomia particular da
sua lilleratura, não consente que a extravagância
transponha certos limites. O espirito gaulez, co-
mo elles lhe chamam, admilte a ironia, a mor-
dacidade, mas não comprehende o excêntrico.
A adoiação, que, durante certo tempo, mostraram
por ilolíniann, e pelos romancistas allemães da
sua escola, foi uma adoração iicticia, uma moda
exótica, que já principia a passar. O humorismo
inglez nunca poude iniplanlar-se completamente na
sua lilleratura, apezar dos esforços de muitos es-
criplores. Esta seriedade no cómico, esta impassi-
bilidade no extravagante, no absurdo, que os Alle-
mães e os Inglezes consideram como o su|)remo
gráo do chiste, nunca foi acolhido pelos Erance-
zes senão com um meio sorriso. Em compensação
a mais leve allusão salyrica do folhetim, c a gar-
galhada franca e burlesca do vaudcvillc transporia
d'enlhusiasmo esses Alhenienses de Paris.
(II Pedro Gralioh I,, Icnlc de zoologia da Faculdade de scicncias do
Parts. Morreu cm 10 de fevereiro do 1865.
o PANORAMA
A contradança ridicula.
Oia a Conlradança ridicula crilogaiih é a ex-
pressão do cómico inglez. É uma phanlasia gro-
tesca, o uma visão estapafúrdia, é um devaneio
disparatado. ISão so cancem a procurar allusões
que as não encontram; não julguem que as íigu-
ras do quadro se vão contorcer em momos e esga-
res do vaudeville; os vultos da contradança agi-
tam-se com uma seriedade glacial, e tomam com
um aspecto fúnebre as posições mais capazes de
despertar a hilaridade. Em torno d'elles volteia a
pliantasia do desenhador, formando a esse quadro
a moldura mais caprichosa e excêntrica. O lápis
traça os arabescos mais extravagantes, sem aspirar
ummomento só a ligar entre si os episódios que loi
238
O PANORAMA
formando na tela. Um francez, se tentasse fazer
uma caricatura n'este género, formaria uma collec-
ção de liguras desopilantes, como as pôde conce-
ber quemtem o espirito exaltado pelos fumos pro-
venientes dos copos espumosos doChampagne, be-
bidos no meio d'um tiroteio alegre de rolhas e de
bons ditos: mas a caiicalura d"Ilogarlh e um so-
nho de bebedor de cerveja, (pie absorveu uns pou-
cos de bocks, fumando silencioso o seu cachim-
bo, e que, deixando depois cair a cabeça em cima
da banca, vio, entre uma nuvem vaporosa, agitar-
se-Ihe em torno essa grave e rldicula contradança.
PiNOEiRO Chagas
OS TRÊS FILHOS DE FAMÍLIA
Auccflotn arabc
Um dia, Naaman, bey de Constantina, mandou
publicar na cidade um aviso prohibindo os pas-
seios nocturnos, sob pena de moile para todo o
individuo (|ue fosse encontrado pela policia; e ao
jnesmo temj)o prescreveu ao caid-dar o fazer pes-
soalmente a ronda.
Quando chegou a noite o caid fez a sua oração,
e, ao sair da mesquita, chamou cinco agentes, e
começou o seu giro. Chegados ao Souq-el-IIer-
guema rua das casas de pasto tunisianas) encon-
traram três mancebos, bem vestidos, conversando.
— xMancebos, gritou o caid-dar, que motivos ten-
des para vos achardes aqui a esta hora?
— Nenhum, responderam elles.
^E de quem sois íilhos? accrescentou o caid.
— Eu, replicou um d'elles, sou filho d'aquelle
diante do qual se curvam as cabeças dos homens.
— Eu, disse outro, sou filho d'aquelle que dá
de comer a quem tem fome.
— E eu, disse o terceiro, sou filho d'aquelle
que dá de beber a (|uem tem sede.
Depois de um momento de reflexão, o caid-dar
disse-lhes:
— Não posso por-vos em liberdade «em que o
sultão vos veja.
No dia seguinte conduzio-osá presença de Naa-
man-liey. Os mancebos deram-lhe as mesmas res-
postas que tinham dado ao caid.
O principe immediatamenle os mandou soltar;
depois, vollando-se para os grandes da côrle:
— Notastes, lhes disse, a delicadeza c a finura
d'esles adolescentes.^
— Ferdemo-nos em conjecturas, senhor, respon-
deram elles, c estamos admirados de ver como
agarrastes o sentido das suas palavras.
— Muito bem, continuou o Bey, eis aqui a cx-
j)licarão: o primeiío é íilho d'um barbeiro, o se-
gundo d'um padeiro e o terceiro d'um aguadeiro.
A estas jialavras os corlezãos exclamaram:
— Oue Deos vos conceda toda a sua infinita nii-
sericordia, ó grande principe e senhor no.sso. É o
vosso espirito que nos esclarece.
MYTHOLOGI.\ SCÂNDINAVA
Nos confins da Europa seplemlrional, nos pai-
zes próximos aos gelos polares, habitava cm ou-
tro tempo o povo scandinavo, que, originário do
Oriente^ viera, depois de uma longa peregrina-
ção, cstabelccer-se nas inhospitaleiras regiões do
Norte, tão distinctas do seu paiz natal. A sua
religião era um paganismo grosseiro, muito dil-
fercnle do risonlio sensualismo da mythologi;i
grega, e do caracter philosopliico dos primeiros
dogmas da Índia; era uma religião de sangue
própria de um povo que considerava a paz como
uma cousa vergonhoí>a e que só achava prazer
nos combates, l^^sla religião durou por espaço
de muitos séculos, porque a luz do Evangellio
tarde penetrou n'aquellcs paizes: já muito tempo
havia que em toda a Europa se tinham derri-
bado os aliares de Júpiter e de Tcutates e ainda
na Scandinavia se venerava Thor e Odin.
O paiz, que este povo habitava, contribuía po-
derosamente para que a sua religião tivesse um
caracter sombrio; pois é um facto indubitável
que a influencia da localidade deixa-se sentir,
até, nas crenças do homem. Os scandinavos de-
viam sentir esta influencia ao contemplar o seu
céo sempre toldado, os seus rochedos selvagens
nas bordas de um mar tempestuoso, e o seu ás-
pero clima n'aquclles prolongados invernos; in-
vernos em que a natureza parece envolta em
um manto de luto, quando o sol pallido e sem
brilho apenas permanece algumas horas sobre o
horisonte, allumiando fracamente um paiz agres-
te e gelado, como que para suspender por um
momento a tristeza das suas noites eternas.
A mylhologia scandinava, apresenta-nos uma
multidão de seres sobrenaturaes, cujos poderes,
mais ou menos limitados, estão ao serviço do
bem ou do mal, segundo a classe a que perten-
cem. N'esla religião não está tão marcado, como
na maior parte das outras, esse dualismo do
bem c do mal, que forma geralmente a base
das crenças de quasi lodos os povos; nias^ sim,
domina uma còr sombria, que não se encon-
trará acaso cm nenhuma outra; os seus deuses
teera que defender-se dos ataques dos gigantes,
e sabem que chegará um dia cm que o mundo
será presa das chammas, e que a maior parte
d'elles perecerá para não mais resuscitar.
O primeiro de todos os Asas ou deuses é Odin^
dominador de todas as cousas; os outros deuses
obedecem-lhe e respeilam-no. Sua esposa Frigga
lê no coração dos homens e penetra os seus
desígnios antes de serem executados; d'clla e de
Odin descendem todos os Asas. Odin tem sem-
pre dois coivos sobre os hombros, os quaes
manda todas as manhãs correr os mundos para
lhe contarem o que se passa n'elles.
O segundo dos Asas é Thor; este deus é o ser
mais forte que existe no universo^ c habita um
palácio que tem quinhentas e quarenta habita-
ções; geralmente anda em um carro puxado
por dois bodes. Thor tem uma clava que é fa-
tal aos gigantes, e alóm d'isso possue um cinto,
que lhe duplica a força quando o ajusta, e umas
luvas de ferro. As façanhas de Thor são infini-
tas, e bastariam para encher um volume. No
combale final dos deuses com os gigantes, Thor
lucla cora a serpente Midgard c é derribado por
este monstro. Thor é a personificação do \alor
e da força.
O terceiro dos Asas é Baldur^ deus da bon-
dade, da riqueza c da formosura; o seu rosto é
tão resplandecente que despede raios, céo mais
sabio^ o mais eloquente e o mais bondoso de to-
o PANORAMA
239
dos os Asas; ninguém pode contrariar as suas
sentenças. Na sua morada tudo é puro. Uma vez
sonliou que liavia perigos que ameaçavam a sua
vida. Os deuses reuniram-se e resolveram preser-
val-o de todos quantos males podessem existir.
Frigga fez com que o fogo, a agua, o ferro e
todos os metaes, a terra e as pedras, as arvores,
as enfermidades e os venenos, os quadrúpedes,
as aves e os insectos, todos os seres, em fim,
jurassem que jamais causariam o menor damno
a Baldur. Um dia os Asas entretinham-se em
perseguil-o, sabendo que não podiam fazer-lhe
mal; Loki, porém, deus do mal, vio isto e pro-
poz-se a matal-o. Tendo-lhe constado que a
leste do Yalhalla, ou palácio dos bemaventura-
doSj existia um arbusto ao qual Frigga não ha-
via exigido o juramento a respeito de Baldur,
porque o julgou mui pequeno, correu ao sitio,
cortou-o e voltou para junto dos Asas. Hodur
estava fora do circulo, porque era cego;^ «por-
que, lhe disse Loki, não persegues também Bal-
dur?» (i,«Porque não vejo aonde está, e além d'isso
não tenho armas, respondeu Hodur.» «Fazecomo
os demais^ tornou Loki, e honra a Baldur; eu
t"o indicarei: atira-lhe com esta varinha.» Hodur
agarrou na varinha e arremessou-a na direcção
que Loki lhe mostrava; a varinha foi directa-
mente atravessar o corpo de Baldur e lançou-o
morto por terra. Os Asas ficaram gelados de es-
panto; não podiam, porém, vingar aquella morte
por ser um lugar sagrado. Então Frigga pergun-
tou quem era o que se atrevia a descer ao reino
das sombras para oíTerecer á morte o resgate de
Baldur. Hermodur. o veloz, filho de Odin, disse
que não punha duvida em ir desempenhar tal
missão. Durante nove noites caminhou por val-
les escuros e medonhos até que chegou ao rio
Gioll^ cuja ponte é coberta de ouro. A donzella
que guardava esta ponte disse-lhe que na vés-
pera tinham passado cinco pellotões de homens
mortos, e, não obstante, não faziam mais ruido
do que elle; — perguntou-lhe também aonde ia,
pois não lhe achava côr de cadáver. Hermodur,
contou-lhe o fim da sua viagem, e, continuando
o seu caminho, chegou em fim, ao palácio da
morte, onde vio Baldur no posto mais honroso.
Quando no dia seguinte Hermodur pedio á
morte que lhe concedesse levar comsigo Baldur
para renascer a alegria em Asgard, a morte res-
pondeu-lhe que se todos os viventes e todos os
objectos inanimados quizessem chorar a desgra-
ça do deus, perniittiria então que este tornasse
para o seio dos Asas. Hermodur de volta, os
Asas enviaram mensageiros a todas as partes pe-
dindo que chorassem a desgraça de Baldur para
este bom deos poder sair das mãos da morte: os
homens e os animaes, a terra, as pedras, as arvo-
res e os metaes, todos choraram por Baldur; só
uma velha permaneceu muda; em vão lhe pedi-
ram que chorasse; negou-sc obstinadamente a
isso^ dizendo que guardasse a morte o que já
j tinha em seu poder. Os Asas, conhecendo que
I era Loki, resolveram castigal-o, como o fizeram
depois.
Niord é o terceiro dos Asas; dirige o curso do
j vento e domina na agua e no fogo. Niord não é
propriamente da raça dos Asas; por seu nasci-
! mento pertence aos' Vanes. Sua esposa Skadí é
filha do gigante Thiassi. Niord tem dois filhos:
Freir, que dirige o tempo, dispõe do sol, da
chuva, da paz e da fertilidade, e Freia, que é a
mais bella de todas as deusas; a esta pertence
metade das almas dos que morrem nos comba-
tes^ assim como a outra metade pertence a Odin.
Freia anda em um carro puxado por gatos; é
affeiçoada aos cantos de amor e deve ser con-
sultada em assumptos amorosos.
Outro dos Asas é Tyr^ deus da guerra; o seu
valor e atrevimento são extraordinários. Quando
os Asas procuravam persuadir o lobo Fenris para
que se deixasse prender, este disse que o não
faria sem o grande Tyr lhe metter a mão den-
tro da boca até o termo da sua prisão; como o
lobOj fortemente encadeado, vio não mais po-
der recobrar a sua liberdade, cortou com os
dentes a mão de Tyr, que desde então ficou ma-
neta; mas que nem por isso é tido por pacifico.
Bragi é outro Asa que se distingue por sua
eloquência e destreza na poesia; sua esposa íduna
conserva em uma vasilha de ouro as maçãs que
dão aos deuses uma juventude perpetua. "
Heimdall, chamado o Asa branco, foi dado á
luz por nove irmãs; dorme menos que um pás-
saro e VG tanto de dia como de noite; o seu ou-
vido é tão fino que sente nascer a herva e a lã
das ovelhas. Heimdall vela sempre á entrada da
ponte por onde hão de passar os gigantes quan-
do forem luctar com os deuses. O som da sua
trombeta, chamada Giallar, ouve-se em todos os
mundos.
Outro dos Asas é Hodur, o cego, que matou
Baldur; é extremamente forte.
Vidar é denominado o Asa silencioso; tem um
sapato ao qual cousa alguma pôde causar o me-
nor damno. Vidar é o mais forte depois de Thor
e é a elle que se entregam os deoses em todos
os perigos.
Os outros Asas sKo : Ali ou Vali, filho de Odin
e de Rinda; é atrevido nos combates e bom ar-
cheiro. UUer, hábil em patinar, é de rosto agra-
dável e de aspecto guerreiro; é o deus dos de-
safios. Forseti, filho de Baldur e de Nanna, é o
que decide as questões dos homens.
Entre os Asas conta-se também Loki, a que
alguns chamam o blasphemo, o deus do engano
e do opprobrio. Seu pai foi o gigante Farbauti
e sua mãi Laufeya. Loki é formoso, mas de ca-
racter perverso e inconstante; a sua maldade
tem causado grandes pezares aos deuses; em
compensação, porém, era algumas occasiões tem-
n'os salvado dos perigos. Sua esposa chama-se
Sygin e d^ella tem um filho chamado Nari ou
Narvi; além d'isso, de uma mulher gigante teve
por filho o lobo Fenris, que devorará Odin, a
serpente Midgard, que rodeia a terra, e a Morte.
Os Asas criaram o lobo Fenris, mas sabendo que
este monstro um dia causaria a sua ruina, re-
solveram prendel-o; foi quando em vingança
cortou com os dentes a mão de Tyr. Os deuses
vendo-o encadeado, pozeram-no entre penhas,
mettendo-lhe na boca uma espada com a ponta
para cima e o punho na lingua; assim perma-
necerá até o fim do mundo e dos Asas.
A primeira das deosas é Frigga, cuja formo-
sura é superior a tudo; a segunda deusa Saga;
a terceira Eir, espécie de Esculápio feminino ; a
quarta, Gefion, patrona das donzellas; a quinta,
FuUa. A principal depois de Frigga é Freia que,
abandonada por Odur, seu marido, quando este
foi ver os paizes longinquos^, correu todo o mun-
240
O PANORAMA
do prociirando-o e derramando lagrimas de oiro,
as lagrimas da fidelidade. As outras deusas são :
Siofnf que apazigua a cólera dos homens; Lofn,
que corta os obstáculos que se oppõem ao ver-
dadeiro amor; Vara, que ouve os juramentos
que fazem os amantes c castiga os que a elles
faltam: Syn, que guarda as porias do palácio
dos eleitos, c nega a entrada aos que não são
dignos; Hlin, que defende os protegidos de
Frigga e Gna, emissária de Frigga.
A mythologia scandinava apresenta-nos além
dos Asas ou deuses uma multidão de seres sobre-
naturaes, como: As Nornas que habitam junto da
enzinha Iggdrasil, das quaes a primeira é Urd (o
passado, o tempo primitivo), a segunda, Skuld (o
presente, o pcccado), a terceira. Yernandi (o por-
vir) ; estas Nornas são como as Parcas da mytho-
logia grega. As Valkyrias, (as que elegem) divin-
dades guerreiras de' extraordinária belleza que
correm pelos ares a cavallo c que presidem aos
combates, nos quaes designam os que hão de
morrer para leval-os depois ao Yalhalla ou pa-
lácio dos eterno? gozos. Além d'estas divindades
havia também os gigantes, os anões, os Alfas c
os Vanes.
Os scandinavos criam que havia nove mundos;
mas um dos principaes era Muspell, onde domi-
nava o terrivel Surtur, que virá um dia vencer
os deuses e abrasar o universo.
As idéas dos scandinavos acerca da creação,
eram muito estranhas. O inferno, segundo eíles,
existia antes da terra; e o género humano ainda
não existia quando em certo dia a vaca An-
dhumla, lambendo a geada que tinha uma pe-
dra, fez sair a cabeça de um homem; este ho-
mem chamou-sc Buri e teve por si só um filho
chamado Bor, que era alto e formoso, e que ca-
sou com a íillia de um gigante, da qual teve
Ires filhos, Odin, Vili e Vc, a cujas mãos mor-
reu o gigante Ymir^ que havia nascido de um
modo estranho. Com as diíTerentcs partes do
corpo do gigante formaram o mundo em cujo
centro levantaram uma fortaleza para resistir
aos ataques dos gigantes. Depois criaram o céo
e o palácio chamado Valhalla, para onde vão as
almas dos que morrem como valentes; o Valhalla
é um lugar onde os seus habitantes se entregara
diariamente aos combates; mas as feridas que
n'elles recebem são curadas de noite; de sorte
que no dia seguinte podem continuar a tarefa.
Odin, Vili e Ve edificaram também Asgard (mo-
rada dos Asas) c depois criaram um homem c
uma mulher, chamados Ask c Embla, dos quaes
descende o género humano.
A mythologia scandinava não diz quando ha
de ser o fim do mundo c dos deuses; só refere
que hão de vir antes lies invernos rigorosíssi-
mos, sem que haja entre elles nenhum estio;
antes d'esles três invernos o mundo ha de ser
desolado por guerras horrendas, nas quaes com-
baterão íilhos contra pais, irmãos contra ir-
mãos. Depois hão de apparecer signacs funestos;
o lobo, que segundo os scandinavos perseguia o
sol c o fazia andar depressa, devoral-o ha para
grande desgraça do género humano. Outro lobo,
que também persegue a lua, apoderar-se-ha delia,
e as eslrellas cairão do céo. A terra tremera, as
arvores arrancar-sc-hão pela raiz; os montes des-
moronar-se-hão c Iodas as cadêas .serão quebra-
das. O lobo fenris vôr-sc-ha livre c o mar sairá
dos seus limites espargindo-se pela terra, porc^ue
a serpente Midgard animada do mau desejo da
sua raça de gigantes, buscará a terra. O Naglfar,
navio construído das unhas dos mortos, cami-
nhará sobre as aguas guiado por Hrymr; o lobo
Fenris crescerá a ponto de tocar coni um queixo
no eco e com outro na terra, lançando fogo pe-
los olhos e pelas ventas; a serpente Midgard vo-
mitará veneno que incendiará o ar e o mar, e o
céo rasgar-se-ha por todas as partes. Os filhos
de Muspell virão então conduzidos por Surtur,
com a sua espada ardente e atraz d'elles virá
um fogo abrasador. Loki acudirá também com
Hei (a morte) e com todos os filhos de Muspell.
Heimdall ao ouvir o estrondo tocará a trom-
beta e convocará todos os deuses. Odin irá con-
sultar o manancial de Mimir; a enzinha Iggdra-
sil agitar-se-ha e os Asas preparar-se-hão para o
combate; Odin, irá adiante levando a seu lado
o valente Thor; Odin tem que combater com o
lobo Fenris e Thor com a serpente Midgard;
Freir combate com Surtur e .succumbe por lhe
faltar a sua boa espada. Tyr combate contra o
cão da caverna de Gnipa c ambos morrem. Thor
consegue matar a serpente, mas é derribado pelo
veneno que lhe lança o monstro. O lobo devora
Odin, porém o terrivel Vidar põe sobre a quei-
xada inferior do lobo o seu pé coberto com o
invulnerável sapato e agarrando-o depois pela
queixada superior, falo era dois pedaços cau-
sando lhe a morte. Loki peleja contra FÍeiradall
e ambos perecem ; mas Surtur espalha o fogo
pela terra e abrasa o mundo inteiro.
Depois d'esta catastrophc, a terra sae do mar
verde e formosa, e dá frutos sem necessitar cul-
tura. Vidar e Vali continuam vivendo, porque
nem o mar nem o fogo podcram prejudical-os;
existem ambos no campo de Ida, onde outr'ora
esteve Asgard; ali vão lambem os filhos de Thor
com o seu marlello. Baldur e Hodur voltam do
reino da morte; todos se assentam no Ida e faliam
das cousas passadas, da serpente Midgard e do
lobo Fenris; na herva acham as taboas de ouro
dos Asas.
Dois seres humanos, chamados Lif e Lifthrasir,
que sctinham escondido em um lugar recôndito
na occasião do fogo de Surtur e que se haviam
alimentado de rocio, povoam novamente o mun-
do, c uma filha do Sol, que segue o mesmo cami-
nho que seu pai serve para alumiar de novo a terra.
Esta religião, qtie parece tão grosseira, en-
cerra um symbolismo profundo em alguns pon-
tos; mas não é possível aqui explicaí-o, assim
como não podemos dar d'ella senão uma idéa
geral: para explical-a em todas as suas particu-
laridades e em sua significação seria necessário,
um volume.
Os scandinavos parece terem lido alguma idéa
de um Deus eterno e incriado, mas só uma vez
o menciona a sua mythologia dando-lJie o nome
de Pai Universal ; este nome é depois dado mui-
tas vezes a Odin; além dMsso ao fallar de um
Deus supremo e eterno mencionam um lugar
que não é outra cousa senão o inferno, mas não
como o pintam ao fallar dos outros deuses. Seja
como fôr, as suas idéas acerca d"esles pontos pa-
recem ter sido bastante confusas c vagas; talvez
como resto de uma tradição perdida ou como uma
idéa tomada de outros povos dedislincla religião.
Tyii. Fnuico-Corúignuzií. Ruí\ do Tlicsoiiro Velho, t;
31
o PANORAMA
244
Génova.
Decaída da sua grandeza, mas conservando ain-
da o nome de soberba, e as suas ruas de palácios,
esta cidade, que foi na idade media capital d'uma
republica poderosa e rival de Veneza, dominadora
do mar, e que partilhava com a rainha do Adriá-
tico o privilegio do commercio oriental, antes que
o nosso heróico Vasco da Gama, descobrindo um
novo caminho para a índia, e AlTonso d'Albuquer-
que, estabelecendo n'essas longiquas regiões o nos-
so dominio incontestado, dessem a essas potencias
italianas um golpe de que se não poderam levan-
tar, Génova é hoje capital d'uma província ita-
liana.
llabitada por um povo guerreiro, osLiguríos, que
fizeram muitas vezes parte dos exércitos cartíia-
ginezes, Génova teve de se curvar a íinal, como
toda a Itália, debaixo do jugo dos conquistadores
Romanos. Ouaiulo a torrente dos bárbaros inundou
o império, Génova partilhou o destino commum, e
foi escrava dos Lombardos antes de ser escrava de
Carlos Magno e dos seus successores. No íim do
século XI, aproveitando-se das dissenções intesti-
nas do império, proclamou a sua independência e
estabeleceu um governo democrático, cujos chefes
receberam a denominação de cônsules. Mas a in-
triga e ambição logo produziram desordens, e os
Genovezes obviaram a esses inconvenientes por um
meio bastante estranho. Fizeram-se governar por
dictadores estrangeiros, que se denominavam po-
deslás, auxiliados por um conselho de oito cida-
dãos.
Começou então a sua era gloriosa. Os mouros
invadiram a Itália, Génova bateu-os, tomou a ilha
de Córsega, e uma parte da de Sardenha, ousou
invadir a Hespanha árabe tomando d'assalto as ci-
dades d'Almeria e de Tortosa, auxiliou poderosa-
mente os cruzados ganhando assim grandes van-
tagens pecuniárias e commerciaes, resistio energi-
camente aos imperadores Frederico I e Frederico
II, soccorreu o pontitice, impoz tratados humilhan-
tes ás republicas de Pisa, e de Veneza, suas rivaes,
e fundou colónias na Ásia c, até, no fundo do Mar
Negro.
Km 1270 termina o governo dos podestás, subs-
tituídos por dois nobres com o titulo de capUães
da liberdade, c uma espécie de tribuno popular
com o nome d'abbade do povo. Depois as discór-
dias dos Guelfos e Gibelinos ensanguentam a re-
publica e produzem uma longa c dolorosa guerra
civil. Voltou-se de novo ao svstema de dictadores
242
O PANORAMA
estrangeiros, depois veio a tyrannia dos doze, de-
pois a dos vi)Ue e quatro, depois foi eleito um im-
perador, a final a republica submetteu-se ao do-
mínio de Roberto, rei de Nápoles, e depois ao do
papa João XXII.
Em 1331 principiou o governo dos doze duran-
te o qual foram tantas as agitações, que a republi-
ca leve de se collocar no Hm do século XIV, de-
baixo da protecção dos duques de Milão, c dos reis
de Franca.
Apesar d'eslas agitações politicas, a prosperi-
dade comraercial não diminuía, quando veio de
súbito a descoberta do novo caminho para as ín-
dias. Seria esse o signal da morte da republica,
se não surgisse exactamente n'essa época um gran-
de homem que galvanisou o cadáver. Esse gran-
de homem foi André Dória, espécie de eondot-
tiere maritirao, que poz as suas esquadras ora
ao serviço de Carlos V, ora do papa Clemente VII,
ora de Francisco I, e que levou sempre a victoria
nas pregas da sua bandeira. Este homem fundou
na sua pátria um governo aristocrático, e o impul-
so d'essa mão poderosa foi bastante forte para que
a republica genoveza tivesse ainda mais de dois
séculos de existência. Mas perdera todas as suas
colónias, toda a sua importância marilima,e quan-
do rebentou a revolução franceza, a aristocracia
de Génova governava apenas um Estado de qui-
nhentos mil habitantes, que é o mesmo que hoje
constitue a província d'esse nome.
Os exércitos revolucionários atravessando a Itá-
lia lançaram por toda a parte a semente das no-
vas ideas. Quatro republicas ephemeras se erigi-
ram na península italiana. A Lombardia chamou-
se republica cisalpina, os Estados do Papa tomaram
o nome de republica romana, Nápoles passou a ser
a republica parthenopéa, e a republica aristocrá-
tica de Génova transformou-se na republica demo-
crática, que se denominou liguriana.
Durou oito annos essa republica. Em 1803 Na-
poleão reunio-a ao império francez, e Génova pas
sou a ser a capital d'um departamento d'esse co
lossal império.
Em 1800 sustentara essa cidade um cerco me-
morável, em que Massena adquirio talvez a gloria
mais brilhante da sua carreira militar. Em 1814
Dão foi essa cidade igualmente feliz, e a guarnição
franceza que a defendia leve de a entregar ao ge-
neral inglez lord lientínck, que deixou restabele-
cer-se a antiga constituição republicana de Géno-
va. Mas em Í81i> o congresso de Vienna reunio-a
com o seu território aos estados do rei da Sarde-
nha.
A situação d'esta cidade é admirável, o seu
porto é inagniíico, e o seu aspecto deslumbrante.
Os Apenninos, em cujas faldas está construída
em ampliithealro, rccurvam-se em semi-circulo para
formarem o seu maravilhoso golpho. Com tudo, o
aspecto interior da cidade não corresponde nem á
sua esplendida perspectiva, nem ao seu título de
soberba. Apertada entre o mar e os Apenninos,
dispõe de pouco espaço para se estender, de forma
que as suas ruas são empinadas, juntando a isso o
serem immundas. Em compensação tem quatro ou
cinco ruas compostas unicamente de palácios de
mármore, que maravilham o estrangeiro. As ma-
gnificas fachadas, c escadarias, os primores d'arte,
que n'essas sumptuosas habitações se encontram,
demonstram a opulência e o bom gosto dos anti-
gos dominadores do Mediterrâneo. Esta cidade en-
cerra lambem magníficos edificios públicos, um
dos mais bellos Iheatros da Itália, o de Carh-Felice,
e passeios deliciosos.
Conta Génova actualmente perlo de cento c qua-
renta mil habitantes, é sede d'um arcebispado, e
liga-se por um caminho de ferro com Alexandria
e Turim, O seu commercio ainda é importante, e
póde-se dizer uma cidade prospera ainda que es-
teja decaída do seu antigo poderio. Mas se não é
a capital d'uma d'essas poderosas republicas, que
monopolisavam na idade media o commercio do
mundo, e avassallavam os mares, é italiana ao me-
nos, emquanto a sua rival, a triste Veneza, mu-
da e sombria no fundo das suas lagoas, vè com
lagrimas de desespero tremular nas grimpas de S.
Marcos a águia odiosa dos Austríacos.
Findará agora o seu marlyrio? e a guerra que
rebenta na Europa quebrará afinal os grilhões da
rainha do Adriático?
A NOVA EDIÇÃO DOS CLÁSSICOS
I
o Eliieiflnrio portugacK, por Vv. Jontiiiiin tic Saiiia
Uosn Viterbu
É a litteralura franceza que exerce um domí-
nio incontestável em Portugal. A belleza liltera-
ria das producções dos seus escriplores^ o dom
especial que possue aquelle idioma e o povo
que o falia de caplivar o espirito dos estrangei-
ros, e, mais do que tudo isto, a incrível baratcza
a que tem chegado os seus livros são os motivos
principaes da preeminência que esta litteratura
estranha exerce sobre todas as outras, e, até, so-
bre a própria litteratura nacional. E não se sup-
ponha,comludo, que é o frívolo romance dos cs-
criplores parisienses que rouba leitores ás chro-
nicas pulverulentas dos nossos maiores, c ás pe-
sadas epopéas que constituem a máxima parte da
nossa velha bagagem poética. Não; porque as edi-
ções dos clássicos francezes, feitas a miudc era
PariX encontram entre nós sempre saída; nao;
porque nas estantes dos nossos livreiros campeiam
Iriumphantcmcnle os livros de Froíssard c de
Brantômc c de Commincs, as poesias de Ronsard,
c de Marot, e de Du Rcllay, as traducções de
Amyotj os livros philosophicos de Descartes c
de PascaL c todos esses livros se vendem c des-
apparccem, emquanto as pessoas estudiosas de-
balde procuram nas mesmas estantes as chroni-
cas de Fernão Lopes, de Azurara c de Ruy de
Pina, as poesias de Ferreira e de Sá de Miranda,
e de Diogo Remardes, os livros de Amador Ar-
raes c de Heitor Pinto, as comedias de Simão
Machado ou os romances de cavallaria de Fran-
cisco de Moraes.
Resulta d'aqui um phenomcno estranho no es-
pirito da classe estudiosa porlugueza: não ha
ponto obscuro da historia de França acerca do
qual não lenhámos consultado os documentos
o PANORAMA
243
originaes; não ha vulto notável nos seus fastos,
cuja verdadeira estatura não conheçamos^ cujas
feições não possamos descrever, cujo viver in-
timo não saibamos a fundo, ao passo que a
nossa historia s(3 a conhecemos muito elemen-
tarmente, e os nossos herúes antigos apparecem-
nos vagamente estampados nas fcrumas do pre-
térito, com a fronte rodeada d'esse vaporoso
nimbo, que é o característico dos Achilles e dos
Ulysses, dos herúes da epopéa homérica, dos se-
mi-deuses das épocas ante históricas.
Ha muitas razões para que se dé esse facto;
mas, uma das principacs ó a falta de edições
económicas, é u descuido que tem havido na
reproducção dos livros antigos, é o preço enorme
que se nós pede por um exemplar de qualquer
dos nossos velhos escriptores.
Appareceu agora um editor, que tentou reme-
diar essa falta, que se abalançou á temerária,
mas patriótica empresa da publicação dos clás-
sicos. Esta empresa, que devia ser aiixiliada não
só* por todos os portuguezes que prezam a sua
pátria, mas também pelo governo, que tem obri-
gação de favorecer todos os que procurarem der-
ramar a instrucção nas classes menos allumia-
das por ellaj e darem vigor á nossa nacionali-
dade que não pode subsistir sem as tradições, e,
por conseguinte, sem o conhecimento amplo d'es-
ses venerandos livros, que são os depositários
d'ellas; essa empreza, pois^ digamol-o para ver-
gonha nossa, está arrastando uma existência en-
fezada, e findará, de certo^ se um relâmpago de
patriotismo não illuminar por acaso a mente dos
portuguezes e o espirito do seu governo.
O Panorama, cuja divisa foi sempre desenvol-
ver o gosto pela historia e pela litteratura nacio-
nal, não pôde deixar de pugnar pela conserva-
ção de uma empresa d'onde o paiz pôde auferir
tantos proveitos, e de recommendar com muita
instancia aos seus leitores o auxilio d'essa nobre
tentativa. É indispensável que Portugal possua
um corpo completo das obras dos seus antigos
escriptores. São os elos que ligam o passado ao
presente, formando a cadeia das tradições na-
cionaes, são os pergaminhos da nossa autono-
mia, são as fontes maravilhosas onde se podem
retemperar os fios embotados do nosso patrio-
tismo.
Âs obras publicadas até agora pelo sr. Fernan-
des Lopes, que foi o editor que emprehendeu
corajosamente esta Ímproba tarefa, tem sido as
seguintes: Elucidário porluguez, por Fr. Joaquim
de Santa Rosa de Viterbo ; Chronica da Companhia
de Jesus nos estados do Brazil, pelo padre Simão
de Vasconcellos; Trabalhos de Jesus, por Fr. Thomé
de Jesus; e os dois primeiros volumes da Histo-
ria de S. Domingos, por Fr. Luiz de Sousa.
A revisão d'eslas obras foi confiada pelo editor
ao sr. hinocencio Francisco da Silva, de certo
entre nôs, pelos seus estudos especiaes^ e pelas
tendências do seu espirito, o mais apto para le-
var a cabo um trabalho d'esta ordem.
Com o Elucidário abrio o editor a serie das
suas publicações, e foi, devemos dizel-o^ acerta-
díssima a escolha. No século XIX e ao estado
a que chegaram actualmente a philologia c a
sciencia histórica, não se lêem o que se conven-
cionou chamar livros clássicos com o íito único
de ir procurar nas suas paginas lições de boa e
pura linguagem portugueza. Convéncemo-nos a
final de que as linguas não são immoveis, e es-
tudamos os clássicos não como modelos, mas
como guias onde aprendemos o modo como os
grandes escriptores concorrem para o desenvol-
vimento da linguagem. Perante o homem verda-
deiramente estudioso, que se engolpha n'estes
estudos áridos, mas sublimes, um livro de Fr. Luiz
de Sousa tem o mesmo valor que um velho chro-
nicão fradesco do século XIII; porque se aquellc
lhe representa o estado da lingua na sua idade
áurea, representa-lhe este a época infantil do
idioma, que não é decerto a menos curiosa e a
menos digna de estudo.
Se os leitores, por conseguinte, estão com animo
firme de entrarem nas mais sombrias devezas
da vasta floresta do passado, se em vez de se
recostarem voluptuariamente á sombra das flo-
ridas larangeiras, que vicejam no formoso po-
mar de Fr. Luiz de Sousa e dos seus contempo-
râneos, toem a firme resolução de explorarem o
labyrintho da historia, é o Elucidário o fio de
Ariadne que os ha de guiar nos intrincados mean-
dros d'essas velhas chronicas, d'esses restos in-
formes da litteratura da idade media. Trabalho
de benedictino, o Elucidário de Viterbo, como o
Glossairc de Du Cange, é uma d'estas obras co-
lossaes, que, sem darem ao seu auctor uma glo-
ria brilhante, preparam aos outros os elementos
de uma reputação estrondosa. Sem estes livros^
recheiados de indigesta erudição, compilados la-
boriosamente no fundo sombrio de uma cella,
alvo das zombarias da litteratura certeza, occu-
pação da vida inteira de um pobre frade, para
quem olhavam com motejador desprezo os poe-
tas de outeiro, os chronistas elegantes, e os der-
retidos vates de mysticos dulçores, sem estes li-
vros não seria possível que os Thierrys, os Ma-
caulays, os Herculanos, os Cantús, levassem a
cabo as olDras que os immortalisaram, e que de-
ram ao século XIX a mais brilhante escola his-
tórica de que se pôde ufanar a humanidade.
O Elucidário de Viterbo, para quem o lêr e
manusear com attenção e cuidado, não tem só
uma importância de diccionario, não vale só pe-
los esclarecimentos com que ajuda os ledores das
obras antigas, dando-lhes a explicação dos ter-
mos obsoletos, tem também grande valia como
livro que sirva para texto de estudos históricos
e philologicos. Effectivamente nos extractos dos
documentos dos antigos cartórios^ desde as mais
remotas eras, vai-se seguindo passo a passo o
desenvolvimento da linguagem portugueza, as-
siste-se ao esphacelamento do latim, corrompido
pela rude Unguagem dos godos, n'esse cadáver
do idioma do Lacio vè-se palpitar o' novo idioma,
que ha de ser a lingua de Camões. Como na
chrysalida se presente a borboleta, assim nas gros-
seiras expressões dos antigos documentos se adi-
vinham as phrases enérgicas c doces que hão de
exprimir depois, quando as murmurarem os lá-
bios dos grandes poetas e dos grandes prosado-
res, os sentimentos mais elevados c mais suaves,
os Ímpetos do patriotismo ou as meigas expan-
sões do amor.
E que livro de historia valerá os singelos ensi-
namentos do Elucidário! Onde poderemos encon-
trar, reproduzidas mais photographicamente (se
nos permittem o termo) as usanças e as crenças
dos nossos antepasf ados ? São, para assim dizer-
mos, apanhados os nossos maiores em flagrante
244
O PANORAMA
delicto de sinceridade. Os chronistas. ainda mesmo
os que não têem, como Fernão Lopes não tem. a
mania da erudição e da imitação greco-romana,
mania que veio depois produzida pelo grande
movimento da renascença, os chronistas, ainda
mesmo esses, não se podem esquivar a alindar
um pouco a historia, a arranjal-a, a vestil-a se-
cundo a etiqueta como quem tem de se apre-
sentar perante os vindouros, e de se sujeitar à
sua apreciação. Mas nos documentos, e, por con-
seguinte, nó Elucidário, que nos apresenta uma
ampla coUeccao, e uma coUecção ordenada, de
extractos desses documentos, a historia aparece
em négligé, como quem pensa nos seus próprios
negócios, e de modo algum nas ohservaçues que
os vindouros podem colher do modo como esses
negócios eram tratados pelas gerações que se
iam succedendo na terra portugueza, e nos es-
clarecimentos que involuntariamente nos estão
dando sobre a sua vida e gestos, o seu viver e
crer.
Já vêem, pois, qual c múltipla importância do
Elucidário, e a muita razão que teve o editor, o
sr. Fernandes Lopes, de abrir com esse livro a
serie das suas publicações; iniciados pelos tra-
balhos de Santa Rosa de Viterbo nos mysterios
da historia, e do pensamento dos nossos maiores
podemos cora muito mais esclarecido critério
percorrer as paginas dos escriptores notáveis,
que nos transmittiram nos seus livros um re-
flexo, avivado pelo seu génio particular, das
idéas das gerações a que pertenceram.
Em successivos artigos iremos dando conta ao
publico das outras obras que o sr. Fernandes
Lopes lera já reimpressas, ou irá reimprimindo.
PiNHEino Chagas.
pranto; lamentou a perda de sua mãe e por fim
exclamou :
—Maroto ! grande maroto ! porque me não
fallaste logo de minha mãe? Era-me ella mais
cara que todos oj objectos do teu estúpido pala-
vrorio. Dize-me ao menos de que morreu.
— De ciúme.
— Ella ciosa ! e de quem ?
— Vosso pai acabava de desposar segunda mu-
lher.
FASTIDIOSOS PRELIMINARES
No dia de Maulud (nascimento do Propheta)
estavam assentados vários mahometanos na gran-
de mesquita, quando chegou um homem da Iri-
bu dos Zmul ; lançou-se nos braços do làleb, e,
depois das saudações do costume' trocadas reci-
procamente, disse-lhe este :
— O que ha de novo ? Como passara os de nos-
sa casa?
O homem respondeu cora socego :
— O falcão, que havíeis educado, morreu.
— Como assim ?
— Comeu muita carne.
— E donde veio essa carne?
— Dos vossos quatro cavallos que morreram.
— O que signitica isso ? O que se passou, pois,
no aduar ?
— Houve um grande incêndio ; aos gritos de
soccorro, reunio-se toda a gente, e foi tal o tra-
balho que os vossos cavallos tiveram na condu-
ção de agua para o apagar, que por fim morre-
ram.
— Pois qucl um incêndio? Como succcdeu
isso?
— Os criados tinham accendido velas; dormiam
tranquillamente, quando de súbito rebentou o
fogo.
— Que necessidade tinham clles de accender
velas ?
— Para o .«serviço fúnebre de vossa mãe.
A estas palavras, o laleb não pôde conter o
PONTE NATURAL NA VIRGÍNIA
AqucUe brilhante cavalheiro, que Walter Scott
desenhou no seu romance de Keniiworth como
um dos ornamentos da corte de Izabel, Walter
l\aleigh foi também um intrépido descobridor,
um aventureiro audacioso. Em honra da sua for-
mosa soberana deu o nome de Virgiiúa a uma
vasta extensão das costas da America do Norte,
e esse nome ficou a um dos Estados meridionaes
da União Americana. Está limitado ao nofte
pela Pensylvania e pelo Maryland, a leste pelo
Oceano Atlântico, ao sul pela" Carolina do Norte
e pelo Tennessce, a oeste pelo Kentucky e pelo
Ohio, e abrange uma superfície de vinte mil e
duzentos kilometros quadrados. A natureza, for-
mando o solo doeste paiz, dividio-o era duas par-
tes bem diíferentes pelos seus caracteres physi-
cos: aqui uma planura elevada coroada pela cor-
dilheira dos Alleghannys, de clima temperado, de
vegetação septemtrional, de verdejantes alfom-
bras, e cujas perspectivas são tão opulentas
quanto variadas; além, do sopé d'estas terras ele-
vadas até ás praias do Oceano uma planície
em declivio, regada por innumcravcis correntes
de agua, primeiro pouco fértil emquanlo se con-
serva ainda afferrada ás montanhas, depois rica
e fecunda, mas ao mesmo tempo doentia e pa-
ludosa, porque as aguas correra lentamente de-
baixo de um céo de fogo. O tabaco, o arroz, o
trigo, são as riquezas d'esta zona, e as arvores
das suas florestas são o cypreste, e o sycomoro,
emquanlo o carvalho, o pinheiro, e o azevinho
cmbellczara os dislrictos occidentaes. Como de
certo os leitores já adivinharam, a paízagem, que
a nossa gravura representa, pertence á parle
montanhosa da Virgínia.
A mesma diíTorença se acha nas populações.
Aqui a raça é elevada, forte, vigorosa, c traba-
lhadora; não precisou de acorrentar o negro
Africano ao terreno que ella mesma lavra. O
habitante da planície, pelo contrario, mais deli-
cado, indolente, araigo dos prazeres, grande
amador de formosos cavallos, entrega aos escra-
vos todo o trabaliio. Eintorno dcllc meio milhão
de indivíduos agrilhoados protesta ou antes pro-
testava contra a sua ridícula pretensão ao repu-
blicanismo, virtude que só de nome conhece c
pelo exemplo de alguns homens illustres. O Vír-
giniano actual, da mesma lorma que o antigo co-
lono, é essencialmente aristocrata, c por conse-
guinte separatista; e comtudo a Virgínia foi a
palria de Washington c de JeíTersonl
Pelo que dissemos, é fácil de ver qual seria o pa-
pel adoptado por eslc paiz na ultima guerra; foi o
centro da confederação meridional; a sua capi-
tal Richmond foi tainbera capital dos Estados .se-
parados, e os Virgínianos resistiram com uma
intrepidez digna' de melhor causa aos seus ir-
o PANORAMA
245
Ponte natural na Virgínia.
mãos do Norte que pretendiam abolir a escrava-
tura; foram vencidos depois de uma guerra, que
espantou a Europa pelo seu encarniçamento, e
que produzio um tão grande abalo em todo o
mundo.
Não sabemos a que ficou reduzida a Yirginia
depois de essa tremenda lucla; em ISriO era ella
o Estado mais povoado da Confederação a baixo
dos de New-York e da Pensylvania/ Tinha um
milhão quatrocentos e vinte um mil seiscentos
e sessenta e um habitantes.
A região superior possue minas de oiro, de
ferro e de chumbo, mas as importantes são as
de ferro, carvão de pedra e sal. A agricultura e
a criação de gados constituem a principal ri-
queza da Yirginia; a cultura do tabaco tem
principalmente uma grande importância. Ainda
que a Yirginia ficasse muito atraz dos Estados
do Norte pelo que respeita a via de communica-
ções, comtudo desde 1850 empregarara-se nume-
rosos capitães na construcção de canaes e de ca-
minhos de ferro.
Era religião, a Yirginia oíTerece a variedade
de seitas habitual na America do Norte. A maior
parte dos habitantes são anabaptistas, mas ha
lambem methodistas, presbyterianos, episcopaes,
judeus, quakers, unitários, e universitários. Os ca-
tholicos estão já em grande numero, e tcem dois
bispos, um cm Richmond, outro em Wheeling.
Em estabelecimentos de instrucção publica é
esse Estado abundante. A universidade de Char-
lottesvilie, fundada em 1819, e que tem uma
rica subvenção do Estado, é um dos estabeleci-
mentos d'esse género mais consideráveis da Ame-
rica do Norte.
Não falíamos nas instituições politicas da Yir-
ginia; todas se baseavam na existência da escra-
vatura, c o resultado da ultima guerra transfor-
mou-as naturalmente, ou está-as ainda transfor-
mando.
A Yirginia divide-se em quatro regiões subdi-
vididas em cento e cincoenta condados. As suas
cidades principaes são Richmond, capital; Nor-
folk; Alexandria que tem dez mil habitantes^
uma academia, um bom porto, e um commer-
cio muito desenvolvido; Charlottesville, onde
existe a universidade de que falíamos, mas que
tem apenas dois mil e quinhentos habitantes;
Petersburgh com doze mil habitantes; ^Yheeling
com onze mil.
A GALATEA MODERNA.
IX
'Xo caiuarofc
Mal saí da platéa e entrei no salão foi-se-rae
diminuindo a pouco e pouco o Ímpeto e a espe-
rança de animo, que me apparenlava fácil a mis-
são. Não havia, porém, recuar. Decidira comigo
mesmo que era necessário haver as carias deYio-
lante, e jurara não descançar sem as obter.
Entestei, ou antes, arremelli com o corredor,
lai era o fogo heróico que me animava, e entrei
no camarote da baroneza.
Eslava só.
Eu linha relações antigas com ella, que me da-
vam azo a menosprezar a etiqueta mundana. Co-
nhecera-a quando era noiva ainda, e fazia andar
á roda a pobre cabeça do barão, que com ser bas-
tante óssea e dura, não era lá das mais robustas.
A baroneza teve sempre pelos modos certa sym-
pathia pelo barão, e fez d'elle ou base de
operações ou ponto objectivo, como dizia um cili-
ciai de bastante préstimo.
Este oílicial já ia na quarta parellela do sitio,
que puzera á baroneza, e preparava-se a saltear os
últimos reduclos, que promeltiam ruim defesa.
Não persigamos, porém, n'este terreno escorre-
gadio. Más línguas ha no mundo, que em tudo
lançam veneno. Sào ladrões da reputação alheia,
porque perderam a própria. De tudo fazem escar-
cèos. Microphylos descarados lhes chama o meu
amigo António Alvares, que não perdoa o idioma
hellenico. Matilha de cães açulados, lhe chamam
outros, que foram mordidos. Deixemo-nos, porém,
de divagações, e voltemos á questão. A baroneza
estava só. Mau guardião era o marido, que só vi-
via bem, quando deixava a esposa ao desamparo,
O que havia ella de fazer senão amparar-se a al-
guém? Apesar de bastante gorda e cheia de alvís-
simas carnes, não perdera a flexibilidade, a nati-
va elegância, o mimo que faz da mulher verda-
deiramente linda uma hera viçosa, que necessita
de enroscar-se ao tronco do roble, abraçal-o inti-
mamente, enlaçal-o em mil enleies, pára evitar
a queda. Mas se o tronco lhe falta, que muito c
que a mulher formosa se encoste ao primeiro ar-
busto, que SC lhe depare? Não mais se pôde ele-
var tão alio, ha de raslejar pelo chão ; mas, mais
lhe vale isso, do que emmurchecer de todo e ser
pisada.
A baroneza assim fez. Fallou-lhe um esteio fir-
mou-se n'outro. Era, porém, de uma pujança ad-
mirável ; era uma natureza vigorosa e robusta ;
era como as juncas de Java, cujas latadas nalu-
246
O PANORAMA
raes cobrem as serrauic;s. Pouco era um esteio só,
para sustentar as ramadas abundantes, que cada
vez cresciam mais e se espanejavam á folga aos
raios da amorosa paixão do amor fervido. Os seus
cabeilos. que a cobriam até os pés, eram outras
tantas raizes, que, em terrenos fecundos, deitam
os próprios troncos. Caiecia, pois, de muitos e
muitos esteios. E o que havia de fazer a pobre ba-
roneza? Haverá por ahi alguém que sonlie ainda
pai'aizos descorados c scandinavos? Que velo o
rosto e fuja para os gelos do polo. A baroneza é
do meio-dia. Por isso agairou-se ao primeií-o es-
teio, depois ao segundo, ao terceiro, e a mais ou-
tro e outros. Que lá contal-os não sei eu, nem
]iosso. Não sou foi'te em números, c quando se
trata de mulli|)lica{'ões erro quasi sempre. O que
é certo eque a baroneza deu-se perfeitamente com
o tratamento. Eia, pelos modos, tlierapeutica boa
de levai". Não parecia disposta a mudar para os
boma^opatlias... que só receitam doses muito pe-
quenas. Remédios heróicos são sempre os melho-
res.
Saúde ou morte.
Aconteceu, porém, com a baroneza, o que sem-
pre acontece em casos idênticos. À medida que
tomava o remédio ia-se acostumando a ellc e tinha
de augmcntar as porções. Chegara, a final, a do-
ses verdadeiramente grandiosas e assustadoras.
Os liames que a sustinham aos diveisos robles
iam-se afrouxando mais e mais. Por isso succe-
diam-se estes a miude, e cada qual por sua vez oíTe-
recia encosto á formosura peregrina, que não podia
viver sem i'esguardo e abrigo, apesar da pujança
e valentia de que era dotada. Altos mysterios phi-
siologicos, que obrigavam a baroneza a espalhar
innumeros braços por toda uma Uoresta. É que a
trepadeira cada vez linha mais viço e frescor. Ne-
nhuma apresentava tanta robustez. Nenhuma se
desatava em tantos fruclos, sem que as rosas do
rosto se desbotassem por isso.
Era uma crealura singular a formosa c miinda-
r.al baroneza !
Entrei, pois. Pela terceira vez o digo, e será
esta a ultima. Estava a baroneza encostada leve-
vemente ao braço dii-eito, o qual se apoiava no re-
bordo do camarote. Os seus olhos dirigiam-se dis-
Irahidos para lodos os silios, sem que um ponto
determinado lograsse caplivar-lhc a allenção. Pa-
recia aborrecida. Não procurava ninguém, ponjue
o seu rosto denotaNa apenas enfado. Também não
esperava, porque tinha as costas voltadas jiara a
poria da plalea.
— Minha senhora, disse eu, mal me assentei ao
fundo do camarote. Muito ha que não lenho o
prazer...
— Phrasc óca e sonora, que não (jncr dizer na-
da. I)iga-me ao que veio. Estou lendo nos seus
olhos que me quer pedir alguma cousa, algum \)g-
(lueno serviço consoante cora o meu fraco prés-
timo.
E a baroneza abaixou modeslamenle os olhos,
como quem ostá cônscia do seu podeiio.
— São os olhos espelho da alma, na qual se re-
trata fielmente o nosso pensar, disse necessária"
mente algum dos sete sábios da Grécia.
— E se elles o não disseram, dil-o o senhor, o
que c o mesmo.
— Agradeço do intimo a exceilenle opinião que
tem de mim.
— Vamos, vamos. Estou impaciente. Já sou bas-
tante velha para dispensar comprimentos gongo-
ricos.
A baroneza abaixou outra vez os olhos, e con-
templou, atravez dos rendilhados do leque chinez,
o seio túrgido que arquejava divinamente.
— Obedeço, como sempre, ás ordens deV. Ex,"
— Se obedece, obedeça já.
— Em i)rimeiro lugar, devo dizer-lhe que está
um calor insupporlavel, provavelmente porque não
ha ventilação no theatro.
— Bom. E depois?
— Em segundo lugar, que Mongini lem canta-
do de um modo admirável.
— Exceilenle. E depois?
— Em terceiro lugar, que Y. Ex." está impa-
ciente, e eu impacientissimo.
— Admirável. Sabe adivinhar... como simples
propheta. Avie-se. Continue.
— Em quarto lugar, que sou péssimo diplomata.
— Adivinhou agora.
— E a final que...
— Sejaaíloito. Conte desde já com uma recusa.
— Pois então ha de ouvir-me até o fim. Yenho
aqui cheio de humildade e conlricção pedir-lhe
que me dè noticias circumstanciadas do amor de
Violante.
— Oh! Isso é fácil, respondeu a baroneza der-
rubando os sobrolhos e litando-me de um modo
singular. Isso é facillimo. Violante foi como Ophe-
lia. Foi vogando rio abaixo, colhendo as rosas,
que encontrava, até se perder no oceano ignoto.
— Isso é tudo e é nada ao n^esmo tempo.
A baroneza sorrio acremenle, como quem lhe
peza lembranças de scenas desagradáveis, que o
tempo foi oblilterando.
Calou-se um ))ouco, agitou o leque com a mão
febiil, ao mesmo tempo que os olhos pareciam
vasculhar o passado, e atlugentar para longe as
sombras, que o encobriam.
— Sabe o que pede? Um impossivel.
— Já esperava essa resposta, c vinha preparado
para ella.
— Então i)ai'a que teimou?
— Porque quiz convencer-me.
— De que?
— De (|ue V. Ex." foi a actriz d'esse drama,
cujo enredo tenho na mão.
— -Menos philaucia, raro mio, como dizem os
cantores que estamos ouvindo.
— Oh! minha senhora. Eu não sou romancista.
D''essa pecha estou livre. Nasci, porém, em ruim
conjuncção, que foi a de Mercúrio com Marle.
Desfaço enredos c ando em guerra com os precon-
ceitos. Tal é o meu horóscopo. O meu amigo An-
tónio Alvares, que é ura sábio, leu a minha sorte
nos astros.
o PANORAMA
247
— António Alvares! Pois ainda vive esse ori-
ginal?
— São e escorreito, como sempre. Não ha mal,
que o acabrunhe. Lá está eiie na platéa approvan-
do cora a cabeça o rondo da prima-dona. Jurou
pelos penates qiic nunca havia de dar palmas,
ainda que o enthusiasmo transponha o delirio. É,
com efleilo, um original.
A baroneza seguio com os olhos a direcção que
eu indicava.
Fez-se pallida, corou depois ligeiramente, c ci-
ciou :
— Sabe uma cousa? Não me aprazem conspira-
dores.
— Já não ha conspirações.
— Mas ha tramas horrendos e calumnias infa-
mes.
— lia sim, minha senhora, assim como a so-
ciedade encobre muita ulcera e muita chaga. Os
que as descobrem não calumniam. Mostram a po-
dridão, para que todos se acautelem.
— E fazem bem, interrompeu a baroneza com
um arcontricto deMagdalena paradisiaca. O peior
é que os incautos deixam-se sempre apanhar.
Deixemos, porém, moralidades, e vamos antes ao
seu pedido. Supponha que não posso contar-lhe
nada. Perde muito com isso?
— Muito. Uma historia patética narrada por
V. Ex." é manjar, que não posso regeitar. As suas
palavras, minha senhora, são pérolas.
— Então se perde só isso, não perde muito.
^ — Mas não só isto. Está enganada. Y. Ex.% que
foi amiga intima da pobre Violante, conhece a
historia a fundo, com todas a individuações; tem
talvez algumas cartas. . .
— Traidor! Apanhei-o em íim. É um perfeito
Machiavel. É um negro politico. Dissimulou.
— Quem não sabe dissimular não sabe reinar,
disse o mesmo Machiavel, no seu livro Do Prín-
cipe. E se bera que eu não queira reinar, quero
saber a verdade para meu governo e socego de
animo.
— Pois bem. Vou-lhe dar um conselho... em
vez das cartas.
— Tudo, tudo minha senhora, para o favor ser
completo.
— Não seja tão ambicioso, que se perde. Nunca
peça d'esses favores a uma mulher, que conhece
o mundo e ainda não fugio d'ellc.
— V. Ex.'' não pôde abandonar os seus súbditos.
— Lisongeiro! Menos ironia por favor, c mais
verdade. Sabe, por ventura, as ligações que hou-
ve entre mim e Violante? Sabe se eu posso atrai-
çoar uma amiga, que, apesar de haver desconliado
de mim, alliou-se comigo como nunca fez com ou-
trem? Conlidencia oral, não a espere. As car-
tas... queimei-as.
— Ainda que V. Ex.« fosse Vestal, e só tivesse
esse combustível para alimentar o fogo sagrado,
estou certo que o deixava apagar.
— Engana-se, As cartas queimavam-me c por
isso... queimei-as. Paliavam ellas de uma época fe-
liz de vida nas tribulações do presente, c a sau-
dade tem, ás vezes, tantos espinhos, quando a
esperança bale as cândidas azas ! Ah ! meu caro
amigo, e sei que posso dar-lhe este nome, não
pode comprehender as immcnsas dores que hei
soílVido sob falsas apparcncias de felicidade e
vcniura. É o mundo um com[)le\o de mentiras, e
a calumnia, sempre a calumnia... Lcmbi'c-se da
ária de D. Basilio.
— Perfeitamente, minha senhora, liem sei eu
o que é o mundo. Bem sei o que são as mil ca-
lumnias que se revolvem nos charcos como os in-
fusor-ios. V. Ex.% porém, está illesa.
— Ninguém evila o veneno.
— O contravencno é a verdade. Não conheço
outro antidoto,
— Oucm a quer ouvir?
— Eu.
— Pois bem. Ouvil-a-ha toda e inteira, mas
como a representavam os antigos, hedionda até.
Amei um dia. Enlouqueci, não lhe parece? Amar
n'este século é assignar a própria sentença. Amei
com as veras de um coração frivolo, que de re-
pente se sentio preso. Foi um delirio, que nunca
passou. Foi uma vertigem. Depois... lia no de*
serto um vento desolador, que arranca as ar-
vores mais annosas, derriie casas, cresta a sel-
va, secca as fontes e espalha por toda a parte
a morte e a destruição. Quando sopi'a esse vento
infernal erguera-se vastas ondas de arôa, que cor-
rem encapelladas, como mensageiras do demónio.
Desgraçados dos peregrinos que são colhidos
por esla vaga furiosa. Nada lhes resta senão a
morte. Suíí'oca-os a arôa, que lhes escalda o san-
gue nas veias. Morrem tisnados e sepultos nas ira-
mensas moUes abi-asadoras, que os tragam como
monstros eni'aivecidos. Depois cessa a tormenta.
Vão crescendo as arvores nos oásis ; tornam as
naiades a chorar nas grutas ; reverdecem os rel-
vedos ; mas não resuscilam os mortos. Pois o meu
amor foi como o vento do deserto. Causou a mor-
te de um ser querido, cuja vida eu resgatara á
custa do pi-oprio sangue. Ahi tem a historia. Abrio
as fei-idas, e o sangue corre em fio. Foi bárbaro.
Deus lhe perdoe, e a mim, que pequei. Enviar-
Ihe-hei as cartas amanhã. São poucas, porque pou-
cas foiam as que escapai"am ao fogo. Esci"eva ago-
ra o 'seu livro.
— Deus me livre, senhora.
— Escreva. Os mysterios, que revelar, só eu
os conheço, e o seu amigo António Alvares. Elle
que lhe conte o resto. As cartas de Violante po-
dem guial-o. O mundo, se ler o livro, cuidará
que tudo foi obra de uma imaginativa creadora e
fecunda. E oxalá assim fosse !
— Não agradeço, porque estas cousas não se
agradecem. Não tenho mei-ecimentos para ser o
confidente de V. Ex." Eu só queria apurar a ver-
dade. Perdoe-me, pois, V. Ex." ^
Despedi-me e saí. Descrever ao leitor o meu
espanto é obra superior ás minhas forças. Conti-
nuaria a baroneza a representar o seu papel?
Continuaria a ser actriz consummada? Seiia men-
tira o que me disse ? Amaria ella alguma vez na
248
O PANORAMA
vida? Teria espinhos alguma rosa das muitas que
colheu? A minha ignorância era supina e cabal.
Vagava em um mar de duvidas, sem norte e sem
rumo. Felizraenle, porém, o meu amigo António
Alvares i)romellèra-me as suas confidencias, as
quaes. combinadas com as carias de Violante, po-
deriam guiar-me na resolução d'esse problema,
que se denomina Alfredo de Mello. Se eu podes-
se, em fim, apanhar esse camaleão, que por tan-
tas vezes zombou dos meus estudos mais profun-
dos e aturados !
Fui ter com António Alvares; contei-lhe o que
tinha passado com a baroneza, e, ao mesmo tem-
po, exigi-lhe o cumpiimenlo da sua promessa
Foi todo o outro dia entregue a eonlidencias, a
leituras de cartas, a confronto de documentos.
Depois comecei o livro, e aonde me falhavam car-
ias (e muitas e repetidas eram as falhas) tive eu
de compor, seguindo, todavia a verdade, que me
era indicada por António Alvares.
Tal e a razão porque eu tive de tomar a ])ala-
vra, quando o leitor esperava, talvez, alguma car-
ta de Alfredo de Mello. E agora que é tempo de
encerrar este já longo parenthesis, prosigamos na
nossa narrativa com a máxima rapidez.
A. O. DE Vasconcellos.
UMA OBRA DO SÉCULO IX
CHROMCON ALBELDENSE
Começa a ordem dos nnno.s referida brevemente
Vllí — Desde Adão até o diluvio, MMCCXLII.—
Do diluvio a Abraham, DCGGGXLil annos. — De
Abraham a Mosés^ DV. — Da saída dos Israelitas
do Egypto, até a sua entrada na terra da Pro-
missão, XL annos. — Desde esta entrada até Saul,
primeiro rei de Israel, depois dos Juizes, GGCLVI.
— Saul reinou XL annos. — Desde David ate o
principio da construcção do Templo, XLIII annos.
— Desde a primeira edificação do Templo até a
transmigração de 13abvlonia, houve Keis por
CCGCXLIII ânnos.
No anno LXX do capliveiro do Povo e desola-
ção do Templo, foi este restaurado por Zorobadel.
— Desde a restauração do Templo até á Encarnação
de Ghristo, decorreram DXI. annos.
Deduz-se do que ficii dito, que todo o le^Tipo,
decorrido desde Adão até á vinda de Ghristo, foi
de VMGXGVIIJI annos.
Da Encarnação de N. S. Jesuchristo ao primeiro
anno do reinado do Principe Wambano, DGLXXII
annos.
Do tempo de Wambano até o nosso, que é a
Era DCCGGXXI, passaram GGXI annos.
Gollige-se, finalmente, que todo o tempo, desde
o principio do Mundo até a lira presente, DCí^CGXXI
c XVIil anno do reinado do nosso Principe Ade-
fonso, filho do glorioso Hei Ordonio, foi de annos
VIMLXXXII ; e da Encarnação do Senhor até nós
DCGGLXXXlIi.
DuN moín IdadeM do itiiindo
IX — Primeira idade: de Adão até o diluvio,
MMGGXLIl annos.
Segunda edade: do diluvio até Abraham, annos
DCCCCXLII.
Terceira idade.- de Abraham até David, annos
DGGGCXLI.
Quarta idade: desde David até a transmigração
de liabylonia, GCGCLXXVI annos.
Quinta idade: desde a transmigração até Ghri-
sto e o Imperador Octaviano^ em cujo tempo da
Virgem Maria e do Espirito Santo nasceu Gliristo.
Sexta idade : due começa desde Ghristo, tem
agora na era de 1)GCCGXXI,' DGCGEXXXIII annos.
— Quanto sobre isto se pretenda saber, só de Deos
é conliecido, para nós occulto, como o diz o Se-
nhor no Evangcllio. «Não é para vós o conhecer
os tempos, nem os momentos que o Pae conserva
sob a sua potestade.»
(Continua)
EVGMOULA
Canto grego
Evgmoula a bella acaba de casar-se; acaba de
unir-se a um marido pallikar.
Ella gaba-se de não temer a Morte; um mau
pássaro, porém, vai dizel-o a esta, e a Morte dis-
para-lhe uma frecha fatal.
Evgmoula começa a cmpallidecer : «Minha mãe,
digo-te adeus; vesíe-me com os meus vestidos de
noiva, e quando etie vier, o meu querido Gons-
tanlino, não o aíflijas, e prepara-lhe a ceia. Toma
esta alliança, e entrega-a a Gonstantino para que
elle possa novamente ligar-se a outra esposa, atim
de adquirir novos parentes, alcançar novos ami-
gos.»
Constantino atravessa o campo a cavallo, com
quinhentos senhores c mil pallikars. Vê uma cruz
á sua porta c padres no pateo.
«Morreria algum dos meus?»
Mette as esporas ao cavallo c entra no pa-
teo: «Eu vos saúdo a todos. Para quem é este
esquife ? — Evgmoula, a formosa Evgmoula mor-
reu!
«Faze a cova, coveiro, faze a cova para duas
pessoas; uma cova larga, uma cova profunda.»
Em seguida puxou do seu punhal c cnter-
rou-o no coração. Foram ambos para a mesma
cova.
Sobre esta cova brota uma ftôr, sobre esta
cova brota um cypreste ; c quando o vento sa-
code os ramos, "a ílôr e o cypreste abraçam-sc.
AGUA DOGE SOBRE AGUA SALGADA
Encontram-se na Noruega golphos, ou fiords,
onde a agua é doce na superfície c salgada no
fundo. O doutor Berna, Vogt e Gresoly na sua
viagem ao Norte, estudaram um ftord onde a
agua salgada começava a 1"',5(), pouco mais ou
menos, de profundidade. A agua doce, mais leve,
conduzida pela ril3eira, conservava-se à superfí-
cie. A draga trazia do fundo ouriços, conchas c
peixes do mar. As algas c outras plantas maríti-
mas apresentavam uma vegetação miserável, pois
a agua doce, que é hostil ao seu desenvolvimen-
to, substituia durante o verão a agua salgada.
Esta, porém, predomina no inverno, quando os
regatos e ribeiros, formados pela fusão da neve,
param ou congelam, e os ventos vecm perturbar
as tranquillas aguas do fiord, c misturar a agua
salgada do fundo com a doce da superfície.
Tyj). Frnnco-1'orlguczn, Riia do Thcsouro Velho, 0.
32
o PANORAMA
249
o feld-marechal de Benedek
Bastante conhecido é hoje, entre nós, o nome
d'este homem de guerra, e bera vulgares os seus
recentes feitos, para que nos detenhamos em uma
descripção minuciosa do papel que tem desem-
penhado na pendência entre a Áustria e a Prús-
sia, que traz suspensos todos os povos da Europa.
Publicando, porém, o seu retrato, ao qual suc-
ceder-se-hão, certo, os de lodos os outros perso-
nagens importantes, que andam empenhados na
sangrenta lucta, não podemos deixar, apesar mes-
mo de outros, n'esta parle, nos haverem prece-
dido, de acompanhal-o com duas palavras bio-
graphicas.
Luiz de Benedek nasceu em Oldemburgo no
anno de 1804. Seu pai, medico, mandou-o edu-
car no collegio militar de Neustadt, e, em 1822
entrou como porta-bandeira no exercito austria-
co, onde, subindo rapidamente de postos, altin-
gio o de coronel em 1843. Dous annos mais tar-
de, tomou uma parte activíssima na repressão
dos movimentos revolucionários da Gallicia, ob-
tendo, por essa occasião, as insígnias da ordem
de Leopoldo. Em 1848, eil-o na Kalia dando aos
seus soldados o exemplo do valor, do sangue-frio,
por occasião da retirada de Milão, e distinguindo se
em Curtatone, onde oppoz uma tenaz resistência
aos Ímpetos immoderados dos estudantes de Tos-
cana. Mencionado na ordem do dia pelo mare-
chal Uadetzky, o coronel de Benedek, em recom-
pensa d'estes últimos serviços, foi condecorado
com a ordem de Maria Thereza. Em 1849, termi-
nado o armislicio, contribuio para a entrega de
Mortara e combateu denodadamente á frente dos
seus soldados em Novara.
Nomeado major general no exercito do Danú-
bio, de Benedek augmenlou ainda a sua repu-
tação na campanha da Hungria, e com especia-
lidade no combate de Szornyeors-lvany, onde foi
ferido por um estilhaço de bomba No fim d'esta
guerra passou á Itália na qualidade de chefe de
estado maior do 2.° corpo do exercito, onde per-
maneceu alé o fim da gueira de 18o9. Depois
da balalha de Magenta, cobrio, de Milão para o
Mincio, a retirada do exercito austríaco, comba-
tendo energicamente em Malegnano. Em Solferi-
no, o general de Benedek, achava-se á frente da
ala direita, e depois da derrota, subsliluio o ma-
rechal Hess no commando superior do exercito.
Quando a paz foi assignada, de Benedek passou
a com mandar as forças austríacas do Veneto. O
imperador Francisco José, elevou-o, ultimamen-
te, á dignidade de feld-marechal e, emquanto o
archi-duque Albrelch foi a Verona tomar o com-
mando do exercito italiano, de Benedek recebeu
o do exercito do noite, reunido na fronteira da
Silesia. O feld-marechal de Benedek está consi-
derado como o militar mais eminente da Áus-
tria.
250
O PANORAMA
JOÃO DE MATTOS FRAGOSO
É o nome de um portiigiiez dislinclo, pouco de
DÓS conhecido, como, infelizmenle, muitos outros
engenhos que esta terra tem produzido, mas que
foi um dos mais infatigáveis dramaturgos do fe-
cundíssimo século XVII e um dos que alcançaram
maior celebridade no reino visinho.
João de Mattos Tiagoso nasceu pelos principies
d'aquelle século em Alvito, na província do Alem-
tejo, quando Portugal gemia sob o pesado jugo
castelhano. Estudou em Évora, e foi cavai loiro
professo na Ordem de Christo (1); mas, domici-
liado em Madrid, que ei'a então a corte, e, por con-
sequência, o ponto onde os talentos mais podiam
brilhar, ali se dedicou exclusivamente ao cultivo
das musas, com especialidade a dramática, até o
ultimo dia da sua ddalada vida, que foi a 18 de
maio de 1G92.
Do seu mérito como auctor portuguez nada po-
demos dizei-, j)or(jue não nos consta que escreves-
se obra alguma no nosso idioma ; como escriptor
hespanhol, porem, não acontece outro tanto : o
grande numero de comedias que produzio, as in-
contestáveis bellezas que em todas ellas, mais ou
menos, resaltam, a sua extrema facilidade em ver-
sificar, a ligeireza, a graça da sua expiessão có-
mica, e, finalmente, os grandes elogios que sem-
pre lhe teceram os homens de leiras da pátria de
Pelagio, tudo isto nos auctorisa a consideral-o co-
mo um talento notável e, por conseguinte, aapre-
sental-o como um dos melhores poetas castelhanos
do século XVII.
Rebentara então emllespanha uma d'essas gran-
des revoluções do espirito, sempre utilíssimas para
a humanidade, e que nós desejáramos igualmente
rebentasse entre nós, para que as letras pátrias,
até hoje tão votadas ao desprezo, podessem sair
do marasmo em que lêem vivido. A extraordiná-
ria excitação e, por assim dizer, o appetite sobre-
natural que as inesgotáveis veias de Lope e Odlde-
ron haviam gerado no publico para os espectácu-
los scenicos, necessitava de alimento diário, infi-
nita e continua variação ; e ainda que as quasi
innumeraveis producções d'aquclles colossos bas-
tassem para sortir durante um século inteiro os
theatros de toda a Europa, era tal a sede do thea-
tro hespanhol, que consummiac devorava estas c
não conseguia, ainda assim, applacal-a com os
centenares de obias com que também o brinda-
vam as fecundas pennas de Tirso, Roxas, Alarcon
c Mareio.
E é preciso notar que ao lado d'esles grandes e
privilegiados mestres da arte, apparcceram outros
muitos (|ue, com maior ou menor fortuna, lucta-
lam ii'a(|uelle esplendido palan(|uc do engenho,
contribuiiam para a erecção do sumptuoso monu-
mento nacional e alcançaram lauréis, mais ou
menos, immarcesciveis e duradouros. Estes, po-
rem, leriam sido menos felizes se o gosto do pu-
blico d'aquelle século, extraviado pelos magníficos
M; Dicc. Bibiliographico ; tom. 5." pag. 417.
erros dos seus primeiros génios, não houvesse
aberto tão larga porta á iriupção das medianias,
tivesse sugeitado a provas mais difliceis a ostenta-
ção do talento e o cultivo da poesia dramática. O
fheatro' hespanhol, então, não seria, seguramente,
tão rico, nem Ião abundante o catalogo dos seus
dramaturgos; em troca, porem, não seriam ecli-
psados os seus primoi'es pela nuvem de desacer-
tos que oflusca e contradiz a sua belleza.
Como em todas as obras, porém, nasce o abu-
so ao lado da sua maior perfeição, assim succe-
deu com o cultivo do Iheatro hespanhol na segun-
da metade do século XYII, tendo-se reduzido a
uma espécie de oflicio (que não sabemos se era lu-
crativo) e a corte de Philippe a uma immensa fa-
brica dramática, na qual o próprio monarcha da-
va o exemplo sob o anonymo de um engenho da
corte, obras, por certo, não as mais incoriectas;
seguiam-lhe o gosto c dramatisavani também os
coitezãos e favoritos, ministros, embaixadores, pre-
lados, conselheiros, pregadores, e até as freiras ;
lodos alternavam com o laborioso enxame de poe-
tas que ás ordens do rei e do Conde-Duque tra-
balhavam para sortimento dos coliseos dei Buen-
Retiro , dei Pardo y la Zarzuela.
Entre todos estes incansáveis cultivadores da
arte, sobresaia Moreto, como o mais engenhoso e
perspicaz dos fabricantes de peças theatraes ; e
não bastando ao seu extremo ardor a invenção
p.-opria e o seu talento admirável, lançava mão
das obras dos outros para adoplal-as, re*formal-as
ou refundil-as, melhorando-as, certamente, em
suas discretas mãos, ainda que renunciando á sua
própria espontaneidade e a uma boa parte do seu
credito e fama. Islo de que hoje o argue a criti-
ca, já lh'o lançaram em rosto os seus contempo-
râneos, e muito especialmente o poeta Câncer, que
no seu Vejámcn poético diz : « E no meio d'este
perigo reparei que D. Agustin Moreto estava as-
sentado e revolvendo uns papeis que me pare-
ceu serem comedias antiquíssimas de que já nin-
guém se lembrava. Estava dizendo comsigo : isto
nada vale, d'aqui j)óde tirar-se alguma cousa ;
mudando islo um pouco pôde- se aproveitar. Eno-
jou-me vel-o com aquelle fleugma quando lodos
estavam com as armas na mão, e dissc-lhe porque
não ia pelejar como os outros. Ao que me respon-
deu : Eu pelejo aqui mais do que outro quahjuer,
porque estou sondando o inimigo. V, repliquei,
parece-me que deseja aproveitar alguma cousa
d'essas comedias velhas. Exactamente, me tor-
nou ; é por isso que digo que estou sondando o
inimigo,)) ■
Não contente Moreto com aquella exhumaçãoe
apropriação de muitas obras dos poetas anterio-
res, formou, ao que parecis para attender ao sor-
timento com outras novas, uma espécie de asso-
ciação em commandita, pelo gosto da que reno-
vou Eugénio Scribe no moderno Iheatro francez ;
e o mais inleressantc é que o mesmo Câncer, (jue
o censurou, foi (le|)ois o mais intrépido dos seus
associados ou collaboradores- e tanto que se não
conhece comedia alguma exclusivamente sua, se-
o PANORAMA
25
não em concorrência com Mordo, Mattos, Villavi-
ciosa, Zavaleta, os Figueroas, Rosete, ele.
Foi n'osla estranha sociedade que trabalhou mui-
to activamente João de Mattos Fragoso, como po-
de ver-se em muitas das suas obias dramáticas,
taes como Caer para levantar, Amor hace hahlar
los mudos, El Principe prodigioso, El Redentor
cantivo. Solo piadoso es riii hijo, Oponer-se á las
estreitas, El mejor par de los doce, El letrado dei
cieto, El bruto de Babilónia, El vaquero empera-
dor, e outras. ^
Também imitou Moreto (ainda que não com igual
exilo) na censurável adopção de pensamentos,
planos e caracteres estranhos, de que se oíTerecem
entre outros exemplos as de Ver y creer, e El hijo
de la piedra, imitadas das de Tirso de Molina,Ía
firmeza en la hermosura, e La eleccion por la
rirtud. Não obslaiile, não [)odemos deixar de re
conhecer em Mattos nma grande dose de engenho
e de invenção própria, que lhe permiltiram pro-
duzir por si só meio cento de comedias, nas quaes
brilham o seu elevado talenlo, a sua fértil imagi-
nação e veia poética.
íContinua.)
PALESTRAS IIYGIEMGAS
o pão
As farinhas das gramíneas que são emprega-
das no fabrico do pão contêem um grande nu-
mero de principies, entre os quaes citaremos
como os mais importantes: 1." amido ou fécula;
12.° dextrina; íi." glúten; 4.° matérias gordas ; 5.°
saes; 6.° agua. Estes elementos combinam-se em
diversas proporções que dão ás farinhas suas
qualidades e seu valor commercial. A fermenta-
ção e a cozedura são os dois agentes da trans-
formação das farinhas em pão. A fermentação
que se opera na farinha amassada com agua, le-
vada a uma temperatura conveniente e posta em
contacto com um fermento (levadura de cerveja
ou massa um pouco antiga), consiste na sepa-
ração das matérias assucaradas e a sua transfor-
mação parcial em álcool e em gaz acido carbó-
nico. Este gaz, cuja tensão augmenta pelo calor,
dilata o glnten durante a cozedura, põe em
acção a sua elasticidade, e dá ao pão esse as-
pecto aréolar que caraclerisa uma boa fabrica-
ção. Ao mesmo tempo, os grãos da fécula, in
tUmecidos pela agua, dilatam -se, rebentam e
deixam transsudar a matéria gommosa solúvel
que forma o seu contheudo. Os diversos tempos
da fabricação do pão, factura do fermento, so-
vadura, eslensão e divisão da massa em boca-
dos, tudo isto se eíTectua já por meios mechani-
cos, já a braços; e a qualidade do pão depende
também, em 'uma certa medida, da habilidade
com que são conduzidos estes trabalhos : a co-
zedura contribue muito para o bom exilo. Em
Inglaterra, preparou-se, n'estes últimos annos,
sob o nome de pães não levedados {unfcrmented
hreads) um pão sem fermento, no qual o acido
carbónico proveniente da fermentação é substi-
tuído por este mesmo gaz fornecidb pela acção
do acido chlorhydrico introduzido na agua que
serve para fazer a massa sobre o bicarbonato de
soda misturado com a farinha. Este pão tem o
esponjoso e a eslructura vesicular do pão com-
mum. Os unfermcnted breads do doutor Whiling
teem grande consummo esão muito estimados cm
Londres. Os seus partidários attribuem-lhes, bem
entendido, uma multidão de vantagens sobre o
pão ordinário; mas é ponto duvidoso que a hv-
giene as ratifique: a ingerência da chimica na
preparação dos alimentos inspira-nos uma des-
confiança preventiva.
O pão está fabricado, importa reconhecer se é
de boa qualidade. Os processos scienlificos, tão
precisos quando se trata de julgar da adultera-
ção das farinhas, faltam aqui completamente, e
só o exame organoleptíco, isto é, o teslemunho
dos sentidos, nos pôde esclarecer sobre o valor
d'este alimento. O pão é de boa qualidade e bem
fabricado quando tem um cheiro e sabor agra-
dáveis; quando o miolo é homogéneo, cheio de
buracos, de dimensões íguaes, sem grandes aber-
turas; quando é muito elástico e retoma depois
de uma pressão o seu volume primitivo; quan-
do, em fim, diíficilmente se reduz a pó depois
de ter sido amassado com os dedos; a auzencia
de grumos de farinha e a adherencia interna do
miolo com a côdea são também indícios de boa
qualidade.
Seria um erro gravíssimo, no duplo ponto de
vista hygienico e económico, o pensar que a
qualidade do pão sobe á proporção que se apura
o peneiramento da farinha, que serve para o seu
fabrico. Tal cousa não se dá. Os trabalhos de
chimicos muito auctorisados, particularmente os
de Milton e Poggiale, teem demonstrado que o
farelo, regeilado como inútil para alimentação,
contém, na realidade, mais matérias albuminói-
des e por consequência mais azote do que a fa-
rinha bruta. Peneirando-se a farinha com muita
perfeição, enfraquece-se, por tanto, até certo
ponto, o seu poder nutritivo. A rapidez com
que o farelo engorda os anímaes é um facto de
vulgar notoriedade, que devera preceder as pro-
vas da chimica. Póde-se dizer, pois, que n'esta
matéria, como em muitas outras cousas, o me-
lhor é o inimigo do bem. Um pão muito branco
sustenta menos, é menos saboroso, e, além dMsso,
como todos os alimentos que abandonam pouco
residuo á elaboração digestiva, debilmenle esti-
mula as funcções do intestino, e, como o pró-
prio Hippocrates já o havia notado, torna o ven-
tre preguiçoso. Um hygienista insistio recente-
mente sobre este facto, e attribuio esta inércia
intestinal, tão commum em nossos dias, ao fa-
zer-se uso geralmente de um pão fabricado de
farinhas muito apuradas. A utilidade dos pães
grosseiros de centeio ou de cevada, e do pão
ainda mais ordinário, preparado com partes
iguaes de farinha e farelo, é uma contra prova
d'este facto.
O pão não é um alimento de boa conservação,
e a natureza chimica muito incerta dos seus ele-
mentos, bera como a grande quantidade de agua
que contém são a prova do que avançamos. Oo-
bre-se facilmente de bolor que lhe altera o gosto
e que lhe pódc mesmo communicar proprieda-
des toxicas. Este bolor umas vezes é branco,
outras côr de laranja, e o mais commummentc
verde. Cilaram-se já dois casos em que o uso do
pão coberto d'cstas manchas determinou mui
sérios accidentes. Em 1848, notou-se um bolor
vermelho, devido a um oídium particular, o
0'idiuni aurantiacum. Segundo M. Payen, que es-
252
O PANORAMA
(lidou particularmente esta alteração, este bolor
altera profundamente a constituição do pão: de-
compõe o amido em agua e cm acido carbó-
nico, e as matérias gordas e azotadas servem
jiara a sua vegetação. Certos hygienistas, e par-
ticularmente M. Guerard, que descreveu este pa-
rasita sob o nome de pcnicilliiim roseiim, não o
julga toxico por si mesmo. Não ha também mo-
tivo para que o pão assim alterado deva causar
suspeita. O melhor meio de evitar o bolor do
pão consiste cm dcixa!-o arrefecer ao ar livre e
em não o ler fechado cm um espaço muito aper-
tado.
iNesíes últimos tempos, a chimica, regulando
os principios constitutivos dos alimentos mais
usuacs e fixando as proporções de azote, de car-
bóne e de matérias gordas que encerram, pre-
tendeu scrvir-se d"este critério para classificar
as substancias alimentarias segundo a sua or-
dem de maior nutrição, e foi íevada a attribuir
ao pão uma força muilo reparadora. Nada dire-
mos sobre a infallibilidade dos jnizos da chi-
mica, que, para ser consequente comsigo mesma,
deveria, por causa da queslão do azole, collo-
car como alimento o carvão de pedra ao lado
do lombo de vaca; ha um azole nas combina-
ções alibilcs. e outro do qual a nutrição não
sabe o que ha de fazer. A vida, que é um reac-
tivo mais delicado que o cadinho e a balança,
dislingue-os perfeitamente um do outro. Coíii-
tudo. convém confessar que esta descoberta da
chimica está singularmente confirmada pela ex-
periência universal, que attribue ao pão proprie-
dades muito reparadoras. Esta vantagem é ainda
corroborada, pela appetencia geral cfue manifes-
tam quasi todos os povos por este alimento, e
por este facto notável que entre todos talvez
nunca provoque a saciedade.
O HOMEM QUE NÃO RI
conto arnbc
Existia cm um principado próximo do lago
Tchad, no interior d'Africa, uma família árabe que
havia sido forçada a emigrar pela lyrannia dopa
cha de Tripoli. Esta familia favorecida pelas cir-
cumslancias, is^o c, pela vontade de Deus, adqui-
rira em pouco tempo uma d"essas riquezas fabu-
losas de que se falia mulas vezes nas iVil e wnn
noilcs. O pai c a mãi morreram, deixando um
íilho que contava apenas dczeseis annos de ida-
de, mas, cuja tendência para o luxo e prazeres
não conhecia limites.
Zerzuri, (era o nome do herdeiro,) começou des-
de logo a dar grandes festas, e. portanto, inimedia-
tameiílese vio rodeiadode muitos amigos. A prodi-
galidade nasceu no meio dos prazeres : tornou-se
pródigo, CO dinheiro cscapou-se-lhe das mãos como
a agua que cac das nuvens. A pouco e pouco, ven-
deu escravos, palanqtiins, trens e casas; vendeu
mesmo as jóias de sua mãi. Trcs annos bastaram
l)ara consurnmar a sua ruina.
No dia seguinte ao da ultima festa. Zerzuri esta-
va esquecido. Já ninguém sabia ciue fura elle (juem
enchera a cidade de MeJlj com o seu fausto c a
sua generosidade; e quando o desespero o levou
a fazer-íc jornaleiro para ganhar o pão de cada
dia, foi um desconhecido que lhe estendeu a
mão.
Um dia que, vestido com uma gandura alva-
dia, como os homens do povo, estava assentado
junto de um muro esperando trabaliio, um es-
trangeiro de aspecto agradável parou diante d'el-
le e saudou o. Zerzuri correspondeu civilmente
ao comprimento, mas sem ousar levantar os
olhos,- tal era o seu estado de humilhação por
ler dado tão grande queda.
— Mancebo, lhe disse o desconhecido com voz
aíTecluosa; parece me que solTreis ; inleressa-me
a vossa presença. Adi viu lio na vossa physionomia
que já estivestes em melhor posição. Se quereis
trabalho, posso vol o dar.
As palavras do estranho fizeram rebentar as
lagrimas dos olhos de Zerzuri; e respondeu:
— Senhor, salvais-me a vida; Deos vos recom-
pensará. Minha mãi tinha lazão de dizer que
o Senhor dos mundos nunca abandona aquelles
que se entregam em suas mãos.
Dizendo estas palavras, filava os olhos no seu
interlocutor, que era um homem dos seus qua-
renta annos, de rosto synipathico, mas triste, e co-
berto com um vestido de seda verde. E accrescen-
tou com voz timida :
— Que emprego tencionaes dar-me ?
O desconhecido disse-lhe :
— Habito uma casa distante do fosso da cida-
de, em companhia de nove amigos. Vivemos ali
em um absoluto retiro. Necessitamos de alguen)
para servir-nos, e, sobre tudo, uma pessoa discre-
ta. A vossa physionomia convém -me. Vivereis
comnosco, fareis parte da nossa existência, como
se fosseis da familia. Tereis vestidos elegantes ; o
dinheiro não vos faltará, e Deos permittirá, sem
duvida, que vós gozeis, graças a nós, de uma
brilhante existência. Acceitais o emprego que vos
oíTereço ?
— Ouvir, é obedecer, exclamou Zerzuri, cujo
coração pulava de alegria.
— Primeiro que tudo, disse o homem de vestido
verde, tenho uma recommendação a fazer-vos: é
de respeitar o nosso segredo. Quando nos virdes
chocar, guardai vos de interrogar-nos sobre a
causa da nossa dor.
— O Creador não me castigou por que cu hou-
vesse commetlido o peccado de curiosidade.
Terminado este dialogo, que poucos instantes
durou, os dois personagens pozeram-se a cami-
nho, seguindo um atraz do outro, para o banho
mais rico da cidade, onde Zerzuri, sob as vistas
de seu amo, fez uma limpeza completa desde a
cabeça até os pés. Depois de banhado, e perfu-
mado, vio-se rodeado de negros que o vestiram
inteiramente de novo; tornando assim o mance-
bo a poder mostrar a elegância do seu corpo e
a belleza de suas feições^ que a jiobreza e miséria
não deixavam brilhar. R de uso entre os musul-
manos, despojar do fato velho o iiomein que en-
tra em uma casa na qualidade de creado.
{Coniinua)
Sapiens vilatn , miidr/uc prl/lu
Sil inrlitts, causas rcdncl libi. . . .
Horácio
O sábio (lir-vos-iia as razões porque uma cousa
c boa ou má, o que couvem cvilar e o que se de-
ve procurar. u::iá
o PANORAMA
253
Cathcdral de Rocbester
Elhelredo, o Saxoniu, rei de[Kent, pouco tem-
po depois da sua conveisão ao^chrislianismo, fun-
dou a igreja de Cantorbéry eíHochcster. A casa
de Bromlcyjoi dada a esla ullima no século VIU';
e depois, os bisj)os de Kochester ali tiveram sem-
pre um palácio. Esta igreja é pobre; a causa d'is-
to altribue-se ás frequentes e ruinosas invasões dos
Dinamarquezes. Durante a conquista, este estado
de pobieza chegou a lai ponlo, que o serviço di-
vino esleve interrompido por algum tempo.
A calhedral de Uocliesler, que se acha edifica-
da no centro da cidade e a uma pequena distancia
254
O PANORAMA
da rua principal, (em, como quasi todas as outras
cathedraes, a forma de cruz O seu comprimento
é de trezentos e seis pés: cento e cincoenta desde
a poria de oeste até o coro e cento e cincoenta e
seis desde este até a janella de Jeste. Á entrada,
no coro, tem uma nave, sobre o centro da qual
está uma torre, cuja apparencia é moderna ; eíTe-
clivamenle, foi restaurada ha quarenta e tantos
annos, época em que Hie (iraram o campanário. Esta
nave conla cento e vinte pés de extensão de norte
a sul. Na extremidade superior do coro tem uma
segunda nave para o oriente de, pouco mais ou
menos, noventa pés. Entre estas duas naves, ao
norte, existe uma torre muito arruinada, cuja al-
tura não excede a da cathedral, e que, em outro
tempo, era denominada a torre dos cinco si)}os.
Foi construída no reinado de Guilherme Ruius,
pelo famoso Gandulpho, ou para conter os sinos,
ou, talvez, para servir de archivo. Esta torre é de
uma solidez prodigiosa ; as paredes teem dez pés
de grossura, não obstante o quadrado não contar
mais de quarenta pés. Foi o mesmo Gandulpho
quem conslruio a grande torre da cathedral de
Rochester; está mui bem conservada e oíTerece um
dos mais curiosos modelos da architectura nor-
manda. A nave da cathedral e a bella frontaria de
oeste são também obra d'este hábil architeclo. O
lado do norte da nave oriental, foi levantado de-
pois de um incêndio que arruinou uma grande
parte da cathedral, em 1279, e a parte do sul foi
accrescentada no século seguinte. O coro foi cons-
tiuitlo nos reinados de João e Henrique III, com
o producto dos presentes offerecidos ao altar de
S. Guilherme. Este santo era um piedoso e rico
padeiro, natural da Escócia, que tinha emprehen-
dido uma peregrinação a Jerusalém; mas que foi
roubado e assassinado pelo seu criado, junto de
Rochester. Tendo sido enterrado na cathedral d'osta
cidade, a sua canonisação foi o resultado dos mi-
lagres que se operaram em sua sepultura.
Afrontaria de oeste é magnifica, masofferecedif-
ferentes géneros de architectura. A porta principal,
de que dá uma boa idéa a nossa gravura, abre-se sob
um arco de grandes dimensões, semi-circulare ri-
camente ornado; a parede, por cima dVslc arco,
parece eslar diviflida em ordens de nichos com
pequenos arcos. A maior parte d'esles nichos es-
tão mal acabados, e, além d'isso, foram cortados
para dar lugar á grande janella de oeste. Esta
janella c mais nova rjue as partes que temos des-
cri[)to : tem uma apparencia que não está em har-
monia com o resto As numerosas reparações fei-
tas na cathedral de Rochester, eram indispensá-
veis para a segurança do ediíicio, cujos pilares da
parle do sul se desviavam já um pouco da perpen-
dicular.
Entrando-se na cathedral pela porta de oeste,
descem-se alguns degràos até a nave que, na maior
parte, tem conservado o seu caracter primitivo.
As cinco primeiras columnas de cada lado pciten-
cem ao eslylo normando. Todas as columnas do
mesmo lado são diderentes, mas cada uma corres-
ponde exaclamentcá que lhe esláopposta. Porcima
d'esles arcos, existe outra ordem da mesma di-
mensão, entre as quaes se vêem arcos mais pe-
quenos com suas columnas curtas e maciças . Acha-sc
ahi uma galeria que communica com a escada cir-
cular nos ângulos da frontaria de oeste. Os arcos
do oriente da nave são de uma architectura mais
moderna, as columnas mais leves e lavradas com
mais perfeição; o tecto, de madeira, está sustentado
por anjos armados de escudos.
Dez degráos conduzem ao coro, por debaixo de
ura arco, sobre o qual está col locado o órgão. O
coro foi renovado em 1743, quando se lhe accres-
centou o Ihrono do bispo e os brincos do capitulo.
Por cima das naves orientaes ha quartos para os
quaes se sobe por uma escada construída na pa-
rede. É n'estes quartos que se guardam de noite
as vestes sacerdotaes, jóias, vasos sagrados e ou-
tros Ihesouros pertencentes aos aliares de S. Gui-
lherme, S. Paulino e outros santos que se vêem
no coro. A igreja subterrânea, que se estende sob
uma grande parte do ediíicio, e que se julgava
ler sido construída pelos normandos, não é, pro-
vavelmente, mais antiga que a frontaria de oeste ou
a torre de Gandulpho.
Encontram-se n'esla cathedral muitos monumen-
tos antigos e curiosos, entre os quaes é para no-
tar um simples tumulo de pedra, que contém, di-
zem, os restos do bispo Gandulpho. Ao pé d'este,
vê-se outro sobre o qual está esculpida, em már-
more, a figura de um bispo de Petworth. lia ain-
da muitos outros monumentos dignos de excitar a
curiosidade, entre os quaes se distingue o de Waller
de Merton, fundador do collegio de Merlon, em
Oxford. Este monumento é construído, em parte, de
alabastro, mas é de uma data moderna, relativamen-
te à época em que Waller Merton viveu. A nave
oriental da capella de S.Guilherme, contém o tumu-
lo do bispo Warner, fundador do collegio de Rrom-
ley. Um rico monumento colorido, e a figura de um
dos primeiros bispos de Rochester, foram desco-
bertos durante as reparações feitas na cathedral.
Na parte do sul vêem-se lambera o tumulo e o buslo
de Ricardo Watts Esquirc, que foi labellião de
Rochester e membro do parlamento no reinado de
Isabel. Fundou um hospício cm Rochester e mor-
reu em 1579. Eis os termos e estranhas condições
escriptas na frontaria da casa, que está situada
no centro da cidade :
(í Ricaido Watts Esr/uirc, por seu testamento
dalado de 22 de agosto de l.')79, fundou esle hos-
pício para seis pobres viajantes, com a condição
que não sejam ladrões nem procuradores ; recebe-
rão por uma noite pousada, comida e oito soldos
cade um, ele.»
Explica-se d'estc modo a causa da anlipathia de
M. Watts pnra com os procuradores. Tendo esco-
lhido, durant(í uma perigosa doença, um procura-
dor para lhe tratar do seu testamento, notou,
quando se achou reslabelecido, que o homem da
lei lambem se linha feito seu herdeiro.
O vinho abre o gabinete do coração c lira d'el-
le lodos os segredos.
o PANORAMA
255
A FORTUNA
Encontra-se o primeiro pensamento da admi-
rável fabula o Carvalho c o caniço n'estes poucos
versos de Lucilio, poeta grego que viveu no
tempo dos Antoninos:
«O que não pude a fortuna, a despeito da
nossa esperança e dos nossos votos! Eleva os
pequenos, abate os grandes. O leu orgulho, o
teu fausto, ella os abaterá, ainda mesmo que
um rio te prodigalisasse as suas palhetas de
ouro. O vento nunca derriba o junco c o mus-
go, mas deita por terra os carvalhos colossaes e
os altos plátanos.»
O CONDE ALLAMISTAKEO
A isto seguio-se uma serie importuna, alroado-
la, de questões e cálculos, pelos quaes, a final,
se poude descobrir que a antiguidade da múmia
tinha sido pessimamente calculada. Havia cinco
mil e cincoenta annos e alguns mezes que fora
depositada nas catacumbas de Eléthias.
— Mas, a mini a observação, tornou o barão de
Souza, não dizia respeito á idade de V.Ex." (aqui
o conde abrio muito os olhos) na época em que
íoi sepultado, — todos nós não podemos deixar de
concordar que Y. Ex.* é muito novo ; — eu refe-
ria-me ao grande periodo, durante o qual, segun-
do a explicação que nos deu, esteve de conserva
no asphalto.
— Em que? ! disse o conde.
— No asphalto, repetio o barão.
— Ah ! sim ; lenho como que uma idéa vaga do
que quer dizer: — eífectivamenle isso podia pro-
duzir bom resultado ; mas no meu tempo só se fa-
zia uso do bichlorureto de mercúrio.
— Mas o que deveras não podemos comprehen-
der, disse o doutor Alexandre, é que, tendo V. Ex.«
morrido e sido sepultado no Egypto, ha bons cin-
co mil annos, esteja hoje perfeitamente vivo, e
com um aspecto de saúde admirável.
— Se n'essa época estivesse morto, como diz,
— replicou o conde, — é mais do que provável
que n'esse estado ficaria ; porque, noto que os ho-
mens ainda estão na infância dogalvanismo, e que
não podem obter por este agente o que em ou-
lios tempos era cnusa vulgarissima. Mas o facto é
que eu havia caído em catalepsia, e os meus ami-
gos julgaram-me morto ou que o devia estar; foi
por isso que me embalsamaram immedialamente.
Provavelmente, conhecem o principio capital do
embalsamento ?
— Não conhecemos, não!
— Ah! comprehendo ; deplorável condição da
ignorância ! Não posso agora entrar nas particu-
laridades d'esle assumpto; mas é indispensável ex-
plicar-lhes que, no Egypto, embalsamar, fallando
com propriedade, era suspender indefinitamente
Iodas as funcções animaes submetlidas ao proces-
so. Sirvo-me do lermo animal no seu mais amplo
sentido, como implicando o ser moral e vital, e
bem assim a existência physica. Repito, o princi-
pio capital do embalsamenio, entre nós, consistia
cm suspender e conservar perpetuamente n'esle
estado todas as funcções animaes submeltidas ao
processo. Emfim, para ser breve, em qualquer es-
tado que se achasse o individuo na época do em-
balsamento, n'esse estado ficava. Agora, como eu
tenho a felicidade de ser do sangue do Scarabéo,
fui embalsamado vivo, tal como me estão vendo
presentemente.
— O sangue do Scarabéo! exclamou o doutor
Alexandre.
— Como diz. O Scarabéo era o emblema, as
armas d'uma familia muito distincla e pouco nu-
merosa. O ser do sangue do Scarabéo, é simples-
mente pertencer á familia da qual o Scarabéo é o
emblema. Fallo figuradamente.
— Mas o que tem isso de commum com o fa-
cto da existência actual de V. Ex.«?
— Antes de responder-lhe, permilta-me que
lhe faça uma pequena questão. Porque motivo,
em vez de senhoria teem empregado a palavra
excellencia ? Dar-se-ha o caso de se quererem di-
vertir á minha custa? Ridicularisarem-me?
— O' sr. conde! longe de nós semelhante idéa?
Temos usado da palavra excellencia, porque assim
se costuma tratar hoje as pessoas distinclas.
— N'esse caso estou em grande divida para
com o barão.
— Essa é boa, senhor conde, respondeu aquel-
le um pouco confuso.
— Pois, tornando ao assumpto; eíTectivamenle,
era costume no Egypto, antes de embalsamar um
cadáver, iirar-lhe os intestinos e os miolos : só
a raça dos Scarabéos não estava sujeita a isso.
Por consequência, se eu não fosse um doestes,
teria soífrido essa operação ; e viver sem essas vís-
ceras não é lá das melhores cousas.
— Comprehendo agora, disse o barão de Souza,
e visto isso, todas as múmias que vemos inteiras
são da raça dos Scarabéos.
— Sem duvida.
— Eu julgava, disse o padre Gilberto, que o
Scarabéo era um dos deuses dos egypcios.
— Um dos que dos egypcios ? exclamou a mú-
mia dando um grande salto e ficando de pé.
— Um dos deuses, repetio o viajante.
— Senhor padre Gilberto, estou deveras admira-
do de ouvil-o faltar d'esse modo, disse o conde
tornando a assentar-se. Nenhuma nação do mun-
do reconheceu ainda mais do que um Deus. O
Scarabéo, o Ibis, etc, eram para nós (o que ou-
tras crealuras teem sido para outras nações) os
symbolos, os medianeiros pelos quaes offereciamos
o culto ao Creador, muito augusto para ser dire-
ctamente aproximado.
Aqui fez-se uma pausa. O doutor Alexandre to-
mou então a palavra.
— Segue-se, pelas explicações que V. Ex." se
tem dignado dar-nos, que nas catacumbas que se
acham perlo do Nilo, existem outras múmias da
raça do Scarabéo em idênticas condições de vita-
lidade?
— Isso não pôde nem deve ser objecto de ques-
tão, replicou o conde ; todos os Scarabéos que por
incidente foram embalsamados vivos, estão vivos.
256
O PANORAMA
Alguns mesmos dos que foram embalsamados de
propósito podem ler sido esquecidos pelos seus
testamenleiros, e, por consequência, lá existem
ainda nas suas sepulturas.
— V. Ex.", disse eu, lem a bondade de expli-
car-me o que entende por embalsamados de pro-
pósito ?
— Com todo o gosto, rolorquio a raumia, de-
pois de me ter examinado bem com a luneta ;
porque era a primeira vez que eu me atrevia a
dingir-lhe direclamenlc uma pergunta. Com lodo
o gosto, disse ella. A duração ordinaiia da vida
humana, no meu tempo, era de oilocenlos annos,
pouco mais ou menos. Poucos liomeus morriam,
salvo por muito extraordinários accidentes, antes
da idade de seiscentos; lambem mui poucos viviam
mais de dez séculos; mas oito séculos eram con-
siderados como o lermo naíural. Depois da desco-
berta do principio do embalsamcnlo, tal como já
lhes expliquei, occorreu aos nossos philosophos
que se poderia satisfazer uma louvável curiosida-
de, e, ao mesmo tempo, servir consideravelmente
os interesses da sciencia, dividindo a duração me-
dia e Nivendo esla vida naíural por períodos. Re-
lativamente á sciencia hisloiica, a experiência
mostrara que se devia fazer alguma cousa n'este
sentido, alguma cousa indispensável. Um historia-
dor, por exemplo, tendo attingido a idade de qui-
nhentos annos, escrevia um livro ; depois fazia-sc
embalsamar com todo o cuidado, deixando ordem
aos seus testamenteiros pro tempore de resusci-
tal-o decorrido um certo lapso de tempo, — qui-
nhentos ou seiscentos annos, supponhamos. Tor-
nando à vida no fim d'essa época, encontrava in-
variavelmente a sua obra convertida em uma es-
pécie de caderno de notas accumuladas ao acaso,
isto é, em uma espécie de arena lillcraria aberta
às conjecturas contradictorias, aos enigmas e ás
contestações pessoaes de lodos os bandos de com-
menladores exasperados. Kstas conjecturas, estes
enigmas que passavam sob o nome de annolaçõcs
ou coirecçOes, tinham de, tal modo embrulhado,
lorluiado, destruído o texto, que o auclor via se
obrigado a andar n'esle labyrinlho com uma lan-
terna na mão á procura do seu próprio livro. Mas
uma vez achado, o pobre li vi o não valia os traba-
lhos que o pobre auclor linha lido para o tornar
a ver. Depois de rcescrevel-o de principio a lim,
restava ainda uma imporlanlissima tarefa, um de-
ver imperioso: era emendar, segundo a sua scien-
cia e experiência pessoaes, as tradições do dia con-
ceriKMile á época cm que primitivamente linha vi-
vido. Ora, este processo de recomposição c de re-
clilicação pessoal, seguido de temj)os a tempos
por diííerenles sábios, dava o resultado de a nossa
historia não degenerar cm uma pura fabula.
— Peço perdão, — disse o doutor Alexandre,
pondo a mão sobre o braço do egypcio, — peço
perdão, senhor conde ; mas, concedc-me (juc o
interrompa por um iiiomenlo?
— Por(|ue não! meu caro senhor, replicou o
conde, aíaslando-se um pouco.
— Desejava simplesmente fazer-lho uma per-
gunta, tornou o doutor. Y. Ex." fallou de correc-
ções pessoaes do auclor relativamente ás tradições
que diziam respeito á sua época. Em que propor-
ção, pois, se achava a verdade misluraíla com essa
Babel de men liras?
— Achou-se, gei almenie, que essa Babel de men-
tiras,— para servir-me da sua excellenlediíinição,
— estava exactamente a par com os fados referi-
dos na historia não refundida ; isto é, não se via
em circumstancia alguma um simples jota de um ou
de oulro que não fosse absoluta e radicalmente falso.
— ^Mas, visto ser tão claro, tornou o doutor,
que, depois do enterro de V. Ex.", lêem, pelo
menos decorrido cinco mil annos, tenho como cer-
to que os vossos annaes n'eGsa época, senão as
vossas tradições, eram sunicientemcnte explicitas
sobre um ponto de interesse universal, a Creação,
que teve lugar, como deve saber, pouco mais de
dez séculos antes.
— Senhor?! disse o conde, abrindo os olhos.
O doutor repelio a mesma observação; mas não
foi sem muitas ex|)licações addicionaes que conse-
guio fazer-se comprehender do estrangeiro. Por
lim, disse este, não sem hesitação:
— As idéas que apresenta, confesso que são
para mim inteiramente novas. No meu tempo,
nunca encontrei pessoa alguma a quem tivesse oc-
corrido uma idéa tão singular, que o universo (ou
este mundo, como lhe aprouver) podia ter lido um
principio. Piecordo-me, comludo, que uma vez,
e lambem única, um homem de grande sciencia
fallou-me de uma tradição vaga relativamente á
origem da raça humana ; e este homem servia-se
igualmente da palavra Adão ou terra vermelha.
Mas ompregava-a n'um sentido genérico, como re-
ferindo-se á germinação espontânea pela argilla,
— tal como uma iniinidade de animalculas, — á
germinação espontânea, de cinco vastas hordas de
homens, brotando simullaneamcnte em cinco par-
tes dislinclas do globo quasi iguaes enlre si.
Aqui, todos os da sociedade encolheram oshom-
bros, e um ou dois esfregaram o rosto com um
modo muito signilicalivo. O barão de Souza lan-
çando um rápido olhar pela região occipital de
Àllamislakeo, fallou n'estes termos:
— A longevidade humana no tempo de Y. Ex.%
unida a essa pralica fre(|uenle que nos tem expli-
cado, consistindo em viver por períodos, deveria,
na verdade, contribuir podeiosnmenie para o des-
envolvimento geial e accumulação de conhecimen-
tos. Presumo, pois, que se deve alliíbuir a infe-
rioridade notada dos antigos egypcios em todas as
partes da sciencia, quando se com|)a!am com os
modernos, unicamente à espessura mais conside-
rável do craiieo.
— Declaro novamente, replicou o conde com
toda a urbanidade, que não posso com[)rehender;
díga-me, de que parles da sciencia quer fallar?
A esla pergunta, toda a comjianhia, unanime-
mente, citou as aHirmações da jilirenologia e as
maravilhas do magnclismo animal.
(Continua. I
Typ. Frnnco-PoTlnguuzo. Rua do Thcsonro Volho, O
o PANORAMA
257
^'<j.í k
o Quadrilátero.
Foi breve a lucla nos históricos campos da Ila-
lia. Assignalou-a um fíraiule rcvcz, a balalha de
Cuslozza ; as inauditas victorias dos prussianos na
Bohemia, obrigando osaustriacos aaccudirem pela
defeza da sua capital, obstaram a que os exérci-
tos da Itália podessem tomar desforra da batalha
que perderam, vietimas dos inexplicáveis ])lanos
dos seus generaes. Hoje pôde dizei -se que a Itá-
lia deve Veneza e o famoso quadi-ilatero ao esfor-
ço dos prussianos ; não permittio a sorte que os
liihos da península realisassem o moto IlaUa fará
da se. Os Venezianos (|ue agradeçam a liberdade
próxima antes ao general Multlio e ás espingardas
de agulha do que ao esforço dos seus irmãos d'além
Pó. Não que faltassem aos italianos enthusiasmo
ai<lenle, brios guerreiros e generosas aspirações
(lo consolidar o novo leino com o esj)lendoi' das
victorias ; tinham biaços i)ara ferir, coi'ações in-
trépidos para exjxM- ás balas inimigas, mas care-
ceram de cabeça |)ara dirigir. Por mar e por ter-
ra tiveram soldados valentes, por mar c por terra
llie faltaram gcneraes hábeis; o esforço dos sol-
dados inulilisou-o a impeiicia dos chefes. Fntre-
lanlo, a|)iouve á fortuna dar-lhes, apesar dos re-
vezes, o que não souberam conquistar; mas mui-
tos outros resultados conseguiria a Itália se a vi-
ctoria coroasse os seus esforços. Não serão as ac-
quisições lerritoriaes tão extensas, e (luando o
fossem, quando a Itália ficasse verdadeiíamenle
livre dos Alpes ao Adriático, não ganhará no aug-
mento de território devido a alheios feitos a foiça
moral e a conliança no próprio valor que só a vi-
ctoria lhe podia dar.
Foram-se e não voltam os tempos em que a
duração das guerras se contava por annos e an-
nos. A ligação dos interesses económicos, os apu-
ros dos thesouros e o próprio aperfeiçoamento dos
meios de communicação e dos engenhos moilife-
ros tornam impossíveis guerras diuiuinas. Pou-
cos dias de combale abateram as soberbas águias
austríacas aos pés da Prússia, c excluindo o im-
pério dos llabsbourg da confederação germânica,
quasi o riscaram do rol das grandes potencias euio-
peas. Não deixa saudades, cm boa verdade seja
dito. l']sta rapidez com que as maiores guerras se
decidem, se é motivo para folgar a humanidade,
colloca em gravíssimos embaraços os jornacs (luo,
como osfrancezes einghzes. não dispõem de gi'an-
dissimos recursos. Assim foi (jue, apesar da sua
boa vontade, a empreza do Panorama só agora
^58
O PANORAMA
coiisegiiio oblcr uma gravura rcprosenlando o fa-|
moso quadrilátero, base da defeza da antiga fron-
ieiía militar austro-ilaliana. E a estreiteza do tem-
po obstou íanibem a que a pequena gravura que
hoje apresentamos, possa satisfazer a todas as con-
dições que seriam |)ara desejar. Entretanto, a suc-
cinla desciipção (|ue vamos dar, supprirá facil-
mente as imperfeições do desenho.
A poderosa fronteira militar de que as victorias
dos i)russianos privaram os austríacos na Itália,
e formada essencialmente por algumas ramilica-
ções dos Alpes, qne vão moi'rer nas planicies da
Lombardia c pela linha do Mincio, continuada
desde Governolo até o mar pelo curso do l*ó.
Nasce o Mincio no lago de Garda, e correndo
de noroeste para sudoeste, atravessa as lagoas de
Maniua e vae ilesaguar no Pó, em (íovernolo,
tendo pCi-corrido uns CG kilomcti-os (13 léguas).
No ponto onde o Mincio sac do lago de (Jarda está
a pi aça de Peschiera, uma das quatro do quadri-
la tero. O Mincio não é navegável entre Peschiera
o Manlua, e nas piimeiras sete legoas a contar de
Peschiera não apresenta diíTiculdades a um exerci-
to que pretenda transpol-o. Tem pe(|uena largura,
profundidade insigniíicante, vaus no verão, c do
iado italiano collinas que dominam a margem op-
posta desde Peschiera até Yallegio. De Vallegio
para baixo, o leito do rio alarga c entra nas fa-
mosas lagoas de Mantua.
Acima de Peschiera a fronteira ó formada pelo
lago de Garda e por montanhas que um exercito
so pôde atravessar por três estradas, que correm
cm desíiladeiros estreilissimos, diíTiceis e bem de-
fendidos.
Acoutar de Governolo, onde oMiiicio desembo-
ca no Pó, é este rio que defende a fronteira. O
Pó c largo, profundo, sem pontes lixas e dividido
em braços que cortam terrenos pantanosos, alaga-
diços e, em parte, inferiores ao nivel do rio. O exer-
cito que passasse o rio, da lialia ])ara o lado aus-
tríaco, ia desembocar n'"uma estreita tira de lei-ra,
cortada de pântanos, canaes e diques, entalada
entre o Pó c o Addige, c bem defendida pelos
austríacos nos pontos mais accessiveis.
Por detraz do lago de Garda, do Mincio c do
Pó, quasi paralellemenlc aos dous rios, corre o Adi--
ge, que desemboca cm Verona, das montanhas do
Tyrol, e vac desaguar no Adriático. É este rio de
corrente impetuosa, largo, profundo c sem vaus.
O Adige deve ser a verdadeira fronteira militar
dos italianos para o lado da Allemanha. l)isse-o o
maior capitão do nosso século e demonstra-o a con-
liguração do leri'eno. A linha do Adige, ás condi-
ções apontadas, reúne as circumstancias vantnjo.sas
para a defeza, (1(5 ser pouco extensa e de não ha-
ver meio de torncal-a, ponjue, de um lado, a de-
fendem as montanhas do Tyrol, e do ouiro, des-
emboca no Adiiatico. A distancia do Adige ao
Mincio e ao I'ó c pe(|uena, não excede oito léguas
nos pontos em que mais se afastam. Entre os
pontos mais pioximos não passa de três léguas.
Assim se vè, que o ponto mais vulni'ravel da
fronteira era a pequena extensão (sete léguas) do
curso do Mincio comprehendida entre Peschiera
e Vallegio, mas o exercito italiano que [)assasse o
rio entre estes limites (e assim o fez antes deCusloz-
za) linha nos tlancos as duas praças de Peschie-
ra, à esqueida, a de Manlua á direita, e na fren-
te o Adige e Verona, terceira e mais forte praça
do quadrilalei'o. A quarta e menos importante
é Legnago e não Legnano, como vulgarmente lhe
chamam, abaixo de Verona sobre o Adige.
Ao sul do lago de Garda, no centro de um am-
philheatro semi-circular de collinas, nas margens
(logoli)ho foi'mado por um prolongamento do lago
de Garda, entre a margem oriental do lago e a
península de Sermione, está a cidade c praça de
Peschiera, em cujo recinto o Mincio sae do lago.
Fica a cidade quasi directamente ao noroeste de
Mantua. E pequena, e ainda em 18í8 não tinham
grande força defensiva as suas forliíicações ; o
infeliz Carlos Alberto tomou -a sem gi-ande diíll-
culdade. Depois os austríacos augnientar^m lhe as
forliíicações.
Pelo íado do lago de Garda, que os austríacos
dominam com a sua esquadrilha, não era Pes-
chiera alacavel. Apesar d'isso é defendida |)or
uma linha continua de muralhas c por um grande
baluarte que domina o lago. A arlilheria das mu-
ralhas e do baluarte destruiria qualquer llotilha
não couraçada que pretendesse atacar a praça.
Na margem es(|uerda (auslriaca) do Mincio cons-
truíram um grande acampamento entrincheirado
que pôde conter lli mil homens e está abrigado
pelas forliíicações do Mandella.
Este acampamento domina a cidade propria-
mente dita que está assente na mai'gem italiana,
e é defendida pela antiga cerca que forma um
pentágono abaluarlado. Em torno do corpo da
praçaha 14 fortes isolados cujo fogo domina lo-
dosos arredores. A cidade liga-se com o acam-
pamento por meio de uma ponte estreita c bem
forlilicada. A artilhoiia d(! Iodas estas forliíicações
era composta, na data das ultimas noticias de 00
peças de Lahille, 120 do syslema prussiano, 30
peças de silio, 70 obuzes c iO morteiros. Total
:]2Í> boccas de fogo de grande calibre,
A importância de Peschiera não depende só da
sua força defensiva como |)raça de guei'i'a, mas
lambem do que conlribue para a defesa de iManlua.
Peschieia ô a válvula do Mincio. Ouando se abi em
as comportas que existem no interior da praça,
as aguas do lago de Garda coi-rem impetuosas c
vão inundar os arredores de Manlua. In-chando-se
as comi)orlas licn o Mincio (juasi em secco e Man-
tua emerge do seio das aguas.
Ao sudoeste de Peschiera, na margem direita e
no angulo reentrante de um lago pantanoso de 3
léguas (le extensão, está a cidade de Manlua com
uma população de 30 mil almas. O lago cerca-a
ao norte e ao oriente.
No lado do norte a cidade communíca com a
cidadella de Porto na m?rgem austríaca i)ela ponlc
d(! Molina. Ao oriente passa-se lambem para a
margen» austríaca por outra ponte que vai termi-
nar no forte do S. Giorgio.
o PANORAMA
259
A oeste a cerca do corpo da piaça é conslilui-
da por uma linha abaliiarlada precedida pelo
forte Belliore. Ao sul na margem italiana as obras
de defesa consistem exteriormente nas Irinclieiras
de um acampamento para 30 mil homens ; pela
j)arte interior corre uma linha abaluarlada que
vae do forte Migiiaretto até ode Portuelo ; no in-
terior d'esta liça o corpo da pi'aça. Fora do acnm-
l)amento na margem meridional está o forte Pie-
líde para defender as comporias que podem des-
pejar os lagos que cercam a [)ra(;a. O armamento de
todas estas forlilicações consta de 70 peças de Luhil-
te, 110 dosystema prussiano, 10 de sitio, 120 obu-
zcs e 00 morteiros. Total 400 boccas de fogo.
Ouando se abrem as comportas dePeschiera a
agua do lagode Garda enche o lago superior de Man-
liia e por mei o das comportas da ponte do Molina in-
unda lodos os arredores da cidade. Pelas comportas
(lo forte Pielole ou se despeja a agua para a parte
inferior do curso do Mincio ou se faz passar pelo ca-
!ial chamado Fosso-Pajolo para o lago inferior. Em
poucas horas pelo jogo d'estas comportas íicam
completamente cheios de agua os lagos, os fossos e
uma grande extensão de terreno em volta do acam-
pamento entrincheirado. Manlua é então uma
ilha cercada por extensos lagos que obstam aos
trabalhos de aproxes.
Ha em Mantua uma tone elevada do alto da
qual se fazem signaes para Verona ; de Verona os
avisos são tiansmittidos para Peschiera e á vista
d'elles se augmenta mi diminuo a inundação.
Finalmente a natureza pantanosa do terreno tor-
na mui doentios os arredores de Manlua e a ci-
dade.
Para completar a defesa do Mincio os austría-
cos lambem construiiam forlilicações ao longo do
rio nas pontos mais accessiveis.
(Continua)
COMO SE DETERMINA A DISTANCIA
DAS ESTRELLAS A' TERRA
Ha em astronomia factos que surprchcndcm
por sua grandeza, e sobrepujam de modo tal a
esphera das concepções habituaes do homem, que
se é tentado a pul-os cm duvida, apesar da af-
firmação dos astrónomos, e a collocal-os na filei-
ra das pretensões enganadoras cora que a scien-
cia algumas vezes se tem apresentado ao vulgo.
A este numero pertencem as principacs conquis-
tas da astronomia stellar; e, principalmente, as
determinações relativas á distancia das estreitas.
Procuraremos expor o mcttiodo de (pie se faz
uso papa obter estas distancias, c de afastar, por
esta exposição, a idéa desfavorável que um gran-
de numero de indivíduos ainda acceila contra os
cálculos perfeitamente fundados da astronomia
moderna.
Uma reflexão d'alguns momentos bastará para
fazer admittir que se a ferra se move no espaço,
durante o seu curso annual á roda do sol, deve
d''ahi resultar para nós uma mudança apparente
dos outros astros no céo. Ninguém ainda metleu
a cabeça pela portinbola de um vvagon que não
julgasse ver as arvores, as casas, as collinas^ os
diversos objectos que malisam o campo moverem-
sc em um sentido opposto ao andar do vchlculo;
os objectos mais próximos são os que, parece,
soffrem uma deslocação maior, em quanto que os
mais distantes movem-se lentamente, até o ho-
risonte, que se mostra quasi immovel. Resulta,
pois, do movimento da terra no espaço, que as
estrellas situadas em uma região do céo, da qual
a terra se afasta em uma certa época do anno,
parece que se unem, emquanio que aqucllas das
quaes a terra se aj)pi'oxima parece que se afastam
umas das outras. Este etfeito será necessariamen-
te tanto menos sensível quanto maiores forem as
distancias das estrellas.
