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Full text of "O Panorama; semanario de litteratura e instrucção. v. 1-5, maio 6, 1937-dez. 1841; v. [6-8] (2. ser., v. 1-3), jan. 1842-dez. 1844; v. 9-13 (3. ser. v. 1-5), set. 5, 1846-dez. 1856; v. 14-15 (4. ser., v. 1-2), jan 1857-dez. 1858; v. 16-18 (5. ser., v. 1-3), [jan.?] 1866- [dez.?] 1868"

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SEMANÁRIO  DE  LITTERATDRA  E  IXSTRUCCÃO 


VOLUME  XVI 


PRIMEIRO  DA  QUINTA  SERIE 


LISBOA 

TYPOGRAPHIA  FRANCO-PORTUGUEZA 

6  RUA  DO  THESOURO  VELHO  6 
1866 


^^. 


ÍB  R  A  ^J 

K    9  1964 

87SI2!) 


AP 

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5C 


ly.i^ 


o  PANORA 


SEMANÁRIO  DE  LITTERATURA  E  INSTRUCGÀO. 


DUAS  PALAVRAS  AO  PUBLICO 

Depois  de  bastanles  annos  de  interrupção  reap- 
parece  o  Panorama,  esse  biilhante  museu  da  lit- 
teratura  porlup;ueza,  onde  penduraram  maravilhas 
duas  gerações  de  escriplores.  A  interrupção  d'es- 
te  jornal  foi  deplorada  pelos  muitos  assignanles 
que  o  tinham  seguido  com  interesse  na  sua  longa 
e  esplendida  carreira. 

O  modo  como  este  jornal  foi  redigido  impõe  gra- 
ves obrigações  áquelíes  que  se  encarregam  de  sa- 
tisfazer um  desejo  do  publico,  c  que  hão  de  ten- 


lar  não  deixar  desmentidas  as  esperanças  que  o 
titulo  d'esle  jornal  inspiíH.  Não  ousariam  fazel-o 
se  não  contassem  com  o  auxilio  de  algumas  das 
pennas  mais  justamente  illustresdc  Portugal. 

Não  fazemos  programmas,  nem  tentames  captar 
a  bene\olencia  dos  assignantes  com  promessas 
pomposas.  Ninguém  duvidará  de  que  não  acceita- 
riamos  (nem  pessoa  alguma  acceitaria)  o  pesado 
encargo  que  tomamos,  se  não  tencionássemos  em- 
pregar todos  os  esforços  para  nos  desempenhar- 
mos, o  melhor  que  podcssemos,  da  tarefa  que 
emprehendemos. 


-       A  SUISSA 

Gostais  de  viajar,  leitor,  de  mudar  de  sitio  amiú- 
de, de  caçar?  Gostais  de  perspectivas,  de  paisa- 
gens; vera  escuma  das  correntes,  a  melania  dos  la- 
gos, os  eííeilos  da  cerração,  llorcs,  arvores,  roche- 
dos, estreitas?  Ide  á  Suissa!  Onereis  ver  o  rio  seintil- 
lante,  o  lago  de  gelo,  o  vai  negro  e  fecundo,  a 
ponte  do  Diabo,  a  força  c  a  belleza  do  mundo? 
ide  á  Suissa? 

A  Suissa  é  a  Cintra  da  Europa.  Se  estais  doen- 
te, curar-vos-hão  as  suas  aguas  Ihermaes ;  se  go- 
sais  sauJe,  sentireis  alli  mulliplicarem-se-voâas  for- 


ças, alongar-sc-vos  a  vida,  dilatarem-se-vos  os  pul- 
mões. Assim  como  a  águia  das  montanhas,  banhar- 
vos-heis  n"uma  nuvem,  e  a  vossa  vida  se  renovará. 
Na  alluia  emque  vos  achardes, oh!  como  se  tem  com- 
paixão das  miseráveis  agitações  do  mundo  1  Como  a 
alma  se  aproxima  da  Divindade!  Como  se  lastimam 
os  homens,  com  as  suas  peíjueninas  idéas  e  pai- 
xões, diante  dos  grandes  mysterios  da  existência! 
Oh!  não  pode  haver  duvidas  na  presença  d'aquella 
natureza  !  Conhece-se  alli  j)erfeitamente  a  mão  do 
Omnipotente. Das  arvores,  das  torrentes,  das  nuvens, 
dos  rochedos,  dos  abysmos,  saem  mil  vozes  con- 
fusas, errantes  e  meíodiosas,  que  vos  gritam  in- 


o  PANORAMA 


cessanlemenle  :  Deos  1  Deos !  Deos !  A  imniensi- 
dade  esmaga-vos,  Iritura-vos,  confunde-vos,  an- 
iiiquilla-vos,  e  julgais  ouvir  por  Ioda  a  parle,  cm 
torno  de  vós,  essas  palavras  que,  com  Ião  desde- 
nhosa ironia,  caiam  dos  lábios  de  Montaigne : 
En/h-toí,  paurre  /lomnie,  et  encorei  et  encore! 

K  depois,  que  de  lembranças,  que  de  grandes 
nomes  a  j)airar  por  cima  d'aquellas  collinas, 
d'aquellas  cidades,  d'aquelles  caslellosi  Primeiro, 
os  nomes  de  hcroes :  Jiflio  César,  (íuilhermeTell, 
Napoleão.  Em  seguida,  outros  nomes  celebres  de 
enlre  os  historiadores  do  pensamento:  Rousseau, 
Calvin.  Byron.  Lavaler,  Mme.  Slael,  Sénancourl. 
Ouando,  Jean-Jacques,  percorria  os  desorlos  da 
Meillerie.  essas  escabrosas  solidões  inspiravam- 
Ihe.  sem  duvida,  as  paginas  severas  onde  o  século 
\1X  eslava  em  gérmen.  Byron  ai  li  levou  a  seu  scep- 
licismo  zombador ;  também  teve  o  seu  quarto  de 
hora  de  enlhusiasmo ;  e  a  sua  vida,  agitada  como 
as  ondas  do  Uhodano.  precipilou-se  nanoile  eter- 
na, cxhalando  csle  grilo  funesto:  «U  que  sei  cu?!)) 
Só  a  pupilla  de  Schlegel. conservou  até  ao  lim  o 
seu  sangue  frio  philosophico,  os  seus  estudos  po- 
sitivos e  sérios,  a  sua  potente  virilidade.  Só  ella 
introduziu  o  escalpello  sem  perturbação  e  sem 
commoções  na  organisação  moral  do  homem. 

Uma  coisa  que  tornará  a  Helvécia  sempre  cara 
aos  viajantes  de  todos  os  paizes,  é  a  novida- 
de, a  nmlliplicidade  e  a  variedade  das  sensações 
que  alli  se  experimentam.  A  llalia,  o  berço  das 
artes,  esse  grande  edifício niaimoreo,  incontesta- 
velmente, contém  innumeras  bellezas.  A  admira- 
ção, porém,  é  deencommenda.  Se  alli  fordes,  lei- 
tor, experimentareis  as  mesmas  commoções  que 
experimentaram  os  que  vos  precederam,  e  que  se 
acham  consignadas  nos  seus  manuaes.  Na  Suissa 
a  natureza  varia  de  aspecto  a  cada  passo,  a  cada 
instante.  Aqui,  o  inverno  semelhante  ao  da  Sibé- 
ria:  a  neve,  a  geada,  o  nordeste;  voltais  um  ro- 
chedo, eis  a  primavera  :  relva,  flores,  cascatas, 
luxuriante  vegetação.  Por  vezes  tendes  a  vosso 
lado  o  perigo,  esse  rude,  mas  precioso  compa- 
nheiro, que  «rgue  o  peso  da  dor  e  que  prende  á 
vida. 

Logo,  um  novo  espectáculo  doce  e  consolador 
se  vos  oflerece.  Tm  hospício  de  religiosos,  cuja 
caridade,  mais  do  que  os  cálculos  dos  sábios, 
vos  ensina,  o  caminho  do  ceu.  Oue  admirá- 
vel quadro  o  d'esses  homens  desconhecidos,  vi 
vendo  a  vida  mais  santa,  não  levantando  o  seu 
melancholico  olhar  senão  paia  abençoar  os  que  en- 
contram, e  mostrando  por  suas  palavras  c  acções 
que  não  vivem  senão  para  esse  Deos  tão  grande, 
esquecido  no  mundo,  adorado  no  seu  deserto.  Oh! 
(juão  i)enetrante  é  a  voz  da  religião  (|uc  se  tem 
lefugiado  no  meio  d'aquelles  cimos  abruptos, 
d"aquell('s  gelos  eternos!  Como  ella  jjrende  o  co- 
ração do  homem!  Como  o  prejiaia  para  os  phe- 
nomenos  da  outra  Nida  ! 

Ainda  outra  mutação  de  scena.  Atravessais  um 
corredor,  abris  uma  i)orta,  e  entrais  em  um  ma- 
pniíico  salãT),  ricamente  mobilado,  onde  estão  mu 
Iheres  amáveis  c  lisonhas ;  achais  os  costumes 


elegantes,  a  conversação  espirituosa.  Por  vinte  e 
quatro  horas  deixais  o  vosso  traje  de  viagem;  jo- 
gais uma  ])arlida  de  xadrez,  ouvis  um  motivo  do 
admirável  Gnil/tenne  Tcll,  de  Rossini,  folheais  os 
jornaes,  as  revistas,  os  álbuns,  e  no  meio  d'estc 
passatempo,  podeis  ouvir  as  lamentações  do  ven- 
to nos  pinheiros  rudes,  as  cantigas  dos  pastores, 
os  gritos  dos  guias,  o  eslampido  abafado  das  ava- 
lanchas e  ao  longe  os  surdos  bramidos  do  espiri- 
to da  montanha. 

No  dia  seguinte  continuais  a  vossa  viagem. 
Numerosas  caravanas  de  curiosos  se  vos  deparam 
perdendo-se  no  meio  dos  pinheiros,  para  reappa- 
recerem  um  instante  depois,  parando  a  todo  momen- 
to a  tim  de  remediar  qualquer  accidente  sobrevindo 
ás  suas  cavalgaduras,  e  preparando-se  para  atra- 
vessarem um  d'esses  precipícios  diante  dos  quaes 
recuaria  uma  cabra.  Os  mineralogistas  fazem  sal- 
tar fragmentos  de  rochas  com  o  seu  martello  de 
aço ;  os  botânicos  andam  curvados,  examinando 
as  plantas  raras  que  lhes  apparecem  era  multidão; 
os  entomologislas  perseguem  com  suas  redes  de 
gase  os  lepidópteros ;  os  pintores  arrastam  o  seu 
cavallete  e  a  sua  tella  ;  os  poetas  recitam ;  os 
músicos  tocam  e  cantam;  as  mulheres  pensam. 

Se  quereis  fazer  uma  idéa  da  Suissa,  sob  o 
duplo  aspecto  que  apresenta,  é  necessário  que 
vos  demos  o  esboço  de  duas  scenas :  uma  de  paz, 
de  quietação,  de  serenidade;  a  outra  de  alvoro- 
ço, de  desolação,  de  morte. 

Para  a  primeira  scena,  temos  só  a  pedir-vos 
que  lanceis  um  olhar  pela  nossa  gravura.  Avis- 
ta do  assumpto  poderíamos  muito  facilmente  apre- 
sentar-vos  um  idilio  no  gosto  dos  de  Gessner,  de 
Florian  ou  de  M.  de  Fonlenelle ;  mas  isso  é  re- 
trogrado ;  o  século  não  se  entrega  a  essas  ninha- 
rias. Hoje  em  dia  as  damas  desenham,  gravam, 
tocam  piatio,  e  não  mungem  as  cabras,  como  a 
infeliz  Maria  Anlonietta  ;  os  generaes  só  lêem  as 
ordens  do  exercito;  os  padres,  cn  vez  de  ver- 
sos e  outras  obras  lillerarias,  praticam  a  carida- 
de evangélica  e  vivem,  pobremente,  soiTrendocom 
resignação  os  revezes  mundanos;  a  nossa  aristo- 
cracia ensina  cavallos,  farpea  louros  e  não  com- 
põe charadas  nem  madrigaes.  Não  vos  cansare- 
mos, pois,  leitor,  com  o  (pe  está  fora  de  uso, 
nem  com  minuciosos  exames;  porque  o  quadro, 
por  si  só,  e  bastante  para  poderdes  ajuisar.  Ve- 
des uma  pequenina  aldeia,  não  é  verdade?  e 
três  camponezes  que  se  dirigem  para  o  seu  do- 
micilio, a  |)rocurar  o  descanço  dos  trabalhos  agres- 
tes do  dia.  Oh!  mas  tudo  resj)ira  paz,  traníjuil- 
lidade;  tudo  é  risonho,  |)erfumado  ;  é  como  um 
êxtase  da  natureza  sob  o  olhar  de  Deosl 

Acabais  de  ver  o  agradável;  vinde  agora  ao  ter- 
rível. 

A  avalancha !  Esta  palavra  tem  um  tanto  de 
assustador  e  de  glacial.  A  (jueda  de  uma  avalan- 
cha produz  um  ruido  isolado,  que  não  se  asseme- 
lha a  nenhum  outro.  Ente  algum  vivo  lhe  respon- 
de com  um  grito  de  terror  O  mesmo  eco  é  mudo 
nas  innumeraveis  anfractuosidades  das  montanhas; 
esses  tortuosos  dédalos,  atapetados  de  neve,  recc- 


o  PANORAMA 


bem  eiu  silencio  um  murmufio  insensível,  ao  qual 
não  succede  o  menor  som,* O  soce^o,  em  regiões 
onde  a  natureza  está  como  envolvida  n'uma  im- 
mensa  mortalha,  augmenta  a  impressão  do  terror, 
que  produzem  esses  picos  agudos,  essas  extremi- 
dades inaccessiveis,  esses  esqueletos  mirrados, 
essa  libré  dos  invernos  eternos,  estendida  como  o 
veu  do  esquecimento  sobre  o  tli^alro  das  mais  an- 
tigas revoluções  do  globo.  O  tocar  com  o  pé  na 
borda  de  uma  fenda,  pode  produzir  a  queda  de  uma 
avalancha.  Um  tiro  de  espingarda,  a  voz  dos  via- 
jantes, o  som  das  campainhas  dos  machos,  podem 
causar  o  mesmo  resultado.  As  avalanchas  de  neve 
pulverulenta  {staublouinrn)  são  mais  perigosas, 
poi-que  abrangem  ura  grande  espaço,  e,  sobretudo, 
pelo  movimento  que  imprimem  no  ar.  O  furacão 
leva  tudo  quanto  encontra  em  sua  passagem:  arvo- 
res, casas,  aldeias  inteiras.  Era  menos  de  uma 
hora,  as  estradas  desapparecera,  e  a  neve  toraa 
por  toda  a  parte  dez  pés  de  profundidade.  A 
montanha  treme  até  nos  seus  fundamentos ;  as 
arvores  entrechocam-se,  os  ramos  despedaçam-se, 
os  rochedos  desarraigani-se,  as  paredes  das  casas 
abrem  largas  fendas,  as  vigas  estalam,  os  tectos 
caem.  Tudo  se  desmorona !  São  convulsões,  hor- 
rores, uma  agonia.  Aopallido  clarão  da  lua,  os  ho- 
mens, as  mulheres,  as  creanças,  arrancados  ao 
somno,  errara  senii-nús,  olhos  espantados,  boqui- 
abertos, cabellos  erriçados,  sem  se  reconhecerem, 
sem  saber  aonde  enconli"ar  um  abrigo.  Os  que  po- 
derara  escapar-se  de  suas  casas,  meio  destruídas, 
procuram-se,  abraçam-se,  reunem-se.  O  cura,  en- 
tão, cólloca-se  uo  meio  d'elles,  sereno  c  grave, 
tendo  na  mão  a  custodia,  que  encerra  a  hóstia 
consagrada.  Todos  ajoelham  sobre  a  neve,  fronte 
descoberta,  olhos  levantados  para  o  céo,  com  a 
alma  transida  de  terror;  e  logo  ao  ruído  das  lon- 
giquas  avalanchas,  soa  nos  declives  da  montanha 
a  terrível  e  solemne  melodia  do  J)k's  irce.] 


A  QUESTÃO  LITTERARIA 

ror  ZACHARIAS  AÇA. 

Ha  ura  anuo  lia-se  em  Lisboa  ura  livro  novo  a 
lodos  os  respeitos,  novo  pela  forma,  |)ela  ídéa  e 
pelo  nome  do  auctor.  Ouando  digo  novo,  cla- 
ro está  que  me  retiro  a  Portugal.  Discutia  se 
o  titulo  e  o  assumpto;  a  forma  era  aquilatada  pe- 
los mestres,  pelos  cinzeladores,  pelos  Cellinis  da 
palavra;  a  ídéa  era  estudada  pelos  que  lidara  com 
os  assumptos  históricos,  com  a  philosophia  e  com 
a  poesia.  O  livro  lilíava-se  era  alguma  das  esco- 
las modernas  da  AUemanha,  e  punha  a  mira  mui 
alto.  O  tentaraen  eia  uma  temeridade,  e  o  resul- 
tado provou  que  os  ícaros  não  acabaram  ainda  ;  nem 
era  isto  para  admirar  quando  vimos  Victor  Hugo, 
que  precedera  n'estaemi)reza  o  sr.  Theophilo  Ura- 
ga,  rojar-se,  elle,  a  águia,  pela  terra,  indo  mos- 
trar nos  ares,  agora  manchadas  pela  lama,  as  azas 
outr'ora  alvas  e  esplendidas.  .lá  disse  o  nome  do 
auclor  ;  o  livro  chama-se — Visão  dos  lempos. — 

A  ignorância  de  uns,  a  falta  de  senso  critico 
de  outros,  e  a  extrema  e,  no  meu  entender,  crimi- 


nosa benevolência  da  nossa  imprensa,  fizeram  com 
que  esle  livro  occupasse  oflicialmente  na  liltera- 
tura  contemporânea  um  togar  distíncto  a  que  de 
certo  não  tem  direito. 

Visão  dos  tempos !  Esta  reconstituição  das  ci- 
vilisações  que  passaram  é  diflicilima,  em  alguns 
pontos  é  impossível,  e  requer  os  talentos  e  a 
sciencia  de  ura  Cuvier,  de  ura  Goethe.  Esle  titulo 
,esmaga  a  obra  de  um  escriplor  que  nasce  para  as 
leiras,  e  o  sr.  Theophilo  Jiraga,  se,  era  vez  de  ser 
portuguez,  fosse  allemão,  inglez  ou  francez,  e  vi- 
vesse era  ura  paiz  onde  acrítica  abrangesse  todos 
os  ramos  dos  conhecimentos  humanos,  o  que  en- 
tre nós  não  succede,  infelizmente,  havia  de  estar 
agora  arrependido  de  ler  publicado  o  seu  livro. 

Não  bastam,  para  que  uma  obra  passe  á  poste- 
ridade, os  títulos  pomposos  e  as  citações  abun- 
dantes, porque  não  é  isso  o  que  constítue  a  ver- 
dadeira sciencia,  a  luzqueallumia  a  todos.  A  eru- 
dição assim  entendida  é  fácil,  mas  é  inútil,  e  o 
titulo,  se  é  chamariz  que  altrahe  o  publico  ao 
balcão  do  mercador  de  livros,  é  lambem  e  ao  mes- 
mo tempo  signal  de  leviandade  ou  de  nimía  pre- 
sumpção  das  próprias  forcas. 

Escrevendo  ura  prologo  com  o  titulo  de  «Gene- 
ralisação  da  historia  da  poesia»  o  sr.  Theophilo 
Braga  não  podia  aspirar  a  outra  coisa  que  não 
fosse  o  vulgarisar  entre  nós,  até  hoje  segregados 
quasí  completamente  do  grande  moviraento  phí- 
losophíeo,  histórico  e  litterarío  da  Europa,  as  idéas 
que  se  ensinara  nas  academias  e  universidades 
estrangeiras.  Isto  e  só  isto  podia  ser,  allentas  as 
circurastancias  que  se  davara  no  joven  poeta  que 
não  poderia  racíonalraenle  loraar  a  si  as  funcções 
de  mestre  e  iniciador. 

As  qualidades,  que  se  lequerem  no  vulgarisa- 
dor,  são  em  primeiro  logar  a  sciencia,  depois  o  me- 
thodo  e  a  clareza  na  exposição. 

Encontram-se  no  prologo  da  Yisão.  dos  tempos 
estes  predicados? 

Parece-me  que  não.  A  exposição  é  confusa ;  as 
syntheses  não  se  ligara  rigorosamente;  não  ha  ló- 
gica na  deducção  das  idéas,  e  a  phrase,  por  vezes 
germânica,  não  tem  o  rigor  geométrico  tão  ne- 
cessário em  assumptos  d'esta  ordem:  em  compen- 
sação as  citações  abundam. 

Isto  pelo  que  diz  respeito  á  prosa. 

i\a  Bacclianle,  a  maior  e  a  melhor  das  com- 
posições que  constituem  aquelle  livro,  foi  mais 
feliz  o  auclor,  comquanto  licasse  aqui  rauilo  á  quem 
da  perleição.  Deixando  de  lado  a  parte  aitistica, 
a  metriucação,  'que  n'este  assumpto  devia  ser  mui- 
to esmerada,  o  sr.  Theophilo  Braga  é,  n'esle  poe- 
meto, inferior  aos  poetas  francezes  que  lera  pro- 
curado fazer  reviver  nos  seusescriplosa  singeleza, 
a  elegância,  a  harmonia  e  a  serenidade  da  poe- 
sia grega.  Citarei  apenas  o  nome  de  André  Che- 
níer  e  o  de  Leconte  de  Liste,  e,  corao  a  respeito 
d'este  ultimo  escreveu  Gustavo  Planche  algumas 
observações  que  vera  de  raolde,  lianscreve-las- 
hei  aqui*.  —  «O  prefacio  do  sr.  Leconte  de  Lísle 
prova  alé  à  evidencia  que  o  manejo  do  melro  e 
da  rima  não  ensina  as  regras  mais  elementares 


o  PANORAMA 


da  prosa.  As  idéas  mais  justas  não  podofii  pres- 
cindir de  ser  apresenladas  sob  uma  forma  clara 
.'  exacta ;  ora  o  sr.  Leconle  de  Lisle  parece  des- 
jiresar  abertamente  a  clareza  c  a  e^;actidão.  As 
>uas  ideas  não  se  oncadeam  e  apreseiilam-se-nos 
vanas  e  confusas.  Habituado  a  falhir  a  lingua  dos 
deuses,  o  auctor  mal  se  sabe  exprimir  na  linaua 
tios  homens  c  obriga-nos  a  adivinhar-lhe  o  pen- 
-amenlo.)^  « 

Isto  que  o  eminenle  critico  diz  de  Leconle  de 
l.isle,  e  como  se  vè.  pouco  mais  ou  menos,  o  que 
ou  disse  acerca  do  prologo  da  Visão  dos  tempos. 
Ksla,  portanto,  o  sr.  Braga  em  muito  boa  compa- 
nhia, mas  o  caminho  ò  mau. 

Voltando  à  poesia  direi  que  aBacchanle  não  é, 
j.ara  mim.  nem  uma  estatua,  nem  uma  pintura 
de  Ilerculanum  ou  da  grande  arte  da  Henas- 
rença,  porque  não  len\  nem  a  vida  exuberante  c  a 
-raça  dos  contornos  da  esculplura  grega,  nem  o 
dorido  e  a  expressão  de  Corregio  ou  Raphael. 
Aquellas  figuras  são  pouco  accentuadas,  e,  se  é 
preciso  compara-las  a  um  objecto  de  arte,  direi 
(jue  são  antes  um  esboço  do  que  uma  obra  per- 
íoita  e  acabada.  O  desenho  é  incorrecto  ainda,  a 
luz  não  está-  bem  distribuída,  a  composição,  o 
iigrupamento  das  figuras  não  está  determinado 
delinitivamente. 

O  sr.  Camillo  Castollo  Branco,  ■n'um  dos  seus 
artigos  crilicos  sobre  este  assumpto,  diz  que 
«Na  contextura  da  Bacchante  a  critica  não  tem  di- 
reito a  assignalar  inverosimilhanças.»  Mais  abaixo 
accrescenta;  «O  sr.  Theophilo  Braga  inventou ; 
dos  usos  gregos  aproveitou  as  decorações  para  a 
scena  :  foi  a  poesia  mUhologica,  sem  duvida,  que 
Ufas  deu.  A  íjrecia  não  era  assim,  de  certo.  » 

A  critica  tem  direito  a  notar  as  inverosimilhan- 
ças, porque  ellas  existem  no  poemeto,  cesse  di- 
reito assiste  seni()re  á  critica. 

Era  preferivel  (|ue  o  joven  poct^  não  invenlas- 
so,  j)orquc  a  (Irecia  comj)unlia-se  não  de  nomes, 
mas  de  homens  que  tinham  cosjumes  e  ideas 
difierenles  das  nossas,  e  na  emprcza  do  sr.  Bra- 
ga havia  uma  parle  histórica  importante  que  elle 
não  devia  despresar. 

Finalmente,  sem  discutir  agora  as  outras  opi- 
niões da  critica,  aliás  çxcellente  em  muitos  pontos 
do  sr.  Camillo  Caslello  Branco,  e  que  c  uma  das 
mais  completas  que  ultimamente  lem  apparecido, 
direi  que  o  illustre  romancista  c^ndemnou  a  ]{ac- 
chante  quando  disse  (jue  a  íjírecia  não  era  assim. 

Das  outras  cí/mposiçõos,  inferiores  em  q^jalidade 
c  quantidade  á  Baocliante,  pode-sé  dizer  o  mesmo 
que  a  respeito  d'esta  escrevi. 

Eis-aqui,  em  synlhese,  o  que  eu  penso  da  Visão 
(los  lempos,  reservando  |)ara  mais  tard(!  c  se  fôr 
necessário,-  a  coníirmafão  anal\tica  do  (lue  deixo 
dito. 

{Continrm) 


tremamente  empenhada,  tendo  recebido  convite 
para  um  baile  na  corte,  mandou,  por  carta,  a  uma 
sua  amiga,  mais  idosa  e  menos  bella,  pedir  empres- 
tados  os  diamantes. 

Esta,  que  n'aquelle  dia  não  eslava  de  bom  hu- 
mor, terminando  a  leitura  do  escripto,  voltou-se 
para  o  criado,  e  exclamou:  «Diga  a  essa  senhora 
que,  SC  me  envia  a  sua  cara,  tleixo  de  fazer  uso 
de  Iodas  as  minhas  jóias.» 


A   in-.LLESA   E  OS  ADORNOS 

Ima  das  senhoras  mais  formosas  e  eleganlesda 
arislocracia  hcspanhola/my.^  cuja  casa  eslava  ex- 


OS  PHÍLO-PORTUGUEZES. 

rOR  INNOCENGIU  b\  DA  SILVA. 
I 

Por  impulso  da  insaciável  curiosidade,  que apo- 
derando-se  do  nosso  espirito  em  annos  bem  lenros, 
tem  permanecido  comnosco  até  á  idade  madura, 
lovando-nos  a  ler,  ou  antes  a  devorar  indislincla- 
-menle  n'este  já  longo  intervallo  milhares  e  milha- 
res de  volumes  de  lodo  o  género,  desde  os 
mais  raros  e  exquisilos  primores  do  saber  huma- 
no, alé  as  mais  fúteis  e  minguadas  producções 
que  os  prelos  de  si  lançam  muilas  vezes  para  ver- 
gonha e  descrédito  de  quem  as  engendrara :  pe- 
gámos ha  dias  de  um  folheio,  recenlemenle  im- 
presso, e  que  por  seu  assumpto  começou  a  dar 
tamanho  brado,  que  já  corre,  segundo  se  diz,  em 
terceira  edição.  Com  pretenções  á  originalidade, 
e  recheado,  ao  que  nos  pareceu,  de  muitas  e  sin- 
gulares originalidades,  não  foi  sem  grande  ex- 
Iranheza  que  por  enlre  os  paradoxos,  que  o  auctor 
se  comprazeu  de  semear  a  llux  por  todas  as  pa- 
ginas de  Ião  notável  obra,  o  vimos  alludir  com 
ostentoso  desdém  ás  plirases  rabujentas  dos 
nossos  lieros  bolorentos  chamados  clássicos,  e  lo- 
go adiante  acoimar  os  escriptos  em  prosa  de  um 
nosso  palricio,  (por  ventura  o  mais  vernáculo  dos 
contemporâneos  que  se  esmeram  em  bem  escrever,) 
de  imitações  das  algaravias  mj/sticas  de  frades 
estonteados !!!  Assim,  i)ois,  se  conceituam  de  um 
rasgo  de  penna,  c  na  phrase  dos  modernos  pro- 
j)Ugnadores  da  Jdéa  (com  inicial  maiúscula  !)  os 
Vieiras,  os  Bernardes,  os  Sonsas,  os  Lucenas,  os 
Arraes,  os  Dcitores  l'intos,  os  Thomés  de  Jesus, 
e  tantos  outros  mestres  do  nosso  formoso  idioma, 
que  pela  lluidez,  energia,  persj)icui(iade  e  elegân- 
cia da  linguagem  lêem  sido,  e  são  ainda  as  deli- 
cias dos  que  chegam  a  enlendei-os!  A  fé,  que 
ao  ver  laes  palavras  escriptas  por  homem  (|uc 
se  diz  portuguez,  ou  (|ue  ao  menos  nasceu  em  ter- 
ras de  Portugal,  sentimos  a  alma  sombreada  de 
uma  commoção  dolorosa,  que  em  vão  lenlaria- 
mos  exprimir ! 

Não  o  pensavam  assim  tantos  erudilos  estran- 
geiros, que  em  tempos  mais  antigos  e  até  no  sé- 
culo actual,  conseguindo  vencerá  força  de  estudo 
as  confessadas  dilliculdades  da  lingua,  e  peneirar 
os  mysterios  da  no.ssa  elocução,  se  apressaram  a 
trasladar  nas  suas,  esses  bolorentos  andores,  de 
que  tão  enjoados  desdenham  os  modernos  inicia- 
(lores  de  novas  sendas.  Nem  Ião  pouco  os  ama- 
dores esclarecidos,  (|ueem  Iodas  as  nações  compra- 
vam, c  compram  ainda;  lahcz  51  peso  de  ouro, 


o  PANORAMA 


esses  desprezados  livros,  para  com  elles  enrique- 
cerem suas  fastosas  e  escolhidas  bibiiolhecas. 

O  extenso  catalogo  que  de  uns  e  outros  pode- 
riamos  tecer,  seria  talvez  n'esta  parte  a  refutação 
raais  azada  que  cumpria  dar  a  insólitas  asserções, 
forjadas  nos  cérebros  escandecidos  dos  que  a  si 
se  preconisam  de  idealistas  por  excellencia.  Bem 
feriamos  esse  desejo,  porém  lallece-noS  agora  mais 
que  nunca  o  tempo,  e  sobram-nos  occupàções 
que  impedem  realisal-o.  Faremos  todavia  o  que 
podermos,  e  a  começar  pelaGran-Bretanha;  coni- 


memoraremos  em  seguida  a  este  artigo  os  nomes  de 
cinco  illustrados  philologos  inglezes,  distinctos 
por  seus  conhecimentos,  e  alguns  notáveis  por 
sua  elevada  cathegoria  na  ordem  social,  que  no 
século  corrente  se  mostraram  enthusiasticos  ama- 
dores da  nossa  litteralura  clássica,  patenteando 
por  modos  nada  equívocos  a  estima  e  admiração 
(jue  lhes  inspiravam  esses  auctores,  que  hoje  vemos 
indignamente  vilipendiados  por  nacionaes  com 
apodos  ião  grosseiros. 

iConlinua.) 


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M.  LÉON  DE  LABORDE 

Esle  illustre  varão,  filho  de  Alexandre  L.  Jo- 
sepb,  conde  de  Laborde,  nasceu  cm  Pariz  no 
anno  de  1807,  e  lornou-sc  distinclo  no  mundo 
lilteraiio  pelas  suíis  iuleressantes  averiguações 


sobre  a  historia  da  arte,  da  gravura,  da  imprensa 
e  das  bibliothecas.  É  a  elle,  depois  de  Niéburh, 
Hurckardt  e  Mangles,  (jue  se  devem  as  mais  vas- 
tas e  magnilicas  noticias  sobre  a  Arábia,  paiz  ce- 
leberrimo  da  antiguidade  ecuja  historia  vai  pren- 
der nos  primeiros  tempos.  Estudou,  durante  um 
anno  de  residência  no  Cairo,  o  idioma  árabe,  e, 


6 


O  PANORAMA 


em  1828,  á  frente  de  uma  numerosa  caravana, 
vestido  como  os  liabilantes  de  Alepo,  trajo  que 
adoptou  para  melhor  poder  idenlilicar-se  com  os 
povos  que  queria  visitar,  inlernou-se  pelos  areiaes 
do  Egyplo,  e  atravessando  a  Syria.  Alepo,  Liba- 
no.  Damasco.  Palmira  e  outros  pontos  igualmen- 
te curmsos,  subiu  o  monte  Taurus,  penetrou  até 
a  antiga  cidade  de  Petra. 

Esta  viagem  não  teve  só  por  fim  a  contemplação 
dos  monumentos  da  antiguidade ;  como  se  vè  das 
Yoyages  dans  rArabie  Pefréc,  en  Asic  Mineure 
et  enSyrie,  Mr.  de  Laborde,  estudou  também  as 
plantas,  animaes  e  geographia  d'aquella  parte  do 
mundo ;  o  que,  realmente,  foi  um  grande  serviço 
prestado  ás  sciencias. 

As  obras  que  conhecemos  do  intrépido  viajante, 
são  as  seguintes  :  Les  Grandes  hahitaliom  fran- 
raises  an  XVIÍ  siêcle ;  Yoyages  dans  rArabie 
Pétrèe,  1830,  —  en  Asie  Mineure _  et  en  Syrie, 
1837 ;  les  Ducs  de  Bourfjoyne,  Études  sur  Ips 
lettres,  les  arts,  et  t industrie,  pendant  le  XV 
siècle,  1819 — o{:_La  fícnaissance  des  arts  à  la 
eour  de  f  rance,  Études  sur  le  XVÍ  siècle,  18o0; 
Aotice  des  émaux,  bijoux,  exposés  au  Louvre, 
1853;  Atliènes  aux  XV,  XVI et  XVJÍsiécles,  1855. 

Mr.  Léon  de  Laborde  substituiu  seu  pai  na 
camará  dos  deputados  e  na  Academia  das  scien- 
cias moraes. 


PEREZ  LORENZO 

(SrcnaM  d»  Cantitanha  do  IMçxico) 

ror  riMIElRO  CHAGAS." 

I 

Todos  conhecemos  os  últimos  acontecimentos 
do  México,  acontecimentos,  que  transformaram  a 
anarchica  republica  americana,  graças  á  interven- 
ção franceza,  n'um  império  que  por  ora  apenas  se 
esteia  nas  bayonetas  dos  zuavos,  mas  que,  para 
o  futuro,  se  não  commetler grandes  erros,  se  des- 
envolver o  espirito  nacional,  se  entrar  no  cami- 
nho dos  progressos  materiaes,  poderá  conquistar 
mais  seguras  garantias  de  solidez.  Sabemos  dos 
insultos  selvagen.s.e  anli-politicos  a  que  estiveram 
sujeitos  os  estrangeiros,  da  insistência  do  gover- 
no mexicano  em  responder  com  orgulho  ás  recla- 
mações das  potencias  occidentaes,  da  intervenção 
motivada  por  esse  inqualificável  procedimento,  e, 
finalmente,  do  celebre  convénio  da.Soledad,  que, 
isolando  a  politica  franceza  da  politica  ingleza  e 
(la  hespanhola,  deixou  a  divisão  imperial  em  cam- 
jio  contra  as  foi'ças  todas  da  rej)ublica. 

A  questão  da  honra  da  bandeira  arrastou  a 
França  talvez  muito  para  além  do  ponto  a  (|ue 
tencionara  chegar.  As  águias  victoriosas  de  Alma, 
c  de  Solferino  sustaram  o  vôo  audacioso  perante 
as  muralhas  de  Puebla.  O  general  Lorencez  leve 
de  recuar  diante  do  indiscij)linado  exercito  ame- 
ricano-hespanhol.  A  noticia  d'este  desastre  mili- 
tar deu  rebates  em  França  ao  brio  nacional.  A 
memoria  da  antiga  expedição  de  S.  Domingos, 
em  que  a  febre  aniarella,  e  as  balas  dos  atirado- 
res negros  dizioiaraui  os  intrépidos  soldados,  que 


tinham  atravessado  incólumes  os  paúes  d'Arcola, 
os  areiaes  do  Egyplo,  as  selvas  de  bayonetas  aus- 
tríacas de  Iloheiilinden,  e  as  escarpas  dos  Alpes 
varejadas  pelas  carabinas  dos  caçadores  tyrolezes, 
a  memoria  d'essa  expedição  infeliz,  eni  vez  de 
afrouxar  o  desejo  de  vingança,  ainda  mais  o  excitou. 
O  novo  grande  exercito  estava  ancioso  por  de- 
monstrar ao'  mundo  que  as  vastas  planicies  da 
America  não  eram  simplesmente  o  cemitério  dos 
vencedores  da  Europa,  e  que  não  perseguia  uma 
fatalidade  especial  as  armas  francezas  nas  regiões 
tropicaes.  Tratava-se  de  vingar  a  um  tempo  o 
ataque  infeliz  de  Puebla,  e  a  exterminação  do 
exercito  do  general  Leclerc.  As  águias  da  Gallia 
tinham  que  ajustar  contas  antigas  e  modernas  com 
os  condores  americanos. 

Um  exercito  de  trinta  mil  homens,  commanda- 
do  pelo  general  Forey,  um  dos  heroes  da  (Iriméa, 
e  o  vencedor  de  Montebello,  saio  dos  portos  fran- 
cezes  a  bordo  de  uma  esquadra,  e  singrou  para  o 
mar  das  Antilhas.  Desembarcou  em  Vera-Cruz,  e, 
depois  de  uma  espécie  de  marcha  triumphal,  em 
que  o  exercito  mexicano  se  dissipou,  ainda  mais 
depressa  que  o  fumo  dos  canhões  francezes,  o  ge- 
neral Forey  chegou  diante  de  Puebla. 

Foi  então  que  principiou  a  verdadeira  guerra. 

Não  comportam  nem  a  Índole  nem  as  dimen- 
sões da  ligeira  narrativa,  a  que  este  capitulo  serve 
de  prologo,  uma  discussão  politica  sobre  o  direito 
da  intervenção,  e  o  caracter  justo  ou  odioso  de 
uma  guerra,  emprehendida  para  tirar  vingança  de 
uma  ofi"ensa  real,  e  que,  principiando  debaixo  de 
tão  justiceiros  auspícios,  foi  continuada  por  um 
capricho  de  pundonor  militar,  e  levada  a  ponto  de 
assumir  o  caracter  de  conquista,  violando  os  di- 
reitos das  nacionalidades  e  impondo  a  um  paiz 
livre,  um  govcri»  melhor  ou  peior  do  que  o  an- 
iigo,  mas  irrogado  á  humilhação  dos  vencidos  pela 
pressão  dos  vencedores.  Considerando  a  guerra 
apenas  debaixo  do  seu  ponto  de  vista  militar, 
confessaremos  que  cesta  campanha  uma  das  mais 
gloriosas  para  o  exercito  francez.  Reuniam-se 
contra  elle  dois  elementos;  eada  um  dos  quaes 
bastara,  nas  was  brilhantes  do  consulado  e  do 
império,  para  obrigar  a  fortuna  a.  atraiçoar  a  bandei- 
ra tricolor  tão  sua  predilecta  em  todos  os  campos  de 
batalha.  Por  um  lado  a  infiuencia  devastadora  do 
clima  trojHcal;  qile  prostrara  os  valentes  do  Egy- 
plo, do  Uheno  e  da  Itália,  nas  planuias  do  llaiíi. 
Por  outro  lado  a  sublevação  dos  povos  de  raça 
ibérica,  o  seusystema  de  guerra  original  e  mortí- 
fero que  sepultara  nos  serros  da  llespanha  e  de  Por- 
tugal os  heroes  d'Austerlitz  e  de  Friedland.  Isola- 
dos, estes  dois  elementos  haviam  saído  victoriosos 
da  lucta.  O  que  não  fariam  reunidos? 

Por  isso  dizemos:  A  guerra  só  principiou,  ver- 
dadeiramente, (|uando  o  geneial  Forey  chegou 
diante  de  Puebla.  Em  batalha  campal  era  irrisó- 
ria a  lucta.  Uma  carga  de  Íja\oneta  dos  zuavos 
dispersava  os  soldados  mexicanos,  como  as  hostes 
deSoult  c  de  Suchel  alíugentavam  as  tropas  hes- 
punholas.  Mas  na  defcza  das  praças  contava  Pue- 
bla uma  ou  antes  duas  ascendentes  heróicas,  Sa- 


o  PANORAMA 


ragoça,  e  Niimancia.  Lannes  e  Scipião  haviam  es- 
tacado perante  as  muraJhas  das  duas  cidades.  Fo- 
rey  parou  também  diante  de  Puebia. 

Esta  cidade  recebeu  com  justiça  a  denominação 
de  nova  Saragoça.  Para  em  tudo  ser  notável  a 
coincidência,  dava-se  o  caso  de  se  ler  o  general 
siliador  distinguido  no  mesmo  campo  de  batalha. 
(3  titulo  de  duque  de  Mentcbello  recompensáia 
as  façanhas  praticadas  por  Lannes  n'esse  ponto 
em  1800.  Em  18o9  ganhava  Forey  uma  batalha 
em  Montebello  contra  os  filhos  dos  austríacos  der- 
rotados pelo  heróico  subalterno  de  Bonaparte. 
Ambos  se  encontravam,  cara  a  cara,  com  inimigos 
da  mesma  raça,  iguaes  em  denodo,  e  em  situação 
idêntica.  Ortega  não  envergonhou  Palafox.  X  nova 
Saragoça  só  faltou  um  Byron  para  lhe  cantar  a 
gloria.  O  que  prova  mais  uma  vez  que  são  mais 
raros  osllomeros  do  que  os  Achilles. 

Mas  o  systema  de  defeza  da  raça  hespanhola 
não  estaria  completo  se  faltassem  as  guerrilhas. 
Não  faltaram  effectivamente.  Emquanto  o  general 
Forey  abria  as  paralellas  diante  de  Puebia,  iam- 
Ihe  sendo  cortadas  as  communicaçOes  com  a  bei- 
ra-mar  pelos  ataques  audaciosos  dos  guerrilheiros, 
que  salteavam  os  comboyos  do  exercito.  Os  de- 
sastres da  guerra  de  Ilespanha  ameaçavam  reno- 
var-se.  O  exercito  francez,  internado  no  México 
via-se  em  imminente  risco  de  se  transformar  de 
siliador  em  sitiado,  ou  de  imitar  a  retirada  de 
Massena,  depoi§  dos  seus  infrucliferos  ataques  ás 
linhas  de  Torres  Vedras.  Mas  essas  terríveis  li- 
ções sel-o-iam  duplamente  se  não  tivessem  apro- 
veitado aos  vencidos.  Além  d'isso,  as  guerras  de 
Alger,  guerras  lambem  de  emboscadas  e  ardis, 
haviam  dado  aos  soldados  e  generaes  de  Napoleão 
III  a  experiência  que  faltava  aos  veteranos  do 
primeiro  imperador.  O'  general  Forey  poz  logo  o 
dedo  no  único  meio  de  defeza,  de  que  podia  lan- 
çar mão.  Combateu  os  mexicanos  com  as  suas 
próprias  armas ;  á  entrada  cm  campo  dos  guer- 
lilhas  respondeu  com  a  organisação  das  conlra- 
guerrilhas. 

Este  corpo,  que  tantos  serviços  prestou  e  está 
prestando  á  occupação  franceza  e  ao  novo  impé- 
rio, apresentou,  nos  primeiros  tempos  dasuacrea- 
ção,  o  mais  extravagante  aspecto,  que  é  possível 
imaginar-se.  Confusa  miscellanea  de  trajos,  de  idio- 
mas e  de  physionomias,  parecia  indicar  que  os 
obreiros  da  torre  de  Babel  haviam  desembarcado 
cm  Yera-Cruz  para  auxiliarem  o  novo  império, 
que  lambem  linha  a  sua  feição  variegada,  porque 
apresentava  a  anomalia  de  ser  a  rcconstrucção  do 
Ihrono  dos  Aztéques  emprehendida  por  um  im- 
perador francez,  em  proveito  de  um  archiduque 
allemão  eleito  por  colonos  hespanhoes ! 

Expliquemos  esta  confusão. 

Quando  os  francezes,  de  posse  de  Alger,  se  vi- 
ram obrigados  a  travar  com  os  árabes  e  os  kabi- 
las  uma  guerra  de  montanhas,  perceberam  logo 
a  necessidade  de  organisarem  corpos  ligeiros,  c, 
se  fosse  possível,  de  indígenas,  que,  por  conhe- 
cerem bem  as  disposições  do  terreno,  podiam  ser 
opposlos  com  fructo  a  esses  intangíveis  inimigos, 


que  appareciam  e  desappareciam  cora  a  rapidez  do 
raio,  mas  deixando  lambem  sempre,  como  o  raio, 
vestígio  da  sua  passagem. 

Foi  esse  o  motivo  da  creação  dos  zuavos.  Uma 
tribu  árabe,  a  Iribu  dos  zaouas,  que  se  havia  liga- 
do aos  conquistadores,  formou  o  primitivo  núcleo 
dos  regimentos.  Depois  em  torno  d'elles  foram- 
se  agrupando  aventureiros  audaciosos,  a  quem  o 
ministro  da  guerra,  com  toda  a  generosidade, 
dava  um  passaporte  para  Alger,  aíim  de  os  livrar 
das  impoitunidades  da  policia.  Já  se  vê  que  eram 
só  admitlidos  os  que  tinham  peccados  veniaes,  e 
não  os  que  tinham  na  sua  vida  macula  que  im- 
plicasse deshonra,  e  que  por  conseguinte  des- 
honrasse  a  bandeira,  que  se  deve  desfraldar  illibada 
ao  vento  das  refregas.  Assim,  estes  regimentos 
eram  formados  de  gente  um  pouco  turbulenta  mas 
decidida,  folgazã  e  audaz,  ágil  sobretudo,  porque 
os  membros  indígenas  estavam  habituados  aos  fra- 
guedos do  Atlas,  e  os  francezes  já  em  Paris  mos- 
travam grande  predilecção  pelos  caminhos  extra- 
vagantes onde  se  não  aventura  a  dignidade  da 
gendannerie,  laes  como  telhados,  muros  de  quin- 
tal e  outras  vias  excepcionaes. 

Os  bons  resultados  obtidos  por  esta  idéa  inspi- 
raram o  desejo  de  a  desenvolver  ;  a  infanleria  dos 
zuavos  perseguia  nos  mais  inaccessiveis  píncaros 
da  Kabyliaos  atiradores  árabes,  eera  necessário 
não  deixar  o  campo  livre  a  esses  terríveis  caval- 
leiros  nirmidas,  que  foram  sempre,  desde  Jugurlha, 
o  terror  dos  exércitos  europeus.  Na  defeza  as  bayo- 
netas  dos  quadrados  francezes  bastavam  para  apa- 
rar o  embale  d'esse  turbilhão  de  ginetes.  Mas  a  re- 
tirada linham-n'a  os  assaltantes  sempre  segura, 
porque  seria  necessário  que  fosse  cada  soldado  da 
cavallaria  franceza  um  Franconi,  para  que  os  po- 
desse  acompanhar  nas  penedias  que  elles  galga- 
vam como  se  cada  cavallo  tivesse  azas  nos  pés, 
em  vez  de  ferraduras.  Uemediou-se  a  este  incon- 
veniente pelo  mesmo  systema,  que  se  applicára  ao 
outro.  Um  corpo  de  cavallaria  indígena  foi  creado 
com  o  nome  de  «spabis». 

Esta  dupla  experiência  ensinou  aos  francezes  o 
methodo  de  auxiliarem  sempre  os  movimentos  do 
exercito  regular  com  estas  tropas  irregulares,  co- 
nhecedoras, do  terreno,  e  próprias  para  atalharem 
a  insurreição  dos  povos,  quando  elles  tivessem  a 
idéa  de  entrar  em  scena.  Logo  na  campanha  da 
Criméa,  o  marechal  Saint-Arnaud,  pensando  nos 
damnos  que  as  nuvens  dos  cossacos  lhe  podiam 
causar,  ordenou  a  organisação  dos  bachi-hozouks, 
espécie  decossacos  turcos,  encarregados  delivrarem 
o  exercito alliado das  impoitunidades  da  selvagem 
milicia  moscovita.  Foi  quasi  inútil  a  organisação, 
porque  a  invasão  da  Uussia  estacou  perante  as 
muralhas  de  Sebaslopol,  e  não  tiveram  por  conse- 
guinte as  forças  alhadas  de  atravessar  as  solitá- 
rias slcppcs,  domínio  incontestado  das  hordas  bru- 
taes  do  Don,  do  Dnieper,  e  do  Volga. 

Se  havia  campanha,  onde  fosse  indispensável 
o  auxilio  d''essas  tropas  irregulares,  era  de  certo 
a  do  México.  Ahi  a  questão  principal  era  a  das 
guerrilhas,  só  d'esse  lado  é  que  se  podia  temer 


8 


O  PANOrxAMA 


um  desastre.  Mas  como  obviar  a  elle?  O  exercilo 
estava  no  México  u'iima  posição  completamente 
excepcional.  Não  tinlia  alli  como  na  Turquia  um 
paiz  alliado,    que  lhe  desse  os  seus  irregulares 
para  os  organisar :  não  tinha  como  em  Alger  um 
núcleo  indígena,  a  Fiança  a  dois  passos  para  lhe 
enviar  as  suas  aventurosas  recrutas,  tempo  largo 
para  as  adestrar,  e  um  (juartel  seguro,  onde  a  or- 
ganisação  se  podesse  fazer  co*m  toda  a  commodi- 
dade.  Alli  o  paiz  era  adverso  em  massa,  urgia  o 
tempo,  e  os  fiancezes  não  piodiam  chamar   seu 
nem  seqwr  ao  terreno  em  ijue  se  j)rojectava  a 
sombra  dos  seus  regimentos.  Havia    um    único 
meio,  foi  para  elle  que  se  appellou.   O  México  é 
ainda  o  El-Dorado  dos  europeus,  uu  pelos  pró- 
prios recursos,  ou  por  ser,  para  assim  dizermos, 
a  porta  do  maravilhoso  paraiso  da  Caliloínia.  Fer- 
vilham nas  suas  cidades  os  aventureiros  de  Iodas 
as   nações,   gente  resoluta,    ávida    de    riquezas, 
amiga  da  lucta,  doida  pelos  acasos  da  vida  erran- 
te. Foi  com  esta  canalha  de  heroes  que  se  forma- 
ram as  contra-gucrrilhas. 

Imaginem  ja  o  que  devia  ser,  especialmente 
no  principio,  uma  semelhante  tropa.  O  allemão  ta- 
citurno formava  ao  lado  do  palreiro  francez,  do 
monosyllabico  inglez,  do  expansivo  italiano,  do 
]»hantasioso  hesjjanhol,  do  ávido  suisso.  A  disci- 
])lina  conservava-se,  graças  aos  esforços  do  co- 
ronel Dupin  e  dos  seus  subalternos,  mas  a 
muito  custo.  Porém  o  Um  preencheu-se ;  as 
guerrilhas,  se  tentavam  atacar  os  comboyos,  re- 
cebiam, segundo  as  regras  grammaticaes,  uma 
resposta  no  mesmo  caso  em  que  faziam  a  pergun- 
ta. Ás  vezes  esses  eternos  inventoi-es  de  em- 
boscadas caiam  nos  mesmos  laços,  que  tinham  por 
uso  armar,  e  og;eneral  Forey  ponde  continuai'  o 
cerco  de  Pnebla,  tomal-a,  e  marchar  sobre  a 
capital,  sem  receio  de  ver  os  seus  feridos  assassi- 
nados, as  suas  bagagens  roubadas,  os  seus  com- 
boyos salteados. 

Um  dosoni€Íaesd'essasconlra-guerrilhas,  o  con- 
de d(^  Kéiati-y,  deu  na  Rcvisla  dos  Dois  Mun- 
dos de  1  de  outubro  de  \Wò  uma  noticia  circuns- 
tanciada das  expedições  em  que  tomou  parte. 
Interessantissimo.por  qualquer  lado  que  se  consi- 
dere, ou  como  subsidio  j)ara  a  hisloiia  militar  da 
campanha  do  Mex-ico,  ou  como  quadro  dos  cos- 
tumes bárbaros d'es.sas  tei-ras  americanas  em  ple- 
no século  XIX,  abunda  esse  artigo  em  anecdolas 
que  podem  scr\ir  de  base  a  romances  altamentcí 
commoveRles,  se  as  deparar  a  hábil  penna  de 
um  Alexandre  Dumas,  ou  de  uoi  Paulo  Féval.  iNão 
ousamos  tanto,  que  não  são  para  isso  as  nossas 
forças,  e  apenas  tentamos  esboçar,  na  leve  nar- 
rativa que  se  segue,  um  caso  horroro.so  sim,  mas 
cuja  veracidade  é  asseverada  por  um  ollicial  fran- 
cez, e  confirmada,  sendo  necessário,  |)elo  teste- 
munho dos  seus  collegas,  que  elle  invoca,  caso 
í|ue  pode  dar  aos  nossos  leiloro.s  uma  idea  do(|ue 
eram,  ha  um  anno,  e  do  íjue  jjrovavelmentí!  ain- 
da hoje  .são  os  costumes  de  um  paiz.  que  se  apre- 
senta como  civilisado. 

(Continua) 


A  ESTRELLA 

Like  a  star  on  eternity's  ocean! 
MoonE. 

Por  entre  o  raro  veu,  que,  pouco  a  pouco, 

Viera  o  céo  toldar, 
Eu,  deslumbrado,  contemplava  a  eslrella 

(Jue  via  ídém  brilhar. 

Oh,  era  bella,  sim ;  seus  raios  trémulos 
Sobre  a  terra  desciam  ; 

Mas  n'aquelle  esplendor  pallido  e  sanlo 
Os  lyrios  se  reviam. 

Era  bella,  perdida  e  solitária 

Em  meio  d'ampli(lão ; 
Como  um  fanal  d'esp'rança,  radiando 

Na  escura  cerração. 

E  o  meu  espirito  evocava  inquieto 

Delicias  que  eu  perdi, 
\l  o  meu  passado  inteiro  e  redivivo 

Sorria-me  d'alli. 

E  o  coração  balia-me  convulso 

Como  jamais  bateu : 
A  rainha  vida  toda  estava  presa 

Na  luz  d'aquelle  céo. 

É  que  a  eslrella  era  a  imagem  saudosa 
De  um  sonho  d'alegrias : 

Aslío  consolador,  raio  perdido 

Na  treva  dos  meus  dias  I 

E.  A.  Vidal. 


O  SEGREDO 

Fm  ofTicial,  que  tinha  grande  familiaridade  com 
o  piincipe  de Orange,  por  occasião  de  ciTta  mar- 
cha foiçada,  dirigiu-lhe  a  seguinte  pergunta  : 

—  Ponjue  motivo,  senhor,  fazemos  esta  marcha? 

— (luardareis  o  segredo?  lhe  tornou  o  príncipe. 

— Sou  incapaz  de  abusar  da  vossa  confiança! 

— Fslou  convencido  d'isso,  replicou  o  príncipe; 
mas,  se  possuis  o  dom  de  poder  guardar  um  se- 
gredo, Deos  lambem  me  concedeu  igual  graça. 


A  POSTERIDADE 

— Appello  para  a  posteridade,  dizia  (não  nos 
lembramos  da  época  nem  do  logar)  um  poeta,  a 
quem  acabavam  de  palear  uma  das  suas  produc- 
ções  dramáticas;  despresoum  publico  que  se  com- 
põe somente  de  analj)habelos. 

— Ai,  meu  caro  amigo,  lhe  tornou  um  indi- 
viduo, (jue  o  acompanhava  ;  vò  aqueilas  creanças 
além  jogando  o  pião  e  dando  cambalhotas?  são 
ellas  que  hão  de  representar  -a  posteridade.  ()s 
analphabetos  de  (|ue  hoje  se  (|ueixa,são  a  posteri- 
dade porquí!  tanto  clamaram  os  poetas  de  ha  cin- 
coenta  annos,  cujas  obras  lambem  foram  palea- 
das. De  maneira,  f|ue,  essas  suas  palavras:  — 
appello  para  a  posteridade  —  equivalem  a — appello 
para  os  analphabetos  do  porvir. 


Tyi).  l''rancu-l'orliit;ucza.  —  llua  do  Thesouro  Vtllio,  G. 


o  PANORAMA 


A  ANDORINHA 

Os  Fisstroslros  diurnos  são  algumas  vezos  de- 
signados pelo  nome  commum  de  Andorinluis ; 
não  obstante,  dividem-n'os,  geralmente,  em  duas 
espécies:  Andorinhas  propriamente  ditas,  e  Gai- 
vões. 


As  Andorinhas  propriamente  ditas  [Hirundo) 
teem  o  bico  triangular,  largo  ria  baser  e  um  pouco 
recurvado  na  ponta,  as  ventas  oblongas,  pernas 
curtas,  os  dedos  dos  pés  dispostos  como  na  maior 
parte  dos  pardaes,  azas  muito  compridas  e  a  cauda, 
ordinariamente,  bipartida ;  procuram  sempr-e  as 
grandes   povoações,   e   os  serviços  que  prestam 


purgando  o  ar  de  uma  multidão  do  insectos  prc- 
judiciaes,  der-am  logar  a  que,  por  muito  tempo, 
fossem  consideradas  como  emanação  divina,  e por 
consequência  lidos  por  criminosos  os  indivíduos 
que  procurassem  mallralal-as. 


Poucas  espécies  teem  o  instincto  social  tão  des- 
envolvido como  as  andorinhas.  Reunem-se  em 
familia,  caçam,  percorrem  em  bandos  o  espaço, 
prestam-se  mutuo  soccorro  contr^a  as  aves  de 
i"apina  e  edificam   os  seus  ninhos  nos  mesmos 


10 


o  PANORAMA 


sitios  duranle  nuiilos  annos  conseculivos.  É  na 
jirimavcra  que  as  Tômos  apparecer,  primeiro,  em 
pequenos  bandos,  depois  em  grandes,  e  espalha- 
rem-se  então  pelos  campos  e  cidades,  reparando 
os  ninhos  do  anno  precedente  ou  conslruindo  novos 
em  que  empregam  muitas  vezes  um  mez  de  tra- 
balho. 

A  forma  dos  ninlios,  bem  comoologar,  variam, 
segundo  as  espécies.  Ora  lêem  a  forma  de  um 
cvlindro  ou  de  um  quarto  de  semi-espheroide ; 
nia  a  de  um  cone  troncado ;  umas  famílias  cons- 
lroem-n'os  nos  ângulos  das  janellas  e  nas  beiras 
dos  telhados;  outras  nas  concavidades  dos  roche- 
dos, nos  buracos  do  solo,  nas  fendas  dos  muros 
e  das  arvores  velhas.  As  matérias  que  empre 
gam  na  construcção  variam  igualmente:  as  An- 
dorinJms  de  chaminé  e  de  janclla  fabricam-n'os 
de  terra  molhada  e  palha  miúda,  forrando-os  in- 
teriormente de  cotão  e  de  pennas;  oGaivão  preto 
edifica  o  seu  de  bocadinhos  de  madeira,  palha, 
pennas  e  outras  substancias  semelhantes,  ape- 
gando-as  entre  si  com  o  humor  vis.coso  que  lhe 
cobre  constantemente  o  interior  da  Í30ca.  A  pos- 
tura é  de  seis  a  oito  ovos.  Duranle  o  choco,  que 
dura  ordinariamente  deseseis  dias,  a  fêmea  não  deixa 
um  só  momento  o  ninho.  O  macho  leva-lhe  o  pro- 
ducto  da  sua  caça,  e  vigia  de  noite  a  ninhada. 
Ouando  os  fdhos  nascem,  os  pais  ensinam-lhes  a 
fazer  uso  das  azas,  mostrando-lhes,  de  longe,  o 
sustento;  guiam-n*os  em  suas  excursões  em  quanto 
carecem  de  auxilio  e  depois  passam  a  cuidar  da 
nova  ninhada  ;  o  que  se  repete  Ires  vezes,  ordina- 
riamente, em  cada  estação.  >'o  outomno,  as  andori- 
nhas emigram  Iodas,  e  no  mez  de  outubro  come- 
çam a  apparecer  no  Senegal.  Todavia,  durante  o 
inverno,  encontram-se,  algumas  vezes  nas  grutas 
ou  nos  caniçados,  muitos  d'estes  pássaros,  mergu- 
lhados n'um  torpor  lethargico.  As  andorinhas  são 
dotadas  de  uma  potencia  de  voo  extraordinária. 

Poucas  espécies  voam  com  tanta  rapidez.  Spal- 
lanzani  aífirma,  que  a  andorinha  de  janella  pode 
andar  por  hora  vinte  léguas  e  que  o  voo  do  gaivão 
é  muilo  mais  rápido.  Um  sentido  singularmente 
desenvolvido  entre  estes  pássaros,  c  a  vista.  Um 
facto,  de  que  Spallanzani  foi  testemunha,  mos- 
trou-íhequcasandorinhasdistinguem,  perfeitamen- 
te, na  distancia  de  105  melros,  um  objecto  tal, 
como  uma  formiga  de  azas. 

Quatro  são  as  espécies  de  andorinhas  que  se 
acham  em  todo  o  Sudoeste  da  Kuropa :  a  Andori- 
nha de  janella  (Ilirundo  urbicaj  preta  pela  parle 
superior  do  corpo,  branca  pela  inferior  e  no  uro- 
pigio,  c  cujos  pés  são  revestidos  de  pennas  até  ás 
unhas.  Kdiiica  o  seu  ninho  nos  ângulos  das  janellas, 
nas  beiras  dos  telhados,  ele.  a  Andorinha  de 
chaminé  (Ilirundo  ruslica)  preta  pela  parle  su- 
perior do  corpo,  branca  pela  inferior,  fron- 
te e  garganta  ruivas,  dedos  nus  e  cauda  rasgada  e 
longa.  Deriva  o  nome  do  logar  que  jjiocura  para 
a  sua  habitação,  onde  fabrica  o  ninho,  a  que  dá  a 
íórma  de  um  (juarto  de  semi-espheroide:  a  Ando- 
rinha das  praias  ilfirundo  riparia)  mais  pequena 
do  que  as  precedentes,  parda  pela  jiarle  supeiior  do 


corpo  e  no  peito,  branca  na  garganta  e  pela  parte 
inferior.  Desova  em  buracos  nas  margens  dos  rios, 
lagos  e,  muitas  vezes,  no  inverno,  é  encontrada 
n'aquelles  togares  n'um  estado  de  torpor  lethargico  : 
a  Andorinha  dos  montes,  (Hirimdo  riipeslris)  que 
nãodilVere  da  andorinha  de  chaminé  senão  em  ler 
as  pennas  alvadias  pela  parte  superior  do  corpo  e  a 
cauda  um  pouco  rasgada.  Das  espécies  estranhas 
citaremos  apenasa A/íí/o/v'/?Aí(  Salanf/ana.  ilfirundo 
esculenta)  que  habita  nas  ilhas  do  Archipelago 
índio;  é  muilo  mais  pequena  que  todas  as  outras, 
e  a  substancia  gelatinosa  com  que  fabrica  os 
seus  ninhos  é  muilo  procurada  pelos  chinezes, 
que  a  consideram  um  excellente  manjar.  Os 
guisados  de  ninhos  de  andorinhas  llguram  em 
lodos  os  grandes  banquetes  do  Celeste  Império  : 
estes  ninhos  lambem  são  objecto  .tle  um  grande 
commercio,  e  vendem-se  por  preços  elevadíssimos. 

Os  gaivões  dislinguem-se  das  andorinhas,  com 
as  quaes  se  confundem  nos  costumes,  por  terem  as 
pernas  mais  curtas  e  as  azas  muilo  mais  compridas. 
Esta  curtesa  das  pernas  junta  ao  comprimento  das 
azas  faz  com  que,  estando  no  solo,  tenham  grande 
diíTiculdade  em  lomar  o  voo  ;  em  consequência  do 
que  raras  vezes  poisam;  vivem  constantemente  no 
ar  reunidos  em  bandos  numerosos,  perseguem  os 
insectos,  gazeando  fortemente  e  aninham-se  nas 
fendas  dos  muros  e  nos  rochedos.  Encontram-se 
apenas  na  Europa  duas  espécies :  o  Gaivão  preto 
íCijpsellus  apus)  que  tem  o  corpo  preto,  garganta 
branca  e  que  anda  pelas  torres  e  pontos  elevados, 
importunando  os  habitantes  doslogares  com  os  seus 
incessantes  guinchos ;  e  o  Gaivão  grande  [Cypsel- 
lus  melba)  habitante  dos  Alpes,  que  se  aninha  nas 
concavidades  dos  roohedos. 

Entre  as  espécies  exóticas,  a  mais  elegante  e 
notável  pelas  lindas  cores  e  sobretudo  pelas  pen- 
nas que  tem  sobre  o  bico,  em  forma  de  bigode,  é, 
sem  contradição,  o  gaivão  da   Nova  Guiné. 


O  homem  de  coração  puro  encontra  sempre 
rasões  para  aggravar  o  seu  crime  e  não  para  jus- 
lificar-se. 


A  QUESTÃO  LITTERARIA 

1'or  ZACHARIAS  AÇA 

Paliarei  lambem,  para  completar  este  esboço 
critico,  do  livro  que  se  seguio  á  Yisão  dos  tempos, 
e  cuja  segunda  parle  é.  Nas  Tempestades  sonoras 
lia  a  mesma  tendência  poética  e  histórica,  quero 
dizer,  o  mesmo  modo  de  manifeslação,  e  ainda  o 
mesmo  intricado  de  phrase  na  prosa,  e  na  poesia 
accresce  a  exageração,  a  transferencia  impossível 
de  allribulos,  c  uma  falsa  grandeza  que,  perdoem- 
me  a  palavra  que  é  dura,  não  consegue  ser  senão 
ridícula. 

Eis-aqui  e  em  poucas  palavras  o  que  geralmen- 
te se  diz  e  pensa  a  respeito  d'esles  livros.  Não  é 
o  (jue  a  imi)rensa  publica,  bem  o  sabemos,  por- 
(|ue  os  órgãos  da  opinião,  largam  muitas  vezes  mão 
da  consciência  c  escrevem  o  (jue  não  sentem,  mas 


o  PANORAMA 


11 


é  o  que  eu  penso  e  creio  ser  a  opinião  geral  que 
se  não  deixa  levar  pela  opinião  de  escriplores  lou- 
vaminheiros. 

As  tendências  que  revelaram  no  sr.  Theophilo 
Braga  um  scismalico,  scclario  da  religião  das 
trevas  que  luzem  (a)  não  eram  novas  para  nós, 
infelizmente.  Os  que  teem  frequentado  a  Universi- 
dade, e  os  que  estudam  e  seguem  o  movimento 
intellectual  em  Portugal,  sabem  que  desde  muito 
lavra  em  Coimbra  este  incêndio  obscuro,  que  pre- 
tende substituir  o  sol.  Todos  conhecem  o  Raio,  o 
Minlio  e  outros  jornaes  em  que  alguns  mancebos 
de  merecimento,  porque  o  lêem, -coslumavam  per- 
der o  seu  tempo  e  transviar  o  espirito  dos  cami- 
nhos luminosos  para  nos  dizerem  :  «A  liberdade 
se  não  ó  Deus  é  um  estilhaço  de  Deos.»  ccO  me- 
Iharuco  do  encephalo  devora  sempre  a  abelha  da 
alma»  e  outras  coisas  assim  de  que  eu  podia  fa- 
zer um  grande  estendal. 

Pertenceram  a  este  grémio,  em  que  reinavam  o 
archaismo  e  o  neologismo,  o  sr.  Camillo  Caslello 
Branco,  que  já  descendas  alturas,  felizmente  para 
elle  e  para  nós,  osr.  Ayres  de  Gouvôa  e  osr.  Viei- 
ra de  Castro  quando  escrevia  a  biographia  do  nosso 
eminente  romancista.  Aqui  em  Lisboa  ha  al- 
guns escriptores  e  não  dos  somenos  a  quem  se 
pôde  fazer  o  mesmo  reproche. 

A  critica,  até  hoje,  tem-n'os  respeitado  e  pare- 
ce-me  que  pôde  bem  ser  accusada  de  se  parecer 
com  os  fidalgos  do  antigo  rbgimen,  humildes  nos 
paços,  orgulhosos  nas  ruas.  Perante  a  critica, 
quero  dizer  perante  a  rasãoe  a  consciência,  todos 
são  eguaes. 

A  imitação  das  allucinações  de  Victor  Hugo 
tem  feito  com  que  alguns  poetas  e  prosadores  des- 
presem  por  vezes  a  naturalidade  e  procurem  á 
custa  do  sacrilicio  d'esta  realisar  um  ideal  impos- 
sível. O  distincto  poeta, o  sr.  Mendes  Leal,  incor- 
reu n'esta  falta  quando  escreveu  algumas  dasestro- 
phes  do  ^'apoleão  no  Kremlin. 

É  ainda  à  imitação  mal  entendida  do  grande 
poeta  francez,  que,  forçoso  é  dizel-o,  vae  na  de- 
cadência do  seu  talento,  que  devemos  attribuir  a 
falsa  grandeza,  o  procurar  do  efleilo,  o  amanei- 
rado,  que  se  nos  depara  nas  composições  poéticas 
do  sr.  Anthero  do  Oucnlal;  e  como  os  imitadores 
costumam  exagerar  os  defeitos  dos  originaes,  a 
poesia  cosmogonico-philosophica  que  tem  por  ti- 
tulo—  Fiai  lux — leva  a  palma  ás  maiores  extra- 
vagâncias da  phanlasia  de  Victor  Hugo. 

Isto  liça  dito  por  uma  vez,  e  parece-me  que 
ninguém  que  tiver  lido  o  Fiat  lux,  me  pedira  a 
analyse  d'esta  composição. 

Até  hoje  lenho  escripto  exclusivamente  sobre 
artes  e  é  esta  a  primeira  vez  que  me  occupo  dtí 
critica  litleraria.  Os  que  me  tem  lido  (poucos  são) 
na  Revista  do  Século,  sabem  que  sou  habitual- 
mente severo  nas  minhas  apreciações,  e  que  tra- 
tei alli  os  professores  da  Ac?demiâ  das  Bellas  Ar- 
tes, que  são  todos  meus  amigos,  e  os  outros  ar- 
tistas para  mim  desconhecidos,  coma  maior  igual- 

((')  Fiat  íif-x'— por  Anthero  do  Ouciilal. 


dade.  Distribui  os  louvores  e  a  censura  conforme  com 
a  minha  consciência,  e  d'isto  não  me  arrependo. 

O  que  (ligo  aqui  não  me  é  dictado  pelo  desejo 
de  agradar,  de  ganhar  coroas  no  torneio.  Andam 
na  lid«e  outros  campeadores  a  quem  ellas  são  de- 
vidas. Não  sou  d'esses  que  a  troco  de  zumb.aias 
vis  procuram  grangear  a  graça  regia  do  um  sor- 
riso, d'csses  a  quem  um  grande  poeta,  Corneille, 
se  não  me  engano,  disse — aAffaslai-vos  porque  o 
vosso  thuribulo  fei'io-mena  face»  mas  lambem  não 
levanto  a  lama  para  a  lançar  ao  rosto  dos  que  an- 
dam na  mesma  faina  e  que  tiveram  a  desventura 
de  nascer  antes  de  mim,  nem  lhes  grito» — Velhos! 
curvai-vos,  respeitai-me  e  segui-me,  porque  eu 
sou  a  verdadeira  sciencia,  a  luz  e  a  inspiração; 
forque  eu  sou  novo  e  bello,  e  porque  a  aurorada 
vida  ainda  meillumina  a  fronte  com  os  seus  últi- 
mos clarões  ! 

Entre  o  critico  c  a  pamphlelario,  enire  a  digni- 
dade e^^a  vaidade,  ha  um  abysmo.  Não  entendo 
que  a  critica  deva  ser  insultadora,'  nem  tenho  pa- 
ra mim  que  seja  grande  o  nome  do  que  poz  a  co- 
roa de  espinhos  na  cabeça  do  Christo. 

Não  é  nas  cavernas  lobregas  do  orgulho  que 
(levemos  procurar  a  luz.  O  orgulho  fez  Salanaz, 
mas  não  faz  os  eleitos. 

É  na  consciência  que  está  a  justiça,  e,  como  disse 
o  sr.  Alexandre  Herculano,  devemos  Iraze-la  sem- 
pre comnosco,  para  que  não  seja,  fora  de  nos, 
como  uma  visão  tremenda  que  nos  acompanhe, 
inexorável  como  o  olhar  que  perseguia  o  Cain  da 
Lenda  dos  séculos 

(CoiUinu(i)  ■ 


IDÍLIO 
I 

A  Confi.x.siio 

Era  pelo  descair  de  uma  linda  tarde  de  prima- 
vera; hora  em  que  o  sol,  ao  occullar-se,  tinge  de  mil 
cores  o  ceo ;  hora  de  doce  e  religioso  encanto,  em 
que  vaguea  melancolicio  o  pensamento,  e  o  coia- 
ção  sente  indelinivel  íernura.  Azues  se  mostra- 
vam, quasi  sem  perfis,  as  longiquas  montanhas 
por  entre  um  vapor  alvacento  que,  como  trans- 
|}arente  véo  as  cobria.  A  brisa,  com  o  seu 
errante  e  leve  sopro,  agitava,  graciosamente,  as 
copas  das  arvores,  e  silvava,  branda,  por  entre  a 
ramagem,  onde  brilhava,  e  desapparecia,  e  tornava 
a  brilhar  por  instantes,  a  luz  phosphorica  do  pyri- 
lampo.  O  triste  e  saudoso  canto  de  algumas  aves 
confundia-se  com  o  prolongado  estridor  do  grillo. 
A  passo  lento,  preguiçoso,  se  dirigiam  os  rebanhos 
para  o  redil  seguidospelos  pastores  que,  ora  os  acom- 
panhavam, ora  se  distraiam,  para  escutar  as  tar- 
das vibrações  de  uma  harmonia  ao  longe.  Soberbo, 
magesloso  era  o  (juadi-o,  que  a  natureza,  sempre 
pródiga,  n'aquelle  momento  apresentava!  Pela  en- 
costa do  monte  desciam  então,  em  deleitoso  col- 
loquio  entretidos.  Narciso  e  Lilia  formosa. 

— Consegui  fallar-te  hoje,  amável  pastora;  mas, 
por  estranho  acaso ;  porque  na  estreiteza  do  ca- 
minho não  podesle  evitar  o  encontro,  como  o  tens 


42 


O  PANORAMA 


feito  na  planície.  Foges  de  mim,  Lilia,  e  eu  bus- 
co-le  por  Ioda  a  parle,  e  a  lodos  os  inslantos : 
como  o  gado  procura  o  pasto,  como  o  extraviado 
cordeirinlio  a  mãi  alllicta.  Foges-me,  Lilia,  que 
eu  amo,  como  as  a])clbas  amam  o  cálix  das  llo- 
res,  e  como  as  lloros  amam  a  luz  c  a  frescura 
da  manhã.  Feliz  queni  possue  o  leu  carinho, 
pastora,  porque  o  prazer  lhe  trasborda  do  co- 
ração. Desgraçado  de  mim,  que  o  leu  despreso 
choro  incessantemente ! 

—  Não  dnvido ;  mas,  a  quantas  pastoras  lens 
dilo  o  mesmo  que  oia  me  disseste.  Narciso?  Já 
t'o  ouvio,  certamente,  llina,  a  bella,  para  quem 
tuas  canções  possuem  tantos  atlractivos ;  a  sober- 
ba e  altiva  IJelisa  a  quem  abrandam  os  maviosos 
sons  da  tua  fraula;  e  l'hillys,  aalVectadae  langui- 
da Phillvs,  (jue  honlem  ostentava  uma  grinalda 
de  rosas  colhidas  por  lua  mão.  Falia  a  essas  do 
leu  amor,  sensível  Narciso,  cyie  eu  não  troco  a 
minha  liberdade,  nem  a  minh^  alegria  por  men- 
tirosas palavias. 

—  És  injusta,  Lilia  ;  o  ceo  dou  por  testemunha 
de   que  não  mereço  me  dirijas  taes  accusações. 
Escuta-me :   lia    poucos   dias,    disputavam    dous 
pastores  o  premio  do  canto,  na  presença  de  muita 
gente  da  aldeia  reunida  debaixo  da   grande   azi- 
nheira. Casualmente,  passei  j)or  alli ;  e  ao  avis- 
larem-me,  deteve-se  o  que  cantava,  poz-se  de  pé 
o  rival,  e  alguns  dos  jovens  pastores  me  convida- 
ram a  entrar  na  liça.  Úlina  exclamou  então  :  «Can- 
ta, Narciso,  (juc  lua  voz  é  grata  ao  ouvido  e  com- 
move  o  coração.»  «E  senão,  que  acompanhe  com 
a  fraula  os  cantores,  porque  os  sons  que  d'elki 
lira  são  mais  agradáveis  do  que  os  suaves  gor- 
gcios  do  rouxinol.))  Isto  disse Belisa.  Eu  respondi: 
c(  Amigos,  como  poderá  cantar  quem  vive  tão  tris- 
lemente?  (^omo  poderá  tocar  quem  chora  a  todo 
o  momento  ?  lia  muito  que  não  exercito  a  voz  e 
bem  sabeis  que  minha  fraula,  lambem  ha  bastan- 
te lempo,  se  acha  pendurada  n'um  ramo  do  ála- 
mo que  sombrea  a  minha  cabana.  Não  me  falíeis, 
j)0Í5,  em    canções,  jogos  4i   danças,  em  quanto 
aquella,  (|ue  me  roubou  o  áocego,  o  não  reslituir 
ao  meu  peito  contristado».  «Roguemos  a  Lilia  (jue  o 
ume;  exclamaiarn,  como  que  de  mim  zombando,  as 
duas  pastoras  que  citei.  Ao  ouvir   pronunciar  o 
teu  nome,  senti  que  lodo  o  sangue  me  aílluia  ao 
coração,  e  que  o  roslo  se  me  tornava  rubro...  co- 
mo ferro  em  brasa.  Vès?  a  lodos,  d'esle  modo, 
descobri  o  meu  segredo. 

— E  a  grinalda  de  Fhillys? 

— Eu  To  digo:  llontcm  procurando  um  cabrili- 
nho  extraviado,  eslava  Fhillys  colhendo  llores 
no  rosal  silvestre,  (jue  vegeta  na  borda  mais 
escarpada  do  monle.  Ao  divisal-a  (e  não  o  liz 
jior  fugir-lhe,  foi  por  não  interi-omper  o  meu 
Irabalhoy  torci  caminho,  tingindo  não  a  ler  vis- 
to;  porem,  não  havia  andado  muito,  íjuando  um 
grito  penclranle  me  chegou  aos  ouvidos.  Era  um 
grilo  de  1'hillyspor  se  ler  ferido  nos  espiniiosao 
apanhar  uma  rosa... 

— l>ogo,  esqueceste  o  cabritinho,  corresle  diici- 
lo  a  ella,  c  procuraste,  com  solícito  cuidado,  es- 


tancar o  sangue,  que  lhe  corria  pela  nivea  mão... 
não  é  verdade?  Não  beijaste  apaixonadamente  aquel- 
les  delicados  dedos?...  E  a  grinalda  que.  Ião  or- 
gulhosa, ostentava  no  prado?  não  foste,  tu,  quem 
lh'a  poz  sobre  os  lindos  cabellos  louros? 

— Lilia,  não  esqueci  o  cabritinho,  nem  corri, 
nem.  lhe  beijei  os  dedos ;  pelo  que  respeila  á  gri- 
nalda é  certo ;  porém,  não  sei  o  que  ella  cm  mim 
notou  quando  lhe  puz  as  llores ;  porque  na  des- 
pedida exclamou  :  «Agradeço  a  tua  extrema  cor- 
iezia,  geiílil  Narciso;  ainda  (pie  conheço,  que  não 
deveras  fazer  um  obsequio  d'estes  a  outra  paslora. 
Eras  tu,  a  quem  ella  se  referia. 

— A  mim? 

— A  ti,  sim,  paslora;  porque  lodos  da  aldèa 
sabwn  que  te  amo.  Sabem-n'o  os  bosques,  a  cuja 
espessura  lautas  vezes  hei  confiado  meus  pesares; 
a  fonte,  -cujas  aguas  crystallinas  lêem  sido  um 
bálsamo  refrigerante  para  meus  olhos  cansados  de 
chorar  o  leu  desamor;  o  meu  descuidado  rebanho; 
as  minhas  llores  que,  |)elo  abandono,  leemmurchc- 
cido ;  as  arvores  em  que  lenho  gravado  o  teu  no- 
me ;  o  dia  em  que  te  vejo  tão  cruel  e  os  meus  so- 
nhos em  que  ás  vezes  te  com  templo  branda  a 
meus  rogos;  lodos,  lodos  sabem  do  meu  amor  e 
dos  meus  tormentos  ! 

E  se,  pois,  tanto  amoi  te  consagro,  formosa 
Lilia,  porque  não  me  has  de  lambem  amar?  Oh! 
quão  felizes  seriamos,  unidos  pelo  amor  em  sua- 
ve jugo!  Para  ti,  só,  reservaria  o  melodioso  da 
minha  voz;  para  ti,  só,  osécos  repercutiriam  os  sons 
(la  minha  campestre  fraula  ;  adornar-le-ia  o  seio 
com  a  primeira  llor  da  primavera,  e  teu  seria  o 
primeiro  cacho  que  amadurecesse  na  vicfe.  Oíle- 
recer-te-ia  os  passarinhos  que  apanhasse  nas  bre- 
nhas escarpadas  ou  no  elevado  cimo  das  faias ; 
seria  a  tua  companhia  nos  bosques;  e  quando  o 
sol  abrazasse  a  terra  com  os  seus  ardentes  raios  do 
meio  dia,  á  fresca  sombra  abrigados,  fallar-te-ia 
do  meu  amor,  e  procui-aria  ler  o  leu  n'esses  lin- 
dos olhos  e  no  leu  amável  sorriso. 

Ama-me,  Lilia.  Orphão  ao  nascer,  não  ouvi  a 
voz  de  minha  mãi,  não  lhe  adormeci  nos  braços, 
não  lhe  senti  bater  o  coração ;  lambem  não  andei 
ao  collo  de  meu  pai,  nem  tive  irmãos  que  me  es- 
timassem c  que  brincassem  commigo.  O  meu 
primeiro,  e  único  amor  és  tu ;  por  isso,  talvez 
nenhum  airecto  seja  mais  profundo.  Ah !  parece 
que  n'esta  afleição  que  te  dedico,  amo  os  ir- 
mãos que  a  Providencia  me  negou,  a  mãi  que 
me  deu  a  existência,  á  custa  da  sua,  c  o  pai, 
cuja  fronte  jamais  tocaram  meus  lábios... 

— Narciso,  meu  amigo,  lambem  te  amo.  Quan- 
do choravas  o  meu  apparente  desdém,  eu,  julgan- 
do-te  inconstante,  rogava  aos  céos  (jue  a  minha 
imagem  se  te  gravasse  no  coração;  porque  o  meu, 
por  li  só,  c  só  para  li  vive. 


Ouão  perigoso  é  o  esludo  da  philosophia  quan- 
do "se  não  tem  o  entendimento  são  c  baslanlc- 

mente  solido  i)ara  resistir  ás  impressões,  aos  so- 
phismas  capciosos  dos  falsos  philosophos! 


o  PANORAMA 


1-^ 


A  FESTA  DOS  REIS 


o  rei  lieJse  de  Jordàes. 


Este  desenho  é  cojiia  de  um  quadro  dcJacques 
Jordães,  celebre  iiinlor  da  escola  flamenga,  que 
nasceu  em  Anvers  no  anno  loDí,  e  que  lendo  se- 
guido algum  tempo  as  lições  de  Rubens,  chegou 
a  imital-o  com  tania  felicidade  que  se  altríbuiu  a 
este  ultimo  uma  das  suas  melhores  composições : 
Jesas  Christo  enire  os  douforc-s.  As  obras  de  Jor- 
dães são  notáveis  pelo  vigor  do  colorido  e  peio 
que  os  entendedores  chamam  claro-escuro;  e,  se 


o  que  dizem  biographos  merece  credito,  este  ar- 
tista trabalhava  com  tanta  facilidade,  que  poude 
concluir  em  seis  dias  um  quadro  de  grande  di- 
mensão, representando  a  nympha  Syrinx,  trans- 
formada era  canna  por  suas  irmãs,  as  Nayades,  no 
momento  em  que  ia  ser  apanhada  pelo  deus  Pau, 
que  a  pei-seguia. 

Os  leitores  ainda  não  adivinharam  qual  é  o  as- 
sumpto da  nossa  gravura  ?  É  uma  d'essas  festas  com 
que  ainda  hoje  em  alguns  paizes  da  Europa  se 
commemoi-a  o  dia  da  Epiphania  ou  dos  Santos 
Reis;  festa  celebrada  com  um  banquete,  que  co- 


meça pela  nomeação  de  um  rei,  a  quem  lodos 
devem  obedecer  e  render  preito  e  homenagem 
durante  o  festim.  Esta  nomeação  é  feita  á  sorte 
e  do  seguinte  modo :  Amassa-se  um  grande  bolo, 
dentro  do  qual  se  mette  uma  fava.  Pouco  antes 
de  começar  o  jantar  traz-se  o  bolo  para  a  meza  e 
corla-se  em  tantas  partes  quantas  são  as  pessoas 
presentes ;  procede-se  á  distribuição  dos  quinhões; 
e  aquella,  a  quem  a  sorte  leva  o  bocado  que  con- 
tém a  fava,  é,  immediatamente,  com  grandes  ap- 
plausos  e  ceremonial  devido,  proclamada  rei  ou 
rainha  da  festa.  Em  seguida,  o  monarcha  escolhe 
um  bobo  de  entre  os  convivas,  o  qual  é  encarre- 
gado de  divertir  com  seus  gestos  grotescos  e  ditos 
chistosos  a  companhia.  As  despezas  do  banquete 
são  feitas  pelo  rei. 

Não  designaremos  o  papel  de  cada  um  dos 
personagens  do  quadro ;  bem  claro  o  mostram  o 
seu  caracter  e  altitude.  Também  não  ha  necessi- 


dade de  citar  o  facto  religioso  que  se  celebra  no 
dia  da  Epiphania.  Observaremos,  todavia,  que 
alguns  sábios,  considerando  a  coincidência  quasi 
exacta,  quanto  á  época  do  anno,  d'esta  festa  e  das 
antigas  saturnaes  dos  Romanos,  e  julgando  ao 
mesmo  tempo  achar  na  realeza  improvisada  d'es- 
le  dia  a  dominação  momentânea  dos  escravos  nas 
festas  de  Saturno,  disseram  que  aquella  não  era 
senão  a  continuação  daí  saturnaes.  Alguns  escri- 
ptores  christãos  lambem  se  pronunciaram  contra 
o  rei  bebe,  porque,  diziam  elles,  se  misturava  o 
divino  com  o  profano.  Mas  tanto  uns  como  outros 
encontraram  adversários  bastante  religiosos  que 
os  combateram  logicamente  em  seus  juizos. 

Parece  que,  não  somente  nas  reuniões  dos 
estudantes  e  entre  o  povo,  mas  lambem  na  corte, 
em  épocas  remotas,  eram  taes  os  abusos  gastro- 
nómicos que  a  fraqueza  dos  estômagos  de  hoje 
não  poderia'.cerlo  supporlar,  e  que  muitas  vezes 


u 


o  PANORAMA 


presidia  a  mais  completa  desenvoltura  a  estas  no- 
cturnas orgias. 

Antes  da  revolução  de  1789.  a  festa  dos  reis 
deu  logar  a  que  muitas  vezes  na  corte  de  Fran- 
ça o  pVincipe  aconii)anhasse  os  cortczãos  no  alc- 
i^re  baiujuele.  Mas  depois  da  restauração  era  ex- 
clusivamente cm  familia,  que  nas  Tulberias  se 
dividia  o  bolo,  do  qual  devia  sair  a  ephemera 
realeza. 

N'uma  época  muito  mais  distante,  os  soberanos 
de  Inglaterra  admittiam  ao  banquete  dos  Heis 
ate  os  simples  menestréis;  e  é  notório,  que  foi 
n"um  d"estes  que,  sob  o  reinado  de  Eduardo  111, 
caio  em  certo  auno  a  sorte. 

No  meio-dia  da  Inglaterra,  a  designação  de  um 
rei  ou  de  uma  rainha  era  seguida  da  nomea- 
ção dos  niinislros,  camaristas,  escudeiros,  damas, 
de  que  se  rodeavam  os  novos  príncipes ;  o  que 
era  também  feito  á  sorte. 

Seria  fastidioso  enumerar  todas  as  particularida- 
des d'estas  festas :  mas  não  podemos  deixar  de  men- 
cionar a  circumstancia  interessante  que  se  d^va, 
antigamente,  em  muitas  d"estas  reuniões,  especial- 
mente entre  a  gente  do  campo,  de,  ao  repartir  o 
bolo  dos  reis,  contar-se  com  as  pessoas  ausentes  da 
familia,  guaidando-sc-lhes  o  seu  quinhão  com  um 
cuidado  religioso,  a  que  se  juntava  quasi  sempre 
algmna  superslição;  j)orque  muitas  vezes,  via-se 
a  mãi  saudosa  consultar  o  fragmento  d'esse  bolo, 
crendo  ler  nas  alterações  originadas  pelo  lempo, 
um  prognostico  seguro  da  posição  mais  ou  me- 
nos critica  do  terno  objecto  dos  seus  cuidados. 


Naturalmente  os  homens  lêem  mtiis  inclinação 
))ara  quem  os  não  contradiz  do  que  para  quem 
os  reprehendc. 


OS   PIllLO-PORTLGUEZES. 

POR  hNNOCENGIO  F.  DA  SILVA. 
II 

Dos  cinco  beneméritos  inglezes,  cujos  nomos 
temos  de  commemorar,  notáveis  alguns  quer  ])elas 
qualidades  do  sangue  e  riqueza,  quer  por  elevadas 
luncçõfs  exercidas  na  hierarchia  civil,  dignos  to- 
dos de  respeito  por  dotes  de  ingenho  e  sciencia, 
e  que  cm  nossos  dias  demonstraram  mais  ajjaixo- 
nada  predilecção  pela  litteralura  jiortugueza,  como 
que  sagrando-llie  uma  espécie  de  culto,  ou  con- 
\erlendo-a  cm  objecto  de  seus  particulares  estudos, 
abe  o  primeiro  logar,  segundo  a  ordem  chrono- 
logica,  a  Lord  llolland.  D'elle,  como  dos  outros, 
'  scrcvcremosem  poucas  palavras,  menos  do  que  úo- 
-fjaramos.  attentas  as  dimensões  do  espaço  (le(jne 
podemos  dis|)ôr. 

Herdeiro  e  roprcsentante  de  uma  familia  dis- 
lincta  da  Grã-Hretanha,  elevada  ao  parialo  por 
lorge  111  em  1702.  Ib^nriquc  Ricardo  Vassall  Fox, 
terceiro  l.ord  llolland,  nasceu,  segundo  se  diz,  em 


1773.  A  sua  educação  foi  esmerada,  c  própria  para 
desenvolver  seu  talento  e  natural  propensão  para 
os  estudos.  Sobrinho  do  eminente  orador  e  mi- 
nistro Carlos  Fox,  c  como  elle  devotado  membro 
e  servidor  do  partido  iv/iig,  cedo  começou  a  oc- 
cupar-se  das  coisas  j)ublicas  da  sua  pátria,  toman- 
do assento  nas  cadeiras  do  parlamento.  Ahi  pro- 
fessou li  defendeu  as  idéas  e  princípios  do  lio,  cujo 
collega  veiu  a  ser  no  gabinete  durante  o  curto  in- 
tervallo  em  que  aquelle  celebre  estadista  se  viu 
por  segunda  vez  col locado  á  frente  dos  negócios 
como  primeiro  ministro  cm  1800.  Ao  cabo  de  vin- 
te e  seis  annos,  no  de  1832,  tocou-lhe  ser  ainda 
chamado  ao  serviço,  no  importanle  cargo  de  cl-ian- 
celler  do  ducado  de  Lencastre,  por  occasião  da 
subida  ao  poder  do  ministério  Grey-Melbourne. 
Porem  as  lides  politicas,  e  os  debates  da  tribuna 
jamais  tomaram. sobre  o  seu  espirito  preponde- 
rância tal,  que  por  ellas  se  esquecesse  do  cullivo  das 
leiras,  sobretudo  de  estudos  philologicos,  (jue 
amava  apaixonadamente.  » 

Havendo  passado  cm  Ilespanha,  e  cremos  que 
em  Portugal,  uma  parte  da  sua  juventude,  obti- 
vera dos  idiomas  de  ambos  os  paizes  conhecimen- 
to bastante  para  entender  os  seus  escriptores  e 
poetas;  e  para  apreciar  nos  originaes  de  cada  um 
as  bellezas  e  defeitos.  Na  sua  escolhida  e  nume- 
rosa liviaria  avultavam  em  grande  copia  os  livros 
hespanhoes  e  porluguezes,  ditos  ckCssicos.  Como 
fructo  dos  conhecimentos  philologicos  adquiridos 
no  estudo  da  litteralura  peninsular,  escreveu  e  pu- 
blicou em  Londres  (1805)  umas  Memorias  para 
a  vida  de  Lope  de  Ve/ja,  ás  quaes  addiccionou, 
reimprimindo-as  em  1817,  em  dois  volumes,  ou- 
tras acerca  de  Guilhen  de  Castro.  Obra  bem  tra- 
balhada, e  de  aprasivel  leitura  em  que  se  contem 
curiosas  e  interessantes  particularidades  relativas 
aos  dous  poetas,  e  a  critica  judiciosa  de  suas  com- 
posições. 

A  liberdade  dos  povos  peninsulares  leve  lam- 
bem em  Lord  llolland  um  dos  seus  mais  ardentes 
campeões.  Acolheu  o  hosj)edou  cm  sua  casa  com 
fraterna  e  carinhosa  hospitalidade  vários  hespa- 
nhoes illuslres,  (jue  cm  Inglaterra  se  refugiaram, 
no  lemi)o  em  que  a  península  supporlava  os  rigo- 
res da  invasão  franceza,  ou  (|uamlo  as  barbaras 
|)erseguições  de  Feinando  Yll  forçavam  os  súbdi- 
tos a  expatriar-se  jiara  não  cairem  nas  garras  do 
algoz.  No  periodo  de  1828  a  1833  advogou  calo- 
rosamenle  por  mais  de  uma  vez  no  parlamento 
britannico  a  causa  liberal  jiortugueza,  e  os  direitos 
da  rainha,  e  houve-se  com  a  costumada  genero- 
sidade j)ara  muitos  dos  poituguezes  alli  refugiados. 
Seu  caracter  alVavel,  instrucção  e  franca  amenida- 
de do  Iralo  faziam  a  sua  sociedade  uma  das  mais 
agradáveis  e  instructivas,  não  só  do  seu  paiz,  mas 
da  Kuroi)a.  Falleceu  cm  18í().  F  é  para  notar  que 
t<'n(lo-se  elle  mostrado  toda  a  vida  um  ligido  e 
fervoroso  sccjuaz  do  |)rotestantismo,  seu  lilho  e 
heideiro  viesse  logo  depois  de  sua  morte  a  abju- 
rar laes  doutrinas,  lornando-se  catholico,  e  mor- 
rendo como  tal  cm  Nápoles,  ainda  não  ha  muitos 


annos 


o  PANORAMA 


^5 


Ignoramos  o  destino  que  tivesse,  ou  onde  pára 
lioje  a  rica  livraria  de  LordKolland.  Enlre  os  seus 
clássicos  portuguezes  de  maior  estimação,  conta- 
va-se  um  exemplar  da  primeira  edição  dos  Lusía- 
das (Vòll).  D.  José  Maria  de  Souza,  morgado  de 
Malheus,  que  o  teve  presente  para  a  esplendida 
edição  que  do  mesmo  poema  fez  em  1817,  a  elle 
se  refere  em  mais  de  um  passo,  com  circumstan- 
cias  que  lhe  realçavam  o  valor. 

(ConíÍ7iua.) 

PEREZ  LORENZO 

(^ccuns  fia  Cainiiaulia  «lo  México) 

Por  PINHEIRO  CHAGAS. 
II 

No  dia  3  de  maio  de  18G3,  ao  cair  da  tarde, 
reinava  em  Medellin,  cidade  mexicana  situada  á  bei- 
ra do  Rio-Jainapa,  extraordinária  agitação.  Abriam- 
se  e  fechavam-se  portas,  descerravam-se  janellas, 
e  homens  vestidos  de  modo  extravagante,  ainda 
que  pittoresco,  davam-se  pressa  em  correr  para  o 
sitio,  onde  resoavam  as  notas  vibrantes  de  uma 
corneta,  que  locava  a  assembléa.  Estes  homens, 
cuja  j)liysionomia  devastada  indicava  a  maior  parte 
das  vezes  uma  existência  excepcional,  levavam 
revolveis  mettidos  no  cinto,  e  punham  ao  hombro 
a  carabina  moderna.  Comtudo  o  seu  armamento 
era  tão  caprichoso  como  o  seu  traje,  o  que  dava 
azo  a  que  alguns  d'elle5'apresentassem  um  aspecto 
de  verdadeiros  arsenaes  d'antigualhas,  e  que,  des- 
de a  frecha  dosÀzteques  até  á  carabina  raiada  de 
Minié,*  não  houvesse  arma  que  não  tivesse  a  sua 
representante  n'este  pouco  venerável  congresso. 
Com  estes  homens  cruzavam-se,  trocando  algumas 
palavras  ou  alguns  gestos  amigáveis,  outros  que 
mostravam,  pelo  uniforme,  pertencer  ao  corpo  de 
infanteria  da  marinha  franceza.  Os  mexicanos  pa- 
catos assomavam  ás  janellas  para  espreitarem  cu- 
riosos este  buliciq,  e,  com  uma  das  mãos  no  fecho 
e  a  outra  na  tranca,  preparavam-se  para  as  cerrarem 
immediatamente  assim  que  os  ares  se  mostrassem 
turvos.  Depois,  quando  acabavam  de  passar  esses 
n.agotes  de  gente  armada,  tudo  se  trancava  de 
novo,  e  as  ♦ruas  desertas  caiam  n'um  profundo 
silencio. 

Pois  não  era  porque  a  tarde  não  estivesse  lin- 
da, e  porque  as  larangeiras,  asbaunilhas,  easpimen- 
leiras,que  rodeiam  a  formosa  cidade  com  perfuma- 
do cinto,  não  exhalassem  as  suas  fragrâncias  mais 
suaves.  Mas  Medellin,  a  cidade  das  festas  e  dos 
bailes,  a  voluptuosa  creoula,  que  se  recosta  à 
beira  do  rio,  i'efrescando-se  com  o  leque  das  suas 
palmeiras,  e  balòuçando-senasua  rede  de  lianas  a 
dois  passos  de  Vera-Cruz,  havia  Ires  dias  que  ver- 
gava a  um  pungentíssimo  receio.  As  guerrilhas 
mexicanas,  animadas  pela  impunidade,  já  se  não 
contentavam  apenas  em  esperares  viandantes  nas 
estradas,  vinham  até  ás  portas  da  cidade,  e, 
aproveitando  a  espessa  verdura,  e  as  lloridas 
moitas  que  cercam  Medellin,  emboscavam-se  n'el- 
las  e  varejavam  as  ruas  com  um  diluvio  de  bailas, 
que  affugentava  os  Iranquillos  burguezes,  e  obri- 
gava a  guarnição  a  fazer  uma  sortida  quasi  sem- 


pre infructifera,  porque  se  bem  que  as  guerrilhas 
retiravam,  retiravam  sem  perderem  um  homem  só, 
e  voltavam  d'?.hi  a  pouco  a  repetir  as  mesmas  fa- 
çanhas. 

A  guarnição  de  IMedellin  compunha-se  de  con- 
tra-gueriilhas,  de  uma  companhia  de  infanteria 
de  marinha,  e  d'uns  vinte  soldados  mexicanos, 
allectos  aos  francezes,  e  commandadosporLloren- 
ta.  Todos  estes  bravos  mordiam-se  de  raivosos  ao 
verem  a  impudência  dos  guerrilhas,  mas  tinham 
de  se  conientar  com  essas  demonstrações  de  cóle- 
ra, porque  o  chefe  dos  assaltantes  soubera  por  lai 
forma  dissimular  o  sitio  do  seu  covil,  que,  por 
mais  diligencias  que  se  fizessem,  não  era  possivel 
atinar-lhe  com  os  rastos. 

Comtudo  n'esse  dia  decidira  o  coronel  Dupin, 
que,  desse  por  onde  desse,  a  contra-guei-rilha  ha- 
via de  tomar  a  offensiva,  e  bater  malto  até  des- 
cobrir a  caça,  emboi'a  ficassem  estirados  na  es- 
pessura das  florestas  virgens  os  caçadores  desde 
o  primeiro  até  ao  ultimo.  Mais  valia  isso  do  que 
supporlar-se  por  mais  tempo  que  uns  miseráveis 
salteadores  estampassem  tão  feia  macula  na  ban- 
deira tricolor,  vindo  todos  os  dias  insultar  impu- 
nemente a  cidade  protegida  pelas  azas  possantes 
das  águias  imperiaes. 

Por  isso  reinava  tanta  agitação  na  graciosa  ci- 
dade mexicana,  e  os  seus  habitantes,  em  vez  de 
tomarem  indolentemente  o  fresco  da  tarde  tão  apre- 
ciável n'essas  tierras  calienles,  cuja  temperatura 
é  sempre  abrasadora,  em  vez  de  respirarem  com 
morhidezza  os  cálidos  perfumes,  que  a  brisa  dos 
laranjaes  sacudia  da  túnica  impalpável,  seguiam 
com  avidez  os  movimentos  da  guarnição. 

Ao  pé  da  casa  do  coronel  Dupin  era  maior  o 
reboliço.  Os  olllciaes  francezes  passeavam  dando 
o  braço  uns  aos  outros,  mirando  com  olhos  ga- 
lanteadores  o  rosto  moreno  de  algumas  gentis  me- 
xicanas, cujas  negras  pupillas  lampejavam  por 
traz  dos  vidros  da  janella,  ou  relanceando-os  com 
tristeza  para  o  Oriente,  cujo  extremo  horisonte, 
já  entenebrecida  pelas  primaras  sombras  do  cre- 
púsculo, lhes  escondia  a  pátria,  para  onde  a  al- 
ma lhes  voava  nas  azas  da  saudade. 

Os  turbulentos  soldados  da  conlra-guerrilha 
formavam  grupos  pittorescos;  um  inglez,  um  hes- 
panhol,  e  um  italiano  faziam  louváveis,  mas  bal- 
dados esforços  para  se  entenderem,  mais  adiante  a 
queimada  tez  e  o  sombrio  olhar  de  um  mulato 
contrastavam  com  a  cândida  pelle  e  o  olho  azul 
de  um  allemão.  Este  com  um  chapéo  de  palha, 
calça  até  meia  perna,  e  jaqueta  de  veludilho  sa- 
fado encostava-se  á  boca  de  um  bacamarte,  aquel- 
le  de  boné  de  tocador  de  realejo,  comprido  casa- 
co, bolas  rotas,  e  correias  de  côr  duvidosa,  revis- 
,  lava  escrupulosamente  a  fecharia  da  sua  espingarda. 
Os  soldados  de  marinha  esperavam  com  as  armas 
ensarilhadas,  os  contra-guerrilhas  de  cavallo, 
lendo  passado  no  braço  a  rédea  dos  ginetes  arreia- 
dos  a  capricho,  puxavam  bafuradas  de  fumo  dos 
seus  papelitos,  ou  accendiam  a  abrigo  do  vento 
os  seus  magníficos  regalias.  Era  um  quadro  pitto- 
resco e  digno  de  se  observar. 


>I6 


O  PANORAMA 


Já  o  coronel  Dupin.  iiniformisado  e  proraplo, 
apparecera  á  janella,  e  relanceara  os  olhos  para 
a  Iropa  variegada  que  linha  debaixo  das  suas 
ordens,  quando"  assomou  ao  íim  da  rua  uni  vulto 
embuçado  n'uma  capa,  que  se  dirigio  rapidamen- 
te para  a  casa,  que  servia  de  quartel  general. 

Era  um  hespanhol  novo  e  esbelto,  cujo  Irajc 
ficava  escondido  pela  ampla  capa  castelhana,  que 
punha  com  garbo.  A  lina  e  pallida  cabeça,  coroada 
de  cabellos  negros,  e  coberta  com  um  chapéu  anda- 
luz, poisava-se  erecta  e  llrme.  A  pallidez  do  rosto, 
n'esse  instante  mais  que  pallido,  livido,  chegava  a 
assustar,  tanto  mais  quanto  lhe  dava  um  grande 
realce  a  gola  de  veludo  negro,  que  contrastava 
com  a  pallidez  que  aj)onlámos.  Mettiam  medo  os 
olhos,  lai  era  a  sua  atonia.  Não  tinham  nem  uma 
lagrima  :  ])arecia  que  o  sopro  queimador  de  uma 
procella  lh"as  bebera  uma  a  uma,  e  lhe  exhaurira 
as  fontes  d'onde  ellas  manavam.  O  seu  andar  pa- 
recia d'especlro,  rápido  mas  hirto.  Involuntaria- 
mente aflastavam-se  todos  d'elle,  edavam-lhc  cam- 
po largo  para  passar.  Gelavam-se  as  conversações 
dos  grupos  ao  seu  aspecto  ;  eum  vago  eindelinivel 
calafrio  corria  pelas  veias  dos  mais  valentes. 

—  Oue  vulto  de  melodrama!  disse  um  official 
francez  reagindo  contra  a  impressão  que  sentira 
como  todos  os  outros,  e  voltando-se  para  um  dos 
seus  camaradas. 

—  Isto  foi  comparsa  da  Gaite,  que  trouxemos 
nas  bagagens  sem  darmos  por  tal,  redarguiu  o  in- 
terpellado.  Gosta  de  fazer  os  ensaios  a  alguma  dis- 
tancia da  scena,  e  veio  alé  ao  México  estudar  al- 
titudes. 

—  Oual  historia,  homem !  Isto  é  o  phantasma 
de  Fernão  Corlez,  que  nos  vem  fulminar  com  os 
seus  analhemas  por  lermos  poisado  o  pé  sacríle- 
go n'esta  catholica  lerra.  Não  acha,  amigo?  conti- 
nuou em  hespanhol,  voltand,o-se  para  um  logisla 
mexicano,  que,  sentado  á  porta  do  seuestabeíeci- 
menlfí,  picava  com  toda  a  gravidade  um  rollo  de 
tabaco,  e  endji'ulhava  o  clássico  cigarro. 

—  Oue  diz  tisled?  perguntou  o  logisla,  nieflen- 
do  a  navalha  nos  dentes  para  nivellar  o  tabaco 
picado,  e  enrolar  a  preceito  o  papclilo. 

—  pergunto  se  você  sabe  quem  é  este  sugeilo. 

— É  Perez  Lorenzo,  tornou  o  mexicano  dobran- 
do as  duas  pontas  do  canudinho  de  papel,  c  ti- 
rando da  algibeira  a  caixa  dephosphoros. 

—  E  l*erez  Lorenzo  quem  é  ? 

—  E  o  mais  rico  Itacendero  dos  contornos  de 
Medellin  e  Vera-(>iuz,  continuou  o  lleugmalico 
americano,  accendendo  um  phosphoro,  e  resguar- 
dando-o  com  a  mão  do  sopro  da  aragem. 

—  Bravo,  lornou  o  oííicial.  É  rico  e  tem  cui- 
dados. Lembra  o  sapateiro  de  La  I''onlainc.  Apos- 
to (jueé  celibatário  c  se  enfastia  do  celibato'' 

—  E  casado,  a<udio  o  seu  imperturbável  inter- 
locutor |)Uxando  uma  baforada  de  fumo,  e  apa- 
gando o  phos[)lioro. 

—  Com  alguma  mulher  velha  e  feia  como  os 
sele  peccadosca|)ilaes  I 

—  Com  uma  menina  de  dezoito  annos,  linda 
como  Nossa  Senhora  de  Guadalupe. 


—  Pesle,  acudio  o  francez,  que  feliz  maganão  ! 
Sendo  assim,  porque  nos  apparece  o  marido  com 
esta  cara  de  palmo  e  moio?  Será  elle  ciumento... 
com  motivos  jusliticados? 

—  Cármen  é  virtuosa  como  um  anjo,  e  seii  ma- 
rido adora-a. 

Os  dois  ofíiciaes  francezes  olharam  pasmados 
um  para  o  outro,  depois  desataram  a  rir,  e,  esten- 
dendo os  braços  em  altitude  heroi-comica,  entoa- 
ram em  duelto  o  chavão  de  todas  as  operas : 

—  Qucl  esl  donc  ce  mysíere  ? 

Entretanto  Perez  Lorenzo,  depois  de  trocar  al- 
gumas palavras  com  a  sentinella,  entrou  em  casa 
do  coronel  Dupin. 

Passado  pouco  tempo,  veio  ordem  para  se  reco- 
lher a  tropa  aquaiteis,  estando  sempre  em  armas, 
e  prompta  para  marchar  uma  força  de'  trinta  ca- 
valleiros  e  de  trinta  infantes. 

Á  meia  noite  foi  uma  ordp""-)í}a  da  i)arte  do 
coronel  Dupin  buscar  o  paquete. 

A  pequena  força  reuniu-se,  saio  do  quartel, 
atravessou  as  ruas  ermas  e  -escuras  de  Medellin, 
e  fez  alto  á  porta  da  casado  coronel  Dupin. 

'O  camarada  do  coronel,  empunhando  um  facho 
acceso,  segurava  com  a  outra  mão.  as  rédeas  de 
dois  cavallos.  Junto  á  hombreira  da  porta  divisa- 
va-se  o  vulto  sombrio  de  Perez  Lorenzo.  Quando 
a  luz  vermelha  do  archote  lhe  batia  ."^m  cheio, 
tomava  o  seu  rosto  um  «speclo  diabólico.  Eluc- 
luava-lhc  nos  lábios  um  soitíso  sinistro,  e  nos 
olhos  relampejavam  chammas  infernaes. 

D'ahi  a  instantes  poz-se  a  pequena  tropa  a  ca- 
minho. 

{Conlinun) 


O  aspecto  de  um  moribundo  é  sempre,  para  o 
philosopho,  o  objecto  mais  fértil  em  reflexões. 


Nada   é  Ião  commum  como  o  ler  e  conversar 
inutilmente. 


O  alphabeto   foi  a  origem  de  todos  os  conhe- 
cimentos do  homem  e  de  todas  as  su^s  loucuras. 


A  dissimulação  é  algumas  vezes  necessária,  c 
a  franqueza  atírae  quasi  sempre  inimizades. 


A  lisonja  é  o  sustento  dos  tolos. 


r.m  IJMboa  —  A'o  i:srripf(jrio,  Tini.  Friniro-Porti({/iu'za,  rua 
(lo  Thfsovro  Vi-llio  n"l\.  oiulr  ilrri'  xrr  ilinyidn  toda  a  carrespon- 
ílintcíu  nnhscriídada  á  Kniprcza  do  ■•uiioriiiiia. 

p„r  (imo 13110)  (ir.fio  ?•<'/« 

Soiiexirc CUii]  I^stumiJillioilo  j    '«'i    " 

Trimeslre 3'.o)  \   ''UO    » 

ISo  acto  (la  cnlrcga  e  avulso  30  rcin. 

Vcndc-sfí  PM  loiluí  ag  loja»  do  costume. 

Xo  porto  —  Assiuna-sf  c  vvndv-sc  ciu  inaa  da  Viuva  MoriL 

Typ.  Franco-1'orHigueza.  =  Rua  do  Tbesuuro  Vcllio,  G. 


OPANORAMA 


•ir 


A  CATIIEDRAL  DE  LICÍIF/ELD 


(oj-ano,  sendo  ^l^r.,^Jl%ÍZll' ,lXt 


o  PANORAMA 


É  cerlo  que  Lichfiekl  e  Covenlry  eslavam  coin- 
preoiulidos  no  reino  de  Mercia,  quefoi  conqiiislado 
por  Oswy,  e  converlido  por  clle  á  fé  chrislã  ;  no- 
ineou-se,  em  GoO,  o  primeiro  bispo  de  Liclilield  e 
Ceudda  ou  Chiul,  foi  o  terceiro  em  667.  Béde,  diz 
il'este  ultimo:  cque  editlcou,  com  suas  próprias 
mãos,  um  retiro  pouco  afastado  da  igreja,  onde 
tinha  por  costume  ir  ler  e  resar,  com  um  pe- 
([ueno  numero  de  seus  irmãos,  quando  os  deve- 
res do  seu  ministério  lhe  deixavam  alguns  instan- 
tes de  liberdade.)) 

O  concilio  de  Londres  reunido  em  1075,  trans- 
feriu a  sede  de  Liclilield  para  Chesler,  onde  este- 
ve até  loí2.  Durante  esíe  periodo,  os  bispos  es- 
tabeleceram a  sua  residência  entre  estas  duas  ci- 
dades. l)iz-se,  que  um  d'elles,  Uoger  de  Clinton, 
em  1128,  reedificou  a  cathedral.  Wallerde  Lang- 
ton.  em  121)3,  é  também  citado  como  um  dos 
bemfeilores  da  cidade  ;  deve-se-lhe  a  construcção 
de  muitas  ruas,  o  magnifico  relicário  de  Sainl 
(lliud  e  o  palácio  episcopal. 

A  cathedral  foi  devastada  no  reinado  de  Ilen- 
liquc  VIII  e  confiscadas  todas  as  preciosidades 
(|ue  continha,  á  excepção  do  relicário,  que  foi 
salvo  a  muitos  rogos  do  bispo  Rowland. 

A  historia  de  Lichfiekl,  nenhum  interesse  offe- 
rece  até  às  guerias  civis.  Em  1642,  teve  Ires 
cercos,  durante  os  quaes  a  cathedral  soítreu  muito; 
('  no  anno  seguinte  lizeram-se  grandes  preparati- 
vos de  defeza,  para  resistir  a  Lord  Brooke,  que 
avançava,  para  tomar  a  cidadella,á  frente  de  três 
mil  homens.  Era  um  inimigo  zeloso  do  episcopado 
e  que  estava  decidido  a  destruirá  cathedral.  Quan- 
do entrou  na  cidade,  dizem,  que  rogara  aos  céos 
que  o  castigassem,  se  a  sua  causa  fosse  injusta; 
poucos  minutos  depois  caiu  morto  por  duas 
bailas ;  o  tiro  i)artira  da-  mão  de  um  surdo-mudo 
da  nobre  familia  Dyolt,  que  do  alto  da  igreja  ob- 
servava os  movimentos  do  inimigo.  A  arma  existe 
nos  archivos  da  familia  J)yolt,  c  a  armadura  de 
Lord  lirooke  está  no  castello  deWarvvick.  Apesar 
da  perda  do  seu  chefe  os  rebeldes  conlinuaiam  o 
cerco  e  a  guarnição  foi  obrigada  a  ceder  ás  tropas 
do  parlamento.  Era  a  primeira  cathedral  que, caía 
em  seu  poder ;  devaslaram-n'a  com  um  vandalis- 
mo incrível,  e  allisecommellei-amas  maiores  pro- 
fanações. 

No  mesmo  anno,  1643,  o  príncipe  Rupert  reto- 
mou a  cidadella,  nomeando  por  governador  o  co- 
ronel Hagot,  (|ue  recebeu  n'ella  Carlos  I,  depois 
da  batalha  de ilaseby,  lOí.j;  porem,  alguns  mezes 
depois,  recaiu  nas  "mãos  dos  rebeldes,  e  as  suas 
muralhas  foram  arrasadas.  Em  lOol,  o  parlamen- 
to mandou  tirar  todo  o  chumbo  que  cobria  a  igre- 
ja, e  fundir  os  sinos. 

O  serviço  divino  foi,  durante  alguns  annos,  ce- 
lebrado na  casa  do  capitulo;  e  quando  .lohn  lía- 
cket  foi  nomeado  bispo,  a  cathedral  não  era  mais 
que  um  montão  de  ruinas ;  mas  o  zelo  e  activida- 
de d'estc  varão  venceram  lodosos  obstáculos.  Pos- 
suía esla  ultima  qualidade  em  tão  subido  grau,  que, 
no  mesmo  dia  da  sua  chegada  a  Liclifieid,  mandou 
começar  o  desentulho,  prestando  para  is.so  os  seus 


creados  e  cavallos.  No  curto  espaço  de  oito  annos, 
conseguiu  apagar  todos  os  vestígios  de  devastação 
e  a  igreja  começou  a  funccionardenoro  em  1669. 

Ainda  que  a  cathedral  de  Lichlield  não  possa 
rivalisar,  nem  em  grandeza,  nem  em  magnificên- 
cia com  a  de  York,  e  algumas  outras,  ella  não  ce- 
de, comtudo,  a  nenhuma,  pelo  que  respeita  a  ele- 
gância; a  sua  architectura  ligeira  é  objecto  de 
grande  admiração.  Oedificio  tem  a  forma  de  cruz; 
a  parte  principal  compreende  a  nave,  a  igreja,  o 
coro  e  a  capella  de  Nossa  Senhora.  O  seu  maior 
comprimento  é  de  403  pés  e  a  largura  de 
177.  A  principal  fachada  é  para  o  lado  do  oc- 
cidente,  e  está  coroada  por  d  uns  torres  pyra- 
midaes,  havendo  outra,  do  mesmo  feitio,  que  se 
eleva  no  centro  do  edificio.  As  duas  primeiras 
torres  teem  192  pés  de  altura,  cada  uma;  c  a  ulti- 
ma 252. 

A  igreja  contem  um  numero  considerável  de 
túmulos,  interessantes  uns  por  sua  antiguidade  e 
outros  pelos  personagens  que  encerram.  Os  mais 
notáveis  são:  o  doutor  Johnson,  lady  Worlhley 
Montagne,  a  quem  a  humanidade  deve  os  beneli- 
cios  da  inoculação,  e  David  Garríck.  Entre  os  mo- 
numentos; que  ornam  o  interior,  admira-se,  o  do 
bispo  Hackel ;  represenla-o  deitado,  e  lé-se  ao 
lado  esta  inscripção :  «Não  deixarei  fechar  meus 
olhos  sem  ter  achado  um  logar  para  o  templo  do 
Senhor.)) 

RÀ-PULANTE 
I 

Confesso,  que  nunca  encontrei  pessoa  alguma 
com  tanta  propensão  para  a  facécia,  como  esse 
rei,  bravo  e  intelligente,  cujo  ultimo  episodio  da 
vida  vou  narrar.  Era  um  ente  que  só  vivia  para 
a  comedia;  o  seu  principal  elemento  era  o  riso. 
Ouem  soubesse  contar,  com  todos  os-SS.-e-RR. 
uma  historia  no  género  chocarreiro,  possuía,  cer- 
to, todos  os  dons  e  dotes  para  ser  recebido, 
distinctamente,  na  corte  e  ganhar  a  estima  do 
monarcha  exemplar.  Por  isto  c  fácil  imaginar 
como  deviam  de  ser  os  sete  ministros  d'aquella 
nação  :  os  homens  de  niais  pilhéria  que  tem  vin- 
do ao  mundo;  inexcediveis  na  sublime  linguagem 
do — ha!  lia!  ha! — expressão  equivalente  á  palavra 
portugueza — gargalhada— e Inimitáveis  na  narra- 
ção de  contos  facetos,  e  no  canto  do  flôce  lundu 
choradinho,  que  então  se' usava  com  lodos  os  re- 
quebros. Realmente,  eram  sete  varões  impagáveis; 
e,  o  que  é  mais  para  admirar,  parecia  que  lodos  ti- 
nham sido  feitos  pelo  molde  i'eal~corpolencia,  obesi- 
dade, olhos,  nariz,  bocca,  desmesurado  appelite, 
grande  (jueda  para  o  entremez,  tudo  isto  n'elles 
realçava  em  tão  subido  grau,  como  no  seu  queri- 
do rei. 

Oue  os  indivíduos  engordem  com  a  farça,  ou 
que  na  gordui-a  haja  alguma  cousa  que  predispo- 
nha para  o  entremez,  é  uma  questão  f;ue  nunca 
pude  decidir;  mas,  o  cerlo  c,  que  um  galhofeiro 
magro,  pode,  perfeitamente,  considerar-se  rara 
avis  tu  lerris. 


o  PANORAMA 


19 


Livros,  fossem  elles  de  que  natureza  fossem, 
discursos  parlamentares,  prelecções  scienlificas, 
poesias  cheias  de  sentimento  e  amor,  dramas, 
tragedias,  as  próprias  comedias-dramas,  emíim, 
todas  essas  producções  que  os  da  actualidade  con- 
sideram fiUias  do  talento  c  de  um  trabalho  assi- 
duo,  eram,  para  o  intelligente,  erudito  e  magnâ- 
nimo rei,  cousas  de  nenhum  \alor;  denominava- 
as,  já  se  \è,  para  fazer  espirito  (^permitlam-me"o 
gallicismo) — monumentos  eternos  da  ignorância  e 
insensatez  ■  da  humanidade.  As  maneiras  civis 
incommodavam-n'o.  Em  resumo,  o  bom  do  rei 
preferiria  o  Gargnnlua  de  Rabelais  ao  Zadig  de 
Yoltíiire,  e  acima  de  tudo,  as  hufoncrias  em  acção 
causavam-lhe  mais  prazer,  do  que  as  subtilezas 
na  palavra. 

Na  epocha  em  que  passa  esta  interessante  his- 
toria, ainda  os  bobos  de  profissão  não  tinham 
sido,  completamente,  banidos  da  corte.  Algumas 
das  grandes  potencias  continentaes  ainda  conser- 
vavam os  seus  loucos;  eram  infelizes,  vestidos  á 
maneira  de  arlequim,  tendo,  por  gorras,  bonnés 
guarnecidos  de  campainhas,  e  que  deviam  de 
estar  sempre  preparados  para  empregar,  á  letra, 
ditos  subtis  e  graciosos,  em  troca  das  migalhas 
que  caíam  da  meza  real.  Hoje,  felizmente,  já  não 
se  presenceiam  d'estas  misérias  na  corte.  Tudo 
alli  é  serio,  respeitável  e  imponente;  e  assim  con- 
vém; pois,  o  que  hão  de  esperar,  dos  pequenos, 
os  grandes  de  uma  nação,  que  só  comem,  bebem, 
riem  e  folgam  com  os  doudos? 

O  nosso  rei,  naturalmente,  tinha  o  seu  louco. 
E  o  facto  é  que  elle  sentia  a  necessidade  de  al- 
guma cousa  que  tendesse  para  a  bobice,  — quan- 
do mais  não  fosse,  para  contrabalançar  a  pesada 
sabedoria  dos  seteillustres  varões  seus  ministros, — 
(para  não  faltar  do  rei.) 

É,  porém,  muito  de  notar,  que  o  louco,  o  bobo 
de  proíissão,  que  vou  apresentar  ao  leitor,  não 
era  somente  um  loàco;  tmha  para  o  rei  um  valor 
Iriplice;  pois  era,  conjunctamente,  anão  e  coxo. 

JN'aquelle  tempo,  eram  Ião  communs  na  corte 
os  anões,  como  os  coxos;  e  muitos  monarchas  te- 
riam sem  duvida  achado  o  tempo  ditíicil  de  pas- 
sar— o  tempo  é  mais  longo  na  corte  do  que  em 
outra  qualquer  parte — sem  um  bobo  para  os  fazer 
rir,  e  um  anão  para  rir  d'elles.  Mas,  como  já  te- 
nho observado  por  varias  vt?zes,  lodos  estes  bo- 
bos, em  noventa  3  nove  casos  contra  cem,  são 
gordos,  redondos  e  maciços,  de  sorte,  que  era  para 
o  nosso  rei  um  grande  motivo  de  orgulho  o  pos- 
suir em  Rã-Pulante — assim  se  chamava  o  louco  — 
um  triplo  thesouro  em  um  só  individuo. 

Julgo  que  o  nome  de  llã-Pulante  não  era  o  do 
baptismo,  mas  que  lhe  havia  sido  conferido  por 
voto  unanime  dos  sele  ministros,  em  consequên- 
cia de  não  poder  andar  como  os  outros  homens. 
Eífectivamente,  Rã-Pulante,  não  se  podia  mover 
senão  com  uma  espécie  de  passo  inlcrjeccional, 
uma  cousa  entre  o  salto  e  o  torcicollo,  um  certo 
movimento  que  era  para  o  rei  um  perpetuo  rego- 
sijo  e,  naturalmente,  um  goso;  porque,  não  obs- 
tante a  proeminência  do  ventre  e  a  intumescên- 


cia constitucional  da  cabeça,  o  rei  passava  aos 
olhos  de  toda  a  córlcpoi  um  bello  homem,  aman- 
te de  toda  a  sorte  de  divertimentos. 

Mas,  se  bem  que,  Rã-Pulanle,  graças  à  sinuosi- 
dade  das  suas  pernas,  não  se  podesse  mover  se- 
não a  muito  custo,  já  no  caminho,  já  em  um 
estrado,  a  prodigiosa  potencia  muscular  com  que 
a  natureza  lhe  dotou  os  braços,  como  que  para 
compensar  a  imperfeição  dos  membros  inferiores, 
tornava-o  apto  para  executar  muitos  rasgos  de 
admirável  destreza,  quando  se  tratava  de  arvores, 
cordas,  mastros  ou  outra  qualquer  cousa  aonde 
se  podesse  marinhar.  N'estes  exercidos,  mais  pa- 
recia uma  harda  ou  um  macaquinho,  do  que 
uma  rã. 

Não  posso  dizer,  precisamente,,  de  que  paizera. 
oriundo  Rã-Pulante.  Parece-me,  todavia,  que  vi- 
nha de  alguma  região  barbara  desconhecida,  a 
uma  grande  distancia,  já  se  vô,  da  corte  do  nos- 
so rei. 

Rã-Pulante,  e  uma  rapariguinha  pouco  menos 
anã  do  que  elle,  mas,  admiravelmente  bem  pro- 
porcionada, e  excellente  dançarina,  tinham  sido 
roubados  de  suas  casas,  e  enviados  de  presente  ao 
rei  por  um  dos  seus  famosos  generaes  sempre  fa- 
vorecidos da  victoria. 

Em  taes  circumstancias,  não  era  para  causar 
admiração  que  entre  estos  dous  pequenos  capti- 
vos  se  estabelecesse  uma  grande  intimidade.  E, 
realmente,  dentro  em  curto  espaço  de  tempo,  eram 
dous  verdadeiros  amigos.  Rã-Pulante,  embora 
empregasse  todos  os  exforços,  nunca  poude  tor- 
nar-se  popular,  e  por  consequência  prestar  gran- 
des serviços  a  Castanheta;  esta  porém,  pela  muita 
graça  de  que  era  dotada,  e  pela  exquisita  belieza, 
de  anã,  era  geralmente  admirada  e  respeitada ; 
tendo,  pois,  grande  influencia  nos  espíritos, 
approveitava-a,  sempre  que  podia,  em  fav^or  do 
seu  amigo,  Rã-Pulante. 

Em  uma  occasião  solerane,  não  me  recordo 
quando  foi,  o  rei  resolveu  dar  um  baile  de  mas- 
caras ;  e,  todas  as  vezes  que  na  corte  tinha  lugar 
uma  mascarada,  ou  outra  qualquer  festa  d'este 
género,  os  talentos  de  Rã-Pulante  e  Castanheta  eram 
sempre  requisitados.  Rã-Pulante,  particularmente, 
era  tão  inventivo  em  matéria  de  decorações,  no- 
vos typos  e  disfarces  para  os  bailes  de  mascaras, 
que,  sem  a  sua  opinião  cousa  alguma  se  podia 
fazer. 

A  noite  designada  para  a  funcção  cl>egára.  Ima 
sala  esplendida  tinha  sido  preparada,  sob  as  vis- 
tas de  Castanheta,  com  grande  artificio. 

Toda  a  corte  anciava  pelo  momento  da  festa. 
Quanto  aos  trajos  e  papeis,  -cada  qual  escolheu 
como  lhe  aprouve ;  e  muitos  dos  convidados  de- 
terminaram as  cousas,  com  uma  semana,  ou  mes- 
mo um  mez  de  antecedência,  para  não  se  verem 
depois  a  braços  com  difllculdades.  Em  summa,  não 
havia  incerteza,  nem  indecisão  de  parte  alguma — 
só  o  rei  e  os  seus  ministros  hesitavam.  l*orque 
hesitavam  elles?  não  posso  dizel-o.  Mas,  prova- 
velmente, pela  grande  dilliculdade  de  obter  uma 
idéa;  porque  eram  muito  gordos ! 


20 


O  PANORAMA 


Fosse  qual  [fosseJXiiiolivor^o  tempo  fugia,  e, 
como  ultimo  recurso,  mandaram  chamar  os  dous 
anões. 


tConlinun'> 


CARTA 

Do  sr.  .%•  F.  lie  Cn.sUllio  no  «ír.  Iiiiioceiício 
Frnuri«>co  «ia  Silva. 

lll.'"'eEx."'°Sr.,e  meu  querido  confrade: — .Muito 
devemos  nós  a  essa  ijenle  de  malla  que  alii  ap- 
j)arecou  na  feira  lilleraria  com  as  anjuetas  abar- 
rotadas de  filosoíias,  de  sciencias,  de  cosmogo- 
nias, de  tlieologias,  de  profecias,  de  versos  a 
olho  em  logar  de  metros,  de  lógicas  escangalha- 
das, e  de  linguagem  sem  grammatica !  Devemos- 
Ihe  realmente  muito!  Se  não  foram  elles  com  os 
seus  pregões  tão  altos,  e  o  séquito  que  levam  de 
gaiatos  embeilecados  naquellas  louçainhas,  o  mer- 
cado dos  géneros  sãos  e  fazendas  de  lei,  já  pouca 
allenção  chamava ;  e  era  pena,  por  não  ser  pe- 
(|ueno  o  prejuízo  que  havia  de  resultar  d'essa  es- 
tagnação, se  ella  fosse  por  diante. 

Vivam  pois  os  belfurinheiros  e  oiapazio !  Foi  a 
Providencia  quem  os  cá  mandou  ;  ella  bem  sabe 
quando  e  onde  as  coisas  são  precisas. 

.Ia  ouvi  a  um  fazendeiro  do  Algarve,  que,  se  não 
fura  certo  bichinho.,  que  dá  no  ligo,  a  fiuta  amuava, 
impedernia-se  em  logar  de  amadurecer,  e  adeus 
uma  das  maiores  riquezas  d'aquella  formosa  pro- 
víncia 1 

Vivam  pois,  ç  medrem,  se  puderem,  tanio  os 
insectos  dos  tigueiraes,  como  os  transcendentes  da 
iitleralura;  e  viva  Deus  que  fez  para  bem  toda 
essa  bicharia ! 

V.  Ex.",  meu  querido  confrade,  linha  despen- 
dido, quasi  em  vão,  annos  largos  d^amor,  de  zelo, 
de  claro  entendimento  e  de  conselho  óptimo,  em 
prol  das  boas  lellras  e  da  razão  :  tinha. chegado  a 
levantar,  sósinho,  um  monumento  áí  leltras  .pá- 
trias, d'aquelles  a  que  só  se  aventurava  uma  cor- 
poração de  benedictinos ;  e  apesar  da  merecida  e 
reconhecida  autoridade  da  pessoa,  e  do  coro  ge- 
ral de  louvores  prestados  á  obra,  os  effeilos  prá- 
ticos, ou  não  appareciam,  ou  eram  escassíssimos. 

A  Providencia,  que  também  deve  governar  nas 
coisas  inlellectuaes,  abençoara  á  nascença  o  seu 
trabalho  como  agora  se  está  vendo :  faltava  xjue 
a  inveja  e  a  ignorância  viessem  conlirmar  com  as 
suas  negações  as  verdades  confessadas  pela  gente 
de  saber  e  probidade.  Vieram.  Deixe  cair  chuva 
e  neve  sobre  a  sementeira ;  melhor  ceara  nos  es- 
pera. V.  rifão  velho  de  lavradores;  até  já  Virgílio 
o  sabia. 

Não  quero  eu  dizer  com  isto  que  descance  V.Ex." 
na  sua  fadiga.  Depois  de  desf)onla(la  a  messe,  ain- 
da íica  muito  que  fazer ;  o  ceareiro  entendido  não 
pára  nunca;  no  mesmo  Virgílio  o  lenho: 

MU  cau8aB  á  luvoira  amcaçani  indu  agravos; 
iadical-as  convóm:  damnam-Hic  os  [lalos  bravos; 
flamnam  ftrymoneos  i,'rous;  danona  a  raiz  amarga 
dos  almeirões,  e  damna  a  arvore  que  cinjjarga 
ao  sol  jpassagem  livre. 


O  pae,  rei  da  natura_, 
hem  podia  alhanar  o  tracto  da  cultura, 
mas  não  quiz:  preferiu,  porque  o  mortal  se  adestre, 
se  estimule,  so  active,  e  o  reino  seu  campestre 
não  viesse  a  perder-so  um  dia  ao  desamparo, 
que  o  lavrar  fosse  atin,  c  industria  o  seu  preparo. 

Boa  doutrinal  boa  de  lei ,  apesar  de  nos  vir  da 
Ualia  velha,  e  eu  não  a  saber  fraldar  com  uma 
dúzia  de  citações  de  livros  allemães  cisadas  da 
feira  de  Leipzig  1 

Note  V.  Ex."  o  como  vem  frisando  no  nosso 
ponto  CS  nomes  d'aqucllas  pragas :  os  patos  bra- 
vos !  (A(|ui  não  venha  algum  i)raguenlo  fingindo 
cuidar  que  alludo  ao  nosso  excellenie  confrade 
Bulhão  Paio :  esse  assigna  Pato  e  é  cisne  dos 
mais  alvos  e  canoros ;  eu  fallo  só  dos  que,  ten- 
do-se  em  conia  de  cisnes,  não  passam  de  patas  e 
patos  bravos);  os  grous  lambem  para  aqui  acer- 
tam :  as  cabeças  naquelles  hybridos  são  d"isso ; 
os  almeijões  deixemoí-os;  pojém  não  já  assim: 

a  arvore  que  embarga 

ap  sol  passagem  livre 

Estes  esparaveis  de  quatro  folhas  que  tèem  a 
presumpção  de  querer  tapar  o  solj  e  ensombrar  a 
terra.,  é  que  são  o  peior  inimigo  ;  e  nunca  as  mãos 
doam  a  V.  Ex'%  que  já  tomou  o  machado  para  os 
dei  lar  a  baixo. 

Este  seu  artigo  oom  que  se  eslreiou  o  novo  Pa- 
norama, promelle  muito,  e  estou  certo  de  que 
ainda  ha  de  dar  muito  mais. 

Pela  boa  doutrina  queV.Ex,"vai  espalhar  pelos 
muitos  leitores  d'esta  acreditadissima  folha,  e  so- 
bretudo pelo  insigne  favor  com  que  a  sua  bene- 
volência ahi  me  trata,  devia  eu  a  V.  Ex."  mil 
agradecimentos.  Acceite-m'es  nesta  carta,  e  creia 
nas  veras  com  .que  me  honro  de  assignar-me 

De  V.  Ex." 
admirador,  confrade,  amigo  e-servo  obrigadissimo 

Lisboa  i  de  Janeiro  de  186G. 

■•  -   A.  F.  DE  Castilho. 


Oueixava-se  hum  requerente  a  oulro  de  que  hum 
seu  juiz,  sendo  pobre,  gastava  como  rico;  e,  no- 
meando suas  ostentações,  rematava  com  dizer:  Pois 
isto,  senhor,  de  que  sahe?  E  outro  lhe  respondia: 
Do  que  entra.  Tornava  o  queixoso,  e  dizia:  Senhor, 
não  fizeram  isso  seus  passados ;  o  outro  respondia: 
Não,  senhor,  mas  fazem-no  nossos  presentes. 

D.  Francisco  Manoel. 


Casa  limpa.  Mesa  asseada.  Pralo  honesto.  Ser- 
vir quedo.  Criados  bons  Hum  que  os  mande.  Paga 
certa.  Escravos  |)Oucos.  Coche  a  ponto.  Cavallo 
gordo.  IMata  muita.  Ouro  o  menos.  Jóias  que  se- 
não pecam.  Dinheiro  o  que  se  j)0ssa.  Alfaias  Io- 
das, Pinturas  as  melhores,  Eivros  alguns.  Casas 
j)ropria"s.  Quinta  pequena.  Missa  em  casa  Esmola 
sempre.  Poucos  visinhos.  Filhos  sem  mimo.  Or- 
deuí  em  tudo.  Mulher  honrada.  Marido  chrislão; 
é  boa  vida,  e  boa  morte. 

D.  Francisco  Manoel. 


o  PANORAMA 


21 


S.   SEBASTIÃO 


Se  no  mundo  lêem  apparecido  homens  que,  á 
sombra  da  frondosa  e  fi-uclifera  arvore  do  chris- 
tianismo,  hão  commetlido  Ioda  a  sorle  de  crimes 
invocando  o  santo  nome  do  Uedempfor  da  huma- 
nidade, cujo  código  é  todo  doçura,  paz  e  o  único 
que  ensina  a  verdadeira  senda  que  conduz  á  feli- 
cidade eterna;  se  mesmo,  de  entre  os  que  enver- 
gam as  vestes  sacerdolaes,  -cuja  missão  deve  ser 


unica  e  simplesmente,  com  bons  exemplos  e  sãos 
conselhos,  conduzir  os  povos  e  propagar  as  sa- 
bias doutrinas  do  mar.lvr  do  Goigolha,  al-^uns 
lêem  saido  que,  por  seu  procedimento  allaniente 
repreensivel,  hão  manchado  essas  vestes  vene- 
randas, só  dignas  de  quem  possue  uma  alma  bas- 
tante elevada  para  poder  encarar,  indifferentemente 
as  ephemeras  grandezas  na  terra  e  resistir  ás  pai- 
xões; outros  muitos,  que  a  historia  nos  aponta  «se 
hao  distinguido  por  suas  virtudes,  zelo  e  infàíi- 


navel  trabalho  em,  por  meio  de  palavras  repassadas 
de  intimo  sentimento  religioso  e  rasgos,  não  íin- 
gKlos,  de  verdadeira  caridade  evangélica,  enca- 
minhar para  o  aprisco  as  ovelhas  extraviadas, 
a.  bebastiao  foi  um  d'eslcs. 

Nascido  em  Narbona,  cidade  da  província  de 
Languedoc,  e  educado  em  Milão,  domie  era  ori- 
ginaria sua  familia,  este  heroc,  que  desde  tenros 
annos  mostrara  sempre  uma  alma  grandiosa  ecégo 
lespeito  pela  religião  do  Crucilicado.  com  a  qual 


o  educaram  seus  pais,  lendo  completado  a  idade 
própria  de  poder  começar  a  sua  santa  missão,  foi 
constituído,  pelo  imperador  Diocleciano,  Capitão 
da  primeira  companhia  das  suas  guardas,  chamada 
ratriarcha. 

iNão  era,  certamente,  o  desejo  de  occupar  uma 
posição  brilhante  na  sociedade  que  o  levou  a  ac- 
ceitar  semelhante  cargo :  a  sua  nobresa  de  carac- 
ter e  magnanimidade  de  coração  não  lhe  inspi- 
ravam taes  sentimentos.  Acceitou-o  porque,  devo- 


22 


O  PANORAMA 


lado  chrislão,  entendeu  que,  servindo  o  imperador, 
podia,  mais  facilmenle,  auxiliar  os  fieis,  seus 
correligiosos,  que  princi^)iavam  a  ceder  ao  rigor 
dos  tormentos. 

Seria  supérfluo  enumerar  os  relevantes  serviços 
que  desde  logo  este  mart\  r  começou  a  prestar  ao 
clirislianismo ;  assaz  e  de  sobra  os  conhece  todo  o 
mundo.  Diremos,  apenas,  que,  depois  de  haver 
salvado  das  mãos  dos  pohlheistas  milhares  de  vi- 
timas, e  de  ter  induzido  muitos  gentios  a  recebe- 
rem o  baptismo,  foi  accusado,  por  um  desgraçado 
apóstata,  ao  juiz  Fabião,  de  ser  pregador  da  lei  de 
Christo  e  protector  ellicaz  dos  que  a  seguiam. 

O  juiz,  ao  receber  a  nova,  apezar  de  lh'o  pe- 
dir o  coração,  não  o  mandou  prender,  altcndendo 
ao  seu  elevado  cargo;  mas  cojreu  a  informar  o  im- 
perador que,  logo,  expedindo  ordens  para  que  o 
accusado  fosse  conduzido  á  sua  presença,  o  repre- 
endeu asperamente,  censurando-lhe  a  sua  ingra- 
tidão, e  fazendo-lhe  ver  que  um  tal  procedimento 
podia  chamar  a  irados  deoscs  sobre  todo  o  impé- 
rio. Ao  que  S.  Sebastião  respondeu  :  «O  maior 
serviço  que  posso  prestar-vos,  senhor,  é,  obdecer 
aos  preceitos  do  único  Deos  verdadeiro  e  dili- 
genciar quo  os  outros  me  sigam  o  exemplo ; 
jiorque,  nada  vos  é  mais  conveniente,  e  ao  aosso 
estado,  do  que  fieis  vassallos  que,  despresando 
os  falsos  deoses,  façam,  por  vosso  respeito,  pe- 
rennes  votos  ao  Supremo  Creador.» 

Irritado,  Diocleciano,  por  esta  tão  inesperada, 
quanto  audaciosa  resposta,  ordenou  que,  imme- 
dialamente,  sem  forma  de  processo,  o  seu  capi- 
tão fosse  morto  a  tiros  de  frechas  pelos  próprios 
soldados  da  guarda  imperial. 

A  sentença  foi  promptamente  executada,  e  o 
santo  deixado,  por  morto,  no  campo  do  marlyrio. 
Mas,  a  devota  Irene,  viuva  do  mailyrCastulo,  pas- 
sando no  ília  seguinte  por  aquelle  logar  e  vendo 
ainda  no  mancebo  signaes  de  vida,  ajudada  por 
alguns  lieis,  levou-o  para  sua  casa,  onde,  sendo  tra- 
tado com  o  maior  disvélo,  em  pouco  tempo  se 
achou  restabelecido. 

Muito  o  inslaiam,  então,  para  que  se  retirasse 
d'aquelles  sitios;  o  santo,  j)orém,  não  approvou  a 
idoa;  antes  apresenlando-se  ao  imperador,  lhe  disse: 
«É  possível,  senhor,  que  ainda  continueis  a  dar  ou- 
vidos ás  imposturas  e  calumnias  com  que  vos  vem 
todos  os  diaè  muitos  dos  vossos  desleaes  servidores 
para  perseguirdes  os  chrislãos?  Sabei,  que  estes, 
longe  de  sej-em  inimigos  do  eslado,  são  os  vassallos 
maisíieisque  tendes,  e a elles,  que  em  suasorações 
não  cessam  de  pedir  por  vós  aoKnle  Supremo,'de- 
veis  só  attribuir  todas  as  vossas  prosperidades. 

Attonito,  o  imperador,  de  ouvir  fallar  um  ho- 
mem que  ja  julga\a  morto,  exclamou: 

«És  tu  Sebastião,  aquelle  que  ha  poucos  dias 
mandei  malar  a  tiros  de  frechas  ?! 

«Eu  mesmo,  respondeu  o  santo;  foi  o  meu  Deos 
que  me  quiz  conservar  a  vida  para  na  vossa  pre- 
sença, e  na  de  lodo  este  povo,  dar  um  publico 
testemunho  da  injustiça  c impiedade  (|ue  commet- 
teis,  perseguindo  os  chrislãos,  com  tanto  furor.» 

Enlão,   Diocleciano,   era  quem  eslas  palavras 


produziram  o  eíTeito  do  raio,  mandou  que,  sem 
a  minima  demora,  o  santo,  fosse  levado  ao  circo, 
e,  alli,  a  bastonadas,  lhe  tirassem  a  existência; 
mas  que  o  não  abandonassem  em  quauto  o  não 
vissem  soltar  o  ultimo  suspiro. 

Com  eflVito,  d'aquello  grande  supplicio  passou 
o  Santo  a  receber  no  ceu  a  coroa  do  marlyrio,  no 
dia  20  de  Janeiro  de  288,  da  era  chrislã. 


OS  PIIILO^PORTUGUEZES. 

rOR  INiNOCEiNGIO  F.  DA  SILVA. 
II 

Daremos  o  segundo  logar  ao  dislincto  historia- 
dor, poeta  e  lilterato  Roberto  Soulhey,  nascido  em 
Bristol  pelo  anuo  de  1774,  e  fallecido  em  1843. 
Deixando-se  enthusiasmar  ile  principio  com  todo 

0  fogo-  próprio  da  mocidade  pelas  idéas  democrá- 
ticas inauguradas  em  França  com  a  revolução  de 
1789,  a  ostentação  apparatosa. que  d'ellas  fez  em 
um  drama  ]VV//  J^/rr,  que  parece  haver  sido  a  sua 
estreia  Iheatral,  allrahiu  sobre  elle  o  desfavor  do 
governo,  intimando-se-lhe,  senão  ordem  formal, 
ao  menosa  insinuação  para  que  sahisse  temporaria- 
mente de  Inglaterra.  Veiu  pois  para  Portugal,  pro- 
curar a  comj)anhia  de  um  próximo  parente,  o  rev. 
Herberlo  llill,  a  esse  tempo  estabelecido  em  Lis- 
boa na  qualidade  de  ministro  daegreja  anglicana. 
Aqui  se  deu  por  alguns  annos  ao  estudo  das  lín- 
guas portugueza  e  castelhana,  c  da  lilteratura  penin- 
sular, em  que  muito  aproveitou ;  até  voltar  em 
1801  para  a  sua  pátria,  onde  fora  provido  no  car- 
go de  secretario  do  Chanceller  do  Thesouro  da 
Irlanda,  As  suas  aspirações  i)oliticas  tinham  i)a- 
decido  entre  tanto  uma  completa  transformação, 
de  sorte  que  o  ardeu le  democrata  se  convertera 
em  decidido  conservador,  alislando-se  na  bandei- 
ra do  partido  lorfi,  aò.qual  permaneceu  sempre 
liei  em  todo  o  reslo  da  vida 

O  sr.  Visconde  de  Juromenha,  na  sua  novíssi- 
ma edição  das  Obras  de  Luiz  de  Camões,  tomo 

1  pagina  288,  pretende  que  Sonlhey  residisse  por 
algum  tempo  entre  nós  pelos  annos  de  1811  a 
1812.  Ueceiamos,  porém,  que  haja  n'estas  datas  al- 
guma equivDcação,  pela  carência  absoluta  que  se  nos 
alligura  de  documentos,  que  possam  comproval-a. 

For  alheio  do  intento,  omUtir-se-ha  o  muito 
que  haveria  para  dizer,  se  tralassemosdedaraqui 
uma  biographia  completa  do  illustre  poeta  laurea- 
do. Referindo-nos  unicamente  (l'enlre  as  suas  nu- 
merosissimas  obras  áquellas  que  tcem  tom  as  coi- 
sas de  Fortugal  mais  estreita  intimidade,  pedem 
menção  especial  a  sua  llislorid  do  Brasil^  im- 
|)ressa  pela  primei  ia  vez  (1810-1810)  cm  três 
volumes  de  4.",  geralmente  estimada  e  ha  pouco 
vertida  em  poituguez  e  publicada  no  Brasil  a  ex- 
pensas do  benemérito  livreiro  editor  o  sr.  B.  L. 
(jiarnicr  em  seis  bellos  volumes  de  8.°  grande  : — 
A  Memoria  ou  ensaio  sobre  a  Lilteratura  por- 
tuf/ueza,  por  elle  inserta  no  jornal  Quarter/i/  Keriew 
de  Londres  ('Maio  de  1809),  cuja  traducção  em  por- 
luguez  acompanhada  de  notas  pelo  académico  J. 
G.  C.  Mullcr  SC  imprimiu,  segundo  cremos,  cm 


o  PANORAMA 


23 


Hamburgo,  no  mesmo  anno: — e  outra  Memoria 
acerca  de  Camões,  com  Xnahjse  doOrienle  de  José 
Açjostinho,  publicada  no  tomo  XXVII  do  sobre- 
dito periódico  (n.°'de  abril  a  julho  de  1822);  pos- 
to que  o  auclor  ahi  se  mostre  assas  injusto  com 
o  nosso  grande  épico,  ao  qual  pouco  mais  conce- 
de que  a  facilidade  de  esfjjloU 

A  livraria  de  Southey  compreendia  muitos  e 
valiosos  livros  portuguezes  impressos  dos  nossos 
auctores  de  melhor  nota;  e  além  d'ellesuma  im- 
portante e  variada  collecção  de  manuscriptos,  re- 
lativos á  historia  civil  e  litteraria  de  Portugal, 
adquiridos  à  custa  de  dispendiosa  e  perseverante 
curiosidade.  Por  orcasião  da  venda  do  seu  espo- 
lio, realisada  em  leilão,  no  mez  de  maio  de  1845, 
a  maior  parte  d'esses  manuscriptos  foram  com- 
prados para  o  Museu  de  Londres,  e  ahi  se  con- 
servam eccessiveis  entre  as  innumeras preciosidades 
d'este  immensissimo  deposito.  Os  tilulos  e  contex- 
tos acham-se  devidamente  mencionados  no  Cata- 
logo dos  manuscriptos  portuguezes  do  Museu  Br i- 
tannico  escripto  e  dado  áluz  em  1834  pelo  sr.  F. 
F.  de  la  Figaniére. 

^Continua) 

PERES   LOREXZO 

(Scenas  da  Cainpaulia  do  México) 

Por  Pi:<HEmO  CHAGAS. 
III 

A  noite,  primeiro  serena  e  eslrellada,  foi-se 
turvando  a  pouco  e  pouco.  No  ceu,  azul  escuro, 
conglobaram-se  as  nuvens,  e  as  bafagens,  precur- 
soras d"esses  terríveis  furacões  dos  trópicos,  prin- 
cipiaram a  affagar  a  faee  dos  expedicionários  com 
o  seu  hálito  abrazado  O  capitão  Viarmont,  o 
mesmo  que  vimos  no  capitulo  antecedente  arran- 
cando, uma  a  uma,  dos  lábios  do  fleugmatico  mexi- 
cano, respostas  que  lhe  satisfizessem  a  curiosi- 
dade, marchava  na  testa  da  columna.  Ao  seu  lado 
ia  Perez  Lorenzo,  empunhando  nas  mãos  o  facho, 
que  allumiava  a  estrada.  O  coronel  Dupin  mar- 
chava na  retaguarda. 

O  capitão  Viarmont  era  um  rapaz  de  vinte  e 
quatro  annos,  que  sairá  das  escolas  com. vinte  an- 
nos,  e  as  dragonas  de  alferes,  fora  logo  reunir-se 
ao  exercito  de  Itália,  encontrara  as  dragonas  de 
tenente  nas  alturas  de  Solferino,  c  viera  depois 
procurar  ao  México  as  dragonas  de  capitão.  Jovial, 
galanieador,  aventuroso,  desejara  servir  na  contra- 
guerrilha,  cujos  movhnentos  quadravam  mais  á 
sua  Índole  do  que  as  pausadas  manobras  do  exer- 
cito regular.  Palrador  por' natureza,  não  podia  sup- 
por  que  houvesse  no  mundo  alguém  que  podesse 
estar  calado  dez  minutos  a  lio.  Comludo  o  aspecto 
sombrio  de  Perez  Lorenzo  involuntariamente  ge- 
lara-lhe  a  palavra  nos  lábios,  e  reprezara-lhe  a 
torrente  da  elocução.  Mas  a  columna  tinha  já  um 
quarto  de  hora  de  marcha,  e  Viarmont,  depois  de 
ter  assobiado  todas  as  árias  do  seu  reportório,  co- 
meçava seriamente  a  enfastiar-se.  Tirou  da  algi- 
beira o  porte-ci gares,  ç,  antes  de  escolher  um  ha- 
vano, oflereceu  charutos  ao  seu  silencioso  compa- 
nheiro. 


Viarmont  procurara  na  sua  memoria  a  mais  gra- 
ciosa frase  castelhana,  de  que  podesse  dispor,  para 
formular  o  seu  oflferecimento.  Apesar  d'isso  Perez 
Lorenzo  respondeu  apenas  com  um  gesto  cortez 
de  recusa. 

O  capitão  soltou  um  suspiro  de  enfado,  tirou 
um  havano,  e,  chegando-o  ao  lume  do  archote, 
accendeu-o,  e  expellio  uma  baforada  defumo  azu- 
lado, que  se  foi  esconder  entre  a  copa  das  arvo- 
res. 

— Não  fuma?  insislio  o  ofíicial  francez,  ainda 
não  descoroçoado  de  lodo. 

— Agora  não  fumo,  respondeu  Perez  Lorenzo. 

— Ah !  mas  costuma  fumar,  acudio  logo  Viar- 
mont, ufano  por  ter  obtido  uma  resposta  em  Ires 
palavras  e  seis  syllabas,  e  desejando  não  perder 
a  occasião, — o  contrario  espanlar-me-hia  muito, 
porque  n'este  paiz  um  homem,  que  não  fuma,  é 
uma  anomalia,  uma  excepção  monstruosa,  um 
phenomenoque  os  naturalistas  logo  estudam  e  clas- 
sificam. Um  homem!  que  digo.^^  Um  ente  qualquer, 
que  tenha  vida  e  lábios.  Fumam  as  mulheres,  fu- 
mam as  crianças,  e  parece-me  que  os  recem-nasci- 
dos,  antes  de  beberem  o  leite  maternal,  accendem  o 
papelito.  Ah!  e  é  um  óptimo  costume.  Nada  co- 
nheço melhor  do  que  o  charuto  para  alliviar  ma- 
gnas, desterrar  saudades,  e  transportar  no  azulado 
regaço  do  seu  fumo  os  nossos  devaneios  para  o  céo  a 
que  elles  aspiram.  Houve  poetas  que  cantaram  o 
café  e  o  chocolate;  ainda  não  houve  um  só  que  se 
lembrasse  de  entoar  os  louvores  do  charuto !  In- 
gratidão tremenda  que  eu,  se  fosse  poeta,  havia  de 
remediar.  Não;  engano-me;  se  fosse  poeta,  can- 
tava antes  a  cigarrilha,  a  cigarrilha  que  eu,  logo 
que  desembarquei  em  Vera-Cruz,  vi  apertada  pelos 
mais  formosos  e  vermelhos  lábios,  que  jamais  pro- 
duzio  a  terra  dos  amores  e  das  romanzeiras.  Di- 
zem-me  que  a  sua  esposa  é  uma  gentil  senhora, 
meu  caro  amigo;  ia  apostar  em  como  adora  a  ci- 
garrilha. 

Ao  ouvir  a  palavra — esposa — Perez  Lorenzo 
parou,  como  se  uma  dor  aguda  o  houvesse  tras- 
passado. Scinlillou-lhe  nos  olhos  um  relâmpago 
de  raiva,  e  a  mão  convulsa  apertou  a  coronha  da 
caçadeira,  com  embutidos  de  prata,  que  levava 
ao  hombro.  Depois,  como  por  um  esforço  violento 
da  vontade,  reassumiu  o  seu  aspecto  impassível, 
e  disse  fria,  mas  corlezmente : 

— Desculpe-me,  senhor,  o  eu  não  sustentar  uma 
palestra,  que  n'outra  qualquer  occasião  me  seria 
muito  agradável ;  motivos  poderosos  absorvem  o 
meu  espirito  n'uma  preoccupação  dolorosa. 

E,  comprimentando  o  joven  oíTicial,  desviou-se 
d'elle  e  passou  para  o  outro  lado  da  estrada. 

O  capitão  Viarmont  ficou  estupefacto. 

— Diabos  levem  o  mexicano !  murmurou  mor- 
dendo raivoso  a  ponta  do  charuto  que  tinha 
na  boca,  se  elle  não  fosse  o  nosso  guia  pedia-lhe 
uma  satisfação.  Mas  fica  descançado  que  não  per- 
des por  esperar. 

A  atmosphera  ia-se  tornando  cada  vez  mais  pe- 
sada, e  o  grito  do  jaguar,  o  uivo  do  chacal  resoa- 
vam  no  meio  do  silencio  agoireiro  da  floresta. 


n 


o  PANORAMA 


Afinal  o  furacão  irrompeu  no  espaço  arraslando 
no  redemoinho  folhas  e  ramos  de  arvores.  A 
columna  parou,  sem  receber  para  isso  ordem, 
mas  como  se  uma  só  vonlade  animasse  lodos  os 
soldados.  Comludo  por  entre  o  espantoso  rugir 
da  tempestade  ouvia-se  vagamente  a  voz  do  coro- 
nel Dupin:  (íEn  avant !  En  avanl  !y)  Os  oíliciaes 
repetiram  a  voz  de  commando,  c  a  pequena  columna 
tornou-se  a  pòr  em  marcha  alravez  de  inuumeras 
dilliculdades. 

Para  cumulo  de  desventuras,  principiavam  os 
contra-guerrilhas  n"esse  momento  a  subir  uma 
ladeira  escarpada,  verdadeiro  caminho  de  cabras, 
onde  a  cavallaria  teve  de  se  apear  e  de  levar  á 
mão  os  cavallos,  que,  assustados  com  o  vento,  ce- 
gos com  os  relâmpagos,  que  fusilavam  por  todos 
os  lados,  e  pareciam  envolver  o  horisonle  n'um 
cinto  de  fogo,  recusavam  galgar  a  ladeira.  Os 
soldados  afierravam-se  a  tudo  o  que  se  lhes  de- 
parava, para  assim  facilitarem  a  subida,  mas  as 
plantas  espinhosas,  que  orlavam  a  estrada,  rasga- 
vam-lhes  as  mãos  e  ensanguentavam-n'as.  Todos 
procuravam  mais  ou  menos  resguardar-se  com  as 
capas,  e  praguejavam,  blasfemavam  contra  os 
guerrilhas,  e  contra  o  clima  do  México.  Só  Perez 
Lorenzo,  Iranquilio  e  silencioso,  caminhava  conío 
se  possuisse  um  talisman  que  o  resguardasse  da 
fúria  do  vendaval.  Da  capa  servia-se  unicamente 
para  abrigar  o  facho,  cujachamma  ondeava,  louca 
pelas  excitações  do  vento,  e  ameaçava  a  cada  ins- 
tante extinguir-se.  De  vez  em  quando  Perez  Lo- 
renzo agitava  o  archote  no  ar.  derramando  por  essa 
forma  um  jorro  de  vivissima  luz  na  estrada,  c  se- 
meando ao  mesmo  tempo  emtorno  de  si  uma  nu- 
vem de  centelhas,  que  parecia  uma  constellação 
lluctuando  na  nossa  atmosphcra. 

Visto  assim  ao  fulgor  avermelhado  d'essa  luz 
vacillante,  ou  ao  clarão  sinistro  dos  relâmpagos, 
o  vulto  d'esse  homem,  altivo  e  Iranqliillo,  assumia 
um  aspecto  verdadeiramente  maravilhoso.  Um 
bretão  e  dois  hespanhoes,  que  faziam  parte  da  co- 
lumna, decidiram  no  intimo  da  sua  consciência 
(jue  o  mexicano  não  podia  ser  senão  o  demónio 
em  pessoa,  c;  agoiraram  por  esse  motivo  um  triste 
lim  á  expedição. 

Um  dos  hespanhoes  chegou  até  a  projectar  li- 
vrar-se  a  si  e  aos  seus  companheiros  da  presença 
do  inimigo  do  género  humano.  Approximou-se 
d'elle  o  mais  (|ue  ))ôde,  e  beriou-lhe  quasi  ao  ou- 
vido:  (f.Iesus  1j;  "(loisa  notável!  Perez  Lorenzo  não 
estoirou,  nem  sequer  largou  cheiro  a  enxofre  ! 

A  trovoada  e  ao  vento  succedeu  a  chuva,  «m 
verdadeiro  diluvio.  Torrentes  de  agua  desabaram 
em  cima  dos  pobres  expedicionários,  c  apagaram 
ao  mesmo  tempo  o  facho  de  Perez  Lorenzo.  Ficou 
tudo  immerso  na  mais  prolunda  escuridão. 

— IJom  foi  isto,  nmrmiirou  Perez  Lorenzo  para 
junto  do  qual  se  chegara  o  coronel  Dupin.  Todas 
as  precauções  são  poucas;  a  luz  do  archote  |)odia 
denunciar-iios. 

— Então  estamos  próximos  do  co\il.^  perguntou 
o  coronel. 

— Ouve  aqui  do  nosso  lado  direito  o  estrondo 


de  uma  torrente  ."^  É  a  voz  do  arroio  de  Canas, 
que  vae  engrossado  com  as  chuvas.  As  choupanas, 
onde  elles  se  reuniram,  licam  a  dois  passos. 

Ouvindo  isto,  o  coronel  Dupin  mandou  fazer  alto 
á  columna,  para  reformar  as  liteiras.  Depois,  sem- 
pre com  voz  mansíssima,  ordenou  á  infantaria  que 
avançasse  de  modo,  que  envolvesse  as  choças. 
Deu  o  commando  d'essa  força  ao  capitão  Viar- 
monl.  Elle,  com  os  trinta  cavallos,  ia  formar  um 
cordão  concêntrico  ao  da  infantaria  para  impedir 
a  fuga  dos  guerrilhas,  e  perseguir  os  que  pudes- 
sem escapa  r-sc. 

A  infantaria  avançou  sem  fazer  o  mais  leve  ruido. 
Tudo  era  silencio  nas  choupanas ;  não  havia  nem 
uma  luz  lá  dentro,  nem  uma  senfinella  cá  fora. 
Perez  Lorenzo  dava  signaes  visíveis  de  inquietação. 

Afinal,  á  voz  do  capitão  Viarmont,  os  soldados 
que  tinham  envolvido  os  rr///c//o.v,  precipitaram -se 
sobre  as  casas,  e  entraram,  arrombando  portas  e 
janellas  com  simples  coronhadas.  Ia  na  frente  Perez 

Lorenzo.        ^ ^  (ConUnua) 

SAUDAÇÃO  \  AURORA 

Ver.so.s  laUiio-iiorfiigiioze.ti,  f|iie  |twileni  ser  lidoM  siiiiiil- 
(iinciaiiieiite  em  qualquer  dn^  «liinN  Jinj^tiaN,  seg;uin«lo 
visorosaiiieiife  u  .syii<a\e  «la   |>figiioii'a. 

l'i'losr.  dr.  António  de  Castro  Lopds,  do  Hio  do  .laneiro. 

Salve,  -Aurora  !  Eia,  refulge. 
Eia,  anima  valles,  montes: 
llymnos  canta,  oh  philoinela, 
llymnos  vós, -aves  insontes! 

Quam  pura,  quam  pudibunda 
És  tu,  Auroia  formosa  ! 
Diffunde  odores  suaves, 
Divina,  purpúrea  rosa! 

Eia,  surge,  vivifica 
Pendentes  ramos,  Aurora  :    . 
Áureos  fulgores  emilte, 
Pallidas  messes  colora ! 

Matutina  aura,  mitiga 
Solares,  nimios  ardores; 
Inspira  gratos  Favoíiios, 
Euros,  Zephyros  protectores. 

Eóa,  Tithonia  Diva, 
Fecundos  campos  decora. 
Canoras  aves  excita,' 
Oh  serena,  bella  Aurora ! 

Protege  plácidos  somnos, 
Imiuietas  mentes  tempera. 
Duras  procellas  dissipa, 
Terras,  fiores  refrigera. 

Lúcidas  portas  expande, 
Oh  sol,  oh  divina  fiamma ! 
Extingue  umbrosos  vapores, 
Tristes  ânimos  infiamnia ! 

Salve,  Aurora!  Eia,  refulge, 
Eia,  anima  valles,  montes ; 
li\mnos  canta,  oh  philomela, 
Ihmnos  vós,  aves  insontes!  


Typ.  Frarico-l'ortugu(jza.  =  Hua  do  Thesouro  Velho,  0. 


o  PANORAMA 


25 


||l|lll!trí:'..,  ,:,;:,  ;J 


O  PAPA  lp:ão  X 

De  todos  esses  grandes  homens  que  encheram 
de  brilho  e  esplendor  o  século  XVI,  Francisco 
I,  rei  de  França,  Henrique  VJII,  rei  de  Ingla- 
terra, Solimão  I  imperador  da  Turíjuia,  ele,  é  o 
papa  Leão  X,  que  ao  dito  século  deu  o  sou  nome, 
quemoccupa  o  primeiro  logar  nahisloriad'aquc]le 
tempo.  O  importante  papel  que  este  personagem, 


tão  sabiamente,  desempenhou  no  Ihealro  politico 
do  mundo  e  o  modo  como  se  houve  n'essa  grande 
revolução  religiosa,  de  que  Lulhcro  foi  origem, 
bastaiiam  para  dar  ao  seu  nome  toda  a  celebri- 
dade: outra  coisa,  porém,  concorreu  para  a  sua 
eterna  gloria  e  para  tornal-o  o  alvo  da  admira- 
ção de  todas  as  gerações  futuras:  foi  o  grande 
impulso  que  deu  ás  sciencias  e  ás  artes,  as  quaes, 
ao  tempo,  se  achavam  em  peifeita  decadência. 


26 


O  PANORAMA 


Leão  X.  descemlenle  da  celebre  família  dos 
Médicis,  nasceu  em  Florença,  no  mcz  de  dezem- 
bro de  li"o.  Destinado,  desde  logo,  por  seu  pai, 
Lourenço  de  Médicis,  cognominado  o  Magnifico, 
á  vida  "ecclesiaslica,  recebeu  a  tonsura  não  tendo 
ainda  completos  sete  annos  de  idade.  ISão  com- 
mentamos  este  fado,  porque  o  espaço  de  que  po- 
demos dispor  nol-o  não  permilte.  Toda  a  ambi- 
ção de  Lourenço  de  Médicis  era  ver  seu  íilho  ele- 
vado ao  cardinalado,  e  baslantemenle  instruído ; 
por  consequência,  se  por  ura  lado  empregou  to- 
dos os  esfoi-ços  para  a  sua  boa  educação,  já  dan- 
do-liie  os  melhores  exemj)los,  já  enlregando-o  a 
mestres  os  mais  babeis;  esforços  estes  não  balda- 
dos, pois  o  talento  de  João  dê  Médicis  era  tal  que 
depressa  conseguiu  igualar  os  homens  encarrega- 
dos do  seu  ensino;  por  outro  lado,  não  trabalhou 
menos  para  obter-lhe,  deinnocencío  Vlll,  o  cha- 
pou de  cardeal,  objecto  principal  dos  seus  cuidados. 

Tinha,  pois,  João  de  Médicis,  13  annos,  1488, 
ijuando  subiu  ao  mais  alto  graúda  jerarchia  eccle- 
siaslica; mas  não  podendo,  pela  sua  pouca  edade, 
ser  logo  revestido,  formalmente,  da  purpura,  o 
|)apa  estabeleceu  a  condição  de  que  o  joven  car- 
deal passaria  a  estudar  três  annos  na  universidade 
de  Pisa.  Assim  succedeu;  e,  em  1Í92,  recebeu  as 
jirimeiras  ordens,  indo  imediatamente  para  Roma, 
onde,  por  suas  maneiras  atraveís,  talento  e  vasti- 
dão de  conhecimentos  grangeou  a  aíTeição  dos 
grandes  e  a  estima  dos  homens  de  letras. 

Obrigado,  bem  como  toda  a  família  dos  Médi- 
cis, pela  entrada  de  Carlos  VIU  na  Itália,  a  sair 
de  LIorença,  paia  onde  se  havia  retirado,  em 
consequência  da  sua  opposição  á  eleição  do  papa 
Alexandre  VI,  João  de  Médicis  visitou  a  Allemanha, 
França,  Inglateira  e  por  toda  a  parle  encontrou 
admiradores  e  amigos.  No  numero  d'csles  últimos 
citaremos  Erasmo,  a  quem  o  cardeal  consultou 
sempre  nas  mais  diíliceís  circumslancias. 

Durante  os  seis  annos  do  seu  desterro  nunca 
teve  ingerência  nos  negócios  do  estado;  enlregou-se 
unicamente  ao  cultivo  das  letras  e  das  artes. 

Foi  só  em  loOIi,  voltando  a  Roma,  onde  logo 
SC  fez  notar  pelo  seu  gosto  pelas  scienciase  bellas 
artes,  que  o  cardeal  Médicis,  obtendo  a  amisade 
(lo  papa  Júlio  .11,  começou  a  ingeri r-se  nos  negó- 
cios do  governo.  Desempenhou  vários  cargos  im- 
portantes sob  este  ponliíicado,  e,  em  1513,  por 
morte  de  Júlio  II,  foi  eleito  seu  succcssor,  to- 
mando então  o  nome  de  Leão  X.  A  subida  d'este 
vaião  ao  Ihrono  ponliíical  foi  magnilica  e  os  seus 
discursos  cheios  de  graça,  de  bondade  c  de  elo- 
(juencia  encantaram  os  Romanos.  Kscolheu  para 
seus  secretários  os  cardeaes  Rembo  e  Sandoleti, 
dois  dos  maiores  sábios  do  seu  tempo. 

A  nossa  intenção  não  é  desenrolar  hoje  o  vasto 
quadro  dos  acontecimentos  políticos  c  religiosos 
que  assignalaiamo  reinado  de  LeãoX.  Mais  tarde 
tratando  de  Luthero  e  de  outros  homens  notáveis 
(lo  século  XVI,  teremos  occasião  de  mostrar  aos 
nossos  leitores  os  eminentes  servi(;os  prestados 
por  aquellepontilice  ao  calholicismo  e  o  seu  tacto 
e  linura  na  politica.   O  que,  por  agora,  quere- 


mos, é  apresentar  Leão  X  como  o  protector  das  le- 
tras e  das  artes,  que  foi  isso,  justamente,  o  que 
lhe  immortalisou  o  nome. 

Em  tempos  anteriores  á  morte  de  Júlio  lí,  no- 
tava-se  nos  povos  uma  impaciência,  ura  desejo 
ardentíssimo  de  saírem  das  trevas  da  ignorância 
e  da  barbárie.  As  cruzadas,  abrindo  novas  estra- 
das commerciaes,  haviam  começado  esta  grande 
revolução,  suíTocada  pela  allluencia,  em  Itália,  de 
um  grande  numero  de  sábios  que  os  Turcos,  vic- 
toriosos  do  império  grego,  repelliram  para  a  Eu- 
ropa. 

Esta  tendência  dos  espíritos  para  a  civílisação 
não  necessitava  senão  do  auxílio  dos  governos  para 
ter  todo  o  desenvolvimento.  Procuravam-se,  com 
uma  avidez  incrível,  as  obras  dos  antigos.  Era  na 
Itália,  principalmente,  que  se  operava  esta  nobre 
agitação  do  espirito  humano;  mas  os  homens  dís- 
linctos,  que  se  entregavam  ao  estudo  das  scíencias 
e  das  artes,  estavam  sendo  a  todos  os  momentos 
arrancados  aos  seus  trabalhos  e  separados  uns  dos 
outros  pelas  guerras  que  assolavam  o  paíz.  A 
exaltação,  porém,  de  Leão  X  ao  throno  pontifical 
foi  uma  barreira  insuperável  a  todos  os  males  que 
acabamos  de  expor.  Este  homem,  amante  do  pro- 
gresso, que  via,  com  grande  pezar,  a  queda  da  lít- 
teratura,  procurou,  immedíalaraente,  reunir  em 
um  só  centro  todos  os  raios  dispersos.  Restaurou, 
por  tanto,  a  universidade  romana,  enlregou-lhe 
todos  os  seus  rendimentos,  e  chamou  sábios  de  to- 
das as  partes  do  mundo  para  regerem  as  suas  ca- 
deiras. A  medicina,  as  mathematicas,  o  direito 
civil,  a  philosophía  moral, a  rhetoiica,  todas  estas 
scíencias  alli  tiveram  logo  os  seus  representantes, 
bem  como  a  theologia  e  o  direito  canónico. 

Devido  aos  cuidados  d'este  pontífice,  os  mode- 
los da  lítteratura  grega  e  latina,  Homero,  Platão, 
Sophocles,  Píndaro,  Theocrito,  Tácito,  dos  quaes 
comprou  por  elevadíssimo  preço  ura  manuscrípto 
incompleto,  saíram  da  obscuridade  e  foram  im- 
pressos sob  a  direcção  dos  homens  mais  instruí- 
dos da  sua  corte,  aos  quaes,  cm  recompensa,  con- 
feriu depois  altas  dignidades. 

A  astiologia  judiciaria  começava  então  a  ceder 
logar  á  verdadeira  astronomia ;  Celío  Calcognini 
tinha  já  procurado  provar  o  movimento  diurno  da 
terra,  que  mais  tarde  foi  a  gloria  de  Copérnico  cde 
Calileo,  e  Leão  X,  projectou  a  reforma  do  calen- 
dário; mas  ahonrad'esta  reforma  eslava  reservada 
para  o  papa  íiregorío  XIII. 

Duas  biblíothecas,  a  do  Vaticano  c  a  que  o  papa 
mandou  construir  por  Miguel  Angelo,  era  Florença, 
sua  pátria,  se  enriíjucceram  de  livros,  restos  da 
antiguidade,  c  de  todas  as  producções  das  bellas 
artes  que  Leão  X  mandava  colligir,  cora  grande 
dispêndio  c  gosto  esclarecido.  Os  leitores  não 
ignoram  que  foi  sob  o  ponliíicado  de  Leão  X  que  Mi- 
guel Angelo  c  Raphael  oi-naram  com  suas  magnificas 
pinturas  o  palácio  do  Vaticano  e  muitos  outros  dos 
principaes monumentos  de  Roma.  O  pontífice  com- 
prehendia  toda  a  extensão  do  talento  (restes  gran- 
des mestres  cvia  com  ura  orgulho  nobre  elevar-se 
uma  mullídão  de  discípulos  intelligenles  era  roda 


o  PANORAMA 


27 


d'esles  dois  homens,  cujogcnio  creador  elle  exci- 
tava. 

O  brilhantismo  da  côitc  de  Leão  X  augmentou 
em  seguida  ás  meditlas  de  rigor  que  se  vio  ol3ri- 
gado  a  tomar  contra  os  conspiradores  que  quize- 
ram  tentar  contra  os  seus  dias.  Reconhecidos  cul- 
pados do  projecto  de  envenenamento,  três  d'entre 
elles  foram  sentenciados  á  morle,  e  muitos  outros 
condemnados  a  penas  severas.  Personagens  dislinc- 
tos,  mesmo  cardeaes,  tinham  sido  cúmplices  na 
conspiração,  e  Leão  X  sentiu  a  necessidade  de 
suavisar  o  sentimento  de  tristeza  c  de  irritação 
que  esles  actos  de  justiça  produziram  em  mui- 
tos corações.  Fez,  pois,  uma  promoção  de  trinta 
e  um  cardeaes,  c  procurou  encantar  a  aristocracia 
romana  com  a  magnificência  c  o  bom  gosto.  Este 
luxo  bem  entendido,  espalhou  a  abundância  e  os 
prazeres  na  vida  de  todas  as  classes  do  povo  Ro- 
mano. 

A  liberdade  do  commercio,  e  a  sabedoria  da 
administração,  augmentaram  a  felicidade  geral,  e 
íizeram  abençoar  o  nome  do  pontiOce  pelo  povo 
e  pelos  artistas  que  lhe  deviam  uma  grande  parte 
da  sua  prosperidade:  assim,  não  houve  senão  uma 
voz  para  applaudir  o  decreto  solemne  que  conferiu 
a  Leão  X  uma  estatua  cuja  execução  foi  confiada 
ao  grande  Miguel  Angelo,  e  que  ainda  se  vê  no 
Capitólio. 

Tanta  grandeza,  prazeres  e  prosperidade,  tinham 
tornado  a  capital  do  mundo  calholico  o  ponto  de 
reunião  de  todos  os  homens  grandes  e  instruídos, 
no  meio  dos  quaes  Leão  X  goslava  sempre  de  se 
achar.  Reunia-os  em  esplendidos  banquetes,  onde 
mostrava,  com  tudo,  uma  grande  sobriedade,  e 
animava  uma  familiaridade  tal,  que,  provavel- 
mente, escandalisaria  as  gentes  do  nosso  tempo. 
Muitas  vezes,  durante  os  banquetes,  mandava  fa- 
zer leituras  escolhidas,  ou  originava  discussões  de 
ordem  elevada  sobre  sciencias  e  artes. 

Gostava  das  pompas  do  culto  e  procurava  sem- 
pre harmonisar  a  riqueza  de  seus  ornamentos  pon- 
lificaes  com  a  solemnidado  c  brilhantismo  dosof- 
ficios  divinos. 

Leão  X  era  de  nobre  presença,  estatura  elevada, 
rosto  alvo  e  corado,  olhos  pardos  e  vivos,  nariz  e 
bocca  regular,  voz  agradável  e  sonora  e  manei- 
ras aíTaveis,  excepto  nas  raras  occasiões  em  que 
a  caça,  divertimento  que  amava  até  á  loucura, 
não  correspondia  aos  seus  desejos. 

O  inimitável  Raphael  traçou  de  Leão  X  um  re- 
trato fiel,  que  é  uma  das  suas  melhores  obras,  e 
do  qual  ofierecemos uma  copia  aos  nossos  leitores. 
Á  esquerda  do  pontífice  está  o  cardeal  Rossi;  á 
direita  o  cardeal  Júlio  de  Médicis,  que  depois  foi 
elevado  ao  pontificado,  tomando  o  nome  de  Cle- 
mente ML 

Havia  apenas  nove  annos  que  Leão  X  tinha  re- 
cebido a  tiara,  1  de  dezembro  de  1520,  quando 
morreu  quasi  subitamente.  O  corpo  tendo  appa- 
recido  inchado  de  uma  maneira  extraordinária, 
foi  aberto,  com  permissão  do  consistório,  e  os 
médicos  declararam  que  o  papa  linha  morrido  en- 
venenado. Foi  preso  o  copeiro,  mas  depressa  saiu 


solto  por  falta  de  provas.  Um  rumor  suido  accu- 
sou  Francisco!,  rei  de  França,  que  tinha  lido  com 
o  papa  grandes  contendas,  e  que  acabava  de  per- 
der, oito  dias  antes,  o  Milanez;  mas  não  está  mesmo 
bem  averiguado  que  houvesse  envenenamento. 

Os  médicos  d'aquelle  tempo  não  estavam  muito 
conhecedores  do-s  eííeitos  do  veneno. 

O  tumulo  que  se  elevou  a  este  grande  príncipe 
na  igreja  de  St."  Maria  da  Minerva  linha  sido 
esboçado  por  Miguel  Angelo.  A  estatua  do  pontí- 
fice é  de  Raphael  Monte-Lupo. 


PERES  LORENZO 

^Sccuas  da  Campanha  «lo  Mcxico) 

Por  PINHEIRO  CHAGAS. 
Ill 

O  desapontamento  foi  igual  ao  impelo.  As  chou- 
panas estavam  ermas. 

—  Inferno!  exclamou  Perez  Lorenzo,  os  malditos 
fugiram. 

E  correu  como  louco,  por  todos  os  recantos,  ba- 
tendo com  a  coronha  da  caçadeira  nas  paredes  e 
nos  moveis,  esperando  encontrar  algum  dos  ban- 
didos. Os  contra-guerrilhas  olhavam  para  elle  com 
certa  desconfiança.  Lorenzo  de  coisa  nenhuma  dava 
fé.  Com  as  faces  afi^ogueadas  corria  como  um  tigre 
em  torno  da  jaula,  arrombando  moveis,  despeda- 
çando fechaduras.  Afligurou-se-lhe  suspeito  um 
enxergão,  cuja  palha  parecia  que  fora  revolvida 
de  fresco.  De  um  pulo  saltou  para  cima  d'elle,  e 
ia  a  despejal-o,  quando  um  homem,  que  lá  estava  , 
escondido,  se  ergueu  de  súbito  agitando  um  pu- 
nhal, que  lhe  cravava  de  certo  no  peito  se  o  ca- 
pitão Yiarmont,  a  quem  esse  enxergão  lambem  cau- 
sara suspeitas,  e  que  se  fora,  devagarinho,  chegando 
para  lá,*  não  aparasse  o  golpe,  decepando  ao 
mesmo  tempo  a  mão  do  bandido. 

— Obrigado,  exclamou  Perez  Lorenzo  estendendo 
a  mão  ao  oíficial  francez,  se  houvesse  realisado  já 
o  meu  desejo,  não  lhe  agradecia  o  serviço.  Assim 
agradeço-lh'o  do  fundo  da  alma.  Preciso  viver  até 
me  vingar. 

Os  soldados  lançaram  a  mão  ao  bandido,  que 
se  debatia  furioso.  Novas  pesquizas  fizeram  des- 
cobrir ainda  outro,  que  só  pedia  a  vida,  e  que  se 
mostrou  tão  covarde  como  o  primeiro  se  mostrara 
audacioso.  Não  foi  possível  encontrar  mais  nenhum. 
O  bando  dos  condores  deixou  apenas  nas  mãos 
do  caçador  aquelles  dois  trainards.  É  verdade 
que  eram  ambos  captivos  de  bastante  importância 
porque  um  d'elles  era  Juan  Lopez,  cunhado  de 
Juan  Pablo,  o  outro  Omata,  primo  do  mesmo  chefe 
de  guerrilhas. 

N'este  momento  entrava  na  choupana  o  coronel 
Dupin. 

— Fugiram  os  milhafres?  perguntou  elle  relan- 
ceando para  Perez  Lorenzo  um  olhar  suspeitoso. 
— Fugiram  !  tornou  Perez  Lorenzo  com  um  modo 
sombrio,  mas  a  águia  não  lhes  perdeu  os  rastos; 
não  conservam  os  ares  o  sulco  das  azas,  mas  a 
terra  denuncia  o  voo  rasteiro  dos  pássaros  covar- 
des. 


28 


O  PANORAMA 


— Responde  pelo  cumprimento  da  sua  promessa? 
tornou  o  coronel. 

— Respondo,  tornou  PerezLourenzo,  lembrc-seo 
coronel  de  cumpiira  sua. 

— A  minha  ?  atalhou  Dupin  lentando  recordar-se. 

Perez  Lorenzo  não  fez  mais  do  que  apontar 
para  os  dois  prisioneiros. 

—Olá!  exclamou  o  coronel,  que  ainda  lião  repa- 
rara n'elles,  sempre  licaram  alguns  nas  redes. 
Enlendo.  conlinuou,  Aollandose  j)ai'a  o  mexicano, 
estes  dois  homens  perlencem-liie,  mas  primeiro 
consinla  que  os  oiçamos  caniar. 

— Si  Icur  ramagc  rcssemhle  á  Iciir  plumage, 
murmurou  o  incorrigível  Viarmonl,  i/s  seront  Ics 
phènix  d  CS  /tal  es  de  cc  bois. 

A  cilação  de  Lafonlaine  fez  brotar  um  sorriso 
nos  lábios  do  coronel,  que  se  voltou  para  o  seu 
suballerno,  dizendo : 

—  Se  elles  nos  derem  as  informações  de  que 
precisámos,  ser-uQsha  mais  agradável  a  sua  voz 
ílo  que  o  próprio  canlo  do  gracioso  colibri.  Pa 
rece-me,  meu  caro  capitão,  que  a  boa  da  raposa, 
ao  saborear  o  queijo,  achou  dulcíssimo  o  grasnar 
do  corvo. 

— É  escusado,  interrompeu  Perez  Lorenzo;  co- 
nheço-os  a  ambos.  Juan  Lopez  morre  mas  não 
dà  palavra ;  e  .hian  Pablo  não  é  tão  tolo  que  vá 
conliar  a  Omala  o  segredo  dos  seus  movimentos. 

— Tentemos  sempie,  disse  o  coronel. 

Perez  Lorenzo  encolheu  os  liombros,  e  foi  sen- 
tar-se  a  um  canlo  da  choupana.  Mellia  horror, 
contemplar  esse  rosto  juvenil  e  formoso,  devastado 
pela  lormenla  de  uma  dor  immensa;  a  sua  phy- 
sionomia  linha  a  immobilidade  do  mármore,  mas 
do  maimore  lascado  pelo  raio,  que  lhe  deixou  ves- 
tígios indeléveis  na  sua  lisa  superfície. 

Como  elle  o  presagiava,  foram  infrucliferas  to- 
das as  tentativas  queosfrancezes  lizeram  para  ob- 
terem dos  dois  prisioneiros  a  revelação  do  cami- 
nho que  os  bandidos  haviam  seguido.  Juan  Lopez 
não  descerrou  os  lábios,  senão  para  dizer:  Ca- 
ramba! quando  as  supplicas  e  as  lamentações  do 
seu  companheiro  o  irritavam  em  demasia.  O  co- 
ronel, vendo  que  não  tirava  fructo  da  sua  persis- 
tência, voltou-se  para  Perez  Loienzo,  e,  indican- 
do-lhe  com  um  gesto  que  podia  fazer  dos  prisio- 
neiros o  que  quizesse,  saio  com  os  seus  subordi- 
nados. 

Viarmonl  foi  o  ullimo  a  sair.  Ainda  pôde  ver 
um  relâmpago  de  satisfação  infernal  fusilar  nos 
olhos  de  Perez  l>oreiizo,  ainda  o  pôde  ver  Icvan- 
lar-se,  c  avançar  para  os  dois  bandidos  com  um 
diabólico  sorriso  nos  lábios. 

O  próprio  .luan  Lopez  estremeceu  e  descorou, 
ao  ver  aquelle  vullo  sinistro  caminhar  em  direi- 
tura a  elle. 

A  necessidade  de  formar  os  seus  soldados  obri- 
gou Viarmonl  a  sair,  mas  a  curiosidade  actuava 
ftoderosamenl*  no  seu  espirilo,  e,  quando  a  con- 
tra-guí-rrilha  se  poz  cm  marcha,  Viaimont  dei- 
xou-se  íicar  á  reclaguarda  para  ver  o  (lue  resultava 
d'alli. 

Primeiro  ouvio  gritos  dolorosos,  depois  >  io  abrir- 


sc  a  parla,  c  sairem  os  dois  prisioneiros,  impel- 
lidos  pela  coronha  da  caçadeira  de  Perez  Lorenzo. 
Devemos  dizer  que  os  francezes  tinham  alado  com 
rijas  cordas  os  pulsos  dos  dois  bandidos. 

A  avaliar  pelo  movimenio  dos  lábios  de  Juan 
Lopez,  e  pelo  seu  sorriso  irónico,  o  valente  guer- 
rilheiro insullava  o  seu  algoz,  como  os  índios  sel- 
vagens, cujas  tradições  de  bravura  impassível  pa- 
recia que  eram  conservadas  lielmente  por  elle, 
quando  os  seus  inimigos  os  alavam  à  estaca  do 
marlyrio  ;  Omala  chorava  como  uma  creança. 

Perez  Lorenzo  amarrou  os  dois  a  uma  arvore, 
volíou  á  choupana,  trouxe  uma  corda,  atou-acom 
todo  o  vagar  a  um  ramo,  fez  a  laçada  e  enfor- 
cou Juan  Lopez.  Era  quanto  o  guerrilheiro  estrebu- 
chava nas  convulsões  da  agonia,  Perez  Lorenzo 
parecia  dirigir-llie  palavras  zombeteiras,  cujo  mur- 
múrio sinistro  chegava  muito  vagamente  ao  ouvido 
de  Viarmonl. 

Depois  desatou  o  cadáver,  alirou-o  com  um  pon- 
tapé para  o  cerrado  do  arvoredo,  e  passou  a  en- 
forcar o  pobre  Omala,  que  desmaiara  de  pavor. 
Esse  quasi  que  nem  senlio  a  morte.  Os  uivos  dos 
chacaes,  que  parecia  prcsenlirem  (pie  se  lhes  es- 
tava preparando  um  festim,  resoavam  lugubre- 
mente no  fundo  da  tloresta. 

— Mordieu,  exclamou  energicamente  e  n'uai 
tom  de  cólera  reprimida  uma  voz  por  traz  de  Pe- 
rez Loi'enzo  que  mirava  com  um  prazer  feroz  os 
dois  cadáveres,  julgava  que  se  tinha  extinguido  a 
raça  dos  Caraíbas.  Vejo  que  me  enganei.  Se  a 
sua  vida  não  estivesse  garantida  pela  palavra  do 
meu  coronel,  e  por  conseguinte  debaixo  da  pro- 
tecção da  bandeira  franceza,  havia  de  lhe  ensinar 
a  corlezia  e  a  humanidade  europeas. 

— Capitão,  respondeu  Perez  Lorenzo  vollando-se 
e  tilando  n'elle  um  olhar  que  esfriou  o  capitão  até 
á  medulla  dos  ossos  apezar  da  sua  reconhecida 
bravura,  não  avalie  o  procedimento  dos  oulros,  e 
deixe  que  Deus  peze,  na  sua  divina  balança,  os 
nossos  merecimentos  e  as  nossas  culj)as. 

E,  dizendo  isto,  aíTaslou-se  vagarosamente.  A 
chuva  continuava  a  cair  lorrentuosa,  o  trovão  ri- 
bombava nos  ares,  e  os  chacaes  uivavam  lugu- 
bremente ao  fundo  da  lloresla. 

(Continua) 


O  INFELIZ  POETA 

O  quadro,  do  qual  é  copia  fiel  a  gravura  que 
hoje  olVerccemos  aos  nossos  leitores,  foi  desenhado 
pelo  celebre  pintor  e  gravador  AVill  llogarth,  a 
quem  as  bellas  artes  conferem  um  logar  eminente 
entre  os  seus  cultivadores. 

Will  llogarth,  cuja  .biographia  publicaremos 
opportunamcnle  com  o  seu  relrato,  lornoií-se  no- 
tável pela  sua  originalidade  c  pela  verdade  com 
que  conseguiu  exprimir  as  paixões  e  as  scenas 
ordinárias  da  vida. 

Todos  os  seus  (piadros,  como  disse  um  notável 
escri|)tor,  são  oulias  tantas  comedias  em  pintura, 
censurando  os  vicios  dos  homens,  para  corrigil-os; 
alli  tudo  c  acção,  movimento,  interesse,  verdade 


11 


nue  lendo  deixado  o  filbinho  adormcc  lo  e  havia 
assentado  coslurando.cslorvada  em  st^"*  1'^' ''''''"^ 
nPb  ei  eira  nuc,moslrando  aconla.exigeapiom  a 
L  k  arin  do  seu  credito.  Atraz  da  leiteira,  o  cao 
»nò dmndo  se  de  um  boccado  de  toucinho  que  a 
?S  esposa  a  troco  da  pequena  somma  nela  qual 
"h     ompSm  uma  louquinba  que  engenhara  na 


de  interesse  para  os  donos  da  casa. 
Ouanla  verdade  nao  existe  neste  quaaro. 


30 


O  PANORAMA 


idílio 

II 

A  Tempestade 

— Ouves  Lilia,  o  horrisono  bramido  da  tompesla- 
de,  que  nos  eslà  iniminenlc?  Vòs  os  fogos  que 
fendem  as  nuvens,  ouves  o  Irovão,  e  a  par  do 
trovão  o  ruido  medonho  dos  cslragos  causados 
pelo  raio  despedido  do  firmamento  ?  Na  profun- 
da obscuridade  que  nos  rodèa  não  posso  ver-le 
senão  á  luz  dos  relâmpagos ;  nem  me  deixa  ouvii' 
o  grilo  da  lua  angustia,  o  bramir  horroroso  e  ter- 
livel  da  tempestade.  Parece  que  só  a  nós  ameaça 
de  morte;  porque  estamos  sós  no  meio  dos  bosques. 
Sinto.  ))orém,  que  no  meio  do  terror,  que  te 
anniquilla,  cingiste  meu  corpo  com  os  teus  bra- 
ços, e  que  leu  coração,  sobresaltado,  palpita  jun- 
to ao  meu.  Eslreila-me  ainda  com  mais  força  con- 
tra o  teu  seio,  Lilia,  e  abençoarei  os  terrores  e 
os  perigos  da  tempestade. 

Em  breve  apparecerà  novamente  o  sol,  plácido, 
sereno,  como  um  pensamento  do  amor  divino. 
Em  seu  refulgente  carro  percorrerá  os  límpi- 
dos ceos,  e  o  vento  aquietará.  As  nuvens,  os 
montes,  e  os  prados  de  luz  pura  serão  vesti- 
dos, e  tornará  o  murmúrio  do  arroio  a  acompa- 
nhar o  canto  das  aves  e  a  voz  mysteriosa  dos 
bosques.  Oiça  eu  então  a  harmonia  da  tua  fal- 
ia no  concerto  que  a  natureza  envia  á  gloria  do 
Senhor;  beije  tua  fronte  radiante  de  alegria;  leia 
em  teus  olhos  que  confirmas  na  bonança  os  di- 
reitos que  me  deste  na  tormenta  ;  e  lembrando-me 
de  onde  me  vem  tanta  ventura,  abençoarei  os 
terrores  e  os  perigos  da  tempestade. 

Ail  o  que  égi  vida  do  homem  senão  um  temporal 
desfeito  ?  Ê  o  que  seriam  sem  elle  o  coração  e  o  en- 
tendimento.^ Apoz  medonha  tormenta  e  mais  bri- 
lhante o  céo,  o  ar  mais  puro,  mais  alegre  a  campi- 
na; depois  do  obstáculo  que  retarda  a  ventura,  ou  da 
desgraça  que  d'ella  nos  afasta,  mais  funda  e  viva 
a  sente  o  coração.  Quão  sublime  c  o  poder  de 
Deos  quando  arma  o  seu  braço  com  a  tempesta- 
de! Assim  como  elle  sublime,  apparece  a  virtude 
no  meio  dos  combates  do  vicio.  Oh!  que  meus 
dias  não  findem  com  a  alma  já  cansada  de  gosar 
perenne  ventura.  Que  cu  veja  azares,  lides  e  pri- 
vações na  vida,  e  com  o  teu  amor,  Lilia,  as  tuas 
iras ;  porque  o  socego  me  intristece,  e  no  cora- 
ção, e  na  natureza  me  dão  prazer,  os  terrores  e 
os  perigos  da  tempestade. 

—Cessou  a  tormenta,  amado  bem ;  reconhece- 
mos Deos  no  raio  ;  bemdigamol-o  agora  no  iris. 
Aqui  tenso  meu  rosto;  imprime  n'elle  o  beijo 
do  leu  amor...  Um,  um  somente;  que  o  meu  co- 
ração estremeceu  ao  contado  dos  teus  lábios... 
Deixa-me...  Logo  cantarei  a  felicidade  dos  pas- 
tores c  a  sua  innocente  vida.  Depois  de  cantar 
reclinarei  a  cabeça  sobre  o  teu  peito  e  abraçar- 
tc-hei  como  ainda  não  ha  muito  o  fiz,  quando 
fechados  os  olhos  c  o  peito  opprimido,  buscava 
em  ti,  que  f"s  homem,  um  appoio  contra  a  tor- 
menta. Em  seguida,  meu  bom  amigo,  zangar-me- 
heipara  que   tu  procures  abrandar-me;   mas,  se 


quizeres  obter  o  meu  perdão,  buscarás  a  permis- 
são de  minha  mãi,  para  jungirmos  os  nossos  fados, 
quando  eu  durma  reclinada  nos  seus  joelhos. 
Ah  !  se  ella  te  dá  o  nome  de  filho,  e  se  a  ambas 
nos  prometles  um  amor  eterno,  bemdiremos, 
como  tu,  meu  querido  amigo,  os  terrores  e  os 
perigos  da  tempestade. 


RÃ-PULANTE 
II 

Quando  Rã-Pulante  e  Castanheta,  paraobedecc- 
remás  ordens  do  rei,  correram  a fallar-lhe,  acharam- 
n^o  bebendo  \'m\io  realmente  com  os  sete  membros 
do  seu  conselho  privado;  mas  parecia  estar  de 
máo  humor.  Sabia  que  Rã-Pulante  temia  o  vinho, 
porque  esta  bebida  levava-o  á  doudice — e  a  dou- 
dice,  aqui  para  nós,  não  é  lá  das  cousas  mais  agra- 
dáveis—mas  o  rei,  que  presava  muito  a  sua  di- 
gnidade, e  era  bastante  caridoso,  tinha  um  prazer 
inexplicável  em  obrigar  o  coxo  a  beber,  e — usan- 
do da  expressão  real — a  ficar  alegre. 

— Aproxima-te,  Rã-Pulanle,  disse  elle,  logo 
que  o  bobo  e  a  sua  companheira  entraram  na  ca- 
mará ;  bebe  este  copo  á  saúde  dos  teus  amigos 
ausentes  (aqui  Rã-Pulante  suspirou)  e  ajuda-nos 
com  a  tua  imaginativa.  Necessitamos  de  lypos,  de 
caracteres,  meu  bravo !  de  alguma  cousa  nova, 
extraordinária.  Já  estamos  cansados  d'esta  mono- 
tonia eterna.  Vamos;  bebe !  o  vinho  ha  de  escla- 
recer-te  as  idéas ! 

Rã-Pulante  procurou,  como  de  costume,  res- 
ponder ao  rei  com  uma  palavra  chistosa,  mas  não 
poude.  Era  justamente  o  dia  do  anniversario  do 
seu  nascimento  e  a  ordem  de  beber  á  saúde  dos 
amigos  ausentes  fez-lhe  rebentar  as  lagrimas  dos 
olhos.  Algumas  gotas  amargas  cairam  no  copo  ao 
recebel-o  humildemente  das  mãos  do  seu  bom 
rei. 

— Ila  !  ha!  ha!  rugio  este  ultimo,,  quando  o 
anão,  com  repugnância,  levou  o  copo  aos  lábios; 
vê  o  que  pódc  um  copo  de  bom  vinho !  Ileiu  ! 
Como  já  te  brilham  os  olhos ! 

Pobre  rapaz !  Os  olhos  mais  depressa  lhe  fais- 
cavam do  que  brilhavam;  porque  o  vinho  excila- 
va-lhe  instantaneamente  o  cérebro.  Acabando  de 
beber  pôz,  todo  tremulo,  o  copo  sobre  a  mesa,  c 
passou  um  olhar  fixo  c  quasi  doudo  pelo  audi- 
tório. 

Todos  pareciam  contentíssimos  do  feliz  successo  ^ 
da  farça  real. 

— Agora,  mãos  á  obra  !  disse  o  primeiro  minis- 
tro, homem  muitíssimo  gordo. 

— Exactamente,  disse  o  rei;  vamos,  Rã-Pulan- 
te, auxilia-nos.  Dá-nos  typos,  meu  rapaz,  carac- 
teres! temos  grande  precisão  de  caracter!  ha! 
ha !  ha ! 

E,  como  o  dito  tinha  pretensões  a  engraçado,  lo- 
dos fizeram  coro  ao  riso  real.  Rã-Pulante  lambem 
rio,  mas  o  seu  riso  era  frio  c  dislrahido. 

— Vamos,  vamos,  continua  o  rei,  com  impa- 
ciência; não  achas  nada? 

— Diligenceio  achar  alguma  cousa  inteiramente 


o  PANORAMA 


34 


nova,  replicou  o  anão,  desorientado,  porque  o 
vinho  lhe  fervia  no  miolo. 

— Diligenceias !  grilou  ferozmente  o  rei  exem- 
plar. Que  entendes,  lu,  por  essa  palavra?  Ah ! 
comprehcndo.  Desconfiou ;  precisa  mais  vinho. 
Toma  !  bebe  isto  !  —  e  encheu  novamente  o  co- 
po e  apresentou-o  ao  coxo,  que  nem  podia  res- 
pirar deaíllicto  que  estava. 

—Bebe,  já  te  disse,  gritou  o  nobre  rei,  vá,  com 
mil  demónios !.. 

O  anão  hesitava.  O  rei  eslava  como  um  pimen- 
tão. Os  corlezãos  sorriam  maliciosamente.  Casta- 
nheta, pallida  como  um  cadáver,  aproxima-se  do 
bom  monarcha,  e,  ajoelhando  diante  d'elle,  roga- 
lhe  que  poupe  o  seu  amigo. 

O  rei  olhou-a  por  alguns  instantes,  evidente- 
mente estupefacto  de  semelhante  audácia.  Parecia 
ignorar  o  que  devia  fazer  ou  dizer  n'um  caso  d'a- 
quelles,  ou  como  exprimir  sufricienlementea  sua  real 
indignação.  Por  ultimo,  sem  pronunciar  uma  syl- 
laba,  repelliu-a  violentamente  para  longe  de  si, 
e  alirou-lhe  ao  rosto  o  vinho  que  se  continha  no 
copo  cheio  para  o  anão. 

A  pobre  pequena,  ergueu-se  conforme  poude,  e, 
não  ousando  nem  suspirar,  retomou  o  seu  togar 
junto  á  mesa. 

Seguiu-se  por  uns  trinta  segundos  um  silencio 
mortal,  durante  os  quaes  ter-se-ia  sentido  a  que- 
da de  uma  folha,  ou  de  umapenna  (que  não  fosse 
de  aço.)  Este  silencio  foi  interrompido  por  uma 
espécie  de  cstiidor  surdo,  porém,  rouco  e  pro- 
longado, que  pareceu  rebentar  de  todos  os  cantos 
da  camará. 

— Porque,  porque...  porque  fizeste  isso?  per- 
guntou o  rei,  voltando-se  com  furor  para  o  anão. 

Este,  que  parecia  recobrar  os  sentidos,  olhando 
fixamente  o  monarcha,  mas  com  tranquillidade,  res- 
pondeu : 

— Eu,  eu?  Como  poderia  ser? 

— O  som,  pareceu-me,  que  vinha  de  fora;  ob- 
servou um  dos  corlezãos;  talvez  fosse  o  papagaio 
aguçando  o  bico. 

— É  verdade,  tornou  o  monarcha,  como  bas- 
tante consolado  pela  idéa;  mas,  pela  minha  honra 
de  cavalleiro,  juraria  que  era  o  rangido  dos  den- 
tes d'esle  miserável. 

Ao  ouvir  isto,  o  anão,  soltou  uma  estrepitosa 
gargalhada  (o  rei  também  rio,  porque  era  um 
d'estes  homens  que  não  podia  conter  o  riso  quan- 
do o  via  nos  outros)  e  rangeu  os  dentes  de  modo  tal, 
com  tanta  força,  que  seria  para  todos  ficarem  attoni- 
tossenão  estivessem  rindo  tão  despropositadamente; 
e  depois,  declarou  que  eslava  disposto  a  beber  tan- 
to vinlio  quanto  lhe  quizessem  dar.  O  monarcha 
Iranquillisou-se,  e  Rã-Pulánte,  lendo  absorvido  um 
novo  copo,  sem  o  menor  inconveniente,  entrou 
em  seguida  e  com  enthusiasmo  no  plano  da  mas- 
carada. 

— Não  posso  explicar,  —  observou  elle  muito 
tranquillo,  e  como  se  não  tivesse  bebido  vinho — 
como  se  operou  em  mim  esta  mudança;  mas,  lo- 
go que  Vossa  Magestade  bateu  em  Castanheta  e  a 
baptisou   com  vinho;  logo  que  Vossa  Magestade 


leve  a  inspiração,  que  tanto  nos  alegrou;  e  em 
quanto  o  papagaio  fazia  aquelle  singular  ruido, 
occorreu-me  uma  maravilhosa  idéa  de  diverti- 
mento ;  é  um  brinquedo  do  meu  paiz,  que  se  in- 
troduz muitas  vezes  nas  mascaradas;  aqui  deve 
oíferecer  novidade.  Infelizmente,  são  necessárias 
oito  pessoas,  e... 

— E  nós  somos  oito  ! — disse  o  rei,  rindo  muito 
da  sua  descoberta;— a  conta  justa  !  —  eu  e  os  meus 
sete  ministros.  Vejamos !  que  diverlimenlo  é  esse; 
como  se  chama? 

— Denominamol-o — Os  oito  orangotangos  acor- 
rentados—é uma  cousa  interessantíssima,  sendo  bera 
executada. 

— Bello!  executal7a-hemos,  disse  orei,  emperli- 
gando-se  e  esfregando  as  mãos. 

— A  belleza  do  divertimento,  continuou  Rã-Pu- 
lanle,  consiste  no  grande  susto  que  sempre  causa 
ás  mulheres. 

— Excellente !  rugiram  em  coro  o  monarcha  e 
o  ministério. 

— Eu  vos  caraclerisarei,  proseguio  o  anão; 
fiaivos  de  mim.  A  semelhança  será  tal  que  lodos 
vos  tomarão  por  verdadeiros  irracionaes,  e,  natu- 
ralmente, o  terror  deverá  ser  igual  ao  espanto. 

— Oh!  é  surprehendente !  exclamou  o  rei.  Rã- 
Pulanle,  acredita,  que  havemos  de  fazer  de  ti  um 
homem ! 

— As  cadeias  teem  por  fim  augmentar  a  desor- 
dem pela  bulha  que  fazem. Todos  julgarão,  que 
fugistes  aos  guardas?  Vossa  Magestade  não  pode 
calcular  o  effeito  que  ha  de  produzir,  no  baile, 
a  entrada  dos  oito  orangotangos  acorrentados,  que 
a  maior  parte  dos  indivíduos  tomarão  por  verdadei- 
ros brutos,  saltando  e  dando  grilos  selvagens, 
por  entre  a  multidão  de  homens  e  mulheres  gar- 
rida e  brilhantemente  vestidos!  Cousa  alguma  se 
lhe  poderá  igualar! 

— Muito  bem  !  disse  o  rei ;  e  logo,  porque  a 
hora  se  aproximava,  lodos  se  levantaram  para  exe- 
cutar o  plano  do  bobo. 

(Conclue) 


Valho-me  sempre  das  coisas  naluraes,  e  assom- 
bro-me  certo  n'este  caso,  considerando  que  uma 
só  gota  de  tinta  que  caia  em  uma  redoma  de  agua 
claríssima  basta  e  sobeja  para  a  lornar  turva;  e  que 
para  aclarar  e  deixar  limpa  uma  redoma  de  tinta, 
não  basta  uma  pipa  de  agua  clara.  Assim  costuma 
ser  a  má,  e  a  boa  fama  que  a  muito  boa  não  pode 
acabar  de  purificar  a  ruim,  ea  ruim  logo  empece 
á  muito  boa. 

D.  pRANcisco  Manoel. 


Sou  tronco  e  rocha,  ó  bella, 
Que  açouta  o  sul,  que  brama, 

E  o  mar  que  se  incapella ; 
Não  lemas  que  do  rosto  a  cór  se  mude; 

Vence  as  rochas  e  os  troncos 

A  solida  virtude. 

Thomas  António  Gonzaga. 


32 


O  PANORAMA 


BEATRIZ 

—Oh  tradimento  I  Pace 

Sperar  pos£'io  piú  mai?  Quol  vita  orrenda 
Di  rimorsi,  e  di  lagrime,  e  di  rabbia  ! 

ALFIEni 

I 

Cada  qual  tem  seu  dom;  eu  amo  e  canlo. 
Sei  que  o  fadário  é  mau,  sei  que"  apoz  ludo 
Que  exalla  o  coração,  que  o  prende  alegre 
Em  exlase  ideal,  q"iie  lhe  da  mundos 
Onde  o  deixa  voar,  por  ecos  em  fora. 
Não  falta  um  dia,  e  breve,  em  que  a  verdade 

Nos  accorda,  e  nos  diz —que  diíja,  emboral 

Em  quanto  o  mundo  passa,  revolvendo. 

Cem  mil  questões  de  jota  e  de  i  romano, 

Eu  ergo  a  voz,  e  os  anjos  da  Rarmonia 

Vagueam  junto  a  mim;  brillia-me  um  rayo 

De  santa  inspiração,  minha  alma  accesa 

Eleva-se  ate  Deos,  ])erde-se  ludo 

N*um  jubilo  immortal;  da  vida  as  trevas, 

Dissipam-se  em  redor,  um  paraiso 

De  elhereo  amor,  do  fervidas  delicias 

Desabrocha  ao  meu  lado;  crescem  rosas 

Por  entre  os  estevaes  d'agra  collina. 

Desponta  a  aurora,  as  aves  vem  chilrando, 

A  tépida  bafagem  traz  a  espaços 

O  perfume  subtil  das  larangoiras; 

E  eu  ergo  a  voz,  minha  alma  em  vago  anccto 

Ardente  anecia;— o  mundo  pas^a  c  geme 

Cada  qual  tem  seu  dom;  eu  amo  e  canlo! 


II 


Porque  abri  d'esle  modo  o  conto  humilde 
Que  passo  a  relatar?....  não  sei,  mas  penso 
Qoe  anda  vaidade  arrodo,  e  sem  motivo, 
N'este  exórdio  fatal;  ai,  se  as  leitoras 
Soubessem,  como  eu  sei,  quanto  nos  cusia 
Tragar  a  prosa  vil  que  ondeia  cm  torno 

De  nós de  nós  ?— perdão,  eu  sou  apenas 

Um  misero  cantor,  que  algumas  vezes 
Versejo  por  demais,  mas  que  não  posso 
Deixar  de  lhes  dizer,' que,  se  a  policia 
Fedesse  metter  pé,  de  vez  em  quando, 
N'esta  citla  dolente  de  escriptorcs, 
E  se  deitasse  a  mão,  como  devia, 
A  quanto  néscio  vil  ousa  acoular-sc 
Entre  os  que  avultam,  dilTundindo  raios 
De  essência  divinal,  talvez  eu  fosse 
(^om  mais  de  cem,  que  de  ouropel  mentido 
Parvos!  se  adornam ;  oh,  mas,  sem  rebuço,  . 
Dava  tudo  por  bom,  vendo  na  recua 
Tanto  sandeu  que  alrota  de  chibantel 


III 


Passado  o  mau  humor  que  eslas  palavras 

Me  fez  vociferar,  sem  mais  delonga 

Entro  na  acção,  e  exponho  o  simples  caso 

Que  ouvi  contar  ha  dias,  de  passagem, 

Mas  que  gravei  na  mente,  resolvido 

A  dar-lhe,  como  dou,  carta  de  corso. 

Talvez  fosse  melhor  para  o  bom  nome 

Que  eu  pretendo  alcançar,  deixar  no  escuro 

A  pobre  narração;  mas  c,  defeito 

Que  não  posso  perder,  —  mal  que  uma  historia  • 

Me  cai  no  ouvido,  em  quanto  a  não  desfcixo 

Sobre  a  primeira  victima  (|Uf;  encontro, 

Revolvo-me  inda  mais  que  S.   Lourenço 

Na  grelha, o  que  cu  não  vi,  mas  oqucaíTirmam 

Livros  de  santos  padres,  que  egualnienle 
Não  vi,  mas  que  me  dizem  (quanto  basta), 
Que  são  obras  de  truz,...  louas  in  folio!— 


IV 


Desprenda-sc  a  voz;  sumida 
Já  vai  de  ha  muito  a  tristeza; 
Aos  pés  de  elherea  belleza 
Prostre-se  humilde  o  cantor. 
Do  mundo  as  vagas  impura 
Jamais  o  locam  de  leve; 
Em  sonhos  d'ouro  c  de  neve 
Contente  respira  amor! 

Desprenda-se  a  voz;  que  imporia, 
Se  a  tempestade  rebrama? 
Não  brilha  na  mente  a  chamma 
Que  a  tudo  em  torno  dá  luz? 
Que  importa,  cpiando  ante  os  olhos 
Radiam  mansões  do  empyrio, ' 
Que  a  turba,  no  seu  dclirio. 
Nos  dé  por  leito  uma  cruz? 

Deixai  rugir  a  tormenta. 
Almas  que  innunda  a  poesia; 
Cantai  por  noite  e  por  dia, 
Erguei-vos  na  iVispiração. 
Bem  vedes  que  a  natureza 
Também  de  inverno  se  agita, 
Que  tudo  canta  e  palpita 
No  seio  da  creação! 

Que  tendes,  se  acaso  agora 
Passais  na  terra  -esqucciílos; 
Sc  os  vossos  cantos,  perdidos. 

Ninguém  sequer  enlendeu? 

Quom  sente  o  grato  perfume 
Que  espira  a  rosa  virenle. 
Sc  ella,  á  beira  da  correnie. 
Por  entre  os  juncaes  rompeu? 

Deixai  que  os  homens  blasphemem 
Na  sua  eIVrcnc  impudência; 
Levai,  sorrindo,  a  existência, 
Fitai  a  luz  semi  temor. 
Aves  de  nivia  plumagem. 
Cantai  da  vida  as  doçuras, 
Vagai  nas  ondas  mais  puras, 
Entre  ribeiras  em  flor. 

Amai  sempre;  o  amor  resume 
Quanto  é  poesia  divina; 
Chamma  (pie  a  fronte  illumina 
Ascende  do  corajão. 
Amar  c  crcar  um  mundo 
Em  (jue  arrobados  vivemos, 
Em  que  a  nossa  alma  embebemos 
Nas  ondas  da  inspiração! 

Eis,  pois,  o  vosso  destino; 
Que  importa  qual  seja  a  sorte?.... 
O  cysne,  mesmo  na  morte, 
Solta  gorgeios  de  amor. 
Dissipai  (pianlas  tristezas 
Vos  podem  tocar  de  leve: 
Em  nuvens  d'ouro  e  de  neve 
Erga-se  altivo  o  cantor! 


(Continua. 


E.  A.  Vidal. 


Km  IJmIxmi  -  Nu  ]',xíriplorii>,  Tjip.  Fi<iit(o-l'orli(fjHcz(i,  rua 
(lo  'Jlicsoiiro  VcIIk/  n."  D,  ninli;  deve  >í('r  (lirit/ida  Inda.  a  cvriespon- 
ilcncia  sul/mrijiliitld  á  lOiíiprexu  «lo  ■>uiioraiiia. 

Preço?,  ia  assVywaVuta 

Por  invio 1 300 )  ( 1  'M)  ri'is 

Semestre... {',j()\  l^iildtnpillKido  <    780    « 

Trimestre ^ío)  l'iOO    « 

No  (Ido  ilii  inln-gn  e  avulso  ;!0  J'éis. 
Viwle-se  i')n  Iodas  as  tojas  do  costume. 
l\'o  porto  —  Assifina-sc  e  vende-se  em  casa  da  Viuva  More'. 

Typ.  Fraiico-Porlugueza.  =  Rua  do  f  besouro  Velho,  G. 


o  PANORAMA 


3S 


34 


O  PANORAMA 


COSTLMES  DOS  TURCOS 

Não  é  muito  fácil  formar  uma  idéa  exacla  do 
caracter  e  costumes  de  um  povo  que,  não  obstante 
visitado  a  miude,  nos  é  ainda  pouco  conhecido, 
e  cuja  lingua,  talvez  considerada  como  a  de  ura 
povo  bárbaro,  tem  sido  despresada  pelos  nossos 
sábios.  Esta  dilliculdade  sobe  de  ponto  em  pre- 
sença das  exagiíeradas  narrações  dos  viajantes.  Uns 
lêem  elogiado  "os  Turcos  de  modo  tal  que,  tudo 
quanto  em  seu  favor  se  diga,  é pouco;  outros,  pe- 
lo contrario,  teem  só  visto  n'elies os  homens  cruéis, 
ignorantes  e  fanáticos,  que  levaram  o  ferro  e  o 
fogo  á  decantada  pátria  dos  Péricles  e  dos  Demos- 
llienes.  Efleclivamenle,  o  procedimento  dos  Musul- 
manos,  para  com  os  povos  que  lhes  estão  sujeitos, 
tem  sido  extremamente  bárbaro;  mas  lancemos 
um  olhar  pelos  seus  visinhos  lussos,  pela  Itália e 
pela  llespanha...  o  que  vemos? 

Comludo  seria  injustiça  considerar  os  Ottoma- 
nos  debaixo  do  mesmo  ponto  de  vista  que  os  ou- 
tros povos  da  Europa;  poucas  reformas  tem  havido 
em  seus  costumes  antigos,  as  sci^ncias  e  as  artes 
pouco  ou  nenhum  desenvolvimento  teem  lido,  eo 
fanatismo  e  a  superstição,  que  os  dominam,  levam- 
os á  pratica  dos  maiores  absurdos.  Os  paizes,  que 
lhes  estão  submeUidos,  são  governados  como  ter- 
ras de  conquista  e  os  tributos  lançados  sobre  os 
súbditos  não  são,  a  seus  olhos,  mais  do  que  um 
resgate  Nos  gregos,  nos  arménios  e  nos  judeossò 
vêem  povos  avassalados;  e  queinterresse  poderiam 
excitar-lhes  homens  que  designam  pelo  nome  de 
cães?  Altivos  para  com  os  estrangeiros,  não  re- 
nunciam ao  seu  exterior  soberbo  senão  diante 
d"aquelles  que  recebem  como  hospedes;  então  a 
hospitalidade  franca  e  generosa  que  lhes  dispen- 
sam, faz  lembrar  a  dos  antigos  palriarchas.  A  sua 
caridade  para  com  os  pobres  não  tem  limites;  e 
é  d'islo  uma  prova  ciara  os  numerosos  estabele- 
cimentos chamados  Karvanserais.  Os  senhores 
abastados  empregam  uma  parte  dos  seus  rendimen- 
tos na  edificação  de  hospicios,  em  dotes  para  os 
mesmos,  ou,  na  construcção  de  fontes  em  cami- 
nhos áridos.  Com  a  aflectuosa  hospitalidade  dos  tem- 
pos primitivos,  teem  lambem  conservado  a  maior 
devoção;  nunca  o  Musulmano  empreende  um  ne- 
gocio importante,  sem  que,  antes  de  eíTeclual-o, 
dirija  ao  céo  uma  supplica;  depois,  cheio  de  confian- 
ça na  bondade  de  Deos,  espera  com  santa  resignação 
lodos  os  acontecimentos,  e  ([uando  a  desgraça  vem 
feril-o,  em  vez  de  derramar  lagrimas,  humilha  a 
íronle  no  pó,  e  consola-se  pensando  que  Allah  as- 
sim o  quiz. 

Quanlo  á  sua  habilidade  na  guerra,  bastantes 
e  gloriosos  sí^o  os  litulos  que  apresentam;  basta 
citar  as  façanhas  de  Mahomet,  Solimão  e  outros 
muitos  guerreiros,  aos  quaes  não  poderam  resistir 
nem  os  esforços  desesperados  de  .1'ah'ologos,  nem 
o  grandt;  valor  dos  cavalleiros,  senhores  de  Khodes, 
iiemaaudaciadosavenlureirosilaliaL'Os,que  Minotti 
commandava.  Se  os  Turcos  moderno.s  n'esle  |)onto 
estão  muito  longe  dos  seus  antepassados,  não  é 
porque  a  sua  coragem  tenha  degenerí^do;  hojcíjue 


o  sangue  frio  e  o  calculo  subslituiram  a  coragem 
ardente  dos  antigos,  e  decidem  da  sorte  dos  com- 
bates, os  exércitos  ottomanos,  mal  disciplinados, 
sem  laclica  e  com  um  artilheria  fraca  e  mal  or- 
ganisada,  não  podem  luclar  comos  das  outras  na- 
ções da  Europa,  que  os  excedem,  unicamente,  n'a- 
quellas  duas  vantagens. 

O  seu  governo  em  tempo  de  paz  é  ainda  mais 
ruinoso.  Um  déspota  fraco,  nos  momentos  diíTiceis, 
gosando  de  um  poder  illimitado  para  fazer  mal;  a 
escandalosa  venalidade  que  cede  os  empregos  a 
quem  mais  oflí^rece;  ministros  ávidos  de  dinheiro, 
sacerdotes  ignorantes  e  fanáticos;  laes  são  os  can- 
cros que  roem  pouco  a  pouco  o  império  ottomano. 
A  sua  foiça  tem,  de  dia  para  dia,  diminuído,  e 
talvez  que,  dentro  6m  pouco,  deixe  de  ser  contado 
entre  o  numero  das  nações.  Os  seus  últimos  sobe-  • 
ranos  tentaram,  é  verdade,  innovações  úteis;  mas 
alguns  pagaram  caro  a  sua  temeridade,  e  não  foi 
sem  uma  carnificina  medonha,  que  Mahmoud  con- 
seguiu destruir  o  corpo  dos  janizaros,  prompto 
sempre  a  sublevar-se.  Operou  mesmo  outras  mu- 
danças nos  costumes  dos  seus  súbditos;  mas  os 
seus  progessos  teem  sido  lentos,  c  o  fruclo  será, 
sem  duvida,  tardio. 

fora  dos  tempos  guerra  o  turco  parece  esque- 
cer na  tra.iquillidadedoseu  retiro,  as  penas  d'esta 
longa  peregrinação  que  se  chama  vida.  Para  ellc 
a  existência  não  é  outra  coisa  alem  de  um  sonho 
feliz  que  só  deve  acabar  no  tumulo,  um  banquete 
cujas  delicias  deve  haver  pressa  emgosar.  Grave 
silencioso,  indifferente  a  todos  os  interesses  mes- 
quinhos da  terra,  passa  os  dias  languidamente  es- 
tendido sobre  as  macias  almofadas  do  seu  sophá, 
rodeado  das  nuvens  odoríferas  que  saem  da  sua 
caixa  de  perfumes  ou  do  seu  longo  cachimbo.  Sa- 
boreia obellocafé  de  Moka,  eo  ópio  Iransporta-o 
em  dilicioso  sonho  ao  paraiso  de  Mahomel  onde 
vivem  as  buris  de  olhos  prelos. 

Nos  momentos  de  enfado  as  suas  mulheres  dan-  ^ 
çamlhe  emlorno  e  cantam  ao  som  da  suave  harmonia 
dos  alaúdes.  Depois  de  ceia  faz  as  abluções  do 
costume,  dirige  aacéo  a  sua  oração  quando  a  voz  do 
miwzim,  se  faz  ouvir  do  alto  das  torres  das  mes- 
quitas e  adormece  entre  sonhos  de  amor  nos  bra- 
ços da  sua  formosa  escrava  Circassiana. 

As  mulheres,  ainda  (|ue  guardadas  com  todo  o 
cuidado,  não  são  tão  privadas  de  liberdade,  como 
muitos  viajantes  teem  aílirmado.  O  seu  dote  as- 
segura-lhes  uma  tal  ou  qual  independência,  e  o 
uso  da  polygamia  é  muito  raro,  não  obstante,  o 
Conm  permiltir  ao  homem  desposar  qualro  mu- 
lheres. Além  d'isso  ellas  sabem  perfeilamenle  vin- 
gar-se  de  um  marido  iniiel,  graças  a  certas  mu- 
lheres judias  ou  arménias  que  lêem  livre  accesso 
nos  harems.  Sustentam  uma  correspondência  amo- 
rosa por  meio  de  fiores  dispostas  de  certa  maneira 
e  não  é  muito  raro  o  ver  entrar  um  ou  outro  aven- 
tureiro no  recinto  sagrado,  a  pezar  dos  oliios  pe- 
netrantes dos  eunuchos.  Os  cemitérios  lurcos, 
|)lantados  de  cyprestes  e  de  plátanos,  são  muitas 
vezes  testemunhas  das  apaixonadas  declarações  dos 
amantes. 


o  PANORAMA 


35 


As  habitações,  em  geral,  de  fraca  apparencia, 
por  assim  o  determinarem  os  livros  da  sua  lei,  são 
decoradas  interiormente  com  grande  magnificência. 
Faleos  espaçosos,  rodeados  de  galerias  sumptosas 
sustentadas  por  arcos  e  columnas  c  ornados  de 
íontes,  quartos  forrados  de  soberbos  tapeies  da 
Pérsia  e  assoalhados  de  preciosa  madeira,  pilastras, 
balaustres,  arcos  enriquicidos  de  arabescos  de  ouro 
c  azul  e  de  pinturas  de  tlores,  uma  rica  salla  de 
banhos,  onde  quasi  tudo  é  mármore,  janellas,  que 
n'este  bello  clima,  dão  livre  accesso  ao  vento  agra- 
dável e  aos  pássaros,  varandas  cheias  de  vasos 
de  flores,  kiosques,  boscagens  onde  se  vecm  o  li- 
lás, o  loureiro,  roseiras,  larangeiras,  e  no  sitio 
mais  retirado  o  harém;  tal  c  a  bella  morada 
onde  o  Musulmano  espera  o  dia  em  que  se  devem 
cumprir  as  promessas  do  Coran. 


RÃ-PULANTE 
III 

A  maneira  de  caraclerisaros  nossos  oilo  heroes 
era  muito  simples,  sutíiciente,  porém,  para  os  de- 
sígnios de  Rã-Pulante.  Ora,  é  preciso  notar^  que 
no  tempo  em  que  isto  aconteceu,  raríssimas  vezes 
appareciam  animaes  d'aquella  espécie  nos  paizes 
civilisados ;  e  por  isso,  como  as  imitações  eram 
em  extremo  beslíaes  e  hoifendas,  todos  accredi- 
laram  na  semelhança. 

Vestiram,  primeiramente,  camisolas  c  calças  de 
algodgio,  em  ponlo  de  meia.  Depois  foram  alca- 
troados desde  os  pés  até  ao  pescoço.  N'esta  occa- 
siãoumdos  ministros  suggeriu  aapposição  dcpen- 
nas;  mas,  foi  ímmedialamente  rejeitada  aidéa  pelo 
bobo,  que  com  uma  demonstração  occular,  depres- 
sa convenceu  os  oito  personagens  de  que  o  pello 
de  um  animal  como  o  orangolango,  era  com  mais 
lidelidade  representado  pela  estopa,  do  que  pelas 
pennas. 

Por  conseguinte,  foí-lhes  applicada  por  cima  da 
camada  de  alcatrão,  uma  espessa  camada  de  es- 
lopa.  As  caras  lambem  foram  untadas  de  uma 
matéria  viscosa  e,  bem  como  o  corpo,  cobertas 
de  uma  camada  semelhante.  Estavam  lindíssimos! 
Todos  riam  a  bom  rir,  e  não  cessavam  de  fazer 
reflexões  sobre  o  effeito  que  produziria  a  sua  en- 
trada no  baile.  Já  não  faltava  senão  a  cadeia  para 
complemento  da  grande  obra.  Não  tardou,  porém 
em  apparecer,  e  com  as  dimensões  exigidas.  Foi, 
portanto,  em  primeiro  logar,  lançada  cm  roda  do 
rei,  e^  convenientemente,  apertada  ;  depois  em  roda 
da  cintura  do  primeiro  ministro  e,  igualmente,  com- 
primida ;  seguiu-se  o  terceiro,  para  com  o  qual  se 
obrou  do  mesmo  modo  ;  e  assim  successivamentc. 
Terminada  esta  operação,  affastaram-se,  quanto 
podiam,  uns  dos  outros,  e  formaram  um  circulo, 
dentro  do  qual,  Rã-Pulante,  para  completar  a 
verosimilhança,  achou  meio  de  inscrever,  com  o 
reslo  da  cadeia,  uma  cruz. 

A  grande  sala  em  que  devia  ler  logar  o  baile, 
era  uma  casa  circular,  de  grande  pé  direito  (co- 
mo hoje  diria  uriía  notabilidade  architeclonica)  e 
que  apenas  recebia  a  luz  do  sol  por  uma  clarabóia. 


De  noite,  (era  só  quando  d'ella  se  serviam)  cos- 
tumava ser  illuminadapor  um  grande  e  magniíico 
lustre,  pendente  da  clarabóia  por  uma  corrente, 
cuja  extremidade  livre  sustentava  um  contrapeso 
com  o  auxilio  do  qual  o  lustre  podia  baixar  ou 
elcvar-se  ad  libitum.  Mas  para  não  prejudicar  a 
elegância  estava  este  contrapeso  da  parle  exlerior 
sobre  o  telhado. 

A  decoração  da  sala,  linha  sido  confiada  aos 
cuidados  de  Casíanheta,  que,  provavelmente,  em 
certos  pontos  consultou  o  sensato  juizo  do  seu  amigo 
anão;  pois,  foi  por  conselho  d'esle  que  na  cele- 
bre noite  do  baile,  o  lustre  não  figurava  no  logar  do 
costume..  Como  o  excessivo  numero  de  convidados 
devia  occupar  todas  as  regiões  da  sala,  tiveram 
naturalmente  em  vista,  com  esta  disposição,  o  evi- 
tar que  sobre  os  sumptuosos  fatos  dos  convivas 
mascarados  cuspissem  asvellas  insultos  frequentes 
de  cera  fundida.  Portanto,  novos  candelabros  foram 
dispostos  cm  differentes  partes  da  sala,  e  ao  lado 
de  cada  uma  das  cariatidcs,  que  em  torno  a  guar- 
neciam, cm  numero  de  cincoenta  a  sessenta,  ar- 
diam tochas,  que  projectavam  abundantes  e  va- 
riados reflexos  sobre  quanto  n'ella  existia. 

Os  oito  orangolangos,  seguindo  o  conselho  de 
Rã-Pulante,  esperaram,  para  fazerem  a  sua  en- 
trada, que  a  salla  se  enchesse  completamente  de 
mascaras;  o  que  durou  até  á  meia  noite;  mas  logo 
que  no  relógio  soou  a  ultima  badalada,  irrompe- 
ram com  fúria  tal,  que,  presos,  como  estavam  pelas 
cadeias,  cairam  rolando  confusamente. 

A  sensação  produzida  por  este  inesperado  acon- 
tecimento foi  prodigiosa  e  encheu  de  alegria  o  co- 
ração do  rei.  Como  se  esperara,  o  maior  numero 
dos  convidados  acreditou  que,  estes  entes  de  aspecto 
feroz,  eram  verdadeiros  animaes  de  uma  certa  espé- 
cie ;  não  precisamente  orangolangos.  Muitas  senho- 
ras desmaiaram;  e  se  o  rei  não  tivesse  tomado  a  pre- 
caução de  prohibir  n'aquella  noite  o  uso  de  ar- 
mas, teriam  pago,  desde  logo,  com  sangue  o  di- 
vertimento. A  confusão,  o  susto  não  podiam  ser 
maiores.  Todos  corriam  para  as  portas  como  lou- 
cos; mas  em  vão,  porque  o  rei  tinha  ordenado  que 
as  fechassem,  logo  depois  da  sua  entrada  e,  con- 
forme lhe  aconselhara  o  anão,  as  chaves  haviam- 
lhe  sido  entregues. 

Emquanlo  durou  o  tumulto,  e  que  cada  um 
pensava  na  própria  salvação,  —  porque,  em  ver- 
dade, n'cstc  pânico  e  n^esta  desordem  havia  um 
perigo  real, —  ler-se-ia  visto  a  cadeia,  que  servia 
usualmente  para  suspender  o  lustre,  descer,  des- 
cer até  a  sua  extremidade,  em  forma  de  anzol,  fi- 
car a  Ires  pés  da  altura  do  sobrado. 

Poucos  instantes  depois,  os  orangolangos,  tendo- 
se  arrastado  pela  sala  em  Iodas  as  direcções,  acha- 
ram-se,  em  lim,  no  centro  e  em  contacto  com  a 
cadeia.  Em  quanto  se  conservavam  n'esla  posição, 
o  bobo,  que  os  tinha  seguido  sempre  de  perto,  indu- 
zindo-os  a  attentar  na  commoção,  apoderou-se 
da  cadeia  na  intersecção  dos  dois  diâmetros  e, 
com  a  rapidez  do  pensamento,  prendeo-a  ao  anzol. 
Em  seguida,  como  por  encanto,  subiu  a  cadeia 
asuíTiciente  altura  para  ficar  fora  de  todo  o  alcance 


86 


O  PANORAMA 


econseguinlemenle  levou  após  os  oiangolangoscm 
confusão  reunidos. 

As  mascaras,  duranleeslo  episodio.  Unham  pau- 
lalinamenle  n-cobrado  animo:  e  como  já  começa- 
vam a  lomar  ludo  islo  como  um  brinquedo,  engenho- 
samente combinado,  desalaiam-se  a  lir,  despropo- 
siladamenle,  vendo  a  eslranha  posição  dos  macacos, 
— (;uardai-m"os:  grilou  Uã-Pulanle,  com  uma 
voz  que  retumbou  sobre  o  tumulto  ;  — guardai-nros 
bem.  parece-me  que  os  conheço.  Vou  cerliíicar-me 
para  dizer-vos  ja  os  seus  nomes. 

Então,  engatinhando  por  cima  das  cabeças  da 
multidão  ate  próximo  da  parede,  lançando  mão 
de  uma  tocha  e  voltando,  como  tinha  ido,  para  o 
centro  da  siila,  saltou  como  um  macaco  á  cabeça 
do  rei,  tre|)ou  pela  corrente  a  alguns  pes  de  al- 
tura e  aproximando  achammadogrupc,  como  que 
para  examinal-o,  exclamou  : — Depressa  descobri- 
rei quem  elles  são ! 

Depois,  em  quanto  toda  a  asscmbléa, — iucluindo 
os  macacos  —  ria  a  bom  rir,  o  bobo  soltou  subi- 
tamente um  assobio  agudo  c  a  cadeia  subio  mais 
uns  vinte  pes,  levando  comsigo  os  orangolangos, 
que  se  debatiam  atterrados.  Rã-Pulanlc,  seguro  á 
cadeia,  linha  também  subido  com  ella  e  guardava 
sempre  a  sua  posição  relativamente  aos  oito  mas- 
carados; masconlinuando  a  aproximar  d'elles  a  tocha 
accesa,  como  que  j)rocurando  descobrir  quem  eram. 
Toda  a  assemblea  licou  de  lai  modo  estupe- 
facta com  esta  ascensão,  que  se  mergulhou  em 
profundo  silencio  pelo  espaço  de  um  minuto,  pouco 
mais  ou  nu-nos,  silencio  que  foi  inlerromjjido 
por  um  luido  surdo  e  áspero,  como  aquelle  (|ue 
allraiu  a  allenção  do  rei  e  dos  scbs  respeitáveis 
conselheiros,  quando  este  atirou  o  vinho  á  cara 
de  Castanheta.  I*orcm,  no  caso  presente,  não  ha- 
\ia  que  procurar  donde  partia  o  cslridoí;  saio  da 
bocca  do  anão,  que  rangia  os  dentes  como  um 
desesperado,  e  lançava  dos  olhos  faíscas  de  raiva 
para  o  rei  e  os  seus  sele  companheiros,  cujos  ros- 
tos estavam  voltados  para  elle. 

—  Ah!  Ahl  —  disse  cmlim  o  anão,  furibundo, — 
ah',  ah!  i)rincii)io  agoia  me.smo  a  conhecel-os. 

Entã(j,  sob  |)retesto  de  examinar  os  mascarados 
demais  pt-rto,  chegou  tanto  o  fogo  á  estojta  que 
a  inílainiiiou.  Em  menos  de  trinta  segundos  os  oito 
(irangotangos  ardiam,  furiosamente,  no  meio  dos 
gritos  de  uma  multidão  (jue  os  conlemj)lava  cheia 
de  horror  e  sem  poder  j)reslar-lhc  o  minimo  soc- 
corro. 

Continuando  as  chammas  a  augmentar  de  vio- 
lência, vio-sç  o  anão  obrigado  a  trepar  mais  alto 
p;ir;j  licar-llus  fora  do  alcance;  e,  em  (luanto  exe- 
( iilaNa  esta  niunobr;»,  a  multidão  rcciíiu,  poj'  um 
in-lante  ainda,  no  siloncio.  O  bobo  aj)rovcitando 
o  ensejo  tomou  novamente  a  palavra. 

— .\i,'ora,  disse  elle,  vejo,  distinclamcnte,  de 
que  í'siicri(!  são  eslas  mascaras.  NCjo  jiin  grande 
rei  e  os  seus  sete  conselliciíos  pri\ados,  um  rei 
que  não  escrupulisa  em  bater  numa  crcança  in- 
dcfeza  e  sele  conselheiros  que  o  animam  na  sua 
atrocidade.  Quanto  a  mim,  sou  simplesmente  líã- 
i*ulanle  c  esta  é  a  minha  ultima  bobice  I 


Graças  á  extrema  combuslibilidado  do  linho  e 
do  alcatrão,  ajienas  o  anão  acabou  de  proferir  es- 
tas palavras,  estava  a  sua  vingança  satisfeita.  Os 
oito  cadáveres  balouçavam-se  na  corrente — massa 
confusa,  fétida,  fuliginosa,  repugnante.  O  anão 
atirou  a  tocha  j)ara  cima  do  grupo,  trepou  até  ao 
tecto  e  desap|)areceu  pela  clara-boia.  E  claro  que 
Castanheta,  de  sentinella  no  telhado,  sérvio  de 
cúmplice  ao  seu  amigo  n'esta  vingança  incendia- 
ria e  que  fugiram  juntos  para  o  seu  paiz;  por- 
que nunca  mais  ninguém  os  vio. 


PERES  LORENZO 

(^cciins  An  Cniiipniilia  do  Illoxico) 

■  Por  riMIEniO  CIIAUAS. 

IV 

Passaram-se  alguns  diassem^que  Perez  Lorenzo 
reapparecesse.  Andava  inquieto  com  a  demora  o 
coronel  Dupin,  e  aos  que  lhe  perguntavam  por- 
que motivo  se  não  punha  de  novo  a  caminho  a 
valente  conlra-guerrilha  respondia,  se  era  mexi- 
cano o  pergunlador,  (|ue,  se  Annibal  se  deixara 
seduzir  pelas  delicias  de  Capua  que  se  não  po- 
dia dizer  (jue  fosseum  paraiso,  não  admirava  que 
elle  coronel  Dupin.  sem  ser  Annibal,  se  deixasse 
caplivar  pelas  delicias  de  Medellin,  (pie era  o  pa- 
raiso do  kexico,  do  México  que  era  o  paraiso  do 
mundo. 

Um  dia  um  dos  seus  interlocutores,  mexicano 
esperto  que  não  via  com  muito  bons  olhos  a  pre- 
sença dos  esliangeiros  no  seu  paiz,  observoú-lhe, 
sorrindo-se,  que  Annibal,  antes  de  adormecer  cm 
Capua,  vencera  eni  Cannas. 

O  mexicano  era  um  rapasito  dos  seus  dezoito 
ânuos,  cuja  casa  o  coronel  Dupin  fretpienlava  muito, 
e  a  quem  se  alleiçoára  jiarticularmente. 

— Deixe  estar  meu  republicanosinho  êchappé  du 
collófjr,  disse  o  coronel  rindo  c  puxando-lhe  ami- 
gavelmente uma  orelha,  deixe  estar  (|ue,  se  não 
tivemos  a  fortuna  de  Annibal,  tauíbem  não  have- 
mos de  ler  o  infoitunio  d*elle.  Diga  ao  seu  amigo 
.luarcz  que  se  por  acaso  se  está  pre|)arando  |)ara 
ganhar  a  batalha  de  Zama,  pôde  mudar  de  ideia. 

— Bom!  tornou  o  mexicanozito,  rindo-se.  .lua- 
rez  éScipião.  E  (jue  papel  distribuo  a  Juan  Pablo? 
O  de  Eabio  Máximo? 

— Cunclalor,  pois  não !  Todos  vocôà  são  uns 
heroes  da  antiga  Roma. 

—Odiamos  César,  coronel,  c  ainda  mais  Au- 
gusto, relrocou  o  mexicano  com  um  fogo  sombrio 
no  olhai'. 

— Odeiem,  odeiem,  tornou  Dupin  rindo-se  do 
enlhusiasmo  do  juvenil  republicano,  mas  diga-me, 
o  pa))á  e  a  mamã  estão  lioje  resolvidos  a  darem 
uma  chávena  de  chá  a  Varo? 

—Quem  é  Varo? 

--Sou  cu,  homem!  Pois  recusa-nie  lambem  esse 
lilulo?  (ieneral  infeliz  (PAugusto,  mais  dia  menos 
dia  vejo  as  minhas  legiões  estiradas  poi'  ahi  nos 
|)lainos  mexicanos. 

—  Olhe  (pie  a  vontade  é boa,  tornou  o  mexicano 
rindo. 


o  PANORAMA 


37 


— Mercês,  meu  joven  amigo. 

— Mas,  emquanto  não  se  realisa  o  desejo,  ve- 
nha Varo  lomar  chá,  e  venha  hoje  que  lemos  ter- 
lullia. 

— Eslá  dilo,  respondeu  o  coronel. 

E  despedio-se  do  seu  juvenil  companheiro. 

— Coronel,  grilou  o  moço  mexicano  depois  de 
ler  dado  uns  dez  passos,  Iraga  os  chefes  das  le- 
giões e  principalmenle  o  magister  eqimm  Yiar- 
mont. 

— Todos  iremos,  respondeu  o  coronel  dirigin- 
do-se  para  sua  casa  a  passos  vagarosos  a  íim  de 
saborear  a  doçura  e  a  placidez  da  tarde. 

N'essa  mesma  noile  em  casa  de  D.  llamon  (as- 
sim se  chamava  o  mexicano)  reunia-se  a  mais  es- 
colhida sociedade  de  Medellin.  D.  Ramon  era  rico 
e  as  suas  /er/í////aí  gosavam  de  merecida  fama.  Ti- 
nha a  sua  casa  um  terraço  todo  plantado  de  ba- 
naneiras, larangeiras,  e  pimenteiras,  forrado  de 
baunilhas,  e  perfumado  pelas  mais  opulentas  ílo- 
les  dos  trópicos,  e  por  esse  fruclo,  que  da  ílor 
tem  o  aroma,  c  que  se  chama  ananaz. 

Para  esse  terraço  fugiam  os  pares  muitas  vezes 
fatigados  do  redemoinhar  das  valsas,  e  os  cara- 
mancheis  e  as  laladas,  se  fossem  indiscretas,  po- 
diam repetir  bastantes  frases  melodiosas  de  amor, 
que  haviam  sid©  confiadas  à  larga  folha  das  bana- 
neiras, ou  á  alva  ílor  das  grinaldas  de  noivas, 
que  o  venlo  desprendia  manso  e  manso  da  ramada. 

Na  noite  em  que  introduzimos  o  leitor  nas  salas 
do  opulento  mexicano,  eslava,  como  dissemos, 
animadíssima  a  tertullia. 

Os  oíUciaes  francezes,  intrépidos  valsadores, 
tinham  arrancado  as  creoulas  á  sua  habitual  in- 
dolência. As  morenas  filhas  dos  trópicos  haviara- 
se  lembrado  da  sua  origem  hespanhola,  e  os  seus 
languidos  olhos  incendera-os  um  reflexo  do  fogo 
andaluz.  A  musica  derramava  na  atmosphera  da 
sala  a  torrente  vertiginosa  das  notas  de  uma  valsa 
de  Strauss.  As  arvores  do  terraço  entornavam  pe- 
las janellas  abertas  as  suas  uriías  de  perfumes. 
Tudo  dizia  amor,  e  nada  recordava  as  scenas  de 
guerra  que  se  estavam  a  cada  instante  passando 
iressas  campinas,  que  se  viam  do  terraço,  e  que 
n'esse  instante  pareciam  adormecidas  debaixo  do 
docel  de  veludo  azul  do  seu  esplendido  firma- 
mento. 

Na  sala  próxima  d'aquella  onde  se  dançava,  a 
mesa  do  jogo  estava  mais  rodeada,  do  quê  todas 
as  rainhas  de  baile  que  agitavam  garridamente  os 
seus  leques  no  salão.  O  jogo  é  a  paixão  dominante 
dos  mexicanos,  ou  antes  e  a  febre  do  paiz,  a  fe- 
bre do  oiro,  (jolden  fcvcr,  dizem  os  inglezes.  E 
não  era  o  modesto  voltarete  que  desdobrava  gra- 
vemente no  panno  verde  as  suas  vasas  disputadas, 
era  o  monte,  o  monte  frenético  e  vertiginoso,  o 
monte  que  fazia  oscillar  de  jogador  para  jogador 
riquezas,  que  dariam  o  bem-eslar  a  dez  famílias. 
O  oiro  escorria  em  fulgidas  torrentes  sobre  o 
panqo  verde  da  mesa.  Os  olhos  negros,  e  brilhan- 
tes de  esperança  ou  de  raiva  dos  mexicanos  se- 
guiam com  anciedade  o  seu  curso  variável,  que 
mudava  de  direcção  a  cada  capricho  das  carias,  i 


Entretanto  o  baile  agitava  as  suas  ondas  graciosas 
de  mulheres  e  de  flores  na  sala  principal. 

Os  ofliciaes  francezes,  ou  mais  pobres  ou  de 
coração  mais  inflammavel  do  que  os  mexicanos, 
preferiam  apertar  a  delicada  cintura  das  creoulas 
a  assistir,  com  a  fronte  aljofrada  de  suor  frio,  á 
fluctuação  caprichosa  de  enormes  âommas.  Alguns 
jovens  mexicanos  viam,  com  desagrado,  a  interven- 
ção estrangeira  passar  dos  negócios  públicos  aos 
namoros  particulares.  Elias...  achavam  que  os 
francezes  valsavam  admiravelmente.  Pouco  se  lhes 
dava  dos  desastres  da  pátria.  Também  as  damas 
de  Paris,  depois  da  capitulação  de  Fonlainebleau, 
achavam  os  Prussianos  des  beaux  valseurs,  e  de- 
pois de  AYalerloo  morriam  pelos  favoris  blonds  dos 
ofliciaes  de>Yellinglon. 

Vivent  nos  amis 

Nos  amis  les  ennemis! 

dizia,  em  nome  d'ellas,  Béranger. 

E  o  caso  é  que  assim  foi  sempre.  Não  ha  pa- 
triotismo feminil  que  resista  a  uma  declaração  de 
amor,  nem  espíritos  de  Cornélia  que  não  entonte- 
çam com  uma  valsa.  Emquanto  a  mim,  Brites  de 
Almeida  nunca  mereceu  as  attenções  do  mais  re- 
les homem  de  armas  do  exercito  castelhano,  elza- 
bel  Fernandes  nunca  pôde  conseguir  entrar  no 
harém  de  Roume-Khan. 

Entre  todos  os  valsadores,  era  o  capitão  Yiar- 
mont  o  que  mais  intrépido  se  mostrava;  de  lodos 
os  galanteadores  era  elle  o  mais  requebrado.  Fa- 
zia a  corte  á  mais  formosa  senhora  do  baile,  me- 
xicana de  tranças  opulentas,  e  olhos  de  veludo, 
íilha  dos  donos* da  casa,  irmã  d'esse  joven  repu- 
blicano que  dava  generosamente  ao  capitão  Viar- 
mont  o  titulo  da  maf/isler  eqimm  por  elle  ler  si- 
do nomeado,  havia  poucos  dias,  commandanle  da 
cavallaria  da  contra-guerrilha. 

Findara  uma  poika,  e  a  gentil  mexicana  (Do- 
lores se  chamava  ella)  fôrarecoslar-sen'umsophá. 
Ameigava-lhe  o  fogo  do  olhar  essa  morbidez  creoula 
que  invencivelmenle  se  apossa  das  filhas  d'esse 
paiz  do  sol;  as  paJpebras  semi  cerradas  resguar- 
davam-ihe  a  luz  ardente  das  pupillas.  As  faces 
morenas  tingiam-se  do  rubor  do  cançaço.  As  li- 
nhas fleumosas  do  corpo  revelavam,  nas  suaves 
ondulações,  a  elegância  da  hespanhola,  e  a  gra- 
ciosa indolência  que  maior  realce  Ihedava.  Era  uma 
estatua,  não  uma  d'essas  estatuas  produzidas  pelo 
génio  austero  de  Phidias,  revelando  a  formosura 
grega  em  todo  o  esplendor  da  sua  nobre  correc- 
ção, mas  uma  das  que  o  génio  hellenicoproduzio, 
quando  a  decadência  principiou,  estatuas  em  que 
se  sente  já  a  lasciva  inspiração  oriental,  em  que  a 
languidez  do  desenho  e  a  moUeza  das  linhas,  se 
dão  ao  mármore  um  voluptuoso  encanto,  roubam- 
Ihe  a  pureza  e  a  correção  nobre  que  immorlalisam 
os  grandes  modelos. 

As  tranças  negras  flucluavam-lhe  era  opulentos 
cachos  sobre  os  hombros  nus,  que  os  beijos  de 
fogo  do  sol  haviam  coberto  de  uma  leve  côr  mo- 
rena. O  pesinho  impaciente  e  quasi  invisível  balia 
dislrahidamenle  o  compasso  da  polka  finda  na  es-' 
leira  do  salão. 


38 


O  PANORAMA 


A  mãosinha,  perfeilamenle  enluvada,  agitava  o 
loque  ou  antes  a  ventarola  magnifica  para  cujas 
l)ennas  haviam  concorrido  as  mais  esplendidas 
azas  dos  pássaros  americanos. 

— Ksses  instantes  de  isolamento,  sr'\  D.  Dolores, 
são  um  roubo  que  nos  faz  a  nós  todos  e  es- 
pecialmente a  mim,  disse  o  capilão  Viarmont  ap- 
pro\imando-se  da  gentil  senhora.  Por  onde  voa 
o  seu  pensamenlo?bhI  quem  me  deracolhel-o  nos 
ares  com  um  beijo.  Parece-mo  que  lhe  prendi  as 
azas.  Dà-me  licença  que  lhe  diga  o  que  o  passari- 
nho me  disse. 

—Diga,  capilão,  respondeu  languidamente  Do- 
lores redobrando  de  velocidade  no  menear  do  le- 
que, digal  quero  ver  se  é  adivinho. 

— Sesoul  Ahi  vai  o  que  o  passarinho  me  disse 
que  V.Ex."  lhe  tinha  dito  mansinho;((Acabei  de  pol- 
kar,  sinto  uma  commoção  deliciosa,  mas  que  não 
hasla  a  salisfazer  as  aspirações  insaciáveis  da  minha 
alma.  Anceia  ella  por  fragrâncias  ignotas,  por  igno- 
tos esplendores,  e  as  flores,  (jue  a  minha  mão  co- 
lhe, não  teeii  o  perfume  que  eu  desejo,  e  as  noites 
estrelladas  da  minha  pátria  não  chovem  o  fulgor 
que  me  enleva.  Essa  flor  desconhecida,  essa  des- 
conhecida eslrella  não  será  por  acaso  o  amor?» 
Aqui  esláo  que  V.Kx." [dizia  ao  passarinho,  que 
enviou  depois  a  correr  aventuras  por  esses  ares. 

—Guapo  adivinhol  respondeu  Dolores  com  uma 
voz  melodiosa  como  o  ciciar  da  brisa  nos  ramos 
da  palmeira,  morria  de  fome,  capilão,  sequizesse 
exercer  o  oflicio  de  feiliceiro.  Sabe  em  que  eu 
pensava?  N'uma  .sigadilla  andaluza,  que  me  licou 
honlem  no  ouvido.  Pensava  n'ella,  c  cantarolava-a 
em  voz  baixa. 

— Ouc  lhe  dizia  eu!  Sempre  acertei!  Uma  si- 
f/ndido  hespanhola,  uma  sigadida  andaluza!  Oh! 
bem  conheço  as  pérfidas!  Faliam  de  mil  coi- 
sas, da  loirada,  do  cifjarilo,  da  namja,  e  só 
uma  coisa  dizem  —  amori  Amor,  volupluosidade, 
requebros  é  o  que  ellas  respiram,  as  maganas  com 
a  sua  innocente  desenvoUura!  Senlc-se  o  olhar 
gaiato  da  cantora  no  acompanhamento,  noharpejo, 
n'uma  insignificante  melodia,  lia  nas  mais  capri- 
chosas variações  um  echode  castanholas,  um  doi- 
dejar de  pésinhos  no  bolero,  hdi  o  requebro,  ha  o 
amor.  São  como  a  serenata  do  I).  Jnan  de  Mo- 
zart,  acerca  da  (jual  o  meu  compatriota  Alfredo 
de  Mussel  escreveu  os  seguintes  formosíssimos  ver- 
sos: 

Te  sonvipns-tn,  Icclonr  de  cr-tle  Pérénndc, 
Ouc  Doii  .luau  di;giiis<;  diante  sous  uii  Jjalcon! 
Lric  mcloíiíioliqiK;  et  iiileusc  flian£(in, 
Hesjiirant  la  donleur,  rnmour,  cl  la  Iristesso 
Maia  raccompagaeiíieul  pariu  d"uii.  aulre  Uju. 

E  se  as  sifjadillas  assim  são  na  fria  Europa, 
como  o  não  serão  transportadas  para  a  America? 
.Não  ha  uma  palavra  só  que  a  brisa  d'eslas  flores- 
tas não  imf)iegno  em  ingnolos  perfumes,  não  ha 
uma  só  nota,  a  que  as  vagas  do  mar  das  Anti- 
lhas não  accrescentem  uma  languida  melodia!  Não 
pensava  em  am()r?e  pensava  em  .sif/adil/as  hespa- 
nhas,  numa  noite  crestas,  com  o  seio  a  arfar  da 
agitação  da  poika,  rodeada  de  nmsicas  e  (h;  per- 
fumes, asj)irando  pelos  lábios  vermelhos  todas  as 


desconhecidas  sensualidades  que  expande  esta  na- 
tureza magica,  este  cálido  paiz...!  Ai,  Dona  Dolo- 
res, olhe  que  ha  um  provérbio  na  sua  lingua  que 
diz  que  é  muito  perigoso... 

— Muito  perigoso  o  que? 

— Ju(/ar  com  fuego. 

— Jesusl  que  peccado  que  eu  commetli,  segundo 
vejo,  tornou  Dolores  garridamente,  devo  dizel-o 
ao  meu  confessor? 

— Deos  nos  livre  de  tal.  Confessou-m'o  a  mim, 
é  quanto  basta.  Tenho  plenos  poderes  e  já  lhe 
imponho  a  penitencia. 

— Que  não  seja  muito  severa,  capitão. 

— Oh!  sou  indulgentíssimo.  A  síf/adi/la  que  ti-, 
nha  no  pensamento,  e  que  em  voz  baixa  cantava, 
ha  de  a  cantar  em  voz  alta. 

— Não  posso,  capilão,  tornou  Dolores  vivamente, 
não  a  sei  cantar  e  não  conheço  o  acompanha- 
mento. Ficou-me  hontem  de  a  ouvir  a  uma  rapa- 
riguita  andaluza. 

— Eu  me  encarrego  de  a  acompanhar,  tornou  o 
oíTicial  francez,apanho  a  melodia  nos  primeiros  com- 
passos, deixo-lhe  a  gloria  toda  do  triumpho,  se 
o  houver,  e,  se  houver  fiasco ^  assumo  eu  só  a  res- 
ponsabilidade. 

— Veja  o  que  diz,  redarguiu  a  formosa  mexi- 
cana erguendo-se,  e  encostando-se  ao  braço  do  ca- 
pitão. 

A  languidez  graciosa  dos  seus  movimentos,  a 
encantadora  indolência  com  que  foi  revelando  a 
pouco  e  pouco  a  riqueza  do  seu  talho  esplendido, 
o  gesto  infantil  com  que  arredou  da  fronte  as  tran- 
ças opulentas  do  seu  negro  cabello,  o  modo  como 
poisou  o  pésinho  aéreo  no  sobrado,  o  abandono 
(\i  o  gallicismo)  com  que  se  encostou  ao  braço  de 
Viarmont,  tudo  isto  entontecia,  innebria  o  jovcn 
ofíicial,  que  de  bom  grado  sacrificaria  a  um  sor- 
riso de  Dolores  o  bastão  de  marechal  de  Fran;,;a, 
que  tinha,  como  lodosos  seus  camaradas,  em  pers- 
pectiva. 

Assim  que  se  annunciou  na  sala  que  Dolores 
ia  canlar  uma  sigadilla,  inlerromperam-se  todas 
as  conversações,  e  lodos  os  olhos  se  viraram  para 
o  lado  do  piano.  Se  ofliciaes  francezes  principal- 
mente tizeram  roda,  e  o  próprio  coronel  Dupin, 
apezar  das  graves  preoccupações  que  o  absorviam 
e  que  o  obrigavam  a  cravar  de  vez  em  (juandoos 
olhos  na  poria,  como  se  esperasse  ver  apparecer 
algíiem,  approximou-se  do  piano,  e  prestou  sor- 
rindo toda  a  sua  atlenção  ao  canto  andaluz, 

A  voz  de  Dolores  possuia  não  sei  que  vivacidade 
temperada  poruma  certa  indolência,  que  davaum 
tom  indelinivclmente  voluptuoso  ás  notas  que  gor- 
geiava.  A  harmonia  do  canto  acabou  de  entonte- 
cer Viarmont.  O  jovenoílicial,  quando  se  levantou 
do  piano,  estava  como  -íiue  ébrio  de  harmonias, 
de  luz  de,  perfumes,  de  formosura  e  de  volupluosi- 
dade. 

Os  applausos  soaram  com  cslrepilo  de  lodos 
os  lados  da  sala,  lodos  os  olflciaes  francezes  rodeia- 
ram  a  juvenil  cantora,  e  enlearam  emiorno  d'ella 
um  hymno  suavissimo  de  lisonjas.  Dolores,  ver- 
melha de  orgulho  satisfeito  e  de  confusão  lambera, 


o  PANORAMA 


39 


agradecia  modestamento  os  louvores  que  lhe  pro- 
digalisavam,  e  anciava  por  fugir  ao  seu  trium- 
pho. 

Viarmont  percebeu  esse  desejo,  o  aproveilou-se 
d'elle.  OlTereceu  o  braço  a  Dolores,  e  propoz-lhe  ir 
dar  um  passeio  ao  lerraço  para  respirar  mais  de- 
saíTronlada  ao  ar  livre.  A  joveu  mexicana  accei- 
tou  com  alegria,  e  ambos,  esquivando-se  do  grupo, 
sairam  do  salão. 

(Continua) 


UMA  ARTE   1>ERDIDA 

Os  sábios,  ao  examinarem  essas  gigantescas 
producções  dos  egypcios,  lêem  repetido  muitas 
vezes:  já  (i/gumas  artes  eslão  perdidnsl  Mas  se 
tivessem  lançado  um  olhar  pelo  luxo,  pela  magni- 
ficência da  mesa  dos  antigos,  e  comparassem  o  seu 
esplendor  com  a  miséria  de  hoje,  com  quanta 
mais  razão  não  teriam  clamado: 

A  arte  de  comer  acha-se  inteiramente  perdida! 

EíTectivamente,  o  que  são  os  nossos  glotões  á 
vista  dos  glotões  romanos?  Seria  preciso  recordar 
o  rodovalho  de  Domiciano,  os  almoços  de  Maxi- 
miano aslinguas  de  papagaio  de  IIeliogabalo?Que 
immensa  gloria  a  d'este  imperador  que  ofTerecia 
metade  do  seu  império  por  um  molho  novo!  Que 
resolução  a  d'aquellc  Apicis,  de  entregar-se  a 
uma  vida  cujos  únicos  prazeres  se  limitavam  ao 
dispêndio  de  alguns  milhões  para  ter  uma  soffri- 
vel  mesa!  Veja-se  a  multidão  de  manjares  que 
possuíam  os  antigos  e  o  numero  das  refeições  que 
tinham  logar  durante  odia,7>/í/a  í(liuit,prandiii,ni, 
merenda,  ccenum,  comessatio!  Que  faculdade  di- 
gestiva deviam  possuir  os  romanos!... 

Os  homens  teem,  extraordinariamente,  dege- 
nerado: a  prova  acha-se  mais  patente  n'istodo  que 
em  todas  as  façanhas  dos  semi-deuses.  Que  de  costu- 
mes caidos  em  desuso!  que  excellentes  pratos  perdi- 
dos! sem  contar  as  viandas  ordinárias,  nas  quaes  se 
incluem  os  porcos  assados,  ventres  de  javali,  ca- 
bras, doninhas,  raposas,  cobras  e  sobre  tudo  os 
pardaes,  pavões  reaes,  os  tordos  de  Lucullor  cys- 
nes,  porquinhos  da  Índia,  alforrecase  pão  de  rala! 
sombra  de  Trimalcião,  chorai;  chorai,  sombra  de 
Apicio! 

E  com  tudo,  o  que  era  a  glolonia  romana  com- 
parada com  a  monstruosa  gastronomia  dos  egyp- 
cios? Leia-se  Plutarco:  quinze  foram  os  porcos  as- 
sados para  António  e  Cleópatra  enxugarem  o  es- 
tômago, n'unia  occasião  em  que  tinham  bebido 
dois  ou  Ires  copinhos  de  agua  antes  de  jantar. 
Leia-se  Luciano:  a  terra,  o  mar,  o  céo  fornece- 
ram os  seus  mais  importantes  productos  para  um 
jantar  que  a  rainha  do  Egypto  offereceu  a  César. 
Inda  mais;  Cleópatra  apostando  com  António  que 
era  capaz  de  consummir  n'uma  só  espécie  de  co- 
mida dois  milhões  de  sestercios,  íicou  victoriosa; 
porque  apresentou  um  petisquinhode  pérolas  que 
excedeu  muito  o  valor  da  aposta! 

Na  verdade,  repelimos,  a  arle  de  comer  está 
de  lodo  perdida! 


BEATRIZ 


Jacques  linha  perdido,  liavia  muilo, 

Seu  velho  pae,  íidalgo  dos  mais  nobres, 

Modelo  de  honradez,  que  lhe  deixara 

Senão  riqueza  enorme,  pelo  menos, 

Muilo  com  que  passar,  vivendo  á  larga. 

Tinha  trinla  annos;  quanlo  ardor  na  vida 

Podemos  ler,  de  cerlo  é  n'esle  edade 

Que  mais  vivo  &  sentimos,  escaldando 

O  sangue  e  o  coração;  dava-se  o  caso 

Com  o  nosso  heroe:  Irinla  annos  linha  apenas; 

Era  genlil,  loução,  trigueiro  um  pouco, 

Negro  o  cabelló,  olhar  que  embriagava, 

Leve  sorriso  lhe  adejava  languido 

Nos  lábios  finos,  lábios  que  tremiam 

Á  menor  commoção;  em  quanto  a  espirito, 

Era  vivo,  sarcasúco,  volúvel. 

Borboleta  fugaz,  que  errante  andava 

Buscando  o  sol,  e  as  rosas  entre-aberlas, 

Onde  libasse  o  mel  no  doce  calixl 

Por  tanto  é  de  suppor  que  as  aventuras 

Não  faltassem  jamais,  que  cem  donzellas, 

Das  mais  lindas,  lhe  andassem  como  presas 

Ao  seduclor  olhar;  penso  até  mesmo 

Que,  se  a  lua  não  fosse  tam  discreta 

Como  todos  o  sabem,  contaria 

Quantas  vezes  o  vio  galgando  o  muro 

D'algum  jardim  de  Armida,  que  deixasse 

O  thóro  conjuga],  e  manso  e  manso  i  iwíiA 

Descesse  ao  parque,  a  dar-lhe  amor  e  vida,»'  ■  ■i» 

Em  transportes  de  jubilo  fervente! 

Isto  são  presumpções,  eu  não  aíTirmo 

Cousas  de  pouca 'monta,  e  muilo  menos 

Estas,  que  vão  bater  mesmo  de  chapa 

Na  sacra  honestidade  das  famílias; 

Mas  lambem  se  a  leitora  não  permitte 

Que  eu  Iraga  estes  capítulos  a  lume, 

Então  feche  o  romance,  antes  que  o  pejo,  , 

E  mesmo  a  indignação  lhe  core  as  faces. 

O  que  passo  a  contar  é  simplesmente 
Uma  historia  de  amor,  da  qual  c  Jacques 
O  principal  heroe;  verei  se  posso. 
.\menisar  o  conto,  e  desbraval-o 
De  certas  asperesas  que  se  encontram 
Aqui  e  alli  no  texto  primitivo. 
Oh,  não  temaii  por  mim!  —  a  minha  musa 
É  das  de  mais  pudor  que  se  tem  visto; 
Jamais  roçou  de  leve  as  azas  brancas. 
Que  o  ceô  lhe  deu,  nos  lodaçaes  immundos 
De  infames  polluções;  voa-nie*  em  torno, 
Sorri  d'estas  loucuras  innocenles 
Da  vida  mundanal,  conta-me  tudo, 
Inspira-se  de  um  beijo  que  murmura 
Entre  as  ramas  do  bosque  immaranhado, 
Mas  foge  a  medo,  a  pomba  espavorida, 
Mal  que  o  rudo  bolicio  das  torpezas 
Lhe  fere,  acaso,  os  virginaes  ouvidos! 

VI 

Jacques  era  visita,  e  das  mais  intimas. 
Do  conde...  (occulto  o  nome  porque  entendo 
Que  o  pede  a  discrição),  basta  que  saibam 
Que  o  conde  era  casado  co'a  mais  linda 
E  mais  genlil  mulher  que  eu  tenho  visto. 
Chamava-se  Beatriz,  contava  apenas 
Vinte  ou  vinle  e  dois  annos,  quando  muito. 
A  trança  loura,  a  face  desmaiada, 
Pensati*va  no  oíhar,  túrgido  o  seio, 
Languido  o  porte,  a  voz  meiga  e  sonora 
Como  os  chilros  de  amor  da  toutinegra. 
Quando  súbito  a  cor  lhe  illumÍDava 


lÕ 


o  PANORAMA 


o  pallido  semblante,  refulgia 

Não  sei  que  luz  do  coo  n"aquclles  olhos 

Quasi   sempre  —  iuda  mal,— como  escoiuiidos 

Na  carregada  sombra  das  pestanas. 

Era  o  Ivpo  ideal  dessa  belleza 

Que  a  monte  esboça  apenas,  se  d<^lira 

Km  namorados  sonhos  de  poeta. 

O  conde  amava-a  co'o  fervor  ardente 

De  um  nobre  coração;  o  mundo  inteiro 

5esumia-se  alli,  n'áquplla  pomba 

Que  arrulliava  ao  sou  Indo,  e  que  entre  beijos 

l.he  pagava  extremosa  tanto  alToclo. 

Oh.  como  os  anjos  bemdiziam  lodos 

Aquella  santa  paz,  doce  harmonia 

Em  que  dois  corações,  pulsando  juntos, 

Se  perdiam  no  céô,  como  o  |)erfunie 

Que  ondôa  e  sobe  a  Deos  no  fim  da  larde! 

Não  pensem  que  exagero,  descrevendo 

D'esta  maneira  a  rara  formosura 

Da  condessa,  nem  mesmo  no  que  digo 

A  respeito  da  límpida  existência 

Que  passavam  no  mundo  os  dois  esposos. 

Aflirmo  o  que  aventei,  como  mais  tarde 

liei  de  allirmar  lambem....  basta  não  digo, 

Não  quero  accelerar  o  desenlace, 

Nem  roubar  a  leitora  alguns  instantes. 

De  pasmo  e  agitação,  que,  sem  vaidade, 

Ha  de  por  força  ler  nesta  leitura. 

VII 

Amor  lu  és  o  esphinge,  o  ser  divino 
Que  inda  ninguém  na  terra  comprehendeu; 
O  teu  semblante  e  meigo  e  peregrino, 
Mas  lens  garras  de  tigre,  que  o  sei  eu! 

Quem  se  inieva  no  magico  sorriso 
Que  a  lace  te  illumina  de  esplendor. 
Quando  em  leu  seio  encontra  o  paraíso. 
Sente  que  lhe  entra  n^alma  a  eterna  dor. 

V  Nas  caricias  subtis  cora  que  embriagas, 
O  veneno  mortal  coberto  vera: 
A  pérola  gentil  que  sai  das  vagas, 
iSegro  limo  do  fundo  Iraz  lambem. 

Mas  tu  és  sempre  bello;  enabora  um  dia 
Nos  rasgues  fibra  a  fibra  o  coração. 
Tens  segredos  de  encanto  e  de  alegria 
Onde  se  perde  em  jubilo  a  razão. 

Que  importa  o  mundo? -lúgubre  deserto, 
Onde  se  Naga,  á  loa,  a  suspirar, 
E  onde,  somente  apoz  o  errar  incerto. 
Vamos  na  morto  a  fronte  descançarl... 

Tudo  é  sombra  em  redor,  tudo  é  tristeza, 
Nem  siquer  um  botão  [iromelle  flor. 
Negra  saudade  envolve  a  natureza...  - 
E  tudo  canta  e  brilha  á  luz  do  amor. 

Chovem  do  sol  os  raios  matutinos, 
Heluz  do  orvalho  o  límpido  crjstal, 
(iorgèam  pelo  campo  os  pequeninos, 
E  as  tenras  avesinnas  peto  vai. 

S6be  o  perfume  cm  ondas  Iransparenles, 
Da  montanha,  da  balsa,  o  do  vergel; 
As  abelhas,  zumbindo,  vão  contentes 
l'or  entre  as  rosas  procurando  mel. 

E  tudo  á  tua  voz,  alma  infinita. 

Que  vens  no  mundo  e  em  lodos  palpitar: 

Inteira  a  criação  febril  se  agita 

Mal  que  um  raio  dos  teus  vô  .scinlillar! 


Amor,  lu  és  o  esphinge,  o  ser  divino 
Que  inda  ninguém  na  terra  comprehendeu; 
lens  doce  o  olhar,  o  rosto  peregrino,.... 
Oh,  mas  garras  de  tigre,  que  o  sei  eu!— 


(Continua. 


E.  A.  Vidal. 


DUAS  MÃES 

Ao  sr,  Thoiiiax  Itibciro. 

por  occasião  do  fiillecimcnlo  de   sna  cxrollentc  mãe 

Uma,  quando  não  podes  inda  ve!  a, 
os  olhos  te  descerra  á  luz  do  dia; 
(ratlectos  se  opulenta,  e  se  disveía 
em  ser  no  mundo  leu  celeste  guia. 

A  outra,  fronte  cândida  singella, 
ante  o  lilho  dilecto  se  extasia, 
os  segredos  do  génio  te  revela, 
c  1'cmbala  cm  torrentes  d'harmonia. 

Uma,  sumindo  o  .seu  fulgor  d'eslreUa, 

dos  anjos  busca  a  doce  companhia, 

que  d'enlre  os  anjos  Deus  chamou  por  ella. 

A  oulra  não  te  deixa  noite  e  dia 
—séculos  durará,  mas  sempre  bella... 
Uma  era  Amália,  a  oulra  c...a  Poesia. 

Vizeu,  outubro  de  Gj. 

Candibo  Figueiredo. 


O  uso  DA  PALAVRA 

Dizia  Taileirand:  A  palavra  foi  dada  ao  homem 
pai'a  que  elle possa  exprimir  os  seus  pensamentos. 
Nós,  porém,  diremos,  que  ella  lhe  foi  concedida, 
unicamente,  para  saber  apreciar  as  vantagens  do  si- 
lencio. 


A  MORTE  E  O    SEU  MINISTRO 

Quiz  a  morte  escolher  um  ministro  excellente : 

Peste,  Febre,  Asma  e  Gola  acodem  de  repente: 

«INão,  a  morte  lhes  diz,  toda  a  minha  esperança 

Fundo-a  só  na— Intemperança.» 


Quid  non  mortalia  pcctora  cogis 

Auri  sacra  fameè? 

Virgílio. 

Execranda  sede  de  ouro!  que  de  crimes  não 
inspiras  aos  morlaes? 


Parece  que  a  natureza  que,  tão  sabiamente,  dis- 
poz  os  órgãos  do  nosso  corpo  para  tornar-nos  fe- 
lizes, nos  deu  Inmbem  o  orgulho  para  poupar-nos 
a  dòr  de  conhecermos  as  nossas  imperfeições. 

La  Rochkfolcauld. 


Typ.  Franco-Porlugueza.  =  Iluado  Tlicsouro  Vellio,  C. 


o  PANORAMA 


4^ 


O  PANORAMA 


A  IGREJA  DE  SAINT-MAGLOU 

O  Mfelo  XVI  foi  para  a  architectura  uma  época 
detraSBíção,  em  que  os  artistas,  abandonando,  pouco 
a  pouco,*  o  eslylogothico,  voltaram  ás  tradições  da 
arte  grega^  £is  porque  se  dá  a  esta  revolução  o 
nome  dereiiíJscoiça.  A  imaginação  dos  artistas 
começava  a  cançar.  As  esculpturasmais  vari?idas, 
as  formas  mais^  fantásticas,  mais  caprichosas,  ti- 
nham-se  excessivamente  m.ultiplicado,  echegara-se 
a  esse  ponto  em  que  o  espirito,  fatigado  das  des- 
cobertas passadas,  experimenta  a  impotência  de 
innovar,  e  a  necessidade  do  descanço.  A  archite- 
ctura grega  foi  o  refugio  dos  artistas.  Guiados  pelos 
grandes  modelos  da  antiguidade,  conduzidos  a 
princípios  seguros,  invariáveis  e  consagrados  pelos 
séculos,  senliram-scmais  àsua  vontade  e  enlrega- 
ram-se  com  ardor  a  um  género  esquecido  durante 
muito  tempo  e  que  lhes  ofterecia  lodos  os  atra- 
ctivos da  novidade.  O  seu  zelo  reanimou-se; 
o  seu  enlhustasmo  retomou  toda  a  sua  liberda- 
de. Por  isso,  na  maior  parte  dos  njonumen- 
tos  d'aquelle  século,  encontram-se  uma  vida, 
um  calor,  que  é  mui  raro  achar  nas  obras  de  imi- 
tação, e  que  em  vão  se  procurariam  nas  cdnslruc- 
çõos  posteriores.  Um  dos  mais  eloquentes  escrip- 
tores  franc^es,  Iral^ndo  da  renascença  das  artes, 
diz:  c(A  architectura  do  século  XYI  passou,  dos  bri- 
lhantes arrojos  do  estylo  gothico,  às  bellezas  clássicas 
da  renascença,  lilha  engenhosa  da  antiguidade,  cujas 
risonhas  graças  rivalisam  muitas  vezes  com  as  de 
sua  mãe. -o 

Entretanto,  a  transição  não  se  fez  rapidamente. 
O  capitel  corinthio  ou  dorico  não  desthronou  logo 
a  ogiva;  houve  no  principio  uma  espécie  de  fusão 
dos  dois  géneros,  e  não  é  raro  encontrar  nos  mo- 
numentos d'esta  época  os  recortes,  os  entalhos  e 
os  ílorões  gothicos,  unidos  e  ínlremgiados  cora  as 
folhas  do  acantho,  os  Iriglyphos,  modilhões  e  to- 
dos esses  ornamentos  tão  puros  e  symelricos  dos 
monumentos  da  Grécia. 

Entre  asconstmicções  queapresenlatn  eslemixto 
de  architectura  e  que  por  esse  titulo  são  dignas 
de  toda  a  atten^ão  (los  artistas  e  dos  historiadores, 
citaremos,  particularmente,  a  magnifica  igreja  de 
Saint-.Maclou,^  em  Iluão,  de  cuja  perspectiva  do 
lado  do  Xorte* damos  hoje  o  desenho.  Ainda  que 
situada  em  uma  das  cidades  de  Franca,  talvez  a 
mais  fértil  em -nwjnumentos  curiosos,  esta  igreja 
pôde  sustentar,  sem  desvantageraj-a  comparação  com 
ladas  as  que  a  rodeiam. 

Saiiit-Maclou  é  notável  pelo  tamanho,  pela  bel- 
la  porporção  no  seu  lodo  im|)onente  e  pelo  sedu- 
clorencai]to  (pie  oílííieccm  Iodas  as  suas  miude- 
zas. As  menoix's  esculpturas  sãode  uma  perfeição 
incrivel.  Admiram-se  sobre  tudo  as  portas,  de  um 
trabalho  ao  mesmo  tempo  rico  c  delicado,  que 
mereceram  a  honra  de  serem  attribuidas  ao  celebic 
João  (joujon. 

Mas  o  (pie  está  acima  de  lodos  os  elogios,  para 
o  que  não  existem  expressões,  é  o  eíTeilo,  de  al- 
guma sorte  magico,  da  soberba  escada  que  con- 
duz ao  orgain,  E  impossivel  existir  alguma  cousa 


que  se  possa  comparar  com  aquelle  luxo  de  orna- 
mentos, desenhados  e  esculpturados  com  um  apuro 
e  arte  incomprehensiveis! 


OS  PHILO-PORTUGUEZES. 

POR  INNOCENGIO  F.  DA  SILVA. 
III 

O  terceiro  logar  n'esta  serie  dos  apaixonados  da 
litteratura  portugueza  (isto  é,  dos  nossos  bolorentos 
clássicos,  a  nos  servirmos  da  phrase  adoptada  pe- 
los ponlillces  do  moderno  culto  da  Jdeia-JJeus,  ou 
do  Deus-Ideia  (V  pertence  a  Carlos  Sluart. 

Nascera  este  distincto  diplomata  em  Buthe, 
ilha  da  Escócia,  a  2  de  janeiro  de  1779;  e  de- 
pois de  prestar  ao  seu  paiz  importantíssimos  ser- 
viços, pelos  quaes  mereceu  ser  elevado  ao  parialo 
com  o  titulo  de  Lord  Stuart  de  Rothesay,  fallcceu 
cumulado  de  honras  e  condecorações  a  6  de  no- 
vembro de  18íl>.   • 

Vindo  para  Lisboa  pouco  depois  de  realisada  a 
expulsão  do  exercito  francez  em  1808,  com  o  ca- 
racter de  ministro  brilannico  acreditado  junto  á  Re- 
gência do  reino,  participou  com  ella  dos  actos  e 
resoluções  governamentaes  nos  annos  que  se  se- 
guiram, tomando  assento  entre  os  seus  membros 
com  voto  deliberativo,  que  devia  ser  principalmente 
atlendido  em  todos  os  assumptos  de  guerra  e  fazen- 
da. Assim  o  determinara  do  Rio  de  Janeiro  a  su- 
prema potestade  do  então  príncipe  regente !  Este 
mesmo,  quando  reinante  com  o  nome  de  D.  João 
VI,  o  escolheu  para  seu  plenipotenciário  no  Brazil, 
commettendo-lhe  o  cargo  de  negociar  eassignar  em 
seu  nome  o  tratado  de  29  de*agoslo  de  182J3,pelo 
qual  íicou  deíinitivamenle  sanccionada  a  separa- 
ção, e  reconhecida  a  independência  do  império.  O 
desempenho  d'esta  missão  foi-lhe  remunerado,  em 
22  de  novembro  do  mesmo  anno  com  o  titulo  de 
conde  de  Machieo.  A  coníiança  do  pai,  succedeu 
a  do  filho  D.  Pedro  IV,  que  fazendo-o  portador 
da  carta  constitucional  decretada  em  29  de  abril  de 
182G,  creava  para  elle  no  1."  de  maio  immecfiato 
o  titulo  de  Marquez  de  Angra. 

Apontamos  singelamente  estes  factos,  csem  com- 
mento  alguni*  Ouaesquer  considerações  politicas 
(jue  elles  possam  suscittr  nada  lêem  que  ver  com 
o  nosso  intento. 

Foi  Lord  Stuart  homem  notavelmente  instruído, 
e  mui  versado  na  litteratura  antiga  e  moderna, 
conhecendo  e  faltando  todas  as  linguas  cultas  da 
Eurojja.  Amava  com  excesso  os  livros,  ena  leitura 
(Telles  consumia  a  maior  parte  do  tempo  que  lhe 
sobrava  do  exercício  das  funcções  diplomáticas,  em 
que  andou  constantemente  empregaílo;  com  (juanto 
de  preferencia  se  dedicasse  á  lição  dos  históricos, 
por  mais  adeíjuados  e  úteis  á  sua  profissão. 

ISo  período  (hísua  primeira  residência  (mi  Por- 
tugal deu-se  ao  estudolla  nossa  lingua  :  è  lalalTei- 
(;ão  Ijie  ins|)iraram  os  nossos  cscri||lorcs  antigos, 
que  não  poupou  cuidados  nem  dinheiro  para  ad- 
quirir as  obras  impressas  mais  notáveis  por  preço 

(•)  Vcja-se  a  eiiigraiilie  das  cOdus  modernas'). 


o  PANORAMA 


43 


e  raridade,  e  para  haver  copia  dos  manuscriptos 
mais  imporlanies  de  nossos  archivos  e  livrarias. 
Reuniu  uma  collecção,  completa  quanto  era  pos- 
sível, das  actas  ou  capítulos  de  nossas  antigas  cor- 
tes, e  fez  copiar  o  Canceionciro  original  dito  do 
Collegio  dos  Nobres,  que  mais  tarde,  em  1823,estan- 
por  embaixador  em  Paris,  fez  imprimir  n'aquella 
cidade  com  o  [úulo-.aFragmeíitos de  hum  Cancioneiro 
inédito,  que  se  acha  na  livraria  do  Real  Collegio  dos 
Nobres  de  Lisboa.  Impresso  ^'i  cusia  de  Carlos  Sluart, 
sacio  da  Real  Academia  de  Lisboa.  Em  Paris,  no  Paço 
de  Sua  Magestade Britannica.  M.  DCCC .  XXI  11. 
Edição  de  que  apenas  se  tirou  um  pequeno  nu- 
mero de  exemplares,  destinados  exclusivamente 
para  presentes  (*),  e  da  qual  resultou  tornar-se 
Conhecido  e  celebre  na  Europa  um  monumento,  cuja 
existência  era  totalmente  ignorada.  Adquiriu  pelo 
mesmo  tempo  um  exemplar  do  Cancioneiro  geral 
(impresso)  de  Garcia  de  Resende;  porém  mui  dam- 
nillcado,  e  até  falto  de  folhas.  O  zeloso  bibliophilo 
fez  copiar  com  toda  a  exactidão  as  que  faltavam; 
e  imprimindo-as,  passados  annos,  em  Londres, 
em  caracteres  eguaes  aos  da  obra,  conseguiu  res- 
taurar um  exemplar  mutilado,  tornando-o  com- 
pleto e  perfeito. 

Finalmente,  os  que  levados  da  curiosidade  pre- 
tenderem a  descripção  minuciosa  de  todas  as  pre- 
ciosidades que  n'esfe  género  conseguira  accumular 
em  sua  vasta  e  rica  bibliotheca  o  illustrado  diplo- 
mata, podem  recorrer  ao  livro  estampado  em  Lon- 
dres, 18oo(annoem  queveiua  realisar-sea  venda 
da  livraria)  cujo  titulo  é:  Catalogue  of  the  valua- 
ble  Library  of  the  late  Right  Ilonorable  Lord 
Stuart  de  Rothesay...  collected  during  many  years 
residence  as  British  Ambassador  at  lhe  Courts  of 
Lisbon,  Madrid,  the  Ilague,  Paris,  Vienna,  St. 
Petersburg,  and  Brazil. —  E  um  volume,  que  em 
324  pag.  no  formato  de  8. "grande  contêm 4323  arti- 
gos, encerrando  estes  correspondentemente  muitos 
milhares  de  volumes. 

(Conlimui.) 


ADYERTENCL\ 

.  No  trecho  d'este  art-igo  inserto  no  n."  3,  pag. 
22  e  23,  cumpre  fazer  as  seguintes  correcções:  Na 
pag.  22,  linha  Li, /}e/o  anno:\iidi-s<i  pelos  annos. — 
Na  pag.  23  linha  2,  com  Anahjse:  léa-se  com  a 
Analgse:  c  na  linha  18,  eccessiveis,  lêa-se  acces- 
siveis. 

A  PASCIÍOA  DOS  HEBREUS 

A  festa  da  Paschoa,  Pessah,  entre  os  hebreus, 
na  actualidade,  começa  no  dia  quinze  do  mez  de 
Nisan,  Abril,  dia  era  que  seus  pais  sairam  do 
Eg\pto,  edura,  para  os  que  vivem  na  Terra  Santa 
sele  dias,  e  oito.  para  os  que  habitam  nos  outros 
paizesdo  globo.  O  sabbado  que  precede  a  paschoa 
denomina-se  o  grande  sabbado;  n'este  dia  o  rabi 
de  cada  synagoga  faz  uma  pratica  explicando  aos 

(t)  Pôde  ver-se  acerca  desta  edição  c  do  Cancioneiro  um  artigo 
inserto  no  Panorama  de  1842,  pag.  406;  e  o  Dirrionario  liiblio- 
ijraphico  Portugue:.,  tomo  II  pag.  dl7,  com  os  demais  artigos  que 
ahi  mesmo  se  apontam. 


seus  correligiosos  as  regras  que  teeni  a  observar 
nas  vésperas  da  festa.  Durante  a  paschoa,  os  he- 
breus não  podem  comer  senão  pão  asmo  e  devem 
ter  todo  o  cuidado  de  que  em  suas  casas  não 
exista  fermento  de  qualidade  alguma.  Para  esse 
lim,  no  dia  treze,  os  chefes  de  familia  procedera 
a  um  exame  minucioso  em  suas  habitações,  etodo 
o  fermento  que  encontram  meltem-n'o  em  um 
vaso,  que  durante  a  noite  é  cuidadosamente  guar- 
dado, e  nodia  seguinte  queimado  com  toda  asolem- 
nidade.  O  serviço  de  mesa  e  utensílios  de  cosi- 
nha  de  uso  quotidiano  teem  de  ser  substituídos 
por  novos  ou  por  outros  que  hajam  sido  guardados 
de  um  a  festa  para  outra.  Tudo  se  purifica;  até  as 
próprias  mezas  de  cosinha,  cadeiras,  prateleiras 
são  lavadas,  primeiro  cora  agua  quente  e  cinza  e 
depois  com  agua  fria. 

Terminada  a  puriíicação,  passam  a  tratar  do 
fabrico  da  bolacha  sem  fermento,  para  substituir  o 
pão  ordinário.  A  farinha  é  amassada  pouco  tempo 
antes  de  cozedura,  afim  de  evitar  a  ferraenlação. 
Estas  bolachas  são  ordinariamente  redondas,  del- 
gadas e  crivadas  de  buraquinhos;  na  sua  com- 
posição só  entram  farinha  e  agua;  mas  alguns  he- 
breus abastados  costumam  ajuntar-lhes  ovos  e  assa- 
car. Não  lhes  é  permitido  usar  de  licores  de  grão 
durante  toda  esta  epocha;  só  devem  beber  agua 
ou  vinho  por  elles  fabricado.  No  dia  quatorze,  o 
primogénito  de  cada  familia  é  obi'igado  a  jejuar, 
em  memoria  "dos  primeiros  israelitas  que  cairam 
em  poder  dos  primeiros  Egypcios.  Na  tarde  d'es- 
se  mesmo  dia,  os  homens  junlara-se  na  syna- 
goga alim  de,  com  suas  orações,  se  prepararem 
para  a  festa,  e  durante  este  tempo  as  mulheres  em 
casa  occupam-se  em  dispor  as  mezas  para  o  ban- 
quete solemne. 

Tudo  o  que  ha  de  melhor  no  trato  domestico 
apparece  n'esta  occasião.  Sobre  um  prato  collocam 
um  quarto  de  cordeiro  assado  e  um  ovo;  sobre 
outro  três  bolachas  embrulhadas  em  guardanapos; 
e.sobre  um  terceiro  alface  eaipo.  Junto  d'estasher- 
vas  põem  um  copo  com  vinagre,  e  outro  com  sal 
e  agua.  Vè-se  também  um  bolo,  o  qual  é  desti- 
nado a  representar  os  tijolos  que  os  seus  antepas- 
sados eram  obrigados  a  fazer  no  Egypto;  é  com- 
posto de  maçãs,  amêndoas,  avelãs,  iigos,  romãs, 
vinho  e  canella. 

Disposta  a  mesa,  como  acima  dissemos,  assen- 
ta-se  toda  a  familia  em  roda  e  começa  uma  espé- 
cie de  ceremonia.  O  dono  da  casa  pronuncia  uma 
benção  sobre  a  mesa  em  geral  e  o  vinho  em  par- 
ticular; depois  procurando  um  ar  nobre,  jiyorque 
ha  a  intenção  de  representar  a  liberdade  que  re- 
cuperaram seus  pais  saindo  do  Egypto,  bebe 
uma  porção  de  vinho,  e.  este  exemplo  é  se- 
guido pelo  resto  da  familia.  Então  cada  (jual  mo- 
lha uma  porção  das  hervasno  vinagre  ecome-as, 
em  quanto  ochefe  pronuncia  uma  segunda  ben- 
ção. Em  seguida,  desdobra  os  três  guardanapos 
que  estão  no  prato,  toma  a  bolacha  que  se  contem  no 
do  centro,  parle-a  em  duas,  e  colloca  um  despe- 
daces entre  as  duas  bolachas  inteiras,  escondendo  o 
ouiro  debaixo  da  toalha;  esta  ceremonia  é  uma 


44 


O  PANORAMA 


allusão,  dizem  olles.  a  esla  circiim?;lancia  refe- 
rida por  Moisés  (Exod.  XII.  3í.;  (h  Israel  is- 
lãs tomaram  a  sua  massa  antes  de  ser  descoberta, 
efufjiram,  levando-a  escondida  debaixo  dos  seus  res- 
tidos.  Pejiois  o  chefe  da  família  lira  o  cordeiro  e 
o  ovo  de  cima  da  mesa,  e  reiíniiulo-se  todos  os 
assislcnles  para  segurarem  no  pralo  (juc  conlcm 
as  boiaclias,  dizem  juntos: 

«Eis  aíjiii  o  pão  da  poijresa  e  da  alllicção,  (|ue 
nossos  pais  comeram  no  Egypfo;  que  todo  o  (jue 
tem  fome  venba  e  coma;  (juc  todo  o  que  n(?ces- 
sila  entre  e  coma  do  cordeií-o  pascoal.  Esto  anno 
eslamos  aqui;  no  |)roximo  fiiiuro,  se  íòr  da  vontade 
de  Doos,  cslarcmos  na  (erra  de  Clianaan.  Esle  anno 
somos  servos;  se  Deos  o  pormilir,  seremos  livres 
cm  pouco.» 

O  cordeiío  e  o  ovo  são  novamente  collocados 
sobie  a  mesa.  e  o  pi-ato  (jue  continha  as  bolachas 
o  (irado  alim  de  obrigar  as  crianças  a  pergunta- 
rem o  que  significa  esla  fesla;  se  as  não  ha,  uma 
pessoa  da  família  faz  esla  |)ergunla  sob  uma  fórrati 
regular.  Eíu  resposta  conla-se  o  capliveiro,  a  es- 
cravidão do  |.ovo  de  Israel  no  Egyplo,  a  sua  re- 
dempção  jior  Moisés  e  a  insliluição  da  paschoa 
jtor  esla  occasião.  Esla  narração  é  segiiida  de  al- 
guns psalmos,  ehymnoscanladospoi  toda  a  família. 
Depois  as  bolaclias  sendo  noyamcnle  collocadas 
sobre  a  Inci^a  dislribuem-se  em  pequenos  bocados 
j)or  lodos  os  commensaes  em  lugar  do  cordeiro 
pascoal  que  se  comia  nNniíro  tempo.  Os  hebreus 
dão  por  molivo  d'esla  mudança,  (|ue  não  é  exe- 
cutar a  lei  o  comer  o  cordeiro  fora  do  paiz  de 
Chanaan  en'uma  terra  estrangeira  não  sanlííicada. 
Ema  ceia  abundante  segite-se  a  esla  ceremonia.a 
(jual  se  ie|,cle,  pouco  mais  ou  menos,  na  segunda 
tarde.  Os  dois  j)rinieíros  diase  os  dois  últimos  são 
celebrados  com  grande  solemnidade  e  pompa  nas 
synagogas;  os  hebreus  n'estes  quatro  dias  abslem-se 
do  trabalho,  tão  severamente,  como  no.  sabbado. 
Os  (jualro  dias  ínlerniedíaríos  não  são  observados 
com  laiilo  rigor.  O  ultimo  dia  termina  por  uma 
ceremonia  bhamada  Ilabdala,  fluranle  aqualo  dono 
da  casa,  tendo  na  mão  um  copo  cheio  de  ^inho, 
lepcle  muitos  cai)ilulos  da  escriplura,  bebe  uma 
porção  do  licor  e  passa  o  copo  aoreslo'dos  assis- 
lcnles que  lhe  seguem  o  exemplo. 


A  PONTE  DE  lUALTO  EM  VENEZA 

Veneza,  esse  grande  empório  do  commercio  do 
mundí»,  essa  soI)crba  Cidade,  com  tania  justiça, 
cDgnoniiuada  a  rainha  <lo  Adriático,  celebre  |)elo 
esplendor  e  maiíuificencia,  (|ue  ostentou  no  deci- 
mo (juinlo  século,  como  j)elo  esforço  e  ousadia  de 
seus  hahilantes;  Veneza,  a'dominadora  de  jjovos 
t  nações,  h  deposito  geral  de  Iodas  as  riquezas  do 
Oriente,  de  quem  o  no<<o  inimíla\el  jioela  Luiz 
de  Camões,  disse: 

A  s(>l)orli;i    Veneza  o&l.i   no    meio 

D.'i8  ;if{ti''.s ;  qiKí  Ião   Iftiix.i  coinccon 

I).'i   tfrra  uni   lirnço  voin   ;io  rnar,  (|ue  clicio 

UVsforçn,  nncôe.s 'variíis  snjcitou, 

Hr.nço  forle  ifc  gente  subliiiiíidíi, 

^  ■'    :  '■::';.'!  no.s  engenhos  que  na  espad". 


Veneza,  em  fim,  que  chegou  a  occupar  o  ma- 
gno sólio  do  poder  e  da  opulência;  apezar  da  sua 
(jueda,  sorte  que  espera  sempre  quem  muito  se 
eleva,  é  ainda  objecto  de  grande  admiração  para 
o  estrangeiro,  que  a  \isila. 

Não,  porque  la  encontre  hoje  o  grande commeicio, 
o  pasmoso  luxo  e  costumes  de  outras  eras:  negoci- 
antes de  Iodas  as  nações  do  mundo,  arménios,  gre- 
gos, índios,  judeus,  turcos,  ele,  patenteando  aos 
olhog  do  publico  osíinissimos  tecidos  deCachemi- 
ra,  os  diamantes  de  Uolconda,  as  pérolas  da  Pér- 
sia, as  especiarias  de  Ceilão;  os  lilhos  de  Veneza 
com  os  seus  trajes  de  seda  bordada  a  ouro,  e  as 
bellas  occultando  seus  formosos  rostos  com  masca- 
ras de  velludo  prelo;  mas,  pelo  maravilhoso  (jua- 
dro  que  llie  olferece,  cujos  traços,  os  maisinsignili- 
canles,  são  dignos  de  Ioda  a  altenção. 

A  cidade  de  Veneza  eslá  situada  no  meio  de  um 
grande  lago  na  extremidade  seplentríonal  do  gol- 
fo Adriático,  e  a  duas  legoas  do  continente.  Sa- 
nazzaro,  comparando  Roma  e  Veneza,  diz  que  se  a 
primeira  é  obra  dos  homens  a  segunda  deve  ser 
allribuida  aos  deoses.  E  na  verdade,  Veneza  parece 
sair  do  seio  das  aguas,  com  os  seusmagnilicos  tem- 
plos, soberbos  palácios,  cupolas,  columnas,  arcos, 
torres,  ludo  notável  pela  sua  grandeza  e  variedade 
dearchitecluia.  Está  dividida  em  cento  e  vinte  ilho- 
tas separadas  por  uma  inlinidade  de  canaes  e  uni- 
das entre  si  por  quatrocentas  e  oito  pontes,  quasi 
'lod?s  construídas  sem  symetria.  O  canal  chamado// 
canalazzo,  ou  grande  canal,  semelhante  a  uma  ar- 
téria principal  á  qual  allluem  todas  as  ramilicações 
secundarias,  divide  a  cidade  era  duas  parles,  se- 
guindo uma  direcção  que  lhe  dá  a  ligura  de  um  S. 
Esle  canal,  cujo  comprimento  regula  j)or  dois  mil 
e  seis  centos  passos  venezianos  e  quarenta  de  lar- 
gura, é  a  vida  de  Veneza,  é  o  seu  coração;  é  alli 
que  todos  concorrem  para  admirarem  as  mais  raras 
obras  de  archíleclura.  A  esquerda  da  Piazzeta, 
onde  elle  começa,  eleva-se  a  alfandega  edilicio  tão 
solido  como  magnilico,  c  maravilhosamente  adap- 
tado ao  logar  que  occupa.  Depois  \ê-se  a  rica  e 
magestosa  igreja  de  Saneia  Maria  delia  Salule, 
ediíicada  com  grande  disj)eudio  para  cumprimen- 
to do  voto  feito  pela  republica  na  occasião  da 
peste  de  1G30,  que  roubou  a  vida  a  mais  de  ([ua- 
renla  mil  indivíduos.  Ao  lado  d'este  templo  iiota-se 
um  outro  edilicio,  construído  em  1(170,  que  de 
1818  em  diante  tem  servido  de  seminário. 

A  direita  do  canal  enconlram-seos  j)alaciosEini, 
Coiner  delia  Ca  (Irande  e  Cavalli  e  na  margem  es- 
(juerda,  em  frente  doestes,  o  grande  palácio  Dário, 
incrustados  de  íino  mainiore,  os  palácios  Vencir, 
Augarani  e  a  aca<lemia  das  IJellas  Artes.  As  |)ín- 
luras  que  exislfin  n'cste  edilicio,  (piasi  todas  da  es- 
cola veii(>ziana,  foram'  execuladas  j)elos  seus  me- 
lhores meslies.  A  collecção  d'esivs  ijuadros  c  de 
um  valor  ('xlraor(l»nario,e  interessa,  no  mais  subido 
grão,  aos  amadores. 

Conltnuaiido  a  percorrer  o.grande  canal,  encon- 
traiii-se  os  palácios  Contarim  Dagli  Sgiigní,  llczzo- 
nico,  .Mor(»-Eiii,  Cíuslinianí,  Toscari,  Haibi,  Coiila- 
rini,Moiicenigo,  risani,  iJarbarigo,  CornerSjiiiirlIi, 


o  PANORAMA 


45 


ianuscri|)tos,elc;  La- 
lem excellenles  qua- 
dra do  soculo  XVI 


46 


O  PANORAMA 


obras  gregas  e  romanas;  e  erafim,  o  palácio  Cor- 
niani  tl'Algarolli,  em  cuja  bibliolheca  se  acham  Io- 
das as  prodiicções  Ihoalraes  representadas  desde 
1630,  época  doeslabelecimenlo  do  primeiro  tliea- 
tro  n'a(juella  cidade,  alé  aos  nossos  dias. 

Veneza,  como  acima  dissemos,  possue  quatro- 
centas e  oito  pontes,  grandes  e  pequenas,  mas  a 
principal,  a  mais  digna  de  menção,  é  a  de  Riallo, 
cuja  persj)Ccti,Ya  se  aciía  representada  na  nossa  gra- 
vura. Esta  ponte,  collocada  sobre  o  grande  canal, 
única  que  serve  de  communicação  entre  os  dois 
principaes  grupos  de  ilhas  que  formam  a  cidade, 
e  uma  das  "mais  primorosas  obras  de  archilectura 
do  século  \V1.  Compõe-se  de  um  só  arco  cuja  lar- 
guií  tem  00  pes  e  a  altura  20,  contando  do  nível 
da  agua  à  parte  inferior  da  abobada;  è  correm  so- 
bre ella  três  ruas  estreitas,  sendo  a  do  centro  guar- 
necida de  uma  arcada  elegante,  em  cujo  meio  se 
eleva  um  pórtico  de  forte  e  magestosa  eslructura. 
A  construcção  desta  ponte,  uma  das  mais  solidas 
que  se  conhecem,  é  devida  ao  grande  architeclo 
António  Ponli,  que  a  concluiu  em  1388,  sob  o  go- 
verno do  doge  Pascoal  Cicogna.Nos  prósperos  dias 
da  republica,  a  ponte  de  Rialto,  de  todos  os  lu- 
gares de  Veneza  o  mais  concorrido,  offerecia  ura 
espectáculo  surpreendente;  duas  ordens  de  magni- 
licos  estabelecimentos,  nos  quaes  se  viam  as  mais 
raras  e  soberbas  j)roducções  da  natureza  e  do  arte- 
facto, bordavam  a  galeria  do  centro;  alli  se  encon- 
travam os  negociantes  judeos,  gregos,  turcos,  ctc, 
trajes  e  costumes  dos  povos  mais  distantes  da  Eu- 
ropa, e  da  Ásia,  os  orgulhosos  filhos  de  Yeneza 
ricamente  vestidos,  as  altivas  bellezas  disfarçadas, 
emlim,  tudo  quanto  havia  de  mais  nobre  e  opulen- 
to n'aquella  republica. 

N'uma  cidade,  como  esta  de  que  estamos  tra- 
tando, que  foi  uma  verdadeira  conquista  sobre  o 
mar,  os  fundadores  obrigados  a  seguir  as  irregu- 
laridades do  solo, não  poderam  estabelecoruma  certa 
ordem,  e  sobretudo  construir  ruas  largas  e  espaço- 
sas, como  se  vêem  nas  cidades  de  terra  lirme.  A 
sinuosidade,  pois,  das  ruas,  ou  para  melhor  di- 
zer, dos  canaes  (jue  formam  a  cidade,  dá-lhe  um 
aspecto  inteiramente  particujar  e  único.  Em  Yene- 
za não  ha  carroagens;^  alli,  as  ruas  são  canaes;  os 
carros,  barcos;  as  carruagens,  gôndolas.  Estas  são 
deveras  {)ara  admirar.  Nada  mais  simples  do  que 
a  sua  forma.  O  comprimento  regula  por  trinta  pés; 
tem  pouco  míiis  ou  mencvi  quatro  de  largura  no 
nifio,  e  formam  nas  extremidades  duas  pontas 
agudas  e  elevadas.  Na  proa  vè-se  um  ferro,  com 
a  forma  de  serra,  de  sorte  (jue  na  rapidez  da  sua 
carreíia,*ameàça  cortar  tudo  (jue*se  lhe  oppõe. 

No  meio  lenrèima  camará  coberta,  com  suas  vi- 
draças e  cortinas.  A  gôndola  ó  pintada  de  preto 
interior  e  exteriormente,  o  que  lhe  dá  um  tal  ou 
qual  aspecXíJ  triste.  O  que  é  sobre  tudo  muito  pa- 
ra admirar  é  a  agilidade  c  destreza  com  que  os 
gondoleiros  dirigem  o  seu 'ligeiro  barco;  passíim 
uns  pelos  outros,  criízam-se  e  evitam-se  com  tal 
ligeireza,  (jue  os  (estrangeiros  que  não  estão  accos- 
lumados  a  este  espectáculo,  experimentam  um  sen- 
ti mento  de  receio. 


PEREZ  LORENZO 

(SccnoN  fia  Cnnipnuha  do  México) 

Por  PINHEIRO  CHAGAS. 

Y 

Brilhava  a  lua  no  firmamento  d'utn  azul  purís- 
simo. As  llores  do  terraço  baloiçavam  a  sabor  da 
brisa  as  suas  urnas  de  aromas,  e  perfumavam  a 
atmosj>hera  com  as  suas  balsâmicas  .exhalações. 
As  ruas  de  Medellin  estavam  desertas,  e  o  fulgor 
do  astro  nocturno  banhava  as  fachadas  brancas  das 
casas  silenciosas. 

A  hora,  o  socego,  as  excitações  d'uma  vegeta- 
ção luxuriante,  a  molle  frescura  da  almosphera, 
tudo  convidava  a  fallar  d'amor;  as  harmonias 
dulcíssimas  da  natureza  pareciam  o  preludio  d'ura 
canto  namorado. 

Estava  o  pensamento  de  Viarmonl  a  cem  lé- 
guas das  pelejas,  da  gloria,  do  sangue  e  do  fumo 
da  artilheria.  N'esse  instante  nem  poderia  dizer 
se  viera  ao  México  erigir  o  throno  do  imperador 
Maximiliano,  se  defender  a  republica  de  Juarez. 
O  que  sabia  era  que,  republicano  ou  imperialista, 
levava  encostada  ao  seu  braço  tremulo  a  mais  for- 
mosa flor  dos  jardins  do  sol. 

—  Dolores,  dizia  elle  em  voz  tão  baixa  que  pa- 
recia um  murmúrio,  sentemo-nos  aqui.  Esqueça 
por  um  instante  o  baile  e  as  suas  loucas  alegrias, 
e  pense  um  momento  no  amor  e  nas  suas  incfTa- 
veis  felicidades.  Yeja  !  a  baunilha,  vergando  ao 
doce  peso  do  seu  corpo,  enche-a  de  inebriante 
perfume;  a  lua,  resvalando  silenciosa  no  ceu,  bei- 
ja-lhe  a  face  formosíssima  com  os  seus  raios  de 
prata,  e  desenha-lhe  no  rosto  a  expressão  suavís- 
sima da  mais  namorada  languidez.  A  Diana,  a 
fria  Diana  phantasiada  pelos  antigos,  deixou-se 
abrasar  pelas  chammas  d'esle  clima,  e  sente  os 
ardores  de  Vénus.  Não  resista  só,  Dolores,  ao  doce 
iníluxo  que  impera  em  tudo  que  nos  rodeia,  que 
faz  com  que  gema  o  colibri  Ião  doces  cânticos 
poisado  na  corolla  das  flores... 

E  mil  outras  lonlerias  apaixonadas,  que  DoloVes 
ouvia  enlevada.  A  mão  tremente,  correspondia  a 
pouco  e  pouco  ao  brando  a|i«rto  das  mãos  do  jo- 
ven  ofTicial ;  a  cabeça  reclinava-se-lhe  para  Iraz, 
o  os  olhos  diziam  já  o  que  ainda  não  diziam  os  lá- 
bios em  que  o  joven  ollicial  ia  colher  com  um 
primeiro  Ijeijo  a  doce  conlissão...  quando  súbito 
ergue-se  um  vulto  deanle  dos  dois,  e  uma  voz  gra- 
ve murmurou  estas  palavras : 

—  Senhor  capitão,  preciso  de  lhe  fallar. 

O  capitão  eriçueu-sc  furioso.  Dolores  deu  um 
grito,  c  murmurou  depois : 

—  O  Senhor  Perez  Eourezo  ! 

—  Eu  mesmo,  minha  senhora,  respondeu  o  rc- 
cem-vindo  gravemente,  eu  (jue  a  V.  Ex."  e  a  este 
senhor  |)eço  desculpa  de  lhes  ter  interrompido  a 
conversação,  Ajas  precisa Vxi  immenso  de  poder  con- 
ví^rsar  em  particular  com  (|ualquer  dos  senhores 
odiciaes,  e  íialiieia  hora  (|U(;  tslou  no  baile,  ainda 
não  pude  encontiar-me  a  sós  còm  nenhum  d'elles. 
Vi-osdirigiiem-se  para  a(|ui,  e  aproveitei  o  ensejo, 
es|)erando  da  discripção  da  Ex.""'  Sr.""  De  Dolores 
o  maior  segredo  acerca  (reste  encontro. 


o  PANORAMA 


47 


—  De  certo,  senhor  Perez  Lorenzo,  mas...  tor- 
nou ella  embaraçada. 

—  Nada  tema ;  versará  a  nossa  conversação  so- 
bre pontos  de  serviço,  juro-lh'o.  Jura-me  também 
Y.  Ex."  guardar  o  segredo  que  lhe  pedi? 

—  Juro. 

—  Queiram  pois  voltar  á  sala ;  aqui  espero  o 
senhor  capitão  Yiarmont. 

O  capitão,  dando  mostras  visíveis  de  mau  hu- 
mor, deu  o  braço  a  Dolores  e  acompanhou-a  até 
ao  sophá.  Depois,  voltando  de  sobr'olho  franzido, 
veio  ter  com  Perez  Lorenzo  e  disse-lhe: 

—  Meu  caro,  mando-o  cordealmente  para  o  in- 
ferno. Que  me  quer?  Creia  que  estava  muito  lon- 
ge de  pensar  na  sua  pouco  sympathica  pessoa, 
e  que  os  sonhos  em  que  me  embebia  distavam 
bastante  de  certas  recordações  de  dependura  que 
a  sua  presença  me  aviva.  Não  o  esperava  n'esta 
casa;  sempre  julguei  que  os  morcegos  tinham  me- 
do do  clarão  do  baile. 

—  Basta  de  palavras  frívolas,  e  de  injurias  mais 
frívolas  ainda,  tornou  Perez  Lorenzo  com  voz 
grave,  a  hora  é  solemne  e  impõe-nos  deveres  a  to- 
dos. Faça  calar  os  seus  despeitos  de  criança  na- 
morada, senhor  capitão,  e  lembre-se  que  é  militar, 
e  que  é  francez.  Volte  á  sala,  procure  sem  alTecta- 
ção  o  coronel  Dupin,  diga-lhe  que  esteve  comigo, 
que  não  ha  tempo  a  perder,  que  faça  sair  todos  os 
seus  ofíiciaes  de  modo  que  se  não  faça  reparada  a 
sua  saída.  Lá  os  espero  no  quartel.  Prudência  e 
discripção. 

E  o  mexicano  desappareceu.  Yiarmont  fitou  ura 
instante  os  olhos  na  baunilha  junto  da  qual  estivera 
com  Dolores,  e  soltou  um  suspiro.  Depois  entrou 
na  sala,  e  dando  o  braço  ao  coronel  Dupin,  pas- 
seiando  com  elle  naturalmente,  disse-lhe  algumas 
palavras  em  voz  baixa. 

D'ahi  a  instantes  os  oíTiciaes  francezes  iam-se 
esquivando  a  um  e  um  com  a  maior  cautella  pos- 
sível, e  dirigiam-se  a  toda  a  pressa  para  o  quartel 
dos  contra-guerrilhas. 

Absorvidos  pela  febre  do  jogo  ou  das  valsas, 
cuja  melodia  fascinadora  jorrava  da  brchestra  em 
notas  tumultuosas,  não  repararam  os  convidados 
na  saida  dos  officiaes"francezes. 

Só  Dolores  mostrou  alguma  inquietação,  mas 
nada  disse,  fiel  ao  seu  juramento.  Depois  a  volú- 
vel mexicana,  em  dois  ou  três  giros  de  valsa  com 
um  seu  joven  e  elegante  compatriota,  esqueceu  a 
sua  preoccupação  momentânea,  e  o  homem  que  a 
motivara.  A  nuvem  fugio  rápida,  como  as  nuvens 
do  seu  pátrio  céo,e  nos  lábios  vermelhos  fluctuou 
de  novo  o  sorriso  da  mocidade  e  do  prazer. 

(Continua) 


São  peiores  os  homens  que  os  corvos.  O  triste 
que  foi  á  forca,  não  o  comem  os  corvos  senão 
depois  de  executado  e  morto ;  e  o  que  anda  em 
juizo,  ainda  não  está  executado  nem  sentenciado, 
e  já  está  comido. 

Antomo  Vieira. 


JOAQUIM  JOSÉ  DOMINGUES  LIMA 

O  nome,  que  serve  de  epigraphe  a  este  artigo, 
não  pertence  nem  a  um  litterato  celebre  pelos  seus 
escriptos,  nem  a  um  guerreiro  illustre  pelos  seus 
feitos  de  armas.  Éo  de  um  simples  caixeiro  por- 
tuguez,  do  Maranhão,  que,  não  se  distinguindo 
por  nenhum  d'aquelles  predicados,  possue  com- 
tudo  um  outro  de  não  somenos  valia  :  —  O  amor 
do  próximo  no  mais  subido  e  apurado  gráo. 

Bem  que  de  um  género  mui  diverso  dos  do  in- 
trépido Joaquim  Lopes,  os  serviços  pelo  sr.  Lima 
prestados  á  humanidade  merecem,  como  os  d'aquel- 
íe,  as  bênçãos  de  todos  os  corações  generosos  e 
bemfazejos. 

Se  um,  com'  arrojo  e  valentia  sobrenaturaes, 
explie  a  própria  vida  para  salvar  a  do  infeliz,  a  quem 
a  mais  terrível  das  mortes  ja  se  antolhava  certa 
no  medonho  revolver  das  vagas ;  outro,  com  uma 
dedicação  talvez  sem  exemplo,  vae  de  porta  era 
poria  implorar  o  óbolo  da  caridade  para  distri- 
l3uir  depois  pelos  indigentes  e  engeitados  da  sorte, 
qualquer  que  seja  a  classe,  ou  a  nacionalidade  a 
que  pertençam. 

Ambos,  portanto,  embora  por  diversa  senda, 
se  encaminhara  para  o  mesmo  fim. 

A  par  dos  progressos  e  luzes  do  presente  século 
caminha  indubitavelmente  aimmoralidade  e  a  cor- 
rupção, com  todo  o  seu  cortejo  de  misérias ;  mas 
pede  a  verdade  que  também  se  diga,  para  honra 
da  presente  geração,  que  nunca  a  caridade  se  os- 
tentou em  todas  as  suas  variadas  formas,  tão  bella 
e  radiante,  como  nos  nossos  dias. 

As  associações  de  beneficência  forraigam ;  os 
asylos  de  mendicidade  mulliplicam-se,  e,  a  par 
de'  tão  bellas  instituições,  apparecem  ainda  homens 
como  Joaquim  Lopes  e  Joaquim  Lima,  que  espon- 
taneamente, e  só  obedecendo  aos  seus  instinctos 
philantropicos,  se  dedicam  exclusivamente  a  ser- 
vir a  humanidade.  Limitando-nos  a  faltar  unica- 
mente do  sr.  Lima,  não  procuraremos  enumerar 
todos  os  seus  actos  de  philantropia,  porque  sendo 
elles  tão  numerosos,  como  os  dias,  que  aquelle 
benemérito  portuguez  conta  de  existência,  seria 
necesssario  um  livro  de  largas  dimensões  para  os 
conter. 

O  misero  escravo,  o  naufrago,  a  viuva  sem  ar- 
rimo, o  orphão  sem  abrigo,  o  enfermo  sem  am- 
paro, o  mendigo,  emfim,  todos  os  que  precisam 
de  soccorro  e  protecção,  encontram  soccorro  e  pro- 
tecção no  sr.  Lima. 

Citaremos,  pois,  apenas  alguns  dos  s^s  benéfi- 
cos actos,  que  se  acham  registrados  no  consulado 
portuguez  do  Maranhão,  e  que  merecidamente  lhe 
alcançaram  o  grau  de  cavalleiro  da  ordem  de  (abris- 
te, com  que  o  honrou  o  sr.  D.  Pedro  V,  e  o  di- 
ploma de  sócio  honorário  da  Real  Sociedade  IIu- 
nianilaria,  d'esta  cidade,  que  espontaneamente  lh'o 
conferiu. 

•  Tendo  naufragado  na  costa  do  Maranhão  abarca 
portugueza  «Linda,»  e  ficando  a  sua  tripulação, 
que  pela  maior  parte  se  compunha  de  homens  ca- 
sados, e  com  filhos,  reduzida  á  maior  miséria,  por 


48 


O  PANORAMA 


ter  perdido,  com  os  objectos  que  levava  para  ven- 
der, lodos  os  seus  escassíssimos  haveres,  osr.  Lima 
proraoveu  logo  era  favor  d'aque!ies  infelizes  uma 
subscripção,  que  produziu  um  conto  e  quinhentos 
mil  réis  fracos,  os  quaes  entregou  ao  nosso  côn- 
sul alli  para  lhes  serem,  como  eíTcctivamente  fo- 
ram, d  i  st  ri  bui  d  os. 

O  capitão  do  brigue-escuna  brasileiro  «Graciosa» 
João  José  de  Sousa,  brasileiro  adoptivo,  e  .portu- 
tuguez  de  nascimento,  foi  barbaramente  assassi- 
nado por  um  negro  marinheiro  a.  bordo  do  mesmo 
navio,  e  deixou  mulher  e  íilhos  menores  no  maior 
abandono emiseria.Acudiu-lhes.  |)orem,  osr. Lima, 
promovendo  immediatamente  uma  outra  subscri- 
pção, que  rendeu  mais  de  três  contos,  com  ps(|uaes 
lhes  comprou  uma  casinha  para  se  abrigarei^,  e 
algumas  acções  de  um  estabelecimonto  bancário. 

(Conclue) 


PALLIDA  MOPiS. 

Imagem  lúcida,  vestal  de  encanto, 
involvc-me  nas  dobras  do  teu  jiianlo! 

Murchae ;  podeis  murchar  da  terra  ó  ílores, 

iJe  variegadas  cures! 
Não  sei  que  valliam  folhas,  viço  e  aroma 
Que  ao  sol  expiram  quan(lo  o"  sol  dcscae, 
bo  seio  encantos,  explendor  da  coma 
Se,  a  noule.  ao  vento,  cada  dom  se  esvae?! 
A  minlia  lloV  que  os  dons,  perpetua,  encerra 
Não  é  d'esics  jardins!  Flores  da  terra 

Podeis  murchar  ;  murchae  ! 

ÍTarmonias  cessae !  Parli-vos  lyras 

Que  o  sois,  e  sois  mentiras! 

Que  sois  hymnos,  no  templo,  ao  Deus  eterno 

Depois  das  salas  cantos  sem  calor, 

Coros  de  lupanar,  gritos  do  inferno. 

Trovas  de  orgia,  e  queixas  de  uma  dor! 

De  vós  descreio  já,  descrer  profundo! 

Que  eu  sei  de  uma  liarmonia  de  além-mundo 
Que  é  so  e  sempre  amor  1 

Visões,  sumi-vos,  que  debuxa  c  cria 

A  douda  phantasia  ! 
Lúbricas  fadas,  festivaes  bacchantes, 
1'hantasmas  do  prazer,  que  a  febre  dá, 
Beijos  de  foiro,  lábios  palpitantes, 
Graciosas  sombras,  que  vos  quero  eu  já?! 
Fugi,  visões,  passae  !  Foge,  chymera  ! 
Que  eu  só  n'um  anjo  espero  que  me  espera 

Da  tumba  para  la! 

Nos  vaivéns  da  procella  desabrida  * 

Do  turvo  mar  da  vida, 
Lá  quando  o  nauta  da  aidielada  praia 
.Se  adasta  pelas  rochas  a  bater, 
Ou  (piaiido,  ii'um  momentí^,  lhe  desmaia 
O  plinrdT  (|ue  nas  trevas  crera  vc^r, 
K  o  desalento  apoz  vem  da  esperança  ; 
Só  é  j)rain  fiel,  luz  (pie  não  cança 

A  ideia  de  morrer ! 
» 
Fabrique  o  orgulho  os  thronos,  sonhe  a  gloria. 

Depois  invente  a  historia ! 
Monumentos  sem  fim  erga  a  vaidade, 
l{las|)lieme,  1'romotheu,  ou  chore,  .lob,  , 

Ao  erro  ajuste  a  palma  da  verdade, 
F'm  quanto  jul^M  Í)eos,  rasleje  o  pó; 
Ao  fniclo  da  silencia  iieb.i  o  sumo; 
Que  tudo  despiirece  como  fumo, 

E  resta  a  morle  só! 


A  morle!  a  doce,  a  perfumada  ideia 

Por  que  minha  alma  anceia! 
Alli  onde  ouiros  vêem  só  matéria 
E  o  cadáver  no  leito  sepulchral. 
Vejo  eu  a  apparição,  vivaz  elherea, 
De  gesto  encantador,  voz  divinal. 
Que  com  um  braço  o  passo  nos  conforta, 
E  com  o  outro  nos  rasga  em  frente  a  porta 
Da  existência  immortall 

A  morle!  aquella  a  que  sagrei  meu  culto, 

Que  a  Deos  não  c  insulto! 
A  (|ue  de  frágil  barro  á  terra  avara 
Atira  o  corpo  vil,  mas  a  potção, 
Que  (loulra  essência  dimanou*  prepara 
i'ara  entrar  n"oulra  cxplendida  mansão; 
A  que  os  laços  estale  em  que  me  empeço, 
A  que,  de  vida  lim,  ainda  é  começo 
E  de  vida  rasão! 

A  morte,  sim,  a  cândida  lembrança, 

A  pomba  da  alliança, 
A  que  é  so  verdadeira,  e  saiiicta,  e  jusla, 
Que  a  nenhum  foge,  que  nenhum  maldiz, 
Que  ao  triste  a  quem  a  vida  pesa  e  custa 
ÍNão  dá  mais  dos  afagos  seus  gentis 
Do  que  ao  louco,  ao  altivo  potentado, 
Que  a  nega  ou  a  receia,  ao  desgraçado 

Que  se  julga  feliz! 

Archanjo  pensativo,  clara  estrella, 
Como  eu  te  creio  bella  1 
Pallida  morte!  pallidez  suave, 
Transparência  subtil,  mimo  dos  céus, 
Transumplo,  symbolo,  padrão,  e  chave 
Do  (]ue  se  passa  alem-terrenos  véus, 
Do  que  é  sereno  e  grande,  eterno  aspecto 
Da  placidez  augusta  do  archilecto 

Dos  mundos,  seus  trophéosl 

Eu  amo  as  rosas  brancas  que  lu  pisas, 

E  as  formas  indecisas 
Do  teu  vago  perfil;  disco  de  lyrios 
Em  que,  perenne,  brilhas  no  arrebol, 
E  a  i)urpura  só  dos  meus  delírios 
Tcn  impollulo,  alvíssimo  lençol! 
Por  ti  a  minha  fé  se  ateia,  e"  lavra. 
Por  ti,  da  alma  a  suprema  e  sã  palavra, 

O  supremo  chrysoll 

Que  os  que  tremem  de  vèr-tc  face  a  face. 

Nem  te  querem  o  enlace, 
Te  pintem  dcspiedada,  foice  em  punho, 
Esquii4ida  (f  senil,  de  olhar  cruel; 
Que  para  mim,  (|ue  só  lamento  o  cunho 
De  horror  cpic  fimprimio  falso  cinzel. 
Es  vivida  e  louçã,  bálsamo,  essência. 
Ou  flor  de  immoredoura  recendencia, 
E  do  mais  puro  meti 

Por  isso  que  n'um  dia  breve,  breve, 
Em  (|ue  «o  longe  e  de  leve 
()  antegoso  pedir  de  um  teu  mysicrio 
Á  viração  que  um  sopro  leu  julgar, 
Á  rama"  do  cypreste,  ao  cemitério, 
Ou  á  discreta  solidão  do  mar, 
Possa  eu  ceder  a  fronte  ao  somno  amigo, 
E  dos  sonhos  (|uc  houver,  por  li,  comligo, 
Nu  leu  seio  acordar ! 

Imagem  lúcida,  vcslal  de  encanto, 
involvc-mc  nas  dobras  do  teu  manlo! 


12  Ue  janeiro  ilc  l8G<i 


Ernesto  Marecos. 


I  .Typ.  Fratift)-l'orliiKUCZa.  -  lUia  ilo  Tlcsouro  Velho,  6. 


I 


o  PANORAMA 


49 


A  BANANEIRA 

Das  vaiMas  espécies  em  que  se  divide  a  famí- 
lia das  Musaceas,-  a  Bananeira  c  a. mais  im- 
portante. Este  vegetal  não  é  uma  arvore,  como 
geralmente  se  julga  na  Europa,  mas  sim  uma  plan- 
ta herbácea,  vividoura  unicamente  pelas  suas  go- 
meleiras,  ecujo  tronco  morre  logo  que  dá  o  fruto. 
A  sua  vegetação  oííerece  a  maior  analogia  com  a 
das  Lilaceas.  Uma  vagem  carnuda  semelhante  a 
uma  cebola  de  planta,  espalha  raizes  fibrosas  pela 
parte  inferior  efoltas  pela  superior.  Estas  folhas, 
de  dous  a  três  metros  de  comprimento  e  de  um, 
pouco  mais  ou  menos,  de  largura,, sueccdem-sc  ra- 
pidamente, e  os  seus  pcciolos  persistentes,  que  se 
envaginam  uns  nos  outros,  formam,  em  seccando, 
uma  espécie  de  tronco  que  attinge  a  altura  de 
3  a  o  metros.  O  fruto  que  d'elle  sáe  é  um  «dos 
mais  úteis  que  se  encontram  nos  trópicos.  Duas 
espécies  sobretudo,  ^Bananeira  de  frnfa  longa  ou 
Bananeira   do  Paraíso  (Musa  paradtsiacaj  e  a 


Figueira  ou  Bananeira  dos  sabias  (Musa  mpieir 
liiuit)  fornecem  aos  habilíyites  dos  paizes  onde 
são  cultivadas  uma  parle  do  seu  Imbiluaí  susten- 
to. As  fruías  da  Bananeira  do  P<iraiso,  chama- 
das Bananas,  são  um  pouco  arqueadas,  lêem  o 
comprimento  de  12  a  15  cenlimelros,  e  encon- 
tram-se  algumas  vezes  em  numero  de  cem  e  mais 
no  mesmo  cacho.  Coihem-as  um  pouco  anles  de 
amadurecerem,  e  se  bom  que  a  sua  carne  molle 
seja  de  sabor  mui  doce  e  agradável,  raras  ve- 
zes as  comem  cruas ;  cozem-as  no  forno  ou  de- 
baixo de  cinza,  o  que,  realmente,  as  torna  um 
alimento  muilissimo  assucarado  nutritivo  e  de  fá- 
cil digestão.  A  Banana  qurla,  ou  Figó-Banana, 
pelo  contrario,  come-se  sempre  crua.  A  carne 
d'esla  é  delicada,  molle,  fresca,  excellente.  As  ba- 
nanas verdes  encerram  muita  fécula;  maduras, 
disputam  o  lugar  á  Canna  pela  grande  abundân- 
cia de  assucar  que  conteom. 

Para  conserval-as,  cortam-as  em  talhadas  del- 
gadas e  poem-asa  scccar.  Outros  ralam-as,  cosera- 


ÕO 


o  PANORAMA 


as  à  maneira  de  mandioca,  econverlem-as  d'esle 
modo  om  farinha,  de  que  depois  fazem  paf>a. 

As  liananciías  planiam-se,  ordinariamenle,  em 
lo^^ares  frescos  e  sombrios;  ós  renovos  são  coUoca- 
dos  dous  ou  três  melros  dislanles  uns  dos  oulros. 
V.-àih  heclomelro  quadrado  |)ro(liiz*  lermo  médio, 
2(100  kiloiírammas  de--bananas;  oiiiíe  fornece  uma 
collieila  mais  considerável  ^mu  mateíjia  milriliva 
que  nenhuma  outra  planta  cuUrvada.  ()  frumenlo, 
em  uma  extensSo  igual,  j^ão  dá  mais  que  lo  kilo- 
irrammas  de  írrão,  o  a  balata  produz  em  pezo  43 
vezes  meno5  do  que  a  bananeira.  Entre  as  outras 
espécies  da  meímaf^nilia.  ciíaremos  ainda  a  /ií/- 
nanoira  da  China  {}fum  sinensis^ ,  qéie,  talvez,  não 
passe  de  uniahrariedadc  da  J/«.s7í  saj*/Qntinm.  Não 
excede  dois  melros  de  altura  e  produz  nas  nos- 
sas estufas  um  píiaueno  fruto,  mas  cxceTlente.  Em 
muitos  paizes,  osTiabilanles  cobi'em  as  casas  com 
as  gran-des  folhas  da  J/í'.*  paradisíaca  e  da  Musa 
sai)ii')iliiiiii  e,  fambem  d'ellas  se  servem  para  fa- 
bi-icar  cordaii  tecidos,  cestos  e  muitas  outras  obras 
d  "arte.       _^_ 

A  C.ílAVrRA  EM  MADEIRA  EM  PORTUGAL 

Por  NOGUEIKA  DA  SJiVA. 

A  gravura  em  madeira  pasceu  entre  nós  com  o 
Panorawu,  e  %i  seu  primeiro  cultor  Bordalo  Pi- 
nTieii'o,  aiiista  èem  cdlhecido  pelas  suas  obras  de 
esculptura  e  gcnio  emprehondedor. 

Não  são  ft  muito  relevo  para  a  apreciação  ab- 
soluta os  ensaios  publicados  n'aquelle  jornal;  po- 
rem, á  luz  da  historia  da  nossa  arte,  sobresaem 
pelo  prandeji mérito  da  iniciativa,  que  c,  ci^i  Iodas 
as  cousas,  a  chave  do  piogresso. 

Sem  meslie,  nem  livro  da  especialidade,  porque 
não  o  havia  então;  tendo  de  adivinhar  b  systema 
e  os  meios  práticos  pelo  que,  apenas,  a  sua  in- 
telligencia  ^)odia  l6r  na  simples  observação  das 
gravuras  estrangeiras,  Bordalo* 'fez  mais  do  (jue 
seria  rasoavel  exigir.  As  suas  tentativas,  postoque 
ettremamenie  longe  das  estampas  áoMaf/asin  Pil- 
/0/T.S7///P,  sobre  cujo  molde  se  publicava  o  Panora- 
ma, nãoparecem  os  prelúdios  de  uma  arte  que,  na 
presença  de  tã(fadveisas  circumstancias,*  póde-se  di- 
zer, apparecia  entre  nós,  como  se  não  existisse  em 
parle  alguma. 

E  í^ie,  á  semelhança  de  Alberto  Durer,  IJorda- 
lo  Pinheiro,  voando  nas  azas  do  seii  engenho,  rom- 
pia por  si  só  o  veu  (|ue  em  l*ortugal  occultava,  nas 


trevas  de  uma  completa  ignorância,  os  segredos 
do  mais  dillicil  género  de  gravura. 

Mas  esto  iriMmplio,  sullicienle  para  glorificar  o 
nome  de  um  homem  n'um  paiz  em  (|ue  se  soubesse 
o  que  era  art.^,  e  quaes  as  suas  iniluenciasnos  pro- 
gressos pliysicos,  moraeí  a  religiosos  das  socie- 
dades, não  bastou  ao  artista,  (|ue  jjictendia  alcan- 
çar as  gravuras  estrangeiras  no  avanço  em  que  já 
iam  então. 

Vendo,  pela  experiência,  (|uc  do  estudo  de  de- 
senho especial  dependia  o  aperfeiçoamento  da  gra- 
vura wi  madeiía,  resolveu  entiegar-se  todo  a  es- 
sa parlicularida(h\.  eonliado  nas  boas  disposições 


que  tinha  descoberto  em  Baptista  Coelho,  a  quem 
tomou  por  discípulo  e  em  breve  habilitou  para 
substitui-lo  e  auxilia-lo  no  patriótico  empenlio. 

Pena  foi,  porém,  que  este  expediente,  aliás  pro- 
duclivo,  não  fertilisasse  tanto  quanto  havia  rasoa- 
velmente  a  esperar. 

Doixando-se  atterrar  na  presumpção  exagerada 
de  certos  obstáculos,  o  artista  escolheu  um  géne- 
ro que,  pela  sua  extrema  facilidade  e  detestável 
menotoifia,  paraJysava  a  acção  variada,  graciosa 
e,  por  vezes,  inicial  em  que  deve  e'xercilar-se  e 
ameslraV-se  o  bnril.  Com  o  intento,  mal  funda- 
do, de  facilitar  o  ensino,  desenhava  tudo  a  traço 
parallelo,  e  o  novo  gravador,  habituando-se  a  es- 
te trabalho  mediqcre  e  viciado,  não  poude  dar  á 
arte  aquelle  impulso'  que  uma  vocação  regular, 
coftio  a  de  Coelho,  teria  de  certo  imprimido,  se 
o  mestre,  menos  medroso  e  míiis  severo  para  com 
a  commodidade  do  disci|íulo,  o  houvesse  obrigado 
a  encarar  sem  receio,  nem  susto*  toda  a  cathegoria 
de  ditUculdades.  ,*, 

Depois,  a  estas  circumstancias  v(;io  juntar-se  a 
morte,  hoje  por  dugs  tezes  reconhecida  apparen- 
le,^do  jornal.  Bordalo  Piflheiro*achou  inesperada- 
mente um  dia  cortaíío  o  lio  das  suas  esperanças, 
e  olhava  inc|:edulo  para  o  illustre  tinido,  que,  pe- 
la violeílcia  e  fatal  brevidade  da  agonia,  não  tive- 
ra tempo  i)ara  dotar  a  arte  nacional,  no  valioso 
testamento  que  deixava,  com  titulo  superior  ás  hon- 
ras modestas  de  uma  auspigo^a  apresentação. 

Todavia,  se  lhe  naufragou  o  i^lento  em  tão  co- 
fiioso  diluvio  d^  fal.alidades,  ficou-llie  de  pé  a  glo- 
ria, immarcescivel  de  ha#er  dado  ao  terreno,  (|ue 
o  seu  esforço  patriótico  amanhava,  as  dimensões 
precisas  j)ara,  mais.  tarde,  oulros  poderem  levan- 
tar, em  mohmnenlos  eloquentes,  a  realisação  de 
suas  aspii'ações.  • 

JOAQUIM  JOSÉ  DOMINGUES  LIMA 

Reinando  no  interi^or  da  j)rovincia  da  Bahia 
uma  fome  horrível,  á  qual  succumbiram  centenares 
de  pessoas,  foi  ainda  «  sr.  Lima  em  auxilio  dos 
infelizes  habitantes  d'aquettes  remotos  sertões,  an- 
gariando-lhes  uma  subscripção,  qne  produziu  um 
conto  e  sessenta  e  cinco  mil  réis.  acção  pela  qual 
foi  merecidamente  louvado  pelo  governo  e  imprensa 
do  Brazil. 

Como  membio  das  commissões  nomeadas  pelo 
consulado  portuguez  para  promoverem  subsci"ip- 
ções  em  favor  dos  habitantes  de  Cabo-Verde,  lam- 
bem llagellados  pela  fome,  e  dos  asylos  (fe  infân- 
cia desvalida,  de  Portugal,  ninguém  mais  do  que 
elle  se  esforçou  para  qike  a  jwinuMra  produzisse 
dois  contos  e  oito  centos  mil  i'éis,  e  a  segunda 
dois  contos  duienlos  e  noventa  e  Ires  mil  (|ui- 
nhenlos  réis. 

Egual  esforço  empregou  para  se  levarem  a  ef- 
feilo  as  magnificas  exéquias,  que  no  Maranhão  se 
celvbraram  pelo  eterno  descanço  da  virluosa  Bai- 
nha, a  sr.  I).  Maria  2.',  e  do  chorado  Bei,  o  sr. 
I).  Pedro  V,  lambem  como  membro  das  commis- 
sões para  esse  fim  nomeadas.  K  lendo  um  dos  so- 


o  l»ANOUAMA 


51 


cios  fundadores  da  Sociedade  portugueza  de  bene- 
liceiíciâ,  denominada  —  Humanitária  1."  de  de- 
zembro —  Sociedade,  que  se  dedica  exclusivamente 
osporluguezesa  soccorrer  desvalido»,  e  que,  n'este 
sentido,  lem  prestado  grandes  serviços,  ninguém 
mais  do  que  o  sr.  Lima  se  tem  empenhado  pelo 
seu  engrandecimento  c  prosperidade. 

Finalmente,  são  tão  numerosos,  cumo  dissemos, 
os  actos  de  philantroj)ia  praticados  por*a(|ucile 
generoso  portuguez,  que  fião  podemos,  sem  tomar 
grande  espaço  a  esta  interessante  i)ublicação,  dar 
noticia  de  todos  elles'  aos  i^ossos  leitores,  pois 
ainda  não  lia  muito,  grassando  no  Maranhão,  com 
lerrivel  intensidade,  a  epidemia  das  bexigas,  nma 
carta,  qued'8lli  temos  á  vista  nos  pinta  o  sr.  Lima 
andando  de  casa  em  casa,  ou  antes  de  mansarda 
era  mansarda,  a  prestar  toda  a  casta  de  soccorros 
aos  infelizes  aLacado^s  (♦'aquella   lerrivel  moléstia. 

Sirva,  porem,  o  que  temos  dito  para  dar  idéa 
dos  sentimentos  humanitários,  »  coração  caritativo 
do  nosso  benememto  compatriota,  e  para  que  o 
seu  nome  seja  senipra  lembrado  com  respeito  e 
veneração  entre  os  d'aquelles,  que  mais  se  distin- 
guem por  acções  generosas,  verdadeira  philantro- 
pia  e  caridade  evangeiiea. 

Nasceu-  o  sr.  Lima  em  Lisboa  a  8  de  agosto  de 
181Í,  sendo  lilho  do  negociante  José  Domingues 
Lima,  e  1).  Joaquina  Rosa  do 'Livramento  Lima, 
ambos  já  lallecidos. 

Foi  para  o  Maranhão  e!nl827,e  alli  lem  exer- 
cido sempi'ea  prolisSão  de  caixeiro,  servindo  como 
tal  na  casa  do  negociante  inglez,  Henrique  Sea- 
son,  ha  trinta  annos.  •  ** 

Pouco  auibicioso  de  adquirir  bens  da  foriuna, 
vive  modestamente  do  seu  parco  ordenado,  que 
ainda  frequenlesi  vezes  dizima  em  favor  dos  indi- 
gentes, pois  é  em  soccorrel-os  que  consiste  todo 
o  seu  prazer.*' 

Paga  também  a  educação  e  serve  de  pai  a  uma 
interessante  menina  [fbandonatla,  cuja  historia  ro- 
mântica-não  cabe  ms  limites  d'este  pequeno  ar- 


tigo. 


J.  IL  d'Oliveira  Samos. 


preambulo  a]udar-me  do  seu  costumado  estilo,  era 
(|uerer  louvar  as  excellencias  de  V.  A.co\iio  elles 
fazem  aos  senhores  a  quem  suas  ohi-as  endereção, 
que  farei?  sendo  certô  (|ue,  ainda  que  fosse  cm*  mi 
só  a  sua  oratória  tão  facunda  como  em  todos  elles 
e  me  fosse  tiasjiassado  o  espirito  de  David,  não 
presumiria  escrever  de  V  A.  a  miiiima  iiarle  ilesua 
iwagnilica  bondade,  de  sua  noblissima  condição, 
de  sua  discreta  mansidade,  do  perfeito"  zôlo*  da 
sua  justiça,  da  sua  paz,  da  sut  gueria,  da  sua  gra- 
ça, gravidade,  conselho,  sabedoria,  iiharalidàde, 
pindencia,  e  linalmenle  do  seu  chrisliani*simo  lir- 
mamento.  Outro  si  querendo  navegar  pela  rola  do 
seu  exórdio  d'elles,  pedindo  a  V.A.  favor  e  era- 
paro  paw  que  minha  enferma  escrij)luia  não  seja 
ferida  das  linguas  damnosas ;  parecc-me  injusta 
oração  pedir  tão  alto  esteio  para  tão  baixo  ediiiciO; 
([uanto  mafÇ>  que,  ainda  que  digno  fora  de  tão  no- 
bvQ  emparo,  tenho  considerado  que  Christo  lilho 
de  Deos  sob  emparo  do  poderio  eternal  dfe  Padre, 
e  lodos  seus  bemavenlurados  Sanctos,  não  passa- 
rão por  esta  vida  tão  livres,  que  dos  malditos  de- 
tractores não  fossem  julgadas  siftis  divinas  obras 
por  humanas  leviandades,  sua  saneia  doutrina  por 
máxima  ignofancia,  sua  manifesta  bondade  por 
falsa  malTcia.  sua  sanctissima  graça  i)or  sorreticio 
engano,  sua  excelça  abstineocia,  por  vil  hypocrisi«, 
sua  celeste  pobreza  por  terreno  vicio.  Pois  rústico 
peregrino  de  mi,  (juc  espero  eu.'  Livro  meu,  (fue  es- 
peras tu  !  Porem  te  rogo  que  (juando  o  ignorante 
malicioso  te  reprender  que  lhe  digas:  se  meu  mestre 
aqui  estivera,  tu  calaras.  Finalmente  que  por  escu- 
sar estas  batalhas  e  por  oulros*respeitos,  estava 
sem^iroposilo  de  im])rimii-  minhas  obras,  se  V.A. 
mo  não  mandara,  não  por  serein  dignas  -de  tão 
esclarecida  lembiança,  mas  V.  A.- haNlíMa  respeito 
a  serem  muitas  d'elias  de  de.vação  e  a  serviço  de 
Deos  endereçadas,  e  não  quiz  que  se  perdessem 
como  quer  que  cousa  virtuosa*,  |M)r  pctjuena  (|ue 
seja  não  lhe  liça  j)or  fazer.  Por  cujo  serviço  traba- 
lhei á  copillação  (relias  com  muila  pena  de  níinha 
velhice  e  g'oria» lie  minha  vontade,  cpie  foisanpre 
mais  desejosa  de  servir  a  V.  A  que  cubiçosa  de 
outro  nenhum  descanso. 


EPISTOLA  DEI^CATORLV 

de  f>il-Vicrii(e  a  D.  Joiío  III 

Os  livros  das  obras  que  escriptas  vi,  Sereníssi- 
mo Senlior,  assi  em  metro,  como  em  prosa,  são 
Ião  llorecidas»de  scientes^ matérias,, de  graciosas 
invenções,  de  dóceis  eloquências  e  elegâncias,  que 
temendo'  a  pobreza  de  meu  engenho,  porque  na- 
ceo  e  vive  sem  ^)ossuiJ•  nenhua  destas,  deteuni- 
na\a  leixar  minhas  misérrimas  obras  por  impri- 
mir, porque  os  antigos  e  modernos  não  dei\árão 
cousa  boa  por  (jizçr,  nem  invenção  linda  por  achar, 
nem  graça  por  descujjrir.  Assi  q^e  para  passar 
seguro  da, pena-  que  minha  ignorância  padecer 
não  escusa,  me  fora  fermosa  guarida  não  dizer  se- 
não o  que  elles  disserão,  ^inda  que  eu  ticásse  co- 
mo eco.  nos  valles,  que  falia  o  que  dizem  sem  sa- 
ber o  que  di-z.   Porem  querende  eu  no  presente 


FABl  LA  DE  JOSÉ  MARÍH  DA  COSTA  E  SILVA 

o  lii|>i«lario  c  o   «liaiuautf 

Um'lapidario  ignorante        , 

Um  diamante  ^      * 

Comprou; 

Ténue  cabello  lhe  achou; 

Mas  no  niíiis  era  excellente 

Por  grandeZíi,  e  |)oi-  fultíor. 

Para' til  ar-lhe  o  defeito 

Com  todo  o  geilo 

Limava;  .  ^ 

Fundamente  o  lapidava. 

E  a  grandeza  cerceando, 

Diminuiu-lhe  o  valor. 


52 


O  PANORAMA 


Ohl  quantos,  quantos,  authores, 
Eiuendadores 
.  Eu  vi,. 

Que  rhscando  aqui,  p  alli, 
Çoin  \ãs  correçOes  tiravam  . 
Ás  obras  lodo  o  vigor. 


Considerai  a  multidão  o  a  lirandeza  dos  mnlos 
que  oppriíiiem  as  cveanças,  e  quão  cheios  de  vai- 
dade. ([['  Sí^lVinuMUos,  de  ^Ilusões,  de  sustos,  são 
os  primejrtv^  aniios  da  sua  vida;, depois  qupdo 
adultos,  e  (juando  mesmo  principiam  a  servir  a 
Deos,  tentam-os  o  erro  para  seduzii-os,  o  traba- 
lho c  a  dòr  para  enfiaquecel-os,  a  imiontencia 
jiara  inllaaiimal-os,  a  tristeza  ])araabatel-os,  o  or- 
giilho  para  eleval-os;  e  (|uem  poderia  rei)resenlai', 
em  poucas  palavi-as,  tantas  penas  diversas  quejjc- 
sam  sobre,  os  lilhos  de  AdSo?  A  evidencia 
d"estas  jniserias  tem  forrado  os  philosophos  j)a- 
gãos,  que  não  sabiam,  nem  acreditavam  no  pec- 
cado  do  nosso  j)ijmeiro  jiai,  a  dizer  que  nós  não 
tínhamos  nascitte  senão  para  sollrer  os  castigos 
que  merecer^nos  por  alguns  crimes  commcttidos 
em  uma  outra  vida,  e  que  por  isso  ae  nossas  almas 
ha\iam  sido  unidas  a  coipos  corruptitcis,  pelo 
iijesmo  género  de  supplicio  (juc  os  tyrannos  da 
Toscana  íaziam  s^flrer  aos  enles  vivos  ligando-os 
a  corpos  mortos. 

Esta  opinião,  poiém,  (|ue  as  almas  são  juntas 
aos  corpos  ein  castigo  das  laltas  precedentes  de  uma 
outra  vida,  e  rejeilat^i  jielo  ajioslolo.  Oue  secon- 
clue,  pois,  senã<t  (|ue  a  causa  d't^leS|fnales  liorri- 
veis  seja,  ou  a  injustiça,  ou  a  impotência  de  ^)eo5', 
ou  o  castigo  doyriuíciro  peccadodo  homem?  Mas, 
poiqiie  Doi)s  não  é  nem  injusto,  nem  impotente, 
outiik  coisa  se  conclue  que  não (|uereis  reconhecei', 
mas  que  e  necessário  (jiie  a  reconheçais;  e  vem 
d  ser,  que  o  jujo  Ião  pesado  (|ue  os  lilhos  de  Adão 
são  obrigados  asupportar  desde  ([ue  saem  dovcn- 
tre^e  sua  mãi  ale  que  entram  no  §eio  da  sua 
raãi  €ommum,  íjue  c  a  terra,  não  o  leria  sido,  se 
o  não  houxfssem  merecido  pelo  crime  (jue  liram 
da  sua  origem.  Samo  Agostinuo. 


IKIGARTll 


Por  PI.MlEmO  CHAGAS. 


A  caiicatura.  (|uando  è um  j)amj)hlelo  desenha- 
do lem  um  instanlcde  voga,  e  morre  com  as  pai- 
xões que  lhe  deram  origem.  Esse  desabafo  chis- 
toso da  veia  satyrica  de  um  pintor,  quasi  sem- 
pre [)r()voca  apenas  o  riso  dosçonlcmpoiancos,  e 
não  tem  o  minimo  interesse  aos  olhos  da  posteri- 
dade. Ha  apezar  4'is.so  um  hoTiiem  notável.  (|ue  só 
caricaturisla  foi,  cujas  graN uras  hão  de  viver  eter- 
namente, admiradas,  apreciadas  por  todos,  e  já  de- 
ram ao  seu  aucloi'  nina  reputação  que  os  seus 
trabalhos  de  pintura  seria  nunca  lhe  {)0(leriam  as- 
segurar. 

É  porque  a  íarça  morre,  ma.s  a  comedia  fica ; 
é  porque  o  pamphleto  desfolha-se  ao  vento  das 


paixões-,  que  o  inspiraram,  mas  a  salyra,  quando 
a  traça  mão  de  mestre,  atlronta  impávida  as  vicis- 
situdes do  tempo.'  É  porque  o  pamphleto  verbera 
este,  ou  aqueile  homem,  cuja  nome  até  muitas 
vezes  se  apagada  memoria  das  gerações,  e  a  salyra 
dos  mcslres  fustigando  derelanceasuaviclima,  as- 
senta o  látego  no  homem  que  tem  sempre  os  mes- 
mos ridículos,  os  mesmos  vicios,  as  mesmas  pai- 
xões. O  TartulTo  assentava  o  chicote  nas  coslasde  não 
sei  já  que  prelado  frantez,  mas  ainda  hoje  zurze 
ini|)la('avel  a  numerosa  família  dos  hypocritas;  a 
Vcna  de  Talião  verl^erava  José  .\gostinho  de  Ma- 
cedo, mas  não  ha  um  só  verso  d'essa  admirável 
salyra  que  jião  estale  magnilicamenle  no  dorso 
da  innumeravel  prole  litteraria  do  frade  verseja- 
dor. 

As  caricaturas  do  celebre  pintor  inglez,  cujo 
retrato  apresentamos  hoj#  aos  leili^res  úo  Pano- 
rama, possuem  esse  dom  preciosíssimo  da  sa- 
lyra. A  phylosoplíia  galhofeira  dessas  bellas  gra- 
vuras não  e  só  applioavel  ao  século  \VllI,e  a  se- 
rie que  se  intitula  aCasammlo  da  moda»  é  de  cir- 
cunstancia cm  lodos  os  tempos.  Aá  dillerenles  se- 
ijics  das  gravuras  de  llogarlh,  consliluera  como 
os  albums  de  Gavarni  (laienlo  que  é  da  mes- 
ma familia,  (jue  o  do  cai'icalurista  inglez)  ver- 
dadeiros romances  á  l|alzg,c,  romances  onde 
o  phylosopho  colhe  uma  'opulenta  messe  de  pro- 
fundas observações  sobre  a  natureza  humana, 
e  o  historiador  jircciosissimos  estudos  de  costumes 
do  século  XVI II.  ♦ 

E,  nole-se  mais  ainda,  a  fama  de  llogarlh  é  in- 
(lr[)endénte  dt)  a|)rimoiado  dos  seus  desenhos.  No- 
tam os  conhecedores  defeitos  gravissiiiios  na  ma- 
neira do  pintor  e  gravador  inglez.  O  seu  colorido 
é  péssimo,  os  seus  quadros  sio  «juasi  sempre 
csbocelos,  as  suas  gravuras  não  lêem,  uma  estre- 
mada correcção,  mas  a  idóa  tudo  tiomina  e  ludo 
desculpa;  na  idéa  é  quese  rcNcla  ograiule  homem. 
Com  dois  traços  rápidos  evHiemenles,  llogarl  es- 
boça uma  scena.  A  sua. veia  <inaliciosa  foz  cresses 
dois  traços  um  poema  salyrico,  do  poema  salyrico 
um  degrau  para  a  immorlalidade. 

William  llogarlh  nasceu  em  Londres  cm  1008 
Seu  |)ai,  revedor  de  provas  ifunia  typographia, 
melleu-o  como  apreiítliz  cm  casa  de  um  ourives. 
Mas  esse  demónio  familiar,  que  se  chama  génio, 
desenrolava  já  diante  dos  olhos  de  llogarlh  as 
suas  miragens  prestigiosas.  Saio  de  casa  do  ou- 
rives com  umas  leves  tinturas  de  desenho,  de  (|ue 
se  sérvio  paia  viver  muito  a  cusl«,*  e'  na  maior 
miséria.  yVssim  mosmo.enti^  osvendavaes  da  ad- 
versidíide,  o  lápis  ia  traçando  no  |)apel  os  prelú- 
dios d'essa  comedia,  (|ue  Imvia  depois  de  lazer  as 
delicias  (la  velha  Inglaterra.  Ima  caricatura,  re- 
presentando um  pugilato  de  bêbados  chamou, 
para  elle  a  altenção.  O  nosso  Ilouarlh  da  pcíuna, 
[Nicolau  Tolenliiio,  também  se  uãodediguou  com- 
memorar  n'um  dos  seus  mais  chislosos  soneloi 
uma  scena  semelhante.       '  * 

A  dona  da  casa,  em  que  o  píulor  inglez  morava, 
persegiiia-o  por  causa  de  uma  divida  de  uns  vinte 
schellings.  llogaTlh  creio  que  lhe  não  pagou  os 


o  PANORAMA 


vinte  schillings,  mas  passoii-lhe  uma  ielra  com 
o  endosse  para  a  poslerjdado.  Essa  letra  era  a  ca- 
ricatura da  biâonba  proprielaria. 
Foi  então  que  um  livrei i  o  o  encarregou  de  lhe 


53 


lilusírar  o  Ifudibras  da  Butler.  Esse  trabalho  de 
maior  fôlego  assegurou  a  sua-  reputação.  Estava 
encontrada  a  mina;  o  obreiro  foi  incancavel  Todas 
as  physionomias  do  século  XYIIJ  c  todos  os  gra- 


ves personagens  da  sisuda  Inglalen  a  desfilaram  cm 
procissão, evocadospelo  implacável  lápis  do  chistoso 
pintor,  entre  as  gargalhadas  do  publico 

oilodaKíí^a  de  tm  devam,  a  Feira  de  Soulhwark 


Uma  palestra  moderna  á  meia  noile,  o  Infeliz 
pocla  (de  que  n'es(e  jornal  se  deu  uma  copia)  e 
os  Comediantes  na  granja,  publicaram-se  com  mui- 
tas outras  inferioies  de  1733  a  1738.  Em  1730 
casara  elle  com  a  filha  do  pintor  Thornhill  con- 


OA- 


0  PANOIUMA 


Ira  vontade  do  fao,  que  o  tinha  na  conta  de  um 
valdevinos,  mas  que  se  reconciliou  com  eile  mal 
que  o  vio  nco.  Muilobom^^enro  foi  llçííarlli  senão 
poz  o  querido  so.^rro  no  primeiro  plano  de  alguma 
das  suas  gravuras  satyricas. 

Uogarlli  era  um  bom  rapaz,  amável,  expansivo, 
franco,  ingenuamente  vaidoso,  não  fazendo  ifiuito 
caso  do  seu  lalente  de  caricaturista,  e  tendo  a  ma- 
nia de  se  consi(*erar  o  primeiro  pintor  histórico 
lio  seu  loiupo.  Desgraçado  de  quem  ousava  allir- 
niar  diante  d't'lle(iue  Úubens  (ui  Van  Dick  seriam 
dignos  ffe  mais  alguma  coisa  do  que  de  lhe  moer  as 
tinias.  Um  dia  lenibrou-se  de  provar  o  seu  dilo^ 
fazendo  um  quadro  que  elleannunciou  alto  ebom 
som  que  devia  desbancar  outro  de  Correggio 
sobre  o  mesmo  assumpto.  Era  uma  Sif/isinundu. 

Concluio-sc  e  expoz-se  o  miserando  quadro. 

Não  se  pôde  imaginar  o  diluvio  de  jiiotejos  a 
que  deu  origem,  llogarlh,  furioso,  voltou  n'um 
Ímpeto  de  cólera  á  sua -verdadeira  inspiração,  e 
fulminou  os  dois  principaes  motejadores,  CJiur- 
cliill  e  Wilkes,  com  duas  caricaturas,  que,  como  di- 
zem os   Francezes,  viirent  ^es  ricurs  de  son  cole. 

Eslava  doente  n'essè  occasião,  mas  teve  tan- 
ta satisfação  em  se  ^n^i  que  de  puro  gosto  re- 
cobroh  a  saúde.  E[elle  mesmo  quem  o  conta  nas 
suas  Aiieducles  of  mi/.self\i\io  citado  por  Thacke- 
rav  no  seu  bello  (^sluáo  sohvn  The  Linfjlis/i  /lumoii- 
risls  of  l/ie  cif/lileenlh  eentury. 

íiT/i(>  pleasure  ir/tích  I  dcrived  froiii  Ihese  two 
enf/ruvhias  restored  me  (b  as  much  lleulth  as  can 
hc  expeclrd  ai  iiiij  fiine  of  tife. 

Com  tildo  p  sua  saúde  licou  sempre  alterada  até 
que  morreu  em  ITOí. 

As  suas  gravuras  mais  uplaveis  além  das  que 
ja  mencionamos  são:  O  musico  damnado,  O  casa- 
iiirnlo  da  moda.  A  industria  e  a  ociosidade,  e  as 
J*  o  lias'  de  Ca/ a  is. 

Se  não  juntou  um  nome  illustre  aos  tantos,  que 
já  liguiavam  em  torno  dos  grandes  mestres  da  ar- 
te italiana,  llamenga,  ou  hespanhola,  leve  cm  com- 
pensação uma  gloria  maior,  a  de  abrir  uma  [lagina 
nova  na  hisl^iia  das  bellas  artes,  e  de  dar  á  sua 
pátria  um  gene]"o.quíí  ella  ainda  hoje  cultiva  com 
buccesso,oda  caricatura  humoristica. 


A    UALATEA    MODERNA 

;      Por  A.  OZOIUO  dÉ  VASCONCIÍLLOS 
•  Et  fugil  ad  s.ilire? 

Alfi-tnlo  de  .llrllo  a  .%iitonfo  .llvaron 

Meu  caroT\nloni(r.— Eslou  em  plena  cdade-mc- 
dia. 

Sc  eu  flvesse*  talento  descriptivo  de  N\alter  Scoll 
e  o  hrismo  senliiiiental  de  ()cta\e  Eeuillet  pode- 
la  apresentar  a  teus  olhos  um  (|uadro  esplendido  im- 
pregnado do  suavissimu  perfume  das  eras  cavalhei- 
rosas.  .  • 

Bem  sabes  (piai  era  o  meu  viver  n'essa  monó- 
tona e  aborrida  Lisboa,  cujo  bulício  mais  parece 
o  rouí|uejar  do  febricilanle  do  (|ue  o  estridor  do  tra- 


balho. Sabes  que  me  contraia  ahi  em  espasmos  de  té- 
dio, farto  de  ouropéis  enganosos,  repleto  de  bai- 
les faustosos,  aonde  lodos  se  cobromcom  a. mas- 
cara da  opulência,  e  pompeiam  galas  m(^nlidas. 
iNão  nasci  para  esses  esplendores,  (jiie  me  ceg*am 
e  otTuscam.  Os  meus  ouvidos  melhor  se  dão  com 
o  murmurar  queixoso  dos  regalos,  com  os  quebros 
dos  passarinhos,  que  saltitamMios  recessos,  como 
rumorejar  dos  ra^^. 

De  noite  mais  \W  apraz  oscinlillar  da  estrella 
por  enUe  nuvens  sombrias,  de  que  o  jorro  perenne 
de  go.z,  cuja  luz  se  relVange  nos  piíigeutes  do 
lustre.  Sou  rico  e  não  lenho  ambições.  Com  pouco 
me  contento,  c  pouco  ai^peleço  d'essat  vaidades 
mwnúdims,  sombras  p/iosp/iorecoiles,  se  me  descul- 
pas a  expressão,  atraz  das  quaes  todys  correm, 
como  a  Ophelia  do  grande  poeta. 

iSão  julgues  que  fallo  sem  conhecimento  de  causa. 
Demasiado  conheço  o  mundo,  apezar  dos  meus 
vinte  e  três  annos.  Hoje  enverga-se  a  toga  viril  aos 
dezoito  annos;  aos  fínle  somos  sceplicos  'e  blas- 
phemamos,  aos  vinte  e  cinco  desejamos  síltar  a 
pátria  periclitanle,  depois  alcançamos  uma  caria 
de  conselho^  que  cimentaa  excelleiícia  embais  per- 
duráveis, e  a  linal,  senão  chegamos  a  ministro  ou 
não  somos  barão  sem  baronia,  vamos  comer  esses 
reditos  proventosos,  despojos  opimos  de  vuia  tra- 
balhosa, em  suave  e  tor|)e  aposentação,  até  que  a 
morte  nos  arrebate  da  eoi-rente  do  egoísmo,  jiara  nos 
arrojara  sepultura,  deixando  logar  a  outros,  que 
seguirem  o  mesmo  caminho. 

OhlEu  sinto  profundo  horror  por  este  rnoderno 
sybarilismo,  em*(iue  os  próceres  pela  intellig*encia  se 
bandeiam  [)ara  serem  os  p.arasitas  do  povo!  Ja 
não  ha  Tácitos  que  os  verberem  com  o  látego  im- 
piedoso e  lhes  imprimam  nas  faces  hedfoydtis  o 
ferrete  da  infâmia  e  ignominia. 

Fujo  d'elles  como  (le  um  ruim  fermenlo.  Tenho 
medo  (|ue  me  contaminem.  Sigam  outros  o  exem- 
plo d'elles;  eu  não,  que  nasci  n'este  século  com  uma 
abna  dos  velhos  iempos.  Sequeslro-me  do  mundo, 
porque  o  mundo  se  corrompe.  Yollo-me  pira  o 
passado,  abraço  a  natureza  e  adoro  OH:reador. 

Ah!  Reparo  agora  como  eu  ia  divagando  mora- 
lidades, parvoas  parenesis  deslocadas  n'esle  século. 

Yolto-mejá  ao  principio  d'esla  carta. 

Dizia-te  (|ue  estou  em  plena  edade  media.  Eu  le 
conlo.  Convidado  ha  muito  por  um  fidalgo  da  pro- 
víncia, que  foi  amigo  de  meu  pai,  e  c  parente  re- 
moto ila  minha  família,  fugi  um  dia  de  Eisboa, 
e  vim  abrigar-mc  aíjui,  n'esta,  aldeia  ignota.  A 
casa  aondei^habito,  ((|uizera  dizer  tecto,  que  me 
abriga,  mas  os  K'lhados  alluidos  gão  m'o  pcrmit- 
tem),  é  uma  das  velhas  honras  dos  saudosos  leni- 
pys  de  Egas  ]Moniz,j)oi(|ue  no  lar  dos  velhos  ca- 
valíeiros  dâ  cruz,só  a.iionra  enlravíi' e  iii^día\a. 
As  paredes  de  granito,  meio  dorrocadas  dobram  sob 
o  pezo  dos  annos.  As  janellas  góticas,  com  umas 
vidraças  toscas,  lançam  uma  claridadiC  dúbia  nos 
a|)osentos  sobradados  de.  v<!lho  e  negro  castaubo. 

A  porta,  da  entrada,  com  uirs  reinlilhados  gros- 
seiros quasi  inleíramenle  obliterados,  suslentando 
a  custo  umas  armas  cheias  de  musgo,  mal  pôde  com 


o  PAXOKAMA 


^0 


as  costaneiías  de  carvalho,  que  giram  em  quicios 
empenados. 

A  casa  eslá  ,110  lopo  de  uma  alameda  estreita 
longa  e  escura. 'Por  noite  de  inverno,  quando  as 
folhas  caem  noclião  e  revoluteiam  impoilidas  pelo 
vento  gelado,  os  cedros  como  que  abrigam  comas 
ramas  sombrias  os  braços  descarnados  e  nodosos 
dos  castanheiros,  ao  tempo  que  cada  cipreste  me- 
neando a  coma  esguia  meio  encuberla  pelas  outras 
arvores,  parece  o  penacho  ^  um  ginete  phantas- 
tico,  que  escarva  no  tumulo  de  valente  guerreiro, 
e  agita  a  cabeça  em  signal  de  dó. 

Era  noite  cerrada  quando  chegei  ao  solar  do  meu 
parente.  Ouvia-se  o  mar  ao  longe  a  bater  nas  pe- 
nedias, e  a  brisa  nocturna  açoitando  o  arvoredo, 
que  projectava  sombras  immensas.  Na  athmos- 
phera  não  havia  uma  nuvem;  a  lua  brilhava  lim- 
pida  no  grande  tabernáculo  do  universo;'  Ia  só.  O 
meu  cavallo-  resfolegava  de  medo  quando  uma  som- 
bra o  cegava.  De  voz  em  quando  batia  com  aspa- 
las  nas  pedras,  soltas,  que  saltitavam  pelo  chão, 
e  ceiam  nas  folhas  seguindo  um  serpear  rumoroso. 

Chegado  ao  fim  da  alameda,  entestei  com  o  velho 
portão  carcomido.  Quizera  ler  ao  lado  a  trombeta 
dos  paladinos  para  soltar  uma  nola  que  echoasse 
na  solidão.  E  como  que  via  homens  de  armas  e 
archeiros  aprestando-se  para  o  combate,  e  bestei- 
ros coroando  as  ameias.  Um  tronco,  que  jazia  em 
terra,  atfigurava-se-me  como  uma  catapulta  e  era 
tal  a  minha  illusão,  que  cheguei  ajulgar-me  úm 
mensageiro  de  gucira,  envolto  na  armadura,  e  so- 
pesando a  lança  e  a» acha  de  armas. 

Pouco  durou  o  engano.  Apeei-me,  alcei  três  ve- 
zes a  aldrava,  e  logo  depois  abria  um  aldeão  a 
porta. 

Ouerer  contar-te  as  minhas  impressões  ao  en- 
trar na  sala  prinoipal  fora  o  cumulo  do  impossí- 
vel. O  especta(^ulo  era  completamente  novo  para 
mim.  Imagina  uma  tala  vastíssima  toda  forrada 
de  pannos  de  ariaz,  já  muito  rolos.  No  fundo  uma 
chaminé  agigantada  meltidana  parede,  quasi  sem 
brazas.  Assentados  em  dtias  ,cadeifas  de  espaldar 
antigas  estavam  pai  c  filha,  *unicos  habitadores 
d'aquella  casa. 

Nos  rostos  de  ambos  pintava-se  o  tédio  e  abor- 
recimento. O  pai  tinha  umas  feições  de  cavalleiro 
antigo  e  respeilaCel,  denotando  os  seus  sessenta  an- 
nos.  Os  cabellos  fartos  e-compridos  iam  enbran- 
quecendo,  os  olhos  grandes  e  azues  reflectiam 
não  sei  que  perpeUia  indecisão,  uma  certa  tibie- 
za, que  se  traduzia  em  todds  os  gestos.  A  barba, 
por  uma  coptradicgão  singular,  era  completamente 
branca,  e  caindo-lhe  pelo  peito,  dava-lhe  uns  ares 
de  velho  peregrino,  cuja  vida  fora  cortada  de  ma- 
gnas e  dores. 

O  seu  todo  eva  emfim  o  retrato  dos  fidalgos 
provincianos,  que,  adoí adores  do  passado,  talvez 
])0i-que  nãp  se  sentiam  com  forças  para  seguir  o  sécu- 
lo, agarraram-se,  por  instincto  de  conservação,  ás 
tradicções  da  monarchia  antiga.  Assim  o  cêphalo- 
pode  cinge  os  innumeros  braços  ao  rochedo  do 
mar  por  não  seguir  a  corrente,' que  o  arrasta. 

Vão  acabando  esses   represenlantes  de  uma  fé 


moribunda,  que  se  esvae  a  pouco  e  pouco  impel- 
lida  pelo  bafejar  potente  das  idéas  modernas. 

Deixemol-os  em  paz,  na  contemplação  do  pas- 
sado, que  não  volta. 

•  Também  elles  tiveram  a  sua  aurora  rodeada  de 
esperanças;  também  elles  souberam  rejuvenescer 
as  tradicções  herdadas;  também  elles  respiraram 
largamente  no  grande  âmbito  da  actividade  hu- 
mana. 

Eoram,  a  seu  pezar,  obreiros  do  progresso. 
•Ouerendo  reconstruir  o  mundo  velho  sobre  os  ali- 
cerces movediços  da  revolução  ;  transformando-se 
cm  atalantes-de  um  edilicio  instável,  caindo  em- 
fim sob  o  pezo  da  cúpula,  que  haviam  erguido  a  tanto 
cust-oe  com  tanta  fé,  mostraram  na  mesma  queda 
aos  povoí  absortos  que  as  idéas  não  param,  que 
a  humanidade  caminha,  e  que  acima  de  tudo  ede 
todos,  constranj^endo  os  mais  remissos  está  a  lei  do 
p*-ogresso,tão  santa  e  divina  como  as  tábuas  do  Sinai. 

Respeitemos,  pois,  essas  cariatides  da  realeza, 
f}ue  passou.  Reluz-lhe  na  fronte  a  aureoki  da  re- 
signação. Se  dobraram  o  collo  ao  homem  é  por- 
que lhe  deram  os  attributos  da  divindade  sobre  a 
terra. 

Juncto  do  pai  estava,  como  disse,  9  filha.  Á 
primeira  .vista  cuidei  ver  uma  estatua,  tal  era  a 
lixidez,  a  frieza  o  tom  marmóreo  do  seu  rosto.  A 
sua  belleza  espanta  e  esmaga,  por  demasiado  es- 
culptural.  Debalde  procurei  o  menor  indicio  de 
turbação  depois  da  minha  entrada.  O  coração 
d'aquella  mulher  tem  a  profundeza  do  pego  tlormen- 
U;.  A  limpidez  do  seu  olhar  parece^se  com  a  do  es- 
pelho, que  rellecte  em  sala  escura  e  silenciosa  os 
raios  da  lua.  Quando  a  via  alçar  ligeiramente  o 
corpo  para  me  corlejar,  julguei  que  o  mármore, 
sem  perder  a  sua  frieza  e  correção,  se  transfor- 
mara em  carne.  Meditei  por  um  pouco  na  fabula 
de  Pygmalião  e  recuei  involuntariamente  um  passo. 

E  comludo,  ó  meu  caro  amigo,  que  formosura 
peregrina.  Seduz,  mas  não-atrae;  encanta  mas  af- 
fugenta. 

Não  sei  como  dcscrever-te  este  iypo  único,  que 
fizera  desesperar  o  próprio  Balzac.  Se  o  analysa- 
mos  como  artistas  encontramos  todas  as  perfeições 
reunidas,  sem  uma  só. discrepância. 

Phidias  não  creara  obra  mais  completa.  Yé-se 
que  n'aquelle  coração  poderá  haver  vida,  mas  la- 
tente por  ora.  Não  me  pergunfjos  mais.  Sou  na- 
turalmente curioso,  mas  não  posso  encontrar  a 
chave  d'aquelle  ènygma  esplendido.  Esta  mulher  é 
indelinivel.  Pertence  apparenlemente  a  todas  as 
escolas,  porque  para  todas  seria  modela  de  per- 
fejçãí)  physica. 

Mas  n'aquelle  rosto  tão  bello  ninguém  procure 
os  oxtasis  voluj)tuososdas  virgens  de  Murillo,  nem 
o  desi)rendimento,  o  desapego,  esse  como  que  ílu- 
ctuar  elhereo  das  madonas  deRaphael.  Nada  pro- 
cure, porque  nada  j)óde  encontrar.  Esse  roslo  é 
por  ora  um  modelo.  É  necessário  que  a  paixão 
lhe  vibre  as  cordas  do  senlimenlo  para  que  assom- 
bras se  conbinem  com  a  luz,  para  que  appareçam 
os  caracteres  proeminentes.  Quem  será  o  afortu- 
nado?... 


5  b 


O  PANORAMA 


Parecer-le-ba  singular  que  logo  depois  da  primeira 
entrevista  eu  possa  ser  tão  explicito,  dando  assim 
opinião  quasi  segura.  Ahl  É  que  tu,  ó  meu  caro 
amigo,  nunca  estudaste  o  problema  vivo,  que  Sc 
chama — mulher— For  um  presentimento,  ou.  ins- 
tincto.  que  não  sei  explicar,  ha  occasiões  da  vida, 
na  edade  das  paixões  romanescas,  em  que  somos 
dotados  de  uma  penetração  admirável.  Então,  e 
talvez  porque  e  perigo  se  nos  antolha  inevitável, 
d(C;'rram-se-nosas  profundezas,  illuminam-se,alar- 
gam-se,  vemos  tudo  um  momento,  rápido  como  o 
laiscar  do  raio,  e  depois,  quando  calmos  outra  vez 
nas  li'evas,  medimos  já  o  abysmo  aonde  vamos 
precipitar-nos.  Não  creias  que  isl^  se  possa  ap- 
plicai-me.  Longe  vá  o  agouro.  As  circumslancias, 
|)orem,  do  logar,  a  minha  imaginação  instigada 
por  uma  viagem  longa,  o  trajecto  nocturno  por 
cerros  e  algares,  as  gi andes  sombrai  dos  arvoredos, 
que  SC  destacavam  uo  lirmamento  iUuniinado  pelai 
lua.  o  profundo  rumorejar  da  noite,  todas  eslas 
impressõífs  como  que  me  atilavam  o  espirito,  con-^ 
cenlramdo-o  e'  jjredispnndo-o  à  analyse. 

.Mal  entrei,  fui  iTcebido  de  braços  abertos  ^lelo 
cavalheiro,  meu  j)arenle  e  amigo  intimo  de  meu 
jiai.  A  lilha,  que  se  chama  IX  Violante  da  Con- 
ceição, lez-me  uma  leve  cortezia,  c  poz-fie  ê  con- 
templar o  brazido  com  uma  pertinácia  incrível. 
Debalde  ccuilei  lodos  os  promenores  da  minha  via- 
gem: debalde  mostrei  o  meu  res|)eilo  i)elo  pas- 
sado e  nelos  feitos  dos  nossos  communsavoengos; 
debalde  fallei  com  azedume  da  sociedade  de  Lis- 
boa á  qual  preík'0  o  plácido  viver  campestre.  Foi 
tudo  baldado.  • 

Apenas  consegui  alguns  sorrisos  de  approva- 
ção  do  lidalgo,  e  dois  olhares  distrahidos  de  D. 
Violante. 

Comecei  a  dcsespei'ar-me.  Como  poderia  des- 
perlar-lhe  a  attençãoPEu  seu  dos  fátuos,  queima- 
ginam  enredar  logo  ao  principio  as  senhoras  bo- 
nitas com  as  arguciasíK;  minha  eloquência.  Não  lo- 
grei o  meu  intento.  As  torrentes  de  poesia  bucóli- 
ca, (|ue  se  desprendiam,  em  catadupas,  resvala- 
vam sobre  a  tríplice  couraça  da  minha  ouvinte 
distraída.  Passado  pouco,  e  aproveitando  uma 
pausa  forçada,  ergueu-se  ella,  desculpando-secom 
05  deveres  ile  dona  de  casa,  que  carecia  de  deli- 
near a  ceia.  O  velho  fidalgo  sorriu  outra  vez,  e  co- 
meçou a  contar-me  as  suas  campanhas,  como  co- 
ronel de  um  regimento  de  voluntários,  que  fez  o 
cerco  do  Porto.  A  narcotina  só  acabou  linda  a  ceia. 
Chegado  ao  meu  (|uarto  o  meu  primeiro  cuidado 
foi  escrcw;r-le  esta  cart». 

Crè-me,  como  sempre,  teu  vcrdadeiít)  amigo 
— Alfredo  de  Mello. 

ií^oiilinit") 


BEATRIZ 

VIII 

Como  já  disse,  e  agora  inda  repilo, 
Jacqups  cravisila,  e  das  mais  inliiuas 
Do  conde,...  (;  d;i  condes.sa  ;  (ora  escusado 
Dizer  islo  ao  leitor,  mas  eu  iiHo  jíosIo 
De  escuras  narrações;  prefiro  sempre 


Pôr  ludo  era  l)oa  tuz,  porque  não  quero 

fer  de  anotar,  em  dez  ou  doze  tomos 

Três  ou  qualro  de  versos,  quando  muito)!* 

No  Icmpo  em  que  eslas  cousas  succederam 

O  conde  tinha  ja,  se  eu  bem  me  lembro, 

Alguns  annos  a  mais  do  (jue  convinlia 

.\  quem  era  casado  com  Iam  linda 

E  Iam  genlit  mullicr;  lodos  sabiam 

Qué  ella  era  o  hpo  angélico  e  divino  • 

Da  santa  candidez,  que  "a  leve  sombra 

De  uni  pensamento  mau  jamais  viera 

Toldar  o  puro  ceu  (raqgellc  espirito ; 

Mas  (piem  pode  iivrar-se,  lá  um  dia, 

De  ou\ir  a  tentação,  (pie  passa  e  cania       •  ' 

Como  as  scrèas  de  que  falia  Homero? 

Não  sei,  mas  acredito,  (e  peco  venià 

,\  formosa  leitora  que,  dcce'i*to, 

Não  é  do  barro  vil  de  (pie  eu  sou  feito,  ' 

Mas  do  cryslal  de  rocha  mais  sybidol, 

Oue  á  voz  (la  tentação,  não  ha,  não  pódc 

Deixar  de  se  abalar"  quem  Icidia  peito, 

E  coração,  e  vidn,  e  saneie  ardente. 

Deos  a  affasle  d(í  nós,  (pie  lí  pra.i^a  horrível ; 

Pois  SC  a  deixa  a  vontade,  em  pouco  tempo 

I.á  SC  vai  todo  o  mundo  a  tona  d'asua  1 

O  Lucrécia,  ó  virtude  incomparável  * 

Da  Roma,  (picja  foi,  Lucrécia  antif^a, 

Como  eu  le  vejo  santa  e  luminosa 

N'um  turbilhão  de  nuvens !  —  tu  devias 

Ter  um  culto  enlre  ncis,  e,  sempre  acesas, 

Quatro  vcllas  de  C('ra  ou  de  slearina  ! 

Éii  já  \\  no  sacrílego  soneto 

D'um  Zappi  rebelião,  leu  nome  illuslre 

Atirado  ao  vaivém  de  uns  versos  toscos  ; 

Mas  vingiiei-mc  d(>pois,  que  o  próprio  vale 

Expurgou-se  de  lodo,  memorando 

A  alroz  expiação  úa  leve  culpa. 

l'or  isso  eu  teidolalro,  ó  casta  »lla, 

.Modelo  conjugal,  (pie  preferiste 

Uasgar  os  seios  d'alma.  (embora  fosse 

Apoz  o  crime  vi!;,  a  terna  vida 

(javado  o  acerbo  espiídio  do  remorso. 

Isto  não  (í  sermão,  caras  leitoras ; 

Ninguém  tem.  melhor  fé,  fé  rmis  siijpcra 

Do  que  eu  tenho,  na  extrema  pudicícia 

De  alvas  iiombas  do  ninho  meu  patcfno; 

Mas  não  posso  deixar  de  ergu(#  meu  cahto, 

E  de  saudar  a  esposa  incorruplivel 

Do  pobre  Collalino  ;  oh,  a  virtude 

É  (pianto  ha  bom  no  mundí) ;  e  se  índa  houvesse 

Conventos  no  paiz,  «m  cala  (relia 

Iria  já,  sem  mais,  mctler-me  a  frade! 

E.    A.    VID.4L. 


i 


O  ESPELHO  MAGICO 

Dizes-me  tu  mie  as  estreitas 
fogem  a  tuz  do  arrebol, 
e  que  ninguém  pòde«v(7l-as 
quando  já  dardi^ja  o  sol.        • 
Mas  olha,  eslás  enganada, 
nem  Ioda  a  estreita  ;*  occuU» 
mesnib  depois  da  alvorada. 

Se  não— já  que  é  dia  agora  — 
vae,  caminha,  desce  ao  vai,     ^ 
e  inclina  essa  fronte  lotTia 
na  corrente  de  cryslal. 
E  o  crNstal  (piô  te  revela  ? 
olha  bem  :  no  azul  dag  aguas 
não  vés  sorrir  uma  eslrella  ? 

Cam>ii>o  Fkjueiiif.do. 


Typ.  Franco-Porlngufza.  —  liua  do  Thesonro  Vellio,  0. 


8 


o  PANORAMA 


57 


VistH  pittoivsra  Mos  jiaros  ivaes  .lo  Cintrn  _  (ít.senl.o   .  arii.,,  ,|,.  \,„u..ir.,   ,1a  Silva  -  (Iravuia  ,1.  Alberto) 


58 


O  PANORAMA 


Postoque  uuiilas  hajam  sido  as  investigações 
sobre  a  origem  d  este  nolavel  e  pilloresco  palácio, 
comludo,  nenhuma  d'eilas  espalhou  ainda  uma 
luz  (jue  penetrasse  profundamente  as  trevas  que 
envolvem  o  nome  do  seu  fundador.  O  que,  ape- 
nas, se  pôde  ver  é  que  foram  árabes  os  que  lhe 
pozeram  os  alicerces  e  levantaram  as  conslrucções 
íundamenlaes.  porque  isso  nos  mostram  o  eslylo 
e  o  jilano  particular  em  que  está  moldado. 