Se se podesse medir o valor do desvio de uma
eslrella, occasionado pelo movimento da terra,
achar-se Ília a distancia d'essa estreita. Eisaqui
como :
Seja esta ellipse a curva seguida pela terra no
seu giro annual em torno do sol: seja S o sol,
T S T' um diâmetro da orbita terrestre, T e T^as
posições da terra nas duas extremidades d'eslc
diâmetro, isto é, a seis mczes deinlervallo (visto
que a terra faz o seu giro completo em uin an-
no) ; soja, emfim, E a estreita cuja distancia se
pretende medir.
Quando a terra cs!á situada no ponto T, mede-
se o angulo S T E, formado pelo sol, a terra e a
estrella; quando a terra estcá em T', mede-se o
angulo S T' E. Sabe-se que em todo o triangulo
a somma dos três ângulos c igual a dois ângu-
los rectos, isto é, a ISO"; logo, 'fazendo-se a som-
ma dos dois ângulos observados S T E c S T' E,
e diminuindo-se esta somma de 180°, ter-se-ha o
valor do angulo E, subtenso á eslrella pelo diâ-
metro da orbita terrestre. E este valor será tão
exacto como se nos houvéssemos podido trans-
portar á estreita para medil-a directamente. A
metade d este angulo, isto é, o angulo S E T, é
o que se chama paralaxe annual da eslrella E.
Assim, a paralaxe annual d'uma estrella, é o an-
gulo sob o qual um observador, collocado na
estrella, veria de frente o raio da orbita terres-
tre.
Tom.ando sempre observações correspondentes
a dois pontos diametralmente oppostos da orbita
da terra, obler-se-ha, no curso do anno. um gran-
de numero de medidas da paralaxe annual. No
nosso exemplo, e na nossa figura, a estrella está
situada no polo da ecliptica ; a operação c a mes-
ma, amda que um pouco menos simples, para as
outras diversas posições do céo. Na pratica obtcm-
se de um inodo exacto o valor dos ângulos S TE,
S T' E, comparando as posições successivas da
estrella observada a uma eslrella relativamenlc
fixa, que não tenha paralaxe. A grande maioria
das eslrellas acba-se n'estc caso.
As averiguações dos astrónomos teem demons-
trado que não existe uma só estrella cuja para-
laxe seja igual a 1". Todas lhe são inferiores. Pa-
560
O PANORAMA
ra se fazer uma idóa d'este valor, é preciso saber
que a circumfcrencia dos círculos astronómicos
que servem para as observações eslA dividida em
3(iO parles chamadas gráos. cada grão em 60 mi-
nutos e cadí minuto em tiO segundos. Este valor
de um segundo é tão pequeno, que um 'fio de
aranha posto sobre a relicula do óculo esconde
inteiramente a porção da esphera celeste onde se
elTeilLiam os movimentos apparentes das eslrel-
las iguaes, o máximo, a 1".
A estreita que estas espécies de observações
lêem confirmado estar mais perlo, é a oc da
conslcllação do Centauro ; a sua paralaxe é igual
a 91 centésimos de segundo (0."91). Da estrella
oc do Centauro o raio da orbita terrestre está,
pois, reduzido a O". 91. Ora, para que a grande-
za apparcnle d'uma linha recta vista de frente se
reduza a Õ".9l, é necessário que esta linha esle
ja a uma distancia da. vista igual a 2^(ií00 vezes
o seu comprimento, ií uma cerleza mathemali-
ca. Logo, a estrella a do Centauro esta afastada
2íG'iOO\ezes o raio da orbita terrestre, islo é átiOiOO
vezes 38 milhões de léguas, ou 8()U3200000()00.
É esta s estrella mais próxima. A luz, que per-
corre 70000 léguas por segundo, leva três annos
e oito mezes para chegar á terra.
A estrella que se segue é a Cl da conslellação
do Cysne. A sua paralaxe é igual a O". 3o. O mes-
mo raciocínio colloca-a a 589300 vezes o raio da
orbita terrestre, ou 2^2:735: 400:000000 de léguas.
A luz gasta nove annos e cinco mezes para atra-
vessar esta distancia.
Sirius está situado a U2 trilliões de léguas d'a-
qui. A eslrella polar, a 73 trilliões 9i8 milhares
de milhões; a luz leva um pouco mais de trinta
annos para chegar a nós, correndo sempre 70000
léguas por segundo.
Vè-se, pois, pelo exposto, que estes resultados,
por prodigiosos que pareçam á primeira vista, são
devidos a methodos matíiemalicos de uma gran-
de simplicidade. Toda a ditlicnldade d'eslas es-
pécies de determinações consiste na observação
extremamente minuciosa^ longa e penosa, da.
pcíiucna mudança da eslrella no cêo.
.I.VZIÍÍO i).V KAI.MI.V I). LUIZ.V DE GUS.MÃO
.\<> convento dm* yvU;^iosas iii-illn», porto do Iteiato
«A rainlia D.Luiza, desgostosa de seu filho
ei-rei D. Aílonso VI, depois de llio entregar
as rédeas do governo, (]no mantivera cum
milita prudência e íirniesa durante a sua
menor idade, cem circnmstan' ias graves e
ililliceis, reeollien-stí a este convento, estan-
do íiinda por acaljar, e n'elle falleceu pouco
iernpo/lei)f)is. O seu mausoléo erguc-se no
íôro. lí de mármore primorosamente lavra-
do.•
Sr. Víllimn Ttarlom, n prig. 2'/.") do
'." vol. í/o.Viicnivo I'rnoiiKS< o.
l,'m mausíiiéo de marnioic |)rimorosamenle la-
Mado |i;u.a 1). Liiiza di; (iiisinãol Um mausoléo
para a'|ii''lla laiiiiia, á (piai INiiliigal deve, em
parle, a sua independência I Pois c assim (iiic IN)!-
\\\ii\\\ costuma iccoiiqjcnsar os bcnenieiilos da pa-
Irial...
.Mas oxalá que assim fora ! Oxalá (|ue as cinzas
de I). Luiza de íjusmão, d'essa mulher heróica, a
(|uem l'('ilu;'al deve reievanlissimos serviços, não
estivessem ameaçadas de se perderem, como se
perderam as de AlTonso de Albuquerque, Luiz de
Camões, Duarte Pacheco Pereira, João Pinlo Ri-
beiro, e de lanlos outros varões illuslres.
Quereis enlão saber qual é o mausoléo primo-
rosamente lavrado, onde descançam os reslos mor-
laes de D. Luiza de Gusmão?
Ide ao convento das reli«;iosas Grillas, fundação
d'esla rainha (l); não demandeis o coro, mas di-
rigi-vos á capella móiv Entrai no vão que ha en-
tre o aliar mór, e a parede sobre a qual se acha
o Ihrono. N'esle vão voltai as costas para o coro.
Ficam-vos em frente umas corrediças de madeira,
que tapam uma abertura feita na parede. Abri
essas corrediças. Enconti-ais logo uma coroa de
latão, já com a côr algum lanlo desbotada. Sc
levardes creanças, talvez ellas hiinquem coit» essa
coroa, ou com ella se coroem, como eu o fazia,
(juando era da mesma idade. Ao pegar n"ella, ve-
j-eis um athaúde, envolvido n'um pano prelo.
Podeis lambem lirar o pano, e ver á vontade esse
athaúde. Pôde ser que a madeira esleja podre...
Sabeis o que se conta lerem os francezes feno ao
corpo de 1). Ignez de Casli-o, e os porluguezes a
lanlos outros?
Eis, pois. descriplo fielmente o mausoléo de
mármore primorosamente iavi-ado, onde estão os os-
sos de D.Luiza de Gusmão, da mulher de D. João IV,
(la lillia (lo du(|ue de Medina í-ddonia, da mulher
(]ue nascida hespanhola, conlrihuio paia a inde-
pendência de Portugal, da mulher (|ue fez com
(pie seu marido aceitasse a coiòa porlugueza (2).
D'uma mulher consultada por seu marido, porque
elle reconhecia no seu discurso soberana inlelli-
gencia, e era o sou peito o centro do segredo (3).
L)'essa, que dirigindo o leme do governo do esta-
do no lempo das maiores tormentas (i) guiou o
frágil balei por mares encapellados e por entre
lemiveis parceis a porlo de salvamento. D'essa,
que com sua valorosa constância, actividade, c
grande intelligencia fez mudar a face dos negócios
dos hespanhoes, que tão indecentes demonstrações
deram de alegria j)elo fallecimenlo de D. João IV.
M\ISOKL 1?ERNAIU)ES BltANCO.
INFLUENCLV DOS ETRUSCOS
... Os Etruscos, seja qual for a sua origem, fo-
ram um dos povos mais precoces e mais origi-
naes que existiram. Em vez de aspirarem ás
conquistas, senliam-se feitos para os cslabele-
cimentos trauípiillos, instituições civis, com-
mercio, arles, navegação, A qual muil.q favo-
recia a disposição das i)raias da Etruria. Em
quasi toda a Itália, até a Campania, fundaram
cidades coloniaes, propagaram as arles, esten-
deram o commercio, c é a clles que um gran-
de numero de cidades, as mais celebres d"aquel-
la região, devem a sua oi'igem.
flcrdcr
(I) Darliosa, Cnifilíjf/n ilas íidhilids, png. i'J8.
(J) Porluf/iil lifsiíutrddo, vo;. I.", \y.\g. 02, ed. 1710.
(:!) Id. pag. 2.'.!i.
i'ij Ilinitjiid dl- l>i,iliir/íil por uma sociedaiji' do liHvral' s iiiglczcs,
vol. 3.", pag. lii, eil. 178S.
o PANORAMA
26
Quinta e palácio de Knowle.
A quinta e palácio de KnoAvle, situados no cen-
tro de uma extensa tapada pouco distante da ci-
dade de Svenoaks, no condado delvent, são, como
muitas outras herdades que se encontram por todo
o teriilorio inglez, dignos, realmente, da atlenção
do estiangeiro A sua origem é perfeitamente des-
conhecida; ignora-se mesmo a época em que foi
edilieada a parte mais moderna da casa, Sabe-se,
porem, que no tempo do rei João, achava-se Bai-
íU\\n lie lietlun de posse d'esta propriedade e que
por successão passou ás mãos dos condes de Pem-
broke e de Norfolk. Uma paile considerável da casa
foi reduzida a cinzas no anno de lOlli, e durante
a rej)ublica, lendo sido sequestrada a pro|)riedade
por ordem de Crom>vell, ali se leunio o conselho
na grande sala que hoje serve de casa de jantar.
Esta magnitica pro[)riedade tem de circumferen-
cia perto de cinco milhas; o seu solo é riquíssi-
mo; e na immensa tapada, (]ue a rodeia, encon-
tra-se giande quantidade de veados que são mui
nomeados pelo excellente sabor da sua carne.
O cdiíicio termina em duas toriTS um pouco ele-
vadas, com três andares, tendo ao cenlio o grande
pórtico da entrada. Nos ângulos vêem-se diversas
estatuas bem cinzeladas, entre as quaes se distin-
guem as do Gladiador e de Yenus. A sala principal
tem setenta e cinco pés de comprimento, vinte e
sete de largura, vinte e sete de altura, e está guar-
necida de obras dos mais notáveis artistas, como
Rubens, (Jiordano, Suyders. Ali se encontram, uma
estatua lepresenlando Diógenes, o grande orador
grego, que é considerada como uma das melho-
res obras de estatuária da antiguidade, e, entre
outros muitos quadios admiráveis, o do triumpho
de Sileno, que é, talvez, a melhor produeção de
Tiubens. Nas outras salas também existe um gran-
de numero de pinturas, entre as quaes algumas
de g!'ande merecimento; e em uma das galenas
ve-se uma coUecção de retiatos de personagens
celebres que viveram nos últimos Ires séculos.
Kmlim, a casa de Knowle, interessante não só
pelo que temos dito e pela sua muita antiguidade,
como tombem pelos signaes que ainda apresenta
da sua primitiva gianíleza e pelas recordações de
haver servido de domicilio a pessoas muito illus-
tres de Inglateri-a, casa que viajante algum ainda
se mostrou arrependido de ter visitado, porque
para qualquer lado que o homem ali se volte en-
262
O PANORAMA
contra uma nova belleza qiio o allráe ; a casa de
Knowle, pois, Icm fornecido aos pincéis de mui-
tos arlislas copias de objectos que são a admira-
rão e o recreio de todas as idades.
O HOMEM QUE NÃO RI
conto nrnbe
Do banlio, dirigiram-se á habitação, qne era,
effectivamente, situada no meio da espessa ver-
dura dos jardins do burgo. Entrando, o nosso
mancebo não licou menos maravilhado do plano
geral da halnlacão que da symctria das suas
mais pequenas cousas. O conjunclo era formado
por quatro corpos princi|)acs, em cujo centro se
desenhavam muitos taboleiros de flores separados
nns dos outros por um lago onde folga\a uma
multidão de cysnes. Todos os quartos tinham ja-
ncHas de grade, por onde a vista podia deliciar-
se ii'aquelle encantador recinto. Não .^c via senão
flores; não se ouvia mais do que o suave gor-
geio dos pássaros. Mas, que contraste formava es-
ta risonlia morada com os personagens que n'el-
la viviam ! E quão h n^^e eslava o pensamento de
Zerzuri do espectáculo que o e.>perava !
— Vhide por aqui, lhe dússe o homem de vestido
verde, quero aprcsentar-vos aos meus amigos.
Tomou o pela mão de um modg» cordial e in-
troduzio-o em uma espaçosa sala, cujos tapeies,
que escondiam o sobrado, rivalisavam em sum-
l)lu(isidade com o esmalie azul do teclo eslrella-
do de ouro e prata. Em inna das evlremidades,
sobre um estrado donnnado por um largo doceí
de pennas de abeslruz, csta\am assentados nove
icspeitaveis anciãos de com[)ridas barbas brincas,.
en\ oitos em caftans de seda. Choravam, soluça-
vam e lamentavam-se. Era uma scena ({ue cor-
tava o coração. Mas, o criado, lembrando-se da
rccommendação que se lhe fizera, poz freio na
lingua. e esforçou-sc em procurar uma distracção
em lodos os objectos que o deslumbravam.
O xeque Ali, (assim se chamava o desconheci-
do) sem parecer notar a sua commoção, abrio
um cofresinho de madrepérola com fechadura
de prata, e disse lhe :
— Aqui icns (juarenta peças de ouro de que
poderás dispor, como Ic approuver, para as nos-
sas necessidades c luas despezas. Ficas sendo o
nosso intendcnie. Fazc Iranqiiiilamente o leu ser-
viço, ninguém le contrariará ; os nossos costu-
mes são muilo simples. Mas, nada de perguntas
sobre o que vires e ouvires.
Zerzuri inclinou-se respeitosamente e respon-
deu :
— Ouvir é obedecer.
N>sse mesmo dia entrou no c.\crcicio das suas
funcçõcs : limpou as casas, preparou o jantar e
sérvio os .«^eus chorosos amos com lanta habilida-
de, quo parecia, ã primeira vista, que cm toda a
sua vida não tinha feito oulra cousa.
Em quanto andava do um para oulro lado no
serviço, os gemidos continuavam de mais eu) mais
lamentosos c afiliclivos. .lulgar-se-liia assistir a
uma d'cssas ceremonias fúnebres cm que as car-
pideiras choram, sem um momenio de descanço,
uma dòr que não senlr-m, mas que o dinheiro
lhes faz sentir. Não obsianie, o nosso homem, se
guio o partido f|uo lhe convinha; acostumou os
ouvidos a esta infernal musica, como succcdc a
quem habita nas proximidades de uma cata-
dupa.
No fim de um anno, um dos velhos pagou a
sua divida ao Senhorio dos mundos. Os seus
companheiros pegaram n'elle debaixo de todo o
silencio e depois de o terem lavado, como o de-
termina o rilo malekila, cnterraram-no sem pom-
pa em um bosquele conliguo á habitação.
Quando a morle enira em uma casa, não pá-
ra. A sua destruidora mão ferio um segundo velho,
depois um terceiro, quarto . . . ; emtim levou-os
a todos, excepto o xeque Ali, que ficou só com
Zerzuri no meio d'esta vasta morada, onde vive-
ram mais dez annos juntos e como em familia.
Enlreíanlo o corvo da separação crocitou por ci-
ma das suas cabeças. O xcíiue, quebrado pela
velhice e atlenuado por uma dòr sem consolação,
preparava a sua alma para a eternidade, (piando
o íiel servo se approximou do seu leito c llic dis-
se com um accenlo de compaixão e afago:
— Senhor, enganei a vossa esperança? Não vos
lenho servido e tratado com todo o aífeclo? Não
tenho respeitado o vosso se;',!edo?
— Oh I sim, meu filho, respondeu o doenle ; lo-
dos morremos contentes do ti^ e é para provar-
te o nosso reconhecimento qv.c le legamos uma
casa, que se assemelha a um palácio, com o res-
to dos nossos thesouros. Estás nujito novo ainda,
tens um bello futuro diante de li. Vive, pois, e
diligenceia esquecer o doloroso espectáculo de
nossos pe/.ares.
A estas palavras, a curiosidade de Zerzuri, tan-
to tempo refreada, sollou-se.
— O' meu amigo, o melhor dos amos, replicou
elle, tínheis pois desgostos? Não poderei saber a
causa d'elles? Dignai-vos, supplico-vos, revelar-
me esse segredo.
— Deus te preserve, meu filho, da desgraça que
experimentamos. A sepultura rcclama-me; pou-
cos momentos terei de vida ; é preciso que te
salve por um nllimo conselho . . . Aquella porta,
accrescenlou elle, estendendo a mão que o frio
da morle tornara pesada, foge de abril-a, se não
queres ser condemnado a passar o resto de teus
dias entre lagrimas e gemidos. Se tivesses a im-
prudência de desprezar a minha rccommendação,
expor-lc-hias a comprehender toda a extensão
dos nossos sotfrimenlos, e quando quizesses arrc-
pendcr-le, já não seria tempo.
Acabando de protiunciar estas palavras, o xe-
que Ali, deixou cair o desmaiado rosto sobre a
almofada, e deu o ultimo suspiro.
Eis Zerzuri só. Depois de ler depositado o cor-
po do seu único amigo ao lado dos nove anciãos,
refieclio. Pareceu-lhe impossível que as mesmas
circumslancias inspirassem os mesmos sentimen-
tos cm indivíduos de natureza diíferenle. A mo-
cidade 6 presumpçosa. Promctleu a si próprio
conservar-se impassível, o formou de antemão
um coração de ferro. Por oulro lado, era mais
depressa "o desejo de romper a monotonia da sua
existência, que o levava a tentar a aventura, do
que a i)ropria curiosidade.
líni dia, dirigio-se com passo lirme c resoluto
para aquella poria mysleriosa, e sacudio [)rccipi-
ladamenle as l(!Ías d'aranha (|ue a cobriam. Eez
sallar (lualro forles fechaduras de aço, abrio a de
par em par c Iranspoz a soleira. O coração ba-
liallic com violência.
— Por vida minha, murmurou elle, Deus é o
o PANORAMA
263
senhor dos destinos. Quem poderia oppor-se á
sua vontade ?
Um corredor escuro c tortuoso esfendia-se
diante d'elle ; andou por espaço de Ires lioras á
luz de um arciíofe. Finalmente, cliegou á borda
de um lago. Mas, ro momento em que procura-
va altentar na linda paisagem que se desenrola-
va diante dos olhos, um pássaro gigantesco agar-
rou-o e voou com clle ás alturas. O movimento
havia sido tão rápido e Ião violento que o pobre
Zerzuri desfalleceu. Quando recobrou os sentidos,
achou-se só, deitado junto de um bosque onde ve-
getavam formosos limoeiros. A brisa da manhã
agitava-lhe brandamente os vestidos, e uma har-
moniosa musica et chia lhe a alma de unia ale-
gria desconhecida. Levantou-se. Em quanto olha-
va para a esquerda e para a direita, um bando
de elegantes cavalleiros passou diante d"elle. O
guerreiro, do qual este bando parecia formar o
cortejo, avançou e saudou graciosamente Zerzuri,
pcdindo-lhe *que montasse em um cavallo ma-
gnificamente ajaezado que um criado trazia pela
rédea. O nosso avenluieiro não se fez rogar^ e
saltou ligeiro sobro a sella bordada a ouro.
Pozeram se a caminho sem que ninguém sequer
pensasse em interrogar o recemchegado sobre a
sua origem^ nem sobre o motivo que o levava áqucl-
les lugares. Foi o objecto de mil attenções. Depois
de terem percorrido es jardins, aos quaes não
poderá de certo exceder em belleza o delicioso
lugar promettido por Mohamed aos verdadeiros
crentes, acharam-se na frente de um magnifico
palácio edificado com infinita arte e ornado de
eseulpturas que se poderiam attribuir á mão dos
génios.
— Que grande asneira faria, dizia comsigo Zer-
zuri, passando os meus bellos annos detraz d'a-
quella portinha! Evidentemente o xeque Ali, de
saudosa memoria, perdeu uma parle da sua for-
ça intellectual n'aquella prisão systematica a que
se condemnou com os seus companlieiros. Se eu
podesse somente, com o auxilio de Dcos, trazel-o
á vida por instanics, mostrar-lhe-hia todas estas
maravilhas e gozaria da sua surpresa.
Durante este monologo, uma multidão de pa-
gens mui jovens e desembaraçados rodeou o es-
trangeiro. Um segurou logo na rédea do cavallo
e outro lançou mão do estribo.
Apenas sé apeou, ó chefe do cortejo, que era
um elegante personagem de maneiras mui dis-
tinctas e agradavcs, introduzio-o n'aquella mo-
rada real, dirigindo-lhe pelo caminho as mais
affecluosas expressões. Vio um vasto salão formado
em hemyciclo no fundo do qual se elevava um
throno rutilante de ouro e pedrarias. O seu com-
panheiro fez-lhe signal para que se sentasse; de-
pois, tomando lugar ao seu lado, exprimio-se
assim :
— Abençoamos, caro hospede, o acaso que vos
.trouxe entre nós. I^ste paiz é uma ilha que obe-
dece ás minhas leis. Eu sou rainha.
Pronunciando estas palavras, o personagem le-
vantou a viseira que lhe occultava o rosto, e
Zerzuri, na altitude do êxtase, ponde contemplar
uma belleza capaz de despertar ciúmes nas bu-
ris.
— Os meus ministros e os meus oíTiciaes, con-
tinuou a rainha, são mulheres. O trabalho cabe
ao outro sexo. A i 'is a aucloridade, aos homens
a obediência. Podereis, porém, ser exceptuado
dos outros se me desposardes. Reino, escravos,
thesouros, tudo vos pertencerá, menos a cliave
da jíorta do parque. Só uma palavra tendes a
proierir.
Zerzuri linha a cabeça transtornada por tanta
felicidade. Quiz responder: mas os beiços tre-
miam-lhe. Esle movimento machinal foi tomado
por um signal de assentimento; porque a um
aceno da rainha, as depositarias da lei immedia-
tamente foram conduzidas aos pés do throno. Era
uma velha investida das funcções de cadi ; e
seguida de outras duas matronas de cabellos
brancos e annellados, que lhe serviam de asses-
sores. Emquanlo redigia gravemente o acto de
cazamento, um pagem, mais esbelto que uma
gazella do Sahara, poz a coroa sobre a fronte do
real esposo.
Seis mezes depois d'esta inesperada união, a
felicidade não havia abafado na alma de Zerzuri
a sede do mysterioso, essa necessidade do desco-
nhecido ao qual devia a estranha serie de aven-
turas.
Pensava na porta, cuja chave estava em poder
da rainha.
Faltava-lhe uma cousa no meio de tantas ven-
turas, uma só I mas de um irresistível attra-
ctivo.
Desejava tornar a ver a casinha da cidade de
Melli, errar novamente nos lugares que tantas
vezes havia percorrido, saborear a commoção do
contraste entre as recordações do passado e as
maravilhas da sua presente condição.
Em vão a voz do bom senso o aconselhava a
que abandonasse o passado. Não era bastante o
infinito numero de bens que lhe prodigalisara
um poder mysterioso, para o tornar o mais feliz
dos raortacs? O desejo resistia a todas as refle-
xões, perseguia-o, absorvia-o, tirava-lhe, até, o
som no.
Uma noite, pois, aproveitando-se do somno da
rainha, apoderou-se da chave que ella tinha sem-
pre debaixo do seu travesseiro, e deslizou como
uma sombra no jardim. iMas, apenas abrio a por-
ta e transpoz o liminar, tornou-se presa de uma
ave gigantesca, cujas azas se assemelhavam a um
pavilhão desfraldado. Uma voz vinda de cima
gritava-lhe no momento :
Adeus prazer ! Adeus reino ! Desgraçado d'aquel-
le que não sabe limitar os seus desejos.
O monstro levou o até as nuvens, e voou com
rapidez tal, que Zerzuri perdeu a respiração e
desmaiou . . .
Quando tornou a si e abrio os olhos achou-se
quasi nu, perto de um aduar, cujos habitantes o
haviam despojado sem ceremonia dos seus vesti-
dos de príncipe.
Tal era o castigo que Deus lhe infligia. Mas
ninguém pôde deter o destino no seu andar. O
infeliz Zerzuri arrastou-se até Constantina, men-
digando o pão de aldeia em aldeia, escrevendo
amuletos para os crédulos e beijando os rozarios
dos raarabutos de nomeada. A tristeza infinita do
pczar apoderou-se da alma do mancebo e divor-
ciou-o com o riso.
Foi então que comprehendeu a dor dos seus
inconsoláveis amos.
Quando na vida se alcança uma posição feliz
e tranquilla, é mui acertado não procurar ir
264
O PANOUAMA
além. Mais tarde, por doiraz da porta dos dese-
jos e curiosidades insaciáveis, pôde ser que o in-
dividuo se veja transportado ao centro dos encan-
tos ! mas se tem a imprudência de transpor a
soleira, a razão pcrlurl^ada perde o seu equilí-
brio. Quem é bostanle forte para conservar-se
moderado e prudente no meio dos enlevos de
uma fortuna mui lapida? Debruça-se o bomem,
é tomado de vertigem, cáe no abysmo. Foi o que
aconteceu aos nove anciãos em uma serie de
aventuras diíTerentcs das que contamos : todos
passaram duas vezes a porta^ e Zerzuri seguio-
Ihes o exemplo.
UMA OBRA DO SÉCULO IX
Averigiiaçuo dns iiiilbns de unias cídntios a oiifrn.^
X. — Desde Gadis até Córdobam CC milhas.—
De Córdobam a Toleto CCXX. — De Tolelo a Ce-
saraugusta CCC. — De Cesaraugusta a Oscam LX.
— DeOscam a Ilhcrdra LXXX. — De Ilherdra a
Gersona L millias. — De Gersona a Gerunda CXXX
miliias. — De Gerunda ás fronteiras XL. — Das
fronteiras a Ruscilion XX. — De Uuscilion a Nar-
bona XL. — De Narbona a Biterris XV.— De Biter-
ris a Xeumasia LXXV. — De Neumasia a Avinion
XXV niillias. — De Avinion a Valência ClI milhas
— De Valência a Turnos CCL — De Turnos a Me-
diolano CLXX. — De Mcdiolano a Roma CCCXVI.
— De Koma a Tliesalonica DCCCXLII. — De The-
salonica a Hcraclea CCCXVI milhas.— De Hera-
clea a Constantinopla CXXX milhas.
Fazem IIIMCCLXXXI milhas.
!%'otlcla doji bispos c suns sedes
XI. — Â Sede Real (1) occupa-a Hermenegildo.
— Flaiano em Rracara, e succedcu a Lupo e a
Rccaredo. — Tudomiro tem as de Dumio e Men-
dumieto. — Sisenando a de Iria em S. Jacobo. —
Xauslio tem a sede em Coimbra. — Branderico
em Lamego.— Sebastião cm Ain-iense. — Justo em
Portucale. — Álvaro em Yelegie. — Felmiro em
Oxima.— Mauro em Legion, e Ranulfo em Asto-
rica.
Os referidos prelados resplandeceram na Igre-
ja pela protecção do Rei.
Também ô Rei Adefonso, de que já temos fal-
lado, tornou-sc admirado por todo o mundo;
elevado ao sólio, foi liabil na guerra, esclarecido
para com os Asturianos, forte e valeroso com os
Vascões, castigou os Árabes e protegeu os cida-
dãos. A este Príncipe, favorecido pelo (Capitão
Christo, foi lhe concedida a sagrada vicloria. Se-
ja para sempre esclarecido, triuniphc vencedor
no século, c resplandeça no ])roprio céo. Gonsa-
gremos-lhc aqui este Iriumpho, já que se des-
pojou ali do Reyno. Amen.
[Conlinua)
A CRKNCA GAULF.ZA
A crença gauleza, o druidismo, dominando as
religiões todas terrestres da Grécia e de Roma,
apresenta, no fundo do occidente, um desenvol-
vimento theologico e philosophico igual ao das
grandes religiões do oiiente, mas irum espirito
muito opposto ao pantlicismo iiido-egypcio, c
que parece não ler lido aífinidade moral senão
(1) Era Oviedo
com o ma::déismo de Zoroastro. A lucta victorio-
sa da liberdade c da vontade contra os fataes po-
deres, a indcítructivel individualidade humana
elevando se progressivamente do mais baixo grau
do ser, pela intelligcncia e pela força, até assum-
midades intinitas do céo, sem nunca confundir-
se com o Greador : taes, parece^ lerem sido os fun-
damentos da crença druidica e o segredo da in-
trepidez e da independência gaulezas.
Ilenri Marlin.
A UMA ROSA
^Para que afastas irosa
o rosto, alvo de neve?
acaso mil anjo se atreve
a negar o que me deve?
Não fujas ! — ouve- me, Rosa :
lu promc>lesle-me um dia
que o leu amor pagaria
da minha ausência a agonia.
Vè bem : — Ires annos ausente,
ora do leu lado me vejo ;
e, quando a paga desejo..,
de li recebo um só l)eijo !
Concedo que um beijo ardente
n'esse roslo de açucenas
compense um aniio de penas...
i. Quantos faltam ? dois apenas 1
Cândido de Figueiredo.
RAZAILA
(1)
Li ha tempos um conto árabe que era assim
concebido:
Havia, em um bosque muito afastado, uma
Cabrinha que passava o tempo a pastar e a ou-
vir cantar os passarinhos, sem nunca se desviar
muito do lugar que lhe servia de azylo.
Era muitíssimo serviçal para com todos os
seus visinhos. Á timida Lebre, oíTerccia-lhe me-
tade da sua caminha. Á Toutinegra, ensinava-
Ihe os cantos da floresta onde estavam caidos cm
maior abundância os bngos da cercgeira brava.
Ao próprio Milhafre, indicava lhe o regato onde
poderia ir refrescar a guela e lavar o bico sujo
de sangue.
Isto chegou aos ouvidos do rei Leão.
Primeiramente, este senhor, mandou annun-
ciar por todos os pontos do boscpie, como o pe-
dia a sua dignidade, que a linda Gabrinha, que
linha feito taes e laes cousas, não podia deixar
de ser mui bem recebida se se apresentasse ao
sultão. — A Cabrinha não fez caso.
O Leão mandou, pela segunda vez, convidar
indirectamente a Gabrinha para ir á sua presen-
ça.— O resultado foi o mesmo.
Emllm, o rei dos animacs, impaciente, cheio
de cólera, mandou intimar a pobre Gabrinha
para comparecer na corte.— cQue Sua Magestade
me perdoe, respondeu cila ao enviado. Sou uma
pobre íillia dos bosques e não conheço as ma-
neiras dos senhores. Que figura faria eu diante
do sultão? K, além d'isso, algumas palavras, fi-
lhas da miniia ignorância, não poderiam des-
agiadar-lhe? Tenho ouvido dizer que a pata do
Leão é pesada, e que as feridas causadas pelas
suas garras não Icem cura.
(1) Giliriíilia.
I
Typ. Fianco-1'urlguczn, Hiia do Thcsoiiro Vcliio, (>.
34
o PANORAMA
265
Cs Brahmanes
O Bralimanismo é a religião que professa a
grande maioria dos habilantes do Indoslão ; deri-
va-se de Brahma, que é, enlre olles, o nome da
divindade suprema. Ainda não lem decorrido um
grande numero de annos depois que os homens
começaram a occupar-se seriamente da historia
religiosa e litteraria da índia; assim, apesar dos
esforços perseverantes dos sábios inglezes, france-
zes e allemães, estamos ainda longe de possuir um
conhecimento completo do Bralimanismo e das di-
versas phases que lem percorrido esta antiga re-
ligião.
O Braiimanismo teve, certamente, sua origem
n'esse immenso e magnifico valie regado pelos
rios Djumna e Ganges; mas a época da sua ap-
parição tem sido muito controvertida e não se
pôde estimar senão j)or appi'oximação. Entre os
livros sagrados da Índia, o mais antigo é o Ri(j-
Yéda : ora, a este livro está annexo um calendá-
rio astronómico que o celebre Colebrooke attri-
bue ao século XIV antes da nossa era ; tem-se,
pois, podido concluir, com alguma probabilidade,
que a redacção d'esle livro remonta a dezeseis ou
dezesete séculos antes de Jesus Chrislo. Quanto
ás pretensões dos lirahmanes, ellas não podem
sustentar o exame quando se compara a sua fa-
bulosa chronologia com a chronologia positiva da
Escriplura Sagrada.
Os principaes livros sagrados da índia e os
mais antigos, são os Yédas, em numero de qua-
tro: o Big-Véda, o Vadur-Véda, o Sarna- Veda e
o Alharva-Vikla. O primeiío é uma collecção de
hymnos ; o segundo compõe-se de orações em
prosa ; o terceiro, de orações para serem canta-
das, e o quarto contém apenas algumas formulas
de consagração, imprecações e sortilégios. Este é,
evidentemente, o mais moderno dos quatro. Depois
dos Vedas, vêem dezoito livros chamados Poura-
nas ou commentarios, que são d'uma época sensi-
velmente mais recente. Cada Pourana abraça cin-
co assumptos: a creação do mundo, seus progres-
sos, sua renovação pelo diluvio, a genealogia dos
Deuses e dos heroes, a chronologia, a historia dos
heroes e uma cosmogonia. Os Pouranas foram,
segundo os índios, inspirados a Yajasa, o com-
pilador dos Vedas. Uma compilação das Brahma-
566
O PANOIIAMA
/uís, ou ptoceilos (logmalicos dos Vedas, conheci-
da polo nome de Oiipanic/tads, é cuiilada igual-
nier.te no numero dos livios sagrados.
O Manara-D/iarma-Saslra ou Leis de Mami,
é um monumenlo que os Biahmanes consideram
como divinamenle inspirado. Kslc livro, lai como
hoje existe, eslá esciifUo em verso, e compõe-se
da 2:68o slocas ou dislicos. O cslylo d'eslo códi-
go lem um caracter manifeslamenle mais antigo
que todos os outros livros Índios, á excepção dos
Vedas. Knlre os personagens que se encontram
ali citados, nenhum parece posterior ao século
Xll antes da nossa era. l-V, com os Vedas, o mo-
numento mais autlientico do Hralimanismo. E' i^re-
ciso, porém, nolai (jue n'eslc livro, não se faz
menção alguma da Trindade india, e que Vischnu
e L^iva, que, com Ijrahma, c;)nstituem este li io
divino, não são nomeados cm iManu senão uma
única vez, e de passagem. Além d'isso, nenhum
papel desempenham no systema de criações e des-
truições suceessivas do universo exposto n'esta
obra Kmlini, os indios, embora os não conside-
rem revelados, consagram o maioi respeito às
duas epopéas sanscrilas, intituladas Ramaijana e
Mahab/iarofa.
Mas qual e a natureza da leligião bralimanica?
Os sábios que, nuiis cuidadosamente, lêem estuda-
do a origem e o desenvolvimento do hralimanis-
mo, estão mui longe de concordarem n'este pon-
to. l'ns pensam que a antiga doutrina da Índia é
um verdadeiro monotheismo ; ou Ires consideram-
na como um polytheismo mui com])lexo ; muitos,
cmlim, olham-na comoum panlheismo mal disfar-
çado sob apparencias polytheislas.
O mais antigo dos livios sagrados do brahma-
nismo, o Uig-Véda, pertence evidenlemenle a uma
crença o a um culto [jolylheistas. Acham-sc ali os
nomes de trinta e Ires divindades, (|ue são, em
geial, personilicações das forças da natureza. Com-
tudo, ou jiorque a tradição do culto raonotheista
|)rimitivo da raça humana se conservasse entre
alguns homens, ou porque, entre os redactores
dos Vedas posteriores, alguns conseguissem ele-
Aar-se, |)or suas propi-ias forças, á conce[)ção de
um Deus único, encontram-se n'esles livros di-
versas passagens nas qua!>s esta concepção está
flaramente formulada. Tal é esta : c( lixisio um
Deus vivo e verdadeiro, eterno, incorpóreo, im-
palpável, im|)assivel, todo-poderoso, sábio, iníini-
lameir.e l)om, (|uc [)roduz e conscr\a Iodas as
cousas w Certos philosophos indios, como Ham-
mohun-Iloy, lccm-s«í valido (Pesta passagem para
alíirmarem, não obstante a multiplicidade das divin-
dades enumeradas nos Vedas, (|ue o bi-ahmanismo
primitivo é um puro Deismo ; mas esta escola
lí'm feito poucos ade[)tos na índia. Todavia, a
crença primiti\a d'este |)aiz, ou lenha sido poly-
Iheisla ou nionotheisla, apparece-nos, nos Poura-
nas e no .Manava-Dliarma-Sastra, como um pan-
lheismo confuso, com um cortejo infinito (Tema-
naçOes, e com um sys'ema de cosmogonia, (jue
não passa de uma traducção exacta da j)iopria
doutrina Iheologica. Ora, como toda a concepção
iheologica (reste género tende necessariamente a
uma mythologia interminável, pela ine\ilavel per-
sonnincação de cada unia das emanações divinas,
segue-se í(ue, se o bralimanismo e um verdadei.-o
panlheismo jiara um pequeno numeio de brahma-
nes, é um |)uro jiolytheismo para o resto da po-
pulação, que toma á letra o ensino contido nas
formulas do culto, isto é, nas orações e nas cere-
monias exteriores. .\!ém d'isso, os l'ouranas c as
cjxqíéas indianas não são mais do que um re[)er-
torio de fabulas mythologicas dadas como narrati-
vas históricas, e estes livros são os únicos conhe-
cidos da grande massa da população.
[Ccnlinud.)
O MÍCPvOSCOPIO E O TELESCÓPIO
Eia iíivciioslo «l'csícs doía sisísifiiincuios
Augmentar o alcance da vista, é alargar o ho-
risonleda intelligencia. Isloé mui fácil deílizer hoje,
•porque sabemos, que a vista armatia do telescó-
pio o do microscópio, colloca o homem entre dois
iniinitos. iMas, antes de conseguir este resultado,
que de obstáculos não foi jireciso vencer! Quan-
tas cousas nos pareceriam impossíveis, como pa-
I eciam aos nossos antepassados, se, fazendo abstrac-
ção dos conhecimentos atlíjuiridos no inter\allo
que nos separa d'elles, podessemos, por um mo-
mento, pôr-nos em seu lugar! Que diríeis, ha tre-
zentos annos, se um aslionomo, precedendo a sua
época, vos dirigisse o seguinte discurso: — Aijuel-
les jjontos rutilantes, que se vêem no céo, são
tantos centros de mundos, tantos soes semelhantes
ao nosso; e o nosso propiio ceo, com todas as suas
estrellas reunidas, não c mais que uma pequena nu-
vem suspensa na immensidade. Que dirieis, se,
paia servir de apoio ao seu discuiso, este singu-
lar orador vos mostrasse um tubo de muitos i)és
de comprimento, tendo, nas extremidades, dois
vidros dispostos, pouco mais ou menos, como o
ensinara, no século XIÍl, Uoger Bacon, e conti-
nuasse n'estes termos: — Dirigi este tubo para a
parte do céo na ;ip|)areiieia a mais j)obre (Kestrel-
ias; não taidará muito que não avisteis, em uma
incalculável distancia, alravez de uma brecha da
abobada celeste, um clarão estranho, semelhante
á luz de uma vela, posta por de traz de uma la-
mina de osso ou do mailim. Allentai bem n'esse
clarão: vereis ([ue é uma multidão de estrellas
condensadas, como grãos de arêa em uma ()edra.
A nossa abobada estrellada, vista áijuella dis-
tancia, parecer-vos-hia uma pequenina nuvem re-
donda, phosphorescente. E o numero d'esles clarões
steTares, d'estas conglobações de mundos, é des-
conhecido.— Sufiponhamos ainda, (|ue, a estas |)a-
lavras do astrónomo, viessem junlar-se as de um
naturalista (jue, com outro tubo, mais jicípieno,
pretendesse moslrar-vos, em uma molécula de pó,
em uma gota de agua, uma criação inteira de se-
res organisados!
Em harmonia com os vossos conlemporaneos
consideiarieis estes dois homens loucos ou impes-
o PANORAI^IA
267
lores. Tel-o-hieis foilo, não duviílai, a não so dar
o Ciíso do serdes vós mesmo um d 'esses eleilos
íjue, cngan;indosc nas hoias, vecm, de lempos a
iempos, ras,i;ar as Irevas. É, alravez dos séculos
(]ue os obreiros do pensamento se dão as mãos,
para a obra commum do progresso ; mas, da sua
passagem ephemera, liça um raslo indelével, a luz
i|uc 60 desprende lenlamenlo do cliaos das agila-
rões c das crenças humanas.
Esles dois maravilhosos insli-umenlos, dosquaes
um a;)pro\ima os objecíos muilo afaslados, e ou-
tro augmenia os objectos mui iieijiieiios para se-
rem vistos a vista desarmada, o telescópio e o mi-
croscópio, em que época, lem-se muitas vezes per-
guntado, foram inventados? Questão não resolvi-
da, jjoríjue íem sido mal assente. Tem-se feito sa-
bias dissertações |)aia pro\ar ([ue a origem iresíes
instrumentos remorda ao começo do século XYíl,
o ([ue a invenção do microscópio precede alguns
annos a do telescópio, que, diiigido pela primeira
vez para o céo era 1610, fez descobrir a Galileo
os quatro satcllites de Júpiter.
Mas o uso de um instrumento não coincide ne-
cessariamente com a data da sua invenção; esta,
muitas vezes, tem tiílo lugar muilo tempo antes,
(is invenlores não tiveram no passado mais de um
molivo serio paia occuilar os s:hís segredos? Vede
o IVade Uoger Bacon ! ExjjuIso do convento, en-
caiTerado como magico, era pi'eciso que fosse
muilo desgraçado para exclamar, no seu leito de
morte, que os homens não mereciam que se occu-
passcni do seu adiantamento. íla alguns séculos,
era, em geral, mais prudente guardar o segredo
de uma invenção scientiíica, do que vantajoso di-
vulgal-a.
Estas considerações levam-nos a ci'èr que o mi-
croscópio c o telescópio eram conhecidos muito
anteriormente ao século XYll, e que se tomou por
época da sua invenção o momento a pai'lir do qual
o seu conheciniento não podia continuar a ser
ignorado do publico. A narrativa de Jeronymo
Sirturus, sábio milanez, que viajava cm 1609 na
líoUanda, vem em apoio da nossa opinião Um
desconhecido, diz clle, apresenlou-se um dia cm
casa de Lippersheiín, celebre fabricante de óculos,
t> encomnu-ndou-lhe muilas lentas concavas e con-
vexas. No dia marcado foi buscal-as, escolheu duas,
uma convexa, outra concava, applicou-as á vista,
experimentou-as aproximando ou afastando uma
(ia ou ti a. sem dar a conhecer o lim d'esle exame,
pagou e desapprireceu. Lipi)ersheim ropetio imme-
dialamonlc o (jue vira fazer, c conhecendo o aug-
in(>nto !)roduzi(lo pela combinação das duas len-
tes, adaptou-as ás extremidades de um tubo o of-
fereceu eslc novo instrumento ao principc Maurí-
cio de Nassai!. Foi com um óculo d'esle género de
(jue se sérvio Galileo.
Eslá reconhecido (|ue toda a descoberta impor-
tante tem os seus signaes percursores. É, para
nos servirmos do dito de Arago, uma forca que
absorve ou concentra uma multidão de fados iso-
lados; é a brilhante apparição de muitos ensaios,
tjuc, ato o momento, teem vivido na sombra.
Os antigos deram-se a um grande trabalho para
saber s<i o (jue se chama luz, é matéria, força
ou movimento. iMas, de todas as suas hypothc-
ses, só restam, como dignos de serem conser-
vados, os principios seguintes, deduzidos dos fa-
dos (jue estão ao alcance do todos. — Km um cen-
tro homogéneo, a luz propaga-se, em linha recta;
0 seu angulo (TincidiMicia é igual ao angulo de re-
Hexão ; pas?;ando, de um centro homogéneo para
um ceníro diíTererde, desvia-seda recta, deslroe-se,
de forma que o angulo de separijção deixa de s;m-
igual ao angulo d'incidencia. — Mas em que rela-
ção estão esles dois ângulos cnl!'e si? Eis o que
todos os physicos ignoravam até Descartes, que
demonstrou (jue os ângulos d'incidencia e de re-
fracção estão em relação constante. Também se
havia reconhecido cedo que a distancia e a gran-
deza dos objectos percebidos .são a ppa rentes, mas
que é necessário o concurso de alguiiia cousa su-
perior ao sentido para distinguir a apparencia da
1 ca lidado.
Ninguém se enganará sobre a grossura de uma
bomba, comparada com a cabeça de um alfinete,
se se olhar uma e outra em igual distancia. Mas
a bomba afastando-se da vista, pôde íornar-se tão
pequena como a cabeça de um alíinele e acabar
mesmo por desapparecer inteiramente. É o que
acontece quando cila subtende um angulo menor
de um minuto; por outros termos, quando os raios
luminosos, partindo das extremidades do objecto,
vêem reunir-sc na vista sob um angulo mais jie-
queno que a 60.'' parle de umgráo, ou do que a
5400." parle de uni angulo recto. O angulo sub-
tenso peio objecto qiic se j)intou na vista chama-so
angulo visual. Ora, a experiência ensina que o
angulo sublenso será duplo se a distancia primi-
tiva estiver reduzida a metade ; será triplo se a
distancia estiver reduzida a um terço, ele. Assim
a vista, collocada successivameníe cm b, cm c,
ele, verá o mesmo objecto, de, duas, Ires vezes,
ele, maior que em a.
i^€
Fig. 1
Existe um meio simples de augmenlar os obje-
ctos: consiste em observal-os de muito perto. Mas,
esta mesma proximidc.de, tem limites. Exercida
de muito perto a visão é tão confusa como se fos-
se exercida de muilo longe ; é i)reciso que o ob-
jecto esleja coUocado no ponto para ser visto dis-
lindainenle. Este ponto, que medtí a extensão da
vista normal é de 20 a Tò cenlimetros: além a
vista ò preshijla; á(iuem é mjjopc.
E útil o imlividuo construir propriamente ilm
microscopia. A gola de agua. O olho do coelho.
268
O PANORAMA
O cnjstaUino e o glóbulo de vidro. Anecdota sin-
gular.— c(Se quereis, dizia um dia uni liabil oplico,
se quereis conliecero microscópio e conliijjuir para
o seu aperfeiçoamento, fazei-vos conslruclor; di-
ligenciai consliuir, vós mesmo, um, para vosso
uso; deixai, provisoriamente, as vossas tlicorias e
os vossos cálculos, que não sei viriam senão para
embaraçarem as vossas primeiras experiências.
Conlentai-vos, primeiro, com uma peíjuena força
amplilicante, o depois ireis, gi-aduaimenle, até um
augmento de 300 vezes; c raro passai além:
com maiores ampliações perdereis cm luz e cm
clareza, cousas tão necessárias para as boas obser-
vações.»
Mas, como se fabrica um microscópio? A pri-
meira cousa que lia a fazer, tanto n'esle como em
todos os outros casos, é distinguir o accessorio do
principal. O accessoi-io, é a armação, o tubo, com
osí^eus bi.lliantes enfeites; emlim, o que allralie,
mais depressa, os olfios do profano. O principal,
são as lentes; eis de que ó necessário, primeiro,
occupar-se o individuo.
Nos vossos passeios matutinos, não passeis in-
difierenle por uma pérola de rocio. Os objectos,
vistos alravez d'essa pérola, não parece que estão
augmenlados? Observai, para vos assegurardes, os
grãos de pó ou os veios da folha, sobre a qual a
pérola está collocada. Que admirável cousa! Os
antigos tinham, certamente, conhecimento d'ella;
testemunha-o esta passagem de Séneca: — cc Por
mais pequena que seja a escripla, parece maior
vista alravez de uma bola de vidio cheia d'agua.»
Ja tivestes, caro leitor, a curiosidade de disse-
car um olho? A experiência é fácil : o olho de um
coelho será sufllcicnle. A primeira cousa, que vos ha
de causar alguma admiração, picando-o, somente,
com a ponta d(; um canivete, é a grande quanti-
dade de liquido aipioso que d'ellc sae. Depois
da saida d'esle liquido, abri a pellicula com
uma incisão |)ralicada na covinha negra (pupílla)
que rodeia um circulo colorido iiris); três cousas
se vos apresentarão ao mesmo tempo: primeiío,
uma matéria preta, como a tinta da China, pig-
mentum d'uma 'membrana muito delgada (choroi-
de) que forra quasi todo o interior; segundo, uma
espécie de gelea transparente como vidro {/lumor
viíreo/, terceiro, uma peípiena bola, d'uma certa
consistência, limpida, como a agua de rocha.
Lancemos mão d'este ultimo órgão, que se de-
nomina crjislallino. Approximai-o, o mais perlo
que poderdes, d'uma escripla muito íina; vel-a-
hcis augiiientada, mas os caiacteies serão trans-
tornados: diremos adiante porque. Kis ahi, o mi-
croscópio cm toda a sua primitiva sim|)licidade.
É pena que não possa siMvir por muito tempo ;
o crystallino grela-se, facilmente, logoquc se dis-
secai e perde, pouco apouco, a sua transparência.
Não desanimeis; subslituil-o-lieis vantajosamenle
por um glóbulo de vidro. l'ara obter este glóbu-
lo, não tendes mais do que fundir, á luz de uma
alampada, um íio de vidro muito puro. Terá al-
guma (juebra; sereis obrigado a recomeçar mais
d'uma vez ; mas podereis depois, facilmente, es-
colher, de entre as pérolas assim preparadas, as
que vos parecerem mais perfeitas.
Estes glóbulos são as lentes do microscópio sim-
|)les. Era com esle género de lentes que líooke e
Ilarlsa^ker faziam, no século Wll, as suas bellas
observações microscópicas. A arte de fundir gló-
bulos de vidro foi proseguida, com succosso, pelo
jesuila napolitano Delia Torre, pelos annos da
1770, c levada a um subido gráo de perfeição em
nossos dias, por Gaudin. E com lentes de cryslal
de rocha c de vidro dTnglaterra, mellidas em
uma rolha de cortiça, que esle homem engenho-
so conseguio construir microscópios de algibeira
com uma força augmentativa de oO a 300 vezes.
Os primeiros observadores fabricaram elles pro-
[irios os seus instrumentos, dando-lhes a forma
mais simples. Uma lente engastada em uma armação
metallica (composta de duas laminas) á qual se
adaptasse o porla-objec-
to, movido por um para-
fuso, tal é o microscópio
com o qual Eeewenhírk
fez os seus admiráveis tra-
balhos micrograpliicos. E
nem mesmo se servia de
espelho para dar claridade
aos objectos ; tinha o seu
pequeno apparelho na mão
voilando o j)ara a luz do
dia ou de uma alampada.
A ligura junta representa
o microscópio, legado por
Leewenhoek á Sociedade
real de Londres : «, ó uma chapa metallica, b, a
lente, c, o porla-objecto.
Os mais antigos microscópios simples, chama-
vam-se luniulos ou cemitérios dos pequenos ani-
macs, vitra jiulicarin, vilra muscaria, poríjue os
empregavam particularmente no exame das pulgas
c das mo.scas. Compunha-se de um tubo muito
curto (pouco mais ou menos uma pollegada ou Ires
centimelros de comprimento) ; em uma das extre-
midades estava lixada uma lenleena outra um vi-
dro chato, sobre o qual estava collado o objecto que
se queria observar. Para ver os insectos vivos, met-
liam-se no tubo, que tinha a forma de uma caixinha.
Gaspar Scholt, na sua Magia uuiversalis nalurae
et artes (Hamberg, 1077), conta, a este respeito,
uma historia muito curiosa, que merece ser aqui re-
lerida. Um viajante caio doente em uma aldeia do
Tyrol e morreu. Antes, porém, de ser enterrado,
as auctoridades foram examinar os objectos do des-
conhecido. Entre estes objectos acliava-se um ri-
Irum policarium. Era um magico! exclamaram lo-
go todos os assistentes. EiiKiuanto sedisculia se se
lhe devia dar sepultura, o maire lembrou-se de
abrir a horrível caixa. Saio uma pulga. Não ha du-
vida; é o diabo tiansformado em pulga, que o magi-
co tinha dentro da caixa. O estrangeiro, a quem a
ignorância privou de sepultura, era um dos mais
celebres sábios do seu tempo; chamava-se Scheiner.
Voltando d'uma viagem a Ilollanda, jiassara pela
Baviera e pelo Tyrol para se dirigir à Áustria.
o PANORAMA
269
BRISTOL
I»oaíe snspensa sobre o Avon
Bristol, capital do condado de Somcrset, é uma
cidade rica, e o seu porlo um dos principaes da
Inglaterra. Está situada em um valle rodeiado de
outeiros e serranias sobre o Avon, a cento e oi-
tenta Ivilometros O. de Londres, e compõe-se de
duas partes: cidade vellia. anteiior quatro sécu-
los á era christã, e cidade nova, bonita e bem
construida. As suas praças c ruas, em geial, são
espaçosas e elegantes, e encoiitra-se ali um gian-
de numero de editlcios magniticos, taes como, a
igreja de Santa Maria de Radclifie, uma das me-
lhores de Inglaterra, e onde existe uma primoro-
sa estatua de Guilherme Penn ; a cathedral, obra
do século XII, a casa da camará, a alfandega, a
bolsa, obra mageslosa, fundada em 1810, a uni-
versidade, fundada em 182D e a bibliotheca. Além
disso, contém muitos caminhos de ferro, mais de
vinte hosj)ilaes c vários estabelecimentos para po-
bres, dos quaes o principal é o da rainha Isa-
bel.
O commercio de Bristol é immenso ; o que não
deve causar admiração, por ser terra ingleza, tão
vantajosamente situada, e possuir um molhe que,
sem exageração, é um dos melhoiTs da Kuiopa,
e onde entram annualmenle mais de ties mil na-
vios. As indiisliias tnmbiMii ali teem lido um
grande desenvolvimento n'estes últimos annos :
possue um grande uumero d'eslaleiros para cons-
trucção de navios de todos os lotes, fabricas de
sabão, de louça, de folha de Flandres, de alline-
tes, de fazendas de lã e de algodão, laboratórios
chimicos, fundições de metaes, etc.
Os arrabaldes de Bristol são lindíssimos e mui-
to produclivos ; encontra-se nas montanhas umas
pedrinhas que imitam o diamante e que por isso
se denominam diamantes de Bristol, e as planí-
cies dão muita herva, de que resulta o paiz abun-
dar em gados. Nas margens do canal de Bristol
vegeta uma planta marinha de que os habitantes
costumam fazer uns bolos, que dizem ser mui
sãos e nutritivos.
A população da cidade de Bristol, regula por
cento e oitenta mil habitantes.
A magnifica ponte suspensa, que se acha repre-
sentada na nossa gravura, foi construida entre os
annos 180o e 1809, e conservou-se sem a mais
leve alteração até 18oo, época em que, com es-
panto gerai, desabou repentinamente. Esta ponte,
uma das mais bellas que se tem feito n'este géne-
ro, já pela sua altura e extensão, já pela construc-
ção e solidez, estava lirmada de ambos os lados
sobre dois grandes rochedos, denominados de S.
Vicente, e era a estrada real, que conduzia á ci-
dade. Para se formar uma idea de semelhante
obra, bastaiá marcar as suas dimensões: altura
do estrado da ponte ticima do uivei d'agua 2í0
pés ; largura entre os dois pilaies de suspensão
700 pés: largura do estrado da ponte entre os
passeios iO pes ; diía dos passeios lateraes G pés;
extensão total da ponte 900 pés; altura dos pila-
res de suspensão .'IO pés. As portas, formadas pe-
los pilares de suspensão, eram no eslylo egypcio
e iguaes ás maiores que se conhecem n'esle ge-
270
O PANORAMA
nero. Os passeios latoraes licam do lado de fora
das cadèas de suspensão. Por baixo d'csla ponle
passavam todas as embarcações que se dii'iiíiain
])ara Bristol, c ainda os maiores navios da com-
panhia das índias.
JOÃO DE MATTOS FRAGOSO
Muitas, é verdade, a maior parte das suas pro-
ducções acham-seolluscadas poraquelle resaibodo
gosto gongorico. contra o qual lodos os poetas
clamavam, e a que todos, principalmente Mattos,
rendiam tributo, sem duvida por comprazer para
com o publico, que devia saber-llie bem o (|ue
não entendia ; muitos dos seus argumentos são em
extremo disparatados e extravagantes; muitos dos
seus caracteres inverosímeis; muitos dos seus ra-
cmcinios alambicados e incomj)reliensiveis. Km
troca, porém, destes achaques, couimuns a todos
os escriplores d'aqu('lla é|)oca, e íilhos do mau
exemplo de Lope e da sua J\()va arfe de fazer co-
medias, pode escolher-se uma dúzia de produc-
çOes de Mattos em que campèa o seu grande en-
genho com mais i-egularidade e em que brilham
os seus dotes poéticos em toda a sua louçania e
vigor. Estas comedias são as intituladas: El sá-
bio en su retiro y viUano eu su rinmn, Lorenzo
me llamo y carhonefo de Toledo, El ycrro dei
entendido. Con amor no hay nmislad, La veníjan-
za en el despec/io, El traidor contra su sanf/rc y
siéte infantes de Lara, El (/alan de su inuijer,
Poço aprovechan avisos, La dicha por el despre-
cio e mais algumas de cujos nomes nos não lem-
biamos agora.
El sabia en su retiro, com especialidade, è a
nossos olhos uma pioducção magnifica ; por si só
bastai ia para engi^andecer o nome do seu auclor ;
a novidade do argumento, a criação do singular
caracter de Juan Labrador, a discreta combinação
do plano e a ])oetica belleza do estylo, reunem-sc
n'esla comedia para fazel-a uma das mais notáveis,
SC não a primeira do Ihealro hespanhol de segun-
da oídem. Não é acaso menos iica cm originali-
dade c engenho a de Lorenzo me llamo, nem lhes
cedem em combinação c enredo as de mais cita-
das; mas, como não é possivel n'esle artigo des-
cer á sua analyse critica, nem ainda dar uma idéa
do j)lano c desempenho (relias, conlentar-no-^-he-
mos com o otlereccr algumas amostras do estylo
poético, pelas quacs ver-sc-ha que se o poeta
Mattos adoecia frequentemente da enfermidade do
purismo dominante, também ostentava ás vezes
uma facilidade, uma graça e uma energia de ex-
pressão, (pie o collocam n'eslc ponto a par dos
mais felizes auclores hespanhoes.
Ucferindo-nos á primeira^comedia, El saíjio en
su retiro, snr-nos-hia dinicil escolher trechos, ra-
ciocínios ou diálogos que dessem a conhecer o sou
estylo [)oetíco, poríjuí! sendo muito abundantes e
extensos corríamos o risco de copiar lodo o dra-
ma ; c lambem porque a principal belleza d'elle
consiste na disposição do argumento, no niovi-
menlo da acção c na lucta animada dos caractí;-
res. Bastará dizer que muitas das suas sympathi-
cas scenas não desdizem das mais celebi-es do
(j areia dei castauar c do liico hombre de Alcalá,
com as quaes tem muita semelhança na situação;
especialmente a visita que hz u rei disfarçado ao
honrado Juan que Ioda a sua vida r. cusou vel o.
Não j)0(!emos, j)orém, resistir á tentação de trans-
crever os conselhos que o mesmo lavrador dá a
seu filho (juando o manda para a corte.
A la corle vas, Moiilano,
rico y mozo, y será justo
(pie con la sonda cii la mano
navegues mar tan i)rof«n(io.
La primor plana dcl arte
cn (|iie prudente te industrio,
os la \irtud, que esta sola
es de lodo riesgo escudo.
Mide ol gasto con la ronta ;
no le empenes con recurso
de que ai liempo de la paga
SC cumple taml)ien el juro.
Caudal se llania el (alento
y caudal la ciência ; juzgo
que lo liene solo aijuel
que lo liene lodo junto.
Es ruindad el ser escaso ;
sor perdido es riosgo sumo ;
lo que gastas, le hace falia ;
lo que guardas, le hace mucho.
Al fin consiste el acierto
cn saberlc dar su |)unto,
de suerle que le conser\cs
siempre agcno y siempre tuyo.
ÍAin agrado y con somhrcro
gana el afeclò dei vulgo :
se l)ien quisto, que esto solo
poço cuesta y vale mucho.
Auncpie no aplaudas á lodos,
no murmures de ninguno ;
que to nota ol (|ue le escuchn
sin loncrle por mas (jue uno.
I^n lo que loca á mugercs
iii le aconsejo ni a|)uro,
con (lonslanza ores casado,
que liarás lo mojor presumo.
l'ero tan) poço le quiero
con las (lamas lan sanudo,
que pasc el chiste á desaire,
ni lo corlés á 16 rudo.
Acom|)anarle procura
con hombres de honra y de punlo,
que aunque seas lii (piicn fuercs
como tos oiros le juzgo, ele.
Na do Carhonero de Toledo, ainda que menos
verosímil e correcta, ha lambem um caracter bel-
lo c singular, que ó o do aventureiro Lorenzo, e-
levado por seu valor c generosos sentimentos aos
mais subidos cargos da milícia c á nobreza de ca-
valleiro. Yeja-sc com que dignidade e energia es-
lá representado este caracter nos seguintes versos
que o mesmo Eorenzo dirige ao seu gencial, (|uan-
(lo este pretendo premiar as suas façanhas com o
habito de S. Tliiago.
LouENZo... Sonor, diciendo verdad,
no longo mas calidad
ni padre mas generoso,
(|ue esle brazo y esta espada.
Soy un pobre lid)rador
(|uè no luve mns honor
(jue cl arado y el azada ;
o PANORAMA
274
pêro nniy crisliano \ii>jo
por vida dei rey ; que no hay
en las lieiídas de Cambray
cristal de mas puro cspejõ.
De osla manera naci,
si CS que la \iiUid se alabn,
que como on '>Iros acaba '
mi liiiaje oní|.i za en mi :
porque sou mejores hombres
los (|ue sus linajes liacen,
que aquellos que los deshaceu
adquirieudo vilcs uombres.
Hay uua grau necedad
eu et mundo inlroducida :
cn vieudo en alio subida
la virlud siu calidad,
lodos afrentarin iuteníam;
y á los que u.h.íu jierdidos
àlaban por bieii uacidos,
cuando su luiaje alrentan.
No me dieron a cscoger
padres, grau sciior, y asi
donde quiso Dios miei,
que por mi comienzo a ser.
Lo que soy no es heredado ;
que nadie "me agradeciera,
si yo mismo no me hiciera,
lo que oiro 1:1 • hubiera dado.
Y no he de volver atrás ;
de hoy mas, cou favor de Dios
lo que fuere, á Dios y á vos
y á mi lo debo, uo mas.
Basltí islo para apreciar a elevação de senli-
mento.s, a gravidade do cslylo de que nuii fre-
quenleinente fazia ostenlação a penna de Mallos
Fragoso. Qiierení!;)-se ver lambem a sua exli-ema
facilidade em escrever, a ligeireza, o cbisle, a gra-
ça da sua expressão cómica, leiam-se os seguintes
íreclios que se encontram nas comedias Ver y
creer, LI marido de su madre, La dic/ia por el
desprecio, ele.
De limosua y siu dinero
la barba hacia á un pastor,
con la na\aj;i j.oor,
desazouado un barbero.
C.omo la na V aja eslaba
com mil mcUas que lenia,
el cabello uo partia,
mas el rosiro desollaba.
Conoció el pastor cl yerro,
y siu poder eslorballe :
en este liempo cn la calle
daban de paios tá un perro.
«iQue será m; :;i'llo ?i' decia
el barbero á sus eidos,
viendo que con alaridos
cl perro los aturdia.
Respoudiò el pastor: «Alli,
á nquel perro que se escarba,
(leben hacerle la barba
de limosna, como á mi.»
Mira, la fortuna es una
dama de gall.inlo cuerpo,
llena de joyas y galas,
que causa à lodos respeto.
Esta anda entre los concursos
mayores dei universo ;
y los discretos que vcn
venir con garbo y despejo
una muger lan bizarra,
como corteses y alentos,
á los liidos se fetiran
porque ella p;i.-se por médio
iiaciendo como entendidos:
y como los majaderos
no liaceu caso rii se apartan,
y se cstan quedos que quedos,
la forluna, (jue va andando,
es íucrza topar con ellos.
Calla, que no has advertido
cl mal que pasa un marido
ai remo de su muger.
Si acaso es gorda, no entra
siu peregil a! Iragalla ;
si eí cliica, nunca se lialla,
si es alia, siempre la encueutran ;
si es muy callada, es grau dano ;
si preguntona, cruel ;
si es celosa, digalo el
que la sufre todo el ano.
Si paridera, es rigor;
si estéril, nunca hay regalo;
si come mucho, es "muy maio ;
si nada come, peor.
Si rica, ha de obedeceria;
si es pobre, ha de sustentaria ;
si os hermosa, ha de celurla;
y si es fea, ha de temeria.
Y asi en la varia fortuna
que eusena el norte de amor,
imagino que es mejor
no casarse con ninguna.
Esta serie de citações poderia ser levada muito
longe, porque é grande o numero de bellezas que
esmaltam ainda as peiorcs comedias de Mattos ;
mas, para dar uma idéa do seu agudo engenho,
da sua lacilidade e graça em manejar o idioma
liespanliol, bastam as que acima transcrevemos.
Das cincoenta e tantas comedias de Mattos ape-
nas se acham li-aduzidas em portuguez as seguin-
tes : Os dons prodigios de Roma, O bruto de Ba-
bilónia, O vtel/tor par entre os doze. Só o piedo-
so é meu /ilho, O sábio em seu retiro.
UMA OBRA DO SÉCULO ÍX
Coiueçsa icia .seguinte ciifosisca a ortEeiu úqh roíuauos
1. Em Roma reinou primeiro Rómulo XXXVIIÍ
annos. Esle edificou Roma.
Tito-Talio, Rei dos Sabinos, Y annos.
Numa Pompilio, XXXII annos. Esle foi o pri-
meiro que ordenou o anno em XIÍ mezes.
Tulo-Hostilio, XXXIII annos. Este foi o primei-
ro que vestio a purpura.
Ânco Mareio, reinou XXYIII annos.
Tarquino-Prifeco^ reinou XXXYIII annos. Este fez
o Capitólio.
Servio-Tulio, reinou XXXYIII annos. Este foi o
primeiro que estabeleceu o censo.
Tarquino o Soberbo, reinou XXV annos. Esle
foi expulso do reino, i)orqne o mereceu.
Houve Cônsules por ('CCf>XXYÍ annos.
Os Deccmviros I anno.
Desde Rómulo e a fundação de Roma, até Cayo
Julu) César, UCXCVI annos.
Primeiramente Cayo Júlio César governou IV
annos. Esto pelejou com Pompeyo pelo impé-
rio.
Começa em seguida a VI idade.
2. Ociaviano, reinou LYI annos. No XLII do
seu reinado nasceu Christo. Este só^ governou lo-
do o Mundo.
Tibério, filho de Gaio, reinou XXIII annos. No
272
O PANORAMA
XVIII foi crucificado N. S. Jesus Chrislo. Em quan-
to Tibério por cobiça, captivava os Reis que se
acolhiam a elle, aparíavam-se muitas nações do
Império Romano.
Gaio Calígula, reinou IV annos. Foi avaro, cruel
e escravo da luxuria. Por este tempo S. Malheos
0 Apostolo foi o primeiro que escreveu o Evan-
gelho na Judca.
Cláudio, reinou XIV annos. N'csta época en-
trou em Roma S. Pedro Apostolo, e S. Marcos es-
creveu o seu Evangelho cm Alexandria.
Nero. foi muito cruel, reinou XIV annos. c en-
tregou-se á luxuria. Pescava com redes de ouro.
N'ebte tempo foram mortos S Pedro c S. Paulo;
um em uma cruz e o outro a golpes d"espada.
Vcsiiasiano, reinou VIII annos, XI mezes e
XXII dias; esqueceu as injurias, c no lí anno do
seu reinado, Tilo apoderou-se de Jerusalém, on-
de morreram á fome e a cutiladas onze vezes cem
mil judeos^ e cem mil foram vendidos publica-
menie.
Tito, reinou II annos. Foi affavel, piedoso e
amado dos homens.
Domiciano, irmão de Tilo, reinou XVI annos.
Ensoberbecido ordenou que lhe chamassem Deus,
matou os Senadores e começou a perseguição
contra os chrislãos. Durante o seu império foi o
Apostolo S. João desterrado por quatro mezes pa-
ra a ilha de Palmos.
Xerva, varão moderado no seu império, reinou
1 anno. Xo seu tempo o Apostolo S. João foi a
Epheso : e recemchegado c a instancias dos Bis-
pos da Asia, publicou o seu Evangelho.
3. Tiajano, reinou XIX annos e VII mezes.
X'esle tempo moircu o Apostolo S- João.
Adriano, reinou XXI annos. Este restaurou Je-
rusalém, e por seu nome chamou-sc Aelia.
Antonino o Piedoso, reinou XXII annos. Foi
mui clemente, e mereceu o nomo, de Pai -da Pá-
tria. Galeno, medico, oriundo de Pérgamo^ flores-
ce em Roma.
Antonino o menor, reinou XVII annos. Foi ven-
cedor.
Commodo, reinou XIII annos.
llelvio Pertinaz, reinou contra sua vontade du-
rante I anno, e recusou chamar esposa a Au-
gusta.
Severo pertinaz, reinou XVIII annos. N'este
tempo, Origines instruio-se em Alexandria.
Antonino Caracalla^ filho de Severo, reinou
VII annos. Foi libidinoso, e desposou Nuberca.
Macrino, reinou I anno. Nada fez digno de
memoria.
Aurélio António, reinou III annos. Foi mor-
to em uma sublevação militar, porque o mere-
cia.
Alexandre, reinou XIII annos. N'este tempo
brilhou Origines cm Alexandria.
Maximiano reinou III annos, perseguio oschris-
tãos.
4. Gordiano, reinou VII annos. Morreu por in-
trigas dos seus.
Filipo, reitiou VII annos. Este foi o primeiro
imperador christão ; a sua conversão leve lugar
no anno milésimo da fundação de Roma.
Dccio, reinou I anno. Foi perseguidor dos chris-
tãos, e no seu temi)0 fioresceu no Egypto Santo
António Monge, o priujciro fundador de Mos-
teiros.
Galo e seu filho Vilasiano, reinaram II annos
Valeriano com Galerio, reinou XV annos. N'es-
la época, S. Cipriano, Bispo, recebe a coroa do
martyrio.
Cláudio, reinou dois annos. Venceu os godos
que assolavam a II iria c a Macedónia.
Aureliano, rcinoii VI annos. Persegue os chris-
tãos, aprisiona o Rei dos Persas, e envelhece e
morre na prisão pelo sentimento que lhe causou
a sua dcshonra.
Tácito reinou J anno.
Probo, reinou VI annos. Foi valente na guerra,
e alcançou assignaladas victorias.
Caro, reinou II annos e, ferido d'um raio,
morreu.
Diocleciano e Maximiano, reinaram XX annos.
Diocleciano perseguio os chrislãos, e foi o pri-
meiro que mandou que no falo e no calçado se trou-
xessem pedras preciosas, pois até aíi os Prínci-
pes usavam unicamente a purpura. Havendo am-
bos deixado o império, viveram como particu-
lares.
Galerio, leinou lí annos.
[Conlinua.)
A roda que se pinta á fortuna deve de ser de enge-
nho de nora, aonde os homens são alcatruzes, uns cheios,
outros vasios, uns no fundo, outros no alio.
D.F. Maisuel.
A FORMIGA E A ARANHA
conto Ci^Shoiiiaiio
Os pastores haviam queimado o ninho da for-
miga, porque ella mordia os a todo o momento.
A formiga, não podendo vingar-se d"elles, foi ler
com o Senhor, e accusou os de esperdiçarem to-
dos os dias muitas migalhas de pão ; mas não
fallou do formigueiro, porque sabia perfeitamen-
te que por sua causa é que tinha sido quei-
mado.
— Pôde haver verdade no que me expões, dis-
se Deus; mas não tens testemunhas do facto? É
preciso que m"as apresentes.
A formiga dirigio-se A aranha :
— Vinde comigo, minha irmã, necessito de
uma testemunha no meu processo contra os pas-
tores.
A aranha acompanhou- a ao eco.
— Será verdade, como o assegura a formiga,
que 03 pastores lodos os dias perdem pão? per-
gunlou-lhe o bom Deus.
— li. verdade, mas não o fazem de propósito ; a
culpa tem-na a formiga, que os não deixa-socc-
gar um momento: morde-os incessantemente,
quer durmam, quer velem, quer andem, quer
estejam pai"ados.
— Disseste a verdade, e, para rccompensar-te,
quero prover-lc de um lio que trarás sempre
comtigo c com o qual poderás subir ao céo, e
descer quando te approuver. --Mas tu, invejosa
formiga, que fazes mal aos teus visinhos e vens
depois accusal-os falsamente, mereces oulro pre-
mio.
E applicou-lhc sobre o espinhaço uma benga-
lada tão forte, que lhe entrou nas" costas de mo-
do que ficou, como a vemos, mais delgada no
meio do corpo. (1)
(11 Kxtrahido do lUis Inland (Interior do paiz), revista da3 pro"
viiKjiíis liallicas da Rússia.
Typ. Franco-Porlugueza = Rua do Thcsouro Velho, 6.
o PANORAMA
27B
Benguella.
Quando, após as audaciosas navegações dos descobri-
dores porluguezes, assoberljavamos o mundo com o po-
der das suas espadas, e levávamos à sombra da cruz
o dominio de Poilugal alé os confins do remoto orienie,
eram tantos os paizes a que dictavamos a lei e (jue tí-
nhamos de explorar, que quasi parece impossivel que
d'este cantinho da Europa, se governassem l.ão largas e
Ião distantes colónias! E comtudo, o mecanismo da admi-
nistração, era de certo mais simples e menos desenvol-
vido do que actualmente 1
Mas, o que, com certeza, succedia, como resultado im-
medialo de Ião vaslo império, é que considerávamos
algumas d'essas terras como filhas (blectas da mãe pá-
tria, em quanto que desprezando outras como enteadas,
deixamoFas á revelia seguir a passos mais que lentos,
no caminho da civilização. Depois, quando já n'este sé-
culo chegaram as horas d'alribulação, e que nos vimos
reduzidos somente ao que ate ahi — se não desdenhára-
mos como inulii, ao menos abandonáramos como de
pouco preço— começaram os gritos e os lamentos, con-
tinuam os choros e as vociferações, e tudo é dizermos
que as colónias não rendem, que não dão frucío, que
são um ónus para a metrópole!
Se não semeáramos como queríamos colher?
Todos, ou quasi todos os esforços se haviam em-
pregado para a America, deixava-se tudo mais por ella ;
e quando além soou a hora da independência, e que as
náos dos fjui)ilos deixaram de subir o Tejo, oíTegantos
com o peso do seu ouro, velámos os olhares da scena
do mundo a que não podíamos já deslumbrar com o
luzir das pedrarias.
Perdido o Brazil julgamo-nos perdidos, porque ne-
nhuma das outras colónias se achava em estado de nos
dar igual producto; c se depois o interesse nos tem
feito lançar á\idas vistas por sobre a nossa Africa, tem
vindo as mais das vezes a incúria, ou a inépcia, fazer
dar de mão a quantos |:roveitos reacs d'ella poderíamos
tirar,
Considerava-sc o lírazíl como a fonte de todas as ri-
quezas, o a Africa só como viveiro aonde se l)uscavam
os_ trabalhadores que lá se precisavam. Era esta a ma-
neira de então olhar as cousas, e desgraçadamente para
Portugal, ainda muitos não as olham por" outra forma.
Temos sido descuidados e muito, modernamente na
administração das colónias, mas o estatlo de esmoreci-
mento em que cilas ainda se encontram, c mais do que
a isso, devido ao uso em que truitos dos nossos se po-
zeram — de ganhar muito, com pouco trabalho — e por
tanto julgiiram a Africa só criada para a exportação de
braços !
k escravatura tem sido o cancro roedor das provindas
de Angola e Moçambique.
Corre n'alguns escriplos, já com foros de verdade de-
monstrada, que Portugal nãò fora fadado por Deus para
nação colonisatlora, e ainda que o estado geral do nosso
ultramar dè alguma razão de ser a este dito, comtudo
pôde elle soíTrer séria contestação. Áqaelles que avançam
uma proposição ião olíensiva dos nossos brios como "na-
ção que descobrio meio mundo, e que primeiro d'cntrc
as modernas formou colónias, apontcmos-lhe para o Bra-
zil, a que em menos de três séculos fizemos quosi o (jue
c, desbravando terrenos, levantando e jiovoando cidades
e villas, fundando engenhos c escolas, civilizando os na-
turaes, ligando a sua historia intimamente com a nossa
alé a data da iiidependencia, e emíim tornando aquclla
terra tão homogénea com a mãe pátria, que não pareciam
separadas por toda a largura d'um oceano.
Deve-se crer, pois, que muilo podemos ainda fazer
pelas nossas províncias africanas, se c que não degenerou
a raça dos porluguezes d'outr'ora.
Vai longo o prologo, para quem tem de tratar só do
que representa a eslamjia da frente do artigo; mas é que
não se pôde fallar das nossas cousas esquecidas de além-
mar, sem occorrerem as reflexões geraes que cm resumo
fizemos.
A cidade de S. rilippe de Benguella, cajutal do dis-
Iricto de Benguella e segunda da Africa porlugueza áquem
do Cabo na costa occidenlal, esta situada por doze graus
e meio de laliliidc ao sul do equador, quasi a meio ca-
minho entre Ambriz e Mossamedes, pontos extremos do
litoral, em que hoje xcrdadeiramenle dominamos; ainda
que reservando sempre os nossos direilos de descobri-
mento e conquista, muilo além d'estes limites quer para
o norle, quer ]iara o sul.
Pela sua situação, é, pois, um iionio importante para
o commercio de cabotagem n'aquella extensa costa, em-
bora abstraindo da riqueza agrícola e mineira do seu
districlo, e de sor o sitio aonde principalmenle corre
lodo o negocio da nossa Africa central. iNão pótie, pois,
jamais deixar de ser cidade de importância commercial,
apesar do seu mau clima, c ainda das idéas de muitos
que julgavam a colónia mais moderna de Mossamedes,
destinada a roubar-lhc Ioda a consideração.
O clima é na verdade bastante mau, mas ha muitos
274
O PANORAMA
outros pontos do globo que o lêem aiiuia pcior, e aonde
coaitudo floresccnies cidades se oslenlam garhosas da
sua ri(|ueza e poderio. Sirvam de exemplo, Bombaia),
Calcutá, l?ala\ia.
Renguella solTre das causas geraes aos climas africanos,
e ainda mais particularmente das da sua posição, que a
toiíograpliia ilo local basta para indicar.
Collocada a cidade no recôncavo d"uma larga bahia,
sobre os terrenos alagadiços da extensa baixa, que se-
para a praia das elevada"s montanhas do interior, está
portanto subjeila ás emanações pestilenciaes de quantos
jianlanos formam as aguas ' represadas, que as chuvas
torrenciaes despenham das alturas, e que só morosamente
se iiililtram pelas areias barrosas do solo. É bem lavada
de ares pelos ventos mareiros da viração, mas estes em
geral carregados de humidade, não são por isso muito
sadios, e mesmo se varrem os miasmas para fora da
cidade, embatem logo contra as chapadas dos montes
que formam como a parede do fundo a planície, e d'onde
a noite as brizas do terral os acarreiam novamente para
cima das habitações.
Tiradas as po'ucas horas em que sopra a viração, res-
pira-se uma allimosphera paludosa, anda-sc cercado d'um
ambiente húmido de vnpor, e quasi que se palpa um ar
grosso e pesado de gazes irrespiráveis, que, comludo,^é
agradável de perfumes, das exhalações balsâmicas de mil
plantas Iropicáes.
A cidade c pouco espaçosa e não lem grande numero
de casas elevadas, mas com as suas cercanias cheias de
borlas ou fazendas verdejantes de cultura, lorna-se bo-
nita e de apparencia pitoresca.
Para quem anda crusando ao longo da desolada costa
d"Africa, encontrando só com a vista areáes adustos, ou
na maior parte dos sitios encostas escalvadas e riban-
ceiras nuas de verdura, é aprazível, vindo do norte, de-
mandar o porto de Benguella, costear as salinas do Lo-
bito, rastejar pela povoação da Catumbella toda cercada
de luxuriante vegetação e coroada pelo seu pequeno forte
a meia subida da montanha, e por fim dar fundo de-
fronte da cidade de S. Tilippe, \endo na frente do qua-
dro algumas casas de agradável ai)parencia, depois os
arvoredos e as hortas, tudo fechado ao fundo pelas ser-
ranias áridas que vão terminar ao sul no morro do
Sombreiro, e por cima das quaes campeam altivas a
entestar com as nu\ens, as cordilheiras negras que do-
mina o Pão d\assucarl
O morro do Sombreiro, bem conhecido de todos os
navegantes d"aquellas paragens, c uma montanha de me-
diana altura, jierto da borda d'agua, c à qual a natureza
caprichosa se divertio a talhar o píncaro jior forma, que
de lodos os lados que se veja parece um barrete de
clérigo, assente e cobrindo o ápice d'um monte pyrami-
dal de larga base. Todos os navegadores procuram nos
diversos sitios do globo, jjonlos ou marcas de formas
conhecidas, que sirvam de indicação de lugar ; mas não
ha em parte alguma, nenhum dô mais fácil reconheci-
mento 00 que o morro do Sombreiro.
O nome provem, pois, «lo seu aspecto geral, e não, como
disse um dislinclo escri|)tor nosso, niima obra oíTicial,
d"um monte de arv^ores que tcidia no cume com pare-
cenças de barrete de padre.
Houve oulr"ora a idca de coUocar sobre a planura do
Sombreiro, um farol que servisse de guia a quem de-
manda o porto de noite vindo do sul, para assim com
mais facilidade se evitarem sinistros possíveis na praia
das Salinas; mas este pensamento, como cm gorai todos
aquellcs de alguma utilidade, foi abandonado, e só restam
lá no alio como padrão d'incuria, as ruínas inglórias da
casa do farolcíro.
O porto ou bahía de Benguella c mão; não tanto por
se achar exposto e desabrigado de toilos os ventos desde
oessudoesle pelo norte até o nordeste, que poucas vezes
são demasiadamente frescos, como principalmente por
eslar siií)jeito ás Ilmtívcís calemas, que dillicnllam sem-
pre, e impedem por vezes as rommunicaçôcs com a terra.
íí a calrma o esbravejar das vagas nas proximidades
da praia, atirai, do-se depois sobre ella em alvos Icnçóes
de espuma; succcdendo por vezes cpjc se levantam tão
magcslosos rollos de mar, que ao desdobrar-sc necessa-
riamente embrulham e quebram tudo que enconlram na
sua marcha altiva para a praia.
iNada ha na scicncia, que explique ainda satisfatoria-
mente este phonomeno das calemas: que nada depen-
dem da braveza do oceano, porque este muitas vezes a
pouca distancia da costa está li/.o como um espelho, em
quanto na praia ostenta todas as suas fúrias; nem das
correntes, porcpie estas continuam ao longo da costa a
sua marcha constante para o norte, sem desviarem ca-
minho por causa (relias; nem das marés, porcpie não
appnrecem em períodos determinados, nem reconhecem
como causa primaria as atlracções lunares; nem mesmo,
como alguns teem dito, dos tenqioraes do cabo da Boa-
Ksporança, porque então devia sentir-se fora o mar cs-
cnndalisado do temporal o (pie não se dá, e ainda mais
deviam as calemas ir diminuindo de força successiva-
meiíte para o norte, o que lambem não succede, pois
que se dá o caso de haver calema bravíssima ao norte,
conser\ando-se as praias do sul na mais perfeita quietação.
Seja o que fór que motive as calemas, é um fado ave-
riguado para lodos os habitantes da cidade, e para os
frcíjuentadores do porto de Benguella, que as grandes
calemas d'oulro tempo são hoje ali muilo mais raras;
apparecendo com longos inlervallos, c não sendo mesmo
da força e valentia que então tinham.
Ao contrario, nas praias do norte teem augmenlado ;
e ainda o anno passado (186.5), na contra costa da ilha
(|uc fecha o i)orto de Loanda, baliam as calemas com
tal fúria que varavam ao outro lado interior, e chegavam
a cercar a casa do negociante Flores, em que habitava
s. cx.-'" o governador Andrade.
Não havia memoria ou noticia de caso semelhante, e
diziam os antigos de Loanda, que era a primeira vez
que se dava. A ilha de Loanda, lem n'aquelle ponlo tal-
vez cento e cincoenta metros de largura, e a sua eleva-
ção no combro do meio das duas costas, não deve ser
de menos de cinco melros acima do nível do mar.
Não será jior ventura este facto, um lanlo ou quanto
dependente das differcnças de nivelamento dos fundos?
por lerem as aguas accúmulado areias para um lado, c
roubado n'outros.
As proximidades da praia do fundo da bahía de Ben-
guella, podem ser hoje menos csparceladas do que an-
tigamente, o que não daria tanto lugar à subida succes-
siva das ondas, maneira porque os sábios francezes
explicam o mascarei da foz do Senna, que deve ter
muita semelhança com o desenrolar da calema. Isto c
possível; porque hoje enconlram-sc no porto alfaques,
ou coroas de areia c Iodo, de que não faliam os velhos
roteiros ; c que, quem sabe se servirão como de quebra
mar? É esta uma questão que demanda sério estudo, c
que não vem para aqui a propósito d'uma simples noti-
cia descriptiva. q e. Courea da Silva.
(ConMiu(i)
O CONDE ALLAMISTAKEO
Tcndo-nos osculado com mui la ai tenção ale o
íim, o conde começou a conlai--nos al^aimas anec-
dolas que nos provai-am claramenle que os prolo-
lypos de (lall e Spuiv.iíeim Unham llorescido c
descaído no Kgvjilo, mas em uma época Ião an-
liga que a lembrança d'ella eslava quasi perdida,
— c que os pi-ocessos de Mesmer eram misei-aveis
enganos cm comparação dos milagres posilivos
operados, pelos sábios de Tliebas, que creavam pul-
gas c uma mullidão de oulros seres semelhanles.
Pergunlei enlão ao conde se os seus compalrio-
las eram capazes de calcular oscclypses. Soirio-se
com cerlo desdém e allirmou-me (pie sim.
lalo embaraçou-me um pouco; não obslanle co-
meçava a fazer-llie oulras perguntas relalivamenle
aos' seus conliecimenlos aslronomicos, ([uando al-
guém da sociedade, que ainda não linha aberto a
o PANORAMA
275
boca, me disse ao ouvido que, se eu precisava de
esclarecimentos sobre esto ponlo, andaiia melhor
consullando um cerlo Píoleméo, ou um tal Plutar-
co, no artigo De facic luno?.
Questionei então com a múmia sobre os vidros
ardentes c lenticulares, e geralmente sobre a fa-
bricação do vidro; mas, não tiniia ainda acabado,
já o meu silencioso camarada me locava com o
cotovello, e me pedia,' pelo amor de Deus, que
lançasse um olhar sobre o Diodoro de Sicilia.
Quanto ao conde, perguntou-me simplesmente, se,
nós outros modernos, possuíamos microscópios que
nos permiltissem gravar agathas finas com a per-
feição dos egypcios. Em quanto eu procurava uma
resposta, o pequeno doutor Alexandre aventurou-se
a uma cousa muito extraordinária.
— Veja o nossa architectura, conde, — exclamou
elle com grande indignação dos dons viajantes,
que ihe puxavam pelas abas do casaco o lhe da-
vam belliscões, mas som conseguirem fazel-o cal-
lar.
— Vá \er, conde, continuava elle com grande
enlhusiasmo, o magnifico pedestal do grande mo-
numento que os lusos tencionam erguer á memo-
ria do immortal cantor das nossas antigas faça-
nhas ; veja lambem as costas do palácio das cor-
tes, obra soberba começada sob a inspirada direc-
ção de um dos nossos mais distinctos personagens!
E o pobre homem, sem atlender a cousa algu-
ma, levado pelo seu patriotismo e idéas progres-
sistas, foi até descrever minuciosamente o edificio
em questão. Mostrou que o pórtico tinha suíTicien-
te largura para poderem entrar, sem inconvenien-
te, os pares da nação ; marcou a dimensão e a
distancia das janellas ; e emfim, disse o numero
doestas, das portas secundarias e de columnas
que se encontrara em todo o edificio.
O conde disse que sentia não poder lembrar-se
n'aquelle momento da dimensão precisa de algu-
mas das principaes construcçõcs da cidade de Aznac,
cuja fundação mergulhava na noite dos tempos,
mas cujas ruinas existiam ainda de pé, na época
do seu enterro, em um.a vasta planície de aréa ao
oeste de Thebas. Tinha, comtudo, uma idéa vaga,
a respeito de pórticos, que havia um de segunda
ordem em uma espécie de vil la chamada Carnac,
formado de cento e quarenta e quatio columnas
de trinta e sete pés de circumferencia cada uma,
e distantes umas das outras vinte e cinco pés.
Cbegava-se doiNilo a este pórtico por uma alameda
de duas milhas de comprimento, formada por
sphinges, estatuas, obeliscos de vinte, sessenta e
cem pés de altura. O palácio, em si, teria umas
cinco milhas de comprimento; no todo não tinha
menos de doze. Não pretendia aílirmar que den-
tro das suas paredes se poderiam edilicar mil ou
mil e quinhentos palácios de cortes ; mas pare-
cia-lhe que não haveria grande diíficuldade em
pilhar ali, d'estes, Ires a quatro mil. Este palácio
de Carnac, a final de contas, era uma insigniíican-
te construcção. Não obstante, o conde não podia,
em consciência, deixar de reconhecer o estylo en-
genhoso, a magnificência e a superioridade das
costas do palácio das cortes, tal como o doutor as
descrevera. Era forçado mesmo a confessar que
nunca linha vislo no Egypto, nem em parte algu-
ma do mundo, um trabalho de tanto efleito e gos-
to; que só das nossas mãos podia sair uma cousa
d'aquellas !
Perguntei então ao conde o que pensava dos
nossos caminhos de ferro.
— Cousa alguma de particular, disse elle. Yejo
que teem sido um sorvedouro de milhões; mas
acho-os fracos, mal concebidos, e de grosseira
construcção. Não podem ser comparados com as
vastas calçadas guarnecidas de encaixes de ferro,
horisonlaos e directos, sobre os quaes os egypcios
transportavam templos inteiros e obeliscos maciços
de cento e cincoenla pés de altura.
Fallei-lhe das nossas forças mechanicas. Conveio
que sabiamos fazer alguma cousa n"este género, mas
perguntou-me como procederíamos nós para collo-
carmos as impostas sobre as vergas das portas do
mais pequeno palácio de Carnac.
Julguei mais acertado fingir que não ouvia esta
questão, e pergunlei-lhe se linha alguma idéa dos
poços artesianos; mas elle simplesmente fi'anzio
as sobrancelhas, em quanto que o padre Gilbei'lo
me fazia um signal com os olhos muito pronun-
ciado, e me dizia em voz baixa que os engenhei-
ros encarregados de explorar o terreno para achar
agua no Grande Oásis tinham descoberto um mui-
lo recentemente.
(Continua)
OS REIS E RAINHAS DINGLATERRA
Besdc a conquista até f 6SS
Os homens collocados no cume da sociedade
deveriam considerar que são elles, particular-
mente, quem tem obrigação de dar o exemplo
de uma vida honesta; porque, debaixo sempre
das vistas de todos, estão destinados, quer seja
da sua vontade, quer não^ a servirem de modelos.
Por que fatalidade, pois, estes homens, quasi em
todos os tempos, lêem estado abaixo da mais me-
díocre e mais vulgar moralidade? Por que mo-
tivo muitos d'entre elles teem sido os primeiros
a darem o exemplo dos vícios mais desprezíveis,
dos mais nefandos crimes ?
Eis o excerpto de um livro no qual um notável
historiador (1) pinta era rápidos traços (somente
no sentido de lealdade e humanidade) o proce-
dimento dos reis e rainhas de Inglaterra desde
a conquista dos Normandos até a revolução de
1688, que fundou a liberdade ingleza.
«Não são, diz elle, senão revoluções domesti-
cas e parricidas: filhos contra pães,' irmãos con-
tra irmãos.
«l\oberto, filho primogénito do conquistador,
começa por atacar seu pai. Depois c desapossa-
do por seus irmãos mais novos: Guilherme II
toma-lhe a Inglaterra; Henrique I, leva-lhe com
a Inglaterra a Normandia e conserva-o vinte e
oito annos em uma prisão. Henrique II supplanta
a raça d'Estevam, e acaba o seu reinado no
meio da revolta de seus filhos, Ricardo e João.
«João mata seu sobrinho Arlhur; seu filho
(I) n. Wallon: .nicliard IH, episodio da rivalidade da Franç
com a Inglaterra.
276
O PANORAMA
Henrique III não escapa ás guerras de família
senão para cair nas guerras civis. Eduardo I con-
segue livrar-se d'ellas e morre naluralmenlc; mas
Eduardo II c desthronado e assassinado por sua
mulher, desejava poder dizer sem a menor con-
nivencia de seu íilho Eduardo III.
((Ricardo II, o neto e herdeiro de Eduardo III. é
derrotado e morto por seu primo Henrique de Lan-
castre (Henrique IV); Henrique VI, por Eduardo
d"Vork (^Eduardo IV): os llllios d"Eduardo ])elo rei
Hicardo 111; Ricardo III, por Henrique VII.
('Henrique VIU. repudiando ou matando suas
mulheres, lega uma herança de ódios recíprocos
e de vingança aos filhos nascidos d'estes matri-
mónios;— Eduardo VI, que prepara pela desgra-
ça os reinados violentos de suas duas irmãs; —
Maria que mata Joanna Grey, e persegue Isabel,
— Isabel, que manda matar iMaria Stuart, a mãi
do seu próximo herdeiro.
«A casa de Sluart sobe ao Ihrono pelos degrao.s
tintos do seu próprio sangue (depois d'uma re-
volução e uma restauração)... E na sua qualida-
de de genro, é em nome e com a cumplicidade
daíilhade JacquesII, sua mulher, que Guilherme
d'Orange a expulsa em 1088.»
Que horrível historia! E é somente a dos cri-
mes! Que seria se se lhe accrescentasse, por ex-
emplo, a dos costumes! Não é, realnienie de uma
grande felicidade que em Inglaterra* como nos
de mais paizes, a maioria dos cidadãos tenha si-
do quasi sempre melhor que os seus soberanos?
Se assim não fosse a sociedade humana ha mui-
to não existiria.
A verdade é como o orvalho do céo : para a conser-
var pura, é mister recolhel-a em vaso puro.
B. DE Saim-Pierre — La Chaumiere.
O cuscus
A palavra — Os habitantes da Africa septemtrio-
nal comprehendcm cm geral sob esta denjmi-
nação toda a espécie de manjar composto de
farinha branca ou parda e cosido a vapor no
keshass, vaso semelhante a uma escudclla cujo
fundo íosse crivado de muitos buracos.
A. Cherbonneau, director do collegio imperial
arabe-francez em Algcr, pensa que a palavra cus-
cus ou kuskus é uma onomaloptía. As letras e
syliabas que a compõem só servem para imitar
a' bulha produzida pelo vapor quando os grumos
de farinha passam alravez dos buracos do vaso.
PrcjmraçMo do c»«cíís. — Depois de terminada a
colheita, ás mulheres reúnem em um lugar des-
coberto e muito isolado a quantidade de trigo
rijo destinado para a j)reparação do cuscus. Es-
to trigo é completamente molhado, c depois posto
ao sol em monte coberto com paumis húmidos.
No lim de algumas horas, estando o grão bem
inchado, e sem esperar que comece a germina-
ção, estendc-se em cama delgada, sobre liniks ou
em terreno balido. Quando a deseccação eslã
muito adiantada, pa.ssa-se o grão por entre duas
m<)S de calcareo rijo. A mó superior é movida a
braço, ordinariamente por uma mulher; os grãos
são só reduzidos a fragmentos da grossura de
bagos do milho; expoem-sc novamente ao sol, e
enlão basta joeiral-o para eliminar as pelliculas.
Depois é mel tido em pelles de carneiro ou de
cabra.
Differentes espécies de museus. — Conlam- se oito
espécies de cuscus, das quaes eis a definição:
1.° A berbucha, segundo o costume dos habi-
tantes de Constantina, prepara-se com farinha
escura. É o cuscus mais commum: forma quasi
exclusivamente o sustento da classe pobre.
2." O medjburó feito de massa de primeira qua-
lidade ou de farinha européa. Os grãos d"este
cuscus devem ter a grossura do chumbo de caça.
iMisturam-no com carne de carneiro, gallinhás,
pombos ou perdizes. Depois d"esta primeira ope-
ração cose-se mais duas vezes no keskass; ajun-
ta-se-lhe então manteiga derretida, e, quando se
come, deita-se lhe caldo (mcrga).
3." O mahivér prepara-se com os mesmos ingre-
dientes que o madjcbur, com a diíVerença, porem,
que o grão deve ser mais miúdo. O maincêr mais
estimado é o chamado nemli, porque se asseme-
lha pela tcnuidade dos seus grãos a cabeças de
formigas (nemla). Adubam-no com Ccirnes frescas,
mas nunca com kh.elie ou kaddide. (1)
4.° O harachc fi Jiarache é assim chamado por-
que a farinha de que se compõe é de grossa
moedura. Mui pouco differe do precedente. Pre-
param-no com carnes frescas, klielie ou kaddide.
O adubo ordinário d'esle cuscus é composto de
cebolas, sal, pimenta, chicbaros e de bolinhas de
carne da grossura de uma baila d'espingarda.
5.° O .'//("«/"íí/efabrica-se com a primeira qualidade
de frumento. Cose-se do mesmo modo que lodos
os outros cuscus; somente lhe misturam bagos
de passa ou de romã. Quando, para tornai o mais
delicado, lhe ajuntam lebcii (soro de leite) ou
leite puro, toma o nome de bnrbakr.
6.° O mcchrub não é geralmente muito estima-
do. Quando, cm consequência de abundantes
chuvaSj a agua tem peneirado nos silos c chega
ao Irigo que n'elles existe, este trigo embebe-se
{ichrob) e adquire ao mesmo tempo um gosto agro
e um cheiro repugnante. Depois de o ler tirado
do silo, põe-se a seccar, raoe-se, e é d'esla fari-
nha que se faz o mechrub. Assim, este género de
cuscus eslá longe de ser fino.
7.° Quanlo ao mczeiít, eis de que se compõe :
entre os silos, ha alguns cuja terra éboa, e quan-
do se extrae o trigo que ali tem existido dois an-
nos e algumas vezes mais tempo, sem nunca ler
sido tocado pela agua, encontra-se adhcrentc ãs
paredes da cavidade o que os indígenas chamam
mezcuU uma espécie de crosta produzida pela humi-
dade que a terra communica sempre aos grãos
que encerra. Esta crosta apresenta uma cor par-
da e o gosto é levemente assucarado. Eaz-se d'ella
o incdjcbur. Ao que dizem os Árabes, é um man-
jar cxquisilo, o pralo dos amigos. O cuscus mc-
zeul prepara se com manleiga fresca c carne de
carneiro.
8." O aiclie assemclha-sc i sopa de arroz, com
a diíTerença (jue os grumos de cuscus substituem
os bagos de arroz. Cose-se em calda de damas-
cos seccos, designados no dialecto barbaresco
pela palavra fermasí^e (em latim) fírmus'!).
Nas épocas de cscasseza, quando aos Árabes
faliam o trigo e a cevada, recorrem ao heguga,
vulgarmente draconcio dos Gregos ou mão de
vitella (cm hcspanhol, cl caudil dei diablo). E o pão
da fome.
(1; o Kliflio ('• uma comida composta do carnes do vaca e do
carneiro. O Kaddid(3 corresjifjndy ú carne salgada.
o PANORAMA
277
Hie-h-street.
Londres não expressa simplesmente uma cidade
na accepção ordinária d'esla palavra, mas, uma
agglomcração de cidades, uma provincia coberta
de casas, monumentos e palácios atravessada por
ura braço de mar. Para o leitor poder formar uma
idea adequada do que é a capital da Grau Breta-
nha, seria necessário que fizesse um esforço de
imaginação e figurasse todo o reino de Portugal
convertido^ por obra e graça de uma revolução
monstruosa^ em uma cidade chamada Lisboa,
capital da Lusitânia, ou a Bélgica inteira trans-
formada em Bruxellas, capital da França.
A área de cada um d'estes estados, assim con-
vertidos, seria, talvez, maior, e superior a sua
população ; mas nem as suas riquezas nem a sua
importância actuaes excedem, não dizemos bem,
igualam a riqueza e a importância de Londres.
Aqui ha alguns annos podia perfeitamente ap-
plicar-se á metrópole de Inglaterra a mesma ce-
lebre phrase com que o astuto diplomata de Yien-
na designava a Itália. Hoje mesmo estamos quasi
tentados a dizer que esta capital c uma simples
expressão geographica, não obstante Dawning-
street, as camarás de Westminster e o palácio de
Buckingham.
Desejando formar uma metrópole digna de tão
poderoso império, o parlamento inglez, tomou
quatro condados e meia dúzia de cidades^ disse
fiat London no mesmo tom imperioso em que
Deus pronunciou o fiai lux ao tirar o mundo do
cahos^ e criou a capital de Inglaterra.
A cidade de Londres é de todas da terra a mais
povoada ; conta nada menos de três milhões de
habitantes que despendem annualmeníe em co-
mida e vestuário 400:000:000:000 de réis. Esta
povoação é uma quarta parte maior que a de
Pekin/ um teiço maior que a de Paris, cinco ve-
zes maior que a de Constantinopla, seis vezes co-
mo a de S. Pelersburgo, dez como a de Madrid,
doze como a de Lisboa, duas como a de Nova
York, cinco como a de Vienua^, e seis vezes tão
grande como a de Berlin.
Uma só linha não interrompida dos edifícios does-
ta moderna Babylonia, desde Highgate até Camber-
well, estende-se na immensa distancia de doze
milhas inglezas. E se todos os que contém se
pozessem alinhados a um de fundo, bastariam
para cruzar com elles a Inglaterra e atravessan-
do o canal da Mancha e o império vizinho irem
beijar as agrestes faldas dos Pyrenéos. Fazendo
andar os seus 3:000:000 de habitantes a dois
de fundo, formariam outra linha de 7:20 milhas
que, caminhando a razão de três por hora, em-
pregariam nove dias e nove noites em percorrer
igual distancia.
Um passeio a pé á roda de Londres seria quasi
tão laborioso como uma viagem, se possível fosse,
de circumvalação á roda do mundo. O viandante
não o poderia effccluar em menos de três dias, ain-
da que caminhasse a i-azão de vinte milhas cada
jornada. A sua extensão de norte a sul, é somente
de oito milhas; de oriente a occidente, porém,
não conta menos de dezoito. Para formar outra
Londres seriam precisas, pouco mais ou menos,
cincoenla cidades consideráveis de Inglaterra.
Segundo observa o famoso astrónomo Herschell,
esta capital occupa quasi o ponto central do he-
mispherio terrestre^ devendo, sem duvida, a esta
circumstancia. combinada com a da sua situação
insular no caminho real das nações, a sua emi-
278
O PANORAMA
nencia commercial. Cidade marilima, mercantil
e industrial, contém em si todos os grandes ele-
mentos que constituem a verdadeira grandeza dos
povos e tornam poderosos os estados. Embora si-
tuada nas ourelas do Tamisa, e a lo milhas do
mar, Londres goza de todas as inapreciáveis van-
tagens de um excellente e seguro porto. A sua
área é de perto de 40 milhas quadradas., c entre
ruas. praças, travessas, squares, os seus habitan-
tes contam dez mil vias de communicação. A
extensão de todas e.stas ruas postas em linha re-
cta, seria de 3:000 milhas. O numero de ruas
com passeios aos lados eleva-sc a 5:000 e a lon-
gitude d'estas é de 2:000 milhas, cuja construc-
çào custou ao governo 6 7; 1^00:000:000 de reis. Os
úastos da sua reparação sobem somente a réis
8:()i0:000:000. O numero de casas excede 340:000.
A cidade de Londres gasta, além d'isso, todos
os annos, 10:080:000:000 réis na illuminação de
gaz, formada por 4;^0:000 luzes, que consommem
14:000:000 de pés cúbicos cada noite.
Este gaz é fabricado com 1:000:000 de tonela-
das de carvão de pedra e circula por uma linha
de canos de 2:000 milhas de comprimento. A im-
portação do carvão de pedra no porto de Londres
é feita por 12:000 navios e eleva-se a 4:000:000 de
toneladas annualmente.
Os canos da agua são quasi tão largos como os
do gaz. e distribuem entre a sua povoação cerca
de 80:000:000 de galões diarianienle d"csle li-
quido.
O porto de Londres estcnde-se ao longo do Ta-
misa desde Limehouse até Gravescnd, cidade si-
tuada na sua margem direita a 30 milhas de dis-
tancia. As suas exportações e importações elevam-
a 072:000:000:000 réis por anno, e o' numero de
navios que ali entrara e saem., no mesmo perío-
do, sobe a muitos milhares. Os direitos das
suas alfandegas excedem 11:000:000:000 esterlinos
annualmente, apesar das liberaes reformas feitas
por Mr. Gladstone.
Londres é o empório do commcrcio e o foco
de industria maiores do mundo. Uma só casa
commercial d'esta poderosa cidade tem effeituado
cm um anno transacções no valor de 14:400:000:000
réis. Em 1802, um dos seus banqueiros, Mr. Pea-
body, fez um donativo aos poi)res da metrópole
de 720:000:000 réis. O banco de Inglaterra con-
tém, geralmente, em suas caixas de 70:800 a
80:400:000:000 réis em espécie e as suas notas cm
circularão não importam em menos de 20:000:000
de libras esterlinas. Os empregados d'csle estabe-
lecimento monetário, formam um exercito apro-
ximadamente, de mil homens. Os outros bancos
da cidade possuem um capital de 330:000:000:000
réis. A somma empregada diariamente nos des-
contos eleva-se a 384:000:000:000 réis e as com-
panhias de seguros teem segurado um capital
que sobe decifra considerável de 8100:000:000. Os
fundos disponíveis d'estas companhias regulam
por 102:000:000:000 réis.
Cosmopohlas em suas transacções mercantis
como em suas aventuras, os negociantes de Lon-
dres abastecem de objectos diversos uma grande
parle do género humano, e os seus artefactos c
manufacturas gaslam-.se e usam-se em todos os
mercados da terra. A civilisada Europa e a joven
America, a Africa inculta, a industriosa Austrá-
lia c a Ásia estacionaria, todas as regiões da ter-
ra, todos os povos do oriente ao occidenle, do Polo
Arctivo ao Antárctico, rendem, enifim^ tributo
á energia e á industria dos ricos potentados, que
dirigem o commcrcio do mundo lá dos seus es-
criplorios, como o general os exércitos da sua
tenda.
A industria é tão florescente era Londres como
o commercio, e a esta circumstancia deve, sem
duvida, a solidez da .^ua grandeza. O engrande
cimento da Grécia antiga eslribava-se nos seus sá-
bios, nos seus artistas, nos seus tribunos; o pode-
rio de Roma fiindava-se nas suas legiões, e o
commercio era a alma da riqueza e o poder da
rainha do Adiiatico; a força, porém, da Ingla-
terra está assentada sobre a larga base de todos
estes elementos reunidos e uma civilisação infi-
nitamente mais elevada sustentada por essas mo-
dernas alavancas de Archimedes, chamadas im-
prensa, electricidade, vapor e liberdade.
A civilisação britannica, synthese da da Euro-
pa, não mori-erá, pois, como morreram as ephe-
meras e transitórias civilisações antigas. Nenhum
Marco futuro sentado sobre as suas ruinas cho-
rará a perda da sua grandeza Nunca o viajante^
apoiado sobre um robusto e troncado pilar da
Ponte de Londres., exclamará: «Aqui foi a capi-
tal de Inglaterra.»
Não quer isto dizer que a civilisação ingleza
fosse dotada com a immortalidade do espirito;
o que desejamos significar é que a ruina de tão
solida civilisação arrastaria comsigo a destruição
do mundo. Um grande escriptor disse que o aba-
lo que destruisse as pyramides do Egypto arrui-
naria ao mesmo tempo o globo terráqueo. O mesmo
se pôde dizer do cathaclismo politico ou social
cj[ue destruisse a civilisação da Grã-Bretanha:
[Continua]
MYTIIOLOGIA DA NOVA ZELÂNDIA
A mythologia da Nova Zelândia, tal como a dos
outros povos, eslá coraposla de um conjunclo de
lendas e tradições que celebram as façanhas dos
deuses, dos heroes e dos homens em constante e
reciproca sympalhia. A mythologia é a personni-
íicação da crença popular, a religião formada jior
uma imaginação ignorante. Historias ou conjectu-
ras a respeito da creação do mundo, explicações
fabulosas dos phenomenos da natureza, lendas
acerca da origem e dos primeiros progressos de
cada nação ou das desgraças e aventuras de sores
divinos ou semideuses são, em geral, o fundo hc-
lerogéneo e caraclerisliro de todas as religiões pa-
gãs. A mythologia é um produclo especial da ima-
ginação e (lo senlimenlo, radicalmenie dislinclo
da historia e da philosojihia. Nem nos in\ lhos da
Grécia, nem nas sagas da Scandinavia, nem nas
selvagens lendas da America scplemlrional, nem
nas tradições da Nova Zelândia tomadas em seu
lodo, é possivel reconhecer um syslema de sym-
bolisação arlilicial, nem a alleinção de um facio
histórico; umas e oulras não são mais do que o
resultado produzido na imaginação dos povos pela
coiilemplação dos j)henoinenos ou das forças da
natureza, porque o homem, ainda no estado mais
selvagem senle sempre a necessidade de crer em
um eulc superior a si, embora esta crença seja
muitas vezes grosseira e n'e!la represcnlemos seus
o PANORAMA
279
deuses cheios de defeitos e de fraquezas próprias
da humanidade.
0§ maoris, ou naUiraes da Nova Zelândia, pa-
rece não lerem idéa de um Deus supremo ; a
crença em um Deus único repugna á sua idola-
tria. cc^Não ha eníre vós, dizia um chefe do paiz
aos europeus, faliando a respeito da sua religião,
uns homens que são carpinteiros, outros ferreiros
e outros conslructores navaes? pois assim foi no
principio do mundo: um foz isto, outro aquiilo ,
Tane formou as arvores; Uu, as montanhas ; Tan-
garoa, os peixes. A Yossa religião ó de hoje, a
nossa pertence á mais remota antiguidade.»
Esta religião da antiguidade mais remota forma-
da de lendas e tradições pôde considerar-se como
um paganismo completo que indica a sua proce-
dência do fetichismo e que termina no idealismo.
As tradições da Nova Zelândia estabelecem seis
períodos successivos para a criação ; o periodo do
pensamento, o da noite," o da íuz, o da terra, o
dos deuses e o dos homens. A geração das idéas
abstractas preceda a das realidades concretas; as-
sim da concepção veio o producto, e, por uma
serie de emanações, nasceram o pensamento, a
memoria, a consciência e o desejo. A palavra deu
fructo e pro:luzio a noite, a profunda, a sublime,
a impalpável noite, em cujo reinado não ha vista
no mundo. O quarto periodo, começa com o nada
que faz nascer a força productiva e a abundância,
e chega a ser o remoto progenitor da athmosphe-
ra, do firmamento, da lua e do sol collocados no
espaço como os principaes olhos do céo, da auro-
ra, da manhã, do meio dia e do esplendor do dia.
Com a athmosphera e a humidade termina á ge-
nealogia metaphysica e começa o fetichismo ; Ran-
gi, o céo, filho da humidade, dorme com Papa-
twanaku, a suporficie externa, a terra. O céo e a
terra foram pães dos deuses da luz ; porque ha-
via duas grandes ordens de deuses, a primeira e
a mais antiga das quaes, era a dos deuses da ob-
scuridade, cuja avó commum era Iliuenui-te-po,
a noite.
Os habitantes da Nova Zelândia crêem que o
céo é um corpo solido e opaco, estendido sobre a
terra, a qual imaginam que é plana como uma ta-
boa. Contam dez ou onze céos distinctos uns dos
outros ; o mais baixo, separado da terra por uma
substancia solida e trasparente, semelhante a gelo
ou a cristal, é o que contem a chuva. Tma vez Tawaki
rompeu o pavimento d'este céo bailando sobre elle
e a chuva caio sobre a terra e produzio um dilu-
vio. Dos outros céos apenas se mencionam o dos
ventos, o dos espíritos e o mais alto e mais glo-
rioso de lodos, o céo da luz, a morada princij)al
dos deuses.
Os primeiros descendentes de Rangi e de Papa
foram objectos inanimados, Kumava, a batata e o
félo, que ama a obscui-idade, porque no princi[)io
o céo e a terra estavam tão fortemente adheridos
um a outro, que a luz não podia penelral-os, e os
seus filhos viam-se obrigados a viver na obscuri-
dade. O primeiro S3r vivente que produziram, foi
Tane ou Tane-mahuta, pae das arvores, dos pás-
saros e dos insectos da selva ; o segundo foi Tiki,
pae dos homens, talvez designado com mais exa-
ctidão com o nome de Ilaumiatiki-tiki, deus do
alimento não cultivado dos homens. O crepúsculo
não pai-ece ter nascido n''aquella época; diz-se que
foi formado pelo calor vacillante do sol e doecho.
O terceiro filho de Rangi e Papa foi Tutengana-
hau, o auctor do mal, ou, talvez mais correcta-
mente, Tumata-uenga, o deus dos homens e da
guerra. O quarto filho foi Tuhu, o auctor do bem,
ou, segundo uma variante, o deus do alimento
cultivado dos homens. Tawirimatea, é o nome do
pae dos ventos e Tangaroa, o do deus dos peixes
e pae do Oceano ; o nome de Tangaroa é um ad-
jectivo, que um pouco modificado em sua forma,
encontra-se também em outras ilhas da Polynesia,
como Tongo, Tahiti e Hawai.
Cansados da continua obscuridade, os filhos de
Papa e de Rangi, imitando, sem saber, os Tilães
da fabula, resolveram formar um conselho para de-
cidirenío que havia a fazer com seus pães para da-
rem fertilidade á terra. O deus do malouda guerre
opinou que deviam matal-os, mas o deus dos bos-
ques foi de parecer que os separassem à força.
Todos os irmãos consentiram n'esla ultima propo-
sição, excepto o deus dos ventos, que se oppoz
violentamente a este divorcio primitivo, apoiado,
além d'isso, por seus filhos os ventos poderosos;
e temendo que o mundo podesse chegar a ser de-
masiado bello, produzio a guerra dos elemen-
tos pela primeira vez na disputa que teve com
seus irmãos sobre a separação de seus pães.
Esta separação foi, em parte, eflfectuada por
Tutenganahau ou Tumata-uenga, e, em parte,
por Tane-mahuta, que firmou a cabeça em sua
mãe, a terra, e apoiou os pés contra seu pae,
o céo. D'este modo o céo e a terra ficaram sepa-
rados por Tane, deus das selvas, e a noite e o dia
se differençaram um do outro ; ainda que, porém,
separados para sempre por seus desobedientes fi-
lhos, diz a poesia mythologica do paiz, o céo e a
terra conservam, todavia, o seu mutuo amor. Os
suaves e ardentes suspiros que exhala a terra ele-
vam-se sempre para o céo desde as montanhas e
valles cobertos de bosques, e é o que os homens
chamam névoas; e o vasto céo, quando duiante as
largas noites chora a separação da sua amada,
derrama frequentemente lagrimas sobre o seu seio
e os homens, ao vel-as, dão-lhesonomc de rocio.
Esta curiosa tradição não está limitada á Nova
Zelândia; encontramol-a, igualmente, em Tahiti,
onde lambem achamos os deuses Tane e Tiki e
llinc-nui-lepo ou a avó noite, e onde chamam Ru
ao deus que por meio da modesta planta draco-
nilum pobjphiUnm levantou o céo, que, até então,
tinha estado unido com a terra.
[Conlinua)
EPITAPHIO
No sepulchro de um rei de Chypre, lia- se em
grego o epitaphio que segue :
todo o tempo que os immortnes deuses me deram
de vida, esla foi a ordem que tive em governar a
minha republica.
280
O PANORAMA
O que pude fazer por bem, não o fiz por mal.
O ijue pude alcançar com paz, nunca o tomei com
guerra.
Aos que pude vencer com rogos, nunca os espanlei
com ameaças.
O que pude remediar em segredo, nunca o castiguei
em publico.
Aos que pude emendar com avisos, nunca os las-
timei com açoutes.
A nenhum jamais castiguei em publico, que pri-
meiro o não avisasse em segredo.
Nunca consenti que a minha lingua dissesse men-
tiras, nem permitli que meus ouvidos ouvissem lisonjas.
Refreei o meu coração a que não desejasse o alheio,
e persuadi-lhc a que se contentasse com o seu próprio.
Trabalhei por consolar aos amigos, e desvelei- me
por não ter inimigos.
Não fui pródigo em gastar, nem cobiçoso em re-
ceber.
Nunca a uma cousa castiguei, sem que primeiro
não perdoasse quatro.
Do que castiguei tenho pena, e pelo que perdoei
tenho alegria.
Nasci homem entre os homens, por isso comem
minhas cinzas aqui os bichos.
Fui virtuoso entre os virtuosos, e por isso descança
o meu espirito com os deuses.
(Exlrahido da Escola dccurial de D. Fradique Espínola).
A nobresa é um verme que careia insensivelmente a
liberdade. Macuiayel.
VISÕES A BEIRA D^AGUA.
. . . the lover and tlie poet
Are of imagination ali campact.
Shakspeare.
Ilonlem, que o sol se escondia
íitraz do viso do monle,
fui senlar-me ao pé da fonle,
a recordar-me... de li!
Às veses, se a um bello dia
foge a doce claridade,
dá-nos Ião funda saudade
como eu lionlcm a scnli.
O sol não quero pintar-(e,
quando, invollo cm véus purpúreos,
banha da serra os tugúrios
com seu ultimo clarilo...
pois falta-me ingcnho e arte,
e tu já sabes que anceio,
a essa hora, no seio
nos agita o coração 1
E eu sentei-me á beira d'agua !
o cryslal adormecido
era um cs|)cllio csíiiiecido,
e, mais claro, nunca o vi.
Eu quiz ver se a minha mágua
no rosto lavrara fundo :
um pouco esqueci o mundo,
c a mirar-me... adormeci.
Sonhei. Hálito peregrino
vinha alli de ao pe da fonle—
rcfrigera\a-me a fronte,
dcscia-me ao corarão :
era nm hálito divino,
como os que ás veses nos calma
as ardentes febres d'alma,
soffridas na solidão.
Ergui de promplo a cabeça,
julgando \er-le a mou Uuío,
de uiou peilo maguado
a bafejar tristes ais...
Illusão!— a aura travessa
é que soprava contente
sobre a limpida corrente,
e entre os virides junçaes.
E eu de novo dormitava.
Mas, como vaga harmonia,
não sei que voses ouvia,
que alguém me \inha dizer:
falas laes cu escutava,
que o inundo, tão doces falas,
não sabe pronucial-as,
nem inlendcl-as sequer 1
Acreditei por momentos
que eras tu quem murmurava
o himno que me incantava...
o acordei mais unia vez !
chamara m-me esses acentos,
mas, ah ! por dcstlila minha,
era a limpida fouliuha
quem n)urmura\a a meus pés.
Poucos inslanles passados,
de novo inclinei a fronle
por sobre o espelho da fonte ;
e não sei se adormeci :
meus olhos meio-cerrados,
no fundo da agua entrevia
meigo roslo que sorria
os sorrisos de uma houri.
E eu julguei que nessa hora
tu te eslavas rcmirando
no cryslal sereno e brando,
sorrindo-te jiarr mim ;
mas triste de quem le adora,
preso sempre á imagem tua !
— quem me sorria era a lua,
lá dos espaços sem fim.
E ao meditar um instante
sobre o desengano amargo,
caí de novo em letargo,
e vi das aguas no asul
uma ignota luz brilhante,
que espargia seus fulgores,
como os olhos tentadores
de uma filha de Slambul.
E então cri, com cega crença,
que eram teus olhos risonhos
essa luz, que eu via cm sonhos,
do mais vivido esjjlendor :
pois quem nos teus olhos pensa,
de promplo á mcnle lhe acode
que tal luz ninguém ler pódc,
senão, tu, meu sol de amor !
Sim, a luz que brilha e arde
nos teus olhos de gasella,
eu jurava ser aquella
que! eu via nos sonhos meus.
Mas... era a eslrella da tarde,
que, nas orlas do horisonle,
se escondia airaz do monte,
cnviando-me um adeus 1
Hem vês (juc a minha existência
enlutam cslos enganos —
olha não passem os annos,
sem í|uc o .'^ol rompa (ralem...
Bem vés qu(! os prantos da ausência
só murcharão nos léus braços:
anjo, divide os espaços,
sacode essas asas, vem.
Cândido dk Figueiredo.
Typ. Franco-Poriguez:!, Uua do Thosouro VolUo, 0.
36
o PANORAMA
281
■=\~\'^'->i
As nympheaceas
Compõe-se esta famiUa de cinco géneros e cin-
coenta espécies, habitando todos o hemispherio
boreal. Bem que se enconlrem alguns d'elies na
extremidade austral da Africa^ são^ geralmente^
raros no hemispherio meridional.
Na America do Sul, as nympheaceas, são re-
presentadas pelo género Vkíoria. Estas plantas
passam por sedativas e narcóticas; mas as virtu-
des que se lhes attribuem parece serem pura-
mente imaginarias. O que lhes valeu esta repu-
tação, foi, sem duvida, a alvura das flores de
certas espécies, e a sua vegetação em aguas tran-
quillas e frescas. Os Turcos fazem uma bebida
refrigerante com as flores da Nuphar ou Ncnuphar
amarello {Nuphar laleum) que elles denominam
Puferciceghi. As folhas d'esta planta passam por
adstringentes.
As raizcs das nympheaceas teem um certo gráo
de amargor e de adstringência, o que ha dado
lugar a serem empregadas contra a dysenteria.
Cohteem uma grande quantidade de fécula,
e, depois de muitas e successivas lavagens, po-
dem ser tomadas como alimento, sem inconve-
niente.
As sementes d'estas plantas são mui procura-
das, em tempos d'escasseza de mantimentos, pe-
los povos selvagens das regiões onde elias vegetam.
Teem o gosto das sementes de papoulas, e co-
mem-nas cosidas ou cruas, como o milho.
Mas, de todos os géneros e espécies que cons-
tituem esta rica familia de plantas aquáticas, a
mais bella e a mais gigantesca é, sem contra-
dicção, a Victoria regina, da qual offerecemos
hoje o desenho aos nossos leitores. Os habitantes
da America do sul denominam-na Milho d' agua,
por causa das propriedades nutritivas da fécula
que contem em abundância. Esta planta gigante,
que pode ser collocada entre as maravilhas do
reino vegetal, nasce nos grandes rios da Guyana
e do Brazil septemtrional. As suas folhas arro-
delladas, de um a dois metros de diâmetro, íluc-
tuam sobre a agua, em forma de largos discos
orbiculares, lisos e verdes pela parte superior,
com uma borda cm torno de seis centimetros,
como a de uma grande bandeja. Pela parte in-
ferior, as folhas são avermelhadas, c divididas
em uma multidão de compartimentos por ner-
vuras muito salientes, que deixam entre si espa-
ços triangulares ou quadrangulares, nos quaes
pode conservar- se o ar que contribuo para sus-
tentar as folhas ao de cima da agua. O pecioio,
que parte do fundo das aguas, é todo coberto de
espinhos, bem como as nervuras das folhas, o
pedúnculo e o cálice da flor. As flores, algumas
de trinta e três centimetros de largura, teem o cáli-
ce formado por quatro folhas de dezeseis a dezoito
centimetros de comprimento, c oito de largura,
avermelhadas pela parte exterior e brancas pela
interior. Dentro d''estas folhas, ostenta-se, circu-
lar e symelricamente, um numero considerável
de pétalas brancas a principio, mas que se vão
tornando encarnadas á medida que a flor cresce.
Esta flor exhala um perfume delicioso. O fiuclo
que lhe succede é espherico, e no estado madu-
282
O PANORAMA
ro, apresenta o tamanho de um pão de arrátel:
está cheio, de sementes arredondadas c farinhosas
próprias para servirem de alimento.
MYTnOLOGIA DA NOVA ZELÂNDIA
Os filtios deshumanos, cujo procedimento cruel
referimos, são as seis divindades primitivas da
Nova Zelândia. Reconliecem-nas pelo nome de
Atua como objectos de adoração suprema aos quaes
rogam pelas aves dos bosques, pela boa colheita
dos fructos cultivados ou silvestres, pelo seu bom
exilo na guerra, pelos ventos favoráveis, pelo bom
tempo e pela abundância. A palavra Atua, que
Tliomson acha semelhante á voz sanscrita Deva,
Deus, parece significar, segundo Taylor, lá mais
fora como a sombra de um homem, um espirito,
um deus, ou qualquer cousa fora da nossa com-
prehensão.
Ouando as baleias se agitam e os peixes saltam
fora, da agua, os naturaes do paiz dizem que isto
é feito em honra do seu deus Tangaroa ; e quan-
do os homens derribam as arvores dos bosques
primitivos, para cultivarem a terra que occupa-
vam, dizem: os filhos de Tanemahuta são derri-
bados.
Segundo a versão da mythologia tradicional da
Nova Zelândia, de Shortiand, Te Tengata ou o
homem, é o descendente de Tane e Paia. Segun-
do Taylor, Tiki é superior a Tane, apparecendo
como "o verdadeiro Prometheu da Oceania ; por-
que diz-se que formou o homem á sua semelhan-
ça, tomando um bocado de argilla, amassando-o
com o seu sangue, e dando alento a esla ligura;
ou amassando a argilla com agua misturada com
ocre encarnada, modelando-a pela sua própria
fóima, dando-lhe o seu próprio nome e chaman-
do-lhe semelhança de Tiki. Outras tradições desi-
gnam expressamante Tumata-uenga como pae do
homem.
Os descendentes do homem assim criado, mul-
liplicaramse na terra até o nascimento de Maui,
o grande heroe da mythologia da Nova Zelândia.
Maui teve cinco ou seis lilhos, o mais celebre dos
quaes foi Maui, o da trança, o symbolo do poder
de seu pae. Toi elle quem, ajudado por seus ir-
mãos, pescou Ilawaiki, com o queixo de seu avô,
de sua avó ou de outro qualquer dos seus ante-
passados ; foi elle também que, dirigindo-se um
dia para Leste, para o verdadeiro ponto d'onde o
sol se eleva, prendeu este astro á leria com gros-
sas cordas, que desde então foram os raios solares;
foi elle, igualmente, quem muito trabalhou na
terceira divisão do mundo c, que, impotentes para
impedir que o sol se occultasse no oceano, ligou-o
á lua de modo, tal que, quando o sol se põe, a
lua se levanta do outro lado da terra; em Hm,
este semi-deus foi quem tratou de secar lline-iiui-
Ic-po e cuja prova e mau exilo trouxe a morte ao
mundo e toda a nossa aíílicção.
Os successores de Maui são tão numerosos, que
devemos passal-os em silencio ; mencionaremos,
com ludo, Tu, deus da guerra no Norte; Maru,
deus da guerra no Sul; Tonga, deus das enfermi-
dades, e Manika, pae do fogo. Vários poderes re-
lacionados com Tonga, que habitavam na frente,
dominavam as ditTerenles parles do corpo hu-
mano e lhe inflingiam castigos ou o secavam e
lhe produziam a sua consumpção. De alguns does-
tes seres sobrenaluraes, nascidos da leiia, proce-
diam algumas famílias do reino animal, como a
enguia, o lagarto e oulras.
O culto dos deuses está unido, na Nova Zelân-
dia, ao dos antepassados ; suppõem que os espiri-
tes dos mortos eslão intimamente relacionados com
os acontecimentos terrestres; em geral o interesse
d'esles espíritos está limitado ao povo ou tribu a
que pertenceram. Seguem o exercito, dirigem os
seus movimentos, dão conselhos ou inspiram va-
lor ; estes espíritos omniscientes são as almas dos
chefes dislinclos ; d'elles provêem lodos os casti-
gos d'este mundo. Elles guardam, com sollicilo
cuidado, a sagrada instituição chamada Tapu. En-
tram em pequenas íiguras de madeira grosseira-
mente trabalhadas e dedicadas aos espirites dos
antepassados, fazem d'ellas a sua morada e d'ali
coiwersam com os vivos. Umas vezes communicam
a sua vontade em sonhos, outras, approximam-se
dos morlaes, quando eslão acordados, fallando-lhes
com voz mysteriosa, como um murmúrio ou como
um silvo, semelhantes aos espirites da mytholo-
gia grega, um sonido tão parecido aos susurros
do verdadeiro nigromante, que, o que estuda a
religião da Nova Zelândia acha-se inclinado a re-
solver esta articulação sobrenatural considerando-a
como o modo de proceder de ura venlriloquo.
O culto dos antepassados toma aqui algumas
vezes, a forma de uma espécie de sabeismo, por-
que os naturaes do paiz suppõe que os heroes con-
verlem-se emestrellas, mais ou menos brilhantes,
conforme o numero de victimas que teem feito na
guerra e de cujo espirito e poder se haviam apos-
sado por meio da vista. O povo d'eslas ilhas con-
sagra o arco iris a um dos seus divinos antepas-
sados. Não somente c a residência de Uenuku,
senão que serve lambem como um oráculo, se-
gundo a sua posição á direita ou á esquerda, an-
nunciando a approvação ou desapprovação de uma
empresa. Em algumas occasiões os espirites d'es-
les antepassados divinisados vão habitar os corpos
dos lagartos, das aranhas, dos pássaros, dos ver-
mes e das moscas e entram lambem na boca dos
sacerdotes, cujas palavras ou factos durante este
|)erio(lo estão considerados como os actos imme-
dialos da divindade que n'elles habita. Os deuses
e os iieroes divinos teem os seus medianeiros na
terra ; o sacerdócio rodeado de um cii'Culo sagra-
do, está representado pelas famílias mais nobres
do paiz. Os eanlos que dirigem aos seus deuses,
eslão compostos em um idioma ininlelligivel para
os que não j)erlencem ao sacerdócio, o qual é uma
prova da sua extraordinária antiguidade. O sum-
mo sacerdote hereditário conla, entre suas func-
ções, a obrigação de fazer cumprir as leis de Ta-
pu, a cura dos enfermos, o ceremonial da morlc
e do nascimento (porque o baptismo das criatuias
o PANORAMA
283
c um rito da religião da Nova Zelândia) e a ins-
[lucçiío dos jovens nos canlos e tradições popula-
res. Elles também pintam o corpo e formam parte
do conselho na guerra e na paz, na fome e na
abuHdan.cia; especialmente servem |)ara interpre-
tar os desejos dos deuses, observando o vôo das
aves, os meteoros, o brilho e posição das estrel-
las ou deduzindu-os pelos sonhos, pelo arco-iris,
ou pela so!nbi-a que faz a agua.
Os habitantes da Nova Zelândia acredilam em
uma vida posterior a esta; não admittem a resur-
reição do corpo, mas afiirmam a immortalidade
da alma. Po, ou a noite, é o nome do inferno ;
ha n'elle duas moradas para a alma dos mortos ;
uma é Reniga, situada no meio do mar e accessi-
vel por uma caverna em um rochedo escar|)ado
junto do cabo de Santa Maria, na terra de Vau
Diemen ; e a outra, uma das divisões mais inferio-
res de Rangi, ou o céo; mas nenhum d'estes pon-
tos eia para soíTrer, porque os peccados são cas-
tigados n'este mundo e não no outro. As distinc-
ções sociaes conservam-se na vida futura: o chefe
{orna a ser chefe e o escravo continua escravo.
N'esta religião ha lambem, como na grega, um
ente destinado a conduzir a alma dos mortos.
Os Tanivihas e Ngararas, os dragões d'esta rffy-
Ihologia, espalhavam em outro lemj)o o terror e
a desolação por toda parle; Taniv/ha, porém,
transformou-se de baleia em lagarto, de lagarto
em crocodillo e de crocodillo em enguia, ficando
unicamente para provar que o antigo espirito não
morrera. A Taniwha attribue-se-lhe essa terrível
catastrophe que ainda em nossos dias condemnou
a uma morte prematura sessenta homens de Tau-
po, inclusive o seu temivcl chefe, que se chamava
a si próprio, descendente da grande montanha de
neve Tonga Riro, cujo nome provinha da questão
que tivera com outra montanha masculina, sua
rival no aflecto de uma pequena imminencia fe-
minina e vulcânica que havia nas cercanias.
Entre os movistros labulosos contara-se Maero,
o selvagem das coUinas, que, ás vezes, desce ás
planícies para levar o que pôde colher, e Taipo,
espirito errante e nocturno, que falia cora os ho-
mens, mas que desapparece no momento em que
uma mulher abre a boca.
O mundo mystico da Nova Zelândia não é so-
mente povoado pelos deuses e semideuses ; ha,
além d'isso, os Patu-paearches, ou gigantes vesti-
dos de branco, das montanhas, que estão estrei-
tamente ligados com os Tuariki ou pequenos deu-
ses., cuja origem é, provavelmente, adeificaçãodas
névoas da manhã ; vèem-se unicamente de manhã
e raras vezes sós : são altos, comprazem-so era ou-
vir a llauta, amam os mortaeseconsideram-nos pa-
rentes dos albinos; d'elles aprenderam os homens
a pescai' o a tecer as redes, e parece preferirem o
imaginário ao real, pois, segundo uma lenda do
paiz ((levavam contentes as sombras das jóias de
Te Kanawa deixando atraz os objectos, porque satis-
faziam-se com o apanhar unicamente assombras.»
O lioniem mais perfeito c o que mais ulil ò a seus
irmãos. Alcorão.
O CnOLERA
I
Dispõc-sc o pastor á dança ;
Arraia-sc de louçainlias,
Por brilhar mais" na folgança ;
Todos SC njunlam á sombra,
UcvoliUciani na alfombra.
Tra la la la
Traderi la
Assim cantam paslorinlias.
Salta, pula, acotovela
Rapariga descuidosa ;
Kxclama enlão a donzella,
Com as faces côr de roza:
Que rapaz tão mal creado !
Ilolá 1 ah ! ali !
Traderi la
Yè se arranjas oulro agrado.
Rodopia a dança a eilo;
Flucluam saias à brisa ;
Braço a braço, peito a peito,
Salta um par, o outro (leslisa.
Tra la la la
Traderi la
Ninguém foge ao bom preceito.
Uma diz: eu não te creio;
Não finjas essa ternura.
O rapaz, no seu anceio,
Leva-a comsigo á espessura
Sob a copa do salgueiro.
Ilolá 1 ho 1 he !
Traderi lá, traderi lé
Que festa vae no terreiro I
Assim cantam os bons aldeãos, por entre fol-
guedos e bailados, dando largas á sua rústica ale-
gria. Era tudo festa, tudo sorrisos e amor.
Apparece então o doutor Fausto. Era bello o
vèr como os aldeãos começam de abraçal-o e fes-
tejal-o, entoando-lhe elogios e agradecimentos,
porque os libertara de uma epidemia que os flagel-
lára.
Fausto sorri cynicamente.
Arrastado pela verdade, que se lhe erguia no
peito e lh'o entumecia em ondas de amargura,
tiava do braço de Wagner, seu complacente in-
terlocutor, e brada cm um accesso de profundo e,
desgraçadamente, verdadeiro scepticismo:
((Subamos ainda ura pouco até esta pedra, para
descançar.
«Muitas vezes me sentei aqui, immerso em me-
ditação, extenuado pelo jejum e pelas rezas. Rico
de esperanças, firme na minha fé, á força de pran-
tos e suspiros, com as mãos postas esperava ob-
ter do céo o fim d'esta epidemia. Agora os suíTra-
gios da multidão parecera-me amarga ironia ! Oh !
se tu podesses ler no fundo da minha alma o
quanto o pai e o filho são indignos de tanta glo-
ria ! Meu pai era um pobre homem obscuro, que
tinha a pecha de inquerir a natureza e os seus
sacros mysterios, lá á sua moda, com quanto hon-
radamente e para bem dos outros.
«Rodeado de adeptos, encerrava-se no enfumado
laboratório, e seguindo innumcras receitas, apra-
zia-lhe combinar os contrários
284
O PANORAMA
«Adniinislrava-so o remédio, morriam os doen-
tes e ninííuem pei-gunlava quem linha curado. As-
sim n'estes montes e n'estes valles, cora os nos-
sos mixlos infernaes, fizemos maisviclimas docjuo
o contagio. Eu |)ropiio ministrei o veneno a mi-
lhares; morreram. Sobrevivi para ouvir celebrar
os assassinos anojados.
<íWa(/nct\ Poiijue razão vos atormenlaes assim?
«Pois um homem honrado não cumpre o seu de-
ver, (|uando executa ponctual e conscienciosamen-
te a arte que lhe ensinaram?
((Mancebo, se respeitas teu pai, aprazer-le-ha o
seu ensino; se fizeres progredira sciencía, pode-
rão teus vindouros pôr a mira em mais altos des-
tinos.
(íFausIo. Oh! Bemavenlurado o que ainda es-
pera surgir doeste oceano de erros. Carecemos de
muito, e isso é o que ignoramos; sabemos pouco,
e isso é o superiluo.
«Mas, por(jue turrar com tão mofino pensar a dul-
císsima ventura d"esla hora? Olha como os cla-
rões do occidente balem nas choças mergulhadas
na verdura. O sol declina e exlingue-se, expira
o dia, mas vae levando a outras regiões nova vi-
da I Oh ! se eu tivera azas para me librar noelher
e seguir o sol continuamente!
((Contemplara o mundo silencioso a meus pés,
envolto em eterno crepúsculo ! Vira inílammar as
grimpas, escurecer os valles e o argênteo riacho
perder-se nos rios de oiro !
A montanha nemorosa não mais se opporia ao
meu vôo divino ! Já o mar entreabre os seusgol-
phos ardentes aos meus olhos espavoridos. E, com-
ludo, o deus lã vae desapparccendo. Reanime-
se o meu esforço c prosiga a embriagar-me nos
seus eternos jorios. Diante de mim o dia; atraz
de mim a noite ; lá em cima os céos ; a meus pés
as ondas ' Sonho sublime que se esvaece ! Ai 1
dor ! O corpo não tem azas para seguir o espiri-
to, e, comludo, ninguém ha que não seja le\a(lo
pelo sentimento para além das nuvens, quando
nas alturas, peidida no azulado céo, a andorinha
solta o seu agudo trinado, quando dos pincaros
alcantilados e umbrosos se ergue a águia batendo
as azas, quando por sobic a planura e o mar vol-
ta o grou á sua pátria.» (1)
H
Quereis saber, leitor, necessariamente amigo,
porijue vos dei estas paginas de (jaílhc?
O Panorama não poília eximir-se a dar algu-
mas das suascolumnas, embora poucas, ao terrível
hospede do Ganges. Este século foi o primeiro que o
vio na Europa, sendo esta ultima já a terceira vi-
sita que tão importuno hospede nos faz. l'^'elle dos
acontecimentos notáveis do século; é na actualida-
de um dos assumptos i\m'Á palpitantes; o objecto
de estudo dos sábios; o thema predilecto das conver-
sações d'aquellesmesmos que, pouco ha ainda, f2)
m.udos e tranzidos de terror iam saber do telegra-
(1) Fausto de Goíllie. Trad. incfl.
(2j Note-se qne islo foi cscrijilo ha oito mczcs.
pho os progressos que era sua raarcha ia fazen-
do; é por isso, repilo, que o Panorama tinha for-
çosaniente de lhe dar cabida era suas columnas.
Fora eu o encarregado de fazer a apresentação
de tal hospede aos leitores. Fui guardando jessa
tarefa, na verdade não muito agradável, para
quanto mais tarde poude, e n'isso se me an-
tolhavam algumas vantagens : o assumpto tor-
nava-se cada vez mais estafado ; todos os jor-
nacs scientiíicos o tinham tomado á sua conta ;
n'este caso, lendo poucas novidades a dar, me-
nos trabalho teria, desculpe-se-me esta fianque-
za, e menos enfadaria os meus leitores : embora o
inimigo vá fugindo, é elle de natureza tal, que
mesmo já pelas costas ainda assusta, e fallar n'el-
le não e lá das coisas mais agradáveis.
A final não houve remédio senão pôr-rae á mi-
nha mcza de trabalho, e, rodeado de jornaes que
só do cholera se occupavam n'uma infinidade
de paginas, procurar novidades que dar a meus
futuros leitores.
Passadas assim algumas horas em baldado pro-
curar, disposto já quasi a deixar o cumpriraento
de tal tarefa para um eterno amanhã, peguei de
um livro ao acaso e esse acaso quiz que o livro
fo^e o Fausto ; quiz mais o acaso que logo me
dessem na vista as poucas paginas que acabais
de ler. Pasmei então de vér n'essas paginas, em
admirável resumo a historia de todas as epidemias
de que ha memoria. O povo então, como sempre,
como hoje, esquecendo em folguedos e danças o
llagello que o açoitou ; a sciencia não podendo
dizer hoje mais que então disse pela boca de Faus-
to, d'esse niytho eterno e eternamente verda-
deiro da encyclopedia humana!
Para logo liz tenção, amigo e benévolo leitor,
de vos dar essas paginas a troco do que vos teria
a dizer sobre a actual e|)idemia. As paginas ahi fi-
cam já ; do que vos não livro porém é de mais
algumas da minha lavra.
O único meio que tenho a meu dispor para me
fazer perdoar a temeridade de fallar depois e era
seguida a Goethe, é ser o mais resumido e lacóni-
co possível.
E' o que vou fazer.
[Cunlinua]
UM SONETO DE LEONARDO VINCI
Que lodo aqucllc que não pódc obter o que
(juer, queira o que p(^de^ porque é loucura que-
rer-sc o impossível : logo, é acertado o homem
não querer o que não p(klc.
Se o nosso prazer degenera em desgosto por-
que SC não .sabe querer o que é possível, s()men-
le púdc aquellc que faz o que deve e lira a razão
da sua própria natureza.
Nem sempre se deve querer o que é possível,
porque muilas vezes o que parece doce é amar-
go, c por vozes Icnlio-me arrependido, depois de
as ler obtido, de haver querido certas cou.sas.
Logo, ó leitor d"eslcs versos, se queres ser bom
para ti c caro a outrem, quer sempre poderes o
íiuc deves poder.
o PANORAMA
285
Cathedral de Chartres
A cidade de Chartres, capital do departamento
d'Eure-et-Loire5 na França, está situada no cume
de uma montanha, Junto da qual passa o rio de
Eure, que banha uma parte das suas muralhas
e vivifica os seus lindos arrabaldes. Esta cidade
está rodeada de velhas fortificações, que teste-
munham ao mesmo tempo a sua antiguidade e
importância. Datam ellas dos séculos XI e XII, e
são construídas com solidez tal, que muito tem-
po antes da invenção da artilheria, passavam
quasi por inexpugnáveis. O facto é que Henrique
IV, em 1591, sitiou a e não pôde assenhorcar-se
d'ella. Consistiam estas fortificações em uma cer-
ca de muralhas muito altas, apoiadas sobre um
terrapleno de muitas toesas de largura, e flan-
queadas de grossas torres redondas. As portas são
em numero de sete. A mais notável é a porta
Guilherme, que recebeu o nome do vidama de
Chaitres no tempo do qual foi construída. O seu
aspecto guerreiro é imponente. De um e outro
lado elevam-se duas torres unidas por uma cor-
tina, e guarnecidas de amêas e setteiras.
Nem todo o espaço comprehendido n'esta vas-
ta cerca de muralhas estava coberto de casas.
Uma grande parte compunha-se de jardins, praças
e mesmo bosques e terras de semeadura; pouco
a pouco, porem, foram utilisando estes terrenos,
e por toda parte se elevaram edifícios, igrejas e
conventos: mas estas construcçòes nunca foram
muito longe, porque a cidade poucas casas mo-
dernas apresenta. Tudo ali, mais ou menos, falia
dos tempos antigos. As ruas são estreitas e mal
alinhadas, e, em alguns pontos da chamada ci-
dade baixa, de tal modo escarpadas, que se tornam
inaccessiveis a trens : algumas das que seguem
o declivio da montanha teem a forma d'escadas.
As casas, quasi Iodas edifícadas de madeira e ter-
ra, teem as portas cm ogiva, ornadas de esculp-
286
O PANORAMA
luras gothicas. Xão obstante, porem, a cidade no
seu todo estar mal construída, eucontram-se ali
aluuiis bairros agradáveis, e algumas praças pu-
blicas vastas e muito regulares.
Quanto a monumentos, Chartres conta poucos
notáveis, á excepção das igrejas, que todas são
visitadas com interesse. Citaremos as de Saint-
Aignan e de Saint Pére, e, primeiro que tudo, a
caíhedral, uma das mais bellas construcções da
arcijiteclura gotiiica em França. «Tenho obser-
vado um grande numero de monumentos, diz
Fréminville, mas nunca vi nenhum que reunisse,
como este, a extensão do plano á grandeza das
proporções, o arrojo da conslrucção e a admirável
delicadeza dcs ornamentos. Este cdilicio, enri-
quecido d"estatuas, de baixos relevos executados
em diíTerentes épocas, é um verdadeiro museu
d"esculptura frauceza de todas as idades, onde
se pode abraçar só com um relancear de olhos
os progressos' suecessivos da aríe e a chronologia
dos costumes.»
Tem se já fallado d'esta cathedral por tantas
vezes e tão minuciosamente, que julgamos inú-
til entrar de novo em uma longa descripção:
diremos apenas algumas palavras. A primeira
basílica de Chartres foi incendiada pelos Norman-
dos em 808, e reparada pouco tempo depois. No
decimo século foi novamente presa das chammas,
e, em fim, em 10i20, um terceiro incêndio, occa-
sionado, dizem, pelo fogo do eco, consummio a
cathedral e quasi toda a cidade. Achava se então
ali o bispo Fulbert, que desde logo começou a
empregar todo o seu zelo e actividade, para fa-
zer sair a cathedral das ruínas em que o grande
desastre a tinha lançado. A rogos seus um grande
numero de habitantes contribuio, conforme as
suas posses, para o restabelecimento do templo,
e quando, em 1028, Fnlbert morreu, o ediíicio
achava-se (pnsi reconstruído. Dois dos seus suc-
cessores e a princeza Mahaut, viuva de imi duque
da Normandia, fizeram continuar os trabalhos.
O grande ]iortico e a torre velha foram comlui-
dos em iWo. \ outra torre, pyramidc magesto-
sa, na qual trab lUuivam em loOG, porque havia
sido parle destruida por um raio, o capitulo de-
terminou ([ue se fizesse toda de cantaria.
Esta cathedral, cuja conslrucção se prolongou
pelo espaço de cento c trinta annos, foi dedica-
da á Virgem, em outubro de 1200.
No exterior admira-sc o fronlispicio e as duas
portas lateraes, que parece pertencerem ao deci-
mo terceiro século: são ornadas d"estatuas, gale-
rias, nichos, figuras e columnas de riquíssima
csculptiira.
Os grandes florões que adereçam os portaes,
são de um trabalho preciosíssimo. No angulo
meridional da igreja nola-se uma figura muito
curio.=a: é a de um burro, esculpido em pedia,
que parece estar tocando harpa; designam-no no
paiz pelo burro que loca sanfona. Talvez isto seja
uma recordação da extravagante festa do burro,
que SC celebrava na idade media em muitas par-
tes da 1'rança.
O interior da cathedral não é menos digno de
attenção. Admira-se ali a grande harmonia das
suas proporções e a magestade religiosa das suas
abobadas, debaixo das quaes reina uma luz mys-
leriosa. Todo o edifício está guarnecido d"esta-
tuas, na generalidade, bem traballiadas; mas a
mais notável d'cstas esculpluras é uma que existe
no coro, formando um grupo no qual sobresáe
a altitude nobre e elegante da Virgem. Conta-se
que cm certa época os vândalos das artes quize-
ram destruir esla obra prima, mas que foi salva
devido á coragem de um hojiiom, que teve a fe-
liz idéa de pôr um boné encarnado na cabeça
da Virgem, transformando-a d"estemodo em deu-
sa da liberdade: graças a esta burlesca mctamor-
phosc, a cathedral de Chartres poude conservar
um dos seus mais preciosos ornamentos.
O âmbito exterior do coro, começado por João
Texier, em 1514, e terminando segundo o seu
risco, excita, igualmente, a attenção dos artistas
pela riqueza da sua architeclui-a e bella execu-
ção dos seus mais pequenos lavores,, Esta obra
é no estylo gothico mais rico e elegante.
Por debaixo da igreja, ha uma outra, dita igre-
ja subterrânea, para a qual se desce por cinco
escadas dilTerentes. Ha ali uma capellada Virgem,
onde os fieis costumavam depositar as suas oíTer-
tas; junto do altar está um poço chamado o po-
ço dos Santos, porque no tempo do imperador
Cláudio, o governador de Chartres, tendo feito
passar ao fio da empada um grande numero de
christãos, mandou lançar os seus cadáveres n'este
poço.
Taes são as partes mais notoveis d'este edifício,
que, pela quarta vez, em 1830, foi victima de
outro incêndio, que lhe causou gravíssimas per-
das. Felizmente, o governo francez deu logo to-
das as providencias e a cathedral dentro em
pouco achou-se restaurada.
O commercio c a industria, no departamento
do qual Chartres é a capital, não teem grande
importância. O ramo principal das suas expor-
tações é o trigo, do qual uma grande parte é
deisinada ao abastecimento de Paris. A sua po-
pulação não excede de 20000 almas.
OS PELOTfQUElROS PATAGÕES
Ninguém ignora que um dos jogos mais inno-
centes e, na apparencia, mais assustadores dos pe-
loliqueiros Índios consiste em introduzir pela bo-
ca até o csophago, uma lamina brilhante de
aço.
Quando pela primeira vez, em 1521, o nosso
Fernão de Magalbães e a sua gente se acha-
ram em relação com uma horda de Patagõcs,
aquelles enormes selvagens, vestidos de pelles,
acolheram com gritos de alegria os pequenos
presentes que se lhes deram : as imagens pinta-
das, a missanga, os busios, e os guizos excita
ram-lhes o seu jovial enthusiasmo. Depois de
terem dansado diante dos estraugeiro.s, quizeram
diverlil-os com um exercício que tinha no bando
grande succcsso.Um d'elles, agarrando cm uma
frecha arm'ida da sua ponta aguda de silcx,
introduzio-a com toda a bravura no estômago.
Este caso de um peloliqueiro palagão encontra-
sc na historia da primeira viagem de circumnave-
gação escripla em latim pelo Transylvano, c di-
clada por Sebastião dei Cano, o feliz navegador
que trouxe á Europa a Vicloria.
LONDRES
As indiishias que florescem n'esta capilal s>no
principalmente as da fahricaçrio da cerveja, papel,
licores, belumcs, sabão, assucar reiinadu, vinagre,
o PANORAMA
287
corlumcs, manufacluras de seda, produclos chimi-
cos, machinas, carruagens, relógios, alfaias, gé-
neros de Iodas as classes, quinquilharias, ferragens
e outras muitas producções, que seria fastidiosa
enumerar.
Tão vastos negócios e cousas Ião grandes não
podem fazer-sc com o estômago vasio sob a influen-
cia de um clima que requer Ião succulenla c nu-
tritiva alimentação, e por tanto, os habitantes de
Londres tcem todo o cuidado em estivar os seus
com a melhor carne, as melhores bebidas e o
melhor pão que existem, para conservarem jun-
tos e em boa harmonia o corpo com a alma. A
povoação londrina digere annualmente, 300,000
novilhos, 40,000 vitellas, 1.100,000 carneiros,
21)0,000 borregos, 270;000 porcos, 20.000,000
alqueires de farinha de trigo reduzida a pão,
311.000,000 de batatas, iOO. 000,000 de peixes
de todas as classes e tamanhos, 90.000,000 de
couves, 5.000;000 de aves, 25,000 toneladas de
queijo e manteiga e 600,000 coelhos e lebres de
Oslende; além dos vegetaes não mencionados,
fructas seccas e do. tempo, e outros muitos géneros
que recebem do estrangeiro durante o anno.
Os meios de apagar a sede de tão poderosa e
gastronómica communidade, não são menos pro-
digiosos. Um exei'cito de 20,000 vaccas poz cerco
a esta capital e verte dia a dia tori-entes de leite
para os seus chás e cafés. Setecentas mil pipas
devmho, 2.000,000 galões de licores, 45.000,000
galões de cerveja e 2,166.000,000 chávenas de
café e chá formam o estomacal molho dos seus
alimentos sólidos no mesmo periodo de tempo. Os
hotéis, tabernas, não incluindo os puhlic-houses,
e casas de hospedagem, elevam-se, em Londres, a
2,407.
l Como não ha de ser, pois, industriosa uma
povoação com tão descommunal appetite e uns
estômagos tão sem fundo? E, não obstante, ha
desgraçados que morrem de fome em Londres,
miséria infinita e pauperismo que causam es-
panto ao animo do humanitário philantropico, do
reformador social e do homem politico. Não é,
poj"ém, este o lado que nos propomos mostrar aos
viajantes, que esperamos sejam muitos, que quei-
ram dispensar-nos a honra de acompanhar-nos
com a imaginação n'esta viagem por Londres.
Quando o dono de uma casa convida os seus ami-
gos para que o visitem, tem sempre o cuidado de
que estes não vejam, se é possível, os quartos
mais pobres e os moveis mais arruinados. Pois
bem, é isto precisamente que nós procuiamos ob-
servar nas nossas digressões por este mare-magnum.
Em uma capita! Ião vasta e populosa como Lon-
dres, compi"ehende-sc facilmente que os seus ha-
bitantes tenham de valer-se de alheios pós para
transitar por ella; c isto explica o facto, que de
outro modo pareceria fabuloso, de que corra dia-
riamente por suas ruas o prodigioso numero de
300,000 carruagens de todas as classes. Só os
omnibus, em numero de 800, fazem 300,000 mi-
lhas de caminho todas as semanas com 1.000,000
de viajantes. Os indivíduos que navegam nos va-
pores do rio, de um a outro extremo d'esta me-
trópole, elevam-se a 30,000 diariamente; a i)oiite.
de Londres estremece com o peso diário de 30,000
carruagens, e a estação do caminho de ferro ali-
ja todos os annos n'esta grande capital mais de
14.000,000 de individues de todos os pontos da
terra.
[, Que tem, pois, d'estranho, em vista d'esta ag-
gloinei'ação de homens, barcos, carruagens e ani-
maes, que perecessem 750 criaturas atropelladas
nas ruas de Londres, e que se afogassem no Tamisa
outi'as500 no anno de 1859'? A primeira cousa que
tem a fazer o viajante, que presa os seus delicados
membros, antes de visitar esta capital, é aprender
a andar por entre as pernas dos cavallos e as r-o-
das dos carros, com a mesma impunidade que o
celebre Blondin pela coixla bamba ; e no caso
que se não julgue bastante ágil para executar
impunemente tal façanha, deve addiciouar um
capitulo respeitável ao seu presupposto de viagem:
Gastos de locomoção em pés alheios pehs ruas
de Londres.
O methodo de vida de tão poderoso conjuncto
de seres humanos não é menos digno de excitar
a curiosidade e deoccupar aattenção do viajante;
esta matéria, porem, por si só exigiria um livro.
Um Inglez pode definir-se como um animal que
come e ti-abalha muito e engole uma quantidade
enorme de mostarda e cerveja. A sua grande vir-
tude é o afíinco ao trabalho. Aiubicioso e livre
por natureza, ti-abalha toda a sua vida pai'a tor-
nar-se a si próprio, a sua familia e a sua patiia
ricos, poderosos e independentes. O amor á liber-
dade é n'elle tão innato como o amor ao ti'abalho,
á riqueza e á independência, e este é o grande
segredo da opulência e poderio da nação britan-
nica.
A raça anglo-saxonia foi dotada pela natureza
com o génio de fazer dinheiro, e ainda que em
seu afan por adquiril-o soflVa com frequência tr-a-
balhos e privações, o prestigio e os gozos reaes
que o ouro lhe proporciona, i-ecompensa-o cora
usura de uns e outros. O dinheiro é como o ar
que se respira, sem o qual se não pode viver:
torna o homem poderoso como a tromba ao ele-
phante c os dentes e as garras ao leão.
As necessidades espiriluaes dos habitantes de
Londres são satisfeitas por 855 clérigos da igreja
anglicana e um exercito de dissidentes de todas as
crenças. O total dos templos e capellas d'estes
obreiros espirituaes eleva-sè a perto de um mi-
lhar. Os independentes contam com 140 lugares
de adoração; os baptistas, teem 133; os methodis-
tas, 15Í; os presbyterianos, 23; os unitários, 9;
os catholicos, 35; os moravianos, 2; e 94 as outras
seitas, entre lutheranos, santos modernos, protes-
tantes, francezes, gregos, allemães, italianos, etc.
A communidade israelita, ali muito mais respei-
tada que entre nós, porque se compõe de homens,
pela maior parte instruídos e de bons costumes,
tem 11 synagogas, nas quaes rende culto ao Anti-
go Testamento.
{Continua)
288
O PANORAMA
O MUNDO DO MAR
O elemento liquido occupa, pouco mais ou me-
nos, dois terços da suporíicie do globo tertestrc;
a relação da supeiiicie banliaJa com a supeiTicie
não banhada c de 3.8 para 1.2; e dos cinco mi-
lliõos de myriamolms quadrados que constituem
a superticiè do globo, 3.800,000 pertencera ex-
clusivamente á soberania das aguas. ^,Ora, seria
posbivel que esta immensa extensão fosse privada
das bellezas e riquezas da vida, em quanto que
a terra oITerece na sua flora e no seu fauno uma
tão grande variedade, uma tal opulência? Os
antigos naturalistas estavam longe de compre-
liender toda a riqueza dos oceanos, c o mesmo
Linneo, fatiando dos vegelaes do mar, mostrava
conhecer uma quantidade insignilicante.
Hoje a sciencia, menos incompleta, tem sonda-
do as profundezas oceânicas, e, n'essas occullas
regiões, tem achado uma exu 'veraneia de vida não
inferior á que se manifesta nos continentes. Kxisle
ali um mundo, um mundo verdadeiramente novo,
cujas classillcações relativas ás plantas e ani-
maes aerios não nos poderiam dar uma idèa bas-
tante clara. O mar ofTerece ao observador um
centro onde folgam mil formas animaes, llorestas
que abrigam hospedes mais numerosos e não me-
nos variados que os das ílorestas terrestres.
Comtudo, devemos dizer que, se no mar existe
incomparavelmente maior numero de animaes que
na terra, a vida vegetal, ali, não é tão largamente
representada; mas parece que ha n'isto compen-
sação; porque o mundo dos polypos cria para o
oceano uma serie de seres ao mesmo tempo vege-
taes e animaes que lhe dá uma vida insólita, es-
tranha, complicada.
Sim, o mar é um mundo novo,~ cujas ricas e
variadas producções formam o ramo mais maravi-
lhoso da historia natural. O livro posthumo de Mo-
quin-Tandon revelou o valor d'este mundo, e pela
primeira vez reunio em um mesmo cofre todas as
pérolas occultas do elemento liquido. Ouviremos
hoje o que elle diz a respeito das plantas.
Observemos primeiro, com Schleiden, que Ioda
a flora submarina comprehende quasi exclusiva-
mente uma só grande classe de vegetaes, as algas
ou 05 fucos, — que são, accresceníemos também,
as primeiras plantas criadas. «Estas plantas otle-
recem uma tal diversidade de formas, que uma
paizagem no fundo do mar não é nem menos in-
teressante, nem menos variada do (|ue a que apre-
senta uma legião na qual o sol imprimisse o rico
sello da vegetação luxuriante dos trópicos. Uma
estructura particular, molle, gelatinosa em todas
as suas partes; um conjuncto de órgãos anedonda-
dos ou alongados e estendidos, aos quaes as ex-
pressões de talos e de folhas não são apulicaveis
como nas outras |)lantas; brilhantes cores de um
tom verde, azeilonalo, amarcllo rosa e purpura,
por vezes levemente sortidas sobre o mesmo ór-
gão foliaceo, tudo isto imprime n'estcs vegelaes um
caracter estranho e magico.»
As plantas do oceano, diz o auclor do livro que
acima citamos, não se assemelham muito ás que
guarnecem os nossos bosques e os nossos valles.
Em primeiro lugar, não lêem raizes. As que fluc-
tuam são globulosas ou ovóides, tubuladas ou mem-
branosas, sem apparencia alguma de corpo radicu-
lar. As que adherem estão lixas por uma espécie de
pó superiicial, mais ou menos, lobado e dividido.
A terra em nada conliibue para o seu desenvolvi-
mento, porque o seu ponto de origem é sempre
exterior. Tudo se passa na agua, tudo vem d'ella
e tudo a ella torna.
«As plantas terrestres escolhem tal ou tal ter-
reno; não prosperam senão em solo determinado.
As plantas marinhas são indiííerentes ao rochedo
que as supporta. Quer este seja calcário, quer se-
ja granítico, a ellas nada aproveita: assim crescem
indistinctamente por toda parte, mesmo sobre os
coraes ou sobre as conchas. Estas hydrophitas não
possuem nem verdadeiros talos, nem folhas ver-
dadeiras; dilatam-se muitas vezes em laminas,
largas ou estreitas, de uma só ou de muitas peças
que fazem parte creste órgão. Assemelham-se ora
a correias ondeadas, ora a estamos encrespados ;
estes espessos e coreaceos, aquellas delgadas e
membranosas. lia algumas que poderiam ser to-
madas por pequenos balões transparentes, por es-
tofos regularmente estampados, por bocados de
gelea, por fitas, por boldriés de pelle ciíf^ida, por
leques de papel verde. A sua superticiè é, ora
lisa, polida, mesmo lusidia, ora coberta de papil-
las, de verrugas ou de verdadeiros pellos. Acha-sc
n'ellas uma es|)ecie de unto viscoso, um pó sali-
no, uma eíllorescencia assucarada, e, algumas ve-
zes, um sedimento cretáceo. A cór é azeitonada,
loura, amarella, de um pardo, mais ou menos, es-
curo, verde, mais ou menos, claro, rosa, mais ou
menos, delicado, carmim, mais ou menos, vivo.
Alguns andores tem-nas dividido, segundo as suas
tintas dominantes, em trcs grandes secções : as
pardas {melanospcrmadas) as verdes [chlorosper-
madas) c as vermelhas [r/iodospermadas]. As pri-
meiras são muito mais numerosas. Enterram-se,
mais ou menos, e parece occuparem no oceano
três regiões, mais ou menos, distinclas; são estas
as que constituem a maior parle das llorestas sub-
marinas. As verdes são superliciaes e muitas ve- (
zes llucluaiiles. As vermelhas enconlram-se habi-
tualmente em pequenas profundidades c sobre os
rochedos pouco distantes da praia. »
UM DITO DE ISAAC NEWTON
O illuslre Isaac Newton, a quem a sciencia mo"
dcrna deve tão importantes descobertas, dizia»
pouco Icmpo antes da sua morlc : cNão sei o que
pensa o mundo a meu respeito ; mas quanto a
mim, julgo que faço o eíTeito de uma criança
Ijrincando A borda do mar c enlrclendo-se a
apanliar de tempos a tempos uma pcdrinlia mais
polida, uma concliinba menos commum do (juc
as outras, em quanto que o grande oceano da
verdade estende-se niyslerioso e insondável dian-
te de mim.»
Typ. FrancoPorlugucza = Rua do Thesouro Velho, 6.
37
o PANORAMA
289
Bismark
Vejo que a civilisação é a paz alternada com a
guerra ; que a permanência indefinida de qual-
quer dos dois estados signilica a fadiga, o defi-
nhamento, a ruina, a miséria, a annulação. Se
existem constituições independentes, nacionalida-
des viçosas, cuja vida data de tempos remotos, é
que tão grande longevidade nasceu de um lógico
acordo, de uma habilíssima combinação entre a
guerra e a paz.
Com certeza.
O canhão deve rebentar, ou para abrir cami-
nho ao legitimo desafogo das populações desen-
volvidas, ou para sumir na voragem dos com-
bales a superabundância de braços. O canhão de-
ve emmudecer onde principia o goso dos benefi-
cios que a continuação das hostilidades degene-
raria. Ouando o amor da vicloria não é só a si-
gnificação de uma necessidade, mas lambem a
paixão exclusiva da gloria, então a guerra, con-
quistando demais, enfraquece duplamente os seus
heroes, a quem os golpes da lula ceifa, e a ex-
tenuação desbarata e isola entre as multidões ini-
migas.
Os 'povos que fizeram da conquista o elemento
principal e continuo da sua existência, o trium-
pho predilecto da sua vida politica, conseguindo
evadir e quasi dominar o mundo, foram os que
mais depressa dcsappareceram das cartas geográfi-
cas ; e cousa semelhante aconteceu aos exclusivis-
tas da paz, aos inimigos de sangue, aos evange-
listas da perfectibilidade humana; aos republicanos,
socialistas e communistas.
Onde estão osSaints Simon, os Owens, osFou-
riers, os Louis Blanc, os Cabets, e os Proud-
hons"?
Dormem uns no silencio eterno do tumulo, ve-
getam outros no recinto domestico, e da me-
moiia de qualquer, apenas, na maçonaria, algum
neophyto philosophico se aproveita para firmar o
seu nome de guerra, mitigando, por estepaciíico
modo, as saudades dos bellos tempos dos tribunos
populares.
O próprio Victor Hugo, o gigante litterario e
poético (io século, clama no deserto. As suas obras,
rasgando toda a massa muscular do progresso ac-
tual, mostram, com o mais deslumbrante e fixo colo-
rido, que o esqueleto d'este monstro contem na me-
dula princípios energicamente deletérios; mas nem
os que as lêem com intelligencia, nem os que não as
entendem, se movem para a urgente revolução.
Pôde ser que no fundo de tão grande e inexpli-
cável desprezo se esteja forjando um tremendo
vulcão. ISão duvido. O que é certo, porém, é que
até o presente, ainda não estoirou o cataclismo
(jue ha de sumir nas camadas subvertidas as
raças de sangue excepcional, e que mui difficilmente
se dará um tal acontecimento.
As doutrinas de 1818 exaltaram os espirites. Fal-
tar em outra cousa que não fosse igualdade, liber-
dade e fraternidade, era eslar fora das tendências
290
O PANORAMA
sublimes da época, doshoiirar a dignidade humana,
revelai- um coração ferino, uma intelligencia cur-
ta, um cérebro idiota, uma ignorância crassa. Re-
bentou a revoluçiío, do seu triumplio surgio a re-
publica, e sobre o primeiro altar d'esla beneíica
religião coUocou o siiíTragio universal o vulto ido-
latrado do ameno Lamaitine.
Que resultou, porém, de se ter salvo a socie-
dade íranceza?
Extenuado pelas fadigas de uma luta encar-
niçada, c embriagado pelos perfumes da poesia,
o povo adormeceu, e tão profundamente, que não
havia despertal-o. Tinha razão ; mas como tudo
isto manifestava uma paz com todas as tendên-
cias para a inalterabilidade, houve logo quem disses-
se que a felicidade terrestre florescia sobre um abys-
mo. Esta revelação, assaz semelhante ás predicas dos
santos padres, estremeceu os somnolentos no seu
leito de rosas, e acordou-os. A consciência do
pioprio abatimento reanimou a memoria dos tem-
pos heróicos ; mas nem o espirito nutria já a
chamma do enlhusiasmo, nem o corpo tinha o
vigor preciso para levantar o immenso estandarte
das glorias belicosas.
N'esle lance angustioso, votou-se pela aventura.
Depoz-se nos braços do prestigio de familia, o
que não podia contiar-se ao prestigio dos factos.
Correu-se o pano ao proscénio do grande thea-
tro da obscuridade, em cujo fundo jazia a figura
pouco volumosa de Luiz Napoleão ; e a datar d'esle
momento todos sabem o que se passou.
Veio o memorável 2 de dezembro, que mu-
dou radicalmente a face da consciência e da go-
vernação, porque se riscou n'esse dia, do diccio-
nario politico, o valor religioso do juramento;
porque se converteram os ariaiais da republica em
verdadeiro circo de martyrio, onde o ridículo,
monstro galhofeiro que derriba com um sorriso,
e estrangula com uma gargalhada, satisfez o seu
atroz appetite. Fecundaiam-se os ovos esquecidos
d'essa águia enorme, que, ferida mortalmente em
Walerloó,fôra cair entre os rochedos da ilha de Santa
Helena, e foi o suíTragio universal, o mesmo que
na véspera havia proclamado a liberdade rainha
da civiljsação, que os chocou e criou as novas
aguiasinhas que, no seu primeiro vôo, abriram
com as pontas das azas as portas do imperialismo,
c gravaram com as garras, aguçadas no deses-
pero do exilio, condemnaçro das cousas e dos
homens, sobre cujas ruinase infortúnio, poisaram
e firmaram o sf-u domínio. Trancou-se tudo aos
primeiros apóstolos da liberdade e da civilisação,
e apenas se lhes deixou dois caminhos para' es-
colher : o departamento ou a retratação.
^io-se, então, íiirardin rasgar, á face do uni-
verso altento e absorto, as paginas brilfanles da
sua eloquência social, e mergulhar, cm seguida,
nos pântanos do absolutismo, fado que man-
charia irremediavelmente as alvas vestes da de-
rnocracia, se esse sol immenso qiio, na constella-
ção dos grandes homens immaculados, se chama
Victor Hugo, não continuasse a inundar de luz
escampes onde se peleja a causa da humanidade.
Depois, consliiuio-se nas baionetas a força do
direito; fundou-se na agressão a legitimidade ab-
soluta do respeito ; declarou-se a honra patrimó-
nio exclusivo cfos poderosos ; i-evestio-se a paz com
os attributos da guerra ; deu-se a esta os foros
de civilisação ; e o m-jndo aceitou o prograruma,
cobrio o auctor de prestigio, e proclamou-o Júpi-
ter do novo Olympio politico, onde, mais tarde,
veio tomar assento notável o conde de Bisraark,
esse vulto prussiano que as espingaidas de agu-
lha mostraram, ha pouco, tão distinctainenle, ao
clarão de seus tiros; o grande diplomata da ac-
tualidade que segue, na applicação á politica do
seu paiz, as theorias do autócrata da Europa, as
theorias que hão de, ou tem já, talvez, atropela-
do gravemente os dii*eitos mais sagrados dos j)o-
vos.
E pois que consegui aportar ao assumpto da
gravura, o que já tinha reputado impossível, di-
rei que Bismark é homem próprio para figurar
excepcionalmente nos tempos presentes, porque
assim o mostram as cruezas da sua carreira militar
e dii)lomatica ; porque assim o comprova a energia
selvática com que invadio quasi toda a Allemaníia.
Supposeram muitos que o primeiro ministro de
Frederico Guilherme não eia mais do que um
simples instrumento de Napoleão, e eu fui do nu-
mero. Hoje, porém, nutro opinião inteii'amenle
contraria.
Em presença dos últimos acontecimentos, vejo
que Bismark é um rival temivel do imperador dos
francezes ; que das Tulherias para o gabinete de
Berlim não partem já senão faiscas de ciúme, e
que se o fogo pegar, só Deus sabe até onde o in-
cêndio chegari. Nogueira da Silva.
A GALATEA MODERNA.
X
o .«iertão.
Já ia noite fechada, quando Violante c Alfredo
entravam em casa. Ouvia-se um fallar ruidoso e
folgazão na sala do [rabíúho, sancta-sauctorum í\oí
Íntimos da casa, tabernáculo sobre cujas aras ha-
via sempre nocturno sacrificio ao deus-voltarete.
Como o homem justo de Horácio, podia o mundo
subverter-se, caírem impérios, baqueai'em thronos,
(jue o voltarete havia de continuar a sua indispu-
tada tyrannia sob o tecto do velho solar, quasi
alluido. E que o voltarete é mais do que um jogo,
é uma religião, um sacer-docio. Os que um dia, c
dia afortunado é esse e muito de relembrar em
horas de angustia e lristui"a, quando o desalento
bate ás portas e vem aninhar-se com o seu cortejo
no coração como os vermes cm recente campa: os
que um dia penetraram os sacrosantos mysterios
do voltaivte, os delírios de uma ro.scfí bom pensada
e i'uminada, os enlhusiasmos de um vollarete de
respeilo em copas, o delírio clamor"oso c irrom-
pentc de um geral, nivoíúã pungiliva c lancinante
de um cadilho ; os que hão experimentado todas
estas peripécias uma vez, que seja, na vida, loca-
ram a meta da felicidade humana, e só lhes resta
o cair* no abysmo.
o PANORAMA
291
Eu, que ora eslou aqui escrevendo eslas linhas,
no desconforlo de umas paredes velhas fronleiras,
balidas por um sol requoimanle, sinto vivas sau-
dades de aliíumas noiles, que se me foram no
conversar inlimo com dois amigos a respeito do
voltarete.
Eia uma noite de verão. Estávamos em um
quarto rente com o jardim, já amarellecido e des-
povoado, e para o qual defrontavam as janellas.
Corria uma hiisa do mar, que açoitava docemente
a luz, a qual tremia e de quando em quando deita-
va-se docemente sobre a vela de stearina como se
quizesse repoisar de tanta vigilia.
Começámos de jogar com brio, com a anciã
de verdadeiros f..naticos. Mas foi-se-nos esmore-
cendo pouco a pouco o vigor. Aos ruidos do
triumpho e ás amarguras não menos ruidosas da
derrota, succedeu a melancolia, aquelle dulcíssimo
bálsamo, que goteja do coração dos não descridos,
porque o coração do que tem fé é como a ambula
dos santos óleos, que conforta e anima o mesmo
moribundo nas vascas do tormento.
Tocados todos três do deus ignoto, que se en-
tranha cá por denti'0, e cá vive para conversar
comnosco e alentar-nos em horas de silencio,
quando o mundo palrador se cala e só murmura
a consciência, que, mensageira divina, vae do
homem a Deus, encontrou-nos a aurora abraçados
á melancolia, que entornara por sobre nós a sua
urna de saudades !
Eu, desherdado e sósinho no mundo, revolu-
teando ao sabor do vento, como a folha que caio
da arvore e tombou para o valle, cantava mansi-
nho umas harmonias da Favorita, dessa obra di-
vina, ultimo lampejo de um moribundo; o meu
amigo** * scismava, relembrando uns amores mal
extinclos, que lhe requeimaramo coração e lhe en-
branqueceram os cabellos ; e o outro, aquelle es-
forçado contra a soile, aquelle gladiador contra
o destino, sorria amargamente, rememoi-ando os
seus rudes combates, em que a vida se lhe vae.
Erguemo-nos todos, que lá por fora começava
já a vida, e o mundo pintava o rosto devasso para
continuar a comedia de gargalhadas que encobrem
dores. Erguemo-nos, pobres poetas, que era ne-
cessário envergar a armadura para o combate.
São assim os desherdados que até a solidão lhes
foge. A thebaida, só a lem quem a pôde comprar
a peso de oiro. O flagício, que retempera a alma
e a avigoi'a com as dores do corpo, já não ha um
remançoso claustro que o dè.
Erguemo-nos. Oue fazíamos nós ali? .Tá não
Unhamos a solidão.
Mas quão longe me vou do serão do velho li-
dai go !
Corlieçára já o voltarete ; a tripode estava com-
j)leta. Eram três os parceiros, que o voltarete de
quatro é pouco usado nas províncias. E teemiasão
os provincianos, derradeiros cultores do jogo de
nossos avós. Teem lasão. lia uma ceita volupluo-
sidade em formara fatídica Iriologia, ale no jogo.
O quarto é sempre um intruso, uma cxcrecencia,
um homem, que quer ver acabada a mão para lhe
chegar a sua vez. É um egoísta, que está ali com
o único lito de tripudiar sobre as ruínas dos par-
ceiros. Oue o feito ganhe ou perca ; que o fraco
codilhe ou o forte entregue o jogo, pouco impor'-
ta. O que elle quer, o derramado egoista, é jogar.
Tudo mais lhe e indiíTerente.
Eram pois ti"es os jogadores ; e ei'am só elles
que povoavam a vasta quadra, em cujo meio se
erguia a meza de jogo, com um enorme candieiro
de três bicos, todos accesos. Eram três figuras
meditabundas, entregues d'alma ao demónio do
jogo. Acurvados, mirando as cartas, ordenando-as,
calculando in mente, tentando adivinhar o pensa-
mento dos outros, ora falladores, ora silenciosos,
disputando a propósito de uma carta mal jogada,
e mimoseando-se de industria com bem cabidos
motejos e chufas, que apenas lh(>s beliscavam a
dura epiderme, laes éramos Iresjogadores, victi-
mas e vassalios do voltai"ele, d'esse tyranno do-
mestico mais imperioso e mais cheio de caprichos
do que um rajah do oriente.
Um dos jogadores era o morgado, que apresen-
támos já em outro logar, e que, como fidalgo de
nobre linhagem, chamava-se D. José Maria de Vi-
lhena Gualdim de Mattos, etc, ele, ele. Era fidal-
go de casa-real de juro e herdade. Andava-lhe o
foro na família havia séculos. Os seus antepassa-
dos foram capitães de cavallos, em tempos mais
felizes; tiveram pelos modos direito de baraço e
culello, como quem diz, enforcavam e degolavam.
No porte e no gesto e na phrase estava-se reve-
lando o homem, que, atraz de si, conta uma raça
antiga e nobre, que dui"ante séculos depurara o
sangue e acrisolara essa realeza, que Deus poz no
coração do homem, quando animou a argilla.
O* outro conviva era o cura. Quizera eu alan-
cear-rae aqui a um capitulo obumbrado sobre o ca-
racter divino do sacerdócio em geral, e sobre o singe-
lo caracter do cura em especial. Livre-me Deus de
ruins tentações. O nosso bom cura era simplesmente
uma pobre alma, toda carinhoso meiguices para os
que soIlVem, incapaz de elevações, voando terra a
terra como a andorinha, e, como ella, destruindo os
vermes, que estragam a ceara do lavrador. O pobre
cura nunca amara. A tempestade das paixões
nunca se desenfreara pelo seu coração. Era um
homem bondoso, singelo, pouco instruído, porque
lia mais o breviário, abibíia e o evangelho, do que
todas as conferencias dos zelosos philosophos tonsu-
rados, que ainda hoje, fundando-se em S. Agosti-
nho e Tertuliano,, andam a exorcismar a sombra
de Spinoza. O cura dizia a sua missa das almas,
visitava os doenles e com elles repartia os parcos
haveres da minguada côngrua, rezava as suas rezas
e nunca ouvira fallar em Wiseman. Bem se lhe
importava elle com o diluvio e com a geologia. Os
fosseis, lá i)ara elle, são os taes que se lançam
em controvérsias ociosas, de que hão de sair mal,
porque a igreja é uma necessidade social e moral,
e, até, se quizerem, uma instiUiição politica, mas
não é um monumento scientilico. Isto diria o bom do
cura, se soubesse do que vae por esse mundo. Mas
292
O PANORAMA
n'es5e tempo nera se fallava deRenan, e o singelo
pastor quoria-se com as suas ovelhinbas e com a
sua igreja campestre, toda arraiada de rosma-
Eiiibo cm dia de festa.
Verdade é que o seu parco latim não lhe per-
mittia divagações contra os Strausscs do século, e
o ancião sairá do seminário, longos annos havia,
'mais afortunado com a sua quasi ignorância estri-
bada na fe, do que com a meia sciencia d"esscs
evangelistas paliadorcs, que |)or ahi abundam.
.No que o cura dava sola e az era no voltarete.
E agora mesmo, o desgraçado juiz de paz do con-
celho, lavrador ricaço e de bons teres, posto que
soez e bronco, valeu-se de todas as suas artes
para fazer descambar um codilho em uma resposta,
cousa, (jue muito arreuegou o padre, e cou) a qual
muito folgou o tidalgo, porque via mais um remissa.
— Cousas do oíiicio, exclamou o morgado, ba-
ralhando as cartas. O padre diz missa, e o nosso
juiz. que e homem também de paz, faz remissa.
Eu, que. a linal de contas, sou um velho militar,
apesar da carta constitucional, represento a espada
de Brenno e hei de levantar o bolo.
^.\baixa-te c cu te elevarei, diz o evangelho.
Os fiacos cantam sempre victoria, quando os va-
lentes não confiam de Deus.
— Isto é coima, que eu pago, respondeu o juiz,
que se estava kMubrando do ollicio.
Nisto entr?ram os dois primos.
— Ora até que em íim vollaram do passeio
romântico, disse o morgado beijando a íillia, ao
tempo que apeitava a mão de Alfredo.
— E que passeio ! interrompeu a donzclla, ain-
da com a animação do caminho, rosada e arque-
jante.
— Então aonde foram espairecer o aborreci-
mento deste velho casarão, e do velho pai.
— Um pai sempre é novo para a lilha, que o ama.
— E para o moço amigo, que o respeita.
— E para o parceiro, que perde, resmoneou o
juiz, o qual, quando se agastava, linha intervallos
lúcidos, com o que não se gosavam muito os
clientes, que.se obtinham uma decisão justa, era
depois de solírei^em as zangas, aggravos c alguns
sotaques physicos á mistura. Santo juiz de paz, que
para ser justo, carecia de começar pela tyrannial
Falizmente, porém, o fidalgo não o ouvia e ex-
clamou jubiloso :
— Agradecido, filhos. Sois a minha ventuia. E
lu, minha >'iolante, que me pareces uma rosa, dei-
xa-me respirar os teus aromas. Tu também, Al-
fredo, representante de uma illuslre e honrada
familia, filho do meu piinieiío amigo de infância,
vem sentar-le aqui ao pe de mim. Aqui, a(|ui no
coração ó que vos quero, bem unidos como ver-
gonteas do mesmo tronco, como flores que viçam
com a mesma .seiba. A morte ha de chegar, cem
vós, só em vós, cá me fica a saudade da vida.
E o velho começou a chorar; mas as suas la-
grimas eram de consolação. Não Hie marejavam
os olhos, antes os tornava mais límpidos, para
que nelles se espelhassem os rostos gentis d'aquel-
las flores f/ue viçavam com a mesma seiba.
— Beati qui lugent, tartamudeou o padre, que
também sentia um enternecimento a embargar-
Ihe a voz.
A cabecinha formosa de Violante encostou-se ao
hombro do pai, cujos cabellos se confundiam har-
monicamente com as longas tranças da lilha. Al-
fredo, erecto, algum tanto sombrio, antevendo tal-
vez negras nuvens no futuro, agairava as mãos do
seu velho amigo com os modos severos de Pylha-
goras, quando duvidava das palavras do mestre
ionico.
O sacerdote, com a voz tremula e o corpo al-
quebrado, parecia eslar-se revendo, em uma scena
do evangelho.
Só o juiz de paz, cada vez mais bellicoso, e por
isso mais lúcido reconcentrava a attenção na re-
missa, e jurava Icvantal-a por intermédio dosrt^eí,
que elle ajuntava na mão muito sorrateiramente.
E digam lá que as scenas pathelicas não inspi-
ram ate o aldeão mais boçal, ainda que seja juiz
de paz !
A. O. DE Vasconcellos.
(Conlinua.)
OS DOIS RAPAZES
Quadro de :tliiríllo
Se se quizesse começara historia das bellas ar-
tes cm Hespanha com as primeiras tentativas, se-
ria preciso remontar ao decimo século, e lalvez
mais longe. Estas tentativas consistem em minia-
turas executadas nos manuscrij)tos. Como por to-
da jiarte, vô-se ali dominar o estylo bysantino,
depois o estylo gothico. A Alhambra contem no-
táveis spécimens d'esle ultimo, que, segundo toda
apparencia, são devidos a Ilespanhoes, porque a
lei religiosa não concedia aos Mouros (|ue exerci-
tassem as artes em gesso. Estes trabalhos ornam
t>s tectos de algumas salas, lím d'elles corre ao
longo das paredes, e representa uma caçada ; de
um lado, vèem-sc Árabes; do outro, cavallciros
chrislãos. Outro desenho oflerece á vista uma au-
diência de Mouros; um terceiro, emfiin, combates
entre llesj)anhoes e infiéis. Todos estes trabalhos,
|iorém, mostram ser do decimo quinto século.
Foi por esta época, que a arte na península co-
meçou a desenvolver-se c a produzir obras im-
portantes. Sche()eler descreve assim as qualidades
particulares da escola ibérica no século \V. «O
colorido não tem tanto brilho como o dos antigos
pintores germânicos ; c, porém, mais suave ; pare-
ce que fluclua um véo sobre a imagem : a exe-
cução é grandiosa. Mais tarde, a escola venezia
na encantou os li('S|)anhoes; o seuamjjlo desenho
e vigoroso colorido concordavam com o estylo
nacional. Accrescenlai a isto um grande arrojo
de pincel, uma facilidade em reproduzir as con-
cepções de uma imaginação ardente, c lereis os
traços distiiictivos da escola hespanhola.»
O século dezescte vio a arte hespanhola attin-
gir o mais elevado gráo d'esplendor. A influen-
cia italiana juntou-se então a imitação de Hubens
e de Van Duk. Sabe-sc que o primeiro visitou a
j)eninsula. As diflerentes escolas delincam-se fa-
o PANORAMA
293
I
Os dois rapazes
cilmentc ; a de Sevilha produz o maior numero
de homens colebies. No piincipio do século, nas-
ce e desenvolvese ; pelo mciado, deseniola lodo
o seu brilhanlismo. Enlre os seus fundadores, no-
lam-se Roelas e Francisco Ilerrera ; Uoelas in-
Iroduzio em Ilespaniia o colorido veneziano ; imi-
tava a natureza com grande perfeição, e sabia
ennobrecer-lhe as formas. Cheio de ardor e de
coragem trabalhava conslantemenlc ; as igrejas
de Clivares, de Sevilha, de Madrid, as academias
de Aranjuez e de Córdova eslão cheias das suas
obras. Ilerrera pinlava de um modo airojado, ale
então diisconhecido Executava com uma espécie
de furor; o seu caracter não mostrava menos ar-
rebatamento. Servia-se de juncos para desenhar
e de brochas para applicar o colorido. Guando es-
tava apressado, mandava a criada espargir sobre
a tela tintas diversas, ao gosto d'ella, e, em se-
guida lançava mão dos pincéis e deitava-se com
frenesi ao trabalho, mudando, em um abrir e fe-
char de olhos, os borrões em íiguras enroupadas
e de grande caiacter. Este é um fado que não
admilte a menor duvida. Juan dei Castillo e Vas-
quez pertenceram á mesma época ; suas obras,
como (|uasi todas as da escola hespanhola são em
extremo correctas, e em grande numero ; o colo-
lido, porém, em algumas d'ellas não apresenta
grande brilho, e resentem-se de uma grande falta
de sentimento esuavitiadc, cousas que tanto real-
çam nos quadios de quasi lodos os grandes pin-
tores Iiespanhoes d''aquelle século e, com espe-
cialidade, em Alurillo, que foi intiuestionavelmen-
te, o primeiro, E não nos enganamos. Em todas
as obras (reste grande aitisla encontra-se em toda
a sua pureza o caracter da escola hespanhola, e
nada lhes falta paia serem pei feitas: artedecom-
|)osição, sciencia anatómica, imitação fiel da na-
tureza, sentimento, nobreza, suavidade, harmonia
294
O PANORAMA
do colorido, brilho, tudo, em fira, ivellas se acha
era profusão. E depois, Murillo não se conlenlava
só cora um género de pinlura. O seu flexivel ta-
lento levava-o para lodosos lados: ora desenhava
paisagens, flores, fructas, ora navios c vistas ma-
rilimas. assumptos históricos e essas scenas de ra-
pazes j)obres e miseráveis, que nas grandes cida-
des se dão tão fiequeiilemenle, e que elle, real-
mente, aproveitou com muita felicidade.
A nossa gravura, copia de um dos seus quadros
que existe no collegio de Duhvich, na Inglaterra,
intitulado «os dois rapazes,» atlesta o que deixa-
mos dito. Não carece de longa descripção; bem
clara se mostra, à vista do expeclador. E um
grupo de dous picarillos, dos quaes um está as-
sentado no chão desafiando o outro para jogar a
pella ou a bilharda, a ajuizaruios pelos instru-
mentos que tem junto de si. O garoto, que está de
pe. mostra, pehi billia que tem na mão, que ia
lazer algum recado; mas Ião embaraçado ficou com
a proposta que o outro lhe fez de jogar, que se es-
queceu, até, de mastigar o pedaço de |)ão que met-
tera na boca. Não é menos interessante a posição
do animal, que está namorando o bocado de pão
que o rapaz tem em uma das mãos.
O QUADRILÁTERO
E Legnago, como já dissemos, a tei'ceira praça
do quadrilátero, siluada sobre o Adige a 3o kilo-
melios e a juzanle de Verona e quasi a igual dis
tancia de !\Íantua, A povoação e pequena e não
excede nove mil almas, sendo a arca das fortifi-
cações mais extensa que a da cidatle. Dois fortes
isolados, duas cabeças de ponte nas maigens'(li-
reita e esqueida do Adige e uma cerca abaluar-
tada constituem as fortificações da praça. O seu
armamento era de 30 peças de Lahitle, 00 do sys-
tema prussiano, 30 peças de sitio, 20 obuses, e
lo morteiros. Total loo bocas de fogo. Como em
^lantua, mas em proporções muito menores, a de-
feza da praça pode i^furçar-se fior meio de inun-
dações, abrindo comportas convenientemente dis-
postas no Adige. Apesar de tudo Legnago é a for-
taleza menos importante do quadrilátero, e. ver-
dadeiramente só tem valor pela poiíle lançada no
seu recinto entre os duas margens do Adige. Os
austríacos, senhores de Legnago, dominam o cur-
so do baixo Adige e podem á vontade passar de
uma para outra margem, como mais convenha
aos seus planos oífensivos ou defensivos.
Verona, chave de toda esla formidável fronlei-
ra mMilar, j)rincipal praça do (luadrilatero e ba-
luarte do dominio austríaco na Itália, está no sopé
e na encosta dos últimos prolongamentos dos Al-
pes para as planícies da Itália, na curvatura mais
rápida do Adige, e guardando as gargantas por on-
de o lio sai! das monlanhas. Divide-a o Aílige em
duas parles ligadas por cinco pontes.
Na margem esquerda é o arrababie chamado de
Vcronetta, a.ssenle n'uma ladeira áspera e a|)erta(la
e.ilre montes. E defendida por uma cerra cons-
truída segundo o antigo systema de fortificação
italiana, com três baluartes e precedida pelos for-
jes SchoU e Isabel. A ceica interior parle do Adi-
ge, corre na idanicie, sobe pela encosta, reduzin-
do-se a uma siraple;? muralha na face oriental;
chegando ao alto dobra-se em angulo agudo e des-
ce outra vez para o Adige por ladeiras abruptas.
No vértice do angulo voltado para as alturas está
o foi te de San Felice, (|ue domina toda a praça,
mas é dominado pelos montes que continuam pro-
gressivamente a subir. Para protegerem este for-
te construíram os austríacos 5 torres isoladas nas
alturas até a distancia de Ires mil passos. Aqui é
o ponto fraco da praça. De fv'ío. a face oriental,
n'uma extensão de Ires mil metros, é defendida
apenas por uma muralha simples e sem baluartes.
Alem d'isso, se os ilalianos tomassem posições
nasalturas, poderiam sem grande difiiculdade ven-
cer as 5 torres isoladas e o forte San Eelice, d'on-
de dominariam Ioda a cidade como os francezes
em MalakolT dominavam Sebastopol..
A difiiculdade, e difiiculdade grandíssima, con-
siste em poder tomar posições nas monlanhas, e
nole-se lambem que o exercito atacante leria na
reclaguarda Veneza tornada quasi inexpugnável
pelos forles de JMaIghera, Cbiaggio, Malamocco e
Lido.
No centro de todas as fortificações desta mar-
gem esquerda, abaixo do forle de San Felice, cr-
gue-se o forle de S. P. dro, cujos fogos dominam
aponte, a cidade, as muralhas e lhes serve de ci-
dadella.
Ao occidenle, n'um monle .separado dos prece-
dentes por um valle inclinado para o Adige, ha
os 3 forles de S. Matinas, S. I.eonardo e Santa
Sophia, ligados com as 3 torres e foi-mando do
lado Occidental a primeira linha de defesa.
A cidade de Verona, propriamente dila, envol-
vida n'uma curvatura do Adige, c construída na
margem direita e defendida ao occidenle pela an-
tiga cerca melhorada e aperfeiçoada. Formam-n"a
8 baluartes irregulares, com orelhões, escarpas
pelo systema de (/arnot e esplanados a meio das
cortinas para facilitar as sortidas. A conlar da pla-
nície de Verona, o terreno sóbc em ami)hilhealro
semi-circular coroado na parle culminante pelas
aldeias de ('hieva, C.roce-Rianca, S. Massimo, San-
ta Lúcia e oulras. Parle do Adige uma linha semi-
circular de 10 fortes isolados que, coroando o am-
philhealroe descrevendo um semi-circulo extenso,
vae morrer a juzanle da cidade na margem do
Adige. listes forles eram em IHíH fortificações
pas-iageiras de terra ; hoje teem a consistência c
imj)ortancia de forlilicações permanentes. Todas
são armadas de peças de grosso calibre e systema
moderno e podem conter algumas companhias de
guarnição. Distam 1000 a 1200 metros uns dos
outros cobrindo com a rede dos seus fogos a pla-
nície que se lhes dilata na frente; protegendo-
se muliiamente. Todos teem caminho coberto e os
fossos fian(|ueados por capoeiras. Na gola são fe-
chados por parapeitos com canhoneiras voltadas
])ara o inleiior.
Depois da guerra de 18o9 que terminou na paz
o PANORAMA
295
de Villa Franca, construíram os austríacos por fora
(lesta linha de defesa outra que consta de cinco
fortes, erguidos na planície que precede o amplií-
Iheatro do lado da Itália. Assim tem Verona, na
margem direita ou lombarda do Adige, 3 linhas
de foríitlcações: os '3 fortes exteriores que cruzam
os fogos na planície, os 10 fortes que coroam o
amphitheatro e o corpo da praça. No recinto das
fortilieaçõos exterioijíos pôde facilmente abrigar-se
um exeiTÍto de cem mil homens, o tanto é Man-
tua praça defensiva como Verona tem lodos os ca-
racteres de ofíensiva. Os exércitos que forem se-
nhores da cidade podem facilmente sair para acos-
sar o inimigo que se atrever a entrar no quadrilá-
tero. O systema das i praças do quadrilátero pres-
la-se por isso a variadíssimas combinações estraté-
gicas como exuberantemente demonstraram Rade-
tzky em 1848 e o archiduque Alberto em 1866.
Todas as fortificações de Verona podem, segun-
do as melhores informações, jogar 76 peças do
systema Lahitte, 128 do systema prussiano, 140
peças de sítio, IHO obuzes, SO morteiros. Total
534 bocas de fogo.
Verona é tão formosa e pilloresca como Man-
tua triste e monótona. Assenta a cidade na planí-
cie aformoseada pelas suas muralhas antigas, pe-
las preciosas ruínas romanas que a cercam, por
palácios e torres. Na margem opposta do Adige
sobem pela encosta as casas brancas de Veronetta,
os negros cyprestes de Giusti, as baterias dos for-
tes trepando pelas ladeiras do Monte Cimo, e do-
minando as extensas' planícies italianas limitadas
no horísonte pelos recortes da cadeia azulada dos
Apeninos.
O interior da cidade não deslustra a nobreza
do seu aspecto exterior. X poucas das formosíssi-
mas cidades da Itália cede Verona a palma, or-
nando-a o antigo rnstello da idade media, o circo
romano, palácios elevados sobre pórticos, os tú-
mulos gothícos dos antigos barões feudaes, a
Scalla, etc.
E grandioso o aspecto dos fortes, das baterias
blindadas, dos perlis recortados, das fortificações
modernas trepando em amphitheatro pelas monta-
nhas.
Para terminar esta rápida descripção do qua-
drilátero mencionaremos ainda os reductos que
defendem o caminho entre Verona e Legnago", os
4 fortes de Pastrengo, que defendem o deslíladei-
ro entre o Adige e o lago de Gorda e cortam o
passo ao assaltante que, depois de tomar Peschie-
ra, quízesse ir cortar a liniia feirea de Trento, á
rectaguarda de Verona, e tomar esta praça de re-
vez. Finalmente, a descripção não ficaria completa
se não filiássemos das linhas férreas que ligam as
praças do quadrilátero, e das communicacões des-
te com o interior do império austríaco pelo Tyrol
e pelo Venelo. É assumpto para outro artigo."
HISTORIA DA ROSA
A rosa é a mais bella de todas as flores; a pri-
mavera reconhece-a como a rainha de todas as
suas filhas, e, até, nos mais remotos tempos a que
alcança a historia foi sempre e em todas as partes
a favorita dos poetas e das mulheres, o symbolo
da formosura e do amor, É uma fiôr que nunca
passa de moda.
Não nós e possível dizer em que época da histo-
ria da terra nasceu a rosa. Baste-nos, porem, saber
(jue ja adornava o jardim do Éden, econtentemo-
nos com o que a mylhologia grega nos conta acer-
ca da sua origem.
Anacreonte, o poeta grego, crê que a rosa nas-
ceu, como Vénus, do mar. Uma porção d'espuma
que tinha ficado pegada ao corpo da deusa caio no
chão e deu vida a uma roseira, cujas raízes se eleva-
ram a grande altura para denotar com sua belleza
o lugar do nascimento da deusa, enchendo de sua-
ve perfume o ar que Vénus respirou pela primeira
vez; a rosa, porem, era branca como a espuma
do mar donde linha saído. Segundo Ovídio e Bion,
a sua cor provem do sangue de Adónis, e segun-
do Aphtouio do da mesma deusa. Ouando Adónis,
apesar das supplicas da deusa, foi á caça do java-
li, que lhe roubou ávida, Vénus apressurada para
prestar-lhe auxílio, ferio um pé nos espinhos de
uma roseira, e algumas golas de sangue salpicaram
a rosa, dando-lhe a côr que ora tem e espargindo
na alhmosphera um odor agradável. Segundo ou-
tros poetas, Cupido, jogando na mesa dos deuses,
entornou o néctar que estava em um copo; o li-
quido humedeceu as rosas que estavam ali próxi-
mas, e deu-lhes a côr que antes não tinham.
A crença mahometana suppõe que a rosa foi
produzida pelo suor do propheta, e por isso os
turcos teem todo o cuidado em não a pisar nunca.
A tradição índia diz que Pagodasini, esposa de
Víschnu, foi achada em uma rosa.
Voltando-nos para a Grécia, vemos que a rosa
estava consagiada a vários deuses. Alem de o es-
tar a Vénus, estava-o a Dionyso (Bacho), que não
só era o deus da vide, mas também de toda a
natureza florescente; lambem o estava a Diana de
Epheso na qual se venerava a natureza infinita.
Alem disso, era o attríbuto das musas; Ilymeneu
e Como o deus do riso e da alegria, traziam co-
roas de rosas. A arte antiga representava a paz
com um ramalhete de rosas, espigas e ramos de
oliveira; emfim,a hora da primavera estava repre-
sentada com uma rosa na mão.
Uma multidão de poetas religiosos e profanos in-
dicam-nosem numerosas passagens quão estimada
era a rosa ainda nos tempos mais antigos. Na Bíblia
vemos mencionada a rosa de Saharon; cc levemos
coroas de ternas rosas..» diz o livro da Sabedoria.
Homero descreve o escudo de Achílles adornado
com rosas, e o cadáver de Heitor foi embalsamado
por Vénus com vários perfumes, entre os quaes
havia rosas. Sapho chamava á rosa a rainha das
flores; Anacreonte dedicou-lhe uma das suas odes,
e Theocrito comparava-a com o curso da vida hu-
mana. Virgdio cita-a vaiias vezes com prazer;
Horácio eCatullo, Ovídio e Maciel mencionaram-na
repetidas vezes.
A rosa era indígena em todo o mundo conheci-
296
O PANORAMA
do dos romanos; não obslanle, é provável que se
não conlu'cossein mais (jiie as (iuaIi-o classes pi-in-
cipaes quo se encontram ainda lioje na Grécia;
uma d'eslas classes era a de cem folhas, trazida á
Europa por Alexandre Magno. As rosas mais bel-
laseram as de Campania, as mais cheirosas as de
Maila. as mais jiropiias para óleo as de Cyrene,
mas. as mais celebres de todas eiam asde Pestum;
cresciam ali em uma abundância extraordinária,
tlorescendo duas vezes por anuo. O viajante que
visita hoje esta cidade de Peslum, só encontra
ruinas grandiosas, mas em vão procuraria aquella
flor. que não existe nem no mesmo jardim do bispo.
Os antigos serviam-se das rosas quasi sempre
para fazerem coroas, umas vezes entremeiadas
com mirtos e violetas e outras desacompanhadas
de toda e qualquer outra llor; estas coroas usa-
vam-se, piincipalmenle, nos banquetes. As noivas
romanas traziam também nma coroa de rosas e
ramos de mirto debaixo do siu véo de puipura;
lambem se punham coroas de rosas a Iodas as es
la luas de deuses e de homens celebres, e com
grinaldas de rosas se ornava a porta por onde
entravam osgeneraes victoriosos, eatiravam-se-lhe
ao cai'ro lindos ramos d'ellas. Nas ceremonias fú-
nebres empregavam-se frequentemente as rosas;
com ellas cobiiam a cabeça do defunto e ao dei-
tar na urna os ossos reduzidos a cinza mistuia-
vam-lhe folhas e agua de rosas, para o que desti-
navam certas quantidades no testamento. Disposi-
ções d'esta classe eram então mui communs nos
testamentos; em alguns ordenava-se que o anni-
versario do nascimenío do defunto deveria ser ce-
lebrado plantando em cada anno três mirtos e Ires
roseiías.
(Conlinua) ^^__
O amor não envelhece, morre criança.
Arsene Hossaye
A linda poesia de João de Deus, que em segui-
da publicamos, devemol-a ao caracter obsequioso
do nosso amigo o sr. António Pereira Ferraz Jú-
nior, o qual, possuindo, engastada pela própria mão
do auclor, essa magnilica pérola no seu álbum, e
havendo-lhe nós manifestado o desejo que linha-
mos de com ella mimosearmos os nossos leitores,
iminfdialamente e sem a mais leve hesitação nos
facultou, alé, para a co[)iarnjOS, o seu interessan-
te livro.
E também só d'esle modo poderíamos alcançar,
facilmente, versos de um [)oela tão distinclo; por-
í|ue, João de Deus, mui raras vezes tem lançado
mão da pcnna com a ideia de í|ue as suas pro-
ducçOes vijam a luz da jjublicidade. Algumas |)oe-
siasi poucas, que lêem a[)parecido cm diversos
periódicos do paiz, e pelas quaes o seu nome se
'.ornou írcialmente conliecido e admirado, hão si-
do obtidas, ou de alguns dos seus amigos e con-
discípulos que souberam apoderar-^e dos bocadi-
nhos de papel que o poeta, depois de n'elles ler
disposto, por mera distracção, as brilhantes ílores
do seu raro engenho, inulilisava com a maior in"
dilTerença; ou então d'aquelles que, como o sr.
Ferraz, teem a fortuna de as possuírem nos seus
ai:, unis. Não se julgue, porem, pelo que deixamos
dito, que João de Deus tem escrij)lo pouco: seria
um engano. O numero das suas admiráveis poe-
sias c inlinilo; mas, infelizmente, uma grande
parte acha-sc comi)letamente perdida.
Fora supérfluo tecer aijui encómios a João de
Deus. A sua merecida reputação acha-se ja tão
solidamente baseada, que tudo quanto procurás-
semos dizer em seu louvor seria, certo, abafado
pela grande voz do publico.
Eis a poesia :
DESCALÇA
Quem és? que a genlj vendo-le suspira
E cm puro amor desfaz-se?
Raio crepuscular tio sol, que nasce ?
De tampada, que expira?
Como os teus pós são lindos ! Como é doce
A curva do teu peito !
Oh ! se o meu coração fosse o leu leito I
E o teu amado eu fosse !
Que preciosas pérolas descobre
teu meigo liumido lábio !
E, virgem 1 como Deus foi justo e sábio
Em te deixar tão pobre !
Não tens fofo veludo onde se atole
teu lindo corpo, ó bella 1
Mas quando é belto o céo? bella uma eslrella,
E quando c bello o sol?
Limpo do nuvens, nu, derrete a neve
E a águia alé desmaia I
Tu não tens mais do que uma pobre saia
E, essa, curtinha e leve !
Ingénua como a flor que nasce e cresce
Não para cslar occulla
Onde o corpo te alteia a saia avulta,
Onde le abaixa, desce...
Encerram-se em li mesma teus desejos,
De nada, flor! precisas 1
E que cu nem seja o mármore que pisas...
Calçava-le de bejos 1
João de Deus.
Los buenos sirven a buenos,
los vilcs qucdan se a Iras,
los dicliosos viilen mas,
y los desdicliados menos,
LoPE DE Vega— Peregrino.
Amor que pode crescer não é amor perfeito.
^ P. VlElR/
Typ. Franco-PorrugucZii, Hua cio Thesouro Velho, 6.
r
j
o PANORAMA
297
Os Koranás
na, na extremidade meridional da Africa, uma
raça isolada, complelamenie dislincla dos oulros
povos do conlineiite africano, pela sua iingua e
peia sua consliluição physica. Esía raça, que a si
mesma se denomina Anaquona, ou Koukoua, e
que dos europeus recebeu o nome de IloUenlotes,
divide-se em qualro Iribus principaes: os Koua-
kouas do Cabo; os Koranás, que a nossa gra-
vura representa ; os Namas, e os Boscbimans.
A sua lez azeilonada, a sua fronte deprimida,
a forma do semblante que tornam quasi(|uadradas
as maçãs do rosto, largas em geral e extremamente
salientes ; o seu nariz achatado entre dois olhos
pequeníssimos; emíim, a exiguidade da sua esta-
tura, fazem dos lloltentotes uma raçaíeiissima. As
feições do rosto da maior parte dos indivíduos,
principalmente dos mais velhos, são repugnantes,
e approximam-se do macaco, por causa da grande
saliência da boca. Só os Koranás difiV.rem dos
outros por uma estatura mais elevada e pelo vigor
do seu corpo, olhos vivos, rosto mais bem confor-
mado, e também por mais inlelligencia. A sua lín-
gua, a que faltam quasi todos os elementos de for-
mação ou inflexão, possue uma inlinidade de sons
gutiuraes fortemente aspirados, saindo da cavida-
de peitoral rapidamente e com voz rouca.
Os llottenlotes verdadeiros só se encontram no
paiz chamado Orange-River-Sovereignty, a parte
mais seplemtrional d'estes paizes, que só foi recen-
temente incorporada á colónia du Cabo. Com ef-
feito, os que se chamam líottentotes coloniaes,
quer dizer, os que habitam para áquem dos limi-
tes da antiga colónia ingleza do Cabo, que o go-
vernador Buik assimilou legalmente aos brancos
por um acto publico em 1828, misturaram-se com
europeus, caíres, e, talvez, lambem com outros
emigrados, e pretos ; por isso a sua lingua cora-
põe-se de palavras hottentotes, hollandezas, e ca-
fres. Ainda que porcos e muito dados á bebedeira, e
como em geral são pobres diabos, ordinariamente
probos e serviçaes, os cultivadores do Cabo to-
mam-nos a seu serviço como pastores ou carrei-
ros. O seu numero sobe a perto de 5000.
Das relações dos europeus com as mulheres dos
hottentotes proveio uma raça particular, chamada
de Baslai'dos, que vence os hottentotes propria-
mente ditos, debaixo do ponto de vista do desen-
volvimento physico, e que mostra muita disposi-
;^ão pelas artes da vida civilisada. Formam uma
população especial, que, com o tempo, chegou a
completar a somma de perto de vinte mil cabeças,
cujos membros tinham ido, no decurso do século
passado, estabelecer-se ao norte, onde vivem uma
vida nómada nas regiões situadas entre New-Gripp
298
O PANORAMA
e Kay-Gary, ou que consliluiram pequenos esta-
dos com alguns pontos cenlraos, como Philippo-
polis o que praticam a agricultura.
O CHOLERA
III
O cbolera appareceu pela primeira vez na Eu-
ropa em 1831. E'elle originário da Índia, onde é
endémico.
('orno se gera lá?
Não se sabe. Vè-se que pela elerna lei da har-
monia, n'aquellas paragens não se. podia gerar
uma doença menos iellial 1
Tudo debaixo d'aquelle sol é grandioso.
Nos deltas do Ganges c do Indus, de um dia
para o ouiro, formam-se ilhas, cobrem-se de pas-
mosa vegetação, innumeros animaes as povoam,
o, ludo desapparece, para dar lugar a outras sce-
nas iguaes de vida e de morte, passageiras, mas
admiráveis.
Emvezdeinfusorios,fermenlamn'aque11asaguas,
reptis c maminileros, (1) cactos e palmeiras. Que
admira que da injecção d'aquella athmosphera
saia o cliolera? Mais custa a perceber o como el-
le, gerado e alimentado n^aquelles lugares, os dei-
xa i)ara vir de vez em quando fazer uma viagem
pelo mundo inteiro, viagem demorada, capricho-
sa, não se podendo atalhar nem prever, viagem
tão assombrosa como o próprio viajante, como a
região d'onde parlio.
Houve quem suppozesse, no principio d'esla
ultima, ou antes, iníeiizraenle, daaclual epidemia,
que o cbolera se linha gerado íóra da índia, em
Meca. c que d'ahi se estendera a toda a Europa.
Não é exaclo.
O Eg\ pto foi o inlerniodio que dispartio a epi-
demia com lei'rivel rapidez.
l'ercebe-?e bem o como.
Os musulmanos, que vem annualmonle a Meca,
reunem-se primeiro em duas grandes columnas:
uma, que reúne todas as tribus doMogreb ; isto é,
de Marrocos, Alger, Tunis, de lodoo Sahara, com-
j)relien(l('ndo a Núbia; esta reune-se no Cairo; a
outra parle de Stambul, pára em Dam^isco, on-
de se lhe aggregam todas as columnas vindas da
Ásia.
Foi n'eslas ultimas columnas, pelos musulma-
nos vindos da índia, que o cbolera se transportou
a Meca.
A reunião de tantos milhares de indivíduos, as-
• pirando ao titulo de llndji com as praticas reli-
giosas as mais anti-hygienicas explicam o incrcmen-
lo que elle ali teve; a dispersão (Pesses indivíduos
semeando cadáveres cholcrícos por lodo o cami-
nho, levando comsigo grande parte d'esses cadá-
veres, dão conta da sua irradiação.
Vinha a ponto dizer alguma cousa do modo por-
(jue sesuppõe que o cbolera caminha; parcfc-nos,
porém, que pouco próprio é íleumjoiniil lillcrario
o entrar na interminável questão de infecção e
(I) Enlre cates deve contar-sn mais de três iriiiliõas de cadáveres
biimanos annualmcntc : os indioa dcilaia os seus niortos no Ganges.
contagio, interminável porque vae-se transfor-
mando em questão de palavras; c por isso muito
em resumo direi o que parece ter sido demons-
trado n'esla epidemia a tal respeito : para poucos
entra hoje em duvida o contagio do cbolera: o
que, porem, parece certo, é que elle se não Irans-
mitte corpo a corpo, nem mesmo por inoculação,
mas, sim, por intermédio de uma certa porção de
ar e a isto se apegam os infeccionistas para sus-
tentarem a sua opinião. Ou admitiam a infecção,
ou o contagio, ou ambos combinando-se e aju-
dando-se, o que é um fado e que na presente
epidemia o cbolera foi sendo o rasto dos crentes
que deixaram Meca.
O que é um facto bem averiguado é que elle
em todas as epidemias tem marchado com os exér-
citos, com os peregrinos, com as caravanas; que
a rapidez da sua marcha está em relação com a
rapidez das communicações, que é ao maior desen-
volvimento d'essa rapidez que se deve o elle agora
ter caminhado mais depressa que na precedente
epidemia. (1)
Na marcha do cbolera é muito para se notar a
iramunidade, já não digo de indivíduos, que essa
foge a todos os cálculos e previsão, mas de loca-
lidades. Assim que, a Suissa tem sido até hoje
refractária ao cbolera.
Tem querido a scíencia achar a causa d'essa
paiticularidade, mas até hoje debalde.
Querem uns que seja devida á altitude; mas lá
lemos pontos mais elevados e ílagellados pelo cbo-
lera . Nepaul, as chapadas da Tartaria estão n'esle
caso. Que lambem o não é á temperatura, prova-o
o olle desenvolver-se em localidades muito mais
frias. Outros querem que seja isso devido á diiri-
culdade de communicações pelo montanhoso do
paiz; não colhe pelo mesmo motivo porque não co-
lhem as razões pi-ecedentes.
lia quem queira achar a explicação d'aquelle
phenomeno na natureza do solo. Vale a pena, pa-
rece-me, que nos demoremos um pouco mais n'este
ponto.
Pensam alguns que o estudo das revoluções phy-
sicasdo globo liade chegar um dia a fazer-nos per-
ceber bem o passado e a prever até certo ponto o
futuro das epidemias.
Que ha doenças lilhas de circumslancias locaes, j,
e i)or isso mesmo estacionarias, não padece duvi-
da : para exemplo bem notável temos o bócio. Por
(|ue nasce o cbolera nos deltas do (janges, a peste
nos do Nilo e a febre amarella nos do Mississipi'?
Círcumstancias climatéricas, ainda não apreciá-
veis, darão um dia a explicação da geographía das
doenças. Gom referencia, porem, ao chole!a,(le (|ue
estamos tratando, é opinião de Petlenkofei' (jue a
porosidade do solo, a sua permeabilidade ao ai' c á
agua, a presença d'aguas subterrâneas a peíjuena
profundidade, são as circumslancias mais favoráveis
á |)ropagação (Telle.
Ora é o o|)poslo de ludo isto que se dá na Suissa
e lambem na Baviera, nos pontos até boje não
(I) AiUtíameiílo a iJ(re;írinação a Meca era feita a ]iú, pnruce que
a iui (lo Mal.oiuet assim o ordena ; hoje, como sabem, laz-so ern
barcos do vapor.
i
o PANORAMA
299
lacados pelo cholera, e (l'aqiii a sua immiiniclade.
Verdadeira, ou não, esta explicação, o que é um
facto é a immunidade de certos paizes, e, no mes-
mo paiz, de certas localidades: na actual epidemia
o cholera passando de Marselha a Pariz, deixou
incólume Lyão, e já nas precedentes epidemias o
mesmo linha succedido ; apenas em 1834 houve
^alííuns casos, mas poucos, de cholera em Lyão.
Milhares de casos análogos se podem apontar; até
na mesma cidade na força da epidemia se lem
notado pontos refractários a ella.
D'um estudo completo da marcha de tão terri-
vel epidemia é claro (juaes as vantagens que de-
rivam : muito embora se não possa combater, im-
pedir-lhe a marcha será já um grande bem.
Vinha a ponto o tratar agora dos meios que
tem sido apontados para se obter aquelle almeja-
do fim, e que são principalmenle : quarentenas e
cordões sanitários.
Levarnos-ia isso demasiado longe, e para não
abusar muito da paciência do leitor vou relatar-
Ihe o que sei se deu demais notável a tal respeito
n'esta ultima epidemia; as conclusões o mesmo
leitor que as tire. Todos sabem oquesuccedeu em
Constantinopla e em quasi todas as cidades do Me-
diterrâneo; em Salonica, cidade da Turquia que con-
ta uns 90:000 habitantes, não houve um caso de
cholera.
Guando os habitantes de Salonica se viram, por
todos os lados cercados da epidemia, encheram-se
de um grande pavor. O povo lançou mão das armas
contra os que se lhe approximavam da cidade, não
os querendo nem sequer no lazareto, que tinham
por muito visinho a ella ; á sua custa fizeram um
outro lazareto mais distante, que apromptararaem
cinco dias, custando-lhe uns 60:000 francos (\).
Estaria n'estas medidas a immunidade de Salo-
nica ?
Ainda pelo que diz respeito á marcha do cho-
lera, havia dois pontos a tocar dignos de igual
interesse, mas sobre que, parece-me, pouco de novo
tenho a dizer aos leitores; refiro-me ás medidas
que foram apontadas para impedir o cholera de nos
tornara visitar, e são: l.°malal-a á nascença, isto
é, modificar os deltas do Ganges e Indus de modo
que não mais produzam o cholera; 2." regularisar
a peregrinação annual dos musulmanos a Meca
por forma que não tornem a ser o vehiculo d'elle
para a Europa,
Pelo que loca ao primeiro ponto, basta lembrar
ao leitor que se ignoram absolutamente quaes as
causas que produzem o cholera na índia, e que
elle não é endémico só nos deltas do Ganges e In-
dus, mas n'um trado extensíssimo de terreno.
Em quanto ao regularizar-se a peregrinação,
para o que se julga necessário: 1.° obstar a que
os cholericos das caravanas vindas da índia por
mar ou por terra cheguem a Medina ou a Meca ;
2." estabelecer uma organisação sanitária nas ca-
ravanas que passam pelo Kgypto c que teem de
atravessal-o segunda vez quando voltam. (^2j ha
(I) Giizettc Ilcbdom.iclaire, n.o 42.
(í) Gazela Medica do Lisboa, n." 2'i.
simplesmente a notar que de quatro epidemias de
cholera que tem visitado a Euiopa, três vieram
pelo Norte, e só esta pelo Egyplo ; de forma que
sendo útil a adopção d'aquellas medidas, não nos
põe ellas a coberto de uma outra epidemia.
IV
Tempo é de rematarmos o nosso trabalho e,
ainda que pouco da Índole d'elle, bemquizéramos
aconselhar aos nossos leitores qual o tratamento
que deveria preferir no caso de se ver ou aos seus,
a braços com inimigo Ião formidável como o cho-
lera.
Desgraçadamente, como exprimindo uma gran-
de verdade a tal respeito, dar-lhes-hei a repetição
das palavras de Fausto, que no principio do meu
artigo já leram :
«Administrava-se o remédio, morriam os doen-
tes, e ninguém perguntava quem linha curado. As-
sim que, n'estes montes e nestes valles, com os
nossos mixtos infernaes, fizemos mais viclimas do
que o contagio.»
«Bemavenlurado o que ainda espera surgir d'este
oceano de erros. Carecemos de muito, e isso é o
que ignoramos, sabemos pouco e isso é o supér-
fluo.» F. França.
Portalegre — janeiro de 18G6.
LONDRES
As necessidades inlellectuaes d'estes 3000000
de habitantes aos quaes acabamos de ver traba-
lhar, comer e beber, são satisfeitas por uma pro-
ducção immensa de livros, 30 jornaes diários, 120
periódicos semanaes e 70 quinzenaes, mensaes,
trimeslraes e muitos outros que vêem a luz em
dias e períodos irregulares. Estas publicações são
impressas, vendidas, e disseminadas por 510 im-
pressores, 808 editores e 335 agentes. Para a
educação da mocidade ha, alem d'isso, 858 aca-
demias particulares, 132 escolas pias, 62 inglezas
e estrangeiras, 17 nacionaes, 57 collegiadas para
a concessão de gráos e uma universidade.
A universidade de Londres foi estabelecida cm
1837, e entre as suas principaes sociedades scien-
tificas e litlerarias ligura a Sociedade Real de An-
tiquários as de Linneo, Horticultura, Medicina,
Cirurgia, Geologia, Astronomia, Geographia; as
sociedades Asiática, Zoológica, de Estadística e
outras mais instituições litlerarias c scientificas.
O mal moral c combatido por 98 escolas diá-
rias, para os desvalidos e andrajosos; 128 domin-
gueiras, 117 de tarde; 15 lugares de refugio; 81
escolas industriaes ; 12 sociedades, que teem por
objecto a reforma e melhora dos costumes e mo-
rai publica; 18 para receberem mulheres de má vi-
da e convertel-as em mulheres industriosas e hon-
radas, detendo ao mesmo tempo os progressos do
vicio e o crime geralmente unidos, 12 para soc-
corro das famílias decentes ; li para ajudar o in-
dustrioso que não pôde exercer o seu oflicio por
falta de recursos para comprar ferramentas, ins-
300
O PANORAMA
tiumentcs, etc. ; e 11 para os surdo-mudos e ce-
íTOS. lia, alem disso, 113 hospícios; 16 institui-
t-õrscnrilalivas para concederem pensões; 74 socie-
dades provisórias, para determinadas classes; 13
asylos para os orphãos ; oO sociedades de propa-
ganda (reducação leligiosa e dislribuição de bi-
blias, livros, tratados, calhecismos, etc. ele; 200
elanias sociedades de temperança, para deter os
espantosos progressos que tinha feito ultimamente
o ignóbil vicio da bebida ; e uma inlinidade de
associações e instituições, cujo objecto é atacar o
mal moral sob todos os aspectos imagináveis, e
cujo numero não desce de 530 e tantas, que não
j)oderiam ser enumeradas n'esta viagem sem dar-
Ihe as dimensões de um livro.
As insliluições para o tratamento do mal phy-
sico nos pobres de Londres, estão representadas
])or oO hospitaos geraes e cspeciaes, cujas entra-
das annnaes sobem á respeitável somma de reis
l.ííOiOOOSOOO, alem de GO boticas que lhes su-
bministram os medicamentos grátis e que possuem
entiadas não inferiores a lU-.OOOf^jOOÔ por anno.
lia também as instituições da Samaritana, a
dos lunáticos e as destinadas à educação das en-
fermeiías, cujos recursos, juntos ás sommas ante-
riores, formam um total, invertido somente em
Londres em obras de beneíicencia, de 2.100:000§
de réis annuaes.
A força que guarda e defende as vidas e fazen-
das dos habitantes d'esta capital contra as depre-
dações dos beduínos da civílísação, não é, com-
luíio, um grande exercito como o de Napoleão,
nem uma policia tão mysleriosa e innumeravel
como a franceza actualmente, ou a de Nápoles ro
tempo d'('ss('S monarchas cujas criminosas cons-
ciências os obiigava a empregar metade da nação
em espiar a outra metade. A capital de Inglaterra
está guardada e defendida simplesmente pelo mo-
desto numero de o ".SOO agentes de policia, per-
feitamente estranhos ás (jueslões politicas, (e que,
sem prejuiso de terceiro, deixam cada um fazer o
que quer) uma grande veneração pela lei, c uma
. dúzia de magnilicas prisões modelos.
Preparado agora devidamente o animo do leitor
para apreciar com exactidão a grandeza e poder
da capital da (íran-Hretanha, \amos pòi' termo a
esta viagem com algumas rellexões suggeridas pe-
la sua contemplação.
A primeira idéa que occorrc ao estrangeiro, que
visita Londres pela primeira vez, é a do inlinilo.
Como os espaços íncommensuiavcis, esta capital
a seus olhos não tem principio nem íim. L'm mun-
do em si mesmo, estende as suas ramilicações
como um monstro de cem mil braços, em todas
as direcções, ora em forma de travessas esticitas
e sujas que resoam com os ^\agons e carros carre-
gados com os pioductos da industria e commer-
cio do mundo, ora por largas e magniíicas arté-
rias como o Slrand, Oxford-Street, ou o rio Ta-
misa, oia por pontes canaes e viaduclos de todas
as classes (jue vão perder-se ao longe no hoii-
sonle.
Povoação densíssima e pobres casaiias distin-
guem o Oriente; riquezas sem conto, movimento
commercial como não pôde conceber a imagina-
ção, palpitações e agitação como as do coração do
mundo, atropeilamento, ruído e confusão sem íim,
constituem a que se chama a City ; ruas esplendi-
das formadas por milhares de alinhados palácios,
lojas sumptuosas, amenos e espaçosos squares,
cobertos de verde relvxi e frondosos arvoredos,
parques vastíssimos c ricos de vegetação, e jar-
dins tão deliciosos como os de Armida formam as
aristocráticas e sumptuosas regiões do occidente
de Londres.
A cathedral de S. Paulo, com a sua magnifica
cúpula e as suas symelricas e grandiosas propor-
ções ; o palácio cie Westminster, relleclindo as
suas elegantes torres e golhicas ogivas nas aguas
adormecidas do caudaloso Tamisa; a riquíssi-
ma em tradições abbadia de Westminster; a his-
tórica e interessante Torre de Londres, palpitante
ainda com o recoidação das tragedias de que tem
sido theatro; Guildhall, cara a todo o amante do
município, e o self-government paladion da liber-
dade e base do bom governo dos povos ; Man-
sion-house, residência do primeiro potentado da
City ; o Banco de Inglaterra e do mundo, com
seus riquíssimos thesouros ; o palácio do correio,
que desempenha no corpo social d'esta nação as
mesmas funcçõcs que o sangue no corpo humano;
o monumento commemorativo da destruição de
Londres por um incêndio; a multidão de torres,
chaminés, estatuas, columnas, agulhas que se
vêem por todas as parles e que occultam os seus
elevados picos e cruzes na névoa, tudo contribue
para fazer de Londres uma capital sem igual em
nação alguma da terra.
FRANCISCO PIZARRO
I
A conquista das índias Oricntaes pelos porlii-
guezes é, nos primeiros tempos, um dos mais
brilhantes espectáculos que a historia nos olTcrcce.
A audácia aventurosa dVslc pequeno povo, que en-
trou serenamente em lucta com as potencias, que
faziam tremer a Europa, e que as foi provocar
a duas mil léguas da ])alria, nos silios onde ci-
las exerciam um domínio incontestável, a mages-
ladc. c grandeza d'alma, as proporções verdadei-
ramente épicas dos nobres vultos, que ao princi-
pio nos capitanearam, derramam n'essas breves
paginas da nossa historia um esplender inuncnso
(! immaculado. Durante vinlc annos fomos ver-
dadeiramente os dignos representantes da civili-
sarão européa, e D.Francisco d'Almeida e AÍTonso
d'Àlbuquerque formam, emquanlo a mim, o mais
elevado ideal do conquistador, que se sente forte
porque nos lampejos da sua espada fulgura a
idéa civilisadora, porque vai, alravcz de nul pe-
rigos, assegurar o predomínio justo o necessário
(limia raça inlelligente e forte sobro uma raça
cml)rutccida e eneivada, e porque tem a vaga
eonsciencia de que é apenas um instrumento na
mão de Deus, um meio de que se serve a Provi-
dencia para fazer dar ao progresso um d'esses
passos gigantes que acceleram o caminhar dos sé-
culos.
o PANORAMA
30
Pizarro.
Pelo contrario a conquista das índias Occiden-
laes pelos hespanhoes apresenta logo, apesar do
heroísmo dos seus chefes^ uma perspectiva repu-
gnante. Os vultos, que figuram no prinieiro pla-
no, aquelles a quem maior gloria cabe, não são
dos que a liistoria venera como varões dignos de
figurarem na lista de Plutarclio, são dos que a
posteridade se vê forçada a admirar sem que el-
les llie inspirem a mais leve sympathia, são d"es-
tes homens excepcionaes, aptos para as grandes
coisas mas que, desprovidos de toda a moralida-
de, se lançam aíToitamente no mal, e são Fra-
Diavolos quando a sociedade os repelle, Pizarros
quando elles mesmos se esquivara ás suas leis,
heroes obscuros ou bandidos sublimes conforme
o destino ordena que tenham por adversários
n'essa lucta, que cmprehendem contra as leis di-
vinas e humanas, ou os soldados heróicos deMu-
rat, ou os timidos guerreiros dos incas peruvia-
nos.
Não nos desvaira o orgulho nacional. Houve
entre nós também d'esses bandidos heróicos, mas
os seus vultos secundários somem-se na sombra
projectada pelos grandes capilães que dominam
com a sua estatura agigantada a nossa epopéa
oriental. Que um António de Faria roube os tú-
mulos dos imperadores da China, que outros as-
solem impudentemente as ilhas Molucas, que
este se dessedente no sangue dos miseros índios,
que aquelle jure sobre um Cancioneiro para
poder trair o seu juramento, são todos vultos
secundários, e não os chefes, os conquistadores,
os homens de plano e resolução. Esses chama m-
sc Almeidas, Albuquerques, Castros, Gamas, Sal-
vadores Ribeiros, e, grandes pela inteliigencia e
pela audácia c firmeza de caracter, rivalisam
muitas vezes em desinteresse, em abnegação, cm
era amor da pátria com os vultos mais aíTamados
dos annaes gregos e romanos, com os Scipiões
e com os Aristides, com os Phocions e os Fabricios.
Mas estava reservada á nossa visinha Hespanha
a monslruosa produccão d"um vulto, que ligas-
se ao génio a malvadez, á firmeza heróica a
avareza insaciável, ás qualidades mais eminentes
do estadista e do guerreiro a indole mais san-
guinária e cruel, d'um d'estes vultos que fazem
descrer da Providencia, que nos obrigam a
perguntar porque motivo deu Jehovah, que é a
suprema bondade, a suprema inteliigencia, e a
misericórdia suprema, tanto poder ao mal, tanta
grandeza ao crime, d'um d'estes vultos, emfim,
que nos fazem comprehender essa individualida-
de mysteriosa que apparece em todas as religiões,
e em que se personifica o mal com toda a sua
hedionda magestade, esse ente horrendo e fasci-
naior a um tempo, que podia ser anjo e quiz
ser demónio, e que se chamou Lúcifer, e foi
senhor da luz, e preferio chamarse Satanaz, e
ser o rei das sombras.
Este homem incomprehensivel. este vulto gran-
dioso e horrendo foi Francisco Pizarro, o desco-
bridor e o conquistador do Peru.
II
Esta anomalia, que se repete frequentes vezes
na historia do Novo Mundo, esta ligação do he-
roísmo e do génio com o vicio e o crime, esta
fatalidade que macula sempre as grandes acções
praticadas na America pelos hespanhoes, e a que
apenas em parte se exime Fernando Cortez tem
uma explicação. As índias eram para Portugal o
thcatro da actividade dos seus filhos; era n'essas
regiões distantes que se concentrava a atlenção do
governo, era essa a estacada gigante onde a flor
dos nossos cavalleiros ia quebrar lanças, c abolar
arnezes. Na Hespanha não succedia o mesmo,
principalmente n'essa época. Reinava Carlos V, o
302
O PANORAMA
poderoso imperador, o rival de Francisco I e o
arbitro dos destinos da Europa. As regiões que
mais o tentavam eram os férteis plainos do Mila-
nez. as populosas campinas da iMança; os adver-
sários que o inquietavam eram o amante da du-
queza d'Elampes, e o frade de \Yitlemberg, o
orguliioso Lutliero ; o seu sonho querido era a
nionarcliia universal européa. A grandeza colo-
nial não o seduzia ; os seus terços não os empre-
gava elle nas magnificas regiões americanas, mas
sim na disputada conquista de dois palmos de
terreno na Itália. O proseguimento das descober-
tas de Colombo, e das conquistas de Cortez com-
petia aos aventureiros que estavam para isso
dispostos. O governo deixava-os livres, reclamava
o quinto das presas, ordenava que se lhe reconhe-
cesse a soberania, e não pensava mais n'esses
paizes distantes. Esta liberdade aproveitavam-na
os avarentos e os ambiciosos; os que amavam a
gloria e a pátria ganhavam a batalha de Pavia,
e homens sem freio das leis e sem nobre incita-
mento, impellidos apenas pela cobiça, repartiam
entre si tranquillamente os thesouros do novo
mundo.
Francisco Pizarro foi um d'elles. Filho bastar-
do d"um gentilhomem, nasceu em Truxillo na
Estremadura, e passou os seus primeiros annos
na miséria e no abandono, chegando a ser in-
cumbido de guardar porcos. Esta injustiça da
sorte, este desprezo immerecido que seu pai lhe
votara, quando elle, pobre criança, tanto preci-
sava de carinho e de aíTectos, azedou-lhe por
força a Índole, e lançou-lhc no arnago do peito
os germens da crueldade, e da indiíferença pelos
males alheios. Apenas saido da primeira adoles-
cência, alistou-sc nos terços hespanhoes e foi pe-
lejar na Itália. Ahi, perdido nas fileiras dos sol-
dados, deu provas de valor sem que podessc sair
nunca da obscuridade, a que o seu nascimento
o condemnava. Por esse tempo principiavam as
conquistas dos hespanhoes na America; Pizarro
percebeu que era esse o campo mais próprio pa-
ra dar largas á sua ambição. Ali, entregues os
aventureiros ás suas próprias forças, voltando,
para assim dizermos, ao estado primitivo para
combaterem povos primitivos, desappareciam to-
das as vãs distincções sociacs, e só subsistiam as
que dá a superioridade única estabelecida pela
níitureza, a do valor c da intelligencia. Pizarro
embarcou para a America.
Logo nas primeiras expedições se dislinguio, e
as suas brilhantes qualidades, que nunca se íia-
\iam podido manifestar nas liteiras disciplinadas
dos exércitos de Carlos V, revelaram-se logo n'es-
sas expedições, em que tinha cada um de luctar
individualmente com os mil obstáculos que a
cada passo lhe surgiam. Apesar de ter uma ins-
Irucção tão limitada que nem sequer sabia ler,
logo lhe foram confiados commandos c sempre
elle os desempenhou com felicidade c proficiên-
cia. Acompanhou Ojeda na sua expedição ao is-
thmo de Darien, e depois de varias outras excur-
sões estabeleceu-sc na colónia de I'ananiá, que
era então governada por um fulano Pedrarias.
Descobrira por esse tempo Nunes de Ba I boa o mar
Pacifico. Explorando o interior na direcção do
Occidenle, subira a um morro, c vira dê súbi-
to desdobrar .se diante d'elle uma liquida exten-
são em cujas vagas se atufava o sol no occa-
so; grande novidade para quem havia muito que
via sempre surgir o sol das aguas, e esconder-se
por traz da cortina das florestas. Além d'essa im-
portante noticia trouxera Nunes de Balboaaos es-
tabelecimentos hespanhoes vagas informações que
recebera dos indios acerca dVsse paiz maravi-
lhoso, que ficava para o sul, e onde abundava o
oiro. Bastou isso para inflammar a imaginação
dos hespanhoes, e logo se prepararam expedi-
ções para o descobrimento d'essas terras, mas
todas foram infelizes, e sempre encontraram ape-
nas bosques espessos e áridas montanhas, de for-
ma que passou em julgado terem sido sonhos de
Balboa, ou mentiras dos indios as maravilhas, cuja
vaga noticia elle transmittira aos seus compatriotas.
Empreza, perante a qual todos trepidavam, era
das mais próprias para excitar a energia de Pi-
zarro. Quiz o acaso que se lhe deparasse na co-
lónia um homem de tempera igualmente rija,
bem que de talentos inferiores aos do bastardo.
Esse homem era Diogo d'Alniagro. Menos feliz
ainda no seu nascimento do que Pizarro, se este era
filho natural e desprezado, era engeitaclo aquelle.
A estes dois juntou-se como sócio capitalista, um
Fernando de Luque, padre e mestre eschola. Um
mestre-eschola capitalista é uma d'aquellas ma-
ravilhas, que só se vi?m no século XYI. E' certo
que o padre possuia grandes riquezas adquiridas
na America, e que, seguindo o provérbio francez
((Uappélit vient en mangennt» se deixou deslum-
brar pela perspectiva de elevar essa opulência a
uma altura fabulosa.
Constituída a associação e approvada pelo go-
vernador de Panamá, foi nomeado Pizarro pelos
seus sócios chefe da expedição, e íicou Almagre
encarregado de alistar mais aventureiros, a fim
de os enviar em reforços succcssivos a Pizarro.
I^ste partio a li de novembro de 1524, comman-
dando um só navio e levando ao todo cento e
doze homens. Foram sempre assim os exércitos
com que os hespanhoes subjugaram a America, e,
maravilha ainda mais estupenda, orçavam pelo
mesmo numero as tropas portuguezas, que der-
rotavam os soldados do sultão do Egyplo, e os
bellicosos Musul manos da índia.
Depois de setenta dias de navegação, achava-
se Pizarro ainda nas costas agras e selvagens, que
já haviam desanimado os seus antecessores. Mas
era de outra tempera o espirito do novo desco-
bridor. Vendo a sua equipagem fatigada e dizi-
mada pela doença, não quiz ]Tor forma alguma
abandonar a empreza, e estabeleceu os seus quar-
téis cm Chuchama, defronte das ilhas das Péro-
las, onde esperou os reforços de Almagro.
Já este sairá com^ setenta homens de Panamá,
porém julgando os seus companheiros mais avan-
çados foi aportar muito para baixo do sitio on-
de olles estavam, c, quando se julgou próximo,
desembarcou e principiou a procural-os. Aqui
lemos nós os dois heróicos expedicionários, per-
didos um do outro; Pizarro espreitando com
impaciência o liorisonte í)ndc não avulta nem
uma vela, Almagro abrindo caminho atravez de
florestas virgens, solTrendo das intempéries do
clima, combatendo ii cada instante com ban-
dos de indios selvagens, e procurando debalde
os rastos dos seus companheiros n'essas maltas
intrincadas, ondtí o pé do viajante curvando
os ramos, deixa tantos vestígios como a quilha
dos navios abrindo o sulco espumoso nas vagas
do Oceano.
w
o PANORAMA
303
Reunio-os o acaso, mas não era já reforço que
Almagro trazia ao seu companheiro; era um ac-
crescimo de miséria e de desanimação. Não ver-
gava facilmente o aço do espirito de Pizarro.
Obstinou-se em ficar c enviou Almagro a Panamá
para fazer novo recrutamento.
Nã® era fácil a tarefa. A noticia das desgraças
da expedição enlibiou o animo de todos. Demais
o novo governador D. Pedro de los Rios^ homem
prudente mas de espirito acanhado, temendo que
a sua própria colónia se desbaratasse com a per-
da de braços, chamados pelo altractivo do lucro
de expedições longínquas^ prohibio que se alistas-
sem novas tropas, e enviou um navio a Pizarro,
com ordem peremptória de o trazer a Panamá.
Desobediente su]:)rnne, Pizarro desembainhou a
espada, e traçando uma linha na areia, disse pa-
ra os seus que a passassem os que não deseja-
vam continuar a solTrer os riscos, a que elle se
ficava expondo. Não encontrou echo no espirito
desanimado dos seus companheiros esta nobre
resolução, e apenas treze resolveram não aban-
donar o seu chefe. Mas os Ireze, que haviam re-
sistido áquella prova tremenda, formavam um
corpo de heroes, para os quaes o impossível se-
ria uma palavra desconhecida.
O governador de Panamá, irritado com esla
desobediência, protestou que abandonaria Pizar-
ro á sua sorte. Mas a opinião publica reagio con-
tra a decisão; a sublime loucura d'esses quator-
ze homens inílammou o espirito dos hespanhoes,
e lodos protestaram energicamente contra a idéa
de os abandonar aos perigos da sua empreza.
Cedeu o governador á voz geral, e enviou um
navio a Pizarro, mas apenas tripulado com a
gente indispensável para a manobra.
Havia cinco mezes que os quatorze aventurei-
ros soíTriara incríveis inclemências na ilha de
Gorgona. A apparição d^um navio foi para elles
causa de grande jubilo, e os companheiros de
Pizarro saudaram com alegria a idéa de se irem
refazer na colónia das suas incomportáveis fadi-
gas. Ainda não conheciam bem o seu chefe. Em
vez de satisfazer a esse geral desejo, Pizarro só
teve uma idéa, marchar para a frente. A sua al-
ma heróica retemperára-se no fogo da desventu-
ra, e a sua natural eloquência, ajudada pelo
exemplo da sua firmeza inabalável^ fascinou por
tal forma os que o ouviram que não só os seus
treze heroes, mas também a equipagem do na-
vio, que o vinha buscar, se deixaram arrastar
por elle e se abalançaram a novos riscos^ e a
novos perigos.
Cortez queimara os navios para tirar aos seus
a idéa de regressarem á pátria^ mas tinha diante
de si um império magnifico, e podia moslrar-
Ihes a esplendida recompensa dos seus trabalhos;
Pizarro, em paga da obediência dos seus com-
panheiros, não lhes podia ainda prometler senão
miséria, fome, doenças, e naufrágios.
O premio da sua constância não se fez esperar.
Vinte dias depois de partirem de Gorgona, desco-
briram um paiz cultivado e rico, senieado de al-
deias populosas, e senhoreado pela cidade de
Tumbez, onde os aventureiros deslumbrados pc-
deram contemplar templos e palácios, em cujos
muros scintillavam, á luz do sol americano, mas-
sas enormes desse fulvo metal, que fazia dos eu-
ropeus heroes e bandidos.
Era finalmente o Peru.
Aqui finda a epocha mais brilhante da carreira
de Pizarro. A firmeza heróica, a inabalável cons-
tância do seu animo conquistam sem custo o res-
peito da posteridade. Mas agora surgem as ma-
culas, e o caracter do heroe vai-nos appare-
cer, como realmente era, um estupendo conjun-
cto de génio e de perfidia, de bravura e de cruel-
dade, de abnegação e de avareza.
(Continua)
Volta hoje ás coliminas.do Panorama um dos
seus íillios mais queridos. É Ilebelio da Silva; no-
me illustre a quem este jornal deve tão brilhantes
paginas. Não foi necessário exaggerar os nossos
rogos para obtermos do auclor da «Mocidade de
D.João V)) as eruditas e eloquentes linhas (\ue se
vão ler sobre a historia do nosso paiz; poitjue P.e-
bello da Silva, não linha ainda perdido o amor ao
jornal onde manteve com sabia mão os créditos
da escola lilleraiia inaugurada pelo mestre inimi-
tável das nossas letras, Alexandre Herculano, o
historiador sem rival.
Sc o nosso agradecimento não oííendesse uma
prova de gratidão, nós, discípulos humildes, desde
já nos declararíamos extremamente lisongeados por
esta illustrada collaboração. Mas a legitimidade
e grandeza da oílerta estão acima dos nossos en-
cómios. O que simplesmente nos resta, é fazermos
votos para que tão valioso auxilio continue por
dilatados volumes do Panorama.
Sr. redactor.
Satisfaço do modo possível ao desejo obsequio-
so, que leve a bondade de manifestar. O Panora-
ma é o mais antigo, e foi o mais illustre dos jor-
naes litterarios do paiz. Foi o primeiro que des-
bravou o lerreno, que abrio e aplanou a estrada.
Somos, quasi todos, discípulos do mestre, que er-
gueu ahi os padrões da restauração das leiras,
iniciando os progressos modernos. Desde «Mestre
Gil» e as «Arrhas por Foro de ílespanha» até ao
«Bobo,» desde os artigos sobre os «Monumentos^)
até ao bello esludo que se intitula o «Parocho de
Aldeia» A. Herculano, inexgotavel senhor e sobe-
rano de lodos os segredos da arte, percorreu com
passos firmes e largos a estrada, por onde alguns
de nós com tanta fadiga nos arrastámos.
Coube-me depois a honra de lambem assentar
uma, ou outra pedra lustica nos lanços desampa-
rados do edilicio, collaborando no' Panorama.
Sinto que outras occupações me roubem o tempo,
e me não consintam dedicar-lhe ainda os cuidados,
que cm época mais feliz, quando me sorriam os
annos juvenis, com tanto prazer lhe consagrei.