Alguns  escriplores  attribuem  a  sua  fundação  a 
D.  João  1,  mas  a  esta  opinião  se  oppoem  as  ulti- 
mas palavras  de  um  bom  documento,  o  mais  an- 
tigo que  para  illucidação  do  assumpto  se  tem 
achado,  [que  é  uma  doação  que  dos  paços  reaes 
de  Cintra  faz  aquelle  monarcha,  em  4  de  dezem- 
bro do  anno  da  sua  acclamação,  1365,  a  D.  Hen- 
rique ^lanoelde  Vilhena,  conde  deCèa,  como  pro- 
va de  particular  alfeição  e  premio  dos  muitos  ser- 
viços preslados  por  este  nobre  descendente  do  rei 
de  rastella,'S.  Fernando;  equc  depois  foi  annul- 
lada,  não  se  sabe  como,  pelo  próprio  D.  João  I, 
(jue,  altenlando  melhor  nas  bellezas,  que  fazem  de 
(Cintra  um  verdadeiro  paraiso,  se  arrependeu 
(Ia  sua  muniiicencia,  na  verdade,  um  p^ouco 
precipitada  e  larga  de  mais. 

(.)  soberano  que  principiou  a  gosar  das  delicias  de 
Cintra,  com  freíjuencia,  foi  D.  Allbnso  III;  D.  Manoel 
o  rei  que,  em  mais  larga  escala,  começou  a  desenvol- 
ver o  palácio;  e  édo  reinado  d'este  príncipe  que  data  o 
amalgama  de  estylose  plantas  diversas,  segundo  o 
capricho,  a  moda  e  as  commodidadesde  cada  monar- 
cha, (|ue  tanto  caracterisa  aquelles  edilicios, 
onde inteiiormente nada  reina  que  corresponda  á 
luxuosa  decoração  exterior.  N'uma  época  em  que  o 
oiro  chovia  sobre  Portugal,  ceia,  por  assim  dizer,  a 
aureola  que  esmaltava  o  fundo  onde  se  via  fulgu- 
rar esplendida  a  gloria  das  nossas  assombrosas  e 
inimitáveis  conquistas,  devia  ser  mui  natural  que 
o  gosto  propendesse  lodo  para  o  luxo  das  rique- 
zas maleriaes.  Fazia-se  gala  de  forrar  os  aposentos 
de  ostentosas  tapeçarias,  e  ornamenta-los  com  al- 
faias de  custosos  valores;  e,  apenas,  para  a  arte, 
propriamente  dita,  se  guardavam  os  tectos,  como 
para  íicar,  creio  eu,  maisfóia  do  alcance  da  ^isla, 
que  mesmo  assim  não  pude  encarar  sem  resfriamen- 
to, as  linhas  contr^hidas  do  desenho,  e  a  pallidez  ca- 
davérica da  j)intura. 

A  mais  bel  la  das  obras  de  D.  Manoel  é  a  sala 
das  armas,  cujas  janellas  e  portas,  de  brincados 
relevos,  dão  exteriormente  ao  palácio  a  feição  ai- 
chiteclonica  mais  característica  do  f/ol/iíro-jlondo 
ou  manuflino,  que  (listingu(!m  inimitavelmente  as 
conslrucções  monumqitaesdo  rei  aforíiinado.  ^'o 
cenlro  do  teclo  d'osta  sala  sobresaem  aè  arnfas 
roaes,  o,  em  ciiculos  concêntricos,  primeiro,  as 
armas  de  Ioda  a  familia  real  então  existente,  c 
depois  os  escudos  das  famílias  nobres  que  mais 
dislinclamente gravaram  coma  espada  oseunomc 
nos  fastos  maravilhosos  dos  nossos  tempos  herói- 
cos. 

Enlre  estes  brazões  vôem-se  dois  espaços  onde 
mal  se  descobrem  vestígios  de  pintura.  Ahi  esta- 
vam os  escudos  do  ullimo  diniue  de  Aveiro  o  dos 


marquezes  de  Távora,  justiçados  em  1759,  pelo 
conhecido  crime  de  attentado  contra  a  vida  dei). 
José.  A  dignidade  mandou  apaga-los,  deixando 
d'elles,  apenas,  ^uma  leve  sombra  como  para  si- 
gnilicar  a  nódoa*  cora  que  aquelles  fidalgos  man- 
charam a  honra  dos  grandes  de  Portugal. 

Mandoti  D.  Manoel  fazer  as  pinturas  primitivas 
d'estes  brazõescom  a  idéa  manifestamente  politica  de 
premiar  os  serviços,  ê  estimular  o  nobiHí  orgulho  dos 
que  tanto  tinham  concorrido  para  tornar  o  nosso  no- 
me admirado  e  temido  em  todas  as  partes  do  inundo; 
enão  satisfeito  com  traduzi-la  pelas  cores,  determi- 
nou que  as  letras  viessem  ajudar  os  que  não  sa- 
biam ler  na  plasjica  do  pensamento,  fazendo  traçar 
em  grandes  caiá*cteres  doirados,  junto  ao  friso,  os 
seguintes  quatro  versos,  correspondentes  ás  quatro 
paredes  da  sala: — Pois  com  esforços  leacs — Sc/'- 
uiços  foram  (janhados — Com  estes ^  outros  taes — 
Devem  de  ser  consi-rvados. — 
.  lia  nos  paços  de  Cintra  duas  salas,  cuja  ex- 
trema singeleza  dá  á  memoria  e  consideração  dos 
factos  que  alli  se  passaram  um  tommais  poqtico  e 
melancholico.  Uma  é  a  sala  do  conselho.  lN'ella  de- 
cidiu terminantemente  D.  Sebastião  partir  para  a 
Africa*.  Alli  eccoou  pela  ultima  vez  a  voz  do  en- 
thusiasmo,  que  as  areias  africanas  abafaram  para 
sempre.  É  uma  sala  |)equena,  rodeada  de  simples 
assentos  revestidos  de  azulejos,  e  no  centro  dos 
quaes  um  tem  a  forma  de  cadeira  de  braços,  onde 
o  joven  monarcha  malfadado  se  asienlava.  De 
preciosidades  apenas  guarda  uma  chaminé  de  már- 
more, obra,  segundo  boas  aucloridades,  do  ad- 
mirável cinzel  de  Miguel  Angelo,  que  um  papa 
olléreceu  a  D.  Sebastião. 

A  outra  sala  á  aquella  onde  primeiramente  es- 
teve preso  D.  Anonso  VI.  Nada  tem  de  notável 
senão  a  memoria  d'este  facto,  que  os  pésd'aquelle 
infeliz  rei  assignaliiram,  gastando  o  ladrilho  do 
pavimento  desde  o  logar  da  cama  até  á  janella 
onde  esperava  o  seu  antigo  valido  Conti,  que  á 
serra  fronteira  ia  de  vez  em  quando,  dar-lhe 
algumas  esperanças  de  liberdade;  estreito  desa- 
fogo que  de  lodo  lhe  fecharam,  passando-o  para 
outro  ([uarlo  mais  acanhado,  e  quasi  sem  respira- 
ção. 

Muitas  outras  circumslancias  de  nolavel  impor- 
tância histórica  fazem  do  palácio  de  Cintra  o  maisi 
curioso  dos  nossos  paçoS  reaes.  '  1 

Alli  se  meditou  reaíisar  eraprezas  qui  ninguém 
até  então  havia  sequer  sonhado.  I)'alli  partiu  a 
directriz  que  conduzio  as  nossas  frotas  ás  conquis- 
tas (ralém-mar.  Alli  existe  a  camafa  ondí.nasceu 
e  se  linou  I).  AlTonso  V.  Alli  colheram,  palmas, 
o  creador  da  nossa  scena  dramática,  o  espirituoso 
(jil-Vicente,  na  representação  dos  seus  autos;  mar- 
lyrios  c  saudades,  (^mavioso  Bernardim  Ribeiro, 
nos  seus  amores  com  a  infanta  D.  liealriz. 

Kis  a  liistoi  ia  resumida  do  monumento  que  a  gra- 
vura representa  n"uma  das  mais  piltorescas  vis- 
tas que,  à  distancia,  se  gosam  nos  frescos  c  llori- 
dos  recintos  de  Cinlra- 


A  razão  é  o  conselheiro  da  alma. 


o  PANORAMA 


59 


DO  MOYIMEMO 

Bos«i(iejo  pliilOMopliico 

Por  A.  OSÓRIO  DE  VASCOiNCELLOS 
1 

Uma  das  coroas  mais  gloriosas,  que  cinge  a 
fronlc  swcna  e  radiosa  da  sciencia,  é  sem  duvida 
essa  synlhese  admirável,  profundamenle  philoso- 
pbica,  pela  qual,  ao  cabo  de  immcnsos  trabalhos 
e  fadigas  nem  sempre  incruenlas,  a  humanidade 
galga  mais  um  esladio  no  seu  caminhar. 

Se  os  heráldicos  e  antiquários  m'o  permitlem, 
a  sciencia  é  a  arvore  genealógica  da  humanidade, 
é  o  padrão  glorioso  que  attesla'  a  nobreza  da  gran- 
de família  humana,  que  trabalha,  lida,  tressua 
continuamente,  obedecendo  a  uma  lei  providen- 
cial. 

Qualquer  que  seja  a  hypolhese  antropogenica, 
que  so  adopta,  ou  o  homem,  conforme  diz  a  bí- 
blia, seja  um  anjo  caído,  um  rei  destronado,  ou| 
como*  dizem  outros,  a  transformação  de  um  oran- 
gotango,  ou  seja  simplesmente  e  desde  a  crcação 
do  mundo,  o  que  é  agora,  islo  é,  um. ser  pensante, 
postoque  rude  e  bronco  a  principio,  o  que  não  se 
pôde  negar  é  que  leve  de  construir  desde  os  ali- 
cerces o  edilicio  da  sua  civilisação,  qual  a  de  que 
estamos  fruindo. 

O  homem  lançado  na  terra  safara  e  povoada  de 
animaes  ferozes,  domou  ou  alTugentou  estes,  arro- 
teou e  cultivou  aquclhv  Trabalhou,  e  no  trabalho 
scienle  lirmouo  seu  domínio.  Grande  pela  inlclli- 
gencia,  collocado  pelo  destino  defronte;do  grande 
esphingc  da  natureza,  tratou  de  lhe  devassar  os 
segredos,  de  lhe  roubar  as  forças,  para  as  apro- 
veitar cm  beneficio  próprio.  Cada  conquista  que 
fazia,  era  mais  um  passo  que  andava,  mais  um 
foro  de  fidalguia,  mais  um  brazão  nobliarchico. 

A  sciencia  é  pois  o  conjunclo  de  todos  esses  es- 
forços, cm  virtude  dos  quaes,  o  homem  saldo  de 
berço  humilde,  sentou-se  no  throno  da  realeza. 

Mas  se  faltasse  á  sciencia  um  nexo  philosophi- 
co,  de  que  servira  tanto  eneelleirar,  se  as  próprias 
riquezas  amea;;avam  confundir-se  c  cair  no  cahos, 
d'ondc  as  foi  cxtrahindo  o  génio  do  homem? 

Para  que  tanto  esmeuçar  de  analyse,  se  a  syn-* 
Ihese  não  concluía  nenhuma  lei  geral,  nenhum 
d'esses  gr-d-ndes  princípios,  que  são  apoios  para 
novas  conquistas  e  novos  combates? 

Este  é  o  caracter  distinctivo  da  sciencia  moder- 
na, como  a  íizeram  os  Descartes  c  Pascal  e  Leibnilz. 
Sciencia  sem  phílosophía  é  uma  luz  ophemera  e 
repentina, 'c  um  fogo  faluo,  que  pôde  allumiar  um 
momento,  rasgar  as  trevas,  que  circundam  o  ho- 
mem, mas  não  é  pharol  brilhante,  que  alenta  c 
dirige  o  mareante  no  grande  oceano  do  desconhe- 
cido. 

E  este  é  lambera  o  pendor  da  sciencia  moderna. 
Hoje  pouco  se  inventa.  J)esde Copérnico  atóGause, 
desde  Boyle  até  lierzelius,  desde  Torricelli  até  Eara- 
day,  surgiu  uma  tal  plêiade  de  talentos  vigorosos 
e  audazes,  de  génios  investigadores  e  profundos, 
que  de  tal  modo  alargaram  e  expandiram  os  ho- 
risontes  da  sciencia,  e  devassaram  tantos  segredos, 


que  hoje  é  diíTicíl  a  observação,  diflicilimos  os 
descobrimentos. 

Nos  tempos,  que  vão  correndo,  em  que  as  ap- 
plicações  praticas  abundam  tanto,  a  sciencia  lians- 
formára-se  em  arte,  se  a  philosophia  não  a  alen- 
tasse e  guiasse. 

D'aqui  essa  vastíssima  synthese,  que  determina 
as  leis  geraes,  que  residem  na  matéria.  D'aqui 
essa  segunda  analyse  dos  factos  descobertos  ,e  dos 
phenomenos  já  conhecidos,  para  cxtrahír  os  gran- 
des princípios,  que  são  di  anima  do  mundo.  D'aqui 
essa  tendência  á  simplicidade,  á  unidade,  á  pro- 
tolypia,  tendência  porventura  fatal,  inconsciente 
ale,  c  que  pôde  conduzir  ao  absurdo  e  ás  vezes 
á  escuridão,  quando  galgamos  as  raias  do  conheci- 
do e  trilhamos  o  campo  das  hypotheses  e  conje- 
cturas. 

Entre  as  syntheses  fnais  formosas  e  admiráveis 
da  sciencia,  nenhuma  encontro,  que  mais  me  le- 
nha prendido,  do  que  a  da  força  edo  movimento. 

lleduzir  a  força  a  um  typo  único,  mostrar  (jue 
lodos  os  movimentos  sãá)  gerados  por  uma  so  causa 
ou  antes  que  ha  sô  um  movimento,  propriedade 
essencial  de  matéria  movimento  que  se  transfoima 
em  todos  os  outros,  que  coisa  mais  para  admirar 
ecs|!antar! 

Disse  eu  que  esta  é  uma  das  syntheses  da  scien- 
cia, e  eslà-me  parecendo  que  é  a  única,  que  é  a 
mesma  sciencia. 

Pois  se  nôs  chegássemos  a  descoilinar,  não  já 
a  essência  da  /b/ra,  senão  o  modo  porque  se  trans- 
forma nos  immcnsos  movimentos,  que  constituem 
a  vida  na  accepção  mais  lata  e  grandiosa;  se  alcan- 
çássemos a  i)rofundar  essemyslerio  incomprehensi- 
vel  da  vida  cósmica  em  lodos  os  seus  recessos  e  arca- 
nos mais  íntimos,  a  sciencia  houvera  attingido  quasi 
a  perfeição,  e  o  homem  fora  um  semi-deus.  Sô 
então  é  que  o  ignoto  ppderíaser  medido  c  as  tre- 
vas tenderiam  a  díssipar-se  completamente:  A  gé- 
nesis dos  mundos  do  seio  do  cahos,  as  dillerentes 
eclusões  de  vida  em  todas  as  ordens,  todas  essas 
iniinilas  e  varias  transformações  poderiam  ser  de- 
terminadas. 

E  seo  homem,  collocando-se  pela  intelligencia 
na  origem  das  cuisas,  conhecesse  todas  as  cir- 
cunstancias da  força,  do  tempo  e  espaço,  veria 
desfilar  diante  de  si,  como  em  correria  phantas- 
tíca,  ò  universo  inteiro,  e  os  mundos  formando 
um  cortejo  esplendido  trazer-lhc-hiam  as  páreas 
dos  seus  segredos. 

Mas  quem  poderá  conhecer  essas  circunstancias 
de  espaço,  tempo  e  força?  Qual  a  intelligencia, 
por  mais  vigorosa,  que  não  vergue  perante  o  in- 
finito da  matéria? 

Qual  o  homem  que  ascendendo  do  conhecido 
para  o  desconhecido,  não  j)ára  espavorido,  absorto, 
esmagado,  e  ajoelhe  c  adore,  ou  o  crcador,  que 
deu  vida  ao  cahos,  ou  a  força  ingcnita,  que  ba- 
fejou a  matéria? 

Por  mais  que  a  sciencia  caminhe,  dando  mes- 
mo de  mão  ao  .muito  que  falia  para  estudar,  o  ho- 
mem não  podft  abarcar  o  universo,  e  ainda  me- 
nos a  causa  d'elle. 


60 


O  PANORAMA 


Acceitando  porém,  como  inconlroversa  a  nossa 
pequonoz,  o  não  inlonlaiulo  dolerminar  a  essência 
da  força,  d"esse  quid  ineomprebcnsivel  e  intangí- 
vel, a  sciencia  pode  desde  já  apresentar  gran- 
dissinios  resultados  e  formar  uma  synthese  su- 
blime. 

Será  esle  se  tanto  j)oder  o  fito  principal  do  traba- 
lho, que  ora  entrego  á  apreciação  dos  leitores  do 
Panoiama. 

(Continua) 


A    GALATEA   MODERNA 

Por  A,  OZORIO  DE  VASGGNCELLOS 

u 

D.  Violante  á  bnrwiiezu  do  Alpedral 

Minha  querida: — Tudo  d(^-me  n'esle  abençoado 
e  derrocado  solar.  São  onze  horas  da  noite.  O  si- 
lencio é  profundo  e  comj)leto.  Nada  interrompe  a 
mudez  nocturna  senão  os  ruidos  soturnos  emysle- 
liosos  da  naturezJa.  Que diirwença entre  este  viver 
e  o  teu. 

Tu,  minha  querida,  lá  vaes  descrevendo  a  tuTi 
orbita,  como  um  astro  radioso,  nos  salões  illu- 
minados,  nas  feslas  esplendidas,  cegando  com  o 
leu  brilho  os  bastos  admiradores.  Eu,  pobre  vio- 
leta es(|uecida  n'esles  fraguedos,  em  vão  abro  as 
pétalas  aveludadas,  que  não  encontro  raio  de  sol 
que  me  aqueça  e  acalente.  Tudo  dorme,  só  eu  velo. 
Ah!  Alguém  mais  está  acordado.  Advinha.  Não  te 
demores  a  pensar,  que  nada  concluirás.  Sabes  quem 
chegou  hoje  a  esta  velha  casa,  que  ameaça  desa- 
bar com  o  primeiro  temporal  ?  Sabes  quem  veio 
procurar  abrigo  n'esleleclo  alluido  pelos  séculos? 
É  o  elegante  Alfredo  de  Mello,  nosso  parente,  no 
qual  me  faltaste  tanto,  durante  a  tua  -estada  ein 
Cintra  no  passado  verão.  . 

Não  te  admires.  Não  rias.  Agora  está  elle  es- 
crevendo no  seu  quarto,  que  apezar  de  niLU,  é  o 
melhor  da  casa.  Eslou-me  lembrando  dos  transes, 
que  soílreu  Uavenswood  quando  recebeu  a  bella 
Lúcia  na  sua  torre  da  Wolfcrag.  O  que  dirá  Al- 
fredo da  nossa  pobreza,  que  mal  posso  dis- 
farçar com  uns  restos  de  anti^^o  explendor !  Tu 
não  sabes  o  triste  estado  a  que  chegámos.  Não  julgues 
que  te  peço  esmola.  Louvado  Deus  podemos  vi- 
ver na  província  sem  vergonha.  Mas  c  necessário 
acabar  com  o  fausto,  (|ue  meu  pai  exige,  sem  se 
lembrar  (jue  cada  aiuio  vae  desfalcando  o  seu  ren- 
dimento. 
Ahl  mas  como  estou  atreita  a  divagar.  Perdoa... 
Alfredo  chegou  já  muito  noilc,  como  bom  pa- 
ladino que  se  preza  de  ser. 

Julgava  elle  provavelmente  que  vinha  encontrar 
j)roviuciana  bonita,  mashoçal.  Enganou-se,  fran- 
camente l'o  confesso  e  licou  espantado  do  engano. 
As  luas  lições,  c  a  leitura  de  romances  de  algu- 
ma coisa  me  serviram.  Fallou  muilo  de  poesia 
bucólica,  da  placidez  e  iiinoceneia  dos  campos, 
não  sei  se  invocou  as  dryades  e  os  zagaes  de 
(Ireuze.  Decidiílameiíle  o  meu  caril  primo  parece- 
se  estupendamente  com  o  cavalleiro  dC  Florian, 


auclor  da  Numa  Porapilio.   Fiquei-o  conhecendo 
por  dentro  e  por  fora. 

Vèse  approvas  o  retraio,  que  faço  d'elle. 

E  bonito  e  cavalheiroso.  Tem  bom  coração.  Acre- 
dita-se  conquistador.  Tinha-mc  em  pequena  conta. 
Ouer  namorar-me,  poripie  lhe  saí  muilo  diversa 
do  (jue  julgara.  Toma-me  ^'omo  o  seu  ideal,  por- 
(jue  sou  enigmática.  Eu  por  mim  quero  fazer  a 
vontade  de  meu  pai,  que  ha  muito  poz  os  olhos 
em  Alfredo  para  erguer  a  casa  das  ruiuas,  e  dar 
novo  lustre  ao  seu  antigo  brazão.  Alfredo  é  rico, 
possue  quatro  contos  de  renda  em  herdades  alem- 
tejanas.  E  já  boa^  herança.  Se  me  pergun- 
tas o  que  diz  o  meu  coração,  nada  te  ()osso  res- 
ponder. Sinto-me  inclinada  para  o  meu  primo,  mas 
não  sei  se  esta  inclinaftío  nasce  do  meu  profundo 
horror  pela» pobreza. 

Oue  triste  futuro,  me  aguarda  aqui  «'esta  aldeola 
do  Minho!  Talvez  algum  casamento  com  um-d'es- 
les  morgados,  cuja  parvulez  excede  muilo  a  de 
lodos  os  Osbalditones,  quellguram  no  Uob-lloy  de 
Walter  Scolt.  Imagina  a  minha  vida,  se  |)or  acaso 
Alfredo  me  não  quizesse.  Ligada  eternamente  a 
algum: 

Bojudo  beirão  morgado 

A  quum  os  cauliOes  afrontam, 

como  diz  Tolentino,  seria  misera  caslellã  de  uma 
casa  arruinada,  vestindo  por  uns  figurinos  fosseis, 
e  banhando-me  lodos  os  outomnos  nas  ondas  da 
Foz,  depois  de  visitar  o  Vo*-lo  de  braço  dado  com 
meu  marido,  que  se  revô  de  vaidoso  no  chapelli- 
nho  desabado,  com  fitas  vermelhai  e  pingentes 
amarellos,  (pie  me  comprou  na  modista  mais  acre- 
ditada da  rua  de  Santo  António.  Que  horror!  Ah!  Se 
eu  puder  algum  dia  |)isar  os  salões  de  Lisboa!  Que 
de  frémitos,  no  walsar  vertiginoso!  Com  que  j)ra- 
zer  hei  de  requeimar-me  nos  lumes  scintillantes! 
Como  te  imitarei  ó  minha  querida!  Como  heide 
respirar  com  anciãs  essa  athmosiihera  ignea! 

Corramos  o  veu  a  tantas  venturas.  Perdoa-me  es- 
tas conlissões  ingénuas.  Sou  uma  creança.  Apenas 
conlo  dezoito  annos  |7íssad(5s  n'uma  aldeia  serta- 
neja. Que  loucura!  Pois  não  ia  eu  dizer^  que  amo 
Alfredo,  o  eleito  do  meu  coraçãol  E  quem  sabe? 


Vem  a  romper  a  aurora  por  entre  as  franzas 
dos  pinheiraes  da  serra. 

Alfredo  já  apagou  ha  muilo  a  luz  do  seu  quarto. 
O  que  escreveria  elle?  l*eza-meestesilencio.  Parece 
^|ue  a  natureza  também  dorme  antes  da  madrugada. 
Logo  lenho  os  olhos  inchados  da  vigilia. 

Que  heide  fazer  !'^  Já  é  scv  cof/ucllc,  ffãoc  assim? 
Adcos.  Se  eu  podesçe  sonhar  venturas!  Pelo  me- 
nos o  meu  sonho  hiT  de  ser  dourado. 

Tua  do  coração  —  Violante. 

(Cunlinua.) 

O  VAYÃO  E  A  CEGONHA 

Pavão  orgulhoso  abrindo  emproado 
I)o  leípie  vistoso  matiz  variado, 
A  sua  belleza  se  poz  a  miiar, 
E  á  leve  Cegonha,  (jue  ali  vio  chegar, 


o  PANOKAMA 


61 


c(Afasla-te  (disse)  villã  e  zoiípeira; 
«Sem  cores,  sem  garbo,  famiiUa  grosseira!. 
«Desprega  se  podes  o  leque  como  eu!... 
Prudente  a  cegoniia  se  rio  do  sandeu, 
E  rapidamente  as  azas  abrindo, 
Aos  ares  patentes  qual  seita  subido, 
Librando-se  airosa  de  lá  lhe  bradou: 
Remonta  uma  vez  á  altura  em  que  estou, 
O  meu  cavalheiro,  que  assim  me  despresa 
Injuria  seria  de  tanta  belleza 


Não  poder  ás  vezes  erguer-se  do  chão. 
Nem  mais  do  que  um  gallo,  voar  um  Pavão, 

Leitor  se  não  gosas  melhor  galhardia, 
Que  nobre  prosápia  com  vã  ufania, 
Não  zombes  d'aque|le  que  humilde  nasceu, 
Talvez  em  desconto  natura  lhe  deu 
F.ngenho,  e  virtude  que  o  encham  de  gloria, 
E  só  por  teus  vicios,  tu  lembres  na  historia. 

Costa  e  Silva, 


«iinii)iiii;iMUj;ilij;!M:i!iiiiiiilillil 


62 


O  PANORAMA 


OS  CORVOS-MARLNHOS 

Eslas  aves  aquáticas  são  grandes  consumidoras 
de  peixes,  especialmenle  dos  de  agoa  doce,  cper- 
seguem-os  com  extraordinária  rapidez. 

Logo  que  o  corvo-marinlio  avista  o  peixe  na- 
dando paciíicamenle  no  seio  da  agua,  em  um  abrir 
e  fechar  de  olhos,  mergulha,  agarra  a  victima, 
que  em  vão  tentaria  fiigir-lhe,  tral-a  á  superíicie, 
c,  para  engulil-a,  coisa  nolavell  por  um  movimento 
ágil,  atira-a  ao  ar,  de  forma  que  venha  a  cair  de 
cabeça  p^ira  baixo,  erecebe-a.  então,  sem  resistên- 
cia dajiarte  das  barbalanas,  que  se  acamam  so- 
bre o  coi-^o.  Se  algumas  vezos  acontece  haver  fal- 
ta de  destreza,  nem  por  isso  o  peixe  escapa  á  vo- 
lacidade  do  seu  lerrivel  adversário;  porque  per- 
segue-o  de  novo,  torna  a  agarral-o  e  lança-o  ao 
ar,  como  da  primeira  .vez,  ate  que  a  queda  pro- 
duza o  desejado  ^eilo. 

Eni  muitos  paizes  tem-so  aproveitado  a  habili- 
dade dos  corvos-marinhos,  ensinando-os  a  pres- 
tar ao  pescador  os  mesmos  serviços  que  o  caçador 
obtém  do  falcão  adestrado.  Esta  pesca,  ouír'ora 
muito  usada  rra  Inglaferra,  ainda  o  é  (vêdea  gra- 
vura) em  alguns  pontos  da  parte  oriental  áà  Ásia. 
O  corvo-marinho  domestico  traz  ao  pescoço  um 
anncl  muito  justo;  collocado  na  borda  do  barco,  que 
o  seu  o  dono  dirige,  ao  avistar  o  peixe,  mergulha, 
lanç^L-se  s,obre  elle  e  volta  para  o  seu  posto  tra- 
zendo a  presa  atravessada  no  bico,  com  uma  íi- 
delidade,  da  qual  é,  sem  duvida,  a  mais  segura 
garantia  o  annel,  que  impede  a  entrada  do  peixe 
no  papo  da  ave. 

A  maior  parte  dos  corvos-marinhos',  tão  bons 
voadores  como  nadadores,  procuram  a  sociedade 
dos  seus  congéneres;  fora  da  época  da  creação, 
durante  a  qual  estão  conslanlemenle  reunidos,  en- 
contram-«e  quasi  sempre  em  pequenos  bandos.  O 
grande  consumo  do  seu  alimento  lorna-se  o  fla- 
gello  das  lagoas  c  dos  rios  e  obriga-os  a  não  se  de- 
terem muito  tempo  no  mesmo  logar.  O  peixe  de 
que  ellcs  pereten]  mais  golosos  é  a  anguia;  pelo 
menos  é  o  que  mais  se  tem  encontrado,  no  estô- 
mago dos  que  se  lêem  examinado.  A  carne  d'esta 
ave,  fétida  e  negra,  é  um  alimento  que  repugna; 
por  isso  não  se  faz  uso  d'ella  senão  i)or  grande 
necessidade.  , 

O  corvo-marinho  pertence  ao  pequeno  numero 
dos  palmij)e<l('s  dotados  da  faculdade  de  se  empo- 
leirarem. Os  seus  ninhos,  construídos  de  junco  c 
hervas,  encontram-sc  mais  a  miude  nas  arvores, 
do  que  nas  concavidades  dos  rochedos.  A  postura 
ordinária  é  de  lies  a  quatro  ovos.  Os  corvos-ma- 
rinhos da  Clwna  são  de  um  pardt  denegrido  pela 
parle  su|)erior  do  corpo,  esbraníjuiçados  ficla  in- 
ferior, garganta  branca,  bico  arnaréllo,  irií  azul, 
pés  denegridos  e  doze  rectrizes. 


A  riqueza  é  uma  rainha  que  dá  a  nobreza  c  a 
formosura.  A  própria  Vénus  e  a  eloquência  lhe  fa- 
zem corte. 


PEREZ  LORENZO 

(Scenn.s  da  Cninpauhn  do  México) 

Por  PINHEIRO  CH.\G.\S. 

V 

Entretanto  formava-se  silenciosamente  ^conlra- 
guerrilha  á  porta  do  quartel,  e  desfilava,  sem  fa- 
zer o  minimo  ruido,  pelas  ruas  dcMedellin. 

A  cavallaria  fora  dar  uma  volta  maior  afim  de 
tornear  a  casa  de  D.  Ramon,  para  que  não  sentis- 
sem lá  o  tropear  dos  cavallos.  Viarmonl,  que  ia 
no  seu  posto,  passando  ao  longe,  pôde  ver  o  ter- 
raço, onde  estivera  havia  um  instante  bem  alheio 
a  pensamentos  bellicosos,  e  pelas  janellas  illumi- 
nadas  da  sala  vio  perpassarem  as  sombras  gracio- 
sas dos  pares  que  rodopiavam  no  trèfego  volteiar 
da  valsa.  Aquella  setna  de  prazef,  th  amor,  de 
folguedo  illuminada  pelo  fulgor  vivíssimo  dos  can- 
delabros, contrastava  de  um  modo  Ião  notável  com 
o  silencio  da  campina,  o  vento  frio  que  obrigava 
o  capitão  Viarmonl  a  conchegai-se  nas  dobras  da 
sua  capa,  o  aspecto  pouco  gracioso  dos  seus  ru- 
des cavalleiros,  e  a  desagradável  perspeí^tiva  de 
um  combate  nocturno,  que  o  oflicial  francez  não 
pôde  deixar  de  exclamar  á%  si  para  si,  torcendo  o  fino 
bigodinho,  que  lhe  ensombrava»  o  lábio  superior: 

— Chicn  de  mélierl 

A  infanteria  e  a  cavallaria  reuniram-se  fora  da 
cidade.  Perez  Lorenzo  lá  ia  na  frente,  isolado  e 
envolvida  no  seu  eterna  manto,  e  respondendo 
monosyllabicamerfle  ás  perguntas  dos  ofliciaes  fran- 
cezes. 

O  céo  continuava  a  desdobrar  o  seu  docel  azul 
sem  mancha,  onde  palpitavam  as  eslrcllas.  O  vento, 
esvoaçando  por  entre  os  palmares  e  os  bananaes 
da  estrada,  impregnava-se  em  cálidos  perfumes, 
que  sacudia  depois  das  azas  sobre  os  soldados, 
como  que  aconselhando-os  a  que  não  fossem  per- 
turbar com  as  suas  pelejas  a  Iranquillidadc  inalte- 
rável d'essa  risonha  natureza. 

Viarmoni  scismava,  e  não  era  já  o  vuUo  de  Do- 
lores o  que  lhe  assomava  na  phantasia.  O  pensa- 
mento voava-lhe  para  as  terras  da  pátria,  para  a 
quinta  á  bciramar  junto  de  Bordéus,  onde  sua 
velha  mãe,  com  os  olhos  cravados  no  Oceano, 
esperava  anciosa  ver  surgir  no  horisonlc  a  vela 
branca  ou  acolumna  de  fumo,  que  Iheannunciaria 
a  voUa  do  lilho  querido.  Via-se  a  si  mesaio  pas- 
seando pelas  suas  terras,  cujas  ricas  qjesses  estavam 
sendo  ceifadas  pelos  segadores,  c  respirando  com 
alegria  o  perfume  da  terra  natal,  deliciando-se  com 
as  bucólicas  delicias  d'essa  campestresccna,  fruindo 
os  gosos  da  i)az  e  da  familia;  e  vendo-te  agora 
sósinho  em  terra  estranha,  devastando,  |)or  si- 
nistro dever,  o  solo  a  que  oulros  se  prendiam  com 
o  mesmo  afecto  com  que  elle  se  aflerrava  ao  solo 
da  (juyeina,  |»erturbando  a  tranquillidade  que 
outros  gosavanii  a(|ui  como  elle  a  gosava  além, 
não  i)odia  deixar,  apesar  da  sua  bravura,  de  pen- 
sar nas  tristezas  da;íuerra,  c  no  absurdo  d'esse 
dever  que  obriga  um  homem  por  ponto  de  honra, 
a  ser  scelerado,  c  a  obedecer  ao  capricho  sangui- 
nário de  outro  homem,  que  só  d'ellc  dilíere  era 


o  PANORAMA 


63 


vestir  a  purpura  monarchica  em  vez  da  farda  mi- 
litar. 

Mas  estas  phylosophicas  reflexões,  que  davam, 
bem  apuradas,  a  substancia  de  um  discurso  que 
seria  muito  applaudido  no  congresso  de  paz,  des- 
vaneceram-se  promplamente  quando,  depois  de 
duas  horas  de  marcba,  soou  de  súbito  o  clarim  e 
uma  ordenança  do  coronel  Dupin,  correndo  a  ga- 
lope sobre  uma  das  vedelas  dos  guerrilhas,  a 
degolou  sem  que  ella  tivesse  tempo  de  dar  um 
grilo  que  avissase  os  seus  companheiro*. 

Parecia  comludo  que  um  Mephistopheles  mexi- 
cano se  estava  divertindo  a  lo^\-ar  os  francezes 
com  tours  depasse-passe.  Ainda  d'esla  vez,  segundo 
parecia,  tinham  ea-apado  os  bandido^.  Em  seu  lo- 
gar  estava  um  bando  de  mulheres  Índias,  em 
trajes  ligeiros  mas,  tendo  cada  uma  d'ellas 
uma  esplendida  crinoiine.  Ufanas  do  seu  ba- 
lão, estavam  as  pobres  mulheres  immoveis  nomeio 
da  casa,  como  temendo  que,  se  dessem  um  passo, 
transtornassem  a  magesladedo  seu  porte.  Espan- 
taram-se  os  francezes,  e  ainda  mais  do  que  elles 
Perez  Lorenzo,  do  extraordinário  luxo*  d'essas  crea- 
turas  semi-selvagens,  kixo  que,  limitando-se  ao 
balão,  contrastava  de  um  modo  notável  com  os 
farrapos  que  as  vestiam.  Com  mais  curiosidade 
do  que  delicadeza  picou  Perez  Lorenzo  com  a  ponta 
da  sua  espada  uma  das  crinolines  das  senhoras. 
Realisou-se,  com  pouca  diíTerença,  o  soneto  de 
Nicolau  Tolentino  sobre  os  toucados  altos.  De  um 
d'estes  saio  um  culxão;  da  crinoiine ádi  índia  bro- 
tou um  homem,  e  logo  em  seguida  todos  os  ofltros 
balões  se  achataram,  dando  cada  um  á  luz  um 
bandido  armado  com  punhal  e  pistolas  e  disposto 
a  vender  cara  a  sua  vida. 

Mas  os  francezes  já  estavam  preparados  para 
pstas  surpresas;  e  desde  a  aventura  dos  enxer- 
gões, tinham  sempre  o  olho  em  saia  ou  colxão, 
que  apresentasse  dimensões  suspeitas.  Os  guerri- 
lhas, que,  sem  terem,  lido  Homero,  saltavam  a 
flux  dos  novos- cavalloí  de  Tróia,  encontraram 
para  os  apararem  as  bayonetas.dos  francezes. 

Foi  breve  a  resistência  porque  se  vio  que  era  es- 
cusada a  lucta. 

Perez  Lorenzo,  logo  no  principio  do  inculente, 
soltara  um  grilo  de  jubilo,  vendo  apparecer  um 
hom*m  de  estatura  elevada e  de  vigorosos  músculos, 
que  parecia  ser  o  chefe  da  guerrilha.  Lançou-sea 
elle  com  os  dentes  fincados;  acceitou  o  bandido  a 
duello,  e,  enlaçando-se  nos  braços  vigorosos,  tra- 
varam-se  arca  por  ar«a,  embebendo  um  no  outro 
os  olhos  em   que  fusilava  um  rancor  insano. 

Quizeram  os  conlra-guerrilhas,  já  vencedores 
dos  seus  adversários,  intervir  na  lucta  e  apode- 
r^r-se  de  Juan  Pahlo,  que  esse  era  o  que  luctava 
com  Perez  Lorenzo.  Este  porém  fez  um  gesto  para 
*pedirqueo  deixassem  desajudado  .ia  lucta.  Arreda- 
ram-se  todos,  como  os  combatentes  da  idade  media, 
quando  n'alguma  batalha  se  encontravam  face 
a  face  dois  paladinos  cujo  duello  se  tornava  es- 
pectáculo brilhante  para  os  membros  d'essa  gera- 
ção cavalheirosa. 

Os  dois  mexicanos,  queluclavam  corpo  a  corpo 


no  combate  singular,  eram  espécimens  diff'e- 
rentes  de  robustez,  mas  inculcavam  ambos  vigor 
acima  do  vulgar.  A  força  de  Perez  Lorenzo  era 
toda  nervosa,  a  de  Juan  Pablo  provinha  essencial- 
mente de  uma  reforçada  musculatura.  A  robustez 
de  Perez  Lorenzo  não  lhe  prejudicava  a  elegância 
do  talho,  e  a  delicadeza  das  formas;  Juan  Pablo, 
pelo  contrario,  linha  formas  verdadeiramente  tau- 
rinas. 

Esteve  por  largo  tempo  indeciso  o  combate;  os 
conlra-guerrilhas,  selvagens  mal  disfarçados  com 
uma  leve  tintura  de  civilisação,  que  a  primeira 
circunstancia,  que  lhe  pozesse  em  fogo  as  paixões, 
levava  immediatamenle,  davam  grilos  de  enlhusias- 
mo,  como  se  assistissem  a  uma  corrida  de  touros. 
E  a  comparação  não  é  das  menos  acertadas,  por- 
que eflelivamente  Juan  Pablo  investia  com  a  bru- 
talidade cega  do  boi;  Perez  Lorenzo  esquivava-se- 
Ihe  aos  ímpetos  com  a  destreza  do  capinha,  não 
deixando  por  isso  de  lh'os  subjugar  com  o  vigor 
do  homem  de  forcado  quando  se  lhe  deparava  en- 
sejo. Furioso  de  ver  constantemente  escapar-lheo 
adversário,  Juan  Pablo,  que  primeiro  combatera 
desarmado,  deu  um  pulo  á  retaguarda,  e  sacou 
de  uma  navalha. 

Ao  verem  esla  infracção  á  lei  do  duello,  os  con- 
lra-guerrilhas soltaram  um  grilo  de  desapprova- 
ção,  e  correram  para  castigarem  o  audacioso.  Mas 
de  novo  Perez  Lorenzo  fez  um  gesto  e  bradou  com 
voz  colérica: 

—Ninguém  se  mova. 

E,  correndo  para  Juan  Pablo  a  fim  de  lhe  não  dar 
tempo  dejogar-lhe  afaça,  com  um  movimento  rá- 
pido agarrou-lhe  os  pulsos, eapertou-lh'os  comum 
vigor  incrivel.  Grande  foi -a  surpreza  dos  especta- 
dores d'esla  scena,  quando  viram  as  mãos  de- 
licadas de  Perez  Lorenzo  prenderem  como  n'uma 
lorquez  os  braços  vigorosos  do  seu  adversário.  E 
mais  espantados  ficaram  quando  o  gigante  soltou 
um  bramido  de  dor,  descorou,  e,  deixando  cairá 
navalha  dos  dedos  inteiriçados,  vergou  e  caiu  de 
joelhos  proferindo  uma  blasphemia. 

Um  applauso  enlhusiasla  acolheu  esla  façanha 
do  myslerioso  mexicano. 

Mas  este  nada  ouvia.  Brilhava-lhe  nos  olhos  uma 
alegria  feroz;  pondo  um  joelho  em  cima  do  peito 
do  chefe  de  guerrilhas,  pediu  uma  corda,  que  os 
soldados  logo  lhe  aliraram.  Depois  arraslou-o  para 
fóia  da  choupana,  bradando: 

— Emfim. 

A  lua  esplendia  no  céo  azul  c  banhava  as  flo- 
restas com  as  ondas  da  sua  luz  prateada.  Vm  vago 
c  delicioso  murmúrio  se  exhalava  dos  ramos  agi- 
tados pela  cioce  brisa  das  noites.  A  natureza  jazia 
immersa  em  profunda  paz. 

Perez  Lorenzo,  arrastando  a  sua  preza,  sumiu- 
se  nos  recessos  da  floresta. 

— Vamos,  disse  o  coronel  Dupin,  por  hoje  eslá 
acabado.  Meus  senhores,  continuou  voltando-se 
para  os  seus  oíficiaes,  se  teem  alguma  polka  ou 
alguma  valsa  proraetlida  em  casa  de  D.  Ramon, 
parece-me  que  ainda  podem  ir  exigir  o  cumpri- 
mento da  promessa. 


64 


O  PANORAMA 


— Confesso-lhe,  coronel,  acudiu  Viarmont,  que 
n'este  momento  não  desgostava,  em  vez  de  dan- 
çar, de  me  divertir  um  pouco  vendo  bailar  este 
verdugo  maldito,  que  temos  trazido  agarrado  anos, 
no  ramo  de  uma  arvore.  Nunca  biclio  venenoso 
me  causou  maior  repugnância  do  que  este  selva- 
gem com  apparencias  de  cavalheiro,  que  passa  a 
sua  vida  a  encher  de  fruclos  humanos  as  arvores 
d'estes  bosques. 

— Capitão  Viarmont,  respondeu  o  coronel  com 
seriedade,  este  homem  é  menos  criminoso  do  que 
pensa;  tem  paixões  selvagens  c  verdade,  mas  foi 
um  motivo  bem  justo,  que  lh'as  soltou.  Nunca  es- 
teve na  Córsega,  capitão"? 

— Dois  dias  apenas;  arribámos  lá  na  passagem 
de  Toulon  para  Alger. 

— Pois  eu  estive  dois  annos  de  guarnição  em 
Ajaccio;  conheço  as  montanhas  da  ilha  e  os  mon- 
tanhezes.  Jiiro-íhe  que  os  Perez  Lorenzos  não  são 
raros  por  lá. 

^'esle  momento  um  gi-ilo  horrível  atravessou 
os  ares,  e  veio  expirar  no  ouvido  das  tropas  fran- 
cews. 

Todos  se  entre-olharam  com  espanto;  mas  os  pri- 
sioneiros pareceram  perceber  mais  rapidamente  o 
que  occasionára  esse  grito,  porque  murmura- 
ram um:  ((Caramba)),  que  revelava  a  ira  impo- 
tente que  oi  salteiára. 

A  tropa  poz-se  em  marcha.  Ao  chegarem  á  orla 
extrema  do  palmar  viram  um  vulto  negro,  que  se 
baloiçava  nos  aios. 
Era  o  cadáver  de  Juan  Pablo. 

(Continua) 


Um  bom  cidadão  nunca  se  vinga  d'uma  injuria 
particular;  mas  arrisca,  boamente,  a  vida  pelo  bem 
publico. 


BEATRIZ 


a— Se  te  hei  de  amar  sempre,  e  sempre?.,. 
Pois  lu  não  sal)es,  querida, 
Que  o  meu  ser,  a  minha  vida 

Provem  de  li? 
Não  vis  como  cu  sou  rliloso 
Quando  le  aljraro  e  te  ijcijo? 
Que  ludo  quanlo  desejo 

Termina  aqui?  — 

Se  le  hei  de  amar!...— que  me  impoita 
Senão  leu  meigo  sorriso  ? 
Não  m»  déslc  o  |)araiso, 

No  leu  amor?  • 

Como  é  possi\cl  que  um  dia  ^ 

Te  esí|ueça,  rosa  innoconlo, 
E  le  esfollie  na  orrenle, 
Candid  aílòr ! 

Oh,  tu  és  a  minha  estro  h, 
O  meu  anjo,  a  providencia 
Que  em  minha  negra  exislencia 

Tem  s(/ poder. 
Quero  seguir-le,  eníevar-me 
No  leu  gesto  peregrino : 
Não  ha  mais  hcilo  destino, 

Nem  pode  haver  1  — 


E  lu  vaciltas,  lu  pensas 

Que  deve  alguém  condemnar-le, 

Porque  vim  cego  adorar-te, 

Porque  te  amei. 
Porque  me  deste  os  lliesouros 
Do  leu  seio  palpitante, 
Porque  anceio  a  cada  instante 

Quanlo  gosei?,.. 

Quem  CS  lu?...  que  lem  o  mundo 

Que  tu  me  íibrapes  agora? 

Quem  ouve  o  mundo?  quem  chora? 

Que  mal  te  íiz?.., 
Quem  pensa  que  existe  um  crime 
IVesla  alcj;ria  encantada 
Em  que  a  nossa  alma  arrobada 

\&d  fíliz?... 

Sim  lu  és  minha  ;  o  teu  peito 
Inda  convulso  lateja, 
Fervido  raio  lampeja 

No  leu  olhar; 
Sim  tu  és  minha,  que  cu  sinto 
Que  nic  apertas  contra  o  seio;... 
Não  penses,  não,  que  este  enteio 

Possa  lindar !... 

Sim  tu  és  minlia,  e  na  vida 
Outro  sol  nSo  me  illumina, 
Quanto  me  alegra  e  fascina 

,  Provém  de  ti. 

lia  luz  do  ceu  na  minha  alma 
Quando  agitado  le  beijo  : 
O  que  eu  sonho,  o  que  eu  desejo 
Termina  aqui. 

Amar-le  é  viver,  e  eu  quero 
Levar  cantando  esta  vida  ; 
Só  nos  teus  braços,  querida, 

^  Quero  expirar ; 

Oh,  mas  sentindo  que  o  peito 
Inda  te  anceia  e  lateja, 
E  que  um  rayo  inda  lampeja 

Nd  leu  olhar!—»  ♦ 

Continua)  • 


E.  A.  Vidal. 


ANGÉLICA   -» 

Se  Deus  me  perguntassQ,  o  que  eu  mais  qVia, 
ique  julgas  lu  que  a  Deus  cu  pediria? 

l,  talvez  sabedoria, 
como  a  pedio  oulr'ora  Salomão  ? 
ou  de  Créso  os  innumeros  thesouros 
que  assombraram  presentes  e  vindouros? 

Oh  !  não,  mil  vezes  não  ! 
eu  calcaria  as  pompas  da  o|)ulencia, 
eu  fecharia  os  olhos  á  scicncia,  f 

e  só  pediria  então 
—  como  palma  devida  ao  meu  marlyrio  — 
respirar  teus  perfumes,  branco  lirio, 

unir-le  ao  coração. 

Cândido  Figufuiedo. 


Feliz  o  pai,  de  cujo  filho  se  poda  dizer:  É  a 
imagem  da-  humanidade  e  da  probidade  de  seu  pjy. 

A  prosperidade  atlrae  amigos  falsos  e  a  adver- 
sidade afugcnla-os. 

A  virtude  deve  ser  sempre  recompensada,  seja 
qual  for  o  estado  ou  habito  sob  os  quaes  ella  se 
encontre. 


Typ,  Franco-Portugucza  i^  Kua  do  Thesouro  VeUio,  C. 


I 


66 


O  PANORAMA 


ENÉAS  SALVANDO  ANGHISES 

(Quadro  ilc  Doniiiiiqniiio 

A  eslanipa,  a  que  se  referem  as  linhas  que  va- 
mos liaçar.  é  copia  de  um  dos  mais  bellos  quadros 
do  celebre  pinlor  Domiuico  Zampieri,  conhecido 
no  mundo  aitistico  polo  nome  de  Dominiquino. 
Esle  pinlor,  discípulo  dosCairaches,  lloiesceu  nos 
jiiincipios  do  século  XVII.  Nasceu  em  Bolonha  em 
15SI,  morreu  em  Nápoles  cm  IGil. 

Allribue-se  a  morle  de  Dominiquino  (e  com  seus 
visos  de  probabilidade)  a  veneno  ministrado  pelos 
seus  colle^as.  Não  deixa  de  ser  curiosa  a  tradição 
que  se  refere  a  este  acontecimento,  por  isso  a  con- 
taremos rapidamente. 

Assplára  uma  peste  assustadora  a  cidade  de  Ná- 
poles, e  os  Napolitanos,  que  já  se  viam  assober- 
l)ados  com  o  Vesúvio  e  com  os  hespanhoes  que  os 
dominavam,  tendo  ainda,  para  cumulo  de  desven- 
turas, a  visita  da  peste,  andavam  iramersos  em 
profunda  tristeza,  quando  se  lembraram  de  meller 
empenhos  com  Deos  Nosso  Senhor,  para  que  elle 
por  sua  inlinila  misericordfó,  os  livrasse  do  íla- 
irello.  Fez-se  portanto  o  voto  a  S.  Januário  de  se 
Ihtí  construir  a  capella  mais  magnifica  da  llalia, 
depois  da  capella  Sixtina,  so  a  peste  se  fosse  em- 
bora. Acceilou  S.  Januário  o  contracto;  a  peste  foi 
espairecer  magoas  i)ara  outro  sitio,  e  os  Napolita- 
nos trataram  de  eomprir  a  sua  promessa. 

Ora  tinham  elles  juiado  que  o  dinheiro  neces- 
sário para  a  construcção  sairia  só  de  bolsas  na- 
cionaes.  Regeilaram  até  a  ofierta  de  uma  quantia 
considerável,  que  a  mulher  do  seu  vice-rei  lhes  en- 
viara, visto  ser  estrangeira  a  devota,  accresccndo 
ainda  o  ser  hespanhola,  nome  que  principiava  a 
soar  mal  aos  ouvidos  dos  comj)alriotas  de  Masa- 
niello. 

Mas  o  que  elles  não  juraram  foi  que  a  mencionada 
capella  fosse  piíjláda  só  por  artistas  napolitanos. 
Não  o  juraram  os  votantes,  mas  juraram-n'o  os 
artistas,  e  declararam  urbicl  o//»/(juetodo  c qual- 
quer artista  de  fora  de  Nápoles,  que  acceilasse  o 
convite  que  aos  pintores  da  Itália  dirigia  a  com- 
missão,  podia  contar  que  recebei'ia  em  |)aga  uma 
boa  estocada  do  llespanholeto,  ou  (b;  Laufranco, 
que  manejavam  o  ílorete  pelomenos  tão  bem  como 
o  pincel. 

A  ameaça  era  séria.  Ouem  vè  hoje  passar  pelo 
meio  da  rua  o  sr,  Annunciação.  ou  o  sr.  Lu|)icom 
todas  as  a|H)arenciasde  cidadãos  pacilicos,  amigos 
de  ordem,  eleitores  da  sua  fríguesia,  e  respeita- 
dores das  leis  policiaes  não  pode  imaginar  o  qu(í 
eram  os  arlistas  do  século  XVI  e  do  sfculo  XVII. 
Era  tudo  gente  de  (-hapeo  á  banda,  capa  traçada 
o  mão  na  illiarí,'a,  espadim  a  pular  na  bainha, 
nariz  a  procurar  avcntui-as.  lira  gente  da  laia  de 
Salvator  Rosa,  que  foi  amigo  d(!  Masaniello,  eque 
fez  [)aile  de  um  corpo  de  voluntários  da  morla, 
composto  (juasi  todo  de  artistas,  íjue  usavam  car- 
tucheiras  em  vez  de  palheta,  arcabuz  em  vez  de 
pincel,  e  que  desenhavam  á  ba'a  nas  cabeças  dos 
hespanhoes,  que  tinham  a  desgraça  de  lhes  ser\ir 


de  tela.  Já  vêem  pois  que  a  ameaça  dos  pintores 
napolitanos  devia  inspirar  sérias  reflexões  aos  ou- 
tros artistas  da  península  italiana. 

Não  se  importaram  com  a  ameaça  alguns  dos 
pintores,  entre  outros  duido  que  appareccu  ura 
bello  dia  em  Nápoles  acompanhado  por  dois  dos 
seus  discipulae.  Mas  os  ares  logo  se  mostraram 
turvos,  e  Guido  não  teve  remédio  senão  dar  às  de 
Yilla  Diogo,  Succedeu-lhe  o  cavalheiro  de  Arpino, 
que  era  espadachim,  mas  que  se  vio  obrigado 
também  a  retirar,  porque  não  era  possível  estar 
em  cima  dos  andaimes,  de  pincel  n'unia  das  mãos 
e  espada  na  outra.  Veio  apoz  elle  o  nosso  Domi- 
niquino. 

Esse  era  um  velho.  Os  pintores  napolitanos  te- 
meram o  odioso  que  cairia  sobre  elles  se  o  assas- 
sinassem ou  á  traição  ou  em  combate,  eniflm  se 
lizessem  correr  sangue.  Optaram,  segundo  se  diz, 
pelo  veneno,  e  os  precedentes,  que  mencionámos, 
authorisam-nos  a  supporque  esta  opinião  não  será 
desliluida  de  fundamento. 

Assim  mori'eu  da  idade  de  sessenta  annos  esle 
notável  pintor,  que  não  tem  quasi  rival  na  expres- 
são das  physionomias,  ainda  que  o  colorido  esteja 
longe  de  ser  primoroso.  Na  gravura,  que  orna  este 
numero  do  Panorama,  podem  os  leitores  ver  a 
justiça  do  elogio  que  lhe  fazemos. 

O  assumpto  do  quadro  é  conhecidissimo.  É  o 
episodio  da  Eneida,  em  que  o  pio  heroe  foge  de  Tróia 
levando  ás  costas  seu  pai  Anchises,  ao  lado 
seu  filho  Ascanio,  atraz  sua  mulher  Creusa.  Estão 
estes  maganões  lodos  a  sair  de  casa  na  occasião 
que  o  pinlor  escolheu.  Creusa  entrega  ao  sogro 
uns  bonequilos  que  parecem  obra  de  capellista, 
mas  que  são  nada  menos  do  que  os  deuses  pe- 
nates, o  pequeno  insiste  para  que  se  ponham  a  an- 
dar, e  Enéas,  com  o  pai  ás  costas,  volta  os  olhos 
saudosos  para  a  sua  habitação. 

Devo  confessar-lhes,  aqui  muito  á  puridade,  que 
nunca  me  commoveu  muito  este  episodio  da  Enei- 
da. A  idéa  do  velhote  escarranchado  nos  hombros 
do  filho  de  capacete  sempre  me  transtornou  o  pa- 
Ihelico  do  lance,  e  não  posso  reler  os  versos  do 
Manluano,  sem  me  lembrar  do  Virgile  íravesliÚQ 
Scarron,  em  que  o  malicioso  poeta  nos  pinta  o 
l)ai  Anchises  aos  pontapés  ás  cosias  de  Enéas,  cha- 
mandolheumas  vezes  «meu  querido  filho,»  outras 
vezes  cão  e  patife,  para  o  fazer  andar  mais  de- 
pressa, c  Creusa  quê  se  perdeu  no  caminho  \)ov- 
(|ue  ficou  a  atar  a  liga  da  meia,  e  Ascanio  que 
berra  por  pão  com  manteiga,  e  Enéas,  (jne  vindo 
bater  á  poita  de  casa  para  dizer  (|ue  está  o  fogo 
na  cidade,  fica  immenso  tempo  na  rua,  porque,  se- 
gundo elle  depois  conta 

Un  me  cri:i  par  la  funcire 

Que  Von  n'ouvrdit  jamais  la  nuit 

E(,  qiic  jc  falsais  Irop  tlc  hiuit. 

Em  todo  o  caso  Dominiíjuino  não  podia  adivi- 
nhar (|ue,  depois  da  sua  morte,  um  francez  travesso 
se  havia  de  divertir  á  custa  do  seu  assumpto,  e 
foi  pintando  um  (|ua{lro  admirável,  de  (|ue  dá  uma 
boa  idéa  a  gravura  (jue  apresentamos. 


o  PANORAMA 


67 


DO  MOVIMENTO 

Por  A.  OSÓRIO  DE  YASCONCELLOS 
II 

Ouando  a  Iradicção  piedosa  poz  na  boca  de 
Gafileu  Galilei  o  celebre  /•  pur  si  muovc,  como 
resposta  audaz  da  sciencia  ás  torvas  perseguições 
do  fanatismo,  mal  diriam  os  homens  de  então, 
que  os  discípulos  do  grande  sábio  italiano  pode- 
riam dizer  passados  três  séculos:  ludo  se  move  na 
natureza.  Esta  conclusão  concisa,  verdadeira,  lu- 
minosa, é  um  corollario  do  pensamento  profunda- 
mente phylosophico,  que  sempre  dirigiu  os  tra- 
balhos do  sábio  de  Pisa. 

Tudo  se  move  na  natureza,. dizemos  nós,  os  ho- 
mens de  hoje,  sem  nos  lembrarmos  que  este  apho- 
rismo  tão  simples  e  tão  singelo,  custou  séculos  de 
observação  e  vigílias,  noites  e  noites  mal  dormi- 
das, dias  de  Ímprobo  labor,  combales  mal-feridos 
.  contra  os  preconceitos  herdados,  e  hecatombes  de 
"^  victimas,  que  se  finaram  em  prol  da  sciencia,  in- 
terrogando a  terra,  cruzando-a  em  lodos  os  sen- 
tidos, já  nas  regiões  hyperboricas,  já  nos  climas 
adustos. 

Tudo  se  move,  porque  não  ha  vida  sem  movimen- 
to. Movem-se  os  mundos  na  amplidão,  sulcando 
as  ondas  ethereas  immensas,  sem  limites ;  movem- 
se  as  estrellas,  nos  conlins  da  creação,  tão  dila- 
tadas, Ião  longínquas,  que  a  nossa  imaginação  es- 
tupefacta ao  contemplar  tanta  grandeza,  só  pôde 
explical-a,  acceitando  o  infinito  real. 

Movem-se  os  cometas,  essas  borboletas  do  ceu, 
essas  nuvens  vaporosas,  que  volilam  com  rapidez 
aterradora  e  gastam  milhares  de  annos  a  descre- 
ver as  suas  orbitas; 

A  par  do  infinitamente  grande,  move-se  o  in- 
finitamente pequeno. 

O  alomo,  assim  como  o  astro,  gira  perpetua- 
mente. 

Porque  a  vida  é  uma  serie  de  movimentos  que 
se  combinam,  cruzam-se  e  completam-se.  A  vida 
éafiuxão  de  Newton,  è  uma  corrente  continua  em 
que  as  monadas  se  balançam  e  revoluteam. 

A  acção  que  uma  recebe,  envia-a  intacta  e  in- 
tegra á  que  se  lhe  segue,  e  o  átomo  do  phosphoro 
que  se  fixa  no  cérebro  do  homem,  resulla  de  uma 
acção,  de  que  o  universo  è  participante. 

Os  movimentos,  invisíveis  ou  atómicos  nunca  se 
equilibram  na  grande  faina  do  mundo. 

Dois  movimentos,  que  se  combinam,  produzem 
sempre  um  terceiro  movimento  harmónico  com 
os  primeiros,  e  como  elles  necessários  ao  íimcom- 
mum. 

O  que  Descartes  dizia  dos  corpos  é  applicavel 
immediatamentc  aos  alomos.  «.Para  mim  tenho, 
exclamava  o  grande  phylosopho,  queha  uma  certa 
quantidade  de  movimento  em  toda  a  matéria 
creada,  que  nunca  augmenta  nem  diminue,  e  as- 
sim é  que,  quando  um  corpo  obriga  outro  a  mo- 
\'er-se,  perde  tanto  movimento  quanto  éo  queda 
como  acontece  com  uma  pedra  que  se  depois  de  cair 
sobre  a  terra,  não  volta  para  o  ar,  antes  fica  pa- 
rada, parece-me  que  isto  provem  de  que  a  pró- 


pria terra  é  abalada,  e  lhe  transfere  assim  todo  o 
seu  movimento.» 

E?las  palavras  de  Descartes,  exprimem  o  que 
se  passa  era  todo  o  universo. 

Os  movimentos,  assim  visíveis  como  invisíveis 
combinam-se  mutuamente,  mas  não  se  perdem. 

Da  mesma  sorte  que  a  pedra  abala  a  terra,  o 
raio  luminoso  ou  calorífico  não  pôde  perder-se  e 
acabar  o  seu  eíleílo,  para  não  mais  se  renovar. 
Cada  acção  tem  o  seu  cyclo  fatal  e  necessário,  c 
o  limite  derradeiro  e  grandioso  é  a  vida,  que  se 
perpctija  no  universo. 

Por  isso,  se  a  vida  está  em  Ioda  a  parte,  e  se 
não  ha  vida  sem  matéria,  o  vácuo  é  impossível 
e  repugna  como  absurdo. 

Assim  acreditáramos  anligos  em  a  sua  admirá- 
vel presciência,  assim  julgamos  nós  e  provamos 
pela  explicação  e  permanência  de  certos  pheno- 
menos. 

O  vácuo  não  existe.  Aonde  não  ha  matéria  pal- 
pável, tangível  ha  um  fluido  tenuíssimo,  vibratil, 
que  escapa  a  todas  observações,  imagem  viva  dos 
gnomos  subtis,  verdadeiro  sylpho  da  creação,  por- 
que penetra  os  mais  íntimos  recessos  dos  corpos, 
enche  os  espaços  inleralomicos  e  interplanelarios. 
Esse  fluido  ou  o  que  quer  seja,  cuja  existência  foi 
adivinhada,  é  o  ether,  que  alguns  phylosophos  jul- 
gam imponderável,  não  se  lembrando  que  o  vá- 
cuo é  absurdo,  eonde  não  ha  pezo  não  ha  matéria. 

Porque  o  ether  escapa  á  observação  directa,  não 
se  conclue  que  não  tenha  pezo.  Desde  quando  a 
experiência  pôde  substituir  o  raciocínio  em  ques- 
tões de  phylosophia  ?  Dado  que  o  vácuo  não  pôde 
existir,  o  ether,  que  o  enche,  é  matéria,  e  por- 
tanto peza. 

O  ether  é  pois  o  vehiculo,  o  meio  ]3elo  qual 
os  movimentos  se  transportam  e  combinam,  da 
mesma  sorte  que  o  ar  transporta  os  sons.  As  ondu- 
lações do  elher  são  as  vibrações  do  ar(l) 

O  que  é  a  forra"!  Se  temos  movimentos,  e  se 
estes  são  a  vida,  segue-se  que  aquella,  a  forca, 
é  a  própria  vida'' 

Eis-nos  chegados  ao  mysterio  da  natureza.  A 
força  c  a  incógnita,  que  ninguém  pôde  determi- 
nar. A  força  é  tudo  e  é  nada.  Considerada  como 
causa  primaria  do  movimento,  a  força  é  a  alma 
do  universo,  é  a  ligação  providencial  dos  elemen- 
tos, é  o  agente  das  transformações  e  metamor- 
phoses,  é  o  fautor  d'esse  camalião  sublime,  que 
se  denomina  vida.  Tomada  como  entidade  abstracta 
ou  como  idéa  absoluta  a  força  é  a  desconhecido, 
é  o  ponto  de  interrogação  perante  o  qual  todos 
estacam. 

Mas  a  sciencia  moderna,  honra  lhe  seja,  dei- 
xou ha  muito  essas  definiçõ^s  e  distíncções  subtis, 
que  foram  em  tempos  Irislissimo  apanágio  da  phy- 
losophia natural. 

Quando  se  ignora,  o  melhor  meio  de  se  forrar 


(1)  A  própria  camará  barométrica,  o  espaço  comprehendido  entre 
a  superficie  dacolumna  do  mercúrio  o  a  extremidade  fechada  do 
tubo,  transporta  a  gravidade,  o  magnetismo  etc.  e  não  transporta 
o  som.  .         .  . 

tí'  jiorque  existe  ali  ether  a  pezar  do  vácuo  ser  o  mais  perfeito 
de  todos  que  é  possível  obter. 


68 


O  PANORAMA 


ás  difliculdades,  é  confessar  a  ignorância,  c  cami- 
nhar ávanlc. 

Assim  lez  a  scicncia  não  curando  das  causas 
primarias,  que  vinham  a  cada  passo  tolher  o  pro- 
gresso e  enlibiar  os  arliíices. 

Acceilo,  como  principio  inconlroverso  que  a 
matéria  se  move,  ou  antes,  que  o  movimento  c 
uma  propriedade  inherente  e  essencial  á  maté- 
ria, não  era  necessário  recorrera  cada  instante  a 
uma  causa  exterior  c  desconhecida,  a  uma  força, 
que  explicasse  e  determinasse  os  phenomenos. 

E  lanlo  isloé  assim,  que  os  maiores  geómetras, 
que  lloresceram  depois  de  Newton,  Laplace,  l.a- 
grange,  Plana,  Poinsot.elc.  até  confundem  de  caso 
pensado  o  movimento  com  a  força,  e  combinara 
uma  com  oulra  coisa,  o  que  seria  absurdo,  se  com 
elTeilo  csía  fosse  a  causa  d'aqueile. 

Cabia  principalmente  á  sciencia  mostrar,  não 
só  que  a  matéria  eslava  em  perpetuo  movimento, 
senão  que,  e  isto  era  o  principal,  um  movimento 
quabpier,  fracção  da  energia  natural,  podia  gerar 
outro  ou  outros  movimentos  e  com  ellesconbinar- 
se  por  todos  os  modos. 

Assim  foi  que  Rumford,  Mayer,  Grove,  Joule, 
e  outros  demonstraram  evidentemente  que  o  mo- 
vimento, das  massas  pôde  converter-se  em  movi- 
mentos de  átomos,  isto  é  que  o  movimento  de  um 
corpo  se  tiansforma  em  calor,  e  este,  jiarecendo 
aniquilado,  surge  outra  vez,  como  Phenix,  sob  a  for- 
ma de  movimento.  A  acção  do  sculptor,  que  ani- 
ma o  mármore,  é  uma  parcella  da  energia  da  na- 
tureza, é  uma  fracção  de  calor  solar,  que  se  trans- 
formou em  movimento. 

Pertencia  e  pertence  ainda  á  sciencia  posto  que 
este  problema  esteja  ainda  no  dominio  das  con- 
jecturas, o  mostrar  que,  se  a  matéria  pôde  ser 
una  e  simples,  a  força,  ou  o  movimento  é  tam- 
bém simples  e  uno,  ou  o  que  é  o  mesmo,  que 
a  quantidade  de  movimento  inicial  não  augmenla 
nem  diminue,  não  tem  natureza  diversa,  apenas 
se  Iransfoinia  e  metamorphosca  continuamente, 
incessantemente. 

Assim  com  o  sol  é  umas  vezes  centro  de  foiça 
impulsora  e  mantém  os  planetas,  salelliles  e  co- 
metas nas  suas  orbitas,  e  outras  vezes  emana 
calor,  luz,  electricidade,  magnetismo,  c  aílinidade 
chimica,  assim  lambem  nos  seios  da  natureza  ha 
uma  faculdade,  em  virtude  da  qual  todas  estas 
manifestações  da  energia,  apparenlemenie  tão  di- 
versas, j)ódem  ser  oriundas  do  mesmo  centro, 
e  transfoimaren^-se  mutuamente,  segundo  as  cir- 
cunstancias. 

Ouer  isto  dizer  quea  sciencia  procura  a  unidade 
dos  movimentos  e  anuidade  das  matérias  elemen- 
tares pela  sua  correlação  intima. 

Km  conclusão  vc-se  que  a  (hnamica  (2)  deter- 
minou pela  anal \  se  e  observação  : 

1."  Ouc  ao  axioma  de  Lavoisier  de  í|ue  a  ma- 
téria não  se  cria  nem  se  perde,  corresponde  o  axio- 
ma de  (|ueo  movimento  não  se  cria  ikmii  se  |)erde. 

2."  Oue sendo  a  maleriauna,  a  força  éuuaíam- 
bem. 

(2)  Sciencia  das  ijrc::i. 


Assentes  estes  principies,  que  vão  aqui  exara- 
dos com  a  possível  clareza  e  brevidade;  conside- 
rando o  movimento  assim  nos  corpos  como  nos 
corpúsculos  digamos  alguma  coisa  á  cerca  d'elles 
e  da  vida  do  cosmos,  antes  de  faltar  da  vida  phy- 
siologica,  como  nós  acomjjrehendemos  mais  facil- 
mente.       

A  GRAVURA  EM  MADEIRA  EM  PORTUGAL 

Por  NOGUEIRA  DA  SILVA. 
11 

Em  seguida  ao  Panorama  veio  a  llluslrarão. 
O  pensamento  inicial  d'esla  nova  publicação  il- 
lustrada  era,  creio  eu,  radicar  a  arte  nacional  e 
alargar-lhe  a  esphera  até  ás  vastas  proporções  dos 
jornaes  estrangeiros  do  mesmo  titulo. 

Para  realisar  este  milagre  deram-se  as  mãos, 
lapjs,  penna,  c  buril,  suppondo  cada  um  que  em 
qualquer  dos  outros  existia  o  santo.  Mas,  infeliz- 
mente, em  todos  faltava  a  graça.  O  estudo  e  o  cxer- 
cicio  permanentes,  sem  os  quaes  não  é  dado  ás  ^ 
bellas-artes  convencer  os  incrédulos  e  abrir  o  rei- 
no da  gloria,  tinham  morrido  á  nascença.  Não  po- 
dia, por  conseguinte,  a  cadea  deixar  de  |)arlir, 
([uerendo  faze-ia  chegar  forçadamente  aos  exti-e- 
mos  de  um  caminho  paia  que  não  tinha  a  sulli- 
ei(^nte  extensão.  Não  era  possível  que  a  vontade  llo- 
risse  faltando-lhe  a  seiva  da  acção. 

Os  artistas  que  deviam  realisar  tão  pretencioso 
ensaio  eram  ainda  os  mesmos  do  Panorama.  A 
arte  de  gravura  em  madeira  não  havia,  portanto, 
crescido,  nem  em  aperfeiçoamento  nem  em  culto- 
res; teria,  pelo  contrario,  emmagrecido,  porque  dor- 
mia; e  o  somno  é  para  as  artes  que  dependem,  como 
as  da  gravura,  de  uma  execução  aturada,  o  mes- 
mo que  o  reumatismo  é  para  a  gente.  Enlorpe- 
ce-as,  impossibilitando-as,  conseguinlemente,  de 
poderem  entrar,  de  prompto,  em  vida  activa. 

('omo,  pois,  allingir  o  lini  com  a  doente  tão  de- 
bilitada por  este  duplo  mal?  Não  parecia  quasi 
certo  o  sinistro,  empregando  medecina  tão  forte  e 
elevada? 

l^or  outro  lado,  mais  uma  circumstancia,  não 
menos  desíavoíavel,  e  dupla  lambem,  se  apresen- 
tava a  conspirar.  Era  o  numero  maior  e  grande- 
'sa  superior  das  estampas  que  reíjueria  uma  publi- 
cação de  vastas  dimensões  com  o  titulo  exigente 
ÚG  Illuslração,  em  nenhum  paiz  autharisada  pela 
|)obreza  numérica  e  artística  de  desenhos  e  gra- 
vuras. Mas  este  obstáculo,  para  mim,  o  inimigo 
gigantesco  da  empreza,  foi  o  que  ninguém  vio,  nem 
editores,  nem  redacção,  nem  artistas. 

A  uns  vendava-lhes*os  olhos  o  desconhecimento 
involuntário  de  uma  serie  de  cousas  d'arte,  que 
as  próprias  iiitelligencias  não  sentem,  e  mesmo  não 
coiiii)rehen(lem,  em  as  nações  onde  falia  a  educa- 
ção e  o  habito  de  ver  e  aj)ieciar  as  obras  mara- 
vilhosas das  bellas-artes.  A  outros  cegava-os  o 
amor  próprio, dizendo-lhes  que  ludo  poderiam  fazer. 

Ninguém  se  lembrou  (jue  uma  J/hi.sIrarão  era  já 
íim,  e  não  meio;  (|ue  era  o  resultado  do  desenvol- 
vimento (jutisi  complelo  do  desenho  e  da  gravura 
em  madeira,  e  não  estudo;  que  era  academia  de 


o  PANORAMA 


6^ 


mestres,  e  não  escola  de  discípulos;  que  era.  pro- 
fissão, e  não  tyrocinio.  Todos  disseram  «sim»,  e 
principiaram  logo  a  fazer  o  trabalho  que  melhor 
mostrava  que  deveriam  ter  dito  ((não»;  porque  um 
desenhador  e  um  giavador  não  podiam  dar  em 
uma  semana  a  obra  que,  por  ser  mais  multiplicada 
e  exigir  successivo  aperfeiçoamento,  carecia,  para 
Ião  limitado  numero  de  artistas,  de  dois  mezes  pe- 
lo menos. 

Certo  foi,  portanto,  afíogarem-se  os  estimules 
do  capricho  n'este  lago  de  diíViculdades,  e  cada 
um  tratava  de  salvar-se  como  podia.  Desenhou-se 
e  gravou-se  aos  trambulhões.  Bordalo  remettia  os 
desenhos  apenas  alinhavados  j)ara  a  mão  de  Coe- 
lho, e  este,  mau  grado  sou,  de  tal  modo  se  via 
obrigado  a  aguilhoa-los  comos  sous  buris,  para  os 
dar  esgara  valados  a  tempo,  quede  todo  os  descosia. 

IKus/rnrão  com  tal  arte  não  podia  agradar. 
Os  assignantes  i-ecebiam-a  mal,  e,  assegurando 
a  robustez  de  seus  peitos,  principiavam  a  decla- 
rar que  não  careciam  de  emolaslos,  remeltcndo, 


em  troca,  pelo  distribuidor,  algumas  pilulas  para  os 
editores.  Estes,  achando-as  amargas  de  mais,  sen- 
tiram a  necessidade  de  acabar  com  o  jornal  ou  de 
o  reformar.  Pensou-se  em  crear  discipulos;  mas 
estes  não  se  decretavam  em  bellas-artes.  Além  disso 
o  presente  corria  instável,  e  o  futuro  não  sorria.  Para 
mais  ajuda  o  publico"  não  estava,  como  ainda  ho- 
je não  está  uma  grande  parte  d'elle,  intelligenle- 
mente  preparado  para  jornaes  illustrados.  Conspi- 
rava tudo.  Em  o  ecu  irrevogável  programma,  li- 
nha o  destino  decidido  que  'Bordalo  Pinheiro,  e 
Baptista  Coelho,  fossem  os  primeiros  martyres  dos 
grandes  esforços,  em  que  ninguém  lhes  podia  já  of- 
fuscar  a  realeza  de  heroes.  O  impulso  que  havia 
de  fazer  sair  de  tão  acanhada  orbita  a  arte  de  gra- 
vura cm  madeira  estava  longe,  e  o  jornal,  que 
não  podia  esperar,  morreu  de  paralysia  artística, 
deixando,  apenas,  como  o  Panorama,  para  não 
mentir  ao  seu  estatuto  litterario,  um  nome  illus- 
tre  nos  annaes  das  nossas  publicações  amenas. 

(■("i.nlinm  1 


ALCATUÀO 

Dá-se  o  nome  de  Alcatrão  a  certos  productos 
empyreumaticos,  que  procedem  da  distillação  de 
matérias  vegetaes  ou  do  carvão  de  pedra.  * 
_  O  Alcatrão  ordinário,  chamado  muitas   vezes 
Alcatrão  vegetal  para  se  distinguir  do  Alcatrão 


(te  carvão  de  pedra  ou  coallar  dos  Inglezes,  é  uma 
substancia  resinosa,  espessa,  molle,  negra,  amar- 
ga e  de  um  cheiro  forte  e  empyreumalico,  que 
se  oblem  do  pinho  em  ignição;  é  um  mixio  de 
resinaspyrogéneascombinadas  com  o  acido  acético, 
carvão  e  óleo  essencial  empyreumalico;  emprega- 
se na  indusliia  para  preservar  as  madeiras  da  de- 


70 


O  PANORAMA 


composição  e  usa-se  d'elle  lambem  na  medecina 
e  na  veterinária,  contra  as  doenças  de  pelle,  ca- 
thaiTOS  chronicos,  lisica  pulmonar,  ele.  No  estado 
solitlo,  consequência  da  evaporação  de  uma  gran- 
de parte  dos  priucipios  liquides,  chama-se  /V:. 
O  alcatrão  da  Rússia  e  da  Noruega  é  o  mais  esti- 
mado; depois  o  dos  Estados-Unidos,  Bordéus,  Slras- 
burgo,  Provença,  ele. 

Ò  processo  para  extrair  o  alcatrão  vegetal,  é 
muito  simples.  (Vede  a  gravura).  Escolhe-se  um 
silio  favorável  no  declive  de  uma  montanha,  junc- 
to  ao  bosque,  do  qual  se  hade  cortar  a  madeira, 
e  próximo  de  um  lago  ou  riacho.  Bate-se  bem  um 
taboleiro  de  terreno  para  cada  forno,  sustentan- 
do a  terra  na  frente  com  fortes  paliçadas  de  ma- 
deira. Os  fornos  são  covas  abertas  no  chão,  de 
forma  cónica,  tendo  as  paredes  forradas  de  argila 
bem  batida.  No  fundo  pratica-se  uma  caldeira  na 
qual  ha  um  cano  ou  bica,  que  sae  fora  da  paliça- 
da. A  madeira  depois  de  secca,  reduz-se  a  cava- 
cos, mette-se  em  uma  espécie  de  dorna,  que  se 
adapta  justamente  ao  forno,  e  que  descendo  a  este 
é  coberta  de  terra  argilosa,  mui  balida,  para  evi- 
tar a  fuga  das  partes  voláteis,  licando  apenas 
um  pequeno  orifício  para  a  saida  do  fumo.  Reli- 
ra-se  em  seguida  o  madeiro  em  forma  de  cruz  que 
eslà  no  centro  da  dorna,  e  no  buraco  que  elle 
deixa  introduz-se  o  fogo.  A  madeira  vai-se  len- 
tamente queimando,  sem  fazer  chamma,  e  a  resina 
caindo  na  caldeira,  donde  passa  então,  pela  bica, 
para  os  barris,  que  depois  de  cheios  são  batoca- 
dos convenientemente.  A  nossa  estampa  explica 
bem  todo  o  processo  e  mostra  lodos  os  instrumen- 
tos precisos  para  este  fabrico. 

O  Alcatrão  mineral,  ou  Alcatrão  de  carvão  de 
pedra  é  um  dos  resíduos  do  fabrico  do  gaz  de  iilu- 
minação.  A  sua  composição  é  excessivamente  va- 
riável*. Calvert  achou-o  composto,  ora  quasi  ex- 
clusivamente de  Aapittalina,  ora  de  Paraffma, 
outras  vezes  de  Benzina,  Acido  phenico  e  de  di- 
versos cartmretos  de  iiydrogenio.  Submellido  á  dis- 
tillaçãomoderada,oalcalrãodecarvãodepedra,  pro- 
duz,sucessivamente,  agua,  ammoniato,  carburelos 
leves  de  hydj-ogenio,  e  depois  carburelos  mais  pe- 
sados. Os  primeiros  servem  para  a  illuminação,  os 
segundos  applicam-se  á  dissolução  do  mixlo  do 
caoutchouc  e  ^'omma  laca,  conhecido  pelo  nome 
de  Visco.  Estes  óleos  dislilkidos  servem  lambem 
para  a  preparação  do  acido  picricoA)  Y('ú(\\m  da 
distillação  do  alcatrão  ou  hren,  dissolvido  em  oleo, 
forma  com  as  ocres  uma  tinta  própria  para  conser- 
var as  madeiras,  mclaes^ctc. 


tão  pendurados  de  seus  favores  e  respostas  como 
de  oráculos;  as  acompanham  como  a  coisas  sagra- 
das; se  vestem,  ornam,  e  enfeitam  pelas  agradar; 
se  desvelam  pelas  servir;  se  apuram  para  as  me- 
recer, no  esforço,  na  gentileza,  na  galantaria,  no 
dito  discreto,  no  escriplo  avisado,  no  mole  galante, 
na  endeixa  subtil,  no  soneto  conceiluoso;  por  ellas 
se  ensaiam  para  o  saráo,  no  dançar,  no  fallar, 
no  acompanhar,  e  no  oflerecer;  por  ellas  se  apres- 
tam nas  occasiões  de  jornadas,  de  criados,  e  li- 
brés, galas  e  ginetes;  por  ellas  continuam  o  pas- 
seio á  vista  das  janellas,  atravessam  as  salas  á 
sua  conta,  e  rodeiam  o  terreiru  do  Paço  mil  vezes 
por  seu  gosto;  por  ellas  se  oíTerecem  a  todo  o  pe- 
rigo; porque  qual  he  que  um  servidor  de  damas 
não  ache  fácil  por  amor  d'ellas?  que  palavras  diz'? 
que  extremos  receia?  que  esquivanças  não  solíYe? 
que  riquesas  estima?  que  quimeras  não  finge? 
que  occasiões  não  busca?  vela  de  noite,  não  des- 
cança  de  dia,  não  se  entristece  com  a  pena,  não 
desconíia  com  o  desengano,  não  faz  conla  de  ag- 
gravos,  nem  estima  desprezos,  não  cura  de  vin- 
ganças, e  emfim  tudo  é  veneração  e  humildade 
com  que  as  engrandece. 

Francisco  Rodrigues  Lobo 


O  decoro  c  primor  com  que  as  damas  se  tra- 
tam n'esle  reino,  princi|)almenle  as  que  assistem 
no  Paço,  parece  que  em  certo  moíío  conserva 
aquella  preeminência,  qu(!  os  Egypcios  liic,  deram, 
qu(í  com  o  exemplo  do  bom  governo  d'Isis  rei- 
navam as  mulheres,  porque  em  prezença  c  auzcn- 
cia  os  cortezãos  as  nomeiam  por  senhoras,  se  lhes 
descobrem  e  ajoelham  como  a  deusas,  lhes  fazem  fes- 
tas, jogos,  justas  e  torneios  como  a  deidades,  cs- 


A    GALATEA   MODERNA 

Por  A.  OZORIG  DE  VASCONGELLOS      * 

III 
jtlfredo  de  Mello  a  António  Alvares 

Meu  caro  amigo. — Correu  um  mez,  e  este  lapso 
de  tempo,  que  é  um  zero  na  ampulheta  do  uni- 
verso, inlluiu  immenso  na  minha  vida. 

Vou  conlar-le  tudo  sem  rebuço  e  com  fideli- 
dade. 

Arrastado  pela  frieza  marmórea  de  Violante, 
cuidava  pressentir  um  vulcão  coberto  de  gelo.  A 
principio  sorria-me  a  idéa  de  mostrar  á  bella  al- 
deã que  pouco  me  importava  a  sua  isenção,  que 
entre  ella  vinha  eu  armado  de  Lisboa  com  o  meu  sce- 
plicismo....  que  jà  agora  me  está  parecendo  pos- 
tiço. Eu  ([ue  tantas  vezes  havia  clamado  contra 
os  enganos  do  coração  mal  podia  arreceiar-me 
d'elles,  em  uma  aldeia  perdida  nas  campinas  do 
Minho. 

l^oi-se  porém  amortecendo  a  pouco  c  pouco  a 
minha  contiança  e  comecei  a  temer  alguma  fraqueza 
indigna  dos  meus  brios  de  I).  .hian.  Bem  sabes 
que  uma  das  doenças  moraes  do  século  é  este  du- 
alismo artilicial  entre  o  coração  c  í  educação. 
Byron  e  Espronceda  deixaram  uma  escola,  que 
ainda  hoje  nos  governa  e  allribula. 

Todos  queremos  confessar-nos  supeiiores  ao 
amor,  c  dalii  essa  pugna  travada,  que  mal  nos  deixa 
gosar  a  mocidade,  colher  os  seus  fructos,  cultivar 
as  suas  11  ores. 

Eu  mesmo  que  sou  tão  amanledos  velhos  tempos 
romanescos  não  aceitara  o  papel  de  trovador,  que 
suspira  pela  sua  bella  c  almeja  conquislar-lhe  o 
alvedrio. 

Por  isso,  com  senlir-me  arrastado  para  Violante, 


o  PANORAMA 


71 


tomava-a  apenas  como  um  problema,  emal  cuida- 
ra que  a  solução  (Velle  poderia  ainda  imporlar  q 
meu  fuliiro. 

(Ihegado  aqui,  eslou  a  ver-te  amarrotar  esta  caria 
com  violência,  bradando  incendido  em  raiva: 

— Bem  le  dizia  eu,  pobre  Alfredo,  desventura- 
do amigo.  Ninguém  foge  ao  seu  destino,  e  o  teu 
sempre  foi  gemer  alllicto  aos  pés  de  umaserêa.  Cui- 
davas, que  podias  luctar  com  a  sorte,  e  caiste  em 
misero  engano.  Amar!  Pois  haverá  ainda  alguém 
que  se  deixe  levar  d'este  sonho  enganoso  1  Pois 
a  innocenciaarcadica  poderá  chegar  ainda  a  tanto! 
Amar  é  arder,  ércqueimar  o  coração  em  chamma 
devastadora.  Ninguém  pense  que  esse  fogo  não 
queima.  A  vestal  (|ue  o  guarda  e  o  mantém  acce- 
so,  manchou  ha  muito  a  túnica  enconsutil  no  bos- 
que sagrado.  Ó  mísero  Alfredo!  Porque  te  foste  pren- 
der? Porque  não  fugiste?  Assim  esqueceste  os  meus 
conselhos?  Ignoravas  acaso  que  braços  de  mulher 
são  liames,  que  nos  enredam  e  precipitam  no  abis- 
mo undoso,  contia  o  qual  não  ha  luctar? 

— Devagar!  devagar!  respondo  eu.  Pintas  o  qua- 
dro tão  negro,  meu  velho  amigo,  que  vou  lançar 
luz  nas  nuvens,  que  encastellas  no  meu  firmamen 
to.  Ouve  e  socega.  Eu  não  amo  ainda,  e  tenho 
pena. 

Vai-se-me  extinguindo  a  mocidade,  conio  flor  que 
emmurchece  com  o  calor  do  sol. 

A  edadc  viril,  como  é  de  uso  chamar  ao  pri- 
meiro alvor  de  decadência,  vem  assomando  car- 
regada de  desenganos.  Que  refrigério  lenho  eu 
contra  elles?  Oue  fogo  para  derreter  os  gelos,  que 
se  amontoam?  Aonde  buscar  alentos  para  os  tor- 
mentos da  vida?  Aonde,  senão  em  um  peito  ado- 
lado,  em  um  seio  de  virgem,  nessa  pyra,  cujo  fu- 
mo é  incenso  sacralissimo?  Não  escarneças.  A 
minha  doença,  a  doença  de  nós  todos  está  na  ma- 
ter lalisação  úo  amov .  Amor  sensual,  exhaure;  amor 
espiritual,  alenta.  Sansão  deixa  que  Dalila  lhe  cor- 
te os  cabellos,  e  rende-se;  Hercules  lança  aos  pés 
de  Omphalc  a  pelle  do  leão  da  Neméa;  mas  An- 
teu  cobra  novas  forças  quando  abraça  a  terra,  e 
Amadiz  obra  prodígios  e  gentilezas. 

Se  eu  portanto  lançar  para  longe  o  materialis- 
mo, que  herdei  do  século,  poderei  ser  feliz.  Seiíão, 
que  importa? 

Deixa-mc  porém  voltar  ao  fio  da  minha  narra- 
tiva, se  porventura  as  minhas  phylosophias  não 
te  cansam  o  espirito. 

Pirme  no  meu  sceplícismo  e  julgando-mc  um 
Achilles  invulnerável  comecei  a  dirigir  a  minha 
táctica,  com  a  perlidía  de  um  conquistador,  que 
por  satisfazer  um  capricho,  não  se  arreceia  de 
macular  o  tecto  hospitaleiro  e  preparar  um  futuro 
de  lagrimas  a  unuulonzclla  virtuosa,  que  vive  uma 
vida  tão  santa  c  clausuialna  província.  Assim  nos 
fez  este  século! 

Durante  este  tiroteio  não  poupava  nenhuma  das 
artimanhas,  que  é  uso  empregar,  e  que  aqui  po- 
diam dimh  fazer  cffei lo.  Não  penses  que  me  cons- 
titui um  Lovelace  ridículo. 

Outro  e  mais  alto  era  o  meu  fim,  porque  que- 
ria interrogar  aquelle  coração. 


Assim  correram  os  primeiros  dias  e  devo  con- 
fessar-te  que  tudo  foi  baldado. 

A  mesma  frieza,  sempre  a  mesma  indifferença. 
Um  sorriso  dcdesdem,um  olhar  glacial  elimpido, 
e  nada  mais  E  não  sei  porque  cada  vez  me  sentia 
mais  subjugado  e  vencido. 

Á  noite,  junto  ao  fogão,  quando  começávamos  a' 
rememorar  as  melhores  paginas  dos  primeiros  es- 
criploi-es,  em  que  elles  como  que  haviam  deixado 
uma  parte  de  sua  alma,  Violante  conservava-se  im- 
passível, rosto  erecto,  sem  uma  sombra  de  senti- 
mento, sem  uma  scentelha  nos  olhos,  sem  um  gesto 
de  enthusiasmo,  e  quantas  vezes,  depois  de  me 
haver  deixado  librar  nas  azas  da  imaginação  ás 
espheras  altíssimas  do  afiecto  puro  c  immaculado, 
não  me  precipitava  ella  e  me  deixava  aturdido, 
absorto,  estúpido,  lembrando-sederepente  de  uma 
minúcia  caseira,  das  horas  do  chá,  da  lenha  paia 
o  fogão?  N'esses  momentos  crescia-me  uma  raiva 
coiícentrada;  quizera  abrir-lhe  o  peito  e  ver  late- 
jar-llie  o  coração  nas  minhas  mãos  ensanguentadas. 
Outras  vezes  c  ella  quem  me  induz  e  arrasta  e 
obriga  a  conversações  intimas,  em  que  a  alma  se 
alarga  e  expande  e  então  ou  sorri  ou  fica  pensa- 
tiva e  suspira  contemplando  o  brazído. 

Assim  continuavam  os  nossos  serões,  interrom- 
pidos ás  vezes  pelas  narrativas  do  velho  fidalgo, 
que  muito  se  deleitava  em  contar  as  suas  campa- 
nhas e  os  feitos  de  seus  avós. 

O  tempo  estava  chuvoso  e  carrancudo. 

A  athmosphera  nublára-se  com  a  minha  che- 
gada; caíamos  primeiros choviscos,  que  succedem 
ás  chuvas  torrencíaes  do  inverno  e  precedem  o 
bafejar  da  primavera. 'Os  campos  alagados  não 
permittiam  caçadas,  para  que  o  meu  hospedeiro 
me  andava  convidando  todos  os  dias.  São  terríveis 
para  um  namorado  estas  clausuras  forçadas  frente 
a  frente  arca  por  arca  com  o  objecto  amado.  E 
brincar^ com  o  fogo,  que  nos  queima,  é  aguçar  o 
cutello,\iuc  ha  de  decepar-nos. 

E  eu  sinto-me  cada  vez  mais  prezo,  sem  poder 
desatar  os  laços,  que  me  enleim.  Não  julgulfe 
que  goso  esses  extasis  sublimes  do  primeiro 
amor.  Julgo-me  velho  para  isso.  Amoíino-me, 
ponpie  começara  por  um  brinquedo,  o  qual  se 
volta  depois  contra  mim.  Tal  é  o  meu  estado 
digno  de  lastima.  Não  a  amo  por  ora,  como  usa- 
vam os  trovadores,  antes  me  rebello  conlra  essa 
idéa,  (jue  ainda  ha  poucos  dias  me  iázia  sorrir. 
Vejo  porém  que  se  aj)roxima  a  crise,  para  a  qual 
não  estou  preparado.  Se  Violante  não  se  apresen- 
tara tão  diversa  do  que  eu  pensava,  por  formosa, 
(jue  soja,  não  teria  poder  pai-a  me  encantar.  iVias 
levado  |)ela  curiosidade  quiz  estudal-a  de  peito,  e 
afinal  i)arece-me  que  virá  a  acontecer-me  como  a 
Plínio,  que  para  estudar  o  vulcão,  debruçou-seda 
cratera,  e  caiu  na  lava  de  fogo.  Já  me  lembrei  de 
fugir,  mas  fora  cobardia.  Antes  quero  morrer  no 
meu  posto,  como  soldado  fiel  á  bandeira.  Teu  ver- 
dadeiro amigo  —  Alfredo  de  Mello. 

A  prudência  junta  ao  valor  Iriumpha  dos  maio- 
res obstáculos. 


72 


O  PANORAMA 


BEATRIZ 

Escusado  é  dizer  quem  murmurava 
Este  canto  de  amor;  por  mais  virtude 
Que  o  leitor  tenha  em  si,  en  perco  tudo 
Que  é  possi\  el  perder,  se  não  c  certo 
Que  já  desconllou  de  quem  soltava 
Estas  palavras  ternas  e  amorosas. 
Fica.  portanto;  assente  que  a  condessa, 
A  despeito  de  tudo  amava  Ja^^ques. 
O  que  mais  succedeu  depois  do  canto 
Que  acabamos  de  ouvir,  c  ponto  serio 
Que  não  ouso  tocar;  demais  a  noile 
Era  escura  c  sombria,  e  os  dois  amantes 
Vagavam  no  mais  denso  da  espessura 
De  um  copado  jardim.  Ohl  quem  poderá 
Ouvir  quantos  suspiros  maviosos 
O  vento  repetiu,  quantos  protestos 
De  infinita  paixão  soaram  brandos 
Entre  os  ramos  em  flor  da  larangeiral— 

Deixai,  deixai  viver  quem  ama  e  senie 

Bater  o  coração  ébrio  de  affeclo; 

Deixai  colher  as  rosas,  que  despontam 

Neste  duro  pragal,  chamado  a  vida; 

Deixai  gosar,  o  goso  é  quanto  resta 

Ao  que  tem  alma,  e  farto  (feste  mundo, 

Inda  pode  sonhar  com  o  paraisol 

Que  importa  o  mais?  Eu  quero  em  minha  fronte 

Uma  c'roa  de  lyrios,  em  meus  braços 

O  meu  anjo  infiintil,  sobre  os  meus  lábios 

Um  beijo  ardente  e  longo,  e  o  mundo  inteiro 

Que  desa!)e  em  redor:  feliz  e  altivo 

Hei  de  viver  de  amor  entre  as  ruinas!— 


XI 


O  certo  c  que  a  condessa  amava  Jacques, 

E  o  conde  nem  de  longe  suspeitava 

Esta  infame  paixão;  verdade  seja 

Que  a  esposa  encantadora  .já  não  tinha 

O  mesmo  agrado  -e  affecto  como  d'antcs; 

Mas,  que  cu  saiba,  ninguém  se  atreveria 

Por  mudança  tão  leve  a  ter  vislumbre 

De  uma  idea  ruim.  Passava  o  tempo, 

.\s  visitas  de  Jacques  repetiam-se 

Cada  vez  mais,  os  ânimos  alheios 

Iam  sentindo  já  de  vez  em  quando 

Seus  momentos  de  duvida;  a  má  lingua 

Começava  a  grassar  na  visinhança. 

Bealri/.  pensou,  viu,  bem  que  era  impossível 

Viver  assin),  fingindo,  atraiçoando, 

Mentindo  a  cada  instante;  era  preciso 

Kemif-se,  pelo  menos,  d'essc  crime 

iJa  traição  desleal  — que  lhe  restava?.... 

O  que  íazia  alli?...pois  não  temia 

Que.  desfeita  a  illusão  que  inda  enganava 

O  velho  conde,  súbita  procella 

Desfechasse  uos  dois  horridamcnte?.... 

Pensou,  viu  ludo,combinou  mil  casos, 

Modilou  largamente,  e  sem'i)re  ao  cabo 

l)'essas  cogitações,  vinha-lhe  á  mente 

.\ífastar-sc  d'alli,  fugir,  roubar-se 

Aos  affagos  do  esposo,  e  só  com  Jacques 

Entre  arrobos  de  amor  passar  a  vida. 

Esta  idea,  de  corto,  era  a  mais  prompla 

Que  podia  acudir  a  (luem  se  visse 

Na  posição  terrivel  da  condessa; 

Sei  que  as  coisas,  levadas  d'oiitro  modo, 

Podiam  vir  a  dar  n'um  resultado 

Muito    melhor,  talvez,  c  até  mais  próprio. 

M;is  a  pobre  mulher  que  só  peccara 

Cega  (hí  amor,  que  ouv:a  a  consciência 

(>oridemn;i-l;i  na  voz  de  seu  marido, 

Inda  tiidia   a  loucura   imperdoável 

De  julgar,  que,  mostrar-sc  a  lodo  o  mundo 

Tal  qual  era,  dccerlo  era  mais  digno 


Do  que  fingir  pureza,  quando  n'alma 
A  pústula  da  infâmia  ia  lavrando!  — 

Assim  foi;  certo  dia,  a  desgraçada. 

Entre  lagrimas  tristes,  disse  a°  Jacques 

Que  era  myster  partir,  irem  sosinhos 

Viver  longe  do  mundo,  não  sentind» 

O  rumor  da  procella  que  já  perto 

Começava  a   rugir;  elle,beijando-a 

Na  face  desmaiada,  disse  apenas 

Co'  um  sorriso  de  amor:  —  «Oh!  sim,  querida, 

«É  preciso  partir,  sou  leu,  és  minha» 

Pouco  tempo  depois  ambos  viviam 

Na  mais  doce  união,  na  paz  mais  doce 

Que  podemos  sonhar;  o  ceo  banhava-o.s 

De  luz  e  de  prazer,  e  as  brandas  horas 

Deslisavam  serenas,  como  um  rio 

Entra  o  frescor  e  o  cheiro  das  boninas. 

O  conde,  o  pobre  conde  retirara-se 
Do  bulicio  do  mundo;  e  alguém  dizia 
Que,  pungido  de  magoa,  ultimamente 
Fora— coitado— recolher-se  a  Trappa, 
E  devorar  no  horror  o  fel  da  vida. 
O  certo  é  que  partira;  onde  parava 
Não  posso  já  dizer,  porem  suspeito 
Que  a  baleia  da  Trappa  é  sem  verdade. 
Isto  é  fallar  de  mais;  eu  deveria 
Conservar  o  mysterio  até  às  ultimas, 
Cobrir  com  um  veo  de  névoa  as  peripécias 
Que  lenho  a  relatar,  baralhar  ludo, 
E  assim  ganhar  terreno  onde  podesse 
Mostrar  no  desenlace  os  meus  recursos. 
Isto  mí^nda  o  bom  siso,  e  os  grandes  mestres, 
Que  valem  muito  mais;  mas  eu  não  posso, 
Seja  dito  afinal,  não  posso  nunca 
Prender-me  cm  grande  acção,  aproveilar-lhe 
Quanto  ella  tem.  lorcel-a"e  reviral-a 
Em  trato  de,  polé;  loco-a  de  leve, 
Tomo  apenas  a  flor,  vou  pela  rama, 
E  acabo  exhausto  e  farto;  estou  no  caso 
Do  bom  de  La  Fonlaine: — «As  grandes  obras 
Nunca  as  pude  tragar;  lenho-lhes  medo!»— 

ConUnun. 

E.  A.  Vidai. 


PRISÃO  DE  AMOR 

Trailiieção  de  iii»  epigraiiiiun  grego 

l'm  dia,  cortou  ella  um  só  cabello 
da  longa  e  lina  trança  d'ouro  bello, 
e  as  duas  mãos  comelle  me  ligou. 

lieixei  lig.al-as;  e  sorri-me,  quando 
vi  fácil  o  quebrar  o  laço  brando, 
com  que  a  travessa  minhas  mãos  alou. 

Mas  quando  de  Ião  frágil  embaraço 

me  quiz  livrar,  achei  que  o  brando  laço 

n'uma  dura  cadeia  se  tornou. 


Vizeií.  ouLuljro  de  O.i, 


Cândido  Figueiredo. 


Nilo  (í  haslanlc  o  sor  justo,  é  pi-ociso  ser  bonefi- 
cenlc. 

É  o  ospirilo  quo  (leve,  do  ser  a  rogra  do  nosso 
pi-occdinuiiilo  o  o  guia  das  nossas  acções. 

Sallistiro. 

A  virlude  é  a  única  cousa  que  se  não  dá  e  que 
SC  iijjo  recebe.  Maiuus 


Typ.  Fraijco-1'orlugueza.  =  Huado  Thesouro  Vullio,6. 


10 


o  PANORAMA 


73 


WIESBADEN  E  SEUS  CONTORNOS 

AViesbaden,  celebre  por  suas  aguas  mineraes,e 
aonde  todos  os  annos  concorre  um  grande  nume- 
ro de  estrangeiros,  é  uma  das  mais  conliecidas  cida- 
des de  Ailemanha,  Foi  fundada,  um  século  antes  da 
era  chrislã,  pelos  Ubianos,  pequeno  povo  da  Ger- 
mânia, que  d'e!lalizerama  sua  capital.  Não  existe 
historia  d'est8  povo:  apenas  d'ellese  sabe  o  pouco 
que  disseram  os  romanos,  com  os  quaes  havia 
feito  alliança. 

Parece  que  as  nascentes  deagua  quente  de  Wies- 
baden  eram  já  conhecidas  dos  romanos  no  tempo 
das  suas  primeiras  guerras  no  Rheno;  Plinio  falia 
d'ellas  no  seu  tratado  de  historia  natural,  escriplo 
oitenta  annos  depois  de  christo:  «a  agua,  diz  elle, 
trez  dias  depois  delirada  da  nascente,  ainda  está 
quente». 

Os  príncipes  do  ducado  de  Nassau,  cuja  capital 
é  Wiesbaden,  descendem  da  antiga  familia  de 
Laurenburgo,  que  reinou  por  muito  tempo  sobre 
as  duas  margens  da  ribeira  de  Lahn.  O  castello 
onde  residiam,  e  que  tem  o  mesmo  nomo,  ainda 
existe;  eleva-se  no  cume  de  uma  montanha  silua- 
da  na  margem  esquerda  da  ribeira  de  Lahn,  qua- 
tro léguas  distante  do  Rheno. 

AViesbaden  contem  um  grande  numero  de  anti- 
guidades romanas;  as  mais  notáveis  são  um  muro 
de  quinze  a  vinte  pés  de  altura,  que  oufrora  ser- 
via de  cerco  à  cidade,  e  muitos  banhos  perfeitamente 


conservados.  Estes  banhos  teem  noventa  pés  de 
de  comprimento,  sobre  dez  de  largura  e  cinco  de 
profundidade;  os  tanques  são  construídos  de  can- 
taria, c  o  fundo  forrado  de  tijolos  quadrados  em 
muitos  dos  quaes  se  vêem  asiniciaes  da  22  legião 
romana.  Nos  arrabaldes  da  cidade  teem-se  encon- 
trado quasi  todos  annos  um  grande  numero  de 
túmulos  inscripções,  etc. 

A  meia  légua  de  AViesbadea,  existe  um  sitio, 
no  meio  de  um  bosque,  onde  repousam,  dizem,  as 
ossadas  dos  Ubianos  e  dos  Mattiacos:  (íScpidcnim 
ccspcs  cr/^// (Tácito).))  Pordetraz  doeste  cemitério 
eleva-se  o  Néroberg,  ou  monte  de  Nero,  sobre  os 
flancos  do  qual  se  vêem  ainda  as  ruinas  de  um 
palácio  í:omano.  Segundo  a  tradição,  estendia-se 
um  vasto  parque  sobrecslamo.itaniia,  quecompre- 
hendia  em  seu  âmbito  a  floresta  que  cobre  oTau- 
nus.  Ouasi  todos  os  cumes  d'este  monie  são  co- 
roados por  grandes  pedras,  restos  de  forticações 
levantadas  pelos  povos  aniigos  da  Germânia  para 
se  defenderem  contra  os  a(,aques  dos  romanos.  È 
obia  dos  Ubianos,. ou  dos  povos  que  os  precede- 
ram n'este  paiz?  É  o  que  se  não  sabe.  E  provável 
que  estas  construcções  fossem  não  somente  um 
meio  de  defeza,  mas  que  servissem  também  de 
limites  e  de  linhas  de  demarcação.  São  ellas,  sem 
duvida,  que  deram  aos  romanos  a  idéa  da  famosa 
muralha  (Teufelsmaner,  ou  muro  do  diabo)  e  do 
iramenso  fosso  que  se  estendia  desde  o  Rheno  ate 
ao  Danúbio. 


74 


O  PANORAMA 


W'iesbaden.deye  os  seus  primeiros  aformosea- 
mentos  ao  duque  Frederico  Augusto.  O  Kursaai, 
começado  em  180S,  é  o  mais  nolavel  edilicio  da 
cidade:  exisle  n'elleuma  stilla  que,  pela  sua  gi-an- 
deza  e  decoiação,-  pode  rivalisarcom  as  melhores 
de  1'ariz  e  de  Londres.  O  theatro,  conslruido  na 
mesma  praça  em  que  se  acha  o  Kursaai,  não  cede, 
pelo  goslo  da  sua  architeclura,  pela  riqueza  de 
seus  ornamentos,  á  nenhuma  outra  construcção  does- 
te género  A  grandeza  do  salão  foi  calculada  sobre 
o  numero  dos  habitantes  e  dos  estrangeiros  que 
aili  vão  passar  a  estação  das  aguas. 

Ha  \inte  annos,  a  nascente  principal  de  Wies- 
baden  era  rodeada  de  uma  muralha;  hoje  brota 
cm  liberdade  no  meio  de  um  passeio  delicioso, 
cenli'o  de  reunião  de  lodos  os  estrangeiros  e 
não  menos  frequentado  dos  habitantes  da  terra. 
Todas  as  manhãs,  das  cinco  ás  sette  horas,  uma 
orchestra  numerosa  secolloca  em  um  ponto  qual- 
quer do  passeio,  e,  bebendo  a  agua  quente,  doen- 
tes e  curiosos  teemo  prazer  de  ouvir  as  árias  mais 
melodiosas  de  Weber,  ^Veigel  e  Mozart,  desem- 
j)enhadas  como  só  se  desempenham  em  Allema- 
nha.  Esta  musica  e  o  ar  fresco  da  manhã  contri- 
buem, quasi  lauto,  estou  certo,  para  a  cura  dos 
doentes,-  como  a  enorme  quantidade  de  copos  de 
agua  que  os  fazem  beber  todos  os  dias. 

Km  NViesbaden  ha  quatro  nascentes  piincipaes 
e  onze  secundarias  que  fornecem  a  agua  para  todas 
as  casas  de  banhos.  Amais  abundante  é  a  chama- 
da Kurbrunnen.  A  aguad'estas  nascentes  deposita, 
como  1'linio  já  o  havia  notado,  uma  pedra  muito 
semelhante  á  j)edra  pomes,  e  á  qual  se  dá  o  nome 
de  sinler;  no  museo  da  cidade  existem  bellas 
amostras  cryslallisadas.  Os  elementos  principaes 
das  aguas  dè  ^Viesbade^  são  o  carbonato  de  cal, 
magnesia,  hydrochlorato  de  soda,  hydiochloralo 
de  cal  e  de  magnesia,  sulphato  de  soda,  algum 
alumínio  e  algum  ferro  dissolvido  no  carbonato  de 
soda.  Comtudo,  estas  substancias  variam  segundo 
as  diíTerentes  nascentes.  E  preciso  um  espaço  de 
trinta  e  seis  horas  para  que,  exposta  ao  ar,  a  agua 
arrefeça;  forma-se  então  sobre  a  sua  superlicie 
uma  pellicula  íina,  branca,  composta  de  cal  puia. 
Os  médicos  recommendam  asaguasde  Wiesbaden 
às  pessoas  atacadas  de  rheumatismochronico,  gola, 
paralysia  dos  membros,  doenjas  metasticas,  sar- 
nosas  ou  herpeticas;  elías  lêem  sobretudo  muita 
virtude  contra  os  abscessos  c  doenças  cutâneas. 

Todos  os  estrangeiros  que  teem  visitado  ^Vies- 
baden  não  se  cansam  de  gabar  os  seus  airabaldes 
e,  certo,  que  em  lodo  o  elogio  que  possam  faz(ír 
não  exageram.  O  que  haverá  mais  lindo,  por  exem- 
plo, que  Dietenmuhl?  B^s  caminho  areiado,  bor- 
dado de  flores,  que  parle  do  passeio  de  Kursaai, 
conduz  aquelle  delicioso  retiro.  IJn  pouco  mais 
longe,  a  meia  légua  da  cidade,  eslão  as  ruinasdo 
caslello  de  Sonnenberg  montanha  do  sol)  que  se 
elevam  magcstosamente  sobre  um  rochedo  e  do- 
minam a  linda  aldèa  do  m(!smo  nome.  l)iz-sc  que 
nos  tempos  antigos  havia  sobre  este  rochedo  um 
templo  consagrado  ao  sol.  Seja  como  for,  é  certo 
que  o  caslello,  cujas  ruinas  existem,  foi  construí- 


do pelos  fins  do  século  XII;  mais  tarde  serviu  de 
habitação  aos  condes  de  Nassau,  e  o  imperador 
Adolpho  engradeceu-o  e  fortilicou-o.  Foi  devasta- 
do durante  as  guerras  que  o  paiz  leve  de  sus- 
tentar no  século  XIII  contra  os  suecos  e  pelos 
lins  do  século  XVH  contra  a  França. 

Riébrich,  residência  do  duque  de  Nassau  actual, 
acha-se  a  uma  légua  de  Wiesbadan.  O  caslello 
que  se  eleva  na  margem  direita  do  llheno,  ò  cons- 
truído ao  estylo  moderno  e  apresenta  um  magni- 
fico ponlo  de  vista.  D'alli  se  vé  o  Rheno,  quasi 
na  sua  maior  largura,  coberto  de  uma  multidão 
d"ilhas,  e  de  um  grande  numero  de  embarcações  de 
lodo  "o  género;  ora,  barcos  a  vapor  passando  com 
a  rapidez  do  relâmpago,  ora  ní\'ios  mercantes,  ora 
barcos  pequenos,  ora  grandes 'jangadas,  andando 
lenta  e  vagarosamente,  que  servem  para  o  trans- 
porte das  madeiras  das  florestas   de  Allemanha. 

O  panjue  de  Bièbrick  rivalisa  com  o  que  ha  de 
melhor  n'este  género;  é  um  passeio  deliciosamente 
variado.  Nola-sealli  sobre  tudo  um  pequeno  cas- 
lello imitando  a  archictelura  da  idade  media  e 
edificado  no  meio  de  um  lago,  n'um  sitio  admi- 
ravelmente romântico. 

A  aldeia  de  Schierslein  é  celebre  pelg  seu  vi- 
nho excellente,  designado  pelos  nomes  de  lacrima 
díaboli  ou  lacryma  infernalis. 


A    GALATEA   MODERNA 

Por  A.  GZORIG  DE  VASCONGELLOS 

IV 

D.  Violante  ú  baroncza  ilo  Alpcdral 

Minha  querida.—  Eslou  infernando  de  invejas. 
Dês  que  li  a  tua  ultima  caria,  não  socégo,  não 
durmo,  vivo  em  perpetua  exilação.  Porque  motivo 
descreves  com  tão  vividas  cores  o  ultimo  baile  do 
club,  as  loili'lles  explendidas,  a  orchestra  encan- 
tadora, as  walsas  rodopiantes,  o  coquetismo  sen- 
timental, todas  essas  vertigens,  todo  esse  oceano 
de  prazeres,  e  gosos  olympicos,  em  queluflucluas 
docemente  embalada  pelas  brisas  lisongeiras?  l'or- 
quc  motivo,  infernal  amiga,  feiticeira  encantadora, 
me  estás  mostrando  a  laça  de  oiro,  aonde  te  em- 
briagaste, aonde  sugaste  com  lábios  voluptuosos  o 
licor  divino,  que  te  deu  extasis  de  huri,  sonhos 
Ígneos,  visões  (|ueimadoras?  Awalsa,  a  walsa!  Ouem 
me  dera  levolulear  endoidada,  sem  tino,  sempezo, 
sem  tocar  o  chão,  arrastada  pela  orchestra  que  ora 
freme  em  paroxismos  agudo^,  ora  se  desentranha 
em  queixumes  valentes,  furibundos,  loucos,  como 
a  maldição  do  Adamastor!  Ouem  me  dera  respirar 
as  lufadas  ardentes  do  baile,  sorver  uma  a  uma  as 
lavas  d'esse  vulcão,  tisnar-me  sem  dó  nos  lumes 
de  gaz,  lucluar,  lluctuar  no  redemoinho  immenso! 
E  depois  que  me  importava  a  morte!  Mais  vale 
uma  noile  assim,  do  que  a  vida  aqui,  n'esles  cer- 
ros malditos,'  ouvindo  o  balar  queixoso  das  ove- 
lhas, (jue  pastam  nas  campinas.  A  vida  bucólica' 
Pois  ha  coisa  mais  monstruosa  e  aborrida,  do  que 
contemplar  o  riacho,  que  corre  sob  os  salgueiros! 
Se  eu  ao  menos  podesse  ser  nymplia  dos  bosques! 
Mas  até  as  dryadas  fugiram  espavoridas,  e  já  não 


o  PANORAMA 


75 


ha  tenlar  homens  nos  itcossos  naniorosos!  A  vida 
c  essa,  é  a  que  vive  aiii.  A  vicia  é  respiíar  a 
alhmospliora  de  fogo,  é  sui-gir  ladiaiilc  cingindo 
unia  auréola  luminosa,  e  cegar  os  lisongeiros,  que 
se  rojam  e  pcdeuv  uma  scenlellia,  (jiie  os  allumie 
nas  trevas  do  scui(mor.  A  vida  é  senlir  em  pouco 
tempo  um  século  de  gosos,  é  arrojar  lama  aos  que 
pas.-am  e  pedem  a  esmola  de  um  olhar,  é  cami- 
nhar ávanle  c  dar  a  morle  em  um  sorriso. 

A  vida  é  a  vvalsa  vcríiginosa,  louca  arquejanle. 
Oue  moula  morrer  depois,  á  saida  de  um  baile, 
exhauslo  de  foiças,  açoitado  pela  brisa  gelada  da 
noite,  se  calcamos  flores,  se  deliciamos  na  lebre 
da  dança,  e  se  o  ultimo  passo  da  derradeira  walsa 
nos  arrojou  á  sepultura! 

Ah!  mesmo  n'esla  solidão,  aonde  chegam  ape- 
nas esmoi'ecidosechosd'esse  tumultuar  de  folgança, 
sinto  pular  o  coração  ancioso,  quando  me  descre- 
ves os  encantamentos  da  lua  vida.  Quizera  acom- 
panhar-te...  e  não  posso.  Que  supremo  desespero! 
Psão  posso!  Que  tormento  santo  Dcos!  Pieso  a  este 
rtc'.iedo,  como  Tântalo,  vejo  os  fructos  a  lourejar 
por  entre  a  ramaria,  e  se  acerto  de  estender  a 
mão,  para  os  colher,  encontro  o  vácuo,  a  solidão, 
a  clausura,  o  tédio. 

Para  que  nasci?  De  que  me  serve  ser  linda, 
como  dizes  nas  luas  lisonjaiias,  de  que  me  serve 
o  meu  rosto  de  fada,  o  meu  olhar  languido,  o  meu 
seio  arquejante  a  minha  cinia  breve  e  ílexi- 
vel  se  hei  de  morrer  aqui  n'cste  cantinho  do 
mundo,  rouxinol  perdido  no  deserto,  ílor  secca 
na  estufa?. Oh!  mas  não.  Venha  a  lucla,  acceito  o 
repto  da  desgraça.  Conslrange-se  o  coração.  Seja 
o  amor...  mercancia.  Extinga-se  o  pranto,  aca- 
bem as  insomnias  de  moça  gentil,  que  entreve  o  pa- 
raíso e  devaneia  delicias  inelTaveis.  Amor !  Aven- 
temos para  longe  esse  fardo  pezadissimo,  essa  coroa 
de  espinhos,  que  nos  dá  a  realeza  na  escravidão. 
Sejamos  mulher  como  o  scculo  afez. 

A  Galaléa  não  vive  nos  bosques,  antes  se  refu- 
giou nas  salas  Pois  serei  a  (íalaléa  moderna... 
como  tu,  querida  baroneza,  queatlraesos  teus  ad- 
miradores para  os  queimar  depois.  .Serei  coquettc. 
Cada  sorriso  meu  será  mordedura  de  cupido  em 
coração  de  homem.  Reinarei,  sim,  mas  encostada 
ao  braço  de  um  escravo.  E  esse  escravo...  Cusla- 
me  a  escrever  o  nome  d'elle.  Sinto  calor  nas  fa- 
ces. Tenho  pejo.  Quecreancicc!  Vou  ver-me  no  es- 
pelho. Credo!  Como  o  rubor  me  tingiu  o  rosto. 
Pareço  uuia  ronul.  E  então !  Não  estou  a  na- 
morar-me  a  mim  mesmo!  Serei  tão  bonita,  como 
dizes?  Como  os  meus  olhos  scinlillam  nas  orbitas! 
São  negros,  negros  e  brilhantes,  como  carvões,  que 
chispam  na  escuridão.  E  choro  e  rio  ao  mesmo 
tempo!  Ora  me  parece  que  suíloco,  ora  julgo  lUic- 
luar  na  amplidão. 

Isto  é  loucura!  Se  Alfredo  me  visse!  Ah!  Eil-o 
que  chega.  Deixai-me  esconder  esta  carta.  Com- 
batamos! 


Que  escaramuça!  Foi  guerra  de  guerrilhas,  foi 
um  tirot'^io  continuado  e  regular,  em  que  elle  fi- 


cou mal  ferido.  Estou  a  ler  immensa  curiosidade 
nos  teus  olhos  maganos.  Ouve  pois: 

Alfredo  vinha  melancólico  c  trazia  o  Dante,  por- 
que queria  tomar-mc  a  lição  de  italiano.  Travou- 
se  a  conversação.  Eu  estava  preparada.  O  thealro 
re|)reseiila  uma  saleta  arruinada,  com  duas  gran- 
des janellas  no  fundo,  uma  banca  de  mogno  an- 
tiga, de  pés  salomonicose  gavetões  cheios  de  per- 
gaminhos velhos,  que  são  os  títulos  da  familia. 
Eu  estou  assentada  em  cadeira  enorme,  com  ade- 
manes  da  heroina  das  cruzadas,  rosto  erecto  e  gra- 
ve ligeiramente  encostado  á  mão.  Alfredo  assen- 
la-se  n'oulra cadeira,  auma  distancia  rasoavel  sem 
se  atrever  a  passar  a  linha  de  respeito.  Olha  o 
Dante,  folheia-o  com  ardor,  olha  para  mim,  como 
um  meirinho  inquisilorial  dos  velhos  tempos,  e 
pei'gunta  emíim: 

— Já  estudou  a  lição?  Venho  hoje  muito  rigo- 
roso. 

Estou  por  um  pouco  a  perder  oseiio,  que  guar- 
do com  muito  custo,  e  respondo  zombeteira: 

—  Por  favor,  j)rimo,-esqueceu-lhe  a  palmatória. 
O  seu  Dante  é  de  uma  diíliculdade  pasmosa,  e 
quando  entendo  alguma  coisa  do  Inferno,  tenho 
pesadellos  de  noite.  Prefiro  Petrarca. 

— ^  Petrarca,  esse  eterno  chorão,  cujas  lagri- 
mas ainda  alimentam  a  fonte  de  Vaucluse,  Petrar- 
ca, ?ssa  creança,  que  morreu  senil,  sem  nunca 
aperlar  nos  braços  a  Laura,  que  o  inspirou!  Con- 
fesso, piima,  que  Petrarca  chega  a  causar  dó. 

— Petrarca,  é  modelo  de  encantos,  como  eu  os 
comprehendo,  e  como  o  primo  deve  comprehen- 
del-os. 

—  Como  devo...  oh!  Parece-me  que  não  ouvi 
bem. 

—  Perfeitamente.  Quem  tanto  se  compraz  na 
vida  campestre,  não  é  muito  que  suspire  debal- 
de toda  a  vida  ali'azde  Galatéa.  Pergunteao  amor, 
(juando  suspirou  nos  bos(|ues  e  agitou  as  cordas  da 
harpa  éolia,  se  s'imporlaque  ossylphoso  oiçam.  O 
vento  suspira,  porque  é  esse  o  seu  destino. 

Assim  devem  fazer  os  poetas  da  sua  tempera, 
assim  faziam  os  trovadores  nos  seus  queixumes  do 
amor,  assim  fez  Petrarca,  assim  deve  fazer  o 
primo.  Ser  Melihen  só  para  comer  castanhas  e  be- 
ber leite  fresco  e  lembrar  os  explendores  de  Ro- 
ma... para  isso  não  valia  a  pena  esse  seu  rosto 
sombrio  e  melancólico,  que  lhe  fica  a  malar.  Qual- 
quer minhoto  namorado  é  Melihen,  quando  acerta 
de  encontrar  Galatéa  esquiva  e  louçã. 

—  Com  que  então,  segundo  o  que  a  prima  diz, 
eu  estou  uamorado. 

—  Isso  é  exagerar  horrivelmente  as  minhas  pa- 
lavras. Não  sei  se  está  namorado,  nem  mesmo 
quero  sabel-o. 

—Na  sua  idade,  prima,  sabel-o  é  causal-o,  bra- 
dou Alfredo  erguendo-se  e  fitando-me  singular- 
mente. 

— Deixe-me  rir,  primo.  Desculpe  este  riso  in- 
tempestivo, mas  estou  hoje  muito  nervosa...  Com 
que  então. ..  Não,  não  quero  sabel-o.  O  primo  não  po- 
de estar  namorado,  e  se  o  estiver,  faça  como  Petrar- 
ca. Suspire  e  faça  sonetos,  invoque  as  musas. 


76 


O  PANORAMA 


Imniorlalise  as  diyadas  da  fonle  fresca,  qiio 
aguarda  ha  séculos  o  seu  Petrarca.  Aquella  fonle 
fresca,  ião  romântica,  Ião  cheia  de  poesia,  com  o 
seu  olmeiro  carcomido  pelos  annos,  com  os  (juei- 
xumes  da  sua  lympha  crislallma,  com  os  seus  li- 
mos verdejantes,  com  o  seu  tapete  de  relva,  como 
seu  penedo  de  granito  ao  lado!  Por  Deus!  i)rinio, 
improvise  um  soneto  á  fonte  fresca. Olhe.  já  lhe  dou 
u  princij)io: 

Formosas  dryadns  da  fonte  fresca 
Vinde  espreitar  á  beira  do  cristal! 
Ouvi,  ouYJ  qui.ixumes  de  um  zagal 
Que  se  fina  de  amor,  de  noite  a  fresca. 

Não.  Isto  assim  não  vae  bem.  Não  ha  rima  para 
fresca.  Kmfim.  improvise  o  soneto  como  (juizer, 
e  pôde  começar  os  versos  por  letra  pequena,  por- 
que não  hão  de  confundir-se  com  prosa. 

Alfredo  íicou  aterrado.  Não  sabia  como  respon- 
der aos  meus  ataques. 

O  pobre  rapaz  estava  arrependido  da  sua  poesia 
bucólica.  AUnal,  passado  um  momento  rápido,  ex- 
clamou: 

— Está  enganada,  prima.  Se  por  acaso  quizesse 
recorrer  á  mytbologia  grega  para  exprimir  os  meus 
amores,  e  caísse  uo  immenso  ridículo  de  tocar 
a  frauta  pastoril  ia  sentar-me  á  beira  da  fonte  e 
mirando-me  a  mim  mesmo,  diria,  como  Narciso, 
e  em  prosa  «Podes  fugir,  Galatea,  que  não  te  sigo 
nem  persigo. » 

— Deveras!  Issoé  que  éter  caracter. 

Pois  o  primo  havia  de  estar  sempre  a  mirar  as 
próprias  feições! 

— Se  encontrasse  aGalatéa  e  vivesse  nos  formo- 
sos teiapos,  a  que  a  prima  quiz  transportar-me, 
preferira  a  parvoíce  de  Narcizo. 

— Com  que  então  o  primo  não  é  Melihen. 

— Nem  mesmo  como  castanha  pilada. 

— Aborrece  portanto  Petrarca. 

— Petrarca  é  o  rei  dos  trovadores  da  meia  cdade. 

— Logo  não  é  trovador  também. 

— AhJ.  Já  sei!  É  D.  .luan. 

Alfredo  soltou  uma  gargalhada,  c  exclamou: 

— Não  sou  nada.  Sou  o  seu  meslrede italiano, 
sou  seu  primo  muito  respeitoso.  Vamos  pois  á  li- 
ção. 

Eu  estava  zangada  com  Alfredo.  Não  podia  con- 
ciliar a  attenção.  A  manhã  corria  chuvosa  e  car- 
rancuda, o  ceu  loldava-se  de  nuvens  negras,  (pie 
corriam  impcUidas  pelo  sul  gemedor.  Os  arvoredos 
descarnados  abanavam  os  troncos.  iNão  sei  poríjue 
caí  (lerepente  cm  um  accesso  de  melancolia.  Sou 
verdadeira.  A  actriz  tinha  desapparecído,  e  liíjuei 
(piai  sou,  creatuia  débil,  aiijoravcl,  e  triste,  vi- 
vendo na  solidão,  açoitada  pela  desgraça,  sem  um 
seio  de  niãi,  aonde  repousar  nas  horas  da  angus- 
tia, sem  ura  carinho,  sem  um  osculo  de  amor  casto 
e  santo,  sem  uma  visão  consoladora,  sem  um  echo 
símpathíco  no  meu  isolamento,  sem  animo  para 
encostar  a  cabeça  dolorida.  í>)meç('i  a  chorar  amar- 
gamenie.  >ião  pude  conter  o  pranto,  por  mais  qu<í 
(juizesse.  Ouizera  reler  os  soluços^  embora  o  coração 
ficassemorto  para  sempre;quízera  secar  opranlo  ain- 
da que  depois  me  aííogasse n'elle.  Ah!  mas  não  pude. 


A  dor  era  immensa  e  fora  exacerbada  pela  própria 
zombaria.  O  sarcasmo  irritante  que  mostrara,  linha 
provocado  o  choro,  e  foi  em  prantos,  que  traduzi  o 
celebre  terceto  de  Dante,  esse  grito  sublime  de 
um  coração  que  se  parte  de  saudade,  e  geme  em 
fenos  de  desventura:  *^ 

Nessum  ma.crprior  dolore 
clie  ricordarsi  dol  tempo  folice 
Nella  miséria. 

Alfredo  íitou-me  outra  vez.  Tremia-lhe  a  falia, 
os  seus  olhos  também  estavam  húmidos.  Travau- 
do-me  da  mão,  disse  n'uni  ímpeto : 

— O  que  tem  Violante? 

Em  ergui-me  e  tirei  a  mão  d'enlre  asd'clle.  En- 
costeí-me  ao  peitoril  da  janella,  contemplando  a 
natureza  nioría  e  nua  e  profundamente  melancó- 
lica, ciciei: 

—  Olhe  primo,  como  tudo  respira  saudade  e 
tristeza.  Parece  que  todos  os  ruídos  das  campina 
se  unem  e  formam  um  gemido  plangente.  Eu  lam- 
bem sinto  saudade.  Só  lenho  saudades  de  mi- 
nha mãe.  O  terceto  de  Dante  pinla  o  estado  da 
minha  alma. 

— Tudo  tem  remédio,  respondeu  Alfredo. 

— A  saudade  não  o  tem.  Pelo  menos  não  o  quero 
nem  o  acceito. 

E  sai  zangada  da  minha  fiaqueza,  odiando  Al- 
fredo do  fundo  da  alma,  e  jurando  vingar-me. 
Agora  sou  outra  vez  o  teu  diabrete — Violante. 

(Conlinua.) 


SEPULTURA  DE  GIL  VICENTE 

o  gran  juizo  esperando, 
.laco  aqui  nesta  morada; 
Também   da   vida  cansada 
Descansando. 

Pergunta  me  qnem  fui  eu, 
Altenta  bem  para  mi, 
l'or(]uc  tal  fui  coma  ti, 
E  tal    lias  de  ser    como  eu, 
E  pois  tudo     a  isto  vem, 
O  leitor,  de   meu    consoilio, 
Toma-me  por  teu  espelho, 
Ollia-me  e  oi!ia-te  bem. 


Os  Athcnienses,  segundo  alTirma  Alexandre  de 
Alexandro,  livro  3",  tinham  lei,  que  condemnava  á 
morte  o  rei,  q.ue  com  demasiado  vinho  se  alienas- 
se. Os  índios,  de  (jue  escreve  Atlieneo,  cujo  rei 
davam  em  guarda  a  certo  numero  de  donzellas,  or- 
denaram (|ue,  se  alguma  d'aquellas  o  achasse  com 
vinho  demasiado  fora  do  seu  juizo,  e  o  malassi,  es- 
ta fosse  despozada  com  o  successor  a  (|uem  vinha 
o  reino.  Os  Maciíieiises,  como  o  seu  rei  fazia  al- 
gum erro  no  governo,  não  lhe  davam  de  comer 
atiuelle  dia.  Os  Imersas  faziam  ao  seu  rei  estar  es- 
condido no  interior  das  casas,  para  nem  ver 
mulheres,  nem  ser  muito  tratado  dos  homens,  co- 
mo conla  Heródoto,  livro  3°. 

Francisco  Rodrigues  Lobo. 


Acontece  mui  las  vezes  lomar-sc  uma  paixão  na- 
tural por  uma  virtude  moral. 


o  1>,\N0RAM.\ 


O  MANNÁ 

r^.^J^''''"^]  (-y^'''^''«>  íios  calahrinus)  assim  cha- 

sTiTneri.  !t'f '"?'"'  '^''''^'^  '  "^^^^^  A^i^nm 
ZJZu:     ""■'"'  ''«^"^'-íi-^tía,  laxanle,  inodoi-a 

d^/^eh    ff'-'^"'  l'"'"'-^"^'^  ^«  muilas  espécie 
de  ímxo  e  principalmente  do  />m//»/.  ornus  e 
do  y^.r/^,.,,  ro/«..///W,«,  arvores  que  vege  am 


n  Ioda  a  Lumpa  me/id/onal,  especialmente  na 
Calábria  e  na  Sicília.  O  manná  escoa-se  natural- 
mente pelos  poros  da  epiderme  e  pelas  fendas  da 
casca;  para  obtel-o,  porém,  em  maior  abundância, 
pralicam-se  profundas  incisões  na  parte  superior 
e  sobre  um  dos  lados  do  tronco  da  arvore  ( ue  se 
quer  explorar.  ^ 

Três  são  as  espécies  de  manná  que  sedistiní?uem 
no  commercio.  O  mais  puro  denomina-se  Manná 


78 


O  PANORAMA 


em  lagrimas  [Manua  lacrymafa,  Manna  canoío); 
é  em  pedaços  alongados,  leves,  irregulares,  mui 
friáveis,  dé  ww  bianco  amarellado,  aspeclo  crys- 
tallino  ou  granuloso,  sabor  doce,  assucarado,  um 
pouco  enjoativo.  O  Mannà  em  grãos  ou  commum 
(Manna  granulosa,  Manna  eommunis)  compõc-se 
de  pequenas  lagrimas  agglutinadas  por  um  liquido 
viscoso;  tem  um  sabor  mais  assucarado  que  o  pre- 
cedente, mas  o  clieiro  é  nauseabundo.  O  que  vem 
da  Sicília  chama-se  Manna  geracg,  <•  o  que  pro- 
vem da  Calabiia  Manna  eapacg.  O  Manná  pingue 
ou  inferior  (Manna  pinguis,  Manna  sórdida, 
Manna  spissa)  lem  o  aspeclo  de  massa  molle,  glu- 
Imosa,  cheia  de  impurezas,  laes  como  fragmentos 
de  vegelaes,  terra,  aieia,clc;  é  maisnaus/^^abundo 
que  omannácommuneosabor  assucarado  é  muito 
desagradável. 

oManná  é  solúvel  em  agua  e  em  álcool.  Além 
do  assucar  amorpho  e  da  gomma,  encerra  uma 
malei'ia  branca  e  crystallina,  a  que  se  dá  o  nome 
de  Mannita,  que  c  o  seu  principio  chimico  cara- 
cterislico,  e  um  principio  nauseoso  ao  qualsealtri- 
buem  as  suas  propriedades  medicas.  A  mannita, 
não  obstante  o  seu  gosto  assucarado  e  a  anologia 
da  sua  composição  com  o  assucar  ordinário,  não  é 
«iusceptivel  de  fermentíção  alcoólica.  Obtem-se 
dissolvendo  o  manná  cm  álcool  fervente  e  redis- 
solvendo  em  novo  álcool  o  precipitado  que  se  for- 
ma pelo  resfriamento.  Comtudo  a  mannita  não 
pertence  exclusivament')aomanná;encontra-se  tam- 
bém nos  sucos  ti'anssudados  por  certas  cerejeiras, 
macieii'as,  em  algumas  espécies  de  cogumelos,  al- 
gas etc. 

O  mannà  em  lagrimas  emprega-se  como  purgati- 
vo doce.  Entra  em  muitas  preparações  pharmaceu- 
ticas  taes  como  pastilhas  de  Calábria,  marmellada 
de  Tronchin.  etc.  Algumas  vezes  é  substituído  pela 
mannita.  ()  manná commun  applica-se  maispartícu- 
larmenlc  em  crysteis.  O  maná  inferior  não  lem  hoje 
serventia  entre  nós. 

Ouanto  ao  Manná  que  sustentou  os  Israelitas  no 
d'S'rlo,  diz-nos  iMoyses  (Exod.,  XYI)  que  appare- 
cia  de  manhã  como  o  rocio,  e  quea  terra  se  achava 
(obcria  d'  giíos  miúdos  semelhando  orvalho  con- 
gelado. Oliistoii  dur  sagradoaccrescenlaqueoman- 
nà  tinha  a  forma  da  semente  de  coentro  branco  e  que 
o  gos'o  era  da  mais  pura  faiinha  misturada  com 
mel.  Cada  Israelita  recolhia  um  gomor  (pouco 
mais  ou  menos  2  litros,;  co  manná  derretia-sc  e 
dosapparecia  desde  o  momento  que  o  sol  aquecia  o 
teri'('no. 

Além  disso,  o  níanná  amontoado  corrompia-sc  no 
lim  de  vinte  e  quatro  horas,  de  sorte  que  era  pre- 
ciso renovar  a  provisão  todos  os  dias.  Entretanto, 
na  véspera  do  sabbado,  faziam  dujjlicada  colheita, 
alim  de  não  trabalharem  no  dia  consagrado  aodes- 
canço,  e  então  o  manná  podia-se  conservar  j)elo  es- 
paço de  quarenta  e  oito  horas.  I)iz-se  lambem, 
(jue  o  [)Ovo  costumava  pizar  o  manná  sobie  uma 
pedra  ou  almofariz,  cozia-o  depois  e  fazia  d'ell(!bol- 
los,  cujo  sabor  era  de  pão  amassado  com  azeite.  As 
particularidades  tão  precisas  em  que  entram  os 
livros  santos  tratando  do  m?nná,  fazem  ver,  mui 


claro,  que  era  um  sustento  verdadeiramente  mila- 
groso enviado  todos  os  dias  por  Deos  ao  seu  povo. 
Todavia  uma  multidão  de  auctores  lêem  procura- 
do destruir  a  idéá  de  milagre  altribuindo  o  facto 
a  um  simples  phenomeno  natural.  Pelo  que,  a 
maior  parte,  d*esles  escriptores  tem  identiticado  o 
mannà  com  a  matéria  que  distillade  certas  plantas 
leguminosas.  Alguns  teem  avançado  que  o  mannà 
era  uma  espécie  de  musgo  conhecido  pelo  nome 
de  Parmdia  ou  Lecanora  esculenta,  que  nos  de- 
sertos do  Oriente,  costuma  apparecer  subitamente, 
de  tempos  a  tempos,  sobre  uma  vasta  extençãode 
terreno.  Eis  aijui  uma  noticia  curiosa  publi- 
cada ha  annos  em  uma  revista  scienlifica: 

«Alguns  jornaes  lêem  annunciado  (jue  no  dis- 
Iricto  de  Jenicheher,  Ásia  menor,  caiudocéo,  no 
mez  de  janeiro,  uma  grande  quantidade  de  manná 
em  pedaços  do  tamanho  de  uma  avelã,  que  sepultou 
a  terra  sob  uma  espessura  de  3  a  4  polle- 
gadas,  e  que  os  habitantes  se  sustentaram  durante 
muitos  dias.  Este  manná  fornecia  uma  substancia 
muito  branca ;  mas  o  pão,  que  d'elle  faziam  era 
insípido.  O  mesmo  phenomeno  se  tinha  já  dado  no 
mesmo  logar  em  1841.  Por  muito  estranho  que 
pareça  este  facto,  não  pôde  deixar  de  ser  attribui- 
do  a  causas  perfeitamente  naturaes.  Os  exemplos 
da  apparição  repentina  de  uma  matéria  comestível, 
que  parece  cair  da  athmosphera,  já  na  Ásia,  já  na 
Europa,  não  são  muito  raros.  Todas  as  vezes  que  se 
lem  observado  esta  substancia,  tem-se  reconhecido 
que  não  é  oulra  coisa  mais  do  que  uma  espécie 
de  musgo,  Parmelia  esculenia,  cujo  tecido  muito 
succulento  pôde  ser  comido  pelos  animaes.  Leveil- 
lé,  na  sua  viagem  áCriméa,  enconlrou-a  em  grande 
quantidade  à  superíicie  do  solo,  apresentando  alli 
uma  côr  cinzenta  e  formando  pequenos  montinhos. 
Observando  um  grande  numero  de  espécies  d'este 
singular  vegetal,  achou-as  sempre  livres  e  separa- 
das do  solo,  e  nunca  pôde  conhecer-lhe  pontos  de 
ligação  de  sorte  alguma.  Aucher  Eloy,  na  sua 
viagem  á  Pérsia,  lambem  viu  e  mencionou  um 
facto  do  mesmo  género.  Emfim,  os  jornaes  nos  tem 
dado  asabcrfque,  no  tempo  da  expedição  do  schah 
da  Pérsia  contra  Héral,  osbabilantesd'esta  cidade 
acharam  e  recolheram  em  grande  quantidade,  so- 
bre a  superfície  do  solo,  uma  substancia  inteira- 
mente semelhante,  que  lhes  serviu  de  alimento  por 
muitos  dias,  e  a  qual  se  resolveram  a  comer  vendo 
as  cabras  suslenlarem-se  d'ella.  M'csles  dilleren- 
tes  exemplos,  como  lambem  no  facto  recentemente 
observado  em  .lenicheher,  o  maravilhoso  manná  não 
é  mais  do  que  um*a  espécie  de  lichcn  que  os  ven- 
tos conduzem  em  grande  quantidade  para  deposi- 
lal-o  depois  a  uma  distancia  mais  ou  menos  con- 
sideraveb). 

Seguramente,  o  phenomeno  da  apparição  d'este 
l.ichen  ollercce  uma  analogia  singular  com  a  do 
manná  dos  Israelitas;  mas,  ainda  assim,  identiíican- 
do-se  este  ou  com  o  manná  da  Tamargueira,  ou  com 
o  Parmelia  esrulenia,  não  pôde  deixar  de  se  ad- 
mitlir  a  intervenção  milagro.sa  do  poder  divino, 
dando-se  credito  á  narração  de  Moysés.  Elletiva- 
mente,  como  se  pôde  explicar,  sem  isso,  que  as  Ta- 


o  PANORAMA 


79 


marisdo  deserto  fornecessem  manná  sufficiente  para 
sustentar  perto  de  dois  milhões  de  homens  durante 
quarenta  annos,  ou  que  o  phenomenod'esta  queda 
(Ití  lichen  se  reproduzisse  exactamente  seis  vezes 
por  semana  durante  o  mesmo  periodo  de  tempo? 
A  elymologia  da  palavra  manná,  em  hebraico 
man  é  muito  incerta.  (íMan,  diz  Bei'gierj  é  um 
monosyllabo  primitivo  que,  nas  linguas  antigas  e 
modernas  significa:  alimento,  sustento.  A  dizer  a 
verdade,  Moyses  parece  applicar  este  nome  ao  es- 
panto dos  Israelitas  que,  vendo  o  manná  pela  pri- 
meira vez,  disseram:  3ían  hu,  o  que  é  isto?  Mas 
o  texto  hebreu  é  susceptível  de  outro   sentido.)) 


O  REliSO  DE  DAHOMEY 

O  abbade  Borghero,  superior  da  missão  do  Da- 
homey,  na  sua  volta  á  Europa  em  julho  de  1865, 
forneceu  as  noticias  mais  interessantes  sobre  aquella 
celebre  região.  Sabe-se,  com  effeito,  que  Dahomey 
é  um  ponto  de  Africa,  onde  o  Iraíico  dos  escravos 
ainda  hoje  tem  lognr  em  tão  larga  escala  como  nas 
margens  do  Nilo  Branco.  Sabe-se  igualmente  que 
aquelle  paiz  é  o  mais  sanguinário  do  mundo,  ge- 
mendo sob  ura  despotismo  sem  limites  e  sem  com- 
paixão. Os  sacrifícios  humanos  alli  são  um  uso  reli- 
gioso, um  costume  nacional.  Se  o  rei  os  quizesse 
supprimir,  os  súbditos  vociferariam  contra  a  he- 
resia e  reclamariam  a  conservação  das  suas  san- 
tas tradições! 

Já,  em  1863,  M.  Borghero  linha  dado  nos  An- 
naes  da  propagação  da  Fé,  uma  noticia  cir- 
cumstanciada  da  sua  viagem  à  capital  d'aquelle 
reino  bárbaro,  chamada  Abomé  ou  Agbomé,  e  da 
sua  recepção  pelo  rei.  Começaremos,  pois,  por  ex- 
trair d'esla  narração  alguns  dos  pontos  mais  im- 
portantes e  completaremos  o  nosso  artigo  com  as 
communicações  recentes  de  M.  Borghero  á  Socie- 
dade de  geoyrapliia  de  Paris, 

Para  se  chegar  a  Abomé  atravessa-se  uma  flo- 
resta de  vinte  léguas  de  largo,  cuja  estrada  é  aber- 
ta a  machadadas.  Esta  floresta  compõe-se  de  pe- 
quenas mangueiras,  algodoeiros  gigantescos,  pal- 
meiras de  difl^erentes  espécies.  O  algodoeiro,  que 
altinge  algumas  vezes  uma  altura  de  quarenta  me- 
tros, é  objecto  de  um  culto  particular. 

Os  negros  de  Lahomey,  no  que  diz  respeito  a 
agua,  estão  em  peiores  condições  que  os  habitan- 
tes de  Paris.  Não  fazem  poços,  mas  contentam-se 
com  a  agua  lodosa  e  esbranquiçada  que  se  junta 
em  covas  pouco  profundas.  Mesmo  na  capital  a  agua 
é  péssima  ecara,  porque  é  preciso  ir buscal-a  muito 
longe.  Só  o  rei  tem  direito  a  beber  de  uma  fonte 
cuja  agua  é  um  pouco  transparente. 

Além  de  Aliada  estende-se  uma  zona  pantanosa 
que  tem  perto  de  100  kilometros  de  largura.  Os 
conduclores  das  machilas  atravessando  os  pântanos 
esterram-se  muitas  vezes  até  aos  rins,  o  que  dá  não 
pequeno  tiabalho  para  se  desembaraçarem.  Perto 
de  Cana,  cidade  santa  de  Dahomey,  êncontram-se 
muitas  aves,  entre  as  quaes  se  nota  uma  do  tama- 
nho de  uma  gallinha,  que  se  assemelha  á  pequena 
águia  dos  Alpes;  >òom-se  também  pombos  de  ra- 


ra belleza,  e  outros  pássaros  de  esplendida  plu- 
magem mosqueada  de  azul,  verde,  vermelho  e 
violeta. 

A  caravana  de  M,  Borghero  chegou  a  Abomé 
pelas  cinco  horas  da  manhã,  e  parou  no  meio  da 
rua,  não  longe  de  um  immenso  algodoeiro,  cuja 
sombra  formava  uma  barraca  natur?!.  O  príncipe 
Choudato  avançou  a  cavallo,  armado  convenien- 
temente, e  andou  três  vezes  com  a  sua  escolta  em 
roda  do  algodoeiro,  saudando-o  respeitosamente. 
Dous  cabécéres  (altos  funccionarios)  apresenta- 
ram-se  depois  a  M.  Borghero  ofTerecendo-lhe  aguar- 
dente da  parte  do  rei.  A  aguardente  é  o  verdadeiro 
deos  d'estes  negros. 

Acompanhados  da  sua  escolta  de  honra,  os  mis- 
sionários chegaram  á  frente  do  palácio  real,  que 
não  é  mais  do  que  um  vasto  recinto  de  três  ki- 
lometros de  circumferencia,  cheio  de  casas  que 
outro  tempo  foram  coroadas  de  craneos  humanos. 
Notava-se  no  interior  a  famosa  casa  das  conchas, 
grande  edifício  inteiramente  cobei'to  de  conchas, 
isto  é,  de  dinheiro,  porque  estas  são  a  moeda  no 
paiz  de  Guiné.  É  d'este  modo  que  o  rei  faz  os- 
tentação das  suas  riquezas. 

Quando  todos  se  assentaram  debaixo  do  pavi- 
lhão de  parasoes  em  um  dos  pateos  do  palácio, 
as  libações  de  aguardente  e  as  felicitações,  sem- 
pre as  mesmas,  recomeçaram  com  grande  enthu- 
siasmo.  O  rei  apresentou  depois  a  M.  Borghero  o 
estado  maior  do  exercito  das  mulheres. 

Effeçtivamente,  o  rei  de  Dahomey  tem  por  guarda 
de  honra  um*  corpo.de  amazonas,  intrépidas  guer- 
reiras, que  são,  especialmente,  encarregadas  de 
cortar  as  cabeças  nas  fíleiras  inimigas.  O  nume- 
ro é,  segundo  M.  Borghero,  que  as  contou,  de  2:500 
e  não  de  4  a  10:000  como  se  tem  sustentado.  Jú- 
lio Gerard,  o  caçador  de  leões,  deixou-se  enganar 
na  avaliação  doeste  numero  porque,  fizeram  des- 
filar diante  d'elles  três  ou  quatro  vezes  o  mesmo 
batalhão  de  amazonas,  como  se  costuma  fazer  com 
um  exercito  de  thealro, 

M.  Borghero  tomou  conhecimento  com  as  duas 
generaes  d'estc  exercito  estranho.  A  primeira,  de 
uma  edade  já  avançada,  offerecia  um  verdadeiro 
typo  militar;  os  seus  modos  marciaes  mostravam 
claramente  que  a  sua  vida  linha  sido  passada  nos 
campos  c  no  meio  das  vicissitudes  da  guerra.  A  mais 
nova,  era  de  um  aspecto  mais  brando,  mas,  não 
obstante,  muito  desembaraçada.  Mostrava  grande 
habilidade  no  manejo  das  armas. 

No  dia  seguinte  ao  da  recepção,  o  rei  deu  aos 
seus  hospedes  brancos  oespetaculo  de  uma  fanta- 
sia guerreira.  Mandou  collocar  na  praça  de  armas 
uma  grande  porção  de  molhos  de  espinheiro  e  cá- 
ctus,  que  occupava  400  metros  de  comprimento, 
seis  de  largura  e  dois  de  altura.  A  uma  distancia 
de  quarenta  passos,  elevava-se  o  madeiramento  de 
uma  casa  do  mesmo  comprimento  e  da  altura  de 
cinco  metros.  O  telhado  era  coberto  dos  mesmos 
vegetaes.  Ouatorzcmetrosalém  d'este  edificio  via- 
se  uma  fileira  de  cabanas.  Ouandose  deu  osignal 
do  ataque,  algumas  centenas  de  mulheres  preci- 
pilaram-se,  com  uma  fnria  dahouiana  sobre  o 


80 


O  PANORAMA 


monte  de  espinhos,  alravcssaram-o,sallaram  sobre 
a  casa,  desceram  como  que  procurando  um  rodeio 
oíTensivo,  alacarani-a  novamente,  tudo  com  uma 
lapidez  extraordinária,  vertiginosa.  Estas  mulhe- 
res subiam,  rojavam-se  pelas  construcções  de  espi- 
nhos com  tanta  facilidade  como  uma  bailarina  vol- 
teando sobre  um  esli'ado,  e  portanto  pisavam  com 
os  pés  nus  as  pontas  agudas  dos  cactus.  Quando 
as  evoluções  terminaram,  viram-se  entrar  no  pa- 
lácio com  as  pernas  rasgadas  c  ensanguentadas, 
trazendo  cada  uma  um  molho  de  espinhos.  As  que 
mais  se  dintinguiram  receberam  coroas  de  silvas 
e  enfeitaram  o  corpo  com  o  mesmo  arbusto. 

M.  Boighero  faz  uma  pintura  horrível  dos  sa- 
criiicios  humanos  que  se  executam  anuualmente 
em  Dahomey.  Durante  a  noite  em  que  deve  ter 
logar  o  repugnante  espectáculo,  ninguém  pode 
circular  pela  cidade.  Todo  o  individuo  que  è  en- 
contrado paga  caro  o  atrevimento.  ConUudo,com- 
jjanhias  de  músicos  passeiam  na  sombra  cantando 
de  um  tom  lúgubre.  Pela  meia  noite,  uma  des- 
carga de  mosqueteria  annuncia  o  principio  das 
execuções.  As  victimas  são  conduzidas  á  praça,  em 
series  de  vinte  e  quatro  ou  tiinta.  Tapam-lhesas.vias 
respiratórias,  eapertam-lhes  o  peito  até  os  verem 
dar  o  ultimo  suspiro. 

Uma  outra  maneira  de  immolar  as  victimas  con- 
siste em  pregal-os  pelos  pés  a  um  barrote,  dei- 
xando-os  expostos  ao  sol,  sem  alimento.  Ordina- 
liamenle  moirem  ao  terceiro  dia,  em  qiianío  que 
a  multidão  curiosa,  se  deleita  com^a  horrorosa 
scena  das  convulsões.  Os  cadáveres  não  são  enterra- 
dos. Abandonam-os  aos  cães,  lobos,  porcos  e 
abutres.  "Os  restos  corruptos  c  dispersos  infe- 
ctam a  athmosphera  a  uma  légua  em  redondo. 
É,  realmente,  um  espectáculo,  cujo  horror  excede 
tudo  quanto  é  possível  imaginar. 

Os  paizes  que  conlinam  com  Dohomey  estão  de 
lai  modo  empobrecidos,  que  tudo  parece  um  de- 
serto em  torno  d'esla  desgraçada  região.  Por 
consequência  os  Dahomeyanos  nada  encontram 
pelo  caminho  quando  vão  atacar  os  seus  visinhos; 
o  que  resulta  chegarem  ex haustos  de  forças,  es- 
fomeados, incapazes  de  sustentar  uma  lucta.  Isto 
explica  as  successivas  derrotas,  queteem  soCfrido 
n'estes  últimos  annos. 

M.  liorghero  dá  lambem  preciosas  informações 
sobre  a  topographia  da  Alta  Guiné  e  particular- 
mente sobre  o  delta  do  Niger.  Segundo  elle,  a 
costa  de  (juiné  está  cortada  n'um  espaço  de  SOO 
kilometros  pelos  ramos  d'aquelle  rio,  e  estes  ramos 
lêem  a  sua  origem  no  Sodan.  Apesar  de  todas  estas 
noticias  ageographia  desta  parte  da  Africa  é  ainda 
muito  obscura. 


IJEATIUZ 
XII 

Ela,  gosemos;  pela  flórea  Iara 
Beba-se  o  neclar  de  clernal  'prazer: 
O  goso  é  fumo  que  se  esvae  e  passa, 
Quando  mais  ébrios  nos  parece  ver. 


Gosemos  muito;  sabe  Deos  se  agora 
Negra  procella  vcin  rugindo  ao  perto, 
Se  o  puro  brilho  d'esta  immensa  aurora 
I)c  liorrendas  trevas  ficará  cobertol 

Somos  convivas  no  festim  da  vida, 
Que  (em  se  a  morte,  jicrpassaíido  atroz, 
31iiis  de  uma  rosa  vem  deixar  caida, 
Quando  ha  tão  bellas  em  redor  de  nós? 

Que  tem,  se  em  meio  dos  festivos  cantos 
Que  ardente  o  goso  nos  inspira  já, 
Sussurra  o  ecco  de  abafados  prantos, 
Que  a  desventura  soluçando  está?.. 

Que  tem  que  o  mundo  se  airopelle  e  corra 
A|)ós  um  sondo  ([ue  atravessa  o  ar?... 
Que  o  perca,  embora,  que  esmoreça,  e  morra, 
Que  eu  só,  ditoso,  viverei  de  amali— 

Vòa,  minha  alma,  pelo  espaço  cm  fora, 
O  ceo  te  inleva  resplendendo  aberto: 
Gosemos  muito!  sabe  Deos  se  agora 
Negra  procella  vem  rugindo  ao  perto! 

Voa,  minha  alma,  que  (falem,  do  prado, 
Sot)e  o  jierfume  que  embalsama  o  vento; 
Deixa  esic  mundo,  que,  a  chorar  curvado, 
Modula  apenas  sepulcliral  lamento. 

Eia,  gosemos;  pela  flórea  taça 
Beba-se  o  néctar  que  nos  da"  prazer: 
O  goso  c  fumo  que  se  esvae  e  passa, 
Quando  mais  ébrios  nos  parece  ver. 

(losemos  muito!  da  ventura  breve 
(>eifem-se  as  rosas  que    viçando  estão; 
Ceifem-se  Iodas,— uma   só  não  deve 
Soltar  nas  brisas  seu  perfume  em  vão. 

Gosemos  muito!  que  o  prazer  recenda. 
Em  quanto  a  aurora  mi!  lampejos  tem; 
Deixai  que  a  sombra  do  pesar  se  estenda 
Sobre  os  que  ficam  meditando  além. 

Somos  convivas  no  festim  da  vida, 
Ergamos  todos  n'um  só  canto  a  voz; 
Se  um  parle,  embora!  que  uma  llor  caida 
Não  turba  o  goso  que  lateja  em  nós!  — 

Continua. 

E.  A. 


Vidal. 


O  primeiro  instrumento  da  pratica  é  a  voz;  e, 
para  essa  ser  engraçada  no  fallar,  ha-de  ter  então 
propriedades;  ser  clara,  branda, .cheia,  e  compas- 
sada; porque  a  voz  escura  confunde  as  palavras; 
a  áspera  esecca  lii-a-lhes  a  suavidade;  a  muito  del- 
gada e  feminina  faz  imprópria  a  acção  do  que  falia; 
a  muito  apressada  empeça  e  revolve  as  razões, 
que  por  si  podem  ser  muito  boas;  não  trato  das 
(juc  a  natureza  inhabililou  i)ara  esta  perfeição,  co- 
mo hea  voz  do  gago,  do  cicioso,  e  do  rústico  gros- 
seiro; mas  na  do  cortezão  tomara  eu  estes  altri- 
bulos;  porque  ha  alguns  que  faliam  com  a  voz  tão 
meltida  por  dentro,  que  deixam  as  palavras  para 
si,  e  os  ouvintes  ás  escuras  que  lhes  c  neces.sario 
estar  espreitando  o  que  lhes  quereni  dizer;  e  ou- 
tros, (jue  j)ronunciam  com  tanta  aspereza,  que  es- 
pinham as  orelhas  dos  que  escutam;  e  outros  que 
faliam  tão  apressadamente  que  parece  que  levam 
esporas  na  lingna. 

Francisco  Rodrigues  Lobo. 


Tyi).  Frfinco-l'ormKUf;7.a.  -  Rua  do  Ttiesouro  Vellio,  C, 


1 1 


o  PANORAMA 


PALERMO 

A  cidade  de  Palermo  foi  bastante  celebre  na  an- 
tiguidade. Thiicydides  diz  que  os  Phenicios,  por 
occasião  da  chegada  das  colónias  gregas  á  Sicilia, 
no  primeiro  século  da  fundação  de  Roma,  se  re- 
tiraram para  Vanorinos,  que  os  Latinos  depois 
chamaram  Vanormus.  Esta  cidade  foi  successiva- 
mente  occupada  pelos  Carthaginezes,  Romanos, 
Gregos  do  Baixo-Imperio,  Sarracenos,  príncipes 
normandos,  Francezes  da  dynastia  d'Anjou,  Ara- 
gonezes,  Espa.nhoes  e  Francezes  da  raça  dos  Bour- 
bons.  Hoje,  esta  capital  da  Sicilia  tem  uma  popula- 
ção de  cento  e  quarenta  mil  habitantes.  O  epithelo 
de/"e//cefoi-lhedado  muito  tempo  depois,  por  causa 
da  sua  belleza,  da  actividade  florescente  do  seu 
commercio,  da  fertilidade  do  solo,  da  serenidade  do 
seu  ceu,  da  amenidade  da  sua  situação,  e  da  ri- 
queza e  cortezia  da  maior  parle  dos  seus  habitantes. 
Se  o  vento  chamado  scirocco,  não  soprasse  alli,  não 
haveria,  sem  duvida,  no  mundo  paiz  mais  saudá- 
vel do  que  a  Sicilia.  O  seu  golpho  não  é  menos  riso- 
nho do  que  o  de  Nápoles,  e  a  coroa  pitloresca  que 
formam  ao  longe,  em  torno  d'clla,  o  monte  Pere- 
grino, o  cabo  Zafferano  e  as  collinas  da  Bagaria, 
semeadas  aqui  e  alli  de  lindíssimas  casas  de  cam- 
po, dão  a  esta  cidade  o  aspecto  mais  encantador, 
e  tornam-n'a  uma  vivenda  muito  agradável.  As  ruas 


são  largas  e  compridas;  duas  de  entre  ellas  cruzam- 
se  no  meio  da  cidade,  dividindo-a  assim  em  qua- 
tro partes  eguaes.  A  que  tem  por  nome  Cassaro, 
cujo  comprimento  é  de  mil  e  quinhentos  metros 
e  largura  treze,  prolonga-se  parallelamenteá  praia, 
desde  a  porta  Antoniana  até  á  porta  Maqueda;  a 
outra,  chamada  Rua  Nova  ou  de  Toledo,  tem  du- 
zentos e  cincoenta  metros  de  comprimento;  é  mais 
larga  do  que  a  precedente,  e  estende- se  ^lesde  a 
Porta  Nova  até  à  l^orta  Felice.  Estas  duas  portas 
são  muito  notáveis:  uma  pelo  seu  arco  de  triumpho 
e  a  outra  pela  nobreza  da  sua  archilectura. 

A  praça  eslá  situada  justamente  no  ponto  em 
que,  as  duas  ruas,  que  acabamos  de  citar,  se  en- 
contram: a  forma  é  ocíogona,  rodeiam-n'a  bellas 
casas,  ci'ja  architeclura  se  compõe  das  três  ordens 
dórica,  jónica  e  corinthia,  artisticamente  combina- 
das, e  está  ornada  com  as  estatuas  de  Carlos  V, 
Filippe  I!,  Filippe  III  c  Filippe  IV.  Fora  da  porta 
Felice,  vô-sc  o  magniíico  passeio  da  Marina,  que 
conduz  ao  de  Flora.  Este  ultimo  jardim  é  de  rara 
belleza.  A  pouca  distancia  ha  um  rico  jardim  bo- 
tânico no  qual  as  plantas  exóticas  crescem  e  se 
multiplicam  como  no  seu  solo  natal. 

A  porta  de  Palermo  é  pequena,  mas  commoda, 
segura  e  bem  fortilicada. 

A  praça  do  palácio  real  é  bastante  espaçosa,  e 
tem  no  centro  a  estatua  em  bronze  de  Filippe  IV, 


82 


O  PANORAMA 


rodeada  de  outras  de  menor  dimensão,  que  repre- 
senlam  as  virtudes  d'esle  principe.  A  praça  Pre- 
toriana distingue-se  por  uma  fonte,  cujo  desenho 
e  escuiplura  são  admiráveis,  não  obstante  a  ex- 
travagância da  concepção.  A  praça  San  Domi- 
nico  contém  as  estatuas  em  bronze  de  Carlos  llí 
e  de  Maria  Amélia,  sua  esposa,  e  uma  columna 
magnifica  que  sustenta  a  estatua  em  bronze  de 
Nossa  Senhora.  A  frontaria  da  igreja  de  San  Do- 
minico  forma  egualmenle  um  dos  principaes  or- 
namentos d'esla  praça.  A  praça  de  Bologni  apre- 
senta aos  entendedores  uma  bella  estatua  em  bronze 
de  Filippe  Y. 

Palermo  conta  um  grande  numero'  de  igrejas, 
todas  merecedoras  de  particular  attenção.  A  ca- 
thedral,  diz  Mr.  Moret,  fundada  em  1170,  por 
Gautbier,  no  reinado  de  Guilherme  II,  é  um  vasto 
edilicio  de  aspecto  imponente,  mas  de  um  género 
h\ brido;  é  um  quadrilongo  com  travessas  salien- 
tes, terminado  em  cada  extremidade  por  quatro 
altas  torres,  elevando-se,  no  centro,  um  zimbório 
de  architectura  italiana.  Uma  ponte  suspensa  jun- 
ta ao  corpo  do  edilicio  uma  outra  torre  de  forma 
diílerente,  mas  de  altura  igual  á  das  outras.  A  fron- 
taria principal  é  lateral  e  dá  para  uma  praça  lon- 
ga que  a  separa  da  rua  Nova;  a  entrada  é  de 
estylo  mixto,  que  M.  Fargasse  classifica,  não 
sem  razão,  de  arabe-normando,  assim  como  o 
todo  exterior  e  os  campanários.  O  conjunclo,  se- 
mi-oriental  e  semi-europeo,  é  soberbo  e  magesto- 
so ;  mas  ao  primeiro  exame,  reconhecem-se  logo  os 
retoques,  variedades  e  mesmo,  permitta-se-nos  a 
expressão,  a  hostilidade  dos  estylos.  O  interior  não 
é  tão  explendido  e  bello  como  o  exterior,  comtudo 
tem  bastantes  ornamentos.  A  abobada  está  susten- 
tada por  oitenta  columnas  de  granito  oriental.  O 
altar  mór  é  riquíssimo,  e  distingue-se  por  uma  co- 
lumna magnifica  de  lapislazuii,  de  extraordinária 
dimensão.  Notam-se  também  n'esta  igreja  muitos 
mausoleos  de  mármore  branco  edeporphyro,  onde 
repousam  as  cinzas  de  antigos  monarchas. 

A  igreja  de  S.  José  acha-se  situada  na  praça  Vi- 
gliana ;  encerra  grandes  columnas  de  mármore 
turqui,  jDreciosas  pedras  no  altar  mór,  e  uma  ca- 
pella  subterrânea  cujos  ornamentos  são  riquíssi- 
mos. 

Entre  os  monumentos  religiosos  que  erigiram  ao 
deos  dos  exércitos,  que  os  fazia  triumphar,  os  va- 
lorosos filhos  de  Ilauteville,  o  estrangeiro  observa 
com  interesso  a  igreja  dcMartorana,  uma  das  mais 
curiosas  da  Sicilia,  que  foi  edificada,  dizem,  por 
Georgio  Rozio  Anticliiano,  almirante  do  rei  Iloge- 
ro,  pelos  annos  de  11  íO.  Contém  mosaicos,  pin- 
turas soberbas  e  alguns  lraI)a!hos  admiráveis  de 
escuiplura.  Esta  igreja  acha-se  sob  a  invocação 
de  São  Simeão. 

Citaremos  também  as  igrejas,  de  S.  Maltco  ou 
deirAnima,  S.  íiiusoppe  dei  Tcatini,  .íesu,  S.  l)o- 
minico,  Olivella,  S.  Filippe  Neri,  a  capella  sub- 
terrânea,«dita  Capella  dei  Santo  Crocilisso,  o  ora- 
tório do  Uozario,  etc,  ele,  onde  se  encontram 
magnificas  pinturas e objectos  de  arte  muito  curio- 
sos. 


Os  palácios  de  Palermo  são  numerosos  e  ricos. 
O  Palácio  Real,  perto  da  porta  Nova,  foi  em  outro 
tempo  uma  fortaleza  defendida  por  muitas  torres, 
das  quaes  apenas  resta  uma,  que  hoje  serve  de 
observatório  astronómico.  Este  palácio  é  a  residên- 
cia do  lenente-rei.  A  capella  que  n'elle  existe,  cha- 
ma-se  de  S.  Pedro  ;  é  obra  de  architectura  mages- 
losa  c  contém  preciosos  mármores ,  magníficos 
mosaicos  e  outras  muitas  raridades. 

O  palácio  do  senado,  diante  do  qual  está  a  fon- 
te, de  que  já  faltámos,  é  lambem  digno  de  admi- 
ração ;  possue  duas  estatuas  antigas  e  muitos  frag- 
mentos gregos  e  romanos. 

Entre  os  palácios  parlicularea  citaremos  os  dos 
príncipes  Brotera,  Torremuzza,  e  os  dos  duques  de 
Gravina  c  de  Anjou. 

Palermo  tem  cinco  hospitaes,  uma  universida- 
de. Ires  bibliothecas  publicas,  a  Pinacoteca  (gale- 
ria de  pinturas)  para  a  fundação  da  qual  contri- 
buiu poderosamente  o  principe  de  Belmonte,  o  mu- 
seu archeologico,  que  conlém  uma  grande  collec- 
ção  de  medalhas  greco-sicilianas,  e  que  todos  os  j 
dias  recebe  as  raridades  que  se  encontram  nas 
escavações  feitas  em  diversos  pontos  da  ilha,  e, 
emíim,  a  fundição  real. 

Os  arrabaldes  de  Palermo  não  são  menos  inte- 
ressantes. Saindo  da  cidade  pela  estrada  ao  longo 
da  praia  vê-se  o  Lazarelo  e  chega-se  ao  pé  do  mon- 
te Peregrino,  chamado  pelos  antigos,  Ereias.  Esta 
montanha,  durante  as  guerras  púnicas,  teve  algu- 
ma celebridade;  depois  caiu  no  esquecimento. 
Mas,  em  1624,  descoljrindo-se  alli,  em  uma  gruta, 
o  cadáver  da  virgem  real.  Santa  Rosália,  começou  a 
adquirir  novamente  importância.  Esta  santa,  fu- 
gindo aos  altraclivos  da  corte,  rcfugiou-se  n'aquella 
gruta,  onde  passou  uma  vida  solitária  e  contem- 
plativa. O  seu  cadáver  tendo  sido  transportado 
para  Palermo,  no  tempo  em  que  a  peste  devastava 
esta  cidade,  e  cessando  n'essa  occasião  o  fiagello, 
fez  com  que  fosse  declarada,  Santa  Rosália,  a 
protectora  de  Palermo,  e  em  seguida  se  transfor- 
masse a  gruta  em  uma  igreja,  cujo  aspecto  é 
maravilhoso.  A  estrada  que  a  ella  conduz,  cons- 
truída nas  costas  do  monte,  custou  grandes  som- 
mas;  está  quasi  toda  assente  sobre  sólidos  arcos 
de  alvenaria.  Instituiu-sc  lambem,  por  aquella  oc- 
casião, uma  festa  annual,  que  se  celebra  a  15  de 
julho,  c  que  altraho  a  Palermo  uma  grande  multi-  I 
dão  de  curiosos.  N'esle  dia,  a  igreja  depositaria 
dos  restos  morlaes  da  santa,  apresenta-se  de  tal 
modo  illuminada,  que  a  vista  senle-se  oííuscada 
com  o  brilhantismo  das  luzes. 

São  lambem  notáveis  dois  caslellos  de  cslylo 
mourisco ;  um  chamado  Ziza,  que  se  eleva  na  al- 
dôa  de  Olivazza,  pertencente  ao  principe  Schcrra, 
e  o  outro  denominado  Cuba,  situado  na  estrada  de 
Monrealc.  Estes  nomos  de  Ziza  o  Cuba,  são  os  dos 
filhos  de  um  Emir,  que  os  mandaram  construir 
pelos  seus  árabes.  A  situação  d'esles  dois  edificios 
é  admirável. 

Avisla-se  ao  longe  Monreale  pela  sua  elevada 
posição;  esta  cidade  bellissima  e  bem  edificada, 
conta,  aproximadamente,  dez  mil  habitantes.  En- 


o  PANORAMA 


83 


Ire  os  seus  magníficos  templos,  citaremos  a  calhe- 
dral  de  Sancta-Maria-Nuova,  fundada  por  Guilher- 
me o  Bom,  era  1174  e  o  convénio  dos  Benedicli- 
nos,  cujos  arcebispos,  pro  tempore,  são  abbades. 
A  grandeza  d'esle  templo,  a  sua  arcbiteclura,  a 
raridade  dos  mármores  que  contém,  as  suas  por- 
ias de  bronze  trabalhadas  pelo  celebre  Pisan  Bo- 
nanni,  o  S.  Jeronymo,  do  esculplor  António  Ga- 
gini,  os  sarcophagos  dos  dois  Guilhermes,  o  Bom 
e  o  Mau,  e  outros  preciosos  ornamentos,  tornam 
esta  igreja  um  dos  melhores  emais  sumptuosos  edi- 
fícios da  Sicilia.  Giovanni  Luigi  Leilo,  publicou 
d'ella  uma  exacta  discripção,  cuja  melhor  edição 
appareceu  em  1702.  Mas,   de  então  para  cá,  o 
o  templo  tem  sido  enriquecido  de  novos  ornamen- 
tos, entre  os  quaes  mencionaremos  particularmen- 
te o  altar  mór,  todo  de  prata,  que  o  arcebispo 
Testa,  prelado  não  menos  piedoso  que  sábio,  man- 
dou fazer  á  sua  custa  no  fim  do  século  passado. 
Um  incêndio,  em  1811,  causou  a  esta  igreja  gra- 
ves perdas,  que,  entretanto,  teem  sido  inteiramente 
reparadas,  á  excepção  de  alguns  túmulos  que  fi- 
caram completamente  destruídas   O  mosteiro  dos 
Benedictinos,   possue  um  claustro  extremamente 
notável.    Existe   no  seu   refeitório   uma    pintura 
muito  estimada,  representando  S.  Benedicto  dis- 
tiibuindo  pão  aos  pobres.  Este  quadro  é  obra  de 
Pietro  Novelli,  natural  de  Monreale,  pintor  digno 
de  maior  fama,  que  a  de  que  gosa.  Yô-se  allí  tam 
bem  um  quadro  deRaphael ;  asna  ricabíbliolheca 
foi  consideravelmente  augmentada  pelo  arcebispo 
Testa. 

A  cidade  de  Palermo  tem  dois  portos;  um  pôde 
pcrleitamente  receber  navios  de  grande  lote;  o  outro 
apenas  admitte  pequenos  vasos  mercantes.  O  seu 
comniercio  é  limitado. 

Palermo  foi  o  theatro  das  famosas  Vésperas  Si- 
cilianas, de  que  opportunamente  fallaremos. 


PEREZ  LORENZO 

(Sccnas  «Ia  Camitanha  «lo  IMcxico) 

Por  PINHEIRO  CHAGAS. 

VI 

Não  durou  muito  a  impressão  produzida  por  es- 
te sinistro  espectáculo  no  animo  doscontra-guerri- 
llias.  A  sua  vida  aventurosa  habiluara-os  a  estas 
scenas,  e  não  havia  talvez  entre  elles  um  só,  que 
não  tivesse  feito  já  alguma  execução  semelhante 
n'algum  recanto  sombrio  das  florestas  mexicanas, 
ou  dos  desertos  da  Califórnia.  A  lei  de  Lynch  im- 
pera ainda  n'esses  ermos,  onde  a  relê  das  gentes 
euiopéas  se  despe  dos  incommodos  fatos  da  civi- 
lisação,  e  se  arroja  com  enlhusiasmo  a  plena  bar- 
baiia.  Olho  por  olho,  dente  por  dente,  eis  a  lei  que 
rege  essas  hordas  de  emigrados,  que  vagueiam  ás  sol- 
tas pelas  savanas  da  America. 

Os  oíHciaes  francezes  sentiram  mais  repugnância. 
Os  bravos  militares,  educados  nas  tradições  cava- 
lheirescas das  guerras  europeas,  não  podiam  coni- 
prehender  estas  vinganças  selvagens,  e  ainda  me- 
nos a  tolerância  cora  que  o  seu  coronel  j)arccia 
cobrir  estes  actos  indignos.  Agruparam-se  era  torno 
do  capitão  Yiarmont,  e  a  conversação  animada,  que 


travaram  em  voz  baixa,  mostrava  que  a  disciplina 
não  seria  já  bastante  forte  para  os  reter,  se  esse 
verdugo,  que  lhes  servira  de  guia,  tivesse  a  au- 
dácia de  reapparecer  diante  d'elles. 

Comtudo  o  cadáver  já  lá  ficava  muito  para  traz, 
pendurado  da  sua  arvore,  e  os  contra  guerrilhas 
caminhavam  alegremente,  de  espingarda  ao  hom- 
bro,  atravessando  as  clareiras  innundadas  pelo  ful- 
gor da  lua,  as  veredas  intrincadas  da  íloresta,  on- 
de as  hervas  altas  se  curvavam  ao  peso  das  gotas 
do  orvalho,  e  onde  os  ramos  cruzados  do  arvoredo 
mal  deixavam  coarem-se  alguns  pallidos  raios  da 
rainha  da  noite.  A  influencia  suave  d'essa  noite 
dos  trópicos  dissipara  rapidamente  a  triste  impres- 
são, que  por  alguns  momentos  pairara  sobre  to- 
dos. O  desaffogo,  que  o  espirito  mais  intrépido 
sente,  depois  de  uma  batalha  que  se  atravessou 
incólume,  abria  o  animo  dos  ofliciaes  e  dos  sol- 
dados ás  brandas  emanações  d'aquella  poética  na- 
tureza. A  brisa  da  noite,  impregnada  nos  frescos 
vapores  dos  arroios  e  das  fontes,  acariciava  sua- 
vemente as  faces  dos  conlra-guerrilhas.  Uma  con- 
versação animada  percorreu  as  fileiras,  que  antes 
do  combate  haviam  atravessado  silenciosas  esses 
mesmos  sitios.  Accenderam-seos  charutos  e  os  ci- 
garros, parecendo  que  de  súbito  ura  bando  depy- 
rilampos  sulcava  com  a  sua  luz  palpitante  a  sombra 
do  copado  arvoredo.  Brotaram  aqui  e  acolá  ale- 
gres risadas  como  um  tiroteio  de  alegria,  que  se 
foi  reforçando  cada  vez  mais  até  que  a  ílnal  se  trans- 
formou n'um  confuso  borborinho  de  risos,  falias, 
e  cantos  que  encheu  o  silencioso  bosque. 

Súbito  ouvio-se  ao  longe,  por  entre  a  ramaria 
das  arvores,  um  som  vago  e  aerio,  uma  longínqua 
musica,  que  parecia  exhalar-se  do  seio  fremente 
das  arvores,  como  um  canto  de  fadas,  ou  um  con- 
certo melodioso  entoado  pelos  sylphos,  que  se  baloi- 
çaram na  ramaria  das  bananeiras.  Todos  se  ca- 
laram, e,  por  um  comraura  accordo,  pararam  e 
pozeram  o  ouvido  á  escuta.  No  meio  d'esse  silen- 
cio solemne  ouviu-se  mais  clara,  mais  distincla 
e  mais  harmoniosa  também  essa  musica  distante, 
cujas  notas  vinham,  no  regaço  da  brisa,  expirar 
no  ouvido  dos  subordinados  do  coronel  Dupin. 

Enlre-olharam-se  todos  com  expressões  bem 
diversas  no  olhar.  Os  soldados  americanos  reve- 
lavam a  impressão  supersticiosa,  que  lhes  salteiara 
logo  oscredulosespiritos,  os  europeus  maisscepticos 
mostravam  simplesmente  espanto,  e  os  ofliciaes  fran- 
cezes, de  organisação  mais  poética  e  enthusiastica, 
sentiam  a  doce  sui preza  do  viajante  que  peneira 
n'um  palácio  de  fadas,  e  que  apenas  se  maravilha, 
sem  se  espantar,  dos  prodígios  que  vão  succe- 
dcndo. 

Não  houve  talvez  um  só  d'entre  elles  que  não 
se  julgasse  o  heróe  predestinado  de  alguma  aven- 
tura de  incantamenlos. 

— Coronel,  disse  Yiarnionl  approxiinando-sedo 
commandanle,  entrámos,-segundo  me  parece,  nos 
jardins  de  Armida.  Ou,  se  estivéssemos  no  mar, 
em  vez  de  estarmos  no  centro  de  uma  floresta,  dir- 
Ihe-hia  que  tomasse  cautella  porque  tínhamos  as 
sereias  comnosco. 


o  PANORAMA 


—Capitão  Viarmont,  respondeu  Dupin,não  sup- 
ponha  que  mereçamos  ás  sereias  a  honra  de  ser- 
mos equiparados' a  Ulysses.  E  de  mais,  ainda  que 
assim  losse,  não  temeria  as  consequências  de  tal 
apparição.  Não  seria  decerto  o  capitão  quem  cede- 
ria as  tentações.  De  outras  mais  perigosas  escapou 
ha  pouco,  evi  com  jubilo  a  lemljrança  dos  seus 
deveres  militares  arrancal-o  a  doce  inlluencia  da  se- 
reia, que  a  todos  nos  incantou  em  casa  deD.llamon. 

— E  olhe  que  foi  meritório  o  sacrilicio,  tornou 
Viarmont  rindo.  Se  tivesse  fugido  aos  laços  má- 
gicos do  amor  para  me  arrojar  no  fervido  seio  de 
gloria;  se  tivesse  deixado  murchar  a  murta  de  Vénus 
para  enramar  a  fronte  com  os  loiros  de  Bellona, 
como  se  dizia  no  tempo  do  nosso  primeiro  impé- 
rio; se  saisse  de  casa  de  D.  Ramon  ao  som  dos 
clarins  da  alvorada,  para  ir  entrar  n'uma  pugna 
brilhante  como  a  de  Solferino,  em  que  se  com- 
balia á  luz  ardente  do  sol  da  Itália,  à  vista  de  dois 
imperadores  e  um  rei,  entre  as  cargas  magnificas 
da  cavallaria,  o  magesloso  estrondo  da  artilheria, 
o  som  das  musicas  militares,  o  perfume  inebriante 
da  pólvora;  inílammados  além  d'isso  pela  consciên- 
cia de  que  defendíamos  uma  grande  idéa,  de  que 
dávamos  a  liberdade  a  um  povo  digno  de  a  obter, 
então  sim,  não  seria  muito  acerbo  o  sacrifício.  O 
enthusiasmo  ardente  das  grandes  batalhas  era  mais 
do  que  bastante  para  consolar  da  perda  das  doces 
commoções  do  amor !  Mas  sair  d'um  baile  esplen- 
dido, abandonar  um  terraço  cheio  de  aromas  ine- 
briantes, uma  mulher  adorável  que  escuta  com 
certa  condescendência  o  vago  hymno  namorado 
que  lhe  murmuiámos  ao  ouvido,  para  irmos  assis- 
tir a  uma  lucla  nocturna  com  meia  dúzia  de  ban- 
didos, |)ara  nos  expormos  a  morrer  obscuramente 
varados  por  uma  navalha  ou  pela  baila  d'ura  re- 
volver, para  assistirmos  a  actos  de  barbaria  que 
nos  revoltam,  e  tudo  isso  ímpellidos  porque  mo- 
tivo? Por  um  motivo  que  não  podemos  nem  com- 
prehender,  nem  acceitar,  o  de  opprimirmosum  po- 
vo livre,  o  de  lhe  impormos... 

—  Capitão,  capitão!  interrompeu  o  coronel  com 
certa  serenidade,  cautella  no  que  vai  dizer!  Nunca 
se  emenda,  continuou  o  benévolo  Dupin  sorrindo-sc, 
é  um  frondvur  incorrigível. 

Continua. 

AS  RÃS  DE  SARTILLY 

Quando  Mr.  Kerengal  combateu  na  Assembléa 
constituinte  de  França  os  direitos  scnhoreaes,  e 
citou  entre  outros  a  obrigação  imposta  a  certos  al- 
deãos de  bateras  aguas  dos  tanques  para  fazer  ca- 
lar as  rãs,  uma  parte  da  Assembléa  indignou-se 
contra  um  prccoilo  Ião  [lucril  c  indecoi'oso.  Aclia- 
va-íiC  então  a  nação  franceza  em  uma  epocha  que 
obrigava  a  olhar  para  todas  es  coisas  seriamente; 
os  factos,  portanto,  tomavam  a  magnitude  do  prin- 
cipio que  os  produzia.  Ainda  se  não  tinha  inven- 
tado essa  zombaria  systematica,  que  mais  tarde 
appareceu  nas  reuniões,  e  que  torna  impossível  o 
pronunciar  certas  palavras  ou  tocar  em  certos  pon- 
tos, porque  o  sarcasmo  está  sempre  prompto  para 
apoderar-se  da  sua  presa  e  despedaçal-a. 


Ora,  se  entre  os  privilégios  senhoreaes  houve  al- 
gum ínolTensivo  foi,  sem  duvida,  o  de  castigaras 
tranquillas  aguas  dos  tanques.  Osvillãos  olhavam- 
0  mais  depressa  como  um  divertimento  do  que 
como  um  encargo  e  nunca  o  levaram  a  cabo,  diz 
um  auctor  antigo,  sem  canções  e  sem  nma  sa- 
raivada de  ditos  ef/arf/al/iadas.Coi\ser\di-iQ  uma 
ti'adição  graciosa,  consagrada  por  um  provérbio, 
quejuslitíca  essa  alegria  sarcástica,  Ião  natural  do 
povo  normando. 

Sartilly,  situado  no  departamento  da  Mancha, 
tinha,  ao  que  parece,  na  idade  media  grandes  tan- 
ques cheios  de  canaveaes.  Formavam,  e*stes,  ver- 
dadeiros bosques,  cuja  caça  se  compunha  de  rãs, 
caça  alvoroçadora,cuja  destruição  se  permiltia  aos 
aldeãos,  que,  em  verdade,  pouco  se  dedicavam  a 
ella,  porque  a  boa  gente  de  Sartilly,  segundo  a 
tradição,  era  mais  affeiçoada  a  comer  tripas  e  a 
beber  cidra  do  que  a  matar  rãs. 

Succedeu,  comludo,  n"um  certo  verão,  a  caslellã, 
estrangeira  que  linha  chegado  da  França,  sedu- 
clora  e  cof/uel(e  formosura,  cega  por  musica  e  dança, 
achar-se  lóra  do  sgu  elemento  pela  incommoda  vi- 
sinhança  dos  músicos  aquáticos.  As  rãs  não  a  dei- 
xavam dormir,  pertubavam-lheo  canto,  moiam-lhe 
a  paciência  (as  damas  ainda  não  tinham  inventado 
os  nervos)  em  uma  palavra,  tanto  fizeram,  que  a 
interessante  caslellã  viu-se  obrigada  a  supplicar 
a  seu  senhor,  que  era  seu  escravo,  que,  a  todo 
transe,  fizesse  callar  as  malditas  rãs. 

O  senhor,  de  Sartilly  convocou,  por  consequên- 
cia, todos  os  aldeãos,  para  que  sacudissem  as  man- 
sas aguas,  a  fim  de  impor  silencioso  á  turba.  Os 
villãos  reuniram-se  armados  de  grandes  cajados  e 
começaram  a  espancar  o  pobre  tanque,  não  sem 
soltar  alguns  ditinhos  com  relação  ao  capricho  da 
dama.  Em  pouco  tempo  o  bosque  de  canas  achou- 
se  transformado  em  um  charco  immundo  e  asque- 
roso, de  modo  que  a  nobre  caslellã,  não  podendo 
supportar  as  suas  pestilentesexhalações,  adoeceu.' 
Chamaram-se  todos  os  curandeiros  das  cercanias, 
que  empregaram,  durante  trczmezes  consecutivos, 
lodos  os  esforços  possíveis  para  salvar  a  caslellã; 
mas  tudo  foi  baldado;  a  pobre  senhoia  caminha- 
va de  mal  para  peior.  Não  foi,  senão  depois  de  a 
lerem  deixado  em  paz,  declarando  a  doença  incu- 
rável, que  conseguiu  algumas  melhoras.  ÍSa  con- 
valescença appeieceu-lhe  íiar,  para  o  que  mandou 
buscar  uma  roca  jerde;  pois  as  canas  de  Sartilly 
servem  para  este  uso;  quando,   porem,  trataram 
de  satisfazer  o  desejo  da  caslellã,   viram  que  os 
villãos,  ao  espancar  o  tanque,  tinham  reduzido  a 
fanicos  Iodas  as  rocas.  A  dama  não  gostou  dodiver- 
mcnto  e  mandando  chamar  os  destruidores  das  ro- 
cas reprehendeu-os  asperamente.  Um,  porém,  dos 
mais  ousados,  coçando  na  cabeça,  c  dando  milha- 
res de  voltas  ao  barrete  que  linha  nas  mãos,  dis- 
se-lhe,  que,  no  seu  entender, 

Oneiii  ti"  niu-l  'J<3  rãs  .solFria, 
Hoc;is  iiiislcr  não  Iimvííi. 

Esle  dito  lornou-se  alli  proverbial,  ehoje  appli- 
ca-se  a  Iodas  as  pessoas  do  bello  sexo,  exlrema- 
menle  delicadas  ou  habitualmente  ociosas,  que  se 
dão  ao  trabalho  por  casualidade. 


o  PANORAMA 


85 


MURILLO 

A  grande  gloria  arlislica  da  Hespanha  cifra-se  em 
dois  nomes  eternos;  Cervantes  e  Murillo:  Cervan- 
tes o  pintor  da  terra,  Murillo  o  pintor  do  ceu. 
Aquelle,  mordaz,  sul)lil,  delicado,  um  pouco  cynico, 
por  vezes  até  galanteador,  (como  observa  um  grande 
espirito),  encara  o  mundo  atravez  da  mascara  da 
comedia,  e  ri-se  d'elle  com  o  sorriso  lino  do  sar- 
casmo. Este,  crente, 
espiritualista,  alma 
propensa  ao  extasi, 
imaginação  que  ten- 
de a  erguer-se  da  ter- 
ra para  se  engolfar 
em  novos  mundos , 
involve  as  suas  crea- 
ções  em  uma  atmos- 
phera  celestial,  e  im- 
prime-ihes  a  feição 
dos  anjos. 

Sevilha,  sua  pá- 
tria, é  boje  o  templo 
da  sua  gloria.  No  mu- 
seu, uma  das  salas  é 
completamente  cheia 
pelos  quadros  de  Mu- 
rillo, um  dos  quaes, 
(S.  Thomaz  de  Villa 
nova)  pôde  ser  repu- 
tado, no  dizer  dos  en- 
tendidos,como  a  obra 
prima  do  pintor,  e 
uma  das  mais  notá- 
veis em  pintura. 

Felicien  Mallefille, 
nas  suas  Memorias 
de  D.  Juan,  diz  o  se- 
guinte, ao  descrever 
Sevilha  :  a  Murillo  , 
comme  s'il  avait 
voulu  laísser  á  sa 
patrie  le  secret  de 
son  génie,  n' existe  ré- 
element  et  ne  se  révêle 
qu'ici.La  sallequon 
lui   a  exdusivement 

consacrée  est  un  tresor  et  vaut  à  elle  seule  le  voyage.T) 
Vinte  e  três  são  os  quadros  de  que  esta  soberba  ga- 
leria se  compõe,  galeria  em  que  o  viajante  penetra 
como  n'um  sanctuario,  cora  o  respeito  que  as  gran- 
des obras  impõem,  e  com  o  estremecimento  que  os 
grandes  nomes  suscitam. 

Os  quadros  são: — O  Nascimento,  S.  Leandro, 
e  S.  Boaventura,  A  Piedade,  S.  Agostinho,  uma 
virgem,  A  Annunciação,  outra  virgem,  outro  S. 
Agostinho,  S.  Pedro  Nolasco  e  a  virgem  da  Mercê, 
S.  José,  Christo  e  S.  Francisco,  outro  S.  Agosti- 
nho, Uma  visão  de  S.  António,  Uma  (Conceição, 
S.  Félix  de  Cantalicio,  outro  S.  Félix,  Uma  Con- 
ceição, pequena,  Santo  António,  A  Conceição  ul- 
t-ma.  Santa  Justa  e  Uufina,  S.  Thomaz  dê  Villa 
d  ando  esmola  aos  pobres,  outro  S.  Félix,  A  Vir- 
gem da  Toalha,  (í/í!  laservilleta.) 


A  propósito  d'este  ultimo  quadro  corre,  como 
justificação  do  nome,  uma  certa  historia,  que,  seja 
ou  não  seja  exacta,  aceita-se,  todavia,  como  rasgo 
caraclerislico  do  admirável  talento  de  Murillo.  Este 
pintor  havia  sido  encarregado  de  fazer  diversos  qua- 
dros para  certo  convento.  Durante  os  mezes  do 
trabalho,  um  kigo  virtuoso,  \m\  amador  tenaz,  ha- 
via constantemente  auxiliado  o  grande  mestre,  no 

pouco,  no  quasi  na- 
da em  que  poderia 
ser-lhe  ulil.  A  coad- 
juvação limitava-se, 
portanto,  ao  lim- 
par dos  pincéis  e 
ao  moer  das  tintas. 
Guando  Murillo  deu 
por  concluidos  ostra* 
balhos  de  que  o  ha- 
viam incumbido,  o 
pobre  leigo  por  taes 
maneiras  e  com  taes 
instancias  lhe  pediu 
uma  memoria,  uma 
recordação,  uma  lem- 
brança apenas,  que 
Muriilo,  pegando  da 
toalha  a  que  costu- 
mava limparas  mãos, 
traçou,  esboçou,  e  em 
poucos  dias  concluio 
o  celebre  quadro  co- 
nhecido pelo  nome 
de  Virgem  de  la  ser- 
villeta. 

Digamos  agora 
duas  palavras  bio- 
graphicas: 

Bartholomeu  Este- 
vão Murillo  nasceu 
em  Sevilha  em  1618. 
Seu  primeiro  mestre 
em  pintura  foi  Juan 
dei  Castillo.  Até  os 
vinte  quatro  annos  o 
espirito  do  que  mais 
tarde  deveria  ser  uma 
gloria  humana,  viveu,  por  assim  dizer,  circumscri- 
pto  e  encadeado.  Castillo  não  era  para  nortear  o 
vôo  incerto  d'aquella  águia.  Quando  Pedro  de  Mova, 
na  volta  de  Londres  para  Granada,  passou  pelo  logar 
onde  Murillo  se  achava,  tra5íendo  comsigo  o  fructo 
das  lições  de  Van-Dick,  Murillo.  despertado  subi- 
tamente, arrancado  por  aquellas  obras  ao  ma- 
rasmo emque  se  achava, sente  inllaramar-se-lhe  n'al- 
ma  uma  luz  nova,  e  parte  para  Madrid,  a  apresentar- 
se  ao  grande  pintor  de  Filippe  IV,  Velasquez,  en- 
tão cercado  de  gloria,  de  respeitos  e  de  riquezas. 
O  que  os  conselhos  d'este  mestre  lhe  produziram 
no  animo,  dil-o  a  rápida  evolução  do  seu  talento. 
Dois  annos  bastaram  para  este  noviciado;  em 
IGio  vemos  de  novo  Murillo  em  Sevilha,  entregue 
a  si  próprio,  pintando,  progredindo  sempre,  lu- 
tando trinta  e  sete  annos  cora  esse  gigante,  que 


86 


O  PANORAMA 


depois  se  chama  a  immortalidade,  e  a  quem  elle 
ganhou  os  louros  de  que  se  engrinalda  o  seu  tu- 
mulo. 

O.  quadro  do  que  a  nossa  gravura  é  copia  existe 
ao  presente  na  galeria  nacional  de  pintura  de 
Londres,  pela  qual  foi  comprado,  em  1841,  no 
leilão  do  espolio  do  sr.  Simon  Clark,  por  nove 
contos  de  reis 

Repiesenla  elle,  como  se  vê,  o  sanlo  precursor 
de  Clirislo.  As  palavras  queannuuciaram  arcdem- 
pção  liumana: 

— «Eis-aqui  o  cordeiro  de  Deos  por  quem  serão 
rcdcn)idos  os  peccados  do  Mundo;» — deram  o  as- 
sumplo  para  este  delicioso  quadro. 

E.  A.  Vidal. 


♦  A  QUESTÃO  LITTERARIA 

Por  ZACHARJAS  AÇA. 
II 

Propondo-me  escrever  não  um  pamphlelo  que 
derrame  nova  luz  sobre  a  questão,  como  porahi  cos- 
tumam dizer  alguns  araulos  e  pregoeiros  amadores 
de  lilleralura  ligeira,  e  onde  se  ataque  accintemente 
com  garras  e  dentes  um  dos  grupos  litlerarios  que 
se  gladiam  n'esle  momento,  mas  sim  uma  historia 
crilica,  uma  apreciação  rápida  das  idéas  aventa- 
das pelos  contendores  dos  dois  campos,  parece- 
me  ter  sido  lógico  começando  pelo  principio,  isto 
e,  por  um  esboço  crilico  de  algumas  obras  do  sr. 
Theophilo  Braga  e  do  sr.  Anthero  do  Ouental, 
porque  foram  eslas  a  causa  occasional  do  sr.  An- 
tónio Feliciano  de  Castilho  escrever  as  celebres 
paginas  da  carta  ao  sr.  Pereira,  e  (|uea  seu  turno 
motivaram  a  epistola  que  tem  por  titulo  Bom  senso 
c  bom  f/oslo,  dirigida  por  um  dos  criticados  ao 
auclor  da  Noífe  doCaslello. 

Ha  já  tanta  luz  por  ahi,  a  questão  tem  sido  tra- 
tada e  visla  de  tal  alio,  na  altura  dos  princípios 
como  se  costuma  dizerem  S.  Bento,  que  livre-me 
Deus  da  tenlação  de  elucidar  n'este  ponto  aquém 
quer  que  seja.  í^om  tal  pretenção  faria,  sem  du- 
vida alguma,  o  eíieito  de  um  homem  que  em  um 
brilhante  dia  d'estio  sahisse  á  rua  com  uma  lan- 
terna accesa  na  mão. 

Ouando  appareceu  a  Visão  dos  lempos  fui  um 
dos  que  applaudiram  a  tentativa  ])oelica.  O  livro 
era  uma  promessa.  Pensei  d'elle  o  que  agora  penso. 
Entre  outras  coisas,  achci-o  confuso  e  pouco  por- 
luguez  na  linguagem  da  Inlioducção,  que,  atlenia 
a  novidade  que  seu  auclor  nos  qiíeiia  dar,  devia 
vir  mais  cuidada  e  esmerada.  Conhecendo  a  Índole 
do  nosso  espirito  que,  desgraçadamente,  nãoédado 
a  profundas  cogitações,  o  sr*.  Theophilo  Braga  de- 
via doirar  a  pillula.  ISão  o  fez.  O  resultado  foi  o 
que  era  de  esperar.  Correndo  o  risco  de  ser  con- 
siderada como  uma  turba  de  ineptos  a  população 
leitora  de  Lisboa  declarou,  una  você,  que  o  prefa- 
cio do  novo  livro  era  ininlelligivel,  e,  rechaçada 
d'aHi,  lançou-se,  anciosa  de  comjjrehender,  sôbic 
a  Bacchante;  e  exaggerou  o  merecimento  (raquella 

composição  porque a  entendeu.   Veem-se  com 

bons  olhos  as  coisas  que  nos  lisongciam. 


Porque  é  que  o  publico  declarou  que  não  per- 
cebia nem  uma  phrase  da  Generalisação  da  /tis- 
toria  da  poesia  ?  Foi  só  porque  ella  não  tinha  aquelle 
esplendor  de  estylo  tão  grato  aos  nossos  espíritos 
tão  amantes  da  luz?  ou  porque  a  linguagem  não 
denunciava  o  convívio  dos  bons  modelos?  Não, 
não  foi  só  por  isso.  O  publico  não  entendeu,  por- 
que em  todo  o  casa -não  i)odia  entender.  É  esta  a 
verdade.  E  não  podia  entender  porque  não  sabe. 

Concorreram,  portanto,  três  rasões,  todas  for- 
tíssimas, para  que  a  prosa  do  sr.  Braga  não  agra- 
dasse aos  leitores;  e  vem  a  ser,  a  falta  de  clareza 
e  vernaculidade  do  dizer,  a  pouca  aptidão  dos  po- 
vos da  península  para  os  estudos  phílosophicos,  e 
principalmente  a  ignorância  quasi  geral  em  que 
jazemos. 

O  livro  receberia,  por  certo,  outro  acolhimento, 
se  o  auclor  fosse  mais  lógico,  atlentasse  com 
mais  círcumspecção  na  natureza  e  circumstancias 
do  nosso  publico,  e  fizesse,  em  vez  de  uma  gene- 
ralisação, um  trabalho  anah  tico.  Não  digo  aqui 
se  esta  tarefa  era  mais  ou  menos  dillicil  do  que 
a  que  escolheu ;  provavelmente  ser-lhe-ía  impos- 
sível leva-la  a  cabo  com  a  proíiciencia  que  ella 
exige,  mas,  qualquer  que  fosse  o  exilo  da  obra, 
havia  já  a  agradecer  a  intenção  e  a  louvar  o  senso 
critico  do  poeta  que  mostrava  d'esse  modo  conhe- 
cer a  atmospher?  ínlellectual  em  que  vive  e  que- 
rer ser  útil  ao  seu  paiz. 

Muitos  dos  livros  escriptos  em  Allemanha  não 
podem  ainda  ser  percebidos  e  utilisados  por  quem 
sahio  dos  nossos  mesquinhos  estabelecimentos  se- 
cundários, ridículos  se  os  compararmos  com  os 
gymnasíos  allemães,  com  as  escholas  normaes  e 
faculdades  de  lettras  da  França  e  com  os  institu- 
tos livres  da  Grã-Bretanha.  E  depois,  conviver  com 
i{alzac.  Dumas,  Musset  c  o  p/iilosopho  Henrique 
lleíne,  não  é  habilitação  sullicicnte  para  estudar 
Olfricd  Muller  eosescríplores  da  cschola  histórica 
allemã.  O  nosso  publico  está  ainda  muito  innoccnte 
n'estes  assumptos.  Os  mais  adiantados  lêem  a  Re- 
vista dos  dois  Mundos  \  os  outros  continuam  a  fo- 
lhear romances ;  a  grande  maioria  dos  escri piores 
entretem-se  a  fazer  estylo,  isto  é,  cobrir  es(iueletos 
com  muitos  ouropéis,  isto,  que  é  visível  e  clarís- 
simo, escapou  ao  senso  profundo  do  sr.  Theophilo 
Braga. 

Qualquer  que  seja  a  impressão  que  produzam 
as  minhas  palavras  não  me  Iremeo  a  mão  ao  es- 
creve-las, porque  estou  convencido  da  verdade 
(relias,  porque  entendo  que  é  necessário  dar  um 
exemplo  de  consciência  lílteraría,  e  poríjue  hei  de 
ter  sempre  a  audácia  de  dizer  o  que  penso. 

Encantoados  n'este  palmo  de  terra,  communi- 
cando  com  a  Euro|)a  i)elo  Mediterrâneo,  gosamos 
de  uma  grande  liberdade  i)olílica,  mas  n'isso  se 
cifram  as  nossas  ventuias.  E  muito,  mas  não  é 
tudo.  As  sciencias,  as  lettras  e  as  artes  jazem  en- 
tregues ao  esquecimento;  foram  preleiídas  pela 
politica.  Deus  (jueira  (jue  não  venha  longe  o  dia 
do  seu  i'enascimenlo  entre  nós. 

Hunsen  escreve  a  sua  obra  sobre  o  logar  do 
Egypto   na  historia  universal,  Layard    traz  das 


o  PANORAMA 


87 


suas  viagens  as  Antiguidades  de  Nitiiveh,  Otfried 
Muller  morre  aos  quarenta  annos,  victima  do  seu 
amor  á  sciencia,  e  deixa-nos  oí  Etruscos,  os  Dó- 
ricos, o  Bianual  d'arclieologia  da  arte  e  a  His- 
toria da  litteratura  grega,' {\)  Curlius  e  Grote 
escrevem  a  Historia  da  Grécia,  trabalhos  admirá- 
veis, ricos  de  sciencia  e  de  critica,  multiplicam- 
se  as  edições  da  Sciencia  da  falia  úa  Max  Muller, 
um  dos  primeiros  philologos  modernos,  etc.  mas 
todos  estes  estudos  são  perdidos  para  nós,  porque 
as  nossas  bibliothecas  não  os  possuem,  porque  os 
nossos  jornaes  e  revistas  não  se  occupam  d'elles  e 
mostram  desconhece-los  completamente,  porque  a 
nossa  sciencia  em  n^aleria  de  philologia,  tomando 
esta  palavra  no  sentido  allemão,  conserva-se  pouco 
mais  ou  menos  na  altura  da  de  Frei  Bernardo  de 
Brito,  porque,  quando  se  discute  a  formação  das 
linguas,  ainda  ouvimos  fallar  a  serio  na  Torre 
de  Babel,  porque  se  ataca  aphilosophia  e  a  scien- 
cia da  Allemanha,  fachos  queilluminam  hoje  todo 
o  mundo  pensador,  sem  previamente  as  ter  lido  e 
estudado,  e  não  ha  por  ahi  basbaque  nenhum  que 
não  mofe  da  philosophia  transcendente,  indo,  infe- 
lizmente, achar  ecco  na  intelligencia  de  homens 
que  teem  obrigação  de  guiar  os  outros  e  de  resis- 
tir ás  más  paixões  da  ignorância  e  da  vaidade. 

Os  nossos  antepassados  são  insultados  porque 
vieram  do  Norte,  são  bárbaros!  Para  se,dizer  isto 
é  necessário  esquecer  que  foram  esses  selvagens  os 
fundadores  das  nações  modernas. 

Em  que  tempo  vivemos  nós?  Estamos  no  sé- 
culo XIX  ou  ouvimos  os  oradores  romanos  pedir 
legiões  para  guardar  os  limites  do  império  e  ir 
resgatar  as  águias  de  Varro  sepultadas  nos  plai- 
nos  da  Germânia? 

(Continua) 


FESTAS  DOS  MUSULMANOS 

A  sexta  feira  é  para  os  musulmanos  o  que  o 
domingo  é  para  os  christãos  e  o  sabbado  para  os 
hebreus.  Nesse  dia  concorrem  aos  templos,  onde 
devem  entrar  descalços,  passeiam,  dão  suas  reu- 
niões, etc. 

No  dia  8  de  ínaAarr«n,  primeiro  mez,  celebram 
por  dez  dias  seguidos  o  assassinato  de  Ocein,  grande 
iman  da  Pérsia;  e  n'esle  mez  estão  prohibidasas 
hostilidades,  pois  ha  suspensão  de  armas,  não  sen- 
do caso  de  grande  urgência. 

Na  primeira  sexta  feira  de  safar,  segundo  mez, 
reunem-se  os  turcos  para  tratarem  assumptos  de 
guerra  e  seus  preparativos.  No  dia  11,  celebram 
a  santa  noite  e  festa  do  nascimento  de  Mafoma; 
alguns  califas  fesfojam-n'a  seis  dias  depois;  e  na 
ultima  quarta  feira  celebram  a  santa  noite  ou  a 
festa  da  trombeta  que  convocará  a  juizo. 

No  dia  o  de  rabie,  terceiro  mez,  tem  lugar  a 
festa  da  noite  santa  da  concepção  de  Mafoma.  A 
16  commemoram  a  santa  noite  da  sua  ascensão. 

Em  lo  de  schaben,  oitavo  mez,  é  a  festa  da 
santa  noiíe  do  exame  ou  acções  dos  homens,  es- 

(1)  Esta  obra  foi  recentemente  traduzida  etn  froncez  por  Karl 
Hillebrand. 


criptas  pelos  anjos  para  serem  apresentadas  no 
tribunal  divino. 

O  mez  santo  de  ramadan,  e  nono,  é  de  um  je- 
jum rigoroso,  e  não  comem  nem  bebem  senão 
depois  do  sol  posto.  Na  tarde  e  véspera  do 
primeiro  dia  do  mez  seguinte,  schabal,  começam 
a  festejar  a  sua  paschoa  ou  o  grande  Bisrem. 

Em  2i  de  ramadan  festejam  a  noite  santa  da 
omnipotência  ou  revelação  de  mysterios  de  Deos 
a  Mafoma.  Em  16  de  schah  celebram  a  victoria 
ou  a  batalha  de  Gud,  dada  por  Mahomet  á  sua 
própria  tribu.  A  20  á&scahal,  noite  santa  e  festa 
da  partição  da  lua  por  Mafoma,  a  que  se  atlribue 
o  intitular-se  o  gram  sultão  senhor  de  meia  lua. 
O  mez  de  dul-kaden  é  mez  de  descanso,  e  o  se- 
guinte (lul-kaden  segundo  é  o  das  peregrinações; 
pois  creèm  que  n^eile  foi  determinada  por  Abra- 
ham  a  peregrinação  de  Ismael  e  de  Agar,  pelo 
que  se  denominam  como  descendentes  de  Agar, 
agarenos,  e  de  Sara,  sarracenos.  No  dia  8  doeste 
mez  celebram  a  festa  da  apparição  de  Deos  ao 
prophela. 

OS  PHILO-PORTUGUEZES. 

POR  INNOGENCIO  F.  DA  SILVA. 

IV 

(Conclusão) 

Havendo  de  pôr  termo  por  agora  a  estes  apon- 
tamentos, falta-nos  para  cumprir  oproraettido  com- 
memorar  ainda  dous  distinctos  philologos  ingle- 
zes,  cujo  olfato  senão  perturbava  com  o  bolor  dos 
nossos  clássicos,  e  que  no  estudo  da  antiga  litte- 
ratura portugueza  viam  e  admiravam  alguma  coisa 
mais  que  as  algaravias  mysticas  dos  frades  eston- 
teados, de  que  com  tamanha  irrisão  mofam  e  des- 
denham estes  nossos  modernos  innovadores  por 
excellencia,  sublimes  alvitristas  âas,  praias  do  fu- 
turo, para  as  quaes  se  encaminham  geifosamente, 
inspirados,  ou  antes  conduzidos 

«De  alguma  mão  feita  d'amor  e  luz, 
'A  revolver'  lá  dentro  em  si  nma  ideia, 
«Que  alfim  luza  também  no  nosso  fundo  I!  {') 

Fatiaremos  pois  de  Lord  Strangford  e  de  sir  J. 
Adamson. 

O  primeiro,  não  menos  insigne  na  carreira  di- 
plomática que  o  seu  compatriota  Stuart,  nasceu  na 
Irlanda,  segundo  se  dizem  1780.  Tendo  sido  se- 
cretario da  Legação  britannica  em  Lisboa,  foi  no- 
meado ministro  plenipotenciário  perante  el-rei  D. 
João  VI,  a  quem,  na  qualidade  ainda  de  príncipe 
regente,  acompanhou  para  o  Brazilem  1807.  Ten- 
do servido  na  corte  do  Rio  de  Janeiro  durante  al- 
guns annos,  passou  depois  a  exercer  eguaes  func- 
ções  nas  de  Stockolmo,  Constantinopla  e  S.  Peters- 
burgo,  vindo  emfima  fallecerna  sua  casa  de  Has- 
tey  Street  em  anno  que  ignoramos. 

Possuía  excellenle  bibliotheca,  em  que  avulta- 
vam os  livros  portuguezes:  e  como  prova  de  appli- 
cação  e  do  apreço  que  fazia  de  nossas  letras  pu- 
blicou: Poems  from  the  portuguese  of  Luis  de  Ca^ 
moçns:  with  remarks  on  liis  Life  and  Writings^ 
notes,  etc,  etc.  The  second  edition.  London  1804. 

(*)  Vid  Odes  vioderme, 


88 


O  PANORAMA 


12.°  gr.  de  160  pag.  — E  apezar  de  que  esta  ver- 
são haja  sido  julgada  com  pouco  favor  por  alguns 
crilicGS  inglezes,"é  comtudo  estimada,  c  tem  lido 
varias  reimpressões. 

Deve-seainda  aoillustre  diplomata  a  publicação 
de  um  dociimenio  notável,  e  de  maior  importância 
para  a  historia  de  Inglaterra.  Existia  entre  osma- 
Duscriptos  do  cartório  do  mosteiro  de  Alcobaça, 
onde  fazia  parte  do  códice  n.°  473,  um  dos  que 
hoje  se  reputam  infelizmente  extraviados.  Lord 
Strangford,  havendo  solicitado  e  obtido  copia  d'esse 
documento,  o  fez  imprimir  com  o  titulo  seguinte: 
Lettre  í/'í//?  (/endlliommc  jwrlugais  à  nu  de  ses 
amis  de  Lishonne  sur  iexecution  d'Anne  Bolem, 
Lord  Rochford.Brereton,  i\orn's,Smeltonet  Wes- 
ton:  publiée  pou  r  la  prirn  icrefois  avec  une  traduclion 
françaisc  par  F.  Michel,  accompafjnée  d\ine  Ira- 
duclwn  auglaise  parle  \icomie  Strangford.  Paris, 
chez  Silvestre  1832,  4.°  —  Nitidamente  impresso, 
em  Ires  columnas,  contendo  o  texto  portuguez,  e 
as  duas  accusadas  versões  francezaeingleza.  Consta 
que  se  tiraram  unicamente  vinte  e  seis  exempla- 
res. Veja  quem  quizer  o  mais  que  a  propósito 
d'esla  raríssima  edição  dizemos  em  o  nosso  i?/cf/o- 
nario  Bihliographieo  Portuguez,  tomo  V,  pag.  181. 

De  João  Ádamson,  nascido  em  Gateshead  a  13 
de  setembro  de  1787,  e  fallecido  a  27  de  egual 
mez  em  18oo,  muito  haveria  que  dizer,  se  o  es- 
paço nol-o  permittisse;  porém  tendo  de  nos  res- 
tringirmos n'estas  poucas  linhas,  rcmetteremos  o 
leitor  curioso  para  o  Diário  do  Governo  n."  03  de 
Í4  de  março  de  1856,  onde  achará  traduzida  uma 
biographia*d'esse  conspícuo  litterato:  ou  para  o 
tomo  I  da  novíssima  e  completa  edição  das  Obras 
de  Camões,  dada  á  luz  pelo  sr.  Visconde  de  Juro- 
menha,  que  de  pag.  277  a  280  dá  a  respeito  do 
mesmo  uma  noticia  assas  circunstanciada. 

Da  sua  particular  predilecção  pela  litteratura 
clássica  portugueza,  e  das  riquezas  que  n'esse  gé- 
nero possuía,  é  prova  sobeja  o  volume  que  im- 
primiu c  distribuiu  particularmente  aos  seus  ami- 
gos, com  o  titulo:  Bihliotiieca  Lusitana  or  Ca- 
talogue of  Books  and  Tracts,  relating  to  lhe  líis- 
torg,  Literature,  and  Poetry  of  Portugal:  for- 
mtng  part  oft/ie  Library  ofJolin  Adamson,  etc.  etc. 
NeNVcastle  on  Tyne  18'36.  8.°  de  lio  pag.  — Ahi 
se  com  prebende  a  mais  ampla  collecção  que  até 
áfjuellc  tempo  se  havia  reunido  das  obras  e  edi- 
ções de  Camões,  passante  de  cento  e  vinte  volumes. 

Publicou  também:  JJ.  Ignez  de  Castro,  a  Tra- 
gcdy  from  tlie  Portuguese  of  Nicola  Luis,  with 
remar  s  on  thellistorg  of  thal  infortunale  Ladij, 
bg  John  Adamson.  Newcastlc,  1808. 

Memors  of  the  Life  and  Writing  of  Luis  de 
Camoens,  bg  John  Adamson.  Edinbourg  and  Ncw- 
caslle  1820.  8.°  2  volum<'S  com  retratos. 

Lusitânia  illusírata:  Noliccs  on  lhe  Jíislorg, 
Antifjuities,  Literature,  etc.  of  Portugal.  Lite- 
rorij  Department.  Part.  J.  Seleclion  of  Sonnets, 
with  bioíjraphicalSketrhes  of  the  Auíhors,  bi/John 
Adamson.  Newcastle  18í2.  8."  de  Ml— lOi)  pag. 
Lusitânia  illustrata  etc.  Pai-t  U.  Minstrelhj. 
Ibi,  1846,  8  .«  de  XVII— 54  pag. 


Todas  estas  obras  gosam  de  geral  estimação;  ^ 
como  os  exemplares  apenas  de  longe  em  longe,  ^ 
só  casualmente  se  deparam  no  mercado,  quando 
algum  apparece  acha  logo  compradores  que  o  dis- 
putam entre  si,  pagando-o  por  elevado  preço. 

EiiQ  ignorado  cani o  de  terra,  a  que  ainda  se  cha- 
ma Portugal,  composto  só  de  pequenos  homens 
e  de  pequenas  cousas  (na  phrase  dos  modernos  vi- 
dentes que  vem  trazer-nos  a  luz!)  leve  sempre  en- 
tre os  estranhos,  e  tem  ainda  hoje,  quem  o  preze 
e  admire  mais  vantajosamente  que  certos  nacionaes. 
Colligimos  n'outro  tempo,  e  chegámos  a  adiantar 
um  extenso  Catalogo  bibliographico  e  critico  das 
obras  escriptas  e  publicadas  por  auctores  estran- 
geiros acerca  de  Portugal  e  de  suas  cousas;  tra- 
balho que  bem  quízeramos  offerecer  aos  nossos  il- 
lustres  sábios,  como  prova  do  que  dizemos,  se  as 
circunstancias  nos  favorecessem  para  complelal-o 
e  imprimil-o.  Como  pouca  ou  nenhuma  esperança 
nos  resta  de  que  tal  desejo  se  converta  em  reali- 
dade, fique  embora  para  ser  por  nossa  morte,  com 
outras  similhantes  minudencias,  mais  utilmente 
aproveitado  em  alguma  tenda  no  embrulho  dos 
adubos! 


SAUDADES 

Que  pela  face  a  lagrima  resvale 

A  quem  no  exílio  geme. 

J.    DE   DeOS. 

Quando  a  noute  desdobra  o  estreitado  manto, 
e  emcima  da  monlanha  a  lua  pallideja, 
o  génio  da  saudade  em  torno  a  mim  adeja, 
silencioso  então  dos  olhos  cáe-me  o  pranto; 

o  espirito  revoa  ás  noites  do  passado, 

e  do  passado  evoca  os  l)rilhos  e  os  fulgores: 

lá,  fosse  dia  ou  noite,  em  tudo,  em  tudo  amores, 

amor— dizia  a  lua,  amor— o  sot  dourado. 

A  lua!— ella  bem  sabe  os  cânticos  e  harpejos 
que  eu  soltava  ao  clarão  dos  mil  celestes  lumes; 
ella  liem  sabe  ainda  os  risos  e  os  perfumes 
que  a  minha  flor  me  dava  em  troca  de  meus  bejos. 

Que  noites!  que  prazer!  que  sonhos!  que  ventura! 
que  aureola  deslumbrante  então  nos  envolvia! 
N'aquella  doce  voz  que  incanlosl  que  magia! 
N'aquelle  terno  olhar  que  luz  suave  e  pura! 


í,Recordas-te  de  quando  a  lua  fascinante 
cheia  de  luz  surgiu  da  serra  na  clareira? 
e  uma  nuvem  surgiu  também,  lenue,  ligeira, 
a  lua  sombreou,  se  desfez  n'ura  instante? 

Oh!  lembras,  sim,  que  então  um  intimo  receio 
o  seio  te  agitou,  lurl)ou-te  um  pouco  a  face; 
mas,  quando  a  nuvem  ténue  se  esvaeceu  fugace, 
teu  rosto  serenou,  calmo  ficou  teu  seio. 

E  a  lua  proseguiu,  cortando  a  immensidade, 
c  a  lua  inda  hoje  brilha,  c  segue  o  mesmo  trilho; 
mas,  alil  quanto  é  mais  trisle  e  pallido  o  seu  brilho, 
visto  assim  através  do  pranto  da  saudade! 

Vizcu,  outubro  de  (ió. 

Cândido  Figueiredo. 


Typ.  Franco-Portugucza.  -  Bua  do  Thesouro  Velho,  6. 


12 


o  PANORAMA 


89 


'Mm? 


WILLIAM  PITT  CONDR  DE  CHATÍÍAM 

Por  riNHKiaO  CHAGAS. 

O  lalenlo  é  ás  vezes  hereditário.  Parece  (jue 
muitas  vezes  o  génio  se  vincula  n'unia  familia,  e 
passa,  como  um  legado  santo,  de  pais  a  filhos.  Rara- 
mente comludo  deixa  de  acontecer  que  ura  dos  vul- 


tos d'cssa  tribu  de  homens  notáveis  se  eleve  tanto 
acima  dos  outros,  (juc brilhe  umd'elles  com  tama- 
nho esplendor  que  as  outras  liguras  liquem  sumi- 
das na  sombra,  e  apenas  recebam  um  reflexo  da 
luz  que  dimana  do  astro  principal.  Bernardo  Tasso, 
o  pai  do  cantor  da  Jmmlem  Libertada,  seria  um 


90 


O  PANORAMA 


poeta  dislinclo,  se  o  vale  deGodofiedonãoolizessG 
entrar  na  classe  secundaria  dos  salelliles.  Napo- 
leão 111  seria  talvez  considerado  como  um  grande 
homem,  se  a  figura  magestosa  de  Napoleão  I 
soflresse  confrontos.  Augusto  ainda  avultaria  mais 
na  historia  se  o  acaso  o  não  fizesse  sobrinho  de 
César. 

Não  acontece  assim  com  o  vullo,  cuja  biogra- 
phia  vamos  esboçar  rapidamente.  Wiiliam  Pill 
conde  de  Chalham,  foi  pai  do  outro  celebre  AVilliam 
Pilt,  conhecido  pelas  suas  grandes  qualidades  de 
estadista,  e  pela  energia  com  que  susienlou  uma 
guerra  implacável  contra  Napoleão.  Para  o  dis- 
tinguirem d'elledão  os  biograplios  ao  primeiro  Pitl 
a  qualiíicação  de  Pitt  o  antigo,  mas  uão  ousam 
decidir  qual  dY^fes  deu  mais  i Ilustração  á  sua  fa- 
milia,  mais  gloria  á  sua  pátria. 

filho  de  um  lidalgote,  que  dissipara  a  muita 
riqueza  da  sua  casa,  Wiiliam  Pitt  vio-se  obrigado 
a  comprar  uma  pateníc  de  alferes  de  cavallaria, 
atim  de  poder  viver  com  a  decência  indispensá- 
vel a  um  membro  da  alia  aristocracia  ingleza.  Não 
convinha  porém  nem  á  sua  Índole  nem  ásua  saúde 
a  vida  militar.  Uma  doença  grave  inlerrompeu- 
Ihe  a  carreira;  ea  leitura  dos  grandes  historiado- 
res e  políticos  da  antiguidade,  abrindo  um  novo 
horisonte  á  sua  intelligencia,  revelou-lhe  a  sua 
vocação  de  estadista.  Ouando  melhorou,  íez  todos 
os  esforços  para  ser  eleito  deputado,  e  conseguiu 
entrar  na  camará  dos  Communs,  como  represen- 
tante de  um  burgo,  que  fazia  parte  do  fraquíssimo 
resto  dos  seus  domínios  hereditários. 

Logo  revelou  a  eloquência,  que  lhe  devia  dar 
tanto  nome.  Alistou-sc  nas  íileiras  da  opposição, 
e  guerreou  sir  Roberto  Walpole,  cuja  administra- 
ção perdulária  lhe  desagradava.  O  rei  Jorge  II  e 
o  príncipe  de  Galles  andavam  iressa  occasião  dis- 
sidentes um  do  outro.  Pitl  defendeu,  n'um  brilhan- 
tíssimo discurso;  o  herdeiro  da  coroa,  que,  no- 
meando-o  gcntil-homem  da  sua  camará  lhe  attra- 
hio  as  perseguições  do  ministério,  e  com  a  per- 
seguição a  popularidade. 

Tal  foi  essa  i)oj)ularidadc  que  muitas  pessoas 
opulentas,  enlre  outras  a  duqueza  de  Marlbourogh, 
lhe  deixaram  legados  importantes  paia  recompen- 
sarem o  seu  patriotismo. 

Andava  então  accesaa  guerra  entre  a  Inglaterra 
e  aPrança.  Não  eram  felizes  as  armas  britannicas, 
e  o  rei,  vendo  despopularisado  o  seu  ministério, 
viu-se  obrigado  em  17,'3G  a  chamar  ao  poder  o  du- 
que de  New-caslle,  e  com  elle  Pitt,  a  quem  confiou 
a  pasta  dos  negócios  da  guerra. 

A  energia  indomável,  quecaracterisava  o  cele- 
bre minislro,*revelou-se  logo  no  modo  como  di- 
rigioe activou  ospn'paralivos,organisando  a  milícia 
nacional,  e  projectando  um  desembar(|ue  nas  praias 
francezas.  Não  o  ajudava  muito  el-rei,  movi- 
do pelo  antigo  rancor;  Pitt,  irrílavel  em  extre- 
mo, demíllia-se;  forçado  pela  opinião  publica,  via- 
sede  novo  .lorge  II  obrigado  a  chamal-o  ao  minisle- 
rio.  Assim  andou  n'eslas  alternativas,  mas  entie- 
tanto  a  França  ia  perdendo  assuas  mais  bellas  coló- 
nias, e,  graças  à  audaz  iniciativa  do  ministro  ínglez, 


via  a  Grã-liretanha  tremular  victoriosoo  seu  pen" 
dão  em  todos  os  mares,  e  eslender-se  cada  ve^ 
mais  o  immenso  território  das  suas  possessões  ul- 
tramarinas. 

Comtudo  Pilt  linha  defeitos  graves;  a  mais  leve 
conli-adicção  o  irritava,  e  n'esses  momentos  não 
respeitava  direito  das  gentes,  não  respeitava  coi- 
sa alguma.  Molou  difierentes  armistícios,  e  quiz 
uma  vez  aprisionar  a  esquadra  hespanhola  por 
que  suspeitava  que  a  llespanha  eslava  para 
se  alliar  com  a  França,  e  para  declarar  guerra  á 
Grã-lírelanha.  0|)poz-se  o  resto  do  ministério;  Pilt 
irritado  demilliu-se,  mas  teve  a  gloria  de  ver  dos 
bancos  da  opposição  os  acontecimentos  contirraarem 
as  suas   suspeitas. 

Doente  já,  orou  três  horas  na  camará  contra  um 
acto  ministerial,  foi  de  novo  chamado  ao  poder, 
nomeado  visconde  Burton,  conde  de  Chatham,  e 
membro  da  camará  dos  lords.  Voltava  moribundo 
á  camará  a  defender  os  seus  actos,  até  (|ue  uma 
vez,  querendo  responder  a  uma  interpcMação  do 
duque  de  liíclimond,  caio  desfallecido  na  sua  cadei-  i 
ra.Transporlaram-n'o,  para  casa  onde  morreu  n'esse  ' 
mesmo  dia,  17  de  abril  de  1778. 

A  nossa  gravura  representa  a  scena,  em  que 
a  nalureza  írahindo  a  energia  do  gi-ande  orador, 
lhe  cortou  a  palavra  no  meio  dos  seus  amigos  e 
adversários  políticos  igualmente  consternados.  A 
morte,  apparecendo  no  limiar  da  sala  das  sessões, 
c  riscando  o  nome  do  conde  de  Chatham  da  lista 
dos  vives,  congraçou  n'um  sósenlimenlo  doloroso 
os  homens,  havia  instantes,  divididos  entre  si  pelas 
mais  profundas  animadversõcs. 


O  TABACO 

É,  realmente,  obra  muito  ingiata  iratacar  um  cos- 
tume degenerado  em  paixão,  e  que  domina  por 
toda  a  parte.  Não  receiamos,  porem,  lornarmo-nos 
aqui  o  echo  de  algumas  vozes  authorisadas,  que 
de  tempos  a  tempos  se  levantam,  jiara  advogar  a 
causa  da  verdade  e  do  bom  senso;  cremos  até  pra- 
ticar um  acto  de  bom  cidadão  reproduzindo  algu- 
mas das  considerações  pelas  (juaes  o  doutor  Jolly, 
membro  da  Academia  de  medecina  de  Paris,  Icn- 
lou  chamar  á  |)rudencia  os  fumadores  de  todas  as 
idades  e  condições  Os  estudos  hif/ijenicos  e  médi- 
cos sobre  o  /í/6r/('o,  publicados  pelo  erudito  doutor 
em  um  compendio  de  hygiene,  despertaram  a  al- 
lenção  geral.  Foram  examinados  pela  Academia 
de  medecina  e  merecem  ser  lidos  e  meditados  por 
todos. 

A  im|)orlação  do  tabaco  na  Kuropa  dala  dos 
annos  de  liJlS.  Parece  (pie  c  devida  a  um  missio- 
nário hespanhol,  Fra  Homano  Pone,  companheiro  de 
viagem  de  (Jiristovão  Colombo,  o  (|ual  teve  a  idèa 
de  enviar  a  Carlos  V  a  semente  do  tabaco,  depois 
de  haver  observado  entre  os  sacerdotes  do  Deos 
Kiwasa  os  elleitos  da  embriaguez  j)roduzida  pelas 
folhas  d'esta  plinia  acre  e  venenosa. 

Data  d'esla  epocha  a  cultura  do  tabaco  na  Ku- 
ropa. O  governo  hespanhol  não  tardou  acullival-o 


o  PANORAMA 


9' 


em  grande  escala  na  ilha  de.  Cuba,  e  nós,  os 
porlugiiezes,  seguimos  este  exemplo  no  ]}razil.  O 
cardeal  de  Sanla  Cniz,  núncio  do  papa  ein  Portu- 
gal, importou  o  Iribaco  na  Itália,  o  que  IVz  darem 
principio  á  planta  o  nome  de  lierva  de  Santa  Cruz. 
Emlim,  em  loIiO,  João  Nicot,  embaixador  de  França 
em  Lisboa,  que  linha  em  si  i)roprio  experimen- 
tado o  pó  do  tabaco  contra  a  enxaqueca,  olVereceu-o 
á  rainha  Cathai'ina  de  Médicis,  e  assim  o  tornou 
conhecido  em  França,  sob  a  forma  de  tabaco  de 
cheiro.  Foi  isto  que  fez  dizer  que  o  tabaco, 
depois  de  ler  viajado  por  mar  e  por  terra,  em  toda 
a  Europa,  dera  eulrada  em  França  pela  estrada 
do  nariz. 

A  rainha  Calharina  e  seu  filho  Francisco  II  sof- 
friam  ambos  de  uma  pertinaz  enxaqueca;  por  con- 
seguinte, o  novo  remédio  teve  o  mais  favorável 
acolhimento.  Mas  a  historia  não  diz  se  elle  se  mos- 
trou eílicaz.  Em  todo  o  caso,  se  o  tabaco  curou  as 
enxaquecas  d'aquella  epocha,  c  forçoso  confessar 
que  d'então  para  cá  tem  perdido  muito  da  sua  vir- 
tude, 

O  tabaco  de  cheiro  correu  rapidamente  por  to- 
das as  classes  da  sociedade,  como  todas  as  mo- 
das absurdas  e  excêntricas. 

Longe  de  enfraquecer  com  o  tempo,  o  seu  uso 
desenvolveu-se  como  uma  verdadeira  epidemia.  Nos 
reinados  deLuiz  Xill  c  Luiz XIV,  era  quasida  eti- 
queta apresentarem-se  os  nobres  na  corte,  de  rapa- 
doura  na  mão,  io/l!'ò-sal|)icados  de  tabaco,  nariz  atu- 
lhado d'aquelle  pó  negro  e  os  vestidos  perfumados 
com  o  seu  cheiro.  As  rapadouras  cederam  o  logar 
ás  caixas,  quando  a  industria  achou  o  meio  de 
pulverisar  o  tabaco  de  um  modo  mais  completo, 
e  crè-se  que  o  uso  das  rapadouras  o  tabaqueiras 
tem  enormemente  contribuído  a  propagar  o  em- 
prego do  tabaco  de  cheiro. 

Muitos  médicos  se  pronunciaram  contra  o  abuso 
d'esta  planta  exótica.  Fagon,  que  mais  tarde  foi 
elevado  a  primeiro  medico  deLuizXÍV,  estreiou-se 
por  uma  thésc  brilhante  contra  o  tabaco.  Desgra- 
çadamente, esta  opposição  não  suspendeu  os  pro- 
gressos do  mal.  Veio  depois  a  Igreja,  mas  também 
nada  conseguiu.  Uma  bulia  do  papa  Urbano  Víll 
excommungava  lodosos  que  tomassem  tabaco  den- 
tro das  igrejas.  Esta  ameaça  não  sullbcouo  desejo. 

0  sultão  Mahomet  IV  prohibiu  o  tabaco  sob  pena 
de  morte.  O  grão-Duque  de  Moscovia,  Miguel  Fe- 
derovitz,  mandava  enforcar  os  tomadores!  Um  rei 
da  Pérsia  mandava-lhes  cortar  o  nariz ! 

O  tabaco,  porém,  saiu  viclorioso  de  todas  estas 
perseguições,  e  quando,  sob  os  reinados  deJacques 

1  de  Inglaterra  e  Christiano  IV  de  Dinamarca,  o 
castigo  se  limitava  apenas  a  muletas  pecuniárias, 
o  habito  do  tabaco  foi  olhado  como  um  privilegio 
dos  ricos! 

Mas  ainda  aqui  não  pára. O  cachimbo  já  em  uso  em 
toda  axVllemanha  enos  Estados  do  norte,  depressa 
deu  a  sua  entrada  triumphal  na  corte  de  França. 
Alli  foi  introduzido  pelo  celebre  João  Bart.  O 
exemplo  foi  logo  seguido  por  muita  gente.  Luiz 
XIV  surprehendeu  um  dia  suas  íilhas  fumando  ás 
escondidas!. 


O  exercito  de  teri-a  recebeu  o  cachimbo  das 
mãos  da  marinha.  O  uso  do  cachimbo  generalisou- 
se  durante  o  cerco  deMaestrich,  e  d'ahi  em  dian- 
te começaram  a  occupar-se  quasi  tanto  da  provi- 
são do  tabaco  como  da  dos  viveres.  Uonhecia-se 
perfeitamente  que  o  tabaco  enfraquecia  o  a|)petite 
e  retardava  a  digestão;  mas  era  uma  distracção 
para  os  soldados  no  acampamento. 

Hoje  seria  dilíicil  dar  a  rasão  porque  se  fuma. 
Grandes  e  pequenos  fumam,  como  se  come,  como 
se  bebe,  como  se  dorme.  Parece  que  o  tabaco  faz 
parte  da  nossa  existência.  Estranho  desvio!  Houve 
um  medico,  o  doutor  Demeaux,  que  ousou  propor  a 
introducção  oílicial  do  tabaco  nas  escolas,  como 
meio  de  moralisação  para  as  creanças !  ! 

Nada  mais  próprio  pôde  haver  para  dar  uma  idéa 
do  grande  desenvolvimento  que  oconsummo  do  ta- 
baco tem  lido  em  França,  do  que  a  inspecção  dos 
algarismos  que  representam  o  producto  annual  do 
imposto  liscal  d'esle  género. 

No  fim  do  século  passado,  o  tabaco  não  produ- 
zia ao  Ihesouro  mais  de  vinte  a  Irinla  milhões  de 
francos,  cujos  dois  terços  crain  altribuidos  ao  ta- 
baco de  cheiro,  eum  terço  unicamente  ao  defumo. 
Depois  de  1810,  anno  em  que  foi  restabelecido  o 
monopólio,  o  consummo  augmentou  rapidamente. 
Eis,  por  períodos  de  cinco  annos,  a  importância 
das  sommas  que,  durante  cincoenta  annos,  este 
svstema  tem  feito  entrar  nas  caixas  do  estado: 


1811  a  18i:j  .  .  . 

.  .  .  307:000:000 

18iG  a  1820  .  .  . 

.  .  .  311:000:000 

1821  a  182o  .  .  . 

.  .  .  327:000:000 

1826  a  1830  .   . 

.  .  .  336:000:000 

1831  a  1835  .  .  . 

.  .  .  350:000:000 

1836  a  18Í0  .  .  . 

.  .  .  431:000:000 

1841  a  1845  .  .  . 

.  .  .  522:000:000 

1846  a  1830  .  .  . 

.  .  .  589:000:000 

1831  a  1853  .  .  . 

.  .  .  696:000:000 

1856  a  1860  .  .  . 

.  .  .  892:000:000 

A  receita  de  1861  eleva-se  a  213  milhões.  Jun- 
tando esta  somma  ás  que  produziram  os  annos  de 
1811a  1860,enconlra-se  um  total  de  5000:000:000! 
E  esta  somma  não  representa  a  totalidade  dades- 
poza  feita  pelos  consummidores  de  tabaco.  Pode-se, 
sem  receio  de  erio,  accrescentar  2000:000:000 
proveniente  de  tabacos  e  charutos  entrados  em 
França,  utensílios  de  fumadores  e  tomadores,  per- 
centagens a,  pouco  mais  ou  menos,  36000  vende- 
dores. O  total  seria  de  7000:000:000! 

E  preciso  não  esquecer  que  o  decreto  de  19  de 
outubro  de  1860,  que  de  uma  vez  elevou  o  preço 
dos  tabacos  a  mais  25  por  100,  contribuiu  mui- 
to para  o  augmento  da  receita  n'estes  últimos  an- 
nos. Mas  estacircumstancia  pouco  influe  ainda  so- 
bre o  resultado  geral  da  comparação  que  tentamos 
estabelecer.  Yè-se,  pois,  que  o  redito  do  lisco,  que 
durante  a  epocha  comprehendida  entre  1811  a 
1835  era  apenas  de  1632:000.000,  eleva-se  repen- 
tinamente a  3130:000:000  nos  vinte  cinco  annos 
seguintes.  Como,  alem  disso,  as  estalislicas  da  admi- 
nistração provam  que  o  beneticio  do  thesouro  aug- 


92 


O  PANORAMA 


mentou  mais  depressa  do  que  a  receita  bruta,  pois 
que  as  despezas  que  absorviam,  em  1816.  iO  por 
10(1  da  receita  biuta,  não  excediam,  em  1860,  1i 
por  100,  compreliende-se  a  altenção  que  o  tisco 
deve  prestar  a  uma  fonte  de  receita  tão  abun- 
dante e  productiva.  Em  1861,  os  215  milliões  pro- 
duzitlos  pelo  imposto  do  tabaco,  formaram  um  quin- 
to do  rendimento  dos  impostos  c  contribuições  in- 
directas. O  que  distingue  sobre  tudo  o  imposto  do 
tabaco,  o  que  (az  com  que  o  governo  vigie 
sempre  para  que  seja  mantido  e  augmentado  o 
mais  possivel,  sejam  quaes  forem  os  inconvenien- 
tes e  os  perigos  reconhecidos  de  uma  droga  inútil  o 
morbosa.  é  que  a  sua  marcha  tem  sido  sempre  rápida 
e  imperturbavelmente  ascendente,  que  nada  o  faz 
parar,  nem  as  guerras,  nem  as  revoluções,  nem  as 
fomes,  nem  as  crises  commerciaes. 

Dá-se,  porem,  uma  cousa  muito  curiosa;  e  vem 
a  ser  que,  de  1832  em  diante,  o  consummo  do 
tabaco  de  cheiro  tem  consideravelmente  dimi- 
nuído. Em  1842,  a  terça  parle  das  receitas 
provinha  do  tabaco  de  cheiro;  em  1863  uma  sex- 
ta parle  somente.  Póde-se  aflirmar  lambem  que 
n"aquellas  províncias  onde  a  mortalidade  é  maior, 
o  tabaco  de  fumo  tem  muito  maior  extracção  do 
que  o  de  cheiro;  o  contrario  tem  lugar  n"aquellas 
em  que  a  mortalidade  é  menor. 

Segundo  M.  JoUy,  em  1860,  o  consummo  do 
tabaco  de  fumo.  foi,  nas  províncias  do  norte  da 
França,  de  l~l)o  grammas  por  cabeça;  de  1366 
grammas  no  Fas-de  Calais;  de  1178  grammas  no 
Allo-Rheno,  ele— No  meio-dia,  apenas  102  gram- 
mas em  Charente;  103  em  Tarn;  144  em  Lozé- 
re,  ele. 

Tomando  o  termo  médio,  M.  Jolly,  calcula  um 
consummo  annual  de  8  kilogrammasde  tabaco  por 
fumador;  o  que  talvez  seja  um  pouco  exagerado. 

Com  eíTeito,  as  estatísticas  da  administração  mos- 
tram que  o  consummo,  que  era  de  14  milhões  de 
kilogrammas  em  1816,  elevou-sc  a  20  em  1852, 
e  a  22  em  1860,  o  que  dá  um  resultado  de,  pouco 
mais  ou  menos,  800  grammas  por  cabeça.  Admitía- 
mos que,  em  38  milhões  de  habitantes,  haja  10  mi- 
lhões de  fumadores;  isso  daria  a  media  annual  de 
3  kilogrammas  por  cabeça.  Esta  cifra  deve  pare- 
cer enorme  se  se  attender  a  que  corresponde  a  um 
gaslo  de  30  a  36  francos  por  anno,  islo  é,  o  equi- 
valente a  dois  terços  do  gasto  individual  de  pão, 
cujo  consummo  se  eleva  á  media  de  3  por  bocca. 

Ouanlas  vezes  se  não  vè  o  obreiro,  reduzido  a 
optar  enliea  compra  do  |)ãoe  a  do  tabaco,  optando 
alinalpor  este  ultimo  1  Ouantos  fumadores  não  ex- 
cedem a  media  que  estabelecemos! 

Não  nos  occuparemos  do  quanto  cuslam  á  França 
os  vinte  mil  hectares  de  excellenles  terras  que  a 
cultuia  do  tabaco  rouba  á agricultura;  não  entrare- 
mos Ião  j)ouco  na  analysedas  coisas  mesquinhas  (|ue 
o  tabaco  tem  introduzido  nos  hábitos  da  sociedade 
e  nos  da  família;  limitar-nos-hemos,  apenas,  a  con- 
siderar*, com  M.  Jolly,  a  queslão  pelo  seu  lado 
hygienico. 

Parece  estabelecido,  pelas  eslalislicas  medicas, 
que  as  doenças  nervosas  augmenlam  em  uma  propor- 


ção espantosa:  as  doenças  mentaes,  as  paralysias  ge- 
raes  e  progressivas,  enfraquecimentos  do  cérebro  e 
da  medulla  espinhal,  emlim  certas  enfermidades 
cancerosas,  taes  como  os  cancros  dos  lábios  e  da 
língua,  parecem  caminhar  em  paiallelo  com  as 
rendas  do  Eslado  devidas  ao  imposto  do  tabaco. 
Ultima  coincidência  ajilicliva:  o  movimento  pro- 
gressivo da  ))opulação  jnira  ao  mesmo  tempo  que 
se  eleva  a  cifra  esmagadora  do  consummo  do  ta- 
baco! 

Estes  eíTeitos  manifestaram-se  depois  que  o  ha- 
bito de  fumar  supplantou  o  de  cheirar.  E  preciso  re- 
conhecer que  o  tabaco  de  cheiro,  embora  não  seja 
isento  de  perigo,  eslá,  comludo.  longe  de  prejudi- 
car a  saúde  geral,  como  o  cachimbo  e  o  charuto  a 
prejudicam.  Podc-se  allbulamenle  dizer  que  no 
dia  em  que  a  humanidade  começou  a  fumar,  co- 
meçou a  envenenar-se. 

ÉITeclivamenle,  será  ainda  objecto  de  duvida  a 
natureza  venenosa  do  tabaco,  quando  está  reco- 
nhecido que  as  folhas  d'esta  planta  conleem  2  a 
7  por  100  de  nicotina,  (1)  um  dos  mais  terríveis  ve- 
nenos vegelaes,  que  a  therapeulica  baniu  do  seu 
quadro,  e  que  só  o  crime  poude  escolher  para 
cumprir  atrozes  projectos?  O  óleo  essencial  de 
tabaco,  muito  rico  em  nicotina  é  lambem  um  ve- 
neno fulminante:  algumas  gotas  bastam  para  dar 
a  morte.  Uma  simples  infusão  de  folhas  de  ta- 
baco, tomada  em  crysteis,  matou  um  doente. '()  ce- 
lebre poeta  Sanleuíl  foi  formalmente  atacado  depois 
de  um  grande  banquete  a  (jue  assistiu,  por  ler 
bebido  um  copode  vinhodellespanha,  no  qual  um 
dos  convivas  tinha  deitado  o  rapé  que  se  continha 
na  sua  tabaqueira.  Toda  a  companliia  riu  d'esta 
engraçada  travessura,  excepto  o  jjobi-e  [)oeta  que 
d'ella  morreu!  A  simples  applicação  de  folhas  seccas 
de  tabaco  sobre  a  pelle  é  suflicíenle  para  produzir 
gravíssimos  accídenles. 

Tudo  isto  é,  sem  duvida,  conhecido;  só,  por  uma 
estranha  cegueira,  se  não  quer  comprehender  que 
uma  substancia  tão  perigosa  seja  oflensíva,  quan- 
do consummida  em  pequenas  doses,  mas  de  uma 
maneira  regular  e  constante. 

Os  tabacos  não  lecm  todos  a  mesma  força, 
pela  razão  da  sua  desigual  riqueza  de  nicotina: 
os  tabacos,  que  conleem  pouca,  são  muito  me- 
nos prejudiciaes  á  saúde  do  (|ue  os  tabacos  fran- 
cezes  que  conleem  7  por  cento  e  mais,  d'aquelle 
veneno,  segundo  as  averiguações  dos  chimicos 
Henry,  Barrai,  Schloesíng,  e  outros. 

Cunlinua. 


A  obrigação  do  Príncipe  he  lutar  com  este  gi- 
gante, que  c  o  impossível  de  trazer  a  lodos  con- 
tentes; e  para  isso  ha  de  ser  Protèo  e  Achelóo, 
que  se  transforme  em  leão  e  cm  cordeiro,  que  se 
vista  humas  vezes  das  propriedades  de  fogo,  c  outras 
das  de  agua. 

P.\DRE  Amónio  Vieira. 

(1)  Os  tabacos  iJo  Brasil  e  da  Havana  contcnin  apenas  2  por 
100  de  nicotina,  o  da  Alsacia  3  por  100,  do  Kentuclcy  6,  os  de 
Virginia  de  Lol-cl-Garonne,  etc,  mais  de  7  por  cenlo.  Os  taba- 
cos do  Levante  conleem  inui   pouca. 


o  PANORAMA 


93 


ESCOLA  MILITAR  DE  WOOLWIGll 

A  cidade  ingleza,  onde  existe  a  escola  militar, 
que  a  nossa  gravura  representa,  faz  parte  do  con- 
dado de  Kent.  Construída  nas  margens  do  Tamisa, 
conta  25:000  habitantes,  mas  nem  é  á  sua  popu- 
lação nem  á  sua  grandeza  que  deve  a  sua  muita 
importância.  Esta  importância  provém-llie  toda  de 
possuir  dentro  dos  seus  muros  o  mais  vasto  e  o 


mais  opulento  arsenal  da  Inglaterra.  Além  de  im' 
mensos  quartéis  encontram-se  alli  todos  os  estabe- 
lecimentos necessários  ao  serviço  de  arlilheria*» 
immensas  oílicinas,  onde  se  fabricam  espingardas, 
canhões,  etc. ;  vastos  depósitos  d'armas,  projectis 
e  munições  de  toda  a  espécie,  tanto  para  os  exér- 
citos de  terra  como  para  os  exércitos  do  mar.  Em 
parle  nenhuma  do  mundo  se  encontram  essas  coi- 
sas em  tão  prodigiosa  quantidade.  A  opulentíssima 


Inglaterra  não  poupou  o  dinheiro,  que  as  suas  vas- 
tas possessões,  o  seu  desenvolvidíssimo  commercio 
Ihegrangeíam  para  se  abastecer  exuberantemente 
de  tudo  quanto  d'um  para  outro  momento  se  pôde 
tornar  necessário  á  defeza  do  seu  território,  ou  dos 
seus  interesses,  ou  à  sustentação  da  sua  intluencia  na 
política  européa.  Para  se  fazer  idéa  dos  recursos 
de  que  dispõem  as  tropas  inglezas,  eque  estão  em 
grande  parte  accumulados  em  Woolwich,  bastará 
dizermos  que  havia  nos  arsenaes  d'esta  cidade  em 
1849,  vinte  e  quatro  mil  peças  d'artílheria,  e  mais 
de  quatro  milhões  de  balas  para  serviço  d'essas 
peças. 

  numerosa  marinha  britannica  lambem  dispõe 
em  Woolwich  de  vastos  editicios.  Alli  ha  estaleiros 
para  a  conslrucção  de  navios  de  guerra,  cordoarias, 
emlim,  todos  os  estabelecimentos  necessários  j)ara 
a  conslrucção  e  equipamento  d'essas  immensas 
frotas,  que  vão  tremular  em  todos  os  mares  do 
globo  o  audaz  pendão  do  leopardo,  e  que  impõem 
a  lodos  os  povos  o  respeito  do  nome  e  da  nacio- 
nalidade da  Grã-Bretanha. 

Mesmo  em  tempo  de  paz,  trabalham  diariamente 
em  Woolwich  Ires  a  quatro  mil  operários. 


A  escola  militar,  que  a  nossa  gravura  apresenta, 
é  uma  escola  especial  d'artilheria.  O  numero  dos 
seus  discípulos  está  fixado  em  oitenta. 


A    GALATEA   MODERNA 

Por  A.  OSÓRIO  DE  VASCONCELLOS 

Y 

Alfredo  de  Mello  a  António  Alvares 

Meu  caro  amigo. — A  minha  doença  ainda  não 
fez  crise.  O  estado  pathologíco,  como  dizem  os  mé- 
dicos materialistas  da  época,  prosegue  sem  altera- 
ção. Mas  se  o  coração,  considerado  como  víscera 
importante  do  organismo,  pulsa  regularmente,  olha- 
do como  sede  do  sentimento,  continua  no  seu  an- 
ceiar  j)or  esperanças  illusorías,  descortinando  ao 
longe,  em  paragens  distantes,  um  pallido  alvore- 
cer de  nova  vida  e  gosos  novos. 

E  comtudo  o  repouso  é  agora  relativamenle  nor- 
mal, comparado  com  as  estranhesasdo  principio. 
Da  lua  ultima  carta  conclui,  não  sem  um  sorriso 
de  commíseração,  que  muitotearreceiavasdo  meu 
natural  pendor  para  aventuras  romanescas.  Dizes 
que  devo  de  ser  cauteloso,   evitando  tentações  de 


94 


O  PANORAMA 


feiticeira,  que  almeja  mais  vastos  horisontes  para 
o  seu  voltear  trefe^^o  e  vertiginoso. 

Tensa  bondade  de  me  chamar  crearica,  que  se 
deixa  enganar  com  ouropéis  e  íallacias,  que  os 
meus  ouvidos  transformam  em  quebros  melodiosos 
de  rouxinol. 

Acrescentas  que  os  meus  vinte  quatro  annos  fo- 
ram gastos  em  ler  romances,  os  quacs  lançaram  no 
meu  coração,  já  perfeitamente  pi-eparado,  as  se- 
mentes d'essa  poesia  ruim,  que  enleia  o  homem, 
enlibia-o,  mostia-lhe  o  mundo  cheio  de  vicios  e 
torpezas,  enche-lhe  a  solidão  de  alTeclos  e  prazeres, 
e  a  linal  arrasta-o  fatalmente   ao  tumulo. 

Continuas  ainda,  e  cada  vez 'em  tom  mais  stri- 
dulo,  que  a  harmonia  esta  no  trabalho,  e  fora  d'elle 
o  ranger  dos  condemnados;  que  a  vida  contem- 
plativa exacerba  a  doença,  e  conduz  a  alma  ao 
sceplicismo  e  extasis  religiosos,  apanágio  de  faná- 
ticos, ou  ao  idiotismo  simples,  o  que  é  pertença 
de  Rilhafoles. 

Atinai,  e  por  encurtar  mais  rasões  e  periphra- 
sessomnolentas,aconselhas-meciuesaiadaqui,  does- 
te cantinho  do  mundo,  cujo  maior  crime  é,  na  lua 
opinião,  o  ser  tão  retirado,  que  nem  mesmo  me- 
receu as  honras  de  apparecer  na  carta  de  Portugal. 
Não  sei  se  devo  tomar  a   serio   este  kyrie  de 
conselhos,  que  parecem  de  homem  assisado,  grave, 
amaneirado  e  de  muito  juizo  e  consciência  como 
não  devias  de  sei',  porque  nunca  subiste  ao  capi- 
tólio de  S.  Bento,  nunca  y^Pí/ /ó/f  a  palavra,   nem 
eícreveste   ?rtigo  de    fundo;  es   immaculado  de 
todas  as  artimanhas  politicas  e  sociaes,  vives  no 
teu  cenóbio,  gosando  os  prazeres  austeros  e  sacro- 
sanlos  da  sciencia,  adoras  oXgiganleo  do  univer- 
so, contemplas  e  observas  de  noite,  quando  o  mur- 
murar dos  homens  emmudece,  as,  estreitas,  que 
sulcam  ethereas  ondas.  Pois  quel  És  tu,   em  ver- 
dade, o  auclor  da  carta,  que  recebi?  Foste  tu  quem 
escreveu  tantas  necedades  em  tão  pouco  papel?  Las- 
timo-te,  do  fundo  d'alma.  Lastimo-te  e  abjurar-te- 
bia,  se  o  erro  não  fosse  do  homem.  Ah!  meu  amigo, 
quem  me  dera  arcar  com  os  perigos,  que  tu  estas 
antevendo  com  tanta  perspicácia,  e  de  que  queres 
arredar-me...  com  tanta  rudeza!  Prouvera  a  J)eus 
que  eu    visse    a   meus  pes,  hianle,  explendido, 
fascinador,  esse  abysmo,  que  te  alemorisa.  Pjou- 
vera  a  Deus,  que  me  arrojara   lá,    ao   seio  das 
ondas,  corpo  a  corpo  com  a  sereia  mádida.  Co- 
mo  ella   havia   de  embalar-mc   nos  seus  braços 
voUi|)tuosos  ao  sabor  das  vagas  indolentes,  can- 
tando-nu;  toadas   maviosas!    (^omo   ella   havia  de 
allumiar  as  trevas  da  noite  com  o  fub^or  dos  seus 
olhos,  e  mostrar-me  as  mil  pedrarias,  as  columnas 
adamantinas,  os  frisos  de  amethysta,  as  (>mpenas 
de  esmeraldaseonyx,  as  laçarias  de  topázio  e  cris 
tal.  os  rendilhados  phantasiosos,  as  maravilhas  in- 
tiuitas  do  seu  palácio  encantado!  K  depois,  (juando 
farto  já  de  tanta  opulência  e  a  sereia  me  dcscerras- 
seas  portasdo  gyneceu  explendido,  como  havia  de 
reclinar  a  cabeça  no  seio  d'ella,  e  ouvir-Ihe  o  co- 
ração a  palpitar,  até  que  a  morte  me  arrebatasse 
no  meio  d'a(iuelle  somno  de  amor! 
Chegando  a  este  ponto  da  caria,  a  lua  zanga  to- 


cou as  raias  do  licito,  e  vomitas  impropérios  c 
pragas  capazes  de  me  soterrarem  nas  mais  intimas 
profundezas  do  inferno. 

— Sè  maldicto,  ires  vezes  maldicto,  bradarás 
n"um  rapto  de  desespero  e  raiva.  Corres  á  perdi- 
ção, e  debalde  te  esconjuro. 

Escusas  de  erguera  cabeça  da  tua  retorta,  6  meu 
pobre  amigo.  Não  é  mister  que  arredes  os  olhos 
dos  astros,  que  brilham  no  tirmamenlo,  como  Iam- 
padarios  longínquos  na  cupola  do  grande  templo. 

Podes  seguir  com  a  vista  a  lua  melancólica  en- 
volta em  veu  de  Ihama  e  que,  segundo  a  formosa 
imagem  de  uma  poetisa  franceza,  parece  hóstia 
alevanlada  por  antistite  invisível  no  tabernáculo 
do  universo.  O  leu  amigo,  o  que  le  escreve  esta 
carta,  •■  puro  e  immaculado  de  todas  as  torpezas  c 
voluptuosidades  pagãs  Não  o  tentam  sereias  com 
os  seus  cantares  maviosos.  As  Messalinas  em  vão 
se  envolvem  nas  suas  roupagens  vaporosas  e  pin- 
tam o  lindo  roslo  com  mil  cosméticos  da  Arábia. 

Debalde  entoam  hymnosanacreonlicos  os  escra- 
vos que  tangem  lyras  em  volta  do  Iriclinio  dou- 
rado. É  tudo  em  vão,  bem  devias  sabel-o.  A  cima 
das  mundanidades  está  a  verdade;  acima  da  sen- 
sação o  sentimento.  Por  isso,  repito,  c  será  esta 
a  ultima  vez,  não  le  arreceis  de  mim.  Se  eu  delirar, 
não  será  nos  myrlaes  da  Grécia,  libando  o  mel 
do  Ilymelo;  mas  sim  na  Scandinavia,  ouvindo  o  can- 
tar suavíssimo  das  virgens,  que  choram  a  morte 
da  Fingal  e  entoam  o  hymno  fúnebre,  o  coronah 
sentido  nos  basaltos  sonoros  das  Orcades. 

Por  essas  se  apaixonara  o  próprio  S.  IJruno, 
apezar  dos  seus  extasis,  porque  as  tomara  como 
visões  sidéreas,  como  enviadas  do  Senhor,  como 
seraphins  puríssimos,  que  cantam  em  chorèa 
angélica  o  Irisagio  celestial. 

Ante  uma  dessas  virgens  vaporosas,  cujos  cabei- 
los  agitados  pela  brisa  do  norte  se  tornam  em  raios 
de  aurora  polar,  curvara-me  reverente,  como  to- 
cado do  fogo  divino, 

E  se  ella  se  dignasse  de  baixar  os  olhos  para 
mim  c  sorrir-me  envolta  na  sua  auréola,  amara-a 
toda  a  vida,  poiíjue  Ioda  a  vida  me  fora  enlevo  e 
perpetuo  arrombamento.  Ah!  Aonde  encontrar  esse 
anjo  puríssimo,  apezar  da  argila,  que  o  reveste! 
Aonde  buscar  esse  ideal,  recendendo  ainda  aromas 
do  empyreo,  bafejado  ha  pouco  pelo  creador,  tendo 
nos  olhos  essa  placidez  profunda,  que  denota  in- 
nocencia,quasi  inconsciente?  Aonde?  Quem  poderá 
sabel-o! 

— Mas  ahi,  nesse  teclo  hospitaleiro,  nessa  Ao/?/vi 
dos  Viegas,  prosegues  tu,  vive  nma  donzella  for- 
mosa, azougada  tentadora,  olhos  húmidos,  rosto 
lindo,  ora  pensativa,  melancholica  e  jjallida,  ora 
louçã,  petulante,  alegre.  Respiras  ahi  o  bafo,  ({ue 
saedeum  peito  aniuejanle,  inebrias- te  com  fragrân- 
cias de  dezoito  primaveras.  E  atinai,  (juem  pôde 
resislir  a  um  combale,  cuja  victoria  fica  ignorada 
e  esquecida,  e  custa  lagrimas  e  arrependimentos 
ás  vezes? 

Isto  dizes,  c  acabas  aconselhando-me  a  fugir  por 
evitar  maior  damno  c  estrago. 

A  lua  voz  é  a  de  rasão  fria,  mas  a  rasão  nem 


o  PANORAMA 


95 


sempre  é  rasoavel.Dado  que  a  minha  posição  aqui 
fosse  análoga  á  do  homem  que  adivinha  um  preci- 
I)icio,  e  não  sabe  cvilal-o,  ainda  assim,  não  seria 
cobardia,  ou  demasiada  prudência  fugir  vergonho- 
samente? Eslou  na  eílade,  em  que  o  coração  muito 
tempo  comprimido  por  falsos  sentimentos  de  sce- 
plicismo  e  requintados  respeitos  pelo  queé  de  uso 
ciiamar  conveniências  sociaes, acceita  a  lucta  travada 
com  as  tormerdas  da  paixão,  com  esses  mil  nadas 
que  custam  muitas  lagrimas,  muitos  desesperos, 
muitos  suspiros  dolorosos,  que  mais  realçam  os 
raros  momentos  de  felicidade  puríssima. 

Tu,  que  és  homem  hyperborico,  mal  podes  com- 
prehender  esta  attracção  irresistível,  que  me  arrasta 
ao  supplicio  e  aos  exlasis.  Tu,  que  es  homem  po- 
sitivo, não  avalias  o  que  é  soffrer  aos  pés  da  mu- 
lher adorada,  implorando  um  olhar,  que  muitas  ve- 
zes é  punhal  a  dilacerar-nos  o  coração. 

E  queres  que  fuja!  E  ousas  aconselhar-me  que 
saia  da  liça,  logo  ao  primeiro  golpe!  Não,  mil  vezes 
não! 

Os  homens  fazcm-se  assim.  A  vida  é  a  lucta  com 
o  desconhecido.  E  que  coisa  mais  desconhecida 
que  o  coração  de  mulher!  Ah!  mas  todas  estas re- 
llexões  phylosophicas,  que  o  divino  Platão  não  re- 
negara, não  tem  cabida  aqui...  porque  Violante  é  o 
mysterio  feito  donzella.  Ha  mais  de  um  mez  que 
estudo  esse  problema  explendido,  e  a  equação  que 
ha  de  resolvel-o  ainda  não  houve  estabelecel-a. 
Violante  é  o  camaleão  mythico  e  incomprehen- 
slvel.  Umas  vezes,  pesquisador  audaz,  quando  in- 
tento descerão  fundo  do  coração  d'ella,  encontro... 
cinzas  e  nada  mais.  Violante  aíTigura-se-me  então 
uma  d'essas  estatuas  antigas,  em  que  o  cinzel  de 
Phidlas  afíelçoou  o  mármore  hellenico  para  lhe 

collocar  lá  dentro,  no  Intimo  do  peito uma 

urna  funerária. 

Outras  vezes  as  cinzas  agllara-se  bafejadas  pelo 
sopro  creador  do  aichanjo  e  a  estatua  fria,  mar- 
mórea, impassível,  chora,  geme,  c  soluça  como 
virgem  encarcerada  em  mosteii'o  alpestre. 

A  zombaria  succedeo  pranto;  á  acrimonia  a  do- 
çura, á  ironia  pungente  a  lenldade  amorosa.  Em 
iim  não  posso,  por  entranhados  que  sejamos  meus 
desejos,  pholographar-te  esta  alma,  que  rellecte 
mil  cambiantes,  mil  gradações  diversas...  talvez 
porque  lá  dentro  ha  muita  poesia,  ha  muitos  pran- 
tos, aonde  os  raios  de  amor  se  refrangem  e  pro- 
duzem esse  irls  encantador,  que  nemsemprcprecede 
a  bonança. 

E  comtudo,  ó  meu  caro  amigo,  a  minha  situação 
é,  relativamente,  feliz  csocegada.  Entre  mime  Vio- 
lante estabeleceu-se  certa  Intimidade  contida  nos 
mais  estreitos  limites  do  decoro. 

Esta  intimidade  Ião  doce,  cortada  perpetuamente 
pelas  Irritações  incomprehenslvels  de  minha  prima, 
constitue  um  enlevo,  a  que  não  ha  resistir. 

Durante  as  nossas  conversações,  que  se  amiú- 
dam cada  vez  mais,  borboíeteamos  desculdo- 
samenle  por  todas  as  lltteraturas  conhecidas,  desde 
o  canto  Informe  e  imaginoso  do  selvagem  até 
ás  estancias  perfumadas  e  sentidas  de  Lamartlne 
€  Soares  de  Passos.  E  não  julgues  que  a  minha  supe- 


rioridade me  serve  de  multo.  Violante,  que  ajunta 
bastantes  conhecimentos  á  multa  perspicácia,  a  qual 
se  traduz,  ora  em  petulância  coruscante,  ora  em 
modéstia  melancólica,  Icva-me  muitas  vezes  van- 
tagem e  obriga  a  callar  o  professor.  Ah!  É  que 
todas  as  minhas  idéas  se  confundem  quando 
ouço  aquella  falia  tão  argentina  e  maviosa. 

lá  vês  que  o  meu  estado  é  invejável.  Não  pro- 
curo o  perigo,  mas  também  o  não  evito.  Estou 
preparado  para  a  lucta,  se  houver  Inimigo  que 
queira  Investlr-me.  Desconfio  porém  que  por  ora, 
e  talvez,  para  sempre,  o  Idylllo  só  seja  interrom- 
pido pelas  valas  Innocentos  de  Violante...  e  pelas 
narrativas  do  velho  cavalleiro,  cuja  espada  brilhou 
ao  sol  das  batalhas,  como  elledlzemphatlcamente. 
Desnecessário  é  acrescentar  que  o  velho  realista 
tem  em  mim  um  ouvinte  attencio&o  e  reverente, 
que  nem  pestaneja  no  discorrer  mais  dlcaz. 

Sei  applaudir,  quando  oapplausocae  do  molde, 
e  de  tal  sorte  me  aííiz  a  este  seroar  patriarchal, 
entre  o  pai,  a  íllha  e  o  cura  da  aldeia,  que  nem 
sei  como  se  vive  no  Grémio  ou  no  Martinho,  ou 
como  se  pode  ouvlf  de  uma  feita  quatro  actos  de 
opera  em  S.  Carlos  ou  de  drama  em  D.  Maria. 

Vae  já  bem  longa,  e  por  ventura  multo  fastidiosa, 
esta  carta;  mas  não  quero  fechal-a  sem  responder 
a  uma  pergunta,  que  me  fizeste  com  Inexcedlvel 
desplante  e  hombridade  sem  igusl. 

Tomaste  uns  ares  de  inquisidor,  engrossaste  a 
voz  pedagogicamente,  e  disseste  como  o  doge  no 
Othelo: 

— Já  te  arriscaste  a  alguma  declaração? 

Aphrase  é  textual  e  íique-le  a  responsabilidade 
d'ella. 

Continuas  logo:  «Isso  a  que  eu  chamo  declaração 
é  o  maior  arrojo  a  que  pode  abalançar-se  um  na- 
morado verdadeiro.  Out'rora,  quando  nos  tempos 
cavalheirosos  o  brio  e  pundonor  envolviam  a  terra 
no  seu  manto  de  delicadeza,  uma  declaração  era 
coisa  simplicíssima. 

«O  bardo  envergava  o  ornez  e  a  cota  de  ma- 
lha, brandia  a  acha,  cavalgava  ginete  farfante, 
derrubava  na  liça  o  contendor,  e  apregoava  rainha 
da  belloza  e  dos  amores  a  alvidrosa  donzella,  que 
o  enfeitiçai  a. 

«Assim  faziam  cavallelros  enamorados;  assim  fa- 
zia o  rei  Arthur,  assim  faziam  os  doze  de  Ingla- 
terra. Quando  porém  ocynismo  revolto  surgiu  nas 
ondas  da  orgia,  quando  D.  João  V,  ou  Luiz  XV 
deram  leis  de  galanteria,  confundlu-se  a  declaração 
com  o  beijo  luxurioso,  que  nem  mesmo  era  fre- 
mente. 

«A  esses  tempos  de  Impudicos  evenaes  prazeres 
segulram-se  os  nossos  de  hypocrlslae  falso  recato. 

«Ravenswood  pode  salvar  Ires  vezes  a  sua  Lú- 
cia, que  nem  assim  lhe  é  licita  uma  declaração 
senão  depois  de  muitos  rodeios  saplentlssimos  e 
rigorosamente  métricos. 

«O  amor  é agora  umasclencla  positiva  e  exacta. 
O  amor  é  a  arlthmetica  do  coração, 

«Esta  nova  applicação  dos  números,  que  escapou 
ao  próprio  Gauss,  tem  os  seus  princípios  e  axio- 
mas, tem  as  suas  deducções  e  schollos. 


96 


O  PANORAMA 


«Desgraçado  de  quem  ignorar  estas  artimanhas 
sociaes,  qilepara  logo  será  posto  a  um  canto,  como 
soez  e  indigno  da  illustração  do  século. 

«Uecommendo  pois  a  todos  os  que  se  atrevem  a 
libar  a  ambrósia  das  Ilebes  de  salão,  que  não  caiam 
em  patentear  a  chamma,  que  os  queima,  sem  pri- 
meiramente experimentarem  se  no  seu  tirocínio 
encontram  a  seguinte  proporção: 

«A  somma  de  sorrisos  d'ella  está  para  a  somma  de 
suspiros  nossos,  assim  como  as  herdades  ou  posi- 
ção social  do  noivo  estão  para  iguaes  quantidades 
da  noiva. 

((>i'isto  se  encerra  o  amor  d'cste  século. 

<íÉ  o  amor  ex-professo. 

Transcrevo  estes  periodos,  para  eterna  vergo- 
nha tua.  E  ousas  dizer  que  tens  um  coração! 

Não  quero  combater  esta  doutrina;  digo-le  só, 
para  teu  descanço,  que  ainda  não  liz  declaração  a 
Violante...  porque  nada  tenho  que  declarar-lhe. 

Pois  o  que  havia  de  dizer-lhe,  senão  que  posso 
amal-a  um  dia,  que  é  esse  o  meu  desejo,  e  que 
talvez  a  ame  já,  como  um  louco? 

Oh!  Mas  essas  declarações  fazem~n"as  os  olhos, 
que  são  os  mensageiros  eternos  do  amor. 

Parece-me  que  tenho  travado  com  ella  certas 
phrases  nimio-sentimentaes,  mas  declaração  ex- 
plicita pertence  ao  acaso,  ao  deus  dos  namorados, 
em  cujo  numero  não  sei  se  devo  incluir-me. 

É  alta  noite.  Reina  a  solidão  n'este  cantinho  do 
mundo.  Tudo  aqui  é  placidez  e  innocencia,  e  as 
noites  correm  bem  dormidas.  Teu,  ele.— Alfredo 
DE  Mello. 

{Conlinun.) 


ERRATAS 

No  capitulo  IV  (lo  romance  Galaíéa  Moderna,  deve  fazer-se  as 
seguintes  correcções; 
Pag.  74,  col.  2.^,  onde  se  li'^  —  luctunr  ....  leia-.se  flartuar. 

>  >       »      »        ,       »   »  — dryadas.  ...        »       dnjades. 

•  7.J,  »  1.*  »  •  • — exhausto .  ..  »  cxhnusta. 

I  n  n  ■>  »  /)  .  — açoitado     .  .  <>  açnilada. 

.  .  »  ^  1.  »  » — deliciámos..  »  delirámos. 

>  •  >  >  p.  .  »  • — Prrso  ....  "  Presa 

.       »       •      »        »      »   »  — conslrange-se       ■>       conslrnnia-se. 

„       m       »      «        »       »   »  — cupido »       áspide. 

,       .       »    2."      »       »   »  — Melihen.  ...        »       Mclibeu. 

^   »  — namorosos  .        »       nemorosos. 

E  mais  alguns  erros  se  encontram,  que  escaparam  por  defeito 
de  revisão,  e  dos  quaes  pedimos  desculpa  aos  leitores  c  ao  auclor. 


ÍIARPEJO 

K  vidi  lagrimar  clieduo  bei  lumi, 
Gh'an  faúo  mille  volte  invidia  ai  sole. 
Tasso 

Se  soul)es.';cs  nuanlo  peno, 

miniin  flor, 
quando  o  teu  olt)ar  sereno, 

turva  a  dor, 

quando  uníi  véu  de  funda  mágua 

vejo  ir 
os  teus  olhos  rasos  d'agua 

encobrir, 

quando  um  ai  do  seio  exhalas, 

ílor  do  ceu, 
e  m'escondes  luas  falias, 

anjo  meu;— 


e  se  visses  que  almo  gosto 

reina  em  mim, 
quando  alegre  esse  leu  roslo 

vojo  emlim; 

se  meu  seio  examinasses, 

fosses  ver 
quando  anima  tuas  faces 

o  prazer, 

e  teus  olhos  scinlillantes 

vejo  a  par 
como  dous  astros  amantes 

palpitar; 

quando  corres  vaporosa 

para  mim, 
como  a  douda  mariposa 

do  jardim ; 

quando,  longe  dos  abrolhos, 

vejo  em  li 
ceu  d'amor,  que  dos  teus  olhos 

me  sorri: 

ai  se  visses,  se  soubesses!... 

então,  sim, 
ouvirias  miidias  preces^ 

cherubim. 

De  minh'alma  doce  incanto, 

casta  ílor, 
i porque  clioras?  susla  o  pranto, 

dei.va  a  dor. 

Deixr.  a  dor  que  assim  te  opprime 

o  coração, 
como  o  sol  q°ue  verga  o  vime 

para  o  chão. 

Vai  ás  flóridas  campinas 

resi)irar 
os  perfumes  que  as  boninas 

le  soem  dar. 

Vai,  que  o  ceu  é  lindo;  e  o  prado 

le  sorri 
com  mil  llores  que  ha  guardado 

para  li. 

E  se  á  larde  pende  a  coma 

cada  flor, 
é  perpétuo  o  saneio  aroma 
d'esle  amor. 
Vizcu. 

Cândido  Figueiredo. 


As  rosas  brancas  e  incarnadas,  os  lirios  roxos 
e  azucs,  as  cecéns  brancas,  os  bcm-me-quercs  e 
as  boninas  com  uma  roza  dourada  nomeio  se  guar- 
necem e  enfeitam  para  os  olhos  dos  homens;  os 
frutos  das  arvores  quando  chegam  á  sua  desejada 
perfeição,  e  as  searas  na  fertilidade  de  suas  espi- 
gas se  tornam  de  ouro:  e  as  mais  formosas  crea- 
turas  humanas,  com  as  cabeças  douradas  mostram 
sua  belleza;  e  a  esta  imitação  trazem  os  príncipes 
e  monarchas  do  mundo  o  ouro  sobre  a  cabeça;  os 
reis  e  imperadores  nas  coroas,  os  papas  nas  thia- 
ras,  ou  bispos  nas  mitras,  e  as  matronas  illuslres 
nos  toucados,  ao  pescoço,  sobre  o  peito,  e  pendu- 
rado das  orelhas,  nos  dedos,  e  nos  braços,  fazen- 
do voluntárias  prisões  da  sua  formosura. 

Francisco  Rodrigues  Lobo. 


Typ,  Franco-Portugueza  =  Rua  do  Thesouro  Velho,  6. 


13 


o  í>ANORAMA 


97 


TIIEATRO  DE  D.  MARIA  II. 

ror  A.  OSÓRIO  DE  VASCONCELLOS 

Singular  e  estranho  destino  persegue  ás  vezes  as  obras 
do  homem.  Que  vicissitudes!  Qnc.  baldões  da  sorte! 
Quem  dirá,  se  por  ventura  não  for  sabedor  da  historia, 
que  n'aquelle  ediíicio,  que  hoje  ó  templo  das  artes,  já 
se  aqueceu  a  fornalha,  aonde  ossos  humanos  se  tisnaram 
para  honra  e  gloria  de  um  Deos  de  clemência  e  bonda- 
de 1  Quem   dirá  que  no  garrido  e  loução  Ihealro  de  D. 


Maria,  aonde  echoam  risos  e  volilam  jocos,  crguia-se  ou- 
tr'ora  um  palácio  torvo  e  sombrio,  minado  de  cárceres, 
em  cujos  arcanos  soterrados  reboaram  maldições  de  Ire- 
dos  juizes  e  rangeram  dentes  milhares  de*victimas.  E 
comtudo,  esta  a  historia  authenlica  e  genuina  do  nosso 
theatro  normal.  Singularissimo  contraste  muito  para  pen- 
sar e  admirar.  Rastreemos,  porém,  sem  grandes  individua- 
ções a  historia  d'esle  ediíicio.  Sigamos  a  monographia 
d'esle  monumento  de  pedra  desde  a  sua  fundação  olé 
hoje.   Muito    havemos  de  aprender  que  o  lhea*lro     de 


|í!la-íai/íJL  uij 


'If  ^1  K       ]f""'f  '' 

iníifilí  |li!'Í  fi 


D.  Maria  11  teve  o  condão  de  andar  ligado,  desde  eras 
remotíssimas,  ás  grandes  revoluções  que  alteraram  por 
vezes  mui  profundamente  o  viv*er  e  crer  de  Portugal. 
D'esses  edifícios  se  pôde  dizer  afíbitamente  que  são  ver- 
dadeiros livros  de  pedra,  porque  foram  testemunhas  mu- 
das e  quedas  e  eloquentes  dos  principaes  successos  de 
que  reza  a  historia. 


Era  no  melado  do  século  XY.  I).  João  I,  o  rei  heróico, 
liavia  descido  ao  tumulo,  envolto  na  velha  armadura, 
aonde  batera  de  chapa  o  sol  em  mil  recontros.  O  caval- 
leiro,  que  conquistou  a  coroa  e  libertou  o  reino  nos  plai- 
nos  de  Aljubarrota,  o  foro  conquistador  de  Ceuta,  o  pri- 
meiro portuguez,  (jue  pizou  as  arcas  adustas  da  Africa  e 
desfraldou  ao  vento  do  deserto  a  bandeira  do  occidente, 
o  artista,  que  fundara  a  Batalha,  esse  monumento  de  um 
povo  juvenil,  cônscio  da  própria  força  ;  o  rei  popular 
emíim,  eleito  pelo  i)ovo  e  filho  do  pov"o,  repousava  das 
fadigas  da  vida  na  crypta  do  seu  mosteiro,  e  as  suas  cin- 
zas dormiam  o  derradeiro  somno. 

A  ala  dos  namorados  e  os  cavalleiros  ardentes  do  con- 
destavel  já  se  tinham  csvaido  a  pouco  e  pouco,  e  cada 
((ual  por  sua  vez,  nas  sombras  da  morte.  Nascera  c  cres- 
cera outra  geração,  com  outras  esperanças,  com  diversos 
intuitos.  A  D.  João  i  succedera  T).  Duarte,  á  ala  dos  na- 
morados os  marítimos  de  Sagres.  Os  leões  do  occidente 
geraram  os  leões  do  oriente,  os  litãcs  deram  o  ser  a  ou- 
tros litãcs,  os  quaes  avassallaram  o  Adamastor,  titão  co- 
mo ellcs. 

D.  Duarte,  porém,  passados  cinco  annos  de  reinado,  mor- 
reu da  peste,  que  assolou  por  aquelles  tempos  o  reino  ; 
o  heróico  e  malfadado  irmão  do  saneio  infante  finou-se 
ouvindo  os  prantos  e  lamentos  dos  seus  vassallos  mori- 
bundos. 

Perdera  um  pai  o  reino,  e  (li  ara-Ihe  uma  crcanca,  té- 
nue vergonlea  da  heróica  estirpe. 


Appareceu  então  um  homem,  que  segurou  com  mão  ex- 
periente as  rédeas  da  governança,  e  dotou  o  paiz  de 
grandes  melhorias,  ao  passo  (jue  lhe  dirigia  os  impeles  e 
hardimentos.  Era  o  infante  D.Pedro,  um  dos  vultos  mais 
venerandos  e  respeitáveis  d'essa  época  gloriosa.  Era  o 
infante  D.  Pedro,  soldado  valente  e  audaz,  sábio  cosmo- 
grapho,  amantíssimo  das  grandes  entreprezas,  que  por 
largos  annos  jjreparou,  já  com  os  seus  estudos  e  viagens, 
já  com  a  poupança  dos  redditos  c  boa  direcção  do  espi- 
rito nacional. 

Era  pois  no  melado  do  século  XV  (1)  Portugália  sendo 
procurado  pelas  nações  da  Europa.  Todas  queriam  a 
alliança  c  amizade  deste  pequeno  reino,  que  esbracejava 
já,  c  intentava  rasgar  com  as  proas  dos  seus  galeões  as 
névoas,  (pie  encoliriam  o  berço  da  aurora. 

O  vasto  porto  de  Lisboa  mal  podia  receber  no  seu  âm- 
bito os  baixeis  que  vinham  de  toda  a  parte,  e  raro  era  o 
dia  em  que  um  embaixador  estranho  não  vinha  pactuar 
com  o  grande  infante  que  ora  geria  a  coisa  publica. 

Era  forçoso  dar  condigna  c  faustosa  pousada  a  Ião  ricos 
estrangeiros.  Assim  o  pedia  a  grandeza  própria. 

l)elerminou-se  D.  Pedro  a  erguer  sumptuosa  fabrica, 
aonde  recebessem  moradia  e  gasalhado  não  só  os  em- 
baixadores senão  lambem  os  cortezãos,  que  não  livessem 
cabida  nos  paços  reaes. 

Esta  a  origem  dos  paços  dos  cstaos,  ou  hoslaos,  vocá- 
bulo antigo,  que  quer  dizer  iiospedaria  i)ublica. 

Occupava  o  paço  dos  Estáos  o  laílo  seplemtrional  para 
oesle,  sendo  rpie  o  Rocio  tinha  a  mesma  .situação  de  agora 
com  a  só  dilVerença  de  ser  então  muito  irregular. 

Serviu  o  palácio  pela  primeira  vez  em  14.^1,  porocca- 
sião  das  festas  que  hou\e  em   Lisboa,  quando  a  infanla 

(I)  lilO,  .«ognnilo  o  sr.  Vilhena  B:'.rliosa.  Escreveu  este  sábio  e 
erudito  iicademiro  alg"ns  artigos  sobre  o  inesnio  assumpto  no  VI 
Toluniu  do  Arrhiro  PUturesco,  que  rccommendaiuos  aos  leitores 
assim  como  todos  os  trabalhos  de  tão  ubulisado  escriptor. 


98 


O  PANORAMA 


D,  Leonor,  filha  de  D.Leonor,  filha  de  D.  Duarle  e  irmã 
de  D.  AlTonso  V,  o  Africano,  conlrnhiu  niípcias  com  Ire- 
dericoUI,  impenidor  daAllemanlia.  Foram  pomposamente 
acolhidos' os  embaixadores  tudescos  durante  os  mezes  que 
se  demoraram  na  ja  então  florescente  Lisboa. 

Correram  emtanto  os  annos.  A  simplicidade  e  rudeza 
de  costumes  de  D.  João  1  cedera  o  passo  ás  blandicias  e 
lenidades  de  D.Manuel,  e  este,  após  tantos  annos  inin- 
terruptos de  venturas  e  .i;lorias,  baixou  á  sepultura.  Com 
a  morte  do  rei  venturoso  começou  a  decadência  de  Por- 
tugal. A  mortalha  de  D.  Manuel  deixou  vastas  sobras  para 
a  mortalha  do  paiz.  Subiu  D.  João  111  ao  Ihrono,  e  com 
elle  assomaram  de  envolta  os  primeiros  negrumes  do  fa- 
natismo torvo  e  sombrio. 

Se  os  judeus  haviam  sido  expulsos  e  definhadn  a  in- 
dustria nacional ;  se  a  sede  de  ouro,  que  não  a  fc  imma- 
culada  e  os  brios  de  cavallciros,  lti*a\a  os  porluguezes 
ao  oriente,  ao  rei  fanático  e  intolerante  coube  a  triste 
sorte  de  dar  o  derradeiro  golpe  á  prosperidade  publica. 
Qu'imporlava  que  os  baix"eis  vergassem  com  o  peso  das 
pedrarias  e  especiarias,  e  os  herocs  recebessem  as  parcas 
do  oriente,  se  as  praças  africanas  eram  abandonadas,  e 
se  perdíamos  o  futuro  dominio  de  tantas  riquezas  para 
colonisar  as  plagas  longínquas  de  Santa  Cruz!  Qu'inq)or- 
tavam  esses  restos,  cnd)(.ra  sumptuosos,  de  opulências 
herdadas,  se  a  Santa  Inquisição  surgia  d,is  sombras,  qual 
fúria  delirante,  brandindo  o" facho  ardente,  que  havia  de 
tisnar  os  últimos  alentos  do  povo? 

Ou"importava  o  nosso  poderio  se  o  cancro  nos  comia 
as  entranhas  e  nos  dilacerava  iniplacavelmenle?  Oh  !  Por- 
tugal era  já  um  jiaiz  moribundo.  Gloriosos  c  para  sem- 
pre admiráveis  eram  os  seus  derradeiros  arrancos,  com 
os  quaes  estremecia  o  mundo  espavorido.  Mas  ninguém 
podia  dar  vida  ao  cada\er.  Cercavam-n'o  as  iividas  som- 
bras da  morte,  seu  rei-entoara-Ure  o  hymno  fúnebre  e  as 
psalmodias  tétricas  da  egreia,c  no  seu  tumulo  aniidiava- 
se  a  inquisição  como  um  replil  gigante  c  roaz,  qiic  care- 
cia de  fogu*eiras  i)ara  se  deseniorpeccr.  A  inquisição! 
Que  idéas" pavorosas  não  soltem  á  mente  quando  soltamos 
esta  palavra  fatídica  1  A  santa  inquisição !  Não  vasculhe- 
mos esse  paul  infecto,  esse  lago  de  sangue,  aonde  pullu- 
laram  cirdumes  de  vermes  sanguinários !  A  santa  inqui- 
sição! Macula  indelével  da  historia  moderna,  creação 
hvbrida  do  fanatismo  hespanhol,  do  delirio  clausurai,  da 
vòlupluosidade  ardente  de  homens  que,  na  força  da  idade 
e  das  paixões,  sentindo  os  impudicos  extasis  dosílagicios, 
sequestrando-se  do  mundo,  que  aborreciam  para  melhor 
o  dominar,  arreceiando-se  de  satanaz,  que  os  perseguia, 
afogavam  em  sangue  o  vulcão,  que  lhe  ia  revolto  e  me- 
donho lá  dentro  ! 

Era  necessária  a  iníjuisição  a  Portugal  moribundo.  Kra 
necessário  que  as  fogueiras  Iividas  e  sinistras  espalhas- 
-cm  de  cn\olta  comos  seus  clarões  o  espanto,  a  morte, 
n  estrago.  Era  necessário  que  um  rei  fanático  lhe  desse 
acolhida  nos  seus  pnçns,  e  escondesse  a  purpura  por 
traz  da  negra  sotaina,  da  medonha  estamenha  de  S.  Do- 
mingos. 

Assim  fez  D.  João  III,  c  o  paço  dos  Esláos  lornou-sc  o 
ergástulo  immenso  de  um  povo  escravo.  Nas  salas  aonde 
pousaram  tantos  fidalgos  estrangeiros  c  nacionaes ;  n';:- 
quellas  salas,  que  serviram  de  abrigo  a  tantos  varões 
illustres,  e  foram  lestemutdias  de  scenas  de  gloria,  amor 
e  saudades,  ergueram-se  potros,  accenderam-se  fornalhas, 
prepararam-sc  tractos,  forjaram-se  algemas  c  cadeias.  As 
tapeçarias  foram  substituídas,  chumbadas  as  grades  nas 
ianeílas,  por  onde  cnlra\a  oulr'ora  livre  e  á  folga  ar, 
luz,  calor  e  vida.  Era  necessário  que  o  aspecto  do  |)a- 
laoio  da  inquisição  fosse  lúgubre  e  carrancudo,  era  iie- 
cpssario  que  fosse.  . .  inquisilorial.  Tudo  sollrou  com- 
pb'tn  transformação.  Cornam  estreitos  passidiços  pelo 
meio  das  paredes,  os  cárceres  abobadados  liidiam  mira- 
douros imperceptíveis,  e  o  desgraçado  não  podia  soltar 
um  gcuiido  ou  uma  maldição  sern  que  os  liarbaros  e 
implacáveis  algozes  o  ouvissem.  Fora  longo  descre- 
ver ja  o  palácio  inquisilorial,  já  as  salurnaes  christãs, 
c|ue  comoçaram  no  [laço  dos  Estáos.  Assunq)to  é  esse  de 
si  Ião  importanio,  que  não  cabe  nas  estreilezas  de  um 
artigo.  Os  que  forem  curiosos  de\em  ler  a  lli<loria  da 
Inf/iiisição  em  I'orOi[/al,  pelo  profundo  e  sábio  historia- 


dor o  sr.  A.  flerculano,  e  nessa  ol)ra  admirável,  verão 
como  a  hydra  do  christianismo  teve  artes  de  aninhar-se 
em  Portugal. 

São  passados  mais  de  dois  séculos  e  meio.  Encarre- 
gou-se  uma  grande  cat:!s!rophe,  o  terramoto  de  175o,  de 
derrubar  o  palácio  da  inquisição,  e  comquanio  resurgisse 
mais  augmenlado  e  sumiiluoso  das  ruinas  fumegantes, 
dava  o  marquez  de  Pombal  profundo  goljte  na  sanguiná- 
ria instituição,  acabando  com  as  differenças  entre  chrislãos 
novos  e  velhos,  abolindo  o  castigo  do  fogo  e  cortando 
as  azas  ao  abutre,  que  esvoaçava  sinistro  no  firmamento 
de  Portugal. 

Estamos  em  1820.  O  povo  sedento  de  liberdade  e  re- 
conhecendo emlim  (jue  era  mais  que  um  rebanho,  er- 
gueu-se  á  voz  dos  tribunos,  soltou  o  grilo  de  redempçào 
e  do  mesmo  modo  que  os  parisienses,  correram  os  lisbunen- 
ses  à  bastilha  do  santo  oíTicio,  abriram  portas  enferruja- 
das, atravessaram  lúgubres  salas,  franquearam  cár- 
ceres escuros,  libertaram  algumas  victimas,  que  ainda 
restavam,  e  atinai,  refugiram  es|)avoridos,  horrorisados, 
mal  podendo  acreditar  na  crueza  e  ferocidade  dos  seus 
antigos  algozes.  Pouco  faltou  que  o  edilicio  não  fosse  ar- 
rasado, e  se  as  xiclimas  não  cscaceassem  tanto  em  vir- 
tude das  sabias  reslricções  do  grande  marquez,  certo  que 

0  povo  havia   de  dançar  tombem  sobre  os   fundamentos 
da  bastilha  religiosa. 

Sumiu-se  para  sempre  esse  espectro  mal  raiou  a  liber- 
dade, cujos  clarões  escureceram  as  fogueiras. 

Quando  rebentou  a  revolução  no  rocio,  e  a  palavra 
magica— liberdade,— reboou,  com  a  velocidade  do  relâm- 
pago nos  (|uatro  ângulos  do  paiz,  foi  derrubada  a  esta- 
tua da  Fe,  que  canqieava  no  alto  da  empena,  calcando 
aos  pés  a  heresia.  Foram  delirantes  os  applausos  da  mul- 
tidão, que  se  .revolvia,  como  as  ondas  do  oceano. 

A  revolução  porém,  com  ser  popular  porque  apregoa- 
va e  sancliíi(;ava  os  direitos  do  homem,  que  não  mais 
podia  ser  arrebanhado  á  vontade  de  um  pastor  despótico, 
lirdia  inimigos  entranhados.  Entre  eslcs  e  na  vanguarda, 
apparecia  o  vulto  do  general  Silveira,  que  lamentava  a 
([ueda  do  despotismo  e  almejava  alevantíil-o  das  ruinas,  em 
(|ue  baqueara.  N'este  intuito  intentou  proclamar  a  cons- 
liluição  [hespanhola  de  1012,  de  parceria  com  outros 
conjugados,  para  á  sombra  crcUa  crearem  uma  silnação 
polilica,  em  r/iie  podcssem  dictar  a  lei  ao  pai:,  como  diz 
o  sr.  Vilhena  ISarbosa. 

Ainda  a  revolução  não  eslava  consolidada,  e  surgiam 
inimigos  de  toda  a  parle;  mas  já  o  grande  Fernandes  Tho- 
maz  recebia  a  aiiotheose  do  povo,  que  lhe  entregou,  nos 
paços  da  inquisição,  as  funcções  governativas. 

()  illustre  patriota  pagou  depois  com  a  vida  na  mas- 
morra, este  grande  acto  de  a  alor  cívico  e  humanitário. 

Por  uma  d'aquellas  antinomias  lerriveis  e  inexplicáveis 
da  historia,  acontece  q;iasi  sempre  que   os  que  (jucbram 
os  ferros  dos  povos,  morrem  em  ferros. 
1     A  revolução  de  1820  deu  pois  mate  á  inquisição.  A  luz 

1  afugenta  as  somJ)ras,  a  vida  expelle  a  morte. 

Ós  cárceres,  não  mais  foram  povoados,  já  não  reboa- 
vam nas  abobadas  os  echos  plangentes  de  suspiros  c  la- 
mentos. 

As  fogueiras,  que  ainda  bruxuleavam  depois  do  minis- 
Iro  de  D.  José,  foram  extinclas  de  lodo.  O  crr  ou  morre 
(los  mahometanos  incircumcisos  ninguém  ousasa  pro- 
leril-o  n'a(|uella  época  auspiciosa,  em  (|uc  os  velhos  romanos 
como  (]ue  reviviam  na  brilhante  jílciade  de  liberaes.  Os 
brandões  funerários  das  confrarias  já  não  allumiavam  as 
longas  procissões  de  i)enilentes,  e  os  in(|uisidores  e  fami- 
liares em  vão  derrubavam  o  sobrecenho,  que  ninguém 
entoava  su|)plices  preces. 

Só  restava,  após  tantos  annos  de  bárbaros  supplicios, 
a  tradição  ensanguentada  e  lúgubre  de  um  tribunal  Icr- 
rivfl,  composto  de  algozes,  (jue  Iripudiaram  cm  uma  or- 
sia  (lo  matança  e  carnificina. 

Em  1821  decrelaram  as  cíules  a  exiincoão  da  Sanla- 
Jrmandadc  de  jiav  orosa  memoria.  Folgaram  a  justiça  e  a 
humanidade  no  iniillo  tribunal  da  historia. 

O  povo  acolheu  com  frémitos  de  alegria  esse  decreto 
memorável. 

O  palácio  da  in((uisição  soíTreu  então  diversas  vicissi- 
tudes. No  seu   ambilo  estanciaram,  desde  1820  ate  1836, 


o  PANORAMA 


99 


o  governo  provisório,  a  camará  dos  pares  e  o  Ihcsouro 
publico,  alè  que  um  incêndio  pavoroso  o  dcvoroi!,  dei- 
xando-lhe  apenas  as  pareilcs. 

De  jusliça  foi  que  o  fogo  |)uriricasse  aquelle  edifício, 
aonde  correu  tanto  sangue  innocente. 

Co)iti)iU(i] 

IDÍLIO 

III 

A  nrvorc  do  bom  pasíof 

Na  margem  de  um  lio  caudaloso,  cujo  leilo 
liumilde  ora  rodeado  de  altos  e  escarpados  roche- 
dos, vegetava,  solitária,  robusti  azinheira  Cau- 
sava dó  vèr  a  gigantesca  arvore,  que  na  planície 
teria  elevado  ate  ás  nuvens  sua  mageslosa  co- 
ma, crescer  sem  gloria  em  áspero  e  profundo 
barranco.  De  que  servia  os  seus  ramos  esteude- 
rem-se  a  grande  distancia  em  roda  do  tronco?  !)e 
que  servia,  suas  ílores,  soltas  pelo  vento,  Ibrma- 
i'em  a  seus  pés  macia  e  deliciosa  alfombra?  Nunca 
viu  pastor  algum  piocurar  á  sua  sombra  abrigo 
conli'a  o  fogo  abrasador  do  meio  dia,  nem  jamais 
ouviu  o  terno  discorrer  de  dois  amantes,  nem  os 
alegres  sons  das  danças  campestres,  nem  a  voz 
grave  e  solemne  dos  anciiJos,  ora  em  pastoril  con- 
curso, adjudicando  o  premio  do  canto,  ora  em  doce 
colloquio,  ricos  de  experiência,  pregando  a  vir- 
tude: aos  maus  annunciando  cui-la  vida  e  cheia 
de  tormentos,  aos  justos  promeltendo  larga  senda 
de  paz  e  de  viilude.  Da  vereda  do  monte,  a  cujos 
pés  jazia  a  iníeliz  arvore,  os  rebanhos  lhe  despiam 
os  ramos  da  sua  copa  e  as  creanças  da  aldeia  fa- 
ziam fogueiras  dos  seus  despojos;  por  isso,  se  al- 
gum estrangeiro  a  admirava,  não  obstante  a  sua  hu- 
milde posição,  os  lilhos  d'aquella  terra  diziam: 
«Como  podesergi'andea  arvore  cujas  lloresefructos 
são  colhidos  pelos  nossos  pequeninos  no  seu  mais 
elevado  cimol» 

Ostente  em  má  terra  um  bello  coração  suas  flo- 
res, seus  fructos  de  oui-o  um  alto  engenho.  Ein 
vãol  Como  troncos  sem  seiva  mui'charão;  como 
as  aves  sem  ninho  morrerão  sem  canto  e  sem 
plumagem;  ou  como  tu,  formosa  azinheira,  des- 
conhecidos pela  ignorância,  viverão  sem  lustre  en- 
tre brenhas,  sem  honra  entre  abrolhos. 

— Cortemos  estaarvore  inútil,  disse  um  dia  Nar- 
ciso, seu  dono;  o  seu  producto  dar-me-ha,  pelo 
menos,  duas  cabras  e  umaiovelha.  Com  as  pri- 
meiras augmentarei  o  meu  rebanho,  com  a  segun- 
da, de  ílores  e  íilas  adornada,  presentearei  a 
minha  querida  l.ilia.E  alegre,  ufano  com  tão  feliz 
ideia,  pensando  na  sua  pastora  e  cantando,  começou 
a  desbastar  a  pobre  arvore. 

«Caiam,  disia,  léus  ramos  e  teu  tionco  aos 
repelidos  golpes  do  meu  machado,  velha  azinheira, 
e  invejem  o  teu  destino  as  arvores,  que  nos  bos- 
ques e  nos  prados  o  furacão  derriba,  ou  as  que 
podendo  resistir  aosseusfui-ores  morrem  velhas  en- 
tre injurias  e  aíiVontaS.  Não  morrerás,  não,  sem 
recordações  e  sem  gloria.  Ouando  Lilia,  com  seus 
lindos  ííraços,  enlaçar  o  alvo  collo  da  minha  ove- 
lliinha,  quando,  amorosa,  acariciar  o  seu  íino  vello 
pensando  em  mim,  então  abençoarei  tua  memoria, 
e  juntamente  com  o  meu  amor  guardal-a-hei  para 
sempre  em  meu  peito. 


«Trinai  suavemente,  passarinhos  que  vos  ani- 
nhaes  em  sua  ramagem;  soprai  em  torno  vosso 
doce  alento,  auras  embalsamadas,  que  dais  frescu- 
ra á  sua  sombra,  voz  ás  suas  folhas;  morra  o  vosso 
amigo  enlre  caricias  como  o  menino  que  do  regaço 
materno  baixa  á  sej)ullura.)) 

Assim  cantou  Narciso;  e apenas  acabava,  quando 
uma  voz  grave  e  sonora  feriu  seus  ouvidos.  Appro- 
ximou-se  para  ver  de  quem  era,  e  reconheceu  o 
pastor  Cecilio,  oráculo  da  aldeia,  honia  e  gloria 
da  comarca.  Assentado  aos  pés  da  azinheira,  re- 
clinada a  venerável  cabeça  sobre  o  Ironco,  levan- 
tava para  o  céo  seus  olhos  já  amortecidos  pela 
idade,  puros  como  sua  alma,  doces  e  ternos  como 
o  sou  lerno  coração,  e  assim  dizia: 

«Tenho  visto  o  fogo  consumir  as  cidades  e  abra- 
zar  os  campos;  lenho  \is!o  a  terra  commovida 
eslremecor  com  fi'agor  e  derribar  os  templos,  sober- 
bos palácios  e  as  humildes  cabanas;  lenho  visto  as 
guerras  estrangeiras  e  as  dissensões  intestinas  agi- 
tar sobre  os  povos  seus  fachos  homicidas  e  apagai- 
os  com  sangue;  e  quando  as  innocentes  creanças 
brincavam  com  as  pedras  dos  tectos  domados  e 
das  santas  abobadas;  quando  os  reis  pereciam  nos 
supplicios,  como  se  foram  obscuros  mal  feitores;  quan- 
do as  nações  se  não  poupavam  á  morte,  vi  lambera, 
arvore  amiga,  que  o  hospede  da  tua  ramagem 
cantava  alegre  e  tran(|uil!o  em  sua  guarida,  em 
quanto  que  tu  crescias  formosa  como  os  lilhos  das 
selvas,  modesta  como  ludo  quanto  e  gi^ande  e  for- 
moso. 

«Vi  o  leu  tronco  em  sua  infância,  pequeno  ain- 
da e  llexivol,  crescer  com  grande  custo  em  terra 
pobre;  vile,  solitária  e  som  apoio,  levantar  para  o 
céo  a  fronte  secca  e  sem  adornos,  qual  oipham 
abandonado.  Bemdilaseja  a  mão  que  te  protegeu  1 
Vi-le  depois  forte,  erguida,  feliz,  como  se  amor  de 
mãe  te  tivesse  conservado,  como  se  formosa  com- 
panhia houveras  lido ;  e  ao  passo  que  os  annos 
teem  ido  desfolhando  uma  a  uma  as  tlores  da  mi- 
nha vida,  as  tuas  nascem  mais  bellas  e  fragrantes 
de  primavera  em  primavera.  Bemdila  seja  a  von- 
tade de  quem  le  lez  formosa,  e  bemdito  o  poder 
que  te  tornou  forte,  arvore  querida. 

«Gosto  de  le  ver  subir  e  crescer  quando  eu  ve- 
lho e  fiaco  desço  e  morro'  Cavar-se-me-ha  a  se- 
pultuia  a  leuspes  e  grata  sombra  á  minha  humilde 
lapida  darão  teus  ramos,  e  acceitarás  agradecida 
os  últimos  amores  do  que  na  vida  não  Ice  lilhos 
nem  esposa!  Mil  annos  vivas  e  outros  mil,  linda 
azinheira;  e  o  céo  conceda  verdor  eterno  a  tuas  fo- 
lhas, ditosa  liberdade  ao  passarinho  que  lormar 
seu  ninho  em  lua  ramagem;  zéphiros  brandos  á 
lua  copa  formosa,  fresca  chuva  e  lerna  amiga  a 
tuas  raizes.  Já  mais  o  aquilão  ou  o  sudoeste  fu- 
riosos le  murchem,  nem  traidor  insecto  te  disse- 
que roendo-te  o  coração.» 

Assim  cantou  o  ancião.  Approximando-se  depois 
de  Narciso:  «Orpham,  lhe  disse,  conserva  a  soli- 
tária arvore;  é  lua  irmã.  Yem  comigo  viver,  se- 
rá leu  tudo  quanto  possuo.  Eu  vos  adopto:  a  li 
para  a  curta  vida  que  me  resta;  a  ella,  para  de- 
pois da  vida.» 


4  00 


Õ  PANORAMA 


O  desejo  de  Cecilio  foi  satisfeito.  Os  restos  mor- 
laes  do  ancião  foram  depositados  aos  pés  da  azi- 
nheira, que  os  habitantes  da  aldeia  chamaram  d"ahi 
em  diante  a  arvoír  do  bom  pastor.  E  fama  que 
desde  então  goza  a  azinheira  de  uma  constante 
primavera,  e  que  uma  multidão  de  llores  de  ex- 
quisita  fragrância,  nascidas  espontaneamente  á  ro- 
da da  sepultura,  embalsamam  o  ar,  sem  nunca  mur- 
charem. Dizem  os  pastores  que  a  alma  do  bom 
ancião,  ao  subir  á  mansão  dos  justos,  passou  por 
aquellas  ílores,  communicando-lhes  uma  pequena 
paite  do  seu  divino  perfume,  e  que  no  silencio  da 
noite  se  ouvem  debaixo  da  arvore  suavíssimas  e 
ineftaveis  harmonias,  que  não  são  mais  do  que  os 
echos  da  sua  voz  celestial. 


BATALHA  DE  POITIERS 

Este  nome  sôa  lugubremente,  como  o  de  Crécy, 
como  o  de  Azincour!,  aos  ouvidos fi-ancezes.  Estas 
três  batalhas  foiam  por  muito  tempo  as  três  ma- 
culas estampadas  na  alva  bandeira  das  llores  de 
liz,  maculas  que  os  francezes  só  julgai'am  lavadas 
com  o  glorioso  sangue  de  Fontenoy.  Em  Poiliers, 
em  Crecy,  em  Azincourt  o  leoiiardo  inglez  tripu- 
diou ovante  sobre  os  rotos  pendões  dos  descen- 
dentes de  Carlos  Magno. 

Longas  foram  as  guerras  travadas  durante  a  idade 
media  cnli-e  a  França  e  a  Inglaterra.  Molivaram- 
n"as  principalmente  e  facilitaiam-n'as  o  possuir  o 
rei  de  Inglalei-i-a,  na  sua  qualidade  de  duque  de 
Normandia. extensos  lerritoiios  no  continente  fran- 
cez.  Correram  estas  guerras  (que  deram  prin- 
cipio ao  velho  rancor,  que  entre  si  dividio  as 
duas  naçõesj  com  varias  alternativas.  A  coroa  de 
França,  rolando  da  fronte  frágil  de  Caiios  VI, 
o  rei  louco,  chegou  a  cingir  a  fronte  dos  mo- 
narchas  inglezes.  Voltou  ella  aos  seus  naturaes 
possuidores,  graças  á  iniciativa  audaz  de  uma 
criança  verdadeiramente  inspirada  por  Deus,  .loan- 
na  de  Are.  E  assim  lindou  a  prolongada  lucta, 
que  inimizou  os  dois  povos  durante  a  idade 
media,  lucta  que  se  reaccendeu  depois  em  varias 
occasiões,  e  hoje  parece  quasi  de  todo  aplacada. 

Retrocedamos  á  época,  a  que  nos  chama  a  gra- 
vura. Iicina  Kduardo  111  em  Diglaterra,  Eduardo 
lil  o  fundador  da  Jarreteira,  o  pai  do  príncipe  Ne- 
gro, d'esse  vulto  sublime,  que  brilha  nas  trevas  da 
idade  media  com  o  duplo  esplendor  do  valor  cava- 
lheiresco, e  do  talento  militar. 

O  príncipe  de  Calles,  cognominado  o  príncipe 
negro  pela  negra  armadura  que  usava  constante- 
mente, é  talvez  o  general  mais  notável  de  uma 
época,  em  que,  mais  do  que  a  habilidade  e  a  estra- 
tégia, decidia  as  viclorias  a  força  bruta.  A  pe- 
ricia  d'este  grande  homem  fez  inclinar  j)ara  o  lado 
da  Inglaterra  a  balança,  cm  cpie  se  pesam  os  lii- 
umphos  militares.  Teve  também  a  França  um  ho- 
mem notável  a  oppor-lhe;  mas  esse  era  mais  do 
seu  tempo,  mais  cavalleiro  andante  do  (|uc  hábil 
general.  O  homem,  a  quem  nos  referimos,  já  de 
certo  os  leitores  o  adi\inharam,  era  o  condestavel 


Duguesclin,  o  predecessor  de  Bayard  em  bravura 
pessoal,  em  caracter  integerrimo,  c  em  cavalhei- 
rismo immaculado. 

Mas  nem  esse  mesmo  eslava  na  batalha  de  Poi- 
liers. Faltava  o  heioe  da  França  para  disputar, 
ao  menos  por  um  instante,  as  palmas  da  victoriaao 
heróe  da  Inglaterra. 

F]ra  em  13;)G.  Invadiam  as  tropas  inglezas  o 
território  da  França.  Eduardo  líl  invadia  a  Picardia, 
seu  lilho,  o  príncipe  Negro,  atravessava,  pre- 
cedido pela  vicloria,  as  mais  férteis  provindas 
fiancezas.  Sam-lhe  ao  encontro  o  rei  João  à  testa 
da  flor  da  sua  íidalguia. 

Contava  dezeseismil  homens  o  exercito  francez, 
oito  mil  apenas  o  do  príncipe  Negro. 

Apenas  o  i-ei  de  França  vio  approximar-se  o 
inimigo,  logo  foi  ouvir  missa  o  commungar  junta- 
mente com  seus  íilhos,  que  o  acompanhavam,  ingé- 
nua usança  d'esses  lemjjos,  em  que  Deus  era  invoca- 
do pai-a  auxiliar  a  satisfação  das  paixões  desenfrea- 
das dos  homens. 

Apesar  da  superioiidade  numérica  dos  francezes, 
era  da  parle  d'elles  uma  imprudência  acceitai  a  ba- 
talha, ([ue  o  intrépido  príncipe  lhes  oITerecia.  Tão 
hábil  (|uanlo  valoroso,  o  pi'incipe  de  Galles  esco- 
lhera um  leireno  favoi'avcl,  d^onde os .'íeus besteiros, 
abrigados  pelas  arvores  que  lhe  cobriam  a  frente 
de  batalha,  espalhariam  a  morle  nas  íileiras  fran- 
cezas  antes  que  estas  podessem  chegar  a  alcance 
de  se  travarem,  arca  por  arca,  com  os  seus  ini- 
migos. 

Foi  o  que  succedeu.  O  rei  .loão  dividiu  o  seu 
exercito  em  ti-es  corpos,  coramandados,  o  da  van- 
guarda pelo  duque  de  Orleans,  irmão  do  rei;  o  do 
centro  ])elo  du(juedaNoimandia  e  o  da  retaguarda 
pelo  monarcha  em  |)essoa.  Como  a  cavallaría  for- 
mava a  máxima  parte  do  exercito  francez,  e  como 
o  terreno  aonde  o  príncipe  Negro,  como  con- 
summado  estratégico,  chamara  a  batalha,  não  se 
prestava  ás  manobras  d'essa  arma,  o  rei  de  França 
mandou  apelar  uma  porção  dos  seus  cavalleiros, 
e  encurtar  as  lanças,  porque  previa  e  desejava  que 
fosse  o  combate  corpo  a  coijjo.  Avançou  a  linha 
commandada  pelo  duque  de  Orleans,  efoi  recebida 
por  uma  nuvem  de  frechas,  que  introduziram  a  de- 
sordem nas  suas  lilei«s.  Os  cavallos  feridos  re- 
cusavam avançar,  e  atropellavam  os  peões,  que 
se  lhes  seguiam.  Muitos  dos  cavalleiros,  arrastados 
pelos  coroeis  furiosos,  caíram  no  meio  da  segunda 
linha,  (jue  igualmente  desordenaram.  Apossou-se 
o  pannico  dos  francezes,  que  já  n'esse  tempo,  le- 
miveis  na  avançada,  se  desmoralisavam  facilmente 
em  sendo  obrigados  a  fazer  um  movimento  retro- 
grado. 

O  corpo,  commandadopelo  rei,  foi  o  único  que 
oppoz  uma  resistência  seria,  e  salvou  a  honra  <las 
armas  francezas.  Pralicaram-sealli  essas  genlilezas 
e  façanhas,  (|ue  os  menestréis  cantavam  com  en- 
tluisíasmo,  e  os  chronislas  registravam  escrupu- 
losamente nos  seus  venerandos  in-folíos  O  rei  .loão 
em  pessoa  praticou  aclosde  valor,  que  desculpam 
até  certo  ponto  a  sua  imprudência  de  general.  O 
seu  lilho  mais  novo,  (jue  foi  depois  Philíppe  o  Au- 


o  PANORAMA 


•,    "  í-  'f  í 


mm  1 


f/fel  M 


(laz  no  catalogo  dos  reis  de  Fiança,  então  apenas 
de  idade  de  treze  annos,  piincipiou  logo  d'alii  a 
merecer  o  cognome  com  que  a  historia  o  distinguiu. 
Debalde  os  Inglezes  insistiam  com  el-rei  João  que 
se  rendesse,  o  intrépido  monarclia  rcspondia-lhes 
abrindo  em  torno  de  si  um  largo  circulo  com  a 
espada  ensanguentada.  Só  (jueria  entregar-se  ao 
príncipe  de  Galles,  mas,  vencido  pelos  rogos  do 
cavalleiro  deArtois,  que  combatia  nas  liteiras  ini- 
migas, constituio-se  atinai  prisioneiro. 

O  príncipe  Negro  tratou-o  com  extraordinária 
distincção;  recebeu-o  na  sua  tenda  e  quiz  elle  mesmo 
servil-o  á  meza,  não  cessando  de  louvar  o  seu  valor, 
e  procurando  adoçar-lhe  as  amarguras  do  capti- 
veiro  e  a  vergonha  da  derrota. 

A  batalha  de  Poitiers  teve  para  a  França  con- 
sequências desastrosas.  Além  dos  sacriíicios  que 
teve  de  fazer  paia  resgatar. o  seu  rei,  licou-lhe  no 
campo  de  batalha  a  ílor  da  sua  nobreza  De  10:000 
corabalenles,  morreram  GOOO. 


Eram  assim  as  batalhas  antes  da  invenção  da 
palavra,  estygmalisada  por  alguns  philosophos  que 
se  dizem  humanitários! 


PEREZ  LORENZO 

(iSccnaN  tia  CaBiiiiaiilia  ilo  niexico] 

Por  PIMIEIRO  CHAGAS. 

YI 

Assim,  conversando  c  rindo,  tinham-se  ido  ap- 
proximando  do  sitio,  d'onde  partiam  os  sons,  que, 
ouvidos  ao  longe,  tanto  iinham  enlevado  os  conlra- 
guerrilhas,  e  que  se  iam  tornando  cada  vez  mais 
distinctos  e  harmoniosos.  Afinal,  um  jorro  de  vi- 
víssima luz  inundou  o  arvoredo,  que,  rareando-se 
de  súbito,  deixou  ver  uma  ampla  clareira,  e  n'essa 
clareira  um  espectáculo,  deveras  próprio  para  ma- 
ravilhar homens  menos  habituados  do  que  esses 
aventureiros,  aos  casos  inesperados  e  extravagantes 
das  florestas  mexicanas. 


4  02 


O  PANORAMA 


No  meio  da  clareiía  ardia  um  fogo,  cujo  clarão 
avermeliiado  purpúrea va  as  arvores  immoveis,  que 
circumdavam  a  sala  de  baile  (chamamos-llie  assim 
por  justos  molivos),  e  projectava  sombras  vacillan- 
les  nas  ditrerentes  veredas  que  alli  iam  ler,  e  que 
até  um  cerlo  poníoeram  illuminadas  pelos  lampe- 
jos da  fogueira.  Junto  d'es[a,  insolentemente  re- 
costado na  relva,  estava  um  homem,  o  único  do 
bando,  dedilhando  uma  guitarra  com  toda  a  non- 
c/ifilaiice  do  amador  andaluz,  e  contemplando  a  dan- 
ça lasciva  d'uni  bando  de  mulheres,  que  revolu- 
teavam n'um  bolero  dos  mais  animados,  acompa- 
nhando-se  com  as  inevitáveis  castanholas.  Entre 
estas  mulheres  havia-as  bonitas,  leias  e  horrendas, 
havia-as  de  todas  as  procedências,  mexicanas,  hes- 
panholas,  Índias  até,  mas  todas  essas  nacionalida- 
des se  fundiam  perante  a  iniluencia  magnética  do 
bolero  e  das  castanholas,  da  guitai'ia  e  do  pandei- 
ro, que  se  casavam  harmoniosamente  inundando 
a  lloresla  de  melodias,  que  tinham  ido,  como  vi- 
mos, alVagar  suavemente  o  ouvido  doscontra-guer- 
rilhas. 

Depois  das  scenas  de  guerra  e  de  sangue  que 
tinham  vindo  procurar,  esta  scena  de  paz  e  de 
serena  tranquillidade  não  podia  deixar  de  incan- 
lar  os  aventurosos  soldados.  Todos  elles  estavam 
muito  longe  de  se  parecerem  com  a  Hermínia  do 
Tasso,  mas  convenço-me  de  que  todos  sentiram  a 
impressão  que  a  heioina  do  poeta  de  Sorrento  sen- 
tio  ao  deparar-se-lhe  a  dois  passos  das  pelejas  san- 
guinosas,  dos  combates  de  Jerusalém,  do  acampa- 
mento dos  cruzados,  o  suave  idilio  dos  pastores. 
Não  foi  pequeno  o  espanto  dos  dançadores,  ao 
verem  appaiecer  de  súbito  na  clareira  aquelle  gru- 
po inesperado,  e  ao  verem  scintillar  as  chammas 
nos  canos  das  espingardas,  nas  folhas  das  espadas, 
enas  bayonetas  luzentes.  Ao  brado  deesj)anloede 
satisfação  com  quíí  os  contra-guerrilhas  saudaram 
esta  scena  tranquilla,  que  se  lhes  deparava,  cor- 
responderam os  actores  d'ella  cora  um  grito  de 
terror. 

Logo  se  lhes  dissipou  o  susio,  ainda  que  não 
fosse  senão  pela  impossibilidade  em  que  estavam 
de  fugirem.  Todas  lizeram  da  necessidade  vii-lude. 
Era  impossível  a  fuga,  resignaram-se.  Também,  se 
fugissem,  parecc-me  que  l^ugiriara  como  as  nym- 
phas  da  lllia  dos  Amores  do  nosso  immoilal  (Ca- 
mões fugiam  dos  aventurosos  companheiros  de 
Vasco  da  íiama,  paia  terem  o  prazer  de  ser  alcan- 
çadas, pai  a  darem  aos  seus  perseguidores  a  doce 
gloria  de  as  vcncei-em. 

O  (íguiiarreiroj)  esse  é  que  tentou  esquivar-se 
deveras.  Armou  o  pulo,  e  saltou  como  um  jaguar 
para  o  mais  cerrado  do  arvoredo.  Mas  logo  deu  um 
grito  portjue  se  achou  nos^ braços  d'um  homem, 
que  surgia  d'esse  lado  onde  elle*  não  esperava  ini-i 
migos. 

Entretanto  os  soldados,  com  o  consentimento  do 
commandante,  capitulavam  com  as  suas  mais  ou 
menos  bellas  prisioneiías,  escolhiam  par  e  prepa- 
ravam-se  para  aproveitar  o  bail.',  a  que  o  acaso  os 
convidara.  Era  tanto  mais  justa  a  sua  resolução 
quanto,  como  depois  conheceram,  essas  mulheres 


e  esses  preparativos  esperavam  n'esse  sitio  os  ban- 
didos, que  lhes  appareciam  agora  manietados  e 
encerrados  n'um  circulo  de  bayonetas. 

Só  faltou  o  guiiari-eiro;  o  homem,  como  vimos, 
no  ímpeto  da  fuga  lòia  cair  nos  braços d'um  novo 
actor,  que  parecera  surgir  de  propósito  do  centro 
da  lloresla  para  se  prestar  a  essa  tocante  scena. 
Quando  todos  perguntaram  por  elle,  viram-no  ap- 
parecer  rebolando  junto  da  fogueira.  O  homem  li- 
zera  a  sua  entrada  em  scenad'um  modo  um  tanto  ori- 
ginal imi)eHido  pelos  braços  robustos  do  recem- 
chegado,  que  não  o  recebera,  como  vêem,  com  um 
carinho  exemplar. 

Todos  se  riram,  e  o  que  fornecera  assumpto  para 
as  gargalhadas,  approxímou-se  mansamente  do  ca- 
pitão Viarmont,  que  permanecia  distrahido,  o  dis- 
se-lhe,  tocando-lhe  no  hombro: 

— Capitão,  preciso  que  me  oiça.  Ao  deixar  para 
sempre  este  mundo,  não  quero  que  a  minha  ima- 
gem tique  gravada,  como  a  d'um  assassino  selva- 
gem, na  memoria  d'um  homem  de  bem. 

O  capitão  voltou-se  estremecendo,  e  vío  Perez 
Lorcnzo. 

(Continua.) 


UM  PESADELLO 


Era  n'um  baile  de  mascaras:  lagar  da  scena, 
ambíguo;  actores,  meia  dúzia  de  mancebos  assen-  / 
tados  em  torno  de  uma  mesa,  ond^  sé  viam  os  mais  \ 
exquisítos  manjares  e  vinhos  de  todas  as  ([ualida- 
des.  A  conversação,  a  pi'incípio  solto  você,  ainda 
que  um  pouco  animada,  foi  seguindo  depois  a  es- 
cala progressiva  até  chegar  a  um /íf///alroador,  no 
qual  um  musico  poderia  observar  uma  desalinação 
crescente. 

Primeiro  que  tudo  convém  dizer  que  eu  finono- 
syllabo  satânico)  representava  uma  unidade  da 
mencionada  meia  dúzia. 

Ainda  que  não  conservo  mais  do  (jue  uma  idéa 
confusa  d'a(iuella  scena,  recordo-me,  comtudo,  que, 
em  quanto  os  meus  cinco  comj)anheiros,  com  o  rosto 
afogueado  e  os  olhos  faiscantes,  referiam  uns  a  ou- 
tros, sem  se  allenderem,  as  conquistas  d'aquella 
noite  e  os  encantos  da«polka  intima,  a  minha  pes- 
soa (procurarei  evitar  o  eu  tanto  quanto  me  for 
possível  j  cantarolava  em  voz  baixa  a  Avalsa  do  Fausto, 
batendo  o  com|)asso  com  uma  faca,  (jue  feria  si- 
multaneamente um  pialo,  onde  jaziam  os  restos  do 
esqueleto  de  uma  perdiz.  Aminlia  altitude  reconcen- 
trada  e  (|uasi  silenciosa  no  meio  d'aquella  tumul- 
tuosa assembléa  formava  um  contraste  flagrante, 
(|uc  os  meus  amigos  não  podiam  deixar  de  perce- 
ber. 

— Ólá,  acorda!  me  disse  um  d'elles,  dando-mo 
com  o  pé  por  debaixo  da  meza.  Então,  não  eslá  quasi 
a  dormir  estesenlioil 

—  Levanta  os  olhos,  disse  outro,  se  é  que  não 
receias  de  que  ifelles  contemos  os  copos  (pietens 
bebido. 

Parece-mc  que  n'este  momento  levantei  a  ca- 
beça. 


o  PANORAMA 


103 


— Sabes,  meu  amigo,  que  és  pássaro  de  mau 
agoiro?  exclamou  um  terceiro;  essa  caia  de  miserere 
é  imprópria  da  situação. 

— Muito  bem  dito.  È  dissonante. 

— Incongruente. 

— Yá-se  deitar. 

— Não,  não,  íalle. 

Procurei  fazer  um  esforço  sobre  mim  mesmo. 

— Sabem  o  que  lhes  digo?  exclamei  a  íinal 
olhando  em  torno  de  mim;  é  que  os  vossos 
rostos  \'ão-se  tingindo  successivamente  de  amarello, 
azul,  encarnado  e  até  de  todas  as  cores  do  arco 
iris. 

— Safai  conhecc-se  quelcm  bebido  mais  do  que 
um  inglez. 

— Isso  é  conforme  a  còr  do  vinho  com  que  nos 
olhas. 

— É  singularissimo!  tornei  eu,  com  a  insis- 
tência própria  da  embriaguez,  e  levando  aos 
lábios  um  copo  formidável,  coroado  de  fervente 
escuma;  n'este  momento  todas  as  phisionomias  pas- 
saram de  encarnado  a  uma  còr  de  ouro  vivíssima. 

Esta  observação  foi  acolhida  com  estrondosas 
gargalhadas,  em  quanto  que  eu  sentia  com  prazer 
na  garganta  o  agradável  attrito  do  artiíicial  cham- 
panlie. 

Cançado  sem  duvida,  d'aquelle  esforço,  ou  para 
melhor  dizer,  magnetisado  pelos  vapores  do  néc- 
tar, tornei  a  deixar  cair  a  cabeça,  iiiostrando-me 
insensível  a  tudo  quanto  me  i-odeava.  Julgo,  toda- 
via, que  procurei abiir  os  olhos;  porém,  cada  umJf 
das  pálpebras  pesava,  seguramente,  Ires  a  quatro 
mil  kilogrammas;  quiz  livrar-mc  d'aquelle  peso 
importuno,  mas  os  braços  negaram-se  a  obedecer- 
me,  e... 

Estou  desconíiado  que  adormeci. 

Não,  porém,  com  esse  somno  tranquillo  e  des- 
cançado,  parenthesis  da  vida,  que  com  tanto  afan 
deseja  quem  padece;  pelo  contrario,  com  um  d'essos 
somnos  agitados  em  que  a  sensação  se  duplica  e 
em  que  a  vida  moral  se  reconcenlra  em  um  sen- 
timento exclusivo,  em  um  desejo  supremo.  Sú- 
bito, vi  llucluar  ante  meus  olhos  uma  ligura 
branca,  cujos  contornos  se  perdiam  nas  som- 
bias:  nada  mais  fantástico  e  voluptuoso  que  es- 
ta apparição,  superior  ás  creações  de  Raphael, 
superior,  em  iim,  á  própria  natureza.  l'm  véo 
branco,  semelhante  a  uma  d'essas  nuvens  que  va- 
gam pelo  ceu  cm  noite  de  lua,  occultava  suas  fei- 
ções, deixando  transparecer  o  brilho  abrasador  de 
seus  olhos. 

Fez-me  um  leve  signal  com  a  mão,  como  que 
chamando-me,  mas  em  vão:  as  pernas  e  os  braços 
negaram-se  ao  movimento  c  (iquei  immovel,  não 
sem  experimentar  um  inexplicável  sentimento  de 
angustia. 

Não  obteve  melhor  resultado  outro  novo  signal 
da  sylphide,  até  que  me  voltou  as  costas  e  come- 
çou a  caminhar.  Como  o  aço  attrahido  pelo  iman, 
assim  uma  força,  cuja  origem  desconhecia,  me 
arrastou  em  seu  seguimento.  Os  pés  não  se  moviam 
e  comtudo  caminhava. 

Na  minha  cabeça  ainda  havia  alguma  coisa  que 


se  parecia  com  baile  de  mascaras,  e  por  isso  foi 
ao  salão  que  o  meu  guiamysterioso  me  conduziu. 
Yia-a  revolutear  por  cima  d'aquelle  fervente  occeano 
de  cabeças,  e  seguia-a  sempre  com  o  coração 
palpitante.  Depois  de  ter  percorrido  todos  os 
ângulos  do  salão,  desappareceu  por  uma  das 
portas,  deslizando-se  ao  longo  de  um  corredor 
escuro  e  tortuoso,  para  o  qual  me  senti  arrastado 
em  seu  seguimento.  À  medida  que  caminhávamos 
as  paredes  iam-se  estreitando  visivelmente,  e  pres- 
tes me  achei  preso  entre  ellas,  sem  poder  retro- 
ceder, nem  avançar.  Um  suor  frio  brotou  da  raiz 
dos  meus  cabellos  erriçados  pelo  terror,  e  senti 
a  cabeça  tomada  de  vertigem:  a  vista  obscureceu- 
se-me:  fallou-me  aos  pés  o  ponto  de  apoio  e  des- 
penhei-me  em  um  chãos  de  trevas! 

A  tentadora  imagem  não  tinha  desapparecido : 
vi-a  circumdada  por  uma  auréola  de  luz,  que  fazia 
realçar  os  seus  contornos  no  fundo  escuro  do  espaço. 
Ouiz  approxiraar-me  (relia:  ella  voltou-se  e  veio  en- 
tão para  mim ;  cingi-lhe  com  o  meu  braço  a  sua  esbel- 
ta cintura,  cuja  fria  e  dura  superfície  me  gelou  o 
sangue  nas  veias.  Ati-avez  do  seu  branco  véo,  dois 
pequenos  pontos  luminosos  vinham  ferir-me  as  pu- 
pillas:  eia  sem  duvida  a  chamma  que  despediam 
as  suas:  arranquei-lhe  aquella  importuna  venda. 
Horror!  Em  vez  de  um  rosto  radiante  de  belleza, 
encontrei  a  fria  e  repugnante  imagem  da  morte! 
Era  uma  caveira,  cuja  boca  sem  lábios,  entreaberta, 
tinha  uma  expressão  de  cruel  sarcasmo.  No  fundo 
d'aquellas  duas  escuras  cavidades  brilhavam  duas 
chispas  phosphoricas,  que  contribuíam  a  dar  uma 
expressão  ainda  mais  sombria  ao  seu  espantoso 
conjuncto.  Inutilmente  tentei  arrancar-mc  de  seus 
braços,  que  me  agarra\am  com  uma  força  sobre 
natural,  e  assim  continuamos  a  rodar  pelo  vácuo, 
sem  ar,  sem  luz,  semhorisonte.  O  fantasma  appro- 
ximou  do  meu  o  seu  loslo  de  esqueleto:  os  meus 
lábios  sentiram  o  frio  contado  da  sua  boca  car- 
comida: no  cumulo  da  angustia  quiz  retirar  vio- 
lentamente a  cabeça,  que  bateu  sobre  uma  superfície 
dura,  e  me  fez  exhalar  um  gemido  de  dor .. 

Accordeil 

Eslava  deveras  cançado.  Em  lorno  de  mim  tudo 
era  desordem;  alguns  dos  meus  companheiros  re- 
sonavam  deliciosamentcestendidossobrcas  cadeiras 
e  outi'os  tinham  dcsajiparecido.  Alravez  do  cortina- 
do das  janellas  a  aurora  tingia  de  uma  cor  lívida  to- 
das as  phisionomias.  O  ruído  que  vinha  do  salão 
era  mais  igual,  porém,  mais  rouco  e  amortecido 
do  que  quando  eu  e  os  meus  companheiros  de 
banquete  o  abandonamos. 

Acendi  um  charuto  e  fumei:  isto  screnou-me 
completamente;  parecia  que  a  terrível  imagem  do 
meu  sonho  fugia  involla  no  fumo  que  me  saía  da 
boca. 

Enirei  no  salão.  l'm  baile  de  mascaras,  no  seu 
ultimo  período,  tem  sempre  alguma  coisa  de  ter- 
rível. Então  já  não  ha  mulheres  bellas.  O  triste 
sello  da  orgia  imprime  em  lodos  os  rostos  a  sua 
marca  infei-nal:  o  matiz  das  fac(S,  o  carmim  dos 
lábios,  a  voluptuosidadc  dos  olhares,  tudo  desap- 
parece.  Já  nãohaprazer,  commoções,  re^Iasóofas- 


i04 


O  PANORAMA 


tio.  Parece  que  o  demónio  da  realidade  empeçonha 
com  seu  hálito  acfnella  alhmosphera  pouco  antes 
impregnada  de  beijos,   de  queixas  e  suspiros  de 

amor. 

Uma  mascara  approximou-se  silenciosamenle  de 
mitti,  pegando-me  no  braço. 

—  Vamos!  me  disse,  já  são  horas.  Tenho-le 
procurado  toda  a  noite,  por  toda  a  parte,  sem  te 
encontrar.  Receei  que  me  tivesses  esquecido. 

Em  i-esposla  levei  o  charuto  à  bocca,  fugi-lhe 
com  o  braço,  metti  as  mãos  nas  algibeiras  e,  vol- 
tando costas,  dirigi-me  para  a  poria  comum  passo 
vacilante,  sentindo' d'ahi  a  bocadinho  açoitar-me 
o  rosto  o  frio  orvalho  da  madrugada. 


Mais  de  um  leitor,  ao  terminar  a  leitura  d'este 
artigo,  exclamará: 

— E  que  me  imporia  a  mim  tudo  isto?  Quem  é 
que  não  lera  sonhado  alguma  coisa  parecida'^  Es- 
tes senhores  fazedores  de  artigos,  julgam  que  tudo 
quanto  lhes  succede  é  sobrenatural. 

Tranquil!ise-se.  leitor.  Tem  rasão:  os  leitores 
lem-n'a  sempre.  Lembre-se,  porém,  que  a  vida  é 
um  sonho,  que  sonhou  ter  lido  este  artigo  como 
eu  sonhei  tel-o  escriplo.  Se  o  sonho  lhe  parece 
mau,  classilique-o  de  pesadello  e  d'esse  modo 
concorda  com  migo. 


BEATRIZ 

XIII 

Beatriz  eslava  só;  Jacques  sairá. 

Tinha  passado  nin  aiino  dos  (juo  a  hclla 

Commellera  o  dclicto  imperdoável 

De  abandonar  o  condo;  a  providencia 

Não   lhe  tinha,  porem,  como  cm  casligo, 

Amortecido  a  esplendida  bellesa 

Do  rosto  encantador:  anjo  caido, 

Inda  ostentava  o  mimo,  a  graça  pura 

(Jiic  o  eco  lhe  havia  dado,  como  a  poucos. 

Kra  am.ada  e  feliz,  toda  a  existência 

Espraiava-se  então  n'um  paraizo 

De  ventura,  ideal;  como  pensara 

Na  escura  cerração  (]ue  em  torno  d'ella 

Sc  cohdemnava  *ja,  (piando  em  sua  alma 

Grata   aurora  de  amor  ííenlil  brilhava?.... 

Beatiiz  eslava  só;  rapidamente 

Um  confuso  Iropel  lhe  invade  a  sala. 

Que  foi?.,  quem  era  pois?.,  porque  viriam 

Amedrontar  a  pomba  que  arrulhuva 

No  seu  ninho  de  murtas  perfumadas?.. 

Ceos!  eu  a  vi  sem  cor,  sem  voz,  sem  tino, 
Rojada  aos  pés  de  um  velho,  que  bradava 
A' chusma  dos  algozes:— cHil-a  é  estai» - 
CeosI  cu  a  vi  sem  còr,  sem  voz,  sem  Uno, 
Morta  de  espanto  e  dor,  arrebatada 
D'aquelle  eco  de  paz,  como  a  folhinha 
Que  o  norte  ajíudo  arranca  ao  jasn)ineiro, 
É  a  vai  deitar  nos  a;:oaçiies  immundos!. 
(leos!  eu  a  vi....- não  v"i,  peço  desculpa, 
Porém  ouvi  contar;  um  dia  o  conde, 
Firmado  cm  Ires  artigos  cascarrudos 
Do  Coílif/o  pntitl,  foi  com  a  justiça 
Dar  i)riiicipio  ao  cíisligo  memorável 
Que  a  lei  lhe  concedia;  — ó  Chrislo,   Chrislo, 
(>jmo  tu  eras  bom,  como  sabias 
Quanto  é  fácil  cair  no  horrendo  abismo 
Que  se  nos  rasj^a  aos  |)esl...  Que  alire  a  pedra 
A  mulher  (pie  peccou,  (piem  jamais  leve 
Ura  remorso  a  mordcr-lhc  a  consciência!  .. 


XIV 

Estou  cerlo  que  alguém,  de 'gosto  e  critica, 

Censura  esta  passagem,  como  avessa 

Ao  lyrismo,  ao  perfume,  a  singeleza, 

A'  graça  natural,  e  a  muitas  cousas 

Que  os  versos  devem  ler;  oh!  mas  se  a  gente 

Seguir,  como  ovelhinha,  estes  pastores 

Que  nos  estão  guardando  as  lettras  pátrias, 

Tomba  da  serra  abai.vo  em  pouco  tempo. 

Cada  (jual  tem  seu  rumo;  a  minha  estreita 

E'  meu  pharol,— caminho  e  não  percebo 

O  canto  chão  dos  críticos  roufenhos. 

É  trivial  o  assumpto?...  que  me  importai... 

Fora  melhor  talvez  sagrar  a  musa 

Ao  género  de  truz,  aos  grandes  cantos, 

]\  aos  retumbantes  versos  que  apavoram  ; 

Faltar  no  Parthenon,  em  Gnido,   cm  1'aphos, 

Nas  abelhas  do  Hymeto;  entrar  no  Egypto, 

Conversar  com  as  pirâmides  altivas, 

Dar  voz  ao  rayo,  ao  vento,  aos  esqueletos, 

As  montanhas,  ao  pego,  ao  mundo  inteiro, 

Aos  demónios  cruéis;  fazer  um  coro 

De  estrondo  à  Mayerbecr,— (jue  produzisse 

Três  vagados  morlacs,  e  depois  d'isso, 

Adormecer  na  gloria  salisfeilo. 

Talvez  fosse  melhor,  creio  até  mesmo 

Que  este  ponto  é  de  fe;  mas  quem  me  dera 

Que  em  togar  disso  tudo,  um  dia  cedo 

Eu  podesse  escrever  Hl  diablo  mundol— 

E.  A.  Vidal. 

ContiiiuM 


IMPROVISO 

Bem  sei  que  o  gelo  do  inverno 

s(')  tristezas  reverbera ; 

mas  se  pródiga  de  incantos 

dos  annos  a  primavera 

em  tua  fronte  sorri, 

^porcjue  repellos  de  li 

a  saneia  luz  da  alegria, 

e  por  entre  um  véu  de  lagrimas 

olhas  alem  no  horisonte 

a  neve  que  o  vento  envia 

ás  cumieiras  do  monte? 

^porípie  íilas  tristemente 

com  esse  olhar  maguádo 

a(|uelle  arroio  gelado 

que  alem  sustou  a  corrente? 

Afasia  os  olhos  do  gelol 
o  monte,  não  qiieiras  vel-o 
nem  as  neves  que  lá  vão 
dependurar-se  na  crista 
(|ue  no  horisonte  se  avista 
airavez  d'esla  janella 
açoutada  do  aquilão. 
Nem!  inclina-té  em  meu  seio; 
c,  se  lhe  ouvireé  o  anceio, 
contente  veras  então 
(juo  se  o  rigor  da  estação 
tuda  lá  por  fora  gela, 
não  gela  meu  coração  l 

.laneiro  de  18G... 

Cândido  FicuEiRnDO. 


São  os  dous  entes  mais  parecidos  da  natureza, 
o  poeta  e  a  mulher  namorada:  vècm,  sentem, 
pensam,  faliam  como  a  outra  gente  não  vè,  não 
sente,  nã')  pensa,  nem  falia. 

Garrkít. 


i 


Typ.  Tranco  rorliigiitza,  Rua  (Jo  Tlicsouro  Velho,  G. 


14 


o  PANORAMA 


4  05 


CIRCASSIANOS 

Fazem  parte  estes  povos  da  turbulenta  popula- 
ção do  Cáucaso,  que  os  Russos  não  conseguiram 
subjugar  nunca,  e  sobre  os  quaes  exerceram  ha 
pouco  uma  d'aquellas  terríveis  vindictas,  que  lem 
feilo  o  nome  de  Russo  execrando  a  lodos  os  ami- 
gos da  humanidade  e  da  civilisação. 

A  sua  historia  é  um  pouco  obscura,  principal- 
mente nas  suas  origens.  Suppõe-se  que  aCircassia 
occidenlal  devia  fazer  parte  do  antigo  reino  da 
Colchida,  e,  depois,  doRosphoro  Cimmeriano.  So- 
bre a  parte  oriental  d'este  paiz  ainda  são  mais  vagas 
as  conjecturas.  Conquistou-o  Milhridales,  e  quan- 
do o  grande  rei  leve  de  curvar  o  colio  á  fortuna 
de  Roma  e  á  de  Pompeu,  entrou  a  Circassia  na 
vasta  lista  dos  dominios  romanos,  fazendo  parte 
do  impeiio  do  Oriente,  quando  se  bipartio  o  colosso. 
Coratudo  os  imperadores  byzanlinos  não  foram  mais 
felizes  do  que  os  czares  de  S.  Pelersburgo ;  o  seu 
domínio  n'essas  regiões  remotas  do  império  foi 
sempre  nominal.  Quando  veio  a  invasão  dos  bár- 
baros, coul}e  aos  terríveis  Hunos  subjugarem  a 
Circassia.  Siiccedeiam-lhes  os  Khasares,  contra  os 
quaes  estes  povos  se  sublevaram,  com  fortuna  va- 
ria, no  século  onze  da  uossa  era.  Depois  vieram 


os  Turcos  da  Pérsia  e  os  reis  da  Geórgia,  depois 
Tamerlão,  depois  os  kans  da  Criméai  depois  fi- 
nalmente os  russos,  que  entiaram  como  allíados, 
e  quizeram  licar  como  conquistadores.  Nãolh'o  sof- 
freram  os  Circassianos,  sempre  turbulentos  e  in- 
domáveis, e  voltaram  a  sujeitar-se  aos  Tártaros  da 
Criméa.  Mas  estes  principiaram  a  commelterexac- 
ções;  eis  de  novo  os  Circassianos  em  revolta,  e 
implorando  a  protecção  da  Porta  Ottomana,  cujo 
domínio  acceitaram,  sem  comtudo  lhe  pagarem  o 
mais  leve  tributo. 

Como  os  leitores  hão-de  ler  notado,  os  differen- 
tes  domínios  estrangeiros  a  que  os  Circassianos  se 
sujeitaram,  nunca  foram  senão  quasí  exclusiva- 
mente nominaes.  Quando  os  seus  senhores  que- 
riam reivindicar  os  seus  direitos,  os  audazes  mon- 
lanhezes  refugiavam-se  nos  seus  serros  inaccessi- 
veis,  e  d'ahi  desafiavam  impunemente  os  exérci- 
tos, que  pretendiam  subjugal-os. 

Mas  ainda  aqui  não  pararam  as  vicissitudes  po- 
líticas da  Circassia.  Em  1739  a  Circassia  foi  pro- 
clamada independente,  em  virtude  da  paz  de  Bel- 
grado, alim  de  servir  de  baluarte  á  Rússia.  Mas 
os  Circassianos,  que  defendem  obstinadamente  a 
sua  independência  individual,  porem  que  pouco 
se  importam  com  a  sua  autonomia  de  nação,  uni- 
rani-se  de  novo  á  Criméa,  que,  rendendo  vassalagem 


06 


O  PANORAMA 


á  Turquia,  tornou  dependentes  da  Porta  Ottoma- 
na  estas  populações  que  se  llie  tinham  ligado. 

Em  1774  perdeu  de  lodo  o  sullão,  em  virtude 
das  conquistas  de  Catharina  da  Ru§sia,a  sombra 
d'autboridade  que  exercia  sobre  estas  províncias 
monlanhezas.  Em  1789  passaram  ellas  deliniliva- 
iiiente  a  fazer  pai  te  do  império  moscovita. 

Começou  então  uma  nova  era  para  a  Circassia. 
Até  ahi  os  povos,  que  a  tinham  dominado,  só  de 
longe  a  longe  tentavam  ti-ansfoi-mar  em  realidade 
essa  Delicia  suzerania.  A  Ciicassia  revollava- 
se,  sacudia  o  jugo,  coUocava-sc  debaixo  da  pro- 
tecção d'oulro  paiz,  e  acabava  tudo.  Com  a 
Rússia  não  succedeu  o  mesmo;  a  Rússia  tentou  a 
sério  estabelecer  o  seu  dominio,  e  a  Rússia  não 
era  paiz  que  desistisse  das  suas  pretenções  perante 
a  insurreição  d'um  povo  pequeno,  ainda  que  atre- 
vido. Os  Circassianos  enlenderam  que  não  deviam 
alterar  por  caso  algum  o  seu  velho  systema.  I)'ahi 
provieram  as  longas  e  continuadas  guerras,  que 
ainda  ha  pouco  terminaram...  se  terminaram,  e 
se  a  medida  horrivel,  adoptada  pelo  governo  rus- 
so, de  airancar  populações  inteiras  á  sua  terra  na- 
tal, e  populações  que  tèem  tão  desenvolvido  o  amor 
da  pátria,  e  de  as  transplantar  para  outro  solo, 
para  outros  climas,  obrigando-as  a  outro  género 
d'existencia,  fez  mais  do  que  annuliar  jior  algum 
tempo  a  insuireição,  exacerbando  comludo  os  ódios, 
que,  em  chegando  a  occasião  própria,  se  reaccen- 
derão  com  nova  fúria. 


ESBOÇO  DESCRIPTíVO  DO  MAR 
I 

É  o  oceano  a  imagem  grandiosa  do  mysterio  e 
da  solidão.  Que  espectáculo  sublime  o  contemplar 
pela  primeira  vez  esses  ])lainos  líquidos,  cuja  su- 
perlicie  oia  se  ostenta  brilhante  e  reluzente  como 
um  espelho  ciislallino  apenas  encrespado  de  leve 
peias  ondas  arquejantes,  ora  seenturva  e  rebrama, 
erguendo  montanhas  de  agua  que  tumultuam,  ge- 
mem e  luctam  e  se  estorcem  em  vascas  de  deses- 
pero, e  alinal,  tritões  prostrados,  beijam  fremen- 
tes os  rochedos  da  praia ! 

O  mar  é  o  symbolo  da  immcnsidade  e  da  força 
ingente,  louco,  vertiginoso. 

É  no  mar  que  a  natureza  é  verdadeiramente 
terriíica  aos  olhos  do  homem. 

iNo  oceano  é  tudo  grande,  c  (udo  gigante  e  res- 
peitável. 

Todos  os  phenonienos  marítimos  leera  uma  fei- 
ção grandiosa  e  profundamenl(í  mystica,  e  a  alma 
quando  vôa  por  sobre  as  límpidas  solidões  oceânicas, 
como  que  se  flilata  no  sanctuario  da  terra. 

Quem  ha  ahi,  que  não  tenha  contemplado  o  pôr 
do  sol  no  mar,  em  tarde  límpida  de  estio? 

O  rei  do  universo,  o  astro-lampadario  vae  des- 
cendo para  o  oriente.  As  vagas  tumultuam  e  do- 
bram docemente  a  íimbria  es[)umosa  para  recíiber 
no  seio  o  planeia.  Disséreis  um  bando  de  huris 
arquejantes,  (|ue  S(!  alindam  e  enfeitam  para  da- 
jcm  guarida  ao  sullão  lumino.so.  Eil-o  emlim  que 
mergulha.  Retingem-se  as  aguas  com  os  derradei- 


ros clarões.  Forma-se  a  auréola  na  extrema  do 
horisonte.  As  ondas  pulam  e  bailam  e  refran- 
gendo a  luz  nos  seus  crystaes  líquidos,  enru- 
becera-se,  corôam-se  de  pedrarias.  A  alhmos- 
phera  parece  um  rio  de  fogo,  as  nuvens,  diapba- 
nas  qual  bafejar  de  archanjo,  precipilam-se  no 
mar  e  seguem  o  rei  do  dia.  No  zeniih  reina  ainda 
o  fulgor  Ígneo  e  relampejam  reflexos  brilhantes. 

As  sombras  não  surgem  ainda  no  oriente,  eraal 
ousam  tufar  o  seu  negro  manto. 

Psão  brilham  estreitas.  Tudo  é  placidez  csocego. 
Nem  um  só  murmúrio.  Só  a  brisa  da  tarde  cicia 
medrosa  na  espessura  e  os  passarinhos  soltam  os 
últimos  quebros. 

Vae  mergulhando  entanto  o  astro  do  dia.  E  lento 
o  seu  caminhar.  O  globo  afogueado  deixa  um 
hemíspheriocom  saudades,  paraillumínar  o  outro. 

K  o  mar  continua  no  seu  tumultuar,  e  as  ondas 
gemem  e  soluçam. 

Desapparece  emlim  o  asíro  radioso;  desfaz-se  o 
sulco  da  luz  no  lii-mamento,  apparecem  as  pri- 
meiras sombras,  as  estreitas  scintillam  a  medo,  os 
pyrilampos,  essas  estrellas  das  campinas,  reluzem 
nas  selvas  e  sarças,  acallada  da  noite  é  interrom- 
pida pelos  mil  rumores  do  estio.  Yolitam  inse- 
ctos multicores,  aninham-se  pássaros  nos  recessos 
sombrios,  aílloram  reptis  nos  relvados,  grasnam 
rãs  nos  paues,  cruzam-se  immensos  ruídos  surdos, 
profundos,  vilães,  até  que  chegue  a  hora  do  re- 
pouso, que  é  tardia  nas  nossas  latitudes,  dui-ante 
o  verão. 

Quem  não  dirá  então  como  Castilho,  que  pin- 
tou o  pôr  do  sol,  quando  escreveu  após  intima 
c  profunda  elaboração  aquelle  cântico  que  começa: 

«Sumiu-sc  o  sol  esplendido 
unas  ondas  rumurosas. 


Mas  quantas  vezes,  mal  o  sol  se  some  nos  plai- 
nos  (lo  oceano,  não  surge  alua  radiante  e formosa, 
illuminando  a  terra  com  os  seus  raios  pallidos! 
Muda  então  o  mar  de  aspecto. 

Rebrilham  ao  longe  as  vagas  endoidadas  brin- 
cando na  orla  do  horisonte. 

Os  rochedos,  que  circumdam  a  praia  projectam 
sombras  phanlasticas  nas  aguas,  que  se  emba- 
lam docemente  e  beijam  i)regui70sasa  areia. A  imagi- 
nação povoa  as  solidões  de  seiTS  fabulosos,  e  sereias, 
(jue  descantam,  no  silencio  da  noite,  toadas  ma- 
viosas c  plangentes.  Debalde  intentam  os  olhos  ras- 
gar as  profundezas  do  abysmo.  O  espectador  liça 
aterrado,  absorto,  altonilo. 

Ou  Iras  vezes,  a  estes  espectáculos  já  de  si  Ião 
grandiosos,  succede  a  ardenlia,  essa  phosphores- 
cencia  do  mai-,  esse  relampejar  entre  partículas 
de  agua.  Este  phenomeno,  que  ainda  hoje  c  revel 
á  sciencia,  |)Oslo  {|ue  tenlia  excitado  a  allenção 
de  lodos  os  grandes  naturalistas,  ostcnla-se  mara- 
vilhoso e  produz  não  sei  que  suavíssima  impressão 
em  (|uem  o  contempla. 

Não  é  tilo  meu,  nem  caberia  nas  eslreilezas  de 
um  artigo,  ofallar,  se  bem  (jue  perluncloriamenle, 
(las  mil  e  uma  maravilhas  do  mar.  I'ara  obra  de 
lai  magnitude,  se  por  ventura  a  tanto  podesse  aba- 


i 


o  PANORAMA 


i07 


lançar-me,  carecera  de  escrever  um  livro,  ou  an- 
tes um  poema,  entre  os  muitos  que  a  natureza 
encerra  nos  seios  vastíssimos,  cada  vez  mais  opu- 
lentos, á  medida  que  a  sciencia  vae  dilatando  os 
seus  dominios. 

E  que  bello  e  formosíssimo  livro  não  seria  esse 
se  alguém  o  escrevesse!  (jue  de  tliesouros  não 
encerrara!  Que  magnificências ! 

Quando  as  vagas  tumultuam  e  se  contorcem  em 
ímpetos  raivosos,  quando  erguem  o  collo  e  ondeiam 
e  se  enroscam,  como  serpentes  líquidas  tauxiadas 
de  côrcs  esverdeadas;  quando  cingem  os  rochedos 
e  os  coraes  madreporicos,  resfolegando,  gemendo 
e  cuspindo  espuma  na  praia;  quando  no  meíodVsse 
coiôbate,  em  que  a  tormenta  ronqueja  nos  ares 
revoltos,  se  alevantam  mil  rumores  sinistros  de 
estrago  e  morte;  quando  aos  gritos  da  natureza 
enraivecida  respondem  os  gemidos  dos  homens, 
que  luctam  e  disputam  a  vida  em  pleito  desigual; 
quando  a  tromba  se  balouça  por  sobre  a  crista  da 
onda,  e  qual  cetáceo  invisível,  sorve  a  agua  aos 
repuxões,  arrastando  o  navio  imploravelmente; 
quando  o  bulcão  estruge  a  athmosphera  e  corr^, 
como  visão  infernal,  a  superfície  dos  mares,  quando 
o  mareante  contempla  todos  estes  phenomenos  e 
escapa  incólume  a  tantos  perigos,  que  sublime 
epopêa  não  traz  comsigo?  Da  mesma  sorte  que  Ca- 
mões, esse  mareante  salvou  um  poema,  bem  sen- 
tido, bem  verdadeiro. 

Mas  afora  estes,  que  de  espectáculos  ainda,  cada 
qual  mais  grandioso!  Na  zona  temperada  do  norte 
o  fjulf-slream,  esse  rio  de  mar,  esse  Mississipi  do 
aliantico,  vastíssima  corrente  de  agua  lépida,  que 
vae  das  costas  da  Inglaterra  ao  golpho  das  Anti- 
lhas, passando  pelas  ribas  de  Portugal. 

Mais  ao  norte  o  Maelsirom,  essa  corrente  fa- 
tídica, esse  tragadouro  medonho,  que  tem  engo- 
lido tantas  viclimas,  esse  redemoinho,  aonde  habi- 
tam, segundo  é  pia  crença  de  bandinaria,  os  ini- 
migos dos  homens. 

Nas  regiões  hyperboricas  os  mares  gelados,  os 
amphitheatros  e  circos  de  neve  eterna  endurecida 
pelos  séculos,  cinta  fúnebre,  que  envolve  a  terra  e  to- 
lhe a  vida  nas  suas  manifestações  mais  singelas. 
Im  pouco  para  o  sul,  em  latitude  menor,  entestando 
ainda  com  os  coruchéus  e  miranetes  de  gelo,  com 
as  immensasmoUes  de  agua  solida,  perpetuamen- 
te íixas  e  quedas,  estanceiam  as  ilhas  lluctuantes, 
que  estalam  com  ruído,  mal  assoma  o  primeiro 
alvor  do  dia  de  seis  mezes,  e  vão  mudando  de 
forma  e  posição  correndo  aos  baldões,  arremessan- 
do-se  e  desfazendo-se,  para  se  formarem  de  novo. 
É  ahi  queas  geleiras  septemtrionaesse  entumecem 
e  enchem  o  espaço  de  sinisti'os  rumores,  éahi  que 
esses  rios  de  neve,  moendo  e  triturando  rochedos, 
desembocam  no  oceano  angustiado,  é  ahi  que  o 
movimento  desordenado  e  medonho  começa,  pre- 
cedendo a  vida. 

Já  os  ursos  do  norte  vão  apparecendoepreiando 
algum  cetáceo,  que  o  frio  colheu  de  súbito,  no 
começo  da  longa  noite;  allloram  lichens  por 
entre  os  rochedos  fendidos;  bandos  de  lobos  fa- 
mintos e  esguios  abrem  as  fauces,  e  uivam  na  so- 


lidão; o  esquímáujá  estende  as  redes,  e  nos  char- 
cos e  paues  da  Laj)onía  mais  septemtrionalexpan- 
de-se  a  vida  após  tão  largo  somno. 

Na  Irlaiidia  ergue-se  um  vulcão  do  meio  domar 
e,  da  mesma  sorte  que  na  llalia,  voam  as  cinzas 
para  o  mar,  aonde  caem  rios  de  lava. 

Deixemos  porém  o  septemtríão. 

Aguarda-nos  o  equador.  É  a  vida  ahi  excessiva 
e  gigante.  Nascem  as  tormentas  por  encanto,  as 
ondas  entumecem-se,  os  furacões  derribam  flores- 
tas e  casarias  depois  de  sulcarem  o  mar. 

Mais  além  começam  as  correntes  auslraes. 

O  Cabo  daBoa-Êsperança,  ocyclope  de  Camões, 
estende  os  rijos  membros,  e  solta  os  eternos  la- 
mentos, que  echoam  nos  rochedos  da  montanha  da 
Meza.  São  medonhas  as  correntes  que  passam  ao 
longo  do  cabo;  arrastam  navios  e  deitam-n'os  na 
costa;  engolem  victimas  no  abysmo  undoso,  como. 
que  vingando-se  da  audácia  humana,  que  ousou 
devassar  os  segredos  da  solidão. 

Para  o  oriente,  no  oceano  indico,  que  os  ma- 
reantes chamaram  oceano  Pacifico,  os  cyclones  e 
tormentos  girantes  começam  a  sua  carreira  insen- 
sata. Nada  lhes  resiste. 

O  navio,  que  acerta  de  encontrar,  por  desgraça, 
um  cyclone,  um  d'esses  tufões  medonhos,  difíicil- 
mente  escapará  ao  naufrágio. 

É  ahi  que  os  coraes,  esses  humildes  archilectos 
de  mundos,  esses  artífices  phanlasiosos,  erguem 
ilhas  e  archipelagos.  Quantas  vezes  não  encontra 
o  mareante  uma  bacia  plaeída  esocegada  no  meio 
do  oceano  em  fúria?  Quantas  vezes  não  topa  com 
um  abrigo  providencial,  se  teve  a  ventura  de  não 
se  despedaçar  contra  os  gumes  afiados  dos  coraes? 
É  que  estes  obreiros  infatigáveis  zombando  do  ocea- 
no, vão  erguendo  desde  o  fundo  altíssimas  paredes 
a  pino,  duras  e  compactas,  até  à  superlicie!  Mi- 
lhares de  annos  levam  elles  em  obra  tão  grandiosa. 
Mas  saíu-lhe  perfeita  a  fabrica,  e  o  seu  destino  é 
construir.  Venha  depois  um  vulcão  que  alevanteo 
banco  lá  do  fundo,  desfaça  e  oblitere  a  intempé- 
rie algumas  arestas  mais  vivas;  forme-se  um  pouco 
de  pó,  que  se  deposite  em  côncavos  mais  abriga- 
dos; caíam  ahi  algumas  sementes  trazidas  pelo 
vento;  nascem  lichens  e  outras  plantas  rudimen- 
tares, e  teremos  um  principio  de  vida.  Depois,  esses 
lichens,  secando  eapodrecendo,  formarãoum  terreno 
vegetal,  que  se  combina  com  os  detritos  inorgânicos; 
surgirão  coqueiros,  palmeiras,  fetos  giganteosegi- 
ganteas  trepadeiras.  A  vegetação  tropical  cobrirá  a 
nova  ilha  de  basta  espessura:  as  chuvas  tornar-se-hão 
regulares,  cada  anno  se  formam  novos  terrenos  e  a 
floresta  irá  ganhando  e  j)rosperando.  Virão  pássa- 
ros canoros  aninhar-se  n'aquelles  recessos  umbro- 
sos, encontrar-se-hão  riquezas  e  thesouros  e  afinal 
a  vida  só  acaba,  quando  o  europeu  ou  americano, 
arrastado  pela  sede  do  ouro,  puzer  machado  ao 
tronco  das  arvores,  e  desnudar  a  terra,  que  só 
muito  tarde  poderá  refazer-se,sobaquella  athmos- 
phera abrazadora,  sem  chuvas  que  a  desallerem  e 
refresquem. 

Com  o  arvoredo  acaba  a  vida. 

E  não  param  aqui  as  maravilhas  do  oceano. 


>I08 


O  PANORAMA 


Além  das  correntes,  que  cingem  o  globo  como 
demonstrou  o  celebre  capitão  31aury,  evão  do  cabo 
da  Boa-Esperança  ao  cabo  de  Horn,  atravessando 
todo  o  Pacilico;  esquecendo  as  gélidas  solidões  que 
se  dilatam  por  delraz  do  Erebe  e  Terror  até  ao 
polo  austral,  que  nunca  foram  devassadas  por  des- 
cobridor; não  levando  em  conta  lodos  osplienome- 
nos,  que  se  patenteiam  na  superíiciedo  mar,  outros 
e  certamente  mais  admiráveis  ainda,  se  verificam 
no  interior  do  oceano,  n'essas  moradas  explendi- 
das,  aonde  os  gregos  puzeram  Neptuno  com  o  seu 
cortejo  de  deuses  marinhos,  naiades  e  uerines, 
Proteu  com  o  seu  rebanho,  Amphitrite  com  as 
suas  nymphas. 

A  natureza  excedeu  a  imaginação.  No  interior 
do  mar  expande-se  formidável  e  opulento  o  diama 
da  vida.  Ha  lá  florestas  e  sarças  impenetráveis;  ha 
lá  vegetações  luxuriantes,  algas  immensas.  Milha- 
res de  espécies  de  animaes  povoam  aquelles  reces- 
sos crystallinos  desde  o  cetáceo  gigante  até  ao  hu- 
milde infusorio. 

Também  lá  resfolgam  vulcões  e  arrojam  lavas  can- 
dentes; também  lá  se  erguem  montes,  se  angustiam 
gargantas  e  dilatam  valles;  também  lá  se  travam 
combates  em  que  o  mais  fraco  é  viclima  do  mais 
forte;  também  lá  o  rythmo  da  vida  se  desentra- 
nha em  harmonias  perennes. 

Mas  a  sciencia  ainda  não  poude  devassar  todos 
esses  segredos. 

Muito  se  sabejá;  muito  porém  se  ignora  ainda, 
e  para  sempre  talvez  Nos  seios  do  oceano  édiílicil 
e  muitas  vezes  impossível  a  observação,  e  fora  ne- 
cessário um  cataclysmo  horrendo,  em  que  todos 
houvéramos  de  perecer,  para  que  o  leito  do  mar 
ficasse  a  descoberto. 

Do  que  se  sabe  irei  eu  apresentando  aqui  o  que 
me  parecer  mais  útil  e  curioso.  Ordem  e  metho- 
do  não  são  de  grande  necessidade,  quando  a  scien- 
cia ignora  ainda  tanlo.  Esforçar-me-hei  com  tudo 
por  ser  resumido  e  breve,  sem  me  tornar  obs- 
curo. 

DiíTicil  é  escrever  sciencia  para  quem  deseja 
aprendel-a  sem  trabalho. 

Nem  lodosos  paladares  apetecem  estas  iguarias, 
que  algumas  vezes  tem  muito  travo.  É  o  caso  de 
illudir  diííiculdades,  fugindo-lhes  com  o  corpo  por 
evitar  desdéns  de  leitor  indolente. 

Certo  que  os  leitores  do  Panorawa  sâo  pessoas 
muito  asisadas,  de  bom  conselho  eamanles  dains- 
Irucção.  15em  o  sei,  e  não  me  atrevera  a  negar  o 
que  deve  de  ser  jjiedosa  fe.  Mas,  não  c  menos 
evidente  que  o  commum  dos  paladares  prefere 
prestes  e  iguarias,  ainda  que  de  somenos  ali- 
mento, comlanlo  que  tenham  bom  |)iej)aio. 

Ora  ahi  é  (jue  está  a  diniculdade. 

Preparar  sciencia  popular  é  condão  dos  grandes 
talentos. 

Em  lodo  o  caso,  são  tantas  e  tão  magnificas  as 
maravilhas  do  oceano,  os  espelaculos  do  mar  são 
Ião  grandiosos,  que  faliam  de  persi,  e  estão  exi- 
gindo altenção  e  estudo  dos  mais  remissos. 

Será  pois  o  oceano  o  campo  das  no.ssas  pesqui- 
sas. É  imraensaa  ceara.  Podemos  respirar  á  von- 


tade, que  não  ha  limites  nem  barreiras  para  a  nossa 
curiosidade...  senão  o  desconhecido. 


A.  OSÓRIO  DE  VASCONCELLO 


CIDADE  DE  PEKIM 

Portn  do  :%'ortc 

As  ultimas  expedições  da  Inglaterra  c  da  Fran- 
ça rasgaram  o  veu  myslerioso,  em  que  se  en- 
volvia tenazmente  a  China,  refractária  á  luz  da 
civilisaçãoeuropea.  Devemos  confessar  (jue  alguma 
razão  Unham  os  chinezes  para  isso,  porque  a  luz 
d'essa  civilisação  tem-lhes  relampagueado  ape- 
nas dos  canos  das  espingardas,  e  das  espadas 
dos  zuavos  do  imperador  Napoleão  III  e  dos  sol- 
dados da  marinha  ingleza.  A  ultima  campanha  dos 
alliados  levou-os  a  Pekim,  eoschinezes,  alíerrados 
aos  seus  velhos  hábitos,  viram  com  horror  os  bár- 
baros eurojjeus  profanarem  o  sagrado  recinto  da 
cidade  santa.  O  palácio  do  imperador  foi  saqueado 
pela  soldadesca,  e  a  China  vio-se obrigada  a  fazer 
as  mais  extraordinárias  concessões  aos  estrangei- 
ros. Pekim  deixou  de  ser  uma  cidade  quasi  legen- 
daria, apenas  visitada  por  um  ou  outro  viajante, 
por  um  ou  outro  missionário  mais  audaz.  Hoje 
estão  desvelados  todos  os  seus  myslerios,  e,  d'aqui 
a  um  século,  talvez  os  bigodes  dos  velhos  chinas 
se  erriçarão  horrorisados,  vendo  entrarem  as  lo- 
comotivas fumegantes  nas  ruas  alinhadas  da  sua 
velha  capital. 

Pekim  ou  antes  Pe-king  está  situada  á  beirado 
rio  You-ho,  a  distancia  de  uns  cento  e  cincoenta 
kilometros  da  celebre  muralha.  Este  nome  de  Pc- 
kinfj  significa  residência  do  norte,  em  conlra-posi- 
ção  a  Nan-kinf/,  residência  do  sul,  onde  os  im- 
peradores da  China  habitaram  até  ao  principio  do 
século  XV.  Pekim  tem  28  kilometros  de  circuito. 
Compõe-se  de  duas  cidades,  a  meridional  e  asep- 
temtrional.  A(|uella,  denominada  a  cidade  velha, 
é  habitada  pelos  chins  de  velha  raça,  porque, 
como  os  leilores  de  certo  sabem,  a  dynaslia  rei- 
nante é  de  origem  tártara,  e  subiu  ao  throno  em 
consequência  d'uma  grande  invasão  d'esses  incom- 
modos  visinhos  do  immenso  império,  visinhos  con- 
tra os  quaes  se  construiu  a  grande  muralha,  que 
é,  como  vêem,  bastante  imponente.  A  cidade  se- 
plemlrional  denomina-se  cidade  dos  Tártaros,  é  de 
muito  melhor  construcção  do  que  a  antiga,  e  ainda 
se  subdivide  em  Ires  bairros  concêntricos,  sepa- 
rados uns  dos  outros  por  muralhas  especiaes.  Es- 
ta cidade  dos  Tártaros  contém  vastissimosjardins, 
pequenas  ruas  habitadas  na  sua  máxima  parle  por 
empregados  da  corte,  negociantes,  e  induslriaes. 
Alem  (fisso  alli  se  ergue  o  [)alacio  imperial. 
I  O  palácio  im[)erial  é  um  immenso  quadrado, 
que-lem  (jualro  kilometros  de  circuito!  Rodeiam-n'o 
muralhas,  fossos  profundíssimos,  e  lem,  den- 
tro do  seu  recinto,  innumeros  palacetes  c  templos, 
enlremeiados  de  jardins  e  paleos,  de  columnalas 
snmptuosií^simas  (!  de  maravilhosas  galerias.  Os 
aposentos  da  residência  imperial  são  vastos  eappa- 
ralosos,  e  dislinguem-se  por  nomes  campanudos. 


o  PxVNORAMA 


i09 


N'esse  recinto  iramenso  lambera  se  enconlra  a  im- 
prensa imperial,  de  cujos  prelos  sáe  a  Gazela  do 
Estado.  Sabem  os  leitores  que  a  imprensa  é  co- 
nhecida pelos  Chinas  desde  tempos  immemoriaes. 
mas  (é  este  o  característico  mais  notável  das  ci- 
vilisações  do  Oriente)  não  deu  um  passo  tal  in- 
vento, e  ainda  hoje  é  applicado  na  sua  rudeza  pri- 
mitiva. Além  da  imprensa,  maiiifesla-se  o  gosto 


dos  monarchas  chinezes  pela  illustração  na  exis- 
tência dentro  do  seu  palácio  d'uma  rica  bibliolhe- 
ca,  e  d'um  vasto  museu  de  historia  natural. 

Contém  a  cidade  tártara  além  do  palácio  do  im- 
perador, muitos  edifícios  notáveis,  principalmente 
mosieiros  e  templos  bouddhislas,  e  algumas  mes- 
quitas ;  mas  a  cidade  chineza  também  não  ficou 
privada  de  monumentos.  É  alli  que  se  admira  o 


famoso  templo  redondo  do  ceu,  coberto  por  um 
teclo  que  foima  três  andares,  e  ornado  interior- 
mente de  columnas  azues  matizadas  d'ouro.  Exis- 
tem além  d'isso  alli  muitos  outros  templos,  thca- 
tros,  estalagens,  banhos  públicos,  e  lojas  brilhan- 
lissimas. 

.  Em  geral  as  ruas  dePekim  são  escrupulosamen- 
te alinhadas  e  muito  largas,  porém  bastantes  vezes 
cortadas  por  viellas  estreitas.  Doze  vastos  ari-abal- 
des  rodeiam  as  duas  parles  da  cidade.  As  casas 
são  baixas,  e  d'um  só  andar.  J)'ahi  proveio  natu- 
ralmente o  atlribuir-se-lhe  por  estimativa  muito 
maior  numero  de  habitantes  do  que  o  que  real- 
mente conta.  Agora  que  a  China  está  mais  conhe- 
cida, e  que  os  Europeus  se  teem  posto  ao  fado  dos 
documentos  oíliciaes,  póde-se  ver  n'uni  recensea- 


mento feito  em  1853  que  a  sua  população  c  de 
l,li8,881  habitantes,  inferior  por  conseguinte  á 
população  de  Londres  c  de  Paris. 

O  syslema  politico  da  China  éuma  vasta  e  seve- 
ríssima cenlralisação;  por  isso  a  capital  tem  uma 
importância  enorme.  Alli  residem  Iodas  as  aulhori- 
dades  superiores;  é  alli  o  centro  da  vida  social 
e  politica  e  do  movimento  industrial  e  commcr- 
cial  da  China.  Uma  das  causas,  que  mais  concor- 
rem para  o  desenvolvimento  do  seu  commercio,  é 
o  estar  ella  em  communicação  com  o  grande  canal. 

Possue  esta  cidade  um  grande  numero  de 
sociedades  litterarias,  e  grande  copia  de  eslabele- 
cimentos  de  inslrucção  publica,  porque  a  civilisa- 
ção  da  China,  se  bem  que  destituída  de  toda  a 
idéa  do  progresso,  se  bem  que  essencialmente  con- 


\0 


o  PANORAMA 


serradora,  nem  por  isso  deixa  de  ser  muito  notável, 
e  em  poucos  paizes  da  Europa  está  tão  desenvol- 
vida a  instrucção  das  ciasses  populares  como  n'esse 
grande  império  asiático. 

Este  vasto  paiz,  por  tanto  tempo  cerrado  aos 
Europeus,  abrio  agora,  bem  que  com  timidez  e 
repugnância,  as  suas  portas ;  os  myslerios  da  sua 
civilisação  extravagante  vão  ser  revelados,  e  o 
pobre  Fernão  Mendes  Pinto,  accusado  por  tantos 
séculos  de  mentiroso,  vai  emfim  ser  rehabilitado. 
Era  tempo.  Se  a  China  conlinua  a  ser  impenetrá- 
vel, as  Peregrinações  do  honrado  portuguez  iam 
occupar  um  logar  dislincto  ao  lado  das  Viagens 
de  Gulliver  phantasiadas  pelo  malicioso  Swift. 

PiiVUEiRO  Chagas. 


OS  RELÓGIOS 

N'esla  época,  em  que  apenas  se  fixa  a  altenção 
n'esses  dous  admiráveis  descobrimentos,  de  cujas 
forças  nos  servimos  para  nos  transportarmos  de 
um  extremo  a  outro  do  globo,  com  a  velocidade 
do  raio,  e  pai'a  nos  correspondermos  com  todos 
os  povos,  ainda  os  das  mais  longínquas  regiões, 
com  a  rapidez  do  pensamento;  hoje,  que  só  se  at- 
tende  ás  emprezas  positivas  e  que  produzem  maiores 
resultados,  mais  se  devem  apreciar  as  invenções  an- 
tigas, que  à  força  de  se  haverem  generalisado  teem 
deixado  de  causar-nos  admiração.  De  outro  modo 
não  deixaríamos  de  contemplar  com  religioso  en- 
thusiasmo  os  relógios,  essas  machinas  que  conleem 
em  si  a  resolução  de  um  grande  problema,  e  que 
chegaram  a  constituir  uma  das  necessidades  da 
vida.  Pareceria  impossível  que  a  distribuição  exacta 
do  tempo,  a  regulação  fixa  e  invariav^  das  horas 
que  forniam  o  dia  se  podesse  fazer  por  meio  de 
umas  rodas  que  caminham  em  direcção  opposta  c 
cujo  andamento  se  regula  com  a  maior  facilidade; 
e  e  extremamente  sensivel  que  se  não  tenha  con- 
seguido ateriguar  quem  foram  os  que  prestaram 
tão  importante  serviço  à  humanidade,  para  os  seus 
nomes  serem  esculpidos  no  bronze  e  até  gravados  na 
memoria.  Bastantes  investigações  temos  feito  acer- 
ca d'esle  assumpto,  porem,  nada  mais  temos  ob- 
tido do  que  o  que  consignamos  n'esta  resenha  ou 
ligeira  historia  d*este  invento. 

Desde  os  primeiros  tempos  conheceram  os  ho- 
mens a  precisão  que  tinham  de  uma  norma  lixa 
e  constante  que  lhes  facilitasse  o  conhecimento 
do  tempo  que  deviam  dedicar  ao  trabalho,  do  que 
bastava  para  descanço  e  do  que  deviam  empregar 
nas  outras  occu[iações.  Como  as  artes  se  acha- 
vam então  na  sua  infância,  não  podiam  a  ellas 
recorrer  para  lhes  proporcionarem  o  que  com  tanto 
anhelo  desejavam  e,  por  conseguinte,  atlentaram 
no  que  mais  vivamente  lhes  tinha  ferido  a  imagi- 
nação, que  eram  os  astros,  e  d'aqui  provie- 
ram os  relógios  de  sol,  chamados  lambem  qua- 
drantes. Duvidou-se  por  muito  tempo  de  a  quem 
se  devia  adjudicar  a  gloria  d'esta  invenção; 
l>aercio  e  Suida  altribuem-n'a  a  Anaximandro, 
que  morreu  no  aiino  3157  da  creação  do  mundo 
e  Plinio   a  Anximenes,  discípulo  de    Anaximan- 


dro. Os  egypcios  e  babylonios  disputaram  a  pro- 
|)riedade  e  outros  mais  a  foram  assignalando  em 
diversos  tempos.  Com  tal  variedade  de  opiniões 
não  podemos  acertar  de  uma  maneira  positiva  quan- 
do se  começaram  a  usar;  no  que,  porem,  não  ca- 
be duvida  é  que  anteriormente  a  3291  já  eram 
conhecidos,  porque  vemos  na  Biblia,  livro  IV.  Re- 
gum,  cap  XX,  que  estando  enfermo  o  rei  Ezechias, 
Isaias,  o  proj)hela,  fez  com  que  retrocedesse  dez 
linhas  a  sombra  no  relógio  de  Achaz,  cm  signal 
de  que  convalesceria. 

Algum  tempo  depois  introduziu-se  também  o 
medir  o  tempo  a  pés,  do  que  achamos  noticia  nos 
doze  livros  da  Ré  rústica  de  Paládio,  que  viveu 
no  segundo  século,  e  que  põe  a  sombra  do  sol  me- 
dida a  pés  em  todas  as  horas  do  dia.  Este  modo 
de  contar  as  horas  era  summamenle  gracioso, 
e  hoje,  certo,  prestar-se-ia  a  alguns  fjuidproquos, 
pois  dizia-se:  vou  comer  tal  pé,  ele. 

Ambos  os  methodos  eran\  extremamente  imper- 
feitos, porque  necessitavam  como  primeiro  agenle 
ou  único  móbil  a  presença  do  sol;  porem  quando 
este  desapparccia  ficavam  envoltos  na  obscuridade 
que  cobria  a  terra.  Foi  preciso  procurar  outro  im- 
pulso perenne  e  constante,  e  cuja  auzencianão  se 
podesse  temer  com  facilidade,  e  nenhum  se  achou 
mais  a  propósito  do  que  a  agua,  que  encerrada  em 
um  vaso  com  um  estreito  cano  no  qual  se  praticava 
um  pequeno  buraco,  deslillava  gota  a  gola,  até 
completar  o  numero  das  horas.  Este  género  de  re- 
lógios foi  introduzido  em  lloma  no  anno  59o  da 
sua  fundação,  por  Scipião  Nasica:  e  mais  adiante, 
em  613,  aperfeiçoou-o  Clesibio,  construindo  uma 
verdadeira  machina  hydraulica. 

Esta  classe  denominou-se  clepsydra,  e  d'ella  se 
serviam  os  gregos  e  romanos  para  medir  o  tempo 
que  deviam  durar  as  causas ;  para  o  que  distri- 
buíam Ires  porções :  uma  para  o  accusador, 
outra  para  o  accusado  e  a  terceira  para  o  juiz. 
Cada  clepsydra  compunha  uma  hora,  segundo  pa- 
rece pelo  que  diz  Marcial,  livro  YIII,  Epig.  VII. 
Na  leitura  dos  processos  e  leis  não  corria  a  agua, 
e  isto  era:  Aquam  suslinere,  conforme  se  lê  nos 
auclores  d'a(iuella  época. 

Os  relógios  de  areia  conlam  lambem  muitos  sé- 
culos de  antiguidade;  porém  não  é  fácil  assignalar 
nem  os  seus  inventores,  nem  a  época  da  sua  in- 
troducção.  Estes  eram  usados  com  preferencia  nos 
mosteiros,  e  pela  noite  estava  a  cargo  dos  religiosos 
o  cuidado  de  observal-os  para  que  não  parassem. 

Chegámos  já  á  perfeição  da  arte:  vemos  o  in- 
vento cm  toda  a  sua  latitude  preslando-nos  o  ser- 
viço de  que  necessitávamos,  sem  que  seja  preciso 
auxilial-o  senão  ephemera  e  levemente:  locamos  em 
lim  a  época  dos  relógios  de  roda,  cujo  auctor  por 
desgraça  se  ignora.  Na  opinião  dcí  alguns  perten- 
cem a  tempos  remotos,  pois  asseguram  que  eram 
d'esla  classe  os  que  tinham  lioccio,  (lilberlo,  o 
papa  Paulo  II,  e  o  (jue  o  califa  Arão  Baschil  deu 
de  presente  a  (>arlos  Magno  em  S()7. 

Parecia  em  \ista  (risto  que  se  tinha  chegado  ao 
complemento  e  (|ue  não  se  podia  dar  nem  mais 
um  passo;  mas  eslava-nos  reservado  outro  novo 


o  PANORAMA 


U] 


assombro.  Walindorf,  monge  beneclictino  inglez, 
que  morreu  em  1325,  vendo  que  nem  todas  as  clas- 
ses podiam  disfruclar  d'este  bcnelicio,  porque  era 
muilo  dispendioso  o  poder-se  aproveilar  d'eilo, 
discorreu  ogeneralisal-o  etornal-o  publico,  e  cons- 
truiu os  relógios  de  torre  com  sinos.  Alguns  allri- 
buem  esta  invenção  a  Santiago  D.  Diniz,  natural 
de  Pádua,  celebre  astrónomo,  medico  e  matbema- 
lico;  mas  este  não  fez  mais  do  que  aperfeiçoal-a 
de  um  modo  admirável;  pois  em  1344  coílocou 
cm  a  torre  do  Palácio  d'aquella  cidade  um  reló- 
gio composto  de  uma  multidão  de  peças  e  rodas 
movidas  por  uma  só  peça,  que  marcava  todas  as  ho- 
ras, e  além  d'isso  o  curso  do  sol  e  dos  planetas. 
Este  prodígio  e  esta  maravilha  da  arte  altraiu  a 
Pádua  uma  concorrência  espantosa,  porque  os  sá- 
bios de  toda  a  Europa  iam  admirar  aquella  obra 
tão  perfeita,  o  reflexo  vivo  das  revoluções  celestes, 
aquelle  propheta  automático,  por  assim  dizer,  e 
comtemplavam-n'o  com  um  religioso  enthusiasmo. 

Como  era  natural,  depois  d'isto  excitou-se  a  cu- 
riosidade dos  relojoeiros  das  de  mais  nações,  e  em 
breve  começaram  a  apparecer  relógios  de  todos 
os  feitios  e  qualidades. 

Depois  d'esta  época  não  teem  havido  variações 
essenciaes  na  arte,  poisaijida  que  se  lenham  cons- 
truído de  maior  ou  de  menor  latitude  e  de  tama- 
nho menor,  augmentando  ou  diminuindo  as  rodas, 
pôde  considerar-se  tudo  isto  como  aperfeiçoamento 
da  primitiva  invenção  e  não  eram  cousa  nova, 
pois  sempre  se  tem  operado  sobre  abased'aquella. 


Não  ha  cousa  que  mais  quebrante  ânimos  elin- 
goas  serpentinas,  que  largar-lhes  o  campo  com 
silencio.  Fr.  Luiz  de  Souza 


A  GRAVURA  EM  MADEIRA  EM  PORTUGAL 
III 

No  raslo  luminoso  que,  em  relação  á  lilteraturii,  dei- 
xaram o  Panorama  e  a  lUustraçao,  mais  dois  ou  Ires 
jornaes  illuslrados  pretenderam  viver.  Morreram,  porém, 
pouco  depois  de  nascerem,  no  que  não  fizeram  mal,  por- 
que eram  a  negação  absoluta  da  arte,  e  da  grammatica 
lambem. 