Faço o que posso, comludo. Ahi vai esse frag-
mento do l.ivro I, do Tomo III da Uisloria de
Portugal nos séculos XY 1 1 e XVJIÍ. O período, a
que se refere, é dos mais tristes e apagados na
existência nacional. Encetávamos, depois das cor-
tes de Thomar, a via doioiosa, que, por entre
mailyrios e provações, nos levou á revolução de
1040. Em lo8l a ilha Terceira era o asylo e o ba-
luarte dos últimos defensores da independência,
304
O PANORAMA
como outra vez o foi em 1832. O episodio, que
lhe envio, prova que, se outros homens houves-
sem dirigido a resistência, nunca Portugal teria
caido em capliveiro.
Desculpe V. a humildade da oíTerla, e creia
que nasce da intenção sincera, e do apreço e es-
tima, que merece o jornal, e abonam os esforços
desinteressados de seus dislinclos redactores. —
Cintra, o de agosto de 1866. — De V. ele. —
RebeHo da Silva.
DERROTA DE VALDEZ NA TERCEIRA
Fragmento
A Terceira, lida já então por cabeça dos Açores,
devia a preeminência á posição. Escalla dos na-
vios e armadas na derrota das Índias, a braveza
dos mares, que lhe rebentam em roda, a fúria
dos temjioraes, que lhe semeavam as praias de
naufrágios, e a aspereza das cosias quasi inaccessi-
veis, tornava a defesa fácil. Enriquecida pela
continuação das naus de S. Thomé e do Brazil,
dos galliões da Mina, e das frotas de Caslella e
Portugal, os nave;;antes acudiam a seu porto para
esquecerem os trabalhos e piivações de longos me-
zes de viajem. Prospera e socegada até ao anno
de Io80 só de nome conhecera as guerras, a es-
cacez, e os contágios. Na ditosa ignorância dos
flagellos, que açoutavam o continente, engrossara
de dia para dia com os lucros da exporlação de
seus trigos, de que se abasteciam a Madeira e o sul
de Portugal, e com o fornecimento das esquadras,
soccorridas com mão larga, graças á fertilidade do
torrão. (1) Os sentimentos espontâneos da popula-
ção sublevaram a ilha. As novas da morte de
í). Sebastião e da acclamação de D. Henrique es-
pertaram o amor da independência. Cartas de
D. António e da camera de Lisboa, communicando
os successos de Santarém e da capital, no mez de
junho de lo8(), e pedindo apoio, acabaram de de-
cidir os moradores. Conliados na fortaleza da ter-
ra, c nos au\ilios de França, abraçaram a causa
do rei porlugucz. (^ypriano de Figuercdo Yascon-
cellos, corregedor desde o anno de 1578, lambem
opiára pela defesa do throno popular, (|ue a essa
hora baqueava em Alcântara e no Poito, demoli-
do pelos capitães de D. Philippe. Eigueredo, mo-
desto na piosperidade, mostrou-se depois supe-
rior aos revezes. A camera de Angra, e o procu-
rador da cidade, proclamaram o prior do Crato.
Os padres jesuítas, o bispo dos Açores I). Pe-
dro de (Castilho, João de Rcltencouil Vasconcellos,
e poucos mais, formando o núcleo dos adhe-
rentes de Castella, apenas protestaram com o si-
lencio, ou com a ausência. Os neutros c os indif-
ferentes, recolhidos em casa, estranhavam co-
mo funestas todas as novidades, porém nas ruas
e praças o enthusiasmo da plebe conveitia em
festa publica a ceremonia da acclamação.
Cypriano de Figueredo assumio o poder com
applauso quasi geral. Depressa o apertaram as dil-
lll hclncwj ddn roums que aronlecfiram nn ilhfi Tcrrcira.—
LeHrfH coriUnanl /í-s Kclulions de loul ce qui sesl pussd aiix islfn
Tercercí, ele. M. >Ja Acad. Real das Bciencias de LisLoa cod. 1!)-I3
p. 1-7.
íiculdades de tão arriscada empresa. Seguio-se a
verdade ás fabulosas victorias de D. António, e
calou o desalento nos ânimos dos limidos, e
dos tibios. Soube-se que longe de contar em seu
favor as armas do povo de Portugal, e as de Fran-
ça e da (Iran-Brelanlia, o Prior fugia destroçado
deante dos terços de Sancho de Ávila. As espe-
ranças dos habitantes voltaram-se então para a
protecção estrangeira, e, expostos ao resentimen-
lo do rei catholico, tilaram os olhos no mar com
anciedade. As primeiras velas podiam annunciar
os galliões de Caslella, ou os soccorros deseja-
dos. (2)
A esse tempo não eram pequenas lambem as
preoccupações de Philippe II em Lisboa. Avisado
de tudo o (lue se urdia contra elle na Europa pe-
las conlidencias do duque de Toscana, e pelos of-
íicios de Maldonado, do D. Bernardino de Men-
donça, e de João Baptista Tassis conhecia os de-
sígnios das cortes de Londres e de Paris, embora
os dissimulasse. Os perigos eram grandes. A Ter-
ceira, nas mãos de D. António, proporcionava a
Henrique de Valois e a Isabel Tudor gi andes faci-
lidades pa;'a se apoderarem d'ella a pouco e pou-
co cora o pretexto de a defender; e se uma vez os na-
vios do intrépido e aventuroso Drake, unidos aos
do capitão Carlos de Bordéos, a dominassem, as
armadas delíespanha, e de Portugal encontrariam a
ruina, ou o capineiro nos portos aonde costumavam
repousar-se, ou refugiar-se. Uma circumstancia
propicia favoreceu então o reL A ilha de S. Miguel
não acompanhara a Terceira, e as ilhas de Santa
Maria, do Corvo, e das Flores tinham preferido,
imitando-a, a Iranquillidade á desobediência. O
bispo dos Açores e os padres da companhia de
Jesus de Angra foram os auctores d'esta delibe-
ração, segundo se divulgou depois.
(Conlinua) Rebello da Silva.
A esperança do premio c o consolo do trabalho.
Séneca.
UM LEITOR DO SÉCULO PASSADO.
Um individuo chamado Tcxier, que adquirio,
como leitor, uma grande reputação no século
dezoito, dava, dizem, a certa comedia de ColkS
um valor lai, que a punha muito acima do que
realmente valia, como producçào litteraria, e
lornava-a ainda mais interessante que em seena.
Luiz XV teve uma vez a fantasia deouvil-o;
mas, logo ás primeiras sconas o velho monarcha
adormeceu. Texier ulfendido, ia levantando a voz;
Luiz XV cada vez rcsonava com mais força. O
leitor indignado, reforça uma das suas inflexões
com um valente murro sobre a meza. O rei,
acorda sobresaltado, levanta-sc, e percebendo a in-
tenção do leitor, manda-o pôr lóra da porta com
um' 0/^Saliit cuja enloação ficou para sempre
gravada na mente do pobre Texier.
(2) licliirào (IfiA roums que iicnnt creram nn ilha Tcrceim. Capií.
II, III, e IV. — Lcllrcs conlcnanl loul ce qui sesl passe uux uleí
'íeriens, ele. png. 1-7.
Typ, Fraiico-Porluguuza = Rua do Tticsouro Vcllio, G.
o PANORAMA
305
MOiNUMEMOS NACÍONAES ANTIGOS
II
o tumulo (Ic S. Fr. Gil estava
vasio, a Joisa levantada e quebra-
da!...
Quem nic roubou o meu santo?
Gahiíett.— Viagens.
C*oti vento do .<>. Ooiiilusos do .Pautarem
Talvez nenhuma villa do Portugal conlasse ja-
mais no seu seio tantos monumentos antigos,
como Santarém. Romanos, Godos, Mouros e Chris-
tãos, todos conheceram a importância deste lo-
cal, e n'ellc, como á porfia, deixaram monumen-
tos da sua existência. Mas, como era natural, quem
mais embellezou a antiga Scalabis dos Romanos,
foram as ordens religiosas. Ide a Santartin, per-
correi os antigos bairros da villa, e por Ioda a
parte vereis as negras paredes dos templos amea-
çando ruina: eram templos e mosteiros as obras
de nossos antepassados : mas procurai também
as obras dos modernos... certamente em nada os
encontrareis adiantados nesta villa, senão na arte
de empregar a picareta: e o camartello na demo-
Gonvento de S. Doming-os de Santarém
lição de tudo, quanto é antigo, de tudo, quanto
é nobre, de tudo quanto pôde dar honra a nos-
sos maiores. Santarém causa horror : e o anti-
quário, o amante das artes, o indagador dos mo-
numentos históricos deve fugir desta villa.
Também S. Domingos de Santarém não esca-
pou da assolação geral. Gonta-se que, durante a
guerra peninsular, chegando os Francezcs a uma
aldeia hespanhola com tenção de a arrasarem,
e perguntando pelo seu nome, ouvindo que se
chamava Del Toboso, nome tão conhecido no D
Quichote, e immortalisado pela penna de Cervan-
tes, deram uma gargalhada, e a aldeia ficou in-
cólume. Dizem também as historias antigas, que
os iMacedonios abstiveramse de arrasar uma ci-
daie por ser pátria d*um sábio illiislre. Mas a
S. Domingos de Santarém nada poude valer: nem
a sua muita antiguidade, c recordações históri-
cas, nem as cinzas de tantos varões ilíusíres, que
ali estavam dormindo o ultimo somno, nem as
lendas religiosas e tão poéticas que se contavam
dos seus antigos moradores, nem mesmo a penna
maviosa de Fr. Luiz de Sousa I D'aqui por diante
a capella-mór, obra do infeliz D. Sancho ÍI, que
ainda existe intacta, servirá de deposito de feno
e palha. ' As cinzas de Gil e Maríim Ocem, e
as dos infantes D. AíTonso, e Fernando Sanches,
e de tantos outros varões illustres serão espalha-
das pelo chão, calcadas pelos cavallos e cober-
tas de estrume: os ricos jazigos destes varões il-
lustres também podem servir para jjebedouro dos
cavallos. Aquelles claustros, que tantas vezes ou-
viram os gemidos e os prantos de S. Fr. Gil, que
tantas vezes foram borrifados com o sangue des-
te tão grande physico, peccador, feiticeiro, e san-
to, são hoje Ihealro, em que os toureadores exer-
citam sua arte cruel. Os povos não se reúnem
aqui para ouvirem as vozes eloquentes dos va-
rões que, com sua palavra e viver, educavam os
povos no caminho da verdade, porem hoje api-
nham-se neste recinto para ver maltratar ani-
niaes e escalavrar ou aleijar homens. As ca-
pellas são despejf) das mais asquerosas immun-
uicies. E tudo isto dcnlro em pouco cahirá em
(D Veio uUimameDle uma ordem para esta igreja se entre
gar tanibcni ao regimento de ca\all;iria alojado eín S.Francisco
áutí
O PANORAMA
minas, e de S Domingos de Sanlarcm por lar-
gos annos apenas se verá um montão de entulho.
O convento de S. Domingos de Santarém teve
seu principio na parle baixa da villa chamada
Montviás. ' Mas, mais tarde, por causa do gran-
de incommodo, que os frades tinham, quando
subiam ao alto da villa a pregar, fizeram um
pequeno mosteiro na parte superior da povoa-
ção, que tem o nome de Chão da Feira, em que
íiavia uma ermida, dedicada a Nossa Senhora da
Oliveira. Parece ter sido este convento fundado
em 12:25. Constou ao rei D. Sancho I a mesqui-
nhez com que os frades levantavam o seu mos
teiro, segundo a regra da sua ordem, e, como
era amigo de edificações religiosas, ordenou-lhes
que continuassem na fundação do convento se-
gundo as leis da sua religião, mas que da igreja
è claustro elle queria ser o fundador. Não leve
este rei tempo para levar ao cabo esta obra, ata-
lhado pela morte; porém foi continuada vaga-
rosamente por seu irmão. D. AíTonso 111, e por
lim terminada pelas esmolas dos fieis, compen-
sadas coiu indulgências, para o que consegui-
ram uma bulia de Alexandre IV em {2d7. Em
1()U4, sendo Provincial Fr. Manuel Coelho, acha-
va-se a igreja c claustro em tal estado de ruina, ^
que não houve outro remédio senão proceder a
uma reconstrucção total, á excepção da capella
múr, cruzeiro e algumas capellas, que se con-
servaram como estavam na primitiva, por se
acharem cm excellenle estado de conservação.
A igreja era sumptuosa, sendo toda de abobada
de tijolo. Tinha três naves com dez columnas,
de ordem Toscana. O tecto da capellamór era
de abobada enredado de pedraria, lavrada e com
engraçados llorôes. Era templo concorridissimo
dos lieis, que ali se dirigiam movidos da devo-
ção que tinham a S. Fr. Gil. * Muito mais pode-
ria dizer a respeito deste mosteiro, mas para quê?
Quem não poderá ler o assumpto tratado com
desenvoUimento pela penna de Fr. Luiz de Sou-
sa ? Quem haverá tão desprezador da litteratura
pátria, que não passe lioras deliciosas na leitura
dos feitos e lendas de Fr. (jíI? I)'esse que foi es-
colhido pelo celebre D. Sueiro para continuar a
introduzir a Ueligião Dominicana em Portugal?
M. bEllNAIíDtS IJjtANCO.
HISTORIA DA ROSA
As rosas ciam einprogíulas latnbeni de oulros
modos mui dincreiíles Os sybaiitas dormiam em
leitos que estavam cheios de folhas de rosa, e
bem conhecida é aanecdola do celebre Smindyri-
des, que não j)0U(le dormir uma noilc porque uma
folha de rosa se lhe enrolara debaixo (h) coipo. O
l\i'aniio de Syracusa mandava i)iej)aiar leilos de
rosas, c algum tempo depois os romanos aco.s-
tumaram-se a assenlar-se á mesa sobre almoía-
dões de rosas. Cicopalra, em um ban(]uele (|ue
deu om honia de Anlonio, gaslou immensa (|uan-
tidadede rosas e ordenou que o solo da casa cm (|ue
leve lugar a festa eslivesse coberto com mais de
uma vara de allura de folhas de rosa, sobre as
(2) Fr. Lniz de Scusn. Uittoria de S. Domiripos, liv 2. r-np. I.
(3) Iffnacio da Fícdade c Vosf;onccMo8. Hjsioriu de Santurem,
vol. 2.' pag. -,3.
(i) O tijinuio df,-ttc cclelirc feiticeiro eslá Loje no museu de
autipaidades no C;arir;o em Lisboa,
quaes mandou lançar uma rede, para sugeilal-as.
Na celebre festa da agua de Bayos, Ioda a super-
licie do lago Lucrino foi coberta de rosas, Nero
fazia com que em suas orgias chovessem rosas por
aberturas praticadas no ledo da habitação, llelio-
gabalo levou esta exageração a uma tal demência,
que mandou afogar com flores uma multidão de
convidados de (|ue não |)odia desembaraçar-se. No
tempo de Domiciano havia em lloma innumeraveis
jardins de rosas que chegaram a ser plantações de
uma extensão immensa, e cujo aroma era tal que
mesmo nas ruas atordoava, (cEgypcios enviai-nos
cereaes que vos enviaremos rosas em troca,» di-
zia Marcial ao ver esta abundância.
As rosas serviam lambem como medicamenlo
enlre os antigos; llyppocrales julga-as um remé-
dio eflicaz conlia a hydrophobia e logo se consi-
deram como um medicamenlo adstringente e re-
frigerante. Depois loi-am, até, empregadas nos ali-
mentos, Apicio descreve assim um manjar do ro-
sas. «Tomem-se, diz esle intelligente na arle cu-
linária, folhas de rosas lavadas; separe se cuidado-
samente a parle branca da extremidade inferior
da folha, deilem-se depois em um almofariz e pi-
zem-se, ajunlando-liies conslanlemenle salsa pi-
cante. Depois accresccnle-se-lhe mais uma peque-
na porção d'esla salsa, e passe-se tudo por um
peneiro. Logo, lomam-se os miolos de qualio ca-
beças de vitella, c ajunla-se-lhes uma diachma de
pimenta bem moída. Piza-se bem em um almofa-
riz humedecendo-o com a dita salsa. Em seguida
deilam-se oito ovos e mislura-se-lhe um copo de
vinho e outro de licor, ajunlando-lhc um pouco
d'azeile; por ultimo, depois de dar a osta massa
a forma que se quer, humedece-se por fora com azei-
te, ecose-seem um forno, de modo que receba lanlo
calor por cima como por baixo, e serve- se quenlc
na mesa.»
As rosas serviam igualmcnlc para preparar be-
bidas, como, por exemplo, o vinho de rosas. Plinio
diz d'csle: «Tomem-se -iO drachmas de folhas de
rosa, e depois de lel-as espremido bem, passem-se
para um panno, e j)onham-nas em uma vasilha,
com um peso em cima, para que se conservem
sempre no fundo; depois deilar-se-hão sobre ellas
20 pintas de moslo c deixal-as-hão assim iicar
por espaço de Ires mezes.»
Os antigos faziam lambem óleo de rosa, mas
era nuiilo diílerenle do (pie hoje se fabrica no
Oriente; jiara extrail-o deitavam folhas de rosa
em uma vasilha com agua que collocavam ao
sol; a parte oleosa saía á superíicie e tinham en-
tão o cuidado de colhel-a com um pedaço d'algo-
dão muito lim[)0, esj)remend()-o depois em um
fiasco hermelicamente tapado; mas nem iodas as
classes de ro.sas daNam igual quantidade de óleo.
O meliior e mais puro lem uma côr de limão
transparente, o conserva sempre o mesmo corpo,
excepto ([uaiido se leva ao fogo, que se torna mais
liipiido. liitro(liiziii(!o-se no frasco a ponta de uma
agulha e locaiido-se de|)ois com ella em um lenço,
esle conservará por muitos mezes um aroma forle
a rosa. A essência de rosa chamada .l//<</r ou Ollor
o PANORAMA
807
pelos Oiientaes, éiim artigo de commercio muito
importante nas costas da Berbéria, Syna e Pérsia,
onde é pago a peso de outo. A melhor essência
é a de Cachemira, depois a da Pérsia e depois a
da Syria. O nardo da liiblia parece ser uma cou-
sa análoga, posto que a rosa é chamada nard em
árabe.
Nos tempos obscuros da idade media parece
ler-se abandonado um pouco o cultivo daro^a, mas,
com tudo, ha. uma ordenança de Carlos o Grande
que recommenda aos Francos a plantação e cultivo
d'esta flor, Os benedictinos lizeram grandes esfor-
ços depois para estender o seu cultivo e era qual-
quer ponto onde se creasse um convento d'esta
ordem fazia-se logo em seguida um jardim de ro-
sas. A rosa foi mui cultivada pelos árabes que a
apreciavam muito. O sábio Ewe-el-Awam, em ura
livro que escreveu no século XH sobie agricultu-
ra, ('á varias noticias acerca do seu cultivo. Os
cruzados introduziram era Fiança e era Allemanha
dilVerentes espécies até então desconhecidas; as-
sim foi semeada na Provença a rosa de Damasco
no aano 1100. A rosa de cem folhas era uma cousa
summaraente estranha na idade raedia e o botânico
Clusio, em uma obra que deu á luz era 1389, cila
corao caso extraordinário uma rosa de cem folhas
que vira na llollanda, accrescentando que em
Francfort sobre a iMein viia lambem algumas em
casas de pessoas de elevada jerarchia.
Lobel, o botânico de Jacob I d'ínglaterra, pu-
blicou em laSl uma descripção de dez espécies
de rosas; Bauhin conhecia já 19 em 1629; Wilde-
now 36 em 1779 e Parsom 46 na sua Sypnoses
plantarum, publicada em 1798, entre as quaes
íigura a linda rosa de Bengala, cuja pátria é a
China.
No occidente, porem, da Europa, nem aiesmo
nos grosseiros tempos da idade media, era esque-
cida a rosa; uma prova d'isto é a festa chamada
da roseira em Salency cuja origem teve lugar
no sexto século. A tradição diz que S. Mcdardo
foi quem estabeleceu este costume; o seu objecto
era dar á joven mais virtuosa do povo no dia 8
de junho de cada anno, um premio de 23 libras
com uma coroa de rosas, e a fim de que se con-
servasse sempre este costume, legou para isso uma
porção de terras que possuia; a primeira joven
que obteve este premio foi a irmã do santo. Ou-
tras festas pelo estylo d'esta tinham lugar lambem
em outro tempo em vários pontos da França,
como Saint Sauveur, La Fulaise, Nancy, Meaux,
ele.
Em muitos escudos de armas de vários paizes
encontram-se lambera losas, corao no (ringlater-
ra, no delJppee nos dos ducados da Saxonia. I.u-
Ihero tinha uma rosa no seu sello. Uma multidão de
povoações da Allemanha Icem o seu norae com-
posto da palavra, corao Rosenlhal, Bosenau, Bo-
seuberg, ele. ele. Nas armas do Vehma ou antigo
tribunal secrelo da Allemanha, havia a imagem de
um cavalleiro cora um ramo de rosas na raão.
Quando qualquer dos individuosd'esle terrível tri-
bunal via uma rosa era obrigado a beijal-a. A rosa era
representada frequentemente nas obras de arte da
idade media e tigura em ura grande numero de obias
antigas, corao na novclla da Rosa, era Amadis, em
Parzival, na novella de Perceforet e nas obras do
Chaucer
A rosa occupa ura lugar mui dislincto na igreja
da idade media. Em Allemanha ha varias tradições
(jue se referem a uma rosa de Santa Izabel de
Au''ingia e a oulia do convento de Altenberg.
Santa Dorolhea recebeu tarabera de ura anjo um
rarao de rosas com o qual a representara, Diz-se
que depois de morto o bispo Lu z, sobrinho de
Luiz Xí de França, saío-lhe uma rosa da boca.
Da nossa rainha Santa Isabel, mulher de D.Diniz,
conla-se, igualmente, que levamlo um dia em um
lenço pedaços de pão e dinheiro para dar aos po-
bres, estas esmolas se transformaram em rosas;
porque questionada por seu marido, que a encon-
trara fora do palácio, sobre o contheudo da trouxi-
nha, lhe respondera que eram ílores. Em Roma
ha o domingo de Bosas (o quarto da quaresma),
no qual o Papa abençoa uma rosa de ouro para
com ella presentear opporlunamente alguma igre-
ja ou alguma pessoa real, como succedeu por oc-
casião do baplisado do actual príncipe imperial da
França. Este costume lera sido seguido desde o
undecirao século. Anteriorraente, era França, le-
vavam-se á igreja grandes jarros com agua de ro-
sas para os baptisados. Quando baptisaram Ro-
nsard, o poeta raais dislincto do tempo de Hen-
rique II, a ama que o levava nos braços á igreja
deixou-o cair sobre um montão de Ílores e a mu-
lher, portadora do jarro com a agua de rosas, te-
ve tão grande suslo, que derramou toda a agua
sobre a criatura; o que foi interpretado como um
indicio da boa sorte do menino, e a tradição at-
tribue a este successo o grande exilo das suas
poesias.
Tornando, porem, à historia, acharemos varias
ordens e sociedades secretas que se- criavam nos
séculos XVII e XVIII e que adoptaram por nome
e symbolo uma rosa. Assim, por exemplo, os cru-
zados da rosa, que pretendiam fazer reformas na
igreja e no estado, e cujo distinctivo era uma cruz
de Santo André, com uma rosa rodeada de espinhos
e cora este dislico: Cruz Christi Corona christia-
norum. Em Paris houve lambem a sociedade cha-
mada dos Rosati, na qual não podia entrar nin-
guém que não tivesse feito alguma composição
poética em louvor da rosa. Em íira ha as Ires or-
dens da rosa creadas ultiraaraente : a do duque
de Chartres, que era a reunião de todos os liber-
tinos de Pariz e de todas as raais notáveis corte-
zãs em 1780 ; a ordem da rosa, criada por D. Pedro
I, imperador do Brazil e a ordem allemã da rosa,
criada era 1781 por (írossinger.
A sciencia conta hoje unias 3:000 classes e va-
riedades de rosas, cujos caracteres dislinctivos só
os conhece o verdadeiro intelligenle na raateria.
O cultivo maior de rosas é o que se faz em Fran-
ça; tanto as d'este paiz como as d'lnglater-
ra e Allemanha tecm uma merecida reputação;
mas, parece-nos que não teem o aroma das nos-
308
O PANORAMA
sas ou das dllospanha e d'Ilalia. A imperatriz
foi a primeira que deu impulso ao seu cullivo,
fazendo com que o seu jardineiro puzesse no jar-
dim do seu palácio de Maiinaison todas as leiras
do seu nome formadas das mais estranhas rosas.
Em França criavam-se escolas, em Paris, Versailles,
Rouen, etc onde se ensinava o cul(ivod'esta flor.
No condado de ITertfordé onde eslão os melhores
jardineií-os para rosas que a Inglaterra possue e
ali publicou-se ainda não ha muitos annos um
livro Iralando d"esia flor.
Em Allemanha tinham fama as collecções de rosas
de Cassei ; na actualidade os maiores jardins d"ellas
eslão em Dusseldorf; lambem os ha muito bons
em Wilzleben. Koeslrilz, ele.
Concluiremos citando a maior roseira que se
conhece no mundo ; é uma branca que eslá no jar-
dim da nrariniia de Toulon ; conta já iO annos, e
em 1TÍ2 o seu tronco tinha dois pés e quatro
jiollegadas de circumferencia; a sua altura e de
lo a 18 pés, e quando floresce (que é do melado
de Abril a meiado de Maio), não dá menos de
;J0:000 rosas; o seu aspecto é magnifico, ou para
melhor dizer encantador.
Km Caserta, ha outra roseira da mesma classe
que allinge a altura de GO pés. O barão Jaspes
iSicholls de Goudrent em Inglaterra linha uma
que em 18oí deu de 17,000 a 18,000 rosas.
Quem pode exercitar a doçura de espirito no-
meyo das dures, a generosidade no meyo das fra-
quezas, a paz no meyo das contradições, este tie
mais que perfeito. A mansidão, a suavidade de
coração, a igualdade de humor, são virtudes mais
raras que a castidade : e assim as devemos ter
em grande estimação. Não ha cousa que mais
cditique. que a mansidão caritativa; nella como
no aze\tc da lâmpada, vive. e se nutre a chama
do bom exemplo. Manuel BEu^AI;DES.
DON JOSÉ RIBERA.
O museu hcspanhol do Louvre, essa vasta col-
lecção de quadros que os francezcs, sem maior
ccrcmonia, foram levando de todas as províncias
da Hcspanha. acha-se aberto ha muito tempo, e
tem se podido distinguir, n"aquclle conjuncto de
composições diversas, algumas leias dos grandes
mestres, em que se revelam eminentes qualida-
des. Mas, também, é forçoso confessar, uma gran-
de parle d*aquellas obras não saem da existência
vulgar; prcnde-as uma grossa cadeia á vida ter-
restre. È justamente o contrario da escola ita-
liana, que se eleva ás celestes regiões da arte.
Em llespanha, paiz que parece fugir da justiça,
o arlit.|a pensa nas necessidades da vida, na am-
bição, na malvadez, no despotismo que o cercam.
Se procura um assumpto, encontra a indigência,
e immedialamente cobre a sua léla de mendi-
gos : as dores rruciantes dos martyres servem-
llie i)ara exprimir a desolação que o rodêa. Al
guns homens, porém, fizeram tréguas por algum
tempo com aquelle perpetuo gemido: citaremos
Murillo, Luiz de Vargas c Hibera.
l'«ibera, a quem ai)pellidaram o Kspanholelo,
unicamente para indicarem o paiz em que nas-
cera, pertencia a uma família nobre de Murcia.
Destinado ao estado ecclesiastico, começou os seus
estudos na universidade de Valência. Frequentava
também a esse tempo as aulas um dos íilhos do
pintor Ribalta. Relacionando-se, e tornando-se
amigos, Ribcra teve occasião de ver alguns de-
senhos d'aquelle artista, os quaes desde logo
procurou copiar. Informado Ribalta da vocação
do mancebo, e vendo o que elle fazia, disse ao
filho que lh'o apresentasse, edeu-lhe licença para
trabalhar na sua ofíicina. Em pouco tempo, Ri-
bera fez rápidos progressos, e seus pães, vendo a
sua apíidão, consentiram em deixal-o partir para
Itália. Dirigio-se a Roma, onde viveu sem meios,
estudando todo o dia, e dormindo de noite de-
baixo dos alpendres. Assini andou muito tempo,
até que em certo dia vio na igreja de S. Luiz al-
gumas pinturas que lhe excitaram sympathia :
eram obras do celebre Caravaggio. Ribera con-
cebeu desde logo o projecto de procurar aquelle
artista, que Ib.e poderia dar algumas licções. Não
tardou muito que a fortuna Ih o não deparasse
em um passeio: Ribcra saio-lhe ao encontro, e
disse-lhc, que desejava muito vel-o pintar. Cara-
vaggio não fez mais que indicar-lhe que o se-
guisse e entraram ambos em uma casa de magni-
tica apparencia.
Imagina-se facilmente quão útil não seria para
o Espanholeto um ensino d'esta natureza. Cara-
vaggio morreu, e o seu novo discípulo, começou
a copiar muitas obras de Gorregio: formou um
estylo de pintura inteiramente novo, que não se
assemelhava nem a Corregio nem a Caravaggio,
mas que se sente inspirado pela a meditação d'es-
tes dois mestres. A fortuna de liíbera estava feita,
e era breve vio estabelecida a sua reputação. Um
dia po!ido a seccar ao sol um quadro do marty-
rio de S- Rartholomcu, foi tal a multidão que se
apinhou para vel-o, que o duque d'Ossuna, avis-
tando-a das janellas do seu pahicio, mandou in-
dagar do que dera motivo aquelle ajuntamento.
Ordenou que lhe levassem o quadro, e desejou
conhecer o seu auctor. Logo que soube que Ri-
bera era hespanhol, nomeou-o seu primeiro pin-
tor, dando-lhe uma considerável pensão. Imme-
dialamente começaram a pedir-lhe quadros para
as igrejas de Nápoles, para os conventos, palácios
epara o rei de Hespanha. O exilo que obti-
veram a Descida da Cruz e a Madona Bianca, foi ex-
tr-aordinario.
Ribera enriqueceu em pouco tempo ; a sua
casa era magestosa, eslava solier-banientc mo-
bilada, tinha cariuagem, e dava a iniude bailes
esplendidos.
A opulência, porem, em que vivia, não o fez
abandonar o trabalho. Na ofíicina, a sua appli-
cação era tal, que lhe acontecia muitas vezes pas-
sar o dia todo sem coriu'i; nem beber. Como esta
distracção prejudicava o seu temperamento, vio-
se obrigado a ter sempre um homem junto de
si, que lhe dizia de tempos a t('m|)os : « Smlior Ri-
])era, haja tantas hor-as que trabalha. » Elfecliva-
mente, era jiieeiso (pie elle. estivesse completamen-
te absorvido no seu li'abalho para poder jiroduzir
tantas obras tão estudadas o ao mesmo tempo
tão |)erf('itas. Os seus maiores (pi;idros apenas
lhe levaram alguns mezes de trabalho; quanto
aos de meio í'oi])o, nos (juaes havia um só per-
sonagem, como o S. Jeronynio e outros, acaba-
va-os, para a.ssim dizer, em horas.
o PANORAMA
309
Adoração dos Pastores (Quadr'o (k; Rivera;
A melhor leia de Ribcra, que possue o museu
do Louvre é, sem conlradicção, a Adoração dos
pastores, da qual é copia a nossa gravura; está
ali bem claro o typo valenciano e caslelhano.
Vede aquelles homens robustos que avançam
para o Menino Deus: pelo rosto morenado e sel-
vagem, pela sua altitude e vestuário, julgareis
que fazem jjarlede um bando de contrabandistas
das montanhas das Astúrias; e aquella virgem,
triste e meditabunda, de olhos brilhantes e vivos
como as filhas de Sevilha, Granada e Córdova;
e o Menino Jezus de gordas carnes e maciças,
symbolo da força e do vigor material: porque,
repelimos, um defeito saliente da escola hespa-
310
O PANORAMA
nhola. e do qual exceptuaremos, unicamente^
Murillo, é a falia de poesia; tudo nas suas com-
posições é vulgar; ha talento, algumas vezes gé-
nio, mas nada ali é celeste e divino.
OS BRAIIMANES
O systoraa tlieologico do Crahmanismo apre-
senta-nos, no cume da sua hierarchia de divinda-
des, um trio (/"/'///Hír//^ composto deBrahma, Vís-
c/imi, e Siva ; mas esta concepção niio apparece
logo na historia da índia. Já dissemos que nos
Vedas e no Código de Manu, apenas se faz men-
ção de Yischnu e Siva, e que estes Deuses não
desempenham ahi papei algum. O próprio Brahma
não recebe no Rig-Veda nenhum dos altributos da
suprema intelligencia que, mais tarde, lhe foram
aliribuidos. No Manava-Dliarma-Saslra, Bra/im.o
Deus supremo, único, eterno, inlinito, incompre-
hensivel, existindo por si mesmo, do qual o mun-
do e tudo quanto o compõe não são mais do que
manifestações, rege, sob o nome de Brahma, o
univeiso do qual é criador e destruidor. Brahm é
lambem chamado Paramatmâ (a grande alma).
Segundo o Código de Manu, o universo, na ori-
gem das cousas, estava mergulhado na obscurida-
de, imperceptível e destituído de todo allributo
distinctivo, quando «Aquelle a cujo espirito só
e dada a percepção, que escapa aos órgãos dos
sentidos, que não tem parles visíveis, eterno, a
alma de todos os seres, que ninguém pode con-
j)rehender, manifestou o seu próprio esplendor. Ten-
do resolvido em seu pensamento fazer emanar da
sua substancia as diversas criaturas, produzio pri-
meiramente as aguas, nas quaes depositou um
gérmen. Este gérmen lornou-se em um ovo Ião
brilhante como o ouro, tão resplandecente como o
astro de mil raios, e do qual o ser supremo nas-
ceu, sob a forma de Brahma, o avô de lodos os
entes. E, por esla causa imperceptível, eterna, que
existe realmente e não existe para os órgãos, que
foi produzido esse varão celebre no mundo cha-
mado Biahma. Depois Brahma, de ter existido
n'este ovo um anno o Senhor, só pelo seu pensa-
mento, dividio esle ovo eni duas partes, e, d'es-
tas duas partes, formou o céo e a terra; no meio
collocou a alhmosphera, as oito regiões celestes e
o n-seivatorio permanente das aguas.» Depois,
(juando Bialima, saindo do ovo, vai criar os ele-
mentos que hão de formar todos os entes do uni-
verso, da-lhes o nome de Paramalmã, alma su-
prema. Mas, note-se que não é Brahma quem di-
rectamente dá o ser ás criaturas. Cria primeiro Manu,
que é quem, depois, as produz por uma serie de
emanações. Entre estas criaturas, observa-se uma
multidão de deuses, semi-deuses, génios, demónios,
nymphas, monstros, etc, emtim, todos os elemen-
tos (la mais fantástica mythologia.
E nos l'ouranas, com especialidade, que se en-
contra bem desenvolvida esta Fii\thologia exube-
rante que distingue o Biahmanismo. Aqui, Brah-
ma ligura pouco; acha-se, para assim dizer, vivendo
na solidão, em tjuanto que Viscbnu e Siva, por
uma mudança inexplicável, apparecem no primei-
ro plano, o não só tomam lugar a seu lado, como
seus iguaes, mas ainda em certas occasiões se mos-
tram superiores. Os altributos de cada um dos
deuses que compõem a Trimurti india classilicam-
se d'esle modo: BRAHMA, sol, criador, poder,
passado, matéria; YISCHNU, agua, conservador,
sabedoria, presente espaço; SIVA. fogo, destruidor,
justiça, futuro, tempo. Brahma, Vischnu e Siva
constituem, em sua trindade indossuluvel, o ser
supremo ou Parabrahma, que é representado em-
blemalicamenle por um circulo inscriplo em um
triangulo, e designado pela syllaba mysleriosa
AUM, pela qual se deve começar e acabar toda a
leitura dos livros sagrados. Esta unidade da Tri-
murli acha-se energicamente exprimida n'esta pas-
sagem do Bhagavat-Pourana. Um palriarcha di-
rige-sc a Brahma, Vischnu e Siva, e pergunta-lhes
qual dos Ires é o verdadeiro Deus. As Ires divin-
dades respondem-lhe: «Sabei, ó penitente, que
não ha dislincção real entrenós; o que tal vos pa-
rece, só é apparenle. O ser único apparece sob Ires
formas pelos actos de criação, consei vação e destrui-
ção; mas é um só. Render culto a uma d'eslas
ires formas, é rendel-o aos Ires, ou ao único Deus
supremo.»
O esquecimento em que caio Brahma cxplica-se
facilmente. Os povos índios nada mais esperam
do Deus criador, mas teem tudo a esperar e tudo
a temer das duas divindades cujas funcções espe-
ciaes são a conservação e a destruição. Por con-
sequência, não se encontra na índia nenhum tem-
plo dedicado a Brahma; hoje, até, o seu culto e
nome estão em completo esquecimento. Os índios
actuaes não honram senão Vischnu e Siva: d'ahi,
três seitas, ou, para melhor dizer, três religiões
distinclas e inimigas. Eis o quadro que d'ellas
traça o abbade Dubois, de accordo n'esla parle
com os homens que melhor teem estudado o es-
tado religioso dos índios de nossos dias: <Geral-
mente os Índios fazem profissão de honrar igual-
mente as duas grandes divindades do paiz, que
são Vischnu e Siva sem darem preferencia a esla
ou áquella. Comtudo, acha-se entre elles um gran-
de numero de sectários dos quaes uns se incli-
nam exclusivamente ao culto de Vischnu c ou-
tros ao de Siva. Os primeiros são, em geral, de-
signados pelo nome de Yiscimu-haktar, que signi-
íica devotos de Vischnu, e os segundos pelo de
Sim-ba/ctar, ou devotos de Siva. Estes lambem se
chamam Lingadarys e aquelles Nahmadarys. Es-
tes nomes ullimos derivam dossignacs distinclivos
(jue trazem para se darem a conhecer. O signal
(los devotos de Vischnu c a ligura chamada Na/i-
mam, que elles imprimem na fronte: c formada
de lr(^s linhas, uma perpendicular e duas obllípias,
que, reunindo-se na sua base, dão a este signal a
forma de um tridente. A linha do meio é encar-
nada, as duas laleraes são brancas e traçadas com
uma espécie de lerra chamada nahinam, donde
deriva o nome (|ue se deu a esla ligura. O signal
distinctivo dos devotos de Siva é ordinariamente
o lingam. Trazem-no algumas vezes alado no ca-
o PANORAMA
31 í
bello ou nos braços mellitlo em um pequeno lubo
de prata; mas, quasi sempre, suspendem-no ao
pescoço, e a caixa de praia que o encerra desce-
ilies sobre o peito. Cada seita exalta o Deus que
adora, e procura deprimir o da seita opposla. Os
devotos de Vischnu pretendem que e aos cui-
dados d'este deus que se deve tudo quanto exis-
te; que é a elle só queSiva deve o seu nascimento
e a existência, porquanto foi elle quem o salvou
em muitas circumslancias nas quaes, sem o seu
soccorro, não poderia evitar uma perda certa;
que está pois, a lodos os respeitos infinitamente
acima de Siva, e que só elle deve ser honrado.
Os devotos de Siva, por sua parte, sustentam que
Vischnu não vale nada e que nunca praticou se-
não baixezas, que o aviltam. Provam estas asser-
ções com muitos episódios da vida d'esle Deus.
Siva, segundo elles, é o soberano senhor de tudo
quanto existe, e concluem que só elle merece as
adorações dos homens. Estas reciprocas pretenções
dão lugar muitas vezes a grandes disputas e a ri-
xas violentas.» É justo accrescentar: «Que a maior
parte dos índios e, sobre tudo, os lii^ahmanes,
nunca tomam parte n'eslas questões relgiosas. O
systema destes últimos é honrar igualmente as
(luas principaes divindades do paiz; e, ainda que,
geralmente, pareça inclinarem-se mais para Vis-
chnu, não deixam passar ura|dia sem offerecerem,
em suas casas, um sacrifício ao lingam, emblema
de Siva.»
(Conlinua)
A SUPERFÍCIE TERRESTRE
Transportemo-nos pelo pensamento ao longe no
espaço, de modo que possamos d'ahi contemplar
o nosso globo com todas as desigualdades da sua
superlicie. Os conlincnlespareccr-nos-lião manchas
negras e desiguaos, sobre uma superlicie lisa,
manchas que, sollas para o polo do sol, adherem
ao vasto lençol gelado do polo do norte por meio
de prolongamentos de uma alvura deslumbrante.
Estes prolongamentos de gelos eternos, a nivel
com o solo polar, elevam-se gradualmente e de-
senham-se, serpenteando, como rios gelados cujas
ramificações, seguoindo as cimas sinuosas das
mais altas cadeias de montanhas, estendem-se até
o equador. Nas manchas negras, irregulares,
domina a cor verde : são as roupagens da natu-
reza vegetal. Nas dobras d'estas amplas roupagens,
não vedes agitarem-se aqui e ali, como grupos pa-
rasitas? São as legiões do reino animal das quaes
o homem é o chefe. Os flancos abruptos d'eslas
dobras offerecem todas ascolorisações propilas do
reino mineral. Mas tudo ali parece immovelcomo
sobre a neve eterna. A vida anima unicamente as
aguas e as rochas cobertas de homens.
A cal, a argilla, a ocre e a silica, eis as subs-
tancias mineraes que constituem principalmente
a crosta terrestre. Estão universalmente espalhadas
pela superfície do globo; encontram-seem lodosos
climas, tanto na zona frigida como na tórrida ; a
sua identidade de aspecto desperta no espirito do
viajante a lembrança do solo natal, ao passo que
tudo quanto vive em torno d'elle muda de forma.
O que é a cal, a argilla, a ocre e a silica? Du-
rante milhares de annos estas substancias repre
sentavam unicamente aos olhos dos pliilosopho> o
elemento solido : ei'a a terra diversamente modi-
ficada. Hoje sabe-se que são verdadeiros metaes
cujas propriedades caracleristicas estão occultas
pela sua combinação comum ou dois corpos aeri-
feros (oxigénio e acido carbónico). A cal, a ar-
gilla, a ocre e a silica são espécies de fernif/em,
dos óxidos ou carbonatos, cujos metaes se (leno-
minam calcium, aluminum, ferro e silicium. No
estado de pureza, teem todas, mais ou menos, a
côr e o brilhantismo da prata, a qual igualam ou
excedem em dureza. Mas não tarda que não ab-
sorvam o oxigénio e o acido carbónico da alh-
mosphera, e relêem estes gazes, sobretudo o pri-
meiro, com tanta tenacidade que é necessário em-
pregar os meios mais enérgicos para desoxydar
a cal, a alumina (argilla pura) e a silicia. A ocre
(mixlo de oxydo e de carbonato de ferro impuroj
reduz-se facilmente pelo simples emprego do car-
vão. Apresenlando-se um mixlo d'esles differen-
tes corpos, quereis separal-os uns dos outros? Fa-
zei uso da agua forte (acido nitiico :) esta reage sobre
os carbonatos de cal e de ferro produzindo effer-
vescencia ruidosa, devida á separação do gaz aci-
do carbónico, em quanto que a silica e uma
grande parte da alumina ficam intactas. Se no
liquido filtrado se deitar acido sulfúrico, vereis
este dissolver o ferro, formando vitríolo verde
(sulfato de ferro,) e a cal separar-se-ha no estado
de gesso (sulfato de cal) quasi insolúvel. O mes-
moacido poderá servir para distinguir o alumi-
nium da silica. Em resumo, o ferro, appellidado
pão da industria; o aluminium, cuja descoberta e
applicações são recentes; o calcium e o silicium,
que esperam ainda o seu uso ; esles quatro me-
taes constituem — o lerro, pelas suas abundantes
minas, o aluminium, o calcium e o silicium pelas
grossas camadas de argilla, terra argillosa, greda
calcaria, areias, lioz, quartzo, silex, — a quasi to-
talidade da crosta terrestre, todo o sob-solo do
reino vegetal ; de modo que se o oceano aerio,
que de todas as parles rodea a terra, fosse um
agente rcductor, em lugar de ser um meio de
oxydação, o nosso planeta, desnudado de Iodas as
manifestações da vida, não seria mais do que um
globo melallico cujos raios retleclidos imitariam
o brilhantismo do sol.
O CAÇADOR D'ELEPIiANTES
ooiiio persa
A seguinte historia é narrada por um auclor
persa que a ouvira, diz elle, a vários velhos do
Sind e do Indostão, homens dignos de fé, e lo-
dos compatriotas ou amigos do próprio caçador
que vai faltar.
«Eu costumava caçar em uma floresta frequen-
tada por bandos d'élephantes, e raras vezes en-
trava em casa com as mãos vazias; efíectivamen-
te, tinha descoberto o sitio onde estes bandos
312
O PANORAMA
costumavam ir beber, e escolhia, no caminho
que deviam seguir, uma arvore muito alta e co-
pada donde podia observar os elephantes sem ser
visto. Ordinariamente, era quando o rebanho
voltava, depois de ter saciado a sede, que cu es-
coliiia a minha presa, e a matava disparando-lhe
uma frecha cuja ponta era envenenada. Logo
que caia a victima, o resto do bando dispersava-
se em um moraenlo, porque estes animaes pare-
ce que teom horror aos cadáveres. Eu então descia
do meu posto e apoderava-me da peiie e do mar-
lim. cuja venda me dava o necessário para eu
viver e minha lamilia.
«Um dia, feri um elephante. O animal caio
dando gritos medonhos. Eu tive o cuidado de não
sair logo do meu escondei ijo, porque os elephan-
tes, que primeiramente haviam, como das mais
vezes, fugido espavoridos, não tardaram em re-
troceder. Um d'e!les, que me pareceu ser o con-
duclor do bando, approximou-se do animal mo-
ribundo, examinou attentamentc a frecha e a
ferida que sangrava, edesappareceu. Mas, poucos
instantes depois, voltou acompanhado de lodos
os seus companliciros. Os elephantes agruparam-
se em torno do ferido, que se estorcia em con-
vulsões, e que em breve deu o ultimo suspiro.
Separaram-se então, mas não para se dispersarem:
começaram, pelo contrario, correndo de um para
outro lado, como que procurando alguma cousa,
examinando uma a uma Iodas as arvores, -melten-
do a tromba por entre os ramos. A vista d'isto
não havia que duvidar; a minha morte eslava pró-
xima. Julgue-sc do grande medo que de mim se
apoderou quando vi o principal do rebanho col-
locar-se debaixo da arvore sobre a qual eu
me achava. Com a tromba afastava a folhagem;
quando me avistou, não podendo chegar ao ci-
mo onde me havia reiugiado, diHgenciou aba-
lar o tronco; e, com eííeito, embora esta arvore
fosse de uma elevação e grossura pouco com-
muns, conseguio desarraigal-a. A elasticidade dos
ramos amorteceu a violência da queda, apenas
me magoei; mas esperava ser immediatamenle
pisado pelos elephantes, c, resignado com a mi-
nha sorte, nem mesmo procurei defender-mc. No
entretanto o conductordo bando afastava os que
avançavam para mim; os seus olhos intelligcntes
brilhavam, íi.'^ando-se alternativamente sobre mim,
sobre o arco e sobre a minlja aijava cheia de
frechas, que estavam a alguns passos de distancia.
De repente agarrou-mc com a tromba e coliocou-
me sobre as costas; em seguida, apanhando o ar-
co e a aljava, enlregou-m'os e poz-se a caminho
por onde linha vindo, seguido do seu bando.
"Depois de ler andado algum tempo parou, e pu-
de ver sobre a areia, a curta distancia, uma enor-
me serpente adormecida. Acordada pela bulha
dos passos, o monstruoso reptil endireitou a ca-
beça vibrando o seu ferrão, o que me pareceu assus-
tar bastante lodos os elephantes, excepto o que
nie conduzia. Este agarrou-mc novamente com a
tromba e j)oz-me no chão juntamenie com o ar-
co e a aljava; depois, indicando-me allernativa-
mcule as armas c a .serpente, fez-me comprehen-
der o que queria de mim.
"Disparei a primeira frecha, que penetrou na
garganta da serpente, e uma segunda atravessou-
Itie a cat)eça de lado a lado. l-.ogo, o meu ele-
phante precipitou-sc sobre ella e esmagou a com
os pés. Terminando esta operação, tornou a por-
me em cima de si e partio ; o rebanho seguio o
seu conductor. Depois de níuilas horas de rápido
caminhar atravessou uma immensa floresta, onde
nunca até então eu havia entrado, e que se estendia
sobre um espaço de muitos fersekhs (l) quadra-
dos, chegamos a um sitio cujo terreno estava to-
do todo coberto de ossadas e cadáveres d'elephan-
tes : parecia ser o cemitério d"elles.
"O elephante, que me levava, escolheu, como
entendido, entre todos estes preciosos despojos,
os melhores dentes, os quaes foi pondo sobre as
costas dos seus companheiros, carregando-os com
todo o peso que podiam ; em fim, elle próprio
tomou uma carga igual, que cpllocou entre a sua
nuca e os meus joelhos.
«A caravana dirigio-se em seguida, atravez: de
uma e.^ctensa planície, para o lado dos lugares ha-
bitados. Quando chegou á vista de um grupo de
aldeãs, o elephante que a conduzia, fez "com que
cada qual pozesse a sua carga no solo, que se
elevou á altura de uma collina ; collocou-me de-
pois com as minhas armas ao lado do presente,
e partio com todos os seus a galope.
«Corri logo á aldeia próxima, e ajustei com
cincocnta homens para me ajudarem a conduzir
o meu thesouro. Graças a l)eus, os lucros que
realisei com a venda de uma tal quantidade de
marílm, tornaram-me, co?no sabeis, um dos mais
ricos negociantes da minha terra natal.. 'í, ainda
hoje, não penso n'este caso estranho, que me não
sinta cheio do mais vivo reconhecimento para
com aquelle que, só, conhece todos os mysterios
que encerram as almas das suas criaturas, i»
Não ha modo de mandar, ou ensinar mais forte,
cc suave, do que o exemplo : persuade sem rhe-
thorica, impelle sem violência, reduz sem porlia,
convence sem debate, todas as duvidas desata, &
corta caladamente todas as disculpís. Velo ten-
trario, fazer bua cousa, & mãdar, ou aconselhar
outra, he querer cndireylara sombra da vara
torcida.
A SCIENCIA
Nós devemos encarar o estado presente do uni-
verso como o eíleilo do seu estado anterior, e co-
mo a causa do {|ue segue. Uma inlelligencia que,
por um instante dado, conheceu todas as forcas
de que a natureza e animada e a siluação respe-
ctiva dos seres que a comj)õem, se além d'isso
fosso baslanlc vasla para submeltcr estes dados à
analyse, abraçaria na mesma formula os movi-
menios dos maiores corpos do universo e os do
mais leve alomo ; nada seria incerto para ella e
tanto o fiilui'o como o passado estariam presentes
a seus olhos. O espirito humano oílerece, na per-
feição (|ue deu á astronomia, um fraco esboço
desia inlelligencia. Applicando o mesmo melhodo
a ouiros objeclos do nosso conhecimento, conse-
guio levar a leis geraes os |)hcnomenos observa-
dos, e a prever os que deviam nascer das cir-
cuinslancias dadas. Laplace.
(1) Um fcrseUlis cquivalu a i millins inglczas.
Typ. l'ian(;'j-lVjrlugucz:>, liun do Tlusouro Velho, 0.
40
o PANORAMA
813
.lUlUBI.W^VT^Sg^
Hj^de Park.
Este formoso passeio de Londres, celebre jà
pelo seu opulento arvoredo, tornou-se agora ainda
mais celebre pelos acontecimentos políticos que
n'eile se realisaram. Não esqueceram, de certo, os
leitores a noticia dos tumultos na luglaterra, dos
meetings dispersos pela policia, e, se tiverem boa
memoria e se a perscrutarem bem, hão de achar
o nome de Ilyde-Park involto com a reminiscên-
cia doestes successos.
Efíeciivamente os meclings do povo de Londres
fizeram-se ri'esse recinto, e ahi os foi dispersar a
policia, naturalmente porque ao ministério não
convinha que os seus administrados discutissem
em massa a reforma eleitoral, questão momen-
tosa para os governos, sempre mais ou menos
conservadores, da Grã-Bretanha. O pretexto ado-
ptado foi outro, comtudo. Allegou-se a lei que
prohibe as reuniões populares em sitios que se-
jam propriedade da coroa. Ora Hyde Park e, na
verdade, propriedade regia. Já vêem que o pre-
texto era plausível n'um paiz, como a Inglaterra,
onde se respeita escrupulosamente a letra da lei,
muitas vezes com prejuízo do espirito d"ellas.
Hyde Park era antigamente uma terra de caça.
Quando Carlos I foi decapitado, e que em spguída
se procedeu á venda dos bens da coroa, ílyde
Park foi exceptuado, e reservado para ser vendido
em particular. Compraram-n'o três burguezes
pelo preço de dezesele mil libras. Os novos pro-
prietários conslruiram casas n^im dos ponlos do
seu terreno, que se chama agora Ilyde-Park-Cor-
ner. No mesmo sitio se erigio, por òidem de Oli-
vier Cromwell, um forte, e outro no sitio a que
se deu o nome de monte deOlivicr, em honra do
protector.
Quando Carlos 11 subio ao throno, resgatou a
propriedade, erigío-a em coutada e deu as hon-
ras e emolumento? de couteiro d"ella a seu irmão
o duque de Glocester. Depois da sua morte pas-
sou o cargo para sir James Hamilton, cujo nome
se conserva em Hamilton-Place.
Depois da revolução de 1688 deu-se ao povo li-
vre entrada no parque. Pouco a pouco foi-se trans-
formando em passeio publico, e assim e.>-tavahoje
sendo considerado ; mas a coroa não abdicara os
seus direitos; Hyde Park tinha por conseguinte as
immunidades de domínio real, e o goveVno, dis-
persando o meelíng, procedeu segundo a mais es-
tricta legalidade.
DERROTA DE VALDEZ NA TERCEIRA
(Conclusão)
Nos conselhos convocados com frequência ou-
viu D. Filippe o parecer dos capitães mais
illustres, c o voto de ministros pi-ndenles. Concor-
daram lodos, em que a eslação não consentia fac-
ções de giiena importantes, e em que um revez
arriscado por temeridade na Terceiía |)odia esli-
mular no reino os brios dos descontentes. Accedeu
sem hesitar. Mas encerradas as cortes de Tho-
mar, e aplacado o maior tumulto dos negó-
cios, voltou logo os cuidados para a pacificação da
Terceiía, (|uc a Graciosa, o Eayal, o Pico, e S.
Jorge, chamadas as ilhas de baixo, tinham segui-
do, cora os satellites, na resistência. Os arbítrios,
que seguiu, foram opporlunos. Escolhendo Ambró-
sio de Aguiar, c encarregando-o na qualidade de
314
O PANORAMA
governador da generosa missão de aliançar aos
erros e demasias o mais amplo perdão, esperava
alrair a vonlade dos moradores da ilha, aos quaes
largas promessas de mercês e privilégios deviam
acabar de resolver. Jorge de Covos partiu no mes-
mo gallião, des|)achado corregedor, e por singu-
lar acaso o navio, que levava o emissário de Fi-
lippe II, enconírou-se nas aguas de Portugal com
o pequeno baixel, em que 1). Anlonio se evadia ás
vinganças de seu poderoso compelidor.vl)
Ambiosio de Aguiar não foi bem succedido.
Apenas fundeou, e correu a noticia de sua chegada
e dos motivos delia, a plebe alvoroçada, diclando
leis aos magistrados, saiu em assuada pelas ruas,
jurando lapidar os que aceitassem outro rei, que
não fosse D. António. Tornou-se o arruido tão estre-
pitoso, que o go\einador nomeado por I). Filippe,
tomou immedialamenle o lumo de S. iMiguel, aon-
de os amiíos de Caslella o receberam com aplau-
so. (2)
Mas as carias do rei catholico e dos fidalgos de
Lisboa aos parentes e pessoas conspícuas da
Terceira reanimaram os parlidaiios da llespanha.
Censurando cm publico os desatinos do j)ovo, e
reputando mais do que loucura a ousadia da ilha
se oppor só a lodo o poder de Filippe IJ, princi-
piaram estes a inijuietar o governo. João de Bet-
tencouit, homem edoso, de boa familia, porem as-
sombrado de juizo e pupilo dos Jesuítas, tramou
uma conspiração leviana. Sem a menor cer-
lesa de auxilio, acavallo, de lança em punho, atra-
vessou as praças á hora do meio dia, amotinando
a cidade, e aclamando o rei catholico. Ninguém o
ajudou, ca multidão enfurecida desarraou-oe pren-
deu-o. Cypriano de Figueredo viu-se coegido en-
tão a proceder com severidade, abrindo devassas,
e encerrando na cadeia os mais culpados. Os ódios
da pojinlação accusavam parliculainienle os padres
da companhia, suspeitos de cori^espondencias e de
trado secreto com o bispo dos .\çoi'es, refugiado cm
S. Miguel. As outras ordens religiosas, transportan-
do tanibcm, para a arena politica as contendas
mo naslicas, não concoí riam j)ouco por sua parte j)ara
cxacerbíM- as paixões. O dej)loiavel espectáculo do
escândalo, com (jue muitos frades tinham aviltado
no reino os claustros e púlpitos, repetia-se agora na
ilha; os conventos trocavam a vida penitente c
conlemi)laIiva pelas agitações do século, sobresa-
hindo os lianciscanos no afecto a I). António, e
os Jesuítas na dedicação a 1). Filip|)e. O que a
verdadeira piedade padeceu com estas profanações
não foi de cci to a menor desgraça de epocha tão
fértil em adversidades e desacatos, nem o mais le-
ve luidaílo para Figueiedo, (jue as vozes e desati-
nos da plebe muitas vezes distraíram da inspec-
ção acti\a das obras de defesa, traçadas para re-
peilir o próximo assallo das forcas hesj)anho-
las. (3)
M) liclarào ilns cousan qui; actnlcccram na ilha Terceira. Capit-
]I, ni, o IV. — Lcitreê conlenunl loul cc qui acsl jxissé uux istcn
Teriero', olr. (mq. 1-7.
(2i Htlnçno tlnx cousns que nconUreram n« illia Tcrrclrn, etc.
Capit. XII, Conoi.-ipio. Unmu ili; Purlinjal. Liv. vii. Uurrera. Cin-
co LilTos (te la Jlixioria dn Porlvgul. Lili. iii.
cj) JUlarao (lun coukuh que nconioccram na Ilha Terceira, ctc.
Cap. iij. ConcsUgio. União de fordigfil. Liv. viu.
O rei catholico não intentara ja a occupação da
ilha, segundo notamos, porque a occasião o não
aconselhava; mas a tenacidade dos habitantes po-
dia expor as naus das índias a um desastre irre-
mediável. Se Drake e Ilawkms por felicidade delle
não estivessem retidos pelas ordens de Isabel,
ou se Henrique de Valois fosse monos tímido, a
Terceira, guarnecida de bons soldados, zombaria
dos esforços empregados para a con(|uistar, e a
frota do Peru, presa das velas inimigas, recom-
pensaria os audaciosos aventureiros, contraclados
por I). António, proporcionando ao pretensor avul-
tados capílaes para acommetter depois a Mina, a
Madeira c até as costas de Portugal. Nesto aper-
to, convocado o conselho de novo em Lisboa, op-
tou unanime por um golpe fort(! e decisivo, que
solíocasse a rebellião no berço. Faltava quasí tu-
do, porem, ainda para o descarregar opportuna-
menle. O maiquez de Santa (]ruz não quíz ser o
ultimo a confessal-o. Apellou-se então para o al-
vitre, ja provado com vantagem das peitas e su-
bornos, mas não existia na Terceira pessoa apta
para representar o papel de i). Christovão de Mou-
ra, e os íidalgos, queannuírama desempenhal-o,
tiveram de se arrepender, sahando não sem custo a
vida das iras da gentalha. Apesar de positivo assim
mesmo este ainda desengano não dissuadiu Filippe II
de insistir. Oueria convencer os contrários da sua
moderação. A necessidade, e não a indoie,
compelia-o. O alvará de 16 de abril de 1581, as-
segurando esquecimento e perdão aos habitantes
da Terceira, que se entregassem, comprehendia a
Graciosa, o Faval, S.Jorge, e o Pico na mesma
amnistia. Acompanhando deste acto de clemência
a partida de D. Pedro Valdez para os Açores com
alguns navios, enviados para assegurar o regresso
da armada das Índias orientaes ao porto de Lisboa,
contava el-rei confirmar as boas disposições dos
moradores lieis á sua causa, e captar a amisadc
de muitos outros. As inslrucções passadas a Valdez
proiíibiam-lhc qual(|uer acto de hostilidade, em
(|uanto I). Lopo de Figueiroa não se lhe reunisse
com o grosso da esquadra. Os navios de Caslella
avistaram a ilha por meiados de Julho. A pequena
frola compunha-sc de oito velas grandes e de duas
caravellas. (4)
Alvoroçou-se a terra. A armada aproxiraou-se,
e, em quanto atravessada defronte do porto dis-
parava a ai cabuzeria, sem ancorar, os seus escaleres
davam caça aos barcos de pesca. Pouco depois
uma catraia trouxe as cai tas de D. Filippe, e a
intimação de Valdez aos habitantes, convídando-os
a render-se para não supporlarem as calamidades
da guerra. Os moradores desprezaram a ameaça,
e certos de (jue os navios eram poiicrs, e os sol-
dados ainda menos, discuidaram-se na vigilância.
Os hespanhoes, desembarcavam de noule, e avesi-
nhando-se das trincheiras levantadas por Cypria-
no de Figueredo, fatiavam para dentro com os
defensores da ilha. Esta negligencia despertou
(i) Arrliivo N;iíiori;il da Torre do Tombo. Liv. I d.TS Lfiá. folo
117 V. U. rrera iiliriua, ijiio Valdc/, trazia :> naus giossas .'Juiido tuds
o luais caravellas e aviSns. (".iljrcra de Córdova. /V/íp^e// e outro,
aiiclorcs uluvaiii o numero das velas a 20,
o PANORAMA
315
no animo impetuoso do sobrinho de Valdez a ideia
de tentar um rasgo de ousadia, que, venturoso,
tornasse o seu nome c o do tio assignalados. D.
Pedi'o e os outros capitães cederam ; a emulação
l)revaleccu sobre a obediência ; c demasiado coníia-
dos na fortuna, vespoia do dia de Santiago, acerca-
ram-se da villa de S. Sebastião e fundearam. Soou
logo o rebate, acudio gente, c correu a nouto en-
tretida com fogueiras e vigias. Figueredo juntara
a ordenança de pé e de cavallo, e avisado com
rapidez por correios montados, achava-se prestes
a acudir cora rapidez aos pontos atacados. Valdez
não contava mais de seiscentos homens, capita-
neados por seu sobrinho, 1). Diogo, e por D. Luiz
de Baçan. A costa era descuberta e o mar estava
manso. Sobre as quatro horas da madrugada os
postos mais distantes da ilha ouviram os repiques
da atalaya no sino da igreja de Santo António.
Soou logo o estrondo das salvas de mosquetaria,
disparadas contra os bateis dos castelhanos e res-
pondidas por elles. Quando chegaram os habitan-
tes já os castelhanos tinham na praia duzentos sol-
dados no sitio denominado — Casa da Salga —
entre a cidade de Angra e a Villa da Pr^ia. Os
que resistiam seriam pouco mais de cincoenta,
e aturavam com grande trabalho a fiequencia dos
pelouros. Os escaleres inimigos forçavam a remos
afim de lançarem segundo golpe de gente. (5)
A melicia de S. Sebastião, apesar da brevidade
do caminho, não chegou tão depressa que não encon-
trasse já quatrocentos homens formados com seus ca-
pitães, e que não devisasse os escaleres voltando
das naus, carregados de feixes de piques, com o
resto das companhias. Travou-se renhida escara-
muça. O valor dos hespanhoes não desmentiu a
arrogância do feito; os moradores combateram
com egual esforço. Ás nove horas da manhã dous
a três mil homens, vindos de Angra, da villa da
Praia, e dos casaes c povoações da Serra, cubriam
os montes, e baixavam a investir os castelhanos
mal amparados com parapeitos de pedra solta, er-
guidos no meio do fogo. A lucta prolongava-se,
mas de longe somente. A destreza dos veteranos
de Valdez lovnaiia perigoso um recontro regular.
As caravelas da armada, bordejando favorecidas
pelo norte, varriam a costa com a artilheria, e ao
fumo e fragor do combale junlavamsc as laba-
redas das medas de palha incendiadas nas eiras.
Intentaram por vezes os hespanhoes arrancar na
ponta dos piques os bandos avulsos, que se tinham
vangloiiado na vespora de enxotar como rebanhos
sem pastor. Baldou-se-lhes, porém, o empenho. A
desesperação fazia soldados ate dos pusilânimes.
As mulheres, junto dos pães, dos maridos, e dos
filhos levantavam os feridos, soccorriam de muni-
ções os combatentes, e algumas vingavam mesmo
com as armas na mão o sangue vertido deantc
d'ellas. Ao meio dia as esperanças de Valdez es-
tavam inteiramente desvanecidas, O fervor infre-
(5) Relação das cousas, que aconteceram na ilha Terceira, ctc.
cap. XVIll'e XIX. Leltres conlcnant Ics Relalions de tout ce qiií
s'est passe aux islcs, etc. n. 8 a 25. ílcrrera. Lib. IV. Conesla^io.
Liv. VlII.
pido dos habitantes decidia-o a recolher-se ás naus
com o presentimento de um grande revez. (^)
Este pouco se demorou. Creavam-se na ilha
grandes manadas de bois e algumas pastavam
perlo, lím frade Cruzio lembrou quasi o ardil de An-
nibal. (Js pastores aguilhoaram as rezes mais bravas,
e enfurecendo-as, arremessaram-as contra o arraial
castelhano, precipilando-se a gente atraz. Foi tal
o Ímpeto dos animaes e dos homens, que, envolto
e entiado o campo por todas as partes, os que vi-
nham na retaguarda já não acharam inimigos. As
fileiras hespahholas rotas juncaram de cadáveres
e embeberam de sangue a terra. A retirada para
a beira-mar converteu-se em fuga desordenada.
As ondas e os tiros não deixavam abicar os bateis.
Valdez, como assombrado de raio, assistia do con-
vez da nau ao immenso desastre sem animo de
acudir com suas ordens. Os canhões dos navios
calaram-se, quando deviam trovejar, e do meio
das vagas erguiam as mãos os aflictos, imploran-
do piedade* nos seus e misericórdia nos vencedo-
res. Uns alirando-se ás aguas, e afundados com o
pezo das ai-mas, afogavam-sc já próximos dos es-
caleres; outros, arrastados semi-mortos no roUo
do mar, vinham expirar na praia reialhados de
golpes Não se via senão luzir ferros de lanças e
de piques, ou chispar lume dos mosquetes e arca-
buzes.
Bandeiras, insígnias, caixas, e armas, tudo caiu
nas mãos dos portuguezes. Dos soldados da expe-
dição voltaram apenas cincoenta a bordo esvaídos
de sangue e cortados de terror. Diogo Valdez, D.
Luís de Boçan, os alferes das companhias, e os
veteranos mais valerosos pagaram a temeridade
com a vida. Ferozes na vicloria,os habitantes não
perdoavam aos inimigos metendo-se pelo mar até
aos peitos para os ferir. Cypríano de Figueredo
e alguns capitães galopavam' pelo campo, pedindo
quartel para elles, mas em vão. Deshonrando o
tríumpho os ílheos decepavam as cabeças e as mãos
dos mortos parU arvorarem estes horríveis Iropheus
nas pontas dos ferros. (7)
Rebello da Silva.
O MUNDO DO MAR
Enconlram-se a miude no mar — e a primeira
navegação de Chrístovam Colombo oflerece-nos um
exemplo celebre — ilhas herbáceas de uma exten-
são ímmensa, lluctuando á superlicíe, e algumas
vezes arrastadas pelas correntes a distancias pro-
digiosas. Estas íllias, das quaes os Açores apre-
sentam um banco extraordinário chamado Mar
dos sargaços, são formadas de fucaccas. Para os
primeiros navegadores, eram as columnas de Her-
cules do Oceano ; marcavam os limites das aguas
navegáveis. Alem dos sargaços e dos fucos, as al-
faces do mar, com a sua delgada c larga folha-
gem, apresentam muitas vezes os mesmos oásis ;
(G; Ihifiem.
(Tl Relação das cousas que aconteceram na ilha Terceira, cap.
XVIII, XIX' e XX. Lellrrs contcnant les relations de loiít re qui
s'esl ])asse' aux islcs TcrceYcs. p. 13 a 29. Ilerrera. Cinco I.itjro
de la historia de Portugal. Lib. IV. Goiiestagio. União de Portu-
gal. Liv. VIU.
316
O PANORAMA
as algas estendem á superfície das aguas os seus
tllamentos tortuosos o agglomerados. Mas estes
prados tliicluantes, uniformes e estéreis, encobrem
no fundo do Oceano ricos taboleiros de plantas;
moulas onde o peixe, verdadeiía ave dos mares,
editica o seu bumido ninbo ; bosquetes e jardins
onde folgam os babilanles do reino aquático ; bos-
ques, tloreslas em cujos recessos se esconde, dos
seus grandes perseguidores, a presa tímida e si-
lenciosa.
Um fado digno de reparo, é que, como a ve-
getação terrestre, as plantas marinlias prendem-
se, quanto á sua distribuição, a preciosos limites
geograpliicos. (Scbleiden.) Considerando-se que
estareitarlição está ligada em grande parle a con-
dições dilTerenles de calor e bumidade, que o m?r
é pouco susceptível de sentir estas differenças de
lemperalura, visto que a uma profundidade rela-
tivamente pouco considerável j)ossue debaixo de
Iodas as latitudes o mesmo gráo de calor, não
pôde deixar de admirar-nos, com razã«, o encon-
trar na ílora sub-marina tantas variações, mesmo
cm regiões visinbas ou situadas a pouca distan-
cia umas das outras. Comtudo, pôde dizer-se que
as algas desenvolvem toda a sua riqueza na zona
temperada e diminuem gradualmente tanto para
os poios como para o equador.
Mas, do fundo dos mares, quanto mais próxi-
mo do equador, mais luxuriante é a vegetação.
«Deixemos, diz Schleiden, as tloreslas aquáticas
dos mares do Norte e as suas plantas gigantescas
entre as quaes algumas allingem o comprimento
de oOO a 1500 pés; lancemos um olhar fugitivo
pelas baleias que n'clk's se abrigam, pelos bandos
de lixas, pelas myriadas de arenques, bacalhaus,
salmões e atuns; vollemo-nos para as regiões on-
de o sol é mais ardente, para ver se nos mares
antárcticos encontrai'emos no fundo do Oceano a
mesma profusão que ostenta a ílora aeria ; mer
gulhemos no crystal limpido do mar das índias,
e logo se nos aiuesenlaia á vista- o espectáculo
mais encantador e maravilhoso: multidão de ar-
bustos de ramagem singular produzem llores vi-
vas ; massas compactas de meandrinas e astréas
formam um estranho contraste com os órgãos pal-
mados ou em forma de copos que ostentam as
explanarias e as tortuosas madreporas com seus
grossos ramos articulados ou digitiformes. O co-
lorido está acima de toda a descripção ; o verde
mais brilhante alterna com o alvadio ou o ama-
rello; as cores de pur[)uia confundem-se com o
vfi molho, o alvadio desvanecido e o azul escuro.
Mulliporas de um vermelho desmaiado, amarcllas
ou de côr de ílor de peceguciro, cobrem as mas-
sas, e estão entremeiadas e semeadas de gracio-
sas retiporas côr de pérola e i mi (ando as mais ad-
miráveis esciilí)turas de maríim. A areia do fun-
do está coberta de milhares de ouriços e de es-
trellas do mar de formas estranhas e rias mais va-
riadas cores. Km torno das flores dos coraes fol-
gam e volleam os colibris do mar, peixinhos de
reflexos encarnados, ou aziíes, ou de um verde
dourado ou prateado ; semelhantes aos espirilos
do abysmo, as medusas agitam brandamente as
suas campanas azuladas alravez deste mundo en-
encantado. Aqui as isabeis scinlillantes, de côr
de violeta ou de um verde dourado ; alem a tu-
naide rojando-se como uma serpente e asseme-
Ihando-se a uma fita prateada que reflecte cores
rosadas ou azuladas. Vêem depois os cephalopo-
des fabulosos affecinndo todas as cores do arco-
iris, as quaes desajiparecem e apparecem alterna-
tivamente, confundi ndo-se da maneira mais fan-
tástica. E todos estes animaes succedem-se com a
maior rapidez, formando os mais admiráveis con-
trastes de sombra e de luz. O menor sopro que
agite a superfície da agua faz desapparecer tudo
como por encanto.
Se agora o sol dirige o seu carro para o occi-
dentc e que as sombras da noite descem aos abys-
mos, este jardim fantástico recomeça a brilhar
com um novo esplendor. Milhões de chispas de
medusas e de crustáceos microscópicos dansam
na obscuridade como outros tantos vermes relu-
zentes. Mais longe ve-se a magnifica pluma do
mar, encarnada durante o dia, balancear os seus
clarões esverdeados ; por toda a parte não se veeni
senão chispas luminosas, raios de fogo brilhante-
mente coloridos ; o que durante o dia se apaga
no esplendor geral brilha agora com um esplen-
dor gravado de todas as cores do arco-iris; e pa-
ra completar as mil e uma maravilhas desta illu-
minação magica, accrescen temos que os porcos
marinhos, formando discos prateados de perto de
seis j)és de diâmetro, nadam mageslosamenle no
meio de myriadas de eslrellas rulillantes. Termi-
nemos com esta passagem. O viajante solitário
que acaba de estudar as maravilhosas costas de
Oylão volta á sua morada. De repente, no meio
da tranquillidade de uma noite serena, alumiada
pelo clarão argentino da lua, uma agradável mu-
sica semelhante á das harpas de Éolo, fere-lhe os
ouvidos. Estes sons melancólicos, bastante fortes
para cobrir oruitlodas vagas, vêem da plaga pró-
xima e recordam o canto das sereias : são maris-
cos cantadores (jue fazem ouvir da j)raia uma do-
ce e triste melodia.» (Schleiden, a Planta.)
Ajuntemos a este quadro o do conjunclo do mun-
do vegetal pelagiano, onde se não encontram nem
folhas, nem cálices, nem corollas, e o d'estes ani-
maes estreitados que parece substituírem o lugar
das flores neste estranho elemento «onde o reino
animal floresce, e o reino vegetal não floresce» ;
accrescenlemos-lhe ainda a formação dos coraes,
dos zoophytos, e das suas ilhas circulares; e, fa-
zendo abstracção do tempo, consideremos a per-
p(.'lua mutabilidade do fundo dos mares, (jue, al-
ternativamente, invadem e descobrem as regiões
continenlaes, e formaremos uma ideia approxi-
mada do |)oder, da imporlancia e da riqueza des-
te elemento, (jue a poesia expressiva dos Orien-
laes saudara como a oiigem primeira c eterna de
todas as cousas.
Mas vale la lionra que todo cl dinero.
LoPE DA Vega.
o PANORAMA
!l'!l,nili!:.i.>
8
O PANORAMA
SCE.NA DTSCRAYATURA
Esperamos que sejani d'aqui a pouco obsoletas
scenas como a nossa gravura leprosenla. Depois
da formidável lucla,que se travou na America do
Norte, entre os defensores c os adversários d'esta
iniíiuidade social, lucla em que triumpharam os
sãos princípios, não é provável que haja retroces-
so, e que a escravatura, ainda que não seja de todo
abolida, continue a ser causa de scenas tão barba-
ras, como essa. a propósito da qual estamos es-
crevendo estas linhas.
A exploração do homem pelo seu semelhante é
uma das cousas mais repugnantes que só a barba-
ria tem, eê indigno de povos civilisados descerem ao
nivel dos selvagens prelos dos sertões da Africa,
que se vendem a si e aos seus por um barril de
aguardente.
Este facto, que a barbaiia explica, é um dos
que são apresentados pelos defensores da escrava-
tura como pro\a de que os negros não apreciam
a liberdade. Mas quando nas praias inhospilas da
Afiica um ca|iilão euroj^éo, e um chefe de negros
estão fazendo um contraio de venda de carne hu-
mana, desejo que os vendedores me digam de que
lado está o bárbaro, e de? que lado está o homem
que preza a sua dignidade.
Mas os escravos são indispensáveis nas colónias,
os biancos não podem trabalhar n'esses climas ar-
dentes. Em primeiro lugar isso está longe de ser
demonstrado. «Este principio que passa por axio-
mático, diz Emile (^arrey no seu formoso livro
líuil jours sons fErjualeur, foi inventado pela
indolência dos ci'ednl(s (jue o fez aceitar á Eu-
ropa. Declaro que vi brancos habituados ao clima
trabalharem optimamente debaixo de um sol abra-
zador.
Mas ainda que estivesse demonstrada a idéa da
utilidade não arrasta comsigo a idéa da legali-
dade. (Lperis-senl les colonics plulol qiCun prinvipCD
dizia um dia um deputado Irancez na assemblea
nacional. Será este dito uma utopia, mas é uma
ut(q)ia sublime e generosa, que abraçamos com
fervor, e que esperamos ver em breve realisada,
sem que morram nem as colónias, nem o j)rinci-
pio.
OS PESCADORES E O URSO
Cniito grocnliiiiiloK (t)
Tres irmãos, dos quaes o primogénito se cha-
mava Sitdliarnat, iiaviam estabelecido juntos o seu
quartel d'inverno ; a estação foi ligorosissima e
lodo o mar congelou, de sorle (|uc não podeiam
sair no seu hajah. [l] Ouando viiam o gelo em
estado de se [)oder por elle transitar sem perigo,
correram a tratar da vida; mas não podiam pes-
car senão mui longe, no mar largo, em um sitio
onde havia uma abertura praticada no gelo.
lin dia, (|ii(! o tempo eslava bom, os tres ir-
mãos junlaram-sc a um homem, que não era da
sua família, e partiram todos quatro para aquelle
(1) Tirado do Orfiilíindskc FoIkesnKn, ou Kal.idlit, Okalliiktu-
alliait. t. IV, iiag. I0;i-123. Gadlliaal., 186:', iii-8.
(2) liarco forrado c coberto inteiramente de pilic do plnca.
sitio. Emquanto pescavam, Sitdliarnat observou o
tempo e notou que o vento impellia para o mar
a neve das montanhas.
— Vamos ser assaltados pelo vento do sudoes-
te, disse elle aos seus companlieiros; deixemos a
pesca e partamos o mais depressa possível para a
nossa choupana.
Immedialamenle largaram todos a correr para
a costa ; mas a tempeslade caminhava mais rápi-
da do que ellis, e quando estavam próximos da
terra, o gelo linha-se quebrado e começava a ílu-
cluar. Os infelizes caminhavam ao longo da cos-
ta, sem acharem ponto algum aonde podessem to-
mar terra.
O mais velho avistou um enorme pedaço de
gelo boiando; diligenciaram approximar-se trelle,
e, emíim, conseguiram saltar-lhe para cima. Tudo
em torno d'elles era mar.
Navegaram assim muito tempo ; mas, não tar-
dou a chegada da fome. Alimenlaram-se primeiro
de alguns j)eixes, que o mais novo dos Ires ir-
mãos, felizmente, levava. Depois, quando a fome
os apertava, o mais velho, que se tornara o de-
positário das provisões, tomava um peixe, corta-
va um pedaço, que comia, e entregava o restante
ao irmão mais novo ; este coitava outro pedaço
para si e dividia o resto entre o estranho e o ou-
tro seu irmão. Eizeram também uma cova no gelo,
de modo que lhes servia de abrigo durante a
noite.
Uma manhã, ao acordar, Sitdliarnat, depois de
ler observado |)or muito tempo o horisonle, des-
cobrio um ponto negro ; de|)ois outro (|ue domi-
nava o primeiro. Chamou immediatamente os com-
panheiros, e disse:
— Amigos! não ficaremos sempre no mar; ha
ali o quer que é...
Era a costa, da qual elles se approximavam a
pouco e pouco ; todas as provisões estavam comi-
das. Seguiram, durante algum tempo, ao longo
da piaia sem poderem abordar; finalmente, che-
gai am a um sitio accessivel.
— Serei eu o primeiro a saltar em terra, disse
o mais velho, e vós seguireis os meus passos.
Logo tjue SC acharam em lugar seguro, disse-
Ihes:
— Olhae para traz.
O pedaço de gelo tinha- se submergido, e em
seu lugar apenas se via um grande lençol de es-
cuma. Tre[)aram pela encosta escarpada do ro-
chedo, e, chegados ao cume, dirigiram-se para o
sul, esperando encontrar alguns homens compa-
decidos. Elleclivamenle, descobriram, em uma
pe(|uena lingua de terra, uma casinha isolada e
junlo da qual não se viam habitantes. Estavam
completamente exhauslos de forças; Sildliarnal
disse :
— Vamos para diante.
Os outros seguiram-n'o.
Na casa apenas havia um vcliio c sua mulher ;
os estrangeiros assenlaram-se sem dar uma pa-
lavra, limilando-se a observar o ancião. Este per-
guntuu-lhes d'onde vinham. Ouando soube das
o PANORAMA
319
suas aventuras, voUou-se para sua mulher e tlisse:
— Ouem viaja tem sempre appelile.
Ella foi immedialamente buscar um bocado de
toucinho de phoca, cozeu-o e apresenlou-o em um
prato aos hospedes. Mas, não obstante a fome que
traziam, comeram mui pouco.
O ancião contou-lhe que seu filho, o único am-
paro da familia, desapparecera havia um mez ;
pediu-lhes para licarem todos em seu lugar e ado-
plou-os. Assim passaram juntos muitos invernos.
Um dia, o velho perguntou ao primogénito dos
irmãos:
— Oual foi o génio protector que escolheram
quando nasceste?
Sitdliarnat respondeu que fura a gaivota. Os
irmãos, interrogados sobre o mesmo assumpto,
deram igual resposta ; mas o companheiro disse
que seus pais haviam preferido a raposa.
— Nesse caso, replicou o ancião, não tornarás
a ver o teu paiz; mas os três irmãos poderão vol-
tar ao seu domicilio. Quando o tempo acalmar,
conduzil-os-hei.
— Como poderá elle levar-nos á nossa terra,
pensaram os três irmãos, estando o gelo fundido,
e não tendo kajak ou outros quaesquer meios de
transporte ':
Uma manhã o velho acordou-os.
— São horas de levantar-vos, disse elle. Se,
realmente, tendes desejo de voltar á vossa terra,
dirijamo-nos á praia ; ajudar-vos-hei a atravessar
o mar.
Quando chegou á praia, deitou-se na agua,
mergulhou, e reappareceu sob a forma de um
urso.
— Agora, disse elle a Sitdliarnat, se é verdade
leres por génio protector. a gaivota, segue-me.
Sitdliarnat hesitava ; mas o urso fazendo-lhe ver
que não havia outro meio para alcançar o que
desejava, decidio-se a entrar na agua; logo que
os pés tocaram na superfície, escorregaram como
se íbra sobre gelo ; a gaivota estava ao pé d'elle.
Ao mesmo tempo avistou um enorme pedaço de
gelo para o qual subio. Os seus dois irmãos íi-
zeram outro tanto ; mas o estranho, procurando
imital-os, caio no fundo do mar, e foi preciso
que o urso mergulhasse para salval-o.
— Tu não tornai às a ver a tua pátria, lhe dis-
se elle, j)orque tens a raposa por protector ; vol-
ta para nossa casa.
Depois accrescentou dirigindo-se aos Ires ir-
mãos :
— Fechai bem os olhos, porque se os abris,
não podereis chegar ao lim da viagem ; eu farei
andar o pedaço de gelo.
Efiectivamente, perceberam que o gelo mudava
de lugar, e, passado algum tempo, sentiram um
choque. Então, o urso disse-lhes que podiam abrir
os olhos ; viram que estavam j)er[o de terra e re-
conheceram as suas antigas casas. Pediram ao
urso que os acompanhasse para lhe darem j)rovas
do seu reconhecimento.
— Não peço recompensa, disse elle ; queria uni-
camente lazer-Yos um serviço. Mas se virdes um
urso calvo durante o inverno, não consenti que
vossos com|)anheiros lhe atirem frechas.
Promelleram fazer- lhe o que elle desejava.
Um dia (lue estavam com os seus visinhos, vie-
ram annuneiar-lhes que na praia estava um urso.
Todos lançaram logo mão das armas ; mas os ir-
mãos exclamaram :
— Esperae um momento.
Saiiam logo de casa, dirigindo-se á praia, e
reconheceram o urso.
— Não lhe fa;aes mal, disseram elles aos ou-
tros; se não fosse este animal já não existiría-
mos. Vamos dar-lhe de comer.
Seguiram o urso até casa. Ali o animal assen-
lou-se á pjrta, olhando para o interior da casa.
Troux(M'am-lhe phocas inteiras e pediram-lhe
que comesse. Elle não se fez rogar. Quando en-
cheu a barriga, adormeceu, e as crianças come-
çaram a brincar em torno d'elle. Acordando, co-
meu novamente e dirigio-se para o mar; todos o
seguiram com os olhos até que o perderam de
vista. Depois nunca mais ouviram faltar d'elle.
GUILHERME TELL E SCHILLEU
^No decimo quarto século, em Uri, cantão da
Suissa, um governador austríaco chamado Gessler
mandou collocar o seu chapéu sobre uma percha,
no centro da praça d'Altorf, e ordenou ao mesmo
tempo, (|ue todos os viandantes o saudassem, sob
pena de prisão? ^ Este mesmo personagem obri-
gou depois um aldeão, por nome Guilheime Tell,
que não quizera obedecer ás ordens, a trespassar
com um tiro da sua besta uma maçã posta em ci-
ma da cabeça de seu filho; acto abominável que,
enchendo o coração deste ultimo de um sentimen-
to legitimo de vingança, o levaria a malar o dés-
pota com uma frechada, e a dar com este homi-
cídio o signal da liberdade do paiz? Taes são as
perguntas que teem attrahido sobre si o exame de
um grande numero de historiadores e de críticos
celebres.
João de Muller pensa que este chapéo colloca-
do sobre uma percha não era do governador, mas
o chapéo ducal d'Austria, posto ali para reunir
todos 03 que eram affeiçoados aos interesses desla
casa. Reconheciam-se pela homenagem que lhe
rendiam. A morte de Gessler pela mão de Tell
não c certa. Quanto ao facto da maçã, é ainda
menos provável. O silencio dos contemporâneos,
a analogia de um acontecimento semelhante con-
tado j)or historiadores dinamarquezes do século
doze, fazem nascer duvidas sobre esta historia.
Voltaire, Rahn, Iselin e outros consideravam-n'a
como fabulosa. Não obstante, Zuilauben, Ballli:izar
de Lucerna e llaller de Berne colligiram as pro-
vas históricas que estabelecem a verdade do fa-
cto.
Para nós, em primeiro lugar, não é ponto mui-
to duvidoso que o archeiro chamado Tell prestas-
se relevantíssimos serviços ao seu paiz no tempo
da liberdade : o grande numero de capellas cou-
320
O PANORAMA
sagradas á sua niomoiia desdf o século quatnrze.
tanlo sobre a planta-íorma siluada j)erlo de Flue-
lem como no caminho escalvado que conduz a
Kusnaclil parece alleslal-o. Depois, acredilamos
que o orgulho insensalo de um despola suballerno
pôde muito bem haver-lhe inspirado a ideia de
obrigar a curvar-se, dianle da sua gorra, uma
população de pobres montanheses, e, emlira, que
a perversidade do coração humano é desgraçada-
mente, tão fecunda em invenções cruéis, que pôde
também, a dois séculos de distancia, e em duas
regiões ditlerentes, ter forçado um pae de familia
a jogar a vida de seu lilho ao tiro do arco e da
besta.
O poeta Schiller foi deste parecer. Aceitou to-
dos os factos da vida de Guilherme Toll, e servio-
se desta rústica ligura pai'a compor com ella o
poema dramático da resistência ao despotismo do
estrangeiro; obia magnilica, uma das mais corre-
ctas que sairam da sua penna, e na qual o gran-
de saber do historiador se combina admiravelmen-
te com a habilidade do dramaturgo.
Não entraremos nos promenores desta tragedia;
diremos unicamente que os andores j)iimitivos da
conjuração da resistência foram Ires bravos cida-
dãos d'Cri, Unterrald e Schwitz, que prestaram o
famoso juramento do Grulli, e que se chamavam
Arnold de Melchlal, AVerner Stauflacher e ^Valter
Furst. Guilherme Tell não foi mais que o heroe
accidenlal da redempção; mas o seu feito lançou,
para assim dizer, fogo á polvoía, e deu começo
á ruina do poder austríaco. Schiller não o esque-
ceu, e é esta individualidade notável que elle (juiz
fazer sobresair em toda a extensão do seu poema.
Já, no seu marquez de Uosa, elle tinha exprimido,
os ardores philantropicos de um homem de ele-
vada classe, os ardis de um theorico da liberda-
de |)rocuiando converter o propi'io sceptro em ins-
liuniento úo regeneração. Com o personagem Gui-
lherme Tell da vida aos sentimentos generosos do
homem do povo ; pinta o cidadão das classes in-
feriores, pouco instruído, mas enérgico, que sente
mais do que concebe, e que pratica mais do que
medita. A má fé, ao orgulho brutal c à cruelda-
de, op[)õe o instincto de um coração franco e
honrado que não reivindica os seus direitos na-
luracs pela acção senão quando se sente ferido
nos seus mais caros interesses, ameaçada a sua
vida e a dos seus. Ha ainda' muito ideial n'esle
typo de aldeão suisso ; Címitudo, o poeta, mode-
laiido-o, appioximou-se da natureza; e, em geral,
apresenta-se com tal simplicidade de linguagem e
uma tão grande força de sentimento, que, de to-
das as concepções do mesmo género, e esta, cer-
tamente, a (pie (lílcrí^ce mais vida e realidade.
Giiilheinie Tell, logo á sua primeira a[»|;arição,
rnanife>ta tudo (|uo existe n'elle de bondade e
bravura. Trala-se de salvar um jiobre homem per-
seguido pelos salellites do governador; ò preciso,
o mais depressa possível, fazel-o atravessar o la-
go, apesar da tem|)estade. Muitos recuam; nias
Tell avança e diz: cri) homem gimeioso não pen-
sa cm si; liae-vos em Deus e salvacooppiimido.)'
Não ousando pessoa alguma arriscar-se, elle met-
te-se em uma barca e conduz por sobre as ondas
o desgraçado fugitivo. Esta acção corajosa com-
move os assistentes, e o dedo "popular designa-o
logo, ainda que vagamente, como um dos liber-
tadores do paiz. Outra scena representa-o em con-
versação com um dos cidadãos mais consideráveis
do cantão de Schwitz, Werner StauíTacher. Este
falla-lhe do despotismo de Gessler, da necessida-
de de pôr um termo a semelhante estado de cou-
sas, e procura fazer entrar o honrado aldeão na
trama que elle e muitos dos seus amigos teem ur-
dido contra o odioso oílicial. Mas Tell é um ho-
mem simples que tem peso de mulher e filhos, e
que, sendo o seu único amparo, não pôde aven-
lurar-se la inúteis tentativas. Apertado, comludo,
pelas palavras de StauíTacher, que lhe pergunta
se a pátria poderia contar com elle no caso que
se tornasse necessário recorrer ás armas, elle res-
ponde: «Tell, que vai ao fundo de ura abysmo
para soccorrer um cordeiro, abandonaria os seus
amigos!... Seja qual fôr a empresa que lenhaes
formado, não me convideis para assistir aos vos-
sos conselhos, porque não sei nem meditar, nem
estar muito tempo indeciso ; mas se tendes preci-
são de mim para uma acção resolvida, chamae
Tell que vos não faltará.» È fallar bem segundo
a sua natureza e condição ; e a intelligencia dos
conductores do movimento de resistência compre-
hendendo esta alma nobre e franca, deixa-lhe a
liberdade da acção, certa da sua vigorosa coope-
ração no momento decisivo.
Em quanto a trama da liberdade se urde secre-
tamente, esperando o dia da explosão, dia que
os excessos de Gessler devem trazer, Tell occu-
pa-sc dos seus negócios e cuida de sua familia.
Durante os poucos instantes que lhes consagra
dentro da sua choupana, o seu trabalho de mar-
cenaria e as respostas alternativas que dá á mu-
llier c aos filhos formam um quadro de interior
rústico dos mais encantadores. É um pae que ama
seus filhos, mas que não vae, com a sua ternura,
conlaminar-lhe a alma e enfraquecer-lhe o génio;
é um maiido (jue adora sua mulher, mas não a
ponto de, por este amor, perder o sentimento dos
solírimentos dos seus semelhantes, e de esquecer
as misérias da pátria. Ouando sua esposa, iníjuíe-
ta i)or esta bondade d'alnia que a faz aílVontar
com tantos perigos, exclama : «() meu Deus ! todos
os meus fogem á paz do lar!» Tell lesponde: «A
natureza não me ciiou para não passar de pas-
tor. Verdadeiramente não goso da vida senão
quando todos os dias tenho de luctar com os pe-
rigos » E, apesar das instancias de Iledwige, ten-
do necessidade de ir a Altorf. residência do go-
vernador, decide SC a partir levando comsigo um
de seus filhos.
{Contimm) ■
O melhor meio de prender uma mulher c deixal-a
livre. Mme. de GnANuronn.
Typ. Fraiico-Porlugiieza = Rua do Thcsouro VcUio, 6.
41
o PANORAMA
321
iiiiiiiSliillíilililí
322
O PANORAMA
BIRMINGHAM
Esta cidade ó uma das mais vasías e das mais
opulcnlas de Inglaterra. Está situada a 130 kilo-
metros de Londres, ao noroeste do condado de
AVarwick, e ergue-se nas faldas d'uma serie de
collinas, ao longo das quaes covre o Noa.
Já no século XIV esla cidade tinha alguma im-
portância, devida ao mercado, que ali se estabe-
leceu ; no século XVI e XVII lornou-se bastante
prospera, graças ao fabrico de ferro, de aço, e
do coiro cm que adquirio celebridade. As suas
manufacturas de cutelaria, e d'arnias de fogo ti-
nham ja fama suílicienle para que Henrique VIU,
e depois Guilherme III fornecessem as suas tro-
pas de armas fabricadas n'essa cidade. Mas a sua
grandeza actual data principalmente da invenção
das machinas de vnpor, que fui uuia grande fon-
te de receita para Hirmingham.
Elíectivaniente, as grandes minas de carvão de
pedra que existem nos seus arredores, despreza-
das completamente até o íim do século XVIII
adquiriram uma importância súbita quando .lamcs
^Vatl. fabiicando a sua pi-imeira machina de va-
por, abiio uma salda immensa a uma mercadoria
até então iniitil. Foi mesmo em Birmingham que
James Watt e o seu sócio Fullon estaljeleceram
a sua primeira fabrica de machinas de vapor. Des-
de essa epocha a população da cidade ingleza au-
gmentou em proporções verdadeiramente inacre-
ditáveis. Em 1700, Birmingham contava apenas
quinze mil habitantes. Decorre um século, Wall,
depois das tentativas dos seus predecessores Pa-
j)in, Savery, Newcomen, inventa a machina de
vapor, que ha de licar ddinilivamente na indus-
tria ; esiamos em 1801 ; Birmingham conta já se-
tenta e quatro mil iiabitantes.
Decorreram trinta annos, mulliplicam-se as ap-
plicações da machina de Watt; Fullon inventa os
barcos de vapor, a prosj)eri(lade da cidade au-
gmenta |iropoicionalmenle. Em 1831 sobe a po-
j)ulação a cento e quarenta c sete mil almas.
A machina civilisadora não pára no seu rápido
desenvolvimento. Descobrem-se-lhe novas appli-
caçOes ; FuIIíju inventara a locomotiva marítima,
Slephenson inventa a locomotiva terrestre. A ci-
dade mãe desta nova industria, caminha velozmen-
te nos rastos da sua vertiginosa (ilha. Decorreram
dez annos. Em 18íl já se acha um augmenlo de
tiinta c cinco mil habitantes; a população da gran-
de cidade industrial attinge o elevado algarismo
de cento e oitenta e duas mil almas.
Iliije, (|ue uma rede de caminhos de ferro cin-
ge o mundo inteiro; hoje, que lodos os povos, des-
de os Estados Inidos até a Tur(|uia, lêem nas
suas esquadras gueireiras e commerciaes nume-
rosos barcos de vapor; hoje. (|ue esse poderoso
agente refervo nas machinas de Iodas as manufa-
cturas, qual será a população da cidade iniciadora
d'essc movjmenlo immonso? Ascende com certeza
a peito de trezentos mil habitantes.
Eslas vantagens compia-as Hiiniingham com a
ausência complela de toda a belleza. Vè-sc que o
demónio da industria ergueu ali o seu throno.
Emquanlo as nossas ridentes cidades meridionaes,
pobres, mas formosas, desdobram a sua casaria al-
vejante pelas faldas de collinas viçosas, debaixo
d'um firmamento azul, Birmingham, triste c som-
bria, eleva-se no meio d'uma athmosphera artili-
cial, composta pelo fumo das suas innumeras ma-
chinas de vapor, e apresenta aos olhos dos visi-
tantes as suas casas de tijolos vermelhos, que lhe
dão a mais triste e monótona physionomia.
■ Os monumentos desta cidade consistem em vin-
te e duas igrejas e capellas, entie as quaes se dis-
tingue a igreja de S. Philippe, notável pela sua
formosa architeclura e situada n'um ponto culmi-
nante, duas synagogas, duas escholas do systema
Bell e Lancasler, alem de mais de seiscentos es-
tabelecimentos de inslrucção de todo o género des-
tinados á educação do povo, duas bibliothecas que
encerram mais de trinta mil volumes, notáveis
instituições de benelicencia ; um formoso palácio
para as sessões do condado, um theatro, um ma-
gnifico hospital, constiuido de 1775 a 1778 só
com o produclo de subscri])ção voluntária ; uma
casa da camará de proporções grandiosas, cons-
truído pelo modelo do templo de Júpiter Stator
em Roma, e rodeado de columnas, e na praça do
mercado uma estatua de bronze de Nelson. Como
é de suppor, James Watt, o grande bemfeitor da
cidade, não foi esquecicto, e lem um magnifico
monumento.
Este conjuncto de monumentos grandiosos, con-
trastando com o aspecto miserável da cidade, é o
symbolo verdadeiro e pungente do estado não só
de Bii-mingham, mas de Inglaterra Ioda; opulên-
cia e miséria. Giandes pro|)rielarios, e proletários
morrendo de fome, uma minoria de donos de fa-
brica riquíssimos c uma população operaria, que
mal pôde viver com os seus parcos salários. Só
em Birmingham a população attinge o algaris-
mo enorme de sessenta mil indivíduos.
A |)lanicie dominada pela cidade é completa-
mente estéril. Só ali se encontram minas de pe-
dra. Carvão de pedia por Ioda a parle. O seu ne-
gro pó cobre as estradas, íluctua nos ares, pren-
de-se ao fato e ao rosto dos transeuntes, e como
que im|)rime em todos os que lêem a desventura
de atravessar a(|uella succursal do inferno o esty-
gma demoníaco. Essa planície denomina-se a pla-
nície dos cyclopes.
Biiiníngham não é só importante pelo fabrico
de machinas, e pelo commercio do carvão. Teem
fama em todo o mundo as suas cutelarias c as
suas magnificas manufacturas (farmaá de fogo. O
seu commercio de quinquilharias c muito consi-
derável c tanto (jue o |)()ela Biirke deu por isso a
Rii-mingham o nome de Ihc-loij s/top of Kurope
(a loja de joias da Eurojui.j
O rio Nea, que passa por esla cidade, não é rio
navegável, mas esta falia supprem numerosos ca-
naes, que põem em communicação Rii'mingham
com Ilull, Eiverpool, Bristol, Londres, Oxford,
Manchester, e Glasgow. Com eslas ultimas (jualro
cidades ligam-n'a lambem caminhos de ferro.
o PANORAMA
323
Abaixo de Manchcsler é Birmingham a cidade
industrial mais imporlanle de Inglaterra, e talvez
mesmo, depois da crise do algodão, que ftM-io pro-
fundamente a sua rival, lhe pertença o primeiro
lugar.
BENGUELLA.
(Conclusão)
Não lia em Hení^uella cáes, ou qualquer outra obra que
facilite os desembarques; estes, quer sejam de pessoas
quer de géneros, efí'ectu.im-se sempre ás cosias dos ne-
gros, e correndo as probabilidades d'um banho, que se
nos objectos causa avarias, jos indivíduos é quasi sem-
pre a origem de perigosas febres. Não parece nem im-
possível, nem excessivamente dispeníbosa, a construcção
d'um quebra-mar, com doca para abrigo de embarcações
miúdas. Mesmo esta obra, ou outra semelhante, já foi
começada em 1837 pelo governador geral, Manoel Ber-
nardo Vidal; mas lendo começado com grande fogo, lam-
bem parou de repente, e nenhum dos successores d'a-
quelle governador se abalançou ainda a igual tentame.
Depois d'isso,ja lá houve unia singela ponte de madeira,
do systema americano sobre forqueias, e que apezar de
não servir para volumes pezados, sempre era de utili-
dade aos homens; mas parece, que o tempo ou mais
ainda, o descuido de a desarmarem quando houvessem
indicações de grandes calemas, deu causa a que fosse
destruída, e que hoje nada exista senão a praia, aonde
sempre custa a desembarcar.
Logo ao desembarque, e como primeiro padrão do
desleixo pelas nossas cousas de ultramar, encontra-se a
miserável muralha, que, impropriamente, se alcunha
de fortaleza. Consta de uma cortina em partes destruí-
da, encerrando uns vetustos pardieiros, que servem de
insalubre quartel da tropa, e sustentando por cima dos
esbroados parapeitos, meia dúzia de velhos canhões, com
que responde, como pôde, às salvas dos navios. As pobres
peças, pela podridão das carretas em que se acham mon-
tadas, estão já antevendo fim idêntico ao de suas carco-
midas companheiras, que jazem pelo chão ao abandono,
servindo de ninho a repellentes reptis.
A fortaleza não representa, nem pode representar como
tal na actualidade. Na época da sua fundação podia ser-
vir para com seu fogo augmentar as diíTiculdades de um
desembarque na freiíte da cidade, e mesmo assim vê-se
que não satisfez a este destino; porque de forma alguma
conseguio evitar a descida dos piratas francezes que em
1704 metteram a saque e arrazaram a cidade: actual-
mente, nem sequer se pode pensar que podesse fa-
zer opposição, que merecesse a pena de ser citada. Como
cidadella para conter em respeito a população, lambem
nada significa; porque não volta os malfadados canhões
para o lado da terra, e por este mesmo motivo não pôde
impedir qualquer ataque do gentio.
Corre por tradição, (jue foi este forte construído pnr
ordem e a expensas (fum particular, jjara n'elle guardar
os escravos em que negociava, e livral-os assim das gar-
ras dos piratas, que por muitas vezes, em antigos tempos,
infestaram esta parte da costa. Esta narrativa é destituída
de fundamento, a não ser, que se retira a alguma reedi.
licação; pois, vê-se, da historia da conquista de líenguella,
que" a fortaleza foi fundada por Manoel de Cerveira Pe-
reira, mandado em 11517 a conquistar o reino de Benguella,
o que eflectuou.
l'oí reedificada em 1710, logo depois da inva.são dos
francezes, c em 1761», como se lê no catalogo dos gover-
nadores de Angola ; e nos últimos tempos tem lambem
soffrido alguns concertos, que, na maior parle dos casos
se tem reduzido a caiar as paredes, para fazer vista do
mar, ou a levantar algum panno de muro derrocado, por
onde chegavam a entrar os anímaes ferozes.
Tem, presentemoate, as muralhas bem caiadas, os te-
lhados dos aquartellamenlos em bom estado, as paradas
Aarridas e lim|)as, mostrando ludo que ha cuidado da
liarlc de quem governa; mas nada disto faz que possa
ser considerada nem como fortaleza, nem como (piartel
Passando a fortaleza, encontram-se logo o edíficio da
alfandega, e o palácio do governo; conslrucções d'alve-
naria, com primeiro andar e armazéns, e conservando-se
em bom estado ainda agora. Segue-se a cidade, que, por
assim dizer, se compõe de meia duzía de ruas, largas e
espaçosas ; mas que se não distinguem pela belleza das
casas, das quaes poucas são (Kalvenaría e com sobrados,
sendo a maior parle construídas de adobes, e muitas
d'ellas a cair em ruínas, mesmo sem terem sido acabadas.
Para se fazerem os adobes com que elevam os prédios,
cavam no terreno próximo para tirar o barro, de maneira
que perto das habitações ficam grandes buracos, que são
reservatórios d'aguas*das chuvas e depósitos de lixo c la-
ma. São outros tantos pequenos pântanos, e focos per-
manentes de exhalações mephííícas. Era este um dos gra-
ves desleixos, que, 'ainda ha pouco tempo, concorria para
o afeiamento e insalubridade da povoação ; mas que,
comiudo, vai progressivamente diminuindo ; porque se
trata ultimamente do aterramento dos caboucos, com o
que já pela repartição de obras publicas se lêem gasto
não pequenas quantias.
Ha na cidade duas igrejas, das quaes uma quasi aban-
donada, e de que a outra, sob a invocação de Nossa Se-
nhora do Populo, é a freguezía da população. Tem ainda
ricos paramentos de altares, e celebram-se ahí os myste-
rios do culto com toda a devida solemnidade. A Miseri-
córdia conserva um hospital, que serve lambem de enfer-
maria militar; e tanto o hospital como as igrejas são
construídas de pedra e cal.
Não ha outros edifícios públicos na povoação, nem mes-
mo de outra qualquer natureza, que mereçam ser citados;
a não fatiar de um templo maçónico, que ainda está por
acabar, e que, triste destino d*as obras dos homens, em
vez de servir ás reuniões dos obreiros da Arfe real, ser-
ve de albergue a uma recua de orelhudas alimárias. Não
se julgue, que isto seja fazer espirito, ou crear eiipressa-
mente situações cómicas : a verdade é que, por dissen-
ções entre òs irmcws, ou por outra razão qualquer, dei-
xou de se concluir o prédio para o que eslava destinado,
e que por dentro d'aquella elegante frontaria, alojam-se
actualmente, acima de sessenta jumentos, que um rico ne-
gociante de Benguella lá tem criado. O melhor de ludo
é que os não vende nem os faz trabalhar, de maneira que
as asininas criaturas, conservam se nas melhores dispo-
sições, gosando as delicias da ociosidade.
*A cidade pôde ter, quando muito, 500 a 330 fogos, e,
talvez, 4:00() habitantes. N'esle ponto não ha nem pôde
haver certeza; porque, se as cstalisticas são em toda a
parle subjeilas a graves erros, imagine-se o que ellas se-
rão n'uma cidade cm que faltam lodos os elementos para
um trabalho consciencioso d'essa ordem, e em que, além
d'isso, ha, como em todas as terras africanas, causas par-
ticulares que tendem a falseal-as,
A população é, quasi na totalidade, composta de pre-
tos, quer livres, quer escravos. Os primeiros, pela sua
ignorância, são sempre remissos cm fazer as devidas de-
clarações sobre as suas famílias, e os segundos são, na
maior parte, occultados por seus senhores, aos quaes não
convém dal-os a rol, ou seja para fugir aos pagamentos
de registro e outros, ou para estarem sempre livres de
os considerar como fardos commcrcíaes. Baslam estes mo-
tivos para a estatística de quabjuer povoação portugaeza
d'Afríca, ser sempre mentirosa.
Eis alguns exemplos :
\}\\\ mappa publicado nos Annaes marítimos e coloniaes
referido ao anno de 17i)D e assignado pelo governador,
Alexandre José Botelho de Vasconccilos, dá á cidade de
l)cnguella, n'essa época, 1:071 casas, com '2:136 babilan-
tantesl Parece absurdo Ião grande numero de casas para
tão pouca gente; e ainda mais considerando, que nas cu-
bulas ha sempre agglomeração ile negros.
Yêem-se erros idênticos êm trabalhos mais modernos,
apesar de feitos com toda a consciência. No mappa refe-
rido a 31 de dezembro de 1861 e publicado no Boletim
olTicial da província de Angola, diz-se que a cidade de
Benguella tem 988 fogos para i:000 habitantes; c n'um
outro relativo a 31, de dezembro de 1863 dão-se 403 fo-
gos para 3:6il indivíduos. Eis o que nos mostram as es-
tatísticas de Benguella.
A força publica, que faz a policia da cidade e guarni
324
O PANORAMA
cão do forte, é composta por uma companhia de caçado-
res n.°3 da província, regimento este, que tem a n)aior
parte das praças e o seu principal quartel em Mossamedes.
Para a con°|iaiiliia de Jienguella são sempre mandados
dos peiores soldados, na maioria degradados dos mais
facinorosos c iiicorregiveis; e achando-se aquella compa-
nhia quasi sempre sem os olíiciaes competentes e grande
numero de \ezes entregue, quando truito, a algum po-
bre sargento nomeado alferes para o ultramar, parece im-
possi\el como ali se conser\a alguma disciplina, e como
taes homens depravados de costumes e contumazes no cri-
me, se decidem a obedecer ás aucloridailes. É o terror
das cargas de pao, que contem parte d'elles; c a outros
são as febres, que se encarregam de lhes quebrar os Ím-
petos do génio. São estes dois, os elementos principaes
da disciplina das tropas africanas.
Ainda que um grande numero de soldados sejam bran-
cos, d'estes iioucos se vêem no serviço; porque cm quasi
todos os tem|)os estão com baixa ao hospital, para onde
são conduzidos pelo deboche e pela crápula, mais talvez
do que pela ruindade do clima.
O serviço de saúde tem sido constantemente das cou-
sas mais descuidadas uo districto, e entregue muitas ve-
zes a Deus e á \ entura. O hospital é soíTrivel; ha na po-
voação duas boas e bem fornecidas boticas; mas, quasi
sem*pre, faltam os homens habilitados como médicos, e
lomam o seu lugar os mesinheiros e os charlatães. Ha
l)aslante tempo que retiraram d;i cidade o cirurgião mór
da província, e o único facultativo que lá habitava, e ul-
limamenle fazia o serviço nas enfermarias militar e civil,
um cirurgião da escola de Góa, que não parecia gosar
das sympathias da população; pelo menos entre a gente
mais subida, que, auciosa, esperava a chegada ao porto
de navio de guerra, que levasse cirurgião.
Existem na cidade vários estabelecimentos mercantis e
casas commerciaes de consideração; e ha um mercado
publico, diário, sempre abastecido dos géneros de pri-
meira necessidade. Está construído n'uma vasta praça,
é murado e gradeado, apresentando certa apparencia lim-
pa e decente.
Não se pôde negar que, nos últimos annos, a cidade
de Benguella tenha ganho muitos melhoramentos munici-
paes, e que, pelas obras publicas se tenham gasto gros-
sas quanliis em aterramenlos de pântanos e covas; mas
Dotam-se em todas as obras já feitas, a falta de pessoal
lechnico, e uma direcção seguida conforme a um plano
fixado d'avanço.
É só o capricho, ou a boa vontade dos governadores
quem influe na continuação ou direcçp.o dos trabalhos, e
nem sempre aquelles tem sido dos mais esclarecidos, zelo-
zos, ou desinteressados. Deve ser empregado em benefi-
cio da cidade, e nas obras mais próprias a embcllesal-a e
saneal-a, lodo o producto dos três por cento ad valorem
com qué esta sobrecarregado ocommercio,e, comtudo, a
voz geral accusou desperdícios, que, felizmente, parece
terem cessado n'esles últimos tempos.
Além dos paúes e caboucos que se tem aterrado, ha
ainda na cidade uma regueira cavada pelas correntes da
agua das montanhas no tempo das chuvas, e que, em
quasi todo oanno, constituo um charco continuado e im-
mundo. Ainda não houve a lembrança de cavar um leito
a este riacho, c le\al-o a desaguar a i)raia, de maneira
que as aguas do monte, não se (-spalhussem j)elas ruas 1
Todas estas aguas infiltradas pelos terrenos, dão nas-
cimento aos poços e cacimbas, do (|ue bebe o geral da
população; porem, como só se encontra agua pouco po-
tável e a mais d'ella salobra, os priíicipaes habitantes e as
guarnições dos navios ab<istecem-se da que mandam bus-
car ao Cavaco, rio (pie entra no mar cousa de uma mi-
lha ao norte da cidade.
C-omo resultado d'esla abundância (Kaguas, e mais ain-
da das cheias despenhadas diis monlanhas, a planície em
redor da cidade c excessivamente fértil, ijastanie produ-
clivas as hortas, e saborosos os fructos e hortaliças que
ij'ellas se dão.
O disiríclo de Benguella c talvez o mais rico da nossa
Africa Occidental; c de tudo que exporta é a cidade de
S.rdippe o deposito e lugar de despacho d'alfari(lega. Por
isso, o seu commcrcio e ainda hoje suiiimamentc valioso,
e continua a ser o ponto da província em que se encontra
maior quantidade de moeda, apesar de haver quasi ces-
sado o embarcpic de escravos, que era outr*ora a grande
fonte de receita. Pena e, que ainda hoje ali se encontre
quem se em|u-egue em Ião nefando trafico; porque, em
quanto sonham com os ganhos, na actualidade tão proble-
máticos, do commcrcio íllicíto, deixam de entregar-se á
agricultura e ao negocio, ou, se d fazem, c só cm um
gráo í^uniciente a serv ir como de capa da fraude, e per-
dem assim o tempo e (pianliosos capitães.
Apesar das activas diligencias das auctoridades supe-
riores da província, do zelo c interesse de alguns dos
governadores de Benguella, e do aturado serviço das es-
tações navaes, é fora de duvida que em pontos distantes
da capital do districto se teem feilo embarques de pretos
para alem mar; embarques que teem sido na maior par-
te perdidos, mas que desfalcam a província, desviando
o commcrcio dos interesses legaes, aventurando contos e
contos de réis, e roubando braços à cullivaçâo.
D'este districto exporta-se urzella, sal, c°èra, gomma,
couros, e já mesmo, grande qualidade de arrobas d'a!go-
dão.
O movimeulo do porto não é constante e soffre inter-
rupções, mas pôde dizer-se, que nunca é inferior a dez
ou doze embarcações de cabotagem entradas e saídas, e
que sempre ali ha fundeado algum navio de alto bordo; ha
occasiões, e não são raras, em que se vêem em Benguella
seis ou oito navios. Abastados negociantes do reino não tem
abandonado aquelle importante balcão ; lá conservam casas
suas, ou seus agentes, e vários navios das praças de Portu-
gal, fazem escala pelo Brazil, d'onde levam aguardente e
outros géneros á Africa, e retiram de Benguella com car-
regações para a metrópole.
O districto de Benguella termina ao norte pelo conselho
do Egilo, com povoação á beira-mar, dominada por um
bonito fortesinho, com algumas casas soffriveis, tudo eu-
tallado entre escalvadas encostas, e fechado ao fundo por
uma elevada e abrupta rocha, que, na época das chuvas
forma uma vistosa cascata. Junto á base d'este rochedo
corre um rio deexcellenle rgua que alimenta os habitantes
e sustenta a perenne vegetação, que circumda a aldeia.
Visto do mar o Egito, ou*Logito é um sitio extremamen-
te pitoresco, mas sempre de diflicil accesso, pela extraordi-
nária ressaca que rebenta na praia.
É das rochas d'este ponto que tem saldo uma grande
parte da urzella que se tem exportado de Benguella.
Entre o Egito e a cidade de S. Filippe encon(ra-se a ma-
gnifica e espaçosa enseada do Lobito, porto fechado do la-
do do mar por uma extensa península de areia, e do lado
da terra por altas montanhas, que o defendem da fúria do
sopro das trovoadas.
Este porto socegado e Iranquillo, de fácil entrada, ape-
sar de ficar completamente escondido pela língua da pe-
nínsula, servia outr'ora de valhacouto e esconderijo de
negreiros, e é hoje lugar de repouso dos cruzadores in-
glezes e porluguezes.
Por causa da belleza e segurança do porto, houve, ha
trinta annos a idéa de transferir para ali a capital do dis-
tricto e fazer d'aquelle sitio a nova Benguella; mas por
causa da falta de agua potável, que ou se havia ir bus-
car á Calundjella (quatro milhas distante do fundo da
bailia, aonde se projectava a cidade) ou havia de cnca-
nar-se, o que se julgou excessivamente dispendioso; pôz-se
de parte este plano, que, comtudo, era exe(piivel e que
talvez de futuro desse grandes lucros, e abandonou-se
completamente aquelle local.
Na conlra-costa d'este i)orto e já porto da aldeia da
Catumbella, ha salinas aonde se colhe grande quantidade
de sal.
Passando a cidade para o sul do Sombreiro, dá-se pri-
meiro com a bailia Farta, aonde conservam os seus esta-
belecimentos piscatórios vários habitantes de Benguella.
íi ali (|ue se .secca uma grande porção do peixe, que ap-
parece de|)0is nos diversos mercados da Africa, e que se
faz (Poulros o azeite que embarca para exportação.
Os mares da Africa são extremamente abundantes cm
peixe, c c na costa do sul que se applícam mais a esta
industria.
Segue-se depois a extensa praia das Salinas, que, como
o PANORAMA
325
o nome indica, lem salinas e em grande numero, das
quaes se iilimeula, por assim dizer, Ioda a provincia.
No recôncavo formado i)elo lado do sul d'a(]uella im-
mensa praia, acha-se o porlinlio do Luaclio, ou (luio,
que e hoje um dos sítios mais importanles da cosia do
sul.
Devido á iniciativa de honrados negociantes de Ben-
guella, a quem ,cabe todo o louvor pelos esforços que
para tal empregaram, é no i.uaclio que se vêem actual-
mente as mais bellas e produclivas fazendas da cultura
do algodão. São importanles i)lanlações já agora de
avultado rendinionio, e que de futuro podem e devem
ser um manancial de riquezas. Distingue-se entre todas a
fazenda denominada de Santa Thereza, da casa — Torres
Barruncho— e ha outras também muito boas de que os
nomes não lembram ; mas a lodos estes audaciosos inno-
vadores, que não lemeram arrostar com os preconceitos
arreigados na gente africana, quecomprehenderam,e bem,
qual é a verdadeira riqueza da Africa, muita honra e
muito proveito lhes caiba, que tudo lhes é devido e bem
merecem. Podessem estes e.vemplos tão productivos aos
que os intentaram, produzir ainda mais um fructo ulilis-
simo, um desengano pleno aos crentes do trafico bárba-
ro de escravos, aos descrentes da agricultura !
É lambem no Cuio que vem embarcar o cobre extraí-
do das minas próximas, e os outros géneros do Dombe
grande, e concelhos annexos.
Ainda mais para o sul do Loacho, ha outras fazendas
em estado de prospera cultura, e feitorias aonde se faz
bom negocio, mas também as ha, de que é permiltido
suppor que seja a colheita do algodão, o fim merameule
ostensivo...
Kntre as mais notáveis fazendas do sul^ figura a Equi-
mina, grande propriedade que foi em tempo d'um famige-
rado negreiro, e que hoje pertence a uma companhia de
Loanda, que está no começo da exploração de tão vastas
plantações.
Em "rápidos traços ahi fica lançado um esboço da des-
cripção da cidade* e diítricto de "Benguella, correndo ao
longo da costa de um a outro extremo. Falta muito a es-
ta descripção para ser completa, mas não era para agora
a apreciação das medidas governativas, a historia do es-
tabelecimento, os costumes do gentio, a visita ao sertão,
e lufío que resta a contar sobre esta parle da Africa.
Não comportava o espaço Ião largo quadro ; mas ludo
se fará a seu tempo e logar.
,lu!lio de 186G.
C. E. CoRUE.v DA Silva.
Kara-Hissar.
A cidadede Kara-llissar, cliamada lambem Afium-
Kai"a-IIissar, peia grande abundância de ópio que
se cultiva nas suas ciiTunivisinhanças, é urna das
mais lindas e importanles da Anatólia, provincia
da Tui-quia da Ásia situada no centro d'Angora,
llamid, Kutaich e Cai-amania.
A impoilnncia, que esta cidade sempre leve e
o elevado gráo de prosperidade em que actualmen-
326
O PANORAMA
le se acha, dimanam da sua bclla posição na grande
eslrada que, de Esmiina, conduz à Pérsia, Geór-
gia e outros mais paizes, próximos do Euphrales,
que lem dado lugar a que ella baja sido sempre
o dej)osilo das mercadorias dos dois mundos. Os
seusliabilanles, em numero de sessenta mil, pouco
mais ou menos, são mui activos e industriosos, eas
suas lojas acbam-se ri«) mente foinecidas. No sé-
culo passado, eram muito apreciados, em vários
pontos do Oriente, os sabres, armas de fogo, mar-
iO(|uins, e lapeçaiias que se fabricavam, em grande
escala, n'esla cid;ide.
Kara-Ilissai' ulVeiece á vista um quadro de ad-
mirável belleza. Aqui, grandes rochedos negros e
escalvados, bo cume de um dos quaes está cons-
truído o Caslello Negro, hoje em abandono, mas
que, fortificado, seria inexpugnável. Ali, vastíssi-
mos campos cobertos de linda e proveitosa vege-
tação, que faz as delicias e a abundância dos seus
habitantes. Nas abas dos rochedos a cidade, com
as suas dez mesquitas, algumas grandes e sump-
tuosas, e os seus pequenos, porém vistosos jardins.
l*L'las ruas da cidade, á semeliiança da rainha do
Adriático, um pequeno rio deslizando-se doce e
manso, e de cujo seio se vêeni sair elegantes bar-
quinhos, que servem para o transporte de merca-
dorias, e ao mesmo tempo para recreio dos indi-
víduos.
A nossa gravura dá uma idéa do que lemos dito.