É  que  os  momentos  que  precedem  a  morte  são  sem- 
pre tristes,  e,  já  se  vê,  cm  plena  contraposição  com  as 
leis  da  vida,  A  arte  agonisava,  e  esses  jornaes,  não  po- 
dendo scrvir-lhe  de  médicos,  fizeram-sc  cargo  de  sim- 
plices  enfermeiros  administrando-llie  a  dieta  rigorosa,  que, 
segundo  a  tlieoria  escholar,  exigem  as  doenças  graves. 

Em  presença  d'islo,  e  não  havendo,  em*taes  casos, 
tribunal  para  onde  appellar,  pasmaram,  Bordalo  Pinheiro 
a  gastar  os  lápis,  que  ainda  lhe  restavam,  em  as  notas 
provisórias  das  despezas  domesticas,  e  Coelho  a  encor- 
tiçar  os  buris,  para  (pie  não  lhes  desse  a  ferrugem.  Em 
seguida  cruzaram  os  braços  e  deixaram-se  dormir.  .  . 
para  a  arte. 

Dormiram  muilo,  e  dormiriam  elernamenle,  talvez,  se 
o  sonho,  que  é  o  inimigo  mais  zombeteiro  dos  desenga- 
nos da  realidade,  não  viesse  alenlar-lhes  o  espirito  des- 
fallecido.  Bordalo  e  Coelho  sonharam.  .  .  que  estavam 
desenhando  e  gravando  para  um  jornal,  de  que  cites  pró- 
prios eram  os  editores,  e  do  qual  fruiriam  prodigiosas 
consolações  para  o  seu  coração  d'arUslas,  bem  como 
para  a  sua  bolsa  de  homens  que  não  viviam  da  graça, 
nem  vestiam  pela  moda  de  Vénus  de  Canova.  No  quadro 


lisongeiramenle  colorido  da  sua  phantasia,  viam-se  elles, 
á  sombra  de  um  grande  ramal  de  loiros,  trabalhando 
sentados  sobre  uma  burra,  não  das  que  alimentam  tísi- 
cos, senão  das  que  vivificam  usurários :  e  tão  excessiva 
foi,  por  isso  a  sua  commoçào,  que  n'este  ponto  acorda- 
ram. 

Para  outros,  acharera-se  nas  suas  cadeiras  de  velha  e 
arrombada  palhinha,  á  sombra  dos  curvos  e  carunchosos 
tectos  do  prosaico  lar  domestico,  seria  obra  para  deses- 
perar :  para  Bordalo  e  Coelho,  que  eram  artistas  de  bom 
gosto,  foi  objecto  de  galhofa.  A  caricatura,  que  a  vida 
positiva  acabava  de  fazer  á  vida  da  imaginação,  tinha 
realmente  graça,  e  os  dois  amigos  soltaram  uma  estron- 
dosa gargalhada. 

D'esla  gargalhada  é  que  nasceu  a  realisação  da  pri- 
meira parte  do  sonho. 

—  Não  será  isto  um  aviso  da  providencia  ?  disse  Coe- 
lho, rindo  ainda. 

Bordalo  respondeu  espivitando  o  charuto,  que  n'este 
comenos  eslava  quasi  apagado. 

—  Olha  lá!  continuou  Coelho.  Publiquemos  um  jornal? 

—  Publiquemos.  .  .  E  o  dinheiro.  .  .  e  o  redactor, 
observou  liordalo  Pinheiro,  puchando  uma  grossa  fuma- 
rada. 

—  O  redactor,  arranja-se  já ;  agora  o  dinheiro  está  na 
algibeira  dos  assignantes,  e  so  com  o  jornal  poderemos 
de  lá  saccal-o. 

—  Parece-me,  exclamou  Bordalo,  rindo-se  como  se  riam 
os  antigos  velhos  de  cabelleira,  que  tens  por  cá  andado 
n'estas  coisas,  com  a  cabeça  na  lual . . .  Mas. . .  eslou  ás 
luas  ordens. 

Coelho  aperlou-lhe  a  mão,  e  foi  logo  procurar  o  seu 
amigo  Pereira  d'Almeida,  apreciável  escriptor,  já  por 
mais  de  uma  vez  feliz  na  direcção  e  collanoração  litle- 
raria  de  diversas  publicações,  e,  communicanilo-lhe  o 
intento,  convidou-o  a  associar-se  na  qualidade  de  reda- 
ctor principal.  Amador,  e,  o  que  é  raro  em  amador,  en- 
tendedor lambem  de  boas-artes ;  gosando  já  na  perspe- 
cliva  de  ver  o  seu  nome  e  o  seu  esforço  vinculados 
n'um  impulso  em  que  via  os  mais  fecundos  auspícios 
para  a  propagação  e  desenvolvimento  da  gravura  em  ma- 
deira, Pereira  d'Almeida  dispoz-se,  com  toda  a  abnegação 
do  apostolado,  a  sacrificar  o  interesse  á  gloria,  e  accei- 
tou  o  convite. 

Passados  poucos  dias,  sahia  á  luz  o  primeiro  numero 
de  um  novo  jornal  iltustrado,  com  o  titulo  modestíssimo 
de  Revista  Popular. 

IV 

Este  jornal  não  parecia  haver  nascido  de  um  longo 
interregno  arlislíco.  Tão  desenvolvida  e  animada  se  apre- 
sentava agora  a  gravura  em  madeira,  que  ninguém  diria 
ser  o  remédio  o  ócio,  a  somnolencia  e  a  inércia. 

Posloque,  vestindo  ainda  de  franja  ;  não  lendo  perdido 
o  amor  ao  insípido  e  monótono  syslema  do  paraltelismo, 
o  traço,  até  então  desengraçadamente  irregular  e  termi- 
nando, umas  vezes,  á  maneira  de  cabellos  hirtos,  outras, 
como  peito  crestado,  em  forma  de  vírgula,  ou  de  ponto 
de  interrogação,  era,  ao  menos,  mais  nítido  no  lanço, 
mais  uniforme  no  capricho  das  ondulações,  mais  gra- 
duado nas  cambiantes  do  claro-escuro,  O*  desenho  geral 
tinha  uma  certa  correcção,  e  as  composições  accusavam 
esforço  de  gosto  e  iniciativa. 

Pela  primeira  vez  apparecia  entre  nós  um  romance 
original  illuslrado.  Essa  coroa  deixou-a  o  destino  cair, 
pelo  lápis  de  Bordalo  Pinheiro,  sobre  as  paginas  viçosas 
dos  primeiros  números  da  Jtevista  Popular.  Os  dois  ar- 
tistas tinham  elTeclívamenle  dado  um  passo  gigante  no 
progresso  da  gravura  em  madeira,  e  por  tal  passo  mos- 
Iravam  que  poderiam  dar  todos  quantos  precisos  fossem 
para  chegarem  ao  nível  das  iltustrações  estrangeiras  d'a- 
quella  época,  se  o  paiz  os  houv*esse  ajudado  era  tão 
comprido  e  íngreme  caminho. 

Como,  porém?  a  fortuna,  por  ser  cega,  não  pôde  ler, 
continuava  a  fugir  de  jornaes,  e  os  desejados  assignan- 
tes, que  só  alraz  d'ella  correm,  fugiam,  por  consequên- 
cia, lambem.  Apesar  de  não  envergonhar,  não  tinha  a  po- 
bre Revista  quem  lhe  desse  o  braço,  senão  os  amadores; 
mas  esta  gente  admirável,  que  anda  em  cata  de  tudo  sem 


^12 


O  PANORAMA 


Iarp;ar  o  fardo  immenso  dos  seus  idolos,  sempre  assaz 
suííiciente  para  susieníar  um  viveiro  de  canários,  não 
chega  nunca  para  cobrir  as  despezas  superiores  ao  custo 
de  dois  ovos  e  um  pão  de  ló.  Para  completar  tamanho 
desfavor,  o  povo  não  acceilava  a  invocação  do  titulo. 

Era  caso  para  desesperar.  Preso  por  ler  cão ;  preso  por 
não  ter  cão. 

Que  fazer  ?  Nenhum  dos  emprezarios  tinha  corac;em 
bastante  para  propor  a  applicnção  da  pena  de  morte  á 
innocente  Bevista.  E,  comtudo,  não  parecia  haver  outro 
expediente.  As  semanas  succediam-se,  a  bolsa  eslava  va- 
sia,  e  da  burra  do  sonho,  nem  sequer  o  casco  se  tinha 
podido  comprar.  O  problema  exigia  prompta  resolução. 
Suspender  a  publicação;  equivalia  a  declara!-a  morta"  Os 
jornaes,  suspensos  são,  quasi,  como  os  reis  deslhronados. 
JRaras  vezes  voltam.  No  meio  crestas  terríveis  oscillações, 
lembraram-sc  de  passar  o  infeliz  semanário  para  as  ínãos 
de  um  homem  monetário.  Mas  os  homens  monetários  do 
uosso  paiz  não  amam  senão  o  toucinho  c  seus  correlati- 
vos. Letra  redonda,  compram-n'a  só  para  embrulhar.  Por- 
tanto, uma  tal  idéa  era,  talvez,  a  peor  de  Iodas. 

—  Não  te  dizia?  exclamava,  de  vez  cm  quando,  Bor- 
dalo Pinheiro  para  o  seu  collega,  com  ares  de  triumpho 
e  um  certo  sorriso,  de  que,  já  de  ha  muito,  Coelho  gos- 
tava pouco.  Não  te  dizia  que  linhas  trabalhado  com  a  ca- 
beça na  lua? 

—  E  agora?  perguntava  Coelho,  encolhendo  os  hom- 
bros,  e  tomando  umS  grande  pilada. 

—  Agora  ?  .  . .  Choremos,  como  bons  pacs,  \  islo  pare- 
cer-me  que  já  morreu. 

—  Não  morreu  ainda,  disse,  apparecendo  inesperada- 
mente, Pereira  d'Almci(la,  com  a  accenluação  inalterável 
da  sua  habitual  tranquillidade. 

E  assim  era.  Pereira  d'Almeida  trazia  a  receita  iiifalli- 
vel  para  a  cura  radical  da  enferma.  Acabava  de  nego- 
ciar a  propriedade  da  Revisln  com  Fradesso  da  Silveira, 
que,  desde  muito,  pensava  na  publicação  de  um  jornal 
illustrado  com  gravuras  em    madeira. 


[Concinua] 


NOGUEIRA  DA  SILVA. 


O  qiiG  seda  pedido e rogado  já  cuslalantocomo 
comprado.  Fii.  Luiz  de  Souza. 


BEATRIZ 
XV  . 

Jacqucs  sabia  tudo;  a  sua  amante 
Solfria  o  vil    castigo,  a  pena  infame 
Que  a  cegueira  dos  homens  lhe  impozera. 
Chorou,  coitado!—  o  pobre  amesquinhou-sc, 
Quiz  morrer  de  pesar,  porém  não  poude. 
Ella  expir.Tva  só,— ella,  tão  moça, 
Tão  linda,   que  rasgava  os  seios  d'alma 
Ve-la  penar  assim;  nem  uma    lagrima 
Poderá  derramar,  nem  um  gemido 
Desprendera  sequer;  pasmada  e  louca, 
Incerto  o  olhar,  as  faces  maceradas. 
Erma  com  a  sua  dor,  sem  voz,  sem  força, 
Euclando  peito  a  peito  com  o  gigaule 
Da  amargura  cruel,  sentia   apenas 
Vacillar-ihe  a  rasão  naquellc  embale. 

E  fugio-llie, ai  de  mim! . . .   deixai  que  o  pranto 

Corra  em  meus  olhes  tristes,  que  um  momento 

Orvalhe  as  rosas  murchas  desse  a!leclo. 

Que  acerba  magoa  me  lacere  o  peito 

Costumado  a  bater  convulso  e  forte 

De  amor,  de  ceo,  de  luz,  de  aroma  evida, 

Deixai,  deixai,. . .  que  em  breve  eu  torno  aos  cantos!.. . 

Poucos  mezes  depois  partio  o  conde. 
Para  onde  foi,  não  sei;  dizem,  comtudo, 
(E  eu  creio,,  cpje,  sem  mais,  puzcra  termo 
A  crua  dor  que  lhe  pungia  a  vida. 
Jacques  linha  perdido,  a  pouco  e  pouco, 


Aquella  vaga  sombra  de  tristeza 

Que  lhe  toldava  o  rosto;  começava 

A  metler  pé  no  mundo  como  d^antes, 

E  mais  de  uma  a\cnlura  escandalosa 

Ia  correndo,  então  de  boca,  em  boca. 

Se  era  ou  não  era  fel  (|ue  as  linguas  torpes 

Deitavam  sobre  elle,  não  allirmo 

Porque  não  quero  errar;  mas  sei,  mas  juro 

Que  alguns  mezes  de|)ois  (Festas  noticias 

Terem  lavrado  já,  quando  a  saudade 

Dida  devia  ardenle  compungir-lhe 

Inteiro  o  coração,  feliz  e  amado, 

Elle  contava  as  horas  da  existência. 

Ébrio  de  amor,  no  seio  d'outra  pomba!  — 

XV!. 

Eia,  gosemos!  pela  floroa  taça 
Beba-se  o  néctar  (relernal  prazer; 
A  densa  nuvem  que  troveja  e  passa 
Nem  uma  sombra  nos  vem  dar  sequer. 

Gosemos  sempre!  da  ventura  breve 
Ceifem-se  as  rosas   que  despontam  já; 
Que  tem,  que  imporia  se  um  montão  de  neve 
Rosaes  inteiros  sepultando  está?... 

Que  tem  que  as  faces  da  mulher  perdida 
Vão  definhando  na  amargura  atroz?... 
Somos  convivas  tio  festim  da  vida: 
Ergamos  todos  n'um  só  canto  a  vozi 

Voa  minha  alma,  pelo  espaço  em  fora, 
Tu  és  o  aroma  ([ue  re*spira  a  flor; 
Deixa  este  mundo  ([ue  se  prostra  e  chora 
Voa  minha  alma,  procurando  amor! 

Não  falta  um  dia  em  que  infernal  desgraça 
Azede  o  néctar  (pie  nos  dá  prazer: 
O  goso  c  fumo  que  se  esvae,  e  passa 
Quando  mais  ébrios  nos  parece  ver. 

Gosemos  tudo!  que  o  prazer  resplenda 
Em  (juanto  a  aurora  mil  lampejos  tem; 
Basta  que  um  dia  sobre  nós  se  estenda 
A  sombra  elerna  que  divaga  além! 

E.  A.  Vidal. 


As  causas  excessivamente  intensas  produzem 
eíícilos  contrários,  A  dor  faz  grilar,  mas  se  he  ex- 
cessiva faz  emmudecer;  a  luz  faz  ver,  mas  se  he 
excessiva  cega;  a  alegria  alenta  c  vivifica,  mas  se  he 
excessiva  mala.  P.  António  Vieira. 


O  engano  leni  denlcs  alvos  e  mordedura  vene- 
nosa. Como  ser|)enle,  contenta  pêra  magoar,  c 
alegra  pêra  inlrislecer. 

Francisco   Rodrigues  Lobo. 


Tam  indecente  he  sair  da  bocca  de  um  homem 
de  alto  lugar  e  nobre  creação  uma  palavra  ruslica 
e  mal  composla,  como  de  uma  bainha  de  ouro  ou 
rico  esmalte  arrancar  uma  esj)a(ia  ferrugenta. 
Duarte  INunes  de  Leão. 


Se  andássemos  sobre  aviso  ligeiramente  enlen- 
deriamos  tudo,  ou  parte  do  que  nosesLí  para  vir. 

B.    HlUEIRO, 


A  boa  fama  c  a  melhor  herança  que  ha  no  mundo. 

li.    RlIlEIRO. 


TyjJ.   Franco  l'orliigucza,  Rua  do  Tlicsouro  Vfllio,  G. 


o  PANORAMA 


IMPRENSA  NACIONAL 

Resultado  da  poderosa  iniciativa  do  celebre  ministro  de 
D.  José  I,  e.creada  por  alvará  de  24  de  Dezembro  de  1768 
com  a  denominação  de  Onicina  Regia  T\pop;raphica,  que 
mais  tarde  se  transmudou  na  de  Impressão  Regia,  «a  Im- 
prensa Nacional  de  Lisboa  é  hoje  pela  vastidão  de  suas 
oíTicinas,  pelo  numero  de  seus  operários,  e  pela  excellen- 
cia  do  seu  Iraballio,  não  só  um  dos  mais  importantes  es- 
tabelecimentos públicos  da  capital,  mas  lambem  o  primeiro 
do  seu  eenero  em  todo  o  reino.  » 


Com  o  titulo  de  Breve  noticia  histórica  da  Imprensa 
Nacional  de  Lisboa  elaborou  ha  annos  o  nosso  prezado 
amigo  F.  A.  d'Almeida  Pereira  e  Sousa,  zeloso  e  habilis- 
simo  empregado  da  conladoria  d"a(|uella  casa,  um  valioso 
trabalho,  íjuc  sahiu  publicado  como  nppendice  do  RclaM-io 
apresentado  ao  Ministério  do  Reino  em  28  d' Abril  de  1855 
polo  administrador  geral  da  mesma  Imprensa  o  sr.  con- 
selheiro Marecos,  formando-se  da  reunião  d'estas  duas 
l>eças  um  opúsculo  de  (i;5  paginas  no  formato  de  8."  má- 
ximo, estampado  com  primor  e  nitidez  pouco  menos  que 
inexcediveis. 


c^ã/,3  j.~f£:=::^ 


Moeste  escripto,  fructo  de  investigação  acurada,  e  com- 
paginado  á  vista  dos  registros  é  documentos  oíTiciaes  ar- 
chivados  no  respectivo  cartório,  conseguiu  seu  illusirado 
aucíor  dar  uma  idéa  perspicua,  concisa,  e  quanto  pôde 
sor  exacta  da  fundação  e  mechanismo  da  administração 
d'aquelle  magnifico  estabelecimento,  das  vicissitudes  por- 
que passou,  e  do  seu  incremento  em  diversas  epochas; 
patenteando  egualmente  a  sua  situação  actual,  e  os  melhora- 
mentos n'elle  progressivamente  realisados  para  attingir  o 
grau  de  prosperidade  em  que  hoje  o  vc-mos. 

Ao  leitor  que  desejar  inslruir-se  no  assumpto  recom- 
mendamos  esse  trabalho,  de  cujo  começo  foram  exlrahi- 
das  quasi  textualmente  as  phrases  de  verdade  incontes- 
tável com  que  encetámos  o  presente  artigo. 

Percorrendo  com  altenção  as  [)aginas  do  referido  opús- 
culo,ver-se-ha  como  por  uma  serie  de  alternativas,  ora  pros- 
peras, ora  adversas,  e  mediante  os  desvelos  e  sabia  ge- 
rência das  ultimas  administrações,  esse  estabelecimento 
para  cuja  fundação  se  tomaram  em  1708  d'emproslimo  ao 
cofre  da  Uni\ersidade  4O:OOO,s<lO0  réis,  destinados  para 
aluguer  da  casa,  e  cusleamenlo  das  primeiras  c  indispen- 
sáveis despezas,  começando  asna  laboração  com  oito  pre- 
los de  madeira,  taes  como  então  se  usavam,  servidos 
apenas  por  dez  operários  ao  todo,  encerrava  cm  si  pelo 
inventario  geral  a  que  se  procedeu  no  íim  de  18'J.'),  va- 
lores excedentes  a  227.000<j(JOO  réis  cm  machinas,  typos, 
moveis,  uíensilios,  exemplares  de  obras  impressas, "etc, 
ele,  sustentando  a  esse  tempo  para  mais  de  duzentos  em- 
pregados de  diversas  classes,  em  que  se  incluíam  cento 
e  quarenta  e  quatro  operários,  dislribuidos  pelas  oiricinas 
de  composição  e  impressão,  fundição  de  typos,  lilhogra- 
phia  e  fabrica  de  cartas  de  jogar!  * 

Nos  últimos  dez  annos  tem-se  ainda  introduzido  novos 
e  importantes  melhoramentos  em  lodos  os  ramos ;  mulli- 


plicam-se  os  produclos,  augmeníam-se  os  valores,  e  for- 
na-se  de  dia  em  dia  mais  sensível  o  exemplo  do  quanto 
vale  a  perseverança,  e  do  quanto  podem  os  esforços  de 
uma  direcção  acliva,  e  não  menos  zelosa  que  i!lu.slrada. 

Perdoe-nos  |)orem  o  digno  andor  do  opúsculo,  se  ape- 
sar da  sincera  afleição  que  lhe  consagramos,  e  do  eleva- 
do conceito  que  nos  merece  a  sua  intelligencia,  temos, 
por  honra  e  credito  da  pátria  comnuim,  de  discrepar  um 
pouco  do  seu  parecer,  na  parte  em  que,  como  em  todas, 
quizcramos  estar  de  acordo.  Foi  isso  o  que  mais  nos 
impelliu  a  traçar  estas  linhas.  Suppõe  elle  que  a  mais  no- 
bre das  artes  (a  typographica)  descahira  entre  nós  no 
maior  abatimento,  <ão  tempo  em  que  o  então  conde  de 
Oeiras  concebera  o  projecto  de  rcvalidal-a  mediante  a 
fumlação  do  novo  eslabelecimenío.  A  asserção  é,  quanto 
a  nós,  inexacta,  e  cremos  que  sem  maior  "esforço  a  de- 
monstraremos tal.  Se  é  certo  que  pelos  deploráveis  estra- 
gos do  grande  terremoto,  que  destruiu  Lisbop  treze  annos 
antes,  ficaram  sepultadas  nas  ruinas,  ou  reduzidas  a  cin- 
zas algumas  ty[)ographias,  outras  comtudo  escaparam  da 
calaslrophe,  e  não  poucas  se  erigiram  logo  dos  annos  se- 
guintes ao  do  lamentável  successo. 

Deitando  agora  um  lanço  de  olhos  para  os  apontamen- 
tos e  noticias,  já  copiosas,  que  preparávamos  em  tempo 
com  o  desígnio  de  organisar  um  dia  do  modo  possível 
os  Annaes  ti/pof/ruphicos  de  Portugal,  empreza  que,  como 
varias  outras,  a  edade  c  desgostos  nos  inqjcdem  de  pro- 
seguir,  observamos  que  não  menos  de  onze  (ypographías 
se  contavam  cm  Lisboa  precisamente  no  anno  do  1708, 
todas  mais  ou  menos  ílorcscenles,  e  dislinguindo-se  entre 
cilas  algumas,  que  na  execução  dos  produclos  que  nos 
deixaram  accusam  em  ífeus  directores  e  operários  mais 
que  suílicicnte  habilidade  c  dedicação  pela  arte  que  pro- 
fessavam. 


4  14 


O  PANORAMA 


D'ellas  faremos  resenha,  posloque  abreviada,  c  tanto 
quanto  baste  para  abonar  de  verdadeiro  o  que  deixamos 
dilo:  servindo  juntamente  de  commenlario  corroboralivo 
(la  alUrmaliva  do  nosso  illustre  amigo,  na  parle  cm  que 
diz  que  certos  lypographos  gosavam  de  privilegio  para 
a  impressão  dos  documentos  oíticiaes. 

Guardaremos  a  ordem  chronologica. 

1.  MiGLT.L  Rodrigues.  A  sua  oílicina  era  por  aquelle 
tempo  uma  das  melhores  de  Lisboa,  e  a  mais  antiga  de 
iodas,  existindo  anteriormente  ao  terremoto  na  rua  das 
Portas  de  Santa  Catharina.  D'elle  achamos  memorias  des- 
de 1726  ale  1774,  anno  em  que  aos  oitenta  e  dois  de  sua 
edade  faz  sahir  de  seus  prelos  a  nova  edição  das  Obras 
de  Francisco  Rodrigues  Lobo,  bem  como  dos  mesmos  sa- 
hiram  por  lodo  aquelle  intervallo  numerosas  e  aceiadas 
edições.  Era  impressor  do  cardeal  patriarcha. 

2V'  Domingos  Gonçalves.  Imprimiu  pelos  annosdel733 
a  1780.  Parece  que  n'esle  fallecera,  continuando  ainda  por 
mais  alguns  a  ollioina  em  poder  dos  seus  herdeiros.  Era 
cila  situada  no  palco  da  Charidade,  próximo  de  S.  Ghris- 
tovão.  Ahi  se  estamparam  além  de  muilos  livros,  e  rela- 
ções noticiosas  em  prosa  e  verso,  a  maior  parle  das  co- 
medias chamadas  de  cordel  em  mui  solíriveis  edições. 

.S.  Miguel  Manescal  da  Costa,  im|)ressor  do'  Santo 
Oflkio,  e  descendente  de  outro  mais  antigo  hpographo 
do  mesmo  nome.  Ha  livros  impressos  na  sua  bllicina  de 
174(1  em  diante,  ate  que  no  anno  de  1768  passou  a  ser 
administrador  technico  da  nova  Typographia  Regia,  para 
a  qual  passaram  egualoienle  a  fim  de  servirem  de  núcleo  os 
seus  prelos,  caracteres  e  mais  ulensilios.  Cremos  que  a 
ultima  obra  publicada  sob  o  seu  nome  foi  a  Dcducção 
chronologica  e  analylica.  Era  tido  por  habilissimo  im- 
pressor, e  homem  de  muita  probidade.  Morreu  no  1." 
de  Novembro  de  1801. 

4.  Officina  Regl\  SiLviANA,  ã  cssB  lempo  e  desde  1740 
em  poder  dos  descendentes  de  .losc  António  da  Silva, 
antigo  impressor  da  Academia  Real  de  Historia,  e  em 
cuja  typographia  mui  bem  fornecida  de  tudo,  se  impri- 
miram" nos  reinados  de  D.  João  V  e  D.  José  1  (até  1768) 
a  maior  parte  das  leis  e  documentos  officiaes.  Esta  im- 
prensa continuou  ainda  por  largos  annos,  com  algumas 
interrupções,  ale  os  nossos  dias. 

l).  Francisco  Luís  Ameno.  A  sua  typographia,  ((ue  se 
honrava  com  a  denominação  de  «Palriarchal»  foi  por 
elte  estabelecida  segundo  cremos  em  1718.  Comp?lia  com 
a  de  Mancscal,  se  é  que  se  lhe  não  avantajava  na  belleza 
dos  lypos  e  a  inhetas,  e  no  bom  gosto,  esmero  e  correc- 
ção das  edições.  Haja  \ista  a  Vida  do  infante  D.  Uenri- 
fjup,  a  Vida  da  Madre  Tffcreza  da  Annunciada,  as  Me- 
morias das  providencias  dadas  no  terremoto,  e  muitas 
outras  obras,  entre  a  infinidade  das  que  este  infatigável 
l>pographo  'que  lambem  era  escriptor)  produziu  nos  qua- 
renta e  cinco  annos  decorridos  até  o  de  1793  cm  que 
se  finou  com  80  do  edade.  A  oíTicina,  que  depois  do  ter- 
remoto estivera  collocada  succcssivamentc  nas  ruas  da 
Procissão  e  do  Jasmim,  conservou-se  ainda  por  alguns 
annos  com  a  mesma  denominação  de  «Patriarchali' depois 
da  morle  de  Ameno. 

6.  Manuel  Coelho  Amado.  A  sua  oíTicina,  que  lambem 
pode  conlar-se  entre  as  mais  consideráveis  d'aquelle  lempo, 
existiu  em  diversos  locaes  no  Rairro-Allo,  já  na  travessa 
da  Estrella,  já  na  rua  da  Rosa,  ou  da  Vinha  etc.,c  começou 
a  trabalhar  ao  (jue  parece  em  17'i0.  l)'ella  sahiram  mui  boas 
edições.  Por  óbito  do  proprietário  cm  1775  passou  para  Luis 
Francisco  Xavier  Coelho,  que  cuidamos  ser  filho,  ou  pa- 
rente próximo  de  Amado.  Tendo-lhc  este  dado  a  deno- 
minação de  "Luisiana»  Iraclava  de  amplial-a ;  porém 
pouco  se  gosou  da  uosse  d'ella,  morrendo  em  1780,  Fi- 
cou enlão  o  cslabelecimento  a  uma  irmã,  com  a  (|u;d 
casou  pouco  depois  o  conlra-meslre,  que  era  Simão  Thad- 
deo  Ferreira,  nome  assas  conhecido  enlre  os  nossos  ly- 
pographos do  século  actual. 

7.  FiiANcisco  RoriGES  de  Sous\.Esla  typographia  durou 
ao  que  podemos  jrdgar  de  ]7.')7  alé  1792,  e  estava  nos 
ullimos  Ifmpos  situada  no  Poça  do  P>orrateni.  Era  cm 
verdade  de  menor  consideração*,  o  mal  sir\ida  de  l>pos, 
o  por  muilos  annos  se  occúpava  rpiasi  exclusivamente 
da  impressão  de  autos,  comedias  de  cordel,  c  outros  |)a- 


peis  similhanles,  cuja  execução   faz  pouca  honra  à  sua 
[jcricia. 

8.  António  Vicente  da  Silva.  Melhor  que  a  precedente, 
posto  que  não  comi)aravel  ás  de  Ameno  ou  Manescal.  Im- 
primiu bastantes  li\ros  c  opúsculos  no  intervallo  decor- 
rido de  17í)9  a  1773.  Não  sabemos  que  destino  levou 
depois  d'esle  ultimo  anno. 

9.  António  Roduigues  Galuardo.  Temos  que  era  pa- 
rente próximo,  ou  genro  lal\  ez  de  Miguel  Rodrigues.  Co- 
meçou a  imprimir  por  1761,  c  a  obra  mais  antiga  que 
temos  visto  de  seus  prelos,  a  serem  verdadeiras  as  indi- 
cações, é  uma  edição  da  sentença  condemnaloria  do  je- 
suíta Malagrida,  nô  formato  de  8."  pequeno,  com  lypos 
(jue  nos  parece  serem  fundidos  em  França.  Foi  impressor 
da  Real  Meza  Censória,  e  por  morle  de  Miguel  Rodrigues 
passou  a  sel-o  lambem  do  cardeal  patriarcha.  Imprimiu 
numerosíssimos  livros  e  papeis  avulsos.  Asua  ofliclna. 
estabelecida  de  principio  na  rua  de  S.  Bento,  e  depois 
na  esquina  da  rua  de  Santo  Ambrósio,  passou  a  llnal 
para  a  rua  hoje  chamada  da  Escola  Polytechnlca,  com 
entrada  pela  da  Procissão.  Ahl  existia  ainda  ha  poucos  an- 
nos, em  poder  dos  filhos  e  herdeiros  do  primeiro  pro- 
prietário, que  seguindo  carreiras  ou  profissões  diversas, 
a  deixaram  ir  era  successlva  decadência  ale  se  extinguir 
de  lodo. 

10.  Caetano  Ferreira  da  Costa.  Encontramos  memo- 
rias d'este  impressor  enlre  os  annos  de  1765  e  1778, 
Cumpre  porém  confessar,  que  dos  seus  prelos  não  conhe- 
cemos outros  produclos  mais  que  relações  avulsas,  e  co- 
medias de  cordel,  e  algum  raro  livro  por  excepção. 

11.  JosK  DA  Silva  Nazareth.  Enconlram-se  memorias 
d'este  hpographo  desde  17G8  até  1786,  sem  comUido  po- 
dermos determinar  se  a  sua  ofilcina  subsistia  ainda  depois 
d'esse  anno.  Das  multas  obras  (pie  Imprimiu  no  mencionado 
período,  lembraremos  a'^í/ísío?'áí  do  poio  romano  por  José 
Thomaz,d'Aqulno  Barradas,  tomos  l.°j  e  "L",  no  formato 
(b  8.".  É  provável  que  a  Imprensa  passasse  por  sua  morte 
para  novo  possuidor,  cujo  nome  figurará  talvez  enlre  os 
de  muitos  cfue  nos  annos  subsequentes  a  1768  foram  es- 
tabelecendo novas  officlnas,  ou  continuando  com  as  exis- 
tentes. 

Poiler-se-ia  tornar  esta  resenha  mais  extensa,  se  hou- 
véssemos de  addiclonar-lhe  os  nomes  de  vários  outros 
lypographos,  que  funcclonavam  como  laes  cm  annos  mui 
proximamente  anteriores  ou  posteriores,  mas  de  que  não 
alcançamos  certeza  de  quo  se  conservassem  alé  ode  1768, 
que  tomamos  por  ponto  tixo.  Taes  seriam  por  exemplo, 
Ignaclo  Nogueira  Xisto  e  João  António  da  Costa, (|uc  exis- 
tiam de  certo  em  1765;  Pedro  Ferreira  em  1763;  Antó- 
nio Isidoro  da  Fonseca  c  Manuel  António  Monteiro  de 
Campos  em  1760:  José  d^Aíjuino  Bulhões,  do  qual  já  le- 
mos obras  por  ellc  im|)ressas  em  1769,  parecendo  que 
começara  n'esse  anno,  ele.  ele— Sem  nos  fazermos  cargo 
(Fesle^s  e  d'oulros,  nem  ainda  dos  que  pelo  mesmo  lem- 
po (ixlsllam  em  exercício  no  Porto  e  em  Coimbra,  cre- 
mos todavia  haver  sallsfello  de  sobra  ao  nosso  propó- 
sito, que  foi  simplesmente  o  de  mostrar  (pic  a  arle  typo- 
graphica  não  eslava  entre  nós  em  1768  em  Ião  lastimoso 
abatimento  como  se  pretendeu  suppor. 

liNNOcENCio  Francisco  da  Silva. 


OS  TRÊS  ESTADOS 

O  passado!  A  rcniinisccncia  do  passado! 

Kslivéra  dcniLMile,  c  a  loucura,  onuscando-mc  a 
inlolliííoncia,  havia-me  obliUcrado  da  memoria  as 
imprcs.sõos  fio  juclerilo,  as  recordações  de  l-oda  a 
minha  vida? 

Tinha  bebido  das  aguas  d'aquelle  celebrado  fio 
que  produziam,  em  quem  as  beiíia,  o  esqueci iiien- 
lo  de  ludo  quaplo  gozara  ou  padecera   alé  alli? 

Impossível  me  f()ra  responder  a  laes  perguntas, 
resolver  lai  duvida. 

O  certo  é,  poiém,  que' da  mente  havia-mc  des- 
aj)parí'cido    toda    a    lembrança    da   minha    vida 


I 


o  1»AN0KAMA 


anterior,  e  até  nem  podia  affirmar  que  linha  cxis- 
lido  anlos.  Todavia,  do  mesmo  modo.  ([uc  ás  vezes 
rcsoam  era  nossos  ouvidos  harmonias,  que  não  po- 
demos precisamente  qualitlcai',  mas  que  estamos 
convencidos  já  lermos  ouvido;  assim  minha  al- 
ma conservava  a  noção  de  uma  existência  pre- 
cedente, cujos  fados,  porém,  cujas  alegrias,  cu- 
jas dores  se  desvaneceram  da  uiemoria,  como 
do  cryslal  ou  da  lamina  de  aço  se  apaga  o  hálito 
que  o  embaciara. 

Solíreu  minha  alma  uma  metempsycose  pytha- 
gorica,  e  ao  mudar  de  forma  Corpórea  olvidou  o 
passado?  Ou  viclima  o  m.eu  espirilo  de  uma  in- 
sólila  allucinação  não  podia  j)erceber  os  fulgores 
do  que  fui,  nem  a  luz  do  futuro,  no  meio  das  den- 
sas trevas,  que  o  cercavam  por  todos  os  lados? 

Estas  idéas  se  me  agglomeravam  no  pensamento; 
cessando,  porém^  de  meditar  no  segredo  da  mi- 
nha alma,  olhei  em  torno  de  mim. 

Acliava-me  em  um  magnillco  palácio.  As  pa- 
redes não  eram  de  mármore,  jaspe,  ou  de  outra 
qualquer  pedra  que  o  homem  arranca  das  pedrei- 
ras. Cousa  estranha !  eram  de  gelo!  Um  largo  ves- 
tihu'o  profusamente  illuminado  por  enormes  can- 
delabros d;í  bionze,  cada  um  com  cem  luzes  degaz, 
o  cujo  pavimento  ei'a  forrado  de  bocadinhos  de 
pieciosas  madeiras,  dava  accesso  a  uma  sumptuosa 
escada,  guarnecida  de  grandes  e  custosas  jarras 
com  plantas  de  desconhecidos  climas.  No  cimo  d'cs- 
la  escada  via-se  uma  longa  e  e&pacosa  galeria,  al- 
califatia  com  tapetes  da  Pérsia,  i|lumina(la  á  giorno 
e  na  qual  se  agi"upava  uma  multidão  de  areados 
com  soberbas  librés  bordadas  a  oiro,  e  cabelleiras 
empoadas.  De  ambos  os  lados  da  galeria  as  pare- 
des permiíliam,  pela  sua  transparência,  admirar 
a  magnilicencia  nunca  vista,  de  uma  serie  deim- 
mensos  salões  de  baile,  onde  a  vista  se  sentia 
desluiiibrada  ])elo  brilho  da  luz  que  brolava  dos 
bicos  das  lâmpadas  de  oiro,  e  que  relleclindo  no 
gelo  das  paredes  adquiria  nova  força  e  intensida- 
de. ]']m  torno  dos  salões  havia  coramodos  divaus 
forrados  de  pelle  de  marlha  para  os  pares  des- 
cançaiem  das  danças.  A  alhmosphera  que  alli  se 
respirava  era  suavemente  tempeiada  por  occullos 
caloriferos;  e  estranhos,  porem,  dulcíssimos  aro- 
mas deliciavam  o  òlfato. 

Vai  discorria  pelas  salas  com  uma  bandeja  de 
ouro  na  mão  coberta  de  íinissimos  doces,  vendo 
relieclir  no  gelo  das  paredes  a  minha  encarnada 
libré  bordada  a  oiro.  Outro  lacaio  me  seguia  le- 
vando em  outra  bandeja  gelados  caguadulciíicada 
com  essências  nunca  pr^adas  de  suavíssimo  sa- 
bor. 

Via  passar  junto  de  mim.  levadas  pela  volu- 
|)luosa  embriaguez  do  baile,  todas  as  dilVerenles 
bellezas  da  terra;  poréin,  cada  uma  d'a(p!ellas 
mulheres  era  mais  bella  do  que  o  que  é  dado 
sel-o  a  mulher  alguma  terrena.  Alli  se  via  a  lilha 
do  iXorte,  de  tez  ligeiramente  rosada,  olhos  celes- 
tes, loura  cabelleira,  semelhante  a  uma  aureola 
dourada;  junto  a  ella,  com  o  seu  trajo  de  ri(|uis- 
sima  cachemira  de  vivas  cores,  a  brahmane 
da   Índia  com    a    cútis   levemente  bronzeada  e 


os  olhos  fendidos  á  maneira  dos  personagens 
dos  leques  chinos;  lambem  alli  se  encontrava 
a  orgulhosa  mandarina  do  Celeste  Império,  com 
o  seu  estranho  vestuário  e  bailando  enlhusiasmada, 
apezar  da  pequenez  de  seus  pés;  nem  faltavam 
n'aquelIaextiaordinaria  assembléaa  (ilha  da  Abys- 
sinia,  assemelhando  uma  formosa  estatua  de  már- 
more negro,  c  a  íilha  das  antigas  raças  ame- 
licanas,  meio  nua,  e  cobertos  os  braços  e  peito  de 
hiorogliphios  de  vivas  côies:  chamavam,  porém, 
sobretudo  a  attenção,  por  sua  irresistível  formo- 
sura, a  indolente  crcoula,  com  o  seu  languido  c 
voluptuoso  coqueltismo,  e  a  til.ha  das  Ilespanhas 
e  a  da  ílalia,  de  tez  pallida,  cabcllos  negros, 
olhos  avelludados ,  magnéticos;  irresistíveis,  e 
movimentos  já  preguiçosos,  jà  cheios  de  viveza  e 
elegância. 

E  ao  lado  de  cada  uma  d'aquellas  mulheres,  mais 
bellasdo  que  o  natu!'al,  taes  como  os  poetas  de  seus 
paizes  as  sonharam,  viara-se  lambem  valoro- 
sos guerreiros,  príncipes,  sábios,  trovadores  dos 
ditlerentcs  climas.  O  fato  preto  do  europeo,  con- 
fundia se  com  o  manto  branco  do  brahmane,  as 
variadas  cores  do  vestido  do  mandarim,  com  o 
luxuoso  trajo  persa  e  os  ricos  uniformes  cobertos 
de  oui"o  e  biilhantes  contrastavam  com  a  veslimeula 
'  talar  dos  africanos. 

E,  coisa  estranha  e  inexplicável!  a  cada  uma  d^a- 
quellas  mulheres  fallava  eu,  polyglola  universal, 
no  seu  idioma,  ao  oííerecer-lhe  os  doces  que  leva- 
va na  bandeja.  Quando  e  como  pude  aprender 
tantos  idiomas?  Como  foi  dado  à  minha  memoria 
reter  tantas  e  tão  variadas  línguas?  Problema  dif- 
ficil  de  resolver! 

O  baile  durou  algumas  horas.  A  tempo  notei  que 
as  luzes  começavam  a  empallidecer;  as  mulheres 
parec.-am  mais  elhcreas  e  vaporosas,  menos  cor- 
póreas ;  os  contornos  lornavam-se  mais  flucluan- 
tes  e  indecisos,  e  as  íiguras  que  minha  vista  al- 
cançava parecia  como  que  vagueavam  no  ar  ou 
via-as  alravez  dos  vapores  de  um  sonho.  E  ao 
mesmo  tempo  a  musica  invisível-  que  h^via  diri- 
gido o  baile,  ia  pouco  a  pouco  apagando  os  seus 
melodiosos  sons  até  chegar  aum  pianissimoapenas 
perceptível.  Alguns  momentos  depois,  aquellas  for- 
mosas mulheres,  aquelles  guerreiros,  príncipes  e 
sábios  se  desvaneceram  couq)leiamenleiia  sombra; 
a  musica  extinguio-se  n'um  dulcíssimo  sus|)iro,  c 
o  palácio  de  gelo  sumiu-se  iuleiramente  no  silen- 
cio e  na  obscuridade. 


Não  sei  quanto  tempo'passei  sem  que  chegas- 
sem a  meus  sentidos  um  som,  ou  um  raio  de 
luz.  O  que  é  certo  é,  (jue  decoi'rido  um  espaço  do 
temi)o,  cuja  duração  não  me  é  possível  calcular, 
a  vista  deveu-se-me  accostumar  ás  trevas,  ou  de- 
vi'rara  ler  sido  dotados  os  meus  olhos  da  faculdade 
dever  ás  escuras,  como  os  indivíduos  da  raça  fe- 
lina. Pelo  que  respeita  ao  ouvido,  não  se  percebia 
o  menor  ruído  no  palácio  de  gelo. 

Eslava  na  grande  galeria  que  dava  entrada  para 
os  salões  de  baile,  antes  Ião  esplendidamente  illu- 


\  10 


o  PANORAMA 


minados  e  que  n'aquelle  momenlo  jaziam  em  profiin-I  rosto  pallido,  de  porfeição  divina,  de  linhas  ma 
daobsciiridade.  Apalpando-me,  paraccMiiíicar-mese  gestosas,  severas  e  agradáveis,  e  aquella  bocca  pe- 

.-I „  «^^..,lníl,^       rvrtlni      ni-ia      «i       iiiiiiho     i-ipQ     li_     fiiipim    O  Hii  i'i  rncfi  rl'.i   filin    cni'1'in    1'filiinl  lírica  nií»n  1(1    nt\ 


estava  accoidado,  nolei  que  a  minha  rica  li 
bré  bordaJa  a  oiro,  havia  sido  subsliluida  por 
uma  vesliiuenla  de  pelles,  tal  como  as  dos  escra- 
vos russos. 

Ao  longe,  no  meio  das  Irevas,  via  um  raio  de 
luz.  Aquolle  pallido  reliexo  allraia-me  e  fascina- 
va-me  como  o  serpente  ao  pobre  passarinho,  para 
saciar  a  fome,  como  a  chamma  a  leve  mariposa, 
que  n'ella  vai  queimar  as  suas  lindas  azas.  O  in- 
deciso fulgor  chegava-me  amoriecido  pela  transmis- 
são ao  atravessar  varias  paredes  de  gelo. 

Orienlei-me  na  obscuridade.  Levantei  sem  ruído 
um  pesado  reposteirode  pelles,  que  servia  deporia, 
atravessei  varias  salas  descrias  e  cheguei  por  lim 
anle  uma  estancia  em  que  a  visla  não  |)odia  pene- 
trar. Com  eITeilo,  a  transparência  das  |)nredes  acha- 
va-se  resguardada  por  inagniticas  pelles,  brancas 
como  o  arminho,  que  defendiam  á  vista  a  sanli- 
dade  d'tiquelle  santuário;  mas  o  reposteiro  não 
fechava  hermelicamenle  aporia  opor  uma  fenda 
deixava  iilliar  o  raio  de  luz  que  alli  me  havia  at- 
traido. 

O  que  existiria  n'aquella  habitação?  Porque  se 
tinha  procurado  o  segredo  e  fechado  a  porta  á 
curiosidade"?  Eslas  perguntas,  que  a  mim  próprio 
fazia,  unidas  ao  aguilhão  da  curiosidade,  con- 
trabalançavam o  justo  temor  que  aquelle  mys- 
terio  me  infundia.  Por  oul.-o  lado,  porém,  o 
silencio  espantoso  que  reinava  em  todo  o  palácio 
e  o  envolvia  como  um  frio  sudário  de  morte, 
havia-me  gelado  o  coração  e  ateri^ado  a  alma: 
quiz  vencer  o  pânico  que  me  dominava  e  levantei 
a  cortina  de  pelles. 

Como  linha  presumido,  grandes  alcatifas  de 
pelle  de  arminho,  mais  brancas  do  que  as  neves 
do  Cáucaso,  fonavam  aquella  sumptuosa  camará, 
abiigando-a  e  resguardando-a  dos  olhares  da  indis- 
cripção:  |)elles  semelhantes  serviam  de  tapete,  tor- 
nando assim  aquella  estancia  um  ninho  branco. 
Do  tecto  pendia,  sustentada  por  três  cadeias  de 
oiro,  uma  lanijjada,  cuja  llamma  exhalava  um 
suave  perfume  e  allumiava  a  estancia  com 
os  seus  pallidos  e  trémulos  rellexos;  no  fundo 
via-se  um  leito  abiigado  por  grandes  cortinas 
de  seda  azul  celeste  sustentadas  [)or  uma  coroa 
de  ouro  adornada  de  pérolas  e  esmeraldas.  Sob 
aquellas  cortinas  ouvia-se  uma  res|)iração  suave 
»'  Iraiiqudhi.  Atiuella  estancia  era  o  quarto  de  uma 
piinceza. 

A  curiosidade  lulava  em  meu  peito  com  a  idèa 
do  knot,  o  látego  dos  escravos;  mas  por  íim  a  cu- 
riosidade venceu  o  temor. 

Alfaslei  com  cuidado  as  azuladas  cortinas  do 
leito  e  apenas  pude  conter  um  grilo  de  admira- 
ção. 

Cma  mulher  extraordinariamente  bella,  mais 
bclla  do  que  quantas  haviam  passado  anle  meus 
olhos  no  baile,  dormia  com  osonino  liaiujuillo  da 
infância.  Como  descrever  a  opulenta  cxplendidez 
dos  seus  cabcllos  negros,  cujas  perfumadas 
tranças  chegavam  até  ao  chão?  Como  pintar  aquelle 


quena  eaurirosada  que  sorria  voluptuosamente  no 
somno?  Algum  movimento  indiscreto  havia  apartado 
um  pouco  a  roupa  e  podiam-se  admirar  um  collodo 
alabastro  de  languida  morbidez  e  uns  homhros  de 
mármore  que  as  antigas  Vénus  teriam  invejado. 
Emlim,  pendia  descoberto  um  dos  seus  braços  que 
parecia  o  da  Yenus  de  iMilo  ou  de  outra  quabjuer 
d'essas  obras  monumentaes  de  estatuária  da  anti- 
guidade, que  são  o  assombro  e  todas  as  idades. 

lia  sensações  que  se  não  podem  explicar,  pois 
são  complelamenteinelíaveis.  A  vista  daiiuclla  mu- 
lher tão  bella  no  abandono  do  seu  somno  causou-me 
uma  d'essas  sensações.  Sem  saber  o  que  fazia  ajoe- 
lhei junto  do  leito,  tomei-lhe  a  mão  e  levei-a  aos 
lábios. 

Ao  fogo  ardente  do  beijo  a  .  princesa  abrio 
os  olhos.  A  estatua  adquirio  animação;  aquelle  cor- 
po tão  formoso  pareceu  volver  á  vida,  o  seu  rosto 
tomou  a  expressão  do  temor,  e  aquelles  olhos  ras- 
gados, irresistíveis,  magnéticos,  e  poi  cuja  punilla 
de  prelo  velludo  julgaria  ver  o  iniinito,  lixaram~sc 
aterrados  em  mim.  Por  lim  convenceu-se  de 
que  não  era  um  sonho  o  que  via  c  seus  lábios 
deixaram  escapar  um  grilo  de  angustia. 

Continua 


O  MUSICO  ENRAIVECIDO 

Cariciitura  de  Hogarth 

Já  n'este  jornal  se  esboçou  rapidamenle  a  phy- 
sionomiaarlistica  (restenolavel  pintor inglez,  cuja 
Índole  observadoi-a  dotou  a  Inglaterra  de  um  ver- 
dadeiro monumento,  porque  não  podemos  consi- 
derar d'oulra  forma  a  verdadeira  «Comedia  huma- 
na» que  as  suas  obras  constituem. 

l)'essa  «Comedia  humana»  possuímos  algumas 
folhas,  (|ue  iremos  successivamente  apresentando 
aos  nossos  leitores.  Já  uma  appareceu  n'este  volu- 
me do  Panorama;  essa  gravura,  que  se  intitulava 
o  Infeliz  Poda,  era  um  drama  pungente,  (pie  pal- 
l)itava  sob  a  mascara  do  riso,  era  uma  d'essas  ri- 
sadas á  Moliéi"e  que  occultain   profundas  agonias. 

Mas  a  vasta  obra  de  llogarlh  abrange  todos  os 
sentimentos,  todas  as  inspirações  que  podem salleiar 
o  poela  ou  o  pintor  cómico.  Se  além  solta  a  gar- 
galhada irónica,  e  inscreve  com  o  buril,  que  tem 
um  não  sei  que  da  penna  de  Juvenal,  um  |irotesto 
amargamente  zombeteiro  contra  os  decretos  do  des- 
tino, aqui  observa  fria,  Sagaz,  anatomicamente  o 
corpo  social  e  expõe  bem  visíveis  as  |)ustuliis  que 
o  ulceram.  Outra  coisa  não  é  essa  magnilica  serie, 
que  se  intitula  o  Casanienio  da  moda,  outra  coisa 
não  c  a  Vida  de  iiiii  devasso,  e  a  Vida  de  iniia 
devassa,  comedia  de  observação,  estudo  á  IJalzac, 
modelo  que  ha  de  inspirar  (javarni. 

Outras  vezes  a  travessa  inspiração  áovaudeville 
vem-lhe  guiar  também  o  buril  com  (pie  desenha 
os  seus  |)oemassat\  ricos.  Apanha  em  llagranteum 
ridículo  inollensivo,  uma  situação  cómica;  apodeia- 
sc  d'elle  um  riso  inextinguível,  e,  malicioso  já  e 


o  PANORAMA 


M7 


não  sarcástico,  reproduz  a  scena,  onde  encontrou 
a  inspiração  da  comedia. 

É  este  o  caso  da  gravura,  que  hoje  apresenta- 
mos aos  nossos  leitores.  ^ 

Ouem  não  tem  sentido  milhares  de  vezes,  nesta 
tuniultuosa  Lisboa,  a  tentação  irresislivel  de  se  en- 
tregar a  uma  d'essas  fúrias,  que  serviram  de  as- 


sumpto aveia  cómica  do  satyricoinglez,  quando  o 
realejo  da  esquina  móe  infatigavelmente  as  peças 
de  musica  do  seu  reportório,  quando  a  corneta  de 
chaves  de  um  virtuose  de  praça  publica  matiza  de 
variações  impossíveis  as  árias  mais  singelas,  os  hym- 
nos  menos  empolados,  quando  o  bando  dos  toiros 
passa  formando  com  os  instrumentos  ma's  conlra- 


dictorios  o  acompanhamento  da  parte  cantante,  que 
é  desempenhada  pelo  bombo,  quando  os  pregões 
se  cruzam,  se  confundem,  se  atropellam  vibrando 
discordantemente  por  esses  ares,  qual  de  nós  não 
sentio  ainda,  repito,  u  tentação  irrcsislivcl  de  des- 
cer á  rua,  e  de  correr  a  chicote,  em  nome  da  har- 


monia, esse  coro  e  essa  orciíestra  malditos  que  o 
próprio  Satmaz  repelliria  do  seu  inferno? 

Ora  se  isto  acontece  ao  poeta,  que  ve  fugir-ltie 
a  musa  hoirorisada  d'essc  bulício  insupportavel, 
ao  pensador  que  vò  a  sua  meditação  interrompida 
por  esses  cdiUios  plusquam  infernaes,  ao  mathema- 


8 


O  PArsORAMA 


íico,  quo  corifunde  a  demonstração  do  seu  tlieo- 
rcnia,  graças  a  esse  charivari  atroz,  ao  chymico, 
cujas  i-eacções  são  embaiulliadas  por  esse  diluvio 
de  sons,  o  que  não  será  quando  a  desgraçada  aí- 
ctima  da  tempestade  da  rua  é  nem  mais  nem  me- 
nos que  um  sacerdote  d'esstí  mesmo  deus  vilipen- 
diado pelos  lyricos  profanos,  um  cultor  enthusiasla 
c  apaixonado  d'essa  musica  apedjeJ8da,  insultada, 
viclimada  pelo  realejo,  pelo  bombo,  pela  corneta 
de  chaves,  e  pelos  pregões? 

Passa-se  então  a  scena,  que  o  malicioso  pintor 
inglez  estudou,  e  reproduzio  com  rai'a  felicidade, 
iia  gravura  que  orna  este  numero  do  Panorama. 
O  infeliz  corre  á  janeila  com  os  cabellos  em  pé, 
os  olhos  esgazeados,  aterrado,  fulminado,  fora  de 
si.  E  elles,  os  amaldiçoados,  os  profanadores,  os 
Ilottenlotescontinuam,  grave  e  imperturbavelmente, 
a  perpetrar  aquella  atrocidade  musical.  O  clamor 
da  viclima  é  cobtMto  pelo  estrondo  dos  instiiimentos 
de  vento.  i\ão  se  desintumecem  as  bochechas  ao 
assoprador  doligle,  não  descançam  os  braços  ver- 
tiginosos do  que  maneja  as  vaquetas,  não  estaca 
a  torrente  de  sons,  que  irrompe  do  realejo!  Parece 
que  é  elie  o  profanador,  parece  que  é  elle  quem 
vem  perturbar  a  celebração  dos  augustos  myste- 
rios,  elle  o  sacerdote,  elle  que  desejaria  escorraçar 
do  templo  da  arte  esses  vendilhões  de  musica  fal- 
siOcada! 

E  o  pintor,  sorrindo-sc  maliciosamente,  repro- 
duz admiravelmente  na  tela  as  diílerentes  figuras 
da  scena  cómica.  Cada  traço  do  pincel  revela  o  folhe- 
tinisla;  porque,  digâmol-o  com  desassombro  o  3Ia- 
sico  enraivecido  é  um  vei-dadeiro  folhetim. 

PlNHKlRO    CUAGAS 


THEATRO  DE  D.  MARIA  lí. 
II 

Corria  o  anno  de  1810.  Após  aí  guerras  civis,  que  en- 
sanguentaram a  palria,  reluzira  por  enirc  tantos  negru- 
mes, a  eslreila  honançosa  (i;i  paz  e  concórdia. 

As  artes  e  as  scieiírias  iain  colorando  alentos  nas  niinns 
fiinieganles  de  uma  sociedade  carcomida  que  baqueara 
sol)  a  influição  potente  das  novas  ideas,  que  não  com  o 
eslrondar  dos  caidiões.  Havia  liomens  então.  E  que  ho- 
mens! Os  patriotas  de  20,  2õ  e  ;]i,  esses  perigrinos,  pie- 
dosos que  haviam  cliorado  lagrimas  de  sangue  nos  agros 
do  exílio,  lambem  tinham  visto  muito,  e  o  pranto,  que 
llies  empanava  os  ollios,  não  podia  escurecer  os  mit  os- 
plciiflores  da  civilisação  nas  grandes  capitães  da  Europa. 

Esses  cruzados  de  uma  idca,  que  haviam  deixado  pá- 
tria c  familia  para  hastearem  o  pendão  da  liberdade  em 
ura  lieroico  rocliodo  do  oceano,  mal  foram  de  volta  ao 
seu  paiz,  viram  que  o  desjjotismo  nem  mesmo  encobrira 
as  puslulas  no  manto  do  esplendor  material.  Tudo  aqui 
ora  mesquinho,  homens  e  coisas.  IJsboa  não  soíTrera  a 
menor  alteração  depois  que  o  grande  marquez  se  afundara 
nas  sombras  do  sepulcro  e  da  ingratidão. 

Lisboa  era  ainda  uma  cidade  do  século  passado,  que 
era  necessário  rejuvenescer. 

O  estrangeiro,  afeito  r.s  maravilhas  da  terra  natal,  fica- 
va pasmado  o  absorto  desenibareando  aípii,  n'cstas  praias 
cheias  de  lodo  e  contem7?Tando  osriíjssos  usos  e  costumes 
impugnados  de  nativa   barbaria  e  proverbial  sujidade. 

Huins  avenças  dávamos  nós  a  \iajanles  di>tinelos,  ecom 
sobrada  razão  dizia  Byron,  em  inqx.-tos  de  mal.  contido 
desprezo  e  m.-recida  ironia,  que  estávamos  na  Europa  e 
não  pertencíamos  á  Europa.  Era  necessário  lazer  tudo, 
porque  tudo   fallava. 

A  transformação  fora  rápida  e  absoluta.  Ao  despotismo 


succedèra  a  liberdade,  ao  silencio  do  cárcere  o  clamor 
da  praça  publica,  á  Gazela  censurada  e  tonsurada  o  pe- 
riódico livre,  libérrimo,  e  que  cm  ser  desbragado  ás  \ezcs, 
impetuoso,  Iribunicio,  era  puramente  oblata' ás  novas  con- 
quistas. 

Estes  porém  não  se  cifravam  n'is!o.  Um  povo  que  re- 
nasce no  meio  das  cinzas  á  voz  da  bberdade  exige  muito 
mais  Já  o  não  contentam  procissões  faustosas  com  os  seus 
renques  de  andores  e  charamellas  c  limbaleiros  archai- 
cos. 

Outros  espectáculos  requer,  mais  consentâneos  do  pro- 
gresso, mais  civilisadores,  mais  dignos  da  liberdade;  espec- 
táculos que  ao  tempo  que  divirtam  sejam  de  boa  lição  e 
doutrina. 

Era  preciso  que  a  transformação  phisica  e  moral  de 
Lisboa  acompanhasse  o  século^  cujas  feições  se  iam  pro- 
nunciando. 

Era  preciso  que  as  sciencias  se  desenvolvessem  c  as 
artes  encontrassem  gasalhado. 

Era  preciso  construir  escolas,  abrir  bibliothecas,  levantar 
palácios,  dispor  muzeus,  fazer  estradas,  melhorar  por- 
tos, lacililar  mutuas  relações  decommercio  e  industria  em 
que  a  liberdade  se  espanejasse  á  vontade,  e  ao  par  does- 
tes e  outros  melhoramentos  polilicos,  sociaes,  e  económicos 
que  os  governos  iam  iniciando,  dilfuudire  espalhar  luzes 
pelo  povo  por  lodos  os  modos,  porque  a  liberdade  assim 
como  as  flores,  definha  se  e  morre  nas  sombras. 

E  entre  esses  meios  tão  variados,  posto  que  desigual- 
mente fecundos,  um  havia,  que  quasi  nos  faltava  em  l^or- 
tugal.  Era  o  thealro,  es.sa  escola  de  costumes,  esse  pal- 
ladio  de  verdade,  esse  foco  de  luz,  esse  destruidor  de  pre- 
conceitos, esse  facho  que  brilhara  nos  piínlhons  da  Grécia 
e  nos  circos  de  Roma,  essa  religião,  que  tem  por  patri- 
archas  e  apóstolos  os  maiores  génios  da  antiguidade: 
E.sch\lo  Euripedes,  IMauto,  Terêncio  e  tantos  outros;  o 
thealro  em  cujo  tablado  se  rei)resentaram  na  idade  media  so- 
lemnes  mysterios,dominio  glorioso  de  histriões  ejograes  (pie 
diziam  tantas  verdades  aos  poderosos  da  terra,  elemento  ro- 
busto de  renovação  nas  mãosda  Chakspeare,Molicree  Allie- 
ri,  campo  neutro  aonde  as  ideas  fecundas  se  aninhavam  para 
depois  esvaaçarem  sobre  a  humanidade,  arca  santa  deop- 
primidos  c  p"hylosophos,  lempio  em  cujas  abobadas  re- 
tumbavam gargalhadas  de  folião  de  envolta  com  grandes 
princípios  e  grandes  verdades,  ahnanca  poderosíssima  de 
revolução,  espelho  fiel,  aonde  se  relleclem  em  Ioda  a 
sua  hediondez  os  vicios  mal  disfarçados  com  a  mascara 
da  hypocrisia.  Era  o.theatroque  nos  faltava,  além  do  nuiilo 
que  trinta  annos  de  fadigas  e  trabalhos  ainda  não  pude- 
ram conquistar.  Os  brios  porem  de  um  povo,  que  an- 
elava sair  do  antigo  torpor,  não  consentiam  essa  macula. 
Como  não  corar  de  pejo  e  vergonha  ao  entrar  esse  edi- 
fício informe  da  liua  dos  Condes,  que  a  nossa  soberI)a 
pobreza  linha  alcunhado  de  IheaVro  normarí  Como  havía- 
mos de  rcs|)onder  ao  sorriso  de  commiseração  c  desprezo 
do  estrangeiro,  que  assistisse  á  representação  de  um  dra- 
ma nacional  em  legurio  tão  immundo  e  indigno? 

Construir  um  edifício  sumpUioso,  que  fosse  lempio  da 
arte  dramática  era  pois  instante  necessidade.  Pertencem 
as  honras  do  commeUimenlo  a  .loaquim  Larcher,  então 
governador  civil  de  Lisboa  (t8;56'iea  Almeida  Garrett,  o 
dramaturgo  nacional,  que  ao  passo  (pie  cuidava  doedili- 
cio  material,  não  descurava  o  augmenlo  da  arte,  anies 
propunha  e  creava  o  conservatório  real  o  a  inspecção  dos 
theatros. 

Começa  aipii  uma  longa  série  de  luctas  c  desenganos, 
que  assoberbaram  outro  que  não  lôra  o  restaurador  das 
letras  pátrias  e  os  seus  não  menos  robustos  sequazes  c 
amigos. 

Escolheu-se  o  palácio  da  inquisição,  ou  antess  as  suas 
ruínas  para  local  do  projeelado  thealro,  e  o  architecto  Chiosi 
fez  um  risco  tão  eeonomíco  e  comezinho,  que  não  exigia 
a  execução  (felle  mais  de  vinte  e  quatro  conctosde  reis. 

Esses 'mesmos  porem  faltavam,  apezar  de  continuados 
esforços. 

Nomeou-se  depois  uma  commissão  (pie  tinha  por  en- 
cargo angariar  uma  companhia  do  edificação;  escolheu-sc 
a  cerca  do  convento  de  S.  Francisco,  mas  tantas  c  Ião 
variadas  foram  as  opiniões.  Ião  discordes  os  alvitres,  que 
não  houve  apaziguar  os  contendores. 


o  PANORAMA 


M9 


Veio  enlãoa  combale  o  sr.  conde  do  Fnrrobo,  esse  pro- 
tcclor  convido  dns  arles  earlislns,que  hoje  alii  está,  po- 
bre e  desamparado,  viclima  da  pátria  injírala  e  de  pa- 
triotas mais  ingratos  ainda.  O  sr.  conde  do  Farrobo  cujo 
nome  andava  ligado  ao  Iheatro  de  S.  Carlos,  oderecia-se 
a  construir  othoatro  nacional  sob  certas  condições.  Baldo 
porem  foi  ainda  este  esforço. 

rsão  esmoreceu  comtudo  Almeida  Garrett,  que  linlia 
por  irmão  de  armas  em  tão  santa  cruzada,  outro  poeta 
grande  também,  amanlissimo  das  coisas  pátrias— António 
Teleciano  de  Castilho. 

Almeida  Gairett,  deputado  da  nação,  apresentou  um 
projecto  de  lei  ^6  de  novembro  de  18í0;  (pie  tinha  por  fim 
erigir  o  monumento  áarle  nacional.  Devia  o  governo  dar 
o  terreno  e  iiarte  dos  materiaes- correndo  as  outras  des- 
pezas  á  conta  de  uma  companhia,  que  só  fruia  os  reddi- 
tos  da  sua  obra  em  cci  lo  prazo  de  tempo,  passando  de- 
pois o  Iheatro  a  ser  propiiedade  nacional. 

Mas  ainda  d'esla  vez  venceu  o  mau  fado,  que  perseguia 
o  nosso  Ihcalro. 

Correra  cerca  de  um  anno.  Os  caixas  do  contrato  do 
tabaco  offereceram  quarenta  contos  se  porventura  lhes 
tirassem  o  encargo  de  empresários  do  thcatro  lyrico. 

Approvada  e  acceila  esta  proposta  a  esforços' de  Joa- 
quim Sanches,  então  inspector  dos  theatros,  approvado 
lambem  o  risco  do  ilaliano  Fortunato  I.odi  e  creada  nova 
commissão,  começaram  os  trabalhos  em  julho  de  J8i2,e 
ainda  não  eram  cÔrriíios  quatro  annos,  abriu-se  o  Iheatro 
em  abril  de  18iG,  no  dia  natalício  da  rainha  D.  Maria  1!,  cujo 
nome  foi  dado  ao  novo  thealro,  represenlando-se  o  dra- 
ma Alvai'o  Gonçalves,  o  Magriço  ou  os  doze  delnglaterra. 

Querer  descrever  miudamente  o  edificio,  tanto  por  fora 
como  por  dentro  é  obra  demasiado  longa  e  porventura 
mais  adequada  a  um  jornal  technico  do  que  ao  PíOiorai/ia 

Contenlar-me-hei  pòr  isso  em  fazer  rápida  descripção 
lio  novo  Iheatro  normal,  indicando  os  tópicos  principaes 
que  convém  não  ignorar. 

A.   OSÓRIO  DE  VASCO.N'CELLOS. 

iConiinua-] 

VIAGEM  Á  LUA* 

Aj^ologo  por  ILiisgieu 

Aconteceu  que  unia  vez  os  sete  sábios  da  Gré- 
cia, reunidos  em  Alhenas,  quei-endo  decidir  qual 
ei-a  a  maior  maravilha  da  creação,  resolveram  que 
cada  um  porsuavezexposesse  o  seu  parecer  acer- 
cado assumpto. 

O  primeiro  que  failou,  sustentou  que  nada  ha- 
Tia  de  mais  maravilhoso  que  as  estreitas:  na  opi- 
iiião  dos  astrónomos,  a  maior  parte  eram  soes  em 
roda  dos  quaes  giravam  mundos  contendo,  como 
a  terra,  plantas  e  animaes,  mas  de  formas  es- 
tranhas e  desconhecidas.  Excitados  por  esta  pres- 
pecliva,  os  sábios  supplicaram  Júpiter  lhes  per- 
mittissc  visitar  o  planeta  mais  próximo,  a  lua. 
iNão  estariam  lá  senão  três  dias  e  viriam  contar 
aos  homens  os  prodígios  que  vissem  n'aquelle 
mundo  desconhecido.  Júpiter  deferiu-llieso  reque- 
rimento e  marcou  como  [lonto  de  |)arlida  o  cimo 
de  uma  elevada  montanha  onde  uma  nuvem  os  de- 
via esperar.  A  hora  indicada  apresentaram-se, 
acompanhados  de  artistas  e  poetas  encarregados  de 
pintar  e  descrever  as  suas  descobertas. 

Depois  de  terem  rapidamente  atravessado  o  es- 
paço ethcrco,  chegaram  á  lua,  onde  achaiam  um 
palácio  preparado  para  reccbe!-os.  iXo  dia  seguinte, 
estavam  tão  cançados  da  viagem  que  acordaraiu 
ao  meio  dia.  Foi-lhes  servido,  para  recuperarem 
forças,  um  succulento  almcço,  do  qual  tanto  se 
aproveitaram  que  a  sua  curiositlad-e  diminuiu  con- 
sideravelmente. N'este  dia  entreviram  atravez  das 


janellas  um  delicioso  paiz,  coberto  da  mais  rica 
verdura  e  de  flores  de  rarabelleza;  ouviram  o  me- 
lodioso gorgeio  dos  pássaros  c  promelteram  le- 
vantar-se  na  madrugada  seguinte,  para  darem  come- 
ço ás  suas  observações.  Mas  no  segundo  dia,  quando 
iam  para  sair  de  casa,  um  bando  de  dançarinos  e 
dançarinas  embargou-lhe  o  caminho.  Um  segundo 
banquete,  ainda  mais  lauto  que  o  primeiro,  eslava 
servido. Vinhos  raros,  musica,  danças:  tudo  convida- 
va ao  prazer;  íicaraiii  presos.  De  repente,  vizinhos 
invejosos  perturbaram  a  festa,  prccipilando-se  ar- 
mados na  sala  do  festim.  Travou-se  a  lucta;  os 
sábios  tomaram  parte  n'ella  eos  invasores  ticaram 
vencidos.  A  justiça  teve  o  seu  curso,  c  o  terceiro 
dia  foi  absorvido  inteiramente  pelos  inquéritos, 
re])licas  e  sentença;  de  modo  que  o  tempo  con- 
cedido por  Júpiter  expirou^  e  os  sele  sábios  vol- 
taram à  Grécia,  cuja  ])opulação  correu  logo  ao  seu 
encontro,  ávida  de  noticias  da  lua. 

O  que  os  sábios  poderam  dizer  é  que  era  um 
excellente  paiz,  coberto  de  verdura,  matisado  de 
tlores,  e  onde  os  pássaros  cantavam  a  arrebatar.  De 
que  nalurezB  eram  esta  verdura  e  estas  flores? 
Como  eram  estes  pássaros?  Não  sabiam  a  tal  res- 
peito nem  uma  palavra. 

DANIEL  RIGHARD 

Já  o  século  XVII  eslava  bastante  adiantado,  ain- 
da os  bravos  habitantes  de  Locle  se  contentavam 
com  os  quadrantes  solares  para  medir  o  teiupo.  . 

Em  1()79,  porém,  um  curioso,  que  para  alli  foi 
residir,  levou  um  relógio  de  Londres.  Gran- 
de maravilha  foi  esta,  para  aquella  gente,  por- 
que dentro  em  pouco  tempo  o  fabrico  dos  relógios 
tornou-se  quasi  que  a  sua  única  industria  !  O  re- 
lógio desorganisou-se;  o  seu  dono  contiou-o  a  um 
habitante  de  Sagne,  cuja  destreza  e  génio  eiuprehen- 
dedor,  sem  duvida,  conhecia.  Daniel  João  Richard 
(não  se  encontra  este  nome  nas  biographias)  teve 
seis  mezes  o  relógio  em  seu  poder;  mas  não  o 
guardou  inuliliuente  para  si  e  para  o  seu  possui- 
dor: n'este  curto  espaço  de  tempo,  tinha  estuda- 
do o  complicado  mechanismo,  e  havia  inventado 
a  serie  de  utensílios  necessários  para  reparar  a 
famosa  machina  ingleza.  Ainda  não  tinham  decor- 
rido, depois  d'isto,  outros  seis  mezes,  já  Daniel 
Richard  se  achava  habilitado  para  fabricar  o  reló- 
gio mais  complicado.  Fez  mais:  tinha  o  génio  que 
jnvenla,  e  a  paciência  que  aperfeiçoa;  adquiriu 
"grande  somma  de  conhecimentos,  e  depois  diri- 
gio-se  a  (icnova,  aonde  estudou.  Estudar,  pra  tra- 
balhar para  o  bem  dos  seus  patrícios  e  estes,  com 
eílVito,  aproveilaram:  pacientes  como  elle,  como 
elle  se  cnritiueceram.  Além  d'isso,  Richard  tinha 
cinco  lillios,  herdeiros  de  seus  talentos,  e  por  quem 
o  ensino  era  dado  a  todos.  A^m  se  povoou  aquelle 
cantão  de  relojoeiros. 

Daniel  Richard  morreu  eiu  1711.  Mas,  porque 
se  calam  a  seu  respeito  as  biographias?  E  porque 
se  não  lêem  as  cartas  de  Coxe  sobre  a  Suissa, 
onde  se  acham  consignados,  mil  factos  cuiiosos:  é 
alli  que  se  encontra  a  historia  d'este  hábil  indus- 
trial. 


■120 


O  P\NORAMA 


Á  MORTE  DE  MANUELA  REY. 

Permille  que  em  soluços  eu  deponha 
Também  uma  saudade,  ó  alma  bella, 

>io  leu  fúnebre  leilo! 
Se  á  flor  da  pranlos  a  manhã  risonha, 
Eu  dou-le  a  llor,  —  ai  I  pobre  Manuela  !  — 

Mais  trisle  do  meu  peilo  1 

Nenhuma  aos  pés  te  avremecei  outrora, 
Em  vida,  quando  meiga  no  proscénio 

E  ardente  de  paixão, 
Sentia  toda  a  luz  da  tua  aurora, 
E  a  suave  fragrância  do  teu  génio 

Descer-me  ao  coração  I 

Nenhuma  1  Acaso  pode  humilde  planta 
Roçar  com  seus  perfumes  o  empíreo, 

Dos  orvalhos  em  paga? 
O  verme  que  do  pó  se  não  levanta 
O  néctar  retribuo  ao  doce  lirio 

Que  um  dia  o  embriaga? 

As  almas  como  a  tua  são  um  canto 
De  frescas,  de  continuas  melodias, 

L'm  arrulho  d'amor ! 
Orvalho  solto  do  azulado  manto 
N'aridez  glacial  de  nossos  dias' 

Sobre  pallida  flor. 

Foi  bello  o  ver-le,  sim,  gentil  creança. 
Nas  azas  do  teu  génio  erguida  acima 

Das  tormentas  da  sorte; 
Qual  a  ave  que  num  vòo  se  abalança 
Vor  entre  os  vendavacs,  c  se  aproxima 

Da  luz  que  tem  por  norte  ! 

Foi  bello  e  grandioso  !  Não  se  exprime; 
Mas  eterna  lembrança  em  nossa  vida 

Ficou  do  que  era  teu  ; 
Quando  o  elhcrco,  o  intangível,  o  sublime, 
Moldavas  na  palavra  traduzida 

Em  cânticos  do  ceu  l 

Da  santa  inspiração  o  beijo  caslo 
Depoz-te  Deus  na  fronte;  ea  luz  divina, 

Que  cm  bem  poucos  se  ateia, 
Brilhou  em  ti,  e  um  horisonte  vasto 
Ás  ambições  da  gloria  que  fascina, 

Sèm  veu  se  patenteia. 

Tiveste  só  aurora  !  mas  bem  raro 
Tão  risonha  manhã  ú\\n\  bello  dia 

iNo  ceu  assim  reluz ! 
Não  se  diga  que  IJcos  te  foi  avaro! 
No  leu  celeste  alvor  se  resumia 

Um  futuro  de  luz! 

Aos  grandes  só,  somente  aos  escolhidos 
Concede  n'este  mundo  a  providencia 

Tal  dom  e  tal  baptismo! 
São  o  bello :  —  nós  somos  os  sentidos. 
Apenas  somos  pó:  —  elles  essência. 
.    São  o  ceu  :  —  nós  o  abysmo  1 

Que  tem  que  elles  não  tenham  por  cortejo 
A  gloria  só?  Que  sempre  lhes  (lecline 

O  sol,  quando  em  manhã? 
Que  tem  que  a  febre  estampe  o  ardente  beijo 
Cm  dia  em  Mille^e,  nVxitro  cm  ISellíni, 

Se  a  luz  c  sua  irmã  ? 

O  génio  dVsses  laes,  centelha  errante, 
Baqueia,  mas  apoz  deixa  um  vestígio 

De  fterna  claridade  ; 
E  os  crentes  do  ideal,  a  rada  instante 
Evocam  sempre  o  divinal  prodígio 

Nas  hras  da  saudade  ! 


Assim,  ó  anjo  louro  e  pensativo. 

Aos  ecos  do  triumpho  abrindo  o  espaço, 

Levou-le  o  vendaval! 
Mas  nós,  ainda  apoz  o  vôo  altivo. 
Sentimos  n'alma  um  luminoso  traço 

De  luz  celestial  I 

GUILHEUIIE   DE  AzEVEDO. 


CAUSERIES 

Tersos  a  Angélica 

—Quando  às  horas  do  sol  posto 
vês  o  dia  desmaiar, 
Isempre  triste  a  meditar, 
sempre  as  lagrimas  no  rostol 

— Escuta,  são  as  lagrimas 
um  peso  que  sai  (ralma, 
e  que— celeste  bálsamo — 
nas  ulceras  se  espalma... 

—Mas  em  faces,  cujo  encanto 
rochas  pôde  commover, 
dóc  me  tanto,  linda,  o  ver 
a  cair  em  lio  o  pranto!... 

—Também  da  noule  o  róscio 
orvalha  a  linda  flor, 
e  a  flor  não  pende  languida, 
nem  perde  a  viva  cor. 

—Mas  se  a  noute  assim  espalha 
sobre  a  rosa  o  seu  frescor, 
^qual  a  noule,  branca  flor, 
que  de  lagrimas  te  orvalha? 

—  Não  é  a  noule!— volta-le 
alem  para  o  occidenie: 
choro  aos  adeuses  últimos 
do  astro  resplendente. 

-  Oh!  não  chores,  que  se  o  astro 

ao  seu  leito  desce  ja, 

amanhã  Ic  sorrírtá, 

branca  estatua  de  alabastro. 

—Mas  quando  sobre  os  píncaros 
do  monte  repontar, 
<,quem  sabe  se  inda  Angélica 
tu  saberás  amar?  ! 

— l\Iarchc  embora  o  lírio  na  hasle, 
fnja  o  sol,  loldem-sc  os  céus... 
6  eterno  como  Deus 
este  amor  que  me  inspiraste. 


Vizcu,  18G6. 


Cândido  Figueiredo. 


SEM  TITULO 

Viste  ao  serão  a  douda  borboleta 

volitar  descuidada, 
c  arder  depois  na  luz...  Tiveste  pena 

e  disseste:— coitada! 

E  cu  (jue  a  Ioda  a  hora  ardo  nas  chammas 

(Vvíiiío.  olhar  adorado, 
oh!  quando  te  ouvirei  compadecida 

dizer  lambem:— coitado! 


Vizeu  18G5. 


Cândido  Figueiuedo. 


Typ.   l'"ranro  I'(jrlugucza,  líua  do  Tliueouro  VcUio,  (l. 


I 


16 


o  PANORAMA 


\% 


CAMARÁ  MUMCU'AL  1)R  DERBY 

M  uiu  (los  mais  nolavois  cdiUcios  (rcsla  liiula 
cidade  ingleza,  capilal  do  condado  do  mesmo  nomo, 
siluada  á   boira   do   DciwímU  no   moio    de    unia 


romanlíca  palzagom,  de  campinas  verdejantes  cotíi^ 
são  Iodas  as  da' Iníiiaíei-ra,  paiz  a  (lue  o  céu  nog'^ 
os  sorrisos  do  claro  sol  meiidional,  mas  onde  a 
leria  se  rcvesle,  em  compensarão,  de  um  ir.anlo 
de  ÍVesca  o  viçosíssima   \erdura,   de  (jue  se  nã) 


122 


O  PANORAMA 


podem  ufanar  as  torras  do  sul,  queimadas  e  rc- 
queimadas  pelos  beijos  de  fogo  do  asiro  ardenlis- 
simo,  que  as  inunda  de  luz. 

O  condado  de  Derby  um  dos  do  norle  de  Ingla- 
terra e  dislinga-se  bem  cnlre  Inglalerra  e  (jiã- 
Brelanha;  porque  esla  ilha  compõe-se  de  dois  reinos 
unidos,  Escócia  e  Inglaterra,  licando  aquella  ao 
norle,  esta  ao  sul,  deforma  que  dizendo  «noite de 
Inglaterra»,  dizemos  «sul  da  Escócia»)  o  condado  de 
Derbv,  pois,  c  um  dos  mais  curiosos  e  mais  o\n\- 
lentosdo  território  inglez;  fazem-n'o  assim  assuas 
formosas  paizagcns,  os  seus  magnificos  prados,  as 
vastas  cavei-nas  das  suas  montanhas,  as  numeio- 
sas  cataraclas  dos  seus  rios,  o  desenvolvimento 
prodigioso  da  sua  agricultura,  o  grau  elevadoaque 
chegou  a  sua  industria  manufactureira.  Abundam 
no  seu  território  as  aguas  mineraes,  as  minas  e 
as  i)edreiras(le  mármore;  a  exploiação  d'essas  mi- 
nas, e  a  criarão  de  gcidos  formam  uma  grande 
parle  da  ri(iuí'za  do  condado;  assuas  manufacturas 
de  algodão,  seda,  clã  completam  a  lista  das  fontes 
principaes  da  sua  opulência  e  importância. 

A  população  do  condado  ó  avaliada  em  duzen- 
tas e  sessenta  mil  almas,  e  a  da  sua  capital  em 
quarenta  mil.  Conia  eslacidadomuilosedilieiosnola- 
vcis,  entrcos  quaescilaremosalgumas  igrejas,  uma 
das  quacs,  a  de  lodosos  Santos,  otTercce  um  bellissi- 
nio  espécimen  de  archithecluia  golkica,  o  hospi- 
tal, a  cadeia,  o  theatro,  a  sala  das  r( uniões  pu- 
blicas, e  a  casa  da  camará,  odificio  de  nobre  as- 
pecto, como  os  leitores  podem  ver  pela  gi-avura 
que  lhes  apresentamos 

Conta  esta  cidade  fabricas  imporlanles  de  sedas 
e  algodões,  e  uma  fabrica  de  porcelanas,  cujos  pro- 
duclos  rivalisam  com  os  da  China  pela  beíleza  da 
massa  e  vi\acidade  das  cores. 

Nos  arredoies  de  Derby,  matizam  a  paízagem 
magnificos  palácios,  habitados  pelos  membros  da 
aristocracia  ingleza,  residências  enire  as  quacs 
se  tornam  notáveis  pela  sumptuosidade  o  palácio 
de  Keddieston-house,  e  jx-la  sumptuosidade  ainc^ 
maior,  e  pelas  recordações  históricas  que  o  illu-' 
minam,  o  palácio  de  6'Ar/.s?roW/í,  residência  do  du- 
(jue  de  Devonshirc,c  que  sérvio  outr'ora  de  j)risão 
á  formosa,  á  sympathica,  á  infeliz  Maria  Sluart. 


OS  TRÊS  ESTADOS 

Assim  como  nos  thcatros,  a  um  signal  dado  por 
um  dos  piincipaes  personagens,  a  scena  vè-sc  ins- 
tantancamenlt.'  invadida  pelos  coros  ou  com|)arsas, 
que  es|)eram  a(|uelle  signal  entr(!  bastidores,  tal, 
ao  rcsoar  o  grito  da  princesa,  se  precipitaram  no 
quarto  un.a  multidão  de  escravos,  pagens  e  es- 
cudeiros. 

Ainda  apertava  a  mão  da  piincesa,  ao  lado  de 
cujo  leito  me  achawa  ajoelhado.  O  meu  delicio  era, 
pois,  llagrante  e  o  castigo  não  se  deveria  fazer  es- 
perar. 

—O  que  succede?  exclamou  com  voz  imperio.sa 
um  velho  es(|ualido  envolto  em  um  magnilico  cham- 
bre de  cachemiia  e  com  uma  espada  nua  na  mão. 

Immedialamenle  foi  inteirado  do  successo. 


— E  claro,  pois,  continuou  o  velho,  que  esse 
miserável  ousou  levantar  os  olhos  para  a  i)rincesa 
e  piocurava  levar  a  cabo  seus  criminosos  intentos. 
Vós  toilos,  sois  testemunhas  do  crime.  Sede  lam- 
bem juizes.  Ouo  pena  merece  este  escravo? 

Aquella  turba  de  servidores  exclamou  a  uma 
voz,  como  um  coro  bem  ensaiado: 

— A  morte! 

— Oue  morte?  Empalado,  enforcado,  (lueimado, 
esquartejado,  ou  morto  ás  [)áoladas  como  um 
cão? 

— A  morte  do  gelo!  repetio  o  còi'0. 

— Seja!  Levai-o  d'aqui  e  cumpra-sc  a  senten- 
ça sem  dilação. 

Aquelles  energúmenos  precipilaram-se  sobre 
mim  e  a  empuxões  me  lizeram  sair  do  camarim, 
atravessar  varias  salas,  depois  a  galeria,  descer  a 
escada  c  passar  o  vestibulo. 

Então  apresentou-sc-me  á  vista  um  espectáculo 
surprehendente! 

Era  uma  immensa  planície,  sem  limites,  sem 
horisonle,  coberta  completamente  de  neve,  cuja  al- 
vura brilhava  pallidamentc  á  luz  débil  do  cre|»us- 
culo  da  manhã.  Nem  uma  pedra,  nem  uma  arvore, 
nem  uma  habitação  interrompiam  a  mageslosa  uni- 
formidade d'aquelle  quadro,  sobre  o  (lual  se  es- 
tendia o  firmamento  transparente,  onde  começa- 
vam a  empallidecer  as  cslrcllas  ante  os  primeiros 
raios  do  dia. 

Os  meus  olhos  não  se  cançavam  de  contemplar 
aquelle  maravilhoso  panorama. 

No  enlrelanlo,  os  (jueme conduziam  haviam  plan- 
tado na  neve  um  grande  madeiro.  Terminada  es- 
la operação  de^pa^aram-me  de  lodos  os  meus  ves- 
tidos e  ataram-me  fortemente  áquelle  poste.  Então 
deram-sc  as  mãos  e  começaram,  em  roda  de  mim, 
uma  dança  frenética,  infeinal,  dando  grilos  des- 
compassados e  gargalhadas  estridentes. 

Eu  sentia  um  frio  horrível,  espantoso! 

— Agua!  agua!  gritaram  os  meus  verdugos. 

A  estes  grilos  alguns  da  comitiva  desapparecc- 
ram  para  voltarem  d'ahi  a  pouco  com  grandes 
vasilhas  cheias  de  agua. 

Eoi  então  que  lompeu  o  verdadeiro  sujiplicio. 

Começaram,  com* refinada  crueldade,  vertendo 
sobre  mim.  lentamente  ea  pouco  e pouco  o  li(|ui- 
do  que,  n'aquella  temperatura,  ao  cair  se  con- 
gelava. 

E  a  dança,  c  as  gargalhadas  continuavam  sem 
interrupção. 

rareci'a  que  a  agua  me  abrasava  as  espadoas 
como  um  ferro  candente  ao  cair  sobre  ellas. 

O  sangue  legelava-se-mc  nas  veias,  os  mem- 
bros a(l<|uiriam  |)aulalinamente  a  dureza  e  a  soli- 
dez do  gelo,  o  cíilor  abandonava-me  pouco  a  pou- 
co, a  vida  extinguia-se  e  eu  sentia  que  ella  me  fu- 

'"ia. 

^  Ao  cabo  de  alguns  minutos  d'aquellc  horrível 
tormento,  o  meu  corpo  assemelhava-se  a  um  nm- 
Iréco  informe  de  gelo  nauseabundo  e  frio. 

E  comtudo,  minha  alma  conlinuava  habitando 
n'aquelle  disforme  corpo  e  sentia  ludo  o  que  se 
jtassava  em  roda  de  mim. 


o  PANORAMA 


'lâ3 


Assim,  ouvi  os  meus  algozes,  que  diziam: 

— MorrcuI  Acabou-se-nos  o  diveilimenlo. 

E  {Icsappaioceram. 

A  vasla  planura  licou  solilaria  e  só  eslorvava  a 
sua  monolonia  o  grande  madeiro  a  cujos  pés  eu 
jnzia  convertido  u'um  deforme  pedaço  de  gelo. 

ISão  posso  dizer  quanlo  lempo  assim  eslive. 

Por  íim  um  raio  de  sol  illuminou  aquelle  hori- 
sonle  de  bruma  e  neve,  deslumbiando  a  visla  ao 
rellcclir-sen'esla. 

Quando  o  doce  calor  do  aslro  do  dia  chegou  a 
temperar  o  frio  que  eu  tinha,  experimentei  um 
consolo  inexplicável. 

A  neve  começava  a  derreler-se  e  a  verde  alfom- 
bra do  prado  apparecia  pouco  a  pouco. 

Ima  idèa  desconsoladora  se  apoderou  de  mim 
ao  ver  isto.  Sou  um  bocado  degelo,  pensei,  e  o  sol 
vai  derreter-me. 

Ouiz  mover-me.  Impossível.  Era  uma  estatua 
dura  como  o  mármore. 

A  neve  havia  formado  um  arroio  que  se  desli- 
sava  por  entre  a  herva. 

Se  me  derreto,  continuei  pensando,  irei  com 
esse  arroio  até  ao  rio  e  do  rio  ao  mar. 

Não  tardou  muito  lempo  que  não  augmentasse 
o  calor  do  sol.  Senti  que  o  gelo  do  meu  corpo 
começava  a  abrandar.  Depois  fui-me  conver- 
tendo em  liquido,  perdendo  pouco  a  pouco  o  es- 
tado solido.  E,  como  o  havia  adivinhado,  uni-me 
á  neve  derretida  que  formava  o  arroio. 

Oue  sensação  tão  agradável!  Sentia  uma  inef- 
favel  doçura  ao  ver  a  fácil  mobilidade  do  meu 
corpo. 

— Vem  cbmnosco,  me  disseram  as  aguas  do 
arroio.  Vamos  ver  as  margens  do  rio  para  nos  per- 
dermos depois  na  immensidade  do  oceano. 

Com  elfeilo,  em  pouco  o  arroio  juntou  suas  aguas 
ás  do  rio  e  me  arrastaram  pela  corrente  d'eslc. 
Milhares  de  tlores desconhecidas ciesciam  por  entre 
os  juncos  de  suas  margens  e  os  passarinhos  salta- 
vam pela  relva.  Alguma  vaca,  cujo  lombo  parecia 
nevado,  ou  algum  cervo  de  grandes  hastes  vinham 
beber  ao  rio.  Um  mancebo  cantava  em  quanto  a 
corrente  fazia  andar  o  seu  tosco  barco;  e  era  tão 
formoso  o  prado,  tão  odoríferas  as  llores,  tão 
bello  o  ceu  azul  (|ue  se  retlecliaem  nós,  aguas  do 
rio,  e  tão  agradável  o  calor  do  sol  que  |)arecia  a- 
cariciar-nos  coiii  os  seus  iaics,queme  sentia  feliz, 
muito  feliz! 


— Adeos,  me  disseram  as  aguas  que  antes  me  ti- 
nham fallado.  Vamos  correr  o  espaço  e  vaguear 
sobre  as  nuvens.  Prestes  viiás  fazer-nos  compa- 
nhia. Adeos. 

E  com  etVeilo,  evaporaram-se  ao  dizerem-me 
estas  palavras  e  desappareceram  no  ar. 

Brevemente  me  chegou  a  vez.  Senti  que  me  torna- 
va mais  incorpóreo,  mais  impalpável,  peidendo  a 
consistência,  porém  adquirindo  mais  mobilidade 
e  subtileza. 

Tinha  passado  ao  estado  de  gaz. 

As  lilhas  do  ar  me  receberam  em  seus  braços 


e  subimos  ás  alturas  por  um  raio  de  sol  que  nos 
servia  de  escala.  A  sua  luz  os  nossos  vapores  se 
lingiiam  de  uma  formosa  cor  de  violeta  que  en- 
cantava a  vista. 

— Nós,  me  diziam  algumas  filhas  do  ar,  somos 
os  aromas  que  exhalam  as  llores  dos  prados. 

— Nós,  murmuravam  outras,  somos  as  harmonias 
do  espaço. 

— Somos  suspiros  de  anu)r,  diziam  outras. 

—  Do  mar  nascemos  ao  evaporarmo-nos. 

E  entretanto,  percorríamos  o  Ilrmamento,  len- 
tamente levadas  nas  azas  da  brisa. 

De  repente  senti  um  hoi-rivel  sacudimento.  Todas 
nós  estremecemos  comprehendendo  o  pei'igo. 

O  furacão  chegava  mais  furioso  que  nunca:  os 
seus  braços  robustos  impelliram-noscom  violência. 

Súbito,  sentimos  que  o  fogo  do  raio  rasgava  a 
nuvem  que  formávamos.  E  levadas  pelo  furacão, 
andando  mais  rápidas  do  que  o  pensamento  pela 
immensidade  do  espaço,  vimos  ao  longe  outra 
nuvem  impellida  para  nós  com  a  mesma  violên- 
cia que  nós  para  ella.  Tremíamos  de  medo,  po- 
rém era-nos  impossível  evitar  a  sorte. 

Eram  sem  duvida  dois  furacões  inimigos  que 
vinham  ás  mãos.  A  lucta  foi  espantosa.  A  nu- 
vem contraria  avançava  para  nós  cada  vez  mais 
rápida  e  ameaçadora,  vomitando  raios  medonhos 
e  brilhantes  centelhas  que  vinham  ferir-nos  com 
o  seu  fogo.  Nós  imitando  os  seus  rugidos  de  có- 
lera, e  seus  silvos  discordantes  lhe  lançávamos 
também  ardentes  i'aios  para  deler-lhe  o  andar. 
Tudo  em  vão  :  cada  vez  i)arecia  mais  perto,  e 
ameaçava  deflruir-nos. 

O  que  ia  ser  de  nós  quando  as  duas  nuvens  se 
encontrassem? 

Os  raios  mulliplicavam-se.  A  nuvem  vinha  sobre 
nós  com  horroi'oso  fragor.  Um  momento  mais 
e  a  espantosa  catastrophe  verilicava-se. 

Passou  um  segundo  de  cruel  agonia. 

As  duas  nuvens  combateram.  Ambas  se  quei- 
maram no  fogo  dos  seus  raios,  e  bramindo  de  cólera 
se  aniquilaram  com  a  sua  violência. 

Senti  um  esp?nloso  abalo,  julguei  arder  no  fogo 
do  raio,  o  Ímpeto  do  choque  desfez  os  meus  áto- 
mos gazosos... 


E  acordei, 


UM  DIA  DE  INVERNO 

niediluçào 

A  neve  estendeu  sobre  o  solo  a  sua  pallida  mor- 
talha. Os  alegres  habitantes  dos  ares  desapparece- 
ram. O  insecto  já  não  zumbe  ao  sol.  Parece  que 
a  morte  iuvadio  a  natureza. 

Ouanto  esla  aj)parencia  é  enganadora,  e  nos 
occulta,  ó  Deos,  os  mysterios  da  tua  actividade! 
No  momento  em  que  a  vida  parece  suspensa  exterior- 
mente, tu,  nas  profundezas  inaccessiveis  á  vista,  lhe 
fazes  opeiar  osseus  milagres.  Os  renovos  que  tens 
feito  nascer  sobre  os  ramos,  no  momento  em  que  as 
folhas  seccas  vacillavam  sobre  as  hastes,  intume- 
cem-se  lentamente  sob  o  seu  manto  protector  epre- 


1^4 


O   PANORAMA 


sagiam,  no  meio  da  dosohição  do  inverno,  as  ri- 
quezas da  priínavcia. 

Assim  a  correnle  da  vida  proseguc  no  s"io  da 
humanidade,  nas  próprias  épocas  em  que  parece 
eslar  cm  com|)li'[a  esla^nação.  >'a  familia,  na  so- 
cicdailí',  a  obra  do  desenvolvimcnlo  e  do  progi-esso 
avança  sem  inlerrupefio.  A  familia  renova-sc  pelas 
creanras,  giala  esi)eiança  do  fuluio,  quando  os 
seus  clieles  abatidos  pela  idade  e  pelas  enfermi- 
dades se  diiigem  para  o  lumulo. 

Logo  que  uma  sociedade  envelhecida,  uma  ci 
vilisarão  anliquada,  que  parece  ler  esgolado  Ioda 
a  sci\a  de  um  povo,  soflie  a  decadência  e  a  disso- 
lução, uma  nova  sociedade,  cheia  de  ardor  e  de 
vitalitlade,  germina  e  brola,  e  prepara  em  silencio 
uuia  nova  era  de  piosperidade. 

Cousa  alguma  podei  ia,  pois,  ó  Pai  lodo  podero- 
so, abalar  a  nossa  confiança  no  fuluro.  Como  a 
iunocenle  andoiiiiha  nascida  sob  as  nossas  telhas 
parlio  esle  oulomno,  dirigindo-se  para  regiões  que 
nunca  ^io,  mas  onde  a  conduzio  o  insliísclo  que 
lhe  desle,  onde  achou  um  sol  mais  agiadavcl  e 
suslenlo  mais  abundanie,  nós  lambem  queremos 
caminhar,  sob  tua  palernal  direcção,  para  uma  or- 
dem mellioi-  de  cousas,  certos  de  atlingir  e  de 
achar  ahi  uma  compensação  superabundante  a 
nossos  esforços,  a  nossas  fadigas,  a  nossos  soflVi- 
menios. 

A  NATUREZA 

O  espectáculo  da  natureza  não  c  a  prova  única 
da  vontade  e  do  poder  divinos;  mas  é  a  mais  evi- 
dente para  o  maior  numero  dos  homens:  allen- 
tando  nas  maravilhas  da  creação,  os  seus  olhos. 
assim  como  a  sua  inlelligencia  proclamam  o  Deos 
creador. 

As  oi)jecçõcs  cmbolam-se,  os  sophismas  dcspe- 
daçam-se  contra  um  argumento  sensível  e  palpá- 
vel, (jue  não  exige  esforço  algum  de  abstracção. 
Kis  aipii  a  obra:  acredilo  no  obreiro.  A  obra  e 
cunho  de  giaiideza,  bondade  e  pi-evidcncia:  creio 
que  o  obrei  IO  e  todo  podei-oso,  todo  sábio,  todo 
bom. 

^.Us  céos,  onde  a  (li\ina  mão  tem  suspensas 
niilliões  de  estrellas,  onde  collocou,  como  sob  uma 
abobada  reluzente,  o  sol  (|ueallumia  o  nosso  mun- 
do; a  terra,  nuliix  bemíVilora,  amiga  cuidadosa, 
que  esparge  os  thesouros  do  seu  seio  em  íloies 
odorileras,  cm  f:utos  deliciosos;  o  mar,  elemento 
lerrivcl  e  enganador,  que  faz  \ãos  esforços  paia 
aricndjar  a  sua  prisão,  que  b.ame  agitado  pela 
loiíiHMíla,  ou  SC  nioslia  lizo  cfnío  um  espelho; 
tudo  isto,  cm  lim,  não  nos  está  a  todo  o  momento 
patenteando  o  Supremo  l'oder,  caniando  ;í  sua 
gloria,  obrigando-nosa  reverenciaro  Deos  occullo? 

K  se,  commovidos  d'(ste  grande  esi)eclarulo, 
jiroruramos  estudar-lhe  o  machiiiisuio,  com  (jue 
admiração  não  notamos  nós  a  oídem  (jue  susl>'nla 
o  univer.sol  O  astro,  sempre  o  mesmo  c  sempre 
novo,  como  vem  lodos  os  dias  mimosear-nos  com 
os  brilhantes  raios  da  sna  luz  fecundai  Como  o 
oceano,  escravo  subnntlido,  a\ança  e  se  ii-lii-a  ás 


horas  que  lhe  lixa  uma  lei  mysteriosa!  Como  a  lerra, 
para  produzir  o  trigo,  sustento  do  homem,  recebe 
annualmente  os  thesouros  do  ar,  chuva  e  calor, 
alimenta  a  semente  que  o  lavrador  lhe  confia,  fal-a 
s:ibir  em  herva,  em  espiga,  em  dourada  ceifai 

Air.  maldito  o.coi-ação  rebelde  (jue  se  nãoabi'issc 
a  jirovas  tão  claras;  maldito  o  liomem  que  não 
dobrasse  os  joelhos  diante  do  aulhor(l'esIas  mara- 
vilhas e  que  não  rendesse  homenagem  ao  Cieador, 
ao  Conser\ador  do  uiiiversol         ^  ■ 


IXSTRUCÇÃO  NA  LNOIA 

lia  alguns  annos  a  esta  pai-le  que  os  índios  se 
mostram  ávidos  de  inslrueção.  As  creanças  fre- 
íjuentam  assiduamente  as  escolas  c  os  colleiíiosde 
Calculla,  VounsM,  Dellii,  Agra  cBénarés.  Um  ha- 
biíanle  de  Surale  deu  ti-inla  contos  de  reis  pai  a  a 
creação  de  um  collegio  n'esta  cidade;  um  Paisi 
oífeieceu  vinte  e quatro  contos,  para  seiem  appli- 
cados  na  educação  de  cinco  Índios  em  Inglaleira; 
Piema-Chodra  deu  noventa  contos  para  o  eslabc- 
lecimento  de  uma  bibliolheca  em  líombaim;  Mo- 
hamed-llabil-Bhay  legou  cento  e  treze  contos  para 
a  fundação  de  uma  escola  na  mesma  cidade.  Em 
Lacknau,  Labore,  Barhampur,  Bombaim,  Allaha- 
bad,  efe,  todos  os  dias  apparecem  novas  casas  de 
intiucção.  Lmfim,  parece  que  o  mundo  velho  ac- 
coidou  do  profundo  lethargo  em  que  jazia  e  quer 
tomar  jiarte  na  grande  obia  da  civilisação. 


VOLTAIRE 

Voltaire  é  um  d'essos  vultos  gigantes  que  á  pro- 
porção que  os  séculos  decorrem  vão  'patenteando 
novas  bellezas.  Como  as  estatuas  colossaesquc,  vis- 
tas ao  perto,  feiem  pelo  (jue  se  nos  aíligura  incor- 
recção c  rudesa,  mas  que  a  distancia  deslumbiam 
e  avassallam  |)ela  mageslade  do  porte  e  j)ela  har- 
monia das  formas,  assim  elle  hoje  se  nosaj)resenla, 
giandioso  e  sublime. 

V.  Hugo  veibeiou-o  aos  vinte  um  annos,  jiara 
a(  s  sessenla^odivinisar.  O  (|ue  lhe  dera  mostras  de 
um  iconoclasta,  Iransliguiou-se-lhe  em  apostolo; 
o  que  lhe  pareceia  vibrar  na  dextra  o  camarlello  der- 
rubador  das  crenças,  revelou-se-Ihe  mais  tarde 
como  obreiro  do  piogresso,  do  bem,  da  liberdade 
na  justiça,  da  ledempção  social. 

A  posleiidade  quando  observa  'eslas  creaturas 
prodigiosas,  não  tem  que  altenlar  nas  leves  ma- 
culas ([ue  |)od('m  emi)anar-lh(>s  o  semblante;  deve 
só  ver  a  maior  ou  nieuor  intensidade  do  rayo  lu- 
minoso (jue  lhes  dardejou  na  fronte,  e  (|ue  sérvio 
de  farol  e  de  estrella  aos  peiegrinos  do  mundo. 

Francisco  Maria  Arouel,  celebre  pelo  nome  de 
Voltaire,  nasceu  quando  o  muudo  illuslrado  come- 
çava a  respirar  1ím-(  mente  á  sombra  de  Loeke  e 
de  Newton,  noiiiiiíbrokc  popularisara  a  philoso- 
pliia  de  Sliaftersbui y,  l{a\le  ainda  não  esfriara  na 
sua  cova.  o  norte  agitava-se  o  indagava  o  porque 
das  cousas,  com  a  severidade  da  razão  inflexível, 
e  a  França  vergava  sob  a  iiilhieneia  jesuilica. 

K  preciso  insi^lirmos  no  esj)irito  do  século  XVIll 


o  PANORAMA 


i25 


Voltaire 

para  podarmos  comprehendcr  a  missão  de  Vol- 
taire. 

O  século  AYIII  está  enlallado  enlie  Luiz  \1V 
e  liuonaparle.  É  uma  quadra  de  formenlação,  de 
elaboração  vasíissima  e  profunda,  em  que  as  fezes 
sobrenadam,  em  que  as  ioi'pozas abundam,  em  que 
os  ânimos  periclilam,  em  que  vemos  ouzados  os 
mais  robustos  espíritos;  quadra,  emlim,  de  gesta- 
ção, cujos  symplomas  são  em  tudo  análogos  aos 
que  a  historia  do  século  XV  nos  apresenta  muitas 
vezes. 

A  sua  face  politica  é  esta: — «Escandiílos  da  Re- 
gência, ignominias  de  Luiz  XV,  despotismo  no  mi- 
nistério, violência  nos  paikimenlos,  pertlida  a  for- 
ça, a  corrupção  moial  descendo  da  cabeça  ás  en- 
tranhas, da  nobreza  ao  povo;  os  prelados  cortozãos, 
os  abbades  galanteadorcs;  a  velha  monarchia,  a 
sociedade  velha  cambaleando  sobre  esta  base  com- 
mum  )) 

Arouet,  nascido  com  todo  o  talento  dos  pre- 
destinados, sentiu  a  necessidade  de  uma  recoiis- 
trucção social.  O  génio  dera-lh'o  Deos;  moldou-lh'o 
o  século. 

O  que  fazer  em  meio  da  degeneração  e 
da  crápula?  o  que  fazer,  quando  a  loriente  la- 
vrava desenfreada  c  caudalosa?  deixar-se  arrastar 
cu  pòr-lhe  dique?  Lrgueu  a  voz,  |)roclamouos  di- 
reitos humanos,  lidou  pela  veidade,  soIlVeu  [lor 
cila,  fez  d'ella  a  sua  dama,  e  defendeu-a  com  a 
galhardia  de  um  campeador  esforçado,  levantou  o 
homem  pela  razão,  e  para  elle  fundou  o  grande 
monumento  da  civilisação  moderna. 

A  encyclopedia  devia  de  ser  um  marco  milia- 
rio;  as  suas  quatro  faces  mostravam  os  quatro 
pontos  cardeaes  do  j)rogresso;  de  cada  uma  d'el- 
las  partia  o  seu  defensor  c  operário. 


É  como  diz  V.  Hugo  n'uma  synthese  eloquen- 
tíssima : —  c(  Diderol  caminhava  para  o  bello, 
Turgot  para  o  util,  Voltaire  para  o  verdadeiro, 
liousseau  para  o  justo  !  » 

Este  é  que  era  o  verdadeiro  grupo  philosophi- 
co.  Quem  grasnava,  quem  vociferava,  quem  apedre- 
java, quem  se  apregoava  atheu  e  retorcia  o  bigode, 
eram  os  sophistas,  os  especuladores,  os  escrevinha- 
dores diffamalorios,  os  que  saíam  do  lodo,  ainda 
sujos,  para  manchar  o  edilicio  a  que  indignamente 
se  acostavam. 

Os  (jue  haviam  protegido  e  amparado  o  Jornal 
de  TvévouJí^  e  a  Gazeta  Ecdesiastica,  os  (|ue  ha- 
viam dado  missão  a  Pompignan  ea.Palissol  para 
insultarem  na  academia  e  no  thealro  os  philoso- 
phos  da  Kncyclopedia,  esses  taes,  quando  vi- 
ram succumbir  a  grande  obra,  tripudiaram 
no  cumulo  da  sua  alegria  pharisaica.  Depois 
veio  a  revolução,  e  esses  mesmos  humanitários, 
esses  tonsurados  de  todas  as  épocas,  foram  sen- 
tar-se  no  adro  das  suas  ermidas  milagrosas,  e  pra- 
gu(jaram  contra  a  93  que  era  o  parlo  damnado 
da  philosophia  voUaireana.  Coitados!  Mal  sabiam 
elles  que  a  93  era  o  fruclo  d'aque!la  arvore  gran- 
diosa, amadurecido  ao  sol  de  Deos  para  alimento 
de  lodos.  O  tempo  encarregou-se  de  mostrar  esta 
verdade;  e  o  sangue  do  ultimo  rei  comprou  bara- 
to a  civilisação  e  a  liberdade. 

Isto  é  ao  que  me  parece,  o  verdadeiro  sentido 
philosophico  do  século  XVII I.  Naquella  época  ou 
pensador  ou  jansenisla,  ou  luz  ou  sombra,  ou  fogo 
ou  lodo.  Ouem  se  não  chama  d'Alembert  appelli- 
da-se  Frèron ;  quem  não  c  Helvécio  c  Patouillet. 
Boileau  e  Racine  haviam  sido  os  poelas  da  Côrle; 
Voltaire  devia  de  ser  o  poeta  da  humanidade. 

l*oeta  quer  dizer  apostolo,  no  sentido  remon- 
tado. 

Lis  o  poder  dos  tempos,  eis  a  necessidade  dos 
acontecimentos.  Nenhum  liomem  apparece  com  o 
seu  caracter  definido;  detinem-llfo  as  circumslan- 
cias.  (íoldsmith  diz  graciosa  e  profundamente:  «Cé- 
sar, nascido  hoje,  seria  sargento  de  niilicias;  Crom- 
well,  talvez  regedor  de  parochia.» 

A  philosophia  vollaireana  e  a  lilha  legitima  do  seu 
século.  As  torpezas  da  Regência  criam  a  Revolu- 
ção, como  as  iniquidades  dos  Rorgias  originam  a 
Reforma.  Voltaire  c  a  grande  linha  de  união  lan- 
çada entre  aquelles  dois  extremos,  como  Savona- 
rola  a  havia  sido  entre  estes  dois  últimos. 

Tal  é,  se  eu  não  me  engano,  a  face  politica  ou  so- 
cial de  \oltaire.  O  seu  primeiro  grito  de  guerra 
cifra-se  n'estes  dois  versos  memoráveis: 

«Nos  prèires  ne  sont  pas  cn  qii'un  vain  pciipie  p  nsc. 
N(jlrc  crúiluliló  Tail  tuulo  luur  scicnce." 

D'ahi  resultou  a  lucta  que  se  estendeu  por  tan- 
tos annos,  e  que  veio  terminar,  ao  cabo.  pelo  trium- 
pho  completo  da  razão  sobre  os  mantenedores  do 
obscurantismo. 

Tiacemos  agora  rapidamente  as  principaes  li- 
nhas da  sua  physionomia  litleiaria. 

(Continua.) 

E.  A.  ViD.\L 


426 


O  PANORAMA 


PEREZ  LORENZO 

(Sccnas  úa  Camiiaitlin  «lo  México) 

(Conclusão  ) 

VII 

o  capitão  Viaimonl  franziu  o  sobi"ollio. 

— Senhor,  disse  eile,  não  lhe  aconselho  que  me 
escolha  para  seu  coníitlente.  Se  Alexandre  Dumas 
viesse  na  expedição,  era  provável  que  elle  accei- 
tasse  com  mui  lo  gosto  o  |)apel,  que  me  quer  ver 
desempenhar.  As  suas  aventuras  de  corto  seiviriam 
para  um  romance  em  vinte  volumes,  e,  altendendo 
a  isso,  Alexandre  Dumas  ouvil-o-liia  coiifsummo  in- 
teresse. Eu,  que  não  preciso  de  fazer  romances,  con- 
fesso-lhe  que  de  bom  grado  dispenso  as  conliden- 
cias  dos  carrascos. 

Perez  Lorenzo  não  moslrou   resenlir  a  injuria. 

— É  breve  a  minha  historia,  tornou  elle,  e  pre- 
ciso de  lh"a  contar,  É  um  moribundo  quem  lhe 
falia,  capilão  Viarmont. 

Eslss  palavras  produziram  no  official  francez  uma 
profunda  impiessão.  O  mexicano  possuia  o  con- 
dão especial  de  exercer  umaiiicomprehensivel  in- 
lluencia  em  todos  quantos  se  approximavam  d'elle. 
Os  grandes  infoi-lunios  lêem  eslas  propriedades, 
paia  assim  dizermos,  magnéticas. 

Silencioso,  o  capitão  Viarmont  seguio  o  mexi- 
cano. Os  soldados  francezes,  com  licença  do  co- 
ronel, e  com  o  génio  aventureiro  que  os  caraclerisa, 
tinham  debandado,  escolhendo  pares  entre  as  gentis 
mexicanas,  que  facilmente  se  consolaram  da  inespe- 
rada substituição.  O  guilarreiro,  recobi'ando-sedo 
susto,  e  percebendo  que  era  inviolável,  graças  á 
sua  qualidade  de  trovador,  e  á  precisão  que  os 
dançadores  tinham  crelle,  recostou-se  de  novo  junto 
da  fogueira,  e  continuou  a  musica  interrompida. 
Só  os  guerrilhas,  acorrentados  e guardados  á  visla 
por  quatro  ou  cinco  senlinellas,  devoravam  em 
silencio  a  sua  ira,  e,  vendo  a  facilidade  com  que 
as  mexicanas  os  tinham  olvidado,  pensavam  na- 
turalmente de  si  para  si  o  que  Francisco  I  escre- 
via nas  paredes  de  Eonlainebleau: 

Síjnvcnl  lemnic  v.iric 
iJiea  íol  L'st  qui   s'y  lie. 

Enlrelanlo  Perez  Lorenzo  c  o  capilão  Viarmont 
tinham-se  aííaslado  da  claieira  illuminada,  e,  in- 
lernando-se  no  bosque,  tinham-se  ido  senlar  junlo 
de  uma  pimenteiía,  (|ue  entornava  sobre  elles  a 
sua  urna  de  penetiantes  aiomas.  A  melancólica 
musica  da  guitaiia,  assim  ouvida  ao  longe,  re- 
soando  no  meio  da  ineílavel  serenidade  de  uma 
noite  dos  trópicos,  casava  si;  de  um  modo  suavíssi- 
mo com  a  doce  melodia  da  brisa,  sus|)irando  bran- 
damente nas  folhas  doai Noiedo.  A  lua,  resvalando 
no  azul  do  ceu,  envolvia  a  paizagem  no  seu  manto 
de  cândido  fulgor 

Perez  Lorenzo  relanceou  cm  torno  de  si  um  olhar 
saudoso,  e  como  ()ue  paieecu  (lueicr  impregnar-se 
bem  na  poesia  immensa  da  sua  palria,  í|ue  elle 
ia  trocar  pelas  desconhecidas  regiões  da  eterni- 
dade. 

Depois,  passando  a  mão  pela  lesta,  como  para 


aflugenlar  esse  pensamento,  voltou-sc  para  o  capi- 
tão, e  disse-lhe  ex-abrupto: 

c(A  minha  vida  resume-scem  duas  palavras  só 
«Amor  e  vingança.»  Não  leva  tempo  a  narrar.  Nasci 
ifesla  formo.^a  terra,  que  tão  dilaceiada  tem  sido 
pelas  facções.  Conservei-me  estranho  sempre  á 
agilação  revolucionaria.  iNão  podia  mesmo  com- 
prehender  a  frenética  loucura,  que  as  vaidades  da 
polilica  accendiam  no  aninio  dos  meus  patrícios. 
Lu  iirefeiia  apenas  as  doces  loucuras  do  amor. 
Ouem  me  diria  que  havia  de  chegar  um  instante 
em  que  teria  de  me  arrojar  a  esse  mar  das  revo- 
luções, cujas  tempestades  me  apavoravam,  cujos 
sorrisos  mentirosos  me  não  -conseguiam  allrahír? 
Ah!  quando  a  procella  ruge  embravecida,  quando 
as  ondas  quebram  furiosas  nos  fraguedos,  despe- 
daçam juntamente  o  navio  que  as  alíronla,  e  o 
pobre  barquinho  fundeado,  que  se  abriga  no  porto. 

aAmei  quasi  desde  criança  uma  formosa  meni- 
na, minha  visinha.  Cármen  se  chamava  ella.  Era 
linda  como  os  anjos,  casta  e  meiga  como  a  Virgem 
da  Guadalupe,  liequeslava-a  também  esseJuan  Pa- 
blo,  cujo  cadáver  se  baloiça  agora  ao  sopro  das 
auras;  masjá  então  era  conhecido  pela  sua  Índole 
sanguinária,  e  dizia-se  que  a  sua  carabina  não  estava 
immaculada.  Vingativo  e  dissimulado,  a  mais  leve 
injuria,  que  lhe  fosse  dirigida,  fuava  para  sempre 
registrada  na  sua  memoria;  mas  sorria-se  para 
aquelle  que  o  injuriava,  até  que  chegasse  o  ins- 
tante em  que  podesse  traiçoeiramente,  emboscado 
por  trás  de  uma  sebe,  atravessar  o  peito  do  inimi- 
go, que  o  olvidara  já,  com  duas  bailas  da  sua  ca- 
rabina, certeira  como  se  o  demónio  mesmo  lhe  di- 
rigisse a  pontaria. 

«Cármen  despresava  completamente  o  seu  ga- 
lanteador.  Seus  pais  preferiam  vel-a  morta  a  vel-a 
unida  a  tão  vil  creatura.  Eu,  pelo  contrario,  era 
acceiío  com  muity  gosto  por  toda  a  família.  Não 
houve  por  conseguinte  a  mínima  opposição  ao  nosso 
casamento.  Mas,  no  dia  em  que  nos  recebemos  em 
Medellin,  Juan  Pabloesperou-nos  ásaida  da  igreja, 
edeu-nos  os  parabéns,  sorrindo-seamavelmente  com 
esse  sorriso,  que  para  tantos  signilicara  a  morte. 

cOs  meus  amigos  empallideceram  ao  verem-n'p, 
e  um  d'elles,  apj)roxímando-se  de  mim,  disse-me 
em  voz  baixa.  «Acautella-le,  I'erez  Lorenzo  !ln- 
Iroduzio-se  a  víbora  nas  llores  do  teu  dia  nupcial.» 
Lu  encolhi  os  hombros,  e  relanceei  um  terno  olhar 
para  a  minha  des|)osada.  Ao  vel-a  Ião  bella  com 
a  sua  grinalda  de  llores  de  larangeira,  com  Ião  doce 
sorriso  nos  lábios  de  romã,  com  Ião  nacaradas  ro- 
sas nas  faces  levemente  morenas,  quem  havia  de 
dizer  que  Ião  cedo  m'a  havia  de  roubar  Deus!  Ai! 
(luandí»  o  ceu  eslá  azul,  e  as  eslrellas  scintillam, 
como  fruclos  de  oiro,  por  enire  a  folhagem  das 
arvores,  quem  se  lembra  (jue  ha  de  vir  o  bulcão 
tuivar  essa  augusia  serenidade?» 

Perez  Lorenzo  inteirompeu-se  por  um  inslante 
e  duas  lagrimas  deslisaiam-lhe  dos  olhos,  lanto 
[empo  esbrazeados  pelo  sopro  das  nuís  paixões.  A 
proximidade  da  morte  sollava  as  lagrimas  repre- 
zadas,  que  lavariam,  quem  sabe!  aos  olhos  de 
Deus  misericordioso,  os  crimes  da  sua  existência. 


o  PANORAMA 


\TÍ 


Viarmontouvia-ocom  inlerossc,  singular  influen- 
cia (lo  amor!  Essa  palavra  só  basla  para  levantar 
na  nossa  eslima  o  criminoso  mais  vil.  O  amor  e  o 
palriolismo  tiansformam  n'um  lieroe  um  assas- 
sino. 

«Correram  os  primeiros  mezes  do  num  casa- 
menlo  na  mais  inalterável  tranquillidade.  Todo 
entregue  ás  inebriantes  delicias  d'esse  amor,  que  fo- 
ra a  minha  vida,  nem  pensei  uma  vez  só  nas  amea- 
ças, (jue  o  sorriso  de  Jnan  Pablo  encerrava  em 
si.  Os  meus  pioprios  amigos,  se  bem  (|ue  mais  caulel- 
losos  chegaram  comtudo  a  pensar  que  o  meu  vinga- 
tivo rival  linha  olvidado,  ou  pelo  menos  adiado  indi- 
linidamente  a  sua  vingança. 

«Foi  por  este  tempo  que  rebentou  a  guerra  en- 
tre o  México  c  as  três  potencias  européas.  Não  lhe 
contarei  as  particularidades  d'ella.  Sabe-as  melhor 
do  que  eu,  a  quem,  devo  confessa-lo,  eiam  com- 
pletamente indiíTerentes  esses  grandes  abalos  polí- 
ticos. Uma  noticia  me  preoccupava  muito  mais  do 
que  o  desembaíque  do  exeicito  francez,  inglez,  e 
hespanhol,  do  que  o  convénio  da  Soledade,  do 
que  o  desastre  do  general  Lorencez,  do  que  a 
chegada  do  general  Forey.  Essa  noticia,  pela  qual 
eu  olvidava  lodos  os  desastres  do  meu  paiz,  essa 
noticia  que  me  fazia  exultar  quando  a  pátria  es- 
tava em  lucto,  essa  noticia  ineílavel  dera-m'a  Cár- 
men, havia  pouco  tempo,  com  as  faces  affbgueadas 
nas  rosas  do  pudor;  ia  ser  pai!  A  imagem  d'esse 
anjo  alvoe  loiro,  :)endui-adodo  seio  malei-nal,  como 
uma  abelha  do  cálice  de  um  lyrio,  não  me  dei- 
xava ver  a  imagem  do  México  vertendo  sangue  pelas 
largas  fendas,  que  lhe  abiia  a  espada  do  estran- 
geiro. Casligou-me  Deus  talvez  poi-  essa  culpável 
indiflerença. 

«Juan  Pablo,  desde  o  princij)io  da  lucla,  ce- 
dendo aos  seus  inslinctos  de  rapina,  lançara-se, 
acompanhado  poialguns  da  sua  laia,  nas  florestas, 
onde  reunio  denlio  em  breve  uma  forte  gueriilha. 
Os  incendios,as  devastações  começaram  a  assignalar 
a  passagem  d'esse  teirivel  bando.  Ouando  de  sú- 
bito se  via  o  ceu  avermelhado  das  bandas  do  norte, 
do  sul,  ou  do  oriente,  quando  uma  lingua  de  fogo 
brotava  nas  [)lanlações,  e,  coriendo  com  a  rapidez 
do  relâmpago  lambia  os  cafezaes,  ou  os  canaviaes 
do  assucar,  já  se  sabia  que  n'essa  noito  vaguea- 
ra Juan  Pablo,  com  o  seu  facho  falai,  nas  campi- 
nas dos  arredores  de  Medellin. 

«Mas  uma  coisa  se  notava,  Juan  Pablo  escolhia 
escru|)ulosamenle  as  plantações  a  que  deitava  fogo, 
c  o  raio  da  sua  ira  caía  sempre  sobre  aquelles 
que  se  tinham  ligado  ao  cslrangeiío.  Juan  Pablo 
não  queria  por  forma  alguma  tirar  aos  seus  actos 
mais  terríveis  a  cór  patriótica.  Nisso  estava  a  sua 
segurança.  Se  o  não  fizesse  não  tardaria  muito  em  ser 
entregue  nas  mãos  dos  Eiancezes.  Mas  o  astuto 
bandido  linha  as  sympalhias  da  população,  (juc 
via  n'elle  o  heroe  e  o  vingador  da  sua  naciona- 
lidade. 

«Por  isso  eu  estava  seguro.  Ainda  que  indif- 
fercnte  aos  negócios  políticos,  a  marcha  Iriumphal 
de  Forey  linha  produzido  em  mim  uma  profunda 
impressão.  Acordou  no  meu  espirito  com  certa  vi- 


vacidade o  sentimento  patriótico,  ao  ver  para 
sempre  destruída  a  republica  mexicana.  Não  oc- 
cullei  as  minhas  sympalhias  pela  causa  nacional, 
.e  cheguei  a  dizer  que,  se  me  não  retivessem  minha 
esposa  e  meu  lilhofjá  fallava  n'essa  querida  crian- 
ça como  se  a  tivesse  nos  braços)  iria  alislai'-meno 
exercito  da  independência.  Estes  sentimentos  ex- 
pressos em  voz  alta  coUccavam-mc  até  debaixo  da 
severa  vigilância  da  policia  franceza.  De  Juan  Pa- 
blo, o  patriota,  que  podia  eu  lemer? 

«Uma  noite  eslava  eu  junto  da  janella  conver- 
sando com  minha  esposa  e  fazendo  mil  projectos 
sobre  a  futura  sorle  do  nosso  filhinho,  quando  os 
ladridos  desesperados  dos  cães  nos  revelaram  que 
havia  alguma  coisa  de  novo.  Cármen  descorou,  e 
chegou-se  para  mim,  relanceando  em  torno  de  si 
os  olhos,   em  que  se  relleclia  um  vago  terror. 

«As  porias  da  herdade  eslava m  abeilas.  Como 
disse,  nada  julgava  ler  que  recear.  Mas,  conhecen- 
do a  inlelligencia  dos  cães,suppuz  que  eram  fran- 
cezes  os  visitantes.  Os  meus  cães  consagravam 
um  ódio  mortal  ao  uniforme  fiancez. 

« — Alguma  visita  domiciliaria  da  policia!  disse 
eu,  encolhendo  os  hombros. 

«E  dirigi-me  para  a  poria,  a  fim  de  a  abrir  cu 
mesmo. 

«Mas  Cármen  cingio-mc  com  os  braços,  e,  toda 
tremula  como  se  um  estranho  presontiraenlo  a  assal- 
tasse, não  consenlio  que  eu  desse  um  passo,  e, 
escondendo  a  cabeça  no  meu  peito,  desatou  a  cho- 
rar. 

«Os  cães  linham-se  calado  de  súbito.  Pieinava 
na  habitação  um  profundo  silencio,  mas  um  d'es- 
les  silêncios  que  precedem  as  tempestades. 

ccRfleclivamente  não  duiou  muito  a  calmaria. 
As  portas  da  sala  abriram-se  com  fracasso,  e  vi 
luzirem  na  sonbraas  pupillas  de  tigres  dos  guer- 
rilhas mexicanos,  que  se  afíaslaram  |)ara  deixarem 
passar  um  homem,  que  avançou,  sorrind»-se  gi'a- 
ciosamente,  até  ao  meio  da  sala. 

«Cármen  soltou  um  gi-ito  horrível,  eu  brami  um 
rugido  sufíocado.  Esse  homem  era  Juan  Pablo. 

«Soara  emlim  a  hora  da  vingança.  A  chamma, 
que  eu  julgara  abafada  debaixo  das  cinzas,  fora 
lavrando,  lavrando,  ate  irromper  medonha,  fatal, 
na  própria  accasião  em  ([ue  seriam  mais  pungentes 
para  mim  as  agonias  da  desgraça. 

«Oue  lhe  hei  de  eu  dizer  mais,  capitão?  conti- 
nuou Perez  Lorenzo  com  voz  sulTocada.  Adivinha 
de  certo  que,  a  pezar  da  minha  resistência,  fui 
agariado,  prezo  a  uma  arvore,  e  que  tive  de  as- 
sistir lugindo  de  furor  ao  incêndio  da  jilanlação. 
Mas  o  (|ue  não  adivinha  de  ccilo  é  que,  jior  um 
requinte  inaudito  de  barbaridade,  tive  de  assistir 
á  deshonra,  á  jjrofanação  da  casta  companheira  do 
meu  leito,  que  a  vi  csto'rcer-se,  louca  de  desesj)ero, 
nos  biaços  dos  infames,  c  que  elles,  possuídos 
verdadeiramente  da  embriaguez  do  ciimc,  depois 
■de  terem  saciado  os  seus  torpes  appetiles,  a  sua  bru- 
ta sensualidade,  rasgaram  o  ventre  de  Cármen,  e  ar- 
rancando das  lépidas  entranhas,  santo  ninho  onde 
|)alpitava  ainda  implume  essa  cândida  avesinha 
(jue  havia  de  ser  a  pomba  da  nossa  arca,  arrancan- 


i28 


O  PANORAMA 


do  o  feio  informe,  arrojaram-m'o  ao  roslo,  rindo 
com  um  riso  na  realidade  satânico.  (1)» 

— Horrorl  exclamou  o  capitão  Viarmonterguen- 
do-se  convulso  e  pallido. 

«Abl  compreiíende  agora  capitão,  continuou 
Porez  Lorenzo  n'um  l>)ngo  c  angustioso  soluço, 
comprehende  a  inllexibiiidade,  a  tenacidade,  a  cruel- 
dade com  que  cu  persegui  os  assassinos,  o  de- 
leite amargo  que  eu  senti  cm  assistir  a  cada  uma 
das  suas  torturas,  em  os  vei-  eslorcerem-se  lambem, 
blaspliemando,  nos  biaços  da  morte?  Alil  mas 
nem  lhes  paguei  a  millesima  parle  das  agonias, 
que  me  lizeram  soflVer.  Km  compensação  abri-lhes  as 
portas  do  inferno,  e,  se  esta  vingança  cruel  m'as 
abre  lambem,  consolai-me-liei  (kischammas  eter- 
nas, vendo-os  soIVrerem  a  meu  lado. 

ff  A  minba  missão  está  cum|)rida  no  mundo,  capitão 
Viarmont,  continuou  Perez  l.orenzo  levanlando-se. 
ISão  me  considere  como  um  assassino  vulgar.  Pen- 
se alguma  vez  em  mim,  e  se  o  fazer,  reze  um 
padre-nosso  por  alma  d'esle  desgraçado,  que 
o  acaso  lhe  atravessou  no  caminho,  como  um  pássa- 
ro agourei  10». 

E,  deixando  ficar  o  capitão  Viarnionl  ainda  de- 
baixo do  pezo  da  sinistra  confidencia,  desappare- 
ceu  nos  recessos  da  floresta. 

D'ahi  a  pouco  ouvio-se  um  liio  do  pislola.  Pe- 
rez  Lorenzo  cumprira  a  sua  palavra.  Depois  de 
ler  terminado  a  sua  vingança,  deixava  o  mundo, 
e  ia,  coníiado  na  misericórdia  divina,  navegar  no 
sombrio  oceano  da  eternidade. 

Y.armonl  limpou  o  suor,  que  lhe  escorria  em  ba- 
gas pela  fronte,  depois,  como  os  coi^nelas  fi'ance- 
zes  tocavam  já  a  reunir,  dirigiu-se  vagarosa- 
mente para  a  clareira. 

l)'ahi  a  meia  iioia  entravam  em  Medellin.  Ain- 
da durava  o  baile  em  casa  de  1).  Ramon 
•  Muitos  oíliciaes,  lomaiulo  apenas  o  cuidado  de 
escoviu-em  o  falo  rapidamente,  A ollaiam,  com  a  /«- 
ó-oMCíVí/ícc  do  caracter  fiancez a  lançar-se  no  turbilhão 
das  valsas.  Mas,  com  grande  espanto  do  coronel 
iJupin,  o  capitão  Viarmont,  em  vez  de  seguir  o 
exemplo  dos  seus  camaiadas,  vcio-llie  pedir  licença 
para  dispor  de  oito  soldados  n'uma  peíjuena  ex- 
j)edição,  que  nada  linha  de  guerieira. 

— E  D.  Doloios  (jue  o  espera?  disse  Dupin  de- 
pois de  saber  que  se  tratava  de  dar  se|)ullura 
a  Perez  Lorenzo,  cuja  histoi  ia  clle  conhecera  ainda 
antes  do  capitão. 

— Qualquer  dos  meus  camaradas  me  subslituiiá, 
coronel,  respondeu. Viarmont  encolhendo  os  hom- 
bros,  Dolores  lembra-se  tanto  de  mim,  como  a 
borboleta  se  lembra  da  poeira  inipaljjavel  (jue  lhe 
poisa  nas  azas. 

D'ahi  a  uma  hora,  Viarmont,  acompanhado  por 
oito  soldados  c  um  padre,  chegava  ao  sitio  em  (jue 
Perez  Lorenzo  se  tinha  suicidado.  Seria  impossí- 
vel conhecel-o,  se  o  não  Iraliissí;  o  fato;  o  infeliz 
fizera  saltar  os  miolos  com  um  tiro  de  pislola.    . 

Ouando  o  corpo  foi  enterrado  n'uma  cova,  (pie 
os  soldados  alli  mesmo  abriram,  e  que  o  padre 
começou  a  psalmear  as  suas  orações  sobre  a  ler- 

(1)  Não  (ihanUaio  Lorrorcs.  Lsle  fuclo  c  Icituol. 


ra  remechida  de  fresco,  Viarmont  affaslou-se  um 
pouco,  e,  deixando  descairá  cabeça  sobre  o  peito, 
tilou  os  olhos  no  ceu  azul,  onde  as  eslrellas  co- 
meçavam a  desmaiar  com  a  approximação  da  ai- 
voiada. 

Kntão  das  pali)ebi;as  do  valente  deslisou  uma 
lagrima  silenciosa.  É  porque  n"esse  momento  via 
a  guerra  debaixo  do  seu  aspecto  hediondo,  e  em 
vez  das  pompas  da  ovação,  do  esplendor  do  sol 
das  batalhas,  dos  gritos  davicloria,  do  enthusias- 
mo  das  cargas,  via  a  dois  passos  de  si  a  cova  hu- 
milde de  um  homem,  a  quem  as  vinganças  hor- 
ríveis, a  que  o  demónio  da  guerra  dá  latitude, 
tinham  arrojado  para  fora  do  seu  lar  Iranquillo, 
e  tinham  ensanguentado  a  vida,  que  podia  ser 
para  elle  uma  benção  do  Deus  bom. 

E  depois  o  penscimenlo  voou-lhe  para  as  terras 
da  (iuyenna,  c  vio  o  ninho  immaculado  da  familia 
onde  só  elle  faltava,  c  pensou  que  um  dia  podia  o 
sangue  manchar  as  alvas  corlinas  do  L-ilo  de  sua 
irmã,  o  incêndio  passeiar  os  seus  fachos  rúbidos 
pelos  tectos  das  granjas,  pelas  loiras  messes  dos 
campos,  e  o  i)unhal  (Jo  guerrilha  lampc^jar  furioso 
sobre  o  peito  indefezo  de  sua  velha  mãi,  como  o 
punhal  lampejara  sobre  o  peito  de  Cármen,  como 
o  incêndio  devoíara  as  plantações  de  Perez  Lorenzo, 
como  o  sangue  manchara  as  cortinas  d'esse  Ihala- 
mo,  doce  asylo  de  um  casto  amor. 

\\  |)or  isso  a  lagrima  silenciosa  deslisava  dos 
olhos  do  valente! 

NOTA 

Transcrevo  em  seguida  o  [lacho  da  P.eiisla  dos  Dois 
Mundos,  qiio  sorvio  de  iiasc  para  este  romance. 

(i|,c  8  mars  ISG.'},  iiii  Rspap;iio!, dti  nom  de  1'crez  Lo- 
renzo, SC  prcsenlail  á  la  ii;raiid'gar(ie.  l)c  íirosses  larmcs 
coulaicnl  de.  ses  yeus.;  sa  lijíiirc  pàlc  el  maigrc  accusait 
la  duuieui;.  II  demanda  á  elrcí  reni  en  i)arlictilier  par  te 
colonel.  Á  peine  inlroduil  dans  lactente:  Veux-lu  nic  ven- 
ger?  lui  di[-il, 

.Favais  une  maisonellc  en!our('C  (!e  jardins,  donl  je  por- 
tais les  fruils  á  Vera-Cruz  cl  á  Meilellin;  j'a\ais  une 
jeiínc  femme  de  di\-Iiuil  aiis,  (|iie  j'a\  ais  aiinéc  el  éi)oii- 
sée  á  La  I!a\ane;  elle  ('liiil  eneeinle  de  six  móis.  Ilier 
ta  puíMMlIa  eommand('C  par  don  .liian  Palito,  lieuleiíatil  des 
l)an(les  de  .lamapn,  esl  enlrec  dans  nia  maison,  m'a  ada- 
elié  á  un  pofeaii,  ils  onl  viole'  ma  remnic,  el,aprés  lui 
avoir  onverl  Ic  ventre,  ils  nronl  jeii^'  à  la  face  mon 
enfant  à  peine  fornu».  (",omprends-ln  cnlonel,  pnur(nioi 
je  ne  me  snis  |);;s  Ine?  "licciíila  dos  dois  mvudos,  1  de 
outubro  de  18(j.')  pag,  (i!)7. 

D'islo  SC  fez  o  romance.  Era  escusado  dizol-o.  A  ima- 
ginação dos  romancistas  não  ousa  plianlisiar  esles  iior- 
rorcs. 

ri-MIElUO  CII.VG.VS. 


ííum  milhão  de  arrobas   de  gloiias  temporais 
não  faz  meia  onça  de  bemaventurança  eterna. 
P.t'  Amomo  ViriRA. 


Pelo  meio  da  prodigalidade  c  avaieza,  corre  a 
liberalidade,  (|ii(;  dis|)en(le  e  guaida  com  a  mode- 
ração devida,  e  por  isso  he  virtude. 

P/^  António  Vikika. 


Typ.   Friíiico  l'or(ngueza,  Rua  do  Tlictouro  VcUio,  G. 


17 


o  PANORAMA 


i29 


HONG-KOxXG 

Esla  pequena  ilha,  siliiada  a  uns  scsscnla  kilo- 
mclros  a  leste  do  eslabelecimenlo  poiliigucz  de 
Macau,  no  golpho,  que  a  embocadura  do'  rio  de 
Cantão  forma,  c  que  se  denomina  Bocca-Tigris,  c 
uma  das  provas  mais  notáveis  da  energia  e  da  ac- 
tividade inglezas.  Tem  esla  pequena  ilha  apenas 


li  kilometros  de  comprimento  c  7  de  largura.  Foi 
cedida  á  Inglaterra  pelo  governo  chinez  no  tra- 
tado de  paz  de  1812. 

Logo  os  iuglezes  alli  fundaram  uma  cidade  a 
que  deram  o  nomo  de  Vicloria-Town,  segundo  a 
velha  usança  britannica  de  darem,  na  sua  nomen- 
claluia  geographica,  tanlas  provas  de  respeito  ao 
nionarcha  reinante,  que  se  torna  cmbrulhadissimo 


líong-Kong-. 


O  csludo  das  suas  possessões  coloniaes,  pela  repeti- 
ção incessante  dos  nomes  das  cida^.ies  e  das  pro- 
\incias. 

Mas  cmíim,  fundou-seesla  nova  Vicforia-Toivn, 
e  lornou-sc  o  deposito  principal  do  commercio  in- 
glez  na  China.  Os  indígenas,  attrahidos  |Kdas  van- 
tagens, que  lhes  oíleiecem  as  leis  europeas,  porque 
os  livram  do  intolerável  despotismo  dos  seus  man- 
darins, vieram  abrigar-se  á  sombia  da  bandeira 
britannica,  c  tal  foi  a  actividade  desenvolvida  pe- 
los governadores  da  nova  colónia  (juc  esla  cidade, 
fundada  em  1812,  já  em  1850  linha  trinta  c  lau- 
tos mil  habitantes. 

A  sua  impoilancia  deve  ler  diminuído  com  a 
abertura  d'oulros  portos  do  celeste  impciioao  com- 
mercio estrangeiro,  c  com  a  fundação  de  novas 
colónias.  Por  outro  lado,  se  perdeu  o  monopólio 
do  commercio  inglez,  lucrou  decerto  com  o  d(>senvol- 
\í  mento  dos  eslabelecí  mentos  europeus  lia  Chi  na  e  no 
Japão.  Actualmenlejá  ha  carreira  de  barcos  de  vapor 


de  um  para  ouiro  império,  e  o  tubo  dos  sfeamers  ar- 
roja desassombradamente  as  suas  espiraesde  fumo 
negro  ás  paredes  de  porcelana  das  torrei  chinezas. 
Decididamente  la  Chine  s'en  va. 


A  BOCCA  DO  INFERNO 

I 

Um  dos  espectáculos  mais  para  ver  em  Cascaos 
é  o  oceano  n'um  dia  de  temporal,  revolto,  enca- 
pellado,  açoitando  a  costa,  como  querendo  saltar 
fora  dos  limiles(|iie  lhe  foram  marcados  pelo  crea- 
dor  dos  mundos.  E  soberbamente  magnílico  aquellc 
quadro,  observado  do  píncaro  mais  alio  dos  ro- 
chedos; c  a  primeira  idéa  que  atravessa  a  mente, 
como  o  relâmpago  que  assombra,  ó  a  idéa  de  Deus, 
do  poder  grandioso  da  sua  mão  omnipotente,  que 
assim  revolve  os  abysmos,  e  diz  ao  oceano:  pára! 
quando  elle  parece  querer  ongulir  a  leria,  corren- 
do impetuoso  sobre  a  sua  superfície. 


30 


O  PANORAMA 


E  quem  sabe?!  Talvez  um  dia  a  voz  do  Senhor 
emnuulcça;  o  o  monslro,  que  ruge  no  immenso 
leilo,  querela  esleiulor  mais  longe  os  braços,  e, 
arcando  com  as  montanhas  em  arremessos  gigan- 
tes e  infrenes,  subir  a  anancar-lhcs  a  coma!  Tudo 
desappaieceiá  enlão  no  calaclysmo;  co  mar,  exe- 
cnlor  lalvez  da  Providencia  nos  destinos  da  hu- 
manitlade.  apagará  sobi-e  os  continentes  os  vestí- 
gios dos  homens,  como  já  porventura  antigos  po- 
vos, n'outras  erasenguliu! 

O  mar!  lu  es  a  verdadeira  imagem  da  omnipo- 
tência divina! 

— O  homem  conseguiu  encaminhar  o  raio  aos 
seios  da  leria;  cortar  as  serranias,  abi'indo  estra- 
das atravez  dos  alcantisdos  Alpes;  zombar  do  tem- 
po, realisando  o  instantâneo  nas  communicações 
do  pensamento:  só  tu  licaste  o  que  eras! 

A  sciencia  iiumana  abre  sobre  ti  caminhos  que 
logo  se  apagam;  construiu  umedilicio  de  madeira 
que  lluctua  no  seu  dorso;  mas  se  uma  vez  estre- 
meces, como  o  leãodeNumidia  saccudindo  a  juba, 
edifício  e  homens  desapparecem  nos  abysmos 
infinitos  do  leu  seiol  Eo  homem,  átomo  impercep- 
tível ao  pé  do  gigante,  geme  de  raiva  e  dôr;  cos 
seus  gemidos  são,  ó  mar,  o  leu  hymno  de  viclo- 
rial 

O  mar  inspira-me  respeito,  como  tudo  quec  gran- 
de e  superior,  (joslo  de  vel-o  quando  está  sereno  e 
pacilico;  mas  admiio-o,  se  o  vejo  furioso,  c  lhe 
ouço  os  rugidos.  Cada  onda  que  se  levanta  im])0- 
iiente,  e  vem,  vem,  cieando corpo  á  proporção  que 
caminha,  até,  desdobrando-se sobre  si,  estenderão 
longe  um  lençol  de  espuma,  produz-mo  uma  sen- 
sação que  mal  posso  explicar. 

Km  Cascaes  ha  tudo  isto  para  ver.  A  costa  eri- 
çada de  rochedos  recebe  o  embate  das  ondas,  que 
SC  arremessam  furiosas  contra  ella,  i)ara  depois 
se  levantarem  em  columnas  alvacentas  a  grande 
ai  lura. 

Kra  n'um  dia  lemposluoso  (juando  fui  senlai- 
mc  ao  pé  da  /forra  do  infníio  a  observar  o  ocea- 
no, a  que  o  vendaval  acordara  as  fúrias.  Caia  a 
tarde,  e  eu  estava  só  ao  pé'do  abysmo.  A  Bocca 
í/o  inferno  cuma  furna  medonha,  espécie  de  poço 
profundo,  cujas  paredes  estão  eriçadas  de  rochedos. 
Lá  em  baixo  existe  uma  ab('ii"ia  natural  (|ue 
communica  com  o  mai-.  A  onda  entia  rugindo  por 
ahi,  saltando  sobre  os  cachopos,  e  elevando-se de- 
pois, para  rociar  de  espuma  as  paredes  do  abysmo. 
É  um  especlaculo  medonho  (djservar  d'àlli  o 
oceano  (|uando  vae  o  temporal.  Os  cabeços  da  ro- 
cha, negros  e  agudos,  o  mar  a  estorcer-sc  como 
desespciado  entre  elles,  apresentam  um  asj)eclo 
infernal,  cheio  de  horrorosa  mageslade.  l.enibia 
a  cova  dos  campos  6'/;/? /;í (?/•/(/ /ío.ç  da  Ody.sstki,  on- 
de as  sombras  iam  beber  o  sangue. 

K  tudo  isto  é  bello,  por  (|iie  é  grande,  admirá- 
vel, sumptuoso!  São  atiuellas  as  galas  do  oceano. 
Quando  está  socegado  c  manso,  dorme — quero 
antes  vel-o  acordado,  ufanando-se  da  sua  belle- 
za  com  os  paramentos  da  lempeslade.  Kstoure  lá 
em  cima  o  trovão;  aclare  o  relâmpago  os  pincaios 
da  rocha;  desça  o  raio  cortando  os  ares;  -e  li- 


caià  enlão  completo  o  quadro!  A  belleza  do  lago, 
que  juncaes  e  salgueiíos  bordam,  é  a  serenidade 
do  espelho;  a  do  oceano,  marginado  de  escalvada 
rocha,  c  o  movimento,  o  arremesso,  a  fúria.  É  assim 
(jue  elle  é  complelamenle  bello. 

Debruçava-me  sobie  a  Bocca  do  inferno  para 
observar  melhor  o  elíeilo  que  sobre  os  cachopos 
produzia  o  mar,  quando  a  meu  lado,  de  entre  as 
rochas,  vi  sui'gir  um  vulto.  Era  um  velho  que 
viera  pescar,  c  voltava  desanimado  para  a  villa, 
porque  o  mar  não  lhe  permitlira  aproximar-sc  da 
extremidade  da  costa. 
— Tome  tento  não  caiai— disse-mc  o  velho. 
Retrocedi,  c  dei  a  andar  para  elle.  Tinha  uma 
physionomia  franca,  como  costuma  ser  a  dos  ho- 
mens do  mar,  c  os  cabellos  brancos  como  a  neve. 
As  rugas  profundas  do  rosto,  toslado  pelo  sol, 
moslravam  a  acção  dosannos  e  dolrabaMio,  posto 
que  o  corpo  robuslo  c  direito  reagisse  conlia  o 
pezo  da  velhice. 

— Que  grande  temporal  se  cslá  fazendo! — ex- 
clamou elle  quando  eu  me  aproximei.  Deus  se 
amerceie  de  quem  anda  sobre  as  aguas  do  mar! 

E  pelo  Iremor  dos  lábios  do  velho  suppuz  que 
murmurava  alguma  oração. 

— Não  é  bom  chegar-se  muito  á  beira  dos  ca- 
beços—  tornou  elle  dirigindo-se  para  mim — Pode 
resvalar-lhe  um  pé,  eacuda-lhe  Deus!  Já  ninguém 
de  lá  o  levanta  com  a  vaga  que  faz.  Ainda  não 
ha  muitos  annos  que  aqui  houve  um  desgosto,  na 
villa... 
— Caiu  alguém? 

— Ai  senhor,  nem  quero  lembrar-mc  de  tal! 
— Pois    ha  de  lembrar-se,   e  conlar-me  o    que 
houve. 
Tem  muito  que  contar... 
—  Não  importa.  O  sol  vai  alio— temos  duas  ho- 
ras antes  que  seja  noite. 

A  historia  que  o  velho  me  narrou,  com  a  sua 
rude  linguagem  de  marinheiro  e  pescador,  vou  eu 
contal-a  á  lei!oi'a.  Não  acredilai-à  lalvez  n'ella; 
mas  ha  acontecimentos.  (|ue  desenvolvidos,  sobre  o 
palco,  ou  no  romance,  passariam  por  ficções,  por 
creações  phanlaslicas  de  alguma  imaginação  de 
poeta,  e  que  são,  todavia,  realidades  tristíssimas 
da  vida. 

E  qual  é  o  homem  (jue  lá  no  extremo  horisonlc 
da  existência,  volvendo  os  olhos  para  o  seu  |)as- 
sado,  não  enconlra  ahi  e|)isodios,  que  aproveitados 
fariam  um  romance  ou  um  drama  rico  de  lances? 
Ilealmente  a  vida  não  e  mais  (lue  isto  —  peri- 
pécias encadeadas,  (iue  lêem  por  desfecho  a  morte. 
Drama,  cujo  primeiro  ado  é  o  berço,  e  o  ulti- 
mo o  tumulo.  Os  acontecimentos  principaes,  cnlre 
os  dois  extremos  da  vida,  foimam  os  actos  inter- 
médios. Os  e|)iso(lios  dão  o  romance,  cujos  lypos 
por  mais  cxageiados  (iue|)areçam  encontram  sem- 
pre proloty|)0  na  vida  real.  Hasta  saber  rcconhe- 
cel-os  alravez  da  mascara.  Hasgae-lh'a,  e  vereis 
(|ue  a  realidade  alcança  a  licção. 

Depois  do  que  deixo  dito,  perguntarei  á  leitora — 
acredita  na  \erdade  da  minha  historia? 

Oodnn.i.)  \.    |»'Ol.iVI'IR  V   PlIlES. 


o  PANORAMA 


13 


VOLTAIRE 

(ContinunçAo.) 

Vollaire  rcpi'osenlí\  a  inlclligencia  Iiiimana  na 
sua  vasla  comploxidile. 

Os  espirilos  alhlolas  são  como  os  cryslacs  de 
inniimeias  faces,  iTÍleclem  simullaneameiUc  myria- 
das  de  imagens;  são  como  o  lai'go  oceano,  abraçam 
lodos  os  conlin.íntes. 

Alguém  disse  a  respeito  do  escrijjlor  sobre  que 
traçamos  eslas  linhas:  Vollaiie  desmedrou-se  pela 
universalidade.  Se  o  seu  lalenio  se  concenlrasse 
n^esle  ou  n'aquelle  ponio  dos  conhecimenlos  hu- 
manos, se  as  suas  tendências  se  diiigissem  exclu- 
sivamente a  um  determinado  ramo  litlerario,  se  o 
Iheatro,  por  exemplo,  fosse  o  único  objecto  dos 
seus  amores,  e  applicasse  n'elleloda  a  actividade, 
toda  a  força  da  sua  intelliiíoncia,  Voltaire  sobre- 
levaria a  liacine,  e  empaielhariacom  o  bravo  Cor- 
neille. 

Na  prosecução  d'esla  noticia  leremos  de  ava- 
liar Voltaire  em  relação  aos  seus  predecessoras  na 
tragedia;  por  em  quanto  diremos  apenas,  que,  a 
reslricção,  que  a  dieta  a  que  muitos  críticos  querem 
subjeitar  o  génio  nos  parece  destituída  de  bom 
senso. 

Voltaire  foi  o  que  a  sua  natureza  quiz  que  elle 
fosse.  lia  naturezas  multíplices.  Os  troncos  robus- 
tos bracejam  varas  para  lodos  os  lados;  são  esses 
ramos  innumeros,  ílorenles,  flexíveis  mas  vigoro- 
sos que  constituem  a  belleza,  a  magestade  da  ar- 
vore que  os  alimenta.  Voltaire  passa  da  Zaira 
para  os  Elementos  da  philosophía  dciNewton,  como 
o  Dante  sae  do  Inferno  para  escrever  o  seu  trata- 
do De  Vnlyari  eloqnentia.  Nisto  não  ha  Iransvía- 
mento,  ha  repouso.  O  espirito  cansado  das  gran- 
des luctas,  cxhausto  pelo  voar  constante,  sentin- 
do as  azas  fraquejarem  pouco  a  pouco,  descende, 
pousa,  espairece,  e  readquire  no\as  forças  para 
se  elevar  a  maiores  alturas.  N'esles  períodos  de 
descançq  pode  transiijir  com  as  puerilidades  mun- 
danas. E  como  a  ave  arrojada,  que  viesse  lá  de 
cima,  das  visinhanças  do  sol,  e  que  ao  abater  o 
vôo  no  seu  ninho  de  fiagas  se  dislrahisse  em  es- 
picaçar os  insectos.  A  mão  que  desenhou  os 
maiores  c  os  mais  bellos  vultos  da  scena  mo- 
derna diverte-se  em  tracejar  FalstaíF;  o  poeta 
do  Adamastor  escreve  os  disparates  da  Índia. 
La  force,  cc  n'est  pas  Protée,  cest  Júpiter p 
dizem  ainda  os  que  censuram  a  multiplicidade  de 
assumptos  de  que  Voltaire  se  preoccupou  toda  a 
vida;  a  imagem  é  graciosa,  mas,  ao  que  me  pa- 
rece, falsa,  desde  a  raiz  até  á  copa.  Júpiter  e  a 
força,  e  ao  mesmo  tempo  ametamorphose.  O  Deus 
do  rayo,  é  o  cysne  de  Leda,  e  o  touro  da  Europa; 
transmuda-se  perpetuamente,  e  em  caria  uma  das 
formas  de  que  se  reveste  imprime  o  cunho  divino. 

Concedo  que  em  Vollaiie  não  haja  aquella  ve- 
hemencia,  aquella  energia  que  se  admira  em  Cor- 
neille,  que  as  suas  creações  não  lenham  aauslera 
severidade  que  muitas  vezes  demandam,  que  a 
palavra  inflammada  e  ardente  não  caia  em  meio 
das  grandes  scenas  ou  dos  elevados  quadros  épi- 


cos; mas  a  paixão  sem  exagero,  a  paixão  natural, 
alíecluosa,  pathetica,  docemente  aquecida  ao  fogo 
interior,  essa  é  a  que  nós  encontramos  nas  suas 
tragedias,  como  talvez  em  nenhumas  d'oulro 
poeta  da  França.  E  mais,  note-se  o  século  em 
que  Vollaire  vivia,  século  de  frivolidades  e 
de  descrenças,  sem  aspirações,  sem  grande- 
za, sem  a  hombridade  altiva  que  robustece  o 
poeta  que  em  meio  (relie  se  move,  e  que  por  elle 
se  inspira.  É  esta  a  razão  por(|uc  na  Henriada 
escasseam  os  traços  e|)icos,  por(|ue  lhe  faltam  os 
arrebatamentos  da  epopca.  O  canto  heróico  não 
apparecc  inditíerciUemente  eniquabjuer  época;  ha 
paia  elle  uma  quadra  em  todas  as  nações.  Se  essa 
quadra  passou  sem  que  os  poetas  quizessem  ou 
podcssem  embocar  a  tuba  homérica,  debalde  pro- 
curarão ao  diante  preencher  o  grande  vácuo  litle- 
rario. « — O  século  XVIIL  diz  Edgar  Quinei, — 
adverso  ás  Iradicções,  e  tentando  isemplar-se  d'cl- 
las,  era  o  contrario  dos  tempos  épicos;  as  guer- 
ras da  regência  não  poderiam  reacender  o  heroís- 
mo exlincto.  Por  um  esforço  de  génio,  puramente 
individual,  Voltaii'e  conseguio  elevar-sea  brilhan- 
tes imitações  da  poesia  alexandrina  c  romana. 
N'esle  género  de  poesia,  inútil  é,  porém,  o  traba- 
lho de  um  homem;  se  o  pensamento  e  a  vontade  de 
lodos  não  contribuem  de  metade  para  a  sua  obra, 
tal  obra  será  impossível. — úl  nos  princípios  da 
[vida  litteraiia  de  um  povo  que  as  ejiopeas  appa- 
recem  de  facto.  Se  a  França  do  meio  dia  e  do 
norte  produzio  na  edade  media  alguns  monumen- 
tos épicos,  como  ao  presente  se  assegura,  não  o 
sabemos  nós,  nem  nos  parece  mesmo  que  as  rha- 
psodías  do  século  XII  e  XIII  possam  merecer  o 
verdadeiro  nome  de  epopèas.  Foi  de  certo  no  sé- 
culo XVI,  no  grande  fervor  das  luctas  religiosas, 
no  grande  embate  das  crenças  e  das  paixões  su- 
blimes, quando  o  povo  no  seu  viver  tempestuoso 
e  poético  respirava  o  cnlhusiasmo  cavalleíroso  ea 
nobreza  dos  puros  affeclos,  foi  então  que  soou 
para  a  França  a  hora  d'ella  dar  ao  mundo  a  Epo- 
pea.  Ilonsaid,  o  maior  de  todos  os  poetas  da  Plêia- 
de, atravessou  a  onda  popular,  sem  lhe  entender 
os  profundos  rugidos,  ou  sem  descobrir  na  sua  al- 
ma, naturalmente  lyrica,  um  único  accento  que 
podesse  consagrar  às  soberbas  mageslades  he- 
róicas. Depois,  em  seguida,  veio  a  escola  dura, 
secca,  empertigada  emethodica,  d'aquelleMalher- 
be  frio  e  coríaceo,  de  quem  Boileau  fez  um  Deus 
e  a  posteridade  uma  múmia.  Começaram  os  gram- 
maticos  a  aggredir  os  poetas;  ii  goiva,  o  prumo, 
a  lima  eterna  da  pedanteria  poz-se  a  fazer  o  seu 
oílicio  contra  a  inspiração  e  contra  o  génio.  Dis- 
cutiam-se  os  solecismos  emetrilicava-se  por  bitola; 
as  musas  tinham  quebrado  a  lyra,  e  andavam  de 
régua  e  compasso. 

Ouando  alguém  sahia  do  carril  pizado  e  recal- 
cado, tinha  sobre  si  a  ferula  dos  mestres,  e  a  im- 
precação dos  aslhmalicos. 

«Enfin  Malhciim  vint  qui  le  prcniior  en  France 
Fil  sentir  dans  Ics  vcrs  une  justo  cadence; 
n'un  mol  mis  cn  sa  place  cnseií^iia  le  pouvoir, 
Et  rcduisil  ]a  rause  aui  roglss  du  devoir. 

Não  eram,  pois,similhanles  poelas  que  podiam 


3â 


O  PANORAMA 


crcar  a  cpopòa.  Os  que  lhos  siiccodoiam,  oncon- 
traiani  abonança,  a  Iranqiiillidado,  a  modorra  do 
povo  que  pieíei-o  o  somno  solío  ás  ruidosas  con- 
llaiiraçõcs  da  praça  publica.  O  poema  épico  pres- 
ci'e\ei'a  de  (otlo.  Vollaire,  na  sua  anc'a  de  agii- 
cuUar  em  lodos  os  campos,  de  provar  a  mão  om 
lodos  os  assumplos,  liavou  da  cyliiara  vir- 
iídiana,  e  acoixlou  '  os  eccos  da  sua  paliia 
com  o  som  de  um  canio  novo.  Embora  a  lícn 
riada  não  lenha  o  caracler  épico,  a  virilithide 
heróica,  a  fur/a  grande  c  sonorosa  (hn  vcM(hi(içi- 
ras  epopèas,  t(>m,  comhub),  quadros,  descripções, 
trechos  de  lai  eloquência  que  em  nada  cedem  ao 
que  a  anli^iuidade  possa  apresentar  de  mais  subi- 
do. A  fada  de  l'olier  aos  Kslados  da  Ii^a  é  justa- 
menle  posla  por  Marmonlel  ao  \)nv  dos  mais  no- 
táveis ras.sos  poéticos.  Quando  csle  ou  aquclle 
heroo  se  lhe  ai)resenla,  com  que  correcção  de  li- 
nhas o  não  deixa  elle  desenhado  na  leia? — Vede 
Çoligny.  llenii  de  Guise,  Mayenne  e  dWumale, 
llichelieu,  Cionnvell.  immensa  galeria  (jueadmira- 
mos  sempre,  c  aonde  Vollaire  revelou  toda  a  lii- 
meza  dos  seus  traços  e  Ioda  a  riqueza  do  seu  co- 
lorido deslumbrante.  O  (juc  íalla  nesse  poema,  que 
é  o  tom  varonil  eseveio,  que  éa  serena  dignidade 
do  comi)oslo,  que  é  linalmenlo  esso  ar  olympico, 
esse  rumor  sagiado  de  heroes  c  de  numes,  (lue 
nos  confrange  ou  nos  ergue,  que  faz  com  que  Mi- 
guel Angelo  se  sinta  maior  quando  acaba  de  ler 
a  llliada,  e  com  que  Chaleaubiiand  diga  que  a 
Jerusalém  paiecc  íei-  sido  escripla  em  um  campo 
de  batalha,  o  que  ilie  falta,  re()ilo,  jirocedeu,  de- 
rivou logicamente  das  condições  do  século  em  que 
foi  escripto.  Agrando  gloiia  de  Vollaii'e  é  ter  po- 
dido, de  ceito  modo,  Icvanlar-se  ao  de  cima  d'es- 
sas  paixões  pequenas  que  i\'ferviam  e  tumultua- 
vam, e  insj)irar-se  j)oi-  vezes,  encontrando  o  veibo 
sublime,  c  a  forma  digna  econ-ente.  Este  impeto, 
esta  vontade  enérgica,  este  remontar  impetuoso, 
este  arrancar  o  espirito  das  contendas  triviaes,  e 
das  lides  inglórias  para  o  embeber  cm  conlem[)Ia- 
ções  mais  bellas,  este  quebrar  um  dia  com  asf/;/ro 
])r(iposirô('s  de  Jansenius,  e  voltar  cestas  a  toda  a 
cainçada  dos  Desfontaines,  para  estender  a  mão  á 
deosa  que  sorri  no  limiar  da  historia,  isto  ésem 
duvida  alguma  o  génio. 

C-umpie  allenlai-cm  Iodas  ascircumstancias  que 
expozemos,  reparar  bem  nos  tem|)os  em  (jue  Vol- 
laire viveu,  nas  mundatiidades  (|ue  o  cercaiam,  e 
nas  guerras  infames  que  lhe  j)i'omoveram.  Ouando 
apezar  de  tudo  vemos  suigir  a  llcnriada,  quando 
ouvimos  a  nota  e|)ica  resallar  do  nozcío  alioz  de 
uma  multidão  de  vidgaridiidcs  pilias  e  razas,  é  então 
(jue  calculamos  Ioda  a  pujança,  Ioda  a  seiva,  Ioda 
a  llexibilidade  (raí|uelle   lalenlo   iiicom[)aiav('l. 

Entarandoa  physionomia  lilteiaria  de  Voltaire, 
fomos  insensivelmente  levados  a  aprecial-o  em 
primeiro  logar  sob  o  ponto  de  visla  ej)ico;  eslude- 
niol-o  agoia  em  relação  ao  Ihealro,  onde  innior 
luz  o  illumina.  E  ahi  í|ue  Vollaire  palenlea  em 
maior  copia  as  forças  da  sua  inlelligencia,  é  ahi 
que  melhor  poderemos  medir  a  sua  grandíssima 
estatura. 


Racine,  eCorneille  terão  por  vezes  de  ser  citados 
em  confi'onlo;  quanto  a  Crebillon  penso  que  não 
será  preciso  remechel-o  na  cova. 

Conliiiua 

E.    A.    YlDAL. 


CASTELLO  DE  KEMLWORTll 

Não  é  esli'anho  esle  nome  aos  leitores  de  Wal- 
ler  Scoll;  logo  lhes  acode  de  ceilo  á  memoiia  o 
magnifico  i'omancc  que  tem  esle  titulo,  romance  ad- 
mirável, que  se  baseia  na  sombria  tradição  da 
moile  da  condessa  de  Leicestcr,  e  em  que  o  gran- 
de esci'iplor  escocez  soube  pintar  com  Ião  largos 
l raços  os  esplendores  e  os  myslerios  (la  còrlc  de  Isabel 
de  Inglaterra,  eo  caracter  a  um  tempo  varonil  ea|)ai- 
xonado,  austero  e  alfeclo  á  lisonja  da  enérgica  rai- 
nha, que  regeu  com  mão  tão  hábil  c  Ião  tirme  os 
destinos  do  seu  paiz,  mas  sobre  cujo  reinado  pro- 
jecla  uma  sombra  inimensa  a  morte  da  infeliz  Ma- 
ria Stuait. 

O  sangue  da  formosa  e  estouvada  cscoceza  macu- 
la de  um  modo  que  a  historia  não  pôde  deixar  de 
registar,  o  alvo  manto  da  rainha  que  tanto  folga- 
va com  que  lhe  dessem  o  cognome  da  rainha  vir- 
gem 

O  romance  de  Waller  Scolt  lem  por  assumpto, 
como  disse,  a  morte  da  infeliz  condessa  de  Lci- 
cester,  sacriíicada  por  seu  marido,  elegante  minis- 
tro de  Isabel,  que  aspirava  a  partilhar  o  Ihalamo 
eo  throno  da  rainha,  á  ambição,  (]ue  fora  desper- 
tada pela  manifesta  tei^nura  que  a  enérgica  rainha 
sentia  por  elle. 

No  (|uadro  da  narração  entram  naturalmente,  e 
descri |)tas  como  Waller  Scolt  sabe  descrever,  as 
magnilicas  festas  dadas  pelo  conde  á  i'ainha  n'esse 
o|)ulenlissimo  palácio,  que  e  hoje  o  que  a  gravura 
o  mostra,  uma  luina. 

Fica  situado  no  condado  de  Warwich.  O  que 
elle  era  no  tempo  do  seu  esplendor,  será  o  mesmo 
Waller  Scolt  quem  nol-o  diiá  quando  no  seu 
b'.'llissimo  romance  descreve  a  chegada  da  infeliz 
condessa  ao  palácio,  (Tonde  seu  marido  a  queria 
afastar  por  lodosos  modos,  j)or(jue  não  confessara 
á  rainha  o  seu  casamento,  e  convinha-lhe  que  Isa- 
bel o  consideiasse  livre  dos  laços  malrimoniaes.  Ce- 
damos a  palavra  ao  grande  i-omancisla. 

((I']mlim  siir^Mo  o  caslello  magnilieo  de  Kenilwor- 
Ih;  para  o  embellezar  epara  melhorar  os  dominios 
{|ue  (Telle  dependiam,  gastara  o  conde  de  Leices- 
t(>r,  segundo  se  diz.  sessenta  mil  libras  esteilinas, 
somma  (jue  nV.sse  temjK)  equivalia  a  meio  milhão 
de  libras  na  actualidade. 

«Os  muros  exteriores  d'esse  eíMIicio  soberbo  e 
gigante  abrangiam  seleacres,  uma  (larle  dos  quacs 
era  occupada  por  vastas  cavallariças  e  um  jardim 
de  recreio  com  eleganles  malas,  c  canteiros  cheios  de 
llores;  o  leslo  forma\a  o  primeiro  paleo  ou  palco 
externo. 

aO  ediíicio  construído  no  meio  (Eeste  espaçoso 
recinto  com|)unha-se  de  muitos  |)alaceles  magni- 
licos,  que  |)areciam  ter  sido  conslniidos  em  dilfe- 
renles  épocas,  e  que  rodeavam  um  paleo  interno 


i 


o  PAiXOHAMA 


i33 


"'\Vii  h\ 


besse  ouvir,  daria  u.na  li,-ão  „i/;  a/oP^u  í"  ó  ,   'Lli^^  n ao  houvcss.-  noiícia  alguma,  ,l,gna  ,le  cre- 
1.^0  ,uo.ad,„irira  o  au„.i,o„,ara  o.sc;'^tr,i;iÍ'''':Tit'Vn:r;,;Co^       la'lvor';:;;'';tsa  da 


i34 


O  PANORAMA 


sua  parecença  com  a  cidadella  do  mesmo  nome  que 
so  vè  na  Torre  de  Londres.  Aííirmavam  alguns 
anli(|uaiios que  lôi"a  esle  foile elevado ])or  Kenel])Ii, 
rei  saxonio  de  Meicia,  que  dera  o  seu  nome  ao 
caslello.  e  ouiros  que  lòia  conslruido  pouco  lempo 
depois  da  conquisla  dos  Normandos.  Nos  muros 
exteriores  campeava  o  brazão  dos  Clinlon,  que 
os  linham  fundado  no  lempo  de  Henrique  1  da 
mesma  forma  que  o  brazão  de  Simão  de  .Alonifoil, 
vullo  ainda  mais  lemivel,  que,  nas  íjueiras  dos 
barões,  defendera  muilo  lempo  Kenilworlh  con- 
tra o  rei  Henrique  Hl.  Morlimer,  conde  de  March, 
famoso  pela  sua  elevação  c  a  sua  queda,  alli  dera 
feslas  e  lorneios,  emquanlo  o  seu  soberano  des- 
llironisado,  Eduardo  11,  delinliava  nas  próprias 
masmorras  do  caslello.  O  velho  João  Ganul,  da 
anliga  raça  dos  Lancasler,  augmenlara  muito  esle 
edilicio,  construindo  a  aza,  que  ainda  hoje  tem  o 
nome  de  palácio  de  Lancasler;  mas  Leicesler  ven- 
cera os  seus  predecessores,  apezar  d'esles  serem 
bem  ricos  c  bem  poderosos,  erigindo  uma  immen- 
sa  fachada,  que  desappareceu  debaixo  das  suas 
próprias  ruinas,  monumento  da  ambição  do  seu 
fundador.  Os  muros  exleiioiTS  dY^la  residência 
verdadeiramente  regia  eram  banhados  por  um  lago, 
em  parte  aililicial,  sobi'e  o  qual  Leicesler  mamla- 
ra  construir  uma  [)onle  magnifica,  a  tlm  de  que 
Isabel  podessc  enti-ar  no  caslello  por  um  caminho, 
feito  para  cila  só.  A  entrada  habitual  era  pelo  lado 
do  norle,  onde  Leicesler  erguera,  para  delVza  do 
caslello,  uma  lorre  altíssima,  que  ainda  existe,  e 
que  vence,  pela  sua  extensão  e  pelo  eslylo  da  sua 
arcliileclura,  muitos  caslellos  de  alguns  chefes  sop- 
lemlrionaes. 

Do  outro  lado  do  lago  havia  um  parque  im- 
nienso,  povoado  de  gamos,  cabritos,  veados,  e  Io- 
da a  eíipecie  de  caça.  Ksle  bosque  era  plantado 
de  arvores  soberbas,  do  meio  das  (juacs  a  fachada 
do  caslello  e  as  suas  torres  macissas  pareciam  sair 
mageslosamenlc.  Não  podemos  deixar  de  accrescen- 
lar  agora  que  este  nobre  palácio,  que  recebeu  nionar- 
chas,e  (|ue  foi  illuslrado  por  guerreiros  que  alli  de- 
ram sérios  e. sanguinolentos  assaltos,  e  por  justas  ca- 
valheirescas cm  (|uc  a  belleza  distribuía  os  prémios 
obtidos  pelo  valor,  não  oííeiece  hoje  senão  uma 
scena  de  ruinas.  O  seu  lago  Iransformou-se  n'um 
|)rado  húmido,  onde  os  juncaes  veccjam,  e  as  suas 
immensas  ruinas  servem  só  pai'a  dar  uma  ideado 
seu  aniigo  esplendor,  e  para  fazer  a()i(ciar  melhor 
ao  viajante  (jue  reflecte  sobre  a  vaidade  das  ri- 
quezas do  homem,  aventura  dos  (|ue  desfrutam  a 
sua  mediocridade  com  um  virtuoso  contentamento. 


O  ESTUDO  DA  HISTORIA 

— Ouoreis  saber,  dizia  um  índio  a  um  Europeu, 
como  eu  í|U('reria  (|ue  se  iniciassem  as  creanças 
na  historia  dos  homens? 

Observai  esle  punhado  de  lodo  apanhado  no 
leito  do  Aracan.  Oue  numero  iníinilo  de  molécu- 
las, e  comludo  quão  poucas  partículas  do  metal 


precioso  que  procuramos'  Que  trabalho  tão  longo 
e  dillicil  para  descobril-as  c  separal-as  do  lodo  em 
que  estão  enlerradasl 

Pois  bem,  o  mesmo  se  dá  com  a  historia  das 
geiações  que  se  lêem  succedido  úi^iúc  a  creação 
do  mundo.  Oue  de  acontecimentos!  mas  os,  ver- 
dadeiramenle,  dignos  de  memoria,  que  derramam 
luz  sobre  a  natureza  do  homem,  sobre  a  sua  mis- 
são cá  na  terra,  que  lhe  oílerecem  exemplos  no- 
bres, (pie  lhe  desenvolvem  o  coração  c  a  inlelli- 
gencia,  esses  são  raros  e  só  a  vista  do  sábio  os 
pode  discernir. 

Ensinai  unicamente  ás  creanças  os  fados  pou- 
co numerosos  e  escolhidos.  Poupai-os  á  fadiga  de 
revolverem  inteiramente  a  montanha  de  fragmen- 
tos pulverulenlos  aggiomerados  pelo  lempo,  para 
procurarem  alli  algumas  raras  partículas  de  ouro, 
Guiai-0s  logo  ás  fontes  do  verdadeíi-o  saber,  ao 
Ihesouro  que  a  phílosopfiia  tem  obtido  da  expe- 
riência de  milhares  de  gerações  exlinclas. 


THF.ATRO  DE  D.  MARIA  H. 
Ill 

lí  o  llicniro  de  D.  Miiria  II  uni  dos  mais  formosos  edi- 
fícios de  Lisboa,  c  no  seu  geueio,  pode  compelir  comos 
de  maior  nomeada,  não  só  na  decoração  e  riqueza  de  or- 
natos, senão  lambem  na  distribuição  interior. 

A  ordem  arcliileclonica  adoptada  é  a  jónica,  como  es- 
tão mostrando  as  cotumnas  do  perislylo,  as  pilastras  das 
facliadas,  as  molduras  e  volulas. 

Seria  esta  de  feito  a  ordem  arcliileclonica,  que  mais  con- 
\inlia? 

Não  se  deveria  antes,  seguindo  as  bellas  (radicçõcs  her- 
dadas, ronslruir  um  edifício  no  gosto  dos  Jeronymos  ou 
da  Halailia? 

Esta  opinião  aventada  por  alguns  críticos  pouco  sabe- 
dores e  demasiado  patriotas,  não  Icm  fundamenlo  na 
nrlf. 

K  necessário  ignorar  profundamente  os  mais  singelos 
preceitos  do  gosto  para  defender  a  arte  romântica  em  edifício 
d'esla  ordem. 

Encantadoras  e  sobre  todas  formosissimas,  são  emver- 
daffi^,  as  arcliilccluras  clirislãs,  Ijrincadas,  floridas,  ar- 
rendadas, com  as  suas  craslas  silenciosas  e  poéticas,  com 
as  suas  arcarias  mudas  c  melancólicas. 

Nada  mais  admirável  do  que  um  velho  mosteiro,  no 
pendor  da  serra,  illuniiuado  pela  lua,  cercado  de  arvore- 
do remaiiçoso,  la  dentro  o  claustro  com  as  suas  ogivas, 
com  as  suas  jiortas  sobrejioslas,  com  as  suas  columnalas 
rendilhadas,  com  as  suas  fikií^ranas  de  mármore,  com 
as  suas  estatuas,  e  bruteseos  meio  sondireados. 

Nada  mais  poético  do  que  esse  perfume  religioso  que 
se  alevanla  em  ondas,  do  silencio  do  templo,  todo  laçarias 
imaginosas,  (|ue  irrompem  ardentes  em  feixes,  c  se  des- 
dobram até  se  espalharem  nas  abobadas,  como  as  cren- 
ças redivivas  dos  fundadores  e  dos  artistas,  crenças  pos- 
santes, fervidas  (|uc  se  crfiuiam  da  terra  e  iam  atiraçar 
o  ceu,  enramando  de  grinablas  c  festões  o  throno  da  Vir- 
fíem.  Que  architecturas  sutilimes!  Como  a  alma  se  ex- 
pande em  elUuvios  de  harmonia,  c  a  prece  sac  frc- 
menlel  E  depois  aquellas  janellas  escondidas  e  docemen- 
te \oiadas,  c  os  vidros  corados,  em  (pie  a  luz  bruxulea 
formando  auríiolas  celestiaesl  E  acima  de  tudo,  involvendo 
tudo,  um  manto  de  santidade  e  candura,  casto  csingelocomo 
as  crenças  d'a(piellas  eras  relif^iosasl 

Oh!  .Mas  (|uem  ousaria  profanar  os  sacrosanios  mysle- 
rios  do  mosteiro  transportando  jiara  a  praça  publica,  para  o 
Ihealro  essas  arcliilecliiras  nnsliras  (pie  so  convém  aos 
penelraes  em  cujo  seio  se  aninharam  os  (pie  litavam 
olhos  piedosos  no  ceu?  Para  os  Ihealros  e  para  todos 
os  edifícios  de  egual  natureza,  Roma  e  Athenas,  Augusto 


I 


o  PANORAMA 


i35 


e  Péricles,  legarnm-nos  modelos  eternos,  que  é  força  imi- 
tar, porque  ninguém  excede  a  perfeição. 

Uepresenla  a  architcclura  grega  uma  grande  idéa  e  a 
pujança  e  força  de  um  povo,  .que  chegou  à  maturi- 
dade,* ao  apogeu  da  gloria  e  cxplendor,  ao  acnmcn 
da  riqueza. 

As  linhas  severas  c  harmónicas,  rectas  c  inflcxiveiscomo 
o  destino,  soi)re|)ondo-se  parallelamenlc,  não  coidiecendo 
limites,  aquelles  frontões  carregando  soljre  columnas,que 
se  conservam  erectas  e  orguliiosas,  as  columnatas  robus- 
tas, os  festões  evoluías,  os  hypogriphose  caduceus,  lodos 
os  symbolos  e  hierogliphos,  os  niclios,  os  vasos, 
os  balaustres  os  acanthos,  tudo  nos  está  mostrando 
que  a  architectura  clássica,  empregada  no  Farlhenon  eno 
templo  da  Paz,  era  a  que  mais  convinha  a  dois  povos, 
cuja  civilisação  correra  o  mundo,  cujas  ideas  se  haviam 
espalhado  pôr  toda  a  parte,  cujos  exércitos  tinham,  cada 
qual  segundo  a  si,  esmagado  Dário  e  Xcrxes,  ou  ven- 
cido o  oriente  e  o  occidente. 

Em  Vilruvio  dev'a  pois  encontrar  o  archilecto  a  norma, 
que  o  guiasse  na  traça  do  edifício. 

E  assim  foi.  O  the^atro  dei).  Maria,  apezar  dos  seus 
defeitos,  é  explendida  amostra  da  architectura  clássica, 
é  um  monumento  formoso  eriço,  é  um  edifício  nobre, que 
não  desdourara  Paris  e  Londres. 

Tem  este  edifício  quatro  fachadas,  symetricas  duas  a 
duas,  deitando  cada  <|ual  para  o  seu  largo,  o  (pie  produz 
óptimo  eíTeito  e  mais  realce  dá  ao  monumento. 

Para  a  praça  de  I).  Pedro  olha  a  tachada  |)rincipal,  que 
é  a  do  sul,  para  o  larçjo  do  lletjedor  a  do  norte,  para  o 
larrjo  do  Camões  a  de  oeste,  para  o  largo  de  S.  Do- 
miníjos  a  de  leste. 

Representa  a  nossa  gravura  a  fachada  principal  e  a  de 
oeste,  e  deixa  ver  o  largo  de  Camões  eo  de  S.  Domin- 
gos em  cujo  topo  se  divisa  o  pal.icio  dos  condes  de  Al- 
mada, aonde  se  reuniram  os  heróicos  c  gloriosos  conju- 
rados de   IGíd 

A  fachada  principal,  assim  como  as  de  mais,  são  de 
mármore,  sendo  róseo  o  do  liso  das  paredes  e  superior- 
mente ao  andar  nobre,  e  lios  o  resto. 

É  o  perisl\lo  assente  em  seis  columnas  jónicas;  no 
vértice  do  frontão  campeã  a  estatua  de  Gil  Vicente  e  nos 
acrolerios  as  estatuas   de    Melpomene   e   Thalia. 

Sobrepostos  ás  janellas  e  no  altico  do  andar  nobre, 
vèem-sc  quadros  allusivos,  bustos  de  poetas,  e  outros 
ornatos,  osquacs,  assim  como  as  estatuas,  muito  honram  a 
Academia  das  liellas  Artes. 

A  frente  scptemtri;)nal  c  similhante  a  esta  e  só  dillere 
em  não  ter   peristylo  e  nas  esculpturas. 

As  fachadas  (|ue  deitam  para  oeslc  e  lesle  são  em  tudo 
idênticas,  e  ambas  tem  o  seu  vestíbulo  com  arcada  de 
cantaria,  sendo  o  vestíbulo  occidenlal  serventia  dos  espec- 
tadores, e  o  oriental  dos  adores,  empregados  e  artistas. 

Em  frente  do  vestíbulo  occidenlal  e  quaíi  no  mesmo 
nivcl  está  o  salão  da  entrada,  cujo  tecto  se  apoia  cm 
quatro  columnas  de  mármore  sem  soco,  como  era  de  la- 
são,  para  não  emi)ecrr  a  passagem. 

lyiede  o  salão  dcze.-cis  metros  de  comprimento  sobre 
dez  de  largura.  No  andar  superior  e  occupando  a  mes- 
ma posição,  eslá  o  salão  nobre,  ricamente  decorado,  ro- 
deado de  duas  ordens  de  galerias  em  sacada  c  sustenta- 
das por  columnas.  O  pa\imcmlo  todo  de  mosaico  cor- 
responde aos  camarotes  de  primeira  ordem,  e  as  duas  or- 
dens de  galerias  communicam  com  as  outras  ordens  de 
camarotes. 

Do  salão  da  entrada  sobc-se  a  uma  galeria,  que  cir- 
cumda  a  platea,  e  permittecommunicaçòes  com  os  diver- 
sos andares. 

Conta  a  sala  setenta  camarotes  distribuídos  em  (lualro 
ordens,  contando  as  frisas.  lia  uma  tribuna  real  c  uma 
galeria.  Aípiella  é  rica  c  perfeitamente  ornada,  tendo  as 
l)arcdes  revestidas  de  espelhos,  e  sendo  o  tecto  cm  for- 
ma de  cúpula  de  oir(»  e  azul.  Toma  em  altura  duas  ordens 
de  camarotes;  contíguas  á  tribuna  real  ha  duas  salas,  que 
dão  para  um  gabinete,  uma  copa  e  um  vestíbulo  sendo 
(jue  cada  camarote  tem  uma  sala  especial  e  um  gabinete 
de  toucador. 

A  área  da  plaléa  c  de  cento  c  oilenla  e  dois  melros 
quadrados.  O  palco  mede  vinte  metros  de  largura  e  vinte 


e  Ires  de  fundo,  e  em  volta  d'clle,  encontram-se  os  ca- 
marins, gabinetes,  arrecadações,  sala  do  commissario,  da 
ilirecção,  foyer  ele. 

Tal  é  mui  resumidamente,  sem  minúcias  prolixas  a  des- 
crípção  do  actual  Iheatro  de  D.  .Maria,  que  ja  foi  modi- 
licado  em  1858,  porque  a  principio  contava  mais  uma  or- 
dem de  camarotes,  em  forma  de  galeria,  o  que,  sobre 
desfeiar  o  Ihealro,  lira va- lhe  todas  as  propriedades  acús- 
ticas, porque  havia  uma  resonancia,  que  não  permitlia 
ouvir. 

Diminuiu-se  lam])em  a  plaléa,  avançando  o  palco,  abrl- 
ram-se  camarotes  no  proscénio,  frisas  na  galeria  inferior, 
diminuiu-se  o  fundo  dos  camarotes  esepararam-se  por  deci- 
pimentos. 

Com  serem  grandes  estes  melhoramentos,  que  eram 
ha  muito  requeridos,  outro  havia,  de  não  menos  necessi- 
dade, qual  era  mudar  a  cobertura  do  teclo,  feita  de  fo- 
lhas de  ferro  galvanisado. 

Quiz-se  experimentar  o  ferro  que  era  muito  encarecido 
por  architeclos  estranhos,  e  a  experiência  custou-nos  ca- 
ra, por(|uc  deu  péssimos  resultados. 

Não  são  as  folhas  de  ferro  para  o  nosso  paiz,  e  muito 
menos  para  um   Ihealro  de  declamação. 

Quando  chovia,  e  lodos  sabem  quê  as  chuvas  em  Portu- 
gal são  lorronciaes,  era  tal  o  ruído,  que  ninguém  ou- 
via os  actores.  Ajunta\a-se  a  este  defeito  a  ruina  prema- 
tura e  rápida  dos  madeiramentos,  porque  asagoasescoa- 
vam-se  pelas  junctas,  e  orifícios  dos  pregos.  As  folhas  esta- 
lavam e  enrugavam-se  no  verão  e  fazendo  saltar  os  pre- 
gos de  tal  sorte  aqueciam,  que  queimavam  as  madeiras, 
listas  alternativas  continuadas  da  secca  e  humidade  acar- 
retavam a  ruina  do  madeiramento. 

Em  virtude  d'eslas  ponderosissimas  rasões  foi  substi- 
luida  a  cobertura  de  ferro  pelas  chamadas  lelhas  hollande- 
zas.  chatas,  acinzentadas,  que  removeram  lodos  os  incon- 
venientes. 

A.  OSÓRIO  DE  VASCO.NCELLOS. 


As  unlias,  que  iisurpão  o  titulo  de  bentas,  são 
aquellas,  que  empclgaiido  piedades,  fazem  a  preza 
em  lattocinios.  !'"•  Amomo  Vieira'. 


INVOCAÇÃO 

Em  (juc  recesso  le  escondes, 

Ó  anjo  da  minha  paz? 

Não  me  escutas?  Não  respondes? 

Onde  existes?  Onde  estás? 

Que  espesso  sendal  te  vela 

A  serena  fronte  bella 

Que  gruta  escura  te  encerra, 

E  te  occulta  aos  olhos  meus? 

Já  baixasli'  acaso  á  terra, 

Ou  inda  moras  nos  céus?! 

Formosa  imagem  sonhada. 
Um  dia  vem,  outro  apoz, 
E  tu,  ó  niNstica  fada, 
Sempre  muda  á  minha  voz! 
Nas  leves  nuvens  le  embalas? 
Nas  densas  ílorcslas  falias 
Pela  voz  do  rouxinol? 
Junto  ao  sol,  n'elle  le  abrazas? 
Ou  libraste  as  brancas  azas 
Para  os  mundos  de  alemsól? 

Quanto  mais  le  julgo  perlo 
I'ara  mais  longe  tu  vaes, 
E  é  mais  árido  o  deserto 
Que  se  fraiupieia  a  meus  ais! 
(*:a(la  inslante,  novas  formas: 
N'uma  estrella  te  transformas 
E  eis-le  no  espaço  a  brilhar! 
Ora  CS  a  flor  que  perfuma. 
Ora  passas  sobre  a  espuma 
Que  orla  a  túnica  do  mar! 


36 


O  PANORAMA 


\cm  das  plagas  do  iiifinilo! 

Desce,  diega,  ó  anjo,  vem; 

Que  cu  sei  que  não  és  um  myllio, 

Que  cu  sei  que  \  ives  tambemi 

I>ão;  não  es  uma  cl)ymera. 

Ks  a  eterna  primavera, 

í>s  a  esperança  louçãa, 

És  a  luz,  o  riso,  a  fesla, 

Para  a  vida  que  me  rcsla 

És  a  percnnc  manliãa! 

Sei-o.  Senli-o.  No  berço 
Adivinhci-le,  e,  de  cnião, 
Tara   mim  todo  o  universo 
Resumiu  esta  paixão. 
^ão  mente  o  sonho.  Sonhci-le 
Al\a,  pura  como  o  leite 
Da  so  \irgem  que  foi  mãe, 
Radiante  do  lirillio  immenso 
(Jue,  por  entre  ondas  de  incenso, 
Da  ideia  de  Deus  nos  vem! 


O  sonlio  encantado  cu  posso 
Traço  a  traço    repetir. 
Vi-le  eu  mesmo.  Que  alvoroço! 
Como  houvera  a  fé  mentir? 
Embora  de  extranha  essência, 
Pulsa-me  a  tua  exislciicia 
Nas  minhas  veias,  bem  vês, 
Arfa-te  o  seio  em  meu  seio, 
Penso,  sinto,  vivo,  c  creio, 
Porque  tu  vives  c  crês! 

Vm  dia  cm  que  na  vereda, 

Que  percorro  |)or  te  achar, 

Kntrc  a  sondaria  ahimeda 

Me  sentei  a  descansar, 

Suppuz  cliegado  o  momento 

De  atlenlar  iresse  portento 

Que  a  minha  alma  aidichi  c  quer. 

Jurara  (pie  o  paraíso 

I\íe  acciia\a  no  sorriso 

Dos  lal>ios  de  uma  mulher! 

Irrisãol  Tremi,  corri-mc, 
A  lace  verguei  ao  pó: 
Respirava  a  infâmia,  o  crime 
A  falsa  deiíladtí  só. 
Ai,  deb:dde  te  imil.nal 
Krgui-me,  parti,  a  escrava 
Deixei  do  mal  sem  i)udor; 
Pedi-tc  perdão  do  insulto, 
E  vohi  para  o  teu  culto. 
Caminhei  ao  teu  amoi! 

Exhausio  de  força,  o  ermo 
l\Iais  tarde  sem  Vim  pensei, 
E  dentro  do  peito  infermo 
Toda  a  agonia  pczci. 
Como  (]uc  pensei,— perdoa— , 
Mentida  a  lua  coroa, 
Que  eras  um  brinco  infernal, 
E  tentei  buscar  o  olvido 
E  o  descanso  no  ruido 
Infrene  da  bachanal! 

Jorrava  o  viidio  nas  laças 
Os  topasios,  os  rubis, 
Amei-o,  e,  com  elle,  as  graças 
Das  Messalinas  mais  \is! 
Mas  eis  de  rc|)cnle,  cm  meio 
D«  festa  devassa,  o  seio 
Freme  em  doce  estremecer; 
Nova  crença  cm  li  surgia! 
E  o  facho  apaguei  da  orgia, 
Corri  longe  por  le  v(5rl 


Sempre  tu,  a  mesma,  aquella 

Que  eu  não  \i,  mas  de  quem  sou, 

A  mesma  lúcida  estrella 

Que  o  futuro  me  rasgou! 

Dia  c  noute,  n*um  deserto, 

No  baile,  em  sonhos,  des[)erto 

Sempre  aquella  (juc  não  \i! 

Seaiprc  este  aspirar  constante 

Ao  bem  ignoto,  distante, 

Ao  desconhecido,  a  til 

Como  pois  a  li  voara 

N'eslc  anceio  que  seduz, 

Se  o  Senhor  Ic  não  creara 

De  um  raio  da  sua  luz? 

Eòras  illusão,  mentira, 

E  dentro  em  mim  não  sentira 

Os  divinos  dons  da  fél 

Quando  um  falso  Deus  se  adora, 

Qual  das  crenças  não  descora? 

Qual  a  que  fica  de  pé?! 

Oh,  existes,  sim!  Já'gora 
Não  tardas,  não  le  deténs! 
No-expicndor  \irás  da  aurora? 
Nos  raios  da  lua  vens? 
Quero  amal-os,  quero  vel-os. 
Os  teus  ondados  cabellos, 
Teu  jdiant.islico  sorrir, 
Quero  fartar  os  desejos 
De  prelibar  em  teus  beijos 
Toda  a  \entura  por  vir! 

Oh,  existes,  sim!  Das  veias 
I*ercel)o-o  nas   pulsações: 
Assomas,  pairas,  volteias, 
Entre  lúcidas  \isõcs! 
Extasis  de  puro  goso! 
E  no  dia  venturoso 
Que  me  surgir  onde  eslãs, 
Por  seguir-tc  os  aéreos  traços; 
Deixa  eingir-te  em  meus  braços, 
O  anjo  da  minha  paz! 

Mal  n'estc  canto  se  fixar  o  amado, 
O  teu  sonhado  olhar  a  cujo  encanlo 

Estes  versos  sagrei. 
Oh!  d'oiide  quer  (pie  estejas,  rasga  o  manto 
Que  assim  te  encobre,  solta  ao  longe  um  brado, 

E  aos  pés  te  cahirci! 

Vac  longo  o  caminhar!  Afrouxa  o  passo! 
Que  mais  lo  não  procure,  anjo,  debalde! 

Por  não  morrer,  6  flor, 
Da  magoa  de  não  ver-te,  ou  de  cansaço, 
Consente  emlim  que  a  fronte  le  engrinalde 

Com  rosas  d'eslc  amor! 

fevereiro,  18GG. 

En.NESTO  Maiiecos 


Hum  animo  nobre,  mais  se  obiiga  da  coílcsia 
allièa,  que  da  vonladc  pi-opiia. 

FnANCisco  RouniGUES  Lobo 


fii-andc  remédio  liccnnlraos  niale.s  desviar (rel- 
les  o  senliílo,  c  oriípal  o  em  ciii(lailo.s  dilícren- 
los.  I'^  poslo,  (|ue  o  íjue  niiiilo  se  senle  não  dá  Jo- 
gar nem  liberdade  ao  pensamento  para  se  enlre- 
gar  a  oulra  cousa,  (omludo,como  a  nalureza  ap(^- 
Icce  novidades,  sempfe  em  algum  bieve  espu(;o 
lhe  dá  ouvidos. 

FnANCISCO   RODRIGLTS   LoBO 


Typ.  Franc(j*l'ijitiigucza,  Rua  c!o  Tliesouro  Velho, '1. 


o  PANORAMA 


^37 


ILHA  DA  BARBADA 

Esla  ilha  foi  uma  das  muitas,  que  a  audácia  dos 

navegadores  portuguezos  revelou  á  Europa,  e  foi 
também  uma  das  ultimas.  Quando  nós  a  descobri- 
mos estava  já  Portugal  em  plena  decadência,  e  o 
leão  de  Castella  empolgara  nas  suas  garras  as 
quinas    portuguezas.     Com  tudo,  devemos    dizer 


que  está  demasiadamente  desprezada  a  historia  de 
Portugal  durante  os  sessenta  annos  em  que  fez 
parte  do  reino  das  llespanhas.  Os  filhos  da  Lusi- 
tânia, mesmo  reconhecendo  como  seus  monarchas 
os  três  Philippes,  moslraram-se  dignos  dos  heroes 
de  quem  descendiam.  Será  bom  que  reivindique- 
mos a  gloria  que  é  nossa,  e  que  os  hespanhoes 
chamam  a  si,  porque  a  historia  universal,  não 


-'4'Vmv''^'^»-- 


Ilha  da  Barbada 


distinguindo  n'csses  sessenta  annos  Portugal  da 
Hespanha,  lhes  allribue  as  grandes  acções  cmpre- 
bendidas    pelos  nossos  antepassados. 

Assim,  por  exemplo,  o  grande  navegador  Pedro 
Fernandes  de  Oueiroz,  que  descobrio  uma  grande 
parte  das  ilhas  da  Oceania,  c  considerado  pela 
historia  como  hespanhol,  quando  elle  era  porluguez. 

Esta  ilha  da  Barbada  também  os  porluguezes  a 
descobriram  alii  por  IGOO,  sem  que  se  saiba  ao 
cei'to  nem  o  anno,  nem  o  nome  do  descobridor, 
nem  o  motivo  porque  lhe  deu  esse  nome  visivel- 
mente porluguez.  Mas,  nós  já  n'esse  tempo  não 
fundávamos  colónias,  c,  depois  de  a  termos  desco- 
berto, deixamol-a  desamparada,  sem  aproveitar- 
mos ou  sem  conhecermos  a  riíjueza  dessa  jóia, 
uma  das  mais  brilhantes,  da  grinalda  das  Antilhas. 

Em  1605  alli  arribou  um  navio  inglez,  cm  162i 


alli  os  inglezes  se  cslabeleceram,  e  em  1628  fun- 
daram a  cidade  de  Bridgetown;  a  ilha  estava  en- 
tão coberta  de  bosques  de  madeira  tão  rija,  que 
houve  um  trabalho  immenso  para  os  deceparem, 
a  lim  de  estabelecerem  a  lavoura.  Venceu  todos 
os  obstáculos  a  perseverança  dos  colonos,  teimo- 
sos como  inglezes  que  eram.  Em  poucos  annos 
prosperou  incrivelmente  a  Barbada.  Quando  re- 
bentou na  mãi  pátria  a  guerra  civil,  que  terminou 
com  a  morte  de  Carlos  1  no  cadafalso,  alli  se  re- 
fugiaram muitas  famílias  realistas,  que,  conservan- 
do-se  fieis  á  causa  dos  Stuarts,  recusaram  reco- 
nhecer a  authoridade  de  Cromwell,  proclamado 
protector.  Eoi  necessário  que  este  enviasse  uma 
esquadra,  que  a  reduzio  á  sujeição  em  18.j1,  não 
sem  dilliculdade.  Para  a  punir  d'isso  prohibio-lhe 
Cromwell  o  commercio  com  o  estrangeiro.   Esta 


1 38 


O    PANORAMA 


circumsíancia  fez  parar  o  desenvolvimento  rápido 
da  Bai-bada.  que  iinia  grande  parle  da  sua  popu- 
lação abandonou  para  ir  liabilar  nas  oulras  ilhas. 
(Aislou-Ihe  depois  a  rccobrar-se  das  consequências 
d'eslc  golpe. 

A  Baibada  óamaisorienlaldas  Anlilhas;  tem  22 
milhas  de  comiirimenlo,  e  10  na  sua  maior  lar- 
gura. O  seu  aspeclo  e  formosíssimo,  o  seu  clima 
quenie,  mas  saudável,  coisa  rara  nas  Anlillias.  Um 
recife  de  coral,  que  a  orla  pelo  lado  do  norle  e 
de  leste,  não  permille  que  se  approximem  d'ella 
navios  de  mais  de  oO  toneladas;  as  oulras  praias 
são  prolegidas'por  boas  forliiicações.  A  sua  piin- 
cipal  producção  é  a  do  assucai-.  A  sua  população 
tem  sido  muilo  variável.  Augmenlou  com  incrivcl 
rapidez,  mas  depois  diminuio  sensivelmente.  Era 
1()28,  quando  os  inglezes  fundaram  BridgeloA\n, 
havia  na  ilha  uns  cem  habitantes.  Km  1070  cons- 
tava de  cincocnla  mil  brancos  e  de  cem  mil  ne- 
gros e  mulatos.  Em  172 í  já  havia  só  uns  dezoito 
mil  brancos,  cem  1780  uns  dezeseis  mil.  O  recen- 
seamento de  1832  deu  o  seguinte  resultado:  oi- 
tenta c  um  mil  e  quinhentos  escravos,  doze  mil  se- 
tecentos e  noventa  e  sete  brancos,  seis  mil  sete- 
centos c  quatro  homens  de  côr  livres..  De  18.] i 
para  cá  havia  de  diminuir  a  população,  porque 
n'essa  época  foi  abolida  alli  a  escravatura. 

A  capital  da  ilha,  Bridgetown,  Uca  situada  á 
beira  da  magnifica  bahia  de  (larlisbjf:  único  porto 
bom  da  Barbada.  E  uma  linda  cidade,  d'uns  cinco 
mil  habitantes,  c  que  possue  alguns  bonsediíicios, 
entre  os  quaes  se  notam  a  cathedral,  cujooragoé  S. 
Miguel,  que  tem  uma  torre  que  pouco  so  eleva 
acima  do  tecto,  por  causa  dos  tufões  periódicos, 
que  assolam  a  ilha,  e  cuja  violência  ò  enorme;  o 
palácio  do  governador,  o  tribunal,  os  quartéis,  o 
forte  de  SanfAnna,  quasi  inconquislavel,  e  um  ar- 
senal bem  fornecido  de  armas  c  munições.  Esta 
cidade  possue  alem  d'isso  algumas  bibíiothecas  e 
uma  sociedade  lilleraria. 

Não  sei  que  invencível  tristeza  se  nos  apodera 
do  espirito  ao  descrevermos  a  prosperidade  (festa 
ilha,  descoberta  pelos  i)0i-tuguezes,  e  possuída  pela 
Inglaterra;  comparamola  involuntariamente  com  o 
estado  miserando  das  nossas  colónias,  c  não  po- 
demos deixar  de  sentir  que,  para  bem  da  huma- 
nidade, não  fossem  parar  lambem  a  mãos  (|ue  os 
soubessem  tratar  esses  vastos  e  ferlilissimos  ter- 
ritórios, que  a  nossa  incúria  deixa  estar  por  essa 
Africa  sem  cullura  nem  civilisacão. 


Muilas  senhoras  sacrificam  a  saúde  ao  excessi' 
vo  amor  pelas  llores. 


DESCONFIAI  DAS  FLORES  Dl  RANTE  A  NOITE 

Na  obscuridade  c  dui'anle  a  noite,  as  plantas 
cxhalam  um  gaz  venenoso,  o  acido  carbónico.  É, 
pois,  mui  contrario  á  hygiene  conservar  de  noite 
e  de  dia  ílores  dentro  dos  quaitos  de  dormir:  as 
llores  querem  sol  e  \asta  liberdade  deathmosphe- 
ra;  captivas,  castigam  os  seus  ii)ij)rudenles  admi- 
radores viciando  o  ar  que  ellesi-esjiiram:  d'alii  do- 
res de  cabeça,  vertigens,  e,  mais  cu  menos,  uma 
indsposição,  uma  languidez,  cuja  verdadeira  causa, 
muilis  v 'Z('S  está  lon;-C  d'  ser  coiiheeida. 


HENRI   BARTII 

Esboço  Siiogrnphico 

Uma  das  perdas  que  as  sciencias  geographicas 
e  históricas  cxperimentai'am  duiante  o  anuo  de 
Í80j,  a  do  dr.  Barlh  é,  seguramente,  das  maiores 
e  mais  dolorosas. 

O  grande  viajante,  o  inlrei)ido  &  sabio  explo- 
rador da  Africa  central  morreu  em  Berlim  no  dia 
25  de  novembio,  cheio  de  vigor  c  vida,  ferido 
por  um  d'esles  golpes  tão  rápidos  e  certeiros,  que 
matam  sem  ameaçar. 

llenri  Barlh  nasceu  cm  Hamburgo,  cm  18  de 
abril  de  1821.  Seu  pac  era  abastado  negociante; 
porém  Barlh  ainda  bem  novo  manifestou  a  mais 
invencível  repugnância  por  aquella  carreira.  Mos- 
trou desde  verdes  annos  para  o  estudo  rara  as- 
siduidade c  admirável  aptidão.  Era  para  elle  o 
trabalho  da  escola  antes  vivíssimo  goso,  do  que 
afanosa  tarefa 

Em  roais  de  um  escriplor  lemos,  que  desde  os 
12  annos  havia  traçado  o  plano  de  uma  leitura 
melhodica  de  todos  os  auclores  da  antiguidade,  c 
este  plano  seguio-o  com  surprehendcnle  constân- 
cia, ampliando-o  de  todas  as  acquisições  subsidia- 
rias, bebidas  na  edade  media  c  tempos  modernos, 
que  são  próprias  para  foililicar  e desenvolver  fiuc- 
luosamenle  as  noções  aprendidas  nos  valiosos  li- 
vros, que  a  antiguidade  nos  legou. 

U-om  similhanle  (lisj)osição  de  espirito  e  tal 
ordem  de  estudos,  Barlh  no  século  WI  ou  XVI l 
havia  de  ser  um  laborioso  erudito:  n'esla  época  o' 
saber  sério  e  solido  d'ellc  impellio-o  para  as  in- 
vestigações activas,  e  produzio  um  dos  viajantes, 
que  Sjcrão  honra  e  gloria  d'este  século. 

Em  1830,  Barth  vai  a  Beilim  para  ali  cursar 
as  aulas  universitárias.  Coração  impetuoso,  ima- 
ginação impacientemente  ardente,  quiz  beber  em 
todas  as  fontes.  A  archeologia  grega  c  romana, 
as  antiguidades  germânicas,  a  historia  de  todas  as 
épocas,  a  philosophia  anliga  e  a  escholaslica,  o 
direito  allemão  c  o  direito  romano,  tudo  abrangeu 
simultaneamente:  coisa  raríssima,  senão  única,  ti- 
nha tempo  para  devorar  tanlas  sciencias! 

As  sciencias  physicas,  parece  que  o  occuparam 
menos;  aprendia,  porém,  escutando  as  lições  do 
mais  eminente  geographo  do  presente  século,  Karl 
Riltcr,  a  encarar  o  estudo  da  terra  nas  suas  rela- 
ções elevadas  e  fecundas,  e  a  não  separar  esle  es- 
tudo do  da  historia  da  iiumanidade. 

Receiava-sc  que  a  allenção  disseminada  não  lo- 
casse senão  mui  de  leve  na  superlicie  das  coisas, 
deixando  por  isso  de  profundal-as.  Um  pensamento 
predominante  produzia  felizmente  a  unidade  n'esta 
multiplieidade  de  investigações,  e  encaminhava-as 
|)0i-  uma  diiccção  commum,  sem  a  (piai  não  c 
íruclifero  (|nal(|ner  estudo. 

A  idéa  constante  a  que  alludimos,  era  a  anti- 
guidade clássica. 

As  lições  de  BffcKh   conlribuiiam  muilis'^imo 


o  PANOPxAMA 


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para  fazel-o  presislir  ii'aquelia  idóa.  O  illiislre 
philclogo  havia  promplanieiiledislinguitlo  c  loma- 
do  grande  alRMção  aojovcii  csludante,  no  qual  trans- 
parecia, a  par  d'esla  lara  aptidão  para  as  scien- 
cias  liisioi-ioas,  uma  cnoi-gia  de  voniade  (pic  mais 
tarde  havia  de  raanifcstar-se  biilhanlemenle. 

Ao  encerrar  o  seu  primeiro  anno  da  universida- 
de, IJarlh  sentioo  veherucnle  desejo  de  ver  uma 
j)arte,  pelo  menos, dos  paizes  ([uc  foram  o  Ihealro  dos 
glandes  aconlecimenlosdo  mundo  antigo. 

Seu  pae  forneceu-Ihe  os  meios  de  emprehender 
uma  viagem  á  ílalia.  Passou  4  mezes  em  lioma  c 
muitas  semanas  na  Sicilia.  Ainda  impressionado  pe- 
las solidas  lições  de  Iiiller,  Barth  abraçava  com 
a  vista,  cm  presença  dos  monumentos  das  suas  ci- 
vilisações  mortas,  lodo  otheatro  onde  cilas  se  de- 
senvolvoi'am.  Desde  então  concebeu  o  tenladoí' 
projecto  de  uma  longa  viagem,  a  qual,  todavia,  só 
decorridos  i  annosse  verilicou. 

Queria  executar  o  périplo  do  Mediterrâneo,  ver 
os  Togares  que  foi'am  os  lócos  da  chamada,  talvez 
impropriamente,  civilisação  antiga,  Tyr,  Cartlia- 
go,  Cyrenc  c  Alexandria  e  as  plagas  tão  admirá- 
veis e  formosamente  recortadas,  onde  o  génio  hel- 
lenico,  manifestando-se  debaixo  de  suas  múltiplas 
faces,  mostrou  ao  mundo,  pela  primeira  vez,  até 
onde  pode  chegar  o  espirito  humano  na  poesia, 
arte  c  liberdade.  Esla  excursão  de  Barth  a  Roma 
e  a  Syracusa  teve  no  destino  d'elle  uma  influição 
decisiva.  Abriu-lhe  as  portas  de  um  explendoroso 
futuro. 

Regressando,  a  Berlim  prosogue  os  estudos  uni- 
versitários, e  continua-os  ainda  durante  3  annos, 
até  18ÍÍ.  Na  Ihese  latina  para  o  doutorado  dedi- 
cada ao  seu  excellente  professor  e  amigo  Boeckh, 
na  qual  toma  poi'  assumpto  a  historia  de  Coryn- 
Iho,  vè-se  estampado  o  cunho  da  sua  preoccupação 
dominante.  O  pensamento  da  grande  viagem  ás 
extensas,  poéticas  c  históricas  ribas  do  Mediter- 
râneo não  o  abandona,  pelocontraiio,  havia  ama- 
duj-ecido  e  fortiíicado  com  a  reflexão. 

A  ausência  devia  ser  mui  longa  e  a  despeza 
crescida;  pouco  mais  ou  menos  9  contos  de  réis 
da  moeda  portugueza.  Não  o  faz,  porém,  sustar 
esta  consideração  na  execução  do  poríiado  empe- 
nho. 

No  fim  de  janeiro  de  18io  dirige-sc  a  Londres; 
passa  dois  mezes  curvado  sobre  as  ricas  collecções 
do  museu  brilannico,  ao  mesmo  tempo  que  ence- 
tava o  estudo  dos  primeiros  elementos  da  lingua 
árabe,  cujo  uso  lhe  era  essencial.  D'ali  parte  para 
França.  Atravessa  este  paiz  e  a  líespanha,  como 
viajante  que  lera  um  lim,  que  parece  lhe  tarda 
alcançar,  não,  comtudo,  sem  lançar  um  golpe  de 
vista  sagaz  e  curioso  por  sobre  os  interessantes 
logares  onde  passa  e,  essencialmente  aíiuelles 
que  accordam  uma  emoção  poética,  ou  lembram 
um  facto  notável. 

Em  7  de  agosto  saltava  em  terra  africana. 

Era  ali  que  começava  realmente  a  viagem,  (los- 
leia  Marrocos;  peneira  cm  Ai-gel,  onde  o  impres- 
siona o  trabalho  activo  da  transição,  que  se  opera 
sob  a  inlluencia  da  civilisação  europea;  corta  em 


diversos  sentidos  as  regências  de  Tunis  c  Tripoli; 
contorna  as  Syrtes;  visita  a  Cyrenaica,  cuja  con- 
templação desperta  na  alma  recordações  históricas 
tão  antigas;  costeia  a  ilha  deChypre  o  a  Ásia  Menor, 
toca  em  Constantinopla,  lança  um  olhar  por  sobre 
o  que  foi  Gi"ecia centra  na  Allemanha peio  Adriá- 
tico. 

Tal  foi,  pois,  o  seu  itinerário.  A  relação  d'este 
devia  abranger  dois  volumes,  dos  quaes  um  ape- 
nas se  publicou,  c  é  esse  que  leva  o  leitoras  por- 
tas do  ]']gypto.  Inlilula-se,  «Excursões  pelas  re- 
giões litoraes  da  Africa  cailhagineza  cCyrenaica,» 
Wandennujen  durchdas  Piinisc/ie  und  Kyreuacis- 
c/te  A'ust('u/and;  é  essencialmente  pelos  detalhes 
geographicos  que  se  assignala  a  discussão  da  si- 
tuação das  localidades  antigas.  A  idéa  primitiva 
do  viajante  talvez  comporte  algumas  pesquizas  mais 
dilíusas  c  sérias  acerca  do  estado  das  populações, 
dos  destinos  históricos  d'ellas  e  da  inlluencia  do 
desenvolvimento  do  estado  social,  nas  suas  rela- 
ções com  as  condições  physicas  d'esta  zona  meri- 
dional do  Mediterrâneo;  considerações  de  que  Vol- 
ncy  deixou  tão  exccllentes  modelos  para  o  Egypto 
e  Syria.  Talvez  que  Barth  houvesse  reservado  para 
a  segunda  parte,  que  devia  terminar  a  obra,  os 
desenvolvimentos  que  suggerc  aquelle  vasto  ebello 
assumpto  do  papel  do  Mediterrâneo  na  historiada 
humanidade. 

Tma  circjimslancia  imprevista  vem  surprehen- 
der  Barth  em  meio  d'aqueile  relevante  trabalho, 
para  novamente  o  arrojar  na  carreiía  activa  das 
explorações. 

Pieparava-se  em  Londres  uma  expedição  des- 
tinada ao  interior  do  Sudan,  expedição  cujo  plano 
havia  traçado  James  Bichardson  e  que  teri?,  como 
a  d'Oudney  eClapperlon,  em  1821,  ou,  com  mais 
propriedade,  como  Iodas  as  expedições  inglezas, 
um  caracter  conjunctamentecommercial  e  scienli- 
fico. 

James  Bichardson  escassa  scicncia  possuia;  ur- 
gia, pois,  aggregar-lhc  bons  observadores.  Por 
instigação  do  eminente  sábio  Bunsen,  n'aquella 
conjunclura  embaixador  da  Prússia  em  Londres, 
foi  á  douta  e  admirável  Allemanha  que  a  Ingla- 
terra os  requereu.  A  respeitablissima  sociedade  de 
geographia  de  Berlim  indigitou  o  doutor  Overweg, 
naturalista  distinclo,  grande  especialista  em  geo- 
logia, o  qual,  sendo  oriundo  de  Hamburgo,  deter- 
minou o  seu  compatriota  llenri  Barth  a  reunir-sc 
á  expedição. 

A  posição  dos  dois  mancebos  allemães  era  a 
principio  inteiramente  subalterna;  todavia  o  des- 
envolvimento imprevisto  que  adijuirio  aquella 
memorável  emj)rcza,  os  descobrimentos  famosos 
que  a  illustraram,  o  vivíssimo  c  persistente  inte- 
resse (pie  todos  lhe  ligaram,  o  echo  (pie  produzio 
na  Euro|)a  ea  resplandecência  ([uea  coroou,  ludo 
isso  é  devido  ao  impulso  que  lhe  imprimiram  os 
dois  jovens  eruditos  desde  o  inicio  d'ella,  á  di- 
recção que  lhe  deram,  á  actividade  sobrehumana 
([ue  manifestaram,  .c,  talvez  ainda  mais,  á  fria  e 
perseverante  energia  que  nem  um  instante  sequer 
afrouxou   n'aquelle  grande  espirito  de  Barth,  no 


40 


O  PANORAMA 


meio  das  duras  privações  que  durante  cinco  annos 
houve  a  cortir. 

Os  companheiros  d'elle  caem  um  após  oulro, 
extenuados  com  a  fadiga  e  corroídos  pelo  clima. 
Ollia  em  i'edor,  e  vè-se  sósinlio.Em  uma  occasião 
quasi  sem  recursos,  no  coração  d'aquellas  regiões 
iirdenles,  é  cercado  por  povos  ignotos,  em  paizes 
onde  a  cada  passo  se  topa  com  um  j)erigo,  onde 
cada  relancear  da  vista  é  uma  suspeita  ou  uma 
ameaça,  e  sem  nieio^ilgum  de  communicar  com 
a  Europa.  Durante  mezes  a  vida  d'elle  está  de- 
pendente de  uma  única  palavra,  de  um  acaso,  de 
uma  imprudência  ou  cajiriciío.  Mas  que  imporia? 
Nada  o  desvia  da  sua  mira.  Observa  e  estuda. 
Desde  a  região  do  lago  Tchad  até  á  mysleriosa 
Timbucklu ,  onde  consegue  i)enetrai-,  de  toda  a  par- 
le colhe  uma  quantidade  incrível  de  infoi^mações, 
110  meio  dos  perigos,  como  nos  momentos  da  maior 
tranquillidade. 

Tem  fe  em  Deus  e  em  si  próprio,  e  as  suas  fa- 
gueiras esperanças  não  deverão  de  ser  frustradas. 
Foi  o  único  dos  desditosos  membros  da  expe- 
dição que  tornou  a  ver  apatiia  após  cinco  longos 
annos  de  trabalhos,  fadigas  c  perigos  inauditos ! 
As  acclamações  com  que  o  saudaram  no  regresso 
inesperado  d'elle,  pagaram  cm  um  dia  cinco  annos 
de  martyrio. 

Foi  a  elle  que  coube  o  pezado  cargo  de  desen- 
rolar perante  a  Europa  a  longa  narrativa  d'aquella 
prodigiosa  exploração,  sem  duvida  a  mais  com- 
pleta de  quantas  a  nossa  época  lia  produzido.  E  é 
por  isso  que  a  relação  d'ella  se  estende  por  cinco 
grossos  volumes,  (1)  e  ainda  estes  cinco  volumes  não 
foram  suííicienles  para  conter  tudo.  Barth  i)ubli- 
cou  em  separado,  de  18G2  a  1803  uma  collecção 
de  vocabulários  colhidos  em  toda  a  extensão  do 
Sudan.  (2)  Esta  collecção  subministra  preciosos 
subsídios  á  elhnologia  africana.  Em  uma  terceira 
parte,  que  havia  de  complelal-a,  Ijarlh  propunha- 
se  a  submetler  o  alludido  conjuncto  de  documen- 
tos linguisticos  a  uma  elaboração  comparativa,  ([ue, 
indubitavelmente,  projectaria  grande  luz  sobre  a 
clhnographia  do  norte  da  Africa. 

A  morte  ferio  o  escriptor  antes  que  elle  hou- 
vesse imprimido  a  conclusão  dosou  trabalho;  mas 
assegui-a-seque  o  manuscripto  está  completamente 
acabado,  e  que  a  sciencianão  lerá  a  deplorar  uma 
nova  perda  além  da  do  illustrc  viajante. 

15aith,  depois  de  regressar  á  Europa,  havia 
lixado  a  sua  residência  em  IJerlim,  onde  a  sociedade 
de  geographia  o  escolheu  para  presidente. 

Havia  elle  conlrahido  o  habito  de  fazer  cada 
anuo  uma  excursão  scientilica  em  qualquer  parle, 
pouco  visitada,  dos  paizes  clássicos.  Eslas  explo- 
rações annuaes  eranirt.ç  suas  férias;  uns  pecjuenos 
passeios  em  seguida  ás  suas  longas  joi-nadas. 

D'<'sta  sorte  visitou  o  norte  da  Ásia  Menor,  a 
Thracia,  a  Macedónia  e  o  I>piio.  Eslas  excursões, 
que  foram  succcssivamente  publicadas,  são,  debai- 

(1)  Com  o  titulo  de  Traveis  and  ÍJisrovcrirs  in  Norlh  and  Cintral, 
Africa,  18'iO— lífiO.  Lond.  1857— 18Õ8.  A-chaiii.-ida  edição  fr.iiicezu 
ó  uma  mim  traduído  de  um  resumo  aUfimâo  em  2  volumes. 

(2)  Summlnng  imU  JJearhcirluny  Ccnirol  —  Alril^atuxclnr  Yoca- 
butarien.  Uolha,  18G2— 03,  2  vol. 


xo  de  uma  forma  modesta,  mui  interessantes  e 
úteis  acquisições  para  a  sciencia. 

Barth,  por  isso,  fui  tão  grande  que  mesmo  nos 
seus  ócios  soube  servir  a  sciencia  alé  á  morle. 

Alfredo  May 


UTILIDADE  DOS  CYCLO?sES 

Se  os  cyclones  devastam  os  paizes  que  se  acham 
direclamente  em  sua  passagem,  se  fazem  correr 
os  navios  os  maiores  perigos,  são  elles  lambem 
que  fértil isara  as  regiões  (|ue  visitam  espalhando 
ahi  benelicas  chuvas.  Parece  que  estes  terríveis 
tlagellos  teem  uma  missão  a  cumprii',  e  (pie  o  seu 
ulíl  elVeilo  excede  muito  os  desastres  que  causam. 
A  estação  invernosa  seria  a  ruína  das  messes  da 
zona  lorrida,  mirradas  pelo  ardor  de  um  sol  im- 
placável, se  frequentes  chuvas  não  temperassem 
o  clima  (raquellas abrasadoras  regiões.  É  preciso 
pois  que  as  aguas  vaporísadas  nas  regiões  do  equa- 
dor vão  ser  derramadas  nos  paizes  ínlerlroi)ícaes.  Os 
cyclones  são  os  motores  destinados  para  este  trans- 
porte: é  á  sua  passagem  que  se  devem  as  grossas 
chuvas  que  fornecem  as  grandes  massas  de  saes 
ammoniacaes,  d'acido  carbónico  e  de  electricidade 
tão  favoráveis  á  vegetação;  chuvas  benéficas,  cuja 
acção  salular  chega  muitas  vezes  a  reparar  os  es- 
tragos causados  pelo  furacão. 


COMO  SE  FAZ  O  GELO  EM  BEiNGALA 

Nunca  a  temperatura  em  Bengala  desce  a  ponto 
de  se  congelar  a  agua.  Mas,  obtem-se  alli  o  gelo 
artíticial,  procedendo  do  modo  seguinte:  Abrem- 
se  covas  pouco  profundas  que  se  enchem  em  parlo 
de  palha;  sobre  a  palha  collocam,  ao  ar  livre,  al- 
guidares cheios  de  agua  a  ferver,  A  agua  tem,  como 
e  sabido,  uma  grande  força  de  i-adiação;  espalha 
abundantemente  na  athmosphera  o  calor  que 
contem:  ora,  o  calor  perdido  d'este  modo  não 
pôde  ser  substituído  pelo  da  terra,  porque  os  al- 
guidares estão  se|)arados  do  solo  por  meio  da  i)a- 
Iha,  que  c  mau  conduetor  e  detem-lhe  a  passa- 
gem. Antes  mesmo  do  sol  nascer,  a  agua  dos  algui- 
dares está  convertida  em  gelo.  Dizem,  que  para 
obter  esta  congelação  devem-se  escolher  noites 
claras  e  serenas  e  durante  as  quaescaia  mui  pou- 
co orvalho  E  preciso  lambem  observar  que  a  pa- 
lha não  esteja  húmida,  porcjue  o  vapor  (|ue  (Telia 
sairia  ese  elevaria  ao  de  cima  dos  alguidares,  sus- 
penderia a  dissipação  do  calor  da  agua,  ou  jjor  ou- 
tros termos,  a  sua  radiação. 


(;ALERL\  NACIONAL  DE  LONDRES 

A  ímmensa  caf/ítal  da  (Jrã-Brelanhaéa  cidade 
que  talvez  possue  maior  numero  decollecções  par- 
ticulares, de  galei-ias,  de  museus,  de  edilícíos  des- 
tinados a  aichivarem  os  prodiiclos  da  arte,  e  os 
exemj)lares  zoológicos,  cmlim  tudo  quanto  chama  a 
allen('ão,  e  atlralie  a  curiosidade  dos  viajantes. 

Os'  mais  notáveis eslal)elecímenlosd'esle  género 
são:  3/iis('a  inulcz,  ediíício  enorme,  talvez  sem  ri- 


o  panora:\ia 


MA 


vai  no^undo,  que  possuía  lamanha  quantidade  de 
objeclos  relalivos  a  sciencias  e  arles,  liltci-aluia, 
archcologia,  cIc.  que  uão  baslaram  Irinla  annosa 
uma  sociedade  de  sábios  pa:'a  organisar  o  catalo- 


go; o  Soane's  museum  destinado  exclusivamente 
para  objeclos  archeologicos,  que  alulliam  vinle  e 
quatro  salas,  o  entre  os  quaes  se  distingue  um 
celebre  savcophago  de  alabastro   encontrado  nas 


142 


O  1'ANORAÍMA 


minas  de  Tbebas;  o  museu  de  medicina;  o  museu 
de  cirurgia;  o  museu  ideológico  de  Saull;  o  mu- 
seu de  anliguidades  de  Londres,  rico  em  meda- 
lhas que  sobem  até  à  época  do  domínio  romano; 
o  museu  entomológico;  o  museu  zoológico;  o  mu- 
seu da  Academia  Real  que  possuía  cai  iões  de  Ra- 
j)liael,  telas  de  Rubens  e  da  maior  parte  dos  pin- 
tores; a  (jialeria  Vermon  que  possue  principal- 
mente quadros  inglezes,  e  linalmenle  a  Galei-ia 
nacional,  que  a  nossa  gravuia  lepresenla,  e  cujo 
edilicio  SC  dislingue  pela  sua  nobre archilectura. 

Já  vêem,  por  esíe leve  espécimen  meu,  que  não  era 
exaggerado  o  nosso  suavíssimo  poeta  João  de  Le- 
mos (juando  exclamava,  saudoso  da  sua  iialria  e 
mirando  os  esplendores  da  opulenla  cidade  in- 
gleza: 

Ânsias  serras  de  tijolo, 

Eslaliias,  praças  sem  lim, 

Retalham,  cobrem  o  solo... 

Mas  não  me  encantam  a  mim. 

Tinha  rasão  o  grande  poeta.  Fica-le  embora;  ó 
Londres  gigante,  com  a  lua  Galeria  Nacional,  os 
teus  museus,  os  lius  palácios  c  lemi)los  que... 

Na  minha  terra  uma  aldeia 
Em  noites  de  lua  cheia 
L  Ião  beila,  c  Ião  feliz! 
Amo  a  casiiilia  da  serra 
Co  a  lua  dá  minha  lerra 
Ka  terra  do  meu  paiz. 


A  BOCCA  DO  LNFEKNO 
II 

Que  s(l  Ião  Irilhanic!  (|ue  lym|)ida  allimos- 
])heia  1  Como  oníre  as  arvores gorgeiam  contentos 
os  pas>aros!  Como  a  natureza  sorri  !  E  um  lindo 
dia  de  agoslo,  que  convida  a  viver  e  amar! 

Mas  a  noite  esteve  ventosa,  eo  mar  está  crespo. 
Os  navios  que  passam  diante  de  Cascaes  vão  ao 
largo  e  parece  que  se  arreceiam  da  barra,  por  cau- 
sado vagalhão  que  alli  rebenta  sobre  os  chopos. 

Lá  se  avista  um  lindo  brigue  com  o  j)anno 
solto  ao  vento.  Como  se  cmballa  sobre  as  ondas 
revoltas!  Está  muila  gente  na  praia  observando  o 
brigue,  que  ora  se  levanta  allerosono  largo  dorso 
de  uma  vaga,  ora  parece  descer  ao  abysmo.  De- 
manda a  embocadura  do  Tejo,  j)ára,  observa,  he- 
sita e  volta  de  bordo,  obedecendo  ra|iido  c  ligeiío 
á  manobra.  O  mar  na  foz  referve  em  cachões;  es 
lá  a  maré  \n\\'à  o  a  vaga  é  immensa.  Que  procu- 
ra o  navio?  Navega  para  a  enseada  de  Cascaes. 
Aproxima-se;  pára;  ouve-seo  apito  do  ollicial  ma- 
rinheiro: o  panno  ferra-se.  Seguc-se  um  ruído 
surdo.  É  a  amarra  que  passa  veloz  pelos  escouvens; 
é  o  brigue  (pie  dá  fundo! 

A  população  de  Cascaes  corre  quasi  Ioda  á  praia 
para  reconhecer  o  navio.  De  bordo  larga  uma 
lancha,  bnada  a  oito  remos,  e  trazendo,  sentado 
a  ré,  um  ollicial  de  miiiinha. 

O  sol  retlectellie  nos  galões  de  ouro  da  farda  e 
do  bonel.  Na  |)r<jia,  alguns  corações  /'emeiínios 
balem  de  curiosidade  e  anciã  j)or  ver  de  perlo 
o  oílicial  que  traz  os  cordões  do  leme,   guiando 


tão  bem  a  frágil  embarcação  sobre  as  ondEjA  furio- 
sas, sereno  e  intrépido,  como  valente  marinheiro 
que  é. 

A  lancha  abicou,  e  um  gentil  moço  de  2i  a  2o 
annos  saltou  em  lerra.  Era  segundo  Icnenle.  Na 
physionomia  linha  esses  traços  severos  que  reve- 
lam energia  e  denodo.  A  cabeça  era  de  um  bello 
perlil  grego.  Tinha  o  roslo  loslado  pelo  queimor 
do  sol  imenso  dos  Iropicos. 

Os  olhos  eram  negros  e  grandes;  a  barba  prela 
e  bem  talhada.  Por  baixo  do  bigode  alvejavam-lhe 
magnilicos  dentes,  cuja  brancura  faria  inveja  ao 
mais  i)uro  marlim  da  Elhiopia. 

Entre  as  diversas  famílias  que  n'aquella  época 
se  achavam  cm  Cascaes,  havia  uma  que  constava 
somente  de  Ires  pessoas,  c  cuja  descripção  vou 
rapidamente  esboçar. 

D.  Thereza  de  Brito  era  viuva  de  um  velho  fi- 
dalgo, admiiiislrador  de  vinculo,  c  morto  havia 
Ires  annos.  Eicára  com  um  lilho,  que  por  direito 
de  varonia  herdara  o  morgado,  e  uma  linda  lilha 
de  21  annos,  com  quem  Deus  fora  pródigo  em 
graças.  Christina  era  o  seu  nome — Christina  Ade- 
laide, se  não  me  engano.  Havia  no  seu  roslo  uma 
suavidade  melancólica  que  encantava.  Advinhava- 
se-llie  no  olhar  languido  um  mundo  de  myslerios. 
A  boca,  da  còr  vermelha  do  cravo,  sorria  esses 
sorrisos  meigos  que  enfeitiçam.  Os  cabellos  pre- 
ciosos coiiplelavam  aquella  linda  imagem  de  mu- 
lher, que  representada  na  tela,  os  apóstolos  da 
arle  tomariam  porlicção,  por  sonho,  por  alguma 
inspirada  visão  de  Cimabué,  Rembrandl,  ou  Ra- 
fael. 

Na  fronte  de  (Uirislina  havia,  alem  da  belleza 
altraenlc  da  forma,  esses  reflexos  de  luz  superior, 
que  são  o  poder  falidico  da  fascinação,  e  (pie  pa- 
rece lerem  sido  o  segredo  dos  liiumi)hos  de  Cleó- 
patra, de  Aspasia,  c  de  lady  Ilamillon,  a  celebre 
amanlc  de  Nelson. 

A  formosura  do  roslo  juntava  Christina  a  per- 
feição esculplural  da  ligura.  Realisava  na  suavidade 
dos  contornos  e  na  harmonia  das  proporções  o 
bello  ideal  da  plaslica,  (]ue  na  antiguidade  pagã 
celebrara  o  Júpiter  de  IMiidias  e  a  Vénus  de 
Praxileles.  Tinha  d'aquelle  a  mageslade,  desla  a 
formosura.  No  porte  o  ar  de  soberania  do  rei  dos 
deuses — nas  feições  a  languida  ternura  da  amanlc 
de  Mavoíle. 

Quando  Christina  passava,  com  a  sua  ligura  de 
rainha,  nos  saraus  de  Lisboa,  lodos  a  admiravam 
como  um  grande  astro  que  não  se  podia  lixar  sem 
deslumbramento. 

I']u  gosto  de  ver  na  mulher  bella  esse  ar  de  su- 
pcriodidade,  de  soberania,  que  Ião  bem  (piadra  á 
realeza  da  formosura.  Clirislina  do  alio  da  sua 
magnilicencia  olhava  como  por  favor  para  as  tur- 
bas dos  cortesãos  que  aos  pés  lhe  moviam  Ihuri- 
bulos,  envolvendo-a  no  fumo  do  incenso.  Não 
eram  esses  Ihiiribularios  (b;  prolissão  (pie  podiam 
caplival-a.  Alma  elevadíssima,  aspirava  a  go- 
zos superiores,  (|iie  não  esses  que  lisonjeiam  a 
vaidade  sem  darem  ao  cora(;ão  verdaileiros 
prazeres.  Sonhava  com  o  omor,   mas  na  paz,  no 


o  PANORAMA 


U3 


remanso,  na  solidão.  Esse  que  se  manifesta,  qua- 
si  sempre  falso,  no  lumiilto  dos  l)ailes;  que  se  ex- 
prime com  phrasesparvuinlias  e  vulgares,  aquefal- 
lam  inspiração  eenlliusiasmo;  que  se  declara  calçan- 
do as  luvas,  endireilando  os  coliarinhos,  ou  compon- 
doas  pulseiras,  esse,  repugnava-lhe.  Coração  forma- 
para  comprehejj^er  ludo  que  é  grande  e  superior, 
não  poderia  nunca  impressionar-se  pelos  sentimen- 
los  vulgares  e  melhodicos  dos  pretendentes  de  salão. 
Chrislina  contava  por  este  tempo  24  annos. 
Alguns  pães  se  tinham  apresentado  a  requerer 
para  seus  lilhos  a  mão  da  donzella,  mas  elfa  re- 
geitára  lodos;  e  quando  a  morgada  um  dia  lhe 
perguntou  se  lenciunava  íicar  solteira,  Christina 
respondeu: 

— Não  sei  ainda,  mamã.  O  ([ue  posso  dizer-lhe 
é  que  só  casarei  com  o  homem  que  o  meu  cora- 
ção escolher.  Dos  que  tem  ate  hoje  pretendido  a 
minha  mão  nenhum  me  agrada.  Que  quer? 
ISão  posso  tolei'ar  estas  creatui-as  que  apenas 
sabem  fallar  dos  seus  cavallos,  e  cuja  linguagem 
ás  vezes  importuna  mais  do  (|uc  deleita  as  mu- 
lheres, dotadas  quasi  sempre  deinstinctos  delica- 
dos, que  elles  não  comprehendem...  Aquelle  que 
quizer  ser  meu  marido  ha  de  amar-mc  de  outi'0 
modo. 

— Ora  ahi  está  o  que  se  chama  ser  creança. 
Ci'eio  que  o  amor  foi  sempre  a  mesma  coisa  em 
lodos  as  épocas. 

— É  verdade,  mas  em   todas  as  épocas  houve 
tolos,  e  houve  homens  superiores.    Se   soubesse 
.  como  os  tolos  me  enfastiam! 

D.  Therezanão  comprehendeu  bem  oque  Chris- 
tina quei'ia  dizer.  Fez  um  trejeito,  e  rctirou-se 
dando  graças  a  Deus  por  ter  uma  lilha  com  tanto 
juizo. 

É  que  á  morgada  faltava  o  que  Christina  possuia 
em  alto  grau — irihlligencia  e  imaginação.  Se  é 
bom  ou  mau  dote,  não  tento  eu  discutir.  Para  a  mu- 
lher ci"eio  que  é  sempie  presagio  de  desventura. 

As  imaginações  vivas  são  ricas  de  visões.  Chris- 
tina leve  muitas,  visões  cândidas,  que  povoam  a 
mente  dos  adolescentes  e  ari-astam  muitas  almas 
para  precipicios,  em  busca  da  felicidade  que  o 
mundo  não  pode  realisar. 

As  vezes  são  eslns  as  imaginações  que  a  socie- 
dade chama  desregradas.  Christina  pertencia  por- 
ventura a  ellas — oh!  mas  bemdita  a  mulher  que 
se  deixa  viver  nas  regiões  doiradas  da  phantasia, 
e  foge  de  cair  no  charco  das  vilezas  e  das  aber- 
rações moraes,  que  na  linguagem  do  mundo  se 
chamam  conveniências  da  razão,  e  similhantes. 

A.  u'Oliveiua  Pjííes 
{Conliima.) 

O  QUE  ACONTECEUIA  SE  O  MOVIMENTO 
DA  TERRA  GESSASSE  SUJilTAMENTE 

Supertluo  seria  dizer  que  procurando  nós  res- 
ponder a  esta  curiosa  questão,  lhe  não  damos  por 
isso  mais  importância  do  que  cila  deve  ler.  Que 
o  nosso  globo  cesse  um  dia  subitamente  "de 
girar,  é  o  que  nós  podemos  sem  receio  declarar 
impossível,   e   isto  com   toda  a   aucloridadc  que 


pertence  aos  princípios  da  mechanica  celeste.  Da 
parte  do  nosso  mundo  não  lemos  a  esperar,— a 
receiar— essa  phantasia.  A  receiar,  porque,  com  ef- 
feito,  eis  as  consequências  inevitáveis  que  resul- 
taiiam  de  semelhante  phenomeno. 

Convém,  porém,  antes  de  tudo,  dizer  que  a  ve- 
locidade de  um  corpo  situado  na  superíicie  da 
terra  compõe-se  de  dois  elementos:  movimento  de 
rotação  diurna  do  globo  á  roda  do  seu  eixo  c mo- 
vimento de  translação  á  roda  do  sol.  Em  virtude 
do  primeiro,  os  corpos  collocados  no  equador  ter- 
restre percorrem  417  léguas  por  serjumlo.  Esla 
velocidade  diminue  do  equador',  aonde  ella  é  má- 
xima, {)ara  os  poios,  aonde  é  nenhuma,  porquan- 
to os  corpos  teeni  natiiialmenie  tanto  menos  ca- 
minho a  percorrer  quanto  menor  for  o  circulo  de 
latitude.  Pelo  que  diz  respeito  ao  segundo  movi- 
mento da  terra,  da  sua  revolução  no  espaço  á  roda 
do  sol,  lodos  os  seus  pontos  indistiuctamente  per- 
correm il)()  léguas  por  minuto,  ou  7  7,0  léguas  por  ^í*- 
fjuudo.  Poder-se-ha  fazer  uma  idea  d'esta  veloci- 
dade se  se  rellectir  que  um  comboio  expresso, 
expedido  com  Ioda  a  força,  não  anda  mais  de  IG 
melros  por  segundo,  e  que  uma  bala  de  24  ape- 
nas percorre  na  mesma  unidade  de  tempo  390 
metros. 

Todos  os  pontos,  que  pertencem  a  um  systema 
material  em  movimento,  sendo  animados  do  mes- 
mo movimento,  se,  por  uma  suspenção  repentina 
este  systema  cáe  subitamente  em  repouso,  os  pon- 
tos que  se  podem  descollocar  na  sua  superíicie 
continuarão,  em  consequência  da  velocidade  ad- 
quirida, a  mover-se  na  direcção  primitiva.  É  em 
virtude  d 'este  principio  que,  quando  succede  um 
cavallo  atrellado  a  um  carro  cair  de  improviso  na 
sua  carreira,  os  indivíduos  que  elle  conduz,  sal- 
tam desastradamente  por  cima  da  cabeça  do  pc- 
gaso;  é  ainda  em  virtude  d'estc  mesmo  principio 
que  e  preciso  tomar  certas  precauções  quem  des- 
ce de  uma  carruagem  em  movimento,  a  íim  de, 
pousando  subitamente  no  solo  immovel  em  quanto 
que  o  corpo  está  ainda  animado  da  velocidade 
adquirida,  não  ir  beijar  os  rastos  do  vehiculo. 

A  terra  é,  como  lemos  visto,  uma  carruagem 
mais  rápida  do  que  os  omnibus,  caleches,  wagons. 
Se  parasse  de  repente,  escusado  é  dizer  que,  todas 
as  precauções,  para  evitar  uma  morte  instantânea, 
seriam  inúteis.  Todos  os  objectos  que  não  estão 
implantados  e  fixos  no  solo,  que  só  adherem  á 
superíicie  pela  lei  da  gravidade,  seriam  immedia- 
tamente  e  de  um  só  jacto  lançados  no  espaço,  com 
uma  velocidade  inicial  de  8  léguas  por  segundo, 
rapidez  de  que  somos  dotados  presentemente.  Os 
jiasseantes  Iranquillos,  os  trabalhadores  e  os  in- 
dividuas em  repouso,  os  animaes  domésticos  e  os 
(pie  vivem  nas  florestas,  os  pássaros,  as  nossas 
carroagens,  machinas,  em  fim,  tudo  isto  se  preci- 
pitaria de  um  salto  na  direção  do  movimento  da 
lerra. 

Quanto  ao  oceano,  que  cobre  os  dois  terços  do 
globo,  a  sua  massa  li(iuida,  beijando  as  praias,  sub- 
mergiria, em  um  abrir  e  fechar  de  olhos,  as  ilhas 
c  conlinentes,  coroando  o  edilicio  da  morte;  de- 


444 


O  PANORAMA 


pressa  galgaria  as  mais  elevadas  montanhas  e  faria 
passar  o  nosso  globo  por  uma  transformação  de 
superfície  como  "nenhuma  das  antigas  revoluções, 
que  o  teem  atormentado. 

Os  theoricos  que  se  (eem  entretido  em  procu- 
rar no  diluvio  bíblico  uma  causa  natural  não  teem 
deixado  por  vezes  de  por  cm  scena  essa  causa 
poderosa  c  de  afllrmar  que  o  choque  de  ura  co- 
meta podia  facilmente  operara  suspensão  de  mo- 
vimento e  as  suas  pesadas  consequências.  Hoje 
sabemos  que  um  cometa  poderia  passar  sobre  a 
terra  sem  que  nós  déssemos  por  tal. 

Outro  fado  muito  curioso,  que  se  seguiria  ao 
anniquilamcnto  da  velocidade  da  terra,  è  este.  A 
força  centrípeta,  que  attrahe  os  planetas  para  o 
sol*  deixando  de  ser  contrabalançada  pela  força 
centrífuga,  a  terra  cairia  em  linha  recta  no  sol. 
Sc  houvesse  ainda  sobre  o  globo  outros  seres  alem 
dospeixes poderiam  então  ver  o  astro  brilhante,  que 
Ião  pequeno  nos  parece,  crescer,  crescer,  cres- 
cer g-ganleamenle.  A  terra  chegaria  láCí  dias  de- 
pois da  sua  sahida  do  lugar  que  occupava  e  de- 
sappareceria  na  superfície  do  planeta  ardente,  como 
um  aerólílho  sobre  aquclla. 

O  nosso  globo  não  é  uma  excepção  á  regra  ge- 
ral; a  mesma  sorte  estaria  reservada  aos  pulios 
planeta^,'  se  se  achassem  no  mesmo  caso.  Assim, 
se  a  velocidade  de  Mercúrio,  de  Yenus,  de  Júpi- 
ter, ou  de  Saturno  fosse  anni(|iiiia(la,  estos  planetas 
iriam  também,  immedialamente,  dar  um  passeio 
até  ao  sol,  o  primeiro  em  lo  dias,  o  segundo  em 
40,  o  terceiro  em  767,  o  ultimo  em  1900. 

Mas,  eis-aqui  uma  cousa  ainda  mais  curiosa. 

Está  reconhecido  que  o  movimenlp  não  pode 
deixar  de  existir,  assim  como  átomo  algum  de 
matéria;  pode  combinar-se,  dividir-se,  perder-se 
em  uma  certa  somma  de  forças  parciaes,  mas 
nunca  anníquilai-se.  Pode,  e  c  este  o  ponto  im- 
portante, transformar-seem  calor;  o  transforma-se 
enectivamento  todas  as  vezes  que  paiccc  perdcr-sc 
como  força  motriz.  Assim,  dando-se  repetidos  gol- 
pes sobre  um  prego  cravado  e  por  consequência 
iinraovel;  o  movimento  do  motor,  não  se  commu- 
nicando  ao  prego,  transforma-se  em  calor:  isto 
facilmente  se  percebe  pelo  lado.  Sem  multiplicar 
exemjjlos,  lodos  teem  aílirmado  por  experiên- 
cias esta  transformação  nicchaníca  do  movimento 
cm  calor. 

Ora,  se  por  uma  causa  qualquer  parasse  instan- 
taneamente o  movimento  miiltiplo  que  anima  o 
nosso  globo,  este  movimento  soIlVeiia  a  transfor- 
mação, de  que  acabamos  de  fallar.  A  tei-ra  aque- 
ceria de  rej)cnte; — c  quer  saber,  leitor,  em  (\[\(\ 
grau? — A  quantidade  de  calor  gerado  pela  sus- 
pensão, equivalendo  a  um  choque  colossal,  basta- 
ria não  somente  para  fundir  toda  a  terra,  mas 
ainda  para  reduzir  a  sua  maior  parte  a  vapor. 

i'.sla  consequência  domina  todas  as  precedentes 
c  absorve-as.  A  terra  deixaria  de  ser  um  planeta; 
a  sua  massa,  o  seu  volume,  a  sua  densidade,  in- 
leiramenle  mudados,  não  mais  perniitliiiam  as 
applicações  fpie  acima  assignalamos,  sobre  o  mo- 
vimento desordenado  dos  corpos  na  sua  superílcie, 


a  eílusão  dos  mares,  e  a  queda  no  sol;  lodos  es- 
tes elementos  dados  pela  mechaníca  seriam  mo- 
dificados segundo  o  modo  mais  ou  menos  rápido 
com  que  se  tivesse  operado  o  phenomeno. 

Se  a  suspensão  em  vez  d'instanlanea  fosse 
um  afrouxamento  ju-ogressivo,  cujo  complemento 
demandasse  da  duiação  de  algunsjiiinutos,  a  terra 
poderia  lornar-se  tão  que.ile  que^todos  os  seres 
vivos  que  existem  na  sua  superficie  perecessem 
subitamenle. 

Terminamos  estas  reflexões  como  as  começa- 
mos, dizendo  que  a  questão  é  mais  curiosa  (jue 
importante,  e  que,  com  toda  a  certeza,  podemos 
dormir  tranquíllos,  c  sem  os  mais  leves  indícios 
dos  temores  imaginários  que  ella  momentanea- 
mente poderia  fazer  nascer  em  nosso  espirito. 


MONUMENTO  ERIGIDO  À  MEMORIA  DE 
UENÉ  CAILLÉ 

A  colónia  fi-anccza  do  Senegal,  quiz,  segundo 
consta,  prestar  um  testemunho  da  sua  sympalhia 
á  memoria  de  Renè  Caillé,  ao  qual  se  devem  as 
príméíi'as  noções  positivas  relativas  á  Africa  cen- 
tral, mandando  levantar  em  Deboké,  assente  no 
rio  Nuncz,  um  poípieno  monumenlo  em  cuja  cons- 
tiucção  a  admínislração  da  colónia  gastou  íOOO 
flancos,  (OiOOOO  réis  prox.) 

A  inseri j)ção  gravada  cm  uma  das  faces  é  da 
forma  seguinte: 

«Este  monumento  foi  levantado  á  memoria  do 
illustre  viajante  Renc  Caillé.  Tendo  partido  d'esle 
logar  em  29  de  abril  de  1827,  chegou  em  7  do 
setembro  de  1829  a  Tanger,  havendo  passado  por 
TimLuktu  » 

A.  May 

SONETO 

Os  poda?,  que  o  são  de  raça  fina, 
Eiilonderain  (iiic  c  ler  jírande  (inura 
FJcvar  o  mhlimc  a  tal  allura 
Que  o  mundo  não  perceba  patavina. 

E  sua  linguagem  tão  divina, 
Que  llic  não  mellc  dciile  acrealura; 
K  cuida,  ao  escutar  coisa  tão  pura, 
Que  ella  aos  deuses.do  olijmpo se  úcslindi: 

Cliama-sc  a  islo  f/onio  transcendente, 
Que,  Iradnzindo  idéíts  sinf/ularcs, 
ISão  lhe  é  dado  lallar  linguadc  gente: 

Estes  são  da  poesia  os  luminares; 
Deixam  o  mundo,  c  devem,  certamente, 
INo  1'arnaso  habitar  quintos  andares. 

J.  I.  d'Akaujo. 
Não  ha  cousa  que  traga  mais  certo  o  som  no  ás 
moças,  que  a  dòr  grande:  c  ás  velhas,  tira-lho. 

B.UlBElItO 


Bemavenlurado  se  pode  chamar  nesta  vida  quem 
lem  dòr  que  se  suporte;  pois  segundo  parece  não 
se  pode  viver  sem  ella,  assim,  ou  assim. 

B.    UlDI-IKO 


Ty|).  Franco-Porlguozi,  Rua  do  Tliesouro  Velho,  G. 


19 


o  PANORAMA 


^45 


O  LEOPARDO 

A  paníhera  e  o  leopardo  são  duas  espécies  que 
pertencem  á  rara /'í7/;ía  e  que  se  confundem  muitas 
vezes  uma  com  a  oulra.  O  leopardo  (Felis  leopar- 
dus,  do  lai.  leo  leão,  pardns  panlheia)  habita  na 


Africa  e  na  Ásia;  a  panthera  [Felis  par  dm)  sós^ 
enconlia  na  índia  e  nas  ilhas  da  Sonda,  Ó  pri- 
meiro c  maior  que  a  segunda  e  allinge  por  vezes 
1  melro  30  de  comprimento,  não  comprehendida 
a  cauda.  A  côr  do  pello  do  leopardo  é  de  um  lou- 
ro claro  com  6  a  10  fileiras  de  manchas  pretas 


o  Leopardo 


em  forma  do  roseta,  islo  é  formadas  do  Ires  a 
quati'o  laivos  simples,  sobre  cada  flanco.  A  da 
panthera  é  de  um  amarello  cai^reiíado,  com  um 
grande  numero  de  manchas  igualmente  em  forma 
de  roseta,  porém  mais  próximas  umas  das  outras. 
Estes  dois  animaes  vivem  nas  lloreslas,  e  sobem, 
dizem,  ás  arvores  cora  extrema  agilidade  perse- 
guindo  os  macacos,  aos  quaes  fazem  uma  caça 
aclivissima.  Os  seus  costumes  são  muilissimo  se- 
melhantes aos  dos  outros  animaes  felinos  de  gran- 
de corpo. 

Existe  na  ilha  de  Java  uma  espécie  d'esla  mes- 
ma familia,  que  se  chama  Melas  o  Arimaii  [Felis 
melas,)  poi'ém  mais  comniummenle  Paníhera  ne- 
gra, que  excede  algumas  vezes,  as  espécies  de 
que  falíamos,  em  tamanho-  mas,  ordinariamente 
tora  o  corpo  e  a  forma  geral  da  jjanthera,  e  a 
côr  do  pello  negra  deixa  ainda  distinguir  signaes, 
jomo  os  d'esla,  de  um  preto  mais  carregado.  Mui- 
tos andores  olham  este  animal  como  uma  espécie 
jislincta,  e  outros  consideram-n'o  sim|)lesmente 
jorao  uma  variedade   da  panthera  vulgar.    Seja 


como  fòr,  é  impossível  existir  um  animal  mais 
cruel,  e  de  aspecto  mais  feroz.  Durante  o  dia,  não 
sae  do  covil;  mas,  logo  que  a  noite  cobre  com  o 
seu  negro  manto  a  terra,  torna-se  um  objecto  de 
teiror  para  lodos  os  entes  vivos. 

O  leopardo  tem  logar  entre  as  figuras  heráldi- 
cas.  

O  TABACO 

(Conclusão ) 

A  maneira  de  fumar  o  tabaco  está  também  lon- 
ge de  ser  indiííerenle. 

Os  cachimbos  tuix'osouhollandezes  leema  vanta- 
gem de  despojar  o  fumo  dos  seus  óleos  empyreuma- 
ticoscde  lorna!-o  menos  prejudicial. Ocharuto,  pelo 
contrario,  colloca  os  fumadores  na  posição  de  mascar 
eenguliro  sueco  do  tabaco,  oque  dá  lugar  a  elleilos 
de  irritação  local,  assim  como  a  elleilos  de  absorpção 
muito  incommodos.  Os  fumadores  lêem  os  beiços  e 
as  gengivas  inllamniadas,  os  dentes  amarellos,  fuli- 
ginosos e  com  o  esmalte  alterado.  Emlim,oabuso  do 
tabaco  pôde  gerar  o  cancro  nos  lábios,  doença 


41) 


O  PANORAMA 


tenivel,  que  do  anno  para  aiino  se  tem  tornado 
mais  frequente.  Segundo  uma  estatística  devida  a 
M.  Leroy.  oeaiicrodos  lábios  ligura apenas';,, en- 
tre a  nuiíher,  em  quanto  que  no  liomem  eleva-sea 
mais  de '/.,,;.  O  cancro  da  lingua  poderia,  como  o  dos 
lábios,  merecer  o  nome  de  cancro  dos  fumadores ;'à 
sua  causa  é  quasi  sempre  o  abuso  do  cacliimbo,  espe- 
cialmente do  cacliimbo  curto,  dito  rjuciriia-f/uclas, 
cujo  fumo  enira  quente  e  agro  na  bocca.  Também, 
por  uma  estatística  de  M.  Jíoi-gerou,  o  cancro  do 
estômago  c  mais  freípiente  no  Immem  do  que  na 
mulher,  e  a  causa  devc-se  procurar  nos  funes- 
tos eíVtítos  do  tabaco  de  mascar.  O  celebre  ptiilo- 
soplio  fiancez  .Mallebranchc  morreu  d'esta  terrível 
moléstia:  tínha-se  habituado  a  mascar  tabaco. 

Passemos  agoi'a  a  fallar  dos  elVeitos  do  fumo 
do  tabaco,  o  qual,  segundo  M.  Melsens,  contem, 
pouco  mais  ou  menos,  7  por  cento  de  nicotina. 

É  sabido  que  niim  espaço  cheio  de  fumo  de 
tabaco,  não  se  podem  reunii-  muitas  pessoas  cde- 
morarem-se  alli  algum  tempo  sem  experimentarem 
dores  de  cabeça,  náuseas  e  mesmo  syncopes.  Eis 
um  caso  dos  mais  frisantes.  Um  mancebo  de  dc- 
zesele  annos  ;linha  ido  ^visitar  seu  tio,  que  oc- 
cupava,  em  uma  casa  de  campo,  um  quailo  pe- 
queno e  pouco  arejado.  O  lio  entrou  próximo  das 
Ave-Marias  em  companhia  de  dois  amigos  e  todos 
Ires  estiveram  fumando  ate  á  meia  noite.  Logo  que 
os  amigos  se  retiraram,  o  lio  quiz  deitar-sc  ao  pé 
do  sobrinho;  mas,  qual  não  foi  a  sua  admiração, 
quando,  ao  entrar  na  cama,  encontrou  o  mancebo 
inleiramente  fiio.  Pediu  soccoi'ro,  mas  já  era  tarde. 
O  joven  linha  succumbido  a  uma  congestão  cere- 
bral determinada  pela  asphyxía. 

E  nas  fabricas  do  tabaco,  "especialmenie,  que  os 
peritos  podem  fazer  as  suas  observações.  A  maior 
parle  dos  operários  são  obrigados  a  suspenderem, 
de  vez  cm  (]uando,os  seus  trabalhos,  por  causadas 
dores  de  cabeça,  náuseas,  dyspepsía,  etc.  Ainda 
não  ha  muito  tempo  que  um  infeliz,  que  linha 
adormecido  na  casa  da  fermentação,  morreu  as- 
phyxiado.  Os  oj)erai'ios  acostumados  a  esta  alh- 
mosphera,  conservam  sempi-e  um  ar  de  soílrimenlo, 
com  certos  caracteres physicos  de  velhice pi'ematura; 
lêem  má  còi-,  soíírem  da  cabeça  e  do  cslomago, 
emmagrecem,  icem  tremores,  ele. 

A  maior  parle  d'esfes  symplomas,  com  especia- 
lidade as  dores  de  cabeça  e  digestões  diíliceis, 
observam-se  lambem  nos  fumadoies  de  jjrolissão. 
Experimentam  habitualmente  uma  s<\le  mais  ou  mo- 
nos viva,  alternativas  de  prisão  de  ventre  c  de 
diarrhca.  A  estes  symptomas  juntam-seo  cmbota- 
menlo  dos  sentidos, à  denmra  da  concepção,  o  enfra- 
quecimento da  memoria,  a  falta  de  preci'são  nos  mo- 
vimentos museu  la  r<>s,  o  tiemor  dos  mend)ros;  n'uma 
palavra,  tudo  o  que  denota  um  estado  mórbido  dos 
centros  nervosos.  Os  órgãos  do  ouvi(h)  c  da  vista 
sonVem  lambem  com  o  abuso  do  tabaco,  como  o 
provaram  M.  Bonnafont,  Sichel,  líutchinson  c 
oulros  médicos. 

^  Segundo  as  avei'iguações  expiírimentaes  de  M. 
Claudc  Bernaid  e  do  doutor  Decaisne,  o  tabaco 
exerce  principalmonie  os  seus  elTeilos  sobre  os 


centros  nervosos,  com  especialidade  sobre  a  fibra 
motriz.  Ultimamente  citou-se  o  exemplo  de  um  es- 
tudante ainda  novo,  que  linha  chegado  a  um  es- 
tado de  idiotismo  epiléptico,  resultado  da  embria- 
guez permanente  de  tabaco.  Sir  Charles  Pastings 
observou  um  caso  de  epilepsia  muito  grave  cm 
um  menino  de  doze  annos,  que  fumava  em  excesso 
havia  dois  annos,  c  que  se  achou  curado  logo  que 
conseguiu  abandonar  este  funesto  habito.  M.  Mi- 
chéa,  encontrou  muilos  exemplos  de  alaxia  loco- 
motiiz  entre  os  fumadoiTs  incorrigíveis.  O  Doutor 
llilVelsheim  contou  na í/;??(íoJM//ca,  um  caso  úede- 
lirinm  Ircmens  sem  delírio,  devido  ao  abuso  do 
cachimbo,  e  que  desappareceu  com  a  causa  do 
mal. 

iMas  o  que  sobre  tudo  é  muito  grave,  é  a  parle 
evidente  que  o  tabaco  toma  no  desenvolvimento 
das  doenças  menlaes,  e  especialmente  d'esta  for- 
ma de  alienaftio  mental,  que  se  designa  sob  o  no- 
me de  gei-al  e  progi'essiva.  Dois  médicos  belgas, 
Gaislan  e  Ilagon,  foram  os  primeiros  a  mostrar 
a  inliuencia  do  tabaco  o  das  bebidas  alcoólicas 
sobre  o  desenvolvimento  quasi  inaudito  d'estas 
doenças.  Por  uma  estatística  do  doutor  Rubio,  ve- 
se  que  o  numero  relativo  de  alienados  é  muito  mais 
considerável  nos  paízes  do  Norte,  onde  o  consummo 
das  bebidas  alcoólicas  eo  do  tabaco  é  muito  maior, 
que  nos  paizes  meridionaes,  muito  sóbrios  e  pou- 
co fumadores.  Segundo  M.  Moreau,  de  Tours,  não 
se  encontra  um  só  caso  deparalysía  geral  na  Ásia 
Menor,  onde  se  não  abusa  das  bebidas,  e  onde  se 
fuma  um  tabaco  quasi  isento  de  nicotina.  Pelo 
conlraiio,  as  doenças  menlaes  mullíplicam-se  de 
uma  maneira  espantosa  na  Europa,  á  meditla  que 
o  consummo  do  tabaco    augmcnta. 

Já  se  viu  que  de  1830  a  18G2,  o  rendimento  do 
tabaco,  ao  thesouro  de  França,  elevou-se  de  30  a 
200  milhões  de  francos.  Oia,  durante  o  mesmo 
peiiodo,  o  numei'odos  alienados  elevou-se,  alli,  de 
8000  a  iiOOO.  Eslas  cifras  não  comprehendem, 
além  d'isso,  senão  os  alienados  sequestrados;  porque 
se  se  Ihé  ajuntasse  a  dos  (|ue  são  tratados  cm  seus 
domicílios,  chegaria  provavelmente  a  (iOOOOl 

Era  suFiima,  contando  as  outras  doenças  dos 
centros  nervosos,  que  testemunham  uma  etio- 
logia communi  e  que  não  figuram  nas  eslaliscas, 
seria  preciso  escrever — 100:000 — para  mos-trar 
o  numero  dos  indivíduos  que,  em  França  somen- 
te, sotírem  os  elTeilos  tóxicos  do  fumo  do  tabaco. 

M.  Jolly  pi'ocurou  nosasylos  públicos  e  particula- 
res documentos  j)ropríos  para  esclarecer  a  ques- 
tão de  que  estamos  ti-alando,  e  assim  poude  con- 
vencer-se  de  que  nos  homens  é  sempre  a  parai}/' 
sia  nnisrnfar  ou  nicolica  íjue  domina,  a  ponto  de 
constituir  ella  só  por  si  o  excedente  da  cifra  nor- 
mal dos  alienados,  ([uando  as  outras  formas  dei 
alienação  mental  soIlrem  apenas  fracas  variações  [j 
de  ^numero.   Nos  asylos  das   mulheres  alienadas,  |!| 
pelo  conli-ario,  não  se  encontram  senão  as  formas 
antigas  e  poi-  assim  dizer  clássicas  da  loucura,  c 
as  paralysias  geraes  raras  vezes  apparecem. 

Poderão  objectar  que  ludo  islo  não  passa  do 
simples  coincidências.  Mas  quando  as  coinciden 


i 


U  l»ANOKAMA 


47 


cias  se  mui  li  plica  m,  equivalem  a  uQia  demonslra- 
ciio.  Vemos  a  principio  que  a  paralysia  geral  a- 
ítica  de  preferencia  os  indivíduos  que  fazem  uso 
de  labaco  mais  ou  menos  saUii-ado  de  nicotina. 
Os  mililarcs,  os  marinheiros  sobre  ludo,  que  ex- 
cedem o  resto  da  população  no  uso  do  ca- 
chimbo e  do  charuto,  liguram  sempie  em  pilmei- 
j-a  linha  na  cifra  dos  alienados  parah  ticos;  pelo 
contrario,  as  mulheies  são  quasi  isentas  d'esla 
doença.  As  populações  que  não  fumam,  ou  que  fu- 
mam um  labaco  sem  nicotina  ou  outras  jdantas,  laes 
como  lúpulo, chá,  ele.  gosam  da  mesma  immuni- 
dade. 

Objeclou  ainda  M.  Joilyqueo  abuso  das  bebidas 
alcoólicas  associa-se  muito  a  miude  ao  abuso  do 
labaco,  para  que  se  ])ossain  sepai^ai-  os  elíeitos 
d'eslas  duas  causas.  Sem  negar  os  elíeitos  perni- 
ciosos do  absinlho,  da  aguai-denie  e  de  ouli^as  be- 
bidas alcoólicas,  W.  Joily  crè  lei'  demonstrado  que 
o  abuso  do  labaco  deve  ser  considerado  como  sede 
principal  das  causas  da  paralysia  geral  dos  aliena- 
dos, e  eisa(|ui  a  razão:  i)l.  .lolly  viu  (e  outros  mé- 
dicos lêem  já  confirmado  esta  observação)  paraly- 
licos  bebendo  apenas  agua,  mas  fumando  desme- 
didamente. M.  Grisolle  observou  um  doente  que, 
muito  sóbrio  nas  bebidas,  fumava  uma  parte  do  dia 
e  da  noilee  que  tinha  caido  em  um  estado  quasi  de 
demência  paralylica.  Achou-se  pronq)tamenle  cura- 
do logo  que,  avisado  da  causa  da  sua  doença,  renun- 
ciou o  labaco.  O  doutor  Maillot,  presidente  do  con- 
selho de  saúde  militar,  aíTirmou  que  entre  o  gian- 
(le  numero  de  paralyticos,  que  se  oITerece  annual- 
menlc  á  inspecção,  encontram-se  muitos  que  se 
distinguem  j)ela  sua  sobriedade  no  que  diz  respeito 
ás  bebidas  alcoólicas,  mas  que  abusam  do  cachim- 
bo e  do  charuto.  Emlim,  em  certas  províncias  da 
França,  Saíntonge,  Limousin,  Bretanha,  aonde  se 
fuma  muito  pouco,  mas  é'grande  o  consummo  da 
aguardenle,  a  paralysia  geial  é  quasi  desconhe- 
cida. 

Este  concurso  de  fados  e  lestemunhos  é  mais 
que  suflicíenle  para  provar  que  é,  especialmente, 
ao  abuso  do  labaco,  que  se  deve  atlribuir  a  causa 
essencial  da  paralysia  geral,  doença  que  ligura  hoje 
cm  França  por  dois  terços  na  cifra  tolal  dos  alie- 
nados. 

Um  lai  fado  não  pôde  deixar  de  ler  influencia 
iio  movimento  da  j)opulação.  Elleclivamente,  as 
eslalislicas  provam  que  a  população  em  vez  de  au- 
gmenlar  lem  diminuído. 

Antes  de  18íí,  o  excesso  annual  dos  nas- 
cimentos sobre  os  óbitos  era  de  liJOOOO  almas. 
Km  18Í7,  nolou-se,  pela  primeira  vez,  um  exce- 
dente na  mortalidade  de  107000  sobre  a  cifra  dos 
nascimentos.  Em  IHoi,  coníirmou-seumexcedenle 
de  ()l>000  óbitos;  o  que,  sommado  com  a  cifra 
loOOOO,  (pie  tanto  foi  o  de  ISoS,  dá  uma  perda 
de  211)000  almasem  dois  annos.  l']m  vão  se  lem  i)ro- 
curado  explicar  estes  Irísles  resultados  pela  carestia 
dos  víveres,  pelas  guerras,  epidemias,  causas  Io- 
das eslas  que,  geralmente,  produzem  fracas  oscil- 
lações  no  movimento  da  população;  c  não  se 
lem  allendido  ao  numero  crescente  dos  alienados 


e  |)araplegicos,  com  os  quaes  senão  pôde  contar 
para  a  roproducção  da  espécie.  Além  disso  está 
provado  que  o  labaco  actua  como  um  anaphrodisia- 
co,  e  M.  Légalas  citou  ultimamente  um  exemplo 
frisanle.  O  abuso,  pois,  d'esla  planta  prejudica 
não  sómçjpte  as  forças  musculares  e  intellecluaes, 
mas  ainda  a  conservação  da  espécie. 

O  exame  dos  mappas  de  mortalidade  n'estes  id- 
limos  vinte  annos,  inostra  também  (jue,  de  Irinla 
a  cincoenia  annos,  os,  óbitos  são  muito  mais  nu- 
merosos nos  homens  do  que  nas  mulheres;  de  sorle 
que  o  numero  {Fesías  que,  anles  d'esla  época, 
era  inferior  ao  (Fatjuelles,  hoje  é  supeiíor.  Este  re- 
sulíado,  decididamente,  não  pôde  conli-ibuir  para 
o  augmenlo  da  população.  Frocurando  a  causa 
(Tesse  vácuo  ímmensoque  se  opéi^anas  lileirasdos 
homens  na  é|)()ca  mais  llorescente  da  sua  vida,  a 
estatística  da  mortalidade  diz-nos  que  o  maior  nu- 
mero d'eslcs  óbitos  é  devido  ás  doenças  dos  cen- 
tros nervosos,  ás  dillerentes  formas  de  doenças 
menlaes  e  de  |)aralysias.  Ora,  como  lemos  de- 
monstrado que  o  abuso  do  labaco  vem  em  pii- 
meíio  lugar  entre  as  causas  d'estas  alíecções,  não 
se  poderá  contestar  que  este  veneno  não  lenha  uma 
influencia  manífesla  no  nenhum  augmenlo  da  po- 
pulação, mostrado  pelas  estatísticas.  O  labaco 
viria  da  America  paia  esgotar  as  fontes  da  vida'? 

Uma  vez  que  o  mal  chegou  a  um  tal  grau  de 
gravidade,  é  tempo  de  s&  lhe  procu!'ar  remédio. 
Eis  aqui  as  dilTerentes  medidas  que  M.  Jolly  pro- 
põe: 

Em  primeiro  lugar,  substituir  no  commercio  os 
tabacos  mais  ou  menos  saturados  do  nicotina,  |)e- 
los  do  Levante,  Gi^ecia,  Arábia,  Havana,  Faraguay, 
Brazil,  quasi  isentos  d'a(|uelle  alcalóide.  Ao  mes- 
mo lempo  dar-se-ia  á  agricultura  essa  grande  por- 
ção de  terreno  que  França  está  empregando  na  a 
cultura  de  uma  jdanla  venenosa. 

Infelizmente,  não  é  provável  que  um  tal  pro- 
jecto possa  ser  realisado.  Mas  n'eslecaso,  M.  Jolly 
propõe  outra  medida,  que  consiste  em  des- 
pojar os  tabacos  indígenas  do  seu  excesso  de  ni- 
cotina. Díflicilmente  se  chegaria  ao  desejado  íim, 
mas  nada  impede  o  introduzir  bolinhas  de  algodão 
nos  tubos  dos  cachimbos  e  nas  boquilhas  [)ara 
não  poder  passar  a  nicotina.  Em  todos  os  casos  os 
chimicos  deveriam  díiígir  os  seus  esforços  para 
este  lado,  isto  é:  a  eliminação  da  nicotina;  fariam 
com  isso  um  verdadeiro  serviço  á  humanidade. 

O  que  lambem  é  necessário  é  esclarecer  o  pu- 
blico sobre  o  valor  relativo  das  diversas  espécies 
de  labaco  no  ])onlo  de  vísla  hygíenico,  e  sobre  as 
doenças  (|ue  devem  a  sua  origem  ao  abuso  de  tal 
planta.  Dever-se-hia  cmlim  proscrever  severamente 
o  labaco  cm  lodos  os  estabelecimentos  de  ínstruc-' 
ção  |)ublica,  e  prohibir  a  venda  d'esla  j)lanla  aos 
indivíduos  (jue  contassem  menos  de  dezeseis  an- 
nos de  idade.  Estas  medidas  prohibílivas  impedi- 
riam bom  numero  de  crianças  de  se  habituarem  a 
uma  cousa  Ião  funesta,  n'uma  idade  cm  (jue  não 
podem  prever  as  consequências,  e  arruinarem  o 
seu  temperamento  e  força  antes  de  lerem  acabado 
o  seu  desenvolvimento  physico. 


a.8 


o  PANORAMA 


UM  BAILE  DE  ESTRELLAS  NO 
SÉCULO  XVII 

>'o  anuo  1012,  por  occnsião  do  casamonlo  de 
Isabel  de  Inj:lalerra  com  Frederico  V,  houve  em 
Londres  íeslas  magnilicas,  (|ue  lerminaram  pela 
re|)resenlação  de  uma  esj)eeie  de  baile  ao  qual  se 
jukou  mui  acertado  dar  o  nome  de  Moralidade. 

Or|)héo  appareceu  primeiro  seguido  de  um  ca- 
mello,  de  um  tigre  e  de  um  leão,  aos  quaes  fascinava 
com  os  melodiosos  sons  da  sua  lyra.  Cousa  surpre- 
ln-nilenlel  mas  a  idea  uão  era  nova;  em  li72  já 
havia  iigurado  no  Ihealro  o  Orfco  (le  Ange  Toli- 
lien,  peça  áqual  a  Itália  iiavia  dado  o  nome  de 
Irageília,  e  que  foi  representada  diante  do  cardeal 
Erancisco  de  Gonzaga.  O  Orphéo  do  Ihealro  inglez 
eslava  ualuralmenle  submellidoao  j)oder  do  gran- 
de .luj)iter.  Oi'a,  (juando  cmsegíiiu  amansar  os 
animaes  ferozes  que  se  achavam  reunidos  á  roda 
d'clle,  um  mensageiro  divino,  Mercúrio,  veio  pc- 
dir-lhe  da  parte  do  lei  dos  deuses  oulro  mila- 
gre:  convidou-o  a  fazer  dansar  as  esli-ellas  pro- 
longado os  sons  da  sua  lyra.  Immedialamenle  as 
cslrellas  se  agitaram  nos  céos  e  dansaram  uma 
giga  niuilissimo  animada;  cavalleiros  armados  de 
lanças  negras  guiavam  csles  astros,  c  quando  dan- 
saram sullicienlemente  no  Olympo,  desceram  á 
lerra  para  divertirem  os  morlaes.  Mas,  súbito,  as 
cslrellas  femininas  desceram  do  céo  c,  depois  de 
lerem  ligurado  entre  as  nuvens,  não  desdenharam 
vir  procuiar  os  dansadores  e  executarem  com  elles 
nma  sarabanda.  Eram  as  almas  das  íieis  damas 
(jue  provavam  d'este  modo  a  sua  constância  aos 
bellos  cavalleiros  com  os  (piaes  haviam  promeUido 
unir-se.  .N'ist(i,  sem  duvida,  e  que  estava  a  mora- 
lidade. 

Allirma-se  que  esle  baile,  que  não  c  mais  ex- 
Iravaganle  que  muitos  outros^  leve  uma  fama  sur- 
prehendenle,  não  diremos  voga:  estas  peças  mis- 
turadas de  canto,  apenas  tinham  uma  represenla- 
ção  e  não  serviam  senão  para  a  solemnidade  que 
as  havia  feito  nascer. 


TASSO 

BoDKincJo   biograflco 

Torqualo  Tasso  nasceu  cm  Sorrcnlo,  ali  de 
de  março  de  loíí.  Descendente  de  uma  das  mais 
illuslres  famílias  de  Itália,  recebeu  em  Nápoles  uma 
educação  esmerada. 

pf.-  Oiiando  Carlos  V  desterrou  de  Nápoles  os  par- 
tidários do  príncipe  de  Salerno,  foi  enti'e  elles 
Bernardo  Tasso,  j)ae  de  Torqualo.  A  cslrella  fu- 
nesta, que,  não  sei  poique  mofino  sestro,  acom- 
panha sempre  os  grandes  génios  |)oelicos,  atlribuiu 
l^crnardo  Tasso  um  especiai  iiilliixo  nas  suas  des- 
venturas; e  |)ara  logo  resolveu  tolher  a  oxlraordi- 
naria  vocação  para  a  poesia  que  em  seu  lilho  se 
manifeslára  desde  a  idade  de  sele  annos,  man- 
dando-o  estudar  direito  em  Pádua. 

Mas  o  génio  reagiu;  e,  por  entre  as  agruras 
da  jiirisjHudencia,  cresceu  breve  a  ílor  da  poesia 


que— magesloso  florão — engrinaldou  depois  o  ins- 
pirado cantor  da  (íierusaleinmc  liberala. 

Logo  aos  dezesete  annos  publicou  um  poema, 
sob  o  Ululo  de  Reinaldo.  Mas  o  Reinaldo,  como 
nota  Voltaire,  não  passa  de  uma  imitação  de  A- 
chilles,  com  quanto  desperle  mais  interesse.  To-  ■ 
davia  a  estreia  do  joven  poeta  leve  um  acolhi- 
mento bastanle  lisongeiro,  que  o  animou  a  cnce- 
lar  aos  vinlc  e  dois  annos  a  Jerusalém.  i 

Tasso  procurou  um  Mecenas,  e  alcançou  o  pa-    * 
trocinio  do  duque  Afíonso  II,  sendo  bem  recebido 
na  còrle  de  í errara. 

Allirma-se  que  Torqiuito  Tasso  se  apaixonara 
proíundamente  por  D.  Leonor,  irmã  do  duque. 
Alíonso  II,  breve  foi  iniciado  nos  suavissimos  mys- 
lerios  d'aquelles  dois  corações,  e  o  poeta  começou 
a  ser  mal  tratado  na  corte. 

Sem  bens,  sem  pao  nem  paíria,  mal  visto  jxdo 
(lu(iue,  e  conhecedor  da  impossibilidade  de  reali- 
sar  as  suas  mais  intimas  aspirações.  Torqualo  Tasso 
lornou-se  extremamente  melancólico,  caindo  por 
vezes  n'um  lai  furor,  que  o  fazia  passar  por  louco. 
i)'estes  accessos  momentâneos  lançou  mão  AlVisnso 
11,  para  o  afastar  do  seu  jialacio,  encarcerandc-o 
no  hospital  de  SanfAnna,  que  era  então  o  hos[)i- 
tal  dos  doudos. 

Dejiois  dp  alguns  annos  de  prisão,  ponde  tornar 
a  ver  a  luz  do  dia,  não  para  entrar  de  novo  na 
exi)len(Uda  còrle  de  Ferrái'a,  mas  para  ir  a  Sur- 
reiílo  ])edir  a  uma  irmã  algum  allivio  para  assra 
desventuras;  porém  o  poeta  voltou  |)ara  Ferrara 
coberto  de  andrajos,  e  de  novo  foi  encarcerado! 

Ao  cabo  de  vinle  annos  de  penas  e  piivações, 
os  inimigos  de  Torqualo  Tasso  curvaram-se  dianlc 
da  auréola  do  génio,  c  o  poeta  foi  arrancado  aos 
braços  da  miséria. 

d  cantor  das  crusailas  foi  mesmo  chamado  a 
Roma  por  Clemente  VIU,  para  receber  a  coroa  de 
louro,  que  n'a(|uelle  lempo  era  uma  grande  honra. 
Porém,  adoeceu  durante  os  pre|)aralivos  da  cere- 
monia;  e,  ao  romiier  do  dia,  em  que  havia  de  ser 
coroado  no  caj)itolio,  foi  receber  da  mão  de  Deus 
a  coroa  iramarcessivel  da  gloria  eterna. 

CaNDIUO    FlGCEinEDO. 


lia  chorar  com  lagrimas,  chorar  sem  lagrimas, 
e  chorar  com  riso:  chorar  com  lagrimas  é  signal 
de  dôr  moderada;  chorar  sem  lagrimas  c  signal  de 
maior  dôr,  c  chorar  com  riso  é  signal  de  dòr  sum- 
iu a  e  excessiva. 

A  dòr  moderada  solta  as  lagrimas,  a  grande  as 
enxuga,  as  congela  e  as  seca.  Dòr,  que  pôde  sair 
pelos  olhos  não  é  grande  dor. 

1'.''  Amomo  Vii;ÍRA 


LIVERPOOL 

(íiNa  lia  r<i[n«is'a 

í],  (lo])f)is  (Ifí  i.oiidrcs,  ;i  cidade  mais  commcrcial  do 
Rciíio-Uiiido.  l''az  |)arl(!  do  condado  do  l.aiicaslor,  c  de- 
jjruça-sc  no  ospollio  críslallino  do  rio  Mcrsov,  (|iio  lom, 
no  silio  cm  (ino  a  l)anlia,  nma  lar^íiira  do  dois  Ivilomelros, 
(í  (|iio,  tros  Jviloiiiclros  mais  nl)ai\o,.sc  vni  lançar  no  mnr 
da  Irlanda.  K  uma  formosa  cidade,  conslruida  om  nmplií- 


o  PANORAMA 


449 


Ihealro  não  poisada  em  collinas  Íngremes  como  a  Liver- 
pool nôrliigueza,  a  cidade  do  Porto,  mas  espraiada  por- 
um  plano  suavemente  inclinado.  Cinge-a  uma  formosa  laxa 
do  lindas  casas  j:le  campo  que  matizam  os  prados  relvo- 
sos  em  que  ja  se  presente  a  viçosíssima  verdura  da  Ir- 
landa que  lhe  fica  fronteira.  _  ,•  „. 
Conta  esta  cidade  trezentos  mil  habdanies,  e  podíamos 
até  da.r-lhe  quatrocentos  mil  se  raellessemos  n'esle  numcio 


a  população  dos  arrabaldes,  e  os  marinheiros  do  seu  por- 
to. As  principaes  occupações  d'esta  população  numerosa 
são  o  coDimercio  c  a  navegação;  mas  a  industria  não  está 
por  isso  menos  desenvolvida,  c  não  deixa  de  occupar 
uma  grande  quantidade  de  braços  na  construcção  dos 
navios,  no  fabrico  dos  chronomelros,  dos  pannos  para  ve- 
las, das  ancoras,  dus  amarras,  dus  artigos  d'aço,  das  ma- 
cbinas  de  vapor,  dos  cristaes,  do  assucar,  clc. 


m\ 


,iiii 


eiro'- 


iõO 


O  PANORAMA 


Não  soffrcu  esta  cidade,  como  a  sua  rival  Mancheslor, 
c  como  o  resto  do  seu  condado  {o  de  Lancasler'!  com  a 
guerra  americana,  que  produziu  a  crise  do  algodão.  A 
única  manufaclura  d'es(c  género,  que  alii  se  eslal.>elecera, 
arrazou-a  um  incêndio  em  18o3. 

A  nalureza  e  a  arte  ligaram-se  entre  si  para  fazerem  de 
Liverpool  uma  das  mais  imporlaiílcs  cidades  commcrciaesdo 
mundo.  A  sua  posição  no  occidenie  da  Inglaterra  lorna-a 
mais  própria  do  que  Londres  para  o  commercio  da  Ame- 
rica, ponpie  esta  lhe  fica  a  muito  menor  distancia  ;  es- 
tando defronte  da  Irlanda  é  naturalmente  o  centro  de  lo- 
do o  commercio  enire  as  duas  ilhas,  que  formam  o  reino 
de  S.  M.  a  rainha  Victona.  Accresce  a  isto  o  ser  esta  ci- 
dade o  porto  natural  dos  ricos  condados  manufactureiros 
de  York  e  Laiicaster. 

Serviços  regulares  de  paquetes  a  vapor  põem  Li\erpool 
em  communicação  com  os  portos  mais  importantes  da 
(irã-llretanha  eVie  Irlanda,  do  resto  da  Luropa.  das  duas 
Américas,  das  Índias  e  da  China  ;  com  as  cida(ies  manu- 
factureiras do  interior  ligam-n'a  caiiaes  c  caminhos  de 
ferro.  Caminhos  de  ferro  \ão  alli  parar  cinco;  um  (jue 
foi  o  primeiro  (jue  se  conslriiiu  om  Inglaterra,  liga-a  com 
Manchester,  e  não  so  este  caminho  de  ferro,  mas  tandjem 
um  canal  põe  em  comnuinicação  estas  duas  importantes 
cidades.  Um  outro  canal,  que  é  o  mais  grandioso  de  lo- 
dos os  canaes  inglezes,  une  esta  cidade  com  a  de  Leeds. 

Por  lodos  os  motivos  mencionados  e  Liverpool  o  grande 
centro  da  importação  dos  produclos  americanos  ;  a  tonela- 
gem sommada  dos  navios  que  entram  annualmenlc  no  seu 
porto  c  maior  do  que  a  dos  na\ios  que  entram  em  Lon- 
dres. Por  aquella  porta  cnlra  também  na  Inglaterra  a  seda 
e  o  chá  da  China,  o  gado,  o  pez,  as  carnes  salgadas,  as 
farinhas,  e  os  pannos  d'lrlanda;  e  tudo  isto  é  tanto  mais 
prodigioso  quanto  Liverpool  se  pode  dizer  que  não  tem 
porto,  ou  que  o  não  teria  se  a  actividade  ingleza  não  ope- 
rasse verdadeiros  prodígios. 

Com  eíleito  Li\  erpool,  situada  junlo  da  foz  do  Mersey, 
iião  ollerece  o  minimo  abrigo  aos  navios,  que  ficavam  ex- 
postos aos  furacões,  e  que,  na  vasante,  se  enterraNam  no 
lodo.  Estas  dilliculdades  fariam  desmaiar  qualquer  povo; 
não  trepidou  diante  (relias  a  Inglaterra;  o  génio  dos  seus 
melhores  engerdieiros  hydraulicos  começou  a  procurar  o 
meio  de  obviar  a  todos' estes  inconvenientes  creados  pela 
natureza,  e  encontrou...  encontrou  as  í/oA«5,  esses  mara- 
Nilhosos  portos  arlificiaes,  que  obrigam  as  ondas  a  esta- 
carem perante  obstáculos,  que  a  mão  dos  homens,  e  não 
ja  a  mão  de  Deus,  lhes  poz  diante  como  barreira  insupe- 
layel.  A  primeira  doka  foi  conslruida  em  Kiílfl,  depois  se- 
guiram-sc-lhc  outras  e  outras,  e  o  desenvolvimento  do 
commercio  de  Liverpool  é  em  grande  parle  devido  a  essa 
causa. 

As  dokas  de  Liverpool  são  de  cerlo  os  mais  curio- 
sos e  mais  notáveis  monumentos  d'esla  grande  cidade. 
K  em  geral  accusada  a  nossa  época  deburgueza,  chata,  mes- 
quinha, incapaz  de  comprehender  o  grandioso,  de  erguer 
essas  moles  gigantes,  que  airrontam  os  evos,  e  em  (pie  a 
nião  dos  Homunos  gravou  os  poemas  dasua  gloria.  A  esta 
accusação  respondem  Iriumphantemenle  asdokasde  Li\er- 
pool  contras  construcções  semelhanles.  Oue  imjtorta  que 
não  ergamos ColNseus, "templos erguidos áTerocidadede|)ra- 
vada  d'iim  povo  corrupio  egaslo,  llicrmas  colossaes,  (pie 
não  atleslam  senão  a  \  oluptuosidade,  indolência  e  desenfrea- 
do amor  do  luxo  dos  degenerados  nelos  dos  Calões  e  dos 
(íracchos?  Que  imporia,  se  em  troca  (fisso,  erguemos 
nioniimentos  (jiic  mais  valem,  dokas  imponentes  cm  cujos 
diques  de  granito,  em  cujas  muralhas  agigantadas  queíwa 
o  mar  com  respeito  as  suas  ondas  espumanles?  Lslcs  (' 
que  são  os  vordadciros  monumentos  d'uma  ci\ilisação  illu- 
minada  |:(1)  fulgor  do  Evangelho,  mil  \ezes  su^periores 
aos  monumenlos  erguidos  pelo  fútil  e  depravado  scnsua- 
lismo  pagão  da  de(  repila  llon)a. 

São  doze  as  dokas  úc,  Li\erpool,  e  prolongam-sc  pelas 
margens  do  rio  duraníc  mais  de  Ires  kilomelros;  não  fal- 
lando  nas  dokas  giganies,  começadas  a  conslruir  em  18íi 
a  cusia  d'uma  sociedade  (raccionislas,  dokas  (|uc  liveram 
já  por  feliz  resultado  transformarem  a  aldeola  de  Jiir- 
kenhcadc  n'uma  cidade  de  mais  de  (juarenla  mil  habitan- 
tes. As  n)ais  bellas  dokas  de  Liverpool  são  as  de  Cla- 
rence.  de  Wellington  e  sobretudo  a  do  príncipe  Alberto, 


cuja  conslrucção  custou  um  milhão  de  libras.  Junto  das 
dokas  ba  formidáveis  leliíeiros  e  armazéns,  alguns  dos  quaes 
chegam  a  ler  doze  e  quinze  andares.  Entre  as  muralhas 
das  dokas  c  o  rio  correm  uns  pequenos  cães  que  servem 
de  passeios  públicos. 

A  cidade  apresenta  o  aspecto  gernl  de  Iodas  as  cidades 
inglezas  modernas,  um  conjunclo  de  magnificência  c  de 
miséria,  vastas  ju-acas,  ruas  largas  e  bem  arejadas,  e  \iel- 
las  estreitas  e  imnuuidas,  onde  uma  po|)ulação  misera\el  se 
roja  nos  Iremedaes  mais  asípierosos  da  pobreza  e  do  \[- 
cio.  Ruas  como  a  de  Escócia  [Scolldnd-road]  (Puma  ex- 
tensão de  perto  de  Ires  kilomelros,  orladas  de  lojas  sump- 
tuosas, e  becos  infeclos  onde  os  indigentes  se  accuQiulam 
em  palcos  escuros  e  doenlios. 

A  parle  mais  bella  da  cidade  é  ainda  assim  a  parle  orien- 
tal, onde  se  admira  o  lindo  passeio  í|ue  se  intitula  Mount 
pleas(int,úo  qual  sedesfiucla  um  a(lIllira^el  panorama  que 
abrange  a  cidade  toda,  o  porto  c  as  casas  de  campo  dos 
arrabaldes. 

Liverpool  debaixo  do  ponto  de  vista  arlistico  pouco 
offerecedenolavel  ao  viajante:  osseus  monumentos  são  frios 
e|H'sados.Ha  n'esla  cidade  cenio  e  sessentae  dois  templos, 
capellas,  igrejas,  e  synagogas,  tudo  edificios  extremamente 
sinqiles.  Os  mais  consideráveis  são  a  igreja  de  S.  Paulo, 
(pie  tem  um  portal,  que  se  esteia  em  formosas  coluninas,  a 
igreja  de  S.  Jorge,  cuja  nave  é  Ioda  il'.'  ferro  fundido,  extra- 
vagância perfeitamente  inglezal  A  alfandega,  a  praça  do  com- 
mercio, os  mercados  da  carne  e  do  peixe,  manteiga,  legumes 
ele,  reunidos  n'um  edificio  que  se  denomina  o  mercado  de 
S.João,  o  mercado  do  trigo,  os  diííerentes  Bancos,  a  caixa 
económica,  e  a  casa  da  camará  que  a  no.'si  gravura  repre- 
senta, são  os  edificios  mais  notáveis  da  cidade. 

Ha  em  Liverpool  a  mania  das  grandes  edificações.  Para 
se  conslruir  um  grande  deposito  na  rua  de  Watcrloo  foi 
necessário  demolirem-se  cento  e  cincoenla  casas;  para  se 
conslruir  a  estação  de  um  caminho  de  ferro  tornou-se 
necessária  a  demolição   de  cincoenla  casas  e  uma  igreja. 

Apezar  de  se  entregar  toda  ao  commercio,  não  seima- 
gine  (pie  a  cidade  de  Liverpool  desdenha  o  movimento 
scientifico  e  lillerario,  ou  que  presta  menos  altenção  á 
beneficência  c  á  inslrucção  publica.  As  classes  illuslradas 
da  Inglaterra  fazem  os  mais  louváveis  esforços  para  ar- 
rancarem o  ])rolelariado  á  situação  terrível,  em  que  se 
acha  por  muitas  causas  que  seria  longo  enumei'ar.  Em 
Liverpool  abundam  as  instituições  de  beneficência  c  os 
asylos  de  crianças  |)obres.  Ima  dasinsliluicões  inaisuleis 
e  mais  originaes  que  lá  se  encontram  é  o  asjjh  noclur- 
no  para  os  pobres  srm  casa.  São  alli  recebidos  os  pobres 
e  os  estrangeiros  que  não  Icem  onde  (içar.  Ha  lambem 
hospilaes  íliictuanles  jiara  marinheiros;  um  d'elles  é  de 
inválidos,  e  recebe  junclamenle  com  os  marilimos,(pic 
não  podem  continuar  a  sua  trabalhosa  \ida.  suas  mulhe- 
res e  seus  filhos.  Li\erp()ol  possue  lambem  muitas  insti- 
luições  lillerarias  e  scienlilicas,  entre  outras  o  Mcchank  íns- 
lilulc,  cujo  jardim  botânico  passa  por  ser  o  mais  rico  de 
Inglaterra. 

A  historia  de  Li\erpool  conla-se  em  poucas  palavras. 
Como  a  da  maior  parle  das  cidades  inglezas,  moslra-nos 
um  rápido  e  incessanlc  desenvolvimento.  Em  ISlil  era 
uma  aldeia  de  pescadores  (|ue  possuia  uns  cenIo  e  (pia- 
renla  habilanles,  senhores  de  uns'doze  ])arcos.  JáemlCii 
(';  uma  cidadesinha  rodeiada  de  muralhas.  Em  Kií)!)  cons- 
Iroe,  como  dissemos,  a  sua  primeira  doka.  Em  J7(l()  con- 
ta cinco  mil  habilanles;  em  17.'{(i  doze  mil,  em  17(i0  vin- 
te e  seis  mil,  em  1T";{  Iriíila  e  quatro  mil,  em  17!)()  cin- 
coenla e  seis  mil,  em  1801  sclenia  e  sele  mil,  em  1821 
cenlo  e  dezenove  mil,  em  18íl  duzentos  e  vini,e  c  cinco 
mil,  actualmente  conta  mais  de  trezentos  mil.  E  maravi- 
Ihosoi 

Esta  prosperidade  (If\eram-ira  os  habilanles  de  Liver- 
pool ao  trafico  iniipio  da  escra\alura,  c  a  guerra  da  suc- 
cessão  de  Carlos  II  de  llespaiiha  que,  iiniiediíido  os  ne- 
gocianles  hespanhoes  de  traficarem  impiiiiemenlc,  entre- 
gou aos  pouco  escru|)uIosos  navios  da  cidade  ingleza  o  . 
mono|)olio  d'esse  commercio  odioso.  Sua  muito  sangue  j 
o  oiro  que  se  empregou  no   dcscnvoUimenío  de   Liver- 

|)00l. 

l'iMii;iiio  Cu  A  CAS 


o  PANORAMA 


45 


INVOCAÇÃO 

Vontade  sublime  e  viva  que  nome  algum  pôde 
exprimir,  que  idéa  alguma  pôde  abraçar,  cu  posso, 
comludo,  elevar  a  ti  o  meu  coração;  poi-que  tu  c 
eu  não  estamos  separados'  Dentro  de  mim  a  tua 
voz  faz-se  ouvir;  em  li,  o  incomprehensivel,  a  mi- 
nha própria  natureza  e  o  mundo  inteii'o  tornam- 
se-rae  intelligivcis;  lodo  o  enigma  da  minha  exis- 
tência eslá  resolvido  e  uma  perfeita  harmonia  reina 
em  minha  alma.  Diante  de  ti  velo  o  meu  rosto  e 
ponho  a  mão  sobre  os  lábios.  O  que  tu  és  real- 
mente, o  (|ue  te  mostras  a  ti  mesmo,  é-me  tão 
impossível  vel-o  como  chegar  a  ser  teu  semelhante. 
Depois  de  mil  vidas  iguaes  ás  dos  espíritos  supe- 
liores,  eu  estaria  tão  j^oiico  no  caso  de  comi)re- 
hender-te  como  hoje  o  estou  no  fundo  da  minha 
prisão  d'ai'gila.  ()  (jue  eu  compi'e!iendo,  segundo 
o  meu  próprio  entendimento,  eiinito,  e  |)or  pi'0- 
gressão  alguma  poderia  transfoiniar-se  em  iniini- 
to;  porque  tu  dilíeres  dolinito,  não  em  grau,  mas 
em  espécie. 

Não  emprehendei'ei,  pois,  o  que  a  minha  natu- 
reza finita  me  impede  de  emprehender;  não  pro- 
curarei conhecer  a  essência  e  a  natureza  do  ser. 
Comludo,  as  tuas  relações  comigo  e  ludo  o  que 
é  linilo  acham-sc  patentes  a  meus  olhos.  Creasle 
em  mim  a  consciência  do  meu  dever,  a  do  meu 
destino  na  série  dos  seres  i'acionaes;  ^como?  igno- 
ro-o;  ^mas  tenho  necessidade  de  sabel-o?  O  que 
é  certo,  é  que  tu  conheces  os  meus  pensamen- 
tos e  acceilas  as  minhas  intenções,  e  a  con- 
templação de  tuas  lelações  com  a  minha  natu- 
reza linita  basta  para  tranquillisar-me  e  tor- 
nar-me  feliz.  De  mim  mesmo  não  sei  o  que  devo 
fazer;  operarei  simples,  tranquillamente  e  sem 
nialicia,  porque  é  a  lua  voz  que  m'o  ordena,  e  a 
força  com  a  qual  cumpro  o  meu  dever  é  a  tua  pró- 
pria. Não  tenho  medo  algum  dos  acontecimenlosd'es- 
te  mundo  porque  este  mundo  é o  teu.  Todo  aconteci- 
mento fazparte  do  plano  do  universo  elerno  e  da  bon- 
dade. 0(iuen'este  plano,  é  positivamente  bem,  ou  so- 
mente meio  de  evitar  o  mal,  ignoro-o,  fVo  teu 
universo,  ludo  acabará  bem;  ó  suíTiciente  para 
mim,  e  n'esta  fé  estou  íiime.  Que  importa  que 
eu  não  conheça  o  que  é  puro  gérmen,  ílor  ou  fructo 
perfeito!  A  única  coisa  para  mim  importante  é  o 
progresso  da  rasão  e  da  moralidade  atravéz  das 
iileiras  dos  seres  racionaes.  Ah!  quando  o  meu  co- 
ração se  fecha  a  todo  desejo  terrestre,  como  o  uni- 
verso me  apparece  sob  um  aspecto  glorioso!  As 
massas  mortas  eincommodas  que  servem  somente 
para  encher  o  espaço  des\anecem-se,  e,  em  seu 
logar,  uma  eterna  onda  de  vida,  de  força  e  de 
acção,  dimana  da  giande  fonte  de  vida  pi'imordial, 
da  tua  vida,  ó  lu,  eterna  unidade! 


A  BOCCA  DO  INFERNO 

III 

Luiz  de  Mello,  o  segundo  tenente  do  brigue, 
pertencia  a  uma  distincta  família  poriugueza.  Ti- 
nham-no  deixado  seguir  a  carreiía  de  niarinha 
para  lhe  contrariar  a  vocação. 


Luiz  gostava  do  mar,  porque,  dizia  elle,  eraalli 
que  sentia  a  alma  desligar-se  das  cadeias  da  ter- 
ra. Sonhara  desde  criança  com  a  gloria  e  com 
o  amor,  copula  abençoada  enlre  uma  aspiração  e 
um  sentimento,  da  qual  resultam  muitas  vezes  he- 
roísmos. Creio  mesmo  que  andam  sempre  ligados. 
A  ambição  dos  triumfos  que  levava  os  heroes  da 
cavallaria,  os  soldados  da  media  idade  aos  campos 
da  Palestina,  ás  plagas  inhospilaleiías  do  Oriente, 
não  era  apenas  ateada  pelo  fervor  religioso — havia 
talvez  o  desejo  voltar  á  I-lurojja  podendo  depor  os 
elmos  laureados  aos  pés  da  caslellã  promettida. 
A  inspiração  que  na  alma  do  Dante  creou  os  se- 
gredos sublimes  do  Inferno,  insuíllou-a  IJeatriz,  a 
quem  coube  colher  as  palmas  do  génio  da  poesia 
moderna.  Quando  o  lasso  concebia  a  conquista  de 
Jerusalém,  ea  imaginação  fervente  de  enthusiasmos 
creava  Tancredo,  e  produzia  Armida,^ — o  anjo  dos 
seus  sonhos,  a^/íf/Zíí  Eleoitora,  hwpvmh  talvez  com 
um  osculo  na  fronte  do  poeta  o  condão  dos  seus 
destinos  immorlaes.  Quando  Rafael  de  Urbino,  tra- 
çava na  tela  esses  buslos  inspirados  das  suas  wfíc/o- 
nas,  Foi'narina  prestava  ao  génio  da  pintura  os 
encantos  do  seu  rosto  e  a  ternura  da  sua  alma 
apaixonada. 

Que  glorias  não  tiveram  o  incitamento  do 
amor? 

Luiz,  que  sonhava  com  os  triumfos  ganhos  nas 
lides  da  intelligencia,  estudava  e  escrevia;  mas  no 
meio  das  suas  justas  aspirações,  sentia  elle  as 
vagas  anciedades  do  coração,  que  anhela  por  sen- 
timentos mais  suaves  e  não  menos  bellos  —  Luiz 
desejava,  precisava  amar. 

As  ligações  occasionaes,  que  forçosamente  deve- 
ra ter  tido  durante  a  vida,  não  lhe  satisfaziam  as 
necessidades  da  alma,  que  pedia  os  gozos  superio- 
res do  alfecto. 

Passara  no  mar  o  melhor  lem])0  da  mocidade— dos 
14  annos  aos  2o,  e  no  mar  nãoapparecem  dessas 
creaturas  formadas  por  Deus  de  uma  parte  do  ho- 
mem, para  serem  d'elle  eternas  companheiras. 

Correra  os  oceanos;  visitara  quasi  toda  a  Eu- 
ropa; vivera  muito  tempo  nas  regiões  tropicaes; 
passara  mais  de  uma  vez  o  equadoí;  e  de  mar  em  mar, 
de  tormenta  em  tormenta  gastara,  esses  bellos 
annos  da  vida.  Se  nos  curtos  inlervallos  d'esta 
existência  passada  sempre  sobre  as  aguas,  acerta- 
va de  encontrar  alguma  mulher  bella  a  quem  po- 
derá amar — a  visão  desapparecia  rapidamente, 
passava-lhe  de  relance  deante  dos  olhos  —  e  elle 
continuava  a  seguir  a  sua  sorte,  velas  largas  pelos 
oceanos! 

Depois  de  alguns  annos  de  ausência  da  pátria, 
Luiz  de  Mello  voltava  a  Lisboa,  e  como  o  tempo 
não  permitlisse  a  entrada  sem  risco  no  Tejo  fun- 
diava  defronte  de  Cascaes. 

Quando  Luiz  desembarcou,  muitas  das  pessoas 
((ue  estavam  na  pi'aia  vieiam  otlerecer-lhc  servi- 
ços. O  mancebo  agradeceu  cordialmente,  e  per- 
guntou onde  podia  fallar  ao  capiíão  do  porto. 
Acom|)anharam-no  alguns  homens,  cnti"e  os  quaes 
foi  o  irmão  de  (^hristina. 

Pedro  de  Brito,  que  assim  se  chandava  o  lilho 


452 


O  PANORAMA 


da  sr.''  morgada,  conhecia  quem  enlão  exercia  as 
funccões  decapilão  do  porlo  e  apresentou-llie  Luiz 
de  Mello.  Acabada  a  conferencia  entre  os  doisof- 
ficiaes,  Pedi'0  saiu  com  Luiz  e  convidou-o  a  des- 
cancar  em  sua  casa.  A  morgada,  fiel  aos  deveres 
da  íios[)ilalidade,  recebeu  o  tenente  cora  acorlezia 
que  lhe  era  peculiar. 

O  enlhusiasmo  com  que  o  mancebo  fallou  das 
suas  viagens;  as  descripçOes  cheias  de  verdade  e 
poesia  que  fez  do  oceano  e  das  tempestades,  fas- 
cinaram Christina.  O  extraordinário  principiava  a 
produzir  seu  efloilo  no  espirito  da  donzella . 

Luiz  não  sentira  menores  imj)ressues  quando 
Pedro  de  Brito  o  apresentou  a  sua  irmã,  e  poude 
ver  uma  bella  physionomia  de  mulher,  que  íixou 
n'elle  um  languido  olhar. 

Durante  a  conversação  Christina  mostrou  os 
dotes  de  espirito  que  possuia,  e  revelou  ([uc  a  par 
d"a(iuella  oj)ulenla  natureza,  existia  um  coração 
cnlhusiasla,  e  uma  intelligencia  disTincla. 

O  accaso,ou  a  providencia,  aproximava  aquclles 
dois  entes  tão  irmãmente  organisados! 

P  ara  que  hei  de  demorar  mais  uma  confissão  que 
a  leitora  perspicaz  já  adivinhou? 

Luiz  amou  Chrisíina,  e  foi  cori-espondido. 

A.  d'Ohveira  Pjres. 

(Conlinua.) 


SOMBRAS 

.4  iueiii<H-ia  de  Jl.  E3.  Cciiz  Liiua  'I) 
I 

Vai  a  ííenie  vivendo  n'oste  miiiulo 
como  hiiixci  sem  rumo  no  oceano, 
ale  que  enilim  um  dia  (lí>sça  ao  fundo, 
myslerios  d'alcm-lii!)iulo  a  sondar... 
ISõ  cnlanio,  as  illusftes  passam  e  correm 
—falsas  miragens,  qiic  nossa  alma  prendem; 
mas  passam!  c  com  cilas  lambem  morrem 
aqucllos  que  no  pó  vão  descansar. 

A  morlc!  a  morlc  é  o  ómcga  da  Aida, 
selo  que  fecha  o  livro  da  exislcncin; 
anjo,  que  ao  fim  de  senda  dolorida, 
nos  conduz  ao  repouso  tumular; 
nuvem  ignca  que  vem  a  este  inferno 
lagrimas  enxugar,  queimar  abrolhos, 
c  levar-nos  lá  acima  aonde  o  eterno 
os  marhres  da  vida  sóc  c'roar. 

A  vida,  curto  epilogo  das  dores 
que  alanceiam  as  almas  dos  precitos, 
?quem  a  pode  chamar  jardiu)  de  llores, 
quem  ha  dos  homens  que  inda  a  possa  amar? 
l'or  isso,  o  nosso  coração  duvida 
se  ha  purgalorio  (pie  não  seja  o  mundo; 
c  os  (pie  eslalam  os  vínculos  da  vida 
é  sorrindo  que  o  mundo  vão  deixar. 

E  pois  que  aqui  se  pena  e  além  se  gosa, 
VpVa  que  chorar  (piem  (reste  vai  de  lagrimas 
sobe  entre  risos  á  mansão  ditosa, 
onde  não  ha  nem  sondira  de  pe/.ar? 
Mas,  viajor  no  dc.^-erlo  da  existência, 
cu  choro  um  com[)anIicirõ  de  viagem, 
não  sei  se  jior  sentir  a  sua  ausência, 
se  por  o  não  poder  acompanhar !.,. 

(I)  Foi  nin  ])Of'ta  rle  basLinle  morccimenlo,  rjiic  clicgiiria  a  sor 
uma  disliiicia  j^loria  (Jc  Vizeu,  fc  o  não  arrtli.ieisfe  a  niorlo  no 
verdor  dos  aiiuof.  l'ut)lifou  algumas  |if)(«ias  na  (irinulda  Oo  I'(jrto, 
e  noutras  foUias  periódicas;  e  deixou  niuilas,  iiiédit-is,  (|iip,  se 
não  iiit!  engano,  breve  seião  oírere<^idas  ;i  aprcciaeão  do  imhlico. 


II 

Eu  vi-lhe  na  fronte  pálida 
o  estigma  do  soíTrimento; 
e  da  dòr  a  pobre  viclima 
não  soltava  um  so  lamento: 
curvado  já  para  o  tumulo, 
á  desgraça  o  vi  sorrir, 
e  com  as  flores  do  génio 
os  espinhos  da  existência 
encobrir... 

Da  elernidade  ao  vestíbulo, 
inda  enlão  vinha  involvel-o 
com  as  suas  azas  cândidas 
da  poesia  o  archanjo  bello; 
mas  em  sua  fronle  lívida 
breve  o  riso  feneceu, 
e  o  fenecer  d'esse  jubilo 
foi  transição  momentânea 
para  o  ceu. 

Depois...  ao  ceu  subia  uma  alma  pura, 
c  um  cadáver  baixava  á  se|)ullura. 

m 

Ás  horas  do  crepúsculo, 
(piando  desmaia  o  ília, 
e  o  sol,  involto  em  purpura, 
um  triste  adeus  envia; 

e  quando  além  suspira 
a  brisa;  e  a  luz  da  lua, 
na  campa  fria  e  nua, 
da  cruz  a  sombra  estira; 

quando  o  cipreste  Irèmulo, 
(ins  auras  agitado, 
entorna  sobre  os  lunvjlos 
um  canto  dolorido: 

irei  verter  meu  pranío, 
soltar  tristes  endeixas; 
e  do  cipreste  ás  queixas 
irei  casar  meu  canto. 

Na  lápida  ?iiarmórea, 
á  noilc  a  sós  proslrailo, 
segredarei  aos  túmulos 
meu  canto  magoado, 

que  ao  ceu,  o  subtil  bando 
das  auras,  erguer  hade, 
as  vozes  da  saudade 
no  espaço  murmurando. 

E  lu  ha>de  escular-me,  ó  alma  pura; 
e  hasdc  pedir  a  Deus,  saudoso  amigo, 
que  eu  \ença  en)fim  o  mstl.e  entre  comllgo 
na  partilha  do  bem  que  sempre  dura. 

Cândido  Figukuiedo. 


RESPOSTA  A  UM  TOLO 

Um  lí)lo  exprobando  a  um  lord  o  ler  sidoaj)ren- 
diz  de  barbeiro,  o  giande  personagem  respondeu- 
Ihe: 

(cA  differcnça  que  ha  entro  vós  c  cu,  é  que,  se 
tivésseis  sido  aprendiz  de  barbeiro,  ainda  hoje  o  se- 
rieis.» 


Typ,  I'ranr,o.pnrUiguc'za  —  Rua  do  Tlicsoiiro  Velho,  G. 


2CL 


o  PANORAMA 


^53 


GIBRALTAR 

Esla  notável  cidade,  a  fortaleza  mais  temível  do  glo- 
bo, e  uma  das  mais  importantes  possessões  da  Grã-Bre- 
tanlia,  está  situada  na  extremidade  meridional  daílespa- 
nlia,  a  beira  do  estreito  do  mesmo  nome  que  liga  o  Me- 
diterrâneo com  o  Oceano  Atlântico.  A  natureza  fizera  o 
rochedo,  em  que  a  cidade  está  construída,  de  diflicil  ac- 
cesso;  a  arte  lornou-o  inexpugnável.  É  um  promontório 
que  está  ligado  ao  continente  por  uma  estreitíssima  lín- 
gua de  terra  de  perto  de  900  metros  de  comprimento.  A 
cidade  conta  17000  habitantes.  No  tempo  do  ultimo  cerco 


foi  completamente  reduzida  a  cinzas,  mas  das  cinzas  re- 
nasceu mais  pomposa,  senão  mais  bella,  porque  seoppõe 
a  isso  a  particularidade  que  vamos  mencionar. 

Todas  as  casas  são  pintadas  de  preto,  em  parte  para 
que  os  olhos  sintam  menos  a  reverberação  dos  raios  do 
sol,  em  parte  para,  em  caso  de  ata*que  tornar  mais 
dillicil  ao  inimigo  o  vel-as  dislinclamente.  Em  Gibralta^r 
reina  o  clima  mais  quente  da  Europa.  Um  calor  africano, 
temperado  pelos  ventos  refrigerantes  do  mar,  consente 
que  alli  se  cultivem  todas  as  plantas  meridiouaes.  Não  é, 
como  se  poderia  suppòr,  um  rochedo  mi  e  estéril.  Pelo 
contrario,  nas  suas  anfractuosidades,  as  cabras  e  os  car- 


Gibraltar. 


neiros  achara  alimento  sempre  verde,  e  nâo  ha  uma  pol- 
legada  de  terra  que  não  esteja  coberta  de  arvores  de  fruc- 
to  de  toda  a  espécie,  umas  crescendo  espontaneamente, 
outras  pertencendo  a  espécies  aperfeiçoadas  pela  cultura. 
Gibraltar  é  também  o  único  ponto  do  novo  continente, 
em  que  se  encontram  macacos;  e  quer  a  tradição  que 
para  alli  viessem  pela  Gruta  de  S.  Miguel,  profunda  ca- 
vidade toda  coberta  de  stalactites,  situada  ao  pé  do  cume 
do  rochedo,  de  que  se  não  encontrou  o  fundo,  e  que  se 
julga  que  forma  uma  via  de  communicação  submarina 
icom  o  continente  africano. 

Foi  em  Gibraltar  que  embarcaram  os  Vândalos  para 
irem  invadir  a  Africa,  alli,  em  paga,  desembarcaram  os 
Árabes  para  virem  invadir  a  Hespanha.  Tarik  fundou  uma 
fortaleza,  que  teve  o  nome  de  Geb-al-Tarik,  etymologia 
do  nome  actual.  Em  1302  tomou-a  aos  Moiros  Pernando 
II  de  Caslella,  reloraaram-iva  elles  em  1333;  mas,  durante 
o  reinado  de  Henrique  IV  de  Castella,  lomou-lh'a  defi- 
nitivamente o  duque  de  Medina  Sidónia. 


Carlos  V  foi  o  primeiro  que  percebeu  a  importância 
d'esta  praça,  e  que  principiou  a  fortifical-a  formidavel- 
mente. 

Corremos  ligeiramente  por  estes  primórdios  da  historia 
de  Gibraltar,  porque  queremos  dar  circumstanciada  noti- 
cia aos  nossos  leitores  dos  cercos,  que  fizeram  a  sua 
reputação,  e  que  são  eíTeclivamente  das  paginas  mais  in- 
teressantes da  historia  militar.  Para  isso  traduzimos  uma 
porção  do  artigo,  que  a  este  respeito  escreveu  o  sr.  A. 
Tardieu  na  Encijclofedxa  moderna. 

«Não  daremos,  diz  o  distinclo  escriptor  francez,  um  rol 
exacto  das  fortificações  que,  nos  tempos  modernos,  senão 
tem  deixado  de  atcumular  desde  Carlos  V  cm  todo  os 
pontos  d'esle  rochedo,  posição  militar  talvez  única  no 
mundo.  Mas,  como  nos  fallao  espaço,  limilar-nos-hemos 
a  fazer  conhecer  o  estado  em  que  os  trabalhos  successivos 
do  illustre  Daniel  Specke,  do  príncipe  d'Hesse,  d'Hornec, 
e  do  coronel  Monirésor  pozeram  o  lado  seplemtrional, 
quer  dizer  a  parle  mais  inaccessivel;  por  ahi  se  poderá 


•154 


O  PANORAMA 


avaliar  a  força  do  rcslo.  Sem  fallar  cm  casamatas  llan- 
queadas  por*  canhões  do  mais  grosso  calibre  c  ligadas 
t-iilre  si  i)or  galerias  coberlas,  e  uma  linha  dentada 
dfe  baterias  dispostas  em  escalão  sobre  diversas  alturas, 
entre  as  formidáveis  baterias  WiUis,  c  a  do  liocli-Morlar, 
com  que  se  coroa  o  vértice  da  montanha,  ahi  vai  cm 
scguiila  a  enumeração  das  obras,  que  dominam  a  com- 
mònicaçâo  única  aberta  entre  a  cidade  e  o  continente, 
calçada\le  seis  para  sele  metros  de  largura,  apertada  cn- 
lre*o  mar  e  essa  lagoa  ou  inundação  artilicial  de  que  o 
principe  de  Ilesse  teve  a  primeira  idea,  e  que  foi  acaba- 
da pelos  seus  successores.  De  frente  csla  calçada  é  de- 
fendida por  uma  cortina,  chamada  a  grande' bal cria,  c 
por  dois  baluartes,  (pie  se  apoiam  um  no  mar  outro  no 
escarpado  do  rochedo.  Esla  frente,  que  cobre  a  cidade 
pelo  lado  do  norte,  é  precedida  por  um  grande  fosso  sem 
agua,  por  um  caminho  coberto,  por  uma  praça  de  ar- 
mas, e  por  esplanadas  minadas.  Á  direita  da  calçada  e 
por  cima  da  inundação,  o  escarpado,  dividido  na  sua  al- 
tura em  muitas  parles,  forma  outros  tantos  degraus  ou 
terraços  inaccessiveis,  que  se  chamam  linhas  do  Kei,  li- 
nhas da  Rainha,  c  linhas  do  Príncipe.  Por  outro  lado,  á 
direita  da  grande  cortina,  asseie  baterias  do  caslello  dis- 
postas em  escalão  segundo  o  traçado  das  linhas  dentadas, 
e  as  baterias  de  Jlanovcr,  e  da  rainha  Carlota  á  esquerda 
do  baluarte  do  norte,  o  cavalleiro  da  montanha,  e  a  ter- 
rível bateria  do  Velho  xMoIhe,  que  entra  pelo  mar,  á  ílor 
(Kagua,  cruzam  sobre  o  mesmo  ponto  fogos  por  tal  for- 
ma fulminantes,  que  no  grande  cerco  de  1779,  os  hes- 
panhoes  deram  a  esta  entrada  da  cidade  o  nome  de  boca 
de  fogo. 

<' Todos  sabem  que  foi  em  1704,  quando  eslava  mais 
accesa  a  guerra  da  successão  da  llespanha,  que  a  cida- 
della  de  Gibraltar  caio  nas  mãos  dos  inglezes,  alliados 
do  archiduquc  Carlos.  Mas  o  facto  foi  contado  de  dtíTe- 
rentes  maneiras.  Uns  dizem  que  o  almirante  sir  Jorge 
Rook,  envergonhado  de  ainda  nada  ler  feito  com  a  bella 
esquadra  que  commandava,  reunio  próximo  de  Teluão 
um  conselho  de  guerra,  no  qual,  lendo  sido  proposta  uma 
nova  tentativa  sobre  Cadiz,  e  regeitada  como  impraticá- 
vel, por  falta  de  tropas  de  desembarque,  se  decidio  ata- 
car-se  (librallarque  se  sabia  que  tiidia  n'essa  occasião  uma 
guarnição  insuíTicienle.  Por  conseguinte,  no  dia  21  deju- 
Iho,  ai)resentava-se  dianle  de  Gibraltar  a  esquadra  com- 
binada da  llolhinda  e  da  Inglaterra;  o  príncipe  d'IIesse- 
Darmsladt  desembarcava  com  mil  c  oitocentos  homens  no 
isthmo  arenoso  para  cortar  toda  a  communicação  entre 
a  cidade  c  o  continente,  c  intimava  o  marquez  de  Salinas 
governador  para  eniregar  a  praça  ao  archiduípic;  re- 
cusando o  marquez,  o  ataque,  demorado  dois  dias  por 
causa  do  vento  contrario,  principiava  no  dia  23;  os  ca- 
j)itãcs  Ilick,  .lamper,  c  V\'hitaker  apoderaAam-sc  das  for- 
liíicações  do  No\  o  .Molhe,  abandonadas  pelos  hes|)an!ioes,  e 
Salinas,  vendo  o  inimigo  senhor  de  uma  i)arle  dos  fortes 
do  sul,  aceitava  a  capitulação  olíerccida.  Mas,  segundo  ou- 
tra versão  muito  mais  cs*palhada,  depois  do  bombardea- 
mento, alguns  marinheiros  ébrios  tinham  ousado  desem- 
barcar, do  lado  da  ponta  da  Europa,  n'um  sitio  (pie  se  julga- 
va inacccssivel.  Ilidiam  conseguido  escalar  o  rochedo  e  fazer 
prisioneiras  todas  as  mulheres  da  cidade,  que  haviam  saldo 
para  irem  a  uma  pequena  capella  dedicada  á  Virgem  da 
Europa;  o  (pjc  decidira  Salinas  a  capitular.  Eouvillc,  nas 
suas  Memorias,  acciísa  formalmente  o  go\erno  hespanhol 
<le  não  ler  feito  caso  do  aviso  (pie  o  duque  de  (iram- 
mont,  embaixador  de  França,  IIk;  dera  de  uma  próxima 
tentativa  da  Inglaterra  sobre  Gibraltar. 

"Fos.se  como  fosse,  dcfiois  de  lomada  a  cidade,  deve- 
mos prestar  justiça  aos  hespanhoes  dizendo  que  fizeram 
todos  os  seus  esforços  para  a  relomarcm.  Logo,  no  dia 
11  de  outubro  de  17iií,  o  marquez  de  \illadarias  abria 
a  trincheira  diante  de  (iibrallar,  á  lesta  de  forças  IVance- 
zas  e  hespanholas,  mas  sem  ter  podido  impedir  (pie  a 
praça  fosse  abastecida  jiorsir  .lohn  íj-ake.  Foi  neste  pri- 
meiro assedio,  no  dia  . 'ti  de  outubro,  (pie  uns  voluntários, 
debaixo  das  ordens  do  coronel  Figuerra,  e,  guiados  por 
um  cabreiro  do  sitio,  chamado  Simão  Fusarle,  |)assando 
pela  Ovcbradiira,  proxiaio  da  Care-Guard,  conseguiram 
;ilojar-se,  sem  terem  sido  vislos,  na  espaçosa  caverna  de 
S.  -Miguel,  d"onde  tornando  a  sairtpiandofoi  noite  fcciía- 


da,  escalaram  a  muralha  de  (".arlosV  c  mataram  a  guarda  de 
Middle-hill  desde  o  primeiro  al(>  ao  ullimo  soldailo;  se 
são  sustentados  conseguiam  iiifalli\elmenle  tomar  a  pra- 
ça; mas  espalhou-sc  o  alarma  na  cidadclla,  e  os  assaltan- 
tes foram  repellidos  com  perda  de  cento  e  sessenta  ho- 
mens. 

»N"uma  segunda  teníaliva,  no  dia  12  de  janeiro  de  1705, 
quinhentos  a  seiscentos  granadeiros  francezes  e  walões, 
sustentados  por  mil  hesiianhoes,  ás  ordens  do  tenenlo 
general  Tuy,  tomaram  d"assalto  duas  brechas,  uma  cha- 
mada da  Torre  //cí/oju/íí,  na  extremidade  das  linhas  de  Fi- 
liei, a  oulra  mesmo  no  entrincheiramento  da  montanha, 
que  Yilladaria  sabia  que  e.-lava  quasi  abandonado  acerta 
hora  do  dia.  la  ser  tomada  a  cidade  (piando  uma  carga 
de.-esperada  (Puns  qualrocontos  ou  (piinhentos  homens, 
commandados  pelo  tenente  coronel  Moncal,  repellio  os 
inimigos  para  fora  das  fortilicações.  Depois  d'esle  segundo 
assalto  Villadarias  foi  substituído  pelo  marechal  de  Tessí?, 
que,  apezar  do  poderoso  concurso  de  Ponlis,  encarregado 
lie  bloquerr  o  ])orto  com  a  sua  esquadra,  nada  pôde  em- 
preliender  por  causa  do  máo  tempo,  e  teve  ali',  depois 
de  sir  John  Leake  abastecer  pela  segunda  vez  a  praça, 
de  retirar  as  suas  tropas  para  fora  das  linhas,  e  de  se  redu- 
zir, mesmo  por  terra  a  um  simples  bloqueio.  Assim  terminou 
o  primeiro  cerco,  que  custou  aos  alliados  mais  de  dez 
mil  homens. 

«Depois  interveio  o  tratado  d'Ulrechl,  cujo  artigo  10." 
cedia  á  Grã-Brelanha,  sem  a  minima  reserva,  a  plena  e 
inteira  propriedade  da  cidade  e  do  castello  de  Gibraltar 
conjiinctainente  com  o  porto,  e  com  as  defezas  c  fortifi- 
cações que  lhe  pertencessem.  Mas, como  (^natural,  esla  ces- 
são custara  muito  á  Hespanha;  e  cm  1720,  cerlo  de  que 

0  seu  governo  lhe  não  recusaria  o  apoio  moral,  o  mar- 
quez de  Leda,  sob  pretexto  de  soccorrer  Ceuta,  cercada 
pelos  Moiros,  reunia  uma  força  importante,  na  intenção  se- 
crela  de  surprehcnder.Gibrallar.  Ainda  (Festa  vez  foi  esse 
projecto  descoberto,  e  a  praça  abastecida  e  soccorrida  a 
lem|)o  pelo  coronel  Kane,  gcívernador  de  Miiiorca, 

«Por  essa  mesma  occasião  esteve  a  diplomacia  quasi 
para  restituir  á  Hespanha  o  que*  a  força  e  a  astúcia  não 
tinham  podido  enlregar-lhe.  Disse-se,  e*  iiarece  certo,  que 
Fhilippe  V  só  consenlio  em  entrar  na  Quadrupla  Alliança 
depois  do  regente  de  França  lhe  ter  assegurado  (jue  Gi- 
braltar lhe  seria  restituída  proximamente;  ab^.  existe,  nos 
Archivos  da  Coroa  em  Madrid,  uma  caria  d'el-rei   Jorge 

1  de  Inglaterra,  em  que  essa  restituição  é  formalmente 
promellida.  A  aulhenticidade  d'essa  carta,  bem  que  seja 
atacada  na  Inglaterra,  é  hoje  reconhecida  geralmente,  e, 
se  no  duplo  Iralado  de  13  e  14  de  Junho  de  1727  senão 
faz  allusão  alguma  a  essa  |)romessa  real,  sabc-se,  por  o 
ler  dito  o  próprio  lord  Stanhope  embaixador  em  Madrid, 
que  fora  recommendado  o  silencio  a  esse  rcs[)eilo  ao  ga- 
binete hespanhol,  para  seu  próprio  interesse,  afim  de 
não  sobrcsalíar  a  nação  ingleza.  Philippe  V  reclamou; 
mas  não  se  fez  caso*(ressa  reclamação;  e  ali;  cm  17'Z8, 
depois  de  um  inquérito  solemne  do  parlamento  de  In- 
glaterra, as  duas  camarás  unanimemenlií  intimaram  el-rei 
Jorge,  para  nunca,  nos  seus  tratados  ulteriores,  abando- 
nar os  direitos  incontestáveis  da  nação  ingleza  sobre  esta 
preciosa  conquista.  Não  tinham  os  hes|)anlioes  pois  outra 
esperança  que  não  residisse  na  força  das  armas.  Em  1730, 
sendo  governador  de  (jibrallar  o  general  Sabine,  princi- 
piaram os  hespanhoe?  a  construir  os  fortes  de  S.  Fhilip- 
pe do  lado  (la  baliia,  e  o  de  Santa  Itarbara  do  lado  do 
mar, ligados  entre  si  |)or  essas  formidáveis  linhas  (pie  apenas 
íicam  a  uma  milha  de  di.slancia  do  rochedo;  por  occasião 
do  grande  cerco  e  do  bombardeamento  da  cidade  (1781) 
sentiram  os  inglezes  o  erro  (pie  haviam  commeltido  cm 
não  impiieíar  e  impedir  a   conslrucção  d'eslas  linhas. 

«Temos  pressa  de  chegarão  assedio  memorável  que  fez 
a  reputação  mililar  de  (id;rallar;  por  isso  não  insistimos 
na  conspiração  de  Reed,  soldado  do  7;{  de  linha,  (jue, 
movido  por  um  desconlenlamenlo  ipiahpier,  tentou  en- 
tregar a  praça  aos  hespanhoes,  e  (piasi  (pie  oconseguio 
(17li(lj.  Emqiianlo  a  guerra  (le  17(i2,  rebentou  e  acabou 
Ião  de  repente,  ipii;  nem  os  hespaidioes  tiveram  tempo  do 
preparar  uma  e\|)(>diçã()  s(}ria  contra  (iibrallar,  mas  a  guer- 
ra da  independência  (ia  America  ingleza,  cm  que  o  gabinelo 
hesjianhol  |)odia  contar  com  unia  diversão  poderosa  ecom 


o  PANORAMA 


0  0 


o  aclivo  concurso  da  França  c  da  IloIIanda,  pareceu  com 
r;i/ão  uma  occasião    única  de  Icnfar  um  supremo  esforço 
(lo  lado  do  rochedo  inexpugnável.  Tendo   o  maríjuez  de 
'\lnn)du\al,  no  dia  IG  dejunlio  de  177!),  apresentado  acorle 
de  Londres  a  declaração  da  guerra,  cessou,  no  dia  il  do 
mesmo  mez,  toda  a  communicação  eníro  (libra.llar  c  a  lies- 
l)anha,  e  no  dia  o  de  julho  principiaram  as  lioslilidades. 
«Constava  cnlão  a  guarnição  do  seis  mil  Irezenlos  e 
oilcnla  e  dois    homens,    eiilrando   olliciaes;   mas  o    go- 
^  ernador  Jorge  Augusto  Llliott,  que  linha  sido  nomeado 
para  esse  posto  importante  por  causa  de  uma   ferida  re- 
cebida na  batalha  de  Detlingen,  e  por  ser\iços  eminentes, 
que  prestara  como  engenheiro  em  1777  no  cerco  de  Ha- 
vana, era  um  prodígio  de  bravura,  de  sangue  frio,  e  de 
abnegação.  No  dia  10  de  julho  l)loqueiam  os  hespaidioes 
o  |)orto;  no  dia  2G  estabelecem  os  seusarraiaes  na  planí- 
cie de  S.  iloque.   No   principio  de   outubro  o  corpo  dos 
cercadores consistia  em  quatorzc  mil  homens,  commanda- 
dos  pelo  tenente  general  D.  Martin  Alvarez  de  Solo  Mayor. 
os  (piaes  liidiam  já  soflVido  muito  com  uma  iincnção  riova 
do  capitão  inglez  Mercier,  que  vinha  a  ser  umas  granadas 
e  uns  balazios  ocos  de  cinco  pollegadas  e  meia  munidos 
de  um  foguete,  bellico  artificio  que  durante  o  cerco  todo 
os  assaltantes  procuraram  imitar,  sem  nunca  o  consegui- 
rem. Os  Ir.ibalhos   tios  hespanlioes  avançavam  vagarosa- 
nieníe,  tanto  mais  quanto  os  inglezes,  do   cimo   de  uma 
plataforma  acabada  liavia  pouco  e  chamada  Rock  Morlar, 
descobriam  os  seus  mais  leves  movimentos  tanto  nas  li- 
nhas como  nos  arraiaes.  Com  o  anno  de  1780  a  fome,  em 
consequência  do  rigor  do  bloqueio,  declarou-sena  cidade; 
mas  no  dia  18  de  janeiro,  o  almirante  sir  Jorge  Roduey, 
depois  de  ter  batido  a  esquadra  hespanhola  e  de  ler  feito 
prisioneiro  o  almirante    D.   Juan    de  Langara  y  Uuarte, 
que  a  commandava,  conseguio   abastecer  a   praça.  I*arle, 
e  logo  no  dia  27  o  almirante  hespanhol  IJarcelo  reforma- 
\a  o  blocpieio.  Todavia  não  se  limitava  a  isso  a  actividade 
tios  marinheiros  hespanlioes,  e  o  diário  do  cerco  falia  de 
frequentes  tentativas  nocturnas,  que,  mais  do  que  tudo, 
fatigaram  a  guarnição.   A  primeira,  na  noite  de   G    para 
7  de  junho,  compunha-se  de  nove  brulotes  dirigidos,  seis 
em  forma  de  crescente  contra  os   navios   fundeados  no 
Molho  Novo,  e  Ires  contra  a  náo  Pantlwra,  que  se  achava 
luiideada  na  Bucnavisla.  Na  dala  do  1."  de   outubro  de 
1780,  a   guarnição  achava-se  n'uma  .situação   deplorável; 
atacada  pelo  escorbuto,  falta  de  viveres,  e"dizimada  todos 
os  dias  pelas  canhoneiras  e  bombardas,  teria  talvez  suc- 
cumbido  se  então  se  tivesse  lenlado  um  vigoroso  ataque; 
masemvez  de  atacarem,  entretinham-se  os  hespanhoesa  fa- 
bricarobrasd'assedio  e  a  continuar  um  bloqueio  inútil.   No 
dia  12  de  abril,  estava  a  praça  de  novo  abastecida,  e  a  occa- 
sião  perdida  de  vencer  os  sitiados  pela  fome  não  se  lornava  a 
encontrar.  Depuro  despeito,  os  hespanhoes  bombardearam 
a  cidade,  que  logo  foi  convertida  ifum  montão  de  cinzas, 
sem  f[ue  uma  só  casa  ficasse  de  pe.  Ao  mesmo  tempo  as 
tentativas  nocturnas  das  canhoneiras  e  bombardas  lorna- 
\am-se  mais  frequentes  e  ameaçadoras,  até  porque  o  ge- 
neral Elliott,  para  poupar  as  suas  munições  de  guerra,  pro- 
hdiira  que  fizessem  fogo  sobre  ellas;  mas,  como  avançavam 
cada  vez  mais,  lembrou-sc  de  mandar  fundear  a  meio  tiro 
d"espingarda  da  frente  do  Novo  Molhe  um  Iirigue  raso, 
i!i'pois  de  collocar  cm  frente  do  Molhe  Velho  um  morteiro  de 
treze  pollegadas,  atraz  seis  canhões  a  42."  de  elevação.  Ora 
no  dia  28  de  junho,  quando  pela  primeira  vez  se  ensaiou 
esie  novo  meio  de  defeza,  houve  susto  geral  no  acampa- 
mento dos  hespanhoes;  e  um  batalhão,  que  se  achava  em 
armas,  foi  dispersado  Ires  vezes, 

«Desde  esse  dia  todas  as  vezes  que  as  embarcações  fa- 
ziam fogo  para  a  cidade  o  Molhe  Velho  rcsiiondia  para  o 
acampamento,  hespanhol ;  mas  se  o  bombardeamento, 
no  dia  1  de  jullio,  tinha  (|uasi  completamente  cessa- 
do em  compensação  eslreitava-se  sempre  o  blo(pieio; 
por  isso  os  sitiados  recorriam  mais  vezes  ás  sortidas. 
No  dia  27  de  novembro  principalmente,  ás  Ires  horas 
menos  um  quarto  da  manhã,  houve  uma  muito  felizmen- 
te dirigida  pelo  brigadeiro  Uoss,  a  quemilLlliotl  se 
I untara  como  simples  voluntário,  e  que  assombrou  os 
hespanhoes;  as  obras  avançadas  foram  completamente  dcs- 
Iruidas  pelo  fogo,  encravados  dez  morteiros  de  dezoito  polle- 
gadas e  dezoito  canhões  de  calibre  vinte  e  seis. 


«Emquanto  os  siliadores  trabalhavam  em  reparar  o  estra- 
go o  mais  depressa  possível,  Elliott  multiplica\a-se,  prepa- 
rava melhores  abrigos  aos  artilheiros,  mandava  ensaiar  um 
novo  reparo  inventado  pelo  tenente  deartilheriaKohler,com 
cujo  auxilio  se  jiodia  apontar  em  todos  os  ângulos,  entre 
'20."  acima  e  70."  abaixo  do  horisonte,  o  que  permiltio 
varejar  com  favorável  succèsso  as  obras  avançadas  do 
inimigo,  sobretudo  a  bateria  de  S.  Carlos.  No  "principio 
de  abril  de  1782,  correndo  a  noticia  que  se  approximava  o 
momento  critico  c  que  se  faziam  enormes  preparalivos 
em  Cadiz  e  nos  portos  do  Mediterrâneo,  que  ia  chegar 
o  du(|ue  de  Crillon  com  o  conde  de  Artois  e  o  diupicde 
Bourbon,  e  um  celebre  engenheiro  de  Arçon  de  quem  se 
espcra\'am  maravilhas,  Elliott  mandou  distribuir  pelas  ba- 
terias da  praça  fornalhas  para  pôr  em  braza  as  lialas,  e 
no  dia  (1  de  "setembro  um  fogo  de  balas  rubras,  jjom  di- 
rigido pelo  general  Boyd,  segundo  commandante  da  pra- 
ça, reduzia  a  cinzas  a  bateria  Mahon,  a  do  llanco,  e  a 
parallela  adjacente,  e  arruinava  gravemente  as  baterias 
de  S.  Carlos  e  de  S.  Martinho.  Ora  altribuio-se  a  esto 
desastre  inesperado  a  precipitação  com  (pie  foi  ordenado 
e  distribuído  o  ataque  geral,  eque  deitou  a  perder  sem  re- 
curso algum  todo  o  succèsso  do  cerco.  Consta  com  elleito 
que,  no  dia  1)  tlc  setembro,  quando  o  duque  de  Crillon 
mandou  abrir  o  fogo,  muitas  das  suas  baterias  esla\am  longe 
de  estar  acabadas.  Seja  como  fòr,  o  apparato  bellico  de- 
senvolvido pelos  assaltantes  ainda  era  formidável;  do  lado 
da  terra,  obras  admiravelmente  executadas,  armadas  com 
duzentas  c  cincoenla  bocas  de  fogo,  e  defendidas  por  qua- 
renta mil  homens,  commandados  por  um  general,  até 
então  habituado  a  vencer,  e  animado  pela  presença  de  dois 
príncipes  da  familia  real  de  França;  do  lado  do  mar  qua- 
renta e  sele  náos  de  linha  e  uma  quantidade  innumera- 
vel  de  fragatas;  brigues,  canhoneiras,  bombardas,  e  cha- 
lupas flucluantes,  e  coroando  isto  as  dez  baterias  lluctuan- 
les  de  Arçon,  insubmergivcis  e  incorabustiveis,  laes 
eram  os  jioderosos  meios  de  destruição  que  iam  ser 
emj)regados  para  subjugar  uma  guarnição  de  seis  mil  ho- 
mens, prostrados  pela  fome  e  pelo  cançasso. 

«As  cortes  de  ílespanha  e  de  França,  cancadas  de  verem 
prolongar-se  indelinirlamenle  o  inutif  bloqueio  de  Gibral- 
tar, com  que  se  divertiam  a  Europa  e  os  próprios  sitia- 
dos, tinham,  havia  muito  tempo,  pensado  seriamente  em 
tomar  esta  fortaleza  por  algum  meio  extraordinário,  con- 
tra o  qual  a  sua  posição  inaccessivel,  asna  formidável  ar- 
lilheria,  e  a  habilidade  do  general  Elliott  fossem  insulTi- 
cientes.  Houve  então  uma  como  que  aposta  entre  os  en- 
genheiros a  ver  qual  inventava  planos  mais  audaciosos  e 
extravagantes.  Propunha-se  formalmente  construir  na  frente 
das  linhas  de  S.  Roque  um  enorme  cavalleiro,  que,  le- 
vantando-se  ainda  mais  alto  do  que  Gibraltar,  lhe  tirasse 
o  seu  principal  meio  de  defeza.  O  aulhor  calculara  a  quan- 
tidade de  loezas  cubicas  de  terra  que  ahi  se  deveriam 
amontoar,  o  numero  de  braços  que  eram  precisos,  os  dias 
que  se  deviam  gastar.,  e  provava  que  esse  prodigioso  traba- 
lho seria  menos  dispendioso  e  menos  mortífero  do  que  a 
continuação  do  cerco  do  modo  como  fora  principiado.  Outro 
imaginara  as  bombas  asphyxiantes.  O  projecto  de  Arçon, 
engenheiro  natural  do  Franco-Condado,  fixou  mais  seria- 
mente a  attenção  do  governo  hespanhol;  mas  esse  projecto, 
tão  bem  concebido,  foi  mal  executado,  e  gorou  por  um 
concurso  de  circumslancias  que  o  génio  de  Arçon  não 
podéra  prever. 

«Dez  galeras  tinham  sido  conslruidas  de  modo  que  apre- 
sentassem aos  fogos  da  praça  um  costado  coberto  de  uma 
blindagem  de  trcs  pés  de  espessura  e  conservado  n'um  es- 
tado continuo  de  humidade  por  um  mecanismo  muito  en- 
genhoso |)ara  (pie  as  balas  rubras  se  apagassem  no  mesmo 
sitio  em  que  peneirassem.  Primeira  medida  que  só  foi 
executada  imperfeitamente;  a  falta  de  geilo  dos  calafates 
impedio  o  jogo  das  bombas  que  deviam  alimentar  essa 
humidade-  Só  a  bordo  de  umad'ellas,  aTallapiedra,  é  que 
isso  se  realisou.  Em  segundo  logar  as  posições,  designadas 
a  cada  uma  das  galeras  depois  dese  ler  sondado  escrupu- 
losamente, não  foram  observadas;  e  D.  Ventura  Moreno, 
marinheiro  valente,  mas  incapaz  de  combinar  e  de  exe- 
cutar um  plano,  mettido  cm  brios  por  uma  carta  em  que 
o  general  franccz  Crillon  lhe  mandava  dizer  no  dia  12  de 
setembro  á  noite:    «Tel-o-hei  por  covarde  se  não   dér 


156 


O  PANORAMA 


começo  ao  ataque >-  não  tomou  tempo  de  concertar  bem 
as  su*as  medidas,  nem  sobretudo  de  bem  calcular  as  dis- 
tancias. O  que  resultou  doesta  precipitação?  Só  duas  galeras 
poderara  collocar-se  na  distancia  convencionada,  a  duzentas 
lo^zas  da  frente  da  praça,  a  Pastora,  commandada  pelo 
próprio  Moreno,  e  a  TÍilfa-Pjcdra,  dirigida  pelo  príncipe 
de  xNassau,  e  onde  estava  Arcon;  e  de  mais  a  mais  (i- 
caram  expostas  á  bateria  mais  temível,  a  do  l)aluarlcreal, 
emquanto  no  projecto  de  Arçon  deviam  estar  todas 
asrupadas  defronte  do  Velho  Molhe  e  receber  só  de  lado 
os  fogos  d"esta  bateria.  D'este  modo  essas  duas  galeras 
soíTreram  mais  do  que  olTenderam.  A  Talla-Picdra,  .sobre- 
tudo recebeu  um  golpe  mortal.  A  despeito  da  blindagem 
uma  bala  rubra  penetrou  na  parle  secca  do  navio.  O  seu 
eíTeito  foi  vagarosíssimo.  A  galera  rompera  o  fogo  pelas 
dez  horas  da  manhã;  a  bala  cravou-se-lhe  no  costado  das 
três  para  as  cinco,  e  o  incêndio  só  rebentou  de  um  modo 
irremediável  à  meia  noite.  Ao  lado  a  San  Juan  teve  a 
mesma  sorte.  Parece  averiguado  que  as  outras  oito  fica- 
ram intactas.  Para  cumulo  de  desventuras  faltaram  a  um 
lempo  todos  os  recursos;  ancoras  de  soccorro,  chalupas 
para  receberem  os  feridos,  ele.  O  ataque  devia  ser  apoiado 
por  dez  navios  de  guerra,  e  por  mais  de  sessenta  chalu- 
pas, canhoneiras  e  bombardas;  nem  canhoneiras,  nem 
chalupas,  nem  vasos  de  guerra  appareceram.  Emíim  Arçon 
contara,  para  reduzir  a  silencio  a  arlilheria  da  praça  com  uma 
superioridade  de  mais  de  duzentas  peças.  No  momento 
do  ataque,  os  assaltantes  não  tiveram  senão  sessenta  para 
setenta  peças  a  oppôr  ás  duzentas  e  oitenta  dos  si- 
tiados. Além  d'isso  a  esquadra  combinada  conservou-se 
espectadora  immovel  do  combate.  Guiché,  commandante 
da  esquadra  franceza,  mandar  propor  a  Moreno  suslen- 
tal-o;  este  recusou. 

«Voltemos  á  scena  de  desordem  e  de  horror,  que  se 
seguio  ao  incêndio  da  Talla  Piedra.  No  dia  14  de  setem- 
bro, áuma  hora  da  manhã,  estava  essa  galera  devonida 
pelas  chammas;  a  o  fogo  como  dissemos,  pegára-se  aba- 
teria próxima,  a  5fiíi /hoíí;  ás  quatro  horas  oito  ílucluantes 
estavam  a  arder.  O  capitão  inglez  Curtis  parlio  então  com 
as  suas  embarcações  para  ver  se  salvava  uma  porção  das 
tripulações;  mas  a  explosão  de  duas  das  ílucluantes, 
que  até  fez  sossobrar  um  dos  seus  barcos,  interrompeu-o 
n'essa  missão  de  humanidade,  esó  pôde  levar  para  terra 
nove  ofiiciaes,  dois  capellães  e  trezentos  e  trinta  e  quatro 
soldados  e  marinheiros.  Ás  onze  horas  mais  três  baterias 
vão  pelos  ares,  e  outras  ardem  à  flor  d'agua.  Ainda  res- 
tam duas  ílucluantes,  pega-se  o  fogo  a  uma,  e  os  Ingle- 
zes,  não  podendo  capturar  aoutra,  incendeiam-n'a.  Na  tar- 
de do  segundo  dia  já  nada  existia  d'essas  terríveis  machi- 
nas  de  destruição.  A  perda  dos  alliados,  n'esle  funesto 
dia  13  de  setembro  passou  de  dois  mil  homens,  emquanto 
que  os  inglezes  contaram  apenas  ao  todo  um  oílicial  e 
quinze  soldados  morlos  e  sessenta  e  oito  feridos.  Houve 
por  occasião  d'este  desastre  um  jogo  de  amaríssimas  re- 
criminações entre  as  quaesserá  custoso  reconhecer  a  ver- 
dade, d  duque  de  Crillon,  nas  suas  memorias,  procurou 
justificar-se.  e  attribuir  ao  conde  de  Florida-Hlanca  a  res- 
ponsabilidade de  uma  precipitação,  que  não  permiltira 
travar  o  combate  como  elle  merecia  travar-se.  Arçon, 
pela  sua  parte,  publicou,  além  das  Memorias  para  servi- 
rem á  historia  do  cerco  de  Gibraltar  uma  jusliíicaçãoem 
regra  do  sou  projecto  c  do  seu  procedimento,  debaixo 
do  titulo  de  Conselho  de  fjurrra  privado  sobre  os  aconte- 
cimentos de  Gibraltar  em  1782;  mas  o  que  os  justifica 
melhor  a  um  e  outro  é  essa  nova  actividade  que  elles  de- 
senvolveram para  continuarem  o  cerco  de  Gibraltar  se- 
gundo um  novo  pbino  que  a  imaginação  viva  e  fecunda 
de  Arçon  de  novo  concebera.  Conseguira  elle  abrir  uma 
entrada  no  próprio  rochedo  do  lado  do  Mediterrâneo,  fa- 
zendo ir  pelos  ares  as  baterias  baixas  da  fortaleza,  depois 
fizera  uma  segunda  abertura  na  entrada  da  vereda  que  se 
estreita  entre  6  sopéíla  montanha  e  o  Mediterrâneo,  e  (|ue 
vai  ter  á  ponta  da  Europa;  mas  não  llies  foi  dado  ver  o 
eíTcilo  d'estes  novos  trabalhos,  que  fizeram,  segundo  .se 
diz,  estremecer  Ellioll  quando,  depois  de  levantado  o 
cerco,  os  vio  pela  primeira  vez,  porípie  no  dia  .'{  de  fe- 
vereiro de  17S.'{  o  duque  deOillon  informava  Eliiol  que 
estavam  assignados  os  preliminares  da  paz  geral,  e,  Ires 
dias  depois,  que  eslava  levantado  o  bloqueio  marilimo. 


Em  fim  no  dia  10  de  março  trazia  a  fragata  Theiis  a  no- 
ticia oflicial  da  paz;  e  no  dia  13  Crillon  e  Elliott  tinham 
uma  entrevista  a  meio  caminho  dos  entrincheiramenlos 
hespanhoes  e  da  base  da  penedia. 

«Assim  terminou,  depois  de  Ires  annoséele  mezes  edoze 
dias  de  duração,  um  dos  cercos  mais  memoráveis  dos 
tempos  modernos,  e  que  assegurava  para  lodo  o  sem- 
pre a  Inglaterra  a  posse  d'esla  chavo  do  Mediterrâneo. 


KARL  CIIRISTIAN  RAFN 

Celebfe  antiquário  e  philolo.iío  dinaniarquez. 
Nasceu  no  dia  16  de  janeiro  de  Í79o  em  Braborg 
na  ilha  de  Funen;  morreu  em  20  de  outubro  de 
1864  em  Copenhague.  O  trabalho  ao  qual  Rafa 
deve,  principalmente,  a  sua  notoriedade  europea, 
foi  a  grande  obra  d'elle  acerca  das  antigas  nave- 
gações dinamarquczas  e  noroeguezas  na  Groenlân- 
dia e  nas  plagas  N.  E.  do  continente  americano, 
obra  que  foi  publicada,  em  Copenhague  em  1837, 
em  um  grosso  volume  em  i.°  com  o  titulo  de  An- 
tiquitates  Americanae,  seu  Scriptores  septentrio- 
nales  rerumanlecolumhianarum  in  America.  kM^m 
d'este  importantíssimo  estudo,  muitos  outros  tra- 
balhos, lodos  relativos  ás  antiguidades  históricas 
e  geographicas  das  altas  regiões  do  norte,  occupa- 
ram  a  longa  carreira  d'este  laborioso  sábio.  Tra- 
balhos d'aquella  natureza  haviam-se  tornado  para 
elle  um  verdadeiro  culto;  foi,  pois,  para  lhes  im- 
primir maisunidadee  actividade  que  em  1825  pro- 
moveu e  organisou  a  fundação  da  celeberrima  Socie- 
dade dos  Antiquários  do  AW/e  de  quefoi  secretario 
perpetuo  e  alma  d'ella  até  ao  fim  da  sua  vida. 

lia  poucas  sociedades  na  Europa,  que  hajam 
assignalado  a  sua  existência  por  trabalhos  tão  nu- 
merosos como  di  Sociedade  dos  Antiquários  do  Nor- 
te. Além  de  uma  serie  já  considerável  e  sobeja- 
mente importante  de  volumes  de  memorias,  deve- 
se-lhe  uma  coUecção  em  3  volumes  das  «Historias 
heróicas  do  Norte  ou  dos  Sagas  mylhicos  ou  de 
imaginação»;  uma  «Colleção  dos  Sagas  históricos  do 
Norte»  egualmente  em  3  volumes;  o  Livro  das  tra- 
dições de  Fceroe  (Fícreyinga  Saga)  com  commen- 
tai*ios  críticos;  os  «Monumentos  históricos  da  Groen- 
lândia,» em  3  volumes;  as  «Antiguidades  russas;» 
em  dois  volumes;  etc.  etc.  Todas  estas  obras,  tex- 
to ou  traducções  são  em  dinaniarquez;  algumas, 
porém,  são  acompanhadas  de  traducções  latinas,  ou 
teem  sido  vertidas 'para  allemão. 

Aquella  lista  é  muito  incompleta  e  Rafn  colla- 
borou  prodigiosamente  na  maior  parte  de  todas 
essas  publicações. 

Alfredo  May 


Que  esta  (jualidade  tom  a  virtude,  todolos 

trabalhos  estimar  pouco  e  os  vícios  muito  menos. 

Francisco  de  Moraes. 


Do  homem,  que  é  mau  do  berço  á  sepultura, 

Uma  íl  coisa  á  natureza  deixam 

Os  hábitos  ruins  que  não  pervertam; 

Do  coração  é  o  ])rimeiro  impulso. 

Garrett 


o  PANORAMA 


4  57 


Gibraltar  (fortaleza) 


A  BOCCA  DO  INFERNO 

IV 

D.  Thereza  deixou  Cascaes,  passou  o  inverno  e 
verão  em  Lisboa,  e  no  outono  voltou  a  tomar  ba- 
nhos. Luiz  de  Mello,  que  durante  todo  este  tempo 
continuara  as  suas  apaixonadas  relações  com  Chris- 
lina,  vinha  vel-a  a  Cascaes  muitas  vezes.  A  sr.** 
morgada  é  que  não  podia  conformar-se  com  a  lem- 
brança de  sua  filha  se  apaixonar  por  um  homem 
que,  sobre  não  ter  capitães,  andava  habitualmente 
mar  em  fora,  e  devia  por  tanto  ser  um  péssimo 
marido;  ella,  que  se  não  cançava  de  contar 
os  seus  amores  com  o  morgado,  que  vivera  sem- 
pre junto  delia,  sem  embargo,  accrescentarei  eu, 
de  lhe  fazer  por  fora  suas  infidelidades,  segundo 
era  voz  publica. 

Era  uma  santa  creatura  D.  Thereza  de  Brito! 
Revia-se  nos  filhos,  porque  ambos,  dizia  ella,  lhe 
recordavam  o  defunto  marido.  Tinha  um  os  olhos 
do  morgado,  outro  a  bocca,  cambos  a  alma!  Como 
ella  fazia  esta  ingénua  partilha  da  alma  do  morga- 
do, que  talvez  eslava  então  dando  contas  a  Deus! 

No  seu  amor  de  mãe  sonhara  um  dia  com  o  fi- 
lho embaixador  e  a  filha  viscondessa.  D.  Thereza 
achava  immensamente  eufonica  a  palaíS'ra  viscon- 
dessa, titulo  que  lhe  parecia  fácil  de  adquirir, 
tendo  Christina,  além  dos  alimentos  que  lhe  per- 
tenciam, um  bom  dote  em  bens  livres,  que  o  de- 


lunlo  morgado  adquirira  e  não  quizera  encorporar 
no  vinculo  para  deixar  a  filha  em  melhor  situa- 
ção. 

Ora  ver  D.  Thereza  que  Christina  desprezara 
óptimos  casamentos  para  agora  se  apaixonar  por 
Luiz  de  Mello,  causava-lhe  grande  desgosto. 

Por  algum  tempo  a  sr.^  morgada  contentou-se 
em  dirigir  a  sua  filha  mil  exclamações  de  espanto. 
Depois  passou  a  um  monologo  quotidiano  de  ex- 
probações.  Finalmente,  como  visse  que  nem  con- 
selhos* nem  boas  razões  afastavam  de  mau  trilho 
o  coração  da  donzella,  procurou  obstar  por  todos 
os  modos  á  continuação  das  suas  relações  com  Luiz 
de  Mello. 

Christina,  firme  no  meiod'esta  lula,  sugeitou-se 
ás  deliberações  de  sua  mãe,  ofTerecendo  a  melhor 
de  todas  as  resistências,  a  resistência  passiva. 

Amando  Luiz  como  ella  o  amava,  podiam  ati- 
çar-lhe  paixões  ruins  de  ambição  e  soberba,  que 
iodo  o  empenho  seria  baldado.  Esta  é,  se  não  a 
maior,  uma  das  grandes  virtudes  do  amor,  n'este 
século  em  que  tudo  se  sacrifica  ao  interesse  e  ao 
egoismo. 

Mais  do  que  as  considerações  de  D.  Thereza  valia 
o  amor  de  Christina,  que  se  alimentava  de  espe- 
ranças, como  todos  os  amores,  esperanças  muitas 
vezes  irrealisaveis,  mas  que  teem  o  dom  precioso 
de  enganar.  É  o  mel  com  que  Deus  adoça  as  bor- 
das do  cálix  de  absynthoquc  o  pobre  amante  che- 
ga aos  lábios,  e  no  qual,  como  disse  o  Tasso  no 


4  58 


O  PANOiLVMA 


primeiro  canto  do  seu  poema,  vae  enganado  be- 
bendo a  vida: 

Surchi  amari  ingannato  in  tanto  ei  beve, 
E  clall'iDg.mno  suo  vita  riceve! 

Tso  entanto,  estas  contrariedades  constanleraenle 
levantadas  por  D.  Thereza  faziam  soíTrer  muito 
Chrislina,  e  arrancavam-Iiie lagrimas,  t{ue  era  vez 
de  destruirem  o  sentimento  parece  que  mais  vigor 
lhe  dão. 

Digam  embora  os  felizes,  os  que  do  amor  sú 
provaram  o  mel,  que  são  tolos  os  (jue  lhe  haurem 
o  absvntho,  e  consentem  que  o  coração  se  lhes 
esmigalhe  debaixo  do  pezo  dos  soíTrinientos.  Ouanlo 
não  valem  mais;  que  myslico  encaiito  não  tem 
mais  as  lagrimas  do  amor  verdadeiro  e  santo, 
que  os  risos  e  as  alegrias  buliçosas  do  amor  frá- 
gil e  vulgar! 

Os  que  só  tem  sentido  o  coração  pelas  aíTeiçOes 
ardentes  e  desinteressadas,  os  que  no  regaço  da 
mulher  adorada  teem  chorado  com  cila  as  perse- 
guições do  mundo,  esses  comprehendcrão  o  amor 
de  Luiz  e  Christina,  grandioso  como  todos  os  sen- 
timentos sancliíicados  com  o  baplism.o  das  lagri- 
mas. 

Oh,  amor!  amor!  mysto  da  alma  edos  sentidos, 
como  te  chamou  Chateaubriand,  de  que  a  amizade 
ê  a  parte  moral,  como  ainda  hoje  fluctuas  grande, 
virginal,  á  superticie  d'este  oceano  de  paixões  sór- 
didas'em  que  se  precipita  a  humanidade,  impel- 
lida  talvez  pelo  destino  da  sua  comdemnaçãol  Só 
tu,  amor,  no  calaclysmo  que  arrasta  para  o  abys- 
mo  tudo  quanto  é  nobre  e  bom,e  vae  produzindo 
uma  subversão  monsti'uosa  na  alma  humana,  sólu 
não  foste  ainda  envolvido!  Surges,  como  o  génio 
da  poesia  e  da  saudade  no  meio  das  solidões,  co- 
mo o  anjo  que  aponla  para  o  futuro  sobre  as  mi- 
nas de  um  mundo  que  desaba,  bello,  grandioso, 
imponente  de  magestade! 

Digam  embora  os  (|ue  hoje  sacriiicam  só  ao 
bezerro  de  ouro,  sem  receio  de  que  sobre  elles 
caia  a  cólera  de  um  novo  Moysés — que  o  amor  foi 
vencido  pelo  calculo,  que  a  criança  débil  e  meiga 
ficou  para  ahi  moribunda  n'alguma  encruzilhada. 
É  falso.  O  dinheii-o,  estendendo  por  toda  a  i)arle 
as  suas  garras  de  abutre,  procuiando  emi)olgar 
ludo,  até  a  consciência,  ainda  não  chegou  ao  co- 
ração. Está  ahi  a  scenlelha  divina,  que  Salanaz 
não  pôde  apagar. 

Digam  embora  que  o  amor  passou  com  o  mundo 
antigo.  >ão.  Ouando  aos  pés  da  cruz  victoriosa 
expiravam  as  salurnaes  da  impudica  Vénus,  oamoi- 
acompanhou  o  mundo  moderno  convertido  em 
culto  do  coração,  em  aspiração  de  uma  alma  para 
outra.  Foi  um  raio  da  luz  sublime  que  illuminava 
a  fronte  do  Chrislo  qucconverteu  na  alma  de  Mag- 
dalena  o  amor  maleiial  e  |)agão  que  comdcmna, 
no  amor  espiíitual  que  salva  eieg(!nera! 

Eteino  companheiro  da  humanidade,  nasceu  com 
Adão  no  Paraizo,  para  só  morrer  com  o  ultimo 
homem.  Henrique  Kleist  apunhalando-se  obede- 
cia á  sua  inlliiciicia;  liuckinghdm  sanilicando  um 
exercito,  e  talv(.'z  a  |)ropria  liiglateria,  curvava-se 
ao  seu  império;  Nelson  traindo  a  capitulação  de 


Nápoles  ajoelhava,  elle  o  vencedor,  elle  o  he- 
róe,  aos  pés  de  Emna  Hamilton,  que  era  para  elle 
a  pe!'sonilicação  do  amor. 

ccOuand  Tamour — disse  Madame  Cottin — n'esl 
pas  une  flamme  qui  cchaufl",',  mais  un  feu  qui 
brule,  qui  consume,  qui  devore,  il  eloulfe  toul, 
tout,  jusqu  a  la  conscience!.» 

(Continua.)  A.    d'OuveIRA  PlKES. 


APPLIGAGÃO  DO  BELLO  AS  SGIENCLVS, 
As  LETRAS  E  AS  ARTES 

As  proporções  e  as  relações  reciprocas  dos  sen- 
dos  immateriaes  são  a  base  das  dilferenças  que 
distinguem  as  sciencias,  as  leiras  e  as  artes,  assim 
como  as  suas  diversas  escolas  e  os  génios  que  as 
teem  i Ilustrado. 

As  sciencias,  laes  como  a  geometria,  astro- 
nomia, historia  natural,  geographia,  etc,  teem 
por  tim  a  aveiiguação  do  verdadeiro  e  dependem 
quasi  exclusivamente  do  sentido  lógico. 

As  leiras  teem  por  íim  a  imitação  da  natureza 
ou  a  combinação  dos  factos  naturaes,  em  uma  nova 
ordem,  sob  a  inspiração  do  verdadeiro,  do  útil, 
do  sentimento  da  forma  edo  bello.  Dependem  dos 
quatros  sentidos  intíiUectuaes;  mãs,  propoem-se 
particularmente  á  união  do  sentido  moral  e  do 
sentido  poético,  isto  é,  o  bello  moral.  Collocadas 
entre  as  sciencias  e  as  artes,  comprehendem  dois 
géneros  de  trabalhos:  sciencias  lilterarias  e  artes 
litterarias. 

As  sciencias  litterarias,  taes  como  a  historia,  a 
philosophia,  procuram  o  verdadeiro  e  o  ulil,  e  de- 
pendem especialmente  do  sentido  lógico  e  do  sen- 
tido moral. 

As  artes  litterarias,  eloquência,  poesia,  arte 
dramática, etc,  buscam  o  verdadeiro, o  útil, a  forma, 
o  bello  e  particularmenteo  bello  moral.  De|)endem 
dos  quatro  sentidos  intellecluaes,  mas  sobre  ludo 
do  sentido  poético. 

As  artes  lambem,  como  a  pintura,  aesculptura, 
a  musica,  a  dança,  ele. ,  teem  por  objecto  a  imita- 
ção da  natureza  ou  a  combinação,  em  uma  nova 
ordem,  das  formas  naturaes.  Dependem  dos  (|ua- 
tio  sentidos  intellecluaes  e  procuram  o  verdadeiro, 
o  útil,  e  o  bello,  mas  com  especialidade  o  bello  plás- 
tico. 

Assim  as  letras,  que  unem  as  sciencias  ás  ar- 
tes, dilVerem  das  primeiras,  porque  ajuntam  á  inves- 
tigação do  verdadeiro  a  do  ulil,  da  forma  e  do  bello; 
das  ultimas,  porque  dão  á  parle  moral  do  bello 
a  preferencia,  em  quanto  que  estas  a  concedem  á 
parle  i)laslica. 

A  jiropoição  do  sentido  lógico,  que  caraclerisa 
o  pensador,  com  o  sentido  |)laslico,  (jue  caraclerisa  o 
arlisla,  estabeleci!  duas  classes  dislinclas  em  cada 
ramo  da  artee  da  litleralura.  Lns  cingem-se  mais 
ás  idéas;  outros  á  forma;  estes  à  força,  aquelles  à 
graça.  ()  mais  j)ioximo  da  perfeição  c  o  que,  em 
lugar  de  apresentar  esse  antagonismo  eterno  da 
forma  e  do  fundo,  reúne,  no  mais  subido  grau  o 
em  justa  proporção,  os  dois  elementos  do  bello. 


o  PANORAMA 


4  59 


É,  applicaiulocs[c  principio,  que  se  poderá,  com 
algum  resullado,  comparar  e  apreciar  os  grandes 
espirilos  que,  no  mesmo  género,  são  liabilualmenle 
opposlos  uns  aosoulros:  Homero  c  Virgílio,  Aris- 
loleles  c  IMalão,  Tliiicydides  e  Xenophonle,  Zeu- 
xis  e  Pliidias,  Tacilo  e  Tito  Livio,  Demoslhenes 
o  Cicero,  Danie  e  Tasso,  Miguel  Angelo  c  Ra- 
l)Iiael,  Corneille  e  Racine,  Glucke  Piccini,  e,  en- 
tre os  contemporâneos,  Hugo  eLamartine,  Cousin 
e  Villemain  etc. 

As  relações  do  sentido  poético  com  os  senlidos 
lógico,  moral  e  plástico,  ou  do  sentimento  dobello 
com  o  do  verdadeiro,  do  ulil  eda  forma,  dão  con- 
ta das  diílerenles  escolas  artísticas  e  litterarias. 

O  fim  geral  da  arte  é  a  procura  e  a  imitação 
do  bello  que  a  intuição  nos  revela  na  natureza. 

O  fim  da  arte  clássica  é  o  ideal,  isto  é,  a  investiga- 
ção de  um  bello  um  pouco  excepcional  no  verdadeiro, 
do  útil  edas  formas  naturaes.  Exagerandoo  seu  prin- 
cipio e  afastando-se  muito  do  real  á  procura  do  ideal, 
pinta-se  uma  natureza  de  convenção. 

O  Romantismo  c  o  nome  da  revolução  que^quiz 
conduzir  a  arte  ao  sentimento  da  realidade.  Mas 
foi  alem  do  fim;  e,  em  vez  de  procurar  o  bello  no 
real,  julgou  encontral-o  no  commum,  que  levou 
até  ao  trivial,  e  ornal-o  pelo  extraordinário,  que 
perseguiu  até  ao  desagradável,  isto  é,  até  ao  con- 
trario do  verdadeiro,  do  útil  e  da  forma  natural. 

Esta  revolução  produzio  duas  escolas  românti- 
cas, que  ora  se  separam,  ora  se  prestam  mutua- 
mente os  seus  erros:  são  o  Realismo  e  o  Fanla- 
sismo. 

O  Realismo  faz  consistir  o  bello  na  imitação 
pei feita  do  ri>al  e  na  pholograpliia,  por  assim  di- 
zer, da  natureza.  É  o  Romantismo  prosaico. 

O  Fanlasismo  comparte  com  o  Realismo  o  de- 
feito de  multiplicar  as  individuações  e  as  descrip- 
ções  estudadas  a  uiicroscopio,  e  distingue-se  por 
uma  afiectação  de  independência,  pelo  gosto  do 
extraordinário  e  pelo  descommunal  das  proporções, 
elfeito  de  óptica  devido  ao  processo. 

A  arte  néo-classica  é  uma  escola  de  conciliação  que 
colloca  u  bello  na  alliança  medida  do  real  e  do 
ideal. 


BAZIN 

Sinologo  fiancez,  nasceu  em  Sainl-Crice  (Scine- 
et-Oise)  em  26  de  março  de  175)9  efalleceuem  Pa- 
ris nos  principies  de  1803.  Desde  18i3  professava 
o  curso  de  chinez  vulgar  na  escola  das  linguas 
orientaes  vivas.  Publicou  no  ISonvean  jourual 
asíal/f/ue  numerosos  trabalhos  acerca  da  lingua  e 
liltcralura  moderna  da  CJiina;  entre  outros  muitos 
um  estudo  importante  intitulado  le  Siécle  des  Youcn, 
ou  Tableau  hislorique  de  la_  liUeraiure  chinoise 
(18o0 — 18'>2.j  No  Univcrs  píltoresque  da  livraria 
Didot,  a  Cliine  moderne  de  Bazin,  que  loi'ma  o  com- 
plemento da  Cliine  andennc  de  Pautliier,  é  um 
dos  mui  raros  volumes  que  podem  dar  algum  va- 
lor serio  áquella  vasta  compilação. 

A.  M\Y 


ESCRÚPULOS  HONROSOS  DE  DOIS  HOMENS 
ILLUSTRES 

Mungo-Park,  o  primeiro  c  talvez  ainda  hoje  o 
mais  interessante  dos  exploradores  da  Africa,  li- 
nha o  costume  de  contar  a  miude,  em  intima  so- 
ciedade, muitos  incidentes  curiosos  c  engraçados 
da  sua  celebre  viagem  à  procura  do  Niger,  inci- 
dentes que  havia  omiltido  na  obra  que  imprimio. 

Um  dos  seus  amigos  admirando-se  d'isto,  per- 
guntou-lbc  um  dia  a  rasão. 

— Sabe,  replicou  Mungo-Park,  que  fui  a  Africa 
com  a  missão  expressa  de  explorar  certas  regiões; 
ora,  importava  muito  que  não  somente  as  pesqui- 
zas  fossem  feitas  com  consciência,  mas  que  os  re- 
sultados dados  ao  mundo  fossem  Ião  criveis  como 
exactos. 

— De  accordo,  tornou  o  amigo;  mas  uma  vez  que 
nas  muitas  historias  que  nos  tem  contado,  coisa 
alguma  se  nota  que  não  soja  Ião  real  como  tudo 
quanto  publicou;  i  porque,  sem  motivo,  privar  o 
publico  de  factos  interessantes  e  tirar  ao  livro  um 
exilo  ainda  mais  feliz? 

— Não  andei  de  levante  no  negocio,  respondeu 
o  viajante.  É  possível  que  a  narração  d'essas  aven- 
turas dessem  á  obra  uma  voga  ephémera;  mas  eu 
punha  a  mira  mais  alto.  Entendi  que  havia  sido 
chamado  a  cumprir  um  grande  dever.  Encarrega- 
do de  um  trabalho  importante,  desempenhei-o  con- 
forme a  minha  capacidade  o  permiltio,  e,  cum- 
prida a  tarefa,  senli-me  ligado  pela  obrigação,  não 
menos  grave,  de  dar  á  minha  narrativa  um  tal  ca- 
racter de  authenticidade,  de  boa  fé,  de  que  pessoa 
alguma  podesse  suspeitar  a  menor  parte.  Se  me 
abstive  de  contar,  aos  que  não  me  podem  conhecer 
senão  pelo  meu  livro,  as  anecdolas  que  se  afastam 
do  curso  ordinário  das  coisas,  e  que  não  me  atrevo 
a  dizer  senão  aos  meus  Íntimos  amigos,  é  porque 
temi  que  um  fado  estranho,  por  mais  averiguado 
que  tivesse  sido,  fosse  enlYaqrecer  a  auctoridade 
do  todo;  não  (jueria  correr  esse  risco. <;  Deveria 
eu,  pelo  fútil  prazer  de  fazer  i-ir  alguns  ociosos, 
ou  fazel-os  abrir  muito  os  olhos,  comprometter  a 
minha  reputação  de  veracidade,  da  qual  sou  res- 
ponsável perante  o  publico,  que  me  elegeu  seu  ser- 
vidor e  delegado  no  vasto  campo  das  descobertas? 

Depois  da  morte  de  Mungo-Park,  um  escriptor 
que  preparava  uma  biograpliia  d'este  consciencioso 
e  perseverante  viajor,  dirigio-se  a  um  dos  seus 
amigos,  dotado  de  uma  memoria  das  mais  felizes, 
e  pediu-lhe  a  communicação  d'essas  anecdolas  cu- 
ja fama  havia  transpiíado  fora  do  pequeno  circulo 
d'escolhidos. 

Este  amigo,  que  não  era  outro  senão  Waller 
Scott,  refiectio  -um  momento  c  disse: 

— Não,  não  repetirei  uma  só  palavra,  embora 
me  estejam  bem  presentes,  e  eu  convencido  da  sua 
yeraciílade.  Uma  vez  (|ue  o  meu  honrado  amigo 
Mungo-i'ark,  não  julgou  acertado,  depois  de  ma- 
duro exame,  dal-as  á  publicidade,  eu  faltaria  á  sua 
memoria  contribuindo  a  fazel-as  conhecer  depois 
da  sua  morte. 


4  60 


O  PANORAMA 


IMAGEM  DA  VIDA 

...Embarquei  de  noite...  Coisa  alguma  se  po- 
dia distinguir...  Pouco  a  pouco  foi  apparecendo  a 
aurora;  os  objectos  que  me  rodeavam  tomaram  a 
principio  formas  confusas,  depois  foram-se  tor- 
nando mais  claras,  até  que  em  fim  o  dia  moslrou- 
se  inteiramente.  Este  foi  cheio  de  peripécias  e 
de  interesse:  diversas  perspectivas  no  horisonte; 
ora  borrascas,  ora  bonança  e  bom  tempo;  uma 
companhia  distincta,  conversações  variadas,  A 
viagem,  que  no  momento  da  partida  me  pare- 
ceu devia  ser  longa,  não  o  foi.  O  tempo  desap- 
parecia  com  o  rápido  andar  do  navio...  De- 
pressa declinou  o  sol;  as  risonhas  cores  apagaram- 
se  e  d'ahi  a  pouco  apenas  se  divisava  no  espaço 
essa  infinidade  de  estrellas  que  nos  enviavam  de  to- 
das as  partes  a  sua  mysteriosa  luz...  Mas  eu  sa- 
bia que  o  porto  não  estava  longe,  tinha  confiança 
em  quem  nos  guiava,  e  fatigado,  do  dia,  adormeci 
em  paz. — Tal  é,  me  parece,  a  historia  de  uma 
vida. 


O  JANOTA  LITTERATO 

Do  janota  lilleralo 
Eu  vou  tentar  a  pintura ; 
Se  ficar  bom  o  retrato 
Heide  comprar-lhe  moldura, 
Obra  de  laltia  em  ornato. 

Não  faltarão  estrangeiros 
A  pasmar  dos  meus  pincéis; 
Conto  já  com  bons  dinheiros, 
E  vencer  os  Raphaeis, 
Que  em  lojas  pintam  letreiros. 

Um  janota  bem  pintado 
Enfeita  sempre  uma  sala, 
Na  parede  pendurado; 
Toda  a  bella  se  regala 
Em  lhe  gabar  o  frisado. 

E  se  ajunta  este  idiota 
Ser  esbelto  ao  ser  la  fui, 
Como  prodígio  se  nota. 
Porque  c  ouro  sobre  azul, 
Luz  da  testa  até  á  bota. 

Comecemos:  —  bigodinho 
Nas  guias  enserolado, 
O  cabello  frizadinho, 
O  gargalo  levantado 
A  saltar  do  colarinho. 

Chapellinho  posto  á  banda 
Em  ar  de  certo  desdém, 
Camiza  de  fina  hollanda, 
CoUete,  que  mostra  bem 
Quanto  nos  bolsos  chalo  anda. 

Casamiirilio  aprimorado, 
Botirina  de  polimento, 
Um  charuto  desmarcado, 
Que  lança  fumos  ao  vento... 
E  eis  o  janota  esboçado. 

Mas  janota—  e  litterato  — 
E  tão  chistosa  figura, 
Que  se  requer  fino  lacto 
Em  quem  fizer  a  pintura 
Desle  sábio  carrapato. 


Comtudo  para  pintal-o 
N'um  botequim  vou  entrar : 
Eis  lá  vejo  um  a  camllo 
N'uma  cadeira,  a  fumar 
Monstruoso,  havano  talo. 

Falia  d'um  drama,  portento 
Que  saiu  da  sua  penna: 
«Original  pensamento  1  » 
Diz,  sem  ver  que  á  lusa  scena 
Tem  ido  eguaes  mais  d'um  cento. 

Eis  surge  um  severo  crilico 
A  castigal-o,  sem  dó; 
Fica  o  auctor  paralytico, 
Afoga  as  magoas  n'um  grog, 
Tacha  o  censor  d'impolUico. 

Outro  apregoa  o  seu  chiste 
Por  diversos  botequins, 
Diz  que  n'elle  o  sal  existe, 
Que  leiam  seus  folhetins, 
E  acaba  tudo  que  é  triste. 

Este  com  grande  ousadia 
A  um  bom  auctor  faz  offensa. 
Outro  mui  parvo  elogia... 
E  os  aprendizes  da  imprensa 
Corrigem-lhe  a  orthographia ! 

Aquelle  em  phrases  mui  ricas 
Louva  as  modas  invasoras, 
Gaba  das  bellas  as  nicas, 
E  para  agradar  ás  senhoras 
Faz  o  papel  de  maricas 

Descrevendo  uma  soirée 
Aquelfoutro  estraga  a  tinta; 
Um  grande  sábio  se  crê... 
Mas  em  loleima  requinta 
Cuidando  que  alguém  o  lê! 


Fiz  um  péssimo  retrato... 
É  bem  grande  a  minha  dor! 
Trabalhei  por  ser  exacto, 
Mas  não  pude  ser  pintor, 
Nem  fingir  de  lilteralol 

Quiz  pintar...  e  causei  dó 
Por  não  estudar  cm  Roma!.. 
Dá-me  ó  Marrarr  um  lirò, 
Que  hei-de  guardal-o  em  redoma, 
E  polo  sobre  um  tremo. 


J.   I,   D  ARAÚJO 


— Um  tyranno. 
Quando  deixa  de  o  ser,  c  sempre  escravo. 

Garrett 

A  vingança  é  viriudc  e  c  peccado; 
l*eccado  (;m(|uanlo  mal  a  executamos, 
Virtude  emquanlo  só  por  zelo  honrado 
As  afTronlas  do  próximo  vingamos. 

Braz  Garcia  de  Mascarenhas. 


Typ.  Franco-Portugueza.  Rua  do  Tlicsouro  velho,  C 


21 


o  PANORAMA 


i61 


UMA  RUA  DE  ALBANY 

Os  Eslados  Unidos  acabam  de  passar  por  uma 
longa  e  dolorosa  crise.  A  republica  fundada  por 
Wasliinglon,  que  alé  aqui  era  aponlada  como  o 
modelo  dos  governos  republicanos,  e  a  demonslra- 
ção  evidente  da  bondade  d'essas  insliluiçOes,  sér- 
vio por  alguns  annos  de  argumento  aos  monar- 
chislas,    que,   sorrindo-se  com    desdém,   aponta- 


vam Iriumphanles  para  a  guerra  titânica,  em  que 
se  debatiam  os  estados  da  America,  e  diziam;  Ve- 
de o  fructo  das  vossas  Iheorias,  vede-o  no  próprio 
paiz,  que  a])iesentaveis  como  exemplo  da  suapro- 
iicuidade. 

INão  acreditamos  que  essa  deplorável  guerra  quo 
inundou  de  sangue  os  leríeis  plainosdo  novo  mun- 
do abale  por  forma  alguma  as  convicções  dos  de- 
mocratas; parece-nos  que  pelo  contrario  as  deve 


Uma  rua  do  Albanj' 


robustecer.  A  republica  americana  atravessou  ura 
periodo  doloroso,  como  todos  os  eslados  podem 
atravessar,  como  todos  atravessam  quando  no  seu 
seio  se  levanta  uma  questão  a  que  esteja  ligada  a 
sua  existência  polilica  Ouando  uma  monarchia 
absoluta  se  transforma  em  monarchia  constilucio- 
nal,  ha  lucla  inevitável;  ha  lucta  muito  maior  (juan- 
do  se  lenia  a  abolição  de  direitos  feudacs,  de  pri- 
vilégios seculares  de  uma  classe,  ^como  não  have- 
ria uma  lucla  de  gigantes  quando  se  lenlou  abo- 
ir  a  escravatura  n'um  paiz  cheio  de  força  e  de 
vitalidade,  a  escravatura  essa  instituição  seculai', 
que  estavam  ligados  tão  poderosos  interesses? 
Quem  se  pôde  espantar,  por  conseguinte,  de  que, 
no  momento  de  se  operar  essa  grande  reforma, 
louvesse  lucta?  Quem  se  pode  espantar  de  que 


essa  lucla  foãse  terrível,  sabendo  quaes  siío  osim- 
mensos  recursos  d'cssa  tão  prospera  republica? 
Quanto  mais  vigorosos  são  os  combatentes,  tan- 
to mais  sanguinário  c  o  combate!  Mas  o  que 
devemos  admirar  ó  como,  no  meio  d'essc  formi- 
dável calaclvsmo,  se  conservou  o  respeito  da  le- 
galidade, não  havendo  mais  do  que  uma  scissão 
na  republica!  O  que  devemos  admirar  é  não  ter 
ido  cair  o  poder  nas  mãos  de  algum  soldado  fe- 
liz! O  (jue  devemos  admirar  é  a  magestosa  sere- 
nidade com  que  a  republica,  linda  a  lucla,  voltou 
ao  seu  eslado  normal,  sem  (|ue  uma  só  das  suas 
insliluicões  i)oliticas  perecesse  no  naufrágio! 

Oescidpem-nosa  digressão;  eradillicil  de  evitar. 

Vamos  já  ao  assumpto  a  que  a  gravura  nos 
chama. 


4  62 


O  PANORAMA 


A  gravura  representa  uma  rua  de  Albany,  cida- 
de das  mais  anligas  da  União,  eséde  do  governo 
do  mais  poderoso  Estado  do  Norte,  o  de  Nova- 
York. 

A  cidade  de  Albany  liça  situada  na  margem 
direita  do  nudson,no  meio  de  um  território  fér- 
til e  bem  cultivado.  O  lludson,  que  vai  desembo- 
car no  Oceano  junto  da  populosa  e  commercial 
cidade  de  Mova- York,  c  accessivel  até  Albany  a 
barcos  de  vapor,  que  põem  em  communicação  a 
cidade  que  deu  nome  ao  estado  com  a  cidade 
que  foi  escolhida  para  capital.  Um  caminho 
de  ferro  liga  Albany  com  Boston;  duas  estra- 
das commerciaes,  uma  que  é  a  via  terrestre,  ou- 
tra maiitima,  o  canal  Erié,  ligam-n'a  com  Buffalo, 
centro  do  commercio,  com  as  regiões  de  Oeste  e 
com  o  Canadá.  Por  isso  Albany  e  o  ponto  de  pas- 
sagem obrigado  de  todos  os  emigrados  europeus, 
que  vão  tentar  fortuna  n'esses  vastos  ermos  ainda 
inexplorados. 

Esta  cidade,  fundada  em  16Uí  pelos  Hollande- 
zes,  conta  actualmente  perlo  de  50000  habitantes. 

Os  seus  edilicios  mais  notáveis  são  o  Capitólio, 
ou  palácio  do  governo,  feito  de  mármore  branco, 
um  Iheatro  e  um  museu. 


D.  JORGE  DE  MASCARENHAS,  GOVERNADOR 
DE  MAZAGÃO 

Os  nossos  chronistas  habitualmente,  e  mesmo 
os  nossos  modernos  historiadores,  deslumbrados 
pelo  esplendor  da  nossa  grande  época,  pelo  bri- 
lho das  façanhas  de  Duarte  Pacheco,  do  génio  mi- 
litar de  Affonso  de  Albuquerque,  só  consideram 
como  digno  da  sua  attenção  esse  glorioso  cyclo 
que,  abrindo-seno  íim  do  século  XV,  no  momen- 
to em  que  Vasco  da  Gama  põe  o  pé  na  tão  alme- 
jada praia  do  Indostão,  se  fecha  no  llm  do  século 
XVI  no  lúgubre  instante  em  que  os  valentes 
portuguezes  perdem  de  vista  o  doirado  elmo  de  D. 
Sebastião  no  meio  das  ondas  de  mourisma,  que, 
tlagelladas  pelo  veflto  da  sua  espada,  de  lodos  os 
lados  o  piocuravam  subverter. 

Comludo  e  necessário  jiensarmos  que  a  gloria 
portugueza  não  se  resume  Ioda  n'essa  época;  é 
necessário  não  nos  dei\ai'mos  por  tal  forma  ce- 
gar pelos  esplímdorcs  da  boa  fortuna  que  só  con- 
sideremos conm  dignos  da  immortalidade  os  gran- 
des feitos  dos  nossos  maiores  no  tempo  em  que 
um  destino  propicio  bafejava  as  quinas  portugue- 
zas.  Não  supponhâmos  que  o  vasto  império  lusitano 
se  desmoronou  sem  lucta,c  que  os  lilhos  dos  Cas- 
tros e  dos  Atiiaydcs  renegaram  logo  a  herança  da 
gloria  que  seus  pais  \\m  haviam  deixado.  Nãol 
Portugal  luctou  por  grande  espaço  de  tempo  con- 
tra a  má  fortuna,  e  a  historia  da  sua  (pieda  he- 
róica não  é  menos  digna  da  nossa  attenção  do  que 
a  historia  do  seu  glorioso  desenvolvimento.  L(!van- 
temos  o  negro  veo,  que  nas  nossas  chronicas  es- 
conde os  sessenta  annos  do  captivciro  hespanhol, 
como  na  galeria  dos  retratos  dos  doges  cm  Vene- 
za esconde  um  véu  igualmente  negro  o  sitio  em  que 
devia  estar  o  retraio  de  Marino  Ealiero,  decapita- 


do por  traidor.  lia  razão  para  isso;  Portugal  tam- 
bém fora  decapitado,  e  decapitado  por  ter  traí- 
do, em  benelicio  de  uns  frades  perversos  e  fa- 
náticos, a  alta  missão  civilisadora,  que  a  Pro- 
videncia lhe  coníiara. 

Levantemos  pois  esse  véu,  e  convençàmo-nos  de 
que  a  lista  dos  grandes  feitos  dos  portuguezes  não 
linda  na  segunda  deléza  de  Dio;  convençàmo-nos 
até  de  que  talvez  fosse  necessário  mais  desespera- 
do heroísmo  aos  soldados  de  então  para  caírem 
com  gloria,  do  que  aos  seus  antepassados  para 
lançarem  os  fundamentos  do  seu  immenso  impé- 
rio. Se  estes  tiveram  que  luctar  com  os  índios, 
que  defendiam  a  sua  pátria  e  a  sua  religião,  com 
os  valorosos  Musulmanos,  que  eram  n'essa  época 
o  terror  da  Europa,  tiveram  aquelles  que  luctar  com 
esses  mesmos  Musulmanos,  e  além  d^isso  com  essa 
raça  enérgica,  forte,  e  obstinada  dos  IloUandezes, 
com  os  valentes  soldados,  que  fizeram  recuar  os 
velhos  terços  hespanhoes,  com  os  companheiros 
heróicos  do  conde  de  Egmont,  do  conde  d'Horn, 
de  Maurício  de  Nassau,  de  Guilherme  o  Taciturno, 
de  Marnix  de  Sainte-Aldegonde;  e  em  que  cir- 
cumslancias  emprehendiam  essa  lucta!  quando  es- 
tavam sujeitos  a  um  domínio  estrangeiro  e  odiado, 
quando  viam  a  sua  pátria  enluclada,  quando  ti- 
nham de  combater  pelos  oppressores  d'elles,  quan- 
do os  seus  mais  valentes  irmãos  de  armas  lhes 
eram  arrancados  para  irem  ensopar  no  seu  sangue 
as  terras  frigidas  de  Flandres,  quando  a  politica 
hespanhola  parecia  tender  unicamente  a  sacrifi- 
car, a  enfraquecer  o  reino,  (jue  approximára  Fi- 
lippe  II  do  sonho  doirado  da  monarchia  universal. 

Contaremos  um  dia  algumas  das  façanhas  com  que 
os  nossos  antepassados  se  oppunham  ao  desenvol- 
vimento do  poder  hollandez;  hoje  evocaremos  ape- 
nas das  trevas  do  passado  um  dos  vultos  heróicos, 
que,  nas  nossas  praças  africanas,  continuavam  as 
tradições  dos  heroes  de  Ceuta  e  Arzilla,  e  vinga- 
vam nos  mouros  o  desastre  de  Alcacer-Kebir,  que 
fora  origem  de  tamanhas  desventuras. 

Em  I()16  era  governador  da  praça  de  Mazagão 
um  valente  lidalgo  porluguez,  D.  Jorge  de  Mas- 
carenhas, que  foi  depois  conde  de  Castellonovo. 
Era  homem  da  velha  raça  dos  combatentes  da  Africa, 
pelejador  inlrepido,  (jue  só  folgava  de  viver  no 
meio  do  ardor  das  batalhas,  que  tinha  o  cheiro  da 
pólvora  pelo  mais  delicioso  perfume,  e  as  corre- 
rias contra  os  árabes  pelo  festim  mais  deleitoso. 

Elle  é  que  podia  dizer  com  a  bailada  antiga 

Miiilias  galas  são  as  armas 
Meu  tlescaiiço  o  pelejar 

Durante  o  seu  governo  pouco  descanço  tiveram 
os  mouros.  Não  esperava  elle  que  o  viessem  ata- 
car; mas  tomando  a  iniciativa,  ia  á  testa  dos  seus 
cavalleiros,  mal  assomava  no  céu  a  estreita  d'alva, 
espalhar  o  terror  nos  aduares  dos  lilhos  do  deser- 
to. Sempre  de  espada  cm  puuho,  sempre  armado 
de  ponto  em  branco,  i)arecia  aos  seus  compatrio- 
tas o  espectro  gigante  de  uma  época  já  extincta, 
o  ultimo  dos  com|)anheiros  de  D.  João  I,  o  ulti- 
mo dos  bravos  pelejadores  de  Aljubarrota,  o  dos 


intrépidos  conquistadores  de  Ceuta. 


o  PANORAMA 


63 


No  dia  5  de  julho,  pois,  do  anno  de  1616  qui- 
zeram  os  beduínos  tomar  vingança  da  constante 
inquietação  em  que  D.  Jorge  os  linha,  e  j)rocla- 
niando  os  seusmarabuíos  de  novo  a  guerra  santa, 
invocando  as  recoi-dações  de  Aicacer-Kehir  que 
liceu  sendo  para  lodo  o  sempre  a  grande  gloria 
nacional  dos  marroquinos  (1)  vieram  em  grande 
numero  e  em  grande  grila  insultar  as  muraliias 
de  Mazagão.  Não  era  I).  Jorge  de  Mascarenhas  ho- 
mem que  suj)porlasse  muito  tempo  essas  [)rovo- 
cações,  abrigado  por  traz  dos  muros  da  sua  ci- 
dade. Poz-se  á  testa  de  um  j)unlKido  de  portu- 
guezes,  e  saio  a  planície  rasa  a  combater  com  os 
mouros.  Esperavam-n'o  elles  bem  apercebidos,  e, 
deixando-o  avançar  levado  pelo  seu  ardor  impe 
luoso,  descobriram  de  súbito  grandes  forças  em- 
boscadas, por  entre  as  quaes  se  viram  os  porlu- 
guezes  obrigados  a  retirar.  Mas  D.  Jorge  de 
Mascarenhas,  todo  alíbgueado  pelo  ardor  da  pele- 
ja e  levado  pelo  seu  ardor  cavalheiresco,  despre- 
sando  os  soldados  que  fugiam  e  vollando-se  para 
os  poucos  fidalgos  que  o  acompanhavam,  bradou- 
Ihes: 

— Pelejai,  cavalleiros,  que  se  perdem  os  solda- 
dos e  aquella  bandeira  de  el-rei;  voltai-vose  vede 
como  o  vosso  capitão  morre. 

E,  cravando  as  esporas  no  fino  murzello,  arre-j 
messou-se  nos  moiros,  sem  ver  se  alguém  o  se- 
guia. Ninguém  o  pôde  acompanhar  na  impetuosa 
carreira,  e  só,  a  pouca  distancia  d'eHe,  mas  ten- 
tando debalde  pôr-se-lhe  a  par,  galopava  o  adail 
IJraz  Gonçalves,  que  lhe  dizia!  «Senhor  para  que 
quereis  morrer?» 

Não  o  ouvia  D.  Jorge,  e,  com  a  lança  em  riste 
entrava  no  mais  cerrado  da  brava  turba  dos  árabes, 
derrubando,  ferindo  e  dispersando  os  cavalleiros  do 
deserto,  que  revoluteavam  emtovnod'elle,  espanta- 
dos de  tanta  audácia.  Com  uma  lançada  derribou  um 
moiro,  mas,  acudindo  outro,  recebeu  o  valente  ca- 
valleiro  uma  lançada  no  peito;  já  a  este  tempo  se 
haviam  approximado  alguns  cavalleiros  |)orlugue- 
zes;  com  elles  rompeu  o  governador,  continuando' 
a  fazer  proezas  dignas  d'esses  heróes  dos  roman- 
ces de  cavallaria,  de  que  Cervantes  zombara  ha- 
via pouco  tempo.  Guando  voltou  para  junto  dos 
seus  cavalleiros  trazia  cinco  lanças  no  corpo, 
quatro  espetadas  nas  roupas,  por  baixo  das  quaes 
n'essa  época  se  escondia  a  armadura,  e  a  oulra 
quebrada  na  mão.  Julgavam  os  porluguezes  que 
vinha  linalmenle  dar  a  ordem  da  retirada;  enga- 
navam-se.  1).  Jorge  vinha  apenas  procurar  oulra 
lança  porque  a  sua  lhe  licára  embebida  no  corpo 
de  um  moiro.  Armado  de  novo,  tornou  a  entrar 
no  mais  acceso  da  peleja.  Defendiam-se  vigorosa- 
mente alguns  cavalleiros,  entre  os  quaes  o  alferes 
que  hasteava  a  bandeira,  contra  os  aiabes  que  for- 
cejavam por  lh'a  arrancar.  (^Ihegou  D.  Jorge,  como 
um  raio,  em  auxilio  dos  seus  compatriotas,  mas 

(1)  Conta  Lcon  PIl'C  na  sua  historia  das  guerras  rlc  Algur, 
que  na  bataUia  d'Isly,  ganha  pelo  marechal  Bugeaud  coiit.ia  as  tro- 
pas do  imperador  de  Marrocos,  andavam  os  n)araljutos  percor- 
rendo as  lileirns  mnsiilnianas.  animando  os  soldados  ( om  as  lera- 
l)ranças  da  batalha  d'Alcaçer-KeLir.  Perto  do  trcssecuios  depois  ain- 
da as' tradições  populares  conservam  a  memoria  d'aquella  terrível 
batalha. 


os  inimigos  já  o  temiam  tanto,  que  não  ousaram 
esperal-o.  Abrindo  um  largo  circulo  em  lorno 
d'elle,  arremessaram-lhe  pedras,  uma  das  quaes, 
bateu  na  cabeça  do  cavallo,  e  matou  o  Uno  cor- 
cel. Caio  1).  Jorge  em  pé,  e  assim  aparou  o  em- 
bate dos  árabes,  que  o  assaltaram  com  novas  pe- 
dradas, uma  das  quaes,  dando-lhe  no  elmo,  lh'o 
deitou  ao  chão,  porque  o  trazia  desatado.  Assim  com- 
bateu de  cabeça  descoberta,  i'eccbendo  duas  feri- 
das na  mão  esqueida,  até  que  os  porluguezes, 
caindo  em  massa  sobie  os  inimigos,  livraram  o 
seu  capitão,  e  voltaram  com  elle  para  dentro  dos 
muros  da  cidade,  onde  lodos  os  receberam  com  o 
enlhusiasmo,  que  estas  façanhas  dignas  da  idade 
d'oiro  da  cavallaria  deviam  facilmente  inspirar. 

Estas  façanhas  conta-as  xVnlonio  de  Sousa  Ma- 
cedo no  seu  livro  intitulado  Flores  do  Espana, 
Excellencias  de  Portiifjal,  livro  escriplo  em  hes- 
panhol,  dedicado  a  D.  Filippe  IV,  e  publicado  em 
1630.  Tudo  isto  parece  indicar  que  b  seu  auclor, 
que  linha  n'êsse  tempo  a  idade  de  vinte  e  dois 
annos,  era  adherenle  ao  jugo  hcspanhol,  eque  es- 
tava resignado  á  união.  Pois  apezar  d'isso  n'esse 
livro  dedicado  ao  rei  de  Ilespanha,  se  percebe  o 
ódio  latente  que  animava  os  porluguezes  contra 
os  seus  dominadores,  e  o  bom  do  escriplor,  ao 
passo  que  enumera  os  grandes  feitos  de  1).  Jorge 
de  Mascarenhas,  não  se  esquece  de  dizer  que  eram 
elles  tamanhos,  e  tão  assombrosas  as  forças  do 
inimigo  que,  estando  era  Mazagão  um  soldado  hes- 
panhol,  e  vendo  a  grande  quantidade  de  ára- 
bes, que  se  apinharam  em  torno  da  cidade  foi 
para  casa  e  morreu  de  medo.  (1)  Isto  é  dito  sem 
a  mais  leve  reflexão,  e  com  a  mais  perfeita  inno- 
cencia.  Mas  eu  estou  vendo  o  sorriso  magano, 
que  se  havia  de  desenhar  nos  lábios  dos  leitores 
porluguezes,  quando  chegavam  a  este  ponto,  e  as 
bulhas  que  haveria,  nas  ruas  de  Lisboa  por  causa 
do  fado  mencionado  pelo  travesso  escriplor. 

Não  nos  despedimos  ainda  d'este  nobre  vulto  de 
D.  Jorge  de  Mascarenhas,  d'este  heróe  da  nossa 
decadência.  No  segundo  capitulo  veremos  que  o 
valente  governador  de  Mazagão  não  era  menos  ler- 
rivel  no  mar  contra  os  corsários  argelinos,  do  que 
na  terra  contra  os  cavalleiros  bereberes. 

(Conlinua.) 

PlNUEinO   CUAUAS 


VOLTAIRE 


Continuação 


O  theatro  francez  começa  em  Pedro  Corneille; 
antes  d'elle  encontramos  apenas  o  cahosdo  poema 
dramático.  Racine  fez  o  elogio  d'esle  grande  ho- 
mem, indicando  a  sua  alta  signiticação  lilleraria. 
A  apotheose  do  auclor  do  Cid  c  notável  na  bocca 
do  poeta  da  Al/ialia:<í  Quelles  obUgalions  ne  lui 
a  poinl  nolre  poésic  l  Dans  qnellc  élat  ne  se  Irouvoít 

{{)  Otras  vitorias  muy  grandes  o  sefialadas  tuvo  Mnga/au  mien- 
tras  D.  Jorge  Masearenas  la  governo,  entro  las  qiiales  fueron  contra 
lãn  gran  numero  de  Moros.  que  hallando-se  ali  un  Gastellano  do 
Olva,  y  llegnnilo  ai  muro,  vii  iido  tantos  enemigos,  y  el  desigual 
partido  de  los  nnestros,  que  eun  ellos  amiavan  poleando,  se  fuo  para 
su  casa,  y  murio  subitamente,  parece  que  con  ânsia  de  dcsconhar  ae 
la  vitoria,  y  loner-se  yá  por  cativo  ó  muerto. 

FLOliES  DE   ESPANA  PAG.   223. 


-164 


O  PANORAMA 


la  scéne  françoiselorsqu'il  commeuça  à  travaillcr! 
Que!  (lesordre!  qucl  írrc(ju(arilé\  .\iU  f/ouí,  niille, 
co)uioissa)ice  dcs  véritables  beauiés  du  {hcàfir.y> 
Corneiile  apparcce,  c  com  elle  a  aiic  dramática 
enlra  no  veicladeiro  caminho  da  razão,  para  subir, 
cercada  de  pompas,  ale  á  elevada  allura  en\  que 
depois  a  conlemplamos.  Corneiile  é  a  força,  o  ím- 
peto, a  vehemencia  nas  paixões,  a  niageslade,  a 
magnilicencia  no  eslylo.  Nascido  em  um  sé- 
culo eivado  pelo  mau  goslo,  lucia  conlra  elle, 
e  consegue  quasi  leval-o  de  vencida.  A  mor- 
dacidade e  o  fel  dos  émulos  que  desbaratara, 
cae-lhe  em  cliuva  sobre  os  louros  nascentes,  mas 
os  louros  reverdecem  mais  viçosos  ainda,  e  na  larga 
sombra  que  projectam  occuítam  os  Scudérys  rai- 
vosos. A  llespaniia  é  o  jaidim  opulento  onde  elle 
colhe  as  mais  bellas  ílores,  para  depois  fabricar 
os  favos  do  seu  mel  delicioso.  Guillen  de  Castro 
inspira-o.  D'este  volver  de  olhos  constante  para 
alem  dos  Pyrenéos,  d'esle  amor  cego  pela  iiyper- 
bole  castelhana,  procede,  logicamente,  o  principal 
defeito  de  Corneiile;  a  allectação.  Eulendamo-uos 
sobre  esta  palavra. 

A  aíTeclação,  nas  admiráveis  creações  do  poeta 
dos  Jloracios,  não  consiste  na  frivolidade  elegante, 
110  dizer  amaneirado,  no  porte  cortezãoe  delambi- 
do, ao  contrario;  rezide  na  bravata  enfollada,  no 
tom  de  mata  moiros  com  que  se  expressam  os  seus 
heroes. 

Por  vezes  sentimos  nas  suas  tragedias  um  certo 
rumor  de  farruscas,  e  uma  parlenda  guttural  de 
asturianos  façanhosos.  Camillo,  imprecando  con- 
tra Roma,  tem  versos  de  um  exagero  manchego. 
Eis  ao  que  eu  chamo  a  allectação  de  Corneiile,  e  nada 
mais. 

D'este  ponto  em  diante  o  Ihealro  francez  pro- 
gride. Não  è  o  nosso  íim  acompanhal-o  no  seu 
andamento  constante,  e  estudar-lhe  as  suas  phazes 
diversas.  Citámos  o  iniciador  do  poema  dramático 
em  França,  por  nos  parecer  impossível  deixar  de 
commemoral-o  n'um  estudo  d'esta  Índole.  A  nossa 
missão  é,  proseguindo  na  apreciação  litteraria 
de  Voltaire,  deitar  sobre  este  vulto  a  luz  que  lhe 
é  divida. 

Voltaire  forma,  com  Racine  e  Corneiile,  uma 
das  mais  bellas  trilogias.  Collin-d'narleville  gru- 
pou-os  em  alguns  versos  memoráveis.  No  poeta  do 
Cinna  encontramos  a  altivez  cavalleirosa;  no  de 
Andromaca  a  suavidade  amoravel,  no  de  .Mcrope 
o  calor  santo  dos  nobre  allcctos,  achainma  do  en- 
thusiasmo,  (Jvivo  manancial  dasscenaspalheticase 
das  commoções  profundas  rebenta  n'elle  vigoroso. 
//  a  passionné  Ic  diafofjue  et  les  situai ions,  — diz 
Emile  Deschamps  com  extrema  verdade. 

Educado  nos  bellos  modelos  antigos,  Voltaire 
soube  lirar-lhes  o  mimo,  o  beijo  dos  seus  primo- 
res. Por  isso  n'uma  das  representações  do  Orcslc, 
vendo  o  publico  levaiitar-se  e  proromper  em  bra- 
vos, elle,  levado  pelas  generosas  eífusões  da  sua 
alma,  levanlou-se  também,  gritando:  Apjilandi, 
applaudi  atlienicnscs;  isto  é  o  jmro  Sojihoclcs!)) 

De  todas  as  suas  tragedias  a  Zaira  e  aíjuepara 
nós  realça  mais  brilbanlemenle.  lia  n'ella  a  ner- 


turbação,  o  movimento  dramático,  natural  sempre, 
caloroso  sempre,  agitado,  eloquente,  cortado  p-elos 
estremecimentos  do  terror  ou  da  esperança;  as 
phrazes  saem  í\ú  coração  espontâneas,  simples, 
graciosas,  com  todo  o  perfume  dos  íntimos  aíTec- 
tos,  com  lodo  o  fogo  das  paixões  violentas.  O  se- 
gundo acto  é  ínexcedivel.  Lusignan,  velho,  cap- 
livo,  oppresso  pela  desgraça,  vergado  pelas  recor- 
dações mais  atUiclivas,  vendo  de  um  lado  caluda 
a  religião  j)orque  elle  combatera  tantos  annos,  c 
do  outro  perdidos  os  íilhos  que  idolatra,  Lusignan 
respira  um  não  sei  que  de  sobrenatural  e  de  ce- 
leste. Zaira  entra,  com  o  rubor  nas  faces,  e  os 
olhos  inundados  de  lagrimas.  Ohl  como  esta  scena 
rivalisa  com  (pianlo  o  Iheatro  francez  possue  de 
mais  gabado;  como  ella  nos  impressiona  com  toda 
a  sua  sim|)licidade  all^ecliva.  Zaira  confessa  ludo; 
a  momentânea  alegria  do  velho  será  trocada  pelas 
mais  lancinantes  angustias: 

— «Sous  les  lois  (l'Orosmane, 
«Punissez  volre  lille...  elle  tlait  iiiussulmane! 

É  então  que  resôao  famoso  brado  de  Lusignan, 
aquelle  assombroso  trecho  em  que  as  lagrimas  do 
velho  se  misturam  com  es  arrebatamentos  da  in- 
dignação, Irecho  ({ue  por  si  só  bastaria  para  dar 
a  Voltaire  um  dos  primeiros  logaics  entre  os  poe- 
tas de  França. 

— i'Oue  la  foiídre  en  éclats  ne  tomhc  que  sur  moi! 
Ali!  nion  flls!  à  ces  niols  j"ciisse  cxpiíú  saiis  toil* 
Mon  Dieu,  J'ai  comljatu  soixaiUe  aíis  ])our  ta  gloire, 
J'ai  vu  toiíihtT  tun  templo,  et.  perir  la  iiiéiiioire; 
Daiis  un  caeliot  aíTrenx  abandoiiiié  vingt  ans, 
Mt'S  kiraies  t"iniploraient  pour  mos  l.ristos  enfans; 
Et.  lorscjue  ma  íamiile  e&t  par  toi  réinie, 
Quaud  je  trouve  une  íille,  elle  e;t  lon  ennéniiclu 

Coníessemos  francamente,  em  Racine  ou  em 
Corneil'xi  não  ha  situação  onde  o  palhelico  sobre- 
leve ao  do  segundo  acto  de  Zaira.  Aquelle,  te- 
ve, por  ventura,  em  Jphigcnia  um  momento  de 
inspiração  egual;  foi  quando  escreveu  o  dialogo 
entre  ella  e  Agamemnon;  Corneiile,  no  Pclijeude, 
c  inferior  na  verdade  do  coração  humano. 

O  assumpto  da  Zíí/Va  deu  ao  Iheatro  inglez  uma 
quasi  que  Iraducção  da  tragedia  franceza.  O  seu 
auctor  é  Aaron  liill.  Esq. 

Depois  da  Zaira,  a  Mérope  c  a  Sémiramisi^io^m. 
immedialo  logar.  N'esta  ultima  ha  uma  scena 
moldada  nas  puras  formas  eschylanas.  Ião  simples 
e  tão  vigorosa  é  ella;  reíiro-me  ao  dialogo  do  (|uar- 
to  acto,  entre  a  rainha  e  Arzace.  A(|ui-,  Voltaire 
conseguio  trazer  para  a  scena  a  simples  grandeza 
dos  Cliocplíoros.  A  phrase  cortada  iiatuialmente, 
a  paixão  |)recipilando-se  em  hemystichios  abruptos, 
tudo  isto  dá  á  situação  um  fervor,  um  tumultuar 
grandioso. 

Urutus  e  César  são  tragedias  onde  em  algumas 
scenas  achanios  o  aspeio  sabor  de  CiOineille.  lia 
n'ellas  a  força,  a  altivez  do  Cinna,  mas  a  pompa 
é  mais  esplendida  e  fastosa.O  canto  da  liberdade 
sem  nada  perder  da  sua  feresa  íngenita,c  ao  mes- 
mo tempo  harmonioso  e  persuasivo.  Ma/ioniet  é 
uma  das  tragedias  onde  os  lasgos  sublimes  se  en- 
contram mais  freí|uenles.  lia  irdla  uma  l_al  origina- 
lidade de  bellezas,  uma  tal  abundância 'no  eslylo, 
um  tamanho  orientalismo  na  dicção,  que  Racine 


o  PANORAMA 


4  65 


se  acaso  a  lesse,  deveria  dizer  d'ellaoque  Voltai- 
re disse  um  dia  ao  acabar  de  ouvir  o  monologo 
da  P/iedra. 

A  falia  duMahomelaZopiro,  sobretudo,  tem  lan- 
ços dci  uma  elevação  prodigiosa. 

— nVois  quel  est  Maliomct;  nous  sommes  ?euls,  ccoate: 
Je  suis  ainbilicui,  tout  huiiiffic  Test  saiis  doute; 


II  faiit  im  novean  culte,  il  faut  <le  nonveaux  fors, 
11  faut  un  uouveau  Dieu  pour  1'aveuglu  univers. 

Rousseau,  faltando  d'esla  scena  na  sua  lellrc 
sur  Ics  speclaclcs,  íWz  não  conhecer  no  theatro  fran- 
cez  outra  alguma  em  que  mais  sensivelmente  se 
manifeste  o  cunho  do  génio.  Foi  esla  mesma  tra- 
gedia, Mahomet,  que  Crebillon  repellio  dez  annos 
e  que  só  ao  cabo  d'elles  foi  dada  a  publico,  em 
vi^ta  da  approvação  de  d'Alembcrt. 

Eis,  resumidamente,  alguns  dos  pontos  mais  sa- 
lientes no  theatro  de  Voltaire.  Todos  os  assump- 
tos lhe  são  familiares,  todas  as  boUezas  lhe  são 
próprias.  Passa  do  OEdipo  para  Zaira,  como  do 
Brutus  para  o  Orphãoda  China.  Quando  a  rajada 
do  furor  o  impelle,  ergue-se  coruscante  e  ílamme- 
jadas  nuvens;  quando  os  sentimentos  maviosos  o 
assaltam,  expande-se  em  verdadeiros  arrulhos.  O 
coração  do  homem  é  ao  que  elle  mira  piincipal- 
mente;  conhece  todos  os  caminhos  que  vão  dar  a  este 
abysmo,  eé  por  ellcs  que  conduz  o  seu  talento  Sem 
ter  aquella  rudeza  que  nos  confrange,  tem  aqueila 
variedade  que  nos  deleita.  Não  é  um  promontório 
nu  e  alpestre,  cortado  a  prumo,  e  severo  nas  suas 
rectas  enormes;  é  um  monte  ?rrelvado  e  llorido, 
onde  as  rosas  se  baloiçam,  mas  aonde  também  se 
erguem  as  arvores  seculares  e  possantes. 

[Conlinuu) 

E.  A.  Vidal. 


AS  FLAUTAS  DO  GRAxNDE  FREDERICO 

O  principal  entretenimento  do  rei  da  Prússia,  Fre- 
derico 11,  consiste  em  locar  flauta;  mas  é  tão  es- 
crupuloso, tem  tanto  receio  de  commetter  faltas 
em  musica  ou  enganar-se,  que,  quando  ensaia 
uma  nova  peça,  fecha-se  no  seu  gabinete  muitas 
horas  para  estudal-a.  Apesar  d'esta  precaução,  tre- 
me todas  as  vezes  que  se  trata  de  começar  com 
os  ajiompanhamentos. 

Possue  uma  excellente  collecção  de  ílautas,  e 
presta-lhes  o  maior  cuidado. 

Um  homem,  que  não  trata  d'outra  coisa,  está 
encarregado  d'ellas,  a  tira  de  preserval-as,  se- 
gundo a  estação,  da  seccura  ou  da  humidade.  São 
todas  do  mesmo  auclore  paga-as  ale  cem  ducados. 
Na  ultima  guerra,  quando  elle  a  todos  dava  di- 
nheiro falso,  diligenciava  sempre  que  o  seu  fabri- 
cante de  tlautas  fosse  pago  em  boas  peças  de  ouro, 
com  medo  de  que  este,  por  Si'U  lado,  o  não  en- 
ganasse na  qualidade  dos  seus  instrumentos. 


O  mundo  assemelha-se  a  uma  loleria  na  qual 
um  ganha  e  mil  perdem. 


A  SALAMANDRA 

O  género  Salamandra  de  Cuvier,  que  foi  cons- 
tituído em  família  pelos  erpétologistas  modernos 
sob  o  nome  Saíamandridas,  pei'tence  á  secção  doS 
Batraciosurodélos.  Os  reptis  que  o  compõem  teem 
o  coi'po  allongado,  quatro  pes  e  uma  comprida 
cauda;  o  que  lhes  da  a  forma  geral  dos  Lafjartos; 
mas  apresentam  além  disso  todos  os  caracteres  dos 
Batracios.  A  cabeça  é  achatada,  as  orelhas  estão 
occultas  sob  as  carnes  e  não  teem  lympanos;  os 
dois  queixos  são  guarnecidos  de  dentes  numerosos 
e  pequenos,  a  lingua  disposta  como  a  das  rãas,  o 
esqueleto  oflerece  elementos  de  costellas  e  teem 
quatro  dedos  nos  pés  de  diante  e  cinco  nos  detraz.  Os 
seus  embryões  respiram  por  uma  espécie  de  guelras, 
em  forma  de  i)Oupa,  no  numero  de  três  de  cada  lado 
do  pescoço  e  lluctuantes,  que  depois  se  obliteram. 
Os  membros  apparecem  successivamenle;  mas  os 
pés  de  diante  desenvolvem-se  prlmelio  que  os  de 
traz.  No  estado  adulto,  as  Salamandras  respiram 
como  as  rãs.  Dislinguem-n'asem/í'/7-e.y//ri-e  aquá- 
ticas ou   Tritões. 

As  Salamandras  terrestres  ou  Salamandras  pro- 
priamente ditas  (Salamandra)  teem,  no  estado 
perfeito,  a  cauda  redonda  e  não  se  conservam  na 
agua  senão  durante  o  estado  deen.byrão  ou  quan- 
do (|uerem  desovar.  Os  pequenos  nascem  no  ovl- 
ducto  e  executam  piomplamente  as  suas  metha- 
morphoscs.  O  lypo  d"esle  género  e  a  Scfamandra 
commum  ou  maculada,  [Sal.  maculosa)  tem  10 
centímetros  de  comprido, ea  cor  éde  um  |)reto  luzi- 
dio levemente  llnctoderosa,  com  grandes  manchas 
de  um  amai-ello  vivo.  Pelos  lados  teem  fileiras  de  tu- 
bérculos, dos  quaes  ressumam  no  perigo  um  li- 
quido lácteo,  amargo  e  de  um  cheiro  activo.  E 
esla  parliculnridade  (|ue  deu  lugar  a  fabula  esi)a- 
Ihada  na  antiguidade,  e  que  chegou  até  aos  nos- 
sos dias,  que  não  somente  o  fogo  não  matava  a 
Salamandra,  mas  ainda  ({ue  este  replil  tinha  afa- 


66 


O  PANORAMA 


culdade  de  apagal-o.  Um  outro  proconceilo  popu- 
lar quer  que  estes  animaes  sejam  muito  venenosos: 
é  um  erro.  Etleclívamente,  não  teem  glândulas 
salivaes  de  veneno  eus  dentes  são  muito  pequenos 
para  poderem  oilender  a  pelle.  Só  o  liquido  que 
ressumbram  os  tubérculos  de  quefallámoséqueirrita 
um  |)Oueoos  olhos  quando  se  lhes  chega  com  os  de- 
dos depois  de  haver  tocado  em  algum  d'estes  reptis, 
llaainda  duas  outras  esj)ecies  chamadas  Salaman- 
dra negra  que  se  encontra  dos  Wpçse  Salamandra 
de  occulos,  negra  pele  parte  superior,  e  aniarella 
com  manchas  pretas  pela  inferior.  Este  animal, 
que  se  acha  nos  Apenninos,  só  tem  (jualro  dedos 
em  cada  pé.  As  Salamandras  vivem  em  lugares 
húmidos  e  nos  buracos  subterrâneos;  sustentam-se 
de  lombrigas,  insectos  e  pequenos  molluscos.  To- 
das são  de  pequeno  corpo. 

Os  Tritões  ou  Salamandras  aquáticas,  lêem  a 
cauda  comprimida  verticalmente  e  passam  quasi 
toda  a  sua  vida  na  agua.  Estes  reptis  são  oviparos  e 
não  ovoviparos  como  as  Salamandras  terrestres. 
Encontram-se  frequentemente  nos  nossos  climas 
em  aguas  estagnadas,  onde  são  tão  ágeis  e  vivas 
quanto  lentas  e  embaraçadas  na  superfície  do  solo. 
São  sobretudo  notáveis  pela  facilidade  com  que 
reparam  as  mutilações  do  seu  corpo:  a  cauda  e 
mesmo  as  patas  lecrescem  muitas  vezes  depois  de 
terem  sido  cortadas,  e  isso  com  os  ossos,  múscu- 
los etc.  Teem  além  disso  a  singular  faculdade  de, 
no  gelo,  poderem  viver  muito  tempo,  D'estc  gé- 
nero encontram-se  muitas  espécies:  conlentar-nos- 
hemos  com  o  mencionar  a  Salamandra  de  crista 
que  apresenta  as  cores  laranja,  branco  e  prelo. 
No  numero  das  espécies  exóticas  citaremos  a  Gran- 
de Salamandra  do  Japão  que  tem  o  comprimento  de 
um  metro.  As  suas  cores  são  as  mais  sinistras;  a 
pelle  sobre  a  cabeça  e  as  costas  é  colheria  de  protu- 
berâncias e  de  tubérculos  que,  fora  d'agua,  res- 
sumam  um  humor  viscoso  e  fétido.  Lembramos 
também  a  celebre  Salamandra  fóssil  de  OEningen, 
que  durante  algum  tempo  foi  tomada  por  um  es- 
queleto iiumano. 


NECESSIDADE  DE  UMA  MONOGRAl^HIA  ACERCA 
DA  província  de  1'ERNAMBUCO 

Debaixo  do  ponto  de  vista  commercial  a  pro- 
vinda de  I'einambuco  é  hoje  a  segunda  do  impé- 
rio brasileiro,  posto  que  não  seja  a  mais  extensa 
e  poNoada. 

A  situação  feliz  d'ella,  em  virtude  da  sua  pro- 
ximidade relativa  da  Europa,  devido  aos  vapores 
transatlânticos,  é  lai  que  da  nossa  Eisboa  a|)enas 
dista  U{  a  lo  dias,  e  lhe  dá  por  isso  certas  van- 
tagens commerciaes,  de  íjuenão  gosam  as  demais 
províncias  íraí|ucll(' \astissimo  estado. 

A  população  e  alli  abundante  e  acliva.  (irande 
numero  de  estrangeiros  tem-se  estabelecido 
n'clla.  A  cultura  do  algodão  e  da  cana  de  assucar 
tem  ail(]uirido  immenso  desenvolvimento;  tudo, 
linalmente,  na  província  em  (juestão  progridi!  con- 
sideravelmente, apesar  de  estar  ella  situada  na 
zona  tórrida,  desde  o  7"  até  ao  15°  de  latitude 


sul,  visinha  do  mar,  sobre  o  qual  tem  duzentos 
kilometros  de  costas,  e  não  obstante,  desde  18;30, 
haver  sido  visitada  pela  febre  aniarella  e  cholcra, 
desconhecidas  alli  antes  da  mesma  data  fatal. 

Considerada  geographicaraente,  toda  a  parle 
próxima  do  oceano  Atlântico  está  perfeitamente 
estudada.  As  costas  teem  sido  examinadas  sobejas 
vezes  pelos  navegadores  portuguezes,  hespanhoes, 
inglezos  e  francezes.  São  muito  apreciáveis  os  tra- 
balhos do  almirante  Uoussain  acerca  do  alludido 
assumpto,  e  é  sabido  que  Mouchez,  dislinclo  olíi- 
cial  da  marinha  franceza,  ha  executado,  recente- 
mente, um  novo  reconhecimenlo. 

Com  as  regiões  sertanejas  não  suecede  oulio 
tanto.  A  configuração  das  cadeias  de  montanhas, 
que  cortam  a  província  de  norte  a  sul  e  de  leste 
a  oeste,  não  é  bem  conhecida,  ignora -se  a  sua 
altitude,  posto  que  não  pareça  exceder  U200  a  1500 
melros.  \  sua  composição  geológica  é  parcialmen- 
te desconhecida,  e  diminuías  pesíjuizas  mineraló- 
gicas se  tem  n'ellas  executado. 

A  parte  septemtrional  da  província  apresenta  lar- 
gas planícies  ferieis,  em  ([uanlo  a  região  austral  é 
atravessada  de  norte  a  sul  por  uma  longa  ca- 
deia, que  limita  ao  occidente  o  grande  rio  de  S. 
Francisco,  o  qual  separa  esla  província  da  da  lia- 
hia. 

O  curso  do  S.  Francisco  está  perfeitamente  re- 
produzido em  um  bello  atlas  especial  consagrado 
áquelle  rio,  e  que  foi,  ha  alguns  annos,  lithogra- 
phado  no  Rio  de  Janeiro.  Tudo,  |)orém,  que  demo- 
ra ao  occidente  d'esle  rio  carece  de  ser  reconhe- 
cido geographicamenlo,  pois  não  existe  ainda  ne- 
nhuma boa  descripção  topographica  da  província. 

A  ultima  obra  publicada  em  francez,  sobre  o 
Brazil,  a  de  Eahure,  não  fornece  senão  uma  sim- 
ples nomenclatura  dos  rios,  cordilheiras,  cidades, 
villas  e  aldeias  que  se  encontram  n'esla  parle  do 
Brazil,  sem  descer  a  particulai-idades  algumas. 

Pelo  que  respeita  á  bella  obra  em  dois  volumes 
de  Eallemand,  fícise  diirch  nord  Brasllien,  {xlnúdi 
não  foi  vertida  para  francez. 

A  escriplura  d'estes  aponlamenlos  foi-nos,  em 
parle,  suggerida  pela  recente  noticia  da  nomeação 
de  um  homem  intelligentissimo  e  de  provada  il- 
luslração,  Osmin  Eaporle,  para  o  cargo  de  côn- 
sul francez  em  Pernambuco.  Visto  que  esla  pro- 
víncia não  possue  ainda  uma  monograjjhia,  a(|uelle 
cavalleiro  |)or  certo  a  fará  com  Ioda  a  j)roticiejicia, 
estudando  acuradamente  os  elementos  (pie  ainda 
estão  desconhecidos  não  só  porque  quahjuer  das 
províncias  brazileíras,  em  geral,  é  mais  extensa 
(pie  o  nosso  paiz,  e  algumas  íncomparavelinenlc 
inuilo  mais,  mas  tamlxMn  porque  o  Hrazil  cum  paiz 
(|ue  nasceu  honteni,  o  (piai  inuilo  tem  progredido  em 
relação  ao  seu  clima  ardente,  na  máxima  |)arle  da 
sua  extensão,  e  ao  sangue  porluguez,  (pie  não  é 
do  mais  apropriado  para  rápidos  desenvolvimen- 
tos na  senda  do  j)rogresso.  Deixemos  as  digressões, 
e  vamos  reatar  o  lio  das  considerações  (|ue  lemos 
a  fazer,  despertadas  pelas  leituras  dispersas  (jue 
hemos  feito  em  muitas  obras  francezas,  ínglezas  e 
algumas  brasileiras,  relativas  ao  lirazil. 


i 


o  PANORAMA 


^67 


Defeito,  assim  como  indicamos precedeiUemen- 
to,  exceptuando  alguns  pontos,  nenhuma  posição 
de  localidade  foi  provavelmente  determinada  por 
observações  directas.  O  sr.  Osmin  poderá,  pois, 
com  alguma  vantagem,  fazer  uma  descripção  do  Rio 
de  S.  Francisco,  cuja  regimen  é  conhecido  pelas  ob- 
servações do  botânico  viajante,  A.  Saint  llilaire, 
que  percorreu  uma  parte  do  seu  valle  desde  1820 
a  1825. 

É  também  mui  ulil  estudar  a  parte  montanhosa, 
região  a  mais  despovoada  d'esta  provincia,  onde 
restam  ainda  algumas  Iribus  indianas  de  lupis, 
ananés  e  c/^acriabas,  pertencentes  á  raça  guaríni. 
Estes  restos  da  anliga  população  indígena  dimi- 
nuem lentamente,  tanto  pela  mortalidade  própria, 
as  bexigas,  a  escassa  fecundidade  das  mulheres, 
como  pela  sua  fusão  com  o  resto  dos  brasileiros. 

Por  emquanto  não  podémosobter  esclarecimen- 
tos com  respeito  á  cifra  a  que  esta  população  pôde 
hoje  chegar.  Quanto  á  população  brazileira  pro 
priamentc  dita,  compõe-se  ella  de  descendentes 
de  poi'tuguezes,  emigrados  durante  três  séculos  e 
meio  para  a  provincia  de  Pernambuco,  de  grande 
quantidade  de  outros  europeos  que  ali  tem  ido 
estabelecor-se,  desde  1820,  e  linalmenle  dos  ne- 
gros, e  mestiços  de  todos  os  grãos,  elemento  que 
ora  é  considerabilissimo.  Uma  porção  d'estes  negros 
e  mestiços  são  ainda  escravos;  porém  ha  já  uma 
outra  egual  porção  d'elles  que  são  livres  e  consi- 
derados cidadãos  brasileiros.  É  muito  imporlante, 
a  nosso  ver,  o  saber-se  qual  é  a  lei  da  progressão 
d'esla  população  tão  diilerenle  d'origem,  e  que 
mostra  crescer  com  rapidez,  a  despeito  das  doen- 
ças Iropicaes,  da  febre  amarella  e  da  cholera.  Le- 
mos em  Lahure  que  aquella  população,  era  segun- 
do o  recenseamento  de  1860,  de  9o0:000  indiví- 
duos;  no  dizer  de  Warden,  em  1831,  era  apenas 
de  550:000 1 

Allirma-se,  que  a  provincia  de  Pernambuco,  ape- 
sar da  situação  d'ella  ser  na  zona  tórrida,  e  mui 
salutifera,  sobretudo  na  porção  nordeste  que  con- 
fina com  a  provincia  de  Piauhy.  É  muito  impor- 
lante haver  conhecimento  da  proporção  em  que  os 
brasileiros  e  os  europeus  emigrados  tem  sido  ac- 
commettidos  pela  febre  amarella,  introduzida  na 
capilal  em  1850.  Desde  essa  época  tornou-se  en- 
démica, apesar  de  ser  desconhecida  ali  anterior- 
mente, exceptuando  talvez  uma  epidemia  passa- 
geira em  1688,  sobre  a  qual  ha  informações  muito 
incompletas.  Jísia  doença,  tão  mortifera  paia  os 
brancos  om  geral,  tem  sido  benigna  para  os  ne- 
gros e  mulatos,  ao  passo  que  todos  os  que  tinham 
sangue  africano  nas  veias  pagaram  avultado  tri- 
buto á  cholera. 

Qual  é  a  medida  da  emigração  europea  ha  meio 
século?  Além  dos  nossos  com|)atriotas,  que  são  os 
mais  numerosos  emigrados,  entrando  n'essa  classe 
já  se  vê,  os  açorianos,  qual  é  o  numero  aproxima- 
do dos  allemães,  inglczes,  norte-americanos,  fran- 
cezes,  hespanhoes  que  vãoestabelecer-se  n'aquellas 
plagas?  Regressara  para  o  seu  paiz  natal,  casam 
com  brasileiras  e,  consequentemente,  ostabele- 
cem-se   indeíinidamenle  no  paiz?  Qual  c  o  seu 


estado  de  saúde  habitual,  a  sua  longevidade?  Con- 
servam as  suas  forças  physicas  e  intellectuaes? 
Tudo  que  diz  respeito  a  esta  parle  da  biologia 
humana  é  altamente  curioso. 

Carece-se  lambem  de  detalhes  relativos  á  sua 
posteridade,  á  nova  geração  que  se  forma  da  mis- 
tura do  sangue  europeu,  introduzido  no  Brasil, 
com  o  dos  portuguezes,  este  mais  ou  menos  impre- 
gnado do  dos  indígenas  ou  dos  africanos,  importa- 
dos durante  os  Ires  precedentes  séculos. 

Uma  questão  mui  imporlante,  e  que  não  pode 
ser  elucidada  senão  por  fados,  é  a  de  estabelecer 
delinitivamenle  se  é  verdade  que,  apesar  das  ori- 
gens e  misturas  diversas,  o  sangue  caucasiano  vai 
lentamente,  porém  d'um  modo  seguro,  predomi- 
nando entre  os  habitantes  do  Brasil;  em  outras 
palavras,  se  cada  recenseamento  dá  ura  numero 
cada  vez  mais  considerável  de  brancos,  o  dos  ne- 
gros puros  ou  o  dos  mestiços  conservar-se-ha  es- 
tacionário ou  mesmo  diminuirá  ?  Precisa-se  final- 
mente saber,  se  colónias  agrícolas,  á  maneira  das 
que  hão  sido  fundadas  nas  províncias  do  Rio 
Grande  do  Sul,  S.  Calharina  e  S.  Paulo,  tem  sido 
estabelecidas  na  provincia  de  Pernambuco,  e  qual 
é  o  seu  estado  actual. 

Todos  os  que  tomam  a  peito  o  progresso  geral 
dos  conhecimentos  geographico-;,  como  essenciaes 
para  o  desenvolvimento  commercial,  asseveram 
que  ha  muitas  noções  uleis  a  beber  d'uma  região, 
sede  de  transacções  tão  extensas.  Além  da  pro- 
ducção  do  algodão,  do  café,  do  assucar  e  tabaco, 
culturas  industriaes  principaes,  que  constituem  a 
fortuna  da  província,  quaes  são  os  objectos  d'um 
verdadeiro  valor  que  a  agricultura  ali  produz? 
Em  que  estado  se  acha  a  industria  manufactureira, 
e  pode-se  pri;ver  a  época  em  que  verdadeiras  fa- 
bricas possam  ser  estabelecidas  no  paiz,  senão 
para  exj)ortação,  pelo  menos  para  piover  ás  ne- 
cessidades locaes  ?  Qual  é  o  estado  das  vias  de 
communicação  ordinárias  e  dos  caminhos  de  ferro  ? 
São  perguntas  cujas  respostas  não,  por  certo,  dão 
as  folhas  dos  livros  que  ha  nas  línguas  mais  usuaes, 
acerca  d'aquella  inteiessante  provincia  brasileira; 
e  por  isso  o  mundo  geographico  espera  ancioso 
que  o  sr.  Laporle  elabore  a  monographia  de  Per- 
nambuco, que  seguramente  vem  preencher  uma 
deplorável  lacuna  existente  na  geographia  do 
Brazil. 

É  sabido  que  a  agricultura  brasileira  solTre 
muitíssimo  na  presente  hora  j)ela  carência  de  bra- 
ços. O  commercio  da  escravatura  suspenso  desde 
1850  não  fornece  mais  os  escravos,  sobre  cujo 
trabalho  se  estribava  a  producção  agrícola.  A 
morte,  as  alforrias  em  grande  escalla,  deduzindo, 
todos  os  annos,  o  numero  dos  trabalhadores  de 
cor,  ((ue  oulr'ora  formavam  o  pessoal  das  planta- 
ções, com.o  pode  a  agricultura  brasileira  sair  d'es- 
ta  crise?  O  solo  de  Pernambuco  é  baslanlemente 
salubre  para  que  os  brancos  jiossam,  apesar  do 
clima  tropical,  dedicarem-se  á  culluia.'^ 

Estas  e  muitas  outras  observações  c  pergun- 
tas servem,  apenas,  para  demonstrar  exuberante- 
mente a  necessidade  urgente  d'uma    descripção 


4  68 


O  PANORAIMA 


geographica,  applicada  essencialmente  ao  com- 
mercio  (ruma  província  Ião  imporlante  do  Brazil, 
como  é  a  de  Pernambuco,  com  a  qual  toda  a  Ku- 
ropa,  parlicularmenle  Portugal,  tem  intimas  liga- 
ções mercanlis. 

As  communicações  do  antigo  com  o  novo  con- 
tinente mulliplicam-so  diariamente. 

A  máxima  parle  dos  estados  e  das  províncias 
da  America  do  Sul  são  pouco  conhecidas ;  tudo 
que  pôde  contiibuir  pois,  paia  mostrar  à  Europa 
os  seus  recursos  infinitos,  a  sua  riqueza  nativa, 
que  só  espera  por  braços,  para  ser  fructuosamente 
explorada,  é  um  verdadeiro  benelicio  para  a  hu- 
manidade. 

Interessemo-nos,   pois,   nós,    portuguezes,  que 

demos  o  ser  àquelle  colossal  império,   i)ela  sua 

prosperidade  e  engrandecimento   moral,   intelle- 

clual  e  maleriai. 

Alfredo  May. 


Aon  semper  arciim  tcndit  ApoIIo        IIoracio 

Apollo   nem   sempre  arma  o  seu  arco;  isto  é, 
nem  sempre  a  desgraça  nos  acompanha. 


A  BORBOLETA 

A  ExcelIenUssiina  Scuhorn  B>.  íèyiiii  Piííllips 

(no  sed  alblm) 

Eli  conheço-íi,  oh!  se  a  conheço! 
sempre  volilaiulo  anciosa, 
esl)elUi,  fiiiiaz,  airosa, 
esquiva,  amaule,  esquecida; 
olenio  enigma  na  vida!... 
Eu  coidioço-a,  oh!  se  a  conheço! 
Eslimo-a;*eslimal-a  c  gralo; 
(piero  ci)lendcl-a...   endoideço! 

Paira  a  mirar-se  na  fonle; 

bale  as  azinlias  subtis, 

desce  ao  prado,  solte  ao  monte, 

requesta,  endoidece  as  flores, 

e  engeila-as!  Procura  achamma, 

illude-a,  foge...  Não  ama! 

Dei\ae-a  fingir  amores! 

são  ludo  ancoios  leijris; 

eu  conhero-a,  oh!  se  a  conheço! 

Dizem  as  dores  do  monte: 
—('Sabeis  por(]uc  cila  nos  foge? 
«somos  serranas  e  pobres! 
«ella  è  fidalga  e  vaidosa; 
«lá  qucr^rnores  mais  nobresl 
«a  lisongcira  da  fonte, 
«moslrou-lhe  o   espelho  o,  prendeu-a 
«só  com  dizer-lhe:— És  formosa.» — 

Diz  a  fotdc  co'um  suspiro: 
—  "Vão  lá  fiar-sc  das  bellas! 
«eu,  tão  pura  em  meu  retiro, 
«e  tão  recatada  e  amante, 
«eu,  (|ue  rogeilo  asestrellas 
«o  amor  í|uc  em  seus  raios  leio, 
«cu,  que  lhe  disse  atdielante: 
— <'I)esce!  bfbe  do  meu  seio 
«lodo  o  néctar  peregrino!... — 
«pobre  de  mim!  que  fiz  eu? 
«julgou-mc  lodosa  c  insossa!... 
«.Só  bba  néctar  divino, 
«golas  do  orvalho  do  ceol"  — 


E  diz  a  gota  do  orvalho. 

—  «Uesci,  desci  toda  a  noite 
«para  a  verde  madrugada, 
«foi  bem  pago  o  meu  trabalho! 
«sorriu-me,  e  ])assou!  mais  nadai 
«Ella  quer  lá  gotas  d'agua 
«tremula,  fria,  incolor?! 

«quer  lume,  incêndios!  (e  é  magoa!) 
«quer  chammas  vivas  no  amor!» — 

—  «Porque  me  foge  a  inconstante? 
murmura  trémula  a  chamma; 
«será  que  um  delirio  amante 

«a  altrae  ao  regato?...  ás  llores?... 
«carinhos  de  maior  preço?... 
«cores  de  novo  matiz?..* — 

Nada!  nada!  eu  sei:  não  amai 

deixae-a  fingir  amores! 

são  tudo  anceios  febris; 

Eu  conheço-a,  oh!  se  a  conheço! 

Engana-se  o  orvalho  e  a  fonte, 
íi  chamnta  e  as  flores  do  monte. 
E  varia,  como  os  matizes 
das  suas  azas  doiradas; 
não  pôde  lançar  raízes; 
quer  liberdade  sem  meta; 
ir,  sem  saber  onde  vá; 
timbra  de  ser  borboleta!... 
não  ha  prendcl-al   não  ha! 

Não  lia?...  quem  sabe?  Os  segredos 

das  formosas  mais  esquivas, 

teem  românticos  enredos 

que  o  mundo  nem  sempre  vê. 

l*elos  caminhos  da  vida 

o  amor  sabe  armar  uns  laç^)s, 

e  ás  vezes...  prende-se  uni  pc! 

depois  prende-se  a  cintura! 

lucta-se  e...  prendcm-se  os  braços; 

e  eis  rendida  a  formosura! 

A  flor,  essa,  de  innoccnle, 
ama,  deseja. ..mais  nada; 
apenas  sente...  que  sente! 
nào  sabe  fazer-se  amada! 
IMas  a  chamma  queé  ladina, 
á  formosa  que  a  re(|uesta 
e  a  afaga  co'a  ponta  (faza, 
rouba  a  innocenc.ia  divinal 
co'o  fogo  as  azas  lhe  cresta; 
com  beijos  de  fogo  a  abraza!!... 


Nada!  cu  volto  á  minha  idéa: 
esta  borboleta  é  intrépida, 
não  teme  laços  nem  chamma; 
não  ha  paixão  que  a  submetia ! 
SC  a  amarem,  sorri  sem  do! 
se  finge  amores,  não  ama, 
que  o  juro  aqui!  vende  só 
desdéns  por  subido  preço. 
Ha  de  morrer  borboleta. 
Eu  conheço-a,  oh!  se  a  conheço! 

Lisboa,  21  demarco  de  18(50. 

Thomaz  RiBEino. 


O  am3r  do  dinheiro  nunca  foi  paixão  do  ver- 
dadeiro sábio. 


O  vicio  c  a  pobreza  levam  o  homem  á  praclica 
de  toda  a  sorte  de  crimes. 


Typ,  franco-Porlugucza  ==  Rua  do  Tliesouro  Velho,  G. 


00 


O  PANORAMA 


69 


STOGKOLMO 

Apezar  do  seu  céo  nebuloso,  apczar  do  seu  cli- 
ma IVigido  e  um  lanlo  insalubre,  a  capiial  da  Sué- 
cia é  uma  das  mais  formosas  cidades  do  Norte. 
VA{\  conslruida  nas  margens  seplemlrioual  c  me- 
lidional  do  lago  i^ieiarenno  ponío  em  ([ue  esle 
confunde  as  suas  aguas  com  as  do  Haltico.  Com- 
põem-n'a  muilas  ilhas  formadas  pelos  golphos  do 


Melai-en  e  peio  mar,  e  que  se  ligam  entre  si  e  com 
as  margens  por  numerosas  pontes,  o  que  dá  á  ci- 
dade um  aspecto  muito  semelhante  ao  que  apresen- 
ta a  rainha  do  Atlriatico.  Por  isso  Stockolmo  tem 
merecido  dos  viajantes  estrangeiros,  deslumbrados 
por  essa  foi-mosa  apparição  italiana  que  lhes  surge 
de  subilo  do  meio  das  aguas  do  Báltico,  debaixo 
d'um  céo  carregado  de  nuvens,  o  nome  de  Ve- 
neza  do  norte. 


Hockolmo. 


Efleclivamenle,  a  cidade,  piincipalmeníc  quando 
evô  do  rochedo  de^íosebacko,  apresenta  um  ma- 
çniOco  panorama.  PaUa-lhe  só  o  esplendor  do  sol 
l'Ilalia,  que  beija  amorosamente  as  marmóreas  fa- 
chadas dos  i)alacios  da  cidade  dos  doges,  as  gran- 
les  recoiiiações  que  enlevam  o  mundo  inteiro  e 
]ue  pullulam  a  cada  passo  do  seio  da  formosa  pc- 
insula,  c  a  seductora  hai^monia  das  vagas  azues 
lo  Adriático  beijando  os  degráos  dos  cães. 

Mas  ainda  assim  esse  panoiama  c  encantador. 
U  casas,  quasi  todas  de  tijolos,  ei-guem-se  em 
mphilheatro,  alinhando-sc  cm  formosas  ruas,  as 
nais  noiaveis  das  quaes  são  a  da  Rainha  c  a  da 
legcncia,  e  formando  seis  bairros,  que  se  chamam: 
i  cidade,  que  se  compõe  de  Ires  ilhas,  o  bairro  do 
\orle,  em  terra  lirme,  Ladiif/oras/aiulcl,  que  se 
grupa  n'um  promonlorio  em  que  termina  a  leste 
ssa  terra  lirme,  a  iUia  d'El-IU'i,  a  il/iado  Alini- 
anlado,  a  que  oulias  duas,  a  ilha  da  Cidadclla 
í  a  iUtn  de  S.  Braz  se  ligam  por  meio  de  pontes 
lucluantes,  e  cmtim  o  bairro  do  Sul. 

INo  bairro  da  cidade  encontra-se  o  i)a(;o,  ediíicio 

uadrado,  construído  n'uma  eminência  etotlo  cer- 
ado de  jardins.  As  ruas  d'este  baii-ro  são  quasi 


iodas  sombrias  e  ii'regulares,  exceptuando  com  tudo 
a  rua  de  Skcppsbron,  que  se  deseni'ola  ao  longo 
do  cães  c  em  que  eslá  concenli-ada  toda  a  acti- 
vidade commeicial.  IN'esse  bairi'o  lia  Ires  igrejas: 
a  sé,  onde  se  nota  um  órgão  magnilico  e  uma  bel- 
la  coliecção  de  quadros  de  i)inlores  suecos,  a  igreja 
allemã,  e  a  igreja  linlandeza.  Os  outros  ediíicios 
notáveis  d'este  bairio  são  a  praça  do  commercio, 
a  casa  da  ca  ma  ia,  o  correio,  o  banco,  a  moeda, 
c  o  palácio  dos  nobres,  onde  se  reúne  a  nobreza 
durante  a  dieta,  e  em  cuja  fachada  campeiam  os 
brazões  de  todas  as  grandes  famílias  da  Suécia. 

N'uma  das  ilhas,  que  formam  este  bairro,  vê-se 
lambem  a  igreja,  onde  estão  os  túmulos  de  lodos 
os  reis  enire  cinco  mil  estandartes,  que  dão  teste- 
munho irrefiagavel  da  gloria  militar  que  a  Suécia 
soube  conquistar,  dirigida,  no  século  XVII,  no  sé- 
culo XYIÍI  e  no  século  XIX,  porgeneraes  tão  dis- 
lindos  como  foram  Gustavo  Adolpho,  Carlos  XII, 
e  Rernadolle  o  general  francez,  que  por  tão  estra- 
nho acaso  pôde  subir  ao  thi-ono  sueco,  e  fundar 
dynaslia.  Debaixo  (Kesle  glorioso  docel  dormem  o 
seu  somno  eterno  os  herdeiros    de  (luslavo  Vasa. 

Passemos  agora  ao  bairro  do  Norte.  Alli  encon- 


470 


O  PVNORAMA 


liaremos  oiilio  palácio  rogio,  defionle  do  qual  se 
erirue  o  edilicio  da  Opera,  mandado  construir  por 
fíuslavo  III.  Atravessando  d'esle  bairro  para  a  ilha 
do  S.  Bi-az,  com  a  qual  eommnnica  dii-eclamente. 
veremos  um  irrande  numero  de  ))alacios  sumjiluo- 
sos;  d^essa  ilha  iremos  por  uma  das  ponles  jluc- 
luanles  á  ilha  do  Almiranlado,  atravessando  por 
uma  longa  alameda  e  onde  scaccumulam  arsenaes, 
estaleiros,  casernas,  e  (fahi  passando  á  ilha  da 
Cidadella  encaniar-nos  lia  o  seu  pi|[oiescoasj?ecto. 
Um  enorme  rochedo  de  granito  lorma  toda  a  massa 
da  ilha,  e  nas  suas  ladeiras  vicejam  arvores,  ta- 
boleiíos  de  relva,  tapetes  de  musgo,  por  entre  os 
quaes  serpeiam  lamedas.  Um  dos  píncaros  do  roche- 
do domina  a  entrada  do  poilo;  n'oulro  crgue-seo 
observaloi-io. 

Slockolmo  tem  vinte  praças  amplas,  sendo  a 
mais  bella  a  que  se  chama  Sfollshackoi.  For- 
mam-n^a  d'um  lado  o  palácio  real,  do  outro  uma 
íileira  de  formosas  casas;  n'um  dos  topos  está  a 
calhedral  e  um  obelisco  de  granito.  A  praça  vem 
descendo  cm  amphithealro,  e  alargando-se  até  ao 
cães  onde  se  ostenta  uma  estatua  de  bi-onze  de 
Gustavo  III.  As  estatuas  não  faltam  em  Slockolmo. 
ISa  praça  da  casa  dos  dobres  campeia  a  de  Gus- 
tavo í,  na  de  Gustavo  Adolpho  a  d'esse  grande 
Loraoni,  na  praça  darmas  a  de  Gaiios  XII.  Tudo 
isto  contribue  para  embellezar  a  cidade,  em  cujo 
porto  se  vê  sempre  uma  selva  de  mastros,  por(|ue 
o  seu  commorcio,  tanto  de  exportação  como  de  im- 
portação, está  desenvolvidíssimo.  Em  I80I  a  sua 
população  ora  de  noventa  e  Ires  mil  almas. 

Eis  o  que  é  em  rápido  esboço  a  cidade,  que  a 
nossa  gravura  mostra  aos  leitores,  a  Veneza  do 
Norte,  a  capital  da  monarchia  sueca. 


A  BOCCA  DO  INFERNO 
\ 

Fj-a  por  uma  linda  taide  de  outono,  á  hora  em 
que  o  sol,  meio  envolto  no  manto  de  nuvens,  es- 
parge sobre  a  leria  libios  reflexos. 

Creio  que  não  é  esta  a  lioia  dos  amanles;  mas 
íiel,  como  devo  ser,  á  chronica,  cumpie-me  pôi' 
de  parle  todo  o  eíleito  scenico  que  poder  colher 
do  ceu  cravejado  de  esl relias,  eda  luz  meltincoli- 
ca  da  lua,  paraconlaraoleilora  verdadeem  Ioda  a 
sua  puieza. 

Mn^uem  crê  mais  do  íjue  eu  na  magia  de  uma 
noite  de  estio,  cheia  de  segredos  e  niNStcrios!  0'it' 
encanto,  o  d'essas  noites  claras  de  agosto,  íjuando 
a  lua  caminha  cx[)lendida  no  céo,  aseslrellas  scin- 
lillam  na  abobada  azul,  o  rouxinol  trina  melodias 
cnlrc  as  ramadas  do  bosciue,  c  as  llores  toem  mais 
perfumo,  mais  frescura  a  rosa,  mais  pureza  o  ar! 
(',omo  n'cssas  noites  voluptuosas  do  Meio  Dia  o  co- 
ração se  inspira  de  santo  enlliusiasmo  e  pulsa  ávi- 
do de  ternura!  Como  então  são  maviosos  os  sus- 
piros! como  é  brando  o  susurrar  dos  beijos! 

Mas  não  foi,  rej)ito,  á  hora  dos  amanles  que 
Euiz  c  Uhrislina  combinaram  encontiar-se  nos  ro- 
chedos da  Jiocra  (lo  lnfciuo.  As  rochas  soltas, 
fendidos,  ajirosenlam  largas  voragens,  poiondena 


obscuridade,  é  fácil  cair:  o  caminho  é,  além  d'isso, 
escabroso  por  pouco  trilhado,  e  se  aqui  se  encon- 
tra uma  lagoa  lisa  e  espaçosa,  além  teremos  de 
saltar  sobre  agudas  ponlas  de  rochedo  com  diíTi- 
culdade  de  sustentar  o  equilíbrio. 

1).  Thereza  julgava  ([ue  Luiz  de  Mello  estava 
em  Eisboa.  Era  assim ;  mas  no  dia  aprazado 
para  o  encontro,  que  ellc  próprio  designara  para 
communicar  a  Chiistina  noticias  graves  e  impor- 
tantes, chegara  o  mancebo  sol  nado  á  villa,  e  não 
appareccra  em  parle  alguma  até  á  hora  convencio- 
nada. 

Ao  cair  da  tarde  saio  Christina  de  casa  e  foi 
caminho  da  costa.  Quando  lá  chegou  já  Luiz  a  es- 
lava esperando. 

Christina  empregara  n"aquelle  dia  mais  esmero 
na  sua  lui/dlc.  Ia  esjjlendida  de  graça,  elegância  e 
formosura.  Vestia  de  branco.  Na  garganta  trazia  um 
grosso  lio  de  contas  pretas.  Os  cabellos  magnili- 
cos,  que  eram  n'ella,  como  a  juba  no  leão,  um 
soberbo  ornamento,  caíam-lhcem  ondadas  spiraes 
sobre  as  espáduas.  Cobiia-lhe  a  cabeça  um  bonito 
chapou  de  palha  com  grande  pluma  branca. 

Luiz  de  Mello  estava  sentado  na  base  dos  roche- 
dos, á  beira  mar,  olhando  de  quando  em  quando 
para  o  cume  dos  cabeços  que  lhe  íicavam  a  caval- 
leiro. 

Uc  repente  o  vulto  de  Cliristina  alvejou  sobre 
os  negros  alcantis.  Se  a  |)Iiolographia  podesse 
n'aquelle  momento  reproduzir  a  imagem  deChris- 
lina,  far-se-ia  um  bello  quadro. 

Immovel  sobre  as  escalvadas  penhas;  flucluando- 
Ihe  ao  venio  as  brancas  roupagens;  destacando  a 
lórma  regular  e  bem  modelada  no  íundo  azul  dos 
horisonles;  batondo-lhe  no  rosto  um  raio  fugitivo 
do  sol  que  se  atufava  ao  longe  nas  aguas;  lixando 
a  immensidade  do  oceano  que  lhe  bramia  aos  pés 
em  fiocos  de  espuma — parecia  o  anjo  das  tempes- 
tades repoisando  na  penedia,  |)ara  dej)ois,  baten- 
do as  azas,  seguir  nos  seus  voos  alravez  dos  espa- 
ços, em  demanda  de  outros  mares. 

Mas  se  não  era  o  que  a  íicção  podia  conceber; 
era  um  anjo  de  amor,  era  a  mulher  convertida 
pelo  sentimento  cm  anjo  de  consolação. 

— Christina!  — exclamou  Luiz  vendo-a. 

A  (lonzella  sorrio  um  d'esses  sorrisos  de  mu- 
lher que  toem  o  (juer  (|ue  é  do  céo,  porque  resu- 
mem a  esperança  e  a  felicidade. 

Luiz  de  Mello  galgou  n'um  instante  pelas  ro- 
chas até  aos  pés'(le  Christina.  Aperlou-lhe  con- 
vulsivamente a  mão,  que  levou  dejiois  aos  lábios. 
O  beijo  foi  sôfrego  c  ardenle,  como  se  lhe  fora 
irelle  a  alma. 

— Oh  Christina!  foste  Ião  boa  em  \\i\  E  vieste 
só-?!... 

— Do  (piem  precisava  ou  mais?  Alé  aqui  o  meu 
amor  ser\ia-me  deguaida — aqui  basla-me  Luiz... 

—  I5asta-te  sim,  C-hiislina.  O  nosso  amor  acoiii- 
panha-nos! 

Poupe-inc  o  leitor  á  Iranscripção  das  apaixona; 
das  scenas  que  se  seguiram.  Sentados  um  ao  pé 
do  outro,  conversavam  de  seu  amor  e  das  espe- 
ranças (juc  oiiiieviam  no  futuro.  Eram  sonhos doi- 


o   FAiNOliAMA 


171 


lados  aquclles,  que  um  mau  fado  não  quiz  realisar. 

O  mar  fervia  espadanando  espumas  na  /iocca  do 
Inferno:  ouvia-se  o  mugir  suido  do  oceano  (jue- 
lirando-se  em  longes  praias.  Luiz  eClirislina  ollia- 
liim  por  um  insíanle  para  a  garganla  do  despe- 
nhadeiro, como  que  possuídos  de  resj)eilo. 

(llirislina  poisou  o  bi'aço  nu  e  formoso  sobi-e  o 
liomhio  de  Luiz;  depois  reclinou  sobre  elle  a  ca- 
beça. Luiz  linha  as  mãos  d"ella  enlaçadas  nas 
suas. 

Era  assim  que  Paulo  e  Virgínia  deviam  eslar 
em  S.  Domingos  na  véspera  da  partida  d'ellapara 
a  Europa,  contemplando  o  oceano,  (|ue  ia  sepa- 
lal-os,  e  o  sol  que  baixava  nooccidenle  marcando 
o  seu  ultimo  dia  de  venluiM. 

Luiz  solíria  lambem  como  elles.  Sabia  que  lhe 
era  necessário  separar-se  de  Ciiristína,  e  não  li- 
nha coragem  para  lh'o  dizer.'  lia  hesilações  que 
iiiarl\  rí^sam.  e  esta  era  uma  (Pellas. 

— Ves  além  aquella  galeia'?— exclamou  Luiz  in- 
dicando as  velas  brancas  de  uma  embarcação  que 
jiassava  ao  largo. — Como  vae  empavesada  c  ele- 
gante! Oue  linda  mastreação!  c  como  se  leva  li- 
geira!... 

Nos  olhos  do  marinheiro  passava  um  raio  de 
enthusiasmo — era  um  lampejo  d'essa  paixão  que 
na  infância  o  condiiziía  ao  oceano! 

—  Gostas  ainda  muilo  do  mar?  —  perguntou 
Cbristina. 

— Oh,  muilo,  Chrislina!  muito! — 

— Mais  do  que  de  mim!  —  tornou  ella  triste- 
mente. 

— Não;  isso  não.  Quero  ao  mar  e  quero- te  a  ti. 
Atlrae-me  para  elle  uma  fascinação  diabólica,  de 
que  ás  vezes  tenho  medo.  Creio  que  o  mar  me 
!  lia  de  servir  de  tumulo.  O  que  eu  agora  desejava 
era  levar-te  comigo  por  esse  oceano  fora,  onde 
o  mundo  se  resumisse  em  nós,  Mas  o  mar  para 
1  mim  é  a  vida,  é  o  espaço... 

Í— E  o  meu  amor  o  que  é,  Luiz? 
— Oh! — exclamou  elle  tristemente — o  leu  amor 
é  tudo!  Mas  é  necessário  voltar  para  o  mar,  é  ne- 
cessário deixar-le. 

— Deixar-me! — exclamou  Chrislina  mais  pallida 
que  uma  defunta. 
— Deixar-le  sim,  e  denlro  de  dois  dias. 
Cliristina  não  respondeu.  Eslava  trémula  e  a 
voz  licára-lhe  preza  na  garganta.  Passava-lhcatra- 
vez  do  coração  uma  angustia  excruciante.  As  la- 
grimas sollaram-se-lhe  lentamente  dos  olhos;  de- 
pois vieram  grossas,  abundantes. 

—Oh!  não  chores! — dizia  elle  acariciando-a. 
-É  uma  separação  curta.  Volto  depressa,  e  se- 
remos um  do  outro. 
— E  se  me  achares  morta  quando  voltares?... 
— Não  digas  isso,  Chi  istina— redarguiu  (>llemeio 
desvairado — Não  vês  como  solíro?   Oue  queres  lu 
que  eu  faça?  Recebi  ordem  para  sair  paraí^abo 
Verde;  mas  volto  depressa,  Chrislina,  j)romelto-le, 
|ainda  que  tivesse  de  fugir.  Agora,  i)oiém,  que 
ixiges  de  mim?  Oue  deixe  o  serviço?  Obedecer-te- 
^a  se  fosse  possível — mas  não  é  tempo...  amanhã 
"evo  sair  inevitavelmente. 


—  Parte,  pois. 

— E  esperas  me  resignada? 

— Hei  de  esf)erar-te.  Quem  tanto  te  tem  amado, 
não  ha  de  saber  sacrilicar-se?  Vae!...  esperarei 
por  li,  se  tiver  foiças  para  resistir  á  ausência;  se 
as  não  tiver...  irei  procural-as  alli! 

E  apontou  i)ara  o  fundo  do  abysmo,  onde  os 
rochedos  agrupados  e  fendidos  pareciam  mil  gar- 
gantas da  morte. 

—Que  dizes?! — bradou  Luiz  empallidecendo. 

— Já  não  parto,  Chrislina. 

— lias  de  partir. 

—Não,  sem  jurares  que  esperas  por  mim. 

— Juro. 

—  Por  Deus? 

— Por  Deus  e  por  meu  pae. 

— Um  beijo,  Chrislina! 

E  o  osculo  concedido  legitimou  o  juramento. 

No  dia  seguinte,  ao  pôr  do  sol.  Chi  istina  estava 
no  mesmo  sitio,  vendo  passar  um  brigue  que  ia 
ao  largo  pelo  oceano.  Luiz  ia  n'esse  navio.  Ema 
tentação,  um  poder  diabólico  arraslava-o  para  o 
mar. 

A  infeliz  estava  debulhada  em  lagrimas.  Na  mão 
esquerda  tinha  uma  medalha,  com  o  retraio  de 
Luiz,  que  levava  sofregamente  aos  lábios. 

Quando  nos  horisontes  se  sumiram  as  velas  bran- 
cas da  embarcação,  Chrislina  exclamou  com  as 
mãos  erguidas  para  o  céc: 

—  Dai-me  forças  para  soffrer,  meu  Deus! 

E  o  vento  silvava  pelas  quebradas  da  rocha!  e 
o  oceano  rugia,  como  o  leão  nos  últimos  arran- 
cos! e  os  milhafres  passavam  guinchando  e  ro- 
çando a  aza  negra  pelo  rochedo!  e  a  este  conceito 
infernal  juntava-se  um  rumorejar  de  agua,  como 
que  despenhando-se  de  uma  cascata! 

Era  a  onda  que  fugia  lá  em  baixo  pela  abertu- 
ra  da  Bocca  do  Inferno. 

A.  d'Oliveira  Pires 

[Continua.) 


LOUIS  DUBEUX 

orieutaILs(a 

Nasceu  em  Lisboa  de  pães  francezes,  em  2  de 
setembro  de  1798  e  falleceu  em  Paris  a  í  de  ou- 
tubro de  1863.  O  pae  era  armador  de  navios.  A 
sua  primeira  educação  foi  inteiramente  porlugueza, 
e  enlão  é  que  elle  se  iniciou  no  estudo  da  lingua 
hebi^aica. 

Tendo  20  annos,  a  familia  passou  a  residir  em 
Paris.  (Continuou  ali  os  estudos  orientaes,  que,  no 
tempo  de  Luiz  Philippe,  lhe  deram  |)ossc  da  ca- 
deira de  turco  na  escola  de  linguas  vivas,  e  cm 
18.')8  a  successão  |)rovisoria  de  Qualremère  na 
cadeira  da  mesma  lingua  no  Collegio  de  França. 
Seus  trabalhos,  dos  ([uacs  grande  quantidade  foi 
dada  no  Nouveau  Journal  Asialique,  pertencem 
á  lilteratura  da  Ásia;  ligam-se  á  historia  e  á 
geographia  pela  sua  traducção  da  chronica  de  Ta- 
bari,  emprehendida  por  conta  da  Sociedade  das 
Iradueeòcs  de  Londres,  cuja  1."  parte,  apenas, 
saio  a  himc  (Loud    1836,  em  i.'),  e  por  2  volu- 


>I72 


O  PANORAMA 


mes  oscriplos  para  o  Univers  pillorcsque  da  li- 
vraria Didol,  a  Pcrse,  1840,  o  o  Atgbanislan  (cm 
collaboração  cora  Vaimonl),  18i8.A  iiolicia  sobre 
as  Hcscarches  in  p/u'losop/tical  and  comparalivn 
])hi/ohgij  de  Ra^-iig  é  parlicularmcnle  inleressan- 
le  para  a  alhenologia  philologica  da  Ásia  cenlral. 
Esse  esludo  cnconlra-se  no  Nouvcau  Journal 
Asiatique  t.  1  de  I80O  (I.  XVÍ  da  4."  serie)  pa. 
283—309. 

Alfredo  May 


APONTAMENTOS  GEOGRAPIIICOS  ACERCA 
DA  PROVÍNCIA  DE  PARANÁ 

A  provincia  de  Paraná  é  uma  das  mais  ferieis 
do  impeiio  do  I5razil. 

O  seu  clima  doce  e  temperado  reúne  as  vanta- 
gens do  clima  dos  trópicos  ás  do  clima  de  Porlu- 
gal  e  Ilalia. 

O  Paraná  produz  lodos  os  vegetacs  dos  i)aizes 
inlerlropicaesdos  do  sul  da  Europa.  Todavia  aquel- 
la  provincia  tão  fértil  não  expoita ainda  senão  ma- 
deiras de  construcção,  para  queimar,  c  o  chá  do 
Paraguay  [herva  wak'),([UG  produz  em  abundância 
e  que  é  objecto  de  immenso  compiercio  com  as 
republicas  hispano-americanas. 

A  arvore  que  produz  o  clià  do  Paraguay  Y^^cj- 
paraguaycnsis)  dá-se  uuicameníe  no  Paraguay  e 
na  provincia  de  Paraná,  e  excepcionalmente  em 
alguns  pontos  da  provincia  doRio-Grande  do  Sul. 
ElTeclua-se  a  collieita  quebrando  os  ramos  novos 
cumulados  de  folhas;  em  seguida  submellem-se  a 
uma  ligeira  torrefacção  e  reduzem-os  a  fragmen- 
tos, ou  a  pó  mais  ou  menos  grosso.  As  folhas  são 
permanentes  e  não  caem  mesmo  no  inverno;  a 
forma  d'ellas  éelliptica;  tem  uma  cor  verde  muito 
carregado  e  são  espessas  e  Insidias.  As  flores  são 
dispostas  em  ramalhetinbos  de  trinia  a  quarenla 
flores  cada  um;  teem  quatro  pétalas  e  egual  nu- 
mero de  pistillos,  collocados  nos  inlervallos. 

A  herva  mate  é  usada  como  uma  bebida  de  pri- 
meira necessidade  para  os  indigenas  que,  assim 
como  os  hispano-americanos,  o  subsliluem  com 
proveito  ao  chá  das  índias  e  mesmo  ao  café. 

Colonisarão  —  A  provincia  de  Paraná  possue 
uma  enorme  quaniidade  de  terrenos  incultos,  de 
excellcnte  qualidade,  que  .são  oííerecidos  aos  co- 
lonos, quer  graluilamenie,  quer  pelo  preço  de  meio 
decimo  de  real.  proximamente,  a  bi-aça  quadiada! 

liiclio  de  .src/íi— O  Paraná  é,  de  lodos  os  j)aizes 
da  America  do  Sul,  o  que  se  presla  mais  á  cul- 
tura do  bicho  de  seda,  principalmenie  íIo  Homhij.r 
arrindia  que  se  alimenta  de  folhas  do  riciíio, 
e  que  produz  cinco  a  seis  colheitas  annuaes  de 
casulos. 

Café,  assvrar,  tabaco— i)  café  c  a  canna  deas- 
sucarvingam  perfeilamenlc  na  j)rovincia  em  (jues- 
tão;  f)roduzem  magniíicas  colheilas. 

O  tabaco  do  Paraná  (em  sirio  reconhecido  como 
superior  aos  tabacos  da  Rahia,  epelo  menos  egual 
ao  de  Havana. 

Bamiilhn  —  A  baunilha  cresce  esponianeameníe 
nos  arredores  de  Paranaguá  cem  todas  as  localida- 


des da  provincia.  O  perfume  d'el!a  não  o  cede  ao 
das  melhores  baunilhas  de  Venezuela  c  do  Méxi- 
co. 

Clíà — O  arbusto  de  chá  da  índia  prospera  no 
clima  do  Paraná;  porém  os  fabricanies  indigenas 
ignoram  os  processos  de  preparação,  e  a  especula- 
ção ali  encontraria  facilmenie  um  ramo  de  com- 
mercio  que  ainda  não  foi  explorado. 

Alf/odão—0  algodão  produz  duas  boas  colheilas 
por  anno. 

Lefjumes — Os  arrozaes,  milho  c  lodos  os  legu- 
mes farináceos  cuUivam-se  com  bom  exilo  no  Pa- 
raná. 

Madeiras — A  provincia  de  Paraná  abunda  em 
madeiras  excellenles  para  construcção  e  n.arcenaria. 

É  preciso,  principalmente,  assignalar  -a  Arariva 
vei-melha,  amarella  e  preta;  6'«?ír//í/ainarella  e  ne- 
gra; 6'o/7('/>///cí,  o  7\{/iiba,  (|uasi  Ião  duro  como  o 
ferro  oJc(ji(iliba,  o  Peroba  encarnado,  o  Sassafras 
branco,  encarnado  e  prelo. 

3Hucracs—0  Paraná  eslá  litleralmenle  coberto 
de  mármores,  poi-phyros,  agathas,  minérios  de 
ouro,  de  ferro  e  de  galena  argcnlilera. 

Em  uma  das  extremidades  da  cidade  de  Para- 
naguá existe  uma  jazida  de  mei-curio  tão  abun- 
dante, que  na  época  das  chuvas  o  mercúrio  se 
escoa  caindo  de  um  talude  na  borda  do  mar. 

Diamantes  e  pedras  preciosas — A  máxima  parle 
dos  rios  d'esla  provincia  são  auríferos;  alguns,  as- 
sity  como  o  Tybagy,  encerram  biilhanles,  esme- 
raldas, topázios,  amelhisles,  lurquezes  e  rubis. 
Ouasi  todos  os  dias,  negros  ou  os  camponezes 
vendem  por  inlimo  preço  os  diamantes  que  en- 
contram nos  rios. 

Plantas  medeeinaes  —  A  ipecacuanha,  a  quina, 
a  salsa  pariilha  Japecanga  abundam  n"este  paiz; 
acha-se  ali  igualmente  o  Cambara  antisyphilitico, 
muito  superior  a  todos  os  vegetaes  conhecidos,  da 
mesma es|)ecie  a  C arroba  emj)regada  nas  mesmas  en- 
fermidades, o  bálsamo  de  copahiba,  a  Jahopha  cur- 
cas,  a  Qtiassia  amara,  o  ant/uro  cuja  resina  e  a  casca 
são  reputadas  no  paiz  como  antidolo  da  phlysica. 

Peixes — A  bahia  de  Paranaguá,  uma  das  mais 
vastas  e  seguras  do  globo,  tem  12  léguas  de  pro- 
fundidade e  00  de  circumferencia.  Abunda  em 
peixes.  ()ulr'ora  os  hal)ilanlesda  provincia  de  que 
se  li  ala  forneciam  o  jjcixe  salgado  a  todas  as  re- 
giões da  America  hespanhola. 

Alfredo  Mav 

beduínos 

E  esla  a  denominação  dos  árabes,  que  adopta- 
ram a  vida  nómada.  Sãoelles  os  habilanles  aborí- 
genes da  Arábia.  A  signilicação  do  seu  nome  em 
lingua  aiabe  é  «lilhos  do  deserto.» 

I^,  essa  com  eííeilo  a  sua  verdad(Mra  pátria,  c  o 
silio  em  que  elles  folgam  de  usufruir  a  sua  selva- 
gem in(le|)en(lencia.  Partindo  do  deserto  da  Ara- 
i)ia,  as  suas  Iribus  csj)alharam-so  pelos  deserlos 
da  Syria  c  do  Egypto,  e  quando  essas  primitivas 
civilisações  se  deslizeram,  arrojaram-se  elles  ás 
vastas  j)la!iuras  da  Mesopolainia  e  di  (ihaldèa. 

Como  os  pássaros  sinistros,  que  só  nas  minasse 


o  PANORAMA 


ns 


comprazem,  os  Boduinos  esperam  que  a  mão  do 
tempo  reduza  a  esquelelos  as  cidades  i;iganles, 
para  se  irem  enlão  senlar  nos  fustes  pailidos  de 
Palmyra,  nas  moles  derrocadas  de  Balbek.  O 
viajante,  que  percorre  essas  immensas  solidões  on- 
de se  agitaram  nuIi-'ora  innumcros  povos,  sonle 
uma  lúgubre  impresí-ão  ao  ver  alvejar  por  enlreas 
i-uinas  carcomidas  o  branco  albornoz  do  Beduino, 
como  qualquer  de  nós  não  pode  deixar  de  eslre- 


mccer  quando  no  claustro  musgoso  do  convento 
solitário  sente  o  vôo  pesado  e  ti-iste  do  morcego. 
No  soptimo  século  os  Beduínos,  caminhando 
sempre  em  dii-ecção  aos  silios  onde  sentiam  ir  a 
velha  civilisação  Laqueando,  coníjuislaiam  toda  a 
Africa  seplenitiional,  e  ahi  se  estabeleceram  da 
mesma  forma  que  no  Grande  Deserto,  entre  o  Mar 
Vermelho  c  o  Oceano  Allanlico,  território  que 
ainda  hoje  occupam.  Nas  \mWs  d'essa  vasta  zona 


Eoduinos 


onde  é  possível  a  cultura,  encontram-se  os  Beduí- 
nos misturados  com  outros  povos,  mas  no  deserto 
são  ellos  sós  os  dominadores. 

D'ahi  proveio,  como  era  natural,  a  necessidade 
de  lerem  uma  vida  errante,  e  de  tratarem  só  de 
criar  gados,  e  de  roubar  os  viandantes.  Ksla  vida 
solitária  cheia  de  perigos,  nómada  fez  d'elles  um 
povo  essencialmemte  bellicoso,  exti'emamen[e  hos- 
pitaleiro, intrépido  e  frugal.  O  seu  caracler  tem 
também  uma  vaga  c  selvática  poesia.  O  deseito, 
da  mesma  forma  (jue  o  mar,  poetisa  os  ânimos 
mais  prosaicos.  Aquellas  duas  immensidades  en- 
sinam aos  que  as  frcíiuenlam  não  sei  que  grandiosos 
pensamentos. 

Esta  vida  independente  é  também  propiia  para 
desenvolver  e  levar  ao  excesso  as  qualidades  pre- 


dominantes de  uma  raça.  A  voluptuosidadc  c  a 
vingança  naturaes  á  raça  semítica,  Iransformam-se 
nos  beduínos  em  |)aixões  impeluosíssímas. 

Os  beduínos  são  uma  bella  raça  de  homens.  A 
fadiga  e  as  privações,  a  que  andam  expostos,  aca- 
nham-lhes  um  pouco  a  estatura,  c  emmagrecem-n'os; 
apezard'isso  são  vivos,  enei"gicos,  e  pouco  suscep- 
tíveis de  se  deixarem  pi'ostrar  j)elo  cançasso.  Os 
seus  olhos  ai'dcnles  revelam  uma  cxliema  linura. 
As  feições  caracterislícas,  o  nariz  ordinaria- 
mente aquilino  denunciam  uma  cerla  altivez. 
Como  lodosos  nómadas  dos  desertos,  os  seus  senti- 
dos, especialmente  o  da  vista,  são  levados  a  um  acu- 
mc.  raríssimo. 

A  excepção  de  algumas  liibus  que  iiabitam  a 
Syría  e  uma  das  quaes  até  se  diz  que  professa  o 


i74 


O  PANORAMA 


chrislianismo,  os  beduínos  são  niusiilmanos.  As 
funcçõos  sacerdotaes  são  desempenhadas  por  ma- 
rabuios,  homens  a  quem  as  suas  occupaçõcs  ascé- 
ticas e  Iheologicas  asseguram  uma  grande  inllucn- 

cia. 

A  sua  cultura  inlelleclual  oslá  pouco  adianlada; 
comludo  lêem  muilo  bom  senso  natural,  espiriío 
vivo  e  imaginação  ardente.  Os  seus  costumes  lêem 
a  dupla  marca  da  sua  religião  e  do  seu  género  de 
existência.  São  hospitaleiros  e  vingativos. 

Ha  mais  liberdade  nas  relações  entre  os  dois 
sexos,  do  (|ue  é  habitual  entre  os  Orienlaos  se- 
dentários. As  suas  mulheres  não  estão  sujeitas  a 
uma  reclusão  severa,  e  a  polygamia  não  e  usada; 
em  compensação  mudam  frequenlemenle  de  espo- 
sa. Os  seus  diveilimentos  jiredilectos  são  o  jogo 
da  i)ella  c  a  caça.  Piimam  em  montar  a  cavallo. 
Adoram  a  dança,  gostam  de  ouvir  contar  histo- 
rias, de  beber  caie,  c  de  fumar  indolentemente  o 
seu  cachimbo.  Sustcnlam-se  dos  productos  vegetaes 
(|ue  se  lhe  deparam,  do  leite  dos  seus  rebanhos,  e 
da  caça.  Veslem-se  com  estofos  de  lã,  que  elles 
mesmos  fabricam.  Tsam  uma  túnica  branca  longa 
e  amj)la  a  ([ue  chamam  ((haik)^  que  ao  mesmo  tempo 
llies  cobre  a  cabeça,  em  torno  da  qual  liça  alada  com 
uma  corda  de  pello  decamello.  Í*or  cima  do  haik, 
trazem  um  manto  branco  lambem,  a  que  chamam 
albornoz.  Os  mais  nobres  e  os  mais  ricos  c  que 
trazem  calças  e  camiza  por  boixo  do  haik. 

A  sua  industria  limila-se  ao  fabrico  dos  uten- 
sílios e  dos  estofos  que  lhes  são  mais  indispensá- 
veis; e  oscucommeicio  á  venda  dos  productos  dos 
seus  rebanhos,  que  lhes  serve  pai'a  comprarem  ar- 
mas e  munições.  O  seu  eslado  social  e  politico  é 
ainda  o  da  vida  patriaichal.  Uma  ou  muitas  famí- 
lias, cujo  chefe  toma  o  titulo  de  .sc/icick  fói-ma  o 
centro  da  Iribu,  e  constituem  com  os  marabutos 
uma  espécie  tie  nobreza.  Entre  elles  ó  que  se  es- 
colhem os  cadis,  que  são  os  chefes  superiores  da 
tribu.  Estes  são  generaes  em  lem|;o  de  guerra,  e 
magistrados  ejuizes  em  tempo  de  |)az.  (Tada  tribu 
comprehendc  muitos  aduares  ou  aldeias  moveis, 
(|ue  a  maior  parle  das  vezes  só  consislem  em  len- 
das fabricadas  simplesmente,  com  pelles  de  camel- 
lo  c  dispostas  ciiculainiente,  no  meio  das  (|uaes 
de  noite  SC  mettem  os  i^ebanhos.  Os  seusprincipaes 
animaes  domeslicos  são  o  camello  e  o  cavallo,  o 
jumento,  o  carneiro,  c  a  cabra. 


A  GALATEA  MODERNA. 
VI 

l>.  ^ioltiiilc  n  liiifoiícxii   <■(>  .%l|>o«li'al. 

Oh !  É  indesculpável  o  pobre  Alfredo.  Não  ha 
forças  que  vençam  a  sua  mania  romântica,  a 
qualj  pelos  modus,  o  accommetleu  com  maior 
intensidade  n'cslas  campinas  minholas.  Ecm- 
bras-lc  de  l\omeo  Montaigu  ?  I>cml)ras-tc  d'cssa 
creação  inímilamenle  poética,  poelica  de  mais, 
para  ípic  [)Ossa  existir  no  prosairo  mundo,  que 
habitamos  V  1'nis  o  nieii  Alfredo  itníla,  (oh!  tem 
mão,  por  Dcos !  NTio  te  coulorsas  cm  espasmos 
de  riso  !)  o  pobre  Itomeo.  E  o  peior  é  íjue  qu(!r 
fiir.cr  de  mim  a  sua  Julieta,  que  de  certo  já  liio 


houvera  descantado  o  derradeiro  gorgeio  do  rou- 
xinol moribundo  : 

É  forçoso  ]inrtir,  e  viver. 

Ou  ík-ar  junlo  a  mim...  c  morrer! 

com  accento  profundamente  melancólico,  como 
de  quem  vê,  com  olhos  d'alma,  os  negrumes  do 
tumulo  cm  não  bmginquo  cemitério. 

Mas  não!  N'esta" época  de  prosa  vil  e  chã, 
quando  os  próprios  passarinhos  da  floresta  como 
que  cantam,  só  para  que  lhes  não  derrubem  as 
arvores,  em  cujos  ramos  se  aninharam,  encontrar 
um  Romeo.  Oh!  querida  baroneza  !  Já  alcançaste 
um  triumpho  assim?  As  viclimas  que  has  ceifado, 
nada  são  em  parai  leio  com  este  pobre  vencido, 
que  me  segue,  qual  sombra  p.langenle  e  eterna- 
mente amorosa.  Não  píjdes  phantasiar,  se  bem 
que  a  tua  phanlasia  seja  capaz  dos  maiores  ar- 
rojos, o  que  por  aqui  vae  de  sentimento.  Toda 
eu  sou  ás  vezes,  ora  uma  elegia,  tão  triste  como 
o  ruído  que  se  alevanta  dos  campos,  por  noite  de 
outono,  ora  um  ponto  de  admiração  por  esses  lon- 
gos amores  da  edade  media  em  mil  cantos,  co- 
mo um  saga  scandinavo,  amores  que  os  bardos 
da  língua  d'oe  começavam  a  titubear  no  berço, 
e  quando  morriam  ainda  lhes  faltava  muito,  o 
principal  talvez. 

Aqui  me  tens,  poi.=,  minha  querida  baroneza, 
em  perpetua  meditação  anftrosa,  vendo  lavrar  o 
incêndio,  que  eu  própria  accendi,  desviando-me 
porém,  por  me  não  queimar. 

E  olha  que  estou  cercada  de  perigos,  que  só  a 
minha  vasta  sabedoria  e  profundíssima  prudência 
poderiam  evitar.  Alfredo  ama-me  loucamente, 
digo-t'o  sem  rebuço,  sem  louca  vaidade.  Ama-me 
como  um  perdido,  porque  lhe  causei  uma  im- 
pressão, que  annos  e  desenganos  nunca  jamais 
poderão  obliterar,  listou  certa  d'isto.  Assim  o 
estivera  da  minlia  felicidade.  Vè  pois  que  cuida- 
do não  hei  de  ler,  para  domar  os  ímpetos,  os 
delírios,  as  impaciências  de  um  amor  que  irrom- 
peu súbito,  como  a  lava  de  um  vulcão,  que  ac* 
corda,  após  longo  somno?  Como  dizer  á  lava  que 
se  desenijanha  em  chispas  de  fogo  :  não  vás  mais 
longe,  que  me  queimas  a  orla  do  vestido? 

E  depois,  quando  succedc  a  melancolia  do 
amor,  e  o  vulcão  já  não  estruge;  quando  Alfredo 
me  enleia  n'um  olhar,  e  intenta  rasgar  até  ao 
coração,  como  obrigai  o  a  calar?  Como  deter  as 
mil  conlissões,  que  estão  saltando  a  ílux?  Como 
não  ouvir  a  palavra,  que,  segundo  o  poela,  que 
lanlas  vezes  hei  lido, 

....  Lip|íni.s  rinq  mille  nns 

];e  .=;usi)eii(l  cliiKiue  nuil  aiix  Irvres  dcs  amanis  ! 

Como  lograr  tudo  isto,  no  meio  de  tantos  peri- 
gos, quando  o  inatrimonio  acode  em  soccorro  do 
coração  ? 

Ai!  tenho  medo  de  mim!  Nasci  para  a  lucta. 
Quero  luctar,  c  não  sei  se  me  sairei  bem.  Chamas- 
mc  louca  e  romanesca.  Eu,  romanesca?  Eu,  que 
sou  tua  discípula  ?  Eu,  que  tenho  por  gloria  se- 
guir os  teus  exemplos? 

Deus  m(!  livre  de  amar  Alfredo,  que  seria  esse 
o  castigo  eterno,  o  ])erpctuo  flagício  da  minha 
vida!  Amal-o,  seria  fi;gír  d'elle,  e  para  semi)rc. 
Amal-o,  fora  a  solidão  do  convento  i)or  compa- 
nheira constante.  Amai  o  fora  a  eslamonha  da 
monja,  fora  o  cilício  doloroso.  Se  eu  o  amasse, 
adeiis  mundo,  que  sonho,  oslriumphos  que  ante- 


I 


o  PANORAMA 


^175 


y  vojo,  os  oxplendores,  que  descortino.  Se  eu  amasse, 
não  poderia  desposal-o.  Não  le  admires,  minha 
querida.  Põe  os  olhos  cm  ti.  Amas  apaso  o  pobre 
barão?  Amas  o  teu  marido,  esse  servo  fiel  e  obe- 
diente dos  teus  caprichos.  .Não.  E  por  isso  reinas 
despoticamente,  imperas  no  baile,  redopias  na 
walsa,  acorrentas  escravos,  dominas  o  mundo, 
vives  em  íim  a  vida  dourada,  senão  a  vida  do 
oiro.  Mas  imagina  por  um  pouco,  que  amavas  o 
teu  barão.  Trocavas  o  sceptro  pela  roca,  torna- 
vas-fe  submissa,  como  uma  matrona  romana, 
não  tinhas  vontade,  não  surgias  radiante  toda  luz, 
toda  brilho,  no  meio  dos  festins.  Pois  comigo, 
aconteceria  peior  ainda.  Sou  pobre,  devera  tudo 
a  Alfredo,  e  o  meu  amor  confundir-se-ia  com  a 
gratidão.  Os  transportes  da  alma  lornar-se-iam 
um  dever  de  esposa  agradecida  e  respeitosa,  que 
só  tem  olhos  para  o  seu  marido.  A  paixão  morria 
afinal  n'essa  athmosphcra  plácida  e  socegada.  Os 
arroubos  de  um  amor  intenso,  os  extasis  que  nos 
-  lançam  em  timido  pélago  de  sensaçcMís  ignotas,  os 
mil  soíTiimentos,  conqjensados  por  mil  venturas, 
todos  esses  combales,  que  são  a  vida  do  amor,  cs- 
vaecer-se-iam  perante  esse  viver  tranquillo  e  mo- 
nótono, como  o  caudal  se  some  nas  aguas  soce- 
gadas  do  lago. 

Os  meus  sonhos  mais  queridos,  as  minhas  es- 
peranças mais  arreigadas  desfolharaas  o  casamen- 
to por  amor  1 

Por  isso,  ó  minha  querida,  não  queiras  que  eu 
ame  Alfredo,  e  desejes  ver  nos  unidos  pelos  sa- 
grados laços  do  hymeneu,  como  se  dizia  outr'ora. 

Mas  deixemosdivagações.  Queres  ouvir  Alfredo? 
Queres  assistir  a  uma  dias  nossas  conferencias  phy- 
losophico-scntimentaes,  em  que  nós  discutimos, 
não  sem  alguns  suspiros  de  Alfredo,  os  themas 
mais  abstractos  do  coração?  Eil-o  que  vem  con- 
vidar-me  para  passeio.  A  tarde  vae  fresca  e  ame- 
na. Estamos  na  primavera.  A  brisa  atufa  as  nu- 
vens, que  são  o  gaze  dos  espíritos  aéreos.  Os  pas- 
sarinhos enchem  a  solidão,  com  os  seus  quebros 
melodiosos.  As  folhas  do  arvoredo  espargem-se, 
húmidas  ainda,  aos  últimos  raios  do  sol.  E'  a 
hora  da  melancolia 


{ConUnua) 


A.  Osouio  DE  Vasconcellos 


LIÇÃO  A  UM  LISONGKIUO 

Um  dia,  nos  Pnizos-Baixos,  acliando-se  o  bravo 
coronel  escossez  Edmunds  ahnoçando  com  muitos 
dos  seus  oliiciaes,  um  dos  seus  compalriolas  en- 
trou e  dirigio-lhe  estas  palavras:  (cMylord,  vosso 
nobre  pai  c  iodos  os  cavalieiros  e  fçenlishomens 
seus  filhos  c  primos,  estão  de  porfeila  saúde.»  O 
coronel  sorrio-se  e  encolhendo  os  iiombros  disse: 

«Senhores,  não  acrediteis  uma  palav;a  úo  que 
acabais  de  ouvir.  Meu  pai  é  um  pobre  padeiro  de 
Edimburgo,  cujo  liabalho  mal  lhe  dá  para  viver. 
Em  Ioda  a  minha  família  não  se  enconlra  um  no- 
bre. Este  homem  queria  lisongear-mce  fazer  acre- 
ditar que  eu  nasci  em  algum  castello.  Enganou  se, 
meu  camarada,  nasci  em  uma  loja,  e  não  coro  por 
isso.» 

A  ambição  e  a  cobiça  não  allentleiu  nem  á  jus- 
lica,  nem  *á  razão. 


OS  ESCRÚPULOS 

O  grande  moralisla  .lacques-Josoph  Duguel, 
escreveu  pelos  annos  de  1717  um  tratado  dos  es- 
crúpulos. iN'aquellc  tempo,  a  palavra  escrúpulo 
não  tinha  o  sentido  que  hoje  se  lhe  dá.  «O  es- 
crúpulo, diz  Duguel,  é  uma  duvida  em  matéria 
de  moral,  que  não  tem  fundamento  ou  se  o  tem 
é  mui  leve,  ainda  (|ue  vá  algumas  vezes  até  á  per- 
suasão, e  encha  a  consciência  de  inquietação  e 
perplexidades.» 

Escrevendo  o  seu  tratado,  tem  por  fim  levarás 
almas  timoratas  <ío  socego  e  a  paz  esclarecendo- 
as,  c  de  conservar  á  virtude  o  privilegio  de  tornar 
o  liomem  feliz,  o  que  só  convém  a  ella,  rasgan- 
do-lhe  o  véo  lúgubre  com  que  o  espirito  das  tre- 
vas procura  cobril-a  a  miude.  O  nome  de  escru- 
puloso, accrescenla  elle,  tem  o  quer  que  seja  de 
liumilhante  na  opinião  do  mundo;  mas  o  mundo 
é  injusto.  lia  muita  gente  aquém  melhor  fora  sof- 
frer  d'essa  doença  que  os  faz  sorrir,  do  que  viver 
na  falsa  Iranquíllidadee  perfeita  confiança  em  si, 
que  só  veera  da  sua  muita  ignorância  e  do  que 
ha  de  mais  denso  e obtuso  no  sentido  moral. 

Nada  mais  perigoso  do  que  o  não  guardar  fi- 
delidade para  esse  grito  da  consciência,  que  é  a 
regra  pessoal  de  cada  parlicular,  e  que  dá  a  cada 
uma  das  suas  acções  a  applicação  das  regras  ge- 
raes  da  lei  natural.  Quando  se  procura  abafar  essa 
voz  secreta,  merece-se  nada  mais  ouvir,  e  expõe- 
se  a  andar  toda  a  vida  nas  trevas  (|ue  se  lhe  hão 
preferido.  O  homem  de  bem,  sabe  isso,  e  é  muito 
para  lastimar  quando  a  sua  consciência  o  adverte 
iora  de  tempo,  e  que  lhe  faz,  sobre  acções  descul- 
páveis, ou  mesmo  innocentes,  reproches  tão  vivas, 
Ião  assustadoras  como  se  essas  acções  foram  cri- 
minosas. Porque  não  se  lhe  pode  dizer.  «Não  es- 
cuteis nunca  a  vossa  consciência.»  Nem  Ião  pou- 
co: «Esculai-a  sempre.» 

O  meio  entre  estas  duas  extremidades  é  diíTi- 
cil,  e  é  preciso  uma  razão  sã  e  esclarecida  para 
conservar-se  n'elle.  Se  se  pende  nuiilo  para  o  la- 
do opposlo  ao  que  insinua  a  consciência,  cáe-se 
no  risco  de  habiluar-sea  não  ter  bastante  len'ella. 
Se  SC  abandona  ao  escrúpulo,  é  para  temer  que  a 
causa  não  seja  «uma  fraípieza  natural  do  espirito 
ao  qual  tudo  faz  impressão,  que,  como  a  cera,  to- 
ma de  lodos  os  pensamentos  uma  espécie  de  cu- 
nho, e  í|uc  recebe  de  (juasi  lodos  os  objectos  um 
ceilo  abalo  que  o  inquieta.  Esla  disposição,  (juan- 
do  é  levada  ao  excesso,  limila  muito  a  liberdade 
c  a  razão,  ou  mesmo  e\lingue-as  complelamenle.^) 

Outra  causa  da  IVa((ueza  do  espirito  é  a  sua 
pouca  extensão,  incapaz  de  comparar  o  que  pode- 
ria esclarecer  o  escru|)ulo  com  o  que  o  produz, 
o  es|)irilo  não  vê  as  causas  senão  por  este, único 
lado,  e  é  de  oídinario  o  mais  afiliclivo.  É  uma 
fonte  inesgotável  de  falsos  raciocínios,  de  falsos 
receios,  de  falsos  preconceitos,  o  não  considerar 
mais  do  que  um  ponto  e  n'elle  lixar-se. 

Se  o  espirito  é  confuso,  se  não  distingue  coisa 
alguma  com  precisão,  se  conserva  no  discurso  a 


/b 


O  PANORAMA 


desordem  e  o  embaraço  de  pensamenlos,  senle-se 
uma  grande  dilliculdade  cm  socegar  os  escriipu- 
los.  Não  ha  oulro  meio  senão  procurar-lho  dis- 
linguic  claramenie  as  diflerenles  parles  do  que 
concebe  e  confunde,  edemonsli-ar-ilie(iuanlo  cada 
ponlo  sepai-ado  comporia  de  exageração. 

Muilas  vezes  senlimo-nosperhirbados  pela  nos- 
sa imaginação,  que  nos  apresenla  visões  assusíadoras 
c  que  nos  indignam,  i^ías  nós  devemos  pensar  que 
a  nossa  imaginação  não  é  o  eu;  é  a  nos^o  res- 
peilo  conui  um  ptulercslranho;  não  somos  obriga- 
dos a  impular-nos  os  seus  impolos,  c  não  respon- 
demos senão  pelo  nosso  pioprio  coi'ação.  Ouanlo 
menos  nos  deixarmos  alemorisar  pela  imaginação, 
menor  será  o  seu  império  sobre  nós:  ó  o  medo  que  se 
lem  irellaque  rodobra  a  violência  e  a  assiduidade, 
em  (pianlo  que  o  despreso  é  o  i'emedio. 

Não  deveiiamos  formar  uma  ideia  muilo  alia 
da  virlude:  ò  preciso  somente  que  cila  esteja  em 
relação  com  as  condições  cssenciaes  do  nosso  es- 
tado n'esta  vida.  Por  isto  torna-se  essencial  uma 
união  perfeila  da  delicadeza  da  consciência  c  da 
rectidão  do  juizo.  E  necessário  conciliar  todos  osseus 
deveres.  Somos  escrupulosos  na  má  accepção  da 
palavra  se  vemos  que,  para  satisfazer  a  um  só  d'en- 
tre  cUes,  se  sacrificam  os  outros  que  lêem  os 
mesmos  direitos  c  não  importam  menos  á  perfeita 
honestidade.  íla  virtudes  que  se  exj)õem  a  serem 
suspeilas  equasi  odiosas,  por  esta  pi-eferencia  que 
injustamente  se  lhes  dá,  e  pelo  pouco  zelo  que  se 
mostra  para  o  resto  das  leis  moraes. 

(cUma  attenção  mui  grande  a  examinar-se  ca  ob- 
servar todas  as  suas  acções  e  todos  os  seus  motivos 
degenera  algumas  vezes  em  inceileza.  Ouanlo  mais 
de  perlo  e  mais  tempo  se  olham,  menos  se  conhecem. 
E  precisoum  certo  pontode  vista  para  discernir  os 
objectos  e  quando  estão  muito  próximos,  tornam-se 
Ião  confusos  ou  mesmo  tão  invisíveis  como  se  esti- 
vessem muilo  distantes.  Não  ha  ainda  mais  do  que 
o  meio  entre  as  duas  extremidades,  ou  ver-se 
sempre,  ou  nunca  ver-se,  quem  for  esclarecido. 

«E  preciso  tanta  equidade  para  si  como  para  os 
outros;  ser  humilde,  mas  iccloe  sincero;  não  cair 
na  ingialidão  para  evitar  o  orgulho;  c  preferir 
uma  quietação,  (|ue  conduza  á  conliança,  a  um  de- 
sassocego  duvidoso  que  não  faz  mais  do  que  con- 
servar o  receio  c  que  leva  ao  desalento.» 

Enlrc  03  remédios  que  Dugiiet  aconselha  para 
a  emenda  dos  escrúpulos  desarrezoados  ou  exces- 
sivos, o  trabalho  entra  cm  primeira  linha:  recom- 
menda  estudos  im[)ortantes,  o  exercício  da  caii- 
dade  fora  de  casa,  a  conveisação  com  pessoas  de 
uma  razão  superior.  l)e[)ois  empichende  um  exa- 
me das  esj)Ocies  particulares  de  escrúpulos,  e 
enlra  em  uma  oídem  de  reílexões  que  se  referem 
espccialmcnle  á  religião. 

A  Verdade  se  acolheu,  á  unha  de  cavallo,  dos 
conselhos  e  Iribunaes,  lemendo  algum  desacato,  e 
deixou  nas  cortes  seuíilhoo  Ódio,  a  (piem  os  gran- 
des casaram  com  a  Príni/ira,  jjrimeiro  logar  n'('llas; 
de  cujo  ajuntamento  nasceu  o  Dcsfiu/a no.  o  (\ud\  os 
corlczãos  ciiaramcom  todo  o  apaialo  que  se  pode 


imaginar:  porém  como  chegou  a  uso  da  razão,  c 
quiz  exercitar  o  seu  oíUcio,  determinaram  acabal-o. 

Elle  que  presenliu  o  pouco  que  parecia  gentil- 
homcm,  ))erigrinou  grande  parle  do  mundo,  até 
dar  comsigo  na  Tliebaida,  onde  \'\\c  apartado  de 
toda  a  conservação.  Ó  santo  Desengano,  quantos 
naufrágios  tendes  passadol    M.  Affonso  de  Miranda 

[Tempo  de  agora) 


IMMENSÍDADE 

Ali!  SC  a  nossa  visla  fosse  lai  qiic  podesscmos  dcsco- 
lirir,  íilli,  onde  npoiíns  dislingiiimos  i)oiilos  luminosos  no 
fundo  negro  do  céu,  os  soes  resplamieconles  que  gravi- 
tam na  extensão  c  os  mundos  haijilados  que  os  seguem 
em  seu  curso;  se  nos  fosse  dado  abraçar  cm  um  olIiaV  ge- 
ral essas  myriadas  de  syslcmas  solares;  se,  avançando 
nós  com  a  velocidade  da  luz,  atravessássemos  duranlc  sé- 
culos esse  numero  illimilado  de  sócs  e  de  esphcras,  sem 
nunca  adiar  termo  a  essa  immcnsidaflc  onde  Deos  fez 
germinar  os  mundos  c  os  seres;  voltando  para  traz  os  nos- 
os  olhos,  mas  não  sabendo  em  que  ponlo  do  iniinilo  pára 
esse  grão  de  |)ò  (pie  se  chama  Terra,  licaiiamos  fascinados 
e  confusos  por  um  (ai  es|)eclaculo  e  unindo  a  nossa  voz 
ao  concerto  da  natureza,  diríamos  do  fundo  da  nossa  al- 
ma: ('Deos  lodo  poderoso!  quão  insensatos  éramos  em 
julgar  que  natia  havia  além  da  terra,  e  que  só  a  nossa 
pobre  morada  tinha  o  privilegio  de  fazer  reíleclir  a  lua 
grandeza  c  o  leu  poder!» 


ILÍÍAS  DE  GELO 

Encon!ram-sc  ilhas  de  gelo  flucluantcs  de  3  a  8  Ivilo- 
metros  de  extensão  e  de  30  a  CO  metros  de  altura.  A 
parte  coberta  jielo  mar  de\e  ser  (conforme  as  densidades 
relativas  do  g('lo  e  da  agua)  seis  ou  oiio  vezes  mais  con- 
siderável, que  a  i^arlc  visível.  A  espessura  lotai  pode  ser, 
de  500  a  COO  melros. 


L'AMOUR,    CEST    LA    YIE ! 
1 

Um  dia,  vi-te  só  !  eslavas  triste, 
])cnd:da  a  frente,  c  os  olhos  rasos  de  agua ; 
c,  ao  ver  (pie  te  opprimia  funda  rnágua, 
l)ergunleí-te  jiorípiè,  mas  não  me  ouviste. 
Ceilo,  o  (piadro  da  vida  contemplavas, 
e,  saudosa  do  céo  d'onde  vieras, 
cm  leu  seio  arcbangelico  anhelavas 
por  deixar  (reslc  ntundo  as  primaveras. 
Tinhas  rasão  !  E  eu  perguntei-le  ainda 
se  na  terra  um  incanlo  não  achavas 
que  Ic  levasse  alli\io  ao  coração. 
Ergueste  a  fronte  iiáilida,  mas  linda, 
c  respondeste  —  não  ! 

II 

Mais  tarde...  quando  o  amor,  em  doce  calma, 
em  azas  de  ouro  e  neve  te  envolvia, 
e  na  fronte  gonlil  Ic  entretecia 
a  c"roa  de  raiidia  da  miidfalma  ; 
(piando  o  amor,  seus  s(urisos  entreabrindo, 
veio  fechar  depois  nossos  abraços  ; 
e,  sobre  a  terra  (h)res  espargindo, 
por  llórea  senda  nos  guiou  os  passos: 
logrei  um  ceu  em  cada  teu  sorriso, 
li  a  ventura  no  leu  rosto  lindo, 
\í  te  ditosa,  e  perí;,untei-lc  emlim, 
se  este  mundo  não  era  um  paraíso, 
c  respondeste  —  sim  1 

Vizcu  9  (lu  maio,  ISOG. 

Cândido  riOUKinEDO. 


Tyii'.  iMiuico-l-oriugUfKa.  llua  do  Tlicsouio  vellio,  O 


23 


o  PANORAIMA 


77 


Pi-aça  de  Luiz  de  Gamões. 


Ha  de  muita  gente  julgar  fora  de  propósito  a 
publicação  d'esta  estampa,  por  figurar  uma  scena 
que  já  vae  bem  longe;  e,  comtudo,  vale  mais  a 
presente  gravura,  do  que  outra  que  desenhasse  o 
estado  actual  do  meio  alinhavado  monumento  de 
Camões. 

Quando  sua  magestade,  el-rei  D.  Luiz,  foi  lan- 
çar a  primeira  pedra  da  suspirada  memoria,  tudo 
tinha,  até  esse  jubiloso  momento,  corrido  com  tanto 
fogo,  que  a  todos  pareceu  resolvido  o  insolúvel 
problema  de  completar,  nos  prasos  marcados,  as 
obras  começadas;  e  muitos  chegaram  a  suppor  que 
teríamos  inauguração  antes  do  termo  das  condi- 
ções. 

Esse  acto  do  nosso  monarcha  foi,  portanto,  uma 
revelação  de  confiança,  de  alegria  e  de  enlhusias- 
mo  patriótico,  que  o  seu  luzimenlo  inspirou,  ro- 
bustecida pelos  precedentes  auspiciosos  que  a  ti- 
nham definido. 

E  hoje? 

Hoje,  ha  mais  alguma  coisa.  Certamente.  Ha  o 
pedestal  completo,  que  se  compõe  de  muitas  pe- 
dras, de  muita  cal,  de  muitas  quinas,  de  muitos 
ornatos,  de  muita  terra,  e  pó  também.  É  mais 
alto  do  queum  homem,  c.  Todos  o  vêem.  Porem... 
ninguém  se  lembra  d'elle. 

Tal  é  o  lapso  de  tempo,  carregado  de  irrisórias 
peripécias,  que  attesta  aquella  representação  |)las- 
lica  do  slalu  qno,  e  que  tão  desapiedadamente  nos 
ameaça  com  um  novo  galheteiro,  mais  delicado, 
mais  janota,  mais  pomjjoso,  e  verdade,  do  (jue  o 
extincto  galheteiro  do  Rocio;  mas...  um  galhe- 
teiro. 

Portanto,  a  estampa  que  figurasse  este  novíssi- 
mo, correcto  e  augmentado  galheteiro  seria  uma  es- 
tampa... para  rir,  ou,  se  (luizerem,  para  chorar; 


e  o  nosso  fim  não  é  fazer  rir  das  coisas  sérias, 
nem  entrar  na  complicada  tarefa  de  phanlasiar 
portuguezes  que,  á  semelhança  de  Scipião,  chorem 
sobre  as  ruinas  da  pátria. 

Eis  a,rasão  porque  a  nossa  gravura  tem  mais 
valor.  E  uma  recordação  de  passadas  alegrias, 
sempre  bem  vinda  n'este  mar  procelioso  de  an- 
gustias em  que,  desde  muito,  navegamos. 

Já  lá  vão  os  tempos  em  que  o  génio  nos  des- 
pontava rápido  e  viçoso,  e  as  diíTiculdades  econó- 
micas e  l)lasticas  se  apagavam  instantaneamente  ao 
sopro  da  vontade,  da  confiança  e  da  energia. 

Morreram- com  o  reinado  dê  D.  Maria  I,""  e,  ao 
menos,  consolemo-nos  por  terem  morrido  religiosa- 
mente. 

Quando  cortaram  as  azas  ao  ministro  de  D.  José 
I,  marquez  de  Pombal  caio  das  maiores  alturas  da 
gloria,  a  que  o  seu  vòo  seguido  e  rápido  o  havia 
elevado.  A  sua  queda  estremeceu  o  paiz,  e  desde 
então  nunca  mais  o  infeliz  Portugal  logrou  saúde. 
Ninguém  se  mostrou  culpado  em  tamanho  delicto; 
mas  o  convento  da  Estrella  foi,  talvez,  uma  ma- 
nifestação piedosa  movida  pelo  remorso,  um  voto 
nascido  de  um  erro  politico,  que  só  a  Deus  se 
revelou. 

Hoje,  que  não  podemos  resuscitar  os  mortos; 
que  não  é  possível  restituir  á  vida  aquelles  polí- 
ticos estacionários  c  despóticos  que  animaram  o 
mármore  em  vultos  gigantescos,  e  fizeram  brotar 
das  cinzas  ainda  lépidas  uma  cidade  explendida; 
([ue  acharam  e  ciiaram  sabias  e  arlistas  que  não 
tropeçavam  em  qualquer  difficuldade,  nem,  co- 
bertos com  as  vestes  da  fama,  dormiam  embria- 
gados pelo  perfume  dos  loiros ;  hoje  tomámos  o 
l)arlido  de  importar  a  cultura  do  progresso. 

Porém,  como? 


•178 


O  PANORAMA 


Esquecerao-nos  de  que  nos  faltava  o  eslrumc;  e 
eis  o  proíresso.  planta  de  eterna  e  crescente  bel- 
leza,  conveilido  em  uma  espécie  de  caranguejo: 
andando  mais  paia  traz,  de  cada  vez  que  o  im- 
purram  paia  diante. 

Proclamam-se  Machados  do  Castro,  como  quem 
apregoa  laianja  da  China;  SebasliõesdeCarvalho... 
Minto.  Hoje,  ninguém  quer  ser  Sebastião  de  Car- 
valho... l)eci'ctam-se  Colberls,  como  quem  olle- 
rece  piladas  de  rapé;  semeam-se  artilices,  como 
quem  annnncia  charutos  Zamacoes.  Depois,  mãos 
ás  obras.  Kspera-se,  espera-se...  até  que  se  de- 
sespera. Que  será,  que  não  será...  Espreita-se  o 
caso,  e  encontia-se ; 

Os  Machados  de  Castro  a  scismarem  sobre  o  mo- 
do porque  de  um  bocado  de  pedra  em  bruto  ha 
de  sair  uma  figura  que  não  venha  torta;  uma  li- 
gura  direita,  perpendicular,  aprumada;  tendo,  ape- 
nas, a  liberdade  simi)Ies  de  poisar  um  pé  adiante 
do  outro,  ou  de  apalpar  a  i-egião  do  coração; 

Os  Colberls...  a  scismarem  sobre  a  causa  de 
tudo  lhe  sair  negativo,  empregando  constante- 
mente o  signal  de  mais; 

Os  artilices...  a  scismarem  sobre  a  razão  por- 
que se  lhes  partiiam  as  formas,  e,  em  lugar  de 
uma  figura  de  Camões,  lhes  saio  uma  cascata. 

Vae  para  um  século  que,  em  o  nosso  paiz,  dei- 
xaram, pouco  a  pouco,  cair  completamente  as 
obras  d'arte  nos  braços  da  infelicidade.  Quasi  to- 
dos os  projectos  ficam  nos  traços  do  tira  linhas, 
ou  no  modelo;  e  os  que,  por  acaso,  conse- 
guem vingar,  accusam  sempre  na  phisiòuomia 
contrahida  os  bons  tratos  que  a  economia,  o  mau 
gosto,  a  parcialidade  da  compadrice,  e  o  myslerio 
lhes  deram. 

O  theatro  de  D.  Maria  II  é  uma  triste  victima 
de  todas  essas  coisas.  Devia  ter  nascido  dos  traça- 
dos de  Pedro  Monteiro,  e  saio  dos  mal  engendra- 
dos plagiatos  de  outro  architeclo,  que  nemtalento 
linha  paia  fazer  d'aquelles  traçados  tima  parodia 
feliz.  Houve  dinheií-o  para  consliuir  um  Ihealro 
de  lapis-lazuli;  mas  a  economia  cortou  e  o  mys- 
teiio  ainda  mais. 

O  pensamento  que  deu  oiigem  ao  celebrado  ga- 
Iheleiro  do  Uocio  foi  outra  victima.  O  génio  que 
se  pro])oz  eternisar  pela  plástica  os  feitos  do  im- 
morlal  imperador,  dormia  lá  fora.  A  tuba  pre- 
goeira do  concurso  accordou-o,  e  elle,  abrindo  as 
azas,  voou  para  nós.  ISão  esperando,  porem,  en- 
contrar em  paiz  Ião  pequeno,  tão  grande  e  alto 
monumento,  como  é  a  estatua  eqiieslie  de  D..Iosé 
I,  n'ella  esbarrou,  partindo  o  nari:'.,  poiíjue  assim 
pode  dizer-se  de  quem  ousou  collocar  cm  a  mes- 
ma terra,  e  á  curla  distancia  da  rua  Augusta,  uma 
parodia  da  obra  prima  de  Machado  de  Castro, 
ainda  mais  infeliz  do  (jue  os  j)Iagiatos  feitos  aos 
planos  de  Pedro  Monteiro. 

Os  resultados  dCsla  comedia  todos  os  leitores 
conhecem  bem. 

Depois  de  levantaífo  o  pedestal,  a  estatua  não 
quiz  subir;  e  disse-se  que  era  porípie,  faltando- 
Ihc  dinheiío  para  comprar  abafos,  não  eslava  re- 
solvida a  ir  expor-se  permanentemente  á  chuva. 


Mais  tarde,  desmenlio-se  esta  desculpa  e  attribuio- 
se-lhe  outra.  A  estatua  tinha  vergonha  de  desem- 
penhar o  papel  de  aigola  de  galheteiro.  D'esta  se 
convenceu  o  senado,  e,  achando-lhe  razão,  man- 
dou arrazar  a  estulta  cassoada. 

Assim  é  que  morreu  o  desgraçado  galheteiro  do 
Rocio;  e  é  assim  que  muila  gente  principia  já  a 
desconfiar  que  morrerá  o  galheteiro  da  moderna 
praça  de  Luiz  de  Camões. 

Terá  o  destino  marcado  no  seu  livro  mysterloso 
a  realisação  de  tão  endiabrado  agoiro? 

Nogueira  da  Silva 


A  BOGCA  DO  LNFEKNO 
Vi 

Luiz  vae  encostado  á  amurada  do  brigue  com 
os  olhos  filos  nas  aguas  e  o  pensamento  muito 
longe  d'alli.  Nem  sequer  se  lembra  de  que  está 
no  seu  querido  oceano,  que  fora  outr'ora  a  sua 
paixão. 

Atlásta-te  da  borda,  e  observa  como  o  brigue  é 
veleiro!  A  barquinha  marca  muitas  milhas;  as  ve- 
las vão  empavezadas,  e  tu  immovelahi,  quando  n'ou- 
tro  tempo  passeavas  na  loldacom  os  olhos  ora  nas  ver- 
gas ora  na  proa  do  barco;  na  agulha,  ou  nos  horison- 
tesl  Então  no  rosloqueimadolransverberava  o  inti- 
mo prazer,  nos  lábios  saltava  um  sorriso!  Porque 
estás  agora  triste  e  pensativo,  fazendo  o  quarto 
silencioso,  quando  outr'ora  a  tua  voz.  cheia  de 
enérgico  vigor,  retumbava  de  popa  a  proa  dirigin- 
do a  manobra?  É  que  ha  solTrimentostaes,  que  absor- 
vem todo  o  ser  moral. 

Já  não  encontras  Christina  ateu  lado.  Se  a  cha- 
mas, responde-te  o  gemido  lúgubre  do  oceano. 
Oh!  deve  ser  horrível  esse  soffrimentol 

p]  o  oceano  estendia-se  em  redor  agitado,  cres- 
po, rugidor!  e  o  vento  susurrava  nas  enxárcias, 
fazendo  ranger  os  moitões!  ea  agua  formava  bran- 
cos cachões  na  proa  do  brigue! —  Era  um  quadro 
magnifico,  anle  o  (piai  oulr'ora  a  alma  de  Luiz  se 
extasiava.  Agora,  porém,  tudo  passava  desaperce- 
bido para  elle.  Já  não  achava  poesia  nas  ondas, 
nem  já  a  voos  largos  deixava  subir  o  pensamento 
aos  seios  da  immensidade! 

Encostado  á  borda,  olhos  fitos  nas  aguas,  o  co-, 
lação  retalhado  de  saudades,  c  a  ideia  na  pátria, 
ia-se  o  pobre  mancebo  pelos  mares  fora,  deman- 
dando outros  portos,  que  não  os  do  seu  querido 
paiz,  onde,  se  ouiroia  o  prendia  o  ninho  pátrio, 
hoje  o  i)rende  ainda  mais  o  consorcio  do  coração! 

Se  vos  recordaes,  leitora,  do  mancebo  (jue  en- 
contrastes na  praia  de  (>ascaes,  hesilarieis  agora 
em  afliimar  que  era  o  mesmo.  Então  represenlava 
o  marinheiro  que  não  lera  paixão  maior  do  que 
aquella  (|ue  o  ocí^tuo  alimenta  no  remanso  da  bo- 
nança ou  no  rugir  da  lem|)esla(le,  paixão  queal- 
trae  o  homem  para  elle  por  um  diabólico  poder, 
paixão  que  nem  o  naufrágio  cura,  i)orque  o  nau- 
frago, que  um  milagre  salvou  da  morle,  vae  ain- 
da outra  veziançar-seanciosonos  braços  do  ocea- 
no, sem  já  se  lembrar  de  que  esteve  |)ara  ser  por 
elles  esmagado!  —Agora  o  que  ahi  vedes  a  bordo 


o  PANORAMA 


479 


do  brigue,  costeando  o  archipolago  de  Cabo  Ver- 
de, é  outro,  magro,  pallidu,  como  quem  soílVe 
I  do  mal  das  saudades.  É  que  ésó  para  os  espíritos 
superiores  abi'açarem-se  com  a  dôr,  e  como  que 
alimenlarem-se  d'ella.  Não  são  para  as  vulgarida- 
des os  grandes  soUVimenlos,  Deus  só  trava  as  lue- 
las  gigantes  do  espirito  e  do  coração  nas  organi- 
sações  elevadas,  onde  o  combale  pode  ser  heróico. 

Por  isso  lambem  o  génio,  disse  Clialeaubriand, 
usa  depressa  o  corpo  que  o  encerra:  as  almas  gran- 
des, assim  como  os  grandes  rios,  tendem  a  de- 
vaslar  as  suas  margens. 

Havia  doisannos  que  Luiz  de  Mello  e  Chrislina 
se  tinham  despedido  em  Cascaes.  N'esta  já  longa 
ausência,  o  que  a  ambos  consolava,  o  que  a  am- 
bos amparava  na  beirai resvaladia  do  tumulo, 
era  a  esperança,  a  vara  magica  da  esperança, 
único  arrimo  dos  desfortunados  da  terra. 

Nas  carias  de  Christina  havia  a  resignação  evan- 
gélica de  quem  aceila  tudo  das  mãos  de  Deus  e 
só  d'elle  espera  o  remédio.  Por  isso  as  suas  pala- 
vras eram  todas  de  consolação,  e  n'este  mister 
sanlissimo  da  mulher,  em  que  eíla  se  converte  em 
anjo  de  piedade,  ia  Chrislina  dando  coragem  e 
vida  ao  desgraçado. 

Um  dia  Luiz  pensou  seriamente  em  voltar  a 
Portugal  quanto  antes. 

Imaginou  para  isso  uma  doença  e  a  necessidade 
de  ares  pátrios. 

Tomada  deíinilivamente  a  resolução,  não  hou- 
ve considerações  que  o  demovessem  do  intento. 

Vil 

A  senhora  morgada,  D.  Thereza  de  Brito,  habi- 
tava em  Lisboa  uma  casa  grande  e  de  veneranda 
velhice.  D.  Thereza  tinha  ódio  a  reformas  e  me- 
lhoramentos. Amava  as  suas  antigas  cadeiras  de 
c>paldar,  as  mesas  de  pau  santo,  o  contador  e  a 
papeleira;  enão  havia  fazel-a  acreditar  na  elegan- 
( ia  da  mobilia  moderna,  e  das  decorações  do  tempo. 
Agarrada  às  suas  opiniões,  como  o  berbigão  se 
agarra  ao  rochedo,  atacassem-na,  combalessem- 
na,  ou  pretendessem  convencel-a,  que  era  embal- 
de. Tinha  um  respeito  religioso  á  antiguidade,  e 
não  admitlia  alteração  nos  seus  usos  e  costumes. 

Deduz-se  d'aqui  que  D.  Thereza  vivia  muito 
concentrada.  Se  não  tora  o  irmão,  Chrislina  não 
conheceria  as  soirées  e  os  bailes,  e  teria  de  su- 
jeilar-se  á  companhia  eífectiva  do  parocho  e  do 
velho  procurador  da  casa,  que  costumavam  vir  á 
noite  lazer  a  part'da  do  cassino  ou  do  vollarcle 
com  a  senhora  morgada. 

De  dias  a  dias  acontecia  apparecerem  algumas 
senhoras,  correligionárias  de  D.  Thereza  nas  ideias 
e  nos  usos.  Eu  não  dispenso  o  leitor  de  ouvir  a 
descripção  de  uma  das  frequentadoras,  mais  as- 
isidua. 

Era  uma  donzclla  de  cincoenla  e  sete  annos, 
que  debalde  se  esforçara  nos  tempos  da  sua  mo- 
cidade por  encontrar  um  coração  que  compre- 
iicndesse  o  seu.  Isto  dizia  ella.  Agora  eu  direi  que 
ninguém  quiz  adivinhar  o  tal  mysterio  incompre- 
heusivel  do  coração.  Os  cabeiros,  que,  segundo 


diziam  asmas  linguas,  eram  já  todos  brancos,  ap- 
paieciam  da  cór  do  azeviche,  graça  ao  inventivo 
progresso  que,  aj)ezar  de  lhe  aproveitar,  ella 
tanto  guerieava.  Dentes,  preslara-Íh'os  a  arte  de 
Vitry.  As  faces  desbotadas,  rugosas,  pareciam  ás 
vezes  incendiadas  com  os  laivos  carregados  do  car- 
mim: outras  levemente  rosadas  como  o  enrubecer 
de  innocenle  donzella.  Era  este  um  dus arrebiques 
em  que  D.  Ca|)itulina  mudava  frequentemente: 
errava  sempie,  apezar  da  pratica  (juolidiana,  a 
porção  do  carmim.  O  que  ainda  illudia  um  pouco 
eram  os  olhos.  Deviam  ter  sido  bellos  aos  vinte 
ou  vinte  cinco  annos,  ardentes  aos  trinta— e  se 
lhes  faltava  hoje  o  brilho  d'esse  tempo,  a  luneta 
lixa  suppria  a  falta,  porque  atravez  do  vidro  chris- 
lalino,  brilhante  parecia  o  christalino  dos  olhos. 
Da  moda  colhera  D.  Capitolina  todas  estas  excre- 
cencias  insupportaveis— o  que  não  acceitou,  po- 
rem, foi  justamente  o  elegante  delia.  Os  seus  tra- 
jes não  soíVriam  alteração;  e  ao  ver  a  refolhada 
touca  da  decrépita  donzella,  a  manga  juslinha,  o 
comprido  espartilho,  os  grossos  caiacóes,  e  a  por- 
çilo  dos  anneis,  transporlava-se  o  observador  a  trinta 
annos  atraz.  Para  os  que  gostam  de  estudar  o 
passado  tinham  alli  a  imagem  viva  d'elle. 

Respeito  a  velhice;  lamento  a  caducidade;  mas 
detesto  a  velhice  pretenciosa.  Era  este  o  defeito 
de  D.  Capitolina.  Gostava  ainda  de  fatiarem  amor, 
e  nas  novellas  do  seu  tempo,  em  que  dois  aman- 
tes eram  perseguidos  pelo  rigor  da  sorte,  ou  por 
algum  tyranno  escondido,  para  virem  casar  e  vi- 
ver felizes,  com  muitos  filhos,  na  ultima  pagina 
do  livro.  E  tanto  sympathisava  D.  Capitolina  com 
os  nomes  floridos  e  apollineos  das  suas  novellas 
mais  queridas,  que  a  um  afdhado  pozera  o  nome 
de  Valdemiro.  Supponho  que  assim  se  chamava 
algum  amante  liei. 

E  era  esta  a  sociedade  de  D.  Thereza  de  Brito. 
Quando  Pedro  levava  a  irmã  a  um  baile,  ou  trazia 
um  amigo  a  jantar,  tornava-se  caso  estranho  na 
familia.  Chrislina  chegava  mesmo  a  pedir-lhe  que 
trouxesse  sempre  alguém.  O  procurador  não  sabia 
fatiar  se  não  em  negócios  do  foro:  o  parocho  nos 
negócios  da  Igreja. 

Quando  Christina  perguntava  ao  primeiro: 

—Que  novidades  ha,  sr.  Mathias? 

—Está  o  juiz  de  lai  vara  com  uma  grande  cons- 
tipação— respondia  o  pobre  homem. 

Se  Christina  se  dirigia  ao  padre,  ouvia: 

— Festeja-se  tal  dia  o  dogma  da  Conceição... 

E  era  a  isto  que  as  novidades  dos  dois  interro- 
gados se  cingiam. 

Se  havia,  pois,  visita  nova,  Christina  e  Pedro 
aproveitavam  a  occasião  para  ridiculisarem  todas 
as  antigualhas  o  que  desagradava  sumraamente 
a  D.  Thereza. 

Quero  que  o  leitor  tenha  a  condescencencia  de 
segui r-me  aos  paços  da  senhora  morgada,  em  noite 
que  D.  Capitolina  se  achava  presente.  Pedro  de 
Brito  licara  lambem  em  casa,  tendo  anteriormente 
convidado  um  amigo  para  o  acompanhar.  A  quin- 
quagenaria  donzella  vinha  essa  noite  mais  rubicun- 
da e  graciosa.  Quando  divisou  o  amigo  de  Pedro, 


80 


O  PANORAMA 


que  era  um  rapaz  elegante  e  amável,  D.  Capitolina 
estudou  um  sorriso,  que  se  esforçou  por  tornar  ten- 
tador; deitou-llie  um  olhar  meigo,  grata  recorda- 
ção do  seu  tempo  de  rapariga;  IVz  um  requebro, 
o  mais  gracioso  que  poude,  e  cortejou  o  mancebo. 

Chrisiiua  estava  j)resente.  Contra  o  costume, 
apresentava  o  semblante  risonho.  Apropria  mor- 
eada  estranhou  muito  sua  tilha.  Parecia  que  lhe 
illuminava  o  rosto  o  raio  de  algum  prazer  occiíllo. 

O  jiarocho.  o  procurador,  1).  Thereza,  e  1). 
Capitolina  senlaram-se  ao  jogo.  J^edro  de  Brito  e 
o  seu  amigo  Noronha  foram  collocar-se  ao  pé  da 
nieza.  Jogou-se  o  Cassino.  D  Thereza  quiz  mudar 
de  parceiros. 

— Faz  mal — acudio  D.  Capitolina  — Devemos 
ser  constantes  por  isso  que  a  constância  c  natural 
nas  senhoras. 

— E  porque  não  será  nos  homens'^  —  atalhou 
Noronha. 

— Ohl  não!  nos  homens  não! 

— Minha  senhora — redarguio  Noronha,  atiçado 
pelo  lllho  da  morgada  —  peço  em  nome  do  meu 
sexo  que  seja  mais  indulgente  com  elle. 

— Indulgente  I  Merece  elle  indulgência  ?  oh  I 
não!...  os  homens!...  os  homens!... 

— São  maus,  não  he  verdade? 

• — Muito  maus!  oh!  muito  maus! 

D.  (Capitolina  aprendera  nas  novellas  esta  se- 
rie inlinita  de  exclamações.  Quando  pronunciou 
muilo  maus,  foi  tal  o  doce  requebro  que  deu  á  voz  e 
aos  olhos,  e  tamanha  a  distracção  que  as  cartas  lhe 
caíram  das  mãos  sem  que  o  sentisse. 

— Por  Deus!  Mostra  o  jogo,  parceira?!  gritou- 
Ihe  o  padreprior— olhe,  làlemumaz...  e  émão... 
perde-o  por  força... 

A  donzella  recolheu  pressurosa  as  cartas.  Noro- 
nha tornou  com  a  mesmaaíTabilidade. 

— V.  E\".  não  imagina  quanto  me  custa  vel-a 
apreciar  tão  mal  os  homens.  Foi  algum  injusto 
com  V.  Kx.'? 

—Oh!  sim!  todos  são  injustos  e  ingratos.  Oh 
infelizes  as  mulheres  que  se  deixam  illudir!  Oh 
os  homens  não  teem  coração! 


procurador  gritavam,  um  contra  o  outro,  sobre  se 
o  jogo  devia  ou  não  proseguir,  apezar  dos  desa- 
certos de  l).  Capitolina. 

Kram  estes  os  episódios  extraordinários  da  vida 
monótona  da  moi^gada  e  sua  família:  e  valiam  de 
muito  para  Cliiislma  não  morrer  de  aborrecimento. 

A  noite  continuou  interrompida  com  alguns 
(Pestes  graciosos  episódios,  que  Chrislina  achava 
agora  muito  mais  interessantes. 

E  que  o  estado  do  seu  espirito  era  outro.  A 
saudade  tinha  já  uma  consolação,  que  era  a  es- 
perança. 

Uecebera  carta  de  Luiz  em  que  lhe  dizia  que 
voltava  brevemente  a  Lisboa. 

D.  Capitolina  é  que  se  retirou  mais  triste, 
porque  empregara  delfclde  toda  a  arte  de 
seduzir,  que  por  recordação  lhe  licara  dos  tem- 
pos juvenis,  para  ver  se  Noronha  adivinhava 
a  esphynge;  isto  é,  se  possuia  um  coração  capaz  de 
comprehender  o  seu,  e  d'este  modo  realisar  a  fe- 
licidade, como  ella  muilo  modestamente  dizia. 

[Continua) 

A.  d'Ouveiu\  Pires 


DOUTOR  JENNER 

Entre  os  muitos  flagellos,  que  opprimem  a  hu- 
manidade debaixo  do  nome  de  doenças,  um  dos 
mais  terríveis,  o  que  infundia  sustos  maiores  aos 
nossos  antepassados  do  século  XVIlIera  o  que  re- 
cebera o  noaie  do  bexigas.  O  vago  terror  que  se 
apotléra  de  nós  quando  ouvimos  pi-onunciar  o  no- 
me de  febre  amarella,  de  cholera,  que  são  na  Eu- 
ropa actual,  os  dois  mais  activos  auxiliares  do 
anjo  da  morte,  não  pôde  dar  idéa  da  profunda 
imi)ressão,  que  o  terrível  nome  de  bexigas,  nos  lem^ 
pos  anteriores  á  descoberta  da  vaccina,  |)roduzia.  É 
poríjue  esseflagello  não  se  limitava  ati-avar  com  a 
humanidade  uma  lucta  suprema,  em  (pie  matasse 
ou  fosse  vencido,  mas,  no  requintado  ódio  que 
votara  á  espécie  humana,  não  passou  nunca  atra- 
vez  de  um  povo  sem  deixar  vestígios  horrorosos  da 
sua  passagem  nos  cadavei-es  de  que  juncava  oso- 
'o,  ou  na  face  dos  vivos  que  conservavam,  ainda 


— Eu  creio  que  teem  de  mais...  eê  talvez  esse  que  saissem  Iriumphantes  da  pugna  fatal,  o  esly- 
0  seu  mal — redai-guio  Noronha  sorrindo.  gma  indelével  do  combate.  O  algoz  linha  n'uma 

D.  Capitolina  completamenie  dislraida  e  não  sei  |  (las  mãos  o  culello,  na  outra  o  ferro  em  braza.Se 


se  já  suavemente  impressionada  não  vio  mais  o 
jogo,  nem  as  cartas. 

— Lá  deitou  o  cassino\  exclamou  o  piocurador. 
Aproveite  D.  Thereza.  Dos  descuidos  comem  os 
escrivães... 

— Ponho  iinftedimenlosl  o  jogo  assim  não  con- 
tinua!— gritou  o  |)rior  esbaforido,  i)or  ver  que  a 
parceira  o  le\ava  diíeito  a  um  cajiole. 

— E  eu  agravo!  —  retrucou  o  piocurador  com 
nm  sorrisinho  de  rábula  nos  beiços  esbranqui(;a- 
dos. 

I).  Capitolina  estava  passada.  Que  quciiam? 
Não  era  senhora  de  si  a  pobre  mulher  (juan- 
do  ouvia  um  rapaz  novo  e  bello  a  fallar-lhe 
de  amores.  Noronha  levanlou-sc,  deu  o  braço  a 
Pedro,  o  saíram  com  elle  da  sala.  Chrislina' ria 
nmilo.  D.  'iliereza  estava  pasmada,  e  o  padie  c  o 


a  voz  de  Deus  lhe  dizia  «Perdoa»  o  cutello  des- 
truidor pendia  inoífensívo,  mas  o  ferro  llamme- 
java,  e,  maicandoorosloda  victimaquesejulgava 
salva,  abria-lhe  largos  sulcos  nas  faces,  ensanguen- 
lava-lhe  as  pálpebras,  desligiirava  as  feições  mais 
correctas,  amortecia  o  esplendoí- dos  olhos  mais  vi- 
vidos. Ao  j)eslifero  halílo  dVsse  anjo  máo,  perdia 
a  llor  o  p(>rfume  c  o  coloi-ido,  se  não*miirchava  de 
iodo;  dissi|)ava-se  a  belleza,  senão  se  extinguia  a 
vida. 

l'or  isso  as  bexigas  inspiraram  tamanho  horror 
aos  nossos  anle|)assa(los.  As  mães,  contemplando 
as  faces  rosadas,  os  olhos  azuesdos  lilhos,  aperta- 
vam ao  peito  as  criancinhas,  temendo  a  cada  ins- 
tante sentir  o  vòo  pesado  da  epidemia,  c  ver  ao 
sopro  maléfico  desbolar-se  o  viço  (Fessa  ílorinha 
(juerida,  (|ii('  protí^gera  contra  os  frios  agrestes  do 


o  l\\NORAMA 


8 


inverno,  e  contra  as  calmas  abrazadoras  do  estio! 
A  noiva  gentil,  vendo  ajoelbar-lbe  aos  pés,  enle- 
vado na  sua  formosura,  o  enamorado  moço  que 
não  via  outro  sol  senão  o  dos  seus  olhos,  empal- 
lidecia  de  súbito  se  um  pensamento  atroz  llie  sal- 
teava a  mente.  O  que  faria  esse  eleilo  do  seu  co- 
ração se  a  esplendida  belleza,  que  o  ca!)livara,de  um 
instante  j)ara  o  ouli'o  se  apagasse?  E  era  essa  uma 
hypothese  gratuita?  um  d'esses  vagos  terrores  que 


o  amor  phantasia,  terrores  sem  causa,  nuvens  sem 
motivo  que  a  imaginação  forma  no  ceu  azul  da 
mocidade  só  para  que  um  sorriso  as  dissipe,  ca- 
prichos como  o  de  Polycratesque  temia  a  supera- 
bundância da  sua  ventura?  Não!  a  hypotliese  era 
bem  fundada,  o  terror  era  juslilicado,  o  pe- 
rigo era  real;  porque  esse  demónio  cruel,  que  pai- 
rava nos  ares,  não  pou|)avanem  sexo,  nem  idade, 
nem  formosura,  ou  antes  fazia  uma  selecção  atroz, 


Doutor  Jenner 


porque  envenenava  de  preferencia  os  cálices  mais 
doces  da  existência,  entenebrecia  os  dias  mais  lu- 
minosos, cortava  os  lios  da  vida  mais  doirada, 
murchava  as  mais  ridentes  primaveras,  maculava, 
como  o  caracol,  as  rosas  mais  radiantes  de  formosu- 
ra e  viço. 

Foi  então  que  appareceu,  como  um  verdadeiro 
enviado  da  Providencia,  o  homem  cujo  retraio 
apresentamos  hoje  aos  nossos  leitores.  O  doutor 
Jenner  nasceu  no  dia  17  de  maio  de  1749  em 
Berkeley,  cidade  do  condado  de  Glocester  na  Grã- 
Bretanha.  Principiou  a  estudar  medicina  com  um 
chirurgião  de  Sudbury  j)rovincia  de  {{ristol,  depois 
foi  para  Londres,  onde  continuou  os  seus  estudos. 


Na  grande  metrópole  tomou  conhecimento  com  o 
doutor  John  Ilunter,  celebre  chirurgião  e  anato- 
mista (listincto,  a  cuja  amizade  deveu  ser  escolhi- 
do para  classilicar  os  objectos  d'historia  natural, 
([ue  o  afamado  Cook  trouxera  da  sua  primeira  via- 
gem á  roda  do  mundo.  Precedido  de  grande  re- 
putação, como  medico  e  naturalista,  voltou  Jenner 
para  a  sua  pátria,  onde  em  breve  adquirio  nume- 
rosa clientela,  que,  apezai-delhe  dar  grande  tra- 
balho, sempre  lhe  deixava  alguns  instantes  livres 
que  elle  consagrava  aos  seus  estudos  predileclos 
d'hisloria  natural. 

Em  177o  pi'inL'i|)iou   a  entrever  a   descober- 
ta, que  lhe  devia  dar  tanto  nome  e  ser  paia  a  hu- 


82 


O  PANORAMA 


inanidade  de  tamanho  proveito.  Principiou  n'essa 
época  a  germinar  no  seu  espirito  o  que  alguns 
caraponezes  lhe  tinham  dito  acerca  da  força  pre- 
servati\a  que  tinliam  contra  as  bexigas  esses  botões 
que  se  forniam  no  ubre  das  vaccas  atacadas  d'epi- 
zooíia.  Oiiantas  vezes  o  instincto  popular  precede 
as  descobertas  da  sciencia !  Louco,  bem  louco  é  o 
sábio  orgulhoso  que  despreza  as  praticas  singelas 
d'esses  rudes  conlidentes  da  nalmeza!  .lenner  não 
as  desprezou,  esludou-as.  Depois  d'um  trabalho 
assiduo  de  13  annos,  convenceu-se  aíinal  em  1788 
da  ellicacia  do  cow-pox  contra  as  bexigas.  Com- 
tudo  só  em  1796  ousou  fazer  a  primeira  experiên- 
cia. Proporcionou-lhe  ensejo  para  ella  uma  epi- 
zootia  que  então  grassou  no  gado.  No  dia 
11  de  maio  d'esse  anno  inoculou  a  vaccina  n'um 
rapazito  chamado  James  Phipps.  Depois  inoculou- 
Ihe  as  bexigas,  ecom  que  tremor  o  não  faria!  mas 
que  jubilo  não  seria  também  o  seu  quando  vio  a 
moléstia  impotente!  Estava  subjugado  o  monstro, 
estavam  decepadas  as  cabeças  da  hydra,  estavam 
arrancados  os  dentes  e  as  garras  a  esse  tigre  ávido 
de  sangue  juvenil. 

Como  sempre,  a  sciencia  oíTicial  recusou  reco- 
nhecer o  novo  invento.  k%  Philosopliical  Trans- 
aclions,  espécie  de  encyclopedia  medica,  recusa- 
ram publicar  a  memoria  que  elle  escreveu  a  esse 
respeito.  Vio-se  então  obrigado  a  publicar  a  sua 
imporlanle  descoberta  n'um  escripto  a  que  deu  o 
titulo  de  Inquirynlo  the  causes  and  effects  of 
lhe  variole  vaccine.  Acolhida  admiravelmente  na 
Europa  e  na  America,  o  seu  auctor  mereceu  o  no- 
me de  bemfeitor  da  humanidade.  INão  lhe  es- 
cassearam as  recompensas.  Em  1802  recebeu  dez 
mil  libras,  e  em  1807  vinte  mil  a  titulo  de  recom- 
pensa nacional.  Depois  da  sua  morte,  que  succe- 
deu  no  dia  26  de  janeiro  de  1823,  a  Inglatera 
erigio-lhe  estatuas. 

i^oisa  notável!  quando  Jenner  n'um  obscuro  can- 
to da  Inglaterra  fazia  a  sua  primeira  experiência, 
despontava  também  na  Itália  entre  os  resplendo- 
res da  victoiia  o  sol  napoleónico.  Pouco  depois 
d'este  se  extinguir  em  Santa  Helena  terminava 
também  Jenner  a  sua  carreií-a  benelica.  Aos  olhos 
da  jjosteridade  imjiarcial  qual  das  duas  glorias  se- 
rá maior?  a  gloria  deslumbrante  do  guerreiro, 
ou  a  gloria  modesta  do  medico?  a  que  se  ergue 
n'um  pedestal  de  cadáveres,  ou  a  que  sobe  para 
os  céus  enti'e  as  bênçãos  dos  convalescentes?  Não 
sei;  mas,  se  para  a  humanidade  deslumbrada  vale 
mais  a  auréola  que  cinge  a  fronte  do  conquista- 
dor, não  será  esse  igualmente  o  juizo  de  Deus. 
O  Omnipotente  presta  mais  attenção  á  oração  sin- 
gela da  mãe  jubilosa,  (pie  vè  já  sem  medo  llores- 
cerem  as  rosas  da  saúde  nas  faces  do  lilho  querido, 
do  quo  aos  cânticos  enlhusiasticos  dos  povos  que 
saúdam  os  Osares.  Hemdito  mil  vezes  aípielle  cu- 
ja apotheose  é  feita  j)ela  simples  lagrima  de  reco- 
nhecimento que  deslisa  d'uiis  olhos  mateinaes ! 
Triste  do  triuniphador  que,  no  seu  carro  ovante, 
escuta,  em  vez  dos  insultos  do  escravo,  a  maldi- 
ção das  mães! 

PiNnEuio  Chagas. 


LENDAS  INDIANAS 

Por  Mathews  (I) 
A  Cstrella  da  manhã. 

Eni  tempos,  que  foram^  pereceram  todos  os 
habitantes  de  uma  aldca,  A  excepção  de  uma 
donzellinha,  e  de  um  rapazinho  que  era  ain- 
da de  berço.  Dormiam  ambos  quando  pai  c 
mni  se  finaram.  A  donzcUinha,  que  era  mais  ve- 
lha, accordou  primeiro;  mas  como  não  visse  se- 
não o  irmàosinbo,  que  dormia  entre  sorrisos, 
vollou-sc  no  leito,  começou  novo  somno. 

Dez  dias  eram  passados,  quando  o  innocente 
estremeceu  no  berço,  ujas  não  abrio  os  olhos. 
Corridos  outros  dez  dias,  mudou  de  posição  e 
continuou  a  dormir,  e  certo  que  sonhava  lindos 
sonhos,  porque  quando  a  irmã  o  contemplava, 
via  rebrilhar  um  sorriso  celeste  no  rosto  da  crian- 
ça, cuja  cabeça  era  cingida  por  aureola  luminosa, 
que  illuminava  também  a  choça. 

A  donzellinha  foi  crescendo'  e  era  já  mulher 
feita,  a  tempo  que  o  rapazinho  augmentava  mui 
pouco  de  estatura.  Levou  muito  tempo  para  que 
podesse  icbolar  no  chão,  e  passaram  annos  c 
annos,  que  não  havia  suster-se  de  pé.  Mal  poude 
caminhar,  a  irmã  deu-lhe  aljava  e  frexas,  e  pon- 
do-lhe  uma  concha  no  pescoço,  disíc : 

—  De  hoje  em  diante  serás  Dais-Imid,  ou  o 
Anão  da  Conchinha. 

Desde  enlão  Dais-Imid  começou  a  caçar  passa- 
rinhos. Foi  um  melharuco  a  sua  primeira  victima, 
e  a  donzella  para  influir  brios  no  irmão,  fez- 
Ihe  uma  ceia  opípara.  No  dia  seguinte  ma- 
tou uma  harda  purpurina,  que  comeu  lam- 
bera á  noite,  e  no  terceiro  dia  apanhou  um* 
perdiz,  com  que  os  dois  se  regalaram  á  iripa- 
íorra. 

Pouco  a  pouco  foi-se  Dais-Imid  animando  c 
afaslou-sc  mais  e  mais  da  choça ;  cada  vez  era 
mais  dextro,  e  afinal  caçador  já  experiente  não 
temia  atacar  as  bestas-feras  da  floresta.  Repartia 
sempre  com  a  irmã  as  páreas  da  caça.  Com  ser 
porém  entrado  na  idade  madura,  era  pequeno  de 
corpo,  e  tanto  que  recolhia  a  casa,  logo  lhe  brilhava 
a  aureola  em  volta  da  cabeça  c  illuminava  a  choça. 

Por  um  dia  de  inverno  chegou  á  beira  de  uma 
lagoa,  toda  gelada,  e  vio  um  gigante  a  caçar 
castores.  Em  comparação  d'aquelle  homem,  Dais- 
Imid  parecia  um  insecto;  assentou-se  porém  na 
praia,  e  seguio  alícnfo  os  gestos  do  caçador. 

Este,  apoz  grande  matança,  carregou  as  viclua- 
Ihas  em  um  carro,  que  puchou  com  uma  das 
mãos,  c  poz-se  a  caminho  de  casa.  Dais-Imid 
brandiu  a  conchinha  maravilhosa,  cortou  a  cauda 
de  um  castor  e  fugio  de  arrancada  para  a  choça. 

O  gigante  ficou  muito  espantado  ao  ver  que 
um  dos  seus  castores  linha  a  cauda  cortada. 

No  dia  .'^eguinle  o  no.^^so  herocsiuho  voltou  á 
lagoa  e  poz-se  á  socapa.  O  gigante  já  linha  car- 
reí,^ado  o  carro  e  ia-sc  embora,  (luaudo  Dais-Imid 
lhe  foi  no  encalço,  e  cortou  a  cauda  de  um  castor. 

Mal  cliegou  a  casa  o  gigante  bradou  raivoso  : 
«Quem  me  dera  conhecer  o  ladrão,  que  havia  sa- 
ber o  comprimento  da  minlia  garrocha.»  Não  .se 
lembrava   que   os  castores  habitavam  n'um   la- 

(li  o  viiijantí!  M.ill](!\vs  collicu  oiilrc  ns  trihiis  da  Aniorina,  alpii- 
mas  Í(!ii(las,  qiiií  piililimii,  e  rpK!  Iilo  .'iido  tradii/.iilns  oiii  f|iiasi  todas 
as  liiiguascullas.  (joiíio  amostra  du  jioesia  iiojiiilar  enire  os  pcaux- 
7-uiirjrs,  traduzimos  esta  lenda qnc  nos  |)areceu  das  mais  caracturisli- 
cas,  porque  explica  poeticamente  am  phenomeno  da  natureza. 


o  PANORAMA 


183 


go,  que  pertencia  ao  anão  e  a  sua  irmã.  No  outro 
dia  voltou  á  lagoa:  mas  andou  tão  vidareiro, 
que  Dais-Imid  só  poude  apanhai  o  quando 
cruzava  já  os  hombraes  da  casa. 

O  gigante  encheu-se  de  raiva  e  desespero,  e  o 
que  mais  o  enraivecia,  era  não  descortinar  ini- 
migo, por  isso  que  o  anão  da  conchinha  podia  á 
vontade  tornar-se  invisivel. 

Blasphemando  e  jurando  lá  ia  o  gigante  na 
pegada  do  anão ;  baldo  porém  era  o  seu  empe- 
nho, que  não  encontrava  o  mais  leve  vestígio. 
Determinou  emfim  para  se  vingar  do  igno- 
to inimigo,  partir  de  madrugada;  e  tão  presto 
andou,  que  o  anão  teve  de  procural-o  em  casa, 
aonde  o  encontrou  a  estripar  os  castores. 

Ao  passo  que  Dais-Imid,  sempre  invisivel^  o 
contemplava,  disse  para  si:  é  de  justiça  que  o 
gigante  possa  ver-me  uma  vez. 

31eu  dito,  meu  feito,  e  mal  o  colosso,  (que  era 
o  celebre  Manabnzho)  ergueu  a  cabeça,  vio  oi 
anão,  a  quem  faltou  assim: 

—  Quem  és  tu,  traquinas?  Estou  vae  não  vae 
a  esganar-te. 

—  Não  te  acobardes ;  que  não  conseguirás  teu 
ruim  intento. 

Palavras  não  eram  ditas,  estendia  Manabozho  os 
braços,  mas  quando  abrio  os  dedos^  já  Dais-Imid 
se  havia  escapolido. 

—  Aonde  estás  agora,  traquinas?  rouquejou 
Manabozho. 

—  No  teu  cinte,  respondeu  o  anão. 

E  o  gigante  cuidando  esmagal-o,  deu  em  si 
com  toda  a  força;  desenrolando  porém  o  cinto, 
não  encontrou  o  anão. 

—  Aonde  te  escondeste^  diabrete?  gritou  Mana- 
bozho, incendido  em  raiva 

—  Na  tua  venta  direita,  disse  o  anão.  Manabozho 
apertou  o  nariz,  mas  como  ouvisse  a  dois  passos 
de  distancia  a  voz  do  seu  inimigo  convenceu-se 
que  o  seu  nariz  fora  quem  tinha  pago  as  custas. 

—  Muito  bons  dias,  Manabozho,  gritava  o  invi- 
sivel adversário.  Conta  as  caudas  dos  castores,  e  ve- 
rás que  levo  uma  para  minha  irmã;  porque,  mes- 
mo brincando,  o  anão  lembra-se  da  fada  do  seu 
lar.  Até  á  vista,  caçador  de  castores. 

E  ao  tempo  que  se  apartava,  o  anão  tornou-se 
visivel ;  e  a  sua  aureola  resplandecia  em  volta  da 
cabeça  e  illuminava  o  espaço,  coisa  que  Mana- 
b  ozho  não  poude  explicar,  porque  era  de  natureza 
muito  bronco  e  soez. 

Quando  Dais-Imid  entrou  em  casa,,  disse  áirmã 
que  era  chegado  o  tempo  de  se  separarem. 

—  Eu  de  mim,  acrescentou^  vou-me  embora. 
Ninguém  foge  ao  seu  destino.  Tu  deves  também 
deixar  esta  morada.  Aonde  queres  habitar? 

—  Quizera  eslancear  nos  plainos,  aonde  nasce 
o  sol,  aonde  fulguram  os  primeiros  clarões  do 
dia,  aonde  os  esplendores  do  céo  são  mais  for- 
mosos. Quando  eu  estiver  lá,  ó  meu  irmãosinho, 
e  vires  nuvens  retinctas  brilhar  no  firmamento, 
cuidarás  que  tua  iimã  está  pintando  as  faces  com 
o  carmim  do  céo. 

—  E  eu,  disse  o  anão  á  irmã,  viverei  nosalcan 
tis,  e  poderei  ver-te  mal  surjas  do  seio  do  mar. 
Nos  píncaros  o  ar  é  puro  e  as  torrentes  espada- 
nam aguas  transparentes.  Esta  luz  bi^ilhante  cin- 
girá a  minha  cabeça  e  serei  chamado  Pusk-Inince, 
ou  o  anão  das  montanhas.  Antes,  porém  de  nos 
separarmos  para  sempre,  é  força  que  conheças 
quaes  são  os  manilus,  que  governam  a  terra,  e 


os  que  nos  serão  favoráveis.  O  anão  deixou  a  ir- 
mã, correu  toda  a  superfície  do  mundo,  e  desceu 
até  ás  entranhas  do  globo.  Recebeu  boa  acolheita 
em  toda  a  parte.  Chegado  á  morada  de  um  gi- 
gante, que  era  parente  de  Manabozho,  foi  mal 
recebido  a  ponto  de  ser  lançado  *na  enorme  cal- 
deira que  fervia  em  cachão.  Dais-Imid  envolveu-se 
na  conchinha  milagrosa,  vasou  n'um  abrir  e  fe- 
char d'olhos  a  caldeira,  e  fugio  são  e  escorreito. 

Voltou  á  choça  e  contando  á  irmã  todos  os 
seus  trabalhos,  acabou  assim: 

—  Minha  irmã,  ha  um  manitu  em  cada  canto 
da  terra ;  por  sobre  elles,  e  nas  profundezas  do 
céo,  habita  o  Ente  Supremo  que  a  todos  governa. 
Ha  também  um  ente  mau,  que  rasteja  nos  seios 
do  mundo.  Havemos  de  escapar  ambos  ao  seu 
poder.  Quando  os  ventos  soprarem  dos  quatro 
cantos  da  terra,  levar-te-hão  ao  sitio,  que  esco- 
lheste. Eu  de  mim  ascenderei  ás  montanhas,  que 
sempre  aprouveram  aos  meus  similhantes. 

Dais-Imid  tomou  de  um  bordão,  e  começou  a 
galgar  a  montanha  ;  cingia-lhe  a  fronte  uma  au- 
reola, e  cantava  assim  : 

«Soprae,  ventos,  soprae!  minha  irmã  suspira 
na  mansão  celeste,  aonde  a  manLã,  com  os  seus 
róseos  dedos,  lhe  pintará  as  faces  com  o  carmim 
do  céo.  Para  ella  se  voltarão  os  meus  primeiros 
olhares;  os  seus  sorrisos,  reflectidos  nas  nuvens, 
ser-me-hão  guia  e  fanal  nas  aguas  ou  nos  reces- 
sos das  florestas,  quando  vaguear  nos  alcantis, 
ou  me  esconder  nos  valles  verdejantes,  aonde 
florece  a  roseira  junto  á  fonte  queixosa.» 

Os  ventos  começaram  então  a  soprar  assim  como 
Dais-Imid  havia  predito,  levaram  nas  azas  invisí- 
veis a  virgem  para  o  oriente,  aonde  viveu  até 
hoje  com  o  nome  de  Estrella  da  Manhã. 

A.  O.  DE  Vasconcellos. 


O  centro  de  lodos  os  males  é  o  jogo,  e  morada 
de  todas  as  maldades,  blasfémias,  juramentos  fal- 
sos, furtos,  e  os  mais  que  a  este  se  agregam. 
M.  Affonso  de  Miranda. 


DE  QUE  VIVEM  AS  PLANTAS 

As  plantas  compõem-se  de  carvão,  agua  e  de  uma  gran- 
de quantidade  de  hydrogenio;  alem  d'isso  conleem  um 
quaiio  corpo  simples,  o  azote,  que  se  encontra  em  dimi- 
nuta proporção,  mas  cuja  presença  é  essencial  á  vida.  A 
allimosphera"  fornece  abundantemente  o  carvão;  as  cliu- 
vas,  a  agua  ou  o  oxigénio  e  o  liydrogenio;  a  terra,  o 
azote,  mas  que,  por  ser  raro,  se  llie  introduz  sol)  a  forma 
de  estrume:  é  esla  a  grande  preoccupação  do  agricultor; 
éa  mais  avultada,  a  mais  inevitável  e  a  mais  producliva 
de  todas  as  suas  despezas. 


A  CRITICA  LITTERARIA 

O  espirito  da  critica  c  um  espirito  de  ordem;  conhece 
os  delidos  contra  o  gosto  c  leva-os  ao  tribunal  do  ridí- 
culo; porque  o  riso  é  muitas  vezes  a  expressão  da  cólera, 
e  os  que  o  censuram  não  relleclem  que  o  homem  de 
gosto  antes  de  fazer  uma  ferida  recebeu  vinte.  Diz-sc  que 
o  homem  tem  o  espirito  da  critica  quando  recebeu  do 
eco  não  somente  a  faculdade  de  distinguir  as  bellezas  e 
os  defeitos  das  producçOes  que  julga,  mas  uma  alma  que 
se  apaixona  por  umas  e  se  exaspera  com  outras,  uma 
alma  a  qual  o  bello  arrel)ata,  o  sublime  transporta,  e  que, 
furiosa  contra  a  mediocridade,  esmaga-a  com  os  seus  des- 
déns, c  opprimc-a  com  os  seus  enojos. 


i84 


O  PANORAMA 


PROVÉRBIOS  ARARES 

—A  melhor  scicncia  é  a  que  oíTercce  ulilidado. 

— b  que  foi  mordido  por  uma  serpente  tem  medo  de 
uma  corda. 

—O  corvo  não.tira  os  olhos  a  seus  irmãos. 

— iNão  se  mellem  duas  espadas  na  mesma  bainha. 

—Se  a  gallinha  tivesse  dinheiro,  não  se  lhe  cortaria  o 
pescoço. 

—  A  morte  do  burro  c  uma  festa  para  os  cães. 
—Não  ha  scentelhas  na  cinza. 

—As  doçuras  do  mundo  são  paraaquellequeo  não  co- 
nhece; as 'amarguras  para  o  homem  esclarecido. 
—O  tanque  forma-se  gota  a  gota. 

—  O  sábio  em  sua  pátria  o  como  o  ouro  em  sua  mina. 
—O  que  dá  é  mais  feliz  do  que  o  (juc  recebe. 

—A  mão  de  cima  vale  mais  do  que  a  de  baixo. 
— Aquelle,  cujo  termo  e  chegado  não  tem  mais  a  fa- 
zer do  que  estender  as  pernas. 
—Os  dias  do  homem  estão  contados;  porque  receiar  a 

morte?  ,        ,..,,. 

—Todo  o  cão  ladra  à  sua  porta,  lodo  o  leão  e  altivo 
na  sua  lloresla. 

—O  que  sobe  ao  carro  da  esperança  tem  por  compa- 
nheira a  pobreza. 

—Quem  te  disser  mal  de  outrem  diz  mal  de  ti. 

—O  sábio  conhece  o  ignorante,  porque  o  foi,  mas  o 
ignorante  não  conhece  o  sábio,  porijue  nunca  foi  sábio. 

-No  paiz  das  palmeiras  sustentam-se  os  burros  com 
tâmaras. 

—Se  lodos  os  homens  se  entregassem  unicamente  a 
meditação,  a  terra  tornar-se-ia  inculta. 

— To"dos  os  que  andam  vestidos  de  pelle  de  tigre  não 
são  corajosos. 

—Aquelle  que  se  aquece  ao  fogo  conhece-lheo  calor. 

—O  leão  sustenta-se  somente  da  sua  caça. 

—Se  a  lua  é  brilhante,  o  sol  ainda  o  é  mais. 

—Se  os  homens  procedessem  bem,  o  cadi  cousa  alguma 

—O  que  dá  aos  outros  a  beber  é  sempre  o  ultimo  que 
hebe.  ,^  „     ,     , 

—Na  frente,  espelho;  por  detraz  tesouras,  (fatiando  do 
hvpocrita). 

"— Allumia  os  outros  e  queima-se. 


Tres  partes  hade  ler  o  que  quizer  louvar  algum 
sujoilo;  verdade  na  língua,  autoridade  na  pessoa, 


elegância  no  modo 


M.  ArioNso  DE  Miranda, 


NA  PRIMAVERA. 

Je  suis  la  íleur  dus  miirnilles, 
Donl  avril  est,  Ic  seul  hien. 
II  sulBt  que  tu  l'en  ailles 
Pour  qu'il  ne  reste  plus  rien. 

V.    liUGO. 

Desfez-se  a  névoa  do  inverno. 
Começa  a  vir  o  calor  ; 
No  campo  despontam  rosas. 
No  seio  palpita  amor. 

As  andorinhas  fugaces 
Chilrando  alegres  já  vem ; 
Sorriem-se  os  pequeninos 
Nos  ternos  braços  da  mãe. 

O  sol  beija  com  sfMis  raios 
Os  cimos  dos  alcantis  ; 
Desdobra  a  relva  um  tapete 
Do  mais  gracioso  matiz. 

O  vento  suspira  e  brinca 
Nos  ramos  da  larangeira  ; 
O  cysne  canta  e  deslisa 
Pelas  aguas  da  ribeira. 


Tudo  é  luz,  tudo  perfumes, 
Tudo  alegrias  singelas ; 
De  manhã  vicejam  flores. 
De  noite  brilham  eslrellas. 

Como  a  vida  corre  amena 
N'esla  florida  estação  1 
Quando  a  sombra  foge  aos  campos, 
Foge  a  magoa  ao  coração. 

Aqui  rcspira-se  a  vida, 
A(iui  traga-se  o  prazer. 
A  nuvem  d'uma  tristeza 
Não  vem  lurbar-nos,  sequer. 

Oh,  dá-me  o  braço,  querida, 
É  nossa  a  quadra  do  amor : 
O  sol  c  grato  aos  amantes. 
Como  ao  campo  e  como  à  flor. 

Vem,  não  temas,  divaguemos, 
Não  íiíiues,  não  i)enses  mais. 
Como  os  beijos  são  tão  doces 
A  sombra  dos  laranjaes ! 

E  cu  quero  aspirar  comligo 
Todo  eslft  aroma  subtil. 
Em  teus  braços  reclinado 
Contente  saudar  abril. 

Sim,  eu  amo  a  primavera, 
Os  vivos  clarões  do  sol, 
De  noite  as  brandas  endeixas 
Que  modula  o  rouxinol. 

Amo  tudo  o  que  scinfilla. 
Tudo  ([ue  é  raio  e  explendor ; 
O  canto  que  vem  das  aves, 
O  cheiro  que  vem  da  flor. 

Mas  sem  teu  meigo  sorriso 
Nada  me  encanta  e  seduz; 
Nas  rosas  perde-se  o|viço, 
Nos  astros  desmaia  a  luz. 

Que  tem  que  o  sol  encha  a  terra 
Com  seu  fulgente  clarão, 
Se  escura  noute  sentimos 
Toldar-nos  o  coração? 

Que  importava  a  primavera, 
Que  engrinalda  a  terra  e  o  ceo, 
Se  os  teus  olhos  não  dissessem 
Que  CS  minha  como  eu  sou  teu? 

Vem,  pois,  comigo,  querida, 
Gosar  do  campo  o  frescor ; 
O  campo  é  grato  aos  amantes, 
Como  o  sol  é  grato  á  flor. 

Vem,  não  temas,  não  vacillcs, 
Não  fiques,  não  penses  mais: 
Que  doces  beijos  daremos, 
Á  sombra  dos  laranjaes ! 


E.  A.  Vidal. 


A  mentira  é  salteador  que  rebuçado  ao  meio  dia 
nos  rouba  não  nas  estradas  e  charnecas,  mas  nas 
cidades  e  praças,  e  de  (juem  os  mais  levantados 
inlendimentos  e  honrados  sujeitos  não  poderam  es- 
capar. Por  esla  se  perderam  imi)erios,  se  deslrui- 
ram  monarchias,  se  entregaram  cidades,  se  odia- 
ram reinos,  esc  desunem  e  descompõem  as  maiores 
amizades  e  se  dividem  os  mais  ligados  |)arentescos. 
M.  Affonso  de  Miranda. 


Typ.  Fianco-Portguezii,  Rua  do  Thcsouro  Velho,  6. 


o  PANORAMA 


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O  CAPITÃO  CORAM 

lia  para  mim  não  sei  que  indizível  allraclivo  na 
i;loiia  modesta  d'esses  bemfeiloresda  humanidade, 
(jiie  passaram  no  mundo  sem  que  a  historia  ofilciaí 
se  dignasse  registrar-lhes  o  nome  no  seu  livro  de 
liii-o.  Sinto  um  doccpiazer  em  me  debruçar  sobre 
essas  campas  quasi  de  todo  olvidadas,  eVm  fazer 
surgir  á  luz  do  futuro  os  vullosd'esses  obscurosobrei- 


rosda  civilisação,  cujo  nome  até  se  foi  rapidamente 
obliterando  da  memoria  das  gerações.  l)iz-sc  que 
a  hora  da  justiça  sôa  ao  mesmo  tempo  que  a  hora 
do  passamento;  nem  sempre.  Ás  vezes  a  posteri- 
dade é  tão  injusta  como  os  contemporâneos.  A 
pjsleridade  deixa-se  deskunbrar  pelo  clarão  de- 
vorador dos  grandes  meteoros  da  histoi'ia,  c  des- 
preza a  luz  serena  e  modesta  das  cstrellas,  que 
brilharam  n'um  canto  do  céo  azul,  e  cujos  raios 


o  Capitrio   Corain. 


tranquillos  e  viviíicantes  choveram  consolações  c 
aliivios  sobre  os  tristes  d'este  mundo. 

Folheiem  os  diccionarios  biographicos,  o  encon- 
trarão alli  registrados  os  nomes  dos  mais  obscuros 
gcneraes  divisionários  de  Napoleão,  dos  mais  in- 
signiíicantes  chefes  das  esquadras  inglezas,  do 
Biais  insulso  romancista,  do  dramaluigo  mais  es- 
palmado, do  jioeta  mais  prosaico.  E  no  meio  d"essa 
plêiade  de  eleitos  da  celebridade,  de  aristocratas 
da  gloria,  os  quaes  muitas  vezes  dillicilmentc 
aprescntani  documentos  que  lhe  jusliliquem  o 
foro  de  nobreza,  não  encontrarão  o  nome  do  ho- 
mem, cujo  retrato  apresentamos  hoje  aos  nossos 
leitores,  do  homem  que  foi  um  dos  mais  tenazes, 


um  dos  mais  zelosos  applicadores  da  doutrina  da 
caridade,  do  homem  que  toda  a  sua  vida  consa- 
grou ao  allivio  das  misérias  dos  seus  semelhan- 
tes! 

Thoniaz  Coram,  capitão  de  navios  na  marinha 
mercante  ingleza,  naseeu-em  Londi'es  no  annode 
J()()8.  A  sua  vida  resume-se  n'uma  breve  pagina, 
mas  que  immoital  não  devia  ser  essa  pagina  de 
gloria  que  não  humedecem  outras  lagrimas  que 
não  sejam  as  lagrimas  de  gratidão  dos  infelizes, 
de  quem  elie  foi  o  amparo  constante!  Nunca  de- 
sempenhou cargos  imj)ortantes,  nunca  representou 
um  grande  pajjcl  na  historia  do  seu  paiz.  Viveu 
paia  fazer  bem,  c  só  paia  fazer  bem  sem  que  os 


86 


O  PANORAMA 


seus  actos  de  caridade  Ibe  servissem  de  degrau 
á  aQibição.  Os  seus  rendimentos,  ou  herdados  ou 
írrangeados  na  vida  commercial,  despendcu-os 
até  a  ultima  m-ailia  para  allivio  dos  pobres. 
Kssa  abnegação  extraordinária,  porque  o  capitão 
Coram  nunca  fci  nem  sequer  empregado  pelo  go- 
verno como  dispensador  da  benelicencia  publica, 
nem  teve  uma  só  das  honras  que  em  geral  as  na- 
ções reconhecidas  volam  aos  homens,  que  se  con- 
sagram á  Ímproba  tarefa,  em  que  Thomaz  Coram 
consumia  a  sua  existência  e  os  seus  liavcres,  essa 
al3negação  extraordinária  é  principalmente  assom- 
brosa n'um  marinheiro  rude,  educado  antes  para 
alTronlar  as  tempestades,  do  que  para  enxugaras 
lagrimas,  n'um  homem  cuja  educação  religiosa  se 
limitava  á  leiluia  assídua  da  sua  Biblia,  ir"um  ho- 
mem, emlim,  a  quem  o  seu  ministério  não  impu- 
nha, nem  sequer  moralmente,  os  deveres  que  o 
sacerdócio  impõe  aos  ministros  de  Deus,  deveres 
que  elle  a  impulso  do  seu  coração  desempenhava 
com  jubilo,  ao  passo  que  os  que  lêem  eslricta 
obrigação  de  os  cumprir  só  desempenliam  essa 
obrigação  tanto  quanto  baste  para  não  produzi- 
rem escândalo. 

No  tempo  em  que  vivia  esle  benemérito  de  Deus 
ainda  não  havia  em  Londres  a  instituição  que 
Portugal  se  ufana  de  ter  possuído  primeiro  que 
todas  as  outras  nações  europeas,  que  a  Ilespanha 
deve  ao  zelo  religioso  da  sua  rainha  Isabel  a  Ca- 
tholica,  que  em  França  teve  origem  graças  á  podero- 
sa iniciativa  de  S.  Vicente  de  Paula,  um  hospício 
dos  expostos.  Debale-se  hoje  muito  a  questão  se 
estas  instituições  caridosas  são  úteis  ou  não  á  mo- 
ralidade social,  Diz-se  que  muitas  vezes  mais  pro- 
tegem o  vicio  do  que  alliviam  a  miséria,  que 
antes  servem  para  favorecer  a  indifierença  crimi- 
nosa de  algumas  mais  do  que  i)ara  alliviar  as  do- 
res excruciantes  d'outi'as,  asquaes  sem  a  roda,  essa 
muda  conlidenle  das  suas  agonias  e  dos  seus  re- 
morsos, veriam  seus  lilhosexpií^ando  ao  desampa 
ro,  ou  vergando  ao  peso  do  eslygma  estampado 
por  uma  sociedade  hypocrila  na  fronte  innocente 
do  anjo,  que  nasceu  do  peccado,  como  do  pecca- 
do  lambem  nasce  o  ari-ependimento.  Ma-;  o  arre- 
pendimento acollie-o  um  sorriso  meigo  de  .lesus, 
o  fruclo  do  amor  peccaminoso  acolliom-n'oos  des- 
prezos dos  homens,  e  as  Magdalenas  trementes 
não  encontram  pés  divinos  sobre  que  possam  der- 
ramar o  nardo  das  suas  angustias,  enxugando-os 
com  as  suas  tranças,  banhando-os  com  as  suas 
lagrimas.  As  peccadoras  tremem  d'a(|uelles  que, 
não  receando  encontrar  o  olliai' límpido  do  Filho  do 
homem,  não  receariam  lambem  ajjcdrejal-as  e  in- 
sullal-as-  Por  isso,  caminhando  de  noile,  com  o 
fardo  precioí^  escondido-  sob  o  manlo,  vão  entre- 
gar á  caiidade  jiublícaa  criança  banhada  das  lagri- 
mas matei  naes,  e  abençoam  em  voz  baixa  o  desco- 
nhecido santo,  que  prevendo  as  suas  angustias,  abrio 
primeiro  os  biaços  misericordiosos  para  receber 
no  suave  amplexo  os  íilhos  do  amor  e  os  íillios 
da  miséria. 

Pallidas peccadoras  aquém  o  remoi'so  |iersegue! 
mais  anciosas  que  tremeis  de  ver  delinhart-m-sc-vos 


nos  braços  ao  sopro  da  miséria  essas  floi-inhas 
tenras  que  vos  bi'olaram  no  seio,  e  que  alimen- 
taríeis cora  o  vosso  próprio  sangue,  se  o  sangue 
podesse  dar  vida  aos  mimosos  botões,  abençoai 
também  esse  obscuro  marinheiro,  cujo  retrato  hoje 
apresentamos!  O  pobre  Thomaz  Coiam,  o  singelo 
capitão  de  navios,  foi  o  primeiro  que  fundou  na 
opulenta  Inglaterra  um  hospício  de  expostos.  Esse 
não  dísculío  friamente  se  iria  auxiliar  o  vicio  ou 
favorecer  a  AÍrtude,  vio  as  crianças  abandona- 
das no  chão  gélido  de  Londres,  e  levantcu-as  nos 
braços,  vio  as  pobres  avesinhas  implumes  a  tre- 
merem de  frio  n'essas  manhãs  brumosas  de  um 
inverno  inglez  a  um  canto  das  ruas  silenciosas,  e 
o  marinheiro,  cora  as  lagrimas  nos  olhos,  aqucn- 
tou-as  no  peito,  deu-lhescaloi-,  abrigo,  e  vida.  De- 
pois foi  ao  canto  da  sua  aica,onde  estavaaccumu- 
lada  talvez  a  quantia  que  destinava  pai-a  liar  d'ella 
o  repouso,  a  tranquillidade,  oagazalho,  obem-es- 
lar  da  sua  velhice,  e  com  uma  singeleza  sublime, 
sem  vãs  declamações,  sera  ostentação  alguma,  ar- 
rojou a  pesada  bolsa  aos  pés  de  um  architecto,  e 
disse:  «Erga -se  um  asylo  para  as  ciianças  aban- 
donadas.» E  emquanlo  os  opulentíssimos  proprie- 
tários da  Grã-Bretanha  despendiam  loucamente  os 
seus  dinheiros,  uns  a  prepararem  conspirações  paia 
o  restabelecimento  dos  Stuaits  no  tlirono,  outros 
a  serem  o  escândalo  do  povo  nas  orgias,  que  fi- 
zeram a  corte  dos  primeiros  reis  da  casa  de  lla- 
nover  digna  rival  da  côrle  de  Luiz  XV  e  de  Phi- 
líppc  d'Orleans,  o  pobre  capitão,  sem  auxilio  de 
pessoa  alguma,  lançava  os  fundamentos  do  seu 
monumento  caridoso,  e  gastava  até  o  ultimo  pen- 
ny  dos  seus  haveres,  grangeados  honestamente  com 
o  seu  trabalho,  em  levar  a  cabo  a  realisação  da 
sua  tão  evangélica  idéa. 

E  não  se  supponha  que  falíamos  no  figurado 
dizendo  «alé  ao  ultimo  penny».  Tocante  facto  que 
vale  por  si  só  o  mais  pomposo  panegyrico!  O  ho- 
mem, que  fora  a  providencia  dos  pobres,  o  ho- 
mem que  erigira  o  primeiro  hospício  dos  expos- 
tos na  Jnglalerra,  vio-se  no  lira  da  sua  vida  obri- 
gado a  recorrer  á  caridade  publica  1  Não  lhes  faz 
lembrar  isto  aquelle  bispo  fiancez  da  Fcsla  e  ca- 
ridade de  Thomaz  Ribeiro,  acerca  do  qual  o  no.sso 
glande  poeta  escreveu  estes  dois  magníficos  ver- 
sos: 

E  filiando  aelinn  vasia  a  sua  mão  tão  nobre 
jiilgou-se  mais  luliz,  ora  o  primeiro  pobro? 

Foi  necessário  que  o  |)rincipe  de  fialles  e  al- 
guns dos  seus  amigos  se  colisassem  entre  si  para 
lhe  dar  uma  jiensão  até  á  sua  morte,  (juc  succe- 
deu  em  1751,  lendo  elle  de  idade  oitenta  e  Ires 
annos. 

O  que  diria  o  honrado  homem  se  resuscitassc 
e  assistisse  á  discussão  (juo  no  nosso  século  phi- 
lantropico  se  Irava  ác(Mca  da  utilidade  dos  esta- 
belecimentos, de  (jue  elle  foi  um  dos  fundadores.' 
Duvidaria  da  sua  obra?  Não;  diria  talvez,  llu- 
ctiiando-lhe  nos  lábios  o  mesmo  sorriso  meigo 
com  que  acolhia  as  criancinhas  desamparadas,  di- 
ria (|ue,  perante  ura  facto  dilacerante,  não  se  traia 
de  disculir,  Irala-sc  de  remediar,  que  quaesqucr 


o  PANORAMA 


87 


que  sejam  as  culpas  das  mais,  a  criancinha  inno- 
cefito  é  irresponsável  por  cMas,  e  que  o  logar  no 
banquete  da  vida, que  os  seus  labiosinbos  imploram, 
não  pôde  a  sociedade  recusar-ih'o  sob  pretexto  al- 
gum; diria  mais  ainda,  diria  que,  se  os  legislado- 
les  legislassem  de  vez  em  quando  mais  com  o 
coração  do  que  com  o  espirito,  o  quede  cei'to  lhes 
não  faria  mal  algum,  comprelienderiam  que  as 
mais  que  repellem  seus  íilhos  sem  necessidade 
pungentissima  e  fatal  são  excepções  monstruosas, 
e  que  as  leis  sociaes  da  mesma  forma  que  as  leis 
(la  natureza  não  se  curvam  ante  a  existência  das 
aberrações;  diria,  emíim,  que  os  homens  de  Esta- 
do que  ousam  discutir  o  amor  maternal  são  uma 
espécie  d'eunucos,  que,  mil  vezes  mais  infelizes 
do  que  os  guardas  do  serralho,* nem  sequer  com- 
prehendem  a  paternidade  pelo  lado  do  sentimento 
moral,  e  que,  não  comprehendendo  a  paternidade 
que  illumina  com  um  raio  de  luz  celeste  a  figura 
grotesca  de  Triboulet,  ainda  menos  comprehende- 
rão  o  amor  de  mãi  que  inunda  de  esplendor  o 
vulto  hediondo  de  Lucrécia  Borgia. 

E,  depois  de  dizer  isso,  o  honrado  capitão  Co- 
ram esvair-se-hia  como  uma  sombra  que  hoje  é, 
e  voltaria  ao  paraíso  dando  o  braço  a  S.  Vicente 
de  Paula,  causando  assim  grande  estranheza  ao 
Summo  Pontiíiee,  quede  certo  não  comprehenderá 
esta  ligação  Ião  intima  entre  ura  santo  esiim  pro- 
teslante.  Pixheiiio  Coagas. 


A  verdade  é  uma  saúde  que  nunca  enferma,  uma 
vida  que  nunca  morre,  uma  mesinha  que  a  todos 
sara,  um  sol  que  nunca  se  põe,  uma  lua  que  nun- 
ca se  eclipsa,  uma  porta  que  a  ninguém  se  fecha, 
e  um  caminho  que  a  todos  descanca. 

M.    AfFONSO   de   MIRANDA. 


AMOR  Á  PÁTRIA 

Indubitavelmente,  entre  os  povos  antigos,  os  gre- 
gos e  os  espartanos  eram  osque  possuiam  em  mais 
subido  gráo,  em  Ioda  a  sua  nobre  pureza,  o  amor 
á  pátria  de  que  tanto  hoje  debalde  se  blasona.  Ve- 
jam-se  alguns  notabilissimos  exemplos  que  a  his- 
toria nos  legou. 

Condemnado  injustamente,  por  inveja  dos  seus 
concidadãos,  o  celebre  Phocio,  um  dos  mais  famo- 
sos personagens  da  antiga  Grécia,  eslava  já  para 
beber  o  fatal  veneno,  quando  lhe  perguntaram  se 
desejava  despedir-se  de  seu  íilho,e  fazer  algumas 
disposições.  (cTrazei-m'o  aqui,»  respondeu;  e  ao 
vel-o,  íhe  disse :  ccOuerido  íiiho  !  INão  te  recom- 
mendo  outra  cousa  senão  que  sirvas  sempre  a  tua 
pátria  com  o  mesmo  zelo  e  lealdade  com  que  eu 
a  servi,  e  que  olvides  que  o  premio  dos  meus  ser- 
viços foi  uma  morte  injusta!» 

Em  Esparta,  sobretudo,  o  amor  á  pátria  era  ge- 
ral. 

Homens,  mulheres,  crianças,  emíim,  individues 
de  todas  as  idades  e  condições  disputavam-sc  a  glo- 
ria de  fazerem  pela  pátria  os  maiores  sacrilicios ; 


o  ambos  os  sexos,  animados  do  mesmo  zelo,  con- 
sagravam-se  sem  reserva  á  salvação,  ao  bem-eslar 
e  á  gloria  do  Estado.  Alguns  rasgos  que  a  histo- 
ria tem  conservado,  darão  a  conhecer  o  génio  pa- 
triótico d'aquellcs  famosos  republicanos, 

Uma  mulher  de  Eacedemonia  dizia  a  seu  íilho 
no  momento  em  que  o  eslava  armando,  e  enti'e- 
gando-lhe  o  escudo  para  marchar  ao  combate  :  «Vol- 
ta com  elle  ou  sobre  elle;»  alludindo  ao  costume 
de   trazer  os  mortos  nos  seus  escudos. 

Outra  fazia  perguntas  a  seu  íilho  que  acabava 
de  chegar  da  guerra,  e  como  este  lhe  respondes- 
se :  «Todos  os  meus  companheiros  morreram,» 
cheia  de  indignação  agarrou  em  uma  telha  e  ar- 
remessou-lh'a  con»  fúria  e  modo  taes  que  o  matou, 
e  ao  vel-o  cair,  disse  :  «Mandaram-te  a  ti  miserá- 
vel, para  nos  annunciares  as  suas  desgraças?» 

Outra  ao  receber  a  noticia  de  que  um  dos  seus 
íilhos  tinha  morrido  gloriosamente  em  um  comba- 
te, exclamou  :  «iSão  me  causa  estranheza,  era  meu 
íilho.»  E  dizendo-se-lhe  no  mesmo  momento  que  o 
outro  havia  fugido  cobai-demente :  «Não  era  meu 
filho  !»  disse  com  viveza  aquella  generosa  mãi. 

Outra,  tendo  sabido  que  seu  filho  havia  escapado 
do  combate,  escreveu-lhe,  dizendo-lhe:  «Levantou- 
se  um  murmúrio  injurioso  á  tua  honra;  falo  ces- 
sar, ou  morre.» 

Outra  ao  ouvir  seu  filho  relatar-lhe  a  morte  glo- 
riosa do  irnuío,  que  tinha  sido  traiçoeiramente 
morto  em  quanto  combatia,  lhe  disse*:  «^Porque 
não  o  acom|)anhaste  desgraçado?» 

Outra  que  tinha  cinco  íilhos  no  exercito,  estava 
ouvindo  contar  os  promenores  da  batalha,  e  diri- 
gindo-se  a  um  escravo  que  n'aquelle  momento  che- 
gara, este  lhe  disse  :  «Os  vossos  cinco  filhos  mor- 
reram.»—  Vil  escravo,  replicou  a  mãi,  é  isso  que 
te  pergunto?  —  «Ganhamos  a  victoria,»  tornou  o 
escravo ;  e  a  mãi  dirigio-se  immediatamente  ao 
templo  a  dar  graças  aos  deoses. 

Outra,  vendo,  no  assedio  de  uma  cidade,  seu  filho 
primogénito  cair  morto  a  seus  pés,  exclamou  :  «Cha- 
mem seu  irmão  para  subslituil-o.» 

Quando- chegaram  a  Lacedemonia  os  que  deviam 
annunciar  a  perda  da  famosa  batalha  de  Leuctra, 
estava-se  celebrando  na  cidade  uma  grande  fesla, 
á  qual  havia  acudido  uma  infinidade  de  estrangei- 
ros, altraidos  pela  curiosidade.  Os  coros  de  jo- 
vens de  ambos  os  sexos  celebravam  seus  ritos  em 
pleno  thealro  segundo  as  instituições  de  Licurgo. 
iN'aquelle  momento  chegaram  a  Esparta  os  porta- 
dores da  triste  nova;  porém  não  se  interromperam 
os  jogos,  nem  houve  mudança  noapparatodafesta. 
Unicamente  se  mandaram  a  todas  as  casas  os  no- 
mes dos  mortos  que  lhes  pertenciam.  Ao  amanhe- 
cer do  seguinte  dia  já  se  sabia  de  lodos  os  que 
haviam  escapado  ou  morrido ;  os  pais  e  parentes 
dos  que  deixaram  de  existir  iam  á  pr-aça  publica, 
abi'açavam-se  csaudavam-se  com  semblante  alegre, 
assim  como  os  pais  e  parentes  dos  que  se  tinham 
salvado  do  ferro  inimigo,  se  occultavam  cm  suas 
casas.  Se  algum  d'elles  se  via  obrigado  a  sair  á 
rua  para  os  seus  negócios,  apresentava-se  com 
semblante,   voz  e  olhar  que  bem  denunciavam  a 


88 


O  PANORAMA 


sua  tristeza  e  abalimenlo  ;  e  na  desgraça  commum 
da  pátria,  não  havia  goso  doraeslico. 


A  BOCCA  DO  INFERNO 
YIll 

Fair  drfcrt  of  nature !  —  ú\z  Millon  da  mu- 
lher. E  todavia  é  a  cs?{i  erro  formoso  da  natureza 
que  nós  levantamos  altaiTs !  Tirae  do  mundo  a  mu- 
lher e  desapparecerão  muitos  desvarios,  muitas  con- 
tendas, e  ate  muitos  crimes,  é  a  opinião  do  alguns; 
mas  então  o  mundo  diz  um  dos  nossos  esciiplo 
res,  seria  um  ermo  melancólico,  os  pi-azeres  ape- 
nas o  preludio  do  tédio. 

Um  inferno  íòia  ellc,  penso  eu,  sem  a  muliíer, 
esse  ser  abençoado  que  tem  bálsamo  para  todas 
as  desgraças  na  só  meiguice  de  um  í)li)ar.  Se  aqui 
faz  um  m"art\  r,  puriíica  alli  um  coração,  regenera 
além  uma  alma.  Pôde  malar  com  o  desprezo,  mas 
tem  o  poder  de  resuscilar  com  um  sorriso. 

Deus  que  vos  fez  bellas,  que  vos  concedeu  a 
fascinação  soberana  do  olhar  e  do  gesto,  foi  por- 
que quiz  coliocar  no  mundo  quem  podesse  abater 
os  fortes,  exaltar  os  humildes,  consolar  os  des- 
graçados, incitar  emíim  todas  as  virtudes  e  enxu- 
gar todas  as  lagrymasl 

Sois  fracas,  e  a  vossa  força  é  immensa,  porque 
a  tiraes  do  próprio  desvalimenlo.  l*ergunlac  á 
sombra  de  Anua  d'Austria  (já  que  as  exhumações 
de  S.  Diniz  lhe  dispersaram  os  ossos')  pergunlae- 
Ihe  se  não  era  muito  mais  rainha  quando  Bnkin^ 
gham  Ihesacrilicava  um  exercito,  do  que  quando, 
envolta  nos  arminhos  da  realeza,  se  sentava  no 
Ihrono  da  França!  Perguntae  á  sombra  de  Cleó- 
patra se  não  se  julgava  muito  mais  soberana,  do- 
minando o  coração  de  César  ou  vendo  quebrar-se- 
Ihe  ás  plantas  a  espada  laureada  de  Marco-Anto- 
nio,  que  quando  o  Kgypto  inteiro  lhe  prestava  vas- 
salagem? Diga  Joanna  de  Nápoles  se  não  era  mais 
despoticamente  senhora  quando  com  o  olhar,  que 
prometlia  um  mundo  de  venturas,  fazia  do  duque 
de  Tarento  um  regicida.^! 

As  vossas  glorias,  a  vossa  grandeza,  ioda  a  vos- 
sa supremacia  eslá  ahi.  Na  cabeça  da  esposa  de 
Luiz  XIII  a  coroa  era  quasi  irrisão: — ura  cardeal 
torcia-a  entre  os  seus  dedos  de  ferro.  A  íilha  de 
Ptolomeu  vio  como  o  sceptro  era  frágil  —  c  como 
lhe  era  mais  fácil  dominar  um  coração,  do  que 
dominar  um  povo.  A  esposa  de  André  da  Hun- 
gria sabia  que  o  reinar  em  Nápoles,  soba  inlluen- 
cia  de  uma  favorita,  valia  bem  menos  que  diclar 
despoticamente  a  lei  nos  Iribunaes  d'amor ! 

K  que  sobre  vossos  cabellos  formosos  fica  me- 
lhor a  coroa  de  rosas,  perfumadas  :le  cândidos 
aromas,  que  os  diademas  querejjresenlam  a  sobe- 
rania dos  estados !  A  mulher  nasceu  para  domi- 
nar pela  blandícia  dos  sentimentos  carinhosos, 
ou  pela  sceníelha  ardente  das  paixões.  Todo  o 
poder  que  não  seja  este  deveeslalar-lhe  nas  mãos 
como  \idro  frágil  e  quebradiço.  Dominio  pela 
influencia  do  coração,  esse  sim  que  o  e\ei'ce  ella, 
que  o  exei-cia  Chrislina  sobre  Luiz. 

Era  curvado  a  essa  influencia  que  Luiz  de  Mello 


desprezava  a  sua  carreira,  sacrificava  o  seu  futu- 
ro, punhado  parle  osatTectos  que  o  prendiam  á  vida 
aventurosa  do  mar,  e  vollava  a  Lisboa. 

No  jirimeiro  navio  que  de  Cabo  Verde  saio  para 
Portuga!  embarcou  o  mancebo  com  a  esperança 
de  volver  depressa  á  pátria.  Com  o  olhar  cravacío 
nos  horisontes,  anhelava  ver  surgir  os  montes  das 
cosias  de  Portugal — e  á  noite,  quando  a  lua  es- 
pai'gia  sobre  o  dorso  movediço  das  vagas  os  seus 
pallidos  lampejos,  conlava-lhc  ellc  conlidencias  e 
segredos,  que  o  vento  levava  nas  azas.  A  alma 
generosa,  como  é  sempre  a  alma  dos  poetas  edos 
;ti'tislas,  abria-se  n'aquellas  evocações  ao  amor  c 
á  saudade,  á  mulher  e  á  pátria,  cantos  de  um 
l)oema  sublime  em  que  se  resumem  todos  os  sen- 
timentos do  homem  na  idade  inspirada  da  juven-  . 
tude! 

A.  d'Oliveir.v  Pires 

{Continua) 


DA  UTILIDADE  DE  UMA  LÍNGUA 

UNIVERSAL  o 

É  inconlostavct  que  lodos  os  povos  cnniinliam  liojc 
para  uma  organisação  commum,  paia  uma  sociedade  uni- 
versal. A  religião, "a  politica,  a  |)iiilosophia,  as  artes,  as 
sciencias,  a  industria,  o  commercio  conduzem  ip;ualmente 
a  esla  conclusão.  Mas  se  lai  é  o  futuro,  o  ])ro\imo  futu- 
ro, talvez,  da  humanidade,  a  primeira  consequência  cres- 
te grande  acontecimento  (leve  ser  o  eslaholecimento  d'uma 
língua  commum,  cuie,  deixando  subsistir  os  idiomas  na- 
cionaes,  tcstemualio  da  indi\idualidade  dos  povos,  seja 
comtudo  o  iucúhnn  das  relações  inlernacionaes  entre  os 
po\ os  e  entre  os  indivíduos;  que  sirva  ao  mesmo  lempo 
para  a  ex|)ressão  d'essas  supremas  verdades  que  são  o 
laço  commum  das  sociedades  e  por  cujo  titulo  devem  por 
toda  parle  reveslir  uma  forma  ideutica  e  universal. 


.     PORTSMOUTIl 

Já  aqui  n'este  volume  do  Panorama  dêmos  no- 
ticia de  Woohvich,  o  primeiro  arsenal  da  Ingla- 
terra; isso  levou-nos  naturalmente  a  apresentar- 
mos aos  nossos  leitores  a  gravura  e  a  (lescri|)ção 
do  seu  principal  porto  militar.  Com  eíTeito  assim 
podemos  considerar  a  cidade  de  Porlsmouth. 

Fica  situada  esta  cidade  no  condado  de  líam- 
pshire;  está  construída  n'uma  ilha  paludosa, 
(pie  se  chama  Portsea  c  que  fica  n'uma  bahia  do 
canal  de  S.  Jorge,  Divide-se  em  duas  cidades  dis- 
tinclas,  a  íle  Portsmoulh  propriamente  dita  e  a  de 
Porl!-:ea,  que  íica  para  o  norte,  que  soem  1792 
recebeu  essa  denominação,  e  que  hoje  ó  muito  mais 
considerável,  c  c  Ires  ou  quatro  vezes  mais  po- 
voada do  que  a  sua  rival.  As  duas  cidades  reuni- 
das contam  setenta  elres  mil  habitantes 

O  seu  porto  ó  o  mais  vasto  c  o  mais  seguro  de 
todos  os  porlos  oiienlaes  da  (iiã-Urelanha;  formi- 
dáveis forlilica('ões  lhe  defendem  a  enliada,  e  tan- 
to a  ilha  de  Portsea  como  a  cidade  de  J'orlsmouth 
estão  por  lodos  os  lados  rodeadas  de  magni liças 
obras  de  defeza.  (Comtudo  ultimamente  os  baluar- 
tes da  cidade  foram  cm  grande  parle  transforma- 
dos em  |)asseios. 

Os  estabelecimentos  de  mais  imporlaneia  que 
alli  existem  são  os  estaleiros,  o  arsenal,  a  escola 

(1)  Esludo  pratico  da  linrjua  (jrefjn,  por  M.   Uiislave  d'líiclitlial. 


o  PANORAMA 


i89 


de  marinha,  e  o  celebre  e  vasto  hospital  que  pôde 
jccober  Ires  mil  marinheiros.  Ao  sul  de  Porls- 
iiioiilii,  na  extremidade  noidesle  da  ilha\Vight,  íi- 
ca  a  magnifica  enseada  de  S])ilhead,  ponto  de 
leunião  habitual  das  esquadras  inglezas. 


Na  celebre  festa  maiitinia,  que  ultimamente  de- 
monstrou as  estreitas  ligações  politicas  da  Fi-ança 
e  da  Inglaterra,  festa  em  (jue  se  rcuniiam  com 
grande  ajiparato  as  esquadras  dos  dois  paizes,  fui 
Portsmoulh  o  ponto  escolhido  pela  íiiglaierra  ])ara 


Poitsmouth. 


receber  os  seus  hospedes,  como  foi  Cherbourg  o 
ponto  escolhido  pela  França  para  fazer  honras  iguaes 
aos  Inglezes. 

Realisa-se  actualmente  a  hypolhesc  que  tanto 
assustava  o  nosso  grande  Bocage,  quando  o  poeta 
exclamava: 

Um  triumpha  no  mar,  outro  nn  terra! 

Stí  as  iiiãas  se  dértim  que  seni  do  mundo? 

Os  triumphadores  deram-se  as  mãos,  e  o  mun- 
do não  soflVeu  com  isso  grande  abalo.  Bocage,  se 
resuscitasse,  havia  de  íicar  eslranhamenle  sur()re- 
hendido.  Apezar  da  famigerada  alliança,  a  Dina- 
marca é  roubada  escandalosamente  nas  barbas 
das  esquadras  de  Cherbourg  e  de  Portsmouth  pela 
Prússia  e  pela  Áustria,  e  a  Polónia  continua  a  ten- 
tar erguer  em  vão  o  triplico  peso  que  a  esmaga. 

Ouem  tal  diria! 


D.  JORGE  DE  MASCARENHAS,  GOVERNADOR 

DE  iMAZAGÃO 

II 

Promettemos,  no  precedente  capitulo,  contar 
as  façanhas  marítimas  d'"esle  homem,  que  em  ter- 
ra sustentava  com  tanto  denodo  e  brio  a  honrada 
bandeira  portugueza.  Vamos  cumprir  a  promessa; 
parece  que  mais  folgamos  em  ver  estos  relâmpa- 


gos de  heroísmo  no  meio  das  trevas  da  nossa  de- 
cadência, do  que  mesmo  em  contemplarmos  o  es- 
plendor da  glande  época  da  nossa  historia. 

Mas,  apressemo-nos  em  dizel-o,  feliz  ou  infeliz, 
a  bravura  dos  nossos  maiores  nunca  sedesmentio. 
Erros  de  governantes,  fatalidade,  corrupção  social 
motivaram  a  rápida  degeneração  da  nossa  patiia, 
mas  os  seus  íilhos  mostraram-se  sempre  dignos, 
mesmo  na  desvenluia,  do  nome  glorioso  que  ha- 
viam sabido  conquistar  em  épocas  de  mais  pros- 
pera fortuna. 

Digamos  comtudo  que  uma  verdade  para  nós 
axiomática  é  a  seguinte;  «são  os  generaes  que  fa- 
zem os  soldados»;  o  italiano,  o  portuguez,  o  hes- 
panhol,  o  fi^ancez,  o  allemão,  o  inglez,  o  russo 
podem  ter  uma  bravura  diílerente;  aqui  mais  eu- 
Ihusiastica,  além  mais  tranípiilla,  mas  o  brio  mi- 
litar não  os  deixa  recuar  diante  das  balas,  quando 
teem  chefe  que  saiba  arrastal-os  á  peleja.  Sui)pôr 
o  contrario  seria  entregar  á  força  bruta  os  desti- 
nos das  batalhas,  quando  pelo  contrario  é  sem- 
pre a  intelligencia  que  as  decide.  Ouem  havia 
de  dizer  que  os  fiancezes,  esses  vencedores  do 
mundo  inteiro  no  principio  d'eslo  século,  eram 
os  mesmos  que  haviam  soíTrido  em  Bosbach  uma 
das  mais  vergonhosas  derrotas  de  que  ha  memo- 
ria nos  annaes  militares?  Quem  havia  de  suppòr 


4  90 


O  PANORAMA 


também  que  os  pnissianos,  esses  vencedores  de 
Rosbacb,  haviam  de  ser  os  mesmos  Ião  miseravel- 
menle  destroçados  em  lena?  É  porque  uão  foi  o 
valor  cego  dos  soldados  quem  ganhou  as  batalhas 
de  Rosbach,  e  d'Iena,  foi  Frederico,  foi  Napoleão, 
foi  o  génio  dirigindo  as  massas,  foi  a  inlelligen- 
cia  guiando  a  força  bruial. 

Assim  lambem  os  nossos  soldados  deram  pro- 
vas sempre  de  um  valor  incomparável,  mas  na 
época  da  nossa  grandeza  tinham  por  generaes  os 
membros  d'essa  plêiade  brilhanlissima  que  for- 
mou a  corte  de  D.  Manoel,  generaes  que  se  cha- 
mavam D.  Francisco  de  Almeida,  Aflonso  de  Al- 
buquerque, Duarle  Pacheco,  Vasco  da  (íama  e 
quantos!  No  tempo  da  nossa  decadência  as  cam- 
panhas dos  Paizes  Baixos  absorviam  a  ílor  dos 
nossos  guerreiros,  e  só  nos  licavam  para  defen- 
dermos as  con(|uislas  contra  os  aia((ues  dos  líol- 
landezes,  e  contra  a  sublevação  dos  |iovos  con- 
quistados, o  refugo  das  nossas  valentes  legiões, 
refugo,  que,  ainda  assim,  desanimado  e  indeciso, 
sustentava,  senão  com  a  pratica  da  guerra  e  a 
experiência  militar,  pelo  menos  com  o  denodo  e 
a  intrejjidez  tiadicionaes  a  honra  do  pendão  das 
quinas. 

Em  1G19  regressou  T).  Jorge  de  Mascarenhas, 
já  enlão  conde  de  Castello  Novo,  do  seu  governo 
de  Mazagão.  Trazia  comsigo  sua  mulher  e  seus 
quatro  lilhos,  sendo  os  dois  mais  novos  ainda 
crianças.  A  esquailiilha,  (pie  elle  commandava, 
compunha-se  apenas  de  Ires  navios.  No  dia  21  de 
outubro  sobreveio  uma  forte  ventania,  que  os  dis- 
persou, scjtarandoos  dois  navios,  que  navegavam 
de  conversa,  da  capitania  onde  eslava  D.  Jorge. 
Ouiz  a  fatalidade  que  fosse  exactamente  n'essa 
occasião  que  appareceram  de  súbito  no  borisonte 
três  velas  barbarescas,  (jue  se  dirigiram  a  todo  o 
panno  para  o  navio  portuguez,  assim  que  o  viram 
isolado  na  liquida  arena  do  oceano. 

Seria  talvez  fácil  ao  navio  portuguez,  tão  próximo, 
como  eslava,  das  costas  da  península  hispânica, 
fazer  força  de  vela,  c  demandar  um  dos  porlosda 
Andaluzia,  Cadiz  ou  (jibrallar,  aonde  chegaria 
talvez  a  tempo  de  se  pôr  a  abrigados  insultos  dos 
piratas.  Mas  I).  Jorge,  que  não  estava  habituado 
em  terra  a  virar  as  costas  aos  esquadrões  bereberes, 
não  quei-ia  no  oceano  tomar  o  máo  costume  de 
dar  a  popa  aos  navios  dos  iniieis.  Pensava  que, 
na  decadência  em  que  ia  a  sua  pátria,  esses  actos 
de  louca  temeridade  serviam  ao  menos  perante  a 
historia  para  dar  magestade  su{)i-ema  á  queda  d'esle 
grande  povo.  A  sua  Iripulação  compunha-se  ape- 
nas de  cincoenia  homens;  eiam  três  as  náos  ai- 
gelinas,  uma  linha  trinta  e  seis  peças  de  artilhe- 
ria  e  trezentos  iiomens  de  peleja,  outra  vinte  e 
seis  peças  e  duzentos  c  cincoenia  homens,  a  ter- 
ceira em  íim  vinte  peças  e  cento  o  sessenta  ho- 
mens. I).  Jorge  deu  o  signal  da  investida. 

A  excepção  das  Ires  velas  baibarescas,  eslava 
ermo  o  vasto  plaino  do  oceano.  No  horisonte  não 
surgia  ornais  leve  ponlo alvejante,  que  annuncias- 
se  uma  das  velas  da  esquadrilha  de  D.  Jorge.  Tal- 
vez o  valente  portuguez  esperasse  que  o  Iroar  do 


canhão  allrahisse  os  outros  navios,  que,  appare- 
cendo  de  súbito,  tornariam  de  certo  a  peleja  me- 
nos desigual. 

la-lhe  saindo  o  calculo  certo.  Feliz  no  primeiro 
impele,  e  arrojando-se  ás  duas  naus  argelinas 
(luc  vinham  na  frenle,  como  um  volcão  flucluante, 
vomitando  ferro  efogo  por  Iodas  as  baterias,  con- 
seguio  repellil-as  com  perdas  graves,  e  obrigal-as 
a  alTaslarem-se  da  proximidade  do  lerrivel  navio. 
Mas  o  terceiro  vaso  moiro,  que  era  o  mais  pode- 
roso, caio,  com  a  sua  tripulação  fresca  e  intacta, 
sobre  o  navio  portuguez  bastante  avariado  e  so- 
bre a  sua  tripulação diminuidn.  O  combate  era  ex- 
tremamente desigual.  Três  \'ezes  entraram  os  moi- 
ros no  navio  de  D.  Jorge,  trez  vezes  foram 
repellidos.  Deram  um  quarto  assalto  os  argelinos 
e  foram,  como  era  de  esperar,  mais  venturosos. 
A  extenuada  tripulação  porlugueza,  dirigida  pelo 
valente  conde,  vio-se  obrigada  a  refugiar-se  na 
praça  da  arlillieria,  deixando  os  inimigos  senho- 
res doscastellosde  prôaede]i.í[)a.  Masnão  se  ima- 
gine que  pensaram  em  se  render;  o  combale  con- 
tinuou cada  vez  mais  encarniçado. 

Animava-os  n'islo  uma  esperança,  que  viram 
fiusliada  com  profundíssima  dor.  Tinham  surgi- 
do alinal  no  horisonle  os  navios  portuguezes,  mas, 
ou  porque  o  vento  lhes  fosse  contrario,  ou  por 
qualíjuer  outro  motivo  desconhecido  do  historia- 
dor, conseivaram-se  imraoveis  espectadores  da 
peleja!  Os  Argelinos,  vendo  surgir  este  refor- 
ço inesperado,  não  se  linham  atrevido  a  con- 
centrar todas  as  suas  forças  no  sitio  onde  se  de- 
fendiam com  intrepidez  sobrenatural  esses  pou- 
cos leões  das  aguas.  Mas,  notando  a  estranha  im- 
mobilidade  dos  recem-chegados,  perderam  o  susto, 
e  conservando  em  observação  um  dos  dois  navios, 
que  D.  Jorge  primeiro  repeilira,  chamaram  o  outro 
para  domarem  com  a  superioridade  do  numero 
essa  lenacissima  resistência. 

Já  a  este  tempo  estavam  reduzidos  á  ultima  ex- 
tremidade os  jíortuguezes  da  coberta,  mas  não 
recuavam  um  passo,  animados sempie  pelo  exem- 
plo do  seu  valenie  capitão.  Fsse  é  que  parecia  in- 
vulnerável; verdadeiro  Achilles  dir-se-hia  que  as 
balas  o  temiam  ou  que  não  passavam  junto  d'elle 
senão  para  prestarem  homenagem  ao  seu  nobre  vul- 
lo.Já  muitos  projeclis  lhe  linham  balido  na  arma- 
dura, quando  uma  bala  de  aitilheria  lhe  levou  a 
espada  da  mão,  sem  lhe  fazer  a  mais  leve  ollensa, 
mas  deixando-o  desarmado.  Deu-lhe  oulra  espada 
seu  lilho,  D.  Francisco  de  Mascarenhas,  o  qual  no 
mesmo  instante  caio  fei-ido  gravemente,  mas  bra- 
dando: «Meu  |)ai,  morramos,  sem  nos  rendermos. J) 
Dir-se-hia  que  o  mesmo  espirito  animava  Ioda 
aquella  valorosa  familia. 

Havia  um  poder  magico  que  parecia  proteger 
D.  Jorge  ;  pcnsaiieis  que  eram  iiicanladas  as  suas 
armas  como  asdosheioes  dos  romances  decavalla- 
ria.  l*osliado  |)ela  fadiga  e  peia  dor  de  ver  os  seus 
dois  lilhos  mais  velhos,  um  fei-ido  gravemente  como 
dissemos,  o  outro,  D.João  de  Mascarenhas,  já  morto, 
D.  Jorge,  inclinando  a  cabeça  sobre  o  peito,  dei- 
xou-se  cair  sentado  n'um  tambor.  Vem  oulra  bala 


I 


o  PANORAMA 


^9 


de  ?rtillierir),  atravessa  o  (auihoi-,  do  um  ao  oiiíro 
lado,  deixando  íicar  incolumeo  inlropido  cavalloiro. 
Não  lendo  já  arlilheifos,  dirij^e-se,  acompanhado 
|)or  um  fidalgo  chamado  Manoel  da  Fonseca  a  uma 
])eça  que  lhes  rcslava  e  cujo  fogo  queria  dirigir 
contra  o  inimigo.  Caminham  amÍ)os  lado  a  hido, 
uma  bala  paite  ao  meio  Manoel  da  Fonseca,  sem 
tocar  em  1).  Jorge;  a  mo:  te,  como  de  costume, 
esquivava-se  ao  hei'oe  que  a  procurava;  mas,. dei- 
xando ficar  de  pé  o  altivo  roble,  decepava-lhe  as 
raizes  que  o  prendiam  ao  solo,  os  filhos  que  ellc 
estremecia. 

Afinal  D.  Jorge  vio  que  a  resistência  era  inútil 
e  uão  pensou  senilo  om  procurar  gloriosa  morte, 
(luc  o  livrasse  dos  ferros  de  Alger.  Voltou-se  fria- 
mente para  os  poucos  portuguezes  que  o  ouviam 
consternados,  e  disse-lhes;  «Pieparemo-nos  para 
morrer  com  gloria,  mas  antes  preciso  de  degolar 
n.inha  mulher  e  meus  filhos.»  Sublime  ferocidade 
que  lembra  os  grandes  rasgos  da  primitiva  Uoma, 
ou  a  celebre  resolução  dos  habitantes  de  Numancia  I 

Mas  depois,  vol laudo  os  olhos  paia  a  bandeira 
porlugueza  que  ainda  tremulava  ufana  ao  vento 
do  combate,  salteiou-o  um  outro  pensamento,  e 
exclamou: 

«Pois  ha  de  caii-  nas  mãos  de  infiéis  aquelle 
pendão  sagrado?  INão!  deitemos  fogo  ao  navio. 

A  ordem,  dada  com  esía  simplicidade,  foi  com 
não  menos  singeleza  executada  por  Luiz  de 
Lomba. 

Eram  perto  de  cinco  hoi'as  da  tarde,  e  pelejava- 
se  desde  as  oito  da  manhã. 

Eslava-se  fatigado  de  um  e  d"ouli-o  lado,  e  os 
moiros  contemplavam  com  assombro  o  punhado 
de  heróes,  que  por  tanto  tempo  haviam  ousado 
resistir-lhes.  Era  em  outubro,  como  dissemos,  c 
a  noite  \inha  próxima.  Não  mandando  Itgo  deitar 
fogo  ao  paiol  da  pólvora,  o  que  abreviaria  a  ca- 
tastrophe,  e  a  tornaria  terrível  para  os  argelinos 
accumulados  nos  castellos  da  proa  e  popa,  o  conde 
de  Castello  Novo  abria  uma  ultima  poria  á  ultima 
possibilidade  de  salvação.  Os  navios  barbarescos  ar- 
vcdar-se-hiam  de  certo;  talvez  podessem  então  os 
poucos  portuguezes,  que  restavam,  metter-sen'uma 
chalupa,  e  ir  procurar  os  dois  outi'os  navios,  que 
não  tinham  querid'»  tomar  parte  no  combate.  A 
noite  cobriria  a  reinada  com  o  seu  manto  de  trevas. 

Aconteceu  ao  principio  o  que  D.  Jorge  previra. 
Logo  que  os  moiros  viram  as  chammas  lamber  os 
mastros,  c  enroscar-se  em  torno  d'elles  como  rú- 
bidas serpentes,  recuaram  em  desordem  e  lan- 
çaram-se  ao  mar  jjara  fugirem  á  explosão. 

D.  Jorge  contemplava  sereno  este  espectáculo, 
mas  alguns  dos  porluguezes,  commovidos  pela  in- 
nocencia  dos  dois  lilhos  infantis  do  seu  general, 
D.  Pedro  e  1)  Simão,  e,  não  podendo  ver  a  san- 
gue frio  a  morte  horrorosa  d'essas  cândidas  victi- 
mas  da  guerra,  e  da  exaltação  pundonorosa  do 
conde,  que  n'csse  instante  iazia  calar  a  voz  do 
amor  paternal,  tomaram  nos  braços  os  dois  pe- 
queninos, e  chamaram  os  escaleres  argelinos,  que 
andavam  salvando  os  seus,  bradando-lhes  que  se 
rendiam.  Vendo  os  seus  filhos  em  poder  dos  moi- 


ros, e  ouvindo  ao  seu  lado  os  i)ranlos  da  aíílicla 
mãe,  D.  Jorge  sentio  vergar  o  seu  oi-gulho  deguer- 
i-eiro,  vencido  pelas  angustias  do  pai.  Chamou 
lambem  os  botes,  e  entregou-s3  cora  sua  mulher, 
c  com  seu  filho  D.  Francisco  de  Mascarenhas,  que 
mal  SC  podia  arrastar. 

I)'ahi  a  pouco  ia  pelos  ares  o  navio,  averme- 
lhando o  ceo  e  o  mar  com  os  hórridos  clarões  da 
ex|)losão.  Os  navios  barbarescos  navegavam  para 
Alger,  levando  a  sua  presa  preciosa,  "da  qual  ti- 
raram um  valioso  resgate. 

Eis  em  rápido  esboço  a  historia  militar  de  um 
vulto  que,  na  época  dos  nossos  grandes  infortúnios, 
ainda  se  ergue  como  o  representante  de  uma  ge- 
ração cxtincta,  da  geração  de  heróes,  cujo  valor 
fundara  o  iminenso  império  Lusitano. 

Pinheiro  Ciiagvs. 


A  TERRA 

Çiie  {»i-ovu.<!  pn.tiitivns   e\i>;íeíu   do   «jíie  é  roíionda^    que 
S'i*'íi  ^oiirv  si  e  á  rofla  d»  .sol  ! 

Conheci  um  certo  numero  de  indivíduos  de  mui- 
to boa  fé,  excellentes  pessoas,  na  verdade,  que, 
todas  as  vezes  que  me  encontravam,  depois  de  me 
perguntarem  pelo  meu  estado  desande,  passavam 
immediatamente  a  dirigirem-me  mil  questões  de 
astronomia;  c  ainda  não  haviam  recebido  as  mi- 
nhas respostas,  já  riam  com  a  maior  ingenuidade 
do  mundo.  A  seus  olhos  os  sábios  eram  visioná- 
rios, que  julgavam  saber,  mas  que,  na  realidade, 
não  se  avantajavam  ao  commum  dos  mortaes  a 
ponto  de  acharem  a  solução  do  enigma  da  nalure- 
zu.  Conheci  outros,  um  pouco  mais  instruídos  que 
os  precedentes,  que  estudavam  durante  odiaalic- 
ção  que  á  noite  haviam  de  dar  no  botequim  a  ou- 
tros tão  instruídos  como  elles,  c  que  só  passavam 
carta  d'intelligente  e  erudito  ao  homem  que  se 
apresentava  faltando  com  muita  facilidade  em  tom 
bombástico  c  empolado,  empregando  um  infinito 
numei'o  de  imagens  colhidas  aqui  ealli  em  campos 
de  diversos  donos,  que  não  citavam  ;  conheci  ou- 
tros, digo,  que,  talvez  para  me  desfiuctarem,  con- 
siderando as  (lilferentes  phases  da  historia  das 
sciencias,  os  seus  successos  bons  e  maus,  diziam 
que  andávamos  em  um  circulo  vicioso,  que  não 
tínhamos  o  verdadeiro  conhecimento  das  cousas  e 
que  os  nossos  systemas,  por  mais  solidamente  fun- 
dados que  parecessem,  nunca  deviam  ser  recebidos 
senão  a  titulo  d'hypolheses. 

A  questão  cosmographica  que  nos  toóa  mais  de 
perto,  a  do  isolamento  c  do  movimento  da  terra 
no  espaço,  tein  particularmente  o  piivílegío  de  le- 
vantar as  duvidas  de  que  falíamos.  Aos  ((ue  as  lêem 
(juerido  formular  e  (|ue  nem  sempre  tem  tido  em 
mãos  provas  irrefr-igaveis  a  fornecer,  aqui  lhes 
damos  os  pontos  fundamentaes  sobre  os  quaes  se 
apoia  este  elemento  do  novo  systema  do  mundo. 

Dizemos  primeiro  que  a  terra  é  redonda,  que 
tem  a  forma  de  uma  esphera  achatada  nos  pólos. 
O  primeiro  fado  que  allesta  isto  é  a  convexidade 
da  iinraensa  extensão  d'agua  que  cobre  a  maior 
parte  do  globo.  A  observação  de  um  navio  no  mar 
basta  para  mostrar  esta  curvatura.  Chegado  á  li- 


192 


O  PANORAMA 


Ilha  azul  que  parece  formar  a  separação  do  céo  e 
das  asnas,  o  navio  que  se  afasta  parece  n'csscmo- 
menlo  collocado  no  horisonte.  Um  pouco  mais 
tarde,  drsapparc'ce,  não  pela  parle  superior,  mas 
pela  inferior.  O  mar  cleva-se  a  principio  enlre  o 
convez  e  o  observador ;  depois  vão-se  escondendo 
as  velas  pouco  a  pouco ;  os  lopos  dos  maslros  ó  a 
ultima  cousa  que  deixa  de  se  avistar.  Tm  plieno- 
meno  similhanle  gosa  o  observador  collocado  no 
navio:  somem-se  primeiro  as  cosias  baixas;  os 
cdilicios,  as  tonas  elevadas  e  os  pliaróes  são  os 
objectos  que  mais  se  demoram  sobro  a  linha  de 
visibilidade.  Este  duplo  fado  demonstra  evidenlc- 
menle,  a  convexidade  do  mar.  Se,  polo  contrario, 
fosse  uma  superfície  plana,  só  a  distancia  faria 
perder  de  'ista  o  navio,  e,  n'este  caso,  desappa- 
receria  tudo  ao  mesmo  tempo,  tanto  as  velas  su- 
periores como  as  infeiiores. 

Resulta  mais  d"esta  mesma  ordem  de  observa- 
ções que  a  curvatura  do  oceano  é  a  mesma  cm  to- 
das as  direcções  :  ora,  esta  propriedade  só  pcrlence 
á  esphera. 

A  convexidade  do  mar  estende-se  em  terra  fir- 
me. Apezar  das  desigualdades  do  terreno,  a  su- 
perficie  dos  continentes  não  diíTere  essencialmen- 
te da-superficic  dos  mares,  porque  está  conhecido 
que  as  mais  elevadas  cadeias  de  montanhas  eslão 
longe  de  produzir  sobre  a  superficie  geral  da  ter- 
ra, protuberâncias  cojnparaveis  ás  rugosidades  da 
casca  de  laranja.  Ora,  a  superíicie  dos  rios  que 
cortam  a  terra  fiime  cm  todo  o  sentido  para  se 
reunirem  ao  oceano  é  pouco  superior  ao  nivel  does- 
te, c  pôde  ser  considerada  como  a  superficie  pro.- 
longada  do  mar  em  toda  a  extensão  dos  continen- 
tes. As  medidas  barometricas  sobre  a  altura  das 
montanhas  tcem,  por  outro  lado,  cuníiimado  csle 
fado.  O  solo  dos  continentes,  pois,  afasta-sc  pouco 
d'esle  nivel,  e  apresenta  no  seu  todo  uma  conve- 
xidade inteiramente  similhanle  á  das  aguas.  Km 
fim,  lanlo  em  tetra  firme  como  no  mar,  os  obje- 
ctos mais  elevados  são  sempre  os  primeiros  e  os 
últimos  que  o  viajante  avista. 

As  viagens  de  circumnavegação  lêem,  por  outra 
parte,  dado  uma  prova  palpável  da  esphcricidade 
da  terra.  O  primeiro  dos  navegadores  que  com- 
metteu  a  grande  e  arriscada  empresa  de  dar  a 
volta  em  roda  do  mundo,  o  nosso  Fernão  de  Ma- 
galhães, que  por  ter  recebido  a  recompensa  que 
os  governos  d'esla  terra  cm  todos  os  tempos  hão 
dado  a  quem  por  sua  infelicidade  bem  os  serve 
passara  ao  serviço  de  llespanha,  partio  d'alli  no 
anno  de  DJIO,  dirigindo-se  sempre  paia  o  orr/í/rí/- 
Ic.  Sem  mudar  a  sua  direcção,  um  dos  seus  navios 
chegou  á  Kuropa  Ires  annos  depois,  como  se  ti- 
vesse yindo  do  Oriente.  As  numerosas  viagens  de 
circumnavegação  feitas  desde  essa  época  até  aos 
nossos  dias,  teem  superabundanlcmente  confirma- 
do esta  verdade  :  A  terra  é  redonda  em  lodo  o  sen- 
tido. 

Ima  nova  prova  da  convexidade  da  terra  é  for- 
necida i)ela  mudança  de  aspecto  que  apresenta  o 
céo  durante  as  viagens.  Ouer  nos  dirijamos  para 
o  polo,  quer  nos  approximemos  do  equador,  des- 


cobrem-se  incessantemente  novos  astros,  assim  co- 
mo se  perdem  de  vista  os  das  latitudes  de  que  nos 
afastamos.  Este  facto  não  pôde  concordar  senão 
com  a  redondeza  da  terra ;  se  esta  fosse  plana,  es- 
tariam sempre  visíveis  os  mesmos  aslros. 

A  sombra  projectada  pela  terra  sobie  a  lua  e 
sempre  circular,  seja  qual  fòr  o  lado  que  o  disco 
terrestre  apresente  ao  disco  lunar  nos  diversos  quar- 
tos e  eclipses.  Esta  sombra  arredondada,  observada 
universalmente,  é  mais  uma  prova  a  favor  da  es- 
phcricidade da  terra. 

Taes  são  os  factos  vulgares  que  demonstram  de 
uma  maneira  positiva  a  verdade  a  que  temos  avan- 
çado. Se  quizessemos  entrar  na  geodesia  ou  mecâ- 
nica racional,  apresentaríamos  considerações  ain- 
da mais  rigorosas ;  mas  as  provas  precedentes  são 
l)astanles  para  aqui.  Vejamos  agora  sobre  que  só- 
lido fundamento  se  apoia  a  questão  de  que  a  terra 
eslá  isolada  e  se  move  no  espaço. 

A  dilficuldade  que  certos  espirites  lêem  mani- 
festado em  acreditar  que  a  terra  está  suspensa 
como  um  balão  no  espaço  e  completamente  isola- 
da de  toda  a  espécie  de  ponto  de  a]H)io,  provém 
d'uma  falsa  noção  das  forças  da  natureza.  A  his- 
toria da  astronomia  antiga  rnostra-nos  uma  ancic- 
dade  profunda  entre  os  primeiros  observadores,  que 
começavam  a  conceber  a  realidade  d'este  isolamen- 
to, mas  que  não  sabiam  como  impedir  a  (pieda 
d'esle  globo  tão  pesado  sobre  o  qual  andamos.  Os 
pi'imeiros  chaldéos  lizeiam  a  terra  oca  e  similhanle 
a  um  bole;  podia  tluctuar  sobre  o  abysmo  dosares. 
Outros  suppunham  que  se  estendia  indefinilamen- 
te  abaixo  dos  nossos  pés.  Todos  estes  syslemas 
eram  concebidos  sob  a  impressão  d'uma  falsa  idéa 
do  peso.  Para  fugir  a  esla  antiga  illusão,  é  preci- 
so saber  que  o  peso  é  um  phenomeno  constiluido 
pela  attra^ção  de  um  centro.  Um  corpo  cáe  só 
quando  a  attracção  de  outro  corpo  mais  importan- 
te o  sollicila.  As  imagens  de  alto  e  de  baixo  não 
se  podem  applicar  senão  a  um  sysl(>ma  material 
determinado,  no  qual  o  centro  atlradivo  será  con- 
siderado como  o  baixo :  fora  d'isto  cousj  alguma 
significam.  Quando,  pois,  suppomos  o  nosso  glo- 
bo isolado  no  espaço,  não  fazemos  com  isso  cousa 
alguma  (jue  possa  dar  imporlancia  á  objecção  que 
acima  notamos ;  temer  que  a  terra  caia  não  se  sabe 
onde. 

A  terra  pôde,  pois,  estar  isolada  no  espaço.  K 
não  só  o  pôde,  que  o  eslá  na  realidade.  Se  se  achas- 
se apoiada  sobre  um  corpo  qualquer,  este  apoio, 
que  necessariamente  deveria  ter  enormissimas  di- 
mensões, seria  visto  cerlamenle  quando  d'elle  se 
approximassem..  Ver-se-ia  sahir  da  terra  c  perder- 
se  no  espaço.  E  escusado  dizer  (pie  os  viajantes 
que  teem  dado  a  \oUa  em  roda  do  globo  nunca  vi- 
ram similhanle  apoio  :  a  superficie  da  terra  está 
inleiíamenle  desligada  de  tudo  quanto  possa  exis- 
tir á  roda  d'ella. 

{Conlinua) 

O  rosto  não  é  sempre  o  verdadeiro  espelho  do 
coração.  M.  de  Tlrenne. 


Tyii.  Franco-Portgucza,  Hua  do  Thcsouro  Veibo,  G. 


o  PANORA!\IA 


4  93 


EURENBREITSTEIN 

Podemos  chamar  a  esta  fortaleza  a  Gibraltar  do 
llheno.  Construída  na  margem  direita  d'esle  rio, 
defronte  de  Cobleniz,  liga-se  por  uma  ponto  de 
harcas  com  esta  cidade,  cujo  systema  de  defesa 
completa. Está  edilicada  pelo  systema  Monlalemberl, 
e  o  seu  forte  principal  compõe-se  de  duas  e  Ires 


fileiras  debaterias  casamatadas,  abobadadas  e so- 
brepostas umas  ás  outras.  A  cidadella  pode  receber 
uma  guarnição  de  quatoize  mil  homens.  Nos  seus 
immensos  armazéns  cabem  provisões  de  todo  o 
género,  sullicientes  para  abastecerem  á  farta 
uma  guarnição  de  oito  mil  homens  por  espaço  de 
dez  annos. 
Segundo  todas  as  probabilidades,  o   sitio  em 


EnrenlDreitstein 


que  esta  fortaleza  campeia  era  no  tempo  dos  Romanos 
um  ponto  fortificado.  Se  o  era  effectivamenle,  só  no 
século  XIII  foi  roconstruido  pelo  arcebispo  deTreves 
Herman,  d'onde  lhe  veio  o  nome  de  Ilermanstein.  No 
decorrer  do  tempo  foram-se-Ihc  desenvolvendo  as  for- 
tificações, de  forma  que  já  na  guerra  dos  trinta 
annos  era  uma  posição  importante.  Em  1798  esta 
fortaleza  foi  investida  pelos  francezes,  emquanto 
principiavam  as  negociações  no  congresso  de  Uas- 
tadt,  que  terminou,  como  é  sabido,  pelo  assassí- 
nio dos  ])lenipotenciai'ios  de  França.  Desfeílas,  por 
conseguinte,  as  esperanças  de  paz,  que  o  tratado 
de  Campo-Formio  imposto  por  Bonaparte  aos 
Austríacos  inspíiara  á  Europa,  continuou  o  blo- 
queio da  fortaleza  de  Ehrenbreitstein,  que  no  fim 
de  quatro  mezes  se  rendeu  por  falta  de  subsistências. 
Ainda  então  não  existiam  os  famosos  armazéns  de 
viveres  em  que  faltámos.  Em  1801  desmantelaram- 
n'a  os  vencedores. 


Emlorno  das  fortificações  da  cidadella  espraia-se 
uma  cidade  do  mesmo  nome,  centro  de  um  grande 
commercio,  que  principalmente  consiste  em  vi- 
nhos. No  século  XVII  era  esta  cidade  conhecida 
pelo  nome  de  Miilhcim  in  Thall.  Depois  chamou- 
se  Philippsthal.  Hoje  tem  o  nome  de  Ehrenbreits- 
tein. Possueuma  nascente  de  agua  férrea,  e  um 
palácio  que  foi  cm  outros  tempos  residência  dos 
eleitores  de  Treves,  e  que  hoje  está  convertido  em 
armazém  militar  • 

Ora  em  1803,  quando  se  tralou  de  serem  secu- 
larisadas  as  possessões  ecclesiaslicas  da  Allemanha, 
|)araserem  distribuídas  como  indemnisação  aos  prín- 
cipes, privados  dos  seus  territórios  pela  invasão 
da  França  consular  que  chegara  aos  seus  tão  am- 
bicionados limites  do  Uheno,  em  1803,  pois,  foi 
esta  cidade  de  I']hrenl)reilsleincom  a  sua  fortaleza 
dada  como  indemnisação  ao  príncipe  de  Nassau- 
Weilbourg.  Em  181')  o  congresso  de  Yienna  en- 


194 


O  PANORAMA 


trogou-a  à  Prússia,  que  mandou  reconslriiir  asfor- 
tificaL-ões,  e  que  as  levou  ao  estado  de  apcrfeiçoa- 
menlõ  em  que  hoje  estão.  Essas  obras  empreliendi- 
das em  Elireiíbreilslein  desde  181.')  custaramao  go- 
verno prussiano  mais  de  dezoito  milhões  de  francos. 
Mas  o  que  mais  deve  agradar  ao  pacilico  (ou- 
riste  do  que  este  apparato  guerreiro  c  saber  que 
do  alio  dos  baluartes  da  cidadella  se  desfruta  a 
vista  de  uma  das  mais  esplendidas  paizagens  do 
KhenOj  que  é  n'ellas  tãò  fértil. 


A  PENiNA  D'AÇO  (" 

A  penna  d'aço  é  a  causa  final  dos  males  que 
opprimem  actualmente  a  sociedade  inteira.  lia 
não  sei  em  que  poeta  uma  eloquente  imprecação 
contra  o  primeiro  que  açacalòu  o  ferro,  e  que  fez 
uma  espada  d'essa  massa  inerte,  mas  por  Deus ! 
maldito  seja  e  cem  vezes  mais  maldito  o  primeiro 
que  fez  do  ferro  uma  penna!  Quem  fabricou  a 
])rimeira  espada  concorreu  apenas,  por  íim  de 
contas,  para  malar  corpos,  quem  fabricou  a  penna 
d"aço  matou  a  alma,  assassinou  o' pensamento! 
Vil  scelerado  que  armou  a  espécie  humana  com 
um  estylete  mais  formidável  do  que  lodos  os  pu- 
nliaes  envenenados  da  Itália! 

Basta  comparar  a  penna  d'aço  de  que  actual- 
mente nos  servimos  com  a  benévola  penna  de 
pato,  de  que  se  serviam  os  nossos  bons  e  amá- 
veis avós.  A  penna  d'aço,  essa  invenção  moderna, 
produz-nos  immedialamente  uma  impressão  desa- 
giaiiavel!  Tem  uma  incrível  semelhança  com  um 
punhalsinho  imperceptível  molhado  em  veneno. 
()  bico  é  aguçado  como  uma  espada ;  lein  dois 
fios  como  a  lingua  de  um  calumniador.  A  esse 
bico  junta-se  um  cabo,  um  pedaço  de  madeira 
sècco,  disforme,  e  iiú,  que  nos  magoa  a  face  cm- 
quanto  a  nossa  mão  se  trilha  cruelmente  á  força 
de  carregar  n'esse  ferro,  que  em  torno  de  nós 
range,  escarrando  no  papel  o  nosso  pensamento. 
>"a  penna  d'aço  tudo  è  rude,  triste,  severo,  c  faz- 
nos  frio  na  vista  c  na  mão. 

Mas  a  penna  de  pato.  pelo  contrario,  essa  c 
que  é  uma  fácil  c  í|ue!-ida  conlidenle  dos  nossos 
mais  predilectos  pensamentos!  Associa-se  a  mil 
felizes  e  benévolas  recordações.  Vimol-a  cspane- 
jar-se  brandamente  no  cristal  do  lago  ou  cnxu- 
gar-se  ao  sol,  resplandecendo  com  a  luz  de  mil 
pérolas;  essa  penna  é  prima -co- irmã  da  macia 
pluma  em  que  recostámos  á  noite  a  cabeça;  o 
animal  d'un(le  saio  deu-nos  os  seus  ovos  e  os  seus 
lilhinhos;  não  nos  pôde  cila  Iraír.  Que  diílerença 
no  duplo  aspecto  d'esses  dois  instrumentos  da 
idéa,  que  sem  razão  lêem  o  mesmo  nome.  A 
penna  de  pato  c  aha,  nítida,  leve!  O  seu  canudo 
ilexivol  freme  de  prazer  entre  os  dedos  que  anima. 
A  .sua  rama  aííaga  ligeiramente  a  face;  o  bico  dó- 
cil presla-sc  a  todas  as  combinações  do  estylo; 
caminha  de  manso,  sem  esforços,  sem  um  só  cl'es- 
ses  horríveis  escarros  e  grilos  da  penna  d'aço.  A 
travez  d'esse  lin:pido  canal  parece- nos  (|iie  \emos 

Ml  Ksto  formoso  arligo,  este  delicio.so  c  cirto  folliídim,  ciij:!  tra- 
fJucção  aprescnUmos  aos  nossos  leitores  ó  <Ja  penna  illutirc  do  ce- 
lebre escriptor  franccz  Ju';o  .Inin. 


as  nossas  idéas  descerem  devagar  c  em  boa  or- 
dem, como  devem  brotar  d'uma  cabeça  bem  for- 
mada. 

O  menor  inconveniente  da  penna  d'aço  é  estar 
sempre  e  a  todos  os  instantes  prompta  a  escrever 
sobre  todos  os  assumptos.  Não  agarrámos  nós  a 
penna  d'aço,  c  ella  que  nos  agarra;  segura-nos 
pela  rédea,  obriga-nos  a  seguil-a.  É  andar,  correr 
para  a  direita  e  para  a  esquerda,  por  montes  e 
por  valles.  É  a  machina  de  vapor  do  pensamento! 
Á  medida  que  a  nossa  mão  se  cança  e  se  irrita 
por  ter  de  segurar  n'estc  horrível  estylete,  o  nosso 
espirito  irrita-se  lambem  c  exalla-se  involuntaria- 
mente; fica  sendo  a  um  tempo  mais  irreflectido, 
e  mais  despiedoso.  Perguntamos  porque  é  que  fu- 
lano, de  génio  Ião  meigo  e  amável,  é  terrível  e 
sem  piedade  com  a  penna  na  mão"^  Escreve  com 
penna  d'aço!  Porque  é  que  aquelle  pobre  homem 
(jue  outr'ora  se  entrelinha  em  pescar  á  canna,  c 
em  tomar  banhos  decalçolas,  hoje  se  compraz  em 
escrever  obscuras  e  ignóbeis  calumnias,  que  não 
divertem  pessoa  alguma,  _e  o  horrorisam  e  lhe  re- 
pugnam a  elle  mesmo'?  É  a  influencia  da  penna 
daço!  Faliam  da  pólvora,  dos  fogueies  ácongréve, 
das  carias  conslilucionaes!  ludo  isso  são  insigni- 
ficâncias comparadas  com  a  penna  d'aço. 

Mas  a  penna  de  pato !  a  penna  de  pato,  pelo 
contrario,  é  a  penna  que  gera  as  obras  primas. 
Devemos-lhe  os  mais  bellos  livros  que  lêem  hon- 
rado o  espirito  humano;  é  a  mãi  da  reflexão. 
Graças  á  penna  de  pato,  era  o  homem  outr'ora 
obrigado  a  escrever  o  seu  pensamento  com  pru- 
dente vagar,  e  esse  vagar  era  a  origem  de  mais 
apurada  belleza  de  estylo.  A  penna  de  pato,  longe 
de  estar  prompta  sempre  como  a  penna  d'aço, 
exige  mil  pequenos  preparativos.  Em  primeiro 
lugar  temos  de  a  aparar  com  as  nossas  próprias 
mãos,  e  ó  esse  um  momento  solemne  no  nosso 
trabalho.  Emquanlo  aliámos  o  bico  da  penna,  o 
nosso  pensamento  alia-sc  também ;  vamos  procu- 
rar a  idéa  no  fundo  do  cérebro,  assim  como  va- 
mos procurar  a  medulla  da  penna ;  quando  a  penna 
está  aparada,  precisámos  de  a  experimentar  an- 
tes de  começai-mos  a  escrever,  e  é  mais  uma  j)e- 
quena  demora  de  que  o  nosso  pensamento  se  apro- 
veita, se  o  nosso  pensamento  ainda  não  está  bem 
nilido,  se  não  vemos  d'um  relance,  o  que  é  a  pri- 
meira condição  d'um  cscriplor,  o  principio,  o 
meio,  c  o  fim  do  nosso  discurso. 

Bem  sei  o  que  alguns  espíritos  me  podem  objec- 
tar em  favor  da  penna  d'aço.  Descende,  dirão  el- 
les,  do  estylete  antigo.  Scepc  slylnm  vertas.  Mas 
(jue  péssima  e  fallaz  defesa !  O  estylete  antigo  tra- 
çava as  letras  n'uina  camada  de  cera,  que  lhe 
amortecia  a  fúria,  a  penna  (Kaço  não  encontra  o 
mínimo  obstáculo ;  obrigado  a  abi'ir  caminho  n'essa 
camada  resistente  ia  elle  a  passo;  ella  corre  a  ga- 
lope. Com  muito  custo  gravava  elle  algumas  li- 
nhos, que  eia  fácil  apagar  voltando  contra  as  le- 
tras o  outro  bico  da  jienna;  a  penna  d'aço  grava 
no  papel,  como  se  gravaria  em  cobre,  e  nunca 
retrocede.  É  uma  improvisação  que  não  .sabe  nem 
apagar-se,   nem    corrigir-se,  nem    suspender-se; 


o  PANORAMA 


95 


lem  de  caminhar,  sem  altender  aos  erros,   aos 
crimes  c  ás  calumnias  que  deixa  pela  estrada. 

Dizem-me  que  grandes  génios  (que  mereciam 
um  liro)  se  estão  occupando  de  aperfeiçoar  a 
j)enna  d"aço!  Aperfeiçoar  a  penna  d'açp,  Deus  do 
céo !  Oh!  desgraçados,  com  que  !im?  Consistiria 
esse  aperfeiçoamento  em  encontrar  uma  penna, 
que  levasse  comsigo  c  dislillasse  a  tinta,  Por  esse 
meio  uma  nova  rapidez  se  ajuntaria  a  esta  rapi- 
dez já  assustadora;  a  mão  do  escri|)tor  llcaria 
constantemente  pregada  no  papei,  sem  que  o  es- 
pii'ilo  podesse  dispor  sequer  do  pequeno  inter- 
vallo,  que  ainda  sopaia  a  penna  d'aço  do  tinteiro 
onde  se  embebe.  Se  caímos  n'esse  progresso,  aca- 
l)0U-se!  está  próximo  o  iim  do  mundo,  o  espirito 
humano  fica  sem  defesa  contra  os  seus  próprios 
excessos,  e  a  sociedade,  invadida  de  súbito  por 
uma  improvisação  sem  Iim,  sem  termo,  e  sem 
eontrapezo,  voltará  á  grande  confusão  de  liabel  1 
i\a  verdade  não  conheço  perigo  mais  terrível  do 
que  o  progresso! 


ACADEMIA  DO  CACHIiMBO 

Com  este  nome  se  designava  a  roda  das  pessoas 
mais  da  intimidade  de  Frederico  lí  da  Prússia 
que  se  reuniam  quasi  sempre  depois  das  cinco 
horas  da  tarde  nos  quartos  particulares  de  Sua 
Magestade  em  Berlim,  em  Potsdam  ou  em^Viester- 
hausen.  A  Academia  corapunha-se,  dos  oíTiciaes 
do  estado  maior  de  Frederico,  dos  sábios  que  pas- 
savam por  Beilim,  de  alguns  fidalgos,  e  lambem 
de  plebeus  honrados  e  instruídos.  Não  mettcmos 
em  conta  os  bobos  da  corte,  ou  os  que  consen- 
tiam em  serem  tratados  como  taes.  Os  estatutos 
da  Academia  obrigavam  os  seus  membros  a  fu- 
marem eraquanto  duravam  as  sessões  ou  pelo  me- 
nos a  terem  um  cachimbo  na  boca. 

Cada  membro  tinha  diante  de  si  um  jarro  de 
cerveja;  de  quando  em  quando  circulavam  fatias 
de  pão  com  manteiga,  e  para  o  fim  da  noite  ser- 
via-se  vinho,  que  se  podia  beber  á  vontade.  N'essa 
extravagante  Academia  liam-se  e  commentavam-se 
os  jornaes,  faziam-se  rellexões  sobre  os  aconteci- 
mentos políticos  do  dia,  e  contava-se  quantos  boa- 
tos andavam  pela  cidade.  As  vezes  transforma- 
va-se  a  Academia  n'uma  assembléa  de  senhoras 
visinhas;  os  ditos  mordazes,  as  chalaças  grossas 
cruzavam-se  no  ar  sem  que  el-rei  com  isso  se  es- 
candalísasse. 

Os  estatutos  da  Academia  não  permilliam  que 
membro  algum  se  levantasse  á  entrada  de  qual- 
quer pessoa,  ainda  que  fosse  cl-rei.  Os  únicos  jo- 
gos permittidos  eram  o  xadrez  e  as  damas.  Esta 
Academia  linha  uma  grande  importância,  porque 
era  no  seu  seio  que  el-rei  e  os  ministros  fallavam 
com  mais  desaflbgo  dos  negócios  políticos.  Os 
embaixadores  das  cortes  estrangeiras  procuravam 
sempre  saber  o  que  se  dizia,  para  informarem 
com  exactidão  as  suas  cortes. 

Acabaram  as  sessões  d'esta  Academia,  porque 
um  dos  seus  membros  esqueceu-se  uma  vez  dos 
estatutos,  e  levanlou-se  vendo  entrar  o  príncipe 


real.  El-rei  enfureceu-se  tanto  que  logo  saio  da 
sala,  e  nunca  mais  os  Académicos  do  Cachimbo 
tiveram  licença  para  se  reunirem  nos  seus  apo- 
sentos. 

Não  era  esta  uma  das  menores  extravagâncias 
d'esse  jei  a  quem  a  hisloria  deu  o  titulo  de  grande. 

CERVANTES 

Km  (i|iu'  rii-eeigiiis(n3iciiss  f«l  ooinjso.xt»  o  ruiiiiiiicc  ile 
Uou  <6tsgc!io(e 

Não  c  de  hoje  que  se  pergunta  por(|ue  motivo, 
entre  tantas  aldeias  hespanholas,  Argamasílla  foi 
a  escolhida  por  Cervantes  para  ahi  coliocar  o  do- 
micilio do  immorlal  Don  Ouichotc.  Com  suas  ruas 
limpas  e  regulares,  seus  encantadores  arrabaldes, 
Argamasílla  devia  inspírar-lhe  lembranças  agra- 
dáveis. Não  disse  elle  na  sua  obra  que  queria  es- 
quecer aquclla  risonha  terrinha?  O  grande  ho- 
mem  era  um  ingrato;  foi  Argamasílla  que  o  im- 
mortalísou ;  mas  em  compensação  elle  eternizou- 
Ihe  o  nome.  No  nosso  século  de  investigações, 
tudo  se  descobre  com  os  annos;  c  é  a  um  poeta 
muitas  vezes  inspirado,  que  é  lambem  um  sábio, 
Eugénio  líarlzenbusch,  que  devemos  o  saber  em 
que  circumslancias  foi  escriplo  o  livro  illusti"e  que 
fez  rir  até  Philippe  III. 

Apertado  pela  pobreza,  Cervantes  aceitara  um 
lugar  na  administração  militar;  era  fiscaUdo  exer- 
cito; mas  nem  tudo  ei'a  rosas  n'aquellas  funcções: 
via-se  obrigado  muitas  vezes  a  usar  de  certos 
meios  de  violência  para  os  pagamentos  andarem 
em  dia.  Devem-se  desculpar  algumas  distracções 
a  um  homem  tal  como  Cervantes;  a  verdade,  po- 
rém, força-nos  a  dizer  que,  usando  contra  certos 
habitantes  de  Argamasílla,  nem  sempre  redigira 
com  bastante  regularidade  as  sentenças  de  execu- 
ção. A  justiça  do  lugar  valeu-se  de  algumas  d'es- 
tas  faltas  para  mandar  prender  o  pobre  Cervan- 
tes, que,  no  momento,  não  passava  de  um  auclor 
de  comedias  pouco  conhecido.  Foi,  pois,  agarrado 
pelos  alguazis  da  villa  e  encerrado  na  casa  de  uni 
certo  Medrano,  que,  á  falta  de  outra  mais  pró- 
pria para  alojar  os  presos,  servia  então  de  cadeia. 
Ora,  o  que  por  muito  tempo  se  ignorou,  é  que  o 
principal  motor  d'esta  prisão  fora  um  tal  Don  Ro- 
drigo Pacheco,  cavalleíro  mui  dislincto  (segundo 
elle  se  dizia)  cuja  modesta  habitação  estava  cheia 
de  brazões  por  lodos  os  lados,  e  que  se  havia 
extremamente  irritado  por  Miguel  Cervantes,  des- 
presando  as  considerações  que  se  deviam  a  um 
fidalgo  tão  fidalgo  como  elle,  ler  feito  um  reque- 
rimento contra  uma  sua  irmã  ou  uma  de  suas 
primas.  N'esle  ponto,  os  biographos  não  estão  to- 
dos de  accordo.  Navarrete  allribue  a  vingança  de 
Pacheco  a  uns  chascos  que  o  fiscal  leve  a  ousa- 
dia de  dirigir-lhe.  Todos,  porém,  são  unanimes 
em  dizer  que  Don  Rodrigo  não  linha  o  juízo  muito 
são,  (pie  houve  mesmo  uma  é|)Oca  em  que  elle 
andou  coai  o  cérebro  muitíssimo  desorganisado. 

No  coro  da  igreja  parochial  de  Argamasílla,  do 
lado  do  evangelho,  vè-se  ainda  um  altar  com  o 
seu  rcldbulo  dourado,  obra  de  marcenaria  remon- 


96 


O  PANORAMA 


tando,sein  duvida  alguma, ao  tempo  de  Philippe  lII, 
retábulo  cujo  fundo,  formado  de  uma  tela  i)in- 
tada  a  óleo,  mostia  uma  Nossa  Senhora  subindo 
ao  céo  entre  os  anjos.  Na  parle  inferior  do  qua- 
dro, estão  uma  dama  e  um  senhor,  ao  que  pa- 
rece, nobre:  ella,  joven  ;  elle,  de  idade  um  j)ouco 
mais  madura,  tendo  o  rosto  comprido  e  estreito, 
olhos  esgazeados,  bigode  com  grandes  guias,  e  a 
quem  não  iria  mal  o  nome  de  eavalleiro  da  triste 
figura.  Na  parte  superior,  em  um  ornato  que 
apresenta  o  retábulo,  lè-se,  cm  caracteres  pretos 
sobre  fundo  dourado,  a  seguinte  inscripção,  que 
facilmente  se  decifra,  não  obstante  muitas  letras 
estarem  a  cavallo  umas  nas  outras: 

«Nossa  Senhora  aj)pareceu  a  este  eavalleiro, 
«quando  foi  atacado  de  uma  gravíssima  doença  e 
«abandonado  pelos  médicos,  no  dia  de  S.  Matheus 
ffdo  anno  1601.  Tinha-se  encommendado  á  Yir- 
cgem,  e  promettera-lhe  uma  alampada  de  prata, 
«acclamando-a  de  noite  e  de  dia,  em  razão  da 
«grande  dòr,  que  sentia  no  cérebro,  proveniente 
«de  um  resfriamento.» 

Era  talvez  este  eavalleiro  anonymo  (Don  Ro- 
drigo Pacheco)  que  Cervantes  transformou  em  li- 
dalgo^da  ^lancha;  o  resfriamento  (jue  lhe  caíra 
no  cérebro  era  naturalmente  a  insigne  doudice 
(gravíssima  doença,  na  verdade)  da  qual  o  pade- 
cente se  achava  atacado.  Além  d'isso,  existem 
ainda  na  extremidade  da  villa  certas  ruínas  de 
antigas  habitações  onde  se  elevam  unicamente  al- 
guns restos  de  paredes:  era  alli  que  se  achava  a 
morada  de  Don  ilodrigo,  ou,  se  o  (juerem,  a  casa 
de  Don  Ouiehote.  cMostra-se  mesmo  ainda  a  aber- 
tura da  janella  do  quarto  onde  Cervantes  dej)osi- 
tou  os  livros  do  digno  lidalgo.  Mas  sé  o  tempo, 
ao  qual  nadaresísle,  destruio  a  casa  do  genlillio- 
mem  a  quem  Cervantes  ollendeo,  a  que  a  este 
sérvio  de  prisão  existe  ainda  de  pé,  se  bem  que 
o  corredor  que  conduz  ao  pateo  esteja  maltratado 
e  quasi  que  em  ruina.  O  resto  da  construcção 
subsiste  e  parece  duiavel.» 

Alli,  em  um  lugar  obscuro,  a  cuja  minuciosa 
descripção  pouparemos  os  nossos  leitores,  foi  con- 
cebido o  Dou  (Jiiic/tolc;  alli  foram  creados  os  per- 
sonagens tão  vivos  que  animam  este  immortal  ro- 
mance. Para  lodo  o  hespanhol  um  pouco  zeloso 
das  glorias  litterarias  do  seu  pai/.,  a  triste  casa 
de  Argamasilla  tornou-sc  um  lugar  veneiado,  e 
quizeram  prevenir  a  sua  desliuiçâo,  como  ultima- 
mente preservaram  das  injuiias  do  tempo  o  pe- 
queno convento  da  Arrábida,  lembrando-se  (\\\v. 
Chrislovam  Colombo,  opprimido  de  cançaso,  alli 
fora  pedir  uma  gota  de  agua  para  seu  filho,  e 
onde  achou,  graças  ao  grande  coração  do  bom 
Marchena,  uma  nova  porta  aos  seus  vastos  pro- 
jectos. 

O  infante  Don  Gabriel  tornou-se  possuidor  da 
pobre  casa  de  Argamasilla.  Auxiliado  por  um  dos 
escrij)lores  mais  estimados  da  iicsjianha,  Itivado- 
neyra  fez  transportar  jiara  a  antiga  casa  de  Me- 
(Irano  todo  o  material  de  uma  imprensa,  e,  na 
Ijeíjuena  camará  obscura  onde  acordou  o  génio  de 
Cervantes  para  illuminar  repentinamente  o  mundo 


da  fantasia,  fez-se  uma  edição  do  seu  livro.  Este 
Don  Quic/iotc,  revisto  por  llartzenbusch,  é  um 
primor  typographico,  e  pôde  mesmo  dizer-se  um 
primor  de  critica. 

Sabe-se,que  três  edições  primitivas  saíram,  em 
vida  de  Cervantes,  dos  prelos  deCuesta.  A  primeira 
de  todas,  a  de  Madrid  1005,  não  pôde  ser  vista  pelo 
auclor,  que  ao  tempo  residia  em  Yalladolid,  e 
saio  com  muitíssimos  erros;  a  segunda,  publicada 
igualmente  em  IGO.")  por  Cuesta,  não  foi  melho- 
rada ;  o  illustre  escri])lor  não  havia  deixado  a  sua 
antiga  residência,  e  além  d'isso  eslava  dolorosa- 
mente preoccupado  com  os  mil  cuidados  da  sua 
vida  para  se  dar  ao  trabalho  da  inversão  de  tal 
ou  tal  capitulo,  ou  do  nome  escripto  de  dous  mo- 
dos dilTerentes  que  elle  dá  á  mulher  do  malicioso 
Sancho.  O  elíeilo  fôia  súbito;  a  hilaridade  fora 
completa  entre  um  povo  que  ri  pouco;  o  successo 
não  jjodia  ser  duvidoso.  Foi  para  a  terceira  reim- 
pressão que  Cervantes  reservou  os  seus  melhora- 
mentos no  texto,  e  e  esta  a  que  llartzenbusch  e 
Uivadeneyra  reproduziram. 


OS  BUGIOS  OU  SÍMIOS 

Os  bugios  ou  siinios  consliluem  a  primeira  e  a  mais 
numerosa  secção  da  grande  família  dos  Quadrumanos. 
São  de  lodos  os  animacs  os  que  mais  se  approximam  do 
homefii,  já  pela  forma,  já  pela  estatura;  comtudo,  dif- 
ferem  d'elle  esscncialmeiíle,  mesmo  no  ponto  de  vista 
anatómico.  Os  bugios  teem  o  focinho  um  tanto  prolon- 
gado, o  nariz  um  |)ouco  saliente,  o  corpo  ordinariamente 
refeito  e  os  membros  habitualmente  delgados.  A  face, 
quasi  sempre  nua,  é  às  vezeí  colorida  de  prelo  ou  de 
vermelho,  ou  malhada  de  branco,  encarnado,  azul.  O  petto 
que  lhes  cobre  o  corpo  tem  um  fades  particular,  c  dis- 
linguc-se  em  muitas  espécies  do  dos  outros  mamiíeros.  As 
cores  são,  ora  elegantes  e  vivas,  ora  tristes  e  uniformes 
e  ennegrecem  com  a  idade.  Entre  muitos,  estes  pellos 
fornecem  ornamentos  variados  simulando  crinas,  cabel- 
leiras,  pennachos,  coroas,  barbas,  ele:  os  da  cabeça  dos 
orangolangos  teem  a  mesma  implantação  que  os  do  ho- 
mem. O  craneo  c  quasi  sempre  arredondado,  c  o  an- 
gtdo  facial,  muito  variável,  está  longe  de  exprimir  com 
exactidão  o  seu  grau  de  inlelligencia.  Alem  (l"isso,  a  gran- 
deza d'cste  angulo  varia  muito  entre  a  idade  nova  e  a 
adulta  ou  velha.  A  face  curta  nos  novos,  é  muito  mais 
proeminente  cnlre  os  adultos.  O  cérebro  dos  Chimpanzés 
e  dos  Orangotangos  c  o  que,  pela  sua  forma,  mais  se  ap- 
proxima  do  cérebro  liumano;  mas,  se  l)em  que  melhor 
organisado  (juc  o  de  certos  idiotas,  c  comiudo  muito  in- 
ferior, pelo  volume  e  pela  disposição,  ao  da  nossa  espé- 
cie. Os  bugios  teem  (pialro  mãos,  Iodas  com  o  pollegar 
op|)osto  aos  outros  deiios,  e  servem-se  de  todas  com  cx- 
Ircma  facilidade.  Apezar  (rislo,  os  pollegares  das  mãos  de 
diante  nunca  são  tão  desenvoUidos  como  no  homem, 
c  as  próprias  mãos  estão  muito  longe  do  lerem  a  mes- 
ma hal)ilidade.  Em  algumas  espécies,  o  pollegar  es- 
ta reduzido  a  um  simples  lid)erculo,  ou  não  cxisle.  Todos 
os  dedos  teem  unhas,  clialas  nos  bugios  superiores,  mas 
que  se  vão  tornando  ar(|ue;idas  á  medida  que  se  desce 
na  série.  A  dis|)Osição  das  mãos  inferiores,  (|ue  não  pou- 
sam no  solo  senão  pela  extremidade  exterior,  a  eslreilesa 
da  pelvis,  c  a  frouxidão  da  articulação  dos  joelhos  não 
lhes  |)ermitlem  conservar  por  muilo  tempo  a  posição  ver- 
tical: lodavia,'podem,  es[)ecialmente  ajudados  por  um  páo, 
andar  algum  tenq»)  n'esla  jjosição,  ainda  (|ue  d'nm  passo 
mal  seguro.  São,  pelo  contrario,  admiravelmeide  t)rgani- 
sados  i)ara  trepar,  graças  á  flexibilidade  de  seus  mem- 
bros c  ás  suas  mãos  po"steriorcs,  (pie  scr\em  para  agar- 
rar os  olijcclos  do  mesmo  modo  que  asanleriores.  A  cauda 
é  ou  nenhuma.  011  nirla,  ou  longa,  ou  niuila  longa.  iJillere 
igualmente  na  forma,  segundo  a  sua  fraqueza  ou  força.  Os 


o  PANORAMA 


^97 


Bugios  ou  Simios 

bugios  de  cauda  forte  on  prchensil,  servem-se  deste  orgam 
como  (ie  uma  quinia  mão,  com  a  ajuda  da  qual  se  sus- 
pendem nos  ramos,  equilibram-se  e  formam  o  salto;  ap- 
poiam-se  também  sobre  ella  quando  se  assentam.  Os  bugios 
são  essencialmente  frugívoros;  todavia  o  seu  systema  den- 
tário approxima-se  muito  do  nosso.  Em  cada  queixo  teem 
quatro  incisivos  direitos;  os  molares  só  teem,  como  os 
nossos,  tubérculos  obtusos  e  variam  em  numero  dos  si- 
mios  do  mundo  antigo  para  os  do  novo.  Quanto  aos  ca- 
ninos excedem  os  outros  dentes,  e  tomam  um  tal  desen- 
A'olvimen!o,  em  algumas  espécies  que  exigem  um  es|)aço 
entre  os  dentes  correspondentes  da  maxilla  opposta  para 
se  alojarem  quando  a  bocca  se  fecha. 

Os  bugios  habitam  nas  lloreslas,  onde  vivem  ordina- 
riamente em  bandos,  e  estão  quasi  sempre  sobre  as  arvores. 
As  fem.eas  teem  de  cada  vez  um  ou  dous  filhos  que  criam 
com  grande  ternura. 

A  intelligencia  d'estes  animaes  é  geralmente  muito  no- 
tável ;  mas  varia  em  extremo  de  um  género  a  outro  na 
mesma  tribu,  de  uma  espécie  a  outra  no  mesmo  género, 
assim  como  de  uma  idade  a  outra  na  mesma  espécie  e  no 
mesmo  individuo.  Em  idade  tenra,  a  maior  parte  são  dó- 
ceis, intelligentes  e  fáceis  de  domesticar.  Envelhecendo, 
perdem  todas  as  suas  boas  qualidades  e  docilidade.  Esta 
mudança  manifesta-se  sobretudo  entre  os  mais  intelligen- 
tes, laes  como  os  Orangotangos,  Chimpanzés,  Magos. 
Tornam-se  tão  turbulentos,  tão  |)erigosos,  (pião  submissos 
e  obdientes  haviam  sido  até  alli.  É  tandjem  muito  para 
notar  a  variedade,  a  inconstância,  a  linura  dos  seus  ins- 
tincto.^í,  as  manhas  que  costumam  empregar  para  se  apo- 
derarem do  que  lhes  agrada,  a  sua  curiosidade  e  a  ten- 
dência para  a  imitação  que  os  leva  a  reproduzir  os  nos- 
sos gestos  e  as  nossas  acções. 

Os  simios  estão  espalhados  pelos  paizes  quentes  e  cs- 
pccialmeiíle  pelas  regiões  intertropicaes  dos  dous  hemis- 
pherios.  Mas  as  espécies  (jue  habitam  no  antigo  conti- 
nente differem  das  que  vivem  no  novo  mundo.  For  con- 
sequência estes  animaes  estão  divididos  em  duas  grandes 
secções:  Ihi(/ios  do  antigo  continente  e  Ihujios  do  novo 
continente.  Ós  primeiros  denominam-se  Ciithurrinios,  por- 
que teem  as  ventas  abertas  abaixo  do  nariz,  e  levemente 
separadas  uma  da  outra.  Alem  d'isso  o  seu  systema  den- 
tário é  composto,  como  no  homem,  de  32  dentes  a  saber: 
'' ;  incisivos,  -  j  caninos  e  '"/,„  molares.  A  cauda  não  é 
preheusil  e  apresentam  quasi  sempre  callosidades  ischia- 
ticas.  Em  fim,  teem  muitas  vezes  faceiras  ou  covas  nas 
faces,  communicando  com  a  bocca.  Os  segundos  pelo 
contrario  receberam  o  nome  de  Plalj/rrhitiios,  porque  teem 
o  nariz  achatado  com  as  vénias  espessamente  separadas 
uma  da  outra.  O  seu  systema  dentário  compõe-se  de  32 
ou  36  dentes,  mas  conruma  formula  diflerente  da  do  ho- 
mem, mesmo  quando  idêntico  o  numero.  Os  dentes  mo- 


lares são  em  numero  de  12  em  cada  queixo.  Finalmen- 
te, nunca  teem  callosidades  nem  faceiras,  era  quanto  que 
na  generalidade  a  cauda  é  prchensil. 

Os  bugios  do  antigo  continente  formam  cinco  grupos 
ou  famílias,  a  saber:  Oranfjotanrjos,  Semnopitecos,  Cer- 
copilecos,  Macacos  e  Cijnoccphutos.  Os  do  novo  conti- 
nente comi)õe-se  unicamente  de  três  grupos:  Uelopitécos, 
(Jélopilecos  o  /íapalinises. 

O  desenho  que  ollerecemos  aos  nossos  leitores  repre- 
senta um  (los  animaes  que  formam  a  quarta  tribu  dos 
Quadnnnanos  catarrliinios  ou  Bugios  do  antigo  continen- 
te, chamada  dos  Cynocephalos.  A  maior  parte  (festes 
pertencem  á  Africa;  algumas  espécies,  porem,  são  pró- 
prias da  Ásia  meridional. 

A  sua  estatura,  em  geral,  é,  pouco  mais  ou  menos,  a 
de  um  cão  grande.  As  pernas  são  pesadas  e  refeitas,  pe- 
lo que  teem  menos  agilidade  que  os  bugios  das  tribus 
superiores.  Os  seus  membros  são  fortes  e  vigorosos,  a 
parelha  anterior  um  pouco  mais  curta  que  a  posterior  e 
as  pernns  não  teem  barrigas  pronunciadas.  O  focinho  c 
muito  allongado  e  como  que  cortado  na  extremidade,  o 
que  lhes  valeu  o  nome  genérico  sob  o  qual  se  designam. 
A  face  tem  faceiras  notáveis  pela  sua  amplidão,  e  é  co- 
berta de  pellos  pouco  espessos,  cujo  colorido  varia  se- 
gundo as  espécies.  \^ns  apresentam  cauda  e  outros  não, 
e  lodos  teem  nas  nádegas  grandes  callosidades.  O  seu 
aspecto  é  feroz. 

Os  Cynocephalos  não  habitam  somente  nas  florestas ; 
muitos  preferem  as  montanhas  ou  collinas  semeadas  de 
rochedos  ;  pois,  o  modo  de  andar  dos  quadrúpedes  lhes 
c  muito  familiar.  Cada  espécie  parece  circumscripta  em 
regiões  dislinctas. 

Estes  animaes  vivem  em  bandos  bastante  numerosos  que 
defendem  pertinazmente,  mesmo  contra  os  homens,  o  ac- 
cesso  dos  togares  em  que  teem  fixado  o  seu  domicilio. 
Se  bem  que  os  caninos  destes  bugios  sejam  tão  longos 
como  os  do  tigre,  nem  por  isso  são  carnívoros ;  o  seu  ali- 
mento é  quasi  inteiramente  vegetal,  e  são  um  verdadeiro 
flagello  para  os  pomares  e  jardins  junto  dos  quaes  habi- 
tam e  que  devastam  com  a  mesma  táctica  dos  cercopi- 
tliecos.  Einfim,  a  julgar  pelos  indivíduos  em  prisão,  o  seu 
caracter  é  assaz  dócil  ale  á  idade  da  puberdade,  a  partir 
da  qual  se  tornam  de  uma  extrema  maldade,  que  os  cas- 
tigos não  podem  reprimir.  A  sua  lubricidade  adquire  ao 
mesmo  tempo  proporções  que  se  não  encontram  entre  as 
outras  espécies  de  bugios. 

A  tribu  dos  CynOLé|)halos  divide-se  muito  naturalmente 
em  Ires  géneros,  cujos  trataremos  em  um  dos  próximos 
números:  Cynocépitéco,  Théropitheco &  Cynophalo propúà- 
menle  dito. 

A  FAMÍLIA  DOS  SAXE-COBURGO-GOTHA 

Lisboa,  ou  antes  os  nossos  reis  acabam  de  ser 
visitados  pelo  duque  Augusto  de  Saxe-Coburgo- 
Gotha  e  por  sua  esposa  a  princesa  do  Brazil  D. 
Leopoldina  Theresa.  Foi  uma  visita  de  família, 
porque  os  augustos  viajantes  são  parentes  dos 
nossos  monarchas. 

A  historia  dos  Saxe-Coburgo  é  uma  historia 
curiosa,  e  para  não  largar  mão  do  assumpto  vou 
conlal-a  em  resumo  ao  leitor  do  Panorama:  po- 
der-se-lhe-ia  chamar  a  uistoria  de  im  pequeno  du- 
cado E  DE  TRES  COUÒAS. 

Desdobrai  um  mappa  da  Allcmanha  c  procu- 
rai attento  um  ducado  microscópio,  perdido  nas 
fronteiras  da  Ua viera.  Tão  pequeno  é  elle  que  o 
nome  de  Saxe-Coburgo  o  cobre  em  toda  a  sua 
extensão.  Vivia  ali  no  fim  do  decimo  oitavo  sé- 
culo um  soberano  allemão,  que  se  presaya  de 
reunir  debaixo  do  mesmo  sceptro  o  principado 
de  Coburgo,  o  principado  de  Saalfelde  e  um  pe- 
dac^o  do  condado  de  llcnneberg.  Cincoonta  legoas 
quadradas,  uma  populaí^ão  de  sessenta  mil  ha- 
bitantes (exactamente  a  quinta  parte  da  popula- 
ção de  Lisboa),  duzentos  e  setenta  mil  crusados 


198 


O  PANORAMA 


de  rendimento,  e  um  exercito  de  duzentos  ho- 
mens, tal  era  o  território,  o  numero  de  vassal- 
los,  a  receita  e  por  ultimo  a  força  armada  deste 
soberano. 

Devemos  confessar,  para  sermos  verdadeiros  em 
tudo,  que  o  duque  parecia  á  primeira  vista  o 
rei  de  um  conto  de  fadas.  Mas  o  favor  das  fadas 
é  precioso  e  vale  bem  tomur  a  coisa  ao  serio  : 
aquellas  concederam  ao  duque  de  Saxe-Coburgo- 
Golha  uma  existência  feliz  e  numerosa  prole.  O 
que  cu  não  sei  é  se  cilas  lhe  promel leram  lam- 
bem deslumbrante  futuro  para  seus  filhos.  Seja 
como  fur,  ahi  vac  o  que  succcdeu. 

O  duque  teve  um  lilho  chamado  Ernesto  que 
soube  agradar  a  uma  princesa  das  visinhanças, 
á  fillia  do  duque  de  (Jotha.  Casou  com  ella  cm 
1817,  hcidou  o  dominio  de  seu  sogro  e  reinou 
n"um  ducado  com  o  nome  de  Ernesto  I,  duque 
de  Sa\e  Coburgo  Gotha. 

O  velho  duque  teve  outro  filho  de  quem  foi 
herdeiro  o  rei  artista.  Ião  querido  sempre  dos 
portuguezes,  o  e.sposo  d'uma  rainha  constitucio- 
nal, o  pai  de  dois  reis  braganlinos,  sua  mages- 
tade  el-rei  D.  Fernando :  assim  passou  á  pequena 
casa  allemã  a  primeira  coroa. 

O  velho  duque  teve  terceiro  filho  que  se  cha- 
mava Leopoldo  e  que  também  soube  agradar  á 
princesa  ingleza  Carlota  Augusta.  Casou  com  ella 
em  1810,  e  como  Carlota  fosse  filha  do  príncipe 
regente,  depois  Jorge  IV,  rei  de  Inglaterra,  d'aqui 
se  pôde  inferir  os  destinos  que  esperavam  Leo- 
poldo. 

«Esta  alliança,  dizem,  as  chronicas  da  época, 
não  tem  nenhuma  relação  com  a  poUlica ;  a 
escolha  da  princeza  foi  unicamente  determina- 
da pela  sympathia.  O  príncipe  Leopoldo,  com 
pouco  mais  de  cinco  lustros  de  idade,  chamou  a 
altenção  em  Londres,  ha  desoito  mezes,  pela  dis- 
tincção  da  sua  pessoa  e  dignidade  das  suas  ma- 
neiras. E'  bastante  instruído,  não  só  na  sciencia 
militar,  mas  lambem  na  da  economia  politica.  At- 
Iribuem-se-lhe  mesmo  diversos  escriptos  de  mui- 
ta valia.  O  seu  exterior  produzio  uma  impressão 
favorável  no  publico  inglez.o 

Infelizmente  a  princeza  Carlota  morreu  de  re- 
pente cm  1817,  um  anno  depois  de  casada,  sem 
deixar  filhos.  O  príncipe  Leopoldo  parecia,  pois, 
perder  aquella  protecção  da  sorte  que  se  esten- 
dia a  todos  os  njcmbros  da  sua  familia.  Bem  lon- 
ge d"isto,  estava-lhc  reservado  ser  escol iiido  por 
outra  mulher  e  eleito  por  outro  povo.  Casou  com 
uma  filha  do  rei  Luiz  Philippe,  e  quando  este  so- 
berano recusou  a  coroa  da  IJeígica  para  o  duque 
de  Nemours,  os  belgas  acclamaram  rei  o  prínci- 
pe Leopoldo ;  assim  passou  á  casa  allemã  a  se- 
gunda coroa. 

O  velho  duque  também  tinha  uma  filha,  e  esta 
chamada  Víttoria,  casou  na  idade  de  dezcsele  an- 
nos,  em  180:»,  com  Érico  Carlos  de  Línange,  prin- 
cipe  allemão,  que  nunca  devia  ser  rei.  U  destino 
não  reservava,  i)ois,  os  seus  pródigos  favores  á 
princeza  Victoria:  sucredeu  o  contrario,  viuva 
em  181'i  casou  em  1818  com  o  duque  de  Kent, 
quarto  filho  do  rei  Jorge  III.  de  (juem  os  liliios 
viriam  a  ser  os  herdeiros  presuuiplivos  do  tlnouo. 
Quando  morreu  o  duque  de  Kent,  em  :2:í  de 
janeiro  de  1820.  deixou  uma  lillia.  Mas  em  In- 
glaterra as  nmlheres  sobem  ao  throno:  esta  fi- 
lha foi  por  conseguinte  a  rainha  Victoria.  Ainda 
raais,  estava  escripto  que  a  casa  de  Sa\c-Coburgo 


reinaria  ali;  um  novo  príncipe  chegou  da  Alle- 
manha  para  casar  com  a  soberana,  e  este  foi  seu 
primo,  o  príncipe  Alberto,  filho  do  duque  Er- 
nesto I. 

Em  18't0  escrevia-se  em  Londres  que  o  príncipe 
«chamara  a  altenção  dos  inglczes  pela  distíncção 
da  sua  pessoa  e  dignidade  de  suas  maneiras.»  Ui- 
zia-se  mais:  «é  instruído  e  tem  muito  discerni- 
mento; o  seu  porte  é  decente  e  reservado;  lam- 
bem soube  impressionar  favoravelmente  o  publi- 
co iiiglcz;  a  joven  rainha  distinguio-o  entre  um 
grande  numero  de  pretendentes  e  dá-lhe  a  pre- 
ferencia.» 

Assim  passou  á  casa  allem^í  a  terceira  coroa. 
Portugal,  a  Bélgica  e  a  Inglaterra  teem  ou  tive- 
ram reis  ou  rainhas  desta  família,  e  os  filhos 
destes,  por  meio  de  novas  allíanças,  vão  esten- 
dendo por  toda  a  Europa  a  dynaslia  pacifica  e 
amada  dos  Saxe  Coburgo-Gotha. 

Mas  como,  sem  ter  produzido  nem  grandes  ho- 
mens de  Estado,  nem  grandes  homens  de  guerra, 
esta  casa  conseguio  similliante  exilo  com  tanta 
constância?  r)evel  o-hemos  alliibuir  ao  acaso,  di- 
zendo que  elle  preside  a  tudo  n"este  mundo? 
Não! 

«A  casa  de  Saxe-Coburgo,  diz  um  escríptor, 
deve  a  sua  elevada  fortuna  á  duqueza  de  Kent, 
de  quem  a  grande  influencia  foi  habilmente  se- 
cundada pelo  rei  Leopoldo  da  Bélgica. 

('Do  que  não  é  possível  duvidar,  é  que  a  casa 
de  Saxe-Coburgo  proseguio  na  sua  elevação,  des- 
apercebida, sem  commoções,  sem  auxilio  estran- 
geiro, sem  que  grandes  é  variados  acontecimen- 
tos a  fizessem  conhecida.  O  que  adquirio  deve-o 
ás  qualidades  sensatas  e  apreciáveis  dos  seus  mem- 
bros, á  sua  acção  pessoal,  á  sua  perseverança  in- 
fatigável, á  sua  atlenta  previdência,  á  sua  gran- 
de arte  de  agradar  e  seduzir,  ao  seu  tacto  ins- 
tructivo  de  nunca  offetider  ou  irritar  alguém,  li- 
vre sempre  de  sobrancerias  que  aíTugenlam  a 
estima  dos  pequenos,  e  que  nunca  são  bem  vis- 
tas da  aristocracia. 

«Foi  com  estas  qualidades  solidas  que  a  du- 
queza de  Kent  e  o  rei  Leopoldo  alcançaram  para 
sua  família,  em  poucos  annos,  tão  prodigiosos 
resultados,  que  apenas  são  criveis  com  relação 
ao  ponto  de  partida.» 

A  duqueza  de  Kent  morreu  em  Londres  ha 
seis  annos,  sendo  universalmente  chorada.  Toda 
a  cidade  manifestou  solemnementc  a  sua  estima 
por  meio  de  inequívocos  signaes  de  respeito  e  de 
pesado  luto.  O  conimercio  suspendeu  as  suas  tran- 
sacções, fecharam  se  as  lojas;  a  Inglaterra  tinha 
perdido  uma  parente  querida.  Não  menores  fo- 
ram as  provas  testemunhadas  pelo  povo  de  Lon- 
dres por  morte  do  príncipe  Alberto,  ou  pelos  bel- 
gas no  recente  trespasso  do  rei  Leopoldo,  ambos 
elles  da  felicissima  c  sempre  adorada  dynaslia  dos 
Saxc-Coburgo-Gotha. 


SOBRK  O  ESTYLO 

Escrever  neglií?enlemente,  c  coHfessar  que  não  se  da 
grande  valor  aos  i)eiisanioiiios,  poniiiodaconvici-ão  que 
nós  lemos  da  verdade  e  da  iinporlaiicia  das  nossas  ideas, 
nasce  um  enlliusiasnio  sullicienle  para  impor  ao  nosso 
espirito  um  cuidado  iiifali^Mvel  na  escoltia  das  expressões 
mais  claras,  mais  Ijellas,  mais  enérgicas ;— tal  como  o  que 
se  emprega  n'cssas  reli(|uias,  n'esses  preciosos  objectos 
de  arte  dos  receptáculos  de  ouro  e  de  prata. 


o  PANORAMA 


499 


A  BOGCA  DO  INFERNO 

IX 

Chegara  o  oulono,  e  a  senhora  mor.aada  não 
se  esqueceu  dos  baii!iosdo  mar.  Foi  para  Cascacs, 
como  era  velha  usança  na  família. 

Chrislina  gozava  melhor  saúde.  É  que  a  espe- 
rança lhe  doirava  os  dias.  Tinha  fé  profunda  no 
fuluro,  que  ella  enxergava  em  róseos  horisontes. 

Aquelle  coração  ainda  não  esterilisado  pela  in- 
fluencia dos  desenganos,  cria  e  esperava,  c  a  ima- 
ginação enlhusiasla  rasgava  um  campo  illimilado 
aos  projectos  de  felicidade  futura. 

Era  assim  que  ella  ia  contando  os  dias  da  au- 
sência, entregue  toda  á  sua  namorada  fantasia, 
aos  magniíicos  esplendores  da  sua  brilhante  con- 
cepção, que  levantava  palácios  de  oiro  e  crystal 
para  morada  dos  seus  amores;  que  pi'oduzia  cân- 
ticos suavíssimos  para  lhe  deliciarem  a  vida  toda 
passada  ao  pé  de  Luiz.  Em  torno  d'aquella  fronte 
intelligente  adejavam  a  fé  e  o  enthusiasmo! 

Fossem  lá  desnoivar-lhe  o  coração  d'aquellas 
illusões!  Fossem  lá  dizer  que  a  separação  d'ella  e 
Luiz  era  possivell  Rejeitaria  esta  idéa,  porque  o 
amor  lhe  faltava  de  presentimentos  deliciosos. 

E  todavia  o  mau  fado  devia  inutilisar  esses  pre- 
sentimentos; apagar  violentamente  aquelle  enthu- 
siasmo; arrancar  pela  raiz  todas  essas  flores  de 
poesia  e  de  esperança  que  lhe  enchiam  a  alma  de 
perfumes ! 

Havia  mais  de  quinze  dias  que  a  morgada  fora 
para  Cascaes.  O  mez  de  setembro  eslava  tempes- 
tuoso, como  se  o  inverno  estivera  em  todo  o  seu 
império.  Nas  altas  regiões  onde  se  geram  as  tem- 
pestades, durara  muitos  dias  essa  lucta  de  tilães 
que  se  trava  ao  som  do  trovão. 

As  elegantes,  que  costumavam  nos  annos  ante- 
riores ir  banhar-se  na  praia  á  luz  de  um  sol  vi- 
vificante e  convidativo,  que  vinha  affagar-lhes  com 
ura  raio  as  húmidas  tranças,  estranhavam  muito 
os  luctos  de  um  prematuro  inverno.  Nem  uma  só 
d'essas  manhãs  claras,  em  que  o  oceano  se  estende 
como  uma  planície  esverdeada  até  aos  horisontes, 
e  a  onda  vem  lamber  de  manso  as  areias  da  praia! 
nem  uma  só  d'essn'-^.  noites  mysteriosas,  cm  que  a 
lua  surge  do  seio  das  vagas,  para  se  levantar  de- 
pois, como  a  deusa  do  amor  e  da  melancolia,  na 
vastidão  lympida  e  infinita  do-es|)aço!  Era  tudo 
feio,  era  tudo  triste.  Já  debaixo  dos  pés  lhe  es- 
talavam as  folhas  seccas  do  outono,  varridas  pelo 
sopro  do  norte:  as  ruas  dos  prados  estavam  en- 
xarcadas,  frias,  incommodas! 

Eaquellas  almasinhas,  frescas  como  a  relva  dos 
jardins,  puras  como  a  agua  dos  lagos,  tinham  de 
viver  encerradas  nas  suas  habitações,  olhando 
atravez  dos  vidros  para  o  céo  nebuloso,  para  o 
oceano  encapellado,  como  se  fossem  rouxinoes 
presos  na  gaiola,  para  os  quaes  a  falta  de  liber- 
dade é  a  tristeza,  e  a  morte! 

D.  Capitolina  fora  este  anno  para  Cascaes  na 
companhia  da  morgada.  Esta  sympatisava  muito 
com  a  robusta  donzclla.  Chrislina  era-lhe  lambem 


affeiçoada.  D.  Capitolina  como  não  conseguia  já 
fazer-se  heroina  de  aventuras  próprias,  dera  em 
protectora  dos  amores  dos  outros.  Gostava  de  fal- 
tar ás  raparigas  nos  namorados,  e  n'essas  conver- 
sações saia-lhes  ás  vezes  do  peito  um  suspiro. 
Kram  saudades  do  seu  tempo,  eram  as  sombras 
do  passado  que  deslisavam  em  cortejo  por  deante 
dos  olhos,  mas  já  com  formas  vagas  e  indecisas. 

Sabendo  que  Chrislina  amava,  insinuou-se  facil- 
mente na  alma  da  rapariga,  fallando-lhe  de  Luiz. 

No  isolamento  era  que  Chrislina  vivia,  o  encon- 
tro de  um  coração  alíavel  e  amigo,  que  lhe  rece- 
besse confidencias  e  desafogcs  pareceu-lhe  uma 
ventura  que  Deus  lhe  deparava.  Aproveilou-a  e  D. 
Capitolina  (aparte  a  monotonia  das  exclamações) 
sabia  ler  palavras  consoladoras  para  taes  soffri- 
menlos. 

— Olha,  minha  filha,  dizia-lhe  às  vezes — nós, 
mulheres,  nascemos  para  amar  e  soífrer  !  Ah  !  foi 
a  nossa  sina  cá  no  mundo!  Ah!  resigna-te  que  não 
ha  outro  remédio!  Ah!  foi  lambem  o  meul... 

Um  dia  estavam  ambas  sentadas  ao  pé  da  ja- 
nella.  Chovia  muito.  O  sul  soprava  violento  e 
tempestuoso ,  fuzilava  para  diversos  quadrantes. 
Nenhum  barco  sairá  ao  mar,  e  até  os  homens  que 
costumara  ir  pescar  á  linha  para  a  borda  dos  ro- 
chedos não  haviara  podido  approxiraar-se  da  ex- 
tremidade da  costa. 

Chistina  com  a  cabeça  encostada  aos  vidros 
olhava  para  o  céo;  as  lagrimas  corriam-lhe  abun- 
dantemente. 

—  Pensas  no  teu  Luizinho  ?  murmurou  D.  Ca- 
pitolina. 

—  Peço  a  Deus  pelos  que  andam  sobre  as  aguas. 

—  Ah  !  não  te  aíTIijas,  Deus  bade  Irazel-o  a  por- 
to e  salvamento. 

—  Deus  a  ouça  ! 

E  a  pobre  rapariga  ficava  do  mesmo  modo  immo- 
vel  e  muda,  invocando  a  misericórdia  divina.  Cho- 
rava. As  lagrimas  nos  olhos  da  mulher  revelam 
dór  ou  sentimento ;  porque  ou  a  elevam  á  subli- 
midade da  maityr,  ou  a  levantam  até  a  nivelarem 
com  os  anjos  —  fazem  d'ella,  a  imagem  pungente 
do  solTrimento,  como  a  Virgem  aos  pés  da  Cruz 
do  Filho;  —  ou  a  imagem  do  amor  celestial,  co- 
mo a  Magdalena  abrindo  o  coração  aos  sentimen- 
tos duros! 

De  repente  entrou  um  criado  na  sala  dizendo 
que  da  Guia  se  avistava  uma  galera  correndo  des- 
mastreada e  sem  rumo,  a  sabor  do  oceano ;  que 
de  bordo  se  havia  lançado  uma  lancha  ao  mar,  e 
que  parte  da  tripulação  demandava  terra  no  pe- 
queno bai'Co. 

Chrislina  fez-se  livida  como  uma  defuncta:  o 
coiação  déra-lhe  um  sallo  no  peito. 

Duas  horas  depois  chegaram  outras  noticias  e 
mais  aterradoras.  Havia  ura  naufrágio  e  viclimas 
a  contar  d'elle. 

iConlinua.) 

A.  d'Oliveira  Pires 


O  mundo  é  um  circulo  que  passa  da  guerra  á 
paz  e  da  paz  à  guerra. 


200 


O  PANORAMA 


SENSIBILIDADE  DE  CONSCIÊNCIA 

Thomaz  Curson  era  um  amieiro  muilo  conheci- 
do na  cidade  de  Londres.  Morava  perto  de  Bis- 
hopsgate.  Um  dia,  um  actor  pedio-lhe  emprestada 
uina' espingarda  velha  que  estava  misturada  com 
muitas  outras,  já  fora  de  uso,  a  um  canto  da  loja. 
Este  actor,  ordinariamente,  não  entrava  senão  em 
peças  cómicas ;  por  excepção,  tinha  de  ligurar  em 
um*  drama  como  soldado.  A  noite,  appareceu  em 
scena,  e,  como  pedia  o  papel, disparou  um  tiro;  mas, 
infelizmente,  a  arma  achava-se  carregada  com  baila, 
havia  muitos  annos,eo  homem  que  devia  lingir-se 
morto  caio,  na  realidade,  ferido  mortalmente.  Tho- 
maz Curson,  ao  receber  tão  triste  nova  caio  em 
um  violentíssimo  accesso  de  desespero,  e  desde 
logo  se  considerou  responsável  por  esteaccidente, 
no"  qual  a  sua  vontade  não  tinha  tido  parte  alguma, 
e  que  havia  sobrevindo  fora  da  sua  presença  de 
uma  maneira  inteiramente  imprevista.  No  dia  se- 
guinte dirigio-se  á  casa  da  camará  e  declarou  que 
dava  metade  da  sua  fortuna,  muitas  centenas  de 
libras,  aos  pobres,  querendo  expiar  a  morte  de 
um  homem  ajudando  a  viver  o  maior  numero  pos- 
sível de  famílias  indigentes. 


CASTA  DIVA 

Era  no  tempo  cândido, 
Vivaz,  risonho  e  iimpido, 
Em  (pie  o  sol  surge  esplendido 
Dourando  as  illusôes! 
A  primavera  ílórida 
Rescende  auras  Ijalsamicas: 
Passam  no  ar  murmúrios, 
Notas  de  mil  canções! 

Elliereo  c  casto  juhito 
Me  transportava  o  espirito; 
Era  o  exalçar  d'um  exlasis!... 
Era  um  voar  ao  oeo! ! 
Lii)rava  as  azas  limidas 
Tclos  espaços  lúcidos  1... 
Sorria  a  vida  plácida, 
Envolta  era  róseo  veo! 

Sentia  o  enlevo  intimo!... 
—Infinda  e  alma  \olui)ia!  — 
Hauria  o  alento  vivido 
Da  csp'rança  festival! 
E  a  alma  desprendia-se, 
Pela  amplidão  cerúlea 
ISo  (lucluar  diapliano 
De  um  sonlio  virginal! 

E  então  no  sancluario 
Dos  Íntimos  antiélitos 
Vibrava  ardente  c  enérgica 
.\  voz  da  insiiiraçãol 
Vinlia  outras  vezes  languida 
Como  um  segredo  ingénuo, 
Nas  lioras  do  crepúsculo, 
Fallar-mc  ao  coração  1 

Mas,  oh!...  passou  bem  rápido 
Da  aurora  o  róseo  id\llio, 
Como  é  furtivo  o  hálito 
Da  flor  do  laranjal!... 
Qual  (la   toada  o  frémito 
Kesoa  apoz  o  cântico, 
Saudade  melancholica 
Exhala  o  ideal  I 


Sumio-sc  a  visão  fulgida 
Deixando  a  sombra  pallida, 
Como  o  luar  seguindo-se 
Á  luz  de  sol  vivaz! 
Desfez-se  o  encanto  magico, 
Bem  como  a  es|)uma  férvida 
Que  á  ílor  da  vaga  túmida 
Rebenta,  e  se  desfaz  1 

Cessou  a  alegre  musica... 
E  da  alma  a  branda  cytliara 
Soltou  vago  preludio; 
Mas  logo  emmudeccu: 
Em  vez  dos  liymnos  módulos 
Veio  o  silencio  lúgubre... 
E  então,  não  sei  que  angustia 
Meu  peito  confrangeu. 

Por  que  fugiste  pudica, 

O  mensageira  sylphide 

Dos  vividos  eniuvios 

Do  deus  revelador?! 

Triste  na  ausência...  evoco-te... 

Oh!  vem,  de  novo,  próvida, 

Fazer-me  as  confidencias 

Do  matutino  alvor! 

Trazendo  a  esp'rança  myslica 
Do  peito  ao  tabernáculo 
Desce,  qual  pomba  incólume 
Voltando  da  amplidão!... 
Ou  vem  outra  vez  languida, 
Suave  e  melancholica, 
Nas  horas  do  crepúsculo, 
Fatiar-me  ao  coração  1 

João  M.  Tedeschy. 

Abril  de  18G6. 


DIVISÃO  DO  TEMPO 

Os  chinos  contam  por  cyclos  de  60  annos  co- 
meçando três  séculos  antes  de  J.  C,  época  em  que 
se  ado|)tou  este  systema. 

Os  annos  compõem-se  do  mesmo  numero  de 
dias  que  os  nossos.  Este  anno  de  1806  é  o  63  do 
cyclo  "i"). 

"  Também  computam  o  tempo  como  alguns  povos 
da  Eurojía ;  isto  é,  escrevendo,  que  tal  successo 
teve  lugar  no  terceiro  dia  da  segunda  lua  do  anno 
27  de  Kien-Lung. 

O  dia  c  dividido  em  12  parles  e  cada  uma  d'es- 
tas  em  8  mais  pequenas,  cíiuivalentes  ao  nosso  quar- 
to de  hora  de  15  minutos. 

Geralmente  servem-se  dos  relógios  europeus. 

Os  seus  relojoeiros  fabricam-n'os  de  madeira. 
Os  homens  trazem  os  relógios  suspensos  da  cin- 
tura. A  moda  é  usar  dois,  um  de  cada  lado;  isto 
explica  o  motivo  porque  n'a(iuelle  paiz  se  vendem 
sempre  os  relógios  aos  pares. 

Também  possuem  quadrantes  solares.  Parece  que 
aprenderam  a  construil-os  com  os  missionários 
europeos. 

Desde  tempos  muito  antigos  lêem  relógios  que 
marcam  as  horas  jjor  meio  da  agua,  como  nós  te- 
mos os  de  arèa  ;  porém  não  ha  semelhança  alguma 
entre  uns  c  outros. 

O  modo  mais  geral  de  marcar  as  horas  consis- 
le  em  t|U('iiiuir  uma  espécie  de  vara  de  incenso, 
posta  per|)en(lirularmente  em  um  castiçal.  O  peda- 
ço de  vara  queimado  indica  o  tempo  que  se  pas- 
sou. 

Typ.  Fninco-Portguoz:),  l\u;i  do  Thusouro  Velho,  0. 


26 


o  PANORAMA 


201 


Arco  da  Rua  Augusta 


A  gravura,  que  boje  o  Panorama  apresenta  aos 
seus  leitores,  lem  por  lim  justificar  o  nosso  século 
perante  a  posteridade.  Quando  os  historiadores 
futuros  tratarem  de  mytho  o  arco  da  rua  Augusta, 
quando  asseverarem  que  essa  conslrucção  existio 
apenas  na  cabeça  dos  estadistas  portuguezes,  a 
nossa  gravura  responderá  liiumpbantemente  asse- 
verando aos  nossos  netos  que  existio  um  plano, 
que  houve  um  desenlio,  que  a  porta  sumptuosa  ^da 
cidade  chegou  a  viver  completa,  pelo  menos,  no 
papel. 


O  arco  da  rua  Augusta  ha  de  ser,  estamos  d'isso 
convencidos,  um  monumento  de  séculos.  Cada  ge- 
ração ba  de  liazer  uma  pedra,  accresccntar  um 
festão,  bordar  um  lavor,  juntar  uma  estatua,  ren- 
dilhar uns  cinzelados,  prolongar  um  entabla- 
mento,  tecer  uma  nova  grinalda.  Em  quanto  exis- 
tir Portugal,  lia  de  estar  em  via  de  construcção  o 
arco  da  rua  Augusta,  ^"um  romance  de  Alexandre 
Dumas  ba  uma  noiva,  que,  esperando  a  volta  do 
esposo,  borda  o  seu  vestido  nupcial,  calculando  o 
trabalho  do  maneira  que  dè  o  ultimo  matiz  no  dia 


202 


O  PANORAMA 


eni*que  deve  chegar  o  escolhido  do  seu  coração. 
Demora-se  o  noivo  e  o  bordado  ooiiliinia,  cnlrc- 
meiando  novas  flores,  enchendo  a  tela,  que  ainda 
licàra  desoccupada.  Parece-nos  que  não  havemos 
de  errar  egualiuente,  c  que  a  ullima  pedra  do  arco 
lia  de  ser  posta  na  véspera  do  Juizo  [mal. 

O  arco  da  rua  Augusta  tem  tido  etíectivamenle 
uma  existência  legendaria.  Pesa  sobre  elle  a  mal- 
dição que  fulminou  outr'oi'a  a  egreja  de  Santa 
Engracia.  Como  esta  sua  irmã  mais  velha,  já  deu 
origem  a  provérbios.  «O  relógio  da  rua  Augusta» 
ligura  tantas  vezes  nas  palestras  populares  como 
as  (cobras  de  Santa  Engracia»  e  a  lenda  ainda  ha 
de  vir  a  apoderar-so  d'aquelle  monumento  fabu- 
loso, que,  da  mesma  forma  que  os  palácios  das 
fadas,  os  jardins  dWrmida,  ou  o  caslello  de  Bella 
e  da  fera,  só  parece  existir  na  imaginação  dos 
poetas  do  ministério  das  obras  publicas. 

Em  um  dos  próximos  números  daremos  aos 
nossos  leitores  a  historia  d'este  monumento.  Por 
hoje,  limitar-nos-hemos  a  explicar  resumidamente 
o  projecto  apresentado  pelo  dislincto  artista  fran- 
cez,  o  sr.  Calmeis,  que  era,  como  se  vô  na  gra- 
vura, digno  de  ter  apparecido  um  século  antes,  e 
de  haver  sido  comprehendido  por  Sebastião  José 
de  Carvalho,  o  ultimo  homem  que  soube  em  Por- 
tugal executar  grandes  cousas. 

O  grupo,  que  domina  o  arco,  forma  a  parle  al- 
legorica,  e  representa  a  Gloria  coroando  o  Génio 
e  o  Valor.  D'este  grupo,  cuja  execução  foi  confia- 
da ao  sr.  Calmeis,  auctor  do  plano,  estava  o  mo- 
delo na  exposição  internacional  do  Porto,  onde  foi 
objecto  da  admiração  de  todos  os  que  o  contem- 
plaram. O  sr.  Calmeis,  com  quem  o  governo  por- 
tuguez  tem  zombado  em  todas  as  obras  que  lhe 
contiou  desde  o  monumento  a  D.  Pedro  IV  até  ao 
arco  da  rua  Augusta,  empregou  n'cste  grupo  co- 
lossal todos  os  recursos  do  seu  notável  talento,  e 
fez  effectivamente  d'elle  uma  obra  prima,  digna 
de  se  fitarem  logo  n'ella  os  olhos  do  estrangeiro, 
que  desembarca  nas  praias  da  nossa  formosa  Lis- 
boa. 

As  quatro  figuras  inferiores  representam  Vi- 
riato, Nuno  Alvares  Pereira,  Vasco  da  Gama  e 
Marquez  de  Pombal.  Os  dois  vultos  lateraes  são 
ainda  allegoricos,  e  figuram  o  Tejo  e  o  Douro. 


A  TERRA 

Que  provaM  positivaN  cximtom  Uc  iinc  v  redonda,  imo 
giru   Nolirc  Mi   e  ú   roda   do   isol 

Vamos  agora  ao  terceiro  ponto  d'csta  noticia, 
ás  provas  positivas  do  movimento  da  Terra. 

Notemos  primeiramente  que  as  apparencias  dos 
objectos  exteriores  serão  para  nós  identicamente 
as  mesmas,  ou  seja  que,  estando  a  Terra  cm  rc 
pouso,  estes  objectos  estejam  em  movimento,  ou 
que,  estando  estes  objectos  em  repouso,  a  Terra 
esteja  cm  movimento.  Se  a  Terra  em  seu  curso 
arrasta  todas  as  cousas  que  liie  pertencem,  as 
aguas,  a  alhmosphera.  as  nuvens,  etc,  n(js  não 
poderemos  ter  consciência  d'cste  nio\imento,  cujo 
participamos,  senão  pelo  aspecto  vario  do  céo 
immovel.  Ora,  sendo  em  um  e  outro  caso  as 
apparencias  sempre  as  mesmas^  a  hypothese  do 


movimento  da  Terra  explica  tudo,  e  sem  ella 
cae-se  em  uma  inaceitável  complicação  de  sys- 
teraas. 

Se  a  Terra  gira  sobre  si  em  vinte  e  quatro 
horas,  podemos  vêr  immediatamente  que,  sendo 
o  seu  raio  mcdio  de  1432  léguas,  e  a  sua  cir- 
cuinferencia  de  9000,  um  ponto  situado  sobre  o 
equador  percorrerá  um  decimo  de  légua  por  segundo. 
Esta  velocidade,  que  parece  considerável,  tem 
sido  olhada  como  uma  objecção  contra  o  movi- 
mento da  Terra.  Mas  vejamos  agora  de  que  ve- 
locidade sem  igual,  seria  necessário  animar  as 
espheras  celestes  para  fazei  as  percorrer  cada 
uma  a  circumfereneia  do  céo  no  mesmo  lapso 
de  vinte  c  quatro  horas. 

Em  primeiro  lugar,  o  Sol  estando  afastado 
da  Terra  23000  vezes  o  raio  terrestre,  na  hypo- 
these da  immobilidade  da  Terra  aquelle  astro 
descreveria  uma  circumfereneia  23000  vezes  maior 
que  os  pontos  do  equador,  o  que  dá  uma  velo- 
cidade de  2300  léguas  por  segundo. 

Júpiter  está  pouco  mais  ou  menos  cinco  vezes 
mais  longe:  a  sua  velocidade  seria  de  11500  lé- 
guas por  segundo. 

Neptuno.,  trinta  vezos:  deveria  percorrer  69000 
léguas  por  segundo. 

Taes  seriam  as  diversas  velocidades  de  que  os 
planetas  deveriam  estar  animados  para  girarem 
á  roda  do  nosso  globo,  como  parecem  fazel-o. 
Vé-sc,  pois,  que  a  objecção  contra  o  movimento 
da  Terra  de  um  decimb  de  légua  por  segundo 
nada  é  comparativamente  com  o  que  resulta  de 
semelhantes  números. 

O  que  seria  se  considerássemos  as  estrellas  fi- 
xas?! A  estrella  oc  do  Centauro,  deveria  percor- 
rer 520  milhões  de  léguas  por  segundo.  E,  gra- 
dualmente, até  ás  estrellas  longínquas,  chega- 
ríamos ao  infinito  sem  encontrarmos  um  numero 
que  podesse  exprimir  a  velocidade  dos  astros 
para  girarem  em  torno  d'este  ponto  invisivcl 
que  se  chama  Terra. 

Accrescentemos  a  isto  que  estes  astros  são,  um 
1400  vezes  mais  volumoso  que  a  Terra,  outro 
1400000  vezes,  outros  ainda  maiores;  que  não 
estão  reunidos  entre  si  por  laço  algum  solido 
que  podesse  ligal-os  a  um  movimento  das  abo- 
badas celestes;  que  estão  todos  situados  em  mui 
diversas  distancias;  e  esta  medonha  complicação 
do  systcma  dos  céos  testemunhará  por  si  mesma 
da  sua  não  existência  — poderíamos  dizer  da  sua 
impossibilidade  mechanica. 

Mas  não  somente  pela  admissão  do  movimento 
da  Terra  em  roda  do  seu  eixo  se  pódc  com- 
prehender  o  movimento  diurno  da  csphcra  ce- 
leste; os  movimentos  dos  planetas  no  zodiaco, 
as  suas  estações  c  as  suas  retrogradações,  recla- 
mam com  o"  mesmo  rigor  o  movimento  da  Terra 
á  roda  do  Sol.  Para  explicarem  as  apparencias 
planetárias,  suppondo  a  Terra  immovel,  os  anti- 
gos imaginaram  vinte  c  quatro  círculos  mettidos 
uns  nos  outros,  círculos  sólidos  ou  céos  de  cris- 
tal cuja  complicação  nada  podia  igualar,  c  que, 
se  podessem  existir  um  instante^  immediatamente 
seriam  feitos  em  pedaços  pelos  cometas  vaga- 
bundos ou  pelos  aérolitíios  que  girassem  no  es- 
paço. 

Por  outro  lado  ainda,  a  analogia  vinha  confir- 
mar singularmente  a  hypothese  do  movimento 
da  Terra  e  mudar  a  vcrisimilhança  em  certeza. 
O  telescópio  mostrava  nos  planetas  terras  analo- 


o  PANORAMA 


203 


gas  á  nossa,  com  um  movimento  de  rotação  á 
roda  do  seu  eixo,  movimento  de  rotação  de  vinte 
e  quatro  horas  para  os  planeias  mais  próximos 
c  de  menor  duração  para  os  mundos  distantes 
do  nosso  systema.  Assim  a  simplicidade  e  a  ana- 
logia são  a  favor  do  movimento  da  Terra.  Ajun- 
temos também  que  este  movimento  é  rigorosa- 
mente exigido  e  determinado  por  todas  as  leis 
da  mcchanica  celeste. 

A  grande  difficuldade  que  se  tinha  avançado 
contra  o  movimento  da  Terra,  e  que  foi  aceita 
durante  algum  tempo  era  esta:  Se  a  Terra  gira 
debaixo  dos  nossos  pés,  elevando -nos  no  espaço 
e  achando  o  meio  de  conscrvar-nos  alli  alguns 
segundos  ou  minutos,  deveríamos  cair,  depois 
d'este  lapso  de  tempo^  em  um  ponto  mais  Occi- 
dental que  O  ponto  dê  partida.  O  individuo,  por 
exemplo,  que,  no  equador,  achasse  meio  de 
sustentar-se  iramovel  na  athmosphera  durante 
trinta  segundos^  deveria  cair  três  léguas  ao  occi- 
dente  do  lugar  donde  tinha  partido.  —  Excel- 
lenle  maneira  de  viajar. — Alguns  sentimenta- 
listas, Buchanan  entre  outros,  deram  á  objecção 
uma  forma  mais  aííectuosa,  dizendo  que,  se  a 
Terra  girasse,  a  rola  não  ousaria  sair  do  seu  ni- 
nho, porque  depressa  perderia  inevitavelmente 
de  vista  os  seus  filhinhos.  —  É  de  uma  grande 
innocencia. 

O  leitor  já  respondeu  a  esta  objecção  reflec- 
tindo que  tudo  quanto  pertence  á  Terra  parti 
cipa,  como  em  um  artigo  o  dissemos,  do  seu 
movimento  de  rotação,  e  que,  até  aos  últimos 
limites  da  athmosphera,  o  nosso  globo  arrasta 
tudo  em  seu  curso. 

A  observação  directa  de  diversos  phenomenos 
tem  confirmado  a  theoria  do  movimento  da  Terra, 
e  tem-na  confirmado  com  provas  materiaes  irre- 
cusáveis. 

Se  o  globo  gira,  desenvolve  uma  certa  força 
centrífuga;  esta  força  será  nenhuma  nos  poios, 
terá  o  seu  máximo'  no  equador,  e  será  tanto 
maior  quanto  mais  distante  se  achar  do  eixo  de 
rotação  o  objecto  ao  qual  ella  se  applica.  Será 
cm  ponto  grande  o  que  existe  em  ponto  pe- 
queno, em  uma  funda  ou  em  uma  roda  livre 
em  movimento  rápido.  Ora,  supponhamos  que 
se  fixa  um  prumo  no  cume  de  uma  torre,  c  que 
o  pezo  que  o  estende  desce  até  á  superficie  do 
solo.  A  direcção  d'este  prumo  para  o  centro  da 
Terra,  isto  é,  seguindo  a  perpendicular  ao  nivel 
da  agua,  será  um  pouco  modificada  pelo  effeito 
da  força  centrífuga  resultante  da  rotação  do 
globo,  ínedida  ao  pé  da  torre.  Se  igualmente  se 
lixa  no  cume  da  torre,  a  uma  pequena  distan- 
cia a  leste  do  primeiro,  um  segundo  prumo 
muito  mais  curto,  cujo  pezo  fique  situado  um 
pouco  abaixo  do  ponto  de  partida;  este  segundo 
prumo  não  terá  inteiramente  a  direcção  do  pri- 
meiro, porque  a  força  centrífuga  devida  ao  mo- 
vimento da  Terra,  sendo  maior  no  cume  da  torre 
que  na  sua  base,  fará  desviar  o  cordel  um  pouco 
mais  a  leste.  —  Esta  observação  minuciosa  tem 
sido  feita  e  repelida  com  o  maior  cuidado:  é 
portanto,  mais  uma  prova  do  movimento  da  Terra. 

As  oscillações  da  pêndula  de  segundos  confir- 
mam o  precedente  facto.  Não  é  somente,  pelo 
raio  equatorial  ser  maior  que  o  raio  polar,  que 
as  oscillações  são  mais  lentas  no  equador  que 
nos  poios;  a  diíTerença  é  muito  grande  para  ser 
atlribuida  unicamente  a  essa  causa.  No  equador. 


a  força  centrífuga  attenua  em  parte  o  effeito  do 
pezo.  Uma  observação  curiosa  é,  que  no  equa- 
dor esta  força  regula  ',5,^  do  pezo.  Ora,  como  o 
pezo  cresce  proporcionalmente  ao  quadrado  da 
velocidade  de  rotação,  e  que  289  é  o  quadrado 
de  17,  se  a  Terra  girasse  17  vezes  mais  rápida^ 
os  corpos  collocados  no  equador  não  pezariam: 
uma  pedra  lançada  no  espaço  não  cairia. 

Eis  outro  facto,  não  menos  positivo  que  os 
precedentes,  e  mais  fácil  a  apreciar  em  suas 
consequências,  a  favor  do  movimento  da  Terra. 
Se  a  Terra  fosse  immovel  e  que  a  esphera  estrel- 
lada  girasse  em  torno  d-ella  cm  24  horas,  os  as- 
tros nunca  passariam  pelo  meridiano,  e  nunca 
nasceriam  nem  se  poriam,  no  instante  em  que 
o  indica  a  linha  da  sua  longitude  no  céo.  Os 
raios  luminosos  que  nos  enviam,  havendo  inter- 
vallos  desiguaes,  segundo  as  suas  distancias  re- 
ciprocas, fariam  uma  extrema  confusão  nas  ho- 
ras da  sua  passagem  apparente.  Tal  astro  que, 
na  realidade,  passa  agora  pelo  meridiano,  está 
situado  a  uma  tal  distancia  que  a  sua  luz  de- 
mora seis  horas  para  chegar  até  nós ;  não  appa- 
recerá,  pois,  senão  seis  horas  mais  tarde,  isto  é 
no  momento  do  seu  occaso.  Tal  outro  astro  le- 
vará doze  horas  para  se  mostrar;  tal  outro,  me- 
zes,  annos,  etc.  Eis  uma  nova  prova  material  de 
que  não  são  as  espheras  celestes  que  se  movem, 
mas  sim  a  própria  Terra. 

Os  movimentos  próprios  annuaes  das  estrellas 
no  céo,  de  que  opportunamente  fallaremos,  for- 
necem igualmente  uma  prova  positiva  do  movi- 
mento da  Terra  em  roda  do  Sol.  O  mesmo  se 
dá  com  o  phenomeno  da  abherração  da  luz. 

A  physica  do  globo  tem,  também  por  seu  lado, 
fornecido  um  bom  contingente  de  provas  á  theo- 
ria do  movimento  da  Terra,  e  péde-se  dizer  que 
todos  os  ramos  que  se  prendem,  de  perto  ou  de 
longe,  à  cosmographia,  acham-se  unidos  para  a 
confirmação  d'esta  theoria.  A  própria  forma  da 
espheroide  terrestre  mostra  que  este  planeta  foi 
originariamente  uma  massa  fluida  animada  de 
uma  certa  velocidade  de  rotação,  conclusão  a 
que  os  geólogos  teem  chegado  nas  suas  averi- 
guações pessoaes. 

Outros  factos,  como  as  correntes  da  athmos- 
phera e  do  oceano,  as  correntes  polares  e  as 
monções,  teem  sua  causa  igualmente  na  rotação 
do  gíobo. 


AZARIA 

Foi  uma  rude  luta  a  que  os  nossos  avós  trava- 
ram com  os  mouros.  Não  foi  uma  serie  de  guer- 
ras, separadas  por  tratados  de  paz,  foi  um  com- 
bale constante,  de  cada  dia,  de  cada  hora,  sem 
um  minuto  de  descanço.  As  praças  fronteiras 
estavam  conslantemente  em  pé  de  guerra  contra 
as  correrias  dos  mouros,  e  lambem  para  irem  le- 
var ás  cidades,  aldeias,  c  campos  inimigos  o 
mesmo  terror  e  o  mesmo  sobrcsalto  que  elles  tra- 
ziam aos  nossos.  D'abi  provinha  a  formidável  or- 
ganisação  militar  da  idade  media,  os  almogavares 
com  o*  seu  adail,  as  alalayas,  os  csculcas,  os  ar- 
ricaveiros  e  vigias  a  cujo  cargo  estava  a  defensão 
das  cidades,  ou  a  aggressão  dos  mouros,  que  an- 
davam sempre  á  espreila  rcceiando  ver  accen- 
der-se  ao  longe  o  fogo  das  almenares  mouriscas, 


204 


O  PANORAMA 


temendo  senlir  de  súbito  o  galope  dos  cavallos 
inimif^os,  e  divisar  por  entre  a  escuridão  da  noite 
os  alvejantes  albornozes  dos  árabes.  Não  havia 
tréguas,  nem  repouso,  nem  inlervallo  para  aquelle 
combater  frenético,  raivoso,  e  incançavel. 

Os  liabi (antes  das  povoações  fronteiras  não  ou- 
savam aíTastar-se  um  instante  desarmados  da  som- 
tra  dos  seus  muros,  e  para  prevenir  as  conse- 
quências sempre  fataes  d'algumas  imprudências, 
os  nossos  reis  haviam  providenciado  de  diversos 
modos  prohibindo  a  saída  de  um  bando  qualquer 
de  chrislãos  sem  que  fossem  acompanhados  de 
gente  armada. 

Uma  das  occupações  mais  perigosas  da  lude 
vida  dos  habitantes* da  raia  era  o  irem  cortar  le- 
nha. Não  havia  lloresta,  que  se  não  assemelhasse 
ao  incantado  bosque  do  Tasso,  e  que  não  esti- 
vesse cheia  de  perigos,  emboscadas,  e  traições. 
Cada  arvore  podia  esconder  um  inimigo,  e  ao 
som  da  cúspide  do  machado  lascando  o  carvalho 
podia  responder  de  súbito  o  grito  de  guerra  dos 
corredores  mouriscos.  Por  isso  era  expressamente 
prohibido  saír-se  das  praças  fronteiras  para  cor- 
tar lenha  nos  mallos  sem  ir  o  bando  dos  racha- 
dores acompanhado  por  um  troço  de  gente  ar- 
mada. 

Era  raro  por  conseguinte  que  se  fizesse  provi- 
são de  madeiras  sem  que  o  sangue  tingisse  o  solo : 
emquanto  as  ardores  caíam  decepadas  pelo  ma- 
chado dos  portuguezes,  revoluteava  a  pel(^"a  a 
pouca  distancia,  e  o  montante  christão,  e  o  al- 
fange mouro  abriam  largos  sulcos  nas  fdeiras  dos 
combatentes. 

Estranho  destino  o  dos  nossos  antepassados! 
Estranha  existência  essa  que  contava  uma  peleja 
sanguinolenta  no  numero  dos  seus  mais  vulgares 
incidentes!  E  que  heróica  geração!  que  espirito 
de  bronze  não  era  necessário  para  alTrontar  com 
serenidade  esses  perigos  de  cada  instante,  essas 
tribulações,  essas  angustias  pungentes,  esse  tremer 
de  cada  momento  pela  sorte  do  esposo,  e  dos  fi- 
lhos, quando  a  própria  vida  lhe  fosse  indifíerente. 

Com  tudo  isto  não  dissemos  ainda  como  as  pe- 
lejas travadas  no  acto  de  irem  os  nossos  antepas- 
sados cortar  lenha  se  ligam  com  o  titulo  que  dê- 
mos ao  nosso  artigo.  Vamos  dizel-o  agora.  Esses 
combates  já  previstos,  á  força  de  se  repetirem, 
recebiam  o  nome  de  azarias,  e  a  distribuição  das 
prezas  que  n'elles  se  faziam  eslava  sujeita  a  uma 
legislação  especial. 

A  etymologia  d'esta  palavra  Azaria  dá-a  Santa 
Rosa  de  Viterbo  no  seu  Elucidário  da  seguinte 
maneira. 

O  nome  do  machado  n'esse  lempo,  na  infantil 
linguagem  portugueza,  era  aza.  Ora,  como  n'esse 
serviço  de  cortar  lenha  c  o  machado  o  instru- 
mento que  se  emprega,  ficou  a  essas  expedições 
(assim  lhes  podemos  chamai';  o  nome  de  Azarias. 
Nus  foraes  antigos  de  algunuis  villas  se  encon- 
tram as  leis  que  regiam,  como  dissemos,  a  dis- 
tribuição das  prezas  feitas  n'essas  escaramuças, 
prezas  que  consistiam  quasi  unicamente  em  cavai- 
los.  Assim  se  os  corcéis  tomados  chegavam  ape- 


nas para  que  cada  homem  da  expedição  ficasse 
com  um  cavallo,  nada  reclamava  o  senhor  da 
terra;  se  a  preza  era  mais  abundante  pertencia 
então  a  este  a  quinta  parte  do  valor  da  preza  to- 
tal.   

MOZART 

Porque  motivo  apparecem  na  musica,  mais  do 
que  em  qualquer  outra  manifestação  da  intelli- 
gcncia  humana,  essas  crianças  prodigios,  que,  na 
idade  cm  que  as  outras  apenas  balbuciam  a  nos- 
sa linguagem^  conhecem  já  todos  os  segredos  da 
grande  arte,  e  transformam  o  teclado  sonoro  do 
piano,  as  cordas  vibrantes  da  rebeca  n'outras 
tantas  vozes  cheias  de  lagrimas  e  palpitantes  de 
commoçao,  que  vão  despertar  no  auditório  estu- 
pefacto sentimentos  ainda  desconhecidos  dos  pró- 
prios que  os  excitam?  Porque  motivo  a  historia 
da  musica  inscreve  nas  suas  paginas  os  nomes 
gloriosos  de  Liszt,  de  Mozart,  d'Artlmr  Napoleão^ 
em  quanto  a  poesia  e  a  pintura,  limitando-se  a 
apontar  o  talento  precoce  d'alguns  dos  seus  cul- 
tores mais  notáveis,  nunca  se  ufanaram  de  con- 
tar nos  seus  fastos  crianças  rivaes  de  Virgílio, 
pintores  infantis  rivaes  de  Raphael? 

É  porque  os  entes  privilegiados  para  quem  a  mu- 
sica tem  de  vir  a  ser  a  linguagem  sublime,  cm 
que  hão  de  traduzir  as  concepções  do  seu  génio, 
aprendem-n'a,  como  nós,  crianças  vulgares,  apren- 
demos o  idioma  banal,  o  idiorna  de  todoSj  o  idio- 
ma que,  segundo  formos  ou  não  fadados  para  as 
grandes  coisas,  nos  bastará  para  as  necessidades 
vulgares  da  existência  ou  com  o  qual  luctaremos 
corpo  a  corpo,  frementes  de  raiva  ao  sentirmos 
a  coramoção,  a  poesia,  o  elevado  pensamento  es- 
vair-se  ao  contacto  das  frias  palavras  da  lingua- 
gem humana.  Esta  linguagem  aprendemol-a  nós 
dos  lábios  malernaes,  e  se  é  ainda  musica  na  voz 
suave 'da  infância,  é  porque  não  teve  lempo  de 
se  esvair  a  fragrância  de  poesia,  com  que  a  per- 
fumou o  coração  das  mais,  se  ainda  então  é  gor- 
geio,  é  porque  a  nossa  alma,  passarinho  exilado, 
conserva  umas  vagas  lembranças  das  melodias 
do  céo.  Depois  vem  a  prosa  da  vida,  c  s()  a 
alma  dos  poetas  saberá  conservar,  no  meio  do 
turbilhão  social,  as  doiradas  reminiscências  da  ce- 
leste pátria. 

Mas  os  poetas  da  musica,  os  poetas  sobre  todos 
os  outros  filhos  dilectos  de  Deus,  se  tiveram,  co- 
mo nós,  o  anjo  maternal  para  lhes  suavisar  a  ru- 
de lingua  da  terra,  tiveram  um  outro  anjo,  que 
lhes  apparece  c  lhes  falia  em  sonhos,  e  n'essas  vi- 
sões luminosas  lhes  ensina  uma  outra  linguagem, 
uma  linguagem  do  céo,  um  idioma  privilegiado 
c  immaculado,  que  lhes  poisa  nos  lábios  o  mel 
fragrantissimo  da  poesia,  que  os  baptiza  com  os 
orvalhos  do  Empyreo,  que  lhes  abre  de  par  cm 
par  a  port i,  para  nós  cerrada  a  sete  chaves,  d'essc 
mundo  prestigioso  intermediário  á  terra  c  ao  pa- 
raizo,  mundo  todo  povoado  de  sylphos  e  fadas  c 
duendes,  mundo  de  visões  sublimes,  mundo  de 
harmonias  mysleriosas,  escada  de  Jacob  por  onde 
os  anjos  descem  a  visitar  os  homens,  e  por  onde 
o  pensamento  humano  sobe  enlevado  c  emi)evc- 
cido  a  contemplar  de  perto  as  maravilhas  do  olym- 
pico  fulgor. 

Esse  mundo  sublime,  essa  escada  myslcriosa  ó 
a  musica. 


o  PANORAMA 


205 


Um  cVesses  escolhidos,  uma  d'essas  crianças 
predestinadas  foi  Mozart.  Nascido  em  Salzburgo 
a  27  de  janeiro  de  1756  já  em  1762  arrebatava,  em 
Wunich  e  em  Vienna,  lodos  quantos  o  ouviam,  com 
as  torrentes  de  melodia  que  os  seus  dedos  peque- 
ninos sabiam  fazer  jorrar  do  piano  e  com  a  sua 
maravilhosa  e  magistral  execução.  Seu  pai,  mu- 
sico dislincto,  principiara  a  ensinar-lhe  a  sua  ar- 


Mozart. 

te  quando  elle  tinha  quatro  annos.  Na  idade  em 
que  as  outras  crianças  alinham  em  ordem  de  ba- 
talha os  soldados  de  chumbo  das  caixas  de  Nu- 
remberg,  em  que  espreitam  curiosos  a  cauda  do 
piario,  ou  despedaçam,  se  podem,  o  bojo  das  re- 
becas  para  verem  que  rouxinol  mystcrioso  des- 
canta lá  dentro  essas  ineífaveis  melodias^  o  loiro 
allemão  debruçava-se  pensativo  sobre  as  teclas, 
e  dava  com  as  alvas  raãosinhas  voz  ao  desconhe- 
cido passarinho,  que  os  seus  companheiros  de 
brinquedos  phantasiavam. 

Uma  das  originalidades  d'aquella  criança  origi- 
nal era  o  não  querer  tocar  senão  diante  de  en- 
tendedores. A  sua  deUcada  organisação  de  sensi- 
tiva parecia  que  se  assustava  com  os  applausos 
inconscientes  do  vulgo,  como  o  seu  ouvido  finís- 
simo estranhava  a  mais  leve  desharmonia.  O  ju- 
venil Ganymedes  adivinhava  nos  seus  presenli- 
mentos  que  o  génio,  essa  águia  de  Jupiler,  o  ha- 
via de  empolgar  nas  garras  e  transportal-o  ao  céo, 
c  não  podia  já  contentar-se  com  o  licor  inebrian- 
te do  elogio  banal,  desejava  só  o  néctar  que  cir- 
cula na  meza  dos  immortaes.  Em  Vienna  pedio 
com  todo  o  desembaraço  ao  imperador  Francis- 
co que  mandasse  chamar  o  celebre  musico  AVa- 
genseil.  Veio  o  grande  liomem,  e  a  criança  de 
seis  annos,  sem  a  mais  leve  hesitação,  tocou  um 
dos  concertos  que  elle  já  compunha,  e  acolheu 
com  modéstia^  mas  com  jubilo^  os  applausos  do 
mestre. 


Até  então  exercitara-se  elle  apenas  no  piano ; 
acompanhava-o  sua  irmã,  criança  também,  que 
possuia  ura  raro  talento  de  executante.  Mas  no 
piano  não  linlia  mais  que  aprender;  estava  tão 
senhor  do  instrumento,  como  o  poderia  estar  um 
velho  pianista.  Tentou-o  então  a  rebeca,  e,  ape- 
nas empunhou  o  arco,  mostrou  logo  n'essa  nova 
lingua  a  mesma  superioridade.  Seu  pai,  louco 
de  contentamento,  e,  vendo  na  torrente  de  har- 
monia, que  jorrava  dos  dedos  de  seu  filho,  um 
verdadeiro  Pactolo,  decidio  aproveital-o  empre- 
hendendo  com  elle  viagens  artísticas.  Aos  sete 
annos  deslumbrou  Paris,  aos  oito  annos  Londres. 
Começava-se  já  também  a  revelar  o  génio  do  com- 
positor. Na  capital  da  França  publicou  sonatas 
para  piano,  na  capital  da  Inglaterra,  nos  concer- 
tos que  deu,  só  tocou  symphonias  da  sua  com- 
posição. Tinha  nove  annos  quando  percorreu  a 
lloUãnda,  onde  esteve  perigosamente  enfermo. 
Voltou  de  novo  a  Paris,  atravessou  a  Suissa,  e 
no  fim  do  anno  de  1766  entrava  em  Salzburgo, 
não  contando  ainda  onze  annos  de  idade,  e  com 
a  fronte  ornada  de  mais  loiros,  do  que  os  que 
habitualmente  conquista  um  grande  homem  no 
decurso  d'uma  longa  vida. 

É  uma  estranha  biographia  esta  de  MozarI  !  Os 
annos  da  infância,  que  n'um  rápido  esboço  bio- 
graphico  habitualmente  se  passam  em  claro  pa- 
ra depois  se  ir  tomar  o  heroe  no  momento  cm 
que  verdadeiramente  nasce  para  a  immortalida- 
de,  são  exactamente  aquelles  que  o  biographo  de 
Mozart  deve  narrar  mais  circumstanciadamente. 
Parecia  que  o  grande  espirito  do  maestro  alle- 
mão, sabendo  que  pouco  tempo  havia  de  habitar 
no  frágil  corpo  que  escolhera  para  morada,  tinha 
pressa  de  viver,  e  de  deslumbrar  o  mundo.  O  fo- 
go, que  aos  trinta  e  seis  annos  havia  de  consu- 
mir Mozart,  não  brotava  primeiro  n'uma  frágil 
scentelha  que  se  ia  a  pouco  e  pouco  aclarando, 
que  lavrava  em  silencio  alé  se  revelar  em  pleno 
fulgor.  Não ;  a  chamma  irrompia  logo  abrazado- 
ra  c  esplendida,  o  sol  assomava  no  horisonte, 
quasi  sem  ter  aurora,  subia  ao  zenith,  illumina- 
va  novos  e  mais  vastos  horisontes,  e  depois  des- 
cia rapidamente  também,  esmorecia  no  occaso, 
atufava-se  no  oceano  da  eternidade,  mas  deixa- 
va no  mundo  um  longo 'rasto  de  luz. 

Era  1768  vamos  encontral-o  em  Vienna,  com 
doze  annos,  compondo  por  ordem  do  imperador 
José  uma  opera  intitulada  La  finta  simplice,  ope- 
ra, que  nunca  se  representou,  mas  que  obteve 
os  applausos  do  maestro  Hasse,  e  de  Metastasio, 
o  poeta  cesáreo,  o  grande  lyrico,  o  companheiro 
d'ovações  de  todos  osgrandes  músicos  da  época. 

Pouco  depois  na  inauguração  d"uma  igreja,  é 
o  Offerlorio  composto  por  elle,  e  é  a  criança  de 
doze  annos  quem  rege  a  orchestra  formada  dos 
primeiros  executantes  de  Vienna. 

Fallava-lhe  ainda  percorrer  a  Itália,  a  velha 
raatriarcha  das  artes,  a  soberana  do  mundo,  que, 
deixando  rolar  aos  pés  dos  estranhos  o  seu  dia- 
dema de  rainha,  conservou  sempre  incontestada 
a  coroa  de  flores  que  a  proclamava  soberana  artís- 
tica. A  varinha  branca  do  génio  de  Mozart  pro- 
duzio  na  formosa  península  as  costumadas  ma- 
ravilhas, c  os  Italianos,  soberbos  desprezadores 
da  musica  estrangeira,  tiveram  de  se  curvar  pe- 
rante o  bárbaro  germânico,  e  de  presentir  n'elle 
um  mestre,  mais  do  que  um  mestre,  um  inicia- 
dor. 


206 


O  PANORAMA 


Em  Milão,  no  fim  d'oiitubro  de  1770,  contan- 
do pouco  mais  de  quatorze  annos,  compoz  a  ope- 
ra de  Mithridatcs,  que  foi  representada  pela  pri- 
meira vez  no  dia  2(i  de  dezembro  d'esse  anno  c 
que  obteve    grande  numero   de  representações. 

Em  1771  temol-o  de  volta  a  Salzburgo,  onde 
compõe  para  o  casamento  do  archiduque  Fer- 
nando uma  serenata  tbeatral,  intitulada  Ascanio 
in  Alba.  O  compositor  tem  quinze  annos. 

Em  177:2,  para  a  sagração  do  novo  arcebispo, 
compõe  a  serenata  11  sogno  di  Scipioue.  Tem  de- 
zeseis  annos  o  auctor. 

Em  1773  compõe  a  opera  Lúcio  Silla,  que  se 
representa  vinle  e  seis  vezes  seguidas.  Sóbc  ao 
capitólio  o  triumpbador  aos  dezesete  annos,  quan- 
do os  outros  ainda  nem  fizeram  as  primeiras  ar- 
mas. 

Em  177,'),  com  dezenove  annos  escreve  a  opera 
cómica  La  finta  Giardiuiera.  Depois  duas  missas,  e 
uma  serenata  II  Be  pastore.  Chamam-n'o  de  Pariz 
os  Francezes  curiosos  de  verem  o  prodígio,  que 
tanto  avultara  depois  que  elles  tinbam  assistido 
ao  balbuciar  do  seu  génio.  Prende-se  Mozart  bas- 
tante tempo  na  corte  juvenil  de  Maria  Antonieta, 
que  ainda  nem  sequer  presente  o  seu  triste  des- 
tino, e  quando  volta  a  Vienna  em  1779  é  nomea- 
do compositor  da  camará  imperial. 

(Continuo  )^ 

A  BOGCA  DO  INFERNO 
X 

-  No  dia  seguinte  entraram  em  Cascaes  onze  ho- 
mens rolos,  com  os  roslos  macerados,  implorando 
compaixão.  Eram  os  tripulantes  que  se  haviam 
salvo  do  naufrágio  da  galera. 

A  morgada,  que  era  esmoler  e  possuia  excel- 
lenle  coração,  pedio  para  que  lh'os  trouxessem  á 
sua  presença  porque  desejava  soccorrel-os.  In- 
quiridos por  1).  Thereza,  os  náufragos  conlaram 
que  haviam  saido  de  Cabo  Verde  para  Lisboa; 
que  a  lenipeslade  os  assaltara  já  á  visla  das  cos- 
tas de  Poilugal,  rasgando  as  velas  ao  navio  c 
desarvorando-o.  O  mar  levàra-lhc  depois  o  leme 
e  as  bilaculas.  Quando  se  avisinharam  da  cosia, 
impeliidos  á  mercê  das  ondas,  o  navio  fazia  já 
lanla  agua,  que  as  bombas  não  podiam  esgolal-a. 
O  capitão  mandara-os  enlão  arriar  a  lancha,  que 
o  mar  ainda  respeitara,  ordenando-lhes  que  em- 
barcassem neiia  e  se  salvassem.  Elle,  o  piloto,  o 
contramestre,  e  um  segundo  lenente  da  marinha 
real  que  vinha  de  passagem  reservaram-sc  para  o 
lim.  Eram  bravos  marinheiros  aos  quaes  a  idéa 
da  morte  não  amedionlava.  Os  onze  lrij)ulanles 

—  quantos  a  barca  i)odia  conter  —  lizerani-se  de 
remos  procurando  salvar-se.  O  oflicial,  contava 
um,  licàra  agarrado  a  um  resto  da  amurada  com 
os  olhos  lixos  em  terra.  Depois,  diziam  elles  tris- 
temente, a  galera  tremeu  n'nina  convulsão  pro- 
longada, como  o  eslorcer  da  agonia,  jtrincipiou  a 
redemoinhar,  estoirou,  c  desapparcccu.  O  tenente 
descera  firme  para  o  fundo. 

Chama va-se  Luiz  de  Mello. 

Ouando  este  nome  saio  dos  lábios  do  um  dos 
naufiagos,  gelaram  lodos  de  e.sj)anlo.  Chrislina 
caio  desam|iai;)da  no  chão...  como  a  açucena 
que  o  tuíão  pende  na  haste. 


Depois  de  recuperar  os  sentidos  pareceu  cair 
n'uma  perigosa  excitação  mental.  Passava  as  mãos 
pela  fronte,  d'onde  manava  suor  frio,  como  se 
quizesse  arrancar  de  lá  uma  imagem  dolorosa.  Os 
que  sentem  como  ella  arder  no  cérebro  o  fogo  de 
uma  imaginação  exaltada,  fujam  de  o  atear,  por 
que  no  incêndio  pôde  ir-lhes  o  entendimento. 

Torturava  o  coração  observar  a  mudez  insen- 
sata de  Chrislina,  a  pallidez  que  lhe  cobria  as  fa- 
ces, o  espesso  véo  que  lhe  entenebrecia  as  fei- 
ções. O  infortúnio  passara  por  aquelle  rosto  a  sua 
mão  destruidora ;  a  angustia  saccudira  as  negras 
azas  sobre  a  fronte  virginal,  (Kaíiuella  que  talvez 
hoje  cinge,  reluzente  de  divinos  resplendores,  a 
coroa  dos  predestinados  de  Deus! 

A  este  estado  de  excitação  seguio-se  a  atonia 
profunda.  Era  impossível  arrancar-lhe  uma  pala- 
vra, provocar-lhe  um  movimento. 

No  dia  seguinle  a  alvorada  invadindo  com  seus 
mágicos  clarões  o  aposento  de  Chrislina,  veio  en- 
contral-a  mais  repoisada  das  lutas  do  espirito  em 
que  duianlc  a  noite  se  debattera.  No  seu  rosto 
pallido  havia  uma  doce  serenidade,  como  se  a  es- 
perança animasse  aquelle  pobre  coração!  Parecia 
resignada.  Por  entre  os  lábios  saia-lhc  o  susurro 
das  orações.  Dir-se-ia  que  uma  inspiração  divina, 
provocada  pela  fé  viva  d'aquella  alma,  descera 
sobre  a  infeliz  para  lhe  fazer  encontrar  remédio 
nas  consolações  religiosas  dos  que  recebem  o  in- 
fortúnio das  mãos  de  Deus,  e  se  lhe  curvam  sub- 
missos, como  a  decretos  da  Providencia,  cujas  in- 
tenções não  é  dado  á  crealura  discutir,  nem  ave- 
riguar ! 

A  resignação,  porém,  era  apparenle. 

Aquella  serenidade  exterior  repousava  no  de- 
sespero de  uma  resolução  tremenda. 

Pedio  que  a  deixassem  só  porque,  dizia  cila, 
queria  chorar  livremente;  mas  quando  horas  de- 
pois voltaram  ao  quarto  já  não  a  encontraram 
Tinha   saído    sem  ser  vista,  e  foi   debalde,  que 
D.  Thereza  expedio  criados  em  busca  d'ella. 

Um  pescador  que  pelo  cair  da  tarde  se  approxi- 
mou  da  costa  e  olhou  para  a  Bocca  do  inferno, 
vio  um  pedaço  de  vestido  branco  preso  a  uma 
ponta  da  rocha.  Lá  em  baixo  não  havia  mais  ves- 
ligios  —  a  onda  varre  quanto  lá  encontra. 

Mas  na  madrugada  foi  visto  passar  distante  da 
praia  um  cadáver  boiando  à  mercê  das  ondas. 

Lm  barco  tripulado  por  quatro  homens  foi  ao 
alcance  do  cadáver.  1'^ra  já  noite  cerrada  quando 
volveram  á  praia.  As  vagas  estiravam-se  espumo- 
sas sobre  a  areia,  e  o  desembarque  foi  diílicil; 
mas  á  luz  de  alguns  archotes  os  quatro  homens 
levantaram  nos  braços  um  vulto  de  mulher,  en- 
volto em  roupagens  brancas,  com  os  loiros  cabei- 
los  soltos  c  alagados. 

Era  o  cadáver  da  pobre  Chrislina. 

E  a  tempestade  não  seienára  ainda;  c  o  mar 
rugindo  na  sua  cholera  tremenda  por  entre  os  ro- 
chedos da  Jiovra  do  inferno,  preludiava  um  hymno 
de  morte,  hymno  solemne  e  lerrivcl,  á  |)obre  mar- 
t\r  (pie  U)\i\  no  seio  d'ellc  procurar  um  tumulo, 

A.    I)'0l1VEIU.V    PlRIíS 


o  PANORAMA 


207 


o  SOMNO  DAS  PLANTAS 

Quando  a  luz  do  eco  tinge  de  uma  côr  pura 
c  brilhante  as  flores  da  terra  ;  quando  os  prados 
se  desenrolam  ante  nossos  olhos  com  o  rico  ador- 
no da  sua  verde  relva  e  das  suas  flores;  quando 
os  insectos  alados  zumbem  por  cnlrc  estas  c  a 
leve  mariposa  lhes  rcvokitea  em  torno ;  então 
sentimos  pezar  que  a  noite  estenda  o  seu  negro 
manto  sobre  este  vasto  quadro  da  natureza  c  que 
divida  por  um  entreacto  mysterioso  o  grande 
drama  do  mundo. 

O  homem  destinado  a  assistir  a  este  sublime 
espectáculo  descansa  apenas  desapparece  o  sol 
no  horisonte,  do  mesmo  modo  que  aquelles  se- 
res;  deixa  suas  sensações  para  o  dia  seguinte  e 
dorme  tranquillo  ou  agitado  por  ambiciosos  de- 
sejos. 

Não  turbemos  o  seu  socego;  vamos^  porém^  aos 
campos  em  uma  noite  de  estio:  corramos  as  col- 
linas  e  os  prados  cobertos  de  flores,  que  antes 
tanto  nos  haviam  chamado  a  attenção,  ou  va- 
mos debaixo  da  abobada  sombria  dos  bosques 
seculares,  que  durante  o  dia  servem  para  resguar- 
dar do  ardor  do  sol.  Não  temamos  cousa  algu- 
ma n'este  passeio,  pois  de  noite  não  são  os  sen- 
tidos que  nos  produzem  as  impressões:  a  alma 
é  que  sente  e  julga ;  a  estas  horas  parece  que  os 
espíritos  celestes  se  aproximam  da  terra  e  exer- 
cem sua  intluencia  sobre  os  vivos.  Ah  !  porque 
não  havíamos  de  reconhecer  esses  seres  incorpó- 
reos destinados  como  nós  a  considerar  os  prodí- 
gios da  creação  I  Porque  não  nos  havíamos  de 
entregar  aquelles  presentimentos  que  tão  raras 
vezes  nos  enganam  e  que  nos  são  suggeridos  por 
seres  superiores  ?  Se  cada  alma  pura  tem  um 
anjo  da  guarda  que  a  conduz  por  entre  os  es- 
colhos^ n'esse  caso  nada  receiemos  e  emprehen- 
damos  o  nosso  passeio  nocturno. 

O  influxo  religioso  da  noite^  começa  no  mo- 
mento em  que  o  sol  diz  «Adeos»  á  terra,  quan- 
do o  mundo  animado  lhe  envia  a  sua  sublime 
despedida. 

Então  já  não  c  Ião  puro  o  azul  do  céo ;  os  va- 
pores condensam-se  formando  leves  gases,  que 
o  zéphyro  conduz  a  seu  capricho  em  tiras  ílu- 
ctuanles,  e  que  se  reúnem  formando  um  espes- 
so véo  para  occultar  o  astro  resplandecente  no 
momento  mesmo  em  que  termina  a  sua  car- 
reira;  porém  durante  algum  tempo  inunda  de 
luz  o  horisonte  mostrando  tftdas  as  cores  desde 
a  purpura  até  á  roza.  Ligeipas  nuvens  semelhan- 
tes a  rolos  de  algodão,  desprendem-se  da  massa 
geral  c  correm  em  direcção  ao  zenith  para  alcan- 
çarem alli  o  ultimo  raio  do  astro  moribundo,  e 
o  crepúsculo  estende  suavemente  suas  sombras, 
cujos  contornos  passam  velozes  como  o  tempo  e 
fugazes  como  a  vida.  N'este  instante  cessa  o  ruí- 
do do  dia  e  não  resôa  a  voz  sublime  da  nature- 
za em  suas  distínctas  acclamarõcs^  que  se  elevara 
até  á  divindade.  A  ave  que  poisa  sobre  os  ra- 
mos flexíveis  da  madresilva  ou  se  occulta  nos 
ramalhetes  de  flores  do  espinheiro  branco,  ces- 
sou os  seus  cantos  de  amor;  os  insectos  dobra- 
ram as  suas  azinhas  debaixo  da  coberta  dourada 
que  as  occulta  e  embalados  docemente  no  cálix 
odorífero  da  flor  descançam  sob  uma  cortina  de 
purpura  e  saphira.  O  eco  já  não  repete  os  can- 
tos dos  pastores;  tudo  dorme  na  natureza;  nós, 
porém,  velaremos  junto  das  flores  que  se  acham 
sob  a  influencia  do  somno. 


No  campo,  no  bosque,  junto  ao  arroio,  no  pra- 
do, seja  qual  for  o  lugar  que  visitarmos,  por  to- 
da a  parte  encontraremos  as  plantas  adormeci- 
das; a  tempestade  falas  vergar  sem  acordal-as ; 
o  trovão  estrondea  sem  perturbar  a  sua  tranquil- 
lidadc,  a  chuva  humedece-as  sem  interromper  o 
seu  repouso.  A  delicada  sensitiva  dorme  profun- 
damente todas  as  noites;  reúne  as  suas  peque- 
ninas flores,  dobra  as  suas  largas  folhas  e  espe- 
ra immovel  que  a  luz  novamente  a  desperte.  Se 
a  agitam^  se  a  movem,  se  o  vento  sopra  com  vio- 
lência, tudo  isto  serve  só  para  prolongar  a  sua 
immobilidade  ;  o  socego,  porém,  torna-a  á  vida. 
No  trifolio  da  Índia,  descoberto  em  1777  por  la- 
dy  Monson  era  Bengala,  em  um  dos  pontos  mais 
ardentes  e  húmidos  do  grande  delta  do  Gan- 
jes,  a  noite  parece  exercer  uraa  influencia  ainda 
raaior. 

Cada  ramo  d'esta  sensível  leguminosa  tem  três 
folhas  como  o  nosso  trevo ;  no  centro  a  folha 
maior,  e  as  duas  menores  aos  lados ;  durante  o 
dia,  a  do  centro  conserva-se  horisontal  e  immo- 
vel; de  noite  inclina-se  sobre  a  haste  como  se  o 
cansaço  a  convidara  ao  repouso ;  esta  folha  per- 
manece sempre  immovel  em  quanto  que  as  duas 
dos  lados  se  iCncurvam  e  endireitam  com  uma 
mobilidade  incessante  e  incrível,  sem  empregar 
em  qualquer  d'estes  movimentos  mais  de  ura 
minuto.  Agitam-se,  elevando-se  ou  abaixando-se, 
como  uma  imagem  d'esses  seres  atormentados 
que  nunca  encontram  tranquillidade  desde  que 
nascem  até  que  morrem ;  são  inquietas  na  sua 
juventude^  como  nós,  e  moderam  os  seus  movi- 
mentos quando  a  velhice  chega,  quando  a  mor- 
te as  ameaça.  No  curso  do  dia  apenas  ha  um  ins- 
tante em  que  uma  folha  está  parada  em  quan- 
to a  outra  continua  o  seu  movimento.  O  vento 
suave  dobra  o  talo  da  planta  sem  perturbal-a 
na  sua  agitação^  porém  a  tempestade  torna-a 
immovel.  A's°  vezes  o  calor  suffocante  d'aquel- 
les  paizes  fal-a  descansar  ura  raomento  como 
SC  fora  uma  sesta  e  então  ambas  as  folhas  flcam 
tranquillas.  O  hedysarjim  gyrans  conserva  uraa 
parte  da  sua  actividade  era  nossas  regiões  du- 
rante o  inverno;  longe,  poréra,  do  sol  abrasa- 
dor da  sua  pátria,  longe  do  ar  húmido  d"aquel- 
les  pântanos,  os  seus  movimentos  são  mais  len- 
tos e  menos  regulares  e  teem-se  visto  ás  vezes 
no  seu  desterro  entregarera-se  a  largas  horas  de 
somno. 

Tudo  é  prodigioso  debaixo  do  lindo  céo  da  ín- 
dia ;  alli  também  se  encontra  uma  arvore  gran- 
de da  mesma  família  da  sensitiva,  cujas  flores  e 
folhas  dormem  e  velam  alternativamente,  como 
se  entre  arabos  os  órgãos  existira  uraa  espécie  de 
aversão  a  agitarera-se  e  a  viverem  ao  mesrao 
tempo. 

Mas  não  necessitamos  ir  ião  longe  para  buscar 
exemplos  de  phenoraenos  tão  estranhos ;  visite- 
raos  de  noite  os  nossos  bosques  e  os  nossos  pra- 
dos; vamos  á  selva  silenciosa  quando  está  allu- 
niiada  pela  luz  prateada  da  lua,  que  penetra  por 
entre  a  folhagem,  e  prestes  veremos  como  ha  mu- 
dado o  aspecto  de  todas  as  plantas. 

Os  trifolios  uniram  as  suas  folhas,  que  dormem 
em  seus  largos  talos;  a  terna  oxalida  inclinou 
as  suas,  que  dormem  cansadas  da  sua  actividade 
diurna.  As  folhas  da  armoles  reclinam-se  sobre 
os  seus  renovos  e  descansara ;  as  onágras  tão 
comrauns  nas  margens  dos  rios^  unem  pela  noi- 


208 


O  PANORAMA 


te  as  suas  folhas  superiores  formando  uma  espé- 
cie de  docel  debaixo  do  qual  a  flor  pôde  dor- 
mir ou  velar  a  seu  gosto ;  as  malvaceas,  com  as 
suas  flores  de  um  dia,  adormecem  e  abandonam- 
se  descuidadas  sobre  a  sua  hasle  e  no  dia  seguin- 
te levantam-se  novamente. 

Em  outras  partes  vemos  enrolarem-se  as  folhas 
das  malvas  com  as  suas  bellas  flores  de  còr  de 
lilaz  c  aproximarem  se  d"estas  ao  tempo  do  re- 
pouso. 

Quando  ao  anoitecer  as  ervilhas  de  cheiro  dos 
nossos  jardins  despedem  as  suas  aromáticas  ema- 
nações, então  unem  as  suas  folhas  umas  ás  ou- 
tras e  no  meio  d'aquelle  perfume  delicioso  caem 
em  profundo  somno. 

A  colutea  tem  folhas  que  pela  noite  se  separam 
das  flores  e  que  descansam,  como  as  sensitivas 
unindo  a  parte  exterior.  Em  uma  multidão  de 
plantas  vè-se  que  as  folhas  servem  como  que  de 
resguardo  ás  flores  e  que  estas  não  dormem  em 
quanto  se  não  acham  protegidas  por  aquelle  abri- 
go: assim  succede  com  o  formoso  loíits  oníilltopo- 
díoides,  no  qual  Linneo  observou  pela  primeira  vez 
o  somno  das  plantas  e  vio  que  as  trcs  folhas  que 
formam  o  seu  involtorio  se  levantavam  quando  a 
planta  dormia  para  protegerem  completamente 
as  suas  três  flores  finaes.  Em  outras  plantas,  pelo 
contrario,  as  folhas  elevam-se  scparando-se  da 
flor,  voltam-se  e  dormem  deitadas  sobre  o  re- 
verso. No  lupinus  albus,  vô  se  esta  singular  dis- 
posição em  algumas  partes  dos  Pireneos  onde 
esta  "planta  e  o"  trifolio  roxo  se  cultivam  juntos 
formando  preciosos  quadros  em  que  as  flores 
brancas  do  lupinus  estão  entrelaçadas  com  as 
ílores  carmineas  do  trevo  ;  mas  de  noite  tudo 
muda;  o  lupinus  parece  ter  perdido  as  suas  fo- 
lhas e  o  trifolio  não  mostra  ílòr  alguma;  o  rico 
matiz  que  anies  apresentavam  não  se  conhece 
quando  dormem. 

[Continua) 

O  SECUIO  XVIII 

Alguns  homens  denominam  scculo  das  riiinas  o  século 
passado;  cu  cliarmar-lhe-ia  anles  o  século  do  mau  rjoslo 
c  deixaria  fallar  os  que  d'elle  dizem  mal,  não  percebendo 
que  mordem  no  seio  da  sua  nulrix.  Jocão  Raplisla  ^'ic- 
colinc  dizia  um  ília  a  um  d'ep«es  vaidosos  e  ingratos  íillios 
do  século  ultimo:  <>  Vós  fazeis  como  o  pigmeo  que,  depois  de 
ler  suliido  aos  hombros  do  gigante,  para  ver  mais  longe, 
balc-llie  na  cabeça,  grilando-llic;— Vejo  melhor  do  que  tu. 
—  Ao  que  o  giganlc  poderia  responder:— ISão  dirias  isso 
se  te  não  tivesses  empoleirado  nas  minhas  costas. v 


CONTO  INDIANO 

Em  uma  cidade  situada  nas  mai'gens  do  Gan- 
ges vivia  iim  religioso  mendigo  (jiie  linha  feito 
publicamente  o  voto  de  nunca  fallar.  Um  dia  pe- 
dindo esmola  á  porta  de  um  negociante  abastado, 
a  filha  d'cste  veio  pessoalmente  lrazer-lli'a.  O 
mendigo  deslumbrado  jiela  belleza  d'esla  menina, 
disse  comsigo  : 

—  Eis  aijui  a  espo.sa  que  os  deuses  me  deveriam 
ter  dado. 

Uelirou-se  mui  perluibado.  Ouiz  expcllir  csle 
pensamento  da  imaginação ;  mas  não  ponde.  Fi- 
nalmente, exclamou : 


—  Um  enle  de  Ião  rara  formosura,  de  qualida- 
des tão  distinctas,  não  é,  certo,  para  um  miserá- 
vel como  eu  ;  mas  se  podesse  conduzi l-a  ao  tem- 
plo !  obieria  facilmente  dos  brahmanes  a  cerimo- 
nia que  a  uniria  ])ara  sempre  á  minha  sorte. 

Aferrado  a  tão  abominável  desígnio,  foi  nova- 
mente pedir  esmola  á  poria  do  negociante,  e  saindo 
este  na  occasião  com  sua  lilha,  o  mendigo  come- 
çou a. grilar,  apezar  do  seu  volo : 

—  O  desgraça  !  ó  desgraça  ! 
E  afastou-se. 

O  negociante,  impressionado  deveras,  seguio-o, 
e  logo  (jue  se  acharam  sós : 

—  Porque  faltaste  ao  teu  voloe  pronunciaste  pa- 
lavras tão  aterradoras? 

O  mendigo  respondeu  : 

—  Tua  lilha  veio  ao  mundo  sob  oinlluxod'uma 
desgraçada  esírella.  Logo  Cjue  ella  casar,  lu,  lua 
mulher  e  teus  íilhos  morrerão.  Onando  a  vi  e  co- 
nheci o  seu  destino  experimentei  tal  dor  (tens  sido 
tão  caritativo  paia  comigo  !)  (jue  não  pude  conter 
a  voz.  Faltei  ao  meu  voto  por  tua  causa.  Queres 
fugir  ao  perigo  que  le  ameaça?  Esta  noite,  melle 
tua  lilha  em  uma  caixa,  sobre  a  qual  poiás  uma 
tocha  accesa,  e  abandona-a  á  corrente  do  Gan- 
ges. 

O  negociante  muito  assustado  promelteu  de  se- 
guir o  conselho  ;  e,  logo  que  veio  a  noite,  esíe  pai 
crédulo  fez,  derramando  uma  torrente  de  lagrimas, 
o  que  o  mendigo  lhe  dissera. 

Entretanto  o  hypocrita  disse  a  dois  homens  da 
sua  casta,  que  lhe  eram  dedicados : 

—  ide  ás  margens  do  Ganges.  Alii  vereis  fluc- 
luar  uma  grande  caixa  com  uma  luz  em  cima.  Tra- 
zei-a  diante  da  poria  do  templo;  eu  vos  precede- 
rei ;  mas,  não  vos  atrevais  a  abril-a,  ainda  mesmo 
que  de  dentro  vos  fallem. 

Antes  d'esles  iiomens  chegarem  ao  lugar  indi- 
cado pelo  mendigo,  um  mancebo,  que  linha  ido 
tomar  banho  no  rio,  vendo  brilhar  uma  luz  so- 
bre as  aguas,  ordenou  aos  seus  servos  que  fossem 
examinar  o  caso  un.  pouco  estranho.  Piesles  veio 
a  caixa  para  leria ;  e  o  mancebo  abrindo-a,  qual 
não  foi  a  sua  admiração  ao  ver  a(|uelia  encanta- 
dora menina,  que  afíula  respirava  1  Sem  mais  re- 
flexão mandou  ineller  na  caixa  um  macaco  selva- 
gem, accendeu  o  archote,  e  lançou-a  no  rio.  A 
menina,  recobrando  vida,  respondeu  ás  perguntas 
do  mancebo,  que  a  conduziu  immediatamente  a 
casa  de  seus  pais 

Chegam  depois  os  dois  homens.  Avistam  a  luz, 
agarram  a  caixa  e  apresenlam-na  ao  mendigo  que 
se  apressa  a  abril-a.  Logo,  sae  o  macaco  furioso, 
e  lança-se  ao  mendigo,  rasgando-lhe  o  nariz  e  as 
orelhas  com  as  unhas  e  os  dentes. 

No  dia  seguinte  Ioda  a  genle  da  cidade  sabia 
d'esla  estranha  aventura  c  ria  gostosa  do  castigo 
que,  por  ser  mau,  o  mendigo  havia  soíTrido.  De 
outro  lado,  o  negociante  foi  muito  feliz:  a  sua  que- 
rida lilha,  denho  em  pouco  tempo,  casou  com  o 
joven  G  nobre  indio  que  a  linha  salvado. 

Typ.  Franco-Pottugueza.  Rua  do  Thesonro  velho,  C 


27 


o  PANORAMA 


209 


O  PALÁCIO  DAS  CORTES 

De  todas  as  ordens  religiosas  do  Occidente,  a 
mais  importante,  a  que  maiores  serviços  prestou 
ao  christianismo  foi,  indubitavelmente,  a  ordem 
dos  Benedictinos.  A  sua  fundação  devc-se  a  S. 
Bento  de  Nursia,  varão  de  raras  virtudes,  que 
pelos  annos  529  mandara  construir  no  monte 
Cassino,  em  Nápoles,  ura  convento,  que  logo  de- 
nominou dos  Benedictinos. 


A  regra  d'esta  utilíssima  instituição  era  uma 
escolha  dos  melhores  regulamentos  observados 
nos  mosteiros  do  Oriente ;  tinha  por  fim  prin- 
cipal prevenir  os  inconvenientes  da  vida  pura- 
mente contemplativa  e  fazia  do  trabalho  um  de- 
ver. Esta  regra  foi  considerada  de  modo  tal  su- 
perior a  todas  quantas  até  então  haviam  regido 
o  clero  regular,  que  os  frades  não  quizeram  ou- 
tra; d'ali  em  diante,  as  abbadias  tornaram-seem 
verdadeiras  colónias  agrícolas,  e,  se  nos  permit- 


Palacio  das  Cortes 


tem  a  expressão,  verdadeiras  colónias  intelle- 
ctuaes,  disseminadas  nos  paizes  os  mais  selva- 
gens para  ahi  ensinarem  o  trabalho  e  derrama- 
rem todos  os  fructos  da  civilisação  christã. 

Não  se  prolongou,  porém,  por  muito  tempo 
essa  dedicação,  esse  exemplar  procedimento  com 
que  os  monges  benedictinos  penetraram  os  um- 
braes  do  mundo  christão,  que  deram  lugar  a  que 
a  sua  ordem  attingisse  o  mais  elevado  grau  de  es- 
plendor e  opulência  e  se  tornasse  a  mais  respei- 
tada de  todas  as  instituições  monásticas;  infeliz- 
mente, como  quasi  todas  as  outras  ordens  reli- 
giosas, a  de  S.  Benlo  começou  a  proceder  tão  ir- 
regularmente, a  commetter  abusos  taes,  que  des- 
caio muitíssimo  do  conceito  em  que  a  tinham 
todos  os  povos ;  e,  apezar  das  diversas  reformas 
que  depois  sofireu,  nunca  mais  poude  readquirir 
o  seu  antigo  credito  e  grandeza. 

Mas,  o  nosso  fim,  não  é  escrevermos  a  his- 
toria d"esla  ordem  ;  e  se  acerca  d'ella  traçamos 
meia  dúzia  de  linhas,  é  porque  tem  toda  a  rela- 
ção com  o  assumpto  de  que,  mui  resumidamen- 
te, vamos  fallar. 

A  primeira  casa  conventual  que  os  Benedicti- 
nos tiveram  em  Lisboa  foi  edificada  no  sitio  cha- 
mado hoje  Largo  da  Estreita.  Concorreu  para  a 
sua  construcção  o  cardeal  infante  D.  Henrique, 
a  quem  o  abbade  geral  e  reformador  da  ordem, 


frei  Pedro  de  Chaves,  propoz  a  fundação  de  um 
mosteiro  de  S.  Benlo,  em  Lisboa.  Até  então  os 
monges  d'esla  ordem,  que  tantos  conventos  ti- 
nham edificado  nas  províncias  de  Portugal  des- 
de o  século  onze,  não  possuíam  casa  na  capital. 
Levou  dois  annos  a  fabricar  a  egreja  com  acom- 
modações  para  trinta  monges;  e  foi  na  noite 
de  Natal  de  lo7;^  que  n'ella  se  celebrou  a  pri- 
meira Missa. 

Em  lo97,  porém,  resolveram  os  benedictinos, 
em  capitulo  geral,  fundar  um  outro  convento 
que  mais  próximo  ficasse  da  cidade,  e  em  sitio 
mais  benigno  que  não  o  da  Estreita,  por  ser  con- 
tinuadamente mui  castigado  pelos  ventos  que  ali 
li  circulam.  Não  dista  muito  o  lugar  escolhido 
l>ara  esta  segunda  fabrica ;  mas,  não  obstante, 
avantajava-sc  ás  condições  da  primeira,  porque, 
por  uma  parle  se  pode'  dizer  que  ficava  no  cam. 
po,  condição  requerida  pela  profissão  da  vida 
monachal ;  e  por  outra,  como  estava  assas  pró- 
ximo da  cidade,  mais  facilmente  podiam  os  ha- 
bitantes visitar  a  egreja,  e  procurar  os  padres 
do  convento.  Tomou  conta  da  obra  o  celebre 
architecto  Balthazar  Alvares,  que  tanto  se  tinha 
já  distinguido  em  muitas  obras  de  vulto ;  e  le- 
vanlou-se  o  edificio  de  S.  Bento,  tal  como  o  ve- 
mos, e  não  como  deveríamos  vér,  porque  uma 
parte  ficou  em  desenho.   Foi  superintendente  o 


210 


O  PANORAMA 


padre  frei  Pedro  Quaresma,  o  qual,  sendo  geral 
da  congregação  o  mui  reverendo  frei  Balthazar  de 
Braga,   deu  principio  á  obra   no  anno   de  1598. 

Tudo  parece,  pelo  menos  para  a  cpocha  d"es- 
ta  grandiosa  fundação,,  apropriado  e  previdente 
na  traça  geral  do  edifício,  em  cuja  frente  se  es- 
tende um  vasto  largo.,  para  dar  lugar  a  muitas 
carruagens,  cercado  n"esse  tempo  de  um  muro 
com  duas  portas,  que  de  noite  se  fechavam  euma 
das  quacs  olhava  para  o  frontcspicio  da  egreja^  e 
a  outra,  coUocada  a  um  lado  da  frontaria,  olha- 
va para  o  sul. 

Todos  conhecem  o  edifício  de  S.  Bento,  por 
isso  achamos  prolixo   e  supérfluo'  descrevcl-o. 

Este  edifício  foi  um  dos  raros  que  o  horrível 
terramoto  de  17oo  respeitou  completamente.  As 
modificações  que  hoje  apresenta  são  poucas  e 
datam  ác  1834,  em  que  pela  extincção  das  or- 
dens religiosas  se  destinou  o  convento  para  pa- 
lácio das  cortes,  arborisando-se  parte  do  largo, 
que  em  1852  se  terraplenou,  e  fazendo-se-lhe  a 
bella  cortina,  que  hoje  vemos,  com  os  dois  largos 
e  magestosos  lances  de  escadaria  de  pedra^  para 
a  rua  de  S.  Bento. 

No  extincto  mosteiro,  também  se  acha  o  ar- 
chivo  nacional  ou  torre  do  tombo,  que^  do  Cas- 
tello  de  S.  Jorge,  para  ali  se  mudou  em  1755; 
e  modernamente  a  repartição  geodésica  e  topo- 
graphica  do  reino,  de  que  é  dignissimo  director 
o  sr.  Filippe  Folque. 

A  nossa  estampa  dá,  pouco  mais  ou  menos,  uma 
idéa  d'esle  notável  e  histórico  edifício.  Em  quan- 
to ás  obras  recentemente  principiadas  na  parte 
de  oeste  nada  diremos,  porque  a  opinião  que  te- 
mos acerca  do  modo  porque  a  sua  fabricação 
correu  não  poderia  deixar  de  ser  inconveniente 
para  a  Índole  e  programma  d'esta  folha. 


VOLTAIRE 

(Conclusão) 

Procurámos  mostrar  em  rápidos  lineamentos  as 
principaes  feições  do  poeta  da  Zaira;  sendo  a 
nossa  missão  consideral-o,  principalmente,  em  re- 
lação ao  papel  que  lhe  coube  na  litleralura  fran- 
ccza  do  século  18.%  indicámos  de  leve  o  j)cnsa- 
menlo  salutar  da  sua  philosophia,  a  sua  influen- 
cia, e  os  resultados  (jue  derivaram  d'ella,  por  nos 
parecer  que  a  apreciação  de  um  escriplor,  como 
Voltaire,  ficaria  incompleta  se  lhe  não  buscásse- 
mos, primeiro,  as  verdadeiras  crenças  e  os  Ínti- 
mos intuitos.  Agora  pouco  mais  nos  resta.  Não  é 
n'uma  tentativa  humilde  que  podem  caber  as  lar- 
gas considerações  e  os  profundos  raciocínios;  de- 
mais, o  espirito  de  Voltaire  abrangeu  uma  tão 
grande  área  de  conhecimentos,  produzio  um  ta- 
manho numero  de  trabalhos  diversos,  que  mal  os 
poderíamos  apresentar  em  catalogo,  lia  muito 
que  a  boa  critica  se  occupa  d'este  vulto  eminente; 
os  doestos  de  sacristia,  as  imjjrecações  fi^adescas, 
as  excommunhões  que  os  synodos  de  beatas  ve- 
lhas e  de  ii'mãos-terceiros  haviam  lançado  sobre 
o  auclor  do  Diccionurio  p/iilosoji/iico,  leeni-se  su- 
mido de  lodo.  Hoje  em  dia,  a  razão  dos  povos, 
mais  esclarecida  c  mais  lúcida,  principia  a  com- 
jjiehender  o  nue  ha  de  respeitável  n'esles  revolu- 
cionários sublimes,  c  a  saber  que  a  única  benção 


de  que  a  humanidade  carece  é  d'aquella  que  o 
próprio  Voltaire  deitou  ao  neto  de  Franklin:  nGod 
and  Libcrlij!)-) 

Terminaremos,  pois,  este  bosquejo  relanceando 
o  olhar  pelas  obras  históricas  do  grande  homem ; 
convém  mesmo  averiguar  se  Voltaire,  couio  historia- 
dor, pôde  entrar  na  primeira  linha  dos  que  tra- 
balham em  laes  assumptos,  ou  se  apenas  foi  um 
compilador,  sem  a  agudeza,  a  lógica,  o  largo  tra- 
ço, a  concalenação  nas  idéas,  tudo,  emfim,  que 
deve  ser  allribulo  de  quem  ousa  afastar  a  sombra 
dos  séculos  do  vasto  edifício  do  passado. 

Chaleaubriand  disse  d'elle  as  seguintes  pala- 
vras: (c — Voltaire,  c'est  pcut-éfre  encore,  après 
Bossuet,  le  premicr  hislorien  de  la  France.-» — 
Semelhante  gabo  na  bocca  de  um  homem  tão  in- 
suspeito como  o  auclor  do  Génio  do  Chrislia- 
nismo,  bastaria  de  per  si  para  firmar  os  credilos 
d^aquelle  que  o  recebe;  é  bom,  comludo,  descer- 
mos um  pouco  á  analyse,  e  vermos  ainda  o  que 
o  après  Bossuet  pôde  significar  rigorosamente. 

O  que  é  o  Discurso  sobre  a  historia  universal? 
O  próprio  Chaleaubriand  que  se  encarregue  de 
nol-o  dizer:  —  «A  primeira  parle  d'elle  é  admi- 
rável pela  narração,  a  segunda  pela  sublimidade 
do  eslylo  e  elevado  alcance  das  idéas,  a  terceira 
pela  graviéade  das  reflexões  moraes  e  politicas.» 
—  Eis  o  conceito,  eis  o  juizo,  eis  a  sentença  do 
mestre.  Quando  se  trata  da  exposição  dos  fados, 
conhece-se  n'esse  livro  a  segura  facilidade  do  ho- 
mem para  quem  os  successos  remotos  são  como 
que  aconlecimenios  presentes ;  ((ue  os  relata  com 
aquella  fluência  que  só  vem  das  íntimas  fonles 
do  saber  e  do  talento.  Depois,  o  eslylo  levanla-se; 
o  que  era  apenas  esboço  converle-se  em  mages- 
foso  quadro;  os  olhos  recream-se  pelas  magnifi- 
cências de  um  colorido  harmonioso,  e  o  espirito 
começa  a  j)rofundar  as  secretas  disposições  ([uc 
prepararam  as  cousas.  Mas,  porque  ha  de  avultar 
sempre,  em  meio  dos  maiores  impérios  e  dos 
maiores  succedimenlos,  uma  raça  de  homens  er- 
radios e  pequenos?  Porque  ha  de  voltear  em  tor- 
no d'elles,  como  em  torno  de  um  grande  princi- 
pio, ludo  o  que  foi  mais  nobre  e  mais  sublime! 
Eis  a  macula  capital  de  Bossuet;  eis  o  defeito 
que  lhe  aponla  V.  Cousin.  Na  historia  da  huma- 
nidade não  se  pôde  encarar  exclusivamente  um 
simples  elemento;  é  preciso  tratar  de  lodos  que 
formaram,  pelo  seu  conjuncto,  a  harmonia  social, 
e  que  levaram  os  homens  alravez  de  lodos  os  sé- 
culos e  de  todos  os  aperfeiçoamentos. 

Bossuet,  pelo  seu  caracter,  pelo  seu  século, 
pela  sua  posição  especial,  vio  a  historia  sob  o 
ponto  Iheologico,  fez  reflectir  sobre  elía  a  acção 
constante  de  Deus,  agruj)ou  em  volta  da  religião 
lodos  os  acontecimentos,  dando,  por  este  modo, 
ao  seu  trabalho  um  optimismo  incessante.  Er- 
gue-sc  o  povo  judeu,  e  na  pcnumbi-a  do  seu  vulto 
pcrdemse  todas  as  nacionalidades;  apparece  o 
mosaismo,  e  nas  j)aginas  dos  seus  livros  escon- 
(lem-sc  todas  as  i-eligiões,  mais  ou  menos  vaslas, 
que  formam  o  cullo  do  universo;  espraiam-se  os 
olhos  procurando  a  iramensidade,  e  os  olhos  pa- 


o  PANORAMA 


214 


ram  nos  curtos  limites  d'Israel !  Bossuet  escreveu, 
não  uma  historia  universal,  mas  a  historia  do 
povo  judeu,  considerada  em  relação  com  a  hislo- 
ria  dos  outros  povos.  Sei-o,  sim,  sei  que.  esse 
povo  foi  maravilhoso;  mas  n'um  quadro  geral, 
n'um  quadro  de  todos  os  homens,  o  que  é  elle 
jiara  os  Assyrios,  para  os  Persas,  para  os  Egyp- 
cios,  para  os  (li egos,  para  os  Romanos?  Como 
poderá  absorver  e  eclypsar  esses  impérios  gran- 
diosos onde  ao  lado  da  força  brutal  e  da  ostenta- 
ção fastosa  radiam  as  alvoradas  eternas  dos  des- 
cobrimentos? 

No  quadio  dos  povos,  o  hebreu  deve  apparecer 
como  lodos;  mas  não  erguer  em  meio  d'elles  a 
milagrosa  columna  do  deserto,  para  se  collocar  a 
si  do  lado  em  que  a  luz  brilha,  deixando  o  resto 
da  humanidade  coberta  pela  escuridão  da  noite. 

Voltaire  firmou  a  historia  no  seu  verdadeiro 
terreno;  deitando  a  vista  pelos  largos  horizontes 
das  nações,  vio-lhes  os  costumes,  o  espirito,  as  ar- 
tes, as  sciencias,  as  leis,  a  administração  pu- 
blica, tudo  o  que  conslilue  a  vida  dos  povos,  e 
sem  o  que  não  poderá  ser  útil  a  historia.  Do  seu 
Ensaio  é  que,  até  certo  ponto,  proce:le  a  escola 
ingleza,  a  cuja  frente  se  inscrevem  os  nomes  de 
Jíume,  de  Gibbon  e  de  Robertson.  Accusaram-no 
então  de  frivolo  como  diz  Condorcet,  por  ser  cla- 
ro ;  de  inexacto,  porque  este  ou  aquelFe  erro  de 
data  se  encontrava  em  lavor  de  tamanho  fôlego; 
de  parcial,  porque  soube  assentar  o  látego  sobre 
os  enormes  feitos  do  despotismo  sacerdotal. 

—  <íL'auteur  n\i  pcut-êlre  à  se  reprocher  que  de 
n'en  avoir  pas  asse:-  dit;sj  —  escrevia  elle  n'uma 
replica  graciosa  a  não  sei  que  fanático  da  época ; 
a  posteridade  fez  justiça,  e  entre  os  maiores  his- 
toriadores modernos  deu  lugar  honroso  ao  auctor 
do  Ensaio  e  do  Século  de  Luiz  14.°  Antes  d'elle, 
Bossuet,  como  já  dissemos,  havia  traçado  com  o 
seu  admirável  eslylo  de  propheta  a  historia  do 
povo  de  Deus,  mas  historia  circumscripta,  sem  a 
profunda  obseivação  philosophica,  nem  o  estudo 
do  intimo  viver  dos  povos;  no  Discurso,  o  que 
prepondera  é  a  eloquência.  Voltaire  veio,  e  sem 
roubar  á  historia  as  galas  da  elocução  nem  tam 
pouco  as  florescencias  imaginosas,  tornou-a  mais 
(Mitranhadamente  observadora,  fel-a  apreciar  me- 
lhor os  factos,  confiou-lhe  um  poder  mais  amplo. 
Os  povos,  desfilando  ante  esse  juiz  perscrutador 
e  recto,  sentiram-se  inundados  pela  viva  luz  do 
seu  olhar;  os  cancros  e  as  torpezas  tiveram  de 
ostentar  a  sua  hediondez  repugnante. 

Tal  foi  em  resumo  Voltaire,  o  maior  génio  do 
século  18.°  Espirito  de  uma  vastidão  incalculável, 
lucta  com  Euler,cria,  por  assim  dizer,  em  França 
o  poema  épico,  corôa-se  com  os  louros  de  Racine 
c  de  Corneille,  dá  a  mão  a  Diderot  e  a  d'Alemberl 
para  levantarem  o  templo  da  redempção  social, 
escreve  o  Diccionario  p/iilosophico,  esse  soberbo 
repositório  de  todos  os  conhecimentos,  trava  da 
lyra  horaciana  e  desfere-lhe  os  sons  mais  melo- 
diosos, escreve  Cândido,  esse  modelo  de  humo- 
rismo, estende  uma  das  mãos  a  Frederico  da 
Prússia  e  outra  a  Parny,  isto  é,  encaminha  a 


realeza  com  a  auctoridade  do  seu  conselho,  c 
educa  a  poesia  com  a  delicadeza  do  seu  gosto, 
porfia  em  dotar  a  humanidade  com  as  obras  mais 
valiosas,  ate  que  em  fim,  prostrado  pelos  seus 
trabalhos  hercúleos,  descança  na  immorlalidade. 
Na  vida  de  Voltaire,  sejamos  em  tudo  justos, 
ha  duas  maculas  capitães,  duas  maculas  de  que  o 
próprio  V.  ITugo  não  ousa  ainda  hoje  remil-o,  e 
que  lhe  hão  de  ficar  indeléveis :  o  seu  poema  a 
Pucelíe,  e  as  suas  affrontas  a  Shakespeare.  A 
gargalhada  do  sarcasmo  pôde  ser  bella  em  face 
do  jesuita  Nonotte,  do  poeta  Rousseau,  de  la 
Beaumelle,  ou  ainda  mesmo  do  bárbaro  Crébillon ; 
mas  é  sempre  imperdoável,  quando  com  ella  se 
lenta  aviltar  o  génio  e  menoscabar  a  virtude. 

E.  A.  Vidal. 


O  SOMNO  DAS  PLANTAS 

Mas,  ^em  que  consiste  essa  grande  differença 
entre  o  liipiniis  c  o  trifolio?  ,;, porque  tendências  tão 
dislinctas  entre  duas  plantas  da  mesma  familia? 
(í,  porquê  essa  anlipathia  ?  A  uma  delias  fal-a  cres- 
cer o  orvalho  ^ poderá  prejudical-a  tanto  á  outra 
que  tenha  necessidade  de  resguardar-se  d'elle  ? 

Se  em  os  nossos  paizes  é  tão  grande  a  differen- 
ça entre  o  dia  e  a  noite  no  estado  das  plantas, 
esta  diíTerença  é  muito  maior  nos  paizes  inter- 
troplcaes;  pela  tarde  começam  já  seus  movimen- 
tos regulados  pelo  astro  que  desce,  cujos  últimos 
resplendores  allumiam  ainda  no  curto  crepús- 
culo o  momento  do  seu  breve  adormecimen- 
to. As  miraosas  e  os  tamarindos  da  America  (plan- 
tas que  dormem  muito)  fecham  as  folhas  25  ou 
30  minutos  antes  do  pôr  do  sol  e  não  as  abrem 
senão  muito  tempo  depois  da  apparição  do  bri- 
lhante astro  do  dia. 

Em  S.  Jeronymo  e  outros  pontos  da  America 
meridional  enc"ontram-se  nos  campos,  entre  a 
herva,  uma  multidão  de  plantas  da  familia  das 
sensitivas  que,  abatidas  pelo  calor  do  dia,  ador- 
mecem de  tarde  antes  do  sol  posto,  pelo  que  se 
lhes  deu  o  nome  de  dormideiras.  Os  animaes  que 
frequentam  aquelles  lugares  procuram  com  ardor 
aquellas  plantas.  Se  durante  o  dia  alguma  delias 
é  destroçada  por  algum  animal  faminto,  deixa-se 
cair  por'  terra  em  seguida  e  communica  a  sua 
sensação  ás  visinhas,.  de  modo  que  annuncia  o 
perigo ;  e  vêem-se  então  as  pobres  flores  agita- 
rem-se  c  cairem  sem  poderem  fugir  á  morte. 

Vêem-se  também  plantas  dormir  como  os 
animaes  e  este  somno  põe-nas  em  um  estado  mui 
próximo  do  da  sua  infância.  O  renovo  recorda  con- 
fusamente como  estava  dobrado  quando,  antes  de 
abrir,  jazia  no  somno  lethargico  do  invernOjin- 
vollo  suavemente  e  resguardado  do  frio  pela  sua 
impenetrável  capa,  e  todas  as  noites  trata  de 
procurar  a  sua  antiga  postura,  como  se  sentira 
ter  perdido  a  tranquillidade  e  quizesse  recobrar 
a  posição  da  sua  primeira  idade ;  ha,  porem,  ou- 
tras plantas  de  maior  semelhança  com  os  ani- 
maes, que  na  sua  juventude  dormem  muito  e 
cujas  folhas,  á  medida  que  envelhecem,  velam 
mais  e  vão  dormindo  pouco  até  chegarem  a  não 
dormir  e  vir  a  morte  cm  lugar  do  somno. 