FRANCISCO PIZARUO
III
Apesar de ter attingido o fim que se propose-
ra, e de ter desmentido brilhantemente os receios
do governador de Panamá, apesar de ter feito
entrar no duminio da realidade o que se julgara
até ahi sonho esplendido mas mentiroso de na-
vegadores illudidos pelas phantasiosas relações
dos Índios, Pizarro não conseguira vencer a má
vontade de D. Pedro de los Rios, e nem o jubilo
dos seus companheiros, nem os vasos de oiro c
prata que elle trouxera como espécimens da ri-
queza do paiz poderam quebrar a obstinação do
chefe da colónia. O motivo que allegava de não
conceder licença para novos alistamentos era o
não se poder vencer tão poderoso império com
Ião diminutas forças, como eram as de que cUe
podia dispor. O verdadeiro motivo era o receio
qiie elle tinha de ver fugirem-lhe os colonos c fi-
car, governador sem governo, com os velhos e
as mulheres por súbditos.
Em presença da teima do governador, resolve-
ram-se os três associados a entenderem-se directa-
mente com o governo da metrópole. Decidio-se por-
tanto que fosse Pizarro á Europa, e que deslumbras-
se a alma ambiciosa de Carlos V com aperspecliva
da dilatação do seu domínio sobre tão vasto im-
pério. Os fundos dos sócios estavam já tão reduzi-
dos pelos esforços sobrehu manos a que se tinham
elevado, que a muito custo poderam reunir a
somma necessária para Pizarro voltar á Europa^
e apresentar-se decentemente na corte.
Começa ireste ponto a revelar-se a perfidia de
Pizarro. Convencionara-se entre os Ires associa-
dos que Pizano pediria para si o posto de go-
vernador, para Almagro o de seu lugar-tenente>
para Luque a dignidade de bispo das regiões que
iam conquistar. Apenas se vio na Europa, o
honrado homem tratou unicamento de si. A elo-
quência que conseguira arrastar de novo aos pe-
rigos d'uma expedição incerta liomens fatigados
pelos trabalhos e misérias d'um anuo inteiro, e
outros incrédulos e confirmados na sua incredu-
lidade pelo espectáculo que tinham diante dos
oltios, essa eloquência fascinadora não teve o
rainimo cusio em deslumbrar o espirito dos mi-
nistros de Carlos, e o do próprio imperador, cn-
tluisiasta. como todas as grandes almas, de vas-
tos projectos e de emprezas audaciosas.
Obrigou se portanto Pizarro a levantar a sua
custa dnzLMitos e cincoenta homens, e a correr
com todas as despczas da expedição; em troca
foi nomeado governador, capitão general, e ade-
líuilado de lodos os paizes que conquistasse, foi
declarado independente do governador de Pana-
má, e deu-selhe poder de nomear, como enten-
dessCj os oíficiaes que deviam servir com elle.
Para Almagro pedio simplesniente o posto de go-
\ernador da fortaleza que havia de erigir em
Tumbez, o que era uma verdadeira zombaria,
porque, sendo-lhe oulliorgada a faculdade de
nomear os seus oíficiaes, podia-lhe dar o com-
mando de quantas fortalezas quizesse sem prévia
auclorisação do monarcha. Só o padre Luque
obteve o que pretendia : Pizarro vio que não po-
dia ser elle mesmo bispo, e não teve por conse-
guinte difliculdade em pedir o báculo para o seu
companheiro.
Devem suppòr qual seria a indignação d'Alma-
gro, vendo-se logrado pelo seu pérfido sócio. Es-
teve a associação para se romper, e ter-se-hia
realisado a ruptura se Pizarro, perspicaz como
sempre, e sentindo as difiiculdades que um suc-
cesso tão escandaloso produziria, não tivesse apa-
ziguado o seu companheiro, abdicando n'elle um
dos postos que accumulára em si, o de adelan-
tado, e promettendo obtcr-lhe depois um governo
independente. Almagro^ homem franco, e leal,
perdoou tudo, mas seria exigir muito suppòr
que, no fundo do coração lhe não tivesse ficado
um gérmen de desconfiança, que, depois^ viria
a produzir fructos amargos.
Com cento e vinte e cinco homens viera Pizarro
da Europa, metade, apenas, dos que se obrigara
a levantar. Ainda que Fernando Cortez, o con-
quistador do México, enconlrando-o em Sevillia,
e sabendo, por experiência própria, o quanto
podia ser lucrativa a expedição, lhe tivesse em-
prestado algum dinheiro, não tinham chegado os
fundos para completar a força exigida pelo go-
verno, e Pizarro, para se esquivar a investigações,
dera á vela furtivamente. Em Panamá augmen-
lára a sua tro])a, elevando-a á força de cento e
oitenl-tt homens, dos quaes eram trinta e cinco
de cavallaria. Com este punhado de hespanlioes,
repartidos por trcs navios, parlio l*izarro para o
Pcrú, no firme intento de conquistar um impé-
rio que lhe i)odia oppõr um exercito de cem mil
homens. De (jue desconhecido bronze era feito o
espirito dos homens d'aquellc século, e que sy-
billa ignota, prophetisaudo-lhes victorias inacre-
ditáveis, os decidia a aífrontarem com tanta con-
fiança perigos mysteriosos?
Em feveieiro de {IV.W deu á vela a nova expe-
dição. Almagro ficou em Panamá, como da pri-
o PANORAMA
327
nieira vez^ para levar os reforços que podesse
obter.
Em treze dias fez Pizarro, já conhecedor das
monções favoráveis, a viagem que fizera oulr'ora
em três mezes, mas, impellido pelas correntes e
pelos ventos, teve de ir desembarcar na bahia de
S. Matheus^ cem léguas ao norte deTumbcz. Este
acaso ia fazendo gorar a expedição, porque os
soldados novos^ que, em vez de desembarcarem
logo no centro da riqueza peruviana, eram obri-
gados a atravessar estéreis desertos, e a solTier
mil calamidades, romperam cm murmúrios c dos
murmúrios passariam á revolta, se a energia de
Pizarro, e as asserções dos primeiros expedicio-
nários os não tive.-sem apaziguado.
Chegaram, finalmente, á provinda de Coaque,
e o explendor extraordinário dos templos que nas
cidades encontraram, pagou-os bem de todas as
fadigas e privações. Logo ahi se começou a sen-
tir o immcnso inconveniente que resultava para
o governo hespanhol da sua não interferência
n'essas expedições. Dirigidas por delegados seus,
não arruinariam os paizes conquistados, e dariam
á coroa das Hespanhas uma província immensa,
cujas contribuições regulares bastariam para en-
riquecer o fisco. Mas os conquistadores, movidos
pela ambição pessoal, tratavam só de se enrique-
cer, e faziam como o desastrado que matava a
gallinha dos ovos de ouro. Em Coaque principia-
ram esses roubos, incríveis, desmedidos que es-
gotavam o paiz e d'um império florescente fa-
ziam um deserto, de cujo solo devastado desen-
tranhavam depois os Hespanhoes essas estéreis ri-
quezas do oiro das minas.
De tanta opulência, conquistada de súbito, quiz
logo Pizarro tirar o máximo resultado; enviou
um navio a Panamá, portador de grandes som-
mas paraAlmagro, afitn deste fazer os alistamen
tos necessários, e de pro\ocar a cubica no ani-
mo dos aventureiros da colónia. Effectivamente, á
vista d'essa opulência inesperada, como que um
choque eléctrico abalou toda a população. Logo
os alistamentos se succederam com rapidez, e, se
os chefes admittissem tantos coUegas á repartição
dos lucros, a colónia em peso se transpunha para
a America do Sul.
Entretanto, Pizarro continuava a sua marcha
Iriumplial, encontrando fraquissima resistência;
o estranho aspecto dos europeus, as suas armas
de fogo, os seus ginetes e o modo como os caval-
leiros os guiavam, de f()rma que, aos olhos dos
ingénuos Índios, afliguravam se uns centauros
desconhecidos, tudo isso bastava para fazer com
que o terror precedesse a marcha dos hespanhoes.
Não precisaria Jasão de Medea, se fosse, como es-
tes, o dragão que defendia o vello d'oiro da Col-
chida.
Só na ilha de Puna encontrou Pizarro uma re-
sistência mais seria. Seis mezes gastou em subju-
gar os habitantes, o que prova unicamente a
obstinação d'estes, mas de modo nenhum, a sua
firmeza no combate. Se a tivessem, no lim de
seis mezes não iiavia um só hespanhol vivo. Mas,
tentando defender-se com desespero, apenas troa-
va um canhão, apenas uma carga de trinta ca-
valleiros de Pizarro fazia treuier o sulo, disper-
savam-se os pobres súbditos dos Incas, e sotíriam
uma horrivel carnificina.
Em Tumbez as moléstias retiveram ainda três
mezes a expedição. Ahi recebeu Pizarro dois des-
tacamentos de reforço, pouco valiosos pelo nume-
ro) eram apenas de trinta homens cada um (mas
immensamente pela qualidade dos ofTiciaes que
os commandavam. Chamavam-se elles Sebas-
tião Benalcazar, e Fernando de Soto, oíficiaes
experimentados, veteranos das guerras d'Ilalia, e
costumados á disciplina hespanhola, que era,
n'esse paiz, a grande causa da sua superiori-
dade. Um corpo de duzentos homens, unido c com-
pacto e obedecendo a uma vontade única, ha de
ter sempre grandes vantagens sobre uma confu-
sa massa de trinta ou quarenta mil homens,
combatendo individualmente, sem direcção nem
unidade.
Na foz do rio Piura fundou Pizarro a primeira
fortaleza hespanhola a que deu o nome de S. Mi-
guel. Tendo-se assim assegurado uma base de
operações, e já mais informado, graças ao vagar
da sua marcha, da constituição politica do Peiú,
da sua situação actual e das suas dissenções in-
testinas, Pizarro pòz-se audazmente em marcha
na direcção de Cuzco.
Sigamos o rasto de sangue que essa gloria im-
mensa e iniqua vai deixando pelo caminho que
percorre.
{Conlinua).
A PREDICÇÃO E PREVISÃO DO TEMPO
Predizer o lempo, é indicar um anno ou seis
mezes antes o tempo que lia de fazer n'um dia ou
periodo dados. Quando se (rala de pbenomenos
regulares, periódicos, nada de mais lógico e mais
certo que estas predicções. Os astrónomos calcu-
lam os eclipses com muitos annos de antecedên-
cia e nunca se enganam, porque es eclipses re-
sultam das posições respectivas da terra e da lua
em relação ao sol. Estas posições são a conse-
(piencia necessária de movimentos geométricos re-
gulares, invariáveis e perfeitamente conhecidos.
A predicção é, pois, não somente possível, mas
lambem é certa. Do mesmo modo podemos saber
com antecedência qual será em cem annos a or-
dem de successão das estações do anno e o nu-
mero de horas durante as quaes o sol estará aci-
ma do horisonle em um dia e lugar dados. Es-
tas pi'edicçõts resultam do conhecimento do mo-
vimento da lei'ra á roda do sol, combinado com
a inclinação do eixo da leii'a sobre o plano da
ecliptica. Não succede, porém, assim com as va-
riações alhmosphcricas, com especialidade fora dos
trópicos.
As mudanças de tempo não são regularmente
periódicas. Em vão se tem procurado ligal-as ás
phases lunares. Todas as vezes que o estudo tem
sido feito séria e pacientemente, sem preconcei-
tos, os resultados lêem sido negativos. A gente
d*>s campos, que não toem lempo para se dai'em
a longas averiguações estalisticas, obedece á vaga
necessidade de ligar as mudanças do lempo a uma
causa mais geral c de prevel-as em interesse dos
seus trabalhos agrícolas: assim, o cultivador acre-
dita, geralmente, nas iniluencias lunares. Impres-
sionado por alguns casos em que a nmdança de
lem])o tom coincidido com uma phase da lua, es-
quece lodos os casos cm que não tem lido lugar
328
O PANORAMA
a coincidência, como o medico prevenido a favor
do remédio que applica, esquece os seus revezes
e apenas se lembra dos resullados felizes.
É lambem muitíssimo raro não se esquecerem
complctamenie, apreciando esías predicções, as
noções mais simples de probabilidade. Geralmen-
te,* os propbelas annunciam lempeslades, chuvas
abundantes paia as estações em que ellas costu-
mam ter lugar. Mas é necessário ter em vista que
nestas estações, especialmente no meio dia da
Europa, a probabilidade é a favor da chuva. Ain-
da mais: tem-se calculado, que, em certos pon-
tos, póde-se apostar 40 contra GO em como, n'um
dia marcado, choverá. Em outros, clima mais so-
co, a probabilidade da chuva para um dia qual-
quer não excede de io contia 7o ; mas na pri-
mavera e no outomno seiá de oO contra oO, isto
é, ha tantas probabilidades de chuva como de
bom tempo.
As predicções não passam de coincidência, por-
que não se podem deduzir de leis conhecidas na
variação do tempo. As mudanças athmospheiicas
que sobrevem no nosso paiz são a repercussão das
alterações que seproduzem, a centenares de léguas
de distancia, sob a inlluencia da temperatura do
ar, da pressão alhmospherica, de ventos reinan-
tes ou accidenlaes, da evaporação, mais ou menoS(,
dos mares e das terras, de tensões eléctricas, ele.
ele. Prever com muito tempo de antecedência a
existência, a força relativa, os eíTeitos destes ele-
mentos que se juntam uns aos outros, se modiíi-
cam ou se destroem, é complelamenle impossí-
vel. A mais va^la intelligencia, abraçando só com
um relancear de olhos o conjunclo da alhmosphe-
ra terrestre, c dotada de todos os conhecimentos
physicos e meteorológicos da nossa época, seria
incapaz de predizer de uma maneira infallivol o
tempo que hade fazer em um lugar dado, ummez
antes, que fosse.
Se a sciencia e a lógica condemnam as predic-
ções meteorológicas, estão de accordo ))ara pro-
clamarem a legitimidade e a utilidade das previ-
sões alhmos|tliericas, isto é, as predicções a cur-
tos prasos, dois ou Ires dias, por exemplo. Ellas
repousam sobre este facto incontestável, que a
mudança de tempo c sempre precedida de alguns
symptomas que a denunciam e a preparam. As-
sim, em toílus os paizes conhecem-sc os ventos
chuvosos e os que o não são. A substituição d'um
destes ventos por outro auctorisa a prever uma mu-
dança de tempo. Na maior pai te das regiões da Eu-
ropa, o barómetro desce sob a inlluencia destes ven-
tos chuvosos; ao mesmo tempo, certas nuvens apre-
sentam-S(! nc céo ; o hygroinelro annuncia (|ue o
ar cada vez se vai tornando mais húmido, a sua
transparência augmenta, os objectos afastados ap-
proximam-se. Todos estes signaes permitlem pre-
ver uma mudança de tempo com grande [jiobabi-
lidade. Ojmtudo acon:e:e algumas vezes mudar
o vento : lodos os presagios de chuva se dissipam
e o tempo lorna-se bellissimo.
A lelegiaphia eléctrica fornece-nos outros ele-
mentos próprios para prever o tempo. Por ella
somos informados do estado athmospherico da Eu-
ropa desde o norte até o meio dia. À força de reu-
nir factos pôde saber-se em que direcção o mau
tempo chega ordinariamente a uma cidade ou a um
porto. Quando se souber peio telegrapho que é
mau n'esla direcção, ter-se-ha um elemento im-
portante, mais uma probabilidade. O almirante
Filz-I{oy, em Inglaterra, armado de todos os da-
dos de que falíamos, expedia pelo telegrapho, mui-
tas vezes para todos os portos avisos para os bar-
cos de pesca não se aventurarem ao mar largo. E
quasi sempre o acontecimento juslitlcava as suas
previsões. Marié-Davy, no observatório de Paris
prosegue os mesmos estudos, e alguns dos seus
prognósticos tem-se verificado.
Entre nós lambem tem succedido o mesmo. Mas
isto não é mais do que uma probabilidade annun-
ciada dois ou Ires dias antes, probabilidade que a
multiplicidade das observações tenderá a approxi-
mar da certeza, sem nunca poder altingil-a. Com-
tudo, proseguindo-se n'esles estudos, talvez que
no lim de muitos annos se possa estimar esta
probabilidade numericamente, e dizer ao nave-
gador, n'um estado melcorologico determinado :
Apostamos 60 contra 40 em como ao sair do por-
to encontrará mau tempo. Então cumpre ao mari-
nheiro retleclir no risco que vae correr; consultar
a sua coragem e os seus interesses
Assim como a predicção do tempo é um traba-
lho vão e sem resultado, tal a previsão é um exa-
me lógico e cheio de futuro. Para julgarmos uma
e outra, desejaríamos, em primeiro lugar, que nos
dissessem quantas vezes as previsões athmospheri-
cas se teem verilicado no decurso de um anno e
quantas teem falhado. Por outro lado, querería-
mos que os prophetas tivessem a coragem e a boa
fé lambem de marcar no Almanak de 1808 o tem-
po de cada dia ou de cada período de muitos dias,
à sua escolha. Mathieu Laensberg deu lhes o exem-
plo e adívínha.ya algumas vezes; mas, feitas as
contas, enganava-se muilo : hoje ninguém o acre-
dita ; mas o espirito humano, amigo do maravi-
lhoso e do extraordinário, aceita sempre os novos
prophetas; desacredilar-se-hão lambem, sem (pie
o homem, que não tem estudado suíficienlemenle
para saber ignorar e duvidar, renuncie a querer
peneirar os segredos do futuro e a conhecer o que é
vedado aos morlaes.
O mundo lie mar, a ambição he sede. NSo me
e.si);into que o ainíjicioso se nho sacie com os bens
(lo mundo; porciuc a agua salgada nao apaga,
anles acende as securas. Impossível lie apagar
bebendo, a sede (pic nasce do beber : & satisfazer
possuindo, a cobiça que nasce de possuir.
AIanuel Bernardes.
Typ. Kranco-Porl.uguezn, Hua tio Tlicsouro Velho, 8.
42
.0 PANORAMA
329
■We3'mouth
Ao contrario de muitas outras cidades da Gran-
Bretanha, que de dia para dia lêem ido enrique-
cendo, Weymoutli, outr'ora de grande importân-
cia pela sua magnifica situação na embocadura
do \Vey, que llie dava um excellente e seguro
porto, âcha-se hoje em perfeito estado de pobreza,
devido á agglomeração de areias, que, gradual-
mente, lhe foram obstruindo a barra, a ponto de
a tornarem quasi intransitável. O seu commer-
cio actual é insigniticante; apenas alguns navios
de pequeno lote, que navegam para a Terra No-
va e para vários portos do nosso paiz, ali vão le-
"var e receber cargas pouco avultadas.
Apezar, porém, da sua decadência^ a cidade
de Weymouth, não desappareceu completamente
da memoria dos laboriosos filhos de Albion ; por
que, se muito perdeu era riqueza, ganhou im-
menso em belleza e elegância. Actualmente, as
suas lindas praias são, de todas as d'aquella na-
ção, as mais frequentadas no tempo dos banhos.
E ali que se reúne a corte e tudo quanto ha de
nobre e opulento na Inglaterra.
A ponte que se vê na nossa gravura, obra de
madeira edificada pelos annos de 1770 e mui di-
gna de altenção pela sua elegância e solidez, une
Weymouth aMelccmbe-Regis.
Weymouth conta três mil habitantes Foi n'es-
la cidade que desembarcou em 1471 Margarida
de Anjou, em companhia de seu filho Eduardo,
depois de restabelecer no throno seu marido,
Henrique VI.
FRANCISCO PIZARRO
lY
O império peruviano era na America do Sul o
único paiz civilisado, como na America do Norte
era lambem no México só que havia uma tal ou
qual civilisação. Não porque fosse um reino com-
pacto que se tivesse desenleiado da barbaria,
mas porque o poder dos Incas havia ido sugei-
tando pouco a pouco os paizes, civilisados
também, que rodeiavam o primeiro núcleo do
império, e sujeitando todos a um único dominio.
Ainda pouco antes da chegada de Pizarro, o inca
Huana Capac fizera a conquista do poderoso rei-
no de QuitOj completando assim a unidade peru-
viana, e como que dando a todos os povos civi-
lisados da America meridional uma cabeça úni-
ca para que a espada de Pizarro lh'a decepasse
d'um golpe.
Os incas exerciam no império um despotismo
absoluto. Como todos os chefes dos povos chega-
dos apenas ao primeiro estado de civilisação, os
incas pcruvianos robusteciam o seu poder tem-
poral com as tradições sacerdotaes, dizendo-se de
raça divina e conquistando d'essa forma não só o
respeito humilde do povo, mas também a sua vene-
ração. A familia dos incas formava uma familia
á parte, cujo sangue se não devia macular mis-
turando-se com o de outras raças. Comludo, o
ultimo inca ousara infringir essa lei fundamen-
tal do império. Namorado da filha do rei vencido
de Quilo, casara com ella, d'ella tivera um filho
chamado Atahualpa a quem legara os estados de
seu avô, deixando a Huescar, seu filho mais ve-
lho, o antigo território do império.
Mas o povo peruviano, por muito obediente
que fosse aos seus rponarchas , estranhou esta
infracção aos usos estabelecidos, e começou a
murmurar altamente. Vejam como o espirito
humano é o mesmo em toda a parte 1 O que suc-
cedeu a Huana Capac no Peru, succedeu depois
a Luiz XIV em França. Emquanto vivo todos obe-
830
O PANORAMA
deciam a um gesto seu ; depois de moiio rasga-
ram-lhe o teslamenlo. E assim como os bastardos
reaes fillios de M.'"'' de Montespan, foram esbu-
lhados da regência, que seu pae lhe deixara, por
Phihppe d"Orleans, firmado na opi-nião pubhca,
assim Huescar, vendo as boas disposições do seu
povo, resolveu desobedecer ás vontades de seu
pae, 6 despojar da sua herança o profano intruso
na famiiia divina dos incas.
Mas aqui finda o simile; Atahualpa não era,
como o duque de Maine, um príncipe limido e
indolente. Acceitou o repto de seu irmão, bateu-o,
e para que se não renovassem pretensões idên-
ticas, exterminou Ioda afamiUa dos incas, encer-
rou n"um cárcere Uuescar, deixando-lhe a vida
para que podesse legalisar de certo modo a sua
usurpação, apresentando-se como lugar tenente
do monarcha legitimo, e dando ordens em seu
nome. Como se vê, Atahualpa adivinhava o pro
cedimento do nosso D. Pedro 11 com seu irmão
D. AíTonso VI.
Estas dissenções civis foram altamente favorá-
veis aos hespanhoes. Mais -occupados das suas
discórdias, do que repeliirem uma invasão que
lhes parecia ridicula, attendendo ao numero dos
invasores, os dois rivaes reservaram para depois
de se decidir pelas armas a sua sorte tratar de
lançar ao mar os atrevidos brancos. Não cen-
suramos os incas; como podia dar unidade
a um império poderoso o desembarque de cento
e tantos homens nas suas praias? Mas é certo que
se, n'esse primeiro momento, conhecendo a im-
mensa superioridade militar dosrecem-chegados,
tivessem caido sobre elles com Iodas as suas for-
ças reunidas, é certo que, por muito grande que
essa superioridade fosse, a massa enorme dos Ín-
dios abafaria o corpo hespanhol. Não succedeu
assim, e Pizarro, aproveitando esse erro, marchou,
como dissemos, resolutamente para o interior.
Reforçado já por algumas expedições de Pana-
má e Nicarágua, Pizarro, depois dé deixar uma
pequena guarnição na fortaleza de S. Miguel,
pôde avançar com a força enorme de sessenta e
dois gmeles, e cento e dois infantes, dos quaes
eram vmte besteiros e apenas três mosqueteiros.
A testa d'este numeroso exercito caminhou Pizarro
para a cidade de Caxamalea, próximo da qual
Atahualpa estava reunido com o grosso das suas
forças.
N'isto sobreveio um novo incidente que mudou
completamente a face dos negócios. Informado
dos pequenos combates que houvera já entre os
peruvianos e os hespanhoes, e da superioridade
immensa que estes tinham revelado, Atahualpa,
cego sempre pelo ódio a seu irmão e pelo desejo
de conquistar o throno, pensou que seria melhor,
em vez de combater os estrangeiros, attrahil-os
a si, e servir-se d'elles para fazer triumphar
a sua causa. Politica deplorável que sempre sér-
vio o projecto dos conquistadores, que apla-
nou sempre os obstáculos, que os povos mais fra-
cos lhe poderiam oppôr, se os seus governantes
em vez de se occuparem de mesquinhas rivali-
aaaes, despertassem o sentimento nacional c le-
vantassem um paiz em massa contra os invaso-
res. Atahualpa cedeu aos desejos das suas más
paixões. O pobre inca não tinha lido, de certo a
labnla do « cavalio, o veado e o homem .>
I izarro, como habil que era, aproveitou o erro
do inimigo, recebeu o valioso presente que este
lhe enviou, declarou que era embaixador de um
rei muito poderoso, e que estava disposto a au-
xiliar Atahualpa com todo o seu poder. Depois
continuou a avançar, entrou em Cahamalca, ven-
do que era uma cidade fortificada, collocou as
suas tropas em posições vantajosas por traz dos
baluartes, e d'ali enviou a Atahualpa Fernando
de Soto para lhe renovar os seus protestos de
amizade, e pedir-lhe uma entrevista.
(Continu(f)
GUILHERME TELL E SCHILLER
Durante o caminho, o pae e o nilio conversam
juntamente, e, a propósito de algumas interroga-
ções do joven Walther, o bom cidadão d'Uri cx-
põe-llie em poucas palavras a sua politica.
AYalther
Meu pae, existem paizes onde se não encon-
trem montanhas? rp
Iell
Ouando, seguindo o curso das no.ssas ribeiras,
se desce dos montes, chega-se a vastíssimas pla-
nícies onde os olbares, sem que nada os impeça,
abraçam a immensidade do espaço. As messes
verdejam ali, .como se foram ricos prados, c o
paiz oflercce o aspecto de um jardim bem culti-
^^^^^- Walther
Porque motivo, pois, meu pae, não corremos a
esse bello paiz, em vez de ficarmos aqui n'um
espaço tão estreito? rr,
' * ILLL
Essa terra de que te fallo é fértil e risonha co-
mo o próprio céo ; mas os que a cultivam não
recolhem as riquezas que n'ella depositam,
Walther
Que! Não possuem livremente a sua própria
herança? ^^^^
Não ; os campos pertencem a um bispo ou a
um rei. ,,,
Walther
Não obstante podem caçar á sua vontade nas
florestas?... rr
Tell
As aves, os gamos, as lebres, tudo, emlim,
pertence ao senhor. ^^^^^^^
Também não podem pescar nos seus rios ?
Tell
Os rios, o vaslo oceano, o sal, são proprieda-
de do rei. ,,,
Walther
Ouem é, pois, esse rei que lodos devem temer?
Tell
É aquelle que os sustenta e protege.
Walther
Não acham elles cm suas forças protecção 1
o PANORAMA
33
Tell
Nenhuai individuo ousa confiai* a outro os sen-
lioientos do seu coração.
Waltiier
Ah! meu pai, deve-se viver muilo oppresso
n'esse paiz. Pretiro ticar aqui, debaixo das ava-
lanchas. ^^^^ »
Sim, meu filho, estas montanhas de gelo são
menos para temer que os máos!...
Que predisposição para a lucta terrivel com o
governador ! e para o íilho, que licção de cora-
gem e de liberdade ! Que satyra sangrenta dos
vícios do regimen feudal e dos abusos da realeza!
Emtim, como a dignidade da alma, preferida ás
voluptuosidades da vida, se faz já sentir nas res-
postas do mancebo! É assim que se formam os
homens verdadeiramente fortes, que se elevam á
direcção dos seus próprios negócios e á intelli-
gencia da cousa publica. A politica simples da
justiça, e do esforço individual, é, a nosso pare-
cer, a melhor.
Guilherme e seu filho acham-se depressa em
Altorf e passam por diante do chapéo do gover-
nador. Aqui o poetd deu ao caracter do heroe
um colorido sobre o qual convém chamar a at-
tenção do leitor. Ainda que Tell tenha o espirito
republicano, não é homem inclinado á destruição
das leis estabelecidas e á rebellião. A sua natu-
reza não é aggressiva. Passa, pois, por diante do
chapéo sem saudal-o ; mas, se procede deste mo-
do, é por inadvertência e preoccupado com outras
cousas, e confessal-o-ha com toda a sinceridade
ao próprio governador. Comtudo, esta falta sendo
olhada pelos etbirros como uma intenção má da
sua parte, é preso e arrastado á prisão. É então
que tem lugar a formosa scena da maçã. Esta
scena, é, certo, uma das melhores da peça, e uma
das mais patéticas do theatro allemão. Vô-se ali o
coração de um pae rasgado nas suas fibras mais
sensíveis, a lyrannia excedendo as forças da hu-
manidade. Nada ali é supérfluo. Neste horrível
duelo, cada palavra é uma setla, e commove pro-
fundamente. Tell é um coração enérgico, mas
bom: faz tudo quanto é possível para afastar o
homem da sua acção iniqua. Supplica-o, conju-
ra-o, por tudo o que ha de mais sagrado no mun-
do, para que renuncie ao seu desígnio ; depois,
quando perde inteiramente toda a esperança de
fazer mudar aquelle bárbaro coração, toma a sua
resolução e invoca o auxilio de Deus, auxiliando-
se elle próprio. Emfim, a coragem e a innocencia
triumpham ; mas a perversidade ainda não se
desarma Persiste em opprimir a sua viclima.
Então o pobre montanhez, conhecendo que o com-
bate é mortal, decide-se a aproveitar a primeira
occasião favorável para acabar com o seu algoz,
lirar-lhe a vida. O voto que faz de matar o ho-
mem que o expunha a immolar seu innocente fi-
lho, voto espontâneo e arrancado ao excesso do
soffriraento, medila-o e reflecte muito em quanto
espera a passagem do oppressor. «Eu vivia, diz
elle, tranquillo e innocente ; esta arma só ora di-
rigida contra os hospedes das florestas e a idéa
de um assassínio jamais me manchou o pensa-
mento. 6 governador, tu anniquilaste esta afor-
tunada paz, accostumaste-me a acções de ({ue a
natureza estremece!... Governador, as novas e
débeis crianças, as ternas esposas, é preciso que
as salve do teu furor!...» E deste generoso senti-
mento, volta aos sotfrimentos particulares que o
affligiram quando dirigio uma frecha sobre a ca-
beça de seu filho. A imagem das suas criancinhas
passa-lhe diante dos olhos; cuida nos seus jogui-
nhos com elles, pensa no prazer que lhes dava
quando lhes levava alguma cousa da caça. E ago-
ra, é outra a presa que elle persegue; e solta es-
te ultimo grito : «Sois vós, meus queridos filhos,
sois vós unicamente quem me occupa o pensa-
mento ; e se eu estendo o meu arco, é para pro-
teger a vossa timida innocencia!»
Schiller era pae de família na época em que
compoz o seu drama. Era necessário que o fosse,
para ter sentido tão profundamente, e haver des-
cripto tão justamente as angustias da ternura pa-
ternal esmagada pela mão de ferro de um poder
implacável.
O malvado é morto. Logo depois de o ver cair
sob a sua frecha, Tell volta á sua choupana, e,
entrando, as suas primeiras palarras são uma
explosão de felicidade conjugal e de enthusiasmo
paterno. «Ó Hedwige, Hedwige, mãe de meus fi-
lhos. Deus tem estado comnosco ; nenhum tyran-
no jamais nos separará !...» E abraça sua mulher
e filhos. Comtudo, a meiga esposa receia que
seu marido tenha commettido um assassínio : «Es-
ta mão, diz ella, posso ainda apertal-a?»
— «Esta mão, responde Guilherme com energia,
esta mão libertou-nos ; salvou a pátria e eu le-
vanto-a livre para o céo !» Estas ultimas palavras
tranquillisam a consciência inquieta de Hedwige.
Se Tell se sentisse culpado; levantaria a mão
manchada de sangue para o céo?
Esta resposta, comtudo, não bastou ao poeta.
Querendo pôr o seu heroe ao abrigo de toda a
censura, imaginou um encontro entre elle e João
o parricida, duque de Souabe. Este príncipe, as-
sassino do imperador de Allemanha, seu tio, por-
que este ultimo queria apoderar-se dos seus bens,
proscripto e fugitivo nas montanhas da Suissa,
vem pedir hospitalidade á mulher do bravo ar-
cheiro justamente no momento em que este entra.
Resulta do contacto destes dois homens um
colloquio, no qual Schiller imprime claramente a
diff'erença que existe entre o homem que mata
com um* interesse privado, mesmo o seu inimigo,
e aquelle que, tomando as armas para a sua pró-
pria defeza, da dos seus filhos e do seu paiz, só
opera em vista da jusliça e dos interesses geracs.
Tell
Assassino de teu pai e do leu impei-ador, como
ousas tu peneirar neste innocente asylo ? Como
332
O PANORAMA
ousas encarar um homem honrado e reclamar os
direitos da hospitalidade?
João o PARRICIDA
Esperava encontrar no vosso coração alguma
compaixão pelo meu infortúnio. E vós, também,
vos vingastes do iniaiigo que vos opprimia.
Tell
Desgraçado ! Atreves-te a confundir o cruento
crime daambição com a defcza legitima de um
pae? Tinhas a salvar a cabeça de um lilho querido,
a santidade dos lares domésticos a defender? Pro-
curaste arrancar os teus á desgraça que pesava
sobre elles? Eu levanto para o céo as minhas
mãos innocentes, e amaldiçoo-le a ti e ao leu at-
tentado I Eu vinguei as santas leis da natureza;
mas tu violasle-as. Nada ha de commum entre
nós. Tu assassinaste aquelles que devias respei-
tar, e eu defendi o que tenho de aiais caro no
mundo.
Tell, separando a sua causa da de João, não
fecha, comtudo o seu coração ao dó que elle lhe
inspira. Anima o infeliz principe, e aconselha-oa
que se dirija á Ilalia e vá lançar-se aos pés do
soberano ponlilice, confessando-Íhe o seu crime,
para assim remir a sua alma.
A scena é engenhosa, o dialogo é acertado e
elegante; mas no ponto de vista dramático, acha-
mol-o frio e pouco natural. Conhece-se perfei-
tamente que só ha ali um arrasoado do poeta
a favor do seu principal personagem. Não havia
precisão d'islo ; as poucas palavras de Tell a sua
mulher eram sufTicientes. Schiller não considerava a
arte, e com especialidade a theatral, como uma sim-
ples distracção do espirito, um objecto de commo-
ções ardentes c passageiras ; queria que fosse um en-
sino durável e profundo, e que o espectador d'uma
peça de theaatro saisse da contemplação d'ella,
melhor e mais serio; só queria deixar no espirito
do publico alias inspirações do bem. É, pois, á
extrema delicadeza do senso moral do poeta que
se deve esta ultima scena, que não é mais, para
assim dizer, que uma superfelação, e que, ordi-
nariamente, c supprimida nas represenlações.
Em siimma, esta íigiira iiei-oica da Suissa no
decimo qiiai'lo século, rej)roduzida por Schiller,
dá a maior honra ao seu pincel. E d'aquellas que
como Lucrécia e Virgínia, dizem á l\ rannia, des-
cobrindo os profundos sentimentos do coração pa-
terno, os pudores da virgem c a iionra da esposa:
Não avançarás a tanto ; ou se te atreveres a levar
até ahi o insulto, acharás, certo, a tua ruina,
fjvilhcrme Tell, foi a ultima obra importante
do grande poeta; terminou a sua brilhante car-
reira dramática com um canto de liberdade hon-
rado e poj)ular. Começara-a compondo o drama
dos Salteadores, obra na qual a paixão pelo di-
reito c o ódio pela injustiça se manifeslarain d(!-
baixo das formas da revolta e da destruição. Es-
tes sentimentos manliveram-se no sublime sonho
do marquoz fU; Posa, e, pela ultima \e/, expri-
miam-se nobre c virilmente pelo orgam simples c
franco de uma pobre criança da Helvécia, não
pedindo para si e para os seus senão o meio de
mover-se com liberdade, dignidade e segurança,
no pequeno circulo de vida onde os collocara a
Providencia.
Não se pôde acabar melhor.
, UMA OBRA DO SÉCULO IX
5. Constantino, reinou XXX annos. Ilavendo-
se convertido ao christianismo, tolerou os chris-
tãos. Por esta época. Helena, sua mãe, encontrou
a Cruz do Senhor. Mandou que se celebrasse o
Concilio Niceno, como dizemos em outra folha.
Constâncio e Constante, reinaram XXXIII an-
nos. Constante, arrianno e cruel por seus costu-
mes, persegue os christãos. Seu amigo Arrio, mor-
re em Constantinopla. Hilário brilha por sua dou-
trina. Donato, que íloresceu em Roma na arte da
grammalica, morre ali por este tempo. António
Monge, morreu também n'esta época. Os ossos
dos Santos Apóstolos André e Lucas Irasladam-se
para Constantinopla.
6. Juliano reinou H annos. Primeiro clérigo, e
logo Imperador ; e pagão, adorou os Ídolos, mar-
tyrísou os christãos, e por ódio a Christo, mandou
restaurar o templo dos judeus em Jerusalém ; mas
o Senhor não lh'o consentío, e Juliano morreu as-
selteado pelos Persas.
Jovíano, reinou I anuo. Este, sendo christão,
recusou tomar as rédeas do governo, e accedeu
aos rogos do exercito, quando este se converteu
ao christianismo. Immediatamenle restiluio aos
christãos Iodas as liberdades e privilégios e man-
dou fechar os templos dos ídolos.
Yalentiniano e seu irmão Valente reinaram XIV
annos. Os godos dividem-se em duas porções man-
dadas por Atanarico e Eridigerno. Alarico excede
Fridigerno. Este, com o auxilio do Imperador ar-
riano, Valente, e pela influencia d'este, abraça o
Arrianismo com todos os seus Godos. Golíilo, bis-
po, ensína-lhes o uso das letras.
Gracianocom seu irmão Valentiniano, reinou VI
annos. Eiorescem Ambrósio, bispo de Milão e S,
Martinho, bispo Turonense, assignalando-se este
por seus milagres nas cidades da Gallia.
7. Valentiniano com Theodosio, reinou VII an-
nos. Celebra -se um synodo em Constantinopla, com-
posto de CL Rispos" O presbytero Jeronymo, flo-
resce em Relem, e em todo o mundo. A cabeça
de São João Raptista, c tiasladada para Constan-
tinopla, e enterrada a Vil milhas da cidade. Theo-
dosio derroca o templo dos ídolos,
Theodosio com Arcádio, reinou IH annos. Por
aquelle tempo, o Anachorela João, brilhou por seus
milagres.
(Continua)
A palavra revestida de brandura leni nniyto
mais força, c lustre : e revestida de cólera, liua,
o outra cousa pprdc. Nada monos se persuade ao
próximo, do que o que se lhe inlcnla persuadir
como modo apayxonudo, ou imperioso.
o PANORAMA
333
íSanta Helena.
Que nome este ! que poema nos não desperta
logo na phantasia a imagem (fuma pequena ilha
pedregosa, perdida no meio dos mares, ninho de
rochas onde foi expirar a águia, que deixara cair
o raio apagado nos campos de Waterioo ! Santa-
Helena é a consagração poética do grande homem
do século, é o sello de chammas estampado na
fronte do gigante, que podia ser apenas um gran-
de general como Frederico, um grande adminis-
trador como Coibert, um grande estadista como
Richelieu, e que tomou, graças a esse captiveiro
na ilha solitaiia, as proporções enormes do Pro-
metheu da mylhologia.
O ódio é cego, tanto o das nações, como o dos
indivíduos. O punhal de Ravaillac veio canonisar
o bom Henrique IV ; a períidia de (lasllereagh di-
vinisou Napoleão. Ouem sabe? o homem estava
cançado, o génio eslava exhauslo, a águia, com as
azas quebradas, não pedia senão que a deixassem
desprender o ^'ôo rasteiro e obscui'o do telhado em
telhado. A isso se reduziria talvez a ave imperial,
que, desembarcando no golpho Juan, annunciava
orgulhosamente que voaria de campanário em cam-
panário até ir poisar nas torres de Notre-Dame.
Se o deixam viver, como elle pedia, simples par-
ticular n'um canto da Inglaterra, se lhe restituem
mesmo o seu império liUiputiano da ilha d'Elba,
tinham assassinado com o ridículo a gloria mais
collossal do universo, tinham dado um lim bur-
guez a essa existência heróica, tinham ariancado
a esse Édipo collossal o trágico manto da fatali-
dade, e tinham-n'o transformado no pacato Ge-
rente d'uma comedia de Molicre.
Mas o ódio cegou-os, desvairou-os o medo. Le-
vantaram a estatua caída, deram-lhe o pedestal
sublime d'um infortúnio immenso, e collocaram-
n'a ah isolada em Santa Helena, no meio das va-
gas tempestuosas, longe da Europa e, comtudo, pre-
sente sempre á imaginação europea. Ao homem,
que se quizera confundii- com os outros homens,
deram a grandeza do eremitério, e o vago mysle-
rioso do longínquo, trocaram-lhe a coroa im|)erial
peia coroa cem vezes mais bi'ilhanle do marty-
rio, e íizeram assim do homem um Tilão, do im-
perador um Deus.
Não podia haver fecho mais sublimo para a
grandiosa epopéa napoleonica ; o rromelheu gi-
gante, que espalhou pelo mundo a chamma sagra-
da da revolução, que levou a liberdade, sua mãe,
maniatada ao seu carro de triumpho, mas que as-
sim mesmo cm grilhões a fez admirar aos povos,
senão em si mesma, pelo menos n'cllc a sua obra
mais completa, lilho ingrato, mas lilho augusto c
grande, o Trometheu do século brota do seio de
334
O PANORAMA
um rochedo do Mediterrâneo ; como a águia, que
lia de ser seu symbolo, abate o vôo juvenil sobre
Toulon, e com o raio, que leva nas possantes gar-
ras, fulmina a cidade rebelde, depois em vendemia-
rio entra de novo em scena, e de novo a sua pal-
lida ligura aflugeuta a contra-revolução. Eil-o ou-
tra vez nas montanhas, em que lanlo se compraz,
desce dos Alpes italianos, atravessa a Itália como
uma nuvem de fogo, fulminando exércitos, e só
pára fremente e oíTegantc no cume dos Alpes Ty-
rolezes, dictando a lei ao inimigo.
Depois as suas azas immensas ambicionaram
deixar-se illuminar pelos esplendores do Oriente,
e a águia ousada vai pousar triumphanle, entre
as nuvens, no cume das Pyramides, ao lado das
vaporosas figuras dos quarenta séculos. Eil-o ago-
ra na Europa, enviado pela Providencia para sal-
var a revolução. Os Alpes ontra vez o vêem poi-
sando sobre os seus píncaros nevados, indo sa-
ciar-se em Marengo no corpo dos inimigos.
Depois a coroa imperial cinge-lhe a fronte, e é
quem lh'a cinge um papa. Começa então a carrei-
ra victoriosa, hoje Austerlitz, amanhã lena, de-
pois Friediand, Somo-Sierra em seguida, Wa-
gram, Moskowa. A águia fatigada mal pôde já
despregar as azas ás brisas da victoria ; se hoje
se banha no Tejo, banhar-se-ha amanhã no Bor-
ysthenes. Atinai o collosso tem que recuar, mas
os seus passos retrógrados são victorias que os as-
signalam: Lutzen, Bantzen, Dresde, Hanau, Mon-
tereau, Montmirail, Champaubei't. Nas mesmas vi-
ctorias vae perdendo o sangue ; cáe atinai desfal-
lecido na ilha d'Elba, ergue-se de novo, regressa
a Pariz, junta um nome — Legny — á sua lista Irium-
phal, mas a negra pagina de Walerloo apaga esses
últimos clarões, e a águia prostrada está á dispo-
sição dos caçadores. Prometheu sente no peito os
joelhos dos deuses d'esse Olympo monarchico,
joelhos que tanta vez se macularam de pó diante
d^elle.
A epopéa ameaçava acabar d'um modo desas-
troso; se Carlos V é, emquanto a mim, um lanlo
ridículo, entoando o cantochão cm S. .Tusto, se as
alfaces cultivadas por Diocleciano em Salona lêem
o privilegio de nos fazer rir, que dcspoelisação
não seria a d'esse grande vulto napoleónico, se a
Europa fosse informada de que o illuslre abdica-
lario se entregava ao fabrico da manteiga, ou á
criação de porcos n'uma bonita herdade do Mid-
dlesex ou do Derbyshire '
Mas a Inglelerra não quiz. Deu á águia de no-
vo uma altitude real, enccrrando-a n'3ssa gaiola
penhascosa, levantou o Prometheu, que ia a lom-
bar na prosa, e, para que o mundo podesse ava-
liar melhor a sua estatura coUossal, agrilhoou-o, no
meio dos mares, ao Cáucaso de Santa- Helena, e
poz-lhe ao lado, para completar a semelhança, esse
hediondo abutre que se chamou lludson Lowe.
O que desejam os leitores saber mais de San-
ta-Hel(;na? Tão grande nome enche a jicíjuena
ilha. Com tudo sempre diremos duas breves j)ala-
vras acerca d'essa terrinha, escolhida i)ara cárce-
re do colosso.
Foi no dia 22 de maio de 1502 que João da
Nova, íidalgo gallego ao serviço de Portugal, des-
cobrio esta ilha a que poz, segundo o costume dos
nossos descobridores, o nome da santa venerada
n'esse dia pela igreja. Era completamente deserta.
Os portuguezes estabeleceram ali algumas plan-
tações, mas logo as abandonaram porque, sendo a
ilha pouco altrahente, e havendo tantos territó-
rios magníficos, que elles podiam desbravar, não
quizeram perder tempo e fadigas com essa terra
pouco importante. E, apesar d'isso, como, se pa-
ra elle se rasgassem os véos do futuro, o celebre
escriptor António Galvão dizia desta pobre ilha
deserta : ccSanta-IIelena, cousa pequena, mas mui-
to nomeada.»
Para que o honrado escriptor não se pavoneie
com as honras perigosas de propheta, diremos
que o motivo que lhe dictava estas palavras era
simplesmente o ser a bahia de Santa-Helena
muito segura, e óptimo porto de refrescos para as
esquadras que se dirigiam á Iiulia.
Foi por isso que os portuguezes, apesar de a
não quererem para si, expulsaram constantemen-
te os Europeus que lá encontravam, procurando
fundar algum estabelecimento. Afinal, quando prin-
cipiou a nossa decadência, os Hollandezes, que
nos tomavam colónias de mais importância, lam-
bem conseguiram manter-se definitivamente nesta
pequena ilha.
Em 1630 abandonaram-n'a elles á Companhia
Ingleza das índias Orientaes em troca de Cabo da
Boa-Esperança. As duas republicas do Norte, a
Inglaterra era então republicana, debaixo do pro-
tectorado de Cromwell, dividiam entre si a seu
bel-prezer os retalhos da nossa túnica soberba.
Só em 1660 fundou a Companhia o seu pri-
meiro estabelecimento, que em 1673 os Hollan-
dezes lhe tomaram por surpresa. N'esse mesmo
anuo lh'a retomaram os Inglezes, e, para evita-
rem novos desastres, erigiram n'ella o forte de
St. James.
A capital da ilha é Si. James Town. Fortifica-
ções numerosas íizeram desta cidade uma outra
Gibraltar. Por isso o governo inglez, quando, re-
lanceando os olhos pelos vastos mares sujeitos ao
seu império, procurou um cárcere seguro para o
homem, que vinha confiadamente, e segundo a
sua própria frase, se.ilar-'se, como Themistocles,
junlo dos lares dos seus maiores inimigos, fixou-
se logo em Santa-Helena.
Ali residio Napoleão durante os últimos seis
annos da sua vida, torturado pela mesquinha vi-
gilância c pela brutalidade ignóbil de sir Hudson
Lowe, consolado |)elo respeito e dedicação do ma-
rechal Bertrand, do conde Monlholon, do seu crea-
do de quarto Marchand, do conde de Ees Casas,
corlezão do seu infortúnio, c do medico irlandez
Barry 0'Méara, que, designado pelo governo |)ara
ser um dos seus algozes, escolheu o pa|)el mais
nobre de ser um dos servidores atTecluosos do exi-
lado sublime.
Foi em Uongwood que elle habilou, pequena
residência collocada no ponlo mais doentio da ilha,
o PANORAMA
335
mas lambem no ponto d'onclc mais impossível se-
ria uma fuga. Ali esleve o colosso desde os fins
de 1815 até 5 de maio de 1821, em que essa
grande alma, desprendendo-se do invólucro ter-
restre, voltou ao seio do Criador, que a elle, mais
do que a lodos, illiiminára com um reflexo da sua
omnipotência.
Dezenove annos repousou o corpo de Napoleão
á sombra do salgueiro celebre, cujas folhas tanto
tempo foram consideradas como inestimáveis relí-
quias pelos admiradores do grande homem.
Finalmente em 1810, reinando em França Luiz
Philíppe, veio uma fragata franceza, a Belle-poule,
commandada pelo íilho do monarcha, o príncipe
de Joinville, buscar os restos mortaes do gigante,
para os ir coUocar ao lado dos de Turenne debai-
xo das abobadas da igreja dos Inválidos, á som-
bra das mil bandeiras, que as suas armas victo-
riosas haviam arrancado a lodos os exércitos da
Europa.
Mal previa o príncipe illustre que ia buscar á
terra do exilio o cadáver do grande proscripto,
que, oito annos depois, pizaria elle lambem a ter-
ra estrangeira, expulso pela França, essa madras-
ta, que engeila os filhos, a quem deve a sua glo-
ria immensa.
Dir-lhes-hei o meu ultimo pensamento? Sinto
que arrancassem o cadáver de Napoleão ao tu-
mulo sublime que a Providencia lhe dera. Napo-
leão é um destes grandes homens, que um paiz
não pôde confiscar em seu proveito exclusivo; re-
clama-o a humanidade. Aquella rocha negra, aquel-
la cratera devastada, aquella penedia anfracluosa,
onde a vaga rebenta por lodos os lados, era di-
gna de conter esse volcão extincto, essa torrente
estagnada, que depois de abrasar o mundo com
as suas chammas, depois de alastrar os povos com
a sua espuma, foi apagar-se e morrer no seio da
iraraensidade. Pinheiro Chagas.
OS BRAHMANES
Os cultos de Yischnu e Síva parece dividirem
quasi igualmente a povoação índia : esta divisão
existia já no oitavo ou nono século. Comtudo, a con-
fusão produzida no espirito das populações pela
multiplicidade das divindades masculinas e femi-
ninas do pantheon indio, e pela das legendas que
se lhes referem, determinou a formação de uma
infinidade de seitas, que escolhem de entre todos
estes deuses um objecto de adoração especial ou
mesmo quasi exclusivo.
Dos dois cultos principaes da índia, o mais hu-
mano é, sem conlradicção, o de Vischnu. Eltecli-
vamenle, este Deus não c só a divindade con-
servadora; é lambem o redemplorda humanidade
e do universo. Segundo o syslema theogonico e
cosmogonico do Biahmanismo, ha para o mundo
épocas de destruição e restauração ; n'estas épo-
cas, que, no passado, elevam ao numero de no-
ve, necessita-se da inlervenção de um Deus para
salvar o universo : ora, o mundo deveu a sua sal-
vação a Vischnu, que se incarnou outras tantas
vezes descendo sobre a terra. Entre estas incar-
nações ou Avalars de Vischnu a mais celebre é
aquella em que elle se manifestou sob a forma de
Krischna. O Bhagavat-Pourana e o Mahabharata
são destinados quasi inteiramente a celebrar os
seus altos- feitos : este avatar é o oitavo na ordem
dos tempos. A decima c ultima incarnação de
Vischnu lerá lugar no fim da presente idade. Ap-
parecei-á m.onlado em um cavallo branco e arma-
do com uma cimitarra brilhante para punição eter-
na dos máos. Vô-se, pois, que ha no culto de
Vischnu como uma longínqua lembrança, como
uma tradição obscura e desfigurada da promessa
de redempção feita depois da queda do primeiro
homem.
Quanto a Siva, os seus sectários adoram-n'o,
ora como o principio de geração, ora como o
principio de destruição, sob o aspeclo de ura
Deus terrível e ameaçador. O mesmo succede
com B/iovam, sua mulher e sua irmã, que é tam-
bém honrada debaixo da forma de Kali, deusa
dos infernos. É sabido que esta horrível seita dos
J/íu^5 ou Estranguladores, que espalhou, ainda não
ha muitos annos, o terror por toda a índia, pre-
tendia lornar-se agradável a esta medonha divin-
dade, diminuindo tanto quanto fosse possível o
numero dos vivos.
Segundo Wilson, existem hoje na índia vinte
seitas de Vischnuitas e nove de Siváitas. Mas,
tendo-se em consideração as divindades subalter-
nas que recebem um culto quasi exclusivo, das
crenças, pai-a assim dizer, locaes, e das altera-
ções que as divei-sas escolas philosophicas teem
introduzido nas diíTerentes partes do syslema bra-
hmanico, pôde dizer-se que as seitas indianas ele-
vam-se a muitas centenas.
Apesar de todas as diversidades que se obser-
vam, já nas crenças, já nos cultos da Índia, to-
das as seitas estão de accordo sobre dois pontos
que, por este motivo, podem ser considerados co-
mo o seu laço commum, e como constituindo o
caracter essencial e distinclivo do Crahmanismo ;
queremos fallar da instituição das castas e do do-
gma da transmíf/rarão.
A distincção das castas é d'origem divina. «Pa-
ra a propagação da raça humana, diz o código de
Manu, Brahma produzio da sua boca, do seu bra-
ço, da sua coxa c do seu pé. o Brahmane (padre)
o Kchalriya (guerreiro), o Yaisiija (lavrador, ne-
gociante) e o Soudra (servo, proletário).
«Para a conservação desta criação, o Ser sobe-
ranamente glorioso maicou diíTerentes occupações
a cada um dos que assim tinha produzido. Deu
por missão aos Brahmanes o estudo e o ensino
dos Vedas, o cumprimento do sacrificio, a direc-
ção dos sacrificios oíTerecidos por outros, e o di-
reito de dar e o de receber. Impoz por deveres,
ao Kchalriya, proteger o povo, exercer a carida-
de, sacrificar, ler os livros sagrados e não se en-
tregar aos prazeres mundanos. Cuidar dos ga-
dos, dar esmolas, sacrificar, estudar os Livros
sanlos, negociar, dar dinheiro a juro, cultivar as
336
O PANORAMA
terras, são as funcçõcs do Yaisiya. Mas o sobera-
no Senhor não impoz ao Soudra senão uma obri-
gação : a do servir as classes precedentes, sem
depreciar o seu merilo. .. O Crahmane, vindo ao
mundo, e collocado no primeiro lugar nesta ter-
ra : soberano senhor do iodos os entes, deve ve-
lar pela conservação do Ihesouro das leis.
«Tudo quanto o mundo encerra o propriedade
do Brahmane; por sua primogenitura e por seu
nascimento, lem diíeilo a tudo quanto existe. 5
O livro de Manu é consagrado, sobretudo, a esta-
belecer os direilos e os deveres das três primeiras
castas; mas o objeclo principal da preoccupação
do auctor, são os privilégios dos Brahmanes. «O
Kchalriya ou o Vaisiya, diz elle, que se precipi-
ta sobre um Bi^ahmane com o intento de feril-o,
m as (lue o não lere, c condomnado a girai", pelo
espaço de cem annos, no inferno chamado Tà-
luisra. Se por cólera e de propósito o fere, ainda
que seja com ura insignificante vegetal, deve re-
nascer, durante vinte c uma transmigrações, no
ventre d'um animal ignóbil. Quantos grãos de pó
o sangue do Brahmane absorve, caindo na terra,
outros tantos annos o que fez correr este sangue
será devorado por animaes carnívoros no outro
mundo.
«...One o rei evite matar um Brahmane, quan-
do mesmo elle tenha commettido lodos os crimes
possíveis ; expulsc-o do reino deixando-lhe todos
os seus bens, e sem fazer-lhe o menor mal... Não
ha no mundo maior iniquidade que o assassínio
d'um Brahmane; eis j)orquc um rei nem mesmo
deve conceber a idea de condemnar á morte um
Brahmane.» Quanto aos Sondras não gosam de
direito algum, nem mesmo do de ler os Livros
santos e sacrificar. «Uma cega obediência ás or-
dens dos Brahmanes versados no conhecimento
dos Livros santos, donos de casa e afamados por
suas virtudes, é o dever principal d'um Soudi'a e o
que lhe dá a felicidade depois da morte... Que o
Brahmane não dè ao Soudra nem um conselho,
nem os restos da sua comida, a não se dar o ca-
so deste ser seu creado; não deve onsinar-lhc a
lei, nem pratica alguma de devoção expiatória; o
que declara a lei a um homem da classe servil,
ou lhe faz conhecer uma pratica expiatória, ó
precipitado com elle na tenebrosa morada que
tem por nome Asamvrila.
(íLm Soudra não deve amontoar riquezas supér-
fluas, ainda mesmo que o possa, porque um Sou-
dra, logo que adquire grandes leres, vexa os Bra-
hmanes com a sua insolência... Um Soudra, em-
bora liberto por seu senhor, não está fora do es-
tado de escravidão ; porque, sendo-lhe este eslado
natural, quem poderia exeniplal-o ?... Um Bra-
hmane, se cáe em pobresa, pode, com toda á se-
gurança de consciência, apropiiar-se dos bens de
um Soudra.»
Adverte que a froxidãOj & ignavia bc a mãe
dos vicios ; porque os bens que adquiriste, fará
que os percas: & os que te fullão, fará (|ue os
não adquiras. Manlel Bkhnaudes.
PROFISSÃO DE FÉ
I
Creio cm Deus, porque só elle,
um nnjo dar-ine podia ;
que taes perfeições revele,
que lenlia uma" lai magia,
como lu, rosa de amor.
Creio n'elle ! que o Senlior
mandou ao miiiido — p'ra mira. —
do seu elliéreo jardim
a mais graciosa llor.
Se é errada a minha fé,
pede por mim ao Senhor,
em quanto te adoro, flor,
ao pè de li, sempre ao pé.
II
Eu creio na Providencia,
que me deu um paraizo,
que me inflorou a existência
co'as galas do (eu sorriso,
com mil grinaldas de amor.
Creio n'ella ! que o Scniior
meus anliclos allondeu,
como (|uando concedeu
orvalhos à murcha flor.
Sc é errada a minha fé,
pede por mim ao Senlior,
em quanto te adoro, flor,
ao pé de li, sempre ao pé.
IH
Creio na sabedoria
d'esse Deus todo perfeito,
que uma alma n'um fausto dia
infundio dentro em teu peilo,
mas uma alma toda amor.
Creio, sim, porque o Senhor
deu-te hellesa sem par,
da gasela deu-te o olhar,
deu-te o perfume da flor.
Sc c errada a minha fé,
pede por mim ao Senhor,
cm quanto te adoro, flor,
ao pé de li, sempre ao pé.
IV
Creio que alem d'csla vida,
d'esla vida transitória,
a minha alma, á tua unida,
viverá na eterna gloria,
alimentada de amor.
Creio, sim ! porque o Senhor
nossas almas não quer ver
desunidas fenecer
como a essência de uma flor.
^É errada a minha fé?
Oh, não! — se eu te adoro, flor,
lamltem adoro o Senhor,
ao pé de li, sempre ao pé.
Cândido de FicuEinEDO.
E impossível olhar fixamente o sol c a morle.
La Rocuefoucauld.
Não ha cousa mais cara que a que custa vergonha.
FernXo Mendes Pinto.
Typ. Frauco-Porlugueza, Rua do Thesouro Velho, 6.
f
43
o PANORAAÍA
337
o Corvo e a Raposa.
Em lodos os tempos e em lodos os paizos, pa-
rece que a verdade lem lido medo dos homens e
que os homens Icem lido medo da verdade; pois,
compulsando a hisloi'ia do passado, enconlramos
a fabula ou apolo.ío, que loi a primeira forma
allegorica sob a qual a verdade foicxposla, enlre
os mais anligos monumentos lillerarios de lodos
os povos. A invenção, porém, deste engenhoso
género de lilleialura, c fora de duvida que. per-
tence ao Oriente; isto é, ao paiz onde a verdade,
para melhor ser comprehendida e amada, devia
apresentar-se coberta com um denso véo. Mas
quem foi o seu auclor? O seu nome? Quaes as
primeiras fabulas? Eis o que até iioje não tem
sido possivcl descobrir. Onerem alguns escriplo-
res emiflentes, e l'hedro foi o primeiro a dizel-o,
que o auctor da fabula fora um escravo em quem
nascera o desejo de mostrar, sem correr perigo,
ao lyranno, seu senhor, a linguagem da razão e
do bom senso, para, assim, o afastar da estrada
dadeshumanidade. O nosso erudito escriptor, José
^ Maria da Costa e Silva, que, entre nós, foi um
' dos mais incansáveis na culluia do apologo, a
ponlo de nos legar um livro de seiscentas pagi-
nas, prenhe de fabulas, achou esta explicação
mais poética que verosímil, porque, diz elle: «se
a lição dada pelo escravo era tal que podesso of-
fender o amor próprio, ou o orgulho do Si'nhor,
pouco importava que elle a ouvisse em phrase
clara, ou que a conhecesse por conjectura.» Pa-
rece-nos bem pouco lógica a deikicção, e se se-
guíssemos, nesta parle, as ideias de Costa e Silva,
outro seria o nosso argumento ; mas a nossa opi-
nião diverge da do luso fabulista. A explicação
de Phedro "satisfaz-nos muitíssimo ; só ella nos
poderá servir de guia, na escabrosa senda dos
séculos, até o ponlo que desejamos conhecer: se
é que ainda \i não chegámos. ^0 celebre Se-
nhor, a qnem o Escravo, por um modo artiticio-
so, quiz manifestar o sou pensamento, não seria
o Orgulho ou Amor-proprio, o mais soberbo e
lyranno de lodos os senhores que lêem vindo ao
mundo? [. E o Escravo, por consequência, não
seria o fraco {íenero-humano ."^ Decididamcnle, foi
aquelle o Senhor, (jue o pobre Escravo tentou,
inventando o apologo, conciliar com a verdade.
A sabedoria só nos pôde dar lições, sem ofFen-
der-nos", excitando a nossa curiosidade, recreando
a nossa imaginação.
Das fabulas dos t(Miipos remotos que poderam
chegar até nossos dias é, igualmente, ponto con-
Iroveiso, quaes d'ellas foram as primeiras. Todos
quantos lêem escriplo sobre o assumpto discor-
dam entre si. Florian, que no seu pequeno, mas
elo(|uente estudo sobre a fabula, mostra ler sido
a índia o berço d 'ella, e o sou auctor um bra-
hmane, quer que os apologos de Bidpay ou Pil-
pay sejam os mais antigos de lodos quantos se
3S8
O PANORAMA
conhecem. AVilliam Jones diz, lambem: «As fa-
bulas de Vischnu-Saima, a quem ridiculamenle
dão o nome de Pilpay, são as melhoies, senão as
mais amigas do mundo.)) Elíeclivamenle, ainda
se não enconlrou collecrão alguma que houvesse
precedido esla ; os mesmos apologos de Lokman,
poela árabe a quem alguns escriploies dão uma
exislencia anterior a Visclinu-Sarma, e oulros que-
rem que seja o próprio Ksopo, não passam a nos-
so ver, de uma Iraducção dos d'aquelle; mas, se
Vischnu-Sarma, como ainda não ha muilo tempo
o alíirmou um notável escriptor allemão, viveu
cerca de mil annos antes de Cliristo, como pode-
remos considerar os seus apologos os primeiros,
vendo no livro dos juizes a fabula As arvores es-
colhendo um rei, e no livro dos Reis a do pro-
plieta Natham A ovelha furtada ? Aos sábios a
solução do problema. (I)
As fabulas de Vischnu-Sarma acharam-se escii-
plas primitivamente em sanscri^o, formando um
volume que tinha por titulo Panlcha-Tantra e
Jíitopadesa ou inslrucrão amigável, espécie de
romance allegorico politico e moral, cujos prin-
cipaes personagens são dois chacaes, animaes a
que os Índios attribuem a mesma astúcia, que nós
altribuimos á raposa. Esla obra acha-se traduzida
nus idiomas, pehlvi, antiga lingua da Pérsia que
substituio o zend, árabe, hebraico, lalim e fran-
cez. Em 1826 o abbadc Dubois publicou uma
traducção do próprio sanscrilo. Não nos detere-
mos na analyse destas fabulas; baste dizer que,
á excepção das de Phedro, Lafonlainc e Gellert,
ainda nenhumas as igualaram.
Voltemo-nos agora para a Grécia, que, verda-
deiramente, tem sido o ponto de partida de quasi
lodos que se lecm dado ao trabalho de escrever
sobre este assumpto. È claro, á vista do que te-
mos expendido, que não foi Esopo, como por ve-
zes, erradamente, se tem dito, quem inventou a
fabula; e agora digamos: não foi elle o primeiro
a cullival-a na patiia de Homero. O apologo ap-
pareceu na (jrecia como auxiliar da philosophia :
foi contemporâneo da poesia gnomica e associou-
se igualmente á poesia didáctica. Em Ilesiodo,
poeta que se julga ler sido coetâneo do grande
jlomero, e que viveu, pelo nono século antes de
J. C, cHcontramos a fabula do Rouxinol e o Ga-
vião. Mais tarde ligou-se á poesia iyrica. Archi-
locho, juntamente com as suas odes, dcixou-nos
duas: A Afjnia e a íiajjoza, dirigida conlra Ly-
cambo, e a lia/joza e o Macaco. A fabula, pois^
á sua apparição na (irecia, não formava um gel
nero particular; e Eso[)o, apesar de ser o qu^
mais SC entregou á cultura d'ella, não conseguio
(I) Alguns cscriplorcs lêem querido descobrir nos Verias, a fa-
bula, projiriamenlc dita, c, por ronseguinte, não adiniitem (jik;
SC conliei;am fnliulas iiiiiis a.ilij^asdii (jiie as da índia, ipiefoi, ao
crescentaífi, onde nasceu este generodeliticralura. Nesla ulliinaiiar-
te, ofnliin, cstimos de aocordo. í>>in oiju", porém, nos não podemos
conf<jrniar, é com a oulra idfdn, a não ser f|ue confundamos a
par.itjola com a faljnla ou apologo, que são, é verdade, duas es-
pécies pjrlicu lares da allegoria, mas dislincUis cnln; si. A para-
l>ola ú urna narração allegorica, curta, senlenciosi que encerr.i
sempre implicitamente uma lição de morai. O apoloí?o ou faliu-
li (jurque não existe diíTeren&i essencial na significação destas
duas palavras) c geralmente uni pequeno joema cuja' forma i-
dramática e na qual o auclor enuncia o preceito moral que di
mana da iiccáo profiosta.
líbertal-a dos laços que a prendiam a oulros gé-
neros. Annos de|)ois, quando formou um domínio
á jiarte, ainda não era completamente livre; es-
teve muito tempo ao serviço da elo(|uencia: pro-
vam n'o, a fabula do Homem e o Cavallo, que
Slesichoro contou aos llimerianos, quando Phala-
ris tomou o mando das tropas, a dos Membros e o
Esloma(jo, de que Mnenius Agrippa se sérvio pa-
ra reconciliar o povo com os patrícios, e, final-
mente, muitas outras que se encontram nos di-
versos historiadores gregos e romanos.
iSão sendo, |)or tanto, a fabula um género dis-
linclo e independente, era narrada em prosa, ,e
ludo leva a crer que Esopo não escreveu em ver-
so, i, Escreveria elle mesmo as suas fabulas V A
opinião contraria lem mais verosimilhança. O
que, porém, nos não parece ponto duvidoso, é
que elle fosse o criador da fabula chamada Eso-
pica. E se não, quaes são as obras dos fabulíslas
que o precederam que estejam no caso de contes-
tar a propriedade das d'elle, a prioridade da in-
venção ?
Sobi'e a sua vida e obras quasi ludo quanto alé
hoje se lem dito não passa, a nosso ver, de um
acervo de disparates. Os que não querem que o
disforme fabulísta Phrígio existisse dizem, como
Florian, pouco mais ou menos : «O que é certo é
que os apologos índios, entre os quaes se encon-
tra o dos dois pombos, foram traduzidos em todas as
línguas do Oriente, or-a sob o nome de Bídpai ou
Pilpai, ora sob o de Lochman. Depois passaram
à Grécia sob o Ululo de fabulas d'£sopo.» (Isto
poderia ler seus visos de verdade se enlre as fa-
bulas de Bidpay e as de Esopo houvesse, pelo
menos, alguma semelhança, mas tal cousa não
existe.) Os que são de opinião contraria, apre-
sentatn-n'os um amontoado de tradições sem cri-
tica e de contos a maior parte delles invei'osimi-
Ihanles, como a Vida d'Esopo por Planudio, a
qual, o que deveras nos admira, Lafontaine se
deu ao trabalho de traduzir e, o que é mais ainda,
não leve receio de a publicar juntamenle com a
sua collecção de fabulas I
(Continua)
OS BRAHMANES
(ConcluBão)
O dogma da Iransmif/ração das almas ou da
3lelempsijcose, como o íeitor já poude r-econhecer
pelo castigo pronunciado conlra aquelle (jue ousa
ferir um Rralimane, é a sancção da lei civil e re-
ligiosa dos índios. Segundo Manu, os males que
allligem o homem são a punição e a conseíjuen-
cia inevitáveis dos seus peccados. A vida actual
é uma expiação, porque é o seguimento das vidas
anteriores, (^omludo, o homem, depois de uma
serie, mais ou menos longa, de transmigrações,
pôde chegar a um lai gráo de perfeição que me-
reça ser recebido no seio de Rrahma e licar dis-
pensado de voltar a esta terra de provas. «O ho-
mem, diz ainda o Manava-Dharma-Saslra, que
pratica frequentemente actos religiosos interes-
sados, chega a enlrar na ordem dos deuses;
o P\NORAMA
339
mas o que executa a miude obras piedosas des-
interessadas, despoja-se para sempre dos cinco
elementos, e obtém liberlar-se dos laços do cor-
po. Vendo igualmente a alma suprema em todos
os seres, e lodos os seres na alma suprema, otTe-
reccndo a sua alma, identilica-se com o ente que
brilha com o seu próprio resplendor... As almas
dotadas da qualidade de bondade, adquirem a na-
tureza divina ; aquellas que são dominadas pela
paixão participam da condição humana; as almas
mergulhadas na obscuridade, passam para os ani-
maes: taes são as três principaes espécies de //'«hí-
migrarões. Se a alma se tem dado frequentemen-
te ao mal e raras vezes ao bem, depois da mor-
te, despojada do corpo, tirada dos cinco elemen-
tos, e revestida de outro corpo formado das par-
tículas subtis dos elementos, é submettida ás tor-
turas infligidas por Ya?na (rei dos infernos.)»
O dogma da metempsycose, por mui estranho
que nos pareça, deriva naturalmente do systema
das emanações e forma o remate necessário de toda
a doutrina religiosa fundada sobre o pantheismo.
Mas, esta concepção da metempsycose tem pro
duzido consequências que importa muito dar a
conhecer : queremos faltar do desenvolvimento
exagerado da vida eremitica e contemplativa, e
do esquecimento das obras pelas ausleridades e
formas expiatórias, por meio das quaes, pensam
os Índios, que se podem evitai as transformações,
muitas vezes desagradáveis, de que está ameaçado
o homem culpado, o violador da lei. «Os grandes
criminosos, diz Manu, e todos os outros homens
culpados de diversas faltas, são descarregados
dos seus peccados por ausleridades praticadas
com exactidão. As almas que animam os vermes,
as serpentes, os gafanhotos, os animaes, as aves,
e mesmo os vegelaes chegam ao céo pelo poder
da devoção ausléra. A letra A, a letra U, a le-
tra M, foram exprimidas dos Ires livros sanlos
pelo Senhor das criaturas. Dos Ires Vedas (Irata-
se aqui dos Ires primeiros), o Altíssimo, o Se-
nhor das criaturas extraio lambem, eslrophe por
estrophe, essa invocação chamada Savitri, que
começa pela palavra Tod. Recitando, em voz bai-
xa, de manha e de tarde, o monosyllabo AUM, e
esta supplica precedida das Ires palavras Bhour,
Bhouvah, Swar, lodo o Crahmane, que conhece
perfeitamente os livros sagrados, obtém a santi-
dade que o Veda procura. Aquelle que, durante
Ires annos, repete lodos os dias esta supplica,
sem nunca faltar, irá juntar-se á suprema divin-
dade, tão ligeiro como o vento, revestido de uma
forma immorlal.»
As penitencias voluntárias que, muitas vezes,
se impõem aos anachoretas Índios, chamados /í/o-
guis e Sanngasts, conforme a classe a que per-
tencem, lêem sido sempre objecto de grande
admiração para os viajante. Muitas d'entre ellas
estão enumeradas no código de Manu : «Oue
o anachorela se roje pela terra, ou que se con-
serve nas pontas dos pés durante todo o dia; que
nos calores do verão, se rodeie de cinco foguei-
ras ; que, na estação das chuvas, se exponha,
sem abrigo, ás nuvens; que, na estação fria, tra-
ga vestidos húmidos, e que augmenle gradual-
mente o rigor das suas penitencias ; que se inflija
as mais terríveis mortilicações e que, (h^ste modo,
vá destruindo o seu involtoiio corporal... Que
sempre caminhe em linha recta para a região se-
ptemtrional, vivendo unicamente de ar e de agua,
ale que o seu corpo caia no pó.:» Estas morliíica-
çues, como se vè, vão até o suicídio, e os precei-
tos de Manu foram religiosamente seguidos. E'
por isso que na celebre festa de Djaggernâth, ín-
dios devotos fazem-se esmagar debaixo das rodas
do carro que conduz o ídolo do deus; é ainda
por isso que na festa solemne, que se celebra lo-
dos os annos |)roximo de Calabhaírana, muitos se
precipitam do alto d'um rochedo. INos tempos an-
tigos, o queimar-se o individuo em vida parecia
ser cousa muito usada. Os phílosophos índios Ca-
lanus e Sarmanochagas, que, segundo os histo-
riadores gregos, se queimaram, o primeiro era
Pasargade, na presença de Alexandre, e o segun-
do em Athenas, são exemplos do que deixamos
dito. Comtudo, estas ausleridades, na generalida-
de, tão horríveis, que descrevem as relações, são,
a maior parte das vezes, inspiradas pela vaidade
e pelo desejo de receber homenagens.
A moral ensinada pelos Livros sagrados da ín-
dia tem sido muito gabada. Effeclivamente, como
todas as legislações possíveis, consideram crimes
grandes o assassínio, o roubo, o adultério, etc. ;
contém prescrípções admiráveis relativas á cari-
dade, á esmola, á hospitalidade ; mas estas pres-
crípções estão radicalmente viciadas pela ínsliluí-
ção religiosa das castas. As passagens que temos
citado bastam para demonslral-o.
Também tem sido muito exagerada a cifra dos
sectários do Brahmanismo: não deve, porém, ex-
ceder de sessenta milhões ; porque esta religião
não se estende fora do Indostão, e esta vasta re-
gião é ainda habitada por muitos milhões de in-
divíduos que professam o Mahomelismo, o Sabeís-
mo, ou o iNanekismo.
CARLOS II DE IIESPANIIA
.^iin ineiioriílaiflc
Depois de um longo e fatal reinado de quarenta
e quatro annos, durante os quaes continuara ra-
pidamente, e com mui curtos íntervallos, a des-
membração do império de Carlos A' e Phiíippell,
deixou de existir Phílíppe IV (terceiro de Portu-
gal), no dia 17 de setembro de 1665.
Posto que dos seus dois matrimónios, celebra-
dos o primeiro com D. Isabel de Rourbon, e o
segundo com D. Marianna d'Auslría, resultassem
vários filhos varões e fêmeas, só lhe sobreviveu,
dos primeiros, o desventurado Carlos 11, ultimo
ramo masculino da regia arvore dynastica, e este
na tenra idade de qualorze annos incompletos,
como nascido que era em novembro de 1661.
Três dias antes de morrer, outorgara Phílíppe o
sou testamento, no qual nomeava a rainha D. Ma-
rianna tutora de seu lilho e herdeiro, e regente
340
O PANORAMA
do reino na sua menoridade, em termos tão ex-
pressivos, como estes : «para que só com esta
omeação, sem outro aclo, nem diligencia, nem
^ ramenlo, nem discernimento da dita tutela, pos-
^^\ desde o dia em que eu fallocer, entrar no go-
^^erno do estado na mesma forma e com a mesma
\cloridadecomo eu o laço ; poique e minha von-
tade dar-lhe a que teníio e toda quanta mais fôr
necessária, sem reservar cousa alguma, a lim de
(,ue,como tutorado lilho ou lillia nossos, que mesuc-
ccder, tenha todo o go\erno e regimento de todos
os meus reinos em paz e em guerra, ate que o
lilho ou íilha que me succeder tenha quatorze an-
nos completos, para poder governar.» Não obstan-
te, e alim de auxiliar a rainha viuva com seus
corseihos e serviços, Philippe insliluio uma junta
corsu liva composta do cai-deal arceljisj)o de To-
ledo e inquisidor geral ; do conde de Caslrillo,
presidente do conselho de Caslella ; I). Crislóbal
Crespo, chanceller ou presidente do de Aragão ;
do maiquez de Avltuia, grande de Hespanha, e
do conde Penaranda, conselheií-o de Estado.
D. iMarianna senlio sinceramente a morte de
seu augusto esposo, e pareceu disposta .a seguii'
as instrucções que d^elle recebera e os conselhos
da junta consultiva que llie lura legada ; mas, de-
pressa deu a conhecer que outro inlUixo su|)erior
dominava a sua consciência e havia lambem de
subjugar a sua auctoridade soberana. Esta perni-
ciosa inlluencia, e estranha dominação, eram as
que exercia no animo da rainha o seu confessor,
o jesuíta allemão padre João EverardoNitard. Este
astuto personagem (a quem se não pôde negar
certo dom de talento politico) acompanhara l\la-
rianna, na qualidade de seu director espiritual,
quando ella foi casar com Philippe, em 16iG; e
ainda que de origem humilde e mediana capaci-
dade, soube ganhar certa reputação no collegio
de jesuilas de Vienna, na sociedade cortezã (l'a-
quella capitai, insinuou-se no animo do impera-
dor, que se dignou recommendal-o a sua irmã, a
futura rainha de Hespanha, e, por lim, na vontade
desta senhora, que, durante os vinie e um annos
do seu matrimonio com iMiilipj)e, nunca apartou
do seu confessionário o religioso aMemão. O rei
lambem respeitava e queria muito ao director es-
j)irilual de sua augusta esposa ; apesar, porém,
das instancias desta, paia que lhe conferisse outras
dignidades ecclesiaslieas, Philippe nunca deu ou-
vidos, deixando-o tranquillamenle no seu delica-
do ministério, sem adiantai-o na sua carreira.
Assim, |)rovavelmenle, caminhariam as cousas
se não fosse a morte de Philipfie c a icgeneia do
reino não passasse ás mãos de Mariaiina ; oecor-
rida, porém, aquella e encari-egada esta do jxxler
.supremo, o primeiro uso que fez da sua auctori-
dadi! foi a favor do padre .Nilard ; porque, morto
o cardeal Sandoval no dia seguinte á(|uelle em
(jue falleceu Philippe IV, e nomeado, em seu lu-
íiar, arcebispo de Toledo o cardeal 1). Pasehoal
de Aragão, e inquisidor geral, a rainha empe-
nhou-se para que esle renunciasse ao ultimo car-
go, o que lhe não foi dillicil conseguir, e inves-
tio n'elle immediatamente o seu confessor, sem
fazer caso da junta consultiva. Esta arrojada de-
terminação, esta disposição de um emprego tão
importante, qual o de inquisidor geral, sem con-
sulta alguma, j)oucos dias depois de tomar as ré-
deas do governo, e fei'a a favor de um estrangei-
ro nascido e educado, segundo se dizia, nos seus
primeiros annos na seita lulherana, e que, além
d'isso, não contava a menor sympalhia nos con-
selhos da coroa nem no publico, deu motivo ás
primeiras murmurações e desgostos, que. todavia,
a destresa de IMarianna e o manejo dos princi-
paes cortezãos poderam abafar; mas, que não dei-
xaram de semear o gérmen de futuras discórdias,
invejas e atlribulações. E estas cresciam de dia
para dia tanto, quanto o predominio do padre
confessor e inquisidor geral augmentava, não só
na direcção da consciência regia com actos mera-
mente religiosos, senão lambem nos que diziam
respeito ao governo temporal do reino ; e em ler-
mos, que já era designado [mblicamenle com o ti-
tulo de favorito ou valido, e supeiioi- em poder a
todos os ministros e dignidades do Estado.
A lesta dos descontentes c personilicando as
inimisades da corte e do povo para com o in-
(juisidorEverardo, appareceu logo um grande per-
sonagem, que se propoz a oppor a sua alia posi-
ção e relevantes dotes á desniedida elevação em
que soubera coliocar-se o astuto padre. Esle po-
deroso personagem era D. João José d'Auslria,
lilho natural de PhilippeiV, fructo dos seus amo-
res com a celebre actriz Maria Calderon.
(Cunlinua)
A TORRE DE LONDRES
Poucos monumentos recordam tantos factos his-
tóricos como a torre de Londres ; contemplando
aquellas grossas paredes, as scenas de dor de que
foram leslemunhas descnham-se em multidão na
memoria; a imaginação penetra n'aquella som-
bria morada, que tantos séculos sérvio de prisão,
não só a homens culpados, mas a nobres e gene-
rost>s- corações victiinas da anarchia e do despo-
tismo. O seu destino actual não excita nenhuma
commoção penosa, e o viajante corre a visital-a
como um reslo de antiguidade ligada estreila-
menle a. mais de uma pagina da hisloiia.
A parle mais antiga do edifício tem sido, por
vezes, attribuida a Júlio í>esar; disse-se mesmo
(]ue existira ifaquelle sitio uma fortaleza romana;
mas esle fado, que se não appoia na auctoridade
de nenhum historiador, não nos parece suílicien-
temenle attestado |)ela descobeiia recente de me-
dalhas e outras antiguidades que não ollerecem
nenhuma relação com o lugar onde foi-am encon-
tradas. A torre branca, que forma hoje a parle
mais notável, foi edificada no reinado de (íuilher-
mel, |)elos annos 1080, por (jandulpho, bispo de
Roehester, afamado por seu talento na arte das
fortilicaçOes. Em 11 ÍO, no reinado de Eslevam,
lornou-se residência real. Três annos depois,
(ieoílVey de Mandevilie, foi ali sitiado pelos ha-
o PANORAMx\
U\
Torre de Londres.
bilanles de Londres, partidários de Estevam, que
o aprisionaram e obrigaram a derai(lir-se do car-
go de governador, enlão hereditário em sua fa-
luilia, uma das que seguira o conquistador em
1189. Loncbamp, bispo d'Eiy, a quem Ricardo
confiara o cuidado do reino e a guarda da torre,
fortificou-a e rodeou-a de um fosso. O rei João
também ali fez trabalhos consideiaveis, e nos úl-
timos annos do seu reinado ali teve a sua corte;
mas os barões revoltados apodeiaram-se d'ella e
entregaram-na a Luiz de França. Em 1217, foi
restituída a Henrique IJI, o qual mandou construir
a capella, a sala de estado e a grande galeria,
llalph Elambard, bispo de Durham, ministro e
coníidenle de William Rufus, no tempo de Hen-
rique I é o primeiro prisioneiro de quem falia a
historia ; o celebre Hubert de Rurgh, conde de
Kent, ali foi successivamente governador e capti-
vo, em 1232. Henrique III refugiou-se n'ella mui-
tas vezos durante as guerras civis e accrescentou-
Ihe muitos meios de defesa. Eduardo í acabou os
trabalhos emprehendidos por seu pao ; foram es-
tes os últimos ti-abalhos importantes que se' íize-
ram. Seiscentos jii(i(!us foiam ali encerrados pelo
crime de moeda iaisa, e o famoso William Wal-
lace ali passou alguns dias, em 1305, antes de
terminar a sua vida de hcroe pelo supplicio de
um criminoso.
Este ediíicio mudou muitas vezes de dono du-
rante o turbulento reinado do infeliz Eduardo 11,
e a invasão da França por Eduardo Hl, tornou-o
ainda habitação de illuslres personagens ; os con-
des d'Eu e de Tancarville para ali foram condu-
zidos com trezentos cidadãos de Caen ; em pouco
tempo a batalha de Nevill's Cross, ganha pela
rainha na ausência do vencedor de (]reci, deu-
Ihes por companheiros de capliveiro David Bruce
e os lords de Fife e de Monleith, aos quaes fo-
ram juntar-se no fim de alguns mezes Carlos de
Rlois e o bravo João de Vienna, governador de
Calais, com doze dos principaes cidadãos desta
cidade. João c seu filho para ali foram também
conduzidos em 13Jj9, depois de lerem estado pri-
sioneiros em Savoy-Palace em Londres e em
Wíndsor-Castle.
O tratado de Rretigny, que deu, <"m 1360, a
liberdade ao rei de França, foi seguido de alguns
annos de um socego, que se pôde chamar relati-
vo. Mas as agitações de que a torre foi thealro
manifestarem-se no reina(lo de Ricardo II ; em
1377 abriram-se as suas portas para deixarem
passar o cortejo que o acompanhava a Weslmins-
342
O PANORAMA
ter, e logo depois do rei, a sua família e os prin-
cipaes senhores do reino ali foi'ani sitiados por
^Val Tyler. á frente de 60:000 rebeldes. Ricardo
foi novamente atacado nesta fortaleza cm 1387,
por seu tio, o duque de Glocesler; logrado por
uma falsa reconciliação, vio morrer muitos dos
seus ministros pelas ordens do duque, e um d'el-
Ics, Simão Burley, foi a primeira pessoa decapita-
da em Tower-niri. lugar que depois foi muitas vezes
escolhido para execuções semelhantes. Emlim, Ri-
cardo cedeu o throno em lí97 a Ilenriíjue Bolin-
gbroke, que, como elle, saio da torre para se di-
rigir a Westminster no tini de um lapso de (em-
po muito curto. O rei desthronado foi conduzido
sem vida paraaquella triste habitação, onde, por
uma exposição publica, se esperou destruir certas
suspeitas que, dizem, eram mui bem fundadas.
ISos reinados de Henrique lY e seu successor,
a lorre sérvio muilas vezes de prisão de estado ;
ali encerraram em li06, contra toda a justiça,
James, príncipe da Escócia, que apanharam na
costa, no momento em que embarcava para Fran-
ça, onde ia ser educado; seu pae, Roberto 111,
morreu durante a sua prisão, e assim foi James, o
terceiro rei da Escócia que, no espaço de um sé-
culo, habitou na torre. Este piincipe deixou sob
o titulo de Livro do rei, the kiuffs quhair, um
poema que prova um verdadeiro talento; compoUo
emWindsor, para onde foi transferido; era tra-
tado com muito respeito, tinham com elle todas
as allenções e o rei parecia estimal-o muito, mas
o príncipe, só recobrou a sua liberdade em 1423,
e foi obrigado a dar caução para o pagamento de
um resgate de 40:000 libras. Os duques d'Orleans
e de Bourbon com muitos outros senhores france-
zos foram enviados para a torre no tempo de
Henrique VI, duiante as guerras de França. Em
14o0 os revoltados, á testa dos quaes eslava Jock
Cadc, sitiaram-na. Lord Say e Sir James Cro-
mer, seu genro, foram viclimas da sanha popu-
lar; mas esta commoção passageira foi apenas o
preludio de numerosos acontecimentos guc assi-
gnalaram as guerras das duas rosas. Lord Scales,
atacado em 1400 pelo conde Salysbury e lord
Cobham, cntregou-se quando soube da prisão de
Henrique VI em Northampton que, depois das al-
lernalivas de victorias e (hs derrotas, foi, em se-
guida á batalha de llcxham, em 151)4, encerrado
na torre onde esteve muitos annos, durante os
quaes o seu feliz rival Eduardo VI ali habitou
mais habitualmente que os últimos reis É curio-
so seguir na historia as eslranhas vicissitudes
destas reaes existências ; ver II('nri(|ue subido ao
throno em 1i70, desthronado no aiino seguinte
por Eduardo, trocar novamente a coroa pela pri-
são aonde, dentro em pouco, lhe foi fazer com-
panhia Margarida, sua mulher, que vira fenece-
rem as suas ultimas espeianças cm Tewksbury;
a penna de Shakspeartí imiuDilalisou o trágico
lim de Ilcnriíiue, mas este fado não foi bem es-
clarecido pela hisloria. O que se sabe com certe-
za, é que Henriíiue morreu poucos dias depois
da entrada tiiumphanle de IMuardo na cai)ilal. O
duque de Clarence, irmão do rei, em 1478, foi
encarcerado, julgado e executado debaixo d'um
frivolo pretexto ; diz-se que fora afogado em um
tonel de Malvasia ; mas não se pôde empregar
muita atlenção em libertar a aulhenticidade \la
historia das versões populares e dramáticas que
muilas vezes deturpam os mais importantes acon-
tecimentos. Poucas épocas são tão obscuras como
a que se segue immedialamente á morte do rei e
á elevação do duque de (llocesler ao protectorado.
Julga-se que os lords llaslings, Stanley e o bispo
de E!y foram presos na sala do estado onde de-
liberavam; o ultimo foi executado immediata-
mente. Este altentado sérvio de prologo á usur-
pação do duque ; mas é provável que nunca ve-
nha a saber-se positivamente, em que lugar foi
commettido o mais horrível dos seus crimes : o
assassínio dos seus sobrinhos. Eduardo Plantage-
net, íilho do duque de Clarence, foi executado
na torre, victima do ciúme de Henrique Vil, e no
reinado seguinte, pereceu, de morte semelhante,
sua irmã, a condessa de Salisbury, ultima vergon-
tea desta raça real.
(Cv)Uinun)
FRANCISCO PIZARRO
Poucas narrações haverá tão curiosas na his-
toria universal, como a da primeira entrevista de
Pizarro com o pobre Alahualpa. Não sabemos
bem qual dos sentimentos se apodera com mais
violência do nosso espirito, se a profunda repu-
gnância pela pcríidia abjecta do chefe hespanhol,
se a admiração pela sua audácia, ou se a com-
paixão pela infantil ignorância e timidez dos Pe-
ruvianos. Com os seus cento e oitenta homens
de pé e de cavallo, e as suas duas peças de ar-
tilheria, esperou Francisco Pizarro a visita ami-
gável do inca. Este, sem intenções cíTensivas, mas
apenas para desenvolver um luxo e um poder que
dessem dclle aos estrangeiros a mais elevada idéa,
apparcccu n'um palanquim sumptuoso^ acom-
panhado pelos seus principaes servidores, e se-
guido por trinta mil liomens de tropas, lodos
cobertos d'armas luzentes, cuja vista, em vez de
aterrar os hespanhoes, não fez senão excilar-lhes
a cobiça.
Foi no meio destas forças coUossacs que Pi-
zarro formou o projecto de lançar mão do inca.
Um fanático monge, que o acom[)anliava, pro-
porcionou-liie o ensejo. Dirigindo-sc a Atahual-
pa fez-lhe um longo discurso, começando pela
criação do mundo. Era caso para o inca lhe di-
zer: «Avocat, passons au délur/e.n Mas o pobre pc-
ruviano não percebia palavra, o o interprete^
que pouco mais pcrccl)ia do que elle, Iraduzio-
Itie o resumo da liistoria ecclcsiastica do reve-
rendo do modo mais incomprchensivel. Só quan-
do o frade citou a bulia d'Ale\andrc VI, que doa-
va o Peru, em ([ue o papa nunca ouvira fallar,
ao rei de Castclla, c quando lhe disse que elle
inca devia considcrar-se vassallo de Carlos V,
Alahualpa respondeu indignado que era sua a
coroa, e que não percebia que direito se arro-
gava esse monarclia de terras distantes para d'cl!a
o esbulhar, accrcscenlando que era Ião extraor-
dinário o que o monge lhe dizia, que desejava
saber quem lhe ensinara essas cousas. O padre
o PANORAMA
343
Valverde, todo ufano, sacou "Ti^um breviário, e
apresentou- o ao inca. Este mirou-o, e remirou-o,
pol-o ao ouvido, e respondendo: «Isto nada me
diz» alirou-o fora. Logo o diabólico frade, vol-
tando-se para os seus compatriotas, bradou :
«Insulta a palavra de Deus I Matae o pagão !»
Era o que Pizarro desejava. Deu logo o signal
do alaque. Rufaram os tambores, o morrão dos
artilheiros approximou-se do ouvido das peças,
que estrondearam vomitando fogo ; os cavallos,
animaes desconhecidos que os peruvianos mira-
vam com espanto, partiram a galope, obedecendo
ás esporas dos cavalleiros, a infanteria deu uma
descarga de mosqueies e bestas, que prostrou vin-
te ou trinta homens. Nada mais foi necessário para
que os trinta mil peruvianos se dispersassem,
cheios de terror, abandonando as arraas^ e ta-
pando os ouvidos para não sentirem o iirado
clamoroso da arlilheria, e o tropear dos caval-
los. Só os que rodeavam o Inca tentaram uma
defesa, que de nada valeu, porque os hespanhoes
arrancaram do meio d'elles Atahualpa, que per-
manecia no palanquim cheio de espanto e de
terror.
Scenas são estas que fazem com que nos en-
vergonhemos da qualificação altiva que tomamos
de povos civiiisados, da ufania que sentimos do
nosso nome de Europeus. Aqui temos a civilisa-
ção orgulhosa dos nossos antepassados em pre-
sença da civilisação juvenil dos povos peruvia-
nos,' 6 a civilisação superior abusa da sua supe-
rioridade para esmagar, para torturar o -povo,
que não deu ainda passos tão largos no caminho
do progresso. Eia assim que deviam proceder
os missionários do Evangelho, os seguidores de
Christo?
Não se pode imaginar o desespero do inca
Atahualpa, vendo-se privado do throno e da li-
berdade por uma horda de aventureiros, cujo
desembarque nem julgara necessário impedir.
Agora sabia bem qual era o poder d'esses ho-
mens, e de que ignotos recursos elles dispunham
para subjugar o seu império, recursos que faziam
de cada hespanhol um deus para os seus ater-
rados súbditos. Cônscio de que não podia recu-
perar pelas armas a liberdade, resolveu-se a ap-
pellar para a cobiça dos vencedores promettendo-
lhes um resgate que excedesse os mais audazes
devaneios da sua imaginação. O resgate que elle
mesmo fixou foi tal eííeclivamente que o próprio
Pizarro se julgou transportado a plena região
de fadas e incanlamentos. Prometteu Atahualpa
encher até o teclo com vasos d'oiro o quarto
em que estava preso, e que tinha vinte e dois
pés de comprimento e dezeseis de largura!
Logo o inca prisioneiro expedio as ordens ne
cessarias para se reunir o tributo coUossal, e a
tão despótico jugo estavam habituados os seus
vassallos que nem foi necessária a intervenção
dos hespanhoes para o cobramento do imposto.
De todas as parles do império vieram os Índios
trazendo as suas quotas, e no dia de S. Thiago
pôde Francisco Pizarro fazer a distribuição des-
sas riquezas immensas entre os seus subordinados.
N'esse meio tempo desembarcara Almagro com
um reforço que duplicara o numero das tropas
de Pizarro. Este, reservando alguns vasos de for-
ma curiosa para offerecer ao imperador Carlos V,
mandou derreter o resto, e tirando o quinto para
a corôaj e cem mil pesos, que destinava para
gratificar os recem-chegados, ainda pôde distri-
buir pelos seus a somma enormissima de um
milhão e quinhentos e vinte e oito mil e qui-
nhentos pesos.
Imaginc-se o eíTeilo que produziriam aquellas
riquezas no espirito d'esses aventureiros, onde
fermentavam todas as más paixões. Uns saciados
quizeram rctirar-se para gosarem do fructo das
suas rapinas, outros, inllammados por este prelu-
dio, sentiram a sua avareza accender-se ainda
mais e incital-os a não recuarem diante de crime
algum para attingirem aos supremos limites da
opulência.
Continua)
A GOMES DE AMORIM
(depois da leitura dos Ephenieros)
Hoje, que a pristina crença,
e as nossos glorias passadas,
as vemos embaciadas
pelo gelo da indifrença —
dentro d'este peito moço
sinto não sei que alvoroço,
chóro de intimo prazer,
quando vejo a mão da gloria
nas folhas da nossa historia
ir mais um nome escrever.
Poela I no rosto puro
vae cingir os verdes louros
que são despojos, thesouros
(la conquista do futuro 1
Do futuro ! que o presente
talvez da c'roa fulgente
afaste os olhos, . . talvez !
Mas, poeta, não te importei
pois tiveram esta sorte
mil génios como tu ésl
Tiveram ! se negra lama
o rosto lhes salpicava,
mais tarde o mundo escutava
os ecos da sua fama 1
tiveram 1 mas os vindouros
prodigaram-lhes os louros
que o presente lhes negou 1
Poela, dobra os joelhos
diante (fosses espelhos
que o porvir desempanou ! ...
Como esses, que da desgraça
os golpes exp'rimentnram,
e tristes cantos mesclaram
ás vaias da i)opnlaça :
tu, joven e desditoso,
crusasle o oceano iroso,
c, nns plagas de alem-mar,
do exilio os amargos prantos
foste adoçar com teus cantos,
a eacravidão adoçar 1
Lá, mediste o génio altivo
pelas altivas palmeirat;
e, se ellas foram primeiras
a subirem, tu — cativo —
a alma ergueste acima d'ellas,
e a teus pcs viste as estreitas,
viste desertos, sertões. . .
nas clareiras d'esses matos
de eternos, enormes cactos
viste tigres e leões 1
344
O PANORAMA
Lá, Uulo era magesloso,
ludo inspirava poesia,
e luilo em si reileclia
a imagem do Poderoso !
Através de cipós densos,
de mil curimbos immensos,
por entre os carajiirús,
o sol coava-se ardente,
infiltrando docemente
na tua alma doce luz.
E essa luz rompia as sombras,
que o seio te povoavam
de areaes rosas brotavam,
vias regatos e alfombras ;
de espinhos fazias llores,
e, esquecendo tuas dores,
louvavas o Creador,
ou da pátria te lembravas,
e saudoso lhe enviavas
ternos cânticos de amor.
Mais tarde, uma nova eslrella
desviou-le dos palmares :
de novo crusasle os mares,
quando o rugir da procella
l>ara li ja tinha incanios,
que traduzias em cantos
de sublime inspiração!
— Que poeta não sentira
inspirada a sua lira,
do mar ante a immensidão ? !
Quando o raio lá fusila
entre nuvens pardacentas;
quando estalam as tormentas,
e o tufão ruge e sibila,
os mastaréos agitando ;
quando o baixel, vagueando
entre os abysmos do mar,
vacila ao choque da vaga,
que o lais das vergas alaga
e no convez vem quebrar :
que ignotos arroubamenlos
sentira n"alma o poeta
nesse oceano sem mela,
ao rugir de soltos ventos,
ao ver ondas, uma a uma,
formarem serras de espuma
que vão lopetar os céos 1
Digam- n'o as notas sonoras
que te inspirou nessas horas
o bramir dos escarcéos l
Depois, quando o mar cm calma,
seu manto azul estendia,
oh que suave poesia
se albergava na tua almal
sentada pelas amuras,
olhavas essas planuras
e dos astros o fulgor,
cantando em lira sentida:
«cada onda adormecida
encerra um mundo de amor 1 >■>
Mas o amor, que com mais anela
o coração te agi*va,
era o amor que te ligava
ao berço da tua infância :
de longe— por sobre os mares,
ou entre os verdes palmares ^-
era a nalria o sonho leu ;
por cila, noites e dias,
desprendeste as harmonias
que a saudade le deu.
Amor patriótica alma jubila
ver que (Teste amor a chamma
ainda entre nós se inflamma,
ainda luz e scintila
nas trevas que o egoísmo
quer lançar ao patriotismo
— brazão* de nossos a\ós!
Poeta, salve Ires vezes 1
mostra que és dos porluguezes,
deixa ouvir-me a lua voz 1
C quando o terreno pisas,
onde vieste à luz do dia,
a tua alma se inebria,
sôfrego asiiirando ás brisas
o perfume que beberam,
e, no perpassar, trouxeram
do olorante roseiral ;
e do Minho o nobre filho
com seu canto augmcnta o brilho
ao jardim de Portugal.
E quando— ave foragida —
ao buscar o pátrio ninho,
já não achas o carinho
do pae e da mãe querida ;
e, por flores de outra idade,
só encontras a saudade ■
no teu formoso torrão,
— que terna melancolia !
como sae doce a poesia
d'entre as vozes da oração 1
Amor de filho ; amor santo,
nobre filho da virtude!
qiiom nas cordas do alaúde
a esse amor sagra um canto,
um canto assim inspirado —
em seu peito maguado
mostra haver um coração,
onde morreu a alegria,
mas o gérmen da poesia
mas a crença, essa, não 1
A crença! virgem celeste!
oh ! como ella te inspira,
(juando jiranleias na lira
os amigos que perdeste!
— Sobre tantas sejiulluras,
e entre tantas amarguras,
ergues os olhos aos céos ;
resignado as mãos levantas,
c o cálix de maguas tantas
recebes das mãos de Deus 1
E esses jorros de poesia,
de tua alma derivados,
e da crença bafejados,
; hão de extinguir-se n'um dia?l
kphcmcros 1 . . . Tal modéstia,
bem vês, a fama revesle-a
de coroa perennal !
— É que o génio nunca morre,
mas com os séculos corre ;
joven sempre, é immorlal 1
Ephemeros] . . . Não, poetai
Quando vires lua vida
anoitecer, csvaida
dos séculos na ampulheta,
teus cantos immorredouros
farão lá entre os vindouros
o leu nome reviver 1
E a uma gloria lamanha
dá-me que eu já hoje venha
devidos preitos render
Vizeu, 1860.
Cândido de Figueiredo.
^Typ. KraiJco-PoriugucEii, Mua do Ihesouro Vellio, U.
44
o PANORAMA
345
<!r>'.v^/-
Uma vista de Veneza
A cidade de Yeneza, de que já falíamos neste
mesmo volume do Panorama a propósito da pon-
te de Rialto, apparece agora aos nossos olhos
cheia de um esplendor mais vivo e de uma Lel-
leza mais radiante. A rainha do ad.i"iatico parte
os grilhões que lhe arroxeavam os pulsos, e en-
tretece grinaldas para se coroar jubilosa. Resus-
citou Veneza, \enezia la bella, o paiz das gôndo-
las e dos cantares, do luar pallido e dos palácios
njysteriosos, dos Foscari e de Desdemona, dos
ciúmes e das volupluosidadcs, das vinganças e
dos exlasis. O seraphim da poesia adeja outra vez
sobre as aguas transparentes dos seus canaes, e
de noute, quando a lua vem dourar as cu|)ulas
dos ediíicios, os amantes rslicmecem ou\indo o
canto melancólico dos gondoleiros. A ultima nu-
vem de pó que os estrangeiros, partindo, fizeram
erguer d''esse sólo, foi já douiada pelos claioes
da liberdade, pela luz d'essa aurora immens? ac-
cesa pela Itália, c abençoada por Deus.
Salve, njagna parons frugum, Saturnia tellus
Magna virúm...
A Yeneza dos doges enlaça-se nos braços de
suas irmãs. Volveu-lhe a quadra cia mocidade e
do amor, dos longos beijos e das barcarolas, das
efíusões ardentes o dos passeios silenciosos. O
leão de S. Marcos desperta emtim do lelhargo, e
accorda, rugindo, a loba de Roma. Desde os Al-
pes até o Adriático o hymno da redempção fere
os ares; e Yeneza, a poética, a bella, a opulenta,
mira-se nas ondas que, arrojando peroias, lhe
beijam lascivamente os pés.
Oh, a Itália uma, a llalia livre, a Itália remo-
çada pelo enlhusiasmo ; a pátria do Dante e de
Miguel Angelo realentada para os nobres allectos
e para as altas aspirações ; a mãe fecunda que
deu ao mundo os seus lilhos mais gloriosos san-
tilicada pelo sopro da libeidade — eis o que é
grande, eis o (jue faz bater o coração.
Dissiparani-se os lamentosos sons que as musas
de Rembo Fielro, de Alexandre Marchelti e de Fi-
licaja haviam entoado tristemente; o céo da Itá-
lia, illumina-se hoje com a brilhante alvorada que
lhe assoma, e orvalha os louros (jue a deusa da
arte havia deixado emnnuchecer na fronte.
Os que honlem se haviiim deitado servos acor-
daram hoje cidadãos, os que sentiam amordaçada
na alma a voz do direito levanlam-se hoje cm
346
O PANORAMA
nome do plebiscilo, e elegem na soberania da sua
vontade a bandeira a cuja sombra querem re-
pousar. Parlem-se os jugos, des(endem-se os cír-
culos da lyrannia. os velhos conquistadores am-
param os diademas que cambaleam, as águias que
se aflcrravam sobre as muralbas rotas dos povos
subjugados começam a ensaiar o voo, para se re-
collierem aos ninhos donde vieram. Que são es-
tes \ apores que se condensam na athmosphera?
São os fumos das aspirações dos povos que se
debatem, fumos (jue se farão nuvens, nuvens que
se carregarão de fogo, fogo que partirá em raios
fulminando as eminências das serras. A terra
senle-se gravida do futuro; os horisontes purpú-
rea m-se de auroras. Celeridade incrível dos acon-
tecimentos! >'ão ha muito ainda que um bello ta-
lento poético da Itália escrevia a um dos nossos
mais sympalhicos homens de lellras :
Edor ?... Silenzio... mormora
Terriíiile pei cieli
Sconvolgitori uragano,
Che dei futuro i vjli
All'universo altonilo
Alfine squarcierá...
Frante dalla sua folgore
Dell'adria le catene,
Ven(!sia ancora sorgere
Vedremo dalle pene;
Ringiovanita splenderne
Vedremo la beíla.
O vulcão passou, de feito, as tempestades dis-
siparam-se, o rumor das armas desvaneceu-se, e
Veneza estende agora a mão ás suas iímãs itáli-
cas. Não ha resistir a este movimento impetuoso
das nações, a este afíirmar de direitos que ha
mais de setenta annos conquistaram os povos.
De um a outro cabo a idea redemptora sole-
vanta os espíritos ; e os lábios descollam-se^. no
grandioso coro da liberdade. Os pequenos reinos
ou procuram conslituir-se n'uma existência inde-
pendente e aparte, ou tendem para alliar-se á
mãe commum. O passado c-lhes norma. A Poló-
nia saccode como Lazaro a sua mortalha ensan-
guentada, e não podendo cspadaçar os laços que
a cingem, rasga as feridas no desespero, e espera
a voz do novo Chrislo ; na Irlanda, a santa faís-
ca ainda viva entre as cinzas de 0'Brien e de
0'Connel promette lavrar e irromper em incên-
dio; no México a fermentação c continua; Creta
discute com o império otlomano, e atira à liça o
.seu terrível argumento de quarenta mil baione-
tas; a Itália funde-se n'um corpo solido e liomo-
genio, e de cem pérolas disseminadas forma a
sua coroa real.
Saudemos os povos que se libertam. Sobre as
ruinas das velhas instituições que baqueam, e dos
Ihronos feudaes que se desconjuntam é (jue a iiu-
manidade tem de formar í-síc grujjo do fnmilias,
chamadas nações, que terão por limilos as suas
barreiras naluraes, e por código a jusia liberdade
commum. K. A. Vidal.
A felicidade é uma phaníasma que floresce nas
campinas do ccu, o que não pode aclimar-só na
itna. R. Dt Basios.
ADRIANO BRAWEU
Pin(oi* flniuciigo
Vimos ha dias noticiado n'um jornal da capi-
tal, 0^ valioso presente que o sr. Francisco Lou-
renço* da Fonseca acaba de fazer á Academia das
Bel las Artes de Lisboa, d'um quadro do celebre
pintor da escola flamenga, cujo nome se acha
escripto á frente deste artigo. Este magniíi.co
brinde desperlou-nos a vontade de esboçar em
breves phrases a desvairada, curta e infeliz vida
d'aquelle extravagante artista, tal como a acha-
mos descripla n'outros escripiores.
Como Bocage, Mozart e alguns outros privile-
giados, Adriano Brawer, Braur, ou Broor (quede
lodos estes modos o achamos escripto) parece ter
sabido artista das simples mãos da natureza. Nas-
cido em Oudenarde, (1) em 1608, (içou sem paede
tenra idade. De poucos annos ainda, e mal sabi-
do da infância, era o seu passa-tempo pintar em
pequenos bocados de panno, flores ou aves, que
sua mãe vendia ás aldeôas das visinhanças, tiran-
do d'ahi alguns meios de subsistência.
Decorrido algum tempo neste primeiro balbu-
ciar do génio, um dia acertou de passar por aquel-
le lugar, onde Rrawer como que brincava com os
primeiros rudimentos da arte, um pintor já no-
tável Francisco Hals. Este pintor (que teve a
honra de retratar Van Dyck, e ser por elle retra-
tado) admirado do talento que revelava aquella
criança em seus incultos ensaios, propoz à pobre
mãe de o levar e instruir na arte, para que mos-
trava as mais raras disposições. Qual não seria o
prazer do pequeno Adj'iano ouvindo semelhante
proposta ! Acceite o partido, eil-o, solto das do-
ces caricias maternaes, crendo-se já nos peneirais
da gloria.
Parlio. E ao lado do mestre que lhe ia com-
municar os segredos da arte, que elle já em par-
le adivinhara, que idéas não discorreriam pela
plianlasia do pequeno Adriano ! Ilals era agora
para elle um Deus, que o arrancara daobscuridão,
e lhe ia desenrollar á sua vista, ainda tímida,
um turbilhão de luz. Infeliz I mal sabia o des-
tino que o aguardava! que transes lhe não ha-
via de custar a iniciação nos mysterios do sa-
cerdócio da arte I
Entrado em casa de Ilals, foi contado no nu-
mero de seus discípulos, mas dospresado e trata-
do como o Ínfimo d'elles. Ilals, porém, era disso-
luto. A maior parte do seu tempo ia-se enire a
crápula e a devassidão, pelas tabernas e bodegas,
(o que succedeu a uma grande parle dos pintores
flamengos) ; as necessidades de sua mulher e fa-
mília, e o seu desiegramento rosolveram-n'o, co-
mo o faria um avarento, a lançar mão d'um meio
de gosar dos commodos da vida sem fadiga. Ape-
sar de despresado, Brawer era já conhecido por
seu m.eslre com uma grande ""cação, e lembrado
do j)e(|ueno inleresse que a mãe deile co'')ia dos
seus pueris trabalhos, tratou Ilals de exluhirdíís
novos lodo o produclo de que precisava. Adriano
foi obrigado por seu mestre, fora ua vista dos
(\) Segundo outros, em Ilarkm
o PANORAMA
347
outros discípulos, a compor pequenos quadros,
que esle vendia por bom preço, liais já tinha
com que satisfazer as necessidades da familia, e a
sua extravagância. E ainda ao menos se tratassem
o pobre Adriano como deviam ! mas receiando as
indigestões ou as aj)oplcxias, ministravam-lbe ape-
nas tão escasso sustento, que CraAver magro e
macilento, mais parecia um cadáver, que um jo-
ven na primavera dos annos !
Augmentando a ambição na proporção dos re-
cursos que semelhante mina lhes produzia, trata-
ram, Hals e sua avara metade, de melhor a
aproveitarem. Brawer foi separado de todo de seus
condiscípulos, e encerrado dia e noite n'um cel-
leiro, onde a um trabalho o mais aturado, cor-
respondia o mais insignilicante alimento. Pobre
Adriano !
Brawer porém era singelo, bom moço, e posto
que mal tiapido tinha a sympathia de seus coUe-
gas. A sua ausência ou afastamento fez scismar
estes, que procuraram por lodos os meios infor-
mar-se do que fazia o pobre Adriano. Aprovei-
tando as frequentes ausências do mestre, desco-
briram a prisão de Brawer, e vendo em que elle
trabalhava, ficaram espantados dos lindos qua-
dros que executava o seu condiscípulo, reconhe-
cendo no miserável e despresado Adriano um ar-
tista de primeira ordem. Logo um dVlles lhe
propoz que, se lhe pintasse os cincos sentidos, lhe
daria cerca de 40 íeis por peça : foi um Irium-
pho o seu trabalho ! outro lhe pede os doze me-
zes ; e assim continuaram algum tempo, julgando
o nosso preso uma grande fortuna, o produclo
dos pequenos quadios que compunha a occultas.
Como, porém, já dissemos, a avareza dos Hals era
insaciável, e ou porque fosse aguçada pelos gran-
des lucros que tiravam dos quadros de Adriano,
ou porque suspeitassem dos seus trabalhos escon-
didos, o encerro mais se apertou ainda, e a vigi-
lância foi cada vez mais activa, nomeadamente da
parte da terrível carcereira, que sobrecarregan-
do-o de obra, cada vez mais lhe escasseava n sus-
tento.
Adriano não podia já dispor de um único ins-
tante. A desesperação começava a apoderar-se
d'aquella alma simj)les e ingénua, quando um
seu collega lhe propoz a fi*ga^ e lhe proporcionou
meios para ella. Brawer fugiu. Mal enroupado,
sem consciência do seu valor, sem conhecimento
da vida externa, mal preparado para os azares da
fortuna, achou-se quasi idiota e inerte no goso
da suspirada liberdade. Sem se saber governar,
entrou n'uma paderia, e gastou todo o seu pecúlio
em pão ; passou pela igreja, entrou ; e julgando-
se ahi mais seguro encostou-se por baixo do ór-
gão, pensando no que faria para melhorar a sua
vida. Entregue a taes cogitações é reconhecido
por alguém, que o reconduz a casa do mestre,
que já em vão o lizera procurar. Adriano queixa-
se então do máu tratamento que soíTria, e não
compromette quem lhe dera o conselho. I""rancís-
co Hals, que via fugir com Brawer o seu FJ-dora-
do, prometteu-lhe (l'então era diante melhor tra-
tamento, e com effeito parece haver cumprido,
ainda que tardiamente, esta acertada resolução.
Compra-lhe immedialamente um fato, mas n'um
adélo, e d'ali em diante o alimento começa a ser
melhor.
Animado com a mudança de posição, Braw^er
entrega-se com mais afan ao trabalho, sempre
em proveito do mestre. Mas o primeiro passo fo-
ra dado. Adriano aspirara o ar da liberdade, e a
memoria d'um dia que fora exclusivamente seu,
pulava-lhe na imaginação. O caplíveiro de Brawer
tocava pois o seu termo. Da boca dos condiscí-
pulos soube, que as suas obras se vendiam por
bons preços. Excitado por estes indícios do pró-
prio mérito, e pela aversão á subjeição, soube
com mais destreza evadir-se, não parando senão
em Amsterdam. Ahi albergou-se em casa de um
negociante de quadros que lhe fez bom gasalhado
o onde por excepção o guiou uma vez a ventura.
((Julguem, diz um auctor, que prazer não senti-
ria Brawer, ao saber que suas obras eram assas
procuradas, e se vendiam por considerável pre-
ço !» Conhecidos os seus talentos por todo o paiz,
era elle o único que os ignorava !
Em breve lhe encommenda um amador um
quadro, que paga por quasi cem ducados, que o
artista a medo ousou pedir. Louco com a posse
de tal quantia, o artista corre ao seu quarto, es-
tende-a por sobre a cama, deíla-se e rebola-se
por cima, depois junta-a, sáe, váe para a taber-
na, onde durante dez dias gosa com gente da in-
tima plebe, todas as delicias do desregramento e
devassidão. Quando esgotado o seu pecúlio volta
a casa, e o negociante lhe pergunta o que lizera
ao dinheiro, responde com a maior indiUerença :
(cEelizmente destiz-me d'elle, agora estou livre.»
D'aqui já se pôde aventar qual será d'ora avan-
te a vida do artista. Trabalho e miséria, desor-
dem, devassidão, e todas as fraquezas d'uma edu-
cação mal dirigida, vão gastar em poucos annos
uma natureza privilegiada, e uma alma formada
para as grandes cousas ! O primeiro período da
sua existência deixou-lhe no animo uma impres-
são terrível, que influirá em toda a sua vida fu-
tura, da qual o sentimento dominante será — o
horror á dependência !
D'ora avante solto de quacsquer ligações, vel-o-
heis vagar de terra em terra, sem casa, sem fa-
milia, vel o-heis fazer da taberna o seu gabinete;
trabalhar, largar o pincel para se entregar á dis-
solução; empenhar-se em rixas com a relê do
povo, ou adormecer no seio da embriaguez ; pin-
tar um quadro, receber o seu preço, e não tor-
nar a i)egar da palheta senão depois de não ler
dinheiro ; e quantas vezes, para pagar as suas
despezas, terá de esperar na bodega que lhe vão
vender um quadro I Miserável destino !
Mil peripécias, nascidas de uma vida sem freio
e sem concerto, encherão os inlervallos deste des-
te drama do acaso. Ora o roubam os ladrões em
uma jornada, e o deixam sem fato; Brawer com-
pra um pouco de panno de linho, manda fazer
um vestuário completo, prepara-o, pinta-o das
348
O PANORAMA
mais bellas flores ao modo das chitas da índia.
As damas illudidas pela belloza do desenho que-
rem possuir igual dioi;a para seus vestidos. Bra-
T\er vae a uni" thealro'^ sobe ao palco, pega d'uma
esponja molhada, e n'um momento apaga, ante
todos, a pintura que os enganara. Outr'ora vendo
que os seus parentes o despresavara por andar
sempre mal vestido, linge-se coramovido, c resol-
vido a apresenlar-s3 de modo que os não enver-
gonhe. Compra um bello falo de vclludo, e co-
meça a mostrar-so ricamente vestido. Um primo
con\ida-o logo para as suas bodas. A meza todos
gabam o bom gosto c magnificência do trajo.
Adriano toma um prato de molho e derrama-o por
todo o fato, besunta-o de manteiga, dizendo que se
devia regalar, visto ser este o convidado c não elle.
Em seguida deitando um olhar de dcspreso á pa-
rentela absorta, despe o fato, lanoa-o ao lume
á vista de lodos, é corre a encerrar-se na taber-
na conde o cachimbo e a aguardente (como diz
um escriplor) lhe faziam as vezes das riquezas e
grandezas deste mundo.»
Couiludo, apesar da dissipação, Brawer não
pinta materialmente. Quando a mão trabalha, o
seu espirito está concentrado e lodo entiogue ao
assumpto, e o pincel segue obediente e íiel a ins-
piração que agita o artista. Como o Dominiquino
que,* dominado pelo assumpto, exprimia no ros-
to, o gesto, a paixão que o j)in('el ia arrancar da
leia ; lirawer era ouvido faltar francez, alemão,
hespanhol, italiano, segundo o caracter que o seu
génio criava. Esle ardor da composição, esla
compcnelração do assumpto é o que dá vida, vi-
gor, e elernidade ás criações destes deuses da
arte.
Por um largo período os paizes do norte, que
são boje a Bélgica e a líoUanda, foram Ihealro de
cruéis guerras, com que a ambição dos príncipes
disfarçada sob o manto da religião, ensanguen-
tou aquellcs então malaventurados paizes. Fran-
cezas, italianas e castelhanas hostes trataram por
muilo tempo aquellcs infelizes povos, com a mes-
ma voracidade, com que um tropel de maslins
dispulam um esbrugado osso. Era pois n'uma
d'essas guerras. Ardia a Flandres com o fragor
das armas ; e poi- um pendor irresíslivel para as
não procuradas aventuras, foi então que ^.ra^ver
foi tomado d'um desejo vehemenle de iraAnvers.
D(-balde seus amigos lhe represenlaram a impru-
dência e perigos de semelhante passo. As suas
lesoluções eram inabaláveis; quahjuer subjeição
o ii-rilava ; Brawer parlio. Apenas chegado a
Anvers é |)reso por espião, ele\ado á cidadella
onde íica recluso. Por foiluna encontrou ahí um
dislincto cavalheiro, o duque d'Areniberg, que se
jactava de ser amigo de llubcns. IJiawer iníoi'-
mou o duque da .sua prolissão, o (jual pcdio a
Uubens fornecose á(|uelle preso, tudo o que fos-
se preciso para pintar, o que o pinlor prompla-
mente executou. Apenas Piubens vio o (juadro do
preso, arn.djalado exclama ; «esle quadro c de
UrawerI» e quiz absolutamente dar poi- elle abei-
la somma de seiscentos llorins, Immediatanienle
emprega toda a sua grande influencia com seus
amigos, para conseguir a liberdade do desgraça-
do pinlor. Alcançada esla, leva-o para sua casa,
a!oja-o, veste-o como entendeu dever fazer, em
surama manifestou-lhe o seu grande apreço, fazen-
do tudo o que um grande homem como Uubens,
podia fazer a outro, que seria Ião grande como
elle, se a sua sorte não fosse Ião dilTerenlc. Bra-
wer porém não podia subjeitar-se à mínima de-
pendência, fugío de caza de Rubens para gosar
da liberdade que apreciava acima de tudo. Tal
foi o horror que os primeiros annos da sua vida
de ])inlor deixaram impresso no seu caracter a
Ioda a espécie de escravidão !
Cansado emlim de lanto vaguear (e vadiar pó-
de-sc dizer sem injustiça) contraio amizade com
um padeiro do Bruxellas, ca.sado, segundo consta,
com uma bella mulher. Esle padeiro dava tara-
bcai hospedagem, e sympalhisando com o pinlor,
encarregou-se de o albergar, sustentar e de cui-
dar d'elle. O padeiro amava excessivamente sua
mulher, e era ciumento em excesso ; comludo,
cousa singular, Brawer soube fazer-se igualmente
estimar dos dois esposos. F^ntre o pintor e o pa-
deiro estabeleceu-se nina ligação Ião sincera c es-
treita, que jamais quizeram separar-se. Brawer
em reconhecimento de tão bom acolhimento pres-
tava alguns serviços á sua hospeda, e ensinou o
padeiro a pintar. F]slo será conhecido entre os
artistas com o nome de José Van Craesbeek, e
é curioso saber como Brawet fez de um homem
condemnado a amassar e a fornear, um pinlor de
merecimento. Quando Craesbeek acabava de coser
o pão, vinha para o pé do seu amigo vèl-o pin-
tar. Observava a maneira como elle esboçava,
trabalhava e íinalisava seus quadros. Em seguida
iam os dois amigos para a laberna. Passado tem-
po achando Craesbeek que já poderia pintar, pe-
gou dos pincéis e da palheta, e guiado c ensi-
nado pelo amigo em breve soube aproximar-se
dos talentos do mestre, cujos costumes, segundo
o mesmo auclor, nada lhe havia custado seguir.