Esta  propensão  ao  somno  na  infância  é  mui 
notável  na  acácia  de  Santa  Helena  (Acácia  pêndu- 
la )  Esta  planta  dorme  todas  as  noites,  como  a 


212 


O  PANORAMA 


sensitiva^  elevando  as  suas  folhas;  durante  al- 
guns mezes  apresentam-se  eslas  folhas  que  dor- 
mem ;  mas  depressa  apparecem  as  verdadeiras  fo- 
lhas, que  não  dormem  e  se  conservam  sempre  na 
mesma  posição. 

Tudo  na  natureza  se  toca  e  encadêa;  na  folha 
de  uma  pequena  planta  vemos  a  imagem  da 
nossa  própria  existência  :  a  debilidade  da  infân- 
cia e  a  frescura  da  juventude;  o  largo  somno  dos 
primeiros  annos:  logo  a  actividade  constante,  a 
falta  de  llexibilidade  e  de  somno  na  velhice,  e  a 
íranquillidade  na  morte. 

Ha  flores  cujo  somno  começa  muito  cedo  e 
acaba  muito  tarde ;  outras  teem  um  somno  que 
nada  o  interrompe  c  do  qual  lhes  custa  a  sair 
quando  está  nublado  ;  e  algumas  vezes  não  saem 
do  seu  estado  de  somnoícncia  em  quanto  a 
athmosphera  não  se  acha  completamente  pura  e 
desembaraçada. 

A  chicória  silvestre  fecha  as  suas  formosas  flo- 
res azues  ás  onze  horas  da  manhã  e  permanece 
no  mais  profundo  somno  até  ás  Ires  ou  quatro 
horas  da  larde. 

A  myosotis,  com  a  sua  dourada  flor,  abre  a  co- 
rolla  áluz,  porem  fecha-a  durante  a  força  do  sol 

As  rosas  d'agua,  com  a  sua  coroa  de  folhas  pol- 
pudas.dormcm  sobre  as  ondas,  como  as  aves  aquá- 
ticas e  não  despertam  em  quanto  não  sentem  a 
viração  da  manhã.  Yèem-se  como  açucenas  flu- 
cluantcs,  estendidas  nos  arroyos  e  nos  lagos  es- 
perando a  luz  do  dia,  para  levantarem  as  suas 
hastes,  abrirem  os  seus  cálices  e  mostrarem  lodo 
o  seu  esplendor. 

Não  é  só  em  os  nossos  paizes  que  dormem  as 
rosas  d'agua:  também  o  loto  e  o  nelumbo  que  se 
dobram  aos  ventos  nas  planícies  do  Nilo  e  do 
Ganges  e  a  magnifica  nymphacea  chamada  Vi- 
ctoha  regina,  que  adorna  o  Amazonas,  dormem 
durante  a  noite  sobre  as  mansas  ondas  do  rio  ou 
se  submergem  n'elle,  como  o  loto  egypcio,  até  que 
o  sol  fira  a  superficie  da  agua  e  acorde  o  inse- 
cto que  dorme  no  leitocôr  de  rosa,  de  alabastro 
e  de  purpura,  formado  pela  flor.  Estes  insectos 
sabem  instinctivamente  que  o  mysterioso  meca- 
nismo que  lhes  subministra  uma  morada  tão  pra- 
senleira  debaixo  d'agua,  lhes  dará  a  sua  liberda- 
de ao  sentir  o  ar  da  manhã. 

Os  rainunculos,  que  muitas  vezes  vemos  nos 
tanques  ou  nos  lagos  e  que  se  estendem  sobre  a 
agua  semelhantes  a  estreitas  brancas  como  a  ne- 
ve, cobrem  de  noite  a  espécie  de  vaso  que  con- 
tem a  sua  semente  com  uma  parte  da  mesma 
flor,  como  se  fura  com  um  véo  de  gase  ou  de  li- 
mão. 

Por  isto,  não  devia  parecer  que  durante  a  noite 
ludo  seria  silencio  e  tranquillidade,  como  se  a 
natureza  inteira  tivesse  monido,  como  se  tivesse 
cessado  o  movimenio  do  mundo?  Porem  nada 
d'isto  ha;  a  obscuridade  da  noite  está  tão  ani- 
mada como  a  manhã  com  o  sol ;  a  noite  tem  as 
suas  luzes,  seus  actores  e  sua  vida ;  a  scena  mu- 
dou, mas  o  espectáculo  não  foi  interrompido. 

As  estrellas  brilhantes  da  noite,  as  constellações 
zodiacaes  e  a  lua  allumiam  com  a  sua  luz  pra- 
teada os  mysíerios  de  amor  das  flores;  velam 
lhes  o  somno  em  quanto  o  zéj)hiro  as  eujbala 
suavemente,  até  que  a  aurora  as  desperte  e  se  nos 
apresentem  pela  rnanhã  com  toda  a  sua  frescura 
e  aspecto  agradável.  As  flores  dormem,  porem  o 
amor  das  plantas  continua  quando  csfão  acor- 


dadas, como  uma  espécie  de  somno  cuja  imagem 
enganosa  o  dia  em  vão  procura  apagar. 

Durante  a  noite  é  precisamente  que  a  maior 
parle  dos  vegetaes  exhalam  os  seus  aromas  que 
embalsamam  o  ambiente  nas  noites  de  primave- 
ra e  de  estio  e  que  o  vento  leva  a  grande  distan- 
cia. De  tarde  as  flores  preparam  os  ricos  trajos 
que  as  vestem  para  celebrarem  o  resplendor  da 
luz  da  noite,  os  mysterios  cujo  cumprimento  lhes 
impoz  a  natureza.  As  chamadas  mirabitis  esten- 
dem os  fios  do  seu  cálix  para  se  abrirem  ao  cair 
da  tarde  e  verem  afundar-se  o  sol  no  oceano.  O 
geranium  triste  começa  a  abrir  as  suas  flores  escuras 
c  cheirosas  á  hora  em  que  a  maior  parle  das  plan- 
tas da  sua  espécie  caem  no  somno ;  a  fumaria 
vela  aberta  até  ao  crepúsculo  da  manhã.  As  ro- 
sas silvestres  dos  campos,  as  ervilhas  silvestres  dos 
bosques,  as  chamadas  onágras,  que  vegetam  nas 
margens  dos  rios.  Iodas  florecem  nos  mysterios 
da  noite. 

Nunca  na  ausência  do  sol  ha  uma  calma  com- 
pleta ;  pelo  contrario,  durante  a  noite  o  ouvido 
percebe  e  distingue  mil  sonidos  que  nas  horas 
do  dia  se  confundem  e  ouvem  juntos;  a  natu- 
reza quasi  que  não  conhece  o  silencio.  Zumbe  o 
insecto  no  cálix  meio  aberto  de  algumas  flores, 
agitam-se  no  ar  essa  multidão  de  moscas  brilhan- 
tes, que  se  vcem  de  noite  nos  paizes  meridionaes, 
quando  já  no  Oriente  apparece  uma  facha  de  ro- 
sada côr,  indicio  da  aurora,  que  traz  comsigo  a 
agitação  e  o  ruido  da  vida,  que  Ycin  dominar  o 
suave  murmúrio  da  noite.  Pouco  depois  eleva  se 
magestosamente  o  astro  que  allumia  o  mundo;  as 
pérolas  do  rocio  nocturno  dissolvem-se  no  oceano 
do  ar,  o  perfume  das  flores  e  o  canto  dos  pás- 
saros com  o  hymno  da  natureza  inteira  sobem 
como  a  homenagem  da  terra  até  ao  ihrono  do 
Eterno. 

Então  as  plantas  nocturnas  inclinam-se  ou  bus- 
cam algum  abrigo  para  dormirem  resguardadas 
do  ardor  do  dia  ao  passo  que  as  outras  acordam 
e  se  adornam  com  seus  ricos  matizes. 

Assim,  cada  vegetal  tem  suas  horas  de  repou- 
so e  actividade;  porem  a  natureza  em  todas  ci- 
las manifesta  a  sua  vida  e  seu  incessante  traba- 
lho, ainda  que  este  se  ache  algumas  vezes  invol-  * 
to  no  véo  de  um  profundo  mysterio  que  a  scien- 
cia  acaso  poderá  penetrar  algum  dia. 


TRÊS  LADROES 

Trcs  ladrões,  lendo  roubado  uma  mala-postae  achando- 
sc  possuidores  de  uma  somma  considerável,  resolveram  di- 
vidir cnire  si  este  dinheiro  c  de  abandonar  para  sempre  a 
sua  criminosa  profissão.  Mas,  anlcs  de  se  separarem,  (jui- 
zeram  fazer  juntos  uma  festa.  l'm  d'elles  foi  á  cidade  pró- 
xima buscar  provisões.  Os  outros  dois,  na  sua  ausência, 
assentaram  (pie  seria  mais  agradável  dividir  a  somma  em 
duas  parles  do  (pic  em  Ires,  e  porlanto  (juando  o  compa- 
nheiro chegou,  m;»laram-n'o  ;  mas  este,  lendotido  o  mesmo 
pensamento  qne  cllcs,  l)a\  ia  envenenado  as  provisões:  co- 
meram-n'as  sem  desconfiança,  o  no  dia  seguinte  foram 
encontrados  mortos  os  Ires  iiiiseraveis. 

Entre  múos  não  é  possivcl  liavcr  coníianf.a. 


WINDSOR 

Junto  da  pequena  villa  d'este  nome,  situada 
no  condado  de  Hcrks  cm  Inglaterra,  a  trinta  c 
dois  kiloniclros  de  Londres,  na  margem  meridio- 
nal  do  Tamisa,  ergue-se  um  magnifico  palácio 


^0  PANORAMxV 


2i3 


real,  cuja  origem  remonta  a  Guilherme  o  Con- 
quistador. Pouco  tempo  depois  de  ter  tomado 
posse  da  Inglaterra,  o  audacioso  normando  cons- 
truio  esse  castello  que  Henrique  I  escolheu  para 


sua  residência  depois  de  o  ter  reconstruído  por 
um  novo  plano.  Carlos  II  concorreu  também  muito 
para  o  erabellezamento  d'esse  palácio,  que,  d'essa 
época  era  diante,  passou  a  ser  a  habitação  pre- 


Windsor 


dilecta  dos  reis  de  Inglaterra,  e  sua  residência 
habitual  durante  o  estio.  Jorge  III  principal- 
mente consagrou  a  Windsor  (onde  se  lhe  erigio 
uma  estatua  colossal)  um  affecto  muito  particu- 
lar. 

Os  paços  de  Windsor  merecem  essa  predilec- 
ção, porque,  além  de  serem  uma  residência  ver- 
dadeiramente deslumbrante,  pela  magnificência 
dos  seus  aposentos  onde  se  admiram  óptimas  pin- 
turas, estão  rodeados  por  uma  vasta  e  magniíica 
tapada.  Âdmira-se  n'elles  um  terraço,  único  do 
seu  género,  que  tem  seiscentos  e  vinte  e  três  me- 
tros de  comprimento,  c  uma  largura  proporcio- 
nada. A  vista,  que  d'alli  se  gosa,  é  soberba.  Além 
o  Tamisa  serpeando  por  enlre  a  planicie,  se- 
meada de  lindas  casas  de  campo,  de  brancas 
aldeias,  mais  perto  a  floresta  com  os  seus  um- 
brosos retiros,  os  seus  lagos  encantadores,  e  os 
seus  graciosos  pavilhões. 

A  nossa  gravura  representa  um  dos  sities  mais 
pittorescos  d"essa  tapada.  È  aquellc  onde  o  pas- 
seiante  encontra  de  súbito  o  lago  mais  formoso  e 
mais  amplo  da  floresta  real. 


A  GALATEA  MODERNA. 
YI 

D.  Tioinnfe  «"i  baroueza  ilo  Alpoilrnl. 

Minha  querida.  Torno  a  alar  o  fio  d'esla  caria, 
que  a  vinda  súbita  de  Alfredo  cortou  Ião  fura  de 


geito.  Foi-me  necessário  algum  tempo  de  repouso 
e  solidão  para  socegar  e  descançar  da  lucta. 

Era  ao  pôr  do  sol.  As  campinas  matizadas  de 
relva  resplandeciam  osculadas  pelos  derradeiros 
bruxuleios  do  sol.  As  encostas,  mosqueadas  de  es- 
pessura, ostentavam  a  sua  belleza  magestosa  e 
piltoresca.  A  brisa  do  crepúsculo  começava  os 
seus  gemidos  maviosos,  as  suas  toadas  plangen- 
tes, os  seus  rumores  angustiosos. 

Que  magesloso  espectáculo!  Estávamos  senta- 
dos junto  á  fonle.  É  um  sitio  ruslico  e  alpes- 
tre, com  sua  formosura  serena.  Imagina  um  mon- 
te granítico  escalvado  e  ermo,  com  rochedos  apru- 
mados sobre  o  abysmo  e  encaslellados  uns  sobre 
os  oulros.  Parece  que  a  natureza  arrojou  das  en- 
tranhas, em  hora  de  angustias,  aquelles  granitos 
formidáveis,  que  ameaçam  os  valles  e  as  campi- 
nas, que  Yicejam  ao  longe. 

Quando  as  sombras  da  noite  se  alargam  e  vão 
cobrindo  a  amplidão  com  o  seu  crepe  de  triste- 
zas; quando  nenhum  ruido  interrompe  a  calada 
profundamente  ascética  d'esta-Thebaida,  julgamos 
que  os  granitos  são  craneos  de  gigantes,  os  quaes 
em  tempos  primitivos,  ali  combateram  e  deixa- 
ram as  suas  ossadas. 

Mais  para  baixo,  em  um  recôncavo  formado 
por  uma  lapa  agigantada,  serpeia  por  entre  limos, 


214 


O  PANORAMA 


um  Ycio  de  agua,  que  se  ajunta  em  uma  bacia 
granítica,  para  correr  depois,  irriquieto  e  louco, 
se^^uindo  ondulações  caprichosas,  pelos  fraguedos 
e  ^selvados,  até  'desembocar  n'uma  ribeira,  que 
banha  o  valle. 

Tal  é  a  fonte  fresca,  a  minha  fonle  de  Are- 
tbusa.  a  minha  Castalia,  tosca  e  humilde  e  per- 
dida n'eslas  fragas,  tão  distantes  do  bulício.  Tal 
é  a  minha  fonte  sob  cujo  olmeiro,  que  a  ensom- 
bra, venho  sentar-me,  em  horas  de  melancolia, 
dando  largas  à  minha  imaginação,  que  se  recreia 
cm  illusões  e  enganos!  Deixal-a,  a  ])obrinha,  se- 
guir o  arroio  nos  seus  meandros,  c  |)erder-se  com 
clle  no  mar  dos  destinos!  Deíxal-a  bater  as  azas 
c  folgar  livre  á  tardinha,  que  e  a  hora  dos  lou- 
cos pensares,  e  do  scísraar  undivago. 

Ah!  Que  extasis  não  tenho  sentido  ali,  sob  a 
copa  do^velho  olmeiro!  Quantas  vezes  ai!  quan- 
tas, mal  podendo  soflrer  as  tristezas  da  solidão, 
não  lenho  passado  ali,  horas  e  horas,  cravando 
bem  fundo  o  punhal  no  peito,  cingindo  o  cilicio 
doloroso,  sorvendo,  com  acre  volupluosidade,  as 
lagrimas,  que  me  caiam  a  jorros  e  me  orvalha- 
va"m  o  rosto  ennegrecido !  Quantas  vezes,  ven- 
do-me  só,  desamparada,  Agar  intemerata  d'esle 
deserto,  não  tenho  invejado  o  destino  das  pasto- 
rinhas, que  levam,  rindo  e  cantando,  o  fardo  da 
vida  que  pouco  lhes  peza.  Para  ellas,  mil  vezes 
hei  pensado,  é  ligeira  a  vida  n'estes  fraguedos  al- 
cantilados. São  como  as  ílôres  selvagens  que  des- 
abroxam  e  se  espanejam  nos  estevaes.  Que  im- 
porta que  o  vento  sopre  e  o  trovão  estrondeie  em 
fúria?  Abriga-as  o  rochedo  inabalável,  e  passada 
a  tormenta,  o  sol  ha  de  voltar  e  algum  raio  as 
aqueceiá.  Tudo  olvidam  então.  Secca-íhes  o  pran- 
to a  brisa,  que  as  embala.  As  pétalas  abrem-se 
outra  vez  e  exhalam  os  seus  perfumes,  que  ha- 
viam escondido  no  seio.  Quando  vier  o  inverno, 
já  passaram  a  primavera  em  sorrisos,  já  se  des- 
entranharam em  sementes  no  estio.  Que  importa 
a  morte  agora? 

Mas  eu  o  que  sou?  Violeta  perdida  nas  fragas 
temo  a  tempestade,  que  pôde  derrubar-mc.  Em 
vão  cxhalo  mil  fragrâncias,  que  se  perdem  no  pi- 
nheiral sombrio.  Como  posso  encontrar  encantos 
na  solidão?  Falla-me  um  abrigo.  Se  o  vendaval 
attentar  em  mim,  quando  desencadeiar  as  suas 
fúrias,  não  hei  resistir.  Serei  levada  ao  longe,  e 
macerada,  quasi  desfeita  em  pó,  lá  irei  revolu- 
teando ao  sabor  do  vento  até  desapparecer  no  es- 
paço. 

Mas  se  alguém  me  colher,  não  emmurchecerei 
logo?  Não  serei  esquecida,  mal  perder  o  frescor 
e  o  viço  campestre'  Assim  tenho  pensado  mil  ve- 
zes, c  não  podes  medir  as  angustias,  que  hei  sof- 
frido.  Outras  vezes,  porém,  em  horas  mais  pro- 
picias, deixo-me  embalar  nas  ondas  do  esqueci- 
mento. Como  o  rouxinol,  que  entristece  na  gaiola, 
que  mão  traidora  lho  teceu,  se  acerto  de  (picbiar 
os  grilhões,  que  me  algemam,  abio  as  azas,  ele- 
vo-me  ás  alturas,  pairo  nas  nuvens,  e  vejo  o 
mundo  a  meus  pés,  como  uma  esj)liera  de  ouro 
que  me  segue  submissa.  Goso  enlão  momentos  fu- 


gazes de  ineíTavel  ventura.  Todos  os  ruins  senti- 
mentos se  esvaecem,  como  fumo,  Desprendo-me 
da  vida,  esqueço  os  enredos  do  mundo  c  os  lia- 
mes que  me  tolhem  os  movimentos.  Nada  pôde 
conturbar  enlão  os  esplendores,  que  a  minha  phan- 
tasia  arranca  do  cahos. 

Remonto  ás  edades  primitivas,  quando  a  terra, 
joven  ainda,  rangia  nos  eixos,  e  se  desentranhava 
em  seres  fabulosos. 

Tudo  é  serena  e  pura  harmonia  nas  alturas, 
aonde  me  libro.  Tudo  é  límpido  e  azul.  Mas  eis-me 
sentada  junto  de  Alfredo,  sob  as  ramas  do  ol- 
meiro, ouvindo  o  chilrear  dos  pássaros  na  espes- 
sura, e  o  doce  murmúrio  da  limpha,  que  se  des- 
penha no  granito. 

Estamos  silenciosos.  Como  que  em  vão  quere- 
mos ouvir  o  pensar  mutuo.  Derepenle  Alfredo  fi- 
ta-me  e  exclama: 

—  Que  tarde  !  Que  esplendores  lançados  a  flux 
por  todas  essas  veigas,  que  se  desenrolam  no  sopé 
das  montanhas  como  listões  viridanles!  Que  pro- 
fusão de  lindezas  com  que  a  terra  se  arraia  nos 
seus  dias  felizes !  Que  ornatos  e  enfeites  1  Na  cu- 
meada debruçam-se  os  gigantes  de  pedra,  na  en- 
costa agila-se  a  ramaria,  nos  valles  espaneja-se  a 
relva.  E  a  agua,  a  limpha  cristallina  a  fecundar 
tudo  isto !  E  as  flores  a  matizarem  as  campinas, 
a  desabroxarem  aos  raios  do  astro !  E  os  fructos 
a  irromperem  já  por  entre  flores!  E  a  brisa  a  ge- 
mer, a  soluçar,  e  a  sacudir  os  ramos  do  arvoredo 
umbroso!  Ê  além  no  fundo  o  mar,  relincto  com 
os  últimos  raios  do  dia.  E  no  extremo  do  hori- 
sonle,  na  orla  afastada,  o  sol  que  mergulha  e 
sorri  para  a  terra.  Tudo  isto,  Violante,  exclamou 
Alfredo  travando-me  da  mão,  são  frémitos  de 
amor.  Tudo  ama  no  mundo,  porque  o  amor  é  a 
harmonia.  A  terra  é  um  altar  immenso,  sobre 
cuja  ara  sacrosanta  tudo  se  liga  pelo  amor.  O 
próprio  rochedo  é  sympalhico  com  a  agua.  O  pe- 
rilampo,  que  voeja  em  raios  de  luz,  arde  em  an- 
ciãs amorosas.  O  insecto  que  zumbe,  a  chrysalida 
que  se  transforma,  a  agua  que  corre,  o  vento  que 
geme,  a  floresta  que  murmura,  os  pássaros  que 
cantam,  os  campos  que  se  adornam,  os  rochedos 
que  se  desfazem,  o  ar  que  se  agita,  o  trovão  que 
rouqueja,  o  i-aio  que  fulgura,  o  mar  que  ondèa, 
a  própria  terra,  que  gravita  cm  torno  do  sol,  como 
que  namorando-o,  e  a  lua,  que  segue  a  terra,  c 
os  planetas  que  cortejam  o  astro,  e  as  estrellas 
que  sulcam  a  amplidão,  e  as  nebulosas,  que  se 
desenfloram  em  mundos,  tudo  isto  ama,  tudo  isto 
é  a  paixão,  é  o  concerto  único  c  melódico  do 
amor,  é  a  orchestra  divina  da  harmonia,  cujas 
modulações  inflndas,  ferindo  as  ethereas  ondas, 
convergem  para  a  derradeira  e  perfeita  harmo- 
nia !  l*orque  a  vida  é  o  liame  sympalhico,  que 
une  em  intimo  consorcio  a  creação  e  o  creador. 
Porque  o  movimento  é  a  melodia  perenne  e  eter- 
na, é  a  musica  suavíssima,  é  o  frémito  d'essa 
harpa,  cujas  cordas  são  os  nmndos,  e  cujo  rythmo 
é  o  amor,  cujas  modulações  são  os  cânticos,  que 
se  alevanlam  do  seio  dos*  mundos.  Nenhuma  noia 
se  perde,    nenhuma  discorda.  A  alinação  é  per- 


o  PANORAMA 


215 


petua.  Ob !  quem  me  dera  amar  também!  Quem 
me  dera  ajuntar  o  meu  hymno  de  amor  á  harmo- 
nia do  universo  I  Quem  me  dera  erguer-me  e 
exclamar:  eu  amo,  e  no  conccrlo  suavissimo  da 
natureza,  achei  eco  do  meu  amor!  Ouem  me  dera 
encontrar  um  peito  de  mulher,  um  peito  de  anjo, 
aonde  repousar  das  fadigas,  aonde  contar  as  pul- 
sações do  meu  coração!  Porque  n'essc  peito  esta- 
ria* eu  lodo,  a  minha  alma,  a  minha  vida.  Esse 
peito  seria  o  meu  tabernaculO;,  o  meu  altar. 
E  depois.... 

—  Como  o  sol  mergulha  no  oceano!  interrompi 
eu,  senlindo-me  arrastada,  perdida,  quasi  louca 
ao  ouvir  as  palavias  inspiradas  de  Alfredo,  que 
d'esta  vez  se  me  aligurava  um  vidente,  um  verda- 
deiro poeta,  c  não  um  homem  mesquinho  e  vul- 
gar. E  era  necessário  interrompel-o.  Eu  seguia  as 
suas  palavras  pasmada,  absorta,  como  que  vendo 
descerrarem-se  novos  mundos  e  horisontes  novos 
nas  trevas,  que  me  circumdavam.  Mas  a  vida,  a 
vida  real,  negra,  pobre,  e  misera!  Ao  lado  d'a- 
quelles  esplendores  via  o  derrocado  solar  de  meus 
antepassados,  que  era  forçoso  reconstruir.  Ao  lado 
da  poesia  de  Alfredo  via  o  meu  caracter  derran- 
cado  pela  educação,  pela  pobreza,  e  por  ti,  mi- 
nha querida  e  pelos  teus  pérfidos  conselhos.  Ah ! 
Esta  é  a  tristíssima  verdade.  Sou  incapaz  de  ele- 
vações. Como  o  passarinho  ferido  na  aza,  em  vão 
([uero  alçar  o  voo,  que  logo  caio  dolorida,  raste- 
jando nas  sarças  e  silvados  da  vida.  Mas  era  tal 
o  meu  enlevo,  que  não  me  atrevi  a  interromper 
Alfredo  com  uma  observação  fútil  ou  zombeteira. 

—  Eil-o,  exclamou  logo  Alfredo  erguendo -se 
como  o  propheta  sobre  as  ruinas  de  Cabylonia. 
Eil-o,  o  rei  do  universo,  a  pátria  da  suprema  luz. 
Lá  parece  mergulhar  nas  ondas  entumecidas,  que 
enlouquecem  de  amores.  Lá  precipita  no  oceano 
o  seu  rio  de  fogo,  que  se  espraia  em  jorros  fer- 
vidos na  athmosphera  incendiada !  Lá  parece  re- 
clinar-se  por  entre  franjadas  de  mil  cores  purpu- 
rinas, no  throno  real!  Mas  não!  Mais  altos  são 
os  seus  destinos.  Outras  regiões  o  chamam,  que 
de  todos  é  vida.  Todos  os  planetas  o  querem, 
todos  o  cortejam.  Se  eu  pudera  seguir-te,  ó  sol, 
no  teu  caminhar  radioso!  Sc  eu  pudera  bater  as 
azas,  como  a  borboleta,  e  volitar  humilde  e  contente 
a  cegar-me  na  tua  luz!  Se  eu  pudera  levar  nas 
azas  aquella  que  eu  amasse!  Como  me  engolphara 
nas  tuas  ondas,  ó  sol!  Como  arquejara  ventu- 
roso! Com  que  prazer  eu  deixara  a  terra!  Vira 
tudo  a  meus  pés !  tudo  me  parecera  pequeno  e 
desprezível! 

Embalado  nas  ondas  luminosas,  circumdado  de 
mundos,  cujo  fragor  não  me  assustara,  eu  fôi-a  o 
mytho  eterno  do  supremo  anceiar  da  poesia  hu- 
mana. 

Ah!  mas  sou  apenas  homem,  sou  fraco,  e  por 
mais  que  nade  no  infinito  oceano,  jamais  chega- 
rei á  terra  da  promissão. 

E  Alfredo,  como  se  a  vida  lhe  houvera  faltado 
derepente,  encostou-se  ao  tronco  do  olmeiro, 'e 
ficou  pensativo  e  mudo.  Eu  estava  assentada  á 
beira  da  fonte.  Taz-me  a  contcmplal-o!  Como 


aquelie  homem  era  digno  de  amor!  Que  thesouro 
de  poesia  não  encerrava  aquelie  coração !  Que  fe- 
licidade immensa  para  quem  podesse  colhel-o! 
E  era  eu,  tão  moça,  era  eu,  com  os  meus  dezoito 
annos,  que  assim  pensava!  Eu,  sim,  porque  de- 
sejo a  minha  felicidade  e  a  de  Alfredo,  porque 
não  quero  amal-o  nem  devo  ser  amada. 

Iam  entanto  as  sombras  da  noite  invadindo  a 
terra.  No  valle  já  não  se  divisava  a  casaria  senão 
fossem  os  clarões,  que  brilhavam  de  quando  em 
quando.  Ergui-me  e  toquei  no  hombro  de  Al- 
fredo, o  qual  como  que  accordou  de  profundo  le- 
thargo,  em  que  a  lembrança  do  presente  se  es- 
vaecesse perante  o  devaneiar  da  phantasia. 

—  Amanhã,  disse-lhe,  responderei....  poetica- 
mente. 

—  A  resposta  é  simples.  Ama-me,  ou  não  me 
ama?  Sim  ou  não ! 

—  Se  eu  soubesse !  Amanhã  á  tardinha  aqui  se- 
remos. Venha  armado  de  ponto  em  branco,  que 
a  liça  hade  ser  de  respeito.  Temem  mim  um  adver- 
sário terrível. 

—  Já  estou  vencido.  Pertence  á  rainha  da  bel- 
leza  o  premiar-me. 

—  Eu  sou  apenas  campeador....  por  emquanto. 
Quem  sabe  aonde  está  a  rainha  da  belleza?  Tal- 
vez bem  distante.  O  futuro  a  Deus  pertence.  Va- 
mos, vamos.  Meu  pai  já  hade  estar  impaciente,  á 
espera  do  chá. 

E  pusemo-nos  a  caminho.  Felizmente  a  distan- 
cia é  pequena,  e  passados  dez  minutos  estávamos 
em  casa. 

Agora  minha  querida  baroneza,  que  estou  mais 
socegada,  não  sei  como  me  ponde  sair  do  com- 
Ijate.  Foi  rude,  não  é  assim?  Mas  como  heide 
vencer  Alfredo?  O  que  heide  fazer?  Seriam  vãos 
todos  os  meus  projectos,  e  acabaria  por  amal-o, 
como  qualquer  caraponeza?  E  as  minhas  juras? 
Não  serei  tão  má,  como  me  julgo?  Serei  capaz  de 
uma  grande  paixão?  Não  quero  pensar  nem  estu- 
dar. Entrego-me  à  sorte.  Proteja-me  o  acaso. 

Envia-te  um  beijo  pelas  auras  a  tua — Violante. 
A.  Osório  de  Vasconcellos 

{Continua) 

MOZART 

Temos  o  grande  maestro  chegado  ao  apogeu 
do  seu  talento.  Em  1781  escreve  o  Idomeneu,  que 
foi  representado  em  Munich.  Esta  opera  indica  a 
transição  dos  fructos  precoces  da  sua  infância  e 
da  sua  adolescência  para  os  fructos  sasonados  da 
sua  mocidade.  As  formosas,  mas  de  certo  mais 
ou  menos  incorrectas^  composições  dos  seus  pri- 
meiros annoB  transformam  se  n'esta  opera  na 
belleza  perfeita,  grave  e  clássica.  Engana-se  com- 
tudo  quem  suppozer  que  Mozart  parou  n'este  pon- 
to, em  que  se  completa  o  desenvolvimento  rapi- 
dissimo  do  seu  talento.  A  águia  implumou-se  ra- 
pidamente, subio  de  fraga  em  fraga,  de  alcantil 
cm  alcantil,  attingio  finalmente  o  pincaro  subli- 
me, onde  só  vô  em  torno  de  si  raros  companhei- 
ros, e  onde  pôde  sentir  uma  vertigem  ao  con- 
templar nos  degráos  d'essa  escada  de  fraguedos^ 
que  elle  subio  velozmente,  Impellido  pela  febre 
do  génio,  os  talentos  de  segunda  ordem,  que  o 


216 


O  PANORAMA 


viram  passar  aterrados  como  que  envolto  n"um 
turbilhão ;  a  seu  lado,  os  velhos  mestres,  os  pa- 
triarchas  da  arte  do  seu  tempo,  contemplam  com 
espanto  o  moço  de  vinte  e  cinco  annos,  cheio  de 
ardor  e  de  enthusiasmo,  que  se  lhes  vem  reunir 
no  sitio  aonde  elles  só  chegaram  depois  de  Ímpro- 
bas fadigas.  Mas  Mozart  nada  vé  do  que  o  rodeia ; 
levanta  os  olhos,  e  divisa  a  immensidade  azul, 
a  vastidão  dos  desconhecidos  horisontes,  o  sol 
radiante  em  que  os  outros  não  ousam  cravar  os 
olhos.  Foi  então  que  elle  se  sentio  deveras  águia, 
e  que  se  arrojou  com  um  grito  d"enlhusiasmo  a 
esses  espaços  não  sulcados. 

Foi  o  amor  quem  lhe  deu  o  arrojo,  foi  o  amor 
quem  o  ensinou  a  pairar  n^esse  ambiente  lumi- 
noso. Casara  n"esse  anno  de  1781  com  a  celebre 
cantora  Lange.  Noivo  ainda,  em  toda  a  eííerves- 
cencia  da  sua  paixão,  na  flor  do  seu  aílecto,  com- 
poz,  por  ordem  do  imperador  José  II,  a  opera  Bel- 
monte c  Conslancia.  Esta  opera,  representada  em 
178:2,  foi  o  primeiro  passo  dado  por  elle  na  nova 
carreira. 

  musica,  até  ahi,  seguindo  o  exemplo  da  poe- 
sia, e  moldando-se  pelo  espirito  acanhado  do  sé- 
culo, tomara  por  ideal  a  correcção,  a  frieza  clás- 
sica, e  não  ousara  eximir-se  das  regras,  que  pres- 
creviam a  raagestade  serena,  que  obrigavam  a 
instrumentação  a  não  passar  de  simples  e  pobres 
acompanhamentos,  que  dividiam  cautelosamente 
os  géneros  pondo  para  um  lado  o  cómico,  o  trá- 
gico para  outro.  O  espirito  allemão,  ainda  que 
mais  livre  do  que  o  espirito  das  outras  nações, 
agitava-se  comtudo  apenas  nas  abstracções  da 
phylosophia,  e  na  litteratura  esperava  ainda  a 
palavra  emancipadora  de  Goethe.  Na  musica  a 
Allemanha  reconhecia  submissa  a  preeminência 
da  Itália,  e  recebia  as  licções  dos  seus  mestres. 
Mozart  não  era  ainda  o  homem  que  havia  de 
emancipar  o  espirito  nacional ;  o  seu  génio  fo- 
goso, doirado  por  um  reflexo  do  sol  italiano,  que 
vai,  reverberando  nos  gelos  dos  Alpes  Tyrolezes^ 
illuminar  no  sul  da  Germânia  a  linda  cidade  de 
Salzburgo,  não  perceberia  talvez  o  génio  scisma- 
dor  de  Beethoven,  e  a  vaga  e  immensa  melan- 
colia do  auctor  d'EurYantho.  Mas  o  de  que  elle 
era  muito  e  muito  capaz  era  de  revolucionar  a 
arte,  introduzindo-lhc  a  paixão,  de  ceder  aos  ca- 
prichos da  sua  inspiração,  sem  alterar  muito  sen- 
sivelmente as  velhas  formas,  porem  fazendo  cir- 
cular por  baixo  do  tecido  marmóreo  da  formosa 
mas  fria  estatua,  que  symbolisava  a  antiga  arte, 
um  sangue  juvenil  c  ardente.  O  seu  papel  na 
musica  corresponde  ao  que  Bocage  desempenhou 
entre  nós  na  litteratura,  ao  que  André  Chénicr 
desempenhou  em  França.  Depois  Wcber  e  Bee- 
thoven na  Allemanha,  Rossini  na  Itália  comple- 
tariam a  transformação. 

Em  178.->j  continuando  o  caminho  encetado, 
escreveu  o  David  Penitente^  c  as  Bodas  de  Fújaro. 
Esta  opera,  que  era  a  sua  predilecta,  assustou  o 
publico  de  Vienna,  que  costumado  a  farças  mu- 
sicaes,  não  podia  comprehendcr  este  novo  géne- 
ro d'opera  cómica  com  tanta  vida,  tanta  ampli- 
dão, tão  brilhantes  melodias.  Era  a  predeces.sora 
e  a  rival  do  Barbeiro  de  Sevilha  de  Uossini.  Ainda 
hoje  SC  representa  tom  successo  igual,  ao  que 
obtém  a  obra  prima  do  maestro  de  Pesaro. 

Finalmente  em  1787  escreveu  a  sua  grande 
obra,  a  que  só  por  si  lhe  poderia  dar  a  immor- 
talidade,  o  b,  Juan.  Era  a  final  um  verdadeiro 


poema  cheio  de  paixão,  de  elegância,  de  senti- 
mento, e  ao  mesmo  tempo  de  alegria  fina  c  li- 
geira. Para  se  avaliar  a  que  distancia  arro- 
jara já  o  leão  as  velhas  correntes  das  regras, 
basta  lér-se  o  conto  d'Hoffmann  D.  Juan,  e  as 
cstrophes,  que  Alfredo  de  Musset  no  seu  poema 
Namouna  consagra  á  serenata  d'essa  opera.  Pedi- 
mos aos  leitores  que  leiam  ou  releiam  os  tre- 
chos que  indicamos. 

Mas  o  homem  caminhava  para  o  occaso  da 
existência,  sem  que  o  génio  perdesse  um  só  dos 
raios  da  sua  coroa.  Tudo  são  obras  primas  d'ahi 
em  diante:  Cosi  fan  tulli,  composta  em  1790;  em 
1791  a  Flauta  encantada,  a  Clemência  de  Tito,  e  o 
famoso  Requieni  a  que  não  poudc  dar  a  ultima 
demão,  e  que  sérvio  para  as  suas  próprias  exé- 
quias. No  dia  5  de  dezembro  d"esse  mesmo  an- 
no, morreu  d'uma  hydropisia  cerebral,  em  todo 
o  vigor  do  seu  génio,  não  tendo  ainda  comple- 
tado trinta  e  seis  annos ! 

Vendo  desapparecer  tão  cedo  da  scena  do  mun- 
do este  vasto  génio  musical,  o  maior  talvez  de 
todos  os  tempos,  occorre-nos  o  pensamento,  que 
nos  occorre  também,  vendo  morrer  Bocage,  com 
quem  já  o  comparámos,  na  mesma  idade,  lam- 
bem no  vigor  do  seu  génio,  e  deixando  também 
um  Bequicm  sublime — os  sonetos,  que  diciou  no 
leito  do  moribundo. 

Esse  pensamento  é  o  seguinte  :  O  que  fariam 
estes  grandes  homens,  se  a  morte  os  não  arre- 
batasse, quando  ainda  a  sua  intelligencia,  em 
pleno  sazonar,  promettia  tantos  fructos?  Quem 
sabe  ?  Sairam  talvez  a  tempo.  Estes  audacio- 
sos Titães,  cuja  fronte  sublime  topeta  no  Olym- 
po,  devem  sair  da  scena  antes  que  os  esma- 
guem os  montes  que  sobrepuzeram.  Deus,  que 
não  quer  vingar-se  como  o  phanfasiado  Júpiter, 
não  consente  que  os  audazes  Prometheus  che- 
guem a  tocar  no  fogo  sagrado.  Le  cid^  diz  Al- 
fredo de  Musset 

. .  .ressemble  á  Váme  humaine. 
II  s''y  trouve  une  sphêre  óu  Vaigle  perd  haleine, 
Oú  le  verlige  prend,  oú  Vair  devient  dii  feu, 
Et  Vhomme  doit  mourir  oú  commence  le  Dieul 

PiNUEiRO  Chagas. 


RESPEITO  À  INFÂNCIA 

Respeitaes  a  velhice,  miiilo  bem  ;  mas  respeilac 
lambem  a  infância  !  respeilac  n'essa  alma,  apenas 
emanada  do  seio  da  natureza,  a  imagem  de  Dcos, 
que  o  halilo  corrompido  da  sociedade  ainda  não 
embaciou ;  respeilac  os  desígnios  providcnciaes 
que  repousam  n'essc  berço. 

Essa  criança  j)oderá  ser  um  Homero,  um  Ca- 
mões, um  Descartes,  um  Wasliinglon,  um  Miguel 
Angelo;  c  se  não  é  nada  d'islo,  não  é  já  para  vós 
a  lembrança  viva  dos  exlasis  do  amor,  o  pcnhoi* 
e  como  que  o  sorriso  da  vossa  immorlalidadc !  ? 


....Porque  para  dar,  e  não  para  se  guardarem 
as  riquezas  mundanas  se  hão  de  desejar. 

Francisco  de  Moraes 

Typ.  Franco-Porluguoza.  Rua  do  Tliesouro  velho,  C 


28 


o  PANORAMA 


2i7 


A  CATARACTA  DE  CORRA-LINN 

É  o  Clyde  um  dos  rios  mais  pitlorescos  e  mais 
consideráveis  do  sul  da  Escócia.  Nasce  csle  das 
montanhas  de  Lanark^  banha  as  cidades  de  La- 
nark,  Hamilton,  Glasgow,  Renfrew  e  Dumbar- 
ton,  e  lança-se,  depois  de  um  curso  de  perto  de 


cem  kilometros,  no  mar  de  Irlanda,  próximo  do 
castello  de  Dumbarton.  O  Clyde,  navegável  até 
Glasgow  para  navios  de  grande  tonelagem,  forma 
nas  montanhas  muitas  cataraclas  celebres;  ci- 
tam-se  entre  outras  a  de  Corra-house  que  leni 
vinte  e  oito  metros  de  altura,  a  de  Stonetyren 
que  tem  perto  de  vinte  e  sete,  e  a  de  Corra-Linn, 


A  cataracta  de  Corra-Linn. 


que  a  nossa  gravura  representa,  e  que,  não  com- 
petindo com  a?  outras  na  elevação,  d'onde  as 
suas  aguas  se  despenham,  as  vence  no  pittoresco 
da  situação. 

O  rio  Clyde  dá  o  seu  nome  ao  golpho  de  Clyde, 
formado  pelo  mar  da  Irlanda  no  sitio  onde  esse 
rio  desemboca,  e  ao  canal  do  Clyde  ou  de  Glas- 
gow, que  o  liga  com  o  Ford.  O  paiz,  que  as  suas 
aguas  banham,  é  um  dos  mais  românticos,  dos 
mais  férteis  e  dos  mais  povoados  d'essa  parle 
da  Grã-Bretanha.  Um  pouco  acima  de  Glasgow 
enconlram-se  as  forjas  e  as  officinas  de  ferro  do 
Clyde,  que  são  as  mais  consideráveis  da  Escócia. 


PALESTRAS  IIYGIENICAS 

o  pào 

O  pão  é  hoje  considerado  o  principal  alimento, 
não  só  pelo  motivo  da  extrema  ditíusão  do  seu 
uso,  como  lambem  por  conter  em  si  todos  os 
princípios  nutritivos  que  a  physiologia  considera 
indispensáveis  para  a  reparação  e  conservação 
das  forças:  fécula  de  assucar,'  matérias  gordas,, 
substancias  azotadas,  principalmente  glúten.  É 
um  alimento  completo,  no  sentido  que  a  hy- 
giene  liga  a  esta  palavra;  isto  c,  que  empregado 
como  sustento  exclusivo,  oíTerecc,  senão  elemen- 
tos de  uma  soberba  reparação,  pelo  menos  um 


mantimento  suíYiciente  para  a  dilação  de  algum 
modo  indefinita  da  vida.  N'este  caso  pode  tor- 
nar-se  insufficiente  por  monotonia  do  regimen, 
mas  não  por  falta  de  recursos  alimentarios  que 
apresente.  Os  gregos  exprimiram  esta  idéa  fa- 
zendo derivar  a  palavra  pão  de  um  verbo  que 
significava  alimentar.  Denominavam  o  pão,  pa- 
nos, o  alimento,  como  chamavam  ás  escripturas 
santas,  Biblos,  o  licro  por  excellencia.  Assim  o 
uso  do  pão  enconlra-se  no  berço  das  mais  anti- 
gas civilisações,  A  descoberta  recente  das  aldeias 
lacustres  ou  aquáticas  na  Suissa  fornece -nos 
uma  nova  prova  do  que  avançamos.  Effectiva- 
mente,  achou-sc  no  lago  de  Constância,  um  an- 
tigo armazém  contendo  cem  medidas  de  cevada 
e  de  trigo  em  espiga,  e  um  pão,  meio  consu- 
mido pelo  fogo,  feito  de  cevada  moida  grossei- 
ramente. Ora,  esta  civilisação  lacustre,  embora 
nos  não  tenhamos  detido  em  calcular  o  numero 
de  séculos  ao  qual  é  licito  fazcl-a  remontar,  não 
podemos,  comtudo,  deixar  de  a  considerar  como 
muito  antiga.  Depois,  o  peccado  do  nosso  pri- 
meiro pai,  pelo  qual  foi  condemnado  a  ganhar 
o  pão  com  o  suor  do  seu  rosto,  consagra  ainda 
melhor  que  outro  qualquer  testemunho  histó- 
rico a  antiguidade  do  uso  d'£ste  alimento,  c, 
em  quasi  todas  as  linguas,  exprime  mcthapho- 
ricamente,  não  só  a  alimentação  no  seu  todo, 


218 


O  PANORAMA 


mas  ainda  lado  o  que  constitue  as  necessidades 
essenciaes  da  vida. 

Entre  os  povos  mais  antigos^  o  pão  propria- 
mente ditOj  isto  é,  o  pão  preparado  por  fermen- 
tação, não  existia:  o  grão  era  simplesmente  pi- 
zado  ou  pulvcrisado  de  um  modo  grosseiro;  fa- 
ziam depois  a  massa  com  agua  e  coziam-na  em 
fornos  ou  debaixo  da  cinza,  como  o  indica  a  sa- 
grada Escritura.  Este  primitivo  syslema  de  fa- 
brico existe  ainda  lioje  entre  certos  povos,  prin- 
cipalmente entre  os  Árabes  do  norte  da  Africa. 

O  desejo  ardente,  entre  alguns  homens  erudi- 
tos, de  saber  se  os  mais  antigos  povos  conhe- 
ciam e  ulilisavam  a  arle  de  fazer  pão  fermen- 
tado, tem  dado  lugar  a  calorosas  questões.  Pa- 
rece-nos,  porém,  que  o  facto  do  emprego  do 
pão  asmo  em  certas  ceremonias  religiosas  im- 
plica necessariamente  a  idéa  de  que  aos  Hebreus 
não  era  estranho  o  pão  de  levadura.  Os  pães 
depositados  todos  os  sabbados  sobre  as  mczas 
de  ouro  do  sanctuario  e  a  festa  dos  Asmos,  in- 
stiluida  em  memoria  da  saída  do  Egyplo,  são  a 
prova.  Emfnn,  uma  passagem  do  Êxodo  levanta 
toda  e  qualquer  duvida  a  este  respeito:  «Come- 
reis, diz  o  Senhor,  pão  sem  fermento  durante 
uma  semana.  Desde  o  primeiro  dia,  não  consen- 
tireis fermento  de  qualidade  alguma  em  vossa 
casa.  Todo  o  que  comer  pão  levedado  durante 
os  sele  dias  será  expulso  do  reino  d"lsrael.» 
Quanto  á  origem  do  emprego  da  levadura,  não 
se  pôde  determinar,  e  é  muito  provável  que 
esla  descoberta,  tão  importante  no  ponto  de 
vista  hygienico,  seja,  como  muitas  outras,  re- 
sultado do  acaso. 

Os  gregos  faziam  uso  do  pão  com  mais  parci- 
monia  do  que  nós,  e  é  muito  de  notar  que  Ho- 
mero, tão  prolixo  quando  descreve  os  banquetes 
dos  seus  heroes,  esquece  quasi  sempre  o  pão  no 
meio  da  enumeração  das  comidas  e  bebidas  de 
que  usavam.  Comtudo,  este  alimento  acha-se  in- 
dicado em  dois  pontos  da  Odyssea:  na  descrip- 
ção  do  festim  dado  por  Euméo  a  Ulysses  e  do 
óíTerccido  por  Mcnelau  a  Telemaco. 

O  uso  do  pão  espalhou-se,  pelo  contrario, 
muito  entre  os  Romanos,  que  adquiriram  a  arle 
de  fabrical-o  com  uma  cerla  perfeição  e  cujas 
formas  e  aspectos  variaram  com  uma  tal  fertili- 
dade de  imaginação  que  as  nossas  padarias  de 
luxo,  certo,  não  desdenhariam.  O  pão  de  pri- 
meira qualidade  era  feito  de  trigo  de  Campania 
(Macrobio,  Salyrkon,  lib.  11,  cap.  XII).  O  pão  de 
rala  (pauis  aulopyrus  ou  panis  sccundarins)  fa- 
bricavam-no  de  farinha  grossa  da  qual  não  se- 
paravam o  farelo.  Augusto  preferia-o  a  qualquer 
outro,  e  os  Romanos  conheciam  perfeilauientc 
as  suas  propriedades  laxantes,  restituídas  cm 
honra  dos  nossos  dias.  O  lictor,  llabinnas,  no 
banquete  de  Trimalcião,  descrevc-as  em  lermos 
que  mostram  que  o  latim  neni  .sempre  aífronta 
impunemente  a  honestidade.  É  provável  que  o 
puntíi  rjruditiSj  que  se  distribui.')  publicamente 
em  nome  dos  imperadores  nos  dias  de  liberali- 
dade, não  passasse  de  pão  di;  rala.  O  pão  (!ia 
redondo  e  sobre  o  comprido.  Na  padaria  {jiiilri- 
num)  descoberta  em  í'ompeu,  aíliaram-.se  nnii- 
tos  pães  d'esta  forma,  lendo  pouco  mais  ou  me- 
nos 0"',2';  de  diâmetro,  c  cuja  parte  superior 
arredondada  apresentava  um  lavor  grosseiro.  Um 
d'esles  pães  tinlia  em  relevo  a  marca  siligo  qraui 
(farinha  de  liumcnlo),  c  os  outros  é  ciccra  Hari- 


nha  de  chicharos).  Esta  precaução,  tomada  para 
garantir  a  fidelidade  da  venda,  valia,  certa- 
mente, a  pena  de  ser  renovada  em  nossos  dias.  O 
arlopíicus  era  um  pão  cozido  em  uma  pequena 
forma.  Os  Romanos  coziam  o  pão  em  um  vaso 
de  barro  esburacado  {clibanus)  ou  em  uma  espé- 
cie de  forno  de  campo  {arlopla).  Faziam  uso 
lambem  do  pão  sem  levadura,  já  como  alimento 
de  appetile  [desplicius  panis),  já  para  a  prepara- 
ção dos  biscoitos  {artos  dipuros)  inteiramente 
análogos  á  nossa  bolacha  de  embarque  e  que  os 
soldados  levavam  nas  suas  longinquas  expedi- 
ções. 

£  uma  das  necessidades  da  nossa  inlelligencia 
o  procurar  a  origem  de  todas  as  cousas;  certa*- 
menle,  não  digeriremos  melhor  um  bocado  de 
pão  por  sal)ermos  donde  elle  vem  e  quaes  as 
successivas  transformações  porque  passou  o  grão 
na  viagem  da  terra  ao  estômago;  porém,  dige- 
ril-o-ha  com  mais  dignidade  a  crealura  que  obe- 
dece ás  necessidades  physicas,  mas  que  as  racio- 
cina. Vamos  entrar  no  dominio  da  chi  mica,  mas 
de  uma  chimica  que  pôde  ser  inlclligivel  sem 
deixar  de  ser  exacta. 

Dá-se  um  pouco  impropriamente  o  nome  de 
pão  a  lodo  o  alimento  preparado  pela  cozedura 
de  uma  farinha  ou  anles  de  uma  fécula  amas- 
sada com  agua;  taes  o  pão  de  fiumenlo,  de  mi- 
lho, de  mandioca,  de  batata,,  ele.  Numerosas 
lentativas,  lendo  por  fim  reduzir  a  pão  a  maior 
parte  das  féculas,  hão  sido  feitas  c  ainda  conti- 
nuam a  fazcr-se;  mas  os  seus  productos,  no 
ponto  de  vista  do  aspecto  e  sobretudo  das  qua- 
lidades hygienicas,  não  merecem  o  nome  de  pão. 
Este  nome  deve  estar  reservado  só  para  o  reíul- 
tado  da  cozedura  das  massas  de  cereaes  que 
passam  por  um  principio  de  fermentação.  O  ver- 
dadeiro pão  é  csle;  os  outros  todos  são  imper- 
feitos. 

[Conlinua.] 

O  CONDE  ALLAMISTAKEO 

O  symposiuin  da  noite  precedenle  bavia-me  de- 
veras fatigado  os  nervos.  Sentia  uma  horrível  en- 
xaqueca e  Morphôo  perseguia-me  Ião  fuiiosa  e  te- 
nazmente, (|ue  me  obrigava,  bem  contra  minha  von- 
tade, a  cortejar  amiúde  minha  mulher,  que,  depois 
de  ler  fallado  as  eslopinhas,  viera  assenlar-se  de- 
IVonlc  de  mim  com  as  contas  na  mão,  dormindo 
e  resando  ao  mesmo  lempo.  Em  vez,  pois,  de 
sair  de  casa  como  tencionava,  occorreu-me  que  o 
mais  prudente  era  ceiar  e,  logo  cm  seguida,  mel- 
ter-nie  na  cama. 

Naluralmenle  uma  ceia  lem.  Eu  adoro  as  lorra- 
(linhas  com  manteiga.  Ora,  comer  mais  de  uma 
em  certas  occasiões,  não  será  muito  i-asoavel.  Com- 
ludo,  não  jjóde  haver  objecção  material  no  nume- 
ro dois.  E,  na  realidade,  entre  dois  e  Ires  existe 
apenas  a  insignilicanlissima  dillerença  de  unia 
unidade.  Av(ínlurei-mc  lalvez  a  comer  (juatro.  Mi- 
nha nuilher  leiíiiou  (jue  foram  cinco;  mas,  eviden- 
Icmenle,  coiiliindio  duas  cousas  bem  dislinctas.  O 
numero  abstracto  cinco,  estou  disposto  a  admil- 
lil-o;  mas  no  ponlo  de  vista,  concreto  refere-se  ás 
garraíinhas  do  iniro  CoJlnres,  sem  o  adubo  do 
(jual  as  lorradiníias  ])odeni  causar  gravíssimos  in- 
commodos. 


o  PANORAMA 


219 


Escusado  é  dizer  que  a  minha  cara  metade,  du- 
ranle  a  ceia,  não  esteve  caliada  um  minuto. — Vês, 
1110  dizia  cila,  assim  é  que  procede  todo  o  liomem 
que,  como  tu,  tem  a  felicidade  de  possuir  uma 
mulher  das  mais  nobres  e  distinclas  qualidades. 
Deixa-le  de  noitadas,  meu  íilho,  e  de  acompanha- 
res com  esses  que  se  dizem  teus  amigos.  Os  ami- 
gos nunca  deram  liom  pago.  Hão  de  ser  a  tua 
desgraça!  Tu  conhecerás  o  erro.  Eu,  aqui,  feila 
uma  escrava,  e  o  senhor  sempre,  sempre  em' di- 
vertimentos !  Mas  eslá  muito  enganado  comigo. 
Julga  uma  cousa  e  ha-de-lhe  sair  oulra.  —  E  foi 
seguindo  uma  escala  progressiva  até  chegar  á  mais 
solemne  descompostura  que  tenho  levado  em  dias 
de  minha  vida.  Foi  este  o  resultado  do  meu  bom 
procedimento. 

Eu,  já  se  vè,  não  proferi  uma  palavra.  Con- 
cluído o  banquete,  entrei  logo  no  meu  quarto, 
puz  o  barrete  da  noile  com  a  lirme  esperança  de 
gozar  d'elle  até  ás  onze  horas,  polo  menos,  do  dia 
seguinte,  deitei  a  cabeça  sobre  o  travesseiro,  e, 
graças  a  uma  exccUentc  consciência,  caí  prestes 
em  profundo  somno. 

Mas  quando  se  realisaram  completamente  as  es- 
peranças do  homem?  Não  linha  talvez  concluído 

0  terceiro  ronco  (o  leitor  não  imagina  o  barulho 
que  eu  faço  dormindo)  quando  uma  furiosa  cam- 
painhada  relinio  na  poria  da  rua  e  logo  impacien- 
tes argoladas,   que  me  acordaram  sobresallado. 

1  tu  minuto  depois,  e  como  eu  ainda  esfregava  os 
olhos,  minha  mulher,  a  minha  santa  mulher,  di- 
rigindo-me,  como  sempre,  as  palavrinhas  mais 
doces  que  ó  possível  imaginar,  verdadeiras  las- 
quinhas  de  ouro,  pespegou-me  mesmo  em  cima 
do  nariz  um  bilhete  do  meu  amigo  doutor 
Alexandre,  que  dizia  assim  : 

((  Logo  que  receba  este  bilhete,  meu  amigo,  dei- 
(( xe  tudo  e  corra  a  esla  sua  casa.  Venha  partici- 
c(  par  do  nosso  jubilo.  Finalmente,  graças  a  uma 
(( pertinaz  diplomacia,  obtive  o  assentimenlo  do 
<r  director  do  museu  para  o  exame  da  minha  mumia ; 
ff  sabe  de  qual  se  trata.  I)eu-se-me  licença  para 
"  desenfaixal-a  e  mesmo  para  abril-a,  se  o  julgar 
(Uiecessario.  Só  alguns  amigos  estarão  presentes: 
(( supérfluo  c  dizer  que  o  lenho  n'essa  conla.  A 
«-  mumia  está  em  minha  casa,  e  o  exame  deverá 
«começar  pelas  onze  horas.  —  Seu  amigo  —  Alc- 
jandrc,~» 

Antes  de  chegar  á  assignalura,  conheci  que  es- 
lava perfeitamenle  acordado.  Saltei  da  cama  n'uni 
estado  de  delirio,  remexendo  tudo  quanto  linha 
no  quarlo,  vesti-mc  com  uma  ligeireza  verdadei- 
ramente milagrosa  c  dirigi-me  a  toda  pressa  para 
casa  do  doutor. 

A  sociedade  que  fui  ali  encontrar  reunida  não 
podia  ser  mais  animada  nem  mais  dislincta.  Esta- 
va tudo  impaciente  pela  minha  chegada.  A  mumia 
achava-se  sobre  a  meza  da  casa  de  jantar;  e  logo- 
que  enlrei,  começou  o  exame. 

Esla  mumia  era  uma  das  que  linha  trazido, 
havia  alguns  annos,  o  capitão  Arlhur,  primo  de 
Alexandre.  Achou-as  em  uma  sepultura  perlo  de 
Elelhias,  nas  montanhas  daLibya,  a  uma  distancia 


considerável  de  Thebas.  N'aquellas  paragens,  os 
carneiros,  ainda  que  não  Ião  magnilicos  cemo  os  se-' 
pulchros  de  Thebas,  são  comtudo  de  mais  alto 
interesse  ,  porque  oirerecem  um  numero  infinito 
de  iUustraçõcs  da  vida  privada  dos  Egypcios. 
A  sala  d'onde  havia  sido  tirado  o  nosso  specimen 
passava  por  ser  uma  das  mais  ricas  em  documen- 
tos d'esla  natureza ;  as  paredes  eram  completa- 
mente cobertas  de  pinturas  a  fresco,  e  de  baixos- 
relevos;  estatuas,  vasos  e  um  mosaico  de  riquís- 
simo desenho  altestavam  os  grandes  teres  dos  de- 
funtos. 

Esla  raridade  havia  sido  depositada  no  museu 
exactamente  no  mesmo  estado  em  que  o  capitão 
Arthur  a  achara,  islo  lS  o  alaúde  íicára  intacto; 
e  durante  oito  annos,  assim  esteve  exposla  á  cu- 
riosidade publica,  somente  o  que  diz  respeito  ao 
exterior.  Tínhamos,  pois,  a  mumia  completa  á 
nossa  disposição,  e  os  que  sabem  quão  raro  é 
chegarem  antiguidades  a  nossas  regiões  em  bom 
eslado,  poderão  julgar  das  razões  forles  que  tí- 
nhamos para  nos  felicitarmos  da  nossa  boa  for- 
tuna. 

Approximando-me  da  meza,  vi  uma  grande 
caixa  de  sele  pés,  pouco  mais  ou  menos,  de  com- 
primenlo.  Ires  de  largura  e  dois  e  meio,  talvez, 
de  altura.  Eia  oblonga,  mas  não  em  forma  de  es- 
quife. A  principio  suppozemos  que  era  de  madeira 
de  sycomoro ;  mas,  dando-se-lhe  um  golpe,  reco- 
nhecemos que  era  de  cartão,  ou  para  melhor  di- 
zer, de  uma  espécie  de  massa  muito  dura  feila  de 
papyrus.  Era  ornada  grosseiramente  de  pinturas 
representando  scenas  fúnebres  o  diversos  as- 
sumptos tristes  por  entre  os  quaes  serpeava  uma 
linha  de  caracteres  hieroglyphicos,  dispostos  em 
todos  os  sentidos,  que,  sem  duvida,  significavam, 
o  nome  do  defunto.  Felizmente,  o  padre  Gilber- 
to fazia  parle  da  companhia,  e  traduzio-nos  sem 
custo  os  signaes,  que  eram  simplesmente  phone- 
licos,  e  formavam  a  palavra  AUainistakeo. 

Deu-nos  algum  trabalho  o  abrir  a  caixa  sem 
causar-lhc  prejuízo  ;  mas,  logoque  o  conseguimos, 
encontrámos  uma  segunda  em  forma  de  féretro, 
cujas  dimensões  eram  muito  inferiores  ás  da  pri- 
meira, mas,  em  tudo  o  mais,  semelhante.  O  inler- 
vallo  entre  as  duas  caixas  estava  cheio  de  resina, 
que,  até  cerlo  ponto,  tinha  deteriorado  as  cores 
da  interior. 

Depois  de  abrirmos  esta,  o  que  fizemos  facil- 
mente, achámos  uma  terceira,  egualmenle  em  for- 
ma de  caixão,  e  não  dilTerindo  em  cousa  alguma 
da  segunda,  senão  na  matéria,  que  era  cedro,  e 
exhalava  o  cheiro  fortemente  aromático  que  cara- 
clerisa  esta  madeira.  Entre  a  segunda  e  a  tercei- 
ra caixa  não  havia  inlervallo  ;  esta  adaplava-se 
exactamente  áquella. 

Abrindo  a  terceira  caixa,  descobrimos,  em  lim, 
o  corpo  e  levanlamol-o.  Esperávamos  achal-o,  co- 
mo de  costume,  rodeado  de  muitas  fitas,  ou  liras 
de  linho ;  mas,  não  succedeu  assim  :  eslava  raet- 
lido  em  uma  espécie  de  bainha,  feita  áo  papijru.s, 
e  revestida  de  uma  camada  de  gesso  toscamente 
pintada e  dourada.  As  pinturas  represenlavam  va- 


220 


O  PANORAMA 


rios  assumptos  com  relação  aos  diversos  deveres 
suppostos  da  alma  e  á  sua  apresentação  a  dilTeren- 
les  divindades;  depois  um  grande  numero  de  figu- 
ras humanas,  —  provavelmente  relralos  de  pessoas 
embalsamadas.  Í)a  cabeça  ate  aos  pés  eslendia-se 
uma  inscripção  columnaria  ou  vertical,  em  hiéro- 
gliplios  i)honelicos,  dando  novamente  o  nome  e 
os  lilulos  do  defunto  e  os  nomes  e  os  títulos  de 
seus  pacs. 

À  roda  do  pescoço,  que  nós  facilmente  tirámos 
do  seu  'envoltório,  tinha  um  collar  de  contas 
de  vidro  cylindricas,  de  dilVerenles  cores,  e  dis- 
postas de  liiodo  que  figuravam  imagens  de  divin- 
dades, a  imagem  do  Scarabéo,  e  outras  cora  o 
globo  alado.  >'a  cintura  via-se  um  collar  seme- 
lhante. 

Levantando  um  pouco  o  papyrus,  encontrámos 
as  carnes  perfeitamente  conservadas  e  sem  cheiro 
algum  sensivel.  A  cor  era  avermelhada;  a  pelle  dura, 
lisa  e  Insidia.  Os  dentes  e  os  cabellos  mostravam-se 
em  bom  estado.  Os  olhos,  aa  que  parecia,  haviam 
sido  tirados  e  substituídos  por  outros  de  vidro, 
magníficos  e  simulando  admiravelmente  os  natu- 
raes;  salvo  a  sua  fixidade  um  pouco  pronunciada. 
Os  dedos  e  as  unhas  estavam  dourados  brilhante- 
mente. 

Da  côr  avermelhada  da  pelle,  o  padre  Gilberto 
inferio  que  o  cmbalsamento  havia  sido  praticado 
unicamente  pelo  asphalto;  mas,  raspando-se-lhe  a 
supLTlicie  com  um  instrumento  de  aço  e  lançando 
no  fogo  os  grãos  de  pó  obtidos  d'este  modo,  sen- 
timos desenvolver-se  um  perfume  de  camphora  e 
outras  go'mmas  aromáticas. 

Examinámos  cuidadosamente  o  corpo,  para 
acharmos  as  costumadas  incisões  por  onde  se  ex- 
Irahem  as  entranhas ;  mas,  grande  surpreza!  não 
podemos  descobrir  o  menor  signal.  Nenhum  dos 
da  sociedade  sabia  ainda  que  não  é  raro  encontrar 
múmias  intactas,  sem  incisões.  Ordinariamente 
os  miolos  liravam-se  pelo  nariz,  os  intestinos,  por 
uma  pequeníssima  incisão  no  fianco,  e  o  corpo 
era  em  seguida  rapado  e  salgado ;  deixavam-n'o 
ii'este  estado  algumas  semanas  e  depois,  por  assim 
dizer,  é  que  começava  a  operação  do  cmbalsa- 
mento. 

Como  se  não  podia  encontrar  signal  algum  de 
abertura  o  doutor  Gilberto  jjroparava  os  seus  ins- 
trumentos de  dissecção,  quando  lhe  fiz  ver  que 
eram  já  mais  de  duas  horas.  A  vista  •d'islo,  con- 
cordámos todos  em  deixarmos  o  exame  interno 
para  a  seguinte  noite;  c  estávamos  já  para  nos 
separarmos  quando  alguém  suggerio  uma  ou  duas 
cxjjericncias  com  a  |)ilha  de  Daniel. 

A  applicação  da  electricidade  a  uma  múmia  que 
tinha  pelo  menos  os  .^eus  três  ou  quatro  mil  ân- 
uos era  uma  idéa,  senão  muito  sensata,  sufiicien- 
lementc  original,  e  por  tanto  a!)raçamol-a  sem 
luais  reílexões.  Para  este  magnifico  projecto,  no 
qual  entrava  uma  pailc  de  serio  (;  nove  boas  par- 
tes de  brincadeira,  dispozemos  uma  bateria  no 
gabinete  do  doutor  c  transportámos  paia  ali  o 
Egypcio. 
Não  foi  sem  grande  custo  que  conseguimos  des- 


cobrir uma  parte  do  musculo  temporal,  que  pa- 
recia de  uma  rigidez  menos  marmórea  que  o  resto 
do  corpo,  mas  que  naturalmente,  como  bem  es- 
perávamos, nenhum  indicio  de  susceptibilidade 
galvânica  apresentou  quando  o  pozemos  em  con- 
tacto com  a  corrente.  Este  primeiro  ensaio  pare- 
ceu-nos  decisivo  ;  e  desatando  todos  a  rir  do  dis- 
parate, já  reciprocamente  nos  desejávamos  uma 
feliz  noite,  quando  os  meus  olhos  enconlrando-se 
por  acaso  com  os  da  múmia  ficaram  presos  com 
espanto.  De  facto,  o  primeiro  olhar  foi  sunicienle 
para  assegurar-me  de  que  os  globos,  que  nós  to- 
dos tínhamos  julgado  serem  de  vidro,  e  que  a  prin- 
cipio se  distinguiam  por  uma  certa  fixidade  sin- 
gular, estavam  agora  tão  naturalmente  cobertos 
pelas  pálpebras  que  só  uma  pequena  porção  da 
conjunctura  era  visivel. 

Dei  um  grilo,  e  atlrahi  a  altenção  sobre  este 
fado,  que-  immediatamente  se  tornou  manifesto 
para  todos. 

Não  diiei  que  estava  ntcmorisaão  pelo  pheno- 
meno,  porque  a  palavra  atemorisado,  no  meu 
caso,  não  seria  precisamente  a  paluvra  própria,  e 
até  estou  persuadido  que,  sem  a  minha  provisão 
do  Collares,  o  facto  não  me  teria  causado  a  mais 
leve  admiração.  Mas,  os  outros  personagens  da 
sociedade!  esses  c  que  não  poderam  occullar  o  seu 
terror.  O  doutor  Alexandre  fazia  dó  vel-o.  O  pa- 
dre Gilberto,  não  sei  porque  processo  particular, 
tinha-se  tornado  invisível,  e  o  barão  de  Sousa  não 
pôde  negar  que  fez  de  quadrúpede  debaixo  da 
meza.  O  caso,  na  verdade,  não  era  para  menos. 

(Continua.) 


O  CHACAL  E  A  RAPOSA 

OLeãoachando-se  doente,  lodos  os  animaes  cor- 
reram a  visital-o,  excepto  a  Raposa.  O  Chacal,  que 
desejava  compromettel-a,  approxímou-se  do  rei  das 
feras,  c  disse-lhe: 

—  Senhor,  todos  os  vossos  súbditos  vieram  ver- 
vos;  só  a  raposa  faltou  a  este  dever.  Um  tal  es- 
quecimento é  uma  oflensa  a  Vossa  Mageslade. 

Diformado  d'este  caso,  a  astuta  Raposa  dirigio- 
sc  immediatamente  á  morada  do  Leão. 
— O  que  te  prendeu?  lhe  perguntou  este. 

—  Senhor,  respondeu  aquella,  sabendo  da  vossa 
doença,  tratei  logo  de  procurar  um  remédio  para 
curar-vos;  corri  i)or  montes  e  por  valles,  até  que, 
felizmente,  o  descobri. 

—  Qual  c,  pois,  esse  remédio?  lornou  o  Leão. 

—  Lm  especifico  que  existe  na  pata  do  chacal. 
O  Leão,  logo  que  isto  ouvio,  lançou-se  ao  (Uia- 

cal  e  |)artio-llie  a  perna;  escusado  c  dizer  que  tal 
especifico  não  encontrou. 

Quando  o  traidor  saio,  a  Raposa  foi-lhc  na  pista 
e  dirigio-lhe  as  seguintes  palavras: 

—  Olá!  meu  nobre  cavalheiro,  de  hoje  em  dianlc 
(juando  vos  adiardes  na  presença  do  rei,  aconselho- 
-vos  a  que  ponhais  um  freio  na  língua.  A  boa  fé 
deve  presidir  a  estas  asscmbléas.  (1) 

^1)  Compíire-sc  cora  a  fuhula  de  Lafoiítítino,  jiv.  vm,  fabula  Hl 


o  PANORAMA 


221 


WESTMINSTER-HALL 

Defronte  da  sumptuosa  abbadia  de  Westmins- 
ter erguc-sc  um  edifício,  que  se  denomina  Wesl- 
minslcr-HaU,  ou  sala  de  Westminster,  nome  que 
lhe  vem  de  uma  sala  magnifica,  mandada  cons- 
truir por  Guilherme  11,  fiUio  de  Guilherme  o  Con- 


quistador. Esta  sala  é  a  maior  da  Europa,  de- 
pois da  do  palácio  de  justiça  de  Pádua,  e  da  do 
theatro  dOxford.  Tem  trinta  metros  de  altura, 
noventa  c  dois  de  comprimento,  sessenta  e  trcs 
metros  e  trinta  e  três  centímetros  de  largura.  O 
tecto  abobadado,  feito  de  nogueira  artistica- 
mente lavrada,  esteia- se  em  magníficos  pilares. 


\Vestminster-Hall. 


Foi  construída  para  n"ella  se  celebrarem  festas 
da  corte,  e  na  coroação  de  Ricardo  II  deu-se  ai  li 
um  jantar  a  dez  mil  convidados.  Ha  multo  tempo 
que  serve  para  os  grandes  processos  políticos,  e 
para  os  julgamentos  da  camará  dos  pares.  Mas 
acima  de  tudo  tem  esta  sala  uma  triste  celebri- 
dade. Ali  se  pronunciou  a  sentença  do  Infeliz 
Carlos  I. 

No  vasto  edifício,  onde  este  magnifico  salão 
existe,  reunlam-sc  também  as  duas  camarás  do 
parlamento  e  os  tribunaes  superiores  de  Lon- 
dres. Mas  no  dia  IO  de  outubro  de  1834  um  ter- 
rível Incêndio  destrulo  a  parte  de  Weslminster- 
Hall  que  servia  para  as  sessões  da  camará  dos 
communs,  e  em  consequência  d*lsso  tratou-se 
de  se  erigir  um  novo  edifício,  destinado  espe- 
cialmente ao  parlamento.  Este  novo  e  sumptuoso 
palácio,  cuja  construcção  foi  dirigida  pelo  archl- 
tecto  Carlos  Barry,  principiou  a  ser  edlíicado 
em  1840  e  já  no  dia  lo  de  abril  de  1847  ali  se 
reunia  pela  primeira  vez  a  camará  dos  pares. 

O  actual  edifício  do  parlamento  denomina-se 
Westminster- Palace.  Westminster- Hall  pertence 
agora  exclusivamente  aos  tribunaes  superiores. 


Omnia  vincit  amor. 

O  amor  nada  acha  invencivel. 


Virgílio. 


O  POLYPIIEMO  DOS  RUSSOS 

O  leitor,  sem  duvida,  conhece,  pelo  episodio 
que  o  grande  Homero  introduzio  no  nono  canto 
da  Odijssea,  o  Polypbemo  dos  Gregos,  esse  gigan- 
te com  um  só  oltio  no  meio  da  testa,  que  vivia  em 
um  antro  e  devorava  os  desgraçados  que  lhe  caiam 
nas  mãos.  Lembra-se,  como  o  astuto  Ulysses  con- 
seguio  enganal-o,  piival-o  da  visla  e  escapar-se-lhe, 
emlfm,  com  mui  los  dos  seus  companheiros.  Pois, 
nem  só  a  antiga  Grécia  conheceu  este  mytho.  «Foi 
igualmenlc  popular,  diz  o  erudito  Grimm,  entre 
os  Persas  e  os  Tártaros ;  c  ainda  hoje  ouvireis 
d'eilc  fallar  em  regiões  mui  distantes  umas  das 
outras:  entre  os  povos  da  Transylvania,  na  Es- 
thonia,  entre  os  Finlandezes,  nas  montanhas  da 
Noruega  e  mesmo  em  Allemauha.  Mais  do  que 
outro  qualquer  parece  poder  ser  proposto  como 
um  exemplo  da  maneira  como  se  espalham  e  se 
conservam  as  tradições  poéticas.  No  momento  em 
que  pela  primeira  vez  nos  apparece,  esconde-nos 
logo  a  sua  origem  c  faz-nos  presumir  que  teve  uma 
existência  anterior.  Moslra-se  em  paizes  afastados 
uns  dos  outros,  conserva-se  atravez  dos  séculos,  e 
desappareco  para  renascer  forte  e  vivaz.  Longe  de 
prender-se  ao  solo  em  que  nasceu,  percorre  diíTc- 
rentes  regiões,  mudando  por  toda  parte  de  forma 


9^)9 


O  PANORAMA 


e  de  côr,  desenvolvendo-se  ou  compriniindo-se, 
mas  deixando  sempre  adivinhar  a  sua  grandeza 
primiliva  no  meio  d'eslasincessanlesmelamorpbo- 
ses  » 

É  na  memoria,  d'onde  cslas  linhas  foram  extraí- 
das, lida  na  Academia  do  Rorlim  em  18o7,'  que 
c  preciso  seguir  as  curiosas  li-ansformações  que  o 
mylho  soíTreu,  passando  de  idade  em  idade  e  de 
]iovo  em  povo.  Comludo,  n'esle  estudo  o  celebre 
(irimm  não  esgotou  todas  as  fontes ;  conlenlou-se 
com  reproduzir,  para  comparal-as,  um  cerlo  nu- 
mero de  narralivas  que  oíTereciani  traços  mui 
dislinctos  e  caracterislicos.  Eis  aqui,  pois,  uma  de 
que  elle  não  fez  menção,  e  que  foi  publicada  de- 
pois de  sua  morte  na  colíecção  allemã  daslnlaná. 
Esta  narração  barbara,  que  contrasta  com  a  fabula 
ornada  jjoIo  espirito  brilhante  e  engcnhozo  da 
Giecia,  approxima-se  por  diversos  rasgos  das  lendas 
conservadas  em  alguns  paizes,  especialmente  na 
Servia  e  na  Eslhonia ;  mas  encerra  outros  que  lhe 
são  próprios  e  que  se  não  encontram  em  outra 
parle. 

.%  pnpn-g;eii(e.   o  ferreiro   e  o  nlfaiafe 

co>'TO  nusso 

Era  uma  vez  um  ferreiro,  que  disse  comsigo : 

—  .Nunca  ale  hoje  experimentei  o  mais  leve  des- 
gosto. Conla-se,  não  obslante,  que  o  mal  existe : 
quero  lambem  conhecel-o. 

E  logo  se  poz  a  caminho,  com  o  seu  martello, 
à  j>i"Ocura  de  aventuras.  Encontrou  um  alfaiate. 

—  Deos  le  abençoe,  lhe  disse 

—  Aonde  vais?  respondeu  o  alfaiate. 

—  Dizem,  amigo,  que  ha  mal  no  mundo;  eu 
não  o  conheço,  e  portanto  vou  cm  busca  d'ellc. 

—  Enião,  viajemos  juntos,  tornou  o  alfaiate; 
tenho  sido  sempre  feliz,  e  procuro  lambem  a  des- 
graça. 

E  partiram  ambos.  Depois  de  algumas  horas  de 
caminho,  acharam-se  em  um  bosque  espesso  e 
sombrio ;  seguiram  por  um  pequeno  atalho  e  che- 
garam a  uma  casa  de  bella  appaicncia;  como  fosse 
já  noite  fechada  resolveiam  parar. 

En(rai'am  :  não  iiavia  ninguém.  Assenta ram-se. 
J)'ahi  a  pouco  viram  appareccr  uma  mulhct  de 
grandíssima  estatura,  magra,  c  que  só  linha  ura 
olho. 

—  Vejo  que  lenho  hospedes,  disse  ella ;  sèdc 
bem  vindos. 

—  Hoa  noite,  mãesinlia  ;  vimos  pcdir-le  agasa- 
lho. 

—  Muito  bem;  terei  ao  menos  de  que  ceiar. 
Os  dous  avenlureiros  não  licaram  com  este  dito 

muito  senlioics  de  si. 

A  velha  foi  buscar  um  grande  braçado  de  lenha 
e  lançou-lhe  o  fogo  para  aquecer  o  forno ;  depois, 
examinando  um  e  outro  dos  seus  hospedes,  agar- 
rou o  pobre  alfaiale,  degolou-o,  assou-o,  e  co- 
meu-o. 

O  ferreiro,  logo  que  vio  o  seu  companheiro 
devorado  pela  velha,  disse : 

1  foi  iniduzida  na  hcvhin  Gf-rmimicit  cie  31  de  Março  de  l8G(i 


—  Mãesinha,  eu  sou  ferreiro. 

—  Que  sabes  tu  fazer? 

—  Sei  fazer  tudo. 

—  IS'esse  caso,  quero  que  me  forjes  um  olho. 

—  De  muito  boa  vonlade  ;  mas,  tens  uma  corda? 
Porque  é  necessário  que  eu  te  ligue,  aliás  nunca 
poderia  satisfazer  o  teu  desejo. 

A  velha  foi  buscar  duas  cordas,  uma  delgada  e 
outra  muito  grossa. 

O  ferreiro  ligou-a  primeiramente  com  a  mais 
fraca. 

—  Vejamos  mãesinha,  faze  ura  movimento  com 
o  corpo. 

A  velha  mexeu-see  a  corda  partio. 
Tomou  então  a  corda  mais  grossa  e  atou  a  ve- 
lha fortemente. 

—  Move-te  agora,  mãesinha. 

A  velha  agilou-se,  mas  a  corda  resistio.  Logo,  o 
ferreiro  pegou  em  uma  barra  de  ferro,  pol-a  ao 
fogo,  e,  em  seguida,  api)licando-a  em  braza  sobre 
o  único  olho  da  sua  viclima  en[errou-lh'a  coiu  to- 
das as  suas  forças,  auxiliado  pelo  martello ;  mas, 
a  velha  atormentada  pela  grande  dôr,  sacudio  os 
membros  de  modo  tal,  que  partio  a  corda  e  correndo 
immediatamenle  a  collocai--se  diante  da  porta,  ex- 
clamou : 

—  Espera,  espera,  malvado,  não  me  has  de  cs- 
caj)ar. 

O  ferreiro  vio  outra  vez  os  seus  negócios  muito 
malparados.  Pensava  no  que  faria,  quando  os 
carneiros  vol (avara  do  campo.  A  velha,  conforme 
o  costume,  deu-lhes  entrada  em  casa  para  passa- 
rem a  noite.  Na  manhã  do  dia  seguinte,  quando 
estavam  para  sair,  o  ferreiro  lançou  mão  da  sua 
pelliça,  feito  de  peites  de  carneiro,  e  cobric-secom 
ella,  tendo  o  cuidado  de  voltar  o  pello  para  fora ; 
depois,  andando  com  os  pés  e  as  mãos,  seguio  os 
carneiros.  A  velha  fazia-os  passar  a  um  e  um, 
agarrando-os  pelo  lombo  e  atirando-os  j)ara  fora 
da  porta.  O  ferreiro,  felizmente,  lambeiu  saio,  e 
logo  que  se  vio  fora  de  casa,  poz-se  de  pé  e  ex- 
clamou : 

—  Adeos,  velha  excommungada ;  bastante  nic 
fizesle  soffrer ;  mas  agora  não  tens  mais  poder  so- 
bre mim. 

-—Espera,  espera,  disse  a  velha;  ainda  não  se 
te  acabaram  os  trabalhos. 

O  ferreiro  seguio  o  atalho  que  o  linha  condu- 
zido à  casa  da  gigante.  Avistou  uma  arvore  onde 
estavar  enterrada  uma  machadinha,  cujo  cabo  era 
de  oiro  ;  (|uiz  apoderar-se  (Pella  ;  mas  a  mão  li- 
cou-lhe  presa  e  não  poude  dar  nem  mais  um  pas- 
so. A  velha  corria  airaz  d'el!e. 

—  Vês,  patife,  lhe  disse  ella,  não  me  escapas- 
te. 

O  ferreiro,  não  vendo  boas  nem  más  lirou  o  mar- 
tello da  algibeira  c  partio  cora  cUe  o  braço ;  foi 
por  este  preço  que  o  infeliz  conseguio  liberlar-se. 
E  quando  chegou  á  sua  lerra,  poude  então  di- 
zer : 

—  Agora  conheço  o  mal.  Vedes  o  meu  braço 
mulilaílo?  Apenas  perdi  a  mão,  mas  o  meu  cama- 
lada  perdeu  a  vida. 


o  PANORAMA 


223 


CimONICA  GEOGRAPHICA 

Duchaillu  no  rio  Fernando  Vaz — O  paiz  Ashira  e  o  rogulo  Olin- 
da—  Os  territórios  de  Bekelai,  Komba  e  Avia — E\plica-se 
a  verdadeira  causa  porque  Duchaillu  não  atravessou  a  região 
dos  Apingi  —  As  hexigas  attribuidas  a  Duchaillu — O  que  é 
o  aliDubi  —  Os  Apono  —  Negros  anões  —  Mulheres  de  4  pés 
d'altura  —  O  paiz  accidentado  dos  Ashango  —  Incidente  fu- 
nesto— -Aggrava-se  a  situação — Lucta  —  Duchaillu  é  ferido 
—  Observações  de  Owen,  Edwin,  Head,  Harris  e  Crawfurd 
relativamente   á  viagem  de  Duchaillu. 

Uma  das  viagens  que  iillimamenle  prenderam 
mais  as  altenções  de  lodos  os  que  se  interessam 
pelos  progressos  da  civilisação  foi,  por  cerlo,  a  de 
i)uchaiilu  pelas  regiões  marginaes  do  rio  Fernando 
^az  na  costa  occidontal  da  Africa. 

Aquelleviajanteíoi  recebido  com  inequívocas  de- 
monstrações de  sympathia  pelos  indígenas :  des- 
graçadamente, porém,  perdeu  a  embarcação  que 
encerrava  a  maior  parte  dos  instrumentos  d'ob- 
servação.  Em  quanto  esperava  a  remessa  d'outro3 
empregou  o  tempo  a  colligir  specimens  da  fauna 
e  flora  do  paiz. 

Vencidas  muitas  dííllculdades  para  a  organisa- 
ção  da  partida,  chegou  â  aldeia  do  regulo  Olinda, 
situada  no  paiz  d'Asbira :  pelo  caminho  que  levou 
o  explorador,  aquella  aldeia  demora  a  110  milhas 
(177  kilom.)  da  embocadura  do  rio  Fernando  Vaz. 
Olinda  acolheu  perfeitamente  Duchaillu,  o  qual, 
em  breve  comprehendeu  que  tão  magnillca  recep- 
ção era  interesseira,  e  tinha  apenas  em  mira  os  pre- 
sentes que  o  regulo  esperava  obter  do  viajante. 

Deixando  o  paiz  d'Ashira,  atravessou  os  terri- 
tórios dos  Bekelai,  dos  Komba  e  dos  Avia  para 
vêr  as  cataraclas  de  Samba-Nagosbi,  ás  quaes  elle 
não  havia  podido  chegar  na  sua  primeira  viagem. 

Tendo  alcançado  e  descido  durante  algumas  ho- 
ras o  rio  Ovigui,  o  viajante  e  a  sua  comitiva  de- 
sembocaram no  grande  Rembo  que  ia  mui  cauda- 
loso pelas  chuvas. 

Finalmente  entrou  na  aldeia  de  Suba,  que  per- 
tence á  tribu  dos  Avia.  As  regiões  que  atravessou 
tem  muitas  aldeias  abandonadas,  que  lhes  dão  um 
aspecto  monótono  e  melancholico. 

Regressando  Duchaillu  para  junto  d'01inda  pro- 
poz-lhe  internar-sc  no  paiz  dos  Apingi;  Olinda, 
porém,  observou-lhe  que  aquella  viagem  não  era 
possível,  por  isso  que,  breves  dias  apoz  a  sua  pri- 
meira visita  aos  Apingi,  Rcmandji,  o  chefe  da  tri- 
bu, havendo  morrido,  o  povo  attribuio  a  sua  morte  ao 
estrangeiro  que  o  linlla  assassinado  para  viajar 
com  o  seu  espirito.  Em  presença  d'este  facto,  re- 
solveu, pois,  Duchaillu  passar  pelo  território  dos 
Olanda,  ura  pouco  ao  sul  dos  Apingi. 
-  Em  quanto  Duchaillu  fazia  os  preparativos  de 
viagem  uma  aterradora  epidemia  de  bexigas  se 
manifestou;  augmentaram,  conseguintemente,  os 
perigos  e  as  dilllculdades  da  sua  situação.  Olinda 
succumbio  ao  ílagello,  e  o  viajante  foi  âccusado  de 
o  haver  feito  moi'rer  i)or  artes  magicas. 

Conseguio  finalmente  deixar  o  paiz  dos  Ashira 
pelo  dos  Olanda.  Ainda  ali  as  bexigas  grassavam 
por  toda  a  tribu ;  apenas  o  chefe  d'ella  não  linha 
sido  ainda  acommcllido  :  recusava,  porém,  receber 
Duchaillu,  porque  aífirmava  elle,  o  homem  branco 


para  toda  a  parte  por  onde  caminha  leva  comsigo  a 
morle  o  mala  o  chefe,  e  d'isso  eram  testemunhas 
Remandji  e  Olinda.  A  fatalidade  quiz  que,  4  dias 
depois  da  sua  chegada  a  Mayolo,  o  regulo  Olanda 
caísse  doente,  e  que  a  vida  d'ellc  fosse  ameaçada 
com  a  morte. 

Emlim  reslabeleceu-se  e  o  explorador  preparou- 
se  para  continuar  a  viagem. 

Mayolo  não  era  máU;  porém  sim  muito  interes- 
seiro. 

Duchaillu  em  pouco  tempo  descobrio  que  Mayolo 
se  propunha  exercer  sobre  elle  um  estratagema 
aconselhado  pela  superstição,  que  se  denomina  o 
a/timhi.  Eis  aqui  em  que  consiste  :  quando  morre  um 
regulo,  corta-se-lhe  a  cabeça  e  colloca-se  em  um 
vaso  no  meio  d'uma  massa  d'argila  ;  todas  as  parles 
molies  e  as  liquidas  são  absorvidas  e  o  craneo  é 
conservado  na  casa  d'alumbi ;  o  chefe,  por  essa 
occasião  penetra  ali  e  raspa  uma  certa  quantidade 
de  pós  dos  ossos,  que  se  misturam  com  o  alimento, 
e  que  se  dá  ao  hospede  sobre  o  qual  se  pretende 
operar  o  encantamento. 

As  suspeitas  de  Duchaillu  nasceram  da  pontua- 
lidade com  que  lhe  era  remeltida  uma  comida  já 
perfeitamente  preparada.  Com  o  tempo  havendo 
sido  avisado  da  existência  d'este  costume,  recusou 
tocar  nas  comidas  que  lhe  mandavam. 

Depois  de  ter  deixado  a  aldeia  de  Mayolo  situada 
a  áO  milhas  (64  kilom.)  E.  S.  E.  da  aldeia d'Olin- 
da,  capital  dos  Ashira,  marchou  quasi  directamente 
para  o  lado  de  leste  atravessando  o  paiz  dos  Apono, 
onde  os  indigenas  lhe  suscitaram  mil  embaraços 
temendo  a  invasão  das  bexigas.  Uma  vez  lançaram 
fogo  ás  florestas  para  impedir  a  marcha  d'elle. 

Os  Aponos  tem  o  singular  costume  d'arrancarem 
dois  dentes  incisivos  superiores.  São  muito  guer- 
reiros, porém  excessivamente  dados  á  embriaguez. 
Internando-se  mais  para  leste,  foi  entre  elles  que 
Duchaillu  achou  a  ultima  noção  dos  objectos  ou 
armas  de  fogo  dos  europeus. 

Desde  ali  entra-se  nos  dominios  das  tribus  pri- 
mitivas. 

Aos  Apono  succedem  os  Ishogo,  população  be- 
nevolente, que  prima  na  fabricação  dos  fatos  com 
a  epiderme  das  folhas  de  palmeira. 

Foi  ali  que  encontrou  uma  tribu  errante  de  ne- 
gros de  pequena  estatura.  Nunca  trabalham,  levam 
uma  vida  vagabunda,  residem  pouco  tempo  no 
mesmo  lugar,  e  parecem  constituir  o  typo  inferior 
dos  seres  humanos.  Apanham  a  caça  em  armadi- 
lhas e  laços  e  Irocam-na  por  outros  objectos  nas 
tribus  cm  que  residem. 

A  pelle  d'elles  apresenta  uma  leve  coloração  es- 
cura ;  ainda  que  sejam  de  pequena  estatura  são 
bem  conformados,  geralmente  cabelludos  em  grande 
parte  do  corpo.  Os  cabellos  são  mais  curtos  que 
os  dos  negros  d'esta  região. 

As  mulheres,  das  quaes  elle  médio  algumas,  teem 
de  4  pés  a  4  pés  e  o  pollegadas  d'altura, 

Aparlando-sc  dos  Apono  entrou  no  território 
dos  Ashango.  A  medida  que  caminhava  achava  o 
paiz  mais  montanhoso  e  cortado  d'accidentes  que 
demoram  consideravelmente  a  marcha.  A  estrada 


224 


O  PANORAMA 


era  uma  vereda  eslreitissima,  alravez  da  espessura 
da  floresía :  a  escolla  do  viajante  era  obriííada  a 
marchar  a  um  de  fundo,  transpondo  as  collinas  e 
os  valles,  os  rochedos,  e  as  arvores  derrubadas, 
que  obstruíam  o  caminho. 

i\a  aldeia  de  Mongon  pertencente  aos  Ashango 
a  2Go  milhas  (42G  kilom.),  peia  estrada,  da  foz 
do  Fernando  Vaz,  o  barómetro  aneróide  deu  uma 
altitude  de  2472  pés  (733  metros).  Para  a  frente 
appareciam,  inlervalladamente ,  os  cumes  d'uma 
cadeia  de  montanhas  mais  elevadas ;  não  ha,  porem- 
planuras  elevadas ;  tudo  são  subidas  e  descidas.  O 
ceo  n"aquella  altitude,  era  geralmente  encoberto 
por  nuvens,  e  um  ténue  vapor  pardacento  velava 
os  topos  das  collinas  revestidas  de  frondosos  arvo- 
redos. 

Para  faltar  com  propriedade,  diz  o  viajante,  não 
ha  estação  secca  n'aquella  região  accidentada,  on- 
de chove  mais  ou  menos  durante  lodo  o  anno.  As 
111  aiores  chuvas  que  Duchaillu  observou  foram  de 
G  7,  poUegadas  (0'",1G5)  em  2i  horas. 

Os  Ashango  mostraram-se  mais  hospitaleiros, 
posto  que  sejam  um  povo  bellicoso.  As  suas  al- 
deias, assaz  consideráveis — ha  algumas  de  300  ca- 
banas—  são  afastadas  uma  das  outras;  communi- 
cam-se  por  caminhos  abertos  nas  florestas. 

A  viagem  parecia  dever  continuar  com  egual 
felicidade ;  porem  Duchaillu  foi  demorado  muitos 
dias  na  aldeia  de  Monaou-Korabo  a  4í0  milhas  do 
rio  Fernando  Vaz  pelo  chefe  da  Iribu,  o  qual  lhe 
disse  que  uma  povoação  collocada  á  beira  da  es- 
trada estava  resolvida,  a  oppôr-se  á  passagem  d'elle. 
Decorrido  pouco  tempo,  chegavam  á  aldeia  4  en- 
viados d'aquella  povoação,  e  o  chefe  Monaou-Kom- 
bo  deu  de  conselho  aos  homens  da  comitiva  do 
viajante  que  atemorisassem  aquelles  emissários 
atirando  tiros.  «A  espingarda  d'um  homem  dos 
meus,  —  diz  Duchaillu — tinha  accidentalmente,  fe- 
rido mortalmente  um  indígena,  que  morreu  sem 
estrcbuxar.»  Os  natui-aes  fugiram  em  todos  senti- 
dos, e,  julgando  a  posição  grave,  Duchaillu  procu- 
rou reconduzil-os  e  apazigual-os  oílerecendo-lheso 
preço  de  vinte  homens.  Estas  negociações  teriam 
provavelmente  proseguido  se  a  balia,  que  havia 
feito  uma  jjrimeira  victima,  não  houvesse  |)ioduzido 
uma  segunda,  peneirando  atravez  das  paredes  d'uma 
cabana  :  a  segunda  victima  era  a  irmã  do  indígena 
que  mais  propenso  estava  para  a  reconciliação. 

O  tambor  de  guerra  retumbou  j)or  Ioda  a  parte; 
os  viajantes  foram  forçados  a  operar,  atravez  da 
aldeia,  uma  retirada,  em  a  qual  fui  abandonada  a 
parttí  mais  piedosa  das  bagagens ;  em  torno  d'el- 
íes  cho\ia  uma  saraivada  de  flechas;  Duchaillu  e 
um  dos  d'elle  foram  feridos;  tendo  chegado  os 
homens  da  escolta  aos  caminhos  das  florestas,  ati- 
raram fora  tudo  que  levavam,  |)ara  fugirem  mais 
rapidamente;  Duchaillu,  rjue  guardava  a  recla- 
guarda  com  o  homem  que  linha  causado  aíiuelle 
accidenle,  soífreu  o  dolojoso  desgosto  de  ver  os 
seus  instrumentos,  colleccOes,  pholographias,  ca- 
dernos de  nolas  juncarem  o  terreno  e  perdidos 
irremediavelmente.  Ao  reliiar  recebeu  uma  nova 
ferida,  feita  com  uma  flecha  envenenada  a  (jual, 


felizmente,  resvalou  pelo  cinturão  do  revolver.  Apoz 
estes  successos  e  varias  oulras  peripécias,  a  expe- 
dicção  chegava  no  lim  de  setembro  do  anno  pas- 
sado ao  rio  Fernando  Vaz. 

Ahi  íica  pois  a  noticia  resumidissima  da  ultima 
exploração  do  intrépido  viajante.  É  um  extracto 
do  que  ha  poucos  mezes  a  Sociedade  de  geogra- 
phia  de  Londres  escutou  attentamentc.  Em  segui- 
da á  leitura  da  descripção  da  viagem  houve  as  se- 
guintes observações  por  parte  de  homens  muito 
notáveis.  Por  isso  aqui  as  registramos. 

O  professor  Owen,  em  particular,  recordou  que 
o  Dritish  Museum  devia  a  esta  segunda  viagem 
de  Duchaillu  interessantes  specimens  de  pelles  de 
gorillas,  um  lagarlo  de  escamas,  animal  de  sangue 
(juente  do  género  Munis,  que  se  alimenta  com  as 
térmites,  tão  numerosas  n'aquella  parle  da  Africa, 
um  ninho  de  chimpanzé,  ele,  ele.  —  O  presidente 
observa  que  Duchaillu  tinha  trazido  d'esta  ultima 
viagem  uma  harpa  dos  naturaes  do  paiz ;  as  cordas 
são  feitas  de  libras  herbosas,  e  todavia  podem  pro- 
duzir sons  musicaes.  —  M.  Edwin  Dunkin  dá  in- 
teressantes detalhes  acerca  das  observações  astro- 
nómicas do  viajante ;  são  estas  muito  numerosas 
e  a  posição  de  Mayolo,  particularmente,  foi  deter- 
minada em  longitude  por  30  observações  de  dis-, 
tancias  lunares.  —  Winwood  llead,  que  em  1862, 
percorria  os  paizes  dos  Fans  allirma  que  estes  po- 
vos são. canibaes,  assim  como  Duchaillu  osuslenla. 
—  Ilarris  confirma  o  dizer  de  Duchaillu,  quanto  á 
harpa  indígena,  que  lambem  é  usada  na  Serra- 
Leôa.  Um  costume  análogo  ao  do  alumbi  se  en- 
contra no  districto  de  Sherboro;  ali,  não  se  con- 
servam os  restos  dos  antepassados  na  casa  ;  porém 
fazem-lhes  sacrifícios  quando  parlem  para  viagem 
ou  emprehendem  negocio  importante,  Ilarris  en- 
controu uma  Iribu  canibal,  os  lUishy,  que  levam 
em  cestos  a  carne  dos  seus  prisioneiros  e  susten- 
tam-se  d'ella  durante  muitos  dias.  —  Cra^vfurd  não 
admille  que  os  anões  de  quem  faltou  Duchaillu 
formem  uma  tiibu  separada;  não  seriam,  porven- 
tura, individues  pertencendo  á  mesma  raça  que  os 
indígenas  da  visinhança,  e  expulsos  por  causa  da 
sua  pequena  estatura?  —  Duchaillu  observa  que 
os  indígenas  da  Africa  equatorial  occidental  lêem 
cabello  comprido,  ao  passo  que  estes  anões  lêem 
cabello  curto  no  alto  da  cabeça.  Assimilham-se  aos 
Bushmen  da  Africa  austral. 

Alfredo  May 


Silencio!  deixa 

Ao  coração  do  triste  o  seu  segredo 
Espreitar  indifl"renle  os  pensamentos 
Oue  os  lábios  do  infeliz  feixam  no  peito, 
Curiosidade  é  van,  mal  generosa 
E  de  animo  insensível:  não  exijas, 
Se  o  podes  consolar,  preço  Iam  duro 
Por  teus  confortos.  Pouco  vale  a  dextra 
Oue  não  inxuga  as  lagrimas  do  allliclo, 
Sem  lhe  rasgar  i)rimeiro  os  seios  d'alma 
Para  lhe  es(|uadrinhar  do  peilo  a  causa. 

(lAIlRETT. 

Typ.  l""raiico-rorlgucza,  Uua  Uo  Theaouro  Velho,  G. 


29 


o  PANORAMA 


225 


MONUiMENTOS  NACI0NAE3  ANTIGOS 
I 

Igreja  de  Sauta  Maria  dMgtias  iSantas; 

IloJG  em  mosteiros,  em  igrejas, 
em  calhedracs  teriamos  inestimáveis 
monumentos,  so  n'csta  terra  tivesse 
havido  um  vislumbre  de  gosto  puro. 

Sr.  Alexandre  Herculano,  no  vo! 
2."  do  Panorama;  pag.  208. 

Verdadeira,  e  algum  lanio  a  propósito  vem  a  epigra- 
phe.  Em  Portugal,  c  principalmente  nas  provindas  do  nor- 
te, em  geral,  são  os  nossos  templos  anteriores  ou  pouco 
posteriores  à  fundação  da  monarchia.  Mas,  a  não  o  di- 
zer a  historia,  quern  seria  capaz  de  o  reconhecer  pela  sua 
actual  architeclura?  Quem  não  lamentará  a  maneira  pou- 
co delicada  com  que  desagradecidos  temos  adulterado  as 
obras  de  nossos  maiores?  Mas  passemos  ao  assumpto, 
porque  nossas  queixas  nada  podem  já  remediar,  e  vamos 
dizer  algumas  palavras  a  res- 
peito da  antiquíssima  igreja 
de  Santa  Maria  d'Aguas  San- 
tas, da  igreja  digo,  porque 
(lo  mosteiro  nem  ruínas  jà 
existem. 

A  mui  pouca  distancia  da 
cidade  do  Porto  encontram- 
se  três  igrejas  nota\  eis  prin- 
cipalmente pela  sua  anti- 
guidade —  Leça  do  Balio, 
Santa  Maria  "d'Aguas  San- 
tas, e  S.  Veríssimo  de  Pa- 
rnnhos.  Esta  ultima,  tirada 
sua  muita  antiguidade,  nada 
tem  que  na  actualidade  a 
torne  notável,  senão  o  ser 
nuiito  frequentada  por  oc- 
casião  de  suas  procissões. 
(1)  Leça  do  Balio  é  monu- 
mento sumptuoso,  e  de  re- 
cordações históricas.  (2)  A 
igreja  d'Aguas  Santas,  no 
Concelho  da  Maia,  não  tendo 
sumptuosidades  de  edifício, 
é  com  tudo  mais  rica  em 
recordações  históricas,  que 
a  de  Paranhos,  e  d'ellas  va- 
mos fazer  resumida  menção, 
em  harmonia  com  os  lim"ites 
concedidos  pelo  Panorama. 

Sahindo  do  Largo  da  Af/ua 
Ardcnle,  na  cidade  do  Por- 
to, meltendo-nos  em  a  ex- 
tensa rua  do  Costa  Cabral, 
eiilramos  no  fimd'esta  naEs- 
liiida  da  Travagem.  A  meia 

IcLMia  aproximadamente  do  prmcipio  d'esta  estrada,  de- 
iVonlc  da  casa  coidiecida  vulgarmente  pelo  nome  do  Bra- 
zileiro,  (3)  ha  um  comprido  atalho,  que  nos  leva  á  Igre- 
ja (VÁfjuas  Santas,  nome  que  parece  dcrivar-se  d'uma 
fonte  próxima  do  templo,  da  qual  lambem  o  Mosteiro  be- 
I  bia.  (4)  A  proximidade  do  templo  é  assignalada  por  al- 
gumas  cruzes  de  pedra,  e  pela   capella  de  S.  Miguel  o 
Anjo,  a  qual  exteriormente   mostra  antiguidade.  A  pou- 
cus  passos  d'aqui  vamos  entrar  n'um  pequeno  largo,  do 
;  qual   enxergamos  extensos  campos,  quintas,  e  as  alvas 
;  paredes  da  igreja  de  S.  Thiago  de  Milheiros. 

(DA  procissão  de  Passos  em  Paranhos  6  a  mais  concorrida  das  que 

^'  tazcin  nos  arrabaldes  do  Porto.  Vá  de  passagem— as  procissões  uo 

lo  e  seus  arredores  são  em  tudo  muito  superiores  ás  de  Lisboa  c 

;s  contornos. 

i.)  lia  uma  boa  descripção  d'o3la  igreja  feila  pelo  seu  abbadc  An- 
i"iMo  do  Carmo  Velho  de  liarhosa.  O  interior  da  torre  d'cste  templo, 
fluiidesLí  descobrem  extensos  horizontes.  act)a-sen'umesiado  tal,  (|ue 
;  e  um  verdadeiro  precipício  para  quem  a  subir.  No  largo  d'esta  igre- 
ja ainda  em  janeiro  so  representam  os  autos  do  Nascimento,  fazendo 
recordara  inCancia  rio  tlieatro.  U  mesmo  se  faz  em  S.  Salvador  de 
Moreira,  o  em  outras  igrejas. 

(3)  Nas  províncias  do  norle  dá-se  em  geral  o  nome  de  Brci:ih'iro  a 
um  linniem,  que  esteve  no  Brazil.  embora  seja  Portuguez. 

(i)  Não  averiguei,  so  esta  fonte  ainda  existia,  quando  visitei  a  igre- 
ja cm  18^3. 


A  frente  da  igreja  de  Santa  Maria  d'Aguas  Santas,  pelo 
esguio  da  porta,  antiga  torre  de  sinos  ao  lado,  e  carco- 
mido do  seu  granito,  mostra  veneranda  ancianidade. 

No  lado  do  norte  ha  uma  pequena  porta,  que  leva  á 
Sachristia,  e  a  poucos  passos  encontra-se  a  porta  traves- 
sa da  igreja,  e  dois  sarcophagos  antigos. 

Do  lado  do  Sul  ha  também  seis  sarcophagos,  ou  antes 
caixões  de  pedra,  dos  quaes  os  três  primeiros  e  o  quin- 
to não  têem  inscripção  alguma;  do  quarto  apenas  se  po- 
dem perceber  palavras,  que  designam  estar  ali  enterra- 
do um  certo  Manoel,  da  casa  da  Maia,  e  as  do  sexto  es- 
tão jà  inintelligiveis  por  se  acharem  a  maior  parte  das 
palavras  inteiramente  apagadas. 

Nada  oíTerece  de  notável  o  interior, da  igreja  alem  dos 
vestígios  de  sua  muita  antiguidade.  É  templo  pequeno, 
mas  de  duas  naves,  o  que  não  é  vulgar  em  Portugal^ 
tendo  cinco  capellas,  e  dois  pequenos  altares  no  cru- 
zeiro. 
No  tempo,  em  que  Luiz  Cardoso  (S)  escrevia  o  seu  Diccio- 
nario  geographico,  era  es- 
ta igreja  Commenda  da  Re- 
ligião de  S.João  Baptista  de 
Malta,  e  o  parocho  Vigário 
perpetuo  apresentado  pelo 
Commendador,  e  coitado  pe- 
lo Vigário  Geral  da  mesma 
Ordem,  e  tinha  quatro  be- 
nefícios simples,  cada  um 
com  sua  casa  de  residência, 
e  pertencendo  a  todos  em 
commum  a  terça  parte  dos 
dízimos  e  renda  aa  igreja, 
e  as  outras  duas  partes  ao 
Commendador,  para  quem  a 
commenda  rendia  Ires  mil 
cruzados. 

É  antiquíssima   a  funda- 
ção d'esta  igreja, 

A  existência  d'ella  no  tem- 
po de  D.  Thereza  é  authen- 
ticamente  conflrmada  pelo 
livro  da  demanda  do  Bispo 
D.  Pedro  (6),  onde  se  encon- 
tra uma  carta  regia  pela  qual 
a  Rainha  D.  Thereza  dá  ao 
Bispo  D.  Hugo  e  successores 
da  Sé  qualquer  herdade,  que 
Aguas  Santas  tivesse  até 
esta  data  na  nova  demarca- 
ção do  Couto  do  Porto.  Era 
1138,  dia  da  Paschoa,  em 
Abril,  isto  é,  aos  14  das  ca- 
lendas de  Maio,  anno  1120 
(7).  Também  d'ella  nos  faz 
menção  Viterbo  (8)  como 
existindo  com  moradores  em 
1120,  por  ser  uma  das  expressamente  nomeadas  [De  aqids 
Sanctis)  na  Bulia  de  Calixto  II,  às  quaes  se  manda,  que 
obedeçam  e  paguem  direitos  áCathedral  do  Porto  confor- 
me sc"vè  no  Censual  d'esta  Sé  (9). 

Em  1130  havia  n"este  Mosteiro  cónegos  com  seu  Prior, 
como  se  vé  pelo  contraio  feito  n'este  anno,  e  do  qual 
nos  dá  noticia  D.  Rodrigo  da  Cunha,  (10)  entre  D.  Hu- 
go, bispo  do  Porto,  e  o  prior  e  clérigos  de  Santa  Maria 
d'Aguas  Santas,  no  qual  este  bispo  cede  do  direito,  que 
linha,  de  receber  annualmente  um  jantar  do  referido  Mos- 
teiro, recebendo  em  compensação  toda  a  terra,  que  o 
Mosteiro  possuía  na  villa  de  Pai*amos,  assim  em  reguen- 
go, como  em  ganância,  e  seis  bragaes  em  cada  anno. 

A  respeito  doesta  igreja  e  Mosteiro  existem  ainda  no 
cartório  da  camará  municipal  do  Porto  os  seguintes  do- 
cumentos. 

("))  I,)iccionario  geographico  de  Portugal,  vol  1."  pag.  85. 

(li)  K  uma  obra  inédita  das  mais  preciosas  c  autlienticae  para  a 
historia  doa  primeiros  tempos  da  nossa  monarchia.  Existe  muito  benx 
conservada  no  Cartório  da  Camará  Municipal  do  Porto. 

(7)  Livro  da  Demanda  do  bispo  D.  Pedro,  pag.  3G.  E*  um  vol.  em 
foi.  máximo. 

(8)  Elucidário  pag.  314  do  vol.  2.»  da  1."  edição. 

(9)  J.  Pedro  Ribeiro.  Dissertações  vol.  5."  pag.  7. 

(10)  Catalogo  dos  bispos  do  Porto,  part.  2.",  pag.  13. 


226 


O  PANORAMA 


1  «  Inquirição  porque  se  julgou  ser  do  padrondo  real  a 
i-^reja  e  que'  o  luaar  de  Paramos  abrangia  IG  casaes, 
sendo' um  de  herdade,  foreiro  ao  Hospil.d,  que  era  pri- 
vilegiado; os  outros  pertenciam  a  militares  e  a  ordens,  d  el- 
les  se  pagava  ao  rei  o  lerco  da  colheita,  não  havendo  re- 
guen"-o  algum;  era  couto,  e  demarcava,  a  saber,  principian- 
do eíii  fonte  de  D.  Froie,  por  íim  do  monte  Arroio  desce 
a  preíra  dos  Campos,  daqui  a  pedra  do  Palácio  do  Fun- 
do, depois  pelo  lim  do  Vallo  de  Vergai  ás  Lagens  de 
Soutello,  c  das  Pedras  do  Voval,  c  a  pedra  do  Covello, 
depois  as  pedras  Medianas,  d'aqui  a  Pedras  de  Barreiro, 
d"aqui  a  \al  Máo,  vai  a  foz  do  Avenszo,  por  agua  do 
Avenszo  até  Ossos,  daqui  a  fim  do  Comaro,  depois  a  Pe- 
dras Covas,  e  a  Cova,  d'aqui  a  Mirauci,  a  fonte  de  D. 
Froie  a  onde  principiamos.  De  IG  Maio.  Era  1296  (11). 

2.*  Inquirição  porque  se  julgou  que  o  lugar  de  Pedro- 
cos  na  dita  freguezia  (Aguas  Santas;  abrangia,  19  casacs, 
todos  pertencentes  á  igreja  da  freguezia,  não  se  pagando 
d'elles  nada  ao  rei,  nem  no  mesmo  lugar  havia  reguengo 
aliium.  Que  o  lugar  de  Sangimir  abrangia  11  casaes  lam- 
bem da  mesma  igreja  (12,.  De  IG  Maio.  Era  129G. 

3.^  Inquirição  porque  se  julgou  que  o  lugar  de  Arde- 
pães  na  dita' freguezia  abrangia  20  casaes,  pertencentes 
11  ao  Hospital,  8  a  herdadores.  e  um  á  igreja  d'essa  fre- 
guezia, não  havendo  no  lugar  reguengo  algum,  nem  el- 
rci  n'ellc  linha  cousa  alguma  (13). 

4.°  Inquirição  porque  se  julgou  que  o  lugar  de  Rcvor- 
daos  da  mesma  freguezia  abrange  mais  casaes,  todos  da 
igreja,  porem  que  cada  casal  linha  sua  leira  do  Couto,  no 
termo  do  Castello  da  Maia,  e  d'cssas  leiras  tinha  el-rei  a 
terça  parle  dos  frutos.  Que  no  caslello  da  Maia  havia 
quatro  casaes,  c  d'elles  lem  el-rei  a  lerça  parte  dos  fru- 
tos, c  cada  casal  paga  alem  disso  1  frango,  1  cordeiro  e 
(Tez  ovos,  ctc.  De  Maio.  Era  1296  (14). 

l)."  Inquirição  julgando-se  que  a  dita  igreja  possuia  no 
Lugar  de  Trás  Leça,  Freguezia  de  S.  Vicente  de  Queima- 
della  no  sobrcdito'julgado  2  casaes,  que  obtivera  por  tes- 
tamento, nos  ([uaes  el-rei  não  tinha  cousa  alguma.  De  IG 
Maio.  Era  1296  (lo  . 

C.^  Inquirição  julgando-sc  possuir  o  mosteiro  1  casal 
no  Lugar  da  Cruz,  que  obteve  dos  Gulfaros,  mais  3  ca- 
saes no  Lugar  de  Agua  Longa,  que  comprou,  tudo  na 
freguezia  de  S.  Julião,  julgado  de  Rcfoios.  Era  1296  (16). 

7."  Inquirição  julgando  possuir  alguns  casaes  na  fre- 
guezia do  Safvador  de  Penamaior,  julgado  de  Refoios,  na 
qual  não  havia  reguengo.  De  16  Maio.  Era  1296  (17). 

8.'  Inquirição  que  mandou  ficasse,  como  estava,  com- 
posta de  2c(*ulos  c  1  honra,  a  saber  Aguas  Santas,  cou- 
to, Parada,  couto,  Ardegaes,  honra:  que  não  havia  na 
freguezia  Juiz,  pois  que  quando  precisavão,  vão  a  Maia. 
De  2  Outubro.  Era  Í3'i;j  (18). 

9.  Sentença  jiorque  se  julgou  pertencer  a  el-rei  e  a 
suas  justiças *da  Maia  a  jurisdicção  civil  c  criminal,  e  não 
ao  prior  do  convénio  do  dito  Couto.  De  26  d'Agoslo.  Era 
1377   (19). 

10.'  Inquirição  declarando-seque  os  lavradores  que  ira- 
zião  terras  do  Convénio  pagavão  de  lavradio  o  terço  c  o 
quarto  e  do  sorteado  de  novo  o  quinto  da  colheita,  e 
lambem  a  geira.  Que  este  convento  demarcava  por  mar- 
cos, e  começando  na  agua  do  Rio  Leça  vai  a  Ponto  Ca- 
vallar,  nome  que  lem  uma  pedra,  quê  ahi  está  entre  o 
dito  con\  ento  c  Ardegaes,  d  aqui  vai  a  outra  pedra  (jue 
cslá  entre  S.  Lourenço  c  líecandaos,  c  d'ahi  outra  pedra, 
que  está  entre  o  dito  convénio  e  as  herdades  do  rei  no 
caslello  da  Maia,d'ahi  a  pedra  de  Granja,  (jue  parle  com 
Rio  Tinto,  d'ahi  por  S.  Romão,  e  vai  aos  Mormoiracs, 
com  quem  parle  o  Ilospilal  e  Aguas  Santas  a  dcveza  da 
Rainha  ;iO,. 


(11)  Livro  grande  da  camará  municipal  do  Porto.  foi.  %.  Deveria 
tnriihprn  íer  publifado,  quanto  arílcs. 

(12)  Idem  foi.  %. 
(l:;)  líj(,-iii  idem. 

(14)  Livro  ííraride  foL  97. 
(lã)  lileiíj  fui.  IíjO. 
(lU)  Mern  lol.  m. 
(17)  I(li;ifi  lol.  1Í9. 
)18)  Idem  foi.  00. 

(19)  Idem  lol.  2:.. 

(20)  Idem  foi.  liD. 


11.^  Inquirição  porque  se  julgou  devassos  c  não  hon- 
ras os  lugares"  que  pagavão  direitos  ao  Hospital,  a  saber 
Villa  Nova,  Alpedrados,  e  Carcavellos,  todos  na  fregue- 
zia de  S.  Thomé  no  julgado  de  Reíoios  de  Riba  Ave, 
e  que  ficasse  n'elles  d'ahi  por  diante  entrando  o  cobrador 
d'el-rei.  De  2  d"Oulubro.  Era  13io  (21}. 

Eis  quanto  me  occorre  actualmenle  a  respeito  d'Aguas 
Santas. 

E  notório  que  nas  províncias  do  norte  de  Portugal  quasi 
cada  freguezia  tem  seu  vestuário  próprio,  c  algum  bem 
engraçado.  Os  homens  d'Aguas  Saiilas  nos  dias  festivos 
costumam  andar  embuçados  em  grandes  capotes,  (jue  lhes 
locam  os  pés,  trazendo  na  cabeça  chapeos  redondos  com 
abas  d'um  tamanho  extraordinário. 

MvNOKL  Bernardes  Branco. 


O  CONDE  ALLAMISTAKEO 

Passado  esle  primeiro  espanto,  resolvemos  ten- 
tar uma  nova  experiência.  l)irií,nmos  então  as  nos- 
sas operações  contra  o  dedo  grande  do  pé  direito. 
Fizemos  uma  segunda  incisão  na  parte  inferior  do 
scsnmoideiini  poUicis  pedis,  c  chegámos  d'estG 
modo  ao  ponto  onde  nasce  o  musculo  abdudor. 
Ajustando  a  bateria,  ai)j)licámos  novamente  o  tinido 
aos  músculos  descobeitos,  (piando,  com  um  mo- 
vimento mais  vivo  do  que  a  própria  \ida,  a  mú- 
mia levanta  o  joellio  direito,  como  que  para 
aproximal-o  o  mais  possível  do  abdómen,  e  lo- 
go, sacudindo  a  perna  com  uma  força  inconce- 
bivel,  raimosea  o  doutor  vVlexandre  com  um  pon- 
tapé, que  teve  jior  eíTeito  mandar  este  cavalheiro, 
qual  projéctil  d'uma  catapulta,  por  uma  janella 
que  se  achava  aberta,  medir  a  altura  do  andar  á 
rua. 

Corremos  logo  lodos,  como  loucos,  para  trazer- 
mos os  restos  mutilados  do  infeliz ;  mas  tivemos 
a  satisfação  de  o  encontrarmos  já  na  escada,  su- 
bindo apressadamente,  fazendo  as  suas  rellexões 
philosophicas,  e,  mais  do  que  até  então,  resolvido 
a  proscguir  nas  experiências  com  zelo  e  rigor. 

Foi,  pois,  por  seu  consellio  que  lizemos  em  sc- 
scguida  uma  ijrofiinda  incisão  na  ponta  do  na- 
riz do  tal  Allamislakeo ;  e  o  doutor  lançando-se  a 
elle,  iminedialamentc  o  poz  em  contacto  com  o 
lio  metálico. 

Moral  c  |)hisicamente,  metliaphorica  e  litteral- 
menle,  o  eíTeilo  foi  eléctrico.  Primeiro,  o  cadá- 
ver abrio  os  olhos  e  piscou-os  com  extrema  rapi- 
dez durante  alguns  minutos,  como  o  actor  lsi(Jo- 
ro  em  quanto  andou  pelos  Iheatros  de  segunda  or- 
dem ;  depois,  espiri'ou ;  espriguiçou-se ;  esfre- 
gou as  mãos  e  fez  um  movimento,  que  se  o  dou- 
tor Alexandre  não  foge  precipitadamente,  apanha- 
va um  formidável  soco ;  o  que,  na  verdade,  não 
era  muito  peitoral  em  cima  de  um  pontapé  ;  em 
tim,  voltando-se  para  o  padre  (i liberto  e  barão  de 
Sousa,  dirigio-lhes  no  mais  |)uro  egípcio,  de  que 
não  percebi  j)atavina,  o  seguinte  discurso: 

a  —  Devo  confessar-vos,  meus  cavalheiros,  que 
estou  Ião  surjireso,  quanto  desagradado  do  vosso 
pi-ocedimento  |)ara  comigo.  Do  doutor  Alexandre 
não  podia  esperar  oulra  coisa  ;  é  um  i)obre  tcjlo 
que  apenas  sabe  jogar  as  carambolas  e  mais  não 
disse.  Tenho  dó  d"elle,  perdoo-lhe.  Mas  o  senhor 

(21)  idem  foi.  50. 


o  PANORAMA 


227 


padre  Gilberlo  c  V.  Sr.%  senhor  barão  de  Sousa! 
(aqui  o  barão  moslrou-se  um  lanlo  oflendido  no  seu 
amor  próprio)  que  tem  viajado  e  residido  no  Egy- 
plo,  a  ponto  que  muitos  o  tomarão  como  natural 
das  nossas  terras — Y.  S.%  (o  barão  de  um  pulo) 
digo,  que  viveu  tanlo  tempo  entre  nós,  que  falia 
o  egypcio  tão  correctamente,  como,  estou  conven- 
cido, escreve  a  sua  lingua  materna,  (o  barão  fez 
uma  careta)  — V.  S.%  (outro  pulo)  a  quem  eu  me 
linha  acostumado  a  olhar  como  o  amigo  mais  des- 
interessado das  múmias, — com  franqueza,  esperava 
da  sua  parte  mais  alguma  delicadeza  do  que  a  que 
metem  dispensado.  ^Oque  hei  de  cu  pensar  d'essa 
sua  impassível  neutralitíaJe,  quando  sou  tratado 
tão  brutalmente "?  <,  O  que  hei  de  eu  suppor,  quan- 
do Y.  S.**  (outro  pulo)  consente  a  Pedro  e  a  Paulo 
que  me  tirem  d'onde  eu  estava  tão  tranquillo  e 
me  despojem  da  minha  vestimenta  n'este  terrível 
clima  degelo?  ^Como  hei.de  considerar,  final- 
mente, o  facto  de  Y.  S/""  (outro  pulo)  ajudar  e 
animar  esse  miserável  pailapalão,  o  doutor  Ale- 
xandre, a  |)uxar-me  pelo  nariz?» 

O  leitor  julgará,  sem  duvida,  que,  ouvindo  nós 
um  discurso  d'estes  em  laes  circumstancias  cor- 
remos espavoridos  para  a  porta,  ou  caímos  em 
violentos  ataques  de  nervos,  ou  ficámos  olhando 
uns  para  outros  boquiabertos,  sem  podermos  pro- 
nunciar uma  palavra.  Qualquer  doestas  três  cousas, 
eflectivamente,  podia  muito  bem  acontecer;  porque, 
na  verdade,  eram  as  mais  legitimas.  E,  sob  pala- 
vra de  honra,  não  posso  comprehender  o  motivo 
que  nos  levou  a  não  seguirmos  alguma  d'ellas.  Tal- 
vez que  a  razão  esteja  no  espirito  d'este  século,  que 
procede  inteiramente  pela  lei  das  contraiias,  consi- 
derada hoje  como  solução  de  todas  as  antinomias 
e  fusão  de  todas  as  contradiclorias.  Ou,  pôde  ser, 
emfim,  que  concorresse  para  isso  o  modo  exces- 
sivamente natural  e  familiar  da  múmia,  que  ti- 
rava ás  suas  palavras  todo  o  poder  terrilico.  Fosse 
o  que  fosse,  os  factos  são  positivos;  nenhum  mem- 
bro da  sociedade  se  mostrou  assustado,  nem  tão 
pouco  pareceu  acreditar  que  se  tinha  passado  al- 
guma cousa  irregular,  extraordinária. 

Pela  minha  parte,  estava  convencido  de  que 
tudo  era  muito  natural,  e  o  que  fiz  unicamente, 
foi  procurar  uma  posição  fora  do  alcance  da  mão 
do  amigo  egypcio.  O  doutor,  que  já  se  conservava 
a  respeitosa  distancia,  metleu  as  mãos  nas  algi- 
beiras das  calças,  olhou  para  a  múmia  de  certa 
maneira  exquisita,  e  fez-se  encarnado  como  um 
rábano.  O  padre  Gilberto,  attenlando  em  uns  c 
outros,  ora  puxava  o  collarinho,  ora  se  esticava  e 
puxava  o  coílete.  O  barão  de  Sousa,  esse,  abaixou 
a  cabeça  e  metteu  o  pollegar  da  mão  direita  no 
canto  esquerdo  da  boca. 

O  egypcio  olhou-o  com  seveia  physionomia  du- 
rante alguns  minutos  c  por  fim  disse-lhe  em  ar 
de  chacota  : 

—  Porque  não  falia,  senhor  barão  de  Sousa? 
Ouvio,  ou  não,  o  que  eu  ha  pouco  disse?  Ora,  por 
quem  é,  tire  o  dedo  da  boca ;  isso  parece-me  de 
criança ! 

O  barão  estremeceu  ;  tirou  o  pollegar  direito  do 


canto  esquerdo  da  boca,  e  em  compensação  met- 
teu o  pollegar  esquerdo  no  canto  direito  da  sobre- 
dita. 

Não  podendo  obter  uma  resposta  do  barão,  a 
múmia  voltou-se  para  o  padre  (iilberlo  e  pedio-lhe 
peremptoriamente  lhe  dissesse  o  que  nós  quería- 
mos. 

O  padj-e  respondeu  immediatamente  em  phone- 
tico ;  e  se  não  fosse  a  ausência  completa  de  cara- 
cteres Itierofjhfp/iieos  nas  nossas  typographias,  le- 
ria o  prazer  inexplicável  de  transcrever  integral- 
mente e  na  lingua  original  o  seu  excellente  specch. 

Aproveito  esta  occasião  para  observar  ao  leitor 
que  toda  a  conversação  subsequente,  em  que  to- 
mou parte  a  múmia,  teve  lugar  em  egypcio  pri- 
mitivo, servindo  de  interpretes  para  mim  c  para 
os  de  mais  da  sociedade,  que  não  tinham  viajado, 
o  padre  Gilberto  e  o  barão  de  Sousa.  Estes  cava- 
lheiros, ao  que  parecia,  fatiavam  a  lingua  mater- 
na da  múmia  com  uma  graça  e  uma  abundância 
inimitáveis;  mas  não  pude  deixar  de  nolar  que  os 
dois  viajantes, — sem  duvida,  por  causa  da  introduc- 
ção  de  imagens  inteiramente  modernas  e,  natuial- 
mente,  novas  para  o  estrangeiro, —  eram  algumas 
vezes  obrigados  a  empregar  formas  sensíveis  para 
traduzirem  o  sentido  das  palavras.  Houve  um  mo- 
mento, por  exemplo,  em  que  o  padre  Gilberto 
não  podendo  fazer  comprehender  ao  egypcio  a 
palavra  —  Politica  —  teve  a  feliz  idéa  de  desenhar 
na  parede,  com  um  bocado  de  carvão,  um  ho- 
mem muito  baixo  e  muito  magro,  com  o  rosto  pi- 
cado de  bexigas  c  um  nariz  de  descommunal  ta- 
manho, collocado  sobre  um  pedestal,  perna  es- 
querda á  reclaguarda,  mão  direita  estendida  para 
diante,  punho  fechado,  olhos  esgazeados  levanta- 
dos para  o  eco,  boca  aberta  formando  um  angu- 
lo de  90  gràos ;  e  de  roda  do  pedestal  muitas  ca- 
rinhas, em  algumas  das  quaes  se  notava  o  des- 
contentamento, em  outras  a  admiração,  o  espanto, 
e  em  outras,  finalmente,  grande  alegria  e  enlhu- 
siasmo. 

O  mesmo  aconteceu  ao  barão  de  Sousa,  que  ja- 
mais conseguiria  traduzir-lhc  com  fidelidade  a  pa- 
lavra modeinA P/iilan(ro])ia,  se  lhe  não  occovresse 
o  desenhar  igualmente  na  parede  um  homem  gor- 
do, bem  vestido,  que  denominou  Paulo,  rodeado 
de  muita  gente,  que  pelo  trajo  parecia  pobre,  e  a 
quem  fazia  menção  de  dar  alguma  coisa;  e  ao  lado 
uma  espécie  de  jornal  no  qual  traçou  em  caracte- 
res hyerogliphicos  as  seguintes  palavras :  —  O  phi~ 
lanlropico  Paulo  continua  praticando  os  seus  cos- 
tumados actos  de  beneficência  e  de  caridade  evan- 
gélica. 

O  discurso  do  padre  Gilberto,  como  era  natu- 
ral, versou  principalmente  sobre  as  immensas  van- 
tagens que  a  sciencia  podia  tirar  do  desenfaixa- 
mento  c  do  exame  das  múmias;  meio  subtil  de 
justificar-nos  de  todos  os  desarranjos  que  lhe  ha- 
víamos causado,  a  ella  em  particular,  múmia  cha- 
mada AUamislakeo;  e  concluio  insinuando — por- 
que não  foi  mais  do  que  uma  insinuação, — que 
uma  vez  esclarecidas  todas  as  pequenas  questões, 
era  tempo  de  começar  o  projectado  exame.  Aqui, 


228 


O  PANORAMA 


o  doutor  Alexandre  preparava  os  seus  instrumen- 
tos. 

Relativamente  ás  ullimas  suggeslões  do  orador, 
parece  que  AUamislaliGo  tinha  cerlos  escrúpulos  de 
consciência,  sobre  a  natureza  dos  quaes  não  fui 
claramente  informado ;  mas,  moslrou-se  satisfeito 
com  a  nossa  justificação  e,  descendo  da  meza,  cm 
todos  deu  locarolias  e  abraços  mui  aperlados. 

Terminada  esta  ceremonia,  occupamo-nos  im- 
mediatamenlc  de  reparar  os  damnos  que  o  escal- 
pello  llie  tinha  causado.  Curamos-lhe  a  ferida  que 
tinha  na  fonte,  ligamos-lhe  o  pé,  e  applicamos-lhe 
um  parche  de  seda  prela  sobre  a  ponla  do  nariz. 

iSolámos  então  que  o  conde  —  lai  é,  ao  que 
parece,  o  titulo  de  Allamislakeo,  —  sentia  alguns 
arripios  —  por  causa  do  clima,  sem  duvida  algu- 
ma. O  doutor  dirigio-se  logo  ao  seu  guarda-roupa, 
e  trouxe  um  casaco  preto,  uma  calça  de  casimira 
côr  de  flòr  de  alecrim,  um  collele  de  velludo  azul, 
um  raglan,  uma  camisa,  umas  ceroulas,  um  par 
de  meias  de  linha  e  outro  de  lã,  um  par  de  bolas 
do  Sllelpflug,  uma  bengala  de  cana  da  índia,  um 
chapéu  alto,  luvas  de  casimira,  nma  lunela  azul, 
um  par  depolainas,  uma  gravata  e  um  collarinho. 
A  ditlerença  de  estatura  entre  o  conde  e  o  doutor, 
• — a  proporção  sendo  como  dous  para  um,  —  deu 
causa  a  lermos  tido  não  pouco  trabalho  para 
ajustarmos  o  fato  ao  corpo  do  egypcio ;  mas  ter- 
minada a  tarefa,  não  se  pode  dizer  que  ficou  mal. 
O  padre  Gilberto  deu-lhe  o  braço  e  conduzio-o 
para  um  sophá  junto  do  fogão ;  e  o  doutor  man- 
dou vir  charutos  e  vinho. 

A  conversação  logo  tomou  calor.  Escusado  é  di- 
zer, que  todos  mostiavamos  grande  curiosidade 
relativamente  ao  facto  ura  pouco  singular  da  re- 
surreição  de  Allamislakeo. 

—  Confesso-lhe  conde,  disse  o  barão  de  Sousa, 
que  o  julgava  morto  ha  muito  tempo. 

—  Como!  replicou  o  conde  muito  espantado; 
não  posso  ter  mais  de  setecentos  annos !  Meu  pai 
viveu  mil,  e  morreu  cm  seu  perfeito  juizo ! 

{Continua. ) 

ABORÍGENES  DA  AUSTRÁLIA 

Este  immenso  continente,  para  onde  agora  se 
dirige  de  preferencia  a  corrente  da  emigração 
curopéa,  está  destinado  a  desempenhar  um  gran- 
de papel  na  historia  da  civilisação  futura.  Des- 
coberto em  1000  por  um  navio  hollandez  o  Diiy- 
tlicn,  que  partira  do  Aniboinc,  recebeu  primeiro 
o  nome  de  Nova-llollanda.  Principiavam  então 
os  nomes  d'esses  audazes  republicanos^  c  das 
terras  da  sua  pátria  a  substituir  nas  cartas  geo- 
grapliicas  as  denominações  porluguezas.  Os  va- 
lentes hoUandezcs  (prcslcmos-lhes  essa  justiça) 
não  tinham  conquistado  a  nossa  lieranca  a  be- 
neficio de  inventario,  tinliam-n'a  acccilado  com 
todos  os  seus  encargos,  e  linham-se  proposto  a 
subslituir-nos  nOo  só  nos  proventos  que  auferia- 
mos  das  nossas  conquistas  indianas,  mas  lam- 
bem no  descmpenlio  da  missão  que  tínhamos 
tomado  de  descobrir  novas  terras,  c  de  alargar 
a  cada  passo  o  campo  da  gcographia. 

Apenas  tinham  assentado  o  seu  domiin'o  nas 
índias  Orientaes,  apenas  se  tinham  visto  de  posse 


das  Molucas,  apenas  nos  tinham  arrancado  dos 
horabros  a  purpura  imperial,  matizada  com  es- 
sas pérolas  do  mar  indico_,  pensaram  logo  os 
Hollandezes  em  sulcar  as  ondas  quasi  virgens  do 
mar  do  sul.  Já  o  nosso  Magalhães  na  sualamosa 
viagem  de  circumnavegação  dera  uma  vaga  idéa 
dos  numerosos  archipelagos  que  povoam  esses 
longínquos  mares.  Depois  de  descobrirem  a  Nova 
Guiné  pensaram  os  nossos  successores  em  pro- 
scguir  o  novo  rumo  das  descobertas.  Em  1000, 
como  dissemos,  aportavam  ao  continente  austra- 
liano. 

Pouco  depois  um  acaso  conduzio  a  essas  para- 
gens o  navegador  hespanhol  Torres.  Mas,  por 
um  estranho  descuido,  as  suas  participações  e 
os  seus  relatórios  acerca  d'essa  navegação  ficaram 
sepultados  nos  archivos  das  Philippinas  d'onde 
saíram  apenas,  graças  aos  Jnglezes,  quando  es- 
tes conquistaram  Manilha  em  llQií.  Foi  então 
que  se  prestou  homenagem  á  sua  memoria^  dan- 
cto-se  o  seu  nome  ao  eslrcilo  de  Torres! 

Entretanto  os  IIoliandez<^s  haviam  continuado 
as  suas  descoberlas.  Em  1010  o  acaso  c  a  força 
das  correntes  n'estcs  mares  levaram  á  costa  Occi- 
dental da  Austrália  o  navio  Eendracht,  cm  1019 
o  navegador  lidei,  e  pouco  depois  Wítt;  por  isso 
a  costa  Occidental  recebeu  o  nome  de  terras  de 
Wilt^  de  Eãe\,  e  de  Eendracht.  Em  1022  o  navio 
Leciiwin  divisou  a  ponla  do  sudoeste,  que  rece- 
beu o  nome  d'esse  baixel.  Em  1023,  dois  navios, 
o  Pêra  e  o  Amhoine  foram  de  propósito  com  a 
missão  de  intentarem  novos  descobrimentos,  e 
a  uma  grande  extensão  da  costa  seplcmlríonal, 
onde  aportaram,  denominaram  Carpcntaria  em 
honra  de  C.  Carpenler,  n'cssa  época  governador 
geral  das  índias  hollandezas.  Em  1021  Peler 
Nuyls  percorreu  uma  porção  das  margens  do 
golpho  cenlial,  e  á  terra  que  descobrio  deu  o 
seu  nome.  Em  1030  o  governador  Yan-Diemen 
enviou  uma  nova  expedição,  que  deu  cm  resul- 
tado a  descoberta  da  terra  que  por  isso  se  chama 
de  Van-Diemen,  Nos  últimos  annos  do  governo 
d'cste  illustrado  hollandez,  o  celebre  navegador 
Abel  Tasmau  descobrio  novos  territórios  a  que 
também  se  não  esqueceu  de  dar  o  seu  nome. . 
Ah!  como  os  nossos  piedosos  chronistas  se  indi- 
gnariam com  o  orgulho  d'estes  hereges,  que  não 
tinliam,  como  os  descobridores  portuguezes,  a 
modéstia  de  baptizarem  as  terras  que  encontra- 
vam com  os  nomes  da  religião,  c  de  fazerem 
dos  mappas  geographicos  uns  verdadeiros  kalcn- 
darios  I 

Vão  entrar  em  sccna  os  novos  dominadores 
dos  mares,  e  nomes  ingiezes  vão  principiar  a  fi- 
gurar na  lista  dos  grandes  navegadores.  Ainda 
em  1090  o  hollandez  Vlaming,  c  em  1099  o  fran- 
ccz  Dampier  se  assignalam  por  novos  desco])ri- 
mentos;  mas  cm  1770  as  (piilhas^dos  navios  de 
Cook  sulcam  as  vagas  do  Oceano  austral,  e  esse 
vasto  continente  surge  da  obscuridade,  d'ondo  o 
não  tinliam  podido  arrancar  até  ahi  as  ligeiras 
informações  dadas  pelos  primeiros  descobrido- 
res. N'cs'se  anno  aportou  clle  a  IJolany-IJay  c  deu 
á  costa  meridional  o  nome  de  Nova-Galles  do 
sul.  Immcdialamenlc  se  revelam  os  inslinclos 
essencialmente  colonisadores  do  povo  que  entra 
na  liça  abandonada  por  n(')S  c  pelos  líollandc- 
zes.  Em  1788  o  governador  Philipp  funda  a  co- 
lónia de  Sydney.  As  exj)lorações  do  interior  suc- 
ccdcm  ás  cx])loraçues  mariíimas,   mas  logo  se 


o  PANORAMA 


229 


volta  ao  estudo  mais  apurado  das  costas,  c  n'es- 
sas  novas  investigações  distinguem-se  os  navega- 
dores Flinders,  Giánt,  e  Bass.  Depois  succede- 
Ihes  em  1801  o  francez  Boudin,  e  linalmcnte  os 
inglezes  Kmg  de  1817  a  182á,  e  Stokes  de  1837 
a  1843  levaín  ao  seu  auge  esses  trabalhos  de 
exploração. 

Começou  então  uma  nova  era  para  a  colónia; 
escolhida  primeiramente  para  residência  dos  de- 
gradados, a  Austrália  revelou  aos  que  lhe  explo- 


raram o  interior  um  território  tão  vasto,  tão  sa- 
lubre, tão  fértil  que  a  emigração  voluntária 
acudio  a  esses  novos  territórios,  e  começou  a  ar- 
roteal-os,  e  a  desenvolver  ahi  a  creação  dos  ga- 
dos, para  que  eram  eminentemente  próprios  pela 
riqueza  e  vastidão  das  suas  pastagens. 

Do  território  da  Inglaterra  saem  todos  os  ân- 
uos milhares  de  navios  conduzindo  emigrados 
que  a  miséria  expulsa  da  mãi-patria.  Esses  emi- 
grados correram  quasi  lodos  para  a  Austrália, 


Aborígenes  da  Austrália, 


assim  que  se  lhes  abrio  esse  novo  campo  á  sua 
actividade.  É  fácil  de  perceber  com  que  difficul- 
dades  leve  de  luctar  o  governo  da  colónia,  ven- 
do-se  a  braços  com  esses  dois  grandes  elemen- 
tos de  dissolução,  o  crime  exacerbado,  e  a  mi- 
séria ávida.  Os  inglezes  são,  mais  do  que  ne- 
nhuns outros,  próprios  para  sustentarem  uma 
lucta.  A  ordem  cstabeleceu-sc  a  ponto  de  se  po- 
der seguir  ali  o  systema  dos  parlamentos  colo- 
niaes  adoptado  em  toda  a  parte  pela  Inglaterra. 
A  descoberta  das  minas  de  oiro  conduzio  uma 
nova  torrente  de  emigrados,  e  uma  nova  causa 
de  dissolução.  Veio  a  raça  dos  aventureiros.  Fi- 
nalmente os  acontecimentos  políticos  de  1848 
arremessaram  para  ali  a  massa  dos  refugiados 
políticos  francczes,  allemães,  e  italianos.  Estes 
eram  os  agitadores. 

Pois  d'estes  elementos  heterogéneos  consegui- 
ram as  instituições  inglezas,  c  a  hábil  energia 
dos  seus  funccionarios  formar  uma  raça  forte, 
civilisadora  e  trabalhadora,  que  tem  elevado  a 
Austrália  a  um  ponto  inaudito  de  prosperidade. 


que  tem  aproveitado  as  inexhauriveis  fontes  de 
riqueza  do  seu  solo,  e  que  tem  desenvolvido  as 
explorações  scicntificas  d'esse^Jerritorio  virgem. 
E  entretanto  o  que  é  feilo  dos  indígenas?  Assus- 
tados como  sempre  por  esta  actividade  febril 
das  raças  europcas,  oíTuscados  pelo  fulgor  da  ci- 
vilisação  teem  ido  cedendo  o  passo  aos  conquista- 
dores,' tem-se  ido  estiolando,  definhando,  e  con- 
centrando nos  sitios,  que  lhes  parecem  mais 
inaccessiveis,  da  sua  pátria.  Fazer-lhes  compre- 
hendcr  o  beneficio  do  trabalho  é  completamente 
impossível.  Cada  vez  mais  selvagens,  não  mos- 
tram ser  susceptíveis  de  civilisação,  como  o  tcem 
sido  os  habitantes  da  Polynesia^  Yão-se  retraindo 
sempre,  sempre  diante  dos  inglezes  que,  deve- 
mos confcssal-o,  não  os  tratam  com  a  brandura, 
que  os  poderia  captivar.  Os  pobres  selvagens  são 
caçados,  como  bestas  feras,  c  conduzidos  depois 
para  a  ilha  de  Bass,  onde  tentam  civilisal-os 
n'imia  espécie  de  colónia  penitenciaria.  Esta  phi- 
lanthropía  violenta  não  dá,  como  se  pode  sup- 
pòr,  bons  resultados.  Os  indígenas  esquivam-se 


230 


O  PANORAMA 


aos  seus  bemfeitorcs,  e  voltara  para  as  suas  flo- 
restas, por  onde  vagueiam  tristes  e  desanima- 
dos, e  cada  vez  comprehendendo  menos  as  van- 
tagens da  civilisação. 

Os  aborígenes  da  Austrália  dividem-se  como 
todos  os  habitantes  da  Oceania  cm  dois  grupos, 
o  dos  negros,  rara  abjecta  que  só  diftcre  da  raça 
africana  na  conformarão  do  craneo,  c  a  dos  ma- 
laios polynesios,  raça  dominante,  que  impera 
principalmente  na  parte  occidental,  e  que  c  a 
única  que  tem  opposto  alguma  resistência  ao? 
colonos  europeus.  D'aqui  a  pouco  infelizmente 
esta  raça,  que,  como  se  tem  visto  nas  ilhas 
Sandwich  e  de  Taiti.  é  muito  capaz  de  se  civili- 
zar, terá  desapparecido,  e  a  raça  colonisadora 
européa  terá  inundado  esse  novo  e  vastíssimo 
território. 


IMA  OBRA  DO  SÉCULO  IX 

De  entre  os  curiosos  monumentos  litterarios  que 
nos  trazem  á  memoria  os  tempos  antigos  e  os  suc- 
cessos  dos  passados  heroes,  escolhemos  para  apre- 
sentar aos  nossos  leitores  o  muito  apreciado  C/iro- 
wiVoM  intitulado  Albddense,  escripto  no  século  IX, 
Porque  foi  o  primeiro  que  appareceu  em  llespanha 
depois  da  formaçcão  da  monarchia  christã  de  As- 
túrias, e  o  que  rasgou  o  denso  véo  que  cobria  a 
historia  dos  primeiros  dias  da  gloriosa  restaura- 
ção nacional  começada  em  Covadonga.  O  nome 
com  que  se  distingue  este  notável  escripto,  proce- 
de de  ter-se  encontrado  inserto  em  um  velhíssimo 
códice  do  mosteiro  de  Albelda  (1),  que  se  conserva 
h#je  na  bibliotheca  do  Escuriaí.  Dois  são  os  an- 
dores que  n'ella  tomaram  parte :  em  quanto  ao 
primeiro,  embora  uns  designem  um  certo  reli- 
gioso chamado  Romão,  e  outros  o  presbytero  lo- 
Icdano  Dulcidio,  ignora-se  o  seu  verdadeiro  no- 
me e  sú  por  suas  palavras  podemos  colligir  que 
escreveu  nos  estados  de  AíTonso  III,  o  Magno,  e 
provavelmente  em  Oviedo,  sendo,  sem  duvida,  ura 
dos  laboriosos  monges  que  n'aquelles  tempos  de 
sangrentas  e  continuadas  guerras  eram  os  únicos 
depositários  das  artes  e  das  sciencias.  O  segundo 
auctor.  um  século  depois,  que  copiou  o  Clironi- 
con  e  lhe  addicionou  os  factos  mais  importantes 
Decorridos  até  o  seu  tempo,  é  conhecido:  cha- 
mava-se  Vijilo,  e  era  monge  do  mosteiro  de  Albel- 
da. Além  da  simplicidade  e  clareza  que  costu- 
mara reinar  nos  escriptos  d^aí^uelles  tempos  re- 
motos, são  muito  de  notar  no  Chronkon  Albcl- 
(lensc  as  curiosas  noticias  geographicas  e  histó- 
ricas que  nos  apresenta  como  exórdio.  Em  quanto 
ao  latim  craque  está  redigido,  écomo  o  de  todos 
os  documentos  da  época  :  grosseiro,  corrompido, 
desalinhado,  (^aunedo,  escriptor  hespanhol,  pro- 
curou fazer  uma  Iraducção  a  mais  liltcral  possí- 
vel, conser\ando  os  nomes  próprios  antiquados 
e  barbíiros  de  que  usa  o  chronista^para  não  ron- 
bar  a  originalidade  a  este  interessante  trabalho 
hislorico.  

CUUONIGON  AIJ5HLDE.\SIÍ 
DoMcriprilo   «Ic   (otio  6  iiiiiimIo 

I  —  Todo  o  mundo  está  descriplo,  desde  o  tempo 
de  Júlio  César,  por  varões  sapientissimos,   como 

(\)  Sanclio-Abarca,  rei  de  Navarra  fiin<l<ni.o  clolnii-o  cm  'J2^,  na  vil- 
a  íJo  rncsmo  noriiL-,  a  riiias  léguas  tle  Lo^jrofio.  HojccxisU;  coiivcrlido 
m  coilegiada,  e  sob  u  sua  antiga  invocarão  de  S.  Martinlio. 


Nicodoso,  Didimito,  Teodolo  e  Policlito.  Empre- 
garam para  medir  o  Oriente  XXI  annos,  II  me- 
zes  e  VIII  dias ;  o  Occidente  XXYI  annos,  III  me- 
zes  e  XVII  dias ;  o  Septemlrião  XXIX  annos,  lí 
mezes  e  III  dias,  c  o  Meio  Dia  XXII  annos,  1  mez 
e  XXX  dias. 

II  — O  Oriente  tem  VIII  Mares,  VIII  Ilhas,  VII 
Montes,  VII  Províncias,  LXXV  Cidades,  XVII  Rios, 
e  XL  Nações.  O  Occidente  consta  de  Vlll  Mares, 
XIX  Ilhas,  XV  Montes.  XX\ÍI  Províncias,  LXXV 
Cidades,  XVI  Rios  e  XXV  Nações.  NoScptemtrião 
ha  XII  Mares,  XXV  Ilhas,  XÍII  Montes,  LVIII  Ci- 
dades, XVIII  Rios,  XXIX  Nações  e  XVII  Provín- 
cias. No  meio  dia  contam-se  11  Mares,  XVII  Ilhas, 
VI  Montes,  XIII  Províncias,  LXll  Cidades,  VI  Rios 
e  XXIV  Nações.  No  lempo  de  Júlio  Augusto  con- 
tavam-se  em  todo  o  mundo  XXX  Mares,  LXIX 
Ilhas,  XLI  Montes,  LXIV  Províncias,  CCLXX  Cida- 
des, LVII  Rios  e  CXXIII  Nações. 

Dcscripção  fic  Spnuia 

III  —  Primeiramente  por  Ibero  se  chamou  Ibé- 
ria ;  depois  por  Ispalo,  Spania.  Também  se  diz 
Hesperia  pela  estreita  Occidental  denominada  Es- 
pero. A  sua  situação  é  entre  a  Africa  e  a  Gallia  : 
Ao  Septemlrião  estão  os  Montes  Pyreneos,  e  por 
lodos  os  outros  lados  está  rodeada  de  Mares.  É 
fecunda  em  todo  o  género  de  frutos  e  riquissiraa 
de  toda  a  sorte  de  metaese  pedras  preciosas.  Tem 
VI  Provindas  com  Sedes  Episcopaes.  Os  Rios  de 
Spania  IV.  O  Betis  corre  CCCGX  milhas,  o  Tagus 
corre  DCII,  o   Minius  CGCXIII  c  o  Ibcrus  CCGIV. 

As  sete  niaravilhas  il»  mundo 

ÍV  — I  O  Capitólio  de  Roma.  II  o  Farol  de  Ale" 
xandria.  Ill  o  Belerophonte  de  Esmirna.  IV  o  Thea- 
tro  de  Ileraclio.  V  o  Colosso  de  Rhodes.  VI  o  Tem- 
plo Quicio.  VII  Tetrapulum-Emetis  ou  a  Igreja. de 
Santa  Sophia  em  Constantinopla. 

I>roprioflafl<>o<  dns  iiaçòcN 

V  —  I  Dos  Gregos  a  sabedoria.  II  dos  Godos  a 
força,  III  dos  Chaldeos  o  conselho.  IV  Dos  Roma- 
nos a  soberba.  V  Dos  Francos  a  fereza.  VI  Dos 
Bretões  a  ira.  VII  Dos  Escocezes  a  sensualidade. 
Vill  dos  Saxonios  a  dureza.  IX  dos  Persas  a  co- 
biça. X  dos  Judeos  a  inveja.  Xí  Dos  Elhiopcs  a 
paz.  XII  dos  Gallos  o  commercio. 

1'ouMnei  celebres   de  Spania 

VI  —Trigo  floreai  de  Narbona. — Vinho  de  Vilarz. 

—  Figos  de  Beatia.— Trigo  dos  Campos  Godos. — 
Machos  de  llispali.—Cavallos  de  Terra  de  Mouros, 

—  Ostras  de  Manearso. —  Lampreas  de  Tantiber. 

—  Lanças  da  Gallia.— Escandea  de  Astúrias.  — Mel 
de  Galieia.— Disciplina  e  sciencia  de  Toledo. — 
Estas  eram  as  cousas  prineipaes  no  lempo  dos 
Godos. 

Ontt  IctvnH 

Vil  —  As  letras  A,  E,  I.  O,  U,  chamara-scvogacs 
porque  se  emillem  sem  violência  e  formara  a 
voz  i)or  um  impulso  natural  da  gaiganta. 

São  semi-vogaes  F,  N,  L,  M,  S,  R,  porque  co- 
meçam com  o  E  vogal  e  produzem  ura  som 
suave. 

As  letras  B,  C,  D,  T,  P,  O,  G,  são  mudas,  por- 
que não  se  podem  pronunciar  sem  o  auxilio  das 
vogacs. 

(Conlimia) 


o  PANORAMA 


23 


JOHN  IIARISSON 

Da  descoberta  «Ias  longitudes  iio  uiar 

Antes  da  invenção  dos  chronometros,  os  nave- 
gadores podiam  facilmente,  por  meio  da  bússola^ 
dirigir-se  para  o  norte  ou  para  o  meio  dia,  para 
leste  ou  para  oesíe;  mas  estavam  na  impossibili- 
dade de  conbecer^  de  uma  maneira  precisa^  as 
distancias  que  tinham  percorrido^  o  que  os  expu- 
nha a  graves  incidentes  ou  a  perdas  de  tempo, 
prejudiciaes  tanto  aos  homens  como  ás  mercado- 
rias. 

Philippe  Ulj  rei  de  Hespanha,  convencido  da 
importância  das  longitudes  no  mar^  prometteu 
uma  recompensa  de  cem  mil  escudos  a  quem  fi- 
zesse a  descoberta.  Os  Eslados  da  Hollanda  imi- 
taram breve  o  exemplo  d'este  príncipe,  e  propo- 
zeram  ura  preço  de  trinta  mil  florins  para  este 
objecto. 

Os  inglezesj  tornados  no  principio  do  século 
XYIll  os  primeiros  navegadores,  deviam  natural- 
mente preoccupar-se  da  sciencia  das  longitudes; 
assim^,  a  30  de  junho  de  1714,  o  parlamento  no- 
meou uma  commissão  para  o  exame  d'esla  grave 
questão.  Ne\vtonj  Clarke  e  Wisthon  assistiram  a 
ella.  Newton  apresentou  uma  memoria  na  qual 
expoz  diíTerentes  methodos  próprios  para  se  achar 
a  longitude  no  mar,  bem  como  as  diíficuldades 
de  cada  um.  Para  honra  da  relojoaria,  o  primeiro 
meio  proposto  pelo  maior  homem  que  tem  ap- 
parecido  na  carreira  das  sciencias  foi  o  da  me- 
dida exacta  do  tempo.  Muitas  conferencias  tive- 
ram lugar  entre  os  commissarios,  e,  por  seu  pa- 
recer, foi  apresentada  uma  proposta  ás  commu- 
nas,  pela  qual  a  rainha  Anna  prometlia  vinte  mil 
libras  sterlinas  a  quem  satisfizesse  ás  condições 
do  programma.  í^sta  proposta  foi  unanimemente 
approvada;  e,  a  contar  doeste  momento,  um  gran- 
de numero  de  sábios  de  todas  as  nações  europeas 
pozeram  mãos  á  obra^  com  a  esperança  de  obte- 
rem bom  êxito. 

O  relojoeiro  Sully,  que  vivia  sob  a  poderosa 
protecção  do  regente,  foi  o  primeiro  em  França 
que,  entrando  atrevidamente  na  liça^  tornou-se 
notável  pela  invenção  de  um  relógio  cujo  anda- 
mento pareceu  muito  regular ;  mas,  desgraçada- 
mente^ este  relógio  tinha  defeitos:  desorganisou-se, 
e  o  artista  não  foi  ao  concurso. 

N'esta  época,  Londres  possuia  muitos  relojoei- 
ros de  fama;  taes  como  Barlon,  Elhcoot,  Graham, 
Thomaz  Mudge^  ele. :  todos  fizeram  tentativas, 
que  não  produziram  o  resultado  que  esperavam; 
mas  tiveram  por  eíTeito  enriquecer  a  relojoaria  de 
muitas  invenções  uteis^ 

A  honra  dá  descoberta  da  longitude  no  mar, 
estava  reservada  para  John  Ilarisson,  de  cujos 
trabalhos  nos  vamos  occupar :  mas  convém  pri- 
meiro dizer  algumas  palavras  sobre  a  maneira 
como  se  opera,  depois  da  invenção  dos  chrono- 
metros, para  achar  a  longitude  a  bordo  dos 
navios. 

É  sabido  que,  partindo  um  navio  do  equador^ 
e  dirigindo-se  constante  e  directamente  para  o 
norte  ou  para  o  meio  dia,  nunca  muda  de  meri- 
diano, e  que  era  todos  os  lugares  em  que  se  ache 
tem  o  meio  dia  no  mesmo  instante.  Não  acontece, 
porém,  o  mesmo  dirigindo-se  para  o  occidcntc 
ou  para  a  oriente,  porque  então  muda  a  todo 
momento  de  longilude  ou  de  meridiano,  e  em 


tal  caso  seria  impossível  apreciar  as  distancias  se 
faltasse,  como  outr'ora,  um  relógio  marítimo. 

Hoje,  verificada  a  hora  do  lugar  em  que  se  na- 
vega tomando  a  altura  do  sol  ou  d'uma  cstrcUa 
com  o  auxiHo  do  sextante,  que  dá  a  latitude, 
basta,  para  ter  a  longitude,  conhecer  exactamente 
as  horas  que  são  no  ponto  d'onde  se  parlio.  Sup- 
ponhamos  que  este  lugar  é  Lisboa  e  que  o  navio 
se  dirige  para  a  Martinica:  estar-se-ha  ú  vista 
d'este  ponto  de  mar  quando,  marcando  o  chro- 
nometro  3  horas  e  28  minutos  da  tarde,  não  for 
mais  de  meio  dia  no  lugar  da  observação;  por- 
que ter-se-ha  percorrido  um  arco  de  oS"  15'  para 
o  occidente,  o  que  dará  a  longitude,  se  o  chro- 
nometro  não  tiver  variado ;  é  este  o  ponto  ca- 
pital. 

John  Harisson,  cujo  nome  anda  ligado  a  esta 
bella  descoberta,  nasceu  em  Barrow,  cantão  de 
Lincoln,  cm  U)94.  Exerceu  a  profissão  de  marce- 
neiro até  á  idade  de  dezoito  annos ;  mas  já  havia 
notado  cm  si  um  gosto  muito  pronunciado  para 
a  mechanica,  e  os  biographos  inglezes  asseguram 
que,  na  idade  de  dezeseis  annos,  sem  mestre  c 
sem  o  soccorro  de  livro  algum,  construirá  um 
relógio  de  madeira  de  um  trabalho  admirável. 

Aos  vinte  annos^,  tendo  a  consciência  das  suas 
felizes  disposições  para  a  relojoaria,  Ilarisson  di- 
rigiose  a  Londres  para  ahi  exercer  a  sua  nova 
profissão  e  adquirir,  pelo  estudo  e  frequentação 
dos  melhores  artistas,  os  conhecimentos  de  que 
carecia.  Em  1720,  já  tinha  nome  em  Londres  pela 
excellencia  da  sua  mão  d'obra,  e  principalmente 
pela  sua  magnifica  descoberta  da  pêndula  de 
compensação,  de  que  ainda  hoje  se  faz  uso. 

Foi  em  'consequência  d'estes  successos  vários, 
que  Harisson  emprehendeu  a  construcção  de  ura 
relógio  próprio  para  achar  a  longitude  no  mar. 
Trabalhou  durante  muitos  annos  com  uma  co- 
ragem e  uma  perseverança  inexcediveis ;  e  acre- 
ditou que  havia  conseguido  os  seus  fins,  porque 
o  seu  relógio  tendo  sido  submetlido  á  approva- 
cão  da  Sociedade  real  de  Londres,  em  17'i9,  Fol- 
kes,  presidente  d'esta  sociedade,  agraciou-o  com 
a  medalha  de  ouro  queaillustre  companhia  con- 
feria publicamente  todos  os  annos  a  quem  hou- 
vesse feito  a  descoberta  mais  curiosa  c  mais  útil 
nas  artes  industriaes. 

Ilarisson  julgou,  comtudo,  que  o  seu  relógio 
era  susceptível  de  aperfeiçoamento  ;  quiz  sobre- 
tudo diminuil-o  de  volume;  em  pouco,  depois  de 
ter  executado  successivamente  quatro  relógios,  c 
havendo  dado  a  preferencia  ao  terceiro,  o  qual 
apenas  occupava  um  pé  quadrado  com  todos  os 
seus  accessorios,  julgou  dever  dirigir-se  á  cora- 
raissão  das  longitudes,  que,  depois  de  diversas 
detenças,  conscntio  que  a  prova  do  relógio  fosse 
feita  conforme  o  acto  do  parlamento.  Ilarisson 
filho  foi  designado,  a  pedido  de  seu  pai,  para 
fazer  a  viagem  á  Jamaica.  Escolheu-se  este  desti- 
no porque,  para  ali  chegar,  a  machina  tinha  de 
passar  por  temperaturas  mui  diíferenlcs. 

O  relógio  foi  embarcado  no  navio  DeplforJ,  que 
partio  de  Portsmouth  cm  18  de  novembro  de 
1701.  Os  promenores  da  viagem  são  muito  inte- 
ressantes. Dezoito  dias  depois  da  saida,  a  O  de 
dezembro  do  mesmo  anno,  os  pilotos  do  navio 
julgavam-se  a  13°  50'  de  longitude  lesle  de  Por- 
tsmouth, em  quanto  que  a  machina  dava  ib"  19'; 
uma  diíTerenca  de  gráo  e  meio ;  de  sorte  que  já 
condemnavam  o  relógio  como  inútil  e  mau.  Mas 


232 


O  PANORAMA 


Harisson  affirmando  que  se  a  ilha  de  Porlland 
estava  bem  marcada  na  carta,  no  dia  seguinte 
tel-a-hiam  á  vista,  o  capitão  teimou  em  não  mu- 
dar de  rumo:  e.  com  eíTeito,  no  dia  seguinte,  ás 
7  horas  da  manhã  descobrio-se  esta  ilha,  o  que 
restabeleceu  Harisson  e  o  seu  instrumento  na  es- 
tima de  toda  a  equipagem  do  Deplford,  que,  sem 
a  exactidão  do  relógio,  não  abordara  á  ilha  de 
Porlland,  e  assim,  durante  toda  a  viagem  ler- 
Ihe-ia  faltado  os  refrescos  de  que  necessita- 
va. 

O  reconhecimento  da  Desirada,  uma  das  An- 
tilhas, foi  para  Harisson  um  novo  triumpho;  por 
que,  por  meio  do  seu  relógio,  annunciou  esta 
ilha,  assim  como  todas  as  que  se  encontram  até 
á  Jamaica.  O  navio  chegou,  finalmente,  a  Porlo- 
Real. 

A  volta  de  Harisson  a  Portsmouth  não  foi  me- 
nos favorável  para  o  seu  instrumento.  Logoque, 
obteve  os  ccrtilicados  necessários  das  verificações 
feitas  na  Jamaica,  embarcou  cm  um  navio  muito 
pequeno  para  a  Europa  e  entrou  em  Portsmouth 
cento  e  sessenta  e  um  dias  depois  da  partida.  Fi- 
zeram-se  então  as  necessárias  observações  para 
vcriíicar  a  hora  que  marcava  o  relógio  depois  de 
um  intervallo  de  tempo  tão  considerável,  eachou- 
se  que  a  tinha  conservado  a  1'  5"  aproximada- 
mente, o  que  dá  um  pequeno  erro  de  18  milhas 
inglezas  ou  menos  de  um  terço  de  grau,  na  via- 
gem de  ida  e  vulta.  Não  deixaram  comtudo  os 
homens  da  commissão  de  levantarem  algumas  dif- 
ficuldades  tendentes  a  enfraquecer  as  vantagens 
do  relógio.  Harisson  respondeu  a  estas  diíficu Ida- 
des de  uma  maneira  satisfatória;  mas  a  commis- 
rão  arrastada  pelas  suggestões  do  artista,  ou 
com  o  fim  de  melhor  verificar  a  descoberta,  de- 
clarou que  a  primeira  viagem  não  era  suíficienle 
e  exigio  uma  segunda  mais  decisiva.  Harisson 
annuio  a  esta  preten.ão;  desejando,  porem,  mu- 
dar algumas  peças,  pedio  uma  espera  de  quatro 
a  cinco  mezes,  que  lhe  foi  concedida.  A  commis- 
são, n'esse  momento,  deu-lhc  por  conta  a  soinma 
de  duas  mil  quatrocentas  e  sessenta  libras  sterli- 
nas  promettendo-lhe  o  resto  da  recompensa  se  a 
segunda  viagem  tivesse  um  succcsso  completo. 

Harisson  filho  partio,  pois,  segunda  vez  para 
a  America,  em  2S  de  marco  de  17Gí :  o  termo  da 
sua  viagem  foi  a  Barbada,  aonde  chegou  cm  13 
de  maio;  a  18  de  setembro  do  mesmo  anno  che- 
gava de  volta  a  Inglaterra.  Fornecido  dos  docu- 
mentos que  justificavam  o  bom  resultado,  apre- 
sentou-se  aos  comrnissarios,  que  reconheceram 
unanimemente  que  tinha  determinado  a  longi- 
tude da  Barbada,  mesmo  nos  limites  prescriptos 
pelo  acto  da  rainha  Anna  para  a  recompensa  in- 
teira. 

Recebeu  enlão  cinco  mil  libras  slerlinas;  o 
resto  devia  ser-lhc  pago  quando  elle  ensinasse  a 
conslrucção  do  seu  relógio  e  pozesse  os  artistas 
ao  alcance  de  os  fabricarem.  Harisson  satilez 
igualmente  a  estas  condições;  mas  fallava  se 
ainda,  antes  de  ser  pago  completamente,  em  im- 
põr-se-lhe  outras  novas:  o  artista  reclamou,  os 
comrnissarios  não  insistiram.  Harisson,  recebeu, 
finalmente,  a  totalidade  da  recompensa  promel- 
tida  :  linha  então  setenta  e  cinco  annos.  Quatro 
annos  mais  tarde  escreveu  os  princípios  do  seu 
relógio  em  uma  memoria  que  produzio  cm  Londres 
profunda  sensação. 

Este  grande  artista,  de  que  se  honra  ainda  hoje 


a  Inglaterra,   morreu  em  1776,  tendo  oitenta  e 
dous  annos  de  idade. 


REPOUSO 

Quis  dabit  milú  penuas  sicut  columbce?   Vo 
labo  et  requiescam. 

David. 

Já  uão  canto ;  minh'alma  abatida 

Vac  perdendo  a  alegria  passada, 

Em  vão  sonho,  ao  romper  da  alvorada, 

Inspirar-mc  do  anligo  fervor ; 

Em  vão  sonho  ;  que  um  dia  d'invcrno, 

ror  mais  luz  de  que  inflanimc  o  horisoDte, 

Não  dissipa  os  rcgèlos  do  monte, 

Nem  dos  campos  inllora  o  verdor. 

Que  me  serve  lembrar  o  passado, 
De  venturas  tão  rico  e  Ião  cheio, 
Se  a  saudade  que  enluta  meu  seio 
Trislemenle  me  obriga  a  scismar? 
Quando  o  ninho  em  que  alegre  vivemos 
Yae  nas  ondas  á  loa  levado, 
O  que  fica  na  praia  exulado 
Como  pódc  aos  seus  cantos  tornar? 

Como  pôde  sorrir  ás  delicias 
De  uma  vida,  que  foge,  Ião  bella, 
Quando  ao  perto  vem  negra  a  procella, 
E  lhe  ruge  o  tremendo  escarcéo? 
Ai,  quem  ha  de  ensinar-lhe  de  novo 
O  seu  canlo  das  noules  formosas, 
Se  não  senle  a  fragrância  das  rosas, 
Sc  não  brilha  uma  eslrella  no  céo? 

Ser  poela,  cantar  em  delírios 
De  prazer  ou  de  magoa  insoffrida, 
Divagar  pelos  campos  da  vida 
Innundando-a  de  vago  esplendor, 
Abrasar-se  por  tudo  e  por  todos, 
Levantar  sobre  as  turbas  a  fronte, 
É  ter  fé  no  que  esconde  o  horisonte, 
É  ter  crença,  ter  sonhos  d'amor. 

É  sentir  dentro  d'alma  os  prcsagios 
D'essa  gloria  que  accende  c  (jue  inspira, 
Distinguir  nos  accordcs  da  lyra 
Uma  voz  ([ue  do  cmpyreo  desceu, 
Entender-lhe  o  murmúrio  das  falias, 
Escular-Ihe  entre  notas  supremas : 
—«Vem  comigo,  não  pares,  não  lemas, 
Que  o  futuro,  que  a  gloria  sou  cu!» 

—«Ergue  o  vòo,  que  um  raio  celeste 
lia  (le  cm  breve  moslrar-tc  o  caminho; 
Sc  adormeces  no  florido  ninho 
Ai,  da  vida  sonhada  por  li! 
Ergue  o  vòo,  desprende-te  c  sobe 
D'essa  treva  cm  (juc  vives  prostrado ; 
Vem  comigo,  que  um  mundo  encantado 
Suspirando  te  aguarda  c  sorri !« 

E  eu  não  creio ;  que  esfaima  abatida 

Já  perdeu  a  alegria  passada  ; 

De  saudades  agora  rallada 

Nom  sequer  me  i)rdpila  de  amor. 

É  (jue  o  sol  quando  aponta  no  inverno, 

l'()r  niais  luz  de  (|ue  inllamme  o  horisonte, 

Não  dissipa  os  regclos  do  monte, 

Nem  dos  campos  inflora  o  verdor  l 

E.  A.  Vidal. 


Dff/rncres  ânimos  llmor  arf/uit.  Virg. 

O  temor  Irae  os  corações  piisillanimo.s. 


Typ,  Franco-PortugueEa  =  Uua  do  Tlicsouro  Velho,  C. 


o  PANORAMA 


n% 


íWW--^^ 


Monte  Sinai. 


Quem. não  conhece  esle  nome?  Quem  não  co- 
nhece a  magnifica  tradição  bíblica  que  cinge  de 
iTlampagos  a  coroa  grani  liça  d'esle  serro  arábico 
para  queDcos  possa  communicar  a  Moysés  as  suas 
leis  divinas?  iloje  a  lerra  onde  se  realisou  a  tre- 
menda entrevista  conipõe-se  de  Ires  montes,  um 
a  que  a  tradição  dá  especialmente  o  nome  de  Sinai  e 
que  se  chama  Gehel-Musa,  (o  monte  Moysés)  ou- 
tro ao  norte  um  pouco  mais  baixo,  que  c  o  Ilo- 
reb,  C;  finalmente,  o  monte  de  Santa  Calhai'ina  si- 
tuado a  sudoeste  e  350  metros  mais  elevado  do  que 
oGebel-Musa.  P]sla  tradição piincipiou  ai)enas  com 
a  era  chrislã,  e  robusteceu-se  pelo  facto  de  ter  o 
imperador  Justiniano  mandado  ali  construir  em 
527  um  convento  fortiíicado,  que  se  chamou  de 
Santa  Calharina  de  Monte  Sinai,  com  uma  igreja 
da  Transfiguração  de  Jesus-Chrislo  onde  lambem 
se  mostram  algumas  relíquias  de  Santa  Calharina. 

Comtudo,esla  tradição  tem  sido  impugnada  por 
alguns  sábios,  que  mostraram  claramente,  pelo  exa- 


me attento  das  localidades,  que  a  scena  bíblica  não 
se  podia  ter  eíTecluado  senão  no  monte  Ilorcb.  As- 
sim parece  estar  hoje  demonstrado.  Comiudo  o  con- 
vento do  Monte  Sinai  lá  subsiste,  tal  como  a  nossa 
gravura  o  representa,  e  esse  nome  santo  continua  a 
ser  dado  ao  monto  Gehel-Musa. 

Antigamente  n'estc  monte,  agora  quasi  deserto 
e  escalvado,  existiam  capellas  e  ermidas,  e  alguns 
mosteiros,  entre  outros  o  dos  Quarenta  Marlyres, 
que  ficava  situado  no  valle  occidental. 


A  GALATÉA  MODERNA. 
YIII 

Totiia  o  aue(oi*  a  palarm 

Se  o  leitor  me  perguntasse  os  motivos  porque 
tomo  a  palavra,  houvera  de  escrever  grosso  trata- 
do das  faculdades  psychicas,  da  maneira  porque  se 
exercitam  e  produzem  effeilos  diversos  segundo  os 
estados  da  alma.  Dissera,  entre  muitas  cousas  aí- 


534 


O  PANORAMA 


lamente  philosophicas,  que  o  entendimento  e  a 
vontade  formam  um  dualismo  nem  sempre  har- 
mónico, em  virtude  do  qual  se  produz  a  activida- 
de do  espirito.  Depois  de  muito  discretear  e  alvi- 
drar  dahi  supremacias  para  as  ingenitas  faculda- 
des, acabaria  por  onde  devera  ter  começado,  e 
dir-lhe-ia  à  puridade,  que  narrando  eu  uma  his- 
toria muito  verídica  e  singela,  e  antepondo  a  ver- 
dade a  quaesquer  outras  considerações  do  bello  c 
deleitoso,  publiquei,  sem  individuações  e  rebuços 
de  cstylo,  as  primeiras  cartas  dos  meus  heroes, 
porque  d'esta  maneira  mais  fácil  me  era  apresen- 
tal-os  quaes  são  em  verdade,  e  desenhal-os  na 
tela. 

Esta  a  grande  vantafem  da  correspondência 
epistolar,  que  dispensa  preâmbulos,  e  permitle 
que  a  narrativa  corra  livre  e  natural. 

Mas  se  taes  são  as  vantagens  da  correspondên- 
cia epistolar,  porque  rasão  interrompel-a,  e  tomar 
a  palavra,  quando  estava  promellida  uma  carta  de 
Alfredo  ao  seu  amigo  ? 

O  leitor  minaz,  e  ainda  não  conheci  algum 
que  o  não  seja,  raciocina  perfeitamente  e  foi,  de 
certo,  inspirado  pela  lógica  mais  subida.  Lembre-se, 
porém,  que  no  trafico  do  mundo  nem  os  vendi- 
lhões vendem  o  que  não  tem,  e  só  as  mulheres 
dão  amor  que  nunca  sentiram. 

Recorra  á  Arfe  de  Furtar  do  Padre  Vieira  e 
lá  achará  explanado  e  explicado  este  ponto. 

Estava  eu  uma  noite  em  S.  Carlos,  ouvindo  não 
sei  já  que  harmonias  de  um  dos  grandes  maestros 
italianos,  que  souberam  alanccar-sc  no  rythmo  às 
sidéreas  regiões  da  harmoniai|| 

Todo  eu  me  embebia  com  ifnmensa  voluptuosi- 
dade  nos  cânticos  que  reboavam  n'aquella  athmos- 
phera  asphixiante  e  cálida,  que  acura  esobreexcita 
a  sensibilidade.  Eia  um  enflorar  nn^lodias  a  voz 
de  Mongini  n'aquella  noite.  Ainda  não  estávamos 
acostumados  ao  viço,  ao  frescor,  á  valentia,  ao 
vibrar  cristallino  d'aquella  voz  melódica,  cujo 
timbre  tem  ás  vezes  a  sonoridade  metallica  do  alu- 
minium. 

Eu  estava  no  sétimo  céo.  O  meu  espirito  corria 
longe,  longe,  alraz  das  notas  que  se  esvaeciam  no 
ar  c  morriam  na  amplidão. 

As  harmonias,  que  ouvia,  traziara-me  á  lem- 
brança outras  mais  superiores,  archangelicas,  ce- 
lesliaes,  e  a  phantasia  lá  ia  buscal-as,  endoidada, 
perdida,  fiemenle,  nas  ondulações  do  othrr. 

^0  meio  d'aquelle  embevecimento  abstiaira  do 
mundo,  do  mundo  que  me  cercaNa,  c  nem  linha  o 
sentimento  da  vida,  da  existência  material  e  palpá- 
vel. Vivia,  mas  uma  vida  interior,  toda  ideal,  ca- 
taléptica. Era  um  d'aqueiies  momentos  em  que  a 
alma  se  separa  docemente  do  corpo,  para  seguir 
mais  altos  destinos.  Se  a  morte  assim  fosse,  seria 
a  liberdade.  J)e  repente  voltei  à  vida  real.  Acor- 
dei do  sonho.  Era  António  Alvares,  meu  amigo 
intimo,  e  intimo  amigo  de  Alfredo,  que  me  ba- 
teu no  liombro. 

—  O  que  ('?  disse  mal  acordado. 

—  Muito  ou  nada,  como  quizeres,  icspoiídeu 
apontando  o  binóculo  para  um  camarote  de  pri- 


meira ordem.  Segui  com  a  vista  a  mesma  direc- 
ção €  topei  com  a  baroneza  do  Alpedial,  que  í^e 
encostava  esplendida  e  scintillante,  dominando 
com  os  olhos  a  multidão,  que  enchia  a  platéa. 

—  É  uma  formosura  peregrina,  não  achas?  con- 
tinuou António. 

—  Demasiado  plástica.  Foi  vasada  no  molde  da 
velha  Grécia.  E  correcta  como  uma  filha  de  Ileli- 
conia.  Pôde  dominar  como  Vénus  na  sua  corte  ; 
mas  eu  prefiro  Psyche  á  creação  de  Milo. 

—  Que  de  cousas  amontoaste  para  nada.  Ter- 
rível gente  a  geração  moderna.  Prolixa,  palrado- 
ra,  sem  opinião.  Era  melhor  dizeres  que  não  gos- 
tavas da  baroneza  por  ser  demasiado  adiposa, 
porque  faz  um  formoso  refego  na  barba,  porque 
tem  uns  olhos  chammejanles,  porque  o  nariz  pare- 
ce dilatar-se  haurindo  fogo,  porque,  emfim,  é  uma 
natureza  potente. 

—  Raciocinio  de  naturalista. 

—  Raciocínio  de  homem  que  preza  a  verdade. 

—  Será  o  que  quizeres.  Dize-me,  porém,  o  motivo 
porque  me  interrompeste  nas  minhas  meditações? 

—  O  molivo  é  simples.  Quero  prestar-te  um 
serviço 

—  Não  percebo.  Que  relação  tem  a  baroneza 
com  tudo  isto. 

—  Já  te  não  lembras  de  Alfredo  e  Violante? 

—  Eu  lenho  a  memoria  do  coração. 

—  Que  é  de  todas  a  peior.  Más,  vamos  adiante. 
Sabes  da  vida  da  baroneza? 

—  Sei  que, lhe  apraz  perder-se  nos  bosques, 
para  que  o  deus  travesso  lhe  vare  o  coração  com 
uma  seita  hervada. 

—  Deixa-le  de  mythologias,  e  falia  com  rigor  e 
em  linguagem  commum.  Lembra-le  que  estamos 
em  Portugal,  n'eslc  recanto  do  occidente,  aonde 
todos  adoram  Victor  Hugo  e  o  arremedam.  O  pró- 
prio Byron  eLamai'tine,  eo  Goethe  e  o  Espronceda 
já  não  ha  quem  os  leia.  De  Mazoni  ninguém  falta. 
Ora  Victor  Hugo  nunca  provou  o  mel  do  llymetlo. 
Sè  pois  nebuloso,  se  quizeres,  invoca  o  próprio 
Hegel,  c  a  perfectibilidade,  mas  não  falles  na  Gré- 
cia, n''esse  berço  das  leiras,  porque  liças  grego. 
Ninguém  te  entende.  E  depois,  meu  caro,  o  ridí- 
culo persegue  os  árcades.  Acabaram  os  pastores. 
Fallar  de  Cupido  e  da  sua  aljava  é  suicidar-se. 
Está  proscripto  o  género  infantil  da  arcádia.  E  o 
peior  é  que  de  envolta  com  essas  velharias  lá  se 
nos  vae  o  sabor  porluguez,  o  conceiluoso,  a  clare- 
za, a  fidalguia  da  boa  dicção.  A  águia  de  Viclor 
Hugo  empolgou  nas  garras  aduncas  os  nossos  po- 
bres rouxinoes,  e  deixou  por  cá  as  corujas  c  os 
mochos  que  piam  nos  escombros. 

—  Menos  fúria,  meu  caro  António. 

—  Tens  razão.  Não.  comprehcndo  o  progresso. 
Adiante.  Sabes  por  tanto  que  a  baroneza... 

—  É  um  pouco  leviana,  como  a  caslellã  da  ida- 
de media  que  por  horas  mortas  da  noite  contava 
as  estreitas  nos  olhos  de  um  pagem  ladino  e  lindo 
como  um  sylpho. 

—  Es  incoi-rigivel.  Passas  da  Grécia  para  a  ida- 
de media  sem  mais  reparo,  como  íjuem  pula  de 
Lisboa  para  Cintra. 


o  PANORAMA 


235 


—  De  que  modo  heide  enlão  definir  a  baroneza  ? 

—  Dize  primeiro  que  ó  formosa. 

—  NâgO. 

—  A  formosura  é  uma  qualidade  relativa,  que 
varia  de  objecto  para  objecto,  de  sujeito  para  su- 
jeito. 

—  Deixa-le  de  philosophias,  com  que  malsinas 
o  teu  caracter  de  homem  assisado.  Pelos  modos 
também  divides  a  formosura  em  objectiva  e  sub- 
jectiva !  Honor  !  Mulher  formosa  é  a  que  rende  o 
maior  numero  e  não  se  rende  a  ninguém. 

— Logo  a  baroneza  é  formosíssima  porque  agra- 
da a  todo  o  mundo.' 

—  Agrada,  mas  não  rende,  seja  dito  sem  ca- 
lemburgo.  Não  subjuga !  Mas  por  Deus !  Acabou 
o  primeiro  acto.  Perdi  esta  musica  divina  do  di- 
vino Donizetti,   por  tua  culpa  e  da  tua  baroneza. 

—  Já  agora  ouve,  que  has  de  agradecer-me.  E 
pois  que  encontras  tanta  diíficuldade  em  definir  a 
baroneza,  prosigamos  o  nó  gordio. 

—  Vamos,  pois,  adiante,  mas  não  fiquemos  no 
mesmo  sitio. 

—  Sabes  que  fui  o  melhor  e  talvez  único  amigo 
de  Alfredo. 

—  Perfeitamente. 

— Não  ignoras  que  o  amparei  em  todas  as  tribu- 
lações da  sua  vida,  nos  desenganos,  que  lhe  cava- 
ram a  rui  na,  nos  desalentos  que  lhe  compungiram 
horrivelmente  aquella  alma  de  poeta,  nas  immen- 
sas  dores  que  elle  curtio,  quando  se  revolvia  vo- 
lupluosamente  nos  espinhos  que  lhe  juncavam  o 
caminho.  Sabes  tudo  isto,  porque  foste  testemu- 
nha dos  meus  baldos  esforços  em  lançar  bálsamo 
na  ferida  sanguinosa,  em  levar  um  raio  de  luz  ás 
trevas  do  cárcere  em  que  elle  gemia  chumbado  á 
própria  dor.  Muitas  vezes  has  desejado  estudar  esse 
problema  chamado  Alfredo  de  Mello,  não  como 
um  ornato  vulgar,  como  um  Desgrieux  insulso, 
que  corre  atraz  de  uma  Manon  devassa,  senão  co- 
mo o  symbolo  de  um  homem  que  gira  perpetua- 
mente em  volta  de  um  ponto  fixo  até  cair  re- 
dondo no  chão,  para  depois  se  erguer  como  Anteu 
e  exclamar :  homo  sum.  Esse  Alfredo  que  arrojou 
a  todos  os  ventos  a  vida,  a  alma,  o  coração ;  esse 
louco  para  quem  o  mundo  era  pequeno  âmbito 
aonde  expandisse  as  lavas  da  sua  actividade  vul- 
cânica; esse  homem  que  foi  maispoelado  que  Es- 
pronceda,  porque  saio  impolluto  da  orgia;  esse  ho- 
mem que  tu  tantas  vezes  contemplaste  pasmado  e  es- 
tático, proque  não  lhe  comprehendias  o  sorriso  de 
múmia  galvanisada;  esse  semi-deus  bi-froute  como 
Jano,  que  oraarremettia  comum  mundo,  ora  fugia 
espavoíido  de  uma  creança ;  esse  complexo  de 
qualidades  e  defeitos,  argilla  e  ether  a  um  tempo, 
demónio  e  archanjo,  umas  vezes  seraphico  como 
S.  Agostinho,  outras  sceptico  como  Fausto,  aqui 
topelando  com  as  nuvens,  acolá  infirao  e  desprc- 
zivel  chafurdando  no  lodo,  confundindo  Magdalena 
com  Aspasia,  e  Patmos  com  a  ilha  de  Chio,  a  ambró- 
sia com  o  phajerno;  esse  mortal,  emfim,  que  qui- 
zera  que  todas  as  mulheres  fossem  Artemisas,  para 
que  todas  lhe  elevassem  um  mausoléo,  podes  estu- 
dal-o  completamente,  analysal-o,  dissecal-o  como 


um  exemplar  exótico  da  espécie  humana,  como 
um  ser  monstruoso,  leralologico,  informe,  ante- 
diluviano,  representante  de  uma  fauna  oblilterada, 
naufrago  de  um  cataclismo  aniigo,  fóssil  de  uma 
paleontologia  desconhecida. 

—  Como?  bradei  eu  a  final. 

—  Simplesmente.  Olha-me  com  allenção  para  a 
baroneza.  É  uma  formosura  potente,  luxuriante 
como  ura  feto  arborescente,  e  não  sei  se  diga  lu- 
xuriosa como  um  demónio  ou  como  um  hippopo- 
lamo. 

— E  depois?  Estou  farto  de  contemplar  a  baroneza. 

—  Só  ella  te  pôde  dar  a  chave  do  enigma,  ella, 
a  companheira  inseparável  de  Violante,  ella  o  anjo 
caido  que  a  tentou  e  oITuscou  com  ouropéis  enga- 
nosos, ella,  a  pagã,  que  nem  mesmo  é  idolatra, 
porque  ousa  conculcar  os  penates  e  vilipendiar  o 
marido,  ella,  a  mulher-carne,  a  Vénus  Adipo- 
sa, o  vicio  esplendido,  a  incansável,  a  insaciável, 
a  verdadeira  Aspasia  que  não  se  vende  nem  se 
entrega,  porque  domina  e  compra.  Essa  mulher, 
borboleta  que  ao  sair  da  chrisalida  para  logo  quei- 
mou as  cândidas  azas  no  brazeiro  das  jiaixões,  guar- 
da como  um  thesouro  as  carias  de  Violante,  que 
foi  o  único  e  verdadeiro  amor  de  Alfredo. 

■ — E  como  queres  que  eu  arranque  esse  thesou- 
ro de  mãos  tão  avaras  e  aferradas?  Como  con- 
vencer a  baroneza? 

—  Não  sei.  Aventura-te  n'esse  vulcão  de  lodo, 
a  que  .ella  chama  consciência. 

—  Ó  Tântalo,  imagem  eterna  e  eternamente  jo- 
ven  do  homem,  Vejo  o  fructo  e  não  posso  colhel-o. 
Desde  que  conheci  Alfredo  sempre  foi  desejo  meu 
mais  intimo  e  entranhado  o  seguir  passo  a  passo, 
com  a  sonda  na  mão  aquelle  viver  insólito,  aquelle 
despenhar  de  loucuras,  aquella  catadupa  de  grandes 
esforços  e  grandíssimas  fraquezas.  E  agora  que 
seguro  e  palpo  o  extremo  do  fio,  que  havia  de 
guiar-me  no  labyrintho,  quebra-se-me  nas  mãos 
de  encontro  a  um  rochedo  inabalável. 

António  Alvares  olhou  fito  para  mim. 

—  O  teu  desapontamento  parece-me  verdadeiro. 

—  Ainda  duvidas,  bárbaro? 

—  Eu  duvido  sempre,  porque  fui  muito  crédu- 
lo. Felizes  tempos!  O  papel  de  sceptico  não  é  já 
agora  da  moda  no  drama  da  vida,  porque  o  dra- 
ma volveu-se  comedia.  Assentámos  todos  cm  nos 
rirmos  das  próprias  e  alheias  fraquezas,  como 
Demócrito  e  Diógenes.  É  o  cynismo  e  o  estoicis- 
mo. Ha,  porém,  uma  cousa  tão  santa  c  pura,  um 
sentimento  tão  elevado  e  divino,  que  é  sacrílego 
quem  se  ri  d'elle.  Ninguém  escarneça  da  amisade 
e  das  oblatas,  que  no  altar  d"ella  depõem  os  fieis 
Acredito,  pois,  na  luadôr.  Conlio  do  teu  coração. 
Foste  amigo  de  Alfredo ;  de  razão  c  que  desejes 
saber-lhc  a  vida. 

—  Agradeço  e  admiro  a  lua  rara  agudeza.  Pa- 
recc-me  que  não  c  necessário  ser  OEdipo  para 
adivinhar  isso.  Invocar  a  amisade  em  crise 
tão  natural,  qual  éa  curiosidade  de  peneirar  um 
enigma,  é  sobejidão  a  que  tu  és  muito  atreito. 

—  Desculpo-te  as  imprudências.  Vamos  ao  caso. 
Eu  posso  contar-te  miudamente  a  vida  de  Alfre- 


236 


O  PANORAMA 


do,  para  a  romanceares  à  vontade.  Sei,  porém,  que 
a  baroneza  guarda  com  especial  carinho  as  carias 
de  Vioiante."ja  vòs  a  vantagem  de  obter  esses  do- 
cumentos de  alta  valia.  Como?  Mo  sei.  Quando? 
Ignoro.  Taclèa  e  espreita  a  occasião  azada.  Isso 
te  pertence. 

—Amanhã  hei  de  ter  as  cartas  de  Violante,  ex- 
clamei ergueu  dc-mc  com  uns  modos  inspirados, 
dignos  de  um  vidente. 

—  Es  dotado  de  dupla  vista? 

—  >ão.  Conheço  as  mulheres  em  geral,  e  a  ba- 
roneza em  especial. 

—  E  depois  ■? 

—  Cá  tenho  a  minha  láctica.  Amanhã  á  noiti- 
nha serei  em  tua  casa,  continuei  com  um  tom  fa- 
tídico, como  quem  dá  um  aprazamento  fatal. 

—  Amanhã  te  aguardarei  o  verei  se  foste  o 
Alexandre  d'esle  caso  intricado. 

—  Adeos. 

—  Aonde  vaes? 

—  Ao  camarote  da  baroneza. 

—  Tem  mão.  Não  te  percas. 

—  Infelizmente  já  não  estou  na  idade  de  per- 
der-me  1  Quem  dera  !  1-cram  tempos  que  não  vol- 
tam, ainda  mal ! 

—  \ae  pois.  Guie-le  Mercúrio,  o  deus  dos  la- 
drões. 

— E  o  mensageiro  dos  carnacs  amores  da  côrle 
olvmpica. 

"E  sai. 

António  Alvares  eslava  boqui-aberto.  Era  a 
imagem  do  espanto.  Estava  erecto  com  a  cabeça 
levemente  pendida,  olhos  semi-vclados,  sorriso 
algum  tanto  sardónico  e  incrédulo  Parecia-me 
um  ponto  de  admiração  seguido  de  uma  reti- 
cencia mysteriosa. 

{Continua.) 


ALGUMAS  OBSERVAÇÕES  SOBRE  O  CÉREBRO 

O  cérebro  do  cão  não  excede  o  do  carneiro  e  é 
mais  pequeno  que  o  do  boi.  O  cérebro  do  elephan- 
le  pesa  Ires  vezes  mais  que  o  cérebro  humano.  A 
baleia  c  muitos  outros  cetáceos  teera  lambQin  o  cé- 
rebro superior  ao  do  homem. 

Sc  se  compara  o  jieso  do  cérebro  com  a  massa 
do  corpo,  acliarse  que  o  cérebro  do  homem  é,  re- 
lativamente, infeiior  ao  de  muitas  espécies  de  bu- 
gios, do  pardal,  do  melharuco  e  do  canário.  O  cão, 
relativamente,  lambem  Unn  o  cérebro  mais  pequeno 
que  o  morcego  e  o  cavallo  menor  que  o  coelho. 

Comparando-se igualmente  as  circumvoluções  ou 
pregas  variadas  e  irregulares  que  se  voem  no  cére- 
bro de  alguns  animaes,  e  que  certos  auctores  lecm 
consideríiiJo  como  signaes  de  superioridade,  nola- 
seque  o  burro  tem  muitas  circumvoluções  e  que  o 
ele[»hante  tem  mais  do  que  o  homem 

Geralmenle  admitle-se  que  um  homem,  cujo  cé- 
rebro pese  menos  de  lOOOgrammas,  é,  necessaria- 
mente, pri\a(lo  d'ii)telligencia.  E  ponto  contro- 
verso, qual  a  idade  ein  (|ue  o  cerehio  allinge  o 
seu  peso  máximo  eseha  alguma  ejjoca  em  que  elle 
diminue.  Sei/undo  o  dislinctonaKiralisla  e  elegan- 


te escriptor,  Pedro  Gratiolet,  il)  «o  cérebro  cres- 
ce sempre,  pelo  menos  nas  raças  caucasianas,  des- 
de a  infância  até  a  decrepitude. 

Diz-sc  que  o  cérebro  de  Cromwell  pesava  2238 
grammas,  o  de  Byron  2238  e  o  de  Cuvier  1829; 
mas  estas  cifras,  que  não  são  incontestáveis,  nada 
provam.  Raphael,  Descartes,  Voltaire,  Napoleão, 
Schiller  e  outros  muitos  homens  illustres,  tinham 
cabeças  pequenas,  e  os  seus  cérebros  não  podiam 
exceder  muito  o  peso  médio,  que  varia  entre  1328 
e  1421  grammas. 


A  CONTRADANÇA  RIDÍCULA 

Já  n'este  volume  do  Panorama  figuraram  duas 
gravuras  do  Ilogarlh.  A  primeira,  denominada  o 
Infeliz  Poda,  era  uma  d'eslas  gargalhadas,  que 
occultam  lagrimas,  um  drama  contado  com  voz 
ligeiramente  irónica;  a  segunda,  intitulada  o  J/w- 
sico  enraivecido,  considerámol-a  como  um  verda- 
deiro folhetim,  como  a  producção  espontânea  de 
uma  hora  de  bom  humor.  A  que  hoje  se  apresen- 
ta aos  nossos  leitores  póde-se  tomar  como  o  lypo 
mais  perfeito  da  caricatura  humorística  ingleza, 
como  o  exemplo  mais  notável  d'esse  cómico  phan- 
laslico,  peculiar  das  nações  septemlrionaes,  que 
produz  na  litteralura  os  Conlos  exlravat/aníes  de 
Achim  d'Arnim,  e  as  Historias  exlraordinarias 
d'Edgar  Poe. 

Os  inglezes  e  os  allemães,  até  mesmo  nas  ho- 
ras em  que  soltam  as  suas  gargalhadas /'^«//A/o^caí 
(pcrmilta-se-nos  o  termo)  revelam  as  tendências 
idealistas,  que  deram  á  sua  lilleratura  o  cunho 
original,  que  a  fez  prevalecer  sobre  todas  as  ou- 
tras, quando  a  Europa,  fatigada  d'uma  longa  crise, 
e  vendo-sc  no  meio  das  ruínas  das  suas  velhas 
instituições,  sentio  um  vago  desejo  de  peneirar 
n'esses  mundos  desconhecidos  e  nebulosos,  por  onde 
esvoaçava  a  musa  melancólica  dos  poetas  do  nor- 
te. Ofrancez  tem  menos  tendência  para  se  despe- 
gar da  realidade,  e  o  seu  culto  pelo  bom  senso, 
(jue  formou  sempre  a  physionomia  particular  da 
sua  lilleratura,  não  consente  que  a  extravagância 
transponha  certos  limites.  O  espirito  gaulez,  co- 
mo elles  lhe  chamam,  admilte  a  ironia,  a  mor- 
dacidade, mas  não  comprehende  o  excêntrico. 
A  adoiação,  que,  durante  certo  tempo,  mostraram 
por  ilolíniann,  e  pelos  romancistas  allemães  da 
sua  escola,  foi  uma  adoração  iicticia,  uma  moda 
exótica,  que  já  principia  a  passar.  O  humorismo 
inglez  nunca  poude  iniplanlar-se  completamente  na 
sua  lilleratura,  apezar  dos  esforços  de  muitos  es- 
criplores.  Esta  seriedade  no  cómico,  esta  impassi- 
bilidade no  extravagante,  no  absurdo,  que  os  Alle- 
mães e  os  Inglezes  consideram  como  o  su|)remo 
gráo  do  chiste,  nunca  foi  acolhido  pelos  Erance- 
zes  senão  com  um  meio  sorriso.  Em  compensação 
a  mais  leve  allusão  salyrica  do  folhetim,  c  a  gar- 
galhada franca  e  burlesca  do  vaudcvillc  transporia 
d'enlhusiasmo  esses  Alhenienses  de  Paris. 

(II  Pedro  Gralioh  I,,  Icnlc  de  zoologia  da  Faculdade  de  scicncias  do 
Parts.  Morreu  cm  10  de  fevereiro  do  1865. 


o  PANORAMA 


A  contradança  ridicula. 


Oia  a  Conlradança  ridicula  crilogaiih  é  a  ex- 
pressão do  cómico  inglez.  É  uma  phanlasia  gro- 
tesca, o  uma  visão  estapafúrdia,  é  um  devaneio 
disparatado.  ISão  so  cancem  a  procurar  allusões 
que  as  não  encontram;  não  julguem  que  as  íigu- 
ras  do  quadro  se  vão  contorcer  em  momos  e  esga- 
res do  vaudeville;  os  vultos  da  contradança  agi- 


tam-se  com  uma  seriedade  glacial,  e  tomam  com 
um  aspecto  fúnebre  as  posições  mais  capazes  de 
despertar  a  hilaridade.  Em  torno  d'elles  volteia  a 
pliantasia  do  desenhador,  formando  a  esse  quadro 
a  moldura  mais  caprichosa  e  excêntrica.  O  lápis 
traça  os  arabescos  mais  extravagantes,  sem  aspirar 
ummomento  só  a  ligar  entre  si  os  episódios  que  loi 


238 


O  PANORAMA 


formando  na  tela.  Um  francez,  se  tentasse  fazer 
uma  caricatura  n'este  género,  formaria  uma  collec- 
ção  de  liguras  desopilantes,  como  as  pôde  conce- 
ber quemtem  o  espirito  exaltado  pelos  fumos  pro- 
venientes dos  copos  espumosos  doChampagne,  be- 
bidos no  meio  d'um  tiroteio  alegre  de  rolhas  e  de 
bons  ditos:  mas  a  caiicalura  d"Ilogarlh  e  um  so- 
nho de  bebedor  de  cerveja,  (pie  absorveu  uns  pou- 
cos de  bocks,  fumando  silencioso  o  seu  cachim- 
bo, e  que,  deixando  depois  cair  a  cabeça  em  cima 
da  banca,  vio,  entre  uma  nuvem  vaporosa,  agitar- 
se-Ihe  em  torno  essa  grave  e  rldicula  contradança. 

PiNOEiRO  Chagas 

OS  TRÊS  FILHOS  DE  FAMÍLIA 

Auccflotn  arabc 

Um  dia,  Naaman,  bey  de  Constantina,  mandou 
publicar  na  cidade  um  aviso  prohibindo  os  pas- 
seios nocturnos,  sob  pena  de  moile  para  todo  o 
individuo  (|ue  fosse  encontrado  pela  policia;  e  ao 
jnesmo  temj)o  prescreveu  ao  caid-dar  o  fazer  pes- 
soalmente a  ronda. 

Quando  chegou  a  noite  o  caid  fez  a  sua  oração, 
e,  ao  sair  da  mesquita,  chamou  cinco  agentes,  e 
começou  o  seu  giro.  Chegados  ao  Souq-el-IIer- 
guema  rua  das  casas  de  pasto  tunisianas)  encon- 
traram três  mancebos,  bem  vestidos,  conversando. 

— xMancebos,  gritou  o  caid-dar,  que  motivos  ten- 
des para  vos  achardes  aqui  a  esta  hora? 

— Nenhum,  responderam  elles. 

^E  de  quem  sois  íilhos?  accrescentou  o  caid. 

—  Eu,  replicou  um  d'elles,  sou  filho  d'aquelle 
diante  do  qual  se  curvam  as  cabeças  dos  homens. 

—  Eu,  disse  outro,  sou  filho  d'aquelle  que  dá 
de  comer  a  quem  tem  fome. 

—  E  eu,  disse  o  terceiro,  sou  filho  d'aquelle 
que  dá  de  beber  a  (|uem  tem  sede. 

Depois  de  um  momento  de  reflexão,  o  caid-dar 
disse-lhes: 

— Não  posso  por-vos  em  liberdade  «em  que  o 
sultão  vos  veja. 

No  dia  seguinte  conduzio-osá  presença  de  Naa- 
man-liey.  Os  mancebos  deram-lhe  as  mesmas  res- 
postas que  tinham  dado  ao  caid. 

O  principe  immediatamenle  os  mandou  soltar; 
depois,  vollando-se  para  os  grandes  da  côrle: 

—  Notastes,  lhes  disse,  a  delicadeza  c  a  finura 
d'esles  adolescentes.^ 

—  Ferdemo-nos  em  conjecturas,  senhor,  respon- 
deram elles,  c  estamos  admirados  de  ver  como 
agarrastes  o  sentido  das  suas  palavras. 

— Muito  bem,  continuou  o  Bey,  eis  aqui  a  cx- 
j)licarão:  o  primeiío  é  íilho  d'um  barbeiro,  o  se- 
gundo d'um  padeiro  e  o  terceiro  d'um  aguadeiro. 

A  estas  jialavras  os  corlezãos  exclamaram: 

—  Oue  Deos  vos  conceda  toda  a  sua  infinita  nii- 
sericordia,  ó  grande  principe  e  senhor  no.sso.  É  o 
vosso  espirito  que  nos  esclarece. 

MYTHOLOGI.\  SCÂNDINAVA 

Nos  confins  da  Europa  seplemlrional,  nos  pai- 
zes  próximos  aos  gelos  polares,  habitava  cm  ou- 
tro tempo  o  povo  scandinavo,  que,  originário  do 


Oriente^  viera,  depois  de  uma  longa  peregrina- 
ção, cstabelccer-se  nas  inhospitaleiras  regiões  do 
Norte,  tão  distinctas  do  seu  paiz  natal.  A  sua 
religião  era  um  paganismo  grosseiro,  muito  dil- 
fercnle  do  risonlio  sensualismo  da  mythologi;i 
grega,  e  do  caracter  philosopliico  dos  primeiros 
dogmas  da  Índia;  era  uma  religião  de  sangue 
própria  de  um  povo  que  considerava  a  paz  como 
uma  cousa  vergonhoí>a  e  que  só  achava  prazer 
nos  combates,  l^^sla  religião  durou  por  espaço 
de  muitos  séculos,  porque  a  luz  do  Evangellio 
tarde  penetrou  n'aquellcs  paizes:  já  muito  tempo 
havia  que  em  toda  a  Europa  se  tinham  derri- 
bado os  aliares  de  Júpiter  e  de  Tcutates  e  ainda 
na  Scandinavia  se  venerava  Thor  e  Odin. 

O  paiz,  que  este  povo  habitava,  contribuía  po- 
derosamente para  que  a  sua  religião  tivesse  um 
caracter  sombrio;  pois  é  um  facto  indubitável 
que  a  influencia  da  localidade  deixa-se  sentir, 
até,  nas  crenças  do  homem.  Os  scandinavos  de- 
viam sentir  esta  influencia  ao  contemplar  o  seu 
céo  sempre  toldado,  os  seus  rochedos  selvagens 
nas  bordas  de  um  mar  tempestuoso,  e  o  seu  ás- 
pero clima  n'aquclles  prolongados  invernos;  in- 
vernos em  que  a  natureza  parece  envolta  em 
um  manto  de  luto,  quando  o  sol  pallido  e  sem 
brilho  apenas  permanece  algumas  horas  sobre  o 
horisonte,  allumiando  fracamente  um  paiz  agres- 
te e  gelado,  como  que  para  suspender  por  um 
momento  a  tristeza  das  suas  noites  eternas. 

A  mylhologia  scandinava,  apresenta-nos  uma 
multidão  de  seres  sobrenaturaes,  cujos  poderes, 
mais  ou  menos  limitados,  estão  ao  serviço  do 
bem  ou  do  mal,  segundo  a  classe  a  que  perten- 
cem. N'esla  religião  não  está  tão  marcado,  como 
na  maior  parte  das  outras,  esse  dualismo  do 
bem  c  do  mal,  que  forma  geralmente  a  base 
das  crenças  de  quasi  lodos  os  povos;  nias^  sim, 
domina  uma  còr  sombria,  que  não  se  encon- 
trará acaso  cm  nenhuma  outra;  os  seus  deuses 
teera  que  defender-se  dos  ataques  dos  gigantes, 
e  sabem  que  chegará  um  dia  cm  que  o  mundo 
será  presa  das  chammas,  e  que  a  maior  parte 
d'elles  perecerá  para  não  mais  resuscitar. 

O  primeiro  de  todos  os  Asas  ou  deuses  é  Odin^ 
dominador  de  todas  as  cousas;  os  outros  deuses 
obedecem-lhe  e  respeilam-no.  Sua  esposa  Frigga 
lê  no  coração  dos  homens  e  penetra  os  seus 
desígnios  antes  de  serem  executados;  d'clla  e  de 
Odin  descendem  todos  os  Asas.  Odin  tem  sem- 
pre dois  coivos  sobre  os  hombros,  os  quaes 
manda  todas  as  manhãs  correr  os  mundos  para 
lhe  contarem  o  que  se  passa  n'elles. 

O  segundo  dos  Asas  é  Thor;  este  deus  é  o  ser 
mais  forte  que  existe  no  universo^  c  habita  um 
palácio  que  tem  quinhentas  e  quarenta  habita- 
ções; geralmente  anda  em  um  carro  puxado 
por  dois  bodes.  Thor  tem  uma  clava  que  é  fa- 
tal aos  gigantes,  e  alóm  d'isso  possue  um  cinto, 
que  lhe  duplica  a  força  quando  o  ajusta,  e  umas 
luvas  de  ferro.  As  façanhas  de  Thor  são  infini- 
tas, e  bastariam  para  encher  um  volume.  No 
combale  final  dos  deuses  com  os  gigantes,  Thor 
lucla  cora  a  serpente  Midgard  c  é  derribado  por 
este  monstro.  Thor  é  a  personificação  do  \alor 
e  da  força. 

O  terceiro  dos  Asas  é  Baldur^  deus  da  bon- 
dade, da  riqueza  c  da  formosura;  o  seu  rosto  é 
tão  resplandecente  que  despede  raios,  céo  mais 
sabio^  o  mais  eloquente  e  o  mais  bondoso  de  to- 


o  PANORAMA 


239 


dos  os  Asas;  ninguém  pode  contrariar  as  suas 
sentenças.  Na  sua  morada  tudo  é  puro.  Uma  vez 
sonliou  que  liavia  perigos  que  ameaçavam  a  sua 
vida.  Os  deuses  reuniram-se  e  resolveram  preser- 
val-o  de  todos  quantos  males  podessem  existir. 
Frigga  fez  com  que  o  fogo,  a  agua,  o  ferro  e 
todos  os  metaes,  a  terra  e  as  pedras,  as  arvores, 
as  enfermidades  e  os  venenos,  os  quadrúpedes, 
as  aves  e  os  insectos,  todos  os  seres,  em  fim, 
jurassem  que  jamais  causariam  o  menor  damno 
a  Baldur.  Um  dia  os  Asas  entretinham-se  em 
perseguil-o,  sabendo  que  não  podiam  fazer-lhe 
mal;  Loki,  porém,  deus  do  mal,  vio  isto  e  pro- 
poz-se  a  matal-o.  Tendo-lhe  constado  que  a 
leste  do  Yalhalla,  ou  palácio  dos  bemaventura- 
doSj  existia  um  arbusto  ao  qual  Frigga  não  ha- 
via exigido  o  juramento  a  respeito  de  Baldur, 
porque  o  julgou  mui  pequeno,  correu  ao  sitio, 
cortou-o  e  voltou  para  junto  dos  Asas.  Hodur 
estava  fora  do  circulo,  porque  era  cego;^  «por- 
que, lhe  disse  Loki,  não  persegues  também  Bal- 
dur?» (i,«Porque  não  vejo  aonde  está,  e  além  d'isso 
não  tenho  armas,  respondeu  Hodur.»  «Fazecomo 
os  demais^  tornou  Loki,  e  honra  a  Baldur;  eu 
t"o  indicarei:  atira-lhe  com  esta  varinha.»  Hodur 
agarrou  na  varinha  e  arremessou-a  na  direcção 
que  Loki  lhe  mostrava;  a  varinha  foi  directa- 
mente atravessar  o  corpo  de  Baldur  e  lançou-o 
morto  por  terra.  Os  Asas  ficaram  gelados  de  es- 
panto; não  podiam,  porém,  vingar  aquella  morte 
por  ser  um  lugar  sagrado.  Então  Frigga  pergun- 
tou quem  era  o  que  se  atrevia  a  descer  ao  reino 
das  sombras  para  oíTerecer  á  morte  o  resgate  de 
Baldur.  Hermodur.  o  veloz,  filho  de  Odin,  disse 
que  não  punha  duvida  em  ir  desempenhar  tal 
missão.  Durante  nove  noites  caminhou  por  val- 
les  escuros  e  medonhos  até  que  chegou  ao  rio 
Gioll^  cuja  ponte  é  coberta  de  ouro.  A  donzella 
que  guardava  esta  ponte  disse-lhe  que  na  vés- 
pera tinham  passado  cinco  pellotões  de  homens 
mortos,  e,  não  obstante,  não  faziam  mais  ruido 
do  que  elle;  —  perguntou-lhe  também  aonde  ia, 
pois  não  lhe  achava  côr  de  cadáver.  Hermodur, 
contou-lhe  o  fim  da  sua  viagem,  e,  continuando 
o  seu  caminho,  chegou  em  fim,  ao  palácio  da 
morte,  onde  vio  Baldur  no  posto  mais  honroso. 
Quando  no  dia  seguinte  Hermodur  pedio  á 
morte  que  lhe  concedesse  levar  comsigo  Baldur 
para  renascer  a  alegria  em  Asgard,  a  morte  res- 
pondeu-lhe  que  se  todos  os  viventes  e  todos  os 
objectos  inanimados  quizessem  chorar  a  desgra- 
ça do  deus,  perniittiria  então  que  este  tornasse 
para  o  seio  dos  Asas.  Hermodur  de  volta,  os 
Asas  enviaram  mensageiros  a  todas  as  partes  pe- 
dindo que  chorassem  a  desgraça  de  Baldur  para 
este  bom  deos  poder  sair  das  mãos  da  morte:  os 
homens  e  os  animaes,  a  terra,  as  pedras,  as  arvo- 
res e  os  metaes,  todos  choraram  por  Baldur;  só 
uma  velha  permaneceu  muda;  em  vão  lhe  pedi- 
ram que  chorasse;  negou-sc  obstinadamente  a 
isso^  dizendo  que  guardasse  a  morte  o  que  já 
j  tinha  em  seu  poder.  Os  Asas,  conhecendo  que 
I  era  Loki,  resolveram  castigal-o,  como  o  fizeram 
depois. 

Niord  é  o  terceiro  dos  Asas;  dirige  o  curso  do 

j  vento  e  domina  na  agua  e  no  fogo.  Niord  não  é 

propriamente  da  raça  dos  Asas;  por  seu  nasci- 

!  mento  pertence  aos'  Vanes.  Sua  esposa  Skadí  é 

filha  do  gigante  Thiassi.  Niord  tem  dois  filhos: 

Freir,  que  dirige  o  tempo,  dispõe  do  sol,  da 


chuva,  da  paz  e  da  fertilidade,  e  Freia,  que  é  a 
mais  bella  de  todas  as  deusas;  a  esta  pertence 
metade  das  almas  dos  que  morrem  nos  comba- 
tes^ assim  como  a  outra  metade  pertence  a  Odin. 
Freia  anda  em  um  carro  puxado  por  gatos;  é 
affeiçoada  aos  cantos  de  amor  e  deve  ser  con- 
sultada em  assumptos  amorosos. 

Outro  dos  Asas  é  Tyr^  deus  da  guerra;  o  seu 
valor  e  atrevimento  são  extraordinários.  Quando 
os  Asas  procuravam  persuadir  o  lobo  Fenris  para 
que  se  deixasse  prender,  este  disse  que  o  não 
faria  sem  o  grande  Tyr  lhe  metter  a  mão  den- 
tro da  boca  até  o  termo  da  sua  prisão;  como  o 
lobOj  fortemente  encadeado,  vio  não  mais  po- 
der recobrar  a  sua  liberdade,  cortou  com  os 
dentes  a  mão  de  Tyr,  que  desde  então  ficou  ma- 
neta; mas  que  nem  por  isso  é  tido  por  pacifico. 

Bragi  é  outro  Asa  que  se  distingue  por  sua 
eloquência  e  destreza  na  poesia;  sua  esposa  íduna 
conserva  em  uma  vasilha  de  ouro  as  maçãs  que 
dão  aos  deuses  uma  juventude  perpetua.  " 

Heimdall,  chamado  o  Asa  branco,  foi  dado  á 
luz  por  nove  irmãs;  dorme  menos  que  um  pás- 
saro e  VG  tanto  de  dia  como  de  noite;  o  seu  ou- 
vido é  tão  fino  que  sente  nascer  a  herva  e  a  lã 
das  ovelhas.  Heimdall  vela  sempre  á  entrada  da 
ponte  por  onde  hão  de  passar  os  gigantes  quan- 
do forem  luctar  com  os  deuses.  O  som  da  sua 
trombeta,  chamada  Giallar,  ouve-se  em  todos  os 
mundos. 

Outro  dos  Asas  é  Hodur,  o  cego,  que  matou 
Baldur;  é  extremamente  forte. 

Vidar  é  denominado  o  Asa  silencioso;  tem  um 
sapato  ao  qual  cousa  alguma  pôde  causar  o  me- 
nor damno.  Vidar  é  o  mais  forte  depois  de  Thor 
e  é  a  elle  que  se  entregam  os  deoses  em  todos 
os  perigos. 

Os  outros  Asas  sKo :  Ali  ou  Vali,  filho  de  Odin 
e  de  Rinda;  é  atrevido  nos  combates  e  bom  ar- 
cheiro. UUer,  hábil  em  patinar,  é  de  rosto  agra- 
dável e  de  aspecto  guerreiro;  é  o  deus  dos  de- 
safios. Forseti,  filho  de  Baldur  e  de  Nanna,  é  o 
que  decide  as  questões  dos  homens. 

Entre  os  Asas  conta-se  também  Loki,  a  que 
alguns  chamam  o  blasphemo,  o  deus  do  engano 
e  do  opprobrio.  Seu  pai  foi  o  gigante  Farbauti 
e  sua  mãi  Laufeya.  Loki  é  formoso,  mas  de  ca- 
racter perverso  e  inconstante;  a  sua  maldade 
tem  causado  grandes  pezares  aos  deuses;  em 
compensação,  porém,  era  algumas  occasiões  tem- 
n'os  salvado  dos  perigos.  Sua  esposa  chama-se 
Sygin  e  d^ella  tem  um  filho  chamado  Nari  ou 
Narvi;  além  d'isso,  de  uma  mulher  gigante  teve 
por  filho  o  lobo  Fenris,  que  devorará  Odin,  a 
serpente  Midgard,  que  rodeia  a  terra,  e  a  Morte. 
Os  Asas  criaram  o  lobo  Fenris,  mas  sabendo  que 
este  monstro  um  dia  causaria  a  sua  ruina,  re- 
solveram prendel-o;  foi  quando  em  vingança 
cortou  com  os  dentes  a  mão  de  Tyr.  Os  deuses 
vendo-o  encadeado,  pozeram-no  entre  penhas, 
mettendo-lhe  na  boca  uma  espada  com  a  ponta 
para  cima  e  o  punho  na  lingua;  assim  perma- 
necerá até  o  fim  do  mundo  e  dos  Asas. 

A  primeira  das  deosas  é  Frigga,  cuja  formo- 
sura é  superior  a  tudo;  a  segunda  deusa  Saga; 
a  terceira  Eir,  espécie  de  Esculápio  feminino ;  a 
quarta,  Gefion,  patrona  das  donzellas;  a  quinta, 
FuUa.  A  principal  depois  de  Frigga  é  Freia  que, 
abandonada  por  Odur,  seu  marido,  quando  este 
foi  ver  os  paizes  longinquos^,  correu  todo  o  mun- 


240 


O  PANORAMA 


do  prociirando-o  e  derramando  lagrimas  de  oiro, 
as  lagrimas  da  fidelidade.  As  outras  deusas  são  : 
Siofnf  que  apazigua  a  cólera  dos  homens;  Lofn, 
que  corta  os  obstáculos  que  se  oppõem  ao  ver- 
dadeiro amor;  Vara,  que  ouve  os  juramentos 
que  fazem  os  amantes  c  castiga  os  que  a  elles 
faltam:  Syn,  que  guarda  as  porias  do  palácio 
dos  eleitos,  c  nega  a  entrada  aos  que  não  são 
dignos;  Hlin,  que  defende  os  protegidos  de 
Frigga  e  Gna,  emissária  de  Frigga. 

A  mythologia  scandinava  apresenta-nos  além 
dos  Asas  ou  deuses  uma  multidão  de  seres  sobre- 
naturaes,  como:  As  Nornas  que  habitam  junto  da 
enzinha  Iggdrasil,  das  quaes  a  primeira  é  Urd  (o 
passado,  o  tempo  primitivo),  a  segunda,  Skuld  (o 
presente,  o  pcccado),  a  terceira.  Yernandi  (o  por- 
vir) ;  estas  Nornas  são  como  as  Parcas  da  mytho- 
logia grega.  As  Valkyrias,  (as  que  elegem)  divin- 
dades guerreiras  de'  extraordinária  belleza  que 
correm  pelos  ares  a  cavallo  c  que  presidem  aos 
combates,  nos  quaes  designam  os  que  hão  de 
morrer  para  leval-os  depois  ao  Yalhalla  ou  pa- 
lácio dos  eterno?  gozos.  Além  d'estas  divindades 
havia  também  os  gigantes,  os  anões,  os  Alfas  c 
os  Vanes. 

Os  scandinavos  criam  que  havia  nove  mundos; 
mas  um  dos  principaes  era  Muspell,  onde  domi- 
nava o  terrivel  Surtur,  que  virá  um  dia  vencer 
os  deuses  e  abrasar  o  universo. 

As  idéas  dos  scandinavos  acerca  da  creação, 
eram  muito  estranhas.  O  inferno,  segundo  eíles, 
existia  antes  da  terra;  e  o  género  humano  ainda 
não  existia  quando  em  certo  dia  a  vaca  An- 
dhumla,  lambendo  a  geada  que  tinha  uma  pe- 
dra, fez  sair  a  cabeça  de  um  homem;  este  ho- 
mem chamou-sc  Buri  e  teve  por  si  só  um  filho 
chamado  Bor,  que  era  alto  e  formoso,  e  que  ca- 
sou com  a  íillia  de  um  gigante,  da  qual  teve 
Ires  filhos,  Odin,  Vili  e  Vc,  a  cujas  mãos  mor- 
reu o  gigante  Ymir^  que  havia  nascido  de  um 
modo  estranho.  Com  as  diíTerentcs  partes  do 
corpo  do  gigante  formaram  o  mundo  em  cujo 
centro  levantaram  uma  fortaleza  para  resistir 
aos  ataques  dos  gigantes.  Depois  criaram  o  céo 
e  o  palácio  chamado  Valhalla,  para  onde  vão  as 
almas  dos  que  morrem  como  valentes;  o  Valhalla 
é  um  lugar  onde  os  seus  habitantes  se  entregara 
diariamente  aos  combates;  mas  as  feridas  que 
n'elles  recebem  são  curadas  de  noite;  de  sorte 
que  no  dia  seguinte  podem  continuar  a  tarefa. 
Odin,  Vili  e  Ve  edificaram  também  Asgard  (mo- 
rada dos  Asas)  c  depois  criaram  um  homem  c 
uma  mulher,  chamados  Ask  c  Embla,  dos  quaes 
descende  o  género  humano. 

A  mythologia  scandinava  não  diz  quando  ha 
de  ser  o  fim  do  mundo  c  dos  deuses;  só  refere 
que  hão  de  vir  antes  lies  invernos  rigorosíssi- 
mos, sem  que  haja  entre  elles  nenhum  estio; 
antes  d'esles  três  invernos  o  mundo  ha  de  ser 
desolado  por  guerras  horrendas,  nas  quaes  com- 
baterão íilhos  contra  pais,  irmãos  contra  ir- 
mãos. Depois  hão  de  apparecer  signacs  funestos; 
o  lobo,  que  segundo  os  scandinavos  perseguia  o 
sol  c  o  fazia  andar  depressa,  devoral-o  ha  para 
grande  desgraça  do  género  humano.  Outro  lobo, 
que  também  persegue  a  lua,  apoderar-se-ha  delia, 
e  as  eslrellas  cairão  do  céo.  A  terra  tremera,  as 
arvores  arrancar-sc-hão  pela  raiz;  os  montes  des- 
moronar-se-hão  c  Iodas  as  cadêas  .serão  quebra- 
das. O  lobo  fenris  vôr-sc-ha  livre  c  o  mar  sairá 


dos  seus  limites  espargindo-se  pela  terra,  porc^ue 
a  serpente  Midgard  animada  do  mau  desejo  da 
sua  raça  de  gigantes,  buscará  a  terra.  O  Naglfar, 
navio  construído  das  unhas  dos  mortos,  cami- 
nhará sobre  as  aguas  guiado  por  Hrymr;  o  lobo 
Fenris  crescerá  a  ponto  de  tocar  coni  um  queixo 
no  eco  e  com  outro  na  terra,  lançando  fogo  pe- 
los olhos  e  pelas  ventas;  a  serpente  Midgard  vo- 
mitará  veneno  que  incendiará  o  ar  e  o  mar,  e  o 
céo  rasgar-se-ha  por  todas  as  partes.  Os  filhos 
de  Muspell  virão  então  conduzidos  por  Surtur, 
com  a  sua  espada  ardente  e  atraz  d'elles  virá 
um  fogo  abrasador.  Loki  acudirá  também  com 
Hei  (a  morte)  e  com  todos  os  filhos  de  Muspell. 

Heimdall  ao  ouvir  o  estrondo  tocará  a  trom- 
beta e  convocará  todos  os  deuses.  Odin  irá  con- 
sultar o  manancial  de  Mimir;  a  enzinha  Iggdra- 
sil agitar-se-ha  e  os  Asas  preparar-se-hão  para  o 
combate;  Odin,  irá  adiante  levando  a  seu  lado 
o  valente  Thor;  Odin  tem  que  combater  com  o 
lobo  Fenris  e  Thor  com  a  serpente  Midgard; 
Freir  combate  com  Surtur  e  .succumbe  por  lhe 
faltar  a  sua  boa  espada.  Tyr  combate  contra  o 
cão  da  caverna  de  Gnipa  c  ambos  morrem.  Thor 
consegue  matar  a  serpente,  mas  é  derribado  pelo 
veneno  que  lhe  lança  o  monstro.  O  lobo  devora 
Odin,  porém  o  terrivel  Vidar  põe  sobre  a  quei- 
xada inferior  do  lobo  o  seu  pé  coberto  com  o 
invulnerável  sapato  e  agarrando-o  depois  pela 
queixada  superior,  falo  era  dois  pedaços  cau- 
sando lhe  a  morte.  Loki  peleja  contra  FÍeiradall 
e  ambos  perecem ;  mas  Surtur  espalha  o  fogo 
pela  terra  e  abrasa  o  mundo  inteiro. 

Depois  d'esta  catastrophc,  a  terra  sae  do  mar 
verde  e  formosa,  e  dá  frutos  sem  necessitar  cul- 
tura. Vidar  e  Vali  continuam  vivendo,  porque 
nem  o  mar  nem  o  fogo  podcram  prejudical-os; 
existem  ambos  no  campo  de  Ida,  onde  outr'ora 
esteve  Asgard;  ali  vão  lambem  os  filhos  de  Thor 
com  o  seu  marlello.  Baldur  e  Hodur  voltam  do 
reino  da  morte;  todos  se  assentam  no  Ida  e  faliam 
das  cousas  passadas,  da  serpente  Midgard  e  do 
lobo  Fenris;  na  herva  acham  as  taboas  de  ouro 
dos  Asas. 

Dois  seres  humanos,  chamados  Lif  e  Lifthrasir, 
que  sctinham  escondido  em  um  lugar  recôndito 
na  occasião  do  fogo  de  Surtur  e  que  se  haviam 
alimentado  de  rocio,  povoam  novamente  o  mun- 
do, c  uma  filha  do  Sol,  que  segue  o  mesmo  cami- 
nho que  seu  pai  serve  para  alumiar  de  novo  a  terra. 

Esta  religião,  qtie  parece  tão  grosseira,  en- 
cerra um  symbolismo  profundo  em  alguns  pon- 
tos; mas  não  é  possível  aqui  explicaí-o,  assim 
como  não  podemos  dar  d'ella  senão  uma  idéa 
geral:  para  explical-a  em  todas  as  suas  particu- 
laridades e  em  sua  significação  seria  necessário, 
um  volume. 

Os  scandinavos  parece  terem  lido  alguma  idéa 
de  um  Deus  eterno  e  incriado,  mas  só  uma  vez 
o  menciona  a  sua  mythologia  dando-lJie  o  nome 
de  Pai  Universal ;  este  nome  é  depois  dado  mui- 
tas vezes  a  Odin;  além  dMsso  ao  fallar  de  um 
Deus  supremo  e  eterno  mencionam  um  lugar 
que  não  é  outra  cousa  senão  o  inferno,  mas  não 
como  o  pintam  ao  fallar  dos  outros  deuses.  Seja 
como  fôr,  as  suas  idéas  acerca  d"esles  pontos  pa- 
recem ter  sido  bastante  confusas  c  vagas;  talvez 
como  resto  de  uma  tradição  perdida  ou  como  uma 
idéa  tomada  de  outros  povos  dedislincla  religião. 

Tyii.  Fnuico-Corúignuzií.  Ruí\  do  Tlicsoiiro  Velho,  t; 


31 


o  PANORAMA 


244 


Génova. 


Decaída  da  sua  grandeza,  mas  conservando  ain- 
da o  nome  de  soberba,  e  as  suas  ruas  de  palácios, 
esta  cidade,  que  foi  na  idade  media  capital  d'uma 
republica  poderosa  e  rival  de  Veneza,  dominadora 
do  mar,  e  que  partilhava  com  a  rainha  do  Adriá- 
tico o  privilegio  do  commercio  oriental,  antes  que 
o  nosso  heróico  Vasco  da  Gama,  descobrindo  um 
novo  caminho  para  a  índia,  e  AlTonso  d'Albuquer- 
que,  estabelecendo  n'essas  longiquas  regiões  o  nos- 
so dominio  incontestado,  dessem  a  essas  potencias 
italianas  um  golpe  de  que  se  não  poderam  levan- 
tar, Génova  é  hoje  capital  d'uma  província  ita- 
liana. 

llabitada  por  um  povo  guerreiro,  osLiguríos,  que 
fizeram  muitas  vezes  parte  dos  exércitos  cartíia- 
ginezes,  Génova  teve  de  se  curvar  a  íinal,  como 
toda  a  Itália,  debaixo  do  jugo  dos  conquistadores 
Romanos.  Ouaiulo  a  torrente  dos  bárbaros  inundou 
o  império,  Génova  partilhou  o  destino  commum,  e 
foi  escrava  dos  Lombardos  antes  de  ser  escrava  de 
Carlos  Magno  e  dos  seus  successores.  No  íim  do 
século  XI,  aproveitando-se  das  dissenções  intesti- 
nas do  império,  proclamou  a  sua  independência  e 
estabeleceu  um  governo  democrático,  cujos  chefes 
receberam  a  denominação  de  cônsules.  Mas  a  in- 


triga e  ambição  logo  produziram  desordens,  e  os 
Genovezes  obviaram  a  esses  inconvenientes  por  um 
meio  bastante  estranho.  Fizeram-se  governar  por 
dictadores  estrangeiros,  que  se  denominavam  po- 
deslás,  auxiliados  por  um  conselho  de  oito  cida- 
dãos. 

Começou  então  a  sua  era  gloriosa.  Os  mouros 
invadiram  a  Itália,  Génova  bateu-os,  tomou  a  ilha 
de  Córsega,  e  uma  parte  da  de  Sardenha,  ousou 
invadir  a  Hespanha  árabe  tomando  d'assalto  as  ci- 
dades d'Almeria  e  de  Tortosa,  auxiliou  poderosa- 
mente os  cruzados  ganhando  assim  grandes  van- 
tagens pecuniárias  e  commerciaes,  resistio  energi- 
camente aos  imperadores  Frederico  I  e  Frederico 
II,  soccorreu  o  pontitice,  impoz  tratados  humilhan- 
tes ás  republicas  de  Pisa,  e  de  Veneza,  suas  rivaes, 
e  fundou  colónias  na  Ásia  c,  até,  no  fundo  do  Mar 
Negro. 

Km  1270  termina  o  governo  dos  podestás,  subs- 
tituídos por  dois  nobres  com  o  titulo  de  capUães 
da  liberdade,  c  uma  espécie  de  tribuno  popular 
com  o  nome  d'abbade  do  povo.  Depois  as  discór- 
dias dos  Guelfos  e  Gibelinos  ensanguentam  a  re- 
publica e  produzem  uma  longa  c  dolorosa  guerra 
civil.  Voltou-se  de  novo  ao  svstema  de  dictadores 


242 


O  PANORAMA 


estrangeiros,  depois  veio  a  tyrannia  dos  doze,  de- 
pois a  dos  vi)Ue  e  quatro,  depois  foi  eleito  um  im- 
perador, a  final  a  republica  submetteu-se  ao  do- 
mínio de  Roberto,  rei  de  Nápoles,  e  depois  ao  do 
papa  João  XXII. 

Em  1331  principiou  o  governo  dos  doze  duran- 
te o  qual  foram  tantas  as  agitações,  que  a  republi- 
ca leve  de  se  collocar  no  Hm  do  século  XIV,  de- 
baixo da  protecção  dos  duques  de  Milão,  c  dos  reis 
de  Franca. 

Apesar  d'eslas  agitações  politicas,  a  prosperi- 
dade comraercial  não  diminuía,  quando  veio  de 
súbito  a  descoberta  do  novo  caminho  para  as  ín- 
dias. Seria  esse  o  signal  da  morte  da  republica, 
se  não  surgisse  exactamente  n'essa  época  um  gran- 
de homem  que  galvanisou  o  cadáver.  Esse  gran- 
de homem  foi  André  Dória,  espécie  de  eondot- 
tiere  maritirao,  que  poz  as  suas  esquadras  ora 
ao  serviço  de  Carlos  V,  ora  do  papa  Clemente  VII, 
ora  de  Francisco  I,  e  que  levou  sempre  a  victoria 
nas  pregas  da  sua  bandeira.  Este  homem  fundou 
na  sua  pátria  um  governo  aristocrático,  e  o  impul- 
so d'essa  mão  poderosa  foi  bastante  forte  para  que 
a  republica  genoveza  tivesse  ainda  mais  de  dois 
séculos  de  existência.  Mas  perdera  todas  as  suas 
colónias,  toda  a  sua  importância  marilima,e  quan- 
do rebentou  a  revolução  franceza,  a  aristocracia 
de  Génova  governava  apenas  um  Estado  de  qui- 
nhentos mil  habitantes,  que  é  o  mesmo  que  hoje 
constitue  a  província  d'esse  nome. 

Os  exércitos  revolucionários  atravessando  a  Itá- 
lia lançaram  por  toda  a  parte  a  semente  das  no- 
vas ideas.  Quatro  republicas  ephemeras  se  erigi- 
ram na  península  italiana.  A  Lombardia  chamou- 
se  republica  cisalpina,  os  Estados  do  Papa  tomaram 
o  nome  de  republica  romana,  Nápoles  passou  a  ser 
a  republica  parthenopéa,  e  a  republica  aristocrá- 
tica de  Génova  transformou-se  na  republica  demo- 
crática, que  se  denominou  liguriana. 

Durou  oito  annos  essa  republica.  Em  1803  Na- 
poleão reunio-a  ao  império  francez,  e  Génova  pas 
sou  a  ser  a  capital  d'um  departamento  d'esse  co 
lossal  império. 

Em  1800  sustentara  essa  cidade  um  cerco  me- 
morável, em  que  Massena  adquirio  talvez  a  gloria 
mais  brilhante  da  sua  carreira  militar.  Em  1814 
Dão  foi  essa  cidade  igualmente  feliz,  e  a  guarnição 
franceza  que  a  defendia  leve  de  a  entregar  ao  ge- 
neral inglez  lord  lientínck,  que  deixou  restabele- 
cer-se  a  antiga  constituição  republicana  de  Géno- 
va. Mas  em  Í81i>  o  congresso  de  Vienna  reunio-a 
com  o  seu  território  aos  estados  do  rei  da  Sarde- 
nha. 

A  situação  d'esta  cidade  é  admirável,  o  seu 
porto  é  inagniíico,  e  o  seu  aspecto  deslumbrante. 

Os  Apenninos,  em  cujas  faldas  está  construída 
em  ampliithealro,  rccurvam-se  em  semi-circulo  para 
formarem  o  seu  maravilhoso  golpho.  Com  tudo,  o 
aspecto  interior  da  cidade  não  corresponde  nem  á 
sua  esplendida  perspectiva,  nem  ao  seu  título  de 
soberba.  Apertada  entre  o  mar  e  os  Apenninos, 
dispõe  de  pouco  espaço  para  se  estender,  de  forma 
que  as  suas  ruas  são  empinadas,  juntando  a  isso  o 


serem  immundas.  Em  compensação  tem  quatro  ou 
cinco  ruas  compostas  unicamente  de  palácios  de 
mármore,  que  maravilham  o  estrangeiro.  As  ma- 
gnificas fachadas,  c  escadarias,  os  primores  d'arte, 
que  n'essas  sumptuosas  habitações  se  encontram, 
demonstram  a  opulência  e  o  bom  gosto  dos  anti- 
gos dominadores  do  Mediterrâneo.  Esta  cidade  en- 
cerra lambem  magníficos  edificios  públicos,  um 
dos  mais  bellos  Iheatros  da  Itália,  o  de  Carh-Felice, 
e  passeios  deliciosos. 

Conta  Génova  actualmente  perlo  de  cento  c  qua- 
renta mil  habitantes,  é  sede  d'um  arcebispado,  e 
liga-se  por  um  caminho  de  ferro  com  Alexandria 
e  Turim,  O  seu  commercio  ainda  é  importante,  e 
póde-se  dizer  uma  cidade  prospera  ainda  que  es- 
teja decaída  do  seu  antigo  poderio.  Mas  se  não  é 
a  capital  d'uma  d'essas  poderosas  republicas,  que 
monopolisavam  na  idade  media  o  commercio  do 
mundo,  e  avassallavam  os  mares,  é  italiana  ao  me- 
nos, emquanto  a  sua  rival,  a  triste  Veneza,  mu- 
da e  sombria  no  fundo  das  suas  lagoas,  vè  com 
lagrimas  de  desespero  tremular  nas  grimpas  de  S. 
Marcos  a  águia  odiosa  dos  Austríacos. 

Findará  agora  o  seu  marlyrio?  e  a  guerra  que 
rebenta  na  Europa  quebrará  afinal  os  grilhões  da 
rainha  do  Adriático? 


A  NOVA  EDIÇÃO  DOS  CLÁSSICOS 
I 

o  Eliieiflnrio  portugacK,  por  Vv.  Jontiiiiin  tic  Saiiia 
Uosn  Viterbu 

É  a  litteralura  franceza  que  exerce  um  domí- 
nio incontestável  em  Portugal.  A  belleza  liltera- 
ria  das  producções  dos  seus  escriplores^  o  dom 
especial  que  possue  aquelle  idioma  e  o  povo 
que  o  falia  de  caplivar  o  espirito  dos  estrangei- 
ros, e,  mais  do  que  tudo  isto,  a  incrível  baratcza 
a  que  tem  chegado  os  seus  livros  são  os  motivos 
principaes  da  preeminência  que  esta  litteratura 
estranha  exerce  sobre  todas  as  outras,  e,  até,  so- 
bre a  própria  litteratura  nacional.  E  não  se  sup- 
ponha,comludo,  que  é  o  frívolo  romance  dos  cs- 
criplores  parisienses  que  rouba  leitores  ás  chro- 
nicas  pulverulentas  dos  nossos  maiores,  c  ás  pe- 
sadas epopéas  que  constituem  a  máxima  parte  da 
nossa  velha  bagagem  poética.  Não;  porque  as  edi- 
ções dos  clássicos  francezes,  feitas  a  miudc  era 
PariX  encontram  entre  nós  sempre  saída;  nao; 
porque  nas  estantes  dos  nossos  livreiros  campeiam 
Iriumphantcmcnle  os  livros  de  Froíssard  c  de 
Brantômc  c  de  Commincs,  as  poesias  de  Ronsard, 
c  de  Marot,  e  de  Du  Rcllay,  as  traducções  de 
Amyotj  os  livros  philosophicos  de  Descartes  c 
de  PascaL  c  todos  esses  livros  se  vendem  c  des- 
apparccem,  emquanto  as  pessoas  estudiosas  de- 
balde procuram  nas  mesmas  estantes  as  chroni- 
cas  de  Fernão  Lopes,  de  Azurara  c  de  Ruy  de 
Pina,  as  poesias  de  Ferreira  e  de  Sá  de  Miranda, 
e  de  Diogo  Remardes,  os  livros  de  Amador  Ar- 
raes  c  de  Heitor  Pinto,  as  comedias  de  Simão 
Machado  ou  os  romances  de  cavallaria  de  Fran- 
cisco de  Moraes. 

Resulta  d'aqui  um  phenomcno  estranho  no  es- 
pirito da  classe  estudiosa  porlugueza:  não  ha 
ponto  obscuro  da  historia  de  França  acerca  do 
qual  não  lenhámos  consultado  os  documentos 


o  PANORAMA 


243 


originaes;  não  ha  vulto  notável  nos  seus  fastos, 
cuja  verdadeira  estatura  não  conheçamos^  cujas 
feições  não  possamos  descrever,  cujo  viver  in- 
timo não  saibamos  a  fundo,  ao  passo  que  a 
nossa  historia  s(3  a  conhecemos  muito  elemen- 
tarmente, e  os  nossos  herúes  antigos  apparecem- 
nos  vagamente  estampados  nas  fcrumas  do  pre- 
térito, com  a  fronte  rodeada  d'esse  vaporoso 
nimbo,  que  é  o  característico  dos  Achilles  e  dos 
Ulysses,  dos  herúes  da  epopéa  homérica,  dos  se- 
mi-deuses  das  épocas  ante  históricas. 

Ha  muitas  razões  para  que  se  dé  esse  facto; 
mas,  uma  das  principacs  ó  a  falta  de  edições 
económicas,  é  u  descuido  que  tem  havido  na 
reproducção  dos  livros  antigos,  é  o  preço  enorme 
que  se  nós  pede  por  um  exemplar  de  qualquer 
dos  nossos  velhos  escriptores. 

Appareceu  agora  um  editor,  que  tentou  reme- 
diar essa  falta,  que  se  abalançou  á  temerária, 
mas  patriótica  empresa  da  publicação  dos  clás- 
sicos. Esta  empresa,  que  devia  ser  aiixiliada  não 
só*  por  todos  os  portuguezes  que  prezam  a  sua 
pátria,  mas  também  pelo  governo,  que  tem  obri- 
gação de  favorecer  todos  os  que  procurarem  der- 
ramar a  instrucção  nas  classes  menos  allumia- 
das  por  ellaj  e  darem  vigor  á  nossa  nacionali- 
dade que  não  pode  subsistir  sem  as  tradições,  e, 
por  conseguinte,  sem  o  conhecimento  amplo  d'es- 
ses  venerandos  livros,  que  são  os  depositários 
d'ellas;  essa  empreza,  pois^  digamol-o  para  ver- 
gonha nossa,  está  arrastando  uma  existência  en- 
fezada, e  findará,  de  certo^  se  um  relâmpago  de 
patriotismo  não  illuminar  por  acaso  a  mente  dos 
portuguezes  e  o  espirito  do  seu  governo. 

O  Panorama,  cuja  divisa  foi  sempre  desenvol- 
ver o  gosto  pela  historia  e  pela  litteratura  nacio- 
nal, não  pôde  deixar  de  pugnar  pela  conserva- 
ção de  uma  empresa  d'onde  o  paiz  pôde  auferir 
tantos  proveitos,  e  de  recommendar  com  muita 
instancia  aos  seus  leitores  o  auxilio  d'essa  nobre 
tentativa.  É  indispensável  que  Portugal  possua 
um  corpo  completo  das  obras  dos  seus  antigos 
escriptores.  São  os  elos  que  ligam  o  passado  ao 
presente,  formando  a  cadeia  das  tradições  na- 
cionaes,  são  os  pergaminhos  da  nossa  autono- 
mia, são  as  fontes  maravilhosas  onde  se  podem 
retemperar  os  fios  embotados  do  nosso  patrio- 
tismo. 

Âs  obras  publicadas  até  agora  pelo  sr.  Fernan- 
des Lopes,  que  foi  o  editor  que  emprehendeu 
corajosamente  esta  Ímproba  tarefa,  tem  sido  as 
seguintes:  Elucidário  porluguez,  por  Fr.  Joaquim 
de  Santa  Rosa  de  Viterbo ;  Chronica  da  Companhia 
de  Jesus  nos  estados  do  Brazil,  pelo  padre  Simão 
de  Vasconcellos;  Trabalhos  de  Jesus,  por  Fr.  Thomé 
de  Jesus;  e  os  dois  primeiros  volumes  da  Histo- 
ria de  S.  Domingos,  por  Fr.  Luiz  de  Sousa. 

A  revisão  d'eslas  obras  foi  confiada  pelo  editor 
ao  sr.  hinocencio  Francisco  da  Silva,  de  certo 
entre  nôs,  pelos  seus  estudos  especiaes^  e  pelas 
tendências  do  seu  espirito,  o  mais  apto  para  le- 
var a  cabo  um  trabalho  d'esta  ordem. 

Com  o  Elucidário  abrio  o  editor  a  serie  das 
suas  publicações,  e  foi,  devemos  dizel-o^  acerta- 
díssima a  escolha.  No  século  XIX  e  ao  estado 
a  que  chegaram  actualmente  a  philologia  c  a 
sciencia  histórica,  não  se  lêem  o  que  se  conven- 
cionou chamar  livros  clássicos  com  o  íito  único 
de  ir  procurar  nas  suas  paginas  lições  de  boa  e 
pura  linguagem  portugueza.  Convéncemo-nos  a 


final  de  que  as  linguas  não  são  immoveis,  e  es- 
tudamos os  clássicos  não  como  modelos,  mas 
como  guias  onde  aprendemos  o  modo  como  os 
grandes  escriptores  concorrem  para  o  desenvol- 
vimento da  linguagem.  Perante  o  homem  verda- 
deiramente estudioso,  que  se  engolpha  n'estes 
estudos  áridos,  mas  sublimes,  um  livro  de  Fr.  Luiz 
de  Sousa  tem  o  mesmo  valor  que  um  velho  chro- 
nicão  fradesco  do  século  XIII;  porque  se  aquellc 
lhe  representa  o  estado  da  lingua  na  sua  idade 
áurea,  representa-lhe  este  a  época  infantil  do 
idioma,  que  não  é  decerto  a  menos  curiosa  e  a 
menos  digna  de  estudo. 

Se  os  leitores,  por  conseguinte,  estão  com  animo 
firme  de  entrarem  nas  mais  sombrias  devezas 
da  vasta  floresta  do  passado,  se  em  vez  de  se 
recostarem  voluptuariamente  á  sombra  das  flo- 
ridas larangeiras,  que  vicejam  no  formoso  po- 
mar de  Fr.  Luiz  de  Sousa  e  dos  seus  contempo- 
râneos, toem  a  firme  resolução  de  explorarem  o 
labyrintho  da  historia,  é  o  Elucidário  o  fio  de 
Ariadne  que  os  ha  de  guiar  nos  intrincados  mean- 
dros d'essas  velhas  chronicas,  d'esses  restos  in- 
formes da  litteratura  da  idade  media.  Trabalho 
de  benedictino,  o  Elucidário  de  Viterbo,  como  o 
Glossairc  de  Du  Cange,  é  uma  d'estas  obras  co- 
lossaes,  que,  sem  darem  ao  seu  auctor  uma  glo- 
ria brilhante,  preparam  aos  outros  os  elementos 
de  uma  reputação  estrondosa.  Sem  estes  livros^ 
recheiados  de  indigesta  erudição,  compilados  la- 
boriosamente no  fundo  sombrio  de  uma  cella, 
alvo  das  zombarias  da  litteratura  certeza,  occu- 
pação  da  vida  inteira  de  um  pobre  frade,  para 
quem  olhavam  com  motejador  desprezo  os  poe- 
tas de  outeiro,  os  chronistas  elegantes,  e  os  der- 
retidos vates  de  mysticos  dulçores,  sem  estes  li- 
vros não  seria  possível  que  os  Thierrys,  os  Ma- 
caulays,  os  Herculanos,  os  Cantús,  levassem  a 
cabo  as  olDras  que  os  immortalisaram,  e  que  de- 
ram ao  século  XIX  a  mais  brilhante  escola  his- 
tórica de  que  se  pôde  ufanar  a  humanidade. 

O  Elucidário  de  Viterbo,  para  quem  o  lêr  e 
manusear  com  attenção  e  cuidado,  não  tem  só 
uma  importância  de  diccionario,  não  vale  só  pe- 
los esclarecimentos  com  que  ajuda  os  ledores  das 
obras  antigas,  dando-lhes  a  explicação  dos  ter- 
mos obsoletos,  tem  também  grande  valia  como 
livro  que  sirva  para  texto  de  estudos  históricos 
e  philologicos.  Effectivamente  nos  extractos  dos 
documentos  dos  antigos  cartórios^  desde  as  mais 
remotas  eras,  vai-se  seguindo  passo  a  passo  o 
desenvolvimento  da  linguagem  portugueza,  as- 
siste-se  ao  esphacelamento  do  latim,  corrompido 
pela  rude  Unguagem  dos  godos,  n'esse  cadáver 
do  idioma  do  Lacio  vè-se  palpitar  o'  novo  idioma, 
que  ha  de  ser  a  lingua  de  Camões.  Como  na 
chrysalida  se  presente  a  borboleta,  assim  nas  gros- 
seiras expressões  dos  antigos  documentos  se  adi- 
vinham as  phrases  enérgicas  c  doces  que  hão  de 
exprimir  depois,  quando  as  murmurarem  os  lá- 
bios dos  grandes  poetas  e  dos  grandes  prosado- 
res, os  sentimentos  mais  elevados  c  mais  suaves, 
os  Ímpetos  do  patriotismo  ou  as  meigas  expan- 
sões do  amor. 

E  que  livro  de  historia  valerá  os  singelos  ensi- 
namentos do  Elucidário!  Onde  poderemos  encon- 
trar, reproduzidas  mais  photographicamente  (se 
nos  permittem  o  termo)  as  usanças  e  as  crenças 
dos  nossos  antepasf ados  ?  São,  para  assim  dizer- 
mos, apanhados  os  nossos  maiores  em  flagrante 


244 


O  PANORAMA 


delicto  de  sinceridade.  Os  chronistas.  ainda  mesmo 
os  que  não  têem,  como  Fernão  Lopes  não  tem.  a 
mania  da  erudição  e  da  imitação  greco-romana, 
mania  que  veio  depois  produzida  pelo  grande 
movimento  da  renascença,  os  chronistas,  ainda 
mesmo  esses,  não  se  podem  esquivar  a  alindar 
um  pouco  a  historia,  a  arranjal-a,  a  vestil-a  se- 
cundo a  etiqueta  como  quem  tem  de  se  apre- 
sentar perante  os  vindouros,  e  de  se  sujeitar  à 
sua  apreciação.  Mas  nos  documentos,  e,  por  con- 
seguinte, nó  Elucidário,  que  nos  apresenta  uma 
ampla  coUeccao,  e  uma  coUecção  ordenada,  de 
extractos  desses  documentos,  a  historia  aparece 
em  négligé,  como  quem  pensa  nos  seus  próprios 
negócios,  e  de  modo  algum  nas  ohservaçues  que 
os  vindouros  podem  colher  do  modo  como  esses 
negócios  eram  tratados  pelas  gerações  que  se 
iam  succedendo  na  terra  portugueza,  e  nos  es- 
clarecimentos que  involuntariamente  nos  estão 
dando  sobre  a  sua  vida  e  gestos,  o  seu  viver  e 
crer. 

Já  vêem,  pois,  qual  c  múltipla  importância  do 
Elucidário,  e  a  muita  razão  que  teve  o  editor,  o 
sr.  Fernandes  Lopes,  de  abrir  com  esse  livro  a 
serie  das  suas  publicações;  iniciados  pelos  tra- 
balhos de  Santa  Rosa  de  Viterbo  nos  mysterios 
da  historia,  e  do  pensamento  dos  nossos  maiores 
podemos  cora  muito  mais  esclarecido  critério 
percorrer  as  paginas  dos  escriptores  notáveis, 
que  nos  transmittiram  nos  seus  livros  um  re- 
flexo, avivado  pelo  seu  génio  particular,  das 
idéas  das  gerações  a  que  pertenceram. 

Em  successivos  artigos  iremos  dando  conta  ao 
publico  das  outras  obras  que  o  sr.  Fernandes 
Lopes  lera  já  reimpressas,  ou  irá  reimprimindo. 

PiNHEino  Chagas. 


pranto;  lamentou  a  perda  de  sua  mãe  e  por  fim 
exclamou  : 

—Maroto !  grande  maroto !  porque  me  não 
fallaste  logo  de  minha  mãe?  Era-me  ella  mais 
cara  que  todos  oj  objectos  do  teu  estúpido  pala- 
vrorio.  Dize-me  ao  menos  de  que  morreu. 

—  De  ciúme. 

—  Ella  ciosa  !  e  de  quem  ? 

—  Vosso  pai  acabava  de  desposar  segunda  mu- 
lher. 


FASTIDIOSOS  PRELIMINARES 

No  dia  de  Maulud  (nascimento  do  Propheta) 
estavam  assentados  vários  mahometanos  na  gran- 
de mesquita,  quando  chegou  um  homem  da  Iri- 
bu  dos  Zmul ;  lançou-se  nos  braços  do  làleb,  e, 
depois  das  saudações  do  costume'  trocadas  reci- 
procamente, disse-lhe  este : 

—  O  que  ha  de  novo  ?  Como  passara  os  de  nos- 
sa casa? 

O  homem  respondeu  cora  socego  : 

—  O  falcão,  que  havíeis  educado,  morreu. 

—  Como  assim  ? 

—  Comeu  muita  carne. 

—  E  donde  veio  essa  carne? 

—  Dos  vossos  quatro  cavallos  que  morreram. 

—  O  que  signitica  isso  ?  O  que  se  passou,  pois, 
no  aduar ? 

—  Houve  um  grande  incêndio ;  aos  gritos  de 
soccorro,  reunio-se  toda  a  gente,  e  foi  tal  o  tra- 
balho que  os  vossos  cavallos  tiveram  na  condu- 
ção de  agua  para  o  apagar,  que  por  fim  morre- 
ram. 

—  Pois  qucl  um  incêndio?  Como  succcdeu 
isso? 

—  Os  criados  tinham  accendido  velas;  dormiam 
tranquillamente,  quando  de  súbito  rebentou  o 
fogo. 

—  Que  necessidade  tinham  clles  de  accender 
velas  ? 

—  Para  o  .«serviço  fúnebre  de  vossa  mãe. 

A  estas  palavras,  o  laleb   não  pôde  conter  o 


PONTE  NATURAL  NA  VIRGÍNIA 

AqucUe  brilhante  cavalheiro,  que  Walter  Scott 
desenhou  no  seu  romance  de  Keniiworth  como 
um  dos  ornamentos  da  corte  de  Izabel,  Walter 
l\aleigh   foi    também  um  intrépido  descobridor, 
um  aventureiro  audacioso.  Em  honra  da  sua  for- 
mosa soberana   deu   o  nome  de  Virgiiúa  a  uma 
vasta  extensão  das  costas  da  America  do  Norte, 
e  esse  nome  ficou  a  um  dos  Estados  meridionaes 
da    União    Americana.    Está   limitado   ao    nofte 
pela  Pensylvania  e  pelo  Maryland,  a  leste  pelo 
Oceano  Atlântico,  ao   sul  pela"  Carolina  do  Norte 
e  pelo  Tennessce,  a  oeste  pelo  Kentucky  e  pelo 
Ohio,  e  abrange  uma  superfície  de  vinte  mil  e 
duzentos  kilometros  quadrados.  A  natureza,  for- 
mando o  solo  doeste  paiz,  dividio-o  era  duas  par- 
tes bem  diíferentes  pelos  seus  caracteres  physi- 
cos:  aqui  uma  planura  elevada  coroada  pela  cor- 
dilheira dos  Alleghannys,  de  clima  temperado,  de 
vegetação  septemtrional,   de  verdejantes  alfom- 
bras,   e    cujas    perspectivas    são    tão    opulentas 
quanto  variadas;  além,  do  sopé  d'estas  terras  ele- 
vadas até    ás  praias  do  Oceano   uma    planície 
em  declivio,  regada  por  innumcravcis  correntes 
de  agua,  primeiro  pouco  fértil  emquanlo  se  con- 
serva ainda  afferrada  ás  montanhas,  depois  rica 
e  fecunda,  mas  ao  mesmo  tempo  doentia  e  pa- 
ludosa, porque  as  aguas  correra  lentamente  de- 
baixo de  um  céo  de  fogo.  O  tabaco,  o  arroz,  o 
trigo,   são  as  riquezas  d'esta  zona,  e  as  arvores 
das  suas  florestas  são  o  cypreste,  e  o  sycomoro, 
emquanlo  o  carvalho,  o  pinheiro,  e  o  azevinho 
cmbellczara   os  dislrictos  occidentaes.  Como  de 
certo  os  leitores  já  adivinharam,  a  paízagem,  que 
a    nossa   gravura   representa,   pertence   á   parle 
montanhosa  da  Virgínia. 

A  mesma  diíTorença  se  acha  nas  populações. 
Aqui  a  raça  é  elevada,  forte,  vigorosa,  c  traba- 
lhadora; não  precisou  de  acorrentar  o  negro 
Africano  ao  terreno  que  ella  mesma  lavra.  O 
habitante  da  planície,  pelo  contrario,  mais  deli- 
cado, indolente,  araigo  dos  prazeres,  grande 
amador  de  formosos  cavallos,  entrega  aos  escra- 
vos todo  o  trabaliio.  Eintorno  dcllc  meio  milhão 
de  indivíduos  agrilhoados  protesta  ou  antes  pro- 
testava contra  a  sua  ridícula  pretensão  ao  repu- 
blicanismo, virtude  que  só  de  nome  conhece  c 
pelo  exemplo  de  alguns  homens  illustres.  O  Vír- 
giniano  actual,  da  mesma  lorma  que  o  antigo  co- 
lono, é  essencialmente  aristocrata,  c  por  conse- 
guinte separatista;  e  comtudo  a  Virgínia  foi  a 
palria  de  Washington  c  de  JeíTersonl 

Pelo  que  dissemos,  é  fácil  de  ver  qual  seria  o  pa- 
pel adoptado  por  eslc  paiz  na  ultima  guerra;  foi  o 
centro  da  confederação  meridional;  a  sua  capi- 
tal Richmond  foi  tainbera  capital  dos  Estados  .se- 
parados, e  os  Virgínianos  resistiram  com  uma 
intrepidez  digna' de  melhor  causa  aos  seus  ir- 


o  PANORAMA 


245 


Ponte  natural  na  Virgínia. 

mãos  do  Norte  que  pretendiam  abolir  a  escrava- 
tura; foram  vencidos  depois  de  uma  guerra,  que 
espantou  a  Europa  pelo  seu  encarniçamento,  e 
que  produzio  um  tão  grande  abalo  em  todo  o 
mundo. 

Não  sabemos  a  que  ficou  reduzida  a  Yirginia 
depois  de  essa  tremenda  lucla;  em  ISriO  era  ella 
o  Estado  mais  povoado  da  Confederação  a  baixo 
dos  de  New-York  e  da  Pensylvania/ Tinha  um 
milhão  quatrocentos  e  vinte  um  mil  seiscentos 
e  sessenta  e  um  habitantes. 

A  região  superior  possue  minas  de  oiro,  de 
ferro  e  de  chumbo,  mas  as  importantes  são  as 
de  ferro,  carvão  de  pedra  e  sal.  A  agricultura  e 
a  criação  de  gados  constituem  a  principal  ri- 
queza da  Yirginia;  a  cultura  do  tabaco  tem 
principalmente  uma  grande  importância.  Ainda 
que  a  Yirginia  ficasse  muito  atraz  dos  Estados 
do  Norte  pelo  que  respeita  a  via  de  communica- 
ções,  comtudo  desde  1850  empregarara-se  nume- 
rosos capitães  na  construcção  de  canaes  e  de  ca- 
minhos de  ferro. 

Era  religião,  a  Yirginia  oíTerece  a  variedade 
de  seitas  habitual  na  America  do  Norte.  A  maior 
parte  dos  habitantes  são  anabaptistas,  mas  ha 
lambem  methodistas,  presbyterianos,  episcopaes, 
judeus,  quakers,  unitários,  e  universitários.  Os  ca- 
tholicos  estão  já  em  grande  numero,  e  tcem  dois 
bispos,  um  cm  Richmond,  outro  em  Wheeling. 

Em  estabelecimentos  de  instrucção  publica  é 
esse  Estado  abundante.  A  universidade  de  Char- 
lottesvilie,  fundada  em  1819,  e  que  tem  uma 
rica  subvenção  do  Estado,  é  um  dos  estabeleci- 
mentos d'esse  género  mais  consideráveis  da  Ame- 
rica do  Norte. 

Não  falíamos  nas  instituições  politicas  da  Yir- 
ginia; todas  se  baseavam  na  existência  da  escra- 
vatura, c  o  resultado  da  ultima  guerra  transfor- 
mou-as  naturalmente,  ou  está-as  ainda  transfor- 
mando. 


A  Yirginia  divide-se  em  quatro  regiões  subdi- 
vididas em  cento  e  cincoenta  condados.  As  suas 
cidades  principaes  são  Richmond,  capital;  Nor- 
folk; Alexandria  que  tem  dez  mil  habitantes^ 
uma  academia,  um  bom  porto,  e  um  commer- 
cio  muito  desenvolvido;  Charlottesville,  onde 
existe  a  universidade  de  que  falíamos,  mas  que 
tem  apenas  dois  mil  e  quinhentos  habitantes; 
Petersburgh  com  doze  mil  habitantes;  ^Yheeling 
com  onze  mil. 


A  GALATEA  MODERNA. 
IX 

'Xo  caiuarofc 

Mal  saí  da  platéa  e  entrei  no  salão  foi-se-rae 
diminuindo  a  pouco  e  pouco  o  Ímpeto  e  a  espe- 
rança de  animo,  que  me  apparenlava  fácil  a  mis- 
são. Não  havia,  porém,  recuar.  Decidira  comigo 
mesmo  que  era  necessário  haver  as  carias  deYio- 
lante,  e  jurara  não  descançar  sem  as  obter. 

Entestei,  ou  antes,  arremelli  com  o  corredor, 
lai  era  o  fogo  heróico  que  me  animava,  e  entrei 
no  camarote  da  baroneza. 

Eslava  só. 

Eu  linha  relações  antigas  com  ella,  que  me  da- 
vam azo  a  menosprezar  a  etiqueta  mundana.  Co- 
nhecera-a  quando  era  noiva  ainda,  e  fazia  andar 
á  roda  a  pobre  cabeça  do  barão,  que  com  ser  bas- 
tante óssea  e  dura,  não  era  lá  das  mais  robustas. 
A  baroneza  teve  sempre  pelos  modos  certa  sym- 
pathia  pelo  barão,  e  fez  d'elle  ou  base  de 
operações  ou  ponto  objectivo,  como  dizia  um  cili- 
ciai de  bastante  préstimo. 

Este  oílicial  já  ia  na  quarta  parellela  do  sitio, 
que  puzera  á  baroneza,  e  preparava-se  a  saltear  os 
últimos  reduclos,  que  promeltiam  ruim  defesa. 

Não  persigamos,  porém,  n'este  terreno  escorre- 
gadio. Más  línguas  ha  no  mundo,  que  em  tudo 
lançam  veneno.  Sào  ladrões  da  reputação  alheia, 
porque  perderam  a  própria.  De  tudo  fazem  escar- 
cèos.  Microphylos  descarados  lhes  chama  o  meu 
amigo  António  Alvares,  que  não  perdoa  o  idioma 
hellenico.  Matilha  de  cães  açulados,  lhe  chamam 
outros,  que  foram  mordidos.  Deixemo-nos,  porém, 
de  divagações,  e  voltemos  á  questão.  A  baroneza 
estava  só.  Mau  guardião  era  o  marido,  que  só  vi- 
via bem,  quando  deixava  a  esposa  ao  desamparo, 
O  que  havia  ella  de  fazer  senão  amparar-se  a  al- 
guém? Apesar  de  bastante  gorda  e  cheia  de  alvís- 
simas carnes,  não  perdera  a  flexibilidade,  a  nati- 
va elegância,  o  mimo  que  faz  da  mulher  verda- 
deiramente linda  uma  hera  viçosa,  que  necessita 
de  enroscar-se  ao  tronco  do  roble,  abraçal-o  inti- 
mamente, enlaçal-o  em  mil  enleies,  pára  evitar 
a  queda.  Mas  se  o  tronco  lhe  falta,  que  muito  c 
que  a  mulher  formosa  se  encoste  ao  primeiro  ar- 
busto, que  SC  lhe  depare?  Não  mais  se  pôde  ele- 
var tão  alio,  ha  de  raslejar  pelo  chão  ;  mas,  mais 
lhe  vale  isso,  do  que  emmurchecer  de  todo  e  ser 
pisada. 

A  baroneza  assim  fez.  Fallou-lhe  um  esteio  fir- 
mou-se  n'outro.  Era,  porém,  de  uma  pujança  ad- 
mirável ;  era  uma  natureza  vigorosa  e  robusta ; 
era  como  as  juncas  de  Java,  cujas  latadas  nalu- 


246 


O  PANORAMA 


raes  cobrem  as  serrauic;s.  Pouco  era  um  esteio  só, 
para  sustentar  as  ramadas  abundantes,  que  cada 
vez  cresciam  mais  e  se  espanejavam  á  folga  aos 
raios  da  amorosa  paixão  do  amor  fervido.  Os  seus 
cabeilos.  que  a  cobriam  até  os  pés,  eram  outras 
tantas  raizes,  que,  em  terrenos  fecundos,  deitam 
os  próprios  troncos.  Caiecia,  pois,  de  muitos  e 
muitos  esteios.  E  o  que  havia  de  fazer  a  pobre  ba- 
roneza?  Haverá  por  ahi  alguém  que  sonlie  ainda 
pai'aizos  descorados  c  scandinavos?  Que  velo  o 
rosto  e  fuja  para  os  gelos  do  polo.  A  baroneza  é 
do  meio-dia.  Por  isso  agairou-se  ao  primeií-o  es- 
teio, depois  ao  segundo,  ao  terceiro,  e  a  mais  ou- 
tro e  outros.  Que  lá  contal-os  não  sei  eu,  nem 
]iosso.  Não  sou  foi'te  em  números,  c  quando  se 
trata  de  mulli|)lica{'ões  erro  quasi  sempre.  O  que 
é  certo  eque  a  baroneza  deu-se  perfeitamente  com 
o  tratamento.  Eia,  pelos  modos,  tlierapeutica  boa 
de  levai".  Não  parecia  disposta  a  mudar  para  os 
boma^opatlias...  que  só  receitam  doses  muito  pe- 
quenas. Remédios  heróicos  são  sempre  os  melho- 
res. 

Saúde  ou  morte. 

Aconteceu,  porém,  com  a  baroneza,  o  que  sem- 
pre acontece  em  casos  idênticos.  À  medida  que 
tomava  o  remédio  ia-se  acostumando  a  ellc  e  tinha 
de  augmcntar  as  porções.  Chegara,  a  final,  a  do- 
ses verdadeiramente  grandiosas  e  assustadoras. 
Os  liames  que  a  sustinham  aos  diveisos  robles 
iam-se  afrouxando  mais  e  mais.  Por  isso  succe- 
diam-se  estes  a  miude,  e  cada  qual  por  sua  vez  oíTe- 
recia  encosto  á  formosura  peregrina,  que  não  podia 
viver  sem  i'esguardo  e  abrigo,  apesar  da  pujança 
e  valentia  de  que  era  dotada.  Altos  mysterios  phi- 
siologicos,  que  obrigavam  a  baroneza  a  espalhar 
innumeros  braços  por  toda  uma  Uoresta.  É  que  a 
trepadeira  cada  vez  linha  mais  viço  e  frescor.  Ne- 
nhuma apresentava  tanta  robustez.  Nenhuma  se 
desatava  em  tantos  fruclos,  sem  que  as  rosas  do 
rosto  se  desbotassem  por  isso. 

Era  uma  crealura  singular  a  formosa  c  miinda- 
r.al  baroneza ! 

Entrei,  pois.  Pela  terceira  vez  o  digo,  e  será 
esta  a  ultima.  Estava  a  baroneza  encostada  leve- 
vemente  ao  braço  dii-eito,  o  qual  se  apoiava  no  re- 
bordo do  camarote.  Os  seus  olhos  dirigiam-se  dis- 
Irahidos  para  lodos  os  silios,  sem  que  um  ponto 
determinado  lograsse  caplivar-lhc  a  allenção.  Pa- 
recia aborrecida.  Não  procurava  ninguém,  ponjue 
o  seu  rosto  denotaNa  apenas  enfado.  Também  não 
esperava,  porque  tinha  as  costas  voltadas  jiara  a 
poria  da  plalea. 

—  Minha  senhora,  disse  eu,  mal  me  assentei  ao 
fundo  do  camarote.  Muito  ha  que  não  lenho  o 
prazer... 

—  Phrasc  óca  e  sonora,  que  não  (jncr  dizer  na- 
da. I)iga-me  ao  que  veio.  Estou  lendo  nos  seus 
olhos  que  me  quer  pedir  alguma  cousa,  algum  \)g- 
(lueno  serviço  consoante  cora  o  meu  fraco  prés- 
timo. 

E  a  baroneza  abaixou  modeslamenle  os  olhos, 
como  quem  ostá  cônscia  do  seu  podeiio. 

—  São  os  olhos  espelho  da  alma,  na  qual  se  re- 


trata fielmente  o  nosso  pensar,  disse  necessária" 
mente  algum  dos  sete  sábios  da  Grécia. 

—  E  se  elles  o  não  disseram,  dil-o  o  senhor,  o 
que  c  o  mesmo. 

—  Agradeço  do  intimo  a  exceilenle  opinião  que 
tem  de  mim. 

— Vamos,  vamos.  Estou  impaciente.  Já  sou  bas- 
tante velha  para  dispensar  comprimentos  gongo- 
ricos. 

A  baroneza  abaixou  outra  vez  os  olhos,  e  con- 
templou, atravez  dos  rendilhados  do  leque  chinez, 
o  seio  túrgido  que  arquejava  divinamente. 

—  Obedeço,  como  sempre,  ás  ordens  deV.  Ex," 

—  Se  obedece,  obedeça  já. 

—  Em  i)rimeiro  lugar,  devo  dizer-lhe  que  está 
um  calor  insupporlavel,  provavelmente  porque  não 
ha  ventilação  no  theatro. 

—  Bom.  E  depois? 

—  Em  segundo  lugar,  que  Mongini  lem  canta- 
do de  um  modo  admirável. 

—  Exceilenle.  E  depois? 

—  Em  terceiro  lugar,  que  Y.  Ex."  está  impa- 
ciente, e  eu  impacientissimo. 

—  Admirável.  Sabe  adivinhar...  como  simples 
propheta.  Avie-se.  Continue. 

—  Em  quarto  lugar,  que  sou  péssimo  diplomata. 

—  Adivinhou  agora. 

—  E  a  final  que... 

—  Sejaaíloito.  Conte  desde  já  com  uma  recusa. 

—  Pois  então  ha  de  ouvir-me  até  o  fim.  Yenho 
aqui  cheio  de  humildade  e  conlricção  pedir-lhe 
que  me  dè  noticias  circumstanciadas  do  amor  de 
Violante. 

—  Oh!  Isso  é  fácil,  respondeu  a  baroneza  der- 
rubando os  sobrolhos  e  litando-me  de  um  modo 
singular.  Isso  é  facillimo.  Violante  foi  como  Ophe- 
lia.  Foi  vogando  rio  abaixo,  colhendo  as  rosas, 
que  encontrava,  até  se  perder  no  oceano  ignoto. 

—  Isso  é  tudo  e  é  nada  ao  n^esmo  tempo. 

A  baroneza  sorrio  acremenle,  como  quem  lhe 
peza  lembranças  de  scenas  desagradáveis,  que  o 
tempo  foi  oblilterando. 

Calou-se  um  ))ouco,  agitou  o  leque  com  a  mão 
febiil,  ao  mesmo  tempo  que  os  olhos  pareciam 
vasculhar  o  passado,  e  atlugentar  para  longe  as 
sombras,  que  o  encobriam. 

—  Sabe  o  que  pede?  Um  impossivel. 

—  Já  esperava  essa  resposta,  c  vinha  preparado 
para  ella. 

—  Então  i)ai'a  que  teimou? 

—  Porque  quiz  convencer-me. 

—  De  que? 

—  De  (|ue  V.  Ex."  foi  a  actriz  d'esse  drama, 
cujo  enredo  tenho  na  mão. 

— -Menos  philaucia,  raro  mio,  como  dizem  os 
cantores  que  estamos  ouvindo. 

—  Oh!  minha  senhora.  Eu  não  sou  romancista. 
D''essa  pecha  estou  livre.  Nasci,  porém,  em  ruim 
conjuncção,  que  foi  a  de  Mercúrio  com  Marle. 
Desfaço  enredos  c  ando  em  guerra  com  os  precon- 
ceitos. Tal  é  o  meu  horóscopo.  O  meu  amigo  An- 
tónio Alvares,  que  é  ura  sábio,  leu  a  minha  sorte 
nos  astros. 


o  PANORAMA 


247 


—  António  Alvares!  Pois  ainda  vive  esse  ori- 
ginal? 

—  São  e  escorreito,  como  sempre.  Não  ha  mal, 
que  o  acabrunhe.  Lá  está  eiie  na  platéa  approvan- 
do  cora  a  cabeça  o  rondo  da  prima-dona.  Jurou 
pelos  penates  qiic  nunca  havia  de  dar  palmas, 
ainda  que  o  enthusiasmo  transponha  o  delirio.  É, 
com  efleilo,  um  original. 

A  baroneza  seguio  com  os  olhos  a  direcção  que 
eu  indicava. 

Fez-se  pallida,  corou  depois  ligeiramente,  c  ci- 
ciou : 

—  Sabe  uma  cousa?  Não  me  aprazem  conspira- 
dores. 

—  Já  não  ha  conspirações. 

—  Mas  ha  tramas  horrendos  e  calumnias  infa- 
mes. 

—  lia  sim,  minha  senhora,  assim  como  a  so- 
ciedade encobre  muita  ulcera  e  muita  chaga.  Os 
que  as  descobrem  não  calumniam.  Mostram  a  po- 
dridão, para  que  todos  se  acautelem. 

—  E  fazem  bem,  interrompeu  a  baroneza  com 
um  arcontricto  deMagdalena  paradisiaca.  O  peior 
é  que  os  incautos  deixam-se  sempre  apanhar. 
Deixemos,  porém,  moralidades,  e  vamos  antes  ao 
seu  pedido.  Supponha  que  não  posso  contar-lhe 
nada.  Perde  muito  com  isso? 

—  Muito.  Uma  historia  patética  narrada  por 
V.  Ex."  é  manjar,  que  não  posso  regeitar.  As  suas 
palavras,  minha  senhora,  são  pérolas. 

—  Então  se  perde  só  isso,  não  perde  muito. 

^  — Mas  não  só  isto.  Está  enganada.  Y.  Ex.%  que 
foi  amiga  intima  da  pobre  Violante,  conhece  a 
historia  a  fundo,  com  todas  a  individuações;  tem 
talvez  algumas  cartas. . . 

—  Traidor!  Apanhei-o  em  íim.  É  um  perfeito 
Machiavel.  É  um  negro  politico.  Dissimulou. 

—  Quem  não  sabe  dissimular  não  sabe  reinar, 
disse  o  mesmo  Machiavel,  no  seu  livro  Do  Prín- 
cipe. E  se  bera  que  eu  não  queira  reinar,  quero 
saber  a  verdade  para  meu  governo  e  socego  de 
animo. 

—  Pois  bem.  Vou-lhe  dar  um  conselho...  em 
vez  das  cartas. 

—  Tudo,  tudo  minha  senhora,  para  o  favor  ser 
completo. 

—  Não  seja  tão  ambicioso,  que  se  perde.  Nunca 
peça  d'esses  favores  a  uma  mulher,  que  conhece 
o  mundo  e  ainda  não  fugio  d'ellc. 

— V.  Ex.''  não  pôde  abandonar  os  seus  súbditos. 

—  Lisongeiro!  Menos  ironia  por  favor,  c  mais 
verdade.  Sabe,  por  ventura,  as  ligações  que  hou- 
ve entre  mim  e  Violante?  Sabe  se  eu  posso  atrai- 
çoar uma  amiga,  que,  apesar  de  haver  desconliado 
de  mim,  alliou-se  comigo  como  nunca  fez  com  ou- 
trem? Conlidencia  oral,  não  a  espere.  As  car- 
tas... queimei-as. 

—  Ainda  que  V.  Ex.«  fosse  Vestal,  e  só  tivesse 
esse  combustível  para  alimentar  o  fogo  sagrado, 
estou  certo  que  o  deixava  apagar. 

—  Engana-se,  As  cartas  queimavam-me  c  por 
isso...  queimei-as.  Paliavam  ellas  de  uma  época  fe- 
liz de  vida  nas  tribulações  do  presente,  c  a  sau- 


dade tem,  ás  vezes,  tantos  espinhos,  quando  a 
esperança  bale  as  cândidas  azas !  Ah !  meu  caro 
amigo,  e  sei  que  posso  dar-lhe  este  nome,  não 
pode  comprehender  as  immcnsas  dores  que  hei 
soílVido  sob  falsas  apparcncias  de  felicidade  e 
vcniura.  É  o  mundo  um  com[)le\o  de  mentiras,  e 
a  calumnia,  sempre  a  calumnia...  Lcmbi'c-se  da 
ária  de  D.  Basilio. 

—  Perfeitamente,  minha  senhora,  liem  sei  eu 
o  que  é  o  mundo.  Bem  sei  o  que  são  as  mil  ca- 
lumnias que  se  revolvem  nos  charcos  como  os  in- 
fusor-ios.  V.  Ex.%  porém,  está  illesa. 

—  Ninguém  evila  o  veneno. 

—  O  contravencno  é  a  verdade.  Não  conheço 
outro  antidoto, 

—  Oucm  a  quer  ouvir? 

—  Eu. 

—  Pois  bem.  Ouvil-a-ha  toda  e  inteira,  mas 
como  a  representavam  os  antigos,  hedionda  até. 
Amei  um  dia.  Enlouqueci,  não  lhe  parece?  Amar 
n'este  século  é  assignar  a  própria  sentença.  Amei 
com  as  veras  de  um  coração  frivolo,  que  de  re- 
pente se  sentio  preso.  Foi  um  delirio,  que  nunca 
passou.  Foi  uma  vertigem.  Depois...  lia  no  de* 
serto  um  vento  desolador,  que  arranca  as  ar- 
vores mais  annosas,  derriie  casas,  cresta  a  sel- 
va, secca  as  fontes  e  espalha  por  toda  a  parte 
a  morte  e  a  destruição.  Quando  sopi'a  esse  vento 
infernal  erguera-se  vastas  ondas  de  arôa,  que  cor- 
rem encapelladas,  como  mensageiras  do  demónio. 

Desgraçados  dos  peregrinos  que  são  colhidos 
por  esla  vaga  furiosa.  Nada  lhes  resta  senão  a 
morte.  Suíí'oca-os  a  arôa,  que  lhes  escalda  o  san- 
gue nas  veias.  Morrem  tisnados  e  sepultos  nas  ira- 
mensas  moUes  abi-asadoras,  que  os  tragam  como 
monstros  eni'aivecidos.  Depois  cessa  a  tormenta. 
Vão  crescendo  as  arvores  nos  oásis ;  tornam  as 
naiades  a  chorar  nas  grutas ;  reverdecem  os  rel- 
vedos ;  mas  não  resuscilam  os  mortos.  Pois  o  meu 
amor  foi  como  o  vento  do  deserto.  Causou  a  mor- 
te de  um  ser  querido,  cuja  vida  eu  resgatara  á 
custa  do  pi-oprio  sangue.  Ahi  tem  a  historia.  Abrio 
as  fei-idas,  e  o  sangue  corre  em  fio.  Foi  bárbaro. 
Deus  lhe  perdoe,  e  a  mim,  que  pequei.  Enviar- 
Ihe-hei  as  cartas  amanhã.  São  poucas,  porque  pou- 
cas foiam  as  que  escapai"am  ao  fogo.  Esci"eva  ago- 
ra o 'seu  livro. 

—  Deus  me  livre,  senhora. 

—  Escreva.  Os  mysterios,  que  revelar,  só  eu 
os  conheço,  e  o  seu  amigo  António  Alvares.  Elle 
que  lhe  conte  o  resto.  As  cartas  de  Violante  po- 
dem guial-o.  O  mundo,  se  ler  o  livro,  cuidará 
que  tudo  foi  obra  de  uma  imaginativa  creadora  e 
fecunda.  E  oxalá  assim  fosse ! 

—  Não  agradeço,  porque  estas  cousas  não  se 
agradecem.  Não  tenho  mei-ecimentos  para  ser  o 
confidente  de  V.  Ex."  Eu  só  queria  apurar  a  ver- 
dade. Perdoe-me,  pois,  V.  Ex."  ^ 

Despedi-me  e  saí.  Descrever  ao  leitor  o  meu 
espanto  é  obra  superior  ás  minhas  forças.  Conti- 
nuaria a  baroneza  a  representar  o  seu  papel? 
Continuaria  a  ser  actriz  consummada?  Seiia  men- 
tira o  que  me  disse  ?  Amaria  ella  alguma  vez  na 


248 


O  PANORAMA 


vida?  Teria  espinhos  alguma  rosa  das  muitas  que 
colheu?  A  minha  ignorância  era  supina  e  cabal. 
Vagava  em  um  mar  de  duvidas,  sem  norte  e  sem 
rumo.  Felizraenle,  porém,  o  meu  amigo  António 
Alvares  i)romellèra-me  as  suas  confidencias,  as 
quaes.  combinadas  com  as  carias  de  Violante,  po- 
deriam guiar-me  na  resolução  d'esse  problema, 
que  se  denomina  Alfredo  de  Mello.  Se  eu  podes- 
se,  em  fim,  apanhar  esse  camaleão,  que  por  tan- 
tas vezes  zombou  dos  meus  estudos  mais  profun- 
dos e  aturados ! 

Fui  ter  com  António  Alvares;  contei-lhe  o  que 
tinha  passado  com  a  baroneza,  e,  ao  mesmo  tem- 
po, exigi-lhe  o  cumpiimenlo  da  sua  promessa 

Foi  todo  o  outro  dia  entregue  a  eonlidencias,  a 
leituras  de  cartas,  a  confronto  de  documentos. 
Depois  comecei  o  livro,  e  aonde  me  falhavam  car- 
ias (e  muitas  e  repetidas  eram  as  falhas)  tive  eu 
de  compor,  seguindo,  todavia  a  verdade,  que  me 
era  indicada  por  António  Alvares. 

Tal  e  a  razão  porque  eu  tive  de  tomar  a  ])ala- 
vra,  quando  o  leitor  esperava,  talvez,  alguma  car- 
ta de  Alfredo  de  Mello.  E  agora  que  é  tempo  de 
encerrar  este  já  longo  parenthesis,  prosigamos  na 
nossa  narrativa  com  a  máxima  rapidez. 

A.  O.  DE  Vasconcellos. 


UMA  OBRA  DO  SÉCULO  IX 

CHROMCON  ALBELDENSE 
Começa  a  ordem  dos  nnno.s  referida  brevemente 

Vllí  — Desde  Adão  até  o  diluvio,  MMCCXLII.— 
Do  diluvio  a  Abraham,  DCGGGXLil  annos.  —  De 
Abraham  a  Mosés^  DV.  —  Da  saída  dos  Israelitas 
do  Egypto,  até  a  sua  entrada  na  terra  da  Pro- 
missão, XL  annos. — Desde  esta  entrada  até  Saul, 
primeiro  rei  de  Israel,  depois  dos  Juizes,  GGCLVI. 

—  Saul  reinou  XL  annos. — Desde  David  ate  o 
principio  da  construcção  do  Templo,  XLIII  annos. 

—  Desde  a  primeira  edificação  do  Templo  até  a 
transmigração  de  13abvlonia,  houve  Keis  por 
CCGCXLIII  ânnos. 

No  anno  LXX  do  capliveiro  do  Povo  e  desola- 
ção do  Templo,  foi  este  restaurado  por  Zorobadel. 
— Desde  a  restauração  do  Templo  até  á  Encarnação 
de  Ghristo,  decorreram  DXI.  annos. 

Deduz-se  do  que  ficii  dito,  que  todo  o  le^Tipo, 
decorrido  desde  Adão  até  á  vinda  de  Ghristo,  foi 
de  VMGXGVIIJI  annos. 

Da  Encarnação  de  N.  S.  Jesuchristo  ao  primeiro 
anno  do  reinado  do  Principe  Wambano,  DGLXXII 
annos. 

Do  tempo  de  Wambano  até  o  nosso,  que  é  a 
Era  DCCGGXXI,  passaram  GGXI  annos. 

Gollige-se,  finalmente,  que  todo  o  tempo,  desde 
o  principio  do  Mundo  até  a  lira  presente,  DCí^CGXXI 
c  XVIil  anno  do  reinado  do  nosso  Principe  Ade- 
fonso,  filho  do  glorioso  Hei  Ordonio,  foi  de  annos 
VIMLXXXII ;  e  da  Encarnação  do  Senhor  até  nós 
DCGGLXXXlIi. 

DuN  moín   IdadeM  do  itiiindo 

IX  — Primeira  idade:  de  Adão  até  o  diluvio, 
MMGGXLIl  annos. 

Segunda  edade:  do  diluvio  até  Abraham,  annos 
DCCCCXLII. 


Terceira  idade.-  de  Abraham  até  David,  annos 
DGGGCXLI. 

Quarta  idade:  desde  David  até  a  transmigração 
de  liabylonia,  GCGCLXXVI  annos. 

Quinta  idade:  desde  a  transmigração  até  Ghri- 
sto e  o  Imperador  Octaviano^  em  cujo  tempo  da 
Virgem  Maria  e  do  Espirito  Santo  nasceu  Gliristo. 

Sexta  idade :  due  começa  desde  Ghristo,  tem 
agora  na  era  de  1)GCCGXXI,'  DGCGEXXXIII  annos. 
— Quanto  sobre  isto  se  pretenda  saber,  só  de  Deos 
é  conliecido,  para  nós  occulto,  como  o  diz  o  Se- 
nhor no  Evangcllio.  «Não  é  para  vós  o  conhecer 
os  tempos,  nem  os  momentos  que  o  Pae  conserva 
sob  a  sua  potestade.» 

(Continua) 

EVGMOULA 

Canto  grego 

Evgmoula  a  bella  acaba  de  casar-se;  acaba  de 
unir-se  a  um  marido  pallikar. 

Ella  gaba-se  de  não  temer  a  Morte;  um  mau 
pássaro,  porém,  vai  dizel-o  a  esta,  e  a  Morte  dis- 
para-lhe  uma  frecha  fatal. 

Evgmoula  começa  a  cmpallidecer :  «Minha  mãe, 
digo-te  adeus;  vesíe-me  com  os  meus  vestidos  de 
noiva,  e  quando  etie  vier,  o  meu  querido  Gons- 
tanlino,  não  o  aíflijas,  e  prepara-lhe  a  ceia.  Toma 
esta  alliança,  e  entrega-a  a  Gonstantino  para  que 
elle  possa  novamente  ligar-se  a  outra  esposa,  atim 
de  adquirir  novos  parentes,  alcançar  novos  ami- 
gos.» 

Constantino  atravessa  o  campo  a  cavallo,  com 
quinhentos  senhores  c  mil  pallikars.  Vê  uma  cruz 
á  sua  porta  c  padres  no  pateo. 

«Morreria  algum  dos  meus?» 

Mette  as  esporas  ao  cavallo  c  entra  no  pa- 
teo: «Eu  vos  saúdo  a  todos.  Para  quem  é  este 
esquife  ?  —  Evgmoula,  a  formosa  Evgmoula  mor- 
reu! 

«Faze  a  cova,  coveiro,  faze  a  cova  para  duas 
pessoas;  uma  cova  larga,  uma  cova  profunda.» 

Em  seguida  puxou  do  seu  punhal  c  cnter- 
rou-o  no  coração.  Foram  ambos  para  a  mesma 
cova. 

Sobre  esta  cova  brota  uma  ftôr,  sobre  esta 
cova  brota  um  cypreste ;  c  quando  o  vento  sa- 
code os  ramos,  "a  ílôr  e  o  cypreste  abraçam-sc. 


AGUA  DOGE  SOBRE  AGUA  SALGADA 

Encontram-se  na  Noruega  golphos,  ou  fiords, 
onde  a  agua  é  doce  na  superfície  c  salgada  no 
fundo.  O  doutor  Berna,  Vogt  e  Gresoly  na  sua 
viagem  ao  Norte,  estudaram  um  ftord  onde  a 
agua  salgada  começava  a  1"',5(),  pouco  mais  ou 
menos,  de  profundidade.  A  agua  doce,  mais  leve, 
conduzida  pela  ril3eira,  conservava-se  à  superfí- 
cie. A  draga  trazia  do  fundo  ouriços,  conchas  c 
peixes  do  mar.  As  algas  c  outras  plantas  maríti- 
mas apresentavam  uma  vegetação  miserável,  pois 
a  agua  doce,  que  é  hostil  ao  seu  desenvolvimen- 
to, substituia  durante  o  verão  a  agua  salgada. 
Esta,  porém,  predomina  no  inverno,  quando  os 
regatos  e  ribeiros,  formados  pela  fusão  da  neve, 
param  ou  congelam,  e  os  ventos  vecm  perturbar 
as  tranquillas  aguas  do  fiord,  c  misturar  a  agua 
salgada  do  fundo  com  a  doce  da  superfície. 


Tyj).  Frnnco-1'orlguczn,  Riia  do  Thcsouro  Velho,  0. 


32 


o  PANORAMA 


249 


o  feld-marechal  de  Benedek 


Bastante  conhecido  é  hoje,  entre  nós,  o  nome 
d'este  homem  de  guerra,  e  bera  vulgares  os  seus 
recentes  feitos,  para  que  nos  detenhamos  em  uma 
descripção  minuciosa  do  papel  que  tem  desem- 
penhado na  pendência  entre  a  Áustria  e  a  Prús- 
sia, que  traz  suspensos  todos  os  povos  da  Europa. 
Publicando,  porém,  o  seu  retrato,  ao  qual  suc- 
ceder-se-hão,  certo,  os  de  lodos  os  outros  perso- 
nagens importantes,  que  andam  empenhados  na 
sangrenta  lucta,  não  podemos  deixar,  apesar  mes- 
mo de  outros,  n'esta  parle,  nos  haverem  prece- 
dido, de  acompanhal-o  com  duas  palavras  bio- 
graphicas. 

Luiz  de  Benedek  nasceu  em  Oldemburgo  no 
anno  de  1804.  Seu  pai,  medico,  mandou-o  edu- 
car no  collegio  militar  de  Neustadt,  e,  em  1822 
entrou  como  porta-bandeira  no  exercito  austria- 
co,  onde,  subindo  rapidamente  de  postos,  altin- 
gio  o  de  coronel  em  1843.  Dous  annos  mais  tar- 
de, tomou  uma  parte  activíssima  na  repressão 
dos  movimentos  revolucionários  da  Gallicia,  ob- 
tendo, por  essa  occasião,  as  insígnias  da  ordem 
de  Leopoldo.  Em  1848,  eil-o  na  Kalia  dando  aos 
seus  soldados  o  exemplo  do  valor,  do  sangue-frio, 
por  occasião  da  retirada  de  Milão,  e  distinguindo  se 
em  Curtatone,  onde  oppoz  uma  tenaz  resistência 
aos  Ímpetos  immoderados  dos  estudantes  de  Tos- 
cana. Mencionado  na  ordem  do  dia  pelo  mare- 
chal Uadetzky,  o  coronel  de  Benedek,  em  recom- 


pensa d'estes  últimos  serviços,  foi  condecorado 
com  a  ordem  de  Maria  Thereza.  Em  1849,  termi- 
nado o  armislicio,  contribuio  para  a  entrega  de 
Mortara  e  combateu  denodadamente  á  frente  dos 
seus  soldados  em  Novara. 

Nomeado  major  general  no  exercito  do  Danú- 
bio, de  Benedek  augmenlou  ainda  a  sua  repu- 
tação na  campanha  da  Hungria,  e  com  especia- 
lidade no  combate  de  Szornyeors-lvany,  onde  foi 
ferido  por  um  estilhaço  de  bomba  No  fim  d'esta 
guerra  passou  á  Itália  na  qualidade  de  chefe  de 
estado  maior  do  2.°  corpo  do  exercito,  onde  per- 
maneceu alé  o  fim  da  gueira  de  18o9.  Depois 
da  balalha  de  Magenta,  cobrio,  de  Milão  para  o 
Mincio,  a  retirada  do  exercito  austríaco,  comba- 
tendo energicamente  em  Malegnano.  Em  Solferi- 
no,  o  general  de  Benedek,  achava-se  á  frente  da 
ala  direita,  e  depois  da  derrota,  subsliluio  o  ma- 
rechal Hess  no  commando  superior  do  exercito. 

Quando  a  paz  foi  assignada,  de  Benedek  passou 
a  com  mandar  as  forças  austríacas  do  Veneto.  O 
imperador  Francisco  José,  elevou-o,  ultimamen- 
te, á  dignidade  de  feld-marechal  e,  emquanto  o 
archi-duque  Albrelch  foi  a  Verona  tomar  o  com- 
mando do  exercito  italiano,  de  Benedek  recebeu 
o  do  exercito  do  noite,  reunido  na  fronteira  da 
Silesia.  O  feld-marechal  de  Benedek  está  consi- 
derado como  o  militar  mais  eminente  da  Áus- 
tria. 


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O  PANORAMA 


JOÃO   DE  MATTOS  FRAGOSO 

É  o  nome  de  um  portiigiiez  dislinclo,  pouco  de 
DÓS  conhecido,  como,  infelizmenle,  muitos  outros 
engenhos  que  esta  terra  tem  produzido,  mas  que 
foi  um  dos  mais  infatigáveis  dramaturgos  do  fe- 
cundíssimo século  XVII  e  um  dos  que  alcançaram 
maior  celebridade  no  reino  visinho. 

João  de  Mattos  Tiagoso  nasceu  pelos  principies 
d'aquelle  século  em  Alvito,  na  província  do  Alem- 
tejo,  quando  Portugal  gemia  sob  o  pesado  jugo 
castelhano.  Estudou  em  Évora,  e  foi  cavai  loiro 
professo  na  Ordem  de  Christo  (1);  mas,  domici- 
liado em  Madrid,  que  ei'a  então  a  corte,  e,  por  con- 
sequência, o  ponto  onde  os  talentos  mais  podiam 
brilhar,  ali  se  dedicou  exclusivamente  ao  cultivo 
das  musas,  com  especialidade  a  dramática,  até  o 
ultimo  dia  da  sua  ddalada  vida,  que  foi  a  18  de 
maio  de  1G92. 

Do  seu  mérito  como  auctor  portuguez  nada  po- 
demos dizei-,  j)or(jue  não  nos  consta  que  escreves- 
se obra  alguma  no  nosso  idioma ;  como  escriptor 
hespanhol,  porem,  não  acontece  outro  tanto  :  o 
grande  numero  de  comedias  que  produzio,  as  in- 
contestáveis bellezas  que  em  todas  ellas,  mais  ou 
menos,  resaltam,  a  sua  extrema  facilidade  em  ver- 
sificar, a  ligeireza,  a  graça  da  sua  expiessão  có- 
mica, e,  finalmente,  os  grandes  elogios  que  sem- 
pre lhe  teceram  os  homens  de  leiras  da  pátria  de 
Pelagio,  tudo  isto  nos  auctorisa  a  consideral-o  co- 
mo um  talento  notável  e,  por  conseguinte,  aapre- 
sental-o  como  um  dos  melhores  poetas  castelhanos 
do  século  XVII. 

Rebentara  então  emllespanha  uma  d'essas  gran- 
des revoluções  do  espirito,  sempre  utilíssimas  para 
a  humanidade,  e  que  nós  desejáramos  igualmente 
rebentasse  entre  nós,  para  que  as  letras  pátrias, 
até  hoje  tão  votadas  ao  desprezo,  podessem  sair 
do  marasmo  em  que  lêem  vivido.  A  extraordiná- 
ria excitação  e,  por  assim  dizer,  o  appetite  sobre- 
natural que  as  inesgotáveis  veias  de  Lope  e  Odlde- 
ron  haviam  gerado  no  publico  para  os  espectácu- 
los scenicos,  necessitava  de  alimento  diário,  infi- 
nita e  continua  variação ;  e  ainda  que  as  quasi 
innumeraveis  producções  d'aquclles  colossos  bas- 
tassem para  sortir  durante  um  século  inteiro  os 
theatros  de  toda  a  Europa,  era  tal  a  sede  do  thea- 
tro  hespanhol,  que  consummiac  devorava  estas  c 
não  conseguia,  ainda  assim,  applacal-a  com  os 
centenares  de  obias  com  que  também  o  brinda- 
vam as  fecundas  pennas  de  Tirso,  Roxas,  Alarcon 
c  Mareio. 

E  é  preciso  notar  que  ao  lado  d'esles  grandes  e 
privilegiados  mestres  da  arte,  apparcceram  outros 
muitos  (|ue,  com  maior  ou  menor  fortuna,  lucta- 
lam  ii'a(|uelle  esplendido  palan(|uc  do  engenho, 
contribuiiam  para  a  erecção  do  sumptuoso  monu- 
mento nacional  e  alcançaram  lauréis,  mais  ou 
menos,  immarcesciveis  e  duradouros.  Estes,  po- 
rem, leriam  sido  menos  felizes  se  o  gosto  do  pu- 
blico d'aquelle  século,  extraviado  pelos  magníficos 

M;  Dicc.  Bibiliographico  ;   tom.  5."  pag.  417. 


erros  dos  seus  primeiros  génios,  não  houvesse 
aberto  tão  larga  porta  á  iriupção  das  medianias, 
tivesse  sugeitado  a  provas  mais  difliceis  a  ostenta- 
ção do  talento  e  o  cultivo  da  poesia  dramática.  O 
fheatro'  hespanhol,  então,  não  seria,  seguramente, 
tão  rico,  nem  Ião  abundante  o  catalogo  dos  seus 
dramaturgos;  em  troca,  porem,  não  seriam  ecli- 
psados os  seus  primoi'es  pela  nuvem  de  desacer- 
tos que  oflusca  e  contradiz  a  sua  belleza. 

Como  em  todas  as  obras,  porém,  nasce  o  abu- 
so ao  lado  da  sua  maior  perfeição,  assim  succe- 
deu  com  o  cultivo  do  Iheatro  hespanhol  na  segun- 
da metade  do  século  XYII,  tendo-se  reduzido  a 
uma  espécie  de  oflicio  (que  não  sabemos  se  era  lu- 
crativo) e  a  corte  de  Philippe  a  uma  immensa  fa- 
brica dramática,  na  qual  o  próprio  monarcha  da- 
va o  exemplo  sob  o  anonymo  de  um  engenho  da 
corte,  obras,  por  certo,  não  as  mais  incoriectas; 
seguiam-lhe  o  gosto  c  dramatisavani  também  os 
coitezãos  e  favoritos,  ministros,  embaixadores,  pre- 
lados, conselheiros,  pregadores,  e  até  as  freiras  ; 
lodos  alternavam  com  o  laborioso  enxame  de  poe- 
tas  que  ás  ordens  do  rei  e  do  Conde-Duque  tra- 
balhavam para  sortimento  dos  coliseos  dei  Buen- 
Retiro  ,  dei  Pardo  y  la  Zarzuela. 

Entre  todos  estes  incansáveis  cultivadores  da 
arte,  sobresaia  Moreto,  como  o  mais  engenhoso  e 
perspicaz  dos  fabricantes  de  peças  theatraes ;  e 
não  bastando  ao  seu  extremo  ardor  a  invenção 
p.-opria  e  o  seu  talento  admirável,  lançava  mão 
das  obras  dos  outros  para  adoplal-as,  re*formal-as 
ou  refundil-as,  melhorando-as,  certamente,  em 
suas  discretas  mãos,  ainda  que  renunciando  á  sua 
própria  espontaneidade  e  a  uma  boa  parte  do  seu 
credito  e  fama.  Islo  de  que  hoje  o  argue  a  criti- 
ca, já  lh'o  lançaram  em  rosto  os  seus  contempo- 
râneos, e  muito  especialmente  o  poeta  Câncer,  que 
no  seu  Vejámcn  poético  diz  :  «  E  no  meio  d'este 
perigo  reparei  que  D.  Agustin  Moreto  estava  as- 
sentado e  revolvendo  uns  papeis  que  me  pare- 
ceu serem  comedias  antiquíssimas  de  que  já  nin- 
guém se  lembrava.  Estava  dizendo  comsigo  :  isto 
nada  vale,  d'aqui  j)óde  tirar-se  alguma  cousa ; 
mudando  islo  um  pouco  pôde- se  aproveitar.  Eno- 
jou-me  vel-o  com  aquelle  fleugma  quando  lodos 
estavam  com  as  armas  na  mão,  e  dissc-lhe  porque 
não  ia  pelejar  como  os  outros.  Ao  que  me  respon- 
deu :  Eu  pelejo  aqui  mais  do  que  outro  quahjuer, 
porque  estou  sondando  o  inimigo.  V,  repliquei, 
parece-me  que  deseja  aproveitar  alguma  cousa 
d'essas  comedias  velhas.  Exactamente,  me  tor- 
nou ;  é  por  isso  que  digo  que  estou  sondando  o 
inimigo,))    ■ 

Não  contente  Moreto  com  aquella  exhumaçãoe 
apropriação  de  muitas  obras  dos  poetas  anterio- 
res, formou,  ao  que  parecis  para  attender  ao  sor- 
timento com  outras  novas,  uma  espécie  de  asso- 
ciação em  commandita,  pelo  gosto  da  que  reno- 
vou Eugénio  Scribe  no  moderno  Iheatro  francez  ; 
e  o  mais  inleressantc  é  que  o  mesmo  Câncer,  (jue 
o  censurou,  foi  (le|)ois  o  mais  intrépido  dos  seus 
associados  ou  collaboradores-  e  tanto  que  se  não 
conhece  comedia  alguma  exclusivamente  sua,  se- 


o  PANORAMA 


25 


não  em  concorrência  com  Mordo,  Mattos,  Villavi- 
ciosa,  Zavaleta,  os  Figueroas,  Rosete,  ele. 

Foi  n'osla  estranha  sociedade  que  trabalhou  mui- 
to activamente  João  de  Mattos  Fragoso,  como  po- 
de ver-se  em  muitas  das  suas  obias  dramáticas, 
taes  como  Caer  para  levantar,  Amor  hace  hahlar 
los  mudos,  El  Principe  prodigioso,  El  Redentor 
cantivo.  Solo  piadoso  es  riii  hijo,  Oponer-se  á  las 
estreitas,  El  mejor  par  de  los  doce,  El  letrado  dei 
cieto,  El  bruto  de  Babilónia,  El  vaquero  empera- 
dor,  e  outras.  ^ 

Também  imitou  Moreto  (ainda  que  não  com  igual 
exilo)  na  censurável  adopção  de  pensamentos, 
planos  e  caracteres  estranhos,  de  que  se  oíTerecem 
entre  outros  exemplos  as  de  Ver  y  creer,  e  El  hijo 
de  la  piedra,  imitadas  das  de  Tirso  de  Molina,Ía 
firmeza  en  la  hermosura,  e  La  eleccion  por  la 
rirtud.  Não  obslaiile,  não  [)odemos  deixar  de  re 
conhecer  em  Mattos  nma  grande  dose  de  engenho 
e  de  invenção  própria,  que  lhe  permiltiram  pro- 
duzir por  si  só  meio  cento  de  comedias,  nas  quaes 
brilham  o  seu  elevado  talenlo,  a  sua  fértil  imagi- 
nação e  veia  poética. 

íContinua.) 


PALESTRAS  IIYGIEMGAS 

o  pão 

As  farinhas  das  gramíneas  que  são  emprega- 
das no  fabrico  do  pão  contêem  um  grande  nu- 
mero de  principies,  entre  os  quaes  citaremos 
como  os  mais  importantes:  1."  amido  ou  fécula; 
12.°  dextrina;  íi."  glúten;  4.°  matérias  gordas ;  5.° 
saes;  6.°  agua.  Estes  elementos  combinam-se  em 
diversas  proporções  que  dão  ás  farinhas  suas 
qualidades  e  seu  valor  commercial.  A  fermenta- 
ção e  a  cozedura  são  os  dois  agentes  da  trans- 
formação das  farinhas  em  pão.  A  fermentação 
que  se  opera  na  farinha  amassada  com  agua,  le- 
vada a  uma  temperatura  conveniente  e  posta  em 
contacto  com  um  fermento  (levadura  de  cerveja 
ou  massa  um  pouco  antiga),  consiste  na  sepa- 
ração das  matérias  assucaradas  e  a  sua  transfor- 
mação parcial  em  álcool  e  em  gaz  acido  carbó- 
nico. Este  gaz,  cuja  tensão  augmenta  pelo  calor, 
dilata  o  glnten  durante  a  cozedura,  põe  em 
acção  a  sua  elasticidade,  e  dá  ao  pão  esse  as- 
pecto aréolar  que  caraclerisa  uma  boa  fabrica- 
ção. Ao  mesmo  tempo,  os  grãos  da  fécula,  in 
tUmecidos  pela  agua,  dilatam -se,  rebentam  e 
deixam  transsudar  a  matéria  gommosa  solúvel 
que  forma  o  seu  contheudo.  Os  diversos  tempos 
da  fabricação  do  pão,  factura  do  fermento,  so- 
vadura,  eslensão  e  divisão  da  massa  em  boca- 
dos, tudo  isto  se  eíTectua  já  por  meios  mechani- 
cos,  já  a  braços;  e  a  qualidade  do  pão  depende 
também,  em  'uma  certa  medida,  da  habilidade 
com  que  são  conduzidos  estes  trabalhos :  a  co- 
zedura contribue  muito  para  o  bom  exilo.  Em 
Inglaterra,  preparou-se,  n'estes  últimos  annos, 
sob  o  nome  de  pães  não  levedados  {unfcrmented 
hreads)  um  pão  sem  fermento,  no  qual  o  acido 
carbónico  proveniente  da  fermentação  é  substi- 
tuído por  este  mesmo  gaz  fornecidb  pela  acção 
do  acido  chlorhydrico  introduzido  na  agua  que 
serve  para  fazer  a  massa  sobre  o  bicarbonato  de 
soda  misturado  com  a  farinha.  Este  pão  tem  o 
esponjoso  e  a  eslructura  vesicular  do  pão  com- 


mum.  Os  unfermcnted  breads  do  doutor  Whiling 
teem  grande  consummo  esão  muito  estimados  cm 
Londres.  Os  seus  partidários  attribuem-lhes,  bem 
entendido,  uma  multidão  de  vantagens  sobre  o 
pão  ordinário;  mas  é  ponto  duvidoso  que  a  hv- 
giene  as  ratifique:  a  ingerência  da  chimica  na 
preparação  dos  alimentos  inspira-nos  uma  des- 
confiança preventiva. 

O  pão  está  fabricado,  importa  reconhecer  se  é 
de  boa  qualidade.  Os  processos  scienlificos,  tão 
precisos  quando  se  trata  de  julgar  da  adultera- 
ção das  farinhas,  faltam  aqui  completamente,  e 
só  o  exame  organoleptíco,  isto  é,  o  teslemunho 
dos  sentidos,  nos  pôde  esclarecer  sobre  o  valor 
d'este  alimento.  O  pão  é  de  boa  qualidade  e  bem 
fabricado  quando  tem  um  cheiro  e  sabor  agra- 
dáveis; quando  o  miolo  é  homogéneo,  cheio  de 
buracos,  de  dimensões  íguaes,  sem  grandes  aber- 
turas; quando  é  muito  elástico  e  retoma  depois 
de  uma  pressão  o  seu  volume  primitivo;  quan- 
do, em  fim,  diíficilmente  se  reduz  a  pó  depois 
de  ter  sido  amassado  com  os  dedos;  a  auzencia 
de  grumos  de  farinha  e  a  adherencia  interna  do 
miolo  com  a  côdea  são  também  indícios  de  boa 
qualidade. 

Seria  um  erro  gravíssimo,  no  duplo  ponto  de 
vista  hygienico  e  económico,  o  pensar  que  a 
qualidade  do  pão  sobe  á  proporção  que  se  apura 
o  peneiramento  da  farinha,  que  serve  para  o  seu 
fabrico.  Tal  cousa  não  se  dá.  Os  trabalhos  de 
chimicos  muito  auctorisados,  particularmente  os 
de  Milton  e  Poggiale,  teem  demonstrado  que  o 
farelo,  regeilado  como  inútil  para  alimentação, 
contém,  na  realidade,  mais  matérias  albuminói- 
des e  por  consequência  mais  azote  do  que  a  fa- 
rinha bruta.  Peneirando-se  a  farinha  com  muita 
perfeição,  enfraquece-se,  por  tanto,  até  certo 
ponto,  o  seu  poder  nutritivo.  A  rapidez  com 
que  o  farelo  engorda  os  anímaes  é  um  facto  de 
vulgar  notoriedade,  que  devera  preceder  as  pro- 
vas da  chimica.  Póde-se  dizer,  pois,  que  n'esta 
matéria,  como  em  muitas  outras  cousas,  o  me- 
lhor é  o  inimigo  do  bem.  Um  pão  muito  branco 
sustenta  menos,  é  menos  saboroso,  e,  além  dMsso, 
como  todos  os  alimentos  que  abandonam  pouco 
residuo  á  elaboração  digestiva,  debilmenle  esti- 
mula as  funcções  do  intestino,  e,  como  o  pró- 
prio Hippocrates  já  o  havia  notado,  torna  o  ven- 
tre preguiçoso.  Um  hygienista  insistio  recente- 
mente sobre  este  facto,  e  attribuio  esta  inércia 
intestinal,  tão  commum  em  nossos  dias,  ao  fa- 
zer-se  uso  geralmente  de  um  pão  fabricado  de 
farinhas  muito  apuradas.  A  utilidade  dos  pães 
grosseiros  de  centeio  ou  de  cevada,  e  do  pão 
ainda  mais  ordinário,  preparado  com  partes 
iguaes  de  farinha  e  farelo,  é  uma  contra  prova 
d'este  facto. 

O  pão  não  é  um  alimento  de  boa  conservação, 
e  a  natureza  chimica  muito  incerta  dos  seus  ele- 
mentos, bera  como  a  grande  quantidade  de  agua 
que  contém  são  a  prova  do  que  avançamos.  Oo- 
bre-se  facilmente  de  bolor  que  lhe  altera  o  gosto 
e  que  lhe  pódc  mesmo  communicar  proprieda- 
des toxicas.  Este  bolor  umas  vezes  é  branco, 
outras  côr  de  laranja,  e  o  mais  commummentc 
verde.  Cilaram-se  já  dois  casos  em  que  o  uso  do 
pão  coberto  d'cstas  manchas  determinou  mui 
sérios  accidentes.  Em  1848,  notou-se  um  bolor 
vermelho,  devido  a  um  oídium  particular,  o 
0'idiuni  aurantiacum.  Segundo  M.  Payen,  que  es- 


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O  PANORAMA 


(lidou  particularmente  esta  alteração,  este  bolor 
altera  profundamente  a  constituição  do  pão:  de- 
compõe o  amido  em  agua  e  cm  acido  carbó- 
nico, e  as  matérias  gordas  e  azotadas  servem 
jiara  a  sua  vegetação.  Certos  hygienistas,  e  par- 
ticularmente M.  Guerard,  que  descreveu  este  pa- 
rasita sob  o  nome  de  pcnicilliiim  roseiim,  não  o 
julga  toxico  por  si  mesmo.  Não  ha  também  mo- 
tivo para  que  o  pão  assim  alterado  deva  causar 
suspeita.  O  melhor  meio  de  evitar  o  bolor  do 
pão  consiste  cm  dcixa!-o  arrefecer  ao  ar  livre  e 
em  não  o  ler  fechado  cm  um  espaço  muito  aper- 
tado. 

iNesíes  últimos  tempos,  a  chimica,  regulando 
os  principios  constitutivos  dos  alimentos  mais 
usuacs  e  fixando  as  proporções  de  azote,  de  car- 
bóne  e  de  matérias  gordas  que  encerram,  pre- 
tendeu scrvir-se  d"este  critério  para  classificar 
as  substancias  alimentarias  segundo  a  sua  or- 
dem de  maior  nutrição,  e  foi  íevada  a  attribuir 
ao  pão  uma  força  muilo  reparadora.  Nada  dire- 
mos sobre  a  infallibilidade  dos  jnizos  da  chi- 
mica, que,  para  ser  consequente  comsigo  mesma, 
deveria,  por  causa  da  queslão  do  azole,  collo- 
car  como  alimento  o  carvão  de  pedra  ao  lado 
do  lombo  de  vaca;  ha  um  azole  nas  combina- 
ções alibilcs.  e  outro  do  qual  a  nutrição  não 
sabe  o  que  ha  de  fazer.  A  vida,  que  é  um  reac- 
tivo mais  delicado  que  o  cadinho  e  a  balança, 
dislingue-os  perfeitamente  um  do  outro.  Coíii- 
tudo.  convém  confessar  que  esta  descoberta  da 
chimica  está  singularmente  confirmada  pela  ex- 
periência universal,  que  attribue  ao  pão  proprie- 
dades muito  reparadoras.  Esta  vantagem  é  ainda 
corroborada,  pela  appetencia  geral  cfue  manifes- 
tam quasi  todos  os  povos  por  este  alimento,  e 
por  este  facto  notável  que  entre  todos  talvez 
nunca  provoque  a  saciedade. 


O   HOMEM  QUE  NÃO  RI 

conto  arnbc 

Existia  cm  um  principado  próximo  do  lago 
Tchad,  no  interior  d'Africa,  uma  família  árabe  que 
havia  sido  forçada  a  emigrar  pela  lyrannia  dopa 
cha  de  Tripoli.  Esta  familia  favorecida  pelas  cir- 
cumslancias,  is^o  c,  pela  vontade  de  Deus,  adqui- 
rira em  pouco  tempo  uma  d"essas  riquezas  fabu- 
losas de  que  se  falia  mulas  vezes  nas  iVil  e  wnn 
noilcs.  O  pai  c  a  mãi  morreram,  deixando  um 
íilho  que  contava  apenas  dczeseis  annos  de  ida- 
de, mas,  cuja  tendência  para  o  luxo  e  prazeres 
não  conhecia  limites. 

Zerzuri,  (era  o  nome  do  herdeiro,)  começou  des- 
de logo  a  dar  grandes  festas,  e.  portanto,  inimedia- 
tameiílese  vio  rodeiadode  muitos  amigos.  A  prodi- 
galidade nasceu  no  meio  dos  prazeres  :  tornou-se 
pródigo, CO  dinheiro  cscapou-se-lhe  das  mãos  como 
a  agua  que  cac  das  nuvens.  A  pouco  e  pouco,  ven- 
deu escravos,  palanqtiins,  trens  e  casas;  vendeu 
mesmo  as  jóias  de  sua  mãi.  Trcs  annos  bastaram 
l)ara  consurnmar  a  sua  ruina. 

No  dia  seguinte  ao  da  ultima  festa.  Zerzuri  esta- 
va esquecido.  Já  ninguém  sabia  ciue  fura  elle  (juem 
enchera  a  cidade  de  MeJlj  com  o  seu  fausto  c  a 
sua  generosidade;  e  quando  o  desespero  o  levou 
a  fazer-íc  jornaleiro  para  ganhar  o  pão  de  cada 
dia,  foi  um  desconhecido  que  lhe  estendeu  a 
mão. 


Um  dia  que,  vestido  com  uma  gandura  alva- 
dia, como  os  homens  do  povo,  estava  assentado 
junto  de  um  muro  esperando  trabaliio,  um  es- 
trangeiro de  aspecto  agradável  parou  diante  d'el- 
le  e  saudou  o.  Zerzuri  correspondeu  civilmente 
ao  comprimento,  mas  sem  ousar  levantar  os 
olhos,-  tal  era  o  seu  estado  de  humilhação  por 
ler  dado  tão  grande  queda. 

—  Mancebo,  lhe  disse  o  desconhecido  com  voz 
aíTecluosa;  parece  me  que  solTreis ;  inleressa-me 
a  vossa  presença.  Adi  viu  lio  na  vossa  physionomia 
que  já  estivestes  em  melhor  posição.  Se  quereis 
trabalho,  posso  vol  o  dar. 

As  palavras  do  estranho  fizeram  rebentar  as 
lagrimas  dos  olhos  de  Zerzuri;  e  respondeu: 

—  Senhor,  salvais-me  a  vida;  Deos  vos  recom- 
pensará. Minha  mãi  tinha  lazão  de  dizer  que 
o  Senhor  dos  mundos  nunca  abandona  aquelles 
que  se  entregam  em  suas  mãos. 

Dizendo  estas  palavras,  filava  os  olhos  no  seu 
interlocutor,  que  era  um  homem  dos  seus  qua- 
renta annos,  de  rosto  synipathico,  mas  triste,  e  co- 
berto com  um  vestido  de  seda  verde.  E  accrescen- 
tou  com  voz  timida  : 

—  Que  emprego  tencionaes  dar-me  ? 
O  desconhecido  disse-lhe : 

—  Habito  uma  casa  distante  do  fosso  da  cida- 
de, em  companhia  de  nove  amigos.  Vivemos  ali 
em  um  absoluto  retiro.  Necessitamos  de  alguen) 
para  servir-nos,  e,  sobre  tudo,  uma  pessoa  discre- 
ta. A  vossa  physionomia  convém -me.  Vivereis 
comnosco,  fareis  parte  da  nossa  existência,  como 
se  fosseis  da  familia.  Tereis  vestidos  elegantes ;  o 
dinheiro  não  vos  faltará,  e  Deos  permittirá,  sem 
duvida,  que  vós  gozeis,  graças  a  nós,  de  uma 
brilhante  existência.  Acceitais  o  emprego  que  vos 
oíTereço  ? 

—  Ouvir,  é  obedecer,  exclamou  Zerzuri,  cujo 
coração  pulava  de  alegria. 

—  Primeiro  que  tudo,  disse  o  homem  de  vestido 
verde,  tenho  uma  recommendação  a  fazer-vos:  é 
de  respeitar  o  nosso  segredo.  Quando  nos  virdes 
chocar,  guardai  vos  de  interrogar-nos  sobre  a 
causa  da  nossa  dor. 

—  O  Creador  não  me  castigou  por  que  cu  hou- 
vesse commetlido  o  peccado  de  curiosidade. 

Terminado  este  dialogo,  que  poucos  instantes 
durou,  os  dois  personagens  pozeram-se  a  cami- 
nho, seguindo  um  atraz  do  outro,  para  o  banho 
mais  rico  da  cidade,  onde  Zerzuri,  sob  as  vistas 
de  seu  amo,  fez  uma  limpeza  completa  desde  a 
cabeça  até  os  pés.  Depois  de  banhado,  e  perfu- 
mado, vio-se  rodeado  de  negros  que  o  vestiram 
inteiramente  de  novo;  tornando  assim  o  mance- 
bo a  poder  mostrar  a  elegância  do  seu  corpo  e 
a  belleza  de  suas  feições^  que  a  jiobreza  e  miséria 
não  deixavam  brilhar.  R  de  uso  entre  os  musul- 
manos,  despojar  do  fato  velho  o  iiomein  que  en- 
tra em  uma  casa  na  qualidade  de  creado. 

{Coniinua) 


Sapiens  vilatn ,  miidr/uc  prl/lu 

Sil  inrlitts,  causas  rcdncl  libi. . . . 


Horácio 


O  sábio  (lir-vos-iia  as  razões  porque  uma  cousa 
c  boa  ou  má,  o  que  couvem  cvilar  e  o  que  se  de- 
ve procurar.  u::iá 


o  PANORAMA 


253 


Cathcdral  de  Rocbester 


Elhelredo,  o  Saxoniu,  rei  de[Kent,  pouco  tem- 
po depois  da  sua  conveisão  ao^chrislianismo,  fun- 
dou a  igreja  de  Cantorbéry  eíHochcster.  A  casa 
de  Bromlcyjoi  dada  a  esla  ullima  no  século  VIU'; 
e  depois,  os  bisj)os  de  Kochester  ali  tiveram  sem- 
pre um  palácio.  Esta  igreja  é  pobre;  a  causa  d'is- 


to  altribue-se  ás  frequentes  e  ruinosas  invasões  dos 
Dinamarquezes.  Durante  a  conquista,  este  estado 
de  pobieza  chegou  a  lai  ponlo,  que  o  serviço  di- 
vino esleve  interrompido  por  algum  tempo. 

A  calhedral  de  Uocliesler,  que  se  acha  edifica- 
da no  centro  da  cidade  e  a  uma  pequena  distancia 


254 


O  PANORAMA 


da  rua  principal,  (em,  como  quasi  todas  as  outras 
cathedraes,  a  forma  de  cruz  O  seu  comprimento 
é  de  trezentos  e  seis  pés:  cento  e  cincoenta  desde 
a  poria  de  oeste  até  o  coro  e  cento  e  cincoenta  e 
seis  desde  este  até  a  janella  de  Jeste.  Á  entrada, 
no  coro,  tem  uma  nave,  sobre  o  centro  da  qual 
está  uma  torre,  cuja  apparencia  é  moderna ;  eíTe- 
clivamenle,  foi  restaurada  ha  quarenta  e  tantos 
annos,  época  em  que  Hie  (iraram  o  campanário.  Esta 
nave  conla  cento  e  vinte  pés  de  extensão  de  norte 
a  sul.  Na  extremidade  superior  do  coro  tem  uma 
segunda  nave  para  o  oriente  de,  pouco  mais  ou 
menos,  noventa  pés.  Entre  estas  duas  naves,  ao 
norte,  existe  uma  torre  muito  arruinada,  cuja  al- 
tura não  excede  a  da  cathedral,  e  que,  em  outro 
tempo,  era  denominada  a  torre  dos  cinco  si)}os. 
Foi  construída  no  reinado  de  Guilherme  Ruius, 
pelo  famoso  Gandulpho,  ou  para  conter  os  sinos, 
ou,  talvez,  para  servir  de  archivo.  Esta  torre  é  de 
uma  solidez  prodigiosa ;  as  paredes  teem  dez  pés 
de  grossura,  não  obstante  o  quadrado  não  contar 
mais  de  quarenta  pés.  Foi  o  mesmo  Gandulpho 
quem  conslruio  a  grande  torre  da  cathedral  de 
Rochester;  está  mui  bem  conservada  e  oíTerece  um 
dos  mais  curiosos  modelos  da  architectura  nor- 
manda. A  nave  da  cathedral  e  a  bella  frontaria  de 
oeste  são  também  obra  d'este  hábil  architeclo.  O 
lado  do  norte  da  nave  oriental,  foi  levantado  de- 
pois de  um  incêndio  que  arruinou  uma  grande 
parte  da  cathedral,  em  1279,  e  a  parte  do  sul  foi 
accrescentada  no  século  seguinte.  O  coro  foi  cons- 
tiuitlo  nos  reinados  de  João  e  Henrique  III,  com 
o  producto  dos  presentes  offerecidos  ao  altar  de 
S.  Guilherme.  Este  santo  era  um  piedoso  e  rico 
padeiro,  natural  da  Escócia,  que  tinha  emprehen- 
dido  uma  peregrinação  a  Jerusalém;  mas  que  foi 
roubado  e  assassinado  pelo  seu  criado,  junto  de 
Rochester.  Tendo  sido  enterrado  na  cathedral  d'osta 
cidade,  a  sua  canonisação  foi  o  resultado  dos  mi- 
lagres que  se  operaram  em  sua  sepultura. 

Afrontaria  de  oeste  é  magnifica,  masofferecedif- 
ferentes  géneros  de  architectura.  A  porta  principal, 
de  que  dá  uma  boa  idéa  a  nossa  gravura,  abre-se  sob 
um  arco  de  grandes  dimensões,  semi-circulare  ri- 
camente ornado;  a  parede,  por  cima  dVslc  arco, 
parece  eslar  diviflida  em  ordens  de  nichos  com 
pequenos  arcos.  A  maior  parte  d'esles  nichos  es- 
tão mal  acabados,  e,  além  d'isso,  foram  cortados 
para  dar  lugar  á  grande  janella  de  oeste.  Esta 
janella  c  mais  nova  rjue  as  partes  que  temos  des- 
cri[)to  :  tem  uma  apparencia  que  não  está  em  har- 
monia com  o  resto  As  numerosas  reparações  fei- 
tas na  cathedral  de  Rochester,  eram  indispensá- 
veis para  a  segurança  do  ediíicio,  cujos  pilares  da 
parle  do  sul  se  desviavam  já  um  pouco  da  perpen- 
dicular. 

Entrando-se  na  cathedral  pela  porta  de  oeste, 
descem-se  alguns  degràos  até  a  nave  que,  na  maior 
parte,  tem  conservado  o  seu  caracter  primitivo. 
As  cinco  primeiras  columnas  de  cada  lado  pciten- 
cem  ao  eslylo  normando.  Todas  as  columnas  do 
mesmo  lado  são  diderentes,  mas  cada  uma  corres- 
ponde exaclamentcá  que  lhe  esláopposta.  Porcima 


d'esles  arcos,  existe  outra  ordem  da  mesma  di- 
mensão, entre  as  quaes  se  vêem  arcos  mais  pe- 
quenos com  suas  columnas  curtas  e  maciças .  Acha-sc 
ahi  uma  galeria  que  communica  com  a  escada  cir- 
cular nos  ângulos  da  frontaria  de  oeste.  Os  arcos 
do  oriente  da  nave  são  de  uma  architectura  mais 
moderna,  as  columnas  mais  leves  e  lavradas  com 
mais  perfeição;  o  tecto,  de  madeira,  está  sustentado 
por  anjos  armados  de  escudos. 

Dez  degráos  conduzem  ao  coro,  por  debaixo  de 
ura  arco,  sobre  o  qual  está  col locado  o  órgão.  O 
coro  foi  renovado  em  1743,  quando  se  lhe  accres- 
centou  o  Ihrono  do  bispo  e  os  brincos  do  capitulo. 
Por  cima  das  naves  orientaes  ha  quartos  para  os 
quaes  se  sobe  por  uma  escada  construída  na  pa- 
rede. É  n'estes  quartos  que  se  guardam  de  noite 
as  vestes  sacerdotaes,  jóias,  vasos  sagrados  e  ou- 
tros Ihesouros  pertencentes  aos  aliares  de  S.  Gui- 
lherme, S.  Paulino  e  outros  santos  que  se  vêem 
no  coro.  A  igreja  subterrânea,  que  se  estende  sob 
uma  grande  parte  do  ediíicio,  e  que  se  julgava 
ler  sido  construída  pelos  normandos,  não  é,  pro- 
vavelmente, mais  antiga  que  a  frontaria  de  oeste  ou 
a  torre  de  Gandulpho. 

Encontram-se  n'esla  cathedral  muitos  monumen- 
tos antigos  e  curiosos,  entre  os  quaes  é  para  no- 
tar um  simples  tumulo  de  pedra,  que  contém,  di- 
zem, os  restos  do  bispo  Gandulpho.  Ao  pé  d'este, 
vê-se  outro  sobre  o  qual  está  esculpida,  em  már- 
more, a  figura  de  um  bispo  de  Petworth.  lia  ain- 
da muitos  outros  monumentos  dignos  de  excitar  a 
curiosidade,  entre  os  quaes  se  distingue  o  de  Waller 
de  Merton,  fundador  do  collegio  de  Merlon,  em 
Oxford.  Este  monumento  é  construído,  em  parte,  de 
alabastro,  mas  é  de  uma  data  moderna,  relativamen- 
te à  época  em  que  Waller  Merton  viveu.  A  nave 
oriental  da  capella  de  S.Guilherme,  contém  o  tumu- 
lo do  bispo  Warner,  fundador  do  collegio  de  Rrom- 
ley.  Um  rico  monumento  colorido,  e  a  figura  de  um 
dos  primeiros  bispos  de  Rochester,  foram  desco- 
bertos durante  as  reparações  feitas  na  cathedral. 
Na  parte  do  sul  vêem-se  lambera  o  tumulo  e  o  buslo 
de  Ricardo  Watts  Esquirc,  que  foi  labellião  de 
Rochester  e  membro  do  parlamento  no  reinado  de 
Isabel.  Fundou  um  hospício  cm  Rochester  e  mor- 
reu em  1579.  Eis  os  termos  e  estranhas  condições 
escriptas  na  frontaria  da  casa,  que  está  situada 
no  centro  da  cidade  : 

(í  Ricaido  Watts  Esr/uirc,  por  seu  testamento 
dalado  de  22  de  agosto  de  l.')79,  fundou  esle  hos- 
pício para  seis  pobres  viajantes,  com  a  condição 
que  não  sejam  ladrões  nem  procuradores ;  recebe- 
rão por  uma  noite  pousada,  comida  e  oito  soldos 
cade  um,  ele.» 

Explica-se  d'estc  modo  a  causa  da  anlipathia  de 
M.  Watts  pnra  com  os  procuradores.  Tendo  esco- 
lhido, durant(í  uma  perigosa  doença,  um  procura- 
dor para  lhe  tratar  do  seu  testamento,  notou, 
quando  se  achou  reslabelecido,  que  o  homem  da 
lei  lambem  se  linha  feito  seu  herdeiro. 


O  vinho  abre  o  gabinete  do  coração  c  lira  d'el- 


le  lodos  os  segredos. 


o  PANORAMA 


255 


A  FORTUNA 

Encontra-se  o  primeiro  pensamento  da  admi- 
rável fabula  o  Carvalho  c  o  caniço  n'estes  poucos 
versos  de  Lucilio,  poeta  grego  que  viveu  no 
tempo  dos  Antoninos: 

«O  que  não  pude  a  fortuna,  a  despeito  da 
nossa  esperança  e  dos  nossos  votos!  Eleva  os 
pequenos,  abate  os  grandes.  O  leu  orgulho,  o 
teu  fausto,  ella  os  abaterá,  ainda  mesmo  que 
um  rio  te  prodigalisasse  as  suas  palhetas  de 
ouro.  O  vento  nunca  derriba  o  junco  c  o  mus- 
go, mas  deita  por  terra  os  carvalhos  colossaes  e 
os  altos  plátanos.» 


O  CONDE  ALLAMISTAKEO 

A  isto  seguio-se  uma  serie  importuna,  alroado- 
la,  de  questões  e  cálculos,  pelos  quaes,  a  final, 
se  poude  descobrir  que  a  antiguidade  da  múmia 
tinha  sido  pessimamente  calculada.  Havia  cinco 
mil  e  cincoenta  annos  e  alguns  mezes  que  fora 
depositada  nas  catacumbas  de  Eléthias. 

—  Mas,  a  mini  a  observação,  tornou  o  barão  de 
Souza,  não  dizia  respeito  á  idade  de  V.Ex."  (aqui 
o  conde  abrio  muito  os  olhos)  na  época  em  que 
íoi  sepultado,  —  todos  nós  não  podemos  deixar  de 
concordar  que  Y.  Ex.*  é  muito  novo  ;  —  eu  refe- 
ria-me  ao  grande  periodo,  durante  o  qual,  segun- 
do a  explicação  que  nos  deu,  esteve  de  conserva 
no  asphalto. 

—  Em  que?  !  disse  o  conde. 

—  No  asphalto,  repetio  o  barão. 

—  Ah  !  sim  ;  lenho  como  que  uma  idéa  vaga  do 
que  quer  dizer:  —  eífectivamenle  isso  podia  pro- 
duzir bom  resultado ;  mas  no  meu  tempo  só  se  fa- 
zia uso  do  bichlorureto  de  mercúrio. 

—  Mas  o  que  deveras  não  podemos  comprehen- 
der,  disse  o  doutor  Alexandre,  é  que,  tendo  V.  Ex.« 
morrido  e  sido  sepultado  no  Egypto,  ha  bons  cin- 
co mil  annos,  esteja  hoje  perfeitamente  vivo,  e 
com  um  aspecto  de  saúde  admirável. 

—  Se  n'essa  época  estivesse  morto,  como  diz, 
—  replicou  o  conde,  —  é  mais  do  que  provável 
que  n'esse  estado  ficaria  ;  porque,  noto  que  os  ho- 
mens ainda  estão  na  infância  dogalvanismo,  e  que 
não  podem  obter  por  este  agente  o  que  em  ou- 
lios  tempos  era  cnusa  vulgarissima.  Mas  o  facto  é 
que  eu  havia  caído  em  catalepsia,  e  os  meus  ami- 
gos julgaram-me  morto  ou  que  o  devia  estar;  foi 
por  isso  que  me  embalsamaram  immedialamente. 
Provavelmente,  conhecem  o  principio  capital  do 
embalsamento  ? 

—  Não  conhecemos,  não! 

—  Ah!  comprehendo ;  deplorável  condição  da 
ignorância  !  Não  posso  agora  entrar  nas  particu- 
laridades d'esle assumpto;  mas  é  indispensável  ex- 
plicar-lhes  que,  no  Egypto,  embalsamar,  fallando 
com  propriedade,  era  suspender  indefinitamente 
Iodas  as  funcções  animaes  submetlidas  ao  proces- 
so. Sirvo-me  do  lermo  animal  no  seu  mais  amplo 
sentido,  como  implicando  o  ser  moral  e  vital,  e 
bem  assim  a  existência  physica.  Repito,  o  princi- 
pio capital  do  embalsamenio,  entre  nós,  consistia 
cm  suspender  e  conservar  perpetuamente  n'esle 


estado  todas  as  funcções  animaes  submeltidas  ao 
processo.  Emfim,  para  ser  breve,  em  qualquer  es- 
tado que  se  achasse  o  individuo  na  época  do  em- 
balsamento, n'esse  estado  ficava.  Agora,  como  eu 
tenho  a  felicidade  de  ser  do  sangue  do  Scarabéo, 
fui  embalsamado  vivo,  tal  como  me  estão  vendo 
presentemente. 

—  O  sangue  do  Scarabéo!  exclamou  o  doutor 
Alexandre. 

—  Como  diz.  O  Scarabéo  era  o  emblema,  as 
armas  d'uma  familia  muito  distincla  e  pouco  nu- 
merosa. O  ser  do  sangue  do  Scarabéo,  é  simples- 
mente pertencer  á  familia  da  qual  o  Scarabéo  é  o 
emblema.  Fallo  figuradamente. 

—  Mas  o  que  tem  isso  de  commum  com  o  fa- 
cto da  existência  actual  de  V.  Ex.«? 

—  Antes  de  responder-lhe,  permilta-me  que 
lhe  faça  uma  pequena  questão.  Porque  motivo, 
em  vez  de  senhoria  teem  empregado  a  palavra 
excellencia  ?  Dar-se-ha  o  caso  de  se  quererem  di- 
vertir á  minha  custa?  Ridicularisarem-me? 

—  O'  sr.  conde!  longe  de  nós  semelhante  idéa? 
Temos  usado  da  palavra  excellencia,  porque  assim 
se  costuma  tratar  hoje  as  pessoas  distinclas. 

—  N'esse  caso  estou  em  grande  divida  para 
com  o  barão. 

—  Essa  é  boa,  senhor  conde,  respondeu  aquel- 
le  um  pouco  confuso. 

—  Pois,  tornando  ao  assumpto;  eíTectivamenle, 
era  costume  no  Egypto,  antes  de  embalsamar  um 
cadáver,  iirar-lhe  os  intestinos  e  os  miolos :  só 
a  raça  dos  Scarabéos  não  estava  sujeita  a  isso. 
Por  consequência,  se  eu  não  fosse  um  doestes, 
teria  soífrido  essa  operação ;  e  viver  sem  essas  vís- 
ceras não  é  lá  das  melhores  cousas. 

—  Comprehendo  agora,  disse  o  barão  de  Souza, 
e  visto  isso,  todas  as  múmias  que  vemos  inteiras 
são  da  raça  dos  Scarabéos. 

—  Sem  duvida. 

—  Eu  julgava,  disse  o  padre  Gilberto,  que  o 
Scarabéo  era  um  dos  deuses  dos  egypcios. 

—  Um  dos  que  dos  egypcios  ?  exclamou  a  mú- 
mia dando  um  grande  salto  e  ficando  de  pé. 

—  Um  dos  deuses,  repetio  o  viajante. 

—  Senhor  padre  Gilberto,  estou  deveras  admira- 
do de  ouvil-o  faltar  d'esse  modo,  disse  o  conde 
tornando  a  assentar-se.  Nenhuma  nação  do  mun- 
do reconheceu  ainda  mais  do  que  um  Deus.  O 
Scarabéo,  o  Ibis,  etc,  eram  para  nós  (o  que  ou- 
tras crealuras  teem  sido  para  outras  nações)  os 
symbolos,  os  medianeiros  pelos  quaes  offereciamos 
o  culto  ao  Creador,  muito  augusto  para  ser  dire- 
ctamente aproximado. 

Aqui  fez-se  uma  pausa.  O  doutor  Alexandre  to- 
mou então  a  palavra. 

—  Segue-se,  pelas  explicações  que  V.  Ex."  se 
tem  dignado  dar-nos,  que  nas  catacumbas  que  se 
acham  perlo  do  Nilo,  existem  outras  múmias  da 
raça  do  Scarabéo  em  idênticas  condições  de  vita- 
lidade? 

—  Isso  não  pôde  nem  deve  ser  objecto  de  ques- 
tão, replicou  o  conde  ;  todos  os  Scarabéos  que  por 
incidente  foram  embalsamados  vivos,  estão  vivos. 


256 


O  PANORAMA 


Alguns  mesmos  dos  que  foram  embalsamados  de 
propósito  podem  ler  sido  esquecidos  pelos  seus 
testamenleiros,  e,  por  consequência,  lá  existem 
ainda  nas  suas  sepulturas. 

—  V.  Ex.",  disse  eu,  lem  a  bondade  de  expli- 
car-me  o  que  entende  por  embalsamados  de  pro- 
pósito ? 

—  Com  todo  o  gosto,   rolorquio  a  raumia,  de- 
pois de  me  ter  examinado  bem  com  a  luneta ; 
porque  era  a  primeira  vez  que  eu  me  atrevia  a 
dingir-lhe  direclamenlc  uma  pergunta.  Com  lodo 
o  gosto,   disse  ella.  A  duração  ordinaiia  da  vida 
humana,  no  meu  tempo,  era  de  oilocenlos  annos, 
pouco  mais  ou  menos.   Poucos  liomeus  morriam, 
salvo  por  muito  extraordinários  accidentes,  antes 
da  idade  de  seiscentos;  lambem  mui  poucos  viviam 
mais  de  dez  séculos;  mas  oito  séculos  eram  con- 
siderados como  o  lermo  naíural.  Depois  da  desco- 
berta do  principio  do  embalsamcnlo,  tal  como  já 
lhes  expliquei,   occorreu  aos  nossos  philosophos 
que  se  poderia  satisfazer  uma  louvável  curiosida- 
de, e,  ao  mesmo  tempo,  servir  consideravelmente 
os  interesses  da  sciencia,  dividindo  a  duração  me- 
dia e  Nivendo  esla  vida  naíural  por  períodos.  Re- 
lativamente  á    sciencia  hisloiica,    a    experiência 
mostrara  que  se  devia  fazer  alguma  cousa  n'este 
sentido,  alguma  cousa  indispensável.  Um  historia- 
dor, por  exemplo,  tendo  attingido  a  idade  de  qui- 
nhentos annos,  escrevia  um  livro ;  depois  fazia-sc 
embalsamar  com  todo  o  cuidado,  deixando  ordem 
aos  seus  testamenteiros  pro  tempore  de  resusci- 
tal-o  decorrido  um  certo  lapso  de  tempo,  —  qui- 
nhentos ou  seiscentos  annos,  supponhamos.   Tor- 
nando à  vida  no  fim  d'essa  época,  encontrava  in- 
variavelmente a  sua  obra  convertida  em  uma  es- 
pécie de  caderno  de  notas  accumuladas  ao  acaso, 
isto  é,  em  uma  espécie  de  arena  lillcraria  aberta 
às  conjecturas  contradictorias,  aos  enigmas  e  ás 
contestações  pessoaes  de  lodos  os  bandos  de  com- 
menladores  exasperados.  Kstas  conjecturas,  estes 
enigmas  que  passavam  sob  o  nome  de  annolaçõcs 
ou  coirecçOes,   tinham   de,  tal  modo  embrulhado, 
lorluiado,   destruído  o  texto,  que  o  auclor  via  se 
obrigado  a  andar  n'esle  labyrinlho  com  uma  lan- 
terna na  mão  á  procura  do  seu  próprio  livro.  Mas 
uma  vez  achado,  o  pobre  li  vi  o  não  valia  os  traba- 
lhos que  o  pobre  auclor  linha  lido  para  o  tornar 
a  ver.  Depois  de  rcescrevel-o  de  principio  a  lim, 
restava  ainda  uma  imporlanlissima  tarefa,  um  de- 
ver imperioso:  era  emendar,  segundo  a  sua  scien- 
cia e  experiência  pessoaes,  as  tradições  do  dia  con- 
ceriKMile  á  época  cm  que  primitivamente  linha  vi- 
vido. Ora,  este  processo  de  recomposição  c  de  re- 
clilicação  pessoal,    seguido   de  temj)os  a  tempos 
por  diííerenles  sábios,  dava  o  resultado  de  a  nossa 
historia  não  degenerar  cm  uma  pura  fabula. 

—  Peço  perdão,  —  disse  o  doutor  Alexandre, 
pondo  a  mão  sobre  o  braço  do  egypcio,  —  peço 
perdão,  senhor  conde  ;  mas,  concedc-me  (juc  o 
interrompa  por  um  iiiomenlo? 

—  Por(|ue  não!  meu  caro  senhor,  replicou  o 
conde,  aíaslando-se  um  pouco. 

—  Desejava  simplesmente  fazer-lho  uma  per- 


gunta, tornou  o  doutor.  Y.  Ex."  fallou  de  correc- 
ções pessoaes  do  auclor  relativamente  ás  tradições 
que  diziam  respeito  á  sua  época.  Em  que  propor- 
ção, pois,  se  achava  a  verdade  misluraíla  com  essa 
Babel  de  men liras? 

— Achou-se,  gei  almenie,  que  essa  Babel  de  men- 
tiras,— para  servir-me  da  sua  excellenlediíinição, 

—  estava  exactamente  a  par  com  os  fados  referi- 
dos na  historia  não  refundida  ;  isto  é,  não  se  via 
em  circumstancia  alguma  um  simples  jota  de  um  ou 
de  oulro  que  não  fosse  absoluta  e  radicalmente  falso. 

— ^Mas,  visto  ser  tão  claro,  tornou  o  doutor, 
que,  depois  do  enterro  de  V.  Ex.",  lêem,  pelo 
menos  decorrido  cinco  mil  annos,  tenho  como  cer- 
to que  os  vossos  annaes  n'eGsa  época,  senão  as 
vossas  tradições,  eram  sunicientemcnte  explicitas 
sobre  um  ponto  de  interesse  universal,  a  Creação, 
que  teve  lugar,  como  deve  saber,  pouco  mais  de 
dez  séculos  antes. 

—  Senhor?!  disse  o  conde,  abrindo  os  olhos. 
O  doutor  repelio  a  mesma  observação;  mas  não 

foi  sem  muitas  ex|)licações  addicionaes  que  conse- 
guio  fazer-se  comprehender  do  estrangeiro.  Por 
lim,  disse  este,  não  sem  hesitação: 

—  As  idéas  que  apresenta,  confesso  que  são 
para  mim  inteiramente  novas.  No  meu  tempo, 
nunca  encontrei  pessoa  alguma  a  quem  tivesse  oc- 
corrido  uma  idéa  tão  singular,  que  o  universo  (ou 
este  mundo,  como  lhe  aprouver)  podia  ter  lido  um 
principio.  Piecordo-me,  comludo,  que  uma  vez, 
e  lambem  única,  um  homem  de  grande  sciencia 
fallou-me  de  uma  tradição  vaga  relativamente  á 
origem  da  raça  humana  ;  e  este  homem  servia-se 
igualmente  da  palavra  Adão  ou  terra  vermelha. 
Mas  ompregava-a  n'um  sentido  genérico,  como  re- 
ferindo-se  á  germinação  espontânea  pela  argilla, 

—  tal  como  uma  iniinidade  de  animalculas,  —  á 
germinação  espontânea,  de  cinco  vastas  hordas  de 
homens,  brotando  simullaneamcnte  em  cinco  par- 
tes dislinclas  do  globo  quasi  iguaes  enlre  si. 

Aqui,  todos  os  da  sociedade  encolheram  oshom- 
bros,  e  um  ou  dois  esfregaram  o  rosto  com  um 
modo  muito  signilicalivo.  O  barão  de  Souza  lan- 
çando um  rápido  olhar  pela  região  occipital  de 
Àllamislakeo,  fallou  n'estes  termos: 

—  A  longevidade  humana  no  tempo  de  Y.  Ex.% 
unida  a  essa  pralica  fre(|uenle  que  nos  tem  expli- 
cado, consistindo  em  viver  por  períodos,  deveria, 
na  verdade,  contribuir  podeiosnmenie  para  o  des- 
envolvimento geial  e  accumulação  de  conhecimen- 
tos. Presumo,  pois,  que  se  deve  alliíbuir  a  infe- 
rioridade notada  dos  antigos  egypcios  em  todas  as 
partes  da  sciencia,  quando  se  com|)a!am  com  os 
modernos,  unicamente  à  espessura  mais  conside- 
rável do  craiieo. 

—  Declaro  novamente,  replicou  o  conde  com 
toda  a  urbanidade,  que  não  posso  com[)rehender; 
díga-me,  de  que  parles  da  sciencia  quer  fallar? 

A  esla  pergunta,  toda  a  comjianhia,  unanime- 
mente, citou  as  aHirmações  da  jilirenologia  e  as 
maravilhas  do  magnclismo  animal. 

(Continua.  I 


Typ.  Frnnco-PoTlnguuzo.  Rua  do  Thcsonro  Volho,  O 


o  PANORAMA 


257 


^'<j.í  k 


o    Quadrilátero. 


Foi  breve  a  lucla  nos  históricos  campos  da  Ila- 
lia.  Assignalou-a  um  fíraiule  rcvcz,  a  balalha  de 
Cuslozza ;  as  inauditas  victorias  dos  prussianos  na 
Bohemia,  obrigando  osaustriacos  aaccudirem  pela 
defeza  da  sua  capital,  obstaram  a  que  os  exérci- 
tos da  Itália  podessem  tomar  desforra  da  batalha 
que  perderam,  vietimas  dos  inexplicáveis  ])lanos 
dos  seus  generaes.  Hoje  pôde  dizei -se  que  a  Itá- 
lia deve  Veneza  e  o  famoso  quadi-ilatero  ao  esfor- 
ço dos  prussianos ;  não  permittio  a  sorte  que  os 
liihos  da  península  realisassem  o  moto  IlaUa  fará 
da  se.  Os  Venezianos  (|ue  agradeçam  a  liberdade 
próxima  antes  ao  general  Multlio  e  ás  espingardas 
de  agulha  do  que  ao  esforço  dos  seus  irmãos  d'além 
Pó.  Não  que  faltassem  aos  italianos  enthusiasmo 
ai<lenle,  brios  guerreiros  e  generosas  aspirações 
(lo  consolidar  o  novo  leino  com  o  esj)lendoi'  das 
victorias ;  tinham  biaços  i)ara  ferir,  coi'ações  in- 
trépidos para  exjxM-  ás  balas  inimigas,  mas  care- 
ceram de  cabeça  |)ara  dirigir.  Por  mar  e  por  ter- 
ra tiveram  soldados  valentes,  por  mar  c  por  terra 
llie  faltaram  gcneraes  hábeis;  o  esforço  dos  sol- 
dados inulilisou-o  a  impeiicia  dos  chefes.  Fntre- 
lanlo,  a|)iouve  á  fortuna  dar-lhes,  apesar  dos  re- 
vezes, o  que  não  souberam  conquistar;  mas  mui- 


tos outros  resultados  conseguiria  a  Itália  se  a  vi- 
ctoria  coroasse  os  seus  esforços.  Não  serão  as  ac- 
quisições  lerritoriaes  tão  extensas,  e  (luando  o 
fossem,  quando  a  Itália  ficasse  verdadeiíamenle 
livre  dos  Alpes  ao  Adriático,  não  ganhará  no  aug- 
mento  de  território  devido  a  alheios  feitos  a  foiça 
moral  e  a  conliança  no  próprio  valor  que  só  a  vi- 
ctoria  lhe  podia  dar. 

Foram-se  e  não  voltam  os  tempos  em  que  a 
duração  das  guerras  se  contava  por  annos  e  an- 
nos.  A  ligação  dos  interesses  económicos,  os  apu- 
ros dos  thesouros  e  o  próprio  aperfeiçoamento  dos 
meios  de  communicação  e  dos  engenhos  moilife- 
ros  tornam  impossíveis  guerras  diuiuinas.  Pou- 
cos dias  de  combale  abateram  as  soberbas  águias 
austríacas  aos  pés  da  Prússia,  c  excluindo  o  im- 
pério dos  llabsbourg  da  confederação  germânica, 
quasi  o  riscaram  do  rol  das  grandes  potencias  euio- 
peas.  Não  deixa  saudades,  cm  boa  verdade  seja 
dito.  l']sta  rapidez  com  que  as  maiores  guerras  se 
decidem,  se  é  motivo  para  folgar  a  humanidade, 
colloca  em  gravíssimos  embaraços  os  jornacs  (luo, 
como  osfrancezes  einghzes.  não  dispõem  de gi'an- 
dissimos  recursos.  Assim  foi  (jue,  apesar  da  sua 
boa  vontade,  a  empreza  do  Panorama  só  agora 


^58 


O  PANORAMA 


coiisegiiio  oblcr  uma  gravura  rcprosenlando  o  fa-| 
moso  quadrilátero,  base  da  defeza  da  antiga  fron- 
ieiía  militar  austro-ilaliana.  E  a  estreiteza  do  tem- 
po obstou  íanibem  a  que  a  pequena  gravura  que 
hoje  apresentamos,  possa  satisfazer  a  todas  as  con- 
dições que  seriam  |)ara  desejar.  Entretanto,  a  suc- 
cinla  desciipção  (|ue  vamos  dar,  supprirá  facil- 
mente as  imperfeições  do  desenho. 

A  poderosa  fronteira  militar  de  que  as  victorias 
dos  i)russianos  privaram  os  austríacos  na  Itália, 
e  formada  essencialmente  por  algumas  ramilica- 
ções  dos  Alpes,  qne  vão  moi'rer  nas  planicies  da 
Lombardia  c  pela  linha  do  Mincio,  continuada 
desde  Governolo  até  o  mar  pelo  curso  do  l*ó. 

Nasce  o  Mincio  no  lago  de  Garda,  e  correndo 
de  noroeste  para  sudoeste,  atravessa  as  lagoas  de 
Maniua  e  vae  ilesaguar  no  Pó,  em  (íovernolo, 
tendo  pCi-corrido  uns  CG  kilomcti-os  (13  léguas). 
No  ponto  onde  o  Mincio  sac  do  lago  de  (Jarda  está 
a  pi  aça  de  Peschiera,  uma  das  quatro  do  quadri- 
la  tero.  O  Mincio  não  é  navegável  entre  Peschiera 
o  Manlua,  e  nas  piimeiras  sete  legoas  a  contar  de 
Peschiera  não  apresenta  diíTiculdades  a  um  exerci- 
to que  pretenda  transpol-o.  Tem  pe(|uena  largura, 
profundidade  insigniíicante,  vaus  no  verão,  c  do 
iado  italiano  collinas  que  dominam  a  margem  op- 
posta  desde  Peschiera  até  Yallegio.  De  Vallegio 
para  baixo,  o  leito  do  rio  alarga  c  entra  nas  fa- 
mosas lagoas  de  Mantua. 

Acima  de  Peschiera  a  fronteira  ó  formada  pelo 
lago  de  Garda  e  por  montanhas  que  um  exercito 
so  pôde  atravessar  por  três  estradas,  que  correm 
cm  desíiladeiros  estreilissimos,  diíTiceis  e  bem  de- 
fendidos. 

Acoutar  de  Governolo,  onde  oMiiicio  desembo- 
ca no  Pó,  é  este  rio  que  defende  a  fronteira.  O 
Pó  c  largo,  profundo,  sem  pontes  lixas  e  dividido 
em  braços  que  cortam  terrenos  pantanosos,  alaga- 
diços e,  em  parte,  inferiores  ao  nivel  do  rio.  O  exer- 
cito que  passasse  o  rio,  da  lialia  ])ara  o  lado  aus- 
tríaco, ia  desembocar  n'"uma  estreita  tira  de  lei-ra, 
cortada  de  pântanos,  canaes  e  diques,  entalada 
entre  o  Pó  c  o  Addige,  c  bem  defendida  pelos 
austríacos  nos  pontos  mais  accessiveis. 

Por  detraz  do  lago  de  Garda,  do  Mincio  c  do 
Pó,  quasi  paralellemenlc  aos  dous  rios,  corre  o  Adi-- 
ge,  que  desemboca  cm  Verona,  das  montanhas  do 
Tyrol,  e  vac  desaguar  no  Adriático.  É  este  rio  de 
corrente  impetuosa,  largo,  profundo  c  sem  vaus. 
O  Adige  deve  ser  a  verdadeira  fronteira  militar 
dos  italianos  para  o  lado  da  Allemanha.  l)isse-o  o 
maior  capitão  do  nosso  século  e  demonstra-o  a  con- 
liguração  do  leri'eno.  A  linha  do  Adige,  ás  condi- 
ções apontadas,  reúne  as  circumstancias  vantnjo.sas 
para  a  defeza,  (1(5  ser  pouco  extensa  e  de  não  ha- 
ver meio  de  torncal-a,  ponjue,  de  um  lado,  a  de- 
fendem as  montanhas  do  Tyrol,  e  do  ouiro,  des- 
emboca no  Adiiatico.  A  distancia  do  Adige  ao 
Mincio  e  ao  I'ó  c  pe(|uena,  não  excede  oito  léguas 
nos  pontos  em  que  mais  se  afastam.  Entre  os 
pontos  mais  pioximos  não  passa  de  três  léguas. 

Assim  se  vè,  que  o  ponto  mais  vulni'ravel  da 
fronteira  era  a  pequena  extensão  (sete  léguas)  do 


curso  do  Mincio  comprehendida  entre  Peschiera 
e  Vallegio,  mas  o  exercito  italiano  que  [)assasse  o 
rio  entre  estes  limites  (e  assim  o  fez  antes  deCusloz- 
za)  linha  nos  tlancos  as  duas  praças  de  Peschie- 
ra, à  esqueida,  a  de  Manlua  á  direita,  e  na  fren- 
te o  Adige  e  Verona,  terceira  e  mais  forte  praça 
do  quadrilalei'o.  A  quarta  e  menos  importante 
é  Legnago  e  não  Legnano,  como  vulgarmente  lhe 
chamam,  abaixo  de  Verona  sobre  o  Adige. 

Ao  sul  do  lago  de  Garda,  no  centro  de  um  am- 
philheatro  semi-circular  de  collinas,  nas  margens 
(logoli)ho  foi'mado  por  um  prolongamento  do  lago 
de  Garda,  entre  a  margem  oriental  do  lago  e  a 
península  de  Sermione,  está  a  cidade  c  praça  de 
Peschiera,  em  cujo  recinto  o  Mincio  sae  do  lago. 
Fica  a  cidade  quasi  directamente  ao  noroeste  de 
Mantua.  E  pequena,  e  ainda  em  18í8  não  tinham 
grande  força  defensiva  as  suas  forliíicações ;  o 
infeliz  Carlos  Alberto  tomou -a  sem  gi-ande  diíll- 
culdade.  Depois  os  austríacos  augnientar^m  lhe  as 
forliíicações. 

Pelo  íado  do  lago  de  Garda,  que  os  austríacos 
dominam  com  a  sua  esquadrilha,  não  era  Pes- 
chiera alacavel.  Apesar  d'isso  é  defendida  |)or 
uma  linha  continua  de  muralhas  c  por  um  grande 
baluarte  que  domina  o  lago.  A  arlilheria  das  mu- 
ralhas e  do  baluarte  destruiria  qualquer  llotilha 
não  couraçada  que  pretendesse  atacar  a  praça. 
Na  margem  es(|uerda  (auslriaca)  do  Mincio  cons- 
truíram um  grande  acampamento  entrincheirado 
que  pôde  conter  lli  mil  homens  e  está  abrigado 
pelas  forliíicações  do  Mandella. 

Este  acampamento  domina  a  cidade  propria- 
mente dita  que  está  assente  na  mai'gem  italiana, 
e  é  defendida  pela  antiga  cerca  que  forma  um 
pentágono  abaluarlado.  Em  torno  do  corpo  da 
praçaha  14  fortes  isolados  cujo  fogo  domina  lo- 
dosos  arredores.  A  cidade  liga-se  com  o  acam- 
pamento por  meio  de  uma  ponte  estreita  c  bem 
forlilicada.  A  artilhoiia  d(!  Iodas  estas  forliíicações 
era  composta,  na  data  das  ultimas  noticias  de  00 
peças  de  Lahille,  120  do  syslema  prussiano,  30 
peças  de  silio,  70  obuzes  c  iO  morteiros.  Total 
:]2Í>  boccas  de  fogo  de  grande  calibre, 

A  importância  de  Peschiera  não  depende  só  da 
sua  força  defensiva  como  |)raça  de  guei'i'a,  mas 
lambem  do  que  conlribue  para  a  defesa  de  iManlua. 
Peschieia  ô  a  válvula  do  Mincio.  Ouando  se  abi em 
as  comportas  que  existem  no  interior  da  praça, 
as  aguas  do  lago  de  Garda  coi-rem  impetuosas  c 
vão  inundar  os  arredores  de  Manlua.  In-chando-se 
as  comi)orlas  licn  o  Mincio  (juasi  em  secco  e  Man- 
tua emerge  do  seio  das  aguas. 

Ao  sudoeste  de  Peschiera,  na  margem  direita  e 
no  angulo  reentrante  de  um  lago  pantanoso  de  3 
léguas  (le  extensão,  está  a  cidade  de  Manlua  com 
uma  população  de  30  mil  almas.  O  lago  cerca-a 
ao  norte  e  ao  oriente. 

No  lado  do  norte  a  cidade  communíca  com  a 
cidadella  de  Porto  na  m?rgem  austríaca  i)ela  ponlc 
d(!  Molina.  Ao  oriente  passa-se  lambem  para  a 
margen»  austríaca  por  outra  ponte  que  vai  termi- 
nar no  forte  do  S.  Giorgio. 


o  PANORAMA 


259 


A  oeste  a  cerca  do  corpo  da  piaça  é  conslilui- 
da  por  uma  linha  abaliiarlada  precedida  pelo 
forte  Belliore.  Ao  sul  na  margem  italiana  as  obras 
de  defesa  consistem  exteriormente  nas  Irinclieiras 
de  um  acampamento  para  30  mil  homens ;  pela 
j)arte  interior  corre  uma  linha  abaluarlada  que 
vae  do  forte  Migiiaretto  até  ode  Portuelo ;  no  in- 
terior d'esta  liça  o  corpo  da  pi'aça.  Fora  do  acnm- 
l)amento  na  margem  meridional  está  o  forte  Pie- 
líde  para  defender  as  comporias  que  podem  des- 
pejar os  lagos  que  cercam  a  [)ra(;a.  O  armamento  de 
todas  estas  forlilicações  consta  de  70  peças  de  Luhil- 
te,  110  dosystema  prussiano,  10  de  sitio,  120  obu- 
zcs  e  00  morteiros.  Total  400  boccas  de  fogo. 

Ouando  se  abrem  as  comportas  dePeschiera  a 
agua  do  lagode  Garda  enche  o  lago  superior  de  Man- 
liia  e  por  mei  o  das  comportas  da  ponte  do  Molina  in- 
unda lodos  os  arredores  da  cidade.  Pelas  comportas 
(lo  forte  Pielole  ou  se  despeja  a  agua  para  a  parte 
inferior  do  curso  do  Mincio  ou  se  faz  passar  pelo  ca- 
!ial  chamado  Fosso-Pajolo  para  o  lago  inferior.  Em 
poucas  horas  pelo  jogo  d'estas  comportas  íicam 
completamente  cheios  de  agua  os  lagos,  os  fossos  e 
uma  grande  extensão  de  terreno  em  volta  do  acam- 
pamento entrincheirado.  Manlua  é  então  uma 
ilha  cercada  por  extensos  lagos  que  obstam  aos 
trabalhos  de  aproxes. 

Ha  em  Mantua  uma  tone  elevada  do  alto  da 
qual  se  fazem  signaes  para  Verona  ;  de  Verona  os 
avisos  são  tiansmittidos  para  Peschiera  e  á  vista 
d'elles  se  augmenta  mi  diminuo  a  inundação. 
Finalmente  a  natureza  pantanosa  do  terreno  tor- 
na mui  doentios  os  arredores  de  Manlua  e  a  ci- 
dade. 

Para  completar  a  defesa  do  Mincio  os  austría- 
cos lambem  construiiam  forlilicações  ao  longo  do 
rio  nas  pontos  mais  accessiveis. 

(Continua) 


COMO  SE  DETERMINA  A  DISTANCIA 
DAS  ESTRELLAS  A'  TERRA 

Ha  em  astronomia  factos  que  surprchcndcm 
por  sua  grandeza,  e  sobrepujam  de  modo  tal  a 
esphera  das  concepções  habituaes  do  homem,  que 
se  é  tentado  a  pul-os  cm  duvida,  apesar  da  af- 
firmação  dos  astrónomos,  e  a  collocal-os  na  filei- 
ra das  pretensões  enganadoras  cora  que  a  scien- 
cia  algumas  vezes  se  tem  apresentado  ao  vulgo. 
A  este  numero  pertencem  as  principacs  conquis- 
tas da  astronomia  stellar;  e,  principalmente,  as 
determinações  relativas  á  distancia  das  estreitas. 

Procuraremos  expor  o  mcttiodo  de  (pie  se  faz 
uso  papa  obter  estas  distancias,  c  de  afastar,  por 
esta  exposição,  a  idéa  desfavorável  que  um  gran- 
de numero  de  indivíduos  ainda  acceila  contra  os 
cálculos  perfeitamente  fundados  da  astronomia 
moderna. 

Uma  reflexão  d'alguns  momentos  bastará  para 
fazer  admittir  que  se  a  ferra  se  move  no  espaço, 
durante  o  seu  curso  annual  á  roda  do  sol,  deve 
d''ahi  resultar  para  nós  uma  mudança  apparente 
dos  outros  astros  no  céo.  Ninguém  ainda  metleu 
a  cabeça  pela  portinbola  de  um  vvagon  que  não 
julgasse  ver  as  arvores,  as  casas,  as  collinas^  os 
diversos  objectos  que  malisam  o  campo  moverem- 


sc  em  um  sentido  opposto  ao  andar  do  vchlculo; 
os  objectos  mais  próximos  são  os  que,  parece, 
soffrem  uma  deslocação  maior,  em  quanto  que  os 
mais  distantes  movem-se  lentamente,  até  o  ho- 
risonte,  que  se  mostra  quasi  immovel.  Resulta, 
pois,  do  movimento  da  terra  no  espaço,  que  as 
estrellas  situadas  em  uma  região  do  céo,  da  qual 
a  terra  se  afasta  em  uma  certa  época  do  anno, 
parece  que  se  unem,  emquanio  que  aqucllas  das 
quaes  a  terra  se  aj)pi'oxima  parece  que  se  afastam 
umas  das  outras.  Este  etfeito  será  necessariamen- 
te tanto  menos  sensível  quanto  maiores  forem  as 
distancias  das  estrellas. 

Se  se  podesse  medir  o  valor  do  desvio  de  uma 
eslrella,  occasionado  pelo  movimento  da  terra, 
achar-se  Ília  a  distancia  d'essa  estreita.  Eisaqui 
como  : 


Seja  esta  ellipse  a  curva  seguida  pela  terra  no 
seu  giro  annual  em  torno  do  sol:  seja  S  o  sol, 
T  S  T'  um  diâmetro  da  orbita  terrestre,  T  e  T^as 
posições  da  terra  nas  duas  extremidades  d'eslc 
diâmetro,  isto  é,  a  seis  mczes  deinlervallo  (visto 
que  a  terra  faz  o  seu  giro  completo  em  uin  an- 
no) ;  soja,  emfim,  E  a  estreita  cuja  distancia  se 
pretende  medir. 

Quando  a  terra  cs!á  situada  no  ponto  T,  mede- 
se  o  angulo  S  T  E,  formado  pelo  sol,  a  terra  e  a 
estrella;  quando  a  terra  estcá  em  T',  mede-se  o 
angulo  S  T'  E.  Sabe-se  que  em  todo  o  triangulo 
a  somma  dos  três  ângulos  c  igual  a  dois  ângu- 
los rectos,  isto  é,  a  ISO";  logo, 'fazendo-se  a  som- 
ma dos  dois  ângulos  observados  S  T  E  c  S  T'  E, 
e  diminuindo-se  esta  somma  de  180°,  ter-se-ha  o 
valor  do  angulo  E,  subtenso  á  eslrella  pelo  diâ- 
metro da  orbita  terrestre.  E  este  valor  será  tão 
exacto  como  se  nos  houvéssemos  podido  trans- 
portar á  estreita  para  medil-a  directamente.  A 
metade  d  este  angulo,  isto  é,  o  angulo  S  E  T,  é 
o  que  se  chama  paralaxe  annual  da  eslrella  E. 
Assim,  a  paralaxe  annual  d'uma  estrella,  é  o  an- 
gulo sob  o  qual  um  observador,  collocado  na 
estrella,  veria  de  frente  o  raio  da  orbita  terres- 
tre. 

Tom.ando  sempre  observações  correspondentes 
a  dois  pontos  diametralmente  oppostos  da  orbita 
da  terra,  obler-se-ha,  no  curso  do  anno.  um  gran- 
de numero  de  medidas  da  paralaxe  annual.  No 
nosso  exemplo,  e  na  nossa  figura,  a  estrella  está 
situada  no  polo  da  ecliptica  ;  a  operação  c  a  mes- 
ma, amda  que  um  pouco  menos  simples,  para  as 
outras  diversas  posições  do  céo.  Na  pratica  obtcm- 
se  de  um  inodo  exacto  o  valor  dos  ângulos S TE, 
S  T'  E,  comparando  as  posições  successivas  da 
estrella  observada  a  uma  eslrella  relativamenlc 
fixa,  que  não  tenha  paralaxe.  A  grande  maioria 
das  eslrellas  acba-se  n'estc  caso. 

As  averiguações  dos  astrónomos  teem  demons- 
trado que  não  existe  uma  só  estrella  cuja  para- 
laxe seja  igual  a  1".  Todas  lhe  são  inferiores.  Pa- 


560 


O  PANORAMA 


ra  se  fazer  uma  idóa  d'este  valor,  é  preciso  saber 
que  a  circumfcrencia  dos  círculos  astronómicos 
que  servem  para  as  observações  eslA  dividida  em 
3(iO  parles  chamadas  gráos.  cada  grão  em  60  mi- 
nutos e  cadí  minuto  em  tiO  segundos.  Este  valor 
de  um  segundo  é  tão  pequeno,  que  um 'fio  de 
aranha  posto  sobre  a  relicula  do  óculo  esconde 
inteiramente  a  porção  da  esphera  celeste  onde  se 
elTeilLiam  os  movimentos  apparentes  das  eslrel- 
las  iguaes,  o  máximo,  a  1". 

A  estreita  que  estas  espécies  de  observações 
lêem  confirmado  estar  mais  perlo,  é  a  oc  da 
conslcllação  do  Centauro  ;  a  sua  paralaxe  é  igual 
a  91  centésimos  de  segundo  (0."91).  Da  estrella 
oc  do  Centauro  o  raio  da  orbita  terrestre  está, 
pois,  reduzido  a  O". 91.  Ora,  para  que  a  grande- 
za apparcnle  d'uma  linha  recta  vista  de  frente  se 
reduza  a  Õ".9l,  é  necessário  que  esta  linha  esle 
ja  a  uma  distancia  da. vista  igual  a  2^(ií00  vezes 
o  seu  comprimento,  ií  uma  cerleza  mathemali- 
ca.  Logo,  a  estrella  a  do  Centauro  esta  afastada 
2íG'iOO\ezes  o  raio  da  orbita  terrestre,  islo  é  átiOiOO 
vezes  38  milhões  de  léguas,  ou  8()U3200000()00. 

É  esta  s  estrella  mais  próxima.  A  luz,  que  per- 
corre 70000  léguas  por  segundo,  leva  três  annos 
e  oito  mezes  para  chegar  á  terra. 

A  estrella  que  se  segue  é  a  Cl  da  conslellação 
do  Cysne.  A  sua  paralaxe  é  igual  a  O". 3o.  O  mes- 
mo raciocínio  colloca-a  a  589300  vezes  o  raio  da 
orbita  terrestre,  ou  2^2:735: 400:000000  de  léguas. 
A  luz  gasta  nove  annos  e  cinco  mezes  para  atra- 
vessar esta  distancia. 

Sirius  está  situado  a  U2  trilliões  de  léguas  d'a- 
qui.  A  eslrella  polar,  a  73  trilliões  9i8  milhares 
de  milhões;  a  luz  leva  um  pouco  mais  de  trinta 
annos  para  chegar  a  nós,  correndo  sempre  70000 
léguas  por  segundo. 

Vè-se,  pois,  pelo  exposto,  que  estes  resultados, 
por  prodigiosos  que  pareçam  á  primeira  vista,  são 
devidos  a  methodos  matíiemalicos  de  uma  gran- 
de simplicidade.  Toda  a  ditlicnldade  d'eslas  es- 
pécies de  determinações  consiste  na  observação 
extremamente  minuciosa^  longa  e  penosa,  da. 
pcíiucna  mudança  da  eslrella  no  cêo. 


.I.VZIÍÍO  i).V  KAI.MI.V  I).  LUIZ.V  DE  GUS.MÃO 

.\<>  convento  dm*  yvU;^iosas  iii-illn»,  porto  do  Iteiato 

«A  rainlia  D.Luiza,  desgostosa  de  seu  filho 
ei-rei  D.  Aílonso  VI,  depois  de  llio  entregar 
as  rédeas  do  governo,  (]no  mantivera  cum 
milita  prudência  e  íirniesa  durante  a  sua 
menor  idade,  cem  circnmstan' ias  graves  e 
ililliceis,  reeollien-stí  a  este  convento,  estan- 
do íiinda  por  acaljar,  e  n'elle  falleceu  pouco 
iernpo/lei)f)is.  O  seu  mausoléo  erguc-se  no 
íôro.  lí  de  mármore  primorosamente  lavra- 
do.• 

Sr.  Víllimn  Ttarlom,  n  prig.  2'/.")  do 
'."  vol.  í/o.Viicnivo  I'rnoiiKS< o. 

l,'m  mausíiiéo  de  marnioic  |)rimorosamenle  la- 
Mado  |i;u.a  1).  Liiiza  di;  (iiisinãol  Um  mausoléo 
para  a'|ii''lla  laiiiiia,  á  (piai  INiiliigal  deve,  em 
parle,  a  sua  independência I  Pois  c  assim  (iiic  IN)!- 
\\\ii\\\  costuma  iccoiiqjcnsar  os  bcnenieiilos  da  pa- 
Irial... 

.Mas  oxalá  que  assim  fora  !  Oxalá  (|ue  as  cinzas 
de  I).  Luiza  de  íjusmão,  d'essa  mulher  heróica,  a 
(|uem  l'('ilu;'al  deve  reievanlissimos  serviços,  não 
estivessem  ameaçadas  de  se  perderem,   como  se 


perderam  as  de  AlTonso  de  Albuquerque,  Luiz  de 
Camões,  Duarte  Pacheco  Pereira,  João  Pinlo  Ri- 
beiro, e  de  lanlos  outros  varões  illuslres. 

Quereis  enlão  saber  qual  é  o  mausoléo  primo- 
rosamente lavrado,  onde  descançam  os  reslos  mor- 
laes  de  D.  Luiza  de  Gusmão? 

Ide  ao  convento  das  reli«;iosas  Grillas,  fundação 
d'esla  rainha  (l);  não  demandeis  o  coro,  mas  di- 
rigi-vos  á  capella  móiv  Entrai  no  vão  que  ha  en- 
tre o  aliar  mór,  e  a  parede  sobre  a  qual  se  acha 
o  Ihrono.  N'esle  vão  voltai  as  costas  para  o  coro. 
Ficam-vos  em  frente  umas  corrediças  de  madeira, 
que  tapam  uma  abertura  feita  na  parede.  Abri 
essas  corrediças.  Enconti-ais  logo  uma  coroa  de 
latão,  já  com  a  côr  algum  lanlo  desbotada.  Sc 
levardes  creanças,  talvez  ellas  hiinquem  coit»  essa 
coroa,  ou  com  ella  se  coroem,  como  eu  o  fazia, 
(juando  era  da  mesma  idade.  Ao  pegar  n"ella,  ve- 
j-eis  um  athaúde,  envolvido  n'um  pano  prelo. 
Podeis  lambem  lirar  o  pano,  e  ver  á  vontade  esse 
athaúde.  Pôde  ser  que  a  madeira  esleja  podre... 
Sabeis  o  que  se  conta  lerem  os  francezes  feno  ao 
corpo  de  1).  Ignez  de  Casli-o,  e  os  porluguezes  a 
lanlos  outros? 

Eis,  pois.  descriplo  fielmente  o  mausoléo  de 
mármore  primorosamente  iavi-ado,  onde  estão  os  os- 
sos de  D.Luiza  de  Gusmão,  da  mulher  de  D.  João  IV, 
(la  lillia  (lo  du(|ue  de  Medina  í-ddonia,  da  mulher 
(]ue  nascida  hespanhola,  conlrihuio  paia  a  inde- 
pendência de  Portugal,  da  mulher  (|ue  fez  com 
(pie  seu  marido  aceitasse  a  coiòa  porlugueza  (2). 
D'uma  mulher  consultada  por  seu  marido,  porque 
elle  reconhecia  no  seu  discurso  soberana  inlelli- 
gencia,  e  era  o  sou  peito  o  centro  do  segredo  (3). 
L)'essa,  que  dirigindo  o  leme  do  governo  do  esta- 
do no  lempo  das  maiores  tormentas  (i)  guiou  o 
frágil  balei  por  mares  encapellados  e  por  entre 
lemiveis  parceis  a  porlo  de  salvamento.  D'essa, 
que  com  sua  valorosa  constância,  actividade,  c 
grande  intelligencia  fez  mudar  a  face  dos  negócios 
dos  hespanhoes,  que  tão  indecentes  demonstrações 
deram  de  alegria  j)elo  fallecimenlo  de  D.  João  IV. 

M\ISOKL    1?ERNAIU)ES  BltANCO. 


INFLUENCLV  DOS  ETRUSCOS 

...  Os  Etruscos,  seja  qual  for  a  sua  origem,  fo- 
ram um  dos  povos  mais  precoces  e  mais  origi- 
naes  que  existiram.  Em  vez  de  aspirarem  ás 
conquistas,  senliam-se  feitos  para  os  cslabele- 
cimentos  trauípiillos,  instituições  civis,  com- 
mercio,  arles,  navegação,  A  qual  muil.q  favo- 
recia a  disposição  das  i)raias  da  Etruria.  Em 
quasi  toda  a  Itália,  até  a  Campania,  fundaram 
cidades  coloniaes,  propagaram  as  arles,  esten- 
deram o  commercio,  c  é  a  clles  que  um  gran- 
de numero  de  cidades,  as  mais  celebres  d"aquel- 
la  região,  devem  a  sua  oi'igem. 

flcrdcr 


(I)  Darliosa,  Cnifilíjf/n  ilas  íidhilids,  png.  i'J8. 
(J)  Porluf/iil  lifsiíutrddo,  vo;.  I.",  \y.\g.  02,  ed.  1710. 
(:!)  Id.  pag.  2.'.!i. 

i'ij  Ilinitjiid  dl-  l>i,iliir/íil  por  uma  sociedaiji'  do  liHvral'  s  iiiglczcs, 
vol.  3.",  pag.  lii,  eil.  178S. 


o  PANORAMA 


26 


Quinta  e  palácio  de  Knowle. 


A  quinta  e  palácio  de  KnoAvle,  situados  no  cen- 
tro de  uma  extensa  tapada  pouco  distante  da  ci- 
dade de  Svenoaks,  no  condado  delvent,  são,  como 
muitas  outras  herdades  que  se  encontram  por  todo 
o  teriilorio  inglez,  dignos,  realmente,  da  atlenção 
do  estiangeiro  A  sua  origem  é  perfeitamente  des- 
conhecida; ignora-se  mesmo  a  época  em  que  foi 
edilieada  a  parte  mais  moderna  da  casa,  Sabe-se, 
porem,  que  no  tempo  do  rei  João,  achava-se  Bai- 
íU\\n  lie  lietlun  de  posse  d'esta  propriedade  e  que 
por  successão  passou  ás  mãos  dos  condes  de  Pem- 
broke  e  de  Norfolk.  Uma  paile  considerável  da  casa 
foi  reduzida  a  cinzas  no  anno  de  lOlli,  e  durante 
a  rej)ublica,  lendo  sido  sequestrada  a  pro|)riedade 
por  ordem  de  Crom>vell,  ali  se  leunio  o  conselho 
na  grande  sala  que  hoje  serve  de  casa  de  jantar. 

Esta  magnitica  pro[)riedade  tem  de  circumferen- 
cia  perto  de  cinco  milhas;  o  seu  solo  é  riquíssi- 
mo; e  na  immensa  tapada,  (]ue  a  rodeia,  encon- 
tra-se  giande  quantidade  de  veados  que  são  mui 
nomeados  pelo  excellente  sabor  da  sua  carne. 

O  cdiíicio  termina  em  duas  toriTS  um  pouco  ele- 
vadas, com  três  andares,  tendo  ao  cenlio  o  grande 
pórtico  da  entrada.  Nos  ângulos  vêem-se  diversas 


estatuas  bem  cinzeladas,  entre  as  quaes  se  distin- 
guem as  do  Gladiador  e  de  Yenus.  A  sala  principal 
tem  setenta  e  cinco  pés  de  comprimento,  vinte  e 
sete  de  largura,  vinte  e  sete  de  altura,  e  está  guar- 
necida de  obras  dos  mais  notáveis  artistas,  como 
Rubens,  (Jiordano,  Suyders.  Ali  se  encontram,  uma 
estatua  lepresenlando  Diógenes,  o  grande  orador 
grego,  que  é  considerada  como  uma  das  melho- 
res obras  de  estatuária  da  antiguidade,  e,  entre 
outros  muitos  quadios  admiráveis,  o  do  triumpho 
de  Sileno,  que  é,  talvez,  a  melhor  produeção  de 
Tiubens.  Nas  outras  salas  também  existe  um  gran- 
de numero  de  pinturas,  entre  as  quaes  algumas 
de  g!'ande  merecimento;  e  em  uma  das  galenas 
ve-se  uma  coUecção  de  retiatos  de  personagens 
celebres  que  viveram  nos  últimos  Ires  séculos. 

Kmlim,  a  casa  de  Knowle,  interessante  não  só 
pelo  que  temos  dito  e  pela  sua  muita  antiguidade, 
como  tombem  pelos  signaes  que  ainda  apresenta 
da  sua  primitiva  gianíleza  e  pelas  recordações  de 
haver  servido  de  domicilio  a  pessoas  muito  illus- 
tres  de  Inglateri-a,  casa  que  viajante  algum  ainda 
se  mostrou  arrependido  de  ter  visitado,  porque 
para  qualquer  lado  que  o  homem  ali  se  volte  en- 


262 


O  PANORAMA 


contra  uma  nova  belleza  qiio  o  allráe ;  a  casa  de 
Knowle,  pois,  Icm  fornecido  aos  pincéis  de  mui- 
tos arlislas  copias  de  objectos  que  são  a  admira- 
rão e  o  recreio  de  todas  as  idades. 


O   HOMEM  QUE  NÃO  RI 

conto    nrnbe 

Do  banlio,  dirigiram-se  á  habitação,  qne  era, 
effectivamente,  situada  no  meio  da  espessa  ver- 
dura dos  jardins  do  burgo.  Entrando,  o  nosso 
mancebo  não  licou  menos  maravilhado  do  plano 
geral  da  halnlacão  que  da  symctria  das  suas 
mais  pequenas  cousas.  O  conjunclo  era  formado 
por  quatro  corpos  princi|)acs,  em  cujo  centro  se 
desenhavam  muitos  taboleiros  de  flores  separados 
nns  dos  outros  por  um  lago  onde  folga\a  uma 
multidão  de  cysnes.  Todos  os  quartos  tinham  ja- 
ncHas  de  grade,  por  onde  a  vista  podia  deliciar- 
se  ii'aquelle  encantador  recinto.  Não  .^c  via  senão 
flores;  não  se  ouvia  mais  do  que  o  suave  gor- 
geio  dos  pássaros.  Mas,  que  contraste  formava  es- 
ta risonlia  morada  com  os  personagens  que  n'el- 
la  viviam  !  E  quão  h  n^^e  eslava  o  pensamento  de 
Zerzuri  do  espectáculo  que  o  e.>perava  ! 

—  Vhide  por  aqui,  lhe  dússe  o  homem  de  vestido 
verde,  quero  aprcsentar-vos  aos  meus  amigos. 

Tomou  o  pela  mão  de  um  modg»  cordial  e  in- 
troduzio-o  em  uma  espaçosa  sala,  cujos  tapeies, 
que  escondiam  o  sobrado,  rivalisavam  em  sum- 
l)lu(isidade  com  o  esmalie  azul  do  teclo  eslrella- 
do  de  ouro  e  prata.  Em  inna  das  evlremidades, 
sobre  um  estrado  donnnado  por  um  largo  doceí 
de  pennas  de  abeslruz,  csta\am  assentados  nove 
icspeitaveis  anciãos  de  com[)ridas  barbas  brincas,. 
en\ oitos  em  caftans  de  seda.  Choravam,  soluça- 
vam e  lamentavam-se.  Era  uma  scena  ({ue  cor- 
tava o  coração.  Mas,  o  criado,  lembrando-se  da 
rccommendação  que  se  lhe  fizera,  poz  freio  na 
lingua.  e  esforçou-sc  em  procurar  uma  distracção 
em  lodos  os  objectos  que  o  deslumbravam. 

O  xeque  Ali,  (assim  se  chamava  o  desconheci- 
do) sem  parecer  notar  a  sua  commoção,  abrio 
um  cofresinho  de  madrepérola  com  fechadura 
de  prata,  e  disse  lhe  : 

—  Aqui  icns  (juarenta  peças  de  ouro  de  que 
poderás  dispor,  como  Ic  approuver,  para  as  nos- 
sas necessidades  c  luas  despezas.  Ficas  sendo  o 
nosso  intendcnie.  Fazc  Iranqiiiilamente  o  leu  ser- 
viço, ninguém  le  contrariará ;  os  nossos  costu- 
mes são  muilo  simples.  Mas,  nada  de  perguntas 
sobre  o  que  vires  e  ouvires. 

Zerzuri  inclinou-se  respeitosamente  e  respon- 
deu : 

—  Ouvir  é  obedecer. 

N>sse  mesmo  dia  entrou  no  c.\crcicio  das  suas 
funcçõcs :  limpou  as  casas,  preparou  o  jantar  e 
sérvio  os  .«^eus  chorosos  amos  com  lanta  habilida- 
de, quo  parecia,  ã  primeira  vista,  que  cm  toda  a 
sua  vida  não  tinha  feito  oulra  cousa. 

Em  quanto  andava  do  um  para  oulro  lado  no 
serviço,  os  gemidos  continuavam  de  mais  eu)  mais 
lamentosos  c  afiliclivos.  .lulgar-se-liia  assistir  a 
uma  d'cssas  ceremonias  fúnebres  cm  que  as  car- 
pideiras choram,  sem  um  momenio  de  descanço, 
uma  dòr  que  não  senlr-m,  mas  que  o  dinheiro 
lhes  faz  sentir.  Não  obsianie,  o  nosso  homem,  se 
guio  o  partido  f|uo  lhe  convinha;  acostumou  os 
ouvidos  a  esta  infernal  musica,  como  succcdc  a 


quem  habita  nas  proximidades  de  uma  cata- 
dupa. 

No  fim  de  um  anno,  um  dos  velhos  pagou  a 
sua  divida  ao  Senhorio  dos  mundos.  Os  seus 
companheiros  pegaram  n'elle  debaixo  de  todo  o 
silencio  e  depois  de  o  terem  lavado,  como  o  de- 
termina o  rilo  malekila,  cnterraram-no  sem  pom- 
pa em  um  bosquele  conliguo  á  habitação. 

Quando  a  morle  enira  em  uma  casa,  não  pá- 
ra. A  sua  destruidora  mão  ferio  um  segundo  velho, 
depois  um  terceiro,  quarto  .  .  .  ;  emtim  levou-os 
a  todos,  excepto  o  xeque  Ali,  que  ficou  só  com 
Zerzuri  no  meio  d'esta  vasta  morada,  onde  vive- 
ram mais  dez  annos  juntos  e  como  em  familia. 
Enlreíanlo  o  corvo  da  separação  crocitou  por  ci- 
ma das  suas  cabeças.  O  xcíiue,  quebrado  pela 
velhice  e  atlenuado  por  uma  dòr  sem  consolação, 
preparava  a  sua  alma  para  a  eternidade,  (piando 
o  íiel  servo  se  approximou  do  seu  leito  c  llic  dis- 
se com  um  accenlo  de  compaixão  e  afago: 

—  Senhor,  enganei  a  vossa  esperança?  Não  vos 
lenho  servido  e  tratado  com  todo  o  aífeclo?  Não 
tenho  respeitado  o  vosso  se;',!edo? 

—  Oh  I  sim,  meu  filho,  respondeu  o  doenle  ;  lo- 
dos morremos  contentes  do  ti^  e  é  para  provar- 
te  o  nosso  reconhecimento  qv.c  le  legamos  uma 
casa,  que  se  assemelha  a  um  palácio,  com  o  res- 
to dos  nossos  thesouros.  Estás  nujito  novo  ainda, 
tens  um  bello  futuro  diante  de  li.  Vive,  pois,  e 
diligenceia  esquecer  o  doloroso  espectáculo  de 
nossos  pe/.ares. 

A  estas  palavras,  a  curiosidade  de  Zerzuri,  tan- 
to tempo  refreada,  sollou-se. 

—  O'  meu  amigo,  o  melhor  dos  amos,  replicou 
elle,  tínheis  pois  desgostos?  Não  poderei  saber  a 
causa  d'elles?  Dignai-vos,  supplico-vos,  revelar- 
me  esse  segredo. 

—  Deus  te  preserve,  meu  filho,  da  desgraça  que 
experimentamos.  A  sepultura  rcclama-me;  pou- 
cos momentos  terei  de  vida  ;  é  preciso  que  te 
salve  por  um  nllimo  conselho  .  .  .  Aquella  porta, 
accrescenlou  elle,  estendendo  a  mão  que  o  frio 
da  morle  tornara  pesada,  foge  de  abril-a,  se  não 
queres  ser  condemnado  a  passar  o  resto  de  teus 
dias  entre  lagrimas  e  gemidos.  Se  tivesses  a  im- 
prudência de  desprezar  a  minha  rccommendação, 
expor-lc-hias  a  comprehender  toda  a  extensão 
dos  nossos  sotfrimenlos,  e  quando  quizesses  arrc- 
pendcr-le,  já  não  seria  tempo. 

Acabando  de  protiunciar  estas  palavras,  o  xe- 
que Ali,  deixou  cair  o  desmaiado  rosto  sobre  a 
almofada,  e  deu  o  ultimo  suspiro. 

Eis  Zerzuri  só.  Depois  de  ler  depositado  o  cor- 
po do  seu  único  amigo  ao  lado  dos  nove  anciãos, 
refieclio.  Pareceu-lhe  impossível  que  as  mesmas 
circumslancias  inspirassem  os  mesmos  sentimen- 
tos cm  indivíduos  de  natureza  diíferenle.  A  mo- 
cidade 6  presumpçosa.  Promctleu  a  si  próprio 
conservar-se  impassível,  o  formou  de  antemão 
um  coração  de  ferro.  Por  oulro  lado,  era  mais 
depressa  "o  desejo  de  romper  a  monotonia  da  sua 
existência,  que  o  levava  a  tentar  a  aventura,  do 
que  a  i)ropria  curiosidade. 

líni  dia,  dirigio-se  com  passo  lirme  c  resoluto 
para  aquella  poria  mysleriosa,  e  sacudio  [)rccipi- 
ladamenle  as  l(!Ías  d'aranha  (|ue  a  cobriam.  Eez 
sallar  (lualro  forles  fechaduras  de  aço,  abrio  a  de 
par  em  par  c  Iranspoz  a  soleira.  O  coração  ba- 
liallic  com  violência. 

—  Por  vida   minha,  murmurou  elle,  Deus  é  o 


o   PANORAMA 


263 


senhor  dos  destinos.  Quem  poderia  oppor-se  á 
sua  vontade  ? 

Um  corredor  escuro  c  tortuoso  esfendia-se 
diante  d'elle  ;  andou  por  espaço  de  Ires  lioras  á 
luz  de  um  arciíofe.  Finalmente,  cliegou  á  borda 
de  um  lago.  Mas,  ro  momento  em  que  procura- 
va altentar  na  linda  paisagem  que  se  desenrola- 
va diante  dos  olhos,  um  pássaro  gigantesco  agar- 
rou-o  e  voou  com  clle  ás  alturas.  O  movimento 
havia  sido  tão  rápido  e  Ião  violento  que  o  pobre 
Zerzuri  desfalleceu.  Quando  recobrou  os  sentidos, 
achou-se  só,  deitado  junto  de  um  bosque  onde  ve- 
getavam formosos  limoeiros.  A  brisa  da  manhã 
agitava-lhe  brandamente  os  vestidos,  e  uma  har- 
moniosa musica  et  chia  lhe  a  alma  de  unia  ale- 
gria desconhecida.  Levantou-se.  Em  quanto  olha- 
va para  a  esquerda  e  para  a  direita,  um  bando 
de  elegantes  cavalleiros  passou  diante  d"elle.  O 
guerreiro,  do  qual  este  bando  parecia  formar  o 
cortejo,  avançou  e  saudou  graciosamente  Zerzuri, 
pcdindo-lhe  *que  montasse  em  um  cavallo  ma- 
gnificamente ajaezado  que  um  criado  trazia  pela 
rédea.  O  nosso  avenluieiro  não  se  fez  rogar^  e 
saltou  ligeiro  sobro  a  sella  bordada  a  ouro. 

Pozeram  se  a  caminho  sem  que  ninguém  sequer 
pensasse  em  interrogar  o  recemchegado  sobre  a 
sua  origem^  nem  sobre  o  motivo  que  o  levava  áqucl- 
les  lugares.  Foi  o  objecto  de  mil  attenções.  Depois 
de  terem  percorrido  es  jardins,  aos  quaes  não 
poderá  de  certo  exceder  em  belleza  o  delicioso 
lugar  promettido  por  Mohamed  aos  verdadeiros 
crentes,  acharam-se  na  frente  de  um  magnifico 
palácio  edificado  com  infinita  arte  e  ornado  de 
eseulpturas  que  se  poderiam  attribuir  á  mão  dos 
génios. 

—  Que  grande  asneira  faria,  dizia  comsigo  Zer- 
zuri, passando  os  meus  bellos  annos  detraz  d'a- 
quella  portinha!  Evidentemente  o  xeque  Ali,  de 
saudosa  memoria,  perdeu  uma  parle  da  sua  for- 
ça intellectual  n'aquella  prisão  systematica  a  que 
se  condemnou  com  os  seus  companlieiros.  Se  eu 
podesse  somente,  com  o  auxilio  de  Dcos,  trazel-o 
á  vida  por  instanics,  mostrar-lhe-hia  todas  estas 
maravilhas  e  gozaria  da  sua  surpresa. 

Durante  este  monologo,  uma  multidão  de  pa- 
gens mui  jovens  e  desembaraçados  rodeou  o  es- 
trangeiro. Um  segurou  logo  na  rédea  do  cavallo 
e  outro  lançou  mão  do  estribo. 

Apenas  sé  apeou,  ó  chefe  do  cortejo,  que  era 
um  elegante  personagem  de  maneiras  mui  dis- 
tinctas  e  agradavcs,  introduzio-o  n'aquella  mo- 
rada real,  dirigindo-lhe  pelo  caminho  as  mais 
affecluosas expressões.  Vio  um  vasto  salão  formado 
em  hemyciclo  no  fundo  do  qual  se  elevava  um 
throno  rutilante  de  ouro  e  pedrarias.  O  seu  com- 
panheiro fez-lhe  signal  para  que  se  sentasse;  de- 
pois, tomando  lugar  ao  seu  lado,  exprimio-se 
assim  : 

—  Abençoamos,  caro  hospede,  o  acaso  que  vos 
.trouxe  entre  nós.  I^ste  paiz  é  uma  ilha  que  obe- 
dece ás  minhas  leis.  Eu  sou  rainha. 

Pronunciando  estas  palavras,  o  personagem  le- 
vantou a  viseira  que  lhe  occultava  o  rosto,  e 
Zerzuri,  na  altitude  do  êxtase,  ponde  contemplar 
uma  belleza  capaz  de  despertar  ciúmes  nas  bu- 
ris. 

—  Os  meus  ministros  e  os  meus  oíTiciaes,  con- 
tinuou a  rainha,  são  mulheres.  O  trabalho  cabe 
ao  outro  sexo.  A  i  'is  a  aucloridade,  aos  homens 
a  obediência.   Podereis,  porém,  ser  exceptuado 


dos  outros  se  me  desposardes.  Reino,  escravos, 
thesouros,  tudo  vos  pertencerá,  menos  a  cliave 
da  jíorta  do  parque.  Só  uma  palavra  tendes  a 
proierir. 

Zerzuri  linha  a  cabeça  transtornada  por  tanta 
felicidade.  Quiz  responder:  mas  os  beiços  tre- 
miam-lhe.  Esle  movimento  machinal  foi  tomado 
por  um  signal  de  assentimento;  porque  a  um 
aceno  da  rainha,  as  depositarias  da  lei  immedia- 
tamente  foram  conduzidas  aos  pés  do  throno.  Era 
uma  velha  investida  das  funcções  de  cadi ;  e 
seguida  de  outras  duas  matronas  de  cabellos 
brancos  e  annellados,  que  lhe  serviam  de  asses- 
sores. Emquanlo  redigia  gravemente  o  acto  de 
cazamento,  um  pagem,  mais  esbelto  que  uma 
gazella  do  Sahara,  poz  a  coroa  sobre  a  fronte  do 
real  esposo. 

Seis  mezes  depois  d'esta  inesperada  união,  a 
felicidade  não  havia  abafado  na  alma  de  Zerzuri 
a  sede  do  mysterioso,  essa  necessidade  do  desco- 
nhecido ao  qual  devia  a  estranha  serie  de  aven- 
turas. 

Pensava  na  porta,  cuja  chave  estava  em  poder 
da  rainha. 

Faltava-lhe  uma  cousa  no  meio  de  tantas  ven- 
turas, uma  só  I  mas  de  um  irresistível  attra- 
ctivo. 

Desejava  tornar  a  ver  a  casinha  da  cidade  de 
Melli,  errar  novamente  nos  lugares  que  tantas 
vezes  havia  percorrido,  saborear  a  commoção  do 
contraste  entre  as  recordações  do  passado  e  as 
maravilhas  da  sua  presente  condição. 

Em  vão  a  voz  do  bom  senso  o  aconselhava  a 
que  abandonasse  o  passado.  Não  era  bastante  o 
infinito  numero  de  bens  que  lhe  prodigalisara 
um  poder  mysterioso,  para  o  tornar  o  mais  feliz 
dos  raortacs?  O  desejo  resistia  a  todas  as  refle- 
xões, perseguia-o,  absorvia-o,  tirava-lhe,  até,  o 
som  no. 

Uma  noite,  pois,  aproveitando-se  do  somno  da 
rainha,  apoderou-se  da  chave  que  ella  tinha  sem- 
pre debaixo  do  seu  travesseiro,  e  deslizou  como 
uma  sombra  no  jardim.  iMas,  apenas  abrio  a  por- 
ta e  transpoz  o  liminar,  tornou-se  presa  de  uma 
ave  gigantesca,  cujas  azas  se  assemelhavam  a  um 
pavilhão  desfraldado.  Uma  voz  vinda  de  cima 
gritava-lhe  no  momento  : 

Adeus  prazer  !  Adeus  reino  !  Desgraçado  d'aquel- 
le  que  não  sabe  limitar  os  seus  desejos. 

O  monstro  levou  o  até  as  nuvens,  e  voou  com 
rapidez  tal,  que  Zerzuri  perdeu  a  respiração  e 
desmaiou  .  .  . 

Quando  tornou  a  si  e  abrio  os  olhos  achou-se 
quasi  nu,  perto  de  um  aduar,  cujos  habitantes  o 
haviam  despojado  sem  ceremonia  dos  seus  vesti- 
dos de  príncipe. 

Tal  era  o  castigo  que  Deus  lhe  infligia.  Mas 
ninguém  pôde  deter  o  destino  no  seu  andar.  O 
infeliz  Zerzuri  arrastou-se  até  Constantina,  men- 
digando o  pão  de  aldeia  em  aldeia,  escrevendo 
amuletos  para  os  crédulos  e  beijando  os  rozarios 
dos  raarabutos  de  nomeada.  A  tristeza  infinita  do 
pczar  apoderou-se  da  alma  do  mancebo  e  divor- 
ciou-o  com  o  riso. 

Foi  então  que  comprehendeu  a  dor  dos  seus 
inconsoláveis  amos. 


Quando  na  vida  se  alcança  uma  posição  feliz 
e  tranquilla,   é  mui   acertado  não   procurar   ir 


264 


O  PANOUAMA 


além.  Mais  tarde,  por  doiraz  da  porta  dos  dese- 
jos e  curiosidades  insaciáveis,  pôde  ser  que  o  in- 
dividuo se  veja  transportado  ao  centro  dos  encan- 
tos !  mas  se  tem  a  imprudência  de  transpor  a 
soleira,  a  razão  pcrlurl^ada  perde  o  seu  equilí- 
brio. Quem  é  bostanle  forte  para  conservar-se 
moderado  e  prudente  no  meio  dos  enlevos  de 
uma  fortuna  mui  lapida?  Debruça-se  o  bomem, 
é  tomado  de  vertigem,  cáe  no  abysmo.  Foi  o  que 
aconteceu  aos  nove  anciãos  em  uma  serie  de 
aventuras  diíTerentcs  das  que  contamos :  todos 
passaram  duas  vezes  a  porta^  e  Zerzuri  seguio- 
Ihes  o  exemplo. 


UMA  OBRA  DO  SÉCULO  IX 

Averigiiaçuo  dns  iiiilbns   de  unias  cídntios  a  oiifrn.^ 

X.  —  Desde  Gadis  até  Córdobam  CC  milhas.— 
De  Córdobam  a  Toleto  CCXX.  —  De  Tolelo  a  Ce- 
saraugusta  CCC.  —  De  Cesaraugusta  a  Oscam  LX. 

—  DeOscam  a  Ilhcrdra  LXXX.  — De  Ilherdra  a 
Gersona  L  millias.  —  De  Gersona  a  Gerunda  CXXX 
miliias.  —  De  Gerunda  ás  fronteiras  XL.  —  Das 
fronteiras  a  Ruscilion  XX.  — De  Uuscilion  a  Nar- 
bona  XL. —  De  Narbona  a  Biterris  XV.— De  Biter- 
ris  a  Xeumasia  LXXV.  —  De  Neumasia  a  Avinion 
XXV  niillias. — De  Avinion  a  Valência  ClI  milhas 

—  De  Valência  a  Turnos  CCL  — De  Turnos  a  Me- 
diolano  CLXX. —  De   Mcdiolano  a  Roma  CCCXVI. 

—  De  Koma  a  Tliesalonica  DCCCXLII.  —  De  The- 
salonica  a  Hcraclea  CCCXVI  milhas.— De  Hera- 
clea  a  Constantinopla  CXXX  milhas. 

Fazem  IIIMCCLXXXI  milhas. 

!%'otlcla  doji  bispos    c  suns  sedes 

XI.  — Â  Sede  Real  (1)  occupa-a  Hermenegildo. 

—  Flaiano  em  Rracara,  e  succedcu  a  Lupo  e  a 
Rccaredo.  —  Tudomiro  tem  as  de  Dumio  e  Men- 
dumieto.  —  Sisenando  a  de  Iria  em  S.  Jacobo. — 
Xauslio  tem  a  sede  em  Coimbra.  —  Branderico 
em  Lamego.— Sebastião  cm  Ain-iense. —  Justo  em 
Portucale.  —  Álvaro  em  Yelegie.  —  Felmiro  em 
Oxima.— Mauro  em  Legion,  e  Ranulfo  em  Asto- 
rica. 

Os  referidos  prelados  resplandeceram  na  Igre- 
ja pela  protecção  do  Rei. 

Também  ô  Rei  Adefonso,  de  que  já  temos  fal- 
lado,  tornou-sc  admirado  por  todo  o  mundo; 
elevado  ao  sólio,  foi  liabil  na  guerra,  esclarecido 
para  com  os  Asturianos,  forte  e  valeroso  com  os 
Vascões,  castigou  os  Árabes  e  protegeu  os  cida- 
dãos. A  este  Príncipe,  favorecido  pelo  (Capitão 
Christo,  foi  lhe  concedida  a  sagrada  vicloria.  Se- 
ja para  sempre  esclarecido,  triuniphc  vencedor 
no  século,  c  resplandeça  no  ])roprio  céo.  Gonsa- 
gremos-lhc  aqui  este  Iriumpho,  já  que  se  des- 
pojou ali  do  Reyno.  Amen. 


[Conlinua) 


A  CRKNCA  GAULF.ZA 


A  crença  gauleza,  o  druidismo,  dominando  as 
religiões  todas  terrestres  da  Grécia  e  de  Roma, 
apresenta,  no  fundo  do  occidente,  um  desenvol- 
vimento theologico  e  philosophico  igual  ao  das 
grandes  religiões  do  oiiente,  mas  irum  espirito 
muito  opposto  ao  pantlicismo  iiido-egypcio,  c 
que  parece  não  ler   lido  aífinidade  moral  senão 

(1)  Era  Oviedo 


com  o  ma::déismo  de  Zoroastro.  A  lucta  victorio- 
sa  da  liberdade  c  da  vontade  contra  os  fataes  po- 
deres, a  indcítructivel  individualidade  humana 
elevando  se  progressivamente  do  mais  baixo  grau 
do  ser,  pela  intelligcncia  e  pela  força,  até  assum- 
midades  intinitas  do  céo,  sem  nunca  confundir- 
se  com  o  Greador  :  taes,  parece^  lerem  sido  os  fun- 
damentos da  crença  druidica  e  o  segredo  da  in- 
trepidez e  da  independência  gaulezas. 

Ilenri  Marlin. 


A  UMA  ROSA 

^Para  que  afastas  irosa 
o  rosto,  alvo  de  neve? 
acaso  mil  anjo  se  atreve 
a  negar  o  que  me  deve? 

Não  fujas !  —  ouve- me,  Rosa  : 
lu  promc>lesle-me  um  dia 
que  o  leu  amor  pagaria 
da  minha  ausência  a  agonia. 

Vè  bem  :  —  Ires  annos  ausente, 
ora  do  leu  lado  me  vejo ; 
e,  quando  a  paga  desejo.., 
de  li  recebo  um  só  l)eijo  ! 

Concedo  que  um  beijo  ardente 
n'esse  roslo  de  açucenas 
compense  um  aniio  de  penas... 
i.  Quantos  faltam  ?  dois  apenas  1 

Cândido  de  Figueiredo. 


RAZAILA 


(1) 


Li  ha  tempos  um  conto  árabe  que  era  assim 
concebido: 

Havia,  em  um  bosque  muito  afastado,  uma 
Cabrinha  que  passava  o  tempo  a  pastar  e  a  ou- 
vir cantar  os  passarinhos,  sem  nunca  se  desviar 
muito  do  lugar  que  lhe  servia  de  azylo. 

Era  muitíssimo  serviçal  para  com  todos  os 
seus  visinhos.  Á  timida  Lebre,  oíTerccia-lhe  me- 
tade da  sua  caminha.  Á  Toutinegra,  ensinava- 
Ihe  os  cantos  da  floresta  onde  estavam  caidos  cm 
maior  abundância  os  bngos  da  cercgeira  brava. 
Ao  próprio  Milhafre,  indicava  lhe  o  regato  onde 
poderia  ir  refrescar  a  guela  e  lavar  o  bico  sujo 
de  sangue. 

Isto  chegou  aos  ouvidos  do  rei  Leão. 

Primeiramente,  este  senhor,  mandou  annun- 
ciar  por  todos  os  pontos  do  boscpie,  como  o  pe- 
dia a  sua  dignidade,  que  a  linda  Gabrinha,  que 
linha  feito  taes  e  laes  cousas,  não  podia  deixar 
de  ser  mui  bem  recebida  se  se  apresentasse  ao 
sultão.  —  A  Cabrinha  não  fez  caso. 

O  Leão  mandou,  pela  segunda  vez,  convidar 
indirectamente  a  Gabrinha  para  ir  á  sua  presen- 
ça.—  O  resultado  foi  o  mesmo. 

Emllm,  o  rei  dos  animacs,  impaciente,  cheio 
de  cólera,  mandou  intimar  a  pobre  Gabrinha 
para  comparecer  na  corte.— cQue  Sua  Magestade 
me  perdoe,  respondeu  cila  ao  enviado.  Sou  uma 
pobre  íillia  dos  bosques  e  não  conheço  as  ma- 
neiras dos  senhores.  Que  figura  faria  eu  diante 
do  sultão?  K,  além  d'isso,  algumas  palavras,  fi- 
lhas da  miniia  ignorância,  não  poderiam  des- 
agiadar-lhe?  Tenho  ouvido  dizer  que  a  pata  do 
Leão  é  pesada,  e  que  as  feridas  causadas  pelas 
suas  garras  não  Icem  cura. 

(1)  Giliriíilia. 


I 


Typ.  Fianco-1'urlguczn,  Hiia  do  Thcsoiiro  Vcliio,  (>. 


34 


o  PANORAMA 


265 


Cs   Brahmanes 


O  Bralimanismo  é  a  religião  que  professa  a 
grande  maioria  dos  habilantes  do  Indoslão ;  deri- 
va-se  de  Brahma,  que  é,  enlre  olles,  o  nome  da 
divindade  suprema.  Ainda  não  lem  decorrido  um 
grande  numero  de  annos  depois  que  os  homens 
começaram  a  occupar-se  seriamente  da  historia 
religiosa  e  litteraria  da  índia;  assim,  apesar  dos 
esforços  perseverantes  dos  sábios  inglezes,  france- 
zes  e  allemães,  estamos  ainda  longe  de  possuir  um 
conhecimento  completo  do  Bralimanismo  e  das  di- 
versas phases  que  lem  percorrido  esta  antiga  re- 
ligião. 

O  Braiimanismo  teve,  certamente,  sua  origem 
n'esse  immenso  e  magnifico  valie  regado  pelos 
rios  Djumna  e  Ganges;  mas  a  época  da  sua  ap- 
parição  tem  sido  muito  controvertida  e  não  se 
pôde  estimar  senão  j)or  appi'oximação.  Entre  os 
livros  sagrados  da  Índia,  o  mais  antigo  é  o  Ri(j- 
Yéda :  ora,  a  este  livro  está  annexo  um  calendá- 
rio astronómico  que  o  celebre  Colebrooke  attri- 
bue  ao  século  XIV  antes  da  nossa  era  ;  tem-se, 
pois,  podido  concluir,  com  alguma  probabilidade, 
que  a  redacção  d'esle  livro  remonta  a  dezeseis  ou 


dezesete  séculos  antes  de  Jesus  Chrislo.  Quanto 
ás  pretensões  dos  lirahmanes,  ellas  não  podem 
sustentar  o  exame  quando  se  compara  a  sua  fa- 
bulosa chronologia  com  a  chronologia  positiva  da 
Escriplura  Sagrada. 

Os  principaes  livros  sagrados  da  índia  e  os 
mais  antigos,  são  os  Yédas,  em  numero  de  qua- 
tro:  o  Big-Véda,  o  Vadur-Véda,  o  Sarna- Veda  e 
o  Alharva-Vikla.  O  primeiío  é  uma  collecção  de 
hymnos ;  o  segundo  compõe-se  de  orações  em 
prosa ;  o  terceiro,  de  orações  para  serem  canta- 
das, e  o  quarto  contém  apenas  algumas  formulas 
de  consagração,  imprecações  e  sortilégios.  Este  é, 
evidentemente,  o  mais  moderno  dos  quatro.  Depois 
dos  Vedas,  vêem  dezoito  livros  chamados  Poura- 
nas  ou  commentarios,  que  são  d'uma  época  sensi- 
velmente mais  recente.  Cada  Pourana  abraça  cin- 
co assumptos:  a  creação  do  mundo,  seus  progres- 
sos, sua  renovação  pelo  diluvio,  a  genealogia  dos 
Deuses  e  dos  heroes,  a  chronologia,  a  historia  dos 
heroes  e  uma  cosmogonia.  Os  Pouranas  foram, 
segundo  os  índios,  inspirados  a  Yajasa,  o  com- 
pilador dos  Vedas.  Uma  compilação  das  Brahma- 


566 


O  PANOIIAMA 


/uís,  ou  ptoceilos  (logmalicos  dos  Vedas,  conheci- 
da polo  nome  de  Oiipanic/tads,  é  cuiilada  igual- 
nier.te  no  numero  dos  livios  sagrados. 

O  Manara-D/iarma-Saslra  ou  Leis  de  Mami, 
é  um  monumenlo  que  os  Biahmanes  consideram 
como  divinamenle  inspirado.  Kslc  livro,  lai  como 
hoje  existe,  eslá  esciifUo  em  verso,  e  compõe-se 
da  2:68o  slocas  ou  dislicos.  O  cslylo  d'eslo  códi- 
go lem  um  caracter  manifeslamenle  mais  antigo 
que  todos  os  outros  livros  Índios,  á  excepção  dos 
Vedas.  Knlre  os  personagens  que  se  encontram 
ali  citados,  nenhum  parece  posterior  ao  século 
Xll  antes  da  nossa  era.  l-V,  com  os  Vedas,  o  mo- 
numento mais  autlientico  do  Hralimanismo.  E' i^re- 
ciso,  porém,  nolai  (jue  n'eslc  livro,  não  se  faz 
menção  alguma  da  Trindade  india,  e  que  Vischnu 
e  L^iva,  que,  com  Ijrahma,  c;)nstituem  este  li io 
divino,  não  são  nomeados  cm  iManu  senão  uma 
única  vez,  e  de  passagem.  Além  d'isso,  nenhum 
papel  desempenham  no  systema  de  criações  e  des- 
truições suceessivas  do  universo  exposto  n'esta 
obra  Kmlini,  os  indios,  embora  os  não  conside- 
rem revelados,  consagram  o  maioi  respeito  às 
duas  epopéas  sanscrilas,  intituladas  Ramaijana  e 
Mahab/iarofa. 

Mas  qual  e  a  natureza  da  leligião  bralimanica? 
Os  sábios  que,  nuiis  cuidadosamente,  lêem  estuda- 
do a  origem  e  o  desenvolvimento  do  hralimanis- 
mo,  estão  mui  longe  de  concordarem  n'este  pon- 
to. l'ns  pensam  que  a  antiga  doutrina  da  Índia  é 
um  verdadeiro  monotheismo  ;  ou  Ires  consideram- 
na  como  um  polytheismo  mui  com])lexo  ;  muitos, 
cmlim,  olham-na  comoum  panlheismo  mal  disfar- 
çado sob  apparencias  polytheislas. 

O  mais  antigo  dos  livios  sagrados  do  brahma- 
nismo,  o  Uig-Véda,  pertence  evidenlemenle  a  uma 
crença  o  a  um  culto  [jolylheistas.  Acham-sc  ali  os 
nomes  de  trinta  e  Ires  divindades,  (|ue  são,  em 
geial,  personilicações  das  forças  da  natureza.  Com- 
tudo,  ou  jiorque  a  tradição  do  culto  raonotheista 
|)rimitivo  da  raça  humana  se  conservasse  entre 
alguns  homens,  ou  porque,  entre  os  redactores 
dos  Vedas  posteriores,  alguns  conseguissem  ele- 
Aar-se,  |)or  suas  propi-ias  forças,  á  conce[)ção  de 
um  Deus  único,  encontram-se  n'esles  livros  di- 
versas passagens  nas  qua!>s  esta  concepção  está 
flaramente  formulada.  Tal  é  esta  :  c(  lixisio  um 
Deus  vivo  e  verdadeiro,  eterno,  incorpóreo,  im- 
palpável, im|)assivel,  todo-poderoso,  sábio,  iníini- 
lameir.e  l)om,  (|uc  [)roduz  e  conscr\a  Iodas  as 
cousas  w  Certos  philosophos  indios,  como  Ham- 
mohun-Iloy,  lccm-s«í  valido  (Pesta  passagem  para 
alíirmarem,  não  obstante  a  multiplicidade  das  divin- 
dades enumeradas  nos  Vedas,  (|ue  o  bi-ahmanismo 
primitivo  é  um  puro  Deismo  ;  mas  esta  escola 
lí'm  feito  poucos  ade[)tos  na  índia.  Todavia,  a 
crença  primiti\a  d'este  |)aiz,  ou  lenha  sido  poly- 
Iheisla  ou  nionotheisla,  apparece-nos,  nos  Poura- 
nas  e  no  .Manava-Dliarma-Sastra,  como  um  pan- 
lheismo confuso,  com  um  cortejo  infinito  (Tema- 
naçOes,  e  com  um  sys'ema  de  cosmogonia,  (jue 
não  passa  de  uma  traducção  exacta  da  j)iopria 
doutrina  Iheologica.  Ora,  como  toda  a  concepção 


iheologica  (reste  género  tende  necessariamente  a 
uma  mythologia  interminável,  pela  ine\ilavel  per- 
sonnincação  de  cada  unia  das  emanações  divinas, 
segue-se  í(ue,  se  o  bralimanismo  e  um  verdadei.-o 
panlheismo  jiara  um  pequeno  numeio  de  brahma- 
nes,  é  um  |)uro  jiolytheismo  para  o  resto  da  po- 
pulação, que  toma  á  letra  o  ensino  contido  nas 
formulas  do  culto,  isto  é,  nas  orações  e  nas  cere- 
monias  exteriores.  .\!ém  d'isso,  os  l'ouranas  c  as 
cjxqíéas  indianas  não  são  mais  do  que  um  re[)er- 
torio  de  fabulas  mythologicas  dadas  como  narrati- 
vas históricas,  e  estes  livros  são  os  únicos  conhe- 
cidos da  grande  massa  da  população. 

[Ccnlinud.) 

O  MÍCPvOSCOPIO  E  O  TELESCÓPIO 

Eia  iíivciioslo  «l'csícs  doía  sisísifiiincuios 

Augmentar  o  alcance  da  vista,  é  alargar  o  ho- 
risonleda  intelligencia.  Isloé  mui  fácil  deílizer  hoje, 
•porque  sabemos,  que  a  vista  armatia  do  telescó- 
pio o  do  microscópio,  colloca  o  homem  entre  dois 
iniinitos.  iMas,  antes  de  conseguir  este  resultado, 
que  de  obstáculos  não  foi  jireciso  vencer!  Quan- 
tas cousas  nos  pareceriam  impossíveis,  como  pa- 
I  eciam  aos  nossos  antepassados,  se,  fazendo  abstrac- 
ção dos  conhecimentos  atlíjuiridos  no  inter\allo 
que  nos  separa  d'elles,  podessemos,  por  um  mo- 
mento, pôr-nos  em  seu  lugar!  Que  diríeis,  ha  tre- 
zentos annos,  se  um  aslionomo,  precedendo  a  sua 
época,  vos  dirigisse  o  seguinte  discurso: — Aijuel- 
les  jjontos  rutilantes,  que  se  vêem  no  céo,  são 
tantos  centros  de  mundos,  tantos  soes  semelhantes 
ao  nosso;  e  o  nosso  propiio  ceo,  com  todas  as  suas 
estrellas  reunidas,  não  c  mais  que  uma  pequena  nu- 
vem suspensa  na  immensidade.  Que  dirieis,  se, 
paia  servir  de  apoio  ao  seu  discuiso,  este  singu- 
lar orador  vos  mostrasse  um  tubo  de  muitos  i)és 
de  comprimento,  tendo,  nas  extremidades,  dois 
vidros  dispostos,  pouco  mais  ou  menos,  como  o 
ensinara,  no  século  XIÍl,  Uoger  Bacon,  e  conti- 
nuasse n'estes  termos:  —  Dirigi  este  tubo  para  a 
parte  do  céo  na  ;ip|)areiieia  a  mais  j)obre  (Kestrel- 
ias;  não  taidará  muito  que  não  avisteis,  em  uma 
incalculável  distancia,  alravez  de  uma  brecha  da 
abobada  celeste,  um  clarão  estranho,  semelhante 
á  luz  de  uma  vela,  posta  por  de  traz  de  uma  la- 
mina de  osso  ou  do  mailim.  Allentai  bem  n'esse 
clarão:  vereis  ([ue  é  uma  multidão  de  estrellas 
condensadas,  como  grãos  de  arêa  em  uma  ()edra. 

A  nossa  abobada  estrellada,  vista  áijuella  dis- 
tancia, parecer-vos-hia  uma  pequenina  nuvem  re- 
donda, phosphorescente.  E  o  numero  d'esles  clarões 
steTares,  d'estas  conglobações  de  mundos,  é  des- 
conhecido.—  Sufiponhamos  ainda,  (|ue,  a  estas  |)a- 
lavras  do  astrónomo,  viessem  junlar-se  as  de  um 
naturalista  (jue,  com  outro  tubo,  mais  jicípieno, 
pretendesse moslrar-vos,  em  uma  molécula  de  pó, 
em  uma  gota  de  agua,  uma  criação  inteira  de  se- 
res organisados! 

Em  harmonia  com  os  vossos  conlemporaneos 
consideiarieis  estes  dois  homens  loucos  ou  impes- 


o  PANORAI^IA 


267 


lores.  Tel-o-hieis  foilo,  não  duviílai,  a  não  so  dar 
o  Ciíso  do  serdes  vós  mesmo  um  d 'esses  eleilos 
íjue,  cngan;indosc  nas  hoias,  vecm,  de  lempos  a 
iempos,  ras,i;ar  as  Irevas.  É,  alravez  dos  séculos 
(]ue  os  obreiros  do  pensamento  se  dão  as  mãos, 
para  a  obra  commum  do  progresso  ;  mas,  da  sua 
passagem  ephemera,  liça  um  raslo  indelével,  a  luz 
i|uc  60  desprende  lenlamenlo  do  cliaos  das  agila- 
rões  c  das  crenças  humanas. 

Esles  dois  maravilhosos  insli-umenlos,  dosquaes 
um  a;)pro\ima  os  objecíos  muilo  afaslados,  e  ou- 
tro augmenia  os  objectos  mui  iieijiieiios  para  se- 
rem vistos  a  vista  desarmada,  o  telescópio  e  o  mi- 
croscópio, em  que  época,  lem-se  muitas  vezes  per- 
guntado, foram  inventados?  Questão  não  resolvi- 
da, jjoríjue  íem  sido  mal  assente.  Tem-se  feito  sa- 
bias dissertações  |)aia  pro\ar  ([ue  a  origem  iresíes 
instrumentos  remorda  ao  começo  do  século  XYíl, 
o  ([ue  a  invenção  do  microscópio  precede  alguns 
annos  a  do  telescópio,  que,  diiigido  pela  primeira 
vez  para  o  céo  era  1610,  fez  descobrir  a  Galileo 
os  quatro  satcllites  de  Júpiter. 

Mas  o  uso  de  um  instrumento  não  coincide  ne- 
cessariamente com  a  data  da  sua  invenção;  esta, 
muitas  vezes,  tem  tiílo  lugar  muilo  tempo  antes, 
(is  invenlores  não  tiveram  no  passado  mais  de  um 
molivo  serio  paia  occuilar  os  s:hís  segredos?  Vede 
o  IVade  Uoger  Bacon  !  ExjjuIso  do  convento,  en- 
caiTerado  como  magico,  era  pi'eciso  que  fosse 
muilo  desgraçado  para  exclamar,  no  seu  leito  de 
morte,  que  os  homens  não  mereciam  que  se  occu- 
passcni  do  seu  adiantamento.  íla  alguns  séculos, 
era,  em  geral,  mais  prudente  guardar  o  segredo 
de  uma  invenção  scientiíica,  do  que  vantajoso  di- 
vulgal-a. 

Estas  considerações  levam-nos  a  ci'èr  que  o  mi- 
croscópio c  o  telescópio  eram  conhecidos  muito 
anteriormente  ao  século  XYll,  e  que  se  tomou  por 
época  da  sua  invenção  o  momento  a  pai'lir  do  qual 
o  seu  conheciniento  não  podia  continuar  a  ser 
ignorado  do  publico.  A  narrativa  de  Jeronymo 
Sirturus,  sábio  milanez,  que  viajava  cm  1609  na 
líoUanda,  vem  em  apoio  da  nossa  opinião  Um 
desconhecido,  diz  clle,  apresenlou-se  um  dia  cm 
casa  de  Lippersheiín,  celebre  fabricante  de  óculos, 
t>  encomnu-ndou-lhe  muilas  lentas  concavas  e  con- 
vexas. No  dia  marcado  foi  buscal-as,  escolheu  duas, 
uma  convexa,  outra  concava,  applicou-as  á  vista, 
experimentou-as  aproximando  ou  afastando  uma 
(ia  ou  ti  a.  sem  dar  a  conhecer  o  lim  d'esle  exame, 
pagou  e  desapprireceu.  Lipi)ersheim  ropetio  imme- 
dialamonlc  o  (jue  vira  fazer,  c  conhecendo  o  aug- 
in(>nto  !)roduzi(lo  pela  combinação  das  duas  len- 
tes, adaptou-as  ás  extremidades  de  um  tubo  o  of- 
fereceu  eslc  novo  instrumento  ao  principc  Maurí- 
cio de  Nassai!.  Foi  com  um  óculo  d'esle  género  de 
(jue  se  sérvio  Galileo. 

Eslá  reconhecido  (|ue  toda  a  descoberta  impor- 
tante tem  os  seus  signaes  percursores.  É,  para 
nos  servirmos  do  dito  de  Arago,  uma  forca  que 
absorve  ou  concentra  uma  multidão  de  fados  iso- 
lados; é  a  brilhante  apparição  de  muitos  ensaios, 
tjuc,  ato  o  momento,  teem  vivido  na  sombra. 


Os  antigos  deram-se  a  um  grande  trabalho  para 
saber  s<i  o  (jue  se  chama  luz,  é  matéria,  força 
ou  movimento.  iMas,  de  todas  as  suas  hypothc- 
ses,  só  restam,  como  dignos  de  serem  conser- 
vados, os  principios  seguintes,  deduzidos  dos  fa- 
dos (jue  estão  ao  alcance  do  todos. — Km  um  cen- 
tro homogéneo,  a  luz  propaga-se,  em  linha  recta; 

0  seu  angulo  (TincidiMicia  é  igual  ao  angulo  de  re- 
Hexão  ;  pas?;ando,  de  um  centro  homogéneo  para 
um  ceníro  diíTererde,  desvia-seda  recta,  deslroe-se, 
de  forma  que  o  angulo  de  separijção  deixa  de  s;m- 
igual  ao  angulo  d'incidencia.  —  Mas  em  que  rela- 
ção estão  esles  dois  ângulos  cnl!'e  si?  Eis  o  que 
todos  os  physicos  ignoravam  até  Descartes,  que 
demonstrou  (jue  os  ângulos  d'incidencia  e  de  re- 
fracção  estão  em  relação  constante.  Também  se 
havia  reconhecido  cedo  que  a  distancia  e  a  gran- 
deza dos  objectos  percebidos  .são  a ppa rentes,  mas 
que  é  necessário  o  concurso  de  alguiiia  cousa  su- 
perior ao  sentido  para  distinguir  a  apparencia  da 

1  ca  lidado. 

Ninguém  se  enganará  sobre  a  grossura  de  uma 
bomba,  comparada  com  a  cabeça  de  um  alfinete, 
se  se  olhar  uma  e  outra  em  igual  distancia.  Mas 
a  bomba  afastando-se  da  vista,  pôde  íornar-se  tão 
pequena  como  a  cabeça  de  um  alíinele  e  acabar 
mesmo  por  desapparecer  inteiramente.  É  o  que 
acontece  quando  cila  subtende  um  angulo  menor 
de  um  minuto;  por  outros  termos,  quando  os  raios 
luminosos,  partindo  das  extremidades  do  objecto, 
vêem  reunir-sc  na  vista  sob  um  angulo  mais  jie- 
queno  que  a  60.''  parle  de  umgráo,  ou  do  que  a 
5400."  parle  de  uni  angulo  recto.  O  angulo  sub- 
tenso  peio  objecto  qiic  se  j)intou  na  vista  chama-so 
angulo  visual.  Ora,  a  experiência  ensina  que  o 
angulo  sublenso  será  duplo  se  a  distancia  primi- 
tiva estiver  reduzida  a  metade ;  será  triplo  se  a 
distancia  estiver  reduzida  a  um  terço,  ele.  Assim 
a  vista,  collocada  successivameníe  cm  b,  cm  c, 
ele,  verá  o  mesmo  objecto,  de,  duas,  Ires  vezes, 
ele,  maior  que  em  a. 


i^€ 


Fig.  1 

Existe  um  meio  simples  de  augmenlar  os  obje- 
ctos: consiste  em  observal-os  de  muito  perto.  Mas, 
esta  mesma  proximidc.de,  tem  limites.  Exercida 
de  muito  perto  a  visão  é  tão  confusa  como  se  fos- 
se exercida  de  muilo  longe ;  é  i)reciso  que  o  ob- 
jecto esleja  coUocado  no  ponto  para  ser  visto  dis- 
lindainenle.  Este  ponto,  que  medtí  a  extensão  da 
vista  normal  é  de  20  a  Tò  cenlimetros:  além  a 
vista  ò  preshijla;  á(iuem  é  mjjopc. 

E  útil  o  imlividuo  construir  propriamente  ilm 
microscopia.    A   gola  de  agua.   O  olho  do  coelho. 


268 


O  PANORAMA 


O  cnjstaUino  e  o  glóbulo  de  vidro.  Anecdota  sin- 
gular.— c(Se  quereis,  dizia  um  dia  uni  liabil  oplico, 
se  quereis conliecero  microscópio e conliijjuir  para 
o  seu  aperfeiçoamento,  fazei-vos  conslruclor;  di- 
ligenciai consliuir,  vós  mesmo,  um,  para  vosso 
uso;  deixai,  provisoriamente,  as  vossas  tlicorias  e 
os  vossos  cálculos,  que  não  sei  viriam  senão  para 
embaraçarem  as  vossas  primeiras  experiências. 
Conlentai-vos,  primeiro,  com  uma  peíjuena  força 
amplilicante,  o  depois  ireis,  gi-aduaimenle,  até  um 
augmento  de  300  vezes;  c  raro  passai  além: 
com  maiores  ampliações  perdereis  cm  luz  e  cm 
clareza,  cousas  tão  necessárias  para  as  boas  obser- 
vações.» 

Mas,  como  se  fabrica  um  microscópio?  A  pri- 
meira cousa  que  lia  a  fazer,  tanto  n'esle  como  em 
todos  os  outros  casos,  é  distinguir  o  accessorio  do 
principal.  O  accessoi-io,  é  a  armação,  o  tubo,  com 
osí^eus  bi.lliantes  enfeites;  emlim,  o  que  allralie, 
mais  depressa,  os  olfios  do  profano.  O  principal, 
são  as  lentes;  eis  de  que  ó  necessário,  primeiro, 
occupar-se  o  individuo. 

Nos  vossos  passeios  matutinos,  não  passeis  in- 
difierenle  por  uma  pérola  de  rocio.  Os  objectos, 
vistos  alravez  d'essa  pérola,  não  parece  que  estão 
augmenlados?  Observai,  para  vos  assegurardes,  os 
grãos  de  pó  ou  os  veios  da  folha,  sobre  a  qual  a 
pérola  está  collocada.  Que  admirável  cousa!  Os 
antigos  tinham,  certamente,  conhecimento  d'ella; 
testemunha-o  esta  passagem  de  Séneca:  —  cc  Por 
mais  pequena  que  seja  a  escripla,  parece  maior 
vista  alravez  de  uma  bola  de  vidio  cheia  d'agua.» 

Ja  tivestes,  caro  leitor,  a  curiosidade  de  disse- 
car um  olho?  A  experiência  é  fácil :  o  olho  de  um 
coelho  será  sufllcicnle.  A  primeira  cousa,  que  vos  ha 
de  causar  alguma  admiração,  picando-o,  somente, 
com  a  ponta  d(;  um  canivete,  é  a  grande  quanti- 
dade de  liquido  aipioso  que  d'ellc  sae.  Depois 
da  saida  d'esle  liquido,  abri  a  pellicula  com 
uma  incisão  |)ralicada  na  covinha  negra  (pupílla) 
que  rodeia  um  circulo  colorido  iiris);  três  cousas 
se  vos  apresentarão  ao  mesmo  tempo:  primeiío, 
uma  matéria  preta,  como  a  tinta  da  China,  pig- 
mentum  d'uma 'membrana  muito  delgada  (choroi- 
de)  que  forra  quasi  todo  o  interior;  segundo,  uma 
espécie  de  gelea  transparente  como  vidro  {/lumor 
viíreo/,  terceiro,  uma  peípiena  bola,  d'uma  certa 
consistência,  limpida,  como  a  agua  de  rocha. 

Lancemos  mão  d'este  ultimo  órgão,  que  se  de- 
nomina crjislallino.  Approximai-o,  o  mais  perlo 
que  poderdes,  d'uma  escripla  muito  íina;  vel-a- 
hcis  augiiientada,  mas  os  caiacteies  serão  trans- 
tornados: diremos  adiante  porque.  Kis  ahi,  o  mi- 
croscópio cm  toda  a  sua  primitiva  sim|)licidade. 
É  pena  que  não  possa  siMvir  por  muito  tempo  ; 
o  crystallino  grela-se,  facilmente,  logoquc  se  dis- 
secai e  perde,  pouco  apouco,  a  sua  transparência. 
Não  desanimeis;  subslituil-o-lieis  vantajosamenle 
por  um  glóbulo  de  vidro.  l'ara  obter  este  glóbu- 
lo, não  tendes  mais  do  que  fundir,  á  luz  de  uma 
alampada,  um  íio  de  vidro  muito  puro.  Terá  al- 
guma (juebra;  sereis  obrigado  a  recomeçar  mais 
d'uma  vez ;  mas  podereis  depois,  facilmente,  es- 


colher, de  entre  as  pérolas  assim  preparadas,   as 
que  vos  parecerem  mais  perfeitas. 

Estes  glóbulos  são  as  lentes  do  microscópio  sim- 
|)les.  Era  com  esle  género  de  lentes  que  líooke  e 
Ilarlsa^ker  faziam,  no  século  Wll,  as  suas  bellas 
observações  microscópicas.  A  arte  de  fundir  gló- 
bulos de  vidro  foi  proseguida,  com  succosso,  pelo 
jesuila  napolitano  Delia  Torre,  pelos  annos  da 
1770,  c  levada  a  um  subido  gráo  de  perfeição  em 
nossos  dias,  por  Gaudin.  E  com  lentes  de  cryslal 
de  rocha  c  de  vidro  dTnglaterra,  mellidas  em 
uma  rolha  de  cortiça,  que  esle  homem  engenho- 
so conseguio  construir  microscópios  de  algibeira 
com  uma  força  augmentativa  de  oO  a  300  vezes. 
Os  primeiros  observadores  fabricaram  elles  pro- 
[irios  os  seus  instrumentos,  dando-lhes  a  forma 
mais  simples.  Uma  lente  engastada  em  uma  armação 
metallica  (composta  de  duas  laminas)  á  qual  se 
adaptasse  o  porla-objec- 
to,  movido  por  um  para- 
fuso, tal  é  o  microscópio 
com  o  qual  Eeewenhírk 
fez  os  seus  admiráveis  tra- 
balhos micrograpliicos.  E 
nem  mesmo  se  servia  de 
espelho  para  dar  claridade 
aos  objectos  ;  tinha  o  seu 
pequeno  apparelho  na  mão 
voilando  o  j)ara  a  luz  do 
dia  ou  de  uma  alampada. 
A  ligura  junta  representa 
o  microscópio,  legado  por 
Leewenhoek  á  Sociedade 
real  de  Londres :  «,  ó  uma  chapa  metallica,  b,  a 
lente,  c,  o  porla-objecto. 

Os  mais  antigos  microscópios  simples,  chama- 
vam-se  luniulos  ou  cemitérios  dos  pequenos  ani- 
macs,  vitra  jiulicarin,  vilra  muscaria,  poríjue  os 
empregavam  particularmente  no  exame  das  pulgas 
c  das  mo.scas.  Compunha-se  de  um  tubo  muito 
curto  (pouco  mais  ou  menos  uma  pollegada  ou  Ires 
centimelros  de  comprimento) ;  em  uma  das  extre- 
midades estava  lixada  uma  lenleena  outra  um  vi- 
dro chato,  sobre  o  qual  estava  collado  o  objecto  que 
se  queria  observar.  Para  ver  os  insectos  vivos,  met- 
liam-se  no  tubo,  que  tinha  a  forma  de  uma  caixinha. 
Gaspar  Scholt,  na  sua  Magia  uuiversalis  nalurae 
et  artes  (Hamberg,  1077),  conta,  a  este  respeito, 
uma  historia  muito  curiosa,  que  merece  ser  aqui  re- 
lerida.  Um  viajante  caio  doente  em  uma  aldeia  do 
Tyrol  e  morreu.  Antes,  porém,  de  ser  enterrado, 
as  auctoridades  foram  examinar  os  objectos  do  des- 
conhecido. Entre  estes  objectos  acliava-se  um  ri- 
Irum  policarium.  Era  um  magico!  exclamaram  lo- 
go todos  os  assistentes.  EiiKiuanto  sedisculia  se  se 
lhe  devia  dar  sepultura,  o  maire  lembrou-se  de 
abrir  a  horrível  caixa.  Saio  uma  pulga.  Não  ha  du- 
vida; é  o  diabo  tiansformado  em  pulga,  que  o  magi- 
co tinha  dentro  da  caixa.  O  estrangeiro,  a  quem  a 
ignorância  privou  de  sepultura,  era  um  dos  mais 
celebres  sábios  do  seu  tempo;  chamava-se  Scheiner. 
Voltando  d'uma  viagem  a  Ilollanda,  jiassara  pela 
Baviera  e  pelo  Tyrol  para  se  dirigir  à  Áustria. 


o  PANORAMA 


269 


BRISTOL 

I»oaíe  snspensa   sobre  o  Avon 

Bristol,  capital  do  condado  de  Somcrset,  é  uma 
cidade  rica,  e  o  seu  porlo  um  dos  principaes  da 
Inglaterra.  Está  situada  em  um  valle  rodeiado  de 
outeiros  e  serranias  sobre  o  Avon,  a  cento  e  oi- 
tenta Ivilometros  O.  de  Londres,  e  compõe-se  de 
duas  partes:  cidade  vellia.  anteiior  quatro  sécu- 
los á  era  christã,  e  cidade  nova,  bonita  e  bem 
construida.  As  suas  praças  c  ruas,  em  geial,  são 
espaçosas  e  elegantes,  e  encoiitra-se  ali  um  gian- 
de  numero  de  editlcios  magniticos,  taes  como,  a 
igreja  de  Santa  Maria  de  Radclifie,  uma  das  me- 
lhores de  Inglaterra,  e  onde  existe  uma  primoro- 
sa estatua  de  Guilherme  Penn  ;  a  cathedral,  obra 
do  século  XII,  a  casa  da  camará,  a  alfandega,  a 
bolsa,  obra  mageslosa,  fundada  em  1810,  a  uni- 
versidade, fundada  em  182D  e  a  bibliotheca.  Além 
disso,  contém  muitos  caminhos  de  ferro,  mais  de 
vinte  hosj)ilaes  c  vários  estabelecimentos  para  po- 
bres, dos  quaes  o  principal  é  o  da  rainha  Isa- 
bel. 

O  commercio  de  Bristol  é  immenso  ;  o  que  não 
deve  causar  admiração,  por  ser  terra  ingleza,  tão 
vantajosamente  situada,  e  possuir  um  molhe  que, 
sem  exageração,  é  um  dos  melhoiTs  da  Kuiopa, 
e  onde  entram  annualmenle  mais  de  ties  mil  na- 
vios. As  indiisliias  tnmbiMii  ali  teem  lido  um 
grande  desenvolvimento  n'estes  últimos  annos : 
possue  um  grande  uumero  d'eslaleiros  para  cons- 
trucção  de  navios  de  todos  os  lotes,  fabricas  de 
sabão,  de  louça,  de  folha  de  Flandres,  de  alline- 


tes,  de  fazendas  de  lã  e  de  algodão,  laboratórios 
chimicos,  fundições  de  metaes,  etc. 

Os  arrabaldes  de  Bristol  são  lindíssimos  e  mui- 
to produclivos ;  encontra-se  nas  montanhas  umas 
pedrinhas  que  imitam  o  diamante  e  que  por  isso 
se  denominam  diamantes  de  Bristol,  e  as  planí- 
cies dão  muita  herva,  de  que  resulta  o  paiz  abun- 
dar em  gados.  Nas  margens  do  canal  de  Bristol 
vegeta  uma  planta  marinha  de  que  os  habitantes 
costumam  fazer  uns  bolos,  que  dizem  ser  mui 
sãos  e  nutritivos. 

A  população  da  cidade  de  Bristol,  regula  por 
cento  e  oitenta  mil  habitantes. 

A  magnifica  ponte  suspensa,  que  se  acha  repre- 
sentada na  nossa  gravura,  foi  construida  entre  os 
annos  180o  e  1809,  e  conservou-se  sem  a  mais 
leve  alteração  até  18oo,  época  em  que,  com  es- 
panto gerai,  desabou  repentinamente.  Esta  ponte, 
uma  das  mais  bellas  que  se  tem  feito  n'este  géne- 
ro, já  pela  sua  altura  e  extensão,  já  pela  construc- 
ção  e  solidez,  estava  lirmada  de  ambos  os  lados 
sobre  dois  grandes  rochedos,  denominados  de  S. 
Vicente,  e  era  a  estrada  real,  que  conduzia  á  ci- 
dade. Para  se  formar  uma  idea  de  semelhante 
obra,  bastaiá  marcar  as  suas  dimensões:  altura 
do  estrado  da  ponte  ticima  do  uivei  d'agua  2í0 
pés ;  largura  entre  os  dois  pilaies  de  suspensão 
700  pés:  largura  do  estrado  da  ponte  entre  os 
passeios  iO  pes ;  diía  dos  passeios  lateraes  G  pés; 
extensão  total  da  ponte  900  pés;  altura  dos  pila- 
res de  suspensão  .'IO  pés.  As  portas,  formadas  pe- 
los pilares  de  suspensão,  eram  no  eslylo  egypcio 
e  iguaes  ás  maiores  que  se  conhecem  n'esle  ge- 


270 


O  PANORAMA 


nero.  Os  passeios  latoraes  licam  do  lado  de  fora 
das  cadèas  de  suspensão.  Por  baixo  d'csla  ponle 
passavam  todas  as  embarcações  que  se  dii'iiíiain 
])ara  Bristol,  c  ainda  os  maiores  navios  da  com- 
panhia das  índias. 


JOÃO  DE  MATTOS  FRAGOSO 

Muitas,  é  verdade,  a  maior  parte  das  suas  pro- 
ducções  acham-seolluscadas  poraquelle  resaibodo 
gosto  gongorico.  contra  o  qual  lodos  os  poetas 
clamavam,  e  a  que  todos,  principalmente  Mattos, 
rendiam  tributo,  sem  duvida  por  comprazer  para 
com  o  publico,  que  devia  saber-llie  bem  o  (|ue 
não  entendia  ;  muitos  dos  seus  argumentos  são  em 
extremo  disparatados  e  extravagantes;  muitos  dos 
seus  caracteres  inverosímeis;  muitos  dos  seus  ra- 
cmcinios  alambicados  e  incomj)reliensiveis.  Km 
troca,  porém,  destes  achaques,  couimuns  a  todos 
os  escriplores  d'aqu('lla  é|)oca,  e  íilhos  do  mau 
exemplo  de  Lope  e  da  sua  J\()va  arfe  de  fazer  co- 
medias, pode  escolher-se  uma  dúzia  de  produc- 
çOes  de  Mattos  em  que  campèa  o  seu  grande  en- 
genho com  mais  i-egularidade  e  em  que  brilham 
os  seus  dotes  poéticos  em  toda  a  sua  louçania  e 
vigor.  Estas  comedias  são  as  intituladas:  El  sá- 
bio en  su  retiro  y  viUano  eu  su  rinmn,  Lorenzo 
me  llamo  y  carhonefo  de  Toledo,  El  ycrro  dei 
entendido.  Con  amor  no  hay  nmislad,  La  veníjan- 
za  en  el  despec/io,  El  traidor  contra  su  sanf/rc  y 
siéte  infantes  de  Lara,  El  (/alan  de  su  inuijer, 
Poço  aprovechan  avisos,  La  dicha  por  el  despre- 
cio e  mais  algumas  de  cujos  nomes  nos  não  lem- 
biamos  agora. 

El  sabia  en  su  retiro,  com  especialidade,  è  a 
nossos  olhos  uma  pioducção  magnifica  ;  por  si  só 
bastai  ia  para  engi^andecer  o  nome  do  seu  auclor ; 
a  novidade  do  argumento,  a  criação  do  singular 
caracter  de  Juan  Labrador,  a  discreta  combinação 
do  plano  e  a  ])oetica  belleza  do  estylo,  reunem-sc 
n'esla  comedia  para  fazel-a  uma  das  mais  notáveis, 
SC  não  a  primeira  do  Ihealro  hespanhol  de  segun- 
da oídem.  Não  é  acaso  menos  iica  cm  originali- 
dade c  engenho  a  de  Lorenzo  me  llamo,  nem  lhes 
cedem  em  combinação  c  enredo  as  de  mais  cita- 
das;  mas,  como  não  é  possivel  n'esle  artigo  des- 
cer á  sua  analyse  critica,  nem  ainda  dar  uma  idéa 
do  j)lano  c  desempenho  (relias,  conlentar-no-^-he- 
mos  com  o  otlereccr  algumas  amostras  do  estylo 
poético,  pelas  quacs  ver-sc-ha  que  se  o  poeta 
Mattos  adoecia  frequentemente  da  enfermidade  do 
purismo  dominante,  também  ostentava  ás  vezes 
uma  facilidade,  uma  graça  e  uma  energia  de  ex- 
pressão, (pie  o  collocam  n'eslc  ponto  a  par  dos 
mais  felizes  auclores  hespanhoes. 

Ucferindo-nos  á  primeira^comedia,  El  saíjio  en 
su  retiro,  snr-nos-hia  dinicil  escolher  trechos,  ra- 
ciocínios ou  diálogos  que  dessem  a  conhecer  o  sou 
estylo  [)oetíco,  poríjuí!  sendo  muito  abundantes  e 
extensos  corríamos  o  risco  de  copiar  lodo  o  dra- 
ma ;  c  lambem  porque  a  principal  belleza  d'elle 
consiste  na  disposição  do  argumento,  no  niovi- 
menlo  da  acção  c  na  lucta  animada  dos  caractí;- 


res.  Bastará  dizer  que  muitas  das  suas  sympathi- 
cas  scenas  não  desdizem  das  mais  celebi-es  do 
(j areia  dei  castauar  c  do  liico  hombre  de  Alcalá, 
com  as  quaes  tem  muita  semelhança  na  situação; 
especialmente  a  visita  que  hz  u  rei  disfarçado  ao 
honrado  Juan  que  Ioda  a  sua  vida  r.  cusou  vel  o. 
Não  j)0(!emos,  j)orém,  resistir  á  tentação  de  trans- 
crever os  conselhos  que  o  mesmo  lavrador  dá  a 
seu  filho  (juando  o  manda  para  a  corte. 

A  la  corle  vas,  Moiilano, 

rico  y  mozo,  y  será  justo 

(pie  con  la  sonda  cii  la  mano 

navegues  mar  tan  i)rof«n(io. 

La  primor  plana  dcl  arte 

cn  (|iie  prudente  te  industrio, 

os  la  \irtud,  que  esta  sola 

es  de  lodo  riesgo  escudo. 

Mide  ol  gasto  con  la  ronta  ; 

no  le  empenes  con  recurso 

de  que  ai  liempo  de  la  paga 

SC  cumple  taml)ien  el  juro. 

Caudal  se  llania  el  (alento 

y  caudal  la  ciência  ;  juzgo 

que  lo  liene  solo  aijuel 

que  lo  liene  lodo  junto. 

Es  ruindad  el  ser  escaso  ; 

sor  perdido  es  riosgo  sumo  ; 

lo  que  gastas,   le  hace  falia  ; 

lo  que  guardas,  le  hace  mucho. 

Al  fin  consiste  el  acierto 

cn  saberlc  dar  su  |)unto, 

de  suerle  que  le  conser\cs 

siempre  agcno  y  siempre  tuyo. 

ÍAin  agrado  y  con  somhrcro 

gana  el  afeclò  dei  vulgo  : 

se  l)ien  quisto,  que  esto  solo 

poço  cuesta  y   vale  mucho. 

Auncpie  no  aplaudas  á  lodos, 

no  murmures  de  ninguno  ; 

que  to  nota  ol  (|ue  le  escuchn 

sin  loncrle  por  mas  (jue  uno. 

I^n  lo  que  loca  á  mugercs 

iii  le  aconsejo  ni  a|)uro, 

con  (lonslanza  ores  casado, 

que  liarás  lo  mojor  presumo. 

l'ero  tan) poço  le  quiero 

con  las  (lamas  lan  sanudo, 

que  pasc  el  chiste  á  desaire, 

ni  lo  corlés  á  16  rudo. 

Acom|)anarle  procura 

con  hombres  de  honra  y  de  punlo, 

que  aunque  seas  lii  (piicn  fuercs 

como  tos  oiros  le  juzgo,  ele. 

Na  do  Carhonero  de  Toledo,  ainda  que  menos 
verosímil  e  correcta,  ha  lambem  um  caracter  bel- 
lo  c  singular,  que  ó  o  do  aventureiro  Lorenzo,  e- 
levado  por  seu  valor  c  generosos  sentimentos  aos 
mais  subidos  cargos  da  milícia  c  á  nobreza  de  ca- 
valleiro.  Yeja-sc  com  que  dignidade  e  energia  es- 
lá  representado  este  caracter  nos  seguintes  versos 
que  o  mesmo  Eorenzo  dirige  ao  seu  gencial,  (|uan- 
(lo  este  pretendo  premiar  as  suas  façanhas  com  o 
habito  de  S.  Tliiago. 

LouENZo...  Sonor,  diciendo  verdad, 
no  longo  mas  calidad 
ni  padre  mas  generoso, 
(|ue  esle  brazo  y  esta  espada. 
Soy  un  pobre  lid)rador 
(|uè  no  luve  mns  honor 
(jue  cl  arado  y  el  azada ; 


o  PANORAMA 


274 


pêro  nniy  crisliano  \ii>jo 
por  vida  dei  rey  ;  que  no  hay 
en  las  lieiídas  de  Cambray 
cristal  de  mas  puro  cspejõ. 
De  osla  manera  naci, 
si  CS  que  la  \iiUid  se  alabn, 
que  como  on  '>Iros  acaba      ' 
mi  liiiaje  oní|.i  za  en  mi : 
porque  sou  mejores  hombres 
los  (|ue  sus  linajes  liacen, 
que  aquellos  que  los  deshaceu 
adquirieudo  vilcs  uombres. 
Hay  uua  grau  necedad 
eu  et  mundo  inlroducida  : 
cn  vieudo  en  alio  subida 
la  virlud  siu  calidad, 
lodos  afrentarin  iuteníam; 
y  á  los  que  u.h.íu   jierdidos 
àlaban  por  bieii  uacidos, 
cuando  su  luiaje  alrentan. 
No  me  dieron  a  cscoger 
padres,  grau  sciior,  y  asi 
donde  quiso  Dios  miei, 
que  por  mi  comienzo  a  ser. 
Lo  que  soy  no  es  heredado  ; 
que  nadie  "me  agradeciera, 
si  yo  mismo  no  me  hiciera, 
lo  que  oiro  1:1  •  hubiera  dado. 
Y  no  he  de  volver  atrás ; 
de  hoy  mas,  cou  favor  de  Dios 
lo  que  fuere,  á  Dios  y  á  vos 
y  á  mi  lo  debo,  uo  mas. 

Basltí  islo  para  apreciar  a  elevação  de  senli- 
mento.s,  a  gravidade  do  cslylo  de  que  nuii  fre- 
quenleinente  fazia  ostenlação  a  penna  de  Mallos 
Fragoso.  Qiierení!;)-se  ver  lambem  a  sua  exli-ema 
facilidade  em  escrever,  a  ligeireza,  o  cbisle,  a  gra- 
ça da  sua  expressão  cómica,  leiam-se  os  seguintes 
íreclios  que  se  encontram  nas  comedias  Ver  y 
creer,  LI  marido  de  su  madre,  La  dic/ia  por  el 
desprecio,  ele. 

De  limosua  y  siu  dinero 
la  barba  hacia  á  un  pastor, 
con  la  na\aj;i  j.oor, 
desazouado  un  barbero. 
C.omo  la  na V aja  eslaba 
com  mil  mcUas  que  lenia, 
el  cabello  uo  partia, 
mas  el  rosiro  desollaba. 
Conoció  el  pastor  cl  yerro, 
y  siu  poder  eslorballe : 
en  este  liempo  cn  la  calle 
daban  de  paios  tá  un  perro. 
«iQue  será  m; :;i'llo  ?i'  decia 
el  barbero  á  sus  eidos, 
viendo  que  con  alaridos 
cl  perro  los  aturdia. 
Respoudiò  el  pastor:  «Alli, 
á  nquel  perro  que  se  escarba, 
(leben  hacerle  la  barba 
de  limosna,  como  á  mi.» 

Mira,  la  fortuna  es  una 
dama  de  gall.inlo  cuerpo, 
llena  de  joyas  y  galas, 
que  causa  à  lodos  respeto. 
Esta  anda  entre  los  concursos 
mayores  dei  universo ; 
y  los  discretos  que  vcn 
venir  con  garbo  y  despejo 
una  muger  lan  bizarra, 
como  corteses  y  alentos, 
á  los  liidos  se  fetiran 
porque  ella  p;i.-se  por  médio 
iiaciendo  como  entendidos: 


y  como  los  majaderos 
no  liaceu  caso  rii  se  apartan, 
y  se  cstan  quedos  que  quedos, 
la  forluna,  (jue  va  andando, 
es  íucrza  topar  con  ellos. 

Calla,  que  no  has  advertido 

cl  mal  que  pasa  un  marido 

ai  remo  de  su  muger. 

Si  acaso  es  gorda,  no  entra 

siu  peregil  a!  Iragalla  ; 

si  eí  cliica,  nunca  se  lialla, 

si  es  alia,  siempre  la  encueutran  ; 

si  es  muy  callada,  es  grau  dano ; 

si  preguntona,  cruel ; 

si  es  celosa,  digalo  el 

que  la  sufre  todo  el  ano. 

Si  paridera,   es  rigor; 

si  estéril,  nunca  hay  regalo; 

si  come  mucho,  es  "muy  maio  ; 

si  nada  come,   peor. 

Si  rica,  ha  de  obedeceria; 

si  es  pobre,  ha  de  sustentaria  ; 

si  os  hermosa,  ha  de  celurla; 

y  si  es  fea,  ha  de  temeria. 

Y  asi  en  la  varia  fortuna 

que  eusena  el  norte  de  amor, 

imagino  que  es  mejor 

no  casarse  con  ninguna. 

Esta  serie  de  citações  poderia  ser  levada  muito 
longe,  porque  é  grande  o  numero  de  bellezas  que 
esmaltam  ainda  as  peiorcs  comedias  de  Mattos ; 
mas,  para  dar  uma  idéa  do  seu  agudo  engenho, 
da  sua  lacilidade  e  graça  em  manejar  o  idioma 
liespanliol,   bastam   as  que  acima  transcrevemos. 

Das  cincoenta  e  tantas  comedias  de  Mattos  ape- 
nas se  acham  li-aduzidas  em  portuguez  as  seguin- 
tes :  Os  dons  prodigios  de  Roma,  O  bruto  de  Ba- 
bilónia, O  vtel/tor  par  entre  os  doze.  Só  o  piedo- 
so é  meu  /ilho,  O  sábio  em  seu  retiro. 


UMA  OBRA  DO  SÉCULO  ÍX 

Coiueçsa  icia  .seguinte  ciifosisca  a  ortEeiu  úqh  roíuauos 

1.  Em  Roma  reinou  primeiro  Rómulo  XXXVIIÍ 
annos.  Esle  edificou  Roma. 

Tito-Talio,  Rei  dos  Sabinos,  Y  annos. 

Numa  Pompilio,  XXXII  annos.  Esle  foi  o  pri- 
meiro que  ordenou  o  anno  em  XIÍ  mezes. 

Tulo-Hostilio,  XXXIII  annos.  Este  foi  o  primei- 
ro que  vestio  a  purpura. 

Ânco  Mareio,  reinou  XXYIII  annos. 

Tarquino-Prifeco^  reinou  XXXYIII  annos.  Este  fez 
o  Capitólio. 

Servio-Tulio,  reinou  XXXYIII  annos.  Este  foi  o 
primeiro  que  estabeleceu  o  censo. 

Tarquino  o  Soberbo,  reinou  XXV  annos.  Esle 
foi  expulso  do  reino,  i)orqne  o  mereceu. 

Houve  Cônsules  por  ('CCf>XXYÍ  annos. 

Os  Deccmviros  I  anno. 

Desde  Rómulo  e  a  fundação  de  Roma,  até  Cayo 
Julu)  César,  UCXCVI  annos. 

Primeiramente  Cayo  Júlio  César  governou  IV 
annos.  Esto  pelejou  com  Pompeyo  pelo  impé- 
rio. 

Começa  em  seguida  a  VI  idade. 

2.  Ociaviano,  reinou  LYI  annos.  No  XLII  do 
seu  reinado  nasceu  Christo.  Este  só^  governou  lo- 
do o  Mundo. 

Tibério,  filho  de  Gaio,  reinou  XXIII  annos.  No 


272 


O  PANORAMA 


XVIII  foi  crucificado  N.  S.  Jesus  Chrislo.  Em  quan- 
to Tibério  por  cobiça,  captivava  os  Reis  que  se 
acolhiam  a  elle,  aparíavam-se  muitas  nações  do 
Império  Romano. 

Gaio  Calígula,  reinou  IV  annos.  Foi  avaro,  cruel 
e  escravo  da  luxuria.  Por  este  tempo  S.  Malheos 

0  Apostolo  foi  o  primeiro  que  escreveu  o  Evan- 
gelho na  Judca. 

Cláudio,  reinou  XIV  annos.  N'csta  época  en- 
trou em  Roma  S.  Pedro  Apostolo,  e  S.  Marcos  es- 
creveu o  seu  Evangelho  cm  Alexandria. 

Nero.  foi  muito  cruel,  reinou  XIV  annos.  c  en- 
tregou-se  á  luxuria.  Pescava  com  redes  de  ouro. 
N'ebte  tempo  foram  mortos  S  Pedro  c  S.  Paulo; 
um  em  uma  cruz  e  o  outro  a  golpes  d"espada. 

Vcsiiasiano,  reinou  VIII  annos,  XI  mezes  e 
XXII  dias;  esqueceu  as  injurias,  c  no  lí  anno  do 
seu  reinado,  Tilo  apoderou-se  de  Jerusalém,  on- 
de morreram  á  fome  e  a  cutiladas  onze  vezes  cem 
mil  judeos^  e  cem  mil  foram  vendidos  publica- 
menie. 

Tito,  reinou  II  annos.  Foi  affavel,  piedoso  e 
amado  dos  homens. 

Domiciano,  irmão  de  Tilo,  reinou  XVI  annos. 
Ensoberbecido  ordenou  que  lhe  chamassem  Deus, 
matou  os  Senadores  e  começou  a  perseguição 
contra  os  chrislãos.  Durante  o  seu  império  foi  o 
Apostolo  S.  João  desterrado  por  quatro  mezes  pa- 
ra a  ilha  de  Palmos. 

Xerva,  varão  moderado  no  seu  império,  reinou 

1  anno.  Xo  seu  tempo  o  Apostolo  S.  João  foi  a 
Epheso  :  e  recemchegado  c  a  instancias  dos  Bis- 
pos da  Asia,  publicou  o  seu  Evangelho. 

3.  Tiajano,  reinou  XIX  annos  e  VII  mezes. 
X'esle  tempo  moircu  o  Apostolo  S-  João. 

Adriano,  reinou  XXI  annos.  Este  restaurou  Je- 
rusalém, e  por  seu  nome  chamou-sc  Aelia. 

Antonino  o  Piedoso,  reinou  XXII  annos.  Foi 
mui  clemente,  e  mereceu  o  nomo,  de  Pai -da  Pá- 
tria. Galeno,  medico,  oriundo  de  Pérgamo^  flores- 
ce em  Roma. 

Antonino  o  menor,  reinou  XVII  annos.  Foi  ven- 
cedor. 

Commodo,  reinou  XIII  annos. 

llelvio  Pertinaz,  reinou  contra  sua  vontade  du- 
rante I  anno,  e  recusou  chamar  esposa  a  Au- 
gusta. 

Severo  pertinaz,  reinou  XVIII  annos.  N'este 
tempo,   Origines  instruio-se  em  Alexandria. 

Antonino  Caracalla^  filho  de  Severo,  reinou 
VII  annos.  Foi  libidinoso,  e  desposou  Nuberca. 

Macrino,  reinou  I  anno.  Nada  fez  digno  de 
memoria. 

Aurélio  António,  reinou  III  annos.  Foi  mor- 
to em  uma  sublevação  militar,  porque  o  mere- 
cia. 

Alexandre,  reinou  XIII  annos.  N'este  tempo 
brilhou  Origines  cm  Alexandria. 

Maximiano  reinou  III  annos,  perseguio  oschris- 
tãos. 

4.  Gordiano,  reinou  VII  annos.  Morreu  por  in- 
trigas dos  seus. 

Filipo,  reitiou  VII  annos.  Este  foi  o  primeiro 
imperador  christão  ;  a  sua  conversão  leve  lugar 
no  anno  milésimo  da  fundação  de  Roma. 

Dccio,  reinou  I  anno.  Foi  perseguidor  dos  chris- 
tãos,  e  no  seu  temi)0  fioresceu  no  Egypto  Santo 
António  Monge,  o  priujciro  fundador  de  Mos- 
teiros. 

Galo  e  seu  filho  Vilasiano,  reinaram  II  annos 


Valeriano  com  Galerio,  reinou  XV  annos.  N'es- 
la  época,  S.  Cipriano,  Bispo,  recebe  a  coroa  do 
martyrio. 

Cláudio,  reinou  dois  annos.  Venceu  os  godos 
que  assolavam  a  II iria  c  a  Macedónia. 

Aureliano,  rcinoii  VI  annos.  Persegue  os  chris- 
tãos,  aprisiona  o  Rei  dos  Persas,  e  envelhece  e 
morre  na  prisão  pelo  sentimento  que  lhe  causou 
a  sua  dcshonra. 

Tácito  reinou  J  anno. 

Probo,  reinou  VI  annos.  Foi  valente  na  guerra, 
e  alcançou  assignaladas  victorias. 

Caro,  reinou  II  annos  e,  ferido  d'um  raio, 
morreu. 

Diocleciano  e  Maximiano,  reinaram  XX  annos. 
Diocleciano  perseguio  os  chrislãos,  e  foi  o  pri- 
meiro que  mandou  que  no  falo  e  no  calçado  se  trou- 
xessem pedras  preciosas,  pois  até  aíi  os  Prínci- 
pes usavam  unicamente  a  purpura.  Havendo  am- 
bos deixado  o  império,  viveram  como  particu- 
lares. 

Galerio,  leinou  lí  annos. 

[Conlinua.) 

A  roda  que  se  pinta  á  fortuna  deve  de  ser  de  enge- 
nho de  nora,  aonde  os  homens  são  alcatruzes,  uns  cheios, 
outros  vasios,  uns  no  fundo,  outros  no  alio. 

D.F.  Maisuel. 


A  FORMIGA  E  A  ARANHA 

conto  Ci^Shoiiiaiio 

Os  pastores  haviam  queimado  o  ninho  da  for- 
miga, porque  ella  mordia  os  a  todo  o  momento. 
A  formiga,  não  podendo  vingar-se  d"elles,  foi  ler 
com  o  Senhor,  e  accusou  os  de  esperdiçarem  to- 
dos os  dias  muitas  migalhas  de  pão  ;  mas  não 
fallou  do  formigueiro,  porque  sabia  perfeitamen- 
te que  por  sua  causa  é  que  tinha  sido  quei- 
mado. 

—  Pôde  haver  verdade  no  que  me  expões,  dis- 
se Deus;  mas  não  tens  testemunhas  do  facto?  É 
preciso  que  m"as  apresentes. 

A  formiga  dirigio-se  A  aranha : 

—  Vinde  comigo,  minha  irmã,  necessito  de 
uma  testemunha  no  meu  processo  contra  os  pas- 
tores. 

A  aranha  acompanhou- a  ao  eco. 

—  Será  verdade,  como  o  assegura  a  formiga, 
que  03  pastores  lodos  os  dias  perdem  pão?  per- 
gunlou-lhe  o  bom  Deus. 

— li.  verdade,  mas  não  o  fazem  de  propósito ;  a 
culpa  tem-na  a  formiga,  que  os  não  deixa-socc- 
gar  um  momento:  morde-os  incessantemente, 
quer  durmam,  quer  velem,  quer  andem,  quer 
estejam  pai"ados. 

—  Disseste  a  verdade,  e,  para  rccompensar-te, 
quero  prover-lc  de  um  lio  que  trarás  sempre 
comtigo  c  com  o  qual  poderás  subir  ao  céo,  e 
descer  quando  te  approuver. --Mas  tu,  invejosa 
formiga,  que  fazes  mal  aos  teus  visinhos  e  vens 
depois  accusal-os  falsamente,  mereces  oulro  pre- 
mio. 

E  applicou-lhc  sobre  o  espinhaço  uma  benga- 
lada  tão  forte,  que  lhe  entrou  nas"  costas  de  mo- 
do que  ficou,  como  a  vemos,  mais  delgada  no 
meio  do  corpo.  (1) 

(11  Kxtrahido  do  lUis  Inland  (Interior  do  paiz),  revista  da3  pro" 
viiKjiíis  liallicas  da  Rússia. 

Typ.  Franco-Porlugueza  =  Rua  do  Thcsouro  Velho,  6. 


o  PANORAMA 


27B 


Benguella. 


Quando,  após  as  audaciosas  navegações  dos  descobri- 
dores porluguezes,  assoberljavamos  o  mundo  com  o  po- 
der das  suas  espadas,  e  levávamos  à  sombra  da  cruz 
o  dominio  de  Poilugal  alé  os  confins  do  remoto  orienie, 
eram  tantos  os  paizes  a  que  dictavamos  a  lei  e  (jue  tí- 
nhamos de  explorar,  que  quasi  parece  impossivel  que 
d'este  cantinho  da  Europa,  se  governassem  l.ão  largas  e 
Ião  distantes  colónias!  E  comtudo,  o  mecanismo  da  admi- 
nistração, era  de  certo  mais  simples  e  menos  desenvol- 
vido do  que  actualmente  1 

Mas,  o  que,  com  certeza,  succedia,  como  resultado  im- 
medialo  de  Ião  vaslo  império,  é  que  considerávamos 
algumas  d'essas  terras  como  filhas  (blectas  da  mãe  pá- 
tria, em  quanto  que  desprezando  outras  como  enteadas, 
deixamoFas  á  revelia  seguir  a  passos  mais  que  lentos, 
no  caminho  da  civilização.  Depois,  quando  já  n'este  sé- 
culo chegaram  as  horas  d'alribulação,  e  que  nos  vimos 
reduzidos  somente  ao  que  ate  ahi — se  não  desdenhára- 
mos como  inulii,  ao  menos  abandonáramos  como  de 
pouco  preço— começaram  os  gritos  e  os  lamentos,  con- 
tinuam os  choros  e  as  vociferações,  e  tudo  é  dizermos 
que  as  colónias  não  rendem,  que  não  dão  frucío,  que 
são  um  ónus  para  a  metrópole! 

Se  não  semeáramos  como  queríamos  colher? 

Todos,  ou  quasi  todos  os  esforços  se  haviam  em- 
pregado para  a  America,  deixava-se  tudo  mais  por  ella  ; 
e  quando  além  soou  a  hora  da  independência,  e  que  as 
náos  dos  fjui)ilos  deixaram  de  subir  o  Tejo,  oíTegantos 
com  o  peso  do  seu  ouro,  velámos  os  olhares  da  scena 
do  mundo  a  que  não  podíamos  já  deslumbrar  com  o 
luzir  das  pedrarias. 

Perdido  o  Brazil  julgamo-nos  perdidos,  porque  ne- 
nhuma das  outras  colónias  se  achava  em  estado  de  nos 
dar  igual  producto;  c  se  depois  o  interesse  nos  tem 
feito  lançar  á\idas  vistas  por  sobre  a  nossa  Africa,  tem 
vindo  as  mais  das  vezes  a  incúria,  ou  a  inépcia,  fazer 
dar  de  mão  a  quantos  |:roveitos  reacs  d'ella  poderíamos 
tirar, 

Considerava-sc  o  lírazíl  como  a  fonte  de  todas  as  ri- 
quezas, o  a  Africa  só  como  viveiro  aonde  se  l)uscavam 
os_  trabalhadores  que  lá  se  precisavam.  Era  esta  a  ma- 
neira de  então  olhar  as  cousas,  e  desgraçadamente  para 
Portugal,  ainda  muitos  não  as  olham  por"  outra  forma. 

Temos  sido  descuidados  e  muito,  modernamente  na 
administração  das  colónias,  mas  o  estatlo  de  esmoreci- 
mento  em  que  cilas  ainda  se  encontram,  c  mais  do  que 
a  isso,  devido  ao  uso  em  que  truitos  dos  nossos  se  po- 


zeram  — de  ganhar  muito,  com  pouco  trabalho  — e  por 
tanto  julgiiram  a  Africa  só  criada  para  a  exportação  de 
braços  ! 

k  escravatura  tem  sido  o  cancro  roedor  das  provindas 
de  Angola  e  Moçambique. 

Corre  n'alguns  escriplos,  já  com  foros  de  verdade  de- 
monstrada, que  Portugal  nãò  fora  fadado  por  Deus  para 
nação  colonisatlora,  e  ainda  que  o  estado  geral  do  nosso 
ultramar  dè  alguma  razão  de  ser  a  este  dito,  comtudo 
pôde  elle  soíTrer  séria  contestação.  Áqaelles  que  avançam 
uma  proposição  ião  olíensiva  dos  nossos  brios  como  "na- 
ção que  descobrio  meio  mundo,  e  que  primeiro  d'cntrc 
as  modernas  formou  colónias,  apontcmos-lhe  para  o  Bra- 
zil, a  que  em  menos  de  três  séculos  fizemos  quosi  o  (jue 
c,  desbravando  terrenos,  levantando  e  jiovoando  cidades 
e  villas,  fundando  engenhos  c  escolas,  civilizando  os  na- 
turaes,  ligando  a  sua  historia  intimamente  com  a  nossa 
alé  a  data  da  iiidependencia,  e  emíim  tornando  aquclla 
terra  tão  homogénea  com  a  mãe  pátria,  que  não  pareciam 
separadas  por  toda  a  largura  d'um  oceano. 

Deve-se  crer,  pois,  que  muilo  podemos  ainda  fazer 
pelas  nossas  províncias  africanas,  se  c  que  não  degenerou 
a  raça  dos  porluguezes  d'outr'ora. 

Vai  longo  o  prologo,  para  quem  tem  de  tratar  só  do 
que  representa  a  eslamjia  da  frente  do  artigo;  mas  é  que 
não  se  pôde  fallar  das  nossas  cousas  esquecidas  de  além- 
mar,  sem  occorrerem  as  reflexões  geraes  que  cm  resumo 
fizemos. 

A  cidade  de  S.  rilippe  de  Benguella,  cajutal  do  dis- 
Iricto  de  Benguella  e  segunda  da  Africa  porlugueza  áquem 
do  Cabo  na  costa  occidenlal,  esta  situada  por  doze  graus 
e  meio  de  laliliidc  ao  sul  do  equador,  quasi  a  meio  ca- 
minho entre  Ambriz  e  Mossamedes,  pontos  extremos  do 
litoral,  em  que  hoje  xcrdadeiramenle  dominamos;  ainda 
que  reservando  sempre  os  nossos  direilos  de  descobri- 
mento e  conquista,  muilo  além  d'estes  limites  quer  para 
o  norle,  quer  ]iara  o  sul. 

Pela  sua  situação,  é,  pois,  um  iionio  importante  para 
o  commercio  de  cabotagem  n'aquella  extensa  costa,  em- 
bora abstraindo  da  riqueza  agrícola  e  mineira  do  seu 
districlo,  e  de  sor  o  sitio  aonde  principalmenle  corre 
lodo  o  negocio  da  nossa  Africa  central.  iNão  pótie,  pois, 
jamais  deixar  de  ser  cidade  de  importância  commercial, 
apesar  do  seu  mau  clima,  c  ainda  das  idéas  de  muitos 
que  julgavam  a  colónia  mais  moderna  de  Mossamedes, 
destinada  a  roubar-lhc  Ioda  a  consideração. 
O  clima  é  na  verdade  bastante  mau,  mas  ha  muitos 


274 


O  PANORAMA 


outros  pontos  do  globo  que  o  lêem  aiiuia  pcior,  e  aonde 
coaitudo  floresccnies  cidades  se  oslenlam  garhosas  da 
sua  ri(|ueza  e  poderio.  Sirvam  de  exemplo,  Bombaia), 
Calcutá,  l?ala\ia. 

Renguella  solTre  das  causas  geraes  aos  climas  africanos, 
e  ainda  mais  particularmente  das  da  sua  posição,  que  a 
toiíograpliia  ilo  local  basta  para  indicar. 

Collocada  a  cidade  no  recôncavo  d"uma  larga  bahia, 
sobre  os  terrenos  alagadiços  da  extensa  baixa,  que  se- 
para a  praia  das  elevada"s  montanhas  do  interior,  está 
portanto  subjeila  ás  emanações  pestilenciaes  de  quantos 
jianlanos  formam  as  aguas '  represadas,  que  as  chuvas 
torrenciaes  despenham  das  alturas,  e  que  só  morosamente 
se  iiililtram  pelas  areias  barrosas  do  solo.  É  bem  lavada 
de  ares  pelos  ventos  mareiros  da  viração,  mas  estes  em 
geral  carregados  de  humidade,  não  são  por  isso  muito 
sadios,  e  mesmo  se  varrem  os  miasmas  para  fora  da 
cidade,  embatem  logo  contra  as  chapadas  dos  montes 
que  formam  como  a  parede  do  fundo  a  planície,  e  d'onde 
a  noite  as  brizas  do  terral  os  acarreiam  novamente  para 
cima  das  habitações. 

Tiradas  as  po'ucas  horas  em  que  sopra  a  viração,  res- 
pira-se  uma  allimosphera  paludosa,  anda-sc  cercado  d'um 
ambiente  húmido  de  vnpor,  e  quasi  que  se  palpa  um  ar 
grosso  e  pesado  de  gazes  irrespiráveis,  que,  comludo,^é 
agradável  de  perfumes,  das  exhalações  balsâmicas  de  mil 
plantas  Iropicáes. 

A  cidade  c  pouco  espaçosa  e  não  lem  grande  numero 
de  casas  elevadas,  mas  com  as  suas  cercanias  cheias  de 
borlas  ou  fazendas  verdejantes  de  cultura,  lorna-se  bo- 
nita e  de  apparencia  pitoresca. 

Para  quem  anda  crusando  ao  longo  da  desolada  costa 
d"Africa,  encontrando  só  com  a  vista  areáes  adustos,  ou 
na  maior  parte  dos  sitios  encostas  escalvadas  e  riban- 
ceiras nuas  de  verdura,  é  aprazível,  vindo  do  norte,  de- 
mandar o  porto  de  Benguella,  costear  as  salinas  do  Lo- 
bito,  rastejar  pela  povoação  da  Catumbella  toda  cercada 
de  luxuriante  vegetação  e  coroada  pelo  seu  pequeno  forte 
a  meia  subida  da  montanha,  e  por  fim  dar  fundo  de- 
fronte da  cidade  de  S.  Tilippe,  \endo  na  frente  do  qua- 
dro algumas  casas  de  agradável  ai)parencia,  depois  os 
arvoredos  e  as  hortas,  tudo  fechado  ao  fundo  pelas  ser- 
ranias áridas  que  vão  terminar  ao  sul  no  morro  do 
Sombreiro,  e  por  cima  das  quaes  campeam  altivas  a 
entestar  com  as  nu\ens,  as  cordilheiras  negras  que  do- 
mina o  Pão  d\assucarl 

O  morro  do  Sombreiro,  bem  conhecido  de  todos  os 
navegantes  d"aquellas  paragens,  c  uma  montanha  de  me- 
diana altura,  jierto  da  borda  d'agua,  c  à  qual  a  natureza 
caprichosa  se  divertio  a  talhar  o  píncaro  jior  forma,  que 
de  lodos  os  lados  que  se  veja  parece  um  barrete  de 
clérigo,  assente  e  cobrindo  o  ápice  d'um  monte  pyrami- 
dal  de  larga  base.  Todos  os  navegadores  procuram  nos 
diversos  sitios  do  globo,  jjonlos  ou  marcas  de  formas 
conhecidas,  que  sirvam  de  indicação  de  lugar ;  mas  não 
ha  em  parte  alguma,  nenhum  dô  mais  fácil  reconheci- 
mento 00  que  o  morro  do  Sombreiro. 

O  nome  provem,  pois,  «lo  seu  aspecto  geral,  e  não,  como 
disse  um  dislinclo  escri|)tor  nosso,  niima  obra  oíTicial, 
d"um  monte  de  arv^ores  que  tcidia  no  cume  com  pare- 
cenças de  barrete  de  padre. 

Houve  oulr"ora  a  idca  de  coUocar  sobre  a  planura  do 
Sombreiro,  um  farol  que  servisse  de  guia  a  quem  de- 
manda o  porto  de  noite  vindo  do  sul,  para  assim  com 
mais  facilidade  se  evitarem  sinistros  possíveis  na  praia 
das  Salinas;  mas  este  pensamento,  como  cm  gorai  todos 
aquellcs  de  alguma  utilidade,  foi  abandonado,  e  só  restam 
lá  no  alio  como  padrão  d'incuria,  as  ruínas  inglórias  da 
casa  do  farolcíro. 

O  porto  ou  bahía  de  Benguella  c  mão;  não  tanto  por 
se  achar  exposto  e  desabrigado  de  toilos  os  ventos  desde 
oessudoesle  pelo  norte  até  o  nordeste,  que  poucas  vezes 
são  demasiadamente  frescos,  como  principalmente  por 
eslar  siií)jeito  ás  Ilmtívcís  calemas,  que  dillicnllam  sem- 
pre, e  impedem  por  vezes  as  rommunicaçôcs  com  a  terra. 
íí  a  calrma  o  esbravejar  das  vagas  nas  proximidades 
da  praia,  atirai, do-se  depois  sobre  ella  em  alvos  Icnçóes 
de  espuma;  succcdendo  por  vezes  cpjc  se  levantam  tão 
magcslosos  rollos  de  mar,  que  ao  desdobrar-sc  necessa- 


riamente embrulham  e  quebram  tudo  que  enconlram  na 
sua  marcha  altiva  para  a  praia. 

iNada  ha  na  scicncia,  que  explique  ainda  satisfatoria- 
mente este  phonomeno  das  calemas:  que  nada  depen- 
dem da  braveza  do  oceano,  porque  este  muitas  vezes  a 
pouca  distancia  da  costa  está  li/.o  como  um  espelho,  em 
quanto  na  praia  ostenta  todas  as  suas  fúrias;  nem  das 
correntes,  porcpie  estas  continuam  ao  longo  da  costa  a 
sua  marcha  constante  para  o  norte,  sem  desviarem  ca- 
minho por  causa  (relias;  nem  das  marés,  porcpie  não 
appnrecem  em  períodos  determinados,  nem  reconhecem 
como  causa  primaria  as  atlracções  lunares;  nem  mesmo, 
como  alguns  teem  dito,  dos  tenqioraes  do  cabo  da  Boa- 
Ksporança,  porque  então  devia  sentir-se  fora  o  mar  cs- 
cnndalisado  do  temporal  o  (pie  não  se  dá,  e  ainda  mais 
deviam  as  calemas  ir  diminuindo  de  força  successiva- 
meiíte  para  o  norte,  o  que  lambem  não  succede,  pois 
que  se  dá  o  caso  de  haver  calema  bravíssima  ao  norte, 
conser\ando-se  as  praias  do  sul  na  mais  perfeita  quietação. 

Seja  o  que  fór  que  motive  as  calemas,  é  um  fado  ave- 
riguado para  lodos  os  habitantes  da  cidade,  e  para  os 
frcíjuentadores  do  porto  de  Benguella,  que  as  grandes 
calemas  d'oulro  tempo  são  hoje  ali  muilo  mais  raras; 
apparecendo  com  longos  inlervallos,  c  não  sendo  mesmo 
da  força  e  valentia  que  então  tinham. 

Ao  contrario,  nas  praias  do  norte  teem  augmenlado ; 
e  ainda  o  anno  passado  (186.5),  na  contra  costa  da  ilha 
(|uc  fecha  o  i)orto  de  Loanda,  baliam  as  calemas  com 
tal  fúria  que  varavam  ao  outro  lado  interior,  e  chegavam 
a  cercar  a  casa  do  negociante  Flores,  em  que  habitava 
s.  cx.-'"  o  governador  Andrade. 

Não  havia  memoria  ou  noticia  de  caso  semelhante,  e 
diziam  os  antigos  de  Loanda,  que  era  a  primeira  vez 
que  se  dava.  A  ilha  de  Loanda,  lem  n'aquelle  ponlo  tal- 
vez cento  e  cincoenta  metros  de  largura,  e  a  sua  eleva- 
ção no  combro  do  meio  das  duas  costas,  não  deve  ser 
de  menos  de  cinco  melros  acima  do  nível  do  mar. 

Não  será  jior  ventura  este  facto,  um  lanlo  ou  quanto 
dependente  das  differcnças  de  nivelamento  dos  fundos? 
por  lerem  as  aguas  accúmulado  areias  para  um  lado,  c 
roubado  n'outros. 

As  proximidades  da  praia  do  fundo  da  bahía  de  Ben- 
guella, podem  ser  hoje  menos  csparceladas  do  que  an- 
tigamente, o  que  não  daria  tanto  lugar  à  subida  succes- 
siva  das  ondas,  maneira  porque  os  sábios  francezes 
explicam  o  mascarei  da  foz  do  Senna,  que  deve  ter 
muita  semelhança  com  o  desenrolar  da  calema.  Isto  c 
possível;  porque  hoje  enconlram-sc  no  porto  alfaques, 
ou  coroas  de  areia  c  Iodo,  de  que  não  faliam  os  velhos 
roteiros ;  c  que,  quem  sabe  se  servirão  como  de  quebra 
mar?  É  esta  uma  questão  que  demanda  sério  estudo,  c 
que  não  vem  para  aqui  a  propósito  d'uma  simples  noti- 
cia descriptiva.  q  e.  Courea  da  Silva. 

(ConMiu(i) 


O  CONDE  ALLAMISTAKEO 

Tcndo-nos  osculado  com  mui  la  ai  tenção  ale  o 
íim,  o  conde  começou  a  conlai--nos  al^aimas  anec- 
dolas  que  nos  provai-am  claramenle  que  os  prolo- 
lypos  de  (lall  e  Spuiv.iíeim  Unham  llorescido  c 
descaído  no  Kgvjilo,  mas  em  uma  época  Ião  an- 
liga  que  a  lembrança  d'ella  eslava  quasi  perdida, 
—  c  que  os  pi-ocessos  de  Mesmer  eram  misei-aveis 
enganos  cm  comparação  dos  milagres  posilivos 
operados,  pelos  sábios  de  Tliebas,  que  creavam  pul- 
gas c  uma  mullidão  de  oulros  seres  semelhanles. 

Pergunlei  enlão  ao  conde  se  os  seus  compalrio- 
las  eram  capazes  de  calcular  oscclypses.  Soirio-se 
com  cerlo  desdém  e  allirmou-me  (pie  sim. 

lalo  embaraçou-me  um  pouco;  não  obslanle  co- 
meçava a  fazer-llie  oulras  perguntas  relalivamenle 
aos' seus  conliecimenlos  aslronomicos,  ([uando  al- 
guém da  sociedade,  que  ainda  não  linha  aberto  a 


o  PANORAMA 


275 


boca,  me  disse  ao  ouvido  que,  se  eu  precisava  de 
esclarecimentos  sobre  esto  ponlo,  andaiia  melhor 
consullando  um  cerlo  Píoleméo,  ou  um  tal  Plutar- 
co, no  artigo  De  facic  luno?. 

Questionei  então  com  a  múmia  sobre  os  vidros 
ardentes  c  lenticulares,  e  geralmente  sobre  a  fa- 
bricação do  vidro;  mas,  não  tiniia  ainda  acabado, 
já  o  meu  silencioso  camarada  me  locava  com  o 
cotovello,  e  me  pedia,'  pelo  amor  de  Deus,  que 
lançasse  um  olhar  sobre  o  Diodoro  de  Sicilia. 
Quanto  ao  conde,  perguntou-me  simplesmente,  se, 
nós  outros  modernos,  possuíamos  microscópios  que 
nos  permiltissem  gravar  agathas  finas  com  a  per- 
feição dos  egypcios.  Em  quanto  eu  procurava  uma 
resposta,  o  pequeno  doutor  Alexandre  aventurou-se 
a  uma  cousa  muito  extraordinária. 

— Veja  o  nossa  architectura,  conde, — exclamou 
elle  com  grande  indignação  dos  dons  viajantes, 
que  ihe  puxavam  pelas  abas  do  casaco  o  lhe  da- 
vam belliscões,  mas  som  conseguirem  fazel-o  cal- 
lar. 

— Vá  \er,  conde,  continuava  elle  com  grande 
enlhusiasmo,  o  magnifico  pedestal  do  grande  mo- 
numento que  os  lusos  tencionam  erguer  á  memo- 
ria do  immortal  cantor  das  nossas  antigas  faça- 
nhas ;  veja  lambem  as  costas  do  palácio  das  cor- 
tes, obra  soberba  começada  sob  a  inspirada  direc- 
ção de  um  dos  nossos  mais  distinctos  personagens! 

E  o  pobre  homem,  sem  atlender  a  cousa  algu- 
ma, levado  pelo  seu  patriotismo  e  idéas  progres- 
sistas, foi  até  descrever  minuciosamente  o  edificio 
em  questão.  Mostrou  que  o  pórtico  tinha  suíTicien- 
te  largura  para  poderem  entrar,  sem  inconvenien- 
te, os  pares  da  nação ;  marcou  a  dimensão  e  a 
distancia  das  janellas ;  e  emfim,  disse  o  numero 
doestas,  das  portas  secundarias  e  de  columnas 
que  se  encontrara  em  todo  o  edificio. 

O  conde  disse  que  sentia  não  poder  lembrar-se 
n'aquelle  momento  da  dimensão  precisa  de  algu- 
mas das  principaes  construcçõcs  da  cidade  de  Aznac, 
cuja  fundação  mergulhava  na  noite  dos  tempos, 
mas  cujas  ruinas  existiam  ainda  de  pé,  na  época 
do  seu  enterro,  em  um.a  vasta  planície  de  aréa  ao 
oeste  de  Thebas.  Tinha,  comtudo,  uma  idéa  vaga, 
a  respeito  de  pórticos,  que  havia  um  de  segunda 
ordem  em  uma  espécie  de  vil  la  chamada  Carnac, 
formado  de  cento  e  quarenta  e  quatio  columnas 
de  trinta  e  sete  pés  de  circumferencia  cada  uma, 
e  distantes  umas  das  outras  vinte  e  cinco  pés. 
Cbegava-se  doiNilo  a  este  pórtico  por  uma  alameda 
de  duas  milhas  de  comprimento,  formada  por 
sphinges,  estatuas,  obeliscos  de  vinte,  sessenta  e 
cem  pés  de  altura.  O  palácio,  em  si,  teria  umas 
cinco  milhas  de  comprimento;  no  todo  não  tinha 
menos  de  doze.  Não  pretendia  aílirmar  que  den- 
tro das  suas  paredes  se  poderiam  edilicar  mil  ou 
mil  e  quinhentos  palácios  de  cortes ;  mas  pare- 
cia-lhe  que  não  haveria  grande  diíficuldade  em 
pilhar  ali,  d'estes,  Ires  a  quatro  mil.  Este  palácio 
de  Carnac,  a  final  de  contas,  era  uma  insigniíican- 
te  construcção.  Não  obstante,  o  conde  não  podia, 
em  consciência,  deixar  de  reconhecer  o  estylo  en- 
genhoso, a  magnificência  e  a  superioridade  das 


costas  do  palácio  das  cortes,  tal  como  o  doutor  as 
descrevera.  Era  forçado  mesmo  a  confessar  que 
nunca  linha  vislo  no  Egypto,  nem  em  parte  algu- 
ma do  mundo,  um  trabalho  de  tanto  efleito  e  gos- 
to; que  só  das  nossas  mãos  podia  sair  uma  cousa 
d'aquellas ! 

Perguntei  então  ao  conde  o  que  pensava  dos 
nossos  caminhos  de  ferro. 

—  Cousa  alguma  de  particular,  disse  elle.  Yejo 
que  teem  sido  um  sorvedouro  de  milhões;  mas 
acho-os  fracos,  mal  concebidos,  e  de  grosseira 
construcção.  Não  podem  ser  comparados  com  as 
vastas  calçadas  guarnecidas  de  encaixes  de  ferro, 
horisonlaos  e  directos,  sobre  os  quaes  os  egypcios 
transportavam  templos  inteiros  e  obeliscos  maciços 
de  cento  e  cincoenla  pés  de  altura. 

Fallei-lhe  das  nossas  forças  mechanicas.  Conveio 
que  sabiamos  fazer  alguma  cousa  n"este  género,  mas 
perguntou-me  como  procederíamos  nós  para  collo- 
carmos  as  impostas  sobre  as  vergas  das  portas  do 
mais  pequeno  palácio  de  Carnac. 

Julguei  mais  acertado  fingir  que  não  ouvia  esta 
questão,  e  pergunlei-lhe  se  linha  alguma  idéa  dos 
poços  artesianos;  mas  elle  simplesmente  fi'anzio 
as  sobrancelhas,  em  quanto  que  o  padre  Gilbei'lo 
me  fazia  um  signal  com  os  olhos  muito  pronun- 
ciado, e  me  dizia  em  voz  baixa  que  os  engenhei- 
ros encarregados  de  explorar  o  terreno  para  achar 
agua  no  Grande  Oásis  tinham  descoberto  um  mui- 
lo  recentemente. 

(Continua) 

OS  REIS  E  RAINHAS  DINGLATERRA 

Besdc  a  conquista  até  f  6SS 

Os  homens  collocados  no  cume  da  sociedade 
deveriam  considerar  que  são  elles,  particular- 
mente, quem  tem  obrigação  de  dar  o  exemplo 
de  uma  vida  honesta;  porque,  debaixo  sempre 
das  vistas  de  todos,  estão  destinados,  quer  seja 
da  sua  vontade,  quer  não^  a  servirem  de  modelos. 
Por  que  fatalidade,  pois,  estes  homens,  quasi  em 
todos  os  tempos,  lêem  estado  abaixo  da  mais  me- 
díocre e  mais  vulgar  moralidade?  Por  que  mo- 
tivo muitos  d'entre  elles  teem  sido  os  primeiros 
a  darem  o  exemplo  dos  vícios  mais  desprezíveis, 
dos  mais  nefandos  crimes  ? 

Eis  o  excerpto  de  um  livro  no  qual  um  notável 
historiador  (1)  pinta  era  rápidos  traços  (somente 
no  sentido  de  lealdade  e  humanidade)  o  proce- 
dimento dos  reis  e  rainhas  de  Inglaterra  desde 
a  conquista  dos  Normandos  até  a  revolução  de 
1688,  que  fundou  a  liberdade  ingleza. 

«Não  são,  diz  elle,  senão  revoluções  domesti- 
cas e  parricidas:  filhos  contra  pães,'  irmãos  con- 
tra irmãos. 

«l\oberto,  filho  primogénito  do  conquistador, 
começa  por  atacar  seu  pai.  Depois  c  desapossa- 
do por  seus  irmãos  mais  novos:  Guilherme  II 
toma-lhe  a  Inglaterra;  Henrique  I,  leva-lhe  com 
a  Inglaterra  a  Normandia  e  conserva-o  vinte  e 
oito  annos  em  uma  prisão.  Henrique  II  supplanta 
a  raça  d'Estevam,  e  acaba  o  seu  reinado  no 
meio  da  revolta  de  seus  filhos,  Ricardo  e  João. 

«João  mata  seu  sobrinho  Arlhur;   seu   filho 

(I)    n.  Wallon:    .nicliard  IH,   episodio  da  rivalidade  da  Franç 
com  a  Inglaterra. 


276 


O  PANORAMA 


Henrique  III  não  escapa  ás  guerras  de  família 
senão  para  cair  nas  guerras  civis.  Eduardo  I  con- 
segue livrar-se  d'ellas  e  morre  naluralmenlc;  mas 
Eduardo  II  c  desthronado  e  assassinado  por  sua 
mulher,  desejava  poder  dizer  sem  a  menor  con- 
nivencia  de  seu  íilho  Eduardo  III. 

((Ricardo  II,  o  neto  e  herdeiro  de  Eduardo  III.  é 
derrotado  e  morto  por  seu  primo  Henrique  de  Lan- 
castre  (Henrique  IV);  Henrique  VI,  por  Eduardo 
d"Vork  (^Eduardo  IV):  os  llllios  d"Eduardo  ])elo  rei 
Hicardo  111;  Ricardo  III,  por  Henrique  VII. 

('Henrique  VIU.  repudiando  ou  matando  suas 
mulheres,  lega  uma  herança  de  ódios  recíprocos 
e  de  vingança  aos  filhos  nascidos  d'estes  matri- 
mónios;— Eduardo  VI,  que  prepara  pela  desgra- 
ça os  reinados  violentos  de  suas  duas  irmãs;  — 
Maria  que  mata  Joanna  Grey,  e  persegue  Isabel, 
— Isabel,  que  manda  matar  iMaria  Stuart,  a  mãi 
do  seu  próximo  herdeiro. 

«A  casa  de  Sluart  sobe  ao  Ihrono  pelos  degrao.s 
tintos  do  seu  próprio  sangue  (depois  d'uma  re- 
volução e  uma  restauração)...  E  na  sua  qualida- 
de de  genro,  é  em  nome  e  com  a  cumplicidade 
daíilhade  JacquesII,  sua  mulher,  que  Guilherme 
d'Orange  a  expulsa  em  1088.» 

Que  horrível  historia!  E  é  somente  a  dos  cri- 
mes! Que  seria  se  se  lhe  accrescentasse,  por  ex- 
emplo, a  dos  costumes!  Não  é,  realnienie  de  uma 
grande  felicidade  que  em  Inglaterra*  como  nos 
de  mais  paizes,  a  maioria  dos  cidadãos  tenha  si- 
do quasi  sempre  melhor  que  os  seus  soberanos? 
Se  assim  não  fosse  a  sociedade  humana  ha  mui- 
to não  existiria. 

A  verdade  é  como  o  orvalho  do  céo :  para  a  conser- 
var pura,  é  mister  recolhel-a  em  vaso  puro. 

B.  DE  Saim-Pierre  —  La  Chaumiere. 


O  cuscus 

A  palavra — Os  habitantes  da  Africa  septemtrio- 
nal  comprehendcm  cm  geral  sob  esta  denjmi- 
nação  toda  a  espécie  de  manjar  composto  de 
farinha  branca  ou  parda  e  cosido  a  vapor  no 
keshass,  vaso  semelhante  a  uma  escudclla  cujo 
fundo  íosse  crivado  de  muitos  buracos. 

A.  Cherbonneau,  director  do  collegio  imperial 
arabe-francez  em  Algcr,  pensa  que  a  palavra  cus- 
cus ou  kuskus  é  uma  onomaloptía.  As  letras  e 
syliabas  que  a  compõem  só  servem  para  imitar 
a' bulha  produzida  pelo  vapor  quando  os  grumos 
de  farinha  passam  alravez  dos  buracos  do  vaso. 

PrcjmraçMo  do  c»«cíís.  — Depois  de  terminada  a 
colheita,  ás  mulheres  reúnem  em  um  lugar  des- 
coberto e  muito  isolado  a  quantidade  de  trigo 
rijo  destinado  para  a  j)reparação  do  cuscus.  Es- 
to trigo  é  completamente  molhado,  c  depois  posto 
ao  sol  em  monte  coberto  com  paumis  húmidos. 
No  lim  de  algumas  horas,  estando  o  grão  bem 
inchado,  e  sem  esperar  que  comece  a  germina- 
ção, estendc-se  em  cama  delgada,  sobre  liniks  ou 
em  terreno  balido.  Quando  a  deseccação  eslã 
muito  adiantada,  pa.ssa-se  o  grão  por  entre  duas 
m<)S  de  calcareo  rijo.  A  mó  superior  é  movida  a 
braço,  ordinariamente  por  uma  mulher;  os  grãos 
são  só  reduzidos  a  fragmentos  da  grossura  de 
bagos  do  milho;  expoem-sc  novamente  ao  sol,  e 
enlão  basta  joeiral-o  para  eliminar  as  pelliculas. 
Depois  é  mel  tido  em  pelles  de  carneiro  ou  de 
cabra. 


Differentes  espécies  de  museus.  — Conlam- se  oito 
espécies  de  cuscus,  das  quaes  eis  a  definição: 

1.°  A  berbucha,  segundo  o  costume  dos  habi- 
tantes de  Constantina,  prepara-se  com  farinha 
escura.  É  o  cuscus  mais  commum:  forma  quasi 
exclusivamente  o  sustento  da  classe  pobre. 

2."  O  medjburó  feito  de  massa  de  primeira  qua- 
lidade ou  de  farinha  européa.  Os  grãos  d"este 
cuscus  devem  ter  a  grossura  do  chumbo  de  caça. 
iMisturam-no  com  carne  de  carneiro,  gallinhás, 
pombos  ou  perdizes.  Depois  d"esta  primeira  ope- 
ração cose-se  mais  duas  vezes  no  keskass;  ajun- 
ta-se-lhe  então  manteiga  derretida,  e,  quando  se 
come,  deita-se  lhe  caldo  (mcrga). 

3."  O  mahivér  prepara-se  com  os  mesmos  ingre- 
dientes que  o  madjcbur,  com  a  diíVerença,  porem, 
que  o  grão  deve  ser  mais  miúdo.  O  maincêr  mais 
estimado  é  o  chamado  nemli,  porque  se  asseme- 
lha pela  tcnuidade  dos  seus  grãos  a  cabeças  de 
formigas  (nemla).  Adubam-no  com  Ccirnes  frescas, 
mas  nunca  com  kh.elie  ou  kaddide.  (1) 

4.°  O  harachc  fi  Jiarache  é  assim  chamado  por- 
que a  farinha  de  que  se  compõe  é  de  grossa 
moedura.  Mui  pouco  differe  do  precedente.  Pre- 
param-no  com  carnes  frescas,  klielie  ou  kaddide. 
O  adubo  ordinário  d'esle  cuscus  é  composto  de 
cebolas,  sal,  pimenta,  chicbaros  e  de  bolinhas  de 
carne  da  grossura  de  uma  baila  d'espingarda. 

5.°  O  .'//("«/"íí/efabrica-se  com  a  primeira  qualidade 
de  frumento.  Cose-se  do  mesmo  modo  que  lodos 
os  outros  cuscus;  somente  lhe  misturam  bagos 
de  passa  ou  de  romã.  Quando,  para  tornai  o  mais 
delicado,  lhe  ajuntam  lebcii  (soro  de  leite)  ou 
leite  puro,  toma  o  nome  de  bnrbakr. 

6.°  O  mcchrub  não  é  geralmente  muito  estima- 
do. Quando,  cm  consequência  de  abundantes 
chuvaSj  a  agua  tem  peneirado  nos  silos  c  chega 
ao  Irigo  que  n'elles  existe,  este  trigo  embebe-se 
{ichrob)  e  adquire  ao  mesmo  tempo  um  gosto  agro 
e  um  cheiro  repugnante.  Depois  de  o  ler  tirado 
do  silo,  põe-se  a  seccar,  raoe-se,  e  é  d'esla  fari- 
nha que  se  faz  o  mechrub.  Assim,  este  género  de 
cuscus  eslá  longe  de  ser  fino. 

7.°  Quanlo  ao  mczeiít,  eis  de  que  se  compõe : 
entre  os  silos,  ha  alguns  cuja  terra  éboa,  e  quan- 
do se  extrae  o  trigo  que  ali  tem  existido  dois  an- 
nos  e  algumas  vezes  mais  tempo,  sem  nunca  ler 
sido  tocado  pela  agua,  encontra-se  adhcrentc  ãs 
paredes  da  cavidade  o  que  os  indígenas  chamam 
mezcuU  uma  espécie  de  crosta  produzida  pela  humi- 
dade que  a  terra  communica  sempre  aos  grãos 
que  encerra.  Esta  crosta  apresenta  uma  cor  par- 
da e  o  gosto  é  levemente  assucarado.  Eaz-se  d'ella 
o  incdjcbur.  Ao  que  dizem  os  Árabes,  é  um  man- 
jar cxquisilo,  o  pralo  dos  amigos.  O  cuscus  mc- 
zeul  prepara  se  com  manleiga  fresca  c  carne  de 
carneiro. 

8."  O  aiclie  assemclha-sc  i  sopa  de  arroz,  com 
a  diíTerença  (jue  os  grumos  de  cuscus  substituem 
os  bagos  de  arroz.  Cose-se  em  calda  de  damas- 
cos seccos,  designados  no  dialecto  barbaresco 
pela  palavra  fermasí^e  (em  latim)  fírmus'!). 

Nas  épocas  de  cscasseza,  quando  aos  Árabes 
faliam  o  trigo  e  a  cevada,  recorrem  ao  heguga, 
vulgarmente  draconcio  dos  Gregos  ou  mão  de 
vitella  (cm  hcspanhol,  cl  caudil  dei  diablo).  E  o  pão 
da  fome. 


(1;    o  Kliflio  ('•  uma  comida  composta   do   carnes   do  vaca  e  do 
carneiro.  O  Kaddid(3  corresjifjndy  ú  carne  salgada. 


o  PANORAMA 


277 


Hie-h-street. 


Londres  não  expressa  simplesmente  uma  cidade 
na  accepção  ordinária  d'esla  palavra,  mas,  uma 
agglomcração  de  cidades,  uma  provincia  coberta 
de  casas,  monumentos  e  palácios  atravessada  por 
ura  braço  de  mar.  Para  o  leitor  poder  formar  uma 
idea  adequada  do  que  é  a  capital  da  Grau  Breta- 
nha, seria  necessário  que  fizesse  um  esforço  de 
imaginação  e  figurasse  todo  o  reino  de  Portugal 
convertido^  por  obra  e  graça  de  uma  revolução 
monstruosa^  em  uma  cidade  chamada  Lisboa, 
capital  da  Lusitânia,  ou  a  Bélgica  inteira  trans- 
formada em  Bruxellas,  capital  da  França. 

A  área  de  cada  um  d'estes  estados,  assim  con- 
vertidos, seria,  talvez,  maior,  e  superior  a  sua 
população ;  mas  nem  as  suas  riquezas  nem  a  sua 
importância  actuaes  excedem,  não  dizemos  bem, 
igualam  a  riqueza  e  a  importância  de  Londres. 
Aqui  ha  alguns  annos  podia  perfeitamente  ap- 
plicar-se  á  metrópole  de  Inglaterra  a  mesma  ce- 
lebre phrase  com  que  o  astuto  diplomata  de  Yien- 
na  designava  a  Itália.  Hoje  mesmo  estamos  quasi 
tentados  a  dizer  que  esta  capital  c  uma  simples 
expressão  geographica,  não  obstante  Dawning- 
street,  as  camarás  de  Westminster  e  o  palácio  de 
Buckingham. 

Desejando  formar  uma  metrópole  digna  de  tão 
poderoso  império,  o  parlamento  inglez,  tomou 
quatro  condados  e  meia  dúzia  de  cidades^  disse 
fiat  London  no  mesmo  tom  imperioso  em  que 
Deus  pronunciou  o  fiai  lux  ao  tirar  o  mundo  do 
cahos^  e  criou  a  capital  de  Inglaterra. 

A  cidade  de  Londres  é  de  todas  da  terra  a  mais 
povoada ;  conta  nada  menos  de  três  milhões  de 
habitantes  que  despendem  annualmeníe  em  co- 
mida e  vestuário   400:000:000:000  de  réis.  Esta 


povoação  é  uma  quarta  parte  maior  que  a  de 
Pekin/  um  teiço  maior  que  a  de  Paris,  cinco  ve- 
zes maior  que  a  de  Constantinopla,  seis  vezes  co- 
mo a  de  S.  Pelersburgo,  dez  como  a  de  Madrid, 
doze  como  a  de  Lisboa,  duas  como  a  de  Nova 
York,  cinco  como  a  de  Vienua^,  e  seis  vezes  tão 
grande  como  a  de  Berlin. 

Uma  só  linha  não  interrompida  dos  edifícios  does- 
ta moderna  Babylonia,  desde  Highgate  até  Camber- 
well,  estende-se  na  immensa  distancia  de  doze 
milhas  inglezas.  E  se  todos  os  que  contém  se 
pozessem  alinhados  a  um  de  fundo,  bastariam 
para  cruzar  com  elles  a  Inglaterra  e  atravessan- 
do o  canal  da  Mancha  e  o  império  vizinho  irem 
beijar  as  agrestes  faldas  dos  Pyrenéos.  Fazendo 
andar  os  seus  3:000:000  de  habitantes  a  dois 
de  fundo,  formariam  outra  linha  de  7:20  milhas 
que,  caminhando  a  razão  de  três  por  hora,  em- 
pregariam nove  dias  e  nove  noites  em  percorrer 
igual  distancia. 

Um  passeio  a  pé  á  roda  de  Londres  seria  quasi 
tão  laborioso  como  uma  viagem,  se  possível  fosse, 
de  circumvalação  á  roda  do  mundo.  O  viandante 
não  o  poderia  effccluar  em  menos  de  três  dias,  ain- 
da que  caminhasse  a  i-azão  de  vinte  milhas  cada 
jornada.  A  sua  extensão  de  norte  a  sul,  é  somente 
de  oito  milhas;  de  oriente  a  occidente,  porém, 
não  conta  menos  de  dezoito.  Para  formar  outra 
Londres  seriam  precisas,  pouco  mais  ou  menos, 
cincoenla  cidades  consideráveis  de  Inglaterra. 

Segundo  observa  o  famoso  astrónomo  Herschell, 
esta  capital  occupa  quasi  o  ponto  central  do  he- 
mispherio  terrestre^  devendo,  sem  duvida,  a  esta 
circumstancia.  combinada  com  a  da  sua  situação 
insular  no  caminho  real  das  nações,  a  sua  emi- 


278 


O  PANORAMA 


nencia  commercial.  Cidade  marilima,  mercantil 
e  industrial,  contém  em  si  todos  os  grandes  ele- 
mentos que  constituem  a  verdadeira  grandeza  dos 
povos  e  tornam  poderosos  os  estados.  Embora  si- 
tuada nas  ourelas  do  Tamisa,  e  a  lo  milhas  do 
mar,  Londres  goza  de  todas  as  inapreciáveis  van- 
tagens de  um  excellente  e  seguro  porto.  A  sua 
área  é  de  perto  de  40  milhas  quadradas.,  c  entre 
ruas.  praças,  travessas,  squares,  os  seus  habitan- 
tes contam  dez  mil  vias  de  communicação.  A 
extensão  de  todas  e.stas  ruas  postas  em  linha  re- 
cta, seria  de  3:000  milhas.  O  numero  de  ruas 
com  passeios  aos  lados  eleva-sc  a  5:000  e  a  lon- 
gitude d'estas  é  de  2:000  milhas,  cuja  construc- 
çào  custou  ao  governo  6 7;  1^00:000:000  de  reis.  Os 
úastos  da  sua  reparação  sobem  somente  a  réis 
8:()i0:000:000.  O  numero  de  casas  excede  340:000. 

A  cidade  de  Londres  gasta,  além  d'isso,  todos 
os  annos,  10:080:000:000  réis  na  illuminação  de 
gaz,  formada  por  4;^0:000  luzes,  que  consommem 
14:000:000  de  pés  cúbicos  cada  noite. 

Este  gaz  é  fabricado  com  1:000:000  de  tonela- 
das de  carvão  de  pedra  e  circula  por  uma  linha 
de  canos  de  2:000  milhas  de  comprimento.  A  im- 
portação do  carvão  de  pedra  no  porto  de  Londres 
é  feita  por  12:000  navios  e  eleva-se  a  4:000:000  de 
toneladas  annualmente. 

Os  canos  da  agua  são  quasi  tão  largos  como  os 
do  gaz.  e  distribuem  entre  a  sua  povoação  cerca 
de  80:000:000  de  galões  diarianienle  d"csle  li- 
quido. 

O  porto  de  Londres  estcnde-se  ao  longo  do  Ta- 
misa desde  Limehouse  até  Gravescnd,  cidade  si- 
tuada na  sua  margem  direita  a  30  milhas  de  dis- 
tancia. As  suas  exportações  e  importações  elevam- 
a  072:000:000:000  réis  por  anno,  e  o' numero  de 
navios  que  ali  entrara  e  saem.,  no  mesmo  perío- 
do, sobe  a  muitos  milhares.  Os  direitos  das 
suas  alfandegas  excedem  11:000:000:000  esterlinos 
annualmente,  apesar  das  liberaes  reformas  feitas 
por  Mr.  Gladstone. 

Londres  é  o  empório  do  commcrcio  e  o  foco 
de  industria  maiores  do  mundo.  Uma  só  casa 
commercial  d'esta  poderosa  cidade  tem  effeituado 
cm  um  anno  transacções  no  valor  de  14:400:000:000 
réis.  Em  1802,  um  dos  seus  banqueiros,  Mr.  Pea- 
body,  fez  um  donativo  aos  poi)res  da  metrópole 
de  720:000:000  réis.  O  banco  de  Inglaterra  con- 
tém, geralmente,  em  suas  caixas  de  70:800  a 
80:400:000:000  réis  em  espécie  e  as  suas  notas  cm 
circularão  não  importam  em  menos  de  20:000:000 
de  libras  esterlinas.  Os  empregados  d'csle  estabe- 
lecimento monetário,  formam  um  exercito  apro- 
ximadamente, de  mil  homens.  Os  outros  bancos 
da  cidade  possuem  um  capital  de  330:000:000:000 
réis.  A  somma  empregada  diariamente  nos  des- 
contos eleva-se  a  384:000:000:000  réis  e  as  com- 
panhias de  seguros  teem  segurado  um  capital 
que  sobe  decifra  considerável  de  8100:000:000.  Os 
fundos  disponíveis  d'estas  companhias  regulam 
por  102:000:000:000  réis. 

Cosmopohlas  em  suas  transacções  mercantis 
como  em  suas  aventuras,  os  negociantes  de  Lon- 
dres abastecem  de  objectos  diversos  uma  grande 
parle  do  género  humano,  e  os  seus  artefactos  c 
manufacturas  gaslam-.se  e  usam-se  em  todos  os 
mercados  da  terra.  A  civilisada  Europa  e  a  joven 
America,  a  Africa  inculta,  a  industriosa  Austrá- 
lia c  a  Ásia  estacionaria,  todas  as  regiões  da  ter- 
ra, todos  os  povos  do  oriente  ao  occidenle,  do  Polo 


Arctivo  ao  Antárctico,  rendem,  enifim^  tributo 
á  energia  e  á  industria  dos  ricos  potentados,  que 
dirigem  o  commcrcio  do  mundo  lá  dos  seus  es- 
criplorios,  como  o  general  os  exércitos  da  sua 
tenda. 

A  industria  é  tão  florescente  era  Londres  como 
o  commercio,  e  a  esta  circumstancia  deve,  sem 
duvida,  a  solidez  da  .^ua  grandeza.  O  engrande 
cimento  da  Grécia  antiga  eslribava-se  nos  seus  sá- 
bios, nos  seus  artistas,  nos  seus  tribunos;  o  pode- 
rio de  Roma  fiindava-se  nas  suas  legiões,  e  o 
commercio  era  a  alma  da  riqueza  e  o  poder  da 
rainha  do  Adiiatico;  a  força,  porém,  da  Ingla- 
terra está  assentada  sobre  a  larga  base  de  todos 
estes  elementos  reunidos  e  uma  civilisação  infi- 
nitamente mais  elevada  sustentada  por  essas  mo- 
dernas alavancas  de  Archimedes,  chamadas  im- 
prensa, electricidade,  vapor  e  liberdade. 

A  civilisação  britannica,  synthese  da  da  Euro- 
pa, não  mori-erá,  pois,  como  morreram  as  ephe- 
meras  e  transitórias  civilisações  antigas.  Nenhum 
Marco  futuro  sentado  sobre  as  suas  ruinas  cho- 
rará a  perda  da  sua  grandeza  Nunca  o  viajante^ 
apoiado  sobre  um  robusto  e  troncado  pilar  da 
Ponte  de  Londres.,  exclamará:  «Aqui  foi  a  capi- 
tal de  Inglaterra.» 

Não  quer  isto  dizer  que  a  civilisação  ingleza 
fosse  dotada  com  a  immortalidade  do  espirito; 
o  que  desejamos  significar  é  que  a  ruina  de  tão 
solida  civilisação  arrastaria  comsigo  a  destruição 
do  mundo.  Um  grande  escriptor  disse  que  o  aba- 
lo que  destruisse  as  pyramides  do  Egypto  arrui- 
naria ao  mesmo  tempo  o  globo  terráqueo. O  mesmo 
se  pôde  dizer  do  cathaclismo  politico  ou  social 
cj[ue  destruisse  a  civilisação  da  Grã-Bretanha: 

[Continua] 


MYTIIOLOGIA  DA  NOVA  ZELÂNDIA 

A  mythologia  da  Nova  Zelândia,  tal  como  a  dos 
outros  povos,  eslá  coraposla  de  um  conjunclo  de 
lendas  e  tradições  que  celebram  as  façanhas  dos 
deuses,  dos  heroes  e  dos  homens  em  constante  e 
reciproca  sympalhia.  A  mythologia  é  a  personni- 
íicação  da  crença  popular,  a  religião  formada  jior 
uma  imaginação  ignorante.  Historias  ou  conjectu- 
ras a  respeito  da  creação  do  mundo,  explicações 
fabulosas  dos  phenomenos  da  natureza,  lendas 
acerca  da  origem  e  dos  primeiros  progressos  de 
cada  nação  ou  das  desgraças  e  aventuras  de  sores 
divinos  ou  semideuses  são,  em  geral,  o  fundo  hc- 
lerogéneo  e  caraclerisliro  de  todas  as  religiões  pa- 
gãs. A  mythologia  é  um  produclo  especial  da  ima- 
ginação e  (lo  senlimenlo,  radicalmenie  dislinclo 
da  historia  e  da  philosojihia.  Nem  nos  in\  lhos  da 
Grécia,  nem  nas  sagas  da  Scandinavia,  nem  nas 
selvagens  lendas  da  America  scplemlrional,  nem 
nas  tradições  da  Nova  Zelândia  tomadas  em  seu 
lodo,  é  possivel  reconhecer  um  syslema  de  sym- 
bolisação  arlilicial,  nem  a  alleinção  de  um  facio 
histórico;  umas  e  oulras  não  são  mais  do  que  o 
resultado  produzido  na  imaginação  dos  povos  pela 
coiilemplação  dos  j)henoinenos  ou  das  forças  da 
natureza,  porque  o  homem,  ainda  no  estado  mais 
selvagem  senle  sempre  a  necessidade  de  crer  em 
um  eulc  superior  a  si,  embora  esta  crença  seja 
muitas  vezes  grosseira  e  n'e!la  represcnlemos  seus 


o  PANORAMA 


279 


deuses  cheios  de  defeitos  e  de  fraquezas  próprias 
da  humanidade. 

0§  maoris,  ou  naUiraes  da  Nova  Zelândia,  pa- 
rece não  lerem  idéa  de  um  Deus  supremo ;  a 
crença  em  um  Deus  único  repugna  á  sua  idola- 
tria. cc^Não  ha  eníre  vós,  dizia  um  chefe  do  paiz 
aos  europeus,  faliando  a  respeito  da  sua  religião, 
uns  homens  que  são  carpinteiros,  outros  ferreiros 
e  outros  conslructores  navaes?  pois  assim  foi  no 
principio  do  mundo:  um  foz  isto,  outro  aquiilo , 
Tane  formou  as  arvores;  Uu,  as  montanhas ;  Tan- 
garoa,  os  peixes.  A  Yossa  religião  ó  de  hoje,  a 
nossa  pertence  á  mais  remota  antiguidade.» 

Esta  religião  da  antiguidade  mais  remota  forma- 
da de  lendas  e  tradições  pôde  considerar-se  como 
um  paganismo  completo  que  indica  a  sua  proce- 
dência do  fetichismo  e  que  termina  no  idealismo. 
As  tradições  da  Nova  Zelândia  estabelecem  seis 
períodos  successivos  para  a  criação  ;  o  periodo  do 
pensamento,  o  da  noite,"  o  da  íuz,  o  da  terra,  o 
dos  deuses  e  o  dos  homens.  A  geração  das  idéas 
abstractas  preceda  a  das  realidades  concretas;  as- 
sim da  concepção  veio  o  producto,  e,  por  uma 
serie  de  emanações,  nasceram  o  pensamento,  a 
memoria,  a  consciência  e  o  desejo.  A  palavra  deu 
fructo  e  pro:luzio  a  noite,  a  profunda,  a  sublime, 
a  impalpável  noite,  em  cujo  reinado  não  ha  vista 
no  mundo.  O  quarto  periodo,  começa  com  o  nada 
que  faz  nascer  a  força  productiva  e  a  abundância, 
e  chega  a  ser  o  remoto  progenitor  da  athmosphe- 
ra,  do  firmamento,  da  lua  e  do  sol  collocados  no 
espaço  como  os  principaes  olhos  do  céo,  da  auro- 
ra, da  manhã,  do  meio  dia  e  do  esplendor  do  dia. 
Com  a  athmosphera  e  a  humidade  termina  á  ge- 
nealogia metaphysica  e  começa  o  fetichismo  ;  Ran- 
gi, o  céo,  filho  da  humidade,  dorme  com  Papa- 
twanaku,  a  suporficie  externa,  a  terra.  O  céo  e  a 
terra  foram  pães  dos  deuses  da  luz ;  porque  ha- 
via duas  grandes  ordens  de  deuses,  a  primeira  e 
a  mais  antiga  das  quaes,  era  a  dos  deuses  da  ob- 
scuridade, cuja  avó  commum  era  Iliuenui-te-po, 
a  noite. 

Os  habitantes  da  Nova  Zelândia  crêem  que  o 
céo  é  um  corpo  solido  e  opaco,  estendido  sobre  a 
terra,  a  qual  imaginam  que  é  plana  como  uma  ta- 
boa.  Contam  dez  ou  onze  céos  distinctos  uns  dos 
outros ;  o  mais  baixo,  separado  da  terra  por  uma 
substancia  solida  e  trasparente,  semelhante  a  gelo 
ou  a  cristal,  é  o  que  contem  a  chuva.  Tma  vez  Tawaki 
rompeu  o  pavimento  d'este  céo  bailando  sobre  elle 
e  a  chuva  caio  sobre  a  terra  e  produzio  um  dilu- 
vio. Dos  outros  céos  apenas  se  mencionam  o  dos 
ventos,  o  dos  espíritos  e  o  mais  alto  e  mais  glo- 
rioso de  lodos,  o  céo  da  luz,  a  morada  princij)al 
dos  deuses. 

Os  primeiros  descendentes  de  Rangi  e  de  Papa 
foram  objectos  inanimados,  Kumava,  a  batata  e  o 
félo,  que  ama  a  obscui-idade,  porque  no  princi[)io 
o  céo  e  a  terra  estavam  tão  fortemente  adheridos 
um  a  outro,  que  a  luz  não  podia  penelral-os,  e  os 
seus  filhos  viam-se  obrigados  a  viver  na  obscuri- 
dade. O  primeiro  S3r  vivente  que  produziram,  foi 
Tane  ou  Tane-mahuta,  pae  das  arvores,  dos  pás- 


saros e  dos  insectos  da  selva  ;  o  segundo  foi  Tiki, 
pae  dos  homens,  talvez  designado  com  mais  exa- 
ctidão com  o  nome  de  Ilaumiatiki-tiki,  deus  do 
alimento  não  cultivado  dos  homens.  O  crepúsculo 
não  pai-ece  ter  nascido  n''aquella  época;  diz-se  que 
foi  formado  pelo  calor  vacillante  do  sol  e  doecho. 
O  terceiro  filho  de  Rangi  e  Papa  foi  Tutengana- 
hau,  o  auctor  do  mal,  ou,  talvez  mais  correcta- 
mente, Tumata-uenga,  o  deus  dos  homens  e  da 
guerra.  O  quarto  filho  foi  Tuhu,  o  auctor  do  bem, 
ou,  segundo  uma  variante,  o  deus  do  alimento 
cultivado  dos  homens.  Tawirimatea,  é  o  nome  do 
pae  dos  ventos  e  Tangaroa,  o  do  deus  dos  peixes 
e  pae  do  Oceano ;  o  nome  de  Tangaroa  é  um  ad- 
jectivo, que  um  pouco  modificado  em  sua  forma, 
encontra-se  também  em  outras  ilhas  da  Polynesia, 
como  Tongo,  Tahiti  e  Hawai. 

Cansados  da  continua  obscuridade,  os  filhos  de 
Papa  e  de  Rangi,  imitando,  sem  saber,  os  Tilães 
da  fabula,  resolveram  formar  um  conselho  para  de- 
cidirenío  que  havia  a  fazer  com  seus  pães  para  da- 
rem fertilidade  á  terra.  O  deus  do  malouda  guerre 
opinou  que  deviam  matal-os,  mas  o  deus  dos  bos- 
ques foi  de  parecer  que  os  separassem  à  força. 
Todos  os  irmãos  consentiram  n'esla  ultima  propo- 
sição, excepto  o  deus  dos  ventos,  que  se  oppoz 
violentamente  a  este  divorcio  primitivo,  apoiado, 
além  d'isso,  por  seus  filhos  os  ventos  poderosos; 
e  temendo  que  o  mundo  podesse  chegar  a  ser  de- 
masiado bello,  produzio  a  guerra  dos  elemen- 
tos pela  primeira  vez  na  disputa  que  teve  com 
seus  irmãos  sobre  a  separação  de  seus  pães. 
Esta  separação  foi,  em  parte,  eflfectuada  por 
Tutenganahau  ou  Tumata-uenga,  e,  em  parte, 
por  Tane-mahuta,  que  firmou  a  cabeça  em  sua 
mãe,  a  terra,  e  apoiou  os  pés  contra  seu  pae, 
o  céo.  D'este  modo  o  céo  e  a  terra  ficaram  sepa- 
rados por  Tane,  deus  das  selvas,  e  a  noite  e  o  dia 
se  differençaram  um  do  outro  ;  ainda  que,  porém, 
separados  para  sempre  por  seus  desobedientes  fi- 
lhos, diz  a  poesia  mythologica  do  paiz,  o  céo  e  a 
terra  conservam,  todavia,  o  seu  mutuo  amor.  Os 
suaves  e  ardentes  suspiros  que  exhala  a  terra  ele- 
vam-se  sempre  para  o  céo  desde  as  montanhas  e 
valles  cobertos  de  bosques,  e  é  o  que  os  homens 
chamam  névoas;  e  o  vasto  céo,  quando  duiante as 
largas  noites  chora  a  separação  da  sua  amada, 
derrama  frequentemente  lagrimas  sobre  o  seu  seio 
e  os  homens,  ao  vel-as,  dão-lhesonomc  de  rocio. 

Esta  curiosa  tradição  não  está  limitada  á  Nova 
Zelândia;  encontramol-a,  igualmente,  em  Tahiti, 
onde  lambem  achamos  os  deuses  Tane  e  Tiki  e 
llinc-nui-lepo  ou  a  avó  noite,  e  onde  chamam  Ru 
ao  deus  que  por  meio  da  modesta  planta  draco- 
nilum  pobjphiUnm  levantou  o  céo,  que,  até  então, 
tinha  estado  unido  com  a  terra. 

[Conlinua) 

EPITAPHIO 

No  sepulchro  de  um  rei  de  Chypre,  lia- se  em 
grego  o  epitaphio  que  segue  : 

todo  o  tempo  que  os  immortnes  deuses  me  deram 
de  vida,  esla  foi  a  ordem  que  tive  em  governar  a 
minha  republica. 


280 


O  PANORAMA 


O  que  pude  fazer  por  bem,  não  o  fiz  por  mal. 

O  ijue  pude  alcançar  com  paz,  nunca  o  tomei  com 
guerra. 

Aos  que  pude  vencer  com  rogos,  nunca  os  espanlei 
com  ameaças. 

O  que  pude  remediar  em  segredo,  nunca  o  castiguei 
em  publico. 

Aos  que  pude  emendar  com  avisos,  nunca  os  las- 
timei com  açoutes. 

A  nenhum  jamais  castiguei  em  publico,  que  pri- 
meiro o  não  avisasse  em  segredo. 

Nunca  consenti  que  a  minha  lingua  dissesse  men- 
tiras, nem  permitli  que  meus  ouvidos  ouvissem  lisonjas. 

Refreei  o  meu  coração  a  que  não  desejasse  o  alheio, 
e  persuadi-lhc  a  que  se  contentasse  com  o  seu  próprio. 

Trabalhei  por  consolar  aos  amigos,  e  desvelei- me 
por  não  ter  inimigos. 

Não  fui  pródigo  em  gastar,  nem  cobiçoso  em  re- 
ceber. 

Nunca  a  uma  cousa  castiguei,  sem  que  primeiro 
não  perdoasse  quatro. 

Do  que  castiguei  tenho  pena,   e  pelo  que  perdoei 
tenho  alegria. 

Nasci  homem  entre  os  homens,  por  isso  comem 
minhas  cinzas  aqui  os  bichos. 

Fui  virtuoso  entre  os  virtuosos,  e  por  isso  descança 
o  meu  espirito  com  os  deuses. 

(Exlrahido  da  Escola  dccurial  de  D.  Fradique  Espínola). 


A  nobresa  é  um  verme  que  careia  insensivelmente  a 
liberdade.  Macuiayel. 


VISÕES  A  BEIRA  D^AGUA. 

.  .  .  the  lover  and  tlie  poet 
Are  of  imagination  ali  campact. 

Shakspeare. 

Ilonlem,  que  o  sol  se  escondia 

íitraz  do  viso  do  monle, 

fui  senlar-me  ao  pé  da  fonle, 

a  recordar-me...  de  li! 

Às  veses,  se  a  um  bello  dia 

foge  a  doce  claridade, 

dá-nos  Ião  funda  saudade 

como  eu  lionlcm  a  scnli. 

O  sol  não  quero  pintar-(e, 
quando,  invollo  cm  véus  purpúreos, 
banha  da  serra  os  tugúrios 
com  seu  ultimo  clarilo... 
pois  falta-me  ingcnho  e  arte, 
e  tu  já  sabes  que  anceio, 
a  essa  hora,  no  seio 
nos  agita  o  coração  1 

E  eu  sentei-me  á  beira   d'agua ! 
o  cryslal   adormecido 
era  um  cs|)cllio  csíiiiecido, 
e,  mais  claro,  nunca  o  vi. 
Eu  quiz  ver  se  a   minha  mágua 
no  rosto  lavrara   fundo  : 
um  pouco  esqueci  o  mundo, 
c  a  mirar-me...  adormeci. 

Sonhei.  Hálito  peregrino 
vinha  alli  de  ao    pe  da  fonle— 
rcfrigera\a-me  a  fronte, 
dcscia-me  ao  corarão  : 
era  nm  hálito  divino, 
como  os  que  ás  veses  nos  calma 
as  ardentes  febres  d'alma, 
soffridas  na    solidão. 


Ergui  de  promplo  a  cabeça, 
julgando  \er-le  a  mou  Uuío, 
de  uiou  peilo  maguado 
a  bafejar  tristes  ais... 
Illusão!— a  aura  travessa 
é  que  soprava  contente 
sobre  a  limpida  corrente, 
e  entre  os  virides  junçaes. 

E  eu  de  novo  dormitava. 
Mas,  como  vaga  harmonia, 
não  sei  que  voses  ouvia, 
que  alguém  me  \inha  dizer: 
falas  laes  cu  escutava, 
que  o  inundo,  tão  doces  falas, 
não  sabe  pronucial-as, 
nem  inlendcl-as  sequer  1 

Acreditei  por  momentos 
que  eras  tu  quem  murmurava 
o  himno  que  me  incantava... 
o  acordei  mais  unia  vez ! 
chamara m-me  esses  acentos, 
mas,  ah  !  por  dcstlila    minha, 
era  a  limpida  fouliuha 
quem  n)urmura\a  a  meus  pés. 

Poucos  inslanles  passados, 
de  novo  inclinei  a  fronle 
por  sobre  o  espelho  da  fonte ; 
e  não  sei  se  adormeci : 
meus  olhos    meio-cerrados, 
no  fundo  da  agua  entrevia 
meigo  roslo  que  sorria 
os  sorrisos  de  uma  houri. 

E  eu  julguei  que  nessa  hora 
tu  te  eslavas  rcmirando 
no  cryslal  sereno  e  brando, 
sorrindo-te  jiarr  mim  ; 
mas  triste  de  quem  le  adora, 
preso  sempre  á  imagem  tua ! 
—  quem  me  sorria  era  a  lua, 
lá  dos  espaços  sem  fim. 

E  ao  meditar  um  instante 
sobre  o  desengano  amargo, 
caí  de  novo  em  letargo, 
e  vi  das  aguas  no  asul 
uma  ignota  luz  brilhante, 
que  espargia  seus  fulgores, 
como  os  olhos  tentadores 
de  uma  filha  de  Slambul. 

E  então  cri,  com  cega  crença, 
que  eram  teus  olhos  risonhos 
essa  luz,  que  eu  via  cm  sonhos, 
do  mais  vivido  esjjlendor : 
pois  quem  nos  teus  olhos  pensa, 
de  promplo  á  mcnle  lhe  acode 
que  tal  luz  ninguém  ler  pódc, 
senão,  tu,  meu  sol  de  amor ! 

Sim,  a  luz  que  brilha  e  arde 
nos  teus  olhos  de  gasella, 
eu  jurava  ser  aquella 
que!  eu  via  nos  sonhos  meus. 
Mas...  era  a  eslrella  da  tarde, 
que,  nas  orlas  do  horisonle, 
se  escondia  airaz  do  monte, 
cnviando-me  um  adeus  1 

Hem  vês  (juc  a  minha  existência 
enlutam  cslos  enganos  — 
olha  não  passem  os  annos, 
sem  í|uc  o  .'^ol  rompa  (ralem... 
Bem  vés  qu(!  os  prantos  da  ausência 
só  murcharão  nos  léus  braços: 
anjo,  divide  os  espaços, 
sacode  essas   asas,  vem. 

Cândido  dk  Figueiredo. 


Typ.  Franco-Poriguez:!,  Uua  do  Thosouro  VolUo,  0. 


36 


o  PANORAMA 


281 


■=\~\'^'->i 


As   nympheaceas 


Compõe-se  esta  famiUa  de  cinco  géneros  e  cin- 
coenta  espécies,  habitando  todos  o  hemispherio 
boreal.  Bem  que  se  enconlrem  alguns  d'elies  na 
extremidade  austral  da  Africa^  são^  geralmente^ 
raros  no  hemispherio  meridional. 

Na  America  do  Sul,  as  nympheaceas,  são  re- 
presentadas pelo  género  Vkíoria.  Estas  plantas 
passam  por  sedativas  e  narcóticas;  mas  as  virtu- 
des que  se  lhes  attribuem  parece  serem  pura- 
mente imaginarias.  O  que  lhes  valeu  esta  repu- 
tação, foi,  sem  duvida,  a  alvura  das  flores  de 
certas  espécies,  e  a  sua  vegetação  em  aguas  tran- 
quillas  e  frescas.  Os  Turcos  fazem  uma  bebida 
refrigerante  com  as  flores  da  Nuphar  ou  Ncnuphar 
amarello  {Nuphar  laleum)  que  elles  denominam 
Puferciceghi.  As  folhas  d'esta  planta  passam  por 
adstringentes. 

As  raizcs  das  nympheaceas  teem  um  certo  gráo 
de  amargor  e  de  adstringência,  o  que  ha  dado 
lugar  a  serem  empregadas  contra  a  dysenteria. 
Cohteem  uma  grande  quantidade  de  fécula, 
e,  depois  de  muitas  e  successivas  lavagens,  po- 
dem ser  tomadas  como  alimento,  sem  inconve- 
niente. 

As  sementes  d'estas  plantas  são  mui  procura- 
das, em  tempos  d'escasseza  de  mantimentos,  pe- 
los povos  selvagens  das  regiões  onde  elias  vegetam. 
Teem  o  gosto  das  sementes  de  papoulas,  e  co- 
mem-nas  cosidas  ou  cruas,  como  o  milho. 

Mas,  de  todos  os  géneros  e  espécies  que  cons- 
tituem esta  rica  familia  de  plantas  aquáticas,  a 
mais  bella  e  a  mais  gigantesca  é,  sem  contra- 


dicção,  a  Victoria  regina,  da  qual  offerecemos 
hoje  o  desenho  aos  nossos  leitores.  Os  habitantes 
da  America  do  sul  denominam-na  Milho  d' agua, 
por  causa  das  propriedades  nutritivas  da  fécula 
que  contem  em  abundância.  Esta  planta  gigante, 
que  pode  ser  collocada  entre  as  maravilhas  do 
reino  vegetal,  nasce  nos  grandes  rios  da  Guyana 
e  do  Brazil  septemtrional.  As  suas  folhas  arro- 
delladas,  de  um  a  dois  metros  de  diâmetro,  íluc- 
tuam  sobre  a  agua,  em  forma  de  largos  discos 
orbiculares,  lisos  e  verdes  pela  parte  superior, 
com  uma  borda  cm  torno  de  seis  centimetros, 
como  a  de  uma  grande  bandeja.  Pela  parte  in- 
ferior, as  folhas  são  avermelhadas,  c  divididas 
em  uma  multidão  de  compartimentos  por  ner- 
vuras muito  salientes,  que  deixam  entre  si  espa- 
ços triangulares  ou  quadrangulares,  nos  quaes 
pode  conservar- se  o  ar  que  contribuo  para  sus- 
tentar as  folhas  ao  de  cima  da  agua.  O  pecioio, 
que  parte  do  fundo  das  aguas,  é  todo  coberto  de 
espinhos,  bem  como  as  nervuras  das  folhas,  o 
pedúnculo  e  o  cálice  da  flor.  As  flores,  algumas 
de  trinta  e  três  centimetros  de  largura,  teem  o  cáli- 
ce formado  por  quatro  folhas  de  dezeseis  a  dezoito 
centimetros  de  comprimento,  c  oito  de  largura, 
avermelhadas  pela  parte  exterior  e  brancas  pela 
interior.  Dentro  d''estas  folhas,  ostenta-se,  circu- 
lar e  symelricamente,  um  numero  considerável 
de  pétalas  brancas  a  principio,  mas  que  se  vão 
tornando  encarnadas  á  medida  que  a  flor  cresce. 
Esta  flor  exhala  um  perfume  delicioso.  O  fiuclo 
que  lhe  succede  é  espherico,  e  no  estado  madu- 


282 


O  PANORAMA 


ro,  apresenta  o  tamanho  de  um  pão  de  arrátel: 
está  cheio,  de  sementes  arredondadas  c  farinhosas 
próprias  para  servirem  de  alimento. 


MYTnOLOGIA  DA  NOVA  ZELÂNDIA 

Os  filtios  deshumanos,  cujo  procedimento  cruel 
referimos,  são  as  seis  divindades  primitivas  da 
Nova  Zelândia.  Reconliecem-nas  pelo  nome  de 
Atua  como  objectos  de  adoração  suprema  aos  quaes 
rogam  pelas  aves  dos  bosques,  pela  boa  colheita 
dos  fructos  cultivados  ou  silvestres,  pelo  seu  bom 
exilo  na  guerra,  pelos  ventos  favoráveis,  pelo  bom 
tempo  e  pela  abundância.  A  palavra  Atua,  que 
Tliomson  acha  semelhante  á  voz  sanscrita  Deva, 
Deus,  parece  significar,  segundo  Taylor,  lá  mais 
fora  como  a  sombra  de  um  homem,  um  espirito, 
um  deus,  ou  qualquer  cousa  fora  da  nossa  com- 
prehensão. 

Ouando  as  baleias  se  agitam  e  os  peixes  saltam 
fora,  da  agua,  os  naturaes  do  paiz  dizem  que  isto 
é  feito  em  honra  do  seu  deus  Tangaroa ;  e  quan- 
do os  homens  derribam  as  arvores  dos  bosques 
primitivos,  para  cultivarem  a  terra  que  occupa- 
vam,  dizem:  os  filhos  de  Tanemahuta  são  derri- 
bados. 

Segundo  a  versão  da  mythologia  tradicional  da 
Nova  Zelândia,  de  Shortiand,  Te  Tengata  ou  o 
homem,  é  o  descendente  de  Tane  e  Paia.  Segun- 
do Taylor,  Tiki  é  superior  a  Tane,  apparecendo 
como  "o  verdadeiro  Prometheu  da  Oceania ;  por- 
que diz-se  que  formou  o  homem  á  sua  semelhan- 
ça, tomando  um  bocado  de  argilla,  amassando-o 
com  o  seu  sangue,  e  dando  alento  a  esla  ligura; 
ou  amassando  a  argilla  com  agua  misturada  com 
ocre  encarnada,  modelando-a  pela  sua  própria 
fóima,  dando-lhe  o  seu  próprio  nome  e  chaman- 
do-lhe  semelhança  de  Tiki.  Outras  tradições  desi- 
gnam expressamante  Tumata-uenga  como  pae  do 
homem. 

Os  descendentes  do  homem  assim  criado,  mul- 
liplicaramse  na  terra  até  o  nascimento  de  Maui, 
o  grande  heroe  da  mythologia  da  Nova  Zelândia. 
Maui  teve  cinco  ou  seis  lilhos,  o  mais  celebre  dos 
quaes  foi  Maui,  o  da  trança,  o  symbolo  do  poder 
de  seu  pae.  Toi  elle  quem,  ajudado  por  seus  ir- 
mãos, pescou  Ilawaiki,  com  o  queixo  de  seu  avô, 
de  sua  avó  ou  de  outro  qualquer  dos  seus  ante- 
passados ;  foi  elle  também  que,  dirigindo-se  um 
dia  para  Leste,  para  o  verdadeiro  ponto  d'onde  o 
sol  se  eleva,  prendeu  este  astro  á  leria  com  gros- 
sas cordas,  que  desde  então  foram  os  raios  solares; 
foi  elle,  igualmente,  quem  muito  trabalhou  na 
terceira  divisão  do  mundo  c,  que,  impotentes  para 
impedir  que  o  sol  se  occultasse  no  oceano,  ligou-o 
á  lua  de  modo,  tal  que,  quando  o  sol  se  põe,  a 
lua  se  levanta  do  outro  lado  da  terra;  em  Hm, 
este  semi-deus  foi  quem  tratou  de  secar  lline-iiui- 
Ic-po  e  cuja  prova  e  mau  exilo  trouxe  a  morte  ao 
mundo  e  toda  a  nossa  aíílicção. 

Os  successores  de  Maui  são  tão  numerosos,  que 
devemos  passal-os  em  silencio ;  mencionaremos, 
com  ludo,  Tu,  deus  da  guerra  no  Norte;  Maru, 


deus  da  guerra  no  Sul;  Tonga,  deus  das  enfermi- 
dades, e  Manika,  pae  do  fogo.  Vários  poderes  re- 
lacionados com  Tonga,  que  habitavam  na  frente, 
dominavam  as  ditTerenles  parles  do  corpo  hu- 
mano e  lhe  inflingiam  castigos  ou  o  secavam  e 
lhe  produziam  a  sua  consumpção.  De  alguns  does- 
tes seres  sobrenaluraes,  nascidos  da  leiia,  proce- 
diam algumas  famílias  do  reino  animal,  como  a 
enguia,  o  lagarto  e  oulras. 

O  culto  dos  deuses  está  unido,  na  Nova  Zelân- 
dia, ao  dos  antepassados ;  suppõem  que  os  espiri- 
tes dos  mortos  eslão  intimamente  relacionados  com 
os  acontecimentos  terrestres;  em  geral  o  interesse 
d'esles  espíritos  está  limitado  ao  povo  ou  tribu  a 
que  pertenceram.  Seguem  o  exercito,  dirigem  os 
seus  movimentos,  dão  conselhos  ou  inspiram  va- 
lor ;  estes  espíritos  omniscientes  são  as  almas  dos 
chefes  dislinclos ;  d'elles  provêem  lodos  os  casti- 
gos d'este  mundo.  Elles  guardam,  com  sollicilo 
cuidado,  a  sagrada  instituição  chamada  Tapu.  En- 
tram em  pequenas  íiguras  de  madeira  grosseira- 
mente trabalhadas  e  dedicadas  aos  espirites  dos 
antepassados,  fazem  d'ellas  a  sua  morada  e  d'ali 
coiwersam  com  os  vivos.  Umas  vezes  communicam 
a  sua  vontade  em  sonhos,  outras,  approximam-se 
dos  morlaes,  quando  eslão  acordados,  fallando-lhes 
com  voz  mysteriosa,  como  um  murmúrio  ou  como 
um  silvo,  semelhantes  aos  espirites  da  mytholo- 
gia grega,  um  sonido  tão  parecido  aos  susurros 
do  verdadeiro  nigromante,  que,  o  que  estuda  a 
religião  da  Nova  Zelândia  acha-se  inclinado  a  re- 
solver esta  articulação  sobrenatural  considerando-a 
como  o  modo  de  proceder  de  ura  venlriloquo. 

O  culto  dos  antepassados  toma  aqui  algumas 
vezes,  a  forma  de  uma  espécie  de  sabeismo,  por- 
que os  naturaes  do  paiz  suppõe  que  os  heroes  con- 
verlem-se  emestrellas,  mais  ou  menos  brilhantes, 
conforme  o  numero  de  victimas  que  teem  feito  na 
guerra  e  de  cujo  espirito  e  poder  se  haviam  apos- 
sado por  meio  da  vista.  O  povo  d'eslas  ilhas  con- 
sagra o  arco  iris  a  um  dos  seus  divinos  antepas- 
sados. Não  somente  c  a  residência  de  Uenuku, 
senão  que  serve  lambem  como  um  oráculo,  se- 
gundo a  sua  posição  á  direita  ou  á  esquerda,  an- 
nunciando  a  approvação  ou  desapprovação  de  uma 
empresa.  Em  algumas  occasiões  os  espirites  d'es- 
les  antepassados  divinisados  vão  habitar  os  corpos 
dos  lagartos,  das  aranhas,  dos  pássaros,  dos  ver- 
mes e  das  moscas  e  entram  lambem  na  boca  dos 
sacerdotes,  cujas  palavras  ou  factos  durante  este 
|)erio(lo  estão  considerados  como  os  actos  imme- 
dialos  da  divindade  que  n'elles  habita.  Os  deuses 
e  os  iieroes  divinos  teem  os  seus  medianeiros  na 
terra ;  o  sacerdócio  rodeado  de  um  cii'Culo  sagra- 
do, está  representado  pelas  famílias  mais  nobres 
do  paiz.  Os  eanlos  que  dirigem  aos  seus  deuses, 
eslão  compostos  em  um  idioma  ininlelligivel  para 
os  que  não  j)erlencem  ao  sacerdócio,  o  qual  é  uma 
prova  da  sua  extraordinária  antiguidade.  O  sum- 
mo  sacerdote  hereditário  conla,  entre  suas  func- 
ções,  a  obrigação  de  fazer  cumprir  as  leis  de  Ta- 
pu, a  cura  dos  enfermos,  o  ceremonial  da  morlc 
e  do  nascimento  (porque  o  baptismo  das  criatuias 


o  PANORAMA 


283 


c  um  rito  da  religião  da  Nova  Zelândia)  e  a  ins- 
[lucçiío  dos  jovens  nos  canlos  e  tradições  popula- 
res. Elles  também  pintam  o  corpo  e  formam  parte 
do  conselho  na  guerra  e  na  paz,  na  fome  e  na 
abuHdan.cia;  especialmente  servem  |)ara  interpre- 
tar os  desejos  dos  deuses,  observando  o  vôo  das 
aves,  os  meteoros,  o  brilho  e  posição  das  estrel- 
las  ou  deduzindu-os  pelos  sonhos,  pelo  arco-iris, 
ou  pela  so!nbi-a  que  faz  a  agua. 

Os  habitantes  da  Nova  Zelândia  acredilam  em 
uma  vida  posterior  a  esta;  não  admittem  a  resur- 
reição  do  corpo,  mas  afiirmam  a  immortalidade 
da  alma.  Po,  ou  a  noite,  é  o  nome  do  inferno  ; 
ha  n'elle  duas  moradas  para  a  alma  dos  mortos ; 
uma  é  Reniga,  situada  no  meio  do  mar  e  accessi- 
vel  por  uma  caverna  em  um  rochedo  escar|)ado 
junto  do  cabo  de  Santa  Maria,  na  terra  de  Vau 
Diemen  ;  e  a  outra,  uma  das  divisões  mais  inferio- 
res de  Rangi,  ou  o  céo;  mas  nenhum  d'estes  pon- 
tos eia  para  soíTrer,  porque  os  peccados  são  cas- 
tigados n'este  mundo  e  não  no  outro.  As  distinc- 
ções  sociaes  conservam-se  na  vida  futura:  o  chefe 
{orna  a  ser  chefe  e  o  escravo  continua  escravo. 
N'esta  religião  ha  lambem,  como  na  grega,  um 
ente  destinado  a  conduzir  a  alma  dos  mortos. 

Os  Tanivihas  e  Ngararas,  os  dragões  d'esta  rffy- 
Ihologia,  espalhavam  em  outro  lemj)o  o  terror  e 
a  desolação  por  toda  parle;  Taniv/ha,  porém, 
transformou-se  de  baleia  em  lagarto,  de  lagarto 
em  crocodillo  e  de  crocodillo  em  enguia,  ficando 
unicamente  para  provar  que  o  antigo  espirito  não 
morrera.  A  Taniwha  attribue-se-lhe  essa  terrível 
catastrophe  que  ainda  em  nossos  dias  condemnou 
a  uma  morte  prematura  sessenta  homens  de  Tau- 
po,  inclusive  o  seu  temivcl  chefe,  que  se  chamava 
a  si  próprio,  descendente  da  grande  montanha  de 
neve  Tonga  Riro,  cujo  nome  provinha  da  questão 
que  tivera  com  outra  montanha  masculina,  sua 
rival  no  aflecto  de  uma  pequena  imminencia  fe- 
minina e  vulcânica  que  havia  nas  cercanias. 

Entre  os  movistros  labulosos  contara-se  Maero, 
o  selvagem  das  coUinas,  que,  ás  vezes,  desce  ás 
planícies  para  levar  o  que  pôde  colher,  e  Taipo, 
espirito  errante  e  nocturno,  que  falia  cora  os  ho- 
mens, mas  que  desapparece  no  momento  em  que 
uma  mulher  abre  a  boca. 

O  mundo  mystico  da  Nova  Zelândia  não  é  so- 
mente povoado  pelos  deuses  e  semideuses ;  ha, 
além  d'isso,  os  Patu-paearches,  ou  gigantes  vesti- 
dos de  branco,  das  montanhas,  que  estão  estrei- 
tamente ligados  com  os  Tuariki  ou  pequenos  deu- 
ses., cuja  origem  é,  provavelmente,  adeificaçãodas 
névoas  da  manhã ;  vèem-se  unicamente  de  manhã 
e  raras  vezes  sós :  são  altos,  comprazem-so  era  ou- 
vir a  llauta,  amam  os  mortaeseconsideram-nos  pa- 
rentes dos  albinos;  d'elles  aprenderam  os  homens 
a  pescai'  o  a  tecer  as  redes,  e  parece  preferirem  o 
imaginário  ao  real,  pois,  segundo  uma  lenda  do 
paiz  ((levavam  contentes  as  sombras  das  jóias  de 
Te  Kanawa  deixando  atraz  os  objectos,  porque  satis- 
faziam-se  com  o  apanhar  unicamente  assombras.» 

O  lioniem  mais  perfeito  c  o  que  mais  ulil  ò  a  seus 
irmãos.  Alcorão. 


O  CnOLERA 

I 

Dispõc-sc  o  pastor  á  dança ; 
Arraia-sc  de  louçainlias, 
Por  brilhar  mais"  na  folgança  ; 
Todos  SC  njunlam  á  sombra, 
UcvoliUciani  na  alfombra. 

Tra  la  la  la 

Traderi  la 
Assim  cantam  paslorinlias. 

Salta,  pula,  acotovela 
Rapariga  descuidosa ; 
Kxclama  enlão  a  donzella, 
Com  as  faces  côr  de  roza: 
Que  rapaz  tão  mal  creado ! 

Ilolá  1  ah  !  ali ! 

Traderi  la 
Yè  se  arranjas  oulro  agrado. 

Rodopia  a  dança  a  eilo; 
Flucluam  saias  à  brisa ; 
Braço  a  braço,  peito  a  peito, 
Salta  um  par,  o  outro  (leslisa. 

Tra  la  la  la 

Traderi  la 
Ninguém  foge  ao  bom  preceito. 

Uma  diz:  eu  não  te  creio; 
Não  finjas  essa  ternura. 
O  rapaz,  no  seu  anceio, 
Leva-a  comsigo  á  espessura 
Sob  a  copa  do  salgueiro. 

Ilolá  1  ho  1  he  ! 

Traderi  lá,  traderi  lé 
Que  festa  vae  no  terreiro  I 


Assim  cantam  os  bons  aldeãos,  por  entre  fol- 
guedos e  bailados,  dando  largas  á  sua  rústica  ale- 
gria. Era  tudo  festa,  tudo  sorrisos  e  amor. 

Apparece  então  o  doutor  Fausto.  Era  bello  o 
vèr  como  os  aldeãos  começam  de  abraçal-o  e  fes- 
tejal-o,  entoando-lhe  elogios  e  agradecimentos, 
porque  os  libertara  de  uma  epidemia  que  os  flagel- 
lára. 

Fausto  sorri  cynicamente. 

Arrastado  pela  verdade,  que  se  lhe  erguia  no 
peito  e  lh'o  entumecia  em  ondas  de  amargura, 
tiava  do  braço  de  Wagner,  seu  complacente  in- 
terlocutor, e  brada  cm  um  accesso  de  profundo  e, 
desgraçadamente,  verdadeiro  scepticismo: 

((Subamos  ainda  ura  pouco  até  esta  pedra,  para 
descançar. 

«Muitas  vezes  me  sentei  aqui,  immerso  em  me- 
ditação, extenuado  pelo  jejum  e  pelas  rezas.  Rico 
de  esperanças,  firme  na  minha  fé,  á  força  de  pran- 
tos e  suspiros,  com  as  mãos  postas  esperava  ob- 
ter do  céo  o  fim  d'esta  epidemia.  Agora  os  suíTra- 
gios  da  multidão  parecera-me  amarga  ironia  !  Oh  ! 
se  tu  podesses  ler  no  fundo  da  minha  alma  o 
quanto  o  pai  e  o  filho  são  indignos  de  tanta  glo- 
ria !  Meu  pai  era  um  pobre  homem  obscuro,  que 
tinha  a  pecha  de  inquerir  a  natureza  e  os  seus 
sacros  mysterios,  lá  á  sua  moda,  com  quanto  hon- 
radamente e  para  bem  dos  outros. 

«Rodeado  de  adeptos,  encerrava-se  no  enfumado 
laboratório,  e  seguindo  innumcras  receitas,  apra- 
zia-lhe  combinar  os  contrários 


284 


O  PANORAMA 


«Adniinislrava-so  o  remédio,  morriam  os  doen- 
tes e  ninííuem  pei-gunlava  quem  linha  curado.  As- 
sim n'estes  montes  e  n'estes  valles,  cora  os  nos- 
sos mixlos  infernaes,  fizemos  maisviclimas  docjuo 
o  contagio.  Eu  |)ropiio  ministrei  o  veneno  a  mi- 
lhares;  morreram.  Sobrevivi  para  ouvir  celebrar 
os  assassinos  anojados. 

<íWa(/nct\  Poiijue  razão  vos  atormenlaes  assim? 

«Pois  um  homem  honrado  não  cumpre  o  seu  de- 
ver, (|uando  executa  ponctual  e  conscienciosamen- 
te a  arte  que  lhe  ensinaram? 

((Mancebo,  se  respeitas  teu  pai,  aprazer-le-ha  o 
seu  ensino;  se  fizeres  progredira  sciencía,  pode- 
rão teus  vindouros  pôr  a  mira  em  mais  altos  des- 
tinos. 

(íFausIo.  Oh!  Bemavenlurado  o  que  ainda  es- 
pera surgir  doeste  oceano  de  erros.  Carecemos  de 
muito,  e  isso  é  o  que  ignoramos;  sabemos  pouco, 
e  isso  é  o  superiluo. 

«Mas,  por(jue  turrar  com  tão  mofino  pensar  a  dul- 
císsima ventura  d"esla  hora?  Olha  como  os  cla- 
rões do  occidente  balem  nas  choças  mergulhadas 
na  verdura.  O  sol  declina  e  exlingue-se,  expira 
o  dia,  mas  vae  levando  a  outras  regiões  nova  vi- 
da I  Oh  !  se  eu  tivera  azas  para  me  librar  noelher 
e  seguir  o  sol  continuamente! 

((Contemplara  o  mundo  silencioso  a  meus  pés, 
envolto  em  eterno  crepúsculo !  Vira  inílammar  as 
grimpas,  escurecer  os  valles  e  o  argênteo  riacho 
perder-se  nos  rios  de  oiro  ! 

A  montanha  nemorosa  não  mais  se  opporia  ao 
meu  vôo  divino  !  Já  o  mar  entreabre  os  seusgol- 
phos  ardentes  aos  meus  olhos  espavoridos.  E,  com- 
ludo,  o  deus  lã  vae  desapparccendo.  Reanime- 
se  o  meu  esforço  c  prosiga  a  embriagar-me  nos 
seus  eternos  jorios.  Diante  de  mim  o  dia;  atraz 
de  mim  a  noite  ;  lá  em  cima  os  céos ;  a  meus  pés 
as  ondas  '  Sonho  sublime  que  se  esvaece  !  Ai  1 
dor !  O  corpo  não  tem  azas  para  seguir  o  espiri- 
to, e,  comludo,  ninguém  ha  que  não  seja  le\a(lo 
pelo  sentimento  para  além  das  nuvens,  quando 
nas  alturas,  peidida  no  azulado  céo,  a  andorinha 
solta  o  seu  agudo  trinado,  quando  dos  pincaros 
alcantilados  e  umbrosos  se  ergue  a  águia  batendo 
as  azas,  quando  por  sobic  a  planura  e  o  mar  vol- 
ta o  grou  á  sua  pátria.»  (1) 


H 

Quereis  saber,  leitor,  necessariamente  amigo, 
porijue  vos  dei  estas  paginas  de  (jaílhc? 

O  Panorama  não  poília  eximir-se  a  dar  algu- 
mas das  suascolumnas,  embora  poucas,  ao  terrível 
hospede  do  Ganges.  Este  século  foi  o  primeiro  que  o 
vio  na  Europa,  sendo  esta  ultima  já  a  terceira  vi- 
sita que  tão  importuno  hospede  nos  faz.  l'^'elle  dos 
acontecimentos  notáveis  do  século;  é  na  actualida- 
de um  dos  assumptos  i\m'Á  palpitantes;  o  objecto 
de  estudo  dos  sábios;  o  thema  predilecto  das  conver- 
sações d'aquellesmesmos  que,  pouco  ha  ainda,  f2) 
m.udos  e  tranzidos  de  terror  iam  saber  do  telegra- 

(1)  Fausto  de  Goíllie.  Trad.  incfl. 

(2j  Note-se  qne  islo  foi  cscrijilo  ha  oito  mczcs. 


pho  os  progressos  que  era  sua  raarcha  ia  fazen- 
do; é  por  isso,  repilo,  que  o  Panorama  tinha  for- 
çosaniente  de  lhe  dar  cabida  era  suas  columnas. 

Fora  eu  o  encarregado  de  fazer  a  apresentação 
de  tal  hospede  aos  leitores.  Fui  guardando  jessa 
tarefa,  na  verdade  não  muito  agradável,  para 
quanto  mais  tarde  poude,  e  n'isso  se  me  an- 
tolhavam algumas  vantagens :  o  assumpto  tor- 
nava-se  cada  vez  mais  estafado ;  todos  os  jor- 
nacs  scientiíicos  o  tinham  tomado  á  sua  conta ; 
n'este  caso,  lendo  poucas  novidades  a  dar,  me- 
nos trabalho  teria,  desculpe-se-me  esta  fianque- 
za,  e  menos  enfadaria  os  meus  leitores :  embora  o 
inimigo  vá  fugindo,  é  elle  de  natureza  tal,  que 
mesmo  já  pelas  costas  ainda  assusta,  e  fallar  n'el- 
le  não  e  lá  das  coisas  mais  agradáveis. 

A  final  não  houve  remédio  senão  pôr-rae  á  mi- 
nha mcza  de  trabalho,  e,  rodeado  de  jornaes  que 
só  do  cholera  se  occupavam  n'uma  infinidade 
de  paginas,  procurar  novidades  que  dar  a  meus 
futuros  leitores. 

Passadas  assim  algumas  horas  em  baldado  pro- 
curar, disposto  já  quasi  a  deixar  o  cumpriraento 
de  tal  tarefa  para  um  eterno  amanhã,  peguei  de 
um  livro  ao  acaso  e  esse  acaso  quiz  que  o  livro 
fo^e  o  Fausto ;  quiz  mais  o  acaso  que  logo  me 
dessem  na  vista  as  poucas  paginas  que  acabais 
de  ler.  Pasmei  então  de  vér  n'essas  paginas,  em 
admirável  resumo  a  historia  de  todas  as  epidemias 
de  que  ha  memoria.  O  povo  então,  como  sempre, 
como  hoje,  esquecendo  em  folguedos  e  danças  o 
llagello  que  o  açoitou  ;  a  sciencia  não  podendo 
dizer  hoje  mais  que  então  disse  pela  boca  de  Faus- 
to, d'esse  niytho  eterno  e  eternamente  verda- 
deiro da  encyclopedia  humana! 

Para  logo  liz  tenção,  amigo  e  benévolo  leitor, 
de  vos  dar  essas  paginas  a  troco  do  que  vos  teria 
a  dizer  sobre  a  actual  e|)idemia.  As  paginas  ahi  fi- 
cam já ;  do  que  vos  não  livro  porém  é  de  mais 
algumas  da  minha  lavra. 

O  único  meio  que  tenho  a  meu  dispor  para  me 
fazer  perdoar  a  temeridade  de  fallar  depois  e  era 
seguida  a  Goethe,  é  ser  o  mais  resumido  e  lacóni- 
co possível. 

E'  o  que  vou  fazer. 

[Cunlinua] 


UM  SONETO  DE  LEONARDO  VINCI 

Que  lodo  aqucllc  que  não  pódc  obter  o  que 
(juer,  queira  o  que  p(^de^  porque  é  loucura  que- 
rer-sc  o  impossível :  logo,  é  acertado  o  homem 
não  querer  o  que  não  p(klc. 

Se  o  nosso  prazer  degenera  em  desgosto  por- 
que SC  não  .sabe  querer  o  que  é  possível,  s()men- 
le  púdc  aquellc  que  faz  o  que  deve  e  lira  a  razão 
da  sua  própria  natureza. 

Nem  sempre  se  deve  querer  o  que  é  possível, 
porque  muilas  vezes  o  que  parece  doce  é  amar- 
go, c  por  vozes  Icnlio-me  arrependido,  depois  de 
as  ler  obtido,  de  haver  querido  certas  cou.sas. 

Logo,  ó  leitor  d"eslcs  versos,  se  queres  ser  bom 
para  ti  c  caro  a  outrem,  quer  sempre  poderes  o 
íiuc  deves  poder. 


o  PANORAMA 


285 


Cathedral  de  Chartres 


A  cidade  de  Chartres,  capital  do  departamento 
d'Eure-et-Loire5  na  França,  está  situada  no  cume 
de  uma  montanha,  Junto  da  qual  passa  o  rio  de 
Eure,  que  banha  uma  parte  das  suas  muralhas 
e  vivifica  os  seus  lindos  arrabaldes.  Esta  cidade 
está  rodeada  de  velhas  fortificações,  que  teste- 
munham ao  mesmo  tempo  a  sua  antiguidade  e 
importância.  Datam  ellas  dos  séculos  XI  e  XII,  e 
são  construídas  com  solidez  tal,  que  muito  tem- 
po antes  da  invenção  da  artilheria,  passavam 
quasi  por  inexpugnáveis.  O  facto  é  que  Henrique 
IV,  em  1591,  sitiou  a  e  não  pôde  assenhorcar-se 
d'ella.  Consistiam  estas  fortificações  em  uma  cer- 
ca de  muralhas  muito  altas,  apoiadas  sobre  um 
terrapleno  de  muitas  toesas  de  largura,  e  flan- 
queadas de  grossas  torres  redondas.  As  portas  são 
em  numero  de  sete.  A  mais  notável  é  a  porta 
Guilherme,  que  recebeu  o  nome  do  vidama  de 
Chaitres  no  tempo  do  qual  foi  construída.  O  seu 


aspecto  guerreiro  é  imponente.  De  um  e  outro 
lado  elevam-se  duas  torres  unidas  por  uma  cor- 
tina, e  guarnecidas  de  amêas  e  setteiras. 

Nem  todo  o  espaço  comprehendido  n'esta  vas- 
ta cerca  de  muralhas  estava  coberto  de  casas. 
Uma  grande  parte  compunha-se  de  jardins,  praças 
e  mesmo  bosques  e  terras  de  semeadura;  pouco 
a  pouco,  porem,  foram  utilisando  estes  terrenos, 
e  por  toda  parte  se  elevaram  edifícios,  igrejas  e 
conventos:  mas  estas  construcçòes  nunca  foram 
muito  longe,  porque  a  cidade  poucas  casas  mo- 
dernas apresenta.  Tudo  ali,  mais  ou  menos,  falia 
dos  tempos  antigos.  As  ruas  são  estreitas  e  mal 
alinhadas,  e,  em  alguns  pontos  da  chamada  ci- 
dade baixa,  de  tal  modo  escarpadas,  que  se  tornam 
inaccessiveis  a  trens :  algumas  das  que  seguem 
o  declivio  da  montanha  teem  a  forma  d'escadas. 
As  casas,  quasi  Iodas  edifícadas  de  madeira  e  ter- 
ra, teem  as  portas  cm  ogiva,  ornadas  de  esculp- 


286 


O  PANORAMA 


luras  gothicas.  Xão  obstante,  porem,  a  cidade  no 
seu  todo  estar  mal  construída,  eucontram-se  ali 
aluuiis  bairros  agradáveis,  e  algumas  praças  pu- 
blicas vastas  e  muito  regulares. 

Quanto  a  monumentos,  Chartres  conta  poucos 
notáveis,  á  excepção  das  igrejas,  que  todas  são 
visitadas  com  interesse.  Citaremos  as  de  Saint- 
Aignan  e  de  Saint  Pére,  e,  primeiro  que  tudo,  a 
caíhedral,  uma  das  mais  bellas  construcções  da 
arcijiteclura  gotiiica  em  França.  «Tenho  obser- 
vado um  grande  numero  de  monumentos,  diz 
Fréminville,  mas  nunca  vi  nenhum  que  reunisse, 
como  este,  a  extensão  do  plano  á  grandeza  das 
proporções,  o  arrojo  da  conslrucção  e  a  admirável 
delicadeza  dcs  ornamentos.  Este  cdilicio,  enri- 
quecido d"estatuas,  de  baixos  relevos  executados 
em  diíTerentes  épocas,  é  um  verdadeiro  museu 
d"esculptura  frauceza  de  todas  as  idades,  onde 
se  pode  abraçar  só  com  um  relancear  de  olhos 
os  progressos'  suecessivos  da  aríe  e  a  chronologia 
dos  costumes.» 

Tem  se  já  fallado  d'esta  cathedral  por  tantas 
vezes  e  tão  minuciosamente,  que  julgamos  inú- 
til entrar  de  novo  em  uma  longa  descripção: 
diremos  apenas  algumas  palavras.  A  primeira 
basílica  de  Chartres  foi  incendiada  pelos  Norman- 
dos em  808,  e  reparada  pouco  tempo  depois.  No 
decimo  século  foi  novamente  presa  das  chammas, 
e,  em  fim,  em  10i20,  um  terceiro  incêndio,  occa- 
sionado,  dizem,  pelo  fogo  do  eco,  consummio  a 
cathedral  e  quasi  toda  a  cidade.  Achava  se  então 
ali  o  bispo  Fulbert,  que  desde  logo  começou  a 
empregar  todo  o  seu  zelo  e  actividade,  para  fa- 
zer sair  a  cathedral  das  ruínas  em  que  o  grande 
desastre  a  tinha  lançado.  A  rogos  seus  um  grande 
numero  de  habitantes  contribuio,  conforme  as 
suas  posses,  para  o  restabelecimento  do  templo, 
e  quando,  em  1028,  Fnlbert  morreu,  o  ediíicio 
achava-se  (pnsi  reconstruído.  Dois  dos  seus  suc- 
cessores  e  a  princeza  Mahaut,  viuva  de  imi  duque 
da  Normandia,  fizeram  continuar  os  trabalhos. 
O  grande  ]iortico  e  a  torre  velha  foram  comlui- 
dos  em  iWo.  \  outra  torre,  pyramidc  magesto- 
sa,  na  qual  trab  lUuivam  em  loOG,  porque  havia 
sido  parle  destruida  por  um  raio,  o  capitulo  de- 
terminou ([ue  se  fizesse  toda  de  cantaria. 

Esta  cathedral,  cuja  conslrucção  se  prolongou 
pelo  espaço  de  cento  c  trinta  annos,  foi  dedica- 
da á  Virgem,  em  outubro  de  1200. 

No  exterior  admira-sc  o  fronlispicio  e  as  duas 
portas  lateraes,  que  parece  pertencerem  ao  deci- 
mo terceiro  século:  são  ornadas  d"estatuas,  gale- 
rias, nichos,  figuras  e  columnas  de  riquíssima 
csculptiira. 

Os  grandes  florões  que  adereçam  os  portaes, 
são  de  um  trabalho  preciosíssimo.  No  angulo 
meridional  da  igreja  nola-se  uma  figura  muito 
curio.=a:  é  a  de  um  burro,  esculpido  em  pedia, 
que  parece  estar  tocando  harpa;  designam-no  no 
paiz  pelo  burro  que  loca  sanfona.  Talvez  isto  seja 
uma  recordação  da  extravagante  festa  do  burro, 
que  SC  celebrava  na  idade  media  em  muitas  par- 
tes da  1'rança. 

O  interior  da  cathedral  não  é  menos  digno  de 
attenção.  Admira-se  ali  a  grande  harmonia  das 
suas  proporções  e  a  magestade  religiosa  das  suas 
abobadas,  debaixo  das  quaes  reina  uma  luz  mys- 
leriosa.  Todo  o  edifício  está  guarnecido  d"esta- 
tuas,  na  generalidade,  bem  traballiadas;  mas  a 
mais  notável  d'cstas  esculpluras  é  uma  que  existe 


no  coro,  formando  um  grupo  no  qual  sobresáe 
a  altitude  nobre  e  elegante  da  Virgem.  Conta-se 
que  cm  certa  época  os  vândalos  das  artes  quize- 
ram  destruir  esla  obra  prima,  mas  que  foi  salva 
devido  á  coragem  de  um  hojiiom,  que  teve  a  fe- 
liz idéa  de  pôr  um  boné  encarnado  na  cabeça 
da  Virgem,  transformando-a  d"estemodo  em  deu- 
sa da  liberdade:  graças  a  esta  burlesca  mctamor- 
phosc,  a  cathedral  de  Chartres  poude  conservar 
um  dos  seus  mais  preciosos  ornamentos. 

O  âmbito  exterior  do  coro,  começado  por  João 
Texier,  em  1514,  e  terminando  segundo  o  seu 
risco,  excita,  igualmente,  a  attenção  dos  artistas 
pela  riqueza  da  sua  architeclui-a  e  bella  execu- 
ção dos  seus  mais  pequenos  lavores,,  Esta  obra 
é  no  estylo  gothico  mais  rico  e  elegante. 

Por  debaixo  da  igreja,  ha  uma  outra,  dita  igre- 
ja subterrânea,  para  a  qual  se  desce  por  cinco 
escadas  dilTerentes.  Ha  ali  uma  capellada  Virgem, 
onde  os  fieis  costumavam  depositar  as  suas  oíTer- 
tas;  junto  do  altar  está  um  poço  chamado  o  po- 
ço dos  Santos,  porque  no  tempo  do  imperador 
Cláudio,  o  governador  de  Chartres,  tendo  feito 
passar  ao  fio  da  empada  um  grande  numero  de 
christãos,  mandou  lançar  os  seus  cadáveres  n'este 
poço. 

Taes  são  as  partes  mais  notoveis  d'este  edifício, 
que,  pela  quarta  vez,  em  1830,  foi  victima  de 
outro  incêndio,  que  lhe  causou  gravíssimas  per- 
das. Felizmente,  o  governo  francez  deu  logo  to- 
das as  providencias  e  a  cathedral  dentro  em 
pouco  achou-se  restaurada. 

O  commercio  c  a  industria,  no  departamento 
do  qual  Chartres  é  a  capital,  não  teem  grande 
importância.  O  ramo  principal  das  suas  expor- 
tações é  o  trigo,  do  qual  uma  grande  parte  é 
deisinada  ao  abastecimento  de  Paris.  A  sua  po- 
pulação não  excede  de  20000  almas. 


OS  PELOTfQUElROS  PATAGÕES 

Ninguém  ignora  que  um  dos  jogos  mais  inno- 
centes  e,  na  apparencia,  mais  assustadores  dos  pe- 
loliqueiros  Índios  consiste  em  introduzir  pela  bo- 
ca até  o  csophago,  uma  lamina  brilhante  de 
aço. 

Quando  pela  primeira  vez,  em  1521,  o  nosso 
Fernão  de  Magalbães  e  a  sua  gente  se  acha- 
ram em  relação  com  uma  horda  de  Patagõcs, 
aquelles  enormes  selvagens,  vestidos  de  pelles, 
acolheram  com  gritos  de  alegria  os  pequenos 
presentes  que  se  lhes  deram  :  as  imagens  pinta- 
das, a  missanga,  os  busios,  e  os  guizos  excita 
ram-lhes  o  seu  jovial  enthusiasmo.  Depois  de 
terem  dansado  diante  dos  estraugeiro.s,  quizeram 
diverlil-os  com  um  exercício  que  tinha  no  bando 
grande  succcsso.Um  d'elles,  agarrando  cm  uma 
frecha  arm'ida  da  sua  ponta  aguda  de  silcx, 
introduzio-a  com  toda  a  bravura  no  estômago. 

Este  caso  de  um  peloliqueiro  palagão  encontra- 
sc  na  historia  da  primeira  viagem  de  circumnave- 
gação  escripla  em  latim  pelo  Transylvano,  c  di- 
clada  por  Sebastião  dei  Cano,  o  feliz  navegador 
que  trouxe  á  Europa  a  Vicloria. 


LONDRES 

As  indiishias  que  florescem  n'esta  capilal  s>no 
principalmente  as  da  fahricaçrio  da  cerveja,  papel, 
licores,  belumcs,  sabão,  assucar  reiinadu,  vinagre, 


o  PANORAMA 


287 


corlumcs,  manufacluras  de  seda,  produclos  chimi- 
cos,  machinas,  carruagens,  relógios,  alfaias,  gé- 
neros de  Iodas  as  classes,  quinquilharias,  ferragens 
e  outras  muitas  producções,  que  seria  fastidiosa 
enumerar. 

Tão  vastos  negócios  e  cousas  Ião  grandes  não 
podem  fazer-sc  com  o  estômago  vasio  sob  a  influen- 
cia de  um  clima  que  requer  Ião  succulenla  c  nu- 
tritiva alimentação,  e  por  tanto,  os  habitantes  de 
Londres  tcem  todo  o  cuidado  em  estivar  os  seus 
com  a  melhor  carne,  as  melhores  bebidas  e  o 
melhor  pão  que  existem,  para  conservarem  jun- 
tos e  em  boa  harmonia  o  corpo  com  a  alma.  A 
povoação  londrina  digere  annualmente,  300,000 
novilhos,  40,000  vitellas,  1.100,000  carneiros, 
21)0,000  borregos,  270;000  porcos,  20.000,000 
alqueires  de  farinha  de  trigo  reduzida  a  pão, 
311.000,000  de  batatas,  iOO. 000,000  de  peixes 
de  todas  as  classes  e  tamanhos,  90.000,000  de 
couves,  5.000;000  de  aves,  25,000  toneladas  de 
queijo  e  manteiga  e  600,000  coelhos  e  lebres  de 
Oslende;  além  dos  vegetaes  não  mencionados, 
fructas  seccas  e  do. tempo,  e  outros  muitos  géneros 
que  recebem  do  estrangeiro  durante  o  anno. 

Os  meios  de  apagar  a  sede  de  tão  poderosa  e 
gastronómica  communidade,  não  são  menos  pro- 
digiosos. Um  exei'cito  de  20,000  vaccas  poz  cerco 
a  esta  capital  e  verte  dia  a  dia  tori-entes  de  leite 
para  os  seus  chás  e  cafés.  Setecentas  mil  pipas 
devmho,  2.000,000  galões  de  licores,  45.000,000 
galões  de  cerveja  e  2,166.000,000  chávenas  de 
café  e  chá  formam  o  estomacal  molho  dos  seus 
alimentos  sólidos  no  mesmo  periodo  de  tempo.  Os 
hotéis,  tabernas,  não  incluindo  os  puhlic-houses, 
e  casas  de  hospedagem,  elevam-se,  em  Londres,  a 
2,407. 

l  Como  não  ha  de  ser,  pois,  industriosa  uma 
povoação  com  tão  descommunal  appetite  e  uns 
estômagos  tão  sem  fundo?  E,  não  obstante,  ha 
desgraçados  que  morrem  de  fome  em  Londres, 
miséria  infinita  e  pauperismo  que  causam  es- 
panto ao  animo  do  humanitário  philantropico,  do 
reformador  social  e  do  homem  politico.  Não  é, 
poj"ém,  este  o  lado  que  nos  propomos  mostrar  aos 
viajantes,  que  esperamos  sejam  muitos,  que  quei- 
ram dispensar-nos  a  honra  de  acompanhar-nos 
com  a  imaginação  n'esta  viagem  por  Londres. 
Quando  o  dono  de  uma  casa  convida  os  seus  ami- 
gos para  que  o  visitem,  tem  sempre  o  cuidado  de 
que  estes  não  vejam,  se  é  possível,  os  quartos 
mais  pobres  e  os  moveis  mais  arruinados.  Pois 
bem,  é  isto  precisamente  que  nós  procuiamos  ob- 
servar nas  nossas  digressões  por  este  mare-magnum. 

Em  uma  capita!  Ião  vasta  e  populosa  como  Lon- 
dres, compi"ehende-sc  facilmente  que  os  seus  ha- 
bitantes tenham  de  valer-se  de  alheios  pós  para 
transitar  por  ella;  c  isto  explica  o  facto,  que  de 
outro  modo  pareceria  fabuloso,  de  que  corra  dia- 
riamente por  suas  ruas  o  prodigioso  numero  de 
300,000  carruagens  de  todas  as  classes.  Só  os 
omnibus,  em  numero  de  800,  fazem  300,000  mi- 
lhas de  caminho  todas  as  semanas  com  1.000,000 
de  viajantes.  Os  indivíduos  que  navegam  nos  va- 


pores do  rio,  de  um  a  outro  extremo  d'esta  me- 
trópole, elevam-se  a  30,000  diariamente;  a  i)oiite. 
de  Londres  estremece  com  o  peso  diário  de  30,000 
carruagens,  e  a  estação  do  caminho  de  ferro  ali- 
ja todos  os  annos  n'esta  grande  capital  mais  de 
14.000,000  de  individues  de  todos  os  pontos  da 
terra. 

[,  Que  tem,  pois,  d'estranho,  em  vista  d'esta  ag- 
gloinei'ação  de  homens,  barcos,  carruagens  e  ani- 
maes,  que  perecessem  750  criaturas  atropelladas 
nas  ruas  de  Londres,  e  que  se  afogassem  no  Tamisa 
outi'as500  no  anno  de  1859'?  A  primeira  cousa  que 
tem  a  fazer  o  viajante,  que  presa  os  seus  delicados 
membros,  antes  de  visitar  esta  capital,  é  aprender 
a  andar  por  entre  as  pernas  dos  cavallos  e  as  r-o- 
das  dos  carros,  com  a  mesma  impunidade  que  o 
celebre  Blondin  pela  coixla  bamba ;  e  no  caso 
que  se  não  julgue  bastante  ágil  para  executar 
impunemente  tal  façanha,  deve  addiciouar  um 
capitulo  respeitável  ao  seu  presupposto  de  viagem: 
Gastos  de  locomoção  em  pés  alheios  pehs  ruas 
de  Londres. 

O  methodo  de  vida  de  tão  poderoso  conjuncto 
de  seres  humanos  não  é  menos  digno  de  excitar 
a  curiosidade  e  deoccupar  aattenção  do  viajante; 
esta  matéria,  porem,  por  si  só  exigiria  um  livro. 
Um  Inglez  pode  definir-se  como  um  animal  que 
come  e  ti-abalha  muito  e  engole  uma  quantidade 
enorme  de  mostarda  e  cerveja.  A  sua  grande  vir- 
tude é  o  afíinco  ao  trabalho.  Aiubicioso  e  livre 
por  natureza,  ti-abalha  toda  a  sua  vida  pai'a  tor- 
nar-se  a  si  próprio,  a  sua  familia  e  a  sua  patiia 
ricos,  poderosos  e  independentes.  O  amor  á  liber- 
dade é  n'elle  tão  innato  como  o  amor  ao  ti'abalho, 
á  riqueza  e  á  independência,  e  este  é  o  grande 
segredo  da  opulência  e  poderio  da  nação  britan- 
nica. 

A  raça  anglo-saxonia  foi  dotada  pela  natureza 
com  o  génio  de  fazer  dinheiro,  e  ainda  que  em 
seu  afan  por  adquiril-o  soflVa  com  frequência  tr-a- 
balhos  e  privações,  o  prestigio  e  os  gozos  reaes 
que  o  ouro  lhe  proporciona,  i-ecompensa-o  cora 
usura  de  uns  e  outros.  O  dinheiro  é  como  o  ar 
que  se  respira,  sem  o  qual  se  não  pode  viver: 
torna  o  homem  poderoso  como  a  tromba  ao  ele- 
phante  c  os  dentes  e  as  garras  ao  leão. 

As  necessidades  espiriluaes  dos  habitantes  de 
Londres  são  satisfeitas  por  855  clérigos  da  igreja 
anglicana  e  um  exercito  de  dissidentes  de  todas  as 
crenças.  O  total  dos  templos  e  capellas  d'estes 
obreiros  espirituaes  eleva-sè  a  perto  de  um  mi- 
lhar. Os  independentes  contam  com  140  lugares 
de  adoração;  os  baptistas,  teem  133;  os  methodis- 
tas,  15Í;  os  presbyterianos,  23;  os  unitários,  9; 
os  catholicos,  35;  os  moravianos,  2;  e  94  as  outras 
seitas,  entre  lutheranos,  santos  modernos,  protes- 
tantes, francezes,  gregos,  allemães,  italianos,  etc. 
A  communidade  israelita,  ali  muito  mais  respei- 
tada que  entre  nós,  porque  se  compõe  de  homens, 
pela  maior  parte  instruídos  e  de  bons  costumes, 
tem  11  synagogas,  nas  quaes  rende  culto  ao  Anti- 
go Testamento. 

{Continua) 


288 


O  PANORAMA 


O  MUNDO  DO  MAR 

O  elemento  liquido  occupa,  pouco  mais  ou  me- 
nos, dois  terços  da  suporíicie  do  globo  tertestrc; 
a  relação  da  supeiiicie  banliaJa  com  a  supeiTicie 
não  banhada  c  de  3.8  para  1.2;  e  dos  cinco  mi- 
lliõos  de  myriamolms  quadrados  que  constituem 
a  superticiè  do  globo,  3.800,000  pertencera  ex- 
clusivamente á  soberania  das  aguas.  ^,Ora,  seria 
posbivel  que  esta  immensa  extensão  fosse  privada 
das  bellezas  e  riquezas  da  vida,  em  quanto  que 
a  terra  oITerece  na  sua  flora  e  no  seu  fauno  uma 
tão  grande  variedade,  uma  tal  opulência?  Os 
antigos  naturalistas  estavam  longe  de  compre- 
liender  toda  a  riqueza  dos  oceanos,  c  o  mesmo 
Linneo,  fatiando  dos  vegelaes  do  mar,  mostrava 
conhecer  uma  quantidade  insignilicante. 

Hoje  a  sciencia,  menos  incompleta,  tem  sonda- 
do as  profundezas  oceânicas,  e,  n'essas  occullas 
regiões,  tem  achado  uma  exu 'veraneia  de  vida  não 
inferior  á  que  se  manifesta  nos  continentes.  Kxisle 
ali  um  mundo,  um  mundo  verdadeiramente  novo, 
cujas  classillcações  relativas  ás  plantas  e  ani- 
maes  aerios  não  nos  poderiam  dar  uma  idèa  bas- 
tante clara.  O  mar  ofTerece  ao  observador  um 
centro  onde  folgam  mil  formas  animaes,  llorestas 
que  abrigam  hospedes  mais  numerosos  e  não  me- 
nos variados  que  os  das  ílorestas  terrestres. 

Comtudo,  devemos  dizer  que,  se  no  mar  existe 
incomparavelmente  maior  numero  de  animaes  que 
na  terra,  a  vida  vegetal,  ali,  não  é  tão  largamente 
representada;  mas  parece  que  ha  n'isto  compen- 
sação; porque  o  mundo  dos  polypos  cria  para  o 
oceano  uma  serie  de  seres  ao  mesmo  tempo  vege- 
taes  e  animaes  que  lhe  dá  uma  vida  insólita,  es- 
tranha, complicada. 

Sim,  o  mar  é  um  mundo  novo,~  cujas  ricas  e 
variadas  producções  formam  o  ramo  mais  maravi- 
lhoso da  historia  natural.  O  livro  posthumo  de  Mo- 
quin-Tandon  revelou  o  valor  d'este  mundo,  e  pela 
primeira  vez  reunio  em  um  mesmo  cofre  todas  as 
pérolas  occultas  do  elemento  liquido.  Ouviremos 
hoje  o  que  elle  diz  a  respeito  das  plantas. 

Observemos  primeiro,  com  Schleiden,  que  Ioda 
a  flora  submarina  comprehende  quasi  exclusiva- 
mente uma  só  grande  classe  de  vegetaes,  as  algas 
ou  05  fucos,  —  que  são,  accresceníemos  também, 
as  primeiras  plantas  criadas.  «Estas  plantas  otle- 
recem  uma  tal  diversidade  de  formas,  que  uma 
paizagem  no  fundo  do  mar  não  é  nem  menos  in- 
teressante, nem  menos  variada  do  (|ue  a  que  apre- 
senta uma  legião  na  qual  o  sol  imprimisse  o  rico 
sello  da  vegetação  luxuriante  dos  trópicos.  Uma 
estructura  particular,  molle,  gelatinosa  em  todas 
as  suas  partes;  um  conjuncto  de  órgãos  anedonda- 
dos  ou  alongados  e  estendidos,  aos  quaes  as  ex- 
pressões de  talos  e  de  folhas  não  são  apulicaveis 
como  nas  outras  |)lantas;  brilhantes  cores  de  um 
tom  verde,  azeilonalo,  amarcllo  rosa  e  purpura, 
por  vezes  levemente  sortidas  sobre  o  mesmo  ór- 
gão foliaceo,  tudo  isto  imprime  n'estcs  vegelaes  um 
caracter  estranho  e  magico.» 
As  plantas  do  oceano,  diz  o  auclor  do  livro  que 


acima  citamos,  não  se  assemelham  muito  ás  que 
guarnecem  os  nossos  bosques  e  os  nossos  valles. 
Em  primeiro  lugar,  não  lêem  raizes.  As  que  fluc- 
tuam  são  globulosas  ou  ovóides,  tubuladas  ou  mem- 
branosas,  sem  apparencia  alguma  de  corpo  radicu- 
lar. As  que  adherem  estão  lixas  por  uma  espécie  de 
pó  superiicial,  mais  ou  menos,  lobado  e  dividido. 
A  terra  em  nada  conliibue  para  o  seu  desenvolvi- 
mento, porque  o  seu  ponto  de  origem  é  sempre 
exterior.  Tudo  se  passa  na  agua,  tudo  vem  d'ella 
e  tudo  a  ella  torna. 

«As  plantas  terrestres  escolhem  tal  ou  tal  ter- 
reno; não  prosperam  senão  em  solo  determinado. 
As  plantas  marinhas  são  indiííerentes  ao  rochedo 
que  as  supporta.  Quer  este  seja  calcário,  quer  se- 
ja granítico,  a  ellas  nada  aproveita:  assim  crescem 
indistinctamente  por  toda  parte,  mesmo  sobre  os 
coraes  ou  sobre  as  conchas.  Estas  hydrophitas  não 
possuem  nem  verdadeiros  talos,  nem  folhas  ver- 
dadeiras; dilatam-se  muitas  vezes  em  laminas, 
largas  ou  estreitas,  de  uma  só  ou  de  muitas  peças 
que  fazem  parte  creste  órgão.  Assemelham-se  ora 
a  correias  ondeadas,  ora  a  estamos  encrespados ; 
estes  espessos  e  coreaceos,  aquellas  delgadas  e 
membranosas.  lia  algumas  que  poderiam  ser  to- 
madas por  pequenos  balões  transparentes,  por  es- 
tofos regularmente  estampados,  por  bocados  de 
gelea,  por  fitas,  por  boldriés  de  pelle  ciíf^ida,  por 
leques  de  papel  verde.  A  sua  superticiè  é,  ora 
lisa,  polida,  mesmo  lusidia,  ora  coberta  de  papil- 
las,  de  verrugas  ou  de  verdadeiros  pellos.  Acha-sc 
n'ellas  uma  es|)ecie  de  unto  viscoso,  um  pó  sali- 
no, uma  eíllorescencia  assucarada,  e,  algumas  ve- 
zes, um  sedimento  cretáceo.  A  cór  é  azeitonada, 
loura,  amarella,  de  um  pardo,  mais  ou  menos,  es- 
curo, verde,  mais  ou  menos,  claro,  rosa,  mais  ou 
menos,  delicado,  carmim,  mais  ou  menos,  vivo. 
Alguns  andores  tem-nas  dividido,  segundo  as  suas 
tintas  dominantes,  em  trcs  grandes  secções :  as 
pardas  {melanospcrmadas)  as  verdes  [chlorosper- 
madas)  c  as  vermelhas  [r/iodospermadas].  As  pri- 
meiras são  muito  mais  numerosas.  Enterram-se, 
mais  ou  menos,  e  parece  occuparem  no  oceano 
três  regiões,  mais  ou  menos,  distinclas;  são  estas 
as  que  constituem  a  maior  parle  das  llorestas  sub- 
marinas. As  verdes  são  superliciaes  e  muitas  ve-  ( 
zes  llucluaiiles.  As  vermelhas  enconlram-se  habi- 
tualmente em  pequenas  profundidades  c  sobre  os 
rochedos  pouco  distantes  da  praia.  » 


UM  DITO  DE  ISAAC  NEWTON 

O  illuslre  Isaac  Newton,  a  quem  a  sciencia  mo" 
dcrna  deve  tão  importantes  descobertas,  dizia» 
pouco  Icmpo  antes  da  sua  morlc  :  cNão  sei  o  que 
pensa  o  mundo  a  meu  respeito  ;  mas  quanto  a 
mim,  julgo  que  faço  o  eíTeito  de  uma  criança 
Ijrincando  A  borda  do  mar  c  enlrclendo-se  a 
apanliar  de  tempos  a  tempos  uma  pcdrinlia  mais 
polida,  uma  concliinba  menos  commum  do  (juc 
as  outras,  em  quanto  que  o  grande  oceano  da 
verdade  estende-se  niyslerioso  e  insondável  dian- 
te de  mim.» 


Typ.  FrancoPorlugucza  =  Rua  do  Thesouro  Velho,  6. 


37 


o  PANORAMA 


289 


Bismark 


Vejo  que  a  civilisação  é  a  paz  alternada  com  a 
guerra ;  que  a  permanência  indefinida  de  qual- 
quer dos  dois  estados  signilica  a  fadiga,  o  defi- 
nhamento, a  ruina,  a  miséria,  a  annulação.  Se 
existem  constituições  independentes,  nacionalida- 
des viçosas,  cuja  vida  data  de  tempos  remotos,  é 
que  tão  grande  longevidade  nasceu  de  um  lógico 
acordo,  de  uma  habilíssima  combinação  entre  a 
guerra  e  a  paz. 

Com  certeza. 

O  canhão  deve  rebentar,  ou  para  abrir  cami- 
nho ao  legitimo  desafogo  das  populações  desen- 
volvidas, ou  para  sumir  na  voragem  dos  com- 
bales a  superabundância  de  braços.  O  canhão  de- 
ve emmudecer  onde  principia  o  goso  dos  benefi- 
cios  que  a  continuação  das  hostilidades  degene- 
raria. Ouando  o  amor  da  vicloria  não  é  só  a  si- 
gnificação de  uma  necessidade,  mas  lambem  a 
paixão  exclusiva  da  gloria,  então  a  guerra,  con- 
quistando demais,  enfraquece  duplamente  os  seus 
heroes,  a  quem  os  golpes  da  lula  ceifa,  e  a  ex- 
tenuação  desbarata  e  isola  entre  as  multidões  ini- 
migas. 

Os  'povos  que  fizeram  da  conquista  o  elemento 
principal  e  continuo  da  sua  existência,  o  trium- 
pho  predilecto  da  sua  vida  politica,  conseguindo 
evadir  e  quasi  dominar  o  mundo,  foram  os  que 
mais  depressa  dcsappareceram  das  cartas  geográfi- 
cas ;  e  cousa  semelhante  aconteceu  aos  exclusivis- 
tas da  paz,  aos  inimigos  de  sangue,  aos  evange- 


listas da  perfectibilidade  humana;  aos  republicanos, 
socialistas  e  communistas. 

Onde  estão  osSaints  Simon,  os  Owens,  osFou- 
riers,  os  Louis  Blanc,  os  Cabets,  e  os  Proud- 
hons"? 

Dormem  uns  no  silencio  eterno  do  tumulo,  ve- 
getam outros  no  recinto  domestico,  e  da  me- 
moiia  de  qualquer,  apenas,  na  maçonaria,  algum 
neophyto  philosophico  se  aproveita  para  firmar  o 
seu  nome  de  guerra,  mitigando,  por  estepaciíico 
modo,  as  saudades  dos  bellos  tempos  dos  tribunos 
populares. 

O  próprio  Victor  Hugo,  o  gigante  litterario  e 
poético  (io  século,  clama  no  deserto.  As  suas  obras, 
rasgando  toda  a  massa  muscular  do  progresso  ac- 
tual, mostram,  com  o  mais  deslumbrante  e  fixo  colo- 
rido, que  o  esqueleto  d'este  monstro  contem  na  me- 
dula princípios  energicamente  deletérios;  mas  nem 
os  que  as  lêem  com  intelligencia,  nem  os  que  não  as 
entendem,  se  movem   para  a  urgente  revolução. 

Pôde  ser  que  no  fundo  de  tão  grande  e  inexpli- 
cável desprezo  se  esteja  forjando  um  tremendo 
vulcão.  ISão  duvido.  O  que  é  certo,  porém,  é  que 
até  o  presente,  ainda  não  estoirou  o  cataclismo 
(jue  ha  de  sumir  nas  camadas  subvertidas  as 
raças  de  sangue  excepcional,  e  que  mui  difficilmente 
se  dará  um  tal  acontecimento. 

As  doutrinas  de  1818  exaltaram  os  espirites.  Fal- 
tar em  outra  cousa  que  não  fosse  igualdade,  liber- 
dade e  fraternidade,  era  eslar  fora  das  tendências 


290 


O  PANORAMA 


sublimes  da  época,  doshoiirar  a  dignidade  humana, 
revelai-  um  coração  ferino,  uma  intelligencia  cur- 
ta, um  cérebro  idiota,  uma  ignorância  crassa.  Re- 
bentou a  revoluçiío,  do  seu  triumplio  surgio  a  re- 
publica, e  sobre  o  primeiro  altar  d'esla  beneíica 
religião  coUocou  o  siiíTragio  universal  o  vulto  ido- 
latrado do  ameno  Lamaitine. 

Que  resultou,  porém,  de  se  ter  salvo  a  socie- 
dade íranceza? 

Extenuado  pelas  fadigas  de  uma  luta  encar- 
niçada, c  embriagado  pelos  perfumes  da  poesia, 
o  povo  adormeceu,  e  tão  profundamente,  que  não 
havia  despertal-o.  Tinha  razão ;  mas  como  tudo 
isto  manifestava  uma  paz  com  todas  as  tendên- 
cias para  a  inalterabilidade,  houve  logo  quem  disses- 
se que  a  felicidade  terrestre  florescia  sobre  um  abys- 
mo.  Esta  revelação,  assaz  semelhante  ás  predicas  dos 
santos  padres,  estremeceu  os  somnolentos  no  seu 
leito  de  rosas,  e  acordou-os.  A  consciência  do 
pioprio  abatimento  reanimou  a  memoria  dos  tem- 
pos heróicos ;  mas  nem  o  espirito  nutria  já  a 
chamma  do  enlhusiasmo,  nem  o  corpo  tinha  o 
vigor  preciso  para  levantar  o  immenso  estandarte 
das  glorias  belicosas. 

N'esle  lance  angustioso,  votou-se  pela  aventura. 
Depoz-se  nos  braços  do  prestigio  de  familia,  o 
que  não  podia  contiar-se  ao  prestigio  dos  factos. 
Correu-se  o  pano  ao  proscénio  do  grande  thea- 
tro  da  obscuridade,  em  cujo  fundo  jazia  a  figura 
pouco  volumosa  de  Luiz  Napoleão  ;  e  a  datar  d'esle 
momento  todos  sabem  o  que  se  passou. 

Veio  o  memorável  2  de  dezembro,  que  mu- 
dou radicalmente  a  face  da  consciência  e  da  go- 
vernação, porque  se  riscou  n'esse  dia,  do  diccio- 
nario  politico,  o  valor  religioso  do  juramento; 
porque  se  converteram  os  ariaiais  da  republica  em 
verdadeiro  circo  de  martyrio,  onde  o  ridículo, 
monstro  galhofeiro  que  derriba  com  um  sorriso, 
e  estrangula  com  uma  gargalhada,  satisfez  o  seu 
atroz  appetite.  Fecundaiam-se  os  ovos  esquecidos 
d'essa  águia  enorme,  que,  ferida  mortalmente  em 
Walerloó,fôra  cair  entre  os  rochedos  da  ilha  de  Santa 
Helena,  e  foi  o  suíTragio  universal,  o  mesmo  que 
na  véspera  havia  proclamado  a  liberdade  rainha 
da  civiljsação,  que  os  chocou  e  criou  as  novas 
aguiasinhas  que,  no  seu  primeiro  vôo,  abriram 
com  as  pontas  das  azas  as  portas  do  imperialismo, 
c  gravaram  com  as  garras,  aguçadas  no  deses- 
pero do  exilio,  condemnaçro  das  cousas  e  dos 
homens,  sobre  cujas  ruinase  infortúnio,  poisaram 
e  firmaram  o  sf-u  domínio.  Trancou-se  tudo  aos 
primeiros  apóstolos  da  liberdade  e  da  civilisação, 
e  apenas  se  lhes  deixou  dois  caminhos  para' es- 
colher :  o  departamento  ou  a  retratação. 

^io-se,  então,  íiirardin  rasgar,  á  face  do  uni- 
verso altento  e  absorto,  as  paginas  brilfanles  da 
sua  eloquência  social,  e  mergulhar,  cm  seguida, 
nos  pântanos  do  absolutismo,  fado  que  man- 
charia irremediavelmente  as  alvas  vestes  da  de- 
rnocracia,  se  esse  sol  immenso  qiio,  na  constella- 
ção  dos  grandes  homens  immaculados,  se  chama 
Victor  Hugo,  não  continuasse  a  inundar  de  luz 
escampes  onde  se  peleja  a  causa  da  humanidade. 


Depois,  consliiuio-se  nas  baionetas  a  força  do 
direito;  fundou-se  na  agressão  a  legitimidade  ab- 
soluta do  respeito ;  declarou-se  a  honra  patrimó- 
nio exclusivo  cfos  poderosos  ;  i-evestio-se  a  paz  com 
os  attributos  da  guerra ;  deu-se  a  esta  os  foros 
de  civilisação  ;  e  o  m-jndo  aceitou  o  prograruma, 
cobrio  o  auctor  de  prestigio,  e  proclamou-o  Júpi- 
ter do  novo  Olympio  politico,  onde,  mais  tarde, 
veio  tomar  assento  notável  o  conde  de  Bisraark, 
esse  vulto  prussiano  que  as  espingaidas  de  agu- 
lha mostraram,  ha  pouco,  tão  distinctainenle,  ao 
clarão  de  seus  tiros;  o  grande  diplomata  da  ac- 
tualidade que  segue,  na  applicação  á  politica  do 
seu  paiz,  as  theorias  do  autócrata  da  Europa,  as 
theorias  que  hão  de,  ou  tem  já,  talvez,  atropela- 
do gravemente  os  dii*eitos  mais  sagrados  dos  j)o- 
vos. 

E  pois  que  consegui  aportar  ao  assumpto  da 
gravura,  o  que  já  tinha  reputado  impossível,  di- 
rei que  Bismark  é  homem  próprio  para  figurar 
excepcionalmente  nos  tempos  presentes,  porque 
assim  o  mostram  as  cruezas  da  sua  carreira  militar 
e  dii)lomatica  ;  porque  assim  o  comprova  a  energia 
selvática  com  que  invadio  quasi  toda  a  Allemaníia. 
Supposeram  muitos  que  o  primeiro  ministro  de 
Frederico  Guilherme  não  eia  mais  do  que  um 
simples  instrumento  de  Napoleão,  e  eu  fui  do  nu- 
mero. Hoje,  porém,  nutro  opinião  inteii'amenle 
contraria. 

Em  presença  dos  últimos  acontecimentos,  vejo 
que  Bismark  é  um  rival  temivel  do  imperador  dos 
francezes ;  que  das  Tulherias  para  o  gabinete  de 
Berlim  não  partem  já  senão  faiscas  de  ciúme,  e 
que  se  o  fogo  pegar,  só  Deus  sabe  até  onde  o  in- 
cêndio chegari.  Nogueira  da  Silva. 


A  GALATEA  MODERNA. 
X 

o  .«iertão. 

Já  ia  noite  fechada,  quando  Violante  c  Alfredo 
entravam  em  casa.  Ouvia-se  um  fallar  ruidoso  e 
folgazão  na  sala  do  [rabíúho,  sancta-sauctorum  í\oí 
Íntimos  da  casa,  tabernáculo  sobre  cujas  aras  ha- 
via sempre  nocturno  sacrificio  ao  deus-voltarete. 
Como  o  homem  justo  de  Horácio,  podia  o  mundo 
subverter-se,  caírem  impérios,  baqueai'em  thronos, 
(jue  o  voltarete  havia  de  continuar  a  sua  indispu- 
tada tyrannia  sob  o  tecto  do  velho  solar,  quasi 
alluido.  E  que  o  voltarete  é  mais  do  que  um  jogo, 
é  uma  religião,  um  sacer-docio.  Os  que  um  dia,  c 
dia  afortunado  é  esse  e  muito  de  relembrar  em 
horas  de  angustia  e  lristui"a,  quando  o  desalento 
bate  ás  portas  e  vem  aninhar-se  com  o  seu  cortejo 
no  coração  como  os  vermes  cm  recente  campa:  os 
que  um  dia  penetraram  os  sacrosantos  mysterios 
do  voltaivte,  os  delírios  de  uma  ro.scfí  bom  pensada 
e  i'uminada,  os  enlhusiasmos  de  um  vollarete  de 
respeilo  em  copas,  o  delírio  clamor"oso  c  irrom- 
pentc  de  um  geral,  nivoíúã  pungiliva  c  lancinante 
de  um  cadilho  ;  os  que  hão  experimentado  todas 
estas  peripécias  uma  vez,  que  seja,  na  vida,  loca- 
ram a  meta  da  felicidade  humana,  e  só  lhes  resta 
o  cair*  no  abysmo. 


o  PANORAMA 


291 


Eu,  que  ora  eslou  aqui  escrevendo  eslas  linhas, 
no  desconforlo  de  umas  paredes  velhas  fronleiras, 
balidas  por  um  sol  requoimanle,  sinto  vivas  sau- 
dades de  aliíumas  noiles,  que  se  me  foram  no 
conversar  inlimo  com  dois  amigos  a  respeito  do 
voltarete. 

Eia  uma  noite  de  verão.  Estávamos  em  um 
quarto  rente  com  o  jardim,  já  amarellecido  e  des- 
povoado, e  para  o  qual  defrontavam  as  janellas. 
Corria  uma  hiisa  do  mar,  que  açoitava  docemente 
a  luz,  a  qual  tremia  e  de  quando  em  quando  deita- 
va-se  docemente  sobre  a  vela  de  stearina  como  se 
quizesse  repoisar  de  tanta  vigilia. 

Começámos  de  jogar  com  brio,  com  a  anciã 
de  verdadeiros  f..naticos.  Mas  foi-se-nos  esmore- 
cendo pouco  a  pouco  o  vigor.  Aos  ruidos  do 
triumpho  e  ás  amarguras  não  menos  ruidosas  da 
derrota,  succedeu  a  melancolia,  aquelle  dulcíssimo 
bálsamo,  que  goteja  do  coração  dos  não  descridos, 
porque  o  coração  do  que  tem  fé  é  como  a  ambula 
dos  santos  óleos,  que  conforta  e  anima  o  mesmo 
moribundo  nas  vascas  do  tormento. 

Tocados  todos  três  do  deus  ignoto,  que  se  en- 
tranha cá  por  denti'0,  e  cá  vive  para  conversar 
comnosco  e  alentar-nos  em  horas  de  silencio, 
quando  o  mundo  palrador  se  cala  e  só  murmura 
a  consciência,  que,  mensageira  divina,  vae  do 
homem  a  Deus,  encontrou-nos  a  aurora  abraçados 
á  melancolia,  que  entornara  por  sobre  nós  a  sua 
urna  de  saudades ! 

Eu,  desherdado  e  sósinho  no  mundo,  revolu- 
teando ao  sabor  do  vento,  como  a  folha  que  caio 
da  arvore  e  tombou  para  o  valle,  cantava  mansi- 
nho umas  harmonias  da  Favorita,  dessa  obra  di- 
vina, ultimo  lampejo  de  um  moribundo;  o  meu 
amigo**  *  scismava,  relembrando  uns  amores  mal 
extinclos,  que  lhe  requeimaramo  coração  e  lhe  en- 
branqueceram  os  cabellos ;  e  o  outro,  aquelle  es- 
forçado contra  a  soile,  aquelle  gladiador  contra 
o  destino,  sorria  amargamente,  rememoi-ando  os 
seus  rudes  combates,  em  que  a  vida  se  lhe  vae. 
Erguemo-nos  todos,  que  lá  por  fora  começava 
já  a  vida,  e  o  mundo  pintava  o  rosto  devasso  para 
continuar  a  comedia  de  gargalhadas  que  encobrem 
dores.  Erguemo-nos,  pobres  poetas,  que  era  ne- 
cessário envergar  a  armadura  para  o  combate. 
São  assim  os  desherdados  que  até  a  solidão  lhes 
foge.  A  thebaida,  só  a  lem  quem  a  pôde  comprar 
a  peso  de  oiro.  O  flagício,  que  retempera  a  alma 
e  a  avigoi'a  com  as  dores  do  corpo,  já  não  ha  um 
remançoso  claustro  que  o  dè. 

Erguemo-nos.  Oue  fazíamos  nós  ali?  .Tá  não 
Unhamos  a  solidão. 

Mas  quão  longe  me  vou  do  serão  do  velho  li- 
dai go  ! 

Corlieçára  já  o  voltarete  ;  a  tripode  estava  com- 
j)leta.  Eram  três  os  parceiros,  que  o  voltarete  de 
quatro  é  pouco  usado  nas  províncias.  E  teemiasão 
os  provincianos,  derradeiros  cultores  do  jogo  de 
nossos  avós.  Teem  lasão.  lia  uma  ceita  volupluo- 
sidade  em  formara  fatídica  Iriologia,  ale  no  jogo. 
O  quarto  é  sempre  um  intruso,  uma  cxcrecencia, 


um  homem,  que  quer  ver  acabada  a  mão  para  lhe 
chegar  a  sua  vez.  É  um  egoísta,  que  está  ali  com 
o  único  lito  de  tripudiar  sobre  as  ruínas  dos  par- 
ceiros. Oue  o  feito  ganhe  ou  perca  ;  que  o  fraco 
codilhe  ou  o  forte  entregue  o  jogo,  pouco  impor'- 
ta.  O  que  elle  quer,  o  derramado  egoista,  é  jogar. 
Tudo  mais  lhe  e  indiíTerente. 

Eram  pois  ti"es  os  jogadores ;  e  ei'am  só  elles 
que  povoavam  a  vasta  quadra,  em  cujo  meio  se 
erguia  a  meza  de  jogo,  com  um  enorme  candieiro 
de  três  bicos,  todos  accesos.  Eram  três  figuras 
meditabundas,  entregues  d'alma  ao  demónio  do 
jogo.  Acurvados,  mirando  as  cartas,  ordenando-as, 
calculando  in  mente,  tentando  adivinhar  o  pensa- 
mento dos  outros,  ora  falladores,  ora  silenciosos, 
disputando  a  propósito  de  uma  carta  mal  jogada, 
e  mimoseando-se  de  industria  com  bem  cabidos 
motejos  e  chufas,  que  apenas  lh(>s  beliscavam  a 
dura  epiderme,  laes  éramos  Iresjogadores,  victi- 
mas  e  vassalios  do  voltai"ele,  d'esse  tyranno  do- 
mestico mais  imperioso  e  mais  cheio  de  caprichos 
do  que  um  rajah  do  oriente. 

Um  dos  jogadores  era  o  morgado,  que  apresen- 
támos já  em  outro  logar,  e  que,  como  fidalgo  de 
nobre  linhagem,  chamava-se  D.  José  Maria  de  Vi- 
lhena Gualdim  de  Mattos,  etc,  ele,  ele.  Era  fidal- 
go de  casa-real  de  juro  e  herdade.  Andava-lhe  o 
foro  na  família  havia  séculos.  Os  seus  antepassa- 
dos foram  capitães  de  cavallos,  em  tempos  mais 
felizes;  tiveram  pelos  modos  direito  de  baraço  e 
culello,  como  quem  diz,  enforcavam  e  degolavam. 
No  porte  e  no  gesto  e  na  phrase  estava-se  reve- 
lando o  homem,  que,  atraz  de  si,  conta  uma  raça 
antiga  e  nobre,  que  dui"ante  séculos  depurara  o 
sangue  e  acrisolara  essa  realeza,  que  Deus  poz  no 
coração  do  homem,  quando  animou  a  argilla. 

O* outro  conviva  era  o  cura.  Quizera  eu  alan- 
cear-rae  aqui  a  um  capitulo  obumbrado  sobre  o  ca- 
racter divino  do  sacerdócio  em  geral,  e  sobre  o  singe- 
lo caracter  do  cura  em  especial.  Livre-me  Deus  de 
ruins  tentações.  O  nosso  bom  cura  era  simplesmente 
uma  pobre  alma,  toda  carinhoso  meiguices  para  os 
que  soIlVem,  incapaz  de  elevações,  voando  terra  a 
terra  como  a  andorinha,  e,  como  ella,  destruindo  os 
vermes,  que  estragam  a  ceara  do  lavrador.  O  pobre 
cura  nunca  amara.  A  tempestade  das  paixões 
nunca  se  desenfreara  pelo  seu  coração.  Era  um 
homem  bondoso,  singelo,  pouco  instruído,  porque 
lia  mais  o  breviário,  abibíia  e  o  evangelho,  do  que 
todas  as  conferencias  dos  zelosos  philosophos  tonsu- 
rados, que  ainda  hoje,  fundando-se  em  S.  Agosti- 
nho e  Tertuliano,,  andam  a  exorcismar  a  sombra 
de  Spinoza.  O  cura  dizia  a  sua  missa  das  almas, 
visitava  os  doenles  e  com  elles  repartia  os  parcos 
haveres  da  minguada  côngrua,  rezava  as  suas  rezas 
e  nunca  ouvira  fallar  em  Wiseman.  Bem  se  lhe 
importava  elle  com  o  diluvio  e  com  a  geologia.  Os 
fosseis,  lá  i)ara  elle,  são  os  taes  que  se  lançam 
em  controvérsias  ociosas,  de  que  hão  de  sair  mal, 
porque  a  igreja  é  uma  necessidade  social  e  moral, 
e,  até,  se  quizerem,  uma  instiUiição  politica,  mas 
não  é  um  monumento  scientilico.  Isto  diria  o  bom  do 
cura,  se  soubesse  do  que  vae  por  esse  mundo.  Mas 


292 


O  PANORAMA 


n'es5e  tempo  nera  se  fallava  deRenan,  e  o  singelo 
pastor  quoria-se  com  as  suas  ovelhinbas  e  com  a 
sua  igreja  campestre,  toda  arraiada  de  rosma- 
Eiiibo  cm  dia  de  festa. 

Verdade  é  que  o  seu  parco  latim  não  lhe  per- 
mittia  divagações  contra  os  Strausscs  do  século,  e 
o  ancião  sairá  do  seminário,  longos  annos  havia, 
'mais  afortunado  com  a  sua  quasi  ignorância  estri- 
bada na  fe,  do  que  com  a  meia  sciencia  d"esscs 
evangelistas  paliadorcs,  que  |)or  ahi  abundam. 

.No  que  o  cura  dava  sola  e  az  era  no  voltarete. 
E  agora  mesmo,  o  desgraçado  juiz  de  paz  do  con- 
celho, lavrador  ricaço  e  de  bons  teres,  posto  que 
soez  e  bronco,  valeu-se  de  todas  as  suas  artes 
para  fazer  descambar  um  codilho  em  uma  resposta, 
cousa,  (jue  muito  arreuegou  o  padre,  e  cou)  a  qual 
muito  folgou  o  tidalgo,  porque  via  mais  um  remissa. 

—  Cousas  do  oíiicio,  exclamou  o  morgado,  ba- 
ralhando as  cartas.  O  padre  diz  missa,  e  o  nosso 
juiz.  que  e  homem  também  de  paz,  faz  remissa. 
Eu,  que.  a  linal  de  contas,  sou  um  velho  militar, 
apesar  da  carta  constitucional,  represento  a  espada 
de  Brenno  e  hei  de  levantar  o  bolo. 

^.\baixa-te  c  cu  te  elevarei,  diz  o  evangelho. 
Os  fiacos  cantam  sempre  victoria,  quando  os  va- 
lentes não  confiam  de  Deus. 

—  Isto  é  coima,  que  eu  pago,  respondeu  o  juiz, 
que  se  estava  kMubrando  do  ollicio. 

Nisto  entr?ram  os  dois  primos. 

—  Ora  até  que  em  íim  vollaram  do  passeio 
romântico,  disse  o  morgado  beijando  a  íillia,  ao 
tempo  que  apeitava  a  mão  de  Alfredo. 

—  E  que  passeio  !  interrompeu  a  donzclla,  ain- 
da com  a  animação  do  caminho,  rosada  e  arque- 
jante. 

—  Então  aonde  foram  espairecer  o  aborreci- 
mento deste  velho  casarão,  e  do  velho  pai. 

—  Um  pai  sempre  é  novo  para  a  lilha,  que  o  ama. 

—  E  para  o  moço  amigo,  que  o  respeita. 

—  E  para  o  parceiro,  que  perde,  resmoneou  o 
juiz,  o  qual,  quando  se  agastava,  linha  intervallos 
lúcidos,  com  o  que  não  se  gosavam  muito  os 
clientes,  que.se  obtinham  uma  decisão  justa,  era 
depois  de  solírei^em  as  zangas,  aggravos  c  alguns 
sotaques  physicos  á  mistura.  Santo  juiz  de  paz,  que 
para  ser  justo,  carecia  de  começar  pela  tyrannial 

Falizmente,  porém,  o  fidalgo  não  o  ouvia  e  ex- 
clamou jubiloso  : 

—  Agradecido,  filhos.  Sois  a  minha  ventuia.  E 
lu,  minha  >'iolante,  que  me  pareces  uma  rosa,  dei- 
xa-me  respirar  os  teus  aromas.  Tu  também,  Al- 
fredo, representante  de  uma  illuslre  e  honrada 
familia,  filho  do  meu  piinieiío  amigo  de  infância, 
vem  sentar-le  aqui  ao  pe  de  mim.  Aqui,  a(|ui  no 
coração  ó  que  vos  quero,  bem  unidos  como  ver- 
gonteas  do  mesmo  tronco,  como  flores  que  viçam 
com  a  mesma  .seiba.  A  morte  ha  de  chegar,  cem 
vós,  só  em  vós,  cá  me  fica  a  saudade  da  vida. 

E  o  velho  começou  a  chorar;  mas  as  suas  la- 
grimas eram  de  consolação.  Não  Hie  marejavam 
os  olhos,  antes  os  tornava  mais  límpidos,  para 
que  nelles  se  espelhassem  os  rostos  gentis  d'aquel- 
las  flores  f/ue  viçavam  com  a  mesma  seiba. 


—  Beati  qui  lugent,  tartamudeou  o  padre,  que 
também  sentia  um  enternecimento  a  embargar- 
Ihe  a  voz. 

A  cabecinha  formosa  de  Violante  encostou-se  ao 
hombro  do  pai,  cujos  cabellos  se  confundiam  har- 
monicamente com  as  longas  tranças  da  lilha.  Al- 
fredo, erecto,  algum  tanto  sombrio,  antevendo  tal- 
vez negras  nuvens  no  futuro, agairava  as  mãos  do 
seu  velho  amigo  com  os  modos  severos  de  Pylha- 
goras,  quando  duvidava  das  palavras  do  mestre 
ionico. 

O  sacerdote,  com  a  voz  tremula  e  o  corpo  al- 
quebrado, parecia  eslar-se  revendo,  em  uma  scena 
do  evangelho. 

Só  o  juiz  de  paz,  cada  vez  mais  bellicoso,  e  por 
isso  mais  lúcido  reconcentrava  a  attenção  na  re- 
missa, e  jurava  Icvantal-a  por  intermédio  dosrt^eí, 
que  elle  ajuntava  na  mão  muito  sorrateiramente. 

E  digam  lá  que  as  scenas  pathelicas  não  inspi- 
ram ate  o  aldeão  mais  boçal,  ainda  que  seja  juiz 
de  paz ! 

A.  O.  DE  Vasconcellos. 

(Conlinua.) 

OS  DOIS  RAPAZES 

Quadro  de  :tliiríllo 

Se  se  quizesse  começara  historia  das  bellas  ar- 
tes cm  Hespanha  com  as  primeiras  tentativas,  se- 
ria preciso  remontar  ao  decimo  século,  e  lalvez 
mais  longe.  Estas  tentativas  consistem  em  minia- 
turas executadas  nos  manuscrij)tos.  Como  por  to- 
da jiarte,  vô-se  ali  dominar  o  estylo  bysantino, 
depois  o  estylo  gothico.  A  Alhambra  contem  no- 
táveis spécimens  d'esle  ultimo,  que,  segundo  toda 
apparencia,  são  devidos  a  Ilespanhoes,  porque  a 
lei  religiosa  não  concedia  aos  Mouros  (|ue  exerci- 
tassem as  artes  em  gesso.  Estes  trabalhos  ornam 
t>s  tectos  de  algumas  salas,  lím  d'elles  corre  ao 
longo  das  paredes,  e  representa  uma  caçada  ;  de 
um  lado,  vèem-sc  Árabes;  do  outro,  cavallciros 
chrislãos.  Outro  desenho  oflerece  á  vista  uma  au- 
diência de  Mouros;  um  terceiro,  emfiin,  combates 
entre  llesj)anhoes  e  infiéis.  Todos  estes  trabalhos, 
|iorém,  mostram  ser  do  decimo  quinto  século. 
Foi  por  esta  época,  que  a  arte  na  península  co- 
meçou a  desenvolver-se  c  a  produzir  obras  im- 
portantes. Sche()eler  descreve  assim  as  qualidades 
particulares  da  escola  ibérica  no  século  \V.  «O 
colorido  não  tem  tanto  brilho  como  o  dos  antigos 
pintores  germânicos  ;  c,  porém,  mais  suave  ;  pare- 
ce que  fluclua  um  véo  sobre  a  imagem :  a  exe- 
cução é  grandiosa.  Mais  tarde,  a  escola  venezia 
na  encantou  os  li('S|)anhoes;  o  seuamjjlo  desenho 
e  vigoroso  colorido  concordavam  com  o  estylo 
nacional.  Accrescenlai  a  isto  um  grande  arrojo 
de  pincel,  uma  facilidade  em  reproduzir  as  con- 
cepções de  uma  imaginação  ardente,  c  lereis  os 
traços  distiiictivos  da  escola  hespanhola.» 

O  século  dezescte  vio  a  arte  hespanhola  attin- 
gir  o  mais  elevado  gráo  d'esplendor.  A  influen- 
cia italiana  juntou-se  então  a  imitação  de  Hubens 
e  de  Van  Duk.  Sabe-sc  que  o  primeiro  visitou  a 
j)eninsula.  As  diflerentes  escolas  delincam-se  fa- 


o  PANORAMA 


293 


I 


Os  dois  rapazes 


cilmentc ;  a  de  Sevilha  produz  o  maior  numero 
de  homens  colebies.  No  piincipio  do  século,  nas- 
ce e  desenvolvese ;  pelo  mciado,  deseniola  lodo 
o  seu  brilhanlismo.  Enlre  os  seus  fundadores,  no- 
lam-se  Roelas  e  Francisco  Ilerrera  ;  Uoelas  in- 
Iroduzio  em  Ilespaniia  o  colorido  veneziano  ;  imi- 
tava a  natureza  com  grande  perfeição,  e  sabia 
ennobrecer-lhe  as  formas.  Cheio  de  ardor  e  de 
coragem  trabalhava  conslantemenlc ;  as  igrejas 
de  Clivares,  de  Sevilha,  de  Madrid,  as  academias 
de  Aranjuez  e  de  Córdova  eslão  cheias  das  suas 
obras.  Ilerrera  pinlava  de  um  modo  airojado,  ale 
então  diisconhecido  Executava  com  uma  espécie 
de  furor;  o  seu  caracter  não  mostrava  menos  ar- 
rebatamento. Servia-se  de  juncos  para  desenhar 
e  de  brochas  para  applicar  o  colorido.  Guando  es- 
tava apressado,  mandava  a  criada  espargir  sobre 
a  tela  tintas  diversas,  ao  gosto  d'ella,  e,  em  se- 
guida lançava  mão  dos  pincéis  e  deitava-se  com 


frenesi  ao  trabalho,  mudando,  em  um  abrir  e  fe- 
char de  olhos,  os  borrões  em  íiguras  enroupadas 
e  de  grande  caiacter.  Este  é  um  fado  que  não 
admilte  a  menor  duvida.  Juan  dei  Castillo  e  Vas- 
quez pertenceram  á  mesma  época ;  suas  obras, 
como  (|uasi  todas  as  da  escola  hespanhola  são  em 
extremo  correctas,  e  em  grande  numero ;  o  colo- 
lido,  porém,  em  algumas  d'ellas  não  apresenta 
grande  brilho,  e  resentem-se  de  uma  grande  falta 
de  sentimento  esuavitiadc,  cousas  que  tanto  real- 
çam nos  quadios  de  quasi  lodos  os  grandes  pin- 
tores Iiespanhoes  d''aquelle  século  e,  com  espe- 
cialidade, em  Alurillo,  que  foi  intiuestionavelmen- 
te,  o  primeiro,  E  não  nos  enganamos.  Em  todas 
as  obras  (reste grande  aitisla  encontra-se  em  toda 
a  sua  pureza  o  caracter  da  escola  hespanhola,  e 
nada  lhes  falta  paia  serem  pei feitas:  artedecom- 
|)osição,  sciencia  anatómica,  imitação  fiel  da  na- 
tureza, sentimento,  nobreza,  suavidade,  harmonia 


294 


O  PANORAMA 


do  colorido,  brilho,  tudo,  em  fira,  ivellas  se  acha 
era  profusão.  E  depois,  Murillo  não  se  conlenlava 
só  cora  um  género  de  pinlura.  O  seu  flexivel  ta- 
lento levava-o  para  lodosos  lados:  ora  desenhava 
paisagens,  flores,  fructas,  ora  navios  c  vistas  ma- 
rilimas.  assumptos  históricos  e  essas  scenas  de  ra- 
pazes j)obres  e  miseráveis,  que  nas  grandes  cida- 
des se  dão  tão  fiequeiilemenle,  e  que  elle,  real- 
mente, aproveitou  com  muita  felicidade. 

A  nossa  gravura,  copia  de  um  dos  seus  quadros 
que  existe  no  collegio  de  Duhvich,  na  Inglaterra, 
intitulado  «os  dois  rapazes,»  atlesta  o  que  deixa- 
mos dito.  Não  carece  de  longa  descripção;  bem 
clara   se  mostra,  à   vista  do  expeclador.    E  um 
grupo  de  dous  picarillos,  dos  quaes  um  está  as- 
sentado no  chão  desafiando  o  outro  para  jogar  a 
pella  ou  a  bilharda,  a  ajuizaruios   pelos  instru- 
mentos que  tem  junto  de  si.  O  garoto,  que  está  de 
pe.    mostra,    pehi  billia  que   tem  na   mão,  que  ia 
lazer  algum  recado;  mas  Ião  embaraçado  ficou  com 
a  proposta  que  o  outro  lhe  fez  de  jogar,  que  se  es- 
queceu, até,  de  mastigar  o  pedaço  de  |)ão  que  met- 
tera  na  boca.  Não  é  menos  interessante  a  posição 
do  animal,  que  está  namorando  o  bocado  de  pão 
que  o  rapaz  tem  em  uma  das  mãos. 


O  QUADRILÁTERO 

E  Legnago,  como  já  dissemos,  a  tei'ceira  praça 
do  quadrilátero,  siluada  sobre  o  Adige  a  3o  kilo- 
melios  e  a  juzanle  de  Verona  e  quasi  a  igual  dis 
tancia  de  !\Íantua,  A  povoação  e  pequena  e  não 
excede  nove  mil  almas,  sendo  a  arca  das  fortifi- 
cações mais  extensa  que  a  da  cidatle.  Dois  fortes 
isolados,  duas  cabeças  de  ponte  nas  maigens'(li- 
reita  e  esqueida  do  Adige  e  uma  cerca  abaluar- 
tada  constituem  as  fortificações  da  praça.  O  seu 
armamento  era  de  30  peças  de  Lahitle,  00  do  sys- 
tema  prussiano,  30  peças  de  sitio,  20  obuses,  e 
lo  morteiros.  Total  loo  bocas  de  fogo.  Como  em 
^lantua,  mas  em  proporções  muito  menores,  a  de- 
feza  da  praça  pode  i^furçar-se  fior  meio  de  inun- 
dações, abrindo  comportas  convenientemente  dis- 
postas no  Adige.  Apesar  de  tudo  Legnago  é  a  for- 
taleza menos  importante  do  quadrilátero,  e.  ver- 
dadeiramente só  tem  valor  pela  poiíle  lançada  no 
seu  recinto  entre  os  duas  margens  do  Adige.  Os 
austríacos,  senhores  de  Legnago,  dominam  o  cur- 
so do  baixo  Adige  e  podem  á  vontade  passar  de 
uma  para  outra  margem,  como  mais  convenha 
aos  seus  planos  oífensivos  ou  defensivos. 

Verona,  chave  de  toda  esla  formidável  fronlei- 
ra  mMilar,  j)rincipal  praça  do  (luadrilatero  e  ba- 
luarte do  dominio  austríaco  na  Itália,  está  no  sopé 
e  na  encosta  dos  últimos  prolongamentos  dos  Al- 
pes para  as  planícies  da  Itália,  na  curvatura  mais 
rápida  do  Adige,  e  guardando  as  gargantas  por  on- 
de o  lio  sai!  das  monlanhas.  Divide-a  o  Aílige  em 
duas  parles  ligadas  por  cinco  pontes. 

Na  margem  esquerda  é  o  arrababie  chamado  de 
Vcronetta,  a.ssenle  n'uma  ladeira  áspera  e  a|)erta(la 
e.ilre  montes.  E  defendida  por  uma  cerra  cons- 
truída segundo  o  antigo  systema  de  fortificação 


italiana,  com  três  baluartes  e  precedida  pelos  for- 
jes SchoU  e  Isabel.  A  ceica  interior  parle  do  Adi- 
ge, corre  na  idanicie,  sobe  pela  encosta,  reduzin- 
do-se  a  uma  siraple;?  muralha  na  face  oriental; 
chegando  ao  alto  dobra-se  em  angulo  agudo  e  des- 
ce outra  vez  para  o  Adige  por  ladeiras  abruptas. 
No  vértice  do  angulo  voltado  para  as  alturas  está 
o  foi  te  de  San  Felice,  (|ue  domina  toda  a  praça, 
mas  é  dominado  pelos  montes  que  continuam  pro- 
gressivamente a  subir.  Para  protegerem  este  for- 
te construíram  os  austríacos  5  torres  isoladas  nas 
alturas  até  a  distancia  de  Ires  mil  passos.  Aqui  é 
o  ponto  fraco  da  praça.  De  fv'ío.  a  face  oriental, 
n'uma  extensão  de  Ires  mil  metros,  é  defendida 
apenas  por  uma  muralha  simples  e  sem  baluartes. 
Alem  d'isso,  se  os  ilalianos  tomassem  posições 
nasalturas,  poderiam  sem  grande  difiiculdade  ven- 
cer as  5  torres  isoladas  e  o  forte  San  Eelice,  d'on- 
de  dominariam  Ioda  a  cidade  como  os  francezes 
em  MalakolT  dominavam  Sebastopol.. 

A  difiiculdade,  e  difiiculdade  grandíssima,  con- 
siste em  poder  tomar  posições  nas  monlanhas,  e 
nole-se  lambem  que  o  exercito  atacante  leria  na 
reclaguarda  Veneza  tornada  quasi  inexpugnável 
pelos  forles  de  JMaIghera,  Cbiaggio,  Malamocco  e 
Lido. 

No  centro  de  todas  as  fortificações  desta  mar- 
gem esquerda,  abaixo  do  forle  de  San  Felice,  cr- 
gue-se  o  forle  de  S.  P.  dro,  cujos  fogos  dominam 
aponte,  a  cidade,  as  muralhas  e  lhes  serve  de  ci- 
dadella. 

Ao  occidenle,  n'um  monle  .separado  dos  prece- 
dentes por  um  valle  inclinado  para  o  Adige,  ha 
os  3  forles  de  S.  Matinas,  S.  I.eonardo  e  Santa 
Sophia,  ligados  com  as  3  torres  e  foi-mando  do 
lado  Occidental  a  primeira  linha  de  defesa. 

A  cidade  de  Verona,  propriamente  dila,  envol- 
vida n'uma  curvatura  do  Adige,  c  construída  na 
margem  direita  e  defendida  ao  occidenle  pela  an- 
tiga cerca  melhorada  e  aperfeiçoada.  Formam-n"a 
8  baluartes  irregulares,  com  orelhões,  escarpas 
pelo  systema  de  (/arnot  e  esplanados  a  meio  das 
cortinas  para  facilitar  as  sortidas.  A  conlar  da  pla- 
nície de  Verona,  o  terreno  sóbc  em  ami)hilhealro 
semi-circular  coroado  na  parle  culminante  pelas 
aldeias  de  ('hieva,  C.roce-Rianca,  S.  Massimo,  San- 
ta Lúcia  e  oulras.  Parle  do  Adige  uma  linha  semi- 
circular de  10  fortes  isolados  que,  coroando  o  am- 
philhealroe  descrevendo  um  semi-circulo  extenso, 
vae  morrer  a  juzanle  da  cidade  na  margem  do 
Adige.  listes  forles  eram  em  IHíH  fortificações 
pas-iageiras  de  terra  ;  hoje  teem  a  consistência  c 
imj)ortancia  de  forlilicações  permanentes.  Todas 
são  armadas  de  peças  de  grosso  calibre  e  systema 
moderno  e  podem  conter  algumas  companhias  de 
guarnição.  Distam  1000  a  1200  metros  uns  dos 
outros  cobrindo  com  a  rede  dos  seus  fogos  a  pla- 
nície que  se  lhes  dilata  na  frente;  protegendo- 
se  muliiamente.  Todos  teem  caminho  coberto  e  os 
fossos  fian(|ueados  por  capoeiras.  Na  gola  são  fe- 
chados por  parapeitos  com  canhoneiras  voltadas 
])ara  o  inleiior. 

Depois  da  guerra  de  18o9  que  terminou  na  paz 


o  PANORAMA 


295 


de  Villa  Franca,  construíram  os  austríacos  por  fora 
(lesta  linha  de  defesa  outra  que  consta  de  cinco 
fortes,  erguidos  na  planície  que  precede  o  amplií- 
Iheatro  do  lado  da  Itália.  Assim  tem  Verona,  na 
margem  direita  ou  lombarda  do  Adige,  3  linhas 
de  foríitlcações:  os  '3  fortes  exteriores  que  cruzam 
os  fogos  na  planície,  os  10  fortes  que  coroam  o 
amphitheatro  e  o  corpo  da  praça.  No  recinto  das 
fortilieaçõos  exterioijíos  pôde  facilmente  abrigar-se 
um  exeiTÍto  de  cem  mil  homens,  o  tanto  é  Man- 
tua  praça  defensiva  como  Verona  tem  lodos  os  ca- 
racteres de  ofíensiva.  Os  exércitos  que  forem  se- 
nhores da  cidade  podem  facilmente  sair  para  acos- 
sar o  inimigo  que  se  atrever  a  entrar  no  quadrilá- 
tero. O  systema  das  i  praças  do  quadrilátero  pres- 
la-se  por  isso  a  variadíssimas  combinações  estraté- 
gicas como  exuberantemente  demonstraram  Rade- 
tzky  em  1848  e  o  archiduque  Alberto  em  1866. 

Todas  as  fortificações  de  Verona  podem,  segun- 
do as  melhores  informações,  jogar  76  peças  do 
systema  Lahitte,  128  do  systema  prussiano,  140 
peças  de  sítio,  IHO  obuzes,  SO  morteiros.  Total 
534  bocas  de  fogo. 

Verona  é  tão  formosa  e  pilloresca  como  Man- 
tua  triste  e  monótona.  Assenta  a  cidade  na  planí- 
cie aformoseada  pelas  suas  muralhas  antigas,  pe- 
las preciosas  ruínas  romanas  que  a  cercam,  por 
palácios  e  torres.  Na  margem  opposta  do  Adige 
sobem  pela  encosta  as  casas  brancas  de  Veronetta, 
os  negros  cyprestes  de  Giusti,  as  baterias  dos  for- 
tes trepando  pelas  ladeiras  do  Monte  Cimo,  e  do- 
minando as  extensas'  planícies  italianas  limitadas 
no  horísonte  pelos  recortes  da  cadeia  azulada  dos 
Apeninos. 

O  interior  da  cidade  não  deslustra  a  nobreza 
do  seu  aspecto  exterior.  X  poucas  das  formosíssi- 
mas cidades  da  Itália  cede  Verona  a  palma,  or- 
nando-a  o  antigo  rnstello  da  idade  media,  o  circo 
romano,  palácios  elevados  sobre  pórticos,  os  tú- 
mulos gothícos  dos  antigos  barões  feudaes,  a 
Scalla,  etc. 

E  grandioso  o  aspecto  dos  fortes,  das  baterias 
blindadas,  dos  perlis  recortados,  das  fortificações 
modernas  trepando  em  amphitheatro  pelas  monta- 
nhas. 

Para  terminar  esta  rápida  descripção  do  qua- 
drilátero mencionaremos  ainda  os  reductos  que 
defendem  o  caminho  entre  Verona  e  Legnago",  os 
4  fortes  de  Pastrengo,  que  defendem  o  deslíladei- 
ro  entre  o  Adige  e  o  lago  de  Gorda  e  cortam  o 
passo  ao  assaltante  que,  depois  de  tomar  Peschie- 
ra,  quízesse  ir  cortar  a  liniia  feirea  de  Trento,  á 
rectaguarda  de  Verona,  e  tomar  esta  praça  de  re- 
vez.  Finalmente,  a  descripção  não  ficaria  completa 
se  não  filiássemos  das  linhas  férreas  que  ligam  as 
praças  do  quadrilátero,  e  das  communicacões  des- 
te com  o  interior  do  império  austríaco  pelo  Tyrol 
e  pelo  Venelo.  É  assumpto  para  outro  artigo." 


HISTORIA  DA  ROSA 

A  rosa  é  a  mais  bella  de  todas  as  flores;  a  pri- 
mavera reconhece-a  como  a  rainha  de  todas  as 


suas  filhas,  e,  até,  nos  mais  remotos  tempos  a  que 
alcança  a  historia  foi  sempre  e  em  todas  as  partes 
a  favorita  dos  poetas  e  das  mulheres,  o  symbolo 
da  formosura  e  do  amor,  É  uma  fiôr  que  nunca 
passa  de  moda. 

Não  nós  e  possível  dizer  em  que  época  da  histo- 
ria da  terra  nasceu  a  rosa.  Baste-nos,  porem,  saber 
(jue  ja  adornava  o  jardim  do  Éden,  econtentemo- 
nos  com  o  que  a  mylhologia  grega  nos  conta  acer- 
ca da  sua  origem. 

Anacreonte,  o  poeta  grego,  crê  que  a  rosa  nas- 
ceu, como  Vénus,  do  mar.  Uma  porção  d'espuma 
que  tinha  ficado  pegada  ao  corpo  da  deusa  caio  no 
chão  e  deu  vida  a  uma  roseira,  cujas  raízes  se  eleva- 
ram a  grande  altura  para  denotar  com  sua  belleza 
o  lugar  do  nascimento  da  deusa,  enchendo  de  sua- 
ve perfume  o  ar  que  Vénus  respirou  pela  primeira 
vez;  a  rosa,  porem,  era  branca  como  a  espuma 
do  mar  donde  linha  saído.  Segundo  Ovídio  e  Bion, 
a  sua  cor  provem  do  sangue  de  Adónis,  e  segun- 
do Aphtouio  do  da  mesma  deusa.  Ouando  Adónis, 
apesar  das  supplicas  da  deusa,  foi  á  caça  do  java- 
li, que  lhe  roubou  ávida,  Vénus  apressurada  para 
prestar-lhe  auxílio,  ferio  um  pé  nos  espinhos  de 
uma  roseira,  e  algumas  golas  de  sangue  salpicaram 
a  rosa,  dando-lhe  a  côr  que  ora  tem  e  espargindo 
na  alhmosphera  um  odor  agradável.  Segundo  ou- 
tros poetas,  Cupido,  jogando  na  mesa  dos  deuses, 
entornou  o  néctar  que  estava  em  um  copo;  o  li- 
quido humedeceu  as  rosas  que  estavam  ali  próxi- 
mas, e  deu-lhes  a  côr  que  antes  não  tinham. 

A  crença  mahometana  suppõe  que  a  rosa  foi 
produzida  pelo  suor  do  propheta,  e  por  isso  os 
turcos  teem  todo  o  cuidado  em  não  a  pisar  nunca. 
A  tradição  índia  diz  que  Pagodasini,  esposa  de 
Víschnu,  foi  achada  em  uma  rosa. 

Voltando-nos  para  a  Grécia,  vemos  que  a  rosa 
estava  consagiada  a  vários  deuses.  Alem  de  o  es- 
tar a  Vénus,  estava-o  a  Dionyso  (Bacho),  que  não 
só  era  o  deus  da  vide,  mas  também  de  toda  a 
natureza  florescente;  lambem  o  estava  a  Diana  de 
Epheso  na  qual  se  venerava  a  natureza  infinita. 
Alem  disso,  era  o  attríbuto  das  musas;  Ilymeneu 
e  Como  o  deus  do  riso  e  da  alegria,  traziam  co- 
roas de  rosas.  A  arte  antiga  representava  a  paz 
com  um  ramalhete  de  rosas,  espigas  e  ramos  de 
oliveira;  emfim,a  hora  da  primavera  estava  repre- 
sentada com  uma  rosa  na  mão. 

Uma  multidão  de  poetas  religiosos  e  profanos  in- 
dicam-nosem  numerosas  passagens  quão  estimada 
era  a  rosa  ainda  nos  tempos  mais  antigos.  Na  Bíblia 
vemos  mencionada  a  rosa  de  Saharon;  cc  levemos 
coroas  de  ternas  rosas..»  diz  o  livro  da  Sabedoria. 
Homero  descreve  o  escudo  de  Achílles  adornado 
com  rosas,  e  o  cadáver  de  Heitor  foi  embalsamado 
por  Vénus  com  vários  perfumes,  entre  os  quaes 
havia  rosas.  Sapho  chamava  á  rosa  a  rainha  das 
flores;  Anacreonte  dedicou-lhe  uma  das  suas  odes, 
e  Theocrito  comparava-a  com  o  curso  da  vida  hu- 
mana. Virgdio  cita-a  vaiias  vezes  com  prazer; 
Horácio  eCatullo,  Ovídio  e  Maciel  mencionaram-na 
repetidas  vezes. 

A  rosa  era  indígena  em  todo  o  mundo  conheci- 


296 


O  PANORAMA 


do  dos  romanos;  não  obslanle,  é  provável  que  se 
não  conlu'cossein  mais  (jiie  as  (iuaIi-o  classes  pi-in- 
cipaes  quo  se  encontram  ainda  lioje  na  Grécia; 
uma  d'eslas  classes  era  a  de  cem  folhas,  trazida  á 
Europa  por  Alexandre  Magno.  As  rosas  mais  bel- 
laseram  as  de  Campania,  as  mais  cheirosas  as  de 
Maila.  as  mais  jiropiias  para  óleo  as  de  Cyrene, 
mas.  as  mais  celebres  de  todas  eiam  asde  Pestum; 
cresciam  ali  em  uma  abundância  extraordinária, 
tlorescendo  duas  vezes  por  anuo.  O  viajante  que 
visita  hoje  esta  cidade  de  Peslum,  só  encontra 
ruinas  grandiosas,  mas  em  vão  procuraria  aquella 
flor.  que  não  existe  nem  no  mesmo  jardim  do  bispo. 
Os  antigos  serviam-se  das  rosas  quasi  sempre 
para  fazerem  coroas,  umas  vezes  entremeiadas 
com  mirtos  e  violetas  e  outras  desacompanhadas 
de  toda  e  qualquer  outra  llor;  estas  coroas  usa- 
vam-se,  piincipalmenle,  nos  banquetes.  As  noivas 
romanas  traziam  também  nma  coroa  de  rosas  e 
ramos  de  mirto  debaixo  do  siu  véo  de  puipura; 
lambem  se  punham  coroas  de  rosas  a  Iodas  as  es 
la  luas  de  deuses  e  de  homens  celebres,  e  com 
grinaldas  de  rosas  se  ornava  a  porta  por  onde 
entravam  osgeneraes  victoriosos,  eatiravam-se-lhe 
ao  cai'ro  lindos  ramos  d'ellas.  Nas  ceremonias  fú- 
nebres empregavam-se  frequentemente  as  rosas; 
com  ellas  cobiiam  a  cabeça  do  defunto  e  ao  dei- 
tar na  urna  os  ossos  reduzidos  a  cinza  mistuia- 
vam-lhe  folhas  e  agua  de  rosas,  para  o  que  desti- 
navam certas  quantidades  no  testamento.  Disposi- 
ções d'esta  classe  eram  então  mui  communs  nos 
testamentos;  em  alguns  ordenava-se  que  o  anni- 
versario  do  nascimenío  do  defunto  deveria  ser  ce- 
lebrado plantando  em  cada  anno  três  mirtos  e  Ires 
roseiías. 

(Conlinua)  ^^__ 

O  amor  não  envelhece,  morre  criança. 

Arsene  Hossaye 


A  linda  poesia  de  João  de  Deus,  que  em  segui- 
da publicamos,  devemol-a  ao  caracter  obsequioso 
do  nosso  amigo  o  sr.  António  Pereira  Ferraz  Jú- 
nior, o  qual,  possuindo,  engastada  pela  própria  mão 
do  auclor,  essa  magnilica  pérola  no  seu  álbum,  e 
havendo-lhe  nós  manifestado  o  desejo  que  linha- 
mos  de  com  ella  mimosearmos  os  nossos  leitores, 
iminfdialamente  e  sem  a  mais  leve  hesitação  nos 
facultou,  alé,  para  a  co[)iarnjOS,  o  seu  interessan- 
te livro. 

E  também  só  d'esle  modo  poderíamos  alcançar, 
facilmente,  versos  de  um  [)oela  tão  distinclo;  por- 
í|ue,  João  de  Deus,  mui  raras  vezes  tem  lançado 
mão  da  pcnna  com  a  ideia  de  í|ue  as  suas  pro- 
ducçOes  vijam  a  luz  da  jjublicidade.  Algumas  |)oe- 
siasi  poucas,  que  lêem  a[)parecido  cm  diversos 
periódicos  do  paiz,  e  pelas  quaes  o  seu  nome  se 
'.ornou  írcialmente  conliecido  e  admirado,  hão  si- 
do obtidas,  ou  de  alguns  dos  seus  amigos  e  con- 
discípulos que  souberam  apoderar-^e  dos  bocadi- 
nhos de  papel  que  o  poeta,  depois  de  n'elles  ler 
disposto,  por  mera  distracção,  as  brilhantes  ílores 


do  seu  raro  engenho,  inulilisava  com  a  maior  in" 
dilTerença;  ou  então  d'aquelles  que,  como  o  sr. 
Ferraz,  teem  a  fortuna  de  as  possuírem  nos  seus 
ai:, unis.  Não  se  julgue,  porem,  pelo  que  deixamos 
dito,  que  João  de  Deus  tem  escrij)lo  pouco:  seria 
um  engano.  O  numero  das  suas  admiráveis  poe- 
sias c  inlinilo;  mas,  infelizmente,  uma  grande 
parte  acha-sc  comi)letamente  perdida. 

Fora  supérfluo  tecer  aijui  encómios  a  João  de 
Deus.  A  sua  merecida  reputação  acha-se  ja  tão 
solidamente  baseada,  que  tudo  quanto  procurás- 
semos dizer  em  seu  louvor  seria,  certo,  abafado 
pela  grande  voz  do  publico. 

Eis  a  poesia  : 


DESCALÇA 

Quem  és?  que  a  genlj  vendo-le  suspira 

E  cm  puro  amor  desfaz-se? 
Raio  crepuscular  tio  sol,  que  nasce  ? 

De  tampada,  que  expira? 

Como  os  teus  pós  são  lindos !  Como  é  doce 

A  curva  do  teu  peito ! 
Oh  !  se  o  meu  coração  fosse  o  leu  leito  I 

E  o  teu  amado  eu  fosse ! 

Que  preciosas  pérolas  descobre 

teu  meigo  liumido  lábio ! 
E,  virgem  1  como  Deus  foi  justo  e  sábio 

Em  te  deixar  tão  pobre  ! 

Não  tens  fofo  veludo  onde  se  atole 

teu  lindo  corpo,  ó  bella  1 
Mas  quando  é  belto  o  céo?  bella  uma  eslrella, 

E  quando  c  bello  o  sol? 

Limpo  do  nuvens,  nu,  derrete  a  neve 

E  a  águia  alé  desmaia  I 
Tu  não  tens  mais  do  que  uma  pobre  saia 

E,  essa,  curtinha  e  leve ! 

Ingénua  como  a  flor  que  nasce  e  cresce 

Não  para  cslar  occulla 
Onde  o  corpo  te  alteia  a  saia  avulta, 

Onde  le  abaixa,  desce... 

Encerram-se  em  li  mesma  teus  desejos, 

De  nada,  flor!  precisas  1 

E  que  cu  nem  seja  o  mármore  que  pisas... 

Calçava-le  de  bejos  1 

João  de  Deus. 


Los  buenos  sirven  a  buenos, 
los  vilcs  qucdan  se  a  Iras, 
los  dicliosos  viilen  mas, 
y  los  desdicliados  menos, 

LoPE  DE  Vega— Peregrino. 


Amor  que  pode  crescer  não  é  amor  perfeito. 

^  P.    VlElR/ 


Typ.  Franco-PorrugucZii,  Hua  cio  Thesouro  Velho,  6. 


r 


j 


o  PANORAMA 


297 


Os   Koranás 


na,  na  extremidade  meridional  da  Africa,  uma 
raça  isolada,  complelamenie  dislincla  dos  oulros 
povos  do  conlineiite  africano,  pela  sua  iingua  e 
peia  sua  consliluição  physica.  Esía  raça,  que  a  si 
mesma  se  denomina  Anaquona,  ou  Koukoua,  e 
que  dos  europeus  recebeu  o  nome  de  IloUenlotes, 
divide-se  em  qualro  Iribus  principaes:  os  Koua- 
kouas  do  Cabo;  os  Koranás,  que  a  nossa  gra- 
vura representa ;  os  Namas,  e  os  Boscbimans. 

A  sua  lez  azeilonada,  a  sua  fronte  deprimida, 
a  forma  do  semblante  que  tornam  quasi(|uadradas 
as  maçãs  do  rosto,  largas  em  geral  e  extremamente 
salientes ;  o  seu  nariz  achatado  entre  dois  olhos 
pequeníssimos;  emíim,  a  exiguidade  da  sua  esta- 
tura, fazem  dos  lloltentotes  uma  raçaíeiissima.  As 
feições  do  rosto  da  maior  parte  dos  indivíduos, 
principalmente  dos  mais  velhos,  são  repugnantes, 
e  approximam-se  do  macaco,  por  causa  da  grande 
saliência  da  boca.  Só  os  Koranás  difiV.rem  dos 
outros  por  uma  estatura  mais  elevada  e  pelo  vigor 
do  seu  corpo,  olhos  vivos,  rosto  mais  bem  confor- 
mado, e  também  por  mais  inlelligencia.  A  sua  lín- 
gua, a  que  faltam  quasi  todos  os  elementos  de  for- 
mação ou  inflexão,  possue  uma  inlinidade  de  sons 
gutiuraes  fortemente  aspirados,  saindo  da  cavida- 
de peitoral  rapidamente  e  com  voz  rouca. 

Os  llottenlotes  verdadeiros  só  se  encontram  no 


paiz  chamado  Orange-River-Sovereignty,  a  parte 
mais  seplemtrional  d'estes  paizes,  que  só  foi  recen- 
temente incorporada  á  colónia  du  Cabo.  Com  ef- 
feito,  os  que  se  chamam  líottentotes  coloniaes, 
quer  dizer,  os  que  habitam  para  áquem  dos  limi- 
tes da  antiga  colónia  ingleza  do  Cabo,  que  o  go- 
vernador Buik  assimilou  legalmente  aos  brancos 
por  um  acto  publico  em  1828,  misturaram-se  com 
europeus,  caíres,  e,  talvez,  lambem  com  outros 
emigrados,  e  pretos ;  por  isso  a  sua  lingua  cora- 
põe-se  de  palavras  hottentotes,  hollandezas,  e  ca- 
fres. Ainda  que  porcos  e  muito  dados  á  bebedeira, e 
como  em  geral  são  pobres  diabos,  ordinariamente 
probos  e  serviçaes,  os  cultivadores  do  Cabo  to- 
mam-nos  a  seu  serviço  como  pastores  ou  carrei- 
ros. O  seu  numero  sobe  a  perto  de  5000. 

Das  relações  dos  europeus  com  as  mulheres  dos 
hottentotes  proveio  uma  raça  particular,  chamada 
de  Baslai'dos,  que  vence  os  hottentotes  propria- 
mente ditos,  debaixo  do  ponto  de  vista  do  desen- 
volvimento physico,  e  que  mostra  muita  disposi- 
;^ão  pelas  artes  da  vida  civilisada.  Formam  uma 
população  especial,  que,  com  o  tempo,  chegou  a 
completar  a  somma  de  perto  de  vinte  mil  cabeças, 
cujos  membros  tinham  ido,  no  decurso  do  século 
passado,  estabelecer-se  ao  norte,  onde  vivem  uma 
vida  nómada  nas  regiões  situadas  entre  New-Gripp 


298 


O  PANORAMA 


e  Kay-Gary,  ou  que  consliluiram  pequenos  esta- 
dos com  alguns  pontos  cenlraos,  como  Philippo- 
polis  o  que  praticam  a  agricultura. 


O  CHOLERA 

III 

O  cbolera  appareceu  pela  primeira  vez  na  Eu- 
ropa em  1831.  E'elle  originário  da  Índia,  onde  é 
endémico. 

('orno  se  gera  lá? 

Não  se  sabe.  Vè-se  que  pela  elerna  lei  da  har- 
monia, n'aquellas  paragens  não  se.  podia  gerar 
uma  doença  menos  iellial  1 

Tudo  debaixo  d'aquelle  sol  é  grandioso. 

Nos  deltas  do  Ganges  c  do  Indus,  de  um  dia 
para  o  ouiro,  formam-se  ilhas,  cobrem-se  de  pas- 
mosa  vegetação,  innumeros  animaes  as  povoam, 
o,  ludo  desapparece,  para  dar  lugar  a  outras  sce- 
nas  iguaes  de  vida  e  de  morte,  passageiras,  mas 
admiráveis. 

Emvezdeinfusorios,fermenlamn'aque11asaguas, 
reptis  c  maminileros,  (1)  cactos  e  palmeiras.  Que 
admira  que  da  injecção  d'aquella  athmosphera 
saia  o  cliolera?  Mais  custa  a  perceber  o  como  el- 
le,  gerado  e  alimentado  n^aquelles  lugares,  os  dei- 
xa i)ara  vir  de  vez  em  quando  fazer  uma  viagem 
pelo  mundo  inteiro,  viagem  demorada,  capricho- 
sa, não  se  podendo  atalhar  nem  prever,  viagem 
tão  assombrosa  como  o  próprio  viajante,  como  a 
região  d'onde  parlio. 

Houve  quem  suppozesse,  no  principio  d'esla 
ultima,  ou  antes,  iníeiizraenle,  daaclual  epidemia, 
que  o  cbolera  se  linha  gerado  íóra  da  índia,  em 
Meca.  c  que  d'ahi  se  estendera  a  toda  a  Europa. 

Não  é  exaclo. 

O  Eg\  pto  foi  o  inlerniodio  que  dispartio  a  epi- 
demia com  lei'rivel  rapidez. 

l'ercebe-?e  bem  o  como. 

Os  musulmanos,  que  vem  annualmonle  a  Meca, 
reunem-se  primeiro  em  duas  grandes  columnas: 
uma,  que  reúne  todas  as  tribus  doMogreb  ;  isto  é, 
de  Marrocos,  Alger,  Tunis,  de  lodoo  Sahara,  com- 
j)relien(l('ndo  a  Núbia;  esta  reune-se  no  Cairo;  a 
outra  parle  de  Stambul,  pára  em  Dam^isco,  on- 
de se  lhe  aggregam  todas  as  columnas  vindas  da 
Ásia. 

Foi  n'eslas  ultimas  columnas,  pelos  musulma- 
nos vindos  da  índia,  que  o  cbolera  se  transportou 
a  Meca. 

A  reunião  de  tantos  milhares  de  indivíduos,  as- 
•  pirando  ao  titulo  de  llndji  com  as  praticas  reli- 
giosas as  mais  anti-hygienicas  explicam  o  incrcmen- 
lo  que  elle  ali  teve;  a  dispersão  (Pesses  indivíduos 
semeando  cadáveres  cholcrícos  por  lodo  o  cami- 
nho, levando  comsigo  grande  parte  d'esses  cadá- 
veres, dão  conta  da  sua  irradiação. 

Vinha  a  ponto  dizer  alguma  cousa  do  modo  por- 
(jue  sesuppõe  que  o  cbolera  caminha;  parcfc-nos, 
porém,  que  pouco  próprio  é  íleumjoiniil  lillcrario 
o  entrar  na   interminável  questão  de  infecção  e 

(I)  Enlre  cates  deve  contar-sn  mais  de  três  iriiiliõas  de  cadáveres 
biimanos  annualmcntc :  os  indioa  dcilaia  os  seus  niortos  no  Ganges. 


contagio,  interminável  porque  vae-se  transfor- 
mando em  questão  de  palavras;  c  por  isso  muito 
em  resumo  direi  o  que  parece  ter  sido  demons- 
trado n'esla  epidemia  a  tal  respeito  :  para  poucos 
entra  hoje  em  duvida  o  contagio  do  cbolera:  o 
que,  porem,  parece  certo,  é  que  elle  se  não  Irans- 
mitte  corpo  a  corpo,  nem  mesmo  por  inoculação, 
mas,  sim,  por  intermédio  de  uma  certa  porção  de 
ar  e  a  isto  se  apegam  os  infeccionistas  para  sus- 
tentarem a  sua  opinião.  Ou  admitiam  a  infecção, 
ou  o  contagio,  ou  ambos  combinando-se  e  aju- 
dando-se,  o  que  é  um  fado  e  que  na  presente 
epidemia  o  cbolera  foi  sendo  o  rasto  dos  crentes 
que  deixaram  Meca. 

O  que  é  um  facto  bem  averiguado  é  que  elle 
em  todas  as  epidemias  tem  marchado  com  os  exér- 
citos, com  os  peregrinos,  com  as  caravanas;  que 
a  rapidez  da  sua  marcha  está  em  relação  com  a 
rapidez  das  communicações,  que  é  ao  maior  desen- 
volvimento d'essa  rapidez  que  se  deve  o  elle  agora 
ter  caminhado  mais  depressa  que  na  precedente 
epidemia.  (1) 

Na  marcha  do  cbolera  é  muito  para  se  notar  a 
iramunidade,  já  não  digo  de  indivíduos,  que  essa 
foge  a  todos  os  cálculos  e  previsão,  mas  de  loca- 
lidades. Assim  que,  a  Suissa  tem  sido  até  hoje 
refractária  ao  cbolera. 

Tem  querido  a  scíencia  achar  a  causa  d'essa 
paiticularidade,  mas  até  hoje  debalde. 

Querem  uns  que  seja  devida  á  altitude;  mas  lá 
lemos  pontos  mais  elevados  e  ílagellados  pelo  cbo- 
lera .  Nepaul,  as  chapadas  da  Tartaria  estão  n'esle 
caso.  Que  lambem  o  não  é  á  temperatura,  prova-o 
o  olle  desenvolver-se  em  localidades  muito  mais 
frias.  Outros  querem  que  seja  isso  devido  á  diiri- 
culdade  de  communicações  pelo  montanhoso  do 
paiz;  não  colhe  pelo  mesmo  motivo  porque  não  co- 
lhem as  razões  pi-ecedentes. 

lia  quem  queira  achar  a  explicação  d'aquelle 
phenomeno  na  natureza  do  solo.  Vale  a  pena,  pa- 
rece-me,  que  nos  demoremos  um  pouco  mais  n'este 
ponto. 

Pensam  alguns  que  o  estudo  das  revoluções  phy- 
sicasdo  globo  liade  chegar  um  dia  a  fazer-nos  per- 
ceber bem  o  passado  e  a  prever  até  certo  ponto  o 
futuro  das  epidemias. 

Que  ha  doenças  lilhas  de  circumslancias  locaes,  j, 
e  i)or  isso  mesmo  estacionarias,  não  padece  duvi- 
da :  para  exemplo  bem  notável  temos  o  bócio.  Por 
(|ue  nasce  o  cbolera  nos  deltas  do  (janges,  a  peste 
nos  do  Nilo  e  a  febre  amarella  nos  do  Mississipi'? 
Círcumstancias  climatéricas,  ainda  não  apreciá- 
veis, darão  um  dia  a  explicação  da  geographía  das 
doenças.  Gom  referencia,  porem,  ao  chole!a,(le  (|ue 
estamos  tratando,  é  opinião  de  Petlenkofei'  (jue  a 
porosidade  do  solo,  a  sua  permeabilidade  ao  ai'  c  á 
agua,  a  presença  d'aguas  subterrâneas  a  peíjuena 
profundidade,  são  as  circumslancias  mais  favoráveis 
á  |)ropagação  (Telle. 

Ora  é  o  o|)poslo  de  ludo  isto  que  se  dá  na  Suissa 
e  lambem  na  Baviera,   nos  pontos  até  boje  não 


(I)  AiUtíameiílo  a  iJ(re;írinação  a  Meca  era  feita  a  ]iú,  pnruce  que 
a  iui  (lo  Mal.oiuet  assim  o  ordena  ;  hoje,  como  sabem,  laz-so  ern 
barcos  do  vapor. 


i 


o  PANORAMA 


299 


lacados  pelo  cholera,  e  (l'aqiii  a  sua  immiiniclade. 
Verdadeira,  ou  não,  esta  explicação,  o  que  é  um 
facto  é  a  immunidade  de  certos  paizes,  e,  no  mes- 
mo paiz,  de  certas  localidades:  na  actual  epidemia 
o  cholera  passando  de  Marselha  a  Pariz,  deixou 
incólume  Lyão,  e  já  nas  precedentes  epidemias  o 
mesmo  linha  succedido  ;  apenas  em  1834  houve 

^alííuns  casos,  mas  poucos,  de  cholera  em  Lyão. 
Milhares  de  casos  análogos  se  podem  apontar;  até 
na  mesma  cidade  na  força  da  epidemia  se  lem 
notado  pontos  refractários  a  ella. 

D'um  estudo  completo  da  marcha  de  tão  terri- 
vel  epidemia  é  claro  (juaes  as  vantagens  que  de- 
rivam :  muito  embora  se  não  possa  combater,  im- 
pedir-lhe  a  marcha  será  já  um  grande  bem. 

Vinha  a  ponto  o  tratar  agora  dos  meios  que 
tem  sido  apontados  para  se  obter  aquelle  almeja- 
do fim,  e  que  são  principalmenle :  quarentenas  e 
cordões  sanitários. 

Levarnos-ia  isso  demasiado  longe,  e  para  não 
abusar  muito  da  paciência  do  leitor  vou  relatar- 
Ihe  o  que  sei  se  deu  demais  notável  a  tal  respeito 
n'esta  ultima  epidemia;  as  conclusões  o  mesmo 
leitor  que  as  tire.  Todos  sabem  oquesuccedeu  em 
Constantinopla  e  em  quasi  todas  as  cidades  do  Me- 
diterrâneo; em  Salonica,  cidade  da  Turquia  que  con- 
ta uns  90:000  habitantes,  não  houve  um  caso  de 
cholera. 

Guando  os  habitantes  de  Salonica  se  viram,  por 
todos  os  lados  cercados  da  epidemia,  encheram-se 
de  um  grande  pavor.  O  povo  lançou  mão  das  armas 
contra  os  que  se  lhe  approximavam  da  cidade,  não 
os  querendo  nem  sequer  no  lazareto,  que  tinham 
por  muito  visinho  a  ella ;  á  sua  custa  fizeram  um 
outro  lazareto  mais  distante,  que  apromptararaem 
cinco  dias,  custando-lhe  uns  60:000  francos  (\). 
Estaria  n'estas  medidas  a  immunidade  de  Salo- 
nica ? 

Ainda  pelo  que  diz  respeito  á  marcha  do  cho- 
lera, havia  dois  pontos  a  tocar  dignos  de  igual 
interesse,  mas  sobre  que,  parece-me,  pouco  de  novo 
tenho  a  dizer  aos  leitores;  refiro-me  ás  medidas 
que  foram  apontadas  para  impedir  o  cholera  de  nos 
tornara  visitar,  e  são:  l.°malal-a  á  nascença,  isto 
é,  modificar  os  deltas  do  Ganges  e  Indus  de  modo 
que  não  mais  produzam  o  cholera;  2."  regularisar 
a  peregrinação  annual  dos  musulmanos  a  Meca 
por  forma  que  não  tornem  a  ser  o  vehiculo  d'elle 
para  a  Europa, 

Pelo  que  loca  ao  primeiro  ponto,  basta  lembrar 
ao  leitor  que  se  ignoram  absolutamente  quaes  as 
causas  que  produzem  o  cholera  na  índia,  e  que 
elle  não  é  endémico  só  nos  deltas  do  Ganges  e  In- 
dus, mas  n'um  trado  extensíssimo  de  terreno. 

Em  quanto  ao  regularizar-se  a  peregrinação, 
para  o  que  se  julga  necessário:  1.°  obstar  a  que 
os  cholericos  das  caravanas  vindas  da  índia  por 
mar  ou  por  terra  cheguem  a  Medina  ou  a  Meca ; 
2."  estabelecer  uma  organisação  sanitária  nas  ca- 
ravanas que  passam  pelo  Kgypto  c  que  teem  de 
atravessal-o   segunda  vez  quando  voltam.  (^2j  ha 

(I)  Giizettc  Ilcbdom.iclaire,  n.o  42. 
(í)  Gazela  Medica  do  Lisboa,  n."  2'i. 


simplesmente  a  notar  que  de  quatro  epidemias  de 
cholera  que  tem  visitado  a  Euiopa,  três  vieram 
pelo  Norte,  e  só  esta  pelo  Egyplo ;  de  forma  que 
sendo  útil  a  adopção  d'aquellas  medidas,  não  nos 
põe  ellas  a  coberto  de  uma  outra  epidemia. 

IV 

Tempo  é  de  rematarmos  o  nosso  trabalho  e, 
ainda  que  pouco  da  Índole  d'elle,  bemquizéramos 
aconselhar  aos  nossos  leitores  qual  o  tratamento 
que  deveria  preferir  no  caso  de  se  ver  ou  aos  seus, 
a  braços  com  inimigo  Ião  formidável  como  o  cho- 
lera. 

Desgraçadamente,  como  exprimindo  uma  gran- 
de verdade  a  tal  respeito,  dar-lhes-hei  a  repetição 
das  palavras  de  Fausto,  que  no  principio  do  meu 
artigo  já  leram  : 

«Administrava-se  o  remédio,  morriam  os  doen- 
tes, e  ninguém  perguntava  quem  linha  curado.  As- 
sim que,  n'estes  montes  e  nestes  valles,  com  os 
nossos  mixtos  infernaes,  fizemos  mais  viclimas  do 
que  o  contagio.» 


«Bemavenlurado  o  que  ainda  espera  surgir  d'este 
oceano  de  erros.  Carecemos  de  muito,  e  isso  é  o 
que  ignoramos,  sabemos  pouco  e  isso  é  o  supér- 
fluo.» F.  França. 

Portalegre  — janeiro  de  18G6. 


LONDRES 

As  necessidades  inlellectuaes  d'estes  3000000 
de  habitantes  aos  quaes  acabamos  de  ver  traba- 
lhar, comer  e  beber,  são  satisfeitas  por  uma  pro- 
ducção  immensa  de  livros,  30  jornaes  diários,  120 
periódicos  semanaes  e  70  quinzenaes,  mensaes, 
trimeslraes  e  muitos  outros  que  vêem  a  luz  em 
dias  e  períodos  irregulares.  Estas  publicações  são 
impressas,  vendidas,  e  disseminadas  por  510  im- 
pressores, 808  editores  e  335  agentes.  Para  a 
educação  da  mocidade  ha,  alem  d'isso,  858  aca- 
demias particulares,  132  escolas  pias,  62  inglezas 
e  estrangeiras,  17  nacionaes,  57  collegiadas  para 
a  concessão  de  gráos  e  uma  universidade. 

A  universidade  de  Londres  foi  estabelecida  cm 
1837,  e  entre  as  suas  principaes  sociedades  scien- 
tificas  e  litlerarias  ligura  a  Sociedade  Real  de  An- 
tiquários as  de  Linneo,  Horticultura,  Medicina, 
Cirurgia,  Geologia,  Astronomia,  Geographia;  as 
sociedades  Asiática,  Zoológica,  de  Estadística  e 
outras  mais  instituições  litlerarias  c  scientificas. 

O  mal  moral  c  combatido  por  98  escolas  diá- 
rias, para  os  desvalidos  e  andrajosos;  128  domin- 
gueiras, 117  de  tarde;  15  lugares  de  refugio;  81 
escolas  industriaes ;  12  sociedades,  que  teem  por 
objecto  a  reforma  e  melhora  dos  costumes  e  mo- 
rai publica;  18  para  receberem  mulheres  de  má  vi- 
da e  convertel-as  em  mulheres  industriosas  e  hon- 
radas, detendo  ao  mesmo  tempo  os  progressos  do 
vicio  e  o  crime  geralmente  unidos,  12  para  soc- 
corro  das  famílias  decentes ;  li  para  ajudar  o  in- 
dustrioso que  não  pôde  exercer  o  seu  oflicio  por 
falta  de  recursos  para  comprar  ferramentas,  ins- 


300 


O  PANORAMA 


tiumentcs,  etc. ;  e  11  para  os  surdo-mudos  e  ce- 
íTOS.  lia,  alem  disso,  113  hospícios;  16  institui- 
t-õrscnrilalivas  para  concederem  pensões;  74  socie- 
dades provisórias,  para  determinadas  classes;  13 
asylos  para  os  orphãos ;  oO  sociedades  de  propa- 
ganda (reducação  leligiosa  e  dislribuição  de  bi- 
blias,  livros,  tratados,  calhecismos,  etc.  ele;  200 
elanias  sociedades  de  temperança,  para  deter  os 
espantosos  progressos  que  tinha  feito  ultimamente 
o  ignóbil  vicio  da  bebida ;  e  uma  inlinidade  de 
associações  e  instituições,  cujo  objecto  é  atacar  o 
mal  moral  sob  todos  os  aspectos  imagináveis,  e 
cujo  numero  não  desce  de  530  e  tantas,  que  não 
j)oderiam  ser  enumeradas  n'esta  viagem  sem  dar- 
Ihe  as  dimensões  de  um  livro. 

As  insliluições  para  o  tratamento  do  mal  phy- 
sico  nos  pobres  de  Londres,  estão  representadas 
])or  oO  hospitaos  geraes  e  cspeciaes,  cujas  entra- 
das annnaes  sobem  á  respeitável  somma  de  reis 
l.ííOiOOOSOOO,  alem  de  GO  boticas  que  lhes  su- 
bministram  os  medicamentos  grátis  e  que  possuem 
entiadas  não  inferiores  a  lU-.OOOf^jOOÔ  por  anno. 

lia  também  as  instituições  da  Samaritana,  a 
dos  lunáticos  e  as  destinadas  à  educação  das  en- 
fermeiías,  cujos  recursos,  juntos  ás  sommas  ante- 
riores, formam  um  total,  invertido  somente  em 
Londres  em  obras  de  beneíicencia,  de  2.100:000§ 
de  réis  annuaes. 

A  força  que  guarda  e  defende  as  vidas  e  fazen- 
das dos  habitantes  d'esta  capital  contra  as  depre- 
dações dos  beduínos  da  civílísação,  não  é,  com- 
luíio,  um  grande  exercito  como  o  de  Napoleão, 
nem  uma  policia  tão  mysleriosa  e  innumeravel 
como  a  franceza  actualmente,  ou  a  de  Nápoles  ro 
tempo  d'('ss('S  monarchas  cujas  criminosas  cons- 
ciências os  obiigava  a  empregar  metade  da  nação 
em  espiar  a  outra  metade.  A  capital  de  Inglaterra 
está  guardada  e  defendida  simplesmente  pelo  mo- 
desto numero  de  o  ".SOO  agentes  de  policia,  per- 
feitamente estranhos  ás  (jueslões  politicas,  (e  que, 
sem  prejuiso  de  terceiro,  deixam  cada  um  fazer  o 
que  quer)  uma  grande  veneração  pela  lei,  c  uma 
.  dúzia  de  magnilicas  prisões  modelos. 

Preparado  agora  devidamente  o  animo  do  leitor 
para  apreciar  com  exactidão  a  grandeza  e  poder 
da  capital  da  (íran-Hretanha,  \amos  pòi'  termo  a 
esta  viagem  com  algumas  rellexões  suggeridas  pe- 
la sua  contemplação. 

A  primeira  idéa  que  occorrc  ao  estrangeiro,  que 
visita  Londres  pela  primeira  vez,  é  a  do  inlinilo. 
Como  os  espaços  íncommensuiavcis,  esta  capital 
a  seus  olhos  não  tem  principio  nem  íim.  L'm  mun- 
do em  si  mesmo,  estende  as  suas  ramilicações 
como  um  monstro  de  cem  mil  braços,  em  todas 
as  direcções,  ora  em  forma  de  travessas  esticitas 
e  sujas  que  resoam  com  os  ^\agons  e  carros  carre- 
gados com  os  pioductos  da  industria  e  commer- 
cio  do  mundo,  ora  por  largas  e  magniíicas  arté- 
rias como  o  Slrand,  Oxford-Street,  ou  o  rio  Ta- 
misa, oia  por  pontes  canaes  e  viaduclos  de  todas 
as  classes  (jue  vão  perder-se  ao  longe  no  hoii- 
sonle. 

Povoação  densíssima  e  pobres  casaiias  distin- 


guem o  Oriente;  riquezas  sem  conto,  movimento 
commercial  como  não  pôde  conceber  a  imagina- 
ção, palpitações  e  agitação  como  as  do  coração  do 
mundo,  atropeilamento,  ruído  e  confusão  sem  íim, 
constituem  a  que  se  chama  a  City ;  ruas  esplendi- 
das formadas  por  milhares  de  alinhados  palácios, 
lojas  sumptuosas,  amenos  e  espaçosos  squares, 
cobertos  de  verde  relvxi  e  frondosos  arvoredos, 
parques  vastíssimos  c  ricos  de  vegetação,  e  jar- 
dins tão  deliciosos  como  os  de  Armida  formam  as 
aristocráticas  e  sumptuosas  regiões  do  occidente 
de  Londres. 

A  cathedral  de  S.  Paulo,  com  a  sua  magnifica 
cúpula  e  as  suas  symelricas  e  grandiosas  propor- 
ções ;  o  palácio  cie  Westminster,  relleclindo  as 
suas  elegantes  torres  e  golhicas  ogivas  nas  aguas 
adormecidas  do  caudaloso  Tamisa;  a  riquíssi- 
ma em  tradições  abbadia  de  Westminster;  a  his- 
tórica e  interessante  Torre  de  Londres,  palpitante 
ainda  com  o  recoidação  das  tragedias  de  que  tem 
sido  theatro;  Guildhall,  cara  a  todo  o  amante  do 
município,  e  o  self-government  paladion  da  liber- 
dade e  base  do  bom  governo  dos  povos ;  Man- 
sion-house,  residência  do  primeiro  potentado  da 
City ;  o  Banco  de  Inglaterra  e  do  mundo,  com 
seus  riquíssimos  thesouros ;  o  palácio  do  correio, 
que  desempenha  no  corpo  social  d'esta  nação  as 
mesmas  funcçõcs  que  o  sangue  no  corpo  humano; 
o  monumento  commemorativo  da  destruição  de 
Londres  por  um  incêndio;  a  multidão  de  torres, 
chaminés,  estatuas,  columnas,  agulhas  que  se 
vêem  por  todas  as  parles  e  que  occultam  os  seus 
elevados  picos  e  cruzes  na  névoa,  tudo  contribue 
para  fazer  de  Londres  uma  capital  sem  igual  em 
nação  alguma  da  terra. 


FRANCISCO  PIZARRO 
I 

A  conquista  das  índias  Oricntaes  pelos  porlii- 
guezes  é,  nos  primeiros  tempos,  um  dos  mais 
brilhantes  espectáculos  que  a  historia  nos  olTcrcce. 
A  audácia  aventurosa  dVslc  pequeno  povo,  que  en- 
trou serenamente  em  lucta  com  as  potencias,  que 
faziam  tremer  a  Europa,  e  que  as  foi  provocar 
a  duas  mil  léguas  da  ])alria,  nos  silios  onde  ci- 
las exerciam  um  domínio  incontestável,  a  mages- 
ladc.  c  grandeza  d'alma,  as  proporções  verdadei- 
ramente épicas  dos  nobres  vultos,  que  ao  princi- 
pio nos  capitanearam,  derramam  n'essas  breves 
paginas  da  nossa  historia  um  esplender  inuncnso 
(!  immaculado.  Durante  vinlc  annos  fomos  ver- 
dadeiramente os  dignos  representantes  da  civili- 
sarão  européa,  e  D.Francisco  d'Almeida  e  AÍTonso 
d'Àlbuquerque  formam,  emquanlo  a  mim,  o  mais 
elevado  ideal  do  conquistador,  que  se  sente  forte 
porque  nos  lampejos  da  sua  espada  fulgura  a 
idéa  civilisadora,  porque  vai,  alravcz  de  nul  pe- 
rigos, assegurar  o  predomínio  justo  o  necessário 
(limia  raça  inlelligente  e  forte  sobro  uma  raça 
cml)rutccida  e  eneivada,  e  porque  tem  a  vaga 
eonsciencia  de  que  é  apenas  um  instrumento  na 
mão  de  Deus,  um  meio  de  que  se  serve  a  Provi- 
dencia para  fazer  dar  ao  progresso  um  d'esses 
passos  gigantes  que  acceleram  o  caminhar  dos  sé- 
culos. 


o  PANORAMA 


30 


Pizarro. 


Pelo  contrario  a  conquista  das  índias  Occiden- 
laes  pelos  hespanhoes  apresenta  logo,  apesar  do 
heroísmo  dos  seus  chefes^  uma  perspectiva  repu- 
gnante. Os  vultos,  que  figuram  no  prinieiro  pla- 
no, aquelles  a  quem  maior  gloria  cabe,  não  são 
dos  que  a  liistoria  venera  como  varões  dignos  de 
figurarem  na  lista  de  Plutarclio,  são  dos  que  a 
posteridade  se  vê  forçada  a  admirar  sem  que  el- 
les  llie  inspirem  a  mais  leve  sympathia,  são  d"es- 
tes  homens  excepcionaes,  aptos  para  as  grandes 
coisas  mas  que,  desprovidos  de  toda  a  moralida- 
de, se  lançam  aíToitamente  no  mal,  e  são  Fra- 
Diavolos  quando  a  sociedade  os  repelle,  Pizarros 
quando  elles  mesmos  se  esquivara  ás  suas  leis, 
heroes  obscuros  ou  bandidos  sublimes  conforme 
o  destino  ordena  que  tenham  por  adversários 
n'essa  lucta,  que  cmprehendem  contra  as  leis  di- 
vinas e  humanas,  ou  os  soldados  heróicos  deMu- 
rat,  ou  os  timidos  guerreiros  dos  incas  peruvia- 
nos. 

Não  nos  desvaira  o  orgulho  nacional.  Houve 
entre  nós  também  d'esses  bandidos  heróicos,  mas 
os  seus  vultos  secundários  somem-se  na  sombra 
projectada  pelos  grandes  capilães  que  dominam 
com  a  sua  estatura  agigantada  a  nossa  epopéa 
oriental.  Que  um  António  de  Faria  roube  os  tú- 
mulos dos  imperadores  da  China,  que  outros  as- 
solem impudentemente  as  ilhas  Molucas,  que 
este  se  dessedente  no  sangue  dos  miseros  índios, 
que  aquelle  jure  sobre  um  Cancioneiro  para 
poder  trair  o  seu  juramento,  são  todos  vultos 
secundários,  e  não  os  chefes,  os  conquistadores, 
os  homens  de  plano  e  resolução.  Esses  chama m- 
sc  Almeidas,  Albuquerques,  Castros,  Gamas,  Sal- 
vadores Ribeiros,  e,  grandes  pela  inteliigencia  e 
pela  audácia  c  firmeza  de  caracter,  rivalisam 
muitas  vezes  em  desinteresse,  em  abnegação,  cm 
era  amor  da  pátria  com  os  vultos  mais  aíTamados 


dos  annaes  gregos  e  romanos,   com  os  Scipiões 
e  com  os  Aristides,  com  os  Phocions  e  os  Fabricios. 

Mas  estava  reservada  á  nossa  visinha  Hespanha 
a  monslruosa  produccão  d"um  vulto,  que  ligas- 
se ao  génio  a  malvadez,  á  firmeza  heróica  a 
avareza  insaciável,  ás  qualidades  mais  eminentes 
do  estadista  e  do  guerreiro  a  indole  mais  san- 
guinária e  cruel,  d'um  d'estes  vultos  que  fazem 
descrer  da  Providencia,  que  nos  obrigam  a 
perguntar  porque  motivo  deu  Jehovah,  que  é  a 
suprema  bondade,  a  suprema  inteliigencia,  e  a 
misericórdia  suprema,  tanto  poder  ao  mal,  tanta 
grandeza  ao  crime,  d'um  d'estes  vultos,  emfim, 
que  nos  fazem  comprehender  essa  individualida- 
de mysteriosa  que  apparece  em  todas  as  religiões, 
e  em  que  se  personifica  o  mal  com  toda  a  sua 
hedionda  magestade,  esse  ente  horrendo  e  fasci- 
naior  a  um  tempo,  que  podia  ser  anjo  e  quiz 
ser  demónio,  e  que  se  chamou  Lúcifer,  e  foi 
senhor  da  luz,  e  preferio  chamarse  Satanaz,  e 
ser  o  rei  das  sombras. 

Este  homem  incomprehensivel.  este  vulto  gran- 
dioso e  horrendo  foi  Francisco  Pizarro,  o  desco- 
bridor e  o  conquistador  do  Peru. 
II 

Esta  anomalia,  que  se  repete  frequentes  vezes 
na  historia  do  Novo  Mundo,  esta  ligação  do  he- 
roísmo e  do  génio  com  o  vicio  e  o  crime,  esta 
fatalidade  que  macula  sempre  as  grandes  acções 
praticadas  na  America  pelos  hespanhoes,  e  a  que 
apenas  em  parte  se  exime  Fernando  Cortez  tem 
uma  explicação.  As  índias  eram  para  Portugal  o 
thcatro  da  actividade  dos  seus  filhos;  era  n'essas 
regiões  distantes  que  se  concentrava  a  atlenção  do 
governo,  era  essa  a  estacada  gigante  onde  a  flor 
dos  nossos  cavalleiros  ia  quebrar  lanças,  c  abolar 
arnezes.  Na  Hespanha  não  succedia  o  mesmo, 
principalmente  n'essa  época.  Reinava  Carlos  V,  o 


302 


O  PANORAMA 


poderoso  imperador,  o  rival  de  Francisco  I  e  o 
arbitro  dos  destinos  da  Europa.  As  regiões  que 
mais  o  tentavam  eram  os  férteis  plainos  do  Mila- 
nez.  as  populosas  campinas  da  iMança;  os  adver- 
sários que  o  inquietavam  eram  o  amante  da  du- 
queza  d'Elampes,  e  o  frade  de  \Yitlemberg,  o 
orguliioso  Lutliero ;  o  seu  sonho  querido  era  a 
nionarcliia  universal  européa.  A  grandeza  colo- 
nial não  o  seduzia ;  os  seus  terços  não  os  empre- 
gava elle  nas  magnificas  regiões  americanas,  mas 
sim  na  disputada  conquista  de  dois  palmos  de 
terreno  na  Itália.  O  proseguimento  das  descober- 
tas de  Colombo,  e  das  conquistas  de  Cortez  com- 
petia aos  aventureiros  que  estavam  para  isso 
dispostos.  O  governo  deixava-os  livres,  reclamava 
o  quinto  das  presas,  ordenava  que  se  lhe  reconhe- 
cesse a  soberania,  e  não  pensava  mais  n'esses 
paizes  distantes.  Esta  liberdade  aproveitavam-na 
os  avarentos  e  os  ambiciosos;  os  que  amavam  a 
gloria  e  a  pátria  ganhavam  a  batalha  de  Pavia, 
e  homens  sem  freio  das  leis  e  sem  nobre  incita- 
mento, impellidos  apenas  pela  cobiça,  repartiam 
entre  si  tranquillamente  os  thesouros  do  novo 
mundo. 

Francisco  Pizarro  foi  um  d'elles.  Filho  bastar- 
do d"um  gentilhomem,  nasceu  em  Truxillo  na 
Estremadura,  e  passou  os  seus  primeiros  annos 
na  miséria  e  no  abandono,  chegando  a  ser  in- 
cumbido de  guardar  porcos.  Esta  injustiça  da 
sorte,  este  desprezo  immerecido  que  seu  pai  lhe 
votara,  quando  elle,  pobre  criança,  tanto  preci- 
sava de  carinho  e  de  aíTectos,  azedou-lhe  por 
força  a  Índole,  e  lançou-lhc  no  arnago  do  peito 
os  germens  da  crueldade,  e  da  indiíferença  pelos 
males  alheios.  Apenas  saido  da  primeira  adoles- 
cência, alistou-sc  nos  terços  hespanhoes  e  foi  pe- 
lejar na  Itália.  Ahi,  perdido  nas  fileiras  dos  sol- 
dados, deu  provas  de  valor  sem  que  podessc  sair 
nunca  da  obscuridade,  a  que  o  seu  nascimento 
o  condemnava.  Por  esse  tempo  principiavam  as 
conquistas  dos  hespanhoes  na  America;  Pizarro 
percebeu  que  era  esse  o  campo  mais  próprio  pa- 
ra dar  largas  á  sua  ambição.  Ali,  entregues  os 
aventureiros  ás  suas  próprias  forças,  voltando, 
para  assim  dizermos,  ao  estado  primitivo  para 
combaterem  povos  primitivos,  desappareciam  to- 
das as  vãs  distincções  sociacs,  e  só  subsistiam  as 
que  dá  a  superioridade  única  estabelecida  pela 
níitureza,  a  do  valor  c  da  intelligencia.  Pizarro 
embarcou  para  a  America. 

Logo  nas  primeiras  expedições  se  dislinguio,  e 
as  suas  brilhantes  qualidades,  que  nunca  se  íia- 
\iam  podido  manifestar  nas  liteiras  disciplinadas 
dos  exércitos  de  Carlos  V,  revelaram-se  logo  n'es- 
sas  expedições,  em  que  tinha  cada  um  de  luctar 
individualmente  com  os  mil  obstáculos  que  a 
cada  passo  lhe  surgiam.  Apesar  de  ter  uma  ins- 
Irucção  tão  limitada  que  nem  sequer  sabia  ler, 
logo  lhe  foram  confiados  commandos  c  sempre 
elle  os  desempenhou  com  felicidade  c  proficiên- 
cia. Acompanhou  Ojeda  na  sua  expedição  ao  is- 
thmo  de  Darien,  e  depois  de  varias  outras  excur- 
sões estabeleceu-sc  na  colónia  de  I'ananiá,  que 
era  então  governada  por  um  fulano  Pedrarias. 

Descobrira  por  esse  tempo  Nunes  de  Ba I boa  o  mar 
Pacifico.  Explorando  o  interior  na  direcção  do 
Occidenle,  subira  a  um  morro,  c  vira  dê  súbi- 
to desdobrar  .se  diante  d'elle  uma  liquida  exten- 
são em  cujas  vagas  se  atufava  o  sol  no  occa- 
so;  grande  novidade  para  quem  havia  muito  que 


via  sempre  surgir  o  sol  das  aguas,  e  esconder-se 
por  traz  da  cortina  das  florestas.  Além  d'essa  im- 
portante noticia  trouxera  Nunes  de  Balboaaos  es- 
tabelecimentos hespanhoes  vagas  informações  que 
recebera  dos  indios  acerca  dVsse  paiz  maravi- 
lhoso, que  ficava  para  o  sul,  e  onde  abundava  o 
oiro.  Bastou  isso  para  inflammar  a  imaginação 
dos  hespanhoes,  e  logo  se  prepararam  expedi- 
ções para  o  descobrimento  d'essas  terras,  mas 
todas  foram  infelizes,  e  sempre  encontraram  ape- 
nas bosques  espessos  e  áridas  montanhas,  de  for- 
ma que  passou  em  julgado  terem  sido  sonhos  de 
Balboa,  ou  mentiras  dos  indios  as  maravilhas,  cuja 
vaga  noticia  elle  transmittira  aos  seus  compatriotas. 

Empreza,  perante  a  qual  todos  trepidavam,  era 
das  mais  próprias  para  excitar  a  energia  de  Pi- 
zarro. Quiz  o  acaso  que  se  lhe  deparasse  na  co- 
lónia um  homem  de  tempera  igualmente  rija, 
bem  que  de  talentos  inferiores  aos  do  bastardo. 
Esse  homem  era  Diogo  d'Alniagro.  Menos  feliz 
ainda  no  seu  nascimento  do  que  Pizarro,  se  este  era 
filho  natural  e  desprezado,  era  engeitaclo  aquelle. 
A  estes  dois  juntou-se  como  sócio  capitalista,  um 
Fernando  de  Luque,  padre  e  mestre  eschola.  Um 
mestre-eschola  capitalista  é  uma  d'aquellas  ma- 
ravilhas, que  só  se  vi?m  no  século  XYI.  E'  certo 
que  o  padre  possuia  grandes  riquezas  adquiridas 
na  America,  e  que,  seguindo  o  provérbio  francez 
((Uappélit  vient  en  mangennt»  se  deixou  deslum- 
brar pela  perspectiva  de  elevar  essa  opulência  a 
uma  altura  fabulosa. 

Constituída  a  associação  e  approvada  pelo  go- 
vernador de  Panamá,  foi  nomeado  Pizarro  pelos 
seus  sócios  chefe  da  expedição,  e  íicou  Almagre 
encarregado  de  alistar  mais  aventureiros,  a  fim 
de  os  enviar  em  reforços  succcssivos  a  Pizarro. 
I^ste  partio  a  li  de  novembro  de  1524,  comman- 
dando  um  só  navio  e  levando  ao  todo  cento  e 
doze  homens.  Foram  sempre  assim  os  exércitos 
com  que  os  hespanhoes  subjugaram  a  America,  e, 
maravilha  ainda  mais  estupenda,  orçavam  pelo 
mesmo  numero  as  tropas  portuguezas,  que  der- 
rotavam os  soldados  do  sultão  do  Egyplo,  e  os 
bellicosos  Musul manos  da  índia. 

Depois  de  setenta  dias  de  navegação,  achava- 
se  Pizarro  ainda  nas  costas  agras  e  selvagens,  que 
já  haviam  desanimado  os  seus  antecessores.  Mas 
era  de  outra  tempera  o  espirito  do  novo  desco- 
bridor. Vendo  a  sua  equipagem  fatigada  e  dizi- 
mada pela  doença,  não  quiz  ]Tor  forma  alguma 
abandonar  a  empreza,  e  estabeleceu  os  seus  quar- 
téis cm  Chuchama,  defronte  das  ilhas  das  Péro- 
las, onde  esperou  os  reforços  de  Almagro. 

Já  este  sairá  com^  setenta  homens  de  Panamá, 
porém  julgando  os  seus  companheiros  mais  avan- 
çados foi  aportar  muito  para  baixo  do  sitio  on- 
de olles  estavam,  c,  quando  se  julgou  próximo, 
desembarcou  e  principiou  a  procural-os.  Aqui 
lemos  nós  os  dois  heróicos  expedicionários,  per- 
didos um  do  outro;  Pizarro  espreitando  com 
impaciência  o  liorisonte  í)ndc  não  avulta  nem 
uma  vela,  Almagro  abrindo  caminho  atravez  de 
florestas  virgens,  solTrendo  das  intempéries  do 
clima,  combatendo  ii  cada  instante  com  ban- 
dos de  indios  selvagens,  e  procurando  debalde 
os  rastos  dos  seus  companheiros  n'essas  maltas 
intrincadas,  ondtí  o  pé  do  viajante  curvando 
os  ramos,  deixa  tantos  vestígios  como  a  quilha 
dos  navios  abrindo  o  sulco  espumoso  nas  vagas 
do  Oceano. 


w 


o  PANORAMA 


303 


Reunio-os  o  acaso,  mas  não  era  já  reforço  que 
Almagro  trazia  ao  seu  companheiro;  era  um  ac- 
crescimo  de  miséria  e  de  desanimação.  Não  ver- 
gava facilmente  o  aço  do  espirito  de  Pizarro. 
Obstinou-se  em  ficar  c  enviou  Almagro  a  Panamá 
para  fazer  novo  recrutamento. 

Nã®  era  fácil  a  tarefa.  A  noticia  das  desgraças 
da  expedição  enlibiou  o  animo  de  todos.  Demais 
o  novo  governador  D.  Pedro  de  los  Rios^  homem 
prudente  mas  de  espirito  acanhado,  temendo  que 
a  sua  própria  colónia  se  desbaratasse  com  a  per- 
da de  braços,  chamados  pelo  altractivo  do  lucro 
de  expedições  longínquas^  prohibio  que  se  alistas- 
sem novas  tropas,  e  enviou  um  navio  a  Pizarro, 
com  ordem  peremptória  de  o  trazer  a  Panamá. 
Desobediente  su]:)rnne,  Pizarro  desembainhou  a 
espada,  e  traçando  uma  linha  na  areia,  disse  pa- 
ra os  seus  que  a  passassem  os  que  não  deseja- 
vam continuar  a  solTrer  os  riscos,  a  que  elle  se 
ficava  expondo.  Não  encontrou  echo  no  espirito 
desanimado  dos  seus  companheiros  esta  nobre 
resolução,  e  apenas  treze  resolveram  não  aban- 
donar o  seu  chefe.  Mas  os  Ireze,  que  haviam  re- 
sistido áquella  prova  tremenda,  formavam  um 
corpo  de  heroes,  para  os  quaes  o  impossível  se- 
ria uma  palavra  desconhecida. 

O  governador  de  Panamá,  irritado  com  esla 
desobediência,  protestou  que  abandonaria  Pizar- 
ro á  sua  sorte.  Mas  a  opinião  publica  reagio  con- 
tra a  decisão;  a  sublime  loucura  d'esses  quator- 
ze  homens  inílammou  o  espirito  dos  hespanhoes, 
e  lodos  protestaram  energicamente  contra  a  idéa 
de  os  abandonar  aos  perigos  da  sua  empreza. 
Cedeu  o  governador  á  voz  geral,  e  enviou  um 
navio  a  Pizarro,  mas  apenas  tripulado  com  a 
gente  indispensável  para  a  manobra. 

Havia  cinco  mezes  que  os  quatorze  aventurei- 
ros soíTriara  incríveis  inclemências  na  ilha  de 
Gorgona.  A  apparição  d^um  navio  foi  para  elles 
causa  de  grande  jubilo,  e  os  companheiros  de 
Pizarro  saudaram  com  alegria  a  idéa  de  se  irem 
refazer  na  colónia  das  suas  incomportáveis  fadi- 
gas. Ainda  não  conheciam  bem  o  seu  chefe.  Em 
vez  de  satisfazer  a  esse  geral  desejo,  Pizarro  só 
teve  uma  idéa,  marchar  para  a  frente.  A  sua  al- 
ma heróica  retemperára-se  no  fogo  da  desventu- 
ra, e  a  sua  natural  eloquência,  ajudada  pelo 
exemplo  da  sua  firmeza  inabalável^  fascinou  por 
tal  forma  os  que  o  ouviram  que  não  só  os  seus 
treze  heroes,  mas  também  a  equipagem  do  na- 
vio, que  o  vinha  buscar,  se  deixaram  arrastar 
por  elle  e  se  abalançaram  a  novos  riscos^  e  a 
novos  perigos. 

Cortez  queimara  os  navios  para  tirar  aos  seus 
a  idéa  de  regressarem  á  pátria^  mas  tinha  diante 
de  si  um  império  magnifico,  e  podia  moslrar- 
Ihes  a  esplendida  recompensa  dos  seus  trabalhos; 
Pizarro,  em  paga  da  obediência  dos  seus  com- 
panheiros, não  lhes  podia  ainda  prometler  senão 
miséria,  fome,  doenças,  e  naufrágios. 

O  premio  da  sua  constância  não  se  fez  esperar. 
Vinte  dias  depois  de  partirem  de  Gorgona,  desco- 
briram um  paiz  cultivado  e  rico,  senieado  de  al- 
deias populosas,  e  senhoreado  pela  cidade  de 
Tumbez,  onde  os  aventureiros  deslumbrados  pc- 
deram  contemplar  templos  e  palácios,  em  cujos 
muros  scintillavam,  á  luz  do  sol  americano,  mas- 
sas enormes  desse  fulvo  metal,  que  fazia  dos  eu- 
ropeus heroes  e  bandidos. 
Era  finalmente  o  Peru. 


Aqui  finda  a  epocha  mais  brilhante  da  carreira 
de  Pizarro.  A  firmeza  heróica,  a  inabalável  cons- 
tância do  seu  animo  conquistam  sem  custo  o  res- 
peito da  posteridade.  Mas  agora  surgem  as  ma- 
culas, e  o  caracter  do  heroe  vai-nos  appare- 
cer,  como  realmente  era,  um  estupendo  conjun- 
cto  de  génio  e  de  perfidia,  de  bravura  e  de  cruel- 
dade, de  abnegação  e  de  avareza. 

(Continua) 


Volta  hoje  ás  coliminas.do  Panorama  um  dos 
seus  íillios  mais  queridos.  É  Ilebelio  da  Silva;  no- 
me illustre  a  quem  este  jornal  deve  tão  brilhantes 
paginas.  Não  foi  necessário  exaggerar  os  nossos 
rogos  para  obtermos  do  auclor  da  «Mocidade  de 
D.João  V))  as  eruditas  e  eloquentes  linhas  (\ue  se 
vão  ler  sobre  a  historia  do  nosso  paiz;  poitjue  P.e- 
bello  da  Silva,  não  linha  ainda  perdido  o  amor  ao 
jornal  onde  manteve  com  sabia  mão  os  créditos 
da  escola  lilleraiia  inaugurada  pelo  mestre  inimi- 
tável das  nossas  letras,  Alexandre  Herculano,  o 
historiador  sem  rival. 

Sc  o  nosso  agradecimento  não  oííendesse  uma 
prova  de  gratidão,  nós,  discípulos  humildes,  desde 
já  nos  declararíamos  extremamente  lisongeados  por 
esta  illustrada  collaboração.  Mas  a  legitimidade 
e  grandeza  da  oílerta  estão  acima  dos  nossos  en- 
cómios. O  que  simplesmente  nos  resta,  é  fazermos 
votos  para  que  tão  valioso  auxilio  continue  por 
dilatados  volumes  do  Panorama. 


Sr.  redactor. 

Satisfaço  do  modo  possível  ao  desejo  obsequio- 
so, que  leve  a  bondade  de  manifestar.  O  Panora- 
ma é  o  mais  antigo,  e  foi  o  mais  illustre  dos  jor- 
naes  litterarios  do  paiz.  Foi  o  primeiro  que  des- 
bravou o  lerreno,  que  abrio  e  aplanou  a  estrada. 
Somos,  quasi  todos,  discípulos  do  mestre,  que  er- 
gueu ahi  os  padrões  da  restauração  das  leiras, 
iniciando  os  progressos  modernos.  Desde  «Mestre 
Gil»  e  as  «Arrhas  por  Foro  de  ílespanha»  até  ao 
«Bobo,»  desde  os  artigos  sobre  os  «Monumentos^) 
até  ao  bello  esludo  que  se  intitula  o  «Parocho  de 
Aldeia»  A.  Herculano,  inexgotavel  senhor  e  sobe- 
rano de  lodos  os  segredos  da  arte,  percorreu  com 
passos  firmes  e  largos  a  estrada,  por  onde  alguns 
de  nós  com  tanta  fadiga  nos  arrastámos. 

Coube-me  depois  a  honra  de  lambem  assentar 
uma,  ou  outra  pedra  lustica  nos  lanços  desampa- 
rados do  edilicio,  collaborando  no'  Panorama. 
Sinto  que  outras  occupações  me  roubem  o  tempo, 
e  me  não  consintam  dedicar-lhe  ainda  os  cuidados, 
que  cm  época  mais  feliz,  quando  me  sorriam  os 
annos  juvenis,  com  tanto  prazer  lhe  consagrei. 

Faço  o  que  posso,  comludo.  Ahi  vai  esse  frag- 
mento do  l.ivro  I,  do  Tomo  III  da  Uisloria  de 
Portugal  nos  séculos  XY 1 1  e  XVJIÍ.  O  período,  a 
que  se  refere,  é  dos  mais  tristes  e  apagados  na 
existência  nacional.  Encetávamos,  depois  das  cor- 
tes de  Thomar,  a  via  doioiosa,  que,  por  entre 
mailyrios  e  provações,  nos  levou  á  revolução  de 
1040.  Em  lo8l  a  ilha  Terceira  era  o  asylo  e  o  ba- 
luarte dos  últimos  defensores  da  independência, 


304 


O  PANORAMA 


como  outra  vez  o  foi  em  1832.  O  episodio,  que 
lhe  envio,  prova  que,  se  outros  homens  houves- 
sem dirigido  a  resistência,  nunca  Portugal  teria 
caido  em  capliveiro. 

Desculpe  V.  a  humildade  da  oíTerla,  e  creia 
que  nasce  da  intenção  sincera,  e  do  apreço  e  es- 
tima, que  merece  o  jornal,  e  abonam  os  esforços 
desinteressados  de  seus  dislinclos  redactores. — 
Cintra,  o  de  agosto  de  1866.  —  De  V.  ele. — 
RebeHo  da  Silva. 


DERROTA  DE  VALDEZ  NA  TERCEIRA 

Fragmento 

A  Terceira,  lida  já  então  por  cabeça  dos  Açores, 
devia  a  preeminência  á  posição.  Escalla  dos  na- 
vios e  armadas  na  derrota  das  Índias,  a  braveza 
dos  mares,  que   lhe  rebentam  em  roda,  a  fúria 
dos  temjioraes,  que  lhe  semeavam  as  praias  de 
naufrágios,  e  a  aspereza  das  cosias  quasi  inaccessi- 
veis,    tornava    a  defesa  fácil.    Enriquecida   pela 
continuação  das  naus  de  S.  Thomé  e  do  Brazil, 
dos  galliões  da  Mina,  e  das  frotas  de  Caslella  e 
Portugal,  os  nave;;antes  acudiam  a  seu  porto  para 
esquecerem  os  trabalhos  e  piivações  de  longos  me- 
zes  de  viajem.  Prospera  e  socegada  até  ao  anno 
de  Io80  só  de  nome  conhecera  as  guerras,  a  es- 
cacez,  e  os  contágios.  Na  ditosa  ignorância  dos 
flagellos,  que  açoutavam  o  continente,  engrossara 
de  dia  para  dia  com  os  lucros  da  exporlação  de 
seus  trigos,  de  que  se  abasteciam  a  Madeira  e  o  sul 
de  Portugal,  e  com  o  fornecimento  das  esquadras, 
soccorridas  com  mão  larga,  graças  á  fertilidade  do 
torrão.  (1)  Os  sentimentos  espontâneos  da  popula- 
ção sublevaram  a  ilha.  As  novas   da  morte  de 
í).  Sebastião  e  da  acclamação  de  D.  Henrique  es- 
pertaram o  amor   da  independência.    Cartas  de 
D.  António  e  da  camera  de  Lisboa,  communicando 
os  successos  de  Santarém  e  da  capital,  no  mez  de 
junho  de  lo8(),  e  pedindo  apoio,  acabaram  de  de- 
cidir os  moradores.  Conliados  na  fortaleza  da  ter- 
ra, c  nos  au\ilios  de  França,  abraçaram  a  causa 
do  rei  porlugucz.  (^ypriano  de  Figuercdo  Yascon- 
cellos,  corregedor  desde  o  anno  de  1578,  lambem 
opiára  pela  defesa  do  throno  popular,  (|ue  a  essa 
hora  baqueava  em  Alcântara  e  no  Poito,  demoli- 
do pelos  capitães  de  D.  Philippe.  Eigueredo,  mo- 
desto  na   piosperidade,  mostrou-se  depois  supe- 
rior aos  revezes.  A  camera  de  Angra,  e  o  procu- 
rador da  cidade,  proclamaram  o  prior  do  Crato. 
Os  padres  jesuítas,  o  bispo  dos  Açores  I).  Pe- 
dro de  (Castilho,  João  de  Rcltencouil  Vasconcellos, 
e  poucos    mais,    formando    o  núcleo  dos  adhe- 
rentes  de  Castella,  apenas  protestaram  com  o  si- 
lencio, ou  com  a  ausência.  Os  neutros  c  os  indif- 
ferentes,    recolhidos    em  casa,   estranhavam    co- 
mo funestas  todas  as  novidades,  porém  nas  ruas 
e  praças  o  enthusiasmo  da  plebe  conveitia  em 
festa  publica  a  ceremonia  da  acclamação. 

Cypriano  de  Figueredo  assumio  o  poder  com 
applauso  quasi  geral.  Depressa  o  apertaram  as  dil- 

lll  hclncwj  ddn  roums  que  aronlecfiram  nn  ilhfi  Tcrrcira.— 
LeHrfH  coriUnanl  /í-s  Kclulions  de  loul  ce  qui  sesl  pussd  aiix  islfn 
Tercercí,  ele.  M.  >Ja  Acad.  Real  das  Bciencias  de  LisLoa  cod.  1!)-I3 
p.  1-7. 


íiculdades  de  tão  arriscada  empresa.  Seguio-se  a 
verdade  ás  fabulosas  victorias  de  D.  António,  e 
calou  o  desalento  nos  ânimos  dos  limidos,  e 
dos  tibios.  Soube-se  que  longe  de  contar  em  seu 
favor  as  armas  do  povo  de  Portugal,  e  as  de  Fran- 
ça e  da  (Iran-Brelanlia,  o  Prior  fugia  destroçado 
deante  dos  terços  de  Sancho  de  Ávila.  As  espe- 
ranças dos  habitantes  voltaram-se  então  para  a 
protecção  estrangeira,  e,  expostos  ao  resentimen- 
lo  do  rei  catholico,  tilaram  os  olhos  no  mar  com 
anciedade.  As  primeiras  velas  podiam  annunciar 
os  galliões  de  Caslella,  ou  os  soccorros  deseja- 
dos. (2) 

A  esse  tempo  não  eram  pequenas  lambem  as 
preoccupações  de  Philippe  II  em  Lisboa.  Avisado 
de  tudo  o  (lue  se  urdia  contra  elle  na  Europa  pe- 
las conlidencias  do  duque  de  Toscana,  e  pelos  of- 
íicios  de  Maldonado,  do  D.  Bernardino  de  Men- 
donça, e  de  João  Baptista  Tassis  conhecia  os  de- 
sígnios das  cortes  de  Londres  e  de  Paris,  embora 
os  dissimulasse.  Os  perigos  eram  grandes.  A  Ter- 
ceira, nas  mãos  de  D.  António,  proporcionava  a 
Henrique  de  Valois  e  a  Isabel  Tudor  gi andes  faci- 
lidades pa;'a  se  apoderarem  d'ella  a  pouco  e  pou- 
co cora  o  pretexto  de  a  defender;  e  se  uma  vez  os  na- 
vios do  intrépido  e  aventuroso  Drake,  unidos  aos 
do  capitão  Carlos  de  Bordéos,  a  dominassem,  as 
armadas  delíespanha,  e  de  Portugal  encontrariam  a 
ruina,  ou  o  capineiro  nos  portos  aonde  costumavam 
repousar-se,  ou  refugiar-se.  Uma  circumstancia 
propicia  favoreceu  então  o  reL  A  ilha  de  S.  Miguel 
não  acompanhara  a  Terceira,  e  as  ilhas  de  Santa 
Maria,  do  Corvo,  e  das  Flores  tinham  preferido, 
imitando-a,  a  Iranquillidade  á  desobediência.  O 
bispo  dos  Açores  e  os  padres  da  companhia  de 
Jesus  de  Angra  foram  os  auctores  d'esta  delibe- 
ração, segundo  se  divulgou  depois. 

(Conlinua)  Rebello  da  Silva. 


A  esperança  do  premio  c  o  consolo  do  trabalho. 

Séneca. 


UM  LEITOR  DO  SÉCULO  PASSADO. 

Um  individuo  chamado  Tcxier,  que  adquirio, 
como  leitor,  uma  grande  reputação  no  século 
dezoito,  dava,  dizem,  a  certa  comedia  de  ColkS 
um  valor  lai,  que  a  punha  muito  acima  do  que 
realmente  valia,  como  producçào  litteraria,  e 
lornava-a  ainda  mais  interessante  que  em  seena. 
Luiz  XV  teve  uma  vez  a  fantasia  deouvil-o; 
mas,  logo  ás  primeiras  sconas  o  velho  monarcha 
adormeceu.  Texier  ulfendido,  ia  levantando  a  voz; 
Luiz  XV  cada  vez  rcsonava  com  mais  força.  O 
leitor  indignado,  reforça  uma  das  suas  inflexões 
com  um  valente  murro  sobre  a  meza.  O  rei, 
acorda  sobresaltado,  levanta-sc,  e  percebendo  a  in- 
tenção do  leitor,  manda-o  pôr  lóra  da  porta  com 
um' 0/^Saliit  cuja  enloação  ficou  para  sempre 
gravada  na  mente  do  pobre  Texier. 

(2)  licliirào  (IfiA  roums  que  iicnnt creram  nn  ilha  Tcrceim.  Capií. 
II,  III,  e  IV.  —  Lcllrcs  conlcnanl  loul  ce  qui  sesl  passe  uux  uleí 
'íeriens,  ele.  png.  1-7. 


Typ,  Fraiico-Porluguuza  =  Rua  do  Tticsouro  Vcllio,  G. 


o  PANORAMA 


305 


MOiNUMEMOS  NACÍONAES  ANTIGOS 
II 

o  tumulo   (Ic   S.  Fr.  Gil  estava 
vasio,  a  Joisa  levantada  e  quebra- 
da!... 
Quem  nic  roubou  o  meu  santo? 
Gahiíett.—  Viagens. 

C*oti vento   do  .<>.   Ooiiilusos  do  .Pautarem 


Talvez  nenhuma  villa  do  Portugal  conlasse  ja- 
mais no  seu  seio  tantos  monumentos  antigos, 
como  Santarém.  Romanos,  Godos,  Mouros  e  Chris- 


tãos,  todos  conheceram  a  importância  deste  lo- 
cal, e  n'ellc,  como  á  porfia,  deixaram  monumen- 
tos da  sua  existência.  Mas,  como  era  natural,  quem 
mais  embellezou  a  antiga  Scalabis  dos  Romanos, 
foram  as  ordens  religiosas.  Ide  a  Santartin,  per- 
correi os  antigos  bairros  da  villa,  e  por  Ioda  a 
parte  vereis  as  negras  paredes  dos  templos  amea- 
çando ruina:  eram  templos  e  mosteiros  as  obras 
de  nossos  antepassados :  mas  procurai  também 
as  obras  dos  modernos...  certamente  em  nada  os 
encontrareis  adiantados  nesta  villa,  senão  na  arte 
de  empregar  a  picareta:  e  o  camartello  na  demo- 


Gonvento  de  S.  Doming-os  de  Santarém 


lição  de  tudo,  quanto  é  antigo,  de  tudo,  quanto 
é  nobre,  de  tudo  quanto  pôde  dar  honra  a  nos- 
sos maiores.  Santarém  causa  horror :  e  o  anti- 
quário, o  amante  das  artes,  o  indagador  dos  mo- 
numentos históricos  deve  fugir  desta  villa. 

Também  S.  Domingos  de  Santarém  não  esca- 
pou da  assolação  geral.  Gonta-se  que,  durante  a 
guerra  peninsular,  chegando  os  Francezcs  a  uma 
aldeia  hespanhola  com  tenção  de  a  arrasarem, 
e  perguntando  pelo  seu  nome,  ouvindo  que  se 
chamava  Del  Toboso,  nome  tão  conhecido  no  D 
Quichote,  e  immortalisado  pela  penna  de  Cervan- 
tes, deram  uma  gargalhada,  e  a  aldeia  ficou  in- 
cólume. Dizem  também  as  historias  antigas,  que 
os  iMacedonios  abstiveramse  de  arrasar  uma  ci- 
daie  por  ser  pátria  d*um  sábio  illiislre.  Mas  a 
S.  Domingos  de  Santarém  nada  poude  valer:  nem 
a  sua  muita  antiguidade,  c  recordações  históri- 
cas, nem  as  cinzas  de  tantos  varões  ilíusíres,  que 
ali  estavam  dormindo  o  ultimo  somno,  nem  as 
lendas  religiosas  e  tão  poéticas  que  se  contavam 
dos  seus  antigos  moradores,  nem  mesmo  a  penna 
maviosa  de  Fr.  Luiz  de  Sousa  I  D'aqui  por  diante 


a  capella-mór,  obra  do  infeliz  D.  Sancho  ÍI,  que 
ainda  existe  intacta,  servirá  de  deposito  de  feno 
e  palha.  '  As  cinzas  de  Gil  e  Maríim  Ocem,  e 
as  dos  infantes  D.  AíTonso,  e  Fernando  Sanches, 
e  de  tantos  outros  varões  illustres  serão  espalha- 
das pelo  chão,  calcadas  pelos  cavallos  e  cober- 
tas de  estrume:  os  ricos  jazigos  destes  varões  il- 
lustres também  podem  servir  para  jjebedouro  dos 
cavallos.  Aquelles  claustros,  que  tantas  vezes  ou- 
viram os  gemidos  e  os  prantos  de  S.  Fr.  Gil,  que 
tantas  vezes  foram  borrifados  com  o  sangue  des- 
te tão  grande  physico,  peccador,  feiticeiro,  e  san- 
to, são  hoje  Ihealro,  em  que  os  toureadores  exer- 
citam sua  arte  cruel.  Os  povos  não  se  reúnem 
aqui  para  ouvirem  as  vozes  eloquentes  dos  va- 
rões que,  com  sua  palavra  e  viver,  educavam  os 
povos  no  caminho  da  verdade,  porem  hoje  api- 
nham-se  neste  recinto  para  ver  maltratar  ani- 
niaes  e  escalavrar  ou  aleijar  homens.  As  ca- 
pellas  são  despejf)  das  mais  asquerosas  immun- 
uicies.  E  tudo  isto  dcnlro  em  pouco  cahirá  em 

(D  Veio  uUimameDle  uma  ordem  para   esta   igreja    se   entre 
gar  tanibcni  ao  regimento  de  ca\all;iria  alojado  eín  S.Francisco 


áutí 


O  PANORAMA 


minas,  e  de  S  Domingos  de  Sanlarcm  por  lar- 
gos annos  apenas  se  verá  um  montão  de  entulho. 
O  convento  de  S.  Domingos  de  Santarém  teve 
seu  principio  na  parle  baixa  da  villa  chamada 
Montviás.  '  Mas,  mais  tarde,  por  causa  do  gran- 
de incommodo,  que  os  frades  tinham,  quando 
subiam  ao  alto  da  villa  a  pregar,  fizeram  um 
pequeno  mosteiro  na  parte  superior  da  povoa- 
ção, que  tem  o  nome  de  Chão  da  Feira,  em  que 
íiavia  uma  ermida,  dedicada  a  Nossa  Senhora  da 
Oliveira.  Parece  ter  sido  este  convento  fundado 
em  12:25.  Constou  ao  rei  D.  Sancho  I  a  mesqui- 
nhez com  que  os  frades  levantavam  o  seu  mos 
teiro,  segundo  a  regra  da  sua  ordem,  e,  como 
era  amigo  de  edificações  religiosas,  ordenou-lhes 
que  continuassem  na  fundação  do  convento  se- 
gundo as  leis  da  sua  religião,  mas  que  da  igreja 
è  claustro  elle  queria  ser  o  fundador.  Não  leve 
este  rei  tempo  para  levar  ao  cabo  esta  obra,  ata- 
lhado pela  morte;  porém  foi  continuada  vaga- 
rosamente por  seu  irmão.  D.  AíTonso  111,  e  por 
lim  terminada  pelas  esmolas  dos  fieis,  compen- 
sadas coiu  indulgências,  para  o  que  consegui- 
ram uma  bulia  de  Alexandre  IV  em  {2d7.  Em 
1()U4,  sendo  Provincial  Fr.  Manuel  Coelho,  acha- 
va-se  a  igreja  c  claustro  em  tal  estado  de  ruina,  ^ 
que  não  houve  outro  remédio  senão  proceder  a 
uma  reconstrucção  total,  á  excepção  da  capella 
múr,  cruzeiro  e  algumas  capellas,  que  se  con- 
servaram como  estavam  na  primitiva,  por  se 
acharem  cm  excellenle  estado  de  conservação. 
A  igreja  era  sumptuosa,  sendo  toda  de  abobada 
de  tijolo.  Tinha  três  naves  com  dez  columnas, 
de  ordem  Toscana.  O  tecto  da  capellamór  era 
de  abobada  enredado  de  pedraria,  lavrada  e  com 
engraçados  llorôes.  Era  templo  concorridissimo 
dos  lieis,  que  ali  se  dirigiam  movidos  da  devo- 
ção que  tinham  a  S.  Fr.  Gil.  *  Muito  mais  pode- 
ria dizer  a  respeito  deste  mosteiro,  mas  para  quê? 
Quem  não  poderá  ler  o  assumpto  tratado  com 
desenvoUimento  pela  penna  de  Fr.  Luiz  de  Sou- 
sa ?  Quem  haverá  tão  desprezador  da  litteratura 
pátria,  que  não  passe  lioras  deliciosas  na  leitura 
dos  feitos  e  lendas  de  Fr.  (jíI?  I)'esse  que  foi  es- 
colhido pelo  celebre  D.  Sueiro  para  continuar  a 
introduzir  a  Ueligião  Dominicana  em  Portugal? 

M.    bEllNAIíDtS   IJjtANCO. 


HISTORIA  DA  ROSA 

As  rosas  ciam  einprogíulas  latnbeni  de  oulros 
modos  mui  dincreiíles  Os  sybaiitas  dormiam  em 
leitos  que  estavam  cheios  de  folhas  de  rosa,  e 
bem  conhecida  é  aanecdola  do  celebre  Smindyri- 
des,  que  não  j)0U(le  dormir  uma  noilc  porque  uma 
folha  de  rosa  se  lhe  enrolara  debaixo  (h)  coipo.  O 
l\i'aniio  de  Syracusa  mandava  i)iej)aiar  leilos  de 
rosas,  c  algum  tempo  depois  os  romanos  aco.s- 
tumaram-se  a  assenlar-se  á  mesa  sobre  almoía- 
dões  de  rosas.  Cicopalra,  em  um  ban(]uele  (|ue 
deu  om  honia  de  Anlonio,  gaslou  immensa  (|uan- 
tidadede  rosas  e  ordenou  que  o  solo  da  casa  cm  (|ue 
leve  lugar  a  festa  eslivesse  coberto  com  mais  de 
uma  vara  de  allura  de  folhas  de  rosa,  sobre  as 

(2)  Fr.  Lniz  de  Scusn.  Uittoria  de  S.  Domiripos,  liv    2.  r-np.  I. 

(3)  Iffnacio  da  Fícdade   c  Vosf;onccMo8.  Hjsioriu  de  Santurem, 
vol.  2.'  pag.  -,3. 

(i)  O  tijinuio  df,-ttc  cclelirc  feiticeiro  eslá  Loje   no   museu   de 
autipaidades  no  C;arir;o  em  Lisboa, 


quaes  mandou  lançar  uma  rede,  para  sugeilal-as. 
Na  celebre  festa  da  agua  de  Bayos,  Ioda  a  super- 
licie  do  lago  Lucrino  foi  coberta  de  rosas,  Nero 
fazia  com  que  em  suas  orgias  chovessem  rosas  por 
aberturas  praticadas  no  ledo  da  habitação,  llelio- 
gabalo  levou  esta  exageração  a  uma  tal  demência, 
que  mandou  afogar  com  flores  uma  multidão  de 
convidados  de  (|ue  não  |)odia  desembaraçar-se.  No 
tempo  de  Domiciano  havia  em  lloma  innumeraveis 
jardins  de  rosas  que  chegaram  a  ser  plantações  de 
uma  extensão  immensa,  e  cujo  aroma  era  tal  que 
mesmo  nas  ruas  atordoava,  (cEgypcios  enviai-nos 
cereaes  que  vos  enviaremos  rosas  em  troca,»  di- 
zia Marcial  ao  ver  esta  abundância. 

As  rosas  serviam  lambem  como  medicamenlo 
enlre  os  antigos;  llyppocrales  julga-as  um  remé- 
dio eflicaz  conlia  a  hydrophobia  e  logo  se  consi- 
deram como  um  medicamenlo  adstringente  e  re- 
frigerante. Depois  loi-am,  até,  empregadas  nos  ali- 
mentos, Apicio  descreve  assim  um  manjar  do  ro- 
sas. «Tomem-se,  diz  esle  intelligente  na  arle  cu- 
linária, folhas  de  rosas  lavadas;  separe  se  cuidado- 
samente a  parle  branca  da  extremidade  inferior 
da  folha,  deilem-se  depois  em  um  almofariz  e  pi- 
zem-se,  ajunlando-liies  conslanlemenle  salsa  pi- 
cante. Depois  accresccnle-se-lhe  mais  uma  peque- 
na porção  d'esla  salsa,  e  passe-se  tudo  por  um 
peneiro.  Logo,  lomam-se  os  miolos  de  qualio  ca- 
beças de  vitella,  c  ajunla-se-lhes  uma  diachma  de 
pimenta  bem  moída.  Piza-se  bem  em  um  almofa- 
riz humedecendo-o  com  a  dita  salsa.  Em  seguida 
deilam-se  oito  ovos  e  mislura-se-lhe  um  copo  de 
vinho  e  outro  de  licor,  ajunlando-lhc  um  pouco 
d'azeile;  por  ultimo,  depois  de  dar  a  osta  massa 
a  forma  que  se  quer,  humedece-se  por  fora  com  azei- 
te, ecose-seem  um  forno,  de  modo  que  receba  lanlo 
calor  por  cima  como  por  baixo,  e  serve- se  quenlc 
na  mesa.» 

As  rosas  serviam  igualmcnlc  para  preparar  be- 
bidas, como,  por  exemplo,  o  vinho  de  rosas.  Plinio 
diz  d'csle:  «Tomem-se  -iO  drachmas  de  folhas  de 
rosa,  e  depois  de  lel-as  espremido  bem,  passem-se 
para  um  panno,  e  j)onham-nas  em  uma  vasilha, 
com  um  peso  em  cima,  para  que  se  conservem 
sempre  no  fundo;  depois  deilar-se-hão  sobre  ellas 
20  pintas  de  moslo  c  deixal-as-hão  assim  iicar 
por  espaço  de  Ires  mezes.» 

Os  antigos  faziam  lambem  óleo  de  rosa,  mas 
era  nuiilo  diílerenle  do  (pie  hoje  se  fabrica  no 
Oriente;  jiara  extrail-o  deitavam  folhas  de  rosa 
em  uma  vasilha  com  agua  que  collocavam  ao 
sol;  a  parte  oleosa  saía  á  superíicie  e  tinham  en- 
tão o  cuidado  de  colhel-a  com  um  pedaço  d'algo- 
dão  muito  lim[)0,  esj)remend()-o  depois  em  um 
fiasco  hermelicamente  tapado;  mas  nem  iodas  as 
classes  de  ro.sas  daNam  igual  quantidade  de  óleo. 
O  meliior  e  mais  puro  lem  uma  côr  de  limão 
transparente,  o  conserva  sempre  o  mesmo  corpo, 
excepto  ([uaiido  se  leva  ao  fogo,  que  se  torna  mais 
liipiido.  liitro(liiziii(!o-se  no  frasco  a  ponta  de  uma 
agulha  e  locaiido-se  de|)ois  com  ella  em  um  lenço, 
esle  conservará  por  muitos  mezes  um  aroma  forle 
a  rosa.  A  essência  de  rosa  chamada  .l//<</r  ou  Ollor 


o  PANORAMA 


807 


pelos  Oiientaes,  éiim  artigo  de  commercio  muito 
importante  nas  costas  da  Berbéria,  Syna  e  Pérsia, 
onde  é  pago  a  peso  de  outo.  A  melhor  essência 
é  a  de  Cachemira,  depois  a  da  Pérsia  e  depois  a 
da  Syria.  O  nardo  da  liiblia  parece  ser  uma  cou- 
sa análoga,  posto  que  a  rosa  é  chamada  nard  em 
árabe. 

Nos  tempos  obscuros  da  idade  media  parece 
ler-se  abandonado  um  pouco  o  cultivo  daro^a,  mas, 
com  tudo,  ha. uma  ordenança  de  Carlos  o  Grande 
que  recommenda  aos  Francos  a  plantação  e  cultivo 
d'esta  flor,  Os  benedictinos  lizeram  grandes  esfor- 
ços depois  para  estender  o  seu  cultivo  e  era  qual- 
quer ponto  onde  se  creasse  um  convento  d'esta 
ordem  fazia-se  logo  em  seguida  um  jardim  de  ro- 
sas. A  rosa  foi  mui  cultivada  pelos  árabes  que  a 
apreciavam  muito.  O  sábio  Ewe-el-Awam,  em  ura 
livro  que  escreveu  no  século  XH  sobie  agricultu- 
ra, ('á  varias  noticias  acerca  do  seu  cultivo.  Os 
cruzados  introduziram  era  Fiança  e  era  Allemanha 
dilVerentes  espécies  até  então  desconhecidas;  as- 
sim foi  semeada  na  Provença  a  rosa  de  Damasco 
no  aano  1100.  A  rosa  de  cem  folhas  era  uma  cousa 
summaraente  estranha  na  idade  raedia  e  o  botânico 
Clusio,  em  uma  obra  que  deu  á  luz  era  1389,  cila 
corao  caso  extraordinário  uma  rosa  de  cem  folhas 
que  vira  na  llollanda,  accrescentando  que  em 
Francfort  sobre  a  iMein  viia  lambem  algumas  em 
casas  de  pessoas  de  elevada  jerarchia. 

Lobel,  o  botânico  de  Jacob  I  d'ínglaterra,  pu- 
blicou em  laSl  uma  descripção  de  dez  espécies 
de  rosas;  Bauhin  conhecia  já  19  em  1629;  Wilde- 
now  36  em  1779  e  Parsom  46  na  sua  Sypnoses 
plantarum,  publicada  em  1798,  entre  as  quaes 
íigura  a  linda  rosa  de  Bengala,  cuja  pátria  é  a 
China. 

No  occidente,  porem,  da  Europa,  nem  aiesmo 
nos  grosseiros  tempos  da  idade  media,  era  esque- 
cida a  rosa;  uma  prova  d'isto  é  a  festa  chamada 
da  roseira  em  Salency  cuja  origem  teve  lugar 
no  sexto  século.  A  tradição  diz  que  S.  Mcdardo 
foi  quem  estabeleceu  este  costume;  o  seu  objecto 
era  dar  á  joven  mais  virtuosa  do  povo  no  dia  8 
de  junho  de  cada  anno,  um  premio  de  23  libras 
com  uma  coroa  de  rosas,  e  a  fim  de  que  se  con- 
servasse sempre  este  costume,  legou  para  isso  uma 
porção  de  terras  que  possuia;  a  primeira  joven 
que  obteve  este  premio  foi  a  irmã  do  santo.  Ou- 
tras festas  pelo  estylo  d'esta  tinham  lugar  lambem 
em  outro  tempo  em  vários  pontos  da  França, 
como  Saint  Sauveur,  La  Fulaise,  Nancy,  Meaux, 
ele. 

Em  muitos  escudos  de  armas  de  vários  paizes 
encontram-se  lambera  losas,  corao  no  (ringlater- 
ra,  no  delJppee  nos  dos  ducados  da  Saxonia.  I.u- 
Ihero  tinha  uma  rosa  no  seu  sello.  Uma  multidão  de 
povoações  da  Allemanha  Icem  o  seu  norae  com- 
posto da  palavra,  corao  Rosenlhal,  Bosenau,  Bo- 
seuberg,  ele.  ele.  Nas  armas  do  Vehma  ou  antigo 
tribunal  secrelo  da  Allemanha,  havia  a  imagem  de 
um  cavalleiro  cora  um  ramo  de  rosas  na  raão. 
Quando  qualquer  dos  individuosd'esle  terrível  tri- 
bunal via  uma  rosa  era  obrigado  a  beijal-a.  A  rosa  era 


representada  frequentemente  nas  obras  de  arte  da 
idade  media  e  tigura  em  ura  grande  numero  de  obias 
antigas,  corao  na  novclla  da  Rosa,  era  Amadis,  em 
Parzival,  na  novella  de  Perceforet  e  nas  obras  do 
Chaucer 

A  rosa  occupa  ura  lugar  mui  dislincto  na  igreja 
da  idade  media.  Em  Allemanha  ha  varias  tradições 
(jue  se  referem  a  uma  rosa  de  Santa  Izabel  de 
Au''ingia  e  a  oulia  do  convento  de  Altenberg. 
Santa  Dorolhea  recebeu  tarabera  de  ura  anjo  um 
rarao  de  rosas  com  o  qual  a  representara,  Diz-se 
que  depois  de  morto  o  bispo  Lu  z,  sobrinho  de 
Luiz  Xí  de  França,  saío-lhe  uma  rosa  da  boca. 
Da  nossa  rainha  Santa  Isabel,  mulher  de  D.Diniz, 
conla-se,  igualmente,  que  levamlo  um  dia  em  um 
lenço  pedaços  de  pão  e  dinheiro  para  dar  aos  po- 
bres, estas  esmolas  se  transformaram  em  rosas; 
porque  questionada  por  seu  marido,  que  a  encon- 
trara fora  do  palácio,  sobre  o  contheudo  da  trouxi- 
nha,  lhe  respondera  que  eram  ílores.  Em  Roma 
ha  o  domingo  de  Bosas  (o  quarto  da  quaresma), 
no  qual  o  Papa  abençoa  uma  rosa  de  ouro  para 
com  ella  presentear  opporlunamente  alguma  igre- 
ja ou  alguma  pessoa  real,  como  succedeu  por  oc- 
casião  do  baplisado  do  actual  príncipe  imperial  da 
França.  Este  costume  lera  sido  seguido  desde  o 
undecirao  século.  Anteriorraente,  era  França,  le- 
vavam-se  á  igreja  grandes  jarros  com  agua  de  ro- 
sas para  os  baptisados.  Quando  baptisaram  Ro- 
nsard,  o  poeta  raais  dislincto  do  tempo  de  Hen- 
rique II,  a  ama  que  o  levava  nos  braços  á  igreja 
deixou-o  cair  sobre  um  montão  de  Ílores  e  a  mu- 
lher, portadora  do  jarro  com  a  agua  de  rosas,  te- 
ve tão  grande  suslo,  que  derramou  toda  a  agua 
sobre  a  criatura;  o  que  foi  interpretado  como  um 
indicio  da  boa  sorte  do  menino,  e  a  tradição  at- 
tribue  a  este  successo  o  grande  exilo  das  suas 
poesias. 

Tornando,  porem,  à  historia,  acharemos  varias 
ordens  e  sociedades  secretas  que  se- criavam  nos 
séculos  XVII  e  XVIII  e  que  adoptaram  por  nome 
e  symbolo  uma  rosa.  Assim,  por  exemplo,  os  cru- 
zados da  rosa,  que  pretendiam  fazer  reformas  na 
igreja  e  no  estado,  e  cujo  distinctivo  era  uma  cruz 
de  Santo  André,  com  uma  rosa  rodeada  de  espinhos 
e  cora  este  dislico:  Cruz  Christi  Corona  christia- 
norum.  Em  Paris  houve  lambem  a  sociedade  cha- 
mada dos  Rosati,  na  qual  não  podia  entrar  nin- 
guém que  não  tivesse  feito  alguma  composição 
poética  em  louvor  da  rosa.  Em  íira  ha  as  Ires  or- 
dens da  rosa  creadas  ultiraaraente :  a  do  duque 
de  Chartres,  que  era  a  reunião  de  todos  os  liber- 
tinos de  Pariz  e  de  todas  as  raais  notáveis  corte- 
zãs  em  1780  ;  a  ordem  da  rosa,  criada  por  D.  Pedro 
I,  imperador  do  Brazil  e  a  ordem  allemã  da  rosa, 
criada  era  1781  por  (írossinger. 

A  sciencia  conta  hoje  unias  3:000  classes  e  va- 
riedades de  rosas,  cujos  caracteres  dislinctivos  só 
os  conhece  o  verdadeiro  intelligenle  na  raateria. 
O  cultivo  maior  de  rosas  é  o  que  se  faz  em  Fran- 
ça;  tanto  as  d'este  paiz  como  as  d'lnglater- 
ra  e  Allemanha  tecm  uma  merecida  reputação; 
mas,  parece-nos  que  não  teem  o  aroma  das  nos- 


308 


O  PANORAMA 


sas  ou  das  dllospanha  e  d'Ilalia.  A  imperatriz 
foi  a  primeira  que  deu  impulso  ao  seu  cullivo, 
fazendo  com  que  o  seu  jardineiro  puzesse  no  jar- 
dim do  seu  palácio  de  Maiinaison  todas  as  leiras 
do  seu  nome  formadas  das  mais  estranhas  rosas. 
Em  França  criavam-se  escolas,  em  Paris,  Versailles, 
Rouen,  etc  onde  se  ensinava  o  cul(ivod'esta  flor. 
No  condado  de  ITertfordé  onde  eslão  os  melhores 
jardineií-os  para  rosas  que  a  Inglaterra  possue  e 
ali  publicou-se  ainda  não  ha  muitos  annos  um 
livro  Iralando  d"esia  flor. 

Em  Allemanha  tinham  fama  as  collecções  de  rosas 
de  Cassei ;  na  actualidade  os  maiores  jardins  d"ellas 
eslão  em  Dusseldorf;  lambem  os  ha  muito  bons 
em  Wilzleben.  Koeslrilz,  ele. 

Concluiremos  citando  a  maior  roseira  que  se 
conhece  no  mundo  ;  é  uma  branca  que  eslá  no  jar- 
dim da  nrariniia  de  Toulon ;  conta  já  iO  annos,  e 
em  1TÍ2  o  seu  tronco  tinha  dois  pés  e  quatro 
jiollegadas  de  circumferencia;  a  sua  altura  e  de 
lo  a  18  pés,  e  quando  floresce  (que  é  do  melado 
de  Abril  a  meiado  de  Maio),  não  dá  menos  de 
;J0:000  rosas;  o  seu  aspecto  é  magnifico,  ou  para 
melhor  dizer  encantador. 

Km  Caserta,  ha  outra  roseira  da  mesma  classe 
que  allinge  a  altura  de  GO  pés.  O  barão  Jaspes 
iSicholls  de  Goudrent  em  Inglaterra  linha  uma 
que  em  18oí  deu  de  17,000  a  18,000  rosas. 


Quem  pode  exercitar  a  doçura  de  espirito  no- 
meyo  das  dures,  a  generosidade  no  meyo  das  fra- 
quezas, a  paz  no  meyo  das  contradições,  este  tie 
mais  que  perfeito.  A  mansidão,  a  suavidade  de 
coração,  a  igualdade  de  humor,  são  virtudes  mais 
raras  que  a  castidade :  e  assim  as  devemos  ter 
em  grande  estimação.  Não  ha  cousa  que  mais 
cditique.  que  a  mansidão  caritativa;  nella  como 
no  aze\tc  da  lâmpada,  vive.  e  se  nutre  a  chama 
do  bom  exemplo.  Manuel  BEu^AI;DES. 


DON  JOSÉ  RIBERA. 


O  museu  hcspanhol  do  Louvre,  essa  vasta  col- 
lecção  de  quadros  que  os  francezcs,  sem  maior 
ccrcmonia,  foram  levando  de  todas  as  províncias 
da  Hcspanha.  acha-se  aberto  ha  muito  tempo,  e 
tem  se  podido  distinguir,  n"aquclle  conjuncto  de 
composições  diversas,  algumas  leias  dos  grandes 
mestres,  em  que  se  revelam  eminentes  qualida- 
des. Mas,  também,  é  forçoso  confessar,  uma  gran- 
de parle  d*aquellas  obras  não  saem  da  existência 
vulgar;  prcnde-as  uma  grossa  cadeia  á  vida  ter- 
restre. È  justamente  o  contrario  da  escola  ita- 
liana, que  se  eleva  ás  celestes  regiões  da  arte. 
Em  llespanha,  paiz  que  parece  fugir  da  justiça, 
o  arlit.|a  pensa  nas  necessidades  da  vida,  na  am- 
bição, na  malvadez,  no  despotismo  que  o  cercam. 
Se  procura  um  assumpto,  encontra  a  indigência, 
e  immedialamente  cobre  a  sua  léla  de  mendi- 
gos :  as  dores  rruciantes  dos  martyres  servem- 
llie  i)ara  exprimir  a  desolação  que  o  rodêa.  Al 
guns  homens,  porém,  fizeram  tréguas  por  algum 
tempo  com  aquelle  perpetuo  gemido:  citaremos 
Murillo,  Luiz  de  Vargas  c  Hibera. 

l'«ibera,   a  quem   ai)pellidaram  o  Kspanholelo, 
unicamente  para  indicarem  o  paiz  em  que  nas- 


cera, pertencia  a  uma  família  nobre  de  Murcia. 
Destinado  ao  estado  ecclesiastico,  começou  os  seus 
estudos  na  universidade  de  Valência.  Frequentava 
também  a  esse  tempo  as  aulas  um  dos  íilhos  do 
pintor  Ribalta.  Relacionando-se,  e  tornando-se 
amigos,  Ribcra  teve  occasião  de  ver  alguns  de- 
senhos d'aquelle  artista,  os  quaes  desde  logo 
procurou  copiar.  Informado  Ribalta  da  vocação 
do  mancebo,  e  vendo  o  que  elle  fazia,  disse  ao 
filho  que  lh'o  apresentasse,  edeu-lhe  licença  para 
trabalhar  na  sua  ofíicina.  Em  pouco  tempo,  Ri- 
bera  fez  rápidos  progressos,  e  seus  pães,  vendo  a 
sua  apíidão,  consentiram  em  deixal-o  partir  para 
Itália.  Dirigio-se  a  Roma,  onde  viveu  sem  meios, 
estudando  todo  o  dia,  e  dormindo  de  noite  de- 
baixo dos  alpendres.  Assini  andou  muito  tempo, 
até  que  em  certo  dia  vio  na  igreja  de  S.  Luiz  al- 
gumas pinturas  que  lhe  excitaram  sympathia  : 
eram  obras  do  celebre  Caravaggio.  Ribera  con- 
cebeu desde  logo  o  projecto  de  procurar  aquelle 
artista,  que  Ib.e  poderia  dar  algumas  licções.  Não 
tardou  muito  que  a  fortuna  Ih  o  não  deparasse 
em  um  passeio:  Ribcra  saio-lhe  ao  encontro,  e 
disse-lhc,  que  desejava  muito  vel-o  pintar.  Cara- 
vaggio  não  fez  mais  que  indicar-lhe  que  o  se- 
guisse e  entraram  ambos  em  uma  casa  de  magni- 
tica  apparencia. 

Imagina-se  facilmente  quão  útil  não  seria  para 
o  Espanholeto  um  ensino  d'esta  natureza.  Cara- 
vaggio  morreu,  e  o  seu  novo  discípulo,  começou 
a  copiar  muitas  obras  de  Gorregio:  formou  um 
estylo  de  pintura  inteiramente  novo,  que  não  se 
assemelhava  nem  a  Corregio  nem  a  Caravaggio, 
mas  que  se  sente  inspirado  pela  a  meditação  d'es- 
tes  dois  mestres.  A  fortuna  de  liíbera  estava  feita, 
e  era  breve  vio  estabelecida  a  sua  reputação.  Um 
dia  po!ido  a  seccar  ao  sol  um  quadro  do  marty- 
rio  de  S-  Rartholomcu,  foi  tal  a  multidão  que  se 
apinhou  para  vel-o,  que  o  duque  d'Ossuna,  avis- 
tando-a  das  janellas  do  seu  pahicio,  mandou  in- 
dagar do  que  dera  motivo  aquelle  ajuntamento. 
Ordenou  que  lhe  levassem  o  quadro,  e  desejou 
conhecer  o  seu  auctor.  Logo  que  soube  que  Ri- 
bera era  hespanhol,  nomeou-o  seu  primeiro  pin- 
tor, dando-lhe  uma  considerável  pensão.  Imme- 
dialamente começaram  a  pedir-lhe  quadros  para 
as  igrejas  de  Nápoles,  para  os  conventos,  palácios 
epara  o  rei  de  Hespanha.  O  exilo  que  obti- 
veram a  Descida  da  Cruz  e  a  Madona  Bianca,  foi  ex- 
tr-aordinario. 

Ribera  enriqueceu  em  pouco  tempo ;  a  sua 
casa  era  magestosa,  eslava  solier-banientc  mo- 
bilada, tinha  cariuagem,  e  dava  a  iniude  bailes 
esplendidos. 

A  opulência,  porem,  em  que  vivia,  não  o  fez 
abandonar  o  trabalho.  Na  ofíicina,  a  sua  appli- 
cação  era  tal,  que  lhe  acontecia  muitas  vezes  pas- 
sar o  dia  todo  sem  coriu'i;  nem  beber.  Como  esta 
distracção  prejudicava  o  seu  temperamento,  vio- 
se  obrigado  a  ter  sempre  um  homem  junto  de 
si,  que  lhe  dizia  de  tempos  a  t('m|)os  :  «  Smlior  Ri- 
])era,  haja  tantas  hor-as  que  trabalha.  »  Elfecliva- 
mente,  era  jiieeiso  (pie elle.  estivesse  completamen- 
te absorvido  no  seu  li'abalho  para  poder  jiroduzir 
tantas  obras  tão  estudadas  o  ao  mesmo  tempo 
tão  |)erf('itas.  Os  seus  maiores  (pi;idros  apenas 
lhe  levaram  alguns  mezes  de  trabalho;  quanto 
aos  de  meio  í'oi])o,  nos  (juaes  havia  um  só  per- 
sonagem, como  o  S.  Jeronynio  e  outros,  acaba- 
va-os,  para  a.ssim  dizer,  em  horas. 


o  PANORAMA 


309 


Adoração  dos  Pastores  (Quadr'o  (k;  Rivera; 


A  melhor  leia  de  Ribcra,  que  possue  o  museu 
do  Louvre  é,  sem  conlradicção,  a  Adoração  dos 
pastores,  da  qual  é  copia  a  nossa  gravura;  está 
ali  bem  claro  o  typo  valenciano  e  caslelhano. 
Vede  aquelles  homens  robustos  que  avançam 
para  o  Menino  Deus:  pelo  rosto  morenado  e  sel- 
vagem, pela  sua    altitude  e  vestuário,  julgareis 


que  fazem  jjarlede  um  bando  de  contrabandistas 
das  montanhas  das  Astúrias;  e  aquella  virgem, 
triste  e  meditabunda,  de  olhos  brilhantes  e  vivos 
como  as  filhas  de  Sevilha,  Granada  e  Córdova; 
e  o  Menino  Jezus  de  gordas  carnes  e  maciças, 
symbolo  da  força  e  do  vigor  material:  porque, 
repelimos,  um  defeito  saliente  da  escola  hespa- 


310 


O  PANORAMA 


nhola.  e  do  qual  exceptuaremos,  unicamente^ 
Murillo,  é  a  falia  de  poesia;  tudo  nas  suas  com- 
posições é  vulgar;  ha  talento,  algumas  vezes  gé- 
nio, mas  nada  ali  é  celeste  e  divino. 


OS  BRAIIMANES 

O  systoraa  tlieologico  do  Crahmanismo  apre- 
senta-nos,  no  cume  da  sua  hierarchia  de  divinda- 
des, um  trio  (/"/'///Hír//^  composto  deBrahma,  Vís- 
c/imi,  e  Siva  ;  mas  esta  concepção  niio  apparece 
logo  na  historia  da  índia.  Já  dissemos  que  nos 
Vedas  e  no  Código  de  Manu,  apenas  se  faz  men- 
ção de  Yischnu  e  Siva,  e  que  estes  Deuses  não 
desempenham  ahi  papei  algum.  O  próprio  Brahma 
não  recebe  no  Rig-Veda  nenhum  dos  altributos  da 
suprema  intelligencia  que,  mais  tarde,  lhe  foram 
aliribuidos.  No  Manava-Dliarma-Saslra,  Bra/im.o 
Deus  supremo,  único,  eterno,  inlinito,  incompre- 
hensivel,  existindo  por  si  mesmo,  do  qual  o  mun- 
do e  tudo  quanto  o  compõe  não  são  mais  do  que 
manifestações,  rege,  sob  o  nome  de  Brahma,  o 
univeiso  do  qual  é  criador  e  destruidor.  Brahm  é 
lambem  chamado  Paramatmâ  (a  grande  alma). 
Segundo  o  Código  de  Manu,  o  universo,  na  ori- 
gem das  cousas,  estava  mergulhado  na  obscurida- 
de, imperceptível  e  destituído  de  todo  allributo 
distinctivo,  quando  «Aquelle  a  cujo  espirito  só 
e  dada  a  percepção,  que  escapa  aos  órgãos  dos 
sentidos,  que  não  tem  parles  visíveis,  eterno,  a 
alma  de  todos  os  seres,  que  ninguém  pode  con- 
j)rehender,  manifestou  o  seu  próprio  esplendor. Ten- 
do resolvido  em  seu  pensamento  fazer  emanar  da 
sua  substancia  as  diversas  criaturas,  produzio  pri- 
meiramente as  aguas,  nas  quaes  depositou  um 
gérmen.  Este  gérmen  lornou-se  em  um  ovo  Ião 
brilhante  como  o  ouro,  tão  resplandecente  como  o 
astro  de  mil  raios,  e  do  qual  o  ser  supremo  nas- 
ceu, sob  a  forma  de  Brahma,  o  avô  de  lodos  os 
entes.  E,  por  esla  causa  imperceptível,  eterna,  que 
existe  realmente  e  não  existe  para  os  órgãos,  que 
foi  produzido  esse  varão  celebre  no  mundo  cha- 
mado Biahma.  Depois  Brahma,  de  ter  existido 
n'este  ovo  um  anno  o  Senhor,  só  pelo  seu  pensa- 
mento, dividio  esle  ovo  eni  duas  partes,  e,  d'es- 
tas  duas  partes,  formou  o  céo  e  a  terra;  no  meio 
collocou  a  alhmosphera,  as  oito  regiões  celestes  e 
o  n-seivatorio  permanente  das  aguas.»  Depois, 
(juando  Bialima,  saindo  do  ovo,  vai  criar  os  ele- 
mentos que  hão  de  formar  todos  os  entes  do  uni- 
verso, da-lhes  o  nome  de  Paramalmã,  alma  su- 
prema. Mas,  note-se  que  não  é  Brahma  quem  di- 
rectamente dá  o  ser  ás  criaturas.  Cria  primeiro  Manu, 
que  é  quem,  depois,  as  produz  por  uma  serie  de 
emanações.  Entre  estas  criaturas,  observa-se  uma 
multidão  de  deuses,  semi-deuses,  génios,  demónios, 
nymphas,  monstros,  etc,  emtim,  todos  os  elemen- 
tos (la  mais  fantástica  mythologia. 

E  nos  l'ouranas,  com  especialidade,  que  se  en- 
contra bem  desenvolvida  esta  Fii\thologia  exube- 
rante que  distingue  o  Biahmanismo.  Aqui,  Brah- 
ma ligura  pouco;  acha-se,  para  assim  dizer,  vivendo 
na  solidão,  em  tjuanto  que  Viscbnu  e  Siva,  por 


uma  mudança  inexplicável,  apparecem  no  primei- 
ro plano,  o  não  só  tomam  lugar  a  seu  lado,  como 
seus  iguaes,  mas  ainda  em  certas  occasiões  se  mos- 
tram superiores.  Os  altributos  de  cada  um  dos 
deuses  que  compõem  a  Trimurti  india  classilicam- 
se  d'esle  modo:  BRAHMA,  sol,  criador,  poder, 
passado,  matéria;  YISCHNU,  agua,  conservador, 
sabedoria, presente  espaço;  SIVA.  fogo,  destruidor, 
justiça,  futuro,  tempo.  Brahma,  Vischnu  e  Siva 
constituem,  em  sua  trindade  indossuluvel,  o  ser 
supremo  ou  Parabrahma,  que  é  representado  em- 
blemalicamenle  por  um  circulo  inscriplo  em  um 
triangulo,  e  designado  pela  syllaba  mysleriosa 
AUM,  pela  qual  se  deve  começar  e  acabar  toda  a 
leitura  dos  livros  sagrados.  Esta  unidade  da  Tri- 
murli  acha-se  energicamente  exprimida  n'esta  pas- 
sagem do  Bhagavat-Pourana.  Um  palriarcha  di- 
rige-sc  a  Brahma,  Vischnu  e  Siva,  e  pergunta-lhes 
qual  dos  Ires  é  o  verdadeiro  Deus.  As  Ires  divin- 
dades respondem-lhe:  «Sabei,  ó  penitente,  que 
não  ha  dislincção  real  entrenós;  o  que  tal  vos  pa- 
rece, só  é  apparenle.  O  ser  único  apparece  sob  Ires 
formas  pelos  actos  de  criação,  consei  vação  e  destrui- 
ção; mas  é  um  só.  Render  culto  a  uma  d'eslas 
ires  formas,  é  rendel-o  aos  Ires,  ou  ao  único  Deus 
supremo.» 

O  esquecimento  em  que  caio  Brahma  cxplica-se 
facilmente.  Os  povos  índios  nada  mais  esperam 
do  Deus  criador,  mas  teem  tudo  a  esperar  e  tudo 
a  temer  das  duas  divindades  cujas  funcções  espe- 
ciaes  são  a  conservação  e  a  destruição.  Por  con- 
sequência, não  se  encontra  na  índia  nenhum  tem- 
plo dedicado  a  Brahma;  hoje,  até,  o  seu  culto  e 
nome  estão  em  completo  esquecimento.  Os  índios 
actuaes  não  honram  senão  Vischnu  e  Siva:  d'ahi, 
três  seitas,  ou,  para  melhor  dizer,  três  religiões 
distinclas  e  inimigas.  Eis  o  quadro  que  d'ellas 
traça  o  abbade  Dubois,  de  accordo  n'esla  parle 
com  os  homens  que  melhor  teem  estudado  o  es- 
tado religioso  dos  índios  de  nossos  dias:  <Geral- 
mente  os  Índios  fazem  profissão  de  honrar  igual- 
mente as  duas  grandes  divindades  do  paiz,  que 
são  Vischnu  e  Siva  sem  darem  preferencia  a  esla 
ou  áquella.  Comtudo,  acha-se  entre  elles  um  gran- 
de numero  de  sectários  dos  quaes  uns  se  incli- 
nam exclusivamente  ao  culto  de  Vischnu  c  ou- 
tros ao  de  Siva.  Os  primeiros  são,  em  geral,  de- 
signados pelo  nome  de  Yiscimu-haktar,  que  signi- 
íica  devotos  de  Vischnu,  e  os  segundos  pelo  de 
Sim-ba/ctar,  ou  devotos  de  Siva.  Estes  lambem  se 
chamam  Lingadarys  e  aquelles  Nahmadarys.  Es- 
tes nomes  ullimos  derivam  dossignacs  distinclivos 
(jue  trazem  para  se  darem  a  conhecer.  O  signal 
(los  devotos  de  Vischnu  c  a  ligura  chamada  Na/i- 
mam,  que  elles  imprimem  na  fronte:  c  formada 
de  lr(^s  linhas,  uma  perpendicular  e  duas  obllípias, 
que,  reunindo-se  na  sua  base,  dão  a  este  signal  a 
forma  de  um  tridente.  A  linha  do  meio  é  encar- 
nada, as  duas  laleraes  são  brancas  e  traçadas  com 
uma  espécie  de  lerra  chamada  nahinam,  donde 
deriva  o  nome  (|ue  se  deu  a  esla  ligura.  O  signal 
distinctivo  dos  devotos  de  Siva  é  ordinariamente 
o  lingam.  Trazem-no  algumas  vezes  alado  no  ca- 


o  PANORAMA 


31  í 


bello  ou  nos  braços  mellitlo  em  um  pequeno  lubo 
de  prata;  mas,  quasi  sempre,  suspendem-no  ao 
pescoço,  e  a  caixa  de  praia  que  o  encerra  desce- 
ilies  sobre  o  peito.  Cada  seita  exalta  o  Deus  que 
adora,  e  procura  deprimir  o  da  seita  opposla.  Os 
devotos  de  Vischnu  pretendem  que  e  aos  cui- 
dados d'este  deus  que  se  deve  tudo  quanto  exis- 
te; que  é  a  elle  só  queSiva  deve  o  seu  nascimento 
e  a  existência,  porquanto  foi  elle  quem  o  salvou 
em  muitas  circumslancias  nas  quaes,  sem  o  seu 
soccorro,  não  poderia  evitar  uma  perda  certa; 
que  está  pois,  a  lodos  os  respeitos  infinitamente 
acima  de  Siva,  e  que  só  elle  deve  ser  honrado. 
Os  devotos  de  Siva,  por  sua  parte,  sustentam  que 
Vischnu  não  vale  nada  e  que  nunca  praticou  se- 
não baixezas,  que  o  aviltam.  Provam  estas  asser- 
ções com  muitos  episódios  da  vida  d'esle  Deus. 
Siva,  segundo  elles,  é  o  soberano  senhor  de  tudo 
quanto  existe,  e  concluem  que  só  elle  merece  as 
adorações  dos  homens.  Estas  reciprocas  pretenções 
dão  lugar  muitas  vezes  a  grandes  disputas  e  a  ri- 
xas violentas.»  É justo  accrescentar:  «Que  a  maior 
parte  dos  índios  e,  sobre  tudo,  os  lii^ahmanes, 
nunca  tomam  parte  n'eslas  questões  relgiosas.  O 
systema  destes  últimos  é  honrar  igualmente  as 
(luas  principaes  divindades  do  paiz;  e,  ainda  que, 
geralmente,  pareça  inclinarem-se  mais  para  Vis- 
chnu, não  deixam  passar  ura|dia  sem  offerecerem, 
em  suas  casas,  um  sacrifício  ao  lingam,  emblema 
de  Siva.» 

(Conlinua) 


A  SUPERFÍCIE  TERRESTRE 

Transportemo-nos  pelo  pensamento  ao  longe  no 
espaço,  de  modo  que  possamos  d'ahi  contemplar 
o  nosso  globo  com  todas  as  desigualdades  da  sua 
superlicie.  Os  conlincnlespareccr-nos-lião  manchas 
negras  e  desiguaos,  sobre  uma  superlicie  lisa, 
manchas  que,  sollas  para  o  polo  do  sol,  adherem 
ao  vasto  lençol  gelado  do  polo  do  norte  por  meio 
de  prolongamentos  de  uma  alvura  deslumbrante. 
Estes  prolongamentos  de  gelos  eternos,  a  nivel 
com  o  solo  polar,  elevam-se  gradualmente  e  de- 
senham-se,  serpenteando,  como  rios  gelados  cujas 
ramificações,  seguoindo  as  cimas  sinuosas  das 
mais  altas  cadeias  de  montanhas,  estendem-se  até 
o  equador.  Nas  manchas  negras,  irregulares, 
domina  a  cor  verde :  são  as  roupagens  da  natu- 
reza vegetal.  Nas  dobras  d'estas  amplas  roupagens, 
não  vedes  agitarem-se  aqui  e  ali,  como  grupos  pa- 
rasitas? São  as  legiões  do  reino  animal  das  quaes 
o  homem  é  o  chefe.  Os  flancos  abruptos  d'eslas 
dobras  offerecem  todas  ascolorisações  propilas  do 
reino  mineral.  Mas  tudo  ali  parece  immovelcomo 
sobre  a  neve  eterna.  A  vida  anima  unicamente  as 
aguas  e  as  rochas  cobertas  de  homens. 

A  cal,  a  argilla,  a  ocre  e  a  silica,  eis  as  subs- 
tancias mineraes  que  constituem  principalmente 
a  crosta  terrestre.  Estão  universalmente  espalhadas 
pela  superfície  do  globo;  encontram-seem  lodosos 
climas,  tanto  na  zona  frigida  como  na  tórrida ;  a 
sua  identidade  de  aspecto  desperta  no  espirito  do 


viajante  a  lembrança  do  solo  natal,  ao  passo  que 
tudo  quanto  vive  em  torno  d'elle  muda  de  forma. 
O  que  é  a  cal,  a  argilla,  a  ocre  e  a  silica?  Du- 
rante milhares  de  annos  estas  substancias  repre 
sentavam  unicamente  aos  olhos  dos  pliilosopho>  o 
elemento  solido  :  ei'a  a  terra  diversamente  modi- 
ficada. Hoje  sabe-se  que  são  verdadeiros  metaes 
cujas  propriedades  caracleristicas  estão  occultas 
pela  sua  combinação  comum  ou  dois  corpos  aeri- 
feros  (oxigénio  e  acido  carbónico).  A  cal,  a  ar- 
gilla, a  ocre  e  a  silica  são  espécies  de  fernif/em, 
dos  óxidos  ou  carbonatos,  cujos  metaes  se  (leno- 
minam  calcium,  aluminum,  ferro  e  silicium.  No 
estado  de  pureza,  teem  todas,  mais  ou  menos,  a 
côr  e  o  brilhantismo  da  prata,  a  qual  igualam  ou 
excedem  em  dureza.  Mas  não  tarda  que  não  ab- 
sorvam o  oxigénio  e  o  acido  carbónico  da  alh- 
mosphera,  e  relêem  estes  gazes,  sobretudo  o  pri- 
meiro, com  tanta  tenacidade  que  é  necessário  em- 
pregar os  meios  mais  enérgicos  para  desoxydar 
a  cal,  a  alumina  (argilla  pura)  e  a  silicia.  A  ocre 
(mixlo  de  oxydo  e  de  carbonato  de  ferro  impuroj 
reduz-se  facilmente  pelo  simples  emprego  do  car- 
vão. Apresenlando-se  um  mixlo  d'esles  differen- 
tes  corpos,  quereis  separal-os  uns  dos  outros?  Fa- 
zei uso  da  agua  forte  (acido  nitiico  :)  esta  reage  sobre 
os  carbonatos  de  cal  e  de  ferro  produzindo  effer- 
vescencia  ruidosa,  devida  á  separação  do  gaz  aci- 
do carbónico,  em  quanto  que  a  silica  e  uma 
grande  parte  da  alumina  ficam  intactas.  Se  no 
liquido  filtrado  se  deitar  acido  sulfúrico,  vereis 
este  dissolver  o  ferro,  formando  vitríolo  verde 
(sulfato  de  ferro,)  e  a  cal  separar-se-ha  no  estado 
de  gesso  (sulfato  de  cal)  quasi  insolúvel.  O  mes- 
moacido  poderá  servir  para  distinguir  o  alumi- 
nium  da  silica.  Em  resumo,  o  ferro,  appellidado 
pão  da  industria;  o  aluminium,  cuja  descoberta  e 
applicações  são  recentes;  o  calcium  e  o  silicium, 
que  esperam  ainda  o  seu  uso ;  esles  quatro  me- 
taes constituem  —  o  lerro,  pelas  suas  abundantes 
minas,  o  aluminium,  o  calcium  e  o  silicium  pelas 
grossas  camadas  de  argilla,  terra  argillosa,  greda 
calcaria,  areias,  lioz,  quartzo,  silex, —  a  quasi  to- 
talidade da  crosta  terrestre,  todo  o  sob-solo  do 
reino  vegetal ;  de  modo  que  se  o  oceano  aerio, 
que  de  todas  as  parles  rodea  a  terra,  fosse  um 
agente  rcductor,  em  lugar  de  ser  um  meio  de 
oxydação,  o  nosso  planeta,  desnudado  de  Iodas  as 
manifestações  da  vida,  não  seria  mais  do  que  um 
globo  melallico  cujos  raios  retleclidos  imitariam 
o  brilhantismo  do  sol. 

O  CAÇADOR  D'ELEPIiANTES 

ooiiio  persa 

A  seguinte  historia  é  narrada  por  um  auclor 
persa  que  a  ouvira,  diz  elle,  a  vários  velhos  do 
Sind  e  do  Indostão,  homens  dignos  de  fé,  e  lo- 
dos compatriotas  ou  amigos  do  próprio  caçador 
que  vai  faltar. 

«Eu  costumava  caçar  em  uma  floresta  frequen- 
tada por  bandos  d'élephantes,  e  raras  vezes  en- 
trava em  casa  com  as  mãos  vazias;  efíectivamen- 
te,  tinha  descoberto  o  sitio  onde  estes  bandos 


312 


O  PANORAMA 


costumavam  ir  beber,  e  escolhia,  no  caminho 
que  deviam  seguir,  uma  arvore  muito  alta  e  co- 
pada donde  podia  observar  os  elephantes  sem  ser 
visto.  Ordinariamente,  era  quando  o  rebanho 
voltava,  depois  de  ter  saciado  a  sede,  que  cu  es- 
coliiia  a  minha  presa,  e  a  matava  disparando-lhe 
uma  frecha  cuja  ponta  era  envenenada.  Logo 
que  caia  a  victima,  o  resto  do  bando  dispersava- 
se  em  um  moraenlo,  porque  estes  animaes  pare- 
ce que  teom  horror  aos  cadáveres.  Eu  então  descia 
do  meu  posto  e  apoderava-me  da  peiie  e  do  mar- 
lim.  cuja  venda  me  dava  o  necessário  para  eu 
viver  e  minha  lamilia. 

«Um  dia,  feri  um  elephante.  O  animal  caio 
dando  gritos  medonhos.  Eu  tive  o  cuidado  de  não 
sair  logo  do  meu  escondei  ijo,  porque  os  elephan- 
tes, que  primeiramente  haviam,  como  das  mais 
vezes,  fugido  espavoridos,  não  tardaram  em  re- 
troceder. Um  d'e!les,  que  me  pareceu  ser  o  con- 
duclor  do  bando,  approximou-se  do  animal  mo- 
ribundo, examinou  attentamentc  a  frecha  e  a 
ferida  que  sangrava,  edesappareceu.  Mas,  poucos 
instantes  depois,  voltou  acompanhado  de  lodos 
os  seus  companliciros.  Os  elephantes  agruparam- 
se  em  torno  do  ferido,  que  se  estorcia  em  con- 
vulsões, e  que  em  breve  deu  o  ultimo  suspiro. 
Separaram-se  então,  mas  não  para  se  dispersarem: 
começaram,  pelo  contrario,  correndo  de  um  para 
outro  lado,  como  que  procurando  alguma  cousa, 
examinando  uma  a  uma  Iodas  as  arvores,  -melten- 
do  a  tromba  por  entre  os  ramos.  A  vista  d'isto 
não  havia  que  duvidar;  a  minha  morte  eslava  pró- 
xima. Julgue-sc  do  grande  medo  que  de  mim  se 
apoderou  quando  vi  o  principal  do  rebanho  col- 
locar-se  debaixo  da  arvore  sobre  a  qual  eu 
me  achava.  Com  a  tromba  afastava  a  folhagem; 
quando  me  avistou,  não  podendo  chegar  ao  ci- 
mo onde  me  havia  reiugiado,  diHgenciou  aba- 
lar o  tronco;  e,  com  eííeito,  embora  esta  arvore 
fosse  de  uma  elevação  e  grossura  pouco  com- 
muns,  conseguio  desarraigal-a.  A  elasticidade  dos 
ramos  amorteceu  a  violência  da  queda,  apenas 
me  magoei;  mas  esperava  ser  immediatamenle 
pisado  pelos  elephantes,  c,  resignado  com  a  mi- 
nha sorte,  nem  mesmo  procurei  defender-mc.  No 
entretanto  o  conductordo  bando  afastava  os  que 
avançavam  para  mim;  os  seus  olhos  intelligcntes 
brilhavam,  íi.'^ando-se  alternativamente  sobre  mim, 
sobre  o  arco  e  sobre  a  minlja  aijava  cheia  de 
frechas,  que  estavam  a  alguns  passos  de  distancia. 
De  repente  agarrou-mc  com  a  tromba  e  coliocou- 
me  sobre  as  costas;  em  seguida,  apanhando  o  ar- 
co e  a  aljava,  enlregou-m'os  e  poz-se  a  caminho 
por  onde  linha  vindo,  seguido  do  seu  bando. 

"Depois  de  ler  andado  algum  tempo  parou,  e  pu- 
de ver  sobre  a  areia,  a  curta  distancia,  uma  enor- 
me serpente  adormecida.  Acordada  pela  bulha 
dos  passos,  o  monstruoso  reptil  endireitou  a  ca- 
beça vibrando  o  seu  ferrão,  o  que  me  pareceu  assus- 
tar bastante  lodos  os  elephantes,  excepto  o  que 
nie  conduzia.  Este  agarrou-mc  novamente  com  a 
tromba  e  j)oz-me  no  chão  juntamenie  com  o  ar- 
co e  a  aljava;  depois,  indicando-me  allernativa- 
mcule  as  armas  c  a  .serpente,  fez-me  comprehen- 
der  o  que  queria  de  mim. 

"Disparei  a  primeira  frecha,  que  penetrou  na 
garganta  da  serpente,  e  uma  segunda  atravessou- 
Itie  a  cat)eça  de  lado  a  lado.  l-.ogo,  o  meu  ele- 
phante precipitou-sc  sobre  ella  e  esmagou  a  com 
os  pés.  Terminando  esta  operação,  tornou  a  por- 


me  em  cima  de  si  e  partio  ;  o  rebanho  seguio  o 
seu  conductor.  Depois  de  níuilas  horas  de  rápido 
caminhar  atravessou  uma  immensa  floresta,  onde 
nunca  até  então  eu  havia  entrado,  e  que  se  estendia 
sobre  um  espaço  de  muitos  fersekhs  (l)  quadra- 
dos, chegamos  a  um  sitio  cujo  terreno  estava  to- 
do todo  coberto  de  ossadas  e  cadáveres  d'elephan- 
tes :  parecia  ser  o  cemitério  d"elles. 

"O  elephante,  que  me  levava,  escolheu,  como 
entendido,  entre  todos  estes  preciosos  despojos, 
os  melhores  dentes,  os  quaes  foi  pondo  sobre  as 
costas  dos  seus  companheiros,  carregando-os  com 
todo  o  peso  que  podiam  ;  em  fim,  elle  próprio 
tomou  uma  carga  igual,  que  cpllocou  entre  a  sua 
nuca  e  os  meus  joelhos. 