Unidos por Ião estreita amizade, pintavam, e
embriagavam-se de parceria. Rixas, pendências,
provenientes d'aquelle género de vida, não tar-
daram a com|)rometlel-os com a justiça. Tiveram
de emigi'ar. Brawer, cagando de terra em lerra
chegou a Anvers cansado, gasto, sem falo quasi,
sem meios, e roído das inclemências de semelhante
vida. Adoece, entra no hospital, e expira passa-
dos dois dias, no meio da sua cai-reira, no vigor
da idade, aos 32 annos, em lOíO !
Enteriado no cemilerio sem distincção, logo
chegou o succcsso á noticia de Uubens. Esle gran-
de homem vertendo lagrimas sinceras sobre o
desgraçado termo d'uma vocação tão verdadeira,
faz desenterrar o cadáver, e fal-u iniuimar de
novo com a |)ompa digna de um grande homem.
Estas honras foram com|)leladas com o inagniíico
tumulo que a municipalidade d'Anvcrs lhe dedi-
cou.
Eis as prineipaes feições d'um pinlor celebre, e
(jue maior ])areceria se a sua vida tivesse lido
o PANORAMA
349
outra direcção. As suas obras são mui(o aprecia-
das, ainda que em geral, como quasi Iodas as
pinturas flamengas, as scenas que descreve são
populai'es. Quem quizer mais algumas noticias
sobre este assumpto lea Felibien, Descamps, d'Ar-
geiíville, Anecdoles des Beaux-Arts ele. etc.
20 de julho de 1866.
Jacinto Peres.
Leeds.
A cidade de Leeds é hoje contada no numero
das grandes e das mais importantes da Inglaterra.
Acha-se situada, no condado de Yorlí, cerca de
trezentos líilometros ao noroeste de Londres. A
sua população ascende a peito de cento e noventa
mil habitantes. Contem um grande numero de
edifícios, as ruas são espaçosas e elegantes, e as
praças e squares magnilicos.
No século passado ainda esta cidade era pouco
considerada ; o grào elevado de prosperidade em
que actualmente a vemos, deve-o ao grande des-
envolvimento que, nestes ullimos annos, teeni tido
as industrias commercial e manufactureira. Leeds
tornou-se o grande empório do commercio das
lãs, e os seus pannos, de uma medida especial,
ditos pannos de Leeds, são muitíssimo estimados
pelo seu apurado fabrico e lina qualidade.
Além d'isso encontra-se ali um grande numero
de fabricas de louça, de tecidos de algodão e de
seda, fundições de machinas, ele,
A historia de Leeds mui' pouco ou nada nos
apresenta de interessante. Foi outr'ora uma pra-
ça foi te; e o seu castello, cuja perspeciiva se vê
em a nossa gravura, sérvio de prisão a Ricardo 11,
em 1399.
OBRAS LNÉDITAS
1
IVoUcia irnma tradiicção iiiódifn da Eneida
eiu verso í»oi'(ii;;iit>2
Parece incrível haver quem assevere terem os
Porluguezes esciipto pouco ! Quem tal diz, parece
nunca ter visto os volumes da Bibliolheca Lusita-
na, ou do Diccionario Ribliographico, obras que
devem andar nas mãos de quantos querem fatiar
da Litleralura Porlugueza.
Igualmente dá mostras de ignorar a existência
de tantas obras inéditas, guardadas nas bibliolhe-
cas do reino, e dos paizes estrangeiros, havendo
(fellas catálogos impressos, e por isso não causa
tanta admiração de que não lenha conhecimento
d'aquellas de que os nossos clássicos fazem men-
ção, e que se julgam para sempre perdidas. É im-
menso o numero das |)ublica{las e não publicadas,
e não sei mesmo se relativamente á peijuenpz do
nosso paiz lambem no numero (i'ellas levamos van-
tagem a vários outros povos; mas o que sei com
certeza é que considero uma vergonha nacional o
não se terem ainda dado á luz algumas, ao me-
nos das escriptas em lingua nacional : visto as la-
tinas hoje terem poucos leitores, allendendo ao des
350
O PANORAMA
prezo que adualaienle se tribula cm Porlufi:al ao es-
tudo do Lalim. língua em que geialmonle nossos
maiores escreviam como lingua univeisal (1) que
ora. por ser reputada a lingua ilos sábios, eem [\m
por ser lingua mais estudada que a porlugucza.
A vista "pois do cuidado com que nossos maio-
res estudavam a lingua de Yirgilio e Ovidio, não
deve causar admiração o grande numero de tra-
ducções que nos legaram d'esles dois grandes
poetas, e com especialidade do primeiro. JNão deve
causar estranheza que a nação espirituosa (2), se
applicasse cora fervor à deliciosa leitura das obras
d'um dos maiores poetas, que jamais existiram, e
que procurasse em linguagem vernácula traduzir
jse é que traduzidas jiodem ser as bellezas de tão
grande escriplor) as bellezas do rei da harmonia.
E d "aqui se seguio que lenhamos um numero avul-
tado de tiadncções de todas as obras de Yirgilio de
cujos tiaduclores de passagem tarei uma resenha.
Traductores das Éclogas
Leonel da Cosia. — António José de Lima Lei-
lão.— Manoel Odorico Mendes. — .losé Pedro Soa-
res.— Francisco Anlonio Martins JJaslos.
Das GKOiiGiCAS
Leonel da Costa. — António .íosè O.sorio de Fi-
na Leilão. — Francisco Freire de Carvalho. — Ma-
noel Odorico Mendes.
Da Eneida
João Franco Barreto. — Luiz Ferraz de Novaes.
— Anlonio José de Lima Leilão. — José Yiclorino
Barreio Feio, (esta concluída por José Maria da
Costa e Silvdi. — Manoel Odorico Meides. — João
Gualberlo dos Santos Reis. (.^)
São estes os traductores de Yirgilio, dos quaes
lenho conhecimento. lia landjem muitas traduc-
ções inéditas, das quaes ditíercntes escri piores
{eem dado noticia. Existe, porém, uma que tem
atravessado os annos complelamenle desconhecida,
é a de Luiz José Lopes Carneiro Pereira, da qiral
é possuidor o Sr. Dr. P. A. Dias, c residente na
cidade do Poito.
Tem o seguinte titulo : Eneida de Yirgilio Ira-
duzida em \(iso porluguez para seu uso pelo Pa-
dre Luiz José Lopes Carneiro Pereira, Cónego da
Insiírne e Real Collegiada de Cedofeita. Porto.
1801.
Para se fazer uma idéa do modo como esta tra-
ducção foi íeila cojjíarei o principio do liv. 4 :
(I) De p.iBSagcm direi que o lalim niníJn lioje 6o pode f:onsi(lc-
rar como lingua universal. São inrmmeraveis as obras que diaria-
riiente n'esla liugua se puMiCiíri nos iiaizet Europeos. Em Se[it,Hiii-
bro rle 186(1 chegou íJc Higa nin n:ivio ao Porto. N'esti fulade
puzeram diUicula.-ifle na adtnisííão do navin por suspijtas db vir
d'uma torra inficionada de eliolera. (( caiiitiJo do ii i\ici imindon
vir da Hn.ssia um atleslado cm como na terra da jirocedeneia não
bayia choltra : veio o attcjtado, mus esíiripto em Jatir:). Ua annos
estiveram uns padres cliinezes, em Lisboa, somente pwleram ser
entendidos por meio do latim.
(2; Voltaire. E^s.ii .sur la 1'oesic Ejiique. Oamocns.
{'.'i) Além d'eítas Iraducçòes impre.tsas ha bastantes mannscri-
ptas, c muitas parciacs oe varias obras Ue Virgílio. U sr. Gasli-
Itio está traduzindo as Georgicas.
At regvia gravi jamdudnm, ctc. etc.
A raiuha porém ha muito tempo
Gravemente ferida, vai filtrando
Nas veias o Neneno, occultamenle
Lacerando-lhr o peito surdas cl^ammas.
A gloria do varão, sua nobreza
Recorda sem cessar : o seu semblante
Suas vozes guardando impressas n'alma
Nem lhe deixa o cuidado achar repouso
Do liorisonte apartando as sombras frias
Na seguinte manhã brilhante aurora
(Va luz do sol abria a porta ao dia,
Quando a rainha inferma creste modo
A' concordante irmã segue dizendo :
— "Anna, querida irmã, que Irií^les sonhos
Duvidosa me assaltaõ ! Que lionicm novo
Aportou pcrigozo ás nossas terras !
Que presença elle mostra I f-omo ostenta
Generozas acções de hum peito forte 1
Eu creio certlimente, c não me ingano.
Que elle descende dos sagrados deozes :
Ai ! Que immensos trabalhos tem solTrido 1
Quantas guerras passadas referia !
Se eu não tivesse n'alma ainda gravado
O propósito firme invariável
De não querer-me unir a quabjuer outro
Por lassos conjngaes desde esse tempo
Em que a paixão primeira me illudira
Frustada pela morte do marido ,
Se me não motivassem tédio as núpcias,
Talvez nesta só culpa cahiria.
Por quanto, cara irmã, eu te confesso
Do n)isero Sicjueu depois da morte
Em que o crime do irmão manchara os deoses,
Eneas tão somente meus sentidos
Tem podido mover : somente Eneas
Pode agitar minha alma vacilante:
Eu persinto signaes do amor antigo,
Mas antes se abra a terra, c me devore,
Ou Júpiter .*iupremo um raio vibre,
Que nas infernais sombras me sepulte,
Essas sond)ras fatais, profunda noule.
Do que eu chegue, Pureza, a viol;ir-le,
Ou queira quebrantar os teus direitos.
Aquelle que primeiro em lasso estreito
A li me sociou, levou comsigo
Meu sensível amor; comsigo o tenha,
Comsigo mesmo o guarde no sepulchro." —
Assim faltando, as lagrimas rompendo
Encheram-lhe o regaço. Anna responde :
— "Minha querida*irmã, a quem mais amo
Inda que a mesma vida, por ventura
lias de esfolhar a hella mocidade
Sem companhia, só, sempre penando?
Não terás o prazer dos doces filhos?
Nem gosarás jamais prémios de Vénus ?
As frias cinzas, sepultadas sombras
Acreditas acaso que isto exijaô ?
Embora seja assim. Naquelle tempo.
Em (pie te lastimavas, não poderão
A\idos pcrlendentes (íimover-te,
Em Tyro os despresaste, e mais na Ljhia:
Abandonasic Jarbas, outros muitos
Valentes generais, que a terra de Africa
Sempre viclorioza produzira:
Por ventura tnõbem vencer pertcndcs
Essa grata i)aixão I E não te lembras
De quem são estas terras, onde habitas?
Desta parle nos cercaõ da Gclulia
As cidades guerreiras, bravos Numidas,
E as perigosas Series? l)"oulro lado
A 'região dezcria estéril de agoas,
Iguabnenie os Harcnas dczomanos.
E que te direi eu das grandes guerras
Que Tyro lucvemcnle le declara?
E do rancor frr.terno das ameassas?
Eu creio na verdade que os bons deozes.
Que Juno favorável obrigarão
o PANORAMA
35i
A surgir n'esta praia ás naas Troiannas.
Que diírenle verás esta cidade I
E quaiiio crescerão os teus reinados
Na feliz união deste consorcio !
Estes Cartiiaginezes quani depressa
Gloriosos serão, serão disliiiclos
Acompanhados das Troiannas armas!
Tu somente o favor aos dcozes pede,
E feitas oblasoens, dilata o tempo,
O tempo da hospedagem, procurando
Motivos de demora: até que o inverno,
E o chuvoso Orion levante os mares.
Nem sua frota esloja inda composta,
Nem tão pouco í.c mostre o ceo sereno.» -
Em seu peito abrazado estas palavras
Amor iidlamaõ ; e na mente incerta
Aviva na esperança, e foge o pejo.
M. Bernardes Bkainco.
A ORIGEM DOS HOMENS BRANCOS,
DE COR E PRETOS
Tradição dos Seiuinoln» (9)
Quando a Florida foi converlida em território
dos Estados Unidos, o governador William P. Du-
val, hometii grande e generoso, concebeu o desí-
gnio de preparar a civilisação dos indígenas dan-
do-lhes primeiramente os elementos da ínslrucção.
Para este fim, reunio em conselho os chefes in-
dígenas, e fez-lhes vêr que o desejo de seu Pae
residente em Washington, era que enire elles
houvesse escolas e mestres, e que seus filhos ad-
quirissem Ínslrucção como os filhos dos brancos.
Os chefes ouviram silenciosos e com dignidade,
segundo o seu costume, o longo discurso, no qual
o governador fez sobrcsahir todas as vantagens
que resultariam para elles desta acertada medida ;
e quando terminou, pediram a espera de uni dia
para deliberarem sobre esta grave questão. No
dia seguinte, houve uma nova assembléa solemne
e um dos chefes fallou nestes termos emjiome de
todos os outros :
«Meu irmão, reflectimos sobre a proposta do
nosso Pae de Washington, de mandar-nos mes-
tres e estabelecer escolas entre nós. Estamos pe-
nhoradissimos pelo ínterresse que elle toma na
nossa felicidade ; mas, depois de termos madura-
mente pensado, resolvemos recusar a oflerla. O
que seria muito ulil aos homens brancos não o
seria aos homens vermelhos. Sei que vós outros,
homens brancos, dizeis que todos descendemos
do mesmo pae e da mesma mãe; mas enganaes-
vos. Temos uma tradição que nos legaram os
nossos antepassados e que julgamos ser verdadei-
ra : é que o Grande-Espirito, quando emprehen-
deu criar os homens, fez primeiramente o homem
prelo ; era o seu primeiro ensaio, e já não era
pouco para um princípio; não obstaníe vio que
não tinha conseguido o que desejava. Decidío-se
a lazer um novo esforço : criou o homem de cor.
Preferio-o ao homem prelo ; mas não era ain-
da o que elle queria. Póz, pela terceira vez,
mãos á obra, e fez o homem branco ; então ficou
satisfeito. Assim, já vedes que fostes os últimos,
e é por esta razão que vos chamo o meu irmão
mais novo. Quando o Grande-Espirito concluio
(1) Povos indígenas da America do Norte.
estes Ires homens, moslrou-lhes Ires caixas. A
primeira eslava cheia de livros, cartas geographi-
cas e papeis ; a segunda continha arcos, frechas,
facas e tomahawks-, a terceira, machados, pás,
enxadas o martelos. «Meus filhos, disse elle, eis-
aqui os instrumentos com o auxilio dos quaes po-
deis prover á vossa existência ; escolhei entre el-
les conforme o vosso gosto.» O homem branco,
sendo o preferido, escolheu primeiro. Passou por
diante da caixa dos instrumentos de trabalho sem
para ella olhar; mas quando chegou ao pé das
armas de guerra e de caça, parou e observou-as
com atlenção. O homem de cór tremeu, por-
que o seu coração ardia já com o desejo de pos-
suir esta caixa. O homem l)ranco, comludo, de-
pois de a ler bem examinado durante alguns mo-
mentos, passou adiante, e escolheu a caixa de
livros e papeis. Seguio-se a vez do homem ver-
melho ; escusado é dizer que não hesitou em lan-
çar logo mão, cheio de alegria, do arco, frechas
e tomahawks. Para o homem negro não havia a
liberdade de escolher; não tinha senão a caixa
dos inslrumenlos de tiahalho É, pois, manifesto,
que a intenção do Grande-Espirito era que o ho-
mem branco aprendesse a ler e a escrever, a co-
nhecer tudo quanto se refere á lua e ás estrellas,
e, em uma palavra, a fazer Iodas as cousas, in-
cluindo o rhum e o whískeij. Quiz que o homem
de côr fosse um grande caçador, um valente
guerreiro, mas que não aprendesse cousa alguma
nos livros, por quanto não lhe tinha dado ne-
nhum ; nem que fizesse o rhum e o whiskey,
com receio de que á forca de beber se arruinas-
se. Quanto ao homem negro, como só tinha ins-
trumentos de trabalho, é claro que fora destinado
a trabalhar para os homens brancos e de côr
e é o que sempre tem feito. (2) Devemos submet-
ler-nos ás vontades do Grande-Espirito, porque
d'oulro modo eslariamos sempre rodeados de des-
gi-aças. Saber ler e escrever é um grande bem
para os homens brancos ; mas será um grande
mal para o homem de côr. Isso torna o homem
branco melhor, mas faria o homem vermelho
peior. Alguns dos Criks e Cherokees aprenderam
a ler e a escrever, e torna ram-se os maiores mal-
vados de todos os índios. Foram a Washington,
dizendo que iain ler com seu Pai para tratarem
assumptos d'inteiesse nacional. Quando chegaram
escreveram cm um pedaço de papel; e os homens
da sua nação- não souberam o que elles haviam
escripto. Mas, o agente indio, chamando-os, mos-
liou-lhes o papel, no qual, disse elle, estava es-
cripto um tratado que seu irmão concluíra era
nome deiles, com o seu Pae do Washington ; e
como elles não sabiam o que era um tratado, o
agente levantou ao ar o bocado de papel: todos
olharam por debaixo. Oh! cobria uma grande
exlensão de terreno, e viram que seus irmãos,
porque sabiam ler e escrever, linhom ido a Was-
hington, vender as suas casas, as suas terras e os
lumulos de seus pães, e que os homens brancos,
(2) Os Sominolas nunca viram os negros senão na qualidade de
escravos; ignoram o que são fm Africa, no CPladn de hbeidade.
352
O PANORAMA
porque sabiam ler e escrever, linli;im-se tornado
senhores de Indo. Eis porque, dizei a nosso Pae
de Wasliinglon, não podemos satisfazer o seu de-
sejo recebendo professores entre nós; saber ler e
escrever e mui lo bom para os brancos mas muito
mau para os índios. (3)
A TORRE DE LO^DRES
iConliuuaeâo)
Seria mui longa a enumeração de lodos os per-
sonagens celebres que habitaram na torre de Lon-
dres" e acharam ali teimo a seus soíTrimentos ;
mas não devemos passar em silencio as scenas
trágicas do reinado de Henrique VllI. Sir Tho-
raaz More, nomeado por seu lalenlo e bondade,
foi preso em 1534, com Fisher, bispo de Roches-
ter, por ter recusado reconhecer a supremacia do
rei, e a:nbos pereceram no anno seguinte; a rai-
nha Anr,a Bulena soílVeu, em lo3G, a fatal con-
sequência dos bárbaros caprichos de seu marido,
e todos os annos vio chegar novas victimas : os
lords Thomaz IToword, Darcey, Montague e o
marquez de Exeter, accusados de traição, perde-
ram a vida no cadafalso. Ciomwell, conde d'Es-
sex sábio e liei conselheiro do rei, foi executado
em loiO, por ler sido o auclor principal do seu
casamento com AnnadeCléves, mulher que se lhe
tornou odiosa. Pouco tempo depois o mesmo cu-
telo decepou as cabeças de sua quarta mulher,
Calharina lloward e da amiga intima desta, lady
Rochford.
Estes logares que pareciam consagrados á des-
graça, foram por um contraste singular, testemu-
nhas de um género de morte muito diíTerentc :
Arthur Planlagenel, filho natuial de Eduardo IV,
morreu de alegria, sabendo que fora reconhecida
a sua innocencia. Os tormentos de Joanna Grey
e de seu esposo, lord Guilford Dudley, ambos vi-
ctimas da ambição do duque seu pae, que arrui-
nou a família e os amigos, e as torturas pelas
quaes a rainha Anna fazia passar lodos que não
compartilhavam das suas idéas religiosas, formam
as principaes scenas do trágico drama do seu rei-
nado. A torre sérvio lambem d'asylo á princesa
Isabel, e quando, seguindo o exemplo de seus
predecessoi-es, ella a deixou para a ceremonia da
sua coroação, nenhum soberano, talvez, em laes
momentos recebeu provas de mais sincero inte-
resse. (]omludo, é preciso convir, que, apesar da
prospeiidade deste reinado, nunca se vio na tor-
re maior numeio do prisioneiros de todas as con-
dições. Enconlia-?e em um relatório aj)resenlado
ao íonselho, em 1561, seis bispos, um abbade de
Westminster, dois condes, lady Calharina (irey e
mais doze indivíduos, lloward, du(|ue de Norfolk,
preso em 1509, foi executado Ires annos depois
por seus manejos a favor de Maria Sluarl, assim
como seu lilho o conde de Arundcl, e o conde de
Norlhumberland pelo crime de tiaição ; este ultimo
querendo impedir a rainha de ihc confiscar os
bens, não es|)C'rou pelo bill e suicidou-se.
(3) "Washinglon Irving.
Um dos homens mais bravos, e lambem o mais
hábil c o mais infeliz do seu século, sir Waller
Raleigh, foi capturado, em 1582, por ligações
que linha com uma donzella de honor da rainha,
nias, desposa ndo-a, prestes obteve a liberdade.
No reinado seguinte, porém, terminou o seu longo
capliveiro pelo ultimo supplicio. Devereux, condo
d'Essex, cujo destino cruel projecta uma sombra
enorme na memoria d'Isabel, e os condes de Sou-
Ihampton e de Rulland, j)erli:'ncem ao numero dos
que ali foiam encarcerados durante este reinado.
Os dois mais notáveis prisioneiros, no tempo
de Jacques I, são : lady Arabelle Stuart, cujo pa-
rentesco com Maria despertou o ciúme de Isabel,
c mais tarde o de Jacques. Surpresa com seu
marido, AVilliam Seymour, no momento era que
esperava sal\'ar-se, endoudeceu de pesar, e mor-
reu na prisão em 1615 ; o outro é Thomaz Over-
bury que foi perseguido e condemnado á morte
por intrigas do infame conde de Somerset, e da
sua amante lady Essex. O conde de SlraíTord,
ministro muito aíTeiçoado a Carlos I, e o arcebis-
po Land, conduzidos para a torre em 16i0, fo-
ram executados ali em j)ouco tempo.
Seria de uma grande impossibilidade entrar nos
promenores dos factos que se passaram na torre
no reinado dos dois Carlos e durante a republi-
ca ; os revezes da fortuna que para ali levaram
alternativamente os partidários das duas causas,
são do domínio da historia. Cailos II foi o ultimo
rei que habitou na torre antes de ser coroado ;
desde então deixou de ser residência real. A maior
])aite dos que foram implicados no processo de
Carlos I, soííreram, sob o reinado de seu filho,
morte lenta e cruel ou prisão perpetua.
Em 1666, foi descobeilo um projecto de ataque
contra a torre e os seus andores sentenciados
á morte ; no mesmo anno houve um grande
incêndio, que destruio parle da cidade, mas a
bastilha de Londres ficou de pé. O duque de
Monlmouth, sobrinho do rei, ioi executado em
Tower-IIill em 1685. Mas, ou por falia de vigor,
ou por timidez, o executor ferio-o tão levemente
que o duque levantou a cabeça c encarou-o como
(juc para censurar-lhe a sua inépcia ; diz-se que
só ao quinto golpe o carrasco conseguiu separar-
Ihe a cabeça do corpo.
(Cunliíuiii]
O íiiUíro ftlilor (In l*tiEior<iiiin, ilrsi-jiiiulo )iro[)cr(Monar nos
íiotiincs ."-rs. nssigiiiiiitcs, e iiicsnio a q\iacM|Utír ontr.is pessoas qiio
I) não si-jiiiii, íi maneira lie poderem jussuir, sem grande sacriti-
r'\ii a ffiiicrÇMO ccmidí la deíie iniiMes.-ianie jornal, qnc conta Imjo
í3 loIíiDieN pni)licad(js, deliberou, para tsso íini, atirir nova
asií,'naicir;i, não altirando o prcea que levn a .intií.M, sen<ln o
fn8'o do cada volume l.vuxado i;i()0'iúis, O encadernado KiOd réis,
islo imicamenle pira aijnePes quo se inscreverem como assignan-
Les. Aa pe.-ismis qnc assignarem para esta ohra recehcrão nin ou
mnis volumes cada niez. conforme mellior lhes convier, sendo o
imp')rln do.s mesmos |iag'i no aclo da enlresa. lias (pnj leiíliani a
(■ip|i<;ci;;"io do I>siii«»i'niiin inconjpleta, |io(lem d.a n)esma forma
as^i^ínílr p;ira os vnlniiics qne lhes fallarem, bem como para
ipiiilipier ininji'io que lhes fallar.
\H aN!>ii;;n»liii-iiM rii7.i>iii-M(> iioh Neat*ii>(<'M loroeN i
Una Anrei n." 1:/-' c i:i'i; na reda''ção du 1'aNuham\, rua do lliesouro
\ellio n.'(); i'. em lidas a.s riiais"livrariiis.
Km liraga, Porio, (Coimbra o Vianna, em todas as livrarias.
De qnai.squer oulnis i( rrus d.) reino podem dirigir se, em cnrln
franca, com o inj|)orle da assiumiluia cm vulles do correio, ao
aiili^jo editor, ni.i Anrea n." 1;í!.', accresco ao preço da assi-
ííii.itnra, o [lorle do correio que ú de 2õ0 para os volumes cm
broxiira e ,'jll) léis para os 'noailermulos.
Typ. i'"ianco-i'oriiiguezii, Hua cio Ihesouro VtUio, 6.
45
o PANORAMA
353
Marselha
Esta cidade é uma das maiores e das mais im-
l)orlanles da França. O eslado florescente em que
se acha, é devido á sua raagnilica situação na
cosia do Mediterrâneo, e ao seu excellente porto,
único que a França ali possue, para receber na-
vios de grande lote. Dista de Pariz 802 kilome-
tros pela estrada e 862 pelo caminlio de ferro, e
conta uma população de 260,000 almas.
Marsellia é antiquíssima. Foi fundada por uma
colónia de Phoceos, sob o direcção de Simos e
Prolis, cerca de seiscentos annos antes da era
chrislã. O primeiro cuidado deste povo logo que
pizou o terreno da Provença, foi de collocar-se
debaixo da protecção dos habitantes mais próxi-
mos: eram os Cello-Lygos que tinham por chefe
Nannus. Este acolheu a colónia mui amigavel-
mente, e concedeu-lhe que se estabelecesse em
suas terras ; desde logo os Phoceos lançaram os
fundamentos d'uma cidade que chamaram J/«5.s/-
\ia\ edilicaram-n'a no sitio onde ella existe ainda
hoje.
Pela constante protecção de Nannus, a colónia
nascente leve um augmento rápido ; mas Coma-
nus, filho e successor d'aquelle chefe, não herdou
de seu pae os sentimentos de amizade para com
os Marselheses; estes estrangeiros pareceu-lhe se-
rem visinhos perigosos; um dos seus servidores fez
redobrar os seus receios, contando-lhe a fabula
da cadclla que depois de ver os íilhos criados se
apoderara do lugar que o pastor lhe cedera para
ella ir ter os Ulhos. «Assim, accrescentou, os
Marselheses, que só occupam hoje um terreno em-
prestado, tornar-se-hão um dia senhores de todo
o |)aiz.)) Comanus formou dosde logo o projecto
de apoderar-se da colónia pliocea. Os Marselhe-
ses celebravam as festas de Flora ; Comanus lin-
gio querer adorar os deuses d'elles, e enviou á
cidade muitos soldados. Fez também entiar carros
cobertos de folhagem, dentro dosquaes iam tam-
bém soldados escondidos. Elle mesmo foi pôr-se
de emboscada com um exercito nas montanhas
próximas. Os guerreiros que haviam entrado em
Marselha deviam de noute abrir as portas, e as-
sim a matança seria geral. Uma rapariga, porém,
(lescobrio este trama. Immedialamenle os Marse-
lheses lançam mão das armas ; todos os Lygurios
encontrados na cidade são mortos; o exercito de
Comanus é completamente desfeito ; este chefe pe-
rece no combate com sete mil dos seus. Depois
deste acontecimento, os Marselheses, convencidos
354
O PANORAMA
da má fé dos indígenas, vigiarani-nos allenta-
menlo, e tomai am cm (empo de paz as mesmas
precauções, como se fora em época de gueria.
Desde os primeiros dias da suu existência po-
litica, os Marselheses conlaiam cora os recursos
que o mar podia otrerecer-lhes; applicaram-se
com peiseveiança a aproveitar a sua posição van-
tajosa para o commercio c navegação. A pesca
tornou-se para elles um objecto importante ; culli-
vaiam a vinha com êxito ; implantaram a oliveira
nas Gallias, ainda antes de ser conhecida na Itá-
lia. Todos os jxirtos da Grécia e da jjeninsula itá-
lica lhes foram abertos; procuraram nestas legiões
o que a naturrza do seu solo lhes recusava, e em
troca davam o vinho e o peixe salgado. A sua si-
tuação, o seu porto soberbo, a natureza ingiala
do seu território, a actividade dos seus habitan-
tes, tudo, emlim, contiibuia para que Mai selha
fosse uma cidade marítima e commercial. Os Car-
thagineses, ciosos do seu poder, attacaram-na, e
duiante esta longa guerra, a importância de Mar-
selha, longe de descair, augmentou. Dois dos seus
cidadãos, r\ theas e Eutymene, adquiriram gran-
de reputação por suas viagens e descobertas. No
terceiro século antes de Christo, Marselha era a
Alhenas das Gallias, uma cidade modelo de sabe-
doria e boa administração. O seu governo era re-
publicano c com|)osto de seiscentos senadores. Al-
liou-se com F.oma, c oppoz-se em vão á invasão
de Annibal ; caíra, certo, nesta occasião, so An-
nibal chega a subjugar os Romanos. Marselha
abraçou a causa de Pompeu contra César; este,
vencedor, punio severamente a cidade; deslruio
as forliticações, as machinas de guerra, e fez com
(jue lhe fossem entregues as armas, os navios,
o Ihesouro publico e a cidadella, onde aquartelou
duas legiões. Marselha, privada do seu poder,
perdeu a influencia politica nas Gallias, mas for-
mou uma republica commerciante, independente,
sob a protecção romana. No sexto scculo os Bor-
guinhões, os Ostrogodos c os Francos talaram-na;
em 752 os Sarracenos destruiram-na completa-
mente; lodos os monumentos antigos que possuía,
desapj)areceram.
Do decimo ao decimo terceiro scculo, foi go-
vernada por bispos c viscondes, cuja administra-
ção foi má. Sobretudo, um uso estabelecido na
familia dos viscondes, foi-lhe muito funesto; di-
vidiram os seus domínios até o infinito; os filhos
repailiam entre si a herança do pae; as filhas re-
cebiam em dota senhorios. A maior parle dos ra-
mos dos viscondes adoptaram um nome difíerenle
do que usaram a piincípio; empobreceram, per-
deram lodos os traços de sua origem e cairam em
profunda obscuridade. Os Marselheses tomaiam
uma parte mui acti\a no grande movimeiito dos
Grusados; o seu papel, porem, foi mais commer-
cial do que bellicoso; as guerras proporcionaram-
Ihes grandes vantagens nicrcaiitis. Nunca nos mais
brilhantes dias da antiga republica, a cidade vio
tanta acli\idade; o j)orto cobrio-se de navios.
Iodas as riquezas ali afluiiiam ; Marselha \ía in-
cessanlemenle chegar aos seus uiuros Grusados de
todos os paízes e fornecia-lhes então navios, pro-
visões e armas. A fabricação de espadas e lanças
tornou-sc um dos principaos ramos do commercio
marselhoz; as olficinas deste género eram tão nu-
merosas, que uma rua muitíssimo extensa recebeu
o nome de Lanceric. No anuo i2()7 a republica
de Marselha foi submettida á aucloridade dos
condes de Provença, alé a morte do ultimo destes
piincipes, Carlos líl, em 1181, época em que
Luiz VI lomou posse desta província ; Marselha c
o seu terrilorio foram assim reunidos á coroa.
(Continua)
O GRANADEIRO
Eh ! Eh ! meus rapazes! ainda não v iram o que
eu vi e mais não tinha baiba quandu -.i o que vi.
Desde então já comi muito alqueire de sal e mui-
to pão duro como a peite do diabo; mas olhem
que isto de guerra nem sempre é a gente deitar-
se em boa cama, e dar um beijo na palrôa quan-
do é alvorada. Rufam os tambores e bota-ariiba.
Andem, rapazes, paguem lá mais meio quartilho
se (juerem que eu conte o que vi, e mais não li-
nha barba quando vi o que vi. Contar historias
sem molhar a palavra!... é como quem faz da
lingua um carvão em brasa. E tu lá, recruta, dá
cá um cigarro que a vida é fumo e quem não fu-
ma não vive. Eh! eh! Muilas coisas acontecem
que não vêem nos livros. E então quando as des-
cargas conversam com o echo, as bayouelas na-
moram o sol, e as peças espirram grosso e tecm
catharro nas goelas... eh! eh! levem os diabos
aos que não mordem o cartucho e tapam as ven-
tas para não cheirarem a pólvora.
Olhem bem para mim, meus fedelhos! Já en-
guli um bom par de janeiros e nem por isso te-
nho a barriga mais cheia. Velhos tempos! velhos
tempos ! Tempos revelhos digo eu. Bons eram.
N'esse tempo andava eu direito como um fueiro,
e j)or mais íjuc bebesse...
Os recrutas pagavam então, sem pestanejar, meia
canada a um veterano e ainda em cima diziam
— muiloohriijado. Dá cá mais meio quartilho, que
o fallar é como a alface. Roa palavra boa rega.
Eh ! eli ! Que diacho ia eu a dizer?...
Rons tempos ! Ouando o inglez vermelho como
um tomate dizia : f/oddam, respondia o porluguez:
salta para fora, bruto! E carregávamos os fran-
cezes!... Era bayonetada para a frente, coronhada
para o lado, iiiie até os castelhanos preferiam o
sangue de francez ao sangue de louro ! E os rios
diziam : — Com mil demónios ! Vêem as aguas Ião
vermelhas, que até já lemos sede !
Bons tempos ! llcin ! E então se lodos vissem o
que (!U vi, e mais niip tinha barba ijuando vi o
(|ue vi, nem sombras de buço! As vezes tinha a
cara negra. Eram beijos de j)olvora, que de vez
em (|uando... ft ! e a escorva ardia, e eu ria-me
para ella ; e a bala, Irap I e o francez chorava.
IJons tempos! c eu que o diga, que vi o (|ue vi,
e mais... Hoje, jjclas tripas do diabo, lenho a
cara sempre branca c os cabellos lambem. São
beijos do lempo. Apre lá ! Os janeiros são como
o PANORAMA
355
os caiadoros Engole a genle um anno e vae se
não quando, é uma dcmão de cal na froiUaria.
Enlão não tinba nem sombras de buço, e
hoje... com os dêmos, tenho os bigodes brancos.
Tinia com elles I Yenha do roxo...
Ora i)ois, formem quadrado aqui, era volta de
mim.
Eu cá sou o mestre da musica... para tudo ir
a compasso.
Era no pino do inverno. Chovia se Dous a dava,
pelos carros dos Pyrineus. Pedra havia em barda.
A respeito de terra havia assim a modo um rai-
zôdo, tanto bonda para enterrar um homem... de
companhia com os lobos, que andavam de alcatéa
a fazer cruzes na boca. os excoramungados! como
se fossem bons chrislãos. E que frio ! Era taro
de matar biclio ! Fazia um vento., aquillo parecia
folie de ferreiro era fornalha apagada ! Lá por aquel-
les agachizes, chorava o tal vento, que parecia
ura rebanho de cabritos a caminharem para o
açougue. E que poças pelos carreif os ! A gente a
andar e os pés a dizerem clap ! ciap ! como se os
dedos fossem rãs ! Fome de palmo ! Havia por lá
inglez, que comeu a lingua cuidando que era bife !
Nós caminhávamos na avança.da na colla dos
francezes, que iam de rola batida a sete pés. Que
lá de feição eram elles e lambem o velho raposa (1)
que licara na reclaguarda. Bons tempos ! O ge-
neral ia na frente na avançada, e atraz na retira-
da. Bons tempos I E eu que o diga, que vi o que
vi, e mais não linha barba nem sombra de buço,
quando vi i. jue vi !
Derepení'. pensei que o diabo accendera a lu-
raeeira '• iisasligava em seco. Era fogo nos pique-
tes, por todos aquelles montes, e lá no fundo
roncava um rio, aonde iam parar os que escor-
regavam nos penhascos.
Mau 1 disse com os meus bolões. Os diabos le-
vem as noites, em que a gente dorme de pé e
tem desles pesadellos.
Ah ! rapazes. Lembrei-me da rainha choça, e
da velhita desdentada, que deitou cá para fora esla
cegoniia, que aqui vêem. Eu sei lá o que me
lembra? Levei com um balasio. Uuim cereja que
só tinha caroço ! Caí de bruços pendurado por
uma perna para um fojo, á laia de pintasilgo
apanhado no laço. E se não havia de cair ! Vá lá
um homem íicar direito I Cambalear... ora! E a
gente beber um pingo. Cair assim... só cora ura
balasio, que vase o peito.
Sc eu dormi não sei: os sonhos não haviam de
ser dos mais bonitos. Quando acordei... eh ! eh !
rapazotes.
A guerra ó assim coisa de adega de lavrador
rico. Ha lá de tudo.
Zurrapa c vinho lino ! zurrapa já eu a levava,
faltava o vinho lino 1
Era uma rapariga guapa e gorducha como ura
anjo. Boas cores, bons dentes, boracabello... Cora
os demónios ! Eu cá não sou pintor.
Era viuva. Morrera-lhe o marido n'uma refre-
ga. Casa com escriptos, resmunguei. Saio ao pin-
(1) o marechal Soult.
lar. Corapral-a não, que lá está a companhia á
minha fspera; mas alugal-a... E bera dilo bem
feito. Eslava ainda fraco como ura pisco. ISão im-
poria. Chamo a moça e diiío-llie cora voz maga-
na : menina, venha d'ahi uma garrafa [)ara malar
a sede do coração. E a raoça rio-se com um ar
aberto, e deu-me uma garrafa de cidra. Fiz uma
carola, raas fui bebendo.
Que boa vida ! A ferida custava a curar, mas
cá dentro abria-se out';a.
Passados dias a moça era minha companheira.
Salta aqui, rapariga. Traze isto, leva aquillo. Bas-
tava um aceno. .. Emfim, boas moças ha nos Py-
rineus. Ás vezes lambem são levadas do diabo e
teem pado com o tinhoso. Diga-o eu, e basla.
Uma noite, já cu estava melhor, e comera á tri-
pa-foria, ao pé da rapariga, que não via oulrera
senão a mim. Fumando e bebendo, fazendo as
minhas festas no rosto 'da viuva, adormeci. Lá o
que aconteceu por alia noite, não sei ; raas a res-
peito de companheira, nada. Apalpo, e não a en-
contro. Eh 1 Temos feitiço ' Vo!to-me para o ou-
tro lado, linjo que durmo, quando ouço uns ge-
midos.
Oh 1 lá camarada, passe palavra, digo eu. Nin-
guém respondeu.
Ergo-me... ia assim a cambalear um pouco.
Caeaqui, tem-te acolá, chego ao larario, accendo
a candèa, bt! íleo ás escuras. Accendo outra vez,
hl! A terceira o mesmo. Alto lá, camarada, grilei
testo. Nada do brincar com um caçador porluguez.
Piesponde-me a bruxa da rapariga, saltando' não
sei d'onde, abraçada a uma aventesma... feia co-
mo uma raposa. Que diacho é islo? Anda cá,
moça, que vou ver se as costellas estão no seu
lugar. Mas qual ! Não veio nem á mão de Deus
Padre. Parecia um recruta de resinga com o cabo
de esquadra. Avancei, mas o ptianlasma pega
n'um zambujo e dá-me uma tunda, (jue quando
me lembra andam-me as coslellas a passo de
carga.
E a feiticeira ria-se, e deilava-nie uns olhos'...
O (jue havia de fazer? Botei-me ao phantasina
e qual debaixo (|ual de cima...
— Que diabo tens tu, camarada? diz-mc o ans-
peçada da companhia que dormia ao meu lado
no |)iquete.
— Hein? digo eu esfregando os olhos.
— A modo (|ue a cidra fez-le mal (juando vies-
te da vedeta? Fei'veu-te lá dentro nas tripas! Boa
era ella, e mais a rapariga que a deu ! iMaldilos
sitios. Pedras c mais pedras, nem a gente sabe
como ha de ferrar o olho! E tu que ainda cslàs
ferido, meu velho! Fez-le mal cidra, hein?
Eh ! eh I rapazes. Isto de guerra é coisa do
diabo.
E a respeito dos Pyrineus ninguém me falle.
Bruxas e pedras !
E cidra ruim ! Yenha de lá mais meio, que ó
melhor ! Boa terra esla ' Bons tempos os de en-
lão ! E eu que o diga, que vi o que vi, e mais
não linha barba quamlo vi o que vi, nem sorabra
de buço. A. Osório de Vasconcellos.
856
O PANORAMA
CARLOS II DE HESPAMIA
(Continuação)
Criado secrelamenle em Ocana, só elle, de en-
tre os lillios naturaes de Philippe, oblivera da
ternura malcMnal o reconhecinienlo j)ublico e so-
lemne de sua augusla orip:em ; e, ou pelo cari-
nho com que tialava sua mãe, que, no dizer de
seus contemporâneos, olTerocia as mais raras qua-
lidades de belleza e discrição, e que íez esquecer
os seus extravios, professando de religiosa car-
melita cm um convento da Alcarria, ou, pelas
distinclas prendas de talento e valor que D João
desde tenra idade annunciava, o certo é que o
rei ergui liava-se de ser seu j)ae e enchia-o de gra-
ças e honras próprias de uma pessoa real. O po-
vo também, e os corlezãos, que a princijjio mur-
murai am e censuraram apaixonadamente a origem
bastarda de D. .loão, e que chegaram, ate, a du-
vidar da realeza do seu sangue, atlribuindo-o ao
duque de Medina de las Torres, que, parece, ha-
via também galanteado a Calderon, c com o qual
pretendiam ailiar-lhe maior semelhança, acaba-
ram, à vista dos dotes e qualidades verdadeiía-
mente regias do joven D. João, por dissipar as
suspeitas e presumpções contrarias, e por sympa-
thisar com elle e amal-o tão entranhavelmente
como a um príncipe legitimo.
KfTectivamente, 1). João era um príncipe valen-
te, discreto e elegante; um homem honrado e
cavalleiroso, c que figurara dignamente desde os
seus primeiros annos nos mais altos cargos e di-
gnidades do estado : como governador dos Paizes
Baixos e de Borgonha, como vice-rei e general
victorioso do reino de Nápoles, como grão prior
de Castella na ordem de Malta, e, por ultimo,
como presidente do conselho de estado, e intimo
conlidente do rei, seu pae.
Pouco tempo depois da morte de Philippe,
observando I). João o rápido e assombroso ascen-
dente que o padre confessor fjá conselheiro de
estado"; tomava no espirito da rainha, e não con-
seguindo logo de prompto oppor-lhc o seu fraco
predominio, teve de afastar-se voluntariamente
da scena politica, reliiando-se para o seu castello
de Consuegra, residência ordinária dos gran
priores de S. João ; mas, complicando-se depois
as pretensões do rei de França sobre os estados
dos Paizes-Baixos, a ponto de apoderar-se com
mão armada de algumas de suas praças, e pro-
mover uma guerra desastrosa para defendel-as,
foi chamado 1). João para castigar afjuelle allen-
tado, coníiandc-se-lhe o commando do exercito,
que já em outras occasiões soubera conduzir á vi-
ctoria. Neste ponto a rainha operara também po-
liticamente, i)ara ter longe da corte o príncipe,
em cujas francas demonstrações fiodéra notar cer-
to desdém e aversão ao jesuíta favorito, demons-
trações e palavras umas vezes graves, outras fes-
tivas, que chegaram ao extremo de dizer em i)le-
no conselho e diante do interessado, (juc o seu
parecer eni rpte fosse enviado para Flandres, o
padre Milard , santo varão a f/uem o céo nada po-
deria nef/ar : c a prova da sua 7nilafjrosa virtude
íaccrescentou sorrindo) é, sem duvida alguma, o
posto em que o vemos hoje. — «Eu creio íii-me-
mente, replicou contrito o confessor, que nada ó
negado pela misericórdia divina áquelles que con-
tiam sinceramente n'ella ; mas também conheço
que o meu dever e a minl-ia profissão me chamam
a outros serviços ditlei-entes dos de um general
do exercito. — Não seria esta, tornou I). João, a
primeira cousa estranha á vossa profissão e ao
vosso caracter, nos quaes vos vemos brilhar todos
os dias, meu padre.
Besolveu-se, emfim, que D. João se pozesse á
frente do exercito que devia passar a Flandres:
aprestaram-se os navios necessários para o trans-
porte, em Cadiz e Corunha; e D. João, do ultimo
destes portos, ia enviando os coipos a pouco e
pouco, não achando prudente romper logo com-
l)ate com a armada franceza, muito superior em
numero, que crusava n'aquellas aguas. Entretan-
to os inglezes e hollandezes, feitas as pazes entre
si, uniam-se á França contra a Ilespanha, e ar-
rastados pelo ascendente de Luiz XIV, o eleitor
de Troves, o Palatino, os duques de Baviera e de
Brunswick foi-mavam uma liga em defesa própria
e com o fim de obrigar as potencias belligei-antes
a harmonísarem a diíTerença, que entre ellas ha-
via, de uma maneira conveniente para todos. Por
lim, o próprio papa interveio na contenda, e a
paz foi firmada em Aix-la-Chapelle.
Neste intervallo, e emquanto D João, como
fica dito, esperava na Corunha o momento oppor-
tuno paia embarcar, chegou a seus ouvidos a noti-
cia do supplicio de D. José Malladas, fidalgo ara-
gonez muito seu partidário, a quem, debaixo de
todo o segredo, o governo mandara prender e ti-
rar a vida em poucas horas por causas, que se
não poderam averiguar, mas que se suppozeram
forjadas pela malevolencia do confessor. I). João,
profundamente sentido pelo trágico fim de uma
pessoa a quem tanto estimava, e exasperado ao
ultimo ponto pelo ullrage que, nesta morte, jul-
gava ter recebido do padre Nitard, determinou
não partir para Flandres, suppondo que o que se
pretendia era afastal-o da corte e, talvez, aban-
donal-o sem recursos ás forças superiores do rei
de França, e sob pretexto de uma doença de pei-
to, escreveu á rainha pedindo-lhe que o dispen-
sasse do commando do exercito.
Tão súbita mudan;;a e tão alheia do valor reco-
nhecido de 1). João, causou uma estranha surpre-
sa na corte e um sentimento profundo na rainha
c no confessor. Estes, comtudo, poderam peneirar
na causa verdadeira da recusa, e reconhecer a sua
imprudência no sacrifício de Malladas; mas não
podendo já i'eme(lial-o communicaram a 1). João
as ordens para entregar o mando ao condestavel
de Castella, que conduziria as tropas a Flandres,
em quanto (|ue elle, D. João, devia retírar-sc im-
mediatamente para Consuegra.
í) príncipe obedeceu sem leplica ; mas a sua
obediência, longe de aplacar a ira da rainha, deu-
Ihe novas forças para apresentar pessoalmente no
conselho um terrível decreto contra D.João, alie-
o PANORAMA
357
gando a sua falia de respeito em negar-se ao com-
inando das Iropas em um momenlo Ião critico, e
sob o falso pretexto de uma doença simulada, com
o que faltara á verdade e ao thruno.
Tudo isto chegou breve ao conhecimento de D.
João, o qual foi tanto mais sensível a este proce-
dimento da rainha, quanto julgava havcl-a desar-
mado com o não queixar-se publicamente da mor-
te de Malladas. Todavia, porém, occorreu outro
incidente que acabou de irritar os ânimos. Um
capitão chamado D. Pedro Pinilla, sollicilou e
obteve uma audiência da rainha, na qual, sem du-
vida, pondo revelar-lhe alguns dados importantes
contra D. Bernardo Patino, irmão do secretario de
D. João; porque, no dia seguinte foi preso com
grande rigor, ao mesmo tempo que o marquez de
Salinas, capitão da guaida hespanhola, recebeu
ordem da rainha para se dirigir com forças sufficien-
tes a Consuegra, e prender o príncipe ; advertido,
porém, este opporlunamenle por seus numerosos
amigos, poude evitar o encontro, efugio, deixando
uma carta para a rainha, datada de 21 de outu-
bro de 1GG8, na qual em termos mui fortes, lhe con-
fessava a causa da sua recusa em ir a Flandres, o
seu justo resentimento pela morte de Malladas, que
não duvidava ser obra do padre Nilard ; que um
tal altentado reclamava uma terrível vingança, e
que antes d'elle contribuir por sua paite paia le-
val-a a cabo, supp!icava-lhe que afastasse do seu
lado' um tão máo conselheiro ; concluindo a sua
carta com um severo protesto contra a necessida-
de em que se punha um individuo da sua jerar-
chia e com taes serviços a fugir do paiz e a pro-
curar um asylo no estrangeiro contra tão odiosa
perseguição.
[Continua)
jf-
Uma escola de Bedford.
Bedford é um pequeno condado da Inglaterra
situado ehtre lluntingdon, Cambridge, Heitford e
Buckingliam, e a 72 kilometros ao N-N-0 de
Londres.
A sua população eleva-se a cento c trinta e
cinco mil almas, espalhadas sobre uma superlicie
de cenlo e vinte mil hectares. O súlo desta pro-
víncia, na sua maior parle plano, mas, jiara o
melodia, coberto de estéreis montanhas calcareas,
é, na generalidade, bem cultivado, c mesmo, para
oeste, de uma notável fertilidade. Os seus habi-
' tantes, laboriosos como lodos /)s lilhos de Albion,
entregam-se, com exilo, á agricultura, horticul-
tura e ciiação de gados; a sua industria manu-
facUiieira, porém, limila-se a fabricação de ren-
das, llanellas, pannos. chapéos de palha e quin-
quilharias. Também exportam, com vantagem, a
greda, muito commum n'esla parte da Inglaterra
"e de uma qualidade suj)erior. As communicações
enlre este condado e Londres acham-se facilita-
das desde ISíí), pela construcção de um entron-
camento do London and Aorth Western railway.
358
O PANORAMA
A capila! (lesto condado chamada, igual menle,
Bedford, e;lá situada sobre o Ouse, que. n^aquel-
le ponto SL' torna navegável ; ó o deposito das
manufacturas do condado e o centro de um com-
mercio activissimo em trigos, carvão, madeiras de
conslrucção, ferro e cobre. O numero, porém,
dos seus" habitantes não excede a ci.O-a de treze
mil e quinhentos.
Esta cidade, conhecida oulr'ora por Bedican-
ford, foi thealro no sexto século de um combale
entre os saxonios e os bielões, em seguida de
varias pelejas entre aquelleseosdinamarquezes; e
pelos annos de 1010, estes últimos quasi que a
reduziram a cinzas. Em 1137, foi tomada pelo
rei Eduardo e no principio do decimo terceiro
século por Faulkes de Bréant, que, confiado nas
suas tropas e na defensa do castello, por muito
tempo disputou a vicloria ás tropas que ílenri-
(jue lli mandara contra elle. O príncipe Planta-
genet, ou, como o chama Shakspeare, o príncipe
João de Lancastre, filho de Henrique IV, que em
vida de seu pae tora governador de Bei'wich e
depois regente de França, foi nomeado duque de
Bedf<?rd no segundo anno do reinado de seu ir-
nwo Henrique V. Dois séculos mais tarde, o titu-
lo passou á familia RusselL
A cidade tem sido, nestes últimos annos, mui-
to aformoseada e possue uma ponte magnifica de
cinco arcos, construída em 1810 no lugar onde
havia outra de sete, que, dizem, fora feita com os
materiaes do castello desmanteliado. Entre as suas
cinco igrejas, é notável a calhedral, venerável
monumento de architectura gothica construído en-
tre us annos 1350 e li 00. Além d'isso conta um
grande numero de edilicios elegantes, ura hospital
d'alienados, um va^to penitenciário, uma bibliothe-
ca publica e um grande numero de escolas, das
quaes a principal é a que se vô em a nossa gra-
vuia, e que foi construída no reinado de Henri-
que IV por sir William Harpur.
FRANCISCO PIZARRO
(Continunoãoj
O crime chama o crime, o sangue provoca o
sangue. O medo produz o mesmo effeilo na alma
do vencido que a crueldade no espirito do ven-
cedor. Atahualpa sabendo que sou irmão Iluescar
fora na sua prisão visitado por Ilespanhoes, e te-
mendo que elle tivesse sabido excitar a cubica e
provocar as paixões sanguinárias dos sens ferozes
vencedores, deu ordens secretas para que o desgra
çado prisioneiro fosse assassinado, ordem que
fielmente se executou. E' assim que o sangue
provoca o sangue, ,é assim que as represálias co-
meçam, é assim que estas iuclas, onde o ven-
cedor não respeita as leis da justiça c da mora-
lidade, tomam em breve um caracter horrendo
e inscrevem o assassirnVj e o crime nos pendões
d'esses e d'outros adversários.
Knlrctanto os liespanhoes dividiam entre si
solemncmenle o produclo dos seus roulios c da
sua perfídia. No dia de S. Thiago, do padroeiro
das Hespanlias. depois de lerem ouvido devota-
mente uma festiva missa, dita por aquelle padre
Valverde, de cujo estúpido e sanguinário fana-
tismo já informámos os leitores, depois de lerem
invocado o Omnipotente, para que elle viesse
sanctiíicar os horrendos crimes commettidos em
seu nome, procederam os conquistadores a essa
cubicada repartição. Torrentes d"oiro correram
então diante dos olhos deslumbrados dos com-
panheiros de Pizarro, e o fulvo reflexo d"esse
metal fascinador, em vez de os saciar, ainda mais
lhes accendeu a cobiça, a avareza, todas as pai-
xões vis que fermentavam no baixo espirito des-
ses aventureiros.
Tendo pago o seu resgate, o misero Atahualpa
reclamou a sua liberdade. Mas esse mesmo prora-
pto pagamento foi causa da sua ruina. Tinha
tanto de manhosa como de pouco escrupulosa a
politica de Pizarro. Se os Peruvianos obedeciam
com tanta promplidão ás ordens do seu monar-
cha prisioneiro, 6 porque a realeza exercia sobre
elles lodo o seu prestigio. Conservando Atahualpa
debaixo de perpetua ameaça, conservava também
o império submisso. Fora essa a politica empre-
gada por Cortez com Montezuma, soberano do
México. Mas, se Pizarro, com a perspicácia do
génio, concebia grandes planos, não tinha, como
o conquistador do império dos Azleques, a pra-
tica dos negócios, a fmesa que só a educação
desenvolve ; Cortez soubera conservar Montezuma
debaixo do seu jugo, não lhe coarctando em ap-
parencia a liberdade, e deixando-o no throno
como um titere cujos fios elle em segredo mo-
via. Pizarro rodeou de guardas o inca, alienou
completamente o seu espirito, e, excluindo Al-
magro e os seus companheiros d^mia parte igual
no resgate, provocou as suas suspeitas. Já vimos
a tocante confiança que estes bandidos deposita-
vam uns nos outros. Desconfiaram os recem-che-
gados, e provavelmente com bastante razão, que
Pizarro, conservando o inca prisioneiro, chama-
ria a si todas as quantias que podesse angariar,
allegando que eram o complemento do preço
da sua liberdade. Em vista d'isso pediram, voz
em grita, que Atahualpa fosse condemnado a
morte.
Uma questão mesquinha de amor-proprio de-
cidio a sorte do pobre Peruviano. Ceito respeito
que Fernando Pizarro, e Fernando Solo lhe
manifestavam conciliara as suas sympathias, ao
passo que os grosseiros modos do cheíc da expe-
dição lhe repugnavam. Esta preferencia, que elle
não soubera disfarçar, irritara sobremaneira o
nosso hcroe, suscepíivel, como todos os homens,
superiores só por um lado e que reconhecem a
sua iníerioridade no resto. Demais Atahualpa de
todas as artes européas a que mais apreciara
era a do ler c escrever. Parecia-lhe isso um dom
divino. Não sabia elle se era talento natural ou
adquirido. Pedioumavcz a um soldado hespanhol
que escrevesse a palavra Deus no muro da sua
prisão. O hespanhol satisfez-lhe o desejo. Em
seguida pedio o Inca a todos que lhe appareceram
que lessem essas letras, e lodos, sem hesitarem
um instante, leram a mesma cousa. Veio o chefe,
e o inca repetio a pergunta, e, sendo Pizarro
obrigado a confessar que não sabia ler, o inca
não pôde orcultar o dcspreso que lhe inspirava
um general menos instruído do que os seus sol-
dados. Nunca llfo perdoou esse espirito, (lue a
tanta alteza de pensamentos juntava sentimentos
tão baixos, e a morte do soberano do Peru foi
de.sde então caso decidido.
o PANORAMA
359
Foi então que se revelou plenamente o cynisrao
fanático destes homens ; foi então que se repre-
sentou uma comedia, horrenda e repugnante, se
os actores a representaram com a consciência
plena e inteira do que faziam, estupenda se jul-
gavam praticar um acto naturalíssimo. Os ven-
cedores não quizei am invocar simplesmente, para
assassinarem Atahualpa, o direito do mais forte,
não se limitaram a usar em Ioda a sua extensão, do
direito de conquista, pai liaram o seu crime com
as formalidades mais burlescas, e, invasores, sem
motivo, de um paiz independente, em que nunca
tinham ouvido faltar, e que nunca ouvira fallar
d'elles. constituiram-se em tribunal, julgaram e
sentenciaram Atahualpa, aceusado e convicto dos
seguintes crimes :
i.° De ter, sendo bastardo, expulso do throno
o seu legitimo soberano e de o ter mandado as-
sassinar. O crime era verdadeiro, mas só um
compatriota de D, Quixote se podia julgar com
direito de intervir nas mudanças politicas d'um
paiz, com o qual nunca tinha tido as mais
leves relações.
2." De ser idolatra, e de ler offerecido sacriíi-
cios humanos aos seus falsos deuses. Singular
meio de pregar a religião christã!
3.'' De ter um grande numero de concubinas.
Francisco Pizarro feito propugnador da morali-
dade universal!...
4.° De ter, depois da sua prisão, desbaratado
os seus thesouros reaes, que desde esse momento
pertenciam aos seus conquistadores. Como a bolsa
do viajante pertence ao ladrão, logo que este lhe
põe o punhal ao peito.
5.° Finalmente de ter incitado os seus vassallos
a pegarem em armas contra os Hespanhoes. Era
a fabula do lobo e do cordeiro posta em acção
por Pizarro que nunca lera Phedro, mas que o
adivinhara.
Esta sanguinolenta comedia representou-se com
todo o apparato judicial. Nomeou-se um advoga-
do ex-ofjicio para defender o inca prisioneiro, fo-
ram chíwiiadas e inquiridas testemunhas, lavrou-
se auto do processo.
O pobre Atahualpa assistio estupefacto a esta
representação que não podia perceber, e não sa-
bia se mais se devia rebellar contra a crueldade
e perfídia dos seus vencedores, se admirar o seu
impassível descaramento. O inca foi conderanado
á morte.
Finalmente, para que nada faltasse a esta farra
de que não ha outro exemplo na historia univer-
sal, veio também a scena religiosa. O padre Val-
verde ousou pròpòr a Ataiuialpa que adoptasse
a religião, cujos ministros e sectários se lhe apre-
sentavam debaixo d'um aspecto por tal forma
hediondo e vil. Também devemos confessar que
o único argumento de que se sérvio foi a pro-
messa de se lhe conceder morte mais suave, se
consentisse em deixar-se baptisar. Atahualpa,
abatido já por tão largo marlyrio, e não sabendo
que horrendas torturas poderia inventar a fecuiidít
imaginação dos seus algozes, a tudo se resignou
para que os seus padecimentos findassem (l'um
modo menos cruel. EtTectivamente essa ultima
promessa cumprio se. Em vez de ser queimado
vivo, Atahualpa foi simplesmente enforcado.
A morte do infeliz inca abateu completamente
a pouca energia dos seus súbditos, mas os seus
ultimes gemidos rcsoaram na liistoria, e o seu
espectro devia perseguir bastantes vezes os sonhos
de Pizarro, como persegue perante a posteridade
o seu nomo, que pronunciamos com admiração
e horror. O sangue de Atahualpa estampou eter-
na macula na gloria do descobridor, e conquista-
dor do Períi.
Mas a justiça divina não esperou que soasse a
hora do passamento para fulminar o criminoso.
Na raoilc do inca fisida a segunda parte da exis-
tência de Pizarro. Agora continuam os crimes, e
a prosperidade, mas já começa a expiação.
(Continua) |2';]
OS ovos E OS CAVALLOS
Conto diuaniarquez (I)
Era uma vez ura homem que visitava todas as
cidades, villas e campos com uma carruagem cheia
de ovos e um grande numero de ca vai los. Deixava
ovos nas casas onde a mulher representava de
chefe, e cavallos n'aciuellas em que o homem go-
vernava. Assim distribuía uma quantidade inlini-
la d'ovos, mas dos cavallos nunca podia desfazer-
se.
Um dia, entrou em uma casa onde tudo pare-
cia indicar que o homem era o dono. Resolveu
passar ali a noite, e, na manhã do dia seguinte,
qnando tratava de fazer as suas despedidas, disse
ao marido que se dignasse escolher de entre dois
cavallos, um alazão e outro prelo, o que mais lhe
agradasse; i)0's desejava oíTerecer-lh'o como prova
do seu reconhecimento pelo bom tratamento que
lhe íizera.
— ]N'essc caso, disse o homem, ficarei com o
alazão.
— Não, exclamou a mulher; pareces-me tolo...;
o preto é melhor.
— Bem, replicou o marido; uma vez que assim
o entendes, minha fdha, escolherei o preto.
Mas licaram envergonhadíssimos quando viram
o estrangeiro relirar-se com todos os seus cavallos
e deixa r-lhes apenas um ovo.
UMA OBRA DO SÉCULO IX
Arcádio com seu irmão Ilonorio, reinou XIII
annos. N'esta época, o bispo S. Agostinho res-
plandecia com a sabedoria da sua doulrina, e Do-
nato bispo de Epíro assignalava-se por suas vir-
tudes. Este, vendo um enorme dragão e cus|)in-
do-lhe no focinho, matou-o ; e oito juntas de bois
apenas podiam arraslal-o á fogueira em que^ foi
queimado. Pelo mesmo tempo, os corpos dos San-
tos Pro])helas llabacuh c Micheas, são descobertos
por divina revelarão. Floresce Theophilo. Os (lo-
dos acommellem a Ilalia e os Vândalos c os Ala-
nos as Gallias.
8. Honório com Thcodosio menor, lilho de seu
irmão reinaram XV annos. Duranie o império dos
(Iodos apoderaram-se de Roma, e os Vândalos, os
Alanos, e os Suevos, occu])am as Spanias. Ceie-
bra-se em Carlhago um concilio composto de
CCXIV Bispos.
(I) Gamle danskc Mhuler i Folhomunde : Velhas recordações do
povo dinamaniucz editadas por Svead Grundtvig. Nova serie. Go-
Ijunhague, 1857, p. 126.
360
O PANORAMA
Cyrilo, que era bispo de Alexandria, assignala-
se parlicularraente.
Thoodosio o Menor, fdho de Arcádio, reinou
XXVII annos. Os Vândalos passam d'líespanha a
Africa, e arruinam ali a fe calholica com a im-
piedade arriana. Ueune-se em Kplieso um concilio
de Bispos contra Nesiorio. Pelo mesmo tempo, o
diabo, apparecendo em Creta aos judeus em ligu-
ra de Moysés, prometle-llies conduzil-os por mar
a pé enxuto á terra de promissão, mas lendo mor-
rido muitos, converleram-se outros ao christianis-
mo.
9. Marciano, reinou VI annos. No principio do
seu reinado, cslebra-se um concilio em Calcedo-
nia. Theodorico, rei dos Godos, á frente de um
numeroso exercito, entra em Spania.
Leão Maior, com Leão Menor, reinou XVI an-
nos.
Zenon, reinou XVII annos. N"aquelle tempo, e
pela revelação do mesmo, encontrou-sc o corpo de
S. Bernabe Apostolo, e o Evangelho de S. Ma-
theus.
Anastácio, reinou XXVíI annos. N'esta occasião,
Fuígencio, Bispo, resplandeceu por sua sabedoria
e doutrina. Nascem muitas heresias.
(Continua) ^^
TERÇA FEIRA!
Rompera a nianliã sombria,
D'eslas, que fiizem Irisleza.
Em profunda cahiiaria
Repousava a natureza.
Repousava. As ondas mansas
Vinliam quebrar-se na areia.
Que mar tanto para esp'rançasl
Oue enganadora screial
O arraes, por entre os pallieiros,
«Ao mail,» grita, "ao mar! aos remosl
«Para as tanclias, companliciros,
«Grande safra hoje teremos.»
E a pobre gente da costa,
Essa raça dcslcmidi,
Que a morte, sem medo, arrosta.
N'um momento c Ioda erguida.
Eit-os na praia. Cantando,
Se dão á tarefa santa.
Que iTessc valente Ijando,
Quem mais trabalha, mais canta.
São todos? Todos, não. Fatia
Da companha o mais valente.
Esta nova soljresatla
O peito d'aquelta gente.
«Partir sem ellel Por Christo,
«Que a primeira vez seria.
«Em qualquer Irmcc imprevisto,
«Quem tanto nos valeria?
Tudo pára, tudo hesita.
Mãos nos remos, mão no teme;
Que o seio a muitos palpita,
Que a muitos o Ijraço treme.
Ora, no pobre palheiro
1)0 pescador, que tardava.
Eis o que, ao alvor primeiro
D'esla manhã, se passava:
Etle acordara o, na esposa
Que ao hnio dorme tranquitla,
Repousa a vista amorosa
E, ao despertat-a, vacitta.
Yacilla — se c tão suave
Aquelle dormir, tão brando!
Mas não sei (pie idca grave
Lhe está na mente pesando.
Terno, a esposa ao seio aperta
E itic diz, com gosto ameno:
«Mulher, teu lilho desperta,
oAcorda-mc esse pequeno.
A loven mãe estremece;
«Que acorde meu íilho, dizes!
«Doixa-o dormir. Deus lhe desse
«Sempre assim somnos felizes.
— «Acorda teu filho, acorda;
«Tal dormir não é p'ra ellc.
«Tempo é que da lancha á horda,
«Como os outros também vete.
— «Ás lanchas! ao mar! pois queres...»
E a mãe enipallidccia.
— <iN'esla vida de mulheres
«Não é que um homem se cria.
— «Mas tão novo...«— «Inda mais novo
«Meu pae me levou corasigo.i)
— «Mas..» — «Jà se falta entre o povo
«Do rapaz» — «Mas ouve, amigo.»
E a voz tremula, chorosa
Quasi em pranto 'se afogava.
Curvara-se ao mar a esposa.
Mas a mãe, essa, hesitava.
Hesitava, que se lhe ia
A alma toda, dando aos mares
O fdho, a sua alegria,
O lume dos seus olhares.
— «Ouve»— murmura chorando,
«Por Deus te vou pedir isto!»
E depois, em tom mais brando
«Em nome de Jesus-Chrislo !
«Deixa-m'o ficar, marido,
«Hoje só, ai, hoje ao menos,
«Fraco auxilio ò recebido
«Dos braços d'esses pequenos.
>tRem sabes que tudo os cança;
«Sempre sois tão dcshumanosl
«E depois essa criança
«Inda não fez os dez annos.
— «Agoura-me bem o dia,
«Para lhe abrir a carreira;»
— '■Porém, 6 virgem Maria,
«E hoje então, que c terça feira!»
— «Mulher, deixa essas idéas,
«Iguaes são todos os dias.
«Em maus agouros não creias,
«Se é que no Senhor confias.»
«Aprompta, teu filho, aprompta,
«Que hoje ha de entrar na partilha.
«E olha que o sol já desponta,
«Anda, acorda-o, minha filha.
(Continua.)
Typ, rnuir;o-l'orlugueza — Hua do Tliosouro Velho, G,
46
o PANORAMA
36>1
CasLello e porto de Dover.
A cidade de Dover, siluada a IJO kilomelros
E. S. E. de Londres, sobre a Mancha c em frente
de Calais, éum dos cinco principaes portos da In-
glaterra. Eslá asseniada em um grande vaile
rodeado de um semi-circulo de montanhas, no
cume de uma das quaes se eleva a sua antiga
e bem construída cidadella. A população regula
por dezeseis mil almas.
A vasla bahia que possue, as soberbas colimas
cobertas de selvas e a excellente agua concorreram,
sem duvida, para os BrelOes ali se eslabelecerem.
(3s habitantes d'eslas costas foram oulr'ora ce-
lebres pelo seu caracter bellico ; e quando Júlio
César, á frente de um numeroso exercito inva-
dio a Gran-Brelanha, encontrou nas monlanhas
de Dover um grande numero de homens (jue se
oppozeram energicamente á sua entrada. Não obs-
tante, a cidade, apesar do esforço de seus habitan-
tes, vio-se em pouco tempo submettida ao jogo
dos Romanos, que muito a aformosearam, o sup-
põe-se mesmo que no lugar onde hoje se ve a
moderna fortaleza, existia outra construída por
Júlio César. Dover desde logo adquirio grande
importância pela sua magnilica situação na costa
e proximidade da Gallia, c ainda hoje é o ponto
principal de communicação entre a Inglaterra e o
continente.
Ko tempo dos saxonios esta cidade gosava de
muitos privilégios importantes. Todos os seus ha-
bitantes depois de um certo numero de annos em
que pagavam impostos ao rei, eram isentos de to-
do o direito de portagem no resto da Inglaterra.
Segundo alguns velhos chronislas, os mensageircs
que se dirigiam a Erança, pagavam seis soldos
pela passagem de um cavalio n^ inverno, e qua-
tro soldos no verão; a gente da cidade eia obri-
gada a procurar um barqueiro e um ajudante; se,
porem, se exigia um maior numero de homens, o
rei fornecia-os á sua custa. É o mais antigo re-
gulamento que existe sobre o preço da passagem
de Inglaterra para Erança.
No reinado de Henrique III, o preço da viagem
era de dois schellings para um cavalleiro e doze
soldos para um peão. Ricardo II fez uma lei que
impunha a todos os estrangeiros, fossem peregri-
nos ou viajantes, de embarcarem e desembarca-
rem neste porto.
Era em Dover que em tempo de guerra se
juntavam as frotas e os exércitos que se deviam
dirigir contra a Erança. Em 1189, o bravo Ri-
cardo I, cognominado Coração-de-Leão, embarcou
neste porto, para ir combater os infiéis e apode-
rar-se de Jerusalém. Seguiram-n'o cem naus e
oitenta galeras, e nesse mesmo dia desembarcou
em Cravelines. Eoi neste mesmo porto que o fra-
co monarcha João-sem-Terra, convocou os condes,
barões e cavalleiros do reino, e reunio todas as
suas forças de mar e terra j)ara se op|)or ao des-
embarque de Philippe Augusto, que, segundo as
ordens do j)apa Innocencio III, se dispunha a in-
vadir a Inglaterra.
Em 1210, Luiz, delphim de Erança, desembar-
362
O PANORAMA
cando em Sloiiar, porto de Sandwich, e haven-
do-se assenhoreado de nuiilas praças forles, sitiou
o caslello de Dover; mas não poude lomal-o. No
reinado de Eduardo I, uma grande parte da ci-
dade, assim como muitos conventos, foram iHcen-
diados pelos Francezes. Ouando o imperador Si-
gismundo foi visitar, em lílG, seu primo Henri-
que V, o duque de (llocesler, e muitos outros senlio-
res, esj)eraram no armados na piaia, atim de Ibe
embargarem a entrada na cidade, no caso que el-
je mostrasse intenções bostis. Em lo20, o impe-
lador Carlos V foi recebido em Dover pelo rei
Henrique VHI, e os dois soberanos partiiam jun-
tos j)ara Cantorbery atim de ali celebrarem as fes-
tas do Pentecostes. Henrique, convencido da im-
portância de Dover, que se chamava então a cha-
ve do reino, contiibuio com oitenta mil libras
sterlinas para a coiistiucção de um molhe que se
concluio no tempo de Lsabel. Em ISli, o prín-
cipe regente, depois Joigc IV, acompanhou
Luiz XVHI até Dover, quando este príncipe foi
tomar posse do throno de seus pães.
Do cume das montanhas (jue, em semi-circulo,
rodeam a cidade, avista-se ao longe o mar e a
costa de França. Dover é uma cidade bem edifi-
cada ; encontram-se ali construcções modernas
muito elegantes. Uma rua, que tem mais de uma
milha de extensão atravessa-a de uma a outra
extremidade, e as outras ruas são todas mui lim-
pas, largas e ornadas de magniíicos edifícios. Os
seus arrabaldes são deliciosos, e em toda a ])arte
enconlram-se pontos de vista admiráveis.
No cume de um rochedo, como acima dissemos,
da altura de quinhentos pés, j)ouco mais ou me-
nos, vê-se a cidadella chamada Shakspeare, que
domina a cidade e está bem fortificada. Uma
parte das suas fortificações são de origem nor-
manda; mas trabalhos recentes altestam os receios
(jue inspiraram ao governo inglez, os preparativos
(jue Napoleão fizera em Bolonha, para fazer uma
visita a sua rival. Os viajantes notam sempre com
interesse uma escada em espiral praticada na ro-
cha, pela qual se desce do caslello para a cidade.
Esta cidadella em todos os tempos, por assim
dizer, inexpugnável, foi tomada por doze homens
no tempo de Carlos I. Um ousado republicano
chamado Drake, escalou o rochedo, e dirigio por
lai forma o seu ataque, (jue a guarnição realista
julgou ter um exercito em sua presença c enlre-
ííou-se á discrição.
ESTUDOS SOBRE A CIDADE DO PORTO
I
Antiguidade d'rM(u cidade
A famosa cidade do Porto, a segunda do nosso
paiz, e uma das principaes entre as de soj^nnda
ordem na t)uropa, notável por muitos motivos,
não é d';iqncllas, cuja origem se perde na obscu-
ridade dos lenjpos, como a de Lisboa, Setúbal,
Marselha, c a de muitíssimas outras. Póde-se
provar até á evidencia, que mesmo no tempo
dos romanos o local, cm que séculos depois se
fundou esta cidadCj não passava d'um terreno
inculto e despovoado, ou, quando muito, d*uma
insignificante povoação de pescadores. Essas dif-
ferentes opiniões que remontam a origem desta
cidade até os tempos fabulosos, nem se quer
merecem a honra da refutação. A cidade do Por- ^
to, pátria do infante D. Henrique, e de Garrett,
constante propugnadora da liberdade, assídua
íntroductora da civilísação cm o nosso paiz, ad-
quírio a nobreza por seus próprios feitos, não
ha mister vangloriar-se de genealogias fabulo-
sas, (l) e de bom grado cede taes honras a esses
néscios presumidos, que inhabeis para attrahirem
pelos méritos pessoaes as attenções ou respeitos,
pretendem obtcl-os fazendo-se passar para com
o vulgo ignorante de descendentes, pelo menos,
dos antigos porlncalcnses, que da nossa Península
expulsaram os Mouros.
ííouve uma época, (bem conhecida é ella pela
existência dos Brítos, dos Lousadas, dos Cerquei-
ras Pintos, e de tantos outros), em que as cida-
des, desprezando suas próprias glorias, só aspi-
ravam á de terein por seus fundadores ura filho,
ou, pelo menos, um neto de Noé. (2) Tal época
passou, e nunca mais ha de voltar; porque a
humanidade, abrindo cada vez mais os olhos,
ha de procurar uma gloria solida, e não fictícia ;
inabalável, e não cadente á applicação da re-
gra mais somenos da critica. Podem, porém, as
fabulas e patranhas d'esses tempos servirem aos
poetas e romancistas, verdade já conhecida no
tempo de Tito Lívio ; e por isso d'ellas farei breve
mensão, lamentando ao mesmo tempo que en-
genhos, aliás distinctos, tivessem perdido tão
inutilmente seu tempo : tão dilFicil é ser qual-
quer superior ás preoccupações do seu século!
Uma d'ellas attribue a fundação da cidade do
Porto aos Gregos da província da Thracía c^ue
habitavam nas margens do rio Axio, aos quaes
denominavam Mydones. Querem que estes Gregos,
impellidos por uma furiosa tempestade, appor-
tassem á Foz do Douro, e subindo por elle, ti-
vessem ido até Gaia, c d'ahi passando para a
parte septemtrional, nella fundassem uma cidade
com o nome de Lavra, que com o decorrer dos
séculos veio a corromper-se no de Porlucale.
Outros, achando ainda pequena uma tal an-
tiguidade, escreveram ler sido o seu fundador
Galhello, filho de Neolo, rei d'Athenas, pois
que, fugindo á crueldade de seu pae, passara ao
Egyplo no tempo de Moysés, onde servira a Fa-
Fió contra os Ethíopes, c em remuneração de
seus serviços, o rei do Egypto o casara com uma fi-
lha chamada Escota ; e que, embarcando-sc sem
demora com cila na companhia d'um grande nu-
mero de Egypcios, fora procurar novas aventu-
ras, e depois d'uma prolongada navegação pela
Costa d'Africa, c pelo Meidterraneo, passado o Es-
treito de Gibraltar, chegara ao sitio, onde actual-
(1) É realmente pasmoso o grande numero de obras gencalos
gicus, 'lue se escreveram nos doÍ3 uIUiiioh seciiUiS precedeiUe-
ao nosso. A maioria d'ellas existem Inedjlas: mas uma tiil falta
de pulilicaeuo de modo algum aire'ta a nossa lilteratura. Po*
r.'m para iij ver a criliea, que nellas reina, nmillindo o de mui-
tas outras, citarei o titulo do códice \\."Ti'ò da ISibliotlieca Pu-
blica Vui-Miium— iJeclaritruo i/en('ulo(/ica nn </uí' .sv prova qui'
o illm." (1 cxm." sr. I.uiz Pinto de Sousa, inurgado de Httlsi--
111(10 desvende dos imperadores de AUcmanlia, de CoiislinU inó-
pia, de liomu ele. eir. por 813 linhas! —l^nho noticia do muig
tas ou,tras uo mesmo tíosto.
(2; É por isso com lasão que o sr. Alexandre Herculano diz
ironicamente na sua introduecSo A Historia de I'()rtuffal : «A
(jente porliKjueza (ii)iov-sc inifa das mais aniif/as do Universo,
drsrohrinrlo o .seu heyeo nos cimos do Arurat, donde os jilkos
de No(í descernm u rêporvoa a itrra.»
o PANORAMA
363
menle está o Porto, e aqui fundara esta cidade,
a que deu o nome de Porto Galhello, em memo-
ria do seu nome, e aos habitantes cliamára Es-
cocezes em lembrança de sua muHier.
E a terceira opinião, que Diomedes, (3) rei de
Etholia, um dos principaes capitães de Tróia,
navegara pelo Mediterrâneo até sahir pelas Co-
lumnas de Hercules para o Oceano, c, abordando
á foz do Douro, desembarcara na parte septem-
Irional, e ali depois de longa demora, lançara
os fundamentos d'uma povoação, que com o an-
dar dos tempos se chamou iíaia, e seus habi-
tantes Grajos, por descenderem dos Gregos, fun-
dadores desta cidade, e lambem por se chama-
rem Grecaníos seus ritos e costumes.
Querem outros que Meneláo, irmão de Agam-
menon, e marido de Helena, o causador da des-
truição de Tróia, deslerrando-se de sua pátria,
passara do Mediterrâneo paia o Oceano, e nave-
gando ale as alturas do Porto, aqui fundara esta
cidade, cingindo a para sua defesa de fortes
miuTilhas.
na outros, que, afastando se inteiramente des-
tas opiniões, S'>guem a de que a fundação desta
cidade deve ser atlribuida aosGallos Celtas, asse-
verando lerem estes passado o Alemtejo para a
Estremadura na companhia dos Turdelanos, e
que, depois de conquistarem as províncias da
Beira e Minho, levantaram para defesa o caslello
de Gaia, e depois, passando para o norte, fun-
daram uma cidade, que chamaram Portucale.
Já se vc que estes fautores d'uma tal opinião
não se mostram tão lidos em Yirgilio e Homero,
como os antecedentes, attribuindo tal fundação
aos tempos heróicos.
PondOj porém, termo a uma tal collecção de
disparates basta só dizer que ha ainda quem
attribua a Júlio César o principio do Porto, di-
zendo terem-se encontrado umas leltras anti-
quíssimas na calhedral desla cidade, que juntas
queriam dixer Julius. Ainda ha quem apresente
por fundador a Noé; e também a Calais, lilho
de Boreas, rei de Thracia, argonauta, que tinha
fundado muitas cidades em diversos lugares, de-
pois do decantado vellocinio d'ouro da ilha de
Colchos ; e que era de toda probabilidade ser o
nome Gaia derivado de Calais pela semelhança,
que os nomes tinham entre si.
Eis as opiniões, que em diversos tempos appa-
receram a respeito da fundação desta cidade :
quasi todas ridículas, e abaixo da critica.
Existiria porém esta cidade, ou mesmo povoa-
ção pequena em tempos remotos? Não: porque
delia não fazem menção nem, ainda mesmo de-
baixo de qualquer outro nome, nem Ptolomeo,
nem Strabon, nem Pomponio, nem Plínio, nem
Deão Cassio. E também não em tempo dos im-
peradores, porque fazendo se em ditíerentes épo-
cas divisões administrativas na Hespanha, ('*) e
devendo a cidade do Porto ficar incluída cm
alguma d'ellas, em nenhuma apparecc mencio-
(3) Todas estas opiniões vêem mencionadas pelo padre Agosti-
nho Rebello da Costa na sna ot)ra — Descripeão da cidade do
Porto— impressa no Porto em 1789.
('•) Estas divisões foram Ires. A primeira depois da segunda
guerra Púnica, sendo expulsos da Hespanha os Cartiiaginezes,
sendo então dividida cm Citerior o Ulterior. A segunda no tem-
po de Júlio Llesar imperador, em três províncias, Betica, Tarra-
conense e Lusitânia. A terceira em tempo de Constantino em
seis, Betica,, Lusitânia, Galliza, Tarraconense, Carlhaginenso e
Tingitana. É duvidoso se por esta occasião ainda teve por sé-
tima província as Baleares. V. António Pereira de Figueiredo
no vol. 9.0 das Memorias da Academia.
nada, ao passo que se falia do rio Durius, que a
banha.
Temos ainda outra prova no Itinerário de An-
tonino. Nesta obra descrevendo-se a via militar áe
Lisboa a Braga, al> Olisipone aã Bracharam Au-
giistam, mcdein-se do modo seguinte as distan-
cias de varias povoações do nosso paiz n'aquelle
tempo :
.Terabrícam (Alemquer) M. P. XXX
Scalabin (Santarém) M. P. XXXIl
Cellium (Ceice) M. P. XXXÍII
Conímbricam (Condeixa Velha) M. P. XXXIV
Cnunium (Águeda) M. P. XL
Talabricam (Aveiro) (rj) M. P. X
Lancobricam (Feira) M. P. XVHl
Cale (Gaia) M. P. XÍII
Bracharam (Braga) M. P. XXXV
E nem palavra de povoação alguma, que esti-
vesse situada no lugar, em que hoje vemos a
cidade do Porto, approximadamente no anuo 160
de Christo, em que se diz ler sido escrípto este
itenerario.
Por conseguinte nem em epochas anteriores,
nem em tempo dos Romanos existio povoação
no sitio do actual Porto. Havia então uma po-
voação chamada Cale, mas no lado opposto, no
sitio a que hoje se dá o nome de Caslello de
Gaia, (6) e talvez também pela sua encosta e
margem do rio. (7)
Esta povoação chegou a ser importante por
causa do grande numero de embarcações, que a
demandavam para transacções commerciaes, e
d'aqui lhe proveio o nome de Porlus Cale (Porto
de Cale), que mais tarde se converteu no de
Portucale, Portugale, e Portugal, nome que tam-
bém passou para a diocese, e mais tarde para um
território mais amplo do que a diocese. (8) Visto ser
uma povoação importante havia misterde fortifica-
ções para resistir a qualquer invasão dos povos que
a demandavam, e teve as cora effeito, pois se acha
nos antigos escriptores Portucnle caslrum anti-
quam, e d'ella nos faz menção Idacío, pelos an-
nos de 457, 459, e 461 depois de Chrísto.
Eis agora o que nos diz D. Fr. Francisco de
S. Luiz a respeito do começo do actual Porto :
«Era natural que na margem opposta do rio,
ao norte d'elle, se fosse pouco a pouco estabe-
lecendo, (como em semelhantes circumstancias
costuma acontecer), outra igual povoação, tanto
para commodidade dos povos, que habitavam
uma e outra margem, como para facilidade do
trato commercíal e marítimo com as terras, que
ficavam mais ao interior das províncias, que o
rio separjiva e demarcava. Neste lugar, e no
mais alto dcUe se fundou também caslello para
defesa, segundo a pratica d'aquelles tempos. E,
como pelo decurso dos annos crescesse c prospe-
(õ) Na edição desto Itinerário por wesseling (Amsterdão, 1735;
voe™ marcadas as distancias do seguinte modo :
Eminio M. P. X
Talabrica M. P. XL
(6; Nem vestígios existem presentemente deste castello e po-
voação antiga, tiuo mais tardo teve a honra do dar o. nome a
todo o paiz. Ficava fronteira á parte da cidade chamada hoje
MassaroUos.
(7) A existência de Calo (hojo Guia) fronteira á cidade do Porto
no tempo dos Bomanos ó aie reconiiecida em uma inscripção
achada em Roma Sepulchral* de um llespanhol que se diz casado
com Claudia Lupa Cnlen^e. J. P. Ribeiro. Reflexões históricas.
Part. 1." pag. IG.
(8) V. Fr. Frauciáco de S. Luiz no vol. 12 das Memorias da
Academia.
864
O PANORAMA
rasse mais esta povoação, foi ella tomando, e
ficou conservando quasi exclusivamente^ a deno-
minação de Porlus Gale, designando-se nos anti-
gos documentos ora com esle simples nome, ora
com o de Caslrum Porlucale ; ora com o de locus
roríHcaJe, e chamando-se talvez caslrum novum
para diíTerença do outro Porlucale, que se dizia
Cíislrum aniiquum. (9)
ICsle mesmo lugar conlinuou a crescer cm po-
voação, c chegou a ter igreja calliedral, c bispo^
de sorte que já no Concilio III Toleiíliiio, cele-
brado no anno de 589, anuo 4." do Hei Uecare-
do, se nomea Porlucalense, lanfo o bispo calho-
iico Constâncio, que a elle assistio^ como o bispo
Aiano, intruso por Leovigildo, que ahi abjinou
a heresia. K d'ahi em diante nos concílios Tolc-
tanos, no Bracarense provincial 111, e em outros
escriptos se acham frequentes subscripções, ou
memorias, dos bispos portucalenses, assim deno-
minados da cidade capital, que deu o nome á
Sé, e da qual se estendeu (como era pratica) a
toda a diocese, que lambem se chamou Porluga-
lense.n
O sr. Alexandre Herculano inclina-se a crer
que esta cidade começou a ser habitada, quando
as conquistas dos chrislàos se dilataram até o
Douro. (10)
Seguio-se uma longa serie de annos, mas a
historia tem de ficar muda por falta de docu-
mentos; sabe se apenas o nome de alguns bispos
do Porto, que assistiram nos concílios celebrados
pelos Godos.
Chegou a época, em que a Península tinha de
ser invadida pelos Árabes chamados pelo conde
Julião, e dirigidos por Miiza. «Os Godos linham
perdido a<}uella energia militar, que os tinha
feito Ião terríveis, quando eram povo conquis-
tador. Tinha-se ella já enervado, desde que a
velha espada gothica se tinha submeltido ao bá-
culo episcopal, c sobre tudo desde que se tinham
entregado aos gosos c deleites da vida molle e
deUcada.))(ll) Na batalha deGuadalele (12) íicou
completamente destruído o poder Ghrisluo, e
tudo ficou sugeilo ao dominio sarraceno, que
não foi tão oppressor, como os christãos quize-
ram fazer acreditar, sendo os Mouros tolerantes
e generosos para com os vencidos, permitlindo
até que estes seguissem a religião Christã e ti-
vessem templos. O Porto teve também de suc-
cumbir, e com eííeilo cahio em poder dos ven-
cedores no anno 716, conquistado pelo general
Árabe Abdelaziz. Alguns annos depois ioi a ci-
dade libertada por D. Aífonso I, rei das Aus-
Irias, (13) porém o receio de que cila fosse de
novo invadida, fez com que a despovoa.sse de
christãos, icvando-os para o interior do reino.
Tornou a ser povoada por Affonso III, e debaixo
(9) É inútil (liztT que destes lompos quasi nada resta no Porto.
A maior antiguidade desta cidade 6 a igreja de Cedofcila, niíi.s
esta ficava a distancia ilo Torto anti(,'o. Inclino-nic a crer (jiie
csUi igreja é anterior ao dominio dos Mouros, embora o sr.
A. Herculano n'nma carta dirigida ao conde de llaczynski siga
opinião contraria. Aquella arcliitectnra não parece de cpoca
IKislerior. Algumas jjaredes da S6 daUini de tempos próximos
ao condo D. Henrique. Eis o que esta cidade oUercce de uiaior
antiguidade. A rc-speílo do demolido Arco do Vendoma [Vcmio-
me) fallarei atjiante.
(10) Ha «piem diga que os (Jiristáos levantaram um castello
no lugar, em que lnje se eleva a calliedral, para se deícndc-
rern Contra as Toicas de Atlafxs, ret dos Alanos, que os (jueria
despojar |do seus estados.
(11) i,aluent«. Historia dK.«pagna. vol. 2.° pag. 'iC8.
(12) Actualmente Xtrtg dit lu Fronlcra.
(Vi) João Tedro Hibeiro. Dissertação liistorico jurídica pag. 9.
do governo de seus successores se conservou até
o anno de 987, tendo neste intervallo seis bispos,
pelo menos titulares.
Por este tempo era a nova povoação chamada
Portugal ião insignificante, que D. Ordonho II de
Leão na doação, que fez no anno de 922 ao bis-
po de Coimbra D. Gomado, e ao seu Mosteiro de
Cresluma lhe dá o titulo de villa, titulo, que pe-
la mesma occasião dava a Lever, Arnellas, Ovar
e Paradella, (14)
De novo tornou o Porto a cahir debaixo do jugo
sarraceno. Almançor então regente do reino do
Córdova por Alcova, viuva de Alken II, de quem
era mordomo, na menoridade de lleschen 1! li-
nha invadido os estados do rei de Leão nos an-
nos 97o, 976 e seguintes e n'um delles (parece
que em 987) se apoderou do Porto, (lo)
Diz o illustre João Pedro Ribeiro «que a cidade
não se conservou por muito tempo em poder
dos Sarracenos, por quanto os filhos do conde
D. Gonçalo Moniz passando a Gasconha ahi aprom-
ptaram uma armada, com que entraram nas
aguas do Douro, e reconquistaram o território.
Este facto é por uns attribuido á Era 1U;)7 (anno
999) por outros á Era de lOtiO (anuo de 1022).
Nesta armada se aífirma terem vindo Noncgo e
Sesnando ; dizendo-se este ser filho do mesmo
D. Gonçalo Moniz, succedendo um ao outro na
Prelasia do Porto. O primeiro, a que lambem
dão o nome de ínigo, assigna em uma escriptu-
ra, Ennegus Portugalensis sedis Episcopus, na
Era 1063 (anno 192o.) o (1(5)
Na historia antiga do Porto é a entrada dos
Cascões um dos successos mais notáveis, mas
que infelizmente não ptjde ser bem comprehen-
dido por falta de documentos authenticos que o
confirmem.
Da rua Chã para o Largo da Sé passava- se por
debaixo d'um arco de época remota, conhecido
pelo nome de Arco da Vandonia, cuja tundacão
era atlribuida a estes Cascões. (17) Foi demolido
cm ISoo: iguúio com que íim, mas não o posso
allribuir a outro, senão ao furor que se apossou
da geração actual, o de demolir tudo que apre-
sente vestígios d'anliguidade.
Mostrei pois, fundado em escriptores verídicos,
que o Porto actual não existia como cidade no
(l'i) íd. id.
(l.õ) Id. i.l.
(IG) Id. pag. 10.
(17) No alto do Arco da Vandoma havia uma cap'lhi, na
ípial estava uma imagem da Senhora, conhecida pur unia tal
invocação, (pie donutava a maior antiguidarlc. Km 18ó5, por
occí^sião da demolição do arco, foi esta imagem lovaila para
uina dns caiipellas ílo claustro da Sé, onde se llio estabeleceu
nma confraria com o fim de fazer annu;dniente uma festivida-
de a esta imagem. No ucto fie se remover a imagem do altar,
fjndc esteve ])or tantos icculos, eneontrou-se uma ambnla, da
qual passo a fazer descripcão, segundo as inlbrmaçõ;'S dadas
pelo sr. Ileiíriípje Cherubim" Lngóa, palcogruplio da Misericór-
dia do 1'oito, e pessoa amante das no.s.sas antiguidades nacio-
iiaes, e (luo a possuo actualmente. "Ksla anibula ú pouco maior
do tamanho d'un)a noz grande: segundo parece é feiti de pao
de j>croira : divíde-so ao meio por uma rosca: dentro contém
um vaso de chumbo : esto divide-se em dois rojiartinicntos: o
primeiro o superior contém dentro uma matéria esponjosa, da
qual rescendc ainda um aroma agradável: no r(!parliniento in-
ferior e mais iicípunio vèem-so adlieridas ás paiedes internas
paiticulns de saiiva. Parece ser uma ambula de bispo. Sobre
a face inferior vé-se dentro d'um circulo, symbolo heráldico da
igreja, uma águia im])erial do duas cabeças, susiiensa no ar, e
com as garras abertas ; no campo do csciido ovado se notam
.•linda restos d'ouro."
Na opinião do possuidor desta antigiialha, é ella um monu-
mento heráldico, e a íiguia de duas cabeças significa a reunião
de dois impérios o do Oriente o o do t}ccidenle, couíiuistado
por (íarlos Magno ; o que eiilâo conlituiria o selJo das aullio-
riilades ecclcsiasticis francezas.
Este arco da Vandoma era no tempo da sua fundação uma
das iiortas da i>equenis3Íma cidade duijuelle tempo.
o PANORAMA
365
(empo dos Romanos ; que no século Y, em tem-
po dos Suevos, começam os escriplorcs a men-
cional-a como povoação d"alguma imporlancia;
resla, porém, ver se é possível esclareciM- aliífuiiia.
cousa esta entrada dos Gascões no Porto, entra-
da toda envolvida em trevas, e que será o as-
sumpto do seguinte artigo.
Manoel Beunaudes Branco.
o folguedo dos camponeses (Quadro de Van-OsLade)
Adriano Van Oslade, pintor da escola hollan-
deza, foi um dos artistas que mais se distingui-
ram na representação liei de scenas da vida com-
mum. Em todas as suasproducções se encontra a
par de um colorido soberbo, a íirmesa do dese-
nho, graça e, sobretudo, muita verdade.
A nossa gravura é copia de um (piadro mui es-
timado deste artista, que existe na galeria nacio-
nal de Londres. Representa três velhos campone-
zes assentados em torno de uma mesa, contentes,
alegres, um fumando, outro bebendo c o terceiro
tocando. «Um cuidadoso exame deste quadro obri-
gará o expeclador a confessar (|ue a exj)ressão das
Ires figuras é admii'avcl : a viva e expansiva sa-
tisfação do homem da saúde contiasla excclienle-
meníe com a complacência silenciosa do homem
do cachimbo, e ao mesmo tempo parece produzir
no locador uma grande dose de satisfação, que
se manifesta através de uma seiia gravidade ar-
tística. Além desta notável expressão das íiguras,
ha lambem que admirar neste (juadro a bem com-
binada disposição do claro-cscuro e a extrema li-
delidade da perspectiva. O estylo da execução é
acuradamenie aperfeiçoado, e isento de superlluos
c desnecessários accessorios.»
A TORRE DE LONDRES
(Conclusão)
í-ord Russell, condemnado como cúmplice do
Monliiiouth, e que os próprios juizes não julga-
vam criminoso, escoliíera para advogado sua mu-
lher, poKjue, dizia eile, reunia aos conhecimentos
de um homem a terna aíTeição de uma esposa ;
366
O PANORAMA
quando desta se separou, ura pouco anles de su-
bir ao cadafalso, disse a Burnet, que lhe assistio
nos ullinios momentos: «Eis passada a afflicção
da morle I»
O conde d'Essex, preso também por esla cons-
piração, achando-se por obra cruel do acaso no
mesmo quarto donde seu pae fora conduzido ao
suj)plicio, eondelordiNorthumberland, avô de sua
mulher, se suicidara, senlio uma tão forte im-
pressão que se degolou com uma navalha de bar-
ba. Era este o mesmo Arthur (]ue, muilo novo
ainda, mostrara uma coragem tão notável no cer-
co de Glocesler, em I60I.
A ultima execução que teve lugar n'aquelle edi-
fício, legado com o sangue de tantas victimas,
foi em 1717, quando cortaram a cabeça a lord
Lovat por ter conspirado a favor da familia exi-
lada ; os seus cúmplices, lords Kilmarnock e Bal-
merino, tinham perecido no anno precedente;
desta época em diante a torre tem servido para
vários usos, não deixando, comtudo, do ter sido
sempre a prisão destinada para os criminosos de
alta traição.
Depois de rapidamente lermos tocado nos prin-
cipaes pontos históricos deste notável edifício, pas-
semos a sua descripção.
O terreno occupado por esla immensa conslruc-
ção, os edifícios exterioixs e um certo espaço que
o rodeia, forma um districlo particular, chamado
— immunidades da torre. A jurisdicção e privilé-
gios deste districlo são independentes da cidade
de Londres; mas, os seus limites e a natureza
dos seus diíeilos, lêem sido uma origem continua
de discussões, intermináveis talvez, porque a ques-
tão não parece ainda bem esclarecida. Uni cons-
(able, cujas funcçGcs são tão antigas como a tor-
re, governa a praça ; gosa de privilégios e de
consideráveis emolumentos e recompensas de ser-
viços importantes, talvez arrancados pela ambi-
ção dos governadores á fraqueza dos reis no meio
das agitações.
Existe uma lisla aulhenlica de cenlo e dezoito
constables, desde (ieoíTrey de Mandeville, o pri-
meiro de todos em 106G, até o duque de Wellin-
gton. Encontram-se entre elles, homens da mais
elevada jerarchia. A guarnição desta fortaleza é
sempre grande. As foiiiíicações foram reparadas
no fim do século passado, pelo receio mal funda-
do de uma subleNação; tomaram-se logo todas as
precauções para loi'nar inúteis as tentativas que
o espirito buliçoso d'aquelle tempo podesse fazer
presentir.
As muralhas cercam um espaço de perlo de
o,2G0723 hectares; o fosso que as rodeia, cujo
aspecto é o dtí um pentágono irregular, tem .W
metros de largura em alguns silios ; está separa-
do do Tamisa por um cães ou |)lalaforma. Do la-
do do meio dia, estão as bocas de fogo, que cos-
tumam salvar nos dias de festa. A entrada principal
e defendida por duas torres bem conslruidas. Ou-
lr'ora antes da ponte tinha uma barbacan ; mas
hoje não existe vestígios alguns d'ella.
iNo centro da fachada do meio dia está a torre
de S. Thomaz, chamada a porta dos traidores,
por causa d'uma passagem de abobada que com-
munica com o rio o por onde se introduziam os
prisioneiros. Esla porta está bem conservada c
olTerece um modelo da archileLÍura do tempo de
Henrique IH ; mas hoje não se faz uso d'ella ; col-
locou-se ali uma machina hydraulica para serviço
da guarnição.
A torre branca, o principal edifício, c quadran-
gular, e conta cento e sessenta pés de compri-
mento sobre noventa de altura ; está collocada no
centro de todas as outras construcções. Dos lados
do norle e suduesle vêem-se torres quadradas,
que se elevam a grande altura ; a que está no an-
gulo do nordeste é circular e contém a escada
principal ; o lado opposto leiraina em um gran-
de semi-circulo. Neste angulo ha lambem uma
torre para corresponder ás outras Ires : estas qua-
tro torres dão á cidadella um caracter particular.
O seu nome deriva do uso em que se eslava de
embranquecel-a de tempos a tempos ; o que é
provado por um documento muito curioso do
anno 1241, escripto em latim, que contem vários
regulamentos sobre as reparações da torre. Tem
Ires andares ; mas o tempo e as successivas mu-
danças lêem feito quasi desapparecer lodos os ves-
tígios da primitiva architectura. As muralhas não
lêem menos de quinze pésdeespessura na sua base,
e doze nos andares superiores ; cada um dos an-
dares está dividido em Ires aposentos; Ires sub-
terrâneos abobadados, que nada leera de notável,
servem de armazéns. O mais pequeno aposento a
rez do chão, é de abobada; é muilo simples, mas
curioso pela sua antiguidade. Uma porta occulla
dá entrada para um quarto escuro, construído na
parede, de dez pés de comprido, sobre oito de
largo. Dizem que este quarlo foi occupado por
Waller llaleigh, e que foi ahi que elle escreveu
a sua historia do mundo. Não ha duvida que sér-
vio de prisão. Dislinguem-se ainda em um dos
lados da poria varias inscripções traçadas por
Ires individues presos como cúmplices da revolta
de sir Thomas Wyatl em 1553. Os andares infe-
riores servem de arsenal. Existem ahi uma gran-
de collecção de armaduras de diíTerenles séculos
e outras curiosidades mililares.
A capella real dedicada a S. João, o Evangelis-
ta, é no primeiro andar; uma das suas naves en-
tra pela muralha e estendese de norte para sul,
rodeada pelo semi-circulo de que atraz falíamos.
As paredes da capella foram inteiramente cober-
tas de gesso, o que faz com que se não veja o
primeiro trabalho ; mas axaminaram-n'a com
muito cuidado, e tiraram o gesso em vários silios.
O trabalho é solido, bem executado, e o monu-
mento olíerece no seu todo um magnifico resto
d'arcliiteclura normanda. Ignora-se a época pre-
cisa em que o capellão, estabelecido por llenri-
(jue III, cessou as suas funcçõcs; mas, c certo
que no reinado de Carlos II uma parte dos archi-
vos estava, como hoje, neste lugar. Dois quartos
do segundo andar merecem ser notados ; o maior
denomina-se salla do conselho ; suppõe-se que ali
o PANORAMA
36T
tinham lugar as sessões quando o rei habitava na
torre. Tudo aqui apresenta signaes de antiguida-
de, que estão perfeitamente em relação com o res-
to do ediíicio. A maior torrinha sérvio de obser-
vatório até a construcçãodo de Greenwich. No an-
gulo de nordeste do pateo interior está situada a
capella de S. Pedro, que foi construída no tem-
po de Eduardo I, sobre as ruinas de uma anli-
quissima capella.
Havia oulr'ora por detraz desta capella um pe-
queno eremitério a miude mencionado nas memo-
rias do tempo de Henrique III ; o eremita rece-
bia um penny por dia da munilicencia real.
No lado do sul da torre branca encontram-se
juntas as armaduras dos reis e cavalleiros ingle-
zes, entre as quaes se distinguem as de Henri-
que YIII, Carlos I, conde Essex, etc. O arsenal
da rainha Isabel é um ediíicio que se acha na
frente da torre branca. Vêem-se ainda os restos
de treze torres, que serviam para defender o pa-
teo interior, em uma das. quaes se suppõe que
leve lugar o assassínio dos príncipes Eduardo V
e duque de York.
FRANCISCO PIZARRO
(Continuação)
IV
No meio d'csse bando de ignóbeis aventureiros,
que arvoraram a bandeira hespanhola na America
do Sul, alguns dignos gentis homens havia que
ainda conservavam no fundo d'alma brios e pun-
donor. Distinguiam-se entre elles Fernando Pi-
zarrOj filho legitimo do fidalgo de quem era o
nosso heróe bastardo, e Fernando Soto, valente
official, costumado a militar nas fileiras heróicas
dos soldados do Grão-Capitão. Esses dois tinham
sido desviados por Francisco Pizarro, que sabia
não os poder ter por cúmplices no acto nefando
que praticava. Por isso, assim que resolveu sup-
pliciar o inca, en\iou seu irmão para a Europa,
e mandou Fernando Soto governar Caxamalca.
Apesar d'isso alguns outros oíTiciaes indignados
protestaram contra uma violação tão atroz do
direito das gentes c ainda que esses protestos
foram vãos,, comtudo bastaram, como diz acer-
tadamente Robertson, to saie their country fromthe
infamy of having perpelraíed such a crime. (1)
Entretanto Pizarro^ indifferente aos clamores
dos seus companheiros e á voz da sua própria
consciência, tentava emendar o erro, que o seu
'orgulho oíTendido o impelhra a praticar, e, cin-
gindo com o diadema dos incas a fronte d'uma
criança filha de Atahualpa, julgou ter assim ad-
quirido um instrumento dócil dos seus projectos.
Mas os Peruvianos não acceitaram o autómato c
proclamaram para seu soberano Manco Capac
irmão de Hucscar. Demais estes acontecimentos
extraordinários tinham completamente dcsorga-
nisado edesmoralisado o império, e umaanarchia
hor "ivel reinava por toda a parte, lím cada pro-
vi: ia um regulo se levantava^ e o governador
de Quito, depois de ter assassinado o irmão e os
filhos de Atahualpa, proclamava a independência
do antigo reino de Quilo, fundido, como dissemos,
havia pouco tempo, na vasta unidade do império
peruviano.
(1) Para livrar o seu paiz da infâmia de ler praticado tal crime.
Desenvolvc-se agora de novo a energia e a au-
dácia do caracter múltiplo de Pizarro. Sem perda
de tempo avançou para Guzco. É verdade que
não precisou de mostrar a mesma intrepidez
temerária, porque, além de saber já o caso que
devia fazer dos exércitos indígenas, a noticia das
riquezas do Peru trouxera-lhe ás fileiras tão grande
reforço, que, depois de guarnecer o forte de S.
Miguel com um destacamento numeroso collocado
ás ordens de Benalcazar, pôde ainda romper a
marcha com um exercito de quinhentos homens,
verdadeiro exercito de Xerxes para quem estava
habituado a dispor apenas d'um punhado de
soldados.
As batalhas, em que destroçou as forças indí-
genas que tentavam oppôr-se á sua marcha, nem
merecem narrar-se. Quatro ou cinco hespanhoes
mortos e outros tantos feridos eram o preço habitual
porque elle comprava o desbarate completo, e a
mortandade immensa dos peruvianos. Depois de
vencer estes frágeis obstáculos, entrou socegada-
mente em Cuzco, onde encontrou riquezas que
lhe saciariam amplamente a cobiça, se essa pai-
xão ignóbil fosse, n'aquelle caracter ardente,
susceptível de ser saciada.
Entretanto Benalcazar não ficava ocioso na sua
guarnição de S. Miguel. Reforçado por um novo
bando de aventureiros, que Veio do Panamá,
pôde deixar na cidadella um destacamento suf-
ficiente, e marchar com o resto das suas tropas
contra a cidade de Quito. Obstáculos maiores
tinha elle a vencer do que o seu chefe, não só
os que lho oíferecia o terreno agreste e panta-
noso do norte do império, como lambem os que
lhe eram oppostos pelo rebelde governador, ge-
neral mais habil do que os seus compatriotas, e
que dispunha das melhores tropas do Peru. Tudo
o hespanhol superou, porque era oíficial enérgico
e valente, e entrou victorioso em Quito. Comtudo
ali o esperava um grande desapontamento. Co-
nhecedores já da insaciável cobiça dos hespa-
nhoes, os peruvianos haviam imaginado logral-
03, e, fugindo, tinham levado comsigo todos os
seus thezouros.
Um novo acontecimento veio surprehender Be-
nalcazar. O governador de Guatemala, Pedro de
Alvarada, allegando que o reino de Quito não
entrava na jurisdicção de Pizarro, invadira-o pelo
norte, e superara também com as suas tropas
terríveis obstáculos, affrontára igualmente peri-
gos e intempéries. Soube Pizarro do acontecido,
e enviou contra elle Almagro. Começavam os
cães a rosnar em torno do osso. Comtudo desta
vez limitaram-sc a mostrar os dentes. Benalcazar
juntou-se a Almagro, e, ou porque Alvarado jul-
gasse que não podia oppor-se com as suas tropas
fatigadas aos dois corpos inimigos (inimigos já!)
ou porque cedesse aos conselhos de pessoas pru-
dentes, consentio em retirar-se, recebendo como
indemnisação a quantia de cem mil pesos.
Mas a discórdia fermentava por toda a parte,
a velha inimisade, que o procedimento de Pizarro
cm Hcspanha originara entre elle c Almagro,
adormecida durante algum tempo pela necessi-
dade de debellar o inimigo commum, recomeçava
a accender-se. Fernando Pizari-o fora, como dis-
semos, enviado á Hcspanha, e as immensas ri-
quezas, de que era portador e que deviam entrar
no thesouro régio, asseguraram-lhe um acoini-
mento distinctissimo. Carlos V, sem ser Danaé, re-
368
O PANORAMA
cebia com o seu mais amável sorriso, o Jiipiler que
lhe desabava da America, envolto n'uma cluna
d"oiro. Todas as honras e recompensas pedidas
Uie foram dadas, tanto mais quanto a generosi-
dade nesse ponto nada custava a Sua iMagcstade
Imperial. Confirmou Pizarro em todas as suas
dignidades e privilégios, c concedeu-lhe jurisdic-
cão sobre mais setenta léguas para o sul. Se
Pizarro lh"o pedisse, seria capaz de lhe conceder
até jurisdicção sobre a lua. Almagro não foi
desta vez olvidado, e teve um governo, de duzen-
tas léguas também para o sul da do seu com-
panheiro. Chegaram ao Peru uns vagos rumo-
res deste caso, e logo Almagro, dizendo que
entrava Cuzco nos limites do seu novo governo,
pretendeu apoderar-se delle. João e Gonçalo Pi-
zarro oppozeram-se a isso, e a queslião ia sendo
cortada pelo gume das espadas, quando Fr.tn-
cisco appareceu, e teve artes de se reconciliar
com Almagro, com a condição deste cmprehen-
der a conquista do Chili, devendo ser indcmnisado
com uma porção do Peru, se fosse infeliz na
empreza.
Ainda neste período de socego. que precedia
a tempestade, se nos revela, como um lampejo de
céo azul entre duas nuvens, uma das grandes
qualidades de Pizarro. Administrador por ins-
tincto, como por inslincto era general e diplo-
mata, o nosso heróe divide a sua conquista era
vários districtos, nomeia governadores, estabelece
um corpo judicial, organisa o trabalbo das minas,
promulga decretos sobre o modo como os índios
devem ser tratados, e como se devem lançar e
arrecadar os tributos, funda Lima no delicioso
valle de Rimac, e nessa nova capital edifica para
si um magnifico palácio, em torno do (jual os
seus opulentíssimos oíficiaes, erguendo casas de
raagestosa apparencia, fazem logo da cidadinha
nascente uma Génova aniínicana.
Era necessário também dar alimento á activi-
dade inquieta dos seus companheiros, decididos
todos a juntarem em pouco tempo fabulosas
riquezas. Pai-a isso Pizarro consenlio que os seus
subalternos se dispersassem para tomarem posse
das varias províncias do impei'io, e d'essa forma
dispersou as suas tropas por tão vasto paiz. Pa-
gou caro essa imprudência. Manco Capac, vendo
o descuido dos seus oppressores, arvorou o es-
tandarte da revolta^ e assassinando quantos hes-
panhoes isolados encontrava, marchou com um
exercito de duzentos mil homens contra Cuzco on-
de estavam os três irmãos do governador, João,
Gonçalo e Fernando (que voltara havia pouco de
Hespanha á lesta de cento e setenta iiomens.)
Ao mesmo tempo um coipo considerável cercava
Lima, onde estava em pessoa Francisco Pizarro.
Em Cuzco desenvolveram os Peruvianos toda a
energia de que eram capazes, (jombatcndo de-
baixo dos olhos do seíi inca, faziam prodígios de
valor temerário, e aíírontavam a morte com de-
sespero. Mas o valor e a disciplina hes|)anhola
triumphavam seM)pre, apesar das desastiadas imi-
tações que os l'eriiviunos faziam do seu modo
de combater, e das suas tentativas para usa-
rem lambem das armas dos seus inimigos. Isso
de nada lhes sérvio; só o seu prodigioscj numero
d'alguma cousa pôde valer, porque, apesar da
heróica defesa dos Ires Pizarros, Manco Capac
tomou posse de metade da sua capital.
Foi então que appareceu Almagro dianlc das
muralhas de Cuzco. Almagro, que no Chili en-
contrara uma nação cem vezes mais bellicosa
do que os Peruvianos, a nação araucana, que
sustentara contra elles rudes combates, e que as
novas da insurreição do Peru haviam feito retro-
gradar, mais talvez na esperança de se aprovei-
tar dos despojos dos seus companheiros, do que
de os soccorrer n^aiiuelle grande perigo.
Isso mesmo presenlirani os três irmãos. Caso
singular que pinta melhor do que tudo quanto
se podesse dizer a Índole d'esses aventureiros e
o caracter dessa con([uista. Um punhado de Eu-
ropeus estão em paiz mimigo a milhares de lé-
guas da sua pátria, cercados por um exercito in-
numeravel. Reduzidos á ultima extremidade vêem
aiiparecer no horisonle um destacamento dos
seus compatriotas, e, em vez de darem graças ao
céo, de se al(>grarem, de tirarem as portas da
fortaleza, como os nossos defensores de Dio quan-
do D. João de Castro ap])arece com o promet-
lido soccorro, em vez de se entregarem a essas
demonstrações tão naturaes de regosijo, prepa-
ram-se em silencio para um novo e mais terrí-
vel combale, e julgaiil a cada instante ver as fi-
leiras dos índios engrossadas com os seus recem-
cliegados compatriotas.
Aliuagro, pela sua parte, avançava lentamente,
calculando os prós e os contras das dilferenles
resoluções que podia tomar. Os Índios tomaram
afinal a iniciativa. Sabedores das discórdias que
lavravam entre os seus vencedores tinham que-
rido aproveital-as e tinham feito diversas pro-
postas a Almagro, que sempre as repellira. Afi-
nal tentaram uma noite surprehendel-o. Almagro
vio-se na necessidade de se pôr em defesa, e
destroçou o exercito peruviano fazendo-lhe im-
mensa mortandade. Desta forma achou-se Cuzco
descercada.
Mas os Pizarros tinham fugido de Scylla e caldo
cm Charybdes. Almagro, homem generoso e af-
favel, tinha sympathias na guarnição de Cuzco,
desgostada com a altivez rude do seu chefe. Uma
noite as senlinellas da cidade deram-lhe entrada,
uma parle das forças defensoras pronunciou-se
a seu favor, a outra parte leve de ceder, Fer-
nando e Gonçalo Pizarro (João morrera durante
o cerco) 1'oi'am presos, e Almagro reconhecido
governador de Cuzco, cidade que cUe, mais do
que luuica, á vista dos documentos que ultima-
mente recebera d'Iíespanha, dizia estar situada
dentro dos limites da sua jurisdicção.
(Conlinua)
0 .ontigo edilor do Panorama, tli'scjaiido piopcrcionar aos
uctunes sfs. assignantcs, <! mesmo u iiiiaus(|uer outras jicssoas qiio
o não sojaii), a iiianoira de podcroiii ))ussiiir, som grande sacrili-
cio a cnileiM-.ào completa dcsto inturcsiantc jornal,j|no conta liojo
•i5 voliimÓM imliliciulos, deliberou; para esse lini, abrir nova
assignatnra, não alterando o jirero que levo a anli;;a, sendo o
cnsto do cada volume broxado l;'00"réis, e encadernado lOOd réis,
isto unicamente para aqiKilIcs que se inscreverem como assignan-
tes. As jicssoas <]ue assignarem para c^ta oiira receberão um ou
mais volumes cada me/, conlVirmi! mellior lhes convier, sendo o
iu]|)orle dos mesmos )iago no acto da entrega. lias qno lenham a
colleccão do l*aititi-niiia incompleta, imdem da mesma forma
assignar ]i:ira o.s v(/Iumícs que lhes íaltarem, bem como para
qualquiT ininjeri) que Ibes fallar.
\H aKNÍKxatiiraM fa^ciii-NM iiom me;:iiiii(cN lorucM i
Rua Áurea n." 1.)^' e i:;i; ua redacção do Panouama, nui do Thesouro
Vidlio n." (í: e cm todas as mais" livrarias.
l':m liroga, l'orlo, Coindira e Vianna, em todas as jivrarias.
Í)e (piaesMuer outras terras <lo nuno poilem dirigir-so, em carta
franca, com o imporle da assignatura cm valles do correio, ao
anligo edit<ir, rua Áurea u." \:V2. accrcsco ao preço da assi-
griatura, o porle do correio que é do 250 para os volum ps em
broxura e :)lo réis para os encadernados.
Typ. Franco-Porlugueza, Hua do Thesouro Vulho, G.
47
o PANORAMA
369
o Atmeidan
O Atmeidan é uma praça de Constantinopla,
outi''ora o hippodiorao, e que nos tempos modernos
tem sido por varias vezes Iheatro de desordens e
motins populares. Em 1808, por occasião da re-
volta dos janisaros, ali esteve por alguns dias
pendurado pelos pés, em uma arvore, o cadáver
do infeliz Beiraktar, que, vendo-se prestes a cair
nas mãos dos insurgentes, lizera voar em estilha-
ços o edifício onde habitava. Mais tarde, em 1826,
foi nesta mesma praça que deu o ultimo suspiro
uma grande parte d'essa orgulhosa e altiva mili-
cia, que, novamente, se sublevara, e cuja dissolu-
ção fora pronunciada pelo sultão Mahmud II. A
praça conta apenas oitocentos e cincoenla melros
decomprimento e cento c sessenta de largura; e
o seu aspecto é pouco agradável ; poríjue se de
um lado se eleva elegante e magestosa a grande
mesquita de Acbmet, e um magnilico e bem cons-
truído hospital, do outro, por um contraste sin-
gular, só mostra pobres e arruinados edilicios.
Antes da entrada dos cruzados em Constantino-
pla, o Atmeidan continha um grande numero de
estatuas de pedra c de bronze, entre as quaes so-
bresaiam algumas de grande merecimento artísti-
co ; mas, com o andar dos tempos ecom as sue-
cessivas refoimas dos diversos conquistadores, foe
ram dcsapparecendo todas essas obras de arte, ,
hoje apenas ali se vêem o pilar de Constantino-
porphyrogeneto, quasi todo de mármore, o obe-
lisco de Theodosio, e, entre estes dois monumen-
tos, uma pequena columna, que dizem ser um
resto da tripode de Delphos.
Nos tempos antigos, cada uma destas enormes
massas de i)edra tinha a sua applicação. O pilar
de Constantino marcava a extremidade da liça
nas corridas dos carros; o obelisco de Theo-
dosio indicava o centro do estádio. O trabalho
deste ultimo e admirável e rivalisa com o quo
se tem encontrado de mais primoroso nesses res-
tos da antiga esculptura.
A GALATÉA MODERNA
XI
Sem (Ítalo
De noite, quando a callada profundamente mys-
tica dá á terra o caracter e a serenidade de um
grande templo, cujos lampadários são os cardu-
370
O PANORAMA
mes de estrellas, que sulcam a amplidão, se re-
ceios e esperanças andam em lucla travada em
um coração juvenil, não julgueis, ó bealificos sa-
cerdole da matéria, que o trovador de antigas eras
podia encerrar-seno seu quarto de cama, enterrar o
clássico bonnct de alr/odão, c refocillar, como um
bemaveniurado, em fofo leito !
Um namorado de hoje tem as horas contadas.
Carece de dormir um certo praso de tempo. Logo
que sòe a hora falidica. capaz é clle, o desalma-
do, de se desenlaçar do seio da donzellinha gentil,
para se entregar nos braços do velho Morpheu.
Raça degenerada é esta que só tem incensos e
jicrfumes para a deusa matéria.
Dizem que o mundo caminha 1 No dominio do
sentimento digo eu que não. Estamos por um
pouco no materialismo romano o qual, se perdeu
em sumptuosidade c intensidade, ganhou em ex-
tensão.
A cathedra curul temol-a na cadeira humilde
dos parlauientos, que governam o mundo, e o so-
phá desengraçado e giboso, está a mil léguas do
Iriclinio de ouro e marfim, sobre o qual os lasci-
vos romanos se deitavam depois do festim, con-
fundindo a orgia do phalerno com a orgia de Vé-
nus.
Hoje, um namorado, contempla com mais vo-
luptuosidade os rolos de fumo do seu habano, do
que os rolos postiços do cabello da sua amada.
As espiraes ondeantes e tenuemente azuladas
de um cachimbo turco convidam mais o mancebo
de vinte annos do que as curvas fugidias e gra-
ciosas de uma formosa, cujo corpo se requebra
em donaires tingidos. O modo de trazer a badine
com primor requer muito mais cuidados, do que
agradar a uma elegante, que Ioda cila se es-
tá enlevando em umas luvas que lhe fazem a
mão si/mpathica. Um collarinho relezado e apru-
mo, que dè um certo ar de graveza e meditação
em Irauscendencias politicas, mal pcrmitte uma po-
sição cheia de melancolias amorosas.
Hoje, que a philosophia anda desgrenhada pe-
las ruas e os mesmos poetas cantam mythos
de civilisações extinctas, de aspirações para
um ideal incomprchensivel, o qual se traduz ás
vezes nas trovas pojiulares de um fcuidanyo an-
daluz ou nos ossos de um maslhodonle junto às
pyramides do Egypto ; hoje, que todos estudam a
politica aos quinze annos e já ninguém lè roman-
ces senão philosophicos ; hoje, que a sombra imit-
ia de Spinoza é invocada pelos rapazes até nos
seus devaneios amorosos ; hoje, emlim, que o cul-
to do cu, puramente subjectivo, derriba dos alta-
les todas as licções, que traziam o mundo atre-
lado, só por excepção se encontra um jjobre Al-
fredo enamorado, animal quasi cxtincto, ridículo
como I). Quixote, estuj)ido como Uomeo, idiota
como Werlher, porque, louvado Deus, nós pomos
a par com o heroe da Mancha os vultos dos dois
enamorados, qu(! morreram polo amori Para nós
não ha diílerença entre Dulciíiêa dei Tuboso, e
Julieta ou Carlota I
Aonde param os suaves amores da idade me-
dia! Aonde os torneios, as cavalhadas em que as
damas eram o symbolo sympalhico do amor e da
valentia? Ouem ousa cantar ainda, senão alguns
poetas desalmados, esses refrãos apaixonados, que
os trovadores cantavam ás suas bellas? Aonde a
janellinha escusa com as suas columnatas gothi-
cas, por entre cujos tlorões saía uma formosa c
delicada mãosinha, que agitava um lenço borda-
do a ouro para o trovador enamorado, que tan-
gia, sob as copas das iarangeiras em flor, a
sua harpa? Aonde estes encantamentos de Armi-
da? É que os jardins de Armida transformaram-
se nos bosques da Cythera, e por desgraça nossa,
tão rareados estão estes bosques, (pie nos enver-
gonhamos de lá entrar !
Não se admirem, comludo, os leitores. Alfredo é
um trovador da idade-media. O seu coração vir-
gem de emoções bate-lhe ancioso e fervido, aque-
cido pelo fogo do primeiro amor. Por isso, como
havia clle de dormir? Como havia de obedecer
ás leis iniquas e tyrannicas de um barrete de al-
godão ?
Era por uma noite de primavera, Ioda perfumes
e fragrâncias, toda poesia e ílores.
A lua, a casta confidente dos amores, não bri-
lhava no céo. Verdade é que Alfredo saia do seu
quarto, não para fazer confidencias, senão para
espairecer e dar largas a esse embevecimento, a
esse peso immenso, que acurva os amantes e os
obriga a evocar do nada mil illusões hybridas e
phanlasticas, com que se prazem de povoar os
seus sonhos.
Era tudo silencio em torno. Só de quando em
quando se ouvia ao longe o quebrar das ondas
na praia e o murmúrio lamentoso do vento nas
ramadas.
Alfredo, criança como os namorados, assen-
lou-se em um banco de pedra, junto a um pe-
queno repudio, que refrescava o solitário jardim.
Como trovador que era, todo entregue ás delicias
do primeiro amor, cravai a os olhos na janella do
quarto de Violante, e começara de scismar tão pro-
fundamente, que não attendera nas horas, que cor-
riam rápidas.
Pobre rapaz !
Ouem podo compreliender hoje esse sonhar
acordado, por horas mortas da noite, cm uma al-
deia perdida nas serras, quando se pôde apanhar
uma boa pneumonia !
Ah ! Ouixotes da niiniralma, que não ha Cer-
vantes (jue vos matem de vez I
De rejientc...
Ahi vae já o leitor imaginar alguma entrevista
dos nossos dois heroes, sob as copas dos laianjaes.
Engana-se...
De repente surgio, como por encanto, do meio
da espessura, um anão, que saltava e pulava co-
mo um possesso, e agitava os braços, dando uma
gargalhada desentoada.
Alfredo acordou súbito do seu scismar.
Parecia-lhe sair de um sonho para cair n'outro.
— Eh! eh! meu senhor! Fresca vae a noite e
boa para namorados.
o PANORAMA
371
— Quem és? interrompeu Alfredo, erguendo-se
e approximando-se do anão.
— Quem sou ? Pergunte ao rio como se chama
que verá como clle responde. O rio corre para o
mar, que é esse o seu destino. As vezes geme jun-
cto aos salgueiros; outras vezes topa um rochedo,
e despcnha-stí furioso ; mas o mar lá o espera. Eu
cá sou como o rio, e vou correndo para a morte.
Canto ás vezes, outras choro, danço e pulo, mas
nem por isso hei de escapar á morte.
— Quem és? responde.
— Chamam-me por ahi innocenle, porque tenho
mais malicia do que elles.
— O que vens aqui fazer? ,
— Eu venho colher a rosa
Mais linda deste rosal.
Ninguém das rosas se fie
Que picando fazem mal.
Pois a rosa orvalha, chora
Prantos, que d'ella não são.
Triste de quem a namora
Que triste só elle geme;
E a rosa não chora, não,
Que quem não ama não teme.
E o innocente continuou a saltar e a pular, fa-
zendo esgares em volta de Alfredo, que cada vez
estava mais enleiado.
— Quem és? O que vens aqui fazer? Tornou
Alfredo, ameaçando o innocente.
Este, como se nada ouvisse, entranhou-se pelo
rosal, erepelio, cantando com voz tremula e des-
afinada :
— Eu venho colher a rosa
Mais linda desle rosal.
Ninguém das rosas se fie
Que picando, fazem mal.
Pois a rosa orvalha, chora
Prantos, que d'e!Ia não são.
Triste de quem a namora
Que triste só elle geme ;
E a rosa não chora, não,
Que quem não ama não leme.
Alfredo, vendo que não podia perseguir o in-
nocente, e lendo acordado dos seus sonhos de
amor, dispunha-se a entrar em casa, quando o seu
interlocutor lhe embargou o passo e lomou-lha e
mão que beijou.
— Que queres?
— Uma esmola.
E o innocente deitou a correr, ao tempo que
ia cantando :
Ail triste de quem namora
Uma rosinha em botão
Que só elle, o triste chora,
E a rosa não chora, não.
Tristezas trazem amores.
Ai! triste de quem namora!
A voz perdeu-se, emíim, aolonge, e Alfredo en-
trou em casa.
A. O. DE Vasconcellos.
(Contiuaa.)
A Morte, segundo os selvagens, é uma donzella
extremamente formosa, a quem não falia senão o
coração. Cuateaidriand.
PIZARRO
(Conclusão)
Estava lançada a luva, c ao espectáculo das
crueldades commeltidas pelos hcspanhoes sobre os
povos conquistados iasucccder o espectáculo ain-
da mais vergonhoso da disputa sanguinolenta
entre irmãos na presença do inimigo com muni.
Se esse inimigo fosse hábil e destemido os auda-
ciosos conquistadores perdiam o fructo das suas
precedentes victorias, e nem um só d'entre elles
voltava á Europa a dar noticia do desastre; mas,
em vez de se aproveitarem dos ódios que ar-
mavam uns contra os outros os filhos da mesma
pátria, os índios viram-n'os dilacerarem-sc mutua-
mente, não fizeram um movimento, e contenta-
ram-se em observar as peripécias da lucla, como
podiam contemplar o combate de dois tigres. Pi-
zarro dispersara os Índios que cercavam Lima, e,
sabendo das pretenções d'Almagro, enviou con-
tra elle Affonso d'Alvarado á testa de quinhentos
homens. Saío-lhe Alraagro ao caminho, procurou
ganhal-o com as suas doutrinas, não o conse-
guindo, formou os seus em ordem de batalha e
derrotou completamente o inimigo.
Se aproveita a victoria, estava a lucta decidida a
seu favor. Mas um escrúpulo, ridículo na situação
extrema em que se collocara, impedio-o de invadir
a provincia, que el-rei concedera ao seu rival. A re-
volução, que fizera, tinha só por fim tomar posse de
Cuzco que entrava, sem a miníma duvida, na por-
ção de território que lhe fora arbitrado. Vingado
d'essa injustiça, limilavam-se a isso as suas pre-
tenções. Almagro não sabia que a pessoa que en-
tra na senda ardente da revolta, não p()de de-
pois recuar, nem parar mesmo. Uma vontade
estranha se apodera d'elle e o ímpelle na direcção
que lhe convém.
Entretanto Pizarro não desaproveitava, como o
seu rival, o tempo que tão necessário lhe era pa-
ra receber reforços por mar, para pôr de novo
em pé de guerra um exercito que podessc debcl-
lar o seu contendor. Recorreu para isso ã astú-
cia, e cousa notável, Almagro tantas vezes logra-
do por elle, ainda d'esta vez se deixou lograr!
Protrahiram-se por mezes as negociações que Pi-
zarro propoz como um caminho para á reconcilia-
ção. J\o fim d'esse tempo eram rompidas o mais
sem-ceremonia possível, e Pizarro, á testa d'um lu-
zido exercito, marchava contra Almagro, derrota-
va-o, tomava Cuzco e augmenlava a sua riqueza
e as dos seus companheiros com os despojos dos
vencidos, despojos que elles tinham arrancado aos
pobres índios, e que pelos seus próprios compa-
triotas lhes eram arrancados.
Sem atlender á antiga amizade que os unia,
ao préstimo e aos serviços d'Alraagro, a quem
elle na ultima batalha fizera prisioneiro, Pizar-
ro mandou-o julgar por um tribunal composto
das suas criaturas, condemnar á morto e exe-
cutar. Era assim que esse monstro pagava o au-
xilio poderosíssimo que Almagro lhe prestara, era
assim que elle, em nome da pátria e do rei de
quem era representante, recompensava os heroes
que tinham descoberto e conquistado o Peru ! A
taça das iras do Senhor ía-se enchendo, o dia do
castigo devia estar próximo.
Mas Deus dementava o homem que queria
perder, Pizarro não percebia que aquelle sangue
derramado viria a resaltar-lhe á cara, e que, des-
372
O PANORAMA
presando as ordens regias, desprestigiando a au-
thoridade emanada da metrópole, desprestigiava-
se a si mesmo, e dava aos seus subordinados um
funesto exemplo que elles um dia saberiam apro-
veitar.
V
Tantas dissenções, tantas crueldades, actos por
tal forma arbitrários tinham emfim chamado a
attenção da corte de Madrid. Carlos V julgou
afinal que era da sua dignidade intervir n'essas
questões que dcshonravam o nome hespanhol, e
davam bem fraca idéa da auctoridade do seu
soberano. Os horrores commellidos por Pizarro,
a sua perfídia, o seu intolerável despotismo e o
modo como ultimamente condemnára d morte
Almagro, seu collcga no commando da expedi-
ção, e seu igual ou quasi seu igual no governo
dos paizes da America do sul, tudo isto contraba-
lançou suílicientemente os grandes serviços por
elle' prestados, e os ministros do imperador, sum-
mamente irritados, não hesitaram em mandar
carregar de ferros Fernando Pizarro que de novo
se achava em Hespanha. O homem de bem, que,
seguindo o impulso da politica de seu irmão e
chefe, procurava sempre comtudo abrandar-lhe
a ferocidade e altenuar-lhe o despotismo, expia-
va as maculas do nome que elle tentara conser-
var illibado. Ou punam ou recompensem, uma
cegueira fatal impellio sempre os reis a deixarem
cair o premio ou a espada do castigo sobre as
cabeças que o não merecem, emquanto os verda-
deiros aulcores das acções gloriosas e infames,
ficam escondidos na sombra ou passeiam alegre-
mente a sua impunidade á vista das suas vicli-
mas.
Assim, n'este caso, tendo sido nomeado para
ir syndicar no Peru um sujeito d'alta capacidade
chamado Vaca de Castro, levou este nas suas ins-
trucções a ordem de tratar com o máximo respei-
to o governador, e de ter por elle a maior con-
sideração. Seria em attenção aos serviços immen-
sos prestados pelo criminoso ?Não, porque a maior
prova de que já estavam esses serviços olvidados,
era o facto de ser mcttido n'uma enxovia, onde
permaneceu vinte annos, o próprio irmão do
descobridor e conquistador do Peru. O verdadei-
ro motivo era o receio que o poder de Pizarro
inspirava ao governo, a necessidade de não irri-
tar um homem contra quem não se podia en-
viar uma expedição, e que dispunha d'um corpo
de destemidos aventureiros.
Entretanto Pizarro continuava, como que im-
pelhdo pela mão de Deus, a accumular erros so-
bre erros, incbriando-se com o triumpho, cn-
tregava-se a todas as mãs paixões que lhe refcr
viam no espirito, e olvidava a politica astuciosa,
pérfida mesmo, mas hábil emfím, a que devera
até ahi a sua constante superioi idade. Saboreava
a plenos tragos a vingança, esse vinho dos deu-
ses, sem pensar que amargas fezes encontram
os simples mortacs no fundo d'cssa taça embria-
gadora.
Em vez de conciliar o aíferto d(js seguidores de
Almagro, entrcgou-sc ao prazer de os calcar aos
pés, c provocou d'essa forma descontentamentos
que tinham de se traduzir debaixo diima forma
fatal para o imprudente. Na divisão das terras do
Peru, a que procedeu, tratou o mais favorável
mente possível os seus partidários, c olvidou ou
fez mesquinhas concessOes aos seus inimigos. Po-
litica absurda, que Pizarro decerto não teria ado-
ptado, se a fortuna, como sempre acontece, não
o desvairasse cora a protecção constante que lhe
dava.
A insurreição dos índios dissipara-sc como por
encanto, e d'essc lado nada tinha que temer o ce-
lebre conquistador. IMuitos hespanhoes, levados
pelo amor das aventuras que a descoberta e a
conquista de dois paizes tão opulentos como o
Peru e o México haviam accendido em todos os
cspiritos, penetraram no interior das terras e es-
tenderam para todos os lados o dominio das ar-
mas hcspanholas. De lodos esses aventureiros os
mais celebres foram Pedro de Valdivia, que en-
trou no Chili, onde já Almagro penetrara, derro-
tou os araucanos, e fundou a cidade de Santia-
go, e Gonçalo Pizarro, irmão do governador,
Gonçalo Pizarro a cuja arrojada iniciativa se deve
a descoberta do curso completo do Amazonas,
ainda que uma traição nefanda do seu compa-
nheiro Orellana assegurasse a este a gloria de ter
dado complemento á empreza. Depois de traba-
lhos sem conto, Gonçalo Pizarro voltou a Quito,
onde encontrou as tristes noticias do caso que
vamos narrar.
Como dissemos, o procedimento impolitico de
Pizarro augmentára d'um modo extraordinário o
numero dos descontentes, e a morte de Almagro
fòra-lhes um pretexto para os designios funestos
que principiavam a alimentar. O infeliz Almagro
deixara um filho muito novo ainda, e foi esse
adolescente a bandeira que os revoltosos arvora-
ram. Dos murmúrios passara-se a pouco e pou-
co a uma conspiração que logo mostrou as inten-
ções de attentar contia a vida de Pizarro. Este
foi avisado, mas, altivamente descuidoso, respon-
deu estas palavras onde já se sente o orgulho do
successo, e a vertigem da omnipotência : «Nin-
guém ousará conspirar no Peru, emquanto sou-
berem que estou resolvido a cortar toda e qual-
quer cabeça que abrigar semelhante pensa-
mento.»
N'um domingo, 26 de junho de 1541, á hora
do meio dia, quando todos dormem n'esse clima
ardente, saio Juande Ilerreda, um dos principaes
conspiradores, da casa que o joven Almagro pos-
suía em Lima, á testa de dezoito dos seus com-
panheiros todos armados de ponto cm branco.
Apenas se vio na rua, desembainhou a espada,
c, soltou o grito : «Viva el-rei, morra o lyranno.»
A este grito juntaram-se a elle os outros conspi-
radores, c todos em tropel marcharam para o
palácio de Pizarro. Por um inexplicável descuido
ou terror a guarda numerosa, que rodeava Pi-
zarro, deixou-os atravessar sem obstáculo os dois
pateos. Só ao fundo da escada mu pagem foi
correndo avisar seu amo. Um terror pânico se
apoderou de lodos os que estavam no palácio.
Uns fogem pela j ancila outros escondem-se. Pi.
zarro, conservando todo o seu sangue liio, levan-
ta-se, pega n'unia espingarda, e seguido por uma
pequena phalange d'amigos dedicados ordena a
Francisco de Chaves que feche a porta. Mas este,
com a cabeça de todo perdida em vez de obede-
cer corre ao cimo da escada, e pergunta aos con-
jurados o que desejam. Só lhe respondem cri-
vando-o de piuihaladas, e continuando a entrar.
Mas Pizarro com um valor digno da sua carrei-
ra épica, ainda que apenas de espada e escudos
emquanto os seus companheiros estão armado,
o PANORAMA
373
de todas as peças, combale com heróico denodo
e mantém duvidosa a vicloriaj apesar da immen-
sa desproporção do numero. Atinai, quando já
está todo cercado de cadáveres, a espada d'um
dos conjurados cnterra-se-lhe na garganta, e arran-
ca-llic a vida proslrando-o no chão do seu palácio.
Assim morreu o heroe, que doara á sua pátria
um immenso império, que completara feitos mais
que humanos á forca de audácia, intrepidez, c
génio. A morte coroou dignamente a sua vida.
Morreu como que uum campo de batalha, mas
aos golpes dos seus compatriotas, que cllc tanto
se aprouvera em espesinhar. Caracter vil, espirito
elevado, homem cheio de paixões ardentes, e igual-
mente enérgico para o bem e para o mal Pizarro
adquirio uma reputação que, por não ser imma-
culada, não deixa de ser universal.
A sua morte não terminou as desordens, em
que vimos empenhados os hespanhoes. Estas dis-
senções vergonhosas e estas luctas civis cruentas,
a tantas léguas da pátria, no seio d'um paiz ini-
migo, entre um povo submisso mas fremente, que
esperava das mãos dos seus próprios vencedores
a liherdade que não soubera reconquistar, balda-
ram por muito tempo os esforços da metrópole
para produzir a ordem, e só nuiitos annos de-
pois se apagaram as ultimas centelhas d'csta
guerra fratricida, e poderam os reis de Hespanha
estabelecer o seu dominio n'um paiz devastado,
mas que assim mesmo foi para clles fonte d'uma
opulência de dois séculos, opulência a que suc-
cedeu um longo abatimento, e que foi talvez a
causa d''elle.
M. Pinheiro CnAGAs.
A morte do Gladiador,
Um dos mais notáveis costumes do povo ro-
mano era a dos combales de gladiadores. De
todos foi este espectáculo sanguinário o que mais
deleitou a cidade eterna até o tempo de Cons-
tantino, que o prohibio ; não se conseguindo
todavia a total extincção de tão bárbaro costume,
senão, 76 annos depois, no tempo 'do imperador
Honório.
O uso que deu origem a estes combates, lai
como os Romanos o tomaram dos Etruscos, con-
sistia em mandar matar escravos e prisioneiros
de guerra, junto dos sepulchros dos varões mais
illustres.
Pelo correr dos tempos, julgando-se que estes
sacrifícios humanos eram cruéis, uma singular
philosophia criou, para os substituir, os comba-
tes de gladiadores, inventando assim maior atro-
cidade : porque o numero de victimas cresceu,
e prolongaram-se-lhes os soíTrimentos ! De bustum
se chamou então aos gladiadores busluarii. {\)
O primeiro espectáculo publico desta natureza
foi dado, no anno de Uoma 490, por Marco e
Décio bruto, nas exéquias do pac. (2)
A principio estes espectáculos só tinham lugar
em honra dos homens ilhistres e principaes, e os
gladiadores eram tirados então de entre os escravos
condemnados aã ludum ou aã r/lndiítm; mas foram
gradualmente generalisando-se e, dentro em pou-
co eram moda em todas as exéquias. Os Romanos
designavam em seus testamentos, o numero de
gladiadores para o espectáculo do seu funeral,
(l) Moris erat in sepulcliris vironim lortium captivos necun :
quod post. (iiiani criidcle vi.sum est, placiiit filadiatqres ant.o se-
pulcra dimicarc, qui a busti cincribus InisUiarii dieti.
Serv. AEneid
(2) Vai. Max. II. 'i. 7.
374
O PANORAMA
miumusiS) juntando esta horrível pompa da mor-
te ás demais pompas fúnebres que muitos ante-
gosavam, dispondo-as para além da vida.
Era o requinte do cgoismo que, na impossibi-
lidade de eximir se da natural condição, arre-
batava na sua queda aquelles cuja vida, pelo
mais abusivo dos poderes, eslava subjcita aos
caprichos de um homem.
Tão miserável era a sorte do escravo, que até
de um cadáver era escravo ainda !
O sopro da morte, que tudo gela, não parali-
sava o braço cruel que lhe apertara as algemas.
De dentro já do tumulo, esse braço poderoso es-
tendia-se ainda para elle, arrastava-o até á géli-
da morada, e feria-o sem lucta, sem resistência,
sem vingança possível! Vingança I quem sabe?!
a sombra homicida, escoando-se para os abys-
mos da eternidade, talvez estivesse lá sentindo,
em fogos do inferno, a reverberação da foguei-
ra, que alumiava cá o horrível sacrifício !
Deste temor se não levava o povo-rei, cuja pai-
xão desmedida por tão cruel divertimento cres-
cia de dia para dia, chegando a ponto que hoje
nos parece incrível.
Fundaram-se coUegios, ludi, nos quaes os gla-
diadores eram sustentados c exercitados na arte
da esgrima por mestres chamados lanistw. Estas
casas eram verdadeiros armazéns de destresa e
força, onde qualquer, quando queria dar um
espectáculo de gladiadores, os ia comprar ou
alugar por uma somma de sestcrcios, na razão
dos seus respectivos merecimentos !
Não era jás()mentenosfuneraes que havia estes
combates. Havia-os nos regosijos públicos, nas
festas particulares, sob qualquer pretexto.
A arte gladiatoria, que fora exclusiva de es-
cravos, já era praticada por homens livres. Che-
gava o cnthusiasmo a tal ponto, que até as mu-
lheres desciam á arena e combatiam também I
Minotauro de nova espécie, o povo romano ca-
recia d'aquella carnificina que os magistrados
lhe arremessavam a miúdo, como a fera perigo-
sa. Em vão pretenderia ser popular o pretor,
questor, ou edil, que se eximisse deste horro-
roso tributo !
Além das festas publicas e particulares, em
que havia combates de gladiadores, até dos ban-
quetes eram parte essencial ; e a sumptuosida-
de do festim era aferida pelo numero de com-
batentes I Os convivas assistiam alegres áquellas
scenas hediondas, e se qualquer dos infelizes
caía trucidado, como era trivial., davam palmas
ao vencedor, do mesmo modo que, talvez no
mesmo lugar, um romano da actualidade ap-
plaude qualquer actor no thealro dl Vallc. Ao
gladiador \encido davam-se palmas também, se
elle tinha caido com certa elegância, no que to-
dos [)unham o maior cuidado. Era dos preceitos
da arte morrer com graça 1
Os combates tinliam lugar princii)almoiile no
Foro boario. No dia aprazado para clles dispu-
nham-se os gladiadores de modo que a cada
\im correspondesse um adversário de ij^ual, ou
|)roxima destresa e forç». Depois, cm quanto se
examinavam as espadas, que deviam ser api)ro-
vadas i)elo editor, simulavam elles um combate
.}; Sen. De. Lrcv. vit.
(■<> As «iiírerenies (lenumin.Tições «los gladiadores eram;
Mirmilloncs — Hcliarii — HcciUorcs — Trácios— Emctlarii— Suwui-
t'f—Andabates—Coesaríani— Laqueares— Svpposila ta o Meridiani.
com espadas de madeira, anua lusoria. Este pre-
ludio chamava-se venilarc. Quando a trombeta
dava o signal, vinham as armas homicidas; o
que d'ahi em diante se passava chamava-se dimi-
catio ad ccrlum.
Se entre os diversos gladiadores que entravam
no combate havia os mirmillones, o espectácu-
lo era mais variado. Estes, que ordinariamente
eram gaulezes, vinham armados de um escudo
e de uma fouce, e traziam um capacete, no cimo
do qual se via a imagem de um peixe, minmllo,
donde tiravam o nome. Eram seus adversários
os retinrii. que usavam de um tridente e de
uma rede, na qual procuravam envolver a ca-
beça do adversário cantando :
Non te peto,
pisoem peto :
quid me fugis, Galle?
Quando um gladiador ficava ferido, o povo
gritava hoc hnbel : então se elle abaixava a.s ar-
mas confessava-se vencido. Todavia a sua sorte
estava ainda dependente da vontade do povo, da
de quem fazia as despesas do espectáculo, e prin-
cipalmente das vestaes, que não podendo ser do
seu sexo pelo amor de esposas e de mães, não
eraim também do seu sexo na tranquilla indiíTe-
rença, com que viam correr pela arena tanto
sangue innocentc. Se as vestaes pronunciavam o
perdão, se o povo erguia as mãos abaixando os
dedos polegares, ou se o imperador chegava, eslava
salvo o gladiador. Se ao contrario as vestaes fi-
cavam mudas, se o povo erguia os punhos cer-
rados, se o gladiador em vão dirigia os olhos
supplicantes para o lugar imperial desoccupado,
a sentença de morte estava, sem appelação, pro-
nunciada.
A estatua, representada na gravura que o Pa-
norama hoje apresenta aos seus leitores, é uma
das mais celebres, entre as que se julgou repre-
sentarem um d'esses infelizes combatentes. E'
porém de suppor que esta estatua geralmente
conhecida pela designação de o gladiador mor-
rendo não represente um gladiador, mas sim um
guerreiro bárbaro. Deu-se-lhc aquella denomina-
ção, provavelmente, pela mesma causa porque
(ie muitas outras se decidio que representavam
gladiadores, quando da maior parle das que fo-
ram descobertas, principalmente nos séculos XV
e XVÍ, se acha hoje evidentemente demonstrado
foram outros os assumptos. A estatua a que nos
estamos referindo, é, de Iodas essas, a que tem
sido objecto dos mais escrupulosos estudos dos
antiquários.
Uepresenta ella um homem nu, ferido do lado
direito do peito e caido com a agonia mortal,
que se exprime admiravelmente, não S('» nas fei-
ções de uma angustia indescriplivel ; mas em
ioda aquella figura meio erguida n'um supremo
esfor(;o.
A força phisica, a intensidade da dòr, a sere-
nidade da resignação c a total perda de esperan-
ça manifeslam-se ali n'uma linguagem sublime,
que é de todos os tempos e de lodos os povos.
Eòra impossível emfim exprimir melhor, n"uma -
figura só, lodo o horror da morte e Ioda a for-
mosura da vida.
São diversas as opiniões acerca do assumpto
d'csla estatua.
Querem uns, que representa um arauto dos
o PANORAMA
375
jogos olympicos, e fundara se para isso em que
a corneta, que se vé sobre o escudo, semelha a
dos arautos, e que o coUar da figura representa
a corda que elles usavam, para augmentar a in-
tensidade da voz.
Querem outros, que o collar assim como a ca-
beça sejam obra muito posterior á feitura da
estatua.
Outros finalmente pretendem, que representa
um escravo íiel, mortalmente ferido na defeza de
seu amo, o qual reconhecido lhe fizera erigir.
Estas opiniões lêem sido combalidas, c segue-
se geralmente a de Yisconti, o qual é de pare-
cer que representa um guerreiro bárbaro, ferido
de morte, e expirando no campo de batalha, onde
se vcem esparsos vários instrumentos de guerra.
Neste caso, será a corneta o litniis, e a corda o
torques, dos Romanos.
Tem este primor d'arte o nome de Ctesilau :
contesla-se porém, e ao que parece plausivel-
mcnte, a antiguidade da inscripção.
Cila-se de feito, entre as obras do celebre es-
tatuário, um guerreiro ferido ; mas era de bronze
essa estatua, e esta é de mármore.
A gravura que o Panorama apresenta, é copia
de uma estatua de bronze, que foi fundida por
Kepller e que está em Paris. O original é uma
das mais raras maravilhas d"arle que o viajante
admira no museu do Capitólio em Roma.
A. P. Ferraz Jumor.
DO MOVIMENTO NO UNIVERSO
Quando uma noite profunda e silenciosa cobre,
com o sou negro manto, o universo ; quando nos-
sos ciliares, errantes de estrelia em eslrella, dei-
xam a alma contemplativa embalada no espaço;
quando o somno da natureza produz em torno de
nós o socego, a paz, parece que a immobilidade,
a inactividade, o repouso absoluto nos rodeiam.
Comtudo, em quanto sonhamos no moio deste
socego profundo, e deste plácido universo, ha no
espaço certo globo de Ires mil legoas de diâme-
tro, isolado de todas as partes, e suspenso solitá-
rio no seio de um espaço iníinito. Este globo não
eslá immovei, mas sim, corre alravez da exten-
são com uma rapidez prodigiosa, ao lado da qual
a velocidade das melhores locomotivas se asseme-
lha ao andar da Inrtaruga. Para bem se apreciar
o curso deste globo seria preciso collocarmo-nos
cm um ponto docéo, não longe do caminho que
elle segue; então veríamos este globo luminoso
apparecer ao longe. Esphera rodopiante, eil-a que
se approxima, cresce, torna-se immensa, mons-
truosa... passou... desappareceu com a ra|)idez do
relâmpago ; afasta-se com toda a velocidade, le-
vada i)ela mesma carreira vertiginosa, sem Irogoa
nem repouso, eternamente. Oual é a velocidade
com que este globo corre os céos sem limites?
Vinte e sete mil e quinhentas léguas por hora ;
mais de trinta mil melros por segundo !
De noite e de dia, sem cessar, este astio con-
tinua a sua carreira pela extensão eslrellada. — E
porque motivo, perguntarão, se não vè esse glo-
1)0 atravessar o céo plácido e puro, cujas estrellas
scinlillam com tanta doçura? — A explicação é
muito simples; este astro, cuja eterna carreira
nos assusta, é a terra que habitamos.
A impresííão dos sentidos c tão poderosa que a
illusão produzida por ella nos domina de uma
maneira ahsolula. Não nos poderemos subtrair á
surpresa, na verdade mui legitima, que faz nascer
em nós a ideia de um tal movimento, do qual
partecipamos sem termos consciência d'isso ; e
quando mesmo o conhecimenlo desta veidade c o
habito destas considerações malhematicas nol-as
tornem mais familiares, não podemos pensar no
facto em si mesmo, som nos admiiarmos do seu
poder. E que elíeclivamente nada ha mais oppos-
lo a nossos sentimentos originários sobre a esta-
bilidade do globo, e nada contraria mais a ideia
longa e solidamente estabelecida em nós pela
observação vulgar. O fado em si mesmo parece-
nos ter alguma cousa de prodígio, e comtudo só
elle é verdadeiro, em quanto que as nossas pri-
meiras ideias são no fundo erróneas.
Ora imporia para a()uelle ijue quer ter. uma
noção verdadeira da disposição e da natureza do
universo, desenganar-se da illusão produzida pelos
sentidos e admiltír o ensino dos factos observados.
Em vez de deixar cm nossa presença esse pano-
rama da noite tranquilla, dos astros em repouso,
do eco adormecido, contemplemos os movimentos
celestes na sua realidade, e não li'm3mos ver des-
vanecer-se com a illusão o aspecto poético da noi-
te eslrellada : a realidade é por sua natureza in-
hnilamenle superior á licção, quando mesmo se
olhe para ella com os olhos do sentimento; em
lugar d'uma apparencia de morte, veremos abrír-
se diarde de nós o reino do movimento e da vida.
Eis pois a terra viajando incessantemente com
uma velocidade de 30,3o0 metros por segundo.
Etíectivamenle ella tem de percorrer em 305 dias
e um quarto toda a extensão da orbita que des-
creve á roda do sol ; esta orbita, de 38 milhões
de léguas de raio, tem a extensão de 241 milhões
de léguas. Tal é o caminho que tem a percorrer
em um anno. Ora para isto é preciso voar com
uma rapidez de 660,000 léguas por dia. Não os-
(jueça ([ue além deste movimento de translação a
terra é animada de um movimento de rotação so-
bre si mesma, que deita a 164 metros por se-
gundo.
Dirigindo-nos para o sol, enconlram-se os pla-
netas Vénus e Mercúrio. O primeiro descreve uma
orbita de 472,600,000 léguas, e o seu anno e de
22o dias, pouco mais ou menos. Para elVectuar o
seu movimento neste lapso de tempo, é necessá-
rio percorrer 36:800 metros por segundo, equi-
valentes a 32,190 léguas por dia. Esta velocida-
de é ainda superior á nossa. Pôde aqui repolír-se
a mesma pergunta que acima lizemos: Porque se
não vè este astro correr d'esse modo pelo ceo? O
leitor já achou a explicação, e sabe que a distan-
cia dos astros impcdo-nos de apreciar o valor dos
seus movimentos — que se tornam tanlo monos
sensíveis quanto maior é a distancia — c cuja am-
plitude não pôde ser conhecida senão quando se
sabe a distancia.
376
O PANORAMA
Os movimentos plaiielarios tornam-se tanto mais
rápidos quanto mais próximos osíão do sol. As-
sim, sendo a velocidade da terra por segundo de
30,od0 metros e de Vénus de 30,800, a de Mer-
cúrio deve ser de 58000 metros. Animado desta
velocidade, o planeta percorre 52,520 léguas por
hora, 1,200,000 léguas por dia, e no espaço de
88 dias, tem percorrido a sua orbita de lli mi-
lhões de léguas.
Voltando sobre nossos passos, c afastando-nos
do sol para os limites do systema, encontraremos
successivamenle Marte, Júpiter, Saturno, etc. A
orbita do primeiro destes planetas apresenta um
desenvolvimento total de 302 milhões de léguas
de quatro kilometros. A velocidade media do pla-
neta e de 22,000 léguas por hora, istoé, de2í,4i8
metros por segundo. Dizemos velocidade media
(e este termo é applicavel a todos os mundos),
porque cada planeta anda tanto mais depressa
quanto mais perto está do sol, o que succedc na
época do perihelio de cada uma das suas revolu-
ções, que não seguem uma orbita vigorosamente
circular, como se sabe, mas appro\imam-se mais
ou menos da forma elliptica. Ueciprocamcnte, o
planeta anda mais lentamente quando percorre os
pontos da sua carreira mais afastados do sol. Esta
diíTerença nos movimentos celestes é sobretudo
natural entre os cometas, cuja ellipse c mui alon-
gada lia cometas que percorrem 30 léguas por
segundo na sua passagem pelo perilielio e alguns
alguns metros somente pelo seu aphelio.
Júpiter emprega doze dos nossos annos para
descrever a sua curva oj-bilaria, igual a 1 milhar
214 milhões de léguas. A sua velocidade é de
12,972 metros por segundo, 778 kilometros por
minuto, 11,075 léguas por hora, 280,200 léguas
por dia.
O caminho percorrido por Saturno, cm sua
orbita de 10,700 dias, é de 2 milhares 287 mi-
lhões 500.000 léguas. A sua velocidade media ò
de 112,000 léguas por dia, 8858 legoas por hora
ou 0842 metros por segundo. À distancia de Ira-
nus, cuja orbita, de 4 milhares 582 milhões
120000 léguas, é percorrida cm 84 annos, a ve-
locidade não |)óde ser de mais de 149,300 legoas
por dia ou 0000 léguas por hora. A evolução da
orbita de Neptuno apresenta uma extensão de 7
milhares e 170 milhões de léguas; a velocidade
do i)lanota sobre esta orbita, que percorre em 104
annos, e de 20,000 kilometros por segundo. Yè-
se quanto a velocidade tem successivamenle di-
minuído de Mercui'io para cima, (|ue percorre 58
kilometros na mesma unidade de tempo. Apre-
sentadas em uma mesma linha estas velocidades
respectivas, por kilometro o por segundo, otíere-
cem de Meicurio e Neptuno a relação seguinte :
58, 37, 30, 2í, 13, 10, 7, 5.
Taes são as velocidades com que as espheras
celestes percorrem as regiões do espaço. Não fal-
íamos dos pequenos plar.etas, cujo numero cara-
cterístico occupa a lacuna que separa 2í e 13 na
linha precedente, Estes innumeraveis corpinhos,
do tamanho de uma província, giram, cffecliva-
mente em torno do sol com uma velocidade me-
dia de 18 kilometros por segundo, ou 16,200 lé-
guas por hora.
Os satelliles são levados pelos seus planeias na
translação destes á roda do sol e pelo mesmo mo-
vimento; além d'isso giram rapidamente á roda
destes planetas. Assim redo|)!am no céo Terra,
Lua, planetas, satellites, cometas, como uma ra-
pidez de que nenhuma velocidade sensível nos
pôde dar ideia. Assim andam todos os astros do
céo. As estrellas chamadas lixas são animadas
umas c outras, das maiores velocidades que até
hoje se tem achado. Tal estreita, que nos parece
lixa em uma conslellação, Arcturus, por exem-
plo, gii'a nos pontos longinquos"da extensão com
uma velocidade de 21 léguas por segundo; de
7082 léguas por dia ; mas a distancia que nos
separa d'ella é tão grande, que esta mudança
de posição da estrella no céo é apenas d'aqui per-
ceptível. Tal outra estrella, a sessenta e uma do
Cysne, move-se no espaço com uma rapidez de
18 léguas por segundo; tal outra, a cabra, corre
com uma velocidade de dez c meia léguas por se-
gundo ; tal outra ainda, Sirius, com uma veloci-
dade de mais de 9 léguas na mesma unidade de
tempo. l*ensc-se por um bocado no caminho real
percorrido por estes astros em uma hora, em um
dia, em um anuo, em um século. Comtudo, a dis-
tancia que as separa de nós é tão prodigiosa, (juc
este immenso espaço perconido em um século,
espaço que os nossos números mais elevados ape-
nas poderiam exprimir, não cobre sobre a esphe-
ra estrellada a largura apparenle de um dedo. É
n'isso que consiste o segredo da invisibilidade
destes formidáveis movimentos, da apparenle li-
xidade dos astros, da paz tão profunda das noites
eslrelladas.
Assim, sem darmos por tal, somos levados no
espaço com diversas velocidades : 300 metros por
segundo, conse(|uencia do movimento de rotação,
na latitude de Lisboa ; 30,000 melros por segun-
do, consequência do movimento de translação da
terra á roda do sol. Accrescentemos ainda o mo-
vimento de tianslação do sol no espaço, que arras-
ta com o astro cential lodos os coi'|)os que lhe
pcitencem, e que não seria inferior a 8000 me-
lros por segundo. Eis, pois — sem contar os secun-
dários— Ires movimentos principaes que nos con-
duzem, O Sol, com o seu systema, é um facto
(|ue cáe no abismo dos espaços com a rapidez
[)rodigiosa que acabamos de mencionar. Estrella
lambem, corre os desertos do vácuo como as es-
trellas suas irmãs, cujas elhereas peregrinações
acima narramos.
Será bom (|ue a impressão que resulta deste
relancear de olhos por sobre os movimentos celes-
tes nos desengane da illusão dos sentidos, e que
nos deixe não somente com a certesa desta acti-
vidade permanente das diversas partes do univer-
so, mas ainda com a certesa de que não pode-
riam impunemente cessar, e que a sua existên-
cia é uma condição da duração do mundo.
Typ, l''roiii;o-l'orluguoz.i — Uua do Tli'.souro VcUio, 6,
48
o PANORAMA
377
A Virgem ó o Cflenino (Quadro de Vun Dick)
O admirável quadro, do qual ó copia a gravura
que damos hoje aos nossos leitores, enconlra-se
no museu do Louvre, e devc-se ao inspirado pin-
cel do discípulo de Rubens, o famoso Van Dyck,
que, se nem sempre pôde ser collocado a par do
mestre, como pintor histórico, excedeu-o muito
na suavidade, na graça, na harmonia do colori-
do. Reynolds, artista fccundissimo, um dos mais
notáveis pintores da Gran Bretanha, fatiando acer-
ca deste (juadro, diz, que é uma das obras mais
primoi'osas do insigne mestre da escola llameiiga,
uma das mais admiráveis criações do espiíito hu-
mano, uma das melhores pinturas do mundo.
Nunca o génio de Van Dyck se manifestou tão
claramente, como nesta inimitável producção, que
Ião alta idéa nos dá do seu grande talento e do
elevado grau de perfeição a que chegara no gé-
nero histórico, se os retratos o não houvessem
distraído tanto. «Effeclivamenle, surprehendeni as
bellezas do estylo, a correcção do desenho e a
execução. A extática expressão do rosto da Vir-
gem, a sublime e angélica puresa de seus olhrs
levantados para o céo, e a graça immaculada de
seus formosos lábios, que parece respirarem o
hálito da vil lude, estão acima de todo o elogio.
A cabeça do Menino Jesus e de raia j)erfeição ; o
rosto ajuesenla uma admirável combinação da di-
vina intelligencia com a graça infantil. O dese-
nho das extremidades, isto é, das mãos das duas
íiguras e dos pés do Menino, são da maior cor-
recção e verdade. A disposição das roupas é gra-
ciosa ; o contraste do claro-escuro excellenle; e
o colorido em geral, rico, harmonioso e encanta-
dor.»
Os vermes do sepulchro começam a roer a
consciência do malvado, antes do lhe devorarem
as entranhas. Chateaibrund.
378
O PANORAMA
A GALATEA MODERNA.
XII
Sab togiuiuc fngi
No oulro dia, conforme os nossos dois heroes
haviam aprasado, devia Yioianle responder aos
apaixonados protestos de Alfredo.
Entardecia já. O sol afiindava-sc no oceano, e
as roxas cores do crepúsculo lauxeavam de lis-
tões phanlaslicos a athraospliera, que parecia um
mar cujas ondas immensas fossem de gaze lufa-
das pelo venlo.
A st-rena e formidável harmonia da natureza
irrompia em jorros pelo vasto horisonte, e no céo,
tão ligeiras corriam as nuvens, que mais pare-
ciam o bafejar de anjos, que corressem á proíiaa
alistar-se no paraiso, sob os olhos do Senhor. E
a Fonle-Eresca, Ião poética e formosa, lá estava
no seu lamento sonoro, e chorando aguas crislal-
linas, em cujos seios puríssimos se revia a im-
mensa coma do olmeiío, que só de quando em
quando, por dias de estio, deixava passar um
raio de sol, syl|)iio luminoso, que vinha brincar,
saltar e beijar a limpha murmurosa.
Ouando Alfredo chegou não vio ninguém, nem
mesmo o raio de sol, que tão baixo ia e tão jun-
to do horisonte, que já as grandes sombras abra-
çavam a terra.
Passado pouco ouvio Alfredo uma voz maviosa
vinda do tronco do olmeiro, que assim dizia :
— Pobre Menalca ! Outr'ora, vivia aqui uma Drya-
de, loura e formosa, que Faunos e Sylvanos ama-
ram loucamente. Hoje...
— Hoje, ò Dryade gentil, ó deusa propicia, ó
fanal dos meus amores, responde-me do seio da
folhagem, entoa os teus gorgeios mysteriosos, e
dize-me que é amado o pobre pastor, que por ti
se coroa de myrthos e pâmpanos !
— Pobre louco ! Pedes amor e ninguém t'o pô-
de dar, que o amor é só invocado i)elos poetas !
Queres arrancar das cinzas um seio retfueimado?
Oueres neste século, que as Dryades de Tlieocrito e
Virgílio I Ai! meu desgraçadoMenalca, quão en-
ganado andas! Liber já me não protege; não me
envolve em amorosos liames o áureo pâmpano,
e a limpha não o serpêa em torno de mim com
(jueixumes brandos c voluptuosos. Yenus morreu
também ; Psyche fugio para sempre, e ninguém
me anima a primavera, nem os amores com
que eu entretecia a vida nos ramos deste olmeiro.
— Ouve, ó Dryade gentil, ouve os meus la-
mentos. Eu adoi-o Ida, linda e pudica como o bo-
tão da rosa, que abre os raios ao sorrir da amo-
ra, no recato da noite. Ouando me ella falia sinto
fallaramor; .se ri, ou chora, ou canta, canta,
chora, ou ri amor. Assim é cila, ella é amor. I^m
tudo se conformam ; e em tudo (juizcra também
conformar-me. A cila ergo as minhas antislerias,
por ella entoo Evohé. Ouando a vejo tão bella,
como a llor do acantho, biilhanlc como um raio
de Phebo, vaporosa como Amphitrile, canora
como Acheloide, mais formosa do que a lua que, ,
por noites de estio, beija a relva do prado,
aonde saltam j)yrilampos, sinto que a adoro.
— Ai! Procuras a morte, julgando encontrar a
vida, ó pobre Menalca. A tua Ida é como a ando-
rinha, que vem com a primavera e foge mal as-
somam os primeiros signacs do inverno. Não te
íies d'ella, ó peregrino, que Ida é traidora. Não
corras atraz d'ella, que as Galateas, quando fo-
gem, levam o coração dos que as perseguem.
Acredita na pobre Dryade, que te quer...
E Violante, toda rubra, saio do olmeiro, com
os cabellos arraiados de um festão de hera entre-
laçado de folhas de carvalho, e appareceu mais
formosa do que a própria Dryade.
Alfredo proseguio :
— Se tu me amas, ó Dryade, se por amor de
mim, tu te animaste como a estatua de Pygmalião,
eu esqueço Ida, a linda bachanle, por ti, que és
mais formosa.
Violante parou, arrancando a coroa, e lançan-
do-a para longe, exclamou n'um repente arreba-
tado : ,
— O meu caro primo, nunca julguei que to-
masse tanto a serio o seu papel de Menalca ou
Melibeu. Deixe-me rir, primo. Ha muito (jue não
passo uma taide tão divertida. Olhe que me cus-
tou a aprender o papel de Dryade. Devorei o
diccionario da mythologia... porque me parece,
salvo o erro, que estas suas conlissões são verda-
deiramente mylhologicas. E demais, lembre-se da
época em que vivemos. Obrigar-me a representar
de Dryade, a mim, cujo futuro é morrer na clau-
sura de um convento 1 Eu, que nasci para me ro-
jar, victima innoccnte, nas lages de uma igreja,
rosando a Deus, não só pela salvação dos ou-
tros, senão para que me leve deste mundo de
tristezas, desta solidão sem conforto, posso jamais
comprehender esses loucos devaneios, em que o
primo combina a mythologia, perpetua facécia
amorosa, com os frémitos de uma paixão, que
pôde nascer de repente e matar -me com torturas
incomportáveis!... Ah! Alfredo, que mal IhcMiz,
para tanto escarneo? Julga-me acaso algum jo-
guete? Não sabe que o coração pôde um dia que-
brar-se, como a corda de uma harpa tangida por
mão descuidosa? E depois, se na solidão, aonde
me houver arrojado, perdidas as poucas illusões,
(|ue me restam, eu gritar maldição como o nau-
frago no oceano tormentoso, poderá queixar-se de
mim? É neces.sario acabar com isto, Alfredo, pro-
seguio a donzella travando-lhe da mão com for-
ça. Amanhã será tarde talvez. O peito, que hoje
soluça, quebrará logo, c o riso de ha pouco ge-
rou as lagrimas de agora.
E Violante deixou-se cair sobre um banco rús-
tico, tapetado de liera. Os soluços embarga vam-
Ihe a voz. As lagrimas corriam-lhe em lio e sul-
cavam-ihe o rosto lindo (jue não perdera a alti-
veza. Ergueu-se de repente. Recobrou o porte se-
nhoril, e olhando lilo para Alfredo, exclamou
n'um Ímpeto :
— Não, Alfredo. Eu sou pobre, e as mulheres
de minha raça não se vendem.
o PANORAMA
379
— Que diz, Violante? bradou Alfredo, segu-
rando-a convulso. Eu, compral-a? Eu, que a amo
com Iodas as veras de um coração juvenil, que se
julgava descrido e que do rejicnle, como a flor
que recebe o rocio da madrugada, reviveu para
a esperança! Quer quebrar a lelicidade, em um
momento, a felicidade, que tenho urdido com tan-
to afan guiado pelos raios do seu amor? Quem
nos tolhe de sermos felizes': Pois não tem visto
nestes brinquedos o meu amor, giande como o
oceano, santo como uma caricia materna? E
quer-rae fugir ! E quer abandonar-me á beira do
caminho, a mim, que rastejo humilde no seu sulco
de luz e amor ! Oh ! lance um raio nas trevas da
minha vida; seja a estrellaque me guia na solidão.
— Não, Alfredo. Não alevantemos edifícios na
arêa. Lembre-se quem eu sou e quem é o primo.
Eu, pobre e mimoso passarinho batido da tor-
menta rugidora logo ao nascer, quebi-adas as azas
no berço, marcada com o sello da desgraça, hei
de recalcar no coração todos os impeles, todas as
aspirações. O meu ideial é a escuridão do cárcere.
A minha liberdade as grades de um convento. O
meu sorriso o tremendo amargor da clausura. E
até o pranto, que me irromper do peito em so-
luços de angustia e desespero, esse mesmo pran-
to,* que ninguém pôde negar ao afllicto, porque
perante a dor todos somos iguaes e não ha des-
potismo, que lá chegue ; esse pranto abafal-o-hão
as psalmodias da igreja e os sons dos órgãos em
dia de íinados. Mas ó primo ! que de esplendores
não antevô ! Que ondas de harmonia não podem
baloiçal-o na sua carreira radiosa ! Que de ambi-
ções não pôde saciar no grande combate da vida !
Áh ' deixe-rae ! deixe-me 1 Bem basta o mal que
me fez ! E quer que eu lhe derrame luz ! Eu, que
nas trevas hei vivido, e nas trevas hei de morrer!
Não junte a zombaria e o escarneo à minha dor !
— Violante! Oh! querida Violante dera a vida
por convencel-a do meu amor !
— Ah! deixe-me desafogar. Lamentações, não
as quero. Vou fallar a verdade, a verdade só, en-
tende? Quando o vi, juiguei-me mais forte. Sa-
bia que meu pae queria unir-nos e levanlar, com
os seus, os bens arruinados d'elle. Tudo isto adivi-
nhei, porque ninguém m'o disse. Ao principio, e
quão louca fui, acreditei que podia fazer a vonta-
de a meu pae. Enganei-me. Não me pergunte o
motivo. Não quero dizer-lh'o. Arranque-me, se
quizer, este coração maldito, que nem assim sa-
berá a verdade. Essa, talvez nunca a saiba, e ai!
de mim se a souber algum dia. Amanhã chega
aqui a minha querida amiga baronesa. Traz-me
um noivo. Não sei se me agradará. IJem sabe que
sou de ruim contento, porque nem o primo me
contentou, ao que parece. Mas não vê alemaquel-
le cruzeiro, sobre aquelle monte? Hei de resi-
gnar-me, e unindo os meus aos braços da cruz, des-
posar-me-hei com o Senhor. Adeus! Esqueça-sede
mim. Não lhe peço o sacrilicio de continuar a vi-
ver comnosco.
E Violante ergueu-se, toda nervosa e convulsa,
mas senhoril.
Alfredo íicou irresoluto, atlonito e estúpido co-
mo quem se vê á beira de um abysmo c não sa-
be se ha de tentear salvar-se ou precipitar-se e
achar descanço na morte.
Alevanlou-se einíim e deu um passo para se-
guir Violante, que já ia longe, meio encoberta
com as sombras da noite.
Mas baldo foi o esforço, que não poude mover-se.
Parece que o destino implacável lhe íincára os
pés na lage húmida e escorregadia.
Em vão sentia o coração a bater-lhe no peito
com anciã; em vão o vulto gracioso de Violante
fugia, como uma fada gentil, pela devesa ; em
vão as arvores ramalhavam e agitavam as som-
bras; em vão o mar se espelhava ao longe com
os derradeiros clarões do crepúsculo. Era tudo
em vão, que Alfredo só tinha olhos para a cruz,
quasi tombada sobre as ruinas de uma capella.
Era aquella a sua imagem, imagem melancólica
de todos os alHictos.
Elle, que sentia força e animo para suster nos
braços e amparar a virgem, cujos caprichos pa-
reciam dores e amarguras ; elle que ({uizera con-
solar-se. amando uma donzella incomprehensivel,
tornou-se instrumento de supplicio, e cruz viva,
sentindo as próprias e alheias dores, íicára ahi
tombado, nas brenhas do seu viver.
Como se fosse movido por uma força superior,
começou a caminhar rápido para o cruzeiro. As-
sentou-se, filos os olhos no mar, espirito amar-
rado á dor e olhos rasos d'agua.
O que elle pensava, sabem-n''o os que os cho-
raram um dia amargos prantos, por uma mulher
adorada, que se esvaeceu de repente, em um ras-
to luminoso, e os deixou nas sombras. Esses sim,
e raros são, que podem comprehender a suprema
dor d'esses momentos, cujo conforto é a própria
desgraça.
Pouco durou este supplicio.
Perlo de Alfredo surgio um vulto, que saltava,
e pulava, e começou de entoar em voz sumida :
Ai 1 triste de quem namora
Uma rosinha em botão,
Que só elle, o triste, chora,
K a rosa não chora, não.
Tristezas trazem amores.
Ai triste de quem namora.
Já então vinha rompendo o luar, luar de maio,
melancólico, empanado de nuvens de trovoada,
como a luz que brilha no cárcere do condemnado.
O vulto do innocenle agilava-se e projectava a
sombra confusa e esfumada na penedia agreste. E a
voz tremula repelia a trova.
Alfredo ergueu-se eulão, e exclamou :
— Não. Ella não me ama! Porque luclar com
o deslino? liei de ser homem. Hei de levar o
supplicio até ao lim. liei de assistir o enterro
da minha alma.
K dirigio-se para o solar.
O innocenle lá continuou cantando a sua trova
cheia de desenganos.
[Coniinua]
o PANOHAMA
CARLOS II DE IIESPAMIA
iCnntinnação)
A leiliira ilesla caita levou ao mais subido grão
a aversão naliiral da rainha para com I). João, c
accendeu de modo lai a sua colei a, que estalaria
com grande estrépito, se estivesse nas mãos da
religiosa soberana o perdelo ou anniquilal-o ; e
se não fosse lambem pelo receio de desagradar
altamente á curte o ao povo, que, geralmente, dis-
pensavam ao principe grande estima e respeito, e
defendiam |)ublicamente o seu procedimento, dan-
do-lhe razão e cul|)ando a rainha e o favorito da
injusta morte de Malladas c da prisão de Patino.
Kstes rumores perigoso?, que augmentavam de
dia para dia, collocaram a lainha em a necessi-
dade de fazer uma declaração, aílirmando (lue
aquelles dois homens haviam ido a Madrid encar-
regados de executar os projectos de D. João ; que
se convencera d'isso pela confissão dos dois fac-
ciosos, e que só com a evidencia do crime se de-
cidira a condemnar Malladas. O confessor, entre-
tanto, mandou imprimir e publicar uma espécie
de apologia proi)ria, em forma de representação
dirigida á rainha, na qual se estendeu nuiito em
dissertar sobre a nobreza da sua linhígem c os
grandes serviços dos seus antepassados; e ao mes-
mo tempo accusava a I). João de haver altenlado por
diíTerenles vezes contra a sua vida, protestando
por sua parle a maior innocencia na morle de
Malladas e na prisão de Patino, e allegando em
prova d'isso, que na occasião em que occoireu
aquella eslava e!le lendo o seu breviário na com-
panhia do padie iUislos.
Pouco tempo dejjois, tornou novamente a rainha
a apresentar ao Conselho outra accusação contia
o principe; disse ijue cm certa occasião fallando
com um astrólogo de grande merecimento, esle
lh(í mostrou flarainenle as suas ousadas |)ret('n-
côes e desmedida ambição, crime mui digno de
casligo cm um súbdito rebelde e ingrato, (juc tan-
tos favores recebera da coroa. Mas o i)rincipe li-
nha amigos de mais pai-a não achar i)or toda a
parte (|uem tomasse a sua defesa, e piovar á evi-
dencia que o seu nobre corarão era incapaz d(!
abrigar um desígnio tão cobarde c criminoso, co-
mo o do as>iassinnto fio confessor; que se houve-
ra concebido alguma \ez seuielhante projecto,
muitas occasiões linha tido para o levar a cabo, e
(|ue B melhor prova (jiie podia dai de (|ue nunca
o pretendera lazer, era (jue eirectivamenl<! o não
linha feito. Oue mui longe de proceder traiçoei-
ramente, se mostrava franco e decidido accusador
do favorito, e pedia o seu aparlauu'nlo da côrle.
ex[»oiido-se desle modo á cólera do llirono: que
de um lado esUna um principe cheio de mereci-
mentos e gloriosos serviços, e de (|uem a nação
esperava ainda mais, e do outro um religioso es-
Iranireiro e intri^-anle, sustentado unicamente [le-
la bondade da rainha, cheio de honras, pensões e
empregos imiiortantes, e cuja saida do |)alacio não
podia occasioiiar grandes perdas ; e por nllimoal-
Iribuiam a este o intento de ter (jueiido desfazer-
se de 1). João em Haicelona e em Consuegra, e
promover, em consequência de seus excessos, uma
revolução espontânea e geral no reino.
Tal era a opinião mais vulgar da côrle e do
povo neste conlliclo; tal era o objecto de todas
as conversações, de lodos os pensamentos ; e os
interesses encontrados, correndo e desenvolven-
do-se em todas as classes, em todas as condições,
chegaram a ter defensores até nas pessoas do bel-
lo sexo, até nas damas da corte, que se dividiram
ostensivamente em dois bandos denominados ímí-
triacas e NUnrdinas.
Em quanto as cousas apresentavam este aspe-
cto em Madrid, I). João encaminhava-se para Bar-
celona. A rainha, que ignorava o seu rumo, esta-
va na maior anciedaile pelas consequências deste
romj)imento ; mas chegado aqu^ljo á dila cidade,
dingio a Sua Magestade outra carta mui respei-
tosa, na qual sem embargo insistia novamente e
com a mesma energia em supplicar-lhe o afasla-
menlo do confessor. Isto, longe de applacar a ira
da soberana, dava-lhe novas forças contra o seu
ousado antagonista, e mais motivo achava para
não se separar de um homem em quem deposita-
va toda a sua conliança ; e julgando que D. João
se entremettia indevidamente em cousas que lhe
não diziam respeito e só por uma aversão cega
contra o padre jesuita, teimava em conservar esle
junto de si com todo o seu régio poderio, crendo
com isto dar uma prova da energia da sua sobe-
rana vontade.
O padre Nilard por sua parle não sabia a que
(leterminar-se em tão duro combale. Por um lado
!isongeava-o o favor e a protecção de tão grande
rainha ; por outro calculava o porler e os recur-
sos do seu adversário ; temia por sua própria vi-
da, e cm cada um dos corlezãos c indivíduos do
próprio conselho suspeitava um inimigo occullo.
Todas estas reílexões o levaram, não uma vez só,
aos pés da lainha paia sup|)licar-lhc com as la-
grimas nos olhos que o deixasse retirar; ella, po-
rém, dando-lhe novas seguranças, conseguia Iran-
(|uillisal-o e desvanecer-lhe momentaneamente os
seus justos receios.
1). João, não contente com o escrever á rainha
nos lermos ja dilos, dirigio-se lambem aos minis-
tros, exhoriando-os a unirem-se a elle para solli-
cit-irem da real bondade a separação d'aquelle es-
trangeiro. Estas continuas inslancias enchiam de
amarguras e receios o padre T^crardo e de susto
os amigos deste e a própria rainha, (jiie não con-
tando já com grande segurança, mandim vir re-
forço (íe tropas, e desejosa de romper aberta men-
W. as hostilidades, tratou de declarar n belde D.
João; aconselhada, j)orem, melhor, pelas pessoas
do seu (>oiisellio, a (|uem propozeia Iodas estas
cousas, (juiz a|)urar os meios de conciliação, e
ganhar, se podesse, por bem, a vontade do (|ue
não podia vencer com o seu rigor; e, eíVecliva-
menle, escrcveu-lhe uma carta muito atlencio.sa e
estudada, mandando-o regiessar a Consuegra, on-
de lhe garantia com sua leal palavra a completa
segurança de. sua pessoa.
A princijjio D. João pôz alguma diíliculdade
o PVNOUAMA
381
Cm obedecer áquella ordem real, ou porque te-
messe (segundo manifestou á rainha) cair de novo
nas redes do padre Nilard de que por casualida-
de tinha escapado, ou porque, clfeclivamenle, ti-
vesse outros projectos mais atrevidos ; mas o du-
que de Osuna, que ao momento governava Bar-
celona, lhe fallou [com [tanto empenho [e instou
tanto para que obedecesse ás ordens de Sua Ma-
jestade, que conseguio vencel-o, e partio logo
para Consuegra cora Ires companhias de cavallos
que o mesmo duque lhe deu para o acompanhar.
{Continua)
Um amor de seis mezes na corte é um velho
decrépito. Louvdt.
382
O PANORAMA
A CATHEDRAL DE WORCESTER
A 17(5 kilometros N.O. de Londres, e a 38 de
Birmingham, da qual a separa um pequeno canal,
eslcá situada a bonita e bem construída cidade de
\\'ercester, capital de um condado (jue d'ella rece-
beu o nome e o qual junto com o de Glocester, for-
ma a parte mais importante do valle de Stern, mui
nomeado por sua fertilidade. A população da
cidade em ISoi, era de vinte e sete mil habi-
tantes ; hoje conta approximadamente trinta e
dois mil. Ainda no século passado, Worcester
era mais uma cidade de recreio do que, como
quasi todas as outras da Inglaterra, uma cidade
industrial ; no presente século, porém, as in-
dustrias tem ali bastante progredido, e na actua-
lidade conta um grande numero de fabricas,
cnire as quaes sobresaem as de porcellanas, de
luvas e de calçado, e é centro de um grande
commcrcio de ccreaes. Ao norte enconf ra-se gran-
de abundância de carvão de pedra, c as melhores
salinas da Inglaterra são as de Droitwich, logar que
fica a mui curta distancia de Worcester.
Foi n"esta cidade, outr'ora Caer Guorangon
uma das principaes dos Bretões, c segundo bis-
pado de Morcia no tempo dos Saxonios, que
Cromwell ganhou uma assignalada vicloria sobre
os realistas, em 1651.
Os' principaes edifícios de Worcester são a pri-
são nova, o hospital, o Iheatro, e a soberba ca-
thedral, cuja perspectiva se vê na gravura que
acompanha" este artigo, e que é, talvez, um dos
templos mais elegantes da nação britannica. Esta
cathedral foi construída pelos annos 680, e de-
dicada originariamente a S. Pedro; no oitavo
século, porém, recebeu a denominação de Santa
Maria, pela qual hoje é conhecida. Mas não se
julgue, que esta igreja não soíTreu a mesma sorte
que todas as demais da Inglaterra. Em 1041, os
soldados de Hardicuto devastaram-n'a ; em 1103
e 1202, foi viclima de dois incêndios, cujos es-
tragos, felizmente, foram pouco consideráveis, e
no reinado de Carlos l."as tropas do parlamento
invadiram-na e praticaram ali as maiores pro-
fanações: abriram os túmulos, roubaram a bi-
bliotiieca, fizeram quartel da casa do capitulo^
e, emfim, os ojjjcctos mais venerandos serviram-
Ihes de brinquedo. Annos depois foi reparada e
o .seu estado actual não é de ruina.
A turma d"esta cathedral é a de uma cruz
cora dois braços, e a sua architeclura d"estylo
golhico : mas, á excepção da torre, o templo
não tem profusão de ornamentos como se en-
contra em quasi lodos os d'este género. Os prin-
cipaes monumentos que contém são os tunnilos
do rei João, dElysa Digby e o do bispo Ilougii
pelo celebre Roíibillac, o maior escuiptor quo
teve a higlaterra. Entre os seus bispos distin-
guem-sc Wolstan, a quem se dete a maior parti;
do edifício que hoje existe, e Ilough-Latimcr,
um dos primeiros reformadores da igreja an-
glicana.
O CONDE ALLAMISTAKEO
Fim (Ja iirimeJra |iarlo.
Ciloi-llie cnlão os aços ; mas o estrangeiro le-
vantou o nariz e porgunlou-me se os aços moder-
nos poderiam execular as escnlpluras íão vivas e
nítidas que adornam os obeliscos c que foram in-
teiramente executadas com instrumentos de cobre.
Isto embaraçou-nos de modo tal, que julgámos
mais acertado fazermos uma diversão sobre a mc-
tliaphysica. Mandámos buscar um exemplar de
uma obra, cujo nome não me lembra, e lemos-llie
um ou dois capítulos sobre um assumpto que não
é lá muito claro, mas que os nossos sábios defi-
nem : Grande Movimento ou Progresso.
O conde disse simplesmente que no seu tempo
os grandes movimentos eram cousas terrivelmen-
te communs, e que, em quanto ao progresso, foi
em certa época uma grande calamidade, mas que
nunca progredio.
Fallamos-lbe então da grande belleza e da im-
portância do governo constitucional, e tivemos
não pequeno trabalho para fazer ver ao conde a
natureza positiva das vantagens de que nós todos
gosávamos, vivendo em um paiz onde o suíTragio,
por assim dizer, era od libitum, e onde o rei por
si só cousa alguma podia fazer.
Escutou-noscom lodo o interesse, e,emsumma,
mostrou-se encanlado com osyslema. Quando, po-
rém concluímos, disse-nos que nas suas terras já
outr'ora se tinha passado alguma cousa semelhan-
te. Treze províncias egy peias resolveram um dia
lornarem-se livres e darem assim um manifesto
exemplo á humanidade. Reuniram-se os sábios e
os amigos da liberdade, nomeou-se um chefe ín
nomine, e organisou-se a mais engenhosa consti-
tuição que é possível imaginar. Durante algum
tempo, caminharam as cousas maravilhosamente:
só um ou outro caso de abuso, da parle dos mi-
nistros. Mas, depois, como era de esperar, morto
moralmente o chefe supremo, e entregue o mando
a homens de maus costumes e de reconhecida inca-
pacidade, degenerou ludo na mais perfeita anar-
chia e despotismo. Era um inferno : ninguém se
entendia; todos queriam governar ; todos faziam
leis ; lodos castigavam por sua conla e risco. Em
fim, chegou a tal ponto a desmoralísação da parte
dos gerentes do estabelecimento, como costumava
dizer um veliio, meu amigo, que, além de prati-
carem as maiores prepotências, demittindo em-
pregados hábeis para admiltírcm os inhabeís, dan-
do emjiregos e dislínctívos por dinheiro e fazendo
tudo quanto pôde repugnar à moral e á razão,
alem de ludo isto, levaram, com as costumadas
sangrias, o thesouro a um estado tal de abatimento
e doença, que já ninguém arriscava por elle uma
moeda de papyrus ! Tão critica síluação requeria sé-
rios cuidados, medidas enérgicas. Lembraram-se
então os peritos de um celebre mineral, que havia em
um paiz pouco distante, do (jual, diziam elles, se po-
dia exlrair um xarope muitissimo salutar, único
remédio capaz de curar semelhantes enfermidades.
Mandou-se, portanto, ímmedialamenle buscar o
milagroso mineial, (t applicou-se o remédio com to-
da a cautela. Mas, foi peior a emenda (jue o sonelo :
o mal cada vez caminhava mais i'apido, e (juando,
desenganados da inellicacia do xainpe, os homens
pediram contas ao correspondente, i)ara liquidal-as,
j)assaram pelo grande desgosto de ver, que, to(h)
o PANORAMA
383
o paiz em peso com lodos os seus habitantes, não
chegava para satisfazer a quantia exigida. Foi en-
tão que os povos acordaram do longo e pesado
lethargo em que até ali tinham jazido; sublcvaram-
se, castigaram severamente os gerentes dos seus
negócios, e nomearam uni monarcha absoluto, por-
que, diziam elles, mal por mal, antes aturar um
tyranno que mil. Eflectivamente, dentro em cur-
to periodo, dominava o absolutismo. Eis como ter-
minou esta questão de liberdade.
— E cessaram os abusos com o novo systema?
— perguntou o barão de Souza — viveram felizes
e Iranquillos os povos d'ahi em diante?
— Qual historia! — respondeu o conde. — Ain-
da não tinham decorrido seis mezes, já tudo grila-
va contra o soberano que, guiado pelos falsos con-
selhos dos aduladores que o rodeavam, se tornara
o maior déspota e trazia todo o povo sob um ju-
go insupportavel.
— Eu entendo de mim para mim — disse em-
phaticamenle um oílicial de sapadores, que até
ali não proferira uma palavra — que todos os go-
vernos são maus.
O conde, que não tinha ainda reparado n'este
novo personagem, examinou-o com a luneta du-
rante alguns momentos, e por fim exclamou com
certa indiíTerença :
— O que o obriga a faltar desse modo?
— A longa pratica que tenho das cousas deste
mundo — tornou o official. — v. ex.", de certo, não
conhece ainda os homens ; porque se os conhe-
cesse não se mostraria tão admirado do que eu
ha pouco disse. Nãò ha governo possível, acredi-
te. Todo e qualquer systema por mais...
— V. ex.'' — interrompi ou, dirigindo-meao con-
de, para evitar que o pobre sapador dissesse al-
gum grande disparate, e por consequência licasse-
mos todos considerados como perfeitos asnos — V.
ex.* poder-me-hia dar alguns esclarecimentos so-
bre a instrucção publica no seu paiz?
• — Da melhor vontade — respondeu a raumia —
mas noto que os senhores todos, mais ou menos,
estão a braços com o destemido Morpheu, e por
isso acho mais prudente deixarmos a palestra para
outra pccasião.
— Ó senhor conde! — exclamou o padre Gil-
berto— estamos todos satisfeitíssimos; e bem sabe
que quando a companhia é sympathica e a con-
versação animada e instructiva, é perfeitamente
impossível ceder ao somno.
— Concordo — tornou a múmia — o assumpto,
porém, é vasto e complicado ; vae roubar-nos ago-
ra muito tempo, e os meus amigos necessitam de
descanço ; e eu, fallando-lhes com franqueza,
acho-me também fatigado.
— Como for da vontade de v. ex." — disse o
doutor Alexandre, que já havia um bom bocado
não fazia senão piscar os olhos — E nesse caso...
— continuou, voltando-sc para os de mais da com-
panhia.
— Nesse caso — disse eu, pegando no chapcoe
fazendo uma rasgada cortesia — se me pcrmillem,
retiro-mc.
— E nós igualmente — disseram lodos os outros
a um tempo.
O conde recebeu as nossas despedidas com mui-
to agrado, e todos promettemos voltar nesse mes-
mo dia.
Eram quatro horas e meia quando entrei em
minha casa. Minha mulher disse cousas de fazer
desesperar um santo ; mas eu não lhe dei respos-
ta, ô do que tratei unicamente foi melter-me na
cama. Ás dez horas levantei-me, almocei, e em
seguida tomei estas notas para instrucção de mi-
nha família e da humanidade. Depois de jantar
tenciono ir visitar a múmia e desalial-a para dar
um passeio pela cidi;de.
Oueixam-se muitos dos nosso escriplores de que
as suas obras não teem aquella extracção que de-
viam ter, e que esse mesmo pequeno consummo
cujo producto, a maior parte das vezes, mal che-
ga para cobrir as despezas da imnressão, é extre-
mamente moroso, não obstante l)s multiplicados
annuncios nosjornaes, cartazes nas esquinas e as
mais altas diligencias empregadas pelos vendedoi'es.
Teem carradas de razão. Mas qual é a origem d'esse
oidium liickerij que ataca toda a nossa litteratura?
Julgam que dimanada pouca sympathia dos porlu-
guezes pelas letras? Engana m-se! O mal vem do
péssimo gosto, da falta de expressão e de verdade
nos títulos dos livros! Que interesse poderá excitar,
por exemplo: Camões, Viagens na minha terra,
O 3íonaslicon, Amor e Melancolia, Queda de um
anjo, D. Jaime, etc? Qualquer d'estes titulos dizem
alguma cousa? — Não dizem nada!
É, pois, necessário mudar de systema, não só
para o bom resultado dos trabalhos, como lambem
para sair-se d'este marasmo em que se vive: títu-
los pomposos... lilulos que exprimam... emlim,
pouco mais ou menos, como os seguintes, que
poderão servir de norma:
Desempenho festivo, ou triumphal apparato com
<juc os illustres Bracluwenses pelas ruas da A u-
(jusla Braga tiraram ■ a publico o Eucharistico
Manná da Lei da Graça, Epilogo de Maravi-
lhas, saboroso sustento de angélicos espiritas, e
saboroso Corpo de Christo sacramentado em o
anno de 1729 : por José Leitão da Costa. Lx.^
por Ant.° Pedroso Galvã 1729. 4."
Discursos predicáveis sobre a vida, virtudes e
milagres do gigante dos menores, Jfercules por-
tuguez, divino Atlante, St.° Ant." Parte 1. 5o-
bre a vida do Santo do tempo da sua meninice
até se exercitar no officio de Mestre. Lx."* por 11.
Valente dVliv.'' 16G3. i.'
2." Parle. Do tempo em que o Menino Jesus se
lhe poz em os braços até fjue na eternidade se lhe
manifestou glorioso, /.x." por Dom.°' Carn.° 1G69.
i." —
D. Madalena da Gloria. Astro brilhante em
novo Mundo, fragrante flor do Paraiso plantada
no Jardim da America — Historia Paneggrica de
Si." llosa de S. Maria. Lx." 1733. 8.°
384
O PANORAiMA
Águia Real, Phcnix abrasada, pelicano aman-
{(, Hislorid paiicf/i/rica e vida prodigiosa do
indilo Palriarcha 'S. Agostinho. Li'.'' 1744. 4 „
,4 Fénix de Porlugal, a Flor transformada em
Estreita, a Estreita transformada cm Sol. A Idèa
moral c politica, e historia de três Estados, dis-
cursado na rida da Rainha Santa Isabel, Infan-
ta de Aragão, fragrante flor : casada com Elrei
D. Diniz de Portugal, estreita resplandecente ;
viuva terceira de S. Francisco, Sol flamante.
0/ferecida á Sem.'' Sr.^ Princeza a Infanía.\os-
sa Senhora a Sen."" Isabel Maria Josepha etc. Por
Fr. António de Escolar. Cintra por Manuel Dias
1680. 4.°
TERÇA FEIRAI
(Continuação)
III
— 'Fillio, filho, crgiie-le, acorda
«Iara ijiie, só Ocos o sabo.«)
E em lii.^rimas lhe Irishonia
A (lur, (jue na alma Dão cahe .
«Sonhavas talvez brinquedos,
wPois que sorrias, dormindo.
«Veras brincar nos rochedos
«Esse mar, que está bramindo.
«Vao, ainda quente do berço,
«Inda quente dos meus licijos.
i<Para um mundo bem (li\erso
«Do sonhado em meus desejos.
«Vae; tu, que sempre dormiste
«Ao som de minhas caniigas.
«Ouvirás a caiifão triste
«D'essas ondas inimigas.
«E sorris, anjo querido,
«Ao passo que eu choro tanto!
uCois não sabes o sentido
«I)'esle doloroso pranto?
«Não Sabes, que se me parle
«O meu coração no peito.
«Ao vir assim acordar-le
«Em teu socegado leito?
«Não sabes que a minha vida,
«Pobre filho, vae comligo.
«E (|ue n'esla despedida
«Deixas p'ra sempre este abrigo,
«Esle abrigo do meu seio,
«Trocado pelos cançaços?...
«Não sei, não sei (jue receio,
aAo lirar-le dos meus braços.
• Choras filho? Ai, não, não chores,
«Que me liras lodo o alento.
«Já me bastam minhas dores,
"Casla-mc o meu pensamento.
«Deus é bom. Nem sempre os mares
«Se alevanlam com lormcnlas.
«Não chores, que, se chorares,
«O meu pesar accrescenlas.
«Soccga. Esla cruz benzida
dl.eva comligo c descança;
"I*ois quem é Ião bom íia vida,
"Deve em Deus ler confiança.
«Yae, que eu, á Nossa Senhora,
«Áquella virgem das Dores
"Que é a lua protectora,
«Kcsarei, logo que fores.
«Limpa essas lagrimas, vamos,
«Que teu pae l'as não conheça.
oE a oração, que le ensinamos,
«Ai vè lá; nunca le esqueça.»
E vio-os parlir. E o pranto
Lhe inunda as faces. Desmaia.
Dos pescadores o canio
Se escuta ao longe na praia.
O que Irislesa tamanha!
Que presenlimenlo amargo
Quando as lanchas da companha
Se fazem, remando, ao largo.
Junto á imagem de Maria
Esla outra mãe dolorosa
De joelhos, lodo o dia,
Lhe ergue preces, fervorosa.
«O mãe de Deus! luz divina,
«Que alumias nossas almas 1
«Ó estrella matutina,
)>Que as tempestades acalmas!
«Baixa á terra esses olhares,
«Nossa única esperança,
«E voltando-os sobre os mares,
«Protege aquella criança!
«Compadece-le, Senhora,
«D'eslas lagrimas sentidas.
«E estende a mão protectora
«Sobre aquellas pobres vidas.
«Vê que me andam sobre. as aguas
«Todos (pianlos estremeço;
«iMãe, que entendes minhas magoas,
«Vè se essas vidas lem |)rcço.
«Pela angustia, que sentiste
«Junto da cruz, o Maria,
«Vale-mc n'esta hora triste,
»Vale-me n'esla agonia!»
No meio da articule prece,
Erguc-se inquieta, palpila.
Eilando o ceo, que escurece.
Ouvindo o mar, que se agila.
Era ao tempo das trindades;
As aves, que presagiam
O chegar das tempestades.
Amedrontadas gemiam.
A mãe segue na carreira
Uma vaga e outra vaga.
«Terça feira! terça feira!»
Lhe diz uma voz presága.
Já treme. Os olhos velados,
Onde a angustia se revela,
Pelos mares agitados
Não descobrem uma vela.
E as nuvens correm velozes,
E o vento revolve a areia.
Ouvem-se confusas vozes
Na praia de gente cheia.
(C'inlinuu)
Typ. Fríinco-rorlugueza, Rm do Tliesouro VclLo, 6.
49
o PANORAMA
385
A palmeira Talipot ou Gorypha umbraculifera
O esludo das palmeiras apresenta grandes dif-
iculdades ; mui poucas espécies se encontram na
Europa ; são, pela maior parle, grandes arvores,
cujas flores e fructos só teem desenvolvimento no
cume, €, por consequência, diíTiceis de allingir.
Algumas habitam no meio de florestas virgens,
nos lugares mais espessos; ura grande numero
nas margens dos rios e regatos, ou á borda do
mar; muitas nas regiões alpinas; outias, emlim,
■vivem isoladas ou em pequenos grupos nas planí-
cies. Existe um grande numero de espécies ; mas
descriptas, apenas quatrocentas, que os naturalis-
tas dividiram cm setenta e três géneros, forman-
do cinco tribus.
As palmeiras, ora são grandes e formosas arvo-
res, cuja altura atlingc e excede algumas vezes
cento e setenta metros, e de uma apparencia in-
teiramente particular; ora, o que c mais raro,
formam pequenos arbustos, em certos casos des-
providos completamente de tronco, e cujas folhas
sustentam uma espécie de prato, que sobrepuja a
raiz. Algumas espécies pelo seu tronco delgado
assemelham-se a gramíneas gigantescas.
O tronco das palmeiras tem por caracter essen-
cial não apresentar nem casca nem pau formado
de camadas concêntricas, como no carvalho e na
maior parle das arvores das nossas regiões ; mas
sim, uma massa composta de fibras esparsas no
meio de um tecido esponjoso que as une umas às
outras; as mais velhas e mais duras destas libras
estão na circumferencia ; as mais novas e mais
temas no centro.
Desde que uma semente de palmeira começou
a germinar, desenvolve-sc um grande numero de
folhas, que formam uma primeira ordem circular
e que estão ligadas á raiz por uma camada de li-
bras collocada no interior da precedente. Esta
segunda camada tende a abrir e a rebolar a pri-
meira. O mesmo succede com todas as outras ca-
madas dos annos seguintes, que, successivamenle,
vêem recalcar c estender as fibras das camadas
exteriores, até que estas, tendo adipiirido pela
idade toda a duresa da madeira, resistem plena-
mente á pressão dos filamentos do interior; então
todo augmento em diâmetro cessa no annel solido
formado pela reunião de todas as fibras, annel
que se torna cm base do tronco da palmeira.
Quando o tronco altinge toda a sua grossura,
já não pôde senão crescer em altura por toros se-
melhantes, que se ajuntam succcseivamente uns
aos ouiros, c que produzem os renovos que se
desenvolvem cada anno na extremidade do tronco.
Este crescer ò uniforme, porque sáe sempre dos
renovos o mesmo numero de folhas, e ficam os
386
O PANORAMA
mesmos ajunlameníos de fibras e força de resis-
tência. A uniíormidade na espessura do Ironco
suppõe lodavia que. a arvore vegeta sempre em
bom terreno e que a inlluencia do clima não mu-
da sensivelmente. Se se transportasse a palmeira
de um bom terreno para um mau. a sua vegeta-
ção seria menos vigorosa, e nos anneis formados
pelas novas folhas tendo menos largura, produ-
zir-se-ia uma contracção. Se, depois, a levassem
para melhor terra, a parte superior do Ironco
ilesenvolver-se-ia mais vigorosa e produzir-se-ia
um augmenlo de volume.
As palmeiras são os mais ricos ornamentos da
vegetação intertropical. Elíedivamenle, são as re-
giões dos trópicos que se devem considerar co-
mo o berço c a verdadeira pátria desles inte-
ressantes vegelaes. Segundo Marlius, no hemis-
pherio austral, não vão alem de 35." em quanlo
(jue no boreal vão até iO." Cada espécie de pal-
meira tem geralmente seus limites fixos, além dos
(luaes raras vezes se vêem crescer. Também em
cada parle do globo se encontram espécies parti-
culares deste vegetal, que,d'algum modo, formam
um dos caracleres da sua vegetação. Gomludoum
numero de espécies, sobreludo as que crescem á
borda do mar, parecem, de algum modo, cosmo-
politas; tal é, por exemplo, o coqueiro.
Esta família encerra vegelaes, não só muilo
nolaveis pela belleza e elegância de suas formas,
mas muilo impoilantes pelos numerosos sei'viços
que prestam aos habitantes das regiões onde ve-
getam. Muitos d'elles são arvoi'es de primeira ne-
cessidade, cujos fructos constituem o alimento
quasi exclusivo de ceitos povos. Assim os fruclos
da tamareira pai'a os habitantes de toda a costa
meridional e Occidental do Mediterrâneo, o co-
queiro para os habitantes da índia, da America
e das ilhas do oceano Pacifico, são uma alimen-
tação Ião abundante como necessai'ia.
Muilos destes vegelaes fornecem uma espécie
de fécula conhecida pelo nome de satju, que é
muilo procurada pela gente da Europa que soffre
do estômago e do peito; outras dão um principio
adstringente, uma espécie de sangue de drago;
algumas produzem óleo.
Emfim, estas arvores oíTerecem ainda aos ha-
bitantes das regiões equatoriaes madeiras decons-
trucção paia suas habitações, largas folhas para
cobril-as, fibras resistentes para fazerem redes,
cordas ele. A fava de um grande numero de es-
pécies é susceptível de pioduzir, fermentando, um
licor alcoólico que se obtém pela dislillaçâo.
Juntamos a este artigo uma gravuia na qual se
mostra a [jalmeira lalipot nos seus dilíerenles es-
tados. Esta aivorc formosíssima, hojií mui i'ara,
enconlra-se unicamente na ilha de Ceylão c na
costa do Malabar, e é uma das mais uleis ao ho-
mem. Floresce apenas uma vez e quando o fru-
cto amadurece começa a sua decadência ; pouco
tempo depois inclina-se, verga e cáe, para não
mais se levantar. Exlrae-se d'ella uma grande (|uan-
lidade de fécula a que se dá o nome de scuju, e
as suas folhas, cada uma das quacs pôde abrigar
até doze pessoas, cortadas em certa época e fa-
zendo-as passar por um simples processo, tor-
nam-se amarelladas, e tão consistentes como o
pergaminho. As fiores sobrepõem-se á folhagem
e dão á arvore uma elevação de mais vinte ou
trinta pés. N'eslas flores encontra-se uma grande
quantidade de sementes do tamanho e feitio das
cerejas, que servem unicamente para a reproducção
da espécie.
Irmos mais longe com a descripção desta arvo-
re seria repelirmos o que acima fica dito.
SOBRE AS MEMORIAS DOS VINTE ANiNOS
(Carin a Jíulio de Ca.s(illio)
Ex."" sr. e amigo: — lia qualorze para quinze
annos que o não vejo, dès que o tratei collega
nas aulas do Pórtico, quasi collega nos brincos
infantis, e no emtanto eslou-o reconstruindo a(|ui
no pensamento, e cm toda a candidez da sua al-
ma, com este seu livro, tão original e Ião seu, que
me obriga a quebrar o silencio, e ao cabo de tan-
to tempo volvido, escrever-lhe esta caria.
lia sempre um escolho temível na vida dos que
nasceram favoneados com o auxilio (digamql-o
por emquanto assim) de um grande nome. É o
preconceito nos dois vulgos, o dos chamados ju-
diciosos e o dos ineptos e detractores da extinc-
ção do talento com o extinguir do individuo! é a
negação da sua transmissibilidade; e tudo isto em
desfavor dos que são culpados em haver nascido
á sombra d'aquellas frondosissimas arvores 1
Loucos ! que seria então esta gloria de heredi-
tários, esse jubilo de um appellido, ás vezes já
insculpido em pedra tumular; se o fogo sagrado
os não illuminasse lambem? se a intelligencia ins-
piradora não estivesse já premindo os conhecedo-
res íntimos a preparar as grinaldas rescendentes,
que os decorassem na primeira manifestação? se
lodo esse brilho devia ser de ouropel, e a cons-
ciência estava a icmorder da sua mentira, e a as-
segurar que o lampadário, que os alumiara, linha-
se apagado para todo o sempre?
No emtanto é esta uma triste verdade : os dic-
cionarios históricos e as noticias biographicas, lo-
dos os Desobry e os Rouillel, os Moreri e os Va-
pereau teimam cm reconquistar o favor publico
para essas jóias Ião trabalhadas, e ás vezes Ião
brilhantes do mundo intellectual ; que serve isso?
A nossa hediondez de desconhecedores do poder
de Deus vac-se toda lampeira (direis n'isso que vac
certa de quanto é pequenina), e lira de uma fa-
mília, muilas vezes pleyade, toda cila luzente, um
nome, e esse é o assoalhado, o imposto ás turbas
desensinadas, o vilipendiado lambem do vilipen-
dio, dos esquecidos.
Ás vezes, com tudo, por mais que façam estes
propaladores da obra de Satan, estes semeadoi-cs
de joio pelas campinas verdejanlissimas por quan-
to se podem alargar os olhos, a celebridade flca^
se immune ; então é o estorcer d'aquclles damni-
nlios, que, cm phrase mais commum c mais posi-
tiva, são as personificações do seu Gaspar No-
o PANORAMA
387
gueira. A mim parece-me no emlanto que a cele-
bridade assim immune, entrislece-a quasi sempre
algum grande revés. Afora o dar-se o caso que n'uma
mesma congregação familiar sejam varias as provín-
cias do saber em que se distingam os seus membros,
e isso vede a confusão ; afora isto, são ordinaria-
mente as individualidades marcadas e retidas
nas consciências volúveis por caracteres inapaga-
veis, mas por ventura desastrosos ; que renome
teriam trinta irmãos poetas, se Deus liros hou-
vera dado, âo pé d'esse Milton, cego e audaz, que
se atirava para além-tumulo, e rasgava os arcanos
do viver de Deus ás turbas insoííVidas? que reno-
me trinta irmãos poetas, ao pé d'esse Tasso, louco
e enfiaquecido, mas sublime, mas vidente, que
da sua enxerga do hospital fazia palpitar ancioso
o coração de todo um mundo, que pretende es-
quecel-o ? que renome de poeta podem assumir,
tão grandioso, os irmãos de Castilho António, a
esquecer esta alma da Grécia e do Lacio, que se
hade íinar abraçado á sua lyra, e a ouvir o ho-
sannah da industria de hoje, o Hymno do trabalho ?
Isto tudo, com estas divagações, mostra que, a
acrescer á exigência de um publico difficultoso
pela recordação de um nome benemérito, não
hão de faltar ainda ao Júlio os doestos, as male-
dicenciasinhas, as calumnias, segredadas com hy-
pocrisia, dos que hão de dizer que o seu livro,
escreveu-o toda a gente, talvez o imperador da
China, o da Rússia, o Grão-Yizir, quem sabe? to-
da a gente, menos o auctor.
— O auctor, esse que o assigna, dirão elles,
isso é que nunca ; o auctor ! ora o auctor ! Poise
lá possível que o irmão ou o filho de um litterato
tenham geito para alguma cousa! que. Deus can-
çou-se a crear dois homens hábeis ! Pois não
vêem a pag... o tom sentencioso do pae ; e a
pag... aquella descripção não pôde ser senão de
F. ; anda tanto com eíle ! e a pag..., aquillo en-
tão é claro como agua, foi o G.
A única resposta, Júlio : -^
Gloria á Bondade Summa, que diminuiu dois
pés cm animaesilos de quatro !
>
Uma das parles em que prima o seu livro, a
principal talvez, e uma das mais necessárias no
romance, é a verdade fidelíssima dos caracteres
descriptos. Quantos dos seus leitores não hão de
recordar no lypo matriarchal da Rosa de Teyve
alguma d'aquellas santas mulheres, que nos ami-
maram na infância, c a que a frequência dos an-
tepassados quasi já dava um lugar na familla, e
com elle a imposição do respeito, e de uma certa
veneração ?
Nuno de Macedo, esse, advinhou-o v. ex\ ? ou
dar-se-ha o caso que não haja homem de coração
a quem Deus não envie como purificador, ou en-
tão como procurador do mau espirito, a cousa
anda pelo mesmo, um dos taes monstrenguitos? Ku
conheci já dois governadores de Pungo-Andongo ;
tratei até com um terceiro ha annos, e sinto
ainda aqui o asco, que me motivou em criança
aquella ridicularia gloriosa de Deus !
Do pae de Magdalena, do calumniadorsito do
Gaspar Nogueira, de algum outro, que me não
lembre, e lá pelo livro enxameie em idêntica altura
na craveiía da moi alidade, ou antes da imiuora-
lidade, nem uma palavra. Bem fez o Júlio em
não apimentar a narrativa, carregando em conside-
rações. A illação lira-se dos factos. Muito bem.
Á lama ninguém vae dizer: és hedionda. Daria
vontade de rir.
Cheguemo-nos out''a vez aos amigos, de quem
nos separámos na boa da Rosa.
Sebastião, tem-n'o v. ex.° ainda n'algum, em
muitos posso dizer, d'esses veteranos que viram
ainda as ultimas glorias da sua terra, e quem
sabe se os últimos esforços pela independência da
nação.
Ò pae de Luiz, esse é adorável. Aquellas idéas
absoluto-liberaes de uma grande alma encontrei-as
eu também personificadas. lia um ancião vene-
rando, que já passou dos oitenta, e a quem eu
respeito e amo, talvez o velho assim o não saiba,
como se fosse meu pae. É uma das minhas pou-
cas affeições desobrigadas, que se teui enraizado
fundo, porventura a única. Ás vezes ouço-o, silen-
cioso e commovido, a fallar-me das suas crenças,
e até das suas illusões. As crenças d'elle, posso
dizel-o com alvoroço, são as minhas também, creio
que são as boas. Quanto ás suas illusões, illusões
que o viver de annos nas cortes estrangeiras em
investigações antiquarias, e o longo praticar com
os homens públicos não poderam apagar no cara-
cter honradíssimo, essas peço a Deus lh'as con-
serve, sobretudo agora que o véo do sepulchro se
lhe estende já sobre a fronte illuminada. E que
me importa esse véo, se aquella luz vacillante é
bastante para me alumiar? A que sombra me hei
de eu acolher, quando essa fronde se torcer, e ca-
hir derrubada? só se for a ti, syndone apodre-
cida que encobres o cadáver paterno, e cedo me
podias envolver também...
Chegou a vez do fr. Jeronymo ; agradeço-lhe,
Júlio, aquellas paginas, que me fizeram bem, no
consolo das lagrimas. O seu personagem se infe-
lizmente não é o fiel transumpto da maior parte
dos nossos clérigos, ás vezes divertidos, pelo me-
nos é a demonstração do que deve ser o sacerdo-
te. O presbytero da narrativa de Alexandre Her-
culano, d'esse gigante para quem na vida lillera-
ria não ha olhos (jue o possam desfitar, faz o bem
que pôde, que sabe ou que adivinha, como santo
que e; mas destoa tanto no bom do velho o seu
latim bárbaro e a sua barbar issima prosódia ! Pois
não ha também espirites illusirados, às vezes, por
esses lugarsitos sertanejos, mui de propósito ali
habitadores como prófugos das cidades, e scisma-
dores de mais rasgados horisonles?
Eu quero mais ao fr. Jeronymo, e no emlanto
o meu conhecimento é mais novo e mais rápido,
e no emlanto v.ex." não me desvendou totalmente
a sua vida domestica, que é n'isto que o Hercula-
no foi longe, tão longe, que im])Ossibililou os que
de futuro tentassem descrever as scenas do passal !
D'esta maneira vô que também não posso dei-
388
O PANORAMA
xar de o preferir ao frater Leonardus, do llof-
fmann, ou a monsenhor Bemvindo. O primeiro,
erudito, e com pretensão a austero, não e mais que
um espirito forte, que dá resposlas equivocas aos
súbditos, que o interrogam da vida religiosa. Se
lilterariamente o admiro ás vezes, cá na vida real,
se o encontrasse, e me pedissem a opinião, cha-
mar-lhe-hia vibora escondida em ahbatina.
Com Myriel acontece que. quando vou já a
svmpathisâr com a sua simplesa, tudo se desfaz
ao acudir-me á lembrança a sua proíissão de pan-
theismo, pelo menos, aos pés do convencionado ;
elastimo-o. Lastimo-o, porque é uma boa alma. A
quietação de espirito, invejar-lli'a-hia, se eu po-
desse distinguir se é o paciíicamento da ignorân-
cia, ou o consolo do recolhimento o que me at-
trae. Victor Hugo não o disse.
Só d'estes três fallo eu, Júlio, em comparação
do seu fr. Jeronymo, que eu considero o ideal do
padre calholico; e muito de propósito só d'esles
três. Causam-me pena os seus desvios ; mas comrao-
vem-me todos elles. Lá irmanal-os com algum per-
sonagem áoAmnldiçoado ou do Jcsuita, isso nun-
ca eu faria. Vá fora o embaimento traiçoeiro do
protestante que se rebuça em Padre***
Ás vezes, as decepções do espirito conturba-
do desterram no filho de Eva a idea de Deus.
Para elle n'essa occasião o symbolo, a alegria,
é o inverno — a saraiva, que é o desconsolo; o
trovão, o relâmpago, a corrente de agua — a ma-
gestade do Eterno na sua ira. JVada de outomno,
porque lá ainda ha, não digo flores, mas folhas
emmarelecidas ; agita-as, derranca-as, mirra-as o
tufão, mas espalham-se e rastejam pelo solo, ima-
gem ainda dos sonhos doirados dd primavera da
vida, tão cedo aniquillados no bulcão condensado
do seu futuro e do seu inverno, imagem que se
quer despedaçar, imagem que se quer esquecer.
D'islo seresentem poisosescriptosdoillustrado,
que é também infeliz. Pobre do Lamennais ! coi-
taíio do Rousseau !
Lá da sua campa parece que ainda estão dizen-
do, como Os infelizes, de Achkermann :
Si nous avons failli, nous avons tant souffert !
É crença minha, quer muitos negrumes des-
pontem no horisonte da vida, que resta sempre
para alumiamcnlo da alma um fanal de esperança,
que vivitica e aquece, acccndido pelo Senhor !
Que f)ara esses desgraçados haja ainda no exis-
tir uma luz que lhe destolde o animo, um aslro
que lhe irradie o entencbramcnto do espirito com
as doçuras do incílávcl !
Nas producções do transviado ha scmpie um
período, uma phrase que nos compunge, (|ue nos
idenlilica nas lagrimas, qu(í pôde ale redemil-o. É
como a prostibularia, que ainda não tem vinte
annos, e de cabellos cor de oiio, no primeiro dia
de devassidão. Ocmgulo, desaperta-o entre receiosa
e timida; pensativa e triste vae-se desvestindo aos
olhos do iiisofírido que a ic(|uer; aíinal, no phre-
nesi da volu[)ia ou no desespero da soile, voam-
Ihe repentinos da beira do thoro impudico ao pó
do sobrado os setins custosos. Mas a cada devas-
sar das formosuras escondidas pelo seductor, pur-
pureia-se-Ihe a fronli', e deslisa-lhe o pranto. Dir-
se-hia que o anjo da innocencia não a desampa-
rou ainda, e se está a entristecer do enlamear
d'aquella opala !
Oh 1 mas o escriptor traiçoeiro, e que se es-
conde, esse não sei desculpal-o, nem d'elle me
posso doer. Este cuspir envenenado no madeiro
de Jesus é nauseabundo como a baba esverdeada do
gasleropodeo, que mancha e invade a cavidade ocu-
lar de caveira, alvacenta pelo passar de dois sé-
culos !
Uma cousa que o Júlio talvez não saiba, é que
no convento do seu prior de Santa Maria da Assum-
pção existia até ha pouco realmente um frade como
aquelle. Lembro-me ainda das festas em que me
alvoroçou em criança, e da maneira como oífe-
ganle e reverente lhe osculei, ha oito annos, a
mão descarnada e já fria. Sentinella firme do per-
dido exercito do monachismo, não pôde abando-
nal-a, e era velho, e morreu octogenário, a po-
bre cella, onde o respeitaram superior os irmãos
do mosteiro. A fr. Manuel, lá o desceram ha
vinte e quatro mezes á crypla dos Casti'os. Que a
cruz negra d'aquella mansão ensombre o envoltó-
rio da alma do frade !
J. A. DA Graça Baurbto,
(Continua)
DANIEL 0'CONNELL
I
Consolemo-nos. Nem só o calholicisnno que
tem invocado os princípios religiosos para em
seu nome e á sua sombra se commetterem as
máximas atrocidades ; não basta folhear os an-
naes da santa inquisição para se conhecerem
todos os crimes praticados pelo fanatismo. A his-
toria da nação mais liberal e mais tolerante da
Europa, a Inglaterra, contém negras paginas cuja
leitura horrorisa, e onde esta inscripto, para ver-
gonlia eterna dos seus legisladores, o martyrio
de séculos d'uma nação, que lhe devia ser irmã,
e que lhe tem sido escrava. A Irlanda mostra
ainda em pleno século XIX os pulsos roxeados
pelos grilhões inglczes, e as largas cicatrizes que
lhe deixou estampadas no peito a espada que
tem sempre reprimido d'um modo sanguinolento
as tentativas d'cssa miscra nação para despedaçar
o jugo aviltante^ que ainda hoje cm parle a op-
prime.
Comtudo, devemos confessal-o, esse ódio que
uns aos outros se consagram os habitantes das
duas grandes ilhas do Reino-Unido não data uni-
camente das dissidências religiosas. Antes que
Henrique VIU, desdenhando o titulo de lilho bem
amado da Igreja com que o Summo Ponlilicc o
distinguira, erguesse a bandeira da revolta con-
tra a unidade catliolica, c juntasse ãs insígnias
do seu poder temporal as insígnias da suprema-
cia espiritual, já a Inglaterra c a Irlanda se di-
laceravam a cada instante n'uma lucta cruenta
e S(MTipre renovada.
Para que bem comprehendãmos a influencia
exercida sobre os seus con)patriotíis pelo grande
tribuno cuja biographia vamos traçar rapida-
mente, devemos primeiro fazer um esboço não
o PANORAMA
389
menos rápido das longas dissensões que teem en-
sanguentado o solo iriandez.
Uma estranha fatalidade preside ha séculos ás
relações dVstes dois paizes irmãos. Ora por um
motivo ora por outro, desde que se operou a
união das duas coroas niuna só, sempre que se
travou uma lucta civil de tal forma se acirraram
os ódios que, terminada a guerra, o vencedor,
em vez de gosar com moderação do seu trium-
plio, em vez de tentar operar a fusão completa
dos dois povos, que devia ser o seu desideralum, não
pensou senão na vingança, e perpetuou por essa
forma o ódio e a dissenção.
O mesmo nos succede com os nossos visinhos
castelhanos. Irmãos somos também pela origem,
pela communidade de tradições e de interesses.
Daniel 0'GonnelI
A União-Iberica, para quem encara as cousas de
longe e guiando-se pelos mappas geographicos c
ethnographicos, é uma ideia naturahssima, que
todos deveriamos abraçar. E, comludo, se a Hes-
panha conseguisse pôr-nos o pé na cerviz seria
para nós o que tem sido a Inglaterra para a Irlan-
da... mas porque procurar comparações alheias?
seria o que foi durante os malfadados 60 annos
do nosso captiveiro nas garras dos Filippes.
Foi cm 1167 que os Inglezes pozcram pela pri-
meira vez o pé no solo da verdejante Erin. Cha-
maram-nos discórdias intestinas ; o monarcha de
um dos quatro reinos em que se dividia a Irlanda
Dermod, príncipe de Leinster expulso dos seus es-
tados, pedio soccorro a Henrique 11. Não ousou
dar-lh'o directamente o soberano inglez, mas
permittio aos seus ricos-homens que lhe auxilias-
sem as pretencões. Primeiro erro de politica fa-
tal á Irlanda. Os auxiliares transformaram se em
conquistadores ; isso era de esperar no tempo em
que a ambiciosa cobiça nem tentava disfarçar-
se com um pretexto. " Mas (|ue conquistadores
esses I Não era um rei que cingia a coroa do
monarcha nacional , mas que deixava tudo o mais
no mesmo estado ; eram senhores feudaes que
tomavam por sua conta o que lhes convinha,
que expulsavam os proprielarios legitimes, que
dividiam entre si a presa, deixando ao seu mo-
narcha a posse das estradas irlandezas, como o
nosso D. João II dizia que sou pae 1). AtTonso V
o deixara soberano das estradas de Portugal.
Henrique II e os seus succcssores tentaram re-
primir estes excessos, e admillir, como iguaes aos
seus outros vassallos, os súbditos irlandezes. Bal-
dada tenlaliva. Os cães de filia rosnavam, c a
pobre Erin continuou a debaler-se nos seus den-
tes agudos.
D'aqui unn irritação surda entre os conquista-
dos, d"ahi o estabelecimento de duas raças anta-
gonistas, uma a nacional prompta sempre a in-
390
O PANORAMA
urgir-se, a outra, a transportada da ilha visinha,
com a mão constantemente no punho da espada
repressora.
fim 131o os Irlandezes descontentes proclamam
para rei Eduardo Bruce, filho do celebre monar-
cha escocez Roberto Bruce. A insurreição foi de-
bellada, mas o que fizeram os vencedores? Pro-
mulgaram uma lei que declarava os irlandezes
inimigos públicos, que prohibia aos filhos da
velha Inglaterra, debaixo das penas mais severas,
contrahirem com elles allianças de familia, e
aprenderem a lingua ou adoptarem os costumes
do povo conquistado I
Isto é que era fazer cada vez mais profundo o
abysmo, que separando dois povos que se deviam
abraçar á sombra d"um throno paternal, que
não fizesse diíferença entre os dois filhos, que
celebrasse até. como o velho da parábola, a tor-
nada do filho pródigo.
Correram os annos; travou-se na Grã Bretanha
a formidável lucta da Rosa vermelha e da Rosa
Branca ; triumphava a de York na Irlanda, ao
passo que na Inglaterra a sorte, favorável á Rosa
de Lencastre, fazia subir ao throno Henrique VII.
Este logo tratou de subraetter a Irlanda. Con-
seguio-o, e, apesar de ser homem de tanta capa-
cidade, desvairado pelo ódio cego que os seus com-
patriotas votavam aos Iilandezes, exerceu as vin-
ganças em larga escala. Para punir os rebeldes,
punio e por conseguinte exacerbou a nação in
teira. Um decreto, conhecido pelo nome de acto
de Poyning, por ser o nome do vice-rci da Irlanda
n'esse tempo, reformava a constituição politica
da velha Hibernia^ e o seu parlamento, apesar
de ser já composto exclusivamente de inglezes
alli residentes, deixou de gosar as prcrogativas
que o parlamento inglez gosava, foi tratado como
um corpo sujeito ao governo, e, se ficou ainda
de p6, foi apenas como vão simulacro, como
phantasma nuUo.
Sobe ao throno Henrique VIII, espalha-se na
Inglaterra o fermento do lutheranismo, e o mo-
narcha tem a habilidade de não combater a
torrente da Reforma, que lhe podia desarraigar
o throno, e pelo contrario de se pôr A sua testa
para lhe dirigir os movimentos. Essa hábil poli-
tica do cruel esposo de Anna Bolena dá origem
ao anglicanismo, seita que assegura á Inglaterra
a autonomia religiosa, e ao monarcha a supre-
macia espiritual sobre o seu povo.
M. Pinheiro Chagas.
{Conlinuu)
Quem ícraça ante o Rey alcança,
E ahi falia' o que não deve,
(Mal granile de má privança),
iv-roiilia na foiílc lança
De* que Ioda a lerra íjcbe.
Sv DK Miranda.
A r.ALATÉA MODERNA
Xlil
D. Violante «1 barono/.n <lu .%l|>cclrul
Tens mil vezes rasão, ó minha querida. Quan-
to te agradeço, porque nic guiaste os passos in-
certos na senda da vida !
Eihertci-me hoje. Quebrei os grilhões da escra-
vidão. Aventei para longe as algemas ignominio-
sas com (jue eu mesma (quão louca era I) me es-
tava arroxeando os [)ulsos !
Não ! Não quero amar. O amor é a escravidão.
O amor é o sorriso entre as dores. Amar ! Mas
porque motivo havia eu de assignar a própria
condemnação ! Dei um grande passo !
Sentia que cedo amaria Alfredo ! Oh ! Amo-o já
como uma louca! Quando o vejo, parece-me que
me estou mirando em um espelho magico, tantos
são os encantamentos, laes as visões, que correm
perante meus olhos fascinados ! Quando me elle
contempla, o seu olhar é cristallino, límpido, dia-
phano, enleia-me, cega-me, leva-me a alma para
brincar com a d'elle em umas regiões tão puras, tão
serenas, que eu fico-me triste, pobre argila ! que
ás vezes se refende com o calor súbito, que me
acode ás faces.
Outras vezes ponho-me a scismar n'elle, e o
seu rosto um pouco magro e macillenlo, a ura
tempo sereno e agradável, com as rugas do pen-
sar, apparece, surge e aproxima-se tanto do meu
que lhe sinto o hálito queimador. Mas os olhos
não lhe rebrilham. São amortecidos e tristes. Os
lábios agitam-se frementes e i)ronunciam : amor
oudeshonra ; e um riso melancólico volteia, como
que se anima e toma corpo ; depois entranha-se
nos meus lábios e eu sorrio-me também tão tris-
te, Ião triste, que repito : amor ou deshonra.
E o rosto delle vae-se aproximando lenta e fa-
talmente; o olhar é meigo; sinto afinal um beijo
que echoa como um suspiro, como um soido lon-
gínquo cheio de harmonias ignotas.
Accordo de repente. Afugento a visão. Palpo,
olho, escuto. Estou só. A alma é que anda
por lá, com a delle, a brincarem não sei aonde,
era algum raio da lua.
Succedem-se estas visões. Por toda a parte vejo
a sombra d'elle, que me segue e me conturba os
meus mais Íntimos pensares. Se o vento geme
angustioso, se o ribeiro solta a sua eterna toada
tão monótona pelo cypreslal, cuido estar ouvindo
a voz de Alfredo.
A imagem delle enche o espaço. Olha. No ou-
tro dia, vinha a romper a manhã. O sol começa-
va de beijar as grimpas e os passarinhos entoavam
os seus quebres de alegria e festa. Eu já estava
accordada; mas sentia tanto prazer em pensar
nelle, deitada no meu alvo leito ! Que loucuras eu
imaginava! Toda enroscada, sentindo um calor
vital a escoar-sc-me pelas veias, com os braços
ci'uza(los sobre o peito, que arquejava, olhos meio
cerrados, rosto immovel, vendo a minha imagem
confusa no meu velho espelho de Veneza, que mal
se illuminava com a semi-escuridade do quarto !
E eu pensava nelle. I)izia-mc o coração que el-
le, só elle me poderia dar um paraíso de felicida-
des e venturas.
Cuidava abraçal-o, e apertava os braços. Con-
tinha a respiração |)or melhor sorver a delle. Cra-
vava os meus olhos nos seus. Estava tremula.
Ponjue? Oh! Isto ó amor, dizia comigo. Eu
amo-o, quero amal-o.
De repente não sei que súbita tristesa me an-
nuveou. iNão sei. Mas de |)ouca dura foi. Um raio
de sol, travesso como um diabrete zombeteiro, cu-
o PANORAMA
39
rioso como um sylpho, entrou por uma fenda, to-
do luminoso, oíTuscador, guapo e brincão.
Os corpúsculos comecaiam a saltar, como se
ouvissem alguma musica desconhecida. Foram-se
alinhando todos até formarem um renque de luz.
Ora desciam, ora subiam, cruzavam-se, expan-
diam-se, quedavam súbito, logo saltitavam phre-
neticos ou caminhavam pensativos e melancólicos.
Era um mundo com todos os seus vae-vens, afes-
toado de galas. Entrou depois outro raio do sol,
e logo outro, mais outro e mais outro. O meu
quarto parecia uma vasta colmêa d'onde saiam
aquellas abelhas luminosas. Eu era a fadad'aquel-
la mansão mysleriosa cheia de luz recatada, cheia
de amores travessos, cheia de vida muda.
Mas um raio, mais travesso e curioso, acertou
de cair no meu regaço. Fascinou-me logo ; senti
não sei que mundo de idéas e sensações túrbidas
e confusas. Como elle brincava no meu peito cân-
dido f Como elle me aquecia ! Como me infundia
pensamentos ignotos ! Ora volteiava rápido e pa-
recia sorver-rae o sangue do coração, que balia
sofTrego ; ora subia e descia alternativamente com
o meu arquejar. Parecia-me estar vendo Myriades
de olhos curiosos e maganos, que me contempla-
vam amorosamente.
E o raio dizia-me: Tu amas, ó donzella, e eu
quero furtar-te o primeiro anceio ! quero beijar-
le; quero retingir-te de cores da auroia o límpi-
do azul do teu pensar. Toda a noite te espreitei
d'aquella janella, enviado pela lua. INão sabes co-
mo soffria. Queiia-te acariciar e não podia. Quan-
do o vento soluçava e empurrava as portas, mettia-
me logo pelas fendas para te vêr. Agora sim ;
quero beijar-te, quero ser feliz. Quero fundir e
derreter com o meu calor, o gelo do teu coração.
Deixa-me cair sobre elle, bem a prumo. Como
elle bate ! como freme lá dentro, no peito. Mais
depressa, pobre coração ! Aquece-te, derrete esse
gelo, que te angustia e entorpece. Ama, ama, ba-
te por mim, que sou a alma de Alfredo, que aqui
venho aninhar-me.
E como se o raio fallasse verdade, e o gelo se
fundisse, assomaram-me as lagrimas aos olhos.
Chorei, chorei, mas o raio brincava, ria e dizia-
me : Chora, louquinha, que esse pranto é o gelo
do teu coração que se funde.
Passado pouco accordei d'aquelle encantamen-
to. Era outra. Amava Alfredo. Mil vezes estive
para lh'o dizer, se meus olhos não lh'o houvessem
di to (antas vezes.
Eelle confessava-me que morria por mim.
F i enlão que cu tracei estas linhas, que te
mos rara o estado da minha alma :
« O que é o coração ! Se alguém poderá son-
dai o, que de abysmos lá encontrara. Sinlo-me
transformada, não me conheço. Parecc-me que
alguma fada me focou com a sua varinha magica.
A alegria e a Iristesa succedem-se mil vezes por
dia no meu coração. Vivo em enlevo perpetuo ; o
que ora penso é destruído pelo que sobrevem
passado um minuto. A imaginação divaga desen-
freada ; a phantasia percorre os* intermundios ; a
alma ora se confrange ora se dilata. Não sei o que
sou, nem o para que nasci. Chorar e rir é o meu
estado, e ás vezes choro e rio ao mesmo tempo.
Oh ! isto é amor ? E este amor é a minha desgraça !
«Amo Alfredo, e devo confessar-lho? Terei for-
ças para isso? Eu, que fui para com elle tão fria
e marmórea, julgando que o amor pôde calcular,
eu, que a cada passo o fazia tropeçar nas reali-
dades da vida, para o acerar na lucta, mostran-
do-lhe dilliculdades invencíveis, que o chamassem
e prendessem. Quq mísera cjladiadora sou eu!
Afinal fiquei ferida na lucta, com as armas que
forjara. Não sei se com prebendes bem o meu es-
tado. A cabeça e o coração levam-me para o mes-
mo fim por meios diversos. Comecei a pensar no
futuro, que a sorte me presagiava. Sopezei o im-
menso fardo da pobreza arrastada por estas bre-
nhas, ignota, esquecida, sem horisonte, sem go-
sos, sem vida de espirito, sem luz, sem calor.
Que castigo, santo Deus ! I)e que me servia o co-
ração, se havia de viver sempre comprimido. Af-
fagos hediondos não os quero nem os desejo. A
clausura afíigura-se-me um purgatório cheio de
tormentos e suspiros abafados. A vida domestica
sósinha fora impossível depois da morte de meu
pae. Que fazer? O que me restava? Direi com
Ernani : o tumulo? Perante a sorte inevitável se-
rá este o único remédio, porque é o esquecimento
eterno? Quando em vida o coração se transforma
em vaso de fel, a morte não é um bem?
Ajunta a isto o meu natural pendor para o
mundo, e minha galanteria que libei no berço,
uma sensibilidade prematura exacerbada pela des-
graça e que chega a lornar-me invejosa de ti e
de tua posição, e terás o quadro succinto dos tor-
mentos que soflVo todos os dias. Por isso, arras-
tada por uma força superior, involuntária, sem
consultar o coração e nem mesmo a cabeça, tor-
nei-me coquette, galanteadora para com Alfredo.
Horrendo crime, bem sei. Mas o que queres. As-
sim eslava escripto, assim o quiz o meu destino.
Se o coração ficasse mudo, poderá envergar a tú-
nica virginal, coroar-me com as flores de laran-
geira, jurar fidelidade a Alfredo junto do altar,
e gosar depois a vida. Fora mais uma perjura en-
tre as muitas que por ahi pompeiam o seu sudá-
rio ! Fôia mais uma criminosa ? Para isso estava
preparada, apezar dos meus dezoito annos, tão
ruim é o fermento da pobreza.
«Mas, ó. mil vezes louca, porque não consultei
o coração, todos os planos me saíram baldos. O
coração vingou Alfredo. Sinto que o amo, e este
amor é o meu castigo, é o punhal que me dilace-
ra as entranhas, é o veneno, que me corróe e
reiíueima. Se o abandono para sempre, que hor-
rível sacrificio ! Se ligo o meu destino ao delle, e
confundimos as nossas almas, que castigo! Fi-
ca sempre com o remorso do meu crime; fora
arrastar perpetuamente a cadèa do forçado. As
suas caricias seriam maldições, os beijos dos fi-
lhos reclamariam vingança, o remanso do lar não
me apetecera, e sollicitada eternamente já pelo
amor já pela galanteria estaria mal em toda a par-
392
O PAXORAMA
le, porque a galanteria só pôde existir sem amor.
Quem ama, idolatra. Mas se intento esquecel-o,
que de angustias tremendas ! Oue pavorosas re-
cordações, em toda a minha vida! Alil se eu
tivesse nascido pobre, como eu poderia enlregar-
me a Alfredo I E se eu não peidesse a teri ível
sede do baile e da vida doirada ; se eu podesse
encerrar-me no meu velho solar, oííerlando o meu
seio para que Alfredo repoisass» !...
Mas tudo isto é impossível. O suicídio ! Se eu
fosse forte, se eu podesse tragar o veneno, como
a morte me seria doce ! Taes eram as angustias
que eu sofTria. E cada vez amava mais, e maior
era'o meu tormento.
l'm dia pediu-me Alfiedo uma confissão. Que-
ria pedir-me. iNão me atrevi a negar-lh'a. Fi^iigi-
me tão isenta, tão fria, que a voz delle tremia.
Resolvi apresentar-me tardiamente ; não como uma
pastorinha caprichosa, que não (juer amar, mas
como uma dryade, que não pôde amar um ho-
mem. Mas eu sentia que havia de render-me por-
que o amava.
Salvaste-me então, ó querida baronesa, com a
tua carta. Disseste-me :
aTu es como a (Jalatéa antiga. Formosa como
ella, sè como ella isenta. Psão fujas para os bos-
ques, vem para as salas. Quem lem o coração
preso não pôde vvalsar nem requeimar-se nos lu-
mes do baile. Deixa que o pyrilampo bruxuleie
na campina; tu es uma estiTllã. Vem brilhar na
constellação. O amor é um oceano de tormentos.»
E eu disse:
«Não, jamais amarei Alfredo, porque a minha
pobresa requestou o seu oiro. E quem sabe se al-
gum dia me lançaria nas faces o opprobio da mi-
nha miséria?»
E tu proseguias :
c>'ão ha homem, que valha a jura eterna de
uma mulher formosa, como tu. Não te vendas,
nem te entregues. Conquista uma posição. EJá a
tens. Brevemente vou levar-te o teu noivo. É um
niancebo rico, que está perdido de amores por li.
E um parente meu.»
Quando cheguei a este ponto senti uma suffo-
cação 1 Deixar Alfredo ! Conheci que não podia
amar outro. Mas repeli logo :
«O amor e um oceano de tormentos. Serei a
Galatéa. Fugirei para as salas.»
E agoro, que a noite vae alta, e que escarneci
de Alfredo lançando-lhe aos pés o coração que me
oílerecia, liz um pacto comigo mesma. "Quero con-
qui>lar uma posição. Mas ninguém ouse procuiar
o UMu coiação, que encontra o vácuo. Não ha
musica de amor, que o faça bater, porijue no vá-
cuo não ha sons.
O coração levou-nro Alfredo.
O mundo! o mundo! Oh! vera, vem, querida
baronesa.
A pobre e genlii Violante quer ser viscondessa.
Ah I se eu não fosse pobre I Sc eu não tivesse
o orgulho do anjo caido 1
Kecebe um beijo da lua Vlolanle.:)
A. O. DE Vasconcellos.
UMA OBUA DO SÉCULO IX
Justino Maior, reinou VIII annos. Partidário do
S\ nodo Calcedoniense abjurou a heresia dos Acó-
phalos.
10. Justiniano, reinou XXXIX annos. Pondo-
sc á frente dos Bispos, partidários do concilio de
Calcedonia, condemna a heresia dos Acéphalos. Os
vândalos são destruídos em Africa pelo patrício
romano Belisario. Também Adryla, Rei dos Os-
trogodos, ó vencido na Itália por'Narses, patricio
romano. Atanagildo, tyrannisa em Spania o impé-
rio de Agilano. Pelo' mesmo tempo, o corpo de
í:'anlo António Monge, encontrado por divina re-
velação, é levado para Alexandria e enterrado na
igreja de S. João.
Justino Menor, reinou XI annos. Este des-
truio tudo o ffue linha feito pelos adversários do
concilio Calcedoniense, e mandou que o povo can-
tasse o psalmo CL ao tempo do sacrificio da mis-
sa. Então foi que os Arménios abraçaram a lei
de Christo e lloresceu Martins, Bispo de Bracara,
que por sua prudência converteu os Suevos de
(ialecia ao ciUI-iolicismo.
11. Tibério reinou VII annos. Os Longobardos,
repellidos de Roma, invadem a Itália. Os Godos,
divididos em partidos por Hermenegildo, filho do
rei Leovigildo, deslroem-se e matam-se mutua-
mente
Maurício, reinou XXI annos. Os Suevos são
dominados e submeltidos por Leovigildo, Rei dos
Godos, e estes convertem-se á Fé Catholica por
meio do piedosíssimo Recaredo, seu Rei. N'aquel-
le tempo floresce o esclarecido Leandro, Bispo
Ilispalense, que conlribuio para a conversão da
Nação Goda.
Focas, reinou VIII annos. Alevanlado Impe-
rador por uma sublevação militar, deu a morte a
xMauricio Augusto c a muitos nobres. Também os
Persas moveram grandes guerras á Republica, e
venceram os Romanos.
12. Ilerculio, reinou XXVII annos. Os Escla-
vonios entregaram aos Romanos a Grécia, c os
Persas a Syria e o Fgyplo. Em Spania, Siscbu-
lo. Rei dos (iodos, apoderou-se de varias cidades '
que ainda possuía o exercito Romano, e conver-
teu á lei de Chrislo seus vassallos judeus. Tam-
bém fundou em Toledo uma admirável igreja de-
dicada a Santa Leocadia. I)e|)ois, o Príncipe Suin-
tila, acabou de repellir do reino os Romanos; e
com uma pe(|uena vícloria, assenhoreou-se de to-
da a Sj)ania. Também duranle o império de lle-
raclio tiveram por Soberanos os Godos a Suinlila
e Chíntila.
Constantino, reinou IX annos. Em seu lempo
reinaram em Spania por IX annos lambem Tulga
e Chindasvinto, um após outro.
]',]. Constante, reinou XX annos. Então, Re-
cesvinlo, governou em Spania por espaço do XX
annos, e sobreviveu-lhc III.
(G')nliiiua)
TyiJ. liaiico-Porlugueza, Uua do Tliesouro VulLo, G.
50
o PANORAMA
393
o ocelote e o rimau-daham
O grande género Gato {Felis) de Linneu e de
Cuvier, conslitue, nos melhodos aetuaes, uma das
famílias mais importantes da ordem dos Mammi-
feros carnjvoros. Esía familia, chamada Felina,
compOe-se, eíTeclivamente, de espécies destinadas
por sua organisação a viverem de presa ainda
mais exclusivamente do que os Cíies. Estes ani-
maes são, de todos os Carnivoros, os que possuem
armas mais fortes. Distinguem-se de todos os ou-
tros pelos dentes e pelas unhas, e são os únicos
que lêem quatro mollares na maxilla superior e
três na inferior, e além d'isso, em cada uma des-
tas mais seis incisivos e dois enormes caninos.
Quando o animal une as maxillas, os ângulos de
todos os dentes enconlram-se e resvalam um so-
bre o outro como se foram tesouras bem aliadas.