«A  caravana  dirigio-se  em  seguida,  atravez:  de 
uma  e.^ctensa  planície,  para  o  lado  dos  lugares  ha- 
bitados. Quando  chegou  á  vista  de  um  grupo  de 
aldeãs,  o  elephante  que  a  conduzia,  fez  "com  que 
cada  qual  pozesse  a  sua  carga  no  solo,  que  se 
elevou  á  altura  de  uma  collina ;  collocou-me  de- 
pois com  as  minhas  armas  ao  lado  do  presente, 
e  partio  com  todos  os  seus  a  galope. 

«Corri  logo  á  aldeia  próxima,  e  ajustei  com 
cincocnta  homens  para  me  ajudarem  a  conduzir 
o  meu  thesouro.  Graças  a  l)eus,  os  lucros  que 
realisei  com  a  venda  de  uma  tal  quantidade  de 
marílm,  tornaram-me,  co?no  sabeis,  um  dos  mais 
ricos  negociantes  da  minha  terra  natal.. 'í,  ainda 
hoje,  não  penso  n'este  caso  estranho,  que  me  não 
sinta  cheio  do  mais  vivo  reconhecimento  para 
com  aquelle  que,  só,  conhece  todos  os  mysterios 
que  encerram  as  almas  das  suas  criaturas,  i» 


Não  ha  modo  de  mandar,  ou  ensinar  mais  forte, 
cc  suave,  do  que  o  exemplo  :  persuade  sem  rhe- 
thorica,  impelle  sem  violência,  reduz  sem  porlia, 
convence  sem  debate,  todas  as  duvidas  desata,  & 
corta  caladamente  todas  as  disculpís.  Velo  ten- 
trario,  fazer  bua  cousa,  &  mãdar,  ou  aconselhar 
outra,  he  querer  cndireylara  sombra  da  vara 
torcida. 

A  SCIENCIA 

Nós  devemos  encarar  o  estado  presente  do  uni- 
verso como  o  eíleilo  do  seu  estado  anterior,  e  co- 
mo a  causa  do  {|ue  segue.  Uma  inlelligencia  que, 
por  um  instante  dado,  conheceu  todas  as  forcas 
de  que  a  natureza  e  animada  e  a  siluação  respe- 
ctiva dos  seres  que  a  comj)õem,  se  além  d'isso 
fosso  baslanlc  vasla  para  submeltcr  estes  dados à 
analyse,  abraçaria  na  mesma  formula  os  movi- 
menios  dos  maiores  corpos  do  universo  e  os  do 
mais  leve  alomo  ;  nada  seria  incerto  para  ella  e 
tanto  o  fiilui'o  como  o  passado  estariam  presentes 
a  seus  olhos.  O  espirito  humano  oílerece,  na  per- 
feição (|ue  deu  á  astronomia,  um  fraco  esboço 
desia  inlelligencia.  Applicando  o  mesmo  melhodo 
a  ouiros  objeclos  do  nosso  conhecimento,  conse- 
guio levar  a  leis  geraes  os  |)hcnomenos  observa- 
dos, e  a  prever  os  que  deviam  nascer  das  cir- 
cuinslancias  dadas.  Laplace. 

(1)    Um  fcrseUlis  cquivalu  a  i  millins  inglczas. 


Typ.  l'ian(;'j-lVjrlugucz:>,  liun  do  Tlusouro  Velho,  0. 


40 


o  PANORAMA 


813 


.lUlUBI.W^VT^Sg^ 


Hj^de  Park. 


Este  formoso  passeio  de  Londres,  celebre  jà 
pelo  seu  opulento  arvoredo,  tornou-se  agora  ainda 
mais  celebre  pelos  acontecimentos  políticos  que 
n'eile  se  realisaram.  Não  esqueceram,  de  certo,  os 
leitores  a  noticia  dos  tumultos  na  luglaterra,  dos 
meetings  dispersos  pela  policia,  e,  se  tiverem  boa 
memoria  e  se  a  perscrutarem  bem,  hão  de  achar 
o  nome  de  Ilyde-Park  involto  com  a  reminiscên- 
cia doestes  successos. 

Efíeciivamente  os  meclings  do  povo  de  Londres 
fizeram-se  ri'esse  recinto,  e  ahi  os  foi  dispersar  a 
policia,  naturalmente  porque  ao  ministério  não 
convinha  que  os  seus  administrados  discutissem 
em  massa  a  reforma  eleitoral,  questão  momen- 
tosa para  os  governos,  sempre  mais  ou  menos 
conservadores,  da  Grã-Bretanha.  O  pretexto  ado- 
ptado foi  outro,  comtudo.  Allegou-se  a  lei  que 
prohibe  as  reuniões  populares  em  sitios  que  se- 
jam propriedade  da  coroa.  Ora  Hyde  Park  e,  na 
verdade,  propriedade  regia.  Já  vêem  que  o  pre- 
texto era  plausível  n'um  paiz,  como  a  Inglaterra, 
onde  se  respeita  escrupulosamente  a  letra  da  lei, 
muitas  vezes  com  prejuízo  do  espirito  d"ellas. 

Hyde  Park  era  antigamente  uma  terra  de  caça. 
Quando  Carlos  I  foi  decapitado,  e  que  em  spguída 
se  procedeu  á  venda  dos  bens  da  coroa,  ílyde 
Park  foi  exceptuado,  e  reservado  para  ser  vendido 
em  particular.  Compraram-n'o  três  burguezes 
pelo  preço  de  dezesele  mil  libras.  Os  novos  pro- 
prietários conslruiram  casas  n^im  dos  ponlos  do 
seu  terreno,  que  se  chama  agora  Ilyde-Park-Cor- 
ner.  No  mesmo  sitio  se  erigio,  por  òidem  de  Oli- 
vier  Cromwell,  um  forte,  e  outro  no  sitio  a  que 
se  deu  o  nome  de  monte  deOlivicr,  em  honra  do 
protector. 


Quando  Carlos  11  subio  ao  throno,  resgatou  a 
propriedade,  erigío-a  em  coutada  e  deu  as  hon- 
ras e  emolumento?  de  couteiro  d"ella  a  seu  irmão 
o  duque  de  Glocester.  Depois  da  sua  morte  pas- 
sou o  cargo  para  sir  James  Hamilton,  cujo  nome 
se  conserva  em  Hamilton-Place. 

Depois  da  revolução  de  1688  deu-se  ao  povo  li- 
vre entrada  no  parque.  Pouco  a  pouco  foi-se  trans- 
formando em  passeio  publico,  e  assim  e.>-tavahoje 
sendo  considerado ;  mas  a  coroa  não  abdicara  os 
seus  direitos;  Hyde  Park  tinha  por  conseguinte  as 
immunidades  de  domínio  real,  e  o  goveVno,  dis- 
persando o  meelíng,  procedeu  segundo  a  mais  es- 
tricta  legalidade. 


DERROTA  DE  VALDEZ  NA  TERCEIRA 

(Conclusão) 

Nos  conselhos  convocados  com  frequência  ou- 
viu D.  Filippe  o  parecer  dos  capitães  mais 
illustres,  c  o  voto  de  ministros  pi-ndenles.  Concor- 
daram lodos,  em  que  a  eslação  não  consentia  fac- 
ções de  giiena  importantes,  e  em  que  um  revez 
arriscado  por  temeridade  na  Terceiía  |)odia  esli- 
mular  no  reino  os  brios  dos  descontentes.  Accedeu 
sem  hesitar.  Mas  encerradas  as  cortes  de  Tho- 
mar,  e  aplacado  o  maior  tumulto  dos  negó- 
cios, voltou  logo  os  cuidados  para  a  pacificação  da 
Terceiía,  (|uc  a  Graciosa,  o  Eayal,  o  Pico,  e  S. 
Jorge,  chamadas  as  ilhas  de  baixo,  tinham  segui- 
do, cora  os  satellites,  na  resistência.  Os  arbítrios, 
que  seguiu,  foram  opporlunos.  Escolhendo  Ambró- 
sio de  Aguiar,  c  encarregando-o  na  qualidade  de 


314 


O  PANORAMA 


governador  da  generosa  missão  de  aliançar  aos 
erros  e  demasias  o  mais  amplo  perdão,  esperava 
alrair  a  vonlade  dos  moradores  da  ilha,  aos  quaes 
largas  promessas  de  mercês  e  privilégios  deviam 
acabar  de  resolver.  Jorge  de  Covos  partiu  no  mes- 
mo gallião,  des|)achado  corregedor,  e  por  singu- 
lar acaso  o  navio,  que  levava  o  emissário  de  Fi- 
lippe  II,  enconírou-se  nas  aguas  de  Portugal  com 
o  pequeno  baixel,  em  que  1).  Anlonio  se  evadia  ás 
vinganças  de  seu  poderoso  compelidor.vl) 

Ambiosio  de  Aguiar  não  foi  bem  succedido. 
Apenas  fundeou,  e  correu  a  noticia  de  sua  chegada 
e  dos  motivos  delia,  a  plebe  alvoroçada,  diclando 
leis  aos  magistrados,  saiu  em  assuada  pelas  ruas, 
jurando  lapidar  os  que  aceitassem  outro  rei,  que 
não  fosse  D.  António.  Tornou-se  o  arruido  tão  estre- 
pitoso, que  o  go\einador  nomeado  por  I).  Filippe, 
tomou  immedialamenle  o  lumo  de  S.  iMiguel,  aon- 
de os  amiíos  de  Caslella  o  receberam  com  aplau- 
so. (2) 

Mas  as  carias  do  rei  catholico  e  dos  fidalgos  de 
Lisboa  aos  parentes  e  pessoas  conspícuas  da 
Terceira  reanimaram  os  parlidaiios  da  llespanha. 
Censurando  cm  publico  os  desatinos  do  j)ovo,  e 
reputando  mais  do  que  loucura  a  ousadia  da  ilha 
se  oppor  só  a  lodo  o  poder  de  Filippe  IJ,  princi- 
piaram estes  a  inijuietar  o  governo.  João  de  Bet- 
tencouit,  homem  edoso,  de  boa  familia,  porem  as- 
sombrado de  juizo  e  pupilo  dos  Jesuítas,  tramou 
uma  conspiração  leviana.  Sem  a  menor  cer- 
lesa  de  auxilio,  acavallo,  de  lança  em  punho,  atra- 
vessou as  praças  á  hora  do  meio  dia,  amotinando 
a  cidade,  e  aclamando  o  rei  catholico.  Ninguém  o 
ajudou,  ca  multidão  enfurecida desarraou-oe  pren- 
deu-o.  Cypriano  de  Figueredo  viu-se  coegido  en- 
tão a  proceder  com  severidade,  abrindo  devassas, 
e  encerrando  na  cadeia  os  mais  culpados.  Os  ódios 
da  pojinlação  accusavam  parliculainienle  os  padres 
da  companhia,  suspeitos  de  cori^espondencias  e  de 
trado  secreto  com  o  bispo  dos  .\çoi'es,  refugiado  cm 
S.  Miguel.  As  outras  ordens  religiosas,  transportan- 
do tanibcm,  para  a  arena  politica  as  contendas 
mo  naslicas,  não  concoí  riam  j)ouco  por  sua  parte  j)ara 
cxacerbíM-  as  paixões.  O  dej)loiavel  espectáculo  do 
escândalo,  com  (jue  muitos  frades  tinham  aviltado 
no  reino  os  claustros e  púlpitos,  repetia-se  agora  na 
ilha;  os  conventos  trocavam  a  vida  penitente  c 
conlemi)laIiva  pelas  agitações  do  século,  sobresa- 
hindo  os  lianciscanos  no  afecto  a  I).  António,  e 
os  Jesuítas  na  dedicação  a  1).  Filip|)e.  O  que  a 
verdadeira  piedade  padeceu  com  estas  profanações 
não  foi  de  cci  to  a  menor  desgraça  de  epocha  tão 
fértil  em  adversidades  e  desacatos,  nem  o  mais  le- 
ve luidaílo  para  Figueiedo,  (jue  as  vozes  e  desati- 
nos da  plebe  muitas  vezes  distraíram  da  inspec- 
ção acti\a  das  obras  de  defesa,  traçadas  para  re- 
peilir  o  próximo  assallo  das  forcas  hesj)anho- 
las.  (3) 

M)  liclarào  ilns  cousan  qui;  actnlcccram  na  ilha  Terceira.  Capit- 
]I,  ni,  o  IV.  —  Lcitreê  conlenunl  loul  cc  qui  acsl  jxissé  uux  istcn 
Teriero',  olr.  (mq.  1-7. 

(2i  Htlnçno  tlnx  cousns  que  nconUreram  n«  illia  Tcrrclrn,  etc. 
Capit.  XII,  Conoi.-ipio.  Unmu  ili;  Purlinjal.  Liv.  vii.  Uurrera.  Cin- 
co LilTos  (te  la  Jlixioria  dn  Porlvgul.  Lili.  iii. 

cj)  JUlarao  (lun  coukuh  que  nconioccram  na  Ilha  Terceira,  ctc. 
Cap.  iij.  ConcsUgio.  União  de  fordigfil.  Liv.  viu. 


O  rei  catholico  não  intentara  ja  a  occupação  da 
ilha,  segundo  notamos,  porque  a  occasião  o  não 
aconselhava;  mas  a  tenacidade  dos  habitantes  po- 
dia expor  as  naus  das  índias  a  um  desastre  irre- 
mediável. Se  Drake  e  Ilawkms  por  felicidade  delle 
não  estivessem  retidos  pelas  ordens  de  Isabel, 
ou  se  Henrique  de  Valois  fosse  monos  tímido,  a 
Terceira,  guarnecida  de  bons  soldados,  zombaria 
dos  esforços  empregados  para  a  con(|uistar,  e  a 
frota  do  Peru,  presa  das  velas  inimigas,  recom- 
pensaria os  audaciosos  aventureiros,  contraclados 
por  I).  António,  proporcionando  ao  pretensor  avul- 
tados capílaes  para  acommetter  depois  a  Mina,  a 
Madeira  c  até  as  costas  de  Portugal.  Nesto  aper- 
to, convocado  o  conselho  de  novo  em  Lisboa,  op- 
tou unanime  por  um  golpe  fort(!  e  decisivo,  que 
solíocasse  a  rebellião  no  berço.  Faltava  quasí  tu- 
do, porem,  ainda  para  o  descarregar  opportuna- 
menle.  O  maiquez  de  Santa  (]ruz  não  quíz  ser  o 
ultimo  a  confessal-o.  Apellou-se  então  para  o  al- 
vitre, ja  provado  com  vantagem  das  peitas  e  su- 
bornos, mas  não  existia  na  Terceira  pessoa  apta 
para  representar  o  papel  de  i).  Christovão  de  Mou- 
ra, e  os  íidalgos,  queannuírama  desempenhal-o, 
tiveram  de  se  arrepender,  sahando  não  sem  custo  a 
vida  das  iras  da  gentalha.  Apesar  de  positivo  assim 
mesmo  este  ainda  desengano  não  dissuadiu  Filippe  II 
de  insistir.  Oueria  convencer  os  contrários  da  sua 
moderação.  A  necessidade,  e  não  a  indoie, 
compelia-o.  O  alvará  de  16  de  abril  de  1581,  as- 
segurando esquecimento  e  perdão  aos  habitantes 
da  Terceira,  que  se  entregassem,  comprehendia  a 
Graciosa,  o  Faval,  S.Jorge,  e  o  Pico  na  mesma 
amnistia.  Acompanhando  deste  acto  de  clemência 
a  partida  de  D.  Pedro  Valdez  para  os  Açores  com 
alguns  navios,  enviados  para  assegurar  o  regresso 
da  armada  das  Índias  orientaes  ao  porto  de  Lisboa, 
contava  el-rei  confirmar  as  boas  disposições  dos 
moradores  lieis  á  sua  causa,  e  captar  a  amisadc 
de  muitos  outros.  As  inslrucções  passadas  a  Valdez 
proiíibiam-lhc  qual(|uer  acto  de  hostilidade,  em 
(|uanto  I).  Lopo  de  Figueiroa  não  se  lhe  reunisse 
com  o  grosso  da  esquadra.  Os  navios  de  Caslella 
avistaram  a  ilha  por  meiados  de  Julho.  A  pequena 
frola  compunha-sc  de  oito  velas  grandes  e  de  duas 
caravellas.   (4) 

Alvoroçou-se  a  terra.  A  armada  aproxiraou-se, 
e,  em  quanto  atravessada  defronte  do  porto  dis- 
parava a  ai  cabuzeria,  sem  ancorar,  os  seus  escaleres 
davam  caça  aos  barcos  de  pesca.  Pouco  depois 
uma  catraia  trouxe  as  cai  tas  de  D.  Filippe,  e  a 
intimação  de  Valdez  aos  habitantes,  convídando-os 
a  render-se  para  não  supporlarem  as  calamidades 
da  guerra.  Os  moradores  desprezaram  a  ameaça, 
e  certos  de  (jue  os  navios  eram  poiicrs,  e  os  sol- 
dados ainda  menos,  discuidaram-se  na  vigilância. 
Os  hespanhoes,  desembarcavam  de  noule,  e  avesi- 
nhando-se  das  trincheiras  levantadas  por  Cypria- 
no de  Figueredo,  fatiavam  para  dentro  com  os 
defensores    da  ilha.    Esta  negligencia    despertou 

(i)  Arrliivo  N;iíiori;il  da  Torre  do  Tombo.  Liv.  I  d.TS  Lfiá.  folo 
117  V.  U.  rrera  iiliriua,  ijiio  Valdc/,  trazia  :>  naus  giossas  .'Juiido  tuds 
o  luais  caravellas  e  aviSns.  (".iljrcra  de  Córdova. /V/íp^e// e  outro, 
aiiclorcs  uluvaiii  o  numero  das  velas  a  20, 


o  PANORAMA 


315 


no  animo  impetuoso  do  sobrinho  de  Valdez  a  ideia 
de  tentar  um  rasgo  de  ousadia,  que,  venturoso, 
tornasse  o  seu  nome  c  o  do  tio  assignalados.  D. 
Pedi'o  e  os  outros  capitães  cederam ;  a  emulação 
l)revaleccu  sobre  a  obediência  ;  c  demasiado  coníia- 
dos  na  fortuna,  vespoia  do  dia  de  Santiago,  acerca- 
ram-se  da  villa  de  S.  Sebastião  e  fundearam.  Soou 
logo  o  rebate,  acudio  gente,  c  correu  a  nouto  en- 
tretida com  fogueiras  e  vigias.  Figueredo  juntara 
a  ordenança  de  pé  e  de  cavallo,  e  avisado  com 
rapidez  por  correios  montados,  achava-se  prestes 
a  acudir  cora  rapidez  aos  pontos  atacados.  Valdez 
não  contava  mais  de  seiscentos  homens,  capita- 
neados por  seu  sobrinho,  1).  Diogo,  e  por  D.  Luiz 
de  Baçan.  A  costa  era  descuberta  e  o  mar  estava 
manso.  Sobre  as  quatro  horas  da  madrugada  os 
postos  mais  distantes  da  ilha  ouviram  os  repiques 
da  atalaya  no  sino  da  igreja  de  Santo  António. 
Soou  logo  o  estrondo  das  salvas  de  mosquetaria, 
disparadas  contra  os  bateis  dos  castelhanos  e  res- 
pondidas por  elles.  Quando  chegaram  os  habitan- 
tes já  os  castelhanos  tinham  na  praia  duzentos  sol- 
dados no  sitio  denominado — Casa  da  Salga  — 
entre  a  cidade  de  Angra  e  a  Villa  da  Pr^ia.  Os 
que  resistiam  seriam  pouco  mais  de  cincoenta, 
e  aturavam  com  grande  trabalho  a  fiequencia  dos 
pelouros.  Os  escaleres  inimigos  forçavam  a  remos 
afim  de  lançarem  segundo  golpe  de  gente.  (5) 

A  melicia  de  S.  Sebastião,  apesar  da  brevidade 
do  caminho,  não  chegou  tão  depressa  que  não  encon- 
trasse já  quatrocentos  homens  formados  com  seus  ca- 
pitães, e  que  não  devisasse  os  escaleres  voltando 
das  naus,  carregados  de  feixes  de  piques,  com  o 
resto  das  companhias.  Travou-se  renhida  escara- 
muça. O  valor  dos  hespanhoes  não  desmentiu  a 
arrogância  do  feito;  os  moradores  combateram 
com  egual  esforço.  Ás  nove  horas  da  manhã  dous 
a  três  mil  homens,  vindos  de  Angra,  da  villa  da 
Praia,  e  dos  casaes  c  povoações  da  Serra,  cubriam 
os  montes,  e  baixavam  a  investir  os  castelhanos 
mal  amparados  com  parapeitos  de  pedra  solta,  er- 
guidos no  meio  do  fogo.  A  lucta  prolongava-se, 
mas  de  longe  somente.  A  destreza  dos  veteranos 
de  Valdez  lovnaiia  perigoso  um  recontro  regular. 
As  caravelas  da  armada,  bordejando  favorecidas 
pelo  norte,  varriam  a  costa  com  a  artilheria,  e  ao 
fumo  e  fragor  do  combale  junlavamsc  as  laba- 
redas das  medas  de  palha  incendiadas  nas  eiras. 
Intentaram  por  vezes  os  hespanhoes  arrancar  na 
ponta  dos  piques  os  bandos  avulsos,  que  se  tinham 
vangloiiado  na  vespora  de  enxotar  como  rebanhos 
sem  pastor.  Baldou-se-lhes,  porém,  o  empenho.  A 
desesperação  fazia  soldados  ate  dos  pusilânimes. 
As  mulheres,  junto  dos  pães,  dos  maridos,  e  dos 
filhos  levantavam  os  feridos,  soccorriam  de  muni- 
ções os  combatentes,  e  algumas  vingavam  mesmo 
com  as  armas  na  mão  o  sangue  vertido  deantc 
d'ellas.  Ao  meio  dia  as  esperanças  de  Valdez  es- 
tavam inteiramente  desvanecidas,  O  fervor  infre- 


(5)  Relação  das  cousas,  que  aconteceram  na  ilha  Terceira,  ctc. 
cap.  XVIll'e  XIX.  Leltres  conlcnant  Ics  Relalions  de  tout  ce  qiií 
s'est  passe  aux  islcs,  etc.  n.  8  a  25.  ílcrrera.  Lib.  IV.  Conesla^io. 
Liv.  VlII. 


pido  dos  habitantes  decidia-o  a  recolher-se  ás  naus 
com  o  presentimento  de  um  grande  revez.  (^) 

Este  pouco  se  demorou.  Creavam-se  na  ilha 
grandes  manadas  de  bois  e  algumas  pastavam 
perlo,  lím  frade  Cruzio  lembrou  quasi  o  ardil  de  An- 
nibal.  (Js  pastores aguilhoaram  as  rezes  mais  bravas, 
e  enfurecendo-as,  arremessaram-as  contra  o  arraial 
castelhano,  precipilando-se  a  gente  atraz.  Foi  tal 
o  Ímpeto  dos  animaes  e  dos  homens,  que,  envolto 
e  entiado  o  campo  por  todas  as  partes,  os  que  vi- 
nham na  retaguarda  já  não  acharam  inimigos.  As 
fileiras  hespahholas  rotas  juncaram  de  cadáveres 
e  embeberam  de  sangue  a  terra.  A  retirada  para 
a  beira-mar  converteu-se  em  fuga  desordenada. 
As  ondas  e  os  tiros  não  deixavam  abicar  os  bateis. 
Valdez,  como  assombrado  de  raio,  assistia  do  con- 
vez  da  nau  ao  immenso  desastre  sem  animo  de 
acudir  com  suas  ordens.  Os  canhões  dos  navios 
calaram-se,  quando  deviam  trovejar,  e  do  meio 
das  vagas  erguiam  as  mãos  os  aflictos,  imploran- 
do piedade* nos  seus  e  misericórdia  nos  vencedo- 
res. Uns  alirando-se  ás  aguas,  e  afundados  com  o 
pezo  das  ai-mas,  afogavam-sc  já  próximos  dos  es- 
caleres; outros,  arrastados  semi-mortos  no  roUo 
do  mar,  vinham  expirar  na  praia  reialhados  de 
golpes  Não  se  via  senão  luzir  ferros  de  lanças  e 
de  piques,  ou  chispar  lume  dos  mosquetes  e  arca- 
buzes. 

Bandeiras,  insígnias,  caixas,  e  armas,  tudo  caiu 
nas  mãos  dos  portuguezes.  Dos  soldados  da  expe- 
dição voltaram  apenas  cincoenta  a  bordo  esvaídos 
de  sangue  e  cortados  de  terror.  Diogo  Valdez,  D. 
Luís  de  Boçan,  os  alferes  das  companhias,  e  os 
veteranos  mais  valerosos  pagaram  a  temeridade 
com  a  vida.  Ferozes  na  vicloria,os  habitantes  não 
perdoavam  aos  inimigos  metendo-se  pelo  mar  até 
aos  peitos  para  os  ferir.  Cypríano  de  Figueredo 
e  alguns  capitães  galopavam'  pelo  campo,  pedindo 
quartel  para  elles,  mas  em  vão.  Deshonrando  o 
tríumpho  os  ílheos  decepavam  as  cabeças  e  as  mãos 
dos  mortos  parU  arvorarem  estes  horríveis  Iropheus 
nas  pontas  dos  ferros.  (7) 

Rebello  da  Silva. 


O  MUNDO  DO  MAR 

Enconlram-se  a  miude  no  mar  —  e  a  primeira 
navegação  de  Chrístovam  Colombo  oflerece-nos  um 
exemplo  celebre  —  ilhas  herbáceas  de  uma  exten- 
são ímmensa,  lluctuando  á  superlicíe,  e  algumas 
vezes  arrastadas  pelas  correntes  a  distancias  pro- 
digiosas. Estas  íllias,  das  quaes  os  Açores  apre- 
sentam um  banco  extraordinário  chamado  Mar 
dos  sargaços,  são  formadas  de  fucaccas.  Para  os 
primeiros  navegadores,  eram  as  columnas  de  Her- 
cules do  Oceano  ;  marcavam  os  limites  das  aguas 
navegáveis.  Alem  dos  sargaços  e  dos  fucos,  as  al- 
faces do  mar,  com  a  sua  delgada  c  larga  folha- 
gem, apresentam  muitas  vezes  os  mesmos  oásis ; 

(G;  Ihifiem. 

(Tl  Relação  das  cousas  que  aconteceram  na  ilha  Terceira,  cap. 
XVIII,  XIX' e  XX.  Lellrrs  contcnant  les  relations  de  loiít  re  qui 
s'esl  ])asse'  aux  islcs  TcrceYcs.  p.  13  a  29.  Ilerrera.  Cinco  I.itjro 
de  la  historia  de  Portugal.  Lib.  IV.  Goiiestagio.  União  de  Portu- 
gal. Liv.  VIU. 


316 


O  PANORAMA 


as  algas  estendem  á  superfície  das  aguas  os  seus 
tllamentos  tortuosos  o  agglomerados.  Mas  estes 
prados  tliicluantes,  uniformes  e  estéreis,  encobrem 
no  fundo  do  Oceano  ricos  taboleiros  de  plantas; 
moulas  onde  o  peixe,  verdadeiía  ave  dos  mares, 
editica  o  seu  bumido  ninbo ;  bosquetes  e  jardins 
onde  folgam  os  babilanles  do  reino  aquático  ;  bos- 
ques, tloreslas  em  cujos  recessos  se  esconde,  dos 
seus  grandes  perseguidores,  a  presa  tímida  e  si- 
lenciosa. 

Um  fado  digno  de  reparo,  é  que,  como  a  ve- 
getação terrestre,  as  plantas  marinlias  prendem- 
se,  quanto  á  sua  distribuição,  a  preciosos  limites 
geograpliicos.  (Scbleiden.)  Considerando-se  que 
estareitarlição  está  ligada  em  grande  parle  a  con- 
dições dilTerenles  de  calor  e  bumidade,  que  o  m?r 
é  pouco  susceptível  de  sentir  estas  differenças  de 
lemperalura,  visto  que  a  uma  profundidade  rela- 
tivamente pouco  considerável  j)ossue  debaixo  de 
Iodas  as  latitudes  o  mesmo  gráo  de  calor,  não 
pôde  deixar  de  admirar-nos,  com  razã«,  o  encon- 
trar na  ílora  sub-marina  tantas  variações,  mesmo 
cm  regiões  visinbas  ou  situadas  a  pouca  distan- 
cia umas  das  outras.  Comtudo,  pôde  dizer-se  que 
as  algas  desenvolvem  toda  a  sua  riqueza  na  zona 
temperada  e  diminuem  gradualmente  tanto  para 
os  poios  como  para  o  equador. 

Mas,  do  fundo  dos  mares,  quanto  mais  próxi- 
mo do  equador,   mais  luxuriante  é  a  vegetação. 
«Deixemos,  diz  Schleiden,   as  tloreslas  aquáticas 
dos  mares  do  Norte  e  as  suas  plantas  gigantescas 
entre  as  quaes  algumas  allingem  o  comprimento 
de  oOO  a  1500  pés;  lancemos  um  olhar  fugitivo 
pelas  baleias  que  n'clk's  se  abrigam,  pelos  bandos 
de  lixas,  pelas  myriadas  de  arenques,  bacalhaus, 
salmões  e  atuns;  vollemo-nos  para  as  regiões  on- 
de o  sol  é  mais  ardente,  para  ver  se  nos  mares 
antárcticos  encontrai'emos  no  fundo  do  Oceano  a 
mesma  profusão  que  ostenta  a   ílora  aeria ;   mer 
gulhemos  no  crystal  limpido  do  mar  das  índias, 
e  logo  se  nos  aiuesenlaia   á  vista-  o  espectáculo 
mais  encantador  e  maravilhoso:   multidão  de  ar- 
bustos de  ramagem  singular  produzem  llores  vi- 
vas ;  massas  compactas  de  meandrinas  e  astréas 
formam  um  estranho  contraste  com  os  órgãos  pal- 
mados  ou   em  forma  de  copos  que  ostentam  as 
explanarias  e  as  tortuosas  madreporas  com  seus 
grossos  ramos  articulados  ou  digitiformes.   O  co- 
lorido está  acima  de  toda  a  descripção ;  o  verde 
mais  brilhante  alterna  com  o  alvadio  ou  o  ama- 
rello;   as  cores  de  pur[)uia  confundem-se  com  o 
vfi molho,  o  alvadio  desvanecido  e  o  azul  escuro. 
Mulliporas  de  um  vermelho  desmaiado,  amarcllas 
ou  de  côr  de  ílor  de  peceguciro,  cobrem  as  mas- 
sas, e  estão  entremeiadas  e  semeadas  de  gracio- 
sas retiporas  côr  de  pérola  e  i  mi  (ando  as  mais  ad- 
miráveis esciilí)turas  de  maríim.   A  areia  do  fun- 
do está  coberta   de   milhares  de  ouriços  e  de  es- 
trellas  do  mar  de  formas  estranhas  e  rias  mais  va- 
riadas cores.   Km  torno  das  flores  dos  coraes  fol- 
gam e  volleam  os  colibris  do  mar,  peixinhos  de 
reflexos  encarnados,   ou   aziíes,   ou   de  um  verde 
dourado  ou  prateado ;  semelhantes  aos  espirilos 


do  abysmo,  as  medusas  agitam  brandamente  as 
suas  campanas  azuladas  alravez  deste  mundo  en- 
encantado.  Aqui  as  isabeis  scinlillantes,  de  côr 
de  violeta  ou  de  um  verde  dourado  ;  alem  a  tu- 
naide  rojando-se  como  uma  serpente  e  asseme- 
Ihando-se  a  uma  fita  prateada  que  reflecte  cores 
rosadas  ou  azuladas.  Vêem  depois  os  cephalopo- 
des  fabulosos  affecinndo  todas  as  cores  do  arco- 
iris,  as  quaes  desajiparecem  e  apparecem  alterna- 
tivamente, confundi ndo-se  da  maneira  mais  fan- 
tástica. E  todos  estes  animaes  succedem-se  com  a 
maior  rapidez,  formando  os  mais  admiráveis  con- 
trastes de  sombra  e  de  luz.  O  menor  sopro  que 
agite  a  superfície  da  agua  faz  desapparecer  tudo 
como  por  encanto. 

Se  agora  o  sol  dirige  o  seu  carro  para  o  occi- 
dentc  e  que  as  sombras  da  noite  descem  aos  abys- 
mos,  este  jardim  fantástico  recomeça  a  brilhar 
com  um  novo  esplendor.  Milhões  de  chispas  de 
medusas  e  de  crustáceos  microscópicos  dansam 
na  obscuridade  como  outros  tantos  vermes  relu- 
zentes. Mais  longe  ve-se  a  magnifica  pluma  do 
mar,  encarnada  durante  o  dia,  balancear  os  seus 
clarões  esverdeados ;  por  toda  a  parte  não  se  veeni 
senão  chispas  luminosas,  raios  de  fogo  brilhante- 
mente coloridos ;  o  que  durante  o  dia  se  apaga 
no  esplendor  geral  brilha  agora  com  um  esplen- 
dor gravado  de  todas  as  cores  do  arco-iris;  e  pa- 
ra completar  as  mil  e  uma  maravilhas  desta  illu- 
minação  magica,  accrescen temos  que  os  porcos 
marinhos,  formando  discos  prateados  de  perto  de 
seis  j)és  de  diâmetro,  nadam  mageslosamenle  no 
meio  de  myriadas  de  eslrellas  rulillantes.  Termi- 
nemos com  esta  passagem.  O  viajante  solitário 
que  acaba  de  estudar  as  maravilhosas  costas  de 
Oylão  volta  á  sua  morada.  De  repente,  no  meio 
da  tranquillidade  de  uma  noite  serena,  alumiada 
pelo  clarão  argentino  da  lua,  uma  agradável  mu- 
sica semelhante  á  das  harpas  de  Éolo,  fere-lhe  os 
ouvidos.  Estes  sons  melancólicos,  bastante  fortes 
para  cobrir  oruitlodas  vagas,  vêem  da  plaga  pró- 
xima e  recordam  o  canto  das  sereias :  são  maris- 
cos cantadores  (jue  fazem  ouvir  da  j)raia  uma  do- 
ce e  triste  melodia.»  (Schleiden,  a  Planta.) 

Ajuntemos  a  este  quadro  o  do  conjunclo  do  mun- 
do vegetal  pelagiano,  onde  se  não  encontram  nem 
folhas,  nem  cálices,  nem  corollas,  e  o  d'estes  ani- 
maes estreitados  que  parece  substituírem  o  lugar 
das  flores  neste  estranho  elemento  «onde  o  reino 
animal  floresce,  e  o  reino  vegetal  não  floresce»  ; 
accrescenlemos-lhe  ainda  a  formação  dos  coraes, 
dos  zoophytos,  e  das  suas  ilhas  circulares;  e,  fa- 
zendo abstracção  do  tempo,  consideremos  a  per- 
p(.'lua  mutabilidade  do  fundo  dos  mares,  (jue,  al- 
ternativamente, invadem  e  descobrem  as  regiões 
continenlaes,  e  formaremos  uma  ideia  approxi- 
mada  do  |)oder,  da  imporlancia  e  da  riqueza  des- 
te elemento,  (jue  a  poesia  expressiva  dos  Orien- 
laes  saudara  como  a  oiigem  primeira  c  eterna  de 
todas  as  cousas. 


Mas  vale  la  lionra  que  todo  cl  dinero. 

LoPE  DA  Vega. 


o  PANORAMA 


!l'!l,nili!:.i.> 


8 


O  PANORAMA 


SCE.NA  DTSCRAYATURA 

Esperamos  que  sejani  d'aqui  a  pouco  obsoletas 
scenas  como  a  nossa  gravura  leprosenla.  Depois 
da  formidável  lucla,que  se  travou  na  America  do 
Norte,  entre  os  defensores  c  os  adversários  d'esta 
iniíiuidade  social,  lucla  em  que  triumpharam  os 
sãos  princípios,  não  é  provável  que  haja  retroces- 
so, e  que  a  escravatura,  ainda  que  não  seja  de  todo 
abolida,  continue  a  ser  causa  de  scenas  tão  barba- 
ras, como  essa.  a  propósito  da  qual  estamos  es- 
crevendo estas  linhas. 

A  exploração  do  homem  pelo  seu  semelhante  é 
uma  das  cousas  mais  repugnantes  que  só  a  barba- 
ria tem,  eê  indigno  de  povos  civilisados  descerem  ao 
nivel  dos  selvagens  prelos  dos  sertões  da  Africa, 
que  se  vendem  a  si  e  aos  seus  por  um  barril  de 
aguardente. 

Este  facto,  que  a  barbaiia  explica,  é  um  dos 
que  são  apresentados  pelos  defensores  da  escrava- 
tura como  pro\a  de  que  os  negros  não  apreciam 
a  liberdade.  Mas  quando  nas  praias  inhospilas  da 
Afiica  um  ca|iilão  euroj^éo,  e  um  chefe  de  negros 
estão  fazendo  um  contraio  de  venda  de  carne  hu- 
mana, desejo  que  os  vendedores  me  digam  de  que 
lado  está  o  bárbaro,  e  de?  que  lado  está  o  homem 
que  preza  a  sua  dignidade. 

Mas  os  escravos  são  indispensáveis  nas  colónias, 
os  biancos  não  podem  trabalhar  n'esses  climas  ar- 
dentes. Em  primeiro  lugar  isso  está  longe  de  ser 
demonstrado.  «Este  principio  que  passa  por  axio- 
mático, diz  Emile  (^arrey  no  seu  formoso  livro 
líuil  jours  sons  fErjualeur,  foi  inventado  pela 
indolência  dos  ci'ednl(s  (jue  o  fez  aceitar  á  Eu- 
ropa. Declaro  que  vi  brancos  habituados  ao  clima 
trabalharem  optimamente  debaixo  de  um  sol  abra- 
zador. 

Mas  ainda  que  estivesse  demonstrada  a  idéa  da 
utilidade  não  arrasta  comsigo  a  idéa  da  legali- 
dade. (Lperis-senl  les  colonics  plulol  qiCun  prinvipCD 
dizia  um  dia  um  deputado  Irancez  na  assemblea 
nacional.  Será  este  dito  uma  utopia,  mas  é  uma 
ut(q)ia  sublime  e  generosa,  que  abraçamos  com 
fervor,  e  que  esperamos  ver  em  breve  realisada, 
sem  que  morram  nem  as  colónias,  nem  o  j)rinci- 
pio.  

OS  PESCADORES  E  O  URSO 

Cniito   grocnliiiiiloK    (t) 

Tres  irmãos,  dos  quaes  o  primogénito  se  cha- 
mava Sitdliarnat,  iiaviam  estabelecido  juntos  o  seu 
quartel  d'inverno  ;  a  estação  foi  ligorosissima  e 
lodo  o  mar  congelou,  de  sorle  (|uc  não  podeiam 
sair  no  seu  hajah.  [l]  Ouando  viiam  o  gelo  em 
estado  de  se  [)oder  por  elle  transitar  sem  perigo, 
correram  a  tratar  da  vida;  mas  não  podiam  pes- 
car senão  mui  longe,  no  mar  largo,  em  um  sitio 
onde  havia  uma  abertura  praticada  no  gelo. 

lin  dia,  (|ii(!  o  tempo  eslava  bom,  os  tres  ir- 
mãos junlaram-sc  a  um  homem,  que  não  era  da 
sua  família,  e  partiram  todos  quatro  para  aquelle 

(1)  Tirado  do   Orfiilíindskc  FoIkesnKn,    ou  Kal.idlit,    Okalliiktu- 
alliait.   t.  IV,  iiag.    I0;i-123.   Gadlliaal.,    186:',    iii-8. 

(2)  liarco  forrado  c  coberto  inteiramente  de  pilic  do  plnca. 


sitio.  Emquanto  pescavam,  Sitdliarnat  observou  o 
tempo  e  notou  que  o  vento  impellia  para  o  mar 
a  neve  das  montanhas. 

—  Vamos  ser  assaltados  pelo  vento  do  sudoes- 
te, disse  elle  aos  seus  companlieiros;  deixemos  a 
pesca  e  partamos  o  mais  depressa  possível  para  a 
nossa  choupana. 

Immedialamenle  largaram  todos  a  correr  para 
a  costa  ;  mas  a  tempeslade  caminhava  mais  rápi- 
da do  que  ellis,  e  quando  estavam  próximos  da 
terra,  o  gelo  linha-se  quebrado  e  começava  a  ílu- 
cluar.  Os  infelizes  caminhavam  ao  longo  da  cos- 
ta, sem  acharem  ponto  algum  aonde  podessem  to- 
mar terra. 

O  mais  velho  avistou  um  enorme  pedaço  de 
gelo  boiando;  diligenciaram  approximar-se  trelle, 
e,  emíim,  conseguiram  saltar-lhe  para  cima.  Tudo 
em  torno  d'elles  era  mar. 

Navegaram  assim  muito  tempo ;  mas,  não  tar- 
dou a  chegada  da  fome.  Alimenlaram-se  primeiro 
de  alguns  j)eixes,  que  o  mais  novo  dos  Ires  ir- 
mãos, felizmente,  levava.  Depois,  quando  a  fome 
os  apertava,  o  mais  velho,  que  se  tornara  o  de- 
positário das  provisões,  tomava  um  peixe,  corta- 
va um  pedaço,  que  comia,  e  entregava  o  restante 
ao  irmão  mais  novo  ;  este  coitava  outro  pedaço 
para  si  e  dividia  o  resto  entre  o  estranho  e  o  ou- 
tro seu  irmão.  Eizeram  também  uma  cova  no  gelo, 
de  modo  que  lhes  servia  de  abrigo  durante  a 
noite. 

Uma  manhã,  ao  acordar,  Sitdliarnat,  depois  de 
ler  observado  |)or  muito  tempo  o  horisonle,  des- 
cobrio  um  ponto  negro  ;  de|)ois  outro  (|ue  domi- 
nava o  primeiro.  Chamou  immediatamente  os  com- 
panheiros, e  disse: 

—  Amigos!  não  ficaremos  sempre  no  mar;  ha 
ali  o  quer  que  é... 

Era  a  costa,  da  qual  elles  se  approximavam  a 
pouco  e  pouco ;  todas  as  provisões  estavam  comi- 
das. Seguiram,  durante  algum  tempo,  ao  longo 
da  piaia  sem  poderem  abordar;  finalmente,  che- 
gai am  a  um  sitio  accessivel. 

—  Serei  eu  o  primeiro  a  saltar  em  terra,  disse 
o  mais  velho,  e  vós  seguireis  os  meus  passos. 

Logo  tjue  SC  acharam  em  lugar  seguro,  disse- 
Ihes: 

—  Olhae  para  traz. 

O  pedaço  de  gelo  tinha- se  submergido,  e  em 
seu  lugar  apenas  se  via  um  grande  lençol  de  es- 
cuma. Tre[)aram  pela  encosta  escarpada  do  ro- 
chedo, e,  chegados  ao  cume,  dirigiram-se  para  o 
sul,  esperando  encontrar  alguns  homens  compa- 
decidos. Elleclivamenle,  descobriram,  em  uma 
pe(|uena  lingua  de  terra,  uma  casinha  isolada  e 
junlo  da  qual  não  se  viam  habitantes.  Estavam 
completamente  exhauslos  de  forças;  Sildliarnal 
disse  : 

—  Vamos  para  diante. 
Os  outros  seguiram-n'o. 

Na  casa  apenas  havia  um  vcliio  c  sua  mulher ; 
os  estrangeiros  assenlaram-se  sem  dar  uma  pa- 
lavra, limilando-se  a  observar  o  ancião.  Este  per- 
guntuu-lhes  d'onde  vinham.    Ouando  soube  das 


o  PANORAMA 


319 


suas  aventuras,  voUou-se  para  sua  mulher  e  tlisse: 

—  Ouem  viaja  tem  sempre  appelile. 

Ella  foi  immedialamente  buscar  um  bocado  de 
toucinho  de  phoca,  cozeu-o  e  apresenlou-o  em  um 
prato  aos  hospedes.  Mas,  não  obstante  a  fome  que 
traziam,  comeram  mui  pouco. 

O  ancião  contou-lhe  que  seu  filho,  o  único  am- 
paro da  familia,  desapparecera  havia  um  mez ; 
pediu-lhes  para  licarem  todos  em  seu  lugar  e  ado- 
plou-os.  Assim  passaram  juntos  muitos  invernos. 

Um  dia,  o  velho  perguntou  ao  primogénito  dos 
irmãos: 

—  Oual  foi  o  génio  protector  que  escolheram 
quando  nasceste? 

Sitdliarnat  respondeu  que  fura  a  gaivota.  Os 
irmãos,  interrogados  sobre  o  mesmo  assumpto, 
deram  igual  resposta ;  mas  o  companheiro  disse 
que  seus  pais  haviam  preferido  a  raposa. 

—  Nesse  caso,  replicou  o  ancião,  não  tornarás 
a  ver  o  teu  paiz;  mas  os  três  irmãos  poderão  vol- 
tar ao  seu  domicilio.  Quando  o  tempo  acalmar, 
conduzil-os-hei. 

—  Como  poderá  elle  levar-nos  á  nossa  terra, 
pensaram  os  três  irmãos,  estando  o  gelo  fundido, 
e  não  tendo  kajak  ou  outros  quaesquer  meios  de 
transporte ': 

Uma  manhã  o  velho  acordou-os. 

—  São  horas  de  levantar-vos,  disse  elle.  Se, 
realmente,  tendes  desejo  de  voltar  á  vossa  terra, 
dirijamo-nos  á  praia ;  ajudar-vos-hei  a  atravessar 
o  mar. 

Quando  chegou  á  praia,  deitou-se  na  agua, 
mergulhou,  e  reappareceu  sob  a  forma  de  um 
urso. 

—  Agora,  disse  elle  a  Sitdliarnat,  se  é  verdade 
leres  por  génio  protector. a  gaivota,  segue-me. 

Sitdliarnat  hesitava  ;  mas  o  urso  fazendo-lhe  ver 
que  não  havia  outro  meio  para  alcançar  o  que 
desejava,  decidio-se  a  entrar  na  agua;  logo  que 
os  pés  tocaram  na  superfície,  escorregaram  como 
se  íbra  sobre  gelo ;  a  gaivota  estava  ao  pé  d'elle. 
Ao  mesmo  tempo  avistou  um  enorme  pedaço  de 
gelo  para  o  qual  subio.  Os  seus  dois  irmãos  íi- 
zeram  outro  tanto ;  mas  o  estranho,  procurando 
imital-os,  caio  no  fundo  do  mar,  e  foi  preciso 
que  o  urso  mergulhasse  para  salval-o. 

—  Tu  não  tornai  às  a  ver  a  tua  pátria,  lhe  dis- 
se elle,  j)orque  tens  a  raposa  por  protector ;  vol- 
ta para  nossa  casa. 

Depois  accrescentou  dirigindo-se  aos  Ires  ir- 
mãos : 

—  Fechai  bem  os  olhos,  porque  se  os  abris, 
não  podereis  chegar  ao  lim  da  viagem ;  eu  farei 
andar  o  pedaço  de  gelo. 

Efiectivamente,  perceberam  que  o  gelo  mudava 
de  lugar,  e,  passado  algum  tempo,  sentiram  um 
choque.  Então,  o  urso  disse-lhes  que  podiam  abrir 
os  olhos ;  viram  que  estavam  j)er[o  de  terra  e  re- 
conheceram as  suas  antigas  casas.  Pediram  ao 
urso  que  os  acompanhasse  para  lhe  darem  j)rovas 
do  seu  reconhecimento. 

— Não  peço  recompensa,  disse  elle  ;  queria  uni- 
camente lazer-Yos  um  serviço.  Mas  se  virdes  um 


urso  calvo  durante  o  inverno,  não  consenti  que 
vossos  com|)anheiros  lhe  atirem  frechas. 

Promelleram  fazer- lhe  o  que  elle  desejava. 

Um  dia  (lue  estavam  com  os  seus  visinhos,  vie- 
ram annuneiar-lhes  que  na  praia  estava  um  urso. 
Todos  lançaram  logo  mão  das  armas ;  mas  os  ir- 
mãos exclamaram  : 

—  Esperae  um  momento. 

Saiiam  logo  de  casa,  dirigindo-se  á  praia,  e 
reconheceram  o  urso. 

—  Não  lhe  fa;aes  mal,  disseram  elles  aos  ou- 
tros; se  não  fosse  este  animal  já  não  existiría- 
mos. Vamos  dar-lhe  de  comer. 

Seguiram  o  urso  até  casa.  Ali  o  animal  assen- 
lou-se  á  pjrta,   olhando  para  o  interior  da  casa. 

Troux(M'am-lhe  phocas  inteiras  e  pediram-lhe 
que  comesse.  Elle  não  se  fez  rogar.  Quando  en- 
cheu a  barriga,  adormeceu,  e  as  crianças  come- 
çaram a  brincar  em  torno  d'elle.  Acordando,  co- 
meu novamente  e  dirigio-se  para  o  mar;  todos  o 
seguiram  com  os  olhos  até  que  o  perderam  de 
vista.  Depois  nunca  mais  ouviram  faltar  d'elle. 


GUILHERME  TELL  E  SCHILLEU 

^No  decimo  quarto  século,  em  Uri,  cantão  da 
Suissa,  um  governador  austríaco  chamado  Gessler 
mandou  collocar  o  seu  chapéu  sobre  uma  percha, 
no  centro  da  praça  d'Altorf,  e  ordenou  ao  mesmo 
tempo,  (|ue  todos  os  viandantes  o  saudassem,  sob 
pena  de  prisão?  ^  Este  mesmo  personagem  obri- 
gou depois  um  aldeão,  por  nome  Guilheime  Tell, 
que  não  quizera  obedecer  ás  ordens,  a  trespassar 
com  um  tiro  da  sua  besta  uma  maçã  posta  em  ci- 
ma da  cabeça  de  seu  filho;  acto  abominável  que, 
enchendo  o  coração  deste  ultimo  de  um  sentimen- 
to legitimo  de  vingança,  o  levaria  a  malar  o  dés- 
pota com  uma  frechada,  e  a  dar  com  este  homi- 
cídio o  signal  da  liberdade  do  paiz?  Taes  são  as 
perguntas  que  teem  attrahido  sobre  si  o  exame  de 
um  grande  numero  de  historiadores  e  de  críticos 
celebres. 

João  de  Muller  pensa  que  este  chapéo  colloca- 
do  sobre  uma  percha  não  era  do  governador,  mas 
o  chapéo  ducal  d'Austria,  posto  ali  para  reunir 
todos  03  que  eram  affeiçoados  aos  interesses  desla 
casa.  Reconheciam-se  pela  homenagem  que  lhe 
rendiam.  A  morte  de  Gessler  pela  mão  de  Tell 
não  c  certa.  Quanto  ao  facto  da  maçã,  é  ainda 
menos  provável.  O  silencio  dos  contemporâneos, 
a  analogia  de  um  acontecimento  semelhante  con- 
tado j)or  historiadores  dinamarquezes  do  século 
doze,  fazem  nascer  duvidas  sobre  esta  historia. 
Voltaire,  Rahn,  Iselin  e  outros  consideravam-n'a 
como  fabulosa.  Não  obstante,  Zuilauben,  Ballli:izar 
de  Lucerna  e  llaller  de  Berne  colligiram  as  pro- 
vas históricas  que  estabelecem  a  verdade  do  fa- 
cto. 

Para  nós,  em  primeiro  lugar,  não  é  ponto  mui- 
to duvidoso  que  o  archeiro  chamado  Tell  prestas- 
se relevantíssimos  serviços  ao  seu  paiz  no  tempo 
da  liberdade :  o  grande  numero  de  capellas  cou- 


320 


O  PANORAMA 


sagradas  á  sua  niomoiia  desdf  o  século  quatnrze. 
tanlo  sobre  a  planta-íorma  siluada  j)erlo  de  Flue- 
lem  como  no  caminho  escalvado  que  conduz  a 
Kusnaclil  parece  alleslal-o.  Depois,  acredilamos 
que  o  orgulho  insensalo  de  um  despola  suballerno 
pôde  muito  bem  haver-lhe  inspirado  a  ideia  de 
obrigar  a  curvar-se,  dianle  da  sua  gorra,  uma 
população  de  pobres  montanheses,  e,  emlira,  que 
a  perversidade  do  coração  humano  é  desgraçada- 
mente, tão  fecunda  em  invenções  cruéis,  que  pôde 
também,  a  dois  séculos  de  distancia,  e  em  duas 
regiões  ditlerentes,  ter  forçado  um  pae  de  familia 
a  jogar  a  vida  de  seu  lilho  ao  tiro  do  arco  e  da 
besta. 

O  poeta  Schiller  foi  deste  parecer.  Aceitou  to- 
dos os  factos  da  vida  de  Guilherme  Toll,  e  servio- 
se  desta  rústica  ligura  pai'a  compor  com  ella  o 
poema  dramático  da  resistência  ao  despotismo  do 
estrangeiro;  obia  magnilica,  uma  das  mais  corre- 
ctas que  sairam  da  sua  penna,  e  na  qual  o  gran- 
de saber  do  historiador  se  combina  admiravelmen- 
te com  a  habilidade  do  dramaturgo. 

Não  entraremos  nos  promenores  desta  tragedia; 
diremos  unicamente  que  os  andores  j)iimitivos  da 
conjuração  da  resistência  foram  Ires  bravos  cida- 
dãos d'Cri,  Unterrald  e  Schwitz,  que  prestaram  o 
famoso  juramento  do  Grulli,  e  que  se  chamavam 
Arnold  de  Melchlal,  AVerner  Stauflacher  e  ^Valter 
Furst.  Guilherme  Tell  não  foi  mais  que  o  heroe 
accidenlal  da  redempção;  mas  o  seu  feito  lançou, 
para  assim  dizer,  fogo  á  polvoía,  e  deu  começo 
á  ruina  do  poder  austríaco.  Schiller  não  o  esque- 
ceu, e  é  esta  individualidade  notável  que  elle  (juiz 
fazer  sobresair  em  toda  a  extensão  do  seu  poema. 
Já,  no  seu  marquez  de  Uosa,  elle  tinha  exprimido, 
os  ardores  philantropicos  de  um  homem  de  ele- 
vada classe,  os  ardis  de  um  theorico  da  liberda- 
de |)rocuiando  converter  o  propi'io  sceptro  em  ins- 
liuniento  úo  regeneração.  Com  o  personagem  Gui- 
lherme Tell  da  vida  aos  sentimentos  generosos  do 
homem  do  povo  ;  pinta  o  cidadão  das  classes  in- 
feriores, pouco  instruído,  mas  enérgico,  que  sente 
mais  do  que  concebe,  e  que  pratica  mais  do  que 
medita.  A  má  fé,  ao  orgulho  brutal  c  à  cruelda- 
de, op[)õe  o  instincto  de  um  coração  franco  e 
honrado  que  não  reivindica  os  seus  direitos  na- 
luracs  pela  acção  senão  quando  se  sente  ferido 
nos  seus  mais  caros  interesses,  ameaçada  a  sua 
vida  e  a  dos  seus.  Ha  ainda'  muito  ideial  n'esle 
typo  de  aldeão  suisso  ;  Címitudo,  o  poeta,  mode- 
laiido-o,  appioximou-se  da  natureza;  e,  em  geral, 
apresenta-se  com  tal  simplicidade  de  linguagem  e 
uma  tão  grande  força  de  sentimento,  que,  de  to- 
das as  concepções  do  mesmo  género,  e  esta,  cer- 
tamente, a  (pie  (lílcrí^ce  mais  vida  e  realidade. 

Giiilheinie  Tell,  logo  á  sua  primeira  a[»|;arição, 
rnanife>ta  tudo  (|uo  existe  n'elle  de  bondade  e 
bravura.  Trala-se  de  salvar  um  jiobre  homem  per- 
seguido pelos  salellites  do  governador;  ò  preciso, 
o  mais  depressa  possível,  fazel-o  atravessar  o  la- 
go, apesar  da  tem|)estade.  Muitos  recuam;  nias 
Tell  avança  e  diz:  cri)  homem  gimeioso  não  pen- 
sa cm  si;  liae-vos  em  Deus  e  salvacooppiimido.)' 


Não  ousando  pessoa  alguma  arriscar-se,  elle  met- 
te-se  em  uma  barca  e  conduz  por  sobre  as  ondas 
o  desgraçado  fugitivo.  Esta  acção  corajosa  com- 
move  os  assistentes,  e  o  dedo  "popular  designa-o 
logo,  ainda  que  vagamente,  como  um  dos  liber- 
tadores do  paiz.  Outra  scena  representa-o  em  con- 
versação com  um  dos  cidadãos  mais  consideráveis 
do  cantão  de  Schwitz,  Werner  StauíTacher.  Este 
falla-lhe  do  despotismo  de  Gessler,  da  necessida- 
de de  pôr  um  termo  a  semelhante  estado  de  cou- 
sas, e  procura  fazer  entrar  o  honrado  aldeão  na 
trama  que  elle  e  muitos  dos  seus  amigos  teem  ur- 
dido contra  o  odioso  oílicial.  Mas  Tell  é  um  ho- 
mem simples  que  tem  peso  de  mulher  e  filhos,  e 
que,  sendo  o  seu  único  amparo,  não  pôde  aven- 
lurar-se  la  inúteis  tentativas.  Apertado,  comludo, 
pelas  palavras  de  StauíTacher,  que  lhe  pergunta 
se  a  pátria  poderia  contar  com  elle  no  caso  que 
se  tornasse  necessário  recorrer  ás  armas,  elle  res- 
ponde: «Tell,  que  vai  ao  fundo  de  ura  abysmo 
para  soccorrer  um  cordeiro,  abandonaria  os  seus 
amigos!...  Seja  qual  fôr  a  empresa  que  lenhaes 
formado,  não  me  convideis  para  assistir  aos  vos- 
sos conselhos,  porque  não  sei  nem  meditar,  nem 
estar  muito  tempo  indeciso ;  mas  se  tendes  preci- 
são de  mim  para  uma  acção  resolvida,  chamae 
Tell  que  vos  não  faltará.»  È  fallar  bem  segundo 
a  sua  natureza  e  condição ;  e  a  intelligencia  dos 
conductores  do  movimento  de  resistência  compre- 
hendendo  esta  alma  nobre  e  franca,  deixa-lhe  a 
liberdade  da  acção,  certa  da  sua  vigorosa  coope- 
ração no  momento  decisivo. 

Em  quanto  a  trama  da  liberdade  se  urde  secre- 
tamente, esperando  o  dia  da  explosão,  dia  que 
os  excessos  de  Gessler  devem  trazer,  Tell  occu- 
pa-sc  dos  seus  negócios  e  cuida  de  sua  familia. 
Durante  os  poucos  instantes  que  lhes  consagra 
dentro  da  sua  choupana,  o  seu  trabalho  de  mar- 
cenaria e  as  respostas  alternativas  que  dá  á  mu- 
llier  c  aos  filhos  formam  um  quadro  de  interior 
rústico  dos  mais  encantadores.  É  um  pae  que  ama 
seus  filhos,  mas  que  não  vae,  com  a  sua  ternura, 
conlaminar-lhe  a  alma  e  enfraquecer-lhe  o  génio; 
é  um  maiido  (jue  adora  sua  mulher,  mas  não  a 
ponto  de,  por  este  amor,  perder  o  sentimento  dos 
solírimentos  dos  seus  semelhantes,  e  de  esquecer 
as  misérias  da  pátria.  Ouando  sua  esposa,  iníjuíe- 
ta  i)or  esta  bondade  d'alnia  que  a  faz  aílVontar 
com  tantos  perigos,  exclama  :  «()  meu  Deus !  todos 
os  meus  fogem  á  paz  do  lar!»  Tell  lesponde:  «A 
natureza  não  me  ciiou  para  não  passar  de  pas- 
tor. Verdadeiramente  não  goso  da  vida  senão 
quando  todos  os  dias  tenho  de  luctar  com  os  pe- 
rigos »  E,  apesar  das  instancias  de  Iledwige,  ten- 
do necessidade  de  ir  a  Altorf.  residência  do  go- 
vernador, decide  SC  a  partir  levando  comsigo  um 
de  seus  filhos. 

{Contimm)  ■ 

O  melhor  meio  de  prender  uma  mulher  c  deixal-a 
livre.  Mme.  de  GnANuronn. 


Typ.  Fraiico-Porlugiieza  =  Rua  do  Thcsouro  VcUio,  6. 


41 


o  PANORAMA 


321 


iiiiiiiSliillíilililí 


322 


O  PANORAMA 


BIRMINGHAM 

Esta  cidade  ó  uma  das  mais  vasías  e  das  mais 
opulcnlas  de  Inglaterra.  Está  situada  a  130  kilo- 
metros  de  Londres,  ao  noroeste  do  condado  de 
AVarwick,  e  ergue-se  nas  faldas  d'uma  serie  de 
collinas,  ao  longo  das  quaes  covre  o  Noa. 

Já  no  século  XIV  esla  cidade  tinha  alguma  im- 
portância, devida  ao  mercado,  que  ali  se  estabe- 
leceu ;  no  século  XVI  e  XVII  lornou-se  bastante 
prospera,  graças  ao  fabrico  de  ferro,  de  aço,  e 
do  coiro  cm  que  adquirio  celebridade.  As  suas 
manufacturas  de  cutelaria,  e  d'arnias  de  fogo  ti- 
nham ja  fama  suílicienle  para  que  Henrique  VIU, 
e  depois  Guilherme  III  fornecessem  as  suas  tro- 
pas de  armas  fabricadas  n'essa  cidade.  Mas  a  sua 
grandeza  actual  data  principalmente  da  invenção 
das  machinas  de  vnpor,  que  fui  uuia  grande  fon- 
te de  receita  para  Hirmingham. 

Elíectivaniente,  as  grandes  minas  de  carvão  de 
pedra  que  existem  nos  seus  arredores,  despreza- 
das completamente  até  o  íim  do  século  XVIII 
adquiriram  uma  importância  súbita  quando  .lamcs 
^Vatl.  fabiicando  a  sua  pi-imeira  machina  de  va- 
por, abiio  uma  salda  immensa  a  uma  mercadoria 
até  então  iniitil.  Foi  mesmo  em  Birmingham  que 
James  Watt  e  o  seu  sócio  Fullon  estaljeleceram 
a  sua  primeira  fabrica  de  machinas  de  vapor.  Des- 
de essa  epocha  a  população  da  cidade  ingleza  au- 
gmentou  em  proporções  verdadeiramente  inacre- 
ditáveis. Em  1700,  Birmingham  contava  apenas 
quinze  mil  habitantes.  Decorre  um  século,  Wall, 
depois  das  tentativas  dos  seus  predecessores  Pa- 
j)in,  Savery,  Newcomen,  inventa  a  machina  de 
vapor,  que  ha  de  licar  ddinilivamente  na  indus- 
tria ;  esiamos  em  1801  ;  Birmingham  conta  já  se- 
tenta e  quatro  mil  iiabitantes. 

Decorreram  trinta  annos,  mulliplicam-se  as  ap- 
plicações  da  machina  de  Watt;  Fullon  inventa  os 
barcos  de  vapor,  a  prosj)eri(lade  da  cidade  au- 
gmenta  |iropoicionalmenle.  Em  1831  sobe  a  po- 
j)ulação  a  cento  e  quarenta  c  sete  mil  almas. 

A  machina  civilisadora  não  pára  no  seu  rápido 
desenvolvimento.  Descobrem-se-lhe  novas  appli- 
caçOes ;  FuIIíju  inventara  a  locomotiva  marítima, 
Slephenson  inventa  a  locomotiva  terrestre.  A  ci- 
dade mãe  desta  nova  industria,  caminha  velozmen- 
te nos  rastos  da  sua  vertiginosa  (ilha.  Decorreram 
dez  annos.  Em  18íl  já  se  acha  um  augmenlo  de 
tiinta  c  cinco  mil  habitantes;  a  população  da  gran- 
de cidade  industrial  attinge  o  elevado  algarismo 
de  cento  e  oitenta  e  duas  mil  almas. 

Iliije,  (|ue  uma  rede  de  caminhos  de  ferro  cin- 
ge o  mundo  inteiro;  hoje,  que  lodos  os  povos,  des- 
de os  Estados  Inidos  até  a  Tur(|uia,  lêem  nas 
suas  esquadras  gueireiras  e  commerciaes  nume- 
rosos barcos  de  vapor;  hoje.  (|ue  esse  poderoso 
agente  refervo  nas  machinas  de  Iodas  as  manufa- 
cturas, qual  será  a  população  da  cidade  iniciadora 
d'essc  movjmenlo  immonso?  Ascende  com  certeza 
a  peito  de  trezentos  mil  habitantes. 

Eslas  vantagens  compia-as  Hiiniingham  com  a 
ausência  complela  de  toda  a  belleza.  Vè-sc  que  o 


demónio  da  industria  ergueu  ali  o  seu  throno. 
Emquanlo  as  nossas  ridentes  cidades  meridionaes, 
pobres,  mas  formosas,  desdobram  a  sua  casaria  al- 
vejante pelas  faldas  de  collinas  viçosas,  debaixo 
d'um  firmamento  azul,  Birmingham,  triste  c  som- 
bria, eleva-se  no  meio  d'uma  athmosphera  artili- 
cial,  composta  pelo  fumo  das  suas  innumeras  ma- 
chinas de  vapor,  e  apresenta  aos  olhos  dos  visi- 
tantes as  suas  casas  de  tijolos  vermelhos,  que  lhe 
dão  a  mais  triste  e  monótona  physionomia. 
■  Os  monumentos  desta  cidade  consistem  em  vin- 
te e  duas  igrejas  e  capellas,  entie  as  quaes  se  dis- 
tingue a  igreja  de  S.  Philippe,  notável  pela  sua 
formosa  architeclura  e  situada  n'um  ponto  culmi- 
nante, duas  synagogas,  duas  escholas  do  systema 
Bell  e  Lancasler,  alem  de  mais  de  seiscentos  es- 
tabelecimentos de  inslrucção  de  todo  o  género  des- 
tinados á  educação  do  povo,  duas  bibliothecas  que 
encerram  mais  de  trinta  mil  volumes,  notáveis 
instituições  de  benelicencia  ;  um  formoso  palácio 
para  as  sessões  do  condado,  um  theatro,  um  ma- 
gnifico hospital,  constiuido  de  1775  a  1778  só 
com  o  produclo  de  subscri])ção  voluntária  ;  uma 
casa  da  camará  de  proporções  grandiosas,  cons- 
truído pelo  modelo  do  templo  de  Júpiter  Stator 
em  Roma,  e  rodeado  de  columnas,  e  na  praça  do 
mercado  uma  estatua  de  bronze  de  Nelson.  Como 
é  de  suppor,  James  Watt,  o  grande  bemfeitor  da 
cidade,  não  foi  esquecicto,  e  lem  um  magnifico 
monumento. 

Este  conjuncto  de  monumentos  grandiosos,  con- 
trastando com  o  aspecto  miserável  da  cidade,  é  o 
symbolo  verdadeiro  e  pungente  do  estado  não  só 
de  Bii-mingham,  mas  de  Inglaterra  Ioda;  opulên- 
cia e  miséria.  Giandes  pro|)rielarios,  e  proletários 
morrendo  de  fome,  uma  minoria  de  donos  de  fa- 
brica riquíssimos  c  uma  população  operaria,  que 
mal  pôde  viver  com  os  seus  parcos  salários.  Só 
em  Birmingham  a  população  attinge  o  algaris- 
mo enorme  de  sessenta  mil  indivíduos. 

A  |)lanicie  dominada  pela  cidade  é  completa- 
mente estéril.  Só  ali  se  encontram  minas  de  pe- 
dra. Carvão  de  pedia  por  Ioda  a  parle.  O  seu  ne- 
gro pó  cobre  as  estradas,  íluctua  nos  ares,  pren- 
de-se  ao  fato  e  ao  rosto  dos  transeuntes,  e  como 
que  im|)rime  em  todos  os  que  lêem  a  desventura 
de  atravessar  a(|uella  succursal  do  inferno  o  esty- 
gma  demoníaco.  Essa  planície  denomina-se  a  pla- 
nície dos  cyclopes. 

Biiiníngham  não  é  só  importante  pelo  fabrico 
de  machinas,  e  pelo  commercio  do  carvão.  Teem 
fama  em  todo  o  mundo  as  suas  cutelarias  c  as 
suas  magnificas  manufacturas  (farmaá  de  fogo.  O 
seu  commercio  de  quinquilharias  c  muito  consi- 
derável c  tanto  (jue  o  |)()ela  Biirke  deu  por  isso  a 
Rii-mingham  o  nome  de  Ihc-loij  s/top  of  Kurope 
(a  loja  de  joias  da  Eurojui.j 

O  rio  Nea,  que  passa  por  esla  cidade,  não  é  rio 
navegável,  mas  esta  falia  supprem  numerosos  ca- 
naes,  que  põem  em  communicação  Rii'mingham 
com  Ilull,  Eiverpool,  Bristol,  Londres,  Oxford, 
Manchester,  e  Glasgow.  Com  eslas  ultimas  (jualro 
cidades  ligam-n'a  lambem  caminhos  de  ferro. 


o  PANORAMA 


323 


Abaixo  de  Manchcsler  é  Birmingham  a  cidade 
industrial  mais  imporlanle  de  Inglaterra,  e  talvez 
mesmo,  depois  da  crise  do  algodão,  que  ftM-io  pro- 
fundamente a  sua  rival,  lhe  pertença  o  primeiro 


lugar. 


BENGUELLA. 


(Conclusão) 

Não  lia  em  Hení^uella  cáes,  ou  qualquer  outra  obra  que 
facilite  os  desembarques;  estes,  quer  sejam  de  pessoas 
quer  de  géneros,  efí'ectu.im-se  sempre  ás  cosias  dos  ne- 
gros, e  correndo  as  probabilidades  d'um  banho,  que  se 
nos  objectos  causa  avarias,  jos  indivíduos  é  quasi  sem- 
pre a  origem  de  perigosas  febres.  Não  parece  nem  im- 
possível, nem  excessivamente  dispeníbosa,  a  construcção 
d'um  quebra-mar,  com  doca  para  abrigo  de  embarcações 
miúdas.  Mesmo  esta  obra,  ou  outra  semelhante,  já  foi 
começada  em  1837  pelo  governador  geral,  Manoel  Ber- 
nardo Vidal;  mas  lendo  começado  com  grande  fogo,  lam- 
bem parou  de  repente,  e  nenhum  dos  successores  d'a- 
quelle  governador  se  abalançou  ainda  a  igual  tentame. 
Depois  d'isso,ja  lá  houve  unia  singela  ponte  de  madeira, 
do  systema  americano  sobre  forqueias,  e  que  apezar  de 
não  servir  para  volumes  pezados,  sempre  era  de  utili- 
dade aos  homens;  mas  parece,  que  o  tempo  ou  mais 
ainda,  o  descuido  de  a  desarmarem  quando  houvessem 
indicações  de  grandes  calemas,  deu  causa  a  que  fosse 
destruída,  e  que  hoje  nada  exista  senão  a  praia,  aonde 
sempre  custa  a  desembarcar. 

Logo  ao  desembarque,  e  como  primeiro  padrão  do 
desleixo  pelas  nossas  cousas  de  ultramar,  encontra-se  a 
miserável  muralha,  que,  impropriamente,  se  alcunha 
de  fortaleza.  Consta  de  uma  cortina  em  partes  destruí- 
da, encerrando  uns  vetustos  pardieiros,  que  servem  de 
insalubre  quartel  da  tropa,  e  sustentando  por  cima  dos 
esbroados  parapeitos,  meia  dúzia  de  velhos  canhões,  com 
que  responde,  como  pôde,  às  salvas  dos  navios.  As  pobres 
peças,  pela  podridão  das  carretas  em  que  se  acham  mon- 
tadas, estão  já  antevendo  fim  idêntico  ao  de  suas  carco- 
midas companheiras,  que  jazem  pelo  chão  ao  abandono, 
servindo  de  ninho  a  repellentes  reptis. 

A  fortaleza  não  representa,  nem  pode  representar  como 
tal  na  actualidade.  Na  época  da  sua  fundação  podia  ser- 
vir para  com  seu  fogo  augmentar  as  diíTiculdades  de  um 
desembarque  na  freiíte  da  cidade,  e  mesmo  assim  vê-se 
que  não  satisfez  a  este  destino;  porque  de  forma  alguma 
conseguio  evitar  a  descida  dos  piratas  francezes  que  em 
1704  metteram  a  saque  e  arrazaram  a  cidade:  actual- 
mente, nem  sequer  se  pode  pensar  que  podesse  fa- 
zer opposição,  que  merecesse  a  pena  de  ser  citada.  Como 
cidadella  para  conter  em  respeito  a  população,  lambem 
nada  significa;  porque  não  volta  os  malfadados  canhões 
para  o  lado  da  terra,  e  por  este  mesmo  motivo  não  pôde 
impedir  qualquer  ataque  do  gentio. 

Corre  por  tradição,  (jue  foi  este  forte  construído  pnr 
ordem  e  a  expensas  (fum  particular,  jjara  n'elle  guardar 
os  escravos  em  que  negociava,  e  livral-os  assim  das  gar- 
ras dos  piratas,  que  por  muitas  vezes,  em  antigos  tempos, 
infestaram  esta  parte  da  costa.  Esta  narrativa  é  destituída 
de  fundamento,  a  não  ser,  que  se  retira  a  alguma  reedi. 
licação;  pois,  vê-se,  da  historia  da  conquista  de  líenguella, 
que"  a  fortaleza  foi  fundada  por  Manoel  de  Cerveira  Pe- 
reira, mandado  em  11517  a  conquistar  o  reino  de  Benguella, 
o  que  eflectuou. 

l'oí  reedificada  em  1710,  logo  depois  da  inva.são  dos 
francezes,  c  em  1761»,  como  se  lê  no  catalogo  dos  gover- 
nadores de  Angola  ;  e  nos  últimos  tempos  tem  lambem 
soffrido  alguns  concertos,  que,  na  maior  parle  dos  casos 
se  tem  reduzido  a  caiar  as  paredes,  para  fazer  vista  do 
mar,  ou  a  levantar  algum  panno  de  muro  derrocado,  por 
onde  chegavam  a  entrar  os  anímaes  ferozes. 

Tem,  presentemoate,  as  muralhas  bem  caiadas,  os  te- 
lhados dos  aquartellamenlos  em  bom  estado,  as  paradas 
Aarridas  e  lim|)as,  mostrando  ludo  que  ha  cuidado  da 
liarlc  de  quem  governa;  mas  nada  disto  faz  que  possa 
ser  considerada  nem  como  fortaleza,  nem  como  (piartel 
Passando  a  fortaleza,  encontram-se  logo  o  edíficio  da 


alfandega,  e  o  palácio  do  governo;  conslrucções  d'alve- 
naria,  com  primeiro  andar  e  armazéns,  e  conservando-se 
em  bom  estado  ainda  agora.  Segue-se  a  cidade,  que,  por 
assim  dizer,  se  compõe  de  meia  duzía  de  ruas,  largas  e 
espaçosas ;  mas  que  se  não  distinguem  pela  belleza  das 
casas,  das  quaes  poucas  são  (Kalvenaría  e  com  sobrados, 
sendo  a  maior  parle  construídas  de  adobes,  e  muitas 
d'ellas  a  cair  em  ruínas,  mesmo  sem  terem  sido  acabadas. 
Para  se  fazerem  os  adobes  com  que  elevam  os  prédios, 
cavam  no  terreno  próximo  para  tirar  o  barro,  de  maneira 
que  perto  das  habitações  ficam  grandes  buracos,  que  são 
reservatórios  d'aguas*das  chuvas  e  depósitos  de  lixo  c  la- 
ma. São  outros  tantos  pequenos  pântanos,  e  focos  per- 
manentes de  exhalações  mephííícas.  Era  este  um  dos  gra- 
ves desleixos,  que, 'ainda  ha  pouco  tempo,  concorria  para 
o  afeiamento  e  insalubridade  da  povoação ;  mas  que, 
comiudo,  vai  progressivamente  diminuindo ;  porque  se 
trata  ultimamente  do  aterramento  dos  caboucos,  com  o 
que  já  pela  repartição  de  obras  publicas  se  lêem  gasto 
não  pequenas  quantias. 

Ha  na  cidade  duas  igrejas,  das  quaes  uma  quasi  aban- 
donada, e  de  que  a  outra,  sob  a  invocação  de  Nossa  Se- 
nhora do  Populo,  é  a  freguezía  da  população.  Tem  ainda 
ricos  paramentos  de  altares,  e  celebram-se  ahí  os  myste- 
rios  do  culto  com  toda  a  devida  solemnidade.  A  Miseri- 
córdia conserva  um  hospital,  que  serve  lambem  de  enfer- 
maria militar;  e  tanto  o  hospital  como  as  igrejas  são 
construídas  de  pedra  e  cal. 

Não  ha  outros  edifícios  públicos  na  povoação,  nem  mes- 
mo de  outra  qualquer  natureza,  que  mereçam  ser  citados; 
a  não  fatiar  de  um  templo  maçónico,  que  ainda  está  por 
acabar,  e  que,  triste  destino  d*as  obras  dos  homens,  em 
vez  de  servir  ás  reuniões  dos  obreiros  da  Arfe  real,  ser- 
ve de  albergue  a  uma  recua  de  orelhudas  alimárias.  Não 
se  julgue,  que  isto  seja  fazer  espirito,  ou  crear  eiipressa- 
mente  situações  cómicas :  a  verdade  é  que,  por  dissen- 
ções  entre  òs  irmcws,  ou  por  outra  razão  qualquer,  dei- 
xou de  se  concluir  o  prédio  para  o  que  eslava  destinado, 
e  que  por  dentro  d'aquella  elegante  frontaria,  alojam-se 
actualmente,  acima  de  sessenta  jumentos,  que  um  rico  ne- 
gociante de  Benguella  lá  tem  criado.  O  melhor  de  ludo 
é  que  os  não  vende  nem  os  faz  trabalhar,  de  maneira  que 
as  asininas  criaturas,  conservam  se  nas  melhores  dispo- 
sições, gosando  as  delicias  da  ociosidade. 

*A  cidade  pôde  ter,  quando  muito,  500  a  330  fogos,  e, 
talvez,  4:00()  habitantes.  N'esle  ponto  não  ha  nem  pôde 
haver  certeza;  porque,  se  as  cstalisticas  são  em  toda  a 
parle  subjeilas  a  graves  erros,  imagine-se  o  que  ellas  se- 
rão n'uma  cidade  cm  que  faltam  lodos  os  elementos  para 
um  trabalho  consciencioso  d'essa  ordem,  e  em  que,  além 
d'isso,  ha,  como  em  todas  as  terras  africanas,  causas  par- 
ticulares que  tendem  a  falseal-as, 

A  população  é,  quasi  na  totalidade,  composta  de  pre- 
tos, quer  livres,  quer  escravos.  Os  primeiros,  pela  sua 
ignorância,  são  sempre  remissos  cm  fazer  as  devidas  de- 
clarações sobre  as  suas  famílias,  e  os  segundos  são,  na 
maior  parte,  occultados  por  seus  senhores,  aos  quaes  não 
convém  dal-os  a  rol,  ou  seja  para  fugir  aos  pagamentos 
de  registro  e  outros,  ou  para  estarem  sempre  livres  de 
os  considerar  como  fardos  commcrcíaes.  Baslam  estes  mo- 
tivos para  a  estatística  de  quabjuer  povoação  portugaeza 
d'Afríca,  ser  sempre  mentirosa. 

Eis  alguns  exemplos : 

\}\\\  mappa  publicado  nos  Annaes  marítimos  e  coloniaes 
referido  ao  anno  de  17i)D  e  assignado  pelo  governador, 
Alexandre  José  Botelho  de  Vasconccilos,  dá  á  cidade  de 
l)cnguella,  n'essa  época,  1:071  casas,  com  '2:136  babilan- 
tantesl  Parece  absurdo  Ião  grande  numero  de  casas  para 
tão  pouca  gente;  e  ainda  mais  considerando,  que  nas  cu- 
bulas  ha  sempre  agglomeração  ile  negros. 

Yêem-se  erros  idênticos  êm  trabalhos  mais  modernos, 
apesar  de  feitos  com  toda  a  consciência.  No  mappa  refe- 
rido a  31  de  dezembro  de  1861  e  publicado  no  Boletim 
olTicial  da  província  de  Angola,  diz-se  que  a  cidade  de 
Benguella  tem  988  fogos  para  i:000  habitantes;  c  n'um 
outro  relativo  a  31, de  dezembro  de  1863  dão-se  403  fo- 
gos para  3:6il  indivíduos.  Eis  o  que  nos  mostram  as  es- 
tatísticas de  Benguella. 

A  força  publica,  que  faz  a  policia  da  cidade  e  guarni 


324 


O  PANORAMA 


cão  do  forte,  é  composta  por  uma  companhia  de  caçado- 
res n.°3  da  província,  regimento  este,  que  tem  a  n)aior 
parte  das  praças  e  o  seu  principal  quartel  em  Mossamedes. 

Para  a  con°|iaiiliia  de  Jienguella  são  sempre  mandados 
dos  peiores  soldados,  na  maioria  degradados  dos  mais 
facinorosos  c  iiicorregiveis;  e  achando-se  aquella  compa- 
nhia quasi  sempre  sem  os  olíiciaes  competentes  e  grande 
numero  de  \ezes  entregue,  quando  truito,  a  algum  po- 
bre sargento  nomeado  alferes  para  o  ultramar,  parece  im- 
possi\el  como  ali  se  conser\a  alguma  disciplina,  e  como 
taes  homens  depravados  de  costumes  e  contumazes  no  cri- 
me, se  decidem  a  obedecer  ás  aucloridailes.  É  o  terror 
das  cargas  de  pao,  que  contem  parte  d'elles;  c  a  outros 
são  as  febres,  que  se  encarregam  de  lhes  quebrar  os  Ím- 
petos do  génio.  São  estes  dois,  os  elementos  principaes 
da  disciplina  das  tropas  africanas. 

Ainda  que  um  grande  numero  de  soldados  sejam  bran- 
cos, d'estes  iioucos  se  vêem  no  serviço;  porque  cm  quasi 
todos  os  tem|)os  estão  com  baixa  ao  hospital,  para  onde 
são  conduzidos  pelo  deboche  e  pela  crápula,  mais  talvez 
do  que  pela  ruindade  do  clima. 

O  serviço  de  saúde  tem  sido  constantemente  das  cou- 
sas mais  descuidadas  uo  districto,  e  entregue  muitas  ve- 
zes a  Deus  e  á  \  entura.  O  hospital  é  soíTrivel;  ha  na  po- 
voação duas  boas  e  bem  fornecidas  boticas;  mas,  quasi 
sem*pre,  faltam  os  homens  habilitados  como  médicos,  e 
lomam  o  seu  lugar  os  mesinheiros  e  os  charlatães.  Ha 
l)aslante  tempo  que  retiraram  d;i  cidade  o  cirurgião  mór 
da  província,  e  o  único  facultativo  que  lá  habitava,  e  ul- 
limamenle  fazia  o  serviço  nas  enfermarias  militar  e  civil, 
um  cirurgião  da  escola  de  Góa,  que  não  parecia  gosar 
das  sympathias  da  população;  pelo  menos  entre  a  gente 
mais  subida,  que,  auciosa,  esperava  a  chegada  ao  porto 
de  navio  de  guerra,  que  levasse  cirurgião. 

Existem  na  cidade  vários  estabelecimentos  mercantis  e 
casas  commerciaes  de  consideração;  e  ha  um  mercado 
publico,  diário,  sempre  abastecido  dos  géneros  de  pri- 
meira necessidade.  Está  construído  n'uma  vasta  praça, 
é  murado  e  gradeado,  apresentando  certa  apparencia  lim- 
pa e  decente. 

Não  se  pôde  negar  que,  nos  últimos  annos,  a  cidade 
de  Benguella  tenha  ganho  muitos  melhoramentos  munici- 
paes,  e  que,  pelas  obras  publicas  se  tenham  gasto  gros- 
sas quanliis  em  aterramenlos  de  pântanos  e  covas;  mas 
Dotam-se  em  todas  as  obras  já  feitas,  a  falta  de  pessoal 
lechnico,  e  uma  direcção  seguida  conforme  a  um  plano 
fixado  d'avanço. 

É  só  o  capricho,  ou  a  boa  vontade  dos  governadores 
quem  influe  na  continuação  ou  direcçp.o  dos  trabalhos,  e 
nem  sempre  aquelles  tem  sido  dos  mais  esclarecidos,  zelo- 
zos,  ou  desinteressados.  Deve  ser  empregado  em  benefi- 
cio da  cidade,  e  nas  obras  mais  próprias  a  embcllesal-a  e 
saneal-a,  lodo  o  producto  dos  três  por  cento  ad  valorem 
com  qué  esta  sobrecarregado  ocommercio,e,  comtudo,  a 
voz  geral  accusou  desperdícios,  que,  felizmente,  parece 
terem  cessado  n'esles  últimos  tempos. 

Além  dos  paúes  e  caboucos  que  se  tem  aterrado,  ha 
ainda  na  cidade  uma  regueira  cavada  pelas  correntes  da 
agua  das  montanhas  no  tempo  das  chuvas,  e  que,  em 
quasi  todo  oanno,  constituo  um  charco  continuado  e  im- 
mundo.  Ainda  não  houve  a  lembrança  de  cavar  um  leito 
a  este  riacho,  c  le\al-o  a  desaguar  a  i)raia,  de  maneira 
que  as  aguas  do  monte,  não  se  (-spalhussem   j)elas  ruas  1 

Todas  estas  aguas  infiltradas  pelos  terrenos,  dão  nas- 
cimento aos  poços  e  cacimbas,  do  (|ue  bebe  o  geral  da 
população;  porem,  como  só  se  encontra  agua  pouco  po- 
tável e  a  mais  d'ella  salobra,  os  priíicipaes  habitantes  e  as 
guarnições  dos  navios  ab<istecem-se  da  que  mandam  bus- 
car ao  Cavaco,  rio  (pie  entra  no  mar  cousa  de  uma  mi- 
lha ao  norte  da  cidade. 

C-omo  resultado  d'esla  abundância  (Kaguas,  e  mais  ain- 
da das  cheias  despenhadas  diis  monlanhas,  a  planície  em 
redor  da  cidade  c  excessivamente  fértil,  ijastanie  produ- 
clivas  as  hortas,  e  saborosos  os  fructos  e  hortaliças  que 
ij'ellas  se  dão. 

O  disiríclo  de  Benguella  c  talvez  o  mais  rico  da  nossa 
Africa  Occidental;  c  de  tudo  que  exporta  é  a  cidade  de 
S.rdippe  o  deposito  e  lugar  de  despacho  d'alfari(lega.  Por 
isso,  o  seu  commcrcio  e  ainda  hoje  suiiimamentc  valioso, 


e  continua  a  ser  o  ponto  da  província  em  que  se  encontra 
maior  quantidade  de  moeda,  apesar  de  haver  quasi  ces- 
sado o  embarcpic  de  escravos,  que  era  outr*ora  a  grande 
fonte  de  receita.  Pena  e,  que  ainda  hoje  ali  se  encontre 
quem  se  em|u-egue  em  Ião  nefando  trafico;  porque,  em 
quanto  sonham  com  os  ganhos,  na  actualidade  tão  proble- 
máticos, do  commcrcio  íllicíto,  deixam  de  entregar-se  á 
agricultura  e  ao  negocio,  ou,  se  d  fazem,  c  só  cm  um 
gráo  í^uniciente  a  serv  ir  como  de  capa  da  fraude,  e  per- 
dem assim  o  tempo  e  (pianliosos  capitães. 

Apesar  das  activas  diligencias  das  auctoridades  supe- 
riores da  província,  do  zelo  c  interesse  de  alguns  dos 
governadores  de  Benguella,  e  do  aturado  serviço  das  es- 
tações navaes,  é  fora  de  duvida  que  em  pontos  distantes 
da  capital  do  districto  se  teem  feilo  embarques  de  pretos 
para  alem  mar;  embarques  que  teem  sido  na  maior  par- 
te perdidos,  mas  que  desfalcam  a  província,  desviando 
o  commcrcio  dos  interesses  legaes,  aventurando  contos  e 
contos  de  réis,  e  roubando  braços  à  cullivaçâo. 

D'este  districto  exporta-se  urzella,  sal,  c°èra,  gomma, 
couros,  e  já  mesmo,  grande  qualidade  de  arrobas  d'a!go- 
dão. 

O  movimeulo  do  porto  não  é  constante  e  soffre  inter- 
rupções, mas  pôde  dizer-se,  que  nunca  é  inferior  a  dez 
ou  doze  embarcações  de  cabotagem  entradas  e  saídas,  e 
que  sempre  ali  ha  fundeado  algum  navio  de  alto  bordo;  ha 
occasiões,  e  não  são  raras,  em  que  se  vêem  em  Benguella 
seis  ou  oito  navios.  Abastados  negociantes  do  reino  não  tem 
abandonado  aquelle  importante  balcão ;  lá  conservam  casas 
suas,  ou  seus  agentes,  e  vários  navios  das  praças  de  Portu- 
gal, fazem  escala  pelo  Brazil,  d'onde  levam  aguardente  e 
outros  géneros  á  Africa,  e  retiram  de  Benguella  com  car- 
regações para  a  metrópole. 

O  districto  de  Benguella  termina  ao  norte  pelo  conselho 
do  Egilo,  com  povoação  á  beira-mar,  dominada  por  um 
bonito  fortesinho,  com  algumas  casas  soffriveis,  tudo  eu- 
tallado  entre  escalvadas  encostas,  e  fechado  ao  fundo  por 
uma  elevada  e  abrupta  rocha,  que,  na  época  das  chuvas 
forma  uma  vistosa  cascata.  Junto  á  base  d'este  rochedo 
corre  um  rio  deexcellenle  rgua  que  alimenta  os  habitantes 
e  sustenta  a  perenne  vegetação,  que  circumda  a  aldeia. 

Visto  do  mar  o  Egito,  ou*Logito  é  um  sitio  extremamen- 
te pitoresco,  mas  sempre  de  diflicil  accesso,  pela  extraordi- 
nária ressaca  que  rebenta  na  praia. 

É  das  rochas  d'este  ponto  que  tem  saldo  uma  grande 
parte  da  urzella  que  se  tem  exportado  de  Benguella. 

Entre  o  Egito  e  a  cidade  de  S.  Filippe  encon(ra-se  a  ma- 
gnifica e  espaçosa  enseada  do  Lobito,  porto  fechado  do  la- 
do do  mar  por  uma  extensa  península  de  areia,  e  do  lado 
da  terra  por  altas  montanhas,  que  o  defendem  da  fúria  do 
sopro  das  trovoadas. 

Este  porto  socegado  e  Iranquillo,  de  fácil  entrada,  ape- 
sar de  ficar  completamente  escondido  pela  língua  da  pe- 
nínsula, servia  outr'ora  de  valhacouto  e  esconderijo  de 
negreiros,  e  é  hoje  lugar  de  repouso  dos  cruzadores  in- 
glezes  e  porluguezes. 

Por  causa  da  belleza  e  segurança  do  porto,  houve,  ha 
trinta  annos  a  idéa  de  transferir  para  ali  a  capital  do  dis- 
tricto e  fazer  d'aquelle  sitio  a  nova  Benguella;  mas  por 
causa  da  falta  de  agua  potável,  que  ou  se  havia  ir  bus- 
car á  Calundjella  (quatro  milhas  distante  do  fundo  da 
bailia,  aonde  se  projectava  a  cidade)  ou  havia  de  cnca- 
nar-se,  o  que  se  julgou  excessivamente  dispendioso;  pôz-se 
de  parte  este  plano,  que,  comtudo,  era  exe(piivel  e  que 
talvez  de  futuro  desse  grandes  lucros,  e  abandonou-se 
completamente  aquelle  local. 

Na  conlra-costa  d'este  i)orto  e  já  porto  da  aldeia  da 
Catumbella,  ha  salinas  aonde  se  colhe  grande  quantidade 
de  sal. 

Passando  a  cidade  para  o  sul  do  Sombreiro,  dá-se  pri- 
meiro com  a  bailia  Farta,  aonde  conservam  os  seus  esta- 
belecimentos piscatórios  vários  habitantes  de  Benguella. 
íi  ali  (|ue  se  .secca  uma  grande  porção  do  peixe,  que  ap- 
parece  de|)0is  nos  diversos  mercados  da  Africa,  e  que  se 
faz  (Poulros  o  azeite  que  embarca  para  exportação. 

Os  mares  da  Africa  são  extremamente  abundantes  cm 
peixe,  c  c  na  costa  do  sul  que  se  applícam  mais  a  esta 
industria. 

Segue-se  depois  a  extensa  praia  das  Salinas,  que,  como 


o  PANORAMA 


325 


o  nome  indica,  lem  salinas  e  em  grande  numero,  das 
quaes  se  iilimeula,  por  assim  dizer,  Ioda  a  provincia. 

No  recôncavo  formado  i)elo  lado  do  sul  d'a(]uella  im- 
mensa  praia,  acha-se  o  porlinlio  do  Luaclio,  ou  (luio, 
que  e  hoje  um  dos  sítios  mais  importanles  da  cosia  do 
sul. 

Devido  á  iniciativa  de  honrados  negociantes  de  Ben- 
guella,  a  quem  ,cabe  todo  o  louvor  pelos  esforços  que 
para  tal  empregaram,  é  no  i.uaclio  que  se  vêem  actual- 
mente as  mais  bellas  e  produclivas  fazendas  da  cultura 
do  algodão.  São  importanles  i)lanlações  já  agora  de 
avultado  rendinionio,  e  que  de  futuro  podem  e  devem 
ser  um  manancial  de  riquezas.  Distingue-se  entre  todas  a 
fazenda  denominada  de  Santa  Thereza,  da  casa  —  Torres 
Barruncho— e  ha  outras  também  muito  boas  de  que  os 
nomes  não  lembram  ;  mas  a  lodos  estes  audaciosos  inno- 
vadores,  que  não  lemeram  arrostar  com  os  preconceitos 
arreigados  na  gente  africana,  quecomprehenderam,e  bem, 
qual  é  a  verdadeira  riqueza  da  Africa,  muita  honra  e 
muito  proveito  lhes  caiba,  que  tudo  lhes  é  devido  e  bem 
merecem.  Podessem  estes  e.vemplos  tão  productivos  aos 
que  os  intentaram,  produzir  ainda  mais  um  fructo  ulilis- 
simo,  um  desengano  pleno  aos  crentes  do  trafico  bárba- 
ro de  escravos,  aos  descrentes  da  agricultura ! 


É  lambem  no  Cuio  que  vem  embarcar  o  cobre  extraí- 
do das  minas  próximas,  e  os  outros  géneros  do  Dombe 
grande,  e  concelhos  annexos. 

Ainda  mais  para  o  sul  do  Loacho,  ha  outras  fazendas 
em  estado  de  prospera  cultura,  e  feitorias  aonde  se  faz 
bom  negocio,  mas  também  as  ha,  de  que  é  permiltido 
suppor  que  seja  a  colheita  do  algodão,  o  fim  merameule 
ostensivo... 

Kntre  as  mais  notáveis  fazendas  do  sul^  figura  a  Equi- 
mina,  grande  propriedade  que  foi  em  tempo  d'um  famige- 
rado negreiro,  e  que  hoje  pertence  a  uma  companhia  de 
Loanda,  que  está  no  começo  da  exploração  de  tão  vastas 
plantações. 

Em  "rápidos  traços  ahi  fica  lançado  um  esboço  da  des- 
cripção  da  cidade*  e  diítricto  de  "Benguella,  correndo  ao 
longo  da  costa  de  um  a  outro  extremo.  Falta  muito  a  es- 
ta descripção  para  ser  completa,  mas  não  era  para  agora 
a  apreciação  das  medidas  governativas,  a  historia  do  es- 
tabelecimento, os  costumes  do  gentio,  a  visita  ao  sertão, 
e  lufío  que  resta  a  contar  sobre  esta  parle  da  Africa. 

Não  comportava  o  espaço  Ião  largo  quadro ;  mas  ludo 
se  fará  a  seu  tempo  e  logar. 

,lu!lio  de  186G. 

C.  E.  CoRUE.v  DA  Silva. 


Kara-Hissar. 


A  cidadede  Kara-llissar,  cliamada  lambem  Afium- 
Kai"a-IIissar,  peia  grande  abundância  de  ópio  que 
se  cultiva  nas  suas  ciiTunivisinhanças,  é  urna  das 
mais  lindas  e  importanles  da  Anatólia,  provincia 


da  Tui-quia  da  Ásia  situada  no  centro  d'Angora, 
llamid,  Kutaich  e  Cai-amania. 

A  impoilnncia,  que  esta  cidade  sempre  leve  e 
o  elevado  gráo  de  prosperidade  em  que  actualmen- 


326 


O  PANORAMA 


le  se  acha,  dimanam  da  sua  bclla  posição  na  grande 
eslrada  que,  de  Esmiina,  conduz  à  Pérsia,  Geór- 
gia e  outros  mais  paizes,  próximos  do  Euphrales, 
que  lem  dado  lugar  a  que  ella  baja  sido  sempre 
o  dej)osilo  das  mercadorias  dos  dois  mundos.  Os 
seusliabilanles,  em  numero  de  sessenta  mil,  pouco 
mais  ou  menos,  são  mui  activos  e  industriosos,  eas 
suas  lojas  acbam-se  ri«) mente  foinecidas.  No  sé- 
culo passado,  eram  muito  apreciados,  em  vários 
pontos  do  Oriente,  os  sabres,  armas  de  fogo,  mar- 
iO(|uins,  e  lapeçaiias  que  se  fabricavam,  em  grande 
escala,  n'esla  cid;ide. 

Kara-Ilissai'  ulVeiece  á  vista  um  quadro  de  ad- 
mirável belleza.  Aqui,  grandes  rochedos  negros  e 
escalvados,  bo  cume  de  um  dos  quaes  está  cons- 
truído o  Caslello  Negro,  hoje  em  abandono,  mas 
que,  fortificado,  seria  inexpugnável.  Ali,  vastíssi- 
mos campos  cobertos  de  linda  e  proveitosa  vege- 
tação, que  faz  as  delicias  e  a  abundância  dos  seus 
habitantes.  Nas  abas  dos  rochedos  a  cidade,  com 
as  suas  dez  mesquitas,  algumas  grandes  e  sump- 
tuosas, e  os  seus  pequenos,  porém  vistosos  jardins. 
l*L'las  ruas  da  cidade,  á  semeliiança  da  rainha  do 
Adriático,  um  pequeno  rio  deslizando-se  doce  e 
manso,  e  de  cujo  seio  se  vêeni  sair  elegantes  bar- 
quinhos,  que  servem  para  o  transporte  de  merca- 
dorias, e  ao  mesmo  tempo  para  recreio  dos  indi- 
víduos. 

A  nossa  gravura  dá  uma  idéa  do  que  lemos  dito. 


FRANCISCO  PIZARUO 
III 

Apesar  de  ter  attingido  o  fim  que  se  propose- 
ra,  e  de  ter  desmentido  brilhantemente  os  receios 
do  governador  de  Panamá,  apesar  de  ter  feito 
entrar  no  duminio  da  realidade  o  que  se  julgara 
até  ahi  sonho  esplendido  mas  mentiroso  de  na- 
vegadores illudidos  pelas  phantasiosas  relações 
dos  Índios,  Pizarro  não  conseguira  vencer  a  má 
vontade  de  D.  Pedro  de  los  Rios,  e  nem  o  jubilo 
dos  seus  companheiros,  nem  os  vasos  de  oiro  c 
prata  que  elle  trouxera  como  espécimens  da  ri- 
queza do  paiz  poderam  quebrar  a  obstinação  do 
chefe  da  colónia.  O  motivo  que  allegava  de  não 
conceder  licença  para  novos  alistamentos  era  o 
não  se  poder  vencer  tão  poderoso  império  com 
Ião  diminutas  forças,  como  eram  as  de  que  cUe 
podia  dispor.  O  verdadeiro  motivo  era  o  receio 
qiie  elle  tinha  de  ver  fugirem-lhe  os  colonos  c  fi- 
car, governador  sem  governo,  com  os  velhos  e 
as  mulheres  por  súbditos. 

Em  presença  da  teima  do  governador,  resolve- 
ram-se  os  três  associados  a  entenderem-se  directa- 
mente com  o  governo  da  metrópole.  Decidio-se  por- 
tanto que  fosse  Pizarro  á  Europa, e  que  deslumbras- 
se a  alma  ambiciosa  de  Carlos  V  com  aperspecliva 
da  dilatação  do  seu  domínio  sobre  tão  vasto  im- 
pério. Os  fundos  dos  sócios  estavam  já  tão  reduzi- 
dos pelos  esforços  sobrehu manos  a  que  se  tinham 
elevado,  que  a  muito  custo  poderam  reunir  a 
somma  necessária  para  Pizarro  voltar  á  Europa^ 
e  apresentar-se  decentemente  na  corte. 

Começa  ireste  ponto  a  revelar-se  a  perfidia  de 
Pizarro.  Convencionara-se  entre  os  Ires  associa- 
dos  que   Pizano  pediria  para  si  o  posto  de  go- 


vernador, para  Almagro  o  de  seu  lugar-tenente> 
para  Luque  a  dignidade  de  bispo  das  regiões  que 
iam  conquistar.  Apenas  se  vio  na  Europa,  o 
honrado  homem  tratou  unicamento  de  si.  A  elo- 
quência que  conseguira  arrastar  de  novo  aos  pe- 
rigos d'uma  expedição  incerta  liomens  fatigados 
pelos  trabalhos  e  misérias  d'um  anuo  inteiro,  e 
outros  incrédulos  e  confirmados  na  sua  incredu- 
lidade pelo  espectáculo  que  tinham  diante  dos 
oltios,  essa  eloquência  fascinadora  não  teve  o 
rainimo  cusio  em  deslumbrar  o  espirito  dos  mi- 
nistros de  Carlos,  e  o  do  próprio  imperador,  cn- 
tluisiasta.  como  todas  as  grandes  almas,  de  vas- 
tos projectos  e  de  emprezas  audaciosas. 

Obrigou  se  portanto  Pizarro  a  levantar  a  sua 
custa  dnzLMitos  e  cincoenta  homens,  e  a  correr 
com  todas  as  despczas  da  expedição;  em  troca 
foi  nomeado  governador,  capitão  general,  e  ade- 
líuilado  de  lodos  os  paizes  que  conquistasse,  foi 
declarado  independente  do  governador  de  Pana- 
má, e  deu-selhe  poder  de  nomear,  como  enten- 
dessCj  os  oíficiaes  que  deviam  servir  com  elle. 
Para  Almagro  pedio  simplesniente  o  posto  de  go- 
\ernador  da  fortaleza  que  havia  de  erigir  em 
Tumbez,  o  que  era  uma  verdadeira  zombaria, 
porque,  sendo-lhe  oulliorgada  a  faculdade  de 
nomear  os  seus  oíficiaes,  podia-lhe  dar  o  com- 
mando  de  quantas  fortalezas  quizesse  sem  prévia 
auclorisação  do  monarcha.  Só  o  padre  Luque 
obteve  o  que  pretendia  :  Pizarro  vio  que  não  po- 
dia ser  elle  mesmo  bispo,  e  não  teve  por  conse- 
guinte difliculdade  em  pedir  o  báculo  para  o  seu 
companheiro. 

Devem  suppòr  qual  seria  a  indignação  d'Alma- 
gro,  vendo-se  logrado  pelo  seu  pérfido  sócio.  Es- 
teve a  associação  para  se  romper,  e  ter-se-hia 
realisado  a  ruptura  se  Pizarro,  perspicaz  como 
sempre,  e  sentindo  as  difiiculdades  que  um  suc- 
cesso  tão  escandaloso  produziria,  não  tivesse  apa- 
ziguado o  seu  companheiro,  abdicando  n'elle  um 
dos  postos  que  accumulára  em  si,  o  de  adelan- 
tado,  e  promettendo  obtcr-lhe  depois  um  governo 
independente.  Almagro^  homem  franco,  e  leal, 
perdoou  tudo,  mas  seria  exigir  muito  suppòr 
que,  no  fundo  do  coração  lhe  não  tivesse  ficado 
um  gérmen  de  desconfiança,  que,  depois^  viria 
a  produzir  fructos  amargos. 

Com  cento  e  vinte  e  cinco  homens  viera  Pizarro 
da  Europa,  metade,  apenas,  dos  que  se  obrigara 
a  levantar.  Ainda  que  Fernando  Cortez,  o  con- 
quistador do  México,  enconlrando-o  em  Sevillia, 
e  sabendo,  por  experiência  própria,  o  quanto 
podia  ser  lucrativa  a  expedição,  lhe  tivesse  em- 
prestado algum  dinheiro,  não  tinham  chegado  os 
fundos  para  completar  a  força  exigida  pelo  go- 
verno, e  Pizarro,  para  se  esquivar  a  investigações, 
dera  á  vela  furtivamente.  Em  Panamá  augmen- 
lára  a  sua  tro])a,  elevando-a  á  força  de  cento  e 
oitenl-tt  homens,  dos  quaes  eram  trinta  e  cinco 
de  cavallaria.  Com  este  punhado  de  hespanlioes, 
repartidos  por  trcs  navios,  parlio  l*izarro  para  o 
Pcrú,  no  firme  intento  de  conquistar  um  impé- 
rio que  lhe  i)odia  oppõr  um  exercito  de  cem  mil 
homens.  De  (jue  desconhecido  bronze  era  feito  o 
espirito  dos  homens  d'aquellc  século,  e  que  sy- 
billa  ignota,  prophetisaudo-lhes  victorias  inacre- 
ditáveis, os  decidia  a  aífrontarem  com  tanta  con- 
fiança perigos  mysteriosos? 

Em  feveieiro  de  {IV.W  deu  á  vela  a  nova  expe- 
dição. Almagro  ficou  em  Panamá,  como  da  pri- 


o  PANORAMA 


327 


nieira  vez^  para  levar  os  reforços  que  podesse 
obter. 

Em  treze  dias  fez  Pizarro,  já  conhecedor  das 
monções  favoráveis,  a  viagem  que  fizera  oulr'ora 
em  três  mezes,  mas,  impellido  pelas  correntes  e 
pelos  ventos,  teve  de  ir  desembarcar  na  bahia  de 
S.  Matheus^  cem  léguas  ao  norte  deTumbcz.  Este 
acaso  ia  fazendo  gorar  a  expedição,  porque  os 
soldados  novos^  que,  em  vez  de  desembarcarem 
logo  no  centro  da  riqueza  peruviana,  eram  obri- 
gados a  atravessar  estéreis  desertos,  e  a  solTier 
mil  calamidades,  romperam  cm  murmúrios  c  dos 
murmúrios  passariam  á  revolta,  se  a  energia  de 
Pizarro,  e  as  asserções  dos  primeiros  expedicio- 
nários os  não  tive.-sem  apaziguado. 

Chegaram,  finalmente,  á  provinda  de  Coaque, 
e  o  explendor  extraordinário  dos  templos  que  nas 
cidades  encontraram,  pagou-os  bem  de  todas  as 
fadigas  e  privações.  Logo  ahi  se  começou  a  sen- 
tir o  immcnso  inconveniente  que  resultava  para 
o  governo  hespanhol  da  sua  não  interferência 
n'essas  expedições.  Dirigidas  por  delegados  seus, 
não  arruinariam  os  paizes  conquistados,  e  dariam 
á  coroa  das  Hespanhas  uma  província  immensa, 
cujas  contribuições  regulares  bastariam  para  en- 
riquecer o  fisco.  Mas  os  conquistadores,  movidos 
pela  ambição  pessoal,  tratavam  só  de  se  enrique- 
cer, e  faziam  como  o  desastrado  que  matava  a 
gallinha  dos  ovos  de  ouro.  Em  Coaque  principia- 
ram esses  roubos,  incríveis,  desmedidos  que  es- 
gotavam o  paiz  e  d'um  império  florescente  fa- 
ziam um  deserto,  de  cujo  solo  devastado  desen- 
tranhavam depois  os  Hespanhoes  essas  estéreis  ri- 
quezas do  oiro  das  minas. 

De  tanta  opulência,  conquistada  de  súbito,  quiz 
logo  Pizarro  tirar  o  máximo  resultado;  enviou 
um  navio  a  Panamá,  portador  de  grandes  som- 
mas  paraAlmagro,  afitn  deste  fazer  os  alistamen 
tos  necessários,  e  de  pro\ocar  a  cubica  no  ani- 
mo dos  aventureiros  da  colónia.  Effectivamente,  á 
vista  d'essa  opulência  inesperada,  como  que  um 
choque  eléctrico  abalou  toda  a  população.  Logo 
os  alistamentos  se  succederam  com  rapidez,  e,  se 
os  chefes  admittissem  tantos  coUegas  á  repartição 
dos  lucros,  a  colónia  em  peso  se  transpunha  para 
a  America  do  Sul. 

Entretanto,  Pizarro  continuava  a  sua  marcha 
Iriumplial,  encontrando  fraquissima  resistência; 
o  estranho  aspecto  dos  europeus,  as  suas  armas 
de  fogo,  os  seus  ginetes  e  o  modo  como  os  caval- 
leiros  os  guiavam,  de  f()rma  que,  aos  olhos  dos 
ingénuos  Índios,  afliguravam  se  uns  centauros 
desconhecidos,  tudo  isso  bastava  para  fazer  com 
que  o  terror  precedesse  a  marcha  dos  hespanhoes. 
Não  precisaria  Jasão  de  Medea,  se  fosse,  como  es- 
tes, o  dragão  que  defendia  o  vello  d'oiro  da  Col- 
chida. 

Só  na  ilha  de  Puna  encontrou  Pizarro  uma  re- 
sistência mais  seria.  Seis  mezes  gastou  em  subju- 
gar os  habitantes,  o  que  prova  unicamente  a 
obstinação  d'estes,  mas  de  modo  nenhum,  a  sua 
firmeza  no  combate.  Se  a  tivessem,  no  lim  de 
seis  mezes  não  iiavia  um  só  hespanhol  vivo.  Mas, 
tentando  defender-se  com  desespero,  apenas  troa- 
va um  canhão,  apenas  uma  carga  de  trinta  ca- 
valleiros  de  Pizarro  fazia  treuier  o  sulo,  disper- 
savam-se  os  pobres  súbditos  dos  Incas,  e  sotíriam 
uma  horrivel  carnificina. 

Em  Tumbez  as  moléstias  retiveram  ainda  três 
mezes  a  expedição.  Ahi  recebeu  Pizarro  dois  des- 


tacamentos de  reforço,  pouco  valiosos  pelo  nume- 
ro) eram  apenas  de  trinta  homens  cada  um  (mas 
immensamente  pela  qualidade  dos  ofTiciaes  que 
os  commandavam.  Chamavam-se  elles  Sebas- 
tião Benalcazar,  e  Fernando  de  Soto,  oíficiaes 
experimentados,  veteranos  das  guerras  d'Ilalia,  e 
costumados  á  disciplina  hespanhola,  que  era, 
n'esse  paiz,  a  grande  causa  da  sua  superiori- 
dade. Um  corpo  de  duzentos  homens,  unido  c  com- 
pacto e  obedecendo  a  uma  vontade  única,  ha  de 
ter  sempre  grandes  vantagens  sobre  uma  confu- 
sa massa  de  trinta  ou  quarenta  mil  homens, 
combatendo  individualmente,  sem  direcção  nem 
unidade. 

Na  foz  do  rio  Piura  fundou  Pizarro  a  primeira 
fortaleza  hespanhola  a  que  deu  o  nome  de  S.  Mi- 
guel. Tendo-se  assim  assegurado  uma  base  de 
operações,  e  já  mais  informado,  graças  ao  vagar 
da  sua  marcha,  da  constituição  politica  do  Peiú, 
da  sua  situação  actual  e  das  suas  dissenções  in- 
testinas, Pizarro  pòz-se  audazmente  em  marcha 
na  direcção  de  Cuzco. 

Sigamos  o  rasto  de  sangue  que  essa  gloria  im- 
mensa e  iniqua  vai  deixando  pelo  caminho  que 
percorre. 

{Conlinua). 

A  PREDICÇÃO  E  PREVISÃO  DO  TEMPO 

Predizer  o  lempo,  é  indicar  um  anno  ou  seis 
mezes  antes  o  tempo  que  lia  de  fazer  n'um  dia  ou 
periodo  dados.  Quando  se  (rala  de  pbenomenos 
regulares,  periódicos,  nada  de  mais  lógico  e  mais 
certo  que  estas  predicções.  Os  astrónomos  calcu- 
lam os  eclipses  com  muitos  annos  de  antecedên- 
cia e  nunca  se  enganam,  porque  es  eclipses  re- 
sultam das  posições  respectivas  da  terra  e  da  lua 
em  relação  ao  sol.  Estas  posições  são  a  conse- 
(piencia  necessária  de  movimentos  geométricos  re- 
gulares, invariáveis  e  perfeitamente  conhecidos. 
A  predicção  é,  pois,  não  somente  possível,  mas 
lambem  é  certa.  Do  mesmo  modo  podemos  saber 
com  antecedência  qual  será  em  cem  annos  a  or- 
dem de  successão  das  estações  do  anno  e  o  nu- 
mero de  horas  durante  as  quaes  o  sol  estará  aci- 
ma do  horisonle  em  um  dia  e  lugar  dados.  Es- 
tas pi'edicçõts  resultam  do  conhecimento  do  mo- 
vimento da  lei'ra  á  roda  do  sol,  combinado  com 
a  inclinação  do  eixo  da  leii'a  sobre  o  plano  da 
ecliptica.  Não  succede,  porém,  assim  com  as  va- 
riações alhmosphcricas,  com  especialidade  fora  dos 
trópicos. 

As  mudanças  de  tempo  não  são  regularmente 
periódicas.  Em  vão  se  tem  procurado  ligal-as  ás 
phases  lunares.  Todas  as  vezes  que  o  estudo  tem 
sido  feito  séria  e  pacientemente,  sem  preconcei- 
tos, os  resultados  lêem  sido  negativos.  A  gente 
d*>s  campos,  que  não  toem  lempo  para  se  dai'em 
a  longas  averiguações  estalisticas,  obedece  á  vaga 
necessidade  de  ligar  as  mudanças  do  lempo  a  uma 
causa  mais  geral  c  de  prevel-as  em  interesse  dos 
seus  trabalhos  agrícolas:  assim,  o  cultivador  acre- 
dita, geralmente,  nas  iniluencias  lunares.  Impres- 
sionado por  alguns  casos  em  que  a  nmdança  de 
lem])o  tom  coincidido  com  uma  phase  da  lua,  es- 
quece lodos  os  casos  cm  que  não  tem  lido  lugar 


328 


O  PANORAMA 


a  coincidência,  como  o  medico  prevenido  a  favor 
do  remédio  que  applica,  esquece  os  seus  revezes 
e  apenas  se  lembra  dos  resullados  felizes. 

É  lambem  muitíssimo  raro  não  se  esquecerem 
complctamenie,  apreciando  esías  predicções,  as 
noções  mais  simples  de  probabilidade.  Geralmen- 
te,* os  propbelas  annunciam  lempeslades,  chuvas 
abundantes  paia  as  estações  em  que  ellas  costu- 
mam ter  lugar.  Mas  é  necessário  ter  em  vista  que 
nestas  estações,  especialmente  no  meio  dia  da 
Europa,  a  probabilidade  é  a  favor  da  chuva.  Ain- 
da mais:  tem-se  calculado,  que,  em  certos  pon- 
tos, póde-se  apostar  40  contra  GO  em  como,  n'um 
dia  marcado,  choverá.  Em  outros,  clima  mais  so- 
co, a  probabilidade  da  chuva  para  um  dia  qual- 
quer não  excede  de  io  contia  7o  ;  mas  na  pri- 
mavera e  no  outomno  seiá  de  oO  contra  oO,  isto 
é,  ha  tantas  probabilidades  de  chuva  como  de 
bom  tempo. 

As  predicções  não  passam  de  coincidência,  por- 
que não  se  podem  deduzir  de  leis  conhecidas  na 
variação  do  tempo.  As  mudanças  athmospheiicas 
que  sobrevem  no  nosso  paiz  são  a  repercussão  das 
alterações  que  seproduzem,  a  centenares  de  léguas 
de  distancia,  sob  a  inlluencia  da  temperatura  do 
ar,  da  pressão  alhmospherica,  de  ventos  reinan- 
tes ou  accidenlaes,  da  evaporação,  mais  ou  menoS(, 
dos  mares  e  das  terras,  de  tensões  eléctricas,  ele. 
ele.  Prever  com  muito  tempo  de  antecedência  a 
existência,  a  força  relativa,  os  eíTeitos  destes  ele- 
mentos que  se  juntam  uns  aos  outros,  se  modiíi- 
cam  ou  se  destroem,  é  complelamenle  impossí- 
vel. A  mais  va^la  intelligencia,  abraçando  só  com 
um  relancear  de  olhos  o  conjunclo  da  alhmosphe- 
ra  terrestre,  c  dotada  de  todos  os  conhecimentos 
physicos  e  meteorológicos  da  nossa  época,  seria 
incapaz  de  predizer  de  uma  maneira  infallivol  o 
tempo  que  hade  fazer  em  um  lugar  dado,  ummez 
antes,  que  fosse. 

Se  a  sciencia  e  a  lógica  condemnam  as  predic- 
ções meteorológicas,  estão  de  accordo  ))ara  pro- 
clamarem a  legitimidade  e  a  utilidade  das  previ- 
sões alhmos|tliericas,  isto  é,  as  predicções  a  cur- 
tos prasos,  dois  ou  Ires  dias,  por  exemplo.  Ellas 
repousam  sobre  este  facto  incontestável,  que  a 
mudança  de  tempo  c  sempre  precedida  de  alguns 
symptomas  que  a  denunciam  e  a  preparam.  As- 
sim, em  toílus  os  paizes  conhecem-sc  os  ventos 
chuvosos  e  os  que  o  não  são.  A  substituição  d'um 
destes  ventos  por  outro  auctorisa  a  prever  uma  mu- 
dança de  tempo.  Na  maior  pai  te  das  regiões  da  Eu- 
ropa, o  barómetro  desce  sob  a  inlluencia  destes  ven- 
tos chuvosos;  ao  mesmo  tempo,  certas  nuvens  apre- 
sentam-S(!  nc  céo  ;  o  hygroinelro  annuncia  (|ue  o 
ar  cada  vez  se  vai  tornando  mais  húmido,  a  sua 
transparência  augmenta,  os  objectos  afastados  ap- 
proximam-se.  Todos  estes  signaes  permitlem  pre- 
ver uma  mudança  de  tempo  com  grande  [jiobabi- 
lidade.  Ojmtudo  acon:e:e  algumas  vezes  mudar 
o  vento :  lodos  os  presagios  de  chuva  se  dissipam 
e  o  tempo  lorna-se  bellissimo. 

A  lelegiaphia  eléctrica  fornece-nos  outros  ele- 
mentos próprios  para  prever  o  tempo.  Por  ella 


somos  informados  do  estado  athmospherico  da  Eu- 
ropa desde  o  norte  até  o  meio  dia.  À  força  de  reu- 
nir factos  pôde  saber-se  em  que  direcção  o  mau 
tempo  chega  ordinariamente  a  uma  cidade  ou  a  um 
porto.  Quando  se  souber  peio  telegrapho  que  é 
mau  n'esla  direcção,  ter-se-ha  um  elemento  im- 
portante, mais  uma  probabilidade.  O  almirante 
Filz-I{oy,  em  Inglaterra,  armado  de  todos  os  da- 
dos de  que  falíamos,  expedia  pelo  telegrapho,  mui- 
tas vezes  para  todos  os  portos  avisos  para  os  bar- 
cos de  pesca  não  se  aventurarem  ao  mar  largo.  E 
quasi  sempre  o  acontecimento  juslitlcava  as  suas 
previsões.  Marié-Davy,  no  observatório  de  Paris 
prosegue  os  mesmos  estudos,  e  alguns  dos  seus 
prognósticos  tem-se  verificado. 

Entre  nós  lambem  tem  succedido  o  mesmo.  Mas 
isto  não  é  mais  do  que  uma  probabilidade  annun- 
ciada  dois  ou  Ires  dias  antes,  probabilidade  que  a 
multiplicidade  das  observações  tenderá  a  approxi- 
mar  da  certeza,  sem  nunca  poder  altingil-a.  Com- 
tudo,  proseguindo-se  n'esles  estudos,  talvez  que 
no  lim  de  muitos  annos  se  possa  estimar  esta 
probabilidade  numericamente,  e  dizer  ao  nave- 
gador, n'um  estado  melcorologico  determinado : 
Apostamos  60  contra  40  em  como  ao  sair  do  por- 
to encontrará  mau  tempo.  Então  cumpre  ao  mari- 
nheiro retleclir  no  risco  que  vae  correr;  consultar 
a  sua  coragem  e  os  seus  interesses 

Assim  como  a  predicção  do  tempo  é  um  traba- 
lho vão  e  sem  resultado,  tal  a  previsão  é  um  exa- 
me lógico  e  cheio  de  futuro.  Para  julgarmos  uma 
e  outra,  desejaríamos,  em  primeiro  lugar,  que  nos 
dissessem  quantas  vezes  as  previsões  athmospheri- 
cas  se  teem  verilicado  no  decurso  de  um  anno  e 
quantas  teem  falhado.  Por  outro  lado,  querería- 
mos que  os  prophetas  tivessem  a  coragem  e  a  boa 
fé  lambem  de  marcar  no  Almanak  de  1808  o  tem- 
po de  cada  dia  ou  de  cada  período  de  muitos  dias, 
à  sua  escolha.  Mathieu  Laensberg  deu  lhes  o  exem- 
plo e  adívínha.ya  algumas  vezes;  mas,  feitas  as 
contas,  enganava-se  muilo  :  hoje  ninguém  o  acre- 
dita ;  mas  o  espirito  humano,  amigo  do  maravi- 
lhoso e  do  extraordinário,  aceita  sempre  os  novos 
prophetas;  desacredilar-se-hão  lambem,  sem  (pie 
o  homem,  que  não  tem  estudado  suíficienlemenle 
para  saber  ignorar  e  duvidar,  renuncie  a  querer 
peneirar  os  segredos  do  futuro  e  a  conhecer  o  que  é 
vedado  aos  morlaes. 


O  mundo  lie  mar,  a  ambição  he  sede.  NSo  me 
e.si);into  que  o  ainíjicioso  se  nho  sacie  com  os  bens 
(lo  mundo;  porciuc  a  agua  salgada  nao  apaga, 
anles  acende  as  securas.  Impossível  lie  apagar 
bebendo,  a  sede  (pic  nasce  do  beber  :  &  satisfazer 
possuindo,  a  cobiça  que  nasce  de  possuir. 

AIanuel  Bernardes. 


Typ.  Kranco-Porl.uguezn,  Hua  tio  Tlicsouro  Velho,  8. 


42 


.0  PANORAMA 


329 


■We3'mouth 


Ao  contrario  de  muitas  outras  cidades  da  Gran- 
Bretanha,  que  de  dia  para  dia  lêem  ido  enrique- 
cendo, Weymoutli,  outr'ora  de  grande  importân- 
cia pela  sua  magnifica  situação  na  embocadura 
do  \Vey,  que  llie  dava  um  excellente  e  seguro 
porto,  âcha-se  hoje  em  perfeito  estado  de  pobreza, 
devido  á  agglomeração  de  areias,  que,  gradual- 
mente, lhe  foram  obstruindo  a  barra,  a  ponto  de 
a  tornarem  quasi  intransitável.  O  seu  commer- 
cio  actual  é  insigniticante;  apenas  alguns  navios 
de  pequeno  lote,  que  navegam  para  a  Terra  No- 
va e  para  vários  portos  do  nosso  paiz,  ali  vão  le- 
"var  e  receber  cargas  pouco  avultadas. 

Apezar,  porém,  da  sua  decadência^  a  cidade 
de  Weymouth,  não  desappareceu  completamente 
da  memoria  dos  laboriosos  filhos  de  Albion ;  por 
que,  se  muito  perdeu  era  riqueza,  ganhou  im- 
menso  em  belleza  e  elegância.  Actualmente,  as 
suas  lindas  praias  são,  de  todas  as  d'aquella  na- 
ção, as  mais  frequentadas  no  tempo  dos  banhos. 
E  ali  que  se  reúne  a  corte  e  tudo  quanto  ha  de 
nobre  e  opulento  na  Inglaterra. 

A  ponte  que  se  vê  na  nossa  gravura,  obra  de 
madeira  edificada  pelos  annos  de  1770  e  mui  di- 
gna de  altenção  pela  sua  elegância  e  solidez,  une 
Weymouth  aMelccmbe-Regis. 

Weymouth  conta  três  mil  habitantes  Foi  n'es- 
la  cidade  que  desembarcou  em  1471  Margarida 
de  Anjou,  em  companhia  de  seu  filho  Eduardo, 
depois  de  restabelecer  no  throno  seu  marido, 
Henrique  VI. 


FRANCISCO  PIZARRO 

lY 

O  império  peruviano  era  na  America  do  Sul  o 
único  paiz  civilisado,  como  na  America  do  Norte 


era  lambem  no  México  só  que  havia  uma  tal  ou 
qual  civilisação.  Não  porque  fosse  um  reino  com- 
pacto que  se  tivesse  desenleiado  da  barbaria, 
mas  porque  o  poder  dos  Incas  havia  ido  sugei- 
tando  pouco  a  pouco  os  paizes,  civilisados 
também,  que  rodeiavam  o  primeiro  núcleo  do 
império,  e  sujeitando  todos  a  um  único  dominio. 
Ainda  pouco  antes  da  chegada  de  Pizarro,  o  inca 
Huana  Capac  fizera  a  conquista  do  poderoso  rei- 
no de  QuitOj  completando  assim  a  unidade  peru- 
viana, e  como  que  dando  a  todos  os  povos  civi- 
lisados da  America  meridional  uma  cabeça  úni- 
ca para  que  a  espada  de  Pizarro  lh'a  decepasse 
d'um  golpe. 

Os  incas  exerciam  no  império  um  despotismo 
absoluto.  Como  todos  os  chefes  dos  povos  chega- 
dos apenas  ao  primeiro  estado  de  civilisação,  os 
incas  pcruvianos  robusteciam  o  seu  poder  tem- 
poral com  as  tradições  sacerdotaes,  dizendo-se  de 
raça  divina  e  conquistando  d'essa  forma  não  só  o 
respeito  humilde  do  povo,  mas  também  a  sua  vene- 
ração. A  familia  dos  incas  formava  uma  familia 
á  parte,  cujo  sangue  se  não  devia  macular  mis- 
turando-se  com  o  de  outras  raças.  Comludo,  o 
ultimo  inca  ousara  infringir  essa  lei  fundamen- 
tal do  império.  Namorado  da  filha  do  rei  vencido 
de  Quilo,  casara  com  ella,  d'ella  tivera  um  filho 
chamado  Atahualpa  a  quem  legara  os  estados  de 
seu  avô,  deixando  a  Huescar,  seu  filho  mais  ve- 
lho, o  antigo  território  do  império. 

Mas  o  povo  peruviano,  por  muito  obediente 
que  fosse  aos  seus  rponarchas ,  estranhou  esta 
infracção  aos  usos  estabelecidos,  e  começou  a 
murmurar  altamente.  Vejam  como  o  espirito 
humano  é  o  mesmo  em  toda  a  parte  1  O  que  suc- 
cedeu  a  Huana  Capac  no  Peru,  succedeu  depois 
a  Luiz  XIV  em  França.  Emquanto  vivo  todos  obe- 


830 


O  PANORAMA 


deciam  a  um  gesto  seu  ;  depois  de  moiio  rasga- 
ram-lhe  o  teslamenlo.  E  assim  como  os  bastardos 
reaes  fillios  de  M.'"''  de  Montespan,  foram  esbu- 
lhados da  regência,  que  seu  pae  lhe  deixara,  por 
Phihppe  d"Orleans,  firmado  na  opi-nião  pubhca, 
assim  Huescar,  vendo  as  boas  disposições  do  seu 
povo,  resolveu  desobedecer  ás  vontades  de  seu 
pae,  6  despojar  da  sua  herança  o  profano  intruso 
na  famiiia  divina  dos  incas. 

Mas  aqui  finda  o  simile;  Atahualpa  não  era, 
como  o  duque  de  Maine,  um  príncipe  limido  e 
indolente.  Acceitou  o  repto  de  seu  irmão,  bateu-o, 
e  para  que  se  não  renovassem  pretensões  idên- 
ticas, exterminou  Ioda  afamiUa  dos  incas,  encer- 
rou n"um  cárcere  Uuescar,  deixando-lhe  a  vida 
para  que  podesse  legalisar  de  certo  modo  a  sua 
usurpação,  apresentando-se  como  lugar  tenente 
do  monarcha  legitimo,  e  dando  ordens  em  seu 
nome.  Como  se  vê,  Atahualpa  adivinhava  o  pro 
cedimento  do  nosso  D.  Pedro  11  com  seu  irmão 
D.  AíTonso  VI. 

Estas  dissenções  civis  foram  altamente  favorá- 
veis aos  hespanhoes.  Mais  -occupados  das  suas 
discórdias,  do  que  repeliirem  uma  invasão  que 
lhes  parecia  ridicula,  attendendo  ao  numero  dos 
invasores,  os  dois  rivaes  reservaram  para  depois 
de  se  decidir  pelas  armas  a  sua  sorte  tratar  de 
lançar  ao  mar  os  atrevidos  brancos.  Não  cen- 
suramos os  incas;  como  podia  dar  unidade 
a  um  império  poderoso  o  desembarque  de  cento 
e  tantos  homens  nas  suas  praias?  Mas  é  certo  que 
se,  n'esse  primeiro  momento,  conhecendo  a  im- 
mensa  superioridade  militar  dosrecem-chegados, 
tivessem  caido  sobre  elles  com  Iodas  as  suas  for- 
ças reunidas,  é  certo  que,  por  muito  grande  que 
essa  superioridade  fosse,  a  massa  enorme  dos  Ín- 
dios abafaria  o  corpo  hespanhol.  Não  succedeu 
assim,  e  Pizarro,  aproveitando  esse  erro,  marchou, 
como  dissemos,  resolutamente  para  o  interior. 

Reforçado  já  por  algumas  expedições  de  Pana- 
má e  Nicarágua,  Pizarro,  depois  dé  deixar  uma 
pequena  guarnição  na  fortaleza  de  S.  Miguel, 
pôde  avançar  com  a  força  enorme  de  sessenta  e 
dois  gmeles,  e  cento  e  dois  infantes,  dos  quaes 
eram  vmte  besteiros  e  apenas  três  mosqueteiros. 
A  testa  d'este  numeroso  exercito  caminhou  Pizarro 
para  a  cidade  de  Caxamalea,  próximo  da  qual 
Atahualpa  estava  reunido  com  o  grosso  das  suas 
forças. 

N'isto  sobreveio  um  novo  incidente  que  mudou 
completamente  a  face  dos  negócios.  Informado 
dos  pequenos  combates  que  houvera  já  entre  os 
peruvianos  e  os  hespanhoes,  e  da  superioridade 
immensa  que  estes  tinham  revelado,  Atahualpa, 
cego  sempre  pelo  ódio  a  seu  irmão  e  pelo  desejo 
de  conquistar  o  throno,  pensou  que  seria  melhor, 
em  vez  de  combater  os  estrangeiros,  attrahil-os 
a  si,  e  servir-se  d'elles  para  fazer  triumphar 
a  sua  causa.  Politica  deplorável  que  sempre  sér- 
vio o  projecto  dos  conquistadores,  que  apla- 
nou sempre  os  obstáculos,  que  os  povos  mais  fra- 
cos lhe  poderiam  oppôr,  se  os  seus  governantes 
em  vez  de  se  occuparem  de  mesquinhas  rivali- 
aaaes,  despertassem  o  sentimento  nacional  c  le- 
vantassem um  paiz  em  massa  contra  os  invaso- 
res. Atahualpa  cedeu  aos  desejos  das  suas  más 
paixões.  O  pobre  inca  não  tinha  lido,  de  certo  a 
labnla  do  « cavalio,  o  veado  e  o  homem  .> 

I  izarro,  como  habil  que  era,  aproveitou  o  erro 
do  inimigo,  recebeu  o  valioso  presente  que  este 


lhe  enviou,  declarou  que  era  embaixador  de  um 
rei  muito  poderoso,  e  que  estava  disposto  a  au- 
xiliar Atahualpa  com  todo  o  seu  poder.  Depois 
continuou  a  avançar,  entrou  em  Cahamalca,  ven- 
do que  era  uma  cidade  fortificada,  collocou  as 
suas  tropas  em  posições  vantajosas  por  traz  dos 
baluartes,  e  d'ali  enviou  a  Atahualpa  Fernando 
de  Soto  para  lhe  renovar  os  seus  protestos  de 
amizade,  e  pedir-lhe  uma  entrevista. 

(Continu(f) 


GUILHERME  TELL  E  SCHILLER 

Durante  o  caminho,  o  pae  e  o  nilio  conversam 
juntamente,  e,  a  propósito  de  algumas  interroga- 
ções do  joven  Walther,  o  bom  cidadão  d'Uri  cx- 
põe-llie  em  poucas  palavras  a  sua  politica. 

AYalther 

Meu  pae,  existem  paizes  onde  se  não  encon- 
trem montanhas?        rp 

Iell 

Ouando,  seguindo  o  curso  das  no.ssas  ribeiras, 
se  desce  dos  montes,  chega-se  a  vastíssimas  pla- 
nícies onde  os  olbares,  sem  que  nada  os  impeça, 
abraçam  a  immensidade  do  espaço.  As  messes 
verdejam  ali,  .como  se  foram  ricos  prados,  c  o 
paiz  oflercce  o  aspecto  de  um  jardim  bem  culti- 

^^^^^-  Walther 

Porque  motivo,  pois,  meu  pae,  não  corremos  a 
esse  bello  paiz,  em  vez  de  ficarmos  aqui  n'um 
espaço  tão  estreito?      rr, 

'     *  ILLL 

Essa  terra  de  que  te  fallo  é  fértil  e  risonha  co- 
mo o  próprio  céo ;  mas  os  que  a  cultivam  não 
recolhem  as  riquezas  que  n'ella  depositam, 

Walther 

Que!  Não  possuem  livremente  a  sua  própria 
herança?  ^^^^ 

Não ;  os  campos  pertencem  a  um  bispo  ou  a 

um  rei.  ,,, 

Walther 

Não  obstante  podem  caçar  á  sua  vontade  nas 

florestas?...  rr 

Tell 

As  aves,  os  gamos,  as  lebres,  tudo,  emlim, 
pertence  ao  senhor.  ^^^^^^^ 

Também  não  podem  pescar  nos  seus  rios  ? 

Tell 

Os  rios,  o  vaslo  oceano,  o  sal,  são  proprieda- 
de do  rei.  ,,, 

Walther 

Ouem  é,  pois,  esse  rei  que  lodos  devem  temer? 

Tell 

É  aquelle  que  os  sustenta  e  protege. 

Walther 

Não  acham  elles  cm  suas  forças  protecção  1 


o  PANORAMA 


33 


Tell 

Nenhuai  individuo  ousa  confiai*  a  outro  os  sen- 
lioientos  do  seu  coração. 

Waltiier 

Ah!  meu  pai,  deve-se  viver  muilo  oppresso 
n'esse  paiz.  Pretiro  ticar  aqui,  debaixo  das  ava- 
lanchas. ^^^^  » 

Sim,  meu  filho,  estas  montanhas  de  gelo  são 
menos  para  temer  que  os  máos!... 

Que  predisposição  para  a  lucta  terrivel  com  o 
governador !  e  para  o  íilho,  que  licção  de  cora- 
gem e  de  liberdade !  Que  satyra  sangrenta  dos 
vícios  do  regimen  feudal  e  dos  abusos  da  realeza! 
Emtim,  como  a  dignidade  da  alma,  preferida  ás 
voluptuosidades  da  vida,  se  faz  já  sentir  nas  res- 
postas do  mancebo!  É  assim  que  se  formam  os 
homens  verdadeiramente  fortes,  que  se  elevam  á 
direcção  dos  seus  próprios  negócios  e  á  intelli- 
gencia  da  cousa  publica.  A  politica  simples  da 
justiça,  e  do  esforço  individual,  é,  a  nosso  pare- 
cer, a  melhor. 

Guilherme  e  seu  filho  acham-se  depressa  em 
Altorf  e  passam  por  diante  do  chapéo  do  gover- 
nador. Aqui  o  poetd  deu  ao  caracter  do  heroe 
um  colorido  sobre  o  qual  convém  chamar  a  at- 
tenção  do  leitor.  Ainda  que  Tell  tenha  o  espirito 
republicano,  não  é  homem  inclinado  á  destruição 
das  leis  estabelecidas  e  á  rebellião.  A  sua  natu- 
reza não  é  aggressiva.  Passa,  pois,  por  diante  do 
chapéo  sem  saudal-o ;  mas,  se  procede  deste  mo- 
do, é  por  inadvertência  e  preoccupado  com  outras 
cousas,  e  confessal-o-ha  com  toda  a  sinceridade 
ao  próprio  governador.  Comtudo,  esta  falta  sendo 
olhada  pelos  etbirros  como  uma  intenção  má  da 
sua  parte,  é  preso  e  arrastado  á  prisão.  É  então 
que  tem  lugar  a  formosa  scena  da  maçã.  Esta 
scena,  é,  certo,  uma  das  melhores  da  peça,  e  uma 
das  mais  patéticas  do  theatro  allemão.  Vô-se  ali  o 
coração  de  um  pae  rasgado  nas  suas  fibras  mais 
sensíveis,  a  lyrannia  excedendo  as  forças  da  hu- 
manidade. Nada  ali  é  supérfluo.  Neste  horrível 
duelo,  cada  palavra  é  uma  setla,  e  commove pro- 
fundamente. Tell  é  um  coração  enérgico,  mas 
bom:  faz  tudo  quanto  é  possível  para  afastar  o 
homem  da  sua  acção  iniqua.  Supplica-o,  conju- 
ra-o,  por  tudo  o  que  ha  de  mais  sagrado  no  mun- 
do, para  que  renuncie  ao  seu  desígnio ;  depois, 
quando  perde  inteiramente  toda  a  esperança  de 
fazer  mudar  aquelle  bárbaro  coração,  toma  a  sua 
resolução  e  invoca  o  auxilio  de  Deus,  auxiliando- 
se  elle  próprio.  Emfim,  a  coragem  e  a  innocencia 
triumpham ;  mas  a  perversidade  ainda  não  se 
desarma  Persiste  em  opprimir  a  sua  viclima. 
Então  o  pobre  montanhez,  conhecendo  que  o  com- 
bate é  mortal,  decide-se  a  aproveitar  a  primeira 
occasião  favorável  para  acabar  com  o  seu  algoz, 
lirar-lhe  a  vida.  O  voto  que  faz  de  matar  o  ho- 
mem que  o  expunha  a  immolar  seu  innocente  fi- 
lho, voto  espontâneo  e  arrancado  ao  excesso  do 
soffriraento,  medila-o  e  reflecte  muito  em  quanto 


espera  a  passagem  do  oppressor.  «Eu  vivia,  diz 
elle,  tranquillo  e  innocente ;  esta  arma  só  ora  di- 
rigida contra  os  hospedes  das  florestas  e  a  idéa 
de  um  assassínio  jamais  me  manchou  o  pensa- 
mento. 6  governador,  tu  anniquilaste  esta  afor- 
tunada paz,  accostumaste-me  a  acções  de  ({ue  a 
natureza  estremece!...  Governador,  as  novas  e 
débeis  crianças,  as  ternas  esposas,  é  preciso  que 
as  salve  do  teu  furor!...»  E  deste  generoso  senti- 
mento, volta  aos  sotfrimentos  particulares  que  o 
affligiram  quando  dirigio  uma  frecha  sobre  a  ca- 
beça de  seu  filho.  A  imagem  das  suas  criancinhas 
passa-lhe  diante  dos  olhos;  cuida  nos  seus  jogui- 
nhos  com  elles,  pensa  no  prazer  que  lhes  dava 
quando  lhes  levava  alguma  cousa  da  caça.  E  ago- 
ra, é  outra  a  presa  que  elle  persegue;  e  solta  es- 
te ultimo  grito  :  «Sois  vós,  meus  queridos  filhos, 
sois  vós  unicamente  quem  me  occupa  o  pensa- 
mento ;  e  se  eu  estendo  o  meu  arco,  é  para  pro- 
teger a  vossa  timida  innocencia!» 

Schiller  era  pae  de  família  na  época  em  que 
compoz  o  seu  drama.  Era  necessário  que  o  fosse, 
para  ter  sentido  tão  profundamente,  e  haver  des- 
cripto  tão  justamente  as  angustias  da  ternura  pa- 
ternal esmagada  pela  mão  de  ferro  de  um  poder 
implacável. 

O  malvado  é  morto.  Logo  depois  de  o  ver  cair 
sob  a  sua  frecha,  Tell  volta  á  sua  choupana,  e, 
entrando,  as  suas  primeiras  palarras  são  uma 
explosão  de  felicidade  conjugal  e  de  enthusiasmo 
paterno.  «Ó  Hedwige,  Hedwige,  mãe  de  meus  fi- 
lhos. Deus  tem  estado  comnosco ;  nenhum  tyran- 
no  jamais  nos  separará  !...»  E  abraça  sua  mulher 
e  filhos.  Comtudo,  a  meiga  esposa  receia  que 
seu  marido  tenha  commettido  um  assassínio  :  «Es- 
ta mão,  diz  ella,  posso  ainda  apertal-a?» 

— «Esta  mão,  responde  Guilherme  com  energia, 
esta  mão  libertou-nos ;  salvou  a  pátria  e  eu  le- 
vanto-a  livre  para  o  céo  !»  Estas  ultimas  palavras 
tranquillisam  a  consciência  inquieta  de  Hedwige. 
Se  Tell  se  sentisse  culpado;  levantaria  a  mão 
manchada  de  sangue  para  o  céo? 

Esta  resposta,  comtudo,  não  bastou  ao  poeta. 
Querendo  pôr  o  seu  heroe  ao  abrigo  de  toda  a 
censura,  imaginou  um  encontro  entre  elle  e  João 
o  parricida,  duque  de  Souabe.  Este  príncipe,  as- 
sassino do  imperador  de  Allemanha,  seu  tio,  por- 
que este  ultimo  queria  apoderar-se  dos  seus  bens, 
proscripto  e  fugitivo  nas  montanhas  da  Suissa, 
vem  pedir  hospitalidade  á  mulher  do  bravo  ar- 
cheiro justamente  no  momento  em  que  este  entra. 

Resulta  do  contacto  destes  dois  homens  um 
colloquio,  no  qual  Schiller  imprime  claramente  a 
diff'erença  que  existe  entre  o  homem  que  mata 
com  um*  interesse  privado,  mesmo  o  seu  inimigo, 
e  aquelle  que,  tomando  as  armas  para  a  sua  pró- 
pria defeza,  da  dos  seus  filhos  e  do  seu  paiz,  só 
opera  em  vista  da  jusliça  e  dos  interesses  geracs. 

Tell 

Assassino  de  teu  pai  e  do  leu  impei-ador,  como 
ousas  tu  peneirar  neste  innocente  asylo  ?  Como 


332 


O  PANORAMA 


ousas  encarar  um  homem  honrado  e  reclamar  os 
direitos  da  hospitalidade? 

João  o  PARRICIDA 

Esperava  encontrar  no  vosso  coração  alguma 
compaixão  pelo  meu  infortúnio.  E  vós,  também, 
vos  vingastes  do  iniaiigo  que  vos  opprimia. 

Tell 

Desgraçado !  Atreves-te  a  confundir  o  cruento 
crime  daambição  com  a  defcza  legitima  de  um 
pae?  Tinhas  a  salvar  a  cabeça  de  um  lilho  querido, 
a  santidade  dos  lares  domésticos  a  defender?  Pro- 
curaste arrancar  os  teus  á  desgraça  que  pesava 
sobre  elles?  Eu  levanto  para  o  céo  as  minhas 
mãos  innocentes,  e  amaldiçoo-le  a  ti  e  ao  leu  at- 
tentado  I  Eu  vinguei  as  santas  leis  da  natureza; 
mas  tu  violasle-as.  Nada  ha  de  commum  entre 
nós.  Tu  assassinaste  aquelles  que  devias  respei- 
tar, e  eu  defendi  o  que  tenho  de  aiais  caro  no 
mundo. 

Tell,  separando  a  sua  causa  da  de  João,  não 
fecha,  comtudo  o  seu  coração  ao  dó  que  elle  lhe 
inspira.  Anima  o  infeliz  principe,  e  aconselha-oa 
que  se  dirija  á  Ilalia  e  vá  lançar-se  aos  pés  do 
soberano  ponlilice,  confessando-Íhe  o  seu  crime, 
para  assim  remir  a  sua  alma. 

A  scena  é  engenhosa,  o  dialogo  é  acertado  e 
elegante;  mas  no  ponto  de  vista  dramático,  acha- 
mol-o  frio  e  pouco  natural.  Conhece-se  perfei- 
tamente que  só  ha  ali  um  arrasoado  do  poeta 
a  favor  do  seu  principal  personagem.  Não  havia 
precisão  d'islo ;  as  poucas  palavras  de  Tell  a  sua 
mulher  eram  sufTicientes.  Schiller  não  considerava  a 
arte,  e  com  especialidade  a  theatral,  como  uma  sim- 
ples distracção  do  espirito,  um  objecto  de  commo- 
ções  ardentes  c  passageiras ;  queria  que  fosse  um  en- 
sino durável  e  profundo,  e  que  o  espectador  d'uma 
peça  de  theaatro  saisse  da  contemplação  d'ella, 
melhor  e  mais  serio;  só  queria  deixar  no  espirito 
do  publico  alias  inspirações  do  bem.  É,  pois,  á 
extrema  delicadeza  do  senso  moral  do  poeta  que 
se  deve  esta  ultima  scena,  que  não  é  mais,  para 
assim  dizer,  que  uma  superfelação,  e  que,  ordi- 
nariamente, c  supprimida  nas  represenlações. 

Em  siimma,  esta  íigiira  iiei-oica  da  Suissa  no 
decimo  qiiai'lo  século,  rej)roduzida  por  Schiller, 
dá  a  maior  honra  ao  seu  pincel.  E  d'aquellas  que 
como  Lucrécia  e  Virgínia,  dizem  á  l\  rannia,  des- 
cobrindo os  profundos  sentimentos  do  coração  pa- 
terno, os  pudores  da  virgem  c  a  iionra  da  esposa: 
Não  avançarás  a  tanto  ;  ou  se  te  atreveres  a  levar 
até  ahi  o  insulto,  acharás,  certo,  a  tua  ruina, 

fjvilhcrme  Tell,  foi  a  ultima  obra  importante 
do  grande  poeta;  terminou  a  sua  brilhante  car- 
reira dramática  com  um  canto  de  liberdade  hon- 
rado e  poj)ular.  Começara-a  compondo  o  drama 
dos  Salteadores,  obra  na  qual  a  paixão  pelo  di- 
reito c  o  ódio  pela  injustiça  se  manifeslarain  d(!- 
baixo  das  formas  da  revolta  e  da  destruição.  Es- 
tes sentimentos  manliveram-se  no  sublime  sonho 
do  marquoz  fU;  Posa,  e,  pela  ultima  \e/,  expri- 
miam-se  nobre  c  virilmente  pelo  orgam  simples  c 


franco  de  uma  pobre  criança  da  Helvécia,  não 
pedindo  para  si  e  para  os  seus  senão  o  meio  de 
mover-se  com  liberdade,  dignidade  e  segurança, 
no  pequeno  circulo  de  vida  onde  os  collocara  a 
Providencia. 
Não  se  pôde  acabar  melhor. 


,  UMA  OBRA  DO  SÉCULO  IX 

5.  Constantino,  reinou  XXX  annos.  Ilavendo- 
se  convertido  ao  christianismo,  tolerou  os  chris- 
tãos.  Por  esta  época.  Helena,  sua  mãe,  encontrou 
a  Cruz  do  Senhor.  Mandou  que  se  celebrasse  o 
Concilio  Niceno,  como  dizemos  em  outra  folha. 

Constâncio  e  Constante,  reinaram  XXXIII  an- 
nos. Constante,  arrianno  e  cruel  por  seus  costu- 
mes, persegue  os  christãos.  Seu  amigo  Arrio,  mor- 
re em  Constantinopla.  Hilário  brilha  por  sua  dou- 
trina. Donato,  que  íloresceu  em  Roma  na  arte  da 
grammalica,  morre  ali  por  este  tempo.  António 
Monge,  morreu  também  n'esta  época.  Os  ossos 
dos  Santos  Apóstolos  André  e  Lucas  Irasladam-se 
para  Constantinopla. 

6.  Juliano  reinou  H  annos.  Primeiro  clérigo,  e 
logo  Imperador ;  e  pagão,  adorou  os  Ídolos,  mar- 
tyrísou  os  christãos,  e  por  ódio  a  Christo,  mandou 
restaurar  o  templo  dos  judeus  em  Jerusalém  ;  mas 
o  Senhor  não  lh'o  consentío,  e  Juliano  morreu  as- 
selteado  pelos  Persas. 

Jovíano,  reinou  I  anuo.  Este,  sendo  christão, 
recusou  tomar  as  rédeas  do  governo,  e  accedeu 
aos  rogos  do  exercito,  quando  este  se  converteu 
ao  christianismo.  Immediatamenle  restiluio  aos 
christãos  Iodas  as  liberdades  e  privilégios  e  man- 
dou fechar  os  templos  dos  ídolos. 

Yalentiniano  e  seu  irmão  Valente  reinaram  XIV 
annos.  Os  godos  dividem-se  em  duas  porções  man- 
dadas por  Atanarico  e  Eridigerno.  Alarico  excede 
Fridigerno.  Este,  com  o  auxilio  do  Imperador  ar- 
riano,  Valente,  e  pela  influencia  d'este,  abraça  o 
Arrianismo  com  todos  os  seus  Godos.  Golíilo,  bis- 
po, ensína-lhes  o  uso  das  letras. 

Gracianocom  seu  irmão  Valentiniano,  reinou  VI 
annos.  Eiorescem  Ambrósio,  bispo  de  Milão  e  S, 
Martinho,  bispo  Turonense,  assignalando-se  este 
por  seus  milagres  nas  cidades  da  Gallia. 

7.  Valentiniano  com  Theodosio,  reinou  VII  an- 
nos. Celebra -se  um  synodo  em  Constantinopla,  com- 
posto de  CL  Rispos"  O  presbytero  Jeronymo,  flo- 
resce em  Relem,  e  em  todo  o  mundo.  A  cabeça 
de  São  João  Raptista,  c  tiasladada  para  Constan- 
tinopla, e  enterrada  a  Vil  milhas  da  cidade.  Theo- 
dosio derroca  o  templo  dos  ídolos, 

Theodosio  com  Arcádio,  reinou  IH  annos.  Por 
aquelle  tempo,  o  Anachorela  João,  brilhou  por  seus 
milagres. 

(Continua) 


A  palavra  revestida  de  brandura  leni  nniyto 
mais  força,  c  lustre :  e  revestida  de  cólera,  liua, 
o  outra  cousa  pprdc.  Nada  monos  se  persuade  ao 
próximo,  do  que  o  que  se  lhe  inlcnla  persuadir 
como  modo  apayxonudo,  ou  imperioso. 


o  PANORAMA 


333 


íSanta  Helena. 


Que  nome  este !  que  poema  nos  não  desperta 
logo  na  phantasia  a  imagem  (fuma  pequena  ilha 
pedregosa,  perdida  no  meio  dos  mares,  ninho  de 
rochas  onde  foi  expirar  a  águia,  que  deixara  cair 
o  raio  apagado  nos  campos  de  Waterioo !  Santa- 
Helena  é  a  consagração  poética  do  grande  homem 
do  século,  é  o  sello  de  chammas  estampado  na 
fronte  do  gigante,  que  podia  ser  apenas  um  gran- 
de general  como  Frederico,  um  grande  adminis- 
trador como  Coibert,  um  grande  estadista  como 
Richelieu,  e  que  tomou,  graças  a  esse  captiveiro 
na  ilha  solitaiia,  as  proporções  enormes  do  Pro- 
metheu  da  mylhologia. 

O  ódio  é  cego,  tanto  o  das  nações,  como  o  dos 
indivíduos.  O  punhal  de  Ravaillac  veio  canonisar 
o  bom  Henrique  IV ;  a  períidia  de  (lasllereagh  di- 
vinisou  Napoleão.  Ouem  sabe?  o  homem  estava 
cançado,  o  génio  eslava  exhauslo,  a  águia,  com  as 
azas  quebradas,  não  pedia  senão  que  a  deixassem 
desprender  o  ^'ôo  rasteiro  e  obscui'o  do  telhado  em 
telhado.  A  isso  se  reduziria  talvez  a  ave  imperial, 
que,  desembarcando  no  golpho  Juan,  annunciava 
orgulhosamente  que  voaria  de  campanário  em  cam- 
panário até  ir  poisar  nas  torres  de  Notre-Dame. 
Se  o  deixam  viver,  como  elle  pedia,  simples  par- 
ticular n'um  canto  da  Inglaterra,  se  lhe  restituem 
mesmo  o  seu  império  liUiputiano  da  ilha  d'Elba, 


tinham  assassinado  com  o  ridículo  a  gloria  mais 
collossal  do  universo,  tinham  dado  um  lim  bur- 
guez  a  essa  existência  heróica,  tinham  ariancado 
a  esse  Édipo  collossal  o  trágico  manto  da  fatali- 
dade, e  tinham-n'o  transformado  no  pacato  Ge- 
rente d'uma  comedia  de  Molicre. 

Mas  o  ódio  cegou-os,  desvairou-os  o  medo.  Le- 
vantaram a  estatua  caída,  deram-lhe  o  pedestal 
sublime  d'um  infortúnio  immenso,  e  collocaram- 
n'a  ah  isolada  em  Santa  Helena,  no  meio  das  va- 
gas tempestuosas,  longe  da  Europa  e,  comtudo,  pre- 
sente sempre  á  imaginação  europea.  Ao  homem, 
que  se  quizera  confundii-  com  os  outros  homens, 
deram  a  grandeza  do  eremitério,  e  o  vago  mysle- 
rioso  do  longínquo,  trocaram-lhe  a  coroa  im|)erial 
peia  coroa  cem  vezes  mais  bi'ilhanle  do  marty- 
rio,  e  íizeram  assim  do  homem  um  Tilão,  do  im- 
perador um  Deus. 

Não  podia  haver  fecho  mais  sublimo  para  a 
grandiosa  epopéa  napoleonica ;  o  rromelheu  gi- 
gante, que  espalhou  pelo  mundo  a  chamma  sagra- 
da da  revolução,  que  levou  a  liberdade,  sua  mãe, 
maniatada  ao  seu  carro  de  triumpho,  mas  que  as- 
sim mesmo  cm  grilhões  a  fez  admirar  aos  povos, 
senão  em  si  mesma,  pelo  menos  n'cllc  a  sua  obra 
mais  completa,  lilho  ingrato,  mas  lilho  augusto  c 
grande,  o  Trometheu  do  século  brota  do  seio  de 


334 


O  PANORAMA 


um  rochedo  do  Mediterrâneo  ;  como  a  águia,  que 
lia  de  ser  seu  symbolo,  abate  o  vôo  juvenil  sobre 
Toulon,  e  com  o  raio,  que  leva  nas  possantes  gar- 
ras, fulmina  a  cidade  rebelde,  depois  em  vendemia- 
rio  entra  de  novo  em  scena,  e  de  novo  a  sua  pal- 
lida  ligura  aflugeuta  a  contra-revolução.  Eil-o  ou- 
tra vez  nas  montanhas,  em  que  lanlo  se  compraz, 
desce  dos  Alpes  italianos,  atravessa  a  Itália  como 
uma  nuvem  de  fogo,  fulminando  exércitos,  e  só 
pára  fremente  e  oíTegantc  no  cume  dos  Alpes  Ty- 
rolezes,  dictando  a  lei  ao  inimigo. 

Depois  as  suas  azas  immensas  ambicionaram 
deixar-se  illuminar  pelos  esplendores  do  Oriente, 
e  a  águia  ousada  vai  pousar  triumphanle,  entre 
as  nuvens,  no  cume  das  Pyramides,  ao  lado  das 
vaporosas  figuras  dos  quarenta  séculos.  Eil-o  ago- 
ra na  Europa,  enviado  pela  Providencia  para  sal- 
var a  revolução.  Os  Alpes  ontra  vez  o  vêem  poi- 
sando sobre  os  seus  píncaros  nevados,  indo  sa- 
ciar-se  em  Marengo  no  corpo  dos  inimigos. 

Depois  a  coroa  imperial  cinge-lhe  a  fronte,  e  é 
quem  lh'a  cinge  um  papa.  Começa  então  a  carrei- 
ra victoriosa,  hoje  Austerlitz,  amanhã  lena,  de- 
pois Friediand,  Somo-Sierra  em  seguida,  Wa- 
gram,  Moskowa.  A  águia  fatigada  mal  pôde  já 
despregar  as  azas  ás  brisas  da  victoria ;  se  hoje 
se  banha  no  Tejo,  banhar-se-ha  amanhã  no  Bor- 
ysthenes.  Atinai  o  collosso  tem  que  recuar,  mas 
os  seus  passos  retrógrados  são  victorias  que  os  as- 
signalam:  Lutzen,  Bantzen,  Dresde,  Hanau,  Mon- 
tereau,  Montmirail,  Champaubei't.  Nas  mesmas  vi- 
ctorias vae  perdendo  o  sangue ;  cáe  atinai  desfal- 
lecido  na  ilha  d'Elba,  ergue-se  de  novo,  regressa 
a  Pariz,  junta  um  nome — Legny — á  sua  lista  Irium- 
phal,  mas  a  negra  pagina  de  Walerloo  apaga  esses 
últimos  clarões,  e  a  águia  prostrada  está  á  dispo- 
sição dos  caçadores.  Prometheu  sente  no  peito  os 
joelhos  dos  deuses  d'esse  Olympo  monarchico, 
joelhos  que  tanta  vez  se  macularam  de  pó  diante 
d^elle. 

A  epopéa  ameaçava  acabar  d'um  modo  desas- 
troso; se  Carlos  V  é,  emquanto  a  mim,  um  lanlo 
ridículo,  entoando  o  cantochão  cm  S.  .Tusto,  se  as 
alfaces  cultivadas  por  Diocleciano  em  Salona  lêem 
o  privilegio  de  nos  fazer  rir,  que  dcspoelisação 
não  seria  a  d'esse  grande  vulto  napoleónico,  se  a 
Europa  fosse  informada  de  que  o  illuslre  abdica- 
lario  se  entregava  ao  fabrico  da  manteiga,  ou  á 
criação  de  porcos  n'uma  bonita  herdade  do  Mid- 
dlesex  ou  do  Derbyshire ' 

Mas  a  Inglelerra  não  quiz.  Deu  á  águia  de  no- 
vo uma  altitude  real,  enccrrando-a  n'3ssa  gaiola 
penhascosa,  levantou  o  Prometheu,  que  ia  a  lom- 
bar na  prosa,  e,  para  que  o  mundo  podesse  ava- 
liar melhor  a  sua  estatura  coUossal,  agrilhoou-o,  no 
meio  dos  mares,  ao  Cáucaso  de  Santa- Helena,  e 
poz-lhe  ao  lado,  para  completar  a  semelhança,  esse 
hediondo  abutre  que  se  chamou  lludson  Lowe. 

O  que  desejam  os  leitores  saber  mais  de  San- 
ta-Hel(;na?  Tão  grande  nome  enche  a  jicíjuena 
ilha.  Com  tudo  sempre  diremos  duas  breves  j)ala- 
vras  acerca  d'essa  terrinha,  escolhida  i)ara  cárce- 
re do  colosso. 


Foi  no  dia  22  de  maio  de  1502  que  João  da 
Nova,  íidalgo  gallego  ao  serviço  de  Portugal,  des- 
cobrio  esta  ilha  a  que  poz,  segundo  o  costume  dos 
nossos  descobridores,  o  nome  da  santa  venerada 
n'esse  dia  pela  igreja.  Era  completamente  deserta. 
Os  portuguezes  estabeleceram  ali  algumas  plan- 
tações, mas  logo  as  abandonaram  porque,  sendo  a 
ilha  pouco  altrahente,  e  havendo  tantos  territó- 
rios magníficos,  que  elles  podiam  desbravar,  não 
quizeram  perder  tempo  e  fadigas  com  essa  terra 
pouco  importante.  E,  apesar  d'isso,  como,  se  pa- 
ra elle  se  rasgassem  os  véos  do  futuro,  o  celebre 
escriptor  António  Galvão  dizia  desta  pobre  ilha 
deserta :  ccSanta-IIelena,  cousa  pequena,  mas  mui- 
to nomeada.» 

Para  que  o  honrado  escriptor  não  se  pavoneie 
com  as  honras  perigosas  de  propheta,  diremos 
que  o  motivo  que  lhe  dictava  estas  palavras  era 
simplesmente  o  ser  a  bahia  de  Santa-Helena 
muito  segura,  e  óptimo  porto  de  refrescos  para  as 
esquadras  que  se  dirigiam  á  Iiulia. 

Foi  por  isso  que  os  portuguezes,  apesar  de  a 
não  quererem  para  si,  expulsaram  constantemen- 
te os  Europeus  que  lá  encontravam,  procurando 
fundar  algum  estabelecimento.  Afinal,  quando  prin- 
cipiou a  nossa  decadência,  os  Hollandezes,  que 
nos  tomavam  colónias  de  mais  importância,  lam- 
bem conseguiram  manter-se  definitivamente  nesta 
pequena  ilha. 

Em  1630  abandonaram-n'a  elles  á  Companhia 
Ingleza  das  índias  Orientaes  em  troca  de  Cabo  da 
Boa-Esperança.  As  duas  republicas  do  Norte,  a 
Inglaterra  era  então  republicana,  debaixo  do  pro- 
tectorado de  Cromwell,  dividiam  entre  si  a  seu 
bel-prezer  os  retalhos  da  nossa  túnica  soberba. 

Só  em  1660  fundou  a  Companhia  o  seu  pri- 
meiro estabelecimento,  que  em  1673  os  Hollan- 
dezes lhe  tomaram  por  surpresa.  N'esse  mesmo 
anuo  lh'a  retomaram  os  Inglezes,  e,  para  evita- 
rem novos  desastres,  erigiram  n'ella  o  forte  de 
St.  James. 

A  capital  da  ilha  é  Si.  James  Town.  Fortifica- 
ções numerosas  íizeram  desta  cidade  uma  outra 
Gibraltar.  Por  isso  o  governo  inglez,  quando,  re- 
lanceando os  olhos  pelos  vastos  mares  sujeitos  ao 
seu  império,  procurou  um  cárcere  seguro  para  o 
homem,  que  vinha  confiadamente,  e  segundo  a 
sua  própria  frase,  se.ilar-'se,  como  Themistocles, 
junlo  dos  lares  dos  seus  maiores  inimigos,  fixou- 
se  logo  em  Santa-Helena. 

Ali  residio  Napoleão  durante  os  últimos  seis 
annos  da  sua  vida,  torturado  pela  mesquinha  vi- 
gilância c  pela  brutalidade  ignóbil  de  sir  Hudson 
Lowe,  consolado  |)elo  respeito  e  dedicação  do  ma- 
rechal Bertrand,  do  conde  Monlholon,  do  seu  crea- 
do  de  quarto  Marchand,  do  conde  de  Ees  Casas, 
corlezão  do  seu  infortúnio,  c  do  medico  irlandez 
Barry  0'Méara,  que,  designado  pelo  governo  |)ara 
ser  um  dos  seus  algozes,  escolheu  o  pa|)el  mais 
nobre  de  ser  um  dos  servidores  atTecluosos  do  exi- 
lado sublime. 

Foi  em  Uongwood  que  elle  habilou,  pequena 
residência  collocada  no  ponlo  mais  doentio  da  ilha, 


o  PANORAMA 


335 


mas  lambem  no  ponto  d'onclc  mais  impossível  se- 
ria uma  fuga.  Ali  esleve  o  colosso  desde  os  fins 
de  1815  até  5  de  maio  de  1821,  em  que  essa 
grande  alma,  desprendendo-se  do  invólucro  ter- 
restre, voltou  ao  seio  do  Criador,  que  a  elle,  mais 
do  que  a  lodos,  illiiminára  com  um  reflexo  da  sua 
omnipotência. 

Dezenove  annos  repousou  o  corpo  de  Napoleão 
á  sombra  do  salgueiro  celebre,  cujas  folhas  tanto 
tempo  foram  consideradas  como  inestimáveis  relí- 
quias pelos  admiradores  do  grande  homem. 

Finalmente  em  1810,  reinando  em  França  Luiz 
Philíppe,  veio  uma  fragata  franceza,  a  Belle-poule, 
commandada  pelo  íilho  do  monarcha,  o  príncipe 
de  Joinville,  buscar  os  restos  mortaes  do  gigante, 
para  os  ir  coUocar  ao  lado  dos  de  Turenne  debai- 
xo das  abobadas  da  igreja  dos  Inválidos,  á  som- 
bra das  mil  bandeiras,  que  as  suas  armas  victo- 
riosas  haviam  arrancado  a  lodos  os  exércitos  da 
Europa. 

Mal  previa  o  príncipe  illustre  que  ia  buscar  á 
terra  do  exilio  o  cadáver  do  grande  proscripto, 
que,  oito  annos  depois,  pizaria  elle  lambem  a  ter- 
ra estrangeira,  expulso  pela  França,  essa  madras- 
ta, que  engeila  os  filhos,  a  quem  deve  a  sua  glo- 
ria immensa. 

Dir-lhes-hei  o  meu  ultimo  pensamento?  Sinto 
que  arrancassem  o  cadáver  de  Napoleão  ao  tu- 
mulo sublime  que  a  Providencia  lhe  dera.  Napo- 
leão é  um  destes  grandes  homens,  que  um  paiz 
não  pôde  confiscar  em  seu  proveito  exclusivo;  re- 
clama-o  a  humanidade.  Aquella  rocha  negra,  aquel- 
la  cratera  devastada,  aquella  penedia  anfracluosa, 
onde  a  vaga  rebenta  por  lodos  os  lados,  era  di- 
gna de  conter  esse  volcão  extincto,  essa  torrente 
estagnada,  que  depois  de  abrasar  o  mundo  com 
as  suas  chammas,  depois  de  alastrar  os  povos  com 
a  sua  espuma,  foi  apagar-se  e  morrer  no  seio  da 
iraraensidade.  Pinheiro  Chagas. 


OS  BRAHMANES 

Os  cultos  de  Yischnu  e  Síva  parece  dividirem 
quasi  igualmente  a  povoação  índia :  esta  divisão 
existia  já  no  oitavo  ou  nono  século.  Comtudo,  a  con- 
fusão produzida  no  espirito  das  populações  pela 
multiplicidade  das  divindades  masculinas  e  femi- 
ninas do  pantheon  indio,  e  pela  das  legendas  que 
se  lhes  referem,  determinou  a  formação  de  uma 
infinidade  de  seitas,  que  escolhem  de  entre  todos 
estes  deuses  um  objecto  de  adoração  especial  ou 
mesmo  quasi  exclusivo. 

Dos  dois  cultos  principaes  da  índia,  o  mais  hu- 
mano é,  sem  conlradicção,  o  de  Vischnu.  Eltecli- 
vamenle,  este  Deus  não  c  só  a  divindade  con- 
servadora; é  lambem  o  redemplorda  humanidade 
e  do  universo.  Segundo  o  syslema  theogonico  e 
cosmogonico  do  Biahmanismo,  ha  para  o  mundo 
épocas  de  destruição  e  restauração ;  n'estas  épo- 
cas, que,  no  passado,  elevam  ao  numero  de  no- 
ve, necessita-se  da  inlervenção  de  um  Deus  para 
salvar  o  universo  :  ora,  o  mundo  deveu  a  sua  sal- 


vação a  Vischnu,  que  se  incarnou  outras  tantas 
vezes  descendo  sobre  a  terra.  Entre  estas  incar- 
nações ou  Avalars  de  Vischnu  a  mais  celebre  é 
aquella  em  que  elle  se  manifestou  sob  a  forma  de 
Krischna.  O  Bhagavat-Pourana  e  o  Mahabharata 
são  destinados  quasi  inteiramente  a  celebrar  os 
seus  altos-  feitos :  este  avatar  é  o  oitavo  na  ordem 
dos  tempos.  A  decima  c  ultima  incarnação  de 
Vischnu  lerá  lugar  no  fim  da  presente  idade.  Ap- 
parecei-á  m.onlado  em  um  cavallo  branco  e  arma- 
do com  uma  cimitarra  brilhante  para  punição  eter- 
na dos  máos.  Vô-se,  pois,  que  ha  no  culto  de 
Vischnu  como  uma  longínqua  lembrança,  como 
uma  tradição  obscura  e  desfigurada  da  promessa 
de  redempção  feita  depois  da  queda  do  primeiro 
homem. 

Quanto  a  Siva,  os  seus  sectários  adoram-n'o, 
ora  como  o  principio  de  geração,  ora  como  o 
principio  de  destruição,  sob  o  aspeclo  de  ura 
Deus  terrível  e  ameaçador.  O  mesmo  succede 
com  B/iovam,  sua  mulher  e  sua  irmã,  que  é  tam- 
bém honrada  debaixo  da  forma  de  Kali,  deusa 
dos  infernos.  É  sabido  que  esta  horrível  seita  dos 
J/íu^5  ou  Estranguladores,  que  espalhou,  ainda  não 
ha  muitos  annos,  o  terror  por  toda  a  índia,  pre- 
tendia lornar-se  agradável  a  esta  medonha  divin- 
dade, diminuindo  tanto  quanto  fosse  possível  o 
numero  dos  vivos. 

Segundo  Wilson,  existem  hoje  na  índia  vinte 
seitas  de  Vischnuitas  e  nove  de  Siváitas.  Mas, 
tendo-se  em  consideração  as  divindades  subalter- 
nas que  recebem  um  culto  quasi  exclusivo,  das 
crenças,  pai-a  assim  dizer,  locaes,  e  das  altera- 
ções que  as  divei-sas  escolas  philosophicas  teem 
introduzido  nas  diíTerentes  partes  do  syslema  bra- 
hmanico,  pôde  dizer-se  que  as  seitas  indianas  ele- 
vam-se  a  muitas  centenas. 

Apesar  de  todas  as  diversidades  que  se  obser- 
vam, já  nas  crenças,  já  nos  cultos  da  Índia,  to- 
das as  seitas  estão  de  accordo  sobre  dois  pontos 
que,  por  este  motivo,  podem  ser  considerados  co- 
mo o  seu  laço  commum,  e  como  constituindo  o 
caracter  essencial  e  distinclivo  do  Crahmanismo ; 
queremos  fallar  da  instituição  das  castas  e  do  do- 
gma da  transmíf/rarão. 

A  distincção  das  castas  é  d'origem  divina.  «Pa- 
ra a  propagação  da  raça  humana,  diz  o  código  de 
Manu,  Brahma  produzio  da  sua  boca,  do  seu  bra- 
ço, da  sua  coxa  c  do  seu  pé.  o  Brahmane  (padre) 
o  Kchalriya  (guerreiro),  o  Yaisiija  (lavrador,  ne- 
gociante) e  o  Soudra  (servo,  proletário). 

«Para  a  conservação  desta  criação,  o  Ser  sobe- 
ranamente glorioso  maicou  diíTerentes  occupações 
a  cada  um  dos  que  assim  tinha  produzido.  Deu 
por  missão  aos  Brahmanes  o  estudo  e  o  ensino 
dos  Vedas,  o  cumprimento  do  sacrificio,  a  direc- 
ção dos  sacrificios  oíTerecidos  por  outros,  e  o  di- 
reito de  dar  e  o  de  receber.  Impoz  por  deveres, 
ao  Kchalriya,  proteger  o  povo,  exercer  a  carida- 
de, sacrificar,  ler  os  livros  sagrados  e  não  se  en- 
tregar aos  prazeres  mundanos.  Cuidar  dos  ga- 
dos, dar  esmolas,  sacrificar,  estudar  os  Livros 
sanlos,  negociar,  dar  dinheiro  a  juro,  cultivar  as 


336 


O  PANORAMA 


terras,  são  as  funcçõcs  do  Yaisiya.  Mas  o  sobera- 
no Senhor  não  impoz  ao  Soudra  senão  uma  obri- 
gação :  a  do  servir  as  classes  precedentes,  sem 
depreciar  o  seu  merilo. ..  O  Crahmane,  vindo  ao 
mundo,  e  collocado  no  primeiro  lugar  nesta  ter- 
ra :  soberano  senhor  do  iodos  os  entes,  deve  ve- 
lar pela  conservação  do  Ihesouro  das  leis. 

«Tudo  quanto  o  mundo  encerra  o  propriedade 
do  Brahmane;  por  sua  primogenitura  e  por  seu 
nascimento,  lem  diíeilo  a  tudo  quanto  existe. 5 

O  livro  de  Manu  é  consagrado,  sobretudo,  a  esta- 
belecer os  direilos  e  os  deveres  das  três  primeiras 
castas;  mas  o  objeclo  principal  da  preoccupação 
do  auctor,  são  os  privilégios  dos  Brahmanes.  «O 
Kchalriya  ou  o  Vaisiya,  diz  elle,  que  se  precipi- 
ta sobre  um  Bi^ahmane  com  o  intento  de  feril-o, 
m  as  (lue  o  não  lere,  c  condomnado  a  girai",  pelo 
espaço  de  cem  annos,  no  inferno  chamado  Tà- 
luisra.  Se  por  cólera  e  de  propósito  o  fere,  ainda 
que  seja  com  ura  insignificante  vegetal,  deve  re- 
nascer, durante  vinte  c  uma  transmigrações,  no 
ventre  d'um  animal  ignóbil.  Quantos  grãos  de  pó 
o  sangue  do  Brahmane  absorve,  caindo  na  terra, 
outros  tantos  annos  o  que  fez  correr  este  sangue 
será  devorado  por  animaes  carnívoros  no  outro 
mundo. 

«...One  o  rei  evite  matar  um  Brahmane,  quan- 
do mesmo  elle  tenha  commettido  lodos  os  crimes 
possíveis ;  expulsc-o  do  reino  deixando-lhe  todos 
os  seus  bens,  e  sem  fazer-lhe  o  menor  mal...  Não 
ha  no  mundo  maior  iniquidade  que  o  assassínio 
d'um  Brahmane;  eis  j)orquc  um  rei  nem  mesmo 
deve  conceber  a  idea  de  condemnar  á  morte  um 
Brahmane.»  Quanto  aos  Sondras  não  gosam  de 
direito  algum,  nem  mesmo  do  de  ler  os  Livros 
santos  e  sacrificar.  «Uma  cega  obediência  ás  or- 
dens dos  Brahmanes  versados  no  conhecimento 
dos  Livros  santos,  donos  de  casa  e  afamados  por 
suas  virtudes,  é  o  dever  principal  d'um  Soudi'a  e  o 
que  lhe  dá  a  felicidade  depois  da  morte...  Que  o 
Brahmane  não  dè  ao  Soudra  nem  um  conselho, 
nem  os  restos  da  sua  comida,  a  não  se  dar  o  ca- 
so deste  ser  seu  creado;  não  deve  onsinar-lhc  a 
lei,  nem  pratica  alguma  de  devoção  expiatória;  o 
que  declara  a  lei  a  um  homem  da  classe  servil, 
ou  lhe  faz  conhecer  uma  pratica  expiatória,  ó 
precipitado  com  elle  na  tenebrosa  morada  que 
tem  por  nome  Asamvrila. 

(íLm  Soudra  não  deve  amontoar  riquezas  supér- 
fluas, ainda  mesmo  que  o  possa,  porque  um  Sou- 
dra, logo  que  adquire  grandes  leres,  vexa  os  Bra- 
hmanes com  a  sua  insolência...  Um  Soudra,  em- 
bora liberto  por  seu  senhor,  não  está  fora  do  es- 
tado de  escravidão  ;  porque,  sendo-lhe  este  eslado 
natural,  quem  poderia  exeniplal-o  ?...  Um  Bra- 
hmane, se  cáe  em  pobresa,  pode,  com  toda  á  se- 
gurança de  consciência,  apropiiar-se  dos  bens  de 
um  Soudra.» 


Adverte  que  a  froxidãOj  &  ignavia  bc  a  mãe 
dos  vicios ;  porque  os  bens  que  adquiriste,  fará 
que  os  percas:  &  os  que  te  fullão,  fará  (|ue  os 
não  adquiras.  Manlel  Bkhnaudes. 


PROFISSÃO  DE  FÉ 
I 

Creio  cm  Deus,  porque  só  elle, 
um  nnjo  dar-ine  podia  ; 
que  taes  perfeições  revele, 
que  lenlia  uma"  lai  magia, 
como  lu,  rosa  de  amor. 
Creio  n'elle !  que  o  Senlior 
mandou  ao  miiiido  — p'ra  mira. — 
do  seu  elliéreo  jardim 
a  mais  graciosa  llor. 

Se  é  errada  a  minha  fé, 
pede  por  mim  ao  Senhor, 
em  quanto  te  adoro,  flor, 
ao  pè  de  li,  sempre  ao  pé. 

II 

Eu  creio  na  Providencia, 
que  me  deu  um  paraizo, 
que  me  inflorou  a  existência 
co'as  galas  do  (eu  sorriso, 
com  mil  grinaldas  de  amor. 
Creio  n'ella  !  que  o  Scniior 
meus  anliclos  allondeu, 
como  (|uando  concedeu 
orvalhos  à  murcha  flor. 

Sc  é  errada  a  minha  fé, 
pede  por  mim  ao  Senlior, 
em  quanto  te  adoro,  flor, 
ao  pé  de  li,  sempre  ao  pé. 

IH 

Creio  na  sabedoria 
d'esse  Deus  todo  perfeito, 
que  uma  alma  n'um  fausto  dia 
infundio  dentro  em  teu  peilo, 
mas  uma  alma  toda  amor. 
Creio,  sim,  porque  o  Senhor 
deu-te  hellesa  sem  par, 
da  gasela  deu-te  o  olhar, 
deu-te  o  perfume  da  flor. 

Sc  c  errada  a  minha  fé, 
pede  por  mim  ao  Senhor, 
cm  quanto  te  adoro,  flor, 
ao  pé  de  li,  sempre  ao  pé. 

IV 

Creio  que  alem  d'csla  vida, 

d'esla  vida  transitória, 

a  minha  alma,  á  tua  unida, 

viverá  na  eterna  gloria, 

alimentada  de  amor. 

Creio,  sim !  porque  o  Senhor 

nossas  almas  não  quer  ver 

desunidas  fenecer 

como  a  essência  de  uma  flor. 

^É  errada  a  minha  fé? 
Oh,  não!  — se  eu  te  adoro,  flor, 
lamltem  adoro  o  Senhor, 
ao  pé  de  li,  sempre  ao  pé. 

Cândido  de  FicuEinEDO. 


E  impossível  olhar  fixamente  o  sol  c  a  morle. 

La  Rocuefoucauld. 


Não  ha  cousa  mais  cara  que  a  que  custa  vergonha. 

FernXo  Mendes  Pinto. 


Typ.  Frauco-Porlugueza,  Rua  do  Thesouro  Velho,  6. 


f 


43 


o  PANORAAÍA 


337 


o  Corvo  e  a  Raposa. 


Em  lodos  os  tempos  e  em  lodos  os  paizos,  pa- 
rece que  a  verdade  lem  lido  medo  dos  homens  e 
que  os  homens  Icem  lido  medo  da  verdade;  pois, 
compulsando  a  hisloi'ia  do  passado,  enconlramos 
a  fabula  ou  apolo.ío,  que  loi  a  primeira  forma 
allegorica  sob  a  qual  a  verdade  foicxposla,  enlre 
os  mais  anligos  monumentos  lillerarios  de  lodos 
os  povos.  A  invenção,  porém,  deste  engenhoso 
género  de  lilleialura,  c  fora  de  duvida  que.  per- 
tence ao  Oriente;  isto  é,  ao  paiz  onde  a  verdade, 
para  melhor  ser  comprehendida  e  amada,  devia 
apresentar-se  coberta  com  um  denso  véo.  Mas 
quem  foi  o  seu  auclor?  O  seu  nome?  Quaes  as 
primeiras  fabulas?  Eis  o  que  até  iioje  não  tem 
sido  possivcl  descobrir.  Onerem  alguns  escriplo- 
res  emiflentes,  e  l'hedro  foi  o  primeiro  a  dizel-o, 
que  o  auctor  da  fabula  fora  um  escravo  em  quem 
nascera  o  desejo  de  mostrar,  sem  correr  perigo, 
ao  lyranno,  seu  senhor,  a  linguagem  da  razão  e 
do  bom  senso,  para,  assim,  o  afastar  da  estrada 
dadeshumanidade.  O  nosso  erudito  escriptor,  José 
^  Maria  da  Costa  e  Silva,  que,  entre  nós,  foi  um 
'  dos  mais  incansáveis  na  culluia  do  apologo,  a 
ponlo  de  nos  legar  um  livro  de  seiscentas  pagi- 
nas, prenhe  de  fabulas,  achou  esta  explicação 
mais  poética  que  verosímil,  porque,  diz  elle:  «se 
a  lição  dada  pelo  escravo  era  tal  que  podesso  of- 
fender  o  amor  próprio,  ou  o  orgulho  do  Si'nhor, 
pouco  importava  que  elle  a  ouvisse  em  phrase 


clara,  ou  que  a  conhecesse  por  conjectura.»  Pa- 
rece-nos  bem  pouco  lógica  a  deikicção,  e  se  se- 
guíssemos, nesta  parle,  as  ideias  de  Costa  e  Silva, 
outro  seria  o  nosso  argumento  ;  mas  a  nossa  opi- 
nião diverge  da  do  luso  fabulista.  A  explicação 
de  Phedro  "satisfaz-nos  muitíssimo ;  só  ella  nos 
poderá  servir  de  guia,  na  escabrosa  senda  dos 
séculos,  até  o  ponlo  que  desejamos  conhecer:  se 
é  que  ainda  \i  não  chegámos.  ^0  celebre  Se- 
nhor, a  qnem  o  Escravo,  por  um  modo  artiticio- 
so,  quiz  manifestar  o  sou  pensamento,  não  seria 
o  Orgulho  ou  Amor-proprio,  o  mais  soberbo  e 
lyranno  de  lodos  os  senhores  que  lêem  vindo  ao 
mundo?  [.  E  o  Escravo,  por  consequência,  não 
seria  o  fraco  {íenero-humano  ."^  Decididamcnle,  foi 
aquelle  o  Senhor,  (jue  o  pobre  Escravo  tentou, 
inventando  o  apologo,  conciliar  com  a  verdade. 
A  sabedoria  só  nos  pôde  dar  lições,  sem  ofFen- 
der-nos",  excitando  a  nossa  curiosidade,  recreando 
a  nossa  imaginação. 

Das  fabulas  dos  t(Miipos  remotos  que  poderam 
chegar  até  nossos  dias  é,  igualmente,  ponto  con- 
Iroveiso,  quaes  d'ellas  foram  as  primeiras.  Todos 
quantos  lêem  escriplo  sobre  o  assumpto  discor- 
dam entre  si.  Florian,  que  no  seu  pequeno,  mas 
elo(|uente  estudo  sobre  a  fabula,  mostra  ler  sido 
a  índia  o  berço  d 'ella,  e  o  sou  auctor  um  bra- 
hmane,  quer  que  os  apologos  de  Bidpay  ou  Pil- 
pay  sejam  os  mais  antigos  de  lodos  quantos  se 


3S8 


O  PANORAMA 


conhecem.  AVilliam  Jones  diz,  lambem:  «As  fa- 
bulas de  Vischnu-Saima,  a  quem  ridiculamenle 
dão  o  nome  de  Pilpay,  são  as  melhoies,  senão  as 
mais  amigas  do  mundo.))  Elíeclivamenle,  ainda 
se  não  enconlrou  collecrão  alguma  que  houvesse 
precedido  esla ;  os  mesmos  apologos  de  Lokman, 
poela  árabe  a  quem  alguns  escriploies  dão  uma 
exislencia  anterior  a  Visclinu-Sarma,  e  oulros  que- 
rem que  seja  o  próprio  Ksopo,  não  passam  a  nos- 
so ver,  de  uma  Iraducção  dos  d'aquelle;  mas,  se 
Vischnu-Sarma,  como  ainda  não  ha  muilo  tempo 
o  alíirmou  um  notável  escriptor  allemão,  viveu 
cerca  de  mil  annos  antes  de  Cliristo,  como  pode- 
remos considerar  os  seus  apologos  os  primeiros, 
vendo  no  livro  dos  juizes  a  fabula  As  arvores  es- 
colhendo um  rei,  e  no  livro  dos  Reis  a  do  pro- 
plieta  Natham  A  ovelha  furtada  ?  Aos  sábios  a 
solução  do  problema.  (I) 

As  fabulas  de  Vischnu-Sarma  acharam-se  escii- 
plas  primitivamente  em  sanscri^o,  formando  um 
volume  que  tinha  por  titulo  Panlcha-Tantra  e 
Jíitopadesa  ou  inslrucrão  amigável,  espécie  de 
romance  allegorico  politico  e  moral,  cujos  prin- 
cipaes  personagens  são  dois  chacaes,  animaes  a 
que  os  Índios  attribuem  a  mesma  astúcia,  que  nós 
altribuimos  á  raposa.  Esla  obra  acha-se  traduzida 
nus  idiomas,  pehlvi,  antiga  lingua  da  Pérsia  que 
substituio  o  zend,  árabe,  hebraico,  lalim  e  fran- 
cez.  Em  1826  o  abbadc  Dubois  publicou  uma 
traducção  do  próprio  sanscrilo.  Não  nos  detere- 
mos na  analyse  destas  fabulas;  baste  dizer  que, 
á  excepção  das  de  Phedro,  Lafonlainc  e  Gellert, 
ainda  nenhumas  as  igualaram. 

Voltemo-nos  agora  para  a  Grécia,  que,  verda- 
deiramente, tem  sido  o  ponto  de  partida  de  quasi 
lodos  que  se  lecm  dado  ao  trabalho  de  escrever 
sobre  este  assumpto.  È  claro,  á  vista  do  que  te- 
mos expendido,  que  não  foi  Esopo,  como  por  ve- 
zes, erradamente,  se  tem  dito,  quem  inventou  a 
fabula;  e  agora  digamos:  não  foi  elle  o  primeiro 
a  cullival-a  na  patiia  de  Homero.  O  apologo  ap- 
pareceu  na  (jrecia  como  auxiliar  da  philosophia : 
foi  contemporâneo  da  poesia  gnomica  e  associou- 
se  igualmente  á  poesia  didáctica.  Em  Ilesiodo, 
poeta  que  se  julga  ler  sido  coetâneo  do  grande 
jlomero,  e  que  viveu,  pelo  nono  século  antes  de 
J.  C,  cHcontramos  a  fabula  do  Rouxinol  e  o  Ga- 
vião. Mais  tarde  ligou-se  á  poesia  iyrica.  Archi- 
locho,  juntamente  com  as  suas  odes,  dcixou-nos 
duas:  A  Afjnia  e  a  íiajjoza,  dirigida  conlra  Ly- 
cambo,  e  a  lia/joza  e  o  Macaco.  A  fabula,  pois^ 
á  sua  apparição  na  (irecia,  não  formava  um  gel 
nero  particular;  e  Eso[)o,  apesar  de  ser  o  qu^ 
mais  SC  entregou  á  cultura  d'ella,  não  conseguio 

(I)  Alguns  cscriplorcs  lêem  querido  descobrir  nos  Verias,  a  fa- 
bula, projiriamenlc  dita,  c,  por  ronseguinte,  não  adiniitem  (jik; 
SC  conliei;am  fnliulas  iiiiiis  a.ilij^asdii  (jiie  as  da  índia,  ipiefoi,  ao 
crescentaífi,  onde  nasceu  este  generodeliticralura.  Nesla  ulliinaiiar- 
te,  ofnliin,  cstimos  de  aocordo.  í>>in  oiju",  porém,  nos  não  podemos 
conf<jrniar,  é  com  a  oulra  idfdn,  a  não  ser  f|ue  confundamos  a 
par.itjola  com  a  faljnla  ou  apologo,  que  são,  é  verdade,  duas  es- 
pécies pjrlicu  lares  da  allegoria,  mas  dislincUis  cnln;  si.  A  para- 
l>ola  ú  urna  narração  allegorica,  curta,  senlenciosi  que  encerr.i 
sempre  implicitamente  uma  lição  de  morai.  O  apoloí?o  ou  faliu- 
li  (jurque  não  existe  diíTeren&i  essencial  na  significação  destas 
duas  palavras)  c  geralmente  uni  pequeno  joema  cuja'  forma  i- 
dramática  e  na  qual  o  auclor  enuncia  o  preceito  moral  que  di 
mana  da  iiccáo  profiosta. 


líbertal-a  dos  laços  que  a  prendiam  a  oulros  gé- 
neros. Annos  de|)ois,  quando  formou  um  domínio 
á  jiarte,  ainda  não  era  completamente  livre;  es- 
teve muito  tempo  ao  serviço  da  elo(|uencia:  pro- 
vam n'o,  a  fabula  do  Homem  e  o  Cavallo,  que 
Slesichoro  contou  aos  llimerianos,  quando  Phala- 
ris  tomou  o  mando  das  tropas,  a  dos  Membros  e  o 
Esloma(jo,  de  que  Mnenius  Agrippa  se  sérvio  pa- 
ra reconciliar  o  povo  com  os  patrícios,  e,  final- 
mente, muitas  outras  que  se  encontram  nos  di- 
versos historiadores  gregos  e  romanos. 

iSão  sendo,  |)or  tanto,  a  fabula  um  género  dis- 
linclo  e  independente,  era  narrada  em  prosa,  ,e 
ludo  leva  a  crer  que  Esopo  não  escreveu  em  ver- 
so, i,  Escreveria  elle  mesmo  as  suas  fabulas  V  A 
opinião  contraria  lem  mais  verosimilhança.  O 
que,  porém,  nos  não  parece  ponto  duvidoso,  é 
que  elle  fosse  o  criador  da  fabula  chamada  Eso- 
pica.  E  se  não,  quaes  são  as  obras  dos  fabulíslas 
que  o  precederam  que  estejam  no  caso  de  contes- 
tar a  propriedade  das  d'elle,  a  prioridade  da  in- 
venção ? 

Sobi'e  a  sua  vida  e  obras  quasi  ludo  quanto  alé 
hoje  se  lem  dito  não  passa,  a  nosso  ver,  de  um 
acervo  de  disparates.  Os  que  não  querem  que  o 
disforme  fabulísta  Phrígio  existisse  dizem,  como 
Florian,  pouco  mais  ou  menos :  «O  que  é  certo  é 
que  os  apologos  índios,  entre  os  quaes  se  encon- 
tra o  dos  dois  pombos,  foram  traduzidos  em  todas  as 
línguas  do  Oriente,  or-a  sob  o  nome  de  Bídpai  ou 
Pilpai,  ora  sob  o  de  Lochman.  Depois  passaram 
à  Grécia  sob  o  Ululo  de  fabulas  d'£sopo.»  (Isto 
poderia  ler  seus  visos  de  verdade  se  enlre  as  fa- 
bulas de  Bidpay  e  as  de  Esopo  houvesse,  pelo 
menos,  alguma  semelhança,  mas  tal  cousa  não 
existe.)  Os  que  são  de  opinião  contraria,  apre- 
sentatn-n'os  um  amontoado  de  tradições  sem  cri- 
tica e  de  contos  a  maior  parte  delles  invei'osimi- 
Ihanles,  como  a  Vida  d'Esopo  por  Planudio,  a 
qual,  o  que  deveras  nos  admira,  Lafontaine  se 
deu  ao  trabalho  de  traduzir  e,  o  que  é  mais  ainda, 
não  leve  receio  de  a  publicar  juntamenle  com  a 
sua  collecção  de  fabulas  I 

(Continua) 

OS  BRAHMANES 

(ConcluBão) 

O  dogma  da  Iransmif/ração  das  almas  ou  da 
3lelempsijcose,  como  o  íeitor  já  poude  r-econhecer 
pelo  castigo  pronunciado  conlra  aquelle  (jue  ousa 
ferir  um  Rralimane,  é  a  sancção  da  lei  civil  e  re- 
ligiosa dos  índios.  Segundo  Manu,  os  males  que 
allligem  o  homem  são  a  punição  e  a  conseíjuen- 
cia  inevitáveis  dos  seus  peccados.  A  vida  actual 
é  uma  expiação,  porque  é  o  seguimento  das  vidas 
anteriores,  (^omludo,  o  homem,  depois  de  uma 
serie,  mais  ou  menos  longa,  de  transmigrações, 
pôde  chegar  a  um  lai  gráo  de  perfeição  que  me- 
reça ser  recebido  no  seio  de  Rrahma  e  licar  dis- 
pensado de  voltar  a  esta  terra  de  provas.  «O  ho- 
mem, diz  ainda  o  Manava-Dharma-Saslra,  que 
pratica  frequentemente  actos  religiosos  interes- 
sados, chega   a   enlrar   na  ordem   dos   deuses; 


o  P\NORAMA 


339 


mas  o  que  executa  a  miude  obras  piedosas  des- 
interessadas, despoja-se  para  sempre  dos  cinco 
elementos,  e  obtém  liberlar-se  dos  laços  do  cor- 
po. Vendo  igualmente  a  alma  suprema  em  todos 
os  seres,  e  lodos  os  seres  na  alma  suprema,  otTe- 
reccndo  a  sua  alma,  identilica-se  com  o  ente  que 
brilha  com  o  seu  próprio  resplendor...  As  almas 
dotadas  da  qualidade  de  bondade,  adquirem  a  na- 
tureza divina  ;  aquellas  que  são  dominadas  pela 
paixão  participam  da  condição  humana;  as  almas 
mergulhadas  na  obscuridade,  passam  para  os  ani- 
maes:  taes  são  as  três  principaes  espécies  de //'«hí- 
migrarões.  Se  a  alma  se  tem  dado  frequentemen- 
te ao  mal  e  raras  vezes  ao  bem,  depois  da  mor- 
te, despojada  do  corpo,  tirada  dos  cinco  elemen- 
tos, e  revestida  de  outro  corpo  formado  das  par- 
tículas subtis  dos  elementos,  é  submettida  ás  tor- 
turas infligidas  por  Ya?na  (rei  dos  infernos.)» 

O  dogma  da  metempsycose,  por  mui  estranho 
que  nos  pareça,  deriva  naturalmente  do  systema 
das  emanações  e  forma  o  remate  necessário  de  toda 
a  doutrina  religiosa  fundada  sobre  o  pantheismo. 
Mas,  esta  concepção  da  metempsycose  tem  pro 
duzido  consequências  que  importa  muito  dar  a 
conhecer :  queremos  faltar  do  desenvolvimento 
exagerado  da  vida  eremitica  e  contemplativa,  e 
do  esquecimento  das  obras  pelas  ausleridades  e 
formas  expiatórias,  por  meio  das  quaes,  pensam 
os  Índios,  que  se  podem  evitai  as  transformações, 
muitas  vezes  desagradáveis,  de  que  está  ameaçado 
o  homem  culpado,  o  violador  da  lei.  «Os  grandes 
criminosos,  diz  Manu,  e  todos  os  outros  homens 
culpados  de  diversas  faltas,  são  descarregados 
dos  seus  peccados  por  ausleridades  praticadas 
com  exactidão.  As  almas  que  animam  os  vermes, 
as  serpentes,  os  gafanhotos,  os  animaes,  as  aves, 
e  mesmo  os  vegelaes  chegam  ao  céo  pelo  poder 
da  devoção  ausléra.  A  letra  A,  a  letra  U,  a  le- 
tra M,  foram  exprimidas  dos  Ires  livros  sanlos 
pelo  Senhor  das  criaturas.  Dos  Ires  Vedas  (Irata- 
se  aqui  dos  Ires  primeiros),  o  Altíssimo,  o  Se- 
nhor das  criaturas  extraio  lambem,  eslrophe  por 
estrophe,  essa  invocação  chamada  Savitri,  que 
começa  pela  palavra  Tod.  Recitando,  em  voz  bai- 
xa, de  manha  e  de  tarde,  o  monosyllabo  AUM,  e 
esta  supplica  precedida  das  Ires  palavras  Bhour, 
Bhouvah,  Swar,  lodo  o  Crahmane,  que  conhece 
perfeitamente  os  livros  sagrados,  obtém  a  santi- 
dade que  o  Veda  procura.  Aquelle  que,  durante 
Ires  annos,  repete  lodos  os  dias  esta  supplica, 
sem  nunca  faltar,  irá  juntar-se  á  suprema  divin- 
dade, tão  ligeiro  como  o  vento,  revestido  de  uma 
forma  immorlal.» 

As  penitencias  voluntárias  que,  muitas  vezes, 
se  impõem  aos  anachoretas  Índios,  chamados /í/o- 
guis  e  Sanngasts,  conforme  a  classe  a  que  per- 
tencem, lêem  sido  sempre  objecto  de  grande 
admiração  para  os  viajante.  Muitas  d'entre  ellas 
estão  enumeradas  no  código  de  Manu :  «Oue 
o  anachorela  se  roje  pela  terra,  ou  que  se  con- 
serve nas  pontas  dos  pés  durante  todo  o  dia;  que 
nos  calores  do  verão,  se  rodeie  de  cinco  foguei- 
ras ;  que,  na  estação  das  chuvas,  se  exponha, 


sem  abrigo,  ás  nuvens;  que,  na  estação  fria,  tra- 
ga vestidos  húmidos,  e  que  augmenle  gradual- 
mente o  rigor  das  suas  penitencias ;  que  se  inflija 
as  mais  terríveis  mortilicações  e  que,  (h^ste  modo, 
vá  destruindo  o  seu  involtoiio  corporal...  Que 
sempre  caminhe  em  linha  recta  para  a  região  se- 
ptemtrional,  vivendo  unicamente  de  ar  e  de  agua, 
ale  que  o  seu  corpo  caia  no  pó.:»  Estas  morliíica- 
çues,  como  se  vè,  vão  até  o  suicídio,  e  os  precei- 
tos de  Manu  foram  religiosamente  seguidos.  E' 
por  isso  que  na  celebre  festa  de  Djaggernâth,  ín- 
dios devotos  fazem-se  esmagar  debaixo  das  rodas 
do  carro  que  conduz  o  ídolo  do  deus;  é  ainda 
por  isso  que  na  festa  solemne,  que  se  celebra  lo- 
dos os  annos  |)roximo  de  Calabhaírana,  muitos  se 
precipitam  do  alto  d'um  rochedo.  INos  tempos  an- 
tigos, o  queimar-se  o  individuo  em  vida  parecia 
ser  cousa  muito  usada.  Os  phílosophos  índios  Ca- 
lanus  e  Sarmanochagas,  que,  segundo  os  histo- 
riadores gregos,  se  queimaram,  o  primeiro  era 
Pasargade,  na  presença  de  Alexandre,  e  o  segun- 
do em  Athenas,  são  exemplos  do  que  deixamos 
dito.  Comtudo,  estas  ausleridades,  na  generalida- 
de, tão  horríveis,  que  descrevem  as  relações,  são, 
a  maior  parte  das  vezes,  inspiradas  pela  vaidade 
e  pelo  desejo  de  receber  homenagens. 

A  moral  ensinada  pelos  Livros  sagrados  da  ín- 
dia tem  sido  muito  gabada.  Effeclivamente,  como 
todas  as  legislações  possíveis,  consideram  crimes 
grandes  o  assassínio,  o  roubo,  o  adultério,  etc. ; 
contém  prescrípções  admiráveis  relativas  á  cari- 
dade, á  esmola,  á  hospitalidade ;  mas  estas  pres- 
crípções estão  radicalmente  viciadas  pela  ínsliluí- 
ção  religiosa  das  castas.  As  passagens  que  temos 
citado  bastam  para  demonslral-o. 

Também  tem  sido  muito  exagerada  a  cifra  dos 
sectários  do  Brahmanismo:  não  deve,  porém,  ex- 
ceder de  sessenta  milhões ;  porque  esta  religião 
não  se  estende  fora  do  Indostão,  e  esta  vasta  re- 
gião é  ainda  habitada  por  muitos  milhões  de  in- 
divíduos que  professam  o  Mahomelismo,  o  Sabeís- 
mo,  ou  o  iNanekismo. 


CARLOS  II  DE  IIESPANIIA 

.^iin  ineiioriílaiflc 

Depois  de  um  longo  e  fatal  reinado  de  quarenta 
e  quatro  annos,  durante  os  quaes  continuara  ra- 
pidamente, e  com  mui  curtos  íntervallos,  a  des- 
membração  do  império  de  Carlos  A'  e  Phiíippell, 
deixou  de  existir  Phílíppe  IV  (terceiro  de  Portu- 
gal), no  dia  17  de  setembro  de  1665. 

Posto  que  dos  seus  dois  matrimónios,  celebra- 
dos o  primeiro  com  D.  Isabel  de  Rourbon,  e  o 
segundo  com  D.  Marianna  d'Auslría,  resultassem 
vários  filhos  varões  e  fêmeas,  só  lhe  sobreviveu, 
dos  primeiros,  o  desventurado  Carlos  11,  ultimo 
ramo  masculino  da  regia  arvore  dynastica,  e  este 
na  tenra  idade  de  qualorze  annos  incompletos, 
como  nascido  que  era  em  novembro  de  1661. 

Três  dias  antes  de  morrer,  outorgara  Phílíppe  o 
sou  testamento,  no  qual  nomeava  a  rainha  D.  Ma- 
rianna tutora  de  seu  lilho  e  herdeiro,  e  regente 


340 


O  PANORAMA 


do  reino  na  sua  menoridade,  em  termos  tão  ex- 
pressivos, como  estes :  «para  que  só  com  esta 
omeação,  sem  outro  aclo,  nem  diligencia,  nem 
^  ramenlo,  nem  discernimento  da  dita  tutela,  pos- 
^^\  desde  o  dia  em  que  eu  fallocer,  entrar  no  go- 
^^erno  do  estado  na  mesma  forma  e  com  a  mesma 
\cloridadecomo  eu  o  laço  ;  poique  e  minha  von- 
tade dar-lhe  a  que  teníio  e  toda  quanta  mais  fôr 
necessária,  sem  reservar  cousa  alguma,  a  lim  de 
(,ue,como  tutorado  lilho  ou  lillia  nossos, que  mesuc- 
ccder,  tenha  todo  o  go\erno  e  regimento  de  todos 
os  meus  reinos  em  paz  e  em  guerra,  ate  que  o 
lilho  ou  íilha  que  me  succeder  tenha  quatorze  an- 
nos  completos,  para  poder  governar.»  Não  obstan- 
te, e  alim  de  auxiliar  a  rainha  viuva  com  seus 
corseihos  e  serviços,  Philippe  insliluio  uma  junta 
corsu  liva  composta  do  cai-deal  arceljisj)o  de  To- 
ledo e  inquisidor  geral ;  do  conde  de  Caslrillo, 
presidente  do  conselho  de  Caslella  ;  I).  Crislóbal 
Crespo,  chanceller  ou  presidente  do  de  Aragão  ; 
do  maiquez  de  Avltuia,  grande  de  Hespanha,  e 
do  conde  Penaranda,  conselheií-o  de  Estado. 

D.  iMarianna  senlio  sinceramente  a  morte  de 
seu  augusto  esposo,  e  pareceu  disposta  .a  seguii' 
as  instrucções  que  d^elle  recebera  e  os  conselhos 
da  junta  consultiva  que  llie  lura  legada  ;  mas,  de- 
pressa deu  a  conhecer  que  outro  inlUixo  su|)erior 
dominava  a  sua  consciência  e  havia  lambem  de 
subjugar  a  sua  auctoridade  soberana.  Esta  perni- 
ciosa inlluencia,  e  estranha  dominação,  eram  as 
que  exercia  no  animo  da  rainha  o  seu  confessor, 
o  jesuíta  allemão  padre  João  EverardoNitard.  Este 
astuto  personagem  (a  quem  se  não  pôde  negar 
certo  dom  de  talento  politico)  acompanhara  l\la- 
rianna,  na  qualidade  de  seu  director  espiritual, 
quando  ella  foi  casar  com  Philippe,  em  16iG;  e 
ainda  que  de  origem  humilde  e  mediana  capaci- 
dade, soube  ganhar  certa  reputação  no  collegio 
de  jesuilas  de  Vienna,  na  sociedade  cortezã  (l'a- 
quella  capitai,  insinuou-se  no  animo  do  impera- 
dor, que  se  dignou  recommendal-o  a  sua  irmã,  a 
futura  rainha  de  Hespanha,  e,  por  lim,  na  vontade 
desta  senhora,  que,  durante  os  vinie  e  um  annos 
do  seu  matrimonio  com  iMiilipj)e,  nunca  apartou 
do  seu  confessionário  o  religioso  aMemão.  O  rei 
lambem  respeitava  e  queria  muito  ao  director  es- 
j)irilual  de  sua  augusta  esposa  ;  apesar,  porém, 
das  instancias  desta,  paia  que  lhe  conferisse  outras 
dignidades  ecclesiaslieas,  Philippe  nunca  deu  ou- 
vidos, deixando-o  tranquillamenle  no  seu  delica- 
do ministério,  sem  adiantai-o  na  sua  carreira. 

Assim,  |)rovavelmenle,  caminhariam  as  cousas 
se  não  fosse  a  morte  de  Philipfie  c  a  icgeneia  do 
reino  não  passasse  ás  mãos  de  Mariaiina  ;  oecor- 
rida,  porém,  aquella  e  encari-egada  esta  do  jxxler 
.supremo,  o  primeiro  uso  que  fez  da  sua  auctori- 
dadi!  foi  a  favor  do  padre  .Nilard  ;  porque,  morto 
o  cardeal  Sandoval  no  dia  seguinte  á(|uelle  em 
(jue  falleceu  Philippe  IV,  e  nomeado,  em  seu  lu- 
íiar,  arcebispo  de  Toledo  o  cardeal  1).  Pasehoal 
de  Aragão,  e  inquisidor  geral,  a  rainha  empe- 
nhou-se  para  que  esle  renunciasse  ao  ultimo  car- 
go, o  que  lhe  não  foi  dillicil  conseguir,   e  inves- 


tio  n'elle  immediatamente  o  seu  confessor,  sem 
fazer  caso  da  junta  consultiva.  Esta  arrojada  de- 
terminação, esta  disposição  de  um  emprego  tão 
importante,  qual  o  de  inquisidor  geral,  sem  con- 
sulta alguma,  j)oucos  dias  depois  de  tomar  as  ré- 
deas do  governo,  e  fei'a  a  favor  de  um  estrangei- 
ro nascido  e  educado,  segundo  se  dizia,  nos  seus 
primeiros  annos  na  seita  lulherana,  e  que,  além 
d'isso,  não  contava  a  menor  sympalhia  nos  con- 
selhos da  coroa  nem  no  publico,  deu  motivo  ás 
primeiras  murmurações  e  desgostos,  que.  todavia, 
a  destresa  de  IMarianna  e  o  manejo  dos  princi- 
paes  cortezãos  poderam  abafar;  mas,  que  não  dei- 
xaram de  semear  o  gérmen  de  futuras  discórdias, 
invejas  e  atlribulações.  E  estas  cresciam  de  dia 
para  dia  tanto,  quanto  o  predominio  do  padre 
confessor  e  inquisidor  geral  augmentava,  não  só 
na  direcção  da  consciência  regia  com  actos  mera- 
mente religiosos,  senão  lambem  nos  que  diziam 
respeito  ao  governo  temporal  do  reino  ;  e  em  ler- 
mos, que  já  era  designado  [mblicamenle  com  o  ti- 
tulo de  favorito  ou  valido,  e  supeiioi-  em  poder  a 
todos  os  ministros  e  dignidades  do  Estado. 

A  lesta  dos  descontentes  c  personilicando  as 
inimisades  da  corte  e  do  povo  para  com  o  in- 
(juisidorEverardo,  appareceu  logo  um  grande  per- 
sonagem, que  se  propoz  a  oppor  a  sua  alia  posi- 
ção e  relevantes  dotes  á  desniedida  elevação  em 
que  soubera  coliocar-se  o  astuto  padre.  Esle  po- 
deroso personagem  era  D.  João  José  d'Auslria, 
lilho  natural  de  PhilippeiV,  fructo  dos  seus  amo- 
res com  a  celebre  actriz  Maria  Calderon. 

(Cunlinua) 


A  TORRE  DE  LONDRES 

Poucos  monumentos  recordam  tantos  factos  his- 
tóricos como  a  torre  de  Londres ;  contemplando 
aquellas  grossas  paredes,  as  scenas  de  dor  de  que 
foram  leslemunhas  descnham-se  em  multidão  na 
memoria;  a  imaginação  penetra  n'aquella  som- 
bria morada,  que  tantos  séculos  sérvio  de  prisão, 
não  só  a  homens  culpados,  mas  a  nobres  e  gene- 
rost>s- corações  victiinas  da  anarchia  e  do  despo- 
tismo. O  seu  destino  actual  não  excita  nenhuma 
commoção  penosa,  e  o  viajante  corre  a  visital-a 
como  um  reslo  de  antiguidade  ligada  estreila- 
menle  a.  mais  de  uma  pagina  da  hisloiia. 

A  parle  mais  antiga  do  edifício  tem  sido,  por 
vezes,  attribuida  a  Júlio  í>esar;  disse-se  mesmo 
(]ue  existira  ifaquelle  sitio  uma  fortaleza  romana; 
mas  esle  fado,  que  se  não  appoia  na  auctoridade 
de  nenhum  historiador,  não  nos  parece  suílicien- 
temenle  attestado  |)ela  descobeiia  recente  de  me- 
dalhas e  outras  antiguidades  que  não  ollerecem 
nenhuma  relação  com  o  lugar  onde  foi-am  encon- 
tradas. A  torre  branca,  que  forma  hoje  a  parle 
mais  notável,  foi  edificada  no  reinado  de  (íuilher- 
mel,  |)elos  annos  1080,  por  (jandulpho,  bispo  de 
Roehester,  afamado  por  seu  talento  na  arte  das 
fortilicaçOes.  Em  11 ÍO,  no  reinado  de  Eslevam, 
lornou-se  residência  real.  Três  annos  depois, 
(ieoílVey  de  Mandevilie,  foi  ali  sitiado  pelos  ha- 


o  PANORAMx\ 


U\ 


Torre   de   Londres. 


bilanles  de  Londres,  partidários  de  Estevam,  que 
o  aprisionaram  e  obrigaram  a  derai(lir-se  do  car- 
go de  governador,  enlão  hereditário  em  sua  fa- 
luilia,  uma  das  que  seguira  o  conquistador  em 
1189.  Loncbamp,  bispo  d'Eiy,  a  quem  Ricardo 
confiara  o  cuidado  do  reino  e  a  guarda  da  torre, 
fortificou-a  e  rodeou-a  de  um  fosso.  O  rei  João 
também  ali  fez  trabalhos  consideiaveis,  e  nos  úl- 
timos annos  do  seu  reinado  ali  teve  a  sua  corte; 
mas  os  barões  revoltados  apodeiaram-se  d'ella  e 
entregaram-na  a  Luiz  de  França.  Em  1217,  foi 
restituída  a  Henrique  IJI,  o  qual  mandou  construir 
a  capella,  a  sala  de  estado  e  a  grande  galeria, 
llalph  Elambard,  bispo  de  Durham,  ministro  e 
coníidenle  de  William  Rufus,  no  tempo  de  Hen- 
rique I  é  o  primeiro  prisioneiro  de  quem  falia  a 
historia ;  o  celebre  Hubert  de  Rurgh,  conde  de 
Kent,  ali  foi  successivamente  governador  e  capti- 
vo,  em  1232.  Henrique  III  refugiou-se  n'ella  mui- 
tas vezos  durante  as  guerras  civis  e  accrescentou- 
Ihe  muitos  meios  de  defesa.  Eduardo  í  acabou  os 
trabalhos  emprehendidos  por  seu  pao ;  foram  es- 
tes os  últimos  ti-abalhos  importantes  que  se'  íize- 
ram.  Seiscentos  jii(i(!us  foiam  ali  encerrados  pelo 
crime  de  moeda  iaisa,  e  o  famoso  William  Wal- 
lace  ali  passou  alguns  dias,  em  1305,  antes  de 


terminar  a  sua  vida  de  hcroe  pelo  supplicio  de 
um  criminoso. 

Este  ediíicio  mudou  muitas  vezes  de  dono  du- 
rante o  turbulento  reinado  do  infeliz  Eduardo  11, 
e  a  invasão  da  França  por  Eduardo  Hl,  tornou-o 
ainda  habitação  de  illuslres  personagens ;  os  con- 
des d'Eu  e  de  Tancarville  para  ali  foram  condu- 
zidos com  trezentos  cidadãos  de  Caen ;  em  pouco 
tempo  a  batalha  de  Nevill's  Cross,  ganha  pela 
rainha  na  ausência  do  vencedor  de  (]reci,  deu- 
Ihes  por  companheiros  de  capliveiro  David  Bruce 
e  os  lords  de  Fife  e  de  Monleith,  aos  quaes  fo- 
ram juntar-se  no  fim  de  alguns  mezes  Carlos  de 
Rlois  e  o  bravo  João  de  Vienna,  governador  de 
Calais,  com  doze  dos  principaes  cidadãos  desta 
cidade.  João  c  seu  filho  para  ali  foram  também 
conduzidos  em  13Jj9,  depois  de  lerem  estado  pri- 
sioneiros em  Savoy-Palace  em  Londres  e  em 
Wíndsor-Castle. 

O  tratado  de  Rretigny,  que  deu,  <"m  1360,  a 
liberdade  ao  rei  de  França,  foi  seguido  de  alguns 
annos  de  um  socego,  que  se  pôde  chamar  relati- 
vo. Mas  as  agitações  de  que  a  torre  foi  thealro 
manifestarem-se  no  reina(lo  de  Ricardo  II ;  em 
1377  abriram-se  as  suas  portas  para  deixarem 
passar  o  cortejo  que  o  acompanhava  a  Weslmins- 


342 


O  PANORAMA 


ter,  e  logo  depois  do  rei,  a  sua  família  e  os  prin- 
cipaes  senhores  do  reino  ali  foi'ani  sitiados  por 
^Val  Tyler.  á  frente  de  60:000  rebeldes.  Ricardo 
foi  novamente  atacado  nesta  fortaleza  cm  1387, 
por  seu  tio,  o  duque  de  Glocesler;  logrado  por 
uma  falsa  reconciliação,  vio  morrer  muitos  dos 
seus  ministros  pelas  ordens  do  duque,  e  um  d'el- 
Ics,  Simão  Burley,  foi  a  primeira  pessoa  decapita- 
da em  Tower-niri.  lugar  que  depois  foi  muitas  vezes 
escolhido  para  execuções  semelhantes.  Emlim,  Ri- 
cardo cedeu  o  throno  em  lí97  a  Ilenriíjue  Bolin- 
gbroke,  que,  como  elle,  saio  da  torre  para  se  di- 
rigir a  Westminster  no  tini  de  um  lapso  de  (em- 
po muito  curto.  O  rei  desthronado  foi  conduzido 
sem  vida  paraaquella  triste  habitação,  onde,  por 
uma  exposição  publica,  se  esperou  destruir  certas 
suspeitas  que,  dizem,  eram  mui  bem  fundadas. 

ISos  reinados  de  Henrique  lY  e  seu  successor, 
a  lorre  sérvio  muilas  vezes  de  prisão  de  estado  ; 
ali  encerraram  em  li06,  contra  toda  a  justiça, 
James,  príncipe  da  Escócia,  que  apanharam  na 
costa,  no  momento  em  que  embarcava  para  Fran- 
ça, onde  ia  ser  educado;  seu  pae,  Roberto  111, 
morreu  durante  a  sua  prisão,  e  assim  foi  James,  o 
terceiro  rei  da  Escócia  que,  no  espaço  de  um  sé- 
culo, habitou  na  torre.  Este  piincipe  deixou  sob 
o  titulo  de  Livro  do  rei,  the  kiuffs  quhair,  um 
poema  que  prova  um  verdadeiro  talento;  compoUo 
emWindsor,  para  onde  foi  transferido;  era  tra- 
tado com  muito  respeito,  tinham  com  elle  todas 
as  allenções  e  o  rei  parecia  estimal-o  muito,  mas 
o  príncipe,  só  recobrou  a  sua  liberdade  em  1423, 
e  foi  obrigado  a  dar  caução  para  o  pagamento  de 
um  resgate  de  40:000  libras.  Os  duques  d'Orleans 
e  de  Bourbon  com  muitos  outros  senhores  france- 
zos  foram  enviados  para  a  torre  no  tempo  de 
Henrique  VI,  duiante  as  guerras  de  França.  Em 
14o0  os  revoltados,  á  testa  dos  quaes  eslava  Jock 
Cadc,  sitiaram-na.  Lord  Say  e  Sir  James  Cro- 
mer,  seu  genro,  foram  viclimas  da  sanha  popu- 
lar; mas  esta  commoção  passageira  foi  apenas  o 
preludio  de  numerosos  acontecimentos  guc  assi- 
gnalaram  as  guerras  das  duas  rosas.  Lord  Scales, 
atacado  em  1400  pelo  conde  Salysbury  e  lord 
Cobham,  cntregou-se  quando  soube  da  prisão  de 
Henrique  VI  em  Northampton  que,  depois  das  al- 
lernalivas  de  victorias  e  (hs  derrotas,  foi,  em  se- 
guida á  batalha  de  llcxham,  em  151)4,  encerrado 
na  torre  onde  esteve  muitos  annos,  durante  os 
quaes  o  seu  feliz  rival  Eduardo  VI  ali  habitou 
mais  habitualmente  que  os  últimos  reis  É  curio- 
so seguir  na  historia  as  eslranhas  vicissitudes 
destas  reaes  existências  ;  ver  II('nri(|ue  subido  ao 
throno  em  1i70,  desthronado  no  aiino  seguinte 
por  Eduardo,  trocar  novamente  a  coroa  pela  pri- 
são aonde,  dentro  em  pouco,  lhe  foi  fazer  com- 
panhia Margarida,  sua  mulher,  que  vira  fenece- 
rem as  suas  ultimas  espeianças  cm  Tewksbury; 
a  penna  de  Shakspeartí  imiuDilalisou  o  trágico 
lim  de  Ilcnriíiue,  mas  este  fado  não  foi  bem  es- 
clarecido pela  hisloria.  O  que  se  sabe  com  certe- 
za, é  que  Henriíiue  morreu  poucos  dias  depois 
da  entrada  tiiumphanle  de  IMuardo  na  cai)ilal.  O 


duque  de  Clarence,  irmão  do  rei,  em  1478,  foi 
encarcerado,  julgado  e  executado  debaixo  d'um 
frivolo  pretexto  ;  diz-se  que  fora  afogado  em  um 
tonel  de  Malvasia  ;  mas  não  se  pôde  empregar 
muita  atlenção  em  libertar  a  aulhenticidade  \la 
historia  das  versões  populares  e  dramáticas  que 
muilas  vezes  deturpam  os  mais  importantes  acon- 
tecimentos. Poucas  épocas  são  tão  obscuras  como 
a  que  se  segue  immedialamente  á  morte  do  rei  e 
á  elevação  do  duque  de  (llocesler  ao  protectorado. 
Julga-se  que  os  lords  llaslings,  Stanley  e  o  bispo 
de  E!y  foram  presos  na  sala  do  estado  onde  de- 
liberavam; o  ultimo  foi  executado  immediata- 
mente.  Este  altentado  sérvio  de  prologo  á  usur- 
pação do  duque ;  mas  é  provável  que  nunca  ve- 
nha a  saber-se  positivamente,  em  que  lugar  foi 
commettido  o  mais  horrível  dos  seus  crimes :  o 
assassínio  dos  seus  sobrinhos.  Eduardo  Plantage- 
net,  íilho  do  duque  de  Clarence,  foi  executado 
na  torre,  victima  do  ciúme  de  Henrique  Vil,  e  no 
reinado  seguinte,  pereceu,  de  morte  semelhante, 
sua  irmã,  a  condessa  de  Salisbury,  ultima  vergon- 
tea  desta  raça  real. 

(Cv)Uinun) 

FRANCISCO  PIZARRO 

Poucas  narrações  haverá  tão  curiosas  na  his- 
toria universal,  como  a  da  primeira  entrevista  de 
Pizarro  com  o  pobre  Alahualpa.  Não  sabemos 
bem  qual  dos  sentimentos  se  apodera  com  mais 
violência  do  nosso  espirito,  se  a  profunda  repu- 
gnância pela  pcríidia  abjecta  do  chefe  hespanhol, 
se  a  admiração  pela  sua  audácia,  ou  se  a  com- 
paixão pela  infantil  ignorância  e  timidez  dos  Pe- 
ruvianos.  Com  os  seus  cento  e  oitenta  homens 
de  pé  e  de  cavallo,  e  as  suas  duas  peças  de  ar- 
tilheria,  esperou  Francisco  Pizarro  a  visita  ami- 
gável do  inca.  Este,  sem  intenções  cíTensivas,  mas 
apenas  para  desenvolver  um  luxo  e  um  poder  que 
dessem  dclle  aos  estrangeiros  a  mais  elevada  idéa, 
apparcccu  n'um  palanquim  sumptuoso^  acom- 
panhado pelos  seus  principaes  servidores,  e  se- 
guido por  trinta  mil  liomens  de  tropas,  lodos 
cobertos  d'armas  luzentes,  cuja  vista,  em  vez  de 
aterrar  os  hespanhoes,  não  fez  senão  excilar-lhes 
a  cobiça. 

Foi  no  meio  destas  forças  coUossacs  que  Pi- 
zarro formou  o  projecto  de  lançar  mão  do  inca. 
Um  fanático  monge,  que  o  acom[)anliava,  pro- 
porcionou-liie  o  ensejo.  Dirigindo-sc  a  Atahual- 
pa  fez-lhe  um  longo  discurso,  começando  pela 
criação  do  mundo.  Era  caso  para  o  inca  lhe  di- 
zer:  «Avocat,  passons  au  délur/e.n  Mas  o  pobre  pc- 
ruviano  não  percebia  palavra,  o  o  interprete^ 
que  pouco  mais  pcrccl)ia  do  que  elle,  Iraduzio- 
Itie  o  resumo  da  liistoria  ecclcsiastica  do  reve- 
rendo do  modo  mais  incomprchensivel.  Só  quan- 
do o  frade  citou  a  bulia  d'Ale\andrc  VI,  que  doa- 
va o  Peru,  em  ([ue  o  papa  nunca  ouvira  fallar, 
ao  rei  de  Castclla,  c  quando  lhe  disse  que  elle 
inca  devia  considcrar-se  vassallo  de  Carlos  V, 
Alahualpa  respondeu  indignado  que  era  sua  a 
coroa,  e  que  não  percebia  que  direito  se  arro- 
gava esse  monarclia  de  terras  distantes  para  d'cl!a 
o  esbulhar,  accrcscenlando  que  era  Ião  extraor- 
dinário o  que  o  monge  lhe  dizia,  que  desejava 
saber  quem  lhe  ensinara  essas  cousas.  O  padre 


o  PANORAMA 


343 


Valverde,  todo  ufano,  sacou  "Ti^um  breviário,  e 
apresentou- o  ao  inca.  Este  mirou-o,  e  remirou-o, 
pol-o  ao  ouvido,  e  respondendo:  «Isto  nada  me 
diz»  alirou-o  fora.  Logo  o  diabólico  frade,  vol- 
tando-se  para  os  seus  compatriotas,  bradou  : 
«Insulta  a  palavra  de  Deus  I  Matae  o  pagão  !» 
Era  o  que  Pizarro  desejava.  Deu  logo  o  signal 
do  alaque.  Rufaram  os  tambores,  o  morrão  dos 
artilheiros  approximou-se  do  ouvido  das  peças, 
que  estrondearam  vomitando  fogo  ;  os  cavallos, 
animaes  desconhecidos  que  os  peruvianos  mira- 
vam com  espanto,  partiram  a  galope,  obedecendo 
ás  esporas  dos  cavalleiros,  a  infanteria  deu  uma 
descarga  de  mosqueies  e  bestas,  que  prostrou  vin- 
te ou  trinta  homens.  Nada  mais  foi  necessário  para 
que  os  trinta  mil  peruvianos  se  dispersassem, 
cheios  de  terror,  abandonando  as  arraas^  e  ta- 
pando os  ouvidos  para  não  sentirem  o  iirado 
clamoroso  da  arlilheria,  e  o  tropear  dos  caval- 
los. Só  os  que  rodeavam  o  Inca  tentaram  uma 
defesa,  que  de  nada  valeu,  porque  os  hespanhoes 
arrancaram  do  meio  d'elles  Atahualpa,  que  per- 
manecia no  palanquim  cheio  de  espanto  e  de 
terror. 

Scenas  são  estas  que  fazem  com  que  nos  en- 
vergonhemos da  qualificação  altiva  que  tomamos 
de  povos  civiiisados,  da  ufania  que  sentimos  do 
nosso  nome  de  Europeus.  Aqui  temos  a  civilisa- 
ção  orgulhosa  dos  nossos  antepassados  em  pre- 
sença da  civilisação  juvenil  dos  povos  peruvia- 
nos,' 6  a  civilisação  superior  abusa  da  sua  supe- 
rioridade para  esmagar,  para  torturar  o  -povo, 
que  não  deu  ainda  passos  tão  largos  no  caminho 
do  progresso.  Eia  assim  que  deviam  proceder 
os  missionários  do  Evangelho,  os  seguidores  de 
Christo? 

Não  se  pode  imaginar  o  desespero  do  inca 
Atahualpa,  vendo-se  privado  do  throno  e  da  li- 
berdade por  uma  horda  de  aventureiros,  cujo 
desembarque  nem  julgara  necessário  impedir. 
Agora  sabia  bem  qual  era  o  poder  d'esses  ho- 
mens, e  de  que  ignotos  recursos  elles  dispunham 
para  subjugar  o  seu  império,  recursos  que  faziam 
de  cada  hespanhol  um  deus  para  os  seus  ater- 
rados súbditos.  Cônscio  de  que  não  podia  recu- 
perar pelas  armas  a  liberdade,  resolveu-se  a  ap- 
pellar  para  a  cobiça  dos  vencedores  promettendo- 
lhes  um  resgate  que  excedesse  os  mais  audazes 
devaneios  da  sua  imaginação.  O  resgate  que  elle 
mesmo  fixou  foi  tal  eííeclivamente  que  o  próprio 
Pizarro  se  julgou  transportado  a  plena  região 
de  fadas  e  incanlamentos.  Prometteu  Atahualpa 
encher  até  o  teclo  com  vasos  d'oiro  o  quarto 
em  que  estava  preso,  e  que  tinha  vinte  e  dois 
pés  de  comprimento  e  dezeseis  de  largura! 

Logo  o  inca  prisioneiro  expedio  as  ordens  ne 
cessarias  para  se  reunir  o  tributo  coUossal,  e  a 
tão  despótico  jugo  estavam  habituados  os  seus 
vassallos  que  nem  foi  necessária  a  intervenção 
dos  hespanhoes  para  o  cobramento  do  imposto. 
De  todas  as  parles  do  império  vieram  os  Índios 
trazendo  as  suas  quotas,  e  no  dia  de  S.  Thiago 
pôde  Francisco  Pizarro  fazer  a  distribuição  des- 
sas  riquezas  immensas  entre  os  seus  subordinados. 

N'esse  meio  tempo  desembarcara  Almagro  com 
um  reforço  que  duplicara  o  numero  das  tropas 
de  Pizarro.  Este,  reservando  alguns  vasos  de  for- 
ma curiosa  para  offerecer  ao  imperador  Carlos  V, 
mandou  derreter  o  resto,  e  tirando  o  quinto  para 
a  corôaj  e  cem  mil  pesos,  que  destinava  para 


gratificar  os  recem-chegados,  ainda  pôde  distri- 
buir pelos  seus  a  somma  enormissima  de  um 
milhão  e  quinhentos  e  vinte  e  oito  mil  e  qui- 
nhentos pesos. 

Imaginc-se  o  eíTeilo  que  produziriam  aquellas 
riquezas  no  espirito  d'esses  aventureiros,  onde 
fermentavam  todas  as  más  paixões.  Uns  saciados 
quizeram  rctirar-se  para  gosarem  do  fructo  das 
suas  rapinas,  outros,  inllammados  por  este  prelu- 
dio, sentiram  a  sua  avareza  accender-se  ainda 
mais  e  incital-os  a  não  recuarem  diante  de  crime 
algum  para  attingirem  aos  supremos  limites  da 
opulência. 

Continua)  


A  GOMES  DE  AMORIM 

(depois  da  leitura  dos  Ephenieros) 

Hoje,  que  a  pristina  crença, 
e  as  nossos  glorias  passadas, 
as  vemos  embaciadas 
pelo  gelo  da  indifrença — 
dentro  d'este  peito  moço 
sinto  não  sei  que  alvoroço, 
chóro  de  intimo  prazer, 
quando  vejo  a  mão  da  gloria 
nas  folhas  da  nossa  historia 
ir  mais  um  nome  escrever. 

Poela  I  no  rosto  puro 
vae  cingir  os  verdes  louros 
que  são  despojos,  thesouros 
(la  conquista  do  futuro  1 
Do  futuro !  que  o  presente 
talvez  da  c'roa  fulgente 
afaste  os  olhos,  . .  talvez  ! 
Mas,  poeta,  não  te  importei 
pois  tiveram  esta  sorte 
mil  génios  como  tu  ésl 

Tiveram !  se  negra  lama 
o  rosto  lhes  salpicava, 
mais  tarde  o  mundo  escutava 
os  ecos  da  sua  fama  1 
tiveram  1  mas  os  vindouros 
prodigaram-lhes  os  louros 
que  o  presente  lhes  negou  1 
Poela,  dobra  os  joelhos 
diante  (fosses  espelhos 
que  o  porvir  desempanou  !  ... 

Como  esses,  que  da  desgraça 
os  golpes  exp'rimentnram, 
e  tristes  cantos  mesclaram 
ás  vaias  da  i)opnlaça  : 
tu,  joven  e  desditoso, 
crusasle  o  oceano  iroso, 
c,  nns  plagas  de  alem-mar, 
do  exilio  os  amargos  prantos 
foste  adoçar  com  teus  cantos, 
a  eacravidão  adoçar  1 

Lá,  mediste  o  génio  altivo 
pelas  altivas  palmeirat; 
e,  se  ellas  foram  primeiras 
a  subirem,  tu  — cativo  — 
a  alma  ergueste  acima  d'ellas, 
e  a  teus  pcs  viste  as  estreitas, 
viste  desertos,  sertões. . . 
nas  clareiras  d'esses  matos 
de  eternos,  enormes  cactos 
viste  tigres  e  leões  1 


344 


O  PANORAMA 


Lá,  Uulo  era  magesloso, 
ludo  inspirava  poesia, 
e  luilo  em  si  reileclia 
a  imagem  do  Poderoso ! 
Através  de  cipós  densos, 
de  mil  curimbos  immensos, 
por  entre  os  carajiirús, 
o  sol  coava-se  ardente, 
infiltrando  docemente 
na  tua  alma  doce  luz. 

E  essa  luz  rompia  as  sombras, 
que  o  seio  te  povoavam 
de  areaes  rosas  brotavam, 
vias  regatos  e  alfombras  ; 
de  espinhos  fazias  llores, 
e,  esquecendo  tuas  dores, 
louvavas  o  Creador, 
ou  da  pátria  te  lembravas, 
e  saudoso  lhe  enviavas 
ternos  cânticos  de  amor. 

Mais  tarde,  uma  nova  eslrella 
desviou-le  dos  palmares : 
de  novo  crusasle  os  mares, 
quando  o  rugir  da  procella 
l>ara  li  ja  tinha  incanios, 
que  traduzias  em  cantos 
de  sublime  inspiração! 
—  Que  poeta  não  sentira 
inspirada  a  sua  lira, 
do  mar  ante  a  immensidão  ?  ! 

Quando  o  raio  lá  fusila 
entre  nuvens  pardacentas; 
quando  estalam  as  tormentas, 
e  o  tufão  ruge  e  sibila, 
os  mastaréos  agitando  ; 
quando  o  baixel,  vagueando 
entre  os  abysmos  do  mar, 
vacila  ao  choque  da  vaga, 
que  o  lais  das  vergas  alaga 
e  no  convez  vem  quebrar : 

que  ignotos  arroubamenlos 
sentira  n"alma  o  poeta 
nesse  oceano  sem  mela, 
ao  rugir  de  soltos  ventos, 
ao  ver  ondas,  uma  a  uma, 
formarem  serras  de  espuma 
que  vão  lopetar  os  céos  1 
Digam- n'o  as  notas  sonoras 
que  te  inspirou  nessas  horas 
o  bramir  dos  escarcéos  l 

Depois,  quando  o  mar  cm  calma, 
seu  manto  azul  estendia, 
oh  que  suave  poesia 
se  albergava  na  tua  almal 
sentada   pelas  amuras, 
olhavas  essas  planuras 
e  dos  astros  o  fulgor, 
cantando  em  lira  sentida: 
«cada  onda  adormecida 
encerra  um  mundo  de  amor  1  >■> 

Mas  o  amor,  que  com  mais  anela 
o  coração  te  agi*va, 
era  o  amor  que  te  ligava 
ao  berço  da  tua  infância  : 
de  longe—  por  sobre  os  mares, 
ou  entre  os  verdes  palmares  ^- 
era  a  nalria  o  sonho  leu ; 
por  cila,  noites  e  dias, 
desprendeste  as  harmonias 
que  a  saudade  le  deu. 


Amor  patriótica  alma  jubila 
ver  que  (Teste  amor  a  chamma 
ainda  entre  nós  se  inflamma, 
ainda  luz  e  scintila 
nas  trevas  que  o  egoísmo 
quer  lançar  ao  patriotismo 
—  brazão*  de  nossos  a\ós! 
Poeta,  salve  Ires  vezes  1 
mostra  que  és  dos  porluguezes, 
deixa  ouvir-me  a  lua  voz  1 


C  quando  o  terreno  pisas, 

onde  vieste  à  luz  do  dia, 

a  tua  alma  se  inebria, 

sôfrego  asiiirando  ás  brisas 

o  perfume  que  beberam, 

e,  no  perpassar,  trouxeram 

do  olorante  roseiral ; 

e  do  Minho  o  nobre  filho 

com  seu  canto  augmcnta  o  brilho 

ao  jardim  de  Portugal. 

E  quando—  ave  foragida  — 
ao  buscar  o  pátrio  ninho, 
já  não  achas  o  carinho 
do  pae  e  da  mãe  querida ; 
e,  por  flores  de  outra  idade, 
só  encontras  a  saudade  ■ 
no  teu  formoso  torrão, 

—  que  terna  melancolia  ! 
como  sae  doce  a  poesia 
d'entre  as  vozes  da  oração  1 

Amor  de  filho  ;  amor  santo, 
nobre  filho  da  virtude! 
qiiom  nas  cordas  do  alaúde 
a  esse  amor  sagra  um  canto, 
um  canto  assim  inspirado  — 
em  seu  peito  maguado 
mostra  haver  um  coração, 
onde  morreu  a  alegria, 
mas  o  gérmen  da  poesia 
mas  a  crença,  essa,  não  1 

A  crença!  virgem  celeste! 
oh  !  como  ella  te  inspira, 
(juando  jiranleias  na  lira 
os  amigos  que  perdeste! 

—  Sobre  tantas  sejiulluras, 
e  entre  tantas  amarguras, 
ergues  os  olhos  aos  céos ; 
resignado  as  mãos  levantas, 
c  o  cálix  de  maguas  tantas 
recebes  das  mãos  de  Deus  1 

E  esses  jorros  de  poesia, 

de  tua  alma  derivados, 

e  da  crença  bafejados, 

;  hão  de  extinguir-se  n'um  dia?l 

kphcmcros  1  . .  .  Tal  modéstia, 

bem  vês,  a  fama  revesle-a 

de  coroa  perennal ! 

—  É  que  o  génio  nunca  morre, 
mas  com  os  séculos  corre  ; 
joven  sempre,  é  immorlal  1 

Ephemeros]  .  .  .  Não,  poetai 
Quando  vires  lua  vida 
anoitecer,  csvaida 
dos  séculos  na  ampulheta, 
teus  cantos  immorredouros 
farão  lá  entre  os  vindouros 
o  leu  nome  reviver  1 
E  a  uma  gloria  lamanha 
dá-me  que  eu  já  hoje  venha 
devidos  preitos  render 

Vizeu,  1860. 


Cândido  de  Figueiredo. 


^Typ.  KraiJco-PoriugucEii,  Mua  do  Ihesouro  Vellio,  U. 


44 


o  PANORAMA 


345 


<!r>'.v^/- 


Uma  vista  de  Veneza 


A  cidade  de  Yeneza,  de  que  já  falíamos  neste 
mesmo  volume  do  Panorama  a  propósito  da  pon- 
te de  Rialto,  apparece  agora  aos  nossos  olhos 
cheia  de  um  esplendor  mais  vivo  e  de  uma  Lel- 
leza  mais  radiante.  A  rainha  do  ad.i"iatico  parte 
os  grilhões  que  lhe  arroxeavam  os  pulsos,  e  en- 
tretece grinaldas  para  se  coroar  jubilosa.  Resus- 
citou  Veneza,  \enezia  la  bella,  o  paiz  das  gôndo- 
las e  dos  cantares,  do  luar  pallido  e  dos  palácios 
njysteriosos,  dos  Foscari  e  de  Desdemona,  dos 
ciúmes  e  das  volupluosidadcs,  das  vinganças  e 
dos  exlasis.  O  seraphim  da  poesia  adeja  outra  vez 
sobre  as  aguas  transparentes  dos  seus  canaes,  e 
de  noute,  quando  a  lua  vem  dourar  as  cu|)ulas 
dos  ediíicios,  os  amantes  rslicmecem  ou\indo  o 
canto  melancólico  dos  gondoleiros.  A  ultima  nu- 
vem de  pó  que  os  estrangeiros,  partindo,  fizeram 
erguer  d''esse  sólo,  foi  já  douiada  pelos  claioes 
da  liberdade,  pela  luz  d'essa  aurora  immens?  ac- 
cesa  pela  Itália,  c  abençoada  por  Deus. 

Salve,  njagna  parons  frugum,  Saturnia  tellus 
Magna  virúm... 

A  Yeneza  dos  doges  enlaça-se  nos  braços  de 
suas  irmãs.   Volveu-lhe  a  quadra  cia  mocidade  e 


do  amor,  dos  longos  beijos  e  das  barcarolas,  das 
efíusões  ardentes  o  dos  passeios  silenciosos.  O 
leão  de  S.  Marcos  desperta  emtim  do  lelhargo,  e 
accorda,  rugindo,  a  loba  de  Roma.  Desde  os  Al- 
pes até  o  Adriático  o  hymno  da  redempção  fere 
os  ares;  e  Yeneza,  a  poética,  a  bella,  a  opulenta, 
mira-se  nas  ondas  que,  arrojando  peroias,  lhe 
beijam  lascivamente  os  pés. 

Oh,  a  Itália  uma,  a  llalia  livre,  a  Itália  remo- 
çada pelo  enlhusiasmo ;  a  pátria  do  Dante  e  de 
Miguel  Angelo  realentada  para  os  nobres  allectos 
e  para  as  altas  aspirações ;  a  mãe  fecunda  que 
deu  ao  mundo  os  seus  lilhos  mais  gloriosos  san- 
tilicada  pelo  sopro  da  libeidade  —  eis  o  que  é 
grande,  eis  o  (jue  faz  bater  o  coração. 

Dissiparani-se  os  lamentosos  sons  que  as  musas 
de  Rembo  Fielro,  de  Alexandre  Marchelti  e  de  Fi- 
licaja  haviam  entoado  tristemente;  o  céo  da  Itá- 
lia, illumina-se  hoje  com  a  brilhante  alvorada  que 
lhe  assoma,  e  orvalha  os  louros  (jue  a  deusa  da 
arte  havia  deixado  emnnuchecer  na  fronte. 

Os  que  honlem  se  haviiim  deitado  servos  acor- 
daram hoje  cidadãos,  os  que  sentiam  amordaçada 
na  alma  a  voz  do  direito  levanlam-se  hoje  cm 


346 


O  PANORAMA 


nome  do  plebiscilo,  e  elegem  na  soberania  da  sua 
vontade  a  bandeira  a  cuja  sombra  querem  re- 
pousar. Parlem-se  os  jugos,  des(endem-se  os  cír- 
culos da  lyrannia.  os  velhos  conquistadores  am- 
param os  diademas  que  cambaleam,  as  águias  que 
se  aflcrravam  sobre  as  muralbas  rotas  dos  povos 
subjugados  começam  a  ensaiar  o  voo,  para  se  re- 
collierem  aos  ninhos  donde  vieram.  Que  são  es- 
tes \  apores  que  se  condensam  na  athmosphera? 
São  os  fumos  das  aspirações  dos  povos  que  se 
debatem,  fumos  (jue  se  farão  nuvens,  nuvens  que 
se  carregarão  de  fogo,  fogo  que  partirá  em  raios 
fulminando  as  eminências  das  serras.  A  terra 
senle-se  gravida  do  futuro;  os  horisontes  purpú- 
rea m-se  de  auroras.  Celeridade  incrível  dos  acon- 
tecimentos! >'ão  ha  muito  ainda  que  um  bello  ta- 
lento poético  da  Itália  escrevia  a  um  dos  nossos 
mais  sympalhicos  homens  de  lellras : 

Edor  ?...  Silenzio...  mormora 
Terriíiile  pei  cieli 
Sconvolgitori  uragano, 
Che  dei  futuro  i  vjli 
All'universo  altonilo 
Alfine  squarcierá... 

Frante  dalla  sua  folgore 
Dell'adria  le  catene, 
Ven(!sia  ancora  sorgere 
Vedremo  dalle  pene; 
Ringiovanita  splenderne 
Vedremo  la  beíla. 

O  vulcão  passou,  de  feito,  as  tempestades  dis- 
siparam-se,  o  rumor  das  armas  desvaneceu-se,  e 
Veneza  estende  agora  a  mão  ás  suas  iímãs  itáli- 
cas. Não  ha  resistir  a  este  movimento  impetuoso 
das  nações,  a  este  afíirmar  de  direitos  que  ha 
mais  de  setenta  annos  conquistaram  os  povos. 

De  um  a  outro  cabo  a  idea  redemptora  sole- 
vanta os  espíritos ;  e  os  lábios  descollam-se^.  no 
grandioso  coro  da  liberdade.  Os  pequenos  reinos 
ou  procuram  conslituir-se  n'uma  existência  inde- 
pendente e  aparte,  ou  tendem  para  alliar-se  á 
mãe  commum.  O  passado  c-lhes  norma.  A  Poló- 
nia saccode  como  Lazaro  a  sua  mortalha  ensan- 
guentada, e  não  podendo  cspadaçar  os  laços  que 
a  cingem,  rasga  as  feridas  no  desespero,  e  espera 
a  voz  do  novo  Chrislo ;  na  Irlanda,  a  santa  faís- 
ca ainda  viva  entre  as  cinzas  de  0'Brien  e  de 
0'Connel  promette  lavrar  e  irromper  em  incên- 
dio; no  México  a  fermentação  c  continua;  Creta 
discute  com  o  império  otlomano,  e  atira  à  liça  o 
.seu  terrível  argumento  de  quarenta  mil  baione- 
tas;  a  Itália  funde-se  n'um  corpo  solido  e  liomo- 
genio,  e  de  cem  pérolas  disseminadas  forma  a 
sua  coroa  real. 

Saudemos  os  povos  que  se  libertam.  Sobre  as 
ruinas  das  velhas  instituições  que  baqueam,  e  dos 
Ihronos  feudaes  que  se  desconjuntam  é  (jue  a  iiu- 
manidade  tem  de  formar  í-síc  grujjo  do  fnmilias, 
chamadas  nações,  que  terão  por  limilos  as  suas 
barreiras  naluraes,  e  por  código  a  jusia  liberdade 
commum.  K.  A.  Vidal. 


A  felicidade  é  uma  phaníasma  que  floresce  nas 
campinas  do  ccu,  o  que  não  pode  aclimar-só  na 
itna.  R.  Dt  Basios. 


ADRIANO  BRAWEU 

Pin(oi*  flniuciigo 

Vimos  ha  dias  noticiado  n'um  jornal  da  capi- 
tal, 0^  valioso  presente  que  o  sr.  Francisco  Lou- 
renço* da  Fonseca  acaba  de  fazer  á  Academia  das 
Bel  las  Artes  de  Lisboa,  d'um  quadro  do  celebre 
pintor  da  escola  flamenga,  cujo  nome  se  acha 
escripto  á  frente  deste  artigo.  Este  magniíi.co 
brinde  desperlou-nos  a  vontade  de  esboçar  em 
breves  phrases  a  desvairada,  curta  e  infeliz  vida 
d'aquelle  extravagante  artista,  tal  como  a  acha- 
mos descripla  n'outros  escripiores. 

Como  Bocage,  Mozart  e  alguns  outros  privile- 
giados, Adriano  Brawer,  Braur,  ou  Broor  (quede 
lodos  estes  modos  o  achamos  escripto)  parece  ter 
sabido  artista  das  simples  mãos  da  natureza.  Nas- 
cido em  Oudenarde,  (1)  em  1608,  (içou  sem  paede 
tenra  idade.  De  poucos  annos  ainda,  e  mal  sabi- 
do da  infância,  era  o  seu  passa-tempo  pintar  em 
pequenos  bocados  de  panno,  flores  ou  aves,  que 
sua  mãe  vendia  ás  aldeôas  das  visinhanças,  tiran- 
do d'ahi  alguns  meios  de  subsistência. 

Decorrido  algum  tempo  neste  primeiro  balbu- 
ciar do  génio,  um  dia  acertou  de  passar  por  aquel- 
le  lugar,  onde  Rrawer  como  que  brincava  com  os 
primeiros  rudimentos  da  arte,  um  pintor  já  no- 
tável Francisco  Hals.  Este  pintor  (que  teve  a 
honra  de  retratar  Van  Dyck,  e  ser  por  elle  retra- 
tado) admirado  do  talento  que  revelava  aquella 
criança  em  seus  incultos  ensaios,  propoz  à  pobre 
mãe  de  o  levar  e  instruir  na  arte,  para  que  mos- 
trava as  mais  raras  disposições.  Qual  não  seria  o 
prazer  do  pequeno  Adj'iano  ouvindo  semelhante 
proposta  !  Acceite  o  partido,  eil-o,  solto  das  do- 
ces caricias  maternaes,  crendo-se  já  nos  peneirais 
da  gloria. 

Parlio.  E  ao  lado  do  mestre  que  lhe  ia  com- 
municar  os  segredos  da  arte,  que  elle  já  em  par- 
le adivinhara,  que  idéas  não  discorreriam  pela 
plianlasia  do  pequeno  Adriano  !  Ilals  era  agora 
para  elle  um  Deus,  que  o  arrancara  daobscuridão, 
e  lhe  ia  desenrollar  á  sua  vista,  ainda  tímida, 
um  turbilhão  de  luz.  Infeliz  I  mal  sabia  o  des- 
tino que  o  aguardava!  que  transes  lhe  não  ha- 
via de  custar  a  iniciação  nos  mysterios  do  sa- 
cerdócio da  arte  I 

Entrado  em  casa  de  Ilals,  foi  contado  no  nu- 
mero de  seus  discípulos,  mas  dospresado  e  trata- 
do como  o  Ínfimo  d'elles.  Ilals,  porém,  era  disso- 
luto. A  maior  parte  do  seu  tempo  ia-se  enire  a 
crápula  e  a  devassidão,  pelas  tabernas  e  bodegas, 
(o  que  succedeu  a  uma  grande  parle  dos  pintores 
flamengos) ;  as  necessidades  de  sua  mulher  e  fa- 
mília, e  o  seu  desiegramento  rosolveram-n'o,  co- 
mo o  faria  um  avarento,  a  lançar  mão  d'um  meio 
de  gosar  dos  commodos  da  vida  sem  fadiga.  Ape- 
sar de  despresado,  Brawer  era  já  conhecido  por 
seu  m.eslre  com  uma  grande  ""cação,  e  lembrado 
do  j)e(|ueno  inleresse  que  a  mãe  deile  co'')ia  dos 
seus  pueris  trabalhos,  tratou  Ilals  de  exluhirdíís 
novos  lodo  o  produclo  de  que  precisava.  Adriano 
foi  obrigado  por  seu  mestre,  fora  ua  vista  dos 

(\)  Segundo  outros,  em  Ilarkm 


o  PANORAMA 


347 


outros  discípulos,  a  compor  pequenos  quadros, 
que  esle  vendia  por  bom  preço,  liais  já  tinha 
com  que  satisfazer  as  necessidades  da  familia,  e  a 
sua  extravagância.  E  ainda  ao  menos  se  tratassem 
o  pobre  Adriano  como  deviam  !  mas  receiando  as 
indigestões  ou  as  aj)oplcxias,  ministravam-lbe  ape- 
nas tão  escasso  sustento,  que  CraAver  magro  e 
macilento,  mais  parecia  um  cadáver,  que  um  jo- 
ven  na  primavera  dos  annos ! 

Augmentando  a  ambição  na  proporção  dos  re- 
cursos que  semelhante  mina  lhes  produzia,  trata- 
ram, Hals  e  sua  avara  metade,  de  melhor  a 
aproveitarem.  Brawer  foi  separado  de  todo  de  seus 
condiscípulos,  e  encerrado  dia  e  noite  n'um  cel- 
leiro,  onde  a  um  trabalho  o  mais  aturado,  cor- 
respondia o  mais  insignilicante  alimento.  Pobre 
Adriano ! 

Brawer  porém  era  singelo,  bom  moço,  e  posto 
que  mal  tiapido  tinha  a  sympathia  de  seus  coUe- 
gas.  A  sua  ausência  ou  afastamento  fez  scismar 
estes,  que  procuraram  por  lodos  os  meios  infor- 
mar-se  do  que  fazia  o  pobre  Adriano.  Aprovei- 
tando as  frequentes  ausências  do  mestre,  desco- 
briram a  prisão  de  Brawer,  e  vendo  em  que  elle 
trabalhava,  ficaram  espantados  dos  lindos  qua- 
dros que  executava  o  seu  condiscípulo,  reconhe- 
cendo no  miserável  e  despresado  Adriano  um  ar- 
tista de  primeira  ordem.  Logo  um  dVlles  lhe 
propoz  que,  se  lhe  pintasse  os  cincos  sentidos,  lhe 
daria  cerca  de  40  íeis  por  peça :  foi  um  Irium- 
pho  o  seu  trabalho !  outro  lhe  pede  os  doze  me- 
zes ;  e  assim  continuaram  algum  tempo,  julgando 
o  nosso  preso  uma  grande  fortuna,  o  produclo 
dos  pequenos  quadios  que  compunha  a  occultas. 

Como,  porém,  já  dissemos,  a  avareza  dos  Hals  era 
insaciável,  e  ou  porque  fosse  aguçada  pelos  gran- 
des lucros  que  tiravam  dos  quadros  de  Adriano, 
ou  porque  suspeitassem  dos  seus  trabalhos  escon- 
didos, o  encerro  mais  se  apertou  ainda,  e  a  vigi- 
lância foi  cada  vez  mais  activa,  nomeadamente  da 
parte  da  terrível  carcereira,  que  sobrecarregan- 
do-o  de  obra,  cada  vez  mais  lhe  escasseava  n  sus- 
tento. 

Adriano  não  podia  já  dispor  de  um  único  ins- 
tante. A  desesperação  começava  a  apoderar-se 
d'aquella  alma  simj)les  e  ingénua,  quando  um 
seu  collega  lhe  propoz  a  fi*ga^  e  lhe  proporcionou 
meios  para  ella.  Brawer  fugiu.  Mal  enroupado, 
sem  consciência  do  seu  valor,  sem  conhecimento 
da  vida  externa,  mal  preparado  para  os  azares  da 
fortuna,  achou-se  quasi  idiota  e  inerte  no  goso 
da  suspirada  liberdade.  Sem  se  saber  governar, 
entrou  n'uma  paderia,  e  gastou  todo  o  seu  pecúlio 
em  pão ;  passou  pela  igreja,  entrou  ;  e  julgando- 
se  ahi  mais  seguro  encostou-se  por  baixo  do  ór- 
gão, pensando  no  que  faria  para  melhorar  a  sua 
vida.  Entregue  a  taes  cogitações  é  reconhecido 
por  alguém,  que  o  reconduz  a  casa  do  mestre, 
que  já  em  vão  o  lizera  procurar.  Adriano  queixa- 
se  então  do  máu  tratamento  que  soíTria,  e  não 
compromette  quem  lhe  dera  o  conselho.  I""rancís- 
co  Hals,  que  via  fugir  com  Brawer  o  seu  FJ-dora- 
do,  prometteu-lhe  (l'então  era  diante  melhor  tra- 


tamento, e  com  effeito  parece  haver  cumprido, 
ainda  que  tardiamente,  esta  acertada  resolução. 
Compra-lhe  immedialamente  um  fato,  mas  n'um 
adélo,  e  d'ali  em  diante  o  alimento  começa  a  ser 
melhor. 

Animado  com  a  mudança  de  posição,  Braw^er 
entrega-se  com  mais  afan  ao  trabalho,  sempre 
em  proveito  do  mestre.  Mas  o  primeiro  passo  fo- 
ra dado.  Adriano  aspirara  o  ar  da  liberdade,  e  a 
memoria  d'um  dia  que  fora  exclusivamente  seu, 
pulava-lhe  na  imaginação.  O  caplíveiro  de  Brawer 
tocava  pois  o  seu  termo.  Da  boca  dos  condiscí- 
pulos soube,  que  as  suas  obras  se  vendiam  por 
bons  preços.  Excitado  por  estes  indícios  do  pró- 
prio mérito,  e  pela  aversão  á  subjeição,  soube 
com  mais  destreza  evadir-se,  não  parando  senão 
em  Amsterdam.  Ahi  albergou-se  em  casa  de  um 
negociante  de  quadros  que  lhe  fez  bom  gasalhado 
o  onde  por  excepção  o  guiou  uma  vez  a  ventura. 
((Julguem,  diz  um  auctor,  que  prazer  não  senti- 
ria Brawer,  ao  saber  que  suas  obras  eram  assas 
procuradas,  e  se  vendiam  por  considerável  pre- 
ço !»  Conhecidos  os  seus  talentos  por  todo  o  paiz, 
era  elle  o  único  que  os  ignorava  ! 

Em  breve  lhe  encommenda  um  amador  um 
quadro,  que  paga  por  quasi  cem  ducados,  que  o 
artista  a  medo  ousou  pedir.  Louco  com  a  posse 
de  tal  quantia,  o  artista  corre  ao  seu  quarto,  es- 
tende-a  por  sobre  a  cama,  deíla-se  e  rebola-se 
por  cima,  depois  junta-a,  sáe,  váe  para  a  taber- 
na, onde  durante  dez  dias  gosa  com  gente  da  in- 
tima plebe,  todas  as  delicias  do  desregramento  e 
devassidão.  Quando  esgotado  o  seu  pecúlio  volta 
a  casa,  e  o  negociante  lhe  pergunta  o  que  lizera 
ao  dinheiro,  responde  com  a  maior  indiUerença  : 
(cEelizmente  destiz-me  d'elle,  agora  estou  livre.» 

D'aqui  já  se  pôde  aventar  qual  será  d'ora  avan- 
te a  vida  do  artista.  Trabalho  e  miséria,  desor- 
dem, devassidão,  e  todas  as  fraquezas  d'uma  edu- 
cação mal  dirigida,  vão  gastar  em  poucos  annos 
uma  natureza  privilegiada,  e  uma  alma  formada 
para  as  grandes  cousas !  O  primeiro  período  da 
sua  existência  deixou-lhe  no  animo  uma  impres- 
são terrível,  que  influirá  em  toda  a  sua  vida  fu- 
tura, da  qual  o  sentimento  dominante  será  —  o 
horror  á  dependência ! 

D'ora  avante  solto  de  quacsquer  ligações,  vel-o- 
heis  vagar  de  terra  em  terra,  sem  casa,  sem  fa- 
milia, vel  o-heis  fazer  da  taberna  o  seu  gabinete; 
trabalhar,  largar  o  pincel  para  se  entregar  á  dis- 
solução; empenhar-se  em  rixas  com  a  relê  do 
povo,  ou  adormecer  no  seio  da  embriaguez ;  pin- 
tar um  quadro,  receber  o  seu  preço,  e  não  tor- 
nar a  i)egar  da  palheta  senão  depois  de  não  ler 
dinheiro ;  e  quantas  vezes,  para  pagar  as  suas 
despezas,  terá  de  esperar  na  bodega  que  lhe  vão 
vender  um  quadro  I  Miserável  destino  ! 

Mil  peripécias,  nascidas  de  uma  vida  sem  freio 
e  sem  concerto,  encherão  os  inlervallos  deste  des- 
te drama  do  acaso.  Ora  o  roubam  os  ladrões  em 
uma  jornada,  e  o  deixam  sem  fato;  Brawer  com- 
pra um  pouco  de  panno  de  linho,  manda  fazer 
um  vestuário  completo,   prepara-o,   pinta-o  das 


348 


O  PANORAMA 


mais  bellas  flores  ao  modo  das  chitas  da  índia. 
As  damas  illudidas  pela  belloza  do  desenho  que- 
rem possuir  igual  dioi;a  para  seus  vestidos.  Bra- 
T\er  vae  a  uni"  thealro'^  sobe  ao  palco,  pega  d'uma 
esponja  molhada,  e  n'um  momento  apaga,  ante 
todos,  a  pintura  que  os  enganara.  Outr'ora  vendo 
que  os  seus  parentes  o  despresavara  por  andar 
sempre  mal  vestido,  linge-se  coramovido,  c  resol- 
vido a  apresenlar-s3  de  modo  que  os  não  enver- 
gonhe. Compra  um  bello  falo  de  vclludo,  e  co- 
meça a  mostrar-so  ricamente  vestido.  Um  primo 
con\ida-o  logo  para  as  suas  bodas.  A  meza  todos 
gabam  o  bom  gosto  c  magnificência  do  trajo. 
Adriano  toma  um  prato  de  molho  e  derrama-o  por 
todo  o  fato,  besunta-o  de  manteiga,  dizendo  que  se 
devia  regalar,  visto  ser  este  o  convidado  c  não  elle. 
Em  seguida  deitando  um  olhar  de  dcspreso  á  pa- 
rentela absorta,  despe  o  fato,  lanoa-o  ao  lume 
á  vista  de  lodos,  é  corre  a  encerrar-se  na  taber- 
na conde  o  cachimbo  e  a  aguardente  (como  diz 
um  escriplor)  lhe  faziam  as  vezes  das  riquezas  e 
grandezas  deste  mundo.» 

Couiludo,  apesar  da  dissipação,  Brawer  não 
pinta  materialmente.  Quando  a  mão  trabalha,  o 
seu  espirito  está  concentrado  e  lodo  entiogue  ao 
assumpto,  e  o  pincel  segue  obediente  e  íiel  a  ins- 
piração que  agita  o  artista.  Como  o  Dominiquino 
que,*  dominado  pelo  assumpto,  exprimia  no  ros- 
to, o  gesto,  a  paixão  que  o  j)in('el  ia  arrancar  da 
leia ;  lirawer  era  ouvido  faltar  francez,  alemão, 
hespanhol,  italiano,  segundo  o  caracter  que  o  seu 
génio  criava.  Esle  ardor  da  composição,  esla 
compcnelração  do  assumpto  é  o  que  dá  vida,  vi- 
gor, e  elernidade  ás  criações  destes  deuses  da 
arte. 

Por  um  largo  período  os  paizes  do  norte,  que 
são  boje  a  Bélgica  e  a  líoUanda,  foram  Ihealro  de 
cruéis  guerras,  com  que  a  ambição  dos  príncipes 
disfarçada   sob  o  manto  da  religião,   ensanguen- 
tou aquellcs  então  malaventurados  paizes.   Fran- 
cezas,  italianas  e  castelhanas  hostes  trataram  por 
muilo  tempo  aquellcs  infelizes  povos,  com  a  mes- 
ma voracidade,   com  que  um  tropel  de  maslins 
dispulam   um   esbrugado  osso.    Era  pois  n'uma 
d'essas  guerras.  Ardia  a  Flandres  com  o  fragor 
das  armas ;  e  poi-  um  pendor  irresíslivel  para  as 
não  procuradas  aventuras,   foi  então  que  ^.ra^ver 
foi  tomado  d'um  desejo  vehemenle  de  iraAnvers. 
D(-balde  seus  amigos  lhe  represenlaram  a  impru- 
dência e  perigos  de  semelhante  passo.  As  suas 
lesoluções  eram  inabaláveis;   quahjuer  subjeição 
o   ii-rilava ;    Brawer   parlio.    Apenas  chegado    a 
Anvers  é  |)reso  por  espião,   ele\ado  á  cidadella 
onde  íica  recluso.   Por  foiluna  encontrou  ahí  um 
dislincto  cavalheiro,  o  duque  d'Areniberg,  que  se 
jactava  de  ser  amigo  de  llubcns.    IJiawer  iníoi'- 
mou  o  duque  da  .sua  prolissão,   o  (jual  pcdio  a 
Uubens  fornecose  á(|uelle  preso,  tudo  o  que  fos- 
se preciso  para  pintar,   o  que  o  pinlor  prompla- 
mente  executou.  Apenas  Piubens  vio  o  (juadro  do 
preso,  arn.djalado  exclama ;    «esle  quadro    c   de 
UrawerI»  e  quiz  absolutamente  dar  poi-  elle  abei- 
la  somma  de  seiscentos  llorins,  Immediatanienle 


emprega  toda  a  sua  grande  influencia  com  seus 
amigos,  para  conseguir  a  liberdade  do  desgraça- 
do pinlor.  Alcançada  esla,  leva-o  para  sua  casa, 
a!oja-o,  veste-o  como  entendeu  dever  fazer,  em 
surama  manifestou-lhe  o  seu  grande  apreço,  fazen- 
do tudo  o  que  um  grande  homem  como  Uubens, 
podia  fazer  a  outro,  que  seria  Ião  grande  como 
elle,  se  a  sua  sorte  não  fosse  Ião  dilTerenlc.  Bra- 
wer porém  não  podia  subjeitar-se  à  mínima  de- 
pendência, fugío  de  caza  de  Rubens  para  gosar 
da  liberdade  que  apreciava  acima  de  tudo.  Tal 
foi  o  horror  que  os  primeiros  annos  da  sua  vida 
de  ])inlor  deixaram  impresso  no  seu  caracter  a 
Ioda  a  espécie  de  escravidão ! 

Cansado  emlim  de  lanto  vaguear  (e  vadiar  pó- 
de-sc  dizer  sem  injustiça)  contraio  amizade  com 
um  padeiro  do  Bruxellas,  ca.sado,  segundo  consta, 
com  uma  bella  mulher.  Esle  padeiro  dava  tara- 
bcai  hospedagem,  e  sympalhisando  com  o  pinlor, 
encarregou-se  de  o  albergar,  sustentar  e  de  cui- 
dar d'elle.  O  padeiro  amava  excessivamente  sua 
mulher,  e  era  ciumento  em  excesso  ;  comludo, 
cousa  singular,  Brawer  soube  fazer-se  igualmente 
estimar  dos  dois  esposos.  F^ntre  o  pintor  e  o  pa- 
deiro estabeleceu-se  nina  ligação  Ião  sincera  c  es- 
treita, que  jamais  quizeram  separar-se.  Brawer 
em  reconhecimento  de  tão  bom  acolhimento  pres- 
tava alguns  serviços  á  sua  hospeda,  e  ensinou  o 
padeiro  a  pintar.  F]slo  será  conhecido  entre  os 
artistas  com  o  nome  de  José  Van  Craesbeek,  e 
é  curioso  saber  como  Brawet  fez  de  um  homem 
condemnado  a  amassar  e  a  fornear,  um  pinlor  de 
merecimento.  Quando  Craesbeek  acabava  de  coser 
o  pão,  vinha  para  o  pé  do  seu  amigo  vèl-o  pin- 
tar. Observava  a  maneira  como  elle  esboçava, 
trabalhava  e  íinalisava  seus  quadros.  Em  seguida 
iam  os  dois  amigos  para  a  laberna.  Passado  tem- 
po achando  Craesbeek  que  já  poderia  pintar,  pe- 
gou dos  pincéis  e  da  palheta,  e  guiado  c  ensi- 
nado pelo  amigo  em  breve  soube  aproximar-se 
dos  talentos  do  mestre,  cujos  costumes,  segundo 
o  mesmo  auclor,  nada  lhe  havia  custado  seguir. 

Unidos  por  Ião  estreita  amizade,  pintavam,  e 
embriagavam-se  de  parceria.  Rixas,  pendências, 
provenientes  d'aquelle  género  de  vida,  não  tar- 
daram a  com|)rometlel-os  com  a  justiça.  Tiveram 
de  emigi'ar.  Brawer,  cagando  de  terra  em  lerra 
chegou  a  Anvers  cansado,  gasto,  sem  falo  quasi, 
sem  meios,  e  roído  das  inclemências  de  semelhante 
vida.  Adoece,  entra  no  hospital,  e  expira  passa- 
dos dois  dias,  no  meio  da  sua  cai-reira,  no  vigor 
da  idade,  aos  32  annos,  em  lOíO  ! 

Enteriado  no  cemilerio  sem  distincção,  logo 
chegou  o  succcsso  á  noticia  de  Uubens.  Esle  gran- 
de homem  vertendo  lagrimas  sinceras  sobre  o 
desgraçado  termo  d'uma  vocação  tão  verdadeira, 
faz  desenterrar  o  cadáver,  e  fal-u  iniuimar  de 
novo  com  a  |)ompa  digna  de  um  grande  homem. 
Estas  honras  foram  com|)leladas  com  o  inagniíico 
tumulo  que  a  municipalidade  d'Anvcrs  lhe  dedi- 
cou. 

Eis  as  prineipaes  feições  d'um  pinlor  celebre,  e 
(jue  maior  ])areceria  se  a  sua  vida  tivesse  lido 


o  PANORAMA 


349 


outra  direcção.  As  suas  obras  são  mui(o  aprecia- 
das, ainda  que  em  geral,  como  quasi  Iodas  as 
pinturas  flamengas,  as  scenas  que  descreve  são 
populai'es.    Quem  quizer   mais  algumas  noticias 


sobre  este  assumpto  lea  Felibien,  Descamps,  d'Ar- 
geiíville,  Anecdoles  des  Beaux-Arts  ele.  etc. 

20  de  julho  de  1866. 

Jacinto  Peres. 


Leeds. 


A  cidade  de  Leeds  é  hoje  contada  no  numero 
das  grandes  e  das  mais  importantes  da  Inglaterra. 
Acha-se  situada,  no  condado  de  Yorlí,  cerca  de 
trezentos  líilometros  ao  noroeste  de  Londres.  A 
sua  população  ascende  a  peito  de  cento  e  noventa 
mil  habitantes.  Contem  um  grande  numero  de 
edifícios,  as  ruas  são  espaçosas  e  elegantes,  e  as 
praças  e  squares  magnilicos. 

No  século  passado  ainda  esta  cidade  era  pouco 
considerada ;  o  grào  elevado  de  prosperidade  em 
que  actualmente  a  vemos,  deve-o  ao  grande  des- 
envolvimento que,  nestes  ullimos  annos,  teeni  tido 
as  industrias  commercial  e  manufactureira.  Leeds 
tornou-se  o  grande  empório  do  commercio  das 
lãs,  e  os  seus  pannos,  de  uma  medida  especial, 
ditos  pannos  de  Leeds,  são  muitíssimo  estimados 
pelo  seu  apurado  fabrico  e  lina  qualidade. 

Além  d'isso  encontra-se  ali  um  grande  numero 
de  fabricas  de  louça,  de  tecidos  de  algodão  e  de 
seda,  fundições  de  machinas,  ele, 

A  historia  de  Leeds  mui'  pouco  ou  nada  nos 
apresenta  de  interessante.  Foi  outr'ora  uma  pra- 
ça foi  te;  e  o  seu  castello,  cuja  perspeciiva  se  vê 
em  a  nossa  gravura,  sérvio  de  prisão  a  Ricardo  11, 
em  1399. 


OBRAS  LNÉDITAS 
1 

IVoUcia  irnma  tradiicção  iiiódifn  da  Eneida 
eiu  verso  í»oi'(ii;;iit>2 

Parece  incrível  haver  quem  assevere  terem  os 
Porluguezes  esciipto  pouco !  Quem  tal  diz,  parece 
nunca  ter  visto  os  volumes  da  Bibliolheca  Lusita- 
na, ou  do  Diccionario  Ribliographico,  obras  que 
devem  andar  nas  mãos  de  quantos  querem  fatiar 
da  Litleralura  Porlugueza. 

Igualmente  dá  mostras  de  ignorar  a  existência 
de  tantas  obras  inéditas,  guardadas  nas  bibliolhe- 
cas  do  reino,  e  dos  paizes  estrangeiros,  havendo 
(fellas  catálogos  impressos,  e  por  isso  não  causa 
tanta  admiração  de  que  não  lenha  conhecimento 
d'aquellas  de  que  os  nossos  clássicos  fazem  men- 
ção, e  que  se  julgam  para  sempre  perdidas.  É  im- 
menso  o  numero  das  |)ublica{las  e  não  publicadas, 
e  não  sei  mesmo  se  relativamente  á  peijuenpz  do 
nosso  paiz  lambem  no  numero  (i'ellas  levamos  van- 
tagem a  vários  outros  povos;  mas  o  que  sei  com 
certeza  é  que  considero  uma  vergonha  nacional  o 
não  se  terem  ainda  dado  á  luz  algumas,  ao  me- 
nos das  escriptas  em  lingua  nacional :  visto  as  la- 
tinas hoje  terem  poucos  leitores,  allendendo  ao  des 


350 


O  PANORAMA 


prezo  que  adualaienle  se  tribula  cm  Porlufi:al  ao  es- 
tudo do  Lalim.  língua  em  que  geialmonle  nossos 
maiores  escreviam  como  lingua  univeisal  (1)  que 
ora.  por  ser  reputada  a  lingua  ilos  sábios,  eem  [\m 
por  ser  lingua  mais  estudada  que  a  porlugucza. 

A  vista  "pois  do  cuidado  com  que  nossos  maio- 
res estudavam  a  lingua  de  Yirgilio  e  Ovidio,  não 
deve  causar  admiração  o  grande  numero  de  tra- 
ducções  que  nos  legaram  d'esles  dois  grandes 
poetas,  e  com  especialidade  do  primeiro.  JNão  deve 
causar  estranheza  que  a  nação  espirituosa  (2),  se 
applicasse  cora  fervor  à  deliciosa  leitura  das  obras 
d'um  dos  maiores  poetas,  que  jamais  existiram,  e 
que  procurasse  em  linguagem  vernácula  traduzir 
jse  é  que  traduzidas  jiodem  ser  as  bellezas  de  tão 
grande  escriplor)  as  bellezas  do  rei  da  harmonia. 
E  d  "aqui  se  seguio  que  lenhamos  um  numero  avul- 
tado de  tiadncções  de  todas  as  obras  de  Yirgilio  de 
cujos  tiaduclores  de  passagem  tarei  uma  resenha. 

Traductores  das  Éclogas 

Leonel  da  Cosia.  — António  José  de  Lima  Lei- 
lão.—  Manoel  Odorico  Mendes. — .losé  Pedro  Soa- 
res.—  Francisco  Anlonio  Martins  JJaslos. 

Das  GKOiiGiCAS 

Leonel  da  Costa. — António  .íosè  O.sorio  de  Fi- 
na Leilão. — Francisco  Freire  de  Carvalho. — Ma- 
noel Odorico  Mendes. 

Da  Eneida 

João  Franco  Barreto.  —  Luiz  Ferraz  de  Novaes. 
—  Anlonio  José  de  Lima  Leilão. — José  Yiclorino 
Barreio  Feio,  (esta  concluída  por  José  Maria  da 
Costa  e  Silvdi. —  Manoel  Odorico  Meides. — João 
Gualberlo  dos  Santos  Reis.  (.^) 

São  estes  os  traductores  de  Yirgilio,  dos  quaes 
lenho  conhecimento.  lia  landjem  muitas  traduc- 
ções  inéditas,  das  quaes  ditíercntes  escri piores 
{eem  dado  noticia.  Existe,  porém,  uma  que  tem 
atravessado  os  annos  complelamenle  desconhecida, 
é  a  de  Luiz  José  Lopes  Carneiro  Pereira,  da  qiral 
é  possuidor  o  Sr.  Dr.  P.  A.  Dias,  c  residente  na 
cidade  do  Poito. 

Tem  o  seguinte  titulo  :  Eneida  de  Yirgilio  Ira- 
duzida  em  \(iso  porluguez  para  seu  uso  pelo  Pa- 
dre Luiz  José  Lopes  Carneiro  Pereira,  Cónego  da 
Insiírne  e  Real  Collegiada  de  Cedofeita.  Porto. 
1801. 

Para  se  fazer  uma  idéa  do  modo  como  esta  tra- 
ducção  foi  íeila  cojjíarei  o  principio  do  liv.  4  : 


(I)  De  p.iBSagcm  direi  que  o  lalim  niníJn  lioje  6o  pode  f:onsi(lc- 
rar  como  lingua  universal.  São  inrmmeraveis  as  obras  que  diaria- 
riiente  n'esla  liugua  se  puMiCiíri  nos  iiaizet  Europeos.  Em  Se[it,Hiii- 
bro  rle  186(1  chegou  íJc  Higa  nin  n:ivio  ao  Porto.  N'esti  fulade 
puzeram  diUicula.-ifle  na  adtnisííão  do  navin  por  suspijtas  db  vir 
d'uma  torra  inficionada  de  eliolera.  ((  caiiitiJo  do  ii  i\ici  imindon 
vir  da  Hn.ssia  um  atleslado  cm  como  na  terra  da  jirocedeneia  não 
bayia  choltra :  veio  o  attcjtado,  mus  esíiripto  em  Jatir:).  Ua  annos 
estiveram  uns  padres  cliinezes,  em  Lisboa,  somente  pwleram  ser 
entendidos   por  meio  do  latim. 

(2;  Voltaire.  E^s.ii  .sur  la  1'oesic  Ejiique.  Oamocns. 

{'.'i)  Além  d'eítas  Iraducçòes  impre.tsas  ha  bastantes  mannscri- 
ptas,  c  muitas  parciacs  oe  varias  obras  Ue  Virgílio.  U  sr.  Gasli- 
Itio  está  traduzindo  as  Georgicas. 


At  regvia  gravi  jamdudnm,  ctc.  etc. 

A  raiuha  porém  ha  muito  tempo 
Gravemente  ferida,  vai  filtrando 
Nas  veias  o  Neneno,  occultamenle 
Lacerando-lhr  o  peito  surdas  cl^ammas. 
A  gloria  do  varão,  sua  nobreza 
Recorda  sem  cessar :  o  seu  semblante 
Suas  vozes  guardando  impressas  n'alma 
Nem  lhe  deixa  o  cuidado  achar  repouso 
Do  liorisonte  apartando  as  sombras  frias 
Na  seguinte  manhã  brilhante  aurora 
(Va  luz  do  sol  abria  a  porta  ao  dia, 
Quando  a  rainha  inferma  creste  modo 
A'  concordante  irmã  segue  dizendo  : 

—  "Anna,  querida  irmã,  que  Irií^les  sonhos 
Duvidosa  me  assaltaõ !  Que  lionicm  novo 
Aportou  pcrigozo  ás  nossas  terras  ! 

Que  presença  elle  mostra  I  f-omo  ostenta 

Generozas  acções  de  hum  peito  forte  1 

Eu  creio  certlimente,  c  não  me  ingano. 

Que  elle  descende  dos  sagrados  deozes : 

Ai !  Que  immensos  trabalhos  tem  solTrido  1 

Quantas  guerras  passadas  referia  ! 

Se  eu  não  tivesse  n'alma  ainda  gravado 

O  propósito  firme  invariável 

De  não  querer-me  unir  a  quabjuer  outro 

Por  lassos  conjngaes  desde  esse  tempo 

Em  que  a  paixão  primeira  me  illudira 

Frustada  pela  morte  do  marido  , 

Se  me  não  motivassem  tédio  as  núpcias, 

Talvez  nesta  só  culpa  cahiria. 

Por  quanto,  cara  irmã,  eu  te  confesso 

Do  n)isero  Sicjueu  depois  da  morte 

Em  que  o  crime  do  irmão  manchara  os  deoses, 

Eneas  tão  somente  meus  sentidos 

Tem  podido  mover :  somente  Eneas 

Pode  agitar  minha  alma  vacilante: 

Eu  persinto  signaes  do  amor  antigo, 

Mas  antes  se  abra  a  terra,  c  me  devore, 

Ou  Júpiter  .*iupremo  um  raio  vibre, 

Que  nas  infernais  sombras  me  sepulte, 

Essas  sond)ras  fatais,  profunda  noule. 

Do  que  eu  chegue,  Pureza,  a  viol;ir-le, 

Ou  queira  quebrantar  os  teus  direitos. 

Aquelle  que  primeiro  em  lasso  estreito 

A  li  me  sociou,  levou  comsigo 

Meu  sensível  amor;  comsigo  o  tenha, 

Comsigo  mesmo  o  guarde  no  sepulchro."  — 

Assim  faltando,  as  lagrimas   rompendo 
Encheram-lhe  o  regaço.  Anna  responde : 

—  "Minha  querida*irmã,  a  quem  mais  amo 
Inda  que  a  mesma  vida,  por  ventura 

lias  de  esfolhar  a  hella  mocidade 

Sem  companhia,  só,  sempre  penando? 

Não  terás  o  prazer  dos  doces  filhos? 

Nem  gosarás  jamais  prémios  de  Vénus  ? 

As  frias  cinzas,  sepultadas  sombras 

Acreditas  acaso  que  isto  exijaô  ? 

Embora  seja  assim.    Naquelle  tempo. 

Em  (pie  te  lastimavas,  não  poderão 

A\idos  pcrlendentes  (íimover-te, 

Em  Tyro  os  despresaste,  e  mais  na  Ljhia: 

Abandonasic  Jarbas,  outros  muitos 

Valentes  generais,  que  a  terra  de  Africa 

Sempre  viclorioza  produzira: 

Por  ventura  tnõbem  vencer  pertcndcs 

Essa  grata  i)aixão  I  E  não  te  lembras 

De  quem  são  estas  terras,  onde  habitas? 

Desta  parle  nos  cercaõ  da  Gclulia 

As  cidades  guerreiras,  bravos  Numidas, 

E  as  perigosas  Series?  l)"oulro  lado 

A 'região  dezcria  estéril  de  agoas, 

Iguabnenie  os  Harcnas  dczomanos. 

E  que  te  direi  eu  das  grandes  guerras 

Que  Tyro  lucvemcnle  le  declara? 

E  do  rancor  frr.terno  das  ameassas? 

Eu  creio  na  verdade  que  os  bons  deozes. 

Que  Juno  favorável  obrigarão 


o  PANORAMA 


35i 


A  surgir  n'esta  praia  ás  naas  Troiannas. 
Que  diírenle  verás  esta  cidade  I 
E  quaiiio  crescerão  os  teus  reinados 
Na  feliz  união  deste  consorcio ! 
Estes  Cartiiaginezes  quani  depressa 
Gloriosos  serão,  serão  disliiiclos 
Acompanhados  das  Troiannas  armas! 
Tu  somente  o  favor  aos  dcozes  pede, 
E  feitas  oblasoens,  dilata  o  tempo, 
O  tempo  da  hospedagem,  procurando 
Motivos  de  demora:  até  que  o  inverno, 
E  o  chuvoso  Orion  levante  os  mares. 
Nem  sua  frota  esloja  inda  composta, 
Nem  tão  pouco  í.c  mostre  o  ceo  sereno.»  - 

Em  seu  peito  abrazado  estas  palavras 
Amor  iidlamaõ  ;  e  na  mente  incerta 
Aviva  na  esperança,  e  foge  o  pejo. 

M.  Bernardes  Bkainco. 

A  ORIGEM  DOS  HOMENS  BRANCOS, 
DE  COR  E  PRETOS 

Tradição  dos   Seiuinoln»    (9) 

Quando  a  Florida  foi  converlida  em  território 
dos  Estados  Unidos,  o  governador  William  P.  Du- 
val,  hometii  grande  e  generoso,  concebeu  o  desí- 
gnio de  preparar  a  civilisação  dos  indígenas  dan- 
do-lhes  primeiramente  os  elementos  da  ínslrucção. 
Para  este  fim,  reunio  em  conselho  os  chefes  in- 
dígenas, e  fez-lhes  vêr  que  o  desejo  de  seu  Pae 
residente  em  Washington,  era  que  enire  elles 
houvesse  escolas  e  mestres,  e  que  seus  filhos  ad- 
quirissem Ínslrucção  como  os  filhos  dos  brancos. 
Os  chefes  ouviram  silenciosos  e  com  dignidade, 
segundo  o  seu  costume,  o  longo  discurso,  no  qual 
o  governador  fez  sobrcsahir  todas  as  vantagens 
que  resultariam  para  elles  desta  acertada  medida  ; 
e  quando  terminou,  pediram  a  espera  de  uni  dia 
para  deliberarem  sobre  esta  grave  questão.  No 
dia  seguinte,  houve  uma  nova  assembléa  solemne 
e  um  dos  chefes  fallou  nestes  termos  emjiome  de 
todos  os  outros : 

«Meu  irmão,  reflectimos  sobre  a  proposta  do 
nosso  Pae  de  Washington,  de  mandar-nos  mes- 
tres e  estabelecer  escolas  entre  nós.  Estamos  pe- 
nhoradissimos  pelo  ínterresse  que  elle  toma  na 
nossa  felicidade ;  mas,  depois  de  termos  madura- 
mente pensado,  resolvemos  recusar  a  oflerla.  O 
que  seria  muito  ulil  aos  homens  brancos  não  o 
seria  aos  homens  vermelhos.  Sei  que  vós  outros, 
homens  brancos,  dizeis  que  todos  descendemos 
do  mesmo  pae  e  da  mesma  mãe;  mas  enganaes- 
vos.  Temos  uma  tradição  que  nos  legaram  os 
nossos  antepassados  e  que  julgamos  ser  verdadei- 
ra :  é  que  o  Grande-Espirito,  quando  emprehen- 
deu  criar  os  homens,  fez  primeiramente  o  homem 
prelo ;  era  o  seu  primeiro  ensaio,  e  já  não  era 
pouco  para  um  princípio;  não  obstaníe  vio  que 
não  tinha  conseguido  o  que  desejava.  Decidío-se 
a  lazer  um  novo  esforço :  criou  o  homem  de  cor. 
Preferio-o  ao  homem  prelo ;  mas  não  era  ain- 
da o  que  elle  queria.  Póz,  pela  terceira  vez, 
mãos  á  obra,  e  fez  o  homem  branco ;  então  ficou 
satisfeito.  Assim,  já  vedes  que  fostes  os  últimos, 
e  é  por  esta  razão  que  vos  chamo  o  meu  irmão 
mais  novo.  Quando  o  Grande-Espirito  concluio 

(1)  Povos  indígenas  da  America  do  Norte. 


estes  Ires  homens,  moslrou-lhes  Ires  caixas.  A 
primeira  eslava  cheia  de  livros,  cartas  geographi- 
cas  e  papeis ;  a  segunda  continha  arcos,  frechas, 
facas  e  tomahawks-,  a  terceira,  machados,  pás, 
enxadas  o  martelos.  «Meus  filhos,  disse  elle,  eis- 
aqui  os  instrumentos  com  o  auxilio  dos  quaes  po- 
deis prover  á  vossa  existência ;  escolhei  entre  el- 
les conforme  o  vosso  gosto.»  O  homem  branco, 
sendo  o  preferido,  escolheu  primeiro.  Passou  por 
diante  da  caixa  dos  instrumentos  de  trabalho  sem 
para  ella  olhar;  mas  quando  chegou  ao  pé  das 
armas  de  guerra  e  de  caça,  parou  e  observou-as 
com  atlenção.  O  homem  de  cór  tremeu,  por- 
que o  seu  coração  ardia  já  com  o  desejo  de  pos- 
suir esta  caixa.  O  homem  l)ranco,  comludo,  de- 
pois de  a  ler  bem  examinado  durante  alguns  mo- 
mentos, passou  adiante,  e  escolheu  a  caixa  de 
livros  e  papeis.  Seguio-se  a  vez  do  homem  ver- 
melho ;  escusado  é  dizer  que  não  hesitou  em  lan- 
çar logo  mão,  cheio  de  alegria,  do  arco,  frechas 
e  tomahawks.  Para  o  homem  negro  não  havia  a 
liberdade  de  escolher;  não  tinha  senão  a  caixa 
dos  inslrumenlos  de  tiahalho  É,  pois,  manifesto, 
que  a  intenção  do  Grande-Espirito  era  que  o  ho- 
mem branco  aprendesse  a  ler  e  a  escrever,  a  co- 
nhecer tudo  quanto  se  refere  á  lua  e  ás  estrellas, 
e,  em  uma  palavra,  a  fazer  Iodas  as  cousas,  in- 
cluindo o  rhum  e  o  whískeij.  Quiz  que  o  homem 
de  côr  fosse  um  grande  caçador,  um  valente 
guerreiro,  mas  que  não  aprendesse  cousa  alguma 
nos  livros,  por  quanto  não  lhe  tinha  dado  ne- 
nhum ;  nem  que  fizesse  o  rhum  e  o  whiskey, 
com  receio  de  que  á  forca  de  beber  se  arruinas- 
se. Quanto  ao  homem  negro,  como  só  tinha  ins- 
trumentos de  trabalho,  é  claro  que  fora  destinado 
a  trabalhar  para  os  homens  brancos  e  de  côr 
e  é  o  que  sempre  tem  feito.  (2)  Devemos  submet- 
ler-nos  ás  vontades  do  Grande-Espirito,  porque 
d'oulro  modo  eslariamos  sempre  rodeados  de  des- 
gi-aças.  Saber  ler  e  escrever  é  um  grande  bem 
para  os  homens  brancos ;  mas  será  um  grande 
mal  para  o  homem  de  côr.  Isso  torna  o  homem 
branco  melhor,  mas  faria  o  homem  vermelho 
peior.  Alguns  dos  Criks  e  Cherokees  aprenderam 
a  ler  e  a  escrever,  e  torna ram-se  os  maiores  mal- 
vados de  todos  os  índios.  Foram  a  Washington, 
dizendo  que  iain  ler  com  seu  Pai  para  tratarem 
assumptos  d'inteiesse  nacional.  Quando  chegaram 
escreveram  cm  um  pedaço  de  papel;  e  os  homens 
da  sua  nação-  não  souberam  o  que  elles  haviam 
escripto.  Mas,  o  agente  indio,  chamando-os,  mos- 
liou-lhes  o  papel,  no  qual,  disse  elle,  estava  es- 
cripto um  tratado  que  seu  irmão  concluíra  era 
nome  deiles,  com  o  seu  Pae  do  Washington  ;  e 
como  elles  não  sabiam  o  que  era  um  tratado,  o 
agente  levantou  ao  ar  o  bocado  de  papel:  todos 
olharam  por  debaixo.  Oh!  cobria  uma  grande 
exlensão  de  terreno,  e  viram  que  seus  irmãos, 
porque  sabiam  ler  e  escrever,  linhom  ido  a  Was- 
hington, vender  as  suas  casas,  as  suas  terras  e  os 
lumulos  de  seus  pães,  e  que  os  homens  brancos, 

(2)  Os  Sominolas  nunca  viram  os  negros  senão  na  qualidade  de 
escravos;   ignoram  o  que  são  fm  Africa,  no  CPladn  de  hbeidade. 


352 


O   PANORAMA 


porque  sabiam  ler  e  escrever,  linli;im-se  tornado 
senhores  de  Indo.  Eis  porque,  dizei  a  nosso  Pae 
de  Wasliinglon,  não  podemos  satisfazer  o  seu  de- 
sejo recebendo  professores  entre  nós;  saber  ler  e 
escrever  e  mui  lo  bom  para  os  brancos  mas  muito 
mau  para  os  índios.  (3) 


A  TORRE  DE  LO^DRES 

iConliuuaeâo) 

Seria  mui  longa  a  enumeração  de  lodos  os  per- 
sonagens celebres  que  habitaram  na  torre  de  Lon- 
dres" e  acharam  ali  teimo  a  seus  soíTrimentos ; 
mas  não  devemos  passar  em  silencio  as  scenas 
trágicas  do  reinado  de  Henrique  VllI.  Sir  Tho- 
raaz  More,  nomeado  por  seu  lalenlo  e  bondade, 
foi  preso  em  1534,  com  Fisher,  bispo  de  Roches- 
ter,  por  ter  recusado  reconhecer  a  supremacia  do 
rei,  e  a:nbos  pereceram  no  anno  seguinte;  a  rai- 
nha Anr,a  Bulena  soílVeu,  em  lo3G,  a  fatal  con- 
sequência dos  bárbaros  caprichos  de  seu  marido, 
e  todos  os  annos  vio  chegar  novas  victimas :  os 
lords  Thomaz  IToword,  Darcey,  Montague  e  o 
marquez  de  Exeter,  accusados  de  traição,  perde- 
ram a  vida  no  cadafalso.  Ciomwell,  conde  d'Es- 
sex  sábio  e  liei  conselheiro  do  rei,  foi  executado 
em  loiO,  por  ler  sido  o  auclor  principal  do  seu 
casamento  com  AnnadeCléves,  mulher  que  se  lhe 
tornou  odiosa.  Pouco  tempo  depois  o  mesmo  cu- 
telo decepou  as  cabeças  de  sua  quarta  mulher, 
Calharina  lloward  e  da  amiga  intima  desta,  lady 
Rochford. 

Estes  logares  que  pareciam  consagrados  á  des- 
graça, foram  por  um  contraste  singular,  testemu- 
nhas de  um  género  de  morte  muito  diíTerentc  : 
Arthur  Planlagenel,  filho  natuial  de  Eduardo  IV, 
morreu  de  alegria,  sabendo  que  fora  reconhecida 
a  sua  innocencia.  Os  tormentos  de  Joanna  Grey 
e  de  seu  esposo,  lord  Guilford  Dudley,  ambos  vi- 
ctimas da  ambição  do  duque  seu  pae,  que  arrui- 
nou a  família  e  os  amigos,  e  as  torturas  pelas 
quaes  a  rainha  Anna  fazia  passar  lodos  que  não 
compartilhavam  das  suas  idéas  religiosas,  formam 
as  principaes  scenas  do  trágico  drama  do  seu  rei- 
nado. A  torre  sérvio  lambem  d'asylo  á  princesa 
Isabel,  e  quando,  seguindo  o  exemplo  de  seus 
predecessoi-es,  ella  a  deixou  para  a  ceremonia  da 
sua  coroação,  nenhum  soberano,  talvez,  em  laes 
momentos  recebeu  provas  de  mais  sincero  inte- 
resse. (]omludo,  é  preciso  convir,  que,  apesar  da 
prospeiidade  deste  reinado,  nunca  se  vio  na  tor- 
re maior  numeio  do  prisioneiros  de  todas  as  con- 
dições. Enconlia-?e  em  um  relatório  aj)resenlado 
ao  íonselho,  em  1561,  seis  bispos,  um  abbade  de 
Westminster,  dois  condes,  lady  Calharina  (irey  e 
mais  doze  indivíduos,  lloward,  du(|ue  de  Norfolk, 
preso  em  1509,  foi  executado  Ires  annos  depois 
por  seus  manejos  a  favor  de  Maria  Sluarl,  assim 
como  seu  lilho  o  conde  de  Arundcl,  e  o  conde  de 
Norlhumberland  pelo  crime  de  tiaição  ;  este  ultimo 
querendo  impedir  a  rainha  de  ihc  confiscar  os 
bens,  não  es|)C'rou  pelo  bill  e  suicidou-se. 

(3)  "Washinglon  Irving. 


Um  dos  homens  mais  bravos,  e  lambem  o  mais 
hábil  c  o  mais  infeliz  do  seu  século,  sir  Waller 
Raleigh,  foi  capturado,  em  1582,  por  ligações 
que  linha  com  uma  donzella  de  honor  da  rainha, 
nias,  desposa ndo-a,  prestes  obteve  a  liberdade. 
No  reinado  seguinte,  porém,  terminou  o  seu  longo 
capliveiro  pelo  ultimo  supplicio.  Devereux,  condo 
d'Essex,  cujo  destino  cruel  projecta  uma  sombra 
enorme  na  memoria  d'Isabel,  e  os  condes  de  Sou- 
Ihampton  e  de  Rulland,  j)erli:'ncem  ao  numero  dos 
que  ali  foiam  encarcerados  durante  este  reinado. 

Os  dois  mais  notáveis  prisioneiros,  no  tempo 
de  Jacques  I,  são  :  lady  Arabelle  Stuart,  cujo  pa- 
rentesco com  Maria  despertou  o  ciúme  de  Isabel, 
c  mais  tarde  o  de  Jacques.  Surpresa  com  seu 
marido,  AVilliam  Seymour,  no  momento  era  que 
esperava  sal\'ar-se,  endoudeceu  de  pesar,  e  mor- 
reu na  prisão  em  1615  ;  o  outro  é  Thomaz  Over- 
bury  que  foi  perseguido  e  condemnado  á  morte 
por  intrigas  do  infame  conde  de  Somerset,  e  da 
sua  amante  lady  Essex.  O  conde  de  SlraíTord, 
ministro  muito  aíTeiçoado  a  Carlos  I,  e  o  arcebis- 
po Land,  conduzidos  para  a  torre  em  16i0,  fo- 
ram executados  ali  em  j)ouco  tempo. 

Seria  de  uma  grande  impossibilidade  entrar  nos 
promenores  dos  factos  que  se  passaram  na  torre 
no  reinado  dos  dois  Carlos  e  durante  a  republi- 
ca ;  os  revezes  da  fortuna  que  para  ali  levaram 
alternativamente  os  partidários  das  duas  causas, 
são  do  domínio  da  historia.  Cailos  II  foi  o  ultimo 
rei  que  habitou  na  torre  antes  de  ser  coroado  ; 
desde  então  deixou  de  ser  residência  real.  A  maior 
])aite  dos  que  foram  implicados  no  processo  de 
Carlos  I,  soííreram,  sob  o  reinado  de  seu  filho, 
morte  lenta  e  cruel  ou  prisão  perpetua. 

Em  1666,  foi  descobeilo  um  projecto  de  ataque 
contra  a  torre  e  os  seus  andores  sentenciados 
á  morte ;  no  mesmo  anno  houve  um  grande 
incêndio,  que  destruio  parle  da  cidade,  mas  a 
bastilha  de  Londres  ficou  de  pé.  O  duque  de 
Monlmouth,  sobrinho  do  rei,  ioi  executado  em 
Tower-IIill  em  1685.  Mas,  ou  por  falia  de  vigor, 
ou  por  timidez,  o  executor  ferio-o  tão  levemente 
que  o  duque  levantou  a  cabeça  c  encarou-o  como 
(juc  para  censurar-lhe  a  sua  inépcia  ;  diz-se  que 
só  ao  quinto  golpe  o  carrasco  conseguiu  separar- 
Ihe  a  cabeça  do  corpo. 

(Cunliíuiii] 


O  íiiUíro  ftlilor  (In  l*tiEior<iiiin,  ilrsi-jiiiulo  )iro[)cr(Monar  nos 
íiotiincs  ."-rs.  nssigiiiiiitcs,  e  iiicsnio  a  q\iacM|Utír  ontr.is  pessoas  qiio 
I)  não  si-jiiiii,  íi  maneira  lie  poderem  jussuir,  sem  grande  sacriti- 
r'\ii  a  ffiiicrÇMO  ccmidí  la  deíie  iniiMes.-ianie  jornal,  qnc  conta  Imjo 
í3  loIíiDieN  pni)licad(js,  deliberou,  para  tsso  íini,  atirir  nova 
asií,'naicir;i,  não  altirando  o  prcea  que  levn  a  .intií.M,  sen<ln  o 
fn8'o  do  cada  volume  l.vuxado  i;i()0'iúis,  O  encadernado  KiOd  réis, 
islo  imicamenle  pira  aijnePes  quo  se  inscreverem  como  assignan- 
Les.  Aa  pe.-ismis  qnc  assignarem  para  esta  ohra  recehcrão  nin  ou 
mnis  volumes  cada  niez.  conforme  mellior  lhes  convier,  sendo  o 
imp')rln  do.s  mesmos  |iag'i  no  aclo  da  enlresa.  lias  (pnj  leiíliani  a 
(■ip|i<;ci;;"io  do  I>siii«»i'niiin  inconjpleta,  |io(lem  d.a  n)esma  forma 
as^i^ínílr  p;ira  os  vnlniiics  qne  lhes  fallarem,  bem  como  para 
ipiiilipier  ininji'io  que  lhes  fallar. 

\H  aN!>ii;;n»liii-iiM  rii7.i>iii-M(>  iioh  Neat*ii>(<'M  loroeN  i 
Una  Anrei  n."  1:/-'  c  i:i'i;  na  reda''ção  du  1'aNuham\,  rua  do  lliesouro 
\ellio  n.'();  i'.  em  lidas  a.s  riiais"livrariiis. 
Km  liraga,  Porio,  (Coimbra  o  Vianna,  em  todas  as  livrarias. 
De  qnai.squer  oulnis  i(  rrus  d.)  reino   podem  dirigir  se,  em  cnrln 
franca,  com   o   inj|)orle  da  assiumiluia  cm  vulles  do  correio,   ao 
aiili^jo    editor,    ni.i   Anrea    n."    1;í!.',     accresco  ao    preço  da  assi- 
ííii.itnra,    o    [lorle    do    correio    que    ú  de  2õ0  para  os  volumes  cm 
broxiira  e  ,'jll)  léis  para  os  'noailermulos. 


Typ.  i'"ianco-i'oriiiguezii,  Hua  cio  Ihesouro  VtUio,  6. 


45 


o  PANORAMA 


353 


Marselha 


Esta  cidade  é  uma  das  maiores  e  das  mais  im- 
l)orlanles  da  França.  O  eslado  florescente  em  que 
se  acha,  é  devido  á  sua  raagnilica  situação  na 
cosia  do  Mediterrâneo,  e  ao  seu  excellente  porto, 
único  que  a  França  ali  possue,  para  receber  na- 
vios de  grande  lote.  Dista  de  Pariz  802  kilome- 
tros  pela  estrada  e  862  pelo  caminlio  de  ferro,  e 
conta  uma  população  de  260,000  almas. 

Marsellia  é  antiquíssima.  Foi  fundada  por  uma 
colónia  de  Phoceos,  sob  o  direcção  de  Simos  e 
Prolis,  cerca  de  seiscentos  annos  antes  da  era 
chrislã.  O  primeiro  cuidado  deste  povo  logo  que 
pizou  o  terreno  da  Provença,  foi  de  collocar-se 
debaixo  da  protecção  dos  habitantes  mais  próxi- 
mos: eram  os  Cello-Lygos  que  tinham  por  chefe 
Nannus.  Este  acolheu  a  colónia  mui  amigavel- 
mente, e  concedeu-lhe  que  se  estabelecesse  em 
suas  terras ;  desde  logo  os  Phoceos  lançaram  os 
fundamentos  d'uma  cidade  que  chamaram  J/«5.s/- 
\ia\  edilicaram-n'a  no  sitio  onde  ella  existe  ainda 
hoje. 

Pela  constante  protecção  de  Nannus,  a  colónia 
nascente  leve  um  augmento  rápido ;  mas  Coma- 
nus,  filho  e  successor  d'aquelle  chefe,  não  herdou 
de  seu  pae  os  sentimentos  de  amizade  para  com 


os  Marselheses;  estes  estrangeiros  pareceu-lhe  se- 
rem visinhos  perigosos;  um  dos  seus  servidores  fez 
redobrar  os  seus  receios,  contando-lhe  a  fabula 
da  cadclla  que  depois  de  ver  os  íilhos  criados  se 
apoderara  do  lugar  que  o  pastor  lhe  cedera  para 
ella  ir  ter  os  Ulhos.  «Assim,  accrescentou,  os 
Marselheses,  que  só  occupam  hoje  um  terreno  em- 
prestado, tornar-se-hão  um  dia  senhores  de  todo 
o  |)aiz.))  Comanus  formou  dosde  logo  o  projecto 
de  apoderar-se  da  colónia  pliocea.  Os  Marselhe- 
ses celebravam  as  festas  de  Flora  ;  Comanus  lin- 
gio  querer  adorar  os  deuses  d'elles,  e  enviou  á 
cidade  muitos  soldados.  Fez  também  entiar  carros 
cobertos  de  folhagem,  dentro  dosquaes  iam  tam- 
bém soldados  escondidos.  Elle  mesmo  foi  pôr-se 
de  emboscada  com  um  exercito  nas  montanhas 
próximas.  Os  guerreiros  que  haviam  entrado  em 
Marselha  deviam  de  noute  abrir  as  portas,  e  as- 
sim a  matança  seria  geral.  Uma  rapariga,  porém, 
(lescobrio  este  trama.  Immedialamenle  os  Marse- 
lheses lançam  mão  das  armas ;  todos  os  Lygurios 
encontrados  na  cidade  são  mortos;  o  exercito  de 
Comanus  é  completamente  desfeito  ;  este  chefe  pe- 
rece no  combate  com  sete  mil  dos  seus.  Depois 
deste  acontecimento,  os  Marselheses,  convencidos 


354 


O  PANORAMA 


da  má  fé  dos  indígenas,  vigiarani-nos  allenta- 
menlo,  e  tomai am  cm  (empo  de  paz  as  mesmas 
precauções,  como  se  fora  em  época  de  gueria. 

Desde  os  primeiros  dias  da  suu  existência  po- 
litica, os  Marselheses  conlaiam  cora  os  recursos 
que  o  mar  podia  otrerecer-lhes;  applicaram-se 
com  peiseveiança  a  aproveitar  a  sua  posição  van- 
tajosa para  o  commercio  c  navegação.  A  pesca 
tornou-se  para  elles  um  objecto  importante  ;  culli- 
vaiam  a  vinha  com  êxito  ;  implantaram  a  oliveira 
nas  Gallias,  ainda  antes  de  ser  conhecida  na  Itá- 
lia. Todos  os  jxirtos  da  Grécia  e  da  jjeninsula  itá- 
lica lhes  foram  abertos;  procuraram  nestas  legiões 
o  que  a  naturrza  do  seu  solo  lhes  recusava,  e  em 
troca  davam  o  vinho  e  o  peixe  salgado.  A  sua  si- 
tuação, o  seu  porto  soberbo,  a  natureza  ingiala 
do  seu  território,  a  actividade  dos  seus  habitan- 
tes, tudo,  emlim,  contiibuia  para  que  Mai selha 
fosse  uma  cidade  marítima  e  commercial.  Os  Car- 
thagineses,  ciosos  do  seu  poder,  attacaram-na,  e 
duiante  esta  longa  guerra,  a  importância  de  Mar- 
selha, longe  de  descair,  augmentou.  Dois  dos  seus 
cidadãos,  r\  theas  e  Eutymene,  adquiriram  gran- 
de reputação  por  suas  viagens  e  descobertas.  No 
terceiro  século  antes  de  Christo,  Marselha  era  a 
Alhenas  das  Gallias,  uma  cidade  modelo  de  sabe- 
doria e  boa  administração.  O  seu  governo  era  re- 
publicano c  com|)osto  de  seiscentos  senadores.  Al- 
liou-se  com  F.oma,  c  oppoz-se  em  vão  á  invasão 
de  Annibal ;  caíra,  certo,  nesta  occasião,  so  An- 
nibal  chega  a  subjugar  os  Romanos.  Marselha 
abraçou  a  causa  de  Pompeu  contra  César;  este, 
vencedor,  punio  severamente  a  cidade;  deslruio 
as  forliticações,  as  machinas  de  guerra,  e  fez  com 
(jue  lhe  fossem  entregues  as  armas,  os  navios, 
o  Ihesouro  publico  e  a  cidadella,  onde  aquartelou 
duas  legiões.  Marselha,  privada  do  seu  poder, 
perdeu  a  influencia  politica  nas  Gallias,  mas  for- 
mou uma  republica  commerciante,  independente, 
sob  a  protecção  romana.  No  sexto  scculo  os  Bor- 
guinhões,  os  Ostrogodos  c  os  Francos  talaram-na; 
em  752  os  Sarracenos  destruiram-na  completa- 
mente; lodos  os  monumentos  antigos  que  possuía, 
desapj)areceram. 

Do  decimo  ao  decimo  terceiro  scculo,  foi  go- 
vernada por  bispos  c  viscondes,  cuja  administra- 
ção foi  má.  Sobretudo,  um  uso  estabelecido  na 
familia  dos  viscondes,  foi-lhe  muito  funesto;  di- 
vidiram os  seus  domínios  até  o  infinito;  os  filhos 
repailiam  entre  si  a  herança  do  pae;  as  filhas  re- 
cebiam em  dota  senhorios.  A  maior  parle  dos  ra- 
mos dos  viscondes  adoptaram  um  nome  difíerenle 
do  que  usaram  a  piincípio;  empobreceram,  per- 
deram lodos  os  traços  de  sua  origem  e  cairam  em 
profunda  obscuridade.  Os  Marselheses  tomaiam 
uma  parte  mui  acti\a  no  grande  movimeiito  dos 
Grusados;  o  seu  papel,  porem,  foi  mais  commer- 
cial do  que  bellicoso;  as  guerras  proporcionaram- 
Ihes  grandes  vantagens  nicrcaiitis.  Nunca  nos  mais 
brilhantes  dias  da  antiga  republica,  a  cidade  vio 
tanta  acli\idade;  o  j)orto  cobrio-se  de  navios. 
Iodas  as  riquezas  ali  afluiiiam  ;  Marselha  \ía  in- 
cessanlemenle  chegar  aos  seus  uiuros  Grusados  de 


todos  os  paízes  e  fornecia-lhes  então  navios,  pro- 
visões e  armas.  A  fabricação  de  espadas  e  lanças 
tornou-sc  um  dos  principaos  ramos  do  commercio 
marselhoz;  as  olficinas  deste  género  eram  tão  nu- 
merosas, que  uma  rua  muitíssimo  extensa  recebeu 
o  nome  de  Lanceric.  No  anuo  i2()7  a  republica 
de  Marselha  foi  submettida  á  aucloridade  dos 
condes  de  Provença,  alé  a  morte  do  ultimo  destes 
piincipes,  Carlos  líl,  em  1181,  época  em  que 
Luiz  VI  lomou  posse  desta  província ;  Marselha  c 
o  seu  terrilorio  foram  assim  reunidos  á  coroa. 

(Continua) 

O  GRANADEIRO 

Eh  !  Eh  !  meus  rapazes!  ainda  não  v  iram  o  que 
eu  vi  e  mais  não  tinha  baiba  quandu  -.i  o  que  vi. 
Desde  então  já  comi  muito  alqueire  de  sal  e  mui- 
to pão  duro  como  a  peite  do  diabo;  mas  olhem 
que  isto  de  guerra  nem  sempre  é  a  gente  deitar- 
se  em  boa  cama,  e  dar  um  beijo  na  palrôa  quan- 
do é  alvorada.  Rufam  os  tambores  e  bota-ariiba. 
Andem,  rapazes,  paguem  lá  mais  meio  quartilho 
se  (juerem  que  eu  conte  o  que  vi,  e  mais  não  li- 
nha barba  quando  vi  o  que  vi.  Contar  historias 
sem  molhar  a  palavra!...  é  como  quem  faz  da 
lingua  um  carvão  em  brasa.  E  tu  lá,  recruta,  dá 
cá  um  cigarro  que  a  vida  é  fumo  e  quem  não  fu- 
ma não  vive.  Eh!  eh!  Muilas  coisas  acontecem 
que  não  vêem  nos  livros.  E  então  quando  as  des- 
cargas conversam  com  o  echo,  as  bayouelas  na- 
moram o  sol,  e  as  peças  espirram  grosso  e  tecm 
catharro  nas  goelas...  eh!  eh!  levem  os  diabos 
aos  que  não  mordem  o  cartucho  e  tapam  as  ven- 
tas para  não  cheirarem  a  pólvora. 

Olhem  bem  para  mim,  meus  fedelhos!  Já  en- 
guli  um  bom  par  de  janeiros  e  nem  por  isso  te- 
nho a  barriga  mais  cheia.  Velhos  tempos!  velhos 
tempos !  Tempos  revelhos  digo  eu.  Bons  eram. 
N'esse  tempo  andava  eu  direito  como  um  fueiro, 
e  j)or  mais  íjuc  bebesse... 

Os  recrutas  pagavam  então,  sem  pestanejar,  meia 
canada  a  um  veterano  e  ainda  em  cima  diziam 
— muiloohriijado.  Dá  cá  mais  meio  quartilho,  que 
o  fallar  é  como  a  alface.  Roa  palavra  boa  rega. 
Eh  !  eli !  Que  diacho  ia  eu  a  dizer?... 

Rons  tempos !  Ouando  o  inglez  vermelho  como 
um  tomate  dizia :  f/oddam,  respondia  o  porluguez: 
salta  para  fora,  bruto!  E  carregávamos  os  fran- 
cezes!...  Era  bayonetada  para  a  frente,  coronhada 
para  o  lado,  iiiie  até  os  castelhanos  preferiam  o 
sangue  de  francez  ao  sangue  de  louro  !  E  os  rios 
diziam  :  —  Com  mil  demónios !  Vêem  as  aguas  Ião 
vermelhas,  que  até  já  lemos  sede  ! 

Bons  tempos !  llcin  !  E  então  se  lodos  vissem  o 
que  (!U  vi,  e  mais  niip  tinha  barba  ijuando  vi  o 
(|ue  vi,  nem  sombras  de  buço!  As  vezes  tinha  a 
cara  negra.  Eram  beijos  de  j)olvora,  que  de  vez 
em  (|uando...  ft !  e  a  escorva  ardia,  e  eu  ria-me 
para  ella ;  e  a  bala,  Irap  I  e  o  francez  chorava. 
IJons  tempos!  c  eu  que  o  diga,  que  vi  o  (|ue  vi, 
e  mais...  Hoje,  jjclas  tripas  do  diabo,  lenho  a 
cara  sempre  branca  c  os  cabellos  lambem.  São 
beijos  do  lempo.  Apre  lá  !  Os  janeiros  são  como 


o  PANORAMA 


355 


os  caiadoros  Engole  a  genle  um  anno  e  vae  se 
não  quando,  é  uma  dcmão  de  cal  na  froiUaria. 

Enlão  não  tinba  nem  sombras  de  buço,  e 
hoje...  com  os  dêmos,  tenho  os  bigodes  brancos. 
Tinia  com  elles  I  Yenha  do  roxo... 

Ora  i)ois,  formem  quadrado  aqui,  era  volta  de 
mim. 

Eu  cá  sou  o  mestre  da  musica...  para  tudo  ir 
a  compasso. 

Era  no  pino  do  inverno.  Chovia  se  Dous  a  dava, 
pelos  carros  dos  Pyrineus.  Pedra  havia  em  barda. 
A  respeito  de  terra  havia  assim  a  modo  um  rai- 
zôdo,  tanto  bonda  para  enterrar  um  homem...  de 
companhia  com  os  lobos,  que  andavam  de  alcatéa 
a  fazer  cruzes  na  boca.  os  excoramungados!  como 
se  fossem  bons  chrislãos.  E  que  frio  !  Era  taro 
de  matar  biclio  !  Fazia  um  vento.,  aquillo  parecia 
folie  de  ferreiro  era  fornalha  apagada  !  Lá  por  aquel- 
les  agachizes,  chorava  o  tal  vento,  que  parecia 
ura  rebanho  de  cabritos  a  caminharem  para  o 
açougue.  E  que  poças  pelos  carreif  os !  A  gente  a 
andar  e  os  pés  a  dizerem  clap  !  ciap  !  como  se  os 
dedos  fossem  rãs !  Fome  de  palmo !  Havia  por  lá 
inglez,  que  comeu  a  lingua  cuidando  que  era  bife  ! 

Nós  caminhávamos  na  avança.da  na  colla  dos 
francezes,  que  iam  de  rola  batida  a  sete  pés.  Que 
lá  de  feição  eram  elles  e  lambem  o  velho  raposa  (1) 
que  licara  na  reclaguarda.  Bons  tempos !  O  ge- 
neral ia  na  frente  na  avançada,  e  atraz  na  retira- 
da. Bons  tempos  I  E  eu  que  o  diga,  que  vi  o  que 
vi,  e  mais  não  linha  barba  nem  sombra  de  buço, 
quando  vi  i.  jue  vi ! 

Derepení'.  pensei  que  o  diabo  accendera  a  lu- 
raeeira  '•  iisasligava  em  seco.  Era  fogo  nos  pique- 
tes, por  todos  aquelles  montes,  e  lá  no  fundo 
roncava  um  rio,  aonde  iam  parar  os  que  escor- 
regavam nos  penhascos. 

Mau  1  disse  com  os  meus  bolões.  Os  diabos  le- 
vem as  noites,  em  que  a  gente  dorme  de  pé  e 
tem  desles  pesadellos. 

Ah !  rapazes.  Lembrei-me  da  rainha  choça,  e 
da  velhita  desdentada,  que  deitou  cá  para  fora  esla 
cegoniia,  que  aqui  vêem.  Eu  sei  lá  o  que  me 
lembra?  Levei  com  um  balasio.  Uuim  cereja  que 
só  tinha  caroço  !  Caí  de  bruços  pendurado  por 
uma  perna  para  um  fojo,  á  laia  de  pintasilgo 
apanhado  no  laço.  E  se  não  havia  de  cair !  Vá  lá 
um  homem  íicar  direito  I  Cambalear...  ora!  E  a 
gente  beber  um  pingo.  Cair  assim...  só  cora  ura 
balasio,  que  vase  o  peito. 

Sc  eu  dormi  não  sei:  os  sonhos  não  haviam  de 
ser  dos  mais  bonitos.  Quando  acordei...  eh  !  eh  ! 
rapazotes. 

A  guerra  ó  assim  coisa  de  adega  de  lavrador 
rico.  Ha  lá  de  tudo. 

Zurrapa  c  vinho  lino !  zurrapa  já  eu  a  levava, 
faltava  o  vinho  lino  1 

Era  uma  rapariga  guapa  e  gorducha  como  ura 
anjo.  Boas  cores,  bons  dentes,  boracabello...  Cora 
os  demónios !  Eu  cá  não  sou  pintor. 

Era  viuva.  Morrera-lhe  o  marido  n'uma  refre- 
ga. Casa  com  escriptos,  resmunguei.  Saio  ao  pin- 

(1)  o  marechal  Soult. 


lar.  Corapral-a  não,  que  lá  está  a  companhia  á 
minha  fspera;  mas  alugal-a...  E  bera  dilo  bem 
feito.  Eslava  ainda  fraco  como  ura  pisco.  ISão  im- 
poria. Chamo  a  moça  e  diiío-llie  cora  voz  maga- 
na :  menina,  venha  d'ahi  uma  garrafa  [)ara  malar 
a  sede  do  coração.  E  a  raoça  rio-se  com  um  ar 
aberto,  e  deu-me  uma  garrafa  de  cidra.  Fiz  uma 
carola,  raas  fui  bebendo. 

Que  boa  vida !  A  ferida  custava  a  curar,  mas 
cá  dentro  abria-se  out';a. 

Passados  dias  a  moça  era  minha  companheira. 
Salta  aqui,  rapariga.  Traze  isto,  leva  aquillo.  Bas- 
tava um  aceno. ..  Emfim,  boas  moças  ha  nos  Py- 
rineus. Ás  vezes  lambem  são  levadas  do  diabo  e 
teem  pado  com  o  tinhoso.  Diga-o  eu,  e  basla. 
Uma  noite,  já  cu  estava  melhor,  e  comera  á  tri- 
pa-foria,  ao  pé  da  rapariga,  que  não  via  oulrera 
senão  a  mim.  Fumando  e  bebendo,  fazendo  as 
minhas  festas  no  rosto 'da  viuva,  adormeci.  Lá  o 
que  aconteceu  por  alia  noite,  não  sei ;  raas  a  res- 
peito de  companheira,  nada.  Apalpo,  e  não  a  en- 
contro. Eh  1  Temos  feitiço  '  Vo!to-me  para  o  ou- 
tro lado,  linjo  que  durmo,  quando  ouço  uns  ge- 
midos. 

Oh  1  lá  camarada,  passe  palavra,  digo  eu.  Nin- 
guém respondeu. 

Ergo-me...  ia  assim  a  cambalear  um  pouco. 
Caeaqui,  tem-te  acolá,  chego  ao  larario,  accendo 
a  candèa,  bt!  íleo  ás  escuras.  Accendo  outra  vez, 
hl!  A  terceira  o  mesmo.  Alto  lá,  camarada,  grilei 
testo.  Nada  do  brincar  com  um  caçador  porluguez. 
Piesponde-me  a  bruxa  da  rapariga,  saltando'  não 
sei  d'onde,  abraçada  a  uma  aventesma...  feia  co- 
mo uma  raposa.  Que  diacho  é  islo?  Anda  cá, 
moça,  que  vou  ver  se  as  costellas  estão  no  seu 
lugar.  Mas  qual !  Não  veio  nem  á  mão  de  Deus 
Padre.  Parecia  um  recruta  de  resinga  com  o  cabo 
de  esquadra.  Avancei,  mas  o  ptianlasma  pega 
n'um  zambujo  e  dá-me  uma  tunda,  (jue  quando 
me  lembra  andam-me  as  coslellas  a  passo  de 
carga. 

E  a  feiticeira  ria-se,  e  deilava-nie  uns  olhos'... 

O  (jue  havia  de  fazer?  Botei-me  ao  phantasina 
e  qual  debaixo  (|ual  de  cima... 

—  Que  diabo  tens  tu,  camarada?  diz-mc  o  ans- 
peçada  da  companhia  que  dormia  ao  meu  lado 
no  |)iquete. 

—  Hein?  digo  eu  esfregando  os  olhos. 

—  A  modo  (|ue  a  cidra  fez-le  mal  (juando  vies- 
te da  vedeta?  Fei'veu-te  lá  dentro  nas  tripas!  Boa 
era  ella,  e  mais  a  rapariga  que  a  deu  !  iMaldilos 
sitios.  Pedras  c  mais  pedras,  nem  a  gente  sabe 
como  ha  de  ferrar  o  olho!  E  tu  que  ainda  cslàs 
ferido,  meu  velho!  Fez-le  mal  cidra,  hein? 

Eh !  eh  I  rapazes.  Isto  de  guerra  é  coisa  do 
diabo. 

E  a  respeito  dos  Pyrineus  ninguém  me  falle. 

Bruxas  e  pedras ! 

E  cidra  ruim !  Yenha  de  lá  mais  meio,  que  ó 
melhor !  Boa  terra  esla  '  Bons  tempos  os  de  en- 
lão !  E  eu  que  o  diga,  que  vi  o  que  vi,  e  mais 
não  linha  barba  quamlo  vi  o  que  vi,  nem  sorabra 
de  buço.  A.  Osório  de  Vasconcellos. 


856 


O  PANORAMA 


CARLOS  II  DE  HESPAMIA 

(Continuação) 

Criado  secrelamenle  em  Ocana,  só  elle,  de  en- 
tre os  lillios  naturaes  de  Philippe,  oblivera  da 
ternura  malcMnal  o  reconhecinienlo  j)ublico  e  so- 
lemne  de  sua  augusla  orip:em  ;  e,  ou  pelo  cari- 
nho com  que  tialava  sua  mãe,  que,  no  dizer  de 
seus  contemporâneos,  olTerocia  as  mais  raras  qua- 
lidades de  belleza  e  discrição,  e  que  íez  esquecer 
os  seus  extravios,  professando  de  religiosa  car- 
melita cm  um  convento  da  Alcarria,  ou,  pelas 
distinclas  prendas  de  talento  e  valor  que  D  João 
desde  tenra  idade  annunciava,  o  certo  é  que  o 
rei  ergui liava-se  de  ser  seu  j)ae  e  enchia-o  de  gra- 
ças e  honras  próprias  de  uma  pessoa  real.  O  po- 
vo também,  e  os  corlezãos,  que  a  princijjio  mur- 
murai am  e  censuraram  apaixonadamente  a  origem 
bastarda  de  D.  .loão,  e  que  chegaram,  ate,  a  du- 
vidar da  realeza  do  seu  sangue,  atlribuindo-o  ao 
duque  de  Medina  de  las  Torres,  que,  parece,  ha- 
via também  galanteado  a  Calderon,  c  com  o  qual 
pretendiam  ailiar-lhe  maior  semelhança,  acaba- 
ram, à  vista  dos  dotes  e  qualidades  verdadeiía- 
mente  regias  do  joven  D.  João,  por  dissipar  as 
suspeitas  e  presumpções  contrarias,  e  por  sympa- 
thisar  com  elle  e  amal-o  tão  entranhavelmente 
como  a  um  príncipe  legitimo. 

KfTectivamente,  1).  João  era  um  príncipe  valen- 
te, discreto  e  elegante;  um  homem  honrado  e 
cavalleiroso,  c  que  figurara  dignamente  desde  os 
seus  primeiros  annos  nos  mais  altos  cargos  e  di- 
gnidades do  estado :  como  governador  dos  Paizes 
Baixos  e  de  Borgonha,  como  vice-rei  e  general 
victorioso  do  reino  de  Nápoles,  como  grão  prior 
de  Castella  na  ordem  de  Malta,  e,  por  ultimo, 
como  presidente  do  conselho  de  estado,  e  intimo 
conlidente  do  rei,  seu  pae. 

Pouco  tempo  depois  da  morte  de  Philippe, 
observando  I).  João  o  rápido  e  assombroso  ascen- 
dente que  o  padre  confessor  fjá  conselheiro  de 
estado";  tomava  no  espirito  da  rainha,  e  não  con- 
seguindo logo  de  prompto  oppor-lhc  o  seu  fraco 
predominio,  teve  de  afastar-se  voluntariamente 
da  scena  politica,  reliiando-se  para  o  seu  castello 
de  Consuegra,  residência  ordinária  dos  gran 
priores  de  S.  João  ;  mas,  complicando-se  depois 
as  pretensões  do  rei  de  França  sobre  os  estados 
dos  Paizes-Baixos,  a  ponto  de  apoderar-se  com 
mão  armada  de  algumas  de  suas  praças,  e  pro- 
mover uma  guerra  desastrosa  para  defendel-as, 
foi  chamado  1).  João  para  castigar  afjuelle  allen- 
tado,  coníiandc-se-lhe  o  commando  do  exercito, 
que  já  em  outras  occasiões  soubera  conduzir  á  vi- 
ctoria.  Neste  ponto  a  rainha  operara  também  po- 
liticamente, i)ara  ter  longe  da  corte  o  príncipe, 
em  cujas  francas  demonstrações  fiodéra  notar  cer- 
to desdém  e  aversão  ao  jesuíta  favorito,  demons- 
trações e  palavras  umas  vezes  graves,  outras  fes- 
tivas, que  chegaram  ao  extremo  de  dizer  em  i)le- 
no  conselho  e  diante  do  interessado,  (juc  o  seu 
parecer  eni  rpte  fosse  enviado  para  Flandres,  o 
padre  Milard ,  santo  varão  a  f/uem  o  céo  nada  po- 
deria nef/ar :  c  a  prova  da  sua  7nilafjrosa  virtude 


íaccrescentou  sorrindo)  é,  sem  duvida  alguma,  o 
posto  em  que  o  vemos  hoje.  —  «Eu  creio  íii-me- 
mente,  replicou  contrito  o  confessor,  que  nada  ó 
negado  pela  misericórdia  divina  áquelles  que  con- 
tiam  sinceramente  n'ella  ;  mas  também  conheço 
que  o  meu  dever  e  a  minl-ia  profissão  me  chamam 
a  outros  serviços  ditlei-entes  dos  de  um  general 
do  exercito.  — Não  seria  esta,  tornou  I).  João,  a 
primeira  cousa  estranha  á  vossa  profissão  e  ao 
vosso  caracter,  nos  quaes  vos  vemos  brilhar  todos 
os  dias,  meu  padre. 

Besolveu-se,  emfim,  que  D.  João  se  pozesse  á 
frente  do  exercito  que  devia  passar  a  Flandres: 
aprestaram-se  os  navios  necessários  para  o  trans- 
porte, em  Cadiz  e  Corunha;  e  D.  João,  do  ultimo 
destes  portos,  ia  enviando  os  coipos  a  pouco  e 
pouco,  não  achando  prudente  romper  logo  com- 
l)ate  com  a  armada  franceza,  muito  superior  em 
numero,  que  crusava  n'aquellas  aguas.  Entretan- 
to os  inglezes  e  hollandezes,  feitas  as  pazes  entre 
si,  uniam-se  á  França  contra  a  Ilespanha,  e  ar- 
rastados pelo  ascendente  de  Luiz  XIV,  o  eleitor 
de  Troves,  o  Palatino,  os  duques  de  Baviera  e  de 
Brunswick  foi-mavam  uma  liga  em  defesa  própria 
e  com  o  fim  de  obrigar  as  potencias  belligei-antes 
a  harmonísarem  a  diíTerença,  que  entre  ellas  ha- 
via, de  uma  maneira  conveniente  para  todos.  Por 
lim,  o  próprio  papa  interveio  na  contenda,  e  a 
paz  foi  firmada  em  Aix-la-Chapelle. 

Neste  intervallo,  e  emquanto  D  João,  como 
fica  dito,  esperava  na  Corunha  o  momento  oppor- 
tuno  paia  embarcar,  chegou  a  seus  ouvidos  a  noti- 
cia do  supplicio  de  D.  José  Malladas,  fidalgo  ara- 
gonez  muito  seu  partidário,  a  quem,  debaixo  de 
todo  o  segredo,  o  governo  mandara  prender  e  ti- 
rar a  vida  em  poucas  horas  por  causas,  que  se 
não  poderam  averiguar,  mas  que  se  suppozeram 
forjadas  pela  malevolencia  do  confessor.  I).  João, 
profundamente  sentido  pelo  trágico  fim  de  uma 
pessoa  a  quem  tanto  estimava,  e  exasperado  ao 
ultimo  ponto  pelo  ullrage  que,  nesta  morte,  jul- 
gava ter  recebido  do  padre  Nitard,  determinou 
não  partir  para  Flandres,  suppondo  que  o  que  se 
pretendia  era  afastal-o  da  corte  e,  talvez,  aban- 
donal-o  sem  recursos  ás  forças  superiores  do  rei 
de  França,  e  sob  pretexto  de  uma  doença  de  pei- 
to, escreveu  á  rainha  pedindo-lhe  que  o  dispen- 
sasse do  commando  do  exercito. 

Tão  súbita  mudan;;a  e  tão  alheia  do  valor  reco- 
nhecido de  1).  João,  causou  uma  estranha  surpre- 
sa na  corte  e  um  sentimento  profundo  na  rainha 
c  no  confessor.  Estes,  comtudo,  poderam  peneirar 
na  causa  verdadeira  da  recusa,  e  reconhecer  a  sua 
imprudência  no  sacrifício  de  Malladas;  mas  não 
podendo  já  i'eme(lial-o  communicaram  a  1).  João 
as  ordens  para  entregar  o  mando  ao  condestavel 
de  Castella,  que  conduziria  as  tropas  a  Flandres, 
em  quanto  (|ue  elle,  D.  João,  devia  retírar-sc  im- 
mediatamente  para  Consuegra. 

í)  príncipe  obedeceu  sem  leplica  ;  mas  a  sua 
obediência,  longe  de  aplacar  a  ira  da  rainha,  deu- 
Ihe  novas  forças  para  apresentar  pessoalmente  no 
conselho  um  terrível  decreto  contra  D.João,  alie- 


o  PANORAMA 


357 


gando  a  sua  falia  de  respeito  em  negar-se  ao  com- 
inando das  Iropas  em  um  momenlo  Ião  critico,  e 
sob  o  falso  pretexto  de  uma  doença  simulada,  com 
o  que  faltara  á  verdade  e  ao  thruno. 

Tudo  isto  chegou  breve  ao  conhecimento  de  D. 
João,  o  qual  foi  tanto  mais  sensível  a  este  proce- 
dimento da  rainha,  quanto  julgava  havcl-a  desar- 
mado com  o  não  queixar-se  publicamente  da  mor- 
te de  Malladas.  Todavia,  porém,  occorreu  outro 
incidente  que  acabou  de  irritar  os  ânimos.  Um 
capitão  chamado  D.  Pedro  Pinilla,  sollicilou  e 
obteve  uma  audiência  da  rainha,  na  qual,  sem  du- 
vida, pondo  revelar-lhe  alguns  dados  importantes 
contra  D.  Bernardo  Patino,  irmão  do  secretario  de 
D.  João;  porque,  no  dia  seguinte  foi  preso  com 
grande  rigor,  ao  mesmo  tempo  que  o  marquez  de 
Salinas,  capitão  da  guaida  hespanhola,  recebeu 
ordem  da  rainha  para  se  dirigir  com  forças  sufficien- 


tes  a  Consuegra,  e  prender  o  príncipe  ;  advertido, 
porém,  este  opporlunamenle  por  seus  numerosos 
amigos,  poude  evitar  o  encontro,  efugio,  deixando 
uma  carta  para  a  rainha,  datada  de  21  de  outu- 
bro de  1GG8,  na  qual  em  termos  mui  fortes,  lhe  con- 
fessava a  causa  da  sua  recusa  em  ir  a  Flandres,  o 
seu  justo  resentimento  pela  morte  de  Malladas,  que 
não  duvidava  ser  obra  do  padre  Nilard  ;  que  um 
tal  altentado  reclamava  uma  terrível  vingança,  e 
que  antes  d'elle  contribuir  por  sua  paite  paia  le- 
val-a  a  cabo,  supp!icava-lhe  que  afastasse  do  seu 
lado'  um  tão  máo  conselheiro  ;  concluindo  a  sua 
carta  com  um  severo  protesto  contra  a  necessida- 
de em  que  se  punha  um  individuo  da  sua  jerar- 
chia  e  com  taes  serviços  a  fugir  do  paiz  e  a  pro- 
curar um  asylo  no  estrangeiro  contra  tão  odiosa 
perseguição. 

[Continua) 


jf- 


Uma  escola  de  Bedford. 


Bedford  é  um  pequeno  condado  da  Inglaterra 
situado  ehtre  lluntingdon,  Cambridge,  Heitford  e 
Buckingliam,  e  a  72  kilometros  ao  N-N-0  de 
Londres. 

A  sua  população  eleva-se  a  cento  c  trinta  e 
cinco  mil  almas,  espalhadas  sobre  uma  superlicie 
de  cenlo  e  vinte  mil  hectares.  O  súlo  desta  pro- 
víncia, na  sua  maior  parle  plano,  mas,  jiara  o 
melodia,  coberto  de  estéreis  montanhas  calcareas, 
é,  na  generalidade,  bem  cultivado,  c  mesmo,  para 
oeste,  de  uma  notável  fertilidade.  Os  seus  habi- 


'  tantes,  laboriosos  como  lodos /)s  lilhos  de  Albion, 
entregam-se,  com  exilo,  á  agricultura,  horticul- 
tura e  ciiação  de  gados;  a  sua  industria  manu- 
facUiieira,  porém,  limila-se  a  fabricação  de  ren- 
das, llanellas,  pannos.  chapéos  de  palha  e  quin- 
quilharias. Também  exportam,  com  vantagem,  a 
greda,  muito  commum  n'esla  parte  da  Inglaterra 
"e  de  uma  qualidade  suj)erior.  As  communicações 
enlre  este  condado  e  Londres  acham-se  facilita- 
das desde  ISíí),  pela  construcção  de  um  entron- 
camento do  London  and  Aorth  Western  railway. 


358 


O  PANORAMA 


A  capila!  (lesto  condado  chamada,  igual menle, 
Bedford,  e;lá  situada  sobre  o  Ouse,  que.  n^aquel- 
le  ponto  SL'  torna  navegável ;  ó  o  deposito  das 
manufacturas  do  condado  e  o  centro  de  um  com- 
mercio  activissimo  em  trigos,  carvão,  madeiras  de 
conslrucção,  ferro  e  cobre.  O  numero,  porém, 
dos  seus" habitantes  não  excede  a  ci.O-a  de  treze 
mil  e  quinhentos. 

Esta  cidade,  conhecida  oulr'ora  por  Bedican- 
ford,  foi  thealro  no  sexto  século  de  um  combale 
entre  os  saxonios  e  os  bielões,  em  seguida  de 
varias  pelejas  entre  aquelleseosdinamarquezes;  e 
pelos  annos  de  1010,  estes  últimos  quasi  que  a 
reduziram  a  cinzas.  Em  1137,  foi  tomada  pelo 
rei  Eduardo  e  no  principio  do  decimo  terceiro 
século  por  Faulkes  de  Bréant,  que,  confiado  nas 
suas  tropas  e  na  defensa  do  castello,  por  muito 
tempo  disputou  a  vicloria  ás  tropas  que  ílenri- 
(jue  lli  mandara  contra  elle.  O  príncipe  Planta- 
genet,  ou,  como  o  chama  Shakspeare,  o  príncipe 
João  de  Lancastre,  filho  de  Henrique  IV,  que  em 
vida  de  seu  pae  tora  governador  de  Bei'wich  e 
depois  regente  de  França,  foi  nomeado  duque  de 
Bedf<?rd  no  segundo  anno  do  reinado  de  seu  ir- 
nwo  Henrique  V.  Dois  séculos  mais  tarde,  o  titu- 
lo passou  á  familia  RusselL 

A  cidade  tem  sido,  nestes  últimos  annos,  mui- 
to aformoseada  e  possue  uma  ponte  magnifica  de 
cinco  arcos,  construída  em  1810  no  lugar  onde 
havia  outra  de  sete,  que,  dizem,  fora  feita  com  os 
materiaes  do  castello  desmanteliado.  Entre  as  suas 
cinco  igrejas,  é  notável  a  calhedral,  venerável 
monumento  de  architectura  gothica  construído  en- 
tre us  annos  1350  e  li 00.  Além  d'isso  conta  um 
grande  numero  de  edilicios  elegantes,  ura  hospital 
d'alienados,  um  va^to  penitenciário,  uma  bibliothe- 
ca  publica  e  um  grande  numero  de  escolas,  das 
quaes  a  principal  é  a  que  se  vô  em  a  nossa  gra- 
vuia,  e  que  foi  construída  no  reinado  de  Henri- 
que IV  por  sir  William  Harpur. 


FRANCISCO  PIZARRO 

(Continunoãoj 

O  crime  chama  o  crime,  o  sangue  provoca  o 
sangue.  O  medo  produz  o  mesmo  effeilo  na  alma 
do  vencido  que  a  crueldade  no  espirito  do  ven- 
cedor. Atahualpa  sabendo  que  sou  irmão  Iluescar 
fora  na  sua  prisão  visitado  por  Ilespanhoes,  e  te- 
mendo que  elle  tivesse  sabido  excitar  a  cubica  e 
provocar  as  paixões  sanguinárias  dos  sens  ferozes 
vencedores,  deu  ordens  secretas  para  que  o  desgra 
çado  prisioneiro  fosse  assassinado,  ordem  que 
fielmente  se  executou.  E'  assim  que  o  sangue 
provoca  o  sangue,  ,é  assim  que  as  represálias  co- 
meçam, é  assim  que  estas  iuclas,  onde  o  ven- 
cedor não  respeita  as  leis  da  justiça  c  da  mora- 
lidade, tomam  em  breve  um  caracter  horrendo 
e  inscrevem  o  assassirnVj  e  o  crime  nos  pendões 
d'esses  e  d'outros  adversários. 

Knlrctanto  os  liespanhoes  dividiam  entre  si 
solemncmenle  o  produclo  dos  seus  roulios  c  da 
sua  perfídia.  No  dia  de  S.  Thiago,  do  padroeiro 
das  Hespanlias.  depois  de  lerem  ouvido  devota- 
mente uma  festiva  missa,  dita  por  aquelle  padre 
Valverde,  de  cujo  estúpido  e  sanguinário  fana- 


tismo já  informámos  os  leitores,  depois  de  lerem 
invocado  o  Omnipotente,  para  que  elle  viesse 
sanctiíicar  os  horrendos  crimes  commettidos  em 
seu  nome,  procederam  os  conquistadores  a  essa 
cubicada  repartição.  Torrentes  d"oiro  correram 
então  diante  dos  olhos  deslumbrados  dos  com- 
panheiros de  Pizarro,  e  o  fulvo  reflexo  d"esse 
metal  fascinador,  em  vez  de  os  saciar,  ainda  mais 
lhes  accendeu  a  cobiça,  a  avareza,  todas  as  pai- 
xões vis  que  fermentavam  no  baixo  espirito  des- 
ses aventureiros. 

Tendo  pago  o  seu  resgate,  o  misero  Atahualpa 
reclamou  a  sua  liberdade.  Mas  esse  mesmo  prora- 
pto  pagamento  foi  causa  da  sua  ruina.  Tinha 
tanto  de  manhosa  como  de  pouco  escrupulosa  a 
politica  de  Pizarro.  Se  os  Peruvianos  obedeciam 
com  tanta  promplidão  ás  ordens  do  seu  monar- 
cha  prisioneiro,  6  porque  a  realeza  exercia  sobre 
elles  lodo  o  seu  prestigio.  Conservando  Atahualpa 
debaixo  de  perpetua  ameaça,  conservava  também 
o  império  submisso.  Fora  essa  a  politica  empre- 
gada por  Cortez  com  Montezuma,  soberano  do 
México.  Mas,  se  Pizarro,  com  a  perspicácia  do 
génio,  concebia  grandes  planos,  não  tinha,  como 
o  conquistador  do  império  dos  Azleques,  a  pra- 
tica dos  negócios,  a  fmesa  que  só  a  educação 
desenvolve  ;  Cortez  soubera  conservar  Montezuma 
debaixo  do  seu  jugo,  não  lhe  coarctando  em  ap- 
parencia  a  liberdade,  e  deixando-o  no  throno 
como  um  titere  cujos  fios  elle  em  segredo  mo- 
via. Pizarro  rodeou  de  guardas  o  inca,  alienou 
completamente  o  seu  espirito,  e,  excluindo  Al- 
magro  e  os  seus  companheiros  d^mia  parte  igual 
no  resgate,  provocou  as  suas  suspeitas.  Já  vimos 
a  tocante  confiança  que  estes  bandidos  deposita- 
vam uns  nos  outros.  Desconfiaram  os  recem-che- 
gados,  e  provavelmente  com  bastante  razão,  que 
Pizarro,  conservando  o  inca  prisioneiro,  chama- 
ria a  si  todas  as  quantias  que  podesse  angariar, 
allegando  que  eram  o  complemento  do  preço 
da  sua  liberdade.  Em  vista  d'isso  pediram,  voz 
em  grita,  que  Atahualpa  fosse  condemnado  a 
morte. 

Uma  questão  mesquinha  de  amor-proprio  de- 
cidio  a  sorte  do  pobre  Peruviano.  Ceito  respeito 
que  Fernando  Pizarro,  e  Fernando  Solo  lhe 
manifestavam  conciliara  as  suas  sympathias,  ao 
passo  que  os  grosseiros  modos  do  cheíc  da  expe- 
dição lhe  repugnavam.  Esta  preferencia,  que  elle 
não  soubera  disfarçar,  irritara  sobremaneira  o 
nosso  hcroe,  suscepíivel,  como  todos  os  homens, 
superiores  só  por  um  lado  e  que  reconhecem  a 
sua  iníerioridade  no  resto.  Demais  Atahualpa  de 
todas  as  artes  européas  a  que  mais  apreciara 
era  a  do  ler  c  escrever.  Parecia-lhe  isso  um  dom 
divino.  Não  sabia  elle  se  era  talento  natural  ou 
adquirido.  Pedioumavcz  a  um  soldado  hespanhol 
que  escrevesse  a  palavra  Deus  no  muro  da  sua 
prisão.  O  hespanhol  satisfez-lhe  o  desejo.  Em 
seguida  pedio  o  Inca  a  todos  que  lhe  appareceram 
que  lessem  essas  letras,  e  lodos,  sem  hesitarem 
um  instante,  leram  a  mesma  cousa.  Veio  o  chefe, 
e  o  inca  repetio  a  pergunta,  e,  sendo  Pizarro 
obrigado  a  confessar  que  não  sabia  ler,  o  inca 
não  pôde  orcultar  o  dcspreso  que  lhe  inspirava 
um  general  menos  instruído  do  que  os  seus  sol- 
dados. Nunca  llfo  perdoou  esse  espirito,  (lue  a 
tanta  alteza  de  pensamentos  juntava  sentimentos 
tão  baixos,  e  a  morte  do  soberano  do  Peru  foi 
de.sde  então  caso  decidido. 


o  PANORAMA 


359 


Foi  então  que  se  revelou  plenamente  o  cynisrao 
fanático  destes  homens ;  foi  então  que  se  repre- 
sentou uma  comedia,  horrenda  e  repugnante,  se 
os  actores  a  representaram  com  a  consciência 
plena  e  inteira  do  que  faziam,  estupenda  se  jul- 
gavam praticar  um  acto  naturalíssimo.  Os  ven- 
cedores não  quizei  am  invocar  simplesmente,  para 
assassinarem  Atahualpa,  o  direito  do  mais  forte, 
não  se  limitaram  a  usar  em  Ioda  a  sua  extensão,  do 
direito  de  conquista,  pai  liaram  o  seu  crime  com 
as  formalidades  mais  burlescas,  e,  invasores,  sem 
motivo,  de  um  paiz  independente,  em  que  nunca 
tinham  ouvido  faltar,  e  que  nunca  ouvira  fallar 
d'elles.  constituiram-se  em  tribunal,  julgaram  e 
sentenciaram  Atahualpa,  aceusado  e  convicto  dos 
seguintes  crimes : 

i.°  De  ter,  sendo  bastardo,  expulso  do  throno 
o  seu  legitimo  soberano  e  de  o  ter  mandado  as- 
sassinar. O  crime  era  verdadeiro,  mas  só  um 
compatriota  de  D,  Quixote  se  podia  julgar  com 
direito  de  intervir  nas  mudanças  politicas  d'um 
paiz,  com  o  qual  nunca  tinha  tido  as  mais 
leves  relações. 

2."  De  ser  idolatra,  e  de  ler  offerecido  sacriíi- 
cios  humanos  aos  seus  falsos  deuses.  Singular 
meio  de  pregar  a  religião  christã! 

3.''  De  ter  um  grande  numero  de  concubinas. 
Francisco  Pizarro  feito  propugnador  da  morali- 
dade universal!... 

4.°  De  ter,  depois  da  sua  prisão,  desbaratado 
os  seus  thesouros  reaes,  que  desde  esse  momento 
pertenciam  aos  seus  conquistadores.  Como  a  bolsa 
do  viajante  pertence  ao  ladrão,  logo  que  este  lhe 
põe  o  punhal  ao  peito. 

5.°  Finalmente  de  ter  incitado  os  seus  vassallos 
a  pegarem  em  armas  contra  os  Hespanhoes.  Era 
a  fabula  do  lobo  e  do  cordeiro  posta  em  acção 
por  Pizarro  que  nunca  lera  Phedro,  mas  que  o 
adivinhara. 

Esta  sanguinolenta  comedia  representou-se  com 
todo  o  apparato  judicial.  Nomeou-se  um  advoga- 
do ex-ofjicio  para  defender  o  inca  prisioneiro,  fo- 
ram chíwiiadas  e  inquiridas  testemunhas,  lavrou- 
se  auto  do  processo. 

O  pobre  Atahualpa  assistio  estupefacto  a  esta 
representação  que  não  podia  perceber,  e  não  sa- 
bia se  mais  se  devia  rebellar  contra  a  crueldade 
e  perfídia  dos  seus  vencedores,  se  admirar  o  seu 
impassível  descaramento.  O  inca  foi  conderanado 
á  morte. 

Finalmente,  para  que  nada  faltasse  a  esta  farra 
de  que  não  ha  outro  exemplo  na  historia  univer- 
sal, veio  também  a  scena  religiosa.  O  padre  Val- 
verde ousou  pròpòr  a  Ataiuialpa  que  adoptasse 
a  religião,  cujos  ministros  e  sectários  se  lhe  apre- 
sentavam debaixo  d'um  aspecto  por  tal  forma 
hediondo  e  vil.  Também  devemos  confessar  que 
o  único  argumento  de  que  se  sérvio  foi  a  pro- 
messa de  se  lhe  conceder  morte  mais  suave,  se 
consentisse  em  deixar-se  baptisar.  Atahualpa, 
abatido  já  por  tão  largo  marlyrio,  e  não  sabendo 
que  horrendas  torturas  poderia  inventar  a  fecuiidít 
imaginação  dos  seus  algozes,  a  tudo  se  resignou 
para  que  os  seus  padecimentos  findassem  (l'um 
modo  menos  cruel.  EtTectivamente  essa  ultima 
promessa  cumprio  se.  Em  vez  de  ser  queimado 
vivo,  Atahualpa  foi  simplesmente  enforcado. 

A  morte  do  infeliz  inca  abateu  completamente 
a  pouca  energia  dos  seus  súbditos,  mas  os  seus 
ultimes  gemidos  rcsoaram  na  liistoria,  e  o  seu 


espectro  devia  perseguir  bastantes  vezes  os  sonhos 
de  Pizarro,  como  persegue  perante  a  posteridade 
o  seu  nomo,  que  pronunciamos  com  admiração 
e  horror.  O  sangue  de  Atahualpa  estampou  eter- 
na macula  na  gloria  do  descobridor,  e  conquista- 
dor do  Períi. 

Mas  a  justiça  divina  não  esperou  que  soasse  a 
hora  do  passamento  para  fulminar  o  criminoso. 
Na  raoilc  do  inca  fisida  a  segunda  parte  da  exis- 
tência de  Pizarro.  Agora  continuam  os  crimes,  e 
a  prosperidade,  mas  já  começa  a  expiação. 

(Continua)  |2';] 

OS  ovos  E  OS  CAVALLOS 

Conto  diuaniarquez  (I) 

Era  uma  vez  ura  homem  que  visitava  todas  as 
cidades,  villas  e  campos  com  uma  carruagem  cheia 
de  ovos  e  um  grande  numero  de  ca  vai  los.  Deixava 
ovos  nas  casas  onde  a  mulher  representava  de 
chefe,  e  cavallos  n'aciuellas  em  que  o  homem  go- 
vernava. Assim  distribuía  uma  quantidade  inlini- 
la  d'ovos,  mas  dos  cavallos  nunca  podia  desfazer- 
se. 

Um  dia,  entrou  em  uma  casa  onde  tudo  pare- 
cia indicar  que  o  homem  era  o  dono.  Resolveu 
passar  ali  a  noite,  e,  na  manhã  do  dia  seguinte, 
qnando  tratava  de  fazer  as  suas  despedidas,  disse 
ao  marido  que  se  dignasse  escolher  de  entre  dois 
cavallos,  um  alazão  e  outro  prelo,  o  que  mais  lhe 
agradasse;  i)0's  desejava  oíTerecer-lh'o  como  prova 
do  seu  reconhecimento  pelo  bom  tratamento  que 
lhe  íizera. 

—  ]N'essc  caso,  disse  o  homem,  ficarei  com  o 
alazão. 

—  Não,  exclamou  a  mulher;  pareces-me  tolo...; 
o  preto  é  melhor. 

—  Bem,  replicou  o  marido;  uma  vez  que  assim 
o  entendes,  minha  fdha,  escolherei  o  preto. 

Mas  licaram  envergonhadíssimos  quando  viram 
o  estrangeiro  relirar-se  com  todos  os  seus  cavallos 
e  deixa r-lhes  apenas  um  ovo. 


UMA  OBRA  DO  SÉCULO  IX 

Arcádio  com  seu  irmão  Ilonorio,  reinou  XIII 
annos.  N'esta  época,  o  bispo  S.  Agostinho  res- 
plandecia com  a  sabedoria  da  sua  doulrina,  e  Do- 
nato bispo  de  Epíro  assignalava-se  por  suas  vir- 
tudes. Este,  vendo  um  enorme  dragão  e  cus|)in- 
do-lhe  no  focinho,  matou-o  ;  e  oito  juntas  de  bois 
apenas  podiam  arraslal-o  á  fogueira  em  que^  foi 
queimado.  Pelo  mesmo  tempo,  os  corpos  dos  San- 
tos Pro])helas  llabacuh  c  Micheas,  são  descobertos 
por  divina  revelarão.  Floresce  Theophilo.  Os  (lo- 
dos acommellem  a  Ilalia  e  os  Vândalos  c  os  Ala- 
nos as  Gallias. 

8.  Honório  com  Thcodosio  menor,  lilho  de  seu 
irmão  reinaram  XV  annos.  Duranie  o  império  dos 
(Iodos  apoderaram-se  de  Roma,  e  os  Vândalos,  os 
Alanos,  e  os  Suevos,  occu])am  as  Spanias.  Ceie- 
bra-se  em  Carlhago  um  concilio  composto  de 
CCXIV  Bispos. 

(I)  Gamle  danskc  Mhuler  i  Folhomunde :  Velhas  recordações  do 
povo  dinamaniucz  editadas  por  Svead  Grundtvig.  Nova  serie.  Go- 
Ijunhague,  1857,  p.  126. 


360 


O  PANORAMA 


Cyrilo,  que  era  bispo  de  Alexandria,  assignala- 
se  parlicularraente. 

Thoodosio  o  Menor,  fdho  de  Arcádio,  reinou 
XXVII  annos.  Os  Vândalos  passam  d'líespanha  a 
Africa,  e  arruinam  ali  a  fe  calholica  com  a  im- 
piedade arriana.  Ueune-se  em  Kplieso  um  concilio 
de  Bispos  contra  Nesiorio.  Pelo  mesmo  tempo,  o 
diabo,  apparecendo  em  Creta  aos  judeus  em  ligu- 
ra  de  Moysés,  prometle-llies  conduzil-os  por  mar 
a  pé  enxuto  á  terra  de  promissão,  mas  lendo  mor- 
rido muitos,  converleram-se  outros  ao  christianis- 

mo. 

9.  Marciano,  reinou  VI  annos.  No  principio  do 
seu  reinado,  cslebra-se  um  concilio  em  Calcedo- 
nia.  Theodorico,  rei  dos  Godos,  á  frente  de  um 
numeroso  exercito,  entra  em  Spania. 

Leão  Maior,  com  Leão  Menor,  reinou  XVI  an- 
nos. 

Zenon,  reinou  XVII  annos.  N"aquelle  tempo,  e 
pela  revelação  do  mesmo,  encontrou-sc  o  corpo  de 
S.  Bernabe  Apostolo,  e  o  Evangelho  de  S.  Ma- 
theus. 

Anastácio,  reinou  XXVíI  annos.  N'esta  occasião, 
Fuígencio,  Bispo,  resplandeceu  por  sua  sabedoria 
e  doutrina.  Nascem  muitas  heresias. 

(Continua)  ^^ 

TERÇA  FEIRA! 

Rompera  a  nianliã  sombria, 
D'eslas,  que  fiizem  Irisleza. 
Em  profunda  cahiiaria 
Repousava  a  natureza. 

Repousava.  As  ondas  mansas 
Vinliam  quebrar-se  na  areia. 
Que  mar  tanto  para  esp'rançasl 
Oue  enganadora  screial 

O  arraes,  por  entre  os  pallieiros, 
«Ao  mail,»  grita,  "ao  mar!  aos  remosl 
«Para  as  tanclias,  companliciros, 
«Grande  safra  hoje  teremos.» 

E  a  pobre  gente  da  costa, 
Essa  raça  dcslcmidi, 
Que  a  morte,  sem  medo,  arrosta. 
N'um  momento  c  Ioda  erguida. 

Eit-os  na  praia.  Cantando, 
Se  dão  á  tarefa  santa. 
Que  iTessc  valente  Ijando, 
Quem  mais  trabalha,  mais  canta. 

São  todos?  Todos,  não.  Fatia 
Da  companha  o  mais  valente. 
Esta  nova  soljresatla 
O  peito  d'aquelta  gente. 

«Partir  sem  ellel  Por  Christo, 
«Que  a  primeira  vez  seria. 
«Em  qualquer  Irmcc  imprevisto, 
«Quem  tanto  nos  valeria? 

Tudo  pára,  tudo  hesita. 
Mãos  nos  remos,  mão  no  teme; 
Que  o  seio  a  muitos  palpita, 
Que  a  muitos  o  Ijraço  treme. 

Ora,  no  pobre  palheiro 
1)0  pescador,  que  tardava. 
Eis  o  que,  ao  alvor  primeiro 
D'esla  manhã,  se  passava: 


Etle  acordara  o,  na  esposa 
Que  ao  hnio  dorme  tranquitla, 
Repousa  a  vista  amorosa 
E,  ao  despertat-a,  vacitta. 

Yacilla  —  se  c  tão  suave 
Aquelle  dormir,  tão  brando! 
Mas  não  sei  (pie  idca  grave 
Lhe  está  na  mente  pesando. 

Terno,  a  esposa  ao  seio  aperta 
E  itic  diz,  com  gosto  ameno: 
«Mulher,  teu  lilho  desperta, 
oAcorda-mc  esse  pequeno. 

A  loven  mãe  estremece; 
«Que  acorde  meu  íilho,  dizes! 
«Doixa-o  dormir.  Deus  lhe  desse 
«Sempre  assim  somnos  felizes. 

—  «Acorda  teu  filho,  acorda; 
«Tal  dormir  não  é  p'ra  ellc. 
«Tempo  é  que  da  lancha  á  horda, 
«Como  os  outros  também  vete. 

— «Ás  lanchas!  ao  mar!  pois  queres...» 
E  a  mãe  enipallidccia. 

—  <iN'esla  vida  de  mulheres 
«Não  é  que  um  homem  se  cria. 

—  «Mas  tão  novo...«— «Inda  mais  novo 
«Meu  pae  me  levou  corasigo.i) 

— «Mas..» — «Jà  se  falta  entre  o  povo 
«Do  rapaz» — «Mas  ouve,  amigo.» 

E  a  voz  tremula,  chorosa 
Quasi  em  pranto 'se  afogava. 
Curvara-se  ao  mar  a  esposa. 
Mas  a  mãe,  essa,  hesitava. 

Hesitava,  que  se  lhe  ia 

A  alma  toda,  dando  aos  mares 

O  fdho,  a  sua  alegria, 

O  lume  dos  seus  olhares. 

— «Ouve»— murmura  chorando, 
«Por  Deus  te  vou  pedir  isto!» 
E  depois,  em  tom  mais  brando 
«Em  nome  de  Jesus-Chrislo ! 

«Deixa-m'o  ficar,  marido, 
«Hoje  só,  ai,  hoje  ao  menos, 
«Fraco  auxilio  ò  recebido 
«Dos  braços  d'esses  pequenos. 

>tRem  sabes  que  tudo  os  cança; 
«Sempre  sois  tão  dcshumanosl 
«E  depois  essa  criança 
«Inda  não  fez  os  dez  annos. 

—  «Agoura-me  bem  o  dia, 
«Para  lhe  abrir  a  carreira;» 

—  '■Porém,  6  virgem  Maria, 

«E  hoje  então,  que  c  terça  feira!» 

— «Mulher,  deixa  essas  idéas, 
«Iguaes  são  todos  os  dias. 
«Em  maus  agouros  não  creias, 
«Se  é  que  no  Senhor  confias.» 

«Aprompta,  teu  filho,  aprompta, 
«Que  hoje  ha  de  entrar  na  partilha. 
«E  olha  que  o  sol  já  desponta, 
«Anda,  acorda-o,  minha  filha. 
(Continua.) 


Typ,  rnuir;o-l'orlugueza  —  Hua  do  Tliosouro  Velho,  G, 


46 


o  PANORAMA 


36>1 


CasLello  e  porto  de  Dover. 


A  cidade  de  Dover,  siluada  a  IJO  kilomelros 
E.  S.  E.  de  Londres,  sobre  a  Mancha  c  em  frente 
de  Calais,  éum  dos  cinco  principaes  portos  da  In- 
glaterra. Eslá  asseniada  em  um  grande  vaile 
rodeado  de  um  semi-circulo  de  montanhas,  no 
cume  de  uma  das  quaes  se  eleva  a  sua  antiga 
e  bem  construída  cidadella.  A  população  regula 
por  dezeseis  mil  almas. 

A  vasla  bahia  que  possue,  as  soberbas  colimas 
cobertas  de  selvas  e  a  excellente  agua  concorreram, 
sem  duvida,  para  os  BrelOes  ali  se  eslabelecerem. 

(3s  habitantes  d'eslas  costas  foram  oulr'ora  ce- 
lebres pelo  seu  caracter  bellico ;  e  quando  Júlio 
César,  á  frente  de  um  numeroso  exercito  inva- 
dio  a  Gran-Brelanha,  encontrou  nas  monlanhas 
de  Dover  um  grande  numero  de  homens  (jue  se 
oppozeram  energicamente  á  sua  entrada.  Não  obs- 
tante, a  cidade,  apesar  do  esforço  de  seus  habitan- 
tes, vio-se  em  pouco  tempo  submettida  ao  jogo 
dos  Romanos,  que  muito  a  aformosearam,  o  sup- 
põe-se  mesmo  que  no  lugar  onde  hoje  se  ve  a 
moderna  fortaleza,  existia  outra  construída  por 
Júlio  César.  Dover  desde  logo  adquirio  grande 
importância  pela  sua  magnilica  situação  na  costa 
e  proximidade  da  Gallia,  c  ainda  hoje  é  o  ponto 
principal  de  communicação  entre  a  Inglaterra  e  o 
continente. 

Ko  tempo  dos  saxonios  esta  cidade  gosava  de 
muitos  privilégios  importantes.  Todos  os  seus  ha- 
bitantes depois  de  um  certo  numero  de  annos  em 
que  pagavam  impostos  ao  rei,  eram  isentos  de  to- 


do o  direito  de  portagem  no  resto  da  Inglaterra. 
Segundo  alguns  velhos  chronislas,  os  mensageircs 
que  se  dirigiam  a  Erança,  pagavam  seis  soldos 
pela  passagem  de  um  cavalio  n^  inverno,  e  qua- 
tro soldos  no  verão;  a  gente  da  cidade  eia  obri- 
gada a  procurar  um  barqueiro  e  um  ajudante;  se, 
porem,  se  exigia  um  maior  numero  de  homens,  o 
rei  fornecia-os  á  sua  custa.  É  o  mais  antigo  re- 
gulamento que  existe  sobre  o  preço  da  passagem 
de  Inglaterra  para  Erança. 

No  reinado  de  Henrique  III,  o  preço  da  viagem 
era  de  dois  schellings  para  um  cavalleiro  e  doze 
soldos  para  um  peão.  Ricardo  II  fez  uma  lei  que 
impunha  a  todos  os  estrangeiros,  fossem  peregri- 
nos ou  viajantes,  de  embarcarem  e  desembarca- 
rem neste  porto. 

Era  em  Dover  que  em  tempo  de  guerra  se 
juntavam  as  frotas  e  os  exércitos  que  se  deviam 
dirigir  contra  a  Erança.  Em  1189,  o  bravo  Ri- 
cardo I,  cognominado  Coração-de-Leão,  embarcou 
neste  porto,  para  ir  combater  os  infiéis  e  apode- 
rar-se  de  Jerusalém.  Seguiram-n'o  cem  naus  e 
oitenta  galeras,  e  nesse  mesmo  dia  desembarcou 
em  Cravelines.  Eoi  neste  mesmo  porto  que  o  fra- 
co monarcha  João-sem-Terra,  convocou  os  condes, 
barões  e  cavalleiros  do  reino,  e  reunio  todas  as 
suas  forças  de  mar  e  terra  j)ara  se  op|)or  ao  des- 
embarque de  Philippe  Augusto,  que,  segundo  as 
ordens  do  j)apa  Innocencio  III,  se  dispunha  a  in- 
vadir a  Inglaterra. 

Em  1210,  Luiz,  delphim  de  Erança,  desembar- 


362 


O  PANORAMA 


cando  em  Sloiiar,  porto  de  Sandwich,  e  haven- 
do-se  assenhoreado  de  nuiilas  praças  forles,  sitiou 
o  caslello  de  Dover;  mas  não  poude  lomal-o.  No 
reinado  de  Eduardo  I,  uma  grande  parte  da  ci- 
dade, assim  como  muitos  conventos,  foram  iHcen- 
diados  pelos  Francezes.  Ouando  o  imperador  Si- 
gismundo  foi  visitar,  em  lílG,  seu  primo  Henri- 
que V,  o  duque  de  (llocesler,  e  muitos  outros  senlio- 
res,  esj)eraram  no  armados  na  piaia,  atim  de  Ibe 
embargarem  a  entrada  na  cidade,  no  caso  que  el- 
je  mostrasse  intenções  bostis.  Em  lo20,  o  impe- 
lador  Carlos  V  foi  recebido  em  Dover  pelo  rei 
Henrique  VHI,  e  os  dois  soberanos  partiiam  jun- 
tos j)ara  Cantorbery  atim  de  ali  celebrarem  as  fes- 
tas do  Pentecostes.  Henrique,  convencido  da  im- 
portância de  Dover,  que  se  chamava  então  a  cha- 
ve do  reino,  contiibuio  com  oitenta  mil  libras 
sterlinas  para  a  coiistiucção  de  um  molhe  que  se 
concluio  no  tempo  de  Lsabel.  Em  ISli,  o  prín- 
cipe regente,  depois  Joigc  IV,  acompanhou 
Luiz  XVHI  até  Dover,  quando  este  príncipe  foi 
tomar  posse  do  throno  de  seus  pães. 

Do  cume  das  montanhas  (jue,  em  semi-circulo, 
rodeam  a  cidade,  avista-se  ao  longe  o  mar  e  a 
costa  de  França.  Dover  é  uma  cidade  bem  edifi- 
cada ;  encontram-se  ali  construcções  modernas 
muito  elegantes.  Uma  rua,  que  tem  mais  de  uma 
milha  de  extensão  atravessa-a  de  uma  a  outra 
extremidade,  e  as  outras  ruas  são  todas  mui  lim- 
pas, largas  e  ornadas  de  magniíicos  edifícios.  Os 
seus  arrabaldes  são  deliciosos,  e  em  toda  a  ])arte 
enconlram-se  pontos  de  vista  admiráveis. 

No  cume  de  um  rochedo,  como  acima  dissemos, 
da  altura  de  quinhentos  pés,  j)ouco  mais  ou  me- 
nos, vê-se  a  cidadella  chamada  Shakspeare,  que 
domina  a  cidade  e  está  bem  fortificada.  Uma 
parte  das  suas  fortificações  são  de  origem  nor- 
manda;  mas  trabalhos  recentes  altestam  os  receios 
(jue  inspiraram  ao  governo  inglez,  os  preparativos 
(jue  Napoleão  fizera  em  Bolonha,  para  fazer  uma 
visita  a  sua  rival.  Os  viajantes  notam  sempre  com 
interesse  uma  escada  em  espiral  praticada  na  ro- 
cha, pela  qual  se  desce  do  caslello  para  a  cidade. 

Esta  cidadella  em  todos  os  tempos,  por  assim 
dizer,  inexpugnável,  foi  tomada  por  doze  homens 
no  tempo  de  Carlos  I.  Um  ousado  republicano 
chamado  Drake,  escalou  o  rochedo,  e  dirigio  por 
lai  forma  o  seu  ataque,  (jue  a  guarnição  realista 
julgou  ter  um  exercito  em  sua  presença  c  enlre- 
ííou-se  á  discrição. 


ESTUDOS  SOBRE  A  CIDADE  DO  PORTO 
I 

Antiguidade  d'rM(u  cidade 

A  famosa  cidade  do  Porto,  a  segunda  do  nosso 
paiz,  e  uma  das  principaes  entre  as  de  soj^nnda 
ordem  na  t)uropa,  notável  por  muitos  motivos, 
não  é  d';iqncllas,  cuja  origem  se  perde  na  obscu- 
ridade dos  lenjpos,  como  a  de  Lisboa,  Setúbal, 
Marselha,  c  a  de  muitíssimas  outras.  Póde-se 
provar  até  á  evidencia,  que  mesmo  no  tempo 
dos  romanos  o  local,  cm  que  séculos  depois  se 
fundou  esta  cidadCj  não  passava  d'um  terreno 


inculto  e  despovoado,  ou,  quando  muito,  d*uma 
insignificante  povoação  de  pescadores.  Essas  dif- 
ferentes  opiniões  que  remontam  a  origem  desta 
cidade  até  os  tempos  fabulosos,  nem  se  quer 
merecem  a  honra  da  refutação.  A  cidade  do  Por-  ^ 
to,  pátria  do  infante  D.  Henrique,  e  de  Garrett, 
constante  propugnadora  da  liberdade,  assídua 
íntroductora  da  civilísação  cm  o  nosso  paiz,  ad- 
quírio  a  nobreza  por  seus  próprios  feitos,  não 
ha  mister  vangloriar-se  de  genealogias  fabulo- 
sas, (l)  e  de  bom  grado  cede  taes  honras  a  esses 
néscios  presumidos,  que  inhabeis  para  attrahirem 
pelos  méritos  pessoaes  as  attenções  ou  respeitos, 
pretendem  obtcl-os  fazendo-se  passar  para  com 
o  vulgo  ignorante  de  descendentes,  pelo  menos, 
dos  antigos  porlncalcnses,  que  da  nossa  Península 
expulsaram  os  Mouros. 

ííouve  uma  época,  (bem  conhecida  é  ella  pela 
existência  dos  Brítos,  dos  Lousadas,  dos  Cerquei- 
ras  Pintos,  e  de  tantos  outros),  em  que  as  cida- 
des, desprezando  suas  próprias  glorias,  só  aspi- 
ravam á  de  terein  por  seus  fundadores  ura  filho, 
ou,  pelo  menos,  um  neto  de  Noé.  (2)  Tal  época 
passou,  e  nunca  mais  ha  de  voltar;  porque  a 
humanidade,  abrindo  cada  vez  mais  os  olhos, 
ha  de  procurar  uma  gloria  solida,  e  não  fictícia  ; 
inabalável,  e  não  cadente  á  applicação  da  re- 
gra mais  somenos  da  critica.  Podem,  porém,  as 
fabulas  e  patranhas  d'esses  tempos  servirem  aos 
poetas  e  romancistas,  verdade  já  conhecida  no 
tempo  de  Tito  Lívio  ;  e  por  isso  d'ellas  farei  breve 
mensão,  lamentando  ao  mesmo  tempo  que  en- 
genhos, aliás  distinctos,  tivessem  perdido  tão 
inutilmente  seu  tempo :  tão  dilFicil  é  ser  qual- 
quer superior  ás  preoccupações  do  seu  século! 

Uma  d'ellas  attribue  a  fundação  da  cidade  do 
Porto  aos  Gregos  da  província  da  Thracía  c^ue 
habitavam  nas  margens  do  rio  Axio,  aos  quaes 
denominavam  Mydones.  Querem  que  estes  Gregos, 
impellidos  por  uma  furiosa  tempestade,  appor- 
tassem  á  Foz  do  Douro,  e  subindo  por  elle,  ti- 
vessem ido  até  Gaia,  c  d'ahi  passando  para  a 
parte  septemtrional,  nella  fundassem  uma  cidade 
com  o  nome  de  Lavra,  que  com  o  decorrer  dos 
séculos  veio  a  corromper-se  no  de  Porlucale. 

Outros,  achando  ainda  pequena  uma  tal  an- 
tiguidade, escreveram  ler  sido  o  seu  fundador 
Galhello,  filho  de  Neolo,  rei  d'Athenas,  pois 
que,  fugindo  á  crueldade  de  seu  pae,  passara  ao 
Egyplo  no  tempo  de  Moysés,  onde  servira  a  Fa- 
Fió  contra  os  Ethíopes,  c  em  remuneração  de 
seus  serviços,  o  rei  do  Egypto  o  casara  com  uma  fi- 
lha chamada  Escota ;  e  que,  embarcando-sc  sem 
demora  com  cila  na  companhia  d'um  grande  nu- 
mero de  Egypcios,  fora  procurar  novas  aventu- 
ras, e  depois  d'uma  prolongada  navegação  pela 
Costa  d'Africa,  c  pelo  Meidterraneo,  passado  o  Es- 
treito de  Gibraltar,  chegara  ao  sitio,  onde  actual- 


(1)  É  realmente  pasmoso  o  grande  numero  de  obras  gencalos 
gicus,  'lue  se  escreveram  nos  doÍ3  uIUiiioh  seciiUiS  precedeiUe- 
ao  nosso.  A  maioria  d'ellas  existem  Inedjlas:  mas  uma  tiil  falta 
de  pulilicaeuo  de  modo  algum  aire'ta  a  nossa  lilteratura.  Po* 
r.'m  para  iij  ver  a  criliea,  que  nellas  reina,  nmillindo  o  de  mui- 
tas outras,  citarei  o  titulo  do  códice  \\."Ti'ò  da  ISibliotlieca  Pu- 
blica Vui-Miium— iJeclaritruo  i/en('ulo(/ica  nn  </uí'  .sv  prova  qui' 
o  illm."  (1  cxm."  sr.  I.uiz  Pinto  de  Sousa,  inurgado  de  Httlsi-- 
111(10  desvende  dos  imperadores  de  AUcmanlia,  de  CoiislinU inó- 
pia, de  liomu  ele.  eir.  por  813  linhas! —l^nho  noticia  do  muig 
tas  ou,tras   uo  mesmo  tíosto. 

(2;  É  por  isso  com  lasão  que  o  sr.  Alexandre  Herculano  diz 
ironicamente  na  sua  introduecSo  A  Historia  de  I'()rtuffal  :  «A 
(jente  porliKjueza  (ii)iov-sc  inifa  das  mais  aniif/as  do  Universo, 
drsrohrinrlo  o  .seu  heyeo  nos  cimos  do  Arurat,  donde  os  jilkos 
de  No(í  descernm  u  rêporvoa  a  itrra.» 


o  PANORAMA 


363 


menle  está  o  Porto,  e  aqui  fundara  esta  cidade, 
a  que  deu  o  nome  de  Porto  Galhello,  em  memo- 
ria do  seu  nome,  e  aos  habitantes  cliamára  Es- 
cocezes  em  lembrança  de  sua  muHier. 

E  a  terceira  opinião,  que  Diomedes,  (3)  rei  de 
Etholia,  um  dos  principaes  capitães  de  Tróia, 
navegara  pelo  Mediterrâneo  até  sahir  pelas  Co- 
lumnas  de  Hercules  para  o  Oceano,  c,  abordando 
á  foz  do  Douro,  desembarcara  na  parte  septem- 
Irional,  e  ali  depois  de  longa  demora,  lançara 
os  fundamentos  d'uma  povoação,  que  com  o  an- 
dar dos  tempos  se  chamou  iíaia,  e  seus  habi- 
tantes Grajos,  por  descenderem  dos  Gregos,  fun- 
dadores desta  cidade,  e  lambem  por  se  chama- 
rem Grecaníos  seus  ritos  e  costumes. 

Querem  outros  que  Meneláo,  irmão  de  Agam- 
menon,  e  marido  de  Helena,  o  causador  da  des- 
truição de  Tróia,  deslerrando-se  de  sua  pátria, 
passara  do  Mediterrâneo  paia  o  Oceano,  e  nave- 
gando ale  as  alturas  do  Porto,  aqui  fundara  esta 
cidade,  cingindo  a  para  sua  defesa  de  fortes 
miuTilhas. 

na  outros,  que,  afastando  se  inteiramente  des- 
tas opiniões,  S'>guem  a  de  que  a  fundação  desta 
cidade  deve  ser  atlribuida  aosGallos  Celtas,  asse- 
verando lerem  estes  passado  o  Alemtejo  para  a 
Estremadura  na  companhia  dos  Turdelanos,  e 
que,  depois  de  conquistarem  as  províncias  da 
Beira  e  Minho,  levantaram  para  defesa  o  caslello 
de  Gaia,  e  depois,  passando  para  o  norte,  fun- 
daram uma  cidade,  que  chamaram  Portucale. 
Já  se  vc  que  estes  fautores  d'uma  tal  opinião 
não  se  mostram  tão  lidos  em  Yirgilio  e  Homero, 
como  os  antecedentes,  attribuindo  tal  fundação 
aos  tempos  heróicos. 

PondOj  porém,  termo  a  uma  tal  collecção  de 
disparates  basta  só  dizer  que  ha  ainda  quem 
attribua  a  Júlio  César  o  principio  do  Porto,  di- 
zendo terem-se  encontrado  umas  leltras  anti- 
quíssimas na  calhedral  desla  cidade,  que  juntas 
queriam  dixer  Julius.  Ainda  ha  quem  apresente 
por  fundador  a  Noé;  e  também  a  Calais,  lilho 
de  Boreas,  rei  de  Thracia,  argonauta,  que  tinha 
fundado  muitas  cidades  em  diversos  lugares,  de- 
pois do  decantado  vellocinio  d'ouro  da  ilha  de 
Colchos ;  e  que  era  de  toda  probabilidade  ser  o 
nome  Gaia  derivado  de  Calais  pela  semelhança, 
que  os  nomes  tinham  entre  si. 

Eis  as  opiniões,  que  em  diversos  tempos  appa- 
receram  a  respeito  da  fundação  desta  cidade : 
quasi  todas  ridículas,  e  abaixo  da  critica. 

Existiria  porém  esta  cidade,  ou  mesmo  povoa- 
ção pequena  em  tempos  remotos?  Não:  porque 
delia  não  fazem  menção  nem,  ainda  mesmo  de- 
baixo de  qualquer  outro  nome,  nem  Ptolomeo, 
nem  Strabon,  nem  Pomponio,  nem  Plínio,  nem 
Deão  Cassio.  E  também  não  em  tempo  dos  im- 
peradores, porque  fazendo  se  em  ditíerentes  épo- 
cas divisões  administrativas  na  Hespanha,  ('*)  e 
devendo  a  cidade  do  Porto  ficar  incluída  cm 
alguma  d'ellas,  em  nenhuma  apparecc  mencio- 

(3)  Todas  estas  opiniões  vêem  mencionadas  pelo  padre  Agosti- 
nho Rebello  da  Costa  na  sna  ot)ra  — Descripeão  da  cidade  do 
Porto— impressa  no  Porto  em    1789. 

('•)  Estas  divisões  foram  Ires.  A  primeira  depois  da  segunda 
guerra  Púnica,  sendo  expulsos  da  Hespanha  os  Cartiiaginezes, 
sendo  então  dividida  cm  Citerior  o  Ulterior.  A  segunda  no  tem- 
po de  Júlio  Llesar  imperador,  em  três  províncias,  Betica,  Tarra- 
conense  e  Lusitânia.  A  terceira  em  tempo  de  Constantino  em 
seis,  Betica,,  Lusitânia,  Galliza,  Tarraconense,  Carlhaginenso  e 
Tingitana.  É  duvidoso  se  por  esta  occasião  ainda  teve  por  sé- 
tima província  as  Baleares.  V.  António  Pereira  de  Figueiredo 
no  vol.  9.0  das  Memorias  da  Academia. 


nada,  ao  passo  que  se  falia  do  rio  Durius,  que  a 
banha. 

Temos  ainda  outra  prova  no  Itinerário  de  An- 
tonino. Nesta  obra  descrevendo-se  a  via  militar  áe 
Lisboa  a  Braga,  al>  Olisipone  aã  Bracharam  Au- 
giistam,  mcdein-se  do  modo  seguinte  as  distan- 
cias de  varias  povoações  do  nosso  paiz  n'aquelle 
tempo  : 

.Terabrícam  (Alemquer)  M.  P.  XXX 

Scalabin  (Santarém)  M.  P.  XXXIl 

Cellium  (Ceice)  M.  P.  XXXÍII 

Conímbricam  (Condeixa  Velha)  M.  P.  XXXIV 

Cnunium  (Águeda)  M.  P.  XL 

Talabricam  (Aveiro)  (rj)  M.  P.  X 

Lancobricam  (Feira)  M.  P.  XVHl 

Cale  (Gaia)  M.  P.  XÍII 

Bracharam  (Braga)  M.  P.  XXXV 

E  nem  palavra  de  povoação  alguma,  que  esti- 
vesse situada  no  lugar,  em  que  hoje  vemos  a 
cidade  do  Porto,  approximadamente  no  anuo  160 
de  Christo,  em  que  se  diz  ler  sido  escrípto  este 
itenerario. 

Por  conseguinte  nem  em  epochas  anteriores, 
nem  em  tempo  dos  Romanos  existio  povoação 
no  sitio  do  actual  Porto.  Havia  então  uma  po- 
voação chamada  Cale,  mas  no  lado  opposto,  no 
sitio  a  que  hoje  se  dá  o  nome  de  Caslello  de 
Gaia,  (6)  e  talvez  também  pela  sua  encosta  e 
margem  do  rio.  (7) 

Esta  povoação  chegou  a  ser  importante  por 
causa  do  grande  numero  de  embarcações,  que  a 
demandavam  para  transacções  commerciaes,  e 
d'aqui  lhe  proveio  o  nome  de  Porlus  Cale  (Porto 
de  Cale),  que  mais  tarde  se  converteu  no  de 
Portucale,  Portugale,  e  Portugal,  nome  que  tam- 
bém passou  para  a  diocese,  e  mais  tarde  para  um 
território  mais  amplo  do  que  a  diocese.  (8)  Visto  ser 
uma  povoação  importante  havia  misterde  fortifica- 
ções para  resistir  a  qualquer  invasão  dos  povos  que 
a  demandavam,  e  teve  as  cora  effeito,  pois  se  acha 
nos  antigos  escriptores  Portucnle  caslrum  anti- 
quam, e  d'ella  nos  faz  menção  Idacío,  pelos  an- 
nos  de  457,  459,  e  461  depois  de  Chrísto. 