Depois, as maxillas são curtas, solidas e movi-
das por músculos poderoso^. É o desenvolvimento
destes músculos e da arcada zygmalica sobre a
qual se inserem, que dá á cabeça de todos os Ga-
tos essa largura tão característica, e ao focinho a
forma arredondada que toda a gente nota. As
unhas destes animaes não constituem armas me-
nos formidáveis que os dentes: a natureza, por
um mechanismo particular, dispol-as de modo(|ue
se não podessem gastar nem enfraquecer, como
acontece ás dos outros Carnivoros. Aphalange an-
gular prende-se por sua face dorsal a um liga-
mento (jue a mantém habitualmente levantada,
sem que o animal empregue para isso o menor
esforço, de sorte que a unha jamais roça pelo
solo. Mas quando o animal quer agarrar e rasgar
uma presa, contrae os músculos llexores das pha-
langes e faz sair as suas unhas agudas. Desde o
momento que c^ssa a contracção volunlaria, estas
armas levaiilam-se naluialmenle e escondem-sc
entre os dedos. Ksla disposição, que é exclusiva-
mente própria dos Felinos, designa-se pela expres-
são Inlias rclracleis. Os seus dedos são em nu-
mero de cinco em os pés dianteiros e de quatro nos
trazeiros. As i)alas são guarnecidas de ruletcs es-
pessos e elásticos, o que muito contribuo para que
o andar destes animaes seja brando e silencioso.
Os Felinos são os mais carnivoros de todos os
394
O PANORAMA
Mammiferos. Apesar do seu prodigioso vigor e
das fortes armas de que são providos, allacara
raras vezes de frente os outros aniniaes; a manha
e a asiucia dirigem todos os seus movimentos e
presidem a todas as suas acções. Andando sem
fazerem luido, chegam ao lugar onde contam en-
contrar uma presa; approximam-se, rojando-se,
da sua victima, conservam-se silenciosos em obser-
vação, sem que nenhum movimento os denuncie,
e esperam o momento propicio com uma paciên-
cia incrível ; depois, arremessando se de repente,
caem sobre ella, rasgam-na com as agudas unhas,
e ali cevam por algumas horas o seu sanguinário
appelito. Ouando estão saciados, reliram-se para
o centro do dominio que escolheram para seu im-
pério. Ali. adormecem profundamente, e esperam
que uma nova necessidade os force a voltar á ca-
ça. A vista destes animaes não parece ler ura
grande alcance; mas vêem tão bem de dia como
de noite : a pupilla conlrae-se e dilala-se segundo
a quantidade de luz. Entre as espécies cujos há-
bitos são mais particularmente nocturnos, a papil-
la, conlraindo-se, foima uma fenda vertical; en-
tre as, que, pelo contrario, se podem chamar di-
urnas, a pupilla conserva sempre a forma de um
disco. O sentido do ouvido é muitíssimo delicado,
o que resulta da mobilidade da orelha externa,
da grandeza da sua alerlura, do desenvolvimento
que apresentam a membrana e a cavidade lym-
panica. Os Gatos percebem sons absolutamente
inapreciáveis para nós, e é pelo ruido dos passos
da presa que elles se dirigem em sua procura. A
pouca extensão do nariz não permitle a estes ani-
maes o terem um olfalo muito fino. O sentido do
gato parece igualmente pouco desenvolvido, tal-
vez por causa das papillas córneas que apresenta
a superficie da língua : assim os felinos mais de-
pressa devoram do que comem. Seguram a presa
entre as patas dianteiras e bebem lambendo. En-
teriam cuidadosamente os seus excrementos, re-
ceiando que o cheiro activo que exhalam denun-
cie o retiro. O tacto de toda a superiicic do corpo
é muito sensível ; mas, sobretudo, acha-se desen-
volvido nas barbas. A voz nas grandes espécies,
é um som rouco, muito forte, que muda, nas pe-
quenas, no que nós chamamos miado ou miadu-
ra. O cérebro dos Felinos c pequeno relativa-
mente ao corpo, e não apresenta, sobre cada he-
mispherio, senão duas rugas longitudinaes. No
estado selvagem manifestam uma ínlelligencia mui-
to medíocre; assim, fatiando com propriedade,
não os caçam : atacam-nos aberta ou traiçoeira-
mente. A desconfiança parece ser o signal mais
pronunciado do seu caracter, c o que apresenta
mais obstáculos quando se pretende domeslícal-os.
Todavia, quando a necessidade os obriga a rece-
ber o sustento de mão estranha, o habito acaba
por fazel-os coníiar no individuo, c leva-os, ale,
a tornarem-se animaes domésticos. Neste caso,
então, desenvolve-se-lhes a inlellígencía a ponto
de apresentarem resultados completamente ines-
perados. As fêmeas geralmente tratam os filhos
coin muita ternura ; os machos, poním, com es-
pecialidade no estado selvagem, são os mais cruéis
inimigos da sua progénie. Quem tiver estudado
com at tenção um gato domestico pôde fazer uma
ideia da physionomía, da forma e dos costumes
dos outros Felinos. Todos, como este, teem a ca-
beça redonda, grandes barbas, pescoço espesso,
corpo allongado, mas estreito, que podem ainda
comprimir em caso de necessidade, dedos mui
curtos, patas fortes, pouco elevadas, especialmen-
te as anteriores, cauda, em geral, grande e mo-
vei. Não ha animaes cujas formas e articulações
sejam mais arredondadas, e cujos movimentos se-
jam mais destros e agradáveis. Andam vagarosa-
mente e com precaução, e dobrando as pernas
posteriores appoiam-se mui facilmente sobre ellas
e fazem uso dos seus membros, sobretudo das
patas dianteiras, com uma deslresa e graça admi-
ráveis. A maior parte dos Felinos trepam com
muita facilidade ; mas a sua carreira não é muito
rápida. Eslesanimaes, geralmente, teem um pello
muito macio, e por isso as suas pelles são objecto
de um grande commercio em vários paizes.
No que diz respeito a physionomía, forma, cos-
tumes, e eslructura anatómica, poucos grupos na-
luraes existem em zoologia tão claramente cara-
clerisados como o dos Felinos: assim é mui dif-
ficíl estabelecer neste grupo divisões genéricas.
Não obstante, hoje os naturalistas dividem a fa-
mília Felina em Ires géneros : Galo propriamen-
te dito (Fel is) Lynce (Lynx) e Gucpardo (Gue-
pardus ou Cynailurus.) O primeiro destes géne-
ros apresenta todos os caracteres que expoze-
mos como próprios da família dos Felinos. As
espécies que constituem o segundo distinguem-se
exteriormente pela quantidade de pello que se so-
brepõe ás orelhas ; mas dííTerem dos próprios Ga-
tos pela ausência do molar anterior. O Guepardô
offerece por caracter essencial o não ter as unhas
retracteis.
Qualquer destes Ires géneros comprehende um
grande numero de espécies, todas ellas mais ou
menos importantes, e cuja minuciosa descripção
oíTereceria, certo, ao leitor, grande interesse. O
nosso trabalho, porém, já vae longo ; por hoje li-
mitar-nos-hemos a faltar das duas espécies perten-
centes ao género Gato propriamente dito, cujos
desenhos acompanham este artigo.
O Ocelole (Felís pardalis) chamado também
Macaraga e C/iibi(juazu, parece ser um dos mais
sanguinários animaes do seu género. Habita na
America meridional e particularmente no Para-
guay. Tem, pouco mais ou menos, um melro de
comprimento e a cauda regula por quarenta cen-
tímetros. As pernas são um pouco cúrias e o cor-
po, embora maior que o da ra{)Osa, não obsta a
que trepe com muita facilidade ás arvores, onde
ordinarianientc procura guarida quando se vô per-
seguido. E dotado de grande crueldade, mas co-
barde e foge quando desconfia que o querem ata-
car. Durante o dia dorme nas malas espessas e só
de noite sac do seu esconderijo para ir á caça
dos pássaros, dos macacos c outros pequenos mam-
miferos. A pelle desle animal é uma das mais
o PANORAMA
395
lindas que se conhecem : o fundo cinzento claro
com lislas muilissirao regulares de um cinzento
mais carregado e bordadas de preto ; em lodo o
comprimento do lombo estende-se uma linha igual-
mente de um cinzento escuro, parallclas com a
qual e symelricas se vêem as lislas dos lados ; e
a cauda e lambem guarnecida de anneis desde a
laiz até a extremidade. As cores das fêmeas não
são tão vivas nem tão brilhantes como as dos ma-
chos, comtudo o seu aspecto não é feio.
o Himau-Dahan
O Rimau-dahan [Felis macroceiis) é, sobretudo,
notável pela cauda grossa e lanuda, que fez com
que Ilarslield lhe desse o nome de tigre com cau-
da de rapoza. Habita nas ilhas de Éornéo e de
Sumatra, e apesar de feroz e carnívoro por natu-
reza domestica-se mui facilmente. Este animal tem
noventa e sete cenlimetros de comprimento, não
comprehendida a cauda, que conta approximada-
mente oitenta e seis. A cabeça é pequena em re-
lação ao tamanho do corpo. A peite umas vezes
c de um cinzento claro, outras parda ; tem gran-
des malhas orladas de preto por todo o corpo e
no dorso em todo o comprimento dois riscos pre-
los mui lustrosos. Encontram-se quasi sempre so-
bre as arvores onde, parece, passam uma giande
parte da vida. Sustentam-se mui facilmente.
MARSELHA
(Continuação)
No decimo sexlo século, Marselha, fervente ca-
Iholica, declarou-se pelos duques de Guiso, e as-
signou o acto de união; as suas bandeiras uni-
ram-se ás do duque de Sabóia e dos Ilespanhoes,
auxiliares da Liga. Alguns gentis-homens quizcram
pronunciar-se contra esta união ; mas o povo, sob
o seu primeiro cônsul Casaulx, saudara o princi-
pe, defensor de sua crença e das immunidades
municipaes. Comtudo alevanlaram-sc algumas du-
vidas entre o cônsul Casaulx e o duque de Sabóia,
sobre os privilégios da cidade; os Marselheses
nunca poderam soíTrer que uma guarnição olTen-
siva peneirasse dentro dos muros da sua republi-
ca, e, quando por surpresa o partido dos gentis-
homens se apoderou do mosteiro de S. Victor,
Casaulx mandou immediatamente assestar uma
quantidade de canhões contra as altas muralhas
da abbadia, porque a cidade queria defender os
seus direitos e a sua liberdade religiosa. Depois
da entrega de Pariz a Henrique IV, Marselha con-
servava-se ainda a favor da Liga ; mas um solda-
do, por nome Pedro de Libertai, vendou a cida-
de às gentes do rei. Em vão Casaulx, rodeado da
sua tropa, percorreu as praças e ruas; um dos
soldados da conjuração grilou a Liberlal : «Capi-
tão, eis o cônsul Casaulx.» A estas palavras Li-
bertai corre sobre o seu adversário e atravessa-o
com a espada. O infeliz cônsul succumbio logo
aos golpes dos amigos de Libertai. Então, Ber-
nardo, Presidente dos parlamcntarios, saio de ca-
sa, armado de uma lança, levando um lenço
branco em o chapéo, e grilou pelas ruas : «Viva
o rei Henrique quarto, nosso legitimo soberano !»
Immediatamente se formaram grupos, e Libertai
correu a abrir as portas da cidade ao exercito
real, que, deste modo, tomou posse de Marselha
em nome do Bearnez. Na escada principal da casa
da Camará vô-se uma estatua de Libertai, coberto
com a sua armadura, tendo a mão sobre o punho
da espada.
Marselha gosou sempre de privilégios que lhe
foram tirados por Luiz XIV ; revoltou-se contra a
aucloridade soberana debaixo do mando de Glande-
vés de Niozelles, e só em 1660 se submelleu. En-
tão o fim das agitações da Fronda e da guerra
exterior dava grande energia á realeza. Luiz XIV,
dirigindo-se aos Pyrenéos para eíTecluar o seu ca-
samento com a infanta Maria Theresa, percorreu
o território do meio-dia na qualidade de verda-
deiro conquistador e soberano senhor. Fez a sua
entrada em Marselha com toda a rudeza da con-
quista. A velha republica dos condes de Proven-
ça, essa rica cidade, cheia de confrarias, congre-
gações e olllcios, dera demasiadas provas de in-
dependência para não soffrer um dia o castigo.
Luiz XIV não quiz entrar pelas portas antigas ;
fez uma larga brecha na muralha, e entrou ar-
mado da cabeia até os pés, como um vencedor
que quer humilhar uma cidade vencida. Quando
se fez notar ao rei essa multidão de quintas que
engrandeciam e embellesavam a cidade dos Pho-
ceos, Luiz XIV exclamou de um modo zombetei-
ro: «E eu lambem quero leras minhas quintas!»
E fez construir á entrada do porto, sob a invoca-
ção de S. João e de S. Nicolau, duas grandes for-
ialezas, cujos canhões estavam dirigidos contra a
cidade, para manlel-a obediente e comprimir o
seu espirito municipal. O rei supprimio o consu-
lado e substiluio-o por dois vereadores e um as-
sessor. A submissão da opulenta republica de
Marselha foi o lim do systema communal, livre,
poderoso, da vasla associação das confrarias.
396
O PANORAMA
De todas as cidades de França, Marselha é
aquella onde a peste, em diíTerenles épocas, tem
feito mais estragos ; a mais memorável, a mais
terrivel, n grande peste, fez-se sentir em 1720 : foi
ali levada por um navio marselhez que chegara
de Tripoli e de Chypre. Marseliia foi então thea-
tro de scenas as mais horrorosas, e conservou
sempre nos seus annaes o nome do bispo de Bel-
zunce e da sublime dedicação deste homem, que
por amor do perigo que ameaçava as suas ovelhas
vendeu toda a mobília, deu todo o dinheiro que
possuía, e corria as ruas quasí desertas da cidade
animando e soccorrendo todos. Esta epidemia ces-
sou em novembro ; mas dois annos mais tarde àp-
pareceu com um caracter menos violento, é verdade,
masque, todavia não deixou de ser funestíssima ede
espalhar o terror por toda a Europa, que só pas-
sado um anno poutlo ver aquella cidade tranquil-
la, e abrir novamente as portas doseucommercio.
Desta época em diante, o regimen sanitário, foi
submettído a regulamentos severos, e embora o
contagio se tenha mostrado doze vezes no Lazare-
lo, de 17 íl até nossos dias, com as precauções
que se tom tomado, tem sido sempre abafado.
Depois de um tal desastre, Marselha enfraque-
ceu muitíssimo; não obstante, quando a revolução,
na qual tomou parte quasi ao mesmo tempo que
Pariz, rebentou, a cidade dos Phoceos caminhava
já a passos gigantescos para o mais elevado gráo
de prosperidade. Sob o império, Marselha mos-
trou-se descontente ; o seu commercio diminuio ;
só com a restauração readquirio a sua antiga im-
portância. As reacções de 1815 formam o mais
triste quadro da historia desta cidade ; havia ali
ódio contra Napoleão e contra o despotismo im-
perial : as classes medias, esse povo de marinhei-
ros ajoelhados diante da imagem da Virgem quan-
do a tempestade se fazia ouvir, a multidão flu
ctuanle de Genovezes ede Catalães, tudo isto dava
uma força brutal e fanática aos projectos das as-
sembléas. A insurreição rebentou em 25 de ju-
nho. Era um domingo; a população ociosa enchia
os templos. De repente espalha-se o boato do de-
sastre de Walerloo ; as massas exasperadas per-
correm as ruas, chegam tropas do cam|)0. O ge-
neral Verdier, que governava o departamento, as-
sustado com o gesto ameaçadgr do povo, deixou
Marselha com as suas tropas na noite d'esse mes-
mo dia, edirigio-sea Toulon. Começaram então as
desordens. A carnificina durou toda a noite c
toda a manhã do dia 2G. Tudo (juanlo pertencia
ao exercito era perseguido com frenesi e assassina-
do. Alguns refugiados mamelukos, restos da cam-
panha do Eg\ pto, receberam igualmente a morte;
suas mulheres e filhos, sem dó, semcommiseração,
foram degolados no [)orlo, para onde estes infeli-
zes haviam fugido, para seoccullarem ao furor dos
.seus verdugos. A maior das viclimas foi um ho-
mem honrado, inlcllígente c de grande iiistruc-
ção : uma notabilidade de Marselha, M. Anglés.
Eòra amigo dedicado de Massena, Harras c de
muitas suniiiiiíiadcs da icpiihlíca e do império, c
regressara á sua terra natal dej)ois de haver ser-
vido em Itália na qualidade de prefeito militar.
Este homem socegado, inoíTensivo, foi arrastado
para uma cavallariça que íicava por detraz da sua
habitação, e ali, trespassado de mil golpes, aca-
bou a sua peregrinação na terra; a mãe da vicli-
ma ouvia-lhe os gritos.
[Continua)
O TUMULO DE ENGELBEUTO
Em lodos os tempos e entre todos os povos
exislio sempre o uso de erigir aos mortos monu-
mentos funéreos ; e lambem, em todas as épo-
cas e em lodos os lugares, as sepulturas foram
sempre cercadas de um grande respeito religioso
que fazia considerar a sua violação um dos mais
execrandos crimes. Estes factos são seguramente
um testemunho incontestável da crença universal
dos homens na immorlalídade da alma, ^porque,
de que serve honrar os mortos, se nada resta
d'elles depois que a vida abandona o corpo? Ain-
da mais; entre muitas nações da antiguidade,
como ainda hoje entre as tribus selvagens da Ame-
rica e das ilhas do mar do sul, acredita va-se que
os mortos tinham na outra vida os mesmos dese-
jos e os mesmos hábitos que na terra. Por con-
sequência, havia o cuidado de collocar ao lado
dos cadáveres os objectos que haviam sido mais
queridos dos vives, e é a este uso que se deve
uma grande parte das riquezas archeòlogicas que
encerram os museus da Europa. Depois, nota-se
a maior diversidade nos monumentos funéreos,
segundo o estado de civilisação, de riqueza e de
luxo a que chegaram os paizes onde foram eleva-
dos. Em quanto uns são de uma extrema simpli-
cidade e consistem unicamente em um montão de
terra ou de pedras elevado sobre o despojo do
morto, outros consistem em excavações pratica-
das no solo ou nos llancos das montanhas. Alguns,
emfim, compõem-se de construcções mais ou me-
nos consideráveis, nas quaes a architectura e a
esculplura mostram todos os recursos da arte con-
temporânea, como o que se acha reproduzido na
gravura que acompanha este ai-ligo.
Antes, porém, de entrarmos na descripção des-
te monumento, não achamos muito desacertado
dizer alguma cousa com relação aos monumentos
fúnebres antigos.
lia toda a razão para crer que entre todos os
povos as primeiras sepulturas consistiram em sim-
ples montinhos de terra ou de pedras, que os ar-
cheologos chamam tnmidus. Existem sepulturas
(reste género em todas as partes da Ásia, da Eu-
roj)a e da Ameiica. Algumas vezes a base do
monte factício era rodeaílo de pedras alim de sus-
tentarem a terra. E o que se vè, por exemplo, nos
túmulos da j)lanici(í de Tróia, na Ásia menor, que
se sup|)õe lerem sido erigidos sobre as ossadas
dos heroes da Grécia mylhíca, Achilles, Palroclcs,
Ajax, etc. O mesmo succede com alguns dos tú-
mulos dos povos célticos. Nos j)aizes occupado,
por esta aniiga raça, enconlram-se ainda em gran-
de numero monumentos funéreos d'esla classe.
o PANORAMA
397
Os antiquários inglezes dão a estes túmulos o no-
me de Barrows; outros archeologos denominam-
nos Galgais, Tomhellcs, Buttes, ctc. Ordinaria-
mente lêem a forma de um cone, ove Ironcado,
ora arredondado no topo; algumas vezes, porém,
o seu plano é o de uma eliipsoide. Estes túmulos
enconlram-se ou isolados ou em giupos. Os mais
peiíiienos não excelem um melro de altura ; os
398
O PANORAMA
maiores attingem trinta metros : tal é o de Tii-
miac, perlo de Sarzeau, que tem trinta e dois
metros de altura perpendicular e cento e vinte de
redondo.
Suppõe-se que as dimensões d'esles túmulos
variavam na razão da importância do personagem
sobre os restos do qual foram estabelecidos. Os
túmulos circulares não encerram, a maior parle
das vezes, mais que um cadáver, o qualoccupa o
centro da conslrucção. Os que são allongados,
pelo contrario, foram destinados a receber um
certo numero. Estes últimos apresentam algumas
vezes galerias subterrâneas formadas de grandes
pedras brutas e divididas em muitos comparti-
mentos. Estes grupos parece, pois, representarem
verdadeiros ossarios, e suppõe-se que foram fun-
dados para nelles se sepultarem os liomens mor-
tos em batalha. Entre os túmulos, que pertencem
a esta calliegoria citaremos o de Fonlenay-le-Mar-
méon, no Calvados. É de forma elliplica e contém
dez covas principaes cada uma das quaes conduz
a uma serie de compartimentos funéreos. Em
todos estes túmulos, a não ser que já de lá os ti-
rassem, encontram-se armas, utensílios e outros
objectos que nos dão a conhecer o estado da in-
dustria gaulesa nas épocas remotas ás quaes re-
montam estes monumentos. As populações célti-
cas punham também algumas vezes os cadáveres
em buracos praticados na rocha, bem como em
uma espécie de sepulchros formados do lageas e
a uma pequena profundidade do solo. Em certas
occasiões contentavam-se com o enterrar os mor-
tos em covas pondo-lhes apenas por cima uma
pedra simples. Por toda a parte se encontram se-
pulturas d'este género, dispersas sem ordem, nas
planícies ou nos flancos das collinas.
As sepulturas egypcias eram de três espécies.
As que estavam isoladas eram túmulos de terra
ou de tijolo, ou pyramides. Sabe-se que as famo-
sas pyramides de Gizch foram levantadas para
servirem de ultima morada aos reis, aos membros
de sua família e aos grandes personagens do es-
tado. Os Hypogeus ou Syringes, consistiam cm
vastas excavações feitas nos flancos das monta-
nhas: eram, particularmente, usadas no alio Egy-
plo, ponjue ali o valle do Nilo acha-sc bordado
de uma serie de rochedos. Muitos destes monu-
mentos foram visitados em nossos dias, e deu-sc
ali com uma quantidade de objectos que vieram
esclarecer muilissimo uma iniinidade de pontos
da historia pharaonica. Os mais importantes são
os do valle chamado em árabe Biban el Moluk,
isloó, as 1'ortas dos reis, e onde foram deposita-
dos os restos dos soberanos da decima oitava, de-
cima nona e vigésima dynaslia. íjcralmcnle es-
tes li\pog('US aiPhiciam-se por uma fachada cons-
truída verticalmente no rochedo, mas cuja porta é
(piasí sempre disfarçada com o maior cuidado. Um
ou muitos corredores, alguns coitados por poços
profundos, e grandes salas, conduzem á camará
funérea ou câmara real, onde estava o alaúde,
ordinariamente de granito, basalto ou de alabas-
tro. As paredes da excavação, bem como o teclo,
são cobertos de esculpturas coloridas e de inscri-
pções hieroglyphicas nas quaes o nome do prín-
cipe defunto é repelido muitas vezes. Estas ima-
gens representam ordinariamente ceremonias fú-
nebres, a visita da alma do rei defunto ás prin-
cipaes divindades, suas oíTerlas a cada uma del-
ias, a sua apresentação pelo deus que o protegia
ao deus supremo do Amenlkís ou inferno egypcio,
e, emfim, a sua apotheóse. Cousa alguma iguala
a grandeza destas obras, a riqueza e a variedade
dos seus ornamentos. Eslas figuras, ainda que em
grandíssimo numero, são algumas vezes de tama-
nho natural; as scenas da vida civil mísluram-se
quasi sempre com as representações fúnebres ;
e vêem-se, ali, igualmente, trabalhos de agricul-
lura e industria, a caça, a pesca, batalhas, dan-
sas, moveis de uma riquesa e elegância admirá-
veis. Emfim, os ledos, ordinariamente, são re-
vestidos de esculpturas relativas aos phenomenos
astronómicos. Os hypogeus dos particulares eram
do mesmo modo abertos nos rochedos, e compos-
tos de uma ou de muitas camarás, cujas dimen-
sões e decoração variavam segundo a ordem e
teres do defunto, e na ultima das quaes se col-
locava o ataúde. Esle, geralmente, era de madei-
ra de sycomoro ou de cedro, e sempre de uma
só peça, não incluindo a tampa. Além d'isso era
ornado, tanto interior como exteriormente, de
pinturas que representam habitualmente scenas
fúnebres e por entre as quaes serpéa uma linha
de caracteres hieroglyphicos, olTerecendo o nome
do defunto. Finalmente, á roda do alaúde collo-
cavam-se diversas oíTertas, vasos, figuras, e al-
gumas vezes modelos dos utensílios, instrumen-
tos, ele, destinados a recordar a profissão do
morto. Yèem-se lambera quatro vasos, dentro dos
quaes estão as vísceras do cadáver, que se poze-
ram de lado, quando se procedeu á operação do
embalsamento. São todos iguaes no tamanho e na
forma, que é a de um cone; mas as quatro lam-
pas dífferem entre si e figuram uma cabeça de
mulher, uma cabeça de chacal, uma cabeça de
gavião e uma cabeça de cynocephalo : é a estes
vasos que os antiquários dão o nome de Canopos.
Só os reis e os grandes personagens do impé-
rio tinham sepulturas particulares. Os corpos dos
outros egypcios eram collocados em galerias im-
mensas subterrâneas, abertas nas rochas, ou
construídas de tijolo, e as quaes os Gregos, e de-
pois os modernos, c\mnnvdimNecropo/os, isloc ci-
dades de mortos. Estes necropolos eram composlos
de muitos andares distribuídos em pequenas cama-
rás, e parece que cada casta linha seu necropolo
particular. Os Egypcios não se conlenlavam só
com o embalsamar e snpullar os seus mortos;
faziam as mesmas honras aos animaes consagra-
dos aos seus deuses, como os ibes, os crecodílos,
os gaviões, os bois, as serpentes, ele. As grutas
de Samun são celebres pela immcnsa quantidade
de crocodilos c de múmias humanas qucconleem.
(Continua.)
o PANORAMA
399
UMA CIDADE DE MADEIRA
Em 1386, o rei de França Carlos YI e seus
tios resolveram entrar em Inglaterra com um
grande exercito. Nesta época, os Inglezes pos-
suíam Calais, Cbeibourg e Brest, e d'ali faziam
as suas incursões na Picardia, em Cotentino e na
Bretanha, roubando sempre, diz o Religioso de
S. Diniz, homens, rebanhos e tudo mais que po-
diam. Três esquadras se aprestaram para aquelle
fim : uma em Treguier e Saint Maio, pelo con-
destavel de Clisson ; outra em Ilaríleur, pelo al-
mirante João de Yienna, e a terceira na emboca-
dura do Somme, por Sairapy. Ao mesmo tempo,
o duque de Borgonha ajuntava em Ecluse um
exercito que o próprio rei devia commandar. Es-
te exercito compunha-se, pouco mais ou menos,
de cem mil homens, Francezes, Saboianos e Al-
lemães. Os navios, dos quaes muitos foram alu-
gados por enormes sommas aos Hollandezes, á
Prússia e á Hespanha, elevavam-se a mil trezen-
tos e oitenta e sete, não contando as frotas da
Picardia, Normandia e Bretanha.
As naus, diz M. Puiseux, estavam preparadas
com tanta sumptuosidade como se fossem para
uma festa. Por toda a parle não se via senão pin-
turas e brasões d'armas. Nas extremidades dos
mastros fluctuavam grandes bandeiras de seda,
das quaes algumas eram bordadas a ouro e prata.
As velas eram de cores.
O senhor de Tremoille dispendeu só com a
pintura da sua nau perlo de duzentos contos de
reis. A do duque de Borgonha eclypsava Iodas as
outras. O exterior era lodo azul e ouro. Nos mas-
tros viam-se desfraldadas cinco bandeiras immen-
sas com as armas de Borgonha, do Franco-Con-
dado, d'Artois e de Rethel. Havia, além d'islo,
quatro pavilhões e Ires mil estandartes onde se
lia a divisa do duque : «// me tarde. y) Esta divisa
repetia-se em Iodas as velas, em letras de ouro
rodeadas ^e margaridas de prata.
Todos os cáes do Ecluse estavam apinhoados
de gente de todas as condições, para gosarem des-
te grandioso espectáculo.
Mas a maravilha da expedição, era uma grande
cidade de madeira fabricada de antemão nos por-
tos francezes, sob a direcção do condeslavel. Era
composta de peças que se adaptavam, uniam e
separavam facilmente, á vontade. Devia ser con-
duzida ao lugar do desembarque, montada e ar-
mada sobre a praia britannica.
(íLe connétable faisoit faire, ouvrer et char-
penter en Bretagne Vendosure d' une ville ; et tout
de bon bois et gros, pour asseoir cn Angleterre,
lá ou il leur plairoit, quand ils y auroient pris
terre, pour les seigneurs loger et relraire de nuit,
pour eschiver les périls des réveillements et pour
dormir plus à Vaise et plus assur. Et ijuand on
se délogeroit de une place et on en iroit en une
autre, ceste ville estoit tellement ouvrée, ordonnce
etcharpentée, que onlapouvait dcfaire par char-
nières, ainsy que une couronne, et rasseoir mem-
bre à membre.s) (Froissart.).
Esta cidade tinha praças, ruas, becos, merca-
dos, ele. A sua circumferencia da altura de vinte
pés, e de Ires mil passos de diâmetro, era ameia-
da e flanqueada de 750 torres, coUocadas de doze
em doze passos. Podia ali aquarlellar-se um exer-
cito numeroso. Esta monstruosa machina formava
a carga de setenta e dois navios, que deviam Irans-
porlal-a dos portos de França a Ecluse e d'aqui
para Inglaterra, e custou ao Estado cerca de vin-
te mil contos de reis. Para acudir ás despezas
deste armamento foi necessário lançar sobre o
povo impostos laes, que cem annos depois, dizem,
ainda o paiz não estava resarcido. Como sempre,
o peso caio todo sobre os pobres que, não poden-
do pagar, viram-se obrigados a vender ale a pa-
lha de suas camas. Muitos d'enlre elles para es-
caparem ao tributo, emigraram para Liége e Ilai-
naut.
Não obstante, o verão de 1386, e o principio
do outomno passaram sem que as frotas saissem
de Ecluse. Os viveres linham-se consummido, as
tropas não estavam pagas, e, em Flandres, como
em torno dos portos da Picardia, Normandia e
Bretanha viviam á discrição.
(lLcs povres laboureurs, qui avoient recueilli
leurs biens et leurs grains, n'en avoient que la
paille ; leurs viviers estoient peschés, leurs mai-
sons abaltues pour faire du feu ; et s'ils en par-
loient, ils estoient battus ou tués. Les Anglais,
s'ils fussent arrivés en France, ne pussent point
faire plus grande destruccion que les hommes d' ar-
mes de France y faisoient.y> (Froissart.)
O rei Carlos VI, em vez de ir tomar o com-
mando da expedição, celebrava com festas esplen-
didas, em S. Diniz, o casamento de sua irmã,
uma criança de nove annos, com o lilho do du-
que de Berri. Não foi senão em 7 d'agosto que se
pôz a caminho, fazendo pequenas jornadas e visi-
tando com vagar Senlis, Amiens e outras cidades
da Picardia. Pelo meiado de setembro, ainda es-
tava em Arras. Chegado, emfim, a Ecluse, os che-
fes do exercito apressavam-no para que desse a
ordem de partida. «Senhor, para que mais de-
longas? Muita gente se tem arrependido de haver
adiado as cousas quando tudo estava prompto pa-
ra se poder operar.» O rei, que se deixava em
tudo governar por seu tio o duque de Berri, res-
pondia que era necessário esperar por este prín-
cipe. Mas, o duque, ou por traição, ou por não
se querer encontrar com o duque de Borgonha,
não apparecia. Correram semanas e mezes e o
exercito sempre immovel em Ecluse. Chegou no-
vembro, c com elle medonhas tormentas e chuvas
torrenciaes. As naus despedaçavam-se contra a
costa; as munições e bagagens opodreciam na
praia. .
A grande cidade de madeira deixou de existir.
Assaltados pelas tempestades, os navios que a con-
duziam dispersaram-se. Uns foram engolidos, ou-
tros lançados sobre a praia de Caiais e sobre a
cosia d'Ínglalerra. Alguns conseguiram chegar a
Ecluse, onde o joven rei se entregou ao eslenl
prazer de mandar armar junto do porto o que
400
O PANORAMA
restava da cidade de madeira. O duque de Bor-
gonha áli alojou os seus operários e arlilheiros.
O rei de luglalerra, por sua parle, fazia Iro-
phéo com os reslos desta mesma cidade que ilie
haviam caido nas mãos. Três dos navios foram
parar a Londres. Uicardo 11 mandou armar pelos
carpinteiros que foram aprisionados, as casas e as
torres de madeiia, e expol-as em Winchelsea, á
triumphante curiosidade dos Inglezes.
A febre da guerra, que um instante havia exci-
tado o fraco cérebro de Carlos VI, diminuirá com
a longa espera sob os nevoeiros de Flandres. O
projecto de desembarijue em Iniílaleira foi aban-
donado, e a gente toda licenciada. Os soldados,
retirando do acampamento paia se dirigirem a
seus lares, deixaram por toda a parle um rasto
de desolação e ruina. Alguns destacamentos fica-
ram para descarregarem os navios c pol-os em
lugar seguro; mas os Inglezes não lhes deram
tempo para isso : arremessaram-se sobre os na-
vios, queimaram uma parle e levaram o resto pa-
ra os seus portos. Continham immensas munições
de guerra e duas mil pipas de vinho, o que, nota
o Religioso, os abasteceu por muito tempo desta
bebida tão apreciada em Ioda a Inglaterra.
TERÇA FEIRA I
(Concluíãri)
Vellias mães, tristes esposas,
Crianças nuas e em choro,
Brado*s, falias lastimosas
Erguem, num sinistro curo.
Que scenal E redobra o vento,
E condcusa-se a neblina,
E o mar rebrame violento,
E a noite a scena domina 1
E á luz de*algumas fogueiras
Escassa, rubra, funesta,
Movem-sc sombras, ligeiras,
Como em diabólica festa.
E ella, a mãe, em desatino
Corre, pára, escuta, chora,
Maldiz o poder divino,
E depois piedade implorai
Os olhos nas sombras fitos
b'essa noite escuro, escura,
Eleva-os ao ceo allíictos;
E era vão um astro procura.
E o raio, que as trevas densas
De quando em (|uando devassa,
Moslra-lhe vagas immensas.
Negros abysmòs.. e passa!
Só á luz da madrugada
Se acalma a brava lormcnla:
Que noilo, em anciãs passada
Tão pavorosa! tão lenia!
O ceo reílecle nas aguas
A còr azul da bonança,
E vae serenando maguas
Á branda luz da esperança.
—.«Barcas ao longe! Não vedes?
«Ó que alegria (amanha !
o Deus abençoou as redes
«São as lauctias da companha.
Crianças, mulheres, velhos,
Ao ou\ircm esle grito,
Todos, lodos de joelhos
Cantam piedoso IJemdilo.
Eil-as vem! Braços valentes,
Afleitos áqaclla guerra.
Cortando os mares fremcnles,
As impellom para terra.
Na turba dos pescadores
A mãe com turvado aspecto,
Inda oppressa de terrores.
Procura o lilho dilecto.
Tudo exulta de alegria.
Cada (|ual os seus conhece.
Ella só, muda, sombria.
Sobre a praia permanece.
Eil-oscmfiml Que transportes!
Que lagrimas ijue os esperam!
Vè-se o choro nos mais forles
Dos que no mar não tremeram.
Por enire os grupos vagueia
A mãe tremula, calada,
De negros agouros cheia
De vago pavor tomada.
Quasi em dolirio vè tudo
Como se atravez d'um sonho.
De repente, um grito agudo
Sòa na praia medonho.
É que pallido, abatido,
.lunto ao mar o esposo vira;
É que terrivel sentido,
N'aquclla dòr descobrira.
— ('Que negro presagio é este
«Que leio nos léus olhares?
«Do meu filho o que fizeste?
— «Pergunta-o a esses mares.»
No grilo que a triste solta,
Vae-lhe a razão mais que a vida.
Depois para o mar se N'olta,
Torva, pallida, perdida...
«Não! não has-de assim roubar-me
«O filho d'estas entranhas!
«Não podem inlimidar-mc
«As tuas iras tamanhas!
«Não vós que tenho no seio
«Este amor? Esperai esperai
«Ruge! não sinto receio!
«Iluge! que tens? ruge fera!
«Ruge!» E sem tino, movida.
Da allucinnção que a agita,
Rompendo cm veloz corrida.
Nas ondas se precipita.
Em vão lhe accodem, que forte
O filho ás vagas disputa :
Era um combate de morte!
Era uma tremenda lucta.
E na manhã do outro dia
Vio-se na praia arrojada
A mfii que, morta, sorria
Do filho ao corpo abraçada.
Porto.
JuLio Diniz.
Typ. Kranco-l-orlugucza — Hua do Thesouro Vcllio. C,
51
o PANORAMA
401
Capella de Santa Rosália no monte Peregrino
Em o numero 11 desle semanário, fazendo nós
uma breve descripção da cidade de Palermo e
seus arredores, dissemos que no monte Peregrino,
celebre oulr'ora, segundo reza a historia, por ler
servido de fortaleza inexpugnável ás tropas de
Amilcar Barca, pae do famoso Annibal, existia
uma gruta onde foi encontrado o cadáver da vir-
gem Santa Rosália, c que essa gruta fora trans-
formada em uma igreja magniíica, de aspecto des-
lumbrante, algum tempo depois de haver cessado
uma horrível epidemia que dizimara uma grande
parte da população desta cidade. Eis, pois, a (jue
se refere a gravura que vae á frente deste artigo.
Representa ella o interior dessa igreja subterrâ-
nea, de archileclura antiga, cujo silencio profun-
díssimo só é interrompido pelo suave murmúrio
das orações dos lieis ou pela voz do sacerdote
quando entoa os seus hymnos no altar, junto do
qual, ajoelhada e inclinada diante da Cruz, está
uma estatua riquíssima, de tamanho natural, que.
mesmo vista de perto, illude. Esta estatua repre-
senta Santa Rosália, a padroeira de Palermo.
DANIEL 0'CONNELL
(Conlinuaijão)
A Irlanda não segue o movimento da sua visi-
nha, e reage pelo contrario energicamente con-
tra a religiosa. Seria por aílcclo ao calholi-
cismo, ou simplesmente por ódio ã priori con-
tra todas as innovaçues que de Inglaterra lhe
viessem? Parece que as duas causas se reuniram
para consolidar na Irlanda o poder do Papa. O
povo irlandez, pobre, quasi selvagem, estranho
quasi todo ao movimento dos espíritos na Euro-
pa, separado da civilisacão pela barreira da In-
glaterra, não podia deixar de se conservar affer-
rado ás suas crenças tradicionaes. O ai)Ostolado
dos ministros protestantes não angariou nem um
proselylo ; a força, que o irascivel Henrique VIÍI
fez succeder á persuasão, logrou, como sempre
succede, converter apenas íicliciamente alguns
402
O PANORxVMA
chieftains, e exacerbar o ódio das massas, e ar-
raigar com o prestigio do marlyrio a fé calholica
perseguida no espirito das victimas.
Incrivel cegueira de todas as religiões domina-
doras! Cegueira que só neste século principia
vagamente a dissipar se ! Quererem combater com
a força material a força espiritual d"uma idéa,
d'unia idea, planta que transforma em seiva o
sangue dos martyres, que viça entre as ruinas
dos incêndios, que resurge sempre mais florida
e mais vivida depois das tempestades das perse-
guições!
A inquisição perpetuou na Europa a religião
hebraica. Ãs revogações dos éditos protectores
do calvinisraOj as guerras atrozes movidas ao
lutheranismo alastraram por todo o Norte da
Europa as seitas, que a indiíTerença catholica
abafaria talvez em Wittemberg e em Genebra !
Em nQiihuma parle do mundo vigora o catholi-
cismo com mais força do que na Polónia e na
Irlanda, graças ás atrocidades dos czares, e áop-
pressão do governo inglez.
Cegueira fatal, cujos resultados ainda hoje em
18G0 perturbam e assustam a prosperidade im-
mensa da Grã Bretanha ! Nódoa que ainda hoje
desfeia o esplendor d"aquella brilhantissimacivi-
lisação ! Não bastava que um antigo ódio sepa-
rasse os dois povos, e quizeram ainda alimentar
essa inimisade latente, que o lento decorrer dos
séculos iria pouco a pouco apagando, com os
terríveis fruclos da dissenção religiosa! O fogo
que ardia debaixo das cinzas quizeram apagal-o
com sangue, e não sabiam que o sangue é, ainda
mais do que o álcool, hórrido combustível para
essas pyras odientas.
Á crença rotineira deram a exaltação do mar-
tyrio, acordaram a indiíferença do cleVo catholico
dando-lhe a exaltação do combate, e das massas
pacificas ainda que inimigas fizeram soldados,
exasperaram um povo inteiro, e legaram ás ge-
rações vindouras um testamento de vinganças,
cuja liquidação tem durado séculos e ainda não
está finda.
Seria conhecer mal a politica dos papas, se se
pensasse que elles não aproveitariam com jubilo,
a occasião de suscitarem tantos embaraços ao
scismalico Henrique VllI. Como se ainda não
bastasse, para excitar os ânimos, o clero do paiz,
cm lo48 .entraram os jesnitas na Irlanda^ e com
elles o eterno elemento da revolta.
Eduardo VI, filho de Henrique VIII, nada con-
seguio também no seu curto reinado; com a
subida ao throno de Maria Tudor respirou por
um pouco a Irlanda, ou antes mudou de cara-
cter a perseguição, sem se tornar menos sangui-
nolenta; a curta victoria do catholicismo assi-
gnalouse com tantas barbaridades como a longa
dominação do protestantismo.
Cinge a coroa ingleza a politica e enérgica
Isabel, rex Eiisabelh, como os inglezes diziam
num dislico latino. Tenta ella primeiro conciliar
os ânimos, mas a hostilidade do ])artido catholico
accende-lhc o animo irascivel. As perseguições
redobram, responde-lhes a resistência armada.
Ema medida iniqua faz trasbordar o vaso do
ódio. Coníisca a rainha os rendimentos da igreja
catholica, e consagra-os á subvenção da igreja
anglicana. Protesta por todos os lados a revolta.
A Irlanda está em fogo, c esse fogo alirnenlam-no
incessantes o papa e a corte de llespanha. Dura
desde 1360 a insurreição, sem conseguir resultados
importantes, mas sem ser debellada também. Em
lo9o apparece aos revoltosos chefe experiente e
hábil. É o conde de Tyrone, um d"esses emigra-
dos que a perseguição ingleza obrigava a refu-
giarem-se no continente, e que, servindo nos
exércitos estrangeiros^ lá adquiriam a pratica da
guerra.
Mandou contra elle a rainha o conde d'Essex
cora um exercito de 2!2000 homens. Sem ser ba-
tido, mas sem ser victorioso, o exercito inglez
acha-se collocado em circumstancias tão perigo-
sas que o seu general evacua a ilha, pactuando
com os rebeldes. Succede-lhe lord Mountjoy
que doma a revolta a fogo e a sangue. O des-
embarque de dois exércitos hespanhoes, um com-
mandado por Aquila, outro por Ocampo, chama
de novo a população ás armas com o conde de
Tyrone á sua frente. De novo batida, o cançasso
prostra a final a rebeldia, e a Irlanda offegante
entra na tranquillidade. Mas em que estado, Deus
do céo !
E' necessário que as paixões politicas desvairem
muito um soberano para que elle ouse promul-
gar contra os seus súbditos as leis que a rainha
Isabel não duvidou firmar com o seu nome. As
leis dos monarchas seus antecessores haviam de-
cretado a oppressãOj as suas decretaram a misé-
ria. Foi desde essa época nefanda e nefasta que
a verdejante Erin, a ilha cantada por Thomaz
Moore, vio os seus filhos expulsos dos campos pa-
ternaes para vaguearem sem pão e sem asylo
pelos montes da sua pátria, ou abandonarem
com a dôr no coração a terra do seu berço para
irem percorrer, pobres proscriplos, o mundo que
lhes não pôde fazer esquecer as campinas de es-
meralda da Erin formosíssima.
Apesar das suas tendências para o catholicis-
mo, Jayme J, o filho da desgraçada Maria Stuarl,
e o successor de Isabel que lhe assassinara a mãe,
não fez senão augmentar a miséria da infeliz Ir-
landa. Ora a vingança, ora a incapacidade se
conspiravam para fazer pesar sobre esse Job das
nações a miséria extrema e a desgraça completa.
Seiscentas mil geiras de terra tinham sido con-
fiscadas pela rainha Isabel e distribuídas por co-
lonos inglezes. A pretexto de restabelecer a justa
ordem das cousas, Jayme 1 obrigou os senhores
irlandezes a apresentarem os títulos das suas
propriedades, que eram confiscadas em proveito
da coroa áquelles que não estavam perfeitamente
em regra ; mas, em vez de serem restituídas aos
colonos nacionacs, eram vendidas a colonos in-
glezes e escocezes, que vinham accrescentar a
população, e augmentar por conseguinte a mi-
séria dos indígenas.
Não foi menos terrível para a Irlanda o reina-
do do seu infeliz successor Carlos I. Eord Straf-
ford, vice-reí da Irlanda, o mesmo que depois
o rei, obrigado pelo parlamento inglez, condem-
nou á morte, fez pesar sobre o paiz um jugo de
ferro. Continuou o odioso systema das confisca-
ções, c levou-o elle a tal ponto que chegou a
conceber o louco pensamenlíj de converter uma
província inteira, a província de Connaught, cm
domínio da coroa. Uma tal oppressão despertou
a Irlanda do lethargo em que jazia. Em IVM,
levantou-se em massa o povo, c, fanatísado o
exaltado pelo clero catholico, assignalou, como
sempre, com horrendas vinganças, essa nova re-
o PANORAMA
403
volta. O sangue de quarenta a cincoenta mil pro-
teslanlcs foi derramado pelos insurgentes. A In-
glaterra tremeu, c o parlamento, excitado por
esse ódio quasi inconcebível em estadistas frios e ra-
ciocinadores, ordenou ainda uma confiscacrio im-
mensa, a de dois milhões e quinhentas mil geiras
de terreno para supprir ás despezas da guerra!
Mas o vento da discórdia soprava então em
Ioda a Grã-Bretanha. Tinham principiado as con-
testações que só se resolveram a tinal no cada-
falso do desgraçado monarcha. Lord Ormond,
hábil vice-rei da' Irlanda, e muito dedicado aos
interesses de Carlos I, soube captar a confiança
dos chefes da revolta, e Iransformal-os em de-
fensores da regia causa. Era sina dos Irlandezes
seguirem sempre a facção vencida. O parlamento
triumphante escolheu para seu delegado na Ir-
landa, e commandante do exercito o implacável
Cromwell. Este puritano sombrio concebeu o hor-
rendo plano de exterminar em massa os catho-
licos e de deportar uma nação inteira para as
índias Occidentaes. A barbaridade do protector
da Grã-Bretanha deixava a perder de vista a de-
port^ação dos Judeus de Hespanha por Fernando
o Catholico, de Portugal por D. Manuel, e dos
Moiriscos por Philippe III.
A perseguição movida pelo genro de Cromwell,
Ireton, em cumprimento das ordens de seu so-
gro, tirou represálias terríveis da mortandade dos
cincoenta mil protestantes. Centenas de milha-
res de desgraçados morreram de frio e de fome
nos paúes onde o terror os compellira a refugia-
rem-se !
Veio a restauração dos Stuarts. Subio ao throno
Carlos II. Qual foi a recompensa do paiz que
tanto padecera pela causa dos reis? O olvido. A
perseguição religiosa cessou, mas as confiscações
subsistiram em todo o seu rigor, e raros Irían-
dezes obtiveram, e só depois de infinitas deman-
daSj que lhes fossem restituídas as suas proprie-
dades.
Paremos um instante 1 Fatiga este longo cami-
nhar com os pés na sangue, este percorrer a via
dolorosa d'um povo. Os séculos succedem aos
séculos, os monarchas aos monarchas, as gera-
ções ás gerações, e a Irlanda, não tendo um mo-
mento de repouso, nem por instantes respirava
uma atmosphera menos tempestuosa. A historia
deste povo é um martyrologio de sete séculos.
A reacção catholica que principiou a dominar
com a subida ao throno de Jayme II deu grandes
esperanças á Irlanda. Brevemente as dissipou a
transformação politica de 1G88, e a Iilanda vio-
se lançada de novo nas sendas aventurosas da
insurreição. Sorric-lhes primeiro a ventura. Jay-
me II, o monarcha expulso do throno, desem-
barcou em 1G8Í) na Irlanda; á testa dos Irlandezes
revoltados, expulsou de todas as praças fortes as
guarnições inglezas, e dois mil e quatrocentos
proprietários protestantes foram obrigados a res-
tituir as suas terras. Mas em 1(590, Guilherme III,
o rei eleito do protestantismo, desembarcou a
seu turno na Irlanda, bateu o seu competidor e
sujeitou á nova dynastia o território da ilha.
Recomeçam as vinganças.
Um milhão de geiras de terra ainda confisca-
das pelo parlamento e distribuídas a protestan-
tes, a expulsão da ilha dos altos dignatarios da
igreja catholica, a prohibição ao baixo clero de
saíE das suas províncias, a abolição do ensino
catholico e dos signaes exteriores do culto, as
funcções publicas interditas a todos os catholicos,
e estes mesmos parias declarados incapazes de
possuírem propriedades íerritoriaes, de testarem
livremente, de casarem com mulheres protestan-
tes, e inclusivamente, (clausula onde a tyrannia
assume as proporções do ridículo) de montarem
cavallos que valessem mais de cinco libras, eis
quaes foram os estygmas com que a Inglaterra,
ainda uma vez vencedora, marcou a fronte es-
crava da Irlanda sua irmã. E vinha próximo o
século XVIII, e em toda a parte raiava por céos
e terra a aurora da liberdade, e essa mesma re-
volução de 1088, que d"essa forma tyrannisava
um povo, tinha de ser considerada pelos histo-
riadores como a estreita d'alva que precedeu um
século o despontar do sol esplendoroso de 1789,
do sol, que devia illuminar em torno das mura-
lhas derrocadas da Bastilha um povo inteiro que-
brando com os seus grilhões os grilhões da Eu-
ropa, entre brados de immenso enthusiasmo.
Avante ! Os Irlandezes não bebem ainda até a
ultima gota a sua taça de fel. O governo inglez
estancou-lhes as fontes da sua riqueza agrícola,
transformou-osemilotas, vae agora matar a sua in-
dustria e o seu commercio. Um direito de salda
exorbitante veio paralysar a exportação dos pro-
ductos do solo e da industria irlandeza- Só o
ódio explica estas cousas, que indignam a huma-
nidade, e que a própria politica do egoísmo re-
pelle.
Continuemos. Em 1727 perdem os catholicos o
seu direito de eleitores, e com elle o seu ultimo
direito de cidadãos. Só falta amarrarem-lhes a
grilheta ao pé, e marcarem-lhes na fronte com
um ferro em brasa a palavra «Escravo.»
Era tempo de principiar a reacção. Todo o
mundo estremecia ao frémito da liberdade, as
idéas da philosophia humanitária calavam em
todos os ânimos, a legislação perdia o caracter
tyrannico da idade média, e principiava a illumi-
nar-se com os reflexos da pura luz do Evange
lho. Ao mesmo tempo a Irlanda mostrava-se cada
vez mais ameaçadora na sua imponente tran-
quillidade; não eram já loucas revoltas, que le-
vavam á carnificina a flor da mocidade irlan-
deza, eram sociedades secretas habilmente orga-
nisadas e que trabalhavam, e minavam constan-
temente na sombra, actuando sobre os espíritos,
c muitas vezes, infelizmente, exercendo terríveis
represálias. Eram os defenders (os defensores) os
uitileboys (os rapazes brancos) os liearts of oak (os
corações de carvalho.) Esta atlilude decidida,
junta aos embaraços suscitados pela revolução
das colónias americanas, fez recuar o parlamen-
to inglez. Em 1782 foi abolido o acto de Poyníng,
que datava do século XIV, e que abolia a inde-
pendência legislativa do parlamento da Irlanda.
As leis penaes, promulgadas por Guilherme de
Orange, foram revogadas. Mas a tradição domina
etficazmente na Inglaterra ; qualquer mudança
nas formas da velha constituição lhe parece uma
profanação horrenda. Por isso, apesar das con-
cessões que mencionámos, as duas principaes cha-
gas subsistiram, o pagamento do dizimo pelos
catholicos ao clero protestante, e a sua incapaci-
dade para ter direitos políticos.
Esta obstinação em conservar as duas grandes
pedras de escândalo da Irlanda destruio o bom
eíleito que as concessões antecedentes haviam
404
O PANORAMA
produzido. Ao rebentar a revolução franceza os
votos dos Irlandezcs voltaram-se paia o signo da
liberdade que íluctuava no continente, c tal era
o ódio que elles consagravam aos Inglezes que o
povo mais eminentemente catholico da Europa
applaudia os revolucionários que tripudiavam so-
bre os altares, só pelo facto d'esses revolucioná-
rios terem a Inglaterra por inimiga.
Aproveitando estas disposições da Irlanda, a
França dirigio para essa ilha trcs expedições. A
primeira, commandada pelo celebre genci'al lloche
não pôde desembarcar, porque os temporaes dis-
persaram a esquadra. A resposta a esla tentativa,
que evidentemente contava cora as sympathias
do povo, foi o pòr o governo a Irlanda em estado
de sitio. Esta medida produzio um levantamento
em massa. No principio do século XIX o ódio
reaccendia-se mais ardente do que nunca. A re-
pressão foi barbara, atrocíssima, deshonrosapara
os vencedores. O que o governo do terror fazia
em França, com indignação geral da Europa,
fazia-o o' governo de Jorge líl na Irlanda, sem
que a Europa se dignasse prestar atlenção ãs vi-
ctimas deste odioso systema. Columnas moveis
percorriam o paiz, prendendo e fusilando sem
mais ceremonia aquelles que julgavam implica-
dos na revolta, pondo assim em vigor a lei dos
suspeitos, inaugurada por Danton e Robcspicrre
e contra a qual tão patheticos discursos faziam
os rbetoricos declamadores de N\'eslminslcr-Hall
em Londres.
Em 1798 uma nova expedição franceza, com-
mandada pelo general Savary, futuro duque de
Rovigo, lança na Irlanda um milhar de bomens
a cuja frente ia o general líumbert, juntam se-
lhe os insurgentes, são derrotados, e os france-
zes obrigados a reembarcarem.
Terceira expedição franceza commandada pelo
general Iladry, tem ainda peior sorte. O almi-
rante inglez ^Varrcn caplurou-a quasi completa-
mente.
A Irlanda/como de costume, pa^ou as custas.
O parlamento irlandez foi definitivamente abo-
lido, e lançado no seio do parlamento ger-al da
Grã-Bretanha. Esta medida, que devia, como os
Inglezes julgavam, prostrar completamente a sua
rebelde irmã, foi pelo contrario a origem da sua
salvação. Os ministros inglezes não previam que
iam (íar a tribuna de ^Vestminster, essa tribuna
que tem echos em toda a Europa, a uma das
vozes mais eloíiuentes do presente século, c que
essa voz seria a d'um pátrio! a irlandez, a de Da-
niel 0'Connell, emfim.
M. Pinheiro Cuagas.
(Continua)
MARSELHA
(Conclusão)
Marselha apresenta a forma .de urna ferradura,
cuja cavidade é o porto; esle porto é um dos me-
lhores do iMedilerraneo, e o que oíferece aos na-
vios mais segurança. Oiiasi lodo é obra da nalu-
reza ; foi ella que cavou a (juinlicnlas loczas de
profundidade essa niagnififa bacia de forma oval,
onde se podem abrigar perfcilamenle mil c du-
zentas embarcações. A entrada do poilo é forma-
da por dois grandes rochedos sobre os í|uaes fo-
ram conslruidos dois fortes, o de S. João e o de
S. Nicolau, para a defenderem ; a grande torre
quadrada do primeiro, dala do rei René. Eslas
duas fortalezas estão meio arruinadas e servem de
(piartel a uma parle das tropas da guarnição. A
uma légua do porto de Marselha vèem-se Ires
ilhas, ou antes três rochedos que a Providencia
parece ler ali collocado expressamente para pro-
porcionar a esla cidade lugares onde as precau-
ções sanitárias possam jiòr-se em pratica de um
modo verdadeiíamenle ulil. A ilha de If, a mais
pequena, c a primeira que se apresenta. Os ro-
chedos que a rodeiam são escarpados e contam,
pouco mais ou menos, cincoenla pés acima da su-
pcrlicie do mar ; a extensão destes rochedos ó de
cento e quarenla tocsas, e a largura de cincoenla
e cinco. O forte que os defende passa por um dos
melhores do Mediterrâneo; Francisco I fel-o cons-
truir era lo29 ; consiste em um reduclo flanquea-
do de qualro lorres; a ilha em torno ò forlilicada
de ângulos reinlranles e salientes conformes á
disposição do rocliedo. O accesso deste forte é
quasi impraticável ; mesmo em calma é batido
pelo mar. O nome do caslello d'If é ainda cele-
bre; sérvio de prisão a muitos homens nolaveis,
sendo o ultimo o conde de Mirabeau.
O forte do caslello d'lf guarda e protege o es-
paço comprehendido enlre a ilha de Ratonneau á
direila, e a de Pomégue à esquerda, espaço em
que foi construído o porlo Dieudonné. No meio
(la ilha Ratonneau, eslá um caslello rodeado de
algumas fortificações. Foi aqui, que pelos annos
1765, um cabo, chamado Francoeor, que enlou-
quecera, se declarou rei de Ralonneau. EtTecliva-
inenle, durante algum tempo ninguém lhe dispu-
tou o direito; mas quando menos o esperava foi
preso e mellido no hospital dos doudos.
Marselha divide-sc em duas parles bem distin-
clas : cidade antiga, e cidade moderna; uma,
velha, feia, immunda e triste, ruas eslreilas, tor-
tuosas; a outra, larga e bem delineada, ornada
de bellas conslrucções, vaslas praças, passeios
lindissimos. O jialacio da prefeiluia enconlra-se
nesta ultima ; era habitação de um simples parti-
cular, chamado Georges Roux. Esle negociante,
bastante rico para armar navios contra a Inglaterra,
c cujo mauiíeslo de guerra começava por estas
palavras: Gcorfjes de Corsc à Georges d' Anglc-
(crre, quiz uma casa digna da riíjueza que pos-
suía e da posição que a(l(jniriia. Em 1805, a ci-
dade comprou esle palácio e suas dependências
para neile eslabelecer a i)refeilura ; esla ac(|uisi-
ção foi origem de consideráveis (Jespezas, |)elas
íargas dimensões e riqueza do edifício A casa da
camará é lambem um cdiíicio soberbo ; a fachada,
que deita [)ara um dos cães, é ornada de baixos
relevos e esculplnras.
A igreja calhedral de Marselha, Nolre-Dame-
de-la-Major, enconlra-se na cidade aniiga. Esle
edifício conslruido sobre as ruinas do celebre tem-
plo de Diana, tem sido muitas vezes reconstruído.
O monumento, tal como hoje o vemos, nada oíTe-
VGQ(\ de notável ; perlence á idade media.
O templo da Virgem, protectora dos mafilimos,
o PANORAMA
405
eleva-se no cume de um monle, que domina o
mar. Esla igreja foi edificada por um padre cha-
mado Pedro, a quem Guillierme, abbade do S. Yi-
clor, cedeu aquelle leireno. Esta collina, iiojetão
árida, onde apenas vegclani algumas planlas aro-
máticas, era compielamenle coberta de mato ; ali
começava uma floresta que tinha muitas léguas de
extensão, floresta sagrada, da qual Lucain faz
uma descripção pomposa. Todos os annos, pela
época da festa de Corpus-Chrisli, a estatua da
Virgem da Guarda, desce á cidade com grande
solemnidade. A capella onde reside é venerada
pelo povo de Marselha ; durante as festas do Pen-
tecostes, os habitantes concorrem ali em multidão,
levando suas oITertas á Mãe de Christo. O forte
de NoIre-Darae-de-la-Garde data do reinado de
Francisco I ; este forte, pouco vale, mas o que
o torna digna de attenção, é o ponto de vista que
offerece : gosa-se d'ali toda a cidade, enseada,
ilhas, ele.
Marselha, sendo uma cidade Ião antiga, quasi
nada possue d'outras eras ; os incêndios, os cer-
cos, as devastações voluntárias nivelaram o solo
onde se elevavam tão grandiosos edificios. Com-
tudo, esta fatalidade que perseguio os antigos mo-
numentos, respeitou um, notável pela sua exten-
são e bella construcção. Os auctores antigos desi-
gnam-no pelo nome de Covas de S. Salvador,
por ter sido edificado nos subterrâneos da abba-
dia deste nome. Julga-se ser obra dos romanos.
Além dos edificios que temos citado, encontram-
se ainda em Marselha muitos outros de construc-
ção soberba e curiosos ; taes são : o grande Ihea-
tro, o observatório, que está collocado em uma
posição magnifica, o museu, a bibliotheca, a bol-
sa, a casa da moeda, a academia das sciencias e
artes, etc. ele. Também conta um grande nume-
ro de sociedades scientificas, um jardim botânico
e outro de naturalisação, e diversas instituições
de beneíicencia.
Finalmente, Marselha é a segunda cidade da
França ; tudo nella ó grande e bello : a industria
manufactureira tem ali tido um grande desenvol-
vimento ; a commercial e immensa, e no seu por-
to vè-se sempre um grande numero de navios de
todas as nações.
o domínio de íStrathfieldsay
Ao norte de llampshire, e a duzentos c sessenta
kiloraetros, pouco mais ou menos, ao noroeste de
Londres, rodeado de formosas collinas e de cam-
pos férteis, encontia-se o magnifico dominio de
Stralhfieldsay, que é dos muitos que a Inglaterra
possue, talvez um dos mais ricos e interessantes.
O terreno que lhe pertence não lem grande ex-
tensão ; mas é abundantíssimo em caça de toda
a qualidade e ofl^erece pontos de vista lindíssimos,
perspectivas admi'raveis. O palácio c de largas
dimensões e eleva-se (|uasí no centro do parque,
desenrolando-se-lhe na frente uma vasta planície,
cuja magestosa uniformidade não c interrompida
por uma só arvore. Não atlrae a attenção do via-
406
O PANORAMA
jante a parle exterior do edifício ; a architeclura
e a esculplura não mostram ali os recursos da
arte. O interior, porém, é de uma riqueza e ma-
gnifícencia surpreheudenles : longas e espaçosas
galerias, cujas paredes estão coberías de quadros
dos mais notáveis artistas ; salas immensas sum-
pluosamente mobiladas ; bibliotheca guarnecida dos
melhores livros, e por toda parte estatuas, das
quaes algumas são deveras admiráveis.
Ignoramos quem fosse o primeiro possuidor da
rica propriedade de Strathfíeldsay ; o que sabemos
unicamente é que pertenceu a lord Chatam, um
dos liomens mais eminentes da Gran-Brelanha, e
que, depois da batalha de \Vaterloo — para recom-
pensar os serviços e ao mesmo tempo dar-se um
publico testemunho de gratidão ao homem que,
mais depressa por um capricho da fortuna do que
por valor e calculo, fizera cair do pedestal, em
que o seu talento e coragem o collocaram, esse
grande homem chamado Napoleão — passou às mãos
do duque de Wellington.
CARLOS II DE IIESPANHA
(Conclusão)
Logo que a rainha teve noticia da saida de D.
João, e sabendo que devia passar por Aragão, es-
creveu aos Estados d'aquelle reino para que não
lhe fizessem espécie alguma de honras nem de-
monstrações. Teve, porém, o desgosto de receber
em resposta «que de modo algum podiam impe-
dir que se tributassem ao filho do defunto rei e
irmão do actual, aquellas homenagens devidas á
sua alta calhegoria e serviços.» E cumpriram-no
de tal modo, que na sua chegada a Saragoça todo
o povo em massa correu a duas legoas fora da
cidade para recebcl-o, grilando com o maior en-
thusiasmo : / Viva o scnlior D. João ! (jue trium-
p/te, breve, dos seus inimigos e do padre jesuila !
aliravam-lhe fiores e coroas, as damas agitavam
os lenços e os homens atiravam ao ar os chapéos
com todas as demonstrações de um amor sincero.
Pôde considerar-se o profundo desgosto que se-
melhante ovação jjroduziria nos ânimos da rainha
e do padre confessor, e a piofunda aversão que
tomaram ás aucloridades, c povo de Saragoça.
Não produzio menos eíTcilo aquella demonstração
nos ânimos dos cortezãos e do povo de Madrid,
regosijando-se delia os parlidui'ios do priíicipe e
presagiaiido outras giandes calamidades e confli-
ctos. A junta da cidade, reunida em sessão extra-
ordinária no dia 1 de fevereiro, enviou uma de-
putação ao presidente de (lastelia para represen-
tar-lhe as desordens que poderia occasionar a vin-
da de D. João com lro()as em lem|)os de (aula
agitação; desordens que o mesmo princifte não
poderia evitar, ainda que não estivessem de ac-
cordo com os seus sentimentos. í) presidente con-
sultou Sua Magestade e o (Conselho sobre o que
devia fazer-se, e resolveu-se expedir a 1). João
uma ordem peremptória para que despedisse a
sua escolta ; mas o príncipe, cheio de orgulho ja
com o seu prestigio e poder moral, proseguio sua
marcha, deteve dois dias o correio, e no terceiro
despachou-o com o recibo da ordem sem outra
resposta.
A inquietação c susto da corte e do povo cres-
ceu assombrosamente e como era de esperar de
semelhante saida. Uma parte dos senhores da cor-
te e do governo poseram-se logo ás ordens do
presidente de Caslella e asseguraram à rainha a
sua decisão e constância. Reuniram-se todas as
tropas da cidade e cercanias, circularam ordens
enérgicas para manter a ordem, e tomaram-se,
emfim, outras medidas extraordinárias, como se
se tratasse de sustentar em Madrid um cerco for-
mal. E tudo isto por causa de uma força de tre-
sentos cavallos, que tanto era o acompanhamento
do piincipe.
Feito tudo isto, a rainha ordenou ao marquez
de Penalva fosse ao encontro de D. João e lhe
reiterasse o seu mandado de despedir a escolta;
mas o marquez exigia para dar este passo uma
ordem em forma do Conselho Real, ordem que o
secretario de Estado se negou a passar, por se
não haver contado para isso com o Conselho do
Governo. A rainha irritada contra o secretario,
reprehendeu-o asperamente pelo seu procedimen-
to; mas os indivíduos do conselho consultivo, o
cardeal Aragão, o Chanceller e o conde de Pena-
randa, deram-lhe razão, e censuraram o presi-
dente de Castella por auclorisar uma ordem para
a qual se não havia contado com aquelle.
De todas estas desavenças em momentos tão
críticos, resultou não se fazer cousa alguma, nem
tão pouco tranquillisar os ânimos. A rainha, não
podendo conseguil-o pela força, tratou como sem-
|)re de ensaiar os lermos conciliatórios, e para tal
fim escreveu -lhe outra carta mui expressiva por
intervenção de D. Diogo Yelasco, que era amigo
de D. João. O príncipe, porém, que estivera se-
cretamente em Madrid e conhecia perfeitamente
o estado dos ânimos, e que o seu poder e influencia
era tal que ludo podia emprehender, respondeu á
rainha comtirmesa, que exigia o desterro do pa-
dre Nitard, verificado o qual eslava sempre (lis-
posto a obedecer ás suas ordens como o mais fiel
súbdito.
Conhecida, pois, esta immutavel exigência, as-
sim como a tenacidade da rainha, o núncio Bor-
romeo, o ('onselho d'Estado e ou grandes desen-
rolaram todo o seu zelo para resolverem Sua Ma-
gestade a ceder; e ainda j)ropozeram os meios de
uma evasão voluntária do confessor. Elle mesmo,
convencido do perigo que corria, reiterou á rai-
nha as suas instancias para (|ue.lhe permitlisse
partir; mas Sua Magestade afogada em lagiimas,
só com a ideia do sacrilicio, respondia sempre ne-
gativamente.
Entretanto o príncipe achava-se já com suas
tropas em Torrejon de Ardoz, a quatro legoas de
Madrid. A in(|iiietação redobrava na corte; o Con-
selho do (íov(;rno reunio-se o encarregou o nún-
cio de S. S. de se dirigir a D.João e fa/el-o mudar
da resolução que tomara de ir contra a sua sobe-
rana. O núncio foi, cflectivamente, e regressou
o PANORAMA
407
mui tarde: toda a população de Madrid velava es-
perando pelo resultado desta enlrevisla. O núncio
manifestou que todas as suas instancias paia obri-
gar o principe a retirar sequer ate (juadalajara,
loram inúteis ; e que a sua irrevogável determi-
nação era cajue se no dia seguinte o padie Eve-
]ardo não tivesse saido pela porta, elle próprio o
faria sair pela janella» ; com outras palavras que
o núncio (inimigo do |)adre), exagerou ou desli-
gurou com o inienio de preparar a queda do je-
suila e resolver o negocio neste sentido.
O desditoso padre iNitard, sabedor do que se
passava, depois de confessar a augusta soberana,
deitou-se-llie novamente aos pes, rogando-Uie en-
carecidamenle que o não exposessc aos ultrages
de um principe exasperado ; que n'isso lhe ia na-
da menos (jue a vida, e que não via outro meio
desalval-a, se não cedendo ás circumstancias;"mas
a rainha só lhe respondeu com lagrimas e dando-
Ihe novas seguranças, que estavam mui longe de
tranquillisar o animo do confessoi'. Comludo, a
sua lidelidade e sympalhia pela rainha, levaram-
no a declarar, que, uma vez que não podia obter
de Sua Magestade a real licença que sollicilava,
mais depressa se deixaria fazer em quartos do
que abandonal-a.
As cousas chegaram a tal extremo que na ma-
nhã de 25 de fevereiro o pateo do Palácio, foi
invadido por uma multidão audaz que pedia em
altos gritos a saiila do confessor, com mil impre-
cações c injurias á sua pessoa. O duque do In-
fantado e o marquez de Liche correram ao quar-
to de Sua Magestade, que não linha fechado os
olhos em toda a noite, e na occasião lamentava o
seu angustioso eslado com uma das suas camaris-
tas chamada D. Eugenia ; reunio-se immediala-
mente o Conselho, em vista da urgência do peri-
go de um grave motim que já ganhava todos os
ângulos da cidade ; e ainda que houve aulicos tão
obcecados que aconselharam a resistência, não
foi diíTicil aos outros convencel-os da inutilidade
de tal meio e da imprudência grave que seria
o compromeller a esse ponlo a tranquillidade pu-
blica por causa de um religioso estrangeiro que,
com rasão ou sem ella, chegara a ser objecto de
geral aversão.
O duque do Infantado e o marquez de Liche
não poderam peneirar no quarto de Sua Mages-
tade; pelo que desceram precipiladamente ás se-
cretarias, para fazer com que o Conselho tomasse
alguma prompta detei-minação. Conseguirauí-no
por intervenção de D. Blasco de Loyolo ; mas em
Iodas esfas idas e vindas o tem|)o passava, a mul-
tidão crescia e invadia já as jjroprias solas do
Conselho grilando ousada : Saia do Madrid o jc-
suila.
Os ministros e o Conselho, deveras assustados,
adoptaram em fim uma resolução decisiva, e re-
digiram um decreto para ser assignado pela rai-
nha, pelo qual se ordenava ao padre Nilard que
saisse de Madrid dentro em três horas. A rainha,
a cuja presença subio com o decreto D. Blasco,
não oppoz a menoi' resistência em lirmal-o, nem
deramou uma única lagrima ; só o mandou redi-
gir de oulra forma mais lisongeira para o padre,
declaiaiulo «que cedia a suas reiteradas inslancias
para sair do reino, ainda que muitíssimo salis-
feila da sua virtude, mérito e serviços, eipie, alim
de que o podesse fazer de uma maneira própria
do seu caracter e dignidade, o nomeava seu em-
baixador extraordinário em Roma ou em Vienna,
á sua eleição, conlinuando nos cargos de inquisi-
dor geral e conselheiro de Estado.»
Ainda bem não havia desapparecido o secreta-
rio da vista da rainha, já pelas faces desta as la-
grimas corriam abundantemente, dizendo em alta
voz: ((Infeliz de mim ! De que me serve o ser
rainha se não posso fazer a minha vonlade em ter
junto de mim um confessor da minha confiança?
Ouem senão eu está privada do seu livre arbítrio 1
Desditosa 1 que te resta da magestade e do Ibrono ?»
O Conselho encarregou o cardeal Aragão e o
conde de Penaranda de porem ao facto o padre
Everardo da ordem assignada pela sua alleiçoada
soberana ; este não se mostrou surpreso com a
nolicia. Os superioies dos jesuítas e o almirante
de Castella foram também preparal-o para aquel-
la desgraça e este ultimo ainda lhe fez certas re-
convenções, que o bom do religioso repulsou com
arrogância.
Conformado, pois, a sair immedialamenle de
Madrid, só lhe custava o não poder sequer des-
pedir-se da sua bemfeilora, d'aquella que sempre
o tratara com tanto carinho ; e chegou a tal pon-
to o seu sentimento nesta parte, que o cardeal e
lodos os circu instantes não poderam conter as la-
grimas á vista de tão sincera dedicação. O pró-
prio cardeal olTereceu-lhe mil dobrões para gastos
da viagem; mas, o padre não acceitou a olVerta,
dizendo: alleligioso pobre entrei em Ilespanha,
pobre sairei d'ella.» E quando, já de noite, o
cardeal, voltando para acompanhai o á sua car-
ruagem, lhe perguntou se linha disposto a sua
equqiagem, respondeu «que Ioda ella consistia no
seu habito e no seu breviário.» Partiram, pois,
acompanhados de alguns familiares do santo olli-
cio ; mas logo que o povo, agrupado nas ruas do
transito, suspeitou que ia na carruagem o confes-
sor, j)rorompeu em gritos desaforados, doestos e
maldições, atirou-lhe com pedras, e se não fosse
o respeito que infundia o cardeal c a sua presen-
ça de espirito, não escaparia á morte: O padre
Everardo eoin apparente tranciuillidade, e os olhos
banhados de lagrimas, respondia á(iuellas vocife-
rações com estas palavras : «Adeus meus lilhos,
vou-me embora.»
Em quanto ás embaixadas de Roma e de Vien-
na. embora a rainha lhe escrevesse |)ara Euencar-
lal, reiterando a sua nomeação, o jesuíta não
(juiz acceilal-a. Só lomou a (|uai)tía de duís mil
pesos que a mesma senhora lhe enviara para a
viagem ; pois era tal a modéstia do padre, que no
seu quarto só foram encontrados alguns moveis
pobres, um cilicio e umas disciplinas.
No thealro coi lezão, com a saída do padre Ni-
lard, liouve completa mudança de scena : logo to-
408
O PANORAMA
dos dirigiram sons olhares o adulações para D. João.
Este escreveu á generosa lainlia dando-ilie graças
por ter afastado do seu lado o confessor, e pedin-
do-lhe permissão para ir a Madrid bcijar-lbe as
suas reaes mãos. A rainha, porém, em vez de
dispensar-lhe esta honra, mandou que se retirasse
a doze léguas da còrle ; resposía que o príncipe
muito sentio, mas que não foi bastante para dis-
suadil-o de escrever à rainha e ao Conselho in-
sistindo em que fosse exonerado o jesuita das di-
gnidades e empregos que obtivera ; isto não só
com o fim de impedil-o de voltar a Ilespanha, se
não para que taes vagaturas fossem preenchidas
por homens de reconhecido mérito e serviços. Que-
ria também sua alteza que se tirasse a presidên-
cia de ("laslella ao bispo de Plasencia, porserelle
quem firmara a sentença de morte de Malladas,
e que o marquez de Aitona, sou inimigo capital,
deixasse de ter voto no Conselho.
A rainha escreveu novamente a D. João mani-
festando-lhe o desgosto que lhe causavam as suas
exigências, e reiterando a ordem de afastar-se e
licenciar a sua escolta ; ao que elle replicou que
o faria logo que soubesse achar-se fora do reino
o padre Sitard. Por ultimo o próprio cardeal di-
rigio-se a Guadalajara, e empenhou-secom o prín-
cipe para que obedecesse ás ordens da soberana :
assignou-se uma espécie de tratado, na verdade,
bem pouco lisongeíro para o throno, e, emfim, o
príncipe licenciou a sua tropa.
Mas, não eram ainda decorridos três mezes,
pelo motivo da organisação de uma guarda real,
tornou o príncipe a escrever à rainha, moslran-
do-lhe os inconvenientes de semelhante medida.
Ella, porém, não fez caso, nem deu ouvidos as
muitas reclamações dos tribunaes e auctorídados
de Madrid, e do que tratou foi de confirmar as
suas ordens para que D. João saísse de Guadala-
jara : verdade é que para o empenhar a isso o
nomeava vice-rei e vigário geral da coroa de Aragão.
Isto parece que satisfez os desejos e orgulho do
príncipe, o qual respondeu á rainha muito submisso,
pedindo-lhe unicamente que cuidasse na educação
do rei menor. Ao mesmo tempo dirigio uma sup-
plica ao papa para que obrigasse o padre Nilard
a demíltir-se do cargo de inquisidor geral; mas
a rainha, que nunca o esquecera, trabalhava por
seu lado para lhe ser conferido o capello. Esta
obstinação da soberana co receio de que uma vez
cardeal o bom do padre voltaria a Madrid appoia-
do pelo novo regimento ou guarda de la C/iam-
berga íassim chamado pelo seu trajo á franceza e
moda de Mr. Schomberg; agitaram fortemente os
ânimos; os mais turbulentos faziam correi' com
estas vozes um decreto apíkrifo em que se man-
dava desarmar o povo, e encareciam e exagera-
vam as desordens e a arrogância dos Chambergos,
em termos que o ódio para com elles crescia de
dia para dia.
Entretanto D. João proseguia em Saragoça se-
nhor de todos os corações, e com uma invejável
popularidade, e continuava em Madrid e em Ro-
ma 09 seus meneios contra o padre Nitard. O
Conselho tratou também de appoiar estes e de
neutralisar os da rainha a seu favor, propondo ao
ponlilice outias pessoas para o capello; e tanto o
convenceu, que o padre Nilard não só o não
obteve, como foi também obrigado a demittir-se
dos seus cargos e a entrar em um collegio de je-
suítas nas proximidades de Uoma. Esta desgraça
causou desgosto tão grave á religiosa soberana,
que adoeceu, não podendo vingar-se logo de D.
João, a quem suppunha auclor destes desaires.
Mas depressa se lhe on'ereceu occasião de fazer
sentir ainda a sua protecção ao padre jesuita ;
porque fallecendo o papa Clemente IX e succe-
dendo-lhe no pontificado o cardeal Altierí, que
tomou o nome de Clemente X, tornou a nomear
novamente o padre Everardo seu embaixador em
Roma, e tanto trabalhou, que conseguio fazel-o ar-
cebispo de Edesa, e por fim cardeal em 1672, to-
mando o nome de Bartholomeu de Isola.
O novo cardeal escreveu então a D. João uma
carta muito attenciosa, pensando com isto altrair
a sua benevolência e a possibilidade de voltar á
Ilespanha ; mas enganou-se completamente, por-
que o príncipe nem sequer lhe respondeu ; e este
desaire e a consideração do favor que o princípG
continuava gosando no conceito do publico, dís-
suadio-o da ídéa de regresso, até d'alí a três an-
nos em que terminou a menoridade de Carlos II.
Assim acabou a influencia do bom padre Ni-
tard ; mas não se julgue que se restabeleceu o socego
no reino, e que o lugar de valido ficou vago: ou-
tro personagem não menos celebre, que por in-
tervenção do confessor tivera entrada no palácio,
soube de modo tal lornar-se aíTeiçoado á rainha
que ella na ausência do padre o escolheu logo para
seu conselheiro e lhe conferio as mais altas digni-
dades do reino. Este personagem foi D. Fernando
de Valenzuela, de quem opporlunamente fatiare-
mos, para que este nosso resumido trabalho pos-
sa dar a ídéa mais completa do que se passou
n'aquelle reino cm todo o tempo da menoridade
do lilho de Phílippe II. E tudo isto porque? Por
causa de duas boas almas, dois modelos de virtu-
de, dois corações humanos e generosos: uma rai-
nha, como quasi todas as que a nossa vísinha tem
tido, religiosa e amante do seu povo ; um bom
padre, sem aspirações ás grandezas da terra, des-
pido de ambição ! Mas é que o povo nunca está
satisfeito, c os aulícos nem todos são dotados dos
mesmos sentimentos. As creaturas cândidas e sin-
gelas tiveram sempre o ódio da humanidade. Ve-
ja-se o que em pleno século XIX se tem passado
com a virtuosa Isabel II.
Quando, em a nossa juventude, os homens e
as cousas não tem podido arrancar-nos aquella
delicada flor do sentimento, aquella verdura de
pensamento, aquella nobre pureza de consciência,
que nunca nos deixa transigir com o mal : com-
penetramo-nos dos nossos deveres ; a nossa honra
fala alto e faz-se escutar; somos francos e since-
ros, n. de Balzac,
Tyi). l''raiicu-l'orluguozii, Uua tio Thcbouro Vcliio, C.
52
o PANORAMA
409
MONUiMEiNTOS MCIONAES ANTIGOS
III
o Conventinho do Desagravo em Lisboa
Corre o vandalismo despcaiio de
uni a out'0 extremo do reino, e
tudo assola e desbarata.
Sr. a. Herculano. —P««oraína.
A suppressão dos conventos das freiras em Por-
tugal eslá próxima, porque ceifadas diariamente
pela morte, teem elles de íicar abandonados por
ialta de povoadores. Qual será o futuro de muitos,
nos quaes, além de lhes andarem annexas muitas
recordações históricas, se guardam ainda deposi-
tados tantos, e tão preciosos objectos artísticos?
Que virá a ser do tão devoto Mosteiro da Madre
de Deus, e dos seus Ião preciosos quadros? (1)
Aonde irão parar as antiguidades romanas, ainda
existentes em Chellas, depois de tantos séculos?
Aonde irão ler os ossos'"de Ahareanes de í-arna-
che, alferes da Ala dos Namorados na batalha de
Aljubarrota, depositados em Corpus Christi de Vil-
la Nova de Gaia ? (2) Quantos annos faltarão ainda
para que as igrejas do Salvador, Monicas, Trinas
e outras muitas sejam um montão de entulho?
Qual seiá o destino de Lorvão, Cell?s, Santa Cla-
ra, Estrella, e de tantos, fundados por nossos maio-
res ou em agradecimento á Divindade por bene-
fícios recebidos, ou em expiação de crimes com-
mettidos? Mas, quando de lodos elles não existir
mais do que ura montão de ruinas, possa haver
então lembrança de que ainda em 18G6, n'uni
o Conventinho do Desagravo em Lisboa
pequenino mosteiro cm Lisboa, se praticavam aus-
teridades e rigores taes, debaixo da designação de
penitencias, (|uc não tornam incríveis as que di-
zem os livros terem sido postas em pratica pelos
antigos solitários da Thebaida e da Palestina : e
rigores taes usados ainda não somente por velhas
sexagenárias, que nunca conheceram o mundo ;
mas, até, por jovens de IG e 20 annos, que ali
existem debaixo do titulo de educandas, mas su-
jeitas voluntariamente á mesma disciplina con-
ventual, sem cuja pratica seriam excluídas.
O Mosteiro, de que se trata neste artigo, é o
conhecido vulgarmente pelo nome de Conventi-
nho, defronte da incompleta e proverbial igreja
de Santa Engracia, próximo do Campo de Santa
Clara em Lisboa. A respeito delle diz-nos o Be-
(1) Moi aussl j 'aime les tableaux golhiques quand ils reufer-
ment dcs benutós, eome-celles qui se voient d^ins les panneanx de
Setúbal, de Madre de Deos, de Sam Bento, et dans los Abraham
Prim. — Backzinsky. Lellres. png. 176.
neficiado João Baptista de Castro o seguinte no
seu iMappa de Portugal : (3)
«Santa Clara de lleligiosas Seráficas observantes
da Província chamada de Portugal. Foi fundada
a Igreja no anno de I29i por uma D. Ignez, viu-
va de D. VivaUlo, nacional de Génova, mas Cida-
dão honrado de Lisboa, posto que já no anno de
1292 existiam aqui Religiosas. Deste Mosteiro am-
plíssimo, exceptuando o dormitório chamado da
benção, e o dos corredores, duas varandas, e al-
gumas Capellas, tudo mais, que em dormitórios,
e casas particulares recolhia mais de seiscentas
mulheres entre Religiosas, educandas, recolhidas
e criadas, íicou ou de todo abatido, ou irrepara-
velmente arruinado com o terremoto. O seu fa-
moso Templo, que era um monte de ouro, e na
grandeza excedia a todos os mais Mosteiros da
(2) Fr. Luiz de Sousa. Hislor. de S. Domingos. Liv, G.° cap. ô.*"
(.i) Vol. 3.0 pag. 275. Ediç. Uo 1763.
410
O PANORAMA
Corte, ficou lolalaienle prostrado, excepto a Iri-
buna e cosias da Capella Mór, sepultando mais
de quatro ceiítcs pessoas, que estavam assistindo
aos Oííicios Divinos. O Coro de cima, (jue era um
Paraiso na terra, Iam' em se abaleo, e sérvio de
sepultura com suas ruinas a quasl todas as Reli-
giosas, que foram cincoenta e seis, alem de oito
educandas, uma noviça, (luatorze recolliiilas, ([ua-
lenta e três criadas, e nove escravas, que |)or to-
das fazem cento e trinta e uma pessoas dentro do
Mosteiro, que pereceram nesta trágica fatalidade »
A infanta D. Maria Anna, lillia de D José I,
julgando-se devedora a Deus pela ler livrado de
uma grave moléstia, em agradecimento mandou
no local deste arruinado convento levantar um
outro, com approvação da rainha D. Maria l, que
ajudou com varias esmolas. Km 23 de outubro de
1783 entraram neste pobre conventinho 4 freiras
fundadoras, com 8 recolhidas, e 6 noviças. Hou-
ve nesse dia um solemne Puntitical, ao qual as-
sistiram as pessoas reaes.
Antes da fundação deste conventinho, pelo es-
paço de perlo de cinco annos exislio no mesmo
sitio um recolhimento da mesma observância, fun-
dado [)elo marquez de Angcja, em cumpiimento
dum voto feito no caso de melhorar duma peri-
gosa enfermidade a marqueza D. Francisca de
Assis. Entraram neste recolhimento 4 meninas,
em 22 de maio de 1779, e neste dia começaram
os Lausperennes, e nelle celebrou I). Manoel, ir-
mão da referida maiípieza. Mais tarde chegaram
as recolhidas a ser lo, vivendo em geral das es-
molas dadas pelos lieis.
.Morreu a infanta D. .Maria Anna pelas 9 horas
da noite, no Rio de Janeii'o, em 16 de maio de
1813, e ficou depositada no convento de Nossa
Senhora da Aju la na dita cidade, no (|ual as re-
ligiosas lhe fizeram exe(|uias muito solemnes. A
noticia do falleciíneiilo desta senhora chegou ao
conventinho em julho do mesmo anno, e passados
alguns dias lambem nelle se lizeram solemnes
exéquias, e com grande pompa, concorrendo com
toda a despeza .lorio Baptista, homem muito rico.
Km 3 de janeiro de 1822, j)(-las 11 horas da
noite, chegaram ao conventinho D. João VI, acom-
panhada da infanta D. Isabel .Maria, do infante
I). Miguel, e D. Sebastião, da llesjjanha, e duma
numerosa c luzida corte, fazendo acompanhamen-
to ao coche, em (jue vinha o cadáver da infanta
D. .Maria Anna, o (piai, depois de responsos can-
tados pelos frades do convento da (iraça, ficou
de[)Ositado nesle convento, no coio de baixo, em
um tumulo, onde se acha presentemente.
No anno seguinte, 1823, veio lambem D. João
VI, com suas lies li lhas, e com D. .Miguel, a.ssis-
tir a outras exeijuias feitas á mesma infanta. Foi
orador desta solemnidadí; Fr. José Maria, reli-
gioso paulista, orador de fama, e mais tarde no-
meado bispo.
A vida das religiosas deste mosteiro é muito
austera : oração continua, estando sempre a toda
a hora do dia (; da noite duas religio.sas em ora-
ção dianle do Sacramento. Somente a prioresa e
a i'odeira podem fallar com pessoas estranhas á
clausura deste convento. Seu leito uma cortiça ;
seu travesseiro um madeii"o ; o vestido interior,
estamenha ; o exterior, burel ; o calçado, sanda-
dalias : os jejuns frequenlissimos ; a comida, do
magro, exceptuadas ajienas as doentes.
('elebram estas freiras varias festividades, can-
tando ellas cantochão com uma tonadilha especial
e unisona, e com acompanhamento de i'abecão.
Festejam em 16 de janeiro o Sacramento pelo
desacato occorrido na freguezia de Santa Fngra-
cia : o Palriarcha S. Francisco, e a Matriarcha
Sa.ita Clara, o Coi'ação de Jesus, Semana Santa, e
lêem Lausperenne em Iodas as quintas feiras do
anno.
O patriarcha de Lisboa, Guilherme, numa vi-
sita feita a este convento oíTereceu licença jiara
as religiosas poderem moderar os rigores do seu
modo de viver, poi'ém não foi acceita pelas frei-
ras.
X igreja e convento são mui pequenos e pobres,
e nada olVerecem de notável, nem digno de espe-
cial menção.
Ha na actualidade 10 religios?s professas.
Em tempos mais antigos saía da igieja deste
convento uma procissão á meia noite a 16 de ja-
neiro, em desagravo do Sacramento ultrajado nos
silios de Santa Engracia. M. B. Bbango.
SOBRE AS MEMORIAS DOS VINTE ANNOS
(Carta n Júlio do Castilbol
(ConlinuMçrio)
Eu estava a fugir de fallar ao Júlio nesses dois
personagens, que mais nos prendem nas suas Me-
morias, como principaes que são; seria um ridí-
culo disfarce comtudo, que a verdade primeiro e
o aílVcto depois estavam rijo a condemnar. Luiz
e Magdalena são duas liguras sympathicas e im-
ponentes, em que o cinzel do esculptor correu
afortunado e opulento. Lá (jue a posição da esta-
tua seja menos natural, isso é outra cousa, mas
facto (|iie não destr.(')e a eorrecção das linhas e a
belleza dos contornos.
Estas duas creanças que se estremecem tibias
em contemplação silencio.sa, e sem os arrebata-
mentos divinisadores do coração, são um cons-
tante e imperlurbado idyllio, perfeitíssimo á luz
litteraria, mentiroso perante a realidade aterrado-
ra do nosso viver social 1
Eu tenho apreciado no seu livro ao pé da boa
elocução litteraria as phases verdadeiras de qual-
quer caracter. Consinta-me o continuar.
Esta sua producção, Júlio, é um muito mimoso
ramilhete, todo elle nuilisado com a viold odorata
e a viola tricolor, as duas dicolN ledonias da alma,
muito mimoso para corresponder ao titulo de Me-
morias dos vinle annos.
Este livro aceila-se como revelação intima do
auctor: germinam viço.sas a ílor da submissão e
a do alíecto, o obseíjuio aos pães, c o l(>stemunho
á mulher-esposa.
Mas o enxamaer das dilislusoes? o entravar das
o PANORAMA
4M
perfídias? o ononlocer da alma desconfoilada e
mal-segura aos balanços do mar aparcellado ': o
morrer-se a moile lenia nas conlorsões atlliclivas
da dôr que nos piosira ? o exorar otTegante a Deus
pelo negrume do nada. em vez da nostalgia do céo,
que è o aspirar supremo do chrisião? o crebro fuzil-
lar d'esla noute, que não se destolda, ed'esla bor-
rasca incessante, que nossuíToca? a aridez da íace
amarellada, que não teve osculo que lhe enxu-
gasse o sulco das lagrymas vertidas? o bulcão de
uma sociedade tábida, que nos fazarreceiar noque
havemos de mais intimo — a familia? este atirar
com o corpo requentado da febre para a lagea
fria do cemitério; e a l.igea, impassível até ella, a
solevantar-se, a vasal-ofóraea fugir-lhe"? o invejar
com olhos de ciúme, não o repouso do cadáver,
que isso seria muito, mas até o vegetar da plan-
ta, que cresce abeira do sarcophago, e se vac a
enraizar subterrânea por entre a' cal e a terra, e
a podridão e o craneo, e os fémures e osparietaes,
partidos ás vezes, e dispersos quasi sempre em
caixão rebentado? este martyrio que inferna a
alma? esta peçonha, cuspida por Salanaz nos vinte
a -nos de hoje? onde está no seu livro? em que
piírte vem das suas Memorias?
Na occasião em que lemos juntos as suas pagi-
nas, eu e o Eugénio, em que as lemos a deleilar-
nos na sua fresquidão, dizia lhe eu cousa quasi
quasi similhante a esta, que ora refiro a v. ex.'
Obsta va-me o Eugénio a que esperasse pela lei-
tura de futuros capítulos, em que o dramático
da situação venceria a costumada serenidade que
eu notava. Vieram elles; vi o que o asco do crime
pôde arrancar à seiva de uma juventude aprovei-
tada; applaudi identificado; mas a graciosa timi-
dez da alma cândida continuou a resallar das pagi-
nas, e a dar o tom incompetente ás tempestades
do coração opprimido !
É como se a creança a entrar em homem, tí-
mida, e por ventura innocente, levassem de subi-
lo a lupanar disfarçado, em que a perdida se ar-
rebicasse em sentimento postiço para attrahir mais
prestes, mas a que mão astuta desvendasse rápida
os seios remendados de adhesivo, dizendo ao in-
fante : vês, foi da rixa de hontem !
Então era o enojar da creança; o balbuciar
inaudível quasi de phrase soturna ; e depois o fu-
gir ; e pouco mais tarde o brincar socegado e
inefável I É que o presen li mento da maldade não
lhe revelara a altura da sua hediondez!
A alma do Júlio ignora lambem a {)hrase do
que chegou a descrer.
Se um dia o infortúnio bater á sua porta, e
lhe deslembrar a jaculatória, que hoje solla afer-
vorado, Júlio; se por ventura enlão pegar d'esle
livro, d\'sle livro, que eu não posso ver, que me
rasga o coração, que me dilucida do Iransviamen-
to da minha alma, chore, chore.
Estas puerilidades traduzem-se em bemaventu-
ranca de elegido.
29 de outubro de GO,
D^V. Ex.oeíc.
J. A. DA (JínACA BAnUETO.
DANIEL 0'CONNELL
(Concliiíãu)
II
Espantar se-hão os leitores de que eu tanto
prolrabisse este esboço histórico das perseguições
da Irlanda reservando epenas para as duas' ou
trcs paginas finacs o, retrato do vullo que me
propuz biographar. É porque essa historia faz
comprehender imniediatamenle a importância do
vullo deO"Connell. Basta dizermos : OConnell foi
durante a sua vida inteira, perante o mundo, o
campeão daquella nacionalidade opprimida. O
desenrolar deste sudário foi a sua eloquência.
Os grilos abafados, que durante séculos as victi-
mas soltaram, foram se concentrar afinal numa
voz única, e essa voz troou de repente na tribu-
na de Londres, grave, sonora, formidável, e essa
voz foi a de 0'Connell, e essa voz revelou ao mun-
do espantado o crime de que uma naçcão fora
a perpretadora, e outra nação a victima. E tudo
emmudeceu diante d"aquella voz que saía do tu-
mulo d'um povo, e questões mesquinhas da po-
litica, questões secundarias de civilisação mate-
rial, questões de personalidades tudo se poz de
parle, calou-se tudo não ousando profanar aquel-
les Ihrenos. em que o Ezechuiel parlamentar cho-
rava as desgraças da Sião irlandeza, e chamava
a maldição do mundo sobre os crimes d'essa
líabylonia nebulosa, e o vulto severo e triste de
OConnell ergueu-se diante de lodos, rodeiado
das bênçãos dos seus compatriotas, da admira-
ção da Europa, do terror dos seus antigos op-
pressores.
Aquella Irlanda era um antro. Commeltiam-se
ali crimes nefandos de que pouco transpirava. A
fome dizimava a população, e a Europa, quasi
ignorando o desastre, continuava a exaltar, a
applaudir, a imitar a alegre Inglaterra, iiierry
England, alegre oppressora da melancholica Erin.
E surgio 0'Connell e o \éo corrcu-se, e atra-
vez do silencio ofíicial vibraram os grilos das
gerações opprimidas, e a Inglaterra foi chamada
ao tribunal da humanidade, e le\anlou-se o man-
to esplendido da cí\ilisação, e viram-se por bai-
xo as pústulas asquerosas, os andrajos da Irlan-
da.
E a Inglaterra tremeu e cedeu. A voz de 0'Con-
nell, como a trombeta dos Israelitas, fez cair as
muralhas d'es?a Jcrichõ tradicional, que se cha-
ma a Constituição ingleza.
Eis o motivo porque eu, em vez de traçar a
biographia do grande tribuno, biographia que
em duas palavras se resume, preferi expor esses
sele séculos de oppressão para que se podessc
comprehender que grande seria o homem, cuja
eloquência se poz ao serviço desta causa, e por
ella pelejou c venceu.
Fatiemos agora no homem.
Daniel 0'Connell nasceu no dia O d'agoslo de
1775 em Cahir Civeen no condado de Kerry. Di-
zia-se que elle descendia dos antigos reis de Ir-
landa. Seria verdadeira a tradição, ou o povo
irlandez, na sua ingenuidade, se comprazeria em
doirar com essas reminiscências dum passado
glorioso o vulto do seu tribuno querido, e dese-
jaria ligar intimamente o interrompido fio da
existência nacional^ prendendo ás saudades do
passado as esperanças do futuro ? Nada se aíTir-
ma com certeza ; mas o que sabemos é que era
412
O PANORAMA
Daniel 0'Connell o mais velho dos dez filhos de
Morgan 0"ConnelI, rico lavrador, e que, destinado
ao eslado ecciesiaslico pela sua faniilia, foi cslu
dar a França no coUegio dos jesuítas de Saint-
Omer. Em 1794 voltou á Irlanda, mas a sua vo-
cação não o chamava ao sacerdócio, e o juvenil
estudante, já namorado da eloquência, c familiar
comas abelhas atticas que o visitavam em sonho,
preferio o foro, onde se ia preparando, como
Cícero, para as luctas da tribuna, que elle ainda
nem imaginava que se lhe podesse abrir.
Quatro annos estudou em Middle-Temple em
Londres, e em 1798, contando apenas vinte e
três annos de idade, estreou se em Dublin com
immenso successo, obtendo logo numerosíssima
clientela.
Desde então começou a revelar-se nelle lambem
o patriotismo ardente, que lhe devia dar tanta
gloria. As perseguições contra a Irlanda, um mo-
mento interrompidas, recomeçaram. Em 1800 é
abolido o parlamento irlandez. 0'Connell protesta
contra esse acto em voz bem alta, não receiando,
o temerário sublime, conciliar o ódio da poUtica
britannica.
Por esse tempo o grande ministro Pitt promet-
tera obter a emancipação dos catholicos; a Ir-
landa nada em jubilo, mas é vã a promessa; o
fanático Jorge 1IÍ recusa obstinadamente assignar
o decreto onde está exarada essa medida ião
conforme com a justiça e a humanidade. Pitt
pede a sua demissão, e a esperança dos catholi-
cos, assim mallograda, transforma-se numa ir-
ritação formidável, que se manifesta pela recru-
descência das sociedades politicas, entre as quaes
figura em primeira linha a Associação Gatholica,
de que é Daniel 0'Connell membro activíssimo,
e onde os seus compatriotas reconhecem pela
primeira vez a sua eloquência tribunicia, e taci
lamente lhe confiam os destinos da pátria.
Isto passava-se em 1807. Nesse mesmo anno
casara o grande orador com sua sobrinha Maria
0'Connell.
Começa então a longa lucla de vinte e três
annos, em que Daniel 0'Connell consumio a sua
Juventude, lucta em que o seu nome, pronuncia-
do com terror pelo próprio Wellington, o vence-
dor de Bonaparte, se doirou com todos os es-
f)lendores da gloria. Ouvio a Europa esse rumor
onginquo, voltou os olhos para a Irlanda, c vio
esse nobre vulto, esse representante da civilisa-
ção c da humanidade^ pondo montanha sobre
montanha, Pelion sobre Ossa, para galgar ao
Olympo inviolável da Constituição ingleza, fa-
zendo corar de vergonha os (}ue se diziam li-
bertadores do mundo e tinham em ferros um
pai7. irmão, os que se diziam guias do caminhar
civilisador, e tinham uma legislação mergulha-
da nas trevas da barbaria, os que se ufana-
vam de terem primeiro no c(jo nebuloso da Eu-
ropa accendido a estrella dalva da liberdade, e
que envolviam C(jm cuidado no denso manto da
morte os seus mais próximos irmãos.
E a voz troava incessante no extremo Occiden-
tal da Europa, e vinha resoar em torno das pa-
redes d'essa Jerichó de Westminster-Hall, que se
obstinava cm cerrar as portas aos novos Israeli-
tas fugindo da escravidão do Egypto, e a cada
brado dessa voz possante a Irlanda erguiase cm
Y)C', nOo tumultuaria c sangui-sedenta, como no
tempo de Isabel, de Carlos ], de Cromwell, de
Guilherme dOrange, de Jorge IIÍ, mas grave,
austera e ameaçadora na sua tranquillidade im-
ponente. A Associação Catholica, a que Daniel
0'Conncll dera uma organisação poderosa, foi a
alavanca de que se ser\io para exercer sobre o
seu paiz uma influencia decisiva. Corria um fré-
mito pela Irlanda a cada gesto do tribuno, como
estremece a Sicilia quando se agita no Etna o
Titão soterrado.
Luctou e venceu. Em 1829 lord Wellington,
presidente do conselho de ministros, vio-se obri-
gado a propor e Jorge IV a assignar o decreto
da emancipação dos catholicos, e em fevereiro
de 1830 Daniel 0'Connell em pleno goso de seus
direitos políticos, entrava em triumpho na ca-
mará baixa. Caíra Jerichó.
Desde então 0'Connell segue uma politica, pri-
meiro applaudida pelos seus compatriotas, depois
accusada de moderantismo por esse partido ul-
tra, que sempre vem em seguida ás reacções le-
gaes. Comprehendendo as vantagens da união
dos dois povos, 0"Connell quer que a Irlanda te-
nha uma iníluencia legitima nos negócios geraes
da Grã-Brelanha. Consegue o. Em 183i os votos
da deputação irlandeza decidem a queda de um
ministério. Apesar dos murmúrios da facção exag-
gerada, que se intitulava Juvenil Irlanda, 0'Con-
nell continuava a ter o paiz na sua mão. Em
18i2 foi eleito lord-mayor de Dublin. Uma pen-
são de loSOOO libras é-lhe decretada pelos seus
compatriotas. Em 1843 o governo, receioso da
sua influencia, aproveita um pretexto especioso
para o chamar aos tribunaes, como perturbador
da paz publica. Os tribunaes condemnam-no, mas
a camará alta absolve-o. 0'Connell sae em trium-
pho da prisão. Mas a sua saúde começava a de-
clinar visivelmente. Quer emprehender uma ro-
maria á capital do mundo catholico, mas a mor-
te surprehende o em Génova, e o grande orador
finda a \ida terrestre no dia 13 de maio de 1847.
Eis o que foi o tribuno irlandez, um dos ho-
mens mais eloquentes desle século, e o campeão
constante e inabalável da causa santa d'um povo,
cujo longo martyrio forma a pagina negra da
historia, aliás tão brilhante, da Grã-Bretanha.
M. Pinheiro Chagas.
OS NOVOS ÓRGÃOS DA SCIENCIA
Á medida que as relações dos povos crescem,
a sciencia ganha ao mesmo lempo em veradde e
prolundesa. A creaçáo de novos órgãos, porque
assim podem ser chamados os inslrumcnlos de
observação, augmonla a foi-ça physiea do liomeni.
Mais rápida do (|ue a luz, a corrente eleclrica le-
va o pensamento e a voniade ás mais longiquas
regiões. Uni dia virá cm que certas forças que se
exercitam Iraníjuiiiamente na naluresa elementar,
como nas cellulas delicadas do lecido orgânico,
sem que nossos sentidos tenham podido ainda
descobril-as, reconhecidas enillm, aproveitadas e
levadas a um grau mais subido de actividade, to-
marão lugar na serie indeíinila dos meios com o
auxilio dos quaes, lornando-nos senhores de cada
domínio particular no imj)erio da natureza, nos
elevemos a um conhecimento mais inlelligenle e
mais animado do conjunto do mundo.
IIlmboldt, Cosmus.
índice
(Os asicriscos anles da numerarão das pngi ias dcsiunain gravuras)
Aborigones da Austrália, 228 *
22U
Academia do cachimbo, 195
Adoração dos Pastores (quadro
de Ribera), 308 * 309
Adriauo Brawor, 3iG
Advertência, -i3
Agostinho iSanto) (excerpto) 52
Agua doce sobre a salgada, 248
Albany (uma rua de), ' 161
Alcatrão (o), * 69
AUamistakeo (vid. Contos)
Amor á pátria, 187
Andorinha (a), *9
Anccdotas — A bellesa e os ador-
nos, 4
— Fastidiosos preliminares ,
244
— A posteridade, 8
— O segredo, 8
— Os três filhos de família,
238
—Três ladrões, 212
Ao publico, 1, 352, 3G8
Applicação do bello ás scien-
cias, ás letras e ás artes, 158
Apologo ou fabula (estudo),* 337
Arco da rua Augusta, " 201
Arte (umat perdida, 39
Arvore (a)do bom pastor,'(idilio)
99
Arvore do manná, * 77
Atmeidan (o),* 369
Austrália (aborígenes da), * 228
229
Azaria (etymologia desta pala-
vra), 203
Bananeira (a), * 49
Barbada, ' 137
Batalha de Poitiers, 100 ' 101
Bazin, 159
Beatriz (poema), 32, 39, 56, 64,
72, 80, 104, 112
Bedford (uma escola), * 357
Beduínos, 172 * 173
Bellesa (a) e os adornos (anec-
dota) 4
Benedek, * 249
BengucUa, * 273, 323
Birmingham, 321 * 322
Bismark, ' 289
Boca (a) do inferno (vid. roman-
ces)
Brahmanes (os), ' 265, 310, 335,
338
Brawer (pintor flamengo), 3i6
Bristol, ' 269
Bugios (os), 196 * 197
Caçador (o) de elephantes (conto
persa) 3 1 1
Camará municipal de Derby ,*1 2 1
Capella de Santa Rosália no
monte Peregrino, ' 401
Carlos II de Hespanha, 339, 356,
380, 400
Carta dosr. A.F.de Castilho, 20
Carta ao sr. Júlio de Castilho, 386
410
Carta dosr.Rebello da Silva, 303
Casa da camará de Liverpool,
li8*149
Castcllo do Ehrenbreitstein *193
Castello do Kcnilworth, 132*133
Castello e porto de Dover, * 36 1
Cataracta (a) de Corra-Linn,' 2 1 7
Cathedral do Chartres, ' 285
Cathedral de Lichfield, * 17
Cathedral de Rochester, * 253
Cathedral dcWorcester'381 ,382
Cervantes (em que circumstan-
cias foi composto o romance
de Don Ouixotc), 190
Chacal (o) e a raposa (fabula) 220
Chartres (cathedral de), ' 285
Cholera (o), 283, 298
Chronica geographica, 223
Chronicon Albeldense (obra do
século IX), 230, 248, 264,271,
332, 359, 392
Cidade (uma) do madeira, 399
Cintra (vista pittorcsca dos pa-
ços de), * 57, 58
Circassianos, " 105
Clássicos (a nova edição dos),
212
Como se determina a distancia
das estrellas á terra, * 259
•Como se faz o gelo cm Bengala,
140
Conda AUamistakeo (vid. con-
tos)
Conde de Chatam, * 89
Confissão (a), (idilio), 11
Constantinopla (o Atmeidan),
* 3G9
Contos — O caçador de elephan-
tes, 311
— O conde AUamistakeo, 218,
226, 255, 274, 382
— A formiga e a aranha, 272
— O granadeiro, 354
— O homem ([ue não ri, 252,262
— Justo castigo, 208
— Os ovos e os cavallos, 359
— A papa gente, o ferreiro e o
alfaiate, 222
— Um pesadello, 102
— Os pescadores e o urso, 318
— Rã-Pulanto, 18, 30, 35
— As rãs de Sartilly, 84
— Razaila, 264
■ — Os três estados, 114, 122
Contradanca(a) ridícula, (de Ho-
garth), 2"36 * 237
Convento de S. Domingos de
Santarém, *305
Coram (o Capitão), * 185
Corra-Linn (a cataracta de)' 217
Cortes (o palácio das) * 209
Corvo (o) e a raposa, ' 337
Corvos marinhos, "61, 62
Corypha umbraeulifora, * 385
Costumes dos Turcos, 34
Conventinho do Desagravo em
Lisboa, • 409
Crença (a) gauleza, 264
Critica (a) litteraria, 183
Cuscus (o), 276
Cyclones (utilidade dos), 140
Daliomey, 79
Daniel 0'Connel, 388,*389, 401,
410
Daniel Richard, 119
Da utilidade de uma lingua uni-
versal, 188
De que vivem as plantas, 1 83
Derby (camará municipal de),
* 121
Derrota de Valdez na Terceira,
304, 313
Descoberta (da) das longitudes
no mar, 231
Desconfiar das flores durante a
noite, 138
Dia (um) d'invcrno (meditação),
123
Divisão do tempo na (iiiina, 200
Dois (os) rapazes (([uadro de
Murillo), 292 * 293
Dominiquino (quadro), 05 * 66
Dover (Castello e porto de),* 30 1
Duguet (os escrúpulos), 175
Eneas salvando .\ncliises, 65*66
Eneida (noticia de uma traduc-
ção inédita da), 3i9
Eiiistola dedicatória de Gil-Vi-
cente a D.João III, 51
Eljitajihio, 279
Erratas, 43, 90
Esboço descriptivo do mar^ lOG
Escola militar de \Voohvick,!93
l-íscrupulos (os), 175
Escrúpulos honrosos de dois
homens illustres, 159
l';strclla (a) da manhã, (lenda
indiana), 182
Estudo (o) da historia (apologo),
13 í
Evgmoula (canto grego) 2i8
Excerptos de auctores portu-
guezos — Padre .Vntonio Viei-
ra, 47, 92, 112, 128, 135,148,
296
— B. Ribeiro, 112, 144
■ — Braz Garcia de Mascarenhas,
160
— Duarte Nunes de Leão, 1 12
— Fernão Mendes Pinto, 336
• — D. Francisco Manuel, 20. 31,
272
— Francisco de Moraes, 156, 216
— Francisco Rodrigues Lobo, 70
70. 80, 96, 112, 136
—Garrett, 104, 156, 160, 224
— Gil-Vicente, 51, 70
— José Maria da Costa e Silva,
51, 60
• — Fr. Luiz de Souza, 111, 112
— M. Aflonso de Miranda, 176,
183, 18i, 187
—Manuel Bernardes, 308, 312,
328, 332, 336
— R. de Rastos, 3i6
—Sá de Miranda, 390
— Thomaz António Gonzaga, 31
Fabulas — O chacal e a raposa,
220
— O lapidario e o diamante, 51
— O pavão e a cegonha, 60
Familia (a) dos Saxe-Goburgo-
Gotha, 197
Fastidiosos preliminares, (anee-
dota árabe), 24 í
Festa (a) dos reis, * 13
Festas dos musulmanos, 87
Fissirostros (os) diurnos, * 9
Flautas (as) do grande Frederi-
co, 165
Folguedo dos camponezes (qua-
dro de Van-Ostade) * 365
Formiga (a) o a aranha, (conto),
272 '^
Fortuna (a), 255
Galatéa moderna (vid. roman-
ces)
Galeria nacional de Londres,
140* 141
Génova, ' 24 i
Gibraltar, '153 '157
Granadeiro (o), (conto), 354
Gravura em madeira em Portu-
gal, 50, 68, 111
GuilliermeTelleSchiller319,330
Habitação turca, ' 33
Hebreus (a paschoa dos), 43
Ilenri Barth, 138
High-Street, * 277
Historia da gravura em madeira
em Portugal, 50, 68, 111
Historia dos relógios, 1 10
Historia da Rosa, 295, 306
Historia da Rosa, 306
Ilogarth (vid. ^Villiam Hogarth)
Homem (o) que não ri, (conto
árabe), 262, 252
Hong-Kong, ' 129
Hydo-Park, '313
Idilios — A confissão, 1 1
■ — .\ tempestade, 30
— A arvore do bom pastor, 99
Igreja de Saint-MaclouemRuão
' '41, 42
Igreja de Santa Maria d'Aguas
'Santas,' 225
Ilha Barbada, * 137
Ilhas de Gelo, 176
luragem da vida, 160
Inunensidadc, (meditação), 176
Imprensa nacional, ' 113
Imlia (instrucção na), 124
Infeliz i)oeta (quadro de Ho-
garthi, 28 ' 29
Inlluencia dos Etruscos, 260
Instrucção na índia, 124
Invocação, 151
Jacciues Jordães (o rei bebe,
quadro de), * 13
Jazigo da rainha D. Luiza Gus-
mão, 260
Jenner, 180* 181
João (S.) (quadro de Murillo) *85
João de Mattos Fragoso, 250,270
Joaquim José Domingues Lima,
47, 50
John Harri.son (descoberta das
longitudes no mar), 231
Jorge (D.) de Mascarenhas, 162,
189
Judeus (a paschoa dos), 43
Justo castigo (conto indiano) 208
Kara-Hissar, ' 325
Karl Christian-Rafn, 156
Kenilworth (castello de) 132*1 33
Knowle (quinta e palácio de)
' 261
Korounás, * 297
Lapidario (o) e o diamante, (fa-
bula), 51
Leão X, ' 25
Leeds, * 349
Leitor (um) do século passado,
304
Lendas indianas, (a cstrella da
manhã), 182
Leonardo Vinci (um soneto de),
284
Léon de Laborde, * 5
Leopardo (o), * 145
Lição a imi lisongeiro, 175
Lichfield (cathedral de), * 17
Liverpool (casa da camará de),
148* 149
Londres (galeria nacional de),
140* 141
Londres (High Street) ' 277,286,
299
Louis Dubeux, 171
Manná (o), ' 77
Mar (esboço descriptivo do), 106
Maria II (theatro de D.), "97, 1 18,
13Í
Marselha, * 353, 395, 404
Máximas, 10, 12,14, 16, 40, 58,
62, 64, 71, 72, 76, 105, 108,
175, 192, 199, 221, 232, 252,
254, 276, 280, 283, 296, 304,
310,320,330,371,377, 381,408
Microscópio (o) c o telescópio,
200,* 207, * 208
Monte Sinai, * 233
Mfiuumciito erigido á memoria
de Rcné Caillié, 144
Morte (a) do Gladiador ' 373
Morte (a) e o seu ministro, (pa-
rábola), 40
Movimento (do), 59, 07
Movimento (do) no universo, 375
Mozart, 204 '205,215
Mundo (o) do mar, 288, 315
Murillo (S.João, quadro de),* 85
Murillo (Os dois rapazes, qua-
dro de). 292 ' 293
Musico (o) enraivecido, (quadro
de Hogarlh), 116' 117
Musulmanos (festas dos), 87
Mythologia scandinava, 238
Mvthologia da Nova Zelândia,
\'78, 282
Natureza {a), 124
Newton (um dito de), 288
Nova Zelândia (mythologia)27S
282
Nympheaceas (as), * 28 1
Obra (umal do século IX (cliro-
nicon Albeldensei, 230, 248,
204, 27;, 332, 359, 392
Oliservaoões (algumas) sobre o
cérebro, 236
O Ocelote. ' 393
0'Connell, 388* 389,401,411
O que aconteceria se o movi-
mento da terra cessasse subi-
tamente, 143
Origem dos homens brancos, de
cor, pretos, 351
Ovos (os) e os cavallos (conto
dinamarquez), 359
Talacio lo) das cortes, * 209
Palermo, ' 81
Palestras hvgienicas (o pão) 217
251
Talmeira (a) talipot * 385
Papa (o) Leão X, '25
Paraná (apontamentos geogra-
phicos), 172
Paschoa (a) dos hebreus, 43
Patagões (os pelotiqueiros) 286
Pavão (o) e a cegonha (fabula),
60
Pekin (porta do norte) 108,
• 109
Pelotiqueiros (os) patagões,
286
Penna (a) d'aço, 194
Perez Lorenzõ (vid. romances)
Pernambuco (necessidade de
uma monographia acerca da
província de) 166
Pesadello (um), (conto phantas-
tico», 102
Pesca com corvos marinhos, *6 1
62
Pescadores (os) e o urso (conto
groenlandez) 318
Pliilo-portuguezes(os),4, 14, 22,
42.87
Pitt (William), * 89
Pizarro, 300,*301, 326, 329,342,
358, 367, 371
Plantas (o somno das), 207, 2 i I
Poesias — L'amour c'est la vie,
176
— Angélica, 64
—Beatriz, 32, 39, 56, 64, 72,80,
04, 2
—A borboleta, 1Ç8
—Casta Diva, 200
— Causeries, 20
—Descalça, 296
— Duas mães (soneto dedicado a
Thomaz Ribeiro), 40
— O espelho magico, 56
—A estrella, 8
— A Gomes de Amorim, 343
— Ilarpejo, 26
— Improviso, 104
— Invocação, 135
— O janota litterato, 1 60
— Â morte de Manuela Rey, 120
— Pallida mors, 48
— Na primavera, 184
— Prisão de amor, 72
-Profissão de fé, 336
—Repouso 232
— A uma rosa, 264
— Saudação á aurora, 24
—Saudades, 88
— Sem titulo, 120
—Sombras, 152
— Soneto, 144
—Terça feira, 360, 384, 400
— Visões á beira d'agua, 280
Poitiers (batalha de) 100 * 10 ;
Polyphemo (o) dos russos, 221
Ponto de Rialto em Veneza, 44
*45
Ponte natural na Virgínia, 244
•245
Ponte suspensa sobre o Avon
•269
Porto (estudos sobre a cidade
do), 362
Portsmouth, 188 ' 189
Posteridade (a), (anecdota), 8
Praça de Luiz de Camões,' 177
Prediccão e previsão do tempo,
327 '
Processo para extrair o alcatrão
' 69
Provérbios árabes, 184
Que provas positivas existem
de que a terra é redonda, gira
sobre si e á roda do sol, 191,
202
Onestão {a\ littcraria, 3, O, 86
(Juinta e palácio de KnovYle'26
Hã-Pulante (vid. contos)
Rãs (as) de Sartilly (conto), 84
Razaila (conto árabe) 264
Rei (o) bebe (quadro de Jordães)
* 13
Reino (o) deDahomey, 79
Reis (os) e rainhas de Inglater-
ra, 275
Relógios (os), 110
Respeito á infância, 216
Resposta a um tolo, 152
Ribera (quadro), 308 * 309
Richard (Daniel i, i 9
Rimau-dahan (o), * 395
Rochester (cathedral) ' 253
Romances — A boca do inferno,
129, 42, 15', 15*7, 170, 178,
188, 199, 206
— Galatéa moderna, 54, 60, 70,
74, 93, 174, 213, 233, 245,
290, 369, 378, 390
—Perez Lorenzo, 6, 15, 23, 27,
36, 46, 62, 83, 101, 126
Ruão (icrreja de Saint-Maclou),
'41,42
Saint-Mnclou, *41, 42
Salamandra (a), ' 165
Santa Helena, ' 333
Scandinavia (mythologia), 238
Sccnas da campanha do México
(vid. romances)
Scena de escravatura, 317 ' 318
f ciência (a) (Laplace), 312
S. Sebastião, '21
Século (o) XVIII, 208
Segredo (o), (anecdota), 8
Sensibilidade de consciência,
200
Sepultura de Gil-Vicente, 76
Simios(os), 196* 197
Sobre as memorias dos vinte
annos do sr. Júlio de Castilho,
386, 410
Sobre o estylo, 198
Somno (o) das plantas, 207, 211
Stockolmo, ' 169
Strathfieldsay (dominiodo),'405
Suissa (a), * 1
Superfície (a) terrestre, 31 1
Tabaco (o), 90, 145
Tasso (bosquejo biographico),
148
Telescópio (o microscópio e o),
266, ' 267, ' 268
Tempestade (a), (idilio), 30
Tlieatro de D. Maria II,' 97,118,
134
Titulos exóticos de livros, 383
Torre de Londres. 3 iO' 311.352
365
Três (os) estados, (conto phan-
tastico), 111, 122
Três (os) filhos de familia, (ane-
cdota árabe), 238
Três ladrões, (anecdota^, 212
Tumulo do Eiigolberto, 396*397
Turcos (co.-?tuines dos), 34
Turquia (uma habitação na)' 33
Um baile de estrellas no século
XVII, 148
Uso (o) da palavra, 40
Utilidade dos Cycloiies, 140
Van-Dick (A virgem e o meni-
no, quadro de), ' 377
VanOstade (o folguedo dos cam-
ponezes, quadro de), ' 365
Veneza (ponte do Rialto), 44*45
Veneza (o quadrilátero), * 257,
294
Veneza (uma vista de) * 345
Viagem á lua (apologo) 119
Vietoria Regina, * 281
Virgem (ai c o menino, (quadro
de Van-Dick), ' 377
Virgínia (ponte natural na), 244
•'"245
Vista pittoresca dos paços rcaes
do Cintra, * 57, 58
Voltaire, 121' 125, 131, 163,210
Westmiuster-IIall, * 221
Weymouth * 329
Wiesbaden * 73
William Ilogarth, 52 * 53
William Ilogarth (a contradan-
ça ridícula), 236 ' 237
WÍUiam Hogarth (o infeliz poe-
ta), ' 28, 29
William Ilogarth (o musico en-
raivecido) 116*117
WilliamPitt, '89
Winasor212*213
Woolwich (escola militar do),
* 93
Worcester (cathedral de), '381,
382
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