Eis  agora  o  que  nos  diz  D.  Fr.  Francisco  de 
S.  Luiz  a  respeito  do  começo  do  actual  Porto  : 

«Era  natural  que  na  margem  opposta  do  rio, 
ao  norte  d'elle,  se  fosse  pouco  a  pouco  estabe- 
lecendo, (como  em  semelhantes  circumstancias 
costuma  acontecer),  outra  igual  povoação,  tanto 
para  commodidade  dos  povos,  que  habitavam 
uma  e  outra  margem,  como  para  facilidade  do 
trato  commercíal  e  marítimo  com  as  terras,  que 
ficavam  mais  ao  interior  das  províncias,  que  o 
rio  separjiva  e  demarcava.  Neste  lugar,  e  no 
mais  alto  dcUe  se  fundou  também  caslello  para 
defesa,  segundo  a  pratica  d'aquelles  tempos.  E, 
como  pelo  decurso  dos  annos  crescesse  c  prospe- 

(õ)  Na  edição  desto  Itinerário  por  wesseling  (Amsterdão,  1735; 
voe™  marcadas  as  distancias  do  seguinte  modo : 
Eminio  M.   P.  X 

Talabrica  M.   P.  XL 

(6;  Nem  vestígios  existem  presentemente  deste  castello  e  po- 
voação antiga,  tiuo  mais  tardo  teve  a  honra  do  dar  o.  nome  a 
todo  o  paiz.  Ficava  fronteira  á  parte  da  cidade  chamada  hoje 
MassaroUos. 

(7)  A  existência  de  Calo  (hojo  Guia)  fronteira  á  cidade  do  Porto 
no  tempo  dos  Bomanos  ó  aie  reconiiecida  em  uma  inscripção 
achada  em  Roma  Sepulchral*  de  um  llespanhol  que  se  diz  casado 
com  Claudia  Lupa  Cnlen^e.  J.  P.  Ribeiro.  Reflexões  históricas. 
Part.   1."  pag.  IG. 

(8)  V.  Fr.  Frauciáco  de  S.  Luiz  no  vol.  12  das  Memorias  da 
Academia. 


864 


O  PANORAMA 


rasse  mais  esta  povoação,  foi  ella  tomando,  e 
ficou  conservando  quasi  exclusivamente^  a  deno- 
minação de  Porlus  Gale,  designando-se  nos  anti- 
gos documentos  ora  com  esle  simples  nome,  ora 
com  o  de  Caslrum  Porlucale ;  ora  com  o  de  locus 
roríHcaJe,  e  chamando-se  talvez  caslrum  novum 
para  diíTerença  do  outro  Porlucale,  que  se  dizia 
Cíislrum  aniiquum.  (9) 

ICsle  mesmo  lugar  conlinuou  a  crescer  cm  po- 
voação, c  chegou  a  ter  igreja  calliedral,  c  bispo^ 
de  sorte  que  já  no  Concilio  III  Toleiíliiio,  cele- 
brado no  anno  de  589,  anuo  4."  do  Hei  Uecare- 
do,  se  nomea  Porlucalense,  lanfo  o  bispo  calho- 
iico  Constâncio,  que  a  elle  assistio^  como  o  bispo 
Aiano,  intruso  por  Leovigildo,  que  ahi  abjinou 
a  heresia.  K  d'ahi  em  diante  nos  concílios  Tolc- 
tanos,  no  Bracarense  provincial  111,  e  em  outros 
escriptos  se  acham  frequentes  subscripções,  ou 
memorias,  dos  bispos  portucalenses,  assim  deno- 
minados da  cidade  capital,  que  deu  o  nome  á 
Sé,  e  da  qual  se  estendeu  (como  era  pratica)  a 
toda  a  diocese,  que  lambem  se  chamou  Porluga- 
lense.n 

O  sr.  Alexandre  Herculano  inclina-se  a  crer 
que  esta  cidade  começou  a  ser  habitada,  quando 
as  conquistas  dos  chrislàos  se  dilataram  até  o 
Douro.  (10) 

Seguio-se  uma  longa  serie  de  annos,  mas  a 
historia  tem  de  ficar  muda  por  falta  de  docu- 
mentos; sabe  se  apenas  o  nome  de  alguns  bispos 
do  Porto,  que  assistiram  nos  concílios  celebrados 
pelos  Godos. 

Chegou  a  época,  em  que  a  Península  tinha  de 
ser  invadida  pelos  Árabes  chamados  pelo  conde 
Julião,  e  dirigidos  por  Miiza.  «Os  Godos  linham 
perdido  a<}uella  energia  militar,  que  os  tinha 
feito  Ião  terríveis,  quando  eram  povo  conquis- 
tador. Tinha-se  ella  já  enervado,  desde  que  a 
velha  espada  gothica  se  tinha  submeltido  ao  bá- 
culo episcopal,  c  sobre  tudo  desde  que  se  tinham 
entregado  aos  gosos  c  deleites  da  vida  molle  e 
deUcada.))(ll)  Na  batalha  deGuadalele  (12)  íicou 
completamente  destruído  o  poder  Ghrisluo,  e 
tudo  ficou  sugeilo  ao  dominio  sarraceno,  que 
não  foi  tão  oppressor,  como  os  christãos  quize- 
ram  fazer  acreditar,  sendo  os  Mouros  tolerantes 
e  generosos  para  com  os  vencidos,  permitlindo 
até  que  estes  seguissem  a  religião  Christã  e  ti- 
vessem templos.  O  Porto  teve  também  de  suc- 
cumbir,  e  com  eííeilo  cahio  em  poder  dos  ven- 
cedores no  anno  716,  conquistado  pelo  general 
Árabe  Abdelaziz.  Alguns  annos  depois  ioi  a  ci- 
dade libertada  por  D.  Aífonso  I,  rei  das  Aus- 
Irias,  (13)  porém  o  receio  de  que  cila  fosse  de 
novo  invadida,  fez  com  que  a  despovoa.sse  de 
christãos,  icvando-os  para  o  interior  do  reino. 
Tornou  a  ser  povoada  por  Affonso  III,  e  debaixo 


(9)  É  inútil  (liztT  que  destes  lompos  quasi  nada  resta  no  Porto. 
A  maior  antiguidade  desta  cidade  6  a  igreja  de  Cedofcila,  niíi.s 
esta  ficava  a  distancia  ilo  Torto  anti(,'o.  Inclino-nic  a  crer  (jiie 
csUi  igreja  é  anterior  ao  dominio  dos  Mouros,  embora  o  sr. 
A.  Herculano  n'nma  carta  dirigida  ao  conde  de  llaczynski  siga 
opinião  contraria.  Aquella  arcliitectnra  não  parece  de  cpoca 
IKislerior.  Algumas  jjaredes  da  S6  daUini  de  tempos  próximos 
ao  condo  D.  Henrique.  Eis  o  que  esta  cidade  oUercce  de  uiaior 
antiguidade.  A  rc-speílo  do  demolido  Arco  do  Vendoma  [Vcmio- 
me)  fallarei  atjiante. 

(10)  Ha  «piem  diga  que  os  (Jiristáos  levantaram  um  castello 
no  lugar,  em  que  lnje  se  eleva  a  calliedral,  para  se  deícndc- 
rern  Contra  as  Toicas  de  Atlafxs,  ret  dos  Alanos,  que  os  (jueria 
despojar  |do  seus  estados. 

(11)  i,aluent«.  Historia  dK.«pagna.  vol.  2.°  pag.  'iC8. 

(12)  Actualmente  Xtrtg  dit  lu  Fronlcra. 

(Vi)  João  Tedro  Hibeiro.    Dissertação   liistorico  jurídica  pag.  9. 


do  governo  de  seus  successores  se  conservou  até 
o  anno  de  987,  tendo  neste  intervallo  seis  bispos, 
pelo  menos  titulares. 

Por  este  tempo  era  a  nova  povoação  chamada 
Portugal  ião  insignificante,  que  D.  Ordonho  II  de 
Leão  na  doação,  que  fez  no  anno  de  922  ao  bis- 
po de  Coimbra  D.  Gomado,  e  ao  seu  Mosteiro  de 
Cresluma  lhe  dá  o  titulo  de  villa,  titulo,  que  pe- 
la mesma  occasião  dava  a  Lever,  Arnellas,  Ovar 
e  Paradella,  (14) 

De  novo  tornou  o  Porto  a  cahir  debaixo  do  jugo 
sarraceno.  Almançor  então  regente  do  reino  do 
Córdova  por  Alcova,  viuva  de  Alken  II,  de  quem 
era  mordomo,  na  menoridade  de  lleschen  1!  li- 
nha invadido  os  estados  do  rei  de  Leão  nos  an- 
nos 97o,  976  e  seguintes  e  n'um  delles  (parece 
que  em  987)  se  apoderou  do  Porto,  (lo) 

Diz  o  illustre  João  Pedro  Ribeiro  «que  a  cidade 
não  se  conservou  por  muito  tempo  em  poder 
dos  Sarracenos,  por  quanto  os  filhos  do  conde 
D.  Gonçalo  Moniz  passando  a  Gasconha  ahi  aprom- 
ptaram  uma  armada,  com  que  entraram  nas 
aguas  do  Douro,  e  reconquistaram  o  território. 
Este  facto  é  por  uns  attribuido  á  Era  1U;)7  (anno 
999)  por  outros  á  Era  de  lOtiO  (anuo  de  1022). 
Nesta  armada  se  aífirma  terem  vindo  Noncgo  e 
Sesnando ;  dizendo-se  este  ser  filho  do  mesmo 
D.  Gonçalo  Moniz,  succedendo  um  ao  outro  na 
Prelasia  do  Porto.  O  primeiro,  a  que  lambem 
dão  o  nome  de  ínigo,  assigna  em  uma  escriptu- 
ra,  Ennegus  Portugalensis  sedis  Episcopus,  na 
Era  1063  (anno  192o.) o  (1(5) 

Na  historia  antiga  do  Porto  é  a  entrada  dos 
Cascões  um  dos  successos  mais  notáveis,  mas 
que  infelizmente  não  ptjde  ser  bem  comprehen- 
dido  por  falta  de  documentos  authenticos  que  o 
confirmem. 

Da  rua  Chã  para  o  Largo  da  Sé  passava- se  por 
debaixo  d'um  arco  de  época  remota,  conhecido 
pelo  nome  de  Arco  da  Vandonia,  cuja  tundacão 
era  atlribuida  a  estes  Cascões.  (17)  Foi  demolido 
cm  ISoo:  iguúio  com  que  íim,  mas  não  o  posso 
allribuir  a  outro,  senão  ao  furor  que  se  apossou 
da  geração  actual,  o  de  demolir  tudo  que  apre- 
sente vestígios  d'anliguidade. 

Mostrei  pois,  fundado  em  escriptores  verídicos, 
que  o   Porto  actual  não  existia  como  cidade  no 

(l'i)    íd.    id. 

(l.õ)   Id.   i.l. 

(IG)   Id.   pag.   10. 

(17)  No  alto  do  Arco  da  Vandoma  havia  uma  cap'lhi,  na 
ípial  estava  uma  imagem  da  Senhora,  conhecida  pur  unia  tal 
invocação,  (pie  donutava  a  maior  antiguidarlc.  Km  18ó5,  por 
occí^sião  da  demolição  do  arco,  foi  esta  imagem  lovaila  para 
uina  dns  caiipellas  ílo  claustro  da  Sé,  onde  se  llio  estabeleceu 
nma  confraria  com  o  fim  de  fazer  annu;dniente  uma  festivida- 
de a  esta  imagem.  No  ucto  fie  se  remover  a  imagem  do  altar, 
fjndc  esteve  ])or  tantos  icculos,  eneontrou-se  uma  ambnla,  da 
qual  passo  a  fazer  descripcão,  segundo  as  inlbrmaçõ;'S  dadas 
pelo  sr.  Ileiíriípje  Cherubim"  Lngóa,  palcogruplio  da  Misericór- 
dia do  1'oito,  e  pessoa  amante  das  no.s.sas  antiguidades  nacio- 
iiaes,  e  (luo  a  possuo  actualmente.  "Ksla  anibula  ú  pouco  maior 
do  tamanho  d'un)a  noz  grande:  segundo  parece  é  feiti  de  pao 
de  j>croira  :  divíde-so  ao  meio  por  uma  rosca:  dentro  contém 
um  vaso  de  chumbo  :  esto  divide-se  em  dois  rojiartinicntos:  o 
primeiro  o  superior  contém  dentro  uma  matéria  esponjosa,  da 
qual  rescendc  ainda  um  aroma  agradável:  no  r(!parliniento  in- 
ferior e  mais  iicípunio  vèem-so  adlieridas  ás  paiedes  internas 
paiticulns  de  saiiva.  Parece  ser  uma  ambula  de  bispo.  Sobre 
a  face  inferior  vé-se  dentro  d'um  circulo,  symbolo  heráldico  da 
igreja,  uma  águia  im])erial  do  duas  cabeças,  susiiensa  no  ar,  e 
com  as  garras  abertas ;  no  campo  do  csciido  ovado  se  notam 
.•linda  restos  d'ouro." 

Na  opinião  do  possuidor  desta  antigiialha,  é  ella  um  monu- 
mento heráldico,  e  a  íiguia  de  duas  cabeças  significa  a  reunião 
de  dois  impérios  o  do  Oriente  o  o  do  t}ccidenle,  couíiuistado 
por  (íarlos  Magno  ;  o  que  eiilâo  conlituiria  o  selJo  das  aullio- 
riilades  ecclcsiasticis  francezas. 

Este  arco  da  Vandoma  era  no  tempo  da  sua  fundação  uma 
das  iiortas  da  i>equenis3Íma  cidade  duijuelle  tempo. 


o  PANORAMA 


365 


(empo  dos  Romanos ;  que  no  século  Y,  em  tem- 
po dos  Suevos,  começam  os  escriplorcs  a  men- 
cional-a  como  povoação  d"alguma  imporlancia; 
resla,  porém,  ver  se  é  possível  esclareciM-  aliífuiiia. 


cousa  esta  entrada  dos  Gascões  no  Porto,  entra- 
da toda  envolvida  em  trevas,  e  que  será  o  as- 
sumpto do  seguinte  artigo. 

Manoel  Beunaudes  Branco. 


o  folguedo  dos  camponeses  (Quadro  de  Van-OsLade) 


Adriano  Van  Oslade,  pintor  da  escola  hollan- 
deza,  foi  um  dos  artistas  que  mais  se  distingui- 
ram na  representação  liei  de  scenas  da  vida  com- 
mum.  Em  todas  as  suasproducções  se  encontra  a 
par  de  um  colorido  soberbo,  a  íirmesa  do  dese- 
nho, graça  e,  sobretudo,  muita  verdade. 

A  nossa  gravura  é  copia  de  um  (piadro  mui  es- 
timado deste  artista,  que  existe  na  galeria  nacio- 
nal de  Londres.  Representa  três  velhos  campone- 
zes  assentados  em  torno  de  uma  mesa,  contentes, 
alegres,  um  fumando,  outro  bebendo  c  o  terceiro 
tocando.  «Um  cuidadoso  exame  deste  quadro  obri- 
gará o  expeclador  a  confessar  (|ue  a  exj)ressão  das 
Ires  figuras  é  admii'avcl :  a  viva  e  expansiva  sa- 
tisfação do  homem  da  saúde  contiasla  excclienle- 
meníe  com  a  complacência  silenciosa  do  homem 
do  cachimbo,  e  ao  mesmo  tempo  parece  produzir 


no  locador  uma  grande  dose  de  satisfação,  que 
se  manifesta  através  de  uma  seiia  gravidade  ar- 
tística. Além  desta  notável  expressão  das  íiguras, 
ha  lambem  que  admirar  neste  (juadro  a  bem  com- 
binada disposição  do  claro-cscuro  e  a  extrema  li- 
delidade  da  perspectiva.  O  estylo  da  execução  é 
acuradamenie  aperfeiçoado,  e  isento  de  superlluos 
c  desnecessários  accessorios.» 


A  TORRE  DE  LONDRES 

(Conclusão) 

í-ord  Russell,  condemnado  como  cúmplice  do 
Monliiiouth,  e  que  os  próprios  juizes  não  julga- 
vam criminoso,  escoliíera  para  advogado  sua  mu- 
lher, poKjue,  dizia  eile,  reunia  aos  conhecimentos 
de  um  homem  a  terna  aíTeição  de  uma  esposa ; 


366 


O  PANORAMA 


quando  desta  se  separou,  ura  pouco  anles  de  su- 
bir ao  cadafalso,  disse  a  Burnet,  que  lhe  assistio 
nos  ullinios  momentos:  «Eis  passada  a  afflicção 
da  morle  I» 

O  conde  d'Essex,  preso  também  por  esla  cons- 
piração, achando-se  por  obra  cruel  do  acaso  no 
mesmo  quarto  donde  seu  pae  fora  conduzido  ao 
suj)plicio,  eondelordiNorthumberland,  avô  de  sua 
mulher,  se  suicidara,  senlio  uma  tão  forte  im- 
pressão que  se  degolou  com  uma  navalha  de  bar- 
ba. Era  este  o  mesmo  Arthur  (]ue,  muilo  novo 
ainda,  mostrara  uma  coragem  tão  notável  no  cer- 
co de  Glocesler,  em  I60I. 

A  ultima  execução  que  teve  lugar  n'aquelle  edi- 
fício, legado  com  o  sangue  de  tantas  victimas, 
foi  em  1717,  quando  cortaram  a  cabeça  a  lord 
Lovat  por  ter  conspirado  a  favor  da  familia  exi- 
lada ;  os  seus  cúmplices,  lords  Kilmarnock  e  Bal- 
merino,  tinham  perecido  no  anno  precedente; 
desta  época  em  diante  a  torre  tem  servido  para 
vários  usos,  não  deixando,  comtudo,  do  ter  sido 
sempre  a  prisão  destinada  para  os  criminosos  de 
alta  traição. 

Depois  de  rapidamente  lermos  tocado  nos  prin- 
cipaes  pontos  históricos  deste  notável  edifício,  pas- 
semos a  sua  descripção. 

O  terreno  occupado  por  esla  immensa  conslruc- 
ção,  os  edifícios  exterioixs  e  um  certo  espaço  que 
o  rodeia,  forma  um  districlo  particular,  chamado 
— immunidades  da  torre.  A  jurisdicção  e  privilé- 
gios deste  districlo  são  independentes  da  cidade 
de  Londres;  mas,  os  seus  limites  e  a  natureza 
dos  seus  diíeilos,  lêem  sido  uma  origem  continua 
de  discussões,  intermináveis  talvez,  porque  a  ques- 
tão não  parece  ainda  bem  esclarecida.  Uni  cons- 
(able,  cujas  funcçGcs  são  tão  antigas  como  a  tor- 
re, governa  a  praça  ;  gosa  de  privilégios  e  de 
consideráveis  emolumentos  e  recompensas  de  ser- 
viços importantes,  talvez  arrancados  pela  ambi- 
ção dos  governadores  á  fraqueza  dos  reis  no  meio 
das  agitações. 

Existe  uma  lisla  aulhenlica  de  cenlo  e  dezoito 
constables,  desde  (ieoíTrey  de  Mandeville,  o  pri- 
meiro de  todos  em  106G,  até  o  duque  de  Wellin- 
gton. Encontram-se  entre  elles,  homens  da  mais 
elevada  jerarchia.  A  guarnição  desta  fortaleza  é 
sempre  grande.  As  foiiiíicações  foram  reparadas 
no  fim  do  século  passado,  pelo  receio  mal  funda- 
do de  uma  subleNação;  tomaram-se  logo  todas  as 
precauções  para  loi'nar  inúteis  as  tentativas  que 
o  espirito  buliçoso  d'aquelle  tempo  podesse  fazer 
presentir. 

As  muralhas  cercam  um  espaço  de  perlo  de 
o,2G0723  hectares;  o  fosso  que  as  rodeia,  cujo 
aspecto  é  o  dtí  um  pentágono  irregular,  tem  .W 
metros  de  largura  em  alguns  silios ;  está  separa- 
do do  Tamisa  por  um  cães  ou  |)lalaforma.  Do  la- 
do do  meio  dia,  estão  as  bocas  de  fogo,  que  cos- 
tumam salvar  nos  dias  de  festa.  A  entrada  principal 
e  defendida  por  duas  torres  bem  conslruidas.  Ou- 
lr'ora  antes  da  ponte  tinha  uma  barbacan  ;  mas 
hoje  não  existe  vestígios  alguns  d'ella. 

iNo  centro  da  fachada  do  meio  dia  está  a  torre 


de  S.  Thomaz,  chamada  a  porta  dos  traidores, 
por  causa  d'uma  passagem  de  abobada  que  com- 
munica  com  o  rio  o  por  onde  se  introduziam  os 
prisioneiros.  Esla  porta  está  bem  conservada  c 
olTerece  um  modelo  da  archileLÍura  do  tempo  de 
Henrique  IH  ;  mas  hoje  não  se  faz  uso  d'ella  ;  col- 
locou-se  ali  uma  machina  hydraulica  para  serviço 
da  guarnição. 

A  torre  branca,  o  principal  edifício,  c  quadran- 
gular, e  conta  cento  e  sessenta  pés  de  compri- 
mento sobre  noventa  de  altura  ;  está  collocada  no 
centro  de  todas  as  outras  construcções.  Dos  lados 
do  norle  e  suduesle  vêem-se  torres  quadradas, 
que  se  elevam  a  grande  altura  ;  a  que  está  no  an- 
gulo do  nordeste  é  circular  e  contém  a  escada 
principal ;  o  lado  opposto  leiraina  em  um  gran- 
de semi-circulo.  Neste  angulo  ha  lambem  uma 
torre  para  corresponder  ás  outras  Ires :  estas  qua- 
tro torres  dão  á  cidadella  um  caracter  particular. 
O  seu  nome  deriva  do  uso  em  que  se  eslava  de 
embranquecel-a  de  tempos  a  tempos ;  o  que  é 
provado  por  um  documento  muito  curioso  do 
anno  1241,  escripto  em  latim,  que  contem  vários 
regulamentos  sobre  as  reparações  da  torre.  Tem 
Ires  andares ;  mas  o  tempo  e  as  successivas  mu- 
danças lêem  feito  quasi  desapparecer  lodos  os  ves- 
tígios da  primitiva  architectura.  As  muralhas  não 
lêem  menos  de  quinze  pésdeespessura  na  sua  base, 
e  doze  nos  andares  superiores ;  cada  um  dos  an- 
dares está  dividido  em  Ires  aposentos;  Ires  sub- 
terrâneos abobadados,  que  nada  leera  de  notável, 
servem  de  armazéns.  O  mais  pequeno  aposento  a 
rez  do  chão,  é  de  abobada;  é  muilo  simples,  mas 
curioso  pela  sua  antiguidade.  Uma  porta  occulla 
dá  entrada  para  um  quarto  escuro,  construído  na 
parede,  de  dez  pés  de  comprido,  sobre  oito  de 
largo.  Dizem  que  este  quarlo  foi  occupado  por 
Waller  llaleigh,  e  que  foi  ahi  que  elle  escreveu 
a  sua  historia  do  mundo.  Não  ha  duvida  que  sér- 
vio de  prisão.  Dislinguem-se  ainda  em  um  dos 
lados  da  poria  varias  inscripções  traçadas  por 
Ires  individues  presos  como  cúmplices  da  revolta 
de  sir  Thomas  Wyatl  em  1553.  Os  andares  infe- 
riores servem  de  arsenal.  Existem  ahi  uma  gran- 
de collecção  de  armaduras  de  diíTerenles  séculos 
e  outras  curiosidades  mililares. 

A  capella  real  dedicada  a  S.  João,  o  Evangelis- 
ta, é  no  primeiro  andar;  uma  das  suas  naves  en- 
tra pela  muralha  e  estendese  de  norte  para  sul, 
rodeada  pelo  semi-circulo  de  que  atraz  falíamos. 
As  paredes  da  capella  foram  inteiramente  cober- 
tas de  gesso,  o  que  faz  com  que  se  não  veja  o 
primeiro  trabalho ;  mas  axaminaram-n'a  com 
muito  cuidado,  e  tiraram  o  gesso  em  vários  silios. 
O  trabalho  é  solido,  bem  executado,  e  o  monu- 
mento olíerece  no  seu  todo  um  magnifico  resto 
d'arcliiteclura  normanda.  Ignora-se  a  época  pre- 
cisa em  que  o  capellão,  estabelecido  por  llenri- 
(jue  III,  cessou  as  suas  funcçõcs;  mas,  c  certo 
que  no  reinado  de  Carlos  II  uma  parte  dos  archi- 
vos  estava,  como  hoje,  neste  lugar.  Dois  quartos 
do  segundo  andar  merecem  ser  notados ;  o  maior 
denomina-se  salla  do  conselho ;  suppõe-se  que  ali 


o  PANORAMA 


36T 


tinham  lugar  as  sessões  quando  o  rei  habitava  na 
torre.  Tudo  aqui  apresenta  signaes  de  antiguida- 
de, que  estão  perfeitamente  em  relação  com  o  res- 
to do  ediíicio.  A  maior  torrinha  sérvio  de  obser- 
vatório até  a  construcçãodo  de  Greenwich.  No  an- 
gulo de  nordeste  do  pateo  interior  está  situada  a 
capella  de  S.  Pedro,  que  foi  construída  no  tem- 
po de  Eduardo  I,  sobre  as  ruinas  de  uma  anli- 
quissima  capella. 

Havia  oulr'ora  por  detraz  desta  capella  um  pe- 
queno eremitério  a  miude  mencionado  nas  memo- 
rias do  tempo  de  Henrique  III ;  o  eremita  rece- 
bia um  penny  por  dia  da  munilicencia  real. 

No  lado  do  sul  da  torre  branca  encontram-se 
juntas  as  armaduras  dos  reis  e  cavalleiros  ingle- 
zes,  entre  as  quaes  se  distinguem  as  de  Henri- 
que YIII,  Carlos  I,  conde  Essex,  etc.  O  arsenal 
da  rainha  Isabel  é  um  ediíicio  que  se  acha  na 
frente  da  torre  branca.  Vêem-se  ainda  os  restos 
de  treze  torres,  que  serviam  para  defender  o  pa- 
teo interior,  em  uma  das.  quaes  se  suppõe  que 
leve  lugar  o  assassínio  dos  príncipes  Eduardo  V 
e  duque  de  York. 


FRANCISCO  PIZARRO 

(Continuação) 

IV 

No  meio  d'csse  bando  de  ignóbeis  aventureiros, 
que  arvoraram  a  bandeira  hespanhola  na  America 
do  Sul,  alguns  dignos  gentis  homens  havia  que 
ainda  conservavam  no  fundo  d'alma  brios  e  pun- 
donor. Distinguiam-se  entre  elles  Fernando  Pi- 
zarrOj  filho  legitimo  do  fidalgo  de  quem  era  o 
nosso  heróe  bastardo,  e  Fernando  Soto,  valente 
official,  costumado  a  militar  nas  fileiras  heróicas 
dos  soldados  do  Grão-Capitão.  Esses  dois  tinham 
sido  desviados  por  Francisco  Pizarro,  que  sabia 
não  os  poder  ter  por  cúmplices  no  acto  nefando 
que  praticava.  Por  isso,  assim  que  resolveu  sup- 
pliciar  o  inca,  en\iou  seu  irmão  para  a  Europa, 
e  mandou  Fernando  Soto  governar  Caxamalca. 
Apesar  d'isso  alguns  outros  oíTiciaes  indignados 
protestaram  contra  uma  violação  tão  atroz  do 
direito  das  gentes  c  ainda  que  esses  protestos 
foram  vãos,,  comtudo  bastaram,  como  diz  acer- 
tadamente Robertson,  to  saie  their  country  fromthe 
infamy  of  having  perpelraíed  such  a  crime.  (1) 

Entretanto  Pizarro^  indifferente  aos  clamores 
dos  seus  companheiros  e  á  voz  da  sua  própria 
consciência,  tentava  emendar  o  erro,  que  o  seu 
'orgulho  oíTendido  o  impelhra  a  praticar,  e,  cin- 
gindo com  o  diadema  dos  incas  a  fronte  d'uma 
criança  filha  de  Atahualpa,  julgou  ter  assim  ad- 
quirido um  instrumento  dócil  dos  seus  projectos. 
Mas  os  Peruvianos  não  acceitaram  o  autómato  c 
proclamaram  para  seu  soberano  Manco  Capac 
irmão  de  Hucscar.  Demais  estes  acontecimentos 
extraordinários  tinham  completamente  dcsorga- 
nisado  edesmoralisado  o  império,  e  umaanarchia 
hor  "ivel  reinava  por  toda  a  parte,  lím  cada  pro- 
vi:  ia  um  regulo  se  levantava^  e  o  governador 
de  Quito,  depois  de  ter  assassinado  o  irmão  e  os 
filhos  de  Atahualpa,  proclamava  a  independência 
do  antigo  reino  de  Quilo,  fundido,  como  dissemos, 
havia  pouco  tempo,  na  vasta  unidade  do  império 
peruviano. 

(1)  Para  livrar  o  seu  paiz  da  infâmia  de  ler  praticado  tal  crime. 


Desenvolvc-se  agora  de  novo  a  energia  e  a  au- 
dácia do  caracter  múltiplo  de  Pizarro.  Sem  perda 
de  tempo  avançou  para  Guzco.  É  verdade  que 
não  precisou  de  mostrar  a  mesma  intrepidez 
temerária,  porque,  além  de  saber  já  o  caso  que 
devia  fazer  dos  exércitos  indígenas,  a  noticia  das 
riquezas  do  Peru  trouxera-lhe  ás  fileiras  tão  grande 
reforço,  que,  depois  de  guarnecer  o  forte  de  S. 
Miguel  com  um  destacamento  numeroso  collocado 
ás  ordens  de  Benalcazar,  pôde  ainda  romper  a 
marcha  com  um  exercito  de  quinhentos  homens, 
verdadeiro  exercito  de  Xerxes  para  quem  estava 
habituado  a  dispor  apenas  d'um  punhado  de 
soldados. 

As  batalhas,  em  que  destroçou  as  forças  indí- 
genas que  tentavam  oppôr-se  á  sua  marcha,  nem 
merecem  narrar-se.  Quatro  ou  cinco  hespanhoes 
mortos  e  outros  tantos  feridos  eram  o  preço  habitual 
porque  elle  comprava  o  desbarate  completo,  e  a 
mortandade  immensa  dos  peruvianos.  Depois  de 
vencer  estes  frágeis  obstáculos,  entrou  socegada- 
mente  em  Cuzco,  onde  encontrou  riquezas  que 
lhe  saciariam  amplamente  a  cobiça,  se  essa  pai- 
xão ignóbil  fosse,  n'aquelle  caracter  ardente, 
susceptível  de  ser  saciada. 

Entretanto  Benalcazar  não  ficava  ocioso  na  sua 
guarnição  de  S.  Miguel.  Reforçado  por  um  novo 
bando  de  aventureiros,  que  Veio  do  Panamá, 
pôde  deixar  na  cidadella  um  destacamento  suf- 
ficiente,  e  marchar  com  o  resto  das  suas  tropas 
contra  a  cidade  de  Quito.  Obstáculos  maiores 
tinha  elle  a  vencer  do  que  o  seu  chefe,  não  só 
os  que  lho  oíferecia  o  terreno  agreste  e  panta- 
noso do  norte  do  império,  como  lambem  os  que 
lhe  eram  oppostos  pelo  rebelde  governador,  ge- 
neral mais  habil  do  que  os  seus  compatriotas,  e 
que  dispunha  das  melhores  tropas  do  Peru.  Tudo 
o  hespanhol  superou,  porque  era  oíficial  enérgico 
e  valente,  e  entrou  victorioso  em  Quito.  Comtudo 
ali  o  esperava  um  grande  desapontamento.  Co- 
nhecedores já  da  insaciável  cobiça  dos  hespa- 
nhoes, os  peruvianos  haviam  imaginado  logral- 
03,  e,  fugindo,  tinham  levado  comsigo  todos  os 
seus  thezouros. 

Um  novo  acontecimento  veio  surprehender  Be- 
nalcazar. O  governador  de  Guatemala,  Pedro  de 
Alvarada,  allegando  que  o  reino  de  Quito  não 
entrava  na  jurisdicção  de  Pizarro,  invadira-o  pelo 
norte,  e  superara  também  com  as  suas  tropas 
terríveis  obstáculos,  affrontára  igualmente  peri- 
gos e  intempéries.  Soube  Pizarro  do  acontecido, 
e  enviou  contra  elle  Almagro.  Começavam  os 
cães  a  rosnar  em  torno  do  osso.  Comtudo  desta 
vez  limitaram-sc  a  mostrar  os  dentes.  Benalcazar 
juntou-se  a  Almagro,  e,  ou  porque  Alvarado  jul- 
gasse que  não  podia  oppor-se  com  as  suas  tropas 
fatigadas  aos  dois  corpos  inimigos  (inimigos  já!) 
ou  porque  cedesse  aos  conselhos  de  pessoas  pru- 
dentes, consentio  em  retirar-se,  recebendo  como 
indemnisação  a  quantia  de  cem  mil  pesos. 

Mas  a  discórdia  fermentava  por  toda  a  parte, 
a  velha  inimisade,  que  o  procedimento  de  Pizarro 
cm  Hcspanha  originara  entre  elle  c  Almagro, 
adormecida  durante  algum  tempo  pela  necessi- 
dade de  debellar  o  inimigo  commum,  recomeçava 
a  accender-se.  Fernando  Pizari-o  fora,  como  dis- 
semos, enviado  á  Hcspanha,  e  as  immensas  ri- 
quezas, de  que  era  portador  e  que  deviam  entrar 
no  thesouro  régio,  asseguraram-lhe  um  acoini- 
mento  distinctissimo.  Carlos  V,  sem  ser  Danaé,  re- 


368 


O  PANORAMA 


cebia  com  o  seu  mais  amável  sorriso,  o  Jiipiler  que 
lhe  desabava  da  America,  envolto  n'uma  cluna 
d"oiro.  Todas  as  honras  e  recompensas  pedidas 
Uie  foram  dadas,  tanto  mais  quanto  a  generosi- 
dade nesse  ponto  nada  custava  a  Sua  iMagcstade 
Imperial.  Confirmou  Pizarro  em  todas  as  suas 
dignidades  e  privilégios,  c  concedeu-lhe  jurisdic- 
cão  sobre  mais  setenta  léguas  para  o  sul.  Se 
Pizarro  lh"o  pedisse,  seria  capaz  de  lhe  conceder 
até  jurisdicção  sobre  a  lua.  Almagro  não  foi 
desta  vez  olvidado,  e  teve  um  governo,  de  duzen- 
tas léguas  também  para  o  sul  da  do  seu  com- 
panheiro.  Chegaram  ao  Peru  uns  vagos  rumo- 
res deste  caso,  e  logo  Almagro,  dizendo  que 
entrava  Cuzco  nos  limites  do  seu  novo  governo, 
pretendeu  apoderar-se  delle.  João  e  Gonçalo  Pi- 
zarro oppozeram-se  a  isso,  e  a  queslião  ia  sendo 
cortada  pelo  gume  das  espadas,  quando  Fr.tn- 
cisco  appareceu,  e  teve  artes  de  se  reconciliar 
com  Almagro,  com  a  condição  deste  cmprehen- 
der  a  conquista  do  Chili,  devendo  ser  indcmnisado 
com  uma  porção  do  Peru,  se  fosse  infeliz  na 
empreza. 

Ainda  neste  período  de  socego.  que  precedia 
a  tempestade,  se  nos  revela,  como  um  lampejo  de 
céo  azul  entre  duas  nuvens,  uma  das  grandes 
qualidades  de  Pizarro.  Administrador  por  ins- 
tincto,  como  por  inslincto  era  general  e  diplo- 
mata, o  nosso  heróe  divide  a  sua  conquista  era 
vários  districtos,  nomeia  governadores,  estabelece 
um  corpo  judicial,  organisa  o  trabalbo  das  minas, 
promulga  decretos  sobre  o  modo  como  os  índios 
devem  ser  tratados,  e  como  se  devem  lançar  e 
arrecadar  os  tributos,  funda  Lima  no  delicioso 
valle  de  Rimac,  e  nessa  nova  capital  edifica  para 
si  um  magnifico  palácio,  em  torno  do  (jual  os 
seus  opulentíssimos  oíficiaes,  erguendo  casas  de 
raagestosa  apparencia,  fazem  logo  da  cidadinha 
nascente  uma  Génova  aniínicana. 

Era  necessário  também  dar  alimento  á  activi- 
dade inquieta  dos  seus  companheiros,  decididos 
todos  a  juntarem  em  pouco  tempo  fabulosas 
riquezas.  Pai-a  isso  Pizarro  consenlio  que  os  seus 
subalternos  se  dispersassem  para  tomarem  posse 
das  varias  províncias  do  impei'io,  e  d'essa  forma 
dispersou  as  suas  tropas  por  tão  vasto  paiz.  Pa- 
gou caro  essa  imprudência.  Manco  Capac,  vendo 
o  descuido  dos  seus  oppressores,  arvorou  o  es- 
tandarte da  revolta^  e  assassinando  quantos  hes- 
panhoes  isolados  encontrava,  marchou  com  um 
exercito  de  duzentos  mil  homens  contra  Cuzco  on- 
de estavam  os  três  irmãos  do  governador,  João, 
Gonçalo  e  Fernando  (que  voltara  havia  pouco  de 
Hespanha  á  lesta  de  cento  e  setenta  iiomens.) 
Ao  mesmo  tempo  um  coipo  considerável  cercava 
Lima,  onde  estava  em  pessoa  Francisco  Pizarro. 

Em  Cuzco  desenvolveram  os  Peruvianos  toda  a 
energia  de  que  eram  capazes,  (jombatcndo  de- 
baixo dos  olhos  do  seíi  inca,  faziam  prodígios  de 
valor  temerário,  e  aíírontavam  a  morte  com  de- 
sespero. Mas  o  valor  e  a  disciplina  hes|)anhola 
triumphavam  seM)pre,  apesar  das  desastiadas  imi- 
tações que  os  l'eriiviunos  faziam  do  seu  modo 
de  combater,  e  das  suas  tentativas  para  usa- 
rem lambem  das  armas  dos  seus  inimigos.  Isso 
de  nada  lhes  sérvio;  só  o  seu  prodigioscj  numero 
d'alguma  cousa  pôde  valer,  porque,  apesar  da 
heróica  defesa  dos  Ires  Pizarros,  Manco  Capac 
tomou  posse  de  metade  da  sua  capital. 

Foi  então  que  appareceu  Almagro  dianlc  das 


muralhas  de  Cuzco.  Almagro,  que  no  Chili  en- 
contrara uma  nação  cem  vezes  mais  bellicosa 
do  que  os  Peruvianos,  a  nação  araucana,  que 
sustentara  contra  elles  rudes  combates,  e  que  as 
novas  da  insurreição  do  Peru  haviam  feito  retro- 
gradar, mais  talvez  na  esperança  de  se  aprovei- 
tar dos  despojos  dos  seus  companheiros,  do  que 
de  os  soccorrer  n^aiiuelle  grande  perigo. 

Isso  mesmo  presenlirani  os  três  irmãos.  Caso 
singular  que  pinta  melhor  do  que  tudo  quanto 
se  podesse  dizer  a  Índole  d'esses  aventureiros  e 
o  caracter  dessa  con([uista.  Um  punhado  de  Eu- 
ropeus estão  em  paiz  mimigo  a  milhares  de  lé- 
guas da  sua  pátria,  cercados  por  um  exercito  in- 
numeravel.  Reduzidos  á  ultima  extremidade  vêem 
aiiparecer  no  horisonle  um  destacamento  dos 
seus  compatriotas,  e,  em  vez  de  darem  graças  ao 
céo,  de  se  al(>grarem,  de  tirarem  as  portas  da 
fortaleza,  como  os  nossos  defensores  de  Dio  quan- 
do D.  João  de  Castro  ap])arece  com  o  promet- 
lido  soccorro,  em  vez  de  se  entregarem  a  essas 
demonstrações  tão  naturaes  de  regosijo,  prepa- 
ram-se  em  silencio  para  um  novo  e  mais  terrí- 
vel combale,  e  julgaiil  a  cada  instante  ver  as  fi- 
leiras dos  índios  engrossadas  com  os  seus  recem- 
cliegados  compatriotas. 

Aliuagro,  pela  sua  parte,  avançava  lentamente, 
calculando  os  prós  e  os  contras  das  dilferenles 
resoluções  que  podia  tomar.  Os  Índios  tomaram 
afinal  a  iniciativa.  Sabedores  das  discórdias  que 
lavravam  entre  os  seus  vencedores  tinham  que- 
rido aproveital-as  e  tinham  feito  diversas  pro- 
postas a  Almagro,  que  sempre  as  repellira.  Afi- 
nal tentaram  uma  noite  surprehendel-o.  Almagro 
vio-se  na  necessidade  de  se  pôr  em  defesa,  e 
destroçou  o  exercito  peruviano  fazendo-lhe  im- 
mensa  mortandade.  Desta  forma  achou-se  Cuzco 
descercada. 

Mas  os  Pizarros  tinham  fugido  de  Scylla  e  caldo 
cm  Charybdes.  Almagro,  homem  generoso  e  af- 
favel,  tinha  sympathias  na  guarnição  de  Cuzco, 
desgostada  com  a  altivez  rude  do  seu  chefe.  Uma 
noite  as  senlinellas  da  cidade  deram-lhe  entrada, 
uma  parle  das  forças  defensoras  pronunciou-se 
a  seu  favor,  a  outra  parte  leve  de  ceder,  Fer- 
nando e  Gonçalo  Pizarro  (João  morrera  durante 
o  cerco)  1'oi'am  presos,  e  Almagro  reconhecido 
governador  de  Cuzco,  cidade  que  cUe,  mais  do 
que  luuica,  á  vista  dos  documentos  que  ultima- 
mente recebera  d'Iíespanha,  dizia  estar  situada 
dentro  dos  limites  da  sua  jurisdicção. 

(Conlinua) 


0  .ontigo  edilor  do  Panorama,  tli'scjaiido  piopcrcionar  aos 
uctunes  sfs.  assignantcs,  <!  mesmo  u  iiiiaus(|uer  outras  jicssoas  qiio 
o  não  sojaii),  a  iiianoira  de  podcroiii  ))ussiiir,  som  grande  sacrili- 
cio  a  cnileiM-.ào  completa  dcsto  inturcsiantc  jornal,j|no  conta  liojo 
•i5  voliimÓM  imliliciulos,  deliberou;  para  esse  lini,  abrir  nova 
assignatnra,  não  alterando  o  jirero  que  levo  a  anli;;a,  sendo  o 
cnsto  do  cada  volume  broxado  l;'00"réis,  e  encadernado  lOOd  réis, 
isto  unicamente  para  aqiKilIcs  que  se  inscreverem  como  assignan- 
tes.  As  jicssoas  <]ue  assignarem  para  c^ta  oiira  receberão  um  ou 
mais  volumes  cada  me/,  conlVirmi!  mellior  lhes  convier,  sendo  o 
iu]|)orle  dos  mesmos  )iago  no  acto  da  entrega.  lias  qno  lenham  a 
colleccão  do  l*aititi-niiia  incompleta,  imdem  da  mesma  forma 
assignar  ]i:ira  o.s  v(/Iumícs  que  lhes  íaltarem,  bem  como  para 
qualquiT  ininjeri)  que  Ibes  fallar. 

\H  aKNÍKxatiiraM  fa^ciii-NM  iiom  me;:iiiii(cN  lorucM  i 
Rua  Áurea  n."  1.)^'  e  i:;i;  ua  redacção  do  Panouama,  nui  do  Thesouro 
Vidlio  n."  (í:  e  cm  todas  as  mais"  livrarias. 

l':m  liroga,  l'orlo,  Coindira  e  Vianna,  em  todas  as  jivrarias. 

Í)e  (piaesMuer  outras  terras  <lo  nuno  poilem  dirigir-so,  em  carta 
franca,  com  o  imporle  da  assignatura  cm  valles  do  correio,  ao 
anligo  edit<ir,  rua  Áurea  u."  \:V2.  accrcsco  ao  preço  da  assi- 
griatura,  o  porle  do  correio  que  é  do  250  para  os  volum  ps  em 
broxura  e  :)lo  réis  para  os  encadernados. 


Typ.  Franco-Porlugueza,  Hua  do  Thesouro  Vulho,  G. 


47 


o  PANORAMA 


369 


o  Atmeidan 


O  Atmeidan  é  uma  praça  de  Constantinopla, 
outi''ora  o  hippodiorao,  e que  nos  tempos  modernos 
tem  sido  por  varias  vezes  Iheatro  de  desordens  e 
motins  populares.  Em  1808,  por  occasião  da  re- 
volta dos  janisaros,  ali  esteve  por  alguns  dias 
pendurado  pelos  pés,  em  uma  arvore,  o  cadáver 
do  infeliz  Beiraktar,  que,  vendo-se  prestes  a  cair 
nas  mãos  dos  insurgentes,  lizera  voar  em  estilha- 
ços o  edifício  onde  habitava.  Mais  tarde,  em  1826, 
foi  nesta  mesma  praça  que  deu  o  ultimo  suspiro 
uma  grande  parte  d'essa  orgulhosa  e  altiva  mili- 
cia,  que,  novamente,  se  sublevara,  e  cuja  dissolu- 
ção fora  pronunciada  pelo  sultão  Mahmud  II.  A 
praça  conta  apenas  oitocentos  e  cincoenla  melros 
decomprimento  e  cento  c  sessenta  de  largura;  e 
o  seu  aspecto  é  pouco  agradável ;  poríjue  se  de 
um  lado  se  eleva  elegante  e  magestosa  a  grande 
mesquita  de  Acbmet,  e  um  magnilico  e  bem  cons- 
truído hospital,  do  outro,  por  um  contraste  sin- 
gular,   só  mostra  pobres  e  arruinados  edilicios. 

Antes  da  entrada  dos  cruzados  em  Constantino- 
pla, o  Atmeidan  continha  um  grande  numero  de 
estatuas  de  pedra  c  de  bronze,  entre  as  quaes  so- 
bresaiam  algumas  de  grande  merecimento  artísti- 


co ;  mas,  com  o  andar  dos  tempos  ecom  as  sue- 
cessivas  refoimas  dos  diversos  conquistadores,  foe 
ram  dcsapparecendo  todas  essas  obras  de  arte,  , 
hoje  apenas  ali  se  vêem  o  pilar  de  Constantino- 
porphyrogeneto,  quasi  todo  de  mármore,  o  obe- 
lisco de  Theodosio,  e,  entre  estes  dois  monumen- 
tos, uma  pequena  columna,  que  dizem  ser  um 
resto  da  tripode  de  Delphos. 

Nos  tempos  antigos,  cada  uma  destas  enormes 
massas  de  i)edra  tinha  a  sua  applicação.  O  pilar 
de  Constantino  marcava  a  extremidade  da  liça 
nas  corridas  dos  carros;  o  obelisco  de  Theo- 
dosio indicava  o  centro  do  estádio.  O  trabalho 
deste  ultimo  e  admirável  e  rivalisa  com  o  quo 
se  tem  encontrado  de  mais  primoroso  nesses  res- 
tos da  antiga  esculptura. 


A  GALATÉA  MODERNA 
XI 

Sem  (Ítalo 

De  noite,  quando  a  callada  profundamente  mys- 
tica  dá  á  terra  o  caracter  e  a  serenidade  de  um 
grande  templo,  cujos  lampadários  são  os  cardu- 


370 


O  PANORAMA 


mes  de  estrellas,  que  sulcam  a  amplidão,  se  re- 
ceios e  esperanças  andam  em  lucla  travada  em 
um  coração  juvenil,  não  julgueis,  ó  bealificos  sa- 
cerdole  da  matéria,  que  o  trovador  de  antigas  eras 
podia  encerrar-seno  seu  quarto  de  cama,  enterrar  o 
clássico  bonnct  de  alr/odão,  c  refocillar,  como  um 
bemaveniurado,  em  fofo  leito  ! 

Um  namorado  de  hoje  tem  as  horas  contadas. 
Carece  de  dormir  um  certo  praso  de  tempo.  Logo 
que  sòe  a  hora  falidica.  capaz  é  clle,  o  desalma- 
do, de  se  desenlaçar  do  seio  da  donzellinha gentil, 
para  se  entregar  nos  braços  do  velho  Morpheu. 

Raça  degenerada  é  esta  que  só  tem  incensos  e 
jicrfumes  para  a  deusa  matéria. 

Dizem  que  o  mundo  caminha  1  No  dominio  do 
sentimento  digo  eu  que  não.  Estamos  por  um 
pouco  no  materialismo  romano  o  qual,  se  perdeu 
em  sumptuosidade  c  intensidade,  ganhou  em  ex- 
tensão. 

A  cathedra  curul  temol-a  na  cadeira  humilde 
dos  parlauientos,  que  governam  o  mundo,  e  o  so- 
phá  desengraçado  e  giboso,  está  a  mil  léguas  do 
Iriclinio  de  ouro  e  marfim,  sobre  o  qual  os  lasci- 
vos romanos  se  deitavam  depois  do  festim,  con- 
fundindo a  orgia  do  phalerno  com  a  orgia  de  Vé- 
nus. 

Hoje,  um  namorado,  contempla  com  mais  vo- 
luptuosidade  os  rolos  de  fumo  do  seu  habano,  do 
que  os  rolos  postiços  do  cabello  da  sua  amada. 

As  espiraes  ondeantes  e  tenuemente  azuladas 
de  um  cachimbo  turco  convidam  mais  o  mancebo 
de  vinte  annos  do  que  as  curvas  fugidias  e  gra- 
ciosas de  uma  formosa,  cujo  corpo  se  requebra 
em  donaires  tingidos.  O  modo  de  trazer  a  badine 
com  primor  requer  muito  mais  cuidados,  do  que 
agradar  a  uma  elegante,  que  Ioda  cila  se  es- 
tá enlevando  em  umas  luvas  que  lhe  fazem  a 
mão  si/mpathica.  Um  collarinho  relezado  e  apru- 
mo, que  dè  um  certo  ar  de  graveza  e  meditação 
em  Irauscendencias  politicas,  mal  pcrmitte  uma  po- 
sição cheia  de  melancolias  amorosas. 

Hoje,  que  a  philosophia  anda  desgrenhada  pe- 
las ruas  e  os  mesmos  poetas  cantam  mythos 
de  civilisações  extinctas,  de  aspirações  para 
um  ideal  incomprchensivel,  o  qual  se  traduz  ás 
vezes  nas  trovas  pojiulares  de  um  fcuidanyo  an- 
daluz ou  nos  ossos  de  um  maslhodonle  junto  às 
pyramides  do  Egypto ;  hoje,  que  todos  estudam  a 
politica  aos  quinze  annos  e  já  ninguém  lè  roman- 
ces senão  philosophicos ;  hoje,  que  a  sombra  imit- 
ia de  Spinoza  é  invocada  pelos  rapazes  até  nos 
seus  devaneios  amorosos  ;  hoje,  emlim,  que  o  cul- 
to do  cu,  puramente  subjectivo,  derriba  dos  alta- 
les  todas  as  licções,  que  traziam  o  mundo  atre- 
lado, só  por  excepção  se  encontra  um  jjobre  Al- 
fredo enamorado,  animal  quasi  cxtincto,  ridículo 
como  I).  Quixote,  estuj)ido  como  Uomeo,  idiota 
como  Werlher,  porque,  louvado  Deus,  nós  pomos 
a  par  com  o  heroe  da  Mancha  os  vultos  dos  dois 
enamorados,  qu(!  morreram  polo  amori  Para  nós 
não  ha  diílerença  entre  Dulciíiêa  dei  Tuboso,  e 
Julieta  ou  Carlota  I 

Aonde  param  os  suaves  amores  da  idade  me- 


dia! Aonde  os  torneios,  as  cavalhadas  em  que  as 
damas  eram  o  symbolo  sympalhico  do  amor  e  da 
valentia?  Ouem  ousa  cantar  ainda,  senão  alguns 
poetas  desalmados,  esses  refrãos  apaixonados,  que 
os  trovadores  cantavam  ás  suas  bellas?  Aonde  a 
janellinha  escusa  com  as  suas  columnatas  gothi- 
cas,  por  entre  cujos  tlorões  saía  uma  formosa  c 
delicada  mãosinha,  que  agitava  um  lenço  borda- 
do a  ouro  para  o  trovador  enamorado,  que  tan- 
gia, sob  as  copas  das  iarangeiras  em  flor,  a 
sua  harpa?  Aonde  estes  encantamentos  de  Armi- 
da?  É  que  os  jardins  de  Armida  transformaram- 
se  nos  bosques  da  Cythera,  e  por  desgraça  nossa, 
tão  rareados  estão  estes  bosques,  (pie  nos  enver- 
gonhamos de  lá  entrar ! 

Não  se  admirem,  comludo,  os  leitores.  Alfredo  é 
um  trovador  da  idade-media.  O  seu  coração  vir- 
gem de  emoções  bate-lhe  ancioso  e  fervido,  aque- 
cido pelo  fogo  do  primeiro  amor.  Por  isso,  como 
havia  clle  de  dormir?  Como  havia  de  obedecer 
ás  leis  iniquas  e  tyrannicas  de  um  barrete  de  al- 
godão ? 

Era  por  uma  noite  de  primavera,  Ioda  perfumes 
e  fragrâncias,  toda  poesia  e  ílores. 

A  lua,  a  casta  confidente  dos  amores,  não  bri- 
lhava no  céo.  Verdade  é  que  Alfredo  saia  do  seu 
quarto,  não  para  fazer  confidencias,  senão  para 
espairecer  e  dar  largas  a  esse  embevecimento,  a 
esse  peso  immenso,  que  acurva  os  amantes  e  os 
obriga  a  evocar  do  nada  mil  illusões  hybridas  e 
phanlasticas,  com  que  se  prazem  de  povoar  os 
seus  sonhos. 

Era  tudo  silencio  em  torno.  Só  de  quando  em 
quando  se  ouvia  ao  longe  o  quebrar  das  ondas 
na  praia  e  o  murmúrio  lamentoso  do  vento  nas 
ramadas. 

Alfredo,  criança  como  os  namorados,  assen- 
lou-se  em  um  banco  de  pedra,  junto  a  um  pe- 
queno repudio,  que  refrescava  o  solitário  jardim. 
Como  trovador  que  era,  todo  entregue  ás  delicias 
do  primeiro  amor,  cravai  a  os  olhos  na  janella  do 
quarto  de  Violante,  e  começara  de  scismar  tão  pro- 
fundamente, que  não  attendera  nas  horas,  que  cor- 
riam rápidas. 

Pobre  rapaz ! 

Ouem  podo  compreliender  hoje  esse  sonhar 
acordado,  por  horas  mortas  da  noite,  cm  uma  al- 
deia perdida  nas  serras,  quando  se  pôde  apanhar 
uma  boa  pneumonia  ! 

Ah  !  Ouixotes  da  niiniralma,  que  não  ha  Cer- 
vantes (jue  vos  matem  de  vez  I 

De  rejientc... 

Ahi  vae  já  o  leitor  imaginar  alguma  entrevista 
dos  nossos  dois  heroes,  sob  as  copas  dos  laianjaes. 

Engana-se... 

De  repente  surgio,  como  por  encanto,  do  meio 
da  espessura,  um  anão,  que  saltava  e  pulava  co- 
mo um  possesso,  e  agitava  os  braços,  dando  uma 
gargalhada  desentoada. 

Alfredo  acordou  súbito  do  seu  scismar. 

Parecia-lhe  sair  de  um  sonho  para  cair  n'outro. 

—  Eh!  eh!  meu  senhor!  Fresca  vae  a  noite  e 
boa  para  namorados. 


o  PANORAMA 


371 


—  Quem  és?  interrompeu  Alfredo,  erguendo-se 
e  approximando-se  do  anão. 

—  Quem  sou  ?  Pergunte  ao  rio  como  se  chama 
que  verá  como  clle  responde.  O  rio  corre  para  o 
mar,  que  é  esse  o  seu  destino.  As  vezes  geme  jun- 
cto  aos  salgueiros;  outras  vezes  topa  um  rochedo, 
e  despcnha-stí  furioso ;  mas  o  mar  lá  o  espera.  Eu 
cá  sou  como  o  rio,  e  vou  correndo  para  a  morte. 
Canto  ás  vezes,  outras  choro,  danço  e  pulo,  mas 
nem  por  isso  hei  de  escapar  á  morte. 

—  Quem  és?  responde. 

—  Chamam-me  por  ahi  innocenle,  porque  tenho 
mais  malicia  do  que  elles. 

—  O  que  vens  aqui  fazer?  , 

—  Eu  venho  colher  a  rosa 
Mais  linda  deste  rosal. 
Ninguém  das  rosas  se  fie 
Que  picando  fazem  mal. 
Pois  a  rosa  orvalha,  chora 
Prantos,  que  d'ella  não  são. 
Triste  de  quem  a  namora 
Que  triste  só  elle  geme; 

E  a  rosa  não  chora,  não, 
Que  quem  não  ama  não  teme. 

E  o  innocente  continuou  a  saltar  e  a  pular,  fa- 
zendo esgares  em  volta  de  Alfredo,  que  cada  vez 
estava  mais  enleiado. 

—  Quem  és?  O  que  vens  aqui  fazer?  Tornou 
Alfredo,  ameaçando  o  innocente. 

Este,  como  se  nada  ouvisse,  entranhou-se  pelo 
rosal,  erepelio,  cantando  com  voz  tremula  e  des- 
afinada : 

—  Eu  venho  colher  a  rosa 
Mais  linda  desle  rosal. 
Ninguém  das  rosas  se  fie 
Que  picando,  fazem  mal. 
Pois  a  rosa  orvalha,  chora 
Prantos,  que  d'e!Ia  não  são. 
Triste  de  quem  a  namora 
Que  triste  só  elle  geme ; 

E  a  rosa  não  chora,  não, 
Que  quem  não  ama  não  leme. 

Alfredo,  vendo  que  não  podia  perseguir  o  in- 
nocente, e  lendo  acordado  dos  seus  sonhos  de 
amor,  dispunha-se  a  entrar  em  casa,  quando  o  seu 
interlocutor  lhe  embargou  o  passo  e  lomou-lha  e 
mão  que  beijou. 

—  Que  queres? 

—  Uma  esmola. 

E  o  innocente  deitou  a  correr,  ao  tempo  que 
ia  cantando : 

Ail  triste  de  quem  namora 
Uma  rosinha  em  botão 
Que  só  elle,  o  triste  chora, 
E  a  rosa  não  chora,  não. 
Tristezas  trazem  amores. 
Ai!  triste  de  quem  namora! 

A  voz  perdeu-se,  emíim,  aolonge,  e  Alfredo  en- 
trou em  casa. 

A.  O.  DE  Vasconcellos. 

(Contiuaa.) 


A  Morte,  segundo  os  selvagens,  é  uma  donzella 
extremamente  formosa,  a  quem  não  falia  senão  o 
coração.  Cuateaidriand. 


PIZARRO 

(Conclusão) 

Estava  lançada  a  luva,  c  ao  espectáculo  das 
crueldades  commeltidas  pelos  hcspanhoes  sobre  os 
povos  conquistados  iasucccder  o  espectáculo  ain- 
da mais  vergonhoso  da  disputa  sanguinolenta 
entre  irmãos  na  presença  do  inimigo  com  muni. 
Se  esse  inimigo  fosse  hábil  e  destemido  os  auda- 
ciosos conquistadores  perdiam  o  fructo  das  suas 
precedentes  victorias,  e  nem  um  só  d'entre  elles 
voltava  á Europa  a  dar  noticia  do  desastre;  mas, 
em  vez  de  se  aproveitarem  dos  ódios  que  ar- 
mavam uns  contra  os  outros  os  filhos  da  mesma 
pátria,  os  índios  viram-n'os  dilacerarem-sc  mutua- 
mente, não  fizeram  um  movimento,  e  contenta- 
ram-se  em  observar  as  peripécias  da  lucla,  como 
podiam  contemplar  o  combate  de  dois  tigres.  Pi- 
zarro dispersara  os  Índios  que  cercavam  Lima,  e, 
sabendo  das  pretenções  d'Almagro,  enviou  con- 
tra elle  Affonso  d'Alvarado  á  testa  de  quinhentos 
homens.  Saío-lhe  Alraagro  ao  caminho,  procurou 
ganhal-o  com  as  suas  doutrinas,  não  o  conse- 
guindo, formou  os  seus  em  ordem  de  batalha  e 
derrotou  completamente  o  inimigo. 

Se  aproveita  a  victoria,  estava  a  lucta  decidida  a 
seu  favor.  Mas  um  escrúpulo,  ridículo  na  situação 
extrema  em  que  se  collocara,  impedio-o  de  invadir 
a  provincia,  que  el-rei  concedera  ao  seu  rival.  A  re- 
volução, que  fizera,  tinha  só  por  fim  tomar  posse  de 
Cuzco  que  entrava,  sem  a  miníma  duvida,  na  por- 
ção de  território  que  lhe  fora  arbitrado.  Vingado 
d'essa  injustiça,  limilavam-se  a  isso  as  suas  pre- 
tenções. Almagro  não  sabia  que  a  pessoa  que  en- 
tra na  senda  ardente  da  revolta,  não  p()de  de- 
pois recuar,  nem  parar  mesmo.  Uma  vontade 
estranha  se  apodera  d'elle  e  o  ímpelle  na  direcção 
que  lhe  convém. 

Entretanto  Pizarro  não  desaproveitava,  como  o 
seu  rival,  o  tempo  que  tão  necessário  lhe  era  pa- 
ra receber  reforços  por  mar,  para  pôr  de  novo 
em  pé  de  guerra  um  exercito  que  podessc  debcl- 
lar  o  seu  contendor.  Recorreu  para  isso  ã  astú- 
cia, e  cousa  notável,  Almagro  tantas  vezes  logra- 
do por  elle,  ainda  d'esta  vez  se  deixou  lograr! 
Protrahiram-se  por  mezes  as  negociações  que  Pi- 
zarro propoz  como  um  caminho  para  á  reconcilia- 
ção. J\o  fim  d'esse  tempo  eram  rompidas  o  mais 
sem-ceremonia  possível,  e  Pizarro,  á  testa  d'um  lu- 
zido exercito,  marchava  contra  Almagro,  derrota- 
va-o,  tomava  Cuzco  e  augmenlava  a  sua  riqueza 
e  as  dos  seus  companheiros  com  os  despojos  dos 
vencidos,  despojos  que  elles  tinham  arrancado  aos 
pobres  índios,  e  que  pelos  seus  próprios  compa- 
triotas lhes  eram  arrancados. 

Sem  atlender  á  antiga  amizade  que  os  unia, 
ao  préstimo  e  aos  serviços  d'Alraagro,  a  quem 
elle  na  ultima  batalha  fizera  prisioneiro,  Pizar- 
ro mandou-o  julgar  por  um  tribunal  composto 
das  suas  criaturas,  condemnar  á  morto  e  exe- 
cutar. Era  assim  que  esse  monstro  pagava  o  au- 
xilio poderosíssimo  que  Almagro  lhe  prestara,  era 
assim  que  elle,  em  nome  da  pátria  e  do  rei  de 
quem  era  representante,  recompensava  os  heroes 
que  tinham  descoberto  e  conquistado  o  Peru !  A 
taça  das  iras  do  Senhor  ía-se  enchendo,  o  dia  do 
castigo  devia  estar  próximo. 

Mas  Deus  dementava  o  homem  que  queria 
perder,  Pizarro  não  percebia  que  aquelle  sangue 
derramado  viria  a  resaltar-lhe  á  cara,  e  que,  des- 


372 


O  PANORAMA 


presando  as  ordens  regias,  desprestigiando  a  au- 
thoridade  emanada  da  metrópole,  desprestigiava- 
se  a  si  mesmo,  e  dava  aos  seus  subordinados  um 
funesto  exemplo  que  elles  um  dia  saberiam  apro- 
veitar. 

V 

Tantas  dissenções,  tantas  crueldades,  actos  por 
tal  forma  arbitrários  tinham  emfim  chamado  a 
attenção  da  corte  de  Madrid.  Carlos  V  julgou 
afinal  que  era  da  sua  dignidade  intervir  n'essas 
questões  que  dcshonravam  o  nome  hespanhol,  e 
davam  bem  fraca  idéa  da  auctoridade  do  seu 
soberano.  Os  horrores  commellidos  por  Pizarro, 
a  sua  perfídia,  o  seu  intolerável  despotismo  e  o 
modo  como  ultimamente  condemnára  d  morte 
Almagro,  seu  collcga  no  commando  da  expedi- 
ção, e  seu  igual  ou  quasi  seu  igual  no  governo 
dos  paizes  da  America  do  sul,  tudo  isto  contraba- 
lançou suílicientemente  os  grandes  serviços  por 
elle' prestados,  e  os  ministros  do  imperador,  sum- 
mamente  irritados,  não  hesitaram  em  mandar 
carregar  de  ferros  Fernando  Pizarro  que  de  novo 
se  achava  em  Hespanha.  O  homem  de  bem,  que, 
seguindo  o  impulso  da  politica  de  seu  irmão  e 
chefe,  procurava  sempre  comtudo  abrandar-lhe 
a  ferocidade  e  altenuar-lhe  o  despotismo,  expia- 
va as  maculas  do  nome  que  elle  tentara  conser- 
var illibado.  Ou  punam  ou  recompensem,  uma 
cegueira  fatal  impellio  sempre  os  reis  a  deixarem 
cair  o  premio  ou  a  espada  do  castigo  sobre  as 
cabeças  que  o  não  merecem,  emquanto  os  verda- 
deiros aulcores  das  acções  gloriosas  e  infames, 
ficam  escondidos  na  sombra  ou  passeiam  alegre- 
mente a  sua  impunidade  á  vista  das  suas  vicli- 
mas. 

Assim,  n'este  caso,  tendo  sido  nomeado  para 
ir  syndicar  no  Peru  um  sujeito  d'alta  capacidade 
chamado  Vaca  de  Castro,  levou  este  nas  suas  ins- 
trucções  a  ordem  de  tratar  com  o  máximo  respei- 
to o  governador,  e  de  ter  por  elle  a  maior  con- 
sideração. Seria  em  attenção  aos  serviços  immen- 
sos  prestados  pelo  criminoso  ?Não,  porque  a  maior 
prova  de  que  já  estavam  esses  serviços  olvidados, 
era  o  facto  de  ser  mcttido  n'uma  enxovia,  onde 
permaneceu  vinte  annos,  o  próprio  irmão  do 
descobridor  e  conquistador  do  Peru.  O  verdadei- 
ro motivo  era  o  receio  que  o  poder  de  Pizarro 
inspirava  ao  governo,  a  necessidade  de  não  irri- 
tar um  homem  contra  quem  não  se  podia  en- 
viar uma  expedição,  e  que  dispunha  d'um  corpo 
de  destemidos  aventureiros. 

Entretanto  Pizarro  continuava,  como  que  im- 
pelhdo  pela  mão  de  Deus,  a  accumular  erros  so- 
bre erros,  incbriando-se  com  o  triumpho,  cn- 
tregava-se  a  todas  as  mãs  paixões  que  lhe  refcr 
viam  no  espirito,  e  olvidava  a  politica  astuciosa, 
pérfida  mesmo,  mas  hábil  emfím,  a  que  devera 
até  ahi  a  sua  constante  superioi idade.  Saboreava 
a  plenos  tragos  a  vingança,  esse  vinho  dos  deu- 
ses, sem  pensar  que  amargas  fezes  encontram 
os  simples  mortacs  no  fundo  d'cssa  taça  embria- 
gadora. 

Em  vez  de  conciliar  o  aíferto  d(js  seguidores  de 
Almagro,  entrcgou-sc  ao  prazer  de  os  calcar  aos 
pés,  c  provocou  d'essa  forma  descontentamentos 
que  tinham  de  se  traduzir  debaixo  diima  forma 
fatal  para  o  imprudente.  Na  divisão  das  terras  do 
Peru,  a  que  procedeu,  tratou  o  mais  favorável 
mente  possível  os  seus  partidários,  c  olvidou  ou 
fez  mesquinhas  concessOes  aos  seus  inimigos.  Po- 


litica absurda,  que  Pizarro  decerto  não  teria  ado- 
ptado, se  a  fortuna,  como  sempre  acontece,  não 
o  desvairasse  cora  a  protecção  constante  que  lhe 
dava. 

A  insurreição  dos  índios  dissipara-sc  como  por 
encanto,  e  d'essc  lado  nada  tinha  que  temer  o  ce- 
lebre conquistador.  IMuitos  hespanhoes,  levados 
pelo  amor  das  aventuras  que  a  descoberta  e  a 
conquista  de  dois  paizes  tão  opulentos  como  o 
Peru  e  o  México  haviam  accendido  em  todos  os 
cspiritos,  penetraram  no  interior  das  terras  e  es- 
tenderam para  todos  os  lados  o  dominio  das  ar- 
mas hcspanholas.  De  lodos  esses  aventureiros  os 
mais  celebres  foram  Pedro  de  Valdivia,  que  en- 
trou no  Chili,  onde  já  Almagro  penetrara,  derro- 
tou os  araucanos,  e  fundou  a  cidade  de  Santia- 
go, e  Gonçalo  Pizarro,  irmão  do  governador, 
Gonçalo  Pizarro  a  cuja  arrojada  iniciativa  se  deve 
a  descoberta  do  curso  completo  do  Amazonas, 
ainda  que  uma  traição  nefanda  do  seu  compa- 
nheiro Orellana  assegurasse  a  este  a  gloria  de  ter 
dado  complemento  á  empreza.  Depois  de  traba- 
lhos sem  conto,  Gonçalo  Pizarro  voltou  a  Quito, 
onde  encontrou  as  tristes  noticias  do  caso  que 
vamos  narrar. 

Como  dissemos,  o  procedimento  impolitico  de 
Pizarro  augmentára  d'um  modo  extraordinário  o 
numero  dos  descontentes,  e  a  morte  de  Almagro 
fòra-lhes  um  pretexto  para  os  designios  funestos 
que  principiavam  a  alimentar.  O  infeliz  Almagro 
deixara  um  filho  muito  novo  ainda,  e  foi  esse 
adolescente  a  bandeira  que  os  revoltosos  arvora- 
ram. Dos  murmúrios  passara-se  a  pouco  e  pou- 
co a  uma  conspiração  que  logo  mostrou  as  inten- 
ções de  attentar  contia  a  vida  de  Pizarro.  Este 
foi  avisado,  mas,  altivamente  descuidoso,  respon- 
deu estas  palavras  onde  já  se  sente  o  orgulho  do 
successo,  e  a  vertigem  da  omnipotência  :  «Nin- 
guém ousará  conspirar  no  Peru,  emquanto  sou- 
berem que  estou  resolvido  a  cortar  toda  e  qual- 
quer cabeça  que  abrigar  semelhante  pensa- 
mento.» 

N'um  domingo,  26  de  junho  de  1541,  á  hora 
do  meio  dia,  quando  todos  dormem  n'esse  clima 
ardente,  saio  Juande  Ilerreda,  um  dos  principaes 
conspiradores,  da  casa  que  o  joven  Almagro  pos- 
suía em  Lima,  á  testa  de  dezoito  dos  seus  com- 
panheiros todos  armados  de  ponto  cm  branco. 
Apenas  se  vio  na  rua,  desembainhou  a  espada, 
c,  soltou  o  grito  :  «Viva  el-rei,  morra  o  lyranno.» 
A  este  grito  juntaram-se  a  elle  os  outros  conspi- 
radores, c  todos  em  tropel  marcharam  para  o 
palácio  de  Pizarro.  Por  um  inexplicável  descuido 
ou  terror  a  guarda  numerosa,  que  rodeava  Pi- 
zarro, deixou-os  atravessar  sem  obstáculo  os  dois 
pateos.  Só  ao  fundo  da  escada  mu  pagem  foi 
correndo  avisar  seu  amo.  Um  terror  pânico  se 
apoderou  de  lodos  os  que  estavam  no  palácio. 
Uns  fogem  pela  j ancila  outros  escondem-se.  Pi. 
zarro,  conservando  todo  o  seu  sangue  liio,  levan- 
ta-se,  pega  n'unia  espingarda,  e  seguido  por  uma 
pequena  phalange  d'amigos  dedicados  ordena  a 
Francisco  de  Chaves  que  feche  a  porta.  Mas  este, 
com  a  cabeça  de  todo  perdida  em  vez  de  obede- 
cer corre  ao  cimo  da  escada,  e  pergunta  aos  con- 
jurados o  que  desejam.  Só  lhe  respondem  cri- 
vando-o  de  piuihaladas,  e  continuando  a  entrar. 
Mas  Pizarro  com  um  valor  digno  da  sua  carrei- 
ra épica,  ainda  que  apenas  de  espada  e  escudos 
emquanto  os  seus  companheiros  estão  armado, 


o  PANORAMA 


373 


de  todas  as  peças,  combale  com  heróico  denodo 
e  mantém  duvidosa  a  vicloriaj  apesar  da  immen- 
sa  desproporção  do  numero.  Atinai,  quando  já 
está  todo  cercado  de  cadáveres,  a  espada  d'um 
dos  conjurados  cnterra-se-lhe  na  garganta,  e  arran- 
ca-llic  a  vida  proslrando-o  no  chão  do  seu  palácio. 
Assim  morreu  o  heroe,  que  doara  á  sua  pátria 
um  immenso  império,  que  completara  feitos  mais 
que  humanos  á  forca  de  audácia,  intrepidez,  c 
génio.  A  morte  coroou  dignamente  a  sua  vida. 
Morreu  como  que  uum  campo  de  batalha,  mas 
aos  golpes  dos  seus  compatriotas,  que  cllc  tanto 
se  aprouvera  em  espesinhar.  Caracter  vil,  espirito 
elevado,  homem  cheio  de  paixões  ardentes,  e  igual- 
mente enérgico  para  o  bem  e  para  o  mal  Pizarro 
adquirio  uma  reputação  que,  por  não  ser  imma- 
culada,  não  deixa  de  ser  universal. 


A  sua  morte  não  terminou  as  desordens,  em 
que  vimos  empenhados  os  hespanhoes.  Estas  dis- 
senções  vergonhosas  e  estas  luctas  civis  cruentas, 
a  tantas  léguas  da  pátria,  no  seio  d'um  paiz  ini- 
migo, entre  um  povo  submisso  mas  fremente,  que 
esperava  das  mãos  dos  seus  próprios  vencedores 
a  liherdade  que  não  soubera  reconquistar,  balda- 
ram por  muito  tempo  os  esforços  da  metrópole 
para  produzir  a  ordem,  e  só  nuiitos  annos  de- 
pois se  apagaram  as  ultimas  centelhas  d'csta 
guerra  fratricida,  e  poderam  os  reis  de  Hespanha 
estabelecer  o  seu  dominio  n'um  paiz  devastado, 
mas  que  assim  mesmo  foi  para  clles  fonte  d'uma 
opulência  de  dois  séculos,  opulência  a  que  suc- 
cedeu  um  longo  abatimento,  e  que  foi  talvez  a 
causa  d''elle. 

M.  Pinheiro  CnAGAs. 


A  morte  do  Gladiador, 


Um  dos  mais  notáveis  costumes  do  povo  ro- 
mano era  a  dos  combales  de  gladiadores.  De 
todos  foi  este  espectáculo  sanguinário  o  que  mais 
deleitou  a  cidade  eterna  até  o  tempo  de  Cons- 
tantino, que  o  prohibio ;  não  se  conseguindo 
todavia  a  total  extincção  de  tão  bárbaro  costume, 
senão,  76  annos  depois,  no  tempo  'do  imperador 
Honório. 

O  uso  que  deu  origem  a  estes  combates,  lai 
como  os  Romanos  o  tomaram  dos  Etruscos,  con- 
sistia em  mandar  matar  escravos  e  prisioneiros 
de  guerra,  junto  dos  sepulchros  dos  varões  mais 
illustres. 

Pelo  correr  dos  tempos,  julgando-se  que  estes 
sacrifícios  humanos  eram  cruéis,  uma  singular 
philosophia  criou,  para  os  substituir,  os  comba- 
tes de  gladiadores,  inventando  assim  maior  atro- 
cidade :  porque  o  numero  de  victimas  cresceu, 


e  prolongaram-se-lhes  os  soíTrimentos  !  De  bustum 
se  chamou  então  aos  gladiadores  busluarii.  {\) 

O  primeiro  espectáculo  publico  desta  natureza 
foi  dado,  no  anno  de  Uoma  490,  por  Marco  e 
Décio  bruto,  nas  exéquias  do  pac.  (2) 

A  principio  estes  espectáculos  só  tinham  lugar 
em  honra  dos  homens  ilhistres  e  principaes,  e  os 
gladiadores  eram  tirados  então  de  entre  os  escravos 
condemnados  aã  ludum  ou  aã  r/lndiítm;  mas  foram 
gradualmente  generalisando-se  e,  dentro  em  pou- 
co eram  moda  em  todas  as  exéquias.  Os  Romanos 
designavam  em  seus  testamentos,  o  numero  de 
gladiadores  para  o  espectáculo  do  seu  funeral, 


(l)  Moris  erat  in  sepulcliris  vironim  lortium  captivos  necun  : 
quod  post.  (iiiani  criidcle  vi.sum  est,  placiiit  filadiatqres  ant.o  se- 
pulcra  dimicarc,  qui  a  busti  cincribus  InisUiarii  dieti. 

Serv.  AEneid 


(2)  Vai.  Max.  II.  'i.  7. 


374 


O  PANORAMA 


miumusiS)  juntando  esta  horrível  pompa  da  mor- 
te ás  demais  pompas  fúnebres  que  muitos  ante- 
gosavam,  dispondo-as  para  além  da  vida. 

Era  o  requinte  do  cgoismo  que,  na  impossibi- 
lidade de  eximir  se  da  natural  condição,  arre- 
batava na  sua  queda  aquelles  cuja  vida,  pelo 
mais  abusivo  dos  poderes,  eslava  subjcita  aos 
caprichos  de  um  homem. 

Tão  miserável  era  a  sorte  do  escravo,  que  até 
de  um  cadáver  era  escravo  ainda ! 

O  sopro  da  morte,  que  tudo  gela,  não  parali- 
sava o  braço  cruel  que  lhe  apertara  as  algemas. 
De  dentro  já  do  tumulo,  esse  braço  poderoso  es- 
tendia-se  ainda  para  elle,  arrastava-o  até  á  géli- 
da morada,  e  feria-o  sem  lucta,  sem  resistência, 
sem  vingança  possível!  Vingança  I  quem  sabe?! 
a  sombra  homicida,  escoando-se  para  os  abys- 
mos  da  eternidade,  talvez  estivesse  lá  sentindo, 
em  fogos  do  inferno,  a  reverberação  da  foguei- 
ra, que  alumiava  cá  o  horrível  sacrifício  ! 

Deste  temor  se  não  levava  o  povo-rei,  cuja  pai- 
xão desmedida  por  tão  cruel  divertimento  cres- 
cia de  dia  para  dia,  chegando  a  ponto  que  hoje 
nos  parece  incrível. 

Fundaram-se  coUegios,  ludi,  nos  quaes  os  gla- 
diadores eram  sustentados  c  exercitados  na  arte 
da  esgrima  por  mestres  chamados  lanistw.  Estas 
casas  eram  verdadeiros  armazéns  de  destresa  e 
força,  onde  qualquer,  quando  queria  dar  um 
espectáculo  de  gladiadores,  os  ia  comprar  ou 
alugar  por  uma  somma  de  sestcrcios,  na  razão 
dos  seus  respectivos  merecimentos ! 

Não  era  jás()mentenosfuneraes  que  havia  estes 
combates.  Havia-os  nos  regosijos  públicos,  nas 
festas  particulares,  sob  qualquer  pretexto. 

A  arte  gladiatoria,  que  fora  exclusiva  de  es- 
cravos, já  era  praticada  por  homens  livres.  Che- 
gava o  cnthusiasmo  a  tal  ponto,  que  até  as  mu- 
lheres desciam  á  arena  e  combatiam  também  I 

Minotauro  de  nova  espécie,  o  povo  romano  ca- 
recia d'aquella  carnificina  que  os  magistrados 
lhe  arremessavam  a  miúdo,  como  a  fera  perigo- 
sa. Em  vão  pretenderia  ser  popular  o  pretor, 
questor,  ou  edil,  que  se  eximisse  deste  horro- 
roso tributo ! 

Além  das  festas  publicas  e  particulares,  em 
que  havia  combates  de  gladiadores,  até  dos  ban- 
quetes eram  parte  essencial ;  e  a  sumptuosida- 
de do  festim  era  aferida  pelo  numero  de  com- 
batentes I  Os  convivas  assistiam  alegres  áquellas 
scenas  hediondas,  e  se  qualquer  dos  infelizes 
caía  trucidado,  como  era  trivial.,  davam  palmas 
ao  vencedor,  do  mesmo  modo  que,  talvez  no 
mesmo  lugar,  um  romano  da  actualidade  ap- 
plaude  qualquer  actor  no  thealro  dl  Vallc.  Ao 
gladiador  \encido  davam-se  palmas  também,  se 
elle  tinha  caido  com  certa  elegância,  no  que  to- 
dos [)unham  o  maior  cuidado.  Era  dos  preceitos 
da  arte  morrer  com  graça  1 

Os  combates  tinliam  lugar  princii)almoiile  no 
Foro  boario.  No  dia  aprazado  para  clles  dispu- 
nham-se  os  gladiadores  de  modo  que  a  cada 
\im  correspondesse  um  adversário  de  ij^ual,  ou 
|)roxima  destresa  e  forç».  Depois,  cm  quanto  se 
examinavam  as  espadas,  que  deviam  ser  api)ro- 
vadas  i)elo  editor,  simulavam  elles   um   combate 


.};  Sen.  De.  Lrcv.  vit. 

(■<>  As  «iiírerenies  (lenumin.Tições  «los  gladiadores  eram; 
Mirmilloncs  —  Hcliarii  —  HcciUorcs  —  Trácios— Emctlarii— Suwui- 
t'f—Andabates—Coesaríani— Laqueares— Svpposila ta  o  Meridiani. 


com  espadas  de  madeira,  anua  lusoria.  Este  pre- 
ludio chamava-se  venilarc.  Quando  a  trombeta 
dava  o  signal,  vinham  as  armas  homicidas;  o 
que  d'ahi  em  diante  se  passava  chamava-se  dimi- 
catio  ad  ccrlum. 

Se  entre  os  diversos  gladiadores  que  entravam 
no  combate  havia  os  mirmillones,  o  espectácu- 
lo era  mais  variado.  Estes,  que  ordinariamente 
eram  gaulezes,  vinham  armados  de  um  escudo 
e  de  uma  fouce,  e  traziam  um  capacete,  no  cimo 
do  qual  se  via  a  imagem  de  um  peixe,  minmllo, 
donde  tiravam  o  nome.  Eram  seus  adversários 
os  retinrii.  que  usavam  de  um  tridente  e  de 
uma  rede,  na  qual  procuravam  envolver  a  ca- 
beça do  adversário  cantando  : 

Non  te  peto, 
pisoem  peto : 
quid  me  fugis,  Galle? 

Quando  um  gladiador  ficava  ferido,  o  povo 
gritava  hoc  hnbel :  então  se  elle  abaixava  a.s  ar- 
mas confessava-se  vencido.  Todavia  a  sua  sorte 
estava  ainda  dependente  da  vontade  do  povo,  da 
de  quem  fazia  as  despesas  do  espectáculo,  e  prin- 
cipalmente das  vestaes,  que  não  podendo  ser  do 
seu  sexo  pelo  amor  de  esposas  e  de  mães,  não 
eraim  também  do  seu  sexo  na  tranquilla  indiíTe- 
rença,  com  que  viam  correr  pela  arena  tanto 
sangue  innocentc.  Se  as  vestaes  pronunciavam  o 
perdão,  se  o  povo  erguia  as  mãos  abaixando  os 
dedos  polegares,  ou  se  o  imperador  chegava,  eslava 
salvo  o  gladiador.  Se  ao  contrario  as  vestaes  fi- 
cavam mudas,  se  o  povo  erguia  os  punhos  cer- 
rados, se  o  gladiador  em  vão  dirigia  os  olhos 
supplicantes  para  o  lugar  imperial  desoccupado, 
a  sentença  de  morte  estava,  sem  appelação,  pro- 
nunciada. 

A  estatua,  representada  na  gravura  que  o  Pa- 
norama  hoje  apresenta  aos  seus  leitores,  é  uma 
das  mais  celebres,  entre  as  que  se  julgou  repre- 
sentarem um  d'esses  infelizes  combatentes.  E' 
porém  de  suppor  que  esta  estatua  geralmente 
conhecida  pela  designação  de  o  gladiador  mor- 
rendo não  represente  um  gladiador,  mas  sim  um 
guerreiro  bárbaro.  Deu-se-lhc  aquella  denomina- 
ção, provavelmente,  pela  mesma  causa  porque 
(ie  muitas  outras  se  decidio  que  representavam 
gladiadores,  quando  da  maior  parle  das  que  fo- 
ram descobertas,  principalmente  nos  séculos  XV 
e  XVÍ,  se  acha  hoje  evidentemente  demonstrado 
foram  outros  os  assumptos.  A  estatua  a  que  nos 
estamos  referindo,  é,  de  Iodas  essas,  a  que  tem 
sido  objecto  dos  mais  escrupulosos  estudos  dos 
antiquários. 

Uepresenta  ella  um  homem  nu,  ferido  do  lado 
direito  do  peito  e  caido  com  a  agonia  mortal, 
que  se  exprime  admiravelmente,  não  S('»  nas  fei- 
ções de  uma  angustia  indescriplivel  ;  mas  em 
ioda  aquella  figura  meio  erguida  n'um  supremo 
esfor(;o. 

A  força  phisica,  a  intensidade  da  dòr,  a  sere- 
nidade da  resignação  c  a  total  perda  de  esperan- 
ça manifeslam-se  ali  n'uma  linguagem  sublime, 
que  é  de  todos  os  tempos  e  de  lodos  os  povos. 

Eòra  impossível  emfim  exprimir  melhor,  n"uma    - 
figura  só,  lodo  o  horror  da  morte  e  Ioda  a  for- 
mosura da  vida. 

São  diversas  as  opiniões  acerca  do  assumpto 
d'csla  estatua. 

Querem  uns,   que  representa  um  arauto  dos 


o  PANORAMA 


375 


jogos  olympicos,  e  fundara  se  para  isso  em  que 
a  corneta,  que  se  vé  sobre  o  escudo,  semelha  a 
dos  arautos,  e  que  o  coUar  da  figura  representa 
a  corda  que  elles  usavam,  para  augmentar  a  in- 
tensidade da  voz. 

Querem  outros,  que  o  collar  assim  como  a  ca- 
beça sejam  obra  muito  posterior  á  feitura  da 
estatua. 

Outros  finalmente  pretendem,  que  representa 
um  escravo  íiel,  mortalmente  ferido  na  defeza  de 
seu  amo,   o   qual   reconhecido   lhe  fizera  erigir. 

Estas  opiniões  lêem  sido  combalidas,  c  segue- 
se  geralmente  a  de  Yisconti,  o  qual  é  de  pare- 
cer que  representa  um  guerreiro  bárbaro,  ferido 
de  morte,  e  expirando  no  campo  de  batalha,  onde 
se  vcem  esparsos  vários  instrumentos  de  guerra. 
Neste  caso,  será  a  corneta  o  litniis,  e  a  corda  o 
torques,  dos  Romanos. 

Tem  este  primor  d'arte  o  nome  de  Ctesilau  : 
contesla-se  porém,  e  ao  que  parece  plausivel- 
mcnte,  a  antiguidade  da  inscripção. 

Cila-se  de  feito,  entre  as  obras  do  celebre  es- 
tatuário, um  guerreiro  ferido  ;  mas  era  de  bronze 
essa  estatua,  e  esta  é  de  mármore. 

A  gravura  que  o  Panorama  apresenta,  é  copia 
de  uma  estatua  de  bronze,  que  foi  fundida  por 
Kepller  e  que  está  em  Paris.  O  original  é  uma 
das  mais  raras  maravilhas  d"arle  que  o  viajante 
admira  no  museu  do  Capitólio  em  Roma. 

A.  P.  Ferraz  Jumor. 


DO  MOVIMENTO  NO  UNIVERSO 

Quando  uma  noite  profunda  e  silenciosa  cobre, 
com  o  sou  negro  manto,  o  universo ;  quando  nos- 
sos ciliares,  errantes  de  estrelia  em  eslrella,  dei- 
xam a  alma  contemplativa  embalada  no  espaço; 
quando  o  somno  da  natureza  produz  em  torno  de 
nós  o  socego,  a  paz,  parece  que  a  immobilidade, 
a  inactividade,  o  repouso  absoluto  nos  rodeiam. 

Comtudo,  em  quanto  sonhamos  no  moio  deste 
socego  profundo,  e  deste  plácido  universo,  ha  no 
espaço  certo  globo  de  Ires  mil  legoas  de  diâme- 
tro, isolado  de  todas  as  partes,  e  suspenso  solitá- 
rio no  seio  de  um  espaço  iníinito.  Este  globo  não 
eslá  immovei,  mas  sim,  corre  alravez  da  exten- 
são com  uma  rapidez  prodigiosa,  ao  lado  da  qual 
a  velocidade  das  melhores  locomotivas  se  asseme- 
lha ao  andar  da  Inrtaruga.  Para  bem  se  apreciar 
o  curso  deste  globo  seria  preciso  collocarmo-nos 
cm  um  ponto  docéo,  não  longe  do  caminho  que 
elle  segue;  então  veríamos  este  globo  luminoso 
apparecer  ao  longe.  Esphera  rodopiante,  eil-a  que 
se  approxima,  cresce,  torna-se  immensa,  mons- 
truosa... passou...  desappareceu  com  a  ra|)idez  do 
relâmpago ;  afasta-se  com  toda  a  velocidade,  le- 
vada i)ela  mesma  carreira  vertiginosa,  sem  Irogoa 
nem  repouso,  eternamente.  Oual  é  a  velocidade 
com  que  este  globo  corre  os  céos  sem  limites? 
Vinte  e  sete  mil  e  quinhentas  léguas  por  hora ; 
mais  de  trinta  mil  melros  por  segundo ! 

De  noite  e  de  dia,  sem  cessar,  este  astio  con- 
tinua a  sua  carreira  pela  extensão  eslrellada.  —  E 
porque  motivo,  perguntarão,  se  não  vè  esse  glo- 
1)0  atravessar  o  céo  plácido  e  puro,  cujas  estrellas 
scinlillam  com  tanta  doçura? — A  explicação  é 


muito  simples;  este  astro,  cuja  eterna  carreira 
nos  assusta,  é  a  terra  que  habitamos. 

A  impresííão  dos  sentidos  c  tão  poderosa  que  a 
illusão  produzida  por  ella  nos  domina  de  uma 
maneira  ahsolula.  Não  nos  poderemos  subtrair  á 
surpresa,  na  verdade  mui  legitima,  que  faz  nascer 
em  nós  a  ideia  de  um  tal  movimento,  do  qual 
partecipamos  sem  termos  consciência  d'isso  ;  e 
quando  mesmo  o  conhecimenlo  desta  veidade  c  o 
habito  destas  considerações  malhematicas  nol-as 
tornem  mais  familiares,  não  podemos  pensar  no 
facto  em  si  mesmo,  som  nos  admiiarmos  do  seu 
poder.  E  que  elíeclivamente  nada  ha  mais  oppos- 
lo  a  nossos  sentimentos  originários  sobre  a  esta- 
bilidade do  globo,  e  nada  contraria  mais  a  ideia 
longa  e  solidamente  estabelecida  em  nós  pela 
observação  vulgar.  O  fado  em  si  mesmo  parece- 
nos  ter  alguma  cousa  de  prodígio,  e  comtudo  só 
elle  é  verdadeiro,  em  quanto  que  as  nossas  pri- 
meiras ideias  são  no  fundo  erróneas. 

Ora  imporia  para  a()uelle  ijue  quer  ter.  uma 
noção  verdadeira  da  disposição  e  da  natureza  do 
universo,  desenganar-se  da  illusão  produzida  pelos 
sentidos  e  admiltír  o  ensino  dos  factos  observados. 
Em  vez  de  deixar  cm  nossa  presença  esse  pano- 
rama da  noite  tranquilla,  dos  astros  em  repouso, 
do  eco  adormecido,  contemplemos  os  movimentos 
celestes  na  sua  realidade,  e  não  li'm3mos  ver  des- 
vanecer-se  com  a  illusão  o  aspecto  poético  da  noi- 
te eslrellada  :  a  realidade  é  por  sua  natureza  in- 
hnilamenle  superior  á  licção,  quando  mesmo  se 
olhe  para  ella  com  os  olhos  do  sentimento;  em 
lugar  d'uma  apparencia  de  morte,  veremos  abrír- 
se  diarde  de  nós  o  reino  do  movimento  e  da  vida. 

Eis  pois  a  terra  viajando  incessantemente  com 
uma  velocidade  de  30,3o0  metros  por  segundo. 
Etíectivamenle  ella  tem  de  percorrer  em  305  dias 
e  um  quarto  toda  a  extensão  da  orbita  que  des- 
creve á  roda  do  sol ;  esta  orbita,  de  38  milhões 
de  léguas  de  raio,  tem  a  extensão  de  241  milhões 
de  léguas.  Tal  é  o  caminho  que  tem  a  percorrer 
em  um  anno.  Ora  para  isto  é  preciso  voar  com 
uma  rapidez  de  660,000  léguas  por  dia.  Não  os- 
(jueça  ([ue  além  deste  movimento  de  translação  a 
terra  é  animada  de  um  movimento  de  rotação  so- 
bre si  mesma,  que  deita  a  164  metros  por  se- 
gundo. 

Dirigindo-nos  para  o  sol,  enconlram-se  os  pla- 
netas Vénus  e  Mercúrio.  O  primeiro  descreve  uma 
orbita  de  472,600,000  léguas,  e  o  seu  anno  e  de 
22o  dias,  pouco  mais  ou  menos.  Para  elVectuar  o 
seu  movimento  neste  lapso  de  tempo,  é  necessá- 
rio percorrer  36:800  metros  por  segundo,  equi- 
valentes a  32,190  léguas  por  dia.  Esta  velocida- 
de é  ainda  superior  á  nossa.  Pôde  aqui  repolír-se 
a  mesma  pergunta  que  acima  lizemos:  Porque  se 
não  vè  este  astro  correr  d'esse  modo  pelo  ceo?  O 
leitor  já  achou  a  explicação,  e  sabe  que  a  distan- 
cia dos  astros  impcdo-nos  de  apreciar  o  valor  dos 
seus  movimentos  —  que  se  tornam  tanlo  monos 
sensíveis  quanto  maior  é  a  distancia  —  c  cuja  am- 
plitude não  pôde  ser  conhecida  senão  quando  se 
sabe  a  distancia. 


376 


O  PANORAMA 


Os  movimentos  plaiielarios  tornam-se  tanto  mais 
rápidos  quanto  mais  próximos  osíão  do  sol.  As- 
sim, sendo  a  velocidade  da  terra  por  segundo  de 
30,od0  metros  e  de  Vénus  de  30,800,  a  de  Mer- 
cúrio deve  ser  de  58000  metros.  Animado  desta 
velocidade,  o  planeta  percorre  52,520  léguas  por 
hora,  1,200,000  léguas  por  dia,  e  no  espaço  de 
88  dias,  tem  percorrido  a  sua  orbita  de  lli  mi- 
lhões de  léguas. 

Voltando  sobre  nossos  passos,  c  afastando-nos 
do  sol  para  os  limites  do  systema,  encontraremos 
successivamenle  Marte,  Júpiter,  Saturno,  etc.  A 
orbita  do  primeiro  destes  planetas  apresenta  um 
desenvolvimento  total  de  302  milhões  de  léguas 
de  quatro  kilometros.  A  velocidade  media  do  pla- 
neta e  de  22,000  léguas  por  hora,  istoé,  de2í,4i8 
metros  por  segundo.  Dizemos  velocidade  media 
(e  este  termo  é  applicavel  a  todos  os  mundos), 
porque  cada  planeta  anda  tanto  mais  depressa 
quanto  mais  perto  está  do  sol,  o  que  succedc  na 
época  do  perihelio  de  cada  uma  das  suas  revolu- 
ções, que  não  seguem  uma  orbita  vigorosamente 
circular,  como  se  sabe,  mas  appro\imam-se  mais 
ou  menos  da  forma  elliptica.  Ueciprocamcnte,  o 
planeta  anda  mais  lentamente  quando  percorre  os 
pontos  da  sua  carreira  mais  afastados  do  sol.  Esta 
diíTerença  nos  movimentos  celestes  é  sobretudo 
natural  entre  os  cometas,  cuja  ellipse  c  mui  alon- 
gada lia  cometas  que  percorrem  30  léguas  por 
segundo  na  sua  passagem  pelo  perilielio  e  alguns 
alguns  metros  somente  pelo  seu  aphelio. 

Júpiter  emprega  doze  dos  nossos  annos  para 
descrever  a  sua  curva  oj-bilaria,  igual  a  1  milhar 
214  milhões  de  léguas.  A  sua  velocidade  é  de 
12,972  metros  por  segundo,  778  kilometros  por 
minuto,  11,075  léguas  por  hora,  280,200  léguas 
por  dia. 

O  caminho  percorrido  por  Saturno,  cm  sua 
orbita  de  10,700  dias,  é  de  2  milhares  287  mi- 
lhões 500.000  léguas.  A  sua  velocidade  media  ò 
de  112,000  léguas  por  dia,  8858  legoas  por  hora 
ou  0842  metros  por  segundo.  À  distancia  de  Ira- 
nus,  cuja  orbita,  de  4  milhares  582  milhões 
120000  léguas,  é  percorrida  cm  84  annos,  a  ve- 
locidade não  |)óde  ser  de  mais  de  149,300  legoas 
por  dia  ou  0000  léguas  por  hora.  A  evolução  da 
orbita  de  Neptuno  apresenta  uma  extensão  de  7 
milhares  e  170  milhões  de  léguas;  a  velocidade 
do  i)lanota  sobre  esta  orbita,  que  percorre  em  104 
annos,  e  de  20,000  kilometros  por  segundo.  Yè- 
se  quanto  a  velocidade  tem  successivamenle  di- 
minuído de  Mercui'io  para  cima,  (|ue  percorre  58 
kilometros  na  mesma  unidade  de  tempo.  Apre- 
sentadas em  uma  mesma  linha  estas  velocidades 
respectivas,  por  kilometro  o  por  segundo,  otíere- 
cem  de  Meicurio  e  Neptuno  a  relação  seguinte : 
58,  37,  30,  2í,  13,  10,  7,  5. 

Taes  são  as  velocidades  com  que  as  espheras 
celestes  percorrem  as  regiões  do  espaço.  Não  fal- 
íamos dos  pequenos  plar.etas,  cujo  numero  cara- 
cterístico occupa  a  lacuna  que  separa  2í  e  13  na 
linha  precedente,  Estes  innumeraveis  corpinhos, 
do  tamanho  de  uma  província,  giram,  cffecliva- 


mente  em  torno  do  sol  com  uma  velocidade  me- 
dia de  18  kilometros  por  segundo,  ou  16,200  lé- 
guas por  hora. 

Os  satelliles  são  levados  pelos  seus  planeias  na 
translação  destes  á  roda  do  sol  e  pelo  mesmo  mo- 
vimento; além  d'isso  giram  rapidamente  á  roda 
destes  planetas.  Assim  redo|)!am  no  céo  Terra, 
Lua,  planetas,  satellites,  cometas,  como  uma  ra- 
pidez de  que  nenhuma  velocidade  sensível  nos 
pôde  dar  ideia.  Assim  andam  todos  os  astros  do 
céo.  As  estrellas  chamadas  lixas  são  animadas 
umas  c  outras,  das  maiores  velocidades  que  até 
hoje  se  tem  achado.  Tal  estreita,  que  nos  parece 
lixa  em  uma  conslellação,  Arcturus,  por  exem- 
plo, gii'a  nos  pontos  longinquos"da  extensão  com 
uma  velocidade  de  21  léguas  por  segundo;  de 
7082  léguas  por  dia  ;  mas  a  distancia  que  nos 
separa  d'ella  é  tão  grande,  que  esta  mudança 
de  posição  da  estrella  no  céo  é  apenas  d'aqui  per- 
ceptível. Tal  outra  estrella,  a  sessenta  e  uma  do 
Cysne,  move-se  no  espaço  com  uma  rapidez  de 
18  léguas  por  segundo;  tal  outra,  a  cabra,  corre 
com  uma  velocidade  de  dez  c  meia  léguas  por  se- 
gundo ;  tal  outra  ainda,  Sirius,  com  uma  veloci- 
dade de  mais  de  9  léguas  na  mesma  unidade  de 
tempo.  l*ensc-se  por  um  bocado  no  caminho  real 
percorrido  por  estes  astros  em  uma  hora,  em  um 
dia,  em  um  anuo,  em  um  século.  Comtudo,  a  dis- 
tancia que  as  separa  de  nós  é  tão  prodigiosa,  (juc 
este  immenso  espaço  perconido  em  um  século, 
espaço  que  os  nossos  números  mais  elevados  ape- 
nas poderiam  exprimir,  não  cobre  sobre  a  esphe- 
ra  estrellada  a  largura  apparenle  de  um  dedo.  É 
n'isso  que  consiste  o  segredo  da  invisibilidade 
destes  formidáveis  movimentos,  da  apparenle  li- 
xidade  dos  astros,  da  paz  tão  profunda  das  noites 
eslrelladas. 

Assim,  sem  darmos  por  tal,  somos  levados  no 
espaço  com  diversas  velocidades :  300  metros  por 
segundo,  conse(|uencia  do  movimento  de  rotação, 
na  latitude  de  Lisboa  ;  30,000  melros  por  segun- 
do, consequência  do  movimento  de  translação  da 
terra  á  roda  do  sol.  Accrescentemos  ainda  o  mo- 
vimento de  tianslação  do  sol  no  espaço,  que  arras- 
ta com  o  astro  cential  lodos  os  coi'|)os  que  lhe 
pcitencem,  e  que  não  seria  inferior  a  8000  me- 
lros por  segundo.  Eis,  pois — sem  contar  os  secun- 
dários— Ires  movimentos  principaes  que  nos  con- 
duzem, O  Sol,  com  o  seu  systema,  é  um  facto 
(|ue  cáe  no  abismo  dos  espaços  com  a  rapidez 
[)rodigiosa  que  acabamos  de  mencionar.  Estrella 
lambem,  corre  os  desertos  do  vácuo  como  as  es- 
trellas suas  irmãs,  cujas  elhereas  peregrinações 
acima  narramos. 

Será  bom  (|ue  a  impressão  que  resulta  deste 
relancear  de  olhos  por  sobre  os  movimentos  celes- 
tes nos  desengane  da  illusão  dos  sentidos,  e  que 
nos  deixe  não  somente  com  a  certesa  desta  acti- 
vidade permanente  das  diversas  partes  do  univer- 
so, mas  ainda  com  a  certesa  de  que  não  pode- 
riam impunemente  cessar,  e  que  a  sua  existên- 
cia é  uma  condição  da  duração  do  mundo. 

Typ,  l''roiii;o-l'orluguoz.i  —  Uua  do  Tli'.souro  VcUio,  6, 


48 


o  PANORAMA 


377 


A  Virgem  ó  o  Cflenino   (Quadro  de  Vun  Dick) 


O  admirável  quadro,  do  qual  ó  copia  a  gravura 
que  damos  hoje  aos  nossos  leitores,  enconlra-se 
no  museu  do  Louvre,  e  devc-se  ao  inspirado  pin- 
cel do  discípulo  de  Rubens,  o  famoso  Van  Dyck, 
que,  se  nem  sempre  pôde  ser  collocado  a  par  do 
mestre,  como  pintor  histórico,  excedeu-o  muito 
na  suavidade,  na  graça,  na  harmonia  do  colori- 
do. Reynolds,  artista  fccundissimo,  um  dos  mais 
notáveis  pintores  da  Gran  Bretanha,  fatiando  acer- 
ca deste  (juadro,  diz,  que  é  uma  das  obras  mais 
primoi'osas  do  insigne  mestre  da  escola  llameiiga, 
uma  das  mais  admiráveis  criações  do  espiíito  hu- 
mano, uma  das  melhores  pinturas  do  mundo. 
Nunca  o  génio  de  Van  Dyck  se  manifestou  tão 
claramente,  como  nesta  inimitável  producção,  que 
Ião  alta  idéa  nos  dá  do  seu  grande  talento  e  do 
elevado  grau  de  perfeição  a  que  chegara  no  gé- 
nero histórico,  se  os  retratos  o  não  houvessem 
distraído  tanto.  «Effeclivamenle,  surprehendeni  as 


bellezas  do  estylo,  a  correcção  do  desenho  e  a 
execução.  A  extática  expressão  do  rosto  da  Vir- 
gem, a  sublime  e  angélica  puresa  de  seus  olhrs 
levantados  para  o  céo,  e  a  graça  immaculada  de 
seus  formosos  lábios,  que  parece  respirarem  o 
hálito  da  vil  lude,  estão  acima  de  todo  o  elogio. 
A  cabeça  do  Menino  Jesus  e  de  raia  j)erfeição  ;  o 
rosto  ajuesenla  uma  admirável  combinação  da  di- 
vina intelligencia  com  a  graça  infantil.  O  dese- 
nho das  extremidades,  isto  é,  das  mãos  das  duas 
íiguras  e  dos  pés  do  Menino,  são  da  maior  cor- 
recção e  verdade.  A  disposição  das  roupas  é  gra- 
ciosa ;  o  contraste  do  claro-escuro  excellenle;  e 
o  colorido  em  geral,  rico,  harmonioso  e  encanta- 
dor.» 

Os  vermes  do  sepulchro  começam  a  roer  a 
consciência  do  malvado,  antes  do  lhe  devorarem 
as  entranhas.  Chateaibrund. 


378 


O  PANORAMA 


A  GALATEA  MODERNA. 
XII 

Sab  togiuiuc  fngi 

No  oulro  dia,  conforme  os  nossos  dois  heroes 
haviam  aprasado,  devia  Yioianle  responder  aos 
apaixonados  protestos  de  Alfredo. 

Entardecia  já.  O  sol  afiindava-sc  no  oceano,  e 
as  roxas  cores  do  crepúsculo  lauxeavam  de  lis- 
tões phanlaslicos  a  athraospliera,  que  parecia  um 
mar  cujas  ondas  immensas  fossem  de  gaze  lufa- 
das pelo  venlo. 

A  st-rena  e  formidável  harmonia  da  natureza 
irrompia  em  jorros  pelo  vasto  horisonte,  e  no  céo, 
tão  ligeiras  corriam  as  nuvens,  que  mais  pare- 
ciam o  bafejar  de  anjos,  que  corressem  á  proíiaa 
alistar-se  no  paraiso,  sob  os  olhos  do  Senhor.  E 
a  Fonle-Eresca,  Ião  poética  e  formosa,  lá  estava 
no  seu  lamento  sonoro,  e  chorando  aguas  crislal- 
linas,  em  cujos  seios  puríssimos  se  revia  a  im- 
mensa  coma  do  olmeiío,  que  só  de  quando  em 
quando,  por  dias  de  estio,  deixava  passar  um 
raio  de  sol,  syl|)iio  luminoso,  que  vinha  brincar, 
saltar  e  beijar  a  limpha  murmurosa. 

Ouando  Alfredo  chegou  não  vio  ninguém,  nem 
mesmo  o  raio  de  sol,  que  tão  baixo  ia  e  tão  jun- 
to do  horisonte,  que  já  as  grandes  sombras  abra- 
çavam a  terra. 

Passado  pouco  ouvio  Alfredo  uma  voz  maviosa 
vinda  do  tronco  do  olmeiro,  que  assim  dizia  : 
—  Pobre  Menalca  !  Outr'ora,  vivia  aqui  uma  Drya- 
de,  loura  e  formosa,  que  Faunos  e  Sylvanos  ama- 
ram loucamente.  Hoje... 

—  Hoje,  ò  Dryade  gentil,  ó  deusa  propicia,  ó 
fanal  dos  meus  amores,  responde-me  do  seio  da 
folhagem,  entoa  os  teus  gorgeios  mysteriosos,  e 
dize-me  que  é  amado  o  pobre  pastor,  que  por  ti 
se  coroa  de  myrthos  e  pâmpanos ! 

—  Pobre  louco  !  Pedes  amor  e  ninguém  t'o  pô- 
de dar,  que  o  amor  é  só  invocado  i)elos  poetas ! 
Queres  arrancar  das  cinzas  um  seio  retfueimado? 
Oueres  neste  século,  que  as  Dryades  de  Tlieocrito  e 
Virgílio  I  Ai!  meu  desgraçadoMenalca,  quão  en- 
ganado andas!  Liber  já  me  não  protege;  não  me 
envolve  em  amorosos  liames  o  áureo  pâmpano, 
e  a  limpha  não  o  serpêa  em  torno  de  mim  com 
(jueixumes  brandos  c  voluptuosos.  Yenus  morreu 
também  ;  Psyche  fugio  para  sempre,  e  ninguém 
me  anima  a  primavera,  nem  os  amores  com 
que  eu  entretecia  a  vida  nos  ramos  deste  olmeiro. 

—  Ouve,  ó  Dryade  gentil,  ouve  os  meus  la- 
mentos. Eu  adoi-o  Ida,  linda  e  pudica  como  o  bo- 
tão da  rosa,  que  abre  os  raios  ao  sorrir  da  amo- 
ra, no  recato  da  noite.  Ouando  me  ella  falia  sinto 
fallaramor;  .se  ri,  ou  chora,  ou  canta,  canta, 
chora,  ou  ri  amor.  Assim  é  cila,  ella  é  amor.  I^m 
tudo  se  conformam  ;  e  em  tudo  (juizcra  também 
conformar-me.  A  cila  ergo  as  minhas  antislerias, 
por  ella  entoo  Evohé.  Ouando  a  vejo  tão  bella, 
como  a  llor  do  acantho,  biilhanlc  como  um  raio 
de  Phebo,  vaporosa  como  Amphitrile,  canora 
como  Acheloide,  mais  formosa  do  que  a  lua  que, , 


por   noites  de  estio,    beija    a  relva   do   prado, 
aonde  saltam  j)yrilampos,  sinto  que  a  adoro. 

—  Ai!  Procuras  a  morte,  julgando  encontrar  a 
vida,  ó  pobre  Menalca.  A  tua  Ida  é  como  a  ando- 
rinha, que  vem  com  a  primavera  e  foge  mal  as- 
somam os  primeiros  signacs  do  inverno.  Não  te 
íies  d'ella,  ó  peregrino,  que  Ida  é  traidora.  Não 
corras  atraz  d'ella,  que  as  Galateas,  quando  fo- 
gem, levam  o  coração  dos  que  as  perseguem. 
Acredita  na  pobre  Dryade,  que  te  quer... 

E  Violante,  toda  rubra,  saio  do  olmeiro,  com 
os  cabellos  arraiados  de  um  festão  de  hera  entre- 
laçado de  folhas  de  carvalho,  e  appareceu  mais 
formosa  do  que  a  própria  Dryade. 

Alfredo  proseguio : 

—  Se  tu  me  amas,  ó  Dryade,  se  por  amor  de 
mim,  tu  te  animaste  como  a  estatua  de  Pygmalião, 
eu  esqueço  Ida,  a  linda  bachanle,  por  ti,  que  és 
mais  formosa. 

Violante  parou,  arrancando  a  coroa,  e  lançan- 
do-a  para  longe,  exclamou  n'um  repente  arreba- 
tado : , 

—  O  meu  caro  primo,  nunca  julguei  que  to- 
masse tanto  a  serio  o  seu  papel  de  Menalca  ou 
Melibeu.  Deixe-me  rir,  primo.  Ha  muito  (jue  não 
passo  uma  taide  tão  divertida.  Olhe  que  me  cus- 
tou a  aprender  o  papel  de  Dryade.  Devorei  o 
diccionario  da  mythologia...  porque  me  parece, 
salvo  o  erro,  que  estas  suas  conlissões  são  verda- 
deiramente mylhologicas.  E  demais,  lembre-se  da 
época  em  que  vivemos.  Obrigar-me  a  representar 
de  Dryade,  a  mim,  cujo  futuro  é  morrer  na  clau- 
sura de  um  convento  1  Eu,  que  nasci  para  me  ro- 
jar, victima  innoccnte,  nas  lages  de  uma  igreja, 
rosando  a  Deus,  não  só  pela  salvação  dos  ou- 
tros, senão  para  que  me  leve  deste  mundo  de 
tristezas,  desta  solidão  sem  conforto,  posso  jamais 
comprehender  esses  loucos  devaneios,  em  que  o 
primo  combina  a  mythologia,  perpetua  facécia 
amorosa,  com  os  frémitos  de  uma  paixão,  que 
pôde  nascer  de  repente  e  matar -me  com  torturas 
incomportáveis!...  Ah!  Alfredo,  que  mal  IhcMiz, 
para  tanto  escarneo?  Julga-me  acaso  algum  jo- 
guete? Não  sabe  que  o  coração  pôde  um  dia  que- 
brar-se,  como  a  corda  de  uma  harpa  tangida  por 
mão  descuidosa?  E  depois,  se  na  solidão,  aonde 
me  houver  arrojado,  perdidas  as  poucas  illusões, 
(|ue  me  restam,  eu  gritar  maldição  como  o  nau- 
frago no  oceano  tormentoso,  poderá  queixar-se  de 
mim?  É  neces.sario  acabar  com  isto,  Alfredo,  pro- 
seguio a  donzella  travando-lhe  da  mão  com  for- 
ça. Amanhã  será  tarde  talvez.  O  peito,  que  hoje 
soluça,  quebrará  logo,  c  o  riso  de  ha  pouco  ge- 
rou as  lagrimas  de  agora. 

E  Violante  deixou-se  cair  sobre  um  banco  rús- 
tico, tapetado  de  liera.  Os  soluços  embarga vam- 
Ihe  a  voz.  As  lagrimas  corriam-lhe  em  lio  e  sul- 
cavam-ihe  o  rosto  lindo  (jue  não  perdera  a  alti- 
veza.  Ergueu-se  de  repente.  Recobrou  o  porte  se- 
nhoril, e  olhando  lilo  para  Alfredo,  exclamou 
n'um  Ímpeto  : 

—  Não,  Alfredo.  Eu  sou  pobre,  e  as  mulheres 
de  minha  raça  não  se  vendem. 


o  PANORAMA 


379 


—  Que  diz,  Violante?  bradou  Alfredo,  segu- 
rando-a  convulso.  Eu,  compral-a?  Eu,  que  a  amo 
com  Iodas  as  veras  de  um  coração  juvenil,  que  se 
julgava  descrido  e  que  do  rejicnle,  como  a  flor 
que  recebe  o  rocio  da  madrugada,  reviveu  para 
a  esperança!  Quer  quebrar  a  lelicidade,  em  um 
momento,  a  felicidade,  que  tenho  urdido  com  tan- 
to afan  guiado  pelos  raios  do  seu  amor?  Quem 
nos  tolhe  de  sermos  felizes':  Pois  não  tem  visto 
nestes  brinquedos  o  meu  amor,  giande  como  o 
oceano,  santo  como  uma  caricia  materna?  E 
quer-rae  fugir !  E  quer  abandonar-me  á  beira  do 
caminho,  a  mim,  que  rastejo  humilde  no  seu  sulco 
de  luz  e  amor !  Oh !  lance  um  raio  nas  trevas  da 
minha  vida;  seja  a  estrellaque  me  guia  na  solidão. 

—  Não,  Alfredo.  Não  alevantemos  edifícios  na 
arêa.  Lembre-se  quem  eu  sou  e  quem  é  o  primo. 
Eu,  pobre  e  mimoso  passarinho  batido  da  tor- 
menta rugidora  logo  ao  nascer,  quebi-adas  as  azas 
no  berço,  marcada  com  o  sello  da  desgraça,  hei 
de  recalcar  no  coração  todos  os  impeles,  todas  as 
aspirações.  O  meu  ideial  é  a  escuridão  do  cárcere. 
A  minha  liberdade  as  grades  de  um  convento.  O 
meu  sorriso  o  tremendo  amargor  da  clausura.  E 
até  o  pranto,  que  me  irromper  do  peito  em  so- 
luços de  angustia  e  desespero,  esse  mesmo  pran- 
to,* que  ninguém  pôde  negar  ao  afllicto,  porque 
perante  a  dor  todos  somos  iguaes  e  não  ha  des- 
potismo, que  lá  chegue ;  esse  pranto  abafal-o-hão 
as  psalmodias  da  igreja  e  os  sons  dos  órgãos  em 
dia  de  íinados.  Mas  ó  primo !  que  de  esplendores 
não  antevô !  Que  ondas  de  harmonia  não  podem 
baloiçal-o  na  sua  carreira  radiosa  !  Que  de  ambi- 
ções não  pôde  saciar  no  grande  combate  da  vida  ! 
Áh  '  deixe-rae  !  deixe-me  1  Bem  basta  o  mal  que 
me  fez !  E  quer  que  eu  lhe  derrame  luz  !  Eu,  que 
nas  trevas  hei  vivido,  e  nas  trevas  hei  de  morrer! 
Não  junte  a  zombaria  e  o  escarneo  à  minha  dor ! 

—  Violante!  Oh!  querida  Violante  dera  a  vida 
por  convencel-a  do  meu  amor ! 

—  Ah!  deixe-me  desafogar.  Lamentações,  não 
as  quero.  Vou  fallar  a  verdade,  a  verdade  só,  en- 
tende? Quando  o  vi,  juiguei-me  mais  forte.  Sa- 
bia que  meu  pae  queria  unir-nos  e  levanlar,  com 
os  seus,  os  bens  arruinados  d'elle.  Tudo  isto  adivi- 
nhei, porque  ninguém  m'o  disse.  Ao  principio,  e 
quão  louca  fui,  acreditei  que  podia  fazer  a  vonta- 
de a  meu  pae.  Enganei-me.  Não  me  pergunte  o 
motivo.  Não  quero  dizer-lh'o.  Arranque-me,  se 
quizer,  este  coração  maldito,  que  nem  assim  sa- 
berá a  verdade.  Essa,  talvez  nunca  a  saiba,  e  ai! 
de  mim  se  a  souber  algum  dia.  Amanhã  chega 
aqui  a  minha  querida  amiga  baronesa.  Traz-me 
um  noivo.  Não  sei  se  me  agradará.  IJem  sabe  que 
sou  de  ruim  contento,  porque  nem  o  primo  me 
contentou,  ao  que  parece.  Mas  não  vê  alemaquel- 
le  cruzeiro,  sobre  aquelle  monte?  Hei  de  resi- 
gnar-me,  e  unindo  os  meus  aos  braços  da  cruz,  des- 
posar-me-hei  com  o  Senhor.  Adeus!  Esqueça-sede 
mim.  Não  lhe  peço  o  sacrilicio  de  continuar  a  vi- 
ver comnosco. 

E  Violante  ergueu-se,  toda  nervosa  e  convulsa, 
mas  senhoril. 


Alfredo  íicou  irresoluto,  atlonito  e  estúpido  co- 
mo quem  se  vê  á  beira  de  um  abysmo  c  não  sa- 
be se  ha  de  tentear  salvar-se  ou  precipitar-se  e 
achar  descanço  na  morte. 

Alevanlou-se  einíim  e  deu  um  passo  para  se- 
guir Violante,  que  já  ia  longe,  meio  encoberta 
com  as  sombras  da  noite. 

Mas  baldo  foi  o  esforço,  que  não  poude  mover-se. 
Parece  que  o  destino  implacável  lhe  íincára  os 
pés  na  lage  húmida  e  escorregadia. 

Em  vão  sentia  o  coração  a  bater-lhe  no  peito 
com  anciã;  em  vão  o  vulto  gracioso  de  Violante 
fugia,  como  uma  fada  gentil,  pela  devesa ;  em 
vão  as  arvores  ramalhavam  e  agitavam  as  som- 
bras;  em  vão  o  mar  se  espelhava  ao  longe  com 
os  derradeiros  clarões  do  crepúsculo.  Era  tudo 
em  vão,  que  Alfredo  só  tinha  olhos  para  a  cruz, 
quasi  tombada  sobre  as  ruinas  de  uma  capella. 
Era  aquella  a  sua  imagem,  imagem  melancólica 
de  todos  os  alHictos. 

Elle,  que  sentia  força  e  animo  para  suster  nos 
braços  e  amparar  a  virgem,  cujos  caprichos  pa- 
reciam dores  e  amarguras ;  elle  que  ({uizera  con- 
solar-se. amando  uma  donzella  incomprehensivel, 
tornou-se  instrumento  de  supplicio,  e  cruz  viva, 
sentindo  as  próprias  e  alheias  dores,  íicára  ahi 
tombado,  nas  brenhas  do  seu  viver. 

Como  se  fosse  movido  por  uma  força  superior, 
começou  a  caminhar  rápido  para  o  cruzeiro.  As- 
sentou-se,  filos  os  olhos  no  mar,  espirito  amar- 
rado á  dor  e  olhos  rasos  d'agua. 

O  que  elle  pensava,  sabem-n''o  os  que  os  cho- 
raram um  dia  amargos  prantos,  por  uma  mulher 
adorada,  que  se  esvaeceu  de  repente,  em  um  ras- 
to luminoso,  e  os  deixou  nas  sombras.  Esses  sim, 
e  raros  são,  que  podem  comprehender  a  suprema 
dor  d'esses  momentos,  cujo  conforto  é  a  própria 
desgraça. 

Pouco  durou  este  supplicio. 

Perlo  de  Alfredo  surgio  um  vulto,  que  saltava, 
e  pulava,  e  começou  de  entoar  em  voz  sumida  : 

Ai  1  triste  de  quem  namora 
Uma  rosinha  em  botão, 
Que  só  elle,  o  triste,  chora, 
K  a  rosa  não  chora,  não. 
Tristezas  trazem  amores. 
Ai  triste  de  quem  namora. 

Já  então  vinha  rompendo  o  luar,  luar  de  maio, 
melancólico,  empanado  de  nuvens  de  trovoada, 
como  a  luz  que  brilha  no  cárcere  do  condemnado. 

O  vulto  do  innocenle  agilava-se  e  projectava  a 
sombra  confusa  e  esfumada  na  penedia  agreste.  E  a 
voz  tremula  repelia  a  trova. 

Alfredo  ergueu-se  eulão,  e  exclamou : 

—  Não.  Ella  não  me  ama!  Porque  luclar  com 
o  deslino?  liei  de  ser  homem.  Hei  de  levar  o 
supplicio  até  ao  lim.  liei  de  assistir  o  enterro 
da  minha  alma. 

K  dirigio-se  para  o  solar. 

O  innocenle  lá  continuou  cantando  a  sua  trova 
cheia  de  desenganos. 

[Coniinua] 


o  PANOHAMA 


CARLOS  II  DE  IIESPAMIA 

iCnntinnação) 

A  leiliira  ilesla  caita  levou  ao  mais  subido  grão 
a  aversão  naliiral  da  rainha  para  com  I).  João,  c 
accendeu  de  modo  lai  a  sua  colei  a,  que  estalaria 
com  grande  estrépito,  se  estivesse  nas  mãos  da 
religiosa  soberana  o  perdelo  ou  anniquilal-o ;  e 
se  não  fosse  lambem  pelo  receio  de  desagradar 
altamente  á  curte  o  ao  povo,  que,  geralmente,  dis- 
pensavam ao  principe  grande  estima  e  respeito,  e 
defendiam  |)ublicamente  o  seu  procedimento,  dan- 
do-lhe  razão  e  cul|)ando  a  rainha  e  o  favorito  da 
injusta  morte  de  Malladas  c  da  prisão  de  Patino. 

Kstes  rumores  perigoso?,  que  augmentavam  de 
dia  para  dia,  collocaram  a  lainha  em  a  necessi- 
dade de  fazer  uma  declaração,  aílirmando  (lue 
aquelles  dois  homens  haviam  ido  a  Madrid  encar- 
regados de  executar  os  projectos  de  D.  João ;  que 
se  convencera  d'isso  pela  confissão  dos  dois  fac- 
ciosos, e  que  só  com  a  evidencia  do  crime  se  de- 
cidira a  condemnar  Malladas.  O  confessor,  entre- 
tanto, mandou  imprimir  e  publicar  uma  espécie 
de  apologia  proi)ria,  em  forma  de  representação 
dirigida  á  rainha,  na  qual  se  estendeu  nuiito  em 
dissertar  sobre  a  nobreza  da  sua  linhígem  c  os 
grandes  serviços  dos  seus  antepassados;  e  ao  mes- 
mo tempo  accusava  a  I).  João  de  haver  altenlado  por 
diíTerenles  vezes  contra  a  sua  vida,  protestando 
por  sua  parle  a  maior  innocencia  na  morle  de 
Malladas  e  na  prisão  de  Patino,  e  allegando  em 
prova  d'isso,  que  na  occasião  em  que  occoireu 
aquella  eslava  e!le  lendo  o  seu  breviário  na  com- 
panhia do  padie  iUislos. 

Pouco  tempo  dejjois,  tornou  novamente  a  rainha 
a  apresentar  ao  Conselho  outra  accusação  contia 
o  principe;  disse  ijue  cm  certa  occasião  fallando 
com  um  astrólogo  de  grande  merecimento,  esle 
lh(í  mostrou  flarainenle  as  suas  ousadas  |)ret('n- 
côes  e  desmedida  ambição,  crime  mui  digno  de 
casligo  cm  um  súbdito  rebelde  e  ingrato,  (juc  tan- 
tos favores  recebera  da  coroa.  Mas  o  i)rincipe  li- 
nha amigos  de  mais  pai-a  não  achar  i)or  toda  a 
parte  (|uem  tomasse  a  sua  defesa,  e  piovar  á  evi- 
dencia que  o  seu  nobre  corarão  era  incapaz  d(! 
abrigar  um  desígnio  tão  cobarde  c  criminoso,  co- 
mo o  do  as>iassinnto  fio  confessor;  que  se  houve- 
ra concebido  alguma  \ez  seuielhante  projecto, 
muitas  occasiões  linha  tido  para  o  levar  a  cabo,  e 
(|ue  B  melhor  prova  (jiie  podia  dai  de  (|ue  nunca 
o  pretendera  lazer,  era  (jue  eirectivamenl<!  o  não 
linha  feito.  Oue  mui  longe  de  proceder  traiçoei- 
ramente, se  mostrava  franco  e  decidido  accusador 
do  favorito,  e  pedia  o  seu  aparlauu'nlo  da  côrle. 
ex[»oiido-se  desle  modo  á  cólera  do  llirono:  que 
de  um  lado  esUna  um  principe  cheio  de  mereci- 
mentos e  gloriosos  serviços,  e  de  (|uem  a  nação 
esperava  ainda  mais,  e  do  outro  um  religioso  es- 
Iranireiro  e  intri^-anle,  sustentado  unicamente  [le- 
la  bondade  da  rainha,  cheio  de  honras,  pensões e 
empregos  imiiortantes,  e  cuja  saida  do  |)alacio  não 
podia  occasioiiar  grandes  perdas  ;  e  por  nllimoal- 
Iribuiam  a  este  o  intento  de  ter  (jueiido  desfazer- 
se  de  1).  João  em  Haicelona  e  em  Consuegra,   e 


promover,  em  consequência  de  seus  excessos,  uma 
revolução  espontânea  e  geral  no  reino. 

Tal  era  a  opinião  mais  vulgar  da  côrle  e  do 
povo  neste  conlliclo;  tal  era  o  objecto  de  todas 
as  conversações,  de  lodos  os  pensamentos ;  e  os 
interesses  encontrados,  correndo  e  desenvolven- 
do-se  em  todas  as  classes,  em  todas  as  condições, 
chegaram  a  ter  defensores  até  nas  pessoas  do  bel- 
lo  sexo,  até  nas  damas  da  corte,  que  se  dividiram 
ostensivamente  em  dois  bandos  denominados  ímí- 
triacas  e  NUnrdinas. 

Em  quanto  as  cousas  apresentavam  este  aspe- 
cto em  Madrid,  I).  João  encaminhava-se  para  Bar- 
celona. A  rainha,  que  ignorava  o  seu  rumo,  esta- 
va na  maior  anciedaile  pelas  consequências  deste 
romj)imento  ;  mas  chegado  aqu^ljo  á  dila  cidade, 
dingio  a  Sua  Magestade  outra  carta  mui  respei- 
tosa, na  qual  sem  embargo  insistia  novamente  e 
com  a  mesma  energia  em  supplicar-lhe  o  afasla- 
menlo  do  confessor.  Isto,  longe  de  applacar  a  ira 
da  soberana,  dava-lhe  novas  forças  contra  o  seu 
ousado  antagonista,  e  mais  motivo  achava  para 
não  se  separar  de  um  homem  em  quem  deposita- 
va toda  a  sua  conliança ;  e  julgando  que  D.  João 
se  entremettia  indevidamente  em  cousas  que  lhe 
não  diziam  respeito  e  só  por  uma  aversão  cega 
contra  o  padre  jesuita,  teimava  em  conservar  esle 
junto  de  si  com  todo  o  seu  régio  poderio,  crendo 
com  isto  dar  uma  prova  da  energia  da  sua  sobe- 
rana vontade. 

O  padre  Nilard  por  sua  parle  não  sabia  a  que 
(leterminar-se  em  tão  duro  combale.  Por  um  lado 
!isongeava-o  o  favor  e  a  protecção  de  tão  grande 
rainha ;  por  outro  calculava  o  porler  e  os  recur- 
sos do  seu  adversário  ;  temia  por  sua  própria  vi- 
da, e  cm  cada  um  dos  corlezãos  c  indivíduos  do 
próprio  conselho  suspeitava  um  inimigo  occullo. 
Todas  estas  reílexões  o  levaram,  não  uma  vez  só, 
aos  pés  da  lainha  paia  sup|)licar-lhc  com  as  la- 
grimas nos  olhos  que  o  deixasse  retirar;  ella,  po- 
rém, dando-lhe  novas  seguranças,  conseguia  Iran- 
(|uillisal-o  e  desvanecer-lhe  momentaneamente  os 
seus  justos  receios. 

1).  João,  não  contente  com  o  escrever  á  rainha 
nos  lermos  ja  dilos,  dirigio-se  lambem  aos  minis- 
tros, exhoriando-os  a  unirem-se  a  elle  para  solli- 
cit-irem  da  real  bondade  a  separação  d'aquelle  es- 
trangeiro. Estas  continuas  inslancias  enchiam  de 
amarguras  e  receios  o  padre  T^crardo  e  de  susto 
os  amigos  deste  e  a  própria  rainha,  (jiie  não  con- 
tando já  com  grande  segurança,  mandim  vir  re- 
forço (íe  tropas,  e  desejosa  de  romper  aberta men- 
W.  as  hostilidades,  tratou  de  declarar  n  belde  D. 
João;  aconselhada,  j)orem,  melhor,  pelas  pessoas 
do  seu  (>oiisellio,  a  (|uem  propozeia  Iodas  estas 
cousas,  (juiz  a|)urar  os  meios  de  conciliação,  e 
ganhar,  se  podesse,  por  bem,  a  vontade  do  (|ue 
não  podia  vencer  com  o  seu  rigor;  e,  eíVecliva- 
menle,  escrcveu-lhe  uma  carta  muito  atlencio.sa  e 
estudada,  mandando-o  regiessar  a  Consuegra,  on- 
de lhe  garantia  com  sua  leal  palavra  a  completa 
segurança  de.  sua  pessoa. 

A    princijjio   D.  João   pôz  alguma  diíliculdade 


o  PVNOUAMA 


381 


Cm  obedecer  áquella  ordem  real,  ou  porque  te- 
messe (segundo  manifestou  á  rainha)  cair  de  novo 
nas  redes  do  padre  Nilard  de  que  por  casualida- 
de tinha  escapado,  ou  porque,  clfeclivamenle,  ti- 
vesse outros  projectos  mais  atrevidos ;  mas  o  du- 
que de  Osuna,  que  ao  momento  governava  Bar- 
celona, lhe  fallou  [com  [tanto  empenho  [e  instou 
tanto  para  que  obedecesse  ás  ordens  de  Sua  Ma- 


jestade, que  conseguio  vencel-o,  e  partio  logo 
para  Consuegra  cora  Ires  companhias  de  cavallos 
que  o  mesmo  duque  lhe  deu  para  o  acompanhar. 

{Continua) 


Um  amor  de  seis  mezes   na  corte  é  um  velho 
decrépito.  Louvdt. 


382 


O  PANORAMA 


A  CATHEDRAL  DE  WORCESTER 

A  17(5  kilometros  N.O.  de  Londres,  e  a  38  de 
Birmingham,  da  qual  a  separa  um  pequeno  canal, 
eslcá  situada  a  bonita  e  bem  construída  cidade  de 
\\'ercester,  capital  de  um  condado  (jue  d'ella  rece- 
beu o  nome  e  o  qual  junto  com  o  de  Glocester,  for- 
ma a  parte  mais  importante  do  valle  de  Stern,  mui 
nomeado  por  sua  fertilidade.  A  população  da 
cidade  em  ISoi,  era  de  vinte  e  sete  mil  habi- 
tantes ;  hoje  conta  approximadamente  trinta  e 
dois  mil.  Ainda  no  século  passado,  Worcester 
era  mais  uma  cidade  de  recreio  do  que,  como 
quasi  todas  as  outras  da  Inglaterra,  uma  cidade 
industrial ;  no  presente  século,  porém,  as  in- 
dustrias tem  ali  bastante  progredido,  e  na  actua- 
lidade conta  um  grande  numero  de  fabricas, 
cnire  as  quaes  sobresaem  as  de  porcellanas,  de 
luvas  e  de  calçado,  e  é  centro  de  um  grande 
commcrcio  de  ccreaes.  Ao  norte  enconf  ra-se  gran- 
de abundância  de  carvão  de  pedra,  c  as  melhores 
salinas  da  Inglaterra  são  as  de  Droitwich,  logar  que 
fica  a  mui  curta  distancia  de  Worcester. 

Foi  n"esta  cidade,  outr'ora  Caer  Guorangon 
uma  das  principaes  dos  Bretões,  c  segundo  bis- 
pado de  Morcia  no  tempo  dos  Saxonios,  que 
Cromwell  ganhou  uma  assignalada  vicloria  sobre 
os  realistas,  em  1651. 

Os' principaes  edifícios  de  Worcester  são  a  pri- 
são nova,  o  hospital,  o  Iheatro,  e  a  soberba  ca- 
thedral,  cuja  perspectiva  se  vê  na  gravura  que 
acompanha"  este  artigo,  e  que  é,  talvez,  um  dos 
templos  mais  elegantes  da  nação  britannica.  Esta 
cathedral  foi  construída  pelos  annos  680,  e  de- 
dicada originariamente  a  S.  Pedro;  no  oitavo 
século,  porém,  recebeu  a  denominação  de  Santa 
Maria,  pela  qual  hoje  é  conhecida.  Mas  não  se 
julgue,  que  esta  igreja  não  soíTreu  a  mesma  sorte 
que  todas  as  demais  da  Inglaterra.  Em  1041,  os 
soldados  de  Hardicuto  devastaram-n'a ;  em  1103 
e  1202,  foi  viclima  de  dois  incêndios,  cujos  es- 
tragos, felizmente,  foram  pouco  consideráveis,  e 
no  reinado  de  Carlos  l."as  tropas  do  parlamento 
invadiram-na  e  praticaram  ali  as  maiores  pro- 
fanações: abriram  os  túmulos,  roubaram  a  bi- 
bliotiieca,  fizeram  quartel  da  casa  do  capitulo^ 
e,  emfim,  os  ojjjcctos  mais  venerandos  serviram- 
Ihes  de  brinquedo.  Annos  depois  foi  reparada  e 
o  .seu  estado  actual  não  é  de  ruina. 

A  turma  d"esta  cathedral  é  a  de  uma  cruz 
cora  dois  braços,  e  a  sua  architeclura  d"estylo 
golhico :  mas,  á  excepção  da  torre,  o  templo 
não  tem  profusão  de  ornamentos  como  se  en- 
contra em  quasi  lodos  os  d'este  género.  Os  prin- 
cipaes monumentos  que  contém  são  os  tunnilos 
do  rei  João,  dElysa  Digby  e  o  do  bispo  Ilougii 
pelo  celebre  Roíibillac,  o  maior  escuiptor  quo 
teve  a  higlaterra.  Entre  os  seus  bispos  distin- 
guem-sc  Wolstan,  a  quem  se  dete  a  maior  parti; 
do  edifício  que  hoje  existe,  e  Ilough-Latimcr, 
um  dos  primeiros  reformadores  da  igreja  an- 
glicana. 


O  CONDE  ALLAMISTAKEO 

Fim  (Ja   iirimeJra  |iarlo. 

Ciloi-llie  cnlão  os  aços ;  mas  o  estrangeiro  le- 
vantou o  nariz  e  porgunlou-me  se  os  aços  moder- 
nos poderiam  execular  as  escnlpluras  íão  vivas  e 


nítidas  que  adornam  os  obeliscos  c  que  foram  in- 
teiramente executadas  com  instrumentos  de  cobre. 

Isto  embaraçou-nos  de  modo  tal,  que  julgámos 
mais  acertado  fazermos  uma  diversão  sobre  a  mc- 
tliaphysica.  Mandámos  buscar  um  exemplar  de 
uma  obra,  cujo  nome  não  me  lembra,  e  lemos-llie 
um  ou  dois  capítulos  sobre  um  assumpto  que  não 
é  lá  muito  claro,  mas  que  os  nossos  sábios  defi- 
nem :  Grande  Movimento  ou  Progresso. 

O  conde  disse  simplesmente  que  no  seu  tempo 
os  grandes  movimentos  eram  cousas  terrivelmen- 
te communs,  e  que,  em  quanto  ao  progresso,  foi 
em  certa  época  uma  grande  calamidade,  mas  que 
nunca  progredio. 

Fallamos-lbe  então  da  grande  belleza  e  da  im- 
portância do  governo  constitucional,  e  tivemos 
não  pequeno  trabalho  para  fazer  ver  ao  conde  a 
natureza  positiva  das  vantagens  de  que  nós  todos 
gosávamos,  vivendo  em  um  paiz  onde  o  suíTragio, 
por  assim  dizer,  era  od  libitum,  e  onde  o  rei  por 
si  só  cousa  alguma  podia  fazer. 

Escutou-noscom  lodo  o  interesse,  e,emsumma, 
mostrou-se  encanlado  com  osyslema.  Quando,  po- 
rém concluímos,  disse-nos  que  nas  suas  terras  já 
outr'ora  se  tinha  passado  alguma  cousa  semelhan- 
te. Treze  províncias  egy peias  resolveram  um  dia 
lornarem-se  livres  e  darem  assim  um  manifesto 
exemplo  á  humanidade.  Reuniram-se  os  sábios  e 
os  amigos  da  liberdade,  nomeou-se  um  chefe  ín 
nomine,  e  organisou-se  a  mais  engenhosa  consti- 
tuição que  é  possível  imaginar.  Durante  algum 
tempo,  caminharam  as  cousas  maravilhosamente: 
só  um  ou  outro  caso  de  abuso,  da  parle  dos  mi- 
nistros. Mas,  depois,  como  era  de  esperar,  morto 
moralmente  o  chefe  supremo,  e  entregue  o  mando 
a  homens  de  maus  costumes  e  de  reconhecida  inca- 
pacidade, degenerou  ludo  na  mais  perfeita  anar- 
chia  e  despotismo.  Era  um  inferno :  ninguém  se 
entendia;  todos  queriam  governar ;  todos  faziam 
leis ;  lodos  castigavam  por  sua  conla  e  risco.  Em 
fim,  chegou  a  tal  ponto  a  desmoralísação  da  parte 
dos  gerentes  do  estabelecimento,  como  costumava 
dizer  um  veliio,  meu  amigo,  que,  além  de  prati- 
carem as  maiores  prepotências,  demittindo  em- 
pregados hábeis  para  admiltírcm  os  inhabeís,  dan- 
do emjiregos  e  dislínctívos  por  dinheiro  e  fazendo 
tudo  quanto  pôde  repugnar  à  moral  e  á  razão, 
alem  de  ludo  isto,  levaram,  com  as  costumadas 
sangrias,  o  thesouro  a  um  estado  tal  de  abatimento 
e  doença,  que  já  ninguém  arriscava  por  elle  uma 
moeda  de  papyrus !  Tão  critica  síluação  requeria  sé- 
rios cuidados,  medidas  enérgicas.  Lembraram-se 
então  os  peritos  de  um  celebre  mineral,  que  havia  em 
um  paiz  pouco  distante,  do  (jual,  diziam  elles,  se  po- 
dia exlrair  um  xarope  muitissimo  salutar,  único 
remédio  capaz  de  curar  semelhantes  enfermidades. 
Mandou-se,  portanto,  ímmedialamenle  buscar  o 
milagroso  mineial,  (t  applicou-se  o  remédio  com  to- 
da a  cautela.  Mas,  foi  peior  a  emenda  (jue  o  sonelo  : 
o  mal  cada  vez  caminhava  mais  i'apido,  e  (juando, 
desenganados  da  inellicacia  do  xainpe,  os  homens 
pediram  contas  ao  correspondente,  i)ara  liquidal-as, 
j)assaram  pelo  grande  desgosto  de  ver,  que,  to(h) 


o  PANORAMA 


383 


o  paiz  em  peso  com  lodos  os  seus  habitantes,  não 
chegava  para  satisfazer  a  quantia  exigida.  Foi  en- 
tão que  os  povos  acordaram  do  longo  e  pesado 
lethargo  em  que  até  ali  tinham  jazido;  sublcvaram- 
se,  castigaram  severamente  os  gerentes  dos  seus 
negócios,  e  nomearam  uni  monarcha  absoluto,  por- 
que, diziam  elles,  mal  por  mal,  antes  aturar  um 
tyranno  que  mil.  Eflectivamente,  dentro  em  cur- 
to periodo,  dominava  o  absolutismo.  Eis  como  ter- 
minou esta  questão  de  liberdade. 

—  E  cessaram  os  abusos  com  o  novo  systema? 

—  perguntou  o  barão  de  Souza  —  viveram  felizes 
e  Iranquillos  os  povos  d'ahi  em  diante? 

—  Qual  historia!  —  respondeu  o  conde.  —  Ain- 
da não  tinham  decorrido  seis  mezes,  já  tudo  grila- 
va contra  o  soberano  que,  guiado  pelos  falsos  con- 
selhos dos  aduladores  que  o  rodeavam,  se  tornara 
o  maior  déspota  e  trazia  todo  o  povo  sob  um  ju- 
go insupportavel. 

—  Eu  entendo  de  mim  para  mim  —  disse  em- 
phaticamenle  um  oílicial  de  sapadores,  que  até 
ali  não  proferira  uma  palavra  —  que  todos  os  go- 
vernos são  maus. 

O  conde,  que  não  tinha  ainda  reparado  n'este 
novo  personagem,  examinou-o  com  a  luneta  du- 
rante alguns  momentos,  e  por  fim  exclamou  com 
certa  indiíTerença : 

—  O  que  o  obriga  a  faltar  desse  modo? 

—  A  longa  pratica  que  tenho  das  cousas  deste 
mundo  —  tornou  o  official.  —  v.  ex.",  de  certo,  não 
conhece  ainda  os  homens ;  porque  se  os  conhe- 
cesse não  se  mostraria  tão  admirado  do  que  eu 
ha  pouco  disse.  Nãò  ha  governo  possível,  acredi- 
te. Todo  e  qualquer  systema  por  mais... 

—  V.  ex.''  —  interrompi  ou,  dirigindo-meao  con- 
de, para  evitar  que  o  pobre  sapador  dissesse  al- 
gum grande  disparate,  e  por  consequência  licasse- 
mos  todos  considerados  como  perfeitos  asnos  —  V. 
ex.*  poder-me-hia  dar  alguns  esclarecimentos  so- 
bre a  instrucção  publica  no  seu  paiz? 

• — Da  melhor  vontade  —  respondeu  a  raumia  — 
mas  noto  que  os  senhores  todos,  mais  ou  menos, 
estão  a  braços  com  o  destemido  Morpheu,  e  por 
isso  acho  mais  prudente  deixarmos  a  palestra  para 
outra  pccasião. 

—  Ó  senhor  conde!  —  exclamou  o  padre  Gil- 
berto—  estamos  todos  satisfeitíssimos;  e  bem  sabe 
que  quando  a  companhia  é  sympathica  e  a  con- 
versação animada  e  instructiva,  é  perfeitamente 
impossível  ceder  ao  somno. 

—  Concordo  —  tornou  a  múmia  —  o  assumpto, 
porém,  é  vasto  e  complicado  ;  vae  roubar-nos  ago- 
ra muito  tempo,  e  os  meus  amigos  necessitam  de 
descanço ;  e  eu,  fallando-lhes  com  franqueza, 
acho-me  também  fatigado. 

—  Como  for  da  vontade  de  v.  ex."  —  disse  o 
doutor  Alexandre,  que  já  havia  um  bom  bocado 
não  fazia  senão  piscar  os  olhos  —  E  nesse  caso... 

—  continuou,  voltando-sc  para  os  de  mais  da  com- 
panhia. 

—  Nesse  caso  — disse  eu,  pegando  no  chapcoe 
fazendo  uma  rasgada  cortesia  —  se  me  pcrmillem, 
retiro-mc. 


—  E  nós  igualmente  —  disseram  lodos  os  outros 
a  um  tempo. 

O  conde  recebeu  as  nossas  despedidas  com  mui- 
to agrado,  e  todos  promettemos  voltar  nesse  mes- 
mo dia. 

Eram  quatro  horas  e  meia  quando  entrei  em 
minha  casa.  Minha  mulher  disse  cousas  de  fazer 
desesperar  um  santo ;  mas  eu  não  lhe  dei  respos- 
ta, ô  do  que  tratei  unicamente  foi  melter-me  na 
cama.  Ás  dez  horas  levantei-me,  almocei,  e  em 
seguida  tomei  estas  notas  para  instrucção  de  mi- 
nha família  e  da  humanidade.  Depois  de  jantar 
tenciono  ir  visitar  a  múmia  e  desalial-a  para  dar 
um  passeio  pela  cidi;de. 


Oueixam-se  muitos  dos  nosso  escriplores  de  que 
as  suas  obras  não  teem  aquella  extracção  que  de- 
viam ter,  e  que  esse  mesmo  pequeno  consummo 
cujo  producto,  a  maior  parte  das  vezes,  mal  che- 
ga para  cobrir  as  despezas  da  imnressão,  é  extre- 
mamente moroso,  não  obstante  l)s  multiplicados 
annuncios  nosjornaes,  cartazes  nas  esquinas  e  as 
mais  altas  diligencias  empregadas  pelos  vendedoi'es. 
Teem  carradas  de  razão.  Mas  qual  é  a  origem  d'esse 
oidium  liickerij  que  ataca  toda  a  nossa  litteratura? 
Julgam  que  dimanada  pouca  sympathia  dos  porlu- 
guezes  pelas  letras?  Engana m-se!  O  mal  vem  do 
péssimo  gosto,  da  falta  de  expressão  e  de  verdade 
nos  títulos  dos  livros!  Que  interesse  poderá  excitar, 
por  exemplo:  Camões,  Viagens  na  minha  terra, 
O  3íonaslicon,  Amor  e  Melancolia,  Queda  de  um 
anjo,  D.  Jaime,  etc?  Qualquer  d'estes  titulos  dizem 
alguma  cousa?  —  Não  dizem  nada! 

É,  pois,  necessário  mudar  de  systema,  não  só 
para  o  bom  resultado  dos  trabalhos,  como  lambem 
para  sair-se  d'este  marasmo  em  que  se  vive:  títu- 
los pomposos...  lilulos  que  exprimam...  emlim, 
pouco  mais  ou  menos,  como  os  seguintes,  que 
poderão  servir  de  norma: 

Desempenho  festivo,  ou  triumphal  apparato  com 
<juc  os  illustres  Bracluwenses  pelas  ruas  da  A  u- 
(jusla  Braga  tiraram  ■  a  publico  o  Eucharistico 
Manná  da  Lei  da  Graça,  Epilogo  de  Maravi- 
lhas, saboroso  sustento  de  angélicos  espiritas,  e 
saboroso  Corpo  de  Christo  sacramentado  em  o 
anno  de  1729  :  por  José  Leitão  da  Costa.  Lx.^ 
por  Ant.°  Pedroso  Galvã  1729.  4." 

Discursos  predicáveis  sobre  a  vida,  virtudes  e 
milagres  do  gigante  dos  menores,  Jfercules  por- 
tuguez,  divino  Atlante,  St.°  Ant."  Parte  1.  5o- 
bre  a  vida  do  Santo  do  tempo  da  sua  meninice 
até  se  exercitar  no  officio  de  Mestre.  Lx."*  por  11. 
Valente  dVliv.''  16G3.  i.' 

2."  Parle.  Do  tempo  em  que  o  Menino  Jesus  se 
lhe  poz  em  os  braços  até  fjue  na  eternidade  se  lhe 
manifestou  glorioso,  /.x."  por  Dom.°'  Carn.°  1G69. 
i."  — 

D.  Madalena  da  Gloria.  Astro  brilhante  em 
novo  Mundo,  fragrante  flor  do  Paraiso  plantada 
no  Jardim  da  America  —  Historia  Paneggrica  de 
Si."  llosa  de  S.  Maria.  Lx."  1733.  8.° 


384 


O  PANORAiMA 


Águia  Real,  Phcnix  abrasada,  pelicano  aman- 

{(, Hislorid  paiicf/i/rica   e   vida  prodigiosa  do 

indilo  Palriarcha  'S.  Agostinho.  Li'.''  1744.  4  „ 

,4  Fénix  de  Porlugal,  a  Flor  transformada  em 
Estreita,  a  Estreita  transformada  cm  Sol.  A  Idèa 
moral  c  politica,  e  historia  de  três  Estados,  dis- 
cursado na  rida  da  Rainha  Santa  Isabel,  Infan- 
ta de  Aragão,  fragrante  flor :  casada  com  Elrei 
D.  Diniz  de  Portugal,  estreita  resplandecente ; 
viuva  terceira  de  S.  Francisco,  Sol  flamante. 
0/ferecida  á  Sem.''  Sr.^  Princeza  a  Infanía.\os- 
sa  Senhora  a  Sen.""  Isabel  Maria  Josepha  etc.  Por 
Fr.  António  de  Escolar.  Cintra  por  Manuel  Dias 
1680.  4.° 

TERÇA  FEIRAI 

(Continuação) 
III 

— 'Fillio,  filho,  crgiie-le,  acorda 
«Iara  ijiie,  só  Ocos  o  sabo.«) 
E  em  lii.^rimas  lhe  Irishonia 
A  (lur,  (jue  na  alma  Dão  cahe  . 

«Sonhavas  talvez  brinquedos, 
wPois  que  sorrias,  dormindo. 
«Veras  brincar  nos  rochedos 
«Esse  mar,  que  está  bramindo. 

«Vao,  ainda  quente  do  berço, 
«Inda  quente  dos  meus  licijos. 
i<Para  um  mundo  bem  (li\erso 
«Do  sonhado  em  meus  desejos. 

«Vae;  tu,  que  sempre  dormiste 
«Ao  som  de  minhas  caniigas. 
«Ouvirás  a  caiifão  triste 
«D'essas  ondas  inimigas. 

«E  sorris,  anjo  querido, 
«Ao  passo  que  eu  choro  tanto! 
uCois  não  sabes  o  sentido 
«I)'esle  doloroso  pranto? 

«Não  Sabes,  que  se  me  parle 
«O  meu  coração  no  peito. 
«Ao  vir  assim  acordar-le 
«Em  teu  socegado  leito? 

«Não  sabes  que  a  minha  vida, 
«Pobre  filho,  vae  comligo. 
«E  (|ue  n'esla  despedida 
«Deixas  p'ra  sempre  este  abrigo, 

«Esle  abrigo  do  meu  seio, 
«Trocado  pelos  cançaços?... 
«Não  sei,  não  sei  (jue  receio, 
aAo  lirar-le  dos  meus  braços. 

•  Choras  filho?  Ai,  não,  não  chores, 
«Que  me  liras  lodo  o  alento. 
«Já  me  bastam  minhas  dores, 
"Casla-mc  o  meu  pensamento. 

«Deus  é  bom.  Nem  sempre  os  mares 
«Se  alevanlam  com  lormcnlas. 
«Não  chores,  que,  se  chorares, 
«O  meu  pesar  accrescenlas. 

«Soccga.  Esla  cruz  benzida 
dl.eva  comligo  c  descança; 
"I*ois  quem  é  Ião  bom  íia  vida, 
"Deve  em  Deus  ler  confiança. 


«Yae,  que  eu,  á  Nossa  Senhora, 
«Áquella  virgem  das  Dores 
"Que  é  a  lua  protectora, 
«Kcsarei,  logo  que  fores. 

«Limpa  essas  lagrimas,  vamos, 
«Que  teu  pae  l'as  não  conheça. 
oE  a  oração,  que  le  ensinamos, 
«Ai  vè  lá;  nunca  le  esqueça.» 

E  vio-os  parlir.  E  o  pranto 
Lhe  inunda  as  faces.  Desmaia. 
Dos  pescadores  o  canio 
Se  escuta  ao  longe  na  praia. 

O  que  Irislesa  tamanha! 
Que  presenlimenlo  amargo 
Quando  as  lanchas  da  companha 
Se  fazem,  remando,  ao  largo. 

Junto  á  imagem  de  Maria 
Esla  outra  mãe  dolorosa 
De  joelhos,  lodo  o  dia, 
Lhe  ergue  preces,  fervorosa. 

«O  mãe  de  Deus!  luz  divina, 
«Que  alumias  nossas  almas  1 
«Ó  estrella  matutina, 
)>Que  as  tempestades  acalmas! 

«Baixa  á  terra  esses  olhares, 
«Nossa  única  esperança, 
«E  voltando-os  sobre  os  mares, 
«Protege  aquella  criança! 

«Compadece-le,  Senhora, 
«D'eslas  lagrimas  sentidas. 
«E  estende  a  mão  protectora 
«Sobre  aquellas  pobres  vidas. 

«Vê  que  me  andam  sobre. as  aguas 
«Todos  (pianlos  estremeço; 
«iMãe,  que  entendes  minhas  magoas, 
«Vè  se  essas  vidas  lem  |)rcço. 

«Pela  angustia,  que  sentiste 
«Junto  da  cruz,  o  Maria, 
«Vale-mc  n'esta  hora  triste, 
»Vale-me  n'esla  agonia!» 

No  meio  da  articule  prece, 
Erguc-se  inquieta,  palpila. 
Eilando  o  ceo,  que  escurece. 
Ouvindo  o  mar,  que  se  agila. 

Era  ao  tempo  das  trindades; 
As  aves,  que  presagiam 
O  chegar  das  tempestades. 
Amedrontadas  gemiam. 

A  mãe  segue  na  carreira 
Uma  vaga  e  outra  vaga. 
«Terça  feira!  terça  feira!» 
Lhe  diz  uma  voz  presága. 

Já  treme.  Os  olhos  velados, 
Onde  a  angustia  se  revela, 
Pelos  mares  agitados 
Não  descobrem  uma  vela. 

E  as  nuvens  correm  velozes, 
E  o  vento  revolve  a  areia. 
Ouvem-se  confusas  vozes 
Na  praia  de  gente  cheia. 


(C'inlinuu) 


Typ.  Fríinco-rorlugueza,  Rm  do  Tliesouro  VclLo,  6. 


49 


o  PANORAMA 


385 


A  palmeira  Talipot  ou  Gorypha  umbraculifera 


O  esludo  das  palmeiras  apresenta  grandes  dif- 
iculdades ;  mui  poucas  espécies  se  encontram  na 
Europa ;  são,  pela  maior  parle,  grandes  arvores, 
cujas  flores  e  fructos  só  teem  desenvolvimento  no 
cume,  €,  por  consequência,  diíTiceis  de  allingir. 
Algumas  habitam  no  meio  de  florestas  virgens, 
nos  lugares  mais  espessos;  ura  grande  numero 
nas  margens  dos  rios  e  regatos,  ou  á  borda  do 
mar;  muitas  nas  regiões  alpinas;  outias,  emlim, 
■vivem  isoladas  ou  em  pequenos  grupos  nas  planí- 
cies. Existe  um  grande  numero  de  espécies ;  mas 
descriptas,  apenas  quatrocentas,  que  os  naturalis- 
tas dividiram  cm  setenta  e  três  géneros,  forman- 
do cinco  tribus. 

As  palmeiras,  ora  são  grandes  e  formosas  arvo- 
res, cuja  altura  atlingc  e  excede  algumas  vezes 
cento  e  setenta  metros,  e  de  uma  apparencia  in- 
teiramente particular;  ora,  o  que  c  mais  raro, 
formam  pequenos  arbustos,  em  certos  casos  des- 
providos completamente  de  tronco,  e  cujas  folhas 
sustentam  uma  espécie  de  prato,  que  sobrepuja  a 
raiz.  Algumas  espécies  pelo  seu  tronco  delgado 
assemelham-se  a  gramíneas  gigantescas. 

O  tronco  das  palmeiras  tem  por  caracter  essen- 
cial não  apresentar  nem  casca  nem  pau  formado 
de  camadas  concêntricas,  como  no  carvalho  e  na 
maior  parle  das  arvores  das  nossas  regiões ;  mas 


sim,  uma  massa  composta  de  fibras  esparsas  no 
meio  de  um  tecido  esponjoso  que  as  une  umas  às 
outras;  as  mais  velhas  e  mais  duras  destas  libras 
estão  na  circumferencia  ;  as  mais  novas  e  mais 
temas  no  centro. 

Desde  que  uma  semente  de  palmeira  começou 
a  germinar,  desenvolve-sc  um  grande  numero  de 
folhas,  que  formam  uma  primeira  ordem  circular 
e  que  estão  ligadas  á  raiz  por  uma  camada  de  li- 
bras collocada  no  interior  da  precedente.  Esta 
segunda  camada  tende  a  abrir  e  a  rebolar  a  pri- 
meira. O  mesmo  succede  com  todas  as  outras  ca- 
madas dos  annos  seguintes,  que,  successivamenle, 
vêem  recalcar  c  estender  as  fibras  das  camadas 
exteriores,  até  que  estas,  tendo  adipiirido  pela 
idade  toda  a  duresa  da  madeira,  resistem  plena- 
mente á  pressão  dos  filamentos  do  interior;  então 
todo  augmento  em  diâmetro  cessa  no  annel  solido 
formado  pela  reunião  de  todas  as  fibras,  annel 
que  se  torna  cm  base  do  tronco  da  palmeira. 

Quando  o  tronco  altinge  toda  a  sua  grossura, 
já  não  pôde  senão  crescer  em  altura  por  toros  se- 
melhantes, que  se  ajuntam  succcseivamente  uns 
aos  ouiros,  c  que  produzem  os  renovos  que  se 
desenvolvem  cada  anno  na  extremidade  do  tronco. 
Este  crescer  ò  uniforme,  porque  sáe  sempre  dos 
renovos  o  mesmo  numero  de  folhas,  e  ficam  os 


386 


O  PANORAMA 


mesmos  ajunlameníos  de  fibras  e  força  de  resis- 
tência. A  uniíormidade  na  espessura  do  Ironco 
suppõe  lodavia  que. a  arvore  vegeta  sempre  em 
bom  terreno  e  que  a  inlluencia  do  clima  não  mu- 
da sensivelmente.  Se  se  transportasse  a  palmeira 
de  um  bom  terreno  para  um  mau.  a  sua  vegeta- 
ção seria  menos  vigorosa,  e  nos  anneis  formados 
pelas  novas  folhas  tendo  menos  largura,  produ- 
zir-se-ia  uma  contracção.  Se,  depois,  a  levassem 
para  melhor  terra,  a  parte  superior  do  Ironco 
ilesenvolver-se-ia  mais  vigorosa  e  produzir-se-ia 
um  augmenlo  de  volume. 

As  palmeiras  são  os  mais  ricos  ornamentos  da 
vegetação  intertropical.  Elíedivamenle,  são  as  re- 
giões dos  trópicos  que  se  devem  considerar  co- 
mo o  berço  c  a  verdadeira  pátria  desles  inte- 
ressantes vegelaes.  Segundo  Marlius,  no  hemis- 
pherio  austral,  não  vão  alem  de  35."  em  quanlo 
(jue  no  boreal  vão  até  iO."  Cada  espécie  de  pal- 
meira tem  geralmente  seus  limites  fixos,  além  dos 
(luaes  raras  vezes  se  vêem  crescer.  Também  em 
cada  parle  do  globo  se  encontram  espécies  parti- 
culares deste  vegetal,  que,d'algum  modo,  formam 
um  dos  caracleres  da  sua  vegetação.  Gomludoum 
numero  de  espécies,  sobreludo  as  que  crescem  á 
borda  do  mar,  parecem,  de  algum  modo,  cosmo- 
politas; tal  é,  por  exemplo,  o  coqueiro. 

Esta  família  encerra  vegelaes,  não  só  muilo 
nolaveis  pela  belleza  e  elegância  de  suas  formas, 
mas  muilo  impoilantes  pelos  numerosos  sei'viços 
que  prestam  aos  habitantes  das  regiões  onde  ve- 
getam. Muitos  d'elles  são  arvoi'es  de  primeira  ne- 
cessidade, cujos  fructos  constituem  o  alimento 
quasi  exclusivo  de  ceitos  povos.  Assim  os  fruclos 
da  tamareira  pai'a  os  habitantes  de  toda  a  costa 
meridional  e  Occidental  do  Mediterrâneo,  o  co- 
queiro para  os  habitantes  da  índia,  da  America 
e  das  ilhas  do  oceano  Pacifico,  são  uma  alimen- 
tação Ião  abundante  como  necessai'ia. 

Muilos  destes  vegelaes  fornecem  uma  espécie 
de  fécula  conhecida  pelo  nome  de  satju,  que  é 
muilo  procurada  pela  gente  da  Europa  que  soffre 
do  estômago  e  do  peito;  outras  dão  um  principio 
adstringente,  uma  espécie  de  sangue  de  drago; 
algumas  produzem  óleo. 

Emfim,  estas  arvores  oíTerecem  ainda  aos  ha- 
bitantes das  regiões  equatoriaes  madeiras  decons- 
trucção  paia  suas  habitações,  largas  folhas  para 
cobril-as,  fibras  resistentes  para  fazerem  redes, 
cordas  ele.  A  fava  de  um  grande  numero  de  es- 
pécies é  susceptível  de  pioduzir,  fermentando,  um 
licor  alcoólico  que  se  obtém  pela  dislillaçâo. 

Juntamos  a  este  artigo  uma  gravuia  na  qual  se 
mostra  a  [jalmeira  lalipot  nos  seus  dilíerenles  es- 
tados. Esta  aivorc  formosíssima,  hojií  mui  i'ara, 
enconlra-se  unicamente  na  ilha  de  Ceylão  c  na 
costa  do  Malabar,  e  é  uma  das  mais  uleis  ao  ho- 
mem. Floresce  apenas  uma  vez  e  quando  o  fru- 
cto  amadurece  começa  a  sua  decadência ;  pouco 
tempo  depois  inclina-se,  verga  e  cáe,  para  não 
mais  se  levantar.  Exlrae-se  d'ella  uma  grande  (|uan- 
lidade  de  fécula  a  que  se  dá  o  nome  de  scuju,  e 
as  suas  folhas,  cada  uma  das  quacs  pôde  abrigar 


até  doze  pessoas,  cortadas  em  certa  época  e  fa- 
zendo-as  passar  por  um  simples  processo,  tor- 
nam-se  amarelladas,  e  tão  consistentes  como  o 
pergaminho.  As  fiores  sobrepõem-se  á  folhagem 
e  dão  á  arvore  uma  elevação  de  mais  vinte  ou 
trinta  pés.  N'eslas  flores  encontra-se  uma  grande 
quantidade  de  sementes  do  tamanho  e  feitio  das 
cerejas,  que  servem  unicamente  para  a  reproducção 
da  espécie. 

Irmos  mais  longe  com  a  descripção  desta  arvo- 
re seria  repelirmos  o  que  acima  fica  dito. 


SOBRE  AS  MEMORIAS  DOS  VINTE  ANiNOS 

(Carin  a  Jíulio  de  Ca.s(illio) 

Ex.""  sr.  e  amigo: — lia  qualorze  para  quinze 
annos  que  o  não  vejo,  dès  que  o  tratei  collega 
nas  aulas  do  Pórtico,  quasi  collega  nos  brincos 
infantis,  e  no  emtanto  eslou-o  reconstruindo  a(|ui 
no  pensamento,  e  cm  toda  a  candidez  da  sua  al- 
ma, com  este  seu  livro,  tão  original  e  Ião  seu,  que 
me  obriga  a  quebrar  o  silencio,  e  ao  cabo  de  tan- 
to tempo  volvido,  escrever-lhe  esta  caria. 

lia  sempre  um  escolho  temível  na  vida  dos  que 
nasceram  favoneados  com  o  auxilio  (digamql-o 
por  emquanto  assim)  de  um  grande  nome.  É  o 
preconceito  nos  dois  vulgos,  o  dos  chamados  ju- 
diciosos e  o  dos  ineptos  e  detractores  da  extinc- 
ção  do  talento  com  o  extinguir  do  individuo!  é  a 
negação  da  sua  transmissibilidade;  e  tudo  isto  em 
desfavor  dos  que  são  culpados  em  haver  nascido 
á  sombra  d'aquellas  frondosissimas  arvores  1 

Loucos !  que  seria  então  esta  gloria  de  heredi- 
tários, esse  jubilo  de  um  appellido,  ás  vezes  já 
insculpido  em  pedra  tumular;  se  o  fogo  sagrado 
os  não  illuminasse  lambem?  se  a  intelligencia  ins- 
piradora não  estivesse  já  premindo  os  conhecedo- 
res íntimos  a  preparar  as  grinaldas  rescendentes, 
que  os  decorassem  na  primeira  manifestação?  se 
lodo  esse  brilho  devia  ser  de  ouropel,  e  a  cons- 
ciência estava  a  icmorder  da  sua  mentira,  e  a  as- 
segurar que  o  lampadário,  que  os  alumiara,  linha- 
se  apagado  para  todo  o  sempre? 

No  emtanto  é  esta  uma  triste  verdade  :  os  dic- 
cionarios  históricos  e  as  noticias  biographicas,  lo- 
dos os  Desobry  e  os  Rouillel,  os  Moreri  e  os  Va- 
pereau  teimam  cm  reconquistar  o  favor  publico 
para  essas  jóias  Ião  trabalhadas,  e  ás  vezes  Ião 
brilhantes  do  mundo  intellectual ;  que  serve  isso? 
A  nossa  hediondez  de  desconhecedores  do  poder 
de  Deus  vac-se  toda  lampeira  (direis  n'isso  que  vac 
certa  de  quanto  é  pequenina),  e  lira  de  uma  fa- 
mília, muilas  vezes  pleyade,  toda  cila  luzente,  um 
nome,  e  esse  é  o  assoalhado,  o  imposto  ás  turbas 
desensinadas,  o  vilipendiado  lambem  do  vilipen- 
dio, dos  esquecidos. 

Ás  vezes,  com  tudo,  por  mais  que  façam  estes 
propaladores  da  obra  de  Satan,  estes  semeadoi-cs 
de  joio  pelas  campinas  verdejanlissimas  por  quan- 
to se  podem  alargar  os  olhos,  a  celebridade  flca^ 
se  immune ;  então  é  o  estorcer  d'aquclles  damni- 
nlios,  que,  cm  phrase  mais  commum  c  mais  posi- 
tiva, são  as  personificações  do  seu  Gaspar  No- 


o  PANORAMA 


387 


gueira.  A  mim  parece-me  no  emlanto  que  a  cele- 
bridade assim  immune,  entrislece-a  quasi  sempre 
algum  grande  revés.  Afora  o  dar-se  o  caso  que  n'uma 
mesma  congregação  familiar  sejam  varias  as  provín- 
cias do  saber  em  que  se  distingam  os  seus  membros, 
e  isso  vede  a  confusão ;  afora  isto,  são  ordinaria- 
mente as  individualidades  marcadas  e  retidas 
nas  consciências  volúveis  por  caracteres  inapaga- 
veis,  mas  por  ventura  desastrosos ;  que  renome 
teriam  trinta  irmãos  poetas,  se  Deus  liros  hou- 
vera dado,  âo  pé  d'esse  Milton,  cego  e  audaz,  que 
se  atirava  para  além-tumulo,  e  rasgava  os  arcanos 
do  viver  de  Deus  ás  turbas  insoííVidas?  que  reno- 
me trinta  irmãos  poetas,  ao  pé  d'esse  Tasso,  louco 
e  enfiaquecido,  mas  sublime,  mas  vidente,  que 
da  sua  enxerga  do  hospital  fazia  palpitar  ancioso 
o  coração  de  todo  um  mundo,  que  pretende  es- 
quecel-o  ?  que  renome  de  poeta  podem  assumir, 
tão  grandioso,  os  irmãos  de  Castilho  António,  a 
esquecer  esta  alma  da  Grécia  e  do  Lacio,  que  se 
hade  íinar  abraçado  á  sua  lyra,  e  a  ouvir  o  ho- 
sannah  da  industria  de  hoje,  o  Hymno  do  trabalho  ? 

Isto  tudo,  com  estas  divagações,  mostra  que,  a 
acrescer  á  exigência  de  um  publico  difficultoso 
pela  recordação  de  um  nome  benemérito,  não 
hão  de  faltar  ainda  ao  Júlio  os  doestos,  as  male- 
dicenciasinhas,  as  calumnias,  segredadas  com  hy- 
pocrisia,  dos  que  hão  de  dizer  que  o  seu  livro, 
escreveu-o  toda  a  gente,  talvez  o  imperador  da 
China,  o  da  Rússia,  o  Grão-Yizir,  quem  sabe?  to- 
da a  gente,  menos  o  auctor. 

—  O  auctor,  esse  que  o  assigna,  dirão  elles, 
isso  é  que  nunca ;  o  auctor !  ora  o  auctor !  Poise 
lá  possível  que  o  irmão  ou  o  filho  de  um  litterato 
tenham  geito  para  alguma  cousa!  que.  Deus  can- 
çou-se  a  crear  dois  homens  hábeis !  Pois  não 
vêem  a  pag...  o  tom  sentencioso  do  pae ;  e  a 
pag...  aquella  descripção  não  pôde  ser  senão  de 
F. ;  anda  tanto  com  eíle !  e  a  pag...,  aquillo  en- 
tão é  claro  como  agua,  foi  o  G. 

A  única  resposta,  Júlio  :  -^ 

Gloria  á  Bondade  Summa,  que  diminuiu  dois 
pés  cm  animaesilos  de  quatro ! 

> 

Uma  das  parles  em  que  prima  o  seu  livro,  a 
principal  talvez,  e  uma  das  mais  necessárias  no 
romance,  é  a  verdade  fidelíssima  dos  caracteres 
descriptos.  Quantos  dos  seus  leitores  não  hão  de 
recordar  no  lypo  matriarchal  da  Rosa  de  Teyve 
alguma  d'aquellas  santas  mulheres,  que  nos  ami- 
maram na  infância,  c  a  que  a  frequência  dos  an- 
tepassados quasi  já  dava  um  lugar  na  familla,  e 
com  elle  a  imposição  do  respeito,  e  de  uma  certa 
veneração  ? 

Nuno  de  Macedo,  esse,  advinhou-o  v.  ex\  ?  ou 
dar-se-ha  o  caso  que  não  haja  homem  de  coração 
a  quem  Deus  não  envie  como  purificador,  ou  en- 
tão como  procurador  do  mau  espirito,  a  cousa 
anda  pelo  mesmo,  um  dos  taes  monstrenguitos?  Ku 
conheci  já  dois  governadores  de  Pungo-Andongo ; 
tratei  até  com  um  terceiro  ha  annos,  e  sinto 
ainda  aqui  o  asco,  que  me  motivou  em  criança 
aquella  ridicularia  gloriosa  de  Deus ! 


Do  pae  de  Magdalena,  do  calumniadorsito  do 
Gaspar  Nogueira,  de  algum  outro,  que  me  não 
lembre,  e  lá  pelo  livro  enxameie  em  idêntica  altura 
na  craveiía  da  moi alidade,  ou  antes  da  imiuora- 
lidade,  nem  uma  palavra.  Bem  fez  o  Júlio  em 
não  apimentar  a  narrativa,  carregando  em  conside- 
rações. A  illação  lira-se  dos  factos.  Muito  bem. 
Á  lama  ninguém  vae  dizer:  és  hedionda.  Daria 
vontade  de  rir. 

Cheguemo-nos  out''a  vez  aos  amigos,  de  quem 
nos  separámos  na  boa  da  Rosa. 

Sebastião,  tem-n'o  v.  ex.°  ainda  n'algum,  em 
muitos  posso  dizer,  d'esses  veteranos  que  viram 
ainda  as  ultimas  glorias  da  sua  terra,  e  quem 
sabe  se  os  últimos  esforços  pela  independência  da 
nação. 

Ò  pae  de  Luiz,  esse  é  adorável.  Aquellas  idéas 
absoluto-liberaes  de  uma  grande  alma  encontrei-as 
eu  também  personificadas.  lia  um  ancião  vene- 
rando, que  já  passou  dos  oitenta,  e  a  quem  eu 
respeito  e  amo,  talvez  o  velho  assim  o  não  saiba, 
como  se  fosse  meu  pae.  É  uma  das  minhas  pou- 
cas affeições  desobrigadas,  que  se  teui  enraizado 
fundo,  porventura  a  única.  Ás  vezes  ouço-o,  silen- 
cioso e  commovido,  a  fallar-me  das  suas  crenças, 
e  até  das  suas  illusões.  As  crenças  d'elle,  posso 
dizel-o  com  alvoroço,  são  as  minhas  também,  creio 
que  são  as  boas.  Quanto  ás  suas  illusões,  illusões 
que  o  viver  de  annos  nas  cortes  estrangeiras  em 
investigações  antiquarias,  e  o  longo  praticar  com 
os  homens  públicos  não  poderam  apagar  no  cara- 
cter honradíssimo,  essas  peço  a  Deus  lh'as  con- 
serve, sobretudo  agora  que  o  véo  do  sepulchro  se 
lhe  estende  já  sobre  a  fronte  illuminada.  E  que 
me  importa  esse  véo,  se  aquella  luz  vacillante  é 
bastante  para  me  alumiar?  A  que  sombra  me  hei 
de  eu  acolher,  quando  essa  fronde  se  torcer,  e  ca- 
hir  derrubada?  só  se  for  a  ti,  syndone  apodre- 
cida que  encobres  o  cadáver  paterno,  e  cedo  me 
podias  envolver  também... 

Chegou  a  vez  do  fr.  Jeronymo ;  agradeço-lhe, 
Júlio,  aquellas  paginas,  que  me  fizeram  bem,  no 
consolo  das  lagrimas.  O  seu  personagem  se  infe- 
lizmente não  é  o  fiel  transumpto  da  maior  parte 
dos  nossos  clérigos,  ás  vezes  divertidos,  pelo  me- 
nos é  a  demonstração  do  que  deve  ser  o  sacerdo- 
te. O  presbytero  da  narrativa  de  Alexandre  Her- 
culano, d'esse  gigante  para  quem  na  vida  lillera- 
ria  não  ha  olhos  (jue  o  possam  desfitar,  faz  o  bem 
que  pôde,  que  sabe  ou  que  adivinha,  como  santo 
que  e;  mas  destoa  tanto  no  bom  do  velho  o  seu 
latim  bárbaro  e  a  sua  barbar issima  prosódia !  Pois 
não  ha  também  espirites  illusirados,  às  vezes,  por 
esses  lugarsitos  sertanejos,  mui  de  propósito  ali 
habitadores  como  prófugos  das  cidades,  e  scisma- 
dores  de  mais  rasgados  horisonles? 

Eu  quero  mais  ao  fr.  Jeronymo,  e  no  emlanto 
o  meu  conhecimento  é  mais  novo  e  mais  rápido, 
e  no  emlanto  v.ex."  não  me  desvendou  totalmente 
a  sua  vida  domestica,  que  é  n'isto  que  o  Hercula- 
no foi  longe,  tão  longe,  que  im])Ossibililou  os  que 
de  futuro  tentassem  descrever  as  scenas  do  passal ! 
D'esta  maneira  vô  que  também  não  posso  dei- 


388 


O  PANORAMA 


xar  de  o  preferir  ao  frater  Leonardus,  do  llof- 
fmann,  ou  a  monsenhor  Bemvindo.  O  primeiro, 
erudito,  e  com  pretensão  a  austero,  não  e  mais  que 
um  espirito  forte,  que  dá  resposlas  equivocas  aos 
súbditos,  que  o  interrogam  da  vida  religiosa.  Se 
lilterariamente  o  admiro  ás  vezes,  cá  na  vida  real, 
se  o  encontrasse,  e  me  pedissem  a  opinião,  cha- 
mar-lhe-hia  vibora  escondida  em  ahbatina. 

Com  Myriel  acontece  que.  quando  vou  já  a 
svmpathisâr  com  a  sua  simplesa,  tudo  se  desfaz 
ao  acudir-me  á  lembrança  a  sua  proíissão  de  pan- 
theismo,  pelo  menos,  aos  pés  do  convencionado  ; 
elastimo-o.  Lastimo-o,  porque  é  uma  boa  alma.  A 
quietação  de  espirito,  invejar-lli'a-hia,  se  eu  po- 
desse  distinguir  se  é  o  paciíicamento  da  ignorân- 
cia, ou  o  consolo  do  recolhimento  o  que  me  at- 
trae.  Victor  Hugo  não  o  disse. 

Só  d'estes  três  fallo  eu,  Júlio,  em  comparação 
do  seu  fr.  Jeronymo,  que  eu  considero  o  ideal  do 
padre  calholico;  e  muito  de  propósito  só  d'esles 
três.  Causam-me  pena  os  seus  desvios ;  mas  comrao- 
vem-me  todos  elles.  Lá  irmanal-os  com  algum  per- 
sonagem áoAmnldiçoado  ou  do  Jcsuita,  isso  nun- 
ca eu  faria.  Vá  fora  o  embaimento  traiçoeiro  do 
protestante  que  se  rebuça  em  Padre*** 

Ás  vezes,  as  decepções  do  espirito  conturba- 
do desterram  no  filho  de  Eva  a  idea  de  Deus. 
Para  elle  n'essa  occasião  o  symbolo,  a  alegria, 
é  o  inverno  —  a  saraiva,  que  é  o  desconsolo;  o 
trovão,  o  relâmpago,  a  corrente  de  agua  —  a  ma- 
gestade  do  Eterno  na  sua  ira.  JVada  de  outomno, 
porque  lá  ainda  ha,  não  digo  flores,  mas  folhas 
emmarelecidas ;  agita-as,  derranca-as,  mirra-as  o 
tufão,  mas  espalham-se  e  rastejam  pelo  solo,  ima- 
gem ainda  dos  sonhos  doirados  dd  primavera  da 
vida,  tão  cedo  aniquillados  no  bulcão  condensado 
do  seu  futuro  e  do  seu  inverno,  imagem  que  se 
quer  despedaçar,  imagem  que  se  quer  esquecer. 

D'islo  seresentem  poisosescriptosdoillustrado, 
que  é  também  infeliz.  Pobre  do  Lamennais !  coi- 
taíio  do  Rousseau ! 

Lá  da  sua  campa  parece  que  ainda  estão  dizen- 
do, como  Os  infelizes,  de  Achkermann  : 

Si  nous  avons  failli,  nous  avons  tant  souffert ! 

É  crença  minha,  quer  muitos  negrumes  des- 
pontem no  horisonte  da  vida,  que  resta  sempre 
para  alumiamcnlo  da  alma  um  fanal  de  esperança, 
que  vivitica  e  aquece,  acccndido  pelo  Senhor ! 

Que  f)ara  esses  desgraçados  haja  ainda  no  exis- 
tir uma  luz  que  lhe  destolde  o  animo,  um  aslro 
que  lhe  irradie  o  entencbramcnto  do  espirito  com 
as  doçuras  do  incílávcl ! 

Nas  producções  do  transviado  ha  scmpie  um 
período,  uma  phrase  que  nos  compunge,  (|ue  nos 
idenlilica  nas  lagrimas,  qu(í  pôde  ale  redemil-o.  É 
como  a  prostibularia,  que  ainda  não  tem  vinte 
annos,  e  de  cabellos  cor  de  oiio,  no  primeiro  dia 
de  devassidão.  Ocmgulo,  desaperta-o  entre  receiosa 
e  timida;  pensativa  e  triste  vae-se  desvestindo  aos 
olhos  do  iiisofírido  que  a  ic(|uer;  aíinal,  no  phre- 
nesi  da  volu[)ia  ou  no  desespero  da  soile,  voam- 
Ihe  repentinos  da  beira  do  thoro  impudico  ao  pó 


do  sobrado  os  setins  custosos.  Mas  a  cada  devas- 
sar das  formosuras  escondidas  pelo  seductor,  pur- 
pureia-se-Ihe  a  fronli',  e  deslisa-lhe  o  pranto.  Dir- 
se-hia  que  o  anjo  da  innocencia  não  a  desampa- 
rou ainda,  e  se  está  a  entristecer  do  enlamear 
d'aquella  opala  ! 

Oh  1  mas  o  escriptor  traiçoeiro,  e  que  se  es- 
conde, esse  não  sei  desculpal-o,  nem  d'elle  me 
posso  doer.  Este  cuspir  envenenado  no  madeiro 
de  Jesus  é  nauseabundo  como  a  baba  esverdeada  do 
gasleropodeo,  que  mancha  e  invade  a  cavidade  ocu- 
lar de  caveira,  alvacenta  pelo  passar  de  dois  sé- 
culos ! 

Uma  cousa  que  o  Júlio  talvez  não  saiba,  é  que 
no  convento  do  seu  prior  de  Santa  Maria  da  Assum- 
pção existia  até  ha  pouco  realmente  um  frade  como 
aquelle.  Lembro-me  ainda  das  festas  em  que  me 
alvoroçou  em  criança,  e  da  maneira  como  oífe- 
ganle  e  reverente  lhe  osculei,  ha  oito  annos,  a 
mão  descarnada  e  já  fria.  Sentinella  firme  do  per- 
dido exercito  do  monachismo,  não  pôde  abando- 
nal-a,  e  era  velho,  e  morreu  octogenário,  a  po- 
bre cella,  onde  o  respeitaram  superior  os  irmãos 
do  mosteiro.  A  fr.  Manuel,  lá  o  desceram  ha 
vinte  e  quatro  mezes  á  crypla  dos  Casti'os.  Que  a 
cruz  negra  d'aquella  mansão  ensombre  o  envoltó- 
rio da  alma  do  frade  ! 

J.  A.  DA  Graça  Baurbto, 

(Continua) 

DANIEL  0'CONNELL 
I 

Consolemo-nos.  Nem  só  o  calholicisnno  que 
tem  invocado  os  princípios  religiosos  para  em 
seu  nome  e  á  sua  sombra  se  commetterem  as 
máximas  atrocidades ;  não  basta  folhear  os  an- 
naes  da  santa  inquisição  para  se  conhecerem 
todos  os  crimes  praticados  pelo  fanatismo.  A  his- 
toria da  nação  mais  liberal  e  mais  tolerante  da 
Europa,  a  Inglaterra,  contém  negras  paginas  cuja 
leitura  horrorisa,  e  onde  esta  inscripto,  para  ver- 
gonlia  eterna  dos  seus  legisladores,  o  martyrio 
de  séculos  d'uma  nação,  que  lhe  devia  ser  irmã, 
e  que  lhe  tem  sido  escrava.  A  Irlanda  mostra 
ainda  em  pleno  século  XIX  os  pulsos  roxeados 
pelos  grilhões  inglczes,  e  as  largas  cicatrizes  que 
lhe  deixou  estampadas  no  peito  a  espada  que 
tem  sempre  reprimido  d'um  modo  sanguinolento 
as  tentativas  d'cssa  miscra  nação  para  despedaçar 
o  jugo  aviltante^  que  ainda  hoje  cm  parle  a  op- 
prime. 

Comtudo,  devemos  confessal-o,  esse  ódio  que 
uns  aos  outros  se  consagram  os  habitantes  das 
duas  grandes  ilhas  do  Reino-Unido  não  data  uni- 
camente das  dissidências  religiosas.  Antes  que 
Henrique  VIU,  desdenhando  o  titulo  de  lilho  bem 
amado  da  Igreja  com  que  o  Summo  Ponlilicc  o 
distinguira,  erguesse  a  bandeira  da  revolta  con- 
tra a  unidade  catliolica,  c  juntasse  ãs  insígnias 
do  seu  poder  temporal  as  insígnias  da  suprema- 
cia espiritual,  já  a  Inglaterra  c  a  Irlanda  se  di- 
laceravam a  cada  instante  n'uma  lucta  cruenta 
e  S(MTipre  renovada. 

Para  que  bem  comprehendãmos  a  influencia 
exercida  sobre  os  seus  con)patriotíis  pelo  grande 
tribuno  cuja  biographia  vamos  traçar  rapida- 
mente,  devemos  primeiro  fazer  um   esboço  não 


o  PANORAMA 


389 


menos  rápido  das  longas  dissensões  que  teem  en- 
sanguentado o  solo  iriandez. 

Uma  estranha  fatalidade  preside  ha  séculos  ás 
relações  dVstes  dois  paizes  irmãos.  Ora  por  um 
motivo  ora  por  outro,  desde  que  se  operou  a 
união  das  duas  coroas  niuna  só,  sempre  que  se 
travou  uma  lucta  civil  de  tal  forma  se  acirraram 
os  ódios  que,   terminada  a  guerra,   o  vencedor, 


em  vez  de  gosar  com  moderação  do  seu  trium- 
plio,  em  vez  de  tentar  operar  a  fusão  completa 
dos  dois  povos,  que  devia  ser  o  seu  desideralum,  não 
pensou  senão  na  vingança,  e  perpetuou  por  essa 
forma  o  ódio  e  a  dissenção. 

O  mesmo  nos  succede  com  os  nossos  visinhos 
castelhanos.  Irmãos  somos  também  pela  origem, 
pela  communidade  de  tradições  e  de  interesses. 


Daniel  0'GonnelI 


A  União-Iberica,  para  quem  encara  as  cousas  de 
longe  e  guiando-se  pelos  mappas  geographicos  c 
ethnographicos,  é  uma  ideia  naturahssima,  que 
todos  deveriamos  abraçar.  E,  comludo,  se  a  Hes- 
panha  conseguisse  pôr-nos  o  pé  na  cerviz  seria 
para  nós  o  que  tem  sido  a  Inglaterra  para  a  Irlan- 
da... mas  porque  procurar  comparações  alheias? 
seria  o  que  foi  durante  os  malfadados  60  annos 
do  nosso  captiveiro  nas  garras  dos  Filippes. 

Foi  cm  1167  que  os  Inglezes  pozcram  pela  pri- 
meira vez  o  pé  no  solo  da  verdejante  Erin.  Cha- 
maram-nos  discórdias  intestinas ;  o  monarcha  de 
um  dos  quatro  reinos  em  que  se  dividia  a  Irlanda 
Dermod,  príncipe  de  Leinster  expulso  dos  seus  es- 
tados, pedio  soccorro  a  Henrique  11.  Não  ousou 
dar-lh'o  directamente  o  soberano  inglez,  mas 
permittio  aos  seus  ricos-homens  que  lhe  auxilias- 
sem as  pretencões.  Primeiro  erro  de  politica  fa- 
tal á  Irlanda.  Os  auxiliares  transformaram  se  em 
conquistadores ;  isso  era  de  esperar  no  tempo  em 


que  a  ambiciosa  cobiça  nem  tentava  disfarçar- 
se  com  um  pretexto. "  Mas  (|ue  conquistadores 
esses  I  Não  era  um  rei  que  cingia  a  coroa  do 
monarcha  nacional ,  mas  que  deixava  tudo  o  mais 
no  mesmo  estado ;  eram  senhores  feudaes  que 
tomavam  por  sua  conta  o  que  lhes  convinha, 
que  expulsavam  os  proprielarios  legitimes,  que 
dividiam  entre  si  a  presa,  deixando  ao  seu  mo- 
narcha a  posse  das  estradas  irlandezas,  como  o 
nosso  D.  João  II  dizia  que  sou  pae  1).  AtTonso  V 
o  deixara  soberano  das  estradas  de  Portugal. 

Henrique  II  e  os  seus  succcssores  tentaram  re- 
primir estes  excessos,  e  admillir,  como  iguaes  aos 
seus  outros  vassallos,  os  súbditos  irlandezes.  Bal- 
dada tenlaliva.  Os  cães  de  filia  rosnavam,  c  a 
pobre  Erin  continuou  a  debaler-se  nos  seus  den- 
tes agudos. 

D'aqui  unn  irritação  surda  entre  os  conquista- 
dos, d"ahi  o  estabelecimento  de  duas  raças  anta- 
gonistas, uma  a  nacional  prompta  sempre  a  in- 


390 


O  PANORAMA 


urgir-se,  a  outra,  a  transportada  da  ilha  visinha, 
com  a  mão  constantemente  no  punho  da  espada 
repressora. 

fim  131o  os  Irlandezes  descontentes  proclamam 
para  rei  Eduardo  Bruce,  filho  do  celebre  monar- 
cha  escocez  Roberto  Bruce.  A  insurreição  foi  de- 
bellada,  mas  o  que  fizeram  os  vencedores?  Pro- 
mulgaram uma  lei  que  declarava  os  irlandezes 
inimigos  públicos,  que  prohibia  aos  filhos  da 
velha  Inglaterra,  debaixo  das  penas  mais  severas, 
contrahirem  com  elles  allianças  de  familia,  e 
aprenderem  a  lingua  ou  adoptarem  os  costumes 
do  povo  conquistado  I 

Isto  é  que  era  fazer  cada  vez  mais  profundo  o 
abysmo,  que  separando  dois  povos  que  se  deviam 
abraçar  á  sombra  d"um  throno  paternal,  que 
não  fizesse  diíferença  entre  os  dois  filhos,  que 
celebrasse  até.  como  o  velho  da  parábola,  a  tor- 
nada do  filho  pródigo. 

Correram  os  annos;  travou-se  na  Grã  Bretanha 
a  formidável  lucta  da  Rosa  vermelha  e  da  Rosa 
Branca ;  triumphava  a  de  York  na  Irlanda,  ao 
passo  que  na  Inglaterra  a  sorte,  favorável  á  Rosa 
de  Lencastre,  fazia  subir  ao  throno  Henrique  VII. 

Este  logo  tratou  de  subraetter  a  Irlanda.  Con- 
seguio-o,  e,  apesar  de  ser  homem  de  tanta  capa- 
cidade, desvairado  pelo  ódio  cego  que  os  seus  com- 
patriotas votavam  aos  Iilandezes,  exerceu  as  vin- 
ganças em  larga  escala.  Para  punir  os  rebeldes, 
punio  e  por  conseguinte  exacerbou  a  nação  in 
teira.  Um  decreto,  conhecido  pelo  nome  de  acto 
de  Poyning,  por  ser  o  nome  do  vice-rci  da  Irlanda 
n'esse  tempo,  reformava  a  constituição  politica 
da  velha  Hibernia^  e  o  seu  parlamento,  apesar 
de  ser  já  composto  exclusivamente  de  inglezes 
alli  residentes,  deixou  de  gosar  as  prcrogativas 
que  o  parlamento  inglez  gosava,  foi  tratado  como 
um  corpo  sujeito  ao  governo,  e,  se  ficou  ainda 
de  p6,  foi  apenas  como  vão  simulacro,  como 
phantasma  nuUo. 

Sobe  ao  throno  Henrique  VIII,  espalha-se  na 
Inglaterra  o  fermento  do  lutheranismo,  e  o  mo- 
narcha  tem  a  habilidade  de  não  combater  a 
torrente  da  Reforma,  que  lhe  podia  desarraigar 
o  throno,  e  pelo  contrario  de  se  pôr  A  sua  testa 
para  lhe  dirigir  os  movimentos.  Essa  hábil  poli- 
tica do  cruel  esposo  de  Anna  Bolena  dá  origem 
ao  anglicanismo,  seita  que  assegura  á  Inglaterra 
a  autonomia  religiosa,  e  ao  monarcha  a  supre- 
macia espiritual  sobre  o  seu  povo. 

M.  Pinheiro  Chagas. 

{Conlinuu) 

Quem  ícraça  ante  o  Rey  alcança, 
E  ahi  falia'  o  que  não  deve, 
(Mal  granile  de  má  privança), 
iv-roiilia  na  foiílc  lança 
De*  que  Ioda  a  lerra  íjcbe. 

Sv  DK  Miranda. 


A  r.ALATÉA  MODERNA 
Xlil 

D.  Violante  «1  barono/.n  <lu  .%l|>cclrul 

Tens  mil  vezes  rasão,  ó  minha  querida.  Quan- 
to te  agradeço,  porque  nic  guiaste  os  passos  in- 
certos na  senda  da  vida ! 

Eihertci-me  hoje.  Quebrei  os  grilhões  da  escra- 
vidão. Aventei  para  longe  as  algemas  ignominio- 
sas com  (jue  eu  mesma  (quão  louca  era  I)  me  es- 
tava arroxeando  os  [)ulsos ! 


Não  !  Não  quero  amar.  O  amor  é  a  escravidão. 
O  amor  é  o  sorriso  entre  as  dores.  Amar !  Mas 
porque  motivo  havia  eu  de  assignar  a  própria 
condemnação  !  Dei  um  grande  passo ! 

Sentia  que  cedo  amaria  Alfredo  !  Oh  !  Amo-o  já 
como  uma  louca!  Quando  o  vejo,  parece-me  que 
me  estou  mirando  em  um  espelho  magico,  tantos 
são  os  encantamentos,  laes  as  visões,  que  correm 
perante  meus  olhos  fascinados !  Quando  me  elle 
contempla,  o  seu  olhar  é  cristallino,  límpido,  dia- 
phano,  enleia-me,  cega-me,  leva-me  a  alma  para 
brincar  com  a  d'elle  em  umas  regiões  tão  puras,  tão 
serenas,  que  eu  fico-me  triste,  pobre  argila  !  que 
ás  vezes  se  refende  com  o  calor  súbito,  que  me 
acode  ás  faces. 

Outras  vezes  ponho-me  a  scismar  n'elle,  e  o 
seu  rosto  um  pouco  magro  e  macillenlo,  a  ura 
tempo  sereno  e  agradável,  com  as  rugas  do  pen- 
sar, apparece,  surge  e  aproxima-se  tanto  do  meu 
que  lhe  sinto  o  hálito  queimador.  Mas  os  olhos 
não  lhe  rebrilham.  São  amortecidos  e  tristes.  Os 
lábios  agitam-se  frementes  e  i)ronunciam :  amor 
oudeshonra  ;  e  um  riso  melancólico  volteia,  como 
que  se  anima  e  toma  corpo  ;  depois  entranha-se 
nos  meus  lábios  e  eu  sorrio-me  também  tão  tris- 
te, Ião  triste,  que  repito :  amor  ou  deshonra. 

E  o  rosto  delle  vae-se  aproximando  lenta  e  fa- 
talmente; o  olhar  é  meigo;  sinto  afinal  um  beijo 
que  echoa  como  um  suspiro,  como  um  soido  lon- 
gínquo cheio  de  harmonias  ignotas. 

Accordo  de  repente.  Afugento  a  visão.  Palpo, 
olho,  escuto.  Estou  só.  A  alma  é  que  anda 
por  lá,  com  a  delle,  a  brincarem  não  sei  aonde, 
era  algum  raio  da  lua. 

Succedem-se  estas  visões.  Por  toda  a  parte  vejo 
a  sombra  d'elle,  que  me  segue  e  me  conturba  os 
meus  mais  Íntimos  pensares.  Se  o  vento  geme 
angustioso,  se  o  ribeiro  solta  a  sua  eterna  toada 
tão  monótona  pelo  cypreslal,  cuido  estar  ouvindo 
a  voz  de  Alfredo. 

A  imagem  delle  enche  o  espaço.  Olha.  No  ou- 
tro dia,  vinha  a  romper  a  manhã.  O  sol  começa- 
va de  beijar  as  grimpas  e  os  passarinhos  entoavam 
os  seus  quebres  de  alegria  e  festa.  Eu  já  estava 
accordada;  mas  sentia  tanto  prazer  em  pensar 
nelle,  deitada  no  meu  alvo  leito  !  Que  loucuras  eu 
imaginava!  Toda  enroscada,  sentindo  um  calor 
vital  a  escoar-sc-me  pelas  veias,  com  os  braços 
ci'uza(los  sobre  o  peito,  que  arquejava,  olhos  meio 
cerrados,  rosto  immovel,  vendo  a  minha  imagem 
confusa  no  meu  velho  espelho  de  Veneza,  que  mal 
se  illuminava  com  a  semi-escuridade  do  quarto ! 

E  eu  pensava  nelle.  I)izia-mc  o  coração  que  el- 
le, só  elle  me  poderia  dar  um  paraíso  de  felicida- 
des e  venturas. 

Cuidava  abraçal-o,  e  apertava  os  braços.  Con- 
tinha a  respiração  |)or  melhor  sorver  a  delle.  Cra- 
vava os  meus  olhos  nos  seus.  Estava  tremula. 
Ponjue?  Oh!  Isto  ó  amor,  dizia  comigo.  Eu 
amo-o,  quero  amal-o. 

De  repente  não  sei  que  súbita  tristesa  me  an- 
nuveou.  iNão  sei.  Mas  de  |)ouca  dura  foi.  Um  raio 
de  sol,  travesso  como  um  diabrete  zombeteiro,  cu- 


o  PANORAMA 


39 


rioso  como  um  sylpho,  entrou  por  uma  fenda,  to- 
do luminoso,  oíTuscador,  guapo  e  brincão. 

Os  corpúsculos  comecaiam  a  saltar,  como  se 
ouvissem  alguma  musica  desconhecida.  Foram-se 
alinhando  todos  até  formarem  um  renque  de  luz. 
Ora  desciam,  ora  subiam,  cruzavam-se,  expan- 
diam-se,  quedavam  súbito,  logo  saltitavam  phre- 
neticos  ou  caminhavam  pensativos  e  melancólicos. 
Era  um  mundo  com  todos  os  seus  vae-vens,  afes- 
toado  de  galas.  Entrou  depois  outro  raio  do  sol, 
e  logo  outro,  mais  outro  e  mais  outro.  O  meu 
quarto  parecia  uma  vasta  colmêa  d'onde  saiam 
aquellas  abelhas  luminosas.  Eu  era  a  fadad'aquel- 
la  mansão  mysleriosa  cheia  de  luz  recatada,  cheia 
de  amores  travessos,  cheia  de  vida  muda. 

Mas  um  raio,  mais  travesso  e  curioso,  acertou 
de  cair  no  meu  regaço.  Fascinou-me  logo ;  senti 
não  sei  que  mundo  de  idéas  e  sensações  túrbidas 
e  confusas.  Como  elle  brincava  no  meu  peito  cân- 
dido f  Como  elle  me  aquecia !  Como  me  infundia 
pensamentos  ignotos !  Ora  volteiava  rápido  e  pa- 
recia sorver-rae  o  sangue  do  coração,  que  balia 
sofTrego  ;  ora  subia  e  descia  alternativamente  com 
o  meu  arquejar.  Parecia-me  estar  vendo  Myriades 
de  olhos  curiosos  e  maganos,  que  me  contempla- 
vam amorosamente. 

E  o  raio  dizia-me:  Tu  amas,  ó  donzella,  e  eu 
quero  furtar-te  o  primeiro  anceio  !  quero  beijar- 
le;  quero  retingir-te  de  cores  da  auroia  o  límpi- 
do azul  do  teu  pensar.  Toda  a  noite  te  espreitei 
d'aquella  janella,  enviado  pela  lua.  INão  sabes  co- 
mo soffria.  Queiia-te  acariciar  e  não  podia.  Quan- 
do o  vento  soluçava  e  empurrava  as  portas,  mettia- 
me  logo  pelas  fendas  para  te  vêr.  Agora  sim ; 
quero  beijar-te,  quero  ser  feliz.  Quero  fundir  e 
derreter  com  o  meu  calor,  o  gelo  do  teu  coração. 
Deixa-me  cair  sobre  elle,  bem  a  prumo.  Como 
elle  bate !  como  freme  lá  dentro,  no  peito.  Mais 
depressa,  pobre  coração !  Aquece-te,  derrete  esse 
gelo,  que  te  angustia  e  entorpece.  Ama,  ama,  ba- 
te por  mim,  que  sou  a  alma  de  Alfredo,  que  aqui 
venho  aninhar-me. 

E  como  se  o  raio  fallasse  verdade,  e  o  gelo  se 
fundisse,  assomaram-me  as  lagrimas  aos  olhos. 
Chorei,  chorei,  mas  o  raio  brincava,  ria  e  dizia- 
me :  Chora,  louquinha,  que  esse  pranto  é  o  gelo 
do  teu  coração  que  se  funde. 

Passado  pouco  accordei  d'aquelle  encantamen- 
to. Era  outra.  Amava  Alfredo.  Mil  vezes  estive 
para  lh'o  dizer,  se  meus  olhos  não  lh'o  houvessem 
di  to (antas  vezes. 

Eelle  confessava-me  que  morria  por  mim. 

F  i  enlão  que  cu  tracei  estas  linhas,  que  te 
mos  rara  o  estado  da  minha  alma  : 

«  O  que  é  o  coração !  Se  alguém  poderá  son- 
dai o,  que  de  abysmos  lá  encontrara.  Sinlo-me 
transformada,  não  me  conheço.  Parecc-me  que 
alguma  fada  me  focou  com  a  sua  varinha  magica. 
A  alegria  e  a  Iristesa  succedem-se  mil  vezes  por 
dia  no  meu  coração.  Vivo  em  enlevo  perpetuo ;  o 
que  ora  penso  é  destruído  pelo  que  sobrevem 
passado  um  minuto.  A  imaginação  divaga  desen- 
freada ;  a  phantasia  percorre  os*  intermundios ;  a 


alma  ora  se  confrange  ora  se  dilata.  Não  sei  o  que 
sou,  nem  o  para  que  nasci.  Chorar  e  rir  é  o  meu 
estado,  e  ás  vezes  choro  e  rio  ao  mesmo  tempo. 
Oh  !  isto  é  amor  ?  E  este  amor  é  a  minha  desgraça  ! 
«Amo  Alfredo,  e  devo  confessar-lho?  Terei  for- 
ças para  isso?  Eu,  que  fui  para  com  elle  tão  fria 
e  marmórea,  julgando  que  o  amor  pôde  calcular, 
eu,  que  a  cada  passo  o  fazia  tropeçar  nas  reali- 
dades da  vida,  para  o  acerar  na  lucta,  mostran- 
do-lhe  dilliculdades  invencíveis,  que  o  chamassem 
e  prendessem.  Quq  mísera  cjladiadora  sou  eu! 
Afinal  fiquei  ferida  na  lucta,  com  as  armas  que 
forjara.  Não  sei  se  com  prebendes  bem  o  meu  es- 
tado. A  cabeça  e  o  coração  levam-me  para  o  mes- 
mo fim  por  meios  diversos.  Comecei  a  pensar  no 
futuro,  que  a  sorte  me  presagiava.  Sopezei  o  im- 
menso  fardo  da  pobreza  arrastada  por  estas  bre- 
nhas, ignota,  esquecida,  sem  horisonte,  sem  go- 
sos,  sem  vida  de  espirito,  sem  luz,  sem  calor. 
Que  castigo,  santo  Deus !  I)e  que  me  servia  o  co- 
ração, se  havia  de  viver  sempre  comprimido.  Af- 
fagos  hediondos  não  os  quero  nem  os  desejo.  A 
clausura  afíigura-se-me  um  purgatório  cheio  de 
tormentos  e  suspiros  abafados.  A  vida  domestica 
sósinha  fora  impossível  depois  da  morte  de  meu 
pae.  Que  fazer?  O  que  me  restava?  Direi  com 
Ernani :  o  tumulo?  Perante  a  sorte  inevitável  se- 
rá este  o  único  remédio,  porque  é  o  esquecimento 
eterno?  Quando  em  vida  o  coração  se  transforma 
em  vaso  de  fel,  a  morte  não  é  um  bem? 

Ajunta  a  isto  o  meu  natural  pendor  para  o 
mundo,  e  minha  galanteria  que  libei  no  berço, 
uma  sensibilidade  prematura  exacerbada  pela  des- 
graça e  que  chega  a  lornar-me  invejosa  de  ti  e 
de  tua  posição,  e  terás  o  quadro  succinto  dos  tor- 
mentos que  soflVo  todos  os  dias.  Por  isso,  arras- 
tada por  uma  força  superior,  involuntária,  sem 
consultar  o  coração  e  nem  mesmo  a  cabeça,  tor- 
nei-me  coquette,  galanteadora  para  com  Alfredo. 
Horrendo  crime,  bem  sei.  Mas  o  que  queres.  As- 
sim eslava  escripto,  assim  o  quiz  o  meu  destino. 
Se  o  coração  ficasse  mudo,  poderá  envergar  a  tú- 
nica virginal,  coroar-me  com  as  flores  de  laran- 
geira,  jurar  fidelidade  a  Alfredo  junto  do  altar, 
e  gosar  depois  a  vida.  Fora  mais  uma  perjura  en- 
tre as  muitas  que  por  ahi  pompeiam  o  seu  sudá- 
rio !  Fôia  mais  uma  criminosa ?  Para  isso  estava 
preparada,  apezar  dos  meus  dezoito  annos,  tão 
ruim  é  o  fermento  da  pobreza. 

«Mas,  ó.  mil  vezes  louca,  porque  não  consultei 
o  coração,  todos  os  planos  me  saíram  baldos.  O 
coração  vingou  Alfredo.  Sinto  que  o  amo,  e  este 
amor  é  o  meu  castigo,  é  o  punhal  que  me  dilace- 
ra as  entranhas,  é  o  veneno,  que  me  corróe  e 
reiíueima.  Se  o  abandono  para  sempre,  que  hor- 
rível sacrificio !  Se  ligo  o  meu  destino  ao  delle,  e 
confundimos  as  nossas  almas,  que  castigo!  Fi- 
ca sempre  com  o  remorso  do  meu  crime;  fora 
arrastar  perpetuamente  a  cadèa  do  forçado.  As 
suas  caricias  seriam  maldições,  os  beijos  dos  fi- 
lhos reclamariam  vingança,  o  remanso  do  lar  não 
me  apetecera,  e  sollicitada  eternamente  já  pelo 
amor  já  pela  galanteria  estaria  mal  em  toda  a  par- 


392 


O  PAXORAMA 


le,  porque  a  galanteria  só  pôde  existir  sem  amor. 
Quem  ama,  idolatra.  Mas  se  intento  esquecel-o, 
que  de  angustias  tremendas !  Oue  pavorosas  re- 
cordações, em  toda  a  minha  vida!  Alil  se  eu 
tivesse  nascido  pobre,  como  eu  poderia  enlregar- 
me  a  Alfredo  I  E  se  eu  não  peidesse  a  teri ível 
sede  do  baile  e  da  vida  doirada ;  se  eu  podesse 
encerrar-me  no  meu  velho  solar,  oííerlando  o  meu 
seio  para  que  Alfredo  repoisass»  !... 

Mas  tudo  isto  é  impossível.  O  suicídio  !  Se  eu 
fosse  forte,  se  eu  podesse  tragar  o  veneno,  como 
a  morte  me  seria  doce !  Taes  eram  as  angustias 
que  eu  sofTria.  E  cada  vez  amava  mais,  e  maior 
era'o  meu  tormento. 

l'm  dia  pediu-me  Alfiedo  uma  confissão.  Que- 
ria pedir-me.  iNão  me  atrevi  a  negar-lh'a.  Fi^iigi- 
me  tão  isenta,  tão  fria,  que  a  voz  delle  tremia. 
Resolvi  apresentar-me  tardiamente  ;  não  como  uma 
pastorinha  caprichosa,  que  não  (juer  amar,  mas 
como  uma  dryade,  que  não  pôde  amar  um  ho- 
mem. Mas  eu  sentia  que  havia  de  render-me  por- 
que o  amava. 

Salvaste-me  então,  ó  querida  baronesa,  com  a 
tua  carta.  Disseste-me : 

aTu  es  como  a  (Jalatéa  antiga.  Formosa  como 
ella,  sè  como  ella  isenta.  Psão  fujas  para  os  bos- 
ques, vem  para  as  salas.  Quem  lem  o  coração 
preso  não  pôde  vvalsar  nem  requeimar-se  nos  lu- 
mes do  baile.  Deixa  que  o  pyrilampo  bruxuleie 
na  campina;  tu  es  uma  estiTllã.  Vem  brilhar  na 
constellação.  O  amor  é  um  oceano  de  tormentos.» 

E  eu  disse: 

«Não,  jamais  amarei  Alfredo,  porque  a  minha 
pobresa  requestou  o  seu  oiro.  E  quem  sabe  se  al- 
gum dia  me  lançaria  nas  faces  o  opprobio  da  mi- 
nha miséria?» 

E  tu  proseguias : 

c>'ão  ha  homem,  que  valha  a  jura  eterna  de 
uma  mulher  formosa,  como  tu.  Não  te  vendas, 
nem  te  entregues.  Conquista  uma  posição.  EJá  a 
tens.  Brevemente  vou  levar-te  o  teu  noivo.  É  um 
niancebo  rico,  que  está  perdido  de  amores  por  li. 
E  um  parente  meu.» 

Quando  cheguei  a  este  ponto  senti  uma  suffo- 
cação  1  Deixar  Alfredo !  Conheci  que  não  podia 
amar  outro.  Mas  repeli  logo : 

«O  amor  e  um  oceano  de  tormentos.  Serei  a 
Galatéa.  Fugirei  para  as  salas.» 

E  agoro,  que  a  noite  vae  alta,  e  que  escarneci 
de  Alfredo  lançando-lhe  aos  pés  o  coração  que  me 
oílerecia,  liz  um  pacto  comigo  mesma.  "Quero  con- 
qui>lar  uma  posição.  Mas  ninguém  ouse  procuiar 
o  UMu  coiação,  que  encontra  o  vácuo.  Não  ha 
musica  de  amor,  que  o  faça  bater,  porijue  no  vá- 
cuo não  ha  sons. 

O  coração  levou-nro  Alfredo. 

O  mundo!  o  mundo!  Oh!  vera,  vem,  querida 
baronesa. 

A  pobre  e  genlii  Violante  quer  ser  viscondessa. 

Ah  I  se  eu  não  fosse  pobre  I  Sc  eu  não  tivesse 
o  orgulho  do  anjo  caido  1 

Kecebe  um  beijo  da  lua    Vlolanle.:) 

A.  O.  DE  Vasconcellos. 


UMA  OBUA  DO  SÉCULO  IX 

Justino  Maior,  reinou  VIII  annos.  Partidário  do 
S\  nodo  Calcedoniense  abjurou  a  heresia  dos  Acó- 
phalos. 

10.  Justiniano,  reinou  XXXIX  annos.  Pondo- 
sc  á  frente  dos  Bispos,  partidários  do  concilio  de 
Calcedonia,  condemna  a  heresia  dos  Acéphalos.  Os 
vândalos  são  destruídos  em  Africa  pelo  patrício 
romano  Belisario.  Também  Adryla,  Rei  dos  Os- 
trogodos, ó  vencido  na  Itália  por'Narses,  patricio 
romano.  Atanagildo,  tyrannisa  em  Spania  o  impé- 
rio de  Agilano.  Pelo' mesmo  tempo,  o  corpo  de 
í:'anlo  António  Monge,  encontrado  por  divina  re- 
velação, é  levado  para  Alexandria  e  enterrado  na 
igreja  de  S.  João. 

Justino  Menor,  reinou  XI  annos.  Este  des- 
truio  tudo  o  ffue  linha  feito  pelos  adversários  do 
concilio  Calcedoniense,  e  mandou  que  o  povo  can- 
tasse o  psalmo  CL  ao  tempo  do  sacrificio  da  mis- 
sa. Então  foi  que  os  Arménios  abraçaram  a  lei 
de  Christo  e  lloresceu  Martins,  Bispo  de  Bracara, 
que  por  sua  prudência  converteu  os  Suevos  de 
(ialecia  ao  ciUI-iolicismo. 

11.  Tibério  reinou  VII  annos.  Os  Longobardos, 
repellidos  de  Roma,  invadem  a  Itália.  Os  Godos, 
divididos  em  partidos  por  Hermenegildo,  filho  do 
rei  Leovigildo,  deslroem-se  e  matam-se  mutua- 
mente 

Maurício,  reinou  XXI  annos.  Os  Suevos  são 
dominados  e  submeltidos  por  Leovigildo,  Rei  dos 
Godos,  e  estes  convertem-se  á  Fé  Catholica  por 
meio  do  piedosíssimo  Recaredo,  seu  Rei.  N'aquel- 
le  tempo  floresce  o  esclarecido  Leandro,  Bispo 
Ilispalense,  que  conlribuio  para  a  conversão  da 
Nação  Goda. 

Focas,  reinou  VIII  annos.  Alevanlado  Impe- 
rador por  uma  sublevação  militar,  deu  a  morte  a 
xMauricio  Augusto  c  a  muitos  nobres.  Também  os 
Persas  moveram  grandes  guerras  á  Republica,  e 
venceram  os  Romanos. 

12.  Ilerculio,  reinou  XXVII  annos.  Os  Escla- 
vonios  entregaram  aos  Romanos  a  Grécia,  c  os 
Persas  a  Syria  e  o  Fgyplo.  Em  Spania,  Siscbu- 
lo.  Rei  dos  (iodos,  apoderou-se  de  varias  cidades ' 
que  ainda  possuía  o  exercito  Romano,  e  conver- 
teu á  lei  de  Chrislo  seus  vassallos  judeus.  Tam- 
bém fundou  em  Toledo  uma  admirável  igreja  de- 
dicada a  Santa  Leocadia.  I)e|)ois,  o  Príncipe  Suin- 
tila,  acabou  de  repellir  do  reino  os  Romanos;  e 
com  uma  pe(|uena  vícloria,  assenhoreou-se  de  to- 
da a  Sj)ania.  Também  duranle  o  império  de  lle- 
raclio  tiveram  por  Soberanos  os  Godos  a  Suinlila 
e  Chíntila. 

Constantino,  reinou  IX  annos.  Em  seu  lempo 
reinaram  em  Spania  por  IX  annos  lambem  Tulga 
e  Chindasvinto,  um  após  outro. 

]',].  Constante,  reinou  XX  annos.  Então,  Re- 
cesvinlo,  governou  em  Spania  por  espaço  do  XX 
annos,  e  sobreviveu-lhc  III. 

(G')nliiiua) 


TyiJ.  liaiico-Porlugueza,  Uua  do  Tliesouro  VulLo,  G. 


50 


o  PANORAMA 


393 


o  ocelote  e  o  rimau-daham 


O  grande  género  Gato  {Felis)  de  Linneu  e  de 
Cuvier,  conslitue,  nos  melhodos  aetuaes,  uma  das 
famílias  mais  importantes  da  ordem  dos  Mammi- 
feros  carnjvoros.  Esía  familia,  chamada  Felina, 
compOe-se,  eíTeclivamente,  de  espécies  destinadas 
por  sua  organisação  a  viverem  de  presa  ainda 
mais  exclusivamente  do  que  os  Cíies.  Estes  ani- 
maes  são,  de  todos  os  Carnivoros,  os  que  possuem 
armas  mais  fortes.  Distinguem-se  de  todos  os  ou- 
tros pelos  dentes  e  pelas  unhas,  e  são  os  únicos 
que  lêem  quatro  mollares  na  maxilla  superior  e 
três  na  inferior,  e  além  d'isso,  em  cada  uma  des- 
tas mais  seis  incisivos  e  dois  enormes  caninos. 
Quando  o  animal  une  as  maxillas,  os  ângulos  de 
todos  os  dentes  enconlram-se  e  resvalam  um  so- 
bre o  outro  como  se  foram  tesouras  bem  aliadas. 

Depois,  as  maxillas  são  curtas,  solidas  e  movi- 
das por  músculos  poderoso^.  É  o  desenvolvimento 
destes  músculos  e  da  arcada  zygmalica  sobre  a 
qual  se  inserem,  que  dá  á  cabeça  de  todos  os  Ga- 
tos essa  largura  tão  característica,  e  ao  focinho  a 
forma  arredondada  que  toda  a  gente  nota.   As 


unhas  destes  animaes  não  constituem  armas  me- 
nos formidáveis  que  os  dentes:  a  natureza,  por 
um  mechanismo  particular,  dispol-as  de  modo(|ue 
se  não  podessem  gastar  nem  enfraquecer,  como 
acontece  ás  dos  outros  Carnivoros.  Aphalange  an- 
gular prende-se  por  sua  face  dorsal  a  um  liga- 
mento (jue  a  mantém  habitualmente  levantada, 
sem  que  o  animal  empregue  para  isso  o  menor 
esforço,  de  sorte  que  a  unha  jamais  roça  pelo 
solo.  Mas  quando  o  animal  quer  agarrar  e  rasgar 
uma  presa,  contrae  os  músculos  llexores  das  pha- 
langes  e  faz  sair  as  suas  unhas  agudas.  Desde  o 
momento  que  c^ssa  a  contracção  volunlaria,  estas 
armas  levaiilam-se  naluialmenle  e  escondem-sc 
entre  os  dedos.  Ksla  disposição,  que  é  exclusiva- 
mente própria  dos  Felinos,  designa-se  pela  expres- 
são Inlias  rclracleis.  Os  seus  dedos  são  em  nu- 
mero de  cinco  em  os  pés  dianteiros  e  de  quatro  nos 
trazeiros.  As  i)alas  são  guarnecidas  de  ruletcs  es- 
pessos e  elásticos,  o  que  muito  contribuo  para  que 
o  andar  destes  animaes  seja  brando  e  silencioso. 
Os  Felinos  são  os  mais  carnivoros  de  todos  os 


394 


O  PANORAMA 


Mammiferos.  Apesar  do  seu  prodigioso  vigor  e 
das  fortes  armas  de  que  são  providos,  allacara 
raras  vezes  de  frente  os  outros  aniniaes;  a  manha 
e  a  asiucia  dirigem  todos  os  seus  movimentos  e 
presidem  a  todas  as  suas  acções.  Andando  sem 
fazerem  luido,  chegam  ao  lugar  onde  contam  en- 
contrar uma  presa;  approximam-se,  rojando-se, 
da  sua  victima,  conservam-se  silenciosos  em  obser- 
vação, sem  que  nenhum  movimento  os  denuncie, 
e  esperam  o  momento  propicio  com  uma  paciên- 
cia incrível ;  depois,  arremessando  se  de  repente, 
caem  sobre  ella,  rasgam-na  com  as  agudas  unhas, 
e  ali  cevam  por  algumas  horas  o  seu  sanguinário 
appelito.  Ouando  estão  saciados,  reliram-se  para 
o  centro  do  dominio  que  escolheram  para  seu  im- 
pério. Ali.  adormecem  profundamente,  e  esperam 
que  uma  nova  necessidade  os  force  a  voltar  á  ca- 
ça. A  vista  destes  animaes  não  parece  ler  ura 
grande  alcance;  mas  vêem  tão  bem  de  dia  como 
de  noite  :  a  pupilla  conlrae-se  e  dilala-se  segundo 
a  quantidade  de  luz.  Entre  as  espécies  cujos  há- 
bitos são  mais  particularmente  nocturnos,  a  papil- 
la,  conlraindo-se,  foima  uma  fenda  vertical;  en- 
tre as,  que,  pelo  contrario,  se  podem  chamar  di- 
urnas, a  pupilla  conserva  sempre  a  forma  de  um 
disco.  O  sentido  do  ouvido  é  muitíssimo  delicado, 
o  que  resulta  da  mobilidade  da  orelha  externa, 
da  grandeza  da  sua  alerlura,  do  desenvolvimento 
que  apresentam  a  membrana  e  a  cavidade  lym- 
panica.  Os  Gatos  percebem  sons  absolutamente 
inapreciáveis  para  nós,  e  é  pelo  ruido  dos  passos 
da  presa  que  elles  se  dirigem  em  sua  procura.  A 
pouca  extensão  do  nariz  não  permitle  a  estes  ani- 
maes o  terem  um  olfalo  muito  fino.  O  sentido  do 
gato  parece  igualmente  pouco  desenvolvido,  tal- 
vez por  causa  das  papillas  córneas  que  apresenta 
a  superficie  da  língua :  assim  os  felinos  mais  de- 
pressa devoram  do  que  comem.  Seguram  a  presa 
entre  as  patas  dianteiras  e  bebem  lambendo.  En- 
teriam  cuidadosamente  os  seus  excrementos,  re- 
ceiando  que  o  cheiro  activo  que  exhalam  denun- 
cie o  retiro.  O  tacto  de  toda  a  superiicic  do  corpo 
é  muito  sensível ;  mas,  sobretudo,  acha-se  desen- 
volvido nas  barbas.  A  voz  nas  grandes  espécies, 
é  um  som  rouco,  muito  forte,  que  muda,  nas  pe- 
quenas, no  que  nós  chamamos  miado  ou  miadu- 
ra.  O  cérebro  dos  Felinos  c  pequeno  relativa- 
mente ao  corpo,  e  não  apresenta,  sobre  cada  he- 
mispherio,  senão  duas  rugas  longitudinaes.  No 
estado  selvagem  manifestam  uma  ínlelligencia  mui- 
to medíocre;  assim,  fatiando  com  propriedade, 
não  os  caçam :  atacam-nos  aberta  ou  traiçoeira- 
mente. A  desconfiança  parece  ser  o  signal  mais 
pronunciado  do  seu  caracter,  c  o  que  apresenta 
mais  obstáculos  quando  se  pretende  domeslícal-os. 
Todavia,  quando  a  necessidade  os  obriga  a  rece- 
ber o  sustento  de  mão  estranha,  o  habito  acaba 
por  fazel-os  coníiar  no  individuo,  c  leva-os,  ale, 
a  tornarem-se  animaes  domésticos.  Neste  caso, 
então,  desenvolve-se-lhes  a  inlellígencía  a  ponto 
de  apresentarem  resultados  completamente  ines- 
perados. As  fêmeas  geralmente  tratam  os  filhos 
coin  muita  ternura ;  os  machos,  poním,  com  es- 


pecialidade no  estado  selvagem,  são  os  mais  cruéis 
inimigos  da  sua  progénie.  Quem  tiver  estudado 
com  at tenção  um  gato  domestico  pôde  fazer  uma 
ideia  da  physionomía,  da  forma  e  dos  costumes 
dos  outros  Felinos.  Todos,  como  este,  teem  a  ca- 
beça redonda,  grandes  barbas,  pescoço  espesso, 
corpo  allongado,  mas  estreito,  que  podem  ainda 
comprimir  em  caso  de  necessidade,  dedos  mui 
curtos,  patas  fortes,  pouco  elevadas,  especialmen- 
te as  anteriores,  cauda,  em  geral,  grande  e  mo- 
vei. Não  ha  animaes  cujas  formas  e  articulações 
sejam  mais  arredondadas,  e  cujos  movimentos  se- 
jam mais  destros  e  agradáveis.  Andam  vagarosa- 
mente e  com  precaução,  e  dobrando  as  pernas 
posteriores  appoiam-se  mui  facilmente  sobre  ellas 
e  fazem  uso  dos  seus  membros,  sobretudo  das 
patas  dianteiras,  com  uma  deslresa  e  graça  admi- 
ráveis. A  maior  parte  dos  Felinos  trepam  com 
muita  facilidade ;  mas  a  sua  carreira  não  é  muito 
rápida.  Eslesanimaes,  geralmente,  teem  um  pello 
muito  macio,  e  por  isso  as  suas  pelles  são  objecto 
de  um  grande  commercio  em  vários  paizes. 

No  que  diz  respeito  a  physionomía,  forma,  cos- 
tumes, e  eslructura  anatómica,  poucos  grupos  na- 
luraes  existem  em  zoologia  tão  claramente  cara- 
clerisados  como  o  dos  Felinos:  assim  é  mui  dif- 
ficíl  estabelecer  neste  grupo  divisões  genéricas. 
Não  obstante,  hoje  os  naturalistas  dividem  a  fa- 
mília Felina  em  Ires  géneros :  Galo  propriamen- 
te dito  (Fel is)  Lynce  (Lynx)  e  Gucpardo  (Gue- 
pardus  ou  Cynailurus.)  O  primeiro  destes  géne- 
ros apresenta  todos  os  caracteres  que  expoze- 
mos  como  próprios  da  família  dos  Felinos.  As 
espécies  que  constituem  o  segundo  distinguem-se 
exteriormente  pela  quantidade  de  pello  que  se  so- 
brepõe ás  orelhas ;  mas  dííTerem  dos  próprios  Ga- 
tos pela  ausência  do  molar  anterior.  O  Guepardô 
offerece  por  caracter  essencial  o  não  ter  as  unhas 
retracteis. 

Qualquer  destes  Ires  géneros  comprehende  um 
grande  numero  de  espécies,  todas  ellas  mais  ou 
menos  importantes,  e  cuja  minuciosa  descripção 
oíTereceria,  certo,  ao  leitor,  grande  interesse.  O 
nosso  trabalho,  porém,  já  vae  longo ;  por  hoje  li- 
mitar-nos-hemos  a  faltar  das  duas  espécies  perten- 
centes ao  género  Gato  propriamente  dito,  cujos 
desenhos  acompanham  este  artigo. 

O  Ocelole  (Felís  pardalis)  chamado  também 
Macaraga  e  C/iibi(juazu,  parece  ser  um  dos  mais 
sanguinários  animaes  do  seu  género.  Habita  na 
America  meridional  e  particularmente  no  Para- 
guay.  Tem,  pouco  mais  ou  menos,  um  melro  de 
comprimento  e  a  cauda  regula  por  quarenta  cen- 
tímetros. As  pernas  são  um  pouco  cúrias  e  o  cor- 
po, embora  maior  que  o  da  ra{)Osa,  não  obsta  a 
que  trepe  com  muita  facilidade  ás  arvores,  onde 
ordinarianientc  procura  guarida  quando  se  vô  per- 
seguido. E  dotado  de  grande  crueldade,  mas  co- 
barde e  foge  quando  desconfia  que  o  querem  ata- 
car. Durante  o  dia  dorme  nas  malas  espessas  e  só 
de  noite  sac  do  seu  esconderijo  para  ir  á  caça 
dos  pássaros,  dos  macacos  c  outros  pequenos  mam- 
miferos. A  pelle  desle  animal  é  uma  das  mais 


o  PANORAMA 


395 


lindas  que  se  conhecem  :  o  fundo  cinzento  claro 
com  lislas  muilissirao  regulares  de  um  cinzento 
mais  carregado  e  bordadas  de  preto ;  em  lodo  o 
comprimento  do  lombo  estende-se  uma  linha  igual- 
mente de  um  cinzento  escuro,  parallclas  com  a 
qual  e  symelricas  se  vêem  as  lislas  dos  lados ;  e 
a  cauda  e  lambem  guarnecida  de  anneis  desde  a 
laiz  até  a  extremidade.  As  cores  das  fêmeas  não 
são  tão  vivas  nem  tão  brilhantes  como  as  dos  ma- 
chos, comtudo  o  seu  aspecto  não  é  feio. 


o  Himau-Dahan 

O  Rimau-dahan  [Felis  macroceiis)  é,  sobretudo, 
notável  pela  cauda  grossa  e  lanuda,  que  fez  com 
que  Ilarslield  lhe  desse  o  nome  de  tigre  com  cau- 
da de  rapoza.  Habita  nas  ilhas  de  Éornéo  e  de 
Sumatra,  e  apesar  de  feroz  e  carnívoro  por  natu- 
reza domestica-se  mui  facilmente.  Este  animal  tem 
noventa  e  sete  cenlimetros  de  comprimento,  não 
comprehendida  a  cauda,  que  conta  approximada- 
mente  oitenta  e  seis.  A  cabeça  é  pequena  em  re- 
lação ao  tamanho  do  corpo.  A  peite  umas  vezes 
c  de  um  cinzento  claro,  outras  parda ;  tem  gran- 
des malhas  orladas  de  preto  por  todo  o  corpo  e 
no  dorso  em  todo  o  comprimento  dois  riscos  pre- 
los mui  lustrosos.  Encontram-se  quasi  sempre  so- 
bre as  arvores  onde,  parece,  passam  uma  giande 
parte  da  vida.  Sustentam-se  mui  facilmente. 


MARSELHA 

(Continuação) 

No  decimo  sexlo  século,  Marselha,  fervente  ca- 
Iholica,  declarou-se  pelos  duques  de  Guiso,  e  as- 
signou  o  acto  de  união;  as  suas  bandeiras  uni- 
ram-se  ás  do  duque  de  Sabóia  e  dos  Ilespanhoes, 
auxiliares  da  Liga.  Alguns  gentis-homens  quizcram 
pronunciar-se  contra  esta  união  ;  mas  o  povo,  sob 
o  seu  primeiro  cônsul  Casaulx,  saudara  o  princi- 
pe,  defensor  de  sua  crença  e  das  immunidades 
municipaes.  Comtudo  alevanlaram-sc  algumas  du- 


vidas entre  o  cônsul  Casaulx  e  o  duque  de  Sabóia, 
sobre  os  privilégios  da  cidade;  os  Marselheses 
nunca  poderam  soíTrer  que  uma  guarnição  olTen- 
siva  peneirasse  dentro  dos  muros  da  sua  republi- 
ca, e,  quando  por  surpresa  o  partido  dos  gentis- 
homens  se  apoderou  do  mosteiro  de  S.  Victor, 
Casaulx  mandou  immediatamente  assestar  uma 
quantidade  de  canhões  contra  as  altas  muralhas 
da  abbadia,  porque  a  cidade  queria  defender  os 
seus  direitos  e  a  sua  liberdade  religiosa.  Depois 
da  entrega  de  Pariz  a  Henrique  IV,  Marselha  con- 
servava-se  ainda  a  favor  da  Liga ;  mas  um  solda- 
do, por  nome  Pedro  de  Libertai,  vendou  a  cida- 
de às  gentes  do  rei.  Em  vão  Casaulx,  rodeado  da 
sua  tropa,  percorreu  as  praças  e  ruas;  um  dos 
soldados  da  conjuração  grilou  a  Liberlal :  «Capi- 
tão, eis  o  cônsul  Casaulx.»  A  estas  palavras  Li- 
bertai corre  sobre  o  seu  adversário  e  atravessa-o 
com  a  espada.  O  infeliz  cônsul  succumbio  logo 
aos  golpes  dos  amigos  de  Libertai.  Então,  Ber- 
nardo, Presidente  dos  parlamcntarios,  saio  de  ca- 
sa, armado  de  uma  lança,  levando  um  lenço 
branco  em  o  chapéo,  e  grilou  pelas  ruas :  «Viva 
o  rei  Henrique  quarto,  nosso  legitimo  soberano  !» 
Immediatamente  se  formaram  grupos,  e  Libertai 
correu  a  abrir  as  portas  da  cidade  ao  exercito 
real,  que,  deste  modo,  tomou  posse  de  Marselha 
em  nome  do  Bearnez.  Na  escada  principal  da  casa 
da  Camará  vô-se  uma  estatua  de  Libertai,  coberto 
com  a  sua  armadura,  tendo  a  mão  sobre  o  punho 
da  espada. 

Marselha  gosou  sempre  de  privilégios  que  lhe 
foram  tirados  por  Luiz  XIV ;  revoltou-se  contra  a 
aucloridade  soberana  debaixo  do  mando  de  Glande- 
vés  de  Niozelles,  e  só  em  1660  se  submelleu.  En- 
tão o  fim  das  agitações  da  Fronda  e  da  guerra 
exterior  dava  grande  energia  á  realeza.  Luiz  XIV, 
dirigindo-se  aos  Pyrenéos  para  eíTecluar  o  seu  ca- 
samento com  a  infanta  Maria  Theresa,  percorreu 
o  território  do  meio-dia  na  qualidade  de  verda- 
deiro conquistador  e  soberano  senhor.  Fez  a  sua 
entrada  em  Marselha  com  toda  a  rudeza  da  con- 
quista. A  velha  republica  dos  condes  de  Proven- 
ça, essa  rica  cidade,  cheia  de  confrarias,  congre- 
gações e  olllcios,  dera  demasiadas  provas  de  in- 
dependência para  não  soffrer  um  dia  o  castigo. 
Luiz  XIV  não  quiz  entrar  pelas  portas  antigas ; 
fez  uma  larga  brecha  na  muralha,  e  entrou  ar- 
mado da  cabeia  até  os  pés,  como  um  vencedor 
que  quer  humilhar  uma  cidade  vencida.  Quando 
se  fez  notar  ao  rei  essa  multidão  de  quintas  que 
engrandeciam  e  embellesavam  a  cidade  dos  Pho- 
ceos,  Luiz  XIV  exclamou  de  um  modo  zombetei- 
ro: «E  eu  lambem  quero  leras  minhas  quintas!» 
E  fez  construir  á  entrada  do  porto,  sob  a  invoca- 
ção de  S.  João  e  de  S.  Nicolau,  duas  grandes  for- 
ialezas,  cujos  canhões  estavam  dirigidos  contra  a 
cidade,  para  manlel-a  obediente  e  comprimir  o 
seu  espirito  municipal.  O  rei  supprimio  o  consu- 
lado e  substiluio-o  por  dois  vereadores  e  um  as- 
sessor. A  submissão  da  opulenta  republica  de 
Marselha  foi  o  lim  do  systema  communal,  livre, 
poderoso,  da  vasla  associação  das  confrarias. 


396 


O  PANORAMA 


De  todas  as  cidades  de  França,  Marselha  é 
aquella  onde  a  peste,  em  diíTerenles  épocas,  tem 
feito  mais  estragos ;  a  mais  memorável,  a  mais 
terrivel,  n  grande  peste,  fez-se  sentir  em  1720  :  foi 
ali  levada  por  um  navio  marselhez  que  chegara 
de  Tripoli  e  de  Chypre.  Marseliia  foi  então  thea- 
tro  de  scenas  as  mais  horrorosas,  e  conservou 
sempre  nos  seus  annaes  o  nome  do  bispo  de  Bel- 
zunce  e  da  sublime  dedicação  deste  homem,  que 
por  amor  do  perigo  que  ameaçava  as  suas  ovelhas 
vendeu  toda  a  mobília,  deu  todo  o  dinheiro  que 
possuía,  e  corria  as  ruas  quasí  desertas  da  cidade 
animando  e  soccorrendo  todos.  Esta  epidemia  ces- 
sou em  novembro  ;  mas  dois  annos  mais  tarde  àp- 
pareceu  com  um  caracter  menos  violento,  é  verdade, 
masque,  todavia  não  deixou  de  ser  funestíssima  ede 
espalhar  o  terror  por  toda  a  Europa,  que  só  pas- 
sado um  anno  poutlo  ver  aquella  cidade  tranquil- 
la,  e  abrir  novamente  as  portas  doseucommercio. 
Desta  época  em  diante,  o  regimen  sanitário,  foi 
submettído  a  regulamentos  severos,  e  embora  o 
contagio  se  tenha  mostrado  doze  vezes  no  Lazare- 
lo,  de  17  íl  até  nossos  dias,  com  as  precauções 
que  se  tom  tomado,   tem    sido  sempre  abafado. 

Depois  de  um  tal  desastre,  Marselha  enfraque- 
ceu muitíssimo;  não  obstante,  quando  a  revolução, 
na  qual  tomou  parte  quasi  ao  mesmo  tempo  que 
Pariz,  rebentou,  a  cidade  dos  Phoceos  caminhava 
já  a  passos  gigantescos  para  o  mais  elevado  gráo 
de  prosperidade.  Sob  o  império,  Marselha  mos- 
trou-se  descontente  ;  o  seu  commercio  diminuio  ; 
só  com  a  restauração  readquirio  a  sua  antiga  im- 
portância. As  reacções  de  1815  formam  o  mais 
triste  quadro  da  historia  desta  cidade ;  havia  ali 
ódio  contra  Napoleão  e  contra  o  despotismo  im- 
perial :  as  classes  medias,  esse  povo  de  marinhei- 
ros ajoelhados  diante  da  imagem  da  Virgem  quan- 
do a  tempestade  se  fazia  ouvir,  a  multidão  flu 
ctuanle  de  Genovezes  ede  Catalães,  tudo  isto  dava 
uma  força  brutal  e  fanática  aos  projectos  das  as- 
sembléas.  A  insurreição  rebentou  em  25  de  ju- 
nho. Era  um  domingo;  a  população  ociosa  enchia 
os  templos.  De  repente  espalha-se  o  boato  do  de- 
sastre de  Walerloo ;  as  massas  exasperadas  per- 
correm as  ruas,  chegam  tropas  do  cam|)0.  O  ge- 
neral Verdier,  que  governava  o  departamento,  as- 
sustado com  o  gesto  ameaçadgr  do  povo,  deixou 
Marselha  com  as  suas  tropas  na  noite  d'esse  mes- 
mo dia,  edirigio-sea  Toulon.  Começaram  então  as 
desordens.  A  carnificina  durou  toda  a  noite  c 
toda  a  manhã  do  dia  2G.  Tudo  (juanlo  pertencia 
ao  exercito  era  perseguido  com  frenesi  e  assassina- 
do. Alguns  refugiados  mamelukos,  restos  da  cam- 
panha do  Eg\  pto,  receberam  igualmente  a  morte; 
suas  mulheres  e  filhos,  sem  dó,  semcommiseração, 
foram  degolados  no  [)orlo,  para  onde  estes  infeli- 
zes haviam  fugido,  para  seoccullarem  ao  furor  dos 
.seus  verdugos.  A  maior  das  viclimas  foi  um  ho- 
mem honrado,  inlcllígente  c  de  grande  iiistruc- 
ção :  uma  notabilidade  de  Marselha,  M.  Anglés. 
Eòra  amigo  dedicado  de  Massena,  Harras  c  de 
muitas  suniiiiiíiadcs  da  icpiihlíca  e  do  império,  c 
regressara  á  sua  terra  natal  dej)ois  de  haver  ser- 


vido em  Itália  na  qualidade  de  prefeito  militar. 
Este  homem  socegado,  inoíTensivo,  foi  arrastado 
para  uma  cavallariça  que  íicava  por  detraz  da  sua 
habitação,  e  ali,  trespassado  de  mil  golpes,  aca- 
bou a  sua  peregrinação  na  terra;  a  mãe  da  vicli- 
ma  ouvia-lhe  os  gritos. 

[Continua) 

O  TUMULO  DE  ENGELBEUTO 

Em  lodos  os  tempos  e  entre  todos  os  povos 
exislio  sempre  o  uso  de  erigir  aos  mortos  monu- 
mentos funéreos ;  e  lambem,  em  todas  as  épo- 
cas e  em  lodos  os  lugares,  as  sepulturas  foram 
sempre  cercadas  de  um  grande  respeito  religioso 
que  fazia  considerar  a  sua  violação  um  dos  mais 
execrandos  crimes.  Estes  factos  são  seguramente 
um  testemunho  incontestável  da  crença  universal 
dos  homens  na  immorlalídade  da  alma,  ^porque, 
de  que  serve  honrar  os  mortos,  se  nada  resta 
d'elles  depois  que  a  vida  abandona  o  corpo?  Ain- 
da mais;  entre  muitas  nações  da  antiguidade, 
como  ainda  hoje  entre  as  tribus  selvagens  da  Ame- 
rica e  das  ilhas  do  mar  do  sul,  acredita va-se  que 
os  mortos  tinham  na  outra  vida  os  mesmos  dese- 
jos e  os  mesmos  hábitos  que  na  terra.  Por  con- 
sequência, havia  o  cuidado  de  collocar  ao  lado 
dos  cadáveres  os  objectos  que  haviam  sido  mais 
queridos  dos  vives,  e  é  a  este  uso  que  se  deve 
uma  grande  parte  das  riquezas  archeòlogicas  que 
encerram  os  museus  da  Europa.  Depois,  nota-se 
a  maior  diversidade  nos  monumentos  funéreos, 
segundo  o  estado  de  civilisação,  de  riqueza  e  de 
luxo  a  que  chegaram  os  paizes  onde  foram  eleva- 
dos. Em  quanto  uns  são  de  uma  extrema  simpli- 
cidade e  consistem  unicamente  em  um  montão  de 
terra  ou  de  pedras  elevado  sobre  o  despojo  do 
morto,  outros  consistem  em  excavações  pratica- 
das no  solo  ou  nos  llancos  das  montanhas.  Alguns, 
emfim,  compõem-se  de  construcções  mais  ou  me- 
nos consideráveis,  nas  quaes  a  architectura  e  a 
esculplura  mostram  todos  os  recursos  da  arte  con- 
temporânea, como  o  que  se  acha  reproduzido  na 
gravura  que  acompanha  este  ai-ligo. 

Antes,  porém,  de  entrarmos  na  descripção  des- 
te monumento,  não  achamos  muito  desacertado 
dizer  alguma  cousa  com  relação  aos  monumentos 
fúnebres  antigos. 

lia  toda  a  razão  para  crer  que  entre  todos  os 
povos  as  primeiras  sepulturas  consistiram  em  sim- 
ples montinhos  de  terra  ou  de  pedras,  que  os  ar- 
cheologos  chamam  tnmidus.  Existem  sepulturas 
(reste  género  em  todas  as  partes  da  Ásia,  da  Eu- 
roj)a  e  da  Ameiica.  Algumas  vezes  a  base  do 
monte  factício  era  rodeaílo  de  pedras  alim  de  sus- 
tentarem a  terra.  E  o  que  se  vè,  por  exemplo,  nos 
túmulos  da  j)lanici(í  de  Tróia,  na  Ásia  menor,  que 
se  sup|)õe  lerem  sido  erigidos  sobre  as  ossadas 
dos  heroes  da  Grécia  mylhíca,  Achilles,  Palroclcs, 
Ajax,  etc.  O  mesmo  succede  com  alguns  dos  tú- 
mulos dos  povos  célticos.  Nos  j)aizes  occupado, 
por  esta  aniiga  raça,  enconlram-se  ainda  em  gran- 
de numero  monumentos  funéreos  d'esla    classe. 


o  PANORAMA 


397 


Os  antiquários  inglezes  dão  a  estes  túmulos  o  no- 
me de  Barrows;  outros  archeologos  denominam- 
nos  Galgais,  Tomhellcs,  Buttes,  ctc.  Ordinaria- 
mente lêem  a  forma  de  um  cone,  ove  Ironcado, 


ora  arredondado  no  topo;  algumas  vezes,  porém, 
o  seu  plano  é  o  de  uma  eliipsoide.  Estes  túmulos 
enconlram-se  ou  isolados  ou  em  giupos.  Os  mais 
peiíiienos  não  excelem  um   melro  de  altura  ;  os 


398 


O  PANORAMA 


maiores  attingem  trinta  metros :  tal  é  o  de  Tii- 
miac,  perlo  de  Sarzeau,  que  tem  trinta  e  dois 
metros  de  altura  perpendicular  e  cento  e  vinte  de 
redondo. 

Suppõe-se  que  as  dimensões  d'esles  túmulos 
variavam  na  razão  da  importância  do  personagem 
sobre  os  restos  do  qual  foram  estabelecidos.  Os 
túmulos  circulares  não  encerram,  a  maior  parle 
das  vezes,  mais  que  um  cadáver,  o  qualoccupa  o 
centro  da  conslrucção.  Os  que  são  allongados, 
pelo  contrario,  foram  destinados  a  receber  um 
certo  numero.  Estes  últimos  apresentam  algumas 
vezes  galerias  subterrâneas  formadas  de  grandes 
pedras  brutas  e  divididas  em  muitos  comparti- 
mentos. Estes  grupos  parece,  pois,  representarem 
verdadeiros  ossarios,  e  suppõe-se  que  foram  fun- 
dados para  nelles  se  sepultarem  os  liomens  mor- 
tos em  batalha.  Entre  os  túmulos,  que  pertencem 
a  esta  calliegoria  citaremos  o  de  Fonlenay-le-Mar- 
méon,  no  Calvados.  É  de  forma  elliplica  e contém 
dez  covas  principaes  cada  uma  das  quaes  conduz 
a  uma  serie  de  compartimentos  funéreos.  Em 
todos  estes  túmulos,  a  não  ser  que  já  de  lá  os  ti- 
rassem, encontram-se  armas,  utensílios  e  outros 
objectos  que  nos  dão  a  conhecer  o  estado  da  in- 
dustria gaulesa  nas  épocas  remotas  ás  quaes  re- 
montam estes  monumentos.  As  populações  célti- 
cas punham  também  algumas  vezes  os  cadáveres 
em  buracos  praticados  na  rocha,  bem  como  em 
uma  espécie  de  sepulchros  formados  do  lageas  e 
a  uma  pequena  profundidade  do  solo.  Em  certas 
occasiões  contentavam-se  com  o  enterrar  os  mor- 
tos em  covas  pondo-lhes  apenas  por  cima  uma 
pedra  simples.  Por  toda  a  parte  se  encontram  se- 
pulturas d'este  género,  dispersas  sem  ordem,  nas 
planícies  ou  nos  flancos  das  collinas. 

As  sepulturas  egypcias  eram  de  três  espécies. 
As  que  estavam  isoladas  eram  túmulos  de  terra 
ou  de  tijolo,  ou  pyramides.  Sabe-se  que  as  famo- 
sas pyramides  de  Gizch  foram  levantadas   para 
servirem  de  ultima  morada  aos  reis,  aos  membros 
de  sua  família  e  aos  grandes  personagens  do  es- 
tado.  Os  Hypogeus  ou  Syringes,   consistiam  cm 
vastas  excavações  feitas  nos  flancos  das  monta- 
nhas: eram,  particularmente,  usadas  no  alio  Egy- 
plo,  ponjue  ali  o  valle  do  Nilo  acha-sc  bordado 
de  uma  serie  de  rochedos.   Muitos  destes  monu- 
mentos foram  visitados  em  nossos  dias,  e  deu-sc 
ali  com  uma  quantidade  de  objectos  que  vieram 
esclarecer  muilissimo  uma  iniinidade  de  pontos 
da  historia  pharaonica.  Os  mais  importantes  são 
os  do  valle  chamado  em  árabe  Biban  el  Moluk, 
isloó,  as  1'ortas  dos  reis,  e  onde  foram  deposita- 
dos os  restos  dos  soberanos  da  decima  oitava,  de- 
cima nona    e  vigésima  dynaslia.  íjcralmcnle  es- 
tes li\pog('US  aiPhiciam-se  por  uma  fachada  cons- 
truída verticalmente  no  rochedo,  mas  cuja  porta  é 
(piasí  sempre  disfarçada  com  o  maior  cuidado.  Um 
ou  muitos  corredores,  alguns  coitados  por  poços 
profundos,  e  grandes  salas,   conduzem  á  camará 
funérea   ou  câmara  real,  onde  estava  o  alaúde, 
ordinariamente  de  granito,  basalto  ou  de  alabas- 
tro. As  paredes  da  excavação,  bem  como  o  teclo, 


são  cobertos  de  esculpturas  coloridas  e  de  inscri- 
pções  hieroglyphicas  nas  quaes   o  nome  do  prín- 
cipe defunto  é  repelido  muitas  vezes.   Estas  ima- 
gens representam  ordinariamente  ceremonias  fú- 
nebres,  a  visita  da  alma  do  rei  defunto  ás  prin- 
cipaes divindades,  suas  oíTerlas  a  cada  uma  del- 
ias, a  sua  apresentação  pelo  deus  que  o  protegia 
ao  deus  supremo  do  Amenlkís  ou  inferno  egypcio, 
e,  emfim,  a  sua  apotheóse.  Cousa  alguma  iguala 
a  grandeza  destas  obras,  a  riqueza  e  a  variedade 
dos  seus  ornamentos.  Eslas  figuras,  ainda  que  em 
grandíssimo  numero,  são  algumas  vezes  de  tama- 
nho natural;  as  scenas  da  vida  civil  mísluram-se 
quasi   sempre   com  as   representações  fúnebres ; 
e  vêem-se,  ali,  igualmente,  trabalhos  de  agricul- 
lura  e  industria,  a  caça,  a  pesca,  batalhas,  dan- 
sas,  moveis  de  uma  riquesa  e  elegância  admirá- 
veis.  Emfim,  os  ledos,   ordinariamente,  são  re- 
vestidos de  esculpturas  relativas  aos  phenomenos 
astronómicos.  Os  hypogeus  dos  particulares  eram 
do  mesmo  modo  abertos  nos  rochedos,  e  compos- 
tos de  uma  ou  de  muitas  camarás,  cujas  dimen- 
sões e  decoração  variavam   segundo  a  ordem  e 
teres  do  defunto,   e  na  ultima  das  quaes  se  col- 
locava  o  ataúde.  Esle,  geralmente,  era  de  madei- 
ra de  sycomoro  ou  de  cedro,   e  sempre  de  uma 
só  peça,  não  incluindo  a  tampa.  Além  d'isso  era 
ornado,    tanto  interior   como  exteriormente,    de 
pinturas  que  representam  habitualmente  scenas 
fúnebres  e  por  entre  as  quaes  serpéa  uma  linha 
de  caracteres  hieroglyphicos,  olTerecendo  o  nome 
do  defunto.   Finalmente,   á  roda  do  alaúde  collo- 


cavam-se  diversas  oíTertas,  vasos,  figuras,  e  al- 
gumas vezes  modelos  dos  utensílios,   instrumen- 
tos, ele,  destinados  a  recordar  a   profissão   do 
morto.  Yèem-se  lambera  quatro  vasos,  dentro  dos 
quaes  estão  as  vísceras  do  cadáver,  que  se  poze- 
ram  de  lado,  quando  se  procedeu  á  operação  do 
embalsamento.  São  todos  iguaes  no  tamanho  e  na 
forma,  que  é  a  de  um  cone;  mas  as  quatro  lam- 
pas dífferem  entre  si  e  figuram  uma  cabeça  de 
mulher,  uma  cabeça  de  chacal,  uma  cabeça  de 
gavião  e  uma  cabeça  de  cynocephalo :  é  a  estes 
vasos  que  os  antiquários  dão  o  nome  de  Canopos. 
Só  os  reis  e  os  grandes  personagens  do  impé- 
rio tinham  sepulturas  particulares.  Os  corpos  dos 
outros  egypcios  eram  collocados  em  galerias  im- 
mensas    subterrâneas,    abertas    nas    rochas,    ou 
construídas  de  tijolo,  e  as  quaes  os  Gregos,  e  de- 
pois os  modernos,  c\mnnvdimNecropo/os,  isloc  ci- 
dades de  mortos.  Estes  necropolos  eram  composlos 
de  muitos  andares  distribuídos  em  pequenas  cama- 
rás, e  parece  que  cada  casta  linha  seu  necropolo 
particular.  Os  Egypcios  não  se  conlenlavam  só 
com  o  embalsamar  e  snpullar  os  seus  mortos; 
faziam  as  mesmas  honras  aos  animaes  consagra- 
dos aos  seus  deuses,  como  os  ibes,  os  crecodílos, 
os  gaviões,  os  bois,  as  serpentes,  ele.  As  grutas 
de  Samun  são  celebres  pela  immcnsa  quantidade 
de  crocodilos  c  de  múmias  humanas  qucconleem. 

(Continua.) 


o  PANORAMA 


399 


UMA  CIDADE  DE  MADEIRA 

Em  1386,  o  rei  de  França  Carlos  YI  e  seus 
tios  resolveram  entrar  em  Inglaterra  com  um 
grande  exercito.  Nesta  época,  os  Inglezes  pos- 
suíam Calais,  Cbeibourg  e  Brest,  e  d'ali  faziam 
as  suas  incursões  na  Picardia,  em  Cotentino  e  na 
Bretanha,  roubando  sempre,  diz  o  Religioso  de 
S.  Diniz,  homens,  rebanhos  e  tudo  mais  que  po- 
diam. Três  esquadras  se  aprestaram  para  aquelle 
fim :  uma  em  Treguier  e  Saint  Maio,  pelo  con- 
destavel  de  Clisson ;  outra  em  Ilaríleur,  pelo  al- 
mirante João  de  Yienna,  e  a  terceira  na  emboca- 
dura do  Somme,  por  Sairapy.  Ao  mesmo  tempo, 
o  duque  de  Borgonha  ajuntava  em  Ecluse  um 
exercito  que  o  próprio  rei  devia  commandar.  Es- 
te exercito  compunha-se,  pouco  mais  ou  menos, 
de  cem  mil  homens,  Francezes,  Saboianos  e  Al- 
lemães.  Os  navios,  dos  quaes  muitos  foram  alu- 
gados por  enormes  sommas  aos  Hollandezes,  á 
Prússia  e  á  Hespanha,  elevavam-se  a  mil  trezen- 
tos e  oitenta  e  sete,  não  contando  as  frotas  da 
Picardia,  Normandia  e  Bretanha. 

As  naus,  diz  M.  Puiseux,  estavam  preparadas 
com  tanta  sumptuosidade  como  se  fossem  para 
uma  festa.  Por  toda  a  parle  não  se  via  senão  pin- 
turas e  brasões  d'armas.  Nas  extremidades  dos 
mastros  fluctuavam  grandes  bandeiras  de  seda, 
das  quaes  algumas  eram  bordadas  a  ouro  e  prata. 
As  velas  eram  de  cores. 

O  senhor  de  Tremoille  dispendeu  só  com  a 
pintura  da  sua  nau  perlo  de  duzentos  contos  de 
reis.  A  do  duque  de  Borgonha  eclypsava  Iodas  as 
outras.  O  exterior  era  lodo  azul  e  ouro.  Nos  mas- 
tros viam-se  desfraldadas  cinco  bandeiras  immen- 
sas  com  as  armas  de  Borgonha,  do  Franco-Con- 
dado,  d'Artois  e  de  Rethel.  Havia,  além  d'islo, 
quatro  pavilhões  e  Ires  mil  estandartes  onde  se 
lia  a  divisa  do  duque  :  «//  me  tarde. y)  Esta  divisa 
repetia-se  em  Iodas  as  velas,  em  letras  de  ouro 
rodeadas  ^e  margaridas  de  prata. 

Todos  os  cáes  do  Ecluse  estavam  apinhoados 
de  gente  de  todas  as  condições,  para  gosarem  des- 
te grandioso  espectáculo. 

Mas  a  maravilha  da  expedição,  era  uma  grande 
cidade  de  madeira  fabricada  de  antemão  nos  por- 
tos francezes,  sob  a  direcção  do  condeslavel.  Era 
composta  de  peças  que  se  adaptavam,  uniam  e 
separavam  facilmente,  á  vontade.  Devia  ser  con- 
duzida ao  lugar  do  desembarque,  montada  e  ar- 
mada sobre  a  praia  britannica. 

(íLe  connétable  faisoit  faire,  ouvrer  et  char- 
penter  en  Bretagne  Vendosure  d' une  ville ;  et  tout 
de  bon  bois  et  gros,  pour  asseoir  cn  Angleterre, 
lá  ou  il  leur  plairoit,  quand  ils  y  auroient  pris 
terre,  pour  les  seigneurs  loger  et  relraire  de  nuit, 
pour  eschiver  les  périls  des  réveillements  et  pour 
dormir  plus  à  Vaise  et  plus  assur.  Et  ijuand  on 
se  délogeroit  de  une  place  et  on  en  iroit  en  une 
autre,  ceste  ville  estoit  tellement  ouvrée,  ordonnce 
etcharpentée,  que  onlapouvait  dcfaire  par  char- 
nières,  ainsy  que  une  couronne,  et  rasseoir  mem- 
bre  à  membre.s)  (Froissart.). 


Esta  cidade  tinha  praças,  ruas,  becos,  merca- 
dos, ele.  A  sua  circumferencia  da  altura  de  vinte 
pés,  e  de  Ires  mil  passos  de  diâmetro,  era  ameia- 
da  e  flanqueada  de  750  torres,  coUocadas  de  doze 
em  doze  passos.  Podia  ali  aquarlellar-se  um  exer- 
cito numeroso.  Esta  monstruosa  machina  formava 
a  carga  de  setenta  e  dois  navios,  que  deviam  Irans- 
porlal-a  dos  portos  de  França  a  Ecluse  e  d'aqui 
para  Inglaterra,  e  custou  ao  Estado  cerca  de  vin- 
te mil  contos  de  reis.  Para  acudir  ás  despezas 
deste  armamento  foi  necessário  lançar  sobre  o 
povo  impostos  laes,  que  cem  annos  depois,  dizem, 
ainda  o  paiz  não  estava  resarcido.  Como  sempre, 
o  peso  caio  todo  sobre  os  pobres  que,  não  poden- 
do pagar,  viram-se  obrigados  a  vender  ale  a  pa- 
lha de  suas  camas.  Muitos  d'enlre  elles  para  es- 
caparem ao  tributo,  emigraram  para  Liége  e  Ilai- 
naut. 

Não  obstante,  o  verão  de  1386,  e  o  principio 
do  outomno  passaram  sem  que  as  frotas  saissem 
de  Ecluse.  Os  viveres  linham-se  consummido,  as 
tropas  não  estavam  pagas,  e,  em  Flandres,  como 
em  torno  dos  portos  da  Picardia,  Normandia  e 
Bretanha  viviam  á  discrição. 

(lLcs  povres  laboureurs,  qui  avoient  recueilli 
leurs  biens  et  leurs  grains,  n'en  avoient  que  la 
paille ;  leurs  viviers  estoient  peschés,  leurs  mai- 
sons  abaltues  pour  faire  du  feu ;  et  s'ils  en  par- 
loient,  ils  estoient  battus  ou  tués.  Les  Anglais, 
s'ils  fussent  arrivés  en  France,  ne  pussent  point 
faire  plus  grande  destruccion  que  les  hommes  d' ar- 
mes de  France  y  faisoient.y>  (Froissart.) 

O  rei  Carlos  VI,  em  vez  de  ir  tomar  o  com- 
mando  da  expedição,  celebrava  com  festas  esplen- 
didas, em  S.  Diniz,  o  casamento  de  sua  irmã, 
uma  criança  de  nove  annos,  com  o  lilho  do  du- 
que de  Berri.  Não  foi  senão  em  7  d'agosto  que  se 
pôz  a  caminho,  fazendo  pequenas  jornadas  e  visi- 
tando com  vagar  Senlis,  Amiens  e  outras  cidades 
da  Picardia.  Pelo  meiado  de  setembro,  ainda  es- 
tava em  Arras.  Chegado,  emfim,  a  Ecluse,  os  che- 
fes do  exercito  apressavam-no  para  que  desse  a 
ordem  de  partida.  «Senhor,  para  que  mais  de- 
longas? Muita  gente  se  tem  arrependido  de  haver 
adiado  as  cousas  quando  tudo  estava  prompto  pa- 
ra se  poder  operar.»  O  rei,  que  se  deixava  em 
tudo  governar  por  seu  tio  o  duque  de  Berri,  res- 
pondia que  era  necessário  esperar  por  este  prín- 
cipe. Mas,  o  duque,  ou  por  traição,  ou  por  não 
se  querer  encontrar  com  o  duque  de  Borgonha, 
não  apparecia.  Correram  semanas  e  mezes  e  o 
exercito  sempre  immovel  em  Ecluse.  Chegou  no- 
vembro, c  com  elle  medonhas  tormentas  e  chuvas 
torrenciaes.  As  naus  despedaçavam-se  contra  a 
costa;  as  munições  e  bagagens  opodreciam  na 
praia.  . 

A  grande  cidade  de  madeira  deixou  de  existir. 
Assaltados  pelas  tempestades,  os  navios  que  a  con- 
duziam dispersaram-se.  Uns  foram  engolidos,  ou- 
tros lançados  sobre  a  praia  de  Caiais  e  sobre  a 
cosia  d'Ínglalerra.  Alguns  conseguiram  chegar  a 
Ecluse,  onde  o  joven  rei  se  entregou  ao  eslenl 
prazer  de  mandar  armar  junto  do  porto  o  que 


400 


O  PANORAMA 


restava  da  cidade  de  madeira.  O  duque  de  Bor- 
gonha áli  alojou  os  seus  operários  e  arlilheiros. 

O  rei  de  luglalerra,  por  sua  parle,  fazia  Iro- 
phéo  com  os  reslos  desta  mesma  cidade  que  ilie 
haviam  caido  nas  mãos.  Três  dos  navios  foram 
parar  a  Londres.  Uicardo  11  mandou  armar  pelos 
carpinteiros  que  foram  aprisionados,  as  casas  e  as 
torres  de  madeiia,  e  expol-as  em  Winchelsea,  á 
triumphante  curiosidade  dos  Inglezes. 

A  febre  da  guerra,  que  um  instante  havia  exci- 
tado o  fraco  cérebro  de  Carlos  VI,  diminuirá  com 
a  longa  espera  sob  os  nevoeiros  de  Flandres.  O 
projecto  de  desembarijue  em  Iniílaleira  foi  aban- 
donado, e  a  gente  toda  licenciada.  Os  soldados, 
retirando  do  acampamento  paia  se  dirigirem  a 
seus  lares,  deixaram  por  toda  a  parle  um  rasto 
de  desolação  e  ruina.  Alguns  destacamentos  fica- 
ram para  descarregarem  os  navios  c  pol-os  em 
lugar  seguro;  mas  os  Inglezes  não  lhes  deram 
tempo  para  isso :  arremessaram-se  sobre  os  na- 
vios, queimaram  uma  parle  e  levaram  o  resto  pa- 
ra os  seus  portos.  Continham  immensas  munições 
de  guerra  e  duas  mil  pipas  de  vinho,  o  que,  nota 
o  Religioso,  os  abasteceu  por  muito  tempo  desta 
bebida  tão  apreciada  em  Ioda  a  Inglaterra. 

TERÇA  FEIRA  I 

(Concluíãri) 

Vellias  mães,  tristes  esposas, 
Crianças  nuas  e  em  choro, 
Brado*s,  falias  lastimosas 
Erguem,  num  sinistro  curo. 

Que  scenal  E  redobra  o  vento, 
E  condcusa-se  a  neblina, 
E  o  mar  rebrame  violento, 
E  a  noite  a  scena  domina  1 

E  á  luz  de*algumas  fogueiras 
Escassa,  rubra,  funesta, 
Movem-sc  sombras,  ligeiras, 
Como  em  diabólica  festa. 

E  ella,  a  mãe,  em  desatino 
Corre,  pára,  escuta,  chora, 
Maldiz  o  poder  divino, 
E  depois  piedade  implorai 

Os  olhos  nas  sombras  fitos 
b'essa  noite  escuro,  escura, 
Eleva-os  ao  ceo  allíictos; 
E  era  vão  um  astro  procura. 

E  o  raio,  que  as  trevas  densas 
De  quando  em  (|uando  devassa, 
Moslra-lhe  vagas  immensas. 
Negros  abysmòs..  e  passa! 

Só  á  luz  da  madrugada 
Se  acalma  a  brava  lormcnla: 
Que  noilo,  em  anciãs  passada 
Tão  pavorosa!  tão  lenia! 

O  ceo  reílecle  nas  aguas 
A  còr  azul  da  bonança, 
E  vae  serenando  maguas 
Á  branda  luz  da  esperança. 

—.«Barcas  ao  longe!  Não  vedes? 
«Ó  que  alegria  (amanha  ! 
o  Deus  abençoou  as  redes 
«São  as  lauctias  da  companha. 


Crianças,  mulheres,  velhos, 
Ao  ou\ircm  esle  grito, 
Todos,  lodos  de  joelhos 
Cantam  piedoso  IJemdilo. 

Eil-as  vem!  Braços  valentes, 
Afleitos  áqaclla  guerra. 
Cortando  os  mares  fremcnles, 
As  impellom  para  terra. 

Na  turba  dos  pescadores 
A  mãe  com  turvado  aspecto, 
Inda  oppressa  de  terrores. 
Procura  o  lilho  dilecto. 

Tudo  exulta  de  alegria. 
Cada  (|ual  os  seus  conhece. 
Ella  só,  muda,  sombria. 
Sobre  a  praia  permanece. 

Eil-oscmfiml  Que  transportes! 
Que  lagrimas  ijue  os  esperam! 
Vè-se  o  choro  nos  mais  forles 
Dos  que  no  mar  não  tremeram. 

Por  enire  os  grupos  vagueia 
A  mãe  tremula,  calada, 
De  negros  agouros  cheia 
De  vago  pavor  tomada. 

Quasi  em  dolirio  vè  tudo 
Como  se  atravez  d'um  sonho. 
De  repente,  um  grito  agudo 
Sòa  na  praia  medonho. 

É  que  pallido,  abatido, 
.lunto  ao  mar  o  esposo  vira; 
É  que  terrivel  sentido, 
N'aquclla  dòr  descobrira. 

—  ('Que  negro  presagio  é  este 
«Que  leio  nos  léus  olhares? 
«Do  meu  filho  o  que  fizeste? 
— «Pergunta-o  a  esses  mares.» 

No  grilo  que  a  triste  solta, 
Vae-lhe  a  razão  mais  que  a  vida. 
Depois  para  o  mar  se  N'olta, 
Torva,  pallida,  perdida... 

«Não!  não  has-de  assim  roubar-me 
«O  filho  d'estas  entranhas! 
«Não  podem  inlimidar-mc 
«As  tuas  iras  tamanhas! 

«Não  vós  que  tenho  no  seio 
«Este  amor?  Esperai  esperai 
«Ruge!  não  sinto  receio! 
«Iluge!  que  tens?  ruge  fera! 

«Ruge!»  E  sem  tino,  movida. 
Da  allucinnção  que  a  agita, 
Rompendo  cm  veloz  corrida. 
Nas  ondas  se  precipita. 

Em  vão  lhe  accodem,  que  forte 
O  filho  ás  vagas  disputa  : 
Era  um  combate  de  morte! 
Era  uma  tremenda  lucta. 


E  na  manhã  do  outro  dia 
Vio-se  na  praia  arrojada 
A  mfii  que,  morta,  sorria 
Do  filho  ao  corpo  abraçada. 


Porto. 


JuLio  Diniz. 


Typ.  Kranco-l-orlugucza  —  Hua  do  Thesouro  Vcllio.   C, 


51 


o  PANORAMA 


401 


Capella  de  Santa  Rosália  no  monte  Peregrino 


Em  o  numero  11  desle  semanário,  fazendo  nós 
uma  breve  descripção  da  cidade  de  Palermo  e 
seus  arredores,  dissemos  que  no  monte  Peregrino, 
celebre  oulr'ora,  segundo  reza  a  historia,  por  ler 
servido  de  fortaleza  inexpugnável  ás  tropas  de 
Amilcar  Barca,  pae  do  famoso  Annibal,  existia 
uma  gruta  onde  foi  encontrado  o  cadáver  da  vir- 
gem Santa  Rosália,  c  que  essa  gruta  fora  trans- 
formada em  uma  igreja  magniíica,  de  aspecto  des- 
lumbrante, algum  tempo  depois  de  haver  cessado 
uma  horrível  epidemia  que  dizimara  uma  grande 
parte  da  população  desta  cidade.  Eis,  pois,  a  (jue 
se  refere  a  gravura  que  vae  á  frente  deste  artigo. 
Representa  ella  o  interior  dessa  igreja  subterrâ- 
nea, de  archileclura  antiga,  cujo  silencio  profun- 
díssimo só  é  interrompido  pelo  suave  murmúrio 
das  orações  dos  lieis  ou  pela  voz  do  sacerdote 
quando  entoa  os  seus  hymnos  no  altar,  junto  do 
qual,  ajoelhada  e  inclinada  diante  da  Cruz,  está 
uma  estatua  riquíssima,  de  tamanho  natural,  que. 


mesmo  vista  de  perto,  illude.  Esta  estatua  repre- 
senta Santa  Rosália,  a  padroeira  de  Palermo. 


DANIEL  0'CONNELL 

(Conlinuaijão) 

A  Irlanda  não  segue  o  movimento  da  sua  visi- 
nha,  e  reage  pelo  contrario  energicamente  con- 
tra a  religiosa.  Seria  por  aílcclo  ao  calholi- 
cismo,  ou  simplesmente  por  ódio  ã  priori  con- 
tra todas  as  innovaçues  que  de  Inglaterra  lhe 
viessem?  Parece  que  as  duas  causas  se  reuniram 
para  consolidar  na  Irlanda  o  poder  do  Papa.  O 
povo  irlandez,  pobre,  quasi  selvagem,  estranho 
quasi  todo  ao  movimento  dos  espíritos  na  Euro- 
pa, separado  da  civilisacão  pela  barreira  da  In- 
glaterra, não  podia  deixar  de  se  conservar  affer- 
rado  ás  suas  crenças  tradicionaes.  O  ai)Ostolado 
dos  ministros  protestantes  não  angariou  nem  um 
proselylo  ;  a  força,  que  o  irascivel  Henrique  VIÍI 
fez  succeder  á  persuasão,  logrou,  como  sempre 
succede,  converter  apenas  íicliciamente  alguns 


402 


O  PANORxVMA 


chieftains,  e  exacerbar  o  ódio  das  massas,  e  ar- 
raigar com  o  prestigio  do  marlyrio  a  fé  calholica 
perseguida  no  espirito  das  victimas. 

Incrivel  cegueira  de  todas  as  religiões  domina- 
doras! Cegueira  que  só  neste  século  principia 
vagamente  a  dissipar  se  !  Quererem  combater  com 
a  força  material  a  força  espiritual  d"uma  idéa, 
d'unia  idea,  planta  que  transforma  em  seiva  o 
sangue  dos  martyres,  que  viça  entre  as  ruinas 
dos  incêndios,  que  resurge  sempre  mais  florida 
e  mais  vivida  depois  das  tempestades  das  perse- 
guições! 

A  inquisição  perpetuou  na  Europa  a  religião 
hebraica.  Ãs  revogações  dos  éditos  protectores 
do  calvinisraOj  as  guerras  atrozes  movidas  ao 
lutheranismo  alastraram  por  todo  o  Norte  da 
Europa  as  seitas,  que  a  indiíTerença  catholica 
abafaria  talvez  em  Wittemberg  e  em  Genebra ! 
Em  nQiihuma  parle  do  mundo  vigora  o  catholi- 
cismo  com  mais  força  do  que  na  Polónia  e  na 
Irlanda,  graças  ás  atrocidades  dos  czares,  e  áop- 
pressão  do  governo  inglez. 

Cegueira  fatal,  cujos  resultados  ainda  hoje  em 
18G0  perturbam  e  assustam  a  prosperidade  im- 
mensa  da  Grã  Bretanha  !  Nódoa  que  ainda  hoje 
desfeia  o  esplendor  d"aquella  brilhantissimacivi- 
lisação  !  Não  bastava  que  um  antigo  ódio  sepa- 
rasse os  dois  povos,  e  quizeram  ainda  alimentar 
essa  inimisade  latente,  que  o  lento  decorrer  dos 
séculos  iria  pouco  a  pouco  apagando,  com  os 
terríveis  fruclos  da  dissenção  religiosa!  O  fogo 
que  ardia  debaixo  das  cinzas  quizeram  apagal-o 
com  sangue,  e  não  sabiam  que  o  sangue  é,  ainda 
mais  do  que  o  álcool,  hórrido  combustível  para 
essas  pyras  odientas. 

Á  crença  rotineira  deram  a  exaltação  do  mar- 
tyrio,  acordaram  a  indiíferença  do  cleVo  catholico 
dando-lhe  a  exaltação  do  combate,  e  das  massas 
pacificas  ainda  que  inimigas  fizeram  soldados, 
exasperaram  um  povo  inteiro,  e  legaram  ás  ge- 
rações vindouras  um  testamento  de  vinganças, 
cuja  liquidação  tem  durado  séculos  e  ainda  não 
está  finda. 

Seria  conhecer  mal  a  politica  dos  papas,  se  se 
pensasse  que  elles  não  aproveitariam  com  jubilo, 
a  occasião  de  suscitarem  tantos  embaraços  ao 
scismalico  Henrique  VllI.  Como  se  ainda  não 
bastasse,  para  excitar  os  ânimos,  o  clero  do  paiz, 
cm  lo48  .entraram  os  jesnitas  na  Irlanda^  e  com 
elles  o  eterno  elemento  da  revolta. 

Eduardo  VI,  filho  de  Henrique  VIII,  nada  con- 
seguio  também  no  seu  curto  reinado;  com  a 
subida  ao  throno  de  Maria  Tudor  respirou  por 
um  pouco  a  Irlanda,  ou  antes  mudou  de  cara- 
cter a  perseguição,  sem  se  tornar  menos  sangui- 
nolenta; a  curta  victoria  do  catholicismo  assi- 
gnalouse  com  tantas  barbaridades  como  a  longa 
dominação  do  protestantismo. 

Cinge  a  coroa  ingleza  a  politica  e  enérgica 
Isabel,  rex  Eiisabelh,  como  os  inglezes  diziam 
num  dislico  latino.  Tenta  ella  primeiro  conciliar 
os  ânimos,  mas  a  hostilidade  do  ])artido  catholico 
accende-lhc  o  animo  irascivel.  As  perseguições 
redobram,  responde-lhes  a  resistência  armada. 
Ema  medida  iniqua  faz  trasbordar  o  vaso  do 
ódio.  Coníisca  a  rainha  os  rendimentos  da  igreja 
catholica,  e  consagra-os  á  subvenção  da  igreja 
anglicana.  Protesta  por  todos  os  lados  a  revolta. 
A  Irlanda  está  em  fogo,  c  esse  fogo  alirnenlam-no 
incessantes  o  papa  e  a  corte  de  llespanha.  Dura 


desde  1360  a  insurreição,  sem  conseguir  resultados 
importantes,  mas  sem  ser  debellada  também.  Em 
lo9o  apparece  aos  revoltosos  chefe  experiente  e 
hábil.  É  o  conde  de  Tyrone,  um  d"esses  emigra- 
dos que  a  perseguição  ingleza  obrigava  a  refu- 
giarem-se  no  continente,  e  que,  servindo  nos 
exércitos  estrangeiros^  lá  adquiriam  a  pratica  da 
guerra. 

Mandou  contra  elle  a  rainha  o  conde  d'Essex 
cora  um  exercito  de  2!2000  homens.  Sem  ser  ba- 
tido, mas  sem  ser  victorioso,  o  exercito  inglez 
acha-se  collocado  em  circumstancias  tão  perigo- 
sas que  o  seu  general  evacua  a  ilha,  pactuando 
com  os  rebeldes.  Succede-lhe  lord  Mountjoy 
que  doma  a  revolta  a  fogo  e  a  sangue.  O  des- 
embarque de  dois  exércitos  hespanhoes,  um  com- 
mandado  por  Aquila,  outro  por  Ocampo,  chama 
de  novo  a  população  ás  armas  com  o  conde  de 
Tyrone  á  sua  frente.  De  novo  batida,  o  cançasso 
prostra  a  final  a  rebeldia,  e  a  Irlanda  offegante 
entra  na  tranquillidade.  Mas  em  que  estado,  Deus 
do  céo ! 

E'  necessário  que  as  paixões  politicas  desvairem 
muito  um  soberano  para  que  elle  ouse  promul- 
gar contra  os  seus  súbditos  as  leis  que  a  rainha 
Isabel  não  duvidou  firmar  com  o  seu  nome.  As 
leis  dos  monarchas  seus  antecessores  haviam  de- 
cretado a  oppressãOj  as  suas  decretaram  a  misé- 
ria. Foi  desde  essa  época  nefanda  e  nefasta  que 
a  verdejante  Erin,  a  ilha  cantada  por  Thomaz 
Moore,  vio  os  seus  filhos  expulsos  dos  campos  pa- 
ternaes  para  vaguearem  sem  pão  e  sem  asylo 
pelos  montes  da  sua  pátria,  ou  abandonarem 
com  a  dôr  no  coração  a  terra  do  seu  berço  para 
irem  percorrer,  pobres  proscriplos,  o  mundo  que 
lhes  não  pôde  fazer  esquecer  as  campinas  de  es- 
meralda da  Erin  formosíssima. 

Apesar  das  suas  tendências  para  o  catholicis- 
mo, Jayme  J,  o  filho  da  desgraçada  Maria  Stuarl, 
e  o  successor  de  Isabel  que  lhe  assassinara  a  mãe, 
não  fez  senão  augmentar  a  miséria  da  infeliz  Ir- 
landa. Ora  a  vingança,  ora  a  incapacidade  se 
conspiravam  para  fazer  pesar  sobre  esse  Job  das 
nações  a  miséria  extrema  e  a  desgraça  completa. 

Seiscentas  mil  geiras  de  terra  tinham  sido  con- 
fiscadas pela  rainha  Isabel  e  distribuídas  por  co- 
lonos inglezes.  A  pretexto  de  restabelecer  a  justa 
ordem  das  cousas,  Jayme  1  obrigou  os  senhores 
irlandezes  a  apresentarem  os  títulos  das  suas 
propriedades,  que  eram  confiscadas  em  proveito 
da  coroa  áquelles  que  não  estavam  perfeitamente 
em  regra  ;  mas,  em  vez  de  serem  restituídas  aos 
colonos  nacionacs,  eram  vendidas  a  colonos  in- 
glezes e  escocezes,  que  vinham  accrescentar  a 
população,  e  augmentar  por  conseguinte  a  mi- 
séria dos  indígenas. 

Não  foi  menos  terrível  para  a  Irlanda  o  reina- 
do do  seu  infeliz  successor  Carlos  I.  Eord  Straf- 
ford,  vice-reí  da  Irlanda,  o  mesmo  que  depois 
o  rei,  obrigado  pelo  parlamento  inglez,  condem- 
nou  á  morte,  fez  pesar  sobre  o  paiz  um  jugo  de 
ferro.  Continuou  o  odioso  systema  das  confisca- 
ções, c  levou-o  elle  a  tal  ponto  que  chegou  a 
conceber  o  louco  pensamenlíj  de  converter  uma 
província  inteira,  a  província  de  Connaught,  cm 
domínio  da  coroa.  Uma  tal  oppressão  despertou 
a  Irlanda  do  lethargo  em  que  jazia.  Em  IVM, 
levantou-se  em  massa  o  povo,  c,  fanatísado  o 
exaltado  pelo  clero  catholico,  assignalou,  como 
sempre,  com  horrendas  vinganças,  essa  nova  re- 


o  PANORAMA 


403 


volta.  O  sangue  de  quarenta  a  cincoenta  mil  pro- 
teslanlcs  foi  derramado  pelos  insurgentes.  A  In- 
glaterra tremeu,  c  o  parlamento,  excitado  por 
esse  ódio  quasi  inconcebível  em  estadistas  frios  e  ra- 
ciocinadores,  ordenou  ainda  uma  confiscacrio  im- 
mensa,  a  de  dois  milhões  e  quinhentas  mil  geiras 
de  terreno  para  supprir  ás  despezas  da  guerra! 

Mas  o  vento  da  discórdia  soprava  então  em 
Ioda  a  Grã-Bretanha.  Tinham  principiado  as  con- 
testações que  só  se  resolveram  a  tinal  no  cada- 
falso do  desgraçado  monarcha.  Lord  Ormond, 
hábil  vice-rei  da'  Irlanda,  e  muito  dedicado  aos 
interesses  de  Carlos  I,  soube  captar  a  confiança 
dos  chefes  da  revolta,  e  Iransformal-os  em  de- 
fensores da  regia  causa.  Era  sina  dos  Irlandezes 
seguirem  sempre  a  facção  vencida.  O  parlamento 
triumphante  escolheu  para  seu  delegado  na  Ir- 
landa, e  commandante  do  exercito  o  implacável 
Cromwell.  Este  puritano  sombrio  concebeu  o  hor- 
rendo plano  de  exterminar  em  massa  os  catho- 
licos  e  de  deportar  uma  nação  inteira  para  as 
índias  Occidentaes.  A  barbaridade  do  protector 
da  Grã-Bretanha  deixava  a  perder  de  vista  a  de- 
port^ação  dos  Judeus  de  Hespanha  por  Fernando 
o  Catholico,  de  Portugal  por  D.  Manuel,  e  dos 
Moiriscos  por  Philippe  III. 

A  perseguição  movida  pelo  genro  de  Cromwell, 
Ireton,  em  cumprimento  das  ordens  de  seu  so- 
gro, tirou  represálias  terríveis  da  mortandade  dos 
cincoenta  mil  protestantes.  Centenas  de  milha- 
res de  desgraçados  morreram  de  frio  e  de  fome 
nos  paúes  onde  o  terror  os  compellira  a  refugia- 
rem-se ! 

Veio  a  restauração  dos  Stuarts.  Subio  ao  throno 
Carlos  II.  Qual  foi  a  recompensa  do  paiz  que 
tanto  padecera  pela  causa  dos  reis?  O  olvido.  A 
perseguição  religiosa  cessou,  mas  as  confiscações 
subsistiram  em  todo  o  seu  rigor,  e  raros  Irían- 
dezes  obtiveram,  e  só  depois  de  infinitas  deman- 
daSj  que  lhes  fossem  restituídas  as  suas  proprie- 
dades. 

Paremos  um  instante  1  Fatiga  este  longo  cami- 
nhar com  os  pés  na  sangue,  este  percorrer  a  via 
dolorosa  d'um  povo.  Os  séculos  succedem  aos 
séculos,  os  monarchas  aos  monarchas,  as  gera- 
ções ás  gerações,  e  a  Irlanda,  não  tendo  um  mo- 
mento de  repouso,  nem  por  instantes  respirava 
uma  atmosphera  menos  tempestuosa.  A  historia 
deste  povo  é  um  martyrologio  de  sete  séculos. 

A  reacção  catholica  que  principiou  a  dominar 
com  a  subida  ao  throno  de  Jayme  II  deu  grandes 
esperanças  á  Irlanda.  Brevemente  as  dissipou  a 
transformação  politica  de  1G88,  e  a  Iilanda  vio- 
se  lançada  de  novo  nas  sendas  aventurosas  da 
insurreição.  Sorric-lhes  primeiro  a  ventura.  Jay- 
me II,  o  monarcha  expulso  do  throno,  desem- 
barcou em  1G8Í)  na  Irlanda;  á  testa  dos  Irlandezes 
revoltados,  expulsou  de  todas  as  praças  fortes  as 
guarnições  inglezas,  e  dois  mil  e  quatrocentos 
proprietários  protestantes  foram  obrigados  a  res- 
tituir as  suas  terras.  Mas  em  1(590,  Guilherme  III, 
o  rei  eleito  do  protestantismo,  desembarcou  a 
seu  turno  na  Irlanda,  bateu  o  seu  competidor  e 
sujeitou  á  nova  dynastia  o  território  da  ilha. 
Recomeçam  as  vinganças. 

Um  milhão  de  geiras  de  terra  ainda  confisca- 
das pelo  parlamento  e  distribuídas  a  protestan- 
tes, a  expulsão  da  ilha  dos  altos  dignatarios  da 
igreja  catholica,  a  prohibição  ao  baixo  clero  de 
saíE  das  suas  províncias,  a  abolição  do  ensino 


catholico  e  dos  signaes  exteriores  do  culto,  as 
funcções  publicas  interditas  a  todos  os  catholicos, 
e  estes  mesmos  parias  declarados  incapazes  de 
possuírem  propriedades  íerritoriaes,  de  testarem 
livremente,  de  casarem  com  mulheres  protestan- 
tes, e  inclusivamente,  (clausula  onde  a  tyrannia 
assume  as  proporções  do  ridículo)  de  montarem 
cavallos  que  valessem  mais  de  cinco  libras,  eis 
quaes  foram  os  estygmas  com  que  a  Inglaterra, 
ainda  uma  vez  vencedora,  marcou  a  fronte  es- 
crava da  Irlanda  sua  irmã.  E  vinha  próximo  o 
século  XVIII,  e  em  toda  a  parte  raiava  por  céos 
e  terra  a  aurora  da  liberdade,  e  essa  mesma  re- 
volução de  1088,  que  d"essa  forma  tyrannisava 
um  povo,  tinha  de  ser  considerada  pelos  histo- 
riadores como  a  estreita  d'alva  que  precedeu  um 
século  o  despontar  do  sol  esplendoroso  de  1789, 
do  sol,  que  devia  illuminar  em  torno  das  mura- 
lhas derrocadas  da  Bastilha  um  povo  inteiro  que- 
brando com  os  seus  grilhões  os  grilhões  da  Eu- 
ropa, entre  brados  de  immenso  enthusiasmo. 

Avante !  Os  Irlandezes  não  bebem  ainda  até  a 
ultima  gota  a  sua  taça  de  fel.  O  governo  inglez 
estancou-lhes  as  fontes  da  sua  riqueza  agrícola, 
transformou-osemilotas,  vae  agora  matar  a  sua  in- 
dustria e  o  seu  commercio.  Um  direito  de  salda 
exorbitante  veio  paralysar  a  exportação  dos  pro- 
ductos  do  solo  e  da  industria  irlandeza-  Só  o 
ódio  explica  estas  cousas,  que  indignam  a  huma- 
nidade, e  que  a  própria  politica  do  egoísmo  re- 
pelle. 

Continuemos.  Em  1727  perdem  os  catholicos  o 
seu  direito  de  eleitores,  e  com  elle  o  seu  ultimo 
direito  de  cidadãos.  Só  falta  amarrarem-lhes  a 
grilheta  ao  pé,  e  marcarem-lhes  na  fronte  com 
um  ferro  em  brasa  a  palavra  «Escravo.» 

Era  tempo  de  principiar  a  reacção.  Todo  o 
mundo  estremecia  ao  frémito  da  liberdade,  as 
idéas  da  philosophia  humanitária  calavam  em 
todos  os  ânimos,  a  legislação  perdia  o  caracter 
tyrannico  da  idade  média,  e  principiava  a  illumi- 
nar-se  com  os  reflexos  da  pura  luz  do  Evange 
lho.  Ao  mesmo  tempo  a  Irlanda  mostrava-se  cada 
vez  mais  ameaçadora  na  sua  imponente  tran- 
quillidade;  não  eram  já  loucas  revoltas,  que  le- 
vavam á  carnificina  a  flor  da  mocidade  irlan- 
deza, eram  sociedades  secretas  habilmente  orga- 
nisadas  e  que  trabalhavam,  e  minavam  constan- 
temente na  sombra,  actuando  sobre  os  espíritos, 
c  muitas  vezes,  infelizmente,  exercendo  terríveis 
represálias.  Eram  os  defenders  (os  defensores)  os 
uitileboys  (os  rapazes  brancos)  os  liearts  of  oak  (os 
corações  de  carvalho.)  Esta  atlilude  decidida, 
junta  aos  embaraços  suscitados  pela  revolução 
das  colónias  americanas,  fez  recuar  o  parlamen- 
to inglez.  Em  1782  foi  abolido  o  acto  de  Poyníng, 
que  datava  do  século  XIV,  e  que  abolia  a  inde- 
pendência legislativa  do  parlamento  da  Irlanda. 
As  leis  penaes,  promulgadas  por  Guilherme  de 
Orange,  foram  revogadas.  Mas  a  tradição  domina 
etficazmente  na  Inglaterra ;  qualquer  mudança 
nas  formas  da  velha  constituição  lhe  parece  uma 
profanação  horrenda.  Por  isso,  apesar  das  con- 
cessões que  mencionámos,  as  duas  principaes  cha- 
gas subsistiram,  o  pagamento  do  dizimo  pelos 
catholicos  ao  clero  protestante,  e  a  sua  incapaci- 
dade para  ter  direitos  políticos. 

Esta  obstinação  em  conservar  as  duas  grandes 
pedras  de  escândalo  da  Irlanda  destruio  o  bom 
eíleito  que  as  concessões  antecedentes  haviam 


404 


O  PANORAMA 


produzido.  Ao  rebentar  a  revolução  franceza  os 
votos  dos  Irlandezcs  voltaram-se  paia  o  signo  da 
liberdade  que  íluctuava  no  continente,  c  tal  era 
o  ódio  que  elles  consagravam  aos  Inglezes  que  o 
povo  mais  eminentemente  catholico  da  Europa 
applaudia  os  revolucionários  que  tripudiavam  so- 
bre os  altares,  só  pelo  facto  d'esses  revolucioná- 
rios terem  a  Inglaterra  por  inimiga. 

Aproveitando  estas  disposições  da  Irlanda,  a 
França  dirigio  para  essa  ilha  trcs  expedições.  A 
primeira,  commandada  pelo  celebre  genci'al  lloche 
não  pôde  desembarcar,  porque  os  temporaes  dis- 
persaram a  esquadra.  A  resposta  a  esla  tentativa, 
que  evidentemente  contava  cora  as  sympathias 
do  povo,  foi  o  pòr  o  governo  a  Irlanda  em  estado 
de  sitio.  Esta  medida  produzio  um  levantamento 
em  massa.  No  principio  do  século  XIX  o  ódio 
reaccendia-se  mais  ardente  do  que  nunca.  A  re- 
pressão foi  barbara,  atrocíssima,  deshonrosapara 
os  vencedores.  O  que  o  governo  do  terror  fazia 
em  França,  com  indignação  geral  da  Europa, 
fazia-o  o' governo  de  Jorge  líl  na  Irlanda,  sem 
que  a  Europa  se  dignasse  prestar  atlenção  ãs  vi- 
ctimas  deste  odioso  systema.  Columnas  moveis 
percorriam  o  paiz,  prendendo  e  fusilando  sem 
mais  ceremonia  aquelles  que  julgavam  implica- 
dos na  revolta,  pondo  assim  em  vigor  a  lei  dos 
suspeitos,  inaugurada  por  Danton  e  Robcspicrre 
e  contra  a  qual  tão  patheticos  discursos  faziam 
os  rbetoricos  declamadores  de  N\'eslminslcr-Hall 
em  Londres. 

Em  1798  uma  nova  expedição  franceza,  com- 
mandada pelo  general  Savary,  futuro  duque  de 
Rovigo,  lança  na  Irlanda  um  milhar  de  bomens 
a  cuja  frente  ia  o  general  líumbert,  juntam  se- 
lhe  os  insurgentes,  são  derrotados,  e  os  france- 
zes  obrigados  a  reembarcarem. 

Terceira  expedição  franceza  commandada  pelo 
general  Iladry,  tem  ainda  peior  sorte.  O  almi- 
rante inglez  ^Varrcn  caplurou-a  quasi  completa- 
mente. 

A  Irlanda/como  de  costume,  pa^ou  as  custas. 
O  parlamento  irlandez  foi  definitivamente  abo- 
lido, e  lançado  no  seio  do  parlamento  ger-al  da 
Grã-Bretanha.  Esta  medida,  que  devia,  como  os 
Inglezes  julgavam,  prostrar  completamente  a  sua 
rebelde  irmã,  foi  pelo  contrario  a  origem  da  sua 
salvação.  Os  ministros  inglezes  não  previam  que 
iam  (íar  a  tribuna  de  ^Vestminster,  essa  tribuna 
que  tem  echos  em  toda  a  Europa,  a  uma  das 
vozes  mais  eloíiuentes  do  presente  século,  c  que 
essa  voz  seria  a  d'um  pátrio! a  irlandez,  a  de  Da- 
niel 0'Connell,  emfim. 

M.  Pinheiro  Cuagas. 
(Continua) 

MARSELHA 

(Conclusão) 

Marselha  apresenta  a  forma  .de  urna  ferradura, 
cuja  cavidade  é  o  porto;  esle  porto  é  um  dos  me- 
lhores do  iMedilerraneo,  e  o  que  oíferece  aos  na- 
vios mais  segurança.  Oiiasi  lodo  é  obra  da  nalu- 
reza  ;  foi  ella  que  cavou  a  (juinlicnlas  loczas  de 
profundidade  essa  niagnififa  bacia  de  forma  oval, 
onde  se  podem  abrigar  perfcilamenle  mil  c  du- 
zentas embarcações.  A  entrada  do  poilo  é  forma- 
da por  dois  grandes  rochedos  sobre  os  í|uaes  fo- 
ram conslruidos  dois  fortes,  o  de  S.  João  e  o  de 


S.  Nicolau,  para  a  defenderem ;  a  grande  torre 
quadrada  do  primeiro,  dala  do  rei  René.  Eslas 
duas  fortalezas  estão  meio  arruinadas  e  servem  de 
(piartel  a  uma  parle  das  tropas  da  guarnição.  A 
uma  légua  do  porto  de  Marselha  vèem-se  Ires 
ilhas,  ou  antes  três  rochedos  que  a  Providencia 
parece  ler  ali  collocado  expressamente  para  pro- 
porcionar a  esla  cidade  lugares  onde  as  precau- 
ções sanitárias  possam  jiòr-se  em  pratica  de  um 
modo  verdadeiíamenle  ulil.  A  ilha  de  If,  a  mais 
pequena,  c  a  primeira  que  se  apresenta.  Os  ro- 
chedos que  a  rodeiam  são  escarpados  e  contam, 
pouco  mais  ou  menos,  cincoenla  pés  acima  da  su- 
pcrlicie  do  mar ;  a  extensão  destes  rochedos  ó  de 
cento  e  quarenla  tocsas,  e  a  largura  de  cincoenla 
e  cinco.  O  forte  que  os  defende  passa  por  um  dos 
melhores  do  Mediterrâneo;  Francisco I  fel-o  cons- 
truir era  lo29  ;  consiste  em  um  reduclo  flanquea- 
do de  qualro  lorres;  a  ilha  em  torno  ò  forlilicada 
de  ângulos  reinlranles  e  salientes  conformes  á 
disposição  do  rocliedo.  O  accesso  deste  forte  é 
quasi  impraticável ;  mesmo  em  calma  é  batido 
pelo  mar.  O  nome  do  caslello  d'If  é  ainda  cele- 
bre; sérvio  de  prisão  a  muitos  homens  nolaveis, 
sendo  o  ultimo  o  conde  de  Mirabeau. 

O  forte  do  caslello  d'lf  guarda  e  protege  o  es- 
paço comprehendido  enlre  a  ilha  de  Ratonneau  á 
direila,  e  a  de  Pomégue  à  esquerda,  espaço  em 
que  foi  construído  o  porlo  Dieudonné.  No  meio 
(la  ilha  Ratonneau,  eslá  um  caslello  rodeado  de 
algumas  fortificações.  Foi  aqui,  que  pelos  annos 
1765,  um  cabo,  chamado  Francoeor,  que  enlou- 
quecera, se  declarou  rei  de  Ralonneau.  EtTecliva- 
inenle,  durante  algum  tempo  ninguém  lhe  dispu- 
tou o  direito;  mas  quando  menos  o  esperava  foi 
preso  e  mellido  no  hospital  dos  doudos. 

Marselha  divide-sc  em  duas  parles  bem  distin- 
clas :  cidade  antiga,  e  cidade  moderna;  uma, 
velha,  feia,  immunda  e  triste,  ruas  eslreilas,  tor- 
tuosas;  a  outra,  larga  e  bem  delineada,  ornada 
de  bellas  conslrucções,  vaslas  praças,  passeios 
lindissimos.  O  jialacio  da  prefeiluia  enconlra-se 
nesta  ultima  ;  era  habitação  de  um  simples  parti- 
cular, chamado  Georges  Roux.  Esle  negociante, 
bastante  rico  para  armar  navios  contra  a  Inglaterra, 
c  cujo  mauiíeslo  de  guerra  começava  por  estas 
palavras:  Gcorfjes  de  Corsc  à  Georges  d' Anglc- 
(crre,  quiz  uma  casa  digna  da  riíjueza  que  pos- 
suía e  da  posição  que  a(l(jniriia.  Em  1805,  a  ci- 
dade comprou  esle  palácio  e  suas  dependências 
para  neile  eslabelecer  a  i)refeilura  ;  esla  ac(|uisi- 
ção  foi  origem  de  consideráveis  (Jespezas,  |)elas 
íargas  dimensões  e  riqueza  do  edifício  A  casa  da 
camará  é  lambem  um  cdiíicio  soberbo  ;  a  fachada, 
que  deita  [)ara  um  dos  cães,  é  ornada  de  baixos 
relevos  e  esculplnras. 

A  igreja  calhedral  de  Marselha,  Nolre-Dame- 
de-la-Major,  enconlra-se  na  cidade  aniiga.  Esle 
edifício  conslruido  sobre  as  ruinas  do  celebre  tem- 
plo de  Diana,  tem  sido  muitas  vezes  reconstruído. 
O  monumento,  tal  como  hoje  o  vemos,  nada  oíTe- 
VGQ(\  de  notável ;  perlence  á  idade  media. 
O  templo  da  Virgem,  protectora  dos  mafilimos, 


o  PANORAMA 


405 


eleva-se  no  cume  de  um  monle,  que  domina  o 
mar.  Esla  igreja  foi  edificada  por  um  padre  cha- 
mado Pedro,  a  quem  Guillierme,  abbade  do  S.  Yi- 
clor,  cedeu  aquelle  leireno.  Esta  collina,  iiojetão 
árida,  onde  apenas  vegclani  algumas  planlas  aro- 
máticas, era  compielamenle  coberta  de  mato  ;  ali 
começava  uma  floresta  que  tinha  muitas  léguas  de 
extensão,  floresta  sagrada,  da  qual  Lucain  faz 
uma  descripção  pomposa.  Todos  os  annos,  pela 
época  da  festa  de  Corpus-Chrisli,  a  estatua  da 
Virgem  da  Guarda,  desce  á  cidade  com  grande 
solemnidade.  A  capella  onde  reside  é  venerada 
pelo  povo  de  Marselha  ;  durante  as  festas  do  Pen- 
tecostes, os  habitantes  concorrem  ali  em  multidão, 
levando  suas  oITertas  á  Mãe  de  Christo.  O  forte 
de  NoIre-Darae-de-la-Garde  data  do  reinado  de 
Francisco  I ;  este  forte,  pouco  vale,  mas  o  que 
o  torna  digna  de  attenção,  é  o  ponto  de  vista  que 
offerece :  gosa-se  d'ali  toda  a  cidade,  enseada, 
ilhas,  ele. 

Marselha,  sendo  uma  cidade  Ião  antiga,  quasi 
nada  possue  d'outras  eras ;  os  incêndios,  os  cer- 
cos, as  devastações  voluntárias  nivelaram  o  solo 


onde  se  elevavam  tão  grandiosos  edificios.  Com- 
tudo,  esta  fatalidade  que  perseguio  os  antigos  mo- 
numentos, respeitou  um,  notável  pela  sua  exten- 
são e  bella  construcção.  Os  auctores  antigos  desi- 
gnam-no  pelo  nome  de  Covas  de  S.  Salvador, 
por  ter  sido  edificado  nos  subterrâneos  da  abba- 
dia  deste  nome.  Julga-se  ser  obra  dos  romanos. 

Além  dos  edificios  que  temos  citado,  encontram- 
se  ainda  em  Marselha  muitos  outros  de  construc- 
ção soberba  e  curiosos ;  taes  são  :  o  grande  Ihea- 
tro,  o  observatório,  que  está  collocado  em  uma 
posição  magnifica,  o  museu,  a  bibliotheca,  a  bol- 
sa, a  casa  da  moeda,  a  academia  das  sciencias  e 
artes,  etc.  ele.  Também  conta  um  grande  nume- 
ro de  sociedades  scientificas,  um  jardim  botânico 
e  outro  de  naturalisação,  e  diversas  instituições 
de  beneíicencia. 

Finalmente,  Marselha  é  a  segunda  cidade  da 
França ;  tudo  nella  ó  grande  e  bello  :  a  industria 
manufactureira  tem  ali  tido  um  grande  desenvol- 
vimento ;  a  commercial  e  immensa,  e  no  seu  por- 
to vè-se  sempre  um  grande  numero  de  navios  de 
todas  as  nações. 


o  domínio  de  íStrathfieldsay 


Ao  norte  de  llampshire,  e  a  duzentos  c  sessenta 
kiloraetros,  pouco  mais  ou  menos,  ao  noroeste  de 
Londres,  rodeado  de  formosas  collinas  e  de  cam- 
pos férteis,  encontia-se  o  magnifico  dominio  de 
Stralhfieldsay,  que  é  dos  muitos  que  a  Inglaterra 
possue,  talvez  um  dos  mais  ricos  e  interessantes. 
O  terreno  que  lhe  pertence  não  lem  grande  ex- 


tensão ;  mas  é  abundantíssimo  em  caça  de  toda 
a  qualidade  e  ofl^erece  pontos  de  vista  lindíssimos, 
perspectivas  admi'raveis.  O  palácio  c  de  largas 
dimensões  e  eleva-se  (|uasí  no  centro  do  parque, 
desenrolando-se-lhe  na  frente  uma  vasta  planície, 
cuja  magestosa  uniformidade  não  c  interrompida 
por  uma  só  arvore.  Não  atlrae  a  attenção  do  via- 


406 


O  PANORAMA 


jante  a  parle  exterior  do  edifício  ;  a  architeclura 
e  a  esculplura  não  mostram  ali  os  recursos  da 
arte.  O  interior,  porém,  é  de  uma  riqueza  e  ma- 
gnifícencia  surpreheudenles :  longas  e  espaçosas 
galerias,  cujas  paredes  estão  coberías  de  quadros 
dos  mais  notáveis  artistas ;  salas  immensas  sum- 
pluosamente  mobiladas  ;  bibliotheca  guarnecida  dos 
melhores  livros,  e  por  toda  parte  estatuas,  das 
quaes  algumas  são  deveras  admiráveis. 

Ignoramos  quem  fosse  o  primeiro  possuidor  da 
rica  propriedade  de  Strathfíeldsay ;  o  que  sabemos 
unicamente  é  que  pertenceu  a  lord  Chatam,  um 
dos  liomens  mais  eminentes  da  Gran-Brelanha,  e 
que,  depois  da  batalha  de  \Vaterloo — para  recom- 
pensar os  serviços  e  ao  mesmo  tempo  dar-se  um 
publico  testemunho  de  gratidão  ao  homem  que, 
mais  depressa  por  um  capricho  da  fortuna  do  que 
por  valor  e  calculo,  fizera  cair  do  pedestal,  em 
que  o  seu  talento  e  coragem  o  collocaram,  esse 
grande  homem  chamado  Napoleão — passou  às  mãos 
do  duque  de  Wellington. 


CARLOS  II  DE  IIESPANHA 

(Conclusão) 

Logo  que  a  rainha  teve  noticia  da  saida  de  D. 
João,  e  sabendo  que  devia  passar  por  Aragão,  es- 
creveu aos  Estados  d'aquelle  reino  para  que  não 
lhe  fizessem  espécie  alguma  de  honras  nem  de- 
monstrações. Teve,  porém,  o  desgosto  de  receber 
em  resposta  «que  de  modo  algum  podiam  impe- 
dir que  se  tributassem  ao  filho  do  defunto  rei  e 
irmão  do  actual,  aquellas  homenagens  devidas  á 
sua  alta  calhegoria  e  serviços.»  E  cumpriram-no 
de  tal  modo,  que  na  sua  chegada  a  Saragoça  todo 
o  povo  em  massa  correu  a  duas  legoas  fora  da 
cidade  para  recebcl-o,  grilando  com  o  maior  en- 
thusiasmo  :  /  Viva  o  scnlior  D.  João !  (jue  trium- 
p/te,  breve,  dos  seus  inimigos  e  do  padre  jesuila ! 
aliravam-lhe  fiores  e  coroas,  as  damas  agitavam 
os  lenços  e  os  homens  atiravam  ao  ar  os  chapéos 
com  todas  as  demonstrações  de  um  amor  sincero. 

Pôde  considerar-se  o  profundo  desgosto  que  se- 
melhante ovação  jjroduziria  nos  ânimos  da  rainha 
e  do  padre  confessor,  e  a  piofunda  aversão  que 
tomaram  ás  aucloridades,  c  povo  de  Saragoça. 
Não  produzio  menos  eíTcilo  aquella  demonstração 
nos  ânimos  dos  cortezãos  e  do  povo  de  Madrid, 
regosijando-se  delia  os  parlidui'ios  do  priíicipe  e 
presagiaiido  outras  giandes  calamidades  e  confli- 
ctos.  A  junta  da  cidade,  reunida  em  sessão  extra- 
ordinária no  dia  1  de  fevereiro,  enviou  uma  de- 
putação ao  presidente  de  (lastelia  para  represen- 
tar-lhe  as  desordens  que  poderia  occasionar  a  vin- 
da de  D.  João  com  lro()as  em  lem|)os  de  (aula 
agitação;  desordens  que  o  mesmo  princifte  não 
poderia  evitar,  ainda  que  não  estivessem  de  ac- 
cordo  com  os  seus  sentimentos.  í)  presidente  con- 
sultou Sua  Magestade  e  o  (Conselho  sobre  o  que 
devia  fazer-se,  e  resolveu-se  expedir  a  1).  João 
uma  ordem  peremptória  para  que  despedisse  a 
sua  escolta  ;  mas  o  príncipe,  cheio  de  orgulho  ja 
com  o  seu  prestigio  e  poder  moral,  proseguio  sua 


marcha,  deteve  dois  dias  o  correio,  e  no  terceiro 
despachou-o  com  o  recibo  da  ordem  sem  outra 
resposta. 

A  inquietação  c  susto  da  corte  e  do  povo  cres- 
ceu assombrosamente  e  como  era  de  esperar  de 
semelhante  saida.  Uma  parte  dos  senhores  da  cor- 
te e  do  governo  poseram-se  logo  ás  ordens  do 
presidente  de  Caslella  e  asseguraram  à  rainha  a 
sua  decisão  e  constância.  Reuniram-se  todas  as 
tropas  da  cidade  e  cercanias,  circularam  ordens 
enérgicas  para  manter  a  ordem,  e  tomaram-se, 
emfim,  outras  medidas  extraordinárias,  como  se 
se  tratasse  de  sustentar  em  Madrid  um  cerco  for- 
mal. E  tudo  isto  por  causa  de  uma  força  de  tre- 
sentos  cavallos,  que  tanto  era  o  acompanhamento 
do  piincipe. 

Feito  tudo  isto,  a  rainha  ordenou  ao  marquez 
de  Penalva  fosse  ao  encontro  de  D.  João  e  lhe 
reiterasse  o  seu  mandado  de  despedir  a  escolta; 
mas  o  marquez  exigia  para  dar  este  passo  uma 
ordem  em  forma  do  Conselho  Real,  ordem  que  o 
secretario  de  Estado  se  negou  a  passar,  por  se 
não  haver  contado  para  isso  com  o  Conselho  do 
Governo.  A  rainha  irritada  contra  o  secretario, 
reprehendeu-o  asperamente  pelo  seu  procedimen- 
to;  mas  os  indivíduos  do  conselho  consultivo,  o 
cardeal  Aragão,  o  Chanceller  e  o  conde  de  Pena- 
randa,  deram-lhe  razão,  e  censuraram  o  presi- 
dente de  Castella  por  auclorisar  uma  ordem  para 
a  qual  se  não  havia  contado  com  aquelle. 

De  todas  estas  desavenças  em  momentos  tão 
críticos,  resultou  não  se  fazer  cousa  alguma,  nem 
tão  pouco  tranquillisar  os  ânimos.  A  rainha,  não 
podendo  conseguil-o  pela  força,  tratou  como  sem- 
|)re  de  ensaiar  os  lermos  conciliatórios,  e  para  tal 
fim  escreveu -lhe  outra  carta  mui  expressiva  por 
intervenção  de  D.  Diogo  Yelasco,  que  era  amigo 
de  D.  João.  O  príncipe,  porém,  que  estivera  se- 
cretamente em  Madrid  e  conhecia  perfeitamente 
o  estado  dos  ânimos,  e  que  o  seu  poder  e  influencia 
era  tal  que  ludo  podia  emprehender,  respondeu  á 
rainha  comtirmesa,  que  exigia  o  desterro  do  pa- 
dre Nitard,  verificado  o  qual  eslava  sempre  (lis- 
posto  a  obedecer  ás  suas  ordens  como  o  mais  fiel 
súbdito. 

Conhecida,  pois,  esta  immutavel  exigência,  as- 
sim como  a  tenacidade  da  rainha,  o  núncio  Bor- 
romeo,  o  ('onselho  d'Estado  e  ou  grandes  desen- 
rolaram todo  o  seu  zelo  para  resolverem  Sua  Ma- 
gestade a  ceder;  e  ainda  j)ropozeram  os  meios  de 
uma  evasão  voluntária  do  confessor.  Elle  mesmo, 
convencido  do  perigo  que  corria,  reiterou  á  rai- 
nha as  suas  instancias  para  (|ue.lhe  permitlisse 
partir;  mas  Sua  Magestade  afogada  em  lagiimas, 
só  com  a  ideia  do  sacrilicio,  respondia  sempre  ne- 
gativamente. 

Entretanto  o  príncipe  achava-se  já  com  suas 
tropas  em  Torrejon  de  Ardoz,  a  quatro  legoas  de 
Madrid.  A  in(|iiietação  redobrava  na  corte;  o  Con- 
selho do  (íov(;rno  reunio-se  o  encarregou  o  nún- 
cio de  S.  S.  de  se  dirigir  a  D.João  e  fa/el-o  mudar 
da  resolução  que  tomara  de  ir  contra  a  sua  sobe- 
rana. O  núncio  foi,  cflectivamente,  e  regressou 


o  PANORAMA 


407 


mui  tarde:  toda  a  população  de  Madrid  velava  es- 
perando pelo  resultado  desta  enlrevisla.  O  núncio 
manifestou  que  todas  as  suas  instancias  paia  obri- 
gar o  principe  a  retirar  sequer  ate  (juadalajara, 
loram  inúteis ;  e  que  a  sua  irrevogável  determi- 
nação era  cajue  se  no  dia  seguinte  o  padie  Eve- 
]ardo  não  tivesse  saido  pela  porta,  elle  próprio  o 
faria  sair  pela  janella» ;  com  outras  palavras  que 
o  núncio  (inimigo  do  |)adre),  exagerou  ou  desli- 
gurou  com  o  inienio  de  preparar  a  queda  do  je- 
suila  e  resolver  o  negocio  neste  sentido. 

O  desditoso  padre  iNitard,  sabedor  do  que  se 
passava,  depois  de  confessar  a  augusta  soberana, 
deitou-se-llie  novamente  aos  pes,  rogando-Uie  en- 
carecidamenle  que  o  não  exposessc  aos  ultrages 
de  um  principe  exasperado ;  que  n'isso  lhe  ia  na- 
da menos  (jue  a  vida,  e  que  não  via  outro  meio 
desalval-a,  se  não  cedendo  ás  circumstancias;"mas 
a  rainha  só  lhe  respondeu  com  lagrimas  e  dando- 
Ihe  novas  seguranças,  que  estavam  mui  longe  de 
tranquillisar  o  animo  do  confessoi'.  Comludo,  a 
sua  lidelidade  e  sympalhia  pela  rainha,  levaram- 
no  a  declarar,  que,  uma  vez  que  não  podia  obter 
de  Sua  Magestade  a  real  licença  que  sollicilava, 
mais  depressa  se  deixaria  fazer  em  quartos  do 
que  abandonal-a. 

As  cousas  chegaram  a  tal  extremo  que  na  ma- 
nhã de  25  de  fevereiro  o  pateo  do  Palácio,  foi 
invadido  por  uma  multidão  audaz  que  pedia  em 
altos  gritos  a  saiila  do  confessor,  com  mil  impre- 
cações c  injurias  á  sua  pessoa.  O  duque  do  In- 
fantado e  o  marquez  de  Liche  correram  ao  quar- 
to de  Sua  Magestade,  que  não  linha  fechado  os 
olhos  em  toda  a  noite,  e  na  occasião  lamentava  o 
seu  angustioso  eslado  com  uma  das  suas  camaris- 
tas chamada  D.  Eugenia ;  reunio-se  immediala- 
mente  o  Conselho,  em  vista  da  urgência  do  peri- 
go de  um  grave  motim  que  já  ganhava  todos  os 
ângulos  da  cidade  ;  e  ainda  que  houve  aulicos  tão 
obcecados  que  aconselharam  a  resistência,  não 
foi  diíTicil  aos  outros  convencel-os  da  inutilidade 
de  tal  meio  e  da  imprudência  grave  que  seria 
o  compromeller  a  esse  ponlo  a  tranquillidade  pu- 
blica por  causa  de  um  religioso  estrangeiro  que, 
com  rasão  ou  sem  ella,  chegara  a  ser  objecto  de 
geral  aversão. 

O  duque  do  Infantado  e  o  marquez  de  Liche 
não  poderam  peneirar  no  quarto  de  Sua  Mages- 
tade; pelo  que  desceram  precipiladamente  ás  se- 
cretarias, para  fazer  com  que  o  Conselho  tomasse 
alguma  prompta  detei-minação.  Conseguirauí-no 
por  intervenção  de  D.  Blasco  de  Loyolo  ;  mas  em 
Iodas  esfas  idas  e  vindas  o  tem|)o  passava,  a  mul- 
tidão crescia  e  invadia  já  as  jjroprias  solas  do 
Conselho  grilando  ousada :  Saia  do  Madrid  o  jc- 
suila. 

Os  ministros  e  o  Conselho,  deveras  assustados, 
adoptaram  em  fim  uma  resolução  decisiva,  e  re- 
digiram um  decreto  para  ser  assignado  pela  rai- 
nha, pelo  qual  se  ordenava  ao  padre  Nilard  que 
saisse  de  Madrid  dentro  em  três  horas.  A  rainha, 
a  cuja  presença  subio  com  o  decreto  D.  Blasco, 
não  oppoz  a  menoi'  resistência  em  lirmal-o,  nem 


deramou  uma  única  lagrima ;  só  o  mandou  redi- 
gir de  oulra  forma  mais  lisongeira  para  o  padre, 
declaiaiulo  «que  cedia  a  suas  reiteradas  inslancias 
para  sair  do  reino,  ainda  que  muitíssimo  salis- 
feila  da  sua  virtude,  mérito  e  serviços,  eipie,  alim 
de  que  o  podesse  fazer  de  uma  maneira  própria 
do  seu  caracter  e  dignidade,  o  nomeava  seu  em- 
baixador extraordinário  em  Roma  ou  em  Vienna, 
á  sua  eleição,  conlinuando  nos  cargos  de  inquisi- 
dor geral  e  conselheiro  de  Estado.» 

Ainda  bem  não  havia  desapparecido  o  secreta- 
rio da  vista  da  rainha,  já  pelas  faces  desta  as  la- 
grimas corriam  abundantemente,  dizendo  em  alta 
voz:  ((Infeliz  de  mim  !  De  que  me  serve  o  ser 
rainha  se  não  posso  fazer  a  minha  vonlade  em  ter 
junto  de  mim  um  confessor  da  minha  confiança? 
Ouem  senão  eu  está  privada  do  seu  livre  arbítrio  1 
Desditosa  1  que  te  resta  da  magestade  e  do  Ibrono  ?» 

O  Conselho  encarregou  o  cardeal  Aragão  e  o 
conde  de  Penaranda  de  porem  ao  facto  o  padre 
Everardo  da  ordem  assignada  pela  sua  alleiçoada 
soberana  ;  este  não  se  mostrou  surpreso  com  a 
nolicia.  Os  superioies  dos  jesuítas  e  o  almirante 
de  Castella  foram  também  preparal-o  para  aquel- 
la  desgraça  e  este  ultimo  ainda  lhe  fez  certas  re- 
convenções,  que  o  bom  do  religioso  repulsou  com 
arrogância. 

Conformado,  pois,  a  sair  immedialamenle  de 
Madrid,  só  lhe  custava  o  não  poder  sequer  des- 
pedir-se  da  sua  bemfeilora,  d'aquella  que  sempre 
o  tratara  com  tanto  carinho ;  e  chegou  a  tal  pon- 
to o  seu  sentimento  nesta  parte,  que  o  cardeal  e 
lodos  os  circu instantes  não  poderam  conter  as  la- 
grimas á  vista  de  tão  sincera  dedicação.  O  pró- 
prio cardeal  olTereceu-lhe  mil  dobrões  para  gastos 
da  viagem;  mas,  o  padre  não  acceitou  a  olVerta, 
dizendo:  alleligioso  pobre  entrei  em  Ilespanha, 
pobre  sairei  d'ella.»  E  quando,  já  de  noite,  o 
cardeal,  voltando  para  acompanhai  o  á  sua  car- 
ruagem, lhe  perguntou  se  linha  disposto  a  sua 
equqiagem,  respondeu  «que  Ioda  ella  consistia  no 
seu  habito  e  no  seu  breviário.»  Partiram,  pois, 
acompanhados  de  alguns  familiares  do  santo  olli- 
cio ;  mas  logo  que  o  povo,  agrupado  nas  ruas  do 
transito,  suspeitou  que  ia  na  carruagem  o  confes- 
sor, j)rorompeu  em  gritos  desaforados,  doestos  e 
maldições,  atirou-lhe  com  pedras,  e  se  não  fosse 
o  respeito  que  infundia  o  cardeal  c  a  sua  presen- 
ça de  espirito,  não  escaparia  á  morte:  O  padre 
Everardo  eoin  apparente  tranciuillidade,  e  os  olhos 
banhados  de  lagrimas,  respondia  á(iuellas  vocife- 
rações  com  estas  palavras :  «Adeus  meus  lilhos, 
vou-me  embora.» 

Em  quanto  ás  embaixadas  de  Roma  e  de  Vien- 
na. embora  a  rainha  lhe  escrevesse  |)ara  Euencar- 
lal,  reiterando  a  sua  nomeação,  o  jesuíta  não 
(juiz  acceilal-a.  Só  lomou  a  (|uai)tía  de  duís  mil 
pesos  que  a  mesma  senhora  lhe  enviara  para  a 
viagem  ;  pois  era  tal  a  modéstia  do  padre,  que  no 
seu  quarto  só  foram  encontrados  alguns  moveis 
pobres,  um  cilicio  e  umas  disciplinas. 

No  thealro  coi  lezão,  com  a  saída  do  padre  Ni- 
lard,  liouve  completa  mudança  de  scena  :  logo  to- 


408 


O  PANORAMA 


dos  dirigiram  sons  olhares  o  adulações  para  D.  João. 
Este  escreveu  á  generosa  lainlia  dando-ilie  graças 
por  ter  afastado  do  seu  lado  o  confessor,  e  pedin- 
do-lhe  permissão  para  ir  a  Madrid  bcijar-lbe  as 
suas  reaes  mãos.  A  rainha,  porém,  em  vez  de 
dispensar-lhe  esta  honra,  mandou  que  se  retirasse 
a  doze  léguas  da  còrle ;  resposía  que  o  príncipe 
muito  sentio,  mas  que  não  foi  bastante  para  dis- 
suadil-o  de  escrever  à  rainha  e  ao  Conselho  in- 
sistindo em  que  fosse  exonerado  o  jesuita  das  di- 
gnidades e  empregos  que  obtivera ;  isto  não  só 
com  o  fim  de  impedil-o  de  voltar  a  Ilespanha,  se 
não  para  que  taes  vagaturas  fossem  preenchidas 
por  homens  de  reconhecido  mérito  e  serviços.  Que- 
ria também  sua  alteza  que  se  tirasse  a  presidên- 
cia de  ("laslella  ao  bispo  de  Plasencia,  porserelle 
quem  firmara  a  sentença  de  morte  de  Malladas, 
e  que  o  marquez  de  Aitona,  sou  inimigo  capital, 
deixasse  de  ter  voto  no  Conselho. 

A  rainha  escreveu  novamente  a  D.  João  mani- 
festando-lhe  o  desgosto  que  lhe  causavam  as  suas 
exigências,  e  reiterando  a  ordem  de  afastar-se  e 
licenciar  a  sua  escolta ;  ao  que  elle  replicou  que 
o  faria  logo  que  soubesse  achar-se  fora  do  reino 
o  padre  Sitard.  Por  ultimo  o  próprio  cardeal  di- 
rigio-se  a  Guadalajara,  e  empenhou-secom  o  prín- 
cipe para  que  obedecesse  ás  ordens  da  soberana : 
assignou-se  uma  espécie  de  tratado,  na  verdade, 
bem  pouco  lisongeíro  para  o  throno,  e,  emfim,  o 
príncipe  licenciou  a  sua  tropa. 

Mas,  não  eram  ainda  decorridos  três  mezes, 
pelo  motivo  da  organisação  de  uma  guarda  real, 
tornou  o  príncipe  a  escrever  à  rainha,  moslran- 
do-lhe  os  inconvenientes  de  semelhante  medida. 
Ella,  porém,  não  fez  caso,  nem  deu  ouvidos  as 
muitas  reclamações  dos  tribunaes  e  auctorídados 
de  Madrid,  e  do  que  tratou  foi  de  confirmar  as 
suas  ordens  para  que  D.  João  saísse  de  Guadala- 
jara :  verdade  é  que  para  o  empenhar  a  isso  o 
nomeava  vice-rei  e  vigário  geral  da  coroa  de  Aragão. 

Isto  parece  que  satisfez  os  desejos  e  orgulho  do 
príncipe,  o  qual  respondeu  á  rainha  muito  submisso, 
pedindo-lhe  unicamente  que  cuidasse  na  educação 
do  rei  menor.  Ao  mesmo  tempo  dirigio  uma  sup- 
plica  ao  papa  para  que  obrigasse  o  padre  Nilard 
a  demíltir-se  do  cargo  de  inquisidor  geral;  mas 
a  rainha,  que  nunca  o  esquecera,  trabalhava  por 
seu  lado  para  lhe  ser  conferido  o  capello.  Esta 
obstinação  da  soberana  co  receio  de  que  uma  vez 
cardeal  o  bom  do  padre  voltaria  a  Madrid  appoia- 
do  pelo  novo  regimento  ou  guarda  de  la  C/iam- 
berga  íassim  chamado  pelo  seu  trajo  á  franceza  e 
moda  de  Mr.  Schomberg;  agitaram  fortemente  os 
ânimos;  os  mais  turbulentos  faziam  correi' com 
estas  vozes  um  decreto  apíkrifo  em  que  se  man- 
dava desarmar  o  povo,  e  encareciam  e  exagera- 
vam as  desordens  e  a  arrogância  dos  Chambergos, 
em  termos  que  o  ódio  para  com  elles  crescia  de 
dia  para  dia. 

Entretanto  D.  João  proseguia  em  Saragoça  se- 
nhor de  todos  os  corações,  e  com  uma  invejável 
popularidade,  e  continuava  em  Madrid  e  em  Ro- 
ma 09  seus  meneios  contra  o  padre  Nitard.    O 


Conselho  tratou  também  de  appoiar  estes  e  de 
neutralisar  os  da  rainha  a  seu  favor,  propondo  ao 
ponlilice  outias  pessoas  para  o  capello;  e  tanto  o 
convenceu,  que  o  padre  Nilard  não  só  o  não 
obteve,  como  foi  também  obrigado  a  demittir-se 
dos  seus  cargos  e  a  entrar  em  um  collegio  de  je- 
suítas nas  proximidades  de  Uoma.  Esta  desgraça 
causou  desgosto  tão  grave  á  religiosa  soberana, 
que  adoeceu,  não  podendo  vingar-se  logo  de  D. 
João,  a  quem  suppunha  auclor  destes  desaires. 

Mas  depressa  se  lhe  on'ereceu  occasião  de  fazer 
sentir  ainda  a  sua  protecção  ao  padre  jesuita ; 
porque  fallecendo  o  papa  Clemente  IX  e  succe- 
dendo-lhe  no  pontificado  o  cardeal  Altierí,  que 
tomou  o  nome  de  Clemente  X,  tornou  a  nomear 
novamente  o  padre  Everardo  seu  embaixador  em 
Roma,  e  tanto  trabalhou,  que  conseguio  fazel-o  ar- 
cebispo de  Edesa,  e  por  fim  cardeal  em  1672,  to- 
mando o  nome  de  Bartholomeu  de  Isola. 

O  novo  cardeal  escreveu  então  a  D.  João  uma 
carta  muito  attenciosa,  pensando  com  isto  altrair 
a  sua  benevolência  e  a  possibilidade  de  voltar  á 
Ilespanha ;  mas  enganou-se  completamente,  por- 
que o  príncipe  nem  sequer  lhe  respondeu ;  e  este 
desaire  e  a  consideração  do  favor  que  o  princípG 
continuava  gosando  no  conceito  do  publico,  dís- 
suadio-o  da  ídéa  de  regresso,  até  d'alí  a  três  an- 
nos  em  que  terminou  a  menoridade  de  Carlos  II. 

Assim  acabou  a  influencia  do  bom  padre  Ni- 
tard ;  mas  não  se  julgue  que  se  restabeleceu  o  socego 
no  reino,  e  que  o  lugar  de  valido  ficou  vago:  ou- 
tro personagem  não  menos  celebre,  que  por  in- 
tervenção do  confessor  tivera  entrada  no  palácio, 
soube  de  modo  tal  lornar-se  aíTeiçoado  á  rainha 
que  ella  na  ausência  do  padre  o  escolheu  logo  para 
seu  conselheiro  e  lhe  conferio  as  mais  altas  digni- 
dades do  reino.  Este  personagem  foi  D.  Fernando 
de  Valenzuela,  de  quem  opporlunamente  fatiare- 
mos, para  que  este  nosso  resumido  trabalho  pos- 
sa dar  a  ídéa  mais  completa  do  que  se  passou 
n'aquelle  reino  cm  todo  o  tempo  da  menoridade 
do  lilho  de  Phílippe  II.  E  tudo  isto  porque?  Por 
causa  de  duas  boas  almas,  dois  modelos  de  virtu- 
de, dois  corações  humanos  e  generosos:  uma  rai- 
nha, como  quasi  todas  as  que  a  nossa  vísinha  tem 
tido,  religiosa  e  amante  do  seu  povo ;  um  bom 
padre,  sem  aspirações  ás  grandezas  da  terra,  des- 
pido de  ambição !  Mas  é  que  o  povo  nunca  está 
satisfeito,  c  os  aulícos  nem  todos  são  dotados  dos 
mesmos  sentimentos.  As  creaturas  cândidas  e  sin- 
gelas tiveram  sempre  o  ódio  da  humanidade.  Ve- 
ja-se  o  que  em  pleno  século  XIX  se  tem  passado 
com  a  virtuosa  Isabel  II. 


Quando,  em  a  nossa  juventude,  os  homens  e 
as  cousas  não  tem  podido  arrancar-nos  aquella 
delicada  flor  do  sentimento,  aquella  verdura  de 
pensamento,  aquella  nobre  pureza  de  consciência, 
que  nunca  nos  deixa  transigir  com  o  mal :  com- 
penetramo-nos  dos  nossos  deveres ;  a  nossa  honra 
fala  alto  e  faz-se  escutar;  somos  francos  e  since- 
ros, n.  de  Balzac, 


Tyi).  l''raiicu-l'orluguozii,  Uua  tio  Thcbouro  Vcliio,  C. 


52 


o  PANORAMA 


409 


MONUiMEiNTOS  MCIONAES  ANTIGOS 
III 

o  Conventinho  do  Desagravo  em  Lisboa 

Corre  o  vandalismo  despcaiio  de 
uni  a  out'0  extremo  do  reino,  e 
tudo  assola  e  desbarata. 

Sr.   a.  Herculano. —P««oraína. 

A  suppressão  dos  conventos  das  freiras  em  Por- 
tugal eslá  próxima,  porque  ceifadas  diariamente 
pela  morte,  teem  elles  de  íicar  abandonados  por 
ialta  de  povoadores.  Qual  será  o  futuro  de  muitos, 
nos  quaes,  além  de  lhes  andarem  annexas  muitas 
recordações  históricas,  se  guardam  ainda  deposi- 
tados tantos,  e  tão  preciosos  objectos  artísticos? 
Que  virá  a  ser  do  tão  devoto  Mosteiro  da  Madre 
de  Deus,  e  dos  seus  Ião  preciosos  quadros?  (1) 


Aonde  irão  parar  as  antiguidades  romanas,  ainda 
existentes  em  Chellas,  depois  de  tantos  séculos? 
Aonde  irão  ler  os  ossos'"de  Ahareanes  de  í-arna- 
che,  alferes  da  Ala  dos  Namorados  na  batalha  de 
Aljubarrota,  depositados  em  Corpus  Christi  de  Vil- 
la  Nova  de  Gaia  ?  (2)  Quantos  annos  faltarão  ainda 
para  que  as  igrejas  do  Salvador,  Monicas,  Trinas 
e  outras  muitas  sejam  um  montão  de  entulho? 
Qual  seiá  o  destino  de  Lorvão,  Cell?s,  Santa  Cla- 
ra, Estrella,  e  de  tantos,  fundados  por  nossos  maio- 
res ou  em  agradecimento  á  Divindade  por  bene- 
fícios recebidos,  ou  em  expiação  de  crimes  com- 
mettidos?  Mas,  quando  de  lodos  elles  não  existir 
mais  do  que  ura  montão  de  ruinas,  possa  haver 
então  lembrança  de  que  ainda  em  18G6,  n'uni 


o   Conventinho   do    Desagravo   em    Lisboa 


pequenino  mosteiro  cm  Lisboa,  se  praticavam  aus- 
teridades  e  rigores  taes,  debaixo  da  designação  de 
penitencias,  (|uc  não  tornam  incríveis  as  que  di- 
zem os  livros  terem  sido  postas  em  pratica  pelos 
antigos  solitários  da  Thebaida  e  da  Palestina  :  e 
rigores  taes  usados  ainda  não  somente  por  velhas 
sexagenárias,  que  nunca  conheceram  o  mundo  ; 
mas,  até,  por  jovens  de  IG  e  20  annos,  que  ali 
existem  debaixo  do  titulo  de  educandas,  mas  su- 
jeitas voluntariamente  á  mesma  disciplina  con- 
ventual, sem  cuja  pratica  seriam  excluídas. 

O  Mosteiro,  de  que  se  trata  neste  artigo,  é  o 
conhecido  vulgarmente  pelo  nome  de  Conventi- 
nho, defronte  da  incompleta  e  proverbial  igreja 
de  Santa  Engracia,  próximo  do  Campo  de  Santa 
Clara  em  Lisboa.  A  respeito  delle  diz-nos  o  Be- 

(1)  Moi  aussl  j 'aime  les  tableaux  golhiques  quand  ils  reufer- 
ment  dcs  benutós,  eome-celles  qui  se  voient  d^ins  les  panneanx  de 
Setúbal,  de  Madre  de  Deos,  de  Sam  Bento,  et  dans  los  Abraham 
Prim.  — Backzinsky.  Lellres.  png.  176. 


neficiado  João  Baptista  de  Castro  o  seguinte  no 
seu  iMappa  de  Portugal :  (3) 

«Santa  Clara  de  lleligiosas  Seráficas  observantes 
da  Província  chamada  de  Portugal.  Foi  fundada 
a  Igreja  no  anno  de  I29i  por  uma  D.  Ignez,  viu- 
va de  D.  VivaUlo,  nacional  de  Génova,  mas  Cida- 
dão honrado  de  Lisboa,  posto  que  já  no  anno  de 
1292  existiam  aqui  Religiosas.  Deste  Mosteiro  am- 
plíssimo, exceptuando  o  dormitório  chamado  da 
benção,  e  o  dos  corredores,  duas  varandas,  e  al- 
gumas Capellas,  tudo  mais,  que  em  dormitórios, 
e  casas  particulares  recolhia  mais  de  seiscentas 
mulheres  entre  Religiosas,  educandas,  recolhidas 
e  criadas,  íicou  ou  de  todo  abatido,  ou  irrepara- 
velmente  arruinado  com  o  terremoto.  O  seu  fa- 
moso Templo,  que  era  um  monte  de  ouro,  e  na 
grandeza  excedia  a  todos  os  mais  Mosteiros  da 

(2)  Fr.  Luiz  de  Sousa.  Hislor.  de  S.  Domingos.  Liv,  G.°  cap.  ô.*" 
(.i)  Vol.  3.0  pag.  275.  Ediç.  Uo  1763. 


410 


O  PANORAMA 


Corte,  ficou  lolalaienle  prostrado,  excepto  a  Iri- 
buna  e  cosias  da  Capella  Mór,  sepultando  mais 
de  quatro  ceiítcs  pessoas,  que  estavam  assistindo 
aos  Oííicios  Divinos.  O  Coro  de  cima,  (jue  era  um 
Paraiso  na  terra,  Iam' em  se  abaleo,  e  sérvio  de 
sepultura  com  suas  ruinas  a  quasl  todas  as  Reli- 
giosas, que  foram  cincoenta  e  seis,  alem  de  oito 
educandas,  uma  noviça,  (luatorze  recolliiilas,  ([ua- 
lenta  e  três  criadas,  e  nove  escravas,  que  |)or  to- 
das fazem  cento  e  trinta  e  uma  pessoas  dentro  do 
Mosteiro,  que  pereceram  nesta  trágica  fatalidade  » 

A  infanta  D.  Maria  Anna,  lillia  de  D  José  I, 
julgando-se  devedora  a  Deus  pela  ler  livrado  de 
uma  grave  moléstia,  em  agradecimento  mandou 
no  local  deste  arruinado  convento  levantar  um 
outro,  com  approvação  da  rainha  D.  Maria  l,  que 
ajudou  com  varias  esmolas.  Km  23  de  outubro  de 
1783  entraram  neste  pobre  conventinho  4  freiras 
fundadoras,  com  8  recolhidas,  e  6  noviças.  Hou- 
ve nesse  dia  um  solemne  Puntitical,  ao  qual  as- 
sistiram as  pessoas  reaes. 

Antes  da  fundação  deste  conventinho,  pelo  es- 
paço de  perlo  de  cinco  annos  exislio  no  mesmo 
sitio  um  recolhimento  da  mesma  observância,  fun- 
dado [)elo  marquez  de  Angcja,  em  cumpiimento 
dum  voto  feito  no  caso  de  melhorar  duma  peri- 
gosa enfermidade  a  marqueza  D.  Francisca  de 
Assis.  Entraram  neste  recolhimento  4  meninas, 
em  22  de  maio  de  1779,  e  neste  dia  começaram 
os  Lausperennes,  e  nelle  celebrou  I).  Manoel,  ir- 
mão da  referida  maiípieza.  Mais  tarde  chegaram 
as  recolhidas  a  ser  lo,  vivendo  em  geral  das  es- 
molas dadas  pelos  lieis. 

.Morreu  a  infanta  D.  .Maria  Anna  pelas  9  horas 
da  noite,  no  Rio  de  Janeii'o,  em  16  de  maio  de 
1813,  e  ficou  depositada  no  convento  de  Nossa 
Senhora  da  Aju  la  na  dita  cidade,  no  (|ual  as  re- 
ligiosas lhe  fizeram  exe(|uias  muito  solemnes.  A 
noticia  do  falleciíneiilo  desta  senhora  chegou  ao 
conventinho  em  julho  do  mesmo  anno,  e  passados 
alguns  dias  lambem  nelle  se  lizeram  solemnes 
exéquias,  e  com  grande  pompa,  concorrendo  com 
toda  a  despeza  .lorio  Baptista,  homem  muito  rico. 

Km  3  de  janeiro  de  1822,  j)(-las  11  horas  da 
noite,  chegaram  ao  conventinho  D.  João  VI,  acom- 
panhada da  infanta  D.  Isabel  .Maria,  do  infante 
I).  Miguel,  e  D.  Sebastião,  da  llesjjanha,  e  duma 
numerosa  c  luzida  corte,  fazendo  acompanhamen- 
to ao  coche,  em  (jue  vinha  o  cadáver  da  infanta 
D.  .Maria  Anna,  o  (piai,  depois  de  responsos  can- 
tados pelos  frades  do  convento  da  (iraça,  ficou 
de[)Ositado  nesle  convento,  no  coio  de  baixo,  em 
um  tumulo,  onde  se  acha  presentemente. 

No  anno  seguinte,  1823,  veio  lambem  D.  João 
VI,  com  suas  lies  li  lhas,  e  com  D.  .Miguel,  a.ssis- 
tir  a  outras  exeijuias  feitas  á  mesma  infanta.  Foi 
orador  desta  solemnidadí;  Fr.  José  Maria,  reli- 
gioso paulista,  orador  de  fama,  e  mais  tarde  no- 
meado bispo. 

A  vida  das  religiosas  deste  mosteiro  é  muito 
austera  :  oração  continua,  estando  sempre  a  toda 
a  hora  do  dia  (;  da  noite  duas  religio.sas  em  ora- 
ção dianle  do  Sacramento.   Somente  a  prioresa  e 


a  i'odeira  podem  fallar  com  pessoas  estranhas  á 
clausura  deste  convento.  Seu  leito  uma  cortiça  ; 
seu  travesseiro  um  madeii"o  ;  o  vestido  interior, 
estamenha  ;  o  exterior,  burel ;  o  calçado,  sanda- 
dalias :  os  jejuns  frequenlissimos ;  a  comida,  do 
magro,  exceptuadas  ajienas  as  doentes. 

('elebram  estas  freiras  varias  festividades,  can- 
tando ellas  cantochão  com  uma  tonadilha  especial 
e  unisona,  e  com  acompanhamento  de  i'abecão. 
Festejam  em  16  de  janeiro  o  Sacramento  pelo 
desacato  occorrido  na  freguezia  de  Santa  Fngra- 
cia  :  o  Palriarcha  S.  Francisco,  e  a  Matriarcha 
Sa.ita  Clara,  o  Coi'ação  de  Jesus,  Semana  Santa,  e 
lêem  Lausperenne  em  Iodas  as  quintas  feiras  do 
anno. 

O  patriarcha  de  Lisboa,  Guilherme,  numa  vi- 
sita feita  a  este  convento  oíTereceu  licença  jiara 
as  religiosas  poderem  moderar  os  rigores  do  seu 
modo  de  viver,  poi'ém  não  foi  acceita  pelas  frei- 
ras. 

X  igreja  e  convento  são  mui  pequenos  e  pobres, 
e  nada  olVerecem  de  notável,  nem  digno  de  espe- 
cial menção. 

Ha  na  actualidade  10  religios?s  professas. 

Em  tempos  mais  antigos  saía  da  igieja  deste 
convento  uma  procissão  á  meia  noite  a  16  de  ja- 
neiro, em  desagravo  do  Sacramento  ultrajado  nos 
silios  de  Santa  Engracia.  M.  B.  Bbango. 


SOBRE  AS  MEMORIAS  DOS  VINTE  ANNOS 

(Carta  n  Júlio  do  Castilbol 

(ConlinuMçrio) 

Eu  estava  a  fugir  de  fallar  ao  Júlio  nesses  dois 
personagens,  que  mais  nos  prendem  nas  suas  Me- 
morias, como  principaes  que  são;  seria  um  ridí- 
culo disfarce  comtudo,  que  a  verdade  primeiro  e 
o  aílVcto  depois  estavam  rijo  a  condemnar.  Luiz 
e  Magdalena  são  duas  liguras  sympathicas  e  im- 
ponentes, em  que  o  cinzel  do  esculptor  correu 
afortunado  e  opulento.  Lá  (jue  a  posição  da  esta- 
tua seja  menos  natural,  isso  é  outra  cousa,  mas 
facto  (|iie  não  destr.(')e  a  eorrecção  das  linhas  e  a 
belleza  dos  contornos. 

Estas  duas  creanças  que  se  estremecem  tibias 
em  contemplação  silencio.sa,  e  sem  os  arrebata- 
mentos divinisadores  do  coração,  são  um  cons- 
tante e  imperlurbado  idyllio,  perfeitíssimo  á  luz 
litteraria,  mentiroso  perante  a  realidade  aterrado- 
ra do  nosso  viver  social  1 

Eu  tenho  apreciado  no  seu  livro  ao  pé  da  boa 
elocução  litteraria  as  phases  verdadeiras  de  qual- 
quer caracter.  Consinta-me  o  continuar. 

Esta  sua  producção,  Júlio,  é  um  muito  mimoso 
ramilhete,  todo  elle  nuilisado  com  a  viold  odorata 
e  a  viola  tricolor,  as  duas  dicolN  ledonias  da  alma, 
muito  mimoso  para  corresponder  ao  titulo  de  Me- 
morias dos  vinle  annos. 

Este  livro  aceila-se  como  revelação  intima  do 
auctor:  germinam  viço.sas  a  ílor  da  submissão  e 
a  do  alíecto,  o  obseíjuio  aos  pães,  c  o  l(>stemunho 
á  mulher-esposa. 

Mas  o  enxamaer  das  dilislusoes?  o  entravar  das 


o  PANORAMA 


4M 


perfídias?  o  ononlocer  da  alma  desconfoilada  e 
mal-segura  aos  balanços  do  mar  aparcellado ':  o 
morrer-se  a  moile  lenia  nas  conlorsões  atlliclivas 
da  dôr  que  nos  piosira  ?  o  exorar  otTegante  a  Deus 
pelo  negrume  do  nada.  em  vez  da  nostalgia  do  céo, 
que  è  o  aspirar  supremo  do  chrisião?  o  crebro  fuzil- 
lar  d'esla  noute,  que  não  se  destolda,  ed'esla  bor- 
rasca incessante,  que  nossuíToca?  a  aridez  da  íace 
amarellada,  que  não  teve  osculo  que  lhe  enxu- 
gasse o  sulco  das  lagrymas  vertidas?  o  bulcão  de 
uma  sociedade  tábida,  que  nos  fazarreceiar  noque 
havemos  de  mais  intimo  —  a  familia?  este  atirar 
com  o  corpo  requentado  da  febre  para  a  lagea 
fria  do  cemitério;  e  a  l.igea,  impassível  até  ella,  a 
solevantar-se,  a  vasal-ofóraea  fugir-lhe"?  o  invejar 
com  olhos  de  ciúme,  não  o  repouso  do  cadáver, 
que  isso  seria  muito,  mas  até  o  vegetar  da  plan- 
ta, que  cresce  abeira  do  sarcophago,  e  se  vac  a 
enraizar  subterrânea  por  entre  a'  cal  e  a  terra,  e 
a  podridão  e  o  craneo,  e  os  fémures  e  osparietaes, 
partidos  ás  vezes,  e  dispersos  quasi  sempre  em 
caixão  rebentado?  este  martyrio  que  inferna  a 
alma?  esta  peçonha,  cuspida  por  Salanaz  nos  vinte 
a -nos  de  hoje?  onde  está  no  seu  livro?  em  que 
piírte  vem  das  suas  Memorias? 

Na  occasião  em  que  lemos  juntos  as  suas  pagi- 
nas, eu  e  o  Eugénio,  em  que  as  lemos  a  deleilar- 
nos  na  sua  fresquidão,  dizia  lhe  eu  cousa  quasi 
quasi  similhante  a  esta,  que  ora  refiro  a  v.  ex.' 
Obsta va-me  o  Eugénio  a  que  esperasse  pela  lei- 
tura de  futuros  capítulos,  em  que  o  dramático 
da  situação  venceria  a  costumada  serenidade  que 
eu  notava.  Vieram  elles;  vi  o  que  o  asco  do  crime 
pôde  arrancar  à  seiva  de  uma  juventude  aprovei- 
tada; applaudi  identificado;  mas  a  graciosa  timi- 
dez da  alma  cândida  continuou  a  resallar  das  pagi- 
nas, e  a  dar  o  tom  incompetente  ás  tempestades 
do  coração  opprimido  ! 

É  como  se  a  creança  a  entrar  em  homem,  tí- 
mida, e  por  ventura  innocente,  levassem  de  subi- 
lo  a  lupanar  disfarçado,  em  que  a  perdida  se  ar- 
rebicasse em  sentimento  postiço  para  attrahir  mais 
prestes,  mas  a  que  mão  astuta  desvendasse  rápida 
os  seios  remendados  de  adhesivo,  dizendo  ao  in- 
fante :  vês,  foi  da  rixa  de  hontem ! 

Então  era  o  enojar  da  creança;  o  balbuciar 
inaudível  quasi  de  phrase  soturna  ;  e  depois  o  fu- 
gir ;  e  pouco  mais  tarde  o  brincar  socegado  e 
inefável  I  É  que  o  presen  li  mento  da  maldade  não 
lhe  revelara  a  altura  da  sua  hediondez! 

A  alma  do  Júlio  ignora  lambem  a  {)hrase  do 
que  chegou  a  descrer. 

Se  um  dia  o  infortúnio  bater  á  sua  porta,  e 
lhe  deslembrar  a  jaculatória,  que  hoje  solla  afer- 
vorado, Júlio;  se  por  ventura  enlão  pegar  d'esle 
livro,  d\'sle  livro,  que  eu  não  posso  ver,  que  me 
rasga  o  coração,  que  me  dilucida  do  Iransviamen- 
to  da  minha  alma,  chore,  chore. 

Estas  puerilidades  traduzem-se  em  bemaventu- 
ranca  de  elegido. 


29  de  outubro  de  GO, 


D^V.  Ex.oeíc. 

J.   A.   DA  (JínACA  BAnUETO. 


DANIEL  0'CONNELL 

(Concliiíãu) 
II 

Espantar  se-hão  os  leitores  de  que  eu  tanto 
prolrabisse  este  esboço  histórico  das  perseguições 
da  Irlanda  reservando  epenas  para  as  duas' ou 
trcs  paginas  finacs  o,  retrato  do  vullo  que  me 
propuz  biographar.  É  porque  essa  historia  faz 
comprehender  imniediatamenle  a  importância  do 
vullo  deO"Connell.  Basta  dizermos  :  OConnell  foi 
durante  a  sua  vida  inteira,  perante  o  mundo,  o 
campeão  daquella  nacionalidade  opprimida.  O 
desenrolar  deste  sudário  foi  a  sua  eloquência. 
Os  grilos  abafados,  que  durante  séculos  as  victi- 
mas  soltaram,  foram  se  concentrar  afinal  numa 
voz  única,  e  essa  voz  troou  de  repente  na  tribu- 
na de  Londres,  grave,  sonora,  formidável,  e  essa 
voz  foi  a  de  0'Connell,  e  essa  voz  revelou  ao  mun- 
do espantado  o  crime  de  que  uma  naçcão  fora 
a  perpretadora,  e  outra  nação  a  victima.  E  tudo 
emmudeceu  diante  d"aquella  voz  que  saía  do  tu- 
mulo d'um  povo,  e  questões  mesquinhas  da  po- 
litica, questões  secundarias  de  civilisação  mate- 
rial, questões  de  personalidades  tudo  se  poz  de 
parle,  calou-se  tudo  não  ousando  profanar  aquel- 
les  Ihrenos.  em  que  o  Ezechuiel  parlamentar  cho- 
rava as  desgraças  da  Sião  irlandeza,  e  chamava 
a  maldição  do  mundo  sobre  os  crimes  d'essa 
líabylonia  nebulosa,  e  o  vulto  severo  e  triste  de 
OConnell  ergueu-se  diante  de  lodos,  rodeiado 
das  bênçãos  dos  seus  compatriotas,  da  admira- 
ção da  Europa,  do  terror  dos  seus  antigos  op- 
pressores. 

Aquella  Irlanda  era  um  antro.  Commeltiam-se 
ali  crimes  nefandos  de  que  pouco  transpirava.  A 
fome  dizimava  a  população,  e  a  Europa,  quasi 
ignorando  o  desastre,  continuava  a  exaltar,  a 
applaudir,  a  imitar  a  alegre  Inglaterra,  iiierry 
England,  alegre  oppressora  da  melancholica  Erin. 

E  surgio  0'Connell  e  o  \éo  corrcu-se,  e  atra- 
vez  do  silencio  ofíicial  vibraram  os  grilos  das 
gerações  opprimidas,  e  a  Inglaterra  foi  chamada 
ao  tribunal  da  humanidade,  e  le\anlou-se  o  man- 
to esplendido  da  cí\ilisação,  e  viram-se  por  bai- 
xo as  pústulas  asquerosas,  os  andrajos  da  Irlan- 
da. 

E  a  Inglaterra  tremeu  e  cedeu.  A  voz  de  0'Con- 
nell, como  a  trombeta  dos  Israelitas,  fez  cair  as 
muralhas  d'es?a  Jcrichõ  tradicional,  que  se  cha- 
ma a  Constituição  ingleza. 

Eis  o  motivo  porque  eu,  em  vez  de  traçar  a 
biographia  do  grande  tribuno,  biographia  que 
em  duas  palavras  se  resume,  preferi  expor  esses 
sele  séculos  de  oppressão  para  que  se  podessc 
comprehender  que  grande  seria  o  homem,  cuja 
eloquência  se  poz  ao  serviço  desta  causa,  e  por 
ella  pelejou  c  venceu. 

Fatiemos  agora  no  homem. 

Daniel  0'Connell  nasceu  no  dia  O  d'agoslo  de 
1775  em  Cahir  Civeen  no  condado  de  Kerry.  Di- 
zia-se  que  elle  descendia  dos  antigos  reis  de  Ir- 
landa. Seria  verdadeira  a  tradição,  ou  o  povo 
irlandez,  na  sua  ingenuidade,  se  comprazeria  em 
doirar  com  essas  reminiscências  dum  passado 
glorioso  o  vulto  do  seu  tribuno  querido,  e  dese- 
jaria ligar  intimamente  o  interrompido  fio  da 
existência  nacional^  prendendo  ás  saudades  do 
passado  as  esperanças  do  futuro  ?  Nada  se  aíTir- 
ma  com  certeza ;  mas  o  que  sabemos  é  que  era 


412 


O  PANORAMA 


Daniel  0'Connell  o  mais  velho  dos  dez  filhos  de 
Morgan  0"ConnelI,  rico  lavrador,  e  que,  destinado 
ao  eslado  ecciesiaslico  pela  sua  faniilia,  foi  cslu 
dar  a  França  no  coUegio  dos  jesuítas  de  Saint- 
Omer.  Em  1794  voltou  á  Irlanda,  mas  a  sua  vo- 
cação não  o  chamava  ao  sacerdócio,  e  o  juvenil 
estudante,  já  namorado  da  eloquência,  c  familiar 
comas  abelhas  atticas  que  o  visitavam  em  sonho, 
preferio  o  foro,  onde  se  ia  preparando,  como 
Cícero,  para  as  luctas  da  tribuna,  que  elle  ainda 
nem  imaginava  que  se  lhe  podesse  abrir. 

Quatro  annos  estudou  em  Middle-Temple  em 
Londres,  e  em  1798,  contando  apenas  vinte  e 
três  annos  de  idade,  estreou  se  em  Dublin  com 
immenso  successo,  obtendo  logo  numerosíssima 
clientela. 

Desde  então  começou  a  revelar-se  nelle  lambem 
o  patriotismo  ardente,  que  lhe  devia  dar  tanta 
gloria.  As  perseguições  contra  a  Irlanda,  um  mo- 
mento interrompidas,  recomeçaram.  Em  1800  é 
abolido  o  parlamento  irlandez.  0'Connell  protesta 
contra  esse  acto  em  voz  bem  alta,  não  receiando, 
o  temerário  sublime,  conciliar  o  ódio  da  poUtica 
britannica. 

Por  esse  tempo  o  grande  ministro  Pitt  promet- 
tera  obter  a  emancipação  dos  catholicos;  a  Ir- 
landa nada  em  jubilo,  mas  é  vã  a  promessa;  o 
fanático  Jorge  1IÍ  recusa  obstinadamente  assignar 
o  decreto  onde  está  exarada  essa  medida  ião 
conforme  com  a  justiça  e  a  humanidade.  Pitt 
pede  a  sua  demissão,  e  a  esperança  dos  catholi- 
cos, assim  mallograda,  transforma-se  numa  ir- 
ritação formidável,  que  se  manifesta  pela  recru- 
descência das  sociedades  politicas,  entre  as  quaes 
figura  em  primeira  linha  a  Associação  Gatholica, 
de  que  é  Daniel  0'Connell  membro  activíssimo, 
e  onde  os  seus  compatriotas  reconhecem  pela 
primeira  vez  a  sua  eloquência  tribunicia,  e  taci 
lamente  lhe  confiam  os  destinos  da  pátria. 

Isto  passava-se  em  1807.  Nesse  mesmo  anno 
casara  o  grande  orador  com  sua  sobrinha  Maria 
0'Connell. 

Começa  então  a  longa  lucla  de  vinte  e  três 
annos,  em  que  Daniel  0'Connell  consumio  a  sua 
Juventude,  lucta  em  que  o  seu  nome,  pronuncia- 
do com  terror  pelo  próprio  Wellington,  o  vence- 
dor de  Bonaparte,  se  doirou  com  todos  os  es- 
f)lendores  da  gloria.  Ouvio  a  Europa  esse  rumor 
onginquo,  voltou  os  olhos  para  a  Irlanda,  c  vio 
esse  nobre  vulto,  esse  representante  da  civilisa- 
ção  c  da  humanidade^  pondo  montanha  sobre 
montanha,  Pelion  sobre  Ossa,  para  galgar  ao 
Olympo  inviolável  da  Constituição  ingleza,  fa- 
zendo corar  de  vergonha  os  (}ue  se  diziam  li- 
bertadores do  mundo  e  tinham  em  ferros  um 
pai7.  irmão,  os  que  se  diziam  guias  do  caminhar 
civilisador,  e  tinham  uma  legislação  mergulha- 
da nas  trevas  da  barbaria,  os  que  se  ufana- 
vam de  terem  primeiro  no  c(jo  nebuloso  da  Eu- 
ropa accendido  a  estrella  dalva  da  liberdade,  e 
que  envolviam  C(jm  cuidado  no  denso  manto  da 
morte  os  seus  mais  próximos  irmãos. 

E  a  voz  troava  incessante  no  extremo  Occiden- 
tal da  Europa,  e  vinha  resoar  em  torno  das  pa- 
redes d'essa  Jerichó  de  Westminster-Hall,  que  se 
obstinava  cm  cerrar  as  portas  aos  novos  Israeli- 
tas fugindo  da  escravidão  do  Egypto,  e  a  cada 
brado  dessa  voz  possante  a  Irlanda  erguiase  cm 
Y)C',  nOo  tumultuaria  c  sangui-sedenta,  como  no 
tempo  de  Isabel,   de  Carlos  ],  de   Cromwell,   de 


Guilherme  dOrange,  de  Jorge  IIÍ,  mas  grave, 
austera  e  ameaçadora  na  sua  tranquillidade  im- 
ponente. A  Associação  Catholica,  a  que  Daniel 
0'Conncll  dera  uma  organisação  poderosa,  foi  a 
alavanca  de  que  se  ser\io  para  exercer  sobre  o 
seu  paiz  uma  influencia  decisiva.  Corria  um  fré- 
mito pela  Irlanda  a  cada  gesto  do  tribuno,  como 
estremece  a  Sicilia  quando  se  agita  no  Etna  o 
Titão  soterrado. 

Luctou  e  venceu.  Em  1829  lord  Wellington, 
presidente  do  conselho  de  ministros,  vio-se  obri- 
gado a  propor  e  Jorge  IV  a  assignar  o  decreto 
da  emancipação  dos  catholicos,  e  em  fevereiro 
de  1830  Daniel  0'Connell  em  pleno  goso  de  seus 
direitos  políticos,  entrava  em  triumpho  na  ca- 
mará baixa.  Caíra  Jerichó. 

Desde  então  0'Connell  segue  uma  politica,  pri- 
meiro applaudida  pelos  seus  compatriotas,  depois 
accusada  de  moderantismo  por  esse  partido  ul- 
tra, que  sempre  vem  em  seguida  ás  reacções  le- 
gaes.  Comprehendendo  as  vantagens  da  união 
dos  dois  povos,  0"Connell  quer  que  a  Irlanda  te- 
nha uma  iníluencia  legitima  nos  negócios  geraes 
da  Grã-Brelanha.  Consegue  o.  Em  183i  os  votos 
da  deputação  irlandeza  decidem  a  queda  de  um 
ministério.  Apesar  dos  murmúrios  da  facção  exag- 
gerada,  que  se  intitulava  Juvenil  Irlanda,  0'Con- 
nell continuava  a  ter  o  paiz  na  sua  mão.  Em 
18i2  foi  eleito  lord-mayor  de  Dublin.  Uma  pen- 
são de  loSOOO  libras  é-lhe  decretada  pelos  seus 
compatriotas.  Em  1843  o  governo,  receioso  da 
sua  influencia,  aproveita  um  pretexto  especioso 
para  o  chamar  aos  tribunaes,  como  perturbador 
da  paz  publica.  Os  tribunaes  condemnam-no,  mas 
a  camará  alta  absolve-o.  0'Connell  sae  em  trium- 
pho da  prisão.  Mas  a  sua  saúde  começava  a  de- 
clinar visivelmente.  Quer  emprehender  uma  ro- 
maria á  capital  do  mundo  catholico,  mas  a  mor- 
te surprehende  o  em  Génova,  e  o  grande  orador 
finda  a  \ida  terrestre  no  dia  13  de  maio  de  1847. 

Eis  o  que  foi  o  tribuno  irlandez,  um  dos  ho- 
mens mais  eloquentes  desle  século,  e  o  campeão 
constante  e  inabalável  da  causa  santa  d'um  povo, 
cujo  longo  martyrio  forma  a  pagina  negra  da 
historia,  aliás  tão  brilhante,  da  Grã-Bretanha. 
M.  Pinheiro  Chagas. 


OS  NOVOS  ÓRGÃOS  DA  SCIENCIA 

Á  medida  que  as  relações  dos  povos  crescem, 
a  sciencia  ganha  ao  mesmo  lempo  em  veradde  e 
prolundesa.  A  creaçáo  de  novos  órgãos,  porque 
assim  podem  ser  chamados  os  inslrumcnlos  de 
observação,  augmonla  a  foi-ça  physiea  do  liomeni. 
Mais  rápida  do  (|ue  a  luz,  a  corrente  eleclrica  le- 
va o  pensamento  e  a  voniade  ás  mais  longiquas 
regiões.  Uni  dia  virá  cm  que  certas  forças  que  se 
exercitam  Iraníjuiiiamente  na  naluresa  elementar, 
como  nas  cellulas  delicadas  do  lecido  orgânico, 
sem  que  nossos  sentidos  tenham  podido  ainda 
descobril-as,  reconhecidas  enillm,  aproveitadas  e 
levadas  a  um  grau  mais  subido  de  actividade,  to- 
marão lugar  na  serie  indeíinila  dos  meios  com  o 
auxilio  dos  quaes,  lornando-nos  senhores  de  cada 
domínio  particular  no  imj)erio  da  natureza,  nos 
elevemos  a  um  conhecimento  mais  inlelligenle  e 
mais  animado  do  conjunto  do  mundo. 

IIlmboldt,  Cosmus. 


índice 

(Os  asicriscos  anles  da  numerarão  das  pngi  ias  dcsiunain  gravuras) 


Aborigones  da  Austrália,  228  * 

22U 
Academia  do  cachimbo,  195 
Adoração  dos  Pastores  (quadro 

de  Ribera),  308  *  309 
Adriauo  Brawor,  3iG 
Advertência,  -i3 

Agostinho  iSanto)  (excerpto)  52 
Agua  doce  sobre  a  salgada,  248 
Albany  (uma  rua  de),  '  161 
Alcatrão  (o),  *  69 
AUamistakeo  (vid.  Contos) 
Amor  á  pátria,  187 
Andorinha  (a),  *9 
Anccdotas — A  bellesa  e  os  ador- 
nos, 4 
—  Fastidiosos      preliminares  , 

244 
— A  posteridade,  8 
— O  segredo,  8 
— Os    três  filhos     de    família, 

238 
—Três  ladrões,  212 
Ao  publico,  1,  352,  3G8 
Applicação    do  bello  ás  scien- 

cias,  ás  letras  e  ás  artes,  158 
Apologo  ou  fabula  (estudo),* 337 
Arco  da  rua  Augusta,  "  201 
Arte  (umat  perdida,  39 
Arvore (a)do  bom  pastor,'(idilio) 

99 
Arvore  do  manná,  *  77 
Atmeidan  (o),*  369 
Austrália  (aborígenes  da),  *  228 

229 
Azaria  (etymologia  desta  pala- 
vra), 203 
Bananeira  (a),  *  49 
Barbada,  '  137 

Batalha  de  Poitiers,  100  '  101 
Bazin,  159 
Beatriz  (poema),  32,  39,  56,  64, 

72,  80,   104,   112 
Bedford  (uma  escola),  *  357 
Beduínos,  172  *  173 
Bellesa  (a)  e  os  adornos  (anec- 

dota)  4 
Benedek,  *  249 
BengucUa, *  273,  323 
Birmingham,  321  *  322 
Bismark,  '  289 

Boca  (a)  do  inferno  (vid.  roman- 
ces) 
Brahmanes  (os),  '  265,  310,  335, 

338 
Brawer  (pintor  flamengo),  3i6 
Bristol,  '  269 
Bugios  (os),  196  *  197 
Caçador  (o)  de  elephantes  (conto 

persa)  3 1 1 
Camará  municipal  de  Derby  ,*1 2 1 
Capella    de  Santa    Rosália    no 

monte  Peregrino,  '  401 
Carlos  II  de  Hespanha,  339,  356, 

380,  400 
Carta  dosr.  A.F.de  Castilho,  20 
Carta  ao  sr.  Júlio  de  Castilho,  386 

410 
Carta  dosr.Rebello  da  Silva,  303 
Casa    da  camará  de  Liverpool, 

li8*149 
Castcllo  do  Ehrenbreitstein  *193 
Castello  do  Kcnilworth,  132*133 
Castello  e  porto  de  Dover,  *  36 1 
Cataracta  (a)  de  Corra-Linn,'  2 1 7 
Cathedral  do  Chartres,  '  285 
Cathedral  de  Lichfield,  *  17 
Cathedral  de  Rochester,  *  253 
Cathedral  dcWorcester'381 ,382 
Cervantes  (em  que  circumstan- 

cias  foi  composto  o  romance 

de  Don  Ouixotc),  190 
Chacal  (o)  e  a  raposa  (fabula)  220 
Chartres  (cathedral  de),  '  285 


Cholera  (o),  283,  298 
Chronica  geographica,  223 
Chronicon  Albeldense  (obra  do 
século IX),  230,  248,  264,271, 
332,  359,  392 
Cidade  (uma)  do  madeira,  399 
Cintra  (vista  pittorcsca  dos  pa- 
ços de),  *  57,  58 
Circassianos,  "  105 
Clássicos   (a  nova  edição  dos), 

212 
Como   se  determina  a  distancia 

das  estrellas  á  terra,  *  259 
•Como  se  faz  o  gelo  cm  Bengala, 

140 
Conda  AUamistakeo  (vid.  con- 
tos) 
Conde  de  Chatam,  *  89 
Confissão  (a),  (idilio),  11 
Constantinopla    (o  Atmeidan), 

*  3G9 

Contos  —  O  caçador  de  elephan- 
tes, 311 

—  O  conde  AUamistakeo,  218, 
226,  255,  274,  382 

— A  formiga  e  a  aranha,   272 

— O  granadeiro,  354 

— O  homem  ([ue  não  ri,  252,262 

— Justo  castigo,  208 

— Os  ovos  e  os  cavallos,  359 

—  A  papa  gente,  o  ferreiro  e  o 
alfaiate,  222 

— Um  pesadello,  102 

—  Os  pescadores  e  o  urso,  318 
— Rã-Pulanto,  18,  30,  35 

— As  rãs  de  Sartilly,  84 

— Razaila,  264 

■ — Os  três  estados,  114,  122 

Contradanca(a)  ridícula,  (de  Ho- 

garth),  2"36  *  237 
Convento    de  S.  Domingos    de 

Santarém,  *305 
Coram  (o  Capitão),  *  185 
Corra-Linn  (a  cataracta  de)'  217 
Cortes  (o  palácio  das)  *  209 
Corvo  (o)  e  a  raposa,  '  337 
Corvos  marinhos,  "61,  62 
Corypha  umbraeulifora,  *  385 
Costumes  dos  Turcos,  34 
Conventinho  do  Desagravo  em 

Lisboa,  •  409 
Crença  (a)  gauleza,  264 
Critica  (a)  litteraria,  183 
Cuscus  (o),  276 
Cyclones  (utilidade  dos),  140 
Daliomey,  79 
Daniel  0'Connel,  388,*389,  401, 

410 
Daniel  Richard,  119 
Da  utilidade  de  uma  lingua  uni- 
versal, 188 
De  que  vivem  as  plantas,  1 83 
Derby  (camará  municipal  de), 

*  121 

Derrota  de  Valdez  na  Terceira, 

304,  313 
Descoberta  (da)  das  longitudes 

no  mar,  231 
Desconfiar  das  flores  durante  a 

noite,  138 
Dia  (um)  d'invcrno  (meditação), 

123 
Divisão  do  tempo  na  (iiiina,  200 
Dois  (os)  rapazes     (([uadro  de 

Murillo),  292  *  293 
Dominiquino  (quadro),  05  *  66 
Dover  (Castello  e  porto  de),*  30 1 
Duguet  (os  escrúpulos),  175 
Eneas  salvando  .\ncliises,  65*66 
Eneida  (noticia  de  uma  traduc- 

ção  inédita  da),  3i9 
Eiiistola  dedicatória  de  Gil-Vi- 

cente  a  D.João  III,  51 
Eljitajihio,  279 


Erratas,  43,  90 

Esboço  descriptivo  do  mar^  lOG 

Escola  militar  de  \Voohvick,!93 

l-íscrupulos  (os),  175 

Escrúpulos  honrosos  de  dois 
homens  illustres,  159 

l';strclla  (a)  da  manhã,  (lenda 
indiana),  182 

Estudo  (o)  da  historia  (apologo), 
13  í 

Evgmoula  (canto  grego)  2i8 

Excerptos  de  auctores  portu- 
guezos — Padre  .Vntonio  Viei- 
ra, 47,  92,  112,  128,  135,148, 
296 

— B.  Ribeiro,  112,  144 

■ — Braz  Garcia  de  Mascarenhas, 
160 

— Duarte  Nunes  de  Leão,  1 12 

— Fernão  Mendes  Pinto,  336 

• — D.  Francisco  Manuel,  20.  31, 
272 

— Francisco  de  Moraes,  156,  216 

— Francisco  Rodrigues  Lobo,  70 
70.  80,  96,  112, 136 

—Garrett,  104,  156,  160,  224 

— Gil-Vicente,  51,  70 

— José  Maria  da  Costa  e  Silva, 
51,  60 

• — Fr.  Luiz  de  Souza,  111,  112 

— M.  Aflonso  de  Miranda,  176, 
183,  18i,  187 

—Manuel  Bernardes,  308,  312, 
328,  332,  336 

— R.  de  Rastos,  3i6 

—Sá  de  Miranda,  390 

— Thomaz  António  Gonzaga,  31 

Fabulas  —  O  chacal  e  a  raposa, 
220 

— O  lapidario  e  o  diamante,  51 

— O  pavão  e  a  cegonha,  60 

Familia  (a)  dos  Saxe-Goburgo- 
Gotha,  197 

Fastidiosos  preliminares,  (anee- 
dota  árabe),  24  í 

Festa  (a)  dos  reis,  *  13 

Festas  dos  musulmanos,  87 

Fissirostros  (os)  diurnos,  *  9 

Flautas  (as)  do  grande  Frederi- 
co, 165 

Folguedo  dos  camponezes  (qua- 
dro de  Van-Ostade)  *  365 

Formiga  (a)  o  a  aranha,  (conto), 
272 '^ 

Fortuna  (a),  255 

Galatéa  moderna  (vid.  roman- 
ces) 

Galeria  nacional  de  Londres, 
140*  141 

Génova,  ' 24 i 

Gibraltar,  '153  '157 

Granadeiro  (o),  (conto),  354 

Gravura  em  madeira  em  Portu- 
gal, 50,  68,  111 

GuilliermeTelleSchiller319,330 

Habitação  turca,  '  33 

Hebreus  (a  paschoa  dos),  43 

Ilenri  Barth,  138 

High-Street,  *  277 

Historia  da  gravura  em  madeira 
em  Portugal,  50,  68,  111 

Historia  dos  relógios,  1 10 

Historia  da  Rosa,  295,  306 

Historia  da  Rosa,  306 

Ilogarth  (vid.  ^Villiam  Hogarth) 

Homem  (o)  que  não  ri,  (conto 
árabe),  262,  252 

Hong-Kong,  '  129 

Hydo-Park,  '313 

Idilios  —  A  confissão,  1 1 

■ —  .\  tempestade,  30 

—  A  arvore  do  bom  pastor,  99 

Igreja  de  Saint-MaclouemRuão 
'  '41,  42 


Igreja  de  Santa  Maria  d'Aguas 

'Santas,' 225 
Ilha  Barbada,  *  137 
Ilhas  de  Gelo,  176 
luragem  da  vida,  160 
Inunensidadc,  (meditação),  176 
Imprensa  nacional, '  113 
Imlia  (instrucção  na),  124 
Infeliz  i)oeta  (quadro    de    Ho- 

garthi,  28  '  29 
Inlluencia  dos  Etruscos,  260 
Instrucção  na  índia,  124 
Invocação,  151 
Jacciues    Jordães   (o  rei  bebe, 

quadro  de),  *  13 
Jazigo  da  rainha   D.  Luiza  Gus- 
mão, 260 
Jenner,  180*  181 
João  (S.)  (quadro  de  Murillo)  *85 
João  de  Mattos  Fragoso,  250,270 
Joaquim  José  Domingues  Lima, 

47,  50 
John  Harri.son  (descoberta   das 

longitudes  no  mar),  231 
Jorge  (D.)  de  Mascarenhas,  162, 

189 
Judeus  (a  paschoa  dos),  43 
Justo  castigo  (conto  indiano)  208 
Kara-Hissar, '  325 
Karl  Christian-Rafn,  156 
Kenilworth  (castello  de)  132*1 33 
Knowle   (quinta  e  palácio  de) 

'  261 
Korounás,  *  297 

Lapidario  (o)  e  o  diamante,  (fa- 
bula), 51 
Leão  X,  '  25 
Leeds,  *  349 
Leitor  (um)  do  século  passado, 

304 
Lendas  indianas,  (a  cstrella  da 

manhã),  182 
Leonardo  Vinci  (um  soneto  de), 

284 
Léon  de  Laborde,  *  5 
Leopardo  (o),  *  145 
Lição  a  imi  lisongeiro,  175 
Lichfield  (cathedral  de),  *  17 
Liverpool  (casa  da  camará  de), 

148*  149 
Londres  (galeria  nacional  de), 

140*  141 
Londres  (High  Street) '  277,286, 

299 
Louis  Dubeux,  171 
Manná  (o),  '  77 

Mar  (esboço  descriptivo  do),  106 
Maria  II  (theatro  de  D.), "97, 1 18, 

13Í 

Marselha,  *  353,  395,  404 

Máximas,  10,  12,14,  16,  40,  58, 

62,   64,  71,  72,  76,  105,  108, 

175,  192,  199,  221,  232,  252, 

254,  276,  280,  283,  296,  304, 

310,320,330,371,377,  381,408 

Microscópio  (o)  c  o  telescópio, 

200,*  207,  *  208 
Monte  Sinai,  *  233 
Mfiuumciito  erigido  á  memoria 

de  Rcné  Caillié,  144 
Morte  (a)  do  Gladiador  '  373 
Morte  (a)  e  o  seu  ministro,  (pa- 
rábola), 40 
Movimento  (do),  59,  07 
Movimento  (do)  no  universo, 375 
Mozart,  204  '205,215 
Mundo  (o)  do  mar,  288,  315 
Murillo  (S.João,  quadro  de),* 85 
Murillo  (Os  dois  rapazes,  qua- 
dro de).  292  '  293 
Musico  (o)  enraivecido,  (quadro 

de  Hogarlh),  116'  117 
Musulmanos  (festas  dos),  87 
Mythologia  scandinava,  238 


Mvthologia  da  Nova  Zelândia, 

\'78,  282 
Natureza  {a),  124 
Newton  (um  dito  de),  288 
Nova  Zelândia  (mythologia)27S 

282 
Nympheaceas  (as),  *  28 1 
Obra  (umal  do  século  IX  (cliro- 

nicon  Albeldensei,  230,  248, 

204,  27;,  332,  359,  392 
Oliservaoões  (algumas)  sobre  o 

cérebro,  236 
O  Ocelote.  '  393 
0'Connell,  388*  389,401,411 
O  que  aconteceria  se  o  movi- 
mento da  terra  cessasse  subi- 
tamente, 143 
Origem  dos  homens  brancos,  de 

cor,  pretos,  351 
Ovos  (os)  e  os  cavallos  (conto 

dinamarquez),  359 
Talacio  lo)  das  cortes,  *  209 
Palermo,  '  81 
Palestras  hvgienicas  (o  pão)  217 

251 
Talmeira  (a)  talipot  *  385 
Papa  (o)  Leão  X,  '25 
Paraná  (apontamentos  geogra- 

phicos),  172 
Paschoa  (a)  dos  hebreus,  43 
Patagões  (os  pelotiqueiros)  286 
Pavão  (o)  e  a  cegonha  (fabula), 

60 
Pekin    (porta    do    norte)    108, 

•  109 
Pelotiqueiros    (os)      patagões, 

286 
Penna  (a)  d'aço,  194 
Perez  Lorenzõ  (vid.  romances) 
Pernambuco    (necessidade     de 

uma  monographia  acerca  da 

província  de)  166 
Pesadello  (um),  (conto  phantas- 

tico»,  102 
Pesca  com  corvos  marinhos, *6 1 

62 
Pescadores  (os)  e  o  urso  (conto 

groenlandez)  318 
Pliilo-portuguezes(os),4,  14,  22, 

42.87 
Pitt  (William),  *  89 
Pizarro,  300,*301,  326,  329,342, 

358,  367,  371 
Plantas  (o  somno  das),  207,  2  i  I 


Poesias  —  L'amour  c'est  la  vie, 

176 
— Angélica,  64 
—Beatriz,  32,  39,  56,  64,  72,80, 

04,      2 
—A  borboleta,  1Ç8 
—Casta  Diva,  200 
— Causeries,    20 
—Descalça,  296 
— Duas  mães  (soneto  dedicado  a 

Thomaz  Ribeiro),  40 
— O  espelho  magico,  56 
—A  estrella,  8 
— A  Gomes  de  Amorim,  343 
— Ilarpejo,  26 
— Improviso,  104 
— Invocação,  135 
— O  janota  litterato,  1 60 
— Â  morte  de  Manuela  Rey,  120 
— Pallida  mors,  48 
— Na  primavera,  184 
— Prisão  de  amor,  72 
-Profissão  de  fé,  336 
—Repouso  232 
— A  uma  rosa,  264 
— Saudação  á  aurora,  24 
—Saudades,  88 
— Sem  titulo,  120 
—Sombras,  152 
— Soneto,  144 

—Terça  feira,  360,  384,  400 
— Visões  á  beira  d'agua,  280 
Poitiers  (batalha  de)  100  *  10 ; 
Polyphemo  (o)  dos  russos,  221 
Ponto  de  Rialto  em  Veneza,    44 

*45 
Ponte  natural  na  Virgínia,  244 

•245 
Ponte  suspensa  sobre   o  Avon 

•269 
Porto  (estudos  sobre  a  cidade 

do),  362 
Portsmouth,  188  '  189 
Posteridade  (a),  (anecdota),  8 
Praça  de  Luiz  de  Camões,'  177 
Prediccão  e  previsão  do  tempo, 

327  ' 
Processo  para  extrair  o  alcatrão 

'  69 
Provérbios  árabes,  184 
Que  provas  positivas   existem 

de  que  a  terra  é  redonda,  gira 

sobre  si  e  á  roda  do  sol,  191, 

202 


Onestão  {a\  littcraria,  3,    O,  86 

(Juinta  e  palácio  de  KnovYle'26 

Hã-Pulante  (vid.  contos) 

Rãs  (as)  de  Sartilly  (conto),  84 

Razaila  (conto  árabe)  264 

Rei  (o)  bebe  (quadro  de  Jordães) 

*  13 
Reino  (o)  deDahomey,  79 
Reis  (os)  e  rainhas  de  Inglater- 
ra, 275 
Relógios  (os),  110 
Respeito  á  infância,  216 
Resposta  a  um  tolo,  152 
Ribera  (quadro),  308  *  309 
Richard  (Daniel i,  i   9 
Rimau-dahan  (o),  *  395 
Rochester  (cathedral) '  253 
Romances — A  boca  do  inferno, 

129,    42,  15',   15*7,  170,  178, 

188,  199,  206 
— Galatéa  moderna,  54,  60,  70, 

74,    93,    174,   213,   233,  245, 

290,  369,  378,  390 
—Perez  Lorenzo,  6,  15,  23,  27, 

36,  46,  62,  83,  101,  126 
Ruão  (icrreja  de  Saint-Maclou), 

'41,42 
Saint-Mnclou,  *41,  42 
Salamandra  (a),  '  165 
Santa  Helena,  '  333 
Scandinavia  (mythologia),  238 
Sccnas  da  campanha  do  México 

(vid.  romances) 
Scena  de  escravatura,  317  '  318 
f ciência  (a)  (Laplace),  312 
S.  Sebastião,  '21 
Século  (o)  XVIII,  208 
Segredo  (o),  (anecdota),  8 
Sensibilidade    de    consciência, 

200 
Sepultura  de  Gil-Vicente,  76 
Simios(os),  196*  197 
Sobre  as  memorias  dos  vinte 

annos  do  sr.  Júlio  de  Castilho, 

386,  410 
Sobre  o  estylo,  198 
Somno  (o)  das  plantas,  207,  211 
Stockolmo,  '  169 
Strathfieldsay  (dominiodo),'405 
Suissa  (a),  *  1 

Superfície  (a)  terrestre,  31 1 
Tabaco  (o),  90,  145 
Tasso  (bosquejo   biographico), 

148 


Telescópio  (o  microscópio  e  o), 

266,  '  267,  '  268 
Tempestade  (a),  (idilio),  30 
Tlieatro  de  D.  Maria  II,'  97,118, 

134 
Titulos  exóticos  de  livros,  383 
Torre  de  Londres.  3  iO' 311.352 

365 
Três  (os)  estados,   (conto  phan- 

tastico),  111,  122 
Três  (os)  filhos  de  familia, (ane- 
cdota árabe),  238 
Três  ladrões,  (anecdota^,  212 
Tumulo  do  Eiigolberto,  396*397 
Turcos  (co.-?tuines  dos),  34 
Turquia  (uma  habitação  na)'  33 
Um  baile  de  estrellas  no  século 

XVII,  148 
Uso  (o)  da  palavra,  40 
Utilidade  dos  Cycloiies,  140 
Van-Dick  (A  virgem  e  o  meni- 
no, quadro  de),  '  377 
VanOstade  (o  folguedo  dos  cam- 

ponezes,  quadro  de),  '  365 
Veneza  (ponte  do  Rialto),  44*45 
Veneza  (o  quadrilátero),  *  257, 

294 
Veneza  (uma  vista  de)  *  345 
Viagem  á  lua  (apologo)  119 
Vietoria  Regina,  *  281 
Virgem  (ai  c  o  menino,  (quadro 

de  Van-Dick),  '  377 
Virgínia  (ponte  natural  na),  244 

•'"245 
Vista  pittoresca  dos  paços  rcaes 

do  Cintra,  *  57,  58 
Voltaire,  121' 125,  131, 163,210 
Westmiuster-IIall,  *  221 
Weymouth  *  329 
Wiesbaden  *  73 
William  Ilogarth,  52  *  53 
William  Ilogarth  (a  contradan- 
ça ridícula), 236  '  237 
WÍUiam  Hogarth  (o  infeliz  poe- 
ta), '  28,  29 
William  Ilogarth  (o  musico  en- 
raivecido) 116*117 
WilliamPitt,  '89 
Winasor212*213 
Woolwich  (escola  militar  do), 

*  93 
Worcester  (cathedral  de),  '381, 
382 


